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EDIÇÃO DO PROFESSOR Programa e Metas


Curriculares

SENTIDOS
Textos inéditos de
José Augusto Cardoso Bernardes PORTUGUÊS
Revisão científica - José Saramago ANA CATARINO
Ana Paula Arnaut
ANA FELICÍSSIMO
Relacionar/Recordar por ISABEL CASTIAJO
Carla Marques MARIA JOSÉ PEIXOTO

MANUAL
CERTIFICADO
Faculdade
de Letras da
Universidade
de Coimbra
SENTIDOS
12
PORTUGUÊS
ANA CATARINO
ANA FELICÍSSIMO
ISABEL CASTIAJO
MARIA JOSÉ PEIXOTO

Manual avaliado e certificado


pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
10 PROJETO DE LEITURA

0. A LITERATURA PORTUGUESA NO SÉCULO XX


18 A Literatura Portuguesa no século XX
22 O século XX português ou o tempo da literatura TEXTO INÉDITO

FERNANDO PESSOA
1. POESIA DO ORTÓNIMO
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAR LEITURA

29 “Autopsicografia” 28 O fingimento artístico 27 Apreciação crítica


“Todas as faces de Pessoa”
30 “Isto” 34 A dor de pensar
47 Memórias
31 “Ela canta, pobra ceifeira” 37 Sonho e realidade
“Teatrinho do Romão [1977]”
32 “Gato que brincas na rua” 45 A nostalgia da infância
33 “Tenho tanto sentimento” 46 Linguagem, estilo e estrutura
35 “Não sei se é sonho, se realidade”
36 “Tudo o que faço ou medito”
36 “Nada sou, nada posso, nada sigo”
42 “Maravilha-te, memória!”
43 “Quando era jovem, quando tinha pena”
44 “Não sei, ama, onde era”

50 CONSOLIDAR 51 VERIFICAR 52 AVALIAR

FERNANDO PESSOA
2. HETERÓNIMOS E BERNARDO SOARES
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAR LEITURA

Alberto Caeiro 59 A questão da heteronímia 70 Exposição sobre um tema


65 “Se eu pudesse trincar a terra toda” “Isabel Rato: O jazz em Pessoa”
60 A Adolfo Casais Monteiro
66 “Dizes-me: tu és mais alguma cousa” 91 Texto de opinião
63 A reflexão existencial: o primado
“Só uma nota”
67 “Sou um guardador de rebanhos” das sensações

Ricardo Reis 63 O poeta bucólico


72 “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira 64 Linguagem, estilo e estrutura
do rio”
74 “Segue o teu destino” 76 Ricardo Reis: o poeta “clássico”
A consciência e a encenação
75 “Uns, com os olhos postos no da mortalidade
passado”
75 “Solene passa sobre a fértil terra”

Álvaro de Campos 78 O poeta da modernidade


O imaginário épico
80 “Ode triunfal”
90 Linguagem, estilo e estrutura
87 “Ali não havia eletricidade”
92 O (estranho) fenómeno
88 “Esta velha angústia” TI
dos heterónimos

2
ÍNDICE
12 RECORDAR

ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

26 COMPREENSÃO DO ORAL 26 Exposição sobre um tema 30, 31, 32, Funções sintáticas
Documentário Fernando Pessoa e os heterónimos – 33, 42, 49
Grandes Livros, Livro do desassossego dados biográficos e contexto 30, 49 Classe de palavras
26 EXPRESSÃO ORAL político, social e literário
30, 43, 55 Valor do conector
Apreciação crítica 41 Texto opinião 30, 33, 42, Subordinação
Grandes Livros, Livro do desassossego O direito de pôr termo à vida 43, 44, 49
29 EXPRESSÃO ORAL 49 Apreciação crítica 31, 42, 49 Pronome pessoal (referente)
Texto de opinião Filme – O meu nome é Alice 32 Flexão verbal
Mafalda (BD) vs. problemática
da existência humana 33, 35, 42 Coesão
40 COMPREENSÃO DO ORAL 33 Coordenação
Debate 35, 44, 49 Dêixis
Eutanásia 42, 49 Valor aspetual
41 EXPRESSÃO ORAL 43 Processos de formação
Debate de palavras
O sofrimento e a vida
APRENDER/APLICAR

38 Valor aspetual

ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

58 COMPREENSÃO DO ORAL 67 Exposição sobre um tema 65, 73, 97 Subordinação


Diálogo argumentativo Alberto Caeiro, o poeta bucólico
65, 73, 97, Funções sintáticas
Fernando Pessoa e a questão
75 Apreciação crítica 104
da heteronímia
Pintura – “O teatro íntimo do ser”
67, 91 Processos de formação
71 COMPREENSÃO DO ORAL
89 Exposição sobre um tema de palavras
Exposição sobre um tema
A criação heteronímica
O heterónimo Ricardo Reis 67 Pronome pessoal em
90 Síntese adjacência verbal
71 EXPRESSÃO ORAL
“Linguagem, estilo e estrutura”
Texto de opinião 67, 97 Pronome pessoal (referente)
[heterónimos]
O heterónimo Ricardo Reis
73 Flexão verbal
78 COMPREENSÃO DO ORAL
86 Valor modal
Exposição sobre um tema
Álvaro de Campos 87 Dêixis
89 COMPREENSÃO/EXPRESSÃO ORAL 87, 97, 101 Coesão
Exposição sobre um tema
87, 101 Valor aspetual
Álvaro de Campos

Nota: TI Texto inédito

3
FERNANDO PESSOA
2. HETERÓNIMOS E BERNARDO SOARES
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAR LEITURA

Bernardo Soares 93 O ver e o olhar de um guarda-livros TI 96 Apreciação crítica


99 “Amo, pelas tardes demoradas “O livro que nunca existiu”
95 A natureza fragmentária da obra
de verão, […]” 103 Diário
98 Imaginário urbano e o quotidiano
100 “Quando outra virtude não haja “Notas autobiográficas
Deambulação e sonho:
em mim, […]” e de autognose”
o observador acidental
102 “Releio passivamente, […]”
104 Perceção e transfiguração poética
103 “Tudo é absurdo.” do real

106 CONSOLIDAR 107 VERIFICAR 108 AVALIAR

FERNANDO PESSOA
3. MENSAGEM
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAR LEITURA

120 “O dos Castelos” 118 Mensagem – Estrutura da obra 116 Artigo de opinião
121 “Ulisses” “Um Dia de Portugal a não esquecer”
127 A luz de Camões e a hora de Pessoa TI

122 “D. Dinis” 125 Artigo de divulgação científica


133 Exaltação patriótica
“A vida no limite”
123 “D. Sebastião, Rei de Portugal” 136 A natureza épico-lírica da obra
128 Relato de viagem
124 “O Infante” e a dimensão simbólica do herói
“As ilhas no oposto do mundo”
126 “O Mostrengo” 137 O sebastianismo e a dimensão
130 “Mar Português” patriótica

131 “Prece”
132 “O Quinto Império”
134 “Screvo meu livro à beira-mágoa”
135 “Nevoeiro”

138 CONSOLIDAR 139 VERIFICAR 140 AVALIAR

4. CONTOS
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAR LEITURA

146 O conto ou o mundo selecionado TI


166 Memórias
146 A estrutura do conto “As pequenas memórias”,
José Saramago
151 “Sempre é uma companhia”, 150 O espaço físico, psicológico
de Manuel da Fonseca e sociopolítico
Os habitantes do Alentejo
160 Solidão e convivialidade
Importância das peripécias inicial
e final
161 As personagens
170 “George”, de Maria Judite de Carvalho 169 Maria Judite de Carvalho – vida e obra 178 Artigo de opinião
“Os 90 anos de
PROFESSOR 176 A complexidade da natureza humana
Maria Barroso”
Diálogo entre realidade, memória
Disponível, na brochura Educação Literária
e imaginação
(Dossiê do Professor), didatização do conto
“Famílias desavindas”, de Mário de Carvalho. 177 As três idades da vida

180 CONSOLIDAR 181 VERIFICAR 182 AVALIAR

4
ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

94 COMPREENSÃO DO ORAL 105 Apreciação crítica


Documentário “Filme do desassossego”,
Grandes Livros, João Botelho
O livro do desassossego
94 EXPRESSÃO ORAL
Síntese APRENDER/APLICAR
Grandes Livros,
O livro do desassossego 68 Valor modal

ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

116 EXPRESSÃO ORAL 131 Texto de opinião 121, 129 Dêixis


Diálogo argumentativo A importância da esperança
121 Pronome pessoal (referente)
Mensagem
121, 129 Coesão
127 COMPREENSÃO DO ORAL
Canção [relação entre textos] 124 Coordenação
“O homem do leme”
124, 129, Valor aspetual
130 COMPREENSÃO DO ORAL 135
Anúncio publicitário
“Turismo de Portugal” 124 Valor modal
129, 135 Subordinação
131 Funções sintáticas
135 Classe de palavras

ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

147 COMPREENSÃO DO ORAL 167 Exposição sobre um tema 158 Valor temporal
Reportagem A importância da memória para 158, 167 Valor modal
Manuel da Fonseca a construção da identidade 158, 167 Funções sintáticas
159 COMPREENSÃO DO ORAL 169 Síntese 158, 167 Formação de palavras
Exposição sobre um tema “Maria Judite de Carvalho – vida 158 Valor do conector
“Olá, Planeta Terra? Daqui a selfie” e obra” 158 Coordenação
159 EXPRESSÃO ORAL 175 Texto de opinião 158 Campo lexical
Texto de opinião Relação entre uma pintura 159, 175 Coesão
Importância e papel dos registos e o conto “George” 159, 167 Processos fonológicos
fotográficos para a construção
175 Sequências textuais
da história e da memória
175 Campo semântico
168 COMPREENSÃO DO ORAL
179 Flexão verbal
Exposição sobre um tema
179 Valor aspetual
Maria Judite de Carvalho
175 EXPRESSÃO ORAL APRENDER/APLICAR
Apreciação crítica 148 Valor temporal
Pintura – “As três idades da mulher”
162 Sequências textuais

5
POETAS
5. CONTEMPORÂNEOS
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAR LEITURA

Miguel Torga 189 A tradição literária – o tema 196 Memórias


190 “A um negrilho” da Natureza “Prêmio Camões”
191 “Sísifo” 189 Representações do contemporâneo
193 “Dies irae” 192 Figurações do poeta
195 “Prospeção”
194 Arte poética
Eugénio de Andrade
197 Arte poética
198 “Tu és a esperança, a madrugada”
199 “Agora as palavras” 200 Tradição literária
201 “Green God”
202 “Poema à mãe”
Ana Luísa Amaral 206 Representações do contemporâneo
207 “Testamento”
208 “Visitação”
209 “Inês e Pedro: quarenta anos depois”
210 “Soneto científico a fingir”
Manuel Alegre 211 Representações do contemporâneo
212 “Letra para um hino” Tradição literária
Arte poética
213 “Abaixo el-rei Sebastião”
214 “Sobre um mote de Camões”
215 “Coisa amar”
Roteiro poético
216 Alexandre O’ Neill
217 Ruy Belo

218 CONSOLIDAR 219 VERIFICAR 220 AVALIAR

6.1 JOSÉ SARAMAGO


O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAR LEITURA

232 Representações do séc. XX: o tempo 228 Saramago num país de fantasmas TI 227 Diário
histórico e os acontecimentos 230 Visão global da obra “Cadernos de Lanzarote”
políticos – Portugal
238 Representações do séc. XX: o tempo 229 Exposição sobre um tema
242 Representações do séc. XX: o tempo histórico e os acontecimentos “A ditadura de Salazar”
histórico e os acontecimentos políticos – Portugal
247 Artigo de opinião
políticos – Europa 239 Linguagem e estilo: o tom oralizante e “Europa, a democracia ou o fim”
249 O espaço da cidade a pontuação; reprodução do discurso
Deambulação geográfica e viagem no discurso
literária 240 Representações do séc. XX: o tempo
histórico e os acontecimentos
258 Representações do amor –
políticos – Europa
Marcenda
256 O espaço da cidade
Deambulação geográfica e viagem
262 Representações do amor – Lídia literária
270 Representações do amor
272 Intertextualidade: José Saramago,
leitor de Luís de Camões, Cesário
Verde e Fernando Pessoa
273 CONSOLIDAR 275 VERIFICAR 276 AVALIAR

6
ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

188 COMPREENSÃO DO ORAL 203 Apreciação crítica 190 Valor temporal


Diálogo argumentativo Pintura – “Maternidade”
190 Valor aspetual
Bob Dylan – Prémio Nobel
da Literatura 196 Variedades do português
188 EXPRESSÃO ORAL 203 Flexão verbal
Diálogo argumentativo
Importância da educação artística 212 Funções sintáticas
na formação da personalidade 212 Valor modal
189 COMPREENSÃO DO ORAL 214 Intertextualidade
Documentário
Miguel Torga
206 COMPREENSÃO DO ORAL
E EXPRESSÃO ORAL
Exposição sobre um tema
Arte poética de Ana Luísa Amaral

APRENDER/APLICAR

204 Intertextualidade

ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

226 COMPREENSÃO DO ORAL 237 Síntese 227, 237 Dêixis


Documentário “A ditadura de Salazar”
227 Coerência
Grandes Livros, “José Saramago”
255 Texto de opinião
237 Coordenação
226 EXPRESSÃO ORAL A terra em que habito
Texto de opinião 237 Processos de formação
“Era uma vez José Saramago” de palavras
242 EXPRESSÃO ORAL 237, 269 Valor aspetual
Exposição sobre um tema
Situação política e histórica 255, 269 Intertextualidade
da Europa em 1936 261, 269 Modos de relato do discurso
248 COMPREENSÃO DO ORAL 261, 269 Sequências textuais
Debate
A situação dos refugiados na Europa 269 Subordinação
269 Processos fonológicos
269 EXPRESSÃO ORAL
Diálogo argumentativo 269 Étimologia
Quem traça o destino?

7
6.2 JOSÉ SARAMAGO
MEMORIAL DO CONVENTO
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAR LEITURA

286 A promessa 282 O título e as linhas de ação; [227] Discurso político


290 A construção do convento a estrutura da obra “Cadernos de Lanzarote”
e as condições de vida dos 284 Visão global da obra 298 Discurso político
trabalhadores “Celebrações do Dia de Portugal”
289 Linguagem e estilo: pontuação;
292 Os gastos com a construção reprodução do discurso no discurso 310 Exposição sobre um tema
do convento “A Inquisição”
302 Visão crítica
294 A odisseia da pedra
299 A megalomania do rei e o sacrifício 328 Caracterização das personagens
do povo e relação entre elas
303 Visão crítica I 329 Dimensão simbólica
304 Visão crítica II 330 O tempo histórico e o tempo
306 Baltasar da narrativa
308 O encontro e a união 331 A história que se faz e refaz TI

312 O dom de Blimunda


314 A construção da passarola (1.a fase)
318 O regresso da Holanda e a nova fase
da construção da passarola
320 Amizade com Scarlatti e as dúvidas
do padre
322 A recolha de vontades e a doença
de Blimunda
324 O voo da passarola
326 O desencontro e o encontro

332 CONSOLIDAR 335 VERIFICAR 336 AVALIAR

RELACIONAR/RECORDAR
340 A variedade do sentimento amoroso 344 Matéria épica
342 Representações do quotidiano 346 Crítica

BLOCO INFORMATIVO
350 I – GRAMÁTICA (Sistematização)
350 Fonética e fonologia LEXICOLOGIA
350 Etimologia: étimo e palavras convergentes e divergentes 367 Arcaísmos e neologismos
MORFOLOGIA 367 Campo lexical e campo semântico
351 Processos regulares de formação de palavras 367 Monossemia e polissemia
352 Flexão verbal 368 Denotação e conotação
368 Relações semânticas
CLASSES DE PALAVRAS
369 Processos irregulares de formação de palavras
353 Classes e subclasses de palavras
SEMÂNTICA
SINTAXE
369 Valor temporal – formas de expressão do tempo
359 Funções sintáticas
370 Valor aspetual
362 Frase complexa – coordenação e subordinação
371 Valor modal
362 Coordenação
363 Subordinação DISCURSO, PRAGMÁTICA E LINGUÍSTICA TEXTUAL
364 Frase ativa e frase passiva 372 Dêixis: pessoal, temporal e espacial
365 Pronome pessoal em adjacência verbal − regras de utilização 373 Marcadores discursivos/conectores

8
ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

[226] COMPREENSÃO DO ORAL 293 Texto de opinião 289, 301, Reprodução do discurso
Documentário Investimento dos dinheiros públicos 313, 327 no discurso
Grandes Livros, “José Saramago”
313 Síntese 293 Subordinação
[226] EXPRESSÃO ORAL “Crenças no paranormal”
Texto de opinião 297 Valor temporal
“Era uma vez José Saramago” 297, 317 Processos fonológicos
282 EXPRESSÃO ORAL
Exposição sobre um tema 307, 317 Sequências textuais
Relações entre imagens e a obra 307 Valor aspetual
em estudo
307 Coesão
286 COMPREENSÃO DO ORAL
Documentário 307 Valor modal
Grandes Livros, Memorial do convento
313 Pronome pessoal (referente)
291 EXPRESSÃO ORAL
Debate 313 Valor lógico de conectores
O aumento do salário mínimo 317 Funções sintáticas
306 COMPREENSÃO DO ORAL
317 Dêixis
Documentário
Grandes Livros, Memorial do convento 327 Étimologia
317 COMPREENSÃO/EXPRESSÃO ORAL
Canção [relação entre textos]
Texto de opinião
O sonho comanda a vida
321 EXPRESSÃO ORAL
Diálogo argumentativo
O confronto entre as crenças
religiosas e a objetividade
da ciência

349 SUGESTÕES DE ATIVIDADE

š O tema do amor (Camões lírico vs. O ano da morte de Ricardo Reis) š A crítica na literatura
š Representações da mulher na literatura š A reflexão existencial

PROFESSOR

O projeto Sentidos 12 disponibiliza, em Preparar o Exame


e Livro de Fichas (Dossiê do Professor), atividades para os
diferentes domínios, que permitem o reforço do trabalho
374 Reprodução do discurso no discurso
desenvolvido em sala de aula e o incremento da autonomia
375 Texto e textualidade − coerência e coesão textual do aluno:
376 Intertextualidade „ Gramática (fichas por conteúdo gramatical e fichas
376 Sequências textuais globalizantes);
„ Leitura (fichas para os diferentes géneros textuais).
378 II – GÉNEROS TEXTUAIS – Domínios e marcas textuais
Preparar o Exame apresenta ainda, para os géneros do domínio
da Escrita (Síntese, Exposição sobre um tema, Apreciação
380 III – RECURSOS EXPRESSIVOS
crítica, Texto de opinião), propostas de trabalho organizadas em
„ Recordar/Exemplificar/Praticar/Avaliar.
382 IV – NOÇÕES DE VERSIFICAÇÃO
O Livro de Fichas (Dossiê do Professor), e
383 V – VERBOS INSTRUCIONAIS oferecem ainda propostas de Questões de Aula para a
avaliação dos diferentes autores/obras no domínio da Educação
384 VI – FICHA DE LEITURA /APRECIAÇÃO CRÍTICA DA OBRA Literária do 12.˚ ano.

9
PROJETO DE LEITURA
Consulte, na página Selecione uma das seguintes obras para a ler integralmente. Depois da leitura,
384, a ficha de leitura/ preencha uma ficha de leitura/apreciação crítica da obra.
apreciação crítica
de obra.

Poemas de Deus e do Diabo

J osé Régio foi um dos fundadores da revista Presença.


Marcados pelo subjetivismo e pela introspeção, Poe-
mas de Deus e do Diabo traduzem os conflitos e os anta-
gonismos que caracterizam o ser humano. Ao expor-se a
JOSÉ RÉGIO
si próprio, nas suas várias “máscaras”, Régio reflete sobre
(1901-1969)
a condição humana, as suas inquietações e contradições.
Dicotomias como Deus/Diabo e Bem/Mal perpassam toda
a obra, contribuindo para o seu pendor marcadamente
crítico e reflexivo.

Balada da praia dos cães

A ação decorre nos anos 1960, em pleno Estado Novo


e é inspirada num caso real. Elias Santana investiga
o homicídio do Major Júlio Dantas Castro, um fugitivo da
cadeia, acusado de ter participado num golpe de Estado.
JOSÉ CARDOSO PIRES
(1925-1998)
Os suspeitos são os cúmplices da sua fuga: o Cabo Barro-
ca, o arquiteto Fontenova Sarmento e Filomena, a amante
da vítima, por quem Elias vai desenvolver uma obsessão.
Escrito após a revolução de 25 de abril de 1974, a obra
retrata a sociedade portuguesa durante a ditadura, com
inúmeras referências à polícia política e à sua interferên-
cia na investigação que se desenrola.

Balada da praia dos cães, 1987, realização de José Fonseca e Costa.

Retalhos da vida de um médico

FERNANDO NAMORA
P ublicado em 1949, o romance de Fernando Namora
retrata dramas humanos, realidades sociais, episó-
dios que documentam a vida do médico-escritor. Trata-
(1919-1989)
-se de uma obra fragmentada, constituída por excertos de
memórias vividas pelo narrador, médico nas aldeias da
região centro e sul do país, numa época marcada por su-
perstições, crendices e charlatães. Constitui, por isso, um
retrato social da primeira metade do Portugal do século XX.

Retalhos da vida de um médico, 1962, realização de Jorge Brum do Canto.

10
Cem anos de solidão

A obra do escritor colombiano, Prémio Nobel da Literatura


em 1982, reconstrói a história da América Latina a partir
da fundação de uma aldeia fictícia, Macondo, e da história de
GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
(1927-2014)

uma família, os Buendía, ao longo das várias gerações. No ro-


mance, que foi considerado o introdutor do “Realismo mági-
co”, o autor recorre à fantasia para retratar de forma magistral a
realidade e refletir sobre temas como o incesto, a loucura, mas
também a corrupção e a revolução.

Ficções

C oleção de 16 contos do escritor argentino mundialmente


conhecido, divididos em duas partes − O jardim de vere-
das que se bifurcam e Artifícios −, onde se incluem “O milagre JORGE LUIS BORGES
(1899-1986)
secreto”, “A biblioteca de Babel”, “Funes, o Memorioso”, “Pierre
Menard, autor do Quixote” e “As ruínas circulares”. Trata-se de
uma admirável prosa poética, em que se destacam a fabulosa
imaginação, a erudição e o humor de Borges. As diversas nar-
rativas são um labirinto no qual se mistura a verdade com a
ficção e o real com o imaginário, fascinando o leitor de forma
inesquecível.

As velas ardem até ao fim

D ois homens, unidos por uma profunda e intensa ami-


zade, inseparáveis durante a juventude, reencontram-se
quarenta e um anos depois. Um dramático segredo levou-os
ao afastamento e só agora se defrontam com ele, tentando re-
SÁNDOR MÁRAI
construir o passado e saber a verdade. O narrador – o protago- (1900-1989)
nista −, Konrád − o amigo desejoso de apreço social −, Krizstina −
a esposa sedenta de liberdade −, a mãe do general e Nini − a
ama do general − são as personagens que dão corpo a uma PROFESSOR
intriga apaixonante, que se desenrola numa escrita profun-
damente poética e que embrenha o leitor numa reflexão de
caráter sociológico reveladora da atualidade da obra. Documento
– Fichas de Leitura
– Obras propostas para
o Projeto de Leitura –
12.˚ ano (lista completa)

11
RECORDAR
COMPREENSÃO DO ORAL

Visione um registo vídeo sobre duas experiências de solidariedade vividas por mulhe-
res brasileiras. Leia, antecipadamente, todo o enunciado.

Solidariedade, Globo

1. Tome notas que lhe permitam registar a informação solicitada na tabela.

Atividade desenvolvida Local Objetivo comum

Elisa a. _____________________ b. ____________________


e. ____________________
Dona
c. _____________________ d. ____________________
Zezé

2. Assinale, no seu caderno, como verdadeiras ou falsas as seguintes afirmações. Cor-


PROFESSOR rija as afirmações falsas.
a. O homem é naturalmente mais generoso do que a mulher.
Oralidade
b. A generosidade transforma o ser humano, tornando-o mais feliz.
c. No centro onde Elisa trabalha há mais de uma centena de pessoas internadas.
Vídeo
Solidariedade, Globo
d. Elisa deixou o Rio de Janeiro para se juntar à organização Médicos sem Fronteiras.
(12 minutos) e. Dona Zezé distribui semanalmente, pelas famílias mais carenciadas, cerca de 800
pães.
1.
a. Tratamento de doentes com f. A idade e as doenças graves que já sofreu debilitam por vezes a vontade de dona
cólera. Zezé.
b. Haiti.
g. Estas mulheres consideram muito gratificante o trabalho que desenvolvem.
c. Confeção de pão para os
mais pobres.
d. Rio Grande do Sul.
e. Ajudar quem mais precisa.
EXPRESSÃO ORAL
2.
a. F − A mulher é Realize uma pesquisa sobre voluntariado e sobre algumas individualidades que con-
naturalmente mais generosa
do que o homem. cretizaram projetos de solidariedade/voluntariado relevantes.
b. V
1. Apresente uma exposição oral, em 4 a 6 minutos, sobre a importância do voluntaria-
c. V
d. F − Elisa deixou Belo
do na sociedade atual e o exemplo que personalidades públicas podem dar.
Horizonte para se juntar à Planifique a sua intervenção de forma a:
organização Médicos sem
Fronteiras. š encadear logicamente as ideias;
e. V
f. F − Apesar da sua idade e
š dar destaque aos tópicos essenciais.
das doenças, a vontade de
ajudar a melhorar a vida dos Durante a apresentação oral, tenha em atenção:
outros é mais forte.
š a correção linguística e a variedade vocabular;
g. V
š o tom de voz, o ritmo, a entoação e a postura.

12
LEITURA

Leia o texto e responda às questões. Nas respostas aos itens de escolha múltipla, se-
lecione a opção correta.

O espírito de Assis 1

H
á 30 anos, em Assis, nasceu o desejo de realizar um encontro das religiões em fa-
vor da paz. Não era então uma coisa evidente, nem hoje o é, num mundo persis-
tentemente separado por fundamentalismos, blocos, inimizades e terrorismos
de vária espécie. O papa João Paulo II provocou o degelo, congregando na cidade de São
5 Francisco uma jornada histórica que o mundo não se lembrava de haver visto.
A imagem impressionava: juntava o cristianismo do Ocidente com o do Oriente e as
Igrejas da Reforma, partilhando o espaço com a religião hebraica e islâmica, abraçando o
budismo e o hinduísmo, saudando cordialmente a polifónica vitalidade de tantas outras
tradições espirituais presentes. Wojtyla2 afirmou então que, talvez em nenhuma épo-
10 ca do passado como hoje, se tornara necessário consolidar a perceção de um ligame3
obrigatório entre religião e paz. Tratava-se de rezar, é verdade, coisa que em si nada tem
de extraordinário para qualquer geografia religiosa. Mas o que em Assis era novo residia
no facto de a oração não ser a de uns contra outros, como aconteceu durante séculos.
Era agora a prece de uns feita ao lado da de outros. Os diversos líderes religiosos, com o
15 ineditismo desta abertura e o colorido misturado das suas vestes, ofereciam aos fiéis
das suas tradições não apenas uma ética de que o mundo precisa mas também uma
estética para o diálogo futuro. 1
Cidade italiana onde nasceu
Esta cimeira, que se passou a realizar anualmente, percorrendo várias cidades do São Francisco de Assis; nela
mundo, retornou a Assis no seu 30.˚ aniversário. O papa Francisco levantou ali a sua voz se realizou um encontro
inter-religioso que assinalou
20 para, em nome dos presentes, dizer que só a paz é santa e nunca a guerra. E exortou:
o primeiro Dia Mundial de
“Sair, pôr-se a caminho, encontrar-se em conjunto, trabalhar pela paz. São respostas es- Oração pela Paz.
pirituais concretas para superar a grande doença do nosso tempo: a indiferença.” Coube 2
Nome próprio do papa João
ao sociólogo Zygmunt Bauman fazer a intervenção inicial, refletindo sobre a História da Paulo II.
3
Humanidade a partir do pronome “nós”. A primeira vez que o termo foi usado não incluiria Ligação, vínculo.

13
25 mais de 150 pessoas, na época em que os homens eram caçadores e recoletores. Aos
poucos, este número foi aumentando, aplicando-se sucessivamente à tribo, à aldeia, à
cidade, ao estado ou aos impérios. Mas em todas essas etapas o uso do pronome “nós”
tinha um elemento em comum: formulava-se em oposição aos “outros”, num regime de
inclusão e de exclusão. E isto construiu a História do modo que a conhecemos. Hoje,
30 porém, vive-se num novo limiar. Num mundo cosmopolita e globalizado, o “outro” tra-
dicional deixou de existir, porque descobrimo-nos todos dependentes uns dos outros.
Por isso, segundo ele, faríamos bem em escutar os três conselhos que repetidamente,
por palavras e gestos, tem dado o papa Francisco. 1) Antes de tudo, a necessidade de
instaurarmos uma cultura de diálogo para assim reconstruirmos o tecido da sociedade;
35 2) Depois, fazermos valer a equidade na distribuição dos frutos da terra e do trabalho,
deixando para trás esta economia líquida, apostando na criação de postos de trabalho
reais; 3) Por fim, compreendermos que temos de confiar mais na educação, nos proces-
sos longos que requerem de nós planificação, paciência e coerência.
José Tolentino Mendonça, E, Revista do Expresso, edição n.˚ 2292, 1 de outubro de 2016 (com supressões).

1. A expressão “O papa João Paulo II provocou o degelo” (l. 4) significa que o encontro
[A] visou a união das várias religiões em prol da paz.
[B] lançou a discussão sobre o terrorismo e o fundamentalismo no mundo.
[C] chamou a atenção para a existência de diversas tradições espirituais.
[D] pôs em destaque a boa imagem do catolicismo no mundo.

2. A afirmação “Mas o que em Assis era novo residia no facto de a oração não ser a de
uns contra outros, como aconteceu durante séculos” (ll. 12-13)
[A] demonstra que os intervenientes oravam uns pelos outros.
[B] revela que as diferentes religiões puseram de lado as suas divergências.
[C] põe em evidência o passado e o presente das instituições religiosas.
[D] refere o objetivo principal do encontro: a oração.

3. Segundo o papa Francisco, o pior mal da sociedade atual é


[A] a falta de comunicação entre as várias religiões.
[B] o afastamento dos homens relativamente às várias religiões.
PROFESSOR
[C] a falta de preocupação dos homens para com os seus semelhantes.
Leitura e Gramática
1. [A] [D] a incompreensão face aos problemas sociais que afetam toda a humanidade.
2. [B]
3. [C] 4. Os conselhos referidos no final do texto evidenciam
4. [A] [A] a necessidade de comunicação, de partilha dos recursos naturais e do emprego e
5. [C]
de aposta na educação.
6. [B]
7. Sujeito. [B] a importância da criação de emprego, do desenvolvimento da economia e do diá-
8. Ilustram a coerência logo entre os povos.
textual, pois evidenciam
a progressão. [C] a valorização do trabalho, da cultura e da igualdade de oportunidades entre os povos.
9. Coesão lexical por
substituição. [D] a crítica à economia global e a defesa da igualdade de oportunidades no emprego
entre os povos.

14
5. A palavra “ineditismo” (l. 15) é sinónimo de

[A] vulgaridade.

[B] misticismo.

[C] originalidade.

[D] inatividade.

6. Na expressão “num mundo persistentemente separado por fundamentalismos,


blocos, inimizades e terrorismos” (ll. 2-3), o autor utiliza
[A] uma metáfora.

[B] uma enumeração.

[C] uma hipérbole.

[D] uma aliteração.

7. Identifique a função sintática desempenhada pela expressão sublinhada no seg- PROFESSOR


mento “tem dado o papa Francisco”. (l. 33)
Escrita
8. Justifique o recurso aos conectores “Antes de tudo” (l. 33), “Depois” (l. 35) e “Por fim” (l. 37). Resposta de caráter pessoal.
No entanto, o aluno poderá
referir:
9. Refira o mecanismo de coesão textual que ocorre em “papa João Paulo II” (l. 4) e – o teor grotesco do quadro
(criaturas híbridas: humanas
“Wojtyla” (l. 9). e animais);
– a fealdade dos seres
representados;
– a representação do absurdo;
– a sugestão de violência e de
angústia.
E S C R I TA

1. Redija um texto de apreciação crítica, de 150 a 180 palavras,


sobre a pintura de Paula Rego, atentando nos seguintes passos:
š elaboração de um plano que lhe permita organizar as ideias;
− introdução: apresentação sucinta da reprodução da obra de
arte;
− desenvolvimento: descrição das figuras representadas e do seu
valor simbólico, com referência a planos e cores; comentário
crítico fundamentado por argumentos que evidenciem a eficá-
cia do imaginário representado na sua relação com a realidade
evocada;
− conclusão: síntese e reforço da opinião defendida.
š textualização, contemplando:
– a estrutura tripartida do texto;
– correção e seleção vocabular;
– respeito pelas marcas específicas do género textual.
š revisão e correção de eventuais incorreções para aperfeiçoamen-
to do texto.

War, 2003, Paula Rego, Tate Modern, Londres.

15
0
A Literatura Portuguesa
no século XX
A Literatura Portuguesa do século XX

1888 1891 1893-95 1908 1910 1912


Nascimento Revolta do 31 de Janeiro Nascimento de Assassinato do Proclamação da Surgimento do
de Fernando no Porto: sublevação Almada Negreiros rei D. Carlos a 1 de República a 5 de grupo da Renascença
Pessoa. republicana. e de António Ferro. fevereiro, em Lisboa, outubro. Portuguesa.
Nascimento de Alfredo Pedro juntamente com Nomeação de Teófilo
Guisado, Armando Côrtes- o seu filho, D. Luís Braga como Presidente
-Rodrigues, Luís de Montalvor Filipe. da República.
e Mário de Sá-Carneiro. Publicação da revista
A Águia.

Crise do pensamento racional Dos movimentos de fim-de-século


à geração de Orpheu
Nos finais do século XIX e princípios do século XX, a arte
europeia assumia já uma posição ideológica profundamente Num texto de 1916 sobre o Sensacionismo, Fernando Pes-
significativa. De facto, o que então estava em causa era a de- soa referia-se à civilização moderna nos termos seguintes:
núncia indisfarçável de uma crise civilizacional e cultural que 30 A arte moderna deve:
5 atormentava a Europa, crise essa justificada por teóricos e 1) ou cultivar serenamente o sentimento decadente, escru-
pensadores que enquadram esta questão na desconfiança pulizando em todas as cousas que são características da deca-
para com as respostas e ‘certezas’ unívocas e racionalistas da dência – a imitação dos clássicos, a limpidez da linguagem, a
Ciência, que uma civilização moderna – herdeira do raciona- cura excessiva da forma, características da impotência de criar;
35 2) ou, fazendo por vibrar com toda a beleza do contempo-
lismo das ‘luzes’, do Romantismo humanitário e do progresso
râneo, com toda a onda de máquinas, comércios, indústrias.
10 científico – defendera.
Compreende-se que, em relação a um período de intensa Assim, em primeiro lugar, verifica-se que, para Pessoa, a
crise generalizada, atravessado por eventos histórico-cultu- “arte moderna” se encontra dividida basicamente entre duas
rais de considerável projeção, se possa falar em pluralidade esferas de preocupações estético-literárias: a que se vincula
de estéticas. Justamente esta pluralidade polifónica de esté- 40 a um “sentimento decadente” e a que traduz um sentimento
15 ticas, em função do contexto de referências em que nos en- de contemporaneidade, com toda a “onda de máquinas,
contramos, revela-se dotada de incidências literárias e comércio, indústrias” por si privilegiada.
culturais favorecidas por duas características básicas que Nestas linhas de elaboração teórica de uma das mais
marcam os seus perfis na relação que mantêm com a cultura atentas personalidades do nosso primeiro Modernismo, sur-
europeia: a sua natureza centrípeta (temos, neste caso, o Im- 45 ge uma importante postulação, no que concerne à caracte-
20 pressionismo e o Simbolismo, movimentos estéticos que rização de um contexto sociocultural determinado: o fim do
mantêm uma forte atração e ligação com os centros de difu- século XIX e os inícios do século XX. Com efeito, o que essa
são da cultura e da literatura europeia) e a sua condição cen- posição evidencia é que, para o grande poeta português, o
trífuga (encontram-se aqui o Neogarrettismo e o Saudosismo, equacionamento da literatura portuguesa não deve ignorar
movimentos estéticos que rejeitam, de modo variável, os 50 a relação que necessariamente existe entre o escritor e todo
25 valores emanados por esses centros europeus, antes man- o conjunto de fatores de índole histórica, social e ideológica
tendo uma forte atração e ligação com a cultura e literatura que o rodeiam.
Dionísio Vila Maior, Introdução ao Modernismo, Coimbra,
portuguesa).
Almedina, 1994, pp. 11-18 (adaptado e com supressões).

18
1913 1914 1915 1916 1917 1918
Primeira exposição Eclosão da Publicação da Suicídio de Mário de Publicação do Assassinato de Sidónio
individual de Primeira Guerra revista Orpheu. Sá-Carneiro, em Paris. número único da Pais.
Almada Negreiros. Mundial. revista Portugal Morte precoce de Amadeo
Futurista. de Souza-Cardoso com
apenas 30 anos.

Transformações político-sociais no final resultará desta amálgama de intenções, mas não deixa de ser
do século XIX e primeiras décadas do século XX sintomático que, logo em janeiro de 1928, se tenha fundado a
Liga 28 de Maio, animada por oficiais das Forças Armadas e
Nas últimas décadas do século XIX, a sociedade portu-
30 por adeptos do Integralismo Lusitano. E o crescente peso de
guesa sofreu algumas transformações significativas, con-
Salazar tornará vitoriosa a solução corporativa e ditatorial,
quanto com ritmos desiguais, mas em que o surto de uma
finalmente institucionalizada como República Unitária e Cor-
relativa industrialização, a crescente acentuação da entrada
porativa a partir de 1933.
5 nos ciclos da economia mundial, a aceleração da emigração
Por tudo isto não admira que o sentimento de decadência
externa (Brasil) e interna (do campo para a cidade) e a con-
35 e os anelos1 de regeneração ou de ressurgimento nacionais
solidação, em Lisboa e em algumas outras localidades, de um
continuassem a ser a pedra-de-toque não só de projetos po-
operariado e de uma pequena burguesia mais politizados,
líticos propriamente ditos mas também de movimentos de
constituíram algumas das características mais relevantes.
ideias que, prolongando algumas atitudes que já vinham das
10 A República, procurando impor-se numa conjuntura na-
últimas décadas do século anterior, reivindicavam uma maior
cional e internacional muito difícil, minada por divisões inter-
40 ação interventora dos intelectuais. Dir-se-á que estes exigiam
nas e sujeitas a fortes ataques dos meios anarquistas e dos
para si um estatuto quase aristocrático, que decorria não só
setores antidemocráticos e antiliberais, viu rapidamente en-
do talento mas também de um ofício que estaria imune aos
fraquecer a sua base de apoio. O abaixamento do nível de vida
jogos dos interesses imorais que caracterizariam a classe po-
15 de algumas camadas da população urbana (funcionários pú-
lítico-partidária. E esta convicção foi compartilhada à direita
blicos), a redução do prestígio profissional e social das Forças
45 e à esquerda, elegendo-os como os melhores preparados para
Armadas (visível depois da Primeira Guerra Mundial), a resis-
compreender a vocação de Portugal e para perscrutar o sen-
tência da Igreja, a via totalitária que começava a invadir a Eu-
tido da sua História. Daí que, nas diferenças de fundamentos
ropa, a instabilidade social e política, eram fatores que davam
e de objetivos, seja possível encontrar um pano de fundo co-
20 força aos que punham em causa a hegemonia do Partido
mum que, em última análise, causticava a solução republicana
Democrático. Uns, como a chamada Esquerda Democrática e
50 e acenava, em contraponto, com promessas de renascimento
o movimento da Seara Nova, sonhavam com a regeneração da
ou de reencontro com a nossa grandeza perdida.
própria República, enquanto outros agudizavam o desconten-
Fernando Catroga, Paulo A. M. Archer de Carvalho,
tamento com o fito de não só restaurar a Monarquia mas
Sociedade e cultura portuguesas II, Lisboa, Universidade Aberta,
25 também de edificar uma ordem política mais autoritária e 1994, pp. 265, 285-286.
conservadora. O golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 1
Aspirações, desejos.

19
A Literatura Portuguesa do século XX

1926 1927 1928 1932 1933 1934


Instauração da Publicação do Eleição do General Carmona Atribuição das Plebiscito relativo à Publicação de
Ditadura Militar, primeiro número para a presidência da funções de Chefe Constituição de 1933, Mensagem, de
pelo general Gomes da revista Presença. República. do Conselho a Salazar, o que fará nascer Fernando Pessoa, que
da Costa, a 28 de Nomeação de Salazar para em acumulação com o regime do Estado ganhara o prémio de
maio, que sucederá a pasta das Finanças. a pasta das Finanças Novo. segunda categoria
à Primeira República. (começa a ganhar Criação da Polícia de do Secretariado da
Reconhecimento, às
contornos o regime Vigilância e Defesa Propaganda Nacional.
mulheres, do direito de voto.
ditatorial). do Estado (PVDE).

Modernismo e Vanguarda
Os conceitos de Modernismo e Vanguarda são bastante Ainda que saibamos hoje ter sido Pessoa o grande impul-
ambíguos quando aplicados no domínio da literatura, sobre- sionador da renovação da literatura portuguesa, não deixa de
tudo numa perspetiva supranacional. Como é sabido, o vocá- 30 ser verdade que o encontro entre os dois poetas [Pessoa e
bulo vanguarda provém da linguagem militar (da expressão Sá-Carneiro] foi absolutamente decisivo para a eclosão do
5 francesa ‘avant-garde’), tendo sido utilizado nas primeiras movimento atualmente designado como modernista. Esse
décadas do século XX para designar os movimentos artísti- encontro terá ocorrido em 1912, e nesse mesmo ano, também
cos que defendiam a rutura com a tradição cultural europeia. aquele em que Pessoa publicou n’ A Águia os seus polémicos
Modernismo é a designação consensualizada pela crítica 35 artigos sobre a nova poesia portuguesa, se constituiu o nú-
para designar o período literário português em que conver- cleo principal da “geração do Orpheu”.
10 gem (no grupo de Orpheu) as duas tendências literárias an- Se o grupo de amigos de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa
tagónicas: a que consiste no aprofundamento das correntes era já à partida bastante exíguo, menor é ainda o número da-
literárias do fim-de-século; e a que receciona e se alinha com queles que podem ser considerados genuinamente moder-
as propostas de rutura da Vanguarda, particularmente do 40 nistas. No importante ensaio O Primeiro Modernismo
Cubismo e do Futurismo. O ponto de convergência das duas Português: vanguarda e tradição (1989), António Quadros,
15 tendências é a obra de Fernando Pessoa, que demonstrou, mesmo tendo em conta, não apenas Orpheu, mas o conjunto
nos seus textos doutrinários, uma completa clarividência re- das publicações periódicas em que se exprimiu esse Primeiro
lativamente a essa convergência e a essa contradição. Antó- Modernismo, não encontra mais do que sete personalidades
nio Quadros reconhece nas duas grandes vertentes do 45 representativas dessa corrente estética, das quais apenas
primeiro modernismo português − “a antitradicionalista e ico- quatro podem ser considerados escritores: Pessoa, Sá-Car-
20 nolástica, e a futurista” − a vontade de romper com a tradi- neiro, Almada, Santa-Rita Pintor, Amadeo de Souza-Cardoso,
ção, mas é na segunda que vislumbra a vontade de antecipar José Pacheco e António Ferro. E dois destes, como sabemos
o futuro. (Amadeo e Santa-Rita), não faziam parte do grupo inicial.
São bem conhecidas as objeções do criador dos heteró- 50 Sete é também o número de artistas “avançados” que conta-
nimos à identificação da revista Orpheu com o movimento biliza Almada Negreiros como membros do grupo inicial do
25 futurista, pois Pessoa, mesmo no corpo de Campos, nunca se Modernismo português na conferência pronunciada, em no-
identificou com a total rejeição do passado cultural europeu vembro de 1926, na festa de encerramento do II Salão de Ou-
propugnada por Marinetti. tono. Não são exatamente os mesmos: Almada não

20
1935 1936 1939-45 1961 1974 1998
Morte de Fernando Ocupação da Renânia pela Segunda Guerra Início da Guerra Revolução de Abril. Atribuição do
Pessoa, a 30 de Alemanha Nazi. Mundial. do Ultramar. Prémio Nobel
novembro. Início da Guerra Civil da Literatura
Invasão da Etópia espanhola. a José Saramago.
pela Itália de Revolta dos Marinheiros
Mussolini. contra a ditadura salazarista.

55 menciona Ferro nem Pacheco, mas inclui o pintor Eduardo as que foram recebidas com enorme estranheza e uma hos-
Viana e o maestro Ruy Coelho. tilidade mordaz, mas aparentemente o texto que mais cho-
A rutura da geração órfica (melhor dizendo de Pessoa) 80 cou a imprensa, impermeável à moderna sensibilidade
com a Renascença Portuguesa seria feita de forma gradual, estética, foi o poema “16”, de Mário de Sá-Carneiro, por não se
encontrando-se perfeitamente consumada em 1914, tendo enquadrar nos parâmetros mentais da crítica jornalística da
60 pesado significativamente nessa rutura a chegada a Lisboa de época.
informação das manifestações da vanguarda europeia cana- A verdade é que a reação da imprensa e do público serviu
lizada pela correspondência de Mário de Sá-Carneiro. Nesse 85 os interesses dos jovens poetas do Orpheu, porque o escân-
mesmo dia, o grupo mobiliza-se em torno do projeto de publi- dalo era também uma forma de divulgação, o que pode facil-
cação de uma antologia de poesia intersecionista, que seria mente ser atestado pelas palavras de Pessoa, numa carta,
65 prontamente abandonado, e também de duas revistas – datada de 4 de abril de 1915, dirigida a Armando Côrtes-Ro-
Lusitânia e Europa – que não chegariam a ver a luz do dia. drigues.
Carlos Reis, António Apolinário Lourenço, História crítica da 90 A prova de que Pessoa e os seus pares se divertiram com
literatura portuguesa, vol. VIII, 2015, Lisboa, Verbo, pp. 13-18 a ira da imprensa pode encontrar-se na sua insistência na
(com supressões).
provocação [com a publicação do n.˚ 2 da revista] (agora
dirigido por Fernando Pessoa e Sá-Carneiro).
A revista Orpheu O terceiro número, cancelado por ordem de Sá-Carneiro,
95 cujo pai tinha sido o verdadeiro financiador da revista, traria
Em 1915, seria finalmente dado o passo decisivo para a como principal destaque “A cena do ódio, de José de Almada
implementação de um Modernismo português com a publi- Negreiros, poeta sensacionista e Narciso do Egipto”.
cação dos dois números da revista Orpheu, a meio caminho Graças a Pessoa e a um pequeno grupo de amigos que o
70 entre a fidelidade ao Paulismo e a abertura aos novos Ismos tinham como principal referência, houve em Portugal uma
pessoanos (o Intersecionismo e o Sensacionismo já clara- 100 Vanguarda que coexistiu com a eclosão das Vanguardas eu-
mente modernistas) e mesmo ao Futurismo. ropeias. De Orpheu, publicaram-se dois números apenas, e
A esta distância pode ser difícil compreender o tom de Portugal Futurista teve o número único apreendido.
chacota com que foi recebida a revista e todas as insinuações António Apolinário Lourenço, Fernando Pessoa, Coimbra,
75 ou declarações de loucura com que foram mimoseados os Edições 70, 2009, pp. 29-35 (com supressões).
autores dos textos nela publicados. As colaborações de Álva-
ro de Campos [com Opiário e Ode triunfal] contam-se entre

21
O século XX português
ou o tempo da literatura
por José Augusto Cardoso Bernardes
Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

TEXTO INÉDITO

A incerteza dos julgamentos próximos lhe sucederam até finais do século XIX. Na mesma linha, si-
tua-se depois a geração da Presença (1929-1940). Para além
O século XX encontra-se ainda demasiado próximo de de ter chamado a atenção para os poetas da geração ante-
nós para poder ser apreciado com a justeza e a distância crí- rior, os presencistas empenharam-se notavelmente na divul-
tica que requerem os fenómenos sociais e ainda mais os fe- 35 gação da nova literatura europeia entre nós. Mário de
nómenos de natureza artística, como é o caso da Literatura. Sá-Carneiro e o próprio Fernando Pessoa, de alguma maneira,
5 É ainda muito cedo, designadamente, para afirmar que se devem a José Régio e a João Gaspar-Simões o impacto quase
tratou de um século excecional, sob o ponto de vista da pro- imediato de que puderam desfrutar. Mas é também através
dução literária, equiparável, por exemplo, aos séculos XVI e das páginas dessa revista literária que chegam a Portugal
XIX, aqueles que, até hoje, parecem ter deixado memória 40 ecos consistentes da literatura europeia coeva, designada-
mais impressiva. mente daquela que se produzia em França.
10 Com tudo o que existe de incerto nos julgamentos próxi- Mas se entre os escritores do Primeiro e do Segundo Mo-
mos, é no entanto possível dizer, desde já, que o século XX é dernismos existe uma continuidade evidente, o mesmo não
literariamente o século de Fernando Pessoa, tal como o sécu- sucede em relação às gerações seguintes. Enquanto os pre-
lo XVI foi o século de Camões e o século XIX foi o século de 45 sencistas defendiam uma literatura “viva”, “original” e não
Garrett. Porém, tal como não se pode reduzir uma época tão especialmente comprometida com as preocupações sociais
15 extensa e variada a um só nome (Gil Vicente e Fernão Mendes e económicas, os escritores da geração seguinte (os neorrea-
Pinto, pelo menos, merecem um lugar destacado na conste- listas) hão de condenar este mesmo alheamento em relação
lação dos grandes autores quinhentistas; tal como Eça de à dinâmica social. A sua posição consistia justamente na de-
Queirós, Camilo Castelo Branco e Cesário Verde merecem fi- 50 fesa de uma literatura empenhada em denunciar ou mesmo
gurar na galeria dos grandes nomes da literatura de Oitocen- em corrigir as injustiças que se verificavam nesse plano.
20 tos), a questão de saber quem, no mesmo plano, deve O conflito traduziu-se numa polémica viva que, embora ten-
acompanhar Pessoa não é, por enquanto, fácil de decidir. do raízes em épocas mais recuadas, deu origem, por meados
Qualquer julgamento deste tipo há de sempre depender de do século XX, a manifestos e a debates intensos, vindos a
variáveis tão diversas como a influência exercida por um 55 público em revistas e jornais. O que estava em causa era
determinado escritor nas gerações posteriores, o impacto determinar se a Literatura deveria estar ao serviço de obje-
25 junto dos leitores, o gosto dos críticos, ou mesmo a presença tivos externos a si própria ou se deveria concentrar-se na
nos programas escolares. ideia de Beleza e nos processos que determinam a sua evo-
lução interna.
Momentos de rutura e de continuidade 60 Do lado dos que perfilhavam a primeira posição estavam
nomes como Soeiro Pereira Gomes ou Alves Redol, por exem-
No que à Literatura diz respeito, o século XX abre com o
plo, enquanto do lado dos que defendiam a segunda posição,
movimento do Orpheu (1914-15) e com a rutura que ele insti-
para além de José Régio e Branquinho da Fonseca, se encon-
tui relativamente a uma tradição anterior, que vinha do Pri-
travam nomes como Miguel Torga (apesar de este se ter de-
30 meiro Romantismo e das diferentes transformações que se
65 pois afastado do movimento da Presença).

22
Gonçalo Viana, revista Estante, n.˚11, outono de 2016 (capa).

A literatura e os seus dilemas 85 Vagão J, sobretudo) ou de Sophia (nos Contos exemplares).


O essencial da obra de Vergílio Ferreira, contudo, como a
Os contornos desta polémica, porém, são vastos, profun- maioria da produção de Sophia ou de Eugénio de Andrade
dos e não se limitam a uma só época. De uma forma ou de acabaram por se demarcar desta posição interventiva, avan-
outra, a literatura que foi depois sendo produzida até aos nos- çando por caminhos de criação marcados por uma vertente
sos dias reflete ainda o mesmo dilema. Embora não perten- 90 estética e existencial.
65 çam já inteiramente a nenhuma destas duas gerações, nomes Em Portugal como na Europa, o século XX é feito de mui-
como José Saramago, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner tos Ismos (Modernismo, Neorrealismo, Existencialismo, Sur-
Andresen, Vergílio Ferreira ou Eugénio de Andrade posicio- realismo), sem que seja possível, para já, determinar a
nam-se ainda de forma relativamente clara quanto a esta importância relativa de cada um; e é igualmente feito de mui-
questão. De facto, nos dois primeiros escritores (em particular 95 tas personalidades literárias. Alguns deles conseguiram al-
70 no primeiro) ecoa ainda a tese de que a Arte e a Literatura não cançar êxito imediato junto de públicos alargados. Outros,
só não podem ignorar as injustiças sociais como devem con- contudo, podem ainda não ter encontrado os leitores que
tribuir para inquietar as consciências e estimular as transfor- idealizaram. Afinal, a comunicação literária nem sempre é
mações sociais. Para além de toda a densidade existencial imediata e depende de fatores imprevisíveis e incontroláveis,
que acolhem, boa parte dos romances de Saramago e boa 100 cujo efeito se faz sentir, a um ritmo lento e oscilante, que atra-
75 parte da poesia de Alegre (sobretudo a que é publicada antes vessa os séculos.
da revolução de 1974) traduzem ainda essa ética do combate Acima de todas as diferenças, porém, o século XX é ainda
por uma sociedade mais justa. De resto, tal como tinha suce- um tempo de Literatura, ou seja, uma época assinalada por
dido com os escritores neorrealistas (alinhados, em geral, um conjunto influente de heróis da escrita, reconhecidos (e
com o materialismo dialético e com as posições do Partido 105 por vezes aclamados) pela sua capacidade de criar e recriar
80 Comunista Português), também Saramago e Alegre (embora identidades, de reconhecer e transformar o mundo através
em alinhamentos ideológicos não coincidentes) viriam a dis- da arte da palavra.
tinguir-se pelo compromisso político-partidário de Esquerda.
De forma menos vincada, encontramos vestígios dessa
mesma ética nas primeiras obras de Vergílio Ferreira (em

23
1
Fernando Pessoa
Poesia do ortónimo

Educação Literária Escrita


O fingimento artístico Exposição sobre um tema
š “Autopsicografia” Texto de opinião
š “Isto” Apreciação crítica
A dor de pensar Oralidade
š “Ela canta, pobre ceifeira” Documentário [CO] [10.˚ ano]
š “Gato que brincas na rua” Apreciação crítica [EO] [10.˚ e 11.˚anos]
š “Tenho tanto sentimento” Texto de opinião [EO]
Sonho e realidade Debate [CO + EO]
š “Não sei se é sonho, se realidade” Gramática
š “Tudo que faço ou medito” Valor aspetual [Aprender/Aplicar]
š “Nada sou, nada posso, nada sigo” Em revisão:
A nostalgia da infância Processos de formação de palavras
š “Maravilha-te, memória!” Flexão verbal
š “Quando era jovem, quando tinha pena” Classes de palavras
š “Não sei, ama, onde era” Funções sintáticas
Linguagem, estilo e estrutura Subordinação
Leitura Dêixis
Apreciação crítica Coesão
Memórias Valor dos conectores
Fernando Pessoa

PERA
CU R

RE
CO M P R E E N S Ã O/ EX P R E SS Ã O O RA L
N T Á R IO
DOCUME

10.° ANO 1. Visione uma sequência fílmica do programa Grandes Livros que apresenta Fernando
PROFESSOR
Pessoa – um dos maiores poetas portugueses –, bem como o contexto político-cultu-
Educação Literária ral que o envolveu. Considere, antecipadamente, as alíneas da questão 1.1.
16.1
Oralidade
1.5; 1.6; 2.1
Escrita
10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3

Link
Livro do desassossego – Livro do desassossego –
Grandes Livros, RTP Grandes Livros, RTP.
(26 minutos)
Apresentação 1.1 Anote, no seu caderno, as seguintes informações:
Contextualização
histórica e literária a. situação político-social referida;
(poesia do ortónimo) b. movimentos estético-culturais, objetivos e formas de divulgação;
Sugestões para a questão 1.1
c. dados biográficos de Fernando Pessoa;
− Atribua cada tópico (alínea),
por sorteio, a 3, 4 ou 5 alunos, d. heterónimos pessoanos;
a fim de, posteriormente,
os juntar por grupos e de e. particularidades genéricas do Livro do desassossego;
aproveitar a atividade para
proceder à avaliação do oral f. intervenientes: profissões e opiniões;
formal do 1.˚ período.
− Selecione um moderador, g. papel (ir)relevante das transformações estético-culturais da época retratada para
orientando-o no sentido de
regular equitativamente o progresso social.
as intervenções, de modo a
dar oportunidade a todos os 2. Integre um dos grupos que o(a) professor(a) indicar e, em conjunto com os seus cole-
porta-vozes dos grupos.
− Designe, desde já, os alunos gas, construa uma apreciação crítica, considerando previamente os seguintes passos:
que não tenham intervindo
nesta 1.a atividade, para šconfrontar e completar as notas tomadas pelos diferentes elementos do grupo;
fazerem a apresentação dos
heterónimos (ver unidade 2), š planificar a intervenção, para que o porta-voz eleito possa apresentar as informações
com base nas atividades que recolhidas e o ponto de vista defendido acerca do(s) tópico(s) atribuído(s);
aí são propostas.
− Utilize a grelha em Excel šexpor as conclusões e explicitar ou contestar a informação (relativa às alíneas a. a f.) que
para avaliação da oralidade
que se disponibiliza no for transmitida pelo próprio grupo ou pelos outros grupos;
20 Aula Digital e no Guia do
Professor em formato papel. š emitir opinião relativamente à relevância/irrelevância das correntes estéticas na altera-
Nota: Proposta de resolução
ção do paradigma sociocultural vigente (cf. alínea g.).
disponível no Guia BLOCO INFORMATIVO – p. 378
do Professor.
Em alternativa à atividade
proposta em 2., desenvolva
E S C R I TA
a atividade de oralidade
proposta no Guia do
Professor (p. 36). Distribua, 1. Produza um texto expositivo, de 180 a 200 palavras, que lhe permita apresentar as
antecipadamente, o guião de informações mais significativas, resultantes das diferentes intervenções orais. Consi-
visionamento (disponível em
papel e em formato digital), dere as seguintes orientações:
de modo que os alunos
possam completá-lo šplanifique o texto, indicando, por tópicos, o que irá constar da introdução, do desenvolvi-
adequadamente. mento e da conclusão;
Escrita
Resposta de caráter pessoal. š redija o texto, respeitando a planificação, as marcas de género e o número de palavras
indicado;

PREPARAR O EXAME – p. 54 šreveja o texto para proceder a eventuais correções, no domínio das ideias, do vocabulário,
BLOCO INFORMATIVO – p. 379 da ortografia, da sintaxe e da pontuação.

26
Poesia do ortónimo

LEITURA

Leia um texto de apreciação crítica sobre a publicação da obra


ra pessoana
pelo jornal Expresso.

Todas as faces de Pessoa

S
im, toda a gente conhece Fernando Pessoa. Quem não ouviu versos como
“Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena.”? Ou “Deus quer,uer, o homem
sonha, a obra nasce”.
Além disso, os menos novos ouviram João Villaret recitar, quasee em êxtase,
5 “O mostrengo que está no fim do mar / Na noite de breu ergueu-se a voar”, de tal
modo que todos temos a sensação de conhecer muito bem o mais is falado dos
nossos poetas modernos.
Pessoa, no entanto, é interminável. As suas obras completas seriam
eriam impos- PROFESSOR
síveis de publicar, salvo num contexto académico, como está a fazerr a Imprensa
10 Nacional Casa da Moeda com a edição crítica coordenada pelo professor
professo or Ivo
Ivo Leitura
7.7; 8.1; 9.1
de Castro. E foi precisamente a esta edição crítica que o Expresso começou
commeçeçou por
ou p or
ir buscar o fundamento da sua obra: a fixação do texto. O autor, emendando e voltando a 1. O autor nutre grande
emendar, fazendo vários projetos diferentes de poemas, com versões ligeiramente alteradas, admiração por Fernando
Pessoa, considerando-o a
não é fácil de apanhar. O trabalho do professor Ivo de Castro, juntamente com muitos outros maior personalidade literária
15 pessoanos, é justamente o de, sendo fiel ao poeta, fixar ou unificar aquilo que se entendem de Portugal e um poeta genial.
Fundamenta a sua opinião com
ser as palavras escolhidas, nos locais exatos. E uma notícia: alguns destes poemas e textos as afirmações de académicos
de renome internacional,
que vão ser distribuídos pelo Expresso resultam, pela primeira vez, do consenso alargado de como Harold Bloom ou
todos os que se dedicam à obra de Pessoa. Eduardo Lourenço.
Pode pensar-se que estamos na presença de mais um poeta. Mas nada mais falso. Fer- 2. Esta publicação dará a
conhecer a obra de Fernando
20 nando Pessoa é a maior personalidade literária de Portugal. Por exemplo, o crítico Harold Pessoa ao público em
Bloom, que o considera Walt Whitman (um dos maiores, senão o maior poeta americano) geral e fá-lo-á de forma
cientificamente correta.
renascido, inclui-o no escasso cânone dos 26 melhores escritores da civilização ocidental. A preocupação de usar
textos fixados e trabalhados
A sua dimensão genial foi também sublinhada pelo professor Eduardo Lourenço num dos por alguns dos maiores
primordiais e mais importantes ensaios críticos sobre a sua obra (Pessoa revisitado, 1973). especialistas pessoanos e
editados por uma editora de
25 Mas, longe de estarmos a tentar convencer cada um acerca do seu génio, pensamos ser referência como a INCM são
melhor colocar à disposição de todos o essencial da sua obra, de modo a que possam aferir aspetos que lhe conferem
credibilidade e fiabilidade.
por si próprios não só a versatilidade como o enorme talento de um homem que era muitos.
3. Trata-se de um artigo/texto
A oportunidade de ler ou reler Fernando Pessoa, prefaciado por alguns dos maiores espe- de apreciação crítica, que
se baseia na análise de uma
cialistas e amantes da sua obra, é um privilégio que o Expresso — mantendo a sua ligação de publicação e que expressa
30 sempre com a cultura portuguesa — oferece aos leitores. Esperamos que lhes agrade tanto o ponto de vista do autor.
Este faz juízos de valor sobre
ler esta coleção, quanto para nós foi um enorme prazer organizá-la e (re)aprender o que de vários aspetos, visíveis em
novo ela traz e o que já estava nas prateleiras do esquecimento. afirmações como “Pessoa
é a maior personalidade
Henrique Monteiro, in Expresso, edição online de 15 de setembro de 2015 (texto com supressões, literária de Portugal” (l. 20),
consultado em junho de 2016). “A oportunidade de ler ou reler
Fernando Pessoa, prefaciado
por alguns dos maiores
1. Apresente, justificadamente, o ponto de vista do autor relativamente a Pessoa. especialistas e amantes da
sua obra, é um privilégio”
2. Refira-se à importância desta publicação do Expresso, considerando as estratégias (ll. 28-29), que evidenciam
marcas de subjetividade,
usadas para lhe dar credibilidade e fiabilidade. confirmadas na linguagem
valorativa utilizada.
3. Comprove que o artigo que leu é uma apreciação crítica.

27
Fernando Pessoa

INFORMAR

O fingimento artístico
TEXTO A
[P]oesia ortónima. O que será tal coisa? É a poesia escrita no próprio
nome de Fernando Pessoa, por oposição à que foi composta em nome
das individualidades fictícias que designou por heterónimos: Alberto
Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
5 Será que a poesia ortónima é tão ficcional e encenada como a do
engenheiro naval que viaja pelo mundo [Álvaro de Campos], a do classi-
cista que diz acreditar em Júpiter, Vénus e Apolo [Ricardo Reis], ou a do
guardador de rebanhos que nos confessa nunca ter guardado rebanhos
[Alberto Caeiro]? Sim.
10 A personalidade prevalecente na poesia ortónima é a de um ser hi-
perconsciente que assume o papel de espetador, que está afetivamente
só por destino, medo ou opção, que é altamente sensível mas também
cético, pondo tudo em causa, e que se sente psicologicamente disperso,
sem um ego coeso e definível. Estas e outras características típicas do
15 narrador da poesia subscrita por Fernando Pessoa (ele mesmo) parecem

ser igualmente típicas do homem civil que responde pelo mesmo nome
Fernando Pessoa Não-Ele- e apelido. Apesar dessa coincidência, não há identidade essencial entre os dois; há
-Mesmo, 1976, Costa Pinheiro,
Coleção do artista.
impostura, teatro.
Vendo bem, toda a poesia lírica tem o seu quê de dramático. A voz poética pode
PROFESSOR
20 dizer aquilo que o poeta pensa ou sente, mas será sempre uma parte daquilo que
pensa ou sente – a parte que decide mostrar aos leitores, reais ou eventuais.
O Manual apresenta “O poeta é um fingidor.” “O poeta é” e não “Eu sou”. O poema “Autopsicografia”
11 poemas de Fernando
Pessoa ortónimo. Contudo, aplica-se a qualquer poeta, sendo Fernando Pessoa um exemplo supremo do mé-
o Programa apenas propõe a todo criativo que descreve. Enquanto cada heterónimo é obviamente dramático,
abordagem obrigatória
de 6 poemas deste autor. 25 o ortónimo é-o de forma velada e mais trabalhada, pois “chega a fingir que é dor /
A dor que deveras sente.”
“O drama de ser 'Eu'”, Richard Zenith, prefácio, in Fernando Pessoa, Poesia ortónima,
Áudio Paço de Arcos, Expresso, 2015, pp. 3-5 (adaptado e com supressões).
“Autopsicografia” TEXTO B
Leitura O poeta será tanto maior quanto mais intelectual, mais impessoal, mais dramá-
9.1 tico, mais fingidor. Ainda outros inéditos nos ajudam a captar o sentido pleno da
Educação Literária
14.2; 14.3; 14.6; 14.8;
“Autopsicografia”. O progresso do poeta dentro de si próprio realiza-se pela vitória
14.9; 15.2; 16.1 sobre a sinceridade pela conquista (lenta, difícil) da capacidade de fingir: “A sin-
Oralidade 5 ceridade é o grande obstáculo que o artista tem a vencer. Só uma longa discipli-
3.1; 5.1; 5.2; 5.3; 6.1;
6.2; 6.3 na, uma aprendizagem de não sentir senão literariamente as coisas podem levar
o espírito a esta culminância”. A alquimia poética pressupõe o aniquilamento da
1. Os dois textos destacam o sinceridade humana, um longo tratamento das sensações (e quem diz sensações
tom dramático da poesia do
ortónimo, tom que resulta da diz sentimentos). Exprimir poeticamente implica fingir – ideia que não constitui
encenação, do fingimento,
de que se reveste a criação
10 novidade para os leitores atentos de Pessoa.
poética e/ou artística. Esta Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, prefácio, in Fernando Pessoa, Páginas íntimas
implica o abandono das e de autointerpretação, Lisboa, Edições Ática, 1966, pp. XXVIII-XXIX (com supressões).
emoções ou, melhor, a sua
intelectualização.
1. Explicite o processo de criação artística que assenta na teoria do “fingimento”.

28
Poesia do ortónimo
O fingimento artístico

EDUCAÇÃO LITERÁRIA PROFESSOR

CD 1 11. A poesia passa por


QU
E MA

Autopsicografia S
ddiferentes etapas quer ao

E
FA
IXA 1
nnível da produção quer ao
nnível da receção. Assim,

EL
O poeta é um fingidor. P
RO
J ETÁ
V
o ponto de partida da
Finge tão completamente pprodução é a sensação
(“a dor sentida”); segue-se a
Que chega a fingir que é dor dor recriada, transformada
A dor que deveras sente. pela imaginação, originando
uma síntese, ou seja, uma
nova dor. É a esta última que
5 E os que leem o que escreve, o leitor acede, o que significa
que o processo de receção se
Na dor lida sentem bem, distancia dos dois inerentes à
produção.
Não as duas que ele teve,
2. O poema pode dividir-se em
Mas só a que eles não têm. três partes, correspondendo a
cada uma das quadras, em que
são apresentados conceitos
E assim nas calhas de roda diferentes. Na primeira
10 Gira, a entreter a razão, estrofe é possível efetuar uma
subdivisão, atendendo a que
Esse comboio de corda o verso 1 apresenta a ideia-
Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada, -chave que será explicitada
Que se chama coração. (ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine), nos versos seguintes (a tese
1-4-1931 Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 45-46. de que o fingimento é inerente
ao ato criativo). Na segunda
quadra, confirma-se que
1. Identifique as etapas do processo de produção e receção de poesia que o texto enun- o leitor não acede à dor do
poeta, até porque a dor foi
cia, tendo em conta as transformações a que a ideia de dor é submetida. metamorfoseada. Na última
quadra distingue-se o coração
2. Apresente uma proposta de divisão do poema, considerando a pontuação e o desen- da razão, para evidenciar o
volvimento do tema. engano a que os sentimentos
conduzem e que o poeta terá
3. Explique por que razão se considera que este poema contém uma teoria do fingimento de abandonar forçosamente,
dado ser-lhe exigido o uso da
artístico. razão.
4. Estabeleça pontos de contacto entre o poema “Autopsicografia” e os textos A e B an- 3. Neste poema, Fernando
Pessoa esclarece o modo
teriormente lidos. (cf. p. 28) como a poesia se constrói,
afirmando que “o poeta é um
fingidor” (v. 1). Implicitamente,
EXPRESSÃO ORAL defende a ideia de que
a criação artística é um
processo intelectual que se
Observe as vinhetas e atente no diálogo estabelecido entre Mafalda e Filipe. afasta do mero mimetismo.
4. O texto A refere
especificamente o título
e alguns versos do poema
pessoano; o texto B faz
referência ao fingimento
como algo implícito à criação
poética. No fundo, ambos
os textos descodificam, em
parte, a tese “o poeta é um
fingidor” apresentada no
poema “Autopsicografia”.
Quino, Toda a Mafalda, edição comemorativa dos 50 anos, Lisboa, Verbo, 2014, p. 198. Nota: Disponível, no Guia
do Professor, um cenário
de resposta para a atividade
1. Produza um texto de opinião, em 4-6 minutos, sobre o conteúdo do diálogo, conside- de Expressão Oral.
rando as orientações sugeridas para a planificação que deverá efetuar.
šIdentificação do tema do diálogo.
šExplicitação da reação do interlocutor à reflexão, e apresentação de uma justificação.
šDescrição do ambiente, da postura das personagens e sua relação com o tema da reflexão.
šRelação entre a atitude do Filipe na intervenção final e a do sujeito poético. BLOCO INFORMATIVO – p. 378

29
Fernando Pessoa
O fingimento artístico

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Isto
PROFESSOR
Dizem que finjo ou minto
Educação Literária Tudo que escrevo. Não.
14.2; 14.3; 14.4; 14.6;
.6; Eu simplesmente sinto
E MA
14.8; 14.9 S
QU
Com a imaginação.
E

Gramática
17.1 5 Não uso o coração.
EL

P V
RO
J ETÁ
1. Fingir, segundo o sujeito
to
poético, é sentir com a Tudo o que sonho ou passo,
imaginação; mentir será,
por isso, sentir apenas, usar O que me falha ou finda,
unicamente o coração, É como que um terraço
os sentimentos.
Sobre outra coisa ainda.
2. O coração é o ponto de
partida para a imaginação, 10 Essa cousa é que é linda.
ou seja, o poeta parte do
que sente, mas recria o
sentimento através da razão, Por isso escrevo em meio
afastando-se, assim, do que
inicialmente sentiu. No fundo, Do que não está ao pé,
é a imaginação que distancia Livre do meu enleio,
o artista do homem comum.
Sério do que não é.
3. O verso significa que aquilo
que está além do mundo 15 Sentir? Sinta quem lê!
terreno, o que se encontra [abril de 1933]
no mundo superior, a que se
acede por meio do intelecto,
Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada,
é o que o poeta deve alcançar,
até porque esse é o espaço (ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas,
da perfeição. Madalena Dine), Lisboa, Assírio & Alvim,
2006, pp. 131-132. Fernando Pessoa, 2007, Jef Aérosol,
4. Sendo a escrita um ato
artístico, que exige o recurso Bairro Alto, Lisboa.
à imaginação, percebe-se
a necessidade de se afastar
daquilo que “está ao pé” (v. 12) –
as sensações imediatas, 1. Faça a distinção entre fingir e mentir, atendendo à explicação apresentada pelo sujei-
os sentimentos, pois estes to poético.
enleiam, enganam.
5. Com a interrogação, o
sujeito poético está a conferir 2. Refira o papel do coração e da imaginação no ato da criação poética.
um estatuto de menoridade
ao leitor, comparativamente
3. Explique o sentido do verso “Essa cousa é que é linda.” (v. 10)
ao artista, pois este precisa
de usar a imaginação. Por isso,
ironicamente, ordena que o 4. Justifique a necessidade de o poeta se distanciar do que “está ao pé”. (v. 12)
leitor se limite a sentir, como
se visse nele a incapacidade
de usar a razão. 5. Descodifique o valor expressivo da interrogação e o tom irónico presentes no último
6. Trata-se de um poema verso.
composto por três quintilhas,
todas com seis sílabas
métricas. A rima é cruzada 6. Proceda à análise estilístico-formal do poema.
e emparelhada, atendendo
ao esquema rimático: ababb /
cdcdd / efeff. G 7. Indique a função sintática das orações “que finjo ou minto”. (v. 1)
7. Complemento direto.
8. “que” – conjunção 8. Identifique a classe de palavras dos conectores utilizados na citação anterior.
subordinativa completiva;
“ou” – conjunção coordenativa
disjuntiva. 9. Registe o valor lógico do conector “Por isso”. (v. 11)
9. Tem valor conclusivo.
10. Oração subordinada 10. Classifique a oração “quem lê”. (v. 15)
substantiva relativa.

30
Poesia do ortónimo
A dor de pensar

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

CD 1 Ela canta, pobre ceifeira,


PROFESSOR
FA
IXA 2 Julgando-se feliz talvez;
E MA
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia S
QU

E
De alegre e anónima viuvez,

EL
P V
RO
J ETÁ

5 Ondula como um canto de ave


No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave Áudio
“Ela canta, pobre ceifeira”
Do som que ela tem a cantar.
Educação Literária
Ouvi-la alegra e entristece, 14.2; 14.4; 14.5; 14.9
10 Na sua voz há o campo e a lida, Gramática
17.1
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida. 1. A expressão deste desejo
resulta da consciência que
o "eu" tem do mal que o uso
Ah, canta, canta sem razão! excessivo da razão produz
em si próprio. Porém, esse
O que em mim sentestá pensando. desejo encerra um conteúdo
15 Derrama no meu coração paradoxal, porque o “eu”
quer ser inconsciente como a
A tua incerta voz ondeando! ceifeira sem deixar de ser ele,
um ser consciente.
Ah, poder ser tu, sendo eu! 2. A sinceridade está
relacionada com a
Ter a tua alegre inconsciência, Campo de trigo com ceifeira, c. 1888, Vincent van Gogh, inconsciência, dado associar-
Museu de Arte de Toledo. -se à espontaneidade e ao
E a consciência disso! Ó céu! instinto. Já o fingimento
20 Ó campo! ó canção! A ciência implica o uso da razão e
da consciência. Assim,
o sujeito poético aspira ao
Pesa tanto e a vida é tão breve! impossível: ninguém pode ser
inconsciente e ter consciência
Entrai por mim dentro! Tornai disso.
Minha alma a vossa sombra leve! 3. A antítese, em “alegra
e entristece” (v. 9), sugere
Depois, levando-me, passai! o efeito contraditório do
[dezembro de 1924] canto da ceifeira no sujeito
poético; a apóstrofe
Fernando Pessoa, Poesia 1918-1930, “Ó campo! ó canção!” (v. 20) e
(ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine), o imperativo (“entrai”, v. 22,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2005, pp. 228-229. “tornai”, v. 22, “passai”, v. 24),
identificam os destinatários
do apelo do "eu" e o desejo que
estes o aliviem da sua dor.
1. Explicite, justificando, o desejo expresso pelo sujeito poético no verso 17.
4. No primeiro momento,
respeitante às três primeiras
2. Comprove a impossibilidade de o “eu” ser “inconsciente” e, simultaneamente, ter estrofes, descreve-se a
“consciência disso”, relacionando-o com a teoria do fingimento poético. ceifeira e o seu canto. No
segundo, relativo às três
quadras seguintes, o “eu”
3. Exemplifique o recurso à antítese, à apóstrofe e ao imperativo, explicitando a sua fun- exprime os efeitos produzidos
cionalidade na caracterização do estado de espírito do sujeito poético. pelo canto, revelando a sua
emoção e o seu desejo de fuga
ao pensamento.
4. Apresente, justificadamente, uma proposta de segmentação do poema. 5. O referente é "pobre
ceifeira".
G 5. Indique o referente do pronome pessoal “(l)a”. (v. 9) 6. “no meu coração” –
complemento oblíquo;
6. Identifique a função sintática dos constituintes “no meu coração” (v. 15) e “A tua incerta “A tua incerta voz ondeando” –
complemento direto.
voz ondeando!”. (v. 16)

31
Fernando Pessoa
A dor de pensar

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Gato que brincas na rua


Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

5 Bom servo das leis fatais


Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes,

PROFESSOR És feliz porque és assim,


10 Todo o nada que és é teu.
Educação Literária
14.2; 14.4; 14.8; 14.9
Eu vejo-me e estou sem mim,
Gramática
Conheço-me e não sou eu.
17.1 ; 19.3

1. O gato age por instinto,


sendo, por isso, um “Bom Janeiro, 1931 (vinte e tantos)
servo das leis fatais” (v. 5),
vive só por viver, sem saber Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e
por que vive, limitando- não datada, (ed. Manuela Parreira da Silva,
-se apenas a sentir. Ora, a Ana Maria Freitas, Madalena Dine), Não perturbar, séc. XXI, Rebecca Campbell,
comparação “brincas na rua / Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 14-15. coleção privada.
Como se fosse na cama”
(vv. 1-2) salienta o caráter
instintivo do gato, que não lhe
permite ter consciência das 1. Caracterize o gato, explicitando também o teor da comparação usada nos versos ini-
inconveniências. ciais da primeira estrofe.
2. O sujeito poético, por ser
demasiado racional, não
consegue ser feliz, razão pela 2. Justifique a inveja do sujeito poético.
qual inveja o gato, que, por não
intelectualizar os sentidos, 3. Descodifique o sentido do paradoxo presente nos dois últimos versos.
acaba por viver feliz.
3. Os dois versos remetem
para a complexidade e 4. Demonstre a impossibilidade de compatibilização entre sentir e pensar.
confusão interiores e para
a despersonalização: ao ser 5. Comente o jogo que se estabelece no texto entre a primeira e a segunda pessoas.
muitos, o sujeito poético
acaba por se desconhecer a si
mesmo. G 6. Assinale, no seu caderno, a opção correta para cada das frases apresentadas.
4. Sentir implica agir
instintivamente; pensar exige 6.1 A forma verbal “fosse” (v. 2) encontra-se no
o uso da razão, e, quando
se usa a razão, deixa-se de [A] pretérito imperfeito do conjuntivo.
sentir apenas. Pensar, que
exige distanciamento dos [B] pretérito imperfeito do indicativo.
sentimentos, opõe-se a sentir,
atitude a que se acede natural [C] futuro do conjuntivo.
e espontaneamente.
[D] pretérito mais-que-perfeito do indicativo.
5. Atendendo a que todo o
texto revela oposição entre o 6.2 O pronome pessoal "me" (v. 11) corresponde ao
“gato” (tu) e o sujeito poético
(eu), percebe-se que este [A] complemento oblíquo.
jogo permite contrapor a
intelectualização do “eu” e [B] predicativo do sujeito.
o comportamento instintivo
do gato. [C] complemento indireto.
6.1 [A]
[D] complemento direto.
6.2 [D]

32
Poesia do ortónimo
A dor de pensar

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

CD 1 Tenho tanto sentimento PROFESSOR


FA
IXA 3 Que é frequente persuadir-me S
QU
E MA

E
De que sou sentimental,

EL
Mas reconheço, ao medir-me, P
RO
J ETÁ
V

5 Que tudo isso é pensamento,


1. Destacam-se as seguintes
Que não senti afinal. dicotomias: sentimento/
pensamento; vida vivida/
vida pensada; vida verdadeira/
Temos, todos que vivemos, vida errada.
Uma vida que é vivida 2. O sujeito demonstra
alguma confusão interior,
E outra vida que é pensada, como se percebe pela primeira
10 E a única vida que temos estrofe quando afirma “Tenho
tanto sentimento / Que é
É essa que é dividida frequente persuadir-me /
Entre a verdadeira e a errada. De que sou sentimental”.
Porém, acaba por admitir a sua
racionalidade excessiva
Qual porém é verdadeira (vv. 4-5) e revela-se bastante
consciente da realidade
E qual errada, ninguém quando reconhece que todos
temos duas vidas, a verdadeira
15 Nos saberá explicar; e a idealizada, mas que
E vivemos de maneira teremos de viver a que temos.
Que a vida que a gente tem Retrato do poeta, c. 1915, Amedeo Modigliani, 3. A mudança da primeira
Instituto de Arte, Detroit. pessoa do singular para a
É a que tem que pensar. primeira do plural justifica-se
18-9-1933 pelo facto de o sujeito
poético considerar que a sua
Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada, situação é comum a todos nós,
incluindo-se, neste aspeto,
(ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine),
no coletivo humano a que
Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 162-163. pertence.
4. A antítese é visível na
oposição estabelecida entre
vida “vivida” (v. 8) e “pensada”
1. Comprove a existência de várias dicotomias no poema. (v. 9), “verdadeira” (v. 12) e
“errada” (v. 12), servindo
o objetivo de evidenciar
2. Caracterize o sujeito poético, justificando a sua resposta com elementos textuais per- a dicotomia sentir/pensar,
tinentes. ilustrada pelas contradições
com as quais o ser humano
se confronta.
3. Justifique a mudança de pessoa gramatical que ocorre na passagem da primeira para
5. O texto é composto por
a segunda estrofe no poema. três sextilhas, em redondilha
maior, com rimas cruzada
e interpolada na primeira
4. Exemplifique e registe a expressividade do recurso à antítese. sextilha e apenas interpolada
nas restantes, como evidencia
5. Analise formalmente o texto. o esquema rimático abcbac /
defdef / ghighi.
6.
G 6. Identifique, na primeira estrofe, as seguintes orações:
a.“Que tudo isso é
a. subordinada substantiva completiva; pensamento” (v. 5) ou “Que não
senti afinal” (v. 6).
b. subordinada adverbial temporal (não finita); b. “ao medir-me” (v. 4) (quando
me medi).
c. coordenada adversativa.
c. “Mas reconheço” (v. 4).
7. Complemento indireto.
7. Indique a função sintática do pronome pessoal “Nos”. (v. 15) 8. Coesão lexical (por
reiteração): “vida” (v. 8) e
8. Destaque os diferentes tipos de coesão presentes nos versos 8 e 9. “vida” (v. 9). Coesão lexical
(por substituição – antonímia):
“vivida” (v. 8) e “pensada” (v. 9).

33
Fernando Pessoa

INFORMAR

A dor de pensar
A inteligência lembra uma varinha de condão: graças a ela, tudo o que dor-
mia o sono do nada, incluindo o próprio Homem, acorda para a existência. Ser
é ser objeto de conhecimento. A mesma varinha, porém, por um uso intenso e
persistente, acaba por esvaziar de realidade as coisas, fá-las regressar ao nada de
5 onde vieram. É um instrumento de destruição que vitima aquele que o maneja,
lhe provoca a dor da “universal ignorância”, a sensação de tatear nas trevas, e ao
mesmo tempo o cansa, o corrói, mina as condições elementares de felicidade.
Fernando Pessoa foi dos que mais sofreram com o terrível paradoxo. Voca-
cionado para o exercício exaustivo de uma inteligência esquadrinhadora que,
10 na clausura do eu, é vizinha impotente do caos obscuro da vida, e cuja presença
vigilante se manifesta até quando a intuição ou imaginação poéticas alcançam
a sua hora, experimentou, a par do orgulho de conhecer afirmando-se contra
a voragem, a pena mais frequente de lhe ser inacessível a felicidade dos que
não conhecem. O privilégio de uma extraordinária lucidez paga-se caro. Quanto
15 mais humano mais desumano.
A intervenção do intelecto traduz-se muitas vezes pelo símbolo da música
ou da voz que se cala mal o poeta a escuta. “Quero o silêncio / Para dormir /
Qualquer memória / Da voz ouvida, / Desentendida, / Que foi perdida / Por eu
a ouvir…”.
20 Um dos mais belos poemas ortónimos, “Ela canta, pobre ceifeira…”, inclui
a aspiração à vida instintiva. O poeta dirige-se à ceifeira, enfeitiçado pelo seu
cantar:
Gonçalo Viana, in revista Ah, poder ser tu, sendo eu!
Estante, n.˚ 11, outono
de 2016 (pormenor da capa). Ter a tua alegre inconsciência
25 E a consciência disso!

Mas aqui o poeta reconsidera, quer e não quer; formula a ambição impossível
(e o sabê-la impossível contagia de tristeza o canto da ceifeira) de ser conscien-
PROFESSOR temente inconsciente.
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa,
Leitura Lisboa, Verbo, 1982, pp. 63-65 (com supressões).
8.1
Educação Literária
16.1
1. Assinale, no seu caderno, as afirmações verdadeiras e falsas, de acordo com o texto
1. lido. Corrija, de seguida, as afirmações falsas.
a. V a. A inteligência é a responsável pelo despertar para a existência.
b. F – Pensar em excesso
torna-se destruidor. b. Pensar em excesso conduz o ser humano ao verdadeiro conhecimento.
c. F – O pensamento vitima
aquele que o usa em excesso. c. O uso excessivo do pensamento conduz a Humanidade à felicidade.
d. V d. Fernando Pessoa usou exaustivamente a inteligência.
e. F – Fernando Pessoa foi
dos que mais sofreram por ter e. Fernando Pessoa foi feliz porque usou como ninguém o pensamento.
usado o pensamento como
ninguém. f. A lucidez, alcançada pelo recurso à inteligência, teve efeitos destrutivos em Fernando
f. V Pessoa.
g. V
g. O poeta aspira a uma síntese paradoxal entre a consciência e a inconsciência.

34
Poesia do ortónimo
Sonho e realidade
PROFESSOR
EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Educação Literária
14.2; 14.6; 14.9
CD 1 Não sei se é sonho, se realidade, Ilha Gramática
FA
IXA 4 Se uma mistura de sonho e vida, 17.1; 18.2
Aquela terra de suavidade
a._________? b._________? c._________? 1. “terra de suavidade” (v. 3),
Que na ilha extrema do sul se olvida. “ilha extrema do sul” (v. 4),
5 É a que ansiamos. Ali, ali “vida é jovem”, “amor sorri”
(v. 6), “palmares inexistentes”
A vida é jovem e o amor sorri. (v. 7), “Áleas longínquas” (v. 8),
Caracterização/descrição positiva da ilha “Sombra ou sossego” (v. 9),
“ilhas do fim do mundo” (v. 19),
Talvez palmares inexistentes, “palmares de sonho” (v. 20).
Felicidade de quem acredita 2. As duas primeiras estrofes
Áleas longínquas sem poder ser, espelham a esperança de que
Sombra ou sossego deem aos crentes o sonho se possa realizar,
como atesta o uso do advérbio
10 De que essa terra se pode ter. “Talvez” (v. 7). A terceira
Desvirtuamento do sonho/ilha estrofe, introduzida pela
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
conjunção adversativa “Mas”,
Naquela terra, daquela vez. dá início ao desvirtuamento, ao
Aí também há mal e o bem é transitório desalento, com a constatação
de que o pensamento anula
Mas já sonhada se desvirtua, o sonho; por isso, nessa terra
(a do sonho), o bem não é
Só de pensá-la cansou pensar, duradoiro. Na última estrofe,
Regresso à realidade
15 Sob os palmares, à luz da lua, evidencia-se a certeza de que a
cura para os nossos problemas
Sente-se o frio de haver luar. tem de estar em nós, e de que
Ah, nesta terra também, também A resolução dos problemas está em nós, só a nossa ação nos permitirá
no nosso coração, não no sonho ser felizes.
O mal não cessa, não dura o bem. 3. Na primeira ocorrência,
o advérbio “ali” refere-se à
“terra de suavidade” (v. 3), à
Não é com ilhas do fim do mundo, “ilha extrema do sul” (v. 4); já
20 Nem com palmares de sonho ou não, na segunda ocorrência (última
estrofe), o mesmo advérbio
Que cura a alma seu mal profundo, tem como referente o “nós”.
4. Destaca-se, logo no
Que o bem nos entra no coração. primeiro verso, o emprego
É em nós que é tudo. É ali, ali, da antítese, para salientar
a oposição que se estabelece
Que a vida é jovem e o amor sorri. entre o “sonho” e
30-08-1933 a “realidade” − “Não sei se é
sonho, se realidade” − e na
Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada, última estrofe entre “mal” e
(ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine), “bem” − “Que cura a alma seu
Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 146. mal profundo, / Que o bem nos
entra no coração” (vv. 21-22) −,
com o intuito de realçar a
1. Proceda à identificação do vocabulário associado ao domínio do sonho. inoperância do sonho e a
imposição do real sobre
o imaginário.
2. Segmente o texto poético, considerando os tópicos: Emprega-se também a
metáfora ao associar a ilha ao
š esperança. sonho (veja-se os vv. 19 e 20),
š desalento. dado que os locais exóticos
são considerados espaços
š certeza. de evasão, de fuga à realidade.
5. a. Sonho; b. Realidade;
3. Indique o referente do advérbio “ali”, usado reiteradamente na primeira e última estrofes. c. Mistura
6. Os deíticos de natureza
pessoal e temporal estão
4. Confirme a presença da antítese e da metáfora, referindo-se à sua expressividade. exemplificados no pronome
“nós”, nas formas verbais, no
5. Complete, no caderno diário, o esquema apresentado com base na interpretação que presente do indicativo, como
“sei” (v. 1);
faz do poema. o advérbio “ali” (v. 23)
corresponde a um deítico
G 6. Confirme, exemplificando, a presença de deíticos de natureza pessoal, temporal e locativa. de valor locativo.
7. Trata-se da coesão lexical
7. Indique o tipo de coesão ilustrada, ao longo do texto, pelos termos “terra” e “ilha”. por substituição (sinonímia).

35
Fernando Pessoa
Sonho e realidade

PROFESSOR
EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Educação Literária
14.2; 14.4; 14.9 POEMA A POEMA B
Gramática
17.1 CD 1 Tudo que faço ou medito Nada sou, nada posso, nada sigo.
“Tudo o que faço ou medito”
FA
IXA 5 Fica sempre na metade. Trago, por ilusão, meu ser comigo.
1. Na primeira quadra verifica- Querendo, quero o infinito. Não compreendo compreender, nem sei
-se a oposição entre o fazer e
o meditar, o querer e o fazer,
Fazendo, nada é verdade. Se hei de ser, sendo nada, o que serei.
remetendo para a dualidade
sonho/realidade. Percebe-se
que entre o imaginado e o
5 Que nojo de mim me fica 5 Fora disto, que é nada, sob o azul
realizado existe um fosso, pois Ao olhar para o que faço! Do lato céu um vento vão do sul
a ação real fica sempre aquém
do que foi sonhado. Minha alma é lúcida e rica, Acorda-me e estremece no verdor.
2. O sujeito poético sente E eu sou um mar de sargaço – Ter razão, ter vitória, ter amor.
repulsa de si mesmo (“Que
nojo de mim”, v. 5) quando dá
conta da sua incapacidade Um mar onde boiam lentos Murcharam na haste morta da ilusão.
para concretizar o imaginado.
Mostra-se confuso, 10 Fragmentos de um mar de além... 10 Sonhar é nada e não saber é vão.
considerando-se “um mar de
sargaço” (v. 8), mas também
Vontades ou pensamentos? Dorme na sombra, incerto coração.
lúcido (v. 7). A dúvida e a Não o sei e sei-o bem. 6-1-1923
confusão existencial são
13-9-1933
reforçadas nos dois últimos Fernando Pessoa, Poesia 1918-1930, (ed. Manuela
versos, em que acentua ainda Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine),
mais a ideia de angústia. Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2005.
3. O verso ilustra uma (ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria
metáfora que sugere a Freitas, Madalena Dine), Lisboa,
grande confusão interior em Assírio & Alvim, 2006, p. 159.
que se encontra o sujeito
poético: o mar remete para
a imensidão e o sargaço
para o emaranhado, para Considere o poema A.
a confusão.
4. O conector tem valor
disjuntivo ou de alternância. 1. Identifique e explicite as oposições presentes na primeira quadra.
5. A oração tem valor
restritivo.
2. Caracterize o sujeito poético, ilustrando a resposta com elementos textuais pertinentes.
“Nada sou, …”
4. Através da repetição do 3. Descodifique o sentido do verso “E eu sou um mar de sargaço” (v. 8), referindo o recurso
advérbio “nada”, seguido
de verbos que apontam, expressivo que o mesmo exemplifica.
semanticamente, para
a gradação, o sujeito poético
assume uma atitude nihilista, 4. Indique o valor do conector utilizado no verso 1.
de anulação de si mesmo
e de tudo o que o rodeia.
5. Para além da anulação 5. Refira o valor da oração subordinada presente nos versos 9-10.
expressa no primeiro verso,
ao longo do texto confirma-se
a incerteza em que o “eu” vive,
pois traz o seu ser “por ilusão”, Considere o poema B.
não sabe se há de ser já que
não é nada, como se comprova
6. Justifique o recurso à construção anafórica do primeiro verso.
nos versos 2, 3 e 4.
6. No penúltimo verso está
presente a oposição sonho/ 7. Comprove o estado de indefinição que caracteriza o sujeito poético.
realidade, tornando-se
visível a inutilidade do sonho
e da própria inconsciência. 8. Explicite a ideia presente no penúltimo verso do poema.
No fundo, destaca-se
a importância de ter
consciência da irrealidade 9. Demonstre que o último verso pode constituir uma síntese do poema.
do sonho.
Nota: Disponíveis, no Guia
do Professor, cenários 10. Exemplifique o recurso à aliteração, referindo a sua expressividade.
de resposta para as questões
9 e 10.

36
Poesia do ortónimo
Sonho e realidade

INFORMAR

Sonho e realidade
Fernando Pessoa buscou avidamente a felicida-
de, como quem nasceu para ser feliz. Buscou sem
encontrar, porque cedo o torturou a fome inextin-
guível de conhecer; a inteligência discursiva só lhe
5 deu a certeza de que “tudo é oculto”; as instituições
intermitentes de uma realidade suprassensível
eram escuras e ambíguas, não as podia sancionar a
razão; e o demónio da análise amorteceu nele am-
bições e sentimentos vulgares até quase ao aniqui-
10 lamento.
Ninguém mais do que ele experimentou a sen-
sação pungente de estar condenado à solidão, e
condenado não apenas pela superioridade do seu espírito mas ainda porque só A cadeira e a mesa do poeta
Fernando Pessoa, c. 1980, Costa
pelos sentimentos altruístas vencemos as barreiras individuais, e Pessoa, mi- Pinheiro, Coleção particular.
15 nado pela ação de uma inteligência hipertrofiada, quase não era capaz desses PROFESSOR
sentimentos. Por essa causa vive fechado no egoísmo, “só, só como ninguém
ainda esteve” […]. O temperamento e talvez as circunstâncias biográficas (órfão Leitura
8.1; 9.1
de pai aos cinco anos, aos sete a mãe deu-lhe um padrasto) fizeram de Pessoa
Educação Literária
um homem segregado, antissentimental, anti--humanitário, separado do mun- 16.1
20 do por “uma névoa”, entregue obsidiantemente ao pensamento especulativo e
1. Fernando Pessoa viu-se
virado para o sonho. impossibilitado de ser feliz
Uma estrela maligna fadou-o para o malogro em relação aos motivos de fe- porque foi sempre movido
pela vontade de conhecer,
licidade; onde pôs a afeição, logo secaram as fontes; nunca teve um prazer que recorrendo incessantemente
durasse, que não redundasse em perda antes de o gozar. à inteligência e procurando
uma realidade suprassensível,
25 Na verdade, que resta ao poeta senão o frio de um pensamento que rumina a existente apenas num mundo
abstrato.
angústia e a invalidez, ou então a vacuidade pueril dos sonhos e pressentimen-
2. A verdadeira vocação do
tos de nada? As brisas favoráveis trazem-lhe, de quando em quando, as visões poeta foi pensar e sonhar.
de “coisas lindas” que estão para além do muro. Não há dúvida: pensar, sonhar, Com efeito, autoanalisou-se,
recorrendo permanentemente
constitui a sua vocação. Dissipados os fantasmas mágicos, de novo a existência ao pensamento, tentou iludir
30 fica terrivelmente vazia e sem sentido. O poeta dissipou os dias erguendo so- a vida através dos sonhos,
mas, porque se entregou
nhos inúteis a um céu impassível. “obsidiantemente ao
pensamento” e se virou “para
Submetida a um olhar retrospetivo, a vida que iludiu sonhando, projetando o o sonho”, acabou por se
irrealizável num futuro longínquo, adiando sempre, afigura-se absurda, tal qual separar do mundo e não
atingiu a felicidade.
o andaime em torno da casa por fabricar.
3. Por “fantasmas mágicos”
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, pode entender-se tudo
aquilo que o levou a evadir-
Lisboa, Verbo, 1982, pp. 69-72 (com supressões).
-se da realidade concreta,
nomeadamente o sonho
e o pensamento.
4. A afirmação “O poeta
1. Refira o que, na opinião do autor do texto, impediu Fernando Pessoa de ser feliz. dissipou os dias erguendo
sonhos inúteis a um céu
impassível” (ll. 30-31) aponta
2. Apresente a verdadeira vocação do poeta e suas consequências. claramente para a inutilidade
do sonho. A afirmação “a vida
3. Explique o que se pode entender por “fantasmas mágicos”. (l. 29) que iludiu sonhando” (l. 32)
encerra a ideia de que o sonho
foi inútil.
4. Comprove, com um segmento textual, que em Pessoa a realidade se sobrepõe ao sonho.

37
Valor
Lexicologia:
aspetual
campo semântico e campo lexical
N DE
RE R
APRENDER
AP

ICA
G RA M Á T O aspeto é a categoria gramatical que exprime a estrutura temporal interna de uma situação.
R
APL ICA
As categorias tempo e aspeto são distintas. Porém, há formas verbais que exprimem si-
multaneamente um valor temporal e aspetual.

PROFESSOR Ex.: Ricardo Araújo Pereira faz críticas destrutivas.

A forma verbal tem valor temporal de presente e um valor aspetual habitual, porque
Apresentação expressa uma situação repetida no tempo.
Valor aspetual

O valor aspetual de um enunciado é construído com base em informação lexical e gra-


matical. A construção gramatical do valor aspetual relaciona-se com o valor dos tempos
verbais, de verbos auxiliares, de estruturas de quantificação, de certos tipos de nomes, ou
de modificadores. A combinação de elementos deste tipo permite representar uma situa-
ção como culminada/concluída (valor perfetivo), não culminada (valor imperfetivo),
genérica, habitual ou iterativa.

Valores
Caracterização Exemplificação
aspetuais

Situação culminada, ou seja, a situação expressa no enunciado é considerada


š Fernando Pessoa criou
Valor concluída, completa.
a teoria do fingimento
perfetivo O tempo verbal normalmente associado a este aspeto é o pretérito perfeito
artístico.
do indicativo.

š Os alunos escreviam sobre


Situação não culminada, isto é, a situação expressa pelo enunciado está ainda
a poesia de Fernando Pessoa.
Valor em curso, ou cujos limites não são indicados.
imperfetivo š Fernando Pessoa
O tempo verbal normalmente associado a este aspeto é o pretérito imperfeito
desdobrava-se em
do indicativo.
heterónimos para escrever.

Situação que surge em enunciados relativos a situações intemporais e universais.


Valor Os tempos verbais habitualmente associados a este aspeto são o presente š A poesia é imortal.
genérico do indicativo e o infinitivo impessoal, conjugado com grupos nominais š Ler é alimentar o espírito.
de interpretação genérica.

Situação que surge em enunciados que expressam uma pluralidade infinita de


acontecimentos que se sucedem num período de tempo ilimitado. š Costumamos estudar
Valor Os tempos verbais mais associados a esta situação são o presente do indicativo Fernando Pessoa no 12.° ano.
habitual e o pretérito imperfeito do indicativo, dependendo do ponto de referência da š Estudavam Caeiro depois de
enunciação. São também recorrentes expressões como costumar, ser costume, ser Fernando Pessoa ortónimo.
habitual.

š Os alunos têm estudado


Situação que surge em enunciados que apresentam eventos que se repetem num
Fernando Pessoa ao fim
Valor período de tempo, limitado ou não.
de semana.
iterativo O pretérito perfeito composto produz um efeito iterativo do mesmo modo que
š Ele lia poemas sempre que
construções como andar a…
arranjava tempo para isso.

38
APLICAR
1. Indique, no seu caderno, os valores aspetuais veiculados nos enunciados apresen-
tados nas diversas alíneas.

Enunciados Valores aspetuais

a. Nos últimos meses, os alunos têm analisado poemas


de Fernando Pessoa.

b. Quando era jovem, lia a Mensagem, obra de Pessoa,


e comparava-a com Os Lusíadas.

c. Fernando Pessoa costuma ser considerado o maior


poeta português.
š Perfetivo
d. Os alunos leem normalmente o poema “Autopsicografia”.
š Imperfetivo
e. Os alunos souberam os resultados do exame em julho.
š Genérico
f. As dúvidas resolvem-se com estudo e empenho.
š Habitual
g. Os portugueses ultrapassaram o medo com
determinação.
š Iterativo

h. Todo o artista é criativo.

i. Andavam ansiosos com os exames.

PROFESSOR
j. Iam todos os dias à biblioteca.
Gramática
k. Normalmente, a poesia de Pessoa faz-nos sonhar. 19.3

1.
2. Assinale, no seu caderno, como verdadeiras ou falsas as afirmações que se seguem. a. Iterativo
b. Imperfetivo
a. O aspeto imperfetivo remete para uma situação já concluída. c. Habitual
d. Habitual
b. O verso “Ser descontente é ser homem” ilustra uma situação intemporal.
e. Perfetivo
c. O aspeto iterativo remete para uma situação instantânea. f. Genérico
g. Perfetivo
d. Na frase “É costume designar Pessoa como ‘Supra-Camões’”, o grupo verbal tem valor h. Genérico
habitual. i. Imperfetivo
j. Iterativo
e. O aspeto perfetivo apresenta a situação como não concluída.
k. Habitual
f. Na frase “Muitos portugueses perceberam a vantagem de conhecer Pessoa”, a forma 2.
a. F
verbal sublinhada ilustra o valor aspetual genérico.
b. V
g. Na afirmação “Foram publicados dois números da revista Orpheu”, o complexo ver- c. F
bal tem valor perfetivo. d. V
e. F
f. F
g. V

39
Fernando Pessoa

COMPREENSÃO DO ORAL
PROFESSOR
Estados de sofrimento humano colocam geralmente
Oralidade
1.4; 1.5; 1.6; 1.8; 2.1 questões de ética e liberdade individual. Neste senti-
do, o tema da eutanásia, dada a polémica que suscita,
é frequentemente discutido na sociedade, como prova
Link o debate televisivo do programa Prós e Contras da RTP.
Prós e Contras
(20 minutos) Visione um excerto do programa mencionado e res-
ponda às questões.
1. Apresentação, por parte Prós e Contras, RTP.
de um alargado número de 1. Indique o facto apresentado como ponto de parti-
cidadãos de um manifesto
para solicitar a legalização da para o debate sobre a eutanásia.
da morte assistida.
2. Concorda com a prática 2. Apresente as questões postas para a discussão do tema.
da eutanásia? / Concorda com
o referendo à eutanásia? 3. Complete, no seu caderno, o quadro que se apresenta, de modo a identificar os inter-
3. venientes e alguns dos argumentos apresentados no debate.
a. Isabel Ruivo
b. O direito à vida está inscrito
no património da Humanidade;
a morte faz parte da vida e
isso exige uma reflexão na Painel principal de convidados Argumentos apresentados
sociedade.
c. Deputado e apoiante Nome: a. _______________________ š b. ________________________________________________
do manifesto š O direito a um fim de vida digno deve ser ponderado.
Profissão: Médica (subscritora
d. Rui Nunes š A decisão de morrer depende da autonomia
do manifesto em defesa da
Posição favorável

e. Médico e presidente de cada um.


da Associação Portuguesa legalização da morte assistida)
de Biomédica
f. Eutanásia é um conceito š Cada um tem direito à liberdade, à autonomia e
muito abrangente e “vago” e à forma como vê a sua dignidade no final da vida.
pode ser mal aplicada como Nome: Pedro Delgado Alves š O conceito de eutanásia é diferente de cuidados
no caso da adolescente belga.
g. Médica especialista em Profissão: c. ___________________ paliativos; a existência de cuidados paliativos não
cuidados paliativos impede que se reflita sobre a possibilidade de se
h. A eutanásia não acaba com praticar a eutanásia.
o sofrimento: a eutanásia
acaba com a vida (não é um š Assiste-se a um desenvolvimento da autonomia das
tratamento médico).
pessoas, por isso surgiu o chamado “testamento
i. Os cuidados paliativos como
solução para o sofrimento vital”1.
não são conhecidos, ou são Nome: d. _______________________ š A ética universal respeita o direito à vida e os médicos
Posição contrária

inacessíveis à maioria estão ligados a essa ética no seu subconsciente,


da população. Profissão: e. ___________________
no seu código deontológico, pelo juramento de
j. Eutanásia não tem que ver
com uma escolha individual; Hipócrates.
ela põe em causa a autonomia
(dá-se autonomia ao médico
š f. _________________________________________________
e não ao doente).
Nota: Disponível, no Guia š h. ________________________________________________
do Professor, um cenário de Nome: Isabel Galriça Neto
resposta para as questões š i. _________________________________________________
4, 5 e 6.
Profissão: g. ___________________
š j. _________________________________________________

1 4. Selecione, justificadamente, os argumentos que considerou mais relevantes para a defesa


Possibilidade de as
pessoas fazerem escolhas de cada uma das posições.
por e para si próprias,
em matéria de cuidados 5. Avalie a pertinência do debate, considerando os papéis e as funções dos intervenientes bem
médicos. como a sua capacidade de argumentar, para um melhor esclarecimento da opinião pública.

6. Evidencie a importância do papel do moderador no debate visionado.

40
Poesia do ortónimo

EXPRESSÃO ORAL

Fernando Pessoa deu ao verbo mentir uma interpretação subjetiva. De acordo com o Di-
cionário Houaiss da língua portuguesa (2001), o termo mentir apresenta, entre outras, as
seguintes aceções:
1
dizer, afirmar ser verdadeiro (aquilo que se sabe ser falso); dar informação falsa
2
não corresponder a
3
não revelar; esconder; ocultar; iludir
Mas, afinal, é aceitável socialmente que se faça uso da mentira? Em que situações se jus-
tifica mentir? Será a mentira uma solução em determinadas circunstâncias? PROFESSOR

1. Realize, em grupo-turma, um debate, com uma duração aproximada de 30 minutos,


Oralidade
subordinado ao tema “a mentira”, considerando as questões acima enunciadas. Aten- 3.1; 4.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3;
te nas orientações que se apresentam. 6.1; 6.2; 6.4

1.1 Constituição dos grupos participantes: Resposta de caráter


pessoal. Contudo, devem ser
š divisão da turma em três grandes grupos: dois para defenderem posições contrárias apresentados os seguintes
(e intervenientes diretos no debate) e um que terá a função de público; argumentos:
− a possibilidade de a mentira
š designação de um moderador, que deve dirigir os trabalhos e gerir os tempos das evitar o sofrimento;
intervenções; − a mentira “inofensiva”
enquanto motivadora para
š indicação de dois secretários, para registarem as conclusões do debate e as apre- a autoestima;
sentarem ao grupo-turma. −…
1.2 Desenvolvimento do debate, respeitando as marcas do género textual: OU
− a mentira nunca se coaduna
š formulação de uma tese inicial, evidenciando a posição defendida; com a honradez;
− a mentira como causadora
š apresentação de argumentos e/ou contra-argumentos que suportem a tese, devi- de graves problemas;
damente ilustrados com exemplos pertinentes; −…
š respeito pelas regras de cortesia.
Escrita
1.3 Apresentação à turma, no final do debate, dos registos efetuados pelo(s) secretário(s). 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3

1.4 Comentário do “público”, referindo:


Resposta de caráter pessoal.
š a pertinência dos argumentos e dos exemplos utilizados para a defesa das diferen- No entanto, os alunos poderão
referir que:
tes posições;
− se, por um lado, pôr fim à
š a vivacidade, o tom e a postura dos participantes. vida é considerado um ato
BLOCO INFORMATIVO – p. 378 condenável, pelo menos numa
perspetiva cristã, por outro, há
E S C R I TA filosofias que preconizam que
seja o ser humano a conduzir
o seu destino;
A decisão de pôr fim ao sofrimento é de quem? De quem está a sofrer? Dos médicos? − o sofrimento é algo que
afeta não só a pessoa mas
Dos familiares? Deverá esta decisão estar dependente de questões éticas universais, também quem a rodeia, daí
independentemente da vontade do indivíduo? Haverá circunstâncias que justifiquem haver correntes de opinião
que defendem que em casos
pôr fim à vida? extremos se possa pôr fim
à vida;
1. Apresente a sua posição relativamente ao tema enunciado, num texto de opinião,
− a decisão poderá caber
com 170 a 200 palavras. a quem está a sofrer, caso
a pessoa seja maior, esteja
Observe os tópicos: consciente e seja essa a sua
š tripartição do texto, correção e seleção vocabular; vontade.

š explicitação de um ponto de vista;


š clareza na perspetiva adotada, nos argumentos e nos exemplos;
BLOCO INFORMATIVO – p. 378
š discurso valorativo. PREPARAR O EXAME – p. 60

41
Fernando Pessoa
A nostalgia da infância

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR
Maravilha-te, memória!
Educação Literária Lembras o que nunca foi,
14.2; 14.3; 14.4; 14.9; E a perda daquela história
15.1 E MA
QU
Gramática
S Mais que uma perda me dói.
E

17.1; 18.2 ; 19.3


EL

1. A repetição da palavra
RO
J ETÁ
V 5 Meus contos de fadas meus,
“memória” e do possessivo vo Rasgaram-lhe a última folha...
“meus” concorre para
acentuar a importância Meus cansaços são ateus
que o sujeito poético dá, no Dos deuses da minha escolha...
presente, ao passado que
agora reconstrói por não o ter
valorizado outrora. Mas tu, memória, condizes
2. Através da memória,
o “eu” regressa ao passado 10 Com o que nunca existiu...
e, no presente, lamenta ter Torna-me aos dias felizes
perdido aquela “história”
personalizada nos contos E deixa chorar quem riu.
de fadas. A recordação traz 21-8-1930
memórias que contrastam
com os cansaços do presente Fernando Pessoa, Poesia 1918-1930, (ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas,
e justificam o apelo final: Madalena Dine), Lisboa, Assírio & Alvim, 2005, pp. 374-375.
“Torna-me aos dias felizes /
E deixa chorar quem riu.”
(vv. 11-12) Estes últimos
versos ilustram de forma
significativa a oposição 1. Demonstre a expressividade resultante do uso das repetições.
passado/presente.
3. O sujeito poético admite
estar em sofrimento, 2. Comprove a presença da oposição passado/presente, ilustrando com elementos tex-
referindo-se à dor causada tuais pertinentes.
pela perda “daquela história”,
aos seus “cansaços ateus”,
e almeja regressar aos dias 3. Descreva o estado de espírito atual do sujeito poético e justifique-o à luz das suas
felizes porque, se agora chora,
no passado “riu”.
memórias do passado.
4. O presente de dor,
desencadeado pelo uso 4. Justifique a evocação da infância e o papel metafórico dos “contos de fadas”.
excessivo da razão, leva o
sujeito poético a evocar o
tempo em que a razão não 5. Dê exemplo de uma personificação, referindo-se à expressividade resultante do seu
o atormentava. Esse era o emprego.
tempo da infância, conotado
com o tempo de ouro em que
o ser humano experiencia a G 6. Indique as funções sintáticas de “memória” e “daquela história”, respetivamente. (vv. 1 e 3)
felicidade. Os contos de fadas
são a metáfora da infância,
na medida em que espelham 7. Registe o referente do pronome “me”. (v. 4)
um mundo de fantasia,
de liberdade, e lembram
as primeiras explicações 8. Refira o tipo de coesão configurada em “história” (v. 3) e “contos de fadas” (v. 5).
para muitos dos enigmas do
mundo. Contudo, a última 9. Identifique o valor aspetual presente na forma verbal “dói”. (v. 4)
página, que instituía o final
feliz que povoava os contos
de fadas, fora rasgada. Talvez 10. Assinale, no se caderno, a alternativa que completa corretamente a afirmação.
seja essa a razão do seu choro.
5. A personificação está
10.1 A oração “quem riu” (v. 12) classifica-se como subordinada
presente no papel que
o “eu” atribui à memória
[A] substantiva completiva.
(invocada por meio do
vocativo), responsabilizando-a [B] substantiva relativa.
por ações que são
única e exclusivamente [C] adjetiva relativa restritiva.
da responsabilidade
do ser humano. [D] adjetiva relativa explicativa.

42
Poesia do ortónimo
A nostalgia da infância

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

PROFESSOR

6. “memória” – vocativo;
“daquela história” –
complemento do nome.
7. O referente é o sujeito
poético (enunciador).
8. Coesão lexical
(substituição).
9. Valor imperfetivo.
Desenho de criança, s/d, Banksy, Detroit. 10.1 [B].

Quando era jovem, quando tinha pena E MA


QU
S
Que (me) fazia chorar,

E
A vida, embora má, era serena

EL
P V
RO
J ETÁ
Porque era só sonhar.
1. As dicotomias presentes
5 Hoje, que tenho pena, quando a tenho, são passado/presente, jovem/
adulto, sonho/vida real. Por
Só com1 compreender, intermédio delas, o sujeito
A minha vida é como alguém estranho opõe o passado ao presente,
dado que o sonho deu lugar à
Que me visita o ser. estranheza em face da vida.
2. No passado, ainda que a
vida fosse má, parecia-lhe
Porque a pena, ou a mágoa, ou o cansaço serena; hoje a vida é estranha
10 Que acaso surja em mim e “a pena, ou a mágoa, ou o
cansaço” (v. 9) impõem-se.
É como alguém que pisa, com mau passo,
3. Os canteiros do jardim
Canteiros de jardim. 1
Por. remetem para a beleza,
16-7-1934 para a harmonia e para
a fragilidade que caracterizam
Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada, os momentos felizes
do passado. O verbo pisar,
(ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine),
por seu lado, adquire um
Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 277. valor disfórico, sugerindo
o facto de o presente anular
o passado.
1. Indique as dicotomias presentes no poema e explicite a sua funcionalidade. 4. A adjetivação − “má”
(v. 3), “serena” (v. 3) − permite
2. Compare a vivência atual do “eu” com a do passado. caracterizar a vida do “eu”
no passado; a enumeração,
com recurso ao polissíndeto,
3. Descodifique o valor simbólico dos “Canteiros do jardim” e do verbo pisar, atendendo em “a pena, ou a mágoa, ou
ao contexto. o cansaço” (v. 9), reforça o
estado de espírito negativo
do sujeito poético no momento
4. Exemplifique, referindo a sua expressividade, a adjetivação antitética e a enumeração presente.
presentes no poema. 5. Orações subordinadas
adverbiais temporais –
“Quando era jovem” (v. 1);
G 5. Classifique as orações subordinadas presentes nos versos 1 e 8. “quando tinha pena” (v. 1);
oração subordinada adjetiva
relativa restritiva – “Que me
6. Indique o valor lógico do conector “ou” presente no verso 9. visita o ser” (v. 8).
6. Valor disjuntivo.
7. Refira o processo de formação de palavras evidenciado em “o ser”. (v. 8) 7. Conversão.

43
Fernando Pessoa
A nostalgia da infância

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
PROFESSOR

CD 1 Não sei, ama, onde era;


FA
IXA 6 Nunca o saberei...
Áudio Sei que era primavera
“Não sei, ama, onde era”
E o jardim do rei...
Educação Literária
5 (Filha, quem o soubera!...)
14.2; 14.4; 14.9; 15.1
.1
E MA
QU
S
Gramática Que azul tão azul tinha
E

17.1; 18.2
Ali o azul do céu!
EL

P V
RO
J ETÁ
1. Na primeira estrofe há Se eu não era a rainha,
um jogo temporal entre
passado e o presente, em Porque era tudo meu?
que o primeiro se reflete 10 (Filha, quem o adivinha?)
no segundo. Com efeito, o
“eu” traz para o presente as
recordações do passado, em E o jardim tinha flores
particular o jardim e a fantasia
de outrora, e admite que no De que não me sei lembrar…
futuro também não saberá Flores de tantas cores…
o que foram essas vivências
anteriores. Penso e fico a chorar...
2. Os versos parentéticos 15 (Filha, os sonhos são dores...)
correspondem às presumíveis
respostas da ama, o
interlocutor direto do “eu”, que Qualquer dia viria
é símbolo do passado e o único
que poderia dar as respostas Qualquer cousa a fazer
que o “eu” procura, graças à De aquela alegria
relação e ao conhecimento
que tem desse passado, agora Mais alegria nascer
revisitado. 20 (Filha, o resto é morrer...)
3. A cor salientada é o azul,
particularmente o “azul do
céu” (v. 7), que simboliza a Conta-me contos, ama...
pureza, a inocência, o que está Paisagem observada da janela, 1913,
além da realidade, que, por sua Todos os contos são Henri Matisse, Museu Pushkin, Moscovo.
vez, se associam à infância, ao Esse dia, e jardim e a dama
sonho e à imaginação típicas
das crianças. Contudo, estão Que eu fui nessa solidão... 1
Espaço em branco
subjacentes outras cores
na referência às “Flores de
25 (Filha, 1) deixado pelo autor.
tantas cores…” (v. 13), que, 23-5-1916
simbolicamente, sugerem
a alegria mas também Fernando Pessoa, Poesia 1902-1917,
a fragilidade. (ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine),
4. As aproximações devem-se Lisboa, Assírio & Alvim, 2005, pp. 352-353.
ao facto de o sujeito poético
ser do género feminino e de,
no final de cada estrofe,
existir um verso que funciona 1. Explicite o jogo temporal presente na primeira estrofe.
como uma espécie de refrão e
que representa a resposta da
2. Justifique a utilização dos versos parentéticos, explicitando a sua funcionalidade.
ama. Portanto, tanto o caráter
dialogal, como a centralidade
da figura feminina e a 3. Descodifique o valor simbólico da(s) cor(es) salientada(s) no poema.
presença do refrão são
aspetos que remetem para as
cantigas de amigo. 4. Comprove a possibilidade de estabelecer aproximações entre esta composição poéti-
5. A anáfora permite realçar ca e as cantigas de amigo.
o modo carinhoso como a
“ama” trata o sujeito poético. 5. Indique a expressividade decorrente do uso da anáfora nos versos parentéticos.
Simultaneamente, reitera o
vocativo e a apóstrofe.
6. Oração subordinada
G 6. Classifique a oração “onde era”. (v. 1)
substantiva relativa.
7. Comprove a presença de marcas deíticas na última estrofe.

44
Poesia do ortónimo

INFORMAR

A nostalgia da infância
TEXTO A
Na poesia de Pessoa está inscrita uma história pessoal, que se pode reconstituir
e partilhar em emoção, em simpatia e compaixão, no sentido etimológico desses
termos.
Qualquer música, qualquer rumorejo de vento no arvoredo, qualquer brilho in- PROFESSOR
5 certo sobre o rio acorda de repente o “sentimento-raiz”, recalcado mas formidavel-
7. Como marcas deíticas,
mente vivo. surgem as formas verbais
E é a infância que volta, inapagável, apesar de todos os desmentidos; a infância no presente e no pretérito
perfeito que contêm marcas
entre parênteses, como convém ao mais secreto do ser … (“Sei muito bem que na temporais e pessoais (“Conta-
-me” e “fui”), bem como
infância de toda a gente houve um jardim / Particular ou público, ou do vizinho / pronomes (“me”). Por outro
10 Sei muito bem que brincarmos era o dono dele / E que a tristeza é de hoje”). lado, também a expressão
“Esse dia” configura uma
A infância é a plena realização do prazer visual e auditivo, comunicação sensual marca temporal, e [esse]
do sujeito com o objeto, anterior à cisão que o pensar imporá mais tarde entre am- “jardim” uma marca deítica
de natureza espacial.
bos. A infância é cor, é música.
Leyla Perrone-Moisés, Fernando Pessoa – Aquém do eu, além do outro, Leitura
São Paulo, Martins Fontes, 1982, pp. 105-106 (com supressões). 8.1; 9.1
Educação Literária
TEXTO B 14.2; 14.4; 14.9; 15.1

Não é necessário ser Pessoa para sentir essa nostalgia lancinante. Ao poeta per-
1.
tence porém essa idealização fantasmática e localizada da sua experiência infantil, Texto A
inacessível não apenas como para o comum dos homens pelo empírico abismo A infância é
temporal que dela nos separa, mas por uma culpa específica como se fosse ele que cor, música

5 tivesse abandonado a infância e não o contrário como toda a gente. É sem dúvida convocada realização
exato que ele se pune da traição da vida para com ele (desaparecimento do pai, por do prazer
estímulos visual
afastamento da mãe) mas não parece possível estabelecer entre essas vivências, exteriores e auditivo
mesmo hipertrofiadas pela fundura da sua deceção, e a totalidade das formas poé-
ticas a que deram origem, um elo coerente. O que o separa da Infância, o que lha Texto B
Idealização da infância
10 converteu em reino fechado e para sempre inatingível donde eternamente se olha-
rá como culpado, indigno de a ele aceder, foi gesto ou ato ou veleidade relacionada
com a sua expressão erótica, gesto ou ato que não pôde integrar nunca na imagem Justificação
imortal de si mesmo. O olhar exterior que tanto o perturba é o seu próprio olhar e traído pela vida
nenhuma tentativa de o tornar aceitável terá o poder de neutralizar a cisão ontoló- cisão da sua existência
15 gica e ética da sua existência. Os três grandes heterónimos são os três ampliados Heterónimos
e interpenetráveis olhares exteriores com que ensaiou reencontrar o olhar simples,
Tentativa de reencontrar
inocente e transparente da sua infância perdida, e nessa perdição próxima dele a simplicidade
como nada mais, “ilha dos mares do sul” da Infância. e inocência da infância

Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa revisitado, Lisboa, Moraes Editores, 1981, p. 119. 2. A infância foi idealizada não
só porque essa é a tarefa do
poeta mas também porque
1. Apresente, sob a forma de esquema, o conteúdo dos textos anteriores. Pessoa se autopenaliza por a
ter abandonado, restando-lhe
recriá-la pela imaginação.
2. Explique por que razão o autor se refere, no texto B, a “idealização fantasmática e locali-
3. Pessoa cria os heterónimos
zada da […] experiência infantil” (l. 2) pessoana. como forma de reencontrar
a simplicidade e a inocência
3. Refira a estratégia a que Fernando Pessoa recorre para remediar este afastamento da próprias da infância.
infância.

45
Fernando Pessoa

INFORMAR

Linguagem, estilo e estrutura


Nos seus poemas, sempre rimados, Pessoa prefere em regra o verso curto,
de número de sílabas par ou ímpar, e a concisão da quadra ou da quintilha;
alia assim a leveza da forma à subtil densidade do pensamento. O caráter alado
destes poemas postula ao mesmo tempo uma linguagem selecionada mas sim-
5 ples, com vocábulos de cariz romântico ou simbolista mas um núcleo de pala-
vras nuas e correntes que o poeta habilmente rejuvenesce e enche de sentido. A
sua grandeza consiste em atingir os efeitos estéticos mais penetrantes com um
mínimo de estímulos, extrema economia de meios. São certas palavras, certos
símbolos que sugerem aqui o inefável, a magia das visões ou a indecisão dos
10 sentimentos: a melodia, a música, o anseio, o etéreo, os trémulos vincos risonhos
na água adormecida. Mas a expressão é límpida, a sintaxe sem pregas obscuras.
Clássico pela constância e universalidade dos temas, pela severa redução do real
ao não-real, que é a realidade que fica, Pessoa é-o igualmente pela sobriedade
translúcida, pela facilidade aparente, pela discrição dos sentimentos mentaliza-
15 dos ou já de raiz intelectual, de qualquer modo serenados, clarificados, contidos.
O mesmo caráter intelectual do estilo se manifesta na frequência de antíte-
ses, paradoxos, jogos de conceitos e palavras.
O paradoxo é ainda mais sintomático de um estilo cerebrino: reúne na afir-
mação antinomias aparentemente irredutíveis mas, no pensamento do poeta,
20 conciliáveis.
Com frequência o poeta e seus heterónimos associam um substantivo e um
adjetivo contraditórios ou qualificam o mesmo substantivo com dois adjetivos
PROFESSOR antitéticos: “alegre e anónima viuvez”.
Mas há também o jogo de palavras que não envolve o paradoxo, antes consis-
Educação Literária
16.1 25 te na repetição da mesma palavra ou palavras homónimas ou afins.
Leitura Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, Lisboa,
7.2; 8.1; 8.2
Verbo, 1982, pp. 85 e 98-99 (com supressões).

1.
a. Poemas “rimados” (l. 1); 1. Complete, no seu caderno, a tabela com as características da poesia do ortónimo
“verso curto, de número de
sílabas par ou ímpar” (ll.1-2); enunciadas no texto lido.
“concisão da quadra ou da
quintilha” (l. 2). Tópicos Exemplificação
b. “linguagem selecionada
mas simples” (ll. 4-5); Organização versificatória,
“vocábulos de cariz romântico a. _____________________________________________________________
ou simbolista mas um núcleo estrófica e rimática
de palavras nuas e correntes”
(ll. 5-6); “expressão é límpida, “densidade do pensamento” (l. 3); “universalidade dos temas”
a sintaxe sem pregas Aspetos do domínio do (l. 12); “redução do real ao não-real” (ll. 12-13); “sobriedade
obscuras” (l. 11); associação de conteúdo/temáticos translúcida” (ll. 13-14); “facilidade aparente” (l. 14), “discrição dos
“um substantivo e um adjetivo
contraditórios ou qualificam o sentimentos mentalizados ou já de raiz intelectual” (ll. 14-15).
mesmo substantivo com dois
adjetivos antitéticos: ‘alegre e Linguagem b. _____________________________________________________________
anónima viuvez’” (ll. 21-23).
c. “antíteses, paradoxos, Recursos expressivos c. _____________________________________________________________
jogos de conceitos e palavras”
(ll. 16-17); “repetição da “efeitos estéticos penetrantes” (l. 7); sugestão do “inefável”(l. 9);
mesma palavra ou palavras Efeitos produzidos “a magia das visões ou a indecisão de sentimentos” (ll. 9-10); a
homónimas ou afins” (l. 25).
melodia, a música, o etéreo” (l. 10).

46
Poesia do ortónimo

LEITURA

Leia o seguinte texto que invoca também a memória de tempo da infância.

Teatrinho do Romão [1977]

E
ram na infância. Vozes amadas. Um vento de saudade
as solta. Primeiro, a de minha mãe.
“Se eu tomasse o remédio, se eu estivesse quie-
ta...” haveria uma história.
5 − A de D. Caio! A de D. Caio!
E a história vinha. E o alfaiatezinho, poltrão, saía em
campo, a bazofiar: “Matei-sete-de-uma-vez! Matei-sete-
de-uma vez!” E no fim era o inimigo desbaratado, o tropel
dos cavalos em fuga e o casamento com a princesa. Outras
10 vezes era “O Caldo de Pedra”, extraído das unhas da avareza,
cheirando “que era um regalo” e tão bem que até “os anjos
o comeriam”. Outras, o “Frei João Sem Cuidados” que afinal
os teve e o moleiro espertalhão que tinha comido as papas
na cabeça do rei. Havia ainda “A Ponte dos Sete Arcos” com
15 aquele mentiroso que tinha visto raposa de légua e meia e
que depois ia encolhendo como se fosse balão de esvaziar, a
d’“A Pata Que Só Tinha Uma Pata”, porque o criado guloso lhe
tinha comido a outra e que vim a descobrir, muito mais tarde,
na fonte do Decameron.
20 A voz de minha mãe era uma voz popular que sabia sobretudo histórias tradicionais, Luísa Dacosta.
tesouros do povo, espertezas, sabedoria vivida. As minhas prediletas eram além da do al-
faiatezinho que o medo tinha tornado herói, a de Frei João e a d’“Os Dez Anõezinhos da Tia
Verde-Água” com a sua lição de que só nos ensina e ajuda não quem nos faz o serviço, mas
quem nos obriga a fazer sozinhos.
25 Ai, voltar a ouvi-las, naquele tempo!
Na minha velha casa transmontana havia um pátio de entrada, lajeado de granito, muito
habitado de passos, vozes e correrias, já que a porta nunca se fechava. Quando a¬guém não
chamasse do fundo das escadas com voz conhecida a que logo se respondesse: “Entre! En-
tre!”, a resposta era: “Suba, quem é!” Fosse quem fosse.
30 Aquele hábito vinha de longe, do antigamente, do tempo do bisavô que sentenciava ser
“a melhor segurança contra ladrões uma porta franca, sempre aberta”. Assim, muitas vezes,
nem de noite a porta era fechada. E o pátio, abrigado, nunca estava adormecido.
Ali, jogava eu a macaca com as raparigas da minha rua. Ali, brincava aos quatro cantinhos
e aos escondarelos.
35 Ali, davam espetáculo os robertos, quando o tempo não estava macio, nem de feição
para cabeças ao léu.
Sentada na escada, com a cabeça entre uma falha do corrimão, eu assistia, já com a
moeda que havia de cantar na bandeja, apertada entre os dedos.
Súbito, cresci. E as vozes calaram-se, perderam-se como um eco, no fundo da memória.

47
Fernando Pessoa
Sonho e realidade

40 ... E, um dia, por milagre dos meus alunos, ressuscitaram. Moços de cego, como eu outro-
ra, pediam sempre:
− Uma história! Uma história!
Muitas vezes lhes contei, recontei e tornei a contar as velhas histórias.
E... se as transformasse em teatro, para representarmos? Que engraçado seria vê-los,
45 viver, ser Frei João, ou Alfaiatezinho! Meu dito, meu feito.
Assim, nasceram estas três pecinhas para robertos de luva. Com música, agaitada, de
feira, fantoches e cenários criados por eles, que emprestaram as suas vozinhas às velhas vo-
zes da infância, as representámos na aula e até na festa da escola. Na esperança de que não
emudeçam e passem, de boca em boca, e rolem, de riso em riso, se entregam aqui, a quem
50 quiser habitá-las com o seu amor e a sua fantasia.
Luísa Dacosta, Houve um tempo, longe, Porto, Edições ASA, 2005, pp. 107-112 (com supressões).

Responda às questões. Nas respostas aos itens de escolha múltipla, selecione a opção
correta.

1. O acontecimento que origina as memórias de Luísa Dacosta é

[A] a recordação da voz da mãe.

[B] a recordação do espetáculo de robertos.

[C] o pedido dos alunos para contar uma história.

[D] o regresso à casa de Trás-os-Montes.

2. A narradora apresenta

[A] um único acontecimento marcante na sua infância.

[B] a descrição da sua vida na infância.

[C] o retrato dos protagonistas das histórias ouvidas quando era criança.
PROFESSOR
[D] uma variedade de temas/acontecimentos associados à sua infância.
Leitura
7.1; 7.3; 7.5; 7.7 3. O enunciador preocupa-se em
Gramática
17.1; 18.2; 19.3 [A] relatar factos ficcionados para evidenciar a sua criatividade.
Escrita
11.1; 12.1; 12.2; 12.3
[B] narrar factos ligados ao quotidiano e à sua vida pessoal.

[C] mobilizar todo o tipo de informação sobre a sua vida atual.


1. [C]
[D] dar conta de acontecimentos que marcaram a sua infância.
2. [D]
3. [B]
4. [A] 4. Como marcas específicas das memórias, surgem, no texto,
5. [C] [A] o discurso de primeira pessoa, a narratividade e a variedade de temas do quotidiano.
6. O deítico pretende reforçar
a importância, nas memórias [B] o caráter demonstrativo, a objetividade e a fundamentação das ideias.
da narradora, do espaço a que
se refere – o pátio na casa [C] a explicitação de um ponto de vista, com recurso a argumentos e a exemplos.
transmontana.
7. “as velhas histórias” (l. 43) [D] a descrição sucinta de um acontecimento, acompanhada de um comentário crítico.
8. Verbo principal intransitivo.
9. “a quem quiser habitá-
-las com o seu amor e a sua
fantasia” (ll. 49-50).
10. Complemento direto.

48
Poesia do ortónimo

G 5. A expressão sublinhada no enunciado “havia um pátio de entrada, lajeado de granito,


muito habitado de passos, vozes e correrias, já que a porta nunca se fechava.” (ll. 26-27) é
representativa de um valor aspetual
[A] perfetivo.

[B] iterativo.

[C] habitual.

[D] imperfetivo.

6. Explicite o valor da utilização anafórica do deítico “Ali”. (ll. 33 e 35)

7. Transcreva o referente do pronome pessoal em adjacência verbal presente em “se as


transformasse em teatro”. (l. 44)

8. Indique a subclasse a que pertence o verbo ‘nascer’ no contexto da frase “nasceram


estas três pecinhas”. (l. 46)

9. Transcreva, do último período do texto, a oração substantiva relativa aí presente.


PROFESSOR
10. Indique a função sintática desempenhada pelo constituinte “las” em “habitá-las”. (l. 50)
Escrita
10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3;
13.1

E S C R I TA Link
Filme O meu nome é Alice
(2014)
O tema da memória é também frequentemente tratado em formas de expressão artísti-
− O filme data de 2014 e é
cas como o cinema. a adaptação do romance
homónimo de Lisa Genova.
− A história mostra o
sofrimento e a infelicidade
de uma psicóloga (e da sua
família) que, precocemente,
é afetada pela doença de
Alzheimer.
− Destacam-se as vivências
do quotidiano e o modo
como, sistematicamente,
O meu nome é Alice, 2014, até em tarefas mais básicas,
realização de Richard Glatzan. o recurso à memória é
importante e fulcral, e de
que forma esse quotidiano
1. Visione o filme O meu nome é Alice, tendo em conta, entre outros, os seguintes tópicos: é afetado quando não
conseguimos recordar-nos
šforma como o tema da memória (ou falta dela) é tratado; de informações essenciais.
− Apesar de a maioria das
šdesempenho dos atores, sobretudo a representação da personagem Alice; cenas decorrer em interiores,
o filme ganha com a seleção
šplanos de filmagem de personagens, cenários, … de belos espaços exteriores,
nomeadamente jardins e
šcomentário crítico pessoal. praias onde decorrem algumas
filmagens.
2. Redija um texto de apreciação crítica, de 150 a 180 palavras, obedecendo aos tópicos − A realização é cuidada,
e são frequentes os planos
acima elencados, às marcas de género específicas e à estrutura textual. da protagonista em que as
expressões faciais denunciam
apreensão perante os avanços
PREPARAR O EXAME – p. 57 da doença.
BLOCO INFORMATIVO – p. 378

49
CONSOLIDAR Poesia do ortónimo

FINGIMENTO ARTÍSTICO
Teoria que define o ato artístico como algo superior, que considera o fingir como uma exigência
da criação artística e que resulta do uso da imaginação a que todo o artista deve recorrer.
Só o uso da razão, por oposição ao sentimento, permite aceder ao fingimento. Além disso, a
necessidade que o poeta tem de comunicar aos outros o que sentiu implica fingir, porque o que se
sente é incomunicável. Por isso, ao selecionar as palavras, que não são mais do que convenções, o
poeta já não comunica o que sentiu, o que o leva a dizer que “fingir não é mentir”, tal como afirma
no poema “Isto”.

DOR DE PENSAR
Estado que resulta do uso excessivo e permanente da inteligência, que se relaciona com o re-
curso contínuo à razão e que leva o poeta a afirmar “O que em mim sente está pensando”.
A intelectualização dos sentidos ou sentimentos provoca dor e infelicidade, por isso o sujeito
poético refugia-se, por vezes, na infância e/ou emite o desejo de ser instintivo ou inconsciente,
como sucede nos peomas “Gato que brincas na rua” e “Ela canta, pobre ceifeira”, respetivamente.

SONHO E REALIDADE
Certo de que pelo sonho se pode afastar da realidade, o poeta evade-se, frequentemente, para
dimensões do domínio do onírico, ainda que estas possam, no fundo, concretizar-se na realidade,
uma vez que o poeta se encontra num estado de quase permanente alheamento e de confusão
como se vê em “Não sei se é sonho se realidade”.
No ortónimo, o poeta ilude a vida sonhando, mas os seus sonhos revelam-se inúteis, ainda que
a sua vocação seja pensar e sonhar, como se confirma em:
A febre do que me suponho
Tolda-me a fronte de o pensar.
Mas, se penso, somente sonho,
Porque a febre me faz sonhar.

NOSTALGIA DA INFÂNCIA
Perante a consciência de que o estado de inconsciência corresponde ao período da infância,
o poeta evoca o tempo em que não tinha direitos nem deveres, momento em que tudo parecia
possível, inclusive poder brincar no jardim do rei e pensar que tudo era nosso − “Não sei, ama, onde
era”. Por isso, deseja viver num estado de pura inocência, liberto do intelecto que o faz questionar-
-se continuamente e lamentar não ter usufruído desse anterior estado de pureza, quase instintivo.

LINGUAGEM E ESTILO
Na poesia do ortónimo, é visível a influência da lírica tradicional em alguns traços formais, so-
PROFESSOR
bretudo:
Disponível, na brochura š na preferência pelas estrofes curtas (quadra e quintilha) e pelo verso curto (redondilha
Educação Literária, p. 4
(Dossiê do Professor) um
menor e maior);
texto inédito do Professor š na musicalidade, no ritmo embalatório;
Cardoso Bernardes sobre
Fernando Pessoa ortónimo: š na utilização de uma linguagem simples mas, muitas vezes, simbólica, metafórica;
“A verdade vivida e a verdade
pensada”. š no uso de repetições, anáforas, antíteses, apóstrofes, gradações, enumerações, paradoxos,
personificações, …

50
VERIFICAR

Selecione a alternativa que completa adequadamente cada afirmação e registe as


respostas no seu caderno diário.
1. Os poemas representativos da temática do fingimento artístico são
[A] “Gato que brincas na rua” e “Ela canta, pobre ceifeira”.
[B] “Tudo que faço ou medito” e “Não sei se é sonho se realidade”.
[C] “Maravilha-te, memória!” e “Não sei, ama, onde era”.
[D] “Isto” e “Autopsicografia”.

2. O fingimento não pode ser entendido como sinónimo de mentira, uma vez que
[A] é algo inerente à criação artística.
[B] representa a opção ou a liberdade.
[C] implica o uso dos sentimentos.
[D] fingir implica usar as sensações.

3. O uso da imaginação é uma atitude exigida, principalmente, ao


[A] artista. [B] espetador. [C] leitor. [D] ator.

4. No poema “Ela canta, pobre ceifeira”, o sujeito poético


[A] condena a ceifeira por cantar sem razão.
[B] aspira a ser inconsciente e a ter consciência disso.
[C] critica a inconsciência da pobre ceifeira.
[D] deseja ser inconsciente para gozar a vida.

5. A dualidade sonho/realidade espelha


[A] a necessidade de fuga à pressão que envolveu o poeta.
[B] o permanente estado de hipnose a que Pessoa se sujeitou.
[C] as convicções de um artista maior, como foi Pessoa.
[D] o desejo de sonhar para abandonar uma vida inútil.

PROFESSOR
6. O desejo de regressar à infância justifica-se
[A] pelas responsabilidades associadas à idade adulta.
[B] pelas saudades que a meninice deixa em qualquer pessoa. Apresentação
Síntese da Unidade 1
[C] pela necessidade de o poeta se libertar do pensamento.
[D] pelo desejo de voltar a ver os amigos imaginários que perdeu. Educação Literária
14.3; 14.8; 15.2; 16.1

7. Fernando Pessoa mostra preferência pelo 1. [D]


[A] verso curto e pela quadra ou quintilha. 2. [A]
3. [A]
[B] decassílabo e pela ausência de rima. 4. [B]
[C] verso solto ou branco e espraiado. 5. [D]
6. [C]
[D] verso longo, sem rima, próprio da poesia modernista. 7. [A]

51
AVA L I A R Poesia do ortónimo
GRUPO I

Apresente as suas respostas, de forma bem estruturada, aos itens A e B.

Leia o poema de Fernando Pessoa.

Não sei ser triste a valer


Nem ser alegre deveras.
PROFESSOR Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
5 Assim também, sem saber?
Ficha
Ficha de Avaliação –
Unidade 1 Ah, ante a ficção da alma
Apresentação E a mentira da emoção
Soluções Ficha Com que prazer me dá calma
de Avaliação
Ver uma flor sem razão
GRUPO I 10 Ser minha sem coração!

Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.7; Mas enfim não há diferença.
14.8; 14.9 Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
1. A interrogação retórica da
primeira estrofe relaciona-se O que nela é florescer
com a afirmação do sujeito 15 Em nós é ter consciência.
poético nos três versos
iniciais. Nestes, afirma a
sua incapacidade de sentir, Depois, a nós como a ela,
seja alegria seja tristeza,
o que acontece porque Quando o Fado a faz passar,
não consegue libertar-se Surgem as patas dos deuses
da consciência e do seu
pensamento. Após esta E a ambos nos vêm calcar.
constatação, o sujeito poético
questiona-se sobre se “os
outros” serão como ele, mas 20 ’Stá bem, enquanto não vêm,
sem terem consciência disso.
Vamos florir ou pensar.
2. A comparação é
estabelecida entre as flores 3-4-1931
e o ser humano e assenta
no modo natural como a Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada,
primeira “flore” e o segundo (ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine),
é consciente e pensa. Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 46.
O objetivo é mostrar que não
há diferença entre o homem
e a flor: ambos, agindo
involuntariamente, cumprem 1. Explique o sentido da interrogação retórica da primeira estrofe.
a sua função – um florindo
e o outro pensando.
2. Explicite a comparação presente no poema, justificando a sua utilização.
3. O Fado e os deuses são os
responsáveis pelo fim quer
do homem quer da flor. 3. Relacione o conteúdo dos dois últimos versos com o conteúdo da quarta estrofe.
Quando chegar o momento,
“ambos nos vêm calcar” (v. 19).
No entanto, enquanto isso não
acontece, o sujeito poético
aceita, resignadamente, o que
a vida destinou: florir para a
flor, pensar para o homem.

52
B

Leia a esparsa.

Os bons vi sempre passar


no mundo grandes tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
5 em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado.
Assi que, só para mim
10 anda o mundo concertado.
Luís de Camões, Rimas, texto estabelecido e prefaciado
por Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 2005, p. 102.

4. Indique justificadamente o tema do poema.

5. Identifique a presença da antítese, explicitando a expressividade decorrente do


seu uso.

GRUPO II
PROFESSOR
Leia o seguinte texto. De seguida, responda às questões. Nas respostas aos itens de
escolha múltipla, selecione, no seu caderno, a opção correta.
4. O tema do poema é o
desconcerto do mundo. Tal
é possível afirmar-se com
Pessoa é um dos mais proeminentes poetas do século XX e um dos nomes base no conteúdo da primeira
parte, isto é, dos primeiros
maiores de sempre na literatura portuguesa a par de Camões, ou mesmo ul- cinco versos. O sujeito poético,
trapassando-o. Ele é o mais português e o mais universal dos nossos poetas. refletindo sobre o ser humano,
constata que os “bons”, que
Amplamente divulgado e estudado (têm corrido rios de tinta sobre a sua vida deveriam merecer um “mar
de contentamentos” (v. 5),
5 e obra), traduzido em todo o mundo, objeto de culto elevado à escala de um passam “no mundo grandes
grande mito, recebido apaixonadamente pelo público, integrado no programa tormentos” (v. 2), enquanto
os maus são beneficiados,
escolar português, a sua obra é de uma emotividade, sensibilidade e univer- quando deveria acontecer o
contrário. Esta visão do mundo
salidade tocantes, seduzindo todos aqueles que conseguem vencer as barrei- “às avessas” causa estranheza
ras criadas pela própria linguagem. ao eu lírico.
5. A antítese é o recurso
10 Sendo hoje considerado um dos nossos maiores poetas de sempre, om- expressivo que se destaca no
breando com os nomes cimeiros da literatura mundial do século XX, “em poema, como se exemplifica
nos pares antitéticos “bons/
vida, falhou tudo: carreira, amores, relações sociais, obra”, tendo permane- maus”, “contentamentos/
tormentos”, “bem/mal”.
cido um quase desconhecido. O poeta “maldito” estava condenado à glória Através das oposições, na
póstuma. perspetiva do enunciador,
caracteriza o mundo que
15 À data do seu falecimento é um completo desconhecido para o grande desvaloriza o que há de
positivo (referência ao
público. Quase ninguém o conhecia fora dos círculos literatos, intelectuais e primeiro termo) e privilegia os
universitários. O poeta morreu quase inédito, desconhecido do mundo, dos aspetos negativos (visíveis no
segundo termo da oposição).
portugueses e mesmo da pequena Lisboa provinciana da sua época. […]

53
AVA L I A R
Fernando Pessoa tornou-se num caso único de popularidade. A explica-
20 ção desse fenómeno reside não só na qualidade da sua produção literária,
nas inovações formais e temáticas da escrita, no estilo moderno e original,
como também no facto de se ter desdobrado em vários, adotando diferentes
estilos e abordando diferentes assuntos capazes de agradarem a um público
heterogéneo que se revê sempre nalgum dos seus escritos, o que suscita a
25 cumplicidade e logo o interesse e a atração.
Os heterónimos, sendo Pessoa, retiram-lhe por assim dizer a responsabi-
lidade do impacto da sua escrita provocatória e protegem simultaneamente o
perfil discreto que sempre conservou, o que torna a sua vida e o seu pensa-
mento um enigma que, apesar de serem objeto de interpretação constante de
30 numerosos estudiosos portugueses e estrangeiros, ainda hoje permanecem
por decifrar completamente, já que o poeta nisso fez gala: “Repudiei sempre
que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-me. Prefiro ser to-
mado a sério como o que não sou.”
Paulo Marques, Cadernos biográficos de personalidades portuguesas do século XX,
“Fernando Pessoa, um rasgo de génio puro 1888-1935”, Parceria A. M. Pereira Livraria Editora, Lda.,
Lisboa, 2008, pp. 13-16 (adaptado).

1. De acordo com o conteúdo do texto, a notoriedade de Pessoa


[A] teve início ainda quando o poeta era vivo.
[B] teve impacto depois dos heterónimos.
[C] só se verificou depois de Pessoa morrer.
[D] só aconteceu no século XXI.

2. O êxito da obra pessoana deve-se


[A] à criação heteronímica.
[B] a um conjunto de fatores, entre os quais a sua fragmentação.
PROFESSOR
[C] à variedade de temas abordados pelos heterónimos.
GRUPO II [D] ao estilo moderno e original de Pessoa.
Leitura
7.1; 7.3; 8.1 3. O amplo estudo que tem vindo a ser feito sobre Pessoa e a sua obra
Gramática
17.1; 18.2; 19.3 [A] contribuiu decisivamente para interpretar a sua personalidade e a sua obra.
[B] contribuiu para interpretar a obra do poeta, mas não a sua personalidade.
1. [C]
2. [B]
[C] não produziu resultados, pois ela é indecifrável.
3. [D] [D] tem feito luz sobre alguns aspetos da ainda enigmática vida e obra pessoanas.
4. [A]
5. [C] 4. O mecanismo de coesão que se estabelece entre o nome Camões (l. 2) e o pronome
6. [C]
“o” (l. 3) designa-se como
7. [B].
8. Assimilação do /r/ e síncope [A] coesão referencial.
do /n/.
[B] coesão frásica.
9. Restritivo.
10. Oração subordinada [C] coesão temporal.
substantiva completiva.
[D] coesão interfrásica.

54
5. O enunciado “Fernando Pessoa tornou-se num caso único de popularidade” (l. 19)
apresenta o valor aspetual
[A] habitual.
[B] iterativo.
[C] perfetivo.
[D] imperfetivo.

6. O segmento “num caso único de popularidade” (l. 19) desempenha a função sintática
de
[A] modificador (da frase).
[B] predicativo do complemento direto.
[C] predicativo do sujeito.
[D] complemento direto.

7. O conector “apesar de” (l. 29), no contexto em que surge, apresenta um valor lógico
[A] causal.
[B] concessivo.
[C] condicional.
[D] consecutivo.

8. Identifique o(s) processo(s) fonológico(s) ocorrido(s) na passagem de PERSONA-


para ‘pessoa’.
PROFESSOR
9. Indique o valor da oração “que sempre conservou”. (l. 28)
GRUPO III

10. Classifique a oração “que me compreendessem”. (l. 32) Escrita


11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4

Resposta aberta, classificada


GRUPO II segundo os critérios do exame
nacional.
Sugere-se o plano seguinte:
Em vida, Pessoa era quase desconhecido; o reconhecimento do seu mérito como poe- Introdução: apresentação do
ta pelo público em geral só aconteceu após a sua morte. tema – importância para o ser
humano do reconhecimento
do seu valor.
Num texto de opinião, com um mínimo de duzentas e um máximo de trezentas pa- Desenvolvimento:
demonstração dessa
lavras, defenda um ponto de vista pessoal sobre a importância de o ser humano ser importância:
reconhecido pelo seu valor. − em primeiro lugar, atua
no ser humano como um
incentivo e é promotor de
Fundamente o seu ponto de vista recorrendo, no mínimo, a dois argumentos, ilustran- novos empreendimentos;
do cada um deles com, pelo menos, um exemplo significativo. − em segundo lugar, funciona
como prémio pelo trabalho,
e a recompensa é um
contributo para a autoestima.
Conclusão: retoma da
posição inicialmente tomada
e fecho do texto, reforçando
a ideia de que o esforço e o
trabalho de alguém devem ser
reconhecidos.

55
2
Educação Literária
Poesia dos heterónimos
O fingimento artístico
Fernando Pessoa
Heterónimos e Bernardo Soares

Bernardo Soares
Livro do desassossego
š “Amo, pelas tardes demoradas de verão, …”
A questão da heteronímia
š “Quando outra virtude não haja em mim, …”
Alberto Caeiro
š “Releio passivamente, …”
š “Se eu pudesse trincar a terra toda”
š “Tudo é absurdo.”
š “Dizes-me: tu és mais alguma cousa”
O imaginário urbano
š “Sou um guardador de rebanhos”
O quotidiano
Ricardo Reis
Deambulação e sonho: o observador acidental
š “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”
Perceção e transfiguração poética do real
š “Segue o teu destino”
Linguagem, estilo e estrutura: a natureza
š “Uns, com os olhos postos no passado”
fragmentária da obra
š “Solene passa sobre a fértil terra”
Leitura
Álvaro de Campos
Artigo de opinião
š “Ali não havia eletricidade”
Apreciação crítica
š “Ode triunfal”
Diário
š “Esta velha angústia”
Exposição sobre tema [10.˚ ano]
Escrita Gramática
Exposição sobre um tema Valor modal [Aprender/Aplicar]
Apreciação crítica Em revisão:
Processos de formação de palavras
Oralidade Modos e tempos verbais
Diálogo argumentativo [CO] Pronomes pessoais em adjacência verbal
Texto de opinião [EO] Funções sintáticas
Documentário [CO] [10.˚ ano] Subordinação
Valor aspetual
Exposição sobre tema [CO e EO] [11.˚ano]
Dêixis
Síntese [EO] [10.˚ ano] Coesão
PROFESSOR

A Unidade 2 integra a poesia dos heterónimos e a prosa de


Bernardo Soares. Esta opção decorre, por um lado, do facto
de Bernardo Soares ser considerado um semi-heterónimo;
por outro lado, os fragmentos de Bernardo Soares previstos
no Programa/Metas permitem estabelecer um diálogo com
alguns dos temas dos heterónimos pessoanos.
Fernando Pessoa

COMPREENSÃO DO ORAL

1. Visione um excerto de um diálogo argumentativo do programa Sociedade Civil, da


RTP 2, sobre Fernando Pessoa e complete, no seu caderno, as informações solicitadas.

PROFESSOR Fernando Pessoa – Sociedade Civil, RTP.

Oralidade
1.1; 1.3; 1.4; 1.5; 1.8; 2.1 Intervenientes Identificação e profissão Função dos intervenientes

Moderador š a. ________________________________ š b. _______________________________

š c. ________________________________
Link
š Desenvolvem os tópicos colocados
Sociedade Civil – Participantes š d. ________________________________
Fernando Pessoa
pelo moderador, argumentando, de
no diálogo
(19 minutos) š Nuno Amado: doutorando em Teoria forma persuasiva e/ou reforçando
argumentativo
Apresentação da Literatura na Universidade de as ideias dos outros participantes.
Contextualização Lisboa
histórica e literária
(poesia do heterónimos)
2. Assinale como verdadeiras ou falsas as seguintes afirmações. Corrija as falsas.
1. a. Mariana Gray de Castro apresenta, como argumentos para a escolha do poema, o hu-
a. Luís Castro
mor presente no texto através da comparação entre o amor e a dobrada à moda do
b. Orienta a conversa fazendo
perguntas. Porto; a nostalgia da infância – temática pessoana; e a frustração que às vezes senti-
c. Mariana Gray de mos quando esperamos uma coisa da vida e esta se revela diferente das expectativas.
Castro: investigadora das
Universidades de Oxford b. Na sua primeira intervenção, Clara Riso debruça-se sobre a questão da heteronímia.
e Lisboa
c. O estudo de Nuno Amado incide sobre dois tópicos: (1) tentativa de explicação de
d. Clara Riso: diretora da Casa
Fernando Pessoa Fernando Pessoa e da sua relação com os heterónimos e (2) relação entre a obra de
2. Ricardo Reis e a do seu “mentor”, o poeta latino Horácio, que o estudioso considera se-
a. V melhantes no conteúdo e na forma.
b. F − A diretora da Casa
Fernando Pessoa faz
d. Dois dos intervenientes – Nuno Amado e Mariana Gray de Castro − defendem que só se
inicialmente uma síntese devem considerar três heterónimos – Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos
biográfica de Fernando – e o semi-heterónimo − Bernardo Soares, uma vez que só estes apresentam obra de
Pessoa.
c. F − O estudo é sobre Ricardo
extensão considerável e personalidade marcada.
Reis e a sua relação com
e. A questão da heteronímia é também destacada nas visitas à Casa Fernando Pessoa.
Alberto Caeiro. Relativamente
às obras de Reis e de Horácio, f. Segundo Nuno Amado, a verdade sobre a génese da criação heteronímica é contada
Nuno Amado considera-as
semelhantes na forma, mas por Pessoa numa carta a Adolfo Casais Monteiro.
não no conteúdo.
d. V 3. Selecione a alternativa que melhor completa a definição relativamente ao género tex-
e. V
tual − diálogo argumentativo − que visionou.
f. F − O estudioso considera
que essa explicação deve ser No diálogo argumentativo, os intervenientes defendem uma a. perspetiva/polémica
relativizada dada a extensão
da obra que Pessoa diz ter sido sobre determinado assunto, utilizando, para isso, b. teorias/argumentos convincentes.
escrita numa noite em 1914.
3. Por vezes, os interlocutores recuperam o conteúdo dos outros oradores, acrescentando in-
a. perspetiva formação ou refutando alguma ideia.
b. argumentos
BLOCO INFORMATIVO – p. 378

58
Poesia dos heterónimos

INFORMAR

A questão da heteronímia
TEXTO A
[A] prática discursiva pessoana decorre da conjugação e cruzamento de vozes
dialogais – os heterónimos −, encaradas estas como eixos discursivos dotados de
autonomia. É essa a posição de Pessoa, num texto intitulado Ficções do interlúdio,
onde, [afirma]:
5 No primeiro grau, a personalidade distingue-se por ideias e sentimentos
próprios, distintos dos meus, assim como, em mais baixo nível desse grau, se
distingue por ideias, postas em raciocínio ou argumento, que não são minhas,
ou, se o são, o não conheço.

O significado destas palavras parece-nos bastante pertinente, se tivermos em Fernando Pessoa, Bernardo
Soares, Ricardo Reis e Álvaro
10 consideração quatro diretrizes, tomadas no seu conjunto, que informam o esta- de Campos, Rui Pimentel.
tuto de heterónimo: em primeiro lugar, a de que o heterónimo (o outro) se distin-
gue do ortónimo (o eu) pelo nome diferente que tem; em segundo lugar, a de que
o heterónimo tem uma identidade autónoma, com características psicológicas e
ideológico-culturais próprias; em terceiro lugar, a de que o heterónimo possui um
15 discurso próprio num estilo específico; finalmente, a de que o heterónimo, que se
PROFESSOR
pode revelar dissonante em relação ao ortónimo, está habilitado para estabelecer
um diálogo não só com os outros heterónimos, mas também com o ortónimo. Educação Literária
16.1
Dionísio Vila Maior, Fernando Pessoa: heteronímia e dialogismo, Coimbra, Livraria Almedina, 1994, pp. 84-85
(com supressões). Leitura
7.1; 7.4
TEXTO B
1. Ambos os textos exploram
Eis a primeira e a mais simples explicação que Fernando Pessoa se permitiu da a questão da heteronímia de
génese e significado daquilo a que depois veio a chamar, com mais propriedade, os Fernando Pessoa, procurando
explicitar esse conceito.
seus “heterónimos”, ou seja, a raiz grega do vocábulo o está a dizer, “outros nomes, 2. É no segmento pessoano
nomes diferentes de uma mesma pessoa”, o contrário, em suma, da palavra “ho- citado que se vê essa
consciência, concretamente
5 mónimo”, que quer dizer mais do que uma pessoa com o mesmo nome, ou da pa- em “que não são minhas, ou, se
lavra “pseudónimo”, nome suposto, nome diferente, na aparência, mas encobrindo o são, o não conheço” (ll. 7-8).
a mesma pessoa na essência, nome que se usa para ocultar uma individualidade 3. Texto A – A “conjugação
e cruzamento de vozes
que não pretende repartir-se ou desdobrar-se, como acontece com aquele que em- dialogais” (ll. 1-2); “o
heterónimo (o outro) se
prega “heterónimos”, mas apenas servir-se de outros nomes para continuar a ser, distingue do ortónimo
10 ocultamente, a mesma pessoa. Na verdade, a ideia de “heterónimo” corresponde (o eu) […] tem uma
identidade autónoma, com
a um desejo de desdobramento sem identidade: é exatamente uma representação, características psicológicas e
através de diferentes personagens, de diversas faces da mesma individualidade ori- ideológico-culturais próprias”
(ll. 11-14); Texto B – “outros
ginal, ou, então, a expressão de diferentes conceitos da vida de uma mesma perso- nomes, nomes diferentes
nalidade. Confessadamente, Fernando Pessoa reconhecia, assim, que os diferentes de uma mesma pessoa”
(ll. 3-4); “Na verdade, a ideia
15 nomes de que ia servir-se para escrever a sua obra de poeta e até de prosador en- de ‘heterónimo’ corresponde a
carnavam, cada um deles, um seu diferente conceito da vida. um desejo de desdobramento
sem identidade: é exatamente
João Gaspar Simões, Fernando Pessoa, Ensaio interpretativo da sua vida e da sua obra, uma representação, através
Lisboa, Texto Editores, 2010, pp. 20-21 (com supressões). de diferentes personagens,
de diversas faces da mesma
individualidade original,
1. Indique o assunto dos dois textos. ou, então, a expressão de
diferentes conceitos da vida
2. Comprove que Fernando Pessoa tem consciência da sua despersonalização. de uma mesma personalidade”
(ll. 10-14).
3. Transcreva as expressões que contribuem para clarificar o conceito de heteronímia.

59
Fernando Pessoa
A questão da heteronímia

INFORMAR

A carta que Fernando Pessoa escreveu a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese da heteroní-
mia constitui uma explicação possível para a diversidade de “eus” pessoanos.

A Adolfo Casais Monteiro


Caixa Postal 147,
Lisboa, 13 de janeiro de 1935

Meu prezado Camarada:

Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente.


Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos.
Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço
5 de histeria1 que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais
propriamente, um histeroneurasténico2. Tendo para esta segunda hipótese, porque
há em mim fenómenos de abulia3 que a histeria, propriamente dita, não enquadra
no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heteróni-
mos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para
10 a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentali-
zaram-se em mim: quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior
e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo.
Vou agora fazer-lhe a história direta dos meus heterónimos. Começo por aque-
les que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro – os que jazem perdidos
15 no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Em Pessoa, 2011, Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de
Juanma Pérez,
juanmaperez.wordpress.com.
me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido,
se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em
todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo
20 a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos,
caráter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas
como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real.
Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acom-
panhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas
25 não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas
com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais
esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente
alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-
30 -o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome
1
Comportamento inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura − cara, estatura, traje e gestos −
caracterizado por uma imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos
excessiva emotividade. e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de
2
Comportamento distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho saudade deles.
emocional
frequentemente irritadiço.
35 Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever
3
Incapacidade de tomar
uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo
decisões voluntárias. Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso.

60
Poesia dos heterónimos

Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa


que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
40 Ano e meio, ou dois anos, depois lembrei-me um dia de fazer uma partida ao
Sá-Carneiro − de inventar um poeta bucólico4, de espécie complicada, e apresen-
tar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias
a elaborar o poeta, mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira − foi
em 8 de março de 1914 −, acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel,
45 comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos
poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o
dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título,
“O guardador de rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em
mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da
50 frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E
tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente
peguei noutro papel e escrevi, a fio também, os seis poemas que constituem a “Chu-
va oblíqua”, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de
Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reação
55 de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir − instintiva e subconscien-
temente − uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente,
descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de
repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um
60 novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda,
surgiu a “Ode triunfal” de Álvaro de Campos − a Ode com esse nome e o homem
com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie5 inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade.
Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e
65 as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo,
o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim.
E parece que assim ainda se passa.
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço inco-
lor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Cam-
70 pos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lem-
bro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente
no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas
viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase al-
guma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de outubro de 1890 (às 1.30 da
75 tarde, diz-me o Ferreira Gomes, e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora,
está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui
em Lisboa em inatividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil
(morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era, Ricardo Reis é um pouco,
mas muito pouco mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m
80 de altura – mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara
rapada todos − o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate;
Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo po- 4
Relativo ao campo,
rém liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve à Natureza.
mais educação que quase nenhuma − só instrução primária; morreram-lhe cedo 5
Conjunto de indivíduos,
85 o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. próximos entre si.

61
Fernando Pessoa
A questão da heteronímia

Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas,
é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontanea-
mente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-he-
lenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de
90 liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica
e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o “Opiá-
rio”. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
PROFESSOR
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspi-
Educação Literária ração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever. Ricardo Reis, depois de
16.1 95 uma deliberação abstrata, que subitamente se concretiza numa ode. Campos,
Leitura quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-he-
7.1; 7.4
terónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas cousas se parece com Álvaro de
1. Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha
a. Histeroneurastenia um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é
e tendência para a 100 um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a persona-
despersonalização
e simulação. lidade a minha, é, não diferente da minha, mas simples mutilação dela. Sou eu
b. Nasceu em 1889, em Lisboa. menos o raciocínio e a afetividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de tenue
Tinha estatura média e olhos
azuis, era loiro e frágil. Fez à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro
apenas a instrução primária escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos, como dizer
e não exerceu qualquer
profissão, tendo vivido de 105 “eu próprio” em vez de “eu mesmo”, etc., Reis melhor do que eu, mas com um
pequenos rendimentos, no
campo, com uma tia-avó.
purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis
Escrevia mal português. − ainda inédita − ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais
c. Surgiu “por pura e espontânea, em verso.)
inesperada inspiração”
(ll. 93-94). Creio assim, meu querido Camarada, ter respondido, ainda com certa incoe-
d. Nasceu em 1887, no Porto. 110 rência, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las.
Era baixo, forte, seco e
moreno. Foi educado num Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso
colégio de jesuítas e recebeu me desculpará desde já, é não responder tão depressa.
uma formação latinista e
semi-helenista. Foi médico e Abraça-o o camarada que muito o estima e admira,
viveu no Brasil para onde se
expatriou por ser monárquico.
Escrevia com correção, mas Fernando Pessoa
era exageradamente purista.
Fernando Pessoa, Correspondência 1923-35 (ed. Manuela Parreira da Silva),
e. Surgiu de “uma deliberação Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, pp. 337, 340-347 (com supressões).
abstrata” (l. 95).
f. Nasceu em 1890, em Tavira.
Era alto, magro, um pouco
curvado, branco e moreno. 1. Complete, no seu caderno, o esquema seguinte com informação retirada da carta de
Usava o cabelo apartado ao
lado e monóculo. Recebeu Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro.
uma educação vulgar de liceu,
mas acabou por se formar
em engenharia, primeiro Justificação para o aparecimento da heteronímia
mecânica e depois naval, em
Glasgow, na Escócia. Escrevia a.
razoavelmente.
g. Surgiu de “um súbito
impulso para escrever” (l. 96).
h. Bernardo Soares, um semi- Aspetos biográficos e Processos de criação/nascimento
-heterónimo que se parece em traços caracterizadores intencionais vs. involuntários
muitas coisas com Álvaro de
Campos, correspondia a uma Alberto Caeiro b. ____________________________ c. ________________________________
mutilação da personalidade
do seu criador e, por isso, a sua Ricardo Reis d. ____________________________ e. ________________________________
prosa era igual à dele.
i. Aparecia quando Fernando Álvaro de Campos f. ____________________________ g. ________________________________
Pessoa estava cansado
e sonolento.
Bernardo Soares h. ____________________________ i. ________________________________

62
Poesia dos heterónimos
ALBERTO CAEIRO
INFORMAR PROFESSOR

O Manual apresenta
A reflexão existencial: o primado das sensações [texto A] 3 poemas de Alberto Caeiro.
Contudo, o Programa propõe
Na verdade, a ideia de “heterónimo” corresponde a um desejo de desdobramento a abordagem obrigatória
de apenas 2 poemas deste
sem identidade: é exatamente uma representação, através de diferentes persona- heterónimo.
gens, de diversas faces da mesma individualidade original, ou, então, a expressão
de diferentes conceitos da vida de uma mesma personalidade.
5 Ora Alberto Caeiro surge, precisamente, no momento em que era mister1. Com- 1
Forçoso; necessário.
pelido a vencer o seu paulismo − isto é, a expressão genuína do seu subjetivismo 2
Simplicidade; franqueza.
lírico −, venceu-o de forma tão súbita e agressiva que não teve outro remédio senão 3
Serenidade.
dar um nome a esse crítico, a esse juiz, a esse cardeal diabo, ali, de súbito, persona- 4
Série de frases justapostas,
lizado, diante dele, pronto a chamá-lo à realidade do seu condenável subjetivismo. sem conjunção
10 De facto, enquanto ele [Pessoa] se debatia entre tendências diversas, mas todas de coordenativa.
ordem mais ou menos romântica e subjetiva, uma voz rompe, inesperada, e o seu
tom é sincero, grave, protestativo.
O súbito aparecimento de Alberto Caeiro, mostrando-lhe, por um lado, que a
Natureza “não tem dentro” − é uma sensação física − e, por outro, que a poesia,
15 para ser poesia, não simulação literária, tem de começar por ser a expressão sincera
de estados de espírito sinceros, não a tradução em verso de preconceitos filosóficos
ou literários – precisamente porque o sentir, o sentir apenas, lhe não permitia to-
João Gaspar Simões,
mar consciência da multiplicidade da sua alma, coordenando as suas divergências Fernando Pessoa – ensaio
psíquicas em direções definidas e estanques, a partir das quais lhe fosse possível interpretativo da sua vida
e da sua obra, Lisboa,
20 exprimir pensando o que anteriormente tivera como sentido −, representa, por isso Texto Editores, 2010,
mesmo, o princípio do resgate do seu génio literário. pp. 21-23 (com supressões).

O poeta bucólico [texto B]


Os motivos fundamentais do poeta consistem na variedade inumerável da
Natureza, nos estados de semiconsciência, de panteísmo sensual, na aceitação cal-
ma e gostosa do mundo como ele é.
Caeiro não admite a realidade dos números e não quer saber de passado nem de
5 futuro, pois recordar é atraiçoar a Natureza e o futuro é o campo das conjeturas, das
miragens. Ora, Caeiro é um poeta do real objetivo.
Vive feliz como os rios e as plantas, gostosamente integrado nas leis do Universo.
Caeiro surge, pois, como lírico espontâneo, instintivo, inculto (não foi além da
instrução primária, informa Campos), impessoal e forte como a voz da Terra, de
10 candura, lhaneza2, placidez3 ideais.
O certo, porém, é que é autor de poemas; e começa aqui o paradoxo da sua
poesia. Às palavras procura transmitir Caeiro a inocência, a nudez da sua visão.
Daí, algumas vezes, a simplicidade quase infantil do estilo, as séries paratáticas4,
a familiaridade de algumas expressões, as imagens e comparações comezinhas,
15 realistas, caseiras ou de ar livre.
Em regra, ouvimo-lo argumentando, criticando, não transmitindo sensações
mas discorrendo sobre sensações. Está então no seu elemento. É sintomático da
qualidade do seu espírito que o conteúdo da sensação lhe seja indiferente, que sub- Jacinto do Prado Coelho,
linhe o ato de ver, não o objeto da visão. Igualmente sintomática a preponderância Diversidade e unidade em
Fernando Pessoa, Lisboa,
20 da vista sobre os outros sentidos, porque a vista é o menos sensual de todos eles, Editorial Verbo, 1982,
aquele que pode metaforicamente indicar a perceção, a compreensão. pp. 17-20.

63
Fernando Pessoa
ALBERTO CAEIRO

Linguagem, estilo e estrutura


[texto C]

Do mesmo modo que, em decassílabos rimados, heroicos ou sáficos, Camões


cantou tanto os seus próprios problemas existenciais – tendo por centro o amor –,
como as glórias da pátria, utilizando, pois, um mesmo veículo para diferentes fins,
o verso livre e branco dos heterónimos pessoanos será usado por Caeiro como lin-
5 guagem entre narrativa e reflexiva, despida de ênfase, por vezes quase tocando a
prosa.
Pode-se dizer que o Caeiro de “O guardador de rebanhos” é quase o mesmo dos
“Poemas inconjuntos”. O diferente é o de “O pastor amoroso”; e o que surpreende
PROFESSOR é a manutenção do mesmo tom, manso e fluente, com repetições insistentes, ana-
10 fóricas ou não, a reforçar o empenho em persuadir, próprio do mestre. Enquanto
Educação Literária
16.1 guardador de rebanhos, o poeta relaciona-se com o mundo fenomenológico através
Leitura dos sentidos; enquanto pastor amoroso, tem entre si e a Natureza o objeto do amor
8.1
que lhe interceta a perceção pura, fazendo-o pensar com o coração.
1. Cleonice Berardinelli, “O discurso inovador de Caeiro e Campos”, in Carlos Reis
a. C − “o verso livre e branco e António Apolinário Lourenço, História crítica da literatura portuguesa, O Modernismo, vol. VIII, Lisboa,
[…] por vezes quase tocando a Editorial Verbo, 2015, pp. 152-153 (com supressões).
prosa” (ll. 4-6).
b. B − “não quer saber de [texto D]
passado nem de futuro […] Vive
feliz como os rios e as plantas”
(ll. 4-5 e l. 7).
Não precisando dos ingredientes verbais para descrever o rodopio das sensa-
c. A − “Ora Alberto Caeiro ções imaginadas de Campos, satisfaz-se calmamente com o manejo hábil de um
surge, precisamente, no número reduzido de vocábulos, o que aliás provoca uma impressão de monótona
momento em que era mister.
Compelido a vencer o seu pobreza condizente com a mentalidade supostamente primitiva do mestre não li-
paulismo – isto é, a expressão 5 vresco. Por outro lado, o retorno e as combinações das mesmas palavras ou séries
genuína do seu subjetivismo
lírico” (ll. 5-7). de palavras compensam de algum modo a falta de rima, tanto mais que estas po-
d. C − “e o que surpreende dem repetir-se não apenas dentro dos versos como no final.
é a manutenção do mesmo
tom, manso e fluente, com Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, Lisboa,
repetições insistentes” Editorial Verbo, 1982, p. 124 (com supressões).
(ll. 8-9).
e. B − “O certo, porém, é que
é autor de poemas; e começa
aqui o paradoxo da sua poesia” 1. Identifique, no seu caderno, o texto onde estão presentes as referências dadas e trans-
(ll. 12-13).
creva os elementos textuais comprovativos.
f. C − “tem entre si e a
Natureza o objeto do amor que a. O verso livre e branco faz aproximar a linguagem de Caeiro à prosa.
lhe interceta a perceção pura”
(ll. 12-13). b. Caeiro vive o presente, o real objetivo, e é feliz como as plantas ou os rios.
g. B − “É sintomático da
qualidade do seu espírito que o c. O mestre Caeiro permitiu a Pessoa ultrapassar o seu subjetivismo lírico.
conteúdo da sensação lhe seja
indiferente, que sublinhe o ato d. Na sua variedade, a poesia de Caeiro tem como base comum o uso de um tom coloquial e
de ver” (ll. 18-20).
repetitivo.
h. A − “O súbito aparecimento
de Alberto Caeiro, mostrando- e. O paradoxo da poesia do mestre Caeiro está na própria criação poética.
-lhe […] que a poesia […] tem de
começar por ser a expressão f. O amor interfere com a perceção imediata da Natureza.
sincera de estados de espírito
sinceros” (ll. 15-16). g. Caeiro privilegia, entre todos os sentidos, a visão.
i. D − “satisfaz-se calmamente
com o manejo hábil de um h. Em Caeiro, a poesia é a expressão sincera de estados de espírito sinceros.
número reduzido de vocábulos
[…] compensam de algum i. A escassez vocabular e a ausência de rima caracterizam a poesia de Caeiro.
modo a falta de rima”
(ll. 2-6).

64
Poesia dos heterónimos
O fingimento artístico: o poeta bucólico

EDUCAÇÃO LITERÁRIA PROFESSOR

Educação Literária
XXI 14.1; 14.2; 14.3; 14.6;
14.8; 15.2; 15.3
CD 1 Se eu pudesse trincar a terra toda Gramática
FA E sentir-lhe um paladar, 17.1
IXA 7

E se a terra fosse uma coisa para trincar 1. Atendendo a que o


Seria mais feliz um momento... bucolismo consiste na
exaltação da ruralidade, da
5 Mas eu nem sempre quero ser feliz. ingenuidade e da simplicidade
dos costumes, elogiando a
É preciso ser de vez em quando infeliz beleza da Natureza e da vida
Para se poder ser natural... campestre, pode percecionar-
-se no poema a alegria do
Nem tudo é dias de sol, sujeito poético que aceita a
E a chuva, quando falta muito, pede-se. ordem natural das coisas:
alude a vários elementos
10 Por isso tomo a infelicidade com a felicidade rurais e expressa o desejo
Naturalmente, como quem não estranha de comunhão com a terra,
as montanhas, as planícies,
Que haja montanhas e planícies os rochedos e a erva.
E que haja rochedos e erva... 2. O“eu” considera que
as dualidades devem ser
encaradas com naturalidade.
O que é preciso é ser-se natural e calmo Por isso, refere que a
felicidade e a infelicidade
15 Na felicidade ou na infelicidade, devem coexistir para se poder
Sentir como quem olha, Oliveiras com céu e Sol amarelo, 1889, Vincent van ser natural (vv. 5-7); também
Gogh, Instituto de Arte, Minneapolis. na Natureza tem de haver dias
Pensar como quem anda, de sol e de chuva (vv. 8 e 9);
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, e o sentir e o pensar são
inerentes ao ser humano,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica... portanto têm de ser encarados
normalmente.
20 Assim é e assim seja...
3. O verso “E quando se vai
In “O guardador de rebanhos”, Poesia (ed. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith), morrer, lembrar-se de que o
Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 55. dia morre” (v. 18) evidencia que
se deve aceitar a morte porque
o dia também morre. Assim,
fazendo o ser humano parte
do Universo, a morte não pode
causar estranheza, tal como
1. Comprove que a dimensão bucólica (a ligação à Natureza), característica da poesia de está inscrito no último verso.
Alberto Caeiro, está presente no texto apresentado. 4. Alberto Caeiro é
considerado o menos culto
dos heterónimos, aquele que
2. Mostre a posição do “eu” relativamente à dualidade da Natureza e do ser humano. aceita calma e placidamente
a ordem do mundo, que usa um
vocabulário simples, limitado
3. Registe o verso que, na sua opinião, melhor reflete a total identificação do sujeito poé- e repetitivo, aproximando-se
tico com a Natureza, explicando o seu sentido. da prosa no que se refere
à forma e ao ritmo.
Formalmente, verifica-se
4. Apresente marcas típicas da poesia deste heterónimo e evidenciadas no poema, con- nos seus poemas uma grande
irregularidade estrófica
siderando a informação dos textos das páginas 63 e 64. e métrica, para além da
ausência da rima. Todos estes
aspetos estão presentes no
G 5. Classifique a oração “de que o dia morre” (v. 18).
texto: o vocabulário é simples
e repetitivo; as comparações
6. Indique a função sintática de “que” em “que fica” (v. 19). recorrem a termos comuns;
os versos não apresentam
rima e evidenciam uma
enorme variedade de sílabas
métricas e as estrofes são
irregulares.
5. Oração subordinada
substantiva completiva.
6. Sujeito.

65
Fernando Pessoa
ALBERTO CAEIRO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Dizes-me: tu és mais alguma cousa


Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
5 Então as pedras escrevem versos?
PROFESSOR Então as plantas têm ideias sobre o mundo?

Educação Literária
14.1; 14.2; 14.3; 14.4;
Sim: há diferença.
14.8; 14.9 Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
1. O verso que melhor 10 Só me obriga a ser consciente.
evidencia a importância dos
sentidos para apreender o
real é “Sei isto porque os Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
meus sentidos mo mostram”
(vv. 19 e 21). Aqui se percebe Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.
que graças aos órgãos
sensoriais o “eu” conhece a
realidade, reafirmando que só Ter consciência é mais que ter cor?
acredita naquilo que os seus
sentidos lhe mostram, ou seja,
Pode ser e pode não ser.
só crê no que é real. 15 Sei que é diferente apenas.
2. O sujeito poético identifica- Ninguém pode provar que é mais que só diferente.
-se com a Natureza, pois
ambos têm uma existência
real, ambos se definem do Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
mesmo modo – “Sei que a
pedra é a real” (v. 17); “Sei que Sei isto porque elas existem.
sou real também” (v. 20) – Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
percebendo-se que, perante
esta identificação, não será 20 Sei que sou real também.
necessário acrescentar mais
nenhuma informação, pois
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
nada mais será necessário: Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
“Que mais há a dizer?” (v. 33).
Não sei mais nada.
3. A anáfora presente ao
longo do poema permite pôr
em relevo as ideias simples Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
que o sujeito poético tem e
defende, bem como a sua 25 Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
ingenuidade e o tom coloquial Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
usado. A anáfora espelha
também a necessidade que E as plantas são plantas só, e não pensadores.
o “eu” tem de convencer e/ou
convencer-se da importância
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,
do conhecimento adquirido Como que sou inferior.
pelos sentidos e pelo contacto
concreto com a realidade. 30 Mas não digo isso: digo da pedra, “é uma pedra”,
4. A interrogação retórica Digo da planta, “é uma planta”,
assume um caráter
provocatório e tem o intuito
Digo de mim, “sou eu”.
de fazer o leitor refletir acerca E não digo mais nada. Que mais há a dizer?
dos sentidos ocultos que
se procuram nas coisas. In “Poemas inconjuntos”, Poesia (ed. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith),
No fundo, com a interrogação Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, pp. 170-171.
final, o sujeito poético expõe
a sua filosofia de vida, que
consiste em amar o natural 1. Evidencie, justificadamente, a importância dos sentidos para a apreensão do real.
e em sentir-se mais um dos
elementos que integram 2. Mostre de que modo se relaciona o “eu” com os elementos naturais.
a Natureza e o Universo,
criticando, indiretamente,
os que veem ou querem ver 3. Esclareça o valor expressivo da anáfora ao longo do poema.
além da realidade.
4. Saliente a importância da interrogação retórica final.

66
Poesia dos heterónimos

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

IX

CD 1 Sou um guardador de rebanhos.


FA O rebanho é os meus pensamentos PROFESSOR
IXA 8

E os meus pensamentos são todos sensações.


Educação Literária
Penso com os olhos e com os ouvidos 14.2; 14.3; 14.4; 14.8;
5 E com as mãos e os pés 14.9, 15.5
Gramática 17.1
E com o nariz e a boca.
Escrita
11.1; 12.1; 12.2; 12.3
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Áudio
Sou um guardador de
Por isso quando num dia de calor rebanhos (3 minutos)
10 Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva, 1. O sujeito poético transforma
os pensamentos em sensações
E fecho os olhos quentes, (“os meus pensamentos são
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, todos sensações”), anulando a
oposição entre sentir e pensar,
Sei a verdade e sou feliz. dando primazia ao sentir e
à apreensão da realidade
In “O guardador de rebanhos”, Poesia (ed. Fernando Cabral Paisagem com rebanho (detalhe), 1872, Charles- pelas sensações. O sentido
Martins e Richard Zenith), Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 42. -Emile Jacque, Museu Hermitage, São Petersburgo. das coisas obtém-se pelas
sensações, por isso “Pensar
uma flor é vê-la e cheirá-la”
(v. 7).
1. Comprove a supremacia dada aos sentidos pelo sujeito poético.
2. Quando o “eu” afirma
“Penso com os olhos e com os
2. Demonstre, justificadamente, a existência de uma hierarquização das sensações. ouvidos” (v. 4), “E com as mãos
e os pés / E com o nariz e a
3. Refira o modo como o pensamento é objetivado para reforço da primazia das sensações. boca” (vv. 5-6), percebe-se
uma hierarquização das
sensações, de acordo com
4. Mostre que, para o sujeito poético, a realidade existe pelos sentidos. o grau de conhecimento
que elas permitem atingir.
5. Atente na última estrofe e justifique a tristeza que invade o sujeito poético. Assim, segundo o sujeito
poético, a realidade é primeiro
G 6. Justifique a anteposição do pronome pessoal “me” nos versos 10 e 11. apreendida pela visão e pela
audição, depois pelo tato (“as
mãos e os pés”, v. 5) e, por fim,
7. Registe o referente do pronome “(l)o” em “gozá-lo”. (v. 10) pelo olfato e pelo gosto.
3. O pensamento surge
8. Classifique o vocábulo “realidade” (v. 13) quanto ao processo de formação. objetivado no verso “E
comer um fruto é saber-lhe
o sentido” (v. 8), em que se
confere ao pensamento um
E S C R I TA estatuto concreto e em que
ele é submetido ao primado da
sensação, neste caso do gosto.
1. Produza um texto expositivo, de 130 a 170 palavras, sobre o tema abaixo proposto e 4. O sujeito poético mostra
conhecer a realidade pelos
estabelecendo uma articulação entre o poema e a imagem que o ilustra: sentidos e só estes lhe
permitem alcançar a verdade.
Alberto Caeiro, o poeta bucólico que Por isso, o contacto direto com
a Natureza é o que lhe permite
š privilegia as sensações; abraçar a realidade, tal como
se depreende dos versos 11-14.
š aceita calma e placidamente a ordem natural do Universo;
Nota: Disponíveis, no Guia
š surge para compensar a dor de pensar do seu criador. do Professor, cenários de
resposta para as questões 5,
6, 7 e 8 e para a atividade de
BLOCO INFORMATIVO – p. 379 Escrita.
PREPARAR O EXAME – p. 54

67
Fernando Pessoa
Valor modal
N DE
RE R
APRENDER
AP

ICA
G RA M Á T Categoria gramatical que exprime a atitude do locutor relativamente àquilo que diz e a
R
APL ICA quem diz.
Através da modalidade (1) expressam-se opiniões – modalidade apreciativa −, (2) apre-
senta-se um estado de coisas como provável ou certo – modalidade epistémica – ou
(3) exprime-se permissão ou obrigação – modalidade deôntica.

Valores modais Caracterização Exemplificação

(1) Apreciativa O locutor faz apreciações, ou seja, exprime š É incompreensível a atitude de Ricardo Reis
juízos de valor sobre uma situação, utilizando em face do destino.
construções exclamativas e verbos como š Adoro a poesia de Fernando Pessoa
lamentar, gostar, apreciar, admirar… ortónimo.

(2) Epistémica Certeza š Não há dúvida de que Fernando Pessoa foi


A atitude do locutor O locutor assume uma posição de certeza incompreendido no seu tempo.
baseia-se no grau de relativamente à verdade ou falsidade do š Reis adotou o epicurismo e o estoicismo
conhecimento que detém enunciado. como modelos.
sobre o conteúdo da
afirmação. Probabilidade š É provável que a loucura dos poetas
O locutor não assume a verdade ou falsidade do Orpheu tenha causado irritação.
do enunciado, baseando-se, por isso, š Provavelmente a imprensa não estava
em hipóteses ou em inferências. habituada à inovação poética dos
modernistas.
š Talvez Fernando Pessoa já tenha superado
Camões.

(3) Deôntica Permissão š Pode ver o meu documentário sobre o Livro


O locutor procura agir O locutor coloca a possibilidade de escolha, do desassossego.
sobre o interlocutor, sem quaisquer restrições. š Fomos autorizados a ver o espólio de Pessoa.
impondo, proibindo ou
autorizando a situação Obrigação š Devem visitar a Casa Fernando Pessoa,
expressa. em Lisboa.
O locutor procura impor ou proibir a
realização daquilo que o enunciado expressa. š Têm de ver o documentário sobre o Livro
do desassossego.
š Não podem deixar de fazer o percurso
pessoano na visita de estudo.

Observações:
š A modalidade é frequentemente expressa pelo modo verbal (o condicional traduz probabilidade,
por exemplo) e por verbos modais (auxiliares, como dever, poder, ou principais com valor modal,
como crer, pensar, obrigar, …).

– O verbo auxiliar modal poder transmite frequentemente o valor de probabilidade, mas pode
também ter valor de certeza, quando significa capacidade (ex.: Este pode acumular funções).

– O verbo auxiliar modal dever pode também transmitir o valor de probabilidade (ex.: Devem ter
percebido o conteúdo do sermão vieiriano) e de obrigação (ex.: Devem estudar antes do teste).

š A modalidade pode ainda expressar-se de outros modos: através de expressões modais (Acredito
que; na minha opinião, …), de advérbios ou locuções adverbiais (provavelmente, talvez, com toda a
certeza, …), de adjetivos com sentido modal (capaz, provável, …), entre outros.

68
APLICAR

1. Associe as frases da coluna A à modalidade e respetivo valor modal indicados na coluna B.

Coluna A Coluna B

[A] Fernando Pessoa foi amigo de Sá-Carneiro.

[B] Pensa-se que o êxito de Pessoa se deve à sua originalidade. [1] Apreciativa

[C] Tens de ler o poema “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.” [2] Deôntica,
valor de obrigação
[D] A obra de Pessoa é importantíssima.
[3] Deôntica,
[E] Não se deve confundir a obra poética de Ricardo Reis com a de Horácio. valor de permissão

[F] Podem requisitar a obra poética de Pessoa e ler os poemas em casa. [4] Epistémica,
valor de certeza
[G] É provável que se estudem mais outros poemas dos heterónimos.
[5] Epistémica,
[H] Acredito que vão gostar da poesia de Ricardo Reis. valor de probabilidade

[I] Achei interessante a teoria do fingimento poético. PROFESSOR

1.1 Transcreva as frases para o seu caderno e sublinhe os elementos que marcam a ex-
pressão de modalidade. Apresentação
Valor modal
2. Leia o excerto e retire dele exemplos para completar o quadro que se lhe segue.
Gramática
A obra História crítica da literatura portuguesa, composta por nove volumes 19.4
está finalizada. A partir de abordagens críticas de diferentes autores, ilustra a
1.
evolução da literatura portuguesa desde os primeiros passos até à atualidade.
[A] – [4]; [B] – [5]; [C] – [2];
Em entrevista ao Jornal de Letras, Carlos Reis, que dirigiu esta obra, explicou: [D] – [1]; [E] – [2]; [F] – [3];
5 “Uma obra como esta deve ser lida por estudantes e estudiosos, ou seja, por [G] – [5]; [H] – [4]; [I] – [1].
um público relativamente especializado. Podem aceder-lhe em livrarias atentas, 1.1.
mas talvez não naquelas que se preocupam apenas com a “espuma (editorial) [A] – “foi”
[B] – “Pensa-se”
dos dias” e onde dificilmente encontramos já o livreiro culto e interessado de
[C] – “Tens de”
outros tempos. Por isso, creio que a disponibilização desta História crítica se fará [D] – “importantíssima”
10 sobretudo através da venda online, que felizmente já vai sendo corrente entre [E] − “Não se deve”
nós. Quero crer, além disso, que um dia esta obra será objeto de uma edição [F] – “Podem”
em formato digital. O que, para livros desta feição, acaba por ser uma solução [G] – “É provável”
adequada.” [H] – “Acredito”
[I] – “Achei interessante”
“Carlos Reis – ‘Um modelo de obra que entre nós não existia’”, in Jornal de Letras, edição online
2.
de 20 de janeiro de 2016 (adaptado, consultado em setembro de 2016).
a. “felizmente já vai sendo
corrente entre nós”. (ll. 10-11)
Modalidade e valores Exemplificação
b. “Uma obra como esta deve
ser lida por estudantes e
Apreciativa a. __________________________________ estudiosos”. (l. 5)
š Valor de obrigação b. __________________________________ c. “A obra História crítica
Deôntica š da literatura portuguesa,
š Valor de permissão š Pode consultar a minha edição. composta por nove volumes
está finalizada.” (ll. 1-2)
š Valor de certeza c. __________________________________ d. “talvez não naquelas que
Epistémica š se preocupam apenas com a
š Valor de probabilidade d. __________________________________ ´espuma (editorial) dos dias’”.
(ll. 7-8)

69
Fernando Pessoa

LEITURA

Leia o seguinte texto.

Isabel Rato: O jazz em Pessoa

E
ntre o jazz e a pop, mas sempre para além da curva da estrada, é como se apresenta
a pianista e compositora Isabel Rato neste que é o seu disco de estreia. É a própria
quem diz, em conversa com o JL, que “teve total liberdade” para escolher os músicos
que participam no disco. E são eles o cantor João David Almeida, Desidério Lázaro em sa-
PROFESSOR
5 xofones, o guitarrista Gonçalo Neto, André Rosinha em contrabaixo e o baterista Alexandre
Leitura Alves. Foi através da Escola Superior de Música de Lisboa, onde fez a licenciatura em Jazz,
7.3; 7.4 que conheceu alguns deles.
O disco tem um poema musicado: o “Guardador de rebanhos”, de Alberto Caeiro, he-
1. a. V
b. F
terónimo de Fernando Pessoa. Uma escolha arriscada e com outra ligação académica.
c. V 10 É que Isabel estudou Poesia, paralelamente ao estudo da música. “Apaixonei-me pela obra
d. V de Fernando Pessoa e tem-me acompanhado ao longo dos anos, sendo sempre um poeta
e. F presente ao longo da minha vida. O “Guardador de rebanhos” é uma obra que me diz muito.
f. V
O heterónimo Alberto Caeiro acaba por ter um caráter universal, transmitindo ensinamen-
Compreensão do Oral tos como o de viver cada momento”. O cruzamento entre música tradicional e jazz, registado
1. a. V 15 na versão de “Milho da nossa terra”, vem duma vontade de “homenagear humildemente a
b. F – São apresentados música portuguesa e o nosso cancioneiro, que tem coisas lindíssimas”.
aspetos biográficos.
c. F – Afirma-se que foi o Isabel Rato vai desde os cinco anos, durante as férias, ao País Basco e é daí que vem a
pioneiro. adaptação de um tema folclórico daquele “sítio muito bonito, inspirador e um pouco místi-
d. V; e. V
co, por causa das montanhas e mar” e que associa sempre a “boas memórias”. Há um cer-
f. F – Adota uma atitude de
tranquilidade em face do 20 to ambiente que, mais do que jazz, aproxima o disco à música erudita e dois temas têm,
destino e da vida.
de facto, acompanhamento de quarteto de cordas. Isabel confessa ser influenciada por:
g. V
h. F – Por detrás da aparente Debussy, Ravel.
calma de Reis está a Na música nacional, destaca admiração por João Paulo Esteves da Silva, que teve “a sorte
inquietude de conhecer
e de se realizar. e o privilégio de ter como mentor” e também o incontornável Mário Laginha e o saudoso
i. V; j. V 25 Bernardo Sassetti. Também a literatura é fonte de inspiração e, além de Pessoa, Isabel cita
k. F – Os símbolos por ele
utilizados remetem para a ainda o poeta indiano Rabindranath Tagore. Sentindo a música também como “muito vi-
brevidade da vida. sual” destaca, na pintura, a influência de Monet e William Turner. No futuro vê-se a escrever
l. V
m. F – O código de conduta
para outras formações e até outros artistas, acima de tudo porque compor é algo que faz
visa ensinar a viver entre o com “imenso prazer”.
gozo dos prazeres e atenuação
do sofrimento. Jornal de Letras, edição online de 26 de junho de 2016 (consultado em setembro de 2016, com supressões).
n. V
o. F – Reis acredita que os
deuses são irreais e reais: 1. Classifique, no seu caderno, as seguintes afirmações como verdadeiras ou falsas.
irreais, porque não são
realidades; reais, porque são a. O primeiro disco de Isabel Rato inclui um poema musicado de Alberto Caeiro.
abstrações concretizadas.
p. V; q. V
b. A compositora não vê com bons olhos a associação da música com a poesia.
r. F – Hermes é o deus da c. Isabel Rato confessa-se uma apaixonada pela obra de Fernando Pessoa.
comunicação, o mensageiro,
a divindade dos limites, o deus d. A sua paixão por Caeiro resulta dos ensinamentos universais que ele veicula na poesia.
das encruzilhadas, dos ladrões
e do comércio. e. Esta compositora alia a música clássica ao jazz.
s. V; t. V
f. No texto sobressai a relação intertextual que a música estabelece com as outras artes.

70
Poesia dos heterónimos
RICARDO RE I S
COMPREENSÃO DO ORAL PERA
CU R

RE
ÃO
1. Oiça atentamente o documento áudio sobre outro dos heterónimos de E X P O S IÇ
Fernando Pessoa: Ricardo Reis. Depois de ler as afirmações, classifique-as
11.° ANO
CD 2

AIX
como verdadeiras ou falsas. Corrija as afirmações falsas.
A2
F

a. O documento começa com a reprodução de um poema.


b. A seguir, apresentam-se as temáticas exploradas por Ricardo Reis.
c. Afirma-se no documento que Reis foi o último heterónimo pessoano.
d. Reis adota uma filosofia que lhe permite aceitar tranquilamente o destino e a vida.
e. O que está no cerne da obra poética de Reis é o saber viver ou passar pela vida.
f. Reis não aceita o destino nem a passagem da vida ou do tempo, por isso sofre.
g. O heterónimo foge do amor e do ódio e busca a calma sem se entregar aos sentimentos.
h. Reis não mostra nenhuma preocupação em conhecer-se e em realizar-se.
i. Este heterónimo adere ao estoicismo e ao epicurismo para formular uma compreensão
trágica da vida.
j. O imaginário poético surge simbolizado na rosa, no rio, no destino e nos deuses.
k. Os símbolos utilizados por Reis remetem para a longevidade da vida humana.
l. O poeta serve-se da primeira pessoa do plural e da segunda do singular para compor
uma espécie de código de conduta.
m. O código de conduta construído visa ensinar a viver a vida de forma intensa, aprovei-
tando os prazeres e as emoções fortes. PROFESSOR

n. Para Ricardo Reis, a liberdade está em nada querer. Oralidade


1.1; 5.1; 5.2; 5.3; 6.1;
o. Reis acredita que os deuses são completamente irreais. 6.2; 6.3
p. Segundo o heterónimo, os deuses são abstrações concretizadas. Educação Literária
15.4; 16.1
q. O deus que concretiza o imaginário pessoano é Hermes1.
r. Hermes é o deus do amor, do sol, dos ladrões e do comércio.
Áudio
s. Hermes é responsável pela pluralidade e é, ele próprio, plural. Ricardo Reis (4 minutos)
t. Fernando Pessoa é como Hermes, pois também ele é plural.
(Disponível, no Guia
do Professor – Dossiê
do Professor – a transcrição
1
Deus grego que corresponde a Mercúrio na mitologia romana. deste recurso áudio)

Expressão oral
O aluno poderá referir:
− a sensibilização para o
EXPRESSÃO ORAL estudo do autor;
− a possibilidade de obter
informação de uma forma
1. Emita uma opinião, em 4-6 minutos, sobre a informação recolhida na escuta anterior, mais rápida e motivadora;
− o acesso a imagens e a
referindo: informação mais variada,
como alguns poemas do autor
šas vantagens deste tipo de documento para a apresentação do poeta; em análise;
− o confronto entre a
šos aspetos mais relevantes sobre as características do heterónimo evidenciadas; informação veiculada no
šo modo como o documento está organizado. documento vídeo e outra
resultante de estudos críticos
e analíticos;
Nota: Produza juízos de valor claros e objetivos; use uma linguagem valorativa; sustente os −…
seus argumentos e dê exemplos significativos que lhe permitam defender o seu ponto de vista.

71
Fernando Pessoa
RICARDO REIS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Composição de cores, 1914, Paul Klee, Coleção privada.


PROFESSOR

Áudio
“Vem sentar-te comigo,
Lídia, à beira do rio”

Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.6;
14.9
Gramática
17.1

1. O poema apresenta como CD 1 Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.


assunto o convite endereçado FA
IXA 9 Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
pelo sujeito poético a Lídia,
a mulher amada, para que Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
ambos vivam uma relação (Enlacemos as mãos).
tranquila, que não envolva
sentimentos fortes, de modo
a evitar o sofrimento que a
morte pode provocar a cada
5 Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
um deles, permanecendo Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
apenas, depois dela, uma
memória suave. Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
2. O verso parentético Mais longe que os deuses.
funciona como um aparte no
qual o sujeito poético parece
intensificar o pedido que dirige Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
a Lídia, embora tente banir,
depois, esse mesmo desejo
10 Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
de união. Com efeito, o “eu” Mais vale saber passar silenciosamente
tem consciência da inutilidade
desses momentos pontuais, E sem desassossegos grandes.
dada a fugacidade da vida e o
seu fim inexorável, condição
que afeta todos os mortais. Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
3. A apóstrofe presente Nem invejas que dão movimento de mais aos olhos,
em “Lídia” (verso 1) está ao
serviço do apelo endereçado
15 Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
pelo “eu” à sua companheira. E sempre iria ter ao mar.
Este apelo é reforçado pelo
recurso ao imperativo (“Vem”,
v. 1) e ao conjuntivo com Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
valor exortativo (“fitemos”,
“aprendamos”, v. 2), pois o Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
sujeito poético pretende Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
persuadir o seu interlocutor
a aceitar as suas propostas. 20 Ouvindo correr o rio e vendo-o.
4. A gradação está presente
na sequência “te arda ou te
fira ou te mova” (v. 26), Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
na qual se encontra também No colo, e que o seu perfume suavize o momento −
uma enumeração, e pretende
realçar os efeitos cada Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
vez mais intensos que Pagãos inocentes da decadência.
decorrerão da morte do
sujeito; a metáfora ocorre em
expressões como “Nem fomos
mais do que crianças” (v. 28)
25 Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
e “pagãos inocentes” (v. 24), Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
sugerindo a inocência ou a
pureza de comportamentos. Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

72
Poesia dos heterónimos
A consciência e a encenação d a mortalidade

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio, PROFESSOR


30 Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim − à beira-rio, 5.1 O “rio”, recorrente ao
longo do poema, remete para
Pagã triste e com flores no regaço. o fluir da vida, o caminhar
12-6-1914 inexorável para a morte.
O “Fado” evidencia a força
In “Odes e outros poemas”, Ricardo Reis, Poesia (ed. Manuela Parreira da Silva), superior aos próprios deuses.
Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 49-50. As “flores” no regaço sugerem
a fragilidade e o desapego dos
bens materiais. A “sombra”
1. Refira o assunto do poema, justificando convenientemente a sua resposta. e o “barqueiro sombrio” são
ambos símbolos da morte.
A “sombra” representa a
2. Saliente a expressividade que decorre da colocação do verso 4 entre parênteses e ve- transição da vida corpórea
rifique de que modo evolui ao longo do poema a atitude que o sujeito poético nele para a anímica, estando
essa transição figurada no
manifesta. “barqueiro sombrio”, Caronte,
que fazia a travessia do rio
3. Justifique, exemplificando, o recurso à apóstrofe e o uso do imperativo e do conjuntivo. Estiges, levando os mortos
para o Além.
4. Dê exemplos do recurso à gradação, à metáfora e à enumeração, referindo o seu valor 6. Palavras como
“aprendamos” (v. 2),
expressivo. “pensemos” (v. 5), “lembrar-
-te-ás” (v. 25) e “memória”
5. O sujeito poético recorre a termos que podem ser simbolicamente interpretados, (v. 31) têm um valor que
semanticamente se associa
como é o caso de “rio” (v. 1), “Fado” (v. 7) “flores” (vv. 21 e 32), “sombra” (v. 25) ou “barqueiro ao uso do intelecto,
sombrio” (v. 29). da racionalidade.
7. A fugacidade da vida e
5.1 Proponha uma explicação para cada uma dessas referências. a iminência da morte são
as maiores preocupações
6. Confirme que a racionalidade deste heterónimo pessoano é evidente neste poema, do sujeito poético, daí
que ele insistentemente
procedendo ao levantamento de vocabulário exemplificativo. recuse as grandes paixões e
preocupações e o justifique
7. Comprove que a fugacidade da vida e a iminência da morte são preocupações eviden- com a necessidade de evitar
o sofrimento quando a
ciadas pelo sujeito poético. morte chegar. O pedido para
desenlaçarem as mãos é
8. Proceda a uma divisão tripartida do poema, apresentando o conteúdo de cada uma revelador desse medo.
das partes. 8. Na primeira parte, que
corresponde às duas primeiras
estrofes, o sujeito poético
9. Identifique os elementos da forma e do conteúdo do poema que evidenciem o classi- manifesta o desejo de gozar
cismo de Ricardo Reis. o momento presente na
companhia da sua amada,
sentando-se à beira do rio e
10. Descreva os traços que compõem o retrato feminino de Lídia. fitando-o de mãos enlaçadas.
A segunda parte (estrofes
G 11. Complete, no seu caderno, a tabela, retirando do poema uma forma verbal exemplifi- 3 a 6) é o momento em que
o “eu” pede à amada para
cativa dos tempos e modos solicitados. desenlaçarem as mãos,
porque devem evitar-se
Modo/Tempo Exemplos as grandes paixões (amor
ou ódio), permanecendo
Presente a. passa, _________________________ simplesmente sentados “ao
Indicativo pé um do outro”, amando-se
tranquilamente. É na terceira
Futuro b. _______________________________ parte (duas últimas estrofes)
que o sujeito poético justifica
Presente c. _______________________________ a renúncia aos fugazes
prazeres da vida, afirmando
Conjuntivo Futuro d. for, ___________________________ que, não sendo “mais do
que crianças” (v. 28), os dois
Pretérito imperfeito e. _______________________________ evitarão o sofrimento causado
pela antevisão da morte,
conservando a serenidade.
12. Classifique as orações seguintes: Nota: Disponíveis, no Guia
do Professor, cenários de
a. “Que a vida passa”. (v. 3) b. “que levantam a voz”. (v. 13) resposta para as questões 9,
10, 11 e 12.
12.1 Indique a função sintática da oração presente em a.

73
Fernando Pessoa
RICARDO REIS

PROFESSOR EDUCAÇÃO LITERÁRIA


Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.9 CD 1 Segue o teu destino,
AIX
A1 Rega as tuas plantas,

0
Ama as tuas rosas.
Áudio
“Segue o teu destino”,
O resto é a sombra
cantada por Maria 5 De árvores alheias.
Bethânia (2 minutos)
1. − viver sem inquietações, A realidade
aceitando o destino (“Segue
o teu destino”, v. 1); Sempre é mais ou menos
− não se questionar sobre Do que nós queremos.
o sentido da vida, vivendo
em desprendimento e em Só nós somos sempre
tranquilidade (“Vê de longe
a vida. / Nunca a interrogues”,
10 Iguais a nós-próprios.
vv. 16-17);
− limitar-se a viver
simplesmente, sem desejar Suave é viver só.
mais do que o que se tem Grande e nobre é sempre
(“Viver simplesmente”, v. 13).
2. A realidade está Viver simplesmente.
dependente do destino, por Deixa a dor nas aras
isso pode ser ou não aquilo
que se espera. Nós somos 15 Como ex-voto aos deuses.
sempre iguais e seremos o que
quisermos ser, desde que nos
limitemos a alcançar apenas Vê de longe a vida.
o que nos está reservado.
Efetivamente, encena-se
Nunca a interrogues.
uma vivência, uma vez que se Ela nada pode
obedece a códigos de conduta
e a princípios ou a orientações Dizer-te. A resposta Residência Olivo Gomes, Rino Levi (arquiteto), Brasil.
que limitam uma vivência 20 Está além dos Deuses.
verdadeira, autêntica, mas
de mera contemplação e
de aceitação, obedecendo a Mas serenamente
regras sociais ou outras que
nos são impostas. Imita o Olimpo
3. O sujeito poético afirma No teu coração.
que a resposta para a vida
está “além dos Deuses”, mas Os deuses são deuses
também nos aconselha a 25 Porque não se pensam.
imitá-los (“Imita o Olimpo”,
v. 22). Logo, acima de nós 1-7-1916
estão os deuses, e acima de
ambos está o destino, numa In “Odes e outros poemas”, Ricardo Reis, Poesia (ed. Manuela Parreira da Silva),
lógica destino – deuses – Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 97-98.
homens.
4. Ao querer viver calma
e placidamente, sem nada 1. Apresente três regras apontadas pelo sujeito poético para se atingir uma vida tranquila.
questionar, o “eu” revela a
consciência da mortalidade
e abdica dos prazeres: adota, 2. Comprove, justificadamente, que a realidade nem sempre é aquilo que se deseja, cor-
assim, uma postura típica
do estoicismo, uma escola
respondendo, por isso, a uma encenação.
filosófica que crê na força
determinista do destino e 3. Mostre que o sujeito poético estabelece uma hierarquia entre destino, deuses e homem.
nos aconselha a aceitá-lo
(“A resposta / Está além
dos Deuses”, vv. 19-20). Já a 4. Exponha o código de conduta ou os ideais éticos que Reis defende nesta ode e que
encenação da mortalidade
está subjacente ao conselho podem ilustrar a temática da consciência e da encenação da mortalidade.
que o "eu" dá para que nos
limitemos a viver e a ver
de longe a vida, sem a
interrogar, uma vez que
a morte é iminente e
irreversível.

74
Poesia dos heterónimos

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

POEMA A POEMA B
CD 1 Uns, com os olhos postos no passado, Solene passa sobre a fértil terra
AIXA 1 Veem o que não veem; outros, fitos A branca, inútil nuvem fugidia,
F

Os mesmos olhos no futuro, veem Que um negro instante de entre os campos ergue
O que não pode ver-se. Um sopro arrefecido.

5 Porque tão longe ir pôr o que está perto − 5 Tal me alta na alma a lenta ideia voa
O dia real que vemos? No mesmo hausto E me enegrece a mente, mas já torno,
Em que vivemos, morreremos. Colhe Como a si mesmo o mesmo campo, ao dia
O dia, porque és ele. Superfície da vida.
28-8-1933 31-5-1927

In “Odes e outros poemas”, Ricardo Reis,


Poesia (ed. Manuela Parreira da Silva), Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 220 e 151.

PROFESSOR
Atente no poema A.
Educação Literária
1. Comprove que o sujeito poético se demarca de “uns” e de “outros”. 14.1; 14.2; 14.3; 14.4;
14.9

2. Conclua acerca do que defende o “eu” poético. Escrita


11.1; 12.1; 12.2
3. Justifique o recurso a formas verbais no presente do indicativo.

4. Apresente, após consulta dos textos das páginas 76-77, três marcas reveladoras da Áudio
“Uns, com os olhos postos
filosofia de vida de Ricardo Reis. no passado”

Considere o poema B. 1. O sujeito poético condena


não só os que têm os olhos
postos no passado, porque
5. Justifique a inutilidade da passagem da nuvem branca. “Veem o que não veem” (v. 2),
mas também os que fitam o
6. Indique os efeitos produzidos no “eu” pela passagem da nuvem. futuro, pois “veem / O que não
pode ver-se”(vv. 3-4).
Assim, percebe-se que,
7. Comprove a presença da personificação, da anástrofe e da aliteração, referindo-se à para o sujeito poético, estes
sua expressividade. comportamentos são ilusórios
e condenáveis, o que o leva
a demarcar-se e a perguntar
“Porque tão longe ir pôr o que
está perto” (v. 5).
E S C R I TA 2. Como se depreende da
crítica feita a “uns” e a
“outros”, o sujeito poético faz
Faça uma apreciação crítica da imagem, num texto de 150 a apologia do presente, uma
a 200 palavras, convocando o estudo da obra pessoana e vez que construir a existência
em função do passado ou do
considerando as seguintes orientações: futuro é não viver. Apesar
da brevidade do presente, é
š descrição objetiva da imagem; nele que o homem se realiza
e é nele que pode alcançar a
š referência ao seu significado, atendendo à diversidade felicidade, daí que o conselho
de Pessoa; seja “Colhe / O dia, porque és
ele” (vv. 7-8).
š apresentação de uma opinião fundamentada acerca Nota: Disponíveis, no Guia
desta representação visual do universo pessoano; do Professor, cenários de
resposta para as questões 3,
š ... 4, 5, 6, 7 e para a produção
Escrita
O teatro íntimo do ser, 1986, Miguel Yeco.

75
Fernando Pessoa
RICARDO REIS

INFORMAR

Ricardo Reis: o poeta “clássico”


A consciência e a encenação da mortalidade
TEXTO A
“Resume-se num epicurismo triste toda a filosofia da obra de Ricardo Reis. Ten-
taremos sintetizá-la.
Cada qual de nós − opina o Poeta − deve viver a sua própria vida, isolando-se
dos outros e procurando apenas, dentro de uma sobriedade individualista, o que
5 lhe agrada e lhe apraz. Não deve procurar os prazeres violentos, e não deve fugir às
sensações dolorosas que não sejam extremas.
Buscando o mínimo de dor, o homem deve procurar sobretudo a calma, a tran-
quilidade, abstendo-se do esforço e da atividade útil.
Devemos buscar dar-nos a ilusão da calma, da liberdade e da felicidade, cousas
10 inatingíveis porque, quanto à liberdade, os próprios deuses − sobre quem pesa o
Fado − a não têm; quanto à felicidade, não a pode ter quem está exilado da sua fé
e do meio onde a sua alma devia viver; e quanto à calma, quem vive na angústia
complexa de hoje, quem vive sempre à espera da morte, dificilmente pode fingir-se
calmo. A obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e discipli-
15 nado para obter uma calma qualquer.
Tudo isto se apoia num fenómeno psicológico interessante: numa crença real [?]
e verdadeira nos deuses da Grécia antiga, admitindo Cristo como um deus a mais,
mas mais nada − ideia esta de acordo com o paganismo e talvez em parte inspirada
pela ideia (puramente pagã) de Alberto Caeiro de que o Menino Jesus era “o deus
20 que faltava.”
Fernando Pessoa, Páginas íntimas e de autointerpretação (textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf
Lind e Jacinto do Prado Coelho), Lisboa, Edições Ática, 1966, pp. 386-387 (com supressões).

TEXTO B
Bem distinto é o caso de Ricardo Reis, que não é propriamente oposto a Pessoa,
mas é antes uma fração radicalizada da sua personalidade, correspondendo ao lado
mais conservador do autor empírico e ao seu gosto pela cultura clássica. Na ficção
heteronímica, Reis gosta de se apresentar como discípulo mais consequente de
5 Caeiro, ainda que procurando estabelecer uma versão culta do paganismo espon-
tâneo do seu mestre. Enquanto poeta, sustenta-se em modelos greco-romanos,
especialmente nas odes horacianas. O seu discurso poético, profundamente inte-
lectualizado, e onde convivem harmoniosamente os cultismos e arcaísmos pró-
prios da opção classicista, reflete a influência da sintaxe latina, provocando uma
PROFESSOR 10 sensação de estranheza ao leitor português.
Os temas da sua poesia são aqueles (ou mais propriamente alguns daqueles)
Educação Literária
16.1 que habitualmente encontramos no lirismo clássico, nomeadamente o carpe diem,
Leitura a aurea mediocritas ou a tirania do fatum. Doutrinariamente, apresenta-se ainda
7.1; 7.4
como um “pagão da decadência”, que procura conciliar o culto epicurista do prazer
15 com a renúncia estoica, tendo consciência que a renúncia aos bens materiais, o
1.1 [B]
sábio usufruto dos pequenos prazeres e aceitação da morte como fim natural da
1.2 [C]
1.3 [A]
existência são o caminho certo para fugir à infelicidade.
António Apolinário Lourenço, Fernando Pessoa, Coimbra, Edições 70, 2009, pp. 57-58 (com supressões).

76
Poesia dos heterónimos

TEXTO C
Assim angustiado perante um Destino mudo que o arrasta na voragem, Reis
procura na sabedoria dos antigos um remédio para os seus males. Também os
Gregos sofreram agudamente a dor da caducidade e o peso da Moira cruel. Sim-
plesmente, optaram por aceitar com altivez o destino que lhes era imposto. Reco-
5 nhecendo que a vida terrena outorgada a cada um, não obstante a sua instabili-
dade e contingência, é o único bem em que podemos, até certo ponto, firmar-nos,
souberam construir a partir dele uma felicidade relativa, encarando com lucidez o
mundo e compensando a sua radical imperfeição pela criação estética, fazendo da
sua própria vida uma arte.
10 Reis copia-lhes o exemplo. Não hesita em confessar a Lídia que, de qualquer
modo, prefere o presente precário a um futuro que teme porque o desconhece.
Embora com tintas de estoicismo, devidas talvez ao facto de ser Horácio o seu
autor de cabeceira, Reis formula uma filosofia da vida cuja orientação é, na verda-
de, epicurista. O homem de sabedoria edifica-se, conquista a autonomia interior
15 na restrita área de liberdade que lhe ficou. Essa conquista começa por um ato de
abdicação. Reis propõe-se e propõe-nos um duro esforço de autodisciplina. O pri-
meiro objetivo é submissão voluntária a um destino involuntário, que deste modo
cumprimos altivamente, sem um queixume. O homem de sabedoria chega a an-
tecipar-se ao próprio destino, aceitando livremente a morte. O segundo objetivo
20 é evitar as ciladas da Fortuna, depurando a alma de instintos e paixões que nos
prendam ao transitório, alienando a nossa vida. Com Epicuro aprendeu Reis que a
ataraxia é a primeira condição de felicidade. A ataraxia, note-se, não implica para
Epicuro ausência de prazer mas indiferença perante todo o prazer que nos compro-
mete, colocando-nos na dependência dos outros ou das coisas. Além da sensação
25 elementar de existir, os prazeres tipicamente epicuristas são espirituais, como a
volúpia levemente melancólica de recordar os bons momentos do passado.
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, Alegoria dos planetas e
Lisboa, Editorial Verbo, 1982, pp. 26-27 (com supressões). dos continentes, c. 1752,
Giovanni Battista Tiepolo,
1. Selecione, no seu caderno, a opção correta, considerando a informação que recolheu dos Museu Metropolitano
de Arte, Nova Iorque.
textos.
1.1 O texto A configura, especialmente,
[A] as semelhanças entre Reis e Caeiro.
[B] a definição do epicurismo de Reis.
[C] os princípios do estoicismo.
[D] a aproximação de Reis ao paganismo.
1.2 O texto B destaca
[A] o estoicismo e o epicurismo de Ricardo Reis.
[B] o medo da morte como tema central da poesia de Reis.
[C] o pendor classicista presente na poesia de Ricardo Reis.
[D] o afastamento de Reis relativamente ao lirismo clássico.
1.3 No último texto expõem-se
[A] os princípios filosóficos preconizados e adotados por Reis.
[B] diferentes definições de epicurismo e de estoicismo.
[C] todos os temas trabalhados na poesia de Ricardo Reis.
[D] os motivos que afastam Reis dos poetas clássicos.

77
Fernando Pessoa
ÁLVA RO DE CAMPOS
COMPREENSÃO DO ORAL PERA
CU R

RE
ÃO
1. Escute atentamente uma exposição sobre Álvaro de Campos. E X P O S IÇ
Leia antecipadamente o exercício, para selecionar a palavra que
CD 2
11.° ANO
completa adequadamente cada afirmação.
AI
F XA 2

8 Álvaro de Campos quer a. sentir/banir tudo. Quer viver a totalidade, mas encontra um
mundo b. massacrado/fragmentado. Parte em busca de mistérios e dececiona-se e entu-
siasma-se. Entrega-se à orgia das c. emoções/sensações.
Saúda o d. velho/novo mundo, uma nova e. modernidade/humanidade. Seduzido pela
tecnologia, pelas máquinas, pelo progresso, aproxima o homem dos f. animais/deuses.
Campos concilia os contrários: a g. força/emoção e a razão, a vida adulta e a h. infância/
juventude, o sonho e a i. realidade/técnica, grandes propósitos e j. alguma/nenhuma ação.
PROFESSOR Álvaro de Campos foi dos que mais k. desejou/detestou a pluralidade, o que mais a sen-

O Programa propõe
tiu mas também o que mais se l. lembrou/esqueceu de agir, tendo vivido frequentemente
a abordagem obrigatória de m. deprimido/eufórico.
3 poemas deste heterónimo.
A poesia deste heterónimo retrata o universo do homem n. clássico/moderno, tanto
Oralidade
1.4 no seu quotidiano como nas suas inquietações o. metafísicas/religiosas. Recolhe-se nos
p. cantos/sonhos, onde tudo é possível, desejando q. banir/abarcar a existência na sua to-
talidade.
Áudio
Álvaro de Campos Campos oscila entre a plenitude do r. sentido/coração e o esvaziamento do mundo
(5 minutos) s. clássico/contemporâneo.
(Disponível, no Guia Este heterónimo é o arquétipo do homem t. sentimental/moderno, a voz que fala do
do Professor – Dossiê
do Professor – a transcrição u. inefável/concreto.
deste recurso áudio)

1. a. sentir; b. fragmentado;
c. sensações; d. novo; INFORMAR
e. humanidade; f. deuses;
g. emoção; h. infância;
i. técnica; j. nenhuma; O poeta da modernidade; o imaginário épico
k. desejou; l. esqueceu;
m. deprimido; n. moderno; Álvaro de Campos goza de um estatuto especial entre os heterónimos, não
o. metafísicas; p. sonhos; só por ser aquele que tem um perfil biográfico mais completo, mas sobretudo
q. abarcar; r. sentido;
s. contemporâneo; porque Pessoa fez dele um poeta atual, modernista e vanguardista, cuja obra –
t. moderno; u. inefável; mais do que a de qualquer outro dos heterónimos − tem sentido isoladamente,
Leitura
5 e independentemente daquele que ganha no contexto da encenação poemodra-
7.4 mática. As duas odes (“Ode triunfal” e “Ode marítima”) que publicou no Orpheu,
Educação Literária e que deveriam ser peças centrais do livro que se intitularia Arco do triunfo, são
16.1
duas das obras maiores da produção poética do Modernismo português.
1. Na época em que foi criado, em conjunto com os outros heterónimos, a fun-
[A] − [6]
10 ção de Campos estava, portanto, circunscrita a um vanguardismo europeísta
[B] − [4]
[C] − [9] mas ao mesmo tempo nacional, aproximando-se do Futurismo no que respeita
[D] − [2] ao culto das tecnologias e da ciência moderna, mas recusando, contudo, a ico-
[E] − [10]
noclastia estética, o combate à subjetividade e a apologia da guerra e da violên-
[F] − [7]
[G] − [12] cia. Ao contrário dos futuristas, não rejeitava a arte nem a cultura do passado,
[H] − [8] 15 ainda que tivesse consciência de que os novos Homeros e os novos Miltons, de
[I] − [5]
[J] − [3]
que a sociedade industrial carecia, haviam de emergir a partir de um novo para-
digma estético, também ele fruto e consequência dos novos tempos.

78
Poesia dos heterónimos

O próprio Pessoa-Campos escreveu numa carta ao Diário de Notícias, datada


de 4 de junho de 1915, que “o Orpheu seria, para um futurista, uma lamentável
20 demonstração de espírito obscurantista reacionário”.
Foi igualmente a este heterónimo que Pessoa atribuiu a autoria de dois inci-
sivos textos programáticos do Modernismo: no “Ultimatum”, que foi publicado
em 1917 na revista Portugal Futurista, defende-se a “abolição do dogma da per-
sonalidade”, do “preconceito da individualidade” e do “dogma do objetivismo
25 pessoal”, sendo proposto o advento de superpoetas, que sejam por si sós a voz
da coletividade, reunindo “quinze ou vinte personalidades, cada uma das quais
seja uma Média entre correntes sociais do momento”; os Apontamentos para
uma estética não-aristotélica, que viram a luz na revista Athena (1924-1925), con-
têm a proposta de uma nova estética, adaptada aos tempos modernos, e por isso
30 baseada na ideia de força em vez da aristotélica ou helénica ideia de beleza. […]
Como dissemos a propósito da revista Orpheu, o poema “Opiário” representa
a época pré-modernista de Pessoa. Ficticiamente anterior às grandes odes sen-
sacionistas, foi realmente composto vários meses depois da “Ode triunfal”. Esta
fase decadentista de Campos seria ainda enriquecida e completada com alguns
35 poemas supostamente anteriores ao “Opiário”.
Depois de concluído o ciclo das grandes odes, e sobretudo a partir dos mea-
dos dos anos 20, Campos parece fugir ao controle do seu criador, transforman-
do-se num verdadeiro alter-ego existencial de Pessoa. Transforma-se então,
como escreveu Jacinto do Prado Coelho, no “poeta do cansaço, da abulia, do
40 vazio, inquieto e nauseado”, parecendo contudo que o crescente sentimento de
frustração lhe aguçava ainda mais a lucidez. “Tabacaria” é o grande modelo poé-
tico da nova e derradeira etapa alvariana. Ponte de Brooklyn, c. 1919-1920,
Joseph Stella, Galeria de Arte
António Apolinário Lourenço, Fernando Pessoa, Coimbra, Edições 70, 2009, pp. 58-60 (com supressões). da Universidade de Yale.

1. Associe, no seu caderno, cada um dos elementos da coluna A ao elemento da coluna B


que lhe completa o sentido, considerando o conteúdo do texto anterior.

Coluna A Coluna B
[A] O estatuto especial de que [1] defendia a emergência de um novo paradigma estético.
goza Álvaro de Campos
[2] rejeitava o combate à subjetividade, a apologia da violência e da guerra.
[B] As duas obras mais
emblemáticas da produção [3] surge exemplificada no poema “Tabacaria”.
poética do Modernismo
[C] O heterónimo Álvaro de [4] foram publicadas na revista Orpheu.
Campos [5] será substituída pela abulia, pelo cansaço, pelo vazio, pela náusea.
[D] Ao contrário dos futuristas,
Álvaro de Campos [6] deve-se à sua atualidade, Modernismo e Vanguardismo.

[E] Dois dos textos programáticos [7] sugere-se o culto da personalidade, da individualidade e do objetivismo
do Futurismo pessoal.
[F] Ao contrário do que defendia [8] está associado à fase decadentista de Álvaro de Campos.
o Futurismo, no “Ultimatum”
[9] foi o que mais se aproximou do Futurismo.
[G] Na revista Athena
[10] são da autoria de Álvaro de Campos.
[H] O poema “Opiário”
[11] fazia a apologia da sociedade industrial.
[I] A fase modernista de Campos
[12] surgem textos proponentes de uma nova estética, adequada aos
[J] A última etapa de Campos tempos modernos.

79
Fernando Pessoa
ÁLVA RO DE CAMPOS

A cidade levanta-se
(detalhe), c. 1910,
Umberto Boccioni, Museu de
Arte Moderna, Nova Ioque.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

CD 1

AIX
A1
Ode triunfal
F

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica


Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

5 Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!


Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
10 Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

15 Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical −


Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força −
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas
20 Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
1 Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos1 e por estes volantes,
Cilindro móvel no corpo
de uma bomba ou cilindro Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
de uma máquina a vapor, 25 Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
de um motor de explosão;
pistão.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
30 Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

80
Poesia dos heterónimos
O poeta da modernidade | Matéria épica (exaltação do Moderno) | O arrebatamento do canto

Fraternidade com todas as dinâmicas! PROFESSOR


Promíscua fúria de ser parte-agente
35 Do rodar férreo e cosmopolita Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.9;
Dos comboios estrénuos, 15.1
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas, Áudio
“Ode triunfal”
40 E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas


Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés − oásis de inutilidades ruidosas
45 Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras2 do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
50 Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Atividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
55 E Piccadillies e Avenues de l'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!


Tudo o que passa, tudo o que para às montras!
Comerciantes; vadios; escrocs3 exageradamente bem-vestidos;
60 Membros evidentes de clubs aristocráticos;
The Pan Pan at the Monico (detalhe),
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes c. 1959, Gino Severino, Centro Georges
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete Pompidou, Paris.
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
65 Presença demasiadamente acentuada das cocottes; 2
Dispositivo de couro ou de
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?) metal, destinado a reduzir
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente, o atrito de uma peça em
Que andam na rua com um fim qualquer; contacto com outra que se
movimenta.
A graça feminil e falsa dos pederastas4 que passam, lentos; 3
Vigaristas; trapaceiros.
70 E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra 4
Homem que se envolve em
E afinal tem alma lá dentro! práticas homossexuais com
um rapaz mais jovem.
(Ah, como eu desejaria ser o souteneur5 disto tudo!) 5
Proxeneta.

81
Fernando Pessoa
ÁLVA RO DE CAMPOS

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,


Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
75 Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,


80 Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes −
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
85 Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfato
E com o tato (o que palpar-vos representa para mim!)
90 E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!


Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
95 Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!
Apesar de tudo, c. 1933, Charles
Demuth, Museu de Arte
Americana de Whitney,
Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Nova Iorque. Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
100 Olá anúncios elétricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

105 Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.


Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
110 Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

82
Poesia dos heterónimos

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,


Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes −
115 Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
PROFESSOR
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.
Educação Literária
Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas! 14.2; 14.3; 14.4; 14.9;
15.1; 15.2
120 Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Gramática
Eh-lá-hô recomposições ministeriais! 19.4
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Sugestão:
Orçamentos falsificados! Em alternativa, poderá propor
(Um orçamento é tão natural como uma árvore aos seus alunos a análise da
“Ode triunfal” em trabalho de
125 E um parlamento tão belo como uma borboleta). pares, com base no quadro
que se apresenta em 20 Aula
Digital (disponível também,
Eh-lá o interesse por tudo na vida, em formato editável, no Guia
do Professor).
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas Documento
130 E sendo misericordiosamente o mesmo Quadro, em alternativa,
para análise do poema
Que era quando Platão era realmente Platão “Ode triunfal”
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
(Disponível, também, no Guia
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele. do Professor)

1.1 O sujeito poético encontra-


Eu podia morrer triturado por um motor -se num ambiente fabril,
afirmando “À dolorosa luz das
135 Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída. grandes lâmpadas elétricas da
fábrica”. (v. 1)
Atirem-me para dentro das fornalhas!
1.2 O “eu” estabelece uma
Metam-me debaixo dos comboios! relação contraditória com
esse ambiente. Se, por um
Espanquem-me a bordo de navios! lado, parece apreciar a beleza
Masoquismo através de maquinismos! da fábrica, por outro, essa
realidade provoca-lhe dor:
140 Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho! “À dolorosa luz” (v. 1).
2.1 O sujeito poético afirma
que tem os lábios secos (v. 10)
Up-lá-hô jockey que ganhaste o Derby, e que lhe arde a cabeça (v. 12).
Este mal-estar parece ser
Morder entre dentes o teu cap de duas cores! causado pelos movimentos
“em fúria” e pelos “ruídos” que
soam “demasiadamente
(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta! de perto” (v. 11).
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!) 2.2 Para este estado de
alucinação concorrem
sensações gustativas (“Tenho
os lábios secos”, v. 10),
145 Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais! auditivas (“ó grandes ruídos
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas. modernos, / De vos ouvir
demasiadamente de perto”,
E ser levantado da rua cheio de sangue vv. 10-11), táteis (“E arde-me
a cabeça”, v. 12) e visuais
Sem ninguém saber quem eu sou! ("e olhando os motores", v. 15),
que são a “expressão de todas
as […] sensações” daquele que
elogia a contemporaneidade
de forma alucinante.

83
Fernando Pessoa
ÁLVA RO DE CAMPOS

6
Espécie de elétrico; carro
elétrico.
7
Seguidoras e adoradoras de
Dionísio que entravam em
transe místico nas cerimónias
religiosas e eram consideradas Comboio da Cruz Vermelha a atravessar a cidade
impetuosas e lascivas. (detalhe), 1915, Gino Severini,
150 Ó tramways6, funiculares, metropolitanos, Museu Guggenheim, Nova Iorque.
PROFESSOR Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
2.3 Uma nova conceção de
Belo é preconizada pelos Dai-me gargalhadas em plena cara,
modernistas e é visível nestas Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
estrofes de Álvaro de Campos.
Com efeito, depois de fazer 155 Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
referência aos barulhos
típicos da modernidade e da
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
sociedade industrializada, o Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
“eu” vai avaliar positivamente
os seus efeitos, afirmando Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
que estes funcionam como As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
“um acesso de carícias ao
corpo numa só carícia à alma” 160 Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
(v. 26); por outro lado, também E os gestos que faz quando ninguém o pode ver!
os versos 32 e 33 expressam
uma euforia que resulta de ver Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
beleza onde tradicionalmente Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
se via o feio, como é o caso de
sentir “os perfumes de óleos Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
e calores e carvões” (v. 31). 165 Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
3.1 Atendendo a que a
modernidade também Nas ruas cheias de encontrões!
apresenta aspetos perversos,
o “eu”, enquanto ser
totalizante, dá conta de tudo Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
o que faz parte integrante Que emprega palavrões como palavras usuais,
dessa modernidade. Por
isso, o “eu” enumera vários Cujos filhos roubam às portas das mercearias
tipos sociais e personagens 170 E cujas filhas aos oito anos − e eu acho isto belo e amo-o! −
da era industrial, revelando
o seu interesse por todas as Masturbam homens de aspeto decente nos vãos de escada.
realidades e sensações que
o cercam. Desta forma se
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
justifica a enumeração dos Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
diferentes tipos sociais como
“comerciantes”, “vadios”, Maravilhosa gente humana que vive como os cães,
“escrocs”, “aristocratas”, 175 Que está abaixo de todos os sistemas morais,
“esquálidas figuras dúbias”,
“chefes de família”, “cocottes”, Para quem nenhuma religião foi feita,
“burguesinhas”, “pederastas”, Nenhuma arte criada,
“gente elegante que passeia”,
“caixeiros-viajantes”. Nenhuma política destinada para eles!
3.2 Na estrofe 9 referem-se Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
as “corrupções políticas”, os
“escândalos financeiros e
180 Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
diplomáticos”, as “agressões Inatingíveis por todos os progressos,
políticas”, um “regicídio”. Já
a estrofe 10 trata questões Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
sociais, concretamente
as diferentes notícias
jornalísticas, bem como (Na nora do quintal da minha casa
os avanços tipográficos, O burro anda à roda, anda à roda,
sendo tudo alvo de elogio,
e gerador do delírio do “eu”. 185 E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Porém, e apesar de todo o Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
poema constituir um elogio
à modernidade, os aspetos A luz do sol abafa o silêncio das esferas
salientados representam
também alguns dos
E havemos todos de morrer,
resultados negativos da Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
sociedade industrializada.
190 Pinheirais onde a minha infância era outra coisa

84
Poesia dos heterónimos

Do que eu sou hoje...) PROFESSOR


Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ómnibus. 4.1 No poema, o “eu” elogia o
belo feroz, por isso exalta tudo
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios o que simboliza a modernidade
195 De todas as partes do mundo, e a era industrial moderna, ao
ponto de, depois de enumerar
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios, alguns aspetos negativos,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas. concluir: “Que importa tudo
isto, mas que importa tudo
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado! isto / Ao fúlgido e rubro ruído
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores! contemporâneo, / Ao ruído
cruel e delicioso da civilização
de hoje?” (vv. 207-210).
200 Eh-lá grandes desastres de comboios! 4.2 A dimensão épica decorre
do facto de o poema ‘cantar’
Eh-lá desabamentos de galerias de minas! a civilização industrial, referir
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos! os pensadores da Antiguidade
como responsáveis pela
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá, preparação da era moderna
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões, e exaltar as transformações
operadas.
205 Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim, 4.3
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa, “Apóstrofe, por exemplo,
E outro Sol no novo Horizonte! “Ó rodas, ó engrenagens” (v. 5),
“ó grandes ruídos modernos”
(v. 10).
Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto “Anástrofe: “Só porque houve
outrora e foram humanos
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo, Virgílio e Platão” (v. 20);
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje? “E falava com Aristóteles,
que havia de não ser
210 Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento, discípulo dele.” (v. 133).
“Aliteração do som /f/ “Em
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro, fúria fora e dentro de mim”
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico, (v. 7), “de ferro e fogo e força”
(v. 16).
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes7 “Anáfora: “Por todos os meus
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais. nervos dissecados fora, / Por
todas as papilas fora de tudo
com que eu sinto!” (vv. 8-9).
215 Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar, “Enumeração: “Couraças,
canhões, metralhadoras,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos, submarinos, aeroplanos!”
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar, (v. 104); “Ó fábricas, ó
laboratórios, ó music-halls,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas! ó Luna-Parks, / Ó couraçados,
Eia! eia! eia! ó pontes, ó docas flutuantes”
(vv. 113-114).
220 Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria! “Metáfora: “E arde-me
a cabeça” (v. 12), “Fauna
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente! maravilhosa do fundo do mar
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez! da vida!” (v. 181), “A luz do sol
abafa o silêncio das esferas”
Eia todo o passado dentro do presente! (v. 186).
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia! “Gradação: “Rugindo,
rangendo, ciciando,
225 Eia! eia! eia! estrugindo, ferreando” (v. 24).
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita! “Personificação: “Do tumulto
disciplinado das fábricas”
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô! (v. 39), “Progressos dos
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me. armamentos gloriosamente
mortíferos!” (v. 103).
Engatam-me em todos os comboios. “Onomatopeia: “r-r-r-r-r-r-r
eterno!” (v. 5), “ Z-z-z-z-z-z-z-z-
230 Içam-me em todos os cais. z-z-z-z!” (v. 239).
Giro dentro das hélices de todos os navios. Impera, por isso, no poema um
ritmo torrencial, feroz, vivo,
Eia! eia-hô! eia! onde surgem em catadupa
Eia! sou o calor mecânico e a eletricidade! as diferentes realidades
captadas por um “eu” em plena
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa! histeria de sensações.
235 Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

85
Fernando Pessoa
ÁLVA RO DE CAMPOS

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!


Hé-há! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

240 Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!


Londres, 1914 − junho.
ÁLVARO DE CAMPOS
Dum livro chamado Arco do triunfo, a publicar.

In “O engenheiro sensacionista (1914-1922)”, Fernando Pessoa,


Poesia de Álvaro de Campos (ed. Teresa Rita Lopes), Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, pp. 81-90.

1. Considere a primeira estrofe.


Tramway Handles, c. 1930, 1.1 Descreva o ambiente em que o sujeito poético se insere.
Boris Ignatovich, Museu de
Arte Currier, Manchester, 1.2 Indique o tipo de relação que o “eu” estabelece com esse ambiente.
New Hampshire.

PROFESSOR
2. Releia as estrofes 2, 3 e 4.

2.1 Registe marcas do “estado febril” do sujeito poético, explicitando as razões para esse
4.4 O sensacionismo é levado
ao paroxismo, uma vez que estado.
o “eu” afirma querer sentir
tudo de todas as maneiras 2.2 Comprove com elementos textuais que o estado de alucinação do sujeito poético é
e, extasiado, deseja “poder alimentado por todos os sentidos.
exprimir-[se] todo como
um motor se exprime! / Ser 2.3 Explicite de que modo se regista um novo conceito de Belo.
completo como uma máquina!
/ Poder ir na vida triunfante
como um automóvel último- 3. Releia as estrofes 7 a 11.
-modelo!” (vv. 26-28), ou poder
“morrer triturado por um 3.1 Analise as intenções do sujeito poético relativamente aos diferentes tipos sociais que
motor / Com o sentimento
de deliciosa entrega duma apresenta.
mulher possuída” (vv. 134-135),
assumindo mesmo uma 3.2 Refira-se à realidade político-social destacada, considerando os efeitos perversos da
atitude sadomasoquista modernidade.
só para aceder a “tudo com
que hoje se constrói, com
que hoje se é diferente de 4. Considere, finalmente, a globalidade do texto.
ontem!” (v. 101). O ritmo
alucinante sugere a euforia do 4.1 Demonstre a presença do elogio à modernidade.
sujeito poético e a sua quase
devoção à modernidade e às 4.2 Confirme a existência de uma dimensão épica.
transformações, boas e más,
operadas pela civilização 4.3 Exemplifique o recurso à apóstrofe, à anáfora, à aliteração, à anástrofe, à enumeração,
industrial em que este se
insere. à metáfora, à gradação, à personificação e à onomatopeia e refira o efeito que produ-
4.5 O tema é a exaltação da zem genericamente no poema.
modernidade e dos aspetos
com ela relacionados, aspetos 4.4 Destaque marcas de futurismo/sensacionismo no poema.
que se anteveem no título
(“Ode triunfal”). A palavra 4.5 Relacione o tema com o título do poema.
“ode” significa canto elogioso,
a que se acrescenta “triunfal”,
que reforça ainda mais a G 5. Indique o tipo de modalidade expressa nos enunciados destacados do poema:
magnitude desse elogio, que,
neste caso, é dirigido à era a. “Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro”. (v. 17)
moderna e industrial.
5. A modalidade epistémica
b. “A maravilhosa beleza das corrupções políticas”. (v. 73)
encontra-se nas alíneas a. e
d.; a modalidade apreciativa, c. “Como eu vos amo de todas as maneiras”. (v. 87)
nas alíneas b. e c..
d. “E havemos todos de morrer”. (v. 187)

86
Poesia dos heterónimos

EDUCAÇÃO LITERÁRIA PROFESSOR

CD 1 Ali não havia eletricidade. Educação Literária


14.2; 14.3; 14.4; 14.9;
AIXA 1 Por isso foi à luz de uma vela mortiça 15.1
F

Que li, inserto na cama, Gramática


17.1; 18.2; 19.3
O que estava à mão para ler −
5 A Bíblia, em português, porque (coisa curiosa!), eram protestantes.
E reli a Primeira Epístola aos Coríntios. Áudio – “Ali não havia
Em torno de mim o sossego excessivo das noites de província eletricidade”

Fazia um grande barulho ao contrário, 1. O sujeito poético está


Dava-me uma tendência do choro para a desolação. num espaço rural, uma
vez que afirma não haver
10 A Primeira Epístola aos Coríntios... ali eletricidade, vendo-se
obrigado a ler “à luz de uma
Relia-a à luz de uma vela subitamente antiquíssima, vela mortiça” (v. 2). Além disso,
E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim... a única coisa “que estava
à mão para ler” (v. 4) era a
Bíblia, o que aponta para um
Sou nada... ambiente cultural sobretudo
marcado pela crença religiosa.
Sou uma ficção... Acresce ainda o facto de o “eu”
15 Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo? realçar o “sossego excessivo”
e de o aliar à “noite de
“Se eu não tivesse a caridade”… província” (v. 7), confirmando-
E a soberana voz manda, do alto dos séculos, -se, deste modo, o que vinha
a ser anunciado desde o
A grande mensagem em que a alma é livre... primeiro verso.
“Se eu não tivesse a caridade”… 2. O sujeito poético sente-se
emocionalmente debilitado,
20 Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!... desolado, com vontade de
20/12/1934 chorar, entregando-se à
reflexão e à autoanálise,
in “O engenheiro aposentado”, Fernando Pessoa, levando a que “um grande mar
Poesia de Álvaro de Campos (ed. Teresa Rita Lopes), Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 531. de emoção” (v. 12) se ouvisse
dentro dele. Pode dizer-se
que o abatimento é agravado
ou mesmo desencadeado
pelo espaço e pelo tempo que
1. Caracterize o espaço (físico e social) onde se encontra o sujeito poético, ilustrando a o “eu” convoca: a província
sua resposta com três elementos textuais pertinentes. e a noite. Ora, o silêncio
reinante e a escuridão são,
normalmente, os melhores
2. Descreva o estado de espírito do sujeito poético, explicitando as suas causas. aliados da reflexão, pelo que
o adensamento emotivo pode
dever-se ao espaço e ao tempo.
3. Refira as sensações evidenciadas no poema, justificando convenientemente as suas
3. As sensações que se
escolhas. destacam são a visual e
a auditiva. A primeira é
4. Identifique, reportando-se à sua expressividade, o recurso presente no verso “E um percetível no facto de se
afirmar que ali não havia
grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim…”. (v. 12) eletricidade, o que aponta
para a escuridão, facto que é
comprovado no verso “Por isso
5. Indique dois elementos típicos da modernidade e dois traços temáticos da poesia de foi à luz de uma vela mortiça”.
Álvaro de Campos que estejam presentes neste poema. A sensação auditiva surge na
referência ao “sossego” da
noite, que contrasta com o
G 6. Exemplifique o recurso à dêixis, registando um exemplo de deíticos de natureza pes- “barulho” produzido no íntimo
soal, espacial e temporal. do sujeito poético (“Em torno
de mim o sossego excessivo
das noites de província /
7. Ilustre o emprego do mecanismo de coesão gramatical referencial por anáfora. Fazia um grande barulho ao
contrário”, vv. 7-8).
8. Dê um exemplo de coesão gramatical interfrásica. Nota: Disponíveis, no Guia
do Professor, os cenários de
resposta para as questões 4,
9. Explicite o valor aspetual configurado no verso “Ali não havia eletricidade”. 5, 6, 7, 8 e 9.

87
Fernando Pessoa
ÁLVA RO DE CAMPOS

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Esta velha angústia,


Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
5 Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Álvaro de Campos, “Esta velha angústia”,
declamado por Virgílio Castelo. Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

PROFESSOR Transbordou.
Educação Literária
Mal sei como conduzir-me na vida
14.2; 14.3; 14.4; 14.9; Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
15.4
10 Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar-entre,
Este quase,
Link
Álvaro de Campos, Este poder ser que...,
“Esta velha angústia”, Isto.
declamado por Virgílio
Castelo (2 minutos)
15 Um internado num manicómio é, ao menos, alguém.
1. O sujeito poético manifesta Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
uma enorme angústia, um
intenso abatimento, sente Estou doido a frio,
um mal-estar que se vem
intensificando na sua alma
Estou lúcido e louco,
desde que começou a ter Estou alheio a tudo e igual a todos:
consciência de si (vv. 9 e
1-2). O sujeito deixou de ser
20 Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
capaz de conter e controlar Porque não são sonhos.
a sua angústia, que se foi
acumulando ao longo dos Estou assim...
anos, sendo o sujeito poético
obrigado a exteriorizá-la
em lágrimas. Sente-se Pobre velha casa da minha infância perdida!
perturbado, e os sentimentos Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
negativos que o assolam
deixam-lhe “pregas na alma” 25 Que é do teu menino? Está maluco.
(v. 9) e levam-no a coisificar-
-se, a transformar-se em algo
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
de indefinido (v. 8) e a desejar Está maluco.
“endoidecer deveras” (v. 10),
sugerindo a entrada num
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
estado misto de loucura e de
lucidez: “Estou lúcido e louco”.
2. O estado angustiante, Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
1
marcado por uma enorme 30 Por exemplo, por aquele manipanso1 Ídolo africano.
ambivalência (a lucidez
e a loucura; o sentir-se e Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
o alhear-se; a realidade Era feiíssimo, era grotesco,
e o sonho), leva o sujeito
poético a evocar o passado Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
(nomeadamente a “velha
casa”, símbolo da infância
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer −
perdida) e a desejar regressar 35 Júpiter, Jeová, a Humanidade −
a esse tempo, em que não
tinha responsabilidade nem Qualquer serviria,
lucidez suficiente para avaliar Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
o seu estado de espírito. No
passado havia afeto, proteção,
paz e tranquilidade, mas esse Estala, coração de vidro pintado!
tempo e a situação eufórica 16/6/1934
vivida são irrecuperáveis,
como se percebe pelo adjetivo In “O engenheiro aposentado (1931-1935)”, Fernando Pessoa,
“perdida”. Poesia de Álvaro de Campos (ed. Teresa Rita Lopes), Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, pp. 493-494.

88
Poesia dos heterónimos
Reflexão existencial: nostalgia da infância

1. Descreva o estado emocional do “eu” poético, recorrendo a elementos textuais perti-


nentes.

2. Explicite a relação que se estabelece entre o passado e o presente.

3. Proceda a uma divisão do texto em quatro partes, justificando a delimitação proposta


para cada parte.

4. Identifique e refira o valor expressivo decorrente do emprego dos seguintes recursos:


a. metáfora; c. anáfora;
b. hipérbole; d. gradação.

5. Atente na declamação do poema, por Virgílio Castelo, e acompanhe-a com uma leitura
silenciosa.
5.1 Refira a funcionalidade da pontuação, após audição da declamação.
PROFESSOR
6. Interprete os desejos manifestados pelo “eu” poético na penúltima estrofe.
3. O texto é suscetível de ser
7. Explique o sentido do último verso. dividido em quatro partes:
PERA
CU R a primeira corresponde às três

RE
primeiras estrofes, em que se
ÃO verifica a descrição do estado
CO M P R E E N S Ã O/ EX P R E SS Ã O O RA L E X P O S IÇ de espírito do sujeito poético;
na segunda, associada à
11.° ANO quarta estrofe, sobressai
1. Visione atentamente o vídeo e tome notas, considerando os seguintes tópicos:
s: a evocação da infância, por
nesse tempo ele ter sido
šidentificação do orador; mais feliz; na quinta estrofe,
correspondente à terceira
šprincipal objetivo da intervenção do orador; parte, o sujeito poético
regressa de novo à reflexão e à
štema tratado; emissão do desejo de acreditar
em algo, como se essa crença
šinformações sobre o tema. aliviasse a angústia mais
sentida; no monóstico final,
2. Planifique e apresente uma exposição oral em que última parte, está inscrito
dê a conhecer as informações recolhidas no ponto o derradeiro pedido do “eu”,
endereçado ao coração, por
anterior. Richard Zenith. este ser, eventualmente,
a solução para a sua dor.
Nota: Disponíveis, no Guia
do Professor, cenários de
E S C R I TA resposta para as questões 4,
5.1, 6 e 7.

1. Escreva um texto expositivo, de 150 a 200 palavras, sobre Fernando Pessoa e os he- Oralidade
terónimos Caeiro, Reis e Campos, tendo em conta os tópicos e a planificação que se 1.4; 2.1; 3.1; 5.1; 5.2;
5.3; 6.2
sugerem:
Escrita
š Estrutura: 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4;
13.1
- Introdução: Pessoa e a criação heteronímica.
- Desenvolvimento: os três principais heterónimos, suas
especificidades e aproximações. Vídeo
- Conclusão: lugar dos heterónimos no universo literário de Fernando Pessoa. Richard Zenith lê e
comenta um dos últimos
š Critérios linguísticos: poemas de Campos
(4 minutos)
- Correção ortográfica, sintática e da pontuação.
- Diversidade vocabular. Nota: Disponíveis, no Guia
do Professor, cenários de
- Coesão e coerência. resposta para as atividades
BLOCO INFORMATIVO – p. 379 de Oralidade e de Escrita.
š Revisão do texto. PREPARAR O EXAME – p. 54

89
Fernando Pessoa
ÁLVA RO DE CAMPOS

I N F O R M A R / E S C R I TA

Linguagem, estilo e estrutura


Dos vários heterónimos [Campos] é aquele que mais sensivelmente percorre
uma curva evolutiva. Tem três fases: a do “Opiário”, poema com data fictícia de
3-1914; a do futurismo whitmaniano, exuberantemente documentado na “Ode
triunfal” (4-1914), em “Dois excertos de odes” (30-6-1914), “Ode marítima” (publica-
5 da no n.˚ 2 do Orpheu, 1915), “Saudação a Walt Whitman” (11-6-1915) e “Passagem
PROFESSOR das Horas” (22-5-1916), para só episodicamente assomar em poemas posteriores;
enfim, uma terceira fase a que chamarei pessoal por estar liberta de influências
Leitura nítidas, desde “Casa branca nau preta” (11-10-1916) até 1935, ano da morte de Pessoa.
7.4; 8.1
Compreende-se que este Álvaro de Campos que desponta – o da segunda fase –
Escrita
8.1; 8.2; 9.1 10 com a sua vitalidade transbordante, o seu amor ao ar livre e ao belo feroz, venha
a condenar a literatura decadente, planta de estufa corrompida, em cujos pecados,
1. O texto reporta-se às três
fases poéticas de Álvaro de como o Fernando Pessoa ortónimo, incorreu: fá-lo-á ao defender uma estética não
Campos: a decadentista, -aristotélica baseada não já na ideia de beleza, no conceito de agradável, em suma,
exemplificada no poema
“Opiário”; a futurista, visível na inteligência, mas sim na ideia de força, na emotividade individual pela qual o
em “Ode triunfal”, e a última, 15 escritor subjuga os outros sem procurar captá-los pela razão.
a pessoal, já liberta de
influências nítidas. Após a descoberta do futurismo e de Whitman, Campos adotou, além do ver-
Sobre a segunda fase, a mais so livre, já usado pelo seu outro mestre Caeiro, um estilo esfuziante, torrencial,
explorada, diz-se que ilustra
a vitalidade, a estética não- espraiado em longos versos de duas ou três linhas, anafórico, exclamativo, inter-
-aristotélica, o amor ao belo
feroz, um estilo esfuziante,
jetivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes e
com recurso ao verso livre, 20 enumerações de páginas e páginas.
enumerações, apóstrofes,
reiterações e interjeições. Neste estilo vagabundo, vertiginoso, cantou ele ora a hipertrofia de uma per-
Neste estilo vertiginoso, sonalidade viril que tudo integra em si e não respeita limites, ora os impulsos que
Álvaro de Campos cultivou
uma personalidade que tudo emergem da lava sombria do inconsciente, o masoquismo, a volúpia sensual de
integra em si e não respeita ser objeto, vítima, a prostituição febril às máquinas, à Humanidade, ao mundo, a
limites, elogiou as máquinas,
a modernidade e a nova 25 ponto de se tornar “um monte confuso de forças”, um eu-Universo, disperso nas
Humanidade. coisas mais díspares.
Contudo, a partir de 1916,
Campos cai no abatimento, na A partir de 1916, Campos é o poeta do abatimento, da atonia, da aridez interior,
melancolia, aproximando-se
de Pessoa no ceticismo, na dor
do descontentamento de si e dos outros.
de pensar e na nostalgia da Perante este Campos decaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, irmão do
infância.
Conclui-se que é na fase épica,
30 Pessoa ortónimo no ceticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância ou de
a segunda, em que elogia as qualquer coisa irreal, compreende--se que seja o único heterónimo que comparti-
transformações decorrentes
da modernidade, que Campos cipe da vida extraliterária de Fernando Pessoa.
mais se aproxima de Whitman Campos é mais torrencial, principalmente na sua fase épica, e em qualquer caso
e mais se afasta do seu criador
e dos outros heterónimos. mais nervoso, mais convulso, ou não escrevesse ele muitas vezes entre os silvos
(146 palavras) 35 das máquinas. Os seus momentos orgíacos, de delírio de imaginação, obrigam-no
a um ritmo amplo, em que as palavras se sucedem desordenadamente, em caudal,
encadeadas pela aliteração ou pela rima interior, repetidas quando não ocorrem
CU
PERA
R outras, mas repetidas porque o ritmo exige.
Em Campos, como em Whitman, a enumeração das coisas mais díspares do
RE

S ÍN T E S E universo físico e moral tende em última análise à integração do diverso no Todo.

10.° ANO Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, Lisboa, Editorial Verbo,
1982, pp. 40-46 (com supressões).

BLOCO INFORMATIVO – p. 379


PREPARAR O EXAME – p. 51 1. Redija uma síntese do texto que tenha entre 125 a 150 palavras.

90
Poesia dos heterónimos

LEITURA

O mau uso da língua pode ser alvo de crítica. Comprove-o com a opinião de Ricardo Araújo
Pereira.

Só uma nota

M
an, tenho uma cena para te dizer,
chaval. Tu tens 45 anos, estás a
ver? Puto, já ninguém fala assim,
meu. Essa cena era bué da fixe há 30 anos.
5 Quando tínhamos 15 era top, man.
Minto, nessa altura talvez fosse meramen-
te baril. Parece-me que só nos últimos tem-
pos é que as cenas baris passaram a ser top.
Mas agora, como já não és um adolescente, é
10 só uma beca estranho. E um coche fatela, até. Ricardo Araújo Pereira.
Acaba mesmo por ser um conhé absurdo. Lembras-te daqueles stôres que se armavam em
jovens e procuravam incluir o nosso linguajar na matéria, imaginando que assim captavam PROFESSOR
a nossa atenção? Tipo: “O Marquês de Pombal é que não papava grupos da Companhia de
Jesus”? Ou: “A primeira versão da tabela periódica dos elementos foi criada por um cota Leitura
7.7
15 chamado Mendeleev”? Ya, tu estás a fazer a mesma figura, man. Não faz muito sentido con-
Gramática
tinuares a referir-te aos teus pais como “os meus velhos” porque tu também já és semivelho. 17.1
De vez em quando, tenta gostar de uma coisa, em lugar de estares sempre, tipo, a curtir uma
cena. Para de perguntar aos outros se estão a ver, estás a ver? Em princípio estamos a ver, 1. Trata-se de um texto de
opinião em que o autor expõe
embora cada vez pior, infelizmente. Evita pedir que te orientem um cigarro. Deixa os pontos o seu ponto de vista sobre
o “linguajar dos mais e dos
20 cardeais sossegados quando desejas mandar um bafo, boy. Repara, além disso, que a língua menos jovens”, baseando-
portuguesa tem mais dois ou três adjetivos, além de “brutal”. Era brutal começares a usar -se em argumentos como o
facto de não ser adequado
alguns. o uso de determinados
Proponho que, da próxima vez que disseres que assististe a uma cena brutal, estejas a termos, mostrando que a
língua portuguesa é rica e
referir-te à cena dois do quarto ato do Macbeth, aquela em que os assassinos matam o filho que, por isso, permite uma
25 do Macduff. Essa é, de facto, e podes por uma vez dizê-lo com propriedade, uma cena brutal. diversidade vocabular não
percecionada na atualidade.
As outras cenas a que te referes, na maior parte das vezes nem sequer são cenas. E é muito O autor recorre à ironia para
raro serem brutais. Estas dicas fixes podem ser proveitosas porque, embora julgues que es- fazer passar a sua mensagem
de forma mais lúdica. Faz
tás a representar altamente, na verdade a tua cena não está a bater. És um bacano cuja lín- uso de uma linguagem
valorativa (depreciativa) e de
gua tem complexo de Peter Pan, mas o resto do corpo foi à vida dele. Era top se conseguisses recursos expressivos como a
30 fazer com que os dois acertassem o passo. Experimenta. Vais curtir tótil. comparação, a metáfora e
a hipérbole.
Ricardo Araújo Pereira, Visão, n.˚ 1216, 23-06 a 29-06-2016. Em termos linguísticos
destaca-se o uso da primeira
pessoa gramatical, as frases
declarativas e interrogativas,
1. Comprove que se trata de um texto de opinião, justificando a sua resposta com ele- o presente do indicativo.
mentos linguísticos pertinentes. 2.
a. “stôres” (l. 11)
G 2. Retire do texto um exemplo representativo de cada um dos processos irregulares de b. “man” (l. 5)/”boy” (l. 20)
formação de palavras indicado. c. “papava” (l. 13)

a. Amálgama. b. Empréstimo. c. Extensão semântica. BLOCO INFORMATIVO – p. 378

91
 FERNANDO PESSOA Heterónimos

TEXTO INÉDITO O (estranho) fenómeno dos heterónimos


Os heterónimos criados por Pessoa constituem, porventura, o fundamento
maior da sua invulgar celebridade, tanto em Portugal como no estrangeiro. Os
mais conhecidos (Caeiro, Reis e Campos) foram dotados de uma vida ficcionada,
incluindo data, local de nascimento e ocupação profissional, em tudo desligados
5 da vida própria do seu criador.
Álvaro de Campos nasceu em Tavira e formou-se em engenharia naval, na
Escócia. É, sem dúvida, o heterónimo mais vanguardista, seduzido pela verti-
gem do progresso industrial e das máquinas, cujos ruídos procura reproduzir
através de insistentes onomatopeias.
10 Ricardo Reis teria nascido em 1887, no Porto, foi primeiro educado num colé-
gio de jesuítas e formou-se depois em Medicina. A sua poesia inspira-se dire-
tamente na tradição literária latina, a começar pela adoção da ode, género a que
recorre sistematicamente para exprimir uma sábia renúncia a todas as inquieta-
ções, lutas e projetos que perturbem a serenidade da existência.
15 Alberto Caeiro é, decerto, o heterónimo que mais se autonomiza do poeta
Pessoa. Surge no papel de um guardador de rebanhos, nascido em Lisboa em
1889, mas tendo vivido sempre no campo. O que impressiona mais na sua poe-
sia é a tentativa de chegar a uma verdade que se situa para além das palavras e
apenas existe na realidade das coisas.
20 Com exceção de Cesário Verde, com cuja forma de olhar Caeiro tanto se iden-
tifica, os heterónimos parecem ser alheios à tradição da poesia portuguesa. No
seu conjunto, parecem mais o fruto de um contacto com poetas e pensadores
anglo-saxónicos, como Walt Whitman ou John Milton, que, de resto, Pessoa ha-
via estudado no Liceu de Durban. Esse é também, porventura, um dos motivos
25 que explicam o extraordinário impacto da obra heteronímica de Pessoa um pou-
co por todo o mundo. Uma das causas para a transformação de Fernando Pessoa
num verdadeiro autor universal reside na criação dos heterónimos. Para além do
grau de sintonia que cada leitor possa experimentar com cada um deles, a partir
de Pessoa pode concluir-se que, afinal, em cada ser humano não existe apenas
30 um só rosto e uma só personalidade.
José Augusto Cardoso Bernardes

1. Indique, justificando, o heterónimo que mais se afasta do seu criador.

92
Bernardo Soares

O ver e o olhar de um guarda-livros TEXTO INÉDITO

Bernardo Soares foi mais uma das criações de Fernando Pessoa. Pode dizer-
-se que não foi uma criação tão radical como o foram os seus mais conhecidos
heterónimos: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos ou Ricardo Reis. Sabemos, de
facto, que os traços biográficos que identificam este semi-heterónimo coinci-
5 dem, em boa parte, com o quotidiano do próprio Fernando Pessoa em Lisboa,
pelo menos ao longo da sua última década de vida. Tal como o seu criador,
também Bernardo Soares era um guarda-livros que deambulava pelo espaço
citadino, perscrutando realidades imprevistas.
A escrita do Livro do desassossego resulta sobretudo dessa deambulação de
10 sensibilidade. O circuito repete-se de forma relativamente constante: o sujeito,
que surge quase sempre em movimento pela cidade, fixa a atenção num por-
menor objetivo, para depois construir reflexões que tanto podem incidir sobre
as figuras observadas como sobre a sua própria vida. Pode ser o caso do vestido
da rapariga que viaja no carro elétrico, à sua frente. O seu olhar fixa-se apenas
15 no vestido, mas, a partir dele, surge todo um encadeamento de imagens relacio-
PROFESSOR
nadas com a vida social e económica, envolvendo fábricas, operários, relações
laborais e domésticas. Educação Literária
Pode dizer-se que esta técnica surge já em Cesário Verde, o poeta que pela 16.1

primeira vez em Portugal faz do olhar acidental um ver profundo. Foi ele con-
Heterónimos
20 cretamente que, passeando “Num Bairro Ocidental”, olhou, viu e transfigurou
1. O heterónimo que mais se
realidades que eram impercetíveis para qualquer outro observador. Depois de afasta de Fernando Pessoa
é Alberto Caeiro, uma vez
durante muito tempo ter servido sobretudo para que o poeta se debruçasse so- que, para este, a verdade se
bre si próprio, numa busca interior profunda, a poesia passou também a ser- alcança no contacto com as
coisas, sem haver necessidade
vir para transformar subjetivamente o mundo exterior, numa demonstração de de as questionar. Assim, a
25 que, afinal, a realidade não existe totalmente fora de quem a observa. verdade está na existência
concreta.
Em conformidade com esta nova forma de incorporar a realidade na poesia,
Bernardo Soares chega a invocar Alberto Caeiro, o heterónimo que transforma Bernardo Soares
o olhar simples e descritivo num ver que revela e interpreta: “Porque eu sou do 1. Bernardo Soares distancia-
-se menos do seu criador pelo
tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura”. facto de partilhar com ele
José Augusto Cardoso Bernardes vivências, alguns traços de
personalidade e caraterísticas
poéticas. Por isso, Soares
1. Explique por que razão o autor do texto afirma que Bernardo Soares “não foi uma cria- é considerado um semi-
-heterónimo.
ção tão radical como o foram” os outros três heterónimos pessoanos.

93
Fernando Pessoa
BERNARDO SOARES
PERA
CU R
COMPREENSÃO DO ORAL

RE
N T Á R IO
DOCUME
Visione atentamente um excerto do documentário Grandes Livros –
10.° ANO
o Livro do desassossego.

1. Assinale, no seu caderno, as afirmações verdadeiras ou falsas relativas ao Livro do


desassossego. Corrija as afirmações falsas.
a. O Livro do desassossego é uma obra híbrida quanto ao género.
b. O livro aborda temas como Deus, a vida e a política, entre outros.
Grandes Livros − O Livro do c. Trata-se de um livro composto por cerca de 400 textos.
desassossego
d. A obra possui uma única ação com fio condutor.
PROFESSOR e. Este livro é um conjunto de impressões desconexas.

Oralidade f. O Livro do desassossego constitui uma reflexão sobre a sociedade.


1.1; 1.3; 1.5; 2.1; 3.1; 5.1;
5.2; 5.3; 6.2 g. O livro é um labirinto de reflexões e de sentimentos sobre a vida humana.
Educação Literária h. A obra versa apenas o desassossego e a desilusão do seu autor.
16.1
i. O Livro do desassossego aborda a temática do sonho.

2. Selecione a alternativa que completa o sentido de cada afirmação.


Link
Grandes Livros − O Livro 2.1 Pessoa considera Bernardo Soares um semi-heterónimo porque
do desassossego
(8 minutos) [A] tem uma personalidade completamente diferente da sua.
[B] apresenta traços de personalidade comuns a Pessoa.
1.1
a. V [C] apresenta traços de outros heterónimos.
b. V
[D] tem uma personalidade inconstante e pouco definida.
c. F – É composto por cerca
de 500 textos. 2.2 O Livro do desassossego constitui “uma autobiografia sem factos” porque
d. F – Não há uma ação na
obra. É constituída por textos [A] é um texto em prosa poética na primeira pessoa.
independentes, sem nenhuma
ligação entre eles. [B] é um texto de caráter nitidamente autobiográfico.
e. V [C] possui um teor predominantemente descritivo.
f. F − Constitui uma reflexão
sobre a alma humana. [D] é um registo na primeira pessoa, mas de impressões e não de acontecimentos.
g. V
2.3 A melhor edição do Livro do desassossego seria numa caixa ou em folhas soltas porque
h. F – Versa o desencanto que
caracterizou o século. [A] se desconhece a ordem que Pessoa teria dado aos textos que o integram.
i. V
2.1 [B] [B] cada leitor poderia ordená-los como mais lhe agradasse.
2.2 [D] [C] é composto por textos dispersos cuja autoria não é consensual.
2.3 [B]
[D] permitiria a inserção de textos posteriormente descobertos.

EXPRESSÃO ORAL

PERA
CU R 1. Sintetize oralmente, em 2 a 3 minutos, os aspetos que entenda mais relevantes, tendo
RE

em conta a informação recolhida no documento vídeo Grandes Livros – o Livro do de-


S ÍN T E S E sassossego, considerando, entre outros, os seguintes tópicos:
10.° ANO šretrato de Bernardo Soares;
šestrutura e conteúdo da obra;
šaspetos que conferem à obra um caráter universal. BLOCO INFORMATIVO – p. 379

94
Livro do desassossego

INFORMAR

A natureza fragmentária da obra


“O meu estado de espírito atual é de uma depressão profunda e calma. Estou
há dias ao nível do Livro do desassossego.”(carta de 4 de outubro de 1914). “O meu
estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do de-
sassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos.” (carta de 19 de novem-
5 bro de 1914). Repare-se em que: a génese da obra parecia corresponder a estados
de “depressão profunda e calma”; o projeto de uma obra em capítulos estaria a ser
contrariado pelo caráter fragmentário dos “pedaços” que iam acontecendo.
Só a partir de 1929 Pessoa tentaria organizar, pouco a pouco, o Livro, aproveitan-
do textos anteriores e escrevendo textos novos. Vários fragmentos que ele juntou
10 aos papéis respeitantes ou pertencentes ao Livro documentam como este se gerou
e, na fase final, a maneira como Pessoa o encarava e as diretrizes que anotava com
vista a aprontá-lo para o dar a lume. Diz um desses fragmentos: “A organização
do livro deve basear-se numa escolha, rígida quanto possível, dos trechos varia-
damente existentes. Aparte isso, há que refazer uma revisão final geral do próprio
15 estilo, sem que ele perca, na expressão íntima, o devaneio ou desconexo lógico que
o caracteriza”.
A precaução necessária para uma leitura pertinente consiste em não esquecer
que, tal como se nos apresenta, é um livro inacabado, uma obra que Pessoa não
teve tempo para elaborar a partir dos materiais para ele coligidos, uns mais ou
20 menos informes, rabiscados à pressa, outros com a aparência de definitivos, uns
escritos para o Livro, outros sem destino ou com outras finalidades.
Exatamente por não ser precisamente um “livro” mas uma amálgama de coisas
várias, desde o ortónimo ao semi-heterónimo, desde o texto acabado, vagarosa-
mente esculpido, ao fragmento ocasional, ao simples esboço, ao apontamento ra- Estudo de cor. Quadrados
25 biscado em poucos segundos, à carta que chegou ou não a ser enviada, aos pedaços com círculos concêntricos
(detalhe), 1913, Wassily
de um ensaio jamais concluído – exatamente por ser isto, é que o Livro do desas- Kandinsky, Munique, Galeria
sossego nos abre novas e fascinantes perspetivas para o entendimento do “caso” Municipal da Lenbachhaus.

Fernando Pessoa.
“Fernando Pessoa sempre existiu”, in Fernando Pessoa, Livro do desassossego, por Bernardo Soares
(prefácio e organização de Jacinto do Prado Coelho), Lisboa, Ática, 1982, pp. VIII-X e XVIII (com supressões).

1. Selecione, no seu caderno, a alternativa que completa o sentido de cada afirmação.


1.1 O Livro do desassossego não é propriamente “um livro” porque
[A] Fernando Pessoa não teve tempo de o concluir.
[B] não se trata de uma obra estruturada em capítulos.
[C] não foi realizada a revisão final geral do estilo que Pessoa pretendia fazer.
PROFESSOR
[D] não há um fio condutor entre os textos nele inseridos.
1.2 A natureza fragmentária da obra explica-se pelo facto de esta Leitura
8.1
[A] ser constituída por textos autónomos, de diferentes géneros. Educação Literária
16.1
[B] revelar estados de espírito depressivos.
[C] ser estruturada de forma desconexa. 1.1 [D]
1.2 [A]
[D] abrir perspetivas para um melhor entendimento do poeta.

95
Fernando Pessoa
BERNARDO SOARES

LEITURA

Leia uma apreciação crítica sobre a publicação de uma edi-


ção crítica do Livro do desassossego.

O livro que nunca existiu

Q
uase 30 anos após a primeira publicação do Livro do
desassossego, em 1982, acaba de sair a respetiva edi-
ção crítica, editada por Jerónimo Pizarro. Se Fernando
Pessoa é hoje considerado uma figura crucial da modernidade,
5 talvez o deva menos à sua poesia do que às centenas de tre-
chos em prosa que escreveu para este livro que nunca chegou
a sê-lo.
O colombiano Jerónimo Pizarro, que se tornou nos últimos anos um nome incontornável
dos estudos pessoanos e é hoje a face mais visível da chamada "equipa Pessoa", acaba de
10 oferecer-nos uma edição crítica do Livro do desasocego, título que respeita a grafia que Pes-
soa parece ter acabado por preferir, após ter usado várias alternativas, como "desassocego"
ou "desasossego". Décimo segundo volume da "série maior" da edição crítica de Fernando
Pessoa, em curso de publicação pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, o trabalho de Pi-
zarro surge numa altura em que o Livro do desassossego se tornou já num best-seller europeu,
15 com centenas de milhares de exemplares vendidos em países como a França, a Inglaterra.
Ao longo de quase uma década, o livro parece ter entrado numa espécie de dormência,
tendo sido recuperado a partir de 1928-29, mas agora atribuído a Bernardo Soares, a quem
Pessoa chamou semi-heterónimo e que já aparecia, desde os anos 1920, como autor de con-
tos e outros textos. Bernardo Soares acusa uma forte presença de Cesário Verde, "cuja lição",
20 escreve Teresa Sobral Cunha, "inspirou atmosferas e quadros de muitos destes trechos".
Quando, no final dos anos 1920, Pessoa volta a entusiasmar-se com o projeto, parece
ter percebido que não seria fácil harmonizar os seus trechos da fase mais vanguardista − a
época da explosão heteronímica e do lançamento de Orpheu − com os textos que estava
a escrever nos anos 1930. Há um apontamento do poeta em que este assume a provável
25 necessidade, caso venha a publicar a obra, de submeter os fragmentos mais antigos a uma
revisão estilística.
O facto é que nunca o fez.
No fim de contas, talvez a edição mais honesta da obra fosse aquela que, simplesmente,
publicasse em folhas soltas o que Pessoa deixou escrito para o livro, dando a cada leitor
30 a possibilidade de montar o "puzzle" como lhe parecesse melhor. Mas, claro, seria preciso
saber-se o que o autor efetivamente destinou à obra, e dificilmente encontraremos dois in-
vestigadores que estejam de acordo neste ponto.
Pizarro, como compete a uma edição crítica, ordenou os textos por ordem cronológica.
Teresa Sobral Cunha também, mas, no seu caso, por estar convencida de que o autor, caso
35 tivesse tido tempo de publicar o livro, adotaria este critério. Zenith preferiu aproximações
temáticas e optou por reunir num apêndice aquilo a que chama os "grandes trechos", reto-
mando uma expressão do próprio Pessoa, que a dada altura terá ponderado publicar à parte
esses ditos textos.
Luís Miguel Queirós, Público, edição online de 12 de agosto de 2010
(consultado em setembro de 2016, adaptado e com supressões).

96
Livro do desassossego

Responda às questões. Nas respostas aos itens de escolha múltipla, selecione, no seu ca- PROFESSOR
derno, a opção correta.
Leitura
7.1; 7.3; 7.4; 7.5; 7.7; 8.1
1. Para o autor, Fernando Pessoa é hoje um grande nome do Modernismo devido, sobre-
Gramática
tudo, ao valor literário 17.1; 18.2; 19

[A] dos fragmentos do Livro do desassossego. 1. [A]


[B] da sua obra poética. 2. [B]
3. [A]
[C] da sua obra heteronímica. 4. [D]
[D] da sua vasta obra poética. 5. [B]
6. Complemento indireto.
7. “de Cesário Verde” (l. 19).
2. O Livro do desassossego é um livro “que nunca chegou a sê-lo” (ll. 6-7) porque

[A] Pessoa duvidava do seu valor literário.

[B] é constituído por trechos muito diferentes, sem fio condutor entre eles.

[C] Pessoa nunca o editou nem tencionava fazê-lo.

[D] as diversas edições são organizadas segundo diferentes critérios.

3. O texto que leu é uma apreciação crítica que tem como marcas específicas

[A] a descrição sucinta do objeto, acompanhada de comentário crítico.

[B] a elucidação sobre um tema, de forma concisa e objetiva.

[C] a explicitação de um ponto de vista com recurso a argumentos e a exemplos.

[D] a seleção crítica das ideias-chave de um texto, de modo a reduzi-lo ao essencial.

G 4. O mecanismo de coesão que se estabelece entre o segmento “este livro ” (l. 6) e o pro-
nome “o” em “sê-lo” (l. 7) designa-se como
[A] coesão interfrásica.

[B] coesão frásica.

[C] coesão temporal.

[D] coesão referencial.

5. O segmento “caso venha a publicar a obra” (l. 25) corresponde a

[A] uma oração subordinada substantiva completiva.

[B] uma oração subordinada adverbial condicional.

[C] uma oração subordinada adverbial causal.

[D] uma oração subordinada adjetiva relativa.

6. Identifique a função sintática desempenhada pelo elemento sublinhado em “acaba


de oferecer-nos”. (ll. 9-10)

7. Refira o antecedente do elemento sublinhado em "cuja lição". (l. 19)

97
Fernando Pessoa
BERNARDO SOARES

INFORMAR

Imaginário urbano
O quotidiano
Deambulação e sonho: o observador acidental
Nos restantes trechos vindos a lume adivinha-se, pelo con-
trário, a rotina da vida quotidiana – oscilações do tempo, bre-
ves episódios de rua, cenas de escritório, encontros de restau-
rante ou de café −, embora transfigurada por um devaneador.
5 São páginas de um “diário” assinado por Bernardo Soares, que

vingou como autor do Livro no espírito de Pessoa, após uma


oscilação entre o seu nome e o de Vicente Guedes.
Tanto Bernardo Soares como Álvaro de Campos nos deixam
entrever o Fernando Pessoa da biografia, solitário e discreto
10 correspondente comercial, num vaivém entre o real, dum lado,

e a meditação, o sonho, a criação estética, do outro. Soares,


mordido pelo tédio, sonha diante das pautas de um ofício ou
das filas vulgares de um armazém. O comércio dá-lhe ainda
assim bons pretextos para imaginar: “No próprio registo de
15 um tecido que não sei o que seja se me abrem as portas do

Indo1 e de Samarcanda2…”
Talvez por o achar demasiado confessional, autobiográfico,
direto, Pessoa deixasse Bernardo Soares um tanto informe e na
Vista de Lisboa – Tejo e topo penumbra. A sua prosa tem, em dados trechos, um vago sabor a adolescência.
do arco da rua Augusta, s/d,
Carlos Botelho.
20 Amigo, como Cesário, de vaguear pela Baixa pombalina, turbado pelo mistério
PROFESSOR que envolve o homem e as coisas, amarfanhado pelo sem-sentido da existência,
melancólico, abúlico, um dos seus principais méritos consiste em confirmar em
Leitura Fernando Pessoa uma temática obsessiva e a permanência de certos estados
8.1
Educação Literária
psicológicos fundamentais.
16.1
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, Lisboa,
Editorial Verbo, 1982, pp. 47-48 (com supressões).
1. a. Imaginário urbano:
“breves episódios de rua,
cenas de escritório, encontros 1
de restaurante ou de café −, Rio do Paquistão; 2 Cidade do Uzbequistão, antiga capital da rota da seda.
embora transfigurada por
um devaneador” (ll. 3-5);
“O comércio dá-lhe ainda
assim bons pretextos para 1. Demonstre, transcrevendo segmentos textuais pertinentes para o seu caderno, a pre-
imaginar” (ll. 13-14).
b. quotidiano: “rotina da vida
sença das seguintes temáticas no Livro do desassossego.
quotidiana” (l. 2).
c. deambulação e sonho:
Deambulação e sonho:
o observador acidental: Imaginário urbano O quotidiano
“breves episódios de rua, o observador acidental
cenas de escritório, encontros
de restaurante ou de café”
(ll. 3-4); “Amigo, como a. _________________________ b _________________________ c. _________________________
Cesário, de vaguear pela Baixa
pombalina” (l. 20).
2. O Livro do desassossego
é escrito em prosa poética,
tem um caráter reflexivo 2. Identifique duas características típicas da prosa de Bernardo Soares referidas neste
e de devaneio. texto informativo.

98
Livro do desassossego
O imaginário urbano | O quotidiano | Deambulação e sonho

EDUCAÇÃO LITERÁRIA 1
coevo: contemporâneo
PROFESSOR
[FRAGMENTO 1]
O Manual apresenta
Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretu- 4 fragmentos do Livro do
do aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais desassossego. Contudo,
o Programa propõe a
bulício. A rua do Arsenal, a rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes abordagem obrigatória
de apenas 3 fragmentos
que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada desta obra.
5 dos cais quedos − tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tar-
des, na solidão do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.7;
de sentir-me coevo1 de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como 14.9; 16.2
os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até 1. Perante a observação do
haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são espaço diurno (“ruas tristes”,
l. 3), o narrador manifesta
10 cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta uma visão negativa que se
de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há coaduna com a sua própria
tristeza (“Por ali arrasto, até
diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e haver noite, uma sensação de
eu ser alma, o que pode ser que nada valha ante o que é a essência das coisas. vida parecida com a dessas
ruas.”, ll. 8-9). No entanto, é
Há um destino igual, porque é abstrato, para os homens e para as coisas — uma com o espaço noturno que ele
se identifica, pela ausência
15 designação igualmente indiferente na álgebra do mistério. de “bulício” que o caracteriza.
Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à A cidade é “nada”, de dia
(“cheias de um bulício que
mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma não quer dizer nada”, l. 10) e
sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, de noite (“cheias de uma falta
de bulício que não quer dizer
quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me nada”, ll. 10-11); o “eu”: “de dia
sou nulo, e de noite sou eu.”
20 substituírem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não Assim, estabelece-se um
querer, em me surgirem de fora, como o elétrico que dá a volta na curva extrema paralelismo entre o espaço
diurno e noturno, mas um
da rua, ou a voz do apregoador noturno, de não sei que coisa, que se destaca, contraste no modo de o sujeito
toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer! sentir esses espaços.
2. Soares e Cesário Verde
Passam casais futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com dispõem da mesma matéria −
25 pressa de prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a a cidade e os seus elementos,
apreendidos muitas vezes pela
uma ou outra porta reparam em pouco os vadios parados que são donos das observação.
lojas. Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonambulizam em molhos ora muito 3. A observação do quotidiano
exterior permite ao narrador
ruidosos ora mais que ruidosos. Gente normal surge de vez em quando. Os au- manifestar o seu estado de
tomóveis ali a esta hora não são muito frequentes; esses são musicais. No meu alma, de tristeza e amargura.
No entanto, ele é capaz de
30 coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação. se distanciar desse espaço
Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu desti- citadino e de tecer uma
reflexão de teor mais racional,
no, alheio, até, ao destino próprio − inconsciência, círculos de superfície quando ao afirmar: “sobe-me da
o acaso deita pedras, ecos de vozes incógnitas − a salada coletiva da vida. alma à mente uma tristeza
de todo o ser” (ll. 16-17), que o
Fernando Pessoa, Livro do desassossego – composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros leva a concluir acerca da sua
incapacidade de ação em face
na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 41-42.
dessa mesma realidade.
4. A deambulação permite
ao narrador a observação
1. Explicite a relação que se estabelece entre o narrador e a cidade, atendendo ao espaço atenta da cidade e a reflexão
sobre os sonhos, que ele vê
diurno e noturno. como externos a si próprio
e que marcam o seu tédio
2. Justifique a referência a Cesário Verde. existencial – por isso os
recusa, ao afirmar “os não
querer” (ll. 19-20). O barulho do
3. Comprove que a descrição do real dá lugar à descrição do estado de alma do narrador, elétrico e a voz do apregoador
mas também a uma reflexão de caráter racional. são convocados por serem
também elementos externos
ao sujeito.
4. Esclareça a relação entre a deambulação e o sonho, estabelecida no segundo parágrafo.

99
Fernando Pessoa
BERNARDO SOARES

PROFESSOR
EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.7; [FRAGMENTO 2]
14.9
Gramática
18.2; 19
Quando outra virtude não haja em mim, há pelo menos a da perpétua novi-
dade da sensação liberta.
1. Ao deambular pela cidade,
o narrador assume-se como Descendo hoje a rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do ho-
um mero observador do mem que a descia adiante de mim. Eram as costas vulgares de um homem qual-
quotidiano concreto e realça,
na paisagem que observa, 5 quer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava
um homem que caminha à
sua frente. Reparar nesta
uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no ritmo de an-
personagem dá origem a dando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita.
um discurso de devaneio,
que adquire significações Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nele
metafóricas em torno da a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidia-
condição humana.
2. A oposição consciência/
10 no do chefe de família que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele,
inconsciência corresponde pelas pequenas alegrias e tristezas de que forçosamente se compõe a sua vida,
à oposição entre o “eu” e “os
outros” – o “eu” está acordado, pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal daquelas costas
é consciente, enquanto vestidas.
“os outros” (representados
pelo homem de costas, Desvio os olhos das costas do meu adiantado, e passando-os a todos mais,
“o inconsciente a quem sigo”, 15 quantos vão andando nesta rua, a todos abarco nitidamente na mesma ternura
l. 16) permanecem
adormecidos porque são absurda e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo. Tudo isto é
inconscientes (“não têm o mesmo que ele; todas estas raparigas que falam para o atelier, estes emprega-
consciência de nada, porque
não têm consciência de ter dos jovens que riem para o escritório, estas criadas de seios que regressam das
consciência.”, ll. 22-23).
compras pesadas, estes moços dos primeiros fretes – tudo isto é uma mesma
3. A caracterização do espaço
e das figuras que o habitam 20 inconsciência diversificada por caras e corpos que se distinguem, como fanto-
é feita através do recurso à ches movidos pelas cordas que vão dar aos mesmos dedos da mão de quem é
3.a pessoa do singular (“Eram
as costas…”, l. 4, “levava uma invisível. Passam com todas as atitudes com que se define a consciência, e não
pasta”, ll. 5-6). Esta dá, depois,
lugar à 1.a pessoa e a um
têm consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns
discurso subjetivo ao passar inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, ou-
para o plano do pensamento,
o que é desencadeado pela
25 tros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo
interpretação do real que o sexo que não existe.
narrador observa (“Senti nele
a ternura que se sente pela Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos.
comum vulgaridade humana”, A sensação era exatamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém
ll. 8-9). O segmento “Volvi
os olhos para as costas do que dorme. Tudo o que dorme é crença de novo. Talvez porque no sono não se
homem, janela por onde vi 30 possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado
estes pensamentos” (l. 27)
ilustra essa tendência. egoísta, é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem
4. Bernardo Soares observa dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.
o homem de costas, vê nele
o homem banal, o quotidiano Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que caminha adiante de
banal de muitos outros (“tudo mim com passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente.
isto é o mesmo que ele”,
ll. 16-17), e é essa observação
do real citadino que
desencadeia o seu
pensamento reflexivo e o
leva a tecer considerações de
caráter generalizante: “não
têm [aqueles que passam]
consciência de nada, porque
não têm consciência de ter
consciência” (ll. 22-23). Os
segmentos: “Vejo-os a todos
através de (cont.)

Rua Garrett, c. 1907, fotografia de


Alberto Carlos Lima, Arquivo
Municipal de Lisboa.

100
Livro do desassossego
O quotidiano | Deambulações e sonho | Linguagem e estilo

35 Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sono. Ninguém sabe o que
faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida,
eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma
PROFESSOR
ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social
dormente, por todos, por tudo. (cont.) uma compaixão de
40 É um humanitarismo direto, sem conclusões nem propósitos, o que me as- consciente, os pobres diabos
homens, o pobre diabo
salta neste momento. Sofro uma ternura como se um deus visse. Vejo-os a to- humanidade” (ll. 41-43) e “Uns
dos através de uma compaixão de único consciente, os pobres diabos homens, inteligentes, outros estúpidos,
são todos igualmente
o pobre diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui? estúpidos.” (ll. 23-24) ilustram
Todos os movimentos e intenções da vida, desde a simples vida dos pulmões o tédio e a melancolia que esse
quotidiano desencadeia nele.
45 até à construção de cidades e a fronteiração de impérios, considero-os como 5. Metáfora que tem como
uma sonolência, coisas como sonhos ou repousos, passadas involuntariamente núcleo o verbo dormir, para
definir, neste contexto, uma
no intervalo entre uma realidade e outra realidade, entre um dia e outro dia do situação de “sonolência” (“toda
Absoluto. E, como alguém abstratamente materno, debruço-me de noite sobre a vida é um sono”, l. 35), aqui
conotada com inconsciência
os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus. Enter- (“vive inconsciente”, l.
50 neço-me com uma largueza de coisa infinita. 34); assim, identificam-se
implicitamente os homens
(porque o “homem de costas”
Fernando Pessoa, Livro do desassossego – composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros
é um símbolo), por não serem
na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 91-93. fortes nem atuantes, com uma
situação de inconsciência.
Esta ideia é reforçada pela
1. Explicite a relação entre a deambulação do narrador e a reflexão por ele desenvolvida. expressão “eternas crianças
do Destino” (l. 37), já que a
infância é vista como o tempo
2. Evidencie a relação que se estabelece entre a oposição consciência/inconsciência e as da inconsciência.
figuras referidas no texto. 6. O “EU”, observador
acidental de um “ELE” (o
homem que caminha de costas
3. Identifique, no texto, marcas da tendência de Bernardo Soares para a reflexão. à sua frente), institui-se como
um “NÓS” (“eu + ele”). Este
4. Demonstre que a observação do quotidiano citadino desperta no narrador sensações “NÓS” é apenas aparente,
pois não há nada que os una.
que o conduzem ao tédio e à melancolia. O homem adquire, de seguida,
o estatuto de “personagem-
5. Identifique o recurso expressivo presente em “Dormimos a vida, eternas crianças do -tipo” – ele é visto como a
síntese de TODOS OS HOMENS
Destino.” (ll. 36-37), explicitando o seu valor. que o “EU” observa todos
os dias –, na medida em que
representa simbolicamente
6. Interprete o esquema a seguir proposto, que poderá sintetizar o movimento da refle- a massa humana sem vontade
xão que se opera no texto, do particular para o geral. nem determinação, a “comum
vulgaridade humana” (l. 9),
com a qual o “eu” não se
EU ELE NÓS TODOS/HOMENS/HUMANIDADE identifica, o que o leva a tecer
considerações de caráter
subjetivo.
7. Identifique três características do estilo de Bernardo Soares que conferem musicali- 7. A repetição do vocábulo
“inconsciente” (l. 34) e a
dade à sua prosa poética. aliteração do /v/ imprimem
um ritmo muito marcado à
G 8. Indique o valor temporal do segmento: frase; no último parágrafo,
a construção paralelística
“Descendo hoje a rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do ho¬mem que “uns”/“outros” acentua um
ritmo binário que confere ao
a descia adiante de mim.” (ll. 3-4) discurso uma musicalidade
que, sendo mais característico
9. Identifique o mecanismo de coesão que ocorre nas expressões “nas costas do homem” da poesia, é distintiva da prosa
de Bernardo Soares.
(ll. 3-4), “das costas do meu adiantado” (l. 14), tendo em conta os vocábulos sublinhados. 8. Valor de simultaneidade.
9. Coesão lexical por
10. Refira o valor aspetual expresso pelas seguintes frases: substituição (sinonímia).
10.a. Valor aspetual perfetivo.
a. “Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos.” (l. 27)
b. Valor aspetual genérico.
b. “Tudo o que dorme é crença de novo.” (l. 29)

101
Fernando Pessoa
BERNARDO SOARES

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Linha d`Água, s/d, Mário
Cesariny, coleção MAC.
[FRAGMENTO 3]

Releio passivamente, recebendo o que sinto como


uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples
de Caeiro, na referência natural ao que resulta do peque-
no tamanho da sua aldeia. Dali, diz ele, porque é peque-
5 na, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por
isso a aldeia é maior que a cidade...

“Porque eu sou do tamanho do que vejo


E não do tamanho da minha altura.”1

Frases como estas, que parecem crescer sem vontade


10 que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica

que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler,


PROFESSOR
chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros,
Educação Literária e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.
14.2; 14.3; 14.4; 14.5; “Sou do tamanho do que vejo!” Cada vez que penso esta frase com toda a
14.7; 14.9; 16.2
15 atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir constela-
1.1 Bernardo Soares põe em damente o universo. “Sou do tamanho do que vejo!” Que grande posse mental
oposição a metafísica, aquilo vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se refletem
que nele é qualquer coisa de
espontâneo, e aquilo que é nele, e, assim, em certo modo, ali estão.
natural e que caracteriza a E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objetiva dos céus
obra de Caeiro, acabando por
referir que viver/conhecer 20 todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. “Sou do
através das sensações pode
ser uma forma de purificação
tamanho do que vejo!” E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de
(“limpam-me de toda vago o azul meio-negro do horizonte.
a metafísica”, l. 10).
Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada,
1.2 A reiteração do verso
“Sou do tamanho do que de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade vasta
vejo” (l. 7) põe em relevo o 25 aos grandes espaços da matéria vazia.
modo como Caeiro apreende
o real – através da visão − e Mas recolho-me e abrando. “Sou do tamanho do que vejo!” E a frase fica-me
a admiração que Soares
nutre por ele (“como uma
sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim,
inspiração”, ll. 1-2). A citação por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que
deste verso desencadeia
em Soares uma meditação começa largo com o anoitecer.
de caráter existencial que Fernando Pessoa, Livro do desassossego – composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros
realça a reflexão sobre o ser, na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 71-72.
exercendo sobre ele uma
sensação de liberdade (“sou
livre”, l. 13), de segurança 1
Versos do poema VII de “O guardador de rebanhos”.
(“com uma segurança”, l. 20),
de paz e de tranquilidade (“cai
a paz indecifrável”, l. 28).
2. A repetição ao nível da 1. Relembre o estudo que fez da obra de Alberto Caeiro.
estruturação sintática
da frase (“[…] de erguer os
1.1 Explique o sentido do segmento “Frases como estas, que parecem crescer sem von-
braços e gritar […] de dizer tade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente
palavras […] de afirmar acrescento à vida.” (ll. 9-11)
uma nova realidade […]”)
e a sua extensão conferem ao 1.2 Justifique a referência repetida a um verso daquele heterónimo e refira os efeitos que
texto um ritmo forte, muito
marcado, que se coaduna com esse verso tem em Bernardo Soares.
o estado de espírito de euforia
do narrador “Tenho vontade 2. Identifique os recursos linguísticos que conferem ao parágrafo compreendido entre
de […]”.
as linhas 23 e 25 um tom eufórico, relacionando-o com as reações do narrador.

102
Livro do desassossego

LEITURA

PROFESSOR
Leia as seguintes páginas do diário de Fernando Pessoa.
Leitura
7.1; 7.2; 7.3; 7.4; 7.5;

Notas autobiográficas e de autognose 7.7; 8.1

1. Fernando Pessoa revela


ser um homem conversador,
19.3. (Quarta) dinâmico, amante da poesia e

P
da escrita, vivendo um período
ara a Baixa cedo, com o Mário, para o cartório do E. Silva, para testemunhas de uma pro- de dificuldades financeiras.
2. A existência de várias
curação;. – Na redação do “Teatro” fui apresentado pelo Boavida Portugal ao M[anuel] entradas, correspondentes
António de Almeida; recitei versos do Pessanha, e falei bastante; ele um fraco conver- a vários dias, demonstram
a ordenação cronológica; os
sador e homem de polimento [?]. – Na Brasileira falando com o Torres d’ Abreu e Ilídio Perfeito. temas abrangem a poesia
– (De manhã recebi um postal do Sá-Carneiro.) – À noite, em casa. Escrevi um postal ao Cruz e a escrita, as amizades,
os contactos pessoais e
Magalhães. – Poucas ideias… profissionais, a situação
económica; a ligação ao
quotidiano decorre do teor das
24.3. (Segunda) informações dadas dia a dia e

T
das deslocações efetuadas.
odo o dia na Baixa, desde as 2 horas até às 11 ½ da noite. No escritório do Lavado de dia e O recurso ao pretérito perfeito
do indicativo é uma das
indo ali às 10 à noite já não estava. Durante o dia, das 5 às 8 aproximadamente, no escri- marcas de narratividade; o
tório do Mayer escrevendo umas 7 ou 8 estrofes do “Epithalamium” (em inglês). Depois discurso pessoal é visível no
uso da 1.a pessoa nas formas
na Brasileira com J[oão] C[orreia] de O[liveira]. Finalmente, de regresso à Brasileira, fui outra verbais e nos pronomes
pessoais (“eu”, “me”).
vez ter com o J[oão] C[orreia] de O[liveira], a casa dele. Conversamos até às 11 ½. Fui para lhe
pedir 500 réis emprestados, mas não me senti ousado, visto ele tomar a visita, logo de princípio, Oralidade
como de amabilidade. 2.1

Quando vim de jantar encontrei o Rebelo, para quem estava a querer escrever a tempo uma Escrita
11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4
dissertação [?]. É precisa depois de amanhã. De manhã recebi um bilhete postal do Álvaro Pin- Educação Literária
to. Sinto-me muito anémico e esvaído, ainda que fortemente excitado [?]. 15.7
Fernando Pessoa, Páginas íntimas e de autointerpretação (textos estabelecidos e prefaciados por
Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho), Lisboa, Edições Ática, s/d, pp. 51, 53-54 (com supressões).
Vídeo
1. Elabore o retrato de Pessoa, tendo em conta as informações deste diário. Filme do desassossego,
de João Botelho, 2010
(6 minutos)
2. Comprove a existência de marcas específicas do género textual diário.
Nota: Disponível, no Guia
BLOCO INFORMATIVO – p. 378 do Professor, cenários
de resposta para a atividade
de Escrita.
E S C R I TA

Visione um excerto do Filme do Desassossego, de João Botelho (2010),


atentando nos seguintes aspetos:
š reflexões apresentadas/caráter fragmentário da obra;
š personagem(ns)/cenário(s);
š sentimentos veiculados;
š relação texto/efeitos sonoros;
š articulação com fragmentos analisados. Filme do desassossego, de João Botelho,
2010.
1. Redija um texto de apreciação crítica, de 150 a 200 palavras, do excerto visionado, BLOCO INFORMATIVO – p. 378
considerando os tópicos acima elencados. PREPARAR O EXAME – p. 57

103
Fernando Pessoa
BERNARDO SOARES

INFORMAR

Perceção e transfiguração poética do real


“Dizer! Saber dizer!”, exclama [Pessoa]; e a impor-
tância de saber existir pela “voz escrita” acrescenta o
valor de saber existir pela “imagem intelectual”. O Livro
do desassossego está repleto dessas imagens. […] É que
5 o Livro é um dos retratos mais espantosos da cidade de

Lisboa, uma acumulação sucessiva de palavras e ima-


gens que se entrelaçam e complementam na represen-
tação visual do leitor. “Este livro”, diz o autor, “é um só
estado de alma, analisado de todos os lados, percorrido
10 em todas as direções”; e esse estado de alma é, para

sermos mais precisos, o de um empregado de escri-


tório, cuja vida e cujo espírito tiveram por “endereço
chave” o nome da cidade “LISBOA”, assim, “em letras
magnas”.
Corte com faca de 15 No Livro do desassossego quase todas as coisas apontam para novas realida-
cozinha (detalhe), c. 1915,
Hannah Höch, Galeria des sugestivas. “Cada coisa”, explica o autor, “sugere-me não a realidade de que
Nacional de Berlim. é sombra, mas a realidade para que é o caminho”. Noutro texto, em que explica
que se esforça por alterar o que vê e por fazer com que a paisagem – como a
música – evoque imagens visuais, diz:
20 o meu triunfo máximo no género foi quando, a certa hora ambígua de aspeto e
1
Templo consagrado a uma luz, olhando para o Cais de Sodré nitidamente o vi um pagode chinês1 com estranhos
divindade oriental.
guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos – curioso pagode chinês pin-
tado no espaço, sobre o espaço-cetim, não sei como, sobre o espaço que perdura na
PROFESSOR
abominável terceira dimensão.
Leitura
8.1
25 Esta imagem e outras imagens afins, construídas por uma acumulação de
Educação Literária elementos diversos, são muito mais do que simples paisagens de sonho que se
16.1 “desenrolam” passivas na “alma desatenta” do autor. No Livro do desassosse-
Gramática go presenciamos uma profusão inédita de imagens que, por hábito, caracteriza
17.1 mais a poesia do que a prosa.
1. O recurso à imagem e a Jerónimo Pizarro (introdução), in Fernando Pessoa, Livro do desassossego, Lisboa, Tinta da China, 2014,
um discurso conotativo e pp. 21-22 (com supressões).
simbólico fazem do Livro do
desassossego uma obra em
prosa poética: a paisagem (“as 1. Identifique os traços que levam o autor a afirmar que o Livro do desassossego possui
coisas” que povoam o espaço
citadino) evoca imagens um estilo mais característico da poesia do que da prosa.
visuais que permitem ao autor
criar uma outra realidade, um 2. Esclareça de que forma o exemplo apresentado – o Cais do Sodré – ilustra a transfi-
mundo imaginário.
2. O Cais de Sodré constitui
guração poética do real.
uma parcela do real concreto
que o sujeito observa e G 3. Identifique a função sintática desempenhada pelo pronome pessoal em “sugere-me” (l. 16)
transfigura através da
representação de imagens
visuais, nomeadamente 4. Selecione a opção correta.
quando ali vê um pagode
chinês. O sujeito da forma verbal “caracteriza” (l. 28) é
3. Complemento indireto. [A] subentendido. [C] “Livro do desassossego”.
4. [D]
[B] “uma profusão inédita de imagens”. [D] “que”.

104
Livro do desassossego
Linguagem e estilo | Perceção e transfiguração poética do real

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

[FRAGMENTO 4]

Tudo é absurdo. Este empenha a vida em ganhar dinheiro que guarda, e nem
tem filhos a quem o deixe nem esperança que um céu lhe reserve uma transcen-
dência desse dinheiro. Aquele empenha o esforço em ganhar fama, para depois de
1
morto, e não crê naquela sobrevivência que lhe dê o conhecimento da fama. Esse Espaço deixado em branco
5 outro gasta-se na procura de coisas de que realmente não gosta. Mais adiante, há pelo autor.
PROFESSOR
um que 1
Um lê para saber, inutilmente. Outro goza para viver, inutilmente. Educação Literária
Vou num carro elétrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costu- 14.1; 14.2; 14.3; 14.4;
14.5; 14.9
me, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os
10 pormenores são coisas, vozes, frases. Neste vestido da rapariga que vai em minha 1. O narrador considera que
frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que tudo no mundo é absurdo:
o dinheiro, a procura da
o fizeram − pois que o vejo vestido e não estofo − e o bordado leve que orla a parte fama e de coisas de que
que contorna o pescoço separa-se-me em retrós de seda, com que se o bordou, não se gosta, o vestuário da
rapariga, o forro dos bancos
e o trabalho que houve de o bordar. E imediatamente, como num livro primário do elétrico, as atividades por
15 de economia política, desdobram-se diante de mim as fábricas e os trabalhos − a detrás da fabricação dessas
peças, no fundo, toda a vida
fábrica onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez o retrós, de um tom mais escu- da sociedade, o que ilustra as
ro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto ao pescoço; e vejo as incoerências do ser humano
que levam Soares a descrer
secções das fábricas, as máquinas, os operários, as costureiras, meus olhos virados nesse mundo, que considera
sem sentido.
para dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes procurar estar sossegados,
2. Através da observação
20 sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto: vejo, para além, as vidas do vestido da rapariga, o
domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses escritórios... autor transporta-se para um
outro mundo, decompondo
Toda a vida social jaz a meus olhos só porque tenho diante de mim, abaixo de um o vestido, imaginando
pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar irregular regular as fábricas, as máquinas,
os operários, as costureiras,
verde-escuro sobre um verde-claro de vestido. as vidas domésticas e sociais
de todos os implicados na
25 Para além disto pressinto os amores, as secrecias, a alma, de todos quantos tra- criação do vestido. Este
balharam para que esta mulher que está diante de mim no elétrico use, em torno processo de transformação do
real é transmitido num registo
do seu pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós de seda verde-escura poético em que sobressaem as
fazendo inutilidades pela orla de uma fazenda verde menos escura. enumerações (“as máquinas,
os operários, as costureiras”,
Entonteço. Os bancos de elétrico, de um entretecido de palha forte e pequena, l. 18).
30 levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas 3. Reparar é assumido
pelo narrador como um
de operários, vidas, realidades, tudo. ato habitual, quotidiano
Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira. (“conforme é meu costume”,
ll. 8-9). Este olhar atento
Fernando Pessoa, Livro do desassossego – composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros e demorado dá lugar à
na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 253-254. imaginação. “Ver” é assim
sinónimo de imaginação e
leva-o a outros lugares
1. O texto inicia com uma frase que anuncia uma reflexão. Refira os aspetos que o narrador (cf. ll. 29-31), como sucede
com Cesário Verde em
considera absurdos. “O sentimento dum ocidental”.
4. Para Bernardo Soares,
2. Demonstre de que forma se opera a transfiguração poética do real no terceiro parágrafo, “viver” significa “sonhar” −
evidenciando o recurso expressivo usado neste processo. “Vivi a vida inteira.” (l. 32)
transmite o cansaço do
sujeito, por ter vivido
3. Interprete a importância do reparar (“estou reparando”, l. 8) e do ver (“vejo”, ll. 17, 19 e 20) para o narrador. tão intensamente pela
imaginação.
4. Explique o sentido do último período do texto. 5. O quotidiano urbano,
a deambulação, o sonho e a
transfiguração poética do real.
5. Refira as temáticas essenciais do Livro do desassossego abordadas neste fragmento.

105
CONSOLIDAR Os heterónimos e Bernardo Soares

ALBERTO CAEIRO RICARDO REIS

Fingimento artístico Fingimento artístico


Concebido como poeta bucólico, pensado como Concebido como poeta clássico, adota o epicurismo
camponês praticamente desprovido de educação literária, e o estoicismo como filosofias de vida e acredita no Destino
recusa a abstração e a especulação metafísica, porque como força superior aos próprios deuses, e ao qual também
vive no seio da Natureza e capta a realidade pelos ele, enquanto ser humano, se submete.
sentidos, descobrindo sempre novidade nas coisas
observadas, atribuindo-lhes sempre um sentido denotativo. Reflexão existencial
A consciência da brevidade da vida fá-lo seguir Epicuro na
Reflexão existencial procura da ataraxia1, procurando, no presente, a felicidade
O primado das sensações: o panteísmo sensual relativa.
As sensações são para Caeiro a única forma de alcançar A encenação da mortalidade resulta do medo e da certeza
conhecimento, pois ver além do visível é não ver, é especular. da inexorabilidade do tempo.
O panteísmo fá-lo ver Deus em todas as coisas e defender A sua conceção classicista fá-lo privilegiar temas do lirismo
que o próprio Universo é Deus. clássico, como o carpe diem, a aurea mediocritas e o fatum.
O conhecimento e todas as restantes faculdades decorrem
das sensações, daí que afirme “ver é conhecer”. Linguagem, estilo e estrutura
Aproxima-se de Caeiro pelo paganismo, mas escreve odes
Linguagem, estilo e estrutura à maneira de Horácio. Tem um discurso intelectualizado,
Estilisticamente revela uma certa infantilidade e um vocabulário culto, erudito e arcaico, usando uma sintaxe
simplicidade, privilegiando a coordenação, expressões alatinada, recorrendo também à gradação, à metáfora,
familiares e comparações rudimentares. à anáfora e à apóstrofe.
Formalmente, a sua poesia apresenta variedade estrófica
1
e métrica. Ausência de inquietude; tranquilidade de ânimo.

ÁLVARO DE CAMPOS BERNARDO SOARES

Semi-heterónimo por ser apenas uma mutilação da


Fingimento artístico
personalidade de Pessoa, escreve em prosa as reflexões mais
Concebido como poeta da modernidade, canta
íntimas do criador no Livro do desassossego. Trata-se de um
entusiasticamente a civilização industrial, numa euforia
“não-livro” ou um “livro às avessas”, uma espécie de diário,
que leva o sensacionismo ao paroxismo.
cheio de visões subjetivas do quotidiano de um guarda-
Imaginário épico -livros solitário, discreto, que anda num vaivém constante
No discurso esfuziante reflete-se o arrebatamento do entre o real e o sonho. Como tal, o livro corresponde ao lado
canto, que, invocando o imaginário épico, faz do Moderno confessional e autobiográfico de Pessoa.
seu objeto de exaltação (matéria épica). O Livro do desassossego não tem uma ordem lógica, com
A adoção do futurismo não o inibiu de aceitar o passado princípio, meio e fim, mas nele encontra-se:
e o futuro, fazendo-os confluir no presente. š o imaginário urbano, nas referências paisagísticas
A deceção com o mundo civilizado não se fez esperar, e humanas da cidade de Lisboa;
o que conduziu a uma fase de abatimento. š o quotidiano, que, tal como em Cesário Verde, é motivo
de devaneio;
Reflexão existencial
š a deambulação e o sonho: as duas principais
Tendo plena consciência do tempo, sabe que não poderá
ocupações de um observador acidental, que se entrega
recuperar o passado, mas evoca-o insistentemente, muito à meditação de caráter existencial;
em particular a infância, que é o objeto de uma nostalgia
š a perceção e transfiguração poética do real pelo
decorrente da sua irrecuperabilidade.
recurso a uma significação metafórica, subjetiva,
Linguagem, estilo e estrutura e à correlação entre o real e o imaginário.
A vitalidade, o amor ao belo feroz, o êxtase sensacionista
Linguagem, estilo e estrutura
são expressos em longos poemas, com grande variedade
Os textos apresentam um caráter lírico-narrativo, um
estrófica, versos longos, desordenados, com recurso
discurso dominantemente reflexivo, com frases longas e
a onomatopeias, enumerações, interjeições, apóstrofes
vocabulário de teor simbólico e conotativo, de que resulta
e metáforas.
uma espécie de prosa marcadamente poética.

106
VERIFICAR
PROFESSOR

1. Associe, no seu caderno, as citações presentes em cada uma das alíneas ao seu res-
petivo “autor”: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos ou Bernardo Soares.
Apresentação
a. “Sou fácil de definir. / Vi como um danado.” Síntese da Unidade 2

b. “Ah o som de abanar o ferro da engomadeira / À janela ao lado da minha infância


Educação Literária
debruçada!” 14.3; 14.6; 14.7; 15.1;
15.2
c. “Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior.”
1.
d. “Segue o teu destino, / Rega as tuas plantas, / Ama as tuas rosas.”
a. Alberto Caeiro
e. “Além disso, fui o único poeta da Natureza.” b. Álvaro de Campos
c. Bernardo Soares
f. “Da vida iremos / Tranquilos, tendo / Nem remorso / De ter vivido.” d. Ricardo Reis
e. Alberto Caeiro
g. “O vento sopra sem saber. / A planta vive sem saber.”
f. Ricardo Reis
h. Eu, inútil, gasto, improfícuo, pretensioso e amoral / Boia das minhas sensações des- g. Alberto Caeiro
h. Álvaro de Campos
garradas pelo temporal / […] / Eu feito cantor da Vida e da Força – acreditas?”
i. Bernardo Soares
i. “Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me j. Alberto Caeiro
têm feito chorar.” 2.
a. F − O heterónimo que
j. “Minha alma é como um pastor, / Conhece o vento e o sol / E anda pela mão das apresenta uma evolução
é Álvaro de Campos.
estações / A seguir e a olhar.” b. V
c. F − O poeta modernista e
2. Classifique, no seu caderno, as seguintes afirmações como verdadeiras ou falsas. futurista é Álvaro de Campos.
d. F − Ricardo Reis aproxima-
Corrija as afirmações que classificou como falsas. -se de Fernando Pessoa dado
recorrer regularmente ao
a. O heterónimo que apresenta uma evolução é Alberto Caeiro. pensamento, de modo a agir
de forma racional para evitar
b. O verso livre é utilizado por Álvaro de Campos e por Alberto Caeiro. as emoções fortes.
e. V
c. O poeta modernista e futurista é Bernardo Soares.
f. F − A poesia de Reis
apresenta regularidade
d. Ricardo Reis é o heterónimo que mais se afasta de Fernando Pessoa. estrófica e métrica, servindo-
-se, preferencialmente da ode.
e. O Livro do desassossego exprime o desencanto individual. g. V
f. A poesia de Ricardo Reis exemplifica a irregularidade estrófica e métrica. h. V
i. F − Caeiro vive
g. Caeiro recusa realidades metafísicas. fundamentalmente o
presente, recusando o
h. O Livro do desassossego é híbrido quanto ao género. passado e o futuro.
j. V
i. Caeiro vive no presente, mas evoca o passado e projeta o futuro. k. F − O sensacionismo de
Campos afasta-se do de
j. Reis segue os modelos greco-romanos, como determina a sua educação clássica. Caeiro, uma vez que o primeiro
(Campos) intelectualiza
k. O sensacionismo de Álvaro de Campos aproxima-se do de Alberto Caeiro. as sensações, querendo
experienciá-las na sua
plenitude.
l. Bernardo Soares aborda, entre outros temas, o imaginário urbano, o sonho, a vida.
l. V
m. Ricardo Reis tem consciência da brevidade da vida e encena a morte. m. V
n. V
n. Álvaro de Campos aproxima-se do ortónimo na sua última fase poética. o. F − Caeiro é o mestre, mas
não faz qualquer juízo de valor
o. Caeiro condena o Modernismo e o Futurismo de Campos. (pelo menos nos seus poemas)
sobre o Modernismo e/ou o
Futurismo de Campos.

107
Fernando Pessoa
AVA L I A R Os heterónimos e Bernardo Soares
GRUPO I

Apresente as suas respostas, de forma bem estruturada, aos itens A e B.

A.1
Leia o poema.

Acaso
No acaso da rua o acaso da rapariga loura.
PROFESSOR
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.


Ficha
Ficha de Avaliação –
Unidade 2
Perco-me subitamente da visão imediata,
Apresentação
5 Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
Soluções Ficha E a outra rapariga passa.
de Avaliação
Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
GRUPO I
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
Educação Literária E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.
14.2; 14.3; 14.4; 14.7;
14.8; 14.9; 16.2
10 Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
1. Na fase futurista, Campos Ao menos escrevem-se versos.
evidencia uma total euforia, Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar,
exaltando a modernidade, num
excesso de sensações. Porém, Se calhar, ou até sem calhar,
neste texto, revela um total
desnorte, parecendo que tudo
Maravilha das celebridades!
lhe foge, que nada faz sentido
e, por isso, a ansiedade, 15 Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
a confusão existencial e
emocional apossam-se dele – Mas isto era a respeito de uma rapariga,
e ele tenta fugir ao desespero De uma rapariga loura,
e à solidão através das
memórias. Estes são aspetos Mas qual delas?
que remetem para a 3.a fase, Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
a do pessimismo e da abulia.
2. A oposição passado/
20 Numa outra espécie de rua;
presente, visível desde o E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
início, parte da visão ocasional
de uma rapariga loura, que Numa outra espécie de rua;
leva a que o sujeito poético Porque todas as recordações são a mesma recordação,
se lembre de outra que vira
quando “era outro”. Este Tudo que foi é a mesma morte,
é o mote que o faz recuar 25 Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?
no tempo, à cidade e à
rua onde passara a outra
rapariga. O próprio sujeito Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
poético confessa “Que
grande vantagem o recordar
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
intransigentemente!” (v. 7). Pode ser... A rapariga loura?
E afirma “Agora tenho pena de
nunca mais ter visto a outra É a mesma afinal...
rapariga” (v. 8), expressão 30 Tudo é o mesmo afinal...
onde o deítico temporal
“Agora” consubstancia o
presente e contrasta com Só eu, de qualquer modo não sou o mesmo, e isso é o mesmo também.
“Havia uma que vi há muito 27/3/1929
tempo”(v. 19), que remete para
o passado. In “O engenheiro metafísico”, Fernando Pessoa, Poesia de Álvaro de Campos
(ed. Teresa Rita Lopes), Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, pp. 365-366.

108
1. Explique por que razão se pode afirmar que tematicamente este texto se afasta da
fase futurista de Álvaro de Campos.

2. Explicite a oposição passado/presente visível no poema, comprovando a sua res-


posta com elementos textuais pertinentes.

3. Refira o valor expressivo da pontuação utilizada.

B.1
Leia o texto.

XI

Aquela senhora tem um piano


PROFESSOR
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem... 3. As interrogações sugerem
a ânsia, o desespero e a
confusão em que se encontra o
Para que é preciso ter um piano? sujeito poético; as reticências,
por seu turno, exprimem
5
O melhor é ter ouvidos a hesitação, a indefinição
E amar a Natureza. mas também a angústia. As
exclamações são reveladoras
In “O guardador de rebanhos”, Poesia (ed. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith), do estado emotivo e da
Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 44. confusão existencial. Porém,
o ponto e vírgula e o ponto
final são indiciadores das
certezas que o “eu” possui.
4. Demonstre a presença do panteísmo sensual e do primitivismo de Caeiro.
4. O primitivismo sobressai
na pobreza vocabular, na
5. Identifique duas características que afastam Campos de Caeiro, considerando os simplicidade sintática e
dois poemas apresentados. de conteúdo, dado o "eu"
expressar uma mensagem
rudimentar, onde se pode
percecionar a defesa dos
A.2 elementos naturais e a
importância que, para Caeiro,
estes adquirem relativamente
Leia o seguinte fragmento do Livro do desassossego. ao piano. De facto, prevalece
o prazer que lhe dá “o correr
dos rios” (v. 2) ou o murmúrio
Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da das árvores. As sensações
são também valorizadas,
minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida particularmente a audição,
interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a a ponto de o sujeito poético
afirmar “O melhor é ter
janela para a rua do meu sonho, esqueço a vista no seu movimento. ouvidos” (v. 5).
5 Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca 5. Campos e Caeiro
encontram-se em espaços
prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca físicos diferentes: Campos
na cidade e Caeiro num
pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para meio natural. Campos,
mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem em contacto com figuras
humanas, está num estado
podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que emotivo angustiante,
recorrendo à memória e,
10 eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho consequentemente, ao
longínquo. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi pensamento. Por seu lado,
Caeiro não usa a razão nem
sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumam quase na fala do passado; faz a apologia
dos sentidos imediatos ao
distância das minhas paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em referir-se a uma realidade
relação às outras partes de paisagem − uma doçura que fazia com que eu as rural e natural, com a qual
está em perfeita comunhão.
15 pudesse amar.

109
Fernando Pessoa
AVA L I A R
A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na
minha morte me abandonará. Não alinho hoje nas minhas gavetas carros de
linha e peões de xadrez − com um bispo ou um cavalo acaso sobressaindo −
mas tenho pena de o não fazer... e alinho na minha imaginação, confortavel-
20 mente, como quem no inverno se aquece a uma lareira, figuras que habitam,
PROFESSOR
e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos
1. O imaginário é, para o dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas.
narrador, o seu mundo real, Alguns passam dificuldades, outros têm uma vida boémia, pitoresca e
a partir do qual ele cria outra
realidade: “… e alinho na minha humilde. Há outros que são caixeiros-viajantes (poder sonhar-me caixeiro-
imaginação […] figuras que
habitam, e são constantes e 25 -viajante foi sempre uma das minhas grandes ambições − irrealizada infeliz-
vivas, na minha vida interior” mente!). Outros moram em aldeias e vilas lá para as fronteiras de um Portu-
(ll. 19-21), isto é, o sonho é a
sua realidade interior: “Eu gal dentro de mim; vêm à cidade, onde por acaso os encontro e reconheço,
nunca fiz senão sonhar. […]
Nunca tive outra preocupação abrindo-lhes os braços, emotivamente... E quando sonho isto, passeando no
verdadeira senão a minha vida meu quarto, falando alto, gesticulando... quando sonho isto, e me visiono en-
interior.” (ll. 1-3).
2. Bernardo Soares encontra 30 contrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo, brilham-me os olhos,
no sonho a sua própria abro os braços e tenho uma felicidade enorme, real, incomparável.
realização enquanto ser. Não
é no mundo real, exterior, que Fernando Pessoa, Livro do desassossego – composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros
encontra a felicidade por que na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 110-111.
anseia, mas no sonho, no plano
do imaginário. A felicidade,
a alegria, a realização, a 1. Refira a importância do imaginário para a existência do narrador.
euforia que se depreendem
do segmento citado derivam
do encontro do sujeito com os 2. Explique o sentido do excerto “E quando sonho isto […] abro os braços e tenho uma
seres que criou e que habitam felicidade enorme, real”. (ll. 28-31)
o seu mundo interior, isto é,
concretizam-se quando passa
a encará-los como reais.
3. Estabeleça uma relação entre a afirmação “Tenho um mundo de amigos dentro de
3. A afirmação e os versos mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas” (ll. 21-22) e os seguintes ver-
referidos permitem encontrar sos de poemas de Pessoa ortónimo:
semelhanças entre Pessoa
ortónimo e o semi-heterónimo “Não sei quantas almas tenho” e “Sinto-me múltiplo.”
Bernardo Soares, na medida
em que ambos criam uma
realidade interior própria, B.2
povoada de seres imaginários
através dos quais se corporiza Leia o poema.
a sua identidade individual.
4. O poema apresenta um
caráter narrativo, pois trata De tarde
de um acontecimento (a
realização de um pic-nic), Naquele pic-nic de burguesas,
em que se destaca uma
figura feminina (personagem Houve uma coisa simplesmente bela,
principal), e a evolução E que, sem ter história nem grandezas,
da ação é dada através do
recurso ao pretérito perfeito Em todo o caso dava uma aguarela.
do indicativo (“Houve”, v. 2;
“Foste”, v. 6; “acampámos”,
v. 10), tempo característico 5 Foi quando tu, descendo do burrico,
da narrativa.
Foste colher, sem imposturas tolas,
5. O verso “Um ramalhete
rubro de papoulas” é o centro A um granzoal azul de grão-de-bico
da atenção do poeta, o motivo Um ramalhete rubro de papoulas.
que daria a referida “aguarela”,
daí ele estar repetido no
poema. A alteração do
determinante, que de
Pouco depois, em cima d’uns penhascos,
indefinido passa a definido, 10 Nós acampámos, inda o sol se via;
acentua o caráter único desse
elemento. E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

110
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
15 Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Cesário Verde, Cânticos do Realismo. O livro de Cesário Verde (coord. Carlos Reis, introdução
e nota biobibliográfica de helena Carvalhão Buescu), Lisboa, INCM, 2015.

4. Demonstre o caráter narrativo do poema.

5. Refira a importância do verso 8 no poema, esclarecendo a diferença de sentido relativa-


mente ao verso 16.

GRUPO II

Nas respostas aos itens de escolha múltipla, registe, no seu caderno, a opção correta.

Lisboa, 1974.
Ditaduras

Entramos em Portugal por Elvas, Zélia1 empunha o volante de um Peugeot 504 1


Zélia Gattai: esposa de Jorge
repleto de bagagens − naquele tempo então viajávamos de navio, a travessia do Amado durante 56 anos.
Atlântico durava uma semana de lazer, eu levava para o Rio Vermelho caixas e cai- Foi escritora, fotógrafa,
xas de livros e de arte popular. Hoje a viagem dura onze horas de terror num avião, memorialista e empenhada
militante política brasileira.
5 duas malas de roupas, chama-se isso de progresso.
2
Chico Lyon de Castro: editor
Recomendo:
português de Jorge Amado.
− Vamos bem devagar, meu amor, esta pode ser nossa última estada em Portu-
gal, vamos ver tudo, coisa a coisa, para guardar nos olhos.
Na fronteira a polícia fardada nos interrogara, pretendera abrir todos os volu-
10 mes, nem em tempos de Salazar tal absurdo acontecera. Perco a paciência, puto da
vida faço o maior esporro, quando o alferes me pergunta o que contém o caixão
que ele pensa termos escondido no interior do carro, respondo: contém munição,
se quer saber, armas, bombas. Por sorte um capitão atende aos meus berros, leitor
de Gabriela pede autógrafo, libera carro, livros, passageiros.
15 Amo por demais essa parte de Portugal, é verão, as casas, as flores, o povo −
numa dessas aldeias, na de Grândola, nasceu a canção da vila morena, sinal para o
levante dos cravos. Vamos devagar, Zezinha, ela trauteia a canção de José Afonso,
por vales e montes vamos.
[…] Chico Lyon de Castro2 conta-me que os comunas quiseram apropriar-se da
20 Europa-América, ele resistiu, mas não sabe o que poderá vir a acontecer.
No Hotel Tivoli − dois ou três andares estão ocupados por retornados angolanos −,
Fernando Namora me revela seus temores:
− Será a ditadura, a pior de todas, seu Jorge, aquela contra a qual não podes lutar,
fazer a menor crítica. Se a fizeres serás escorraçado, o labéu de vendido, de traidor
25 te marcará a face.[…]
Vade retro, ora pois, alvíssaras, não aconteceu. De Ramalho Eanes a Mário Soa-
res navega a democracia, consolidada. Deus é brasileiro, nunca duvidei, mas des-
confio que imigrou, veio viver em Portugal.
Jorge Amado, Navegação de Cabotagem, apontamentos para um livro de memórias
que jamais escreverei, Rio de Janeiro, Record, 2006, disponível em Le Livros
(https://lelivros.pro/book/download-navegacao-de-cabotagem-jorge-amado-em-epub-mobi-e-pdf/).

111
Fernando Pessoa
AVA L I A R
1. Para o autor, o progresso apresenta
[A] vantagens, principalmente quando se viaja de avião.
[B] desvantagens, por as viagens serem mais perigosas.
[C] contornos pouco favoráveis à humanidade.
[D] mais aspetos positivos do que negativos.

2. A razão de comparar o tempo presente com o do salazarismo resulta


[A] da apertada vigilância montada pela polícia.
[B] da consciência de que depois da revolução tudo ficou mais fácil.
[C] do desejo de condenar a política ditatorial de Salazar.
[D] da necessidade de elogiar as novas medidas de segurança.

3. Dois indicadores de que o texto tem caráter memorialista são


[A] as referências à ditadura e à revolução de Abril.
[B] as invocações da canção de Zeca Afonso e da vila de Grândola.
[C] as marcas de narratividade e o emprego da primeira pessoa.
[D] a presença do diálogo e a narração de um acontecimento.

4. O constituinte “em Portugal” (l. 1) desempenha a função sintática de


[A] modificador.
[B] complemento oblíquo.
[C] complemento direto.

PROFESSOR [D] complemento indireto.

GRUPO II 5. O complexo verbal “vamos ver” (l. 8) apresenta valor aspetual

Leitura [A] iterativo.


7.4; 7.7
[B] perfetivo.
Gramática
17.1; 18.2; 19.3 [C] genérico.

1. [B] [D] imperfetivo.


2. [A]
3. [C] 6. Nas linhas 11 e 19, a palavra “que” é
4. [B]
[A] uma conjunção e um pronome, respetivamente.
5. [D]
6. [C] [B] uma conjunção em ambos os casos.
7. [D] [C] um pronome e uma conjunção, respetivamente.
8. Coesão lexical por
reiteração. [D] um pronome em ambos os casos.
9. O Alentejo, onde se situa
Grândola. 7. A forma verbal utilizada em “De Ramalho Eanes a Mário Soares navega a democra-
10. Fernando Namora disse-
-lhe que a ditadura seria a
cia” (ll. 27-28) exemplifica a
pior de todas, aquela contra [A] parassíntese.
a qual não podia lutar, fazer
a menor crítica. Se a fizesse [B] derivação não afixal.
seria escorraçado, e o labéu
de vendido, de traidor marcar- [C] conversão.
-lhe-ia a face.
[D] extensão semântica.

112
8. Identifique o mecanismo de coesão acionado nos termos sublinhados na afirma- PROFESSOR
ção: “Vamos bem devagar, meu amor, esta pode ser nossa última estada em Portu-
gal, vamos ver tudo”. (ll. 7-8) GRUPO III

Escrita
9. Indique, considerando o contexto em que surge, o referente do deítico assinalado 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4
em “Amo por demais essa parte de Portugal”. (l. 15)
Introdução – descrição da
imagem: a imagem apresenta
10. Passe para o discurso indireto e para português europeu o segmento “− Será a di- um homem com um ar sombrio
e triste e que está sobre uma
tadura, a pior de todas, seu Jorge, aquela contra a qual não podes lutar, fazer a me- ponte com duas pessoas ao
nor crítica. Se a fizeres serás escorraçado, o labéu de vendido, de traidor te marcará fundo, vislumbrando-se um
horizonte com cores garridas
a face”, iniciando o texto do seguinte modo: que contrastam com o aspeto
abatido da figura central.
Fernando Namora disse-lhe que…
Desenvolvimento –
interpretação da imagem:
o homem que ocupa a
centralidade no quadro
transmite uma sensação
GRUPO III de isolamento, abandono,
tristeza e angústia.
A imagem retrata uma figura
em desespero e em solidão,
Faça uma apreciação crítica do quadro apresentado, num texto de 150 a 200 pala- características evidenciadas
vras, estabelecendo relações com as temáticas da dor de pensar, da solidão, da angús- em alguns poemas do
ortónimo e dos heterónimos
tia existencial visíveis na poesia do ortónimo e na produção literária de alguns dos seus Reis e Campos, mas também
na prosa do semi-heterónimo
heterónimos. Bernardo Soares.
Conclusão – a mensagem
transmitida: a pertinência
das cores, dos gestos e das
posições adotadas pelas
figuras humanas retratadas,
em que se destaca o estado
reflexivo do homem que
assume centralidade, a
interação e a indiferença dos
dois indivíduos que dialogam,
combatendo, deste modo, a
solidão e a dor espelhada na
figura central transformam
este quadro de Munch numa
verdadeira obra de arte.

Desespero, c. 1892, Edvard Munch, Galeria Nacional, Oslo.

113
3
Fernando Pessoa
Mensagem

Educação Literária Escrita


Mensagem Texto de opinião
O Sebastianismo
O imaginário épico: Leitura
natureza épico-lírica da obra Artigo de opinião
estrutura da obra Artigo de divulgação científica [10.˚ e 11.˚ anos]
dimensão simbólica do herói Relato de viagem [10.˚ ano]
exaltação patriótica
Oralidade
Linguagem, estilo e estrutura
Diálogo argumentativo [EO]
š “O DOS CASTELOS”
Anúncio publicitário [CO] [10.˚ ano]
š “ULISSES”
š “D. DINIS” Gramática
š “D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL” Em revisão:
š “O INFANTE” Classe de palavras
Funções sintáticas
š “O MOSTRENGO”
Coordenação
š “MAR PORTUGUÊS” Subordinação
š “PRECE” Valor aspetual
š “O QUINTO IMPÉRIO” Valor modal
š “SCREVO MEU LIVRO À BEIRA-MÁGOA” Dêixis
Coesão
š “NEVOEIRO”
Fernando Pessoa

PROFESSOR
EXPRESSÃO ORAL
Oralidade
3.1; 4.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3;
6.1; 6.2; 6.3
1. Considere a imagem presente no separador desta unidade.

1.1 Observe a composição de imagens relativas à obra que vai estudar, considerando os
Documento
– Imagem do separador tópicos listados abaixo:
Apresentação šidentificação das figuras humanas e/ou episódios aí representados;
– Diálogo argumentativo
– Contextualização šjustificação da inserção das figuras humanas selecionadas;
Sugestão: O professor šidentificação dos objetos/símbolos destacados e do cenário natural em fundo;
poderá dividir a turma em
quatro grupos, para que todos špresença dos óculos e do manuscrito como representação do escritor;
tenham a oportunidade de
intervir. Cada grupo deverá šjustificação para a composição figuras/objetos/cenário;
apresentar uma súmula das
suas conclusões. Ao longo do 1.2 Num diálogo argumentativo, em ambiente grupo-turma (com extensão temporal
estudo da obra, poder-se-á
fazer o confronto com estas de 8 a 12 minutos), discuta os assuntos possíveis da obra Mensagem que a imagem
expectativas iniciais.
sugere. Considere as marcas de género e os tópicos acima elencados.
1. Tópicos de análise
− As figuras representadas no
Padrão dos Descobrimentos
estão relacionadas com a
expansão marítima;
− Camões cantou os feitos LEITURA
lusitanos e escreveu a
epopeia Os Lusíadas, em
que narra a descoberta do Leia o seguinte artigo de opinião sobre as comemorações do dia 10 de junho.
caminho marítimo para a
Índia; D. Sebastião, cujo
desaparecimento alimentou
um mito, foi também o rei
a quem Camões dedicou
a sua epopeia; D. Afonso
Um Dia de Portugal a não esquecer
Henriques, o Conquistador,
é o responsável pela fundação

H
e expansão do reino português;
Ulisses, representado no
célebre episódio do canto
á muito tempo que se impu-
das sereias, é considerado o nha celebrar oficialmente o
fundador de Olissipo, a futura
Lisboa. 10 de junho, ao mais alto ní-
− O objeto que assume vel, também fora do chão de Portugal.
proeminência é o Padrão dos
Descobrimentos, símbolo do
5 Celebrar o 10 de junho no Portugal que,
período áureo desta época; para além do nosso chão, está e é onde
sobre o continente africano,
encontra-se o símbolo haja um português que as circunstân-
heráldico do Brasão. cias obrigaram a deixar o País para
− Os óculos estão associados
a Fernando Pessoa. trabalhar longe dele, trazendo-o sem-
− O manuscrito pode
representar a obra onde
10 pre no coração. O Portugal que está e
Pessoa irá destacar um é muito em particular onde existem Imigrantes portugueses chegam à estação de Austerlitz,
conjunto de situações e/ou Paris, 1965, Gérald Bloncourt.
pessoas que estiveram grandes comunidades de nacionais e
relacionadas com luso-descendentes. Gente que sobretudo a miséria, a pobreza – mas também, a certa al-
os Descobrimentos, ao mesmo
tempo que evoca o manuscrito tura, a ditadura e a guerra colonial −, obrigaram a partir. Centenas e centenas de milhares
de Os Lusíadas. 15 dos nossos compatriotas, só desde finais da década de 1950 até ao 25 de Abril de 1974.
− Globalmente, a imagem
funciona como uma previsão Gente que sofreu muito, lutou muito, passou por dificuldades, provações e até humilhações
dos textos que vão ser de toda a espécie. Mas que em geral resistiu e de uma forma ou outra venceu.
explorados e dos assuntos
abordados na obra da autoria E o certo é que o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades nunca tinha sido ce-
de Fernando Pessoa. Constitui
uma espécie de pré-leitura ou
lebrado pelo Presidente da República junto delas, no próprio 10 de junho, o que algumas
de preparação para o que vai 20 vezes defendi devia ser feito. Foi, e triplamente muito bem: por o ser, por o ser em Paris, pelo
ser explorado na Unidade 3.
completo e diversificado programa.

116
Mensagem

Paris era a escolha “obrigatória”. Quer por se tratar da cidade com mais emigrantes por- PROFESSOR

tugueses, quer pelo simbolismo do que nesse domínio, e da Liberdade, representa para nós.
Leitura
Leia-se o inesquecível “Lusíada Exilado”, canto V de O canto e as armas, de Manuel Alegre, 7.4; 7.6; 7.7
25 todo ele e não só o poema “Portugal em Paris”; e vejam-se as históricas fotos de Gérard
Bloncourt, agora reunidas num álbum editado em França, com um belo prefácio de Eduardo 1. O autor do texto mostra-
-se agradado pelo facto de,
Lourenço: está tudo lá, nos poemas e nas fotos. pela primeira vez, o Dia de
Quanto ao programa, abrangeu todas as vertentes necessárias, da mais popular à mais Camões e das Comunidades
ter sido celebrado pelo
institucional, passando pela cultural. A participação do próprio Presidente de França deu presidente da República
30 ao acontecimento uma dimensão e um significado muito especiais. E o que me surpreende junto de comunidades luso-
-descendentes, revelando
é que perante a importância deste 10 de junho para os emigrantes em Paris e em França, e esse apreço em afirmações
o seu simbolismo não para só eles como para todos os emigrantes e para o que deve ser o como: “Foi, e triplamente
muito bem: por o ser, por o ser
grande desígnio de Portugal, nos media tenha aparecido mais valorizado o acessório do que em Paris, pelo completo
e diversificado programa”
o essencial. (ll. 20-21); “Paris era a escolha
José Carlos Vasconcelos, Visão, n.˚ 1215, 16/6 a 22/06/2016, p. 74 (com supressões). ‘obrigatória’” quer por se
tratar da cidade com mais
emigrantes portugueses,
quer pelo simbolismo que
representa para nós.
2. A evocação de Manuel
Alegre é pertinente, uma
vez que o escritor se
refere aos emigrantes
portugueses, obrigados pelas
circunstâncias políticas e
sociais a abandonar o país e a
fixar-se em França (cf. poema
“Lusíada Exilado”).
3. O texto apresenta como
tese a pertinência e as
comemorações do Dia de
Portugal se terem realizado
junto de comunidades de
emigrantes, onde Portugal
também está e é. As imagens
A C retratam o momento da
chegada a Paris, em 1965, de
uma vaga de emigrantes “que
as circunstâncias obrigaram
a deixar o País para trabalhar
longe dele” (ll. 7-9). As
fotografias retratam também
as vivências de dificuldades
naquele país estrangeiro.
Assim, esta comemoração em
Paris acaba por ser um tributo
a todos os portugueses da
diáspora, que as fotografias
de Gérard Bloncourt
homenageiam.

Sugestão – Poderá o
professor associar à questão 2
B D e/ou 3 a apresentação de mais
fotografias do fotógrafo citado
Gérald Bloncourt, O olhar de um compromisso com os filhos dos Grandes Descobridores (1954-1974), no texto e confrontá-las com o
Amarante, Converso, 2015. título dado ao álbum.

1. Comprove que as comemorações do 10 de Junho foram alvo de uma apreciação positi- Link
O olhar de um
va por parte do autor do texto, através de dois exemplos. compromisso com
os filhos dos Grandes
2. Justifique a evocação de Manuel Alegre. Descobridores, Gérald
Bloncourt.
3. Relacione, numa perspetiva temática, as fotografias com o conteúdo do texto.

117
Fernando Pessoa

INFORMAR

Mensagem – Estrutura da obra


O livro divide-se em três Partes ou três Épocas: Brasão, Mar Português e O En-
coberto, correspondentes, em termos lusíadas, às Idades do Pai (os fundadores da
nação portuguesa), do Filho (os que, recolhendo a herança, a dilataram pelos mares
e continentes) e do Espírito (que ainda não veio, embora tenha sido anunciado, o
5 Espírito encoberto, que espera o Desejado).
Na Parte I, Brasão, retrato heráldico da pátria antiga, os Sete Castelos corres-
pondem exatamente, embora transpostos para uma história lusíada sacralizada,
às Sete Idades. A primeira [é a do] mítico Ulisses, a que se seguem Viriato, o Conde
D. Henrique, D. Tareja e D. Afonso Henriques, ocupando D. Dinis o lugar da 6.a Idade.
10 Como em Fernão Lopes, a Sétima Idade Portuguesa é aberta por D. João, agora la-
deado por Filipa de Lencastre. O primeiro é apresentado como Mestre, sem o saber,
do Templo / Que Portugal foi feito ser. E a segunda é vista como Princesa do Santo
Graal / Humano ventre do Império / Madrinha de Portugal, assim instituindo o equi-
líbrio dos princípios masculino e feminino, paternal e maternal.
15 Ulisses, Viriato, o Conde D. Henrique, D. Afonso Henriques, D. Tareja, D. Dinis e
D. João I / D. Filipa seriam pois os castelos do brasão português em número fixado
a partir da dinastia de Avis no brasão nacional.
Se os Castelos são 7, as Quinas ou as Chagas de um Portugal-Cristo, sacrifican-
do-se a um destino glorioso, porque da Ordem divina, são 5 correspondendo a 5
20 mártires da pátria. O quinto é D. Sebastião, Rei de Portugal, sendo os anteriores o
rei D. Duarte, o Infante Santo, D. Fernando, o Infante D. Pedro e o Infante D. João.
Estranha, mas compreensível, é a designação de Nun’Álvares, afinal de contas
Condestável do Reino, mas não Rei, como portador da coroa. É Nun’Álvares que
coroa simbolicamente o fundador da dinastia de Avis, D. João I, com o qual se inicia
25 a sétima idade do Mundo.
[P]ara o poeta, a cabeça do Grifo, o Espírito, a Sabedoria, o sonho inspirado do
Alto, é representado pelo Infante D. Henrique. O Infante não foi um conquistador,
foi o iniciador, o sonhador, o “descobridor da ideia da descoberta”, a cabeça da Or-
dem de Cristo e da epopeia.
30 Em contrapartida, as asas do grifo, isto é, os órgãos físicos, materiais que trans-
portaram o sonho, do plano celeste ao plano terrestre, que o asseguraram, são as
figuras paradigmáticas da força, da potência e da vontade: D. João II e Afonso de
Albuquerque.
O 7 com o 5 dá 12, exatamente o número de poemas da Segunda Parte ou Época,
35 Mar Português.
António Quadros, Toda a terceira parte, O Encoberto, se baseia no 5 e no 3. Cinco símbolos, reve-
“O esoterismo pessoano: lando os cinco grandes mitos portugueses.
a estrutura simbólica
da Mensagem”, in História
Três são os Avisos (dos Profetas de Portugal, o Bandarra, Vieira e Pessoa).
Crítica da Literatura E por último, cinco tempos, culminando com o Quinto, por aqueles profetas va-
Portuguesa 40 ticinado, o tempo do Nevoeiro, o tempo do Encoberto, o tempo do Regresso ou da
[O Modernismo],
(org. Carlos Reis, António Hora, o tempo do Quinto Império, Império do Espírito como Espírito da Verdade.
Apolinário Lourenço), E no final o anúncio-mensagem: É a Hora! revela-nos como o poeta, mais do
vol. 8, Lisboa, Verbo,
2015, pp. 162-165 (com
que evocar a poesia lusíada ou cantá-la em termos líricos-épicos, quis fazer ou re-
supressões). fazer. Fazer ou refazer Portugal, como Portugal-Universo.

118
Mensagem

Partes Secções Poemas


Primeiro – “O DOS CASTELOS”
I. Os Campos
Segundo – “O DAS QUINAS”
Primeiro – “ULISSES”
Segundo – “VIRIATO”
Terceiro – “O CONDE D. HENRIQUE”
Quarto – “D. TAREJA”
II. Os Castelos
Quinto – “D. AFONSO HENRIQUES”
Parte I Sexto – “D. DINIS”

BRASÃO
Sétimo I – “D. JOÃO O PRIMEIRO”
Sétimo II – “D. FILIPA DE LENCASTRE”
Bellum Sine Bello
Primeira – “D. DUARTE, REI DE PORTUGAL
(guerra sem guerra)
Segunda – “D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL”
III. As Quinas Terceira – “D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL”
Quarta – “D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL”
Quinta – “D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL”
IV. A Coroa “NUN’ÁLVARES PEREIRA”
A Cabeça do Grifo – “O INFANTE D. HENRIQUE”
V. O Timbre Uma Asa do Grifo – “D. JOÃO O SEGUNDO”
Outra Asa do Grifo – “AFONSO DE ALBUQUERQUE”
I. “O INFANTE” VII. “OCIDENTE”
Parte II II. “HORIZONTE” VIII. “FERNÃO DE MAGALHÃES”

MAR PORTUGUÊS III. “PADRÃO” IX. “ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA”


IV. “O MOSTRENGO” X. “MAR PORTUGUÊS”
Possessio Maris
(a posse do mar) V. “EPITÁFIO DE BARTOLOMEU DIAS” XI. “A ÚLTIMA NAU”
VI. “OS COLOMBOS” XII. “PRECE”
Primeiro – “D. SEBASTIÃO”
Segundo – “O QUINTO IMPÉRIO”
I. Os Símbolos Terceiro – “O DESEJADO”
Quarto – “AS ILHAS AFORTUNADAS”
Parte III Quinto – “O ENCOBERTO”

O ENCOBERTO
Primeiro – “O BANDARRA”
II. Os Avisos Segundo – “ANTÓNIO VIEIRA”
Pax In Excelsis
Terceiro – [SCREVO MEU LIVRO À BEIRA-MÁGOA]
(paz nas alturas)
Primeiro – “NOITE” PROFESSOR
Segundo – “TORMENTA”
Leitura
III. Os Tempos Terceiro – “CALMA” 7.1; 7.4
Quarto – “ANTEMANHÔ Educação Literária
15.3; 16.1
Quinto – “NEVOEIRO”
1. Resposta de caráter
1. Após a análise da estrutura global da obra, avalie as expetativas criadas quando reali- pessoal.
zou a atividade de Expressão Oral da página 116.

119
Fernando Pessoa

PROFESSOR
EDUCAÇÃO LITERÁRIA
O Manual apresenta
11 poemas da obra
Mensagem. Contudo,
o Programa propõe Segundo Fernando Pessoa, a civilização europeia é criação de três nações (a grega, a
a abordagem obrigatória romana e a inglesa), destacadas no poema de abertura.
de 8 poemas desta obra.
Parte I − BRASÃO
Educação Literária
14.1; 14.2; 14.3; 14.4;
14.7; 14.9 I − Os Campos II − Os Castelos III − As Quinas IV − A Coroa V − O Timbre
CD 1

AIX
O DOS CASTELOS
A1
F

Áudio
“O dos Castelos” A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
1. a. Itália
E toldam-lhe românticos cabelos
b. Inglaterra
c. Portugal Olhos gregos, lembrando.
2. Na primeira quadra é
referida a Europa e faz-se uma
particularização geográfica,
5 O cotovelo esquerdo é recuado;
mediante a distinção entre O direito é em ângulo disposto.
Oriente e Ocidente, sendo esta
a região em que o poema se vai Aquele diz Itália onde é pousado;
focar; na segunda apontam- Este diz Inglaterra onde, afastado,
-se dois países europeus
(Itália e Inglaterra); no final, A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
o destaque afunila-se em
Portugal.
3. No poema, a Europa surge
10 Fita, com olhar sfíngico e fatal,
descrita como uma mulher, O Ocidente, futuro do passado.
considerando-se que Portugal,
em termos geográficos, é o
rosto do continente europeu, O rosto com que fita é Portugal.
olhando o Ocidente. Estes
aspetos podem ser verificados Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral
na ilustração que acompanha Martins), Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 15.
o poema.
4. O verbo jazer remete para
uma Europa moribunda, que
é necessário despertar da
letargia em que se encontra,
aspeto que surge no verbo
fitar, também associado
a Portugal e representa
a vocação marítima dos
portugueses. Percebe-se,
deste modo, a afirmação
“futuro do passado” (v. 11), pois
o desvendamento foi futuro do 1. Complete, no seu caderno, o esquema
passado e promete repetir-se.
apresentado com as nações referidas EUROPA
5. A missão profética
pressente-se na no poema.
caracterização do olhar, MULHER
que é esfíngico e fatal, 2. Comprove que a descrição apresentada
e que aponta para uma
atitude contemplativa e é feita do geral para o particular. Cotovelos Rosto
expectante, para o enigma e
para o mistério que envolve 3. Estabeleça uma relação entre a imagem
os Descobrimentos. Além Olhos
disso, este olhar, que vem e o poema.
do rosto que é Portugal, fita
o Ocidente que é futuro do 4. Demonstre que a mensagem do texto a._________ b._________ c._____________
passado, depreendendo-se,
assim, que este é o único país assenta em duas imagens contraditó-
da Europa moribunda capaz rias, considerando os verbos jazer e fitar. Olhar esfíngico
de fazer renascer o Velho
Continente – é essa a sua
tarefa messiânica.
5. Refira de que modo se pressente, neste Prenúncio de grandes
poema, a missão profética de Portugal. feitos no mar

120
Mensagem

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
PROFESSOR
Segundo a lenda, Ulisses, herói da Odisseia, ter-se-ia perdido no Mediterrâneo depois
da vitória em Troia, navegando até ao Tejo e aí fundando a cidade de Lisboa: Olissipo. Educação Literária
114.2; 14.3; 14.4; 14.7;
E MA
QU 114.9
S
Parte I − BRASÃO

E
GGramática
117.1; 18.2

EL
I − Os Campos II − Os Castelos III − As Quinas IV − A Coroa V − O Timbre P
RO
J ETÁ
V

CD 1

AIX
ULISSES
A1
F

Áudio
O mito é o nada que é tudo. “Ulisses”

O mesmo sol que abre os céus 1. ”O mito é o nada que é tudo”


É um mito brilhante e mudo − porque, sendo mito, não tem
existência concreta; porém,
O corpo morto de Deus, como corresponde a uma
5 Vivo e desnudo. crença/ fé, pode ser tudo, dado
que as crenças alimentam/dão
sentido à realidade.
Este, que aqui aportou, 2. Para comprovar a tese,
Foi por não ser existindo. o sujeito poético serve-se de
dois conjuntos de argumentos:
Sem existir nos bastou. (1) o Sol, um elemento
Por não ter vindo foi vindo da realidade física, e um
elemento transcendente,
10 E nos criou. Deus, que é “morto”, “vivo e
desnudo”, apontando para
a ressurreição e para o seu
Assim a lenda se escorre poder regenerador, apesar de
A entrar na realidade, não ter existência física.
(2) A crença de que Ulisses
E a fecundá-la decorre. aportou no local onde agora
se situa Lisboa e aí terá
Em baixo, a vida, metade fundado a cidade.
15 De nada, morre. 3. Depois de ter fundamentado
a sua tese, o sujeito poético
Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins), Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 19. passa para a generalização,
pondo a realidade na
dependência da lenda, como se
1. Explique a tese que o sujeito poético apresenta no primeiro verso do poema. a primeira não fizesse sentido
sem a segunda, porque é a
lenda que fecunda a realidade.
2. Indique os argumentos usados nos versos seguintes e na segunda estrofe para confir-
Sem o mito, a vida seria um
mar a tese enunciada. vazio.
4. Uma das metáforas
3. Demonstre que a última estrofe funciona como síntese ou conclusão da tese apresen- presentes surge na utilização
tada anteriormente. do verbo “fecundar”, que,
no contexto, sugere o poder
regenerador do mito, a sua
4. Comente a expressividade da metáfora usada na última estrofe, exemplificando-a. capacidade de dar sentido
à vida e de fazer surgir a
5. Estabeleça uma relação intertextual entre este poema e os versos transcritos da quin- realidade.
5. Em ambos os textos, a
ta estância do canto VIII de Os Lusíadas, referindo a dimensão simbólica do herói. figura simbólica de Ulisses deu
sentido à vida dos portugueses
“Ulisses é, o que faz a santa casa porque, ao fundar a cidade de
À Deusa que lhe dá língua facunda; Lisboa, colocou a primeira
pedra do império português.
Que se lá na Ásia Tróia insigne abrasa, 6. “Este” e "aqui" têm
Cá na Europa Lisboa ingente funda.” referência deítica de natureza
espacial; “aportou” é temporal
G 6. Identifique a natureza das referências deíticas dos termos destacados no verso “Este, e pessoal.
7. O pronome “(l)a” tem
que aqui aportou”. (v. 6) como referente “a realidade”
e exemplifica a coesão
7. Indique o referente do pronome destacado em “E a fecundá-la decorre” (v. 13), bem gramatical referencial.
como o mecanismo de coesão exemplificado.

121
Fernando Pessoa

PROFESSOR

Educação Literária
EDUCAÇÃO LITERÁRIA
14.2; 14.3; 14.4; 14.7;
14.9
O rei D. Dinis é um dos heróis fundadores da nossa História e surge evocado no sexto
1. . D. Dinis escreve um “Cantar
de Amigo”, uma alusão ao poema da secção “Os Castelos”.
facto de o rei ter sido também
poeta (autor de cantigas Parte I − BRASÃO
trovadorescas). Além disso,
é também referido como
“o plantador de naus a haver” I − Os Campos II − Os Castelos III − As Quinas IV − A Coroa V − O Timbre
(v. 2), numa clara menção à
plantação do pinhal de Leiria
por si ordenada. D. DINIS
2. O presente do indicativo
contribui para a mitificação
do herói, mostrando que, no
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
seu tempo, foi a sua ação que O plantador de naus a haver,
preparou involuntariamente
o futuro dos Descobrimentos, E ouve um silêncio múrmuro consigo:
tornando o seu contributo É o rumor dos pinhais que, como um trigo
intemporal.
3. Sugere-se no poema que a
5 De Império, ondulam sem se poder ver.
plantação do pinhal de Leiria
teria sido preponderante
para a construção dos Arroio, esse cantar, jovem e puro,
barcos a utilizar nos Busca o oceano por achar;
Descobrimentos (“O plantador
de naus a haver”, v. 2), daí E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
que, involuntariamente, o rei
tivesse preparado o futuro. É o som presente desse mar futuro,
4. O poema integra a primeira 10 É a voz da terra ansiando pelo mar.
parte da obra, “Brasão”, sendo
o sexto poema da secção “Os Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins),
Castelos”. D. Dinis foi o sexto Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 24.
rei de Portugal e antecede o
ciclo dos Descobrimentos.
Preparou o futuro, criando,
no presente, condições para
o alargamento do Império,
que será cantado na segunda
parte da obra.
5. A expressão “E a fala dos
pinhais, marulho obscuro”
(v. 8) contém uma
personificação e sugere o
caráter mítico de D. Dinis,
uma espécie de intérprete
de uma vontade superior,
que anunciava aos ouvidos
do rei um novo ciclo de 1. Identifique os dois aspetos biográfi-
conquistas. A metáfora está D. Dinis
patente em “um trigo / De cos do rei D. Dinis a que o poema alude.
Império” (vv. 4-5) e sugere
que a génese, a origem do 2. Justifique a utilização do presente do
futuro teve início em terra. a._________ b._________
No fundo, tal como o trigo é a indicativo ao longo do poema.
base do pão que alimenta os
povos, também os pinheiros 3. Explique de que modo o monarca es-
serão a base da construção Atividade literária/
Pinhal de Leiria
dos barcos que alimentarão taria inconscientemente a preparar o poética
os Descobrimentos. O trigo futuro do país.
“ondula” ao sabor do vento,
os barcos ao sabor das ondas.
4. Justifique a inserção do poema nesta Autor de cantigas “é som presente
6. a. Trovador; b. Plantador
secção da estrutura da obra. de amigo (e de amor) desse mar futuro”
A síntese do poema revela-se
pertinente, uma vez que
destaca a figura de D. Dinis 5. Exemplifique, referindo a expressivi-
e as ideias-chave do poema. Prenúncio dos
Associam-se a este rei
dade, a metáfora e a personificação.
Descobrimentos:
duas atividades distintas, “o oceano por achar”
destacando-se aquela que 6. Complete, no seu caderno, o esquema
está mais diretamente
relacionada com os
de acordo com a análise feita e comen-
Descobrimentos. te a síntese do poema nele contida.

122
Mensagem

QU
E MA PROFESSOR
S

E
EDUCAÇÃO LITERÁRIA

EL
P V
RO
J ETÁ

O quinto poema dos cinco que integram “As Quinas” assume uma dimensão espiritual,
Educação Literária
pondo em relevo o sacrifício que imortaliza e glorifica o ser humano. 14.2; 14.3; 14.4; 14.7;
14.9
Parte I − BRASÃO
1. A matriz épica evidencia-se
no tom de exaltação heroica
I − Os Campos II − Os Castelos III − As Quinas IV − A Coroa V − O Timbre que se depreende da evocação
do fim trágico do herói, que
tem uma forte dimensão
D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL histórica.
2. A primeira parte, que
Louco, sim, louco, porque quis grandeza corresponde à primeira
estrofe, apresenta a
Qual a Sorte a não dá. autocaracterização do
Não coube em mim minha certeza; sujeito poético como louco.
A segunda, relativa à segunda
Por isso onde o areal está estrofe, faz a apologia da
5 Ficou meu ser que houve, não o que há. loucura, elogiando-a e
incitando outros a tomá-la,
ou seja, a dar continuidade ao
sonho que levou D. Sebastião
Minha loucura, outros que me a tomem ao norte de África – o de ir
Com o que nela ia. mais além.
Sem a loucura que é o homem 3. Como consequência
da concretização do
Mais que a besta sadia, sonho, orgulhosamente
10 Cadáver adiado que procria? assumido pelo sujeito
poético, este encontra a
Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins), morte (“Ficou meu ser que
houve”, v. 5), verificando-
Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 33.
-se a destruição física.
Porém, desse fim trágico,
resultaram a sua mitificação
e a sua imortalidade:
1. Mostre de que modo a matriz épica de Mensagem se evidencia no poema. o sonho continua assim a
fecundar a realidade.
4. O elogio da loucura é
2. Divida o poema em duas partes, justificando a delimitação. visível no repto lançado aos
destinatários para que se
deixem imbuir pelo sonho, que
3. Indique a consequência da loucura do sujeito poético. é o motor da ação.
O apelo lançado assume,
assim, uma dimensão nacional
4. Retire conclusões relativamente ao elogio da loucura e ao repto final. e universal. É pela loucura,
pelo sonho, que o ser humano
se distingue dos animais, da
5. Evidencie a expressividade decorrente da utilização da anáfora e da metáfora. “besta sadia, / […] que procria”
(vv. 9-10).
5. A anáfora, presente em
6. Proceda à análise formal do poema. “Louco, sim, louco” (v. 1),
“Minha loucura” (v. 6) e em
“Sem a loucura” (v. 8), permite
7. Atente na seguinte afirmação: ao sujeito poético enfatizar
a ideia da loucura, uma
vez que esse é o seu traço
O sebastianismo de Pessoa concentra-se na caracterização do rei D. Sebas- caracterizador e o motor da
ação humana. A metáfora,
tião como símbolo e substância espiritual a ser encarnada pelos portugueses por sua vez, também pode
do presente para que a glória do passado regresse. ser encontrada no vocábulo
“loucura”, que assume aqui
Fernando Pessoa, Sebastianismo e Quinto Império (edição, introdução e notas de Jorge Uribe valores conotativos e uma
dimensão positiva. Só esta
e Pedro Sepúlveda), Lisboa, Ática, s/d, pp. 22.
força será capaz de reerguer
a nação.
7.1 Estabeleça aproximações temáticas entre o poema pessoano, considerando o teor da Nota: Disponível, no Guia
do Professor, um cenário de
afirmação, e o culto do sebastianismo em Frei Luís de Sousa. resposta para as questões 6
e 7.1.

123
Fernando Pessoa

PROFESSOR

Educação Literáriaa S
QU
E MA EDUCAÇÃO LITERÁRIA
14.2; 14.3; 14.4;

E
14.7; 14.9
O primeiro poema da Parte II apresenta o impulsionador dos Descobrimentos.

EL
P V
RO
Gramática J ETÁ
4
17.1; 19.1; 19.2; 19.3; 19.4
Parte II − MAR PORTUGUÊS

I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII


Áudio – “O Infante”
1. A realização da "obra" CD 1

está, em primeiro lugar, AIXA 1


O INFANTE
F

condicionada pela vontade


divina, e depois pelo sonho
do homem. Cumpridas estas
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
duas fases, a obra nascerá. Deus quis que a terra fosse toda uma,
2. Deus quis que a terra fosse Que o mar unisse, já não separasse.
apenas uma e que o mar fosse
um fator unificador. Para tal, Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
seria necessário primeiro
desvendá-lo para permitir
a união entre continentes e 5 E a orla branca foi de ilha em continente,
povos.
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
3. Deus escolheu o Infante
para cumprir a missão de E viu-se a terra inteira, de repente,
unificação da terra através do Surgir, redonda, do azul profundo.
mar. Este é, assim, o símbolo
do herói, o agente da vontade
divina, predestinado para o
grande feito do domínio dos Quem te sagrou criou-te português.
mares. 10 Do mar e nós em ti nos deu sinal.
4. A forma verbal “Sagrou- Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
-te” é sugestiva, uma vez que
semanticamente se associa Senhor, falta cumprir-se Portugal!
à predestinação, à eleição
divina, assumindo, por isso, Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral
uma conotação religiosa. Martins), Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 49.
Foneticamente, remete para
o nome do eleito, conhecido
como “Infante de Sagres”
e também para a escola de 1. Explicite as condições necessárias à concretização
navegação que este fundou da “obra”.
e que simboliza o início da
expansão marítima.
5. O apelo final é dirigido
2. Apresente, por palavras suas, o desejo de Deus.
a Deus e justifica-se pelo
desalento causado pelo 3. Esclareça o sentido de predestinação associado ao Infante.
fim do Império marítimo.
Torna-se, assim, urgente
um novo sonho, que potencie 4. Explore a expressividade da forma verbal “Sagrou-te”. (v. 4)
a construção de um império
de outra ordem, mais
completo porque integrará 5. Descodifique o valor semântico do apelo final.
uma dimensão material
e outra espiritual. 6. Comprove a presença da gradação, da personificação e da apóstrofe, referindo a ex-
6. A gradação, presente
no primeiro verso, reflete pressividade destes recursos.
as etapas que permitirão
a concretização da obra:
querer, sonhar, nascer.
G 7. Classifique as orações presentes no primeiro verso.
A personificação, a sugerir a
rapidez das descobertas, está 8. Indique o valor aspetual dos enunciados seguintes:
presente em “E a orla branca
foi de ilha em continente, / a. “o homem sonha, a obra nasce”. (v. 1)
Clareou, correndo, até
ao fim do mundo” (vv. 5-6). b. “Deus quis que a terra fosse toda uma”. (v. 2)
Emprega-se ainda a apóstrofe
(“Senhor”, v. 12) para
identificar o interlocutor e a 9. Identifique o valor modal e tipo de modalidade configurados nas afirmações seguintes:
necessidade da intervenção
divina para o nascimento de a. “Quem te sagrou criou-te português.” (v. 9)
um novo império.
b. “Senhor, falta cumprir-se Portugal!” (v. 12)

124
Mensagem

LEITURA
PERA
CU R

RE
Leia o texto e comprove que os portugueses continuam, ainda hoje, na dianteira de novas AÇÃO
E DIVULG
descobertas. ARTIGO D NTÍFICA
CIE

S
NO
0.

1
° E 1.° A
1

A vida no limite

E
squeça o que leu sobre a vida em ecossistemas mode-
rados, abundantes e viçosos. Muitas formas de vida
adaptam-se a ambientes ácidos, quentes, escuros ou
sob intensa pressão e profundidade. A investigação passa por
5 Portugal.
Em 1812, o grande anatomista francês Georges Cuvier la-
mentava a flagrante impossibilidade de descoberta de novas
espécies de mamíferos quadrúpedes. A história, sabemo-lo hoje,
estava apenas a começar. O ritmo de descoberta de novas es-
10 pécies prossegue hoje com mais velocidade do que em qualquer
outra altura desde que a classificação taxonómica foi proposta.
As descobertas modernas, porém, requerem outra abordagem.
A neblina desce sobre a paisagem com o seu abraço sufocante de cinza uniforme. Sem aviso, Lugar das Furnas, Povoação,
São Miguel, Açores.
à boleia de uma rajada de vento, um cheiro intenso e acre enche-nos as narinas. É o cartão-
PROFESSOR
15 -de-visita inconfundível das fumarolas nas Furnas! Na mais improvável das localizações, bem
no centro de uma enorme caldeira vulcânica, a freguesia das Furnas ergue-se há gerações nas 7. Coordenadas copulativas
imediações de um vulcão. assindéticas.
8. a. Valor genérico.
Nestas dezenas de fontes termais, para além da água borbulhante e do odor a enxofre, b. Valor perfetivo.
vivem escondidos centenas de organismos extremófilos, responsáveis pelas exóticas formas 9. Ambos os versos
exemplificam a modalidade
20 multicolores! Em teoria, o ambiente deveria ser demasiado ácido e quente para que a vida pros- epistémica com valor
perasse, mas ali foram encontradas novas espécies de organismos nos últimos anos graças aos de certeza.

esforços de uma equipa multidisciplinar constituída por Milton Costa e Luciana Albuquerque, Leitura
do Departamento de Ciências da Vida e Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universi- 7.6

dade de Coimbra (UC). 1. Um artigo de divulgação


25 Adaptadas a fumarolas ou fontes termais, resistindo a temperaturas elevadas ou a forte científica trata temas da área
das ciências, apresentando
pressão e profundidade, bactérias e outros organismos passaram despercebidos durante muito novos dados, resultados de
pesquisas efetuadas em
tempo. Agora, começa a levantar-se o véu sobre as suas vidas secretas e a expectativa cresce. determinados domínios.
Das novas bactérias identificadas em nascentes termais de Portugal continental e dos Aço- Acrescente-se que,
dependendo do público a
res, há algumas que se destacam: a Truepera radiovictrix, identificada numa nascente da Ribei- que se destina, o artigo pode
30 ra Quente, demonstra resistência às radiações gama, como o próprio nome científico sugere. assumir um caráter mais
tecnicista e hermético (quando
Outros super heróis do micromundo, como Rubrobacter calidifluminis e Rubrobacter naiadicus dirigido a especialistas) ou
representam novas espécies e foram apresentados pelos dois investigadores à comunidade mais acessível (se destinado
ao público em geral).
científica num congresso em São Petersburgo. A sua especialidade? A resistência à dissecação! O texto aqui apresentado
Os Açores, e São Miguel em particular, são um laboratório natural inesgotável e as caldeiras tem uma natureza
fundamentalmente expositiva,
35 das Furnas atraem investigadores de toda a Europa, num roteiro exótico que inclui as fontes as ideias estão hierarquizadas,
a informação é seletiva
termais da Ribeira Quente, a sensual piscina da Caldeira Velha ou a Ponta da Ferraria, famosa (limita-se a dar conta dos
pelos banhos de mar quentes, mas igualmente habitat de espécies termófilas. microrganismos existentes
em águas termais quentes),
António Luís Campos, National Geographic, edição online (consultado em setembro de 2016, com supressões). além de apresentar rigor
e objetividade lexical e de
informação.
1. Comprove que, quanto ao género textual, está perante um artigo de divulgação científica.

125
Fernando Pessoa

PROFESSOR

Educação Literária EDUCAÇÃO LITERÁRIA


14.2; 14.3; 14.5; 14.6;
14.7; 16.1; 16.2
Um dos maiores obstáculos que os marinheiros portugueses tiveram de ultrapassar
foi o medo do desconhecido.
Documento
Episódio do Adamastor Parte II − MAR PORTUGUÊS
(Ests. 39-43, canto V
de Os Lusíadas) I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII
(Disponível na brochura de
Educação Literária, p. 12 –
Dossiê do Professor) O MOSTRENGO
1. O mostrengo apresenta-se
como senhor dos mares do O mostrengo que está no fim do mar
fim do mundo e como monstro
voador, semelhante ao Na noite de breu ergueu-se a voar;
morcego, que voa, chia e tem À roda da nau voou três vezes,
um aspeto aterrador, porque
é "imundo e grosso” (v. 13); Voou três vezes a chiar,
mostra-se ainda arrogante e 5 E disse, “Quem é que ousou entrar
ameaçador.
O homem do leme, por sua Nas minhas cavernas que não desvendo,
vez, revela-se, inicialmente,
amedrontado e intimidado,
Meus tetos negros do fim do mundo?”
mas, num crescendo de E o homem do leme disse, tremendo,
coragem e de determinação,
mostra a sua ousadia e “El-Rei D. João Segundo!”
valentia, acabando por vencer
o seu interlocutor.
2. O navegador muda
10 “De quem são as velas onde me roço?
de atitude quando se De quem as quilhas que vejo e ouço?”
consciencializa de que está
em representação de um Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
povo e a cumprir a missão que Três vezes rodou imundo e grosso,
lhe foi incumbida pelo seu
soberano, o rei de Portugal. “Quem vem poder o que só eu posso,
Trata-se, pois, de um herói 15 Que moro onde nunca ninguém me visse
simbólico, representativo
de um povo – daí o caráter E escorro os medos do mar sem fundo?”
épico –, mas que assume
simultaneamente um posição
E o homem do leme tremeu, e disse,
pessoal, carregada de “El-Rei D. João Segundo!”
dramatismo, o que lhe confere
a dimensão lírica.
3. O mostrengo simboliza Três vezes do leme as mãos ergueu,
o mar desconhecido, os
obstáculos e perigos com
20 Três vezes ao leme as reprendeu,
que os marinheiros se E disse no fim de tremer três vezes,
confrontaram e o medo do
desconhecido. O homem do “Aqui ao leme sou mais do que eu:
leme é símbolo da coragem, Sou um Povo que quer o mar que é teu;
da ousadia e da determinação
do povo português, que, E mais que o mostrengo, que me a alma teme
mesmo com medo, nunca 25 E roda nas trevas do fim do mundo,
deixou de lutar para cumprir a
missão dos Descobrimentos. Manda a vontade, que me ata ao leme,
4. O tom dramático que se De El-Rei D. João Segundo!”
depreende do poema resulta
do diálogo que se estabelece Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins),
entre os dois intervenientes Porto, Assírio & Alvim, 2012, pp. 52-53.
e do ambiente de terror e
de mistério que os envolve.
A tensão entre os dois
interlocutores está também 1. Trace o retrato das duas figuras em confronto.
patente na pontuação
expressiva, nomeadamente
nos pontos de interrogação 2. Justifique a mudança de atitude por parte do homem do leme, considerando o perfil
e de exclamação, nas do herói e as características épico-líricas de Mensagem.
formas verbais que sugerem
movimentos violentos e nas
expressões que remetem para 3. Refira a simbologia associada a cada um dos intervenientes.
apreensões sensoriais.

126
Mensagem

PROFESSOR
4. Identifique os elementos que contribuem para o tom dramático do poema.

5. Recorde as estâncias 39 a 43 do canto V de Os Lusíadas, que são parte integrante do 5.1 Semelhanças: O mesmo
objetivo → engrandecimento
episódio do Adamastor. dos portugueses; o conteúdo
épico → a luta com o mar e
5.1 Estabeleça relações intertextuais entre o episódio do Adamastor, de Os Lusíadas, e o a coragem do marinheiro
Mostrengo, de Mensagem, identificando semelhanças e diferenças entre ambos. representante do povo
português; o valor simbólico
→ perigos e obstáculos que
os marinheiros enfrentaram
COMPREENSÃO DO ORAL no desvendar dos mares;
o medo → as duas figuras
provocam reações de terror
1. Oiça com atenção a canção “O homem do leme”, nos marinheiros.
Diferenças: Mostrengo:
do grupo Xutos & Pontapés (álbum Cerco, 1993) e aspeto animal, próximo do
complete, no seu caderno, o enunciado seguinte: morcego; figura que aterroriza
por voar e chiar; derrotado
pela coragem e determinação
A letra da canção estabelece relações intertex- do marinheiro português;
interlocutor: homem do
tuais com o poema pessoano, fazendo referência leme ao serviço do rei
D. João II, reinado em que
ao ambiente a.______________ e à b.______________ do foi ultrapassado o cabo das
“O homem do leme”, Xutos & Pontapés Tormentas; tom mais épico e
c.______________. Além disto, os d.______________ ine- dramático; texto mais curto,
rentes à viagem marítima também são realçados, sendo visíveis em expressões como mas mais simbólico.
Adamastor: aspeto humano,
“e.______________ / Jazem os outros, os que lá ficaram / f.______________”. embora medonho; figura
aterrorizadora pelo tamanho
e pelo aspeto; interlocutor:
Vasco da Gama, ao serviço do
rei D. Manuel; tom mais lírico
INFORMAR do que épico, sobretudo na
segunda parte do episódio.

TEXTO INÉDITO
A luz de Camões e a hora de Pessoa Oralidade
1.1; 2.1
A importância da Mensagem no conjunto da obra pessoana tem sido objeto
de alguma polémica. Mas também pode pensar-se que a publicação de Men-
sagem obedeceu a uma intenção imediata, tanto de caráter artístico como de Link
“O homem do leme”, Xutos
caráter cívico. & Pontapés (5 minutos)
5 O que mais pode impressionar na Mensagem é o seu fundo épico. É nesse
quadro que se torna mais visível o diálogo com Os Lusíadas, a epopeia que Ca- 1. a. trágico/funesto/de terror
b. determinação/coragem/
mões fizera imprimir em 1572. Existem alguns pontos em comum entre estas ousadia
duas obras, publicadas com 360 anos de distância, embora tenhamos de ter em c. homem do leme
mente as muitas diferenças que as distinguem. d. perigos/desastres
10 Uma das figuras camonianas retomadas por Pessoa é, sem dúvida, o Mos- e. “No fundo do mar”
f. “Em dias cinzentos”
trengo, que, em parte, faz lembrar o Adamastor, o gigante que no canto V do poe-
ma camoniano surge como último obstáculo à continuação da viagem marítima.
Leitura
O fator de maior proximidade entre os dois poemas resulta, porém, da forma 7.4: 7.5; 8.2
como ambos terminam. No livro de Fernando Pessoa, o nevoeiro dá origem a Educação Literária
15 um apelo de alcance coletivo, que culmina na expressão “É a hora”. Também 15.1; 16.2

Camões concluíra o seu poema dirigindo-se a D. Sebastião, que é, de resto, figura 1. O autor do texto centra
central em qualquer um dos dois poemas. Fernando Pessoa conclui a Mensagem a sua atenção na relação
intertextual que a obra
entrevendo a consumação de um Quinto Império. Quatro séculos antes, num Mensagem estabelece com
tom equiparável, Camões rematara a sua epopeia oferecendo-se ao Rei para o Os Lusíadas, de Luís de
Camões. Convoca, para o
20 acompanhar a África em busca de uma luz redentora. efeito, alguns poemas desta
obra de Fernando Pessoa e
José Augusto Cardoso Bernardes.
cruza-os com alguns episódios
da epopeia de Camões.
1. Indique o assunto do texto.

127
Fernando Pessoa

PERA LEITURA
CU R
RE
DE
R E L AT O M Leia o excerto do seguinte relato de viagem.
V IAG E

10.° ANO

As ilhas no oposto do mundo

A
petece-me fazer como o
primeiro português que
chegou aqui: nunca mais
me ir embora. “Para quê regres-
5 sar?”, pensou Francisco Serrão.
Penso o mesmo. Francisco Serrão
acordava de manhã cedo, descia
do palácio até à orla do mar, mer-
gulhava nestas águas esmeraldas
10 que, vistas de cima, parecem não
estar lá, parecem ser apenas cores
animadas envoltas numa película
de luz irreal, afastava-se flutuando
da margem para ganhar perspetiva sobre o vulcão perfeito que regula o olhar de todos os
15 homens das “Ilhas das Especiarias” desde sempre, respirava fundo, mergulhava.
A mim falta-me um palácio do qual sair, mas também me apetece abrir a boca debaixo
do mar e rir de felicidade. Não propriamente por tudo o que deixei para trás, mas simples-
mente por estar aqui. Sabe-se muito pouco do que Francisco Serrão fazia no seu quotidiano,
esta minha descrição do seu mergulho matinal é pura fantasia, mas estou quase certo de
20 uma coisa: para ele, ou para mim, ou para qualquer outro português, independentemente do
século em que aportar às Molucas, estar aqui faz rir às gargalhadas de felicidade.
Apanho pois um ojeck1. Só uma razão o explica: o gozo de ser conduzido. Imagino-me ou-
tra vez como Francisco Serrão, deslumbrado com tudo o que lhe acontece: a solicitude dos
indígenas para com o visitante europeu, a forma malandra de sorrir das mulheres pela cor
25 da pele portuguesa, a brisa quente pela noite fora a aconchegar o sono, o sabor exaltante
dos pratos locais, os produtos locais. Eis a razão da viagem de Serrão: os produtos locais.
Em 1511, o capitão da recém-conquistada fortaleza de Malaca, Afonso de Albuquerque, en-
via uma pequena expedição pela Indonésia abaixo no maior dos secretismos. Comanda-a
António de Abreu e a sua missão é de importância fulcral para o futuro da presença portu-
30 guesa no Oriente: localizar a origem de duas das mais ambicionadas especiarias da Idade
Média, o cravinho-da-índia e a noz-moscada. Francisco Serrão capitaneia um dos três na-
vios da armada.
Como chegar às míticas “Ilhas das Especiarias” foi o grande problema geográfico da Ida-
PROFESSOR de Média. Francisco Serrão resolveu-o. Depois de localizar as Molucas, a armada de António
35 de Abreu regressa a Malaca com as excelentes notícias. Mas o navio de Serrão naufraga.
O português salva-se e consegue alcançar Ternate. E pensa o mesmo que eu: para quê re-
Vídeo gressar?
Nas Ilhas das Especiarias,
Gonçalo Cadilhe, Encontros marcados, Lisboa, Clube do Autor, 2011, pp. 65-67 (com supressões).
Java, Bali, as Molucas
(com Gonçalo Cadilhe)
1
Ojeck: motorizada com motorista, que faz de táxi.

128
Mensagem

1. Identifique, no seu caderno, as alíneas que correspondem a afirmações verdadeiras.

a. O texto mistura objetividade e subjetividade, literatura e jornalismo, como é caracterís-


tico num relato de viagem.
b. Apesar de ser um relato de viagem, não é narrada nenhuma experiência particular e
efetivamente vivida.
c. Sendo um relato de viagem, o autor teria de descrever objetivamente o que observou.

d. O registo, aqui presente, de impressões pessoais sobre lugares, pessoas ou situações é


característico dos relatos de viagens.
e. O objetivo deste género textual e deste texto em particular é levar o leitor a imaginar os
locais e as situações descritas.
f. O relato de viagem apresenta grande variedade de temas, um discurso de primeira pes-
soa, uma dimensão narrativa e conjuga diferentes linguagens, nomeadamente o texto
verbal e a fotografia.

G 2. Selecione a alternativa que completa corretamente cada afirmação e registe as res-


postas no seu caderno.
2.1 Na frase “Apetece-me fazer como o primeiro português que chegou aqui” (ll. 1-3), o vo-
cábulo sublinhado é um deítico de valor
[A] temporal.

[B] espacial.

[C] pessoal.

[D] pessoal e temporal.

2.2 Na afirmação “descia do palácio até à orla do mar” (ll. 7-8), a forma verbal tem um valor
aspetual
[A] perfetivo.

[B] genérico.

[C] imperfetivo.

[D] iterativo. PROFESSOR

2.3 O tipo de coesão assegurada pelo pronome pessoal presente em “Francisco Serrão Leitura
resolveu-o.” (l. 34) é 7.1; 7.7
Gramática
[A] lexical por substituição. 17.1; 19.1; 19.2; 19.3

[B] gramatical interfrásica.


1.
[C] gramatical temporal. a. V
b. F
[D] gramatical referencial.
c. F
d. V
2.4 Em “E pensa o mesmo que eu” (l. 36), a oração sublinhada classifica-se como subordi-
e. V
nada f. V
[A] adverbial comparativa. 2.
2.1 [B]
[B] adverbial consecutiva. 2.2 [C]
[C] substantiva completiva. 2.3 [D]
2.4 [A]
[D] adjetiva relativa restritiva.

129
Fernando Pessoa

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
PROFESSOR
E MA
QU
Educação S À concretização dos sonhos associam-se obstáculos e sacrifícios.
E

Literária
14.2; 14.3; 14.5; EL
14.6; 14.7; 14.9 P
RO
J ETÁ
V Parte II − MAR PORTUGUÊS

1. A apóstrofe inicial, presente I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII


em “Ó mar salgado”, permite
interpelar e identificar o
CD 1
responsável pelo drama
e pelo sofrimento dos AIX
MAR PORTUGUÊS
A1
F

portugueses envolvidos nos


Descobrimentos. Ó mar salgado, quanto do teu sal
2. O valor metafórico dos São lágrimas de Portugal!
versos deve-se ao facto de
se sugerir que o sal do mar Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
advém das lágrimas vertidas
pelos portugueses, as quais,
Quantos filhos em vão rezaram!
por sua vez, simbolizam o 5 Quantas noivas ficaram por casar
sofrimento e a dor inerentes
aos Descobrimentos. Para que fosses nosso, ó mar!
3. As expressões que se
associam ao sofrimento são
utilizadas para comprovar a
Valeu a pena? Tudo vale a pena
afirmação inicial, apresentada Se a alma não é pequena.
nos dois primeiros versos do
poema. São elas: “lágrimas”, Quem quer passar além do Bojador
“cruzarmos” (que remete 10 Tem que passar além da dor.
para a palavra cruz, símbolo
do sofrimento de Cristo), Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
“choraram”, “rezaram”, “noivas Mas nele é que espelhou o céu.
ficaram por casar” (devido à
morte dos amados), “Bojador” Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins), Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 60.
(simbolizando os perigos e
obstáculos encontrados),
“dor”, “perigo” e “abismo”.
1. Refira o valor expressivo da apóstrofe inicial.
4. A interrogação retórica
introduz e enfatiza a reflexão
posterior sobre a necessidade 2. Explicite o valor metafórico dos dois primeiros versos.
e a utilidade dos sacrifícios.
5. A dimensão épica 3. Justifique, exemplificando, a utilização de expressões associadas ao sofrimento.
resulta da valorização e
do entusiasmo perante a 4. Comente a expressividade da interrogação retórica presente na segunda estrofe.
concretização do sonho e
de ideais elevados, como
foram os Descobrimentos 5. Comprove a existência de um tom épico e lírico, considerando a globalidade do poema.
portugueses, capazes de
conduzir à imortalidade.
A vertente lírica, por sua vez,
decorre da expressão dos COMPREENSÃO DO ORAL
sentimentos do “eu” poético
perante os efeitos nefastos
das descobertas e também da 1. Visione o anúncio publicitário e tome notas rela-
descrição do sofrimento dos tivamente aos seguintes aspetos:
que foram afetados por este
empreendimento. a. entidade promotora;
a
PERA
Oralidade CU R
b. produto publicitado e características enunciadas;
RE

1.1; 1.5; 1.6; 1.7; 1.8


A N Ú N C IOR IO c. conteúdo informacional do ponto de vista paisa-
c
Á
P U B L IC IT
gístico, cultural/histórico e de lazer;
Vídeo 10.° ANO
d. tipos de linguagem e poder persuasivo;
d
Turismo de Portugal, Turismo de Portugal, 2008.
2008 (4 minutos) e. objetivo do anúncio.
Nota: Disponível, no Guia
do Professor, um cenário de 2. Avalie a eficácia comunicativa e o poder sugestivo do anúncio publicitário, conside-
resposta para as atividades rando a multimodalidade (conjugação das diferentes linguagens e recursos expressi-
de Oralidade.
vos, verbais e não verbais) e o seu objetivo.

130
Mensagem

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Ao concluir-se a Parte II de Mensagem, é tempo de fazer o balanço do passado e do


presente, para anunciar o futuro. PROFESSOR

Parte II − MAR PORTUGUÊS Educação Literária


14.2; 14.3; 14.4; 14.6;
QU
E MA 114.9
I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII S

E
GGramática
117.1

EL
P
PRECE
RO V
J ETÁ EEscrita
110.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3
Senhor, a noite veio e a alma é vil. 1. O tema do poema, tal como
Tanta foi a tormenta e a vontade! sugere o título, é a súplica
a alguém (Senhor, Deus,
Restam-nos hoje, no silêncio hostil, D. Sebastião…) para que
O mar universal e a saudade. devolva ao povo português
a chama que as cinzas
ocultaram.
5 Mas a chama, que a vida em nós criou, 2. A noite sobrepõe-se ao dia,
ao tempo da grandeza, pelo
Se ainda há vida ainda não é finda. que, neste contexto, a "noite"
O frio morto em cinzas a ocultou: corresponde ao abatimento,
à destruição, à tristeza e ao
A mão do vento pode erguê-la ainda. desalento.
3. O uso da primeira pessoa
do plural expressa o coletivo,
Dá o sopro, a aragem − ou desgraça ou ânsia −, o povo português aqui
10 Com que a chama do esforço se remoça1, representado pelo sujeito
poético, que assume como seu
E outra vez conquistemos a Distância − o desalento dos outros. Por
Do mar ou outra, mas que seja nossa! 1
Rejuvenesce. isso, a sua súplica é também
a dos restantes portugueses.
Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins), Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 63. 4. A metáfora e a
personificação evidenciam
a ideia de que a esperança
1. Identifique o tema do poema, explorando o valor semântico do título. pode ser novamente avivada,
porque, enquanto há vida, há
esperança. Assim, tal como
2. Descodifique o valor simbólico de “noite”. o fogo quase extinto pode
ser reavivado pelo vento,
3. Justifique o emprego da primeira pessoa do plural ao longo do pema. também o sonho pode vir
a comandar de novo a ação
dos portugueses.
4. Explore o valor expressivo da metáfora e da personificação presentes em
5. O desalento é assumido
“A mão do vento pode erguê-la ainda.” (v. 8) pelo sujeito poético em
representação dos outros,
5. Evidencie a presença do desalento e da esperança. porque, no presente e após a
conquista do mar, só restam
o silêncio e a saudade. Porém,
6. Justifique a inserção do poema nesta secção da estrutura de Mensagem. também sobressai a ideia de
que nem tudo está perdido –
G 7. Indique a função sintática do pronome pessoal “nos”. (v. 3) com uma atitude diferente,
a situação pode alterar-se,
o que deixa antever a
esperança, a fé na mudança.
E S C R I TA 6. O poema localiza-se no
final da segunda parte (“Mar
Português”), depois de ter
sido apresentado o percurso
Perante contrariedades que levam ao desalento, é fundamental não perder nunca a es- glorioso da nação, que se
perança. deveu ao poder do sonho, que
é preciso, agora, alimentar.
1. Redija um texto de opinião, com 180 a 200 palavras, sobre a importância da esperan- 7. Complemento indireto.
ça para o ser humano, fundamentando o seu ponto de vista com dois argumentos e Nota: Disponíveis, no Guia
um exemplo significativo para cada um deles. do Professor, tópicos para
BLOCO INFORMATIVO – p. 378 planificação da Escrita.
PREPARAR O EXAME – p. 60

131
Fernando Pessoa

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A crença na construção de um novo império é um sinal de esperança.

PROFESSOR
Parte III − O ENCOBERTO
Educação Literária I − Os símbolos II − Os Avisos III − Os Templos
14.2; 14.3; 14.4; 14.9
E MA
QU
S
E

1. O sujeito poético
critica a felicidade O QUINTO IMPÉRIO
EL

alcançada sem esforço P R O T Á V


J E
e particularmente Triste de quem vive em casa, E assim, passados os quatro
aqueles que se contentam
com pouco, sem que o sonho Contente com o seu lar, Tempos do ser que sonhou,
os mova, considerando “triste” A terra será teatro
todo aquele que vive apenas
Sem que um sonho, no erguer de asa,
por viver (1.a estrofe). Faça até mais rubra a brasa Do dia claro, que no atro
2. O verso configura uma 5 Da lareira a abandonar! 20 Da erma noite começou.
máxima através da qual se faz
a apologia da inquietação, do
descontentamento e do sonho Triste de quem é feliz! Grécia, Roma, Cristandade,
como meios para ultrapassar
os limites e a finitude Vive porque a vida dura. Europa – os quatro se vão
humanas.
Nada na alma lhe diz Para onde vai toda idade.
3. O sonho é determinante
para que a vida avance e para Mais que a lição da raiz − Quem vem viver a verdade
que o ser humano se realize. 10 Ter por vida a sepultura. 25 Que morreu D. Sebastião?
Por isso, deve dominar “as
forças cegas” (v. 14), ou seja, Fernando Pessoa, Mensagem
tudo aquilo que impeça o Eras sobre eras se somem (ed. Fernando Cabral Martins), Porto,
homem de sonhar e de realizar
No tempo que em eras vem. Assírio & Alvim, 2012, pp. 72-73.
os sonhos.
4. Os quatros impérios são a Ser descontente é ser homem.
Grécia, Roma, a Cristandade
e a Europa. De acordo com o Que as forças cegas se domem
sujeito poético, estes serão 15 Pela visão que a alma tem!
esquecidos pelo surgimento
de um novo império sob o
comando de D. Sebastião,
o messias redentor que,
tal como sugerido pela
interrogação final, não terá
morrido.
5. A enumeração tem como
função presentificar os quatro
anteriores impérios que agora
darão lugar ao quinto.
A interrogação final evidencia
que o mito, a fé e o sonho
foram responsáveis pela
grandeza dos portugueses
de outrora. Uma vez que
essas características ainda
não desapareceram, a
interrogação funciona como 1. Explique a crítica do sujeito poético a um certo tipo de felicidade.
um incentivo, que parte da
lição que os portugueses de
agora deverão tirar da morte 2. Evidencie o sentido universal do verso “Ser descontente é ser homem.”(v. 13)
de D. Sebastião em nome de
um ideal e de uma quimera. 3. Mostre a importância do sonho, referindo o que deve ser feito para o realizar.
6. O poema é o segundo da
terceira parte, onde a par
4. Indique os quatro impérios anteriores e justifique a supremacia do Quinto sobre eles.
do desalento pelo fim do
império surge a esperança na
reconstrução e na afirmação 5. Refira a expressividade da enumeração e da interrogação retórica presentes na última
da nação portuguesa, aqui
projetada no mito do Quinto
estrofe.
Império.
6. Justifique a inserção do poema na estrutura de Mensagem.

132
Mensagem

INFORMAR

Exaltação patriótica
TEXTO A
Pessoa faz um espantoso exercício de permutas históricas e de análises,
mais ou menos rigorosas, sobre o que considera ser a evolução do pensa-
mento europeu, apontando sempre para o seu interesse em erigir Portugal
como a nação onde se consumará o Quinto Império.
5 Se a criação de heterónimos pode ser entendida como resposta estéti-
ca às limitações próprias das possibilidades expressivas de um indivíduo,
criando um espaço de encontro entre posições divergentes que se tornam
complementares, o Quinto Império é apresentado como resolução harmo-
niosa da história das oposições nacionais. A nação, pensada analogicamen-
10 te como um indivíduo alargado, ocupa o seu papel essencial numa escrita
pessoana que pretende libertar-se da sua individualidade para se inscrever
numa história universal por meio da linguagem profética: a vida humana é
feita de esperança, e por isso a vida das nações, que é a vida humana maior,
Esfera armilar
é feita de profecias. (arte manuelina).
In Fernando Pessoa, Sebastianismo e Quinto Império (edição, introdução e notas
de Jorge Uribe e Pedro Sepúlveda), Lisboa, Ática, 2011, pp. 152-153 (com supressões).

TEXTO B
A divisão é: Império Grego (sintetizando todos os conhecimentos, toda a ex-
periência dos antigos impérios pré-culturais); o Império Romano (sintetizando
toda a experiência e cultura gregas e fundindo em seu âmbito todos os povos
formadores, já ou depois, da nossa civilização); o Império Cristão (fundindo a
5 extensão do Império Romano com a cultura do Império Grego, e agregando-lhe
elementos de toda a ordem oriental, entre os quais o elemento hebraico); e o PROFESSOR
Império Inglês (distribuindo por toda a terra os resultados dos outros três im-
périos, e sendo assim o primeiro de uma nova espécie de síntese − fundindo a Leitura
7.1; 7.3; 7.4
cultura grega, em nenhum lugar tão marcada como em Inglaterra, − a extensão e
Educação Literária
10 imperium dos romanos, a moral cristã, em parte alguma tão ativa como nos paí- 16.1
ses de língua inglesa, onde é máxima a atividade cristã, como se vê pelas seitas
1. Logo no primeiro parágrafo
numerosíssimas que revelam essa especulação constante)... O Quinto Império do texto A, afirma-se que
necessariamente fundirá esses quatro impérios com tudo quanto esteja fora de- Portugal será a nação “onde se
consumará o Quinto Império”
les, formando pois o primeiro império verdadeiramente mundial, ou universal. (l. 4); no segundo parágrafo
15 Este critério tem a confirmá-lo a própria sociologia da nossa civilização. Esta diz-se que o Quinto Império
permitiria resolver oposições
é formada, tal qual está hoje, por quatro elementos: a cultura grega, a ordem ro- nacionais.
mana, a moral cristã, e o individualismo inglês. Resta acrescentar-lhe o espírito O texto B apresenta a
explicação que justifica
de universalidade, que deve necessariamente surgir do caráter policontinental o surgimento de um novo
império, referindo os impérios
da atual civilização. Até agora não tem havido senão civilização europeia; a uni- anteriores, que se fundirão
20 versalização da civilização europeia é forçosamente o mister do Quinto Império. no Quinto encabeçado por
Portugal, que assumirá assim
In Fernando Pessoa, sobre Portugal − Introdução ao problema nacional (recolha de textos de Maria Isabel uma dimensão “universal”
Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão), Lisboa, Ática, 1979, p. 41, (ll. 12-14). Posto isto,
in arquivopessoa.net. facilmente se confirma que
por meio do Quinto Império se
faz a exaltação de Portugal.
1. Articule o conteúdo dos dois textos com a problemática do Quinto Império.

133
Fernando Pessoa

PROFESSOR
EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.6;
14.9; 15.1; 15.2
Três são “Os Avisos”: o primeiro é de Bandarra (sapateiro e trovador português do sé-
1. O sujeito poético S
QU
E MA culo XVI); o segundo é de Vieira (pregador setecentista); o terceiro é, presumivelmen-
E

encontra-se à beira te, de Pessoa.


do abismo, nos
EL

P
limites da mágoa, RO
J ETÁ
V

tendo necessidade Parte III − O ENCOBERTO


de se refugiar no mito de um
redentor para preencher I − Os Símbolos II − Os Avisos III − Os Tempos
os seus “dias vácuos” (v. 6).
Mostra-se, assim, convicto
da vinda de um messias, Screvo meu livro à beira-mágoa.
embora não saiba quando.
2. Na primeira parte,
Meu coração não tem que ter.
correspondente aos seis Tenho meus olhos quentes de água.
primeiros versos, o sujeito
poético dá conta da sua
Só tu, Senhor, me dás viver.
tristeza e do único alento
que tem para viver; na
segunda, que se inicia com
5 Só te sentir e te pensar
a conjunção "Mas" (v. 7), Meus dias vácuos enche e doura.
o “eu” lança uma série de
perguntas introduzidas por Mas quando quererás voltar?
"Quando" e dirigidas a uma Quando é o Rei? Quando é a Hora?
entidade mítica, designada
por vários nomes (Rei, Hora,
Cristo, Encoberto, Sonho, Quando virás a ser o Cristo
Senhor), e apela à sua rápida
vinda, porque só assim ele 10 De a quem morreu o falso Deus,
se libertará da incerteza e se
realizará o sonho de alcançar
E a despertar do mal que existo
"A Nova Terra e os Novos Céus" A Nova Terra e os Novos Céus?
(v. 12).
3. O uso sistemático das
interrogações traduz o Quando virás, ó Encoberto,
desespero e a ansiedade do
sujeito poético, que interroga
Sonho das eras português,
o seu presumível interlocutor, 15 Tornar-me mais que o sopro incerto
com o objetivo de conhecer
as circunstâncias do seu De um grande anseio que Deus fez?
regresso.
4. A “Nova Terra” e os “Novos Ah, quando quererás, voltando,
Céus” simbolizam o novo
império, uma nova realidade Fazer minha esperança amor?
que será construída com a
ajuda do Sonho, do Senhor
Da névoa e da saudade quando?
a quem o “eu” se dirige. 20 Quando, meu Sonho e meu Senhor?
Nota: Disponíveis, no Guia Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins), Porto, Assírio & Alvim, 2012, pp. 81-82.
do Professor, cenários de
resposta para as questões
1. Caracterize o estado de espírito do sujeito poético.
5, 6 e 7.

2. Divida o poema em duas partes, apresentando sinteticamente o conteúdo de cada


uma delas.
Áudio
“Por quem não esqueci”, 3. Demonstre a expressividade decorrente do uso das interrogações.
Sétima Legião (4 minutos)

1. A nação encontra-se numa 4. Refira o valor simbólico das expressões “Nova Terra” e “Novos Céus”. (v. 12)
situação de crise – indefinição
política e social (v. 1); crise 5. Comprove a presença de um pendor sebastianista no texto.
de valores, “Nem o que é
mal nem o que é bem” (v. 9); 6. Analise formalmente o poema.
desorientação, “Ninguém
sabe que coisa quer” (v. 7).
Em suma, a nação está a 7. Escute o tema “Por quem não esqueci”, interpretado pelo grupo Sétima Legião (álbum
entristecer, a definhar, De um tempo ausente, 1989).
a perder o brilho de outrora.
7.1 Estabeleça duas relações temáticas pertinentes entre a canção e o poema pessoano.

134
Mensagem

PROFESSOR
EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.9;
E MA
QU 15.1; 15.2
A perda dá lugar à esperança como reação necessária à “apagada e vil tristeza” que já S

E
Camões constatara. Gramática
17.1; 19.2

EL
P V
RO
J ETÁ

Parte III − O ENCOBERTO

I − Os Símbolos II − Os Avisos III − Os Tempos Áudio – “Nevoeiro”


2. Os últimos versos dão conta
CD 1
do estado da nação e são uma
espécie de grito de alerta e de
AIX
NEVOEIRO esperança que funciona como
A1
F

um pedido de ação: o sujeito


Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, quer que se saia da letargia
e que se parta à conquista,
Define com perfil e ser cumprindo o sonho, o destino
Este fulgor baço da terra que foi traçado por Deus para
o povo predestinado, o povo
Que é Portugal a entristecer – português.
5 Brilho sem luz e sem arder, 3. A metáfora sugere o estado
de crise em que se encontra
Como o que o fogo-fátuo encerra. o país. O vocábulo “nevoeiro”
apresenta, assim, várias
potencialidades semânticas:
Ninguém sabe que coisa quer. do oculto pode surgir a luz;
quando o nevoeiro se dissipa,
Ninguém conhece que alma tem, o Sol brilha; do nevoeiro pode
Nem o que é mal nem o que é bem. surgir o salvador. Porém,
o que se destaca é a letargia,
10 (Que ânsia distante perto chora?) a inércia e a tristeza que se
abateram sobre Portugal.
Tudo é incerto e derradeiro.
4. Trata-se do poema
Tudo é disperso, nada é inteiro. que fecha a terceira
parte – O Encoberto – e,
Ó Portugal, hoje és nevoeiro... por conseguinte, a obra
Mensagem. Simbolicamente,
aponta para o fim, a morte,
É a Hora ainda que esta não possa ser
entendida como definitiva,
15 Valete, Fratres.1 1
pois dar-se-á o renascimento
Força, irmãos. sugerido nos últimos versos.
Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins), 5. A gradação, a que se associa
Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 91. a enumeração, é visível em
“Ninguém sabe que coisa
quer. / Ninguém conhece que
alma tem, / Nem o que é mal
nem o que é bem” (vv. 7-9) e
1. Caracterize o estado da nação, segundo a visão do sujeito poético. sugere o estado de desnorte
progressivo da nação,
centrando-se inicialmente no
2. Destaque a funcionalidade dos versos 11 a 14. domínio do saber, depois no
do conhecer, culminando num
3. Refira o valor expressivo da metáfora presente no verso “Ó Portugal, hoje és nevoei- estado de não distinção entre
o mal e o bem. O mesmo efeito
ro…”. (v. 13) expressivo tem a anáfora, pois
acentua o caráter negativo
4. Justifique a localização do poema na estrutura de Mensagem. que paira sobre a nação,
reforçado pela utilização dos
termos antitéticos “Ninguém”
5. Identifique, na segunda estrofe, exemplos de anáfora e de gradação, referindo a sua e “Tudo”, pronomes indefinidos
expressividade. que intensificam a atmosfera
de incerteza e de nebulosidade
que a mensagem do poema
G 6. Considere os versos 7 e 8 do poema. veicula.
6.1 Identifique e classifique as orações subordinadas aí presentes. 6.1 Ambas as orações (“que
coisa quer”; “que alma
6.2 Indique a classe de palavras a que pertence o sujeito das orações subordinantes. tem”) são subordinadas
substantivas completivas.
6.2 “Ninguém” é um pronome
7. Identifique o valor aspetual conferido pela expressão sublinhada em “Que é Portugal indefinido.
a entristecer”. (v. 4) 7. Valor imperfetivo.

135
Fernando Pessoa

INFORMAR

A natureza épico-lírica da obra e a dimensão simbólica


do herói
Desde que concebeu a realização daquilo que viria a ser a Mensagem (e que
provisoriamente se chamou Portugal), Fernando Pessoa pretendeu que o seu livro
estivesse acima de qualquer género literário estabelecido, isto é, que, em vez de
obedecer servilmente às regras que definem os modos e os géneros, fundisse “toda
5 a poesia lírica, épica e dramática em algo para lá de todas elas”. Por isso, mais do
que poema épico-lírico, a Mensagem é um poema épico-lírico-dramático. É mes-
mo mais dramático e lírico do que épico, pois também ideologicamente ele contém
uma tensão entre “poeta” e a sociedade que não existe no mundo fechado e perfei-
to da epopeia clássica. Não podemos, finalmente, esquecer que várias personagens
10 do livro pessoano exprimem-se através da primeira pessoa verbal, dirigindo-se
diretamente ao leitor, como se o autor fosse – como ele próprio, aliás, gostava de ser
visto – apenas o meio através do qual se transmitia a voz dos heróis.
Apesar de serem sete os Castelos do Brasão português, Pessoa enaltece através
deles a ação de oito heróis: quatro anteriores à fundação do Reino (Ulisses, Viriato,
15 o Conde D. Henrique e D. Teresa; o rei fundador, D. Afonso Henriques; D. Dinis, o
trovador, a primeira grande figura literária da língua portuguesa, mas também o
precursor das Descobertas, o “plantador de naus a haver”; e finalmente, partilhan-
do o sétimo castelo, o rei e a rainha que originaram a dinastia responsável pela
expansão ultramarina, D. João o Primeiro e D. Filipa de Lencastre.
PROFESSOR
20 A inclusão dos dois primeiros tem sobretudo a função de mitificar desde a ori-
Leitura gem a história de Portugal. Os seguintes são os pais do primeiro rei, tendo por isso
7.1; 7.3; 7.4; 8.1; 9.1
também o estatuto de pais da Pátria. O homem, envelhecido, que foi o menino de
Educação Literária
16.1
D. Teresa não é Afonso Henriques mas Portugal. O Conde D. Henrique, por sua vez,
é o sinal que anuncia o devir de que o seu filho é um agente já não involuntário.
1. Segmentos como “Fernando 25 Pessoa conseguiu dar expressão poética ao martírio de cada uma das persona-
Pessoa pretendeu que o seu gens ilustrativas as Quinas, que não pode confundir-se com fracasso. Da galeria
livro estivesse acima de
qualquer género literário de personagens do “Brasão”, só estas se exprimem na primeira pessoa verbal, o
estabelecido, isto é, que, em
vez de obedecer servilmente
que indicia uma grande proximidade entre o poeta e estes heróis trágico-épicos
às regras que definem os (D. Duarte, D. Fernando, D. Pedro, o Infante D. João e D. Sebastião), que, apesar do
modos e os géneros, fundisse
‘toda a poesia lírica, épica 30 sofrimento ou da derrota, mantêm os traços de grandeza próprios de quem foi es-
e dramática em algo para colhido para cumprir um destino.
lá de todas elas’”, (ll. 2-5)
“Mensagem é um poema Outro herói inevitável na Mensagem é NunÁlvares Pereira. É ele “A Coroa” do
épico-lírico-dramático” Brasão de Portugal.
(l. 6), “Pessoa enaltece através
deles a ação de oito heróis” “O Timbre” tem três subdivisões: a cabeça do Grifo é o “infante D. Henrique”;
(ll. 13-14) respondem ao 35 as asas são “D. João o Segundo” e “Afonso de Albuquerque”. No seu conjunto per-
solicitado na questão.
2. Os heróis evidenciados na sonificam a grandeza do antigo Império Colonial Português: o Infante representa
Mensagem assumem todos a extensão territorial; D. João, a força espiritual. Afonso de Albuquerque simboliza
uma dimensão simbólica,
dado serem mitificados a força material, o domínio do mundo pelos portugueses dos séculos XV e XVI.
e presentificados como António Apolinário Lourenço, “Entre Cila e Caríbdis: a Mensagem de Fernando Pessoa no ensino
modelos e/ou símbolos que secundário”; Os Programas de Português dos Ensinos Básico e Secundário, Atas das III jornadas
importa voltar a impor num científico-pedagógicas de Português, Coimbra ILLP/FLUC, 2008, pp. 120-121; 125-126 (adaptado e com supressões).
Portugal moribundo como o
que existia na época em que
esta obra de Fernando Pessoa 1. Destaque, no texto, os segmentos relativos à natureza épico-lírica da obra pessoana.
foi publicada.
2. Explique de que modo se manifesta a dimensão simbólica do herói em Mensagem.

136
Mensagem

INFORMAR

O sebastianismo e a dimensão patriótica


TEXTO A
Foram muitos os anos ao longo dos quais Pessoa escreveu sobre sebastianismo
e D. Sebastião é um nome que aparece constantemente na sua obra. Pessoa reflete
constantemente sobre o sistema de categorização e hierarquização da sua obra,
identificando os assuntos principais e subordinando a estes outros aspetos. Um Retrato do Rei D. Sebastião
5 destes movimentos de hierarquização pode ser reconhecido ao ver como o sebas- (detalhe), c. 1571-1574, Cristóvão
de Morais, Museu Nacional
tianismo começa por ser um assunto que abrange o Quinto Império e acaba por de Arte Antiga.
estar subordinado a este último numa etapa de escrita cronologicamente posterior. PROFESSOR

Nos primeiros anos da escrita sebastianista, Pessoa refere o Quinto Império,


Leitura
o império definitivo e universal a ser alcançado após o regresso de D. Sebastião, 7.1; 7.3; 7.4; 8.1; 9.1
10 apenas como resolução causal necessária e não como o objeto do seu discurso. Educação Literária
16.1
Os textos de Pessoa de um primeiro período de escrita sebástica enfatizam figu-
ras individuais, que desaparecem à medida que Pessoa se começa a concentrar na 1. a. No texto afirma-se que
questão do Quinto Império. “o sebastianismo começa por
ser um assunto que abrange
Pessoa esforça-se por caracterizar D. Sebastião enquanto sujeito que transcende o Quinto Império e acaba por
15 a sua dimensão individual, adquirindo a posição de figura simbólica de uma his- estar subordinado a este
último numa etapa de escrita
tória universal, num procedimento que vai ao encontro do seu crescente interesse cronologicamente posterior”,
o que se compreende,
pelo pensamento teosófico e esotérico, desde a segunda metade dos anos 1910 até bastando, para isso, ver o
ao final da sua vida em 1935. poema “Quinto Império”,
em que se fala no advento
Fernando Pessoa, Sebastianismo e Quinto Império (edição, introdução e notas de Jorge Uribe desta realidade espiritual e
e Pedro Sepúlveda), Lisboa, Ática, 2011, pp. 145-147. se refere especificamente o
mito sebastianista ao pôr-se
TEXTO B em dúvida a morte do rei
português. Também neste
Mensagem é um livro que se apresenta formalmente com uma grande unidade texto se diz que “Nos primeiros
anos da escrita sebastianista,
estrutural e que Pessoa quis que fosse visto como constituído por um único e longo Pessoa refere o Quinto
Império, o império definitivo e
poema. Inicia-se com uma epígrafe em latim (Benedictus Dominus Deus Noster Qui universal a ser alcançado após
dedit Nobis Signum, ou seja, “Bendito Deus Nosso Senhor Que Nos Deu O Sinal”), o regresso de D. Sebastião”,
entendido como figura
5 que coloca em evidência a sua propensão profética, fazendo do poeta um intérprete simbólica.
da mensagem divina, e termina com uma exortação rosacruciana, que se segue ao b. D. Sebastião é visto como
verso final (“É a hora!”) do poema “Nevoeiro”: “Valete, Fratres.” Correspondendo salvador, como garante da
resolução do marasmo em
a uma tentativa estética de combinar harmonicamente os modos poéticos lírico, que se encontrava a nação,
construindo “o império
dramático e épico, fundindo-os num único modo, compõe-se de três partes: cele- definitivo e universal”. Mas
10 bram-se no Brasão os pais fundadores da nacionalidade portuguesa; glorificam-se mais importante ainda é que
o rei português adquire um
em Mar Português os grandes feitos náuticos e as Descobertas lusas; e profetizam- estatuto simbólico, ilustrando
se n’O Encoberto as realizações futuras da pátria portuguesa, que o autor crê pre- o caráter esotérico da obra
pessoana.
destinada para ser a cabeça de um grande império espiritual e cultural.
2. A unidade estrutural
António Apolinário Lourenço, Fernando Pessoa, Lisboa, Edições 70, 2009, p. 77 (com supressões). de Mensagem resulta da
sua tripartição, na qual se
representa o ciclo da vida da
nação. Com efeito, na Parte I
1. Recupere a informação do texto A.
salienta-se a dimensão
a. Relacione D. Sebastião com o mito do Quinto Império. profética de Portugal;
na Parte II, os grandes
b. Explique de que modo Pessoa concebe a figura de D. Sebastião. feitos náuticos;
na Parte III “profetizam-se
[…] as realizações futuras
2. Explique, com base no texto B, por que razão se pode ver uma “grande unidade estrutural” da pátria portuguesa”.
na Mensagem.

137
CONSOLIDAR Mensagem

ESTRUTURA TRIPARTIDA

Brasão Mar Português O Encoberto

Fundadores da nação Expansão e afirmação do Império Fim ou decadência

Nascimento Vida Morte Renascimento

Conjunto de 44 poemas de natureza épica e lírica e com forte dimensão simbólica

Evocação e exaltação de heróis Visível tanto nos heróis


Fundo histórico na recriação
individuais que assumem uma mitificados, que devem ser
de ações passadas, para estímulo
posição pessoal, veiculadora da visão imitados pelas suas ações, como
do presente.
emotiva e subjetiva do “eu” lírico. nos subtítulos e na numeralogia.

SEBASTIANISMO

Mito reavivado e alimentado por Fernando Pessoa perante a necessidade de reerguer Portugal,
sendo urgente que outros tomem o sonho que outrora moveu D. Sebastião que, transformado em
messias redentor, conduzirá os portugueses à construção de um novo império.

Quinto Império – substituirá os quatro antecessores e superá-los-á, dado ter um caráter universal
e espiritual. Este império será português.

Exaltação patriótica

LINGUAGEM E ESTILO

No cruzamento de um percurso esotérico, ocultista e mítico, Pessoa construiu textos em que


desvaloriza a narração e a descrição (mais típicas da epopeia), dando antes relevo ao pensamento
e, numa linguagem simbólica, com recurso à apóstrofe, à metáfora, à gradação, à enumeração
e à interrogação retórica, fazendo prevalecer o imaginário em poemas breves, numa organização
estrófica, métrica e rimática de cariz tradicional.

138
VERIFICAR

1. Associe, no seu caderno, cada um dos segmentos da coluna A ao da coluna B que


lhe completa o sentido.

Coluna A Coluna B

[A] Mensagem apresenta [1] o apogeu, o domínio do mar.

[2] apresentado como o rei fundador.


[B] A primeira parte de Mensagem
subdivide-se
[3] uma estrutura tripartida e simbólica.
[C] Simbolicamente, “Brasão”
corresponde [4] em cinco secções com um número variável
de poemas.

[D] “Mar Português” simboliza [5] visto como impulsionador dos


Descobrimentos.

[E] A Parte III de Mensagem assume [6] uma dimensão mais simbólica. PROFESSOR

[7] o herói que deu nome à cidade de Lisboa.


[F] Ulisses é
Apresentação
[8] o herói Nun’Álvares Pereira. Síntese da Unidade 3
[G] D. Afonso Henriques é
[9] o responsável pela queda do Império. Educação Literária
14.3; 14.7; 15.1
[H] D. João II é [10] à origem ou nascimento da nação.
1.
[A] – [3]
2. Classifique, no seu caderno, como verdadeiras ou falsas as seguintes afirmações. [B] – [4]
Corrija as falsas. [C] – [10]
[D] – [1]
a. Na obra pessoana, a dimensão lírica sobrepõe-se à épica.
[E] – [6]
b. D. Sebastião alimenta o mito da regeneração da Pátria. [F] – [7]
[G] – [2]
c. Fernando Pessoa não acredita em mitos, banindo-os, assim, da sua obra. [H] – [5]
d. O Quinto Império simboliza a posse dos mares, adquirindo, por isso, uma dimensão 2.
a. V
material.
b. V
e. A exaltação patriótica evidencia-se nas Partes I e II de Mensagem. c. F – Fernando Pessoa
alimenta os mitos e explora o
f. Segundo Fernando Pessoa, a futura civilização europeia será lusitana. seu valor.
d. F – O Quinto Império tem
g. O herói tem, em Mensagem, um caráter concreto, real e objetivo. uma dimensão imaterial: é um
império cultural e espiritual.
h. O tempo em que surge Mensagem é próspero, justificando-se o tom eufórico dos e. V
poemas. f. V
g. F – O herói, em Mensagem,
i. O único livro de Fernando Pessoa publicado em vida esteve para se chamar Portugal. tem um caráter simbólico.
h. F – O tempo em que surge
j. São muitos os poemas de Mensagem que estabelecem uma relação intertextual Mensagem é de deceção, de
com Os Lusíadas. marasmo e de inércia, o que
alimenta um tom disfórico.
k. Fernando Pessoa revelou-se um autor messiânico, particularmente em “O Encoberto”. i. V
j. V
l. No poema “Quinto Império” exprime-se o desejo de superar, através do sonho,
k. V
o quotidiano sem ambição. l. V

139
Fernando Pessoa
AVA L I A R Mensagem
GRUPO I

Apresente as suas respostas de forma bem estruturada aos itens A e B.

A
Leia atentamente o poema da obra Mensagem.

PROFESSOR
HORIZONTE

Ó mar anterior a nós, teus medos


Ficha
Ficha de Avaliação –
Tinham coral e praias e arvoredos.
Unidade 3 Desvendadas a noite e a cerração,
Apresentação As tormentas passadas e o mistério,
Soluções Ficha 5 Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
de Avaliação
Splendia sobre as naus da iniciação.
GRUPO I
Linha severa da longínqua costa −
Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.7; Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
14.8; 15.1 Em árvores onde o Longe nada tinha;
1. Denotativamente, o título
10 Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
significa a linha longínqua E, no desembarcar, há aves, flores,
da costa onde parecem
unir-se o céu e a terra. Onde era só, de longe a abstrata linha.
Conotativamente, sugere
o desconhecido, o medo, o
que está além do alcance O sonho é ver as formas invisíveis
da vista. Da distância imprecisa, e, com sensíveis
2. Existem dois tempos
distintos: o antes e o depois
15 Movimentos da esprança e da vontade,
dos Descobrimentos. Buscar na linha fria do horizonte
O primeiro corresponde ao
“mar anterior a nós” (v. 1), A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte −
precedente à grande empresa Os beijos merecidos da Verdade.
dos portugueses. O segundo,
visível em “Desvendadas Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins), Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 50.
a noite e a cerração, / As
tormentas passadas e o
mistério” (vv. 3-4), remete 1. Explicite o valor conotativo e denotativo do título.
para um tempo posterior às
descobertas. O espaço está
também relacionado com 2. Caracterize o tempo e o espaço invocados.
o antes e o depois de
se desvendarem os mares: 3. Defina, por palavras suas, o “sonho” invocado no verso 13.
o desconhecido responsável
pelas tormentas dá lugar
ao conhecido, depois que a B
nau faz a sua aproximação
progressiva da costa e
desvenda o “horizonte” (v. 16),
Leia as estâncias 52 e 53 do canto IX de Os Lusíadas.
tornando-se, assim, um
espaço concreto, real, De longe a Ilha viram, fresca e bela,
e já não o do sonho.
3. O sonho é o motor da ação Que Vénus pelas ondas lha levava
humana. Se o ser humano não (Bem como o vento leva branca vela)
sonhar, a obra não nascerá e
nada lhe permitirá distinguir- Pera onde a forte armada se enxergava;
-se dos outros animais. Por 5 Que, por que não passassem, sem que nela
isso, o sonho dá sentido à vida
e preenche o coração. Se não Tomassem porto, como desejava,
fosse o sonho, o “horizonte” Pera onde as naus navegam a movia
(v. 16) não seria alcançado.
A Acidália, que tudo, enfim, podia.

140
Mas firme a fez e imóbil, como viu PROFESSOR
10 Que era dos Nautas vista e demandada,
Qual ficou Delos, tanto que pariu 4. A dimensão fantástica
advém da forma como a ilha
Latona Febo e a Deusa à caça usada. surge, uma vez que esta
Pera lá logo a proa o mar abriu, parece ser transportada até
junto das naus, como se fosse
Onde a costa fazia ũa enseada o local onde se pretendia
15 Curva e quieta, cuja branca areia aportar; a ilha a procurar os
marinheiros e não o contrário.
Pintou de ruivas conchas Citereia. Além disso, afirma-se que
a ilha vai até junto das naus
Luís de Camões, Os Lusíadas (leitura, prefácio e notas de A. Costa Pimpão), e se imobiliza, ações que se
Lisboa, IC-MNE, 2000, p. 400. inscrevem no domínio do
irreal, do fantástico.
5. Este excerto estabelece
4. Explique a dimensão fantástica presente nas estâncias selecionadas. alguma relação temática com
o poema pessoano, dado que
5. Relacione este excerto de Os Lusíadas com o poema de Mensagem transcrito na também nestas estâncias se
página anterior. sugere o desvendar da terra
e a aproximação das naus
à costa.
GRUPO II

Responda às questões. Nas respostas aos itens de escolha múltipla, selecione, no seu
caderno, a opção correta.

Voando sobre a Costa dos Esqueletos


Estou a bordo de um pequeno Cessna de quatro lugares que geme e soluça
algumas dezenas de metros acima do deserto do Namibe, que nos dizem ser
o mais antigo deserto do mundo, qualquer coisa como 80 milhões de anos
para chegar ao dia de hoje comigo aqui. É um marco histórico na minha vida,
5 cruzar-me com tantos milhões de anos e tanto espaço vazio, mas o deserto
nem repara – o que é um dia, um voo, o que é um homem no meio de tanto
tempo e tanto espaço? O deserto ocupa a faixa atlântica da África Austral e o
pedacinho encostado ao mar recebe o nome macabro de “Costa dos Esque-
letos”. Em inglês soa pior ainda, “Skeleton Coast”. Nome lúgubre e tenebroso
10 para recordar a facilidade de morte em terra e de naufrágio no mar. O piloto
aponta de vez em quando algo lá em baixo: vemos carcaças de navios, ossos
de baleias e focas, aldeamentos mineiros abandonados.
Estamos a voar há duas horas e o deserto do Namibe parece um catálogo
de tudo o que existe anti-humano. Dunas do tamanho da serra de Sintra,
15 desfiladeiros que fariam corar de vergonha o canhão da Nazaré, um punhado
de formas de vida tão específicas e tão adaptadas a 80 milhões de anos de
areia seca que fazem parte do Namibe as Galápagos do deserto – Darwin não
precisava de ter ido tão longe para perceber a evolução das espécies. E nós,
banais exemplares da nossa espécie, se agora fôssemos forçados a aterrar? Se
20 uma emergência nos colocasse no epicentro desta ausência de possibilidades
de adaptação da espécie ao que quer que seja?
A ideia entretém a minha concentração durante alguns minutos. Eu, per-
dido no meio de 2000 km de comprimento por 200 km de largura de coisa
nenhuma. Temperaturas acima de 40 graus de dia, perto do zero à noite.
25 Precipitação anual de 5 milímetros. Não chega sequer para humedecer o 1
Povo mais antigo da África
olho de um bosquímano1. A sombra existe durante cerca de meia hora cada
Austral.

141
Fernando Pessoa
AVA L I A R
madrugada e cada final de tarde, no sopé de dunas com 300 metros de altura
e 30 quilómetros de comprimento. No resto do dia, o sol cai a pique nesta ter-
ra maldita. Nem mesmo quando um denso banco de nevoeiro sai das águas
30 geladas da corrente de Benguela e penetra insidiosamente umas dezenas de
quilómetros pelo continente adentro seguimos com a sensação de estar pro-
tegidos do sol. Mudo a rota dos meus pensamentos, olho de novo para baixo.
E se víssemos brilhar algo na areia, tentávamos aterrar? Seria certamente
um diamante, nada mais existe aqui, apenas areia e diamantes. Diz-se que de
35 noite ao luar caminhando na Costa dos Esqueletos se pode avistar as pedras
apenas pelo reflexo. Seja como for, a zona dos diamantes está vedada, uma
enorme porção de deserto do tamanho de um país só acessível aos funcioná-
rios da De Beers. Qualquer caminhante não autorizado será abatido. Interro-
gatórios, fazem-se depois.
40 Volto a pensar em Darwin. E na evolução das espécies. E nas que não evo-
luíram, nas que entraram em extinção antes de nós, humanos, sermos sequer
primatas. Dinossauros, mamutes, tigres-dentes-de-sabre, basilossauros,
pterodáctilos. Que lógica, que sentido tem a vida na terra? Os que não são
extintos são comidos. Uma cadeia alimentar que não poupa nem os mais
45 fortes. Uma lei implacável de violência, sangue, sofrimento, casualidade.
A lei da selva. A lei da Terra.
E nós, humanos, como viemos parar aqui? Foi diferente para nós? Ou tam-
bém seremos extintos, um dia? De onde viemos, para onde vamos? O que
somos? Volto a olhar para baixo e para o lado e para longe. O que somos?
50 “Grãos de areia na eternidade”, responde o deserto com uma gargalhada.
Encolho os ombros e rio-me com ele.
Gonçalo Cadilhe, Voando sobre a Costa dos Esqueletos, Visão, edição online, maio de 2015.

1. O voo sobre o deserto do Namibe é um marco histórico para o autor porque

PROFESSOR [A] sente que a sua presença naquele local não é ignorada.
[B] contempla um espaço que resulta de milhões de anos de formação.
GRUPO II
[C] o espaço que observa se reveste de uma enorme importância geográfica.
Leitura
7.1; 8.1 [D] a viagem no pequeno Cessna envolve riscos enormes.
Gramática
17.1; 19.3; 20.1 2. A designação “Costa dos Esqueletos” adquire um
[A] sentido idêntico ao que tem em inglês.
1. [B]
2. [B] [B] significado mais macabro em inglês.
3. [C] [C] valor pejorativo quando traduzida para francês.
4. [B]
5. [D]
[D] valor denotativo quando traduzida em inglês.
6. [A]
7. [C] 3. O deserto de Namibe é
8. Orações coordenadas [A] apresentado como uma das regiões que mais evoluíram.
assindéticas.
9. Epistémica com valor [B] extremamente humanizado e de fazer inveja a outros locais.
de probabilidade.
10. Hiperonímia-hiponímia. [C] ilustrativo da pureza original e da ausência da Humanidade.
[D] visto como um local de fortes contrastes, graças à ação do homem.

142
4. O enunciado “Estamos a voar há duas horas” (l. 13) apresenta a ação
[A] como concluída e posterior à visita.
[B] no seu decurso, associada à viagem.
[C] como repetida durante várias viagens.
[D] como anterior à situação narrada.

5. Os constituintes sublinhados na frase “Se uma emergência nos colocasse no epi-


centro desta ausência de possibilidades de adaptação da espécie ao que quer que
seja?” (ll. 19-21) desempenham, respetivamente, as funções sintáticas de
[A] sujeito e modificador do nome restritivo.
PROFESSOR
[B] complemento indireto e complemento do nome.
[C] complemento direto e complemento oblíquo. GRUPO III

[D] complemento direto e complemento do nome.


Escrita
10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3;
6. O termo sublinhado em “No resto do dia, o sol cai a pique nesta terra maldita” 12.4
(ll. 28-29) é um deítico
O livro Mensagem foi o único
[A] espacial. [C] pessoal. de Fernando Pessoa publicado
em vida (1934), precisamente
[B] temporal. [D] temporal e espacial. um ano antes da sua morte.
Trata-se de uma obra
épico-lírica que apresenta
7. O constituinte “nesta terra maldita” (ll. 28-29) desempenha a função sintática de uma estrutura tripartida de
natureza simbólica. A Parte I,
[A] sujeito. [C] modificador (do grupo verbal). intitulada Brasão, recupera
mitos, factos e figuras
[B] complemento oblíquo. [D] complemento direto. históricas relacionados com a
origem da nação portuguesa.
Na Parte II, designada Mar
8. Classifique as orações “Mudo a rota dos meus pensamentos, olho de novo para bai-
Português, desfilam heróis e
xo.” (l. 32) são relatados acontecimentos
ligados ao apogeu de Portugal
(período dos Descobrimentos).
9. Indique a modalidade exemplificada nos segmentos sublinhados na afirmação A Parte III recebe o título
“Diz-se que de noite ao luar caminhando na Costa dos Esqueletos se pode avistar O Encoberto e nela surgem
poemas que remetem para
as pedras apenas pelo reflexo.” (ll. 34-36) o fim do Império, do sonho
português, que é preciso
reavivar, depositando no mito
10. Identifique o tipo de relação semântica que se estabelece entre “espécies” (l. 40) e “Di- sebastianista a possibilidade
nossauros, mamutes, tigres-dentes-de-sabre, basilossauros, pterodáctilos.” (ll. 42-43) de construção de um novo e
diferente império que, por não
ser material, se perpetuará
no tempo e se espalhará pelo
GRUPO III Universo.
É sobretudo pela dimensão
Refira-se, num texto expositivo, de 150 a 200 palavras, à estrutura e valor cultural da simbólica e mítica dos heróis
e dos factos, que conferem
obra Mensagem, respeitando a planificação proposta: um caráter subjetivo e lírico
à obra pessoana, que esta se
š Introdução – a obra, o autor e a data de publicação. afasta da vertente mais épica,
inerente a Os Lusíadas.
š Desenvolvimento – a estrutura externa e interna; a simbologia de cada parte; os A obra de Fernando Pessoa
heróis e seu valor simbólico; aproximação e/ou afastamento tem sido valorizada a partir
da sua divulgação, mas
relativamente a Os Lusíadas. Mensagem projetou ainda
š Conclusão – importância da obra no panorama literário português. mais o seu autor, tendo-lhe
permitido distinguir-se no
panorama literário português
Depois da textualização, proceda à revisão do texto, introduzindo as correções neces- do século XX. (195 palavras)
sárias ao nível da sintaxe, da ortografia e da coesão e coerência textual.

143
4
Contos
Educação Literária Escrita
Contos Exposição sobre um tema
Linguagem, estilo e estrutura: Texto de opinião
− o conto: unidade de ação; brevidade narrativa; Síntese [10.˚ ano]
concentração de tempo e espaço; número
limitado de personagens Oralidade
− a estrutura da obra Texto de opinião
− discurso direto e indireto Reportagem [CO] [10.˚ ano]
− recursos expressivos Exposição sobre um tema [CO] [11.˚ ano]
Apreciação crítica [EO] [10.˚ e 11. ˚ anos]
“Sempre é uma companhia”, de Manuel
da Fonseca Gramática
Solidão e convivialidade Valor temporal [Aprender/Aplicar]
Caracterização das personagens. Relação Organização de sequências textuais
entre elas [Aprender/Aplicar]
Caracterização do espaço: físico, psicológico Em revisão:
e sociopolítico Processos fonológicos
Importância das peripécias inicial e final Tempos e modos verbais

“George”, de Maria Judite de Carvalho Formação de palavras

As três idades da vida Funções sintáticas

O diálogo entre realidade, memória e imaginação Coordenação

Metamorfoses da figura feminina Valor modal

A complexidade da natureza humana Valor aspetual

Leitura Coesão

Memórias Campo lexical

Artigo de opinião Campo semântico


Contos

INFORMAR

O conto ou o mundo selecionado TEXTO INÉDITO

O conto é uma forma narrativa mais concentrada do que o ro-


mance ou a novela. A menor extensão requer, por isso, a adoção de
uma técnica própria. Quando se trata de um conto de personagem,
por exemplo, o mais provável é que esta categoria específica seja
5 objeto de uma caracterização unitária, não havendo lugar às os-
cilações emocionais que tantas vezes surgem nas personagens do
romance. A descrição física e a descrição psicológica surgem quase
sempre em consonância. Do mesmo modo, o espaço, o tempo e a
própria ação servem sobretudo para confirmar esta mesma ideia de
10 convergência.
É o que sucede no conto “George”, de Maria Judite de Carvalho.
Focado numa personagem que, ainda jovem, abandona a casa dos
pais e parte para a cidade, o conto acompanha uma rapariga que
procura concretizar os seus sonhos de pintora, vividos em aventura
15 e liberdade. Só abandonando a sua vila consegue tornar-se
“Senhora de si. Para partir. Para chegar. Mesmo para estar onde
estava.”
Algo de semelhante acontece no conto de Manuel da Fonseca
intitulado “Sempre é uma companhia”. Estamos agora numa aldeia
Janelas simultâneas, c. 1912, 20 do Alentejo, espaço biográfico e literário de Manuel da Fonseca, e a centralidade
Robert Delaunay, Galeria
de Arte de Hamburgo. cabe a um casal, dono de uma venda.
Ao contrário do que pode parecer, o conto constitui um ato de escrita particu-
PROFESSOR
larmente exigente. São poucas as palavras para descrever, contar e, sobretudo,
Educação Literária são poucas as palavras para sugerir o que não se pode explicar com pormenor.
14.10; 16.1 25 Por isso, embora exigindo menos tempo de leitura, o conto obriga-nos a um es-
Leitura
7.4; 8.1 forço maior de concentração. Talvez por isso, alguns contos revelam-se capazes
de provocar no leitor um efeito particularmente duradouro, tanto no plano do
pensamento como no da sensibilidade.
Apresentação José Augusto Cardoso Bernardes.
Contextualização
histórica e literária A estrutura do conto
1. Narrativa pouco extensa
e, por isso, concentrada. Genericamente [o conto] caracteriza-se pela ocorrência de algumas das se-
As personagens são guintes características: curta extensão sintagmática, unidade e linearidade de
em número reduzido,
havendo, geralmente, uma ação ou sequência de microações, reduzido número de personagens, geralmen-
centralizadora que confere te uma centralizadora que dá unidade ao conto, brevidade temporal servida por
unidade ao conto. O espaço
e tempo apresentam 5 momentos anisocrónicos onde o sumário e a elipse estão presentes e raramente
linearidade e surgem numa
perspetiva convergente; ocorre a pausa descritiva, discurso que assenta, de um modo geral, em momentos
particular exigência no de cena onde a descrição, a narração e a dissertação tendem a anular-se, limitação
que se refere ao equilíbrio
da dimensão narrativa e espacial de modo a permitir uma maior concentração diegética.
descritiva, fruto da reduzida
extensão. Henriqueta Maria Gonçalves in Biblos: Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa
Nota: Disponível, na brochura (dir. José Augusto Cardoso Bernardes et al.), Lisboa, Verbo, vol. I, 1995, pp. 1267-1268.
Educação Literária, p. 6
(Dossiê do Professor), mais
um texto relativo à estrutura
1. Sintetize as ideias-chave relativas às características do género narrativo conto, con-
do conto. siderando a leitura dos dois textos.

146
“Sempre é uma companhia”
MANUEL DA FONSECA
PERA
COMPREENSÃO DO ORAL CU R

RE
AG E M
R E P O RT
Escute atentamente uma peça radiofónica sobre o autor de “Sempre
é uma companhia”. 10.° ANO
CD 1

AI 1. Assinale, no seu caderno, as afirmações verdadeiras e falsas. Corrija as falsas.


F

XA 2
0

a. O documento foi transmitido por ocasião da morte de Manuel da Fonseca. MANUEL DA FONSECA
(1911-1993)
b. O escritor alentejano foi um defensor do Estado Novo.
Por finais da década de 1930,
c. Na opinião dos testemunhos ouvidos pelo repórter, Manuel da Fonseca caracteriza- colaborava já em revistas literárias.
Em 1942, saiu o primeiro volume de
va-se sobretudo pela capacidade de ouvir e pela sua audácia. contos do autor (Aldeia nova).
Ao longo dos anos 1940, foi
2. Selecione, no seu caderno, a opção que melhor completa a afirmação de acordo publicando dispersamente contos
com a informação do programa radiofónico. que, em 1951, viriam a ser reunidos
em O fogo e as cinzas. Estreou-se no
2.1 O conto “O largo” refere-se a um espaço público da aldeia também conhecido romance em 1943, com Cerromaior;
como “praça de jorna” uma vez que em 1958, sairia um novo romance,
Seara de vento, considerado por
[A] ali se encontravam os opositores ao regime do Estado Novo. muitos a sua obra-prima. Até
à data da morte fez sair outros
[B] os habitantes da aldeia ali se reuniam para se divertirem. títulos de diversos géneros literários
(poesia, novela, conto, crónica).
[C] era o local onde se secavam os cereais colhidos pelos agricultores.
Na obra poética como na prosa
[D] os homens se reuniam à espera de serem contratados para trabalharem. narrativa, o autor colheu na
observação do real o alimento
2.2 Para Manuel da Fonseca, a figura do maltês (entre outras) é fundamental na sua da escrita − conceção em tudo
próxima do propugnado pelo
obra pois movimento neorrealista português,
[A] representa os homens que, apesar de humilhados, mostram a sua dignidade. de que o escritor foi um dos
principais representantes. A par
[B] é uma figura tipicamente alentejana. de um olhar sobre as circunstâncias
socioeconómicas, quase toda a
[C] denuncia as condições de vida dos alentejanos. sua obra se pauta por convocar o
espaço humano e físico do Alentejo.
[D] representa a figura do burguês na estratificação social.

2.3 A obra de Manuel da Fonseca representa


PROFESSOR
[A] um retrato fiel da realidade.
Oralidade
[B] personagens totalmente ficcionadas. 1.1; 1.3; 1.4

[C] mundos e personagens ficcionados, mas ancorados na realidade.

[D] exclusivamente o mundo social da região de Santiago do Cacém. Áudio


“Manuel da Fonseca faria
100 anos…", TSF
3. Selecione, registando no seu caderno, as opções que permitem compreender que
(10 minutos)
este programa radiofónico se pode classificar como uma reportagem.
1. a. F – O programa
[A] É evidente uma multiplicidade de intervenientes e pontos de vista. radiofónico foi transmitido
por ocasião do centenário do
[B] O registo áudio apresenta um caráter eminentemente apelativo. nascimento do escritor (15 de
outubro de 2011).
[C] São mobilizadas capacidades argumentativas dos intervenientes. b. F – O autor era um amante
da liberdade, por isso foi
[D] Predomina sobretudo um discurso valorativo. oposicionista ao Estado Novo.
c. V
[E] Regista-se a alternância entre a terceira pessoa e primeira pessoa, recorrendo-se à 2.1 [D]; 2.2 [B]; 2.3 [A]; 2.4 [C]
apresentação de testemunhos pessoais. 3. [A], [E]
BLOCO INFORMATIVO – p. 379

147
MANUEL EDAN FONSECA
DE
Valor temporal – formas de expressão do tempo
R R
APRENDER
AP

ICA
G RA M Á T A categoria Tempo serve para localizar as situações (eventos ou estados) expressas em
R
APL ICA diferentes enunciados.
É através dos tempos verbais que mais frequentemente se marca essa localização. Porém,
os advérbios ou expressões adverbiais de tempo ou até certas construções podem tam-
PROFESSOR
bém ter essa função.
Uma situação localiza-se temporalmente em relação a um outro tempo que pode ser mar-
Apresentação cado de diversas formas. Assim, conclui-se que o tempo linguístico é uma categoria rela-
Valor temporal – formas
de expressão do tempo
cional.
Os tempos gramaticais referem-se ao tempo entendido como ordenação linear orientada
do passado para o futuro, levando a considerar-se que os tempos gramaticais se articulam
em três domínios:
š passado, usado para referências a ações anteriores ao momento da enunciação;
š presente, que se reporta ao momento da enunciação e ao que lhe é simultâneo ou
sobreposto;
š futuro, o que é posterior ao “agora” do enunciador.
Assim, estabelecem-se relações de anterioridade, simultaneidade e posterioridade, que
podem expressar-se através dos tempos verbais e/ou de certos advérbios ou orações tem-
porais. A título de exemplo, observe-se a tabela seguinte:

Relações
Exemplos Formas de realização
temporais

Antes de analisarmos a
A relação de anterioridade é dada pela utilização de uma oração subordinada
obra de Manuel da Fonseca,
adverbial temporal. Assim, a atividade de leitura da biografia de Manuel da
é necessário lermos a sua
Fonseca realizou-se num tempo anterior ao da análise da sua obra.
biografia.

Ontem li um texto
Quer o advérbio quer o tempo verbal se referem a uma situação que ocorreu
interessante sobre O fogo e as
Anterioridade no passado, num momento anterior ao da enunciação.
cinzas.

Todas as situações descritas são anteriores ao momento da enunciação.


O aluno disse ao professor que
A situação descrita em que tinha analisado o conto com o colega após ter
tinha analisado o conto com
chegado à biblioteca ocorre antes da expressa na oração subordinante. Contudo,
o colega após ter chegado à
a oração temporal descreve uma situação que, por sua vez, também é anterior
biblioteca.
a tinha analisado o conto com o colega.

Manuel da Fonseca observava


gravuras do Alentejo enquanto
A simultaneidade resulta da utilização da oração subordinada adverbial
Simultaneidade criava os contos.
temporal – enquanto criava os contos e Logo que comprei o livro.
Logo que comprei o livro, iniciei
a sua leitura.

A relação de posterioridade é dada pela utilização de uma oração subordinada


Analisarei o poema depois de
Posterioridade adverbial temporal. Assim, a ação de analisar o poema realizar-se-á num tempo
sair da escola.
posterior ao de sair da escola.

148
“Sempre é uma companhia”

APLICAR
1. Atente nos exemplos dados e associe-os ao tipo de relação que expressam. Resolva
os exercícios no seu caderno.

Tipo de relação Exemplos

[1] Estes textos foram selecionados pela minha PROFESSOR


professora do 10.˚ ano.
Gramática
[2] Eu lia livros de autores portugueses enquanto 19.1; 19.2
os meus colegas se divertiam no recreio.
[A] Anterioridade 1.
[3] Li esse livro no verão passado. [A] – [1] e [3]
[B] Simultaneidade [B] – [2] e [5]
[4] Penso que, no próximo ano letivo, vou ter mais [C] – [4] e [6]
tempo livre, que posso dedicar à leitura. 2.1
[C] Posterioridade a. Leitura de um conto de
[5] A professora explicou o conteúdo do primeiro Manuel da Fonseca no 3.o ciclo.
parágrafo quando eu estava a lê-lo. b. Dia seguinte ao da leitura
de um conto de Manuel da
[6] Amanhã, apresentarei um outro conto do mesmo Fonseca no 3.o ciclo (lendo
autor. mais dois contos do mesmo
autor).
c. Dia anterior ao momento
da enunciação (“Ontem”, dia
2. Considere o seguinte segmento textual. da leitura do último conto de
Manuel da Fonseca).
Li o último conto de Manuel da Fonseca ontem, mas já tinha lido um no 3.˚ ciclo. d. Momento da enunciação.
Depois desse primeiro contacto com a escrita deste autor, fiquei fascinado. Por 2.2
isso, no dia seguinte, fui ler mais dois contos dele que confirmaram o meu fascínio. a. Anterioridade.
b. Posterioridade.
2.1 Faça a listagem, no seu caderno, das ações apresentadas de acordo com a ordem c. Anterioridade.
em que ocorreram, considerando o momento de enunciação. 2.2.1
a. O complexo verbal “tinha
Ordem Ações apresentadas lido” remete para uma ação
anterior à que ocorreu na
véspera do momento da
[A] 1.˚ momento a. ________________________________________________________________ enunciação, ou seja, realizada
antes do “ontem”.
[B] 2.˚ momento b. ________________________________________________________________ b. Considerando que o [D]
corresponde ao momento da
[C] 3.˚ momento c. ________________________________________________________________ enunciação (“hoje”), conclui-
-se que o [C] é anterior a
este, ou seja, reporta-se ao
[D] 4.˚ momento d. ________________________________________________________________ “ontem”, comprovado pelo
uso do pretérito perfeito,
exemplificado na forma verbal
2.2 Identifique o tipo de relação temporal presente nas seguintes situações: “li”.
c. A afirmação “Depois desse
a. do momento [A] para o [C]. primeiro contacto”, que
ocorreu no 3.˚ ciclo, situa a
b. do momento [D] para o [C]. ação correspondente ao [B]
num tempo anterior ao do
c. do momento [D] em relação ao [B]. momento da enunciação, que
é o do “hoje”.
2.2.1 Justifique, em termos linguísticos, a resposta dada anteriormente. 2.3 Formas verbais simples:
“li”, “fiquei”, “confirmaram”;
2.3 Distinga as formas verbais simples das complexas. formas verbais complexas:
“tinha lido”, “fui ler”.
2.4 Indique o tempo e o modo das formas verbais simples. 2.4 Pretérito perfeito
do indicativo.

149
Contos
MANUEL DA FONSECA

INFORMAR

O espaço físico, psicológico e sociopolítico


Os habitantes do Alentejo
Determinado por circunstâncias de ordem sociopolítica, o neorrealismo, en-
quanto movimento literário, corresponde a uma nova atitude perante os ho-
mens e a natureza.
A repressão salazarista, bem como o agravamento da situação internacional,
5 conduzem a uma tomada de consciência capaz de enriquecer a literatura por-
tuguesa com novos temas, novos personagens e sobretudo uma nova visão do
espaço, preferencialmente situado a sul do Tejo e funcionando como revelador
de numerosos conflitos e tensões.
A grande novidade do neorrealismo consiste na atenção dada às camadas
10 populares, não à maneira de Júlio Dinis, de Camilo Castelo Branco, de Abel
Botelho, ou de Raul Brandão, mas através da análise aprofundada das condições
de vida e das contradições da organização social. Segundo Eduardo Lourenço, é
nas obras de ficção neorrealista que encontramos a ótica da luta de classes com
uma solução “positiva” dos conflitos. No entanto, o que caracteriza o neorrealis-
15 mo não é simplesmente a escolha dos motivos populares, mas antes a posição
ideológica tomada perante a realidade.

Em 1951, Manuel da Fonseca traz a lume novo livro de contos, intitulado


O fogo e as cinzas. Para Mário Sacramento, trata-se de “uma autêntica antologia
de tudo o que o primeiro neorrealismo pôde e soube fazer de belo”.
20 Ao percorrer, numa visão bastante rápida, a obra de Manuel da Fonseca,
o que nos parece importante sobretudo salientar é a sua capacidade para recriar
um vasto painel de figuras e terras profundamente tocadas pelo dramatismo.
A sua produção literária liga-se indissociavelmente ao Alentejo, cenário de
exemplar enquadramento de conflitos e tensões, ao ponto de alguns críticos
25 poderem apontar que a verdadeira personagem da sua obra é esse Alentejo dos
humilhados e ofendidos. Com efeito, como nota Mário Dionísio, “ele traz-nos a
poeira que o carro de canudo vai levantando à passagem, a solidão e o mistério
dos montes no meio da planície imensa, a angústia dos homens perdidos na
PROFESSOR noite”.
Maria Graciete Besse, Manuel da Fonseca, O fogo e as cinzas, Mem Martins,
Leitura Publicações Europa-América, 1990, pp. 5-7 e 14-16 (com supressões).
7.1; 7.4; 7.5
Educação Literária
16.1
1. Assinale, no seu caderno, as afirmações verdadeiras e falsas. Corrija as falsas.
1.
a. O espaço representado na obra de Manuel da Fonseca é o Alentejo rural, encarado como
a. F – O espaço representado
é o Alentejo rural, mas um espaço bucólico e onírico.
apresentado como palco
de “conflitos e tensões” (l. 8). b. A obra do prosador denuncia as condições de vida das camadas populares.
b. V c. Manuel da Fonseca, na sua obra, pretendeu evidenciar o dramatismo da situação das
c. V
terras e das gentes alentejanas.
d. F – As personagens são
caracterizadas pela solidão d. As personagens da sua obra, apesar de habitantes do mundo rural, são joviais e sociá-
e pela angústia.
veis.

150
“Sempre é uma companhia”

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
PROFESSOR

Sempre é uma companhia Educação Literária


14.1; 14.2; 14.3; 14.4;
António Barrasquinho, o Batola, é um tipo bem achado. Não faz nada, levan- 14.5; 14.6; 14.7; 14.8;
14.9; 14.10; 15.1; 15.2;
ta-se quando calha, e ainda vem dormindo lá dos fundos da casa. 15.3
É a mulher quem abre a venda e avia aquela meia dúzia de fregueses de todas Gramática
as manhãzinhas. Feito isto, volta à lida da casa. Muito alta, grave, um rosto os- 17.1; 18.2; 19.1; 19.2; 19.4
5 sudo e um sossego de maneiras que se vê logo que é ela quem ali põe e dispõe.
Pois quando entra para os fundos da casa, vem saindo o Batola com a cara
Esquema interpretativo
redonda amarfanhada num bocejo. Que pessoas tão diferentes! Ele quase lhe (peripécia final)
não chega ao ombro, atarracado, as pernas arqueadas. De chapeirão caído para
E MA
QU
a nuca, lenço vermelho amarrado ao pescoço, vem tropeçando nos caixotes até S

E
10 que lá consegue encostar-se ao umbral da porta. Fica assim um pedaço, a osci-

EL
P
lar o corpo, enquanto vai passando as mãos pela cara, como que para afastar os RO
J ETÁ
V

restos do sono. Os olhos, semicerrados, abrem-se-lhe um pouco mais para os


campos. Mas fecha-os logo, diante daquela monotonia desolada.
Dá meia volta, enche a medida com o melhor vinho que há na venda, coloca-a
15 sobre o balcão. Ao lado, um copo. Puxa o caixote, senta-se e começa a beber a
pequenos goles. De quando em quando, cospe por cima do balcão para a terra
negra que faz de pavimento. Enterra o queixo nas mãos grossas e, de cotovelo
vincado na tábua, para ali fica com um olhar mortiço.
Às vezes, um rapazito entra na venda:
20 − Tio Batola, cinco tostões de café.
O chapeirão redondo volta-se, vagaroso:
− Hã?...
− Cinco tostões de café!
Batola demora os olhos na portinha que dá para os fundos da casa. Mas é
25 inútil esperar mais. “Ah, se a mulher não vem aviar o rapazito é porque não
quer, pois está a ouvir muito bem o que se passa ali na loja!” Quando se asse-
gura que é esta e não outra a verdade dos factos, Batola tem de levantar-se. Es-
preguiça-se, boceja, e arrasta-se até à caixa de lata enferrujada. Mede o café
a olho, um olho cheio de tédio, caído sobre o canudinho de papel.
30 Volta a encher o copo, atira-se para cima do caixote. E, no jeito que lhe
fica depois de vazar o vinho goela abaixo, num movimento brusco, e
de ter cuspido com uns longes de raiva, parece que acaba de se vingar
de alguém.
Tais momentos de ira são pedaços de revolta passiva contra a mu-
35 lher. É uma longa luta, esta. A raiva do Batola demora muito, cresce
com o tempo, dura anos. Ela, silenciosa e distante, como se em
nada reparasse, vai-lhe trocando as voltas. Desfaz compras,
encomendas, negócios. Tudo vem a fazer-se como ela en-
tende que deve ser feito. E assim tem governado a casa.
40 Batola vai ruminando a revolta sentado pelos
caixotes. Chegam ocasiões em que nem
pode encará-la. De olhos baixos,
põe-se a beber de manhã à noi-
te, solitário como um desgraçado.
Contos
MANUEL DA FONSECA

45 O fim daquelas crises tem dado que falar: já muitas vezes, de há trinta anos para
cá, aconteceu a gente da aldeia ouvir gritos aflitivos para os lados da venda. Era
o Batola, bêbado, a espancar a mulher.
Tirando isto, a vida do Batola é uma sonolência pegada. Agora, para ali está,
diante do copo, matando o tempo com longos bocejos. No estio, então, o sol faz
50 os dias do tamanho de meses. Sequer à noite virá alguém à venda palestrar um
bocado. É sempre o mesmo. Os homens chegam com a noitinha, cansados da
faina. Vão direito a casa e daí a pouco toda a aldeia dorme.
Está nestes pensamentos o Batola quando, de súbito, lhe vem à ideia o velho
Rata. Que belo companheiro! Pedia de monte a monte, chegava a ir a Ourique,
55 a Castro, à Messejana. Até fora a Beja. Voltava cheio de novidades. Durante tar-
des inteiras, só de ouvi-lo parecia ao Batola que andava a viajar por todo aquele
mundo.
Mas o velho Rata matara-se. Na aldeia, ninguém ainda atina ao certo com a
razão que levou o mendigo a suicidar-se. Nos últimos tempos, o reumatismo
60 tolhera-lhe as pernas, amarrando-o à porta do casebre. De quando em quando,
o Batola matava-lhe a fome; mas nem trocavam uma palavra. Que sabia agora o
Rata? Nada. Encostado à parede de pernas estendidas, errava o olhar enevoado
pelos longes. Veio o verão com os dias enormes, a miséria cresceu. Uma tarde,
lá se arrastou como pôde e atirou-se para dentro do pego da ribeira da Alcaria.
65 Aos poucos o tempo apagou a lembrança do Rata, o mendigo. Só o Batola o
recorda lá de vez em quando. Mas, agora, abandonou a recordação e o vinho,
e vai até ao almoço. Nunca bebe durante as refeições.
Depois, o sol desanda para trás da casa. Começa a acercar-se a tardinha. Ba-
tola, que acaba de dormir a sesta, já pode vir sentar-se, cá fora, no banco que
70 corre ao longo da parede. A seus pés, passa o velho caminho que vem de Ouri-
que e continua para o sul. Por cima, cruzam os fios da eletricidade que vão para
Valmurado, uma tomada de corrente cai dos fios e entra, junto das telhas, para
dentro da venda.
E o Batola por mais que não queira, tem de olhar todos os dias
75 o mesmo: aí umas quinze casinhas desgarradas e nuas; algumas só

mostram o telhado escuro, de sumidas que estão no fundo dos cór-


regos. Depois disso, para qualquer parte que volte os olhos,
estende-se a solidão dos campos. E o silêncio. Um silên-
cio que caiu, estiraçado por vales e cabeços, e que dorme
80 profundamente. Oh, que despropósito de plainos sem fim,

todos de roda da aldeia, e desertos!


“Sempre é uma companhia”

Carregado de tristeza, o entardecer demora anos. A noite vem de longe, can-


sada, tomba tão vagarosamente que o mundo parece que vai ficar para sempre
naquela magoada penumbra.
85 Lá vêm figurinhas dobradas pelos atalhos, direito às casas tresmalhadas da
aldeia. Nenhuma virá até à venda falar um bocado, desviar a atenção daquele
poente dolorido. São ceifeiros, exaustos da faina, que recolhem. Breve, a aldeia
ficará adormecida, afundada nas trevas. E António Barrasquinho, o Batola, não
tem ninguém para conversar, não tem nada que fazer. Está preso e apagado no
90 silêncio que o cerca.
Ergue-se pesadamente do banco. Olha uma última vez para a noite derra-
mada. Leva as mãos à cara, esfrega-a, amachucando o nariz, os olhos. Fecha os
punhos, começa a esticar os braços. E abre a boca num bocejo tão fundo, o corpo
torcido numa tal ansiedade, que parece que todo ele se vai despegar aos boca-
95 dos. Um suspiro estrangulado sai-lhe das entranhas e engrossa até se alongar,
como um uivo de animal solitário.
Quando consegue dominar-se, entra na venda, arrastando os pés. E, sem
pressentir que aquela noite é a véspera de um extraordinário acontecimento, lá
se vai deitar o Batola, derrotado por mais um dia.
100 De facto, na tarde seguinte apareceu uma nuvenzinha de poeira para as ban-
das do sul: ouvia-se ronronar um motor. Pouco depois, o carro parou à porta
da venda. Fazia anos que tal se não dava na aldeia. Pelas portas, apareceram
mulheres e crianças.
Dois homens saíram do carro. Um deles trazia fato de ganga, o outro, bem
105 vestido, adiantou-se até à porta:
− Não nos pode dispensar uma bilha de água?
Batola, daí a pouco, sai com a infusa a escorrer. O do fato de ganga, que ha-
via tirado a tampazinha da frente do carro, pôs-se a deitar a água para dentro.
Enquanto isto acontece, o sujeito bem vestido dá uma mirada pela aldeia, pelos
110 campos. Sopra, afogueado:
− Que sítio!...
Mas ao ver os fios da eletricidade e a ligação que entra junto das telhas da
casa, olha para o Batola com atenção, medindo-o de alto a baixo. Entra na ven-
da, põe-se a observar as prateleiras. O exame parece agradar-lhe. Volta-se, sor-
115 ridente, para o Batola, que lhe segue, desconfiado, todos os movimentos:
− Tem cerveja?
− Ná. Só vinho...
− Traga o vinho.
Muito instado, Batola bebe também. E aqui começa uma conversa que ele
120 não entende. Só percebe, e isso agrada-lhe, que o homem é simpático e franco.
Mas agora há uma pergunta a que tem de responder.
− Não, senhor...
O sujeito vai à porta, e diz para o motorista:
− Calcinhas, traz aí uma caixa do modelo pequeno.
125 A caixa é colocada sobre o balcão. De dentro sai uma outra caixa, mas de
madeira polida. Ao meio tem um retângulo azul, cheio de letras e, em baixo, ao
comprido, quatro grandes botões negros.
− Não tem uma tomada?
Em face da resposta, o homem vai ao automóvel. Volta e sobe ao balcão.

153
Contos
MANUEL DA FONSECA

PROFESSOR 130 Tira a lâmpada, enrosca aí a tomada, puxa o fio que sai da caixa, liga-o, e sal-
1.1 Primeira parte – “Solidão”:
ta para o chão. Só nesse momento o Batola compreende. A princípio, apenas
a vida dos habitantes era saem ruídos ásperos da caixinha, mas, aos poucos, desaparecem. Vem então
monótona e triste; durante
o dia os homens trabalhavam uma música modulada, grave.
e à noite dirigiam-se para − Hem? Que tal?
as suas casas e dormiam;
António Barrasquinho passava 135 Esfregando as mãos, começa a enumerar rapidamente as qualidades de um
o dia sentado à espera de tal aparelho:
atender os poucos fregueses
que se deslocavam à sua − É o último modelo chegado ao país. Quando se quer, é música toda a noite
venda.
Segunda parte –
e todo o dia. Ou então canções. E fados e guitarradas! Notícias de todo o mundo,
"Convivialidade": após a desde manhã até à noite, notícias da guerra!...
chegada da telefonia, todos os
habitantes se dirigiam no fim
140 Aponta para o retângulo azul:
de um dia de trabalho à venda − Olhe, aqui, é Londres; aqui, a Alemanha; aqui, a América. É simples: vai-se
onde conviviam e ouviam
notícias e canções. rodando este botãozinho...
A – primeira parte do conto Poisa a mão sobre o ombro do Batola, e exclama:
2. António Barrasquinho
(Batola) tem uma compleição − Dou-lhe a minha palavra de honra que não encontra nenhum aparelho pelo
física baixa, é “atarracado, as 145 preço deste!
pernas arqueadas” (ll. 10-11)
e veste de forma tipicamente Sem dar tempo a qualquer resposta, ordena:
alentejana: ‘chapeirão’, ‘o
lenço vermelho amarrado
− Traz a pasta, Calcinhas!
ao pescoço’” (ll. 11-12). É Vem a pasta. Batola, aturdido, olha para os papéis de várias cores que vão
indolente, apático, “vem
dormindo lá dos fundos” aparecendo sobre o balcão. A música, vibrante, enche a venda, ressoa pelos
(l. 2); “vem tropeçando 150 campos.
nos caixotes” (l. 9), infeliz,
solitário, alcoólico, “senta-se − Aqui é Londres, hem! − grita o homem. − O senhor sabe ler? Então leia aqui!
e começa a beber a pequenos Mostra os papéis, gesticula e sorri, sorri sempre. Batola coça o queixo com
goles” (ll. 15-16); violento,
“ Era o Batola, bêbado, a os dedos grossos. Olha as contas que o outro lhe mostra, olha de soslaio para a
espancar a mulher” (ll. 46-47).
A mulher é “Muito alta, grave”
mulher. Volta a coçar-se. E tudo isto se repete durante uma longa hora.
(l. 4), tem “um rosto ossudo” 155 Batola, por fim, cabisbaixo, emudece, como que vencido. Rapidamente, o
(ll. 4-5);
é responsável, diligente, “abre vendedor preenche, sobre o balcão, um largo impresso e, depois, doze letras.
a venda e avia aquela meia São as prestações. Dá a caneta ao Batola que se põe a assinar penosamente
dúzia de fregueses” (l. 3);
“volta à lida da casa” (l. 4); papelinho a papelinho. Está quase a acabar a difícil tarefa quando a mulher o
determinada, autoritária, interrompe, numa voz lenta e carregada:
dominadora, “é ela quem ali
põe e dispõe” (l. 5). 160 − António, tu não compras isso.
Os ceifeiros trabalham
arduamente nos campos,
Então, inicia-se uma luta entre o vendedor e a mulher. Mas as frases e o sor-
de onde chegam exaustos riso do homem bem vestido não surtem agora o mesmo efeito: vão-se sumindo,
do dia de imenso trabalho,
“figurinhas dobradas pelos sem remédio, diante daquele rosto ossudo e decidido. Ali, só há uma palavra:
atalhos” (l. 85). − Não.
O Rata, personagem evocada
por Batola, é um mendigo, 165 A cara redonda do Batola começa a encher-se de fundas rugas. Num repente,
um agente de mudança, pega na caneta e assina o resto das letras:
pois trazia o mundo à aldeia,
combatendo a solidão de − Pronto! Quem manda sou eu!
Batola e o isolamento de
Alcaria: “Pedia de monte
Os olhos da mulher trespassam-no. Volta o rosto pálido para o vendedor de
a monte, […] Até fora a Beja. telefonias, torna a voltar-se para o marido. Por momentos, parece alheada de
Voltava cheio de novidades.”
(ll. 54-56). 170 tudo quanto a cerca. Vagarosa, no tom de quem acaba de tomar uma resolução
3. O relacionamento é inabalável, apruma-se, muito alta, dominadora, e diz:
conflituoso: ela é dominadora
quando tem de tomar − António, se isso aqui ficar eu saio hoje mesmo de casa. Escolhe.
decisões, ativa; ele é violento Toda a gente da aldeia que enche a venda sabe que ela fará o que acaba de
quando está ébrio; ostenta
uma postura passiva. dizer. Até o vendedor pressente que assim será. Pensativo, olha para o Batola. De
4. A ação passa-se na pequena 175 súbito, tira um papel qualquer de dentro da pasta e adianta-se:
aldeia alentejana de Alcaria,
mais especificamente num − Bem, a senhora não se exalte. Faz-se uma coisa: a telefonia fica à experiên-
microespaço que é a venda cia, durante um mês. Se não quiserem, devolvem-na; nós devolvemos as letras.
do Batola.

154
“Sempre é uma companhia”

Assine aqui, Sr. Barrasquinho. Pronto. Agora já a senhora pode ficar des-
cansada.
180 − Mas − pergunta ainda a mulher − quanto se paga de aluguer por esse
mês?
− Nada! − responde o homem, de novo risonho. − Por isso não se paga
nada!
E, ao meter os papéis dentro da pasta, repara que já é muito tarde.
185 Apressado, conta que veio por ali devido a um engano no caminho. Sai da
venda, entra no carro, e diz ao Batola, aproveitando o ruído do motor:
− Você, agora, arrume a questão: tem um mês para a convencer.
Mal o carro parte, deixando uma nuvem de poeira à retaguarda, atira
a pasta para o assento de trás, e grita alegremente:
190 − Hem, Calcinhas! Levou-me uma tarde inteira, mas foi. Foi de esti-
cão!
De facto, era sol-posto, pelos atalhos, os ceifeiros recolhiam à aldeia.
Mas, nessa tarde, vieram todos à venda, onde entraram com um olhar
admirado. Uma voz forte, rápida, dava notícias da guerra.
195 Só de lá saíram depois de a voz se calar. Cearam à pressa, e voltaram. Era PROFESSOR
já alta noite quando recolheram a casa, discutindo ainda, pelas portas, numa
5. Alcaria é perspetivada
grande animação. como um espaço pobre,
Um sopro de vida paira agora sobre a aldeia. Todos sabem o que acontece deserto, isolado, transmitindo
monotonia e solidão. A venda
fora dali. E sentem que não estão já tão distantes as suas pobres casas. Até as do Batola, que comunica com
200 mulheres vêm para a venda depois da ceia. Há assuntos de sobra para conversar. os fundos da casa, caracteriza-
-se igualmente pela pobreza e
E grandes silêncios quando aquela voz poderosa fala de cidades conquistadas, pela desarrumação e desleixo.
divisões vencidas, bombardeamentos, ofensivas. Também silêncio para ouvir as Destaca-se ainda o caminho
que passa ao lado da venda e
melodias que vêm de longe até à aldeia, e que são tão bonitas!... através do qual se estabelece
Acontece até que, certa noite, se arma uma festa na venda do Batola. Até as comunicação com o exterior,
com o mundo: “o velho
205 velhas dançaram ao som da telefonia. Nos intervalos, os homens bebiam um caminho que vem de Ourique
e continua para sul”.
copo, junto ao balcão, os pares namoravam-se, pelos cantos. Por fim, mudou-se
6. Os habitantes eram pobres,
de posto para ouvir as notícias do mundo. Todos se quedaram, atentos. tal como o espaço em que
− Ah! – grita de repente o Batola. – Se o Rata ouvisse estas coisas não se ma- habitavam, estavam isolados
do mundo e viviam do trabalho
tava! dos campos; o seu ritmo de
210 Mas ninguém o compreende, de absorvidos que estão. vida dependia da luz do Sol e a
chegada da noite trazia-lhes
E os dias passam agora rápidos para António Barrasquinho, o Batola. Até ainda mais solidão e mais
escuridão.
começou a levantar-se cedo e a aviar os fregueses de todas as manhãzinhas.
7.1 Batola sentia-se abatido,
Assim, pode continuar as conversas da véspera. Que o Batola é, de todos, o que solitário e desalentado com
mais vaticínios faz sobre as coisas da guerra. Muito antes do meio-dia já ele o que observava em seu redor:
“para qualquer parte que
215 começa a consultar o velho relógio, preso por um fio de ouro ao colete. volte os olhos, estende-se a
solidão dos campos” (ll. 77-78),
Só a mulher quase deixou de aparecer na venda. E ninguém sabe que pensa “despropósito de plainos sem
ela do que contam as vozes desconhecidas aos homens da aldeia, pois, através fim, todos de roda da aldeia,
e desertos!” (ll. 80-81).
do tabique de ripas separadas por grandes fendas, ouve-se tudo que se passa
7.2 “solitário como um
na venda. Ouve-se e vê-se, querendo, a alegria que certas notícias trazem aos desgraçado” (l. 44) e “[…]
220 ceifeiros, o gosto e o propósito que eles têm ao ouvir determinada voz que é de engrossa até se alongar,
como um uivo de animal
todas a mais desejada e acreditada. solitário” (ll. 95-96). Estas
expressões retratam a solidão
E os dias custaram tão pouco a passar que o fim do mês caiu de surpresa e a infelicidade dolorosa; no
em cima da aldeia da Alcaria. Era já no dia seguinte que a telefonia deixaria de primeiro caso, fruto do mau
relacionamento com a mulher,
ouvir-se. Iam todos, de novo, recuar para muito longe, lá para o fim do mundo, e, no segundo, do isolamento
225 onde sempre tinham vivido. e da monotonia em que vive.

155
Contos
MANUEL DA FONSECA

PROFESSOR

8.1 O espaço psicológico


é perspetivado quando
Batola recorda o velho amigo
Rata e a novidade que este
trazia de outros espaços que
se afiguravam diferentes
daquele onde se encontrava.
No fundo, a personagem Rata
comprova o isolamento a
que Alcaria estava votada e a
solidão dos seus habitantes:
(“[…] lhe vem à ideia o velho
Rata” até “por todo aquele Foi a primeira noite em que os homens saíram da venda mudos e taciturnos.
mundo.” (ll. 53-57).
9. O modo de vida das Fora esperava-os o negrume fechado. E eles voltavam para a escuridão, iam ser,
personagens é rotineiro e outra vez, o rebanho que se levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe
monótono, comprovável pela
utilização do gerúndio no vergado pelo cansaço e pela noite. Mais nada que o abandono e a solidão. A es-
complexo verbal em várias 230 perança de melhor vida para todos, que a voz poderosa do homem desconheci-
referências a Batola (“vem
tropeçando nos caixotes”, do levava até à aldeia, apagava-se nessa noite para não mais se ouvir.
l. 9; “enquanto vai passando Dentro da venda, o Batola está tão desalentado como os ceifeiros. O mês pas-
as mãos pela cara”, l. 11), e o
espaço é desolador e vasto. sou de tal modo veloz que se esqueceu de preparar a mulher. Sobe ao balcão,
Estas duas características
levam à perceção de que o
desliga o fio e arruma o aparelho. Um pouco dobrado sobre as pernas arquea-
tempo “se arrasta” e que não 235 das, com o chapeirão a encher-lhe a cara de sombra, observa magoadamente a
passa, como se verifica em
segmentos textuais como preciosa caixa.
“matando o tempo com longos Assim está, quando um pressentimento o obriga a voltar a cabeça: junto da
bocejos” (l. 49) ou “ No estio […]
os dias do tamanho de meses” porta que dá para os fundos da casa, a mulher olha-o com um ar submisso.
(ll. 49-50); “carregado de “Que terá acontecido?”, pensa o Batola, admirado de a ver ainda levantada àque-
tristeza, o entardecer demora
anos” (l. 82); “a noite […] tomba 240 la hora.
tão vagarosamente” − António − murmura ela, adiantando-se até ao meio da venda. − Eu queria
(ll. 82-83). Apresenta-se,
portanto, uma perspetiva pedir-te uma coisa...
psicológica do tempo. Suspenso, o homem aguarda. Então, ela desabafa, inclinando o rosto ossudo,
10.1 As expressões
encerram personificações onde os olhos negros brilham com uma quase expressão de ternura:
relativas ao espaço e
ao tempo e contribuem
245 − Olha... Se tu quisesses, a gente ficava com o aparelho. Sempre é uma com-
para a caracterização panhia neste deserto.
psicológica destas duas
categorias narrativas. Manuel da Fonseca, O fogo e as cinzas, Lisboa, Editorial Caminho, 2011, pp. 149-160.
Dir-se-ia que são o espaço
e o tempo que condicionam
o comportamento dos 1. O conto pode ser dividido em duas partes, delimitadas pelo momento da chegada da
seres humanos, que não
conseguem vencer nem telefonia. (l. 100)
mudar a monotonia nem a
rotina das suas vidas; tanto
1.1 Atribua, justificando, um subtítulo a cada uma das partes, tendo em conta o compor-
o que se avista (espaço) tamento e o modo de vida dos habitantes da aldeia.
como o dia a dia (tempo)
são tão deprimentes que os
habitantes estão condenados A – Considere apenas a primeira parte do conto. (ll. 1-99)
ao isolamento e à letargia. A
descrição das casinhas como 2. Identifique as personagens, salientando, justificadamente, os principais aspetos físi-
“nuas” remete ainda para a
pobreza extrema do espaço cos e psicológicos que as caracterizem.
físico.
3. Avalie o tipo de relacionamento existente entre o Batola e a mulher.

156
“Sempre é uma companhia”

4. Comprove a concentração espacial da história narrada. PROFESSOR

5. Caracterize os espaços físicos. B – segunda parte do conto


1.1 A rotina será alterada pela
6. Conclua acerca da condição social dos habitantes de Alcaria e do espaço sociopolítico chegada de dois estranhos,
o vendedor e Calcinhas, que,
em que se movem. supostamente por terem
problemas no carro, tiveram
7. António Barrasquinho, o Batola, apresenta algumas diferenças relativamente aos ou- de parar. Então, o homem bem
vestido aproveitou para vender
tros habitantes. uma telefonia a António
Barrasquinho.
7.1 Demonstre que a vastidão do espaço reflete o estado psicológico da personagem Batola.
2.1 O vendedor representa
7.2 Transcreva duas comparações ao serviço da caracterização de Batola, comentando o o progresso. A personagem
faz uso da sua capacidade
seu valor expressivo. persuasiva para convencer
Batola a comprar uma
8. O espaço psicológico não é apenas o modo como a personagem perspetiva o que a telefonia, o que, inicialmente,
não se mostra tarefa
rodeia mas também a expressão das suas memórias. complicada. Mais difícil foi
convencer a mulher de que
8.1 Delimite, justificadamente, uma passagem textual que comprove a afirmação. o rádio seria importante
naquele deserto. Destacam-
9. Demonstre, recorrendo a exemplos textuais, que a passagem do tempo é subordinada -se como características o
poder de argumentação na
ao espaço e ao modo de vida das personagens, concretamente de Batola. demonstração das qualidades
do rádio; o poder de persuasão,
10. Atente nas expressões abaixo transcritas: uma vez que convence a
mulher a ficar com o rádio, “se
š “daquela monotonia desolada.“ [dos campos]. (l. 13) não quiserem, devolvem-na”
(l. 177). Na opinião de Batola,
š “toda a aldeia dorme.” (l. 52) ele é “simpático e franco”
(l. 120), o que acaba por
š “quinze casinhas desgarradas e nuas”. (l. 75) contribuir para o seu engenho
de vendedor. No entanto,
š “A noite vem de longe, cansada”. (ll. 82-83) toda a estratégia usada pelo
vendedor indicia o seu caráter
10.1 Identifique o recurso expressivo predominante, comentando a sua expressividade enganador: por um lado
para a compreensão das categorias narrativas tempo e espaço, na sua relação com apresenta como razão para ter
parado na venda uma avaria
as personagens. do carro; por outro, aceita
deixar o aparelho à experiência
durante um mês, mas levando
consigo as letras assinadas
B – Considere agora a segunda parte do conto. (ll. 100-245) por Batola.
2.2 O discurso direto permite,
1. A rotina diária será perturbada. por um lado, dar destaque à
personagem – o vendedor –
1.1 Sintetize o acontecimento que virá a alterar a vida em Alcaria. e ao seu papel na tarefa de
vender o aparelho. Por outro
lado, o alargamento diegético
2. Atente na personagem vendedor. deste passo do texto leva
a que o tempo da narração
2.1 Refira-se ao papel desta personagem e ao que representa, enunciando duas caracte- seja equivalente ao tempo
rísticas da sua personalidade. da ação, o que nos permite
assistir à eficácia do discurso
2.2 Justifique o recurso ao discurso direto durante o processo de venda do aparelho de e ao modo como determina
a decisão de Batola. Além
rádio. disso, imprime vivacidade e
transmite verosimilhança ao
3. Transcreva a expressão que evidencia o desafio feito por Batola à sua mulher e comen- texto narrativo.
te a sua importância para o desenvolvimento da intriga narrativa. 3. Ao decidir a compra do
aparelho, desafiando a mulher,
“Pronto! Quem manda sou eu!”
4. Explicite o papel da rádio na vida dos habitantes da aldeia. (l. 167), Batola vai provocar
várias mudanças, desde logo,
5. Tal como os habitantes da aldeia, António Barrasquinho sofre uma transformação. a sua própria transformação,
a da vida dos ceifeiros (e
5.1 Comprove, justificando com citações textuais pertinentes, as diferenças no compor- dos restantes habitantes
da aldeia) e a alteração da
tamento da personagem. relação conflituosa entre ele
e a mulher.
6. Localize a ação no tempo histórico, fundamentando a sua resposta.

157
Contos
MANUEL DA FONSECA

PROFESSOR 7. Indique a duração temporal da diegese, referindo os principais momentos e a sua im-
portância.
4. Os habitantes da aldeia,
que anteriormente recolhiam 8. Justifique as diferenças relativamente ao modo como é perspetivada a passagem do
cedo a suas casas, passaram
a vir à venda, a ouvir tempo na segunda parte do conto.
as notícias e as melodias,
deixando, assim, de viver
na solidão. 9. “Apressado, conta que veio por ali devido a um engano no caminho”. (l. 185)
A telefonia trouxe o convívio
e a comunhão a Alcaria
9.1 Justifique a utilização do discurso indireto neste ponto da narrativa.
(“Um sopro de vida paira agora
sobre a aldeia”, l. 198). A rádio 10. O fim do mês trouxe de novo a angústia à aldeia.
trazia o mundo ao deserto
alentejano quer através das 10.1 Explique este sentimento por parte dos habitantes.
notícias (da guerra) quer
através da música. Desta
forma, os habitantes da aldeia 11. O final do conto é, de certa forma, inesperado.
“sentem que não estão já
tão distantes as suas pobres 11.1 Identifique a peripécia final, inferindo as causas da evolução da personagem feminina.
casas” (l. 199).
5.1 Barrasquinho mostra-se 12. O título da coletânea da qual faz parte o conto estudado é O fogo e as cinzas, um título
animado, lúcido, responsável
(“começou a levantar-se cedo que, na opinião do autor, no prefácio da obra (p. 17), dá “o antes e o depois dos aconteci-
e a aviar os fregueses”, l. 212); mentos […] na ordem inversa das palavras”.
conversador, interessado,
ansioso por notícias (“é, de 12.1 Avalie a adequação desta ideia ao conto em apreço.
todos, o que mais vaticínios
faz sobre as coisas da guerra.”,
ll. 213-214).
C – Atente na globalidade do texto.
6. As notícias de guerra
dadas pelas emissões de
rádio permitem localizar a G 1. Refira a relação temporal que se estabelece entre os enunciados seguintes e o tempo
ação no período da Segunda
Guerra Mundial: “notícias da
de enunciação.
guerra!...” (l. 139) e “aquela a. “Mas o velho Rata matara-se.” (l. 58)
voz poderosa fala de cidades
conquistadas, divisões b. “Só o Batola o recorda lá de vez em quando.” (ll. 65-66)
vencidas, bombardeamentos,
ofensivas.” (ll. 201-202). c. “Breve, a aldeia ficará adormecida, afundada nas trevas.” (ll. 87-88)
7. Apesar de a ação do conto
se prolongar por um mês,
os momentos centrais são o 2. Indique a modalidade configurada na frase seguinte.
dia da chegada do vendedor, “− Você, agora, arrume a questão: tem um mês para a convencer.” (l. 187)
que traz consigo o rádio,
e o dia em que termina o
período experimental (que 3. Indique a função sintática dos segmentos sublinhados.
corresponderá à reconciliação
de Batola com a mulher). a. “Breve, a aldeia ficará adormecida”. (ll. 87-88)
Podem salientar-se, ainda, as
referências às noites de todo b. “Um suspiro estrangulado sai-lhe das entranhas”. (l. 95)
o mês porque correspondem,
num primeiro momento, à
letargia habitual, por oposição 4. Indique o processo de formação dos seguintes termos:
ao posterior período de
vitalidade da aldeia, motivado
a. “engano”. (l. 185)
pelas audições radiofónicas. b. “pressentimento”. (l. 237)
8. Ao contrário da morosidade
da passagem do tempo na
primeira parte do conto, 5. Refira o valor do conector “Mal” no segmento “Mal o carro parte”. (l. 188)
provocada pelo isolamento
de Alcaria, na segunda, a
mudança no modo de vida das
6. Classifique as orações do segmento:
pessoas, o convívio que ocorre “Nos intervalos, os homens bebiam um copo, junto ao balcão, os pares namoravam-se,
à noite à volta da telefonia, dá
a ideia aos habitantes de que pelos cantos.” (ll. 205-206)
não estão isolados, transmite
a sensação de que, afinal, 7. Construa um campo lexical de “agricultura” selecionando palavras do seguinte seg-
o tempo passa rápido: “o fim
do mês caiu de surpresa em mento textual:
cima da aldeia da Alcaria.”
(ll. 222-223). “E eles voltavam para a escuridão, iam ser, outra vez, o rebanho que se levanta com o
dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo cansaço e pela noite.” (ll. 227-229)

158
“Sempre é uma companhia”

PROFESSOR
G 8. Identifique o mecanismo de coesão que se estabelece entre os constituintes subli-
nhados no seguinte excerto: 9.1 Por um lado, atendendo
à brevidade narrativa,
“Foi a primeira noite em que os homens saíram da venda mudos e taciturnos. Fora característica do conto,
trata-se de uma questão
esperava-os o negrume fechado. E eles voltavam para a escuridão”. (ll. 226-227) de economia narrativa.
Ao reportar o discurso da
9. Indique os processos fonológicos presentes na evolução de cada um dos vocábulos: personagem, o narrador tem
a possibilidade de introduzir
a. MATERIA- > madeira. um adjetivo – “apressado” −
mostrando uma oposição
b. NOCTE- > noite. relativamente à atitude por
ela assumida durante a venda
PERA
CU R do aparelho.

RE
ÃO Nota: Disponíveis, no Guia
CO M P R E E N S Ã O/ EX P R E SS Ã O O RA L E X P O S IÇ do Professor, cenários de
resposta para as questões
11.° ANO 10, 11, 12 e para todas as do
1. Visione uma exposição sobre a generalização e a relevância da grupo C.
selfie no mundo moderno.
Oralidade
1.1; 1.3; 1.7; 2.1; 3.1; 4.1;
1.1 Assinale, no seu caderno, como verdadeiras ou 5.1; 5.2; 5.3; 6.1; 6.2; 6.3
falsas as seguintes afirmações. Corrija as que
indicou como falsas.
Vídeo
a. O registo fotográfico vem apresentando,
“Olá. Planeta Terra?
desde o início do século XX, um grande in- Daqui a selfie”, 2:59,
cremento; no entanto, verificou-se um de- Expresso
“Olá. Planeta Terra? Daqui a selfie”, 2:59,
créscimo entre os anos de 2015 e 2016. Expresso.
1.1 a. F − Tem havido sempre
crescimento.
b. Embora se fotografe muito com recurso ao telemóvel e se utilizem as redes sociais
b. F − Cerca de três quartos
para interagir socialmente existe a preocupação de não divulgar imagens pessoais das fotografias tiradas são
na rede. divulgadas na Internet.
c. V
c. Segundo a Google, a popularidade da selfie é tão elevada que serão tiradas, por dia, d. F − A rotina diária, desde o
cerca de noventa e três milhões, só pela geração “milénio”. acordar até ao deitar, é o "alvo"
preferido da fotografia.
d. Estimando-se que cada indivíduo tire cerca de vinte e cinco mil fotografias ao lon- e. V
go da vida, as paisagens e as manifestações culturais são os temas preferidos para f. V
fotografar. g. V
h. F − Apesar de se tirarem
e. O aperfeiçoamento dos equipamentos tecnológicos influenciou o boom da selfie. mais fotografias digitais,
elas não terão a longevidade
f. Entre os admiradores desta nova maneira de registar momentos, contam-se políti- das “de papel” e, portanto,
cos nacionais e internacionais, incluindo o próprio papa Francisco. perder-se-ão mais facilmente,
e com elas a memória de tais
g. Cerca de trinta por cento das fotografias feitas pelos jovens entre os 18 e os 24 momentos.
2.1 Resposta de caráter
anos são selfies. pessoal. No entanto, poderão
ser desenvolvidos os seguintes
h. Esta nova maneira de fotografar é um contributo precioso para eternizar breves tópicos:
momentos de vida. − as características,
as origens e os interesses
dos membros mais antigos
2. O conto “Sempre é uma companhia” evidencia a alteração das rotinas diárias graças à da família, os antepassados;
− a construção da história
radiotelefonia, exemplo da evolução tecnológica daquela época. de cada geração da família
e o modo como esta se
A exposição visionada revela o entusiasmo atual pelas selfies. Mas problematiza: desenvolve;
“Nunca tirámos tantas fotografias como agora. Mas já não imprimimos fotos e já não − as festas de família e o
reforço dos laços familiares;
fazemos álbuns. Há quem diga que o retrato, da maneira como o conhecemos, está a − a evolução física, as
diferentes fases de
acabar, e com ele estamos a perder a memória daquilo que vivemos. Será assim?” crescimento e as mudanças
que sofremos desde que
2.1 Apresente a sua opinião, em 4-6 minutos, sobre a importância dos registos fotográ- nascemos.
ficos na construção da história e da memória de cada indivíduo.

159
Contos
MANUEL DA FONSECA

INFORMAR

Solidão e convivialidade
Importância das peripécias inicial e final
O título do conto (“Sempre é uma companhia”) parece re-
meter para o benefício que, no tempo da II Guerra Mundial, a
introdução de um novo meio de comunicação (a radiotelefonia)
traz à população de uma pequena e isolada aldeia alentejana.
5 Nas páginas iniciais de “Sempre é uma companhia” não são
apenas indiciados o isolamento geográfico, a solidão, o silên-
cio. Até se dar início à diegese (na véspera da chegada do au-
tomóvel), o conto está carregado de outros sinais. Sobretudo,
de forma extraordinariamente delicada, vai-se dando conta das
Alentejo, c. 2012, 10 condições sociais indignas que os habitantes de Alcaria enfrentam. Elas são de tal
Branco Cardoso, coleção
particular. ordem, que os habitantes perdem as suas características humanas.
A chegada do rádio permitiu que todos os aldeãos soubessem “o que acontec[ia]
fora dali”. Proporcionou-lhes a comunicação (há “assuntos de sobra para conver-
sar”); inclusive, mudou hábitos arreigados (“até as mulheres vêm para a venda de-
15 pois da ceia”). Desistirem dele significaria regressarem à vivência anterior, “recuar
para muito longe, lá para o fim do mundo, onde sempre tinham vivido”.
A própria relação matrimonial sofre uma previsível alteração. Zangada durante
um mês, na véspera do dia de devolução do aparelho, a mulher de Batola emocio-
na-se a ponto de, com “um ar submisso”, revelar no olhar “uma quase expressão
20 de ternura”. Contrastando com a atitude altiva que a caracterizara até aí, a murmu-
rar, ela sugere ao marido que o aparelho fique, pois, conclui, “Sempre é uma com-
panhia neste deserto”. Na verdade, o rádio, reconfortante pela música que oferece,
sobretudo pelas notícias que veicula, simboliza isso mesmo: “uma companhia n[a-
quele] deserto”.
25 A radiotelefonia, uma inovação para a aldeia, devolveu a todos parte da huma-
nidade perdida (ou nunca antes experimentada).
Violante F. Magalhães, in Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3 (coord. Maria Isabel
Rocheta, Serafina Martins), Lisboa, Edições Caixotim, 2011, pp. 103 e 107-108 (com supressões).

1. Selecione a alternativa que completa o sentido de cada afirmação, transcrevendo para o


seu caderno a associação correta.

[1] é marcado, sobretudo, pela permanência na tasca do Batola.


[A] O título do conto
[2] transformou-se, permitindo aos habitantes da aldeia
PROFESSOR o conhecimento do mundo.
[B] O modo de vida das
Leitura personagens antes da [3] refere-se à mulher de Batola.
7.1; 7.3 chegada da telefonia
[4] levou a que a mulher de Batola aprendesse a murmurar.

1. [C] Ao longo do mês em


[5] prende-se com a chegada da telefonia.
[A] – [5]
que se ouviu a rádio,
a vida da aldeia [6] permitiu a evolução da relação entre Barrasquinho e a mulher,
[B] – [7]
[C] – [2] já que esta perdeu o ar altivo e tornou-se mais cordata.
[D] – [6]
[D] O rádio
[7] é marcado pela solidão, fruto do isolamento.

160
“Sempre é uma companhia”

INFORMAR

As personagens
Batola é definido pelo nome próprio, o sobrenome e a alcunha; da mulher,
nem sequer é dito o nome próprio. [S]abemo-la expedita, trabalhadora incan-
sável: é ela “quem abre a venda” e atende os fregueses; depois, “volta à lida da
casa”. À descrição física da mulher de Batola, dada pela tripla adjetivação “alta,
5 grave, um rosto ossudo”, segue-se a informação sobre o seu modo de estar e ser:
o “sossego de maneiras” que a caracteriza é, afinal, sintoma da circunstância de
pôr e dispor no governo quer da casa, quer do negócio.
Movendo-se em direção oposta à da mulher, surge Batola “com a cara redon-
da amarfanhada num bocejo”. À frase nominal e exclamativa “Que pessoas tão
10 diferentes!”, sucede-se a descrição da estatura e do porte de Batola (“atarracado,
as pernas arqueadas”), da indumentária que usa (o “chapeirão”, o “lenço verme-
lho amarrado ao pescoço”) – que identificamos com o trajar do homem alente-
jano. As ações de Batola (que tropeça, que se encosta) confirmam a modorra que
o “chapeirão caído para a nuca” prenunciara.
15 Mendigo e viajante, Rata figura o mensageiro, aquele que traz notícias do
que se passa extramuros. Ao escutá-lo durante “tardes inteiras”, também Batola
parecia viajar por “todo aquele mundo”. Esta hipérbole (o mais longe que Rata
viajara fora até Beja) elucida o impressionante isolamento dos habitantes de
A sesta, c. 1909, José Malhoa, Museu
Alcaria. Quando ficou impossibilitado de viajar “pelos longes”, Rata suicidou-se. Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
20 Antes desse desfecho, Batola matara a fome do mendigo a troco de coisa nenhu- PROFESSOR
ma (“nem trocavam palavra”). Após o suicídio de Rata, a saudade, que “de vez
em quando” Batola sente, agudiza-lhe a solidão. 1. a.Relação marcada por
oposições − ela é diligente,
Os homens de Alcaria são apresentados como “figurinhas” (de presépio?) trabalhadora, sossegada,
que vivem em casas “tresmalhadas”. Atendendo a esta caracterização das casas mas ativa; Batola é indolente,
passivo, apático. Conhecemos
25 (continente), os homens que as habitam (conteúdo) são aparentados com gado. o nome, apelido e alcunha
Aliás, explicitar-se-á adiante, eles são “o rebanho que se levanta com o dia, da personagem masculina;
da mulher, nem o nome.
lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo cansaço e pela noite. Mais nada b. Relação de amizade e
que o abandono e a solidão”. A tudo isto acresce a falta de esperança numa vida convivência enquanto foi
possível a Rata “viajar” e
melhor. Batola não enfrenta aquele tipo de problemas. Pelo contrário, ele dá-se trazer as novidades. Na
30 ao luxo de preguiçar, bebe “o melhor vinho que há na venda”, carrega um fio de doença do mendigo, Batola é
solidário com o amigo, mas
ouro no colete. Todavia, consciente da vida difícil dos demais aldeãos, ele é so- “nem trocavam palavra” (l. 21);
lidário. E partilha a condição animalesca dos conterrâneos: “rumina” a revolta; contudo, a morte do antigo
mensageiro agudiza a solidão
os suspiros saem-lhe “como um uivo de animal solitário”. de Batola.
Violante F. Magalhães, in Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3 (coord. Maria Isabel c. Relação de oposição no que
Rocheta, Serafina Martins), Lisboa, Edições Caixotim, 2011, pp. 104-107 (com supressões). se refere à “produtividade”
e à “dureza da vida”. Batola
é preguiçoso e os ceifeiros
trabalham todo o dia
1. Transcreva para o seu caderno a seguinte tabela e complete-a considerando a relação arduamente. Os homens
entre as personagens. são desprovidos de bens e
Batola usa um fio de ouro no
colete; os homens sentem a
Relação entre as personagens solidão e a falta de esperança
e Batola tem consciência
Batola vs. mulher a. _________________________ dessa condição dos seus
conterrâneos. No entanto,
Batola vs. Rata b. _________________________ tanto ele como os outros
apresentam uma certa
condição animalesca.
Batola vs. homens de Alcaria c. _________________________

161
MANUEL EDAN FONSECA
DE
Organização
Lexicologia: campo
de sequências
semântico
textuais
e campo lexical
R R
APRENDER
AP

ICA
G RA M Á T Qualquer texto é constituído por um conjunto de sequências que, organizadas entre si, de-
R
APL ICA terminam a estrutura global, permitindo a sua classificação como, predominantemente,
pertencente a uma determinada família de textos. Essas sequências podem ser de nature-
za narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa e dialogal, cada uma corresponden-
do a um modelo definido por um conjunto de características, conforme a tabela seguinte.

Géneros
Natureza da sequência Exemplificação Marcas
textuais

Narrativa “Calmamente, o Felismino acabou então de se š Pretérito perfeito alternando Biografia


Narração de acontecimentos, vestir, foi à gaveta do pão buscar uma côdea, com pretérito imperfeito Memórias
vividos por personagens e quando acabou de mastigar bebeu dum e presente do indicativo. Conto
num determinado espaço, trago um cálice de aguardente. Depois, pôs
š Conectores de natureza Fábula
e que apresentam uma certa o cinturão, tirou a arma do prego…”
espácio-temporal.
sequencialização temporal. Miguel Torga, Novos contos da montanha, “A caçada” Lenda
š Articuladores que demarcam Notícia
a sequencialização narrativa.
Novela
Romance

Descritiva “Visto de dentro da capa de oleado, o mundo š Predomínio de verbos de Retrato


Apresentação da descrição parecia uma coisa irreal, alva, inefável como estado: ser, estar, parecer… Adivinha
de um objeto/tema ao qual um sonho. O céu estava ainda mais silencioso
š Utilização do presente e/ou
se atribuem características/ e mais alto que de costume.”
imperfeito do indicativo
qualidades. Miguel Torga, Novos contos da montanha, “Fronteira”
para transmitir a perspetiva
durativa.
š Estruturas qualificativas
(modificadores/orações
relativas …).
š Abundância de recursos
expressivos.

Argumentativa Comunidade edp š Verbos no presente Artigo


A intenção comunicativa é do indicativo. de opinião
Vantagens que nos unem.
a de convencer, persuadir o
Poupe na sua fatura de energia.
š Estruturação do discurso Discurso
interlocutor. A argumentação
argumentativo: tese político
está presente em várias
A sua família pode poupar ainda mais. argumentação conclusão.
situações do dia a dia: Sermão
discussões, debates, diálogos… Com a Comunidade EDP ganha descontos š Abundância de conectores
Texto
na sua fatura de energia, através de compras que marcam a progressão
publicitário
nos nossos parceiros e também encontra as e articulam as diferentes
melhores dicas de eficiência energética, para partes do texto. Diálogo
aplicar em sua casa e poupar no seu dia a dia. argumentativo
Visão, n.˚ 1217, 30/06 a 06/07/2016

162
“Sempre é uma companhia”

APLICAR

Géneros
Natureza da sequência Exemplificação Marcas
textuais

Explicativa Como é que os colibris pairam š Utilização predominante Artigos


A intenção comunicativa é a do presente do indicativo. de natureza
Incrivelmente, os colibris – ou beija-flores –
de explicar, expor e informar. científica ou
têm imensa dificuldade em andar devido às š Discurso
O objetivo é conduzir o leitor enciclopédica
suas patas minúsculas. Em vez disso, pairam predominantemente
à compreensão da informação
sobre o solo batendo as suas asas num de terceira pessoa. Definições
fornecida.
movimento em forma de oito, cerca de 80
š Especificidade lexical
vezes por segundo. […]
(de acordo com a temática
A ave baixa significativamente a temperatura tratada).
corporal e a atividade metabólica e,
basicamente, “desmaia” para conservar š Estruturas qualificativas
energia. (modificadores, orações
relativas, …).
Quero Saber, janeiro de 2015

Dialogal Augusto mudou de tom, dizendo-lhe: š Referenciação deítica. Conversa


Ocorre sempre que os − Prometes passar por minha casa esta š Marcas relacionadas com Diálogo
interlocutores conversam, madrugada? a situação de produção
usando da palavra Debate
− Pois sempre quer?... do discurso: alternância
alternadamente. Está presente
− Se não partir contigo, partirei só. da primeira e da segunda Entrevista
em qualquer interação verbal,
pessoas e formas verbais
em diferentes situações − Nesse caso…
no presente do indicativo.
e contextos. − Espero-te. Aonde vais agora?
š Discurso marcado pelas
− Ao mosteiro.
características da oralidade
− Ah!... vais ao mosteiro?... (repetições, pausas, …).
Júlio Dinis, A morgadinha dos canaviais
š No registo escrito, apresenta
travessões e mudança
de linha para assinalar a
mudança de interlocutor.

PROFESSOR

Apresentação
Sequências textuais

163
MANUEL EDAN FONSECA
DE
Organização de sequências textuais
AP
R R

I CA APLICAR
G RA M Á T
R 1. Leia atentamente as sequências textuais, pertencentes ao conto estudado.
APL ICA
[A] “aí umas quinze casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o telhado es-
curo, de sumidas que estão no fundo dos córregos.” (ll. 75-77)
[B] “Ergue-se pesadamente do banco. Olha uma última vez para a noite derramada.
Leva as mãos à cara, esfrega-a, amachucando o nariz, os olhos.” (ll. 91-92)
[C] “− Bem, a senhora não se exalte. Faz-se uma coisa: a telefonia fica à experiência,
durante um mês. Se não quiserem, devolvem-na; nós devolvemos as letras. Assine
aqui, Sr. Barrasquinho. Pronto. Agora já a senhora pode ficar descansada.
− Mas − pergunta ainda a mulher − quanto se paga de aluguer por esse mês?
− Nada! − responde o homem, de novo risonho. − Por isso não se paga nada!” (ll. 176-183)
[D] “E o silêncio. Um silêncio que caiu, estiraçado por vales e cabeços, e que dorme
profundamente.” (ll. 78-80)
[E] “− Olhe, aqui, é Londres; aqui, a Alemanha; aqui, a América. É simples: vai-se rodan-
do este botãozinho...” (ll. 141-142)
[F] “E, ao meter os papéis dentro da pasta, repara que já é muito tarde. Apressado,
conta que veio por ali devido a um engano no caminho. Sai da venda, entra no
PROFESSOR carro, e diz ao Batola, aproveitando o ruído do motor”. (ll. 184-186)
[G] “Nos intervalos, os homens bebiam um copo, junto ao balcão, os pares namora-
Gramática
18.3 vam-se, pelos cantos.” (ll. 205-206)
1.1 [H] “− Dou-lhe a minha palavra de honra que não encontra nenhum aparelho pelo pre-
[A], [D] e [G] – Descrição: ço deste!” (ll. 144-145)
utilização do presente,
do pretérito perfeito e do
pretérito imperfeito; recurso 1.1 Preencha no seu caderno uma tabela semelhante a esta, seguindo as orientações.
à adjetivação (“desgarradas e
nuas”); recursos expressivos
– personificação “casinhas
[…] nuas”. Exemplo Tipologia dominante Marcas específicas (duas)
[B] e [F] – Narração:
sequencialização de ações;
recurso a marcadores [A] _____________________________ ______________________________________
espácio-temporais ("uma
última vez"; “ao meter os
papéis dentro da pasta”)
[B] _____________________________ ______________________________________
[C] – Dialogal: alternância de
interlocutores; sinais gráficos [C] _____________________________ ______________________________________
da mudança de interlocutor;
recurso à pontuação
(interrogações e exclamações) [D] _____________________________ ______________________________________
para simular a modulação de
voz da oralidade.
[E] – Explicativo: finalidade de [E] _____________________________ ______________________________________
demonstrar o funcionamento
do aparelho (rodar o botão);
recurso à especificidade [F] _____________________________ ______________________________________
lexical e ao presente do
indicativo.
[H] – Argumentativo: [G] _____________________________ ______________________________________
tentativa de convencer
o interlocutor através do
argumento “financeiro”;
[H] _____________________________ ______________________________________
verbos no presente do
indicativo.

164
“Sempre é uma companhia”

2. Leia alguns excertos dos contos “Famílias desavindas”, de Mário de Carvalho, e


“George”, de Maria Judite de Carvalho.
[A] “Por uma dessas alongadas ruas do Porto, que sobe que sobe não se acaba, há de
encontrar-se um cruzamento alto, de esquinas de azulejo, janelas de guilhotina,
telhados de ardósia em escama.”
[B] “No dobrar do século XIX, Gerard Letelessier, jovem engenheiro francês, fracassou
em Paris e em Lisboa, antes de convencer um autarca do Porto de que inventara
um semáforo moderno, operado a energia elétrica, capaz de bem ordenar o trânsi-
to de carroças de vinho, carros de bois e landós da sociedade. A autoridade gostou
do projeto e das garrafas de Bordéus que o jovem engenheiro oferecia.”
[C] “O sistema é simples e, pode dizer-se com propriedade, luminoso. Um homem
pedala numa bicicleta erguida a dez centímetros do chão por suportes de ferro.
A corrente faz girar um imã dentro de uma bobina. A energia gerada vai acender
as luzes de um semáforo, comutadas pelo ciclista.”
[D] “O rosto da jovem que se aproxima é vago e sem contornos, uma pincelada clara,
e, quando os tiver, a esses contornos, ele será o rosto de uma fotografia que tem
corrido mundo numa mala qualquer, que tem morado no fundo de muitas gavetas, PROFESSOR
o único fetiche de George.”
2.1
[E] “Mais tarde partiu por além-terra, por além-mar. Fez loiros os cabelos, de todos os
[A] – Descritiva; presente
loiros, um dia ruivos por cansaço de si, mais tarde castanhos, loiros de novo, es- do indicativo – “sobe que
sobe”; “há de”; estruturas
verdeados, nunca escuros, quase pretos, como dantes eram. Teve muitos amores, qualificativas: “janelas
grandes e não tanto, definitivos e passageiros, simples amores, casou-se, divor- de guilhotina”, “telhados
de ardósia em escama”;
ciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar […]”. recursos expressivos:
enumeração “de esquinas de
azulejo, janelas de guilhotina,
2.1 Transcreva a tabela para o seu caderno e complete-a de acordo com as indicações. telhados de ardósia
em escama”.
[B] – Narrativa; marcador
Sequência dominante Marcas/Exemplificação temporal – “No dobrar do
século XIX”; sequencialização
[A] _________________________________ _________________________________ das ações; utilização do
pretérito perfeito: “fracassou”,
“gostou”.
[B] _________________________________ _________________________________ [C] – Explicativa; vocabulário
específico – “A corrente
faz girar um imã dentro de
[C] _________________________________ _________________________________ uma bobina”; explicação do
funcionamento do semáforo.
[D] _________________________________ _________________________________ [D] – Descritiva; recurso
a modificadores – frases
relativas “que se aproxima”,
[E] _________________________________ _________________________________ “que tem corrido mundo”, “que
tem morado no fundo de uma
gaveta”; utilização de verbos
de estado: “é vago e sem
contornos”.
[E] – Narrativa; utilização
de verbos no pretérito perfeito
e sequencialização das ações:
“teve”, “casou-se”, “divorciou-
-se”; no entanto, de “fez loiros
cabelos” até “como dantes
eram” o segmento é descritivo.

165
Contos
MANUEL DA FONSECA

LEITURA
PROFESSOR

Leitura Leia atentamente a seguinte memória de José Saramago que recorda um tempo históri-
7.1; 7.3; 7.4; 7.5; 7.7;
8.1; 8.2
co idêntico ao apresentado no conto “Sempre é uma companhia”.
Gramática
17.1; 19.4

1. Determinantes possessivos:
“Minha avó” (l. 6); “Meu avô”
As pequenas memórias
(l. 9); pronomes pessoais: “Não

A
sendo eu” (l. 16); “deslocar-me”
(l. 23); formas verbais na arca era azul, pintada com tinta
primeira pessoa do singular:
“tenho [para contar]” (l. 23); de óleo, de uma cor cansada de
“reparei que” (l. 24). céu sujo. Estava na casa de fora,
2. Em primeiro lugar, a não
coincidência entre o tempo da ao lado da porta da rua, logo à direita de
escrita e o do acontecimento 5 quem entrava. Era grande, era enorme,
evocado, conforme se vê
nas múltiplas referências era a arca das favas. Minha avó reco-
ao passado, por oposição mendava-me que não a abrisse porque
ao presente, conforme os
segmentos textuais: “Não o pó das favas causava uma comichão
sendo eu então, e até hoje” terrível. Meu avô, que cultivava, sobre as
(l. 16); “caberia aqui […] se não
fosse outra a história que 10 complicadas questões da formação do
tenho para contar”
(ll. 22-23); “Fossem estes
caráter e dos métodos para robustecer
meus avós […], e eu admitiria, a fortaleza de ânimo, ideias resoluta- A persistência da memória, c. 1931, Salvador Dalí, Museu
hoje” (ll. 32-33). Em segundo de Arte Moderna, Nova Iorque.
lugar, o recurso à memória, mente espartanas, ria-se baixinho e per-
visível em vocábulos como guntava-me uma vez por outra, quando regressava a casa com o gado, ao sol-posto, se já a
“recordação” ou “lembrança”.
15 tinha aberto.
3. O desafio subtil do avô
quando chegava a casa, à Não sendo eu então, e até hoje, adicto ao pruriginoso legume, levantar a portentosa
tardinha, depois do trabalho
e a “proibição” da avó
tampa da arca só para ver umas favas iguais a outras não era intento que excitasse a curio-
transformaram “o fruto sidade dos meus dez anos. Mas tantas vezes a mansa ironia do avô roçou a suscetibilidade
proibido” em “fruto apetecido”.
do neto e provocou o seu pequeno orgulho que um dia, estando sozinho em casa, foi-se à
4. A ação passa-se em 1933,
um ano depois de Salazar 20 arca e, com grande esforço, levantou-lhe a pesada tampa, fazendo-a subir a toda a altura
ter chegado à Presidência do dos braços e depois empurrando-a até ir bater contra a parede caiada. Ali estavam as favas.
Conselho em Portugal, ou
seja, nos primórdios do Estado Caberia aqui a descrição das comichosas consequências se não fosse outra a história que
Novo. Na Europa, assiste-se
à subida de Hitler ao poder, o
tenho para contar. Ao deslocar-me na direção de uma das esquinas da arca para rodeá-la e
que virá a originar a Segunda com mais facilidade chegar ao bordo superior da tampa e fazê-la depois descer, reparei que,
Guerra Mundial.
25 pelo lado de dentro, estava forrada de papel de jornal. Não era uma casa de leitores a casa
5. O isolamento do Ribatejo –
o Século era o único jornal dos avós, analfabetos um e outro, como já ficou dito e redito. Um tio qualquer que por lá apa-
que chegava à Azinhaga; o recesse e algum tempo demorasse, em licença de tropa, por exemplo, se algumas letras fos-
analfabetismo dos avós e a
pouca instrução dos restantes se competente de ler, seria das gordas e gordíssimas. A presença daquelas folhas do Século
familiares; a fotografia do
chanceler austríaco Dollfuss
– que, com todo o fundamento, anunciava no cabeçalho ser o jornal de maior expansão do
a assistir a um desfile de 30 País, e se digo “com todo o fundamento” é porque era o único jornal que chegava à Azinhaga
tropas e a constatação de que
era “baixinho”. −, a presença de tais folhas, digo, só podia significar que minha avó as tinha pedido, quando
6. já lidas e postas de lado, na tenda do Senhor João Vieira de quem era freguesa. Fossem es-
a. LEGERE > leger > leer > tes meus avós gente fina e de pele delicada, e eu admitiria, hoje, a hipótese de estarem ali
ler – apócope, síncope e crase
(por ordem); aqueles papéis para taparem as frinchas da tampa da velha arca, que realmente as tinha, e
b. Palatalização. 35 assim impedir que o perigoso pó castanho das favas atacasse à falsa fé a indefesa tribo dos
7. Parassíntese. Melrinhos, Caixinhas e Saramagos.
8. Modalidade epistémica com Era o verão de 1933, eu tinha dez anos, e de todas as notícias que o Século publicou na-
valor de certeza.
9. Complemento do nome. quelas folhas de um certo dia do ano anterior só uma recordação vim a guardar: a fotografia,
com a respetiva legenda explicativa, que mostrava o chanceler austríaco Dollfuss a assistir

166
“Sempre é uma companhia”

40 a um desfile de tropas no seu país. Era o verão de 1933, há seis meses que Hitler tomou o PROFESSOR
poder na Alemanha, mas dessa notícia, se a seu tempo a li no Diário de Notícias que meu pai
levava para casa, em Lisboa, não tenho lembrança. Estou de férias em casa de meus avós Escrita
10.1; 11.1; 12.1; 12.3; 12.4;
maternos, e, enquanto meio distraído vou coçando devagarinho os braços, surpreendo-me 12.5
de como podia um chanceler (que era um chanceler?) ser tão baixinho. Nem Dollfuss nem
Sugere-se o seguinte plano:
45 eu sabemos que irá ser assassinado pelos nazis austríacos no ano seguinte.
Introdução: referência
José Saramago, As pequenas memórias, Lisboa, Editorial Caminho, 2006, pp. 139-142 (com supressões). à necessidade de o ser
humano guardar momentos
importantes da sua vida.
1. Demonstre a presença do narrador no discurso, justificando com três marcas grama- Desenvolvimento:
– relevância desses momentos
ticais distintas. para preservar, por exemplo,
os laços afetivos que o unem
2. Comprove o caráter memorialista deste texto, apontando duas características, exem- a outras pessoas;
plificadas com segmentos textuais pertinentes. − pertinência da memorização
das aprendizagens efetuadas
no percurso de vida e evolução
3. Exponha as razões que levaram o narrador a abrir a arca das favas. do ser humano.
Conclusão: a memória
4. Associe a ação narrada ao tempo histórico e político de Portugal e da Europa. é fundamental para o
crescimento psicoemocional
5. Sintetize os tópicos da reflexão originada pela visualização do jornal que forrava a arca. e social do ser humano.

G 6. Indique os processos fonológicos presentes na evolução de Sugestão para consulta:

a. LEGERE > ler.


b. HODIE > hoje. Link
– “Em memória do
7. Refira o processo de formação do termo “esclarecer”. papel da memória
nas aprendizagens
8. Indique a modalidade e o valor do complexo verbal presente no último período do texto. escolares”
– Nova acrópole.pt
9. Indique a função sintática dos constituintes sublinhados em: – Narrativas de lugar
e memória
A avó do narrador proibiu a abertura da arca.

*NOTA PARA O ALUNO


E S C R I TA Apresenta-se, como
sugestão, a consulta dos
seguintes documentos:
No texto lido são revelados por Saramago momentos marcantes da sua infância, recupe- š Cristiana Rodrigues,
rados pela sua memória de adulto. Luísa Afonso Soares e
Fernanda Mota Alves
(Org), Estudos da
1. Proceda a uma pesquisa* sobre a importância e o papel da memória na construção da
memória, Teoria e análise
identidade do ser humano. cultural. Lisboa, Ed.
Humus, 2016.
2. Com base na informação recolhida, redija um texto expositivo, de 150 a 200 palavras, š http://www.
sobre a importância da memória para a construção da identidade do ser humano, ten- ubimuseum.ubi.pt/
n01/docs/ubimuseum-
do por base as seguintes orientações: n01-pdf/CS3-
rodrigues-donizete-
š Estruturação tripartida: patrimonio-cultural-
− introdução: apresentação do tema; memoria-social-
identidade-uma%20
− desenvolvimento: elucidação evidente do tema, com fundamentação das ideias abordagem-
antropologica.pdf
respeitantes à importância da memória; š http://visao.sapo.pt/
− conclusão: retoma do tema e fecho do texto. opiniao/josluspeixoto/
familia=f723394
š Concisão e objetividade.
š Seleção vocabular.
BLOCO INFORMATIVO – p. 379
š Articulação coerente, correção linguística, sintática e ortográfica. PREPARAR O EXAME – p. 54

167
Contos
MA RI A JU D I T E D E CA RVA L H O
PERA
CU R
COMPREENSÃO DO ORAL

RE
ÃO
E X P O S IÇ
Visione atentamente o seguinte documento sobre a escritora Maria
Judite de Carvalho. 10.° ANO

1. Centre a sua atenção no discurso da narradora e tome notas que lhe permitam realizar
as atividades.
1.1 Complete, no seu caderno, uma tabela semelhante a esta com alguns dados biográfi-
cos de Maria Judite de Carvalho.

Ler Mais, Ler Melhor, Maria Judite Data Acontecimento


de Carvalho
1921 a. _______________________________________________________________
PROFESSOR
1949-1955 b. _______________________________________________________________
Oralidade
1.1; 1.3; 1.4; 2.1
Educação Literária 1921 c. _______________________________________________________________
16.1
1998 d. _______________________________________________________________

Link
Ler Mais, Ler Melhor, 1.2 Indique duas das atividades exercidas pela autora.
Maria Judite de Carvalho
(10 minutos) 1.3 Indique alguns títulos de obras de Maria Judite de Carvalho.

1.1 2. Complete as afirmações, associando os segmentos da coluna A aos elementos da co-


a. Nascimento (em Lisboa). luna B. Transcreva para o seu caderno a afirmação integral.
b. Casamento com Urbano
Tavares Rodrigues.
Coluna A Coluna B
c. Permanência em França.
d. Morte (em Lisboa). [A] Maria Judite de Carvalho, na [1] a liberdade de sentimentos da mulher.
1.2 Escritora e colaboradora infância, viveu com uma tia,
em jornais e revistas.
1.3 Tanta gente, Mariana [2] comoveu o seu marido.
− estreia literária (1959);
[B] Urbano Tavares Rodrigues
As palavras poupadas – salienta dois traços da escritora:
[3] em virtude da morte da mãe e de um irmão
prémio Camilo Castelo
Branco; Os armários vazios; [C] De acordo com Paula Morão, e da ida de seu pai para a Bélgica.
Flores ao telefone; a obra literária de Maria Judite
Seta despedida; A flor que [4] implica o leitor na construção da história.
havia na água parada.
de Carvalho retrata
2. [5] que lhe garantiram os estudos no Ensino
[D] Uma das técnicas narrativas
[A] – [3] usadas pela escritora é Superior.
[B] – [6]
[C] – [8] [E] A beleza da sua primeira obra, [6] o humor e a ironia fria.
[D] – [7] Tanta gente, Mariana
[E] – [2]
[7] o monólogo interior, conjugado com o diálogo.
[F] – [4] [F] Através da arte narrativa, Maria
[G] – [9] Judite de Carvalho
[H] – [10] [8] a consciência, o interior da alma humana.
3. Pelo discurso, facilmente [G] Nas crónicas, nos contos e nas
se infere um relacionamento novelas, a autora [9] faz uma análise realista da sociedade, em
de enorme cumplicidade, especial das pessoas que estão sós.
amizade e amor entre o casal.
São evidentes as marcas [H] A leitura da obra de Maria Judite [10] um maior conhecimento de quem somos
emotivas no seu discurso, de Carvalho permite e do meio em que estamos inseridos.
sobretudo pelo recurso
às marcas não verbais:
emotividade do discurso, 3. Infira sobre o relacionamento de Maria Judite de Carvalho com Urbano Tavares Rodri-
semblante alegre, …
gues, evidenciando marcas do discurso comprovativas (marcas verbais e não verbais).

168
“George”

INFORMAR

Maria Judite de Carvalho – vida e obra


Cronista notável, excecional contista, novelista, jornalista, mas também tra-
dutora e artista plástica, Maria Judite de Carvalho conta ainda na sua bibliografia
com um livro de poemas e uma peça teatral, ambos postumamente editados em MARIA JUDITE DE CARVALHO
1998, ainda que por si preparados: A Flor que havia na água parada e Havemos (1921-1998)
5 de rir?.
Os volumes de narrativas breves constituem, porém, a espinha dorsal da sua
produção literária, a cujo conjunto foi atribuído o Prémio Vergílio Ferreira das
Universidades Portuguesas em 1998. Dos treze títulos que então a formavam,
alguns já traduzidos em França, o livro de estreia pode dizer-se, ainda hoje,
10 referência incontornável. Nele se surpreendem desde cedo as traves mestras do
seu universo narrativo peculiar, aí se definindo já, com segurança e mestria in-
vulgares, temas e formas de contar. Alicerçados numa escrita sóbria e depurada,
avessa às lágrimas, lúcida mas discreta e delicadamente enternecida, a solidão,
a morte, a inexorável passagem do tempo e as perdas que consigo arrasta mar-
15 cam desde logo presença. Sem dramatismo e sem frieza. Com sentida lucidez.
As raízes deste universo, dir-se-ia, mergulham fundo na experiência pessoal
da escritora: órfã de mãe aos sete anos e de pai aos quinze, o confronto precoce
com a morte de familiares tão próximos, transfigurado na novela epónima de
Tanta gente, Mariana…, parece ter marcado para sempre essa visão melancólica
PROFESSOR
20 e desencantada da vida e da condição humana que atravessa toda a sua obra – e
que não raro nos incomoda e perturba, chegando a doer e a parecer cruel. Radi- Leitura
cando numa agudíssima consciência da precariedade de todas as coisas, uma tal 8.1; 9.1

visão compagina-se com traços fundamentais do caráter de Maria Judite e que


1.
das palavras de uma das duas únicas entrevistas que concedeu aos jornais – a a. F – Só são póstumas as
25 última – se desprendem, bem como de testemunhos dos que com ela privaram. obras A flor que havia na água
parada e Havemos de rir?
Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3 (coord. Maria Isabel Rocheta, Serafina Mar- b. F – É um marco graças à
tins), Lisboa, Edições Caixotim, 2011, pp. 112-113 (com supressões). técnica narrativa evidenciada.
c. V

Escrita
1. Assinale, no seu caderno, as afirmações verdadeiras e falsas. Corrija as falsas. 10.1; 12.1; 12.2
a. Todas as obras de Maria Judite de Carvalho foram publicadas postumamente.
1. Da obra da autora constam
b. O livro Tanta gente, Mariana… é um marco na sua carreira literária em virtude da temá- textos narrativos, textos
tica abordada. dramáticos e poéticos.
No entanto, são os primeiros
c. As temáticas mais recorrentes na obra de Maria Judite de Carvalho parecem ter raízes que maior relevância
assumem e destes destaca-
na sua vida pessoal. -se a primeira obra, Tanta
gente, Mariana…, pois aí são
já visíveis aspetos técnico-
-estilísticos e temáticos que
PERA
CU R viriam a caracterizar a obra
E S C R I TA da escritora. A sua escrita,
RE

límpida, mas consistente,


S ÍN T E S E apresenta-nos uma visão
1. Faça a síntese do texto, reduzindo-o a cerca de um quarto da sua desencantada da vida e da
10.° ANO condição humana e versa
extensão, isto é, cerca de 75 palavras. temas como a solidão, a morte
ou a passagem do tempo.
BLOCO INFORMATIVO – p. 379 (75 palavras)
PREPARAR O EXAME – p. 51

169
Contos
MARIA JUDITE DE CARVALHO

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

George
Andam lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças con-
tra o vento, ou como quem caminha, também é possível, na pesada e espessa
e dura água do mar. Mas não há água nem vento, só calor, na longa rua onde
George volta a passar depois de mais de vinte anos. Calor e também aquela ara-
5 gem macia e como que redonda, de forno aberto, que talvez venha do sul ou de
qualquer outro ponto cardeal ou colateral, perdeu a bússola não sabe onde nem
quando, perdeu tanta coisa sem ser a bússola. Perdeu ou largou?
Caminham pois lentamente, George e a outra cujo nome quase quis esquecer,
quase esqueceu. Trazem ambas vestidos claros, amplos, e a aragem empurra-os
10 ao de leve, um deles para o lado esquerdo de quem vai, o outro para o lado di-
reito de quem vem, ambos na mesma direção, naturalmente.
O rosto da jovem que se aproxima é vago e sem contornos, uma pincelada
clara, e quando os tiver, a esses contornos, ele será o rosto de uma fotografia que
tem corrido mundo numa mala qualquer, que tem morado no fundo de muitas
15 gavetas, o único fetiche de George. As suas feições ainda são incertas, salpicando
a mancha pálida, como acontece com o rosto das pessoas mortas. Mas, tal como
essas pessoas, tem, vai ter, uma voz muito real e viva, uma voz que a cal e as pás
de terra, e a pedra e o tempo, e ainda a distância e a confusão da vida de George,
não prejudicaram. Quando falar não criará espanto, um simples mal-estar.
20 Agora estão mais perto e ela encontra, ainda sem os ver, dois olhos largos,
semicerrados, uma boca fina, cabelos escuros, lisos, sobre um pescoço alto de
Modigliani. Mas nesse tempo, dantes, não sabia quem era Modigliani e outros
que tais, não eram lá de casa, os pais tinham sido condenados pelas instâncias
supremas à quase ignorância, gente de trabalho, diziam como se os outros não
25 trabalhassem, e sorriam um pouco com a superioridade dessa mesma ignorân-
cia se a ouviam falar de um livro, de um filme, de um quadro nem pensar, o
único que tinham visto talvez fosse a velha estampa desbotada do Angelus que
estava na casa de jantar. Com superioridade, pois, e também com uma certa in-
dignação. Ou seria mesmo vergonha? Como quem ouve um filho atrasado dizer
30 inépcias diante de gente de fora que depois, Senhor, pode ir contar ao mundo o
que ouviu. E rir. E rir.
Já não sabe, não quer saber, quando saiu da vila e partiu à descoberta da ci-
dade grande, onde, dizia-se lá em casa, as mulheres se perdem. Mais tarde par-
tiu por além-terra, por além-mar. Fez loiros os cabelos, de todos os loiros, um
35 dia ruivos por cansaço de si, mais tarde castanhos, loiros de novo, esverdeados,
nunca escuros, quase pretos, como dantes eram. Teve muitos amores, grandes
e não tanto, definitivos e passageiros, simples amores, casou-se, divorciou-se,
partiu, chegou, voltou a partir e a chegar, quantas vezes? Agora está − estava −,
até quando? em Amesterdão.
40 Depois de ter deixado a vila, viveu sempre em quartos alugados mais ou
menos modestos, depois em casas mobiladas mais ou menos agradáveis. As
últimas foram mesmo francamente confortáveis. Vives numa casa mobilada sem
nada de teu? Mas deve ser um horror, como podes?, teria dito a mãe, se soubesse.
Não o soube, porém. As cartas que lhe escrevia nunca tinham sido minuciosas,

170
“George”

45 de resto detestava escrever cartas e só muito raramente o fazia. Depois o pai


morreu e a mãe logo a seguir.
Uma casa mobilada, sempre pensou, é a certeza de uma porta aberta de par
em par, de mãos livres, de rua nova à espera dos seus pés. As pessoas ficam tão
estupidamente presas a um móvel, a um tapete já gasto de tantos passos, aos
50 bibelots acumulados ao longo das vidas e cheios de recordações, de vozes, de
olhares, de mãos, de gente, enfim. Pega-se numa jarra e ali está algo de quem
um dia apareceu com rosas. Tem alguns livros, mas poucos, como os amigos
que julga sinceros, sê-lo-ão? Aos outros livros, dá-os, vende-os a peso, que leve
se sente depois!
55 − Parece-me que às vezes fazes isso, enfim, toda essa desertificação, com
esforço, com sofrimento – disse-lhe um dia o seu amor de então.
− Talvez – respondeu −, talvez. Mas prefiro não pensar no caso.
Queria estar sempre pronta para partir sem que os objetos a envolvessem,
a segurassem, a obrigassem a demorar-se mais um dia que fosse. Disponível,
60 pensava. Senhora de si. Para partir, para chegar. Mesmo para estar onde estava.
Os pais não sabiam compreender esse desejo de liberdade, por isso se foi um
dia com uma velha mala de cabedal riscado, não havia outra lá em casa. Mas
prefere não pensar nos primeiros tempos. E as suas malas agora são caras, leves,
malas de voar, e com rodinhas.
65 A outra está perto. Se houve um momento de nitidez no seu rosto, ele já
passou, George não deu por isso. Está novamente esfumado. A proximidade
destrói ultimamente as imagens de George, por isso a vai vendo pior à medida
que ela se aproxima. É certo que podia pôr os óculos, mas sabe que não vale a
pena tal trabalho. Param ao mesmo tempo, espantam-se em uníssono, embora
70 o espanto seja relativo, um pequeno espanto inverdadeiro, preparado com
tempo.
− Tu?
− Tu, Gi?
Tão jovem, Gi. A rapariguinha frágil, um vime, que ela tem le-
75 vado a vida inteira a pintar, primeiro à maneira de Modigliani, de-
pois à sua própria maneira, à de George, pintora já com nome nos
marchands das grandes cidades da Europa. Gi com um pregador de
oiro que um dia ficou, por tuta e meia, num penhorista qualquer
de Lisboa. Em tempos tão difíceis.
80 − Vim vender a casa.
− Ah, a casa.
É esquisito não lhe causar estranheza que Gi continue tão
jovem que podia ser sua filha. Quieta, de olhar esquecido,
vazio, e que não se espante com a venda assim anunciada,
85 tão subitamente, sem preparação, da casa onde talvez
ainda more.
− Que pensas fazer, Gi?
− Partir, não é? Em que se pode pensar aqui, neste cu
de Judas, senão em partir? Ainda não me fui embora
90 por causa do Carlos, mas... O Carlos pertence a isto,
nunca se irá embora. Só a ideia o apavora, não é?
− Sim. Só a ideia.
Contos
MARIA JUDITE DE CARVALHO

− Ri-se de partir, como nós nos rimos de uma coisa impossível, de uma ideia
louca. Quer comprar uma terra, construir uma casa a seu modo. Recebeu uma he-
95 rança e só sonha com isso. Creio que é a altura de eu...
− Creio que sim.
− Pois não é verdade?
− Ainda desenhas?
PROFESSOR − Se não desenhasse dava em maluca. E eles acham que eu tenho muito jeiti-
100 nho, que hei de um dia ser uma boa senhora da vila, uma esposa exemplar, uma
Educação Literária
14.1; 14.2; 14.3; 14.4; mãe perfeita, tudo isso com muito jeito para o desenho. Até posso fazer retratos das
14.5; 14.6; 14.7; 14.8; crianças quando tiver tempo, não é verdade?
14.9; 14.10; 15.1; 15.2;
15.3 − É o que eles acham, não é?
Gramática − A mãe está a acabar o meu enxoval.
17.1; 18.2; 19.1; 19.2; 105 − Eu sei.
19.3; 19.4
Há um breve silêncio, depois George diz devagar:
1.1 A personagem chama-se − Que calor, cheira a queimado, o ar. Terá sido sempre assim?
George e caminha numa rua − Farto-me de dizer: cheira a queimado, o ar. Ninguém me ouve.
longa, mas familiar, uma vez
que é a “rua onde George volta − Ninguém ouve ninguém, não sabes? Que aprendeste com a vida, mulher?
a passar depois de mais de
vinte anos” (ll. 3-4).
110 A sua voz está mole, pegajosa, difícil, as palavras perdem o fim, desinteres-
2.1 A construção do retrato sadas de si próprias, é como se se preparassem para o sono.
faz-se, aparentemente, com − Creio que estou atrasada − diz então, olhando para o relógio. − Estou mesmo
apelo à memória. O rosto da
jovem vai surgindo aos poucos − acrescenta, olhando melhor. − E não posso perder o comboio. Amanhã bem cedo
e vai ganhando contornos sigo para Amesterdão. Estou a viver em Amesterdão, agora. Tenho lá um atelier.
mais definidos à medida que
vai ficando mais presente. 115 − Amesterdão é? Onde fica isso?
Inicialmente é desfocado,
“vago e sem contornos” (l. 12),
Mas é uma pergunta que não pede resposta. Gi fá-la por fazer e sorri o seu
como se se tratasse de uma lindo sorriso branco de 18 anos. Depois ambas dão um beijo rápido, breve, no ar,
mancha. Vai ganhando, depois,
feições, ainda que “incertas”. não se tocam, nem tal seria possível, começam a mover-se ao mesmo tempo,
Ao ficar mais próximo, devagar, como quem anda na água ou contra o vento. Vão ficando longe, mais
destacam-se os olhos largos,
semicerrados, a boca fina
120 longe. E nenhuma delas olha para trás. O esquecimento desceu sobre ambas.
e os cabelos lisos escuros
“sobre um pescoço alto de
Modigliani” (ll. 21-22). Agora está à janela a ver o comboio fugir de dantes, perder para todo o sem-
2.2 As sensações visuais pre árvores e casas da sua juventude, perder mesmo a mulher gorda, da passa-
dominam a construção do
retrato, tal como se de uma gem de nível, será a mesma ou uma filha ou uma neta igual a ela? Árvores, casas
pintura se tratasse, desde e mulher acabam agora mesmo de morrer, deram o último suspiro, adeus. Uma
a descrição dos vestidos,
“claros, amplos” (l. 9), ao seu 125 lágrima que não tem nada a ver com isto mas com o que se passou antes – que
movimento e à composição do terá sido que já não se lembra? −, uma simples lágrima no olho direito, o outro,
rosto, “vago e sem contornos”
(l. 12), “pincelada clara” que esquisito, sempre se recusa a chorar. É como se se negasse a compartilhar
(ll. 12-13), “mancha pálida” os seus problemas, não e não.
(l. 16), “olhos largos” (l. 20) e
“pescoço alto” (l. 21). Existe
também o recurso à sensação
auditiva na referência à voz
A figura vai-se formando aos poucos como um puzzle gasoso, inquieto, in-
“real e viva” (l. 17). 130 forme. Vê-se um pedacinho bem nítido e colorido mas que logo se esvai para

172
“George”

aparecer daí a pouco, nítido ainda, mas esfumado. George fecha os olhos com a
força possível, tem sono, volta a abri-los com dificuldade, olhos de pupilas es-
curas, semicirculares, boiando num material qualquer, esbranquiçado e oleoso. PROFESSOR
À sua frente uma senhora de idade, primeiro esboçada, finalmente comple-
135 ta, olha-a atentamente. De idade não, George detesta eufemismos, mesmo só 3. Simbolicamente,
estas alusões dão conta
pensados, uma mulher velha. Tem as mãos enrugadas sobre uma carteira preta, do desdobramento da
personagem, comprovável
cara, talvez italiana, italiana, sim, tem a certeza. A velha sorri de si para consigo, pelo movimento dos vestidos
ou então partiu para qualquer lugar e deixou o sorriso como quem deixa um (que são muito semelhantes),
pela fotografia que George
guarda-chuva esquecido numa sala de espera. O seu sorriso não tem nada a ver tem guardado ao longo da vida,
140 com o de Gi − porque havia de ter? −, são como o dia e a noite. Uma velha de e que constitui o seu único
“fetiche”, e que é, afinal, a
cabelos pintados de acaju, de rosto pintado de vários tons de rosa, é certo que imagem “da mais nova”, e, por
discretamente mas sem grande perfeição. A boca, por exemplo, está um pouco fim, pela voz que se mantém
clara como no passado, apesar
esborratada. de todas as perturbações da
Sem voz e sem perder o sorriso diz: vida de George. Todas estas
referências indicam que se
145 − Verá que há de passar, tudo passa. Amanhã é sempre outro dia. Só há uma trata de uma recordação
e não da realidade, o que
coisa, um crime, que ninguém nos perdoa, nada a fazer. Mas isso ainda está longe, se comprova por meio da
muito longe, para quê pensar nisso? Ainda ninguém a acusa, ainda ninguém a expressão “nesse tempo,
dantes, não sabia quem era
condena. Que idade tem? Modigliani”.
− Quarenta e cinco anos. Porquê? 4. Ironia, uma vez que
150 − É muito nova − afirma. − Muito nova. pretende evidenciar as
diferenças culturais entre
− Sinto-me velha, às vezes. George, que era conhecedora
de literatura, cinema e
− É normal. Eu tenho quase 70 anos. Como estava a chorar, pensei... pintura, e os seus pais, que ela
Encolhe os ombros, responde aborrecida: considera quase ignorantes, o
que acaba por influenciar a sua
− Não tive desgosto nenhum, nenhum. Um encontro, um simples encontro... decisão de partir.
155 − Também tenho muitos encontros, eu. Não quero tê-los mas sou obrigada a 5. A interrogação pretende
isso, vivo tão só. Cheguei à ignomínia de pedir a pessoas conhecidas retratos da reforçar a inconstância e o
caráter plural de George, ideia
minha família. Não tinha nenhum, só um retrato meu, de rapariguinha. E retratos que percorre todo o parágrafo.
Em primeiro lugar, as várias
de amigos, também. De amigos desaparecidos, levados pelas tempestades, os mais transmutações físicas,
queridos, naturalmente. Porque... o tal crime de que lhe falei, o único sem perdão, evidenciadas na mudança da
cor dos cabelos, sem, contudo,
160 a velhice. Um dia vai acordar na sua casa mobilada... se aproximarem da cor
− Como sabe que... primordial; em segundo lugar,
as vivências amorosas (“Teve
− E verá que está só e olhará para o espelho com mais atenção e verá que está muitos amores”, l. 36,
velha. Irremediavelmente velha. “casou-se, divorciou-se”,
l. 37) e o movimento físico que
− Tenho um trabalho que me agrada. caracteriza a sua vida, “partiu,
165 − Não seja tonta, menina. Outro dia vai reparar, ou talvez já tenha dado por chegou, voltou a partir” (l. 38).
6. George desloca-se à vila
isso, que está a ver pior, e outro ainda que as mãos lhe tremem. E, se for um pouco após a morte dos pais, para
sensata, ou se souber olhar em volta, descobrirá que este mundo já não lhe per- vender a casa que herdou. Esta
ação originou o reencontro da
tence, é dos outros, dos que julgam que Baden Powell é um tipo que toca guitarra e mulher adulta com a jovem
que Levi Strauss é uma marca de calças. que foi no passado (“cujo
nome quase quis esquecer,
170 − Isso é ignorância, não tem nada a ver com a idade. quase esqueceu”, ll. 8-9),
− Talvez seja ignorância, também. Talvez seja. Estou a incomodá-la, parece-me. mas de quem nunca se tinha
libertado (guardou sempre a
− Dói-me simplesmente a cabeça. sua fotografia), o que acabará
por suceder agora, já que o
− Desculpe. frágil elo que ainda a ligava
ao passado (a casa) se
quebrou, afastando por
George fecha os olhos com força e deixa-se embalar por pensamentos mais completo Gi (“o esquecimento
175 agradáveis, bem-vindos: a exposição que vai fazer, aquele quadro que vendeu desceu sobre ambas”) e
o espaço natal (“Árvores,
muito bem o mês passado, a próxima viagem aos Estados Unidos, o dinheiro que casas e mulher acabam agora
pôs no banco. O dinheiro no banco, nos bancos, é uma das suas últimas paixões. mesmo de morrer”, ll. 123-124).

173
Contos
MARIA JUDITE DE CARVALHO

Ela pensa − sabe? − que com dinheiro ninguém está totalmente só, ninguém
é totalmente abandonado. A velha Georgina já o deve ter esquecido. A velhice
180 também traz consigo, deve trazer, um certo esquecimento das coisas essenciais,
pensa. Abre os olhos para lho dizer, para lho pensar, para lho atirar em silêncio
à cara enrugada, mas a velha já ali não está.
O calor de há pouco foi desaparecendo e agora não há vestígios daquela ara-
gem de forno aberto. O ar está muito levemente morno e quase agradável. Geor-
185 ge suspira, tranquilizada. Amanhã estará em Amesterdão na bela casa mobilada
PROFESSOR
onde, durante quanto tempo?, vai morar com o último dos seus amores.
7.1 Ambos ambicionam coisas
Maria Judite de Carvalho, “George” in Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3 (Coord.
diferentes da vida. Carlos
pretende “criar” raízes na vila; Maria Isabel Rocheta, Serafina Martins), Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 115-120.
construir uma casa, o que
poderá ser entendido com
obtenção de estabilidade
e fixação ao local. Gi, por 1. Atente no primeiro parágrafo do texto.
seu lado, pretende ver o
mundo, partir, vontade que 1.1 Indique a personagem destacada bem como as referências espácio-temporais da ação.
não concretizará se tiver a
casa; por isso, vive em casas 2. Nos parágrafos seguintes, o leitor depara-se, de forma mais explícita, com uma outra
arrendadas, não estando
presa a pormenores: a casa personagem.
alugada é a certeza de “rua
nova à espera dos seus pés” 2.1 Explicite o modo como é progressivamente desenhado o retrato da “jovem que se
(l. 48). aproxima”.
8.1 A velocidade do comboio
associada à simbologia do 2.2 Demonstre o recurso às sensações na construção do seu retrato.
termo “fugir” significa o
corte radical com o passado.
Quebrado o laço umbilical 3. Descodifique o valor simbólico do movimento dos vestidos, “naturalmente” idêntico,
com o berço materno – da fotografia que tem corrido mundo numa mala e da voz da personagem evocada.
a casa –, nada mais a ligará
a quem foi.
9.1 O processo de construção 4. Identifique o recurso expressivo presente em “sorriam um pouco com a superioridade
é semelhante ao da figura dessa mesma ignorância” (ll. 25-26), comentando a sua expressividade.
feminina mais jovem, Gi.
A figura vai-se criando “aos
poucos como um puzzle 5. Explique o significado da interrogação “até quando?” (l. 39) relacionando-a com o con-
gasoso, inquieto, informe”,
até se corporizar, neste caso,
teúdo de todo o parágrafo.
numa “mulher velha” (l. 136).
10. O discurso direto evidencia 6. Indique o motivo da deslocação de George à aldeia natal, comentando a simbologia
a personagem e a relevância desta ação.
da sua voz; o diálogo entre o
presente, George, e o passado,
Gi, funcionando como uma 7. O reencontro com Gi permite a George recordar a sua relação com Carlos.
analepse através da qual
são revelados aspetos do 7.1 Explicite algumas diferenças entre as ambições de ambos.
passado da personagem
e confirmadas algumas
informações do presente – 8. Após ter vendido a casa, George regressa a Amesterdão.
vive em Amesterdão. Já no
confronto com o futuro, a 8.1 Interprete a afirmação “Agora está à janela a ver o comboio fugir de dantes”. (l. 121)
personagem autoassume o
seu receio da passagem do
tempo e as repercussões que 9. A viagem de regresso faz George confrontar-se com uma nova imagem.
isso terá no plano pessoal
(“cheguei à ignomínia de pedir 9.1 Esclareça o processo de construção do retrato dessa imagem.
[…] retratos da minha família”,
ll. 156-157) e profissional (“um 10. Infira o significado do uso do discurso direto no confronto de George com o passado
dia vai reparar […] que as mãos
lhe tremem”, ll. 165-166). (Gi) e com o futuro (Georgina).

Nota: Disponíveis, no Guia 11. Demonstre o caráter fragmentário da figura feminina ao longo das três fases da sua
do Professor, cenários de
respostas para as questões 11, vida, caracterizando-a nessas diferentes fases (passado, presente e futuro).
12, 13 e 14.
12. Demonstra a prevalência do espaço psicológico sobre o espaço físico.

174
“George”

13. Apresente uma explicação para a adoção do nome “George” na fase adulta da perso- PROFESSOR
nagem.
15.1 Descritiva – recurso
14. Justifique a inserção deste texto no género conto, considerando as suas característi- à adjetivação/estruturas
qualificativas – “pesada e
cas. (consulte os textos da página 146) espessa e dura”; “[aragem]
macia e como que redonda”.
Narrativa − sequencialização
G 15. Releia o primeiro parágrafo do texto até “bússola”. (l. 7) de ações – “Andam
lentamente”; “onde George
15.1 Identifique, justificadamente, uma sequência textual narrativa e outra descritiva. volta a passar”; “perdeu a
bússola”.
16. Indique o processo de formação dos termos “bibelots” (l. 50) e “guarda-chuva”. (l. 139) 16. “bibelots” – empréstimo;
“guarda-chuva” – composição
morfossintática (palavra +
17. Considere o campo semântico da palavra “mão” nas seguintes frases: palavra).
17.1. b e c
a. “Outro dia vai reparar […] que as mãos lhe tremem”. (ll. 165-166)
17.2 b. abdica/renuncia/
b. George não abre mão da sua liberdade. prescinde;
c. disponível/por perto
c. Para entender os textos, é necessário ter à mão um dicionário.
18. coesão gramatical
17.1 Assinale os enunciados em que o termo “mão” ocorre com sentido conotativo. referencial; interfrásica – uso
do conector adversativo.
17.2 Indique um sinónimo para o termo, considerando os contextos em que pode ocorrer.
Oralidade
5.1; 5.2; 5.3; 6.2
18. Identifique os mecanismos de coesão, considerando os elementos sublinhados:
Escrita
Abre os olhos para lho dizer, para lho pensar, para lho atirar em silêncio à cara enruga- 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4
da, mas a velha já ali não está.

Documento
As três idades da mulher –
EXPRESSÃO ORAL análise da pintura.

Observe atentamente o quadro de Gustav Klimt. Leia, igual- Nota: Disponíveis, no Guia
do Professor, cenários de
mente, o documento/estudo de análise da pintura que o seu resposta para as atividades
professor disponibilizará. de Oralidade e de Escrita.

1. Produza, oralmente, uma apreciação crítica, em 4-5 minu-


tos, emitindo um comentário crítico perspetivado segundo:
š descrição sucinta do objeto;
š temática evidenciada;
š simbologia presente (nudez);
š discurso claro e coeso;
š respeito pelas marcas do género.
BLOCO INFORMATIVO – p. 378
As três idades da mulher, 1905, Gustav Klimt,
Galeria Nacional de Arte Moderna, Roma.

E S C R I TA

Recupere a personagem George e o seu desdobramento em Gi e Georgina – o passado e


o futuro.
1. Escreva um texto de opinião, entre 150 a 200 palavras, sobre a adequabilidade do
quadro de Klimt ao conteúdo do conto de Maria Judite de Carvalho. BLOCO INFORMATIVO – p. 378
PREPARAR O EXAME– p. 60

175
Contos
MARIA JUDITE DE CARVALHO

INFORMAR

A complexidade da natureza humana


Diálogo entre realidade, memória e imaginação
[A] atitude de fuga e evasão permanentes, traço mais sa-
liente da personalidade de George, não passa afinal de uma
forma de autoilusão, de um modo hábil mas não inteiramen-
te eficaz de a personagem se mentir a si própria sobre a vida
5 tal como ela é: feita de sucessos, é certo, mas também de fra-

cassos; de ganhos, mas também de perdas irreversíveis; de


luz, mas também de sombras e fantasmas que nos fazem so-
frer − e, sobretudo, um caminhar sem retrocesso para a mor-
te e a solidão, inerentes à condição humana. A própria George
10 tem disso consciência plena ao confrontar o seu passado, ain-

da que se recuse a admiti-lo perante si mesma e o negue. Em


diálogo com Georgina, que lhe aponta as lágrimas derrama-
das sobre a juventude perdida, de que acabara de despedir-se
ao afastar-se para sempre de Gi, afirma não ter tido “desgosto
15 nenhum”, apenas “um encontro, um simples encontro”. Recusa-

se igualmente a dar crédito às palavras de desengano daquele


seu alter ego sobre o que a espera no futuro, quando Georgina
lhe indica a solidão por única companhia certa na velhice. Pre-
fere então afundar-se no esquecimento que lhe proporcionam
20 o seu dinheiro, o seu sucesso enquanto pintora, os seus múlti-

plos amores, as suas metamorfoses constantes, as mudanças,


as viagens – as contínuas deslocações físicas e mentais a que se
A revolta das bonecas, 1916, força para se sentir liberta e realizada e que configuram afinal a sua alienação.
Eduardo Viana, Museu
Nacional de Arte Passado e futuro, porém, colheram-na já a meio deste percurso de fugitiva, cru-
Contemporânea do Chiado, 25 zando-se com o presente. Dizendo talvez melhor: passado e futuro tornam-se
Lisboa.
presentes, como se, abolidas as fronteiras do Tempo, a personagem tivesse aces-
so a uma outra dimensão da existência, a uma outra perceção do tempo.
Maria João Pais do Amaral in Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3
(coord. Maria Isabel Rocheta, Serafina Martins), Lisboa, Edições Caixotim, 2011, p. 129.

1. Ordene as seguintes afirmações, de acordo com o conteúdo do texto e a sua progressão.


[A] Georgina funciona como a voz da consciência, mostrando a George a realidade e a
verdade da passagem do tempo e alguns aspetos negativos que na velhice a acom-
panharão.
PROFESSOR
[B] O choro da personagem [quando o comboio a leva de volta a Amesterdão] é, apesar
Leitura de esta não o reconhecer, um sinal da perceção de que a juventude de outrora não
7.2
voltará, segundo Georgina.
Educação Literária
16.1 [C] As metamorfoses constantes da pintora bem como a primazia dada aos bens mate-
Gramática riais e ao seu sucesso presentificam a sua vontade de não encarar a realidade de que
17.1
a juventude não durará para sempre.
1. [D] – [B] − [A] – [C] [D] A fuga [da vila natal] é uma maneira que George encontra de tentar esquecer a vida,
com os seus problemas e a sua efemeridade.

176
“George”

INFORMAR

As três idades da vida


George está agora de partida, já no comboio que a levará
para longe da vila onde nasceu e das memórias de um pas-
sado que tudo fizera para esquecer, mas que o regresso ao lu-
gar de origem inevitavelmente ressuscita. O reencontro com
5 esse passado, de que a personagem não guardara senão uma
velha fotografia sua, acaba também por projetá-la no futuro,
obrigando-a a confrontar-se, primeiro, com a sua juventu-
de; depois, com a sua velhice – ambas figuradas nessas duas
imagens de mulher com quem enceta diálogo e que são afi-
10 nal seus duplos com nomes que constituem formas curtas
ou alongadas de George: Gi, a jovem frágil de dezoito anos, e
Georgina, a mulher idosa a rondar os setenta. Assim se confi-
gura o balanço de toda uma vida.
Velhice, adolescência e
infância (As três idades),
Pôde a personagem deambular incessantemente entre o presente e vários 1940, Salvador Dalí, Museu
15 momentos do passado, imobilizado num dos seus instantes na fotografia que Salvador Dalí, Florida.
ressuscita Gi e assim se associa à rememoração. Nada, porém, lhe devolverá in-
tacto esse passado que acabou de enterrar para sempre ao tomar o comboio que
dele a afasta, bem como do presente, para um futuro longínquo… e afinal tão ou
mais dececionante quanto o primeiro. Pode ainda George fugir desse futuro por
20 um esforço mental de deslocação em direção a outro, mais próximo e tranquili-
zante: o da sua próxima exposição, da sua próxima viagem aos Estados Unidos,
do seu regresso a Amesterdão, que acaba de encetar… Nada impedirá o tempo de
avançar. Muito pelo contrário. A fuga para a frente será sempre uma fuga para a
frente – para o futuro da velhice e da solidão, para a Morte.
25 Principal meio de que George dispõe para alcançar o esquecimento, a disper-
são no espaço físico e mental coaduna-se com o esforço de despojamento a que
sempre se obrigou a desfazer-se de múltiplos objetos, incluindo fotos de fami-
liares. Constitui, pois, o modo mais eficaz de fugir à dura verdade, que ela prefe-
riria ignorar e que desde sempre terá tentado apagar com o auxílio da fotografia
30 de juventude – seu “único fetiche”, único modelo de todos os seus autorretratos.
Guardou-a porque essa fotografia é um retrato de juventude, um retrato que a PROFESSOR
tranquiliza assegurando-lhe que foi jovem um dia.
Leitura
Maria João Pais do Amaral in Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3 (coord. 7.2
Maria Isabel Rocheta, Serafina Martins), Lisboa, Edições Caixotim, 2011, pp. 123 e 131 (com supressões).
Educação Literária
16.1

1. Assinale, no seu caderno, as afirmações verdadeiras e falsas. Corrija as falsas. 1.


a. F – Afigura-se como um
a. O regresso à vila natal afigura-se como um momento de confirmação do sucesso de
momento introspetivo sobre
George. a existência humana.
b. V
b. O confronto com a consciência do que será o seu futuro longínquo leva George a procu-
c. F – A foto serve de modelo
rar conforto no futuro próximo e no seu sucesso como pintora. aos seus autorretratos, mas
é uma forma de lhe recordar
c. A foto de Gi, guardada pela pintora durante toda a sua vida, serve de modelo a todas as a sua imagem quando jovem.
suas pinturas.

177
Contos
MARIA JUDITE DE CARVALHO

LEITURA

Leia o seguinte artigo de opinião sobre Maria Barroso.

Os 90 anos de Maria Barroso

A
voz mantém a energia para transmitir a exaltação e o
protesto da Ode à Liberdade de Jaime Cortesão que, ao
longo de décadas, fez vibrar milhares de pessoas em
espetáculos públicos.
5 Os olhos continuam despertos para o mundo que a rodeia
e exige a partilha de compromissos de solidariedade para
transpor a incerteza, a violência, a desigualdade e estabelecer
uma cultura de justiça, de tolerância e diálogo.
Chama-se Maria de Jesus Barroso Soares.
10 Tem uma presença atuante, na vida cultural, na intervenção cívica, na militância política,
na orientação pedagógica de várias gerações, desde a segunda metade do século XX e que
se projeta nos dias atuais. Sempre com a mesma determinação e coragem.
Ao mesmo tempo que estudou no Conservatório, tirou o curso de História e Filosofia da
Faculdade de Letras de Lisboa. Um dos seus mestres inesquecíveis foi Vieira de Almeida que
15 fez da cátedra uma tribuna de combate à rotina, à mediocridade e ao pensamento único.
Incutia, em cada aluno, a responsabilidade ética, a ousadia, a inovação e o imperativo da
mudança, para transformar o País mergulhado em estruturas arcaicas.
Enquanto aluno do Colégio Moderno de João Soares, de Mário Soares, de Maria Barroso,
devo a Maria Barroso a iniciação no universo de Fernando Pessoa heterónimo e ortónimo,
20 que eu procurava decifrar, numa pequena-grande antologia selecionada por Casais Montei-
ro, que Vitorino Nemésio oferecera a meu Pai.
Entre tantas recordações que procuro sintetizar não esqueço os recitais de Maria Bar-
roso, com os poetas do Novo Cancioneiro − que enfureciam a polícia política que cercava as
salas – ao dizer com a voz firme e a sobriedade tensa, o poema de Sidónio Muralha: “já não
25 há mordaças, nem ameaças, nem algemas que possam impedir a nossa caminhada, em que
os poetas são os próprios versos dos poemas”. Ou, então, o irreprimível clamor de Prometeu
recriado por Joaquim Namorado: “Abafai-me os gritos com mordaças, maior será a minha
ânsia de gritá-los; amarrai-me os pulsos com grilhetas, maior será a minha ânsia de quebrá-
-las; rasgai a minha carne, triturai os meus ossos, o meu sangue será a minha bandeira; meus
30 ossos o cimento de uma outra humanidade, que aqui ninguém se entrega. Isto é vencer ou
morrer!”
Estas exortações veementes voltam a ter sentido perante um país cada vez mais desi-
gual, a sistemática destruição das conquistas do 25 de Abril, a fome, o desemprego, a crise
na Justiça, o medo que se voltou a instalar. Sei que por todas estas circunstâncias Maria
35 Barroso, também lhe apetece repetir os versos emblemáticos de Álvaro de Campos: “Hoje
não faço anos. Duro. Somam-se dias. Mais nada. Raiva de não ter trazido o passado roubado
na algibeira”. Mas todos sabemos que, apesar das contrariedades e desilusões, a esperança
é um sinal de luz que lhe ilumina o caminho e se comunica aos que têm o privilégio do seu
convívio e da sua amizade.
António Valdemar, Público, edição online de 2 de maio de 2015 (consultado em agosto de 2016,
com supressões).

178
“George”

1. Selecione, no seu caderno, a opção correta de modo a obter afirmações verdadeiras.

1.1 A referência à voz e ao olhar de Maria Barroso


[A] pretende exemplificar dois aspetos físicos interessantes desta mulher.
[B] é pretexto para realçar qualidades de lutadora desta figura feminina.
[C] serve para inserir uma alusão a Jaime Cortesão.
[D] denuncia a falta de lucidez, fruto dos 90 anos desta mulher.

1.2 Este texto pode ser considerado um artigo de opinião porque


[A] o autor apresenta um retrato objetivo de Maria Barroso.
[B] se faz um juízo de valor sobre Maria Barroso, utilizando um discurso valorativo e
expondo argumentação pertinente.
[C] sintetiza as principais características físicas da personalidade em destaque.
[D] se trata de uma retrospetiva da vida do seu autor.

1.3 A figura de Vieira de Almeida influenciou Maria Barroso


[A] pois foi um defensor do pensamento único.
[B] já que foi um grande escritor português.
[C] em virtude do seu pensamento arcaico.
[D] pela sua lucidez e pela defesa de ideais progressistas.

1.4 No penúltimo parágrafo são evidentes as


[A] qualidades de atriz de Maria Barroso.
[B] características de Maria Barroso enquanto lutadora antifascista.
[C] referências aos seus poemas que integram o Novo Cancioneiro.
[D] alusões à importância da polícia política.

1.5 No presente, a atitude lutadora de Maria Barroso


[A] não faz sentido, em virtude do 25 de Abril.
[B] poderia ser comparada à do poeta Álvaro de Campos.
[C] continua a ser necessária, pois perderam-se as conquistas de Abril.
[D] só é entendida pelos seus amigos.

G 1.6 Na linha 29, as formas verbais “rasgai” e “triturai” encontram-se conjugadas no PROFESSOR
[A] imperativo.
Leitura
[B] gerúndio. 7.2; 7.4; 7.5; 7.7

[C] futuro do conjuntivo. Gramática


17.1; 19.2
[D] condicional.
1.1 [B]
1.7 A frase “Incutia, em cada aluno, a responsabilidade ética” (l. 16) apresenta um valor as- 1.2 [B]
petual 1.3 [D]
[A] perfetivo. 1.4 [B]
1.5 [C]
[B] imperfetivo. 1.6 [A]
[C] iterativo. 1.7 [B]

[D] habitual.

179
CONSOLIDAR “Sempre é uma companhia” e “George”

“SEMPRE É UMA COMPANHIA”

PERSONAGENS – CARACTERIZAÇÃO E RELAÇÃO


Caracterização
Identificação e relação
Antes da rádio Depois da rádio
Preguiçoso, indolente, irresponsável, infeliz, Determinado, animado, lúcido, responsável,
António Barrasquinho, o Batola
solitário, alcoólico conversador, ansioso por notícias
Responsável, diligente, determinada, Aparentemente confusa, solitária, submissa,
A mulher do Batola
autoritária (quase) terna, conciliadora
Sociável, companheiro, conhecedor do
Rata, o mendigo – amigo de Batola -----------------
“mundo” além da aldeia
A população da aldeia (os ceifeiros) Exaustos do dia de trabalho, presos à rotina Admirados, animados, alegres, curiosos

Mulheres e crianças ----------------- Curiosas, conversadeiras, alegres

Os pares de namorados ----------------- Apaixonados, absorvidos pela telefonia

O vendedor Observador, dotado de sentido de oportunidade, simpático, sorridente, expedito, manipulador

Calcinhas Obediente, prestável

Espaço físico e social Tempo histórico

š Alcaria, a aldeia alentejana (quinze casinhas) š Durante a Segunda Guerra Mundial


š A venda e os fundos da casa de Batola
š A rua
š Os campos
š O velho caminho que vem de Ourique

“GEORGE” – As três idades da vida, metamorfoses da figura feminina

Retrato construído com o recurso à memória; “rapariguinha frágil”; 18 anos; um lindo sorriso; propensão para o
Gi desenho; mora numa vila portuguesa; tem namorado e a mãe está a preparar-lhe o enxoval. Através do diálogo
(Passado/ entre Gi e George percebe-se que a jovem tenciona abandonar a terra natal (refere que o namorado não tem
juventude) outra ambição senão a de ficar e construir uma casa).
Tem a função de recordar a George quem foi no passado.

Mora em Amesterdão; visitou a terra natal para se desfazer da casa paterna (que recebeu em herança após
a morte dos pais), o que significa o corte com o passado; é uma pintora famosa. Durante a fase adulta, tem
George
sofrido diversas transformações; é inconstante no amor e de personalidade complexa – muda constantemente
(Presente/idade
a cor dos cabelos, não possui nada de seu, mora em casas alugadas, desfaz-se dos livros; nada possui do
adulta)
passado, com exceção de uma fotografia sua quando jovem. Possui ânsia de liberdade desde jovem.
Vive reconfortada com o seu êxito como pintora e com as repercussões financeiras que este lhe traz.

Retrato construído com recurso à imaginação; perspetivação do futuro da figura feminina. Trata-se de uma
velha, imperfeitamente maquilhada com vários tons de rosa, cabelos cor de acaju; no entanto, usa uma carteira
Georgina
cara (italiana).
(Futuro/velhice)
Tem a função de deixar antever a George o que será o seu futuro, um tempo marcado pela solidão e pela
degradação física, o que impedirá a protagonista de pintar.

180
VERIFICAR

Considere o conto “Sempre é uma companhia”.

1. Assinale, no seu caderno, as afirmações verdadeiras e falsas. Corrija as falsas.

a. A ação de “Sempre é uma companhia” passa-se durante a década de 1920.

b. A descrição do espaço onde se desenrola a ação remete para a solidão vivenciada


pelas personagens.
c. António Barrasquinho é a personagem que menos sente o isolamento a que está
votada a vila de Alcaria.
d. Batola é, ao longo da ação, o decisor do casal.
PROFESSOR
e. O Rata é uma espécie de mensageiro, viaja e traz as novidades do mundo que conta,
à noite, no largo, aos ceifeiros. Educação Literária
14.3; 14.7; 14.8
f. Na primeira parte do conto, a vida social da aldeia é agitada, as mulheres conver-
sam, os jovens dançam e as crianças fazem jogos diversos.
Apresentação
g. A rádio transforma o espaço e o tempo em Alcaria durante o mês em que fica à Síntese da Unidade 4
experiência.
1.
h. A rádio apenas interessou aos habitantes de Alcaria porque lhes permitia ouvir música.
a. F. A ação decorre na
i. O texto pertence ao género conto em virtude da variedade de espaços, da dilatação década de 1940 (durante
a Segunda Guerra Mundial).
da ação no tempo e do número reduzido de personagens. b. V
c. F. O comportamento e
o modo de agir de Batola
Atente no conto “George”. revelam que a personagem
sofre com o isolamento da
2. Associe, no seu caderno, as afirmações da coluna A às afirmações da coluna B de terra.
d. F. Antes da chegada da
modo a obter afirmações verdadeiras. rádio, a mulher de Batola
toma as decisões e dirige a
Coluna A Coluna B vida pessoal e profissional
do casal.
e. F. As novidades são
[1] leva a personagem a uma grande tristeza.
[A] Na sua juventude, Gi contadas a Batola na venda.
f. F. Na primeira parte do conto
[2] faz-se através do recurso à memória não existe vida social; todos se
e à imaginação, respetivamente. recolhem nas suas casas com
[B] Os primeiros tempos de o cair da noite.
independência [3] abandona a terra natal, em virtude da ânsia g. V
de liberdade. h. F. A rádio foi mais
importante, já que permitiu
[4] remete para o caráter fragmentário e para aos habitantes de Alcaria
[C] O regresso à vila natal a complexidade da natureza humana. o contacto com o mundo
exterior; saber as notícias do
[5] foram difíceis, e Gi teve de se desfazer país e do mundo e também
[D] O reencontro com o passado de alguns bens. ouvir música.
e o futuro de George i. F. O conto apresenta
[6] origina o corte radical e definitivo com concentração espácio-
o passado. -temporal da ação.
[E] A assunção de diversos nomes – 2.
Gi, George e Georgina – ao longo [7] foge em virtude de conflitos com os pais [A] – [3]
da vida da personagem e da vontade de ter casa própria.
[B] – [5]
[8] dever-se-á à sua maneira de ser, mulher [C] – [6]
[F] A escolha do nome George para [D] – [2]
independente, que singrou num campo
a fase adulta da personagem
predominantemente masculino – a pintura. [E] – [4]
[F] – [8]

181
AVA L I A R
MANUEL DA FONSECA
“Sempre é uma companhia” e “George”
GRUPO I

Apresente as suas respostas, de forma bem estruturada, aos itens A (1 e/ou 2) e B.

A.1
− Ah! – grita de repente o Batola. – Se o Rata ouvisse estas coisas não se matava!
Mas ninguém o compreende, de absorvidos que estão.
E os dias passam agora rápidos para António Barrasquinho, o Batola. Até come-
PROFESSOR
çou a levantar-se cedo e a aviar os fregueses de todas as manhãzinhas. Assim, pode
5 continuar as conversas da véspera. Que o Batola é, de todos, o que mais vaticínios
Ficha faz sobre as coisas da guerra. Muito antes do meio-dia já ele começa a consultar o
Ficha de Avaliação – velho relógio, preso por um fio de ouro ao colete. […]
Unidade 4
E os dias custaram tão pouco a passar que o fim do mês caiu de surpresa em
Apresentação
Soluções Ficha
cima da aldeia da Alcaria. Era já no dia seguinte que a telefonia deixaria de ouvir-se.
de Avaliação 10 Iam todos, de novo, recuar para muito longe, lá para o fim do mundo, onde sempre
tinham vivido.
Educação Literária Foi a primeira noite em que os homens saíram da venda mudos e taciturnos.
14.2; 14.3; 14.4; 14.7
Fora esperava-os o negrume fechado. E eles voltavam para a escuridão, iam ser,
GRUPO I – A.1 outra vez, o rebanho que se levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe
1. A ação do excerto decorre 15 vergado pelo cansaço e pela noite.
após a instalação de um
aparelho de rádio na venda de Manuel da Fonseca, O fogo e as cinzas, Lisboa, Editorial Caminho, 2011, pp. 158-159.
Batola e evidencia a alteração
de vida que este instrumento
provocou nos hábitos de vida 1. Contextualize, justificadamente, a ação do excerto lido.
daquela população. Contudo,
nos últimos parágrafos, 2. Explique a alusão ao Rata feita por Batola.
paira a apreensão e a tristeza
causada nos ceifeiros pela 3. Interprete, no contexto em que surge, a metáfora “negrume fechado”. (l. 13)
prometida devolução do
aparelho, já que preveem o
regresso de um tempo de
solidão, trabalho e amargura. A.2
2. O Rata é a personagem
que, no passado, trazia as
Já não sabe, não quer saber, quando saiu da vila e partiu à descoberta da cidade
novidades do mundo por grande, onde, dizia-se lá em casa, as mulheres se perdem. Mais tarde partiu por
onde viajava e as contava
a Batola, atento ouvinte. além-terra, por além-mar. Fez loiros os cabelos, de todos os loiros, um dia ruivos
Eram o mendigo e as suas por cansaço de si, mais tarde castanhos, loiros de novo, esverdeados, nunca escuros,
histórias que possibilitavam
a Batola outros espaços. 5 quase pretos, como dantes eram. Teve muitos amores, grandes e não tanto, definiti-
Recorda-o agora porque, dada vos e passageiros, simples amores, casou-se, divorciou-se, partiu, chegou, voltou a
a impossibilidade de, a certa
altura, Rata se locomover, o partir e a chegar, quantas vezes? Agora está − estava −, até quando? em Amesterdão.
suicídio do mendigo teria sido Depois de ter deixado a vila, viveu sempre em quartos alugados mais ou menos
desnecessário uma vez que
a rádio permitia viagens por modestos, depois em casas mobiladas mais ou menos agradáveis. As últimas fo-
esse mundo fora, mesmo não
saindo de Alcaria.
10 ram mesmo francamente confortáveis. […]
3. A metáfora refere-se Uma casa mobilada, sempre pensou, é a certeza de uma porta aberta de par em
simultaneamente par, de mãos livres, de rua nova à espera dos seus pés. As pessoas ficam tão estu-
ao período de tempo
(a noite) e ao contexto pidamente presas a um móvel, a um tapete já gasto de tantos passos, aos bibelots
sociocultural em que viviam
as personagens. O negrume
acumulados ao longo das vidas e cheios de recordações, de vozes, de olhares, de
é o isolamento, a ausência de 15 mãos, de gente, enfim. [...]
comunicação com o resto do
país e do mundo, a tristeza Queria estar sempre pronta para partir sem que os objetos a envolvessem, a se-
de não ter outras perspetivas gurassem, a obrigassem a demorar-se mais um dia que fosse. [...]
de vida senão as do trabalho
árduo na terra. Os pais não sabiam compreender esse desejo de liberdade, por isso se foi um dia
com uma velha mala de cabedal riscado, não havia outra lá em casa. Mas preferia

182
“Sempre é uma companhia”

20 não pensar nos primeiros tempos. E as suas malas agora são caras, leves, malas de
voar, e com rodinhas.
A outra está perto. Se houve um momento de nitidez no seu rosto, ele já passou,
George não deu por isso. Está novamente esfumado. […]
Tão jovem, Gi. A rapariguinha frágil, um vime, que ela tem levado a vida intei-
25 ra a pintar, primeiro à maneira de Modigliani, depois à sua própria maneira, à de
George, pintora já com nome nos marchands das grandes cidades da Europa. Gi
com um pregador de oiro que um dia ficou, por tuta e meia, num penhorista qual-
quer de Lisboa. Em tempos tão difíceis.
Maria Judite de Carvalho, “George” in Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3
(coord. Maria Isabel Rocheta, Serafina Martins), Porto, Edições Caixotim, 2011. PROFESSOR

A.2
1. Demonstre que George vive permanentemente insatisfeita.
1. De acordo com o conteúdo
do primeiro parágrafo,
2. Explicite a razão que leva a personagem a habitar sempre em casas mobiladas.
a personagem, ao longo
da sua vida, tem tido um
3. Mostre a evolução de George relativamente ao sucesso profissional. comportamento e um caráter
errantes, ora mudando a sua
aparência física, ora mudando
B o espaço físico onde se
encontra: “partiu por além-
Leia o seguinte texto. terra, por além-mar” (ll. 2-3);
“partiu, chegou” (l. 6).
Pobre senhora! a nostalgia do país, da parentela, das igrejas, ia-a minando. Ver- O caráter errante pode ser
também observado no que diz
dadeira lisboeta, pequenina e trigueira, sem se queixar e sorrindo palidamente, respeito às relações amorosas
de George; pode afirmar-se até
tinha vivido desde que chegara num ódio surdo àquela terra de hereges e ao seu que a personagem é, também
idioma bárbaro: sempre arrepiada, abafada em peles, olhando com pavor os céus neste aspeto, inconstante.
5 fuscos ou a neve nas árvores, o seu coração não estivera nunca ali, mas longe, em 2. O caráter errante da
personagem e a sua ânsia
Lisboa, nos adros, nos bairros batidos do sol. A sua devoção (a devoção dos Ru- de liberdade levam-na a não
nas!) sempre grande, exaltara-se, exacerbara-se àquela hostilidade ambiente que querer estar presa a nada para
poder partir a um qualquer
ela sentia em redor contra os “papistas”. E só se satisfazia à noite, indo refugiar-se momento. Por outro lado, não
possuindo nada de seu, ela
no sótão com as criadas portuguesas, para rezar o terço agachada numa esteira − sente-se mais liberta para
10 gozando ali, nesse murmúrio de ave-marias em país protestante, o encanto de uma poder “mudar”, mantendo-se
embora no mesmo espaço
conjuração católica! físico. É, portanto, intrínseca à
Odiando tudo o que era inglês, não consentira que seu filho, o Pedrinho, fosse personagem esta necessidade
de desprendimento.
estudar ao colégio de Richmond. [...] A alma do seu Pedrinho não abandonaria ela à 3. Após ter partido, George
heresia; − e para o educar mandou vir de Lisboa o padre Vasques, capelão do Conde viveu em quartos alugados,
modestos, teve necessidade
15 de Runa. […] de penhorar o pregador de oiro
Às vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a que usava desde a juventude.
O narrador afirma mesmo que
mão do Pedrinho − para o levar, correr com ele sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe houve tempos “tão difíceis”
na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, (l. 28). À medida que o êxito
como pintora se vai
em terror, a abafá-lo numa grande manta: depois lá fora o menino, acostumado instalando, as casas onde
20 ao colo das criadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das árvores: e mora vão-se tornando também
melhores: “casas mobiladas
pouco a pouco, num passo desconsolado, os dois iam pisando em silêncio as folhas mais ou menos agradáveis.
secas − o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pai vergando os As últimas foram mesmo
francamente confortáveis”
ombros, pensativo, triste daquela fraqueza do filho... (ll. 9-10). Além disso, os
objetos dos quais se rodeia,
Eça de Queirós, Os Maias, Lisboa, Edição Livros do Brasil, 28.a edição, p. 17. como as malas de viagem,
tornam-se também melhores,
contrastando com a velha
4. Refira os sentimentos da mãe de Pedro durante a sua permanência em Inglaterra. mala de cabedal riscado com
que partira.
5. Comente a reação de Afonso ao comportamento receoso do filho.

183
AVA L I A R
MANUEL DA FONSECA

GRUPO II

Responda às questões. Nas respostas aos itens de escolha múltipla, selecione, no seu
caderno, a opção correta.

A prof.a Maria de Sousa é uma das mais eminentes cientistas portuguesas


da atualidade. Depois de um conjunto de descobertas da maior importância,
nos anos 60 do século passado, manteve uma carreira científica ao mais alto
nível internacional durante décadas. Sobre a importância e o impacto destes
5 contributos científicos não sou, infelizmente, competente para falar. Mas
além da sua produção científica, Maria de Sousa (MS) fez também, ao longo
dos anos, um conjunto de intervenções públicas, escreveu alguns textos e
publicou alguns livros dirigidos para auditórios mais vastos e para o público
em geral; veja-se, por exemplo, a recente coletânea intitulada Meu dito, meu
10 escrito. De ciência e cientistas, com um monólogo da caneta (Gradiva, 2014),
e a entrevista com Anabela Mota Ribeiro, Este ser e não ser. Cinco conversas
com Maria de Sousa (Clube do Autor, 2016). É sobre esta sua faceta que gos-
PROFESSOR taria de falar.
4. Maria Eduarda Runa, mãe de
Por muitas razões, em geral os cientistas evitam dirigir-se a leitores não-
Pedro sentia saudades do seu 15 -especialistas ou a assumir um papel como personalidades públicas – o que
país, do catolicismo, odiava a
Inglaterra; ao mesmo tempo,
não surpreende. A ciência é um empreendimento muito intenso e muito exi-
ia-se agudizando o seu fervor gente, mas que é essencialmente conduzido ad intra, em conversas e debates,
religioso: rezava o terço todos
os dias, à noite, acompanhada geralmente muito técnicos e complexos entre especialistas. Para os cientistas
das criadas. ativos, a tarefa de falar ou escrever para a sociedade em geral supõe sem-
5. A atitude de Pedro
desagrada a Afonso.
20 pre um certo esforço; este movimento ad extra é, para a maioria, um pouco
No entanto, a utilização do desconfortável. Quando os cientistas se envolvem com a sociedade e com o
verbo vergar em “vergando os
ombros” (ll. 22-23), conjugado público é habitualmente numa de duas funções: ou como consultores para
no gerúndio, permite concluir decisões económicas e políticas, ou como divulgadores, isto é, tentando ex-
que se vai resignando àquele
comportamento, uma vez plicar aos não-especialistas os resultados da investigação científica. Ambas
que se sente impotente para 25 são certamente funções nobres e necessárias, mas estão longe de esgotar o
mudar o ascendente da mãe
sobre o filho. papel que os cientistas podem desempenhar nas sociedades de hoje.
Apesar de MS ter tido, ao longo dos anos, intervenções de grande impor-
GRUPO II tância na definição de políticas científicas e na promoção da ciência em Por-
tugal, colocou-se também no espaço público numa posição muito própria.
Leitura
7.3; 7.5 30 Isto é, preferiu muitas vezes, através dos seus textos e intervenções, transmi-
Gramática tir ao público não tanto uma explicação da ciência atual – os resultados, os
17.1; 18.3; 19.1; 19.2; 19.3 métodos, ou os progressos da mais recente investigação – mas, mais essen-
cialmente, procurou dar a conhecer quais as convicções básicas, as disposi-
1. [C]
ções interiores mais íntimas e as atitudes mentais do cientista criativo.
2. [A]
3. [D] Henrique Leitão, Jornal de Letras, Artes e Ideias, ano XXXVI, n.˚ 1193,
4. [B] 22 de junho a 5 de julho de 2016, p. 27.
5. [D]
6. [C] 1. Maria de Sousa merece destaque neste artigo jornalístico porque
7. [A] [A] se distinguiu na sociedade científica internacional.
8. Subordinada adjetiva
relativa restritiva [B] foi designada como consultora económico-política.
9. Relação de anterioridade.
[C] tem publicado diversas obras relativas à ciência.
10. Valor habitual.
[D] fez uma descoberta importante nos anos 1960.

184
“Sempre é uma companhia”

2. O articulista afirma que os cientistas ativos


[A] têm dificuldades em comunicar com a sociedade em geral.
[B] preferem falar para o público em geral em vez de interagirem com os seus pares.
[C] nunca comunicam os resultados das suas investigações.
[D] exercem sobretudo a função de divulgadores.

3. Maria de Sousa é uma cientista que tem realizado ao longo dos tempos
[A] diversas intervenções dirigidas aos seus pares.
[B] várias comunicações tentando aproximar o homem comum da ciência.
[C] uma divulgação sistemática dos resultados das suas experiências científicas.
[D] funções de relevo dentro da comunidade científica mas também na divulga-
ção do papel do cientista.

4. No contexto em que surge, o termo “eminentes” (l. 1) tem o significado de


[A] vantajosas. [C] benéficas.
[B] notáveis. [D] benignas.

5. O penúltimo parágrafo do texto é predominantemente


[A] descritivo. [C] narrativo.
[B] explicativo. [D] argumentativo.

6. O processo de formação dos termos “ad intra” (l. 17) e “ad extra” (l. 20) é
[A] siglação. [C] empréstimo.
[B] acronímia. [D] derivação não afixal.

7. No contexto em que surge, o conector “mas” (l. 32) tem um valor lógico de
[A] oposição. [C] causa.
PROFESSOR
[B] consequência. [D] condição.
GRUPO III
8. Classifique a oração “que os cientistas podem desempenhar nas sociedades de
hoje”. (l. 26)
Escrita
11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4
9. Indique a relação temporal que se estabelece entre a primeira e a segunda ações do
segmento “Depois de um conjunto de descobertas da maior importância, nos anos O aluno poderá abordar
60 do século passado, manteve uma carreira científica ao mais alto nível interna- aspetos como:
cional durante décadas.” (ll. 2-4) Desenvolvimento
de tecnologia inovadora
em diversas áreas –
10. Refira o valor aspetual configurado na frase “Quando os cientistas se envolvem comunicação − o que facilita
com a sociedade e com o público é habitualmente numa de duas funções: ou como a vida do homem; saúde –
consultores para decisões económicas e políticas, ou como divulgadores”. (ll. 21-23) o que permitirá, por exemplo,
tratar e até curar doenças,
aumentando assim o bem-
-estar e a longevidade
GRUPO III do ser humano.
Incremento da investigação
O trabalho dos cientistas pode ser fundamental para o desenvolvimento de métodos em áreas diversas − por
exemplo, climatologia e
e técnicas capazes de transformar a vida do ser humano. sismologia −, o que permitirá
prever e, assim, minorar
Redija um texto de opinião, de 160 a 200 palavras, sobre a importância dos contribu- problemas nestas áreas.
tos da ciência para o ser humano.

185
5
Poetas
contemporâneos
Educação Literária
Poetas contemporâneos Ana Luísa Amaral
Representações do contemporâneo š “Testamento”
Tradição literária š “Visitação”
Figurações do poeta š “Inês e Pedro: quarenta anos depois”
Arte poética š “Soneto científico a fingir”
Linguagem, estilo e estrutura Manuel Alegre
Miguel Torga š “Letra para um hino”
š “A um negrilho” š “Abaixo el-rei Sebastião”
š “Sísifo” š “Sobre um mote de Camões”
š “Dies irae” š “Coisa amar”
š “Prospeção” Roteiro poético
Eugénio de Andrade š Alexandre O'Neill
š [Tu és a esperança, a madrugada] š Ruy Belo
š “Agora as palavras” Escrita
š “Green God” Apreciação crítica
š “Poema à mãe” Gramática
Leitura Intertextualidade [Aprender/Aplicar]
Memória Em revisão:
Tempos e modos verbais
Oralidade Funções sintáticas
Diálogo argumentativo [CO+EO] Valor temporal
Documentário [CO] [10.˚ ano] Valor aspetual
Exposição [CO] [11.˚ ano] Valor modal
Poetas contemporâneos

PROFESSOR

COMPREENSÃO DO ORAL
Oralidade
1.4; 1.5; 1.6; 1.7; 1.8; 2.1;
3.1; 4.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3;
6.1; 6.2; 6.3 Por ter criado, segundo o comunicado da Academia Sueca, “novas expressões
Sugestão: Disponível, poéticas dentro da grande tradição da canção americana”, o Prémio Nobel da Li-
na brochura Educação teratura de 2016 foi atribuído ao mais famoso compositor e cantor norte-ameri-
Literária, p. 5 (Dossiê do
Professor), um texto inédito cano, Bob Dylan, de 75 anos, autor de poemas, ou das letras, das músicas de que
do Professor Cardoso também é intérprete. Com as opiniões a dividirem-se, e muitas a radicalizarem-
Bernardes – “Um novo
século de ouro na poesia -se, entre os que consideram da maior justiça e os que entendem não se justifi-
portuguesa”. car ou mesmo fazer sentido tal distinção.
JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, ano XXXVI, n.˚ 1202,
de 26 de outubro a 8 de novembro de 2016, p. 8 (com supressões).
Link – Eixo do Mal,
Sic Notícias (6 minutos)
Apresentação Visione atentamente um excerto do programa O Eixo
Contextualização
do Mal, da SIC Notícias, em que os intervenientes se
1. a. Favorável à atribuição pronunciam sobre a atribuição deste prémio.
do Prémio Nobel a Dylan.
b. Uma canção pode ser uma
obra de arte. 1. Tome notas sobre os argumentos utilizados por
c. As canções de Dylan, tal cada um dos intervenientes no diálogo argumen-
como a literatura, transmitem
emoções, falam-nos de nós tativo, registando-os, no seu caderno, numa tabe-
próprios; persiste, no entanto, la idêntica à que se propõe.
a dúvida de que tenham uma Eixo do Mal, Sic Notícias
dimensão superior.
d. Indiferente à atribuição Intervenientes Pedro Marques Daniel Oliveira
do prémio.
e. A vontade de premiar Posição š a. _________________________ š d. _________________________
o melhor escritor não é
a primeira prioridade da
Academia Sueca. Argumentos š b./c. _________________________ š e./f./g. _________________________
f. O letrista é um poeta, um
poeta é um escritor, e o que
Dylan faz é literatura, mas
Bob Dylan não é um dos 2. Avalie a intervenção dos oradores considerando o encadeamento lógico dos tópicos
melhores poetas do mundo. tratados, os recursos verbais e não verbais (postura, tom de voz, articulação, expres-
g. A atribuição do Prémio
Nobel não é uma coisa sividade, …).
muito importante, tendo
em conta que alguns dos
maiores escritores (Tolstoi,
Joyce, Gorki e Kafka) nunca
EXPRESSÃO ORAL
o receberam.
2. Resposta de caráter
pessoal. Agora que inicia a unidade dedicada aos poetas contemporâneos, recorde as relações
Nota: Pode dividir-se a turma entre a poesia, a música e a pintura que foi, certamente, estabelecendo ao longo do seu
em pequenos grupos para percurso escolar.
a realização simultânea do
diálogo argumentativo. Como
síntese da atividade, deverá
solicitar-se aos alunos a
1. Participe num diálogo argumentativo (com a duração de 8 a 12 minutos), cujo obje-
apresentação de uma súmula tivo é discutir a importância da educação artística na educação da sensibilidade e na
dos argumentos.
formação da personalidade das crianças e jovens.
Siga as seguintes orientações:
PowerPoint
Diálogo argumentativo:
šrecolha informação sobre o tema, com base nos documentos que o seu professor dispo-
etapas e regras nibilizará, e tome notas;
Documento
“O Nascimento
šplanifique a sua intervenção organizando os argumentos a apresentar;
da Música”(Eugénio šparticipe no diálogo argumentativo defendendo os seus argumentos de forma clara, con-
de Andrade)
cisa e persuasiva, e respeitando o princípio de cortesia;
“O que sei de poesia”
(Manuel Alegre) šrespeite o tema e apresente informação significativa, considerando os recursos verbais e
“O contacto com a obra
de arte”(Dalila d’Alte)
não verbais.
BLOCO INFORMATIVO – p. 378

188
MIGUEL TO RGA
COMPREENSÃO DO ORAL

1. Visualize um documento vídeo sobre o poeta Miguel Torga e, tendo em conta a infor-
mação fornecida, assinale, no seu caderno, como verdadeiras ou falsas as afirmações.
Corrija as falsas.
a. Miguel Torga reflete sobre a maneira de ser português.
C?=K;BJEH=7
b. Torga preocupa-se com a essência dos homens, mais do que com a essência das coisas. (1907-1995)
c. O escritor critica a sociedade portuguesa, na linha do espírito da Geração de 70. Pseudónimo de Adolfo Correia
da Rocha. Nasceu em São
d. O autor evoca o mito de Anteu, o que reflete o modo como se vê a si próprio: um gigante
Martinho de Anta, em Trás-
frágil, cuja força advém do seu contacto com a terra. -os-Montes. Estudou Medicina
e. Torga constitui-se como um paradoxo, na medida em que amava profundamente o seu na Universidade de Coimbra
e aderiu ao grupo da Revista
país, mas era o mais ibérico dos poetas portugueses.
Presença, que abandonou
f. O escritor homenageia, com a escolha do seu pseudónimo, dois escritores peninsulares em 1930. Foi-lhe atribuído
e demonstra simultaneamente o seu enraizamento à terra. o Prémio Camões em 1989.
Bichos, Contos da montanha,
g. Miguel Torga sempre desejou viver em liberdade: por isso, o 25 de Abril fê-lo sentir-se A criação do mundo, Orpheu
feliz até ao fim dos seus dias. rebelde, Diário, Poemas ibéricos,
Penas do purgatório, Câmara
ardente são apenas alguns
INFORMAR títulos da sua vasta obra.

PROFESSOR
A tradição literária – o tema da Natureza
O Manual apresenta
Dividido entre o mar e a terra, Torga escolhe inevitavelmente a terra, a Grande 4 poemas de 4 poetas
contemporâneos. Contudo,
Deusa Mãe a que presta um culto permanente. O mar é, para Torga, um caminho o Programa apenas propõe
a abordagem obrigatória
não de salvação mas, as mais das vezes, de perdição. de 4 poemas de 3 poetas.
A paisagem que Torga acima de todas preza, a da sua terra natal, foi obra do Disponibiliza-se, ainda,
na brochura Educação
5 verbo do que chama “um Deus de terra” – a que não cessará nunca de prestar cul- Literária, um roteiro poético
to, pedindo inspiração para lhe seguir o exemplo. com poemas de Alexandre
O’Neill e de Ruy Belo.
É da terra, útero primordial como aparece em tantas mitologias, que vem a
Oralidade
força e a paz e a harmonia. 1.1; 1.3; 2.1
Teresa Rita Lopes, Miguel Torga, Ofícios a “um Deus de terra”, Porto, Edições ASA, 1993, pp. 7, 11 e 38. Educação Literária
16.1

Representações do contemporâneo
Link
É a sua agonia que aí se confessa [em Penas do purgatório1], mas provinda de Miguel Torga,
raízes onde a agonia de muitos se alimenta. É o seu desespero que nele fala, mas O meu Portugal, RTP
é ao mesmo tempo o desespero contemporâneo de gerações mais novas confron- 1.a. V; b. F – Preocupa-se com
tadas como Torga com um mundo idêntico. Designamo-lo de humanista por ser a essência dos homens e com
a essência das coisas; c. V;
5 um desespero que voluntária ou involuntariamente reconhece os seus limites, d. V; e. V; f. V; g. F. – O 25 de
dando-se como forma uma estrutura linguística e vocabular com um lugar defi- Abril fê-lo sentir-se feliz, mas
acabou por perceber que esse
nido no nosso mundo literário e, como conteúdo, uma vontade de esperar apesar mundo já não era o dele, o que
aumentou o seu sofrimento.
de tudo. É difícil dizer se na poesia de Torga a Esperança é mais irredutível que o
Desespero. Depende dos poemas. Nota: Disponível no Guia
do Professor, um cenário
“O desespero humanista de Miguel Torga e o das novas gerações”, in Eduardo Lourenço, Tempo e poesia, de resposta para a rubrica
Porto, Editorial Inova, 1974, p. 105 (com supressões). Informar.

1. Demonstre a presença de temas relacionados com a “tradição literária” e a “contem- 1


Livro de poemas de Miguel
poraneidade”. Torga, publicado em 1954.

189
Poetas contemporâneos
MIGUEL TORGA

PROFESSOR
S
QU
E MA
EDUCAÇÃO LITERÁRIA

E
Educação Literária

EL
14.2; 14.3; 14.4; 14.8; P
RO V
S. Martinho de Anta, 26 de abril de 1954.
J ETÁ
14.9; 15.1
Gramática CD 2
19.2; 19.3 FA
IXA 1
A um negrilho1
1. A relação que se estabelece Na terra onde nasci há um só poeta
é de companheirismo,
empatia, cumplicidade, pois Os meus versos são folhas dos seus ramos.
o sujeito poético apresenta
o negrilho como um ser que
Quando chego de longe e conversamos,
com ele dialoga, o inspira É ele que me revela o mundo visitado.
e lhe revela o mundo.
5 Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,
2. Os versos retomam a
conotação de vida, aliada E a luz do sol aceso ou apagado
ao negrilho, já expressa no É nos seus olhos que se vê pousada.
verso anterior. A referência
à noite e à madrugada
sugere a passagem do
tempo, associando a esta a
Esse poeta és tu, mestre da inquietação
referência à “luz do sol aceso Serena!
ou apagado”. Ambas remetem
para estados de alma
10 Tu, imortal avena2
opostos. Infere-se, portanto, Que harmonizas o vento e adormeces o imenso
que a referida árvore é uma
presença constante na vida Redil de estrelas ao luar maninho.
do poeta. Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso
3. O tom da primeira estrofe
é declarativo, como se se
Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!
tratasse de um excerto
informativo. Na estrofe “Diário VII [1956]”, in Miguel Torga, Antologia poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2014, p. 307.
seguinte, os vocativos e as
exclamações conferem ao 1
poema um tom apelativo, Ulmeiro; árvore de grande porte.
2
e por isso mais emotivo. Flauta pastoril, símbolo de um estilo simples.
4. Os recursos presentes são:
a. personificação;
b. apóstrofe e metáfora;
c. apóstrofe e personificação. 1. Esclareça a relação que se estabelece entre o sujeito poético e o negrilho, consideran-
A personificação está
presente ao longo do poema, do o conteúdo dos quatro primeiros versos do poema.
pois a conotação de vida é um
traço intrínseco ao negrilho. 2. Explique o sentido dos três últimos versos da primeira estrofe.
A apóstrofe e a metáfora
surgem a reforçar a alteração
de tom, juntamente com 3. Comprove a alteração de tom no poema, destacando o papel da pontuação.
a pontuação, pois conferem
ao texto um caráter de canto
ao negrilho. 4. Identifique os recursos expressivos presentes nos versos a seguir transcritos, explici-
5. A temática da Natureza tando o seu contributo para a referida alteração de tom.
é recuperada (cf. cantigas
de amigo e lírica de Camões), a. “Quando chego de longe e conversamos, / É ele que me revela o mundo visitado.” (vv. 3-4)
sendo esta apresentada
frequentemente como b. “Tu, imortal avena”. (v. 10)
confidente do sujeito poético.
Neste poema, tal tema
c. “Tu, gigante a sonhar”. (v.13)
assume um caráter inovador,
na medida em que o negrilho 5. Demonstre de que modo o tema da Natureza mantém ligações com a tradição literá-
(a Natureza) é um modelo para
o poeta, que nele(a) encontra ria, explicitando, contudo, o caráter inovador apresentado por Torga.
inspiração para os seus
versos. 6. Analise a métrica, versificação e rima do poema.
6. O poema é constituído por
duas septilhas; o primeiro
verso de cada estrofe é branco G 7. Indique o valor temporal e aspetual veiculados pela oração a que pertence a forma
e os restantes rimam entre si – verbal sublinhada, em relação à outra oração da frase:
rima emparelhada e cruzada,
segundo o esquema abbcdcd / a. “Na terra onde nasci há um só poeta”. (v. 1)
effghgh.
b. “Quando chego de longe e conversamos, / É ele que me revela o mundo visitado.” (vv.3-4)

190
Tradição literária

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Coimbra, 27 de dezembro de 1977.


PROFESSOR
CD 2

FA
IXA 2
Sísifo 7. a. Valor temporal de
anterioridade; valor aspetual
Recomeça... perfetivo.
Se puderes, b. Valor temporal de
simultaneidade; valor
Sem angústia e sem pressa. aspetual habitual.
E os passos que deres, S
QU
E MA

E
5 Nesse caminho duro
Do futuro,

EL
P V
RO
J ETÁ

Dá-os em liberdade.
Educação Literária
Enquanto não alcances 14.3; 14.4; 14.7; 15.1;
Não descanses. 15.3
10 De nenhum fruto queiras só metade. 1. A forma verbal “Recomeça”
Sísifo, 2008, Steven Allen, artslan.com. encontra-se no modo
imperativo, com valor
E, nunca saciado, de incitamento, exortação.
Vai colhendo 2. As reticências transmitem
a ideia de continuidade,
Ilusões sucessivas no pomar. reforçando o valor do prefixo
Sempre a sonhar “re-”.
3. As consoantes sibilantes e
15 E vendo, os versos curtos imprimem ao
Acordado, poema um ritmo lento, que se
coaduna com a serenidade que
O logro da aventura. o sujeito poético advoga: “Sem
És homem, não te esqueças! angústia e sem pressa.” (v. 3)
4. Nos versos aludidos as
Só é tua a loucura formas verbais estão no
20 Onde, com lucidez, te reconheças. presente do conjuntivo,
pois constituem um
“Diário XIII [1983]”, in Miguel Torga, Antologia poética, conselho relativo ao valor
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2014, p. 440. da persistência e do esforço
na construção de um projeto
futuro.
1. Identifique o tempo/modo da forma verbal que constitui Sísifo, c. 1548-1549, Ticiano, Museu 5. Este verso transmite uma
o primeiro verso do poema, assinalando o seu valor. ideia oposta à filosofia de
do Prado, Madrid.
Ricardo Reis, na medida em
que o heterónimo defende
2. Explicite o valor das reticências que acompanham o primeiro verso. o carpe diem e a busca da
felicidade com tranquilidade,
3. Interprete o valor das sonoridades e o recurso a versos curtos, explicitando a expressi- ao invés da exortação à
vidade que conferem ao poema. ação, ao combate e ao
inconformismo, que constitui
a mensagem do poema.
4. Explique o sentido dos versos 8, 9 e 10, associando-o ao tempo/modo das formas ver-
6. Sísifo é o símbolo do esforço
bais aí presentes. incessante, representado pelo
sacrifício no rolar da pedra
5. Relacione o sentido do verso “De nenhum fruto queiras só metade.” (v.10) com a filosofia até ao cimo da montanha,
mas foi também o construtor
de vida defendida por Ricardo Reis. da cidade de Corinto, o que
permite inferir que o título
6. Justifique o título, relacionando-o com o conteúdo do poema e com o mito de Sísifo. do poema condensa a ideia
de inconformismo, de
7. De acordo com Óscar Lopes, este poema é considerado um “hino à condição humana”. incentivo à procura de
liberdade e de luta pela
7.1 Transcreva o verso que melhor condensa essa ideia. concretização dos sonhos.

7.2 Explicite as palavras de Óscar Lopes, demonstrando que se trata de um tema que se Nota: Disponível, no Guia
do Professor, um cenário de
insere na tradição literária portuguesa. resposta para as questões 7.1,
7.2 e 8.
8. Relacione o conteúdo do poema com as obras de arte acima reproduzidas.

191
Poetas contemporâneos
MIGUEL TORGA

INFORMAR

Figurações do poeta
TEXTO A
Torga, incansável batalhador pela liberdade do homem perante toda e qualquer
prepotência, do Estado ou da Igreja, declara-se um espírito religioso mas sem um
credo particular, apesar da particular “sedução” que alguns, sobre ele, exercem.
Teresa Rita Lopes, Miguel Torga, Ofícios a “um Deus de terra”, Porto, Edições ASA, 1993, p. 8.

TEXTO B
Deus não é uma palavra morta na poesia de Torga. Miguel Torga joga no tabu-
leiro de Deus e do Homem, um homem que ele não concebe a maioria das vezes
senão como o opositor de Deus, mas o seu jogo é desconcertante porque não joga
nos dois tabuleiros ao mesmo tempo, mas sucessivamente. Como o seu modelo
mítico, Torga parte da sua experiência humana, do desastre dela, e aí se afirma para
questionar Deus.
“O desespero humanista de Miguel Torga e o das novas gerações”, in Eduardo Lourenço, Tempo e poesia,
Porto, Editorial Inova, 1974, pp. 110-111 (com supressões).

TEXTO C
Mais do que no indivíduo ou num humanismo individualista, a inquietação
torguiana traduz-se nas polémicas implicações sociais, morais e até metafísicas do
individualismo e da liberdade. Sendo a vida o oposto sentido paralelo da morte e
PROFESSOR sendo a terra o oposto sentido paralelo do paraíso, sendo Deus o vértice do paraíso
e da morte e sendo o Homem o vértice da terra e da vida – a liberdade e o destino
Leitura transformam-se em grandezas vetoriais inamovíveis.
7.1; 7.4; 15.5
Na mundividência torguiana, a consciência individual é indissociável da cons-
Educação Literária
16.1 ciência social. Mas, nesta mesma mundividência, a vontade de interpretar o mun-
do coincide sempre com a vontade de o transformar.
1. [C]
Fernão de Magalhães Gonçalves, Ser e ler Torga, Lisboa, Veja, 1986, pp. 21, 79 e 119 (com supressões).
Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.6; TEXTO D
14.9; 15.1
Esta poesia, para além do reconhecimento da necessidade e ao mesmo tempo da
impossibilidade do poeta como porta-voz da utopia política, se inscreve, singular-
Áudio mente, no imaginário estético-político da cultura portuguesa da primeira metade
“Dies irae” do século XX sob o signo da paixão pelo Humano. Esta é a verdadeira significação
de sua projeção ideológica.
1. O poeta surge como um
ser revoltado e assume uma António Mendes Moreira, “Miguel Torga, o homem e o escritor”, in Aqui, neste lugar e nesta hora,
atitude de protesto perante Atas do Primeiro Congresso Internacional sobre Miguel Torga, Porto,
aquilo que descobre acerca Edições Universidade Fernando Pessoa, 1994, p. 342.
das características
do mundo em que vive,
onde nenhuma ação 1. Selecione a opção correta, tendo em conta o conteúdo dos textos que acabou de ler.
(“cantar”, “chorar”,
“gritar”, “fugir”, “morrer”,
Na sua poesia, Miguel Torga revela um ser
“matar”) se concretiza, [A] apaixonado pelo ser humano, defensor da liberdade e porta-voz de uma ideologia política.
porque este universo está
permanentemente controlado [B] defensor da liberdade, crente em Deus e porta-voz de uma ideologia política.
(vv. 3-4, 7-8, 11-12). Está, pois,
inconformado com este [C] desiludido, inconformado com o mundo e detentor de uma profunda consciência social.
mundo!
[D] desiludido, inconformado com o mundo e profundamente católico.

192
Figurações do poeta

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

CD 2

FA
IXA 3
Dies irae1
Apetece cantar, mas ninguém canta. Vontade de agir Impossibilidade de agir
т
Apetece chorar, mas ninguém chora. “Apetece” “ mas ninguém”
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora. IDEAL REALIDADE
PROFESSOR

5 Apetece gritar, mas ninguém grita. Conclusão: 2. As conjunções transmitem


Apetece fugir, mas ninguém foge. − revolta do sujeito poético a oposição entre a vontade de
− denúncia moral e social agir e a impossibilidade de o
Um fantasma limita fazer.
Todo o futuro a este dia de hoje. 3. “Ninguém” refere,
Figurações de um poeta desiludido implicitamente, toda a
sociedade. A expressividade
Apetece morrer, mas ninguém morre. e inconformado com o mundo do seu uso reside no facto
de introduzir um efeito de
10 Apetece matar, mas ninguém mata. generalização que permite
Um fantasma percorre inferir que todos estão
amordaçados e, por isso,
Os motins onde a alma se arrebata. impedidos de se exprimir
e de agir.
Oh! maldição do tempo em que vivemos, 4. A estrutura paralelística do
poema acentua as oposições
Sepultura de grades cinzeladas, referidas, pondo em destaque
a distância entre o ideal que
15 Que deixam ver a vida que não temos se defende e a realidade,
E as angústias paradas! o que constitui a razão de ser
da revolta do eu lírico.
“Cântico do homem [1950]”, in Miguel Torga, Antologia poética, 5. Todos esses versos são
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2014, p. 121. introduzidos pela figura do
fantasma, entidade abstrata
que reforça, respetivamente,
1 a ideia de medo, de ausência de
“Dia de ira”; é também o nome de um famoso hino do século XIII.
perspetivas e de insatisfação,
acentuando, desta forma,
o caráter obstaculizante do
fantasma.
1. Caracterize o sujeito lírico e demonstre de que modo o poema poderá ilustrar a pre- 6. Na última estrofe, o poeta
amaldiçoa a sociedade em que
sença do tópico “Figurações do poeta”. vive, que encara como prisão,
que o oprime e o leva à inação,
2. Explicite o sentido das oposições introduzidas pelas conjunções coordenativas adver- razões que justificam a sua
revolta.
sativas. 7. Trata-se da metáfora
“sepultura de grades
cinzeladas” e da aliteração
3. Justifique o recurso à repetição do pronome indefinido “ninguém”, explicitando o seu
do som /v/ em “ver a vida”.
valor expressivo. A metáfora reforça a ideia
de morte; a aliteração incute
um tom mais vivo e forte ao
4. Demonstre a pertinência da estruturação do poema assente no paralelismo anafórico verso, por se tratar de uma
e sintático. consoante forte (o que se
coaduna com a revolta
do eu lírico) e, ao destacar
5. Explicite o sentido dos dois últimos versos de cada uma das três primeiras estrofes. uma expressão que se anula
(“ver a vida que não temos”,
v. 15, é não ver) reforça essa
6. Explique o sentido da última estrofe, justificando. mesma ideia de morte.
8. “Dies irae” significa ‘ira de
Deus’, logo, o título anuncia
7. Identifique o(s) recurso(s) expressivo(s) que ocorre(m) nos versos “Sepultura de gra- o desespero, a revolta, a
des cinzeladas / Que deixam ver a vida que não temos” (vv. 14-15), explicitando o seu valor. desilusão e o protesto do
sujeito poético face ao mundo
que o rodeia.
8. Justifique o título do poema.

193
Poetas contemporâneos
MIGUEL TORGA

INFORMAR

Arte poética
Na poética de Miguel Torga, a plenitude do sentir, o prazer do ato criativo e a
força erótica da vida emergem de forma inextricável. Neste autor configura-se uma
PROFESSOR mútua relação, de índole sensual, entre poesia e vida. Neste [processo criativo], es-
culpe a linguagem, experimenta um estado de expectação, entabula um jogo apai-
Leitura 5 xonado, persegue a inspiração, constrói entusiasticamente o fazer poético.
7.1; 7.4; 15.5
Para Torga, o ato criativo implica um certo labor que não raro desgasta o poeta,
Educação Literária
16.1 ainda que redima e que liberte. A arte poética é, pois, um processo doloroso, como
confidencia o escritor, num excerto do seu Diário VII:
1. Para Torga, fazer poesia é
um processo de entrega total, Coimbra, 10 de maio de 1954 – Aqui estou eu sentado à mesa, à espera da poesia
de trabalho criativo, um misto 10 como os pedintes à porta dos quartéis à espera da sopa. É um esforço de paciente
de esforço e de inspiração, daí
a ausência de referência ao humildade, de resignação e, sobretudo, de inabalável esperança. Ao cabo de longas
rigor da linguagem. O poeta horas de fome contida, de calada impotência, abre-se a porta da guarda e o poema
estabelece uma identificação
entre poesia, vida e liberdade, é-nos dado, não sei se por esmola, se como recompensa. (p. 675)
o que justificará a sua paixão
pela criação artística. Neste excerto, fica bem vincada a ideia de esforço que rege a criação poética.
15 Quando a liberdade é finalmente concedida ao poema, o poeta recebe-o: “o poema
Educação Literária é-nos dado” como uma oferta ou como um prémio.
14.3; 14.4; 14.9; 15.1
Torga é, pois, o poeta que, numa entrega total, se dedica ao penoso ofício de
QU
E MA criar beleza. Com rigor, mas também com uma paixão incontestada, que enriquece
S
sobremaneira o seu processo criativo.
E

Áudio
“Prospeção” 20
2 Ao processo criativo de Torga, regido no seu âmago, pela tensão entre inspiração
EL

P V
RO
J ETÁ
e laboração, está, quase sempre, associada uma condição de excitação, de ansie-
1. O “tesoiro sagrado” é aquilo
que o sujeito poético procura –
dade, que estimula a própria criação poética e a equaciona como uma construção.
trata-se de uma busca de É essa exaltação que anima o autor e funciona analogamente como motor do seu
si próprio, da sua própria
essência, reconhecendo que fazer poético.
tem alma de poeta e que, por 25 À medida que configura o seu poema, o poeta ardiloso tenta deter a sua presa,
isso, é através dos seus versos
que encontrará as respostas ou seja, os próprios versos, razão da sua existência, ainda que muitas vezes, sujeita
que procura. aos revezes da inspiração, a captura se afigure difícil, o que o faz crer-se indigno
2. Tal como o oiro representa
o que há de mais valioso, dos mesmos.
a procura que o sujeito lírico Nos seus versos, encontramos a entrega total, o abandono de um ser que se
executa é também aquilo
que para o ser humano 30 entrega à criação poética num estado de imaculabilidade incauta. Assim define
tem mais valor, daí o título Miguel Torga a sua poesia no poema Versos: “Esta profunda e pura virgindade / Que
“Prospeção” – procura,
análise, investigação se entrega / Desprevenida”. É essa rendição por inteiro, ao ritmo de Eros, que nos
do seu próprio íntimo. permite encontrar nos seus textos “As pulsações secretas de uma vida”.
Destaca-se o facto de esta
“prospeção” ser contínua e Ana Paula Martins L. Ferrão, O pulsar de Eros na criação poética de Miguel Torga:
sistemática (“Cavo, / Lavro, / um paradigma da celebração da vida (Dissertação de Mestrado em Criações Literárias Contemporâneas),
Peneiro”, vv. 10-12), pois a Universidade de Évora, 2010, pp. 3, 23, 28, 46-47 e 60 (com supressões).
busca do poeta pré-existe aos
seus versos.
3. As formas verbais referidas Para Torga, de facto, a esperança está na criação poética. Di-lo no III tomo do
dizem respeito ao trabalho
artesanal, árduo, campestre, Diário: “Um ato de fé na Poesia… Por ela ser a única vida que não morre, por ela ser
e simbolizam a procura a liberdade”.
incessante. São versos
bastante expressivos pelo António Mendes Moreira, “Miguel Torga, o homem e o escritor”, in Aqui, neste lugar e nesta hora,
facto de serem constituídos Atas do Primeiro Congresso Internacional sobre Miguel Torga, Porto,
apenas por um vocábulo Edições Universidade Fernando Pessoa, 1994, p. 357.
e que representam a ação
da prospeção.
1. Sintetize o conceito de “criação poética”, veiculado na obra de Torga.

194
Arte poética

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
CD 2

FA
IXA 4
Prospeção
Não são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
Universal riqueza
5 Do homem que revolve a solidão:
O tesoiro sagrado
De nenhuma certeza,
Soterrado
Por mil certezas de aluvião.

10 Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna
De me encontrar.
15 Poeta antes dos versos
PROFESSOR
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto. O espelho falso, c. 1928, René Magritte, Museu de Arte 4. A comparação com o
Inteiramente nu e descoberto. Moderna, Nova Iorque. deserto e a referência à
nudez complementam-se, na
“Orfeu rebelde [1958]”, in Miguel Torga, Antologia poética, medida em que nos permitem
inferir que o poeta busca a sua
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2014, p. 216.
própria essência poética, o
"tesouro sagrado" a que alude
na primeira estrofe.
5. Este poema constitui
1. Explicite a referência ao “tesoiro sagrado”. (v. 6) uma espécie de metáfora
da poesia como “trabalho”.
2. Explique a metáfora do oiro, relacionando-a com o sentido do título. A criação poética é vista
como um trabalho árduo e
constante sobre a palavra, o
3. Interprete o sentido dos versos “Cavo, / Lavo, / Peneiro” (vv. 10-12), esclarecendo o seu que implica pesquisa, esforço,
mas também uma busca
valor expressivo. interior, no sentido de procurar
atingir a essência da poesia.
O conceito de arte poética
4. Demonstre a expressividade da comparação e da dupla adjetivação presentes nos úl- como “esforço” é veiculado
timos versos, relacionando-as com o estado de espírito do sujeito poético. nos textos referidos, donde se
conclui que o poema confirma
a teoria apresentada nos
5. Explicite o conceito de “arte poética” subjacente a este poema, relacionando-o com o textos informativos.
conteúdo dos textos da rubrica “Informar” apresentados na página anterior. 6. Os olhos são
frequentemente apelidados
de “espelho da alma”, o que
6. Observe o quadro de Magritte e estabeleça uma relação com o poema, considerando se coaduna com a temática
do poema − a busca de si
os seguintes tópicos para a planificação da sua resposta: próprio, um olhar sobre o seu
próprio íntimo: Prospeção. No
šconfronto entre o conteúdo do poema e a sugestão pictórica; entanto, este espelho é falso,
pois constitui uma inversão,
šrelação entre os títulos das duas expressões artísticas; representa o espaço exterior,
um céu com nuvens, sereno
šanálise do cromatismo e do uso das formas geométricas na pintura; e azul, e não o interior; é uma
espécie de convite a olhar para
šoutros aspetos pertinentes. o mundo de forma diferente,
o que evidencia a irrealidade
e não a realidade.

195
Poetas contemporâneos
MIGUEL TORGA

LEITURA

Leia o seguinte texto de Jorge Amado, escritor brasileiro, que apresenta uma espécie de ho-
menagem a Miguel Torga.

Prêmio Camões
PROFESSOR
Ponta Delgada, 1989.
Leitura Escuto Miguel Torga que pronuncia o discurso, vejo na tribuna um homem in-
7.1; 7.3; 7.4; 7.7
teiro, não se lhe sente a idade, o rosto marcado de camponês, a força das palavras
Gramática
17.1 se estende sobre a sala, prende e arrasta os ouvintes, por vezes dureza de pedra, de
5 súbito a carícia de uma nascente de água.
1. Miguel Torga é um escritor Estamos dominados pelo sortilégio, esse senhor que lê um discurso escrito, so-
brilhante (“prestidigitador
da palavra escrita”, l. 11, um zinho na tribuna, sem outros instrumentos além das folhas de papel e a pronúncia
“mestre”, l. 15), a quem o exata, esse senhor é um mágico em número de prestidigitação, que seduz e arre-
autor confere um caráter
quase divino (“recriou a vida bata a plateia. Assim o tem feito durante os muitos anos de vida e de trabalho, o
e a iluminou”, l. 11; “escuto a
oração”, l. 15).
10 escritor Miguel Torga: na poesia, na ficção, na extensa e densa narrativa do Diário,
2. O tema da reflexão é o facto esse prestidigitador da palavra escrita recriou a vida e a iluminou. Não basta dizer
de ainda não ter sido atribuído que falo do escritor Miguel Torga, é imprescindível completar a afirmação: o mági-
o Prémio Nobel a Miguel Torga.
O autor não só considera que co na tribuna, lendo seu discurso, é o escritor português Miguel Torga, a condição
Torga é merecedor do prémio portuguesa condiciona e esclarece a obra realizada, a vida vivida.
que lhe foi atribuído, o Prémio
Camões, como estranha 15 Enquanto escuto a oração com que o mestre agradece o Prêmio Camões, conce-
que não lhe tenha sido ainda
atribuído o Prémio Nobel,
dido pela primeira vez por um júri composto de escritores portugueses e brasileiros
devido às qualidades da sua e atribuído, como não podia deixar de ser, a Miguel Torga, eu me pergunto o motivo
obra.
por que não lhe foi dado ainda o Prêmio Nobel. Pergunta cretina, talvez já que Torga
3. O predomínio da primeira
pessoa e do presente do e sua literatura estão acima dos prêmios, sejam eles quais forem, os pequenos ou
indicativo deve-se ao facto
de se tratar da manifestação
20 os grandes, nem sequer o cheque que por vezes os acompanha faz falta à pobreza
de um ponto de vista pessoal do escritor.
acerca de um acontecimento
marcante para o “eu”, que De qualquer maneira ao me fazer a pergunta não posso deixar de constatar a
ele presentifica através da indiferença, a desestima, o descaso revelados pela Academia da Suécia em relação
rememoração.
à língua portuguesa. E o faço quando penso em escritores portugueses da altura de
4. Trata-se de uma memória,
devido à presença do discurso 25 Ferreira de Castro e Fernando Namora que morreram sem o Prêmio Nobel — para
de primeira pessoa, em que se
faz um relato retrospetivo de
citar apenas dois entre outros igualmente merecedores. Quando penso que os ro-
um acontecimento vivenciado mancistas brasileiros Erico Veríssimo e Guimarães Rosa, o poeta Carlos Drummond
pelo próprio autor.
de Andrade, tampouco foram distinguidos com o Nobel concluo que realmente
5.
− No âmbito da acentuação:
nossa língua portuguesa não é levada na devida consideração pelos acadêmicos
“prêmio” (prémio); 30 suecos. Resta-nos ainda esperar, pois o senhor que ocupa a tribuna em Ponta Del-
“acadêmicos” (académicos).
gada, nos Açores, é um rijo português, que carrega sem esforço o peso dos anos.
− Ausência do determinante
artigo antes do determinante Jorge Amado, Navegação de cabotagem, apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei,
possessivo: “lendo seu Rio de Janeiro, Record, 2006 (com supressões, disponível online em Le Livros)
discurso” (l. 13); “nossa língua”
(l. 25).
− Colocação do pronome 1. Refira duas características do poeta Miguel Torga, destacadas por Jorge Amado, ilustran-
pessoal complemento antes do-as com excertos textuais.
do verbo: “eu me pergunto”
(l. 17); “E o faço” (l. 24). 2. Indique o tema da reflexão que ocupa grande parte do texto e esclareça a opinião do au-
tor sobre ele.
BLOCO INFORMATIVO – 3. Justifique o predomínio da primeira pessoa gramatical e do presente do indicativo no texto.
p. 379
4. Indique o género textual em que se insere o excerto, referindo as respetivas características.
G 5. Identifique as marcas do português do Brasil presentes no texto.

196
EUGÉNIO DE ANDRADE
INFORMAR

Arte poética
TEXTO A
Enformado por uma poética radicada na “consciência artesanal”, que postula o
poema como realidade conquistada “sílaba a sílaba” – da mesma forma que o avô ;K=xD?E:;7D:H7:;
(1923-2005)
“podava as oliveiras” – Eugénio de Andrade filia-se numa tradição clássica que faz
Pseudónimo de José
do apuramento verbal o cerne do trabalho poético. Não sendo “um poeta inspi-
Fontinhas. Nasceu no Fundão,
5 rado”, o autor de Ostinato Rigore procura a palavra mais rigorosa, mas o seu labor mas viveu a maior parte da sua
oficinal está longe do ludismo culto ou da mera especulação racionalista. Mani- vida no Porto. É um dos poetas
festando uma clara aversão pelo sentimentalismo confitente1, o poeta também é portugueses mais traduzidos.
Recebeu vários prémios,
capaz de fazer afirmações do seguinte teor: nacionais e internacionais,
Eu nem sequer gosto de escrever. Acontece-me às vezes estar tão desesperado que entre eles o Prémio Camões.
10 me refugio no papel como quem se esconde para chorar. E o mais estranho é arran- Não sofre grandes influências
das escolas literárias
car da minha angústia palavras de profunda reconciliação com a vida. suas contemporâneas,
Estamos, portanto, perante uma ars poetica exigente e complexa. Por um lado, considerando seus mestres
Camilo Pessanha e Cesário
há a recusa liminar do derrame emocional; por outro lado, o lirismo eugeniano Verde. Escreveu dezenas de
afasta-se completamente do verbalismo sáfaro2 que determinou alguma poesia livros, entre os quais As mãos
15 portuguesa do último quartel do século vinte. e os frutos, Os amantes sem
dinheiro, As palavras interditas,
“Eugénio de Andrade: figuras de melancolia”, in António Manuel Ferreira, A luz de Saturno: figurações
Obstinato rigore, Limiar dos
da velhice, Aveiro, Universidade de Aveiro Editora, 2005, p. 59 (com supressões).
pássaros, Matéria solar, O sal
TEXTO B da língua, Os sulcos da sede,
Aquela nuvem e outras,
Assim eu queria o poema: Os afluentes do silêncio.
fremente de luz, áspero de terra,
rumoroso de águas e de vento.
1
Que se confessa.
Poderíamos atrever-nos a considerar estes versos a síntese da poesia de Eugénio 2
Bravio; agreste.
5 de Andrade, voz que persiste em cantar a ligação do Homem com a Natureza. De
facto, percorrendo a obra do poeta, deparamo-nos constantemente com os clás-
sicos quatro elementos de Empédocles, terra, água, ar e fogo, que surgem como
vetores estruturantes das constelações de palavras que inventa para dar forma aos
seus versos.
10 De facto, a palavra ocupará o lugar do ser amado nos seus textos, apresentando-
PROFESSOR
-se como principal fonte de satisfação, como fora, outrora, o corpo jovem do outro:
Agora são elas que têm o teu rosto, Leitura
As palavras; e não só o rosto: […] 7.1; 7.4
Educação Literária
Sem palavras já não somos nada; […] 16.1
15 [As] mãos, que o poeta diz serem “animais de paciência” (Memória doutro rio),
1. A criação poética é um
são constantemente associadas à escrita ou, como o poeta prefere muitas vezes, à exercício de aperfeiçoamento
semente, “prestes a germinar”. da linguagem, como se se
tratasse de um trabalho
Oscilando entre dois polos, a mão poderá apresentar-se como símbolo e ima- manual (por isso, a mão é
gem da criação poética. Ora num infatigável labor que abarca o céu e a terra ora em frequentemente o símbolo
da criação poética). O poeta
20 completa apatia e ignorância, inútil para sonhar a palavra. recusa o sentimentalismo mas
Ana Cristina Ribeiro Oliveira, As mãos e os frutos de Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça (Dissertação de também uma poesia de pendor
racionalista; defende que a
Mestrado em Literatura Portuguesa – Investigação e Ensino, FLUC), 2010, pp. 9, 14, 24 e 26.
poesia deve valorizar a ligação
entre o Homem e a Natureza.
1. Explicite o conceito de “arte poética” em Eugénio de Andrade.

197
Poetas contemporâneos
EUGÉNIO DE ANDRADE

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
PROFESSOR
XXIX
Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 15.1; CD 2 Tu és a esperança, a madrugada.
16.1
FA
IXA 5 Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais doirada,
Áudio e há uma fonte crescendo no silêncio
“Tu és a esperança, 5 da boca mais sombria e mais fechada.
a madrugada”

1. O “Tu” significa para o Para ti criei palavras sem sentido,


sujeito a esperança e o amor,
e tem sobre ele um efeito de
inventei brumas, lagos densos,
otimismo e de alegria. Para e deixei no ar braços suspensos
esta leitura contribui o sentido
conotativo de vocábulos como ao encontro da luz que vem contigo.
“luz”, “fonte”, “madrugada”,
“perfeita” e “doirada” e a
repetição expressiva do 10 Tu és a esperança onde deponho
vocábulo “esperança”. meus versos que não podem ser mais nada.
2. Na segunda estrofe,
o “eu” lírico assume que
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
criou os seus versos para o fundo, como quem bebe a madrugada.
“tu” que evoca, versos que
considera serem imperfeitos “As mãos e os frutos [1948]”, in Eugénio de Andrade,
e de angústia, ao contrário Poesia, s/l, Fundação Eugénio de Andrade, 2000, pp. 30-31.
do caráter luminoso do
“tu”. Assim, os versos 6 e 9
transmitem a oposição entre
a negatividade dos versos 1. Refira o que significa o “Tu” para o “eu” Valores simbólicos na poesia
que o “eu” produz e a luz que lírico, tendo em conta a caracterização de Eugénio de Andrade
emana do “tu”.
3. Depois de reconhecer o
feita.
Água Graciosidade; juventude; vida;
absurdo das palavras que
criou, o sujeito poético refere- 2. Explique o sentido da segunda estrofe, universo do desejo; erotismo
-se aos seus versos como
sendo limitados (“que não considerando a relação dos versos 6 e 9. Ave Angelismo; liberdade; inocência;
podem ser mais nada”), fragilidade; pureza
justificando, assim, o facto 3. Interprete a intenção do “eu” lírico na
de os depor aos pés do “tu” Flor Fertilidade; “florir” é associado
invocado, apresentando-o, expressão “onde deponho / meus ver-
à criação poética
desta forma, como fonte sos”. (vv. 10-11)
de inspiração para a criação Fogo Sensualidade; luz
poética.
4. Explique a simbologia de “madrugada”,
4. A madrugada é, em Fonte Harmonia entre o sonho e a vida
Eugénio de Andrade, símbolo interpretando o facto de esta palavra
de nascimento, promessa Frutos Amadurecimento; poesia
de plenitude, logo, fator
surgir associada ao termo “esperança”
de esperança. No poema, no verso 1. (cf. valores simbólicos na tabela ao lado) Luz Corpo; harmonia; esperança
“esperança” e “madrugada”
são atributos do “tu”. Pode-se, Mãos Comunhão; criação poética
então, inferir a superioridade 5. Explicite a expressividade e a simbolo-
do “tu” relativamente ao gia do verbo beber, repetido nos últimos Noite Plenitude
“eu”, ideia que é reforçada
pelo destaque dado aos dois versos. Rosa Mito materno
vocábulos no primeiro e no
último versos. 6. Demonstre de que modo se esboça no Terra Fecundidade; ruralidade;
5. Beber representa, na poesia aprendizagem da vida
poema a temática da arte poética.
de Eugénio de Andrade, a
forma plena de comunhão; Voar Figuração do encontro amoroso
assim, neste contexto,
marcará a relação entre o
“eu” e o “tu”, uma vez que está Ciclo do tempo vs. ciclo do Homem
associado aos olhos (“meus š Madrugada/manhã/tarde/noite
olhos bebem”) e são estes que
possibilitam a união dos dois š Primavera/verão /outono/inverno
amantes. š Infância/adolescência/vida adulta/velhice

198
Arte poética

EDUCAÇÃO LITERÁRIA PROFESSOR

CD 2
6. O “Tu” é apresentado
FA
IXA 6
Agora as palavras como a Musa inspiradora do
poeta, uma figura superior,
responsável pela sua criação
Obedecem-me agora muito menos, artística: “ Tu és a esperança
onde deponho / meus versos
as palavras. A propósito que não podem ser mais nada.”
de nada resmungam, não fazem (vv. 10-11)
caso do que lhes digo,
Educação Literária
5 não respeitam a minha idade. 14.2; 14.3; 14.4; 15.1
Provavelmente fartaram-se da rédea,
não me perdoam
a mão rigorosa, a indiferença Áudio
“Agora
Agor as palavras”
pelo fogo de artifício. S
QU
E MA

1 O sujeito poético
1.

E
10 Eu gosto delas, nunca tive outra
cconsidera que as
paixão, e elas durante muitos anos

EL
P
RO Á V ““palavras”, ao contrário
J ET
também gostaram de mim: dançavam ddo que sucedia no
passado, em que elas eram
passado
à minha roda quando as encontrava. obedientes e lhe causavam
alegria (“dançavam /
Com elas fazia o lume, à minha roda”, vv. 12-13), são
15 sustentava os meus dias, mas agora agora ariscas, esquivas,
indomáveis e não o respeitam.
estão ariscas, escapam-se por entre 2. A alteração decorrerá do
as mãos, arreganham os dentes envelhecimento do poeta
(“não respeitam a minha
se tento retê-las. Ou será que idade”, v. 5), do facto de já
já só procuro as mais encabritadas? não saber escolher as mais
apropriadas, como admite
“O sal da língua [1995]”, in Eugénio de Andrade, Poesia, s/l, s/t, 1913, Amadeo de Souza-Cardoso, Centro de Arte nos versos finais, ou ainda do
Fundação Eugénio de Andrade, 2000, pp. 527-528. Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. facto de as palavras se terem
cansado do controlo excessivo
do poeta.
3. Os versos evidenciam a
tendência perfeccionista
1. Caracterize as “palavras”, no passado e no presente, tendo em conta a visão que delas do sujeito ao tentar
tem o sujeito poético. controlar as palavras, isto
é, os mecanismos da criação
poética.
2. Refira a razão da alteração do comportamento das palavras. 4. Trata-se da metáfora, cuja
expressividade reside no
3. Explicite o sentido dos versos “não me perdoam / a mão rigorosa, a indiferença / pelo facto de o vocábulo “lume”
se apresentar conotado com
fogo de artifício.” (vv. 7-9) “vida”, estabelecendo-se,
assim, uma identificação
4. Identifique o recurso expressivo presente no verso “Com elas fazia o lume” (v. 14), expli- entre a palavra, a poesia,
e a própria vida.
citando o seu valor. 5. “Desamparadas,
inocentes, / leves” ilustram o
5. Relacione o modo como o sujeito poético encara as palavras neste poema, e num ou- comportamento das palavras
no passado a que o poema
tro intitulado “As palavras”, do qual se apresenta o seguinte excerto: “Agora as palavras” alude,
quando elas se deixavam
Desamparadas, inocentes, dominar pelo poeta, ao
contrário do modo como se
leves. comportam no presente,
Tecidas são de luz em que não se deixam moldar.
e são a noite. 6. A criação poética é
encarada de forma disfórica −
E mesmo pálidas o poeta relaciona-se de forma
quase conflituosa com a
verdes paraísos lembram ainda. sua poesia, consequência
“Coração do dia”, in Eugénio de Andrade, Poesia, s/l, da tensão entre a sua vontade
de trabalhar as palavras
Fundação Eugénio de Andrade, 2000, p. 88.
e a incapacidade de o fazer
(“escapam-se por entre /
6. Esclareça o modo como Eugénio de Andrade encara a criação poética, neste poema. as mãos”, vv. 16-17).

199
Poetas contemporâneos
EUGÉNIO DE ANDRADE

PROFESSOR INFORMAR
Leitura
7.1; 7.4 Tradição literária
Educação Literária
16.1
TEXTO A
1. Terra e mãe são vocábulos
que ilustram temáticas “Não é por acaso que “pássaros” são outra das constantes referências mági-
recorrentes na poesia
portuguesa, nomeadamente
cas da poesia de Eugénio de Andrade. Através da “fonte”, da “flor”, da “ave”, o
em autores como Camões, seu poetar atribui-se como acesso ao paraíso dos homens.”
Caeiro, Cesário Verde, Bocage,
e Fernando Pessoa, Florbela Talvez em nenhum outro momento seja permitido falar com tanta proprie-
Espanca e Antero de Quental, 5 dade de um livro [Até amanhã] apolíneo e de um Eugénio de Andrade diurno,
respetivamente.
como tão frequente e abusivamente tem sido referido em relação à obra toda.
Educação Literária Parte-se de uma negação (ou exorcização) da tristeza e da solidão para afirmar
14.2; 14.3; 14.4; 15.1
a exaltação da juventude e do amor, cuja metáfora mais representativa é a luz
1. Fonte e rio são elementos que condensa a direção exaltante. Mesmo aí se pode ler a interposição materna.
que permitem a associação
deste “deus verde” à Natureza: 10 O universo poético de Eugénio de Andrade é a incessante manifestação de
o corpo de Green God surge
associado à graciosidade das
um universo materno. Digamos que nesta poesia as metáforas e as imagens
fontes e à serenidade do rio. enraízam na sua quase totalidade, de um modo explícito ou implícito, nesse
Ambos os vocábulos contêm o
sema da água, símbolo de vida, mundo possível onde tudo tende a ser reconduzido. E é sobretudo pela ausência
o que faz deste deus um deus que vemos definir-se o mundo da mãe.
vivo, criador.
2. É um deus que emana vida, Carlos Mendes de Sousa, O nascimento da música, a metáfora em Eugénio de Andrade, Coimbra,
pois os seus passos criam Almedina, 1992. pp. 86, 107-108 e 32 (com supressões).
ervas, o seu corpo, troncos
(“cresciam troncos dos
braços”, v. 9), sorri e dança TEXTO B
quando passa, criando uma
atmosfera de encantamento.
3. Sendo a fonte a metáfora do
Há um vocábulo cuja frequência, centralidade, sobredeterminação contex-
corpo, conotada com a pureza tual e fluência metafórica são muito especialmente intrigantes e estimulantes,
do mundo natural, e a flauta o
símbolo da música e da poesia no corpus integral da poesia de Andrade: é o vocábulo água, polo gravitacional
(a flauta pastoril), Green de outras predileções, como rio, mar, fonte, molhado, orvalho, orvalhado, escor-
God é, assim, apresentado
como um deus que encarna rer, beber e ainda lágrima.
a Natureza e a domina (o
processo de vegetalização Óscar Lopes, Uma espécie de música (A poesia de Eugénio de Andrade) – Três ensaios, Lisboa, INCM,
do seu corpo atesta o seu 1980, p. 130 (com supressões).
caráter telúrico), mas também
um deus ligado às artes da
música. Aliás, as referências TEXTO C
à dança e ao ritmo põem em
destaque a beleza mágica de Falar da poesia de Eugénio de Andrade implica, de certa forma, falar de música.
Green God. A melodia que a
flauta toca pode ser entendida É usual, por parte da crítica, a associação da escrita de Eugénio de Andrade
como uma referência implícita à arte dos sons. De resto, o próprio escritor, frequentemente, a referiu nos seus
ao deus Pã, ou mesmo a Orfeu,
conferindo, assim, um caráter escritos. A musicalidade das suas palavras, a sonoridade e ritmo dos seus ver-
divino ao deus verde.
4. Ao nível formal, o poema
sos, as diferentes tonalidades melódicas que sugerem e a brevidade das suas
possui um ritmo musical, composições serão alguns dos aspetos que aproximam a sua à arte dos sons.
conferido pela regularidade
métrica e da rima, pela Ana Cristina Ribeiro Oliveira, As mãos e os frutos de Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça (Dissertação
expressividade das de Mestrado em Literatura Portuguesa – Investigação e Ensino, FLUC), 2010, pp. 2 e 4.
consoantes sibilantes
(“nasciam dos passos”,
“cresciam troncos dos
braços”), dos sons fechados, 1. Esclareça de que modo os vocábulos terra e mãe ilustram a tradição na literatura por-
frequentemente nasais
(“tremia”, “sabia”, “das fontes
tuguesa.
quando anoitece”). No plano
semântico, destaca-se a
expressividade do vocabulário
(cont.)

200
Tradição literária | Representações do contemporâneo

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

CD 2

FA
IXA 7
Green God Associação do corpo às fontes e ao rio

Trazia consigo a graça Água: origem da vida e do sagrado


das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio Beleza mágica do corpo:
em sereno desafio
5 com as margens quando desce. − domina a Natureza
− Possui o encanto da fonte
Green God
Andava como quem passa − promove o fluir do rio
− transforma o corpo em árvore
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços Renascimento da Natureza:
Cria uma atmosfera Vegetalização
š Deus telúrico
10 quando os erguia no ar. de encantamento do corpo
š Deus órfico (ligação à música)
reforçada pela dança.
š Fonte de vida e de movimento
Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar Ambiente bucólico (tradição literária: poesia trovadoresca) PROFESSOR
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia Flauta 4. (cont.)
15 que os deuses devem usar. Fonte (símbolo da poesia evocativo das artes (“dança”,
e da música) “dançar”, “ritmo”, “melodia”,
“tocava”, “flauta”). Desta
forma, evidencia-se a
E seguia o seu caminho, coerência interna entre o
porque era um deus que passava. conteúdo e a forma do poema.
Alheio a tudo o que via, 5. A tradição literária
manifesta-se no tratamento
enleado na melodia “As mãos e os frutos [1948]”, in Eugénio de Andrade, Poesia, do tema da natureza (ou
20 duma flauta que tocava. s/l, Fundação Eugénio de Andrade, 2000, p. 23. mesmo no bucolismo, visível
na presença da flauta),
recorrente na literatura desde
a poesia dos trovadores.
1. Interprete a pertinência da referência à fonte e ao rio, na primeira estrofe. O contemporâneo está
representado na forma
inovadora como o poeta
2. Destaque as características de Green God. aborda esse tema clássico,
dando-lhe um tratamento, por
3. Explique em que medida a fonte e a flauta constituem elementos-chave na construção do assim dizer, ecológico.
6. A musicalidade é uma
sentido do poema. das características mais
relevantes da obra deste
4. Comprove, explicitando a articulação dos planos semântico e formal, que este poema ilus- poeta, conferida, por exemplo,
tra a musicalidade da poesia de Eugénio de Andrade e a coerência interna do texto poético. pela expressividade das
sonoridades, das aliterações,
pelo ritmo muito marcado da
5. Evidencie os tópicos “tradição literária” e “representações do contemporâneo” no poema. maioria dos poemas. “Green
God” é ilustrativo dessa
6. Comprove a veracidade da afirmação, considerando a leitura dos poemas deste autor. ligação da poesia à música,
mas também da ligação do
Homem à Natureza, daí o
Há livros que são um pequeno milagre, e As mãos e os frutos, de Eugénio de recurso a uma linguagem
Andrade, é um deles. Refiro-me, por exemplo, à musicalidade que embalará simbólica (“rio”, “fontes”).
Também no poema “Tu és a
toda a poética eugeniana; à natureza rural e marítima, onde tantas vezes o poeta esperança, a madrugada”,
desvenda metáforas para o corpo; a uma linguagem que surripia ao quotidiano a linguagem adquire novos
significados, nomeadamente
termos simples, como “mar”, “fontes”, “rio”, “barco”, “mãos” ou “ave”, e os in- através do recurso a
veste com significados novos, coerentes ao longo da sua produção poética. metáforas, imagens, valores
simbólicos, como é o caso
João de Mancelos, “Era um Deus que passava: mitologia celta e romantismo inglês no poema dos vocábulos “mãos”, “água”,
‘Green God’, de Eugénio de Andrade”. Letras & Ciências: As duas culturas de Filipe Furtado “terra” ou “luz”, entre outros.
(org. Carlos Ceia, in M. Alarcão e I. Ramos), Lisboa, Caleidoscópio, 2009.

201
Poetas contemporâneos
EUGÉNIO DE ANDRADE

PROFESSOR EDUCAÇÃO LITERÁRIA


Disponíveis, na brochura
CD 2
Educação Literária, p. 14
(Dossiê do Professor), textos FA
IXA 8
Poema à mãe
“Informar” relativos à poesia
de Eugénio de Andrade. No mais fundo de ti,
Educação Literária eu sei que traí, mãe.
14.2; 14.3; 14.4; 14,9;
,9; E MA
QU
15.1 S
Tudo porque já não sou
E

Gramática
17.1 o retrato adormecido
EL

P V
RO
J ETÁ
1. O sujeito poético considera
deraa
5 no fundo dos teus olhos.
que traiu a mãe porque
cresceu e deixou de ser a Tudo porque tu ignoras
criança que a mãe guarda
na memória (o “retrato
que há leitos onde o frio não se demora
adormecido”, v. 4), e e noites rumorosas de águas matinais.
encontrou outras seduções,
representadas pelos
“leitos” (v. 7) e pelas “noites Por isso, às vezes, as palavras que te digo
rumorosas” (v. 8). 10 são duras, mãe,
2. O vocativo identifica
o destinatário do poema
e o nosso amor é infeliz.
e, por isso, cria uma
espécie de diálogo, que Tudo porque perdi as rosas brancas
é simultaneamente uma
reflexão do próprio “eu”.
que apertava junto ao coração
3. O caráter infeliz do no retrato da moldura.
amor que os une deve-se
à dificuldade da mãe em 15 Se soubesses como ainda amo as rosas,
compreender e aceitar
que o filho cresceu e, talvez não enchesses as horas de pesadelos.
consequentemente, alargou
o seu mundo, o que implicará Mas tu esqueceste muita coisa;
o seu afastamento
e emancipação. esqueceste que as minhas pernas cresceram,
4. O retrato da moldura que todo o meu corpo cresceu,
representa a imagem estática
e imutável que a mãe guarda 20 e até o meu coração
do filho. As “rosas brancas”
simbolizam a pureza e a
ficou enorme, mãe!
inocência da infância.
5. As rosas constituem uma Olha − queres ouvir-me? −
metáfora da infância, daí ser às vezes ainda sou o menino
pertinente a sua referência no
poema: o sujeito lírico afirma o que adormeceu nos teus olhos;
seu apego à infância e lamenta
que a mãe desconheça esse 25 ainda aperto contra o coração
facto, pois essa é a razão do Maternidade/1, c. 1948, Almada Negreiros,
seu sofrimento. Para além rosas tão brancas in Maternidade, 26 desenhos de Almada
da metáfora, está presente Negreiros, Lisboa, INCM, s/d, p. 35.
a aliteração, que confere
como as que tens na moldura;
lentidão ao texto e se coaduna
com a valorização da vida ainda oiço a tua voz:
afetiva e emocional por parte
do sujeito. Era uma vez uma princesa
6. Constitui um apelo ao 30 no meio de um laranjal...
diálogo e introduz um
argumento que poderá Mas − tu sabes − a noite é enorme,
apaziguar a infelicidade
da mãe. e todo o meu corpo cresceu.
7. As rosas e a voz da mãe são Eu saí da moldura,
os elementos rememorados
pelo eu lírico e que, no dei às aves os meus olhos a beber,
final do poema, se mantêm
como símbolos do passado 35 Não me esqueci de nada, mãe.
para cada um deles (a mãe
guardará as rosas; o filho, Guardo a tua voz dentro de mim.
a lembrança da voz da mãe “Os amantes sem dinheiro [1950]”,
quando ela lhe contava as
E deixo-te as rosas.
in Eugénio de Andrade, Poesia, s/l, Fundação Eugénio
histórias infantis). Boa noite. Eu vou com as aves. de Andrade, 2000, pp. 47-48.

202
Figurações do poeta

1. Esclareça as razões da traição do sujeito lírico, referida no segundo verso.


PROFESSOR
2. Interprete o uso recorrente do vocativo “mãe”. (cf. vv. 2, 10, 21 e 35)
8. Este verso constitui uma
despedida, traduzida pela
3. Esclareça as razões que motivam o “amor infeliz” que caracteriza a relação mãe/filho. expressão “Boa noite”, e nele
estão implícitas as ideias
de movimento e de espaço
4. Explique o sentido dos versos que constituem a quinta estrofe, tendo em conta a sim- sem limites, que podem ser
conotadas com uma atitude
bologia das “rosas brancas”. de libertação do sujeito lírico,
de tentativa de alargamento
do seu mundo, sugerida pelo
5. Identifique um dos recursos expressivos presente nos versos que integram a sexta vocábulo “aves”.
estrofe, explicitando a sua pertinência no poema. 9. O sujeito poético assume-se
como alguém que afirma a sua
personalidade, que defende
6. Explique o valor da interrogação retórica no verso “Olha − queres ouvir-me?” (v. 22) o seu direito a escolher e a
construir o seu caminho de
vida, recusando a proteção
7. Interprete o sentido da referência às rosas e à voz da mãe, introduzidas pela anáfora da figura materna, mas sem
perder os valores da família
“ainda” (v. 28) , relacionando-o com o conteúdo da última estrofe. e as memórias da infância.
10. Os verbos encontram-se
no imperfeito do conjuntivo,
8. Explicite o sentido do último verso, referindo a expressividade do vocábulo “aves”. o que exprime um desejo,
uma possibilidade.

9. Comprove a presença do tópico “figurações do poeta”, no poema. Escrita


10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3;
12.4
G 10. Identifique o modo em que se encontram as formas verbais sublinhadas nos versos
Nota: Disponível, no Guia
transcritos, justificando. do Professor, um cenário
de resposta para a atividade
“Se soubesses como ainda amo as rosas, / talvez não enchesses as horas de pesade- de Escrita.
los.” (vv. 15-16)

E S C R I TA

Observe o quadro de Almada Negreiros, Maternidade, prestando


atenção aos seguintes aspetos:
š existência de vários planos/fluidez do último plano relativamente
ao primeiro;
š contraste de tonalidades e respetiva simbologia;
š relação estabelecida entre entre a figura da mãe e a do filho;
š expressão facial e postura das mãos das duas figuras;
š jogo de volumes;
š relação temática com o conteúdo de “Poema à mãe”.

1. Redija um texto de apreciação crítica, de 150 a 180 palavras,


respeitando as marcas específicas deste género textual.

BLOCO INFORMATIVO – p. 378 Maternidade, 1935, Almada Negreiros, Fundação


PREPARAR O EXAME – p. 54 Calouste Gulbenkian.

203
Poetas contemporâneos
Intertextualidade
N DE
RE R
APRENDER
AP

ICA
G RA M Á T De acordo com o Dicionário Terminológico, nenhum texto existe isolado e fechado sobre si;
R
APL ICA ele pode manter ou constituir com outros textos relações de ordem semântica ou retóri-
co-estilística. Esta relação chama-se intertextualidade e consiste numa ligação entre um
hipertexto (texto produzido a partir de outros ou acerca de outros) com um ou diversos
hipotextos (que podem não ser literários, mas musicais, icónicos, …) e pode ocorrer de
1
Formas de intertextualidade: diversas formas1: alusão, citação, paródia/imitação criativa, paráfrase e plágio.
Alusão: referência indireta a um
texto preexistente, cujo sentido A título de exemplo, comprove a intertextualidade entre a obra de Natália Correia e uma
é inferido pelo leitor através da cantiga de amigo de Airas Nunes.
análise do contexto e fazendo apelo
à sua memória literária e cultural.
Citação: Reprodução de um texto Texto 1 (hipotexto) Texto 2 (hipertexto)
ou de um fragmento de texto noutro
texto, assinalada com referência
Bailemos nós já todas três, ai amigas, Pelos campos primaveris
ao autor e/ou à obra aos quais
aqueles pertencem e graficamente sô aquestas avelaneiras frolidas, Radiosos de aves e ervas
demarcada com aspas ou com e quem for velida, como nós, velidas, Os soldadinhos gentis
um tipo de letra diferente. se amigo amar, Por quem acendemos velas
Paródia/imitação criativa: um sô aquestas avelaneiras frolidas Trazem flores em vez de balas
texto que imita outro texto com verrá bailar. Para libertar as belas.
distanciamento crítico, podendo
ou não provocar o riso e sendo Bailemos nós já todas três, ai irmanas, Ferocidade ou fuzil.
muitas vezes visto como sô aqueste ramo destas avelanas, Não nos farão mais querelas
uma arma ideológica. e quem for louçana, como nós, louçanas, Que os soldadinhos de Abril
Paráfrase: enunciado/texto que se amigo amar, Com cravos domando feras
reformula e reescreve outro sô aqueste ramo destas avelanas Trazem flores em vez de balas
enunciado/texto, conservando, verrá bailar. Para libertar as belas.
na medida do possível, uma
equivalência semântica e formal. Por Deus, ai amigas, mentr’al nom fazemos, Amigas, com estes junquilhos
Plágio: imitação ilegítima de um sô aqueste ramo frolido bailemos, Façamos frescas capelas.
texto preexistente. e quem bem parecer, como nós parecemos, É Abril. E os soldadinhos
se amigo amar, Tomando o viço das relvas
sô aqueste ramo sol que nós bailemos, Trazem flores em vez de balas
verrá bailar. Para libertar as belas.
Airas Nunes, B 879/V 462,
disponível online in cantigas.fesh.unl.pt. Por estes campos floridos
Sob os ramos das camélias
Bailemos para os soldadinhos
Que no mês das pastorelas
Trazem flores em vez de balas
Para libertar as belas.
Natália Correia, O sol nas noites e o luar nos dias, Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1999, p. 629.

Relação intertextual

š Semelhança formal: coplas e refrão.


š Inserção de elementos pertencentes à lírica trovadoresca: existência de um interlocutor (as
amigas); referência ao amigo/soldadinho.
š Temática semelhante: o convite à dança; referência à paixão amorosa/paixão pela liberdade.

204
APLICAR

1. Associe os textos da coluna A aos textos da coluna B e explique a relação intertextual


que se estabelece entre eles.

Coluna A Coluna B
[A] [1]
Aquela clara madrugada que Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
viu lágrimas correrem no teu rosto Que pareceu sair do mar profundo.
e alegre se fez triste como se Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
chovesse de repente em pleno agosto. A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!

Ela só viu meus dedos nos teus dedos “E disse: – “Ó gente ousada, mais que quantas
meu nome no teu nome. E demorados No mundo cometeram grandes cousas,
viu nossos olhos juntos nos segredos Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
que em silêncio dissemos separados. E por trabalhos vãos nunca repousas,
Manuel Alegre, O canto e as armas Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
[B]
Nunca arados d'estranho ou próprio lenho;
o pior é que morri antes de ter percebido se é
Camões, Os Lusíadas, canto V (est. 40 e 41)
o poeta que se finge de homem ou o homem
que se finge de poeta [2]
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis Em seu trono entre o brilho das esferas,
Com seu manto de noite e solidão,
PROFESSOR
[C] Tem aos pés o mar novo e as mortas eras –
O mostrengo que está no fim do mar O único imperador que tem, deveras,
Gramática
Na noite de breu ergueu-se a voar; O globo mundo em sua mão. 18.4
À roda da nau voou três vezes, Fernando Pessoa, Mensagem

Voou três vezes a chiar,


[3]
E disse: “Quem é que ousou entrar Apresentação
Aquela triste e leda madrugada,
Nas minhas cavernas que não desvendo, Intertextualidade
cheia toda de mágoa e de piedade,
Meus tetos negros do fim do mundo?”
enquanto houver no mundo saüdade, 1.
E o homem do leme disse, tremendo:
quero que seja sempre celebrada. [A] – [3] A mesma
“El-Rei D. João Segundo!” contextualização temporal,
Fernando Pessoa, Mensagem a mesma temática: a partida
Ela só, quando amena e marchetada e a separação.
[D] saía, dando ao mundo claridade, [B] – [4] A mesma temática –
viu apartar-se d’ua outra vontade, o fingimento artístico.
Em seu trono entre o brilho das estrelas, com
que nunca poderá ver-se apartada. [C] – [1] A mesma temática –
seu manto de noite e solidão, tem a seus as características físicas do
pés o mar novo e as mortas eras o único Luís de Camões, Rimas
Adamastor/Mostrengo e as
imperador que tem, deveras, o globo mundo dificuldades e os perigos que
os marinheiros portugueses
em sua mão, […] mas, se é de globo mundo enfrentaram.
que se trata e de império e rendimentos que [4]
[D] – [2] A mesma descrição
impérios dão, faz o infante D. Henrique fraca "O poeta é um fingidor” e o mesmo contexto – no
figura comparado com este D. João Fernando Pessoa, Autopsicografia caso de Pessoa, aplicado ao
Infante D. Henrique; no caso
José Saramago, Memorial do convento de Saramago ridiculariza-se
D. João V.
2.
2. Distinga as diferentes formas de intertextualidade. [A] – [3] Paródia
[B] – [4] Alusão
[C] – [1] Alusão
[D] – [2] Paródia

205
Poetas contemporâneos
A N A LU Í SA A M A RA L
PERA
COMPREENSÃO DO ORAL/EXPRESSÃO ORAL CU R

RE
ÃO
E X P O S IÇ
Visualize um documento vídeo sobre a vida e obra de Ana Luísa Amaral.
11.° ANO
1. Faça uma exposição oral, de 4 a 6 minutos, sintetizando a reflexão
o
que é feita em torno da sua arte poética.

7D7BKÞI77C7H7B
(1956- ) INFORMAR
Nasceu em Lisboa e vive
em Leça da Palmeira desde
a infância. É professora na
Representações do contemporâneo
Faculdade de Letras da
Universidade do Porto. A sua TEXTO A
obra está editada em vários
[J]á nos anos 1990, Ana Luísa Amaral torna-se uma das poetas portuguesas
países. Foi galardoada em
Itália com o Prémio de Poesia a mais se centrar nas questões de género e nas opressões daí derivadas. O eu
Giuseppe Acerbi e em Portugal da poesia de Ana Luísa Amaral reivindica permanentemente um espaço fora da
com o Grande Prémio de esfera doméstica a que está votada, “um espaço a sério / ou terra de ninguém /
Poesia da APE (Associação
Portuguesa de editores), entre 5 que não me chega / o conquistado à custa / de silêncios, armários/ e cebolas
outros. Minha senhora de quê, perturbantes (AMARAL 1990: 7).
A génese do amor, Entre dois rios Num registo maternal bastante presente na poesia de Ana Luísa Amaral, o
e outras noites, Vozes, Às vezes
sujeito feminino deseja para a sua filha uma vida em que fantasia, o amor e o
o paraíso são algumas das suas
obras. sonho sejam mais importantes do que essas tarefas quotidianas:
10 Se eu morrer / quero que a minha filha não se esqueça de mim […] / e que lhe
ofereçam fantasia / mais do que um horário certo / ou uma cama bem feita.
Maria Leonor C. Figueiredo, Calma é apenas um pouco tarde − Resistência na poesia portuguesa
contemporânea (prefácio de Rosa Maria Martelo), Porto, Deriva Editores, 2015, pp. 81-84 (com supressões).

TEXTO B

[A] sistemática e obsessiva utilização do ritmo, da métrica, da rima, com uma


PROFESSOR
atenção profunda à musicalidade da linguagem, criam um efeito de envolvência
Oralidade e fascínio que só se encontra numa linha aparentemente esgotada da poesia
1.3; 1.7; 1.8; 2.1; 5.1; 5.2;
5.3; 6.2
portuguesa – a que vai de António Nobre a Florbela Espanca. No entanto, Ana
Luísa Amaral pratica este jogo com um sábio domínio dos recursos poéticos.
Nuno Júdice, As máscaras do poema, Lisboa, Aríon, 1998, p. 240.
Link TEXTO C
Ler Mais, Ler Melhor −
Vida e obra de Ana Luísa
Amaral (7 minutos) Talvez a poesia de Ana Luísa Amaral seja aqui um exemplo particularmente
legível, porquanto assumidamente se divide por estes dois caminhos, exploran-
1. Para Ana Luísa Amaral, a do uma sintaxe inovadora e transgressiva, sem deixar de desenvolver também
escrita de um poema é algo
que envolve muita paixão uma temática facilmente integrável pelo leitor no seu mundo habitual, ou então
e que ela considera ser um
misto de prazer e de angústia.
oscilando entre livros de uma grande espessura discursiva (Imagens, A Arte de
A autora tenta que a sua ser tigre) e outros que se apropriam de registos e de um vocabulário próximos de
obra não seja reflexo da sua
biografia e recusa que a sua usos mais quotidianos, embora sempre sujeitos a uma sintaxe e a uma prosódia
poesia seja feminista. muito particulares.
Rosa Maria Martelo, Vidro do mesmo vidro. Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa
Leitura depois de 1961, Porto, Campo das Letras, 2007, p. 47.
7.1; 7.4
Educação Literária
16.1 1. Trace o perfil de Ana Luísa Amaral, enquanto mulher e escritora, tendo em conta o
conteúdo dos textos e do documento que visionou.

206
Representações do contemporâneo | Figurações do poeta

EDUCAÇÃO LITERÁRIA PROFESSOR

CD 2 Informar
FA
IXA 9
Testamento 1. Ana Luísa Amaral, por ser do
sexo feminino, manifesta, de
Vou partir de avião um modo geral, preocupações
com as questões que afetam
e o medo das alturas misturado comigo as mulheres, abordando temas
faz-me tomar calmantes como a emancipação feminina
e o direito à igualdade; de
e ter sonhos confusos forma particular, preocupa-
-se com aspetos relativos ao
caráter maternal. Além disso,
5 Se eu morrer ostenta uma poesia musical,
que explora as potencialidades
quero que a minha filha não se esqueça de mim da língua.
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 15.1
mais que um horário certo QU
E MA
S
10 ou uma cama bem feita

EL
P V
RO
J ETÁ
Deem-lhe amor e ver
11. E
Estas
t referências
dentro das coisas constituem a síntese dos
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes desejos do sujeito poético
em relação à sua filha, caso
em vez de lhe ensinarem contas de somar não esteja presente para
15 e a descascar batatas os cumprir. Serão esses
“princípios/valores” que a filha
deve aprender e valorizar
Preparem a minha filha na vida – a alegria, o otimismo,
o amor e o sonho.
para a vida Mãe e filha, (detalhe de As três idade
2. Estas alusões simbolizam
da mulher), c. 1905, Gustav Klimt, Galeria
se eu morrer de avião aspetos materiais do
Nacional de Arte Moderna, Roma. quotidiano que são
e ficar despegada do meu corpo desvalorizados na vida que
20 e for átomo livre lá no céu o sujeito poético ambiciona
para a filha, por oposição
aos que são positivamente
Que se lembre de mim conotados (canto, fantasia,
amor e sonho).
a minha filha 3. “Preparar para a vida”
e mais tarde que diga à sua filha consiste em valorizar o
amor, o sonho e a fantasia,
que eu voei lá no céu e é esse o desejo do sujeito
25 e fui contentamento deslumbrado lírico (valor conferido pelo
presente do conjuntivo). As
ao ver na sua casa as contas de somar erradas contas de somar adjetivadas
e as batatas no saco esquecidas como “erradas” e as batatas
“esquecidas”, no final do
e íntegras poema, representam a
vitória desses valores, pois
Ana Luísa Amaral, Minha senhora de quê, Lisboa, Quetzal, 1999, p. 36. demonstram a desvalorização
do quotidiano material, banal
e rotineiro e justificam a
1. Explique o sentido das referências ao canto e à fantasia na segunda estrofe, e ao amor felicidade e o deslumbramento
do sujeito, “mais tarde”, lá
e ao sonho, na terceira estrofe. no céu”.
4. A referência à viagem de
2. Justifique as alusões a “horário certo” (v. 9), “cama bem feita” (v. 10), “contas de somar” avião ilustra a representação
do contemporâneo; a
(v. 14) e “descascar batatas” (v.15). figuração do poeta reside
essencialmente na visão que
3. Explique o sentido dos versos “Preparem a minha filha / para a vida” (vv. 16-17), relacio- a poeta tem da educação, pois
nando-os com os últimos quatro versos do poema. o poema apresenta um tom
emancipatório relativamente
ao papel tradicional da
4. Demonstre de que modo se manifestam no poema os tópicos “representação do con- mulher na sociedade/na vida
temporâneo” e “figurações do poeta”. doméstica.

207
Poetas contemporâneos
ANA LUÍ SA AMARAL

PROFESSOR
EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Educação Literária
CD 2
14.2; 14.3; 14.4; 14.7;
14.8; 14.9; 15.1; 16.2;
2; AIX
A1
Visitação

0
18.4 QU
E MA
S
Um anjo aqui desceu (terá descido?),
E

dizendo que o silêncio humano outrora


EL

P V
RO
Vídeo J ETÁ
fazia agora parte do divino,
Poema VIII, O guardador
ador
de rebanhos (Alberto e o que o templo maior, rasgado o pano,
Caeiro, dito por Maria 5 tinha passado a ser culto de nós.
Bethânia) (4 minutos)
Documento Do éter rarefeito veio a voz,
Poema VIII, O guardador
de rebanhos queixando-se das sombras na cidade:
(Disponível na brochura
que o mundo era só verde, e que o azul
Educação Literária, p. 15 – só o azul do céu, com letra humana
Dossiê do Professor)
10 gravada numa mesa de madeira.
1. Os versos realçam a ideia
de que um anjo desceu
à terra – o que anuncia a Um anjo aqui desceu (há provas mais)
ligação entre os planos divino
e terreno. O conteúdo dos e aqui ficou, exausto das canseiras
parênteses indicia a evolução de ser mediador entre dois mundos,
do pensamento do eu lírico
acerca daquilo que relata: de ter em dois segundos que voar
primeiro, a dúvida "(terá 15 e mergulhar depois em três segundos.
descido?)", depois a certeza
"(há provas mais)".
2. Presença de uma E aqui ficado, o anjo adormeceu,
personagem (o anjo) que
pratica uma ação (a descida à sonhando com estações e com instantes,
terra, e suas consequências). aos poucos esquecendo tempos dantes
O caráter narrativo é evidente
também no avanço temporal e a água densa do eterno mar. Angelus Novus, 1920, Paul Klee,
da ação através das formas Museu de Israel, Jerusalém.
verbais no pretérito perfeito:
“Um anjo aqui desceu” (vv. 1, 11), 20 E quando se rasgou o tempo outro
“aqui ficou” (v. 12), “aqui e ele acordou, refeito e bocejante,
[...] adormeceu” (v. 16), “ele Ana Luísa Amaral, Entre dois rios e outras
acordou” (v. 21), “viu” (v. 22). viu que era bom ter nome, e sede, e fome, noites, Porto, Campo das Letras, 2007,
3. O anjo perde a noção da cinco dedos nas mãos – algum olhar. pp. 58-59.
sua existência divina (“aos
poucos esquecendo tempos
dantes”, v. 18), optando pela
vida na terra (“aqui ficado”,
v. 16), onde adquire traços 1. Explique o sentido dos versos 1 e 11, justificando o valor dos parênteses.
humanos (“o anjo adormeceu, /
sonhando com estações e com 2. Demonstre o caráter narrativo do poema.
instantes”, vv. 16-17).
4. Trata-se da enumeração e
do polissíndeto (“ter nome, e 3. Explicite o conteúdo da terceira e quarta estrofes, atendendo à caracterização do anjo.
sede, e fome”). A enumeração
revela o caráter humano do 4. Identifique os recursos expressivos presentes no verso 22, explicitando o seu valor.
anjo; o polissíndeto, pela
repetição, acentua essa
mesma humanidade. 5. Sintetize o conteúdo da última estrofe, indicando o tema do poema.
5. O anjo, que vai adquirindo
humanidade ao longo do 6. Oiça um excerto do poema VIII de O guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro.
poema, no final torna-se
verdadeiramente humano, 6.1 Relacione o conteúdo de ambos os poemas.
por opção: “viu que era bom”
(v. 22). O tema é, então, a 6.2 Infira uma linha da tradição literária que esta relação permita e apresente outro exem-
dessacralização do divino.
Nota: Disponíveis, no Guia
plo da literatura portuguesa que o comprove.
do Professor, cenários de
resposta para as questões 6.1, 7. Analise a estrutura métrica, estrófica e rimática do poema.
6.2 e 7.

208
Tradição literária

EDUCAÇÃO LITERÁRIA PROFESSOR

CD 2 Educação Literária
AIXA 1
Inês e Pedro: quarenta anos depois 114.2; 14.3; 14.4; 14.8;
E MA 115.2
F

QU
S

E
É tarde. Inês é velha. GGramática
118.4
Os joanetes de Pedro não o deixam caçar

EL
P V
RO
J ETÁ

e passa o dia todo em solene toada:


“Mulher que eu tanto amei, o javali é duro!
Áudio
5 Já não há javalis decentes na coutada “Inês e Pedro: quarenta
e tu perdeste aquela forma ardente de temperar anos depois”
os grelhados!”
1. O título anuncia uma
referência à História de
Mas isto Inês nem ouve: Portugal, caso D. Inês não
tivesse sido assassinada,
não só o aparelho está mal sintonizado, imaginando o envelhecimento
10 mas também vasto é o sono do par amoroso. O título
antevê, assim, a coexistência
e o tricot de palavras do marido Inês é velha, hélas, de um plano real e de um plano
e Pedro tem caĩbras no tornozelo esquerdo. imaginário.
escorrega-lhe, dolente, dos joelhos
2. A relação amorosa do rei
que outrora eram delícias, E aquela fantasia peregrina D. Pedro com D. Inês de Castro,
mas que agora que o assaltava, em novo e respetivas consequências
(trágicas) para a História
15 uma artrose tornou tão reticentes. 20 (quando a chama era alta e o calor de Portugal, é um tema
ondeava no seu peito), recorrente na literatura
portuguesa: note-se o episódio
de ver Inês em esquife, de Inês de Castro presente
de ver as suas mãos beijadas por patifes n`Os Lusíadas, cujos primeiros
versos são lidos por Madalena
que a haviam tão vilmente apunhalado: na primeira cena de Frei Luís
de Sousa.
25 fantasia somente,
3. O caráter inovador decorre
fulgor que ele bem sabe ser doença das referências constantes
de imaginação. ao quotidiano de velhice do
par amoroso, constatando-se
a passagem do tempo tanto
O seu desejo agora no corpo como na alma dos
eternos amantes. Por outro
era um bom bife lado, nota-se uma relação
menos intensa, menos
30 de javali macio apaixonada. O par é, pois,
(e ausente desse horror de derreter desprovido da sua condição de
sensualidade e de realeza (que
neurónios). está presente no imaginário
Mais sábia e precavida (sem três dentes dos leitores), aproximando-o
da vivência do comum plebeu.
da frente) As maleitas da velhice, a
35 Inês come, em sossego, base do desenvolvimento do
poema, conferem ao texto um
uma papa de aveia. tom grotesco e cómico, que
contrasta com a seriedade
D. Inês de Castro, 1966, Costa Pinheiro, Coleção Ana Luísa Amaral, Inversos – Poesia 1990-2010, que o assunto histórico
Manuel de Brito, Lisboa. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 636-637. normalmente impõe.
4. As palavras da personagem
tornam o discurso mais vivo,
1. Esclareça a estranheza do título do poema. dão mais credibilidade à
apresentação do par amoroso
como pessoas vulgares,
2. Demonstre que a temática que constitui o ponto de partida do poema se inscreve descendo do seu estatuto
numa linha de tradição literária portuguesa. de realeza.
5. Os versos referidos
3. Esclareça o caráter inovador que o tratamento do tema adquire no poema. remetem para a cerimónia de
beija-mão após a coroação de
D. Inês (já morta) como rainha,
4. Justifique a pertinência da introdução, na primeira estrofe, das palavras de D. Pedro. que faz parte do imaginário
popular.
5. Identifique a referência histórica presente nos versos 22 a 24.

209
Poetas contemporâneos
ANA LUÍ SA AMARAL

PROFESSOR
EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.6; CD 2

14.8; 15.2; 16.2 AIX


A1
Soneto científico a fingir

2
E MA
QU
S
E

Dar o mote ao amor. Glosar o tema


tantas vezes que assuste o pensamento.
EL

Áudio P
RO
J ETÁ
V

“Soneto científico Se for antigo, seja. Mas é belo


a fingir”
e como a arte: nem útil nem moral.
1. O vocábulo “soneto” remete
para a tradição clássica,
nomeadamente para Petrarca 5 Que me interessa que seja por soneto
e Camões; “a fingir” envia-nos em vez de verso ou linha devastada?
para a temática do fingimento
artístico em Pessoa, O soneto é antigo? Pois que seja:
confirmada na penúltima
estrofe: “ou seja, na mentira
também o mundo é e ainda existe.
que é o verso, / ou seja,
na mentira do que mostro.”
(vv. 15-16). Só não vejo vantagens pela rima.
2. Tal como o verbo integrado 10 Dir-me-ão que é limite: deixa ser.
no título indica (“fingir”), o Se me dobro demais por ser mulher
soneto não segue as regras
formais deste género – duas [esta rimou, mas foi só por acaso]
quadras e dois tercetos.
A poeta demonstra, desta
forma, ter consciência de que Se me dobro demais, dizia eu,
não se trata de um soneto
“a sério” e alerta o leitor para não consigo falar-me como devo,
esse jogo de desrespeito 15 ou seja, na mentira que é o verso,
pelas regras formais, sobre
o qual se reflete ao longo do ou seja, na mentira do que mostro.
próprio poema. Assim, o texto
ilustra a subversão para a s/t, 1982, José de Guimarães.
qual o conteúdo aponta. Além E se é soneto coxo, não faz mal.
disso, o soneto é “científico”, E se não tem tercetos, paciência:
o que não se coaduna com
as temáticas tradicionais dar o mote ao amor, glosar o tema,
dos sonetos – é “científico”
por se abordar a “ciência”
20 e depois desviar. Isso é ciência!
da subversão da tradição:
“dar o mote ao amor, glosar Ana Luísa Amaral, E muitos os caminhos,
o tema, / e depois desviar. Porto, Poetas das Letras, 1995, p. 35.
Isso é ciência!” (vv. 19-20);
a linguagem é coloquial,
o que constitui também
um afastamento da tradição 1. Demonstre de que modo a tradição literária está presente no título do poema.
literária, para além de
destacar a despreocupação
do poeta com a rima. 2. Esclareça de que modo se subverte, no texto, essa mesma tradição.
3. O verso parentético
reproduz uma marca de 3. Explicite a funcionalidade do verso parentético na terceira estrofe.
coloquialidade que ilustra
o afastamento da tradição
literária, uma vez que não 4. Esclareça a expressividade presente nos seguintes versos:
corresponde ao registo de
língua requerido por esta a. “Dir-me-ão que é limite: deixa ser.” (v. 10)
forma poética.
4. a. O recurso à terceira b. “ou seja, na mentira que é o verso, / ou seja, na mentira do que mostro.” (vv. 15-16)
pessoa do plural do futuro
do indicativo (“Dir-me-ão”) 5. Explique o conceito de “arte poética” subjacente ao poema.
funciona como um contra-
-argumento: o “eu”, ao
justificar a sua teoria 6. Refira a estrutura métrica, versificatória e rimática.
(necessidade de subverter a
tradição), entra em diálogo
com os leitores, e antecipa,
assim, uma resposta à reação
daqueles que poderão não
partilhar da sua opinião.

210
MANUE L ALEGRE Tradição literária | Arte poética

INFORMAR

Representações do contemporâneo
Tradição literária e arte poética
Não foi por acaso que muito cedo a poesia de Manuel Alegre se encarnou
em música e canto. Por instinto, inscreveu tendencialmente os seus poemas no C7DK;B7B;=H;
horizonte simbólico e onírico da oralidade. (1935- )

O seu primeiro livro o sagra e consagra como “poeta da resistência”, desarma- Nasceu em Águeda. Estudou
Direito na Universidade de
5 do e armado de provocadora impaciência. A “poesia como arma” podia servir de Coimbra. Esteve preso por se
poética a gerações, unidas para além das diferenças de tempo e até de ideologia, recusar a participar na Guerra
pela recusa de um mundo sem lugar para uma vida digna de ser vivida. Os ecos Colonial, desertou do país
e viveu em Paris e em Argel
dessa poética que era a de uma vida individual ou coletivamente silenciada ou-
até 1974. Tem-se destacado
vem-se bem nos dois primeiros livros de Manuel Alegre [Praça da canção (1965) pela sua atividade política.
10 e O canto e as armas (1967)]. Foi galardoado com o Prémio
Mas já mesmo nesses primeiros livros, o poema coexiste com o eu, não como Pessoa. Da sua vastíssima obra,
salientam-se: Praça da canção,
expressão íntima do espírito ou da alma, mas como história-poema e poema
O canto e as armas, Coisa amar,
-história cuja revisitação e recriação confere ao canto a sua verdadeira dimensão Com que pena – vinte poemas
épica. para Camões, senhora das
15 A sua viagem, mesmo quando os caminhos eram de escuridão ou luto re- tempestades.

cebeu sempre do corpo poético que lhe serviu de terra pátria – o das cantigas
de amigo, dos cancioneiros que lhe ensinaram o segredo e o gosto das palavras PROFESSOR

que consigo mesmas se divertem, do canto camoniano dividido entre Babilónia


b. O valor explicativo da
e Sião – a sua carta de prego de trovador marinheiro em tempo de silêncio e expressão que constitui
20 histórica ressaca. a anáfora enfatiza uma
das ideias-base do poema:
Na poesia de Manuel Alegre existe uma consciência profunda do tempo trá- o fingimento.
gico que a título pessoal ou coletivo lhe foi dado viver. 5. Neste poema, a poeta
esboça uma arte poética em
Manuel Alegre, como combatente e como poeta, adivinha que a pseudo-epo- que tradição e subversão
peia da guerra colonial é a antecâmara de um novo Alcácer Quibir. Essa aventu- dessa mesma tradição
convivem de forma
25 ra, em si mesma, e o seu eco nos poemas que a evocam, não pode ser mais que harmoniosa, assumindo,
canto de um sacrifício absurdo e de um desastre anunciado. para além disso, que a poesia
é também fingimento, aqui
Não é na linguagem puramente retórica de um “nacionalismo” de seita e de denominado como “mentira”.
classe que Manuel Alegre se situa, mas na de um natural patriotismo, como o 6. Todas as estrofes são
quadras e os versos são
que de Camões até Garrett ou Torga e Sophia não endeusa o que é nosso por ser decassilábicos e quase
30 nosso, mas o que em nós é comum universalidade e humanidade. Linhagem exclusivamente brancos
(rimam apenas os dois versos
daqueles a quem “dói um país neste país” que o poeta identificando-se a Ulisses que se situam no meio
em “Lusíada exilado” consigo leva. do poema – vv. 10-11).

A sua palavra é, natural e ontologicamente, “canto”, “canção”. A sua poesia é


Leitura
uma viagem entre os recifes, as ilhas encantadas, os arquipélagos da fábula poé- 7.1; 7.4
35 tica que nós chamamos Homero, Virgílio, Camões, Dante, Pessoa, Ezra Pound ou Educação Literária
16.1
de mais familiar convívio da sua alma errante, Torga e Sophia.
Eduardo Lourenço (prefácio), in Manuel Alegre, 30 anos de poesia, 1. As principais linhas
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997, pp. III-XVI (texto adaptado e com supressões). temáticas são a pátria,
o presente histórico, a defesa
da liberdade, a revisitação
da História. A obra de Camões,
1. Refira as principais linhas temáticas da poesia de Manuel Alegre e as influências lite- de Torga, de Sophia e a dos
rárias mais pertinentes. trovadores medievais são
as principais referências que
Alegre recupera.

211
Poetas contemporâneos
MANU E L ALEG R E

PROFESSOR EDUCAÇÃO LITERÁRIA


Educação Literária CD 2
14.2; 14.3; 14.4; 14.8;
14.9; 15.1; 15.2; 16.2 AIXA 1
Letra para um hino

3
E MA
Gramática QU
S “Porque mudando-se a vida
E

17.1; 18.4; 19.4


se mudam os gostos dela.”
EL

1. Ao longo do poema, P
RO
J ETÁ
V CAMÕES, BABEL E SIÃO
opõe-se implicitamente
o futuro ao presente, a ação
ção
à passividade. Em face É possível falar sem um nó na garganta
do momento presente de
opressão, apresenta-se é possível amar sem que venham proibir
reiteradamente, através é possível correr sem que seja fugir.
da anáfora (“É possível”),
a hipótese de um futuro Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.
diferente.
2. A referência a “chão” e a
“astros” traduz a oposição 5 É possível andar sem olhar para o chão
terra/céu, que, no contexto é possível viver sem que seja de rastos.
do poema, ilustra a vida vivida
(submissa, envergonhada, Os teus olhos nasceram para olhar os astros
sem ânimo) e a vida sonhada,
aquela que será possível ter se te apetece dizer não grita comigo: não.
se se agir nesse sentido – uma
vida com dignidade e livre,
como metaforicamente É possível viver de outro modo. É
indicia a ação de olhar para 10 possível transformares em arma a tua mão.
os astros.
3. Os últimos versos ilustram
É possível o amor. É possível o pão.
a importância do conteúdo do É possível viver de pé.
poema, na medida em que
remetem para um “tu”,
aquele a quem o poema Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
se dirige, e estabelecem
a condição para a ação: − ter É possível viver sem fingir que se vive.
vontade de cantar e de dizer 15 É possível ser homem.
“não”, ou seja, de pôr fim
à situação experienciada para É possível ser livre livre livre.
assim “viver de pé” e “ser livre
livre livre.” “O canto e as armas [1967]”, in Manuel Alegre, 30 anos de poesia
4.1 O recurso ao imperativo (prefácio de Eduardo Lourenço), Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997, pp. 234-235.
(”canta”; “grita”), ao presente
do conjuntivo com valor
também de imperativo (“não
tenhas”; “não deixes”) e à tripla 1. Explicite a dualidade que está na base da construção do poema.
repetição do adjetivo “livre”
no último verso, acentuam a 2. Explicite o sentido da referência ao “chão” e aos “astros”, na segunda estrofe.
dimensão exortativa do texto.
5. O título anuncia o conteúdo 3. Justifique a pertinência do último verso de cada estrofe.
do poema através do vocábulo
“hino”: é um canto, um desafio
à ação, em consequência da 4. A anáfora contribui para o caráter exortativo que o poema encerra.
denúncia de uma situação
que se considera injusta; os 4.1 Indique outros recursos expressivos e/ou linguísticos que concorram para o mesmo
versos de Camões convocam objetivo.
a temática da mudança, que
constitui o desafio que é
lançado pelo poeta. 5. Relacione o conteúdo do texto com o título e a citação dos versos de Camões, explici-
Assim, o poema transmite tando a mensagem veiculada pelo poema.
uma mensagem de libertação,
um apelo à construção de um
futuro coletivo, ideia que é 6. Demonstre a presença dos tópicos “tradição literária” e “figurações do poeta”, explo-
enfatizada nos dois últimos rando possíveis sentidos sugeridos pelo título da obra em que se integra o poema:
versos, ao estabelecerem um
paralelismo entre liberdade O canto e as armas.
e condição humana.
Nota: Disponível, no Guia G 7. Identifique a função sintática desempenhada pelo segmento sublinhado no verso:
do Professor, um cenário de “É possível ser homem.” (v. 15)
resposta para as questões 6,
7 e 8.
8. Refira o valor modal expresso no verso “Não deixes que te domem.” (v. 13)

212
Figurações do poeta | Tradição literária | Arte poética | Representações do contemporâneo

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

CD 2 PROFESSOR
AIX
Abaixo el-rei Sebastião S
QU
E MA

E
A1
F

É preciso enterrar el-rei Sebastião

EL
P V
RO
J ETÁ
é preciso dizer a toda a gente
que o Desejado já não pode vir. 1. O canto (representado pela
“guitarra”) é fantástico porque
É preciso quebrar na ideia e na canção é fruto da fantasia, do mito,
5 a guitarra fantástica e doente e é “doente” porque conota
incapacidade. Assim, o mito
que alguém trouxe de Alcácer Quibir. sebastianista é apresentado
como algo negativo.
2.1 Os nomes referidos
Eu digo que está morto. apontam para a oposição
Deixai em paz el-rei Sebastião passado/presente, na medida
em que “desastre” e “loucura”
deixai-o no desastre e na loucura. caracterizam el-rei
10 Sem precisarmos de sair o porto D. Sebastião e Alcácer Quibir
(a batalha foi um desastre
temos aqui à mão devido à loucura do rei) e
a terra da aventura. “aventura” refere-se ao
presente − “aqui à mão”− aqui
tão perto.
Vós que trazeis por dentro 2.2 A ocorrência da primeira
pessoa do singular verifica-se
de cada gesto apenas uma vez e é substituída
15 uma cansada humilhação O versátil Jean Cocteau, 1949, Philippe Halsman, pela segunda pessoa do
Museu do Eliseu, Lausanne. plural, “vós”, no apelo lançado.
deixai falar na vossa voz a voz do vento Recorre-se, ainda, à primeira
cantai em tom de grito e de protesto pessoa do plural, “nós”,
pois não é o individual que
matai dentro de vós el-rei Sebastião. é valorizado no poema.
3. Os recursos são a aliteração
do som /v/ e a personificação,
Quem vai tocar a rebate que sugerem o som do vento
20 os sinos de Portugal? e que conferem musicalidade
ao texto, tornando o verso
Poeta: é tempo de um punhal melódico.
por dentro da canção. 4. Constitui um apelo
“O canto e as armas [1967]”, in Manuel Alegre, (implícito no ato de tocar
Que é preciso bater em quem nos bate 30 anos de poesia (prefácio de Eduardo Lourenço), a rebate) à união do país,
é preciso enterrar el-rei Sebastião. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997, pp. 168-169. uma vez que se pretende
proclamar a morte do rei e,
por conseguinte, do mito
em torno dele.
1. Explique o sentido da dupla adjetivação presente no verso 5. 5. A poesia é encarada
como uma forma de
2. Atente na segunda estrofe. intervenção social, uma
arma, representada pelo
2.1 Justifique o recurso aos vocábulos “desastre”, “loucura” e “aventura”. “punhal”. Essa necessidade
de intervenção advém do
2.2 Evidencie, justificadamente, as várias pessoas gramaticais aí presentes. contexto social e político
da produção do poema
[Estado Novo], o que
3. Identifique, explicitando o valor, os recursos expressivos que ocorrem no verso 16. confirma a presença do
tópico “representações
4. Explique o valor da interrogação retórica na última estrofe. do contemporâneo”.
6. O título anuncia a ideia
5. Explicite o conceito de poesia implícito nos versos 21 e 22. de luta contra “el-rei”, que
é enfatizada pelo verbo
“enterrar”, que conota o seu
6. Interprete as referências recorrentes a D. Sebastião, tendo em conta o título e os ver- fim. O facto de o verso estar
sos que inauguram e encerram o poema. repetido comprova o caráter
circular do texto.
7. Relacione o conteúdo do poema com a mensagem sugerida pela imagem de Philippe Nota: Disponível, no Guia
do Professor, um cenário de
Halsman, tendo em conta a representação das mãos e o modo como a figura apresen- resposta para a questão 7.
tada veste o casaco.

213
Poetas contemporâneos
MANU E L ALEG R E

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

CD 2

AIX
A1
Sobre um mote de Camões

5
PROFESSOR
Se me desta terra for
eu vos levarei amor.
Educação Literária Nem amor deixo na terra
14.2; 14.3; 14.4; 14.8;
15.2; 16.2 que deixando levarei.
Gramática
18.4
S
QU
E MA 5 Deixo a dor de te deixar
E

na terra onde amor não vive


na que levar levarei
EL

P V
RO
J ETÁ
Áudio
“Sobre um mote
amor onde só dor tive.
de Camões”
Documento Nem amor pode ser livre
“Se me desta terra for”,
Luís de Camões, Rimas
10 se não há na terra amor.
Deixo a dor de não levar
(Disponível na brochura
Educação Literária, p. 18 – a dor de onde amor não vive.
Dossiê do Professor)

1. O mote é constituído pelos E levo a terra que deixo


dois primeiros versos. onde deixo a dor que tive.
2. As oposições deixar/levar e
amor/dor constituem um jogo
15 Na que levar levarei
de palavras e de sentidos que este amor que é livre livre.
está na base da construção do
poema – levar o amor e deixar “Praça da canção [1965]”, in Manuel Alegre,
a dor é o desejo do sujeito 30 anos de poesia (prefácio de Eduardo Lourenço), Icarus, c. 1943-1944, Henri Matisse, Galeria
poético. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997, p. 79. Nacional de Arte Moderna da Escócia, Edimburgo.
3. O poema é estruturado
em quadras, constituídas
por versos de sete sílabas
métricas (redondilha maior),
com rima emparelhada, rica 1. Refira os versos que podem constituir o mote anunciado no título.
e toante nos versos 1 e 2 da
primeira estrofe, cruzada,
pobre e consoante nos versos 2. Explique o sentido das oposições deixar/levar e amor/dor.
6 e 8, interpolada, rica e
consoante nos versos 9 e 12,
3. Analise formalmente o poema, tendo em conta a rima, a métrica e a versificação.
cruzada, rica e consoante nos
versos 14 e 16.
4. O jogo de palavras 4. Enumere, justificadamente, os recursos que estão ao serviço da musicalidade e do rit-
anteriormente referido, que
acaba por ser também um
mo melódico do poema.
jogo de sonoridades, a rima
e os versos curtos são os 5. Refira os valores da tradição literária que são recuperados no texto.
elementos que conferem ao
poema um ritmo dançante.
5. O poema desenvolve-se na G 6. Atente na redondilha camoniana que será disponibilizada pelo seu professor.
linha da tradição literária de
Camões, pela recuperação 6.1 Refira a forma de relação intertextual que se estabelece entre o texto camoniano e o
do mote e pelo próprio tema poema de Manuel Alegre.
explorado por Camões, e
das cantigas de amigo, pelo
ritmo. O verso de redondilha
maior constitui também
uma recuperação da métrica
de Camões e dos poetas
medievais.
6.1 É a paráfrase, pois trata-
-se da recriação do texto
camoniano.

214
Tradição literária

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
PROFESSOR
CD 2

AIX
A1
Coisa amar
F

Contar-te longamente as perigosas Áudio


“Coisa Amar”
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
E MA
QU
e as ilhas que só há no verbo amar. S
1. Os dois vocábulos

E
Contar-te longamente longamente. surgem com semas

EL
P
RO V comuns, pois
J ETÁ
ambos conotam
5 Amor ardente. Amor ardente. E mar. perigosidade
periigosida (“E mar. Amar:
as coisas perigosas.”, v. 8) e
Contar-te longamente as misteriosas intensidade (“Amor ardente.”,
maravilhas do verbo navegar. vv. 2 e 5 e “o mar ardente”,
v. 13).
E mar. Amar: as coisas perigosas. 2. A anáfora “Contar-te”
introduz os desejos de
partilha de sentimentos e
Contar-te longamente que já foi de experiências do sujeito
10 num tempo doce coisa amar. E mar. poético, com o “tu”. O
advérbio transmite o modo
Contar-te longamente como dói como ele deseja contar as
suas experiências: lenta
e vagarosamente. Assim,
desembarcar nas ilhas misteriosas. infere-se que essa partilha se
pretende serena e pausada.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
3. O ritmo é lento, conferido
E longamente as coisas perigosas. pela anáfora, pela repetição
do advérbio, pois é constituído
“Coisa amar [1976]”, in Manuel Alegre, 30 anos de poesia Crepúsculo azul, c. 1913, George Wesley Bellows, por sons nasais, pela
(prefácio de Eduardo Lourenço), Lisboa, Publicações Coleção privada. recorrência dos vocábulos
Dom Quixote, 1997, pp. 327-328. “mar” e “amar”, pelos sons
abertos, e pela rima.
4.1 As referências a “mar”,
“as misteriosas / maravilhas
1. Explicite o sentido dos vocábulos “mar” e “amor” tendo em conta a sua recorrência do verbo navegar” (vv. 6-7)
no poema. e ao “desembarcar nas ilhas
misteriosas” (v. 12) conotam
os perigos do mar
2. Esclareça o valor da anáfora “Contar-te” e da repetição do advérbio “longamente”, que e simultaneamente o amor
ocorrem ao longo do texto. e as contrariedades que
dele possam advir, pelo
que é possível estabelecer
3. Analise o ritmo do poema, referindo os elementos que contribuem para o tom melódico. uma relação intertextual
com a epopeia de Camões,
4. Considere os versos da estância 161 do canto V de Os Lusíadas abaixo transcritos, bem nomeadamente com os versos
transcritos, em que se referem
como a sua experiência enquanto leitor. os perigos do mar. Por outro
lado, o “Amor ardente” (v. 5)
Contar-te longamente as perigosas poderá remeter para a poesia
lírica do mesmo poeta. Além
Cousas do mar, que os homens não entendem, disso, a estrutura formal,
Súbitas trovoadas temerosas, o soneto, é um elemento
clássico da poesia camoniana.
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
5 Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões, que o mundo fendem, 1
Versos relativos ao episódio
Não menos é trabalho que grande erro, da “Tromba marítima”.
Ainda que tivesse a voz de ferro.

Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, Lisboa, IC-MNE, 2000, p. 217.

4.1 Explique de que modo a tradição literária está presente no poema de Manuel Alegre.

215
R O T E I R O P O É T I C O – P O E TA S C O N T E M P O R Â N E O S
Em alternativa aos poetas apresentados, pode também desenvolver o seu estudo des-
ta unidade tendo por base a poesia de Alexandre O'Neill e/ou Ruy Belo.

Leia os seguintes excertos dos poemas que se apresentam.

Alexandre O’Neill

AUTO -RETRATO*

7B;N7D:H;EVD;?BB O'Neill (Alexandre), moreno português,


(1924-1986)
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
Nasceu em Lisboa e foi um
dos fundadores do movimento nariguete que sobrepuja de través
surrealista português. Publicou a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
não só poesia mas também prosa
e traduções, e trabalhou em
publicidade – é da sua autoria o
slogan “Há mar e mar, há ir e voltar”. HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM*
O seu reconhecimento como poeta
deu-se em 1958, com a publicação Há palavras que nos beijam
de No reino da Dinamarca, a que se Como se tivessem boca.
seguiram, entre outras, as obras
Feira cabisbaixa (1965), Entre a
Palavras de amor, de esperança,
cortina e a vidraça (1972) e Uma De imenso amor, de esperança louca.
coisa em forma de assim (1980).

SEIS POEMAS CONFIADOS À MEMÓRIA DE NORA MITRANI*

Eu estava bom p`ra morrer


nesse dia.
*FIXAÇÃO DE TEXTO Não tinha fome nem sede,
Tomai lá do O’Neill – nem alarme ou agonia.
uma antologia (seleção
de poemas e prefácio
de António Tabucchi),
Lisboa, Círculo de
Leitores, 1986, pp. 173, VELHOS/1*
263, 176 e 72.
Tem sempre um quadradinho de marmelada para o bisneto pequeno.
Tira-o não se sabe donde.
Guarda os baraços dos embrulhos,
desfaz-lhes os nós (“Os japoneses põem os meninos nas escolas a
PROFESSOR
desfazer nós!”)
Educação Literária e, baraço a baraço, fabrica um novelo multicor
14.2; 14.3; 14.4; 14.6; que pode fornecer fio para atar um embrulho,
14.8; 14.9; 15.1; 15.2;
15.3; 15.4 por exemplo, o da louça chinesa que, peça a peça,
Nota: vai pondo no prego.
Os poemas, de ambos os
poetas, estão disponibilizados,
na íntegra, na brochura
Educação Literária,
no Dossiê do Professor.

216
Ruy Belo

CANÇÃO DO LAVRADOR**

Meus versos lavro-os ao rubro


nesta página de terra
que abro em lábios. Descubro-
HKO8;BE
-lhe a voz que no fundo encerra (1933-1978)
Ensaísta, crítico literário e um
dos maiores poetas da segunda
SONETO SUPERDESENVOLVIDO** metade do século XX, cursou
Direito em Coimbra e depois em
É tão suave ter bons sentimentos Lisboa, onde concluiu também a
licenciatura em Filologia Românica.
consola tanto a alma de quem os tem Doutorou-se em Direito Canónico
que as boas ações são inesquecíveis momentos em Roma. Foi diretor da Editorial
e é um prazer fazer bem Aster, chefe de redação da
revista Rumo, professor leitor na
Universidade de Madrid e professor
na Escola Secundária Ferreira Dias,
E TUDO ERA POSSÍVEL** em Agualva-Cacém. Aquele grande
rio Eufrates (1961), Boca bilingue
Na minha juventude antes de ter saído (1966) e Despeço-me da Terra da
da casa de meus pais disposto a viajar Alegria (1977) são algumas das suas
obras mais conhecidas.
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

PALAVRAS DE JACOB DEPOIS DO SONHO**

Amei a mulher amei a terra amei o mar **FIXAÇÃO DE TEXTO


amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar Obra poética de Ruy
Belo (org. e notas
De muitas delas de resto falei de Joaquim Manuel
Não sei talvez eu me possa enganar Magalhães e de
Maria Jorge Vilar
foram tantas as vezes que me enganei de Figueiredo), vol. I,
mas por trás da mulher da terra e do mar Lisboa, Editorial
Presença, 1981,
pareceu-me ver sempre outra coisa talvez o senhor pp. 34-35,
145-146, 171 e 153.

1. Proceda à análise dos poemas, na sua versão completa, tendo em conta os tópicos
de conteúdos que constam do Programa:
š representações do contemporâneo;
š tradição literária;
š figurações do poeta;
š arte poética;
š linguagem, estilo e estrutura:
− formas poéticas e formas estróficas;
− métrica;
− recursos expressivos.

217
CONSOLIDAR Poetas contemporâneos

TOPICOS DE CONTEÚDO

REPRESENTAÇÕES DO EUGÉNIO DE ANDRADE


CONTEMPORÂNEO Tratamento do tema Natureza aproximando-o da ecologia
ANA LUÍSA AMARAL
A igualdade de género
O quotidiano
MANUEL ALEGRE
Luta pela liberdade
Denúncia dos horrores da Guerra Colonial antes e depois do 25 de Abril

MIGUEL TORGA
TRADIÇÃO LITERÁRIA
Cantigas de amigo (temática – a Natureza)
Camões − Os Lusíadas (a condição humana)
EUGÉNIO DE ANDRADE
Poesia trovadoresca (a Natureza, o bucolismo)
ANA LUÍSA AMARAL
Tradição literária vs. subversão da tradição literária
Tradição literária (Camões − Os Lusíadas/Fernando Pessoa/Petrarca)
MANUEL ALEGRE
Camões (epopeia e poesia lírica)
Cantigas de amigo

FIGURAÇÕES DO POETA MIGUEL TORGA – O poeta desiludido e inconformado com o mundo que o rodeia
EUGÉNIO DE ANDRADE – A infância/a figura materna
ANA LUÍSA AMARAL – A visão feminista da educação
MANUEL ALEGRE – O poeta como um ser empenhado socialmente

ARTE POÉTICA MIGUEL TORGA


O ato criativo é um processo doloroso que implica labor, esforço,
verificando-se, por vezes, uma tensão entre inspiração e laboração.
EUGÉNIO DE ANDRADE
A criação poética é um trabalho de apuramento da linguagem, semelhante ao
trabalho oficinal, daí que a mão seja, por vezes, o símbolo da criação poética.
ANA LUÍSA AMARAL
A criação é paixão – misto de prazer e de angústia.
MANUEL ALEGRE
A poesia como arma ao serviço da denúncia e da liberdade – o poeta engagé.

LINGUAGEM, ESTILO MIGUEL TORGA


E ESTRUTURA Tom confessionalista
Expressividade das metáforas
Irregularidade ao nível da métrica, da versificação e da rima
EUGÉNIO DE ANDRADE
Irregularidade ao nível da métrica, da versificação e da rima
Ritmo e musicalidade excecionais (poesia próxima do canto)
Linguagem fortemente polissémica, imagens, metáforas e simbologias
MANUEL ALEGRE
Musicalidade (poesia próxima do canto)
ANA LUÍSA AMARAL
Domínio das potencialidades expressivas da língua
Sintaxe invulgar

218
VERIFICAR
PROFESSOR
1. Classifique, no seu caderno, como verdadeiras ou falsas as afirmações seguintes.
Corrija as afirmações falsas. Educação Literária
14.3; 14.8; 15.2; 16.1
1.1 Miguel Torga
a. presta culto à Grande Deusa Mãe, que é a Terra.
Apresentação
b. sobrepõe a esperança ao desespero, na sua obra.
Síntese da Unidade 5
c. defende a liberdade individual perante o Estado e perante a Igreja.
1.1 Miguel Torga
d. revela, na sua obra, grande humanismo e consciência social. a. V
e. imprime à criação literária uma dimensão interventiva. b. F − Nem sempre; depende
dos poemas.
f. apresenta um hino à condição humana, no poema “Dies irae”. c. V
g. revela a dimensão telúrica da sua poesia no poema “A um negrilho”. d. V
e. F − Tem uma dimensão
sagrada.
1.2 Eugénio de Andrade
f. F − É o poema “Sísifo” e não
a. é autor de uma poesia fortemente simbólica. “Dies irae”.
g. V
b. usa como figura de eleição a personificação.
1.2 Eugénio de Andrade
c. escreve poesia com uma vertente musical acentuada. a. V
d. trata temas como o erotismo, a melancolia, a crença no deus divino e trans- b. F − Metáfora.
c. V
cendente.
d. F − Não crê no deus divino
e. faz referência à mãe nas suas primeiras publicações. e transcendente.
e. F − É recorrente ao longo
f. valoriza o corpo, os sentidos e o convívio com o mundo natural. da sua obra.
g. possui como característica formal a regularidade métrica e estrófica. f. V
g. F − Irregularidade métrica
e estrófica.
1.3 Ana Luísa Amaral
1.3. Ana Luísa Amaral
a. trata temas como a defesa dos direitos de cidadania e da igualdade de género. a. V
b. refere-se ao quotidiano de forma invulgar, daí que o leitor sinta estranheza pe- b. V
c. F – A sua poesia caracteriza-
rante alguns dos seus textos. -se pela irregularidade
c. opta pelo soneto como forma estrófica mais frequente na sua poesia. estrófica.
d. V
d. escreve poesia com um tom emancipatório e feminista. e. F – O amor e o sonho
e. desvaloriza temáticas como o sonho e o amor. são temáticas valorizadas
recorrentemente.
f. recorre frequentemente às potencialidades linguísticas e poéticas da língua. f. V
g. faz uso de uma sintaxe vulgar e corrente, que facilita a leitura dos seus textos. g. F − A sintaxe invulgar não
facilita a leitura dos seus
textos.
1.4 Manuel Alegre 1.4. Manuel Alegre
a. considera a poesia como uma arma contra o inconformismo e em defesa da a. V
b. F – A obra de Manuel Alegre
liberdade. é inseparável da sua biografia,
b. não revela relações óbvias entre a sua obra e a sua biografia. do tempo em que viveu.
c. V
c. recupera frequentemente a poesia lírica e épica de Camões, e as cantigas de d. F − A sua poesia tem forte
amigo. carga interventiva.
e. V
d. revela um caráter reflexivo em parte da sua poesia.
f. F – Manuel Alegre considera
e. é considerado o “poeta trovador” e o “poeta de intervenção”. que o mito de D. Sebastião
deve ser enterrado porque
f. valoriza el-rei D. Sebastião como símbolo da esperança de um povo. promove a acomodação e o
conformismo.
g. escreve poemas com um forte sentido melódico e musical.
g. V

219
Poetas contemporâneos
AVA L I A R Poetas contemporâneos
GRUPO I

Leia os poemas dos itens A e B.


Apresente as suas respostas de forma bem estruturada.

Camões
Nem tenho versos, cedro desmedido
Da pequena floresta portuguesa!
Nem tenho versos, de tão comovido
Que fico a olhar de longe tal grandeza.

5 Quem te pode cantar, depois do Canto


Que deste à pátria, que to não merece?
O sol da inspiração que acendo e que levanto
Chega aos teus pés e como que arrefece.

Chamar-te génio é justo, mas é pouco.


10 Chamar-te herói, é dar-te um só poder.
Poeta dum império que era louco,
PROFESSOR Foste louco a cantar e louco a combater.

Sirva, pois, de poema este respeito


Ficha Que te devo e professo,
Ficha de Avaliação –
Unidade 5
15 Única nau do sonho insatisfeito
Apresentação
Que não teve regresso!
Soluções Ficha “Poemas Ibéricos [1952-1965]”, in Miguel Torga, Antologia poética,
de Avaliação Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2014, p. 156.

GRUPO I

Educação Literária 1. Refira três traços caracterizadores de Camões, na opinião de Miguel Torga.
14.2; 14.3; 14.4; 14.7

1. Torga realça em Camões 2. Explique o sentido dos dois primeiros versos da segunda estrofe.
o seu talento (“génio”, v. 9)
e afirma que ele foi herói e 3. Explicite a mensagem do poema, expressa na última estrofe.
louco. Diz também que foi
muito mais do que isso e
que não tem palavras que
traduzam essa grandeza.
2. Os referidos versos
transmitem a qualidade
inigualável do canto
camoniano e assinalam a falta
de reconhecimento do seu
mérito, por parte da Pátria.
3. A mensagem consiste na
homenagem que o poeta faz
a Camões, através da escrita
deste poema, pois é a única
forma de lhe manifestar o seu
respeito e devoção.

220
B

A Ideia − poema III


Força é pois ir buscar outro caminho!
Lançar o arco de outra nova ponte
Por onde a alma passe – e um alto monte
Aonde se abra à luz o nosso ninho.

5 Se nos negam aqui o pão e o vinho,


Avante! é largo, imenso, esse horizonte…
Não, não se fecha o mundo! e além, defronte,
E em toda a parte há luz, vida e carinho!

Avante! Os mortos ficarão sepultos…


10 Mas os vivos que sigam − sacudindo
Como pó da estrada, os velhos cultos!

Doce e brando era o seio de Jesus…


Que importa? havemos de passar, seguindo,
Se além de seio dele houver mais luz!
Antero de Quental, Poesia completa (org. e pref. de Fernando Pinto do Amaral),
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001, p. 261.

4. Explicite o sentido do verso inicial do poema, articulando-o com a expressão


“Avante!”, presente nos versos 6 e 9.

5. Justifique o recurso à interrogação retórica no último terceto.

GRUPO II

Responda às questões. Nas respostas aos itens de escolha múltipla, selecione, no seu
caderno, a opção correta.
PROFESSOR

4. A exclamação inicial traduz

Numa praia intermitente a determinação na procura de


uma outra explicação (uma
vez que o sujeito poético não
a encontrou em Deus),

O
reforçada pela exortação
explícita em “Avante!” (v. 9).
novo livro de Ana Margarida de Carvalho é um tour de force narrativo e um
5. A interrogação
prodígio de linguagem. Fortíssimo candidato, desde já, a melhor romance retórica reforça a ideia de
português do ano. desinteresse/rutura com o
passado e acentua a crença
num futuro de esperança
(“havemos de passar,
Entramos nas quase 50 páginas do primeiro capítulo deste romance com um misto seguindo”, v. 13), ao qual se
5 de espanto e perplexidade. O que se segue à nossa frente é exatamente o quê? Não acederá respondendo ao apelo
que o sujeito poético efetua
sabemos ao certo e depressa deixamos de questionar, tomados por um dos mais em- nas estrofes anteriores.
polgantes torvelinhos narrativos da literatura portuguesa recente. Quem nos enreda é

221
Poetas contemporâneos
AVA L I A R
a voz de uma santa de madeira, “ao mar arremessada”, uma Nossa Senhora de Todas as
Angústias que recebe a devoção, bem como as súplicas, dos tripulantes e passageiros
10 de um navio negreiro clandestino. Enquanto o barco, autêntico “túmulo navegante”, com
o porão a abarrotar de escravos moribundos, sucumbe ao tédio de uma calmaria, per-
manecendo imóvel num mar liso, sem sinal de brisa, a santa tudo vê e tudo escuta, dos
movimentos sub-reptícios e jogos de poder entre quem circula cá por cima, sob o sol de
chumbo, ao clamor que vem lá de baixo, um murmúrio de “lava humana” revolvendo-se
15 sobre si própria, semelhante a uma expetoração: “Já a sinto, num rumorejar de entranhas
que se puxa e se cospe. Escura e glutinosa como o rancor. Que bom solo é este, as pran-
chas do convés, para germinar o ódio. Cada gota de suor é uma semente de asco, cada
gota de sangue de escravo flagelado é cultivo de abominação”.
E a prosa de Ana Margarida de Carvalho, ao descrever esta história trágico-marítima,
20 não fica aquém do que de melhor nos é dado ler, no cânone da nossa língua, sobre ho-
mens e mulheres buscando a salvação por entre as vagas de um mar cruel e assassino.
Particularmente conseguidas são as imersões no passado de cada um dos náufra-
gos, derivas que revelam uma extraordinária capacidade efabulatória, levando-nos ao
coração de histórias terríveis, pungentes, de uma violência crua, muitas delas sobre a
25 escravatura, já abolida no momento histórico em que o livro decorre (fim do século XIX)
mas ainda praticada com requintes de sordidez.
Falta referir a qualidade maior deste romance: a sua linguagem, de uma plasticidade
espantosa e raríssimo fulgor. Não se pode morar nos olhos de um gato é um hino à língua
portuguesa e às suas infinitas possibilidades.
José Mário Silva, in A Revista E, ed. n.˚2284, de 6 de agosto de 2016 (com supressões).

1. A expressão “um murmúrio de ‘lava humana’” (l. 14) refere-se

[A] às dificuldades da viagem por mar.

[B] às más condições de habitabilidade do barco.

[C] às doenças que atingiram os tripulantes.


PROFESSOR
[D] à região vulcânica que atravessavam.
GRUPO II
2. O segmento “derivas que revelam uma extraordinária capacidade efabulatória”
Leitura (l. 23) transmite a capacidade de
7.4; 7.7
[A] imaginar e escrever sobre o passado fantástico de cada personagem.
Gramática
17.1; 18.2; 19.1; 19.3
[B] recuar no tempo e criar histórias que se cruzam entre si.
1. [B]
[C] procurar inspiração nos livros de fábulas.
2. [A]
3. [C] [D] estabelecer relações invulgares entre as personagens.
4. [A]
5. [C] 3. O género textual em que se insere o presente texto é
6. [D]
[A] a exposição.
7. [D]
8. Empréstimo. [B] o artigo de opinião.
9. Relação de simultaneidade.
10. Oração subordinada [C] a apreciação crítica.
adjetiva relativa restritiva.
[D] o relato de viagem.

222
4. O recurso às expressões “uma santa de madeira” (l. 8), “a santa” (l. 12) ilustra a coesão
[A] lexical por reiteração.
[B] gramatical.
[C] lexical por substituição.
[D] gramatical referencial.

5. O processo de formação de palavras que ocorreu no vocábulo “trágico-marítima”


(ll.19) é

[A] derivação por prefixação.


[B] composição morfológica (radical + palavra).
[C] composição morfossintática (palavra + palavra).
[D] derivação não afixal.

6. O segmento frásico “as imersões no passado de cada um dos náufragos, derivas


que revelam uma extraordinária capacidade efabulatória” (ll. 22-23) expressa um va-
lor modal de
[A] probabilidade.
[B] certeza.
[C] obrigação.
[D] apreciação.

7. No segmento “Particularmente conseguidas são as imersões no passado” (l. 22),


a expressão sublinhada desempenha a função sintática de
[A] complemento direto.
[B] predicativo do sujeito. PROFESSOR
[C] complemento oblíquo.
GRUPO III
[D] sujeito.
Escrita
8. Identifique o processo de formação que ocorreu na expressão “tour de force”. (l. 1) 11.1; 12.1; 12.2; 12.3; 12.4

9. Refira a relação temporal que se estabelece na frase transcrita, atendendo às ex- Resposta de caráter pessoal;
pressões sublinhadas: Enquanto o barco […] sucumbe ao tédio de uma calmaria, no entanto, o aluno poderá
abordar os seguintes tópicos:
permanecendo imóvel num mar liso, sem sinal de brisa, a santa tudo vê e tudo es-
A literatura é um bem cultural
cuta”. (ll. 10-12) que:
– proporciona um olhar
10. Classifique a oração sublinhada no segmento: “num rumorejar de entranhas que se enriquecido sobre o mundo
através do contacto com
puxa e se cospe.” (ll. 15-16) diferentes culturas;
– favorece a educação dos
sentimentos e a oportunidade
de ver e entender o outro;
GRUPO III
– permite ao leitor uma
reflexão sobre si próprio;
Num texto de opinião bem estruturado, com um mínimo de duzentas e um máximo de
– se assume frequentemente
trezentas palavras, defenda um ponto de vista pessoal sobre a literatura como fonte como veículo de intervenção
de enriquecimento cultural e simultaneamente como agente de transformação social. sobre a realidade e sobre
o contexto que nos rodeia
(literatura/ poesia de
Fundamente o seu ponto de vista recorrendo, no mínimo, a dois argumentos e ilustre intervenção).
cada um deles com um exemplo significativo.

223
6.1
José Saramago
O ano da morte de Ricardo Reis

Educação Literária Oralidade


O ano da morte de Ricardo Reis [Integral] Debate [CO]
Representações do século XX: Diálogo argumentativo [EO]
– o espaço da cidade Texto de opinião [EO]
– o tempo histórico Documentário [CO] [10.˚ ano]
– os acontecimentos políticos Exposição [EO] [11.˚ ano]
Deambulação geográfica e viagem literária
Representações do amor Gramática
Intertextualidade: José Saramago, leitor de Luís de Em revisão:
– Camões Etimologia

– Cesário Verde Processos fonológicos


Processos de formação de palavras
– Fernando Pessoa
Coordenação
Linguagem, estilo e estrutura
Subordinação
Leitura Valor aspetual
Diário Modos de relato do discurso
Artigo de opinião Organização de sequências textuais
Exposição [10.˚ ano] Dêixis
Escrita Coerência
Intertextualidade
Texto de opinião
Síntese [10.˚ ano]
José Saramago
PERA
CU R
PROFESSOR

RE
N T Á R IO
Oralidade COMPREENSÃO DO ORAL DOCUME
1.3; 1.4; 3.1; 5.1; 5.2; 5.3;
6.1; 6.2; 6.3 10.° ANO
1. Visione os excertos do documentário Grandes Livros sobre a vida e
obra de José Saramago e preencha, no seu caderno, a informação solicitada.
Link
Grandes Livros Episódio relatado por Pilar del Rio
(5 minutos)
Apresentação š a. _________________________________________________________________________________________
Contextualização
1. a. Durante o seu velório, Dados biobibliográficos de José Saramago
José Saramago teve ao seu
lado o Memorial do convento, Naturalidade š b. _____________________________________________________________
livro oferecido por Eduardo
Lourenço e com o qual foi
cremado. Origens sociais š c. _____________________________________________________________
b. Ribatejo
c. Povo (camponeses) Profissões š d. ________________________ š g. ________________________
d. Serralheiro desempenhadas
e. Funcionário administrativo š e. ________________________ š Escritor
f. Desenhador
g. Tradutor š f. ________________________ š h. ________________________
h. Diretor adjunto do Diário
de Notícias
i. Inscrição no Partido Marcos importantes 1969 i. ________________________ 1992 l. _________________________
Comunista. da sua vida
j. Decisão de viver da 1975 j. ________________________ 1998 m. _______________________
literatura, após ter ficado
desempregado. 1988 k. ________________________
k. Casamento com Pilar.
l. Polémica com o governo Obras publicadas 1947 n. ________________________ 1982 q. ________________________
português por este ter
tomado a decisão de afastar 1966 o. ________________________ 1984 O ano da morte de
O evangelho segundo Jesus Ricardo Reis
Cristo da lista de candidatos 1977 Manual de pintura e caligrafia
ao prémio literário europeu.
1986 r. ________________________
m. Atribuição do Prémio Nobel 1980 p. ________________________
da Literatura.
n. Terra do pecado
o. Os poemas possíveis
p. Levantado do chão
q. Memorial do convento EXPRESSÃO ORAL
r. A jangada de pedra
Expressão Oral
1. Poderão ser abordados, Era uma vez José Saramago em 16.11.1922 (Azinhaga, Golegã).
entre outros, os seguintes
aspetos:
Era uma vez um Prémio Nobel em 8.10.1998.
− As citações remetem,
estrutural e estilisticamente, “ERA UMA VEZ um homem que nasceu numa azinhaga e se fez serralheiro,
para o texto presente na
contracapa de Memorial do jornalista, escritor e cavaleiro. Era uma vez a gente que o amou e odiou. Era uma
convento, estabelecendo- vez um homem que tinha um sonho e não sabia. Era uma vez uma mulher que
-se assim uma relação
de intertextualidade. o fez sorrir. Era uma vez um homem que escreveu um livro e o ouviu cantado
− As citações dão-nos conta em ópera. Era uma vez Blimundo. Era uma vez, Saramago”
da naturalidade do escritor,
de marcos importantes na Luísa Jacobetty, in O Independente, 17 de maio de 1991.
sua vida (como a data de
nascimento, a atribuição
do Prémio Nobel e a relação 1. Emita uma opinião, em 4-6 minutos, sobre a pertinência das citações acima enun-
com Pilar del Rio), das várias
atividades que exerceu, com
ciadas para a apresentação de Saramago e da sua obra, considerando as informações
destaque para a criação veiculadas no documentário e na contracapa do Memorial do convento (consultar
literária, e do facto de ser página 283 do manual).
um homem e um autor
controverso. Planifique a sua intervenção de forma a:
− A vida de Saramago como
uma história a ser contada, šencadear logicamente os tópicos selecionados;
num tom oralizante (“Era uma
vez”), tomando o autor como š contemplar aspetos verbais e não verbais (correção linguística, variedade vocabular,
protagonista.
presença, tom de voz, ritmo, entoação).

226
O ano da morte de Ricardo Reis

LEITURA

Leia o texto que se segue.

Cadernos de Lanzarote
9 de setembro PROFESSOR

A
pareceram por cá dois rapazes que queriam falar-me da Bíblia. Anunciaram-se Leitura
como jovens otimistas, mas não chegaram a dizer de que seita o eram. Vinham 7.1; 7.3; 7.4; 7.7; 8.1
vestidinhos de igual, camisa branca com risquinhas, lacinho ao pescoço, calça cin- Gramática 17.1; 18.1
5 zenta, o que há de mais incongruente em Lanzarote. Na mão, a conhecida malinha preta 1. O texto versa sobre a
dos executivos. Cortei-lhes o discurso, adiantando-lhes que nesta casa éramos pouco de Bí- tentativa de evangelização
de que Saramago foi alvo e
blias. Li-lhes na cara o desconcerto, mas disfarçaram heroicamente, como bons candidatos da pena que sentiu em não ter
“oferecido” o seu Evangelho
ao martírio. Puseram o sorriso piedoso que lhes ensinaram, de pena por esta alma perdida, aos dois jovens.
e lá foram pregar a outra freguesia, esquecendo-se de sacudir a poeira, que aqui é muita, 2. O tom irónico é visível
10 dos negros e brilhantes sapatos. Foi só depois que me lembrei que deveria ter-lhes oferecido no recurso aos diminutivos
com sentido depreciativo
o Evangelho para se distraírem da apostólica obrigação de terem de andar por aí a pregar (“vestidinhos”, “risquinhas”,
verdades eternas e mentiras otimistas… “malinha”) e nas expressões
valorativas (“como bons
José Saramago, Cadernos de Lanzarote, Diário II, Lisboa, Editorial Caminho, 1995, p. 193. candidatos ao martírio” ou “de
pena por esta alma perdida”).
3. Além de espelhar o
1. Exponha o assunto do texto. tom sarcástico, típico de
Saramago, o texto evidencia
o ateísmo visível em muitas
2. Demonstre de que forma é evidenciado o tom irónico neste texto. das obras do escritor.
4. O tom coloquial é visível,
3. Explique, considerando o seu conhecimento sobre Saramago, de que forma esta pági- por exemplo, no facto de
o narrador se servir de
na de diário é reveladora de alguns traços da sua personalidade. expressões populares como
“e lá foram pregar a outra
4. Retire do texto um exemplo característico do tom coloquial, justificando. freguesia”.
5. Sendo a obra de Saramago
5. Explicite a ideia contida no último período do texto. O evangelho segundo Jesus
Cristo censurada pela Igreja,
6. Identifique, justificadamente, o recurso expressivo presente em “verdades” e “menti- por questionar um conjunto
de dogmas cristãos, o narrador
ras”. (l. 12) lembra-se de que deveria ter
oferecido aquele livro aos
7. Selecione, no seu caderno, as opções que completam corretamente a afirmação que “jovens” para os dissuadir da
sua missão apostólica.
se segue.
6. Antítese que contrapõe a
Quanto ao género textual, este texto classifica-se como diário porque visão cristã, identificada com
as “verdades eternas”, à visão
[A] evidencia marcas de narratividade. do narrador, assumidamente
ateu. Por isso, ele declara que
[B] se reveste de rigor e objetividade. a mensagem bíblica não passa
de uma mentira otimista.
[C] apresenta uma ligação ao quotidiano.
7. [A], [C], [D], [F]
[D] apresenta as sequências ordenadas cronologicamente. 8. O advérbio “cá” apresenta
valor deítico espacial na
[E] revela um caráter persuasivo. medida em que “posiciona”
o “eu” no local onde recebeu
[F] se manifesta como um discurso pessoal. a visita dos dois missionários,
ou seja, a sua casa.
G 8. Retire do primeiro período do texto um exemplo de deítico espacial, justificando a sua 9. Apresenta progressão,
utilização por parte do narrador. obedece à regra da não
contradição e espelha a
continuidade de sentido.
9. Identifique três marcas que conferem coerência a este texto.

227
José Saramago

INFORMAR

Saramago num país de fantasmas


S TEXTO INÉDITO

José Saramago recorre muitas vezes ao passado, assumindo-o


como
c pano de fundo da ação dos seus romances. É isso mesmo que
sucede
s em o Memorial do convento (1982), a obra que, embora não
sendo
s a primeira do seu trajeto, é, sem dúvida, aquela que mais con-
5 tribui
t para a sua afirmação junto da crítica e do público. Ao longo de
toda
t a sua carreira, o recurso à história surge ainda muitas outras
vezes,
v quer se trate de um passado nacional (História do cerco de
Lisboa,
L publicado em 1989) quer se trate de um passado mais amplo,
que
q influenciou grande parte da Humanidade, como é o caso de O
10 evangelho
e segundo Jesus Cristo, publicado dois anos depois.
O ano da morte de Ricardo Reis (1984) inscreve-se nessa tendên-
cia
c para dialogar com um outro tempo e com os fantasmas que o
habitam.
h A personagem principal, Ricardo Reis, tem, desde logo, a
particularidade
p de ser uma figura literária, inicialmente criada por
15 Fernando
F Pessoa. Aproveitando o facto de o criador da personagem
a situar no Brasil, sem referir nenhuma data para a sua morte, Sa-
ramago
r imagina Reis a regressar a Lisboa, no final do ano de 1935,
In O ano dad morte d de Ricardo
i d quase um mês depois da morte física de Fernando Pessoa. O país que vem en-
Reis, 21.a ed., Editorial
Caminho, 2013 (contracapa).
contrar é o Portugal que acabara de entrar na ditadura do Estado Novo, sob
20 apertada vigilância (o próprio Ricardo Reis terá de prestar declarações à polícia
PROFESSOR política).
A intriga centra-se na relação amorosa que estabelece com duas mulheres
Leitura
7.3; 7.4; 7.6; 8.1; 9.1
em paralelo: Lídia, uma criada do hotel em que se instala, e Marcenda, uma ra-
Educação Literária
pariga doente e semiparalisada, de classe social elevada, que vem regularmen-
16.1 25 te a Lisboa para tratamentos. O que mais sobressai ao longo do romance são,
1. O estabelecimento de contudo, os diálogos literários que Ricardo Reis estabelece com algumas figuras
relações intertextuais destacadas da cultura portuguesa: com Fernando Pessoa, que sai do jazigo e o
constitui-se como um marco
inquestionável da obra, visita no quarto de hotel para falar com Reis de temas estéticos e existenciais,
evidente não só no facto de e com Camões, cuja estátua domina amplamente Lisboa e, de forma mais geral,
duas das personagens serem
figuras destacadas 30 todo o passado português.
da literatura portuguesa, A obra em apreço surge assim dotada de um enredo próprio, inscrito num
e que, entre outros aspetos,
se debruçam sobre a sua tempo e num espaço bem identificados, que serve ao autor para evocar uma
própria criação literária
mas também pela evocação
memória essencialmente negativa. Lido num outro plano, contudo, O ano da
sistemática de outros autores, morte de Ricardo Reis pode também ser visto como parte de um diálogo intenso:
como Camões, e de outros
textos, estabelecendo-se,
35 aquele que Saramago desejou manter com os nomes maiores da literatura por-
desta forma, um “diálogo tuguesa, até ao final da sua vida.
intenso” de Saramago “com
os nomes maiores da José Augusto Cardoso Bernardes.
literatura portuguesa”.

1. Esclareça a importância das relações de intertextualidade em O ano da morte de


Ricardo Reis.
* A propósito do
contexto político de
1936, poderá consultar 2. Uma das epígrafes da obra em estudo é “Sábio é o que se contenta com o espetáculo
o texto da página do mundo”, da autoria de Ricardo Reis.
seguinte.
2.1 Explique a sua importância, considerando o contexto político de 1936*.

228
O ano da morte de Ricardo Reis

LEITURA

PERA
Leia o texto que se segue sobre o quadro político de 1936. CU R

RE
ÃO
E X P O S IÇ

A ditadura de Salazar 10.° ANO

N
a complexidade do quadro europeu de 1936, a situação portuguesa traz a estabili-
dade de dez anos de ditadura. Da I República, que se tinha anunciado como radical
e progressista, embora politicamente instável – 45 governos, 8 eleições e 8 presi-
dentes em 15 anos –, cuja economia sofria ainda consequências de épocas anteriores, passa 1
Principal.
5 o país a um governo autoritário, fundamentalmente centralizado, cuja estrutura piramidal 2
Pessoa de sã moral e vida
tem como objetivo precípuo1 o controlo e a vigilância do Estado sobre todas as áreas do irrepreensível.
desenvolvimento humano – económicas, políticas ou culturais – de modo a obter falacio-
PROFESSOR
samente uma sociedade una, onde os conflitos inexistiriam, capaz, portanto, de propiciar o
bom desempenho de uma economia cujo modelo era o do monopólio capitalista. 2. A epígrafe em questão
sintetiza a forma como o
10 O projeto era ambicioso e exigia atento controlo dos órgãos de segurança − ação policial, heterónimo Ricardo Reis se
limitação da liberdade, censura. Para a burguesia dominante, a situação era perfeita, pois a posicionava em relação ao
mundo, nomeadamente no
segurança política favorece sempre o equilíbrio financeiro. O seu apoio ao regime parecia, que diz respeito aos conceitos
portanto, indiscutível. Quanto à posição dos menos favorecidos ou daqueles intelectuais de estoicismo e epicurismo.
Segundo o poeta, nada
que percebiam as manobras do regime, dois elementos persuasivos foram desenvolvidos: justificava qualquer esforço,
15 a propaganda e a repressão. paixão ou dor, porque o destino
já estava traçado, cabendo,
Por outro lado, a própria imagem pessoal de Salazar, desde 1928 no cargo de Ministro das pois, a cada um, saber
Finanças, e verdadeiro líder da nação, ratificava os propósitos de moralização económica aceitá-lo com indiferença.
Situando Ricardo Reis no
do regime. Visto como “Salvador da Pátria”, dentro de um espírito messiânico bem ao gosto cenário desfavorável de 1936,
Saramago pretende pô-lo à
português que, de Sebastião a sebastianistas, sempre acreditou num futuro glorioso garan- prova, de forma a perceber até
20 tido por um passado de incontestável grandeza, Salazar é a perspetiva nova que se instaura que ponto a máxima pela qual,
poeticamente, o heterónimo
no inconsciente coletivo do povo. A sua imagem associa-se à do grande Pai – asceta2, con- sempre se regeu se mantinha
servador, solitário, envolto numa auréola de honra – elementos que configuram o seu perfil inalterável.
austero.
Leitura
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago: entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, 7.3; 7.4; 7.5; 7.7; 8.1
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 123-124 (adaptado).
1.
a. F – Foi durante a Primeira
1. Assinale, no seu caderno, como verdadeiras ou falsas as afirmações que se seguem. República que o país viveu uma
enorme instabilidade política.
Corrija as falsas.
b. V
a. Ao contrário do que aconteceu na Primeira República, o governo autoritário que vigora- c. F – A burguesia apoiava
va em 1936 era politicamente instável. o regime. A propaganda e a
repressão visavam o controlo
b. O regime ditatorial português pautava-se pelo controlo absoluto, por parte do Estado, dos mais desfavorecidos e
de alguns intelectuais que
das instituições e dos cidadãos. estavam contra o sistema.
d. V
c. Para fazer face ao descontentamento da burguesia, o regime recorreu à propaganda e
2. Este texto configura-se
à repressão. como uma exposição, uma
vez que prevalece o caráter
d. O mito sebastianista acabou por ser associado à figura de Salazar, como forma de pro- demonstrativo que pretende
jetar positivamente a sua imagem. elucidar sobre um
determinado tema, e também
porque nele predomina um
2. Caracterize este texto quanto ao género a que pertence, evidenciando as marcas dis- discurso objetivo.
tintivas.

229
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Visão global da obra


1. Complete os espaços em branco, no seu caderno, de forma a elaborar uma síntese dos
capítulos de O ano da morte de Ricardo Reis.

Ao fim de dezasseis anos no Brasil, Ricardo Reis desembarca em a. ___________ e hospeda-se no Hotel


I Bragança, onde vê, pela primeira vez, b. ___________, figura que lhe desperta interesse por ter a mão
esquerda c. ___________.

Ricardo Reis lê jornais para se inteirar das notícias sobre a morte de d. ___________ e, posteriormente,
visita o túmulo do poeta no Cemitério dos Prazeres.
II
Já no Bragança, contacta pela primeira vez com e. ___________, criada do hotel, cujo nome o deixa
surpreso.

Ricardo Reis presencia o “bodo do Século”, onde foram distribuídos dez escudos a cada um de mais de
mil necessitados.
III
Na noite da passagem de ano, depois de regressar do Rossio, Reis depara-se no quarto com a visita de
f. ___________, que o informa de que tem ainda oito meses para circular à vontade no mundo dos vivos.

Ricardo Reis tem o primeiro contacto físico com Lídia – põe-lhe a mão no braço – e diz-lhe que a acha
bonita. No entanto, estes atos fazem-no sentir-se ridículo.
IV Fernando Pessoa volta a encontrar-se com Ricardo Reis, na esquina da rua de Santa Justa, e os dois
conversam sobre a multiplicidade de eus e sobre g. ___________.
Ricardo Reis envolve-se com a criada, que entra no seu quarto, durante a noite, deitando-se com ele.

Ricardo Reis vai ao Teatro D. Maria com a intenção de travar conhecimento com o doutor Sampaio e
V com Marcenda. À noite, recebe a visita de Fernando Pessoa no seu quarto e os dois falam sobre Lídia
e sobre o fingimento. Lídia volta a dormir com Ricardo Reis.

Ricardo Reis e Marcenda conversam na sala de estar do hotel sobre a sua debilidade física e a jovem
VI pede-lhe a sua opinião profissional. Nessa noite, Ricardo Reis janta com o doutor Sampaio e com
Marcenda e Lídia não o visita porque está com ciúmes.

Ricardo Reis lê h. ___________, obra que lhe foi recomendada pelo doutor Sampaio e que relata
a lealdade da jovem Marília ao sistema.
VII Lídia volta a dormir com Ricardo Reis ao fim de cinco dias.
Ricardo Reis encontra Fernando Pessoa num café do bairro e, a propósito da vitória da esquerda
em Espanha, falam sobre i. ___________ e o regresso de Reis a Portugal.

Ricardo Reis fica doente, com febre, e Lídia dispensa-lhe todos os cuidados. Dias depois, ele recebe
uma intimação para se apresentar j. ___________, situação que desperta a desconfiança entre o
pessoal e entre os hóspedes do hotel.
Lídia fica preocupada e tenta prevenir Reis das práticas dessa instituição.
VIII
k. ___________ marca um encontro com Ricardo Reis, no Alto de Santa Catarina. Enquanto aguarda por
ela, Reis é “visitado” por Fernando Pessoa que o questiona sobre as suas relações amorosas.
Durante o encontro, a filha do doutor Sampaio pede a Ricardo Reis que lhe escreva a dar notícias
da entrevista para que fora intimado.

Ricardo Reis vai à polícia e é interrogado num clima de suspeição. Regressado ao hotel, diz a Lídia
que tudo correu bem e escreve a Marcenda tranquilizando-a. Mais tarde, informa a criada de que vai
IX
deixar o Bragança, e esta prontifica-se a ir visitá-lo nos seus dias de folga. Ricardo Reis aluga casa
l. ___________, defronte à estátua m. ___________.

230
O ano da morte de Ricardo Reis

Ricardo Reis escreve a Marcenda para a informar da nova morada. Dias depois deixa o hotel. Na sua
X
primeira noite na casa alugada, recebe a visita de Fernando Pessoa e falam sobre solidão.

Lídia vai visitar Ricardo Reis para verificar se está bem instalado e ele acaba por beijá-la na boca.
XI
Dias depois, recebe a visita de n. ___________, que, pela primeira vez na vida, é beijada por um homem.

Lídia prontifica-se a cuidar da limpeza da nova casa e os dois acabam por se envolver.
Ricardo Reis escreve uma carta confusa a Marcenda. Começa, entretanto, a trabalhar, substituindo
XII temporariamente um colega especialista em coração e pulmões. Esta situação leva-o a escrever
novamente a Marcenda. Entretanto, quase ao fim de um mês, recebe o. ___________ da jovem,
de Coimbra, anunciando que o visitará no consultório.

Ricardo Reis encontra-se com Fernando Pessoa junto à estátua do Adamastor e os dois conversam
acerca da relação de Reis p. ___________ e sobre a vida e a morte.
Ao chegar a casa, Ricardo Reis depara-se com q. ___________ e, a propósito disso, falam da ida de
XIII Ricardo Reis à polícia, de Salazar e de Hitler.
Lídia, enquanto faz limpeza, é seduzida por Reis. Contudo, percebendo que está com um problema
de impotência, o médico repele-a, o que a deixa tristíssima e sem perceber o que se passava.
Marcenda aparece no consultório e Ricardo propõe r. ___________. Ela recusa, alegando s. __________. PROFESSOR

Reis recebe uma carta de Marcenda a assegurar que nunca mais se voltarão a ver, a pedir-lhe para
nunca mais lhe escrever e a informá-lo de que irá a Fátima. Encenação da obra
XIV
Restabelece-se, entretanto, a relação de Reis com Lídia, mas o médico vai a t. ___________, com O ano da morte
o intuito de ver Marcenda. No entanto, não consegue encontrá-la. de Ricardo Reis

1.
Ricardo Reis fica a saber que o colega que está a substituir vai retomar o seu lugar e isso leva-o
a. Lisboa
a começar a pensar em regressar ao Brasil.
XV b. Marcenda
Fernando Pessoa visita novamente Ricardo Reis e os dois falam sobre o facto de Reis continuar c. paralisada
a ser vigiado por Victor, sobre as relações amorosas de ambos e sobre o destino e a ordem. d. Fernando Pessoa
e. Lídia
Ricardo Reis escreve um poema dedicado a u. ___________. f. Fernando Pessoa
Lídia comunica-lhe que está grávida e que não tenciona v. ___________. g. a vida e a morte
XVI Fernando Pessoa faz nova visita a Ricardo Reis e os dois falam sobre a perspetiva do regime em h. a Conspiração
relação a diferentes personalidades e sobre o seu obscurantismo. Durante a conversa, Ricardo Reis i. o comunismo
confessa-lhe que vai ser pai e que ainda não decidiu se vai ou não perfilhar a criança. j. na PVDE − Polícia de
Vigilância e Defesa do Estado
k. Marcenda
Ricardo Reis vai visitar Fernando Pessoa ao Cemitério dos Prazeres e dialogam sobre o golpe militar l. no Alto de Santa Catarina
XVII
ocorrido em Espanha. m. do Adamastor
n. Marcenda
o. uma carta
Enquanto lava a loiça na cozinha de Ricardo Reis, Lídia questiona-se sobre o seu papel naquela casa p. com Lídia e com Marcenda
e chega a pensar w. ___________. q. Victor
XVIII
Ricardo Reis vai assistir a um comício em defesa do Estado Novo e de Salazar. Dias depois, envia para r. que se casem
Marcenda o poema que lhe dedicou. s. que não seriam felizes
t. Fátima
Lídia chega a casa de Ricardo Reis, chorosa, e anuncia que o seu irmão e outros marinheiros se vão u. Marcenda
x. ___________. No dia seguinte, Ricardo Reis assiste ao bombardeamento do Afonso de Albuquerque, v. abortar
barco onde seguia o irmão de Lídia, e do Dão. w. em não voltar mais
XIX Ricardo Reis vai ao Hotel Bragança à procura de Lídia, mas não a encontra. Mais tarde fica a saber que x. revoltar
Daniel y. ___________. y. morreu
Fernando Pessoa visita pela última vez Ricardo Reis e este decide z. ___________ em direção à morte. z. acompanhá-lo

231
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
*FIXAÇÃO DE TEXTO
José Saramago, O ano
da morte de Ricardo O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS*
Reis, 21.a ed., Lisboa,
Editorial Caminho,
2013.
Representações do séc. XX: o tempo histórico
e os acontecimentos políticos – Portugal
EXCERTO 1 | Cap. IV (pp. 111-113)

Diz-se, dizem-no os jornais, quer por sua própria convicção, sem recado
PROFESSOR mandado, quer porque alguém lhes guiou a mão, se não foi suficiente sugerir
e insinuar, escrevem os jornais, em estilo de tetralogia, que, sobre a derrocada
Educação Literária
14.1; 14.2; 14.3; 14.4; dos grandes Estados, o português, o nosso, afirmará a sua extraordinária força
14.5; 14.7; 14.8; 14.9; 5 e a inteligência refletida dos homens que o dirigem. Virão a cair, portanto, e a
15.1; 15.2; 15.3; 16.1; 16.2
palavra derrocada lá está a mostrar como e com que apocalíptico estrondo, essas
Gramática
17.1; 19.3 hoje presunçosas nações que arrotam de poderosas, grande é o engano em que
vivem, pois não tardará muito o dia, fasto sobre todos nos anais desta sobre to-
1. Em 1936, vivia-se, das pátria, em que os homens de Estado de além-fronteiras virão às lusas terras
em Portugal, um regime
ditatorial, liderado por 10 pedir opinião, ajuda, ilustração, mão de caridade, azeite para a candeia, aqui, aos
Oliveira Salazar, que
acumulava os cargos de
fortíssimos homens portugueses, que portugueses governam, quais são eles, a
presidente do Conselho partir do próximo ministério que já nos gabinetes se prepara, à cabeça maxi-
e de ministro das Finanças.
No geral, a população era mamente Oliveira Salazar, presidente do Conselho e ministro das Finanças […].
partidária desse sistema Dizem também os jornais, de cá, que uma grande parte do país tem colhido os
político, conforme atestam
a posição dos sindicatos e 15 melhores e mais abundantes frutos de uma administração e ordem pública mo-
a grande adesão de jovens delares, e se tal declaração for tomada como vitupério, uma vez que se trata de
à Mocidade Portuguesa.
Havia, no entanto, quem se elogio em boca própria, leia-se aquele jornal de Genebra, Suíça, que longamente
opusesse e tentasse derrubar discorre, e em francês, o que maior autoridade lhe confere, sobre o ditador de
o regime. É o caso de alguns
marinheiros, entre os quais, Portugal, já sobredito, chamando-nos de afortunadíssimos por termos no poder
Daniel, o irmão de Lídia, que
tentaram liderar uma revolta,
20 um sábio. Tem toda a razão o autor do artigo, a quem do coração agradecemos,
mas sem êxito. mas considere, por favor, que não é Pacheco menos sábio se amanhã disser,
2. Salazar, descrito como um como dirá, que se deve dar à instrução primária elementar o que lhe pertence e
homem inteligente, sábio e
com uma força extraordinária, mais nada, sem pruridos de sabedoria excessiva, a qual, por aparecer antes de
surge como o protótipo tempo para nada serve, e também que muito pior que a treva do analfabetismo
do dirigente político, que
administrava o país de forma 25 num coração puro é a instrução materialista e pagã asfixiadora das melhores
exemplar e que promovia a
ordem pública. Internamente
intenções, posto o que, reforça Pacheco e conclui, Salazar é o maior educador do
era considerado o protetor nosso século, se não é atrevimento e temeridade afirmá-lo já, quando do século
do povo, o pai, o salvador
da pátria. Externamente é só vai vencido um terço.
apresentado como um modelo
a seguir. Esta visão eufórica de EXCERTO 2 | Cap. VII (p. 214)
Salazar resultava, sobretudo,
de artigos encomendados Mas os motivos do nosso próprio contentamento, esses sobejariam, quer seja
à imprensa, pagos pela
propaganda nacional. 30 a ordem dada pelo governo para que se comece a estudar a construção duma
3.1 Ideologicamente, ponte sobre o Tejo, […] ou o bodo a trabalhadores do Douro, com cinco quilos de
defendia-se que os cidadãos
deviam ter acesso a uma arroz, cinco quilos de bacalhau e dez escudos por cabeça, que não espante a ex-
educação básica, “sem cessiva prodigalidade, o bacalhau é o que temos de mais barato, e por estes dias
pruridos de sabedoria
excessiva” (l. 23), preferindo- discursará um ministro a preconizar a criação duma sopa dos pobres em cada
-se o analfabetismo a uma
educação que questionasse
35 freguesia, e o mesmo ministro, vindo dos lados de Beja, declarará aos jornais,
os valores do cristianismo Verifiquei no Alentejo a importância da beneficência particular na debelação da
ou que fomentasse a ambição
material. crise do trabalho, o que, traduzindo para português de todos os dias, quer dizer,
Uma esmolinha senhor patrão por alma de quem lá tem.

232
O ano da morte de Ricardo Reis

EXCERTO 3 | Cap. VIII (pp. 234, 236-237, 239)

É na manhã de quarta-feira que vêm trazer uma con-


40 trafé a Ricardo Reis. Levou-lha o próprio Salvador, em mão de
gerente, dada a importância do documento e a sua proveniência,
a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado […]. Já todo o pessoal do
hotel sabe que o hóspede do duzentos e um, o doutor Reis, aquele que
veio do Brasil há dois meses, foi chamado à polícia, alguma ele teria feito
45 por lá, ou por cá, quem não queria estar na pele dele bem eu sei, ir à pvde1,
vamos a ver se o deixam sair, contudo, se fosse caso de prisão não lhe tinham
mandado a contrafé, apareciam aí e levavam-no. Quando ao princípio da noite
Ricardo Reis descer para jantar […], verá como o vão olhar os empregados, como
subtilmente se afastarão dele, não procede Lídia desta desconfiada maneira, en-
50 trou no quarto mal Salvador acabara de descer ao primeiro andar, Dizem que foi
chamado à polícia internacional, está alarmada a pobre rapariga, Fui, tenho aqui
a contrafé, mas não há motivo para preocupações, deve ser qualquer coisa de
papéis, Deus o ouça, que dessa gente, pelo que tenho ouvido, não se pode espe-
rar nada de bom, às coisas que o meu irmão me tem contado […]. Ficou Ricardo
55 Reis a saber que a polícia onde terá de apresentar-se na segunda-feira é lugar de
má fama e de obras piores que a fama, coitado de quem nas mãos lhe caia, ele
são as torturas, ele são os castigos, ele são os interrogatórios a qualquer hora.

EXCERTO 4 | Cap. XII (pp. 360, 362-363)

Mas o mundo, por tão grande ser, vive de lances mais dramáticos, para ele
têm pouca importância estas queixas que à boca pequena vamos fazendo de 1
Polícia de Vigilância e de
60 faltar a carne em Lisboa, não é notícia que se dê lá para fora, para o estrangeiro.
Defesa do Estado, criada
[…] império temos, e dos bons, com ele até cobriríamos a Europa e ainda so- em 1933. Em 1945, Salazar
braria império […], Mas há entre os nossos portugueses muita sede de martírio, substitui esta polícia pela
muito apetite de sacrifício, muita fome de abnegação, ainda no outro dia foi dito Polícia Internacional e de
Defesa do Estado (PIDE).
por um destes senhores que mandam em nós, Nunca mãe alguma, ao dar à luz
65 um filho, pode atirá-lo para um mais alto e nobre destino do que o de morrer PROFESSOR
pela sua terra, em defesa da pátria, filho duma puta, estamos a vê-lo a visitar
as maternidades, a apalpar o ventre às grávidas, a perguntar quando desovam, 3.2 Negar aos cidadãos um
maior conhecimento do
que já vão faltando soldados nas trincheiras, quais, ele o saberá, também podem mundo e negar o acesso à
ser projetos para o futuro. O mundo, como destas amostras se pode concluir, cultura e à informação era
a melhor forma de garantir
70 não promete soberbas felicidades […]. A nós tanto nos faz pátria como mundo, o conformismo e a aceitação
relativamente às medidas
a questão é encontrar um sítio onde se possa comer e juntar algum dinheiro, tomadas pelo governo. De
Brasil seja, para onde em março foram seiscentos e seis, ou Estados Unidos da facto, um cidadão que não
tenha ao seu dispor outras
América do Norte, para onde viajaram cinquenta e nove, ou Argentina, que já lá perspetivas, que não tenha
tem mais sessenta e cinco, para os outros países, por junto, só foram dois, para desenvolvido um espírito
crítico, é mais facilmente
75 a França, por exemplo, não foi ninguém, não é país para labrostes portugueses, manipulável e controlável.
aí é outra civilização.

233
José Saramago

PROFESSOR
EXCERTO 5 | Cap. XIII (pp. 387-388, 391-392)
4. O narrador pretende
distanciar-se da imagem que Diga-me, Fernando, quem é que é este Salazar que nos calhou em sorte, É o
os jornais veiculam sobre
Portugal e sobre os seus ditador português, o protetor, o pai, o professor, o poder manso, um quarto de
dirigentes, uma vez que não sacristão, um quarto de sibila, um quarto de Sebastião, um quarto de Sidónio,
partilha da visão otimista
de que se faz gala. Este 80 o mais apropriado possível aos nossos hábitos e índole […], mas, voltando ao
afastamento é notório, no Salazar, quem diz muito bem dele é a imprensa estrangeira, Ora, são artigos
plano linguístico, quando usa
a forma impessoal “Diz-se” encomendados pela propaganda, pagos com o dinheiro do contribuinte, lem-
(l. 1) ou quando afirma
categoricamente que aquela
bro-me de ouvir dizer, Mas olhe que a imprensa de cá também se derrete em
perspetiva que está a relatar louvações, pega-se num jornal e fica-se logo a saber que este povo português é
é a dos jornais: “dizem-no os
jornais” (l. 1). Por outro lado,
85 o mais próspero e feliz da terra, ou está para muito breve e que as outras nações
o recurso à ironia, "quer por só terão a ganhar se aprenderem connosco, O vento sopra desse lado, Pelo que
sua própria convicção, sem
recado mandado, quer porque lhe estou a ouvir, você não acredita muito nos jornais, Costumava lê-los […].
alguém lhes guiou a mão" Segundo a declaração solene de um arcebispo, o de Mitilene2, Portugal é Cristo
(ll. 1-2) contribui também para
reforçar que a sua posição e Cristo é Portugal, Está aí escrito, Com todas as letras, Que Portugal é Cristo e
é diferente daquela que os 90 Cristo é Portugal, Exatamente. Fernando Pessoa pensou alguns instantes, depois
jornais evidenciam.
5. No geral, o povo português largou a rir, um riso seco, tossicado, nada bom de ouvir, Ai esta terra, ai esta
vivia na miséria, mesmo gente, e não pôde continuar, havia agora lágrimas verdadeiras nos seus olhos, Ai
tendo um trabalho e, por
isso, acabava por estar esta terra, repetiu, e não parava de rir, Eu a julgar que tinha ido longe de mais no
dependente dos bodos que atrevimento quando na Mensagem chamei santo a Portugal, lá está, São Portu-
o Estado proporcionava ou
da caridade dos patrões, que 95 gal, e vem um príncipe da Igreja, com a sua arquiepiscopal autoridade, e procla-
não garantiam um emprego ma que Portugal é Cristo, E Cristo é Portugal, não esqueça, Sendo assim, preci-
com condições dignas − “Uma
esmolinha senhor patrão por samos de saber, urgentemente, que virgem nos pariu, que diabo nos tentou, que
alma de quem lá tem.” (l. 38).
Outros optavam por emigrar
judas nos traiu, que pregos nos crucificaram, que túmulo nos esconde, que res-
à procura de melhores surreição nos espera, Esqueceu-se dos milagres, Quer você milagre maior que
condições de vida.
100 este simples facto de existirmos, de continuarmos a existir, não falo por mim,
6. A propaganda era uma
das melhores formas de as claro, Pelo andar que levamos, não sei até quando e onde existiremos, Em todo o
classes dirigentes garantirem caso, você tem de reconhecer que estamos muito à frente da Alemanha, aqui é a
a vigência da ditadura:
os jornais transmitiam própria palavra da Igreja a estabelecer, mais do que parentescos, identificações,
às populações a ideia da
grandeza e da prosperidade
nem sequer precisávamos de receber o Salazar de presente, somos nós o próprio
do país. Os sindicatos, 105 Cristo, Você não devia ter morrido tão novo, meu caro Fernando, foi uma pena,
autênticos braços do regime,
faziam circular prospetos agora é que Portugal vai cumprir-se […].
e organizavam comícios
para propagar a ideologia. 2
A Mocidade Portuguesa era Título eclesiástico, que desde o século XIX é geralmente concedido ao bispo-auxiliar que desempenha as
o instrumento para educar funções de vigário-geral do patriarca de Lisboa.
os jovens, garantindo que
eram incutidos, desde muito
cedo, os valores pátrios. Ao
mesmo tempo, a população
era globalmente reprimida
através da censura, ou,
particularmente, através da
perseguição, ou da tortura,
a cargo da Polícia de Vigilância
e Defesa do Estado.
O ano da morte de Ricardo Reis

EXCERTO 6 | Cap. XVI (pp. 490-491)

À tarde, ao regressar do almoço, [Ricardo Reis] reparou que havia ramos de


flores nos degraus da estátua de Camões, homenagem das associações de pa-
triotas ao épico, ao cantor sublime das virtudes da raça, para que se entenda PROFESSOR
110 bem que não temos mais que ver com a apagada e vil tristeza de que padecía-
7. Perante as declarações
mos no século dezasseis, hoje somos um povo muito contente, acredite, logo à de um dirigente político que
noite acenderemos aqui na praça uns projetores, o senhor Camões terá toda a advogava que “Nunca mãe
alguma, ao dar à luz um filho,
sua figura iluminada, que digo eu, transfigurada pelo deslumbrante esplendor, pode atirá-lo para um mais
bem sabemos que é cego do olho direito, deixe lá, ainda lhe ficou o esquerdo alto e nobre destino do que
o de morrer pela sua terra”
115 para nos ver, se achar que a luz é forte de mais para si, diga, não nos custa nada (ll. 64-66), o narrador evoca
baixá-la até à penumbra, à escuridão total, às trevas originais, já estamos habi- acontecimentos futuros –
a Segunda Guerra Mundial
tuados. Tivesse Ricardo Reis saído nessa noite e encontraria Fernando Pessoa na e a Guerra Colonial, que
conduziram milhares de
Praça de Luís de Camões, sentado num daqueles bancos como quem vem apa- pessoas à morte – para
nhar a brisa, o mesmo desafogo procuraram famílias e outros solitários, e a luz denunciar a forma displicente
e desrespeitosa como o regime
120 é tanta como se fosse dia, as caras parecem elas tocadas pelo êxtase, percebe-se encarava a vida dos seus
que seja esta a Festa da Raça. concidadãos (comparáveis a
animais: “a perguntar quando
desovam”, l. 67).
EXCERTO 7 | Cap. XVII (p. 528)
8. É evidente, pelo diálogo que
trava com Fernando Pessoa,
Em Portugal afluem as inscrições de voluntários para a Mocidade Portuguesa, que Ricardo Reis, regressando
são jovens patriotas que não quiseram esperar pela obrigatoriedade que há de a Portugal ao fim de 16 anos,
não está a par da situação
vir, eles por sua esperançosa mão, em letra escolar, sob o benévolo olhar da pa- política de Portugal, tomando
125 ternidade, firmaram a carta, e por seu firme pé a levam ao correio, ou trémulos conhecimento dela apenas
pelos jornais ou por conversas
de cívica comoção a entregam ao porteiro do ministério da Educação Nacional, que vai mantendo com
outras personagens, como
só por respeito religioso não proclamam, Este é o meu corpo, este é o meu san- Lídia. Neste caso concreto,
gue, mas qualquer pessoa pode ver que é grande a sua sede de martírio. Ricardo Reis opta por colocar
as suas dúvidas a Fernando
Pessoa, que, sabendo ler nas
EXCERTO 8 | Cap. XVIII (pp. 552-553) entrelinhas, confessa ao seu
heterónimo que os meios de
Anunciaram pois os sindicatos nacionais a promoção de um comício contra comunicação estão ao serviço
130 o comunismo, e mal foi conhecida a notícia perpassou em todo o corpo social de uma poderosa máquina de
propaganda política.
o frémito dos grandes momentos históricos, publicaram-se prospetos assina- 9. O facto de o arcebispo de
dos por associações patrióticas, as senhoras, individualmente ou reunidas em Mitilene ter declarado que
Portugal é Cristo e Cristo é
comissão, reclamaram bilhetes e, com vista ao fortalecimento dos ânimos, à Portugal evidencia o apoio da
preparação dos espíritos, alguns sindicatos organizaram sessões dedicadas aos Igreja ao regime. Cometendo
esta blasfémia, ele abençoa
135 seus associados […]. Em todas estas sessões é lido e aplaudido o manifesto dos o país e os seus governantes,
sindicatos nacionais, veemente profissão de fé doutrinária e de confiança nos e atribui-lhes um cunho
sagrado. Por outro lado,
destinos da nação, o que se demonstra com estes poucos excertos colhidos ao esta era a melhor forma de
garantir a adesão do povo ao
acaso, Sem dúvida os sindicatos nacionais repelem com energia o comunismo, regime, fazendo uso das raízes
sem dúvida os trabalhadores nacionais-corporativos são intransigentemen- marcadamente cristãs
da população portuguesa.
140 te portugueses e latino-cristãos, os sindicatos nacionais pedem a Salazar, em
10.1 a. Por meio da ironia,
suma, grandes remédios para grandes males, os sindicatos nacionais reconhe- o narrador salienta o facto
cem, como bases eternas de toda a organização social, económica e política, de ser hábito em Portugal
valorizar tudo o que é
a iniciativa privada e a apropriação individual dos bens, dentro dos limites da estrangeiro, em detrimento
do que é nacional.
justiça social.
b. A metáfora e a ironia
presentes no enunciado
servem para realçar a
submissão dos portugueses
ao regime e os sacrifícios e
as carências experienciados
pela população.

235
José Saramago

EXCERTO 9 | Cap. XIX (pp. 566-567)

145 Lídia começa a chorar baixinho, […] Vai ser uma desgraça, uma desgraça,
Ó criatura, não sei de que estás a falar, explica-te por claro, É que, interrompeu-
-se para enxugar os olhos e assoar-se, é que os barcos vão revoltar-se, sair para
o mar, […] A ideia é irem para Angra do Heroísmo, libertar os presos políticos,
tomar posse da ilha, e esperar que haja levantamentos aqui, E se não os houver,
150 Se não houver, seguem para Espanha, vão juntar-se ao governo de lá, É uma
rematada loucura, nem conseguirão sair a barra […].

EXCERTO 10 | Cap. XIX (pp. 574-576, 581)

Voltou Ricardo Reis para casa […]. Abriu a janela, na rua havia pessoas as-
sustadas, uma mulher gritou, Ai que é uma revolução, e largou a correr, calçada
acima […]. Quando Ricardo Reis chegou ao jardim havia já muitas pessoas […].
155 Não eram os navios de guerra que estavam a bombardear a cidade, era o forte
de Almada que disparava contra eles. Contra um deles. Ricardo Reis perguntou,
Que barco é aquele, teve sorte, calhou dar com um entendido, É o Afonso de
Albuquerque. Era então ali que ia o irmão de Lídia, o marinheiro Daniel, a quem
PROFESSOR
nunca vira, por um momento quis imaginar um rosto, viu o de Lídia, a estas
11. Vieira descreve os
160 horas também ela chegou a uma janela do Hotel Bragança, ou saiu para a rua,
roncadores de forma negativa, vestida de criada, atravessou a correr o Cais do Sodré, agora está na beira do cais,
pois muito roncam apesar da
sua pequenez, querendo com aperta as mãos sobre o peito, talvez a chorar, talvez com os olhos secos e as fa-
isto representar a arrogância ces incendiadas de repente dando um grito porque o Afonso de Albuquerque foi
e a prepotência dos homens.
De igual forma, o narrador de atingido por um tiro, logo outro, há quem bata palmas no Alto de Santa Catarina
O ano da morte de Ricardo 165 […]. O forte de Almada continua a disparar, parece o Afonso de Albuquerque que
Reis pretende representar
a altivez de algumas nações respondeu mas não há a certeza. Deste lado da cidade começaram a soar tiros,
europeias, servindo-se para
isso de um vocábulo que
mais violentos, mais espaçados, É o forte do Alto do Duque, diz alguém, estão
remete para a sensação perdidos, já não vão poder sair. E é neste momento que outro barco começa a
auditiva – o verbo “arrotar”.
navegar, um contratorpedeiro, o Dão, só pode ser ele, procurando ocultar-se no
12. O narrador serve-se das
relações intertextuais para 170 fumo das suas próprias chaminés e encostando-se à margem sul para escapar
trazer uma dimensão irónica ao fogo do forte de Almada, mas, se deste escapa, não foge ao Alto do Duque,
ao seu relato. Assim,
a. Fernando Pessoa é as granadas rebentam na água, contra o talude, estas são de enquadramento,
evocado sarcasticamente as próximas atingem o barco, o impacte é direto, já sobe no Dão uma bandeira
por Ricardo Reis através
do último verso do poema branca, rendição, mas o bombardeamento continua, o navio vai adernado, en-
"O Infante" (in Mensagem): 175 tão são mostrados sinais de maior dimensão, lençóis, sudários, mortalhas, é o
“Senhor, falta cumprir-se
Portugal”. É ridicularizada a fim, o Bartolomeu Dias nem chegará a largar a boia. […] Morreram doze mari-
prosperidade do país, quando nheiros […]. Diz o jornal que os presos foram levados primeiro para o Governo
Reis afirma ser uma pena
Fernando Pessoa ter morrido Civil, depois para a Mitra, que os mortos, alguns por identificar, se encontram
tão perto da altura em que
se antevia que o destino de
no necrotério.
Portugal se cumpriria – o de
ser o impulsionador do Quinto
Império; 1. Trace o retrato político da situação que se vivia em Portugal, em 1936, referindo-se à
Sugestão ao professor: reação da população face ao sistema governamental vigente.
A propósito da
questão 1, sugere-se
o desenvolvimento da 2. Descreva, baseando-se nos excertos 1 e 5, a imagem de Salazar no plano interno e ex-
atividade da página terno e infira as razões dessa construção imagética.
298 – discurso político
proferido pelo presidente da
República, Marcelo Rebelo, 3. A educação tinha especial importância durante o regime do Estado Novo.
que destaca a importância
do povo para a consumação 3.1 Apresente a perspetiva que vigorava relativamente à educação.
da Revolução de Abril.
3.2 Avance uma explicação que sustente essa visão dos dirigentes políticos.

236
O ano da morte de Ricardo Reis

PROFESSOR
4. Clarifique, justificando com elementos textuais, a atitude do narrador relativamente
aos factos relatados pelos jornais. (excerto 1) b. o narrador serve-se do
último verso da estância 145
do canto X de Os Lusíadas,
5. Exponha as condições de vida a que o povo português estava sujeito durante o regime quando Luís de Camões
do Estado Novo. descreve a pátria envolta
numa “apagada e vil tristeza”
para contrapor ironicamente
6. Enuncie as estratégias utilizadas pela classe dirigente para assegurar e para promover a época de Camões à situação
a estabilidade política e a ordem pública. vivida em 1936, altura em que
se pretendia difundir a imagem
de uma nação feliz, afortunada
7. Justifique a intenção do narrador ao recorrer à prolepse que se percebe no excerto 4. e próspera;
c. a relação intertextual
8. Esclareça a importância da conversa entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa presente estabelecida com a Bíblia
(Mt, 26, 26-27) – através da
no excerto 5 (até à linha 87). recuperação das palavras
proferidas por Jesus na última
9. Comprove, com base no excerto 5, a conivência da Igreja com a atuação política. ceia, quando se preparava para
sacrificar a sua vida em prol
da humanidade ("Este é o meu
10. Atente nos seguintes excertos: corpo, este é o meu sangue",
ll. 127-128) – tem como
a. “leia-se aquele jornal de Genebra, Suíça, que longamente discorre, e em francês, o que intenção salientar a
maior autoridade lhe confere”. (excerto 1, ll. 17-18) forma como tantos jovens
portugueses eram instruídos
b. “Mas há entre os nossos portugueses muita sede de martírio, muito apetite de sacrifí- e instigados a sacrificarem a
sua vida pela pátria (na Guerra
cio, muita fome de abnegação”. (excerto 4, ll. 62-63) Colonial, por exemplo).
10.1 Identifique, comentando o seu valor semântico, os recursos expressivos presentes em 13. Oração coordenada
explicativa.
cada uma das alíneas. 14. Sigla.
15. Situação habitual.
11. Relacione a afirmação “essas hoje presunçosas nações que arrotam de poderosas”
16.1 Deítico pessoal −“nos”;
(excerto 1 , ll. 6-7) com o peixe roncador retratado por Vieira. deítico pessoal e temporal
− “precisamos”; deítico
temporal – “pariu”.
12. Transcreva, explicando a sua intenção, exemplos de intertextualidade com
16.2. O uso da primeira pessoa
a. Fernando Pessoa. (excerto 5) do plural justifica-se pelo
facto de Fernando Pessoa
b. Luís de Camões. (excerto 6) estar a considerar-se parte
integrante do povo português,
c. a Bíblia. (excerto 7) o qual, no seu entender,
precisa de explicações
relativas à declaração do
G 13. Classifique a oração “pois não tardará muito o dia”. (excerto 1, l. 8) arcebispo de Mitilene de que
“Portugal é Cristo e Cristo
14. Identifique o processo de formação de palavras presente em “PVDE”. é Portugal”.

15. Identifique o valor do aspeto gramatical configurado no segmento “Costumava lê-los”. Escrita
12.1; 12.3; 12.4; 13.1
(excerto 5, l. 87)

Ao contrário do que aconteceu


16. Atente no excerto “Sendo assim, precisamos de saber, urgentemente, que virgem nos durante a I República, em
pariu”. (excerto 5, ll. 96-97) 1936 vivia-se em Portugal
um período de estabilidade,
16.1 Identifique e classifique os deíticos aí presentes. centralizando-se todos os
poderes no Estado, com o
16.2 Justifique a intenção do uso dos deíticos pessoais. objetivo de promover uma
sociedade una. Para isso, o
regime autoritário de Salazar,
que vigorava no país há dez
PERA
CU R anos, recorria à propaganda,
E S C R I TA
RE

fomentando, tão ao gosto dos


sebastianistas, a imagem do
S ÍN T E S E presidente do Conselho como
um salvador, e controlava
Faça a síntese do texto presente na página 229 (“A ditadura de Salazar”), 10.° ANO quaisquer oponentes à
reduzindo-o a um quarto da sua extensão (cerca de 75 palavras). ideologia por meio da
repressão. (74 palavras)
BLOCO INFORMATIVO – p. 379
PREPARAR O EXAME – p. 51

237
José Saramago

INFORMAR

Representações do séc. XX: o tempo histórico


e os acontecimentos políticos − Portugal
O ano da morte de Ricardo Reis concentra-se num outro elemen-
to do discurso histórico: o compromisso ideológico. A leitura irónica
que o narrador faz dos jornais da época, em conjunto com o discurso
revolucionário-popular de Daniel, revela a ideologia do estado salaza-
5 rista e mostra como essa ideologia, explorando os mitos do passado,

contamina a visão da História. A evocação nacionalista da história


da pátria portuguesa aproveita-se de grandes mitos históricos: o do
império, que, por sua vez se apropria do discurso camoniano, e o do
messianismo português ou da missão portuguesa/cristã do mundo.
10 O mito messiânico é explorado de duas maneiras: como justificação

da existência e da defesa do império colonial em nome da proteção


de “raças inferiores” e como uma missão mundial que transforma
Salazar, o salvador da moralidade cristã resumida na trindade Deus,
Pátria, Família, no salvador da civilização ocidental na sua luta contra
15 a heresia comunista.

Salazar, capa da revista O narrador de O ano da morte de Ricardo Reis denuncia essa ideologia, re-
Time, edição de 22 de julho
de 1946. correndo à técnica da apresentação contrastiva. Assim, a glorificação de Salazar
e da ordem e prosperidade anunciadas nos jornais portugueses e estrangeiros
PROFESSOR é contrastada com as cenas da vida nos bairros populares e na zona rural –
20 a falta de higiene, o crime, a pobreza e o analfabetismo, às vezes perdidos nas
Sugestão ao professor: páginas dos mesmos jornais. Os abusos ideológicos da religião são denunciados
Propõe-se a exploração da
imagem da capa da revista ironicamente por Fernando Pessoa: “Eu a julgar que tinha ido longe de mais no
Time, considerando: atrevimento quando chamei santo a Portugal, e vem um príncipe da Igreja, e
− a figura de Salazar em
primeiro plano (símbolo da proclama que Portugal é Cristo”.
autoridade);
− a imagem da maçã cortada,
25 O narrador ataca também as manipulações do texto camoniano. Enquanto
em segundo plano, com obra literária, a epopeia desempenha um papel crucial na criação da mitologia
boa aparência, mas podre
(metáfora do regime); nacional e funciona, ao mesmo tempo, como fonte popular do conhecimento
− simbolismo da cor preta; histórico. Tal qual outro discurso, que se materializa através das palavras, o tex-
− Legenda da imagem
(“Salazar de Portugal, to de Os Lusíadas não só já tem inscrito em si uma certa ideologia mas também
o decano dos ditadores. 30 pode ser manipulado e deslocado do seu contexto original. Assim, a ideologia
A primeira mulher, árvores
carregadas de frutos, salazarista celebra Camões como “cantor sublime das virtudes da raça” e serve-
políticas intrincadas – -se das sua palavras; como tristemente observa Ricardo Reis: “veja o Camões,
mas sem paraíso.”)
onde estão as palavras dele”. O estado fascista é um exemplo extremo de ex-
ploração da História, mas prova que ela sempre se escreve num contexto e não
Helena Kaufman, “A meta- 35 pode existir objetivamente sem carga ideológica.
ficção historiográfica de José
Saramago”, Colóquio/Letras,
n.˚ 120, abril-junho de 1991, 1. Assinale, no seu caderno, como verdadeiras ou falsas, as afirmações. Corrija as falsas.
pp. 134-135.
a. A ligação do messianismo português à ideologia do Estado Novo é visível, por exemplo,
no facto de Salazar ser visto como um salvador.
b. O Estado Novo apropria-se do discurso de Camões para difundir a ideia da sublimidade
do povo português.
c. O narrador de O ano da morte de Ricardo Reis partilha da ideologia política do Estado
Novo e, por isso, os factos relatados têm por base o discurso propagandista dos jornais.

238
O ano da morte de Ricardo Reis

PROFESSOR

Linguagem e estilo: o tom oralizante e a pontuação; Leitura


reprodução do discurso no discurso 7.3; 7.4; 8.1
Educação Literária
Na verdade, a primeira impressão que se tem ao ler um texto de Saramago é 16.1
que o seu estilo, a sua linguagem surgem de forma intempestiva, mas também Página 238
propositada, alterando as regras tradicionais.
A linguagem de Saramago reinventa a escrita, combinando características do
5 discurso literário com o discurso oral, construindo uma narrativa marcada por Animação
– As características
uma espécie de conversa entre o narrador e o narratário. do Estado Novo
Assim, a prosa de Saramago apresenta como marcas essenciais: a ausência
1.
de pontuação convencional, sendo a vírgula o sinal de maior relevância, mar-
a. V
cando as intervenções das personagens, o ritmo e as pausas; o uso de maiúscula b. V
10 no interior da frase; o emprego de exclamações e “apartes”, a utilização predo- c. F − Ainda que o narrador
minante do presente – marca do fluir constante do narrador entre o passado e reproduza o relato
propagandista dos jornais,
o presente; a mistura de discursos – direto, indireto, indireto livre e monólogo fá-lo de forma irónica. Além
disso, o facto de apresentar
interior – que aponta para uma reminiscência da tradição oral, em que conta- situações reais que
dor e ouvintes interagem; a coexistência de segmentos narrativos e descritivos contradizem esse discurso
demonstra a sua rejeição
15 sem delimitação clara; a presença constante de marcas de coloquialidade cons- da ideologia do Estado Novo.
truídas pela relação narrador/narratário; a intervenção frequente do narrador
Página 239
através de comentários, o que dificulta a identificação das vozes intervenientes.
1. Excerto 6:
Aqui, o discurso reflexivo é também construído pelo emprego de aforismos, − conversa entre o narrador e
o narratário: “hoje somos um
provérbios e ditados populares que introduzem no discurso narrativo a peculiar povo muito contente, acredite”
20 característica da linguagem corrente e familiar. (l. 111);
− intervenção do narrador
A presença desta cultura popular é uma das características mais marcantes através de comentários:
da criação romanesca do escritor português José Saramago (cultura a que não é “para que se entenda bem
que não temos mais que ver
alheio, aliás, o próprio Fernando Pessoa) e permite a reconstituição da oralidade com a apagada e vil tristeza
na sua obra. de que padecíamos no século
dezasseis” (ll. 109-111);
25 A escolha de um léxico propositadamente coloquial aliada à utilização de Excerto 10:
estruturas morfossintáticas simples (típicas da modalidade oral) conquistam o − estruturas morfossintáticas
simples, mistura de discursos:
leitor e, neste caso, dão um sabor estranho, mas interessante, ao discurso poéti- “uma mulher gritou, Ai que
co conhecido do heterónimo pessoano. é uma revolução, e largou
a correr, calçada acima”
Maria Fernanda Miranda Gomes Moreira Barbosa, O ano da morte de Ricardo Reis: romance (ll. 153-154).
pós-moderno?, Porto, Universidade Fernando Pessoa, 2010, pp. 62-68 (com supressões). 2. Discurso direto: “Dizem
que foi chamado à polícia
internacional” (excerto 3,
ll. 50-51).
1. Retire, dos excertos 6 e 10, três marcas distintas do tom oralizante de Saramago que Discurso indireto: “Ficou
Ricardo Reis a saber que
o texto acima enuncia. a polícia onde terá de
apresentar-se na segunda-
2. Comprove, transcrevendo dos excertos analisados, o uso de diferentes modos de re- -feira é lugar de má fama e
de obras piores que a fama”
produção do discurso no discurso. (excerto 3, ll. 54-56).
Citação: “Sem dúvida os
sindicatos nacionais repelem
3. Reescreva o segmento abaixo, seguindo a norma-padrão do português atual na sua com energia o comunismo”
modalidade escrita. (excerto 8, l. 138).
Discurso indireto livre: “Era
então ali que ia o irmão de
“Ricardo Reis perguntou, Que barco é aquele, teve sorte, calhou dar com um entendi- Lídia, o marinheiro Daniel,
do, É o Afonso de Albuquerque.” (excerto 10, ll. 156-158) a quem nunca vira”
(excerto 10, ll. 158-159).
3. Ricardo Reis perguntou:
− Que barco é aquele?
Teve sorte, calhou dar com um
entendido:
− É o Afonso de Albuquerque.

239
José Saramago

INFORMAR

Representações do séc. XX: o tempo histórico


e os acontecimentos políticos − Europa
Espanha
O ano de 1936 é fundamentalmente o ano da Guerra em Espanha.
Mas o ano iniciara-se com promessas alentadoras brevemente desfei-
tas. A esquerda saía vitoriosa das eleições populares e a república ace-
nava novamente com opções mais genuinamente democráticas, acom-
5 panhadas de uma agitação social que alarmava proprietários, patrões,

militares e Igreja. O governo durou pouco: de fevereiro de 1936 a 18 de


julho do mesmo ano, nada mais que cinco meses em que, como na Fran-
ça, a Frente Popular se tornara vitoriosa.
Em 18 de julho, o Golpe de Estado feito para durar vinte e quatro horas
10 e que se prolongou por três anos de lutas contínuas começa a pôr fim à

jovem república democrática.


Todo esse cenário de contínuas agitações é trazido, de uma forma ou
de outra, à presença de Ricardo Reis e dos portugueses.
As notícias de Espanha chegam a Ricardo Reis por dois veículos, di-
Aplastar al fascismo, c. 1939, 15 versos enquanto forma, mas fundamentalmente similares a nível ideológico: os
Carles Fontseré (cartazes da
Guerra Civil espanhola)
jornais portugueses e os emigrantes espanhóis refugiados em Portugal. Não há
nenhum esforço próprio da parte de Ricardo Reis para analisar os dados forne-
PROFESSOR
cidos e descobrir as suas contradições. O jornal é mais um meio de preencher o
Leitura vazio existencial (ou de escapar a ele) do que um desejo de investigar o tempo
8.1; 8.2 20 para nele exercer a sua opção de vida. Com efeito, esta posição de submissão
Nota: Apresente que absolutiza a informação atribuindo-lhe um caráter de verdade incontestável
antecipadamente aos
seus alunos a atividade de
não está, necessariamente, ligada ao nível cultural do fruidor (e nem seria este o
Expressão Oral da página caso de Ricardo Reis), mas à sua capacidade, à sua intenção de se desinstalar, de
242. Assim, a leitura destes
textos da rubrica Informar e assumir posições, de agir. Por isso mesmo, torna-se evidente o contraste entre
o visionamento das animações 25 essa passividade e a postura lúcida do Daniel, irmão de Lídia, revolucionário de
disponibilizadas em 20 Aula
Digital constituir-se-ão esquerda, que se faz voz presente nas palavras da irmã a Ricardo Reis.
como documentos de apoio
à planificação da Exposição
oral solicitada. França
O panorama de 1936 é nitidamente marcado pela presença de crises políticas
ora de tendência democrática ora de tendência totalitária. Notícias da vitória da
Animação esquerda são veiculadas em Portugal pelos discursos reacionários dos periódi-
− A Guerra Civil espanhola
− “Guernica”, Introdução 30 cos sujeitos à censura prévia, como era de se esperar num tempo de ditadura.
− Regime totalitário Esses discursos que o discurso maior acolhe são, entretanto, subtilmente apre-
− Nacionalismo e
Imperialismo
sentados pelo narrador como informações e julgamentos que não lhe competem
– A caminho da Segunda e com os quais não compactua. Inseridos no corpo do romance, onde a voz do
Guerra Mundial narrador lhes é contrária, funcionam ironicamente como demonstrações pelo
Documento
− Guernica, c. 1937,
35 absurdo, que exigem a cumplicidade do leitor para descodificar a mensagem
Pablo Picasso, Museu pelo avesso. A referência à situação em França faz parte de um desses discursos
Rainha Sofia, Madrid
do outro – “são palavras do periódico” – em que se louvam as alegrias portugue-
− Simbologia da estátua
Camaradagem sas, a aliança com Hitler, a perda de significação das comemorações do Primeiro
na derrota (1934), de Maio, fazendo-se ainda um parêntesis para lamentar a Espanha republicana
de Hein Semke
40 e a França da Frente Popular.

240
O ano da morte de Ricardo Reis

Itália
A Itália fascista é um dos espetáculos mais significativos da Europa de 36.
O nacionalismo é um componente essencial da psicologia e da ideologia fas-
cistas. Os antigos combatentes julgam-se imbuídos da missão de velar para que
o sacrifício do passado não tenha sido em vão. Do nacionalismo ao imperialismo
45 a distância não é grande e a Itália não pretende ficar aquém dos primeiros passos
da Alemanha rumo ao sonho da hegemonia europeia. Encontra, então, na Etiópia,
o terreno ideal para exercitar a sua ambição, já que esta conquista lhe permitiria
unificar o seu império na África Oriental.
A Etiópia era, no entanto, um dos únicos territórios independentes de África e a
50 sua anexação às colónias italianas não se podia justificar pela razão habitualmente
alegada de ser um território não civilizado que só viria a beneficiar com a gerência
italiana. No caso etíope, o país era membro da Sociedade das Nações, criada em
1920 para manter a paz e estimular o desenvolvimento da cooperação entre os po-
vos. A sua invasão deveria ter sido considerada como uma ameaça à integridade de
55 uma nação. Não foi entretanto este o resultado: dos países que poderiam pressio- Diário de Lisboa, edição
nar a Itália, só a Inglaterra se colocou favorável a uma política de firmeza. A França mensal n.˚ 1, 1933.

hesita, teme que a sua oposição lance a Itália numa aliança com a Alemanha o
que ocasionaria o fortalecimento do bloco da extrema-direita, por fim evidente na
constituição do Eixo Roma-Berlim.

Alemanha
60 A Alemanha de Hitler merece um espaço mais recorrente no corpo do romance
O ano da morte de Ricardo Reis. Esse desejo de reprodução de uma imagem consi-
derada quase perfeita – “quem me dera ser alemão” – advém não só do facto de a
Alemanha ser uma nação já então alinhada entre as potências europeias, entre as
quais Portugal não figurava – “Claro que na Alemanha o povo é ou-
65 tro” − como também das semelhanças ideológicas que uniam os dois
países, justificando propagandas favoráveis ao regime, intercâmbios
culturais, visitas, semelhanças entre os chefes políticos.
Para confirmar a ascendência alemã sobre os portugueses, não fal-
taria o modelo humano que é, evidentemente, Hitler. Diante dele, o
70 discurso do narrador é fundamentalmente irónico, assumindo, como
seu, o ponto de vista do outro, comprometido pela ideologia do poder,
para destruí-lo, ardilosamente, a partir de uma perspetiva interna. São
assim as observações sobre a falência dos portugueses em imitar a
Alemanha onde “o povo é outro”. Na terra lusíada “não é possível ser
75 solene, não é possível oferecer a vida no altar da pátria, devíamos era
aprender com os ditos alemães”. Todo esse panegírico é evidentemen-
te falso e, pouco a pouco, o discurso vai revelando as chaves para a
descodificação da ironia, não só por coerência ideológica interna com
atitudes anteriores, como também por comentários feitos ao nível da
80 verdade, ora através de uma mera constatação – “O tempo tem melho-
rado, o mundo é que vai pior” – ora num discurso comprometido com
a emotividade, que desvia temporariamente o irónico para o passional.
Camaradagem da derrota,
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago: entre a história e a ficção:
c. 1934, Hein Semke,
uma saga de portugueses, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 107-120
Fundação Calouste Gulbenkian.
(com supressões e adaptado).

241
José Saramago

PERA
CU R
EXPRESSÃO ORAL
RE
ÃO
E X P O S IÇ
1. Faça uma exposição oral, de 5 a 7 minutos, sobre os principais acontecimentos ocor-
11.° ANO
ridos no ano de 1936, num dos países europeus abaixo elencados. Para tal, considere a
informação dos textos atrás expostos (cf. pp. 240-241), a pesquisa de outras fontes* e os
*SUGESTÕES PARA
PESQUISA tópicos facultados na tabela abaixo.
šH[dƒHƒcedZ"
O século XX – de 1914
aos nossos dias, São Espanha França Itália Alemanha
Paulo, Cultrix, 1996.
š Instabilidade š Governo de š Fascismo š Nazismo
šDekiY^_CWhY"Breve
atlas histórico do política concentração š Mussolini š Hitler
século XX, Lisboa, š Frente Popular/ republicana de Sarraut
š Invasão da Etiópia š Máquina de
Instituto Piaget, 1998. CEDA/Falange š Divergências políticas
š África Oriental propaganda
š@WYgk[i=[eh][b" Espanhola š Frente Popular
Franco e o Franquismo, Italiana š Ocupação da Renânia
š General Franco š Governo de Léon Blum (denúncia do pacto
Lisboa, Publicações
Dom Quixote, 1974. š Guerra Civil de Locarno)
PROFESSOR

Oralidade
2.1; 3.1; 5.1; 5.2; 5.3 EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Educação Literária
15.4; 16.1
Sugestão Representações do século XX: o tempo histórico
Expressão Oral e os acontecimentos políticos − Europa
Proponha a divisão da turma
em quatro grupos, de acordo
com o número de países em EXCERTO 1 | Cap. I (pp. 34-35)
análise.
Recomende aos seus alunos Prosseguem as operações na Etiópia1, […] Avanço geral das tropas italianas,
o uso de ferramentas não há força humana capaz de travar o soldado italiano na sua heroica arran-
tecnológicas de suporte
à apresentação oral cada, que faria, que fará contra ele a lazarina2 abexim3, a pobre lança, a mísera
(contemplando os tópicos catana, […].
a tratar e as imagens alusivas
ao tema).
Peça, antecipadamente, EXCERTO 2 | Cap. II (p. 66)
a planificação das
apresentações e, no 5 Ricardo Reis já tinha aberto um dos jornais […], Demissão do governo espa-
final, promova a auto e
a heteroavaliação das
nhol, aprovada a dissolução das cortes4, uma, O Negus num telegrama à Socie-
intervenções dos alunos dade das Nações diz que os italianos empregam gases asfixiantes5, outra […].
(aspetos de conteúdo
e aspetos formais EXCERTO 3 | Cap. VI (pp. 164-165)
da apresentação).

Educação Literária
Duas horas deram, duas e meia, lidos foram e tornados a ler estes dessangra-
Proponha aos seus alunos dos jornais de Lisboa, desde as notícias da primeira página, Eduardo VIII será o
uma leitura prévia das notas
de rodapé e uma reflexão
10 novo rei de Inglaterra6, […] a ideia do Anschluss7, que é, para quem não saiba,
sobre a imagem da página 243 a ligação da Alemanha à Áustria, foi repudiada pela Frente Patriótica Austríaca,
para melhor compreensão e
contextualização histórica o governo francês pediu a demissão, as divergências entre Gil Robles8 e Calvo
e política da época em análise. Sotelo9 podem pôr em perigo o bloco eleitoral das direitas espanholas […].

1
Referência à invasão da Etiópia por Mussolini. 2 Arma de fuzil, que aconteceu efetivamente em 1938, após várias tentativas. 8 Um
comprida, de pequeno calibre e de carregar pela boca. 3 Da Abissínia dos fundadores da Confederação Espanhola de Direitas Autónomas
(atual Etiópia). 4 Em janeiro de 1936. 5 Referência às denúncias feitas (CEDA), em 4 de março de 1933, uma aliança de partidos políticos
pelo Imperador da Etiópia (Negus) à Sociedade das Nações, após a católicos de direita que visava fazer frente aos movimentos de
invasão dos italianos. Esta figura torna-se um símbolo de resistência esquerda. 9 Líder monárquico do partido de direita − Renovação
ao fascismo de Mussolini. 6 Eduardo VIII ascendeu ao trono inglês Espanhola. Acabou por ser assassinado pela ala esquerda em 13 de
em 20 de janeiro de 1936. 7 Anexação (em alemão). Neste caso, refere- junho de 1936.
-se à anexação político-militar da Áustria por parte da Alemanha,

242
O ano da morte de Ricardo Reis

EXCERTO 4 | Cap. VII (pp. 195-196)

Em terra de nuestros hermanos


15 é que a vida está fusca, a família muito
dividida, se ganha Gil Robles as eleições,
se ganha Largo Caballero10, e a Falange11 já
fez saber que fará frente, nas ruas, à ditadura
vermelha. Neste nosso oásis de paz assistimos,
20 compungidos, ao espetáculo duma Europa caótica e
colérica, em constantes ralhos, em pugnas políticas […],
agora constituiu Sarraut12 em França um governo de concen-
tração republicana e logo lhe caíram as direitas em cima com a
sua razão delas, lançando salvas sucessivas de críticas, acusações e
25 injúrias, um desbocamento de tom que mais parece de arruaceiros que
de país tão civilizado, modelo de maneiras e farol da cultura ocidental.
O que vale é haver ainda vozes neste continente, e poderosas elas são, que se
erguem para pronunciar palavras de pacificação e concórdia, falamos de Hitler,
da proclamação que ele fez perante os camisas castanhas13, A Alemanha só se
30 preocupa em trabalhar dentro da paz, e, para calar definitivamente desconfian-
ças e ceticismos, ousou ir mais longe, afirmou perentório, Saiba o mundo que a
Alemanha será pacífica e amará a paz, como jamais povo algum soube amá-la14.
É certo que duzentos e cinquenta mil soldados alemães estão prontos a ocupar
a Renânia e que uma força militar alemã penetrou há poucos dias em território
35 checoslovaco, porém, se é verdade que vem às vezes Juno em forma de nuvem,
também não é menos verdade que nem todas as nuvens Juno são, a vida
das nações faz-se, afinal, de muito ladrar e pouco morder, vão ver que,
querendo Deus, tudo acabará na bela harmonia. Com o que nós não podemos
concordar é que venha Lloyd George15 dizer que Portugal está demasiadamente
40 favorecido de colónias, em comparação com a Alemanha e a Itália. […]

EXCERTO 5 | Cap. IX (pp. 279-280)

Por estes dias denunciou a Alemanha o pacto de Locarno16 e ocupou a zona


renana, tanto ameaçou que o fez […], por estes dias foi declarado ilegal o par- PROFESSOR
tido fascista Falange Espanhola e preso o seu dirigente José António Primo de
Rivera17 […]. Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.5;
14.7; 14.8; 14.9; 15.1;
15.2; 16.1; 16.2
10
Histórico dirigente do Partido Socialista Operário Espanhol, que ocupou o cargo de presidente do
governo de Espanha de 1936 a 1937. 11 Movimento fascista espanhol criado em 1933, encabeçado por José Página 246
António Primo de Rivera, filho do ex-ditador Miguel Primo de Rivera que liderou Espanha entre 1923 e 1930. 1. Nota: Divida a turma em
12
Primeiro-ministro de França entre 24 de janeiro e 4 de junho de 1936. 13 Força militarizada, denominada cinco grupos, de modo que
Secção de Assalto (SA), criada pelo partido nazi e que se dedicava a atacar comunistas, sindicalistas e cada grupo se ocupe da análise
dos factos históricos de um
judeus. Os seus membros eram conhecidos como “camisas castanhas”, dado vestirem uma farda castanha.
14 só país.
Discurso de Hitler que levou à reocupação, pela Alemanha, da zona desmilitarizada da Renânia em
Disponível, no Guia do
março de 1936. 15 Estadista britânico, último membro do Partido Liberal a ser primeiro-ministro do Reino Professor, um cenário de
Unido. Em 1936, era membro do Parlamento e redigiu um documento para a distribuição das colónias. 16 resposta para a questão 1.
O tratado principal do Locarno, assinado entre Alemanha, Bélgica, França, Reino Unido e Itália, previa 2. Quando afirma “se tal coisa
garantias de que a Alemanha não seria reocupada pelos Aliados. Em troca, a Alemanha aceitava manter lá fizerem, tristes dias estão
desmilitarizada a área da Renânia − o que já era previsto no Tratado de Versalhes. Todavia, com a ascensão guardados para muita gente”
do nacionalismo alemão, a Alemanha repudiou formalmente os seus compromissos de Locarno quando (ll. 58-59), o narrador está
já a prenunciar um cenário
ocupou a Renânia desmilitarizada, em 7 de março de 1936. 17 Acusado de conspiração e rebelião militar apocalíptico – o da Guerra Civil
contra o governo da Segunda República, o fundador da Falange Espanhola foi condenado à morte e espanhola.
executado durante os primeiros meses da Guerra Civil espanhola.

243
José Saramago

EXCERTO 6 | Cap. XII (pp. 360-363)

45 Veja-se o caso das eleições na Alemanha18 […] devíamos era aprender com
os ditos alemães, olhar como aclamam Hitler na Wilhelmplatz, ouvir como im-
ploram, apaixonados, Queremos ver o Führer, Führer sê bom, Führer aparece,
gritando até enrouquecerem, com os rostos cobertos de suor, as velhinhas de
PROFESSOR brancos cabelos chorando lágrimas de ternura, as férteis mulheres palpitando
50 em seus túrgidos19 úteros e ofegantes seios, os homens, duríssimos de múscu-
3. A estrutura antitética los e vontades, todos clamando, até que o Führer vem à janela, então o delírio
serve para contrapor duas
realidades: (1) a diplomática, rebenta os últimos diques, a multidão é um grito só, Heil, assim vale a pena,
movida por interesses
económicos e políticos; (2) a
quem me dera ser alemão. Porém, não será preciso aspirar a tanto, considere-se
dos factos ocorridos naquele o exemplo dos italianos, que, não sendo que se compare, já vão ganhando a sua
país (Etiópia): o saque de
casas, a violação de mulheres 55 guerra, ainda há poucos dias bombardearam a cidade de Harrar20, voaram até
e a morte de inocentes. Desta lá os aviões e reduziram tudo a cinzas, […] agora foi Alcalá Zamora21 destituído
forma, o narrador pretende
salientar a negligência e da presidência da República e logo começou a correr o boato de que haverá um
a indiferença dos estados movimento militar em Espanha, se tal coisa lá fizerem, tristes dias estão guar-
pertencentes à Sociedade
das Nações relativamente ao dados para muita gente.
massacre perpetrado pelas
tropas italianas em África. EXCERTO 7 | Cap. XIV (pp. 415-418)
4.1 Ao ler nos jornais os
acontecimentos ocorridos 60 As comemorações do Primeiro de Maio perderam por toda a parte o seu senti-
em Addis-Abeba, Ricardo
Reis evoca o poema da sua
do clássico, não temos culpa que em Madrid o festejem nas ruas a cantar a Inter-
autoria “Ouvi contar que nacional22 e a dar vivas à Revolução, são excessos que não estão autorizados na
outrora, quando a Pérsia”,
que retrata a indiferença nossa pátria, A Dios gracias, manifestam em coro os cinquenta mil espanhóis que
de dois jogadores de xadrez a este oásis de paz se recolheram. Agora o que vamos ter de mais certo é virem
perante as atrocidades da
guerra cometidas à sua volta. 65 por aí abaixo outros tantos franceses, que já a esquerda de lá ganhou as eleições, e
É que os dois, adotando uma o socialista Blum23 declarou-se pronto a constituir governo de Frente Popular. […]
atitude estoica e epicurista,
continuam o jogo, enquanto E terminou a guerra da Etiópia. Disse-o Mussolini24 do alto da varanda do
a população é massacrada. palácio, […] proclamado com todas as letras e em todas as línguas imperador da
Desta forma, o narrador
pretende denunciar a África Oriental Italiana, enquanto Winston Churchill25 está abençoando, No es-
indiferença do mundo em
relação ao sofrimento
70 tado atual do mundo, a manutenção ou agravamento das sanções contra a Itália
vivido em Addis-Abeba. Por poderia ter tido como consequência uma guerra hedionda, sem disso resultar o
outro lado, esta é também
uma forma de o narrador menor proveito para o povo etíope. Tranquilizemo-nos, pois. Guerra, se a hou-
demonstrar que, cada vez com ver, guerra será, por ser esse o nome, mas não hedionda, como hedionda não foi
mais frequência, Ricardo Reis
vai colocando em causa as a guerra contra os abexins.
suas convicções, sentindo-se 75 Addis-Abeba26, ó linguístico donaire27, ó poéticos povos, quer dizer Nova Flor.
incomodado “com
o espetáculo do mundo” Addis-Abeba está em chamas, as ruas cobertas de mortos, os salteadores arrom-
(“Uma sombra passa na bam as casas, violam, saqueiam, degolam mulheres e crianças, enquanto as tro-
fronte alheada e imprecisa
de Ricardo Reis, que é isto, pas de Badoglio28 se aproximam. O Negus fugiu para a Somália francesa, donde
donde veio a intromissão”,
ll. 96-97).
partirá para a Palestina a bordo de um cruzador britânico, e um dia destes, lá para
80 o fim do mês, em Genebra, perante o solene areópago da Sociedade das Nações,

18 Popular, em França, em 1936. A Frente Popular era uma coligação


Os partidos políticos da Alemanha foram dissolvidos e, em 14
de julho de 1933, a Alemanha tornou-se um Estado unipartidário. de partidos de esquerda, constituída em 1935. 24 Político italiano,
Tiveram lugar eleições em 1933, 1936 e 1938, controladas pelos nazis fundador do Partido Nacional Fascista. Tornou-se primeiro-ministro
que elegeram os seus apoiantes e um pequeno número de candidatos em 1922 e manteve-se no poder até 1943. 25 Político conservador e
independentes. 19 Dilatados, cheios. 20 Cidade do leste da Etiópia. 21 estadista britânico. Foi primeiro-ministro de 1940 a 1945 e de 1951 a
Jurista e político espanhol, desempenhou as funções de presidente da 1955. 26 Capital da Etiópia, foi ocupada pelas tropas italianas a 6 de
República Espanhola entre 1931 e 1936. Foi destituído do cargo a 7 de maio de 1936. Esta invasão foi consentida pela França e pela Inglaterra
abril de 1936. 22 Hino internacionalista que, apesar de estar associado (daí a referência a Winston Churchill). 27 Expressão ou dito espirituoso.
28
aos movimentos socialistas, é usado também pelos comunistas, Militar e político italiano.
social-democratas e anarquistas. 23 Presidente do governo da Frente

244
O ano da morte de Ricardo Reis

perguntará, Que resposta devo levar ao meu povo, mas depois de ter falado nin-
guém lhe respondeu, e antes que falasse assobiaram-no os jornalistas italianos
presentes, sejamos nós os tolerantes, é sabido que as exaltações nacionalistas
encegueiram facilmente a inteligência, atire a primeira pedra quem nunca caiu
85 nestas tentações. Addis-Abeba está em chamas, as ruas cobertas de mortos, os
salteadores arrombam as casas, violam, saqueiam, degolam mulheres e crian-
ças, enquanto as tropas de Badoglio se aproximam. Mussolini anunciou, Deu-
-se o grande acontecimento que sela o destino da Etiópia, e o sábio Marconi29
preveniu, Aqueles que procurarem repelir a Itália caem na mais perigosa das
90 loucuras, e Eden30 insinua, As circunstâncias aconselham o levantamento das
sanções, e o Manchester Guardian31, que é órgão governamental inglês, verifica,
Há numerosas razões para serem entregues colónias à Alemanha, e Goebbels32
decide, A Sociedade das Nações é boa, mas as esquadrilhas de aviões são me-
lhores. Addis-Abeba está em chamas, as ruas cobertas de mortos, os salteadores
95 arrombam as casas, violam, saqueiam, degolam mulheres e crianças, enquanto
as tropas de Badoglio se aproximam, […]. Uma sombra passa na fronte alheada e
imprecisa de Ricardo Reis, que é isto, donde veio a intromissão, o jornal apenas
me informa que Addis-Abeba está em chamas, que os salteadores estão pilhan-
do, violando, degolando, enquanto as tropas de Badoglio se aproximam, o Diário
100 de Notícias não fala de mulheres postas contra os muros caídos nem de crianças PROFESSOR
trespassadas de lanças, em Addis-Abeba não consta que estivessem jogadores
de xadrez jogando o jogo do xadrez. 5. O narrador evidencia a
conivência da Igreja com
os regimes fascistas, dada
EXCERTO 8 | Cap. XVII (pp. 520-522, 524) a aliança existente entre
ambos. A Igreja surge como
O exército espanhol, guardião das virtudes da raça e da tradição, ia falar com instrumento capaz de
a voz das suas armas, expulsaria os vendilhões do templo, restauraria o altar da persuadir e manipular as
populações. Assim, a atitude
105 pátria, restituiria à Espanha a imorredoura grandeza que alguns seus degenera- dos movimentos fascistas
em Espanha é justificada
dos filhos haviam feito decair. […] Receia-se em Madrid um movimento revolu- pela necessidade de se
cionário fascista […]. restabelecer “o império da
cruz e do rosário sobre o
Já se vai sabendo melhor o que aconteceu. O levantamento começou no Mar- odioso símbolo do martelo
rocos espanhol, e, ao que parece, é seu principal chefe o general Franco.33 […] Os e da foice.” (ll. 118-119) e, na
Alemanha, a Igreja declara
110 militares anunciam que o movimento está triunfante, se tudo continuar como os comunistas como seus
até aqui, o domínio vermelho em Espanha tem as horas contadas. […] inimigos.
6. a. A pergunta retórica,
A regeneração da Europa caminha a passos de gigante, primeiro foi a Itália, a enumeração, a adjetivação
depois Portugal, a seguir a Alemanha, agora a Espanha, esta é a boa terra, esta a e a ironia contribuem para
acentuar a discrepância de
semente melhor, amanhã ceifaremos as messes. forças existente na guerra
que os italianos travaram
EXCERTO 9 | Cap. XVII (p. 524) com o povo etíope. Para
o efeito, contribui o facto
115 Não tarda que a Virgem do Pilar esmague sob os seus cândidos pés a serpente de se destacar que os
abissínios apenas tinham ao
da malícia, o crescente da lua levantar-se-á sobre os cemitérios da iniquidade, seu dispor armas arcaicas
já estão desembarcando no sul da Espanha milhares de soldados marroquinos, (a lazarina, a lança ou a
catana) para enfrentar o
com eles, ecumenicamente, restabeleceremos o império da cruz e do rosário34 poderoso dispositivo bélico
sobre o odioso símbolo do martelo e da foice35. do exército italiano.

29 espanhol, integrou o golpe de Estado em Espanha contra o governo


Físico italiano, inventor da telegrafia sem fios. Até à sua morte
(1937), foi um forte apoiante do fascismo e de Mussolini. 30 Anthony da Segunda República em julho de 1936. Foi chefe de governo entre
Eden, subsecretário de Estado das Relações Exteriores do Reino Unido 1938 e 1973. 34 O império da cruz e do rosário é uma referência direta à
que tentou mediar um acordo de paz entre a Itália e a Etiópia. 31 Jornal Igreja que apoiava o fascismo. 35 O martelo e a foice são símbolos da
diário britânico. 32 Político alemão e ministro da Propaganda na esquerda, que liderava o país desde 16 de fevereiro de 1936, altura em
Alemanha nazi entre 1933 e 1945. 33 Militar, chefe de Estado e ditador que a Frente Popular ganhou as eleições.

245
José Saramago

EXCERTO 10 | Cap. XVIII (p. 552)

120 De Tetuão36, agora que já chegou o general Milan d'Astray37, veio nova pro-
clamação, Guerra sem quartel, guerra sem tréguas, guerra de extermínio contra
o micróbio marxista, ressalvando-se, porém, os deveres humanitários como se
depreende de palavras que o general Franco proferiu, Ainda não tomei Madrid
porque não quero sacrificar a parte inocente da população, bondoso homem,
125 aqui está alguém que nunca ordenaria, como fez Herodes, a matança das crian-
36
Cidade do noroeste cinhas, esperaria que elas crescessem para não ficar com esse peso na consciên-
de Marrocos.
37
cia e para não sobrecarregar de anjos o céu.
Militar espanhol que
esteve envolvido no Golpe EXCERTO 11 | Cap. XVIII (pp. 561-562)
de Estado de 1936, que
iniciou a Guerra Civil Um grupo de financeiros norte-americanos comunicou ao general Franco es-
espanhola. tar pronto a conceder os fundos necessários à revolução nacionalista espanhola
38
O Golpe de Estado em 130 […]. Para os lados da Floresta Negra, os bispos alemães anunciaram que a igreja
Espanha era apoiado pela
Alemanha nazi e pela
católica e o Reich iriam combater ombro com ombro contra o inimigo comum,
Itália fascista. e Mussolini, para não ficar atrás de tão belicosas demonstrações, deu aviso ao
PROFESSOR
mundo de que poderá mobilizar em pouco tempo oito milhões de homens38,
muitos deles ainda quentes da vitória sobre esse outro inimigo da civilização
6. b. A metáfora e a ironia 135 ocidental, a Etiópia.
servem para realçar a
estabilidade e o conformismo
que se vivia em Portugal, em
contraste com alguns países 1. Sintetize as informações que lhe permitam caracterizar a Europa, entre finais de 1935
europeus onde deflagravam e 1936, a nível histórico e político, com base nos acontecimentos ocorridos em Itália,
as revoluções de esquerda.
6. c. Mediante comparação Espanha, Inglaterra, Alemanha e França.
de Franco com Herodes,
o narrador ironiza e denuncia 2. Demonstre de que forma, no excerto 6, o narrador revela a sua omnisciência sobre os
a falsa humanidade do general acontecimentos futuros.
espanhol, que tenta passar
a imagem de alguém que não
está disposto a sacrificar 3. Justifique a estrutura antitética presente no excerto 7.
o povo e a cometer atos tão
atrozes como a ordem dada 4. Ouça a declamação do poema de Ricardo Reis “Ouvi contar que outrora, quando a Pér-
por Herodes para matar
os inocentes. CD 2
sia”.
7. Marcas de coloquialidade AIXA 1 4.1 Explique a intertextualidade estabelecida entre o excerto 7 e este poema.
F

observadas na relação
narrador/narratário: “Em terra
de nuestros hermanos é que 5. Infira a posição da Igreja em face dos movimentos fascistas, baseando-se nos excer-
a vida está fusca” (excerto 4, tos 9 e 11.
ll. 14-15).
Uso de ditados populares –
“muito ladrar e pouco morder” 6. Identifique, comentando o seu valor semântico, os recursos expressivos presentes em:
(excerto 4, l. 37).
a. “que fará contra ele a lazarina abexim, a pobre lança, a mísera catana”. (excerto 1, ll. 3-4)
b. “Neste nosso oásis de paz”. (excerto 4, l. 19)
Áudio
"Os jogadores de xadrez", c. “aqui está alguém que nunca ordenaria, como fez Herodes, a matança das criancinhas,
Ricardo Reis esperaria que elas crescessem para não ficar com esse peso na consciência e para não
(Disponível na brochura sobrecarregar de anjos o céu.” (excerto 10, ll. 125-127)
Educação Literária, p. 19 –
Dossiê do Professor) 7. Retire, do excerto 4, duas marcas distintas do tom oralizante de Saramago.

246
O ano da morte de Ricardo Reis

LEITURA

Leia atentamente o texto.


1
Termo grego que significa
povo.

Europa, a democracia ou o fim PROFESSOR

A
Europa tem de se democratizar, senão desintegrar-se-á! É um facto puro e simples, se Leitura
7.1; 7.3; 7.4; 7.7
bem que pouco reconhecido.
A atual desintegração da Europa é muito real. Novas divisões estão a aparecer visivel- 1. Trata-se de um artigo de
mente por todo o lado para onde olhamos: ao longo das fronteiras, dentro das nossas socieda- opinião, uma vez que estamos
perante um texto onde é
5 des e economias e na mente dos cidadãos europeus. explicitado um ponto de vista,
A perda da integridade da Europa tornou-se dolorosamente evidente no último desenvolvi- neste caso sobre o futuro da
Europa, que, na perspetiva do
mento da crise dos refugiados. Os líderes europeus exigiram ao presidente turco, Erdogan, que autor, pode correr o risco de
se desintegrar, caso não se
abrisse as fronteiras do seu país aos refugiados de Aleppo, a cidade síria devastada pela guerra; democratize. Para o efeito, são
ao mesmo tempo, admoestaram a Grécia por deixar entrar os mesmos refugiados em território apresentados argumentos e
exemplos, tais como: “Novas
10 “europeu” e ameaçaram erigir cercas ao longo das fronteiras da Grécia com o resto da Europa. divisões estão a aparecer
Mais preocupante, o eixo franco-alemão que alimenta a integração europeia fraturou-se. visivelmente por todo o
lado para onde olhamos: ao
Enquanto isso, os países do Sul definham num estado de recessão permanente, pela qual longo das fronteiras, dentro
culpam o Norte da Europa. E, como se isso não bastasse, outra fratura ameaçadora surgiu ao das nossas sociedades e
economias e na mente dos
longo da antiga Cortina de Ferro, com os governos dos países ex-comunistas a desafiarem aber- cidadãos europeus” (ll. 3-5)
15 tamente o espírito de solidariedade que costumava caracterizar (pelo menos em teoria) o pro- ou “A perda da integridade
da Europa tornou-se
jeto europeu. dolorosamente evidente
no último desenvolvimento
Porque está a Europa a desintegrar-se? E o que se pode fazer a esse respeito? da crise dos refugiados”
Quanto mais a liderança da Europa sufoca a democracia, menos legítima se torna a sua au- (ll. 6-7). Destaca-se, ainda,
o uso de uma linguagem
toridade política. Isso leva os líderes europeus a intensificar o autoritarismo, a fim de manter as valorativa, como por exemplo,
20 suas políticas fracassadas quando as forças económicas recessivas se fortalecem. “O verdadeiro perigo não é o de
nós termos um objetivo muito
É através deste círculo vicioso que a crise da Europa está a fazer que os seus povos se vi- elevado e falharmos. O perigo
rem para dentro e uns contra os outros, amplificando o chauvinismo e a xenofobia latentes. Na real é que os europeus fixem
o olhar no abismo e acabem
verdade, foi o que tornou a Europa incapaz de absorver choques externos - como o afluxo de por lá cair” (ll. 33-34).
refugiados do último verão. 2. O texto invoca
acontecimentos políticos
25 O que devemos fazer agora é o que os democratas deveriam ter feito em 1930 para evitar e sociais que marcam a
uma catástrofe que, agora, se está a tornar cada vez mais conjeturável. Devemos estabelecer atualidade: o drama dos
refugiados decorrente da
uma coligação pan-europeia de democratas radicais, sociais, verdes e liberais para colocar o guerra na Síria e os acordos
“demo”1 de volta na democracia, lutando contra uma liderança europeia que vê o poder do povo estabelecidos entre a Europa
e a Turquia para controlar
como uma ameaça à sua autoridade. os fluxos migratórios,
bem como a pressão de
30 Será que somos utópicos? Talvez. Mas é mais realista do que a tentativa da liderança da UE Bruxelas sobre a Grécia
de se agarrar à nossa união tipo cartel, antidemocrática e em desintegração. Se o nosso projeto relativamente ao controlo das
fronteiras; a fratura do eixo
é utópico, é também a única alternativa a uma distopia em construção. franco-alemão; a recessão
O verdadeiro perigo não é o de nós termos um objetivo muito elevado e falharmos. O perigo económica dos países do
Sul da Europa; a ameaça à
real é que os europeus fixem o olhar no abismo e acabem por lá cair. solidariedade europeia por
Yanis Varoufakis, in DN, edição online de 25 de fevereiro de 2016 parte de alguns países da
antiga União Soviética. Estes
(consultado em fevereiro de 2017, com supressões).
acontecimentos trazem à
memória os conturbados
acontecimentos políticos
1. Identifique o género textual aqui apresentado, evidenciando as marcas distintivas. da década de 1930 que
conduziram a Europa ao
abismo da Segunda Guerra
2. Indique os universos de referência (de natureza política, social e económica e de caráter Mundial.
mundial) ativados pelo texto.

247
José Saramago

COMPREENSÃO DO ORAL

Em 1936, a Europa vivia tempos conturbados. Contudo, os problemas continuam, ainda


hoje, a afetar o Velho Continente, embora noutros níveis.
PROFESSOR
Visione um excerto do programa Prós e Contras, da RTP, e resolva, no seu caderno, as ati-
Oralidade vidades propostas. Leia, antecipadamente, todo o enunciado.
1.1; 1.3; 1.5; 1.7; 1.8; 2.1

Link
Prós e Contras, RTP
(10 minutos)

1. “A Europa está cercada pelo


terrorismo, pelos refugiados,
pelas crises económicas Prós e Contras, RTP
e financeiras”.
2. O acordo que a Europa 1. Caracterize o estado atual da Europa, considerando a informação inicial do debate.
fez com a Turquia sobre os
refugiados tem condições
para ser bem-sucedido? 2. Identifique a questão levantada pela moderadora e que suscita a tomada de posições
3. dos interlocutores.
a. A situação dos refugiados
é muito complexa, não há uma 3. Complete, no seu caderno, o quadro que se apresenta, de modo a identificar alguns
forma simples de resolver
a questão. dos argumentos.
b. O acordo separa a situação
dos refugiados da dos
migrantes. Posição defendida Argumentos/exemplos
c. O problema dos refugiados
está na sua própria origem, š a. __________________________________________
Secretária de Estado dos Assuntos

ou seja, nos países de onde são


oriundos e que não garantem
š O acordo permite resolver alguns problemas,
Margarida Marques

condições de vida.
d. perdeu a superioridade com refugiados que estão nas ilhas gregas.
moral, deixou de ser
Europeus

š O acordo pode até ser bem- š b. __________________________________________


respeitável pelos seus valores.
-sucedido, mas não vai resolver
e. uma deportação massiva de
refugiados para a Turquia com o problema dos refugiados. š O acordo permitirá tratar individualmente
a promessa de um regresso aqueles que pedem asilo na Grécia e os que
individual. chegam à Turquia no respeito da diretiva sobre
4. Trata-se de um debate, uma o exílio.
vez que estamos na presença
de dois intervenientes š c. __________________________________________
que assumem posições
nem sempre coincidentes
em relação ao tema. Os
interlocutores servem-se š Tal como defende Wolfgang Münchau, com este
Presidente do Instituto de Estudos

de argumentos e exemplos acordo, a Europa d. __________________________.


que fundamentam as suas
Eduardo Paz Ferreira

opiniões, e reforçam a sua š O próprio papa Francisco critica o acordo por


posição com citações que
conferem credibilidade à š O acordo é uma violência, uma meio do exemplo que dá de Cristo a caminho da
Europeus

sua tese. É ainda evidente aberração jurídica. cruz.


o respeito pelo princípio
da cortesia. O moderador š Vivem-se dias negros na história š A Alemanha é o grande obreiro do acordo, mas
também desempenha um tremeu logo após o primeiro abalo eleitoral.
papel importante na condução
da União Europeia.
da troca de opiniões (abertura š O acordo prevê e. __________________________.
do debate, apresentação do
tema e da questão polémica, š O acordo é inadmissível porque viola os direitos
reposicionamento de ideias, …).
humanos e os acordos de Genebra.

4. Justifique que se trata de um debate, elencando as marcas específicas do género.


BLOCO INFORMATIVO – p. 378

248
O ano da morte de Ricardo Reis

PROFESSOR

Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.7;
14.8; 14.9; 15.1; 15.2;
15.3; 16.2
Gramática
18.4

Página 254
1. Tal como preconizado por
EDUCAÇÃO LITERÁRIA Fernando Pessoa, Ricardo
Reis esteve emigrado no
Brasil. Saramago parte deste
O espaço da cidade pressuposto, mas coloca Reis
a regressar à pátria, ao fim
Deambulação geográfica e viagem literária de dezasseis anos, trazendo
consigo um sotaque que é
percecionado pelo taxista;
EXCERTO 1 | Cap. I (pp. 9-10, 12) fisicamente, Reis apresenta-se
como “um homem grisalho”
Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do (já que, tendo nascido em 1887,
em 1936 teria 49 anos) e “seco
rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo de carnes” (na carta a Adolfo
soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor Casais Monteiro, Fernando
Pessoa afirma que ele é um
é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e homem forte, mas seco).
5 Buenos Aires, como uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, es- É poeta e regista-se como
médico no Hotel Bragança
calando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, (“este também é poeta, não
Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na via- que do título se gabe, como
se pode verificar no registo
gem, ainda tocará em Vigo e Boulogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como do hotel, mas um dia não será
agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia. […] Por trás dos como médico que pensarão
nele”, ll. 190-191).
10 vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa Na personagem de Saramago
permanecem alguns traços
sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além um zim- da filosofia de vida e do credo
bório1 alto, uma empena2 mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, poético do heterónimo:
é visível a sua dificuldade em
salvo se tudo isto é ilusão, quimera, miragem criada pela movediça cortina das tomar decisões ou avançar
águas que descem do céu fechado. […] explicações, dado acreditar
no peso do destino (“talvez
15 É domingo. Para além dos barracões do cais começa a cidade sombria, re- porque lhe fizeram uma das
colhida em frontarias e muros, por enquanto ainda defendida da chuva, acaso duas perguntas fatais,
Para onde, a outra, e pior, seria,
movendo uma cortina triste e bordada, olhando para fora com olhos vagos, ou- Para quê”, ll. 28-29), bem como
vindo gorgolhar a água dos telhados, algeroz3 abaixo até ao basalto das valetas, a sua enorme autodisciplina,
evitando as paixões e a
ao calcário nítido dos passeios, às sarjetas pletóricas4, levantadas algumas, se inquietude da alma (“sente
também uma sombra de
20 houve inundação. infelicidade passar-lhe sobre
o corpo, não sobre a alma,
EXCERTO 2 | Cap. I (pp. 14, 17-19) repito, não sobre a alma, esta
impressão é exterior”, ll. 74-75;
Um homem grisalho, seco de carnes, assina os últimos papéis, recebe as có- “parece este homem que não
tem mais que fazer, dorme,
pias deles, pode-se ir embora, sair, continuar em terra firme a vida. come, passeia”, ll. 186-187), e o
[…] o táxi arranca, o motorista quer que lhe digam, Para onde, e esta pergun- seu rigor, enquanto poeta, nas
formas estróficas e métricas
ta, tão simples, tão natural, tão adequada à circunstância e ao lugar, apanha (“faz um verso por outro, com
25 desprevenido o viajante, como se ter comprado a passagem no Rio de Janeiro grande esforço, penando sobre
o pé e a medida”, ll. 187-188).
tivesse sido e pudesse continuar a ser resposta para todas as questões, mes- A escolha de um hotel perto
mo aquelas, passadas, que em seu tempo não encontraram mais que o si- do rio pode também ser
entendida como uma marca
lêncio, agora mal desembarcou e logo vê que não, talvez porque lhe fizeram característica de Reis, já que
uma das duas perguntas fatais, Para onde, a outra, e pior, seria, Para quê. este elemento é recorrente
na sua poesia (veja-se, por
exemplo, a ode “Vem sentar-te
1
Parte externa e superior da cúpula de um edifício. 2 Peça de madeira que une as vigas ao cume. 3
Cano comigo, Lídia, à beira do rio”).
que recebe as goteiras de todo o telhado. 4 Demasiado cheias.

249
José Saramago

PROFESSOR 30 O motorista olhou pelo retrovisor, julgou que o passageiro não ouvira, já abria a
boca para repetir, Para onde, mas a resposta chegou primeiro, ainda irresoluta,
2.1 Lisboa é descrita suspensiva, Para um hotel, Qual, Não sei, e tendo dito, Não sei, soube o viajante
como uma cidade “pálida”,
“cinzenta” e “sombria”, o que queria, com tão firme convicção como se tivesse levado toda a viagem a
imagem reforçada pela chuva
que não para de cair e que
ponderar a escolha, Um que fique perto do rio, cá para baixo, Perto do rio só se
torna as águas do rio “turvas 35 for o Bragança, ao princípio da Rua do Alecrim, não sei se conhece, Do hotel
de barro”, ao mesmo tempo
que contribui para acentuar a não me lembro, mas a rua sei onde é, vivi em Lisboa, sou português, Ah, é por-
tristeza do ambiente – “Chove tuguês, pelo sotaque pensei que fosse brasileiro, Percebe-se assim tanto, Bom,
sobre a cidade pálida”(l. 1),
“os meninos espreitam a percebe-se alguma coisa, Há dezasseis anos que não vinha a Portugal, Dezasseis
cidade cinzenta” (l. 10), “Para anos são muitos, vai encontrar grandes mudanças por cá, e com estas palavras
além dos barracões do cais
começa a cidade sombria” 40 calou-se bruscamente o motorista.
(l. 15), “todos porejando Ao viajante não parecia que as mudanças fossem tantas. A avenida por onde
sombra e humidade” (l. 127),
“brumosa a arquitetura” (l. 87). seguiam coincidia, no geral, com a memória dela, só as árvores estavam mais
É uma cidade cujas
construções são, no geral,
altas, nem admira, sempre tinham sido dezasseis anos a crescer, e mesmo as-
térreas e estão dispostas sim, se na opaca lembrança guardava frondes verdes, agora a nudez invernal
sobre colinas. As valetas e
as ruas são de basalto e os
45 dos ramos apoucava a dimensão dos renques, uma coisa dava para a outra.
passeios de calcário, o que A chuva rareara, só algumas gotas dispersas caíam, mas no espaço não se abrira
acaba por contrastar com a
envolvência sombria. Apesar nem uma frincha de azul, as nuvens não se soltaram umas das outras, fazem
de possuir praças, estátuas um extensíssimo e único teto cor de chumbo. […] Passa devagar o comboio de
de figuras eminentes e
construções imponentes Cascais, […] mas fica para trás, entra na estação quando o automóvel já está a
como o Terreiro do Paço, 50 dar a volta ao largo, e o motorista avisa, O hotel é aquele, à entrada da rua. Parou
parece, no entanto, que
a cidade perdeu o seu brilho em frente de um café, acrescentou, O melhor será ir ver primeiro se há quartos,
e o seu fascínio.
Como em qualquer metrópole
não posso esperar mesmo à porta por causa dos elétricos. O passageiro saiu,
do século XX, nas horas de olhou o café de relance, Royal de seu nome, exemplo comercial de saudades
ponta as ruas são bastante
movimentadas, quer monárquicas em tempo de república, ou remanescência do último reinado, aqui
pelo afluxo de gente que 55 disfarçado de inglês ou francês, curioso caso este, olha-se e não se sabe como
passa, quer pela constante
circulação de carros elétricos, dizer a palavra, se rôial ou ruaiale, teve tempo de debater a questão porque já
carroças ou animais de carga, não chovia e a rua é a subir. […] Já ia vencendo os degraus exteriores do hotel
quer ainda pela afluência de
todo o tipo de vendedores quando compreendeu, por estes pensamentos, que estava muito cansado, era
e comerciantes que povoam o que sentia, uma fadiga muito grande, um sono da alma, um desespero, se
o ambiente de ruídos
e sonoridades diversas. 60 sabemos com bastante suficiência o que isso seja para pronunciar a palavra e
entendê-la.

EXCERTO 3 | Cap. II (pp. 39-42)

Ricardo Reis saiu cedo do hotel, foi ao Banco Comercial cambiar


algum do seu dinheiro inglês pelos escudos da pátria […]. Da Rua
do Comércio, onde está, ao Terreiro do Paço distam poucos me-
65 tros, apeteceria escrever, É um passo, se não fosse a ambiguidade
da homofonia, mas Ricardo Reis não se aventurará à travessia da
praça, fica a olhar de longe, sob o resguardo das arcadas, o rio par-
do e encrespado, a maré está cheia, quando as ondas se levantam
ao largo parece que vêm alagar o terreiro, submergi-lo, mas é ilu-
70 são de ótica, desfazem-se contra a muralha, quebra-se-lhes a for-
ça nos degraus inclinados do cais. Lembra-se de ali se ter sentado
O ano da morte de Ricardo Reis

em outros tempos, tão distantes que pode duvidar se os viveu ele mesmo, Ou
alguém por mim, talvez com igual rosto e nome, mas outro. Sente frios os pés,
húmidos, sente também uma sombra de infelicidade passar-lhe sobre o corpo,
75 não sobre a alma, repito, não sobre a alma, esta impressão é exterior, seria ca-
paz de tocar-lhe com as mãos se não estivessem ambas agarrando o cabo do
guarda-chuva, escusadamente aberto. Assim se alheia do mundo um homem,
assim se oferece ao desfrute de quem passa e diz, Ó senhor, olhe que aí debaixo
não lhe chove, mas este riso é franco, sem maldade, e Ricardo Reis sorri de se ter 5
Base em que assentam os
80 distraído, sem saber porquê murmura os dois versos de João de Deus, célebres pés de uma estátua.
na infância das escolas, Debaixo daquela arcada passava-se a noite bem. PROFESSOR
Veio por estar tão perto e para verificar, de caminho, se a antiga memória da
praça, nítida como uma gravura a buril, ou reconstruída pela imaginação para
assim o parecer hoje, tinha correspondência próxima na realidade material de 2.2 O facto de a cidade de
Lisboa ser associada a cores
85 um quadrilátero rodeado de edifícios por três lados, com uma estátua equestre sombrias e pálidas remete
e real ao meio, o arco do triunfo, que donde está não alcança a ver, e afinal tudo para o regime ditatorial que
se vivia em Portugal, em
é difuso, brumosa a arquitetura, as linhas apagadas, será do tempo que faz, será 1936, e que se caracterizava
do tempo que é, será dos seus olhos já gastos, só os olhos da lembrança podem pelo obscurantismo, pela
censura e pela perseguição
ser agudos como os do gavião. […] Afasta-se Ricardo Reis em direção à Rua do a todos aqueles que não eram
coniventes com a ideologia
90 Crucifixo, atura a insistência de um cauteleiro que lhe quer vender um décimo salazarista e que, por isso,
para a próxima extração da lotaria, É o mil trezentos e quarenta e nove, amanhã tentavam “rasgar as trevas”
a que estavam submetidos.
é que anda a roda, não foi este o número nem a roda anda amanhã, mas assim De facto, é por causa deste
soa o canto do áugure, profeta matriculado com chapa no boné, Compre, senhor, ambiente político que o
narrador, a propósito da visão
olhe que se não compra pode-se arrepender, olhe que é palpite, e há uma fatal apagada que Ricardo Reis
95 ameaça na imposição. Entra na Rua Garrett, sobe ao Chiado, estão quatro moços tem do Terreiro do Paço, se
questiona “será do tempo
de fretes encostados ao plinto5 da estátua, nem ligam à pouca chuva, é a ilha que faz, será do tempo que é”
dos galegos, e adiante deixou de chover mesmo, chovia, já não chove, há uma (excerto 3, ll. 87-88).
3. A deambulação geográfica
claridade branca por trás de Luís de Camões, um nimbo, e veja-se o que as pa- é evidente no facto de Ricardo
lavras são, esta tanto quer dizer chuva, como nuvem, como círculo luminoso, e Reis ir percorrendo a cidade
de Lisboa e visitando locais
100 não sendo o vate Deus ou santo, tendo a chuva parado, foram só as nuvens que como o Terreiro do Paço, a
se adelgaçaram ao passar, não imaginemos milagres de Ourique ou de Fátima, rua do Crucifixo, o Chiado, a
Praça da Figueira ou o Bairro
nem sequer esse tão simples de mostrar-se azul o céu. Alto. Existe também uma
viagem literária, na medida
EXCERTO 4 | Cap. II (pp. 53-56) em que, transitando por estes
locais, Ricardo Reis e o próprio
narrador vão evocando vários
Ricardo Reis almoçou sem ligar a dietas, […] Da mesa onde está, por entre os autores e textos da literatura
intervalos das cortinas, vê passarem lá fora os carros elétricos, ouve-os ranger portuguesa e mundial. Assim,
por exemplo, quando está
105 nas curvas, o tilintar das campainhas soando liquidamente na atmosfera coada por debaixo das arcadas do
de chuva, como os sinos duma catedral submersa ou as cordas de um cravo Terreiro do Paço, Reis recorda
dois versos célebres de João
ecoando infinitamente entre as paredes de um poço. Os criados esperam com de Deus. Na rua do Alecrim, a
paciência que este último freguês acabe de almoçar, entrou tarde, pediu por propósito da estátua de Eça de
Queirós, somos confrontados
favor que o servissem, e graças a essa prova de consideração por quem trabalha com a epígrafe de A relíquia e,
logo de seguida, na sequência
110 é que foi retribuído quando já na cozinha se arrumavam as panelas. Agora, sai, da observação da estátua
urbanamente deu as boas-tardes, e agradecendo saiu pela porta da Rua dos de Camões, é referido um
verso deste poeta. Aliás,
Correeiros, esta que dá para a grande babilónia de ferro e vidro que é a Praça da o autor de Os Lusíadas é
Figueira, ainda agitada, porém nada que se possa comparar com as horas da ma- constantemente evocado,
sempre que Ricardo Reis se
nhã, ruidosas de gritos e pregões até ao paroxismo. Respira-se uma atmosfera depara com a sua estátua ou
115 composta de mil cheiros intensos, a couve esmagada e murcha, a excrementos com a do Adamastor. Há ainda
referências literárias a Dante,
de coelho, a penas de galinha escaldadas, a sangue, a pele esfolada. Andam a Miguel de Cervantes, Virgílio,
lavar as bancadas, as ruas interiores, com baldes e agulheta, e ásperos piaçabas, entre outros.

251
José Saramago

6 ouve-se de vez em quando um arrastar metálico, depois um estrondo, foi uma


Verter pelos poros.
7 porta ondulada que se fechou. Ricardo Reis rodeou a praça pelo sul, entrou na
Mulas.
8 120 Rua dos Douradores, quase não chovia já, por isso pode fechar o guarda-chuva,
Epígrafe da obra A relíquia,
de Eça de Queirós. olhar para cima, e ver as altas frontarias de cinza parda, as fileiras de janelas à
mesma altura, as de peitoril, as de sacada, com as monótonas cantarias pro-
longando-se pelo enfiamento da rua, até se confundirem em delgadas faixas
verticais, cada vez mais estreitas, mas não tanto que se escondessem num ponto
125 de fuga, porque lá ao fundo, aparentemente cortando o caminho, levanta-se um
prédio da Rua da Conceição, igual de cor, de janelas e de grades, feito segundo
o mesmo risco, ou de mínima diferença, todos porejando6 sombra e humidade,
libertando nos saguões o cheiro dos esgotos rachados, com esparsas baforadas
de gás […]. A rua está calçada de pedra grossa, irregular, é um basalto quase pre-
130 to onde saltam os rodados metálicos das carroças e onde, em tempo seco, não
este, ferem lume as ferraduras das muares7 quando o arrasto da carga passa as
marcas e as forças. Hoje não há desses bojadores, só outros de menos aparato,
PROFESSOR como estarem descarregando dois homens sacas de feijão que, pelo vulto, não
pesam menos de sessenta quilos, ou serão litros, como se deve dizer quando se
4. Tal como na poesia de
Cesário, em O ano da morte
135 trata destas e doutras sementes, passando então os quilos a menos do que os
de Ricardo Reis a ditos, porque sendo o feijão, de sua íntima natureza, mais ligeiro, cada litro seu
deambulação pela cidade
de Lisboa serve de ponto orça por setecentos e cinquenta gramas, termo médio, oxalá tenham os medido-
de partida para reflexões res atendido a estas considerações de peso e massa quando encheram os sacos.
diversas sobre o real
circundante. Comum é É para o hotel que Ricardo Reis vai encaminhando os passos.
também a comiseração e a
identificação do narrador/
personagem com certas EXCERTO 5 | Cap. III (pp. 73-81, 83)
figuras do povo que vão sendo
observadas (os homens 140 Deixou de chover, o céu aclarou, pode Ricardo Reis, sem risco de molha in-
que descarregam as sacas cómoda, dar um passeio antes do almoço. Para baixo não vai, que a cheia ainda
de feijão fazem lembrar
os calceteiros do poema não se retirou completamente do Cais do Sodré, as pedras estão cobertas de lodo
"Cristalizações", por exemplo). fétido, o que a corrente do rio levantou da vasa funda e viscosa, se o tempo se
Além disso, a presença
constante de Camões no conservar assim virão os homens da limpeza com as agulhetas, a água sujou, a
percurso de Reis remete,
tal como acontece em
145 água lavará, bendita seja a água. Sobe Ricardo Reis a Rua do Alecrim, […] para
"O sentimento dum ocidental", diante da estátua de Eça de Queirós, ou Queiroz, por cabal respeito da ortografia
de Cesário Verde, para
a evocação de um passado que o dono do nome usou, ai como podem ser diferentes as maneiras de escre-
glorioso, contrastante com ver, e o nome ainda é o menos, assombroso é falarem estes a mesma língua e
a estagnação de um presente
moribundo. Comum é serem, um Reis, o outro, Eça, provavelmente a língua é que vai escolhendo os
também o visualismo de 150 escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte peque-
pendor impressionista, a
convergência dos sentidos na do que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como
e o recurso a advérbios e a iremos nós viver. Já as primeiras dificuldades começam a surgir, ou não serão
adjetivos expressivos −
“vê passarem lá fora os ainda dificuldades, antes diferentes e questionadoras camadas do sentido, se-
carros elétricos, ouve-os
ranger nas curvas, o tilintar
dimentos removidos, novas cristalizações, por exemplo, Sobre a nudez forte da
das campainhas soando 155 verdade o manto diáfano da fantasia8, parece clara a sentença, clara, fechada e
liquidamente na atmosfera
coada de chuva” (excerto 4, conclusa, uma criança será capaz de perceber e ir ao exame repetir sem se en-
ll. 104-106); “Respira-se uma ganar, mas essa mesma criança perceberia e repetiria com igual convicção um
atmosfera composta de mil
cheiros intensos” (excerto 4, novo dito, Sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade, e este
ll. 114-115); “Andam a lavar as dito, sim, dá muito mais que pensar, e saborosamente imaginar, sólida e nua a
bancadas, as ruas interiores,
com baldes e agulheta, e 160 fantasia, diáfana apenas a verdade, se as sentenças viradas do avesso passarem
ásperos piaçabas, ouve-se de a ser leis, que mundo faremos com elas, milagre é não endoidecerem os homens
vez em quando um arrastar
metálico, depois um estrondo” de cada vez que abrem a boca para falar. É instrutivo o passeio, ainda agora
(excerto 4, ll. 116-118).
contemplámos o Eça e já podemos observar o Camões, a este não se lembraram

252
O ano da morte de Ricardo Reis

de pôr-lhe versos no pedestal, e se um pusessem qual


165 poriam, Aqui, com grave dor, com triste acento9, o melhor
é deixar o pobre amargurado, subir o que falta da rua, da
Misericórdia que já foi do Mundo, infelizmente não se pode
ter tudo nem ao mesmo tempo, ou mundo ou misericórdia.
[…] Ricardo Reis atravessa o jardim, vai olhar a cidade, o castelo
170 com as suas muralhas derrubadas, o casario a cair pelas encostas.
O sol branqueado bate nas telhas molhadas, desce sobre a cidade
um silêncio, todos os sons são abafados, em surdina, parece Lisboa
que é feita de algodão, agora pingando. Em baixo, numa plataforma,
estão uns bustos de pátrios varões, uns buxos10, umas cabeças romanas,
175 descondizentes, tão longe dos céus lácios11, é como ter posto o zé-povinho
do Bordalo a fazer um toma ao Apolo do Belvedere12.

EXCERTO 6 | Cap. III (pp. 92-93)

Ricardo Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou ao
Camões, era como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre
ao mesmo lugar, a este bronze afidalgado e espadachim, espécie de D'Artagnan PROFESSOR
180 premiado com uma coroa de louros por ter subtraído, no último momento, os
5. Trata-se da metáfora
diamantes da rainha às maquinações do cardeal, a quem, aliás, variando os que serve para salientar
tempos e as políticas, ainda acabará por servir, mas este aqui, se por estar mor- a confusão e a falta de
organização das construções
to não pode voltar a alistar-se, seria bom que soubesse que dele se servem, na Praça da Figueira, que
à vez ou em confusão, os principais, cardeais incluídos, assim lhes aproveite surgem assim identificadas
com uma grande babilónia
185 a conveniência. São horas de almoçar, o tempo foi-se passando nestas cami- (termo que significa cidade
grande e confusa, construída
nhadas e descobertas, parece este homem que não tem mais que fazer, dorme, sem planeamento) de ferro e
come, passeia, faz um verso por outro, com grande esforço, penando sobre o vidro – os materiais usados
nos edifícios.
pé e a medida, nada que se possa comparar ao contínuo duelo do mosqueteiro
6. Este segmento remete-nos,
D'Artagnan, só os Lusíadas comportam para cima de oito mil versos, e no en- através da metáfora, para o
190 tanto este também é poeta, não que do título se gabe, como se pode verificar no conceito de intertextualidade
que, muitas vezes, ocorre pela
registo do hotel, mas um dia não será como médico que pensarão nele, nem em transformação do hipotexto
ou pela concessão de um novo
Álvaro como engenheiro naval, nem em Fernando como correspondente de lín- sentido (e daí a referência a
guas estrangeiras, dá-nos o ofício o pão, é verdade, porém não virá daí a fama, “diferentes e questionadoras
camadas do sentido,
sim de ter alguma vez escrito, Nel mezzo del camin di nostra vita13, ou, Menina sedimentos removidos, novas
195 e moça me levaram da casa de meus pais14, ou, En un lugar de la Mancha, de cristalizações”, excerto 5,
ll. 153-154). Além disso, esta
cuyo nombre no quiero acordarme15, para não cair uma vez mais na tentação de afirmação revela-se também
repetir, ainda que muito a propósito, As armas e os barões assinalados, perdoa- como uma forma de Saramago
assumir a presença constante,
das nos sejam as repetições, Arma virumque cano16. Há de o homem esforçar-se com ou sem variantes, da
sempre, para que esse seu nome de homem mereça, mas é menos senhor da evocação de outros textos
em O ano da morte de Ricardo
200 sua pessoa e destino do que julga, o tempo, não o seu, o fará crescer ou apagar, Reis.
por outros merecimentos algumas vezes, ou diferentemente julgados, Que serás 7.1 [A] Enquanto, na epopeia,
Camões põe a tónica no mar,
quando fores de noite e ao fim da estrada17. salientando a sua importância
na época áurea de Portugal
– a dos Descobrimentos –, em
O ano da morte de Ricardo Reis
9 assistimos a uma inversão
Verso de Camões, pertencente à Écloga V, a D. António de Noronha. 10 Arbusto. 11 Região da Itália antiga,
do sentido do verso como
onde foi fundada a cidade de Roma. 12 Estátua de mármore feita na Antiguidade Clássica que representa o forma de realçar o fim desses
deus Apolo. 13 SuPrimeiro verso de A Divina Comédia de Dante. 14 Frase com que se inicia a novela Menina tempos gloriosos, numa
e moça de Bernardim Ribeiro. 15 Primeira frase da obra D. Quixote de la Mancha de Miguel Cervantes. altura em que Portugal, tendo
16
Primeiro verso de A Eneida de Virgílio, obra em que Camões se inspirou para a conceção de Os Lusíadas. perdido o domínio dos mares,
17 vive voltado para si mesmo.
Versos pertencentes à ode de Ricardo Reis “Não tenhas nada nas mãos”.

253
José Saramago

PROFESSOR

Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.7;
14.9
Gramática
17.1; 18.2

Documento
Relações intertextuais: EXCERTO 7 | Cap. VIII (pp. 248-249)
Os Lusíadas (questão 7)
Ricardo Reis saiu, eram três menos um quarto, tempo de ir andando, atra-
Áudio/Documento
Três poemas dos vessou a praça onde puseram o poeta, todos os caminhos portugueses vão dar a
heterónimos (questão 9) 205 Camões, de cada vez mudado consoante os olhos que o veem, em vida sua braço
(Disponível na brochura às armas feito e mente às musas dada, agora de espada na bainha, cerrado o
Educação Literária, pp. 21-24 –
Dossiê do Professor)
livro, os olhos cegos, ambos, tanto lhos picam os pombos como os olhares indi-
ferentes de quem passa. Ainda não são três horas quando chega ao Alto de Santa
7.1 [B] A citação do primeiro
verso de Os Lusíadas surge Catarina. As palmeiras parecem transidas pela aragem que vem do largo, mas
no seguimento da evocação
de grandes nomes ligados à
210 as rígidas lanças das palmas mal se mexem. Não consegue Ricardo Reis lem-
literatura universal, de que brar-se se já aqui estavam estas árvores há dezasseis anos, quando partiu para
Camões é um exemplo, ainda
que se tenha inspirado o Brasil. O que de certeza não estava era este grande bloco de pedra, toscamente
na Eneida, de Virgílio, e usado, desbastado, que visto assim parece um mero afloramento de rocha, e afinal é
ipsis verbis, o primeiro verso
da epopeia romana. monumento, o furioso Adamastor, se neste sítio o instalaram não deve ser lon-
[C] A evocação dos versos de 215 ge o cabo da Boa Esperança. Lá em baixo, no rio, vogam fragatas, um rebocador
Os Lusíadas “Pera servir-vos,
braço às armas feito, / arrasta atrás de si dois batelões18, os navios de guerra estão amarrados às boias,
Pera cantar-vos, mente às com a proa apontada à barra, sinal de que a maré está a encher. Ricardo Reis pisa
Musas dada” serve para
confrontar a vida passada de o saibro19 húmido das áleas estreitas, o barro mole, não há outros contempla-
Camões, dedicada às armas dores neste miratejo se não contarmos dois velhos, sentados no mesmo banco,
e às letras, com o momento
presente, em que a sua figura 220 calados, provavelmente conhecem-se há tanto tempo que já lhes falta de que
é representada por uma
estátua inerte, tal como inerte
falarem, talvez andem só a ver quem morrerá primeiro. Friorento, levantando
ficou o poeta depois da sua a gola da gabardina, Ricardo Reis aproximou-se da grade que rodeia a primeira
morte, tendo caído, muitas
vezes, no esquecimento e nada vertente do morro, pensar que deste rio partiram, Que nau, que armada, que
podendo fazer em relação à frota pode encontrar o caminho, e para onde, pergunto eu, e qual […].
forma como a sua imagem e a
sua obra são utilizadas.
EXCERTO 8 | Cap. X (p. 305)
[D] Estes versos do
canto V de Os Lusíadas
surgem a propósito da 225 Ricardo Reis tem a testa gelada, apoiou-a na vidraça e ali se esqueceu, vendo
observação de Ricardo Reis cair a chuva, depois ouvindo-lhe apenas o rumor, até que veio o acendedor dos
da estátua do Adamastor, que
de imediato recorda a trágica candeeiros, então ficou cada lampião com seu fulgor e aura, sobre as costas de
história de amor do gigante, Adamastor cai uma já esmorecida luz, rebrilha o dorso hercúleo, será da água
vítima do engano e da cilada
de Tétis. que vem do céu, será um suor de agonia por ter a doce Tétis sorrido de escárnio
8. Quando, no excerto 6, 230 e maldizendo, Qual será o amor bastante de ninfa, que sustente o dum gigante,
o narrador afirma “mas este
aqui, se por estar morto não agora já ele sabe o que valiam as prometidas abondanças. Lisboa é um grande
pode voltar a alistar-se, seria silêncio que rumoreja, nada mais.
bom que soubesse que dele se
servem, à vez ou em confusão,
18
os principais, cardeais Grande barca para transporte de artilharia ou quaisquer objetos pesados. 19 Areia grossa com pequenas
incluídos, assim lhes aproveite pedras à mistura.
a conveniência.” (ll. 182-185)
ou, no excerto 7, declara
que “todos os caminhos 1. Comprove que a imagem de Ricardo Reis traçada por Saramago, no início do romance,
portugueses vão dar a coincide com a projetada por Fernando Pessoa na criação deste heterónimo.
Camões, de cada vez mudado
consoante os olhos que o
veem” (ll. 204-205), está a 2. Atente, nos vários excertos, à caracterização que é feita da Lisboa de 1936.
denunciar o aproveitamento
ideológico de Camões 2.1 Trace o retrato da cidade, recorrendo a elementos textuais.
(continua)
2.2 Infira a simbologia dos elementos cromáticos presentes na descrição da cidade.

254
O ano da morte de Ricardo Reis

3. Explique de que forma os excertos 3 a 8 espelham não só a deambulação geográfica


PROFESSOR
do protagonista da obra mas também uma viagem literária.
(cont.) e, muitas vezes, a
4. Explicite a aproximação existente entre a deambulação geográfica de O ano da morte subversão das suas palavras
de Ricardo Reis e a que estudou em Cesário Verde. por parte do regime ditatorial
português.
5. Identifique, comentando o seu valor semântico, o recurso expressivo presente em 9.1 a. Na ode “Só o ter flores
pela vista fora”, de Ricardo
“saiu pela porta da Rua dos Correeiros, esta que dá para a grande babilónia de ferro e Reis, o sujeito lírico, à maneira
vidro que é a Praça da Figueira”. (excerto 4, ll. 111-113) helénica, antevendo a morte
inerente a qualquer ser
6. Comente a seguinte afirmação do narrador: “Já as primeiras dificuldades começam a humano, evoca o barco de
Caronte (“barco escuro”),
surgir, ou não serão ainda dificuldades, antes diferentes e questionadoras camadas do responsável pelo transporte
sentido, sedimentos removidos, novas cristalizações”. (excerto 5, ll. 152-154) das almas pelo rio Estige
(“soturno rio”), em direção
ao reino dos Infernos. Assim,
7. Atente nas relações intertextuais estabelecidas entre O ano da morte de Ricardo Reis e a alusão a esse verso de
Os Lusíadas e que o seu professor lhe disponibilizará. Ricardo Reis, na descrição
do barco onde o heterónimo
7.1 Explique essas relações intertextuais. viajava, não só torna mais
credível a personagem Ricardo
8. Comprove, com base nos excertos 6 e 7, que o narrador denuncia o aproveitamento Reis como constitui um indício
da sua futura caminhada para
ideológico de Camões por parte do regime. a morte.
b. No poema XX de
9. Ouça a declamação de três poemas dos heterónimos de Fernando Pessoa. O guardador de rebanhos
de Alberto Caeiro, o sujeito
CD 2 9.1 Preencha, no seu caderno, um quadro semelhante ao que se segue, sobre as relações lírico discorre sobre a
E 20
FA I X

AS
18, 19 intertextuais estabelecidas entre O ano da morte de Ricardo Reis e os heterónimos. supremacia do rio da sua
aldeia, em detrimento do Tejo,
simplesmente por ser o rio da
G Hipertexto Autor do hipotexto Intencionalidade sua aldeia e não fazer pensar
em nada, ao contrário do rio
da capital que toda a gente
[A] “Um barco escuro sobe o fluxo soturno”
Ricardo Reis a. ______________ conhece e que está associado
(excerto 1, ll. 2-3) a grandes acontecimentos
históricos, como o da
[B] “entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual expansão marítima. Em O ano
Caeiro b. ______________ da morte de Ricardo Reis,
a aldeia.” (excerto 1, l. 9) a alusão ao verso serve para,
de uma forma jocosa,
[C] “estava muito cansado, era o que sentia, o narrador comparar o Tejo
ao Tamisa e, por conseguinte,
uma fadiga muito grande, um sono da alma, Campos c. ______________ Lisboa a Londres.
um desespero” (excerto 2, ll. 58-59)
c. No poema de Álvaro
de Campos, o sujeito lírico
confessa o seu enorme
9.2 Identifique o tipo de intertextualidade presente em [B]. cansaço existencial. Na obra
de Saramago, depois de ter
decidido voltar a Portugal e
de ser obrigado a optar por
E S C R I TA um alojamento, Ricardo Reis,
por ser alguém que acredita
serenamente no destino,
Lisboa é o palco onde decorre a ação de O ano da morte de Ricardo Reis, e a imagem da acaba por se sentir invadido
por um extremo cansaço:
cidade chega-nos, a cada passo, através do olhar subjetivo do heterónimo. tem de tomar decisões e pode
confrontar-se com situações
1. Escreva um texto de opinião, de 170 a 200 palavras, sobre a terra em que habita. que fogem ao seu controlo.
Planifique previamente o seu texto, considerando as seguintes orientações: 9.2 Alusão.

š estrutura tripartida (introdução, desenvolvimento e conclusão); Escrita


10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3;
š explicitação de um ponto de vista (discurso valorativo); 12.4; 13.1
š inclusão de argumentos e respetivos exemplos;
Nota: Disponível, no Guia
š seleção vocabular, articulação coerente, correção linguística e sintática. do Professor, um cenário de
resposta para a atividade da
BLOCO INFORMATIVO – p. 378 Escrita.
PREPARAR O EXAME – p. 60

255
José Saramago

INFORMAR

O espaço da cidade.
Deambulação geográfica e viagem literária
TEXTO A
A reversão intertextual permite ao escritor Saramago comparar tempos e confi-
gurações do espaço português, nomeadamente, do espaço de Lisboa. Em Saramago
é-se confrontado com a paisagem real da cidade de Lisboa, onde o rio de águas lím-
pidas e serenas se transforma numa corrente suja, turva, enlameada e turbulenta.
5 Sob o peso destas “águas turvas” que são o próprio reverso das que espelhavam
o céu azul – símbolo de um passado de glórias – Lisboa é apresentada como uma
cidade “sombria”, “alagada”, “recolhida”, silenciada pelas sombras cinzentas de um
ano de mau tempo, simbolizando a ditadura, o silêncio e as perseguições.
A imagem de uma Lisboa “feita de algodão” sugere o imobilismo da cidade, que
10 vai absorvendo o mau tempo e, não conseguindo suportar o excesso, permanece
“agora pingando” (ou chorando), em silêncio, determinando um viver recolhido e
amedrontado que só tem no silêncio a sua opção de voz.
A cidade, porém, no mundo ficcional do romance, não se apresenta só na sua
realidade geográfica, incorpora-se também nela o ambiente social e intelectual,
15 onde os protagonistas se movem e atuam, substanciando uma época, na sua ma-
neira de pensar, de sentir e de agir.
Em O ano da morte de Ricardo Reis, Saramago parte do labirinto da cidade para
revisitar, repensar, reescrever e até reinventar a História de Portugal, numa longa
viagem pelo tempo factual através do tempo simbólico e alegórico.
20 A memória gloriosa eternizada nas estátuas, da cidade que foi outrora a “cabeça
do mundo”, graças à descoberta que dele fez em termos geográficos, científicos e
culturais, contrasta com a Lisboa de 1936, atrasada, oprimida e miserável.
O passeio de Ricardo Reis por Lisboa, revisitando a cidade, aproxima o leitor à obra
Rua do Alecrim, “Viagens” de Almeida Garrett e a “O sentimento dum ocidental” de Cesário Verde.
Lisboa.
Maria Fernanda Miranda Gomes Moreira Barbosa, O ano da morte de Ricardo Reis: romance
pós-moderno?, Porto, Universidade Fernando Pessoa, 2010, pp. 55-58 (com supressões e adaptações).

TEXTO B
A viagem de Ricardo Reis é perfeitamente antiépica, a começar pela viagem de
barco, voluntariamente escamoteada pelo discurso, que pretende inaugurar o tem-
po da terra: “Aqui o mar acaba e a terra principia”. Essa é uma viagem de volta, feita
por mares longamente navegados, onde a heroicidade portuguesa só pode ter lugar
5 quando voltada reacionariamente para o passado. No presente, o mar sabido não
pode fornecer material à nova epopeia e Portugal, que antes se definia pelo modelo
camoniano – “onde a terra se acaba e o mar começa” – perdeu o mar e só lhe restou
a terra, onde, de volta, Ricardo Reis pisa para se aventurar em longas caminhadas
de reconhecimento por uma Lisboa que deixara há anos e por onde a nova expe-
10 riência vai começar.
Em terra, passeia por Lisboa, e no mapear a cidade – Rua do Alecrim, estátua
de Eça, o Camões, o Largo de S. Roque ou o Adamastor, descendo outras vezes o
Chiado – cada ponto desencadeia no sujeito Ricardo Reis um processo de divaga-
ção, onde o elemento exterior funciona mais como catalisador da subjetividade do

256
O ano da morte de Ricardo Reis

15 que como valor em si. O deambular de Reis é um percurso interno, uma nova
“Lisbon revisited”.
Poeta nascido do texto, o seu espaço é fundamentalmente o da literatura, daí
não haver apenas um deambular físico – o da Lisboa revisitada – mas, paralela-
mente, um deambular textual – o da literatura revisitada. No corpo do romance
20 tecem-se, então, outros discursos da produção pessoana ou camoniana, além de
alusões à galeria de personagens do mundo ficcional, de textos poéticos varia-
dos e frases históricas reconhecidamente famosas, sem esquecer as referências
bíblicas não menos comuns.
O que surge é um texto polifónico, que faz interagir e cruzar-se discursos de
25 sujeitos poéticos variados – Pessoa, Campos, Caeiro, Camões, Garrett, Camilo
Pessanha e outros, além do próprio Reis. Por vezes, a alusão é literal, mas quase
sempre se funde ao corpo do discurso romanesco, com variantes que denun-
ciam a apropriação a nível de paráfrase ou de paródia, reduplicando o sentido
ou invertendo-o voluntariamente. É esse processo de inversão de sentido que
30 inaugura e finda o romance, garantindo-lhe a estrutura circular que o caracte-
riza. O discurso, como um todo, é fundamentalmente alusivo e ganha sentidos
novos quando é fruído em sua pluralidade de vozes.
Nesse revisitar os textos que, por coerência interna, só a poetas caberia, o
grande texto e o grande eco anterior à produção pessoana é, evidentemente,
35 Camões, que inaugura e encerra o livro, relido, transformado, mas presente.
A sua presença é quase obsessiva, Ricardo Reis está sempre à sua volta, desde
os tempos do Hotel Bragança, ou quando encontra local para trabalhar numa
policlínica de onde se vê a estátua do épico do passado, ou ainda quando vai PROFESSOR

residir no Alto de Santa Catarina, frente ao Adamastor. A um tempo, aliás, falará


Leitura
40 dessa pulsão do destino que o leva constantemente a revisitar Camões – o da 7.3; 7.4; 8.1
praça e o do texto – como se vivesse num labirinto onde os caminhos já lidos
o reconduzissem sempre de volta à fonte, ao princípio, ao Padrão da posse da 1.
a. V
língua, da poesia e da História.
b. V
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago: entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, c. F − O silêncio é
Lisboa, Dom Quixote, 1989, pp. 148-160 (com supressões). representativo do clima de
ameaça e perseguição que se
vivia na época, em Portugal,
1. Assinale, no seu caderno, como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas. e que limitava a liberdade de
expressão e de pensamento.
a. A viagem de regresso de Ricardo Reis é considerada perfeitamente antiépica, dado, no
d. F − O espaço exterior
presente, o mar ter deixado de ser visto como um caminho em direção à glória. funciona como ponto de
partida e como incentivo para
b. A forma como a cidade de Lisboa aparece descrita funciona como um símbolo das cir- diversos tipos de divagações
cunstâncias políticas e históricas vividas em Portugal, em 1936. por parte de Ricardo Reis.
e. F − A viagem literária
c. O silêncio de Lisboa, tantas vezes referido na obra, resulta do facto de, em 1936, a cida- decorre do facto de,
de não ser ainda uma grande metrópole. a cada passo, assistirmos
a evocações e discursos de
d. A cidade de Lisboa ocupa um lugar essencial na obra, uma vez que, ao longo da sua escritores muito variados.
deambulação, a preocupação de Ricardo Reis se centra na descrição objetiva do espaço f. F − Além de não estarem
exterior que o circunda. assinalados, fundindo-se,
quase sempre, no próprio
e. A viagem literária a que se assiste na obra decorre do facto de Ricardo Reis ser poeta. discurso do narrador ou
das personagens, os textos
f. Todas as relações intertextuais que se estabelecem na obra estão devidamente assina- evocados nem sempre são fiéis
ladas e são fiéis ao texto original, classificando-se, assim, como citações. ao original, surgindo muitas
vezes sob a forma de alusões,
g. O relevo concedido à figura de Camões resulta do facto de as representações físicas do paráfrases ou paródias.
poeta surgirem a cada passo na vida de Ricardo Reis e de o autor de Os Lusíadas ser um g. V
marco inultrapassável na literatura portuguesa.

257
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Representações do amor − Marcenda


EXCERTO 1 | Cap. I (pp. 30-32)

A porta abriu-se outra vez, agora entrou um homem de meia-idade, alto, for-
mal, de rosto comprido e vincado, e uma rapariga de uns vinte anos, se os tem, ma-
gra, ainda que mais exato seria dizer delgada, dirigem-se para a mesa fronteira à de
Ricardo Reis, de súbito tornara-se evidente que a mesa estava à espera deles, como
5 um objeto espera a mão que frequentemente o procura e serve, serão hóspedes
habituais, talvez os donos do hotel, é interessante como nos esquecemos de que os
hotéis têm dono [...]. A rapariga fica de perfil, o homem está de costas, conversam
em voz baixa, mas o tom dela subiu quando disse, Não, meu pai, sinto-me bem,
são portanto pai e filha, conjunção pouco costumada em hotéis, nestas idades […].
10 A rapariga magra acabou a sopa, pousa a colher, a sua mão direita vai afagar, como
um animalzinho doméstico, a mão esquerda que descansa no colo. Então Ricardo
Reis, surpreendido pela sua própria descoberta, repara que desde o princípio aquela
mão estivera imóvel, recorda-se de que só a mão direita desdobrara o guardanapo,
e agora agarra a esquerda e vai pousá-la sobre a mesa, com muito cuidado, cristal
15 fragilíssimo, e ali a deixa ficar, ao lado do prato, assistindo à refeição, os longos
dedos estendidos, pálidos, ausentes. Ricardo Reis sente um arrepio, é ele quem o
sente, ninguém por si o está sentindo, por fora e por dentro da pele se arrepia, e
olha fascinado a mão paralisada e cega que não sabe aonde há de ir se a não leva-
rem […]. Chegou ao fim da refeição, ainda se demora um pouco, a dar tempo, que
20 tempo e para quê, enfim levantou-se, afasta a cadeira, e o rumor do arrastamento,
acaso excessivo, fez voltar-se o rosto da rapariga, de frente tem mais que os vinte
anos que antes parecera, mas logo o perfil a restitui à adolescência, o pescoço alto
e frágil, o queixo fino, toda a linha instável do corpo, insegura, inacabada.

EXCERTO 2 | Cap. V (pp. 134-135)

Ainda faltam duas horas para o jantar, neste meio tempo chegarão os hóspe-
25 des de Coimbra se não houver atraso do comboio, Mas a mim que me interessa,
pergunta Ricardo Reis enquanto sobe a escada para o seu quarto, e responde que é
sempre agradável conhecer gente doutros lugares, pessoas educadas, além do in-
teressante caso clínico que é Marcenda, estranho nome, nunca ouvido, parece um
murmúrio, um eco, uma arcada de violoncelo, les sanglots longs de l'automne1, os
30 alabastros, os balaústres2, esta poesia de sol-posto e doente irrita-o, as coisas de
1
que um nome é capaz, Marcenda.
“Os longos soluços
do outono”, versos,
EXCERTO 3 | Cap. VI (p. 170)
transcritos com
alterações, que iniciam Ricardo Reis fez uma pausa, parecia refletir, depois, debruçando-se, estendeu as
a “Canção de outono”,
mãos para Marcenda, perguntou, Posso, ela inclinou-se também um pouco para a
do poeta francês Paul
Verlaine. frente e, continuando a segurar a mão esquerda com a mão direita, colocou-a en-
2
Alusão, em conjunto
35 tre as mãos dele, como uma ave doente, asa quebrada, chumbo cravado no peito.
com a referência que Devagar, aplicando uma pressão suave mas firme, ele percorreu com os dedos toda
antecede os versos a mão dela, até ao pulso, sentindo pela primeira vez na vida o que é um abandono
de Verlaine, ao poema
“Os violoncelos”,
total, a ausência duma reação voluntária ou instintiva, uma entrega sem defesa,
de Camilo Pessanha. pior ainda, um corpo estranho que não pertencesse a este mundo.

258
O ano da morte de Ricardo Reis

EXCERTO 4 | Cap. XI (pp. 339-342)

40 Hoje é o derradeiro dia do prazo que ninguém marcou. […] Uma vez, dez
vezes viu Ricardo Reis as horas, são quatro e meia, Marcenda não veio e não
virá, a casa escurece, os móveis escondem-se numa sombra trémula, é possível,
agora, compreender o sofrimento de Adamastor. E porque mais do que tanto
seria crueldade, soam no último minuto as duas pancadas da aldraba da porta.
45 [...] Recuou Ricardo Reis para a porta, Marcenda sobe o último lanço […]. Ricardo
Reis pega-lhe na mão direita, não para a cumprimentar, apenas quer guiá-la
neste labirinto doméstico, para o quarto nunca, por impróprio, para a sala de
jantar seria ridículo, em que cadeiras da comprida mesa se sentariam, um ao
lado do outro, defronte, e aí quantos seriam, inúmeros ele, ela decerto não úni-
50 ca, seja então para o escritório, ela num sofá, eu noutro, entraram já, estão en-
fim todas as luzes acesas, a do teto, a da secretária, Marcenda olha em redor […],
então Ricardo Reis diz, Vou beijá-la, ela não respondeu, num gesto lento segu-
rou o cotovelo esquerdo com a mão direita, [...] Ricardo Reis avançou um passo,
ela não se mexeu, outro passo, quase lhe toca, então Marcenda solta o cotovelo,
55 deixa cair a mão direita, sente-a morta como a outra está, a vida que há em si
divide-se entre o coração violento e os joelhos trémulos, vê o rosto do homem
aproximar-se devagar, sente um soluço a formar-se-lhe na garganta, na sua, na
dele, os lábios tocam-se, é isto um beijo, pensa, mas isto é só o princípio do bei-
jo, a boca dele aperta-se contra a boca dela, são os lábios dele que descerram os
60 lábios dela, é esse o destino do corpo, abrir-se, agora os braços de Ricardo Reis
apertam-na pela cintura e pelos ombros, puxam-na, e o seio comprime-se pela PROFESSOR
primeira vez contra o peito de um homem, ela compreende que o beijo ainda
não acabou, que neste momento não é sequer concebível que possa terminar, Educação Literária
14.1; 14.2; 14.3; 14.4;
e voltar o mundo ao princípio, à sua primeira ignorância, compreende também 14.5; 14.7; 14.8; 14.9;
65 que deve fazer mais alguma coisa que estar de braços caídos, a mão direita sobe 15.3; 16.2
até ao ombro de Ricardo Reis, a mão esquerda está morta, ou adormecida, por Gramática
17.1; 18.3
isso sonha, e no sonho relembra os movimentos que fez noutro tempo, escolhe,
liga, encadeia os que, a sonhar, a erguem até à outra mão, agora já se podem 1. Marcenda é uma jovem com
entrelaçar os dedos com os dedos, cruzarem-se por trás da nuca do homem, não mais de vinte anos, delgada, de
pescoço esguio, queixo fino e
70 deve nada a Ricardo Reis, responde ao beijo com o beijo, às mãos com as mãos, de contornos pouco definidos.
pensei-o quando decidi vir, pensei-o quando saí do hotel, pensei-o quando su- Sofre de paralisia na mão
esquerda, o que condiciona
bia aquela escada e o vi debruçado do corrimão, Vai beijar-me. A mão direita muito o seu comportamento
retira-se do ombro, escorrega, exausta, a esquerda nunca lá esteve, é a altura de (cuida da mão como se de um
animalzinho desprotegido se
o corpo ter um movimento ondulatório de retração, o beijo atingiu aquele limite tratasse) e anula os projetos
futuros (desiste de ser
75 em que já não se pode bastar a si mesmo, separemo-nos antes que a tensão feliz, recusando o pedido de
acumulada nos faça passar ao estádio seguinte, o da explosão doutros beijos, casamento de Ricardo Reis).
É uma mulher virgem e
precipitados, breves, ofegantes, em que a boca se não satisfaz com a boca, mas inexperiente, tendo sido
a ela volta constantemente, quem de beijos tiver alguma experiência sabe que Ricardo Reis o primeiro
homem a beijá-la. Revela
é assim, não Marcenda, pela primeira vez abraçada e beijada por um homem. ser destemida e um pouco
arrojada para a época, já
EXCERTO 5 | Cap. XIII (pp. 406-407) que não se coíbe de visitar
o poeta em sua casa e no
80 Marcenda apareceu no consultório. […] seu consultório. Contudo,
é uma mulher sem grandes
Ricardo Reis segurou-lhe a mão esquerda, levou-a aos lábios, depois bafejou-a convicções e sem vontade
própria, dado que está
muito devagar como se estivesse a reanimar uma ave transida de frio, no ins- disposta a ir a Fátima,
tante seguinte era a boca de Marcenda que ele beijava, e ela a ele, segundo e já simplesmente para agradar
ao pai.
voluntário beijo, então como uma alta cascata, trovejando, o sangue de Ricardo

259
José Saramago

85 Reis desce às profundas cavernas, metafórico modo de dizer que se ergue o seu
sexo […]. Sentiu-o Marcenda, por isso se afastou, para tornar a senti-lo se apro-
ximou outra vez, e juraria que não se fosse interrogada, virgem louca, mas as
bocas não se tinham separado, enfim ela gemeu, Tenho de ir, saiu-lhe dos bra-
ços, sem forças sentou-se numa cadeira, Marcenda, case comigo, disse Ricardo
90 Reis, ela olhou-o, subitamente pálida, depois disse, Não, muito devagar o disse,
parecia impossível que uma palavra tão curta levasse tanto tempo a pronunciar,
muito mais tempo do que as outras que disse depois, Não seríamos felizes. Du-
rante alguns minutos ficaram calados, pela terceira vez Marcenda disse, Tenho
de ir, mas agora levantava-se e caminhava para a porta, ele seguiu-a, queria
95 retê-la, mas ela já estava no corredor, ao fundo aparecia a empregada, então Ri-
cardo Reis em voz alta, Eu acompanho-a, e assim fez, despediram-se apertando
as mãos, ele disse, Os meus cumprimentos a seu pai, ela falou doutra coisa, Um
dia, e não acabou a frase.

EXCERTO 6 | Cap. XIV (pp. 409-410)

PROFESSOR Aos poucos dias chegou uma carta, a conhecida cor de violeta exangue, […]
100 as mesmas palavras, Foi grande imprudência visitá-lo, não voltará a acontecer,
2. Apologista de uma
vivência sem paixões e sem nunca mais nos tornaremos a ver, mas acredite em mim, ficará para sempre na
envolvimentos, regida pela minha lembrança por muitos anos que viva, se as coisas fossem diferentes, se
ataraxia e pela crença na
fatalidade do destino, Ricardo eu fosse mais velha, se este braço sem remédio, sim, é verdade, fui desengana-
Reis faz tudo para controlar as
suas emoções e não se deixar
da, o médico acabou por reconhecer que não tenho cura, [...] eu já esperava, nem
afetar por nada. No entanto, 105 tive ânimo de chorar, e não é de mim que tenho pena, é do meu braço, tomo
a sua autodisciplina falha,
quando ele se apercebe conta dele como de uma criança que nunca poderá sair do berço, acaricio-o
da paralisia da mão esquerda como se não me pertencesse, animalzinho achado na rua, pobre braço, que seria
de Marcenda, a tal ponto
que sente um arrepio e não dele sem mim, adeus, meu amigo, meu pai continua a dizer que devo ir a Fátima
consegue deixar de continuar e eu vou, só para lhe dar gosto, se ele disto precisa para ficar em paz com a cons-
a observá-la.
3.1 O segmento remete para
110 ciência, assim acabará por pensar que foi a vontade de Deus, [...] não lhe digo
algo inacessível, intocável, que se esqueça de mim, pelo contrário, peço-lhe que se lembre todos os dias,
distante, o que prenuncia o
desfecho do envolvimento mas não me escreva, nunca mais irei à posta-restante, e agora termino, acabo,
romântico de Ricardo Reis e disse tudo. Marcenda não escreve desta maneira, é escrupulosa na obediência às
de Marcenda: a vivência de um
amor impossível, de contornos regras da sintaxe, meticulosa na pontuação, mas a leitura de Ricardo Reis, sal-
platónicos. 115 tando de linha em linha, à procura do essencial, desprezou o tecido conjuntivo,
4. Da mesma forma que a mão
paralisada de Marcenda não
um ou dois pontos de exclamação, umas reticências pretensamente eloquentes,
tem nenhum tipo de reação e mesmo quando fez segunda leitura, e terceira, não leu mais do que tinha lido
voluntária (é “um corpo
estranho”, l. 39, e manifesta antes, porque lera tudo, como Marcenda tudo dissera.
um “abandono total”, ll. 37-38),
também Ricardo Reis EXCERTO 7 | Cap. XVI (pp. 492-493)
inicialmente tenta adotar uma
atitude passiva, escusando- A esta mesma hora, naquele segundo andar da Rua de Santa Catarina, Ricar-
se a tomar partido, decisões
ou a defender determinada 120 do Reis tenta escrever um poema a Marcenda, para que amanhã não se diga que
posição, à boa maneira Marcenda passou em vão, Saudoso já deste verão que vejo, lágrimas para as flo-
estoica. De facto, tal como
Fernando Pessoa afirmava, res dele emprego na lembrança invertida de quando hei de perdê-las, esta ficará
Ricardo Reis começa por agir
como se fosse um estrangeiro
sendo a primeira parte da ode, até aqui ninguém adivinharia que de Marcenda
no mundo contemporâneo, tão se vai falar, embora se saiba que muitas vezes começamos por falar de horizonte
distante da sua amada Grécia.
125 porque é o mais curto caminho para chegar ao coração. Meia hora depois, ou

260
O ano da morte de Ricardo Reis

uma hora, ou quantas, que o tempo, neste fazer de versos, se detém ou precipita,
ganhou forma e sentido o corpo intermédio, não é sequer o lamento que pare-
cera, apenas o sábio saber do que não tem remédio, Transpostos os portais irre-
paráveis de cada ano, me antecipo a sombra em que hei de errar, sem flores, no
130 abismo rumoroso. Dorme toda a cidade na madrugada, […] e é neste momento PROFESSOR
que o poema se completa, difícil, [...] para termos também parte na obra, E colho
a rosa porque a sorte manda. Marcenda, guardo-a, murche-se comigo antes que 5.1 Apesar de a relação
entre ambos ter assumido
com a curva diurna da ampla terra. Deitou-se Ricardo Reis vestido na cama, a contornos físicos pouco
mão esquerda pousada sobre a folha de papel, se adormecido passasse do sono tempo depois de se terem
conhecido, já que se beijam
135 para a morte, julgariam que é o seu testamento, a última vontade, a carta do sofregamente, Marcenda
adeus, e não poderiam saber o que seja, mesmo tendo-a lido, porque este nome acaba por impor uma vivência
platónica ao seu amor: recusa-
de Marcenda não o usam mulheres, são palavras doutro mundo, doutro lugar, -se a casar com o médico e
a voltar a vê-lo, ao mesmo
femininos mas de raça gerúndia, como Blimunda, por exemplo, que é nome à tempo que lhe assegura que
espera de mulher que o use, para Marcenda, ao menos, já se encontrou, mas nunca o esquecerá; pede,
em contrapartida, que Reis
140 vive longe. se lembre dela todos os
dias. Ricardo Reis, por seu
lado, pretende selar o fim da
1. Trace o retrato físico e psicológico de Marcenda, com base nos excertos lidos. relação, deixando-a eternizada
numa ode.
5.2 Na ode que Ricardo
2. Comprove que o primeiro contacto visual com Marcenda teve um impacto incomum Reis escreve transparece a
em Ricardo Reis. autodisciplina do sujeito lírico
que, consciente da fugacidade
e efemeridade da vida, se
3. Considere o segmento “Marcenda, estranho nome, nunca ouvido, parece um murmú- dispõe a aceitar serenamente
rio, um eco, uma arcada de violoncelo, les sanglots longs de l'automne, os alabastros, a inevitabilidade da morte.
Esta é, assim, uma maneira
os balaústres”. (excerto 2, ll. 28-30) de Ricardo Reis assumir o
fim da sua relação com a
3.1 Infira a intenção deste excerto, tendo em consideração um possível envolvimento filha do doutor Sampaio,
romântico entre as duas personagens. que murchou como uma flor,
mas que ele está disposto a
guardar sempre consigo. Esta
4. Demonstre de que forma as palavras usadas pelo narrador relativamente à paralisia é ainda uma forma de elevar
de Marcenda, no final do excerto 3, se coadunam com a atitude estoica de Reis no Marcenda à categoria de musa
inacessível e distante.
início do romance. 6.1 A comparação serve
para salientar a fraqueza
5. Considere a relação de Ricardo Reis e de Marcenda e a ode escrita por Reis, presente da mão de Marcenda e a
tentativa de Ricardo Reis
no excerto 7. a curar. Extensivamente,
esta expressão aplica-se à
5.1 Caracterize, primeiramente, a relação existente entre ambos. própria personagem que,
pela sua desistência da vida,
5.2 Analise os versos da ode, à luz desse relacionamento. ia murchando a cada dia, tal
como o nome indicia e o uso do
6. Atente no excerto “bafejou-a muito devagar como se estivesse a reanimar uma ave gerúndio traduz e reforça.
transida de frio” (excerto 5, ll. 81-82) e no significado do nome Marcenda − palavra derivada 7. O tom oralizante é visível,
por um lado, pelo facto de
do verbo latino MARCERE, que significa ‘estar murcho’, e que se encontra no gerúndio. o segmento funcionar como
uma espécie de parênteses
6.1 Identifique e interprete o recurso expressivo presente no excerto, relacionando-o com que o narrador abre para
o significado do nome da figura feminina. fazer uma observação e, por
outro, pela envolvência do
narratário no discurso, como
G 7. Explique por que razão se pode afirmar que o segmento “é interessante como nos se de uma verdadeira conversa
esquecemos de que os hotéis têm dono” (ll. 6-7) funciona como um exemplo do tom se tratasse.
8. Discurso indireto livre.
oralizante de Saramago.
9. Predominantemente,
a sequência textual é de
8. Identifique o modo de relato do discurso presente em “serão hóspedes habituais, natureza descritiva, uma
talvez os donos do hotel”. (ll. 5-6) vez que estamos perante a
caracterização de Marcenda
e do pai.
9. Identifique, justificando, a sequência textual predominante nas linhas 1 a 3 do excerto 1.

261
José Saramago

PROFESSOR EDUCAÇÃO LITERÁRIA


Sugestão
Antes da leitura destes Representações do amor − Lídia
excertos, solicite aos alunos
que recordem o poema
EXCERTO 1 | Cap. II (pp. 59-62)
“Vem sentar-te comigo,
Lídia, à beira do rio” e a
caracterização de Lídia Ouviu passos no corredor, ressoaram discretamente uns nós de dedos na
aí feita (cf. pp. 72-73). porta, Entre, […] Como se chama, e ela respondeu, Lídia, senhor doutor, e acres-
centou, Às ordens do senhor doutor, […] mas ele não respondeu, apenas pareceu
que repetira o nome, Lídia, num sussurro, quem sabe se para não o esquecer
5 quando precisasse de voltar a chamá-la, há pessoas assim, repetem as palavras
que ouvem, as pessoas, em verdade, são papagaios umas das outras, nem há
outro modo de aprendizagem, acaso esta reflexão veio fora de propósito por-
que não a fez Lídia, que é o outro interlocutor, deixemo-la sair então, se já tem
nome, levar dali o balde e o esfregão, vejamos como ficou Ricardo Reis a sorrir
10 ironicamente, é um jeito de lábios que não engana, quando quem inventou a
ironia inventou a ironia, teve também de inventar o sorriso que lhe declarasse a
intenção, alcançamento muito mais trabalhoso, Lídia, diz, e sorri. Sorrindo vai
buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas, lê alguns versos apanha-
dos no passar das folhas, E assim, Lídia, à lareira, como estando, Tal seja, Lídia,
15 o quadro, Não desejemos, Lídia, nesta hora, Quando, Lídia, vier o nosso outo-
no, Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira-rio, Lídia, a vida mais vil antes que a
morte, já não resta vestígio de ironia no sorriso, se de sorriso ainda justificam o
nome dois lábios abertos sobre os dentes, quando por dentro da pele se alterou
o jogo dos músculos, ricto agora ou doloroso esgar se diria em estilo chumbado.
20 Também isto não durará. Como a imagem de si mesmo refletida num trémulo
espelho de água, o rosto de Ricardo Reis, suspenso sobre a página, recompõe as
linhas conhecidas, daqui a pouco poderá reconhecer-se, Sou eu, sem nenhuma
ironia, sem nenhum desgosto, contente de não sentir sequer contentamento,
menos ser o que é do que estar onde está, assim faz quem mais não deseja ou
25 sabe que mais não pode ter, por isso só quer o que já era seu, enfim, tudo. […]
Ricardo Reis faz um gesto com as mãos, tateia o ar cinzento, depois, mal distin-
guindo as palavras que vai traçando no papel, escreve, Aos deuses peço só que
me concedam o nada lhes pedir.
EXCERTO 2 | Cap. IV (pp. 113-114)

Já conhecemos a criada que traz o pequeno-almoço, é a Lídia,


30 […] tem quê, os seus trinta anos, é uma mulher feita e bem feita,
morena portuguesa, mais para o baixo que para o alto, se há im-
portância em mencionar os sinais particulares ou as caracterís-
ticas físicas duma simples criada que até agora não fez mais que
limpar o chão, servir o pequeno-almoço e, uma vez, rir-se de
35 ver um homem às costas doutro, enquanto este hóspede sorria,
tão simpático, mas tem o ar triste, não deve de ser pessoa feliz,
ainda que haja momentos em que o seu rosto se torna claro.
O ano da morte de Ricardo Reis

EXCERTO 3 | Cap. IV (pp. 130-132)

Chegou ao hotel, abriu-lhe Pimenta a porta […]. Entrou no quarto, e, não


advertindo que fazia este movimento antes de qualquer outro, olhou a cama.
40 Não estava aberta como de costume, em ângulo, mas por igual dobrados lençol
e colcha, de lado a lado. E tinha, não uma almofada, como sempre tivera, mas
duas. Não podia ser mais claro o recado, faltava saber até que ponto se tornaria
explícito. […] Deitou-se, apagou a luz, deixara ficar a segunda almofada, fechou
os olhos com força, vem, sono, vem, mas o sono não vinha, na rua passou um
45 elétrico, talvez o último, quem será que não quer dormir em mim, o corpo in-
quieto, de quem, ou o que não sendo corpo com ele se inquieta, eu por inteiro,
ou esta parte de mim que cresce, meu Deus, as coisas que podem acontecer a
um homem. Levantou-se bruscamente, e, mesmo às escuras, guiando-se pela
luminosidade difusa que se filtrava pelas janelas, foi soltar o trinco da porta,
50 depois encostou-a devagar, parece fechada e não está, basta que apoiemos nela
subtilmente a mão. Tornou a deitar-se, isto é uma criancice, um homem, se quer
uma coisa, não a deixa ao acaso, faz por alcançá-la, haja vista o que trabalharam
no seu tempo os cruzados, espadas contra alfanges, morrer se for preciso, e os
castelos, e as armaduras, depois, sem saber se ainda está acordado ou dorme já, PROFESSOR
55 pensa nos cintos de castidade de que os senhores cavaleiros levaram as chaves,
pobres enganados, aberta foi a porta deste quarto, em silêncio, fechada está, um Educação Literária
14.1; 14.2; 14.3; 14.4;
vulto atravessa tenteando, para à beira da cama, a mão de Ricardo Reis avança e 14.5; 14.6; 14.7; 14.8;
encontra uma mão gelada, puxou-a, Lídia treme, só sabe dizer, Tenho frio, e ele 14.9; 15.1; 15.2; 15.3;
16.1; 16.2
cala-se, está a pensar se deve ou não beijá-la na boca, que triste pensamento.
Gramática
17.1; 18.3; 18.4; 19.3
EXCERTO 4 | Cap. V (pp. 157-159)

60 Fechou por alguns segundos os olhos e quando os abriu estava Fernando Página 268
1. Ricardo Reis, primeiramente,
Pessoa sentado aos pés da cama, […]. Não o esperava a estas horas, disse, e fica surpreso, pois Lídia é o
sorriu, amável, para que ele não notasse a impaciência do tom, a ambiguidade nome de uma das musas dos
seus poemas (“Vem sentar-
das palavras, que tudo isto junto significaria, Escusava bem de ter vindo hoje. -te comigo, Lídia, à beira do
Tinha boas razões, ainda que apenas duas, a primeira, porque só lhe apetecia rio”, por exemplo), e sorri
irónico, como se pensasse
65 falar da noite de teatro e de quanto acontecera, mas não com Fernando Pessoa, que o destino lhe estava a
a segunda, porque nada mais natural que entrar-lhe Lídia pelo quarto dentro, pregar uma partida. Depois,
recompõe-se, porque não se
não que houvesse o perigo de se pôr ali aos gritos, Acudam, um fantasma, mas quer deixar perturbar por nada
porque Fernando Pessoa, embora lhe não estivesse no feitio, podia querer dei- nem desejar seja o que for.
Assim, de imediato, escreve
xar-se ficar, coberto pela sua invisibilidade, ainda assim intermitente segundo “Aos deuses peço só que me
70 os humores da ocasião, a assistir às intimidades carnais e sentimentais, não concedam o nada lhes pedir.”
(ll. 27-28).
seria nada impossível, Deus, que é Deus, costuma fazê-lo, nem o pode evitar, se 2. Quando relata a primeira
está em toda a parte, mas a este já nos habituámos. Apelou para a cumplicida- reação de Ricardo Reis
ao ouvir o nome de Lídia,
de masculina, Não vamos poder conversar muito tempo, talvez me apareça aí o narrador comenta o facto de
uma visita, há de concordar que seria embaraçoso, Você não perde tempo, ainda as pessoas terem a tendência
para repetir as palavras de
75 não há três semanas que chegou, e já recebe visitas galantes, presumo que se- outrem. Contudo, logo de
seguida, assume que essa é
rão galantes, Depende do que se queira entender por galante, é uma criada do uma reflexão da sua autoria
hotel, Meu caro Reis, você, um esteta, íntimo de todas as deusas do Olimpo, a e que até vem a despropósito;
por isso, como se estivesse
abrir os lençóis da sua cama a uma criada de hotel, a uma serviçal, eu que me a controlar marionetas
habituei a ouvi-lo falar a toda a hora, com admirável constância, das suas Lídias, (as personagens), retira Lídia
da ação e convida o leitor
80 Neeras e Cloes, e agora sai-me cativo duma criada, que grande deceção, Esta a deter-se consigo na análise
criada chama-se Lídia, e eu não estou cativo, nem sou homem de cativeiro, Ah, do comportamento
de Ricardo Reis.
ah, afinal a tão falada justiça poética sempre existe, tem graça a situação, tanto

263
José Saramago

PROFESSOR você chamou por Lídia, que Lídia veio, teve mais sorte que o Camões, esse, para
ter uma Natércia precisou de inventar o nome e daí não passou, Veio o nome
3.1 Lídia tem cerca de 30 85 de Lídia, não veio a mulher, Não seja ingrato, você sabe lá que mulher seria a
anos, é bonita, morena,
relativamente baixa e de Lídia das suas odes, admitindo que exista tal fenómeno, essa impossível soma
formas bem feitas. de passividade, silêncio sábio e puro espírito, É duvidoso, de facto, Tão duvidoso
É uma mulher pouco
convencional para a altura, já como existir, de facto, o poeta que escreveu as suas odes, Esse sou eu, Permita-
que está disposta a manter
um relacionamento não oficial
-me que exprima as minhas dúvidas, caríssimo Reis, vejo-o aí a ler um romance
com Ricardo Reis, porque 90 policial, com uma botija aos pés, à espera duma criada que lhe venha aquecer o
está decidida em levar
a gravidez até ao fim, ainda resto, rogo-lhe que não se melindre com a crueza da linguagem, e quer que eu
que o poeta não tenha acredite que esse homem é aquele mesmo que escreveu Sereno e vendo a vida
a intenção de perfilhar
a criança. à distância a que está, é caso para perguntar-lhe onde é que estava quando viu
Apesar de ser simples, a vida a essa distância.
humilde e pouco letrada,
é uma pessoa informada,
EXCERTO 5 | Cap. IX (pp. 276-277)
preocupada com os
acontecimentos nacionais
e mundiais; revela ter
95 Vai-se embora, não me tinha dito, Mais tarde ou mais cedo teria de ser, não ia
espírito crítico, a ponto de ficar aqui o resto da vida, Nunca mais o tornarei a ver, e Lídia, que descansava a
surpreender o seu interlocutor
pelas afirmações que faz. cabeça no ombro de Ricardo Reis, deixou cair uma lágrima, sentiu-a ele, Então,
É igualmente uma mulher não chores, a vida é assim, as pessoas encontram-se, separam-se, quem sabe se
ativa, trabalhadora e lutadora.
3.2 A Lídia de Saramago, amanhã não casarás, Ora, casar, já estou a passar a idade, e para onde é que vai,
sobretudo no plano 100 Arranjo casa, hei de encontrar alguma que me sirva, Se quiser, Se quiser, o quê,
psicológico, em muito se
distancia da Lídia das odes de Posso ir ter consigo nos meus dias de folga, não tenho mais nada na vida, Lídia,
Ricardo Reis − caracterizada por que é que gostas de mim, Não sei, talvez seja pelo que eu disse, por não ter
pela serenidade, pela pureza e
pela passividade. De facto, mais nada na vida, Tens a tua mãe, o teu irmão, com certeza tiveste namora-
o heterónimo pessoano canta dos, hás de tornar a tê-los, mais do que um, és bonita, e um dia casarás, depois
uma mulher que é o protótipo
da não envolvência em paixões 105 virão os filhos, Pode ser que sim, mas hoje tudo o que eu tenho é isto, És uma
ou problemas. boa rapariga, Não respondeu ao que lhe perguntei, Que foi, Se quer que eu vá
4. Pouco tempo depois de
se conhecerem, Lídia toma ter consigo quando tiver a sua casa, nos meus dias de saída, Tu queres, Quero,
a iniciativa de se relacionar Então irás, até que, Até que arranje alguém da sua educação, Não era isso que
amorosamente com Ricardo
Reis. A partir desse momento, eu queria dizer, Quando tal tiver de ser, diga-me assim Lídia não voltes mais a
os dois estabelecem uma 110 minha casa, e eu não volto, Às vezes não sei bem quem tu és, Sou uma criada de
relação descomprometida,
sobretudo de cariz sexual. hotel, Mas chamas-te Lídia e dizes as coisas duma certa maneira, Em a gente se
Quando Reis arrenda casa, pondo a falar, assim como eu estou agora, com a cabeça pousada no seu ombro,
Lídia, por se sentir bem com
o que tem e não desejar mais, as palavras saem diferentes, até eu sinto, Gostava que encontrasses um dia um
até por reconhecer a distância bom marido, Também gostava, mas ouço as outras mulheres, as que dizem que
cultural e social que a separa
daquele homem, continua a 115 têm bons maridos e fico a pensar, Achas que eles não são bons maridos, Para
manter a relação, ao mesmo
tempo que desempenha as
mim, não, Que é um bom marido, para ti, Não sei, És difícil de contentar, Nem
funções de sua empregada de por isso, basta-me o que tenho agora, estar aqui deitada, sem nenhum futuro.
limpeza. Já Reis admite gostar
de estar com ela, mas nunca EXCERTO 6 | Cap. XV (pp. 457-458)
concebe que a relação possa
evoluir. Esta atitude torna-
-se explícita quando Lídia
Então, o teu irmão, isto é apenas um começo, O meu irmão está bem por que
engravida e Ricardo Reis se é que pergunta, Lembrei-me dele por causa duma notícia que li no jornal, um
desresponsabiliza de perfilhar
a criança. A pouco e pouco,
120 discurso de um tal engenheiro Nobre Guedes, tenho-o aí ainda, Não sei quem
a rapariga acaba por é esse senhor, Da maneira como ele fala dos marinheiros, quem não haveria
questionar o seu papel na
vida do médico e afasta-se. de querer chamar-lhe senhor era o teu irmão, Que é que ele diz, Espera, que eu
No final, Ricardo Reis desiste vou buscar o jornal. Saiu Ricardo Reis, foi ao escritório, voltou com O Século,
de Lídia, optando por seguir
Fernando Pessoa em direção o discurso ocupava quase uma página, Isto é uma conferência que o tal Nobre
à morte. 125 Guedes leu na Emissora Nacional contra o comunismo, em certa altura fala dos
marinheiros, Diz alguma coisa do meu irmão, Não, do teu irmão não fala, mas
disse isto, por exemplo, publica-se e espalha-se às ocultas a folha repugnante

264
O ano da morte de Ricardo Reis

do Marinheiro Vermelho, Que é que quer dizer repugnante, Repugnante é uma


palavra feia, quer dizer repelente, repulsivo, nauseabundo, nojento, Que mete
130 nojo, Exatamente, repugnante quer dizer que mete nojo, Eu já vi o Marinheiro
Vermelho e não me meteu nojo nenhum, Foi o teu irmão quem to mostrou,
Sim, foi o Daniel, Então o teu irmão é comunista, Ah, isso não sei, mas é a favor,
Qual é a diferença, Eu olho para ele, e é uma pessoa como as outras, Achas que
se fosse mesmo comunista tinha um aspeto diferente, Não sei, não sei explicar,
135 Bom, o tal engenheiro Guedes também diz que os marinheiros de Portugal não
são vermelhos, nem brancos, nem azuis, são portugueses, Até parece que por-
tuguês é cor, Essa tem graça, quem olhar para ti dirá que não partes um prato, e
lá de vez em quando deitas abaixo o guarda-louça.
EXCERTO 7 | Cap. XVI (pp. 494-498)

Lídia volta-se para Ricardo Reis e ele para ela, […] ela sorri, mas a expressão
140 do olhar tem outro sentido, […] Acho que estou grávida, tenho um atraso de dez
dias. Um médico aprende na faculdade os segredos do corpo humano, os misté-
rios do organismo, sabe portanto como operam os espermatozoides no interior
da mulher, nadando rio acima, até chegarem, no sentido próprio e figurado, às
fontes da vida. Sabe isto pelos livros, a prática, como de costume, confirmou, e
145 no entanto ei-lo espantado, na pele de Adão que não percebe como aquilo pode
ter acontecido por mais que Eva tente explicar, ela que também nada entende
da matéria. E procura ganhar tempo, Que foi que disseste, Tenho um atraso,
acho que estou grávida, dos dois o mais calmo é outra vez ela, há uma semana
que anda a pensar nisto, todos os dias, todas as horas […]. Ele espera que ela
150 faça uma pergunta, por exemplo, Que hei de fazer, mas ela continua calada,
quieta, apagando o ventre com a ligeira flexão dos joelhos, nenhum sinal de
gravidez à vista, salvo se não sabemos interpretar o que estes olhos estão
dizendo, fixos, profundos, resguardados na distância, uma espécie de ho-
rizonte, se o há em olhos. Ricardo Reis procura as palavras convenientes,
155 mas o que encontra dentro de si é um alheamento, uma indiferença, assim
como se, embora ciente de que é sua obrigação contribuir para a solução
do problema, não se sentisse implicado na origem dele, tanto a próxima
como a remota. […] Por fim, tenteando com mil cautelas, pesando cada
palavra, distribui as responsabilidades, Não tivemos cuidado, mais tar-
160 de ou mais cedo tinha de acontecer, mas Lídia não pega na frase, não
pergunta, Que cuidados devia eu ter tido, nunca ele se retirou no mo-
mento crítico, nunca usou aqueles carapuços de borracha, mas tam-
bém isto não lhe importa, limitou-se a declarar, Estou grávida, afinal
é uma coisa que acontece a quase todas as mulheres, não é nenhum
165 terramoto, mesmo quando dá em morte de homem.
José Saramago

Então Ricardo Reis decide-se, quer perceber quais são as intenções dela, não há
mais tempo para subtilezas de dialética, salvo se ainda o for a hipótese negativa
que a pergunta esconde mal, Pensas em deixar vir a criança, o que vale é não ha-
170 ver aqui ouvidos estranhos, não faltaria ver-se acusado Ricardo Reis de sugerir
o desmancho, e quando, terminada a audição das testemunhas, o juiz ia proferir
a sentença condenatória, Lídia mete-se adiante e responde, Vou deixar vir o
menino. Então, pela primeira vez, Ricardo Reis sente um dedo tocar-lhe o cora-
ção. Não é dor, nem crispação, nem despegamento, é uma impressão estranha
175 e incomparável, como seria o primeiro contacto físico entre dois seres de uni-
versos diferentes, humanos ambos, mas ignotos na sua semelhança, ou, ainda
mais perturbadoramente, conhecendo-se na sua diferença. Que é um embrião
de dez dias, pergunta mentalmente Ricardo Reis a si mesmo e não tem resposta
PROFESSOR
para dar, em toda a sua vida de médico nunca aconteceu ter diante dos olhos
5.1 A viagem literária é
180 esse minúsculo processo de multiplicação celular, do que os livros ao acaso lhe
comprovável pela evocação mostraram não conservou memória, e aqui não pode ver mais do que esta mu-
de autores, características
e obras/excertos da literatura lher calada e séria, criada de profissão, solteira, Lídia, com o seio e o ventre
portuguesa: descobertos, o púbis retraído apenas, como se reservasse um segredo. Puxou-a
− quando confrontado com
o envolvimento de Ricardo para si, e ela veio como quem enfim se protege do mundo, de repente corada,
Reis com uma criada de hotel, 185 de repente feliz, perguntando como uma noiva tímida, ainda é o tempo delas,
Fernando Pessoa recorda a
personalidade e a poesia do Não ficou zangado comigo, Que ideia a tua, por que motivo iria eu zangar-me, e
seu heterónimo como forma
de evidenciar as diferenças
estas palavras não são sinceras, justamente nesta altura se está formando uma
entre a figura que criou e grande cólera dentro de Ricardo Reis, Meti-me em grande sarilho, pensa ele, se
aquela que está diante de si
no Hotel Bragança. Assim, ela não faz o aborto, fico para aqui com um filho às costas, terei de o perfilhar,
confessa a sua surpresa 190 é minha obrigação moral, que chatice, nunca esperei que viesse a acontecer-
pelo facto de um amante
da estética, que sempre -me uma destas. Lídia aconchegou-se melhor, quer que ele a abrace com força,
cantou nas suas odes, à por nada, só pelo bem que sabe, e diz as incríveis palavras, simplesmente, sem
maneira clássica, musas
como Lídia, Neera e Cloe, nenhuma ênfase particular, Se não quiser perfilhar o menino, não faz mal, fica
estar agora envolvido com
uma criada de hotel e adotar
sendo filho de pai incógnito, como eu. Os olhos de Ricardo Reis encheram-se de
comportamentos comezinhos 195 lágrimas, umas de vergonha, outras de piedade, distinga-as quem puder, num
que o distanciam das palavras
que escreveu um dia: “Sereno impulso, enfim, sincero, abraçou-a, e beijou-a, imagine-se, beijou-a muito, na
e vendo a vida à distância a boca, aliviado daquele grande peso, na vida há momentos assim, julgamos que
que está” (excerto 4, ll. 92-93);
− o nome de Camões é está uma paixão a expandir-se e é só o desafogo da gratidão. Mas o corpo animal
também referido por Fernando cura pouco destas subtilezas, daí a nada uniam-se Lídia e Ricardo Reis, gemendo
Pessoa para ridicularizar a
situação, afirmando este que 200 e suspirando, não tem importância, agora é que é aproveitar, o menino já está
Reis teve mais sorte do que
Camões, porque a musa das
feito.
suas odes acabou por ter uma
correspondente real, ao passo EXCERTO 8 | Cap. XVIII (pp. 548-549)
que a Natércia invocada por
Camões nunca passou de uma [Ricardo Reis] Lembra-se de que Lídia está grávida, de um menino, segundo
entidade fictícia.
5.2 A ironia presente no
ela de cada vez afirma, e esse menino crescerá e irá para as guerras que se pre-
discurso do narrador serve param, ainda é cedo para as de hoje, mas outras se preparam, repito, há sempre
para troçar de um dos
dogmas da Igreja – o de que
205 um depois para a guerra seguinte, façamos as contas, virá ao mundo lá para
Deus é omnipresente. Desta março do ano que vem, se lhe pusermos a idade aproximada em que à guerra se
forma, ridiculariza-se esta
crença, admitindo-se que vai, vinte e três, vinte e quatro anos, que guerra teremos nós em mil novecentos
Deus, por estar sempre e sessenta e um, e onde, e porquê, em que abandonados plainos, com os olhos
presente em toda a parte, seja
também obrigado a assistir da imaginação mas não sua, vê-o Ricardo Reis de balas traspassado, moreno e
a momentos íntimos entre
pessoas que se amam.
210 pálido como é seu pai, menino só da sua mãe porque o mesmo pai o não per-
filhará.

266
O ano da morte de Ricardo Reis

EXCERTO 9 | Cap. XVIII (pp. 550-551)

Depois, na cozinha, enquanto lava a louça suja acumulada, desatam-se-lhe


as lágrimas, pela primeira vez pergunta a si mesma o que vem fazer a esta casa,
ser a criada do senhor doutor, a mulher a dias, nem sequer a amante porque há PROFESSOR
215 igualdade nesta palavra, amante, amante, tanto faz macho como fêmea, e eles
6.1 Tendo como motivo o
não são iguais, e então já não sabe se chora pelos mortos de Badajoz, se por facto de Ricardo Reis não ter
esta morte sua que é sentir-se nada. Lá dentro, no escritório, Ricardo Reis não intenção de perfilhar a criança
que Lídia traz no seu ventre, o
suspeita o que se está passando aqui. […] Quando Lídia, concluídos os seus tra- narrador faz alusão ao poema
balhos domésticos, entrou no escritório, Ricardo Reis tinha o livro fechado sobre de Fernando Pessoa “O menino
de sua mãe”. Este poema foca
220 os joelhos. Parecia dormir. Assim exposto, é um homem quase velho. Olhou-o o morticínio da guerra e o
como se fosse um estranho, depois, sem rumor, saiu. Vai a pensar, Não volto desespero de uma mãe que
perde o seu filho no conflito,
mais, mas a certeza não tem. aí representado por um jovem
que, como tantos outros, jaz
EXCERTO 10 | Cap. XIX (pp. 580-582) morto no campo de batalha.
Assim, através de uma
Durante toda a tarde, Lídia não apareceu. Na hora da distribuição dos vesper- prolepse velada, o narrador
evoca o ano de 1961, altura
tinos Ricardo Reis saiu para comprar o jornal. Percorreu rapidamente os títulos em que terá início a Guerra
Colonial portuguesa e em que
225 da primeira página, procurou a continuação da notícia na página central dupla, a criança estará em idade de
outros títulos, ao fundo, em normando, Morreram doze marinheiros, e vinham combater pela pátria.
O filho de Lídia personificará,
os nomes, as idades, Daniel Martins de vinte e três anos, Ricardo Reis ficou pa- desta forma, o sacrifício
rado no meio da rua, com o jornal aberto, no meio de um silêncio absoluto, a e o sofrimento de tantos
portugueses que deram
cidade parara, ou passava em bicos de pés, com o dedo indicador sobre os lábios a vida pela pátria e pelo
230 fechados, de repente o barulho voltou ensurdecedor, a buzina dum automóvel, império português.
7. Durante toda a sua vida,
o despique de dois cauteleiros, o choro duma criança a quem a mãe puxava as o Ricardo Reis pessoano
orelhas, Se tornas a fazer outra deixo-te sem conserto. Lídia não estava à espera regeu-se pela inércia,
pela indiferença, pela
nem havia sinal de que tivesse passado. É quase noite. Diz o jornal que os presos sobrevivência, mais do que
foram levados primeiro para o Governo Civil, depois para a Mitra, que os mortos, pela vivência dos momentos.
No entanto, confrontado com
235 alguns por identificar, se encontram no necrotério. Lídia andará à procura do a situação histórica e política
irmão, ou está em casa da mãe, chorando ambas o grande e irreparável desgosto. do ano de 1936 e também em
virtude das relações amorosas
Então bateram à porta. Ricardo Reis correu, foi abrir, já prontos os braços para que foi desenvolvendo, o
Ricardo Reis saramaguiano ou
recolher a lacrimosa mulher, afinal era Fernando Pessoa, Ah, é você, Esperava se mantinha como o sábio que
outra pessoa, Se sabe o que aconteceu, deve calcular que sim, creio ter-lhe dito se contenta com o espetáculo
do mundo, não se imiscuindo
240 um dia que a Lídia tinha um irmão na Marinha, Morreu, Morreu. Estavam no em nada, ou passava a
quarto, Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa cadeira. adotar um comportamento
ativo, tomando posições e
Anoitecera por completo. Meia hora passou assim, ouviram-se as pancadas de intervindo nas situações.
um relógio no andar de cima. É estranho, pensou Ricardo Reis, não me lembra- Porém, não o conseguindo
fazer, Ricardo Reis acaba por
va deste relógio, ou esqueci-me dele depois de o ter ouvido pela primeira vez. não vingar como figura real,
245 Fernando Pessoa tinha as mãos sobre o joelho, os dedos entrelaçados, estava de independente do seu criador, e,
por isso, acompanha Fernando
cabeça baixa. Sem se mexer, disse, Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a Pessoa na sua “última viagem”,
ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que ou porque acaba por desistir,
estrangeiro do mundo como
só tinha para uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis se sente, ou porque a força
do destino o impele a isso.
subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa de cabeceira Significativo é ainda o facto de
250 buscar The god of the labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, o heterónimo levar consigo o
livro que tão bem metaforiza o
Para onde é que você vai, Vou consigo, Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei seu labirinto interior.
que devia, Para a consolar do desgosto de ter ficado sem o irmão, Não lhe posso

267
José Saramago

valer, E esse livro, para que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar
de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira
255 virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais in-
compreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas
mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma.
Saíram de casa, Fernando Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu, Me-
lhor do que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam
260 as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse
Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para
ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o
mar se acabou e a terra espera.

1. Identifique, justificando, as diferentes reações de Ricardo Reis quando ficou a saber o


nome da criada do hotel.

2. Demonstre como o narrador, no excerto 1, evidencia a sua voz, assumindo o controlo

PROFESSOR
da narração.

3. Atente na personagem Lídia da obra em estudo e relembre o poema “Vem sentar-te


comigo, Lídia, à beira do rio”. (cf. pp. 72-73)
Áudio
“O menino da sua mãe", 3.1 Trace o retrato físico e psicológico de Lídia de O ano da morte de Ricardo Reis.
Pássaros do Sul (1987),
Mafalda Veiga 3.2 Compare a Lídia saramaguiana à das odes de Ricardo Reis.

8. O facto de a obra começar e 4. Caracterize a relação de Lídia e de Ricardo Reis.


acabar com uma recriação do
verso de Camões “onde a terra 5. Atente no excerto 4.
se acaba e o mar começa”
confere à obra uma estrutura 5.1 Demonstre que aqui se assiste a uma viagem literária.
circular. Para isso contribuem
também as viagens de Ricardo 5.2 Identifique, comentando o seu valor semântico, o recurso expressivo presente em
Reis, primeiro de regresso
à pátria, depois ao encontro “Deus, que é Deus, costuma fazê-lo, nem o pode evitar, se está em toda a parte, mas a
da morte. este já nos habituámos.” (excerto 4, ll. 71-72)
9. Ao contrário da época áurea
e majestosa de Portugal, 6. Atente no excerto 8 e na audição do poema “O menino da sua mãe”, de Fernando Pes-
cantada por Camões, na
qual o mar ocupava um soa, cantado por Mafalda Veiga − álbum Pássaros do Sul (1987).
CD 2
lugar de relevo, a obra
saramaguiana não termina AIX
A2
F

com uma mensagem otimista:


apresenta a denúncia de um
país que perdeu a glória de
outrora e que vive cercado
pelo obscurantismo de uma
ditadura que urge ultrapassar;
daí a observação de que
parecia que o Adamastor seria
capaz de dar o grande grito “O menino da sua mãe",
(da revolta) e a afirmação Pássaros do Sul (1987),
“Aqui, onde o mar se acabou Mafalda Veiga.
e a terra espera”. De certa
forma, estas palavras 6.1 Infira a oportunidade da intertextualidade com Pessoa considerando o contexto his-
remetem também para a tórico português.
Mensagem, de Fernando
Pessoa, em que, por várias
vezes, o poeta aponta para a 7. Avance uma explicação para a decisão final de Ricardo Reis.
necessidade de se ultrapassar
a letargia vivida no seu tempo 8. Explique, considerando o primeiro e último períodos da obra, por que razão se pode
– “Senhor, falta cumprir-se
Portugal”; “Ó Portugal, hoje afirmar que esta apresenta uma estrutura circular.
és nevoeiro… / É a hora!”.
9. Esclareça a intencionalidade da alusão a Camões no final da obra.

268
O ano da morte de Ricardo Reis

G 10. Selecione, no seu caderno, a opção correta.


10.1 O modo de relato do discurso presente em “tão simpático, mas tem o ar triste, não
deve de ser pessoa feliz” (excerto 2, l. 36) é
[A] a citação.
[B] o discurso direto.
[C] o discurso indireto.
[D] o discurso indireto livre.
10.2 No excerto 6, a sequência textual predominante é a
[A] narrativa.
[B] descritiva.
[C] dialogal.
[D] argumentativa. PROFESSOR

10.3 O valor do aspeto gramatical configurado no segmento “Um médico aprende na facul- 10.1 [D]
dade os segredos do corpo humano” (excerto 7, l. 141) é 10.2 [C]
10.3 [B]
[A] valor imperfetivo.
10.4 [A]
[B] situação genérica. 11. Citação, uma vez que se
trata da transcrição exata
[C] situação habitual. de um verso de Ricardo Reis.
[D] situação iterativa. 12. Palatalização.
13. Domicílio, domesticado.
10.4 Em “Lembra-se de que Lídia está grávida” (l. 202), a oração sublinhada classifica-se como
[A] subordinada substantiva completiva. Oralidade
3.1; 4.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3;
[B] subordinada substantiva relativa. 6.1; 6.2; 6.3

[C] subordinada adjetiva relativa restritiva.


Nota
[D] subordinada adverbial consecutiva. Pode dividir-se a turma
em pequenos grupos para
a realização simultânea do
11. Identifique, justificando, o tipo de intertextualidade presente em “Vem sentar-te co- diálogo argumentativo.
migo, Lídia, à beira-rio”. (excerto 1, l. 16) Como síntese da atividade,
deverá solicitar-se aos alunos
12. Indique o processo fonológico ocorrido na passagem de CLAVE- para chave. (excerto 3, l. 55)
a apresentação de uma
súmula dos argumentos
das várias posições.
13. Sabendo que a palavra “doméstico” (excerto 9, l. 219) provém do étimo latino DOMU-, que
significa ‘casa’, indique duas palavras portuguesas que mantenham o mesmo étimo. 1. Resposta de caráter
pessoal. No caso da literatura,
o aluno pode aludir, por
exemplo, a:
EXPRESSÃO ORAL − Os Maias: apesar de Carlos
da Maia e Maria Eduarda terem
sido separados em crianças,
Pela sua vertente estoica, Ricardo Reis acreditava na inevitabilidade do destino. o destino leva a que eles se
reencontrem e se apaixonem
1. Num pequeno grupo, estabeleça, com os seus colegas, um diálogo argumentativo anos mais tarde;
− Édipo Rei: sabendo, por um
(de 8 a 12 minutos), em que os intervenientes assumam diferentes pontos de vista: oráculo, que havia de matar
o pai e de casar com a mãe,
šCada pessoa tem o seu destino traçado, ao qual não pode fugir. Édipo foge de casa dos pais,
ignorando que era adotado.
šCada indivíduo é responsável pela sua própria sorte. Acaba por matar o verdadeiro
pai e por casar com a
Tome uma posição, pesquise informação sobre o tema (podendo socorrer-se de exem- verdadeira mãe, sem o saber.
plos da literatura) e planifique a sua intervenção. −…

Apresente argumentos válidos e exemplos que sustentem a sua tese, seja sucinto na
sua defesa e respeite o princípio da cortesia. BLOCO INFORMATIVO – p. 378

269
José Saramago

INFORMAR

Representações do amor
TEXTO A
Possuidora de um nome invulgar, uma vez que guarda na sua morfologia a
reminiscência latina, a sonoridade da “raça gerúndia” que “não o usam mulhe-
res”, Marcenda concentra deste modo componentes que fazem dela uma musa.
No entanto, a nível semântico, Marcenda deriva do verbo latino MARCERE que sig-
nifica ‘estar murcho’, contrastando com a ideia de eternidade e imortalidade as-
sociada ao conceito de musa.
Maria Fernanda Miranda Gomes Moreira Barbosa, O ano da morte de Ricardo Reis: romance
pós-moderno?, Porto, Universidade Fernando Pessoa, 2010, pp. 47-48.

TEXTO B
Através da personagem Marcenda são contrariadas as radicais mudanças
verificadas em Ricardo Reis, uma vez que este retoma a sua condição de es-
petador quando aguarda ansiosamente a sua presença, ou as suas cartas. De
facto, a perspetiva sobre esta outra personagem feminina da ficção saramaguia-
5 na, Marcenda, apresenta-a como aparentemente inacessível. Esta conceção da
personagem é corroborada pela aproximação óbvia entre a poesia romântica e o
antropónimo da personagem.
“Marcenda, estranho nome, nunca ouvido, parece um murmúrio, um eco,
uma arcada de violoncelo, les sanglots longs de l'automne, os alabastros, os
10
balaústres, esta poesia de sol-posto e doente irrita-o, as coisas de que um nome
é capaz, Marcenda.”
Susana Afonso de Sousa, “A reescrita da história em O ano da morte de Ricardo Reis, de José
Saramago”, in Literatura e História – Atas do Colóquio Internacional, Porto, 2004, vol. II, p. 258.

TEXTO C
Marcenda é o pássaro sem voo, a mão inerte é como a asa quebrada, a liber-
dade impossível, a prisão no labirinto. Oprimida pela voz do pai, não é capaz de
prolongar os pequenos voos que se permitira por momentos ousar. [V]ê e pre-
fere não enxergar, sabe e prefere ignorar, sente e prefere não gozar. Obedece às
5 regras, às leis, vai a Fátima sem fé, vem a Lisboa e vai ver o doutor, sabendo, de
antemão, que a ida é só um artifício para justificar arranjos amorosos paternos.
Obedece, não luta, cede, agrada, mente até, se necessário, não assume. Está,
pois, a murchar num tempo que exige dos homens posições mais radicais, para
não fugir ao molde pessoano, “o todo, ou o seu nada”. Marcenda silencia, prefere
10 desenlaçar as mãos pois o não comprometimento é menos doloroso. Encerra-
-se num livro modelar de odes arcádicas sem que nunca dele tivesse feito parte,
ao lado das Cloe e das Neera, ocupando, talvez, o espaço de uma certa Lídia que
dessas teias escapou.
Mulher do povo e não musa, que, por isso mesmo, prefere mergulhar a fi-
15 car “à beira-rio”, enlaçar as mãos e o corpo a fazer-se “pagã triste e com flores
no regaço”, Lídia frustra todas as suas expectativas [de Ricardo Reis]. Espera-
va-a musa e ei-la arrumadeira de quartos de hotel; esperava-a platonicamente
distante e ei-la em sua cama, mulher que se oferece inteira ao gozo do amor;

270
O ano da morte de Ricardo Reis

esperava-a, talvez alheia, descomprometida em seu “silêncio sábio”, es-


20 petadora do mundo, como ele sempre se quisera, e ei-la participante,
questionadora, sabedora do seu tempo. Mas é com Lídia e através dela,
único fio a uni-lo ao mundo, que o caminho se abre para Ricardo Reis.
Com ela, poderia passar da alienação à participação, de heterónimo a
personagem, de persona a pessoa, da ode ao romance, da morte à vida.
25 Ricardo Reis está à beira de abismos: o da morte reconfortante, porque
feita de percursos sabidos, e o da vida irremediavelmente só, pois adi-
vinha que a opção exige assumir-se humano e falível. É esse impasse
fecundo que gera, afinal, a narrativa.
Lídia não vem pronta, metáfora concreta de uma tese a ser testada.
30 Também ela cresce e se cria. Deixa de ser um nome e passa a ter uma voz
e um corpo. Deixa de ser ouvinte e fala, discute, contesta, faz-se sujeito.
De musa a personagem este é o seu caminhar, não facilmente venci-
do, pois sentia-se presa pelo olhar desrealizador de Reis, que pretendia
trazê-la da realidade para a poesia. Mas também, ao nível da afetivida-
35 de, Lídia não para de crescer. Deita-se com Reis e protege-o, é materna
e submissa; no hotel e na casa nova serve, criada que é, mas é servida
também no gozo e na paixão, na liberdade que se dá de amar, de ter
ciúmes da musa Marcenda que entre os dois se interpõe, mas sobretudo de ter Não são só eles e elas
(detalhe), c. 2002,
um filho e de assumi-lo sozinha como consequência de um ato só seu. Não Costa Pinheiro.
40 sonha com igualdade, casamento ou família porque são outros os seus valores.
Contenta-se com o prazer conquistado dia a dia, misturado ao serviço que de-
sempenha de criada/mulher. PROFESSOR
Opta humana e dolorosamente na terrível encruzilhada que lhe coloca à fren-
te Ricardo Reis e Daniel, o livro e a vida, a ficção e a História. Seguisse Ricardo Leitura
7.3; 7.4; 8.1
45 Reis, que optara pelos “Prazeres”, e ei-la, talvez, de volta ao livro, à placidez dos
Educação Literária
campos, enfeitiçada, musa, a Lídia cantada. Segue, no entanto, Daniel, despe- 16.1
de-se de Reis e deixa branca a página de um livro em que se não quis inscrever,
para preencher um outro que lhe abrira a possibilidade de fazer-se sem ser feita, 1. Marcenda, tal como o nome
indica, é uma mulher que
de escolher como sujeito e não de ser escolhida como objeto. Sabe que o irmão, está destinada a murchar,
50 e com ele o sonho da revolta, está acabado. Mas fica porque “a terra espera” e a desistir. A par disso, revela
uma obediência extrema, uma
Daniel é a vítima fecunda de um espetáculo que tem de continuar. inércia e uma passividade
que contrastam com a
É nesse impasse entre o mar e a terra, entre o passado e o presente, entre a proatividade, a liberdade
utopia ou o sonho ou a irrealidade ou o mito e a História, que o romance se fin- e o envolvimento de Lídia
nas questões do mundo que
da. Fernando Pessoa tem o seu tempo encerrado e já não vagueia pelo mundo. a rodeia. Assim, Marcenda
55 Será para sempre uma voz lida pelos outros e que se não pode mais transformar. acaba por representar a apatia
de Ricardo Reis que age como
Ricardo Reis percebe também a sua própria encruzilhada: com Lídia mergulha- um mero espetador do mundo.
ria no mundo, no tempo e na História, mas sofre a sua própria incapacidade de Lídia, por seu lado, constitui-
-se como a única possibilidade
segui-la. de o heterónimo se
Desiste da busca e acompanha definitivamente Pessoa aos Prazeres. (re)construir como uma figura
independente do seu criador
60 Também Daniel naufraga. Mas nesse naufrágio do barco fica uma espera da e vingar no mundo de 1936,
não se coibindo de tomar
terra. Uma espera de Lídias que permanecem vivas numa terra que, como ela, posições mais radicais nas
está grávida de frutos, um dia, não abortados nem vencidos. questões importantes. Mas, no
labirinto em que vive, Ricardo
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago: entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, Reis sente-se incapaz de
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 184-190. assumir esse comportamento
e, por isso, resta-lhe aceitar a
morte, para a qual se preparou
1. Explique o contraste que se estabelece entre Marcenda e Lídia, inferindo sobre o que durante toda a sua existência.
representa cada uma das mulheres na personalidade de Ricardo Reis.

271
José Saramago

INFORMAR

Intertextualidade: José Saramago, leitor de


Luís de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa
TEXTO A
Uma vertente importante da abordagem da obra O ano da morte de Ricardo
Reis é a intertextualidade, evidenciada em primeiro plano através da evocação
constante pela voz do narrador ou inerente ao discurso das duas personagens
principais, da obra de Fernando Pessoa ortónimo e heterónimo.
5 A revisita de José Saramago ao cânone pessoano afirma-se pela reorganização
da problemática de fragmentação, através da qual o discurso heteronímico é reto-
mado sobre novos pressupostos literários, visando a procura da individualidade
por parte de Ricardo Reis, apesar do reconhecimento da multiplicidade.
A presença de Camões na obra de Saramago é constante, afirmando-se desde
10 logo pela recriação do verso “Onde a terra acaba e o mar começa”, no início e no
fim da obra. Assim, o referido verso indicia um período de prosperidade eco-
nómica e cultural, caracterizado pela liberdade face a imposições morais e por
uma atitude antropocêntrica. A reescrita do verso no início da obra de Saramago
Gonçalo Viana, in revista determina uma alteração de orientação: “Aqui o mar acaba e a terra principia”.
Estante, n.˚11, outono 15 A referida tendência agudiza-se no final da obra, transformando-se o otimismo
de 2016 (pormenor da capa).
característico do período camoniano em descrença, perspetiva própria de um pe-
ríodo em que imperava a ditadura no Ocidente. A descrita visão invertida assume
PROFESSOR contornos muito definidos, motivados pela alteração do tempo verbal utilizado
no verbo ‘acabar’ e pela substituição do verbo ‘principiar’ pelo verbo ‘esperar’,
Leitura
7.3; 8.1 20 denotando o final de uma utopia marítima. De facto, no verso de Camões, a terra
Educação Literária é associada a um Portugal dinâmico que se aventura pelo mar e este a um futuro
16.1 promissor de riqueza e poder. Pelo contrário, a recriação saramaguiana aponta
para a perspetiva do mar como realidade finda e a terra como um Portugal passi-
1. Ao longo de toda a obra
são constantes as relações vo, espetador dos acontecimentos do mundo.
intertextuais estabelecidas
com vários autores da Susana Afonso de Sousa, “A reescrita da história em O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago”,
literatura portuguesa e in Literatura e História – Atas do Colóquio Internacional, Porto, 2004, vol. II, pp. 258-259 (com supressões).
estrangeira, passando por
citações de jornais, por
diálogos que evidenciam TEXTO B
características estéticas
de poetas como Fernando Como é prática da ficção de Saramago, inexistem travessões e aspas ou qual-
Pessoa e Ricardo Reis, ou por
alusões e citações bíblicas, quer outro sinal gráfico ou expressões do locutor que sejam indicadoras da in-
entre outras. A dimensão tertextualidade. No entanto, assistimos a uma encenação contínua de discursos
intertextual concretiza-se
quer através da voz do poeta mutantes, transfigurados dentro do Discurso que os contém: são palavras do
de “Vem sentar-te comigo, narrador, réplicas de personagens de ficção, vozes eventuais de autores e textos
Lídia”, quer pela voz do
narrador – a propósito das rememorados, versos transfigurados e referências a Fernando Pessoa e seus he-
deambulações de Ricardo terónimos, a Camões, Eça de Queirós, Garrett, Camilo Pessanha, entre outros es-
Reis, por exemplo –, quer,
ainda, pelas conversas que critores portugueses de várias épocas, assim como outras fontes textuais como,
o heterónimo mantém com
o ortónimo –, sendo de notar
por exemplo, jornais do presente da escrita e, longinquamente, a Bíblia.
que, muitas vezes, as
referências intertextuais Maria Fernanda Miranda Gomes Moreira Barbosa, O ano da morte de Ricardo Reis: romance
surgem mescladas com outros pós-moderno?, Porto, Universidade Fernando Pessoa, 2010, p. 37.
discursos, sem qualquer sinal
gráfico ou indicação de autoria
por parte do locutor. 1. Explique a importância da intertextualidade em O ano da morte da Ricardo Reis e a
forma como ela se concretiza.

272
O ano da morte de Ricardo Reis CONSOLIDAR

REPRESENTAÇÕES DO SÉCULO XX: O ESPAÇO DA CIDADE, O TEMPO


HISTÓRICO E OS ACONTECIMENTOS POLÍTICOS
Em 1936, assiste-se a uma Europa politicamente conturbada entre as ditaduras de índole fas-
cista e os movimentos de esquerda que tentavam triunfar. Foi o que aconteceu em França e em
Espanha. Neste último caso, a eleição de um governo republicano democrático de esquerda, em
coligação com o Partido Socialista (e com aliança com comunistas e anarquistas), conduziu a um
golpe de Estado levado a cabo pelas forças nacionalistas (falangistas) e encabeçado pelo general
Franco, culminando numa sangrenta guerra civil. Alemanha e Itália afirmavam-se, em contraparti-
da, como grandes potências económicas e tentavam alargar o seu domínio territorial: ocupando a
Renânia (no caso alemão) e anexando a Etiópia (no caso italiano). A tudo isto assistia indiferente a
Sociedade das Nações, e a Inglaterra, ao mesmo tempo que se escusava a tomar uma posição san-
cionatória em relação à Alemanha e à Itália, reivindicava a redistribuição de colónias portuguesas.
Em Portugal, vivia-se um regime ditatorial, liderado por Salazar, fortemente enraizado nunca
intensa propaganda política, que pretendia fomentar a ideia da prosperidade e da grandeza do
império, pela conivência da Igreja, assente na visão de Salazar como o salvador da moralidade cris-
tã, e pela criação de movimentos, como o da Mocidade Portuguesa, que desde cedo incutiam na
população os valores e a ideologia do regime. A censura, a repressão policial, a tortura ou a prisão
eram as armas usadas contra quem se opunha à ordem vigente, tendo sido para o efeito criada a
Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. De uma forma geral, o povo vivia na miséria e o país estava
mergulhado num estado de estagnação.
É para estas realidades que o narrador, velada e indiretamente, pretende chamar a atenção.
A cidade de Lisboa, palco da ação, apresenta-se como um labirinto, monótona, pobre, sombria,
silenciosa, chuvosa, de águas turvas, metáforas que contribuem para evidenciar a opressão e a
repressão exercidas pelo regime sobre o povo.
Desta forma se percebe a afirmação final: a terra aguarda pela mudança.

DEAMBULAÇÃO GEOGRÁFICA E VIAGEM LITERÁRIA


Ao fim de dezasseis anos, Ricardo Reis regressa à pátria e revisita a cidade de Lisboa, consta-
tando que pouco mudou – sinal da estagnação do país. No entanto, o percurso pelas ruas (desde a
rua do Comércio ao Terreiro do Paço, do Chiado à praça da Figueira ou da rua do Alecrim ao Alto de
Santa Catarina) permite deambulações de natureza literária. Assiste-se, assim, a pretexto do que
Reis vai observando e captando da realidade, à evocação de diversos textos, entre os quais a Bíblia,
e de autores como Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Camões, Eça
de Queirós, Cesário Verde, Almeida Garrett, Jorge Luís Borges, Dante, Cervantes ou Virgílio.

REPRESENTAÇÕES DO AMOR
Marcenda Lídia
Mulher passiva, sem vontade e sem convicções, Mulher ativa, perspicaz e questionadora, preocupada com o
deficiente – representa a inércia, a apatia, mundo que a rodeia – representa a possibilidade de Ricardo
a desistência de Ricardo Reis. Reis vingar e viver sem o seu criador, transformando-se num
agente ativo e não num mero espetador.
Aquela que murcha, que não é eterna – contrasta Contrasta com a Lídia das odes – platónica, tranquila,
com as musas das odes. quieta.

273
CONSOLIDAR O ano da morte de Ricardo Reis

INTERTEXTUALIDADE: JOSÉ SARAMAGO, LEITOR DE CAMÕES,


CESÁRIO VERDE E FERNANDO PESSOA

Luís de Camões š Paródia criativa do verso de Os Lusíadas “Onde a terra se acaba e o mar começa” no início e no fecho da obra.
š Citação de versos de Os Lusíadas, como “esta apagada e vil tristeza”, com vista a ridicularizar a tão propagada
prosperidade do país.
š Presença constante da estátua de Camões e do Adamastor, como forma de realçar a produção camoniana
enquanto marco de fundamental importância na literatura portuguesa (“todos os caminhos portugueses vão
dar a Camões”).
š Denúncia da subversão e do aproveitamento das palavras e da figura de Camões por parte do regime.
Cesário Verde š Configuração do espaço da cidade de Lisboa como uma realidade confinadora e destrutiva (“Ricardo Reis
atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou ao Camões, era como se estivesse dentro de
um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar”).
š Deambulação geográfica como ponto de partida para outras evasões (viagem literária).
š Comiseração e identificação do narrador com certas figuras do povo observadas.
š Remissão para a evocação de um passado glorioso contrastante com a estagnação de um presente
moribundo.
š Visualismo de pendor impressionista e convergência dos sentidos.
Fernando Pessoa š Construção da personagem Ricardo Reis à luz das características físicas, psicológicas e literárias fixadas pelo
seu criador, patentes, por exemplo, nas conversas entre o heterónimo e o ortónimo.
š Citações, alusões, paródia e paráfrases de versos do ortónimo e dos principais heterónimos.

LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA

Estrutura da obra
Tom oralizante Estilo/pontuação
Externa Interna

19 Estrutura circular: š Marcas de coloquialidade. š Uso exclusivo do ponto final e da vírgula.


capítulos š Uso paródico do š Diálogo com o narratário. š Uso da vírgula e da maiúscula para
verso de Camões marcar as falas em discurso direto
š Comentários do narrador.
“Onde a terra se (é o contexto que ajuda o leitor
acaba e o mar š Estruturas morfossintáticas simples.
a perceber quando se trata de uma
começa”. š Provérbios e expressões populares com declaração, de uma exclamação ou
š Viagem de Reis para ou sem variações. de uma interrogação).
Lisboa e, depois, em š Mistura de vários modos de relato do discurso.
direção ao cemitério
dos Prazeres. š Coexistência de segmentos narrativos
e descritivos sem delimitação clara.

REPRODUÇÃO DO DISCURSO NO DISCURSO


Confluência de vários modos de relato do discurso.

Citação “Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos” (cap. I)

Discurso direto “é Fernando Pessoa quem primeiro fala, Soube que me foi visitar” (cap. III)

Discurso indireto “os espanhóis descruzavam a perna impaciente, mas o doutor Sampaio retinha-os, garantia-lhes que em
Portugal poderiam viver em paz pelo tempo que quisessem” (cap. VIII)
Discurso indireto “Já todo o pessoal do hotel sabe que o hóspede do duzentos e um, o doutor Reis, aquele que veio do Brasil
livre há dois meses, foi chamado à polícia, alguma ele teria feito por lá” (cap. VIII)

274
VERIFICAR
PROFESSOR
1. Classifique, no seu caderno, as afirmações como verdadeiras ou falsas. Corrija as
Educação Literária
afirmações falsas. 14.3; 14.6; 14.7; 14.8;
15.1
a. A ação de O ano da morte de Ricardo Reis decorre em 1936, ano marcadamente está-
vel a nível político em toda a Europa.
b. Nesse ano, vivia-se, em Portugal, um clima de prosperidade e de equilíbrio social. Apresentação
Síntese da Unidade 6.1
c. A imagem de Salazar era muito positiva no plano externo, mas internamente ele era
1.a. F − Vivia-se na Europa uma
um político muito contestado pelos portugueses. grande instabilidade política,
promovida pelas constantes
d. A caracterização da cidade de Lisboa tem o propósito de apresentar metaforica- divergências entre os partidos
de direita e de esquerda; num
mente a situação histórica e política de Portugal em 1936. grande número de países
europeus vigoravam ditaduras
e. Através da sua obra, José Saramago quis provar a máxima, atribuída a Ricardo Reis, de índole fascista.
de que sábio é aquele que se contenta com o espetáculo do mundo. b. F − Apesar de a propaganda
política pretender passar a
f. A personagem Ricardo Reis de Saramago é fidedignamente decalcada da concebida imagem de um país próspero
e feliz, a verdade é que grande
por Fernando Pessoa. parte da população vivia
na miséria.
g. A deambulação de Ricardo Reis pela cidade de Lisboa assemelha-se, em muitos as- c. F − Quer externa quer
petos, à verificada em Cesário Verde. internamente, Salazar era
visto como um modelo a
h. A viagem literária a que se assiste na obra decorre do facto de o poeta Ricardo Reis seguir, um salvador, sendo
poucos aqueles que em
ter regressado a Portugal, ao fim de dezasseis anos. Portugal se atreviam a fazer-
-lhe frente, até porque
i. Camões é uma das figuras literárias mais relevantes em O ano da morte de Ricardo o regime era autoritário
e repressivo.
Reis.
d. V
j. A intertextualidade presente na obra concretiza-se sempre sob a forma de paródia. e. F − José Saramago
quis provar exatamente o
contrário: que no panorama
k. Ricardo Reis estabelece uma relação simultânea com Lídia e Marcenda pelo facto de mundial de 1936 era
serem mulheres semelhantes. impensável agir-se como mero
espetador do mundo.
l. De entre as duas mulheres, Lídia apresenta-se como a única capaz de resgatar Ri- f. F − Apesar de Saramago
ter partido da conceção de
cardo Reis da sua inércia. Fernando Pessoa, por vezes
a personagem distancia-se
m. O nome Marcenda, etimologicamente, espelha a sua personalidade. do original, já que, mesmo sem
querer, há situações que lhe
n. A obra apresenta uma estrutura circular, uma vez que a ação começa com Ricardo provocam emoções e reações
contrárias ao proposto na
Reis a regressar do Brasil. criação heteronímica.
g. V
o. O tom oralizante de Saramago é evidente sempre que as personagens falam em
h. F − A viagem literária
discurso direto. decorre da constante
evocação de autores e de
p. Uma das marcas do estilo de Saramago é a proliferação e a mistura de diferentes textos literários a que se
assiste na obra.
modos de relato do discurso.
i. V
q. O estilo de Saramago distingue-se do de outros autores, pelo facto de não usar j. F − Na obra estão
presentes variadas formas
nenhum sinal de pontuação. de concretização da
intertextualidade: citação,
alusão, paródia, paráfrase
ou imitação criativa.
k. F − As duas mulheres
revelam personalidades
opostas e contrastantes.
l. V
m. V

275
José Saramago
AVA L I A R O ano da morte de Ricardo Reis
GRUPO I
PROFESSOR

Apresente as suas respostas de forma bem estruturada.


n. F − A estrutura circular
resulta da imitação criativa,
no início e no final da obra, de
um verso de Os Lusíadas e do A
facto de a obra começar
e terminar com uma viagem Leia o texto.
de Ricardo Reis.
o. F − O tom oralizante não Sai Ricardo Reis para a rua, esta do Alecrim, invariável, depois qualquer
resulta do discurso direto
das personagens, mas antes outra, para cima, para baixo, para os lados, Ferragial, Remolares, Arsenal,
da mistura de modos de Vinte e Quatro de Julho, são as primeiras dobações do novelo, da teia, Boavis-
relato do discurso, do tom
conversacional que o narrador ta, Crucifixo, às tantas cansam-se as pernas, um homem não pode andar por
estabelece com o narratário 5 aí à toa, nem só os cegos precisam de bengala que vá tenteando um palmo
ou do recurso a provérbios
e a expressões populares adiante ou de cão que fareje os perigos, um homem mesmo com os seus dois
com ou sem variantes. olhos intactos precisa duma luz que o preceda, aquilo em que acredita ou a
p. V
que aspira, as próprias dúvidas servem, à falta de melhor. Ora, Ricardo Reis é
q. F − Saramago usa
essencialmente dois sinais um espetador do espetáculo do mundo, sábio se isso for sabedoria, alheio e
de pontuação: a vírgula
e o ponto final.
10 indiferente por educação e atitude, mas trémulo porque uma simples nuvem
passou, afinal é tão fácil compreender os antigos gregos e romanos quando
Educação Literária acreditavam que se moviam entre deuses, que eles os assistiam em todos os
14.3; 14.4; 14.6; 14.7;
14.8, 14.9; 16.2
momentos e lugares, à sombra duma árvore, ao pé duma fonte, no interior
denso e rumoroso duma floresta, na beira do mar ou sobre as vagas, na cama
15 com quem se queria, mulher humana, ou deusa, se o queria ela. Falta a Ricar-
Ficha do Reis um cãozito de cego, uma bengalita, uma luz adiante, que este mundo
Ficha de Avaliação – e esta Lisboa são uma névoa escura onde se perde o sul e o norte, o leste e o
Unidade 6.1
oeste, onde o único caminho aberto é para baixo, se um homem se abandona
Apresentação
Soluções Ficha cai a fundo, manequim sem pernas nem cabeça. Não é verdade que tenha
de Avaliação 20 regressado do Rio de Janeiro por cobardia, ou por medo, que é mais clara ma-
neira de dizer e ficar explicado. Não é verdade que tivesse regressado porque
GRUPO I – A
morreu Fernando Pessoa, considerando que nada é possível pôr no sítio do
1. Lisboa é descrita como
“uma névoa escura” (l. 17), espaço e no sítio do tempo de onde algo ou alguém foi tirado, Fernando fosse
cujas ruas se configuram ou Alberto, cada um de nós é único e insubstituível, lugar mais do que todos
numa encruzilhada labiríntica
(“são as primeiras dobações 25 comum é dizê-lo, mas quando o dizemos não sabemos até que ponto, Ainda
do novelo, da teia”, l. 3; “onde
se perde o sul e o norte,
que me aparecesse agora mesmo, aqui, enquanto vou descendo a Avenida da
o leste e o oeste”, ll. 17-18). Liberdade, Fernando Pessoa já não é Fernando Pessoa, e não porque esteja
Esta caracterização da cidade
funciona, assim, como uma morto, a grave e decisiva questão é que não poderá acrescentar mais nada ao
metáfora da situação do país que foi e ao que fez, ao que viveu e escreveu, se falou verdade no outro dia,
(cinzento), estagnado, passivo,
oprimido e reprimido pela 30 já nem sequer é capaz de ler, coitado.
ditadura salazarista. Cap. IV (pp. 119-120)
2. A relação intertextual
de Saramago com Fernando
Pessoa é visível na forma 1. Relacione a caracterização de Lisboa com o regime político vigente em Portugal
como o narrador descreve
Ricardo Reis. Assim, o facto em 1936.
de se afirmar que o
heterónimo evidencia uma 2. Demonstre como este excerto ilustra a intertextualidade com Fernando Pessoa.
atitude de indiferença e
alheamento perante o que
se passa à sua volta, não 3. Retire do excerto, explicitando-as, três marcas do tom oralizante de José Saramago.
passando de um simples
espetador do mundo,
demonstra que Saramago
(continua)

276
O ano da morte de Ricardo Reis

B
Leia o poema.

Neste dia em que os campos são de Apolo


Verde colónia dominada a ouro,
Seja como uma dança dentro em nós
O sentirmos a vida. PROFESSOR

(continuação)
5 Não turbulenta, mas com os seus ritmos construiu a sua personagem
tendo por base as referências
Que a nossa sensação como uma ninfa dadas pelo próprio Pessoa
Acompanhe em cadências suas a bem como a produção literária
do heterónimo. A referência
Disciplina da dança... aos deuses, sendo Ricardo
Reis um poeta pagão, é
também uma marca dessa
Ao fim do dia quando os campos forem intertextualidade.
10 Império conquistado pelas sombras 3. − Comentários do narrador:
“um homem não pode andar
Como uma legião que segue marcha por aí à toa, nem só os cegos
Abdiquemos do dia, precisam de bengala que vá
tenteando um palmo adiante
ou de cão que fareje os perigos,
um homem mesmo com os
E na nossa memória coloquemos, seus dois olhos intactos
Com um deus novo duma nova terra precisa duma luz que o
preceda” (ll. 4-7).
15 Trazido, o que ficou em nós da calma − Confluência de modos de
Do dia passageiro. relato do discurso: “cada um
de nós é único e insubstituível,
[11-8-1914] lugar mais do que todos
In “Odes e outros poemas”, Ricardo Reis, Poesia comum é dizê-lo, mas quando
(ed. Manuela Parreira da Silva), Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 74. o dizemos não sabemos até
que ponto, Ainda que me
aparecesse agora mesmo,
aqui, enquanto vou descendo
4. Demonstre de que forma o poema espelha a consciência da mortalidade. a Avenida da Liberdade,
Fernando Pessoa já não é
5. Apresente duas marcas do classicismo de Ricardo Reis evidenciadas nesta com- Fernando Pessoa” (ll. 24-27).
− Envolvência do narratário:
posição poética. “mas quando o dizemos não
sabemos até que ponto” (l. 25).
4. O facto de o sujeito lírico
apelar para o aproveitamento
GRUPO II moderado do dia, para
que a chegada da noite
Responda às questões. não cause nenhum tipo de
perturbação, arrependimento
Nas respostas aos itens de escolha múltipla, selecione, no seu caderno, a opção correta. ou angústia, funciona como
uma metáfora da forma como
Leia o texto. o “eu” considera que nos
devemos comportar enquanto
vivos para não sermos
surpreeendidos e afetados
pela morte, aqui metaforizada
Ricardo Reis revisitado pela sombra que invade
os campos.
5. A composição poética

A
classifica-se como uma ode,
forma muito apreciada na
reconstrução da identidade imaginária de um dos heterónimos do poeta Fernando Antiguidade clássica, que
Pessoa constitui o mote do livro O ano da morte de Ricardo Reis (1984), um dos me- apresenta regularidade
estrófica e métrica.
lhores romances de José Saramago, dois anos depois da publicação de Memorial do A referência ao deus Apolo
convento. Ricardo Reis, tal como o título o deixa prever, é a personagem central do livro, mas é também uma marca
da influência clássica, pois
5 também Fernando Pessoa, o seu criador, ocupa um lugar preponderante na ação, a qual se evidencia o paganismo.
situa historicamente nos anos 1930, época de plena consolidação da ditadura salazarista.

277
José Saramago
AVA L I A R
Partindo das pistas biográficas de Ricardo Reis registadas pelo próprio Pessoa − um mé-
dico que se expatriara desde 1919 no Brasil, por motivos políticos −, Saramago imagina a
personagem no seu regresso a Portugal em dezembro de 1935, descrevendo o seu quotidia-
10 no nos nove meses anteriores à sua morte. Ricardo Reis chega a Lisboa, aluga um quarto de
hotel e depois um apartamento, envolve-se com duas mulheres, Lídia e Marcenda, é seguido
pela polícia, além de receber sucessivas visitas do falecido Fernando Pessoa, o que contribui
para acentuar o ambiente de irrealidade da ação.
Em O ano da morte de Ricardo Reis, a escrita de Saramago possui uma forte marca de
15 intertextualidade, sendo que os nomes de Marcenda e Lídia derivam ambos das “Odes de
Ricardo Reis” de Pessoa, além do facto de o romance de Saramago se construir em torno da
personagem inventada pelo poeta, reconstruída através do diálogo com o seu criador. Tam-
bém as referências a Luís de Camões são constantes ao longo da obra bem como a presença
do escritor argentino de ascendência portuguesa Jorge Luís Borges. Toda esta multirreferen-
20 cialidade que perpassa pelo livro transforma O ano da morte de Ricardo Reis num romance
que se transcende a si próprio, posicionando-o numa tradição literária simultaneamente
clássica e moderna, portuguesa e internacional.
Marisa Torres da Silva, Público – Coleção Mil Folhas, edição online (consultado em agosto de 2016).

1. Quanto ao género, este texto constitui-se como


[A] uma exposição sobre a publicação de uma obra de Saramago.
[B] uma apreciação crítica de uma obra de Saramago.
[C] um artigo de opinião sobre o heterónimo Ricardo Reis.
[D] um relato de viagem centrado no regresso de Ricardo Reis a Portugal.

2. A obra O ano da morte de Ricardo Reis


[A] constitui-se como o primeiro êxito de Saramago antes da publicação de Memorial
do convento.
[B] narra as peripécias de Ricardo Reis desde o seu expatriamento, em 1919.
PROFESSOR
[C] assenta no conhecimento de Saramago sobre a criação heteronímica de Pessoa.
GRUPO II [D] debruça-se sobre a criação artística de Ricardo Reis e de Fernando Pessoa.

Leitura
7.3; 7.4; 7.7
3. Esta obra saramaguiana
Gramática [A] revela um pendor clássico, dado a sua personagem principal ser Ricardo Reis.
17.1; 18.2; 19.1; 19.4
[B] reveste-se de um enorme realismo no que diz respeito à ação.
1. [B] [C] acaba por ser um decalque de obras de Luís de Camões e de Jorge Luís Borges.
2. [C]
[D] tem como pano de fundo factos verídicos ocorridos em 1936.
3. [D]
4. [D]
4. Na expressão “um dos melhores romances de José Saramago” (ll. 2-3), estamos perante
5. [C]
6. [A] a modalidade
7. [B] [A] epistémica (valor de probabilidade).
8. “constitui”; “dois anos
depois”. [B] epistémica (valor de certeza).
9. “a ação”.
[C] deôntica (valor de permissão).
10. Palavras divergentes.
[D] apreciativa.

278
O ano da morte de Ricardo Reis

5. Os processos fonológicos ocorridos na passagem de PERSONA- para pessoa são


[A] a dissimilação e a prótese.
[B] a crase e a apócope.
[C] a assimilação e a síncope. PROFESSOR

[D] a sonorização e a metátese. GRUPO III

6. Na expressão “Ricardo Reis chega a Lisboa” (l. 10), o segmento sublinhado desempenha Escrita
a função sintática de 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3;
12.4; 13.1
[A] complemento oblíquo.
Sugere-se o plano seguinte:
[B] predicativo do sujeito. Introdução – A imagem
representa uma encruzilhada
[C] complemento indireto. de caminhos, num trajeto
labiríntico que culmina num
[D] modificador. ponto centrípeto que se
afunila.
7. As expressões “O ano da morte de Ricardo Reis” (l. 2) e “o romance de Saramago” (l. 16) Desenvolvimento
− a cor cinzenta funciona como
constituem-se como um exemplo de coesão uma metáfora da inércia e da
apatia, ao mesmo tempo que
[A] lexical (por repetição). é representativa da angústia
decorrente de se estar num
[B] lexical (por substituição). labirinto sem saída;
− a imagem articula-se com
[C] gramatical (referencial). a personagem Ricardo Reis,
dado que é percetível, ao longo
[D] gramatical (interfrásica). da obra, que o heterónimo se
encontra constantemente
8. Retire do excerto que se segue os segmentos com valor temporal. numa encruzilhada de ruas
(“todos os caminhos vão dar
a Camões”), de emoções, de
“A reconstrução da identidade imaginária de um dos heterónimos do poeta Fernando sentimentos: está dividido
Pessoa constitui o mote do livro O ano da morte de Ricardo Reis (1984), um dos melhores entre Lídia e Marcenda, entre
um amor carnal e outro
romances de José Saramago, dois anos depois da publicação de Memorial do convento.” (ll. 1-4) platónico e contemplativo,
entre a possibilidade de se
9. Identifique o antecedente retomado pelo segmento “a qual”. (l. 5) tornar um agente ativo ou de
continuar com uma atitude
passiva e desistente.
10. Classifique as palavras “plena” (l. 6) e cheia, tendo em conta que ambas derivam do Conclusão – A imagem
mesmo étimo latino (PLENA-). coaduna-se, assim, de forma
exemplar, com a personagem
Ricardo Reis concebida por
José Saramago.

GRUPO III

Faça uma apreciação crítica, de 150 a 200 palavras, da imagem


apresentada, atendendo aos seguintes aspetos:
š descrição sucinta da imagem;
š simbologia da imagem representada e das cores usadas;
š possível relação da imagem com O ano da morte de Ricardo Reis;
š comentário valorativo.

279
6.2
José Saramago
Memorial do convento

Oralidade
Educação Literária
Debate [CO]
Memorial do convento [Integral]
Texto de opinião [EO]
O título e as linhas de ação
Diálogo argumentativo [EO]
Caracterização das personagens. Relação entre elas
Documentário [CO] [10.˚ ano]
O tempo histórico e o tempo da narrativa Exposição sobre um tema [EO] [11.˚ ano]
Visão crítica Gramática
Dimensão simbólica Em revisão:
Linguagem, estilo e estrutura Etimologia
Processos fonológicos
Pronome pessoal (referente)
Leitura
Funções sintáticas
Diário Subordinação
Discurso político [11.˚ ano] Reprodução do discurso no discurso
Valor aspetual
Exposição [10.˚ ano]
Valor temporal
Valor modal
Escrita Coesão
Texto de opinião Dêixis
Sequências textuais
Síntese [10.˚ ano]
Intertextualidade
José Saramago

PROFESSOR PERA
CU R
EXPRESSÃO ORAL

RE
Nota:
ÃO
Consulte as páginas 226 e E X P O S IÇ
227, que antecedem o estudo
de O ano da morte de Ricardo 1. Considere a composição de imagens presentes no separador desta
a
11.° ANO
Reis, para contextualização unidade.
da vida e obra do autor José
Saramago (Compreensão 1.1 Tendo em conta a leitura integral da obra Memorial do convento, identifique cada uma
e Expressão Oral) e para a das imagens presentes no separador.
realização da atividade de
Leitura. 1.2 Estabeleça uma relação entre cada uma delas.

Oralidade
1.3; 5.2; 5.3 INFORMAR

Documento O título, as linhas de ação e a estrutura da obra


Separador da Unidade

1.1 No separador figuram o


TEXTO A
convento de Mafra, as imagens
de D. João V, de Baltasar, Ao tomar um tema histórico para o seu romance, José Saramago quis fa-
de Blimunda e da passarola. zer simbolicamente justiça aos “humilhados e ofendidos” da História universal
1.2 A ação do romance oficial, aos que a fazem a suor e sangue, mas cujos nomes não constam dos
Memorial do convento, de
José Saramago, centra-se na documentos dos seus arquivos nem das páginas dos seus manuais. Vimos a
construção, levada a cabo por
milhares de trabalhadores,
5 sua intenção de os imortalizar, ao apresentar alguns nomes, como os constru-
do convento de Mafra, que tores “reais” do convento, e não lhe bastando isso, a enumeração pelas iniciais
foi mandado edificar por
D. João V. Na história intervêm cobrindo todo o alfabeto.
também Baltasar e Blimunda
que, com o padre Bartolomeu Maria Joaquina Nobre Júlio, Memorial do convento de José Saramago: subsídios para uma leitura,
Lourenço, empreendem o Lisboa, Replicação, 1999, p. 90 (com supressões).
projeto de construção de
uma máquina voadora –
a passarola – cuja invenção TEXTO B
era apoiada pelo rei.
O Memorial, sendo-o embora de um convento, é-o, sobretudo, de uma épo-
A pedra, in José Santa-Bárbara, ca da qual se esqueceu a outra face composta por gente anónima cuja impor-
Vontades, Lisboa, Caminho, tância o narrador tenta perpetuar pela listagem de nomes de A a Z. As vidas,
2001.
essas, na impossibilidade de falar de todas, “por tantas serem”, são transferi-
5 das para um representante individual. Com efeito, apesar de se-

rem narrados outros amores e outros dramas, nenhum o é com


tanto relevo como o protagonizado por Baltasar Sete-Sóis que, ao
lado de Blimunda, cujo nome circularmente completa o seu, Sete-
-Luas, aglomera vidas diversas: os trabalhos passados em guerras
10 que nem sempre são as próprias; o longo labutar na construção de

uma basílica onde nem o próprio Deus salva os homens; as pri-


vações travestidas de fome; a perseguição e morte numa fogueira
inquisitorial, em nome desse mesmo Deus ateada, porque com ele
se disputou o lugar na terra e no céu visitado por sonhos que, por
15 vezes, são passarolas.

Ana Paula Arnaut, Memorial do convento. História, ficção e ideologia, Coimbra,


Fora do Texto, 1996, pp. 71-72.

TEXTO C
Temos, em relação ao Memorial, um relato que entrelaça vários
fios narrativos, aparentemente independentes: o voto do rei e a
consequente edificação de Mafra; o sonho várias vezes milenar,

282
Memorial do convento

mítico até, de fazer o homem voar e a construção da passarola; a história de


5 amor de Baltasar e Blimunda. Penso que a narrativa está centrada no amor de
Blimunda e Sete-Sóis, presente desde o auto de fé em que a mãe de Blimunda
é sacrificada, até à clausura do romance por outro auto de fé, e pelo reencontro
dos dois amantes; bem como pela participação dos dois quer na edificação de
Mafra quer na construção da passarola, que assegura a unidade da obra.
Beatriz Berrini, Ler Saramago: o romance, Lisboa, Editorial Caminho, 1998, p. 64.

1. Justifique o título da obra, referindo as intenções que ele anuncia.


1.1 Com base nos textos anteriores, aponte uma das estratégias do narrador para atingir
os seus objetivos.

2. Preencha, no seu caderno, um esquema idêntico ao que se apresenta, sobre o tema


central e os principais intervenientes de cada uma das linhas de ação da obra, tendo
em conta os textos lidos e a informação presente na contracapa da obra.

PROFESSOR

Leitura
7.2; 8.1; 8.2
Educação Literária
16.1

Apresentação
Convento e Palácio
de Mafra – Imagens

1. Ao intitular o seu romance


Memorial do convento,
Saramago pretende, acima
de tudo, tornar memorável
e inesquecível o verdadeiro
obreiro da construção do
edifício – o povo –, que a
História ignora, celebrando
apenas o seu promotor – o rei
D. João V.
1.1 Como forma de
homenagear e resgatar do
esquecimento estes homens
sofridos, Saramago enumera,
simbolicamente, nomes
iniciados por todas as letras
do alfabeto.
Primeira linha de ação Segunda linha de ação
2.
a. Promessa de D. João V
a. b. de construir um convento em
Mafra.
b. Construção do convento
pelo povo.
c. Relacionamento amoroso
Quarta linha de ação Terceira linha de ação de Baltasar e Blimunda.
d. Sonho do padre Bartolomeu
Lourenço de construir
d. c. a passarola.

283
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Visão global da obra


1. Complete os espaços em branco, no seu caderno, de forma a elaborar uma síntese dos
capítulos de Memorial do convento.

Cap. Síntese da ação Ano

I š Promessa de a. ___________ de construir um convento em Mafra.

II š Gravidez da rainha D. Maria Ana Josefa.

III š Procissão da b. ___________ após os excessos do Entrudo.

IV š Regresso de Baltasar da Guerra da c. ___________, em d. ___________.


1711

š Auto de fé e encontro de e. ___________ (26 anos), Blimunda (19 anos)


V
e Bartolomeu (26 anos).

VI š Convite do padre a Baltasar para o ajudar a construir f. ___________.

VII š Nascimento e batizado da infanta Maria Bárbara.

š Vida em comum de Blimunda e Baltasar e revelação do g. ___________


da personagem feminina ao soldado.
VIII
š Nascimento do infante D. Pedro.
š Escolha do local para a construção do convento.
1712
š Mudança de Baltasar e Blimunda para h. ___________, onde esta inspeciona
os materiais para construir a passarola e recebe a alcunha de i. ___________.
IX
š Partida de Bartolomeu para j. ___________.
š Ida de Sete-Sóis e Sete-Luas à tourada.

š Partida de Baltasar e de Blimunda para Mafra, local onde ela conhece a família do
ex-soldado. Lá, Baltasar trabalha na agricultura, mas procura informar-se sobre o
X andamento do convento. 1713
š Gravidez da rainha: infante D. José.

š Regresso de Bartolomeu da Holanda e sua ida a Mafra, onde revela o segredo do


éter a Sete-Sóis e a Sete-Luas.
XI š Construção do convento. 1715
š Distribuição de tarefas para a construção da passarola: Blimunda vai
k. ___________.

š Ida do monarca a Mafra para a l. ___________ da primeira pedra da basílica.


XII 1717
š Construção paralela da passarola e do convento.

XIII š Procissão do Corpo de Deus, em Lisboa. 1719

284
Memorial do convento

š Lição de cravo de Maria Bárbara.


š Revelação do segredo da passarola a m. ___________ pelo padre Bartolomeu.
XIV
š Início das dúvidas do padre.
š Composição do sermão do Corpo de Deus.
1720

š Doença de Blimunda após a recolha das vontades durante a epidemia que


XV assolou Lisboa.
š Contribuição da n. ___________ de Scarlatti para a cura de Blimunda.

š Fuga de Bartolomeu, de Blimunda e de Baltasar na passarola, que sobrevoa


Mafra e leva os seus habitantes a acreditarem que se trata de um milagre
do o. ___________.
XVI
š Queda da passarola e fuga do padre Bartolomeu, depois de ter tentado incendiá-la.
š Regresso de Blimunda e de Baltasar a Mafra depois de terem escondido
a passarola. 1724

š Trabalho de Baltasar nas obras do convento.


š Descrição das casas de acomodação dos trabalhadores na ilha da p. ___________.
XVII
š Ida de Scarlatti a Mafra para comunicar ao casal que o padre Bartolomeu
q. ___________ em Toledo.
PROFESSOR
š Gastos do monarca na construção do convento.
XVIII 1725 Educação Literária
š Caracterização e apresentação dos r. ___________ do convento. 14.2

š Transporte da pedra de s. ___________ – homenagem ao esforço humano. 1.


XIX 1726 a. D. João V
š Morte de t. ___________.
b. penitência
c. Sucessão
XX š Ida de Blimunda e de Baltasar ao Monte Junto para saber da passarola. 1727 d. Espanha
e. Baltasar
š Resolução do monarca de aumentar o convento de modo a albergar f. a passarola
u. ___________ frades. g. dom
XXI 1728 h. São Sebastião da Pedreira
š Decisão de fazer a sagração da basílica no dia 22 de outubro de v. ___________.
i. Sete-Luas
š Opressão e tirania sobre os trabalhadores do convento.
j. a Holanda
k. recolher as vontades
XXII š Cortejo real: casamento de w. ___________ e de D. José. 1729 l. bênção
m. Domenico Scarlatti
š Chegada a Mafra de um grupo de noviços. n. música
o. Espírito Santo
š Partida de Baltasar para Monte Junto.
XXIII p. Madeira
š Novo x. ___________ da passarola com Sete-Sóis. q. morreu
š Referência aos 40 mil homens que dormem na ilha da Madeira. r. trabalhadores
1730
s. Pero Pinheiro
t. Francisco Marques
š Festa da y. ___________ da basílica.
u. trezentos
XXIV š Procura de Baltasar, que não regressara após a ida a Monte Junto, por Blimunda.
v. 1730
š Assassínio de um frade por Blimunda, como reação à tentativa de violação. w. D. Maria Bárbara
x. voo
š Buscas contínuas de Baltasar, levadas a cabo por Blimunda. y. sagração
XXV 1739 z. auto de fé
š Reencontro num z. ___________, em que ele era um dos supliciados.

285
José Saramago

PERA
CU R
COMPREENSÃO DO ORAL

RE
N T Á R IO
DOCUME
Visione atentamente os excertos propostos do documentário Grandess
10.° ANO
Livros, relacionados com a primeira e segunda linhas de ação.

1. Assinale, no seu caderno, como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.

a. O epicentro do romance Memorial do convento é o convento de Mafra, edifício mandado


construir por D. João V para celebrar o seu casamento com a rainha D. Maria Ana Josefa.
b. A edificação do convento concretiza-se porque as finanças do país estavam equilibradas.
Grandes Livros, Memorial do convento,
RTP c. A megalomania é uma das características mais marcantes do monarca D. João V.

d. Saramago, propositadamente, faz constar da obra o nome de todos os trabalhadores


do convento.
e. Por ter mandado construir o convento, o rei D. João V é o grande protagonista da obra.

PROFESSOR

Oralidade
1.1; 1.3 EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Vídeo
MEMORIAL DO CONVENTO*
Grandes Livros,
Memorial do convento, A promessa
RTP (7 minutos)
EXCERTO 1 | Cap. I (pp. 11-16)
1. a. F – A construção
do convento resultou da
promessa feita por D. João V, D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher,
caso tivesse descendência. D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infan-
b. F – O almoxarife alerta o
rei para o facto de o país se tes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte,
estar a endividar, mas, mesmo dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insi-
assim, este decide prosseguir
com a construção. 5 nuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos
c. V se confia. Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade
d. F – Uma vez que não pode
nomear todos os construtores
não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas tantas vezes,
do convento por serem e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino
tantos, Saramago usa como
estratégia a referência, bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça. Além disso,
ao acaso, de nomes que 10 quem se extenua a implorar ao céu um filho não é o rei, mas a rainha, e tam-
percorram todo o alfabeto,
de maneira que todos sejam bém por duas razões. A primeira razão é que um rei, e ainda mais se de Portugal
homenageados. for, não pede o que unicamente está em seu poder dar, a segunda razão porque
e. F – O grande protagonista
é o povo, representado sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber, há de ser naturalmente supli-
por Baltasar e por outros cante, tanto em novenas organizadas como em orações ocasionais. Mas nem a
trabalhadores, dado o esforço
e os sacrifícios que teve de 15 persistência do rei, que, salvo dificultação canónica ou impedimento fisiológico,
suportar para levar a cabo duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal, nem
a construção do convento,
idealizada por D. João V. a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces, se sacrifica a uma
imobilidade total depois de retirar-se de si e da cama o esposo, para que se
não perturbem em seu gerativo acomodamento os líquidos comuns, escassos
*FIXAÇÃO DE TEXTO
José Saramago, 20 os seus por falta de estímulo e tempo, e cristianíssima retenção moral, pródigos
Memorial do convento, os do soberano, como se espera de um homem que ainda não fez vinte e dois
53.a ed., Lisboa,
Editorial Caminho, anos, nem isto nem aquilo fizeram inchar até hoje a barriga de D. Maria Ana.
2013. Mas Deus é grande.

286
Memorial do convento

[…] Por enquanto, ainda el-rei está a preparar-se para a noite. Despiram-no D. João V
25 os camaristas, vestiram-no com o trajo da função e do estilo, passadas as rou- Nascido a 22 de outubro de 1689,
foi aclamado rei a 1 de janeiro
pas de mão em mão tão reverentemente como relíquias de santas que tivessem de 1707. Morreu a 30 de julho de
trespassado donzelas, e isto se passa na presença de outros criados e pajens, 1750. Casou a 9 de julho de 1708
este que abre o gavetão, aquele que afasta a cortina, um que levanta a luz, outro com D. Maria Ana de Áustria.
Quando iniciou o reinado,
que lhe modera o brilho, dois que não se movem, dois que imitam estes, mais estava-se em plena Guerra da
30 uns tantos que não se sabe o que fazem nem por que estão. Enfim, de tanto se Sucessão de Espanha, mas o
que preocupava D. João V era a
esforçarem todos ficou preparado el-rei [...], já não tarda um minuto que D. João V
defesa do Brasil e das suas rotas.
se encaminhe ao quarto da rainha. O cântaro está à espera da fonte. Neste reinado, as condições
Mas vem agora entrando D. Nuno da Cunha, que é o bispo inquisidor, e traz da economia portuguesa
melhoraram consideravelmente
consigo um franciscano velho. […] Retiram-se a uma parte D. João V e o inquisi- dada a abundância do ouro.
35 dor, e este diz, Aquele que além está é frei António de S. José, a quem falando- Culturalmente, o reinado de
-lhe eu sobre a tristeza de vossa majestade por lhe não dar filhos a rainha nossa D. João V reveste-se de aspetos
de extremo interesse quer
senhora, pedi que encomendasse vossa majestade a Deus para que lhe desse no plano das belas-artes
sucessão, e ele me respondeu que vossa majestade terá filhos se quiser, e então quer no da história da cultura
perguntei-lhe que queria ele significar com tão obscuras palavras, porquanto é portuguesa. Nas artes maiores,
porém, tanto na pintura como
40 sabido que filhos quer vossa majestade ter, e ele respondeu-me, palavras enfim na arquitetura e escultura, a
muito claras, que se vossa majestade prometesse levantar um convento na vila importação maciça de artistas
estrangeiros (Baccarelli, Dupré,
de Mafra, Deus lhe daria sucessão, e tendo declarado isto, calou-se D. Nuno e fez Pillement, Quillart, etc.) estancou
um aceno ao arrábido. a originalidade de talentosos
[…] Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito artistas portugueses, como
Vieira Lusitano, Jerónimo Nunes,
45 do empenho, levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o etc., cujo incontestável talento
soubessem amanhã cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei se subordinou aos modelos
construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um importados, sobretudo de Itália.

filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Dicionário de História de
Portugal, dir. Joel Serrão,
Deus ouça vossa majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se vol. III, Porto, Figueirinhas,
50 o mesmo Deus, se a virtude de frei António, se a potência do rei, ou, finalmente, 1992, pp. 399-401
(com supressões).
a fertilidade dificultosa da rainha.

EXCERTO 2 | Cap. I (pp. 16-20)

[E]l-rei já se anunciou, e vem de espírito aceso, estimulado pela conjunção


mística do dever carnal e da promessa que fez a Deus por intermédio e bons
ofícios de frei António de S. José. […]
55 D. João V conduz D. Maria Ana ao leito, leva-a pela mão como no baile
o cavaleiro à dama […].
Já se deitaram. Esta é a cama que veio da Holanda quando a rainha veio
da Áustria, mandada fazer de propósito pelo rei, a cama, a quem custou
setenta e cinco mil cruzados, que em Portugal não há artífices de tanto
60 primor, e, se os houvesse, sem dúvida ganhariam menos. […]
D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria [...], e el-rei,
que já cumpriu o seu dever, e tudo espera do convencimento e criativo
esforço com que o cumpriu, beija-lha como a rainha e futura mãe, se
não presumiu demasiado frei António de S. José. É D. Maria Ana quem
65 puxa o cordão da sineta, entram de um lado os camaristas do rei,
do outro as damas, pairam cheiros diversos na atmosfera pe-
sada, um deles que facilmente identificam, que sem o que
a isto cheira não são possíveis milagres como o que
desta vez se espera, porque a outra, e tão falada,
José Saramago

70 incorpórea fecundação, foi uma vez sem exemplo, só para que se ficasse a saber
que Deus, quando quer, não precisa de homens, embora não possa dispensar-se
de mulheres.
PROFESSOR
Ainda que insistentemente tranquilizada pelo confessor, tem D. Maria Ana,
nestas ocasiões, grandes escrúpulos de alma. Retirados el-rei e os camaristas,
Educação Literária 75 deitadas já as damas que a servem e lhe protegem o sono, sempre cuida a rai-
14.2; 14.3; 14.4; 14.7;
14.8; 14.9; 15.1; 15.3; nha que seria sua obrigação levantar-se para as últimas orações, mas, tendo
16.2 de guardar o choco por conselho dos médicos, contenta-se com murmurá-las
Gramática infinitamente, passando cada vez mais devagar as contas do rosário, até que
18.4
adormece no meio duma ave-maria cheia de graça, ao menos com essa foi tudo
1.1 D. João V é um rei poderoso, 80 tão fácil, bendito seja o fruto do vosso ventre, e é no do seu ansiado próprio que
mas que ainda não conseguiu
alcançar um dos seus maiores está pensando, ao menos um filho, Senhor, ao menos um filho. Deste involun-
objetivos: ter um descendente.
Ainda assim, na busca desse
tário orgulho nunca fez confissão, por ser distante e involuntário, tanto que se
propósito, é persistente fosse chamada a juízo juraria, com verdade, que sempre se dirigira à Virgem e
e cumpre rigorosamente
determinadas rotinas. É um ao ventre que ela teve. São meandros do inconsciente real, como aqueles outros
homem infiel. 85 sonhos que sempre D. Maria Ana tem, vá lá explicá-los, quando el-rei vem ao
D. Maria Ana Josefa é uma
mulher muito religiosa e os seu quarto, que é ver-se atravessando o Terreiro do Paço para o lado dos açou-
problemas de infertilidade, no gues, levantando a saia à frente e patinhando numa lama aguada e pegajosa
início do casamento, levam-na
a ficar ainda mais devota. Por que cheira ao que cheiram os homens quando descarregam, enquanto o infante
isso mesmo, sente um peso D. Francisco, seu cunhado, cujo antigo quarto agora ocupa, alguma assombra-
na consciência após cada ato
sexual, o que a leva a rezar 90 ção lhe ficando, dança em redor dela, empoleirado em andas, como uma cego-
fervorosamente. No entanto,
os escrúpulos religiosos dão
nha negra.
lugar a desejos libidinosos
que se configuram na forma EXCERTO 3 | Cap. IX (p. 123)
de sonhos, ocultados ao
confessor, que acabam por [D]e el-rei não falemos, que sendo tão moço ainda gosta de brinquedos, […]
minimizar a insatisfação
pessoal que sente e a por isso se diverte tanto com as freiras nos mosteiros e as vai emprenhando,
ajudam a adotar uma atitude uma após outra, ou várias ao mesmo tempo, que quando acabar a sua história
resignada relativamente
à infidelidade do marido. 95 se hão de contar por dezenas os filhos assim arranjados, coitada da rainha, que
De facto, a rainha é uma
mulher paciente e submissa
seria dela se não fosse o seu confessor António Stieff, jesuíta, por lhe ensinar
ao rei e às convenções da resignação, e os sonhos em que lhe aparece o infante D. Francisco com mari-
aristocracia e da corte a
ponto de se sacrificar para dar nheiros mortos pendurados dos arções das mulas, […].
um descendente à coroa. É,
ainda, frágil (“estende ao rei a
mãozinha suada e fria”, l. 61).
1. Atente nas personagens D. João V e D. Maria Ana Josefa.
1.2 É uma relação pautada
pela frieza, pela distância 1.1 Trace o retrato psicológico de ambos.
e pela formalidade. De
facto, a ida do rei ao quarto 1.2 Caracterize a relação existente entre os monarcas.
da rainha, que ocorria
rigorosamente duas vezes por
semana, assume contornos 2. O narrador, no excerto 1, adota uma atitude ironicamente machista.
protocolares, na medida em
que é descrito um conjunto de 2.1 Demonstre, justificadamente, essa atitude.
atos de natureza cerimonial
e ritual (os preparativos, o
cortejo até aos aposentos 3. Atente na expressão “O cântaro está à espera da fonte.” (l. 32)
da rainha, a ida para a cama).
Além disso, a relação sexual 3.1 Identifique o recurso presente na expressão, comentando a sua expressividade.
mantida entre o rei e a rainha
tem apenas o propósito de 3.2 Explique por que razão se pode afirmar que esta expressão resulta num exemplo de
garantir a sucessão do rei, intertextualidade.
não havendo espaço para
o amor ou para a ternura. Por 3.3 Indique o tipo de intertextualidade aqui presente.
isso, findo o ato, e ao contrário
do que sucedia ao princípio,
o rei abandona o quarto e não 4. Aponte a crítica subjacente às seguintes palavras do narrador: “que em Portugal não
pernoita com a rainha. há artífices de tanto primor, e, se os houvesse, sem dúvida ganhariam menos.” (ll. 59-60)

288
Memorial do convento

INFORMAR

Linguagem e estilo: pontuação; reprodução do discurso


no discurso PROFESSOR

TEXTO A 2.1 Ao afirmar “Que caiba a


culpa ao rei, nem pensar”
(l. 6), o narrador denuncia a
Todas as características da minha técnica narrativa atual (eu preferiria dizer: do perspetiva machista da época:
meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual o dito se destina a ser a de que a infertilidade seria
sempre da responsabilidade
ouvido. Quero com isto significar que é como narrador oral que me vejo quando da mulher, chegando mesmo
escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para a declarar que “a esterilidade
não é mal dos homens,
5 serem ouvidas. Ora, o narrador oral não precisa de pontuação, fala como se estivesse das mulheres sim” (ll. 6-7).
a compor música e usa os mesmos elementos que o músico: sons e pausas, altos e Percebe-se, assim, que
o narrador está a ser irónico,
baixos, uns, breves ou longas, outras. Certas tendências, que reconheço e confirmo criticando a mentalidade que
(estruturas barrocas, oratória circular, simetria de elementos), suponho que me vêm vigorava naquela altura quer
relativamente ao casamento
de uma certa ideia de um discurso oral tomado como música. Pergunto-me mesmo por conveniência quer no que
concerne à ideia da mulher
10 se não haverá mais do que uma simples coincidência entre o carácter inorganizado e como ser submisso, com
fragmentário do discurso falado de hoje e as expressões “mínimas” de certa música a função de assegurar a
descendência.
contemporânea… (A propósito desta questão,
José Saramago, Cadernos de Lanzarote – Diário II (15 de fevereiro, 1994), Lisboa, Editorial Caminho, 1995, p. 49. sugere-se que o professor
leve os alunos a fazer
aproximações com o romance
Amor de perdição no que
TEXTO B respeita à tentativa de Tadeu
de Albuquerque casar a filha
Sucede então que [insistentemente nos romances de José Saramago] um con- com Baltasar Coutinho).
tinuum frásico entre dois pontos finais finge falas de duas ou mais personagens, 3.1 Metáfora que evidencia
o objetivo da ida do rei ao
o diálogo interior de uma delas, a interseção da voz do narrador, o movimento de quarto da rainha: garantir
a descendência. Deste modo,
pergunta sem ponto de interrogação; tudo apenas marcado por vírgulas, maiúscu- sendo a rainha o elemento
5 las e pela gestualidade enunciativa. Um tal jogo de pontuação é, além disso mesmo, gerativo da relação, ela é
associada ao cântaro que
índice de que uma só frase pode ser o cruzamento de vários enunciadores; índice espera a água da fonte,
de polifonia da enunciação, que, além disso, marca as unidades maiores do texto. A ou seja, espera que o rei a
fecunde. Por outro lado, pela
voz narrativa pode então fazer-se de múltiplos registos discursivos, da montagem antecipação de "cântaro" a
de diferentes materiais lexicais até às diferentes formas de convocação de outros "fonte", distingue-se a rainha
como o elemento passivo da
10 discursos literários, e ao trabalho de transformação de clichés e provérbios. relação.
Carlos Reis, História crítica da literatura portuguesa, do Neorrealismo ao Post-Modernismo, vol. IX, 3.2 A intertextualidade
Lisboa, Editorial Verbo, 2005, p. 333. é visível no facto de esta
expressão resultar da
transformação do provérbio
“tantas vezes o cântaro vai
1. Considere a informação dos textos e o excerto que se apresenta transcrito: à fonte que um dia lá deixa
a asa”.
3.3 Alusão.
“Retiram-se a uma parte D. João V e o inquisidor, e este diz, Aquele que além está é frei Nota: Disponível, no Guia
António de S. José, a quem falando-lhe eu sobre a tristeza de vossa majestade por lhe não do Professor, um cenário de
resposta para a questão 4.
dar filhos a rainha nossa senhora, pedi que encomendasse vossa majestade a Deus para que
lhe desse sucessão, e ele me respondeu que vossa majestade terá filhos se quiser, e então Leitura
perguntei-lhe que queria ele significar com tão obscuras palavras” (excerto 1, ll. 34-39) 7.3
Gramática
17.1
G 1.1 Reescreva, no seu caderno, o excerto, seguindo a norma-padrão do português atual na
sua modalidade escrita. Nota: Disponível, no Guia
do Professor, um cenário de
1.2 Destaque frases reveladoras da presença de dois modos de relato do discurso, enuncian- resposta para as questões 1.1
do as respetivas marcas. e 1.2.

289
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A construção do convento e as condições de vida


dos trabalhadores
EXCERTO 1 | Cap. VIII (p. 115)

PROFESSOR El-rei foi a Mafra escolher o sítio onde há de ser levantado o convento. Ficará
neste alto a que chamam da Vela, [...].
EXCERTO 2 | Cap. X (p. 148)
Áudio (CD2 – Faixa 22)
Mafra: 300 anos do Real Primeiro falou-se em treze frades, depois subiu para quarenta, agora já an-
Edifício – Terra a Terra,
TSF (5 minutos)
dam os franciscanos da albergaria e da capela do Espírito Santo a dizer que hão
5 de ser oitenta, [...].
Sugere-se a audição de um
excerto do programa da TSF a EXCERTO 3 | Cap. XII (p. 177)
propósito das celebrações dos
300 anos do Palácio Nacional
de Mafra, tendo em vista a […] entretanto começou a constar em Mafra, e foi confirmado pelo vigário
exploração dos seguintes no sermão, que vinha el-rei a inaugurar a obra da raiz dos caboucos1 para cima,
aspetos:
− a construção do convento de colocando com as suas reais mãos a primeira pedra.
Mafra como um facto real,
no qual Saramago se baseia
EXCERTO 4 | Cap. XVII (pp. 289-290, 293-294)
para o seu romance;
− a grandiosidade do edifício,
reflexo da megalomania […] o sítio […] era conhecido pelo nome de Ilha da Madeira, e bem posto
do rei; 10 lhe fora, porque, tirando umas poucas casas de pedra e cal, todo o mais era de
− a logística necessária e a
quantidade avultada de tabuado, mas construído para durar. Havia oficinas de ferreiros, […] e outras ar-
mão de obra necessária à tes, […] mais tarde se juntarão as dos latoeiros2, dos vidraceiros, dos pintores, e
construção;
− a tecnologia de ponta usada quantas mais. Muitas das casas de madeira tinham sobrados3, em baixo acomo-
no edifício. davam-se as bestas e os bois, em cima as pessoas de muita ou alguma distinção,
Educação Literária 15 os mestres da obra, os matriculadores e outros senhores da vedoria-geral4, e
14.2; 14.3; 14.4; 14.7;
15.1; 15.2; 15.3; 16.2
oficiais da guerra que governavam os soldados. A esta hora da manhã estavam
saindo das lojas os bois e as mulas, outros teriam sido levados mais cedo, o chão
1. Primeiro, foi necessário empapava-se de urina e excrementos […].
escolher o local (o alto da Vela, Nestas grandes barracas de madeira dormem os homens, não comporta cada
em Mafra); depois, estabelecer
a dimensão do convento 20 uma menos de duzentos.
em função do número de […] se Cristo em pessoa andou pelo mundo, aqui não chegou, porque nesse
frades que albergaria;
a seguir, D. João V inaugurou caso teria sido no alto da Vela o seu calvário. […]
a construção, colocando
a primeira pedra, tendo-se
Desde que o sol nasce até que se põe, […] setecentos, mil, mil e duzentos ho-
iniciado, posteriormente, mens, carregam os carros com terra e pedras […] vão uns atrás dos outros despe-
as obras de maior
envergadura que requeriam
25 jar o entulho pela encosta abaixo, e não é só mato o que vão cobrindo, também
já um número considerável de alguma terra de cultivo, além uma horta do tempo mourisco, vai-se-lhe acabar
trabalhadores, que laboravam
de manhã à noite. a vida, pobre dela, tantos séculos a dar couves tenras, alfaces que estalavam de
frescura, orégãos, pezinhos de salsa e hortelã, primícias5 e primores, e agora
adeus, [...].
1
Escavação para
assentamento de alicerces.
2
O que faz ou vende obras
1. Exponha a logística necessária à construção do convento.
de latão ou de lata.
3
2. Explique a intenção do narrador quando afirma “se Cristo em pessoa andou pelo mun-
Pavimento de madeira.
4
do, aqui não chegou, porque nesse caso teria sido no alto da Vela o seu calvário.” (ll. 21-22)
Administração.
5
Primeiras produções. 3. Identifique a crítica subjacente ao último parágrafo do excerto 4.

290
Memorial do convento

PROFESSOR
COMPREENSÃO DO ORAL
2. Através destas palavras,
o narrador pretende enfatizar
as condições precárias
A problemática sobre as condições de trabalho, tema abordado por Saramago na sua e o sofrimento a que os
obra, suscita polémica, considerando o ponto de vista da sua análise. trabalhadores estavam
sujeitos, já que identifica o
Visione um excerto do programa Prós e Contras, da RTP, alto da Vela com o local onde
Cristo foi crucificado.
e resolva, no seu caderno, as atividades propostas. Leia,
3. Denuncia-se o
antecipadamente, todo o enunciado. desinvestimento na
agricultura, em favor da
construção de uma obra
1. Indique o contexto que serviu de ponto de partida megalómana.
para o debate.
Oralidade
1.1; 1.3; 1.5; 1.7; 1.8; 2.1
2. Indique as temáticas que sustentam as três ques-
Prós e Contras, RTP.
tões que se levantam perante a polémica em debate.
Link
3. Complete, no seu caderno, o quadro que se apresenta, de modo a identificar alguns
Prós e Contras, RTP
dos argumentos e contra-argumentos. (9 minutos)

1. Véspera da reunião da
concertação social em que
Posição defendida Argumentos Contra-argumentos o governo apresentará uma
proposta de aumento do
salário mínimo para 530 €
š O aumento do salário š a. _____________________ š A proposta da CGTP em 2016 e 600 € até 2019.
mínimo é uma realidade š Há um acordo em vigor de aumento do salário 2. (1) poder do governo para
Presidente da Confederação da Indústria Portuguesa

que carece de discussão. que dita que devia ser mínimo em 2016 para decretar politicamente
600 € não é partilhada “o salário mínimo”;
uma comissão a fazer (2) competitividade/
essa proposta, tendo em nem pela Confederação produtividade;
conta três indicadores: nem pelo governo. (3) consequências a nível
dos indicadores do emprego
produtividade, e do desemprego.
António Saraiva

crescimento económico 3. a. Está dependente da


e inflação. evolução da economia, do
estado de desenvolvimento
das empresas e da
š A proposta da š b. _____________________ sustentabilidade do emprego.
Confederação em relação š Existe uma margem de b. O valor mensal é baixo, mas
ao aumento do salário o salário de cada trabalhador
negociação, se se tiver corresponde a 14 meses, além
mínimo para 2016 é em conta o resultado da de outros encargos que
inferior a 530 €. diferença entre aquilo o vencimento acarreta.
que o trabalhador recebe c. Foi estabelecido um
acordo com o governo para
e aquilo que a entidade um aumento progressivo do
empregadora paga ao salário mínimo a partir de
Estado. 2011, acordo que foi violado,
mantendo-se o salário mínimo
congelado durante anos.
d. O valor apresentado
coaduna-se com a evolução
š O salário mínimo deve š c. _____________________ š A opinião de Paul da inflação desde 1974.
Arménio Carlos

aumentar para 600 € Krugman (o aumento


Secretário-geral

š d. _____________________ e. Cerca de 700 mil


em 2016. do salário mínimo pode trabalhadores estão a
da CGTP

ser problemático para empobrecer todos os dias.


š A proposta do governo é š e. _____________________ a economia portuguesa) f. Ao contrário do que se
insuficiente e pode e deve possa afirmar, a CGTP
š A riqueza deve ser melhor não é a opinião da CGTP. está preocupada com a
ser melhorada. distribuída. manutenção dos empregos,
š f. _____________________
mas é necessário cumprir os
deveres e respeitar os direitos.
Nota: Disponível, no Guia
do Professor, um cenário
4. Justifique, elencando as marcas específicas de género, que se trata de um debate. de resposta para a questão 4.

291
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Os gastos com a construção do convento


EXCERTO 1 | Cap. XVIII (pp. 307-310)

Em seu trono entre o brilho das estrelas, com seu manto de noite e solidão,
tem aos seus pés o mar novo e as mortas eras, o único imperador que tem, deve-
ras, o globo mundo em sua mão, este tal foi o infante D. Henrique, consoante o
louvará um poeta por ora ainda não nascido, lá tem cada um as suas simpatias,
5 mas, se é de globo mundo que se trata e de império e rendimentos que impérios
dão, faz o infante D. Henrique fraca figura comparado com este D. João, quinto
já se sabe de seu nome na tabela dos reis, sentado numa cadeira de braços de
pau-santo, para mais comodamente estar e assim com outro sossego atender
ao guarda-livros1 que vai escriturando no rol os bens e as riquezas, de Macau as
10 sedas, os estofos, as porcelanas, os lacados, o chá, a pimenta, o cobre, o âmbar
PROFESSOR
cinzento, o ouro, de Goa os diamantes brutos, os rubis, as pérolas, a canela, mais
Educação Literária pimenta, os panos de algodão, o salitre, de Diu os tapetes, os móveis tauxiados2,
14.2; 14.3; 14.4; 14.5;
14.7; 14.9; 15.1; 15.2; as colchas bordadas, de Melinde o marfim, de Moçambique os negros, o ouro, de
16.2 Angola outros negros, mas estes menos bons, o marfim, que esse, sim, é o me-
Gramática 15 lhor do lado ocidental da África, de São Tomé a madeira, a farinha de mandioca,
17.1; 18.4
as bananas, os inhames3, as galinhas, os carneiros, os cabritos, o indigo4, o açú-
car, de Cabo Verde alguns negros, a cera, o marfim, os couros, ficando explicado
Documento que nem todo o marfim é de elefante, dos Açores e Madeira os panos, o trigo, os
“O Infante D. Henrique”, licores, os vinhos secos, as aguardentes, as cascas de limão cristalizadas, os fru-
Fernando Pessoa, 20 tos, e dos lugares que hão de vir a ser Brasil o açúcar, o tabaco, o copal5, o indigo,
Mensagem
a madeira, os couros, o algodão, o cacau, os diamantes, as esmeraldas, a prata, o
(Disponível na brochura
Educação Literária, p. 25 –
ouro, que só deste vem ao reino, ano por ano, o valor de doze a quinze milhões
Dossiê do Professor) de cruzados, em pó e amoedado, fora o resto, e fora também o que vai ao fundo
1.1 Pretende-se realçar o ou levam os piratas, claro está que este todo não é o rendimento da coroa, rica
poder de D. João V, uma vez
que se afirma, ironicamente,
25 sim, mas não tanto, porém, tudo somado, de dentro e de fora, entram nas burras
que, apesar da importância de el-rei para cima de dezasseis milhões de cruzados […].
de D. Henrique no
conhecimento do mundo, Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema
e consequentemente na riqueza, medita hoje e ontem meditou, e sempre conclui que a alma há de ser a
construção do império, o
seu papel é agora diminuto, primeira consideração […]. Vá pois ao frade e à freira o necessário, vá também
comparado com a gestão dos 30 o supérfluo, porque o frade me põe em primeiro lugar nas suas orações, por-
rendimentos e do reino que o
rei português tem a seu cargo. que a freira me aconchega a dobra do lençol e outras partes, e a Roma, se com
bom dinheiro lhe pagámos para ter o Santo Ofício, vá mais quanto ela pedir
por menos cruentas benfeitorias, a troco de embaixadas e presentes, e se desta
1
Indivíduo encarregado pobre terra de analfabetos, de rústicos, de toscos artífices não se podem esperar
da contabilidade.
2
35 supremas artes e ofícios, encomendem-se à Europa, para o meu convento de
Com embutidos de metal
(aço ou ferro).
Mafra, pagando-se, com o ouro das minhas minas e mais fazendas, os recheios
3
Tubérculos.
e ornamentos, que deixarão, como dirá o frade historiador, ricos os artífices de
4
Substância corante de azul.
lá, e a nós, vendo-os, aos ornamentos e recheios, admirados. De Portugal não se
5
Espécie de goma ou resina requeira mais que pedra, tijolo e lenha para queimar, e homens para a força bru-
parecida com o incenso. 40 ta, ciência pouca. […] Desde que na vila de Mafra, já lá vão oito anos, foi lançada
6
Tesoureiro da casa real. a primeira pedra da basílica, essa de Pero Pinheiro graças a Deus, tudo quanto é

292
Memorial do convento

PROFESSOR
Europa vira consoladamente a lembrança para nós, para o dinheiro que recebe-
ram adiantado, muito mais para o que hão de cobrar no termo de cada prazo e 1.2 Trata-se da paródia, uma
vez que o autor introduz
na obra acabada […]. diferenças por entre as
semelhanças do seu texto
EXCERTO 2 | Cap. XXI (pp. 387-388) com os versos do poema,
“O Infante”. Para além disso,
45 […] ficou o rei, que está em sua casa, agora esperando que regresse o almoxarife6 utiliza essas diferenças de
maneira jocosa, como forma
que foi pelos livros da escrituração, e quando ele volta pergunta-lhe, depois de de criticar o rei D. João V na
gestão das riquezas do reino.
colocados sobre a mesa os enormes in-fólios, Então diz-me lá como estamos
1.3 A enumeração serve, por
de deve e haver. O guarda-livros leva a mão ao queixo parecendo que vai entrar um lado, para salientar a
em meditação profunda, abre um dos livros como para citar uma decisiva verba, riqueza do Império Português,
já que se enunciam todos
50 mas emenda ambos os movimentos e contenta-se com dizer, Saiba vossa ma- os bens de que o reino
jestade que, haver, havemos cada vez menos, e dever, devemos cada vez mais, Já dispunha, provenientes das
várias colónias, e, por outro,
o mês passado me disseste o mesmo, E também o outro mês, e o ano que lá vai, para acentuar o contraste
existente entre as duas
por este andar ainda acabamos por ver o fundo ao saco, majestade, Está longe épocas – a de D. João V e a dos
daqui o fundo dos nossos sacos, um no Brasil, outro na Índia, quando se esgo- Descobrimentos – no que à
gestão dos dinheiros públicos
55 tarem vamos sabê-lo com tão grande atraso que poderemos então dizer, afinal diz respeito.
estávamos pobres e não sabíamos, Se vossa majestade me perdoa o atrevimen- 2. Se no plano histórico
to, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos, Mas graças sejam dadas a estamos no séc. XVIII, mais
concretamente no reinado de
Deus, o dinheiro não tem faltado, Pois não, e a minha experiência contabilística D. João V, o narrador, através
da prolepse, dá-nos conta de
lembra-me todos os dias que o pior pobre é aquele a quem o dinheiro não falta. uma realidade posterior e que
tem a ver com a existência
CD 2 de um poeta português –
1. Considere o primeiro parágrafo (excerto 1) e o poema “O Infante D. Henrique”, de Fernando Fernando Pessoa – que na sua
AIX
A 2 obra Mensagem louva os feitos
F

Pessoa, que o seu professor disponibilizará. do infante D. Henrique.


1.1 Explique o sentido da comparação estabelecida entre o infante D. Henrique e D. João V 3. O menosprezo pelos
portugueses e por Portugal
no texto de Saramago. é visível no facto de, para o
convento de Mafra, D. João V
1.2 Identifique, justificando, o tipo de intertextualidade presente entre os dois textos. encomendar à Europa todo
o tipo de ornamentos e
1.3 Comente a expressividade da enumeração presente neste parágrafo. contratar estrangeiros como
artífices, cabendo apenas
2. Demonstre de que forma se assiste, neste excerto, à presença de dois tempos distin- ao seu povo e à sua pátria
os trabalhos braçais e o
tos: o da história e o do discurso. fornecimento de matérias-
-primas básicas, como a pedra.
3. Explicite a crítica feita pelo narrador sobre a visão que se tinha dos portugueses. 4. A displicência do rei é
visível na distribuição desigual
4. Evidencie a negligência do rei D. João V na gestão dos bens da coroa. dos bens, pois canaliza-os
maioritariamente para a
Igreja, negligenciando a
G 5. Divida e classifique as orações presentes em “Se vossa majestade me perdoa o atrevi- miséria em que o povo se
mento, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos”. (ll. 56-57) encontrava. É visível também
no facto de, apesar dos avisos
do almoxarife sobre a situação
financeira do reino, ignorar
recomendações feitas e
E S C R I TA continuar a delapidação
da riqueza da coroa.
5. “Se vossa majestade me
perdoa o atrevimento” –
A forma como os dinheiros públicos são geridos pelos governantes é, muitas vezes, alvo oração subordinada adverbial
de polémica e de contestação. É o caso de grandes investimentos em infraestruturas des- condicional; “eu ousaria
dizer” − oração subordinante;
portivas para campeonatos de determinadas modalidades ou para os Jogos Olímpicos. “que estamos pobres” – oração
subordinada substantiva
1. Redija um texto de opinião, de 200 a 300 palavras, em que defenda um ponto de vista completiva; “e sabemos” –
pessoal sobre as vantagens e/ou desvantagens deste tipo de investimento. oração coordenada copulativa.

Fundamente o seu ponto de vista recorrendo, no mínimo, a dois argumentos e ilustre BLOCO INFORMATIVO – p. 378
cada um deles com, pelo menos, um exemplo significativo. PREPARAR O EXAME – p. 60

293
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
1
Par de bois.

A odisseia da pedra
PROFESSOR
EXCERTO 1 | Cap. XIX (pp. 328-330)

Escrita (pág. 237) […] houve notícia de que era preciso ir a Pero Pinheiro buscar uma pedra mui-
10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3;
12.4; 13.1 to grande que lá estava, destinada à varanda que ficará sobre o pórtico da igreja
tão excessiva a tal pedra que foram calculadas em duzentas as juntas1 de bois
Introdução – Exposição do necessárias para trazê-la, e muitos os homens que tinham de ir também para as
tema e defesa de um ponto
de vista. 5 ajudas. Em Pero Pinheiro se construíra o carro que haveria de carregar o calhau,
Desenvolvimento – espécie de nau da Índia com rodas, isto dizia quem já o tinha visto em acaba-
Apresentação dos argumentos
e exemplos (vantagens: mentos e igualmente pusera os olhos, alguma vez na nau da comparação. Exa-
melhora as infraestruturas do gero será, decerto, melhor é julgarmos pelos nossos próprios olhos, com todos
país – são criadas novas redes
viárias, hotéis, estádios…; traz estes homens que se estão levantando noite ainda e vão partir para Pero Pinhei-
proveitos económicos – há um 10 ro, eles e os quatrocentos bois, e mais de vinte carros que levam os petrechos
maior fluxo turístico;
desvantagens: o dinheiro para a condução, […] vão na viagem José Pequeno e Baltasar, conduzindo cada
investido na organização qual sua junta, e, entre o pessoal peão, só para as forças chamado, vai o de Che-
destes eventos podia ser
canalizado para outros leiros, aquele que lá tem a mulher e os filhos, Francisco Marques é o nome dele,
setores, como a educação,
a saúde ou a investigação
e também vai o Manuel Milho, o das ideias que lhe vêm e não sabe donde. Vão
científica; o investimento 15 outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos os Baltasares, e haverá Joões,
feito pelo Estado é demasiado
avultado, sendo de notar que Álvaros, Antónios e Joaquins, talvez Bartolomeus, mas nenhum o tal, e Pedros,
a maior parte dos orçamentos e Vicentes, e Bentos, Bernardos e Caetanos, tudo quanto é nome de homem vai
apresenta derrapagens:
o Euro 2004 em Portugal ou aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se
o Mundial do Brasil em 2014. miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos
Conclusão – retoma do tema
e fecho.
20 deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos,
torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão,
Educação Literária Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor,
14.2; 14.3; 14.4; 14.5;
14.7; 14.8; 14.9; 15.1; Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zaca-
15.2; 15.3; 16.2 rias, uma letra de cada um para ficarem todos representados, porventura nem
Gramática 25 todos estes nomes serão os próprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente,
17.1; 18.4; 19.2
mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos, e
1. Elementos descomunais: alguns destes estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de quem vier a ter
− 400 bois e 600 homens para o nome e a profissão. De quantos pertencem ao alfabeto da amostra e vão a Pero
realizarem a tarefa;
− o carro construído para Pinheiro, pese-nos deixar ir sem vida contada aquele Brás que é ruivo e camões
carregar a pedra como uma 30 do olho direito, não tardaria que se começasse a dizer que isto é uma terra de de-
espécie de nau da Índia;
− o peso da pedra (31 feituosos, um marreco, um maneta, um zarolho, e que estamos a exagerar a cor
toneladas) e a sua dimensão
(35 palmos de comprimento,
da tinta, que para heróis se deverão escolher os belos e formosos, os esbeltos e
15 de largura e 4 de espessura) escorreitos, os inteiros e completos, assim o tínhamos querido, porém, verdades
− o transporte conseguido
à custa de sofrimento, de são verdades, […].
sacrifício e de superação
humana. EXCERTO 2 | Cap. XIX (p. 334)
2. O facto de o narrador
afirmar que nem o diabo – 35 […] a laje tem de comprimento trinta e cinco palmos, de largura quinze, e a
o protótipo do mal – se tinha espessura é de quatro palmos, e, para ser completa a notícia, depois de lavrada
alguma vez lembrado de um
sacrifício tão grande para e polida, lá em Mafra, ficará só um pouco mais pequena, trinta e dois palmos,
punir os pecadores espelha catorze, três, pela mesma ordem e partes, e quando um dia se acabarem palmos
bem o esforço e o sofrimento
sobre-humanos a que os e pés por se terem achado metros na terra, irão outros homens a tirar outras
trabalhadores foram sujeitos,
no desempenho desta tarefa.
40 medidas e encontrarão sete metros, três metros, sessenta e quatro centímetros,
tome nota, e porque também os pesos velhos levaram o caminho das medidas

294
Memorial do convento

velhas, em vez de duas mil cento e doze arrobas, diremos


que o peso da pedra da varanda da casa a que se chamará
de Benedictione é de trinta e um mil e vinte e um quilos, trinta
45 e uma toneladas em números redondos senhoras e senhores vi-
sitantes, e agora passemos à sala seguinte, que ainda temos muito
que andar.

EXCERTO 3 | Cap. XIX (pp. 349-355)

Em todo aquele verão não houve dia mais quente, a terra parecia uma bra-
seira, o sol uma espora cravada nas costas. [...] Perto da hora de jantar chegaram
50 a um alto donde se via Cheleiros, no fundo do vale. Com isto mesmo é que
Francisco Marques vinha contando, quer conseguissem descer quer não, esta
noite em companhia da mulher é que ninguém lha tiraria. Levando consigo os
ajudantes, o vedor desceu até ao ribeiro que lá em baixo passava, foi de cami-
nho assinalando os lugares mais perigosos, os sítios onde o carro deveria ser
55 encostado para garantir os repousos e maior segurança da pedra, e finalmente
tomou a decisão de mandar desatrelar os bois e conduzi-los para um espaço
desafogado, depois da terceira curva, bastante afastados para não empatarem a
manobra, suficientemente próximos para serem trazidos sem maior demora se
a mesma manobra o pedisse. Assim, a plataforma ia descer a pulso. Não havia
60 outra maneira. […] 2
Corda grossa.
Como foi, digam-no outros que mais saibam. Seiscentos homens agarrados 3
Que não condiz com
desesperadamente aos doze calabres2 que tinham sido fixados na traseira da a cronologia.
plataforma, seiscentos homens que sentiam, com o tempo e o esforço, ir-se-
PROFESSOR
-lhes aos poucos a tesura dos músculos, seiscentos homens que eram seiscentos
65 medos de ser, agora sim, ontem aquilo foi uma brincadeira de rapazes, e a his- 2.1 Além do recurso à
tória de Manuel Milho uma fantasia, que é realmente um homem quando só for descrição minuciosa quer da
pedra, para que o leitor tenha
a força que tiver, quando mais não for que o medo de que lhe não chegue essa noção do colosso que ela
força para reter o monstro que implacavelmente o arrasta, e tudo por causa de era, quer do trabalho que os
homens tiveram que executar,
uma pedra que não precisaria ser tão grande, com três ou dez mais pequenas são utilizados também
70 se faria do mesmo modo a varanda, apenas não teríamos o orgulho de poder recursos expressivos:
a metáfora – “agora sim,
dizer a sua majestade, É só uma pedra, e aos visitantes, antes de passarem à ontem aquilo foi uma
outra sala, É uma pedra só, por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai brincadeira de rapazes”
(l. 65); “o monstro que
disseminando o ludíbrio geral, com suas formas nacionais e particulares, como implacavelmente o arrasta”
esta de afirmar nos compêndios e histórias, Deve-se a construção do convento (l. 68); a construção anafórica
– “Seiscentos homens”
75 de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui (cf. ll. 61-76) – , que realçam
o esforço hercúleo que uma
seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam enorme quantidade de homens
o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica3 voz. teve de fazer para transportar
uma enorme pedra de Pero
[…] O carro vai descendo até à entrada da curva, tão encostado à parte in- Pinheiro até Mafra.
terior dela quanto possível, e aí é calçada a roda da frente desse mesmo lado, 3. Enquanto Vasco da Gama
80 porém, não há de o calço ser tão sólido que por si só trave o carro inteiro, nem e os seus marinheiros foram
recompensados pelos
tão frágil que se deixe esmagar pelo peso, se achar que não tem o caso supremas deuses pela enorme empresa
realizada, no célebre episódio
dificuldades é porque não levou esta pedra de Pero Pinheiro a Mafra e apenas da Ilha dos Amores, tendo
assistiu sentado, ou se limita a olhar de longe, do lugar e do tempo desta pági- retornado à pátria envoltos
em fama e prestígio, os
na. […] Aplicam-se as alavancas às quatro rodas posteriores, tenta-se deslocar trabalhadores do convento
85 o carro, meio palmo que seja, para o lado exterior da curva, os homens que regressam a Mafra em
péssimas condições, sem
trabalham às cordas ajudam puxando na mesma direção, é uma balbúrdia, com qualquer tipo de glória
os das alavancas de fora entre uma floresta de calabres esticados e tensos como ou reconhecimento.

295
José Saramago

PROFESSOR
fios de lâmina, com os das cordas às vezes dispostos pela encosta abaixo, não
4. Através da enumeração raro escorregando e rolando, por enquanto sem maior mal. Cedeu finalmente
de nomes de A a Z, Saramago
pretende destacar o 90 o carro, deslocou-se um ou dois palmos, mas, lá à frente, pelo tempo que esta
papel preponderante dos
trabalhadores na construção
manobra durou, a roda do lado de fora foi sucessivamente calçada e descalçada,
do convento, imortalizando-os para prevenir o perigo de se desmandar a plataforma no meio de um destes mo-
e conferindo-lhes o verdadeiro
mérito, já que a História vimentos, naquele segundo em que está como suspensa e desamparada, e sem
apenas recorda o promotor homens suficientes para segurá-la, pois os mais deles, com todas estas confusas
da construção – D. João V –,
ignorando a importância do 95 operações, nem espaço têm para se mover. Em cima deste valado está o diabo
povo. Quando os caracteriza assistindo, pasmando da sua própria inocência e misericórdia por nunca ter
como portadores de um
conjunto de deficiências, a sua imaginado suplício assim para coroação dos castigos do seu inferno.
intenção é não só valorizá- Um dos homens que trabalham aos calços é Francisco Marques. Provou já a
-los ainda mais pelo esforço
empreendido, o que lhes sua destreza, […] por acaso agora nem pensa na mulher, a cada coisa seu tem-
confere o estatuto de heróis,
ainda que não possuam as
100 po, toda a atenção se fixa na roda que vai começar a mover-se, que será preciso
características canónicas travar, não tão cedo que torne inútil o esforço que lá atrás estão fazendo os
para tal, como também
demonstrar que a superação companheiros, não tão tarde que ganhe o carro velocidade e se escape ao calço.
dos limites humanos é uma Como agora aconteceu. Distraiu-se talvez Francisco Marques, ou enxugou com
realidade ao alcance de todos.
o antebraço o suor da testa, ou olhou cá do alto a sua vila de Cheleiros, enfim se
5. Quando se serve da primeira
pessoa do plural e afirma 105 lembrando da mulher, fugiu-lhe o calço da mão no preciso momento em que a
“melhor é julgarmos pelos
nossos próprios olhos” (l. 8),
plataforma deslizava, não se sabe como isto foi, apenas que o corpo está debai-
o narrador assume o mesmo xo do carro, esmagado, passou-lhe a primeira roda por cima, mais de duas mil
estatuto que o narratário,
demonstrando-se disponível arrobas só a pedra, se ainda estamos lembrados. […]
para, com ele, fazer a Tiraram Francisco Marques de debaixo do carro. A roda passara-lhe sobre o
avaliação sobre a situação que
está a ser narrada. 110 ventre, feito numa pasta de vísceras e ossos, por um pouco se lhe separavam as
pernas do tronco, falamos da sua perna esquerda e da sua perna direita, que da
4 outra, a tal do meio, a inquieta, aquela por amor da qual fez Francisco Marques
Pequeno leito modesto.
5 tantas caminhadas, dessa não há sinal, nem vestígio, nem um simples farrapito.
Varas onde se atrela
o esquife. Trouxeram um esquife4, puseram-lhe o corpo em cima, enrolado numa manta
115 que ficou logo empapada em sangue, dois homens pegaram aos varais5, outros
dois para revezamento os acompanharam, os quatro para
dizer à viúva, Trazemos aqui o seu homem, vão declará-lo
a esta mulher que assomou agora ao postigo, que olha o
monte onde está seu marido, e diz aos filhos, Vosso pai esta
120 noite dorme em casa.

EXCERTO 4 | Cap. XIX (pp. 358-359)

Ao outro dia, que foi domingo, houve missa e sermão.


[…] Pregou o frade e disse, como dizem todos, Amados fi-
lhos, dos altos céus nos vê Nossa Senhora e o seu Divino
Filho, dos altos céus nos contempla também o nosso padre
125 Santo António, por amor de quem levamos esta pedra à vila
de Mafra, é certo que pesada, mas muito mais pesados são
os vossos pecados, e contudo andais com eles no coração
como se vos não carregassem, por isso deveis tomar esta
transportação como penitência, e também amorosa oferta,
130 singular penitência, oferta estranha, pois não só vo-las pa-
gam com o salário do contrato, como também vo-las remu-
nerará a indulgência do céu, porque em verdade vos digo
que levar esta pedra a Mafra é obra tão santa como foi a dos
Memorial do convento

PROFESSOR
antigos cruzados quando partiram a libertar os Santos Lugares, sabei que todos
135 quantos lá morreram gozam hoje da vida eterna, e juntamente com eles, con- 6. Por se sentir revoltado
pelo facto de a História só
templando a face do Senhor, já lá está aquele vosso companheiro que morreu homenagear D. João V na
anteontem, precioso sucesso que foi ter sido a sua morte a uma sexta-feira, sem construção do convento, em
detrimento dos verdadeiros
dúvida morreu sem confissão, não houve tempo de chegar-lhe um confessor à protagonistas, o narrador
utiliza uma expressão popular,
cabeceira, já estava morto quando fostes por ele, mas salvou-o ser cruzado desta típica do português atual –
140 cruzada […]. “que se lixam” (l. 77) – como
forma de exprimir o seu estado
EXCERTO 5 | Cap. XIX (p. 361) de espírito. Ora, estando ele
a relatar acontecimentos
ocorridos no séc. XVIII, o
Dormiram ainda outra noite no caminho. Entre Pero Pinheiro e Mafra gasta- narrador pede, pois, perdão
ram oito dias completos. Quando entraram no terreiro, foi como se estivessem pelo facto de não estar a
utilizar linguagem própria da
chegando duma guerra perdida, sujos, esfarrapados, sem riquezas. Toda a gen- época e daí admitir que a sua
te se admirava com o tamanho desmedido da pedra, Tão grande. Mas Baltasar narração esteja a assumir
contornos anacrónicos, ou
145 murmurou, olhando a basílica, Tão pequena. seja, fora do seu tempo. Este
é, aliás, um recurso recorrente
em Saramago, como forma
de aproximar o narratário do
1. Refira os elementos que contribuem para que se possa afirmar que o transporte da seu universo de referência –
pedra da varanda assume contornos descomunais. o séc. XX.
7. Tendo ouvido falar de um
ermitão, uma rainha que vivia
2. Relacione a dimensão heroica vislumbrada através das seguintes palavras do narra- insatisfeita quis ir visitá-lo
dor: “Em cima deste valado está o diabo assistindo, pasmando da sua própria inocên- para saber o que poderia fazer
uma mulher da sua condição
cia e misericórdia por nunca ter imaginado suplício assim para coroação dos castigos para deixar de se sentir
do seu inferno.” (excerto 3, ll. 95-97) apenas rainha e se sentir
também mulher. O ermitão e
2.1 Refira as estratégias linguísticas mobilizadas para a construção desse cenário. a rainha acabam por fugir, na
expectativa de se fazerem/
sentirem verdadeiramente
3. Trace um paralelo entre os heróis de Os Lusíadas e os homens que transportaram a homem e mulher.
pedra quanto à forma como o seu trabalho foi reconhecido. 7.1 A história acaba por
refletir, por um lado, a
frustração da rainha D. Maria
4. Explique a intenção do narrador ao enunciar os nomes dos homens, percorrendo todo Ana Josefa por viver apenas
o alfabeto, e ao descrever fisicamente os trabalhadores do convento. em função do seu estatuto
real, nunca chegando a sentir-
-se verdadeiramente mulher –
5. Demonstre como, no primeiro excerto, o narrador se identifica com o narratário. veja-se a propósito a relação
protocolar que mantém
com o marido, sem amor,
6. Justifique as palavras do narrador, quando afirma “com perdão da anacrónica voz.” (l. 77) nem entrega; por outro
lado, realçar o papel
dos trabalhadores que
7. Sintetize a história narrada por Manuel Milho durante os dias que demorou a transpor- transportaram a pedra que,
tar a pedra, tendo em conta a globalidade do capítulo XIX. tendo-se superado, atingem
a verdadeira essência do que
7.1 Relacione a história contada por Manuel Milho com a relação do rei e da rainha e com é ser homem e apenas dessa
forma se notabilizam.
os trabalhadores que transportaram a pedra.
8. Através das palavras
proferidas pelo frade, o
8. Explique a visão crítica do narrador subjacente ao tratamento ficcional do sermão narrador põe em evidência
a manipulação da Igreja em
pregado pelo padre no dia seguinte à morte de Francisco Marques. (cf. excerto 4) relação aos seus fiéis, uma vez
que se afirma que os trabalhos
G 9. Refira a relação temporal que se estabelece entre os enunciados seguintes e o ponto e sacrifícios passados
durante a construção seriam
de referência textualmente criado. recompensados com a vida
eterna.
a. “uma pedra muito grande […], destinada à varanda que ficará sobre o pórtico da igreja”. (ll. 1-2) 9. a. Posterioridade.
b. “Em Pero Pinheiro se construíra o carro que haveria de carregar o calhau”. (l. 5) b. Anterioridade.
c. Simultaneidade.
c. “tudo quanto é nome de homem vai aqui”. (ll. 17-18) 9.1 Trata-se de um narrador
participante, que está a
9.1 Explicite, justificando, o estatuto do narrador evidenciado na alínea c. observar in loco o desenrolar
da ação, daí a simultaneidade.
10. Indique o processo fonológico ocorrido na passagem de PETRA- para “pedra”. 10. Sonorização.

297
José Saramago

PERA
CU R
LEITURA
RE O
D IS C U R S O
P O L ÍT IC
Leia atentamente o discurso proferido pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de
11.° ANO
Sousa, numa cerimónia militar a propósito das celebrações do Dia de Portugal, em 10 de
junho de 2016. Neste discurso é feita uma interessante viagem pela história do país.
1
Benefícios, rendimentos.
2
Ouro falso, pechisbeque.

PROFESSOR Militares de Portugal, Antigos Combatentes, Portugueses,

Leitura
7.1; 7.4; 7.7; 8.1
Celebramos hoje o dia das forças armadas […].
Educação Literária Celebramos também o dia das comunidades […].
16.2 Celebramos ainda Camões, poeta máximo das nossas epopeias passadas, exemplo
1. a. O presidente da 5 maior de português de sempre e para sempre…
República defende a tese
de que Portugal é o seu povo. Reunindo as três celebrações num só dia, celebramos a quinta essência do 10 de junho:
Apresenta os seguintes Portugal. E Portugal é o seu povo: ele não vacila, não trai, não se conforma, não desiste.
argumentos: – o povo “não
vacila, não trai, não se A sabedoria hoje como há nove séculos reside no povo e Portugal avançou e cresceu
conforma, não desiste”; sempre que as elites, interpretando a vontade popular, os seus desígnios, as suas aspirações,
“A sabedoria hoje como
há nove séculos reside 10 o guiaram em comunhão plena.
no povo”; “quando a pátria
é posta à prova, é sempre
Assim, ao longo dos séculos, se foi construindo e consolidando a identidade nacional e,
o povo quem assume o papel nos momentos de crise, quando a pátria é posta à prova, é sempre o povo quem assume o
determinante”; “O povo,
sempre o povo, a lutar por papel determinante.
Portugal, mesmo quando Foi o povo, o povo armado, os soldados de Portugal e o povo não armado quem nos deu
algumas elites […] nos
falharam”. Estes argumentos 15 a possibilidade de aqui estarmos hoje a celebrar Portugal.
são corroborados pelos Foi o seu sangue que mais correu desde a conquista do território com Afonso Henriques
exemplos de determinação,
coragem e sacrifício do povo, e ao longo de toda a sua história.
na conquista do território, Foi o povo, a arraia-miúda, quem valeu ao mestre de Avis.
no apoio ao Mestre de
Avis, na Restauração da Foi o povo quem não se vergou durante 60 anos até chegar o 1.˚ de dezembro de 1640.
Independência, na resistência
às invasões, na instauração
20 Foi o povo, soldados e não soldados, quem também fez frente às invasões do princípio
da República, na queda da do século XIX.
ditadura e nos momentos de
crise económica atravessados Foi o povo quem, na instauração da República, sonhou, lutou e persistiu na busca de um
pelo país; país melhor.
b. o caráter persuasivo e a
eloquência são visíveis no Foram os soldados de Portugal que resgataram com o povo, para nós, a honra e deram
uso da primeira pessoa do 25 sentido à palavra liberdade.
plural (“celebramos”), como
forma de envolver o auditório, Foi o povo quem, nos momentos de crise, soube compreender os sacrifícios e privações
e na utilização de recursos em favor de um futuro mais digno e mais justo.
expressivos como a anáfora
(“Foi o povo”) ou a enumeração O povo, sempre o povo, a lutar por Portugal, mesmo quando algumas elites, ou melhor, as
(“ele não vacila, não trai, não
se conforma, não desiste”,
que como tal se julgavam, nos falharam, em troca de prebendas1 vantajosas, de títulos pom-
l. 7), que enfatizam a 30 posos, de meros ouropéis2 luzidios, de autocontemplações deslumbradas ou simplesmente
importância e as qualidades
do povo português. No tiveram medo de ver a realidade e de decidir com visão e sem preconceitos.
que respeita ao conteúdo, Disponível em www.tvi24.iol.pt/videos/politica (consultado em agosto de 2016).
o tom persuasivo resulta
da convocação do passado,
como forma de reforçar o
papel determinante do povo, 1. Evidencie no texto as seguintes marcas de discurso político:
ao longo de nove séculos;
c. o discurso evidencia uma a. capacidade de expor e de argumentar;
dimensão social, pois o
presidente enaltece aquele b. caráter persuasivo/eloquência;
que considera ser o verdadeiro
protagonista da História c. dimensão ética e social.
de Portugal – o povo –,
valorizando assim esta classe 2. Relacione este discurso com a obra de Saramago em estudo e com a Crónica de D. João I,
social.
de Fernão Lopes.

298
Memorial do convento

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
PROFESSOR
A megalomania do rei e o sacrifício do povo
2. É evidente que os autores
EXCERTO 1 | Cap. XXI (pp. 382-383, 385-386) de Memorial do convento e da
Crónica de D. João I pretendem
enaltecer as qualidades
D. João V mandou chamar o arquiteto de Mafra, um tal João Frederico Ludovice, do povo, elegendo-o
que é alemão escrito à portuguesa, e disse-lhe sem outros rodeios, É minha assim como o verdadeiro
protagonista de determinados
vontade que seja construída na corte uma igreja como a de S. Pedro de Roma, e, acontecimentos históricos
tendo assim dito olhou severamente o artista. Ora, a um rei nunca se diz não, e fazendo sobressair as suas
capacidades de privação, de
5 e este Ludovice, que enquanto viveu em Itália se chamou Ludovisi, assim já sacrifício, de determinação
por duas vezes abandonando o nome familiar de Ludwig, sabe que uma vida, e de audácia. Assim o faz
também o presidente da
para ser bem-sucedida, haverá de ser conciliadora, sobretudo por quem a viva República no discurso
entre os degraus do altar e os degraus do trono. Porém, há limites, este rei não proferido, ao declarar e
comprovar que “Portugal
sabe o que pede, é tolo, é néscio, se julga que a simples vontade, mesmo real, é o seu povo”.
10 faz nascer um Bramante, um Rafael, um Sangallo, um Peruzzi, um Buonarroti,
Educação Literária
um Fontana, um Della Porta, um Maderno, se julga que basta vir dizer-me, a 14.2; 14.3; 14.5; 14.7;
mim, Ludwig, ou Ludovisi, ou Ludovice, se é para orelhas portuguesas, Quero 14.8; 14.9; 15.1; 15.2;
15.3; 16.1
S. Pedro, e S. Pedro aparece feito, quando eu o que sei fazer é só Mafras, artista Gramática
sou, é verdade, e muito vaidoso, como todos, mas conheço a medida do meu pé, 17.1; 18.4
15 e também o jeito desta terra, onde há vinte e oito anos vivo, muita rompança,
1. O absolutismo do rei
pouca perseverança, o que é preciso é dar-lhe a boa resposta, aquele não que é evidente:
mais lisonjeia do que o sim lisonjearia, ainda por cima trabalhoso, que Deus me − na maneira como se serve
do seu poder para expressar as
livre dessa, A vontade de vossa majestade é digna do grande rei que mandou ordens, sejam elas razoáveis
edificar Mafra, porém, as vidas são breves, majestade, e S. Pedro, entre a bênção ou não (“É minha vontade
que seja construída na corte
20 da primeira pedra e a consagração, consumiu cento e vinte anos de trabalhos e uma igreja como a de S. Pedro
de Roma”, ll. 2-3, ou “Sejam
riquezas, vossa majestade, que eu saiba, nunca lá esteve, julga pelo modelo de trezentos, não se discute mais,
armar que aí tem, talvez nem daqui a duzentos e quarenta anos o conseguísse- é esta a minha vontade”,
l. 38, ou ainda “Então é nesse
mos, estaria vossa majestade morta, mortos estariam vossos filho, neto, bisneto, dia que se fará a sagração da
trineto e tetraneto, o que eu pergunto, com todo o respeito, é se vale a pena estar basílica de Mafra, assim o
quero, ordeno e determino”,
25 a construir uma basílica que só ficará terminada no ano dois mil, supondo que ll. 54-55);
nessa altura ainda há mundo, no entanto vossa majestade decidirá, De haver − na forma caprichosa como
impõe a data da inauguração
ainda mundo, Não, majestade, de outra vez se fazer S. Pedro em Lisboa, embora do convento, ainda que seja
a mim me pareça ser mais fácil chegar o mundo ao seu fim que repetir-se a ba- alertado para o atraso das
obras;
sílica de Roma […]. − no modo como obriga os
homens válidos de todo o país
30 Enfim o rei bate na testa, resplandece-lhe a fronte, rodeia-a o nimbo1 da ins- a irem trabalhar à força para
piração, E se aumentássemos para duzentos frades o convento de Mafra, quem Mafra.
A sua megalomania é visível:
diz duzentos, diz quinhentos, diz mil, estou que seria uma ação de não menor − na vontade de construir
grandeza que a basílica que não pode haver. O arquiteto ponderou, Mil frades, uma obra da envergadura
da basílica de S. Pedro;
quinhentos frades, é muito frade, majestade, acabávamos por ter de fazer uma − na decisão de aumentar
35 igreja tão grande como a de Roma, para lá poderem caber todos, Então, quantos, a capacidade do convento
para 300 frades, quando
Digamos trezentos, e mesmo assim já vai ser pequena para eles a basílica que viu frustrada a sua primeira
desenhei e está a ser construída, com muitos vagares, se me é permitido o repa- intenção.

ro, Sejam trezentos, não se discute mais, é esta a minha vontade, Assim se fará,
1
dando vossa majestade as necessárias ordens. Círculo luminoso, auréola.

299
José Saramago

EXCERTO 2 | Cap. XXI (pp. 395-402)


PROFESSOR
40 Subitamente, el-rei compreende que a sua vida será curta, que curtas são
2.
(1) Pela forma como o narrador
todas as vidas, que muita gente morreu e morrerá antes que se acabe de cons-
faz contrastar a megalomania truir Mafra, que ele próprio poderá amanhã fechar os olhos para todo o sempre.
e o absolutismo do rei com
a enorme fraqueza que
Recorda-se de que desistiu de edificar S. Pedro de Roma justamente por tê-lo
D. João V deixa transparecer convencido Ludovice dessa mesma curteza das vidas, e que o mesmo S. Pedro,
relativamente ao medo de
morrer (não usufruindo da 45 palavras ditas, entre a bênção da primeira pedra e a consagração consumiu nada
sua obra), o que conduz a menos que cento e vinte anos de trabalhos e riquezas. Ora, Mafra já engoliu
uma certa inveja dos seus
descendentes. onze anos de trabalho, das riquezas nem se deve falar, Quem me garante que
(2) Na forma como é conduzido estarei vivo quando se fizer a sagração, se ainda aqui há uns poucos anos nin-
pelo arquiteto a uma decisão
que não planeava e que guém dava nada por mim, com aquela melancolia que me ia levando antes de
assume como sendo sua desde 50 tempo, […].
o início.
[…] e então el-rei mandou apurar quando cairia o dia do seu aniversário, vin-
3.1 Em ambos os casos,
estamos na presença te e dois de outubro, a um domingo, tendo os secretários respondido, após cui-
de homens velhos, que
simbolizam a experiência
dadosa verificação do calendário, que tal coincidência se daria daí a dois anos,
de vida, um de aspeto em mil setecentos e trinta, Então é nesse dia que se fará a sagração da basílica
venerando, o outro visto
como um labrego, que se
55 de Mafra, assim o quero, ordeno e determino, e quando isto ouviram foram os
insurgem contra o que estão camaristas beijar a mão do seu senhor, vós me direis qual é mais excelente, se
a presenciar. No caso de
Os Lusíadas, o velho ser do mundo rei, se desta gente.
manifesta-se contra a Deitaram reverentemente alguma água na fervura João Frederico Ludovice e
empresa marítima, por
considerar que o país fica o doutor Leandro de Melo, chamados à pressa de Mafra, aonde o primeiro tinha
votado ao abandono, 60 ido e onde o segundo assistia, os quais, com a memória fresca do que lá viam,
em prol da fama, da glória
e de uma ambição desmedida. disseram que o estado da obra não consentia tão feliz previsão […]. Carregou-se
No caso do Memorial do
convento, o envio forçado de
o sobrecenho de D. João V, porque a cansada lisonja em nada o aliviara, e indo
trabalhadores para Mafra faz abrir a boca para responder com secura, preferiu chamar outra vez os secretários
o "labrego" insurgir-se contra
a vaidade e prepotência do rei. e perguntar-lhes em que data voltaria a cair a um domingo o seu aniversário,
65 passada esta de mil setecentos e trinta, pelos vistos não bastante prazo. Traba-
lharam eles afanosamente as suas aritméticas e com alguma dúvida responde-
ram que o acontecimento tornaria a dar-se dez anos depois, em mil setecentos
e quarenta.
[…] Porém, D. João V teve um pensamento negro, viu-se-lhe na cara, e faz
70 rápidas contas, mentais, com ajuda dos dedos, Em mil setecentos e quarenta
terei cinquenta e um anos, e acrescentou lugubremente, Se ainda for vivo. E por
alguns terríveis minutos tornou a subir este rei ao Monte das Oliveiras, ali se
agoniou com o medo da morte e o pavor do roubo que lhe
seria feito, agora acrescentando um sentimento de inveja,
75 imaginar seu filho já rei, com a rainha nova que está para

vir de Espanha, gozando ambos as delícias de inaugurar


e ver sagrar Mafra, enquanto ele estaria apodrecendo em
S. Vicente de Fora, perto do infantezinho
D. Pedro, morto tão pequenino da bruta-
80 lidade do desmame. Estavam os circuns-

tantes olhando o rei […]. Todos esperavam.


E então D. João V disse, A sagração da
Memorial do convento

basílica de Mafra será feita no dia vinte e dois de outubro de mil setecentos e 2
Qualquer doença ou mal.
trinta, tanto faz que o tempo sobre como falte, venha sol ou venha chuva, caia a 3
Fileira de bestas de carga.
85 neve ou sopre o vento, nem que se alague o mundo ou lhe dê o tranglomango2. 4
Soldado que fazia a ronda
[…] Ordeno que a todos os corregedores do reino se mande que reúnam e en- das ruas.
viem para Mafra quantos operários se encontrarem nas suas jurisdições, sejam 5
Aparência.
eles carpinteiros, pedreiros ou braçais, retirando-os, ainda que por violência, 6
Que tem falta de visão.
dos seus mesteres, e que sob nenhum pretexto os deixem ficar, não lhes valendo PROFESSOR
90 considerações de família, dependência ou anterior obrigação, porque nada está
acima da vontade real, salvo a vontade divina, e a esta ninguém poderá invocar,
que o fará em vão, porque precisamente para serviço dela se ordena esta provi- Documento
“O velho do Restelo”,
dência, tenho dito. […] ests. 94-96, canto IV,
Foram as ordens, vieram os homens. De sua própria vontade alguns, alicia- Luís Vaz de Camões,
95 dos pela promessa de bom salário, por gosto de aventura outros, por desprendi- Os Lusíadas

mento de afetos também, à força quase todos. (Disponível na brochura


Educação Literária, p. 25 –
[…] Já vai andando a récua3 dos homens de Arganil, acompanham-nos até Dossiê do Professor)
fora da vila as infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, ó doce e amado 3.2 As diferenças servem para
esposo, e outra protestando, ó filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce sublinhar não só a importância
de cada uma das empresas –
100 amparo desta cansada já velhice minha, não se acabavam as lamentações, tanto uma grandiosa, e daí o velho
ter um aspeto venerando,
que os montes de mais perto respondiam, quase movidos de alta piedade, enfim a outra medíocre, por ser o
já os levados se afastam, vão sumir-se na volta do caminho, rasos de lágrimas resultado de um capricho,
e, por isso, é denunciada por
os olhos, em bagadas caindo aos mais sensíveis e então uma grande voz se le- um labrego – mas também
vanta, é um labrego de tanta idade já que o não quiseram, e grita subindo a um o período de censura e
obscurantismo que se vivia na
105 valado que é púlpito de rústicos, Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, época de D. João V, que, sendo
um rei absoluto, concentrava
ó pátria sem justiça, e tendo assim clamado, veio dar-lhe o quadrilheiro4 uma em si todos os poderes,
cacetada na cabeça, que ali mesmo o deixou por morto. infligindo grandes males
ao povo. Por essa razão, ao
EXCERTO 3 | Cap. XXIV (p. 484) contrário do que acontece em
Os Lusíadas, em que o velho
tem liberdade para discursar,
Enfim, chegou o mais glorioso dos dias, a data imorredoira de vinte e dois no Memorial o labrego
de outubro do ano da graça de mil setecentos e trinta, quando el-rei D. João V é abatido.
3.3 Paródia.
110 faz quarenta e um anos e vê sagrar o mais prodigioso dos monumentos que 4. Trata-se da enumeração,
em Portugal se levantaram, ainda por acabar, é verdade, mas pela catadura5 se que serve para evidenciar
um conjunto de artistas
conhece o catacego6. mundialmente famosos a que
Ludovice se refere como forma
de criticar aquela que entende
1. Demonstre como se ilustra a megalomania e o absolutismo de D. João V. ser a falta de sensibilidade
do rei em relação à criação
artística.
2. Mostre como o narrador constrói uma imagem caricatural do rei. 5. Neste segmento textual,
CD 2 no relato que faz, o narrador
3. Atente nas estâncias 94, 95 e 96 do canto IV de Os Lusíadas que o seu professor lhe recorre, por um lado, ao
AI
XA 2 discurso direto, quando
F

disponibilizará. dá a conhecer a conversa


3.1 Exponha as semelhanças e as diferenças entre o velho do Restelo e “um labrego de estabelecida entre o rei e
Ludovice, (“É minha vontade
tanta idade”. (l. 104) que seja construída na corte
uma igreja como a de S. Pedro
3.2 Avance uma explicação que justifique as diferenças encontradas. de Roma”, ll. 2-3). Recorre,
por outro lado, ao discurso
3.3 Identifique o tipo de intertextualidade aqui presente. indireto livre quando nos
transmite o pensamento do
4. Identifique, comentando o seu valor semântico, o recurso expressivo presente em “faz arquiteto sobre a intenção
manifestada por D. João V
nascer um Bramante, um Rafael, um Sangallo, um Peruzzi, um Buonarroti, um Fontana, (“este rei não sabe o que pede,
um Della Porta, um Maderno”. (ll. 10-11) é tolo, é néscio, se julga que
a simples vontade, mesmo
real, faz nascer um Bramante
G 5. Demonstre como se assiste à reprodução do discurso no discurso no primeiro parágra- […] que Deus me livre dessa”,
fo do primeiro excerto. ll. 8-18).

301
José Saramago

INFORMAR

Visão crítica
TEXTO A
Símbolo da prepotência de um rei caprichoso que não sabia como de-
lapidar as imensas riquezas que lhe chegavam do Brasil e da Índia, o con-
vento de Mafra, réplica da basílica de S. Pedro em Roma, que D. João quis
mas não pôde imitar em Lisboa, é a expressão, que ficou para a História,
5 de uma época de contradições, de aparências, de perversos conluios entre

a política e a religião, o poder do rei absoluto e da Igreja, também ela ab-


soluta. Este aspeto é francamente denunciado no romance com a ironia,
o sarcasmo, que caracterizam a escrita do autor quando os temas sobre
os quais se debruça, e este é, sem dúvida, um deles, a isso o convidam.
10 Mas se os podres da alta sociedade civil e eclesiástica do séc. XVIII
são francamente denunciados, os simples e os pobres, os que, por mo-
tivos hoje irrisórios, eram condenados aos autos de fé1, e os milhares de
O projeto do rei, in José trabalhadores que, a suor e sangue, alguns ao preço da própria vida, construíram
Santa-Bárbara, Vontades –
uma leitura do memorial o convento, são objeto [de] compaixão. São os que o eu narrador quis imortalizar
do convento, Lisboa, 15 atribuindo-lhes nomes simbólicos, e aqueles, um pequeno número necessaria-
Editorial Caminho, 2001.
mente, cujos nomes ficaram registados na própria história romanesca mais como
figurantes do que como personagens, exceto um, Baltasar Mateus.
1
Solenidade pública
inquisitorial em que se TEXTO B
aplicavam as penas aos
sentenciados. Se no MC é a religião católica que é visada, isso deve-se ao facto de ser a religião
única e oficial do país, com uma preponderância absoluta sobre as consciências
PROFESSOR
(e os corpos) das pessoas, e devido ao conluio entre a Igreja e a corte. E, enquanto,
Leitura por um lado, se mantinha esta política religiosa de aliança promíscua entre os dois
7.3; 7.4; 8.1 5 poderes, o povo vivia na maior das misérias e na ignorância mais extrema.
Educação Literária Maria Joaquina Nobre Júlio, Memorial do Convento de José Saramago: subsídios para uma leitura, Lisboa,
16.1
Replicação, 1999, pp. 29-30 e p. 132 (com supressões).

1. Em Memorial do convento, TEXTO C


assistimos à crítica da vaidade
e da prepotência de um rei A narrativa detalha com minúcia a ação nefasta da instituição inquisitorial,
cheio de caprichos que gere
de forma negligente os bens permitindo que se compreenda a repressão através de sermões que, refletindo o
do reino. Não se coíbe, por espírito da Contrarreforma, divulgavam uma crença desvirtuada que satisfazia o
isso, de delapidar a riqueza
do país para construir interesse material dos detentores do poder. A prosa exuberante de José Saramago
um convento sumptuoso,
ignorando as necessidades
5 recria a Lisboa joanina com a sua moral duvidosa e que, vivendo já às portas do
e fraquezas do seu povo que Iluminismo, ainda precisava perseguir aqueles que não comungavam da mentali-
vivia na miséria. Assiste-se
ainda à denúncia da ligação dade retrógrada de grande parte do clero e da nobreza.
perversa entre o poder Numa sociedade em que a população vivia acuada e fanatizada, era natural que
da coroa e da Igreja, que
também detinha um estatuto aparecessem os milagres, os santos e as feiticeiras – todos, como se sabe, frutos de
absoluto. Ambos exerciam 10 uma mentalidade que canalizava as energias do país para a crendice ou para saídas
um enorme controlo sobre
um povo ignorante, messiânicas.
nomeadamente através da
Paulo Pereira, “Inquisição: entre história e ficção na narrativa portuguesa”, Colóquio/Letras, n.˚ 120, Lisboa,
manipulação religiosa e da
perseguição daqueles que não abril-junho de 1991, pp. 120-122 (com supressões).
comungavam da mentalidade
da nobreza e do clero.
1. Identifique as principais críticas presentes em Memorial do convento.

302
Memorial do convento

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
1
Provocados por uma
hemorragia cerebral.
Visão crítica I 2
Próprio de frades ou
EXCERTO 1 | Cap. III (p. 35) freiras.
3
Litígio, questão judicial.
No geral do ano há quem morra por muito ter comido durante a vida toda, razão 4
Chicana, burla.
por que se repetem os acidentes apopléticos1 […], Mas não falta, por isso mesmo 5
Evasivas.
falecendo mais facilmente, quem morra por ter comido pouco durante toda a vida,
ou o que dela resistiu a um triste passadio de sardinha e arroz, mais a alface que deu
PROFESSOR
5 a alcunha aos moradores, e carne quando faz anos sua majestade.

EXCERTO 2 | Cap. VI (p. 75)


Áudio (CD2 – Faixa 25)
Levar este pão à boca é gesto fácil, excelente de fazer se a fome o reclama, por- Vida que nunca quis
(álbum S.A.C.A.N.A,
tanto alimento do corpo, benefício do lavrador, provavelmente maior benefício de 2013), Bezegol
alguns que entre a foice e os dentes souberam meter mãos de levar e trazer e bolsas (4 minutos)
de guardar, e esta é a regra. Não há em Portugal trigo que baste ao perpétuo apetite Sugere-se a audição do tema
10 que os portugueses têm de pão, parece que não sabem comer outra coisa, por isso “Vida que nunca quis” para
identificação da visão crítica
os estrangeiros que cá moram, doridos das nossas necessidades, que em maior vo- da atualidade e posterior
lume frutificam que sementes de abóbora, mandam vir, das suas próprias e outras comparação com a crítica
evidenciada em Memorial
terras, frotas de cem navios carregados de cereal, […]. do convento:
− a emigração forçada de
EXCERTO 3 | Cap. IX (pp. 125 e 127) jovens portugueses pelo facto
de o país não lhes oferecer
oportunidades de trabalho;
Agora sairão as freiras de Santa Mónica em extrema indignação, insubordinan- − a tentativa de silenciar
15 do-se contra as ordens de el-rei de que só pudessem falar nos conventos a seus pais, o povo;
− a crise financeira que afeta
filhos, irmãos e parentes até segundo grau, com o que pretende sua majestade pôr um grande número de pessoas,
cobro ao escândalo de que são causa os freiráticos2, nobres e não nobres, que fre- em contraste com a época
áurea dos Descobrimentos;
quentam as esposas do Senhor e as deixam grávidas no tempo de uma ave-maria, − as decisões políticas que
que o faça D. João V, só lhe fica bem, mas não um joão-qualquer ou josé-ninguém. ignoram a real situação das
populações;
20 […] Metem, quantas vezes forçadamente, estas mulheres em reclusão conventual, − as regalias dos políticos;
− a perseguição daqueles que
aí ficas, por esta forma aliviando partições de heranças, favorecendo o morgadio denunciam a verdade (o caso
e outros irmãos varões, e, estando assim presas, até o simples apertar de dedos à do Wikileaks, por exemplo);
− a corrupção na Justiça;
grade querem recusar-lhes, o clandestino encontro, o suave contacto, a doce carícia, − a dependência (económica)
mesmo trazendo ela tantas vezes consigo o inferno, abençoado seja. portuguesa em relação a
outros países;
− as condições de vida
EXCERTO 4 | Cap. XVI (pp. 255-256) precárias das crianças;
− a má gestão dos dinheiros
25 Dizem que o reino anda mal governado, que nele está de menos a justiça, e não públicos.
reparam que ela está como deve estar, com sua venda nos olhos, sua balança e sua Poderá ser ainda explorada a
espada, que mais queríamos nós, […]. Castiguem-se lá os negros e os vilões para relação de intertextualidade
estabelecida entre a música
que não se perca o valor do exemplo, mas honre-se a gente de bem e de bens, não e Os Lusíadas: “Foi o cabo
lhe exigindo que pague as dívidas contraídas, que renuncie à vingança, que emende das tormentas/Cabo da boa
esperança”.
30 o ódio, e, correndo os pleitos3, por não se poderem evitar de todo, venham a rabuli-
ce4, a trapaça, a apelação, a praxe, os ambages5, para que vença tarde quem por justa Educação Literária
14.2; 14.3; 15.1
justiça deveria vencer cedo, para que tarde perca quem deveria perder logo.
1. a. Excerto 3
1. Identifique os excertos onde se vislumbram as críticas abaixo enunciadas. b. Excerto 4
a. A hipocrisia religiosa e a repressão das mulheres. c. O desequilíbrio social. c. Excerto 1
d. Excerto 2
b. A parcialidade da justiça. d. A dependência das importações.

303
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Visão crítica II
1
Apupados.
2
Conjunto de tiras ou Mas esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um
correias usadas para lado e de escasso para o outro, […]. Porém, a Quaresma, como o sol, quando nas-
flagelação. ce, é para todos.
PROFESSOR Correu o Entrudo essas ruas, quem pôde empanturrou-se de galinha e de car-
5 neiro, de sonhos e de filhós, deu umbigadas pelas esquinas quem não perde
Educação Literária vaza autorizada, puseram-se rabos surriados1 em lombos fugidiços, esguichou-
14.2; 14.3; 14.4; 14.5;
14.7; 15.1; 15.2; 15.3; 16.1 -se água à cara com seringas de clisteres, sovaram-se incautos com réstias de
cebolas, bebeu-se vinho até ao arroto e ao vómito, partiram-se panelas, toca-
1. Ainda que no Entrudo se ram-se gaitas, e se mais gente não se espojou, por travessas praças e becos, de
assista a uma baixeza moral
e comportamental (“sovaram- 10 barriga para o ar, é porque a cidade é imunda, alcatifada de excrementos, de lixo,
-se incautos com réstias de de cães lazarentos e gatos vadios, e lama mesmo quando não chove. Agora é
cebolas, bebeu-se vinho até
ao arroto e ao vómito”, ll. 7-8), tempo de pagar os cometidos excessos, mortificar a alma para que o corpo finja
de um povo ignorante que
vivia na miséria (“esta cidade,
arrepender-se, ele rebelde, ele insurreto, este corpo parco e porco da pocilga que
mais que todas, é uma boca é Lisboa.
que mastiga de sobejo para
um lado e de escasso para
15 Vai sair a procissão de penitência. Castigámos a carne pelo jejum, maceremo-
o outro”, ll. 1-2), é durante a -la agora pelo açoite. […] Os penitentes homens todos, vão à cabeça da procis-
procissão da Quaresma que
se acentua a rudeza (de uma são, logo atrás dos frades que transportam os pendões com as representações da
população que vivia castrada Virgem e do Crucificado. Seguinte a eles aparece o bispo debaixo do pálio rico, e
e manipulada pela ideia
de um Deus castigador), o depois as imagens nos andores, o regimento interminável de padres, confrarias
obscurantismo e a hipocrisia 20 e irmandades […]. Passa a procissão entre filas de povo, e quando passa rojam-
religiosa.
A procissão da penitência tem -se pelo chão homens e mulheres, arranham a cara uns, arrepelam-se outros,
como finalidade (ainda que
não seja sincera) o castigo
dão-se bofetões todos, e o bispo vai fazendo sinaizinhos da cruz para este lado e
do corpo e a autoflagelação para aquele, enquanto um acólito balouça o incensório. Lisboa cheira mal, cheira
(os penitentes seguem
de grilhões enrolados às a podridão, o incenso dá um sentido à fetidez, o mal é dos corpos, que a alma,
pernas, suportam sobre os 25 essa, é perfumada.
ombros grossas barras de
ferro, desferem chicotadas; Nas janelas só há mulheres, é esse o costume. Os penitentes vão de grilhões
os homens e as mulheres enrolados às pernas, ou suportam sobre os ombros grossas barras de ferro, pas-
arranham a cara e dão-se
bofetões), enquanto “o bispo sando por cima delas os braços como crucificados, ou desferem para as costas
vai fazendo sinaizinhos da cruz chicotadas com as disciplinas2 feitas de cordões em cujas pontas estão presas
para este lado e para aquele”
(ll. 22-23). No entanto, tal 30 bolas de cera dura, armadas de cacos de vidro, e estes que assim se flagelam
como afirma Maria Joaquina
Júlio, estas manifestações
é que são o melhor da festa porque exibem verdadeiro sangue que lhes corre
revelam muito pouco de da lombeira, e clamam estrepitosamente, tanto pelos motivos que a dor lhes
devoção. São espetáculos de
sadomasoquismo, delirantes dá como de óbvio prazer, que não compreenderíamos se não soubéssemos que
e orgiásticos para quem alguns têm os seus amores à janela e vão na procissão menos por causa da sal-
se flagelava e para quem
assistia, como o comprova 35 vação da alma do que por passados ou prometidos gostos do corpo.
o facto de haver Presas no alto gorro ou na própria disciplina, levam fitinhas de cores, cada
penitentes que “clamam
estrepitosamente, tanto um a sua, e se a mulher eleita que à janela anseia de angústia, de piedade pelo
pelos motivos que a dor lhes amador sofredor, se não também de gozo a que só muito mais tarde aprendere-
dá como de óbvio prazer, que
não compreenderíamos se não mos a chamar sádico, não souber, pela fisionomia ou pelo vulto, reconhecer o
soubéssemos que alguns têm
os seus amores à janela e vão
40 amante na confusão dos penitentes, […] adivinhará ao menos pela fitinha cor-
na procissão menos por causa -de-rosa ou verde, ou amarela, lilás, se não vermelha ou cor do céu, é aquele o
da salvação da alma do que
por passados ou prometidos seu homem e servidor, que lhe está dedicando a vergastada violenta e que, não
gostos do corpo” (ll. 32-35). podendo falar berra como o toiro em cio, mas se às mais mulheres da rua, e a
(continua)
ela própria, pareceu que faltou vigor ao braço do penitente ou que a vergastada

304
Memorial do convento

45 foi em jeito de não abrir lanho na pele e rasgões que cá de cima se vejam,
então levanta-se do coro feminil grande assuada, e possessas, frenéticas as
mulheres reclamam força no braço, querem ouvir o estralejar dos rabos do
chicote, que o sangue corra como correu o do Divino Salvador, enquanto
latejam por baixo das redondas saias, e apertam e abrem as coxas segundo o
50 ritmo da excitação e do seu adiantamento. Está o penitente diante da janela
da amada, em baixo na rua, e ela olha-o dominante, talvez acompanhada
de mãe ou prima ou aia, ou tolerante avó, ou tia azedíssima, mas todas sa-
bendo muito bem o que se passa, por experiência fresca ou recordação re-
mota, que Deus não tem nada que ver com isto, é tudo coisa de fornicação, e
55 provavelmente o espasmo de cima veio em tempo de responder ao espasmo
de baixo, o homem de joelhos no chão, desferindo golpes furiosos, já frené-
ticos, enquanto geme de dor, a mulher arregalando os olhos para o macho
derrubado, abrindo a boca para lhe beber o sangue e o resto. Parou a procis-
são o tempo bastante para se concluir o ato, o bispo abençoou e santificou, a
60 mulher sente aquele delicioso relaxamento dos membros, o homem passou
adiante, vai pensando, aliviadamente, que daqui para a frente não precisará
vergastar-se com tanta força, outros o façam para gáudio doutras.
Assim maltratadas as carnes, alimentadas de magro, parece que se have- PROFESSOR
riam de recolher as insatisfações até à libertação pascal e que as solicitações
65 da natureza poderiam esperar que se limpassem as sombras do rosto da Santa (continuação) Quanto
às mulheres, assistem
Madre Igreja, agora que se aproximam Paixão e Morte. Mas talvez que a riqueza à procissão nas janelas,
fosfórica do peixe atice o sangue, talvez que o costume de deixar que as mulhe- excitadas pelo sofrimento dos
homens. Quanto mais violenta
res corram as igrejas sozinhas na Quaresma, contra o uso do resto do ano, que for a vergastada do seu
amado, maior será a sensação
é tê-las em casa presas, salvo se são populares com porta para a rua ou nesta de prazer (“enquanto latejam
70 vivendo, tão presas aquelas que se diz saírem, se são de nobre extração, para ir por baixo das redondas saias,
e apertam e abrem as coxas
à igreja somente, e apenas três vezes na vida, a ser batizada, a ser casada, a ser segundo o ritmo da excitação e
sepultada, para o resto lá está a capela da casa, talvez que o dito costume mos- do seu adiantamento.”,
ll. 48-50). Esta é ainda
tre, afinal, quanto é insuportável a Quaresma, que todo o tempo quaresmal é uma altura que permite a
tempo de morte antecipada, aviso que devemos aproveitar, e então, cuidando os prevaricação e a luxúria das
mulheres que, a pretexto de
75 homens, ou fingindo cuidar, que as mulheres não fazem mais que as devoções a irem à igreja, têm encontros
que disseram ir, é a mulher livre uma vez no ano, e se não vai sozinha por não o furtivos com homens.

consentir a decência pública, quem a acompanha leva iguais desejos e igual ne-
cessidade de satisfazê-los, por isso a mulher, entre duas igrejas, foi a encontrar-
Documento
se com um homem, qual seja, e a criada que a guarda troca uma cumplicidade "Memórias Instrutivas
80 por outra, e ambas, quando se reencontram diante do próximo altar, sabem que sobre Portugal”, Charles
Fréderic de Merveilleux
a quaresma não existe e o mundo está felizmente louco desde que nasceu.
Cap. III (pp. 36-40) (Disponível na brochura
Educação Literária, p. 26 –
Dossiê do Professor)
1. Baseando-se no excerto, comprove a veracidade da citação que se apresenta.
Sugere-se, a título de
A descrição de procissões, que ocupa páginas e páginas de texto (como a curiosidade, a leitura aos
alunos do texto proposto,
enumeração de conventos, confrarias e irmandades), é ocasião de forte crítica que terá servido de fonte a
à religião e à sua preponderância na vida social de então. As procissões, so- Saramago e que dá conta do
testemunho real do médico
bretudo a da Quaresma, muito mais espetacular que o Carnaval, são descritas naturalista suíço, Charles
como manifestações de sadomasoquismo, espetáculos de autoflagelações, Fréderic de Merveilleux, que
esteve várias vezes entre nós a
delirantes e orgiásticas para quem se flagelava e para quem assistia. convite de D. João V e a quem
foi encomendada uma história
Maria Joaquina Nobre Júlio, Memorial do convento de José Saramago: subsídios para uma leitura, natural de Portugal.
Lisboa, Replicação, 1999, p. 34.

305
José Saramago
PERA
CU R

RE
N T Á R IO
COMPREENSÃO DO ORAL DOCUME

10.° ANO
1. Visione atentamente um excerto do documentário Grandes Livros e
faça corresponder, no seu caderno, os elementos da coluna A aos da coluna B.

Coluna A Coluna B

[A] Baltasar Sete-Sóis [1] Blimunda recolhe a sua vontade.


Grandes Livros, RTP
[B] Blimunda [2] é construir uma passarola.
PROFESSOR [C] Durante a realização de um [3] a passarola é confundida com o Espírito Santo.
auto de fé
[4] Blimunda reencontra Baltasar.
[D] Os autos de fé
Vídeo [5] acidentalmente acaba por voar na passarola.
Grandes Livros, RTP [E] Blimunda e Baltasar
(10 minutos) [6] nasceu no Brasil e era um grande apreciador
[F] O padre Bartolomeu Lourenço da técnica e da ciência.
Oralidade
1.3; 2.1 [7] esteve quatro anos na Guerra da Sucessão
[G] O sonho do padre espanhola, onde perdeu a mão esquerda.
1. [A] – [7]; [B] – [9]; [C] – [10]; [H] Para que a passarola pudesse [8] destinavam-se a julgar os hereges e a condená-los
[D] – [8]; [E] – [11]; [F] – [6]; voar, ao degredo ou à fogueira.
[G] – [2]; [H] – [12]; [I] – [14]; [9] possui o dom de ver as pessoas por dentro,
[I] O voo da passarola
[J] – [3]; [K] – [13]; [L] – [5]; quando está em jejum.
[M] – [4]; [N] – [1] [J] Ao sobrevoar Mafra,
[10] Blimunda conhece Baltasar.
Educação Literária [K] Depois da queda da passarola, [11] ficam unidos pelo sangue da virgindade
14.2; 14.3; 14.4; 14.6;
de Blimunda.
14.7; 14.8; 15.1; 15.2; [L] Numa das vezes em que
15.3; 16.2 Baltasar vai ao Monte Junto [12] Blimunda tinha de recolher a vontade dos vivos,
Gramática reparar a máquina, representada no homem por uma nuvem fechada.
18.2; 18.3; 19.3; 19.4
[M] Ao fim de nove anos, num auto [13] o padre foge e Baltasar e Blimunda regressam
de fé, a Mafra.
[N] Quando Baltasar está a ser [14] é precipitado pelo facto de o padre estar a ser
1
Baltasar foi um dos queimado numa fogueira, perseguido pela Inquisição.
soldados portugueses
a participar na Guerra da
Sucessão espanhola que
ocorreu entre 1702 e 1714, EDUCAÇÃO LITERÁRIA
depois de Carlos II de
Espanha ter morrido sem
nenhum herdeiro direto ao Baltasar
trono. Por testamento, foi
declarado que lhe sucederia Este que por desafrontada aparência, sacudir da espada e desparelhadas ves-
o neto de Luís XIV de tes, ainda que descalço, parece soldado, é Baltasar Mateus, o Sete-Sóis. Foi man-
França. Contudo, algumas dado embora do exército por já não ter serventia nele1, depois de lhe cortarem a
monarquias europeias,
sentindo-se ameaçadas,
mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala em frente de Jerez de
declararam-se contra esta 5 los Caballeros, na grande entrada de onze mil homens que fizemos em outubro
união e apoiaram a subida do ano passado e que se terminou com perda de duzentos nossos e debandada
ao trono de Leopoldo I, dos vivos, acossados pelos cavalos que os espanhóis fizeram sair de Badajoz. […]
imperador da Áustria. Por
decisão de D. Pedro II, pai
Por ser pouco o que pudera guardar do soldo, pedia esmola em Évora para
de D. João V, Portugal juntar as moedas que teria de pagar ao ferreiro e ao seleiro se queria ter o gancho
acabou por participar 10 de ferro que lhe havia de fazer as vezes da mão. Assim passou o inverno, […].
também nesta guerra,
Saiu Sete-Sóis de Évora, […].
depois de ter sido
estabelecida uma aliança Veio andando devagar. Não tem ninguém à sua espera em Lisboa, e em Mafra,
anglo-luso-alemã. donde partiu anos atrás para assentar praça na infantaria de sua majestade, se

306
Memorial do convento

pai e mãe se lembram dele, julgam-no vivo porque não têm notícias de que es-
PROFESSOR
15 teja morto, ou morto porque as não têm de que seja vivo. […] Baltasar Sete-Sóis
leva os ferros no alforge2 porque há momentos, horas inteiras, em que sente a 1. A ação decorre por ocasião
mão como se ainda a tivesse na ponta do braço e não quer roubar a si próprio da Guerra da Sucessão
espanhola que se desenrolou
a felicidade de se achar inteiro e completo como inteiros e completos se hão de entre 1702 e 1714, na altura em
que reinava em Portugal D.
sentar Carlos e Filipe em seus tronos, afinal haverá para os dois, quando a guerra João V, que foi proclamado rei
20 acabar. […] em 1706, tendo o seu reinado
durado 44 anos.
Passado Pegões, à entrada dos grandes pinheirais onde começa a terra de 2. Baltasar Mateus surge
areia, Baltasar, ajudando-se com os dentes, ata ao coto o espigão, que fará, ur- em cena como um soldado
esfarrapado e descalço, a
gindo a necessidade, as vezes de adaga3, em tempo que foi esta proibida por ser viver da caridade, que se viu
arma facilmente mortal. […] Matará adiante um homem, de dois que o quiseram obrigado a abandonar a Guerra
da Sucessão espanhola por ter
25 roubar, mesmo tendo-lhes ele gritado que não levava dinheiros, […]. perdido a mão esquerda. É um
Lisboa ali estava, […]. homem solitário, cuja família
é de Mafra; é desenvolto,
Com pouco dinheiro no bolsilho, umas só moedas de cobre que soavam bem destemido e corajoso, já
que se atreve a percorrer os
menos que os ferros do alforge, desembarcado numa cidade que mal conhecia, caminhos sozinho, acabando
tinha Baltasar de resolver que passos daria a seguir, se a Mafra onde não poderia mesmo por matar um homem
em legítima defesa.
30 a sua única mão pegar numa enxada que requer duas, se ao paço onde talvez Por meio da figura de Baltasar,
lhe dessem uma esmola por conta do sangue perdido. Alguém lhe tinha dito isto o narrador põe em evidência
o sofrimento da classe mais
em Évora, mas também lhe foram dizendo que era necessário pedir muito e por desfavorecida – o povo – às
muito tempo, com muito empenho de padrinhos, e apesar disso muitas vezes se mãos dos caprichos dos
poderosos. Baltasar, que,
apagava a voz e acabava a vida antes que se visse a cor ao dinheiro. Na falta, aí como se disse, perdera a
35 estavam as irmandades para a esmola e as portarias dos conventos que proviam mão esquerda ao serviço da
pátria, numa guerra que nada
ao caldo e ao tassalho4 do pão. tinha que ver com Portugal,
Cap. IV (pp. 45-49, 53-54) vê-se abandonado pela própria
nação.
3.1 A proximidade do narrador
2 3
Espécie de bolsa grande, dividida em dois compartimentos. Espécie de punhal comprido e de lâmina é visível no recurso ao
larga. 4 Naco. deítico espacial “este” e ao
deítico temporal “agora”, que
presentificam o momento
de enunciação do narrador,
1. Localize a ação deste excerto em termos históricos. e ainda no uso do presente
do indicativo “parece”, “é”.
2. Trace o retrato físico e psicológico de Baltasar, explicando de que forma, através da 3.2 Esta atitude de
personagem, se manifesta o sofrimento e a opressão das classes desfavorecidas. proximidade justifica-se pelo
facto de o narrador mostrar
simpatia por aqueles que são
3. Atente especialmente na figura do narrador. mais desfavorecidos, ou não
fosse o objetivo de Memorial
3.1 Mostre de que modo ele assume o estatuto de participante e narra os factos como se do convento homenagear
os estivesse a presenciar. o povo sofrido e valeroso.
3.3 O narrador adota a
3.2 Apresente uma explicação para a adoção desta atitude. primeira pessoa do plural
quando se refere ao povo
3.3 Justifique a alteração da terceira pessoa do singular para a primeira do plural. português, por dele se sentir
parte integrante.
4. Demonstre como neste excerto o tempo da narrativa não é linear. 4. Por duas vezes, o narrador
serve-se da prolepse para
G 5. Identifique, justificando, a sequência textual dominante no primeiro parágrafo. antecipar acontecimentos.
Primeiro, fá-lo, em relação
ao desfecho da Guerra da
6. Indique o valor aspetual do complexo verbal presente em “Foi mandado embora do Sucessão, numa altura em
exército”. (ll. 2-3) que esta ainda decorria;
depois revela que, num futuro
próximo, Baltasar matará um
7. Refira o mecanismo de coesão verificado no termo sublinhado em “se pai e mãe se homem que tentou assaltá-lo.
lembram dele, julgam-no vivo porque não têm notícias de que esteja morto”. (ll. 13-15) Recorre, ainda, à analepse,
quando dá conta da batalha
em Jerez de los Caballeros,
8. Identifique a modalidade presente em “Matará adiante um homem, de dois que o qui- ocorrida um ano antes.
seram roubar”. (ll. 24-25)

307
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

O encontro e a união
EXCERTO 1 | Cap. V (pp. 64-69)

Porém, hoje é dia de alegria geral, porventura a palavra será imprópria, por-
que o gosto vem de mais fundo, talvez da alma, olhar esta cidade saindo de suas
casas, despejando-se pelas ruas e praças, descendo dos altos, juntando-se no
Rossio para ver justiçar a judeus e cristãos-novos, a hereges e feiticeiros, fora
5 aqueles casos menos correntemente qualificáveis, como os de sodomia1, moli-
nismo2, reptizar mulheres e solicitá-las, e outras miuçalhas3 passíveis de degre-
do ou fogueira. São cento e quatro as pessoas que hoje saem, [...] cinquenta e um
os homens e cinquenta e três as mulheres. […] está o Rossio cheio de povo, duas
vezes em festa por ser domingo e haver auto de fé, nunca se chegará a saber de
10 que mais gostam os moradores, se disto, se das touradas, mesmo quando só
estas se usarem. […]
Grita o povinho furiosos impropérios4 aos condenados, guincham as mulhe-
res debruçadas dos peitoris, alanzoam5 os frades, a procissão é uma serpente
PROFESSOR enorme que não cabe direita no Rossio […] aquele é Domingos Afonso Lagareiro,
15 natural e morador que foi em Portel, que fingia visões para ser tido por santo,
5. A sequência textual
predominante no primeiro e fazia curas usando de bênçãos, palavras e cruzes, e outras semelhantes su-
parágrafo é de natureza perstições, imagine-se, como se tivesse sido ele o primeiro, […] e esta sou eu,
explicativa, uma vez que o
narrador pretende esclarecer Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e revela-
o leitor sobre as razões e as
circunstâncias que levaram
ções, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu,
Baltasar a ser dispensado 20 mas explicaram-me que era efeito demoníaco, que sei que posso ser santa como
do exército, bem como
sobre as condições de vida os santos o são, ou ainda melhor, pois não alcanço diferença entre mim e eles,
experienciadas pelo mas repreenderam-me de que isso é presunção insuportável e orgulho mons-
ex-soldado.
truoso, desafio a Deus, aqui vou blasfema, herética, temerária, amordaçada para
6. Valor perfetivo.
7. Coesão gramatical que não me ouçam as temeridades, as heresias e as blasfémias, condenada a ser
(referencial). 25 açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola, e tendo ouvido
8. Modalidade epistémica as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não ouvi
(valor de certeza).
que se falasse da minha filha, é seu nome Blimunda, onde estará, onde estás
Educação Literária Blimunda, se não foste presa depois de mim, aqui hás de vir saber da tua mãe
14.2; 14.3; 14.4; 14.5;
14.7; 14.8; 15.1; 15.2;
[…] ai, ali está, Blimunda, Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não
15.3; 16.2 30 pode falar, tem de fingir que me não conhece ou me despreza, mãe feiticeira e
marrana6 ainda que apenas um quarto, já me viu, e ao lado dela está o padre
1. A opressão sobre o
povo era concretizada na
Bartolomeu Lourenço, não fales Blimunda, olha só, olha com esses teus olhos
perseguição aos que tinham que tudo são capazes de ver, e aquele homem quem será, tão alto, que está perto
um credo diferente, aos que
não respeitavam os dogmas de Blimunda e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde vem, que vai ser
da Igreja, aos acusados 35 deles, poder meu, pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso cortado,
de práticas de feitiçaria e
ainda aos que apresentavam adeus Blimunda que não te verei mais, e Blimunda disse ao padre, Ali vai minha
comportamentos sexuais mãe, e depois, voltando-se para o homem alto que lhe estava perto, perguntou,
desviantes. De acordo com
a gravidade da acusação, os Que nome é o seu, e o homem disse, naturalmente, assim reconhecendo o di-
condenados eram degredados reito de esta mulher lhe fazer perguntas, Baltasar Mateus, também me chamam
ou queimados numa fogueira.
40 Sete-Sóis.

308
Memorial do convento

EXCERTO 2 | Cap. V (pp. 71-74) 1


Prática sexual.
2
Porém, agora, em sua casa, choram os olhos de Blimunda como duas fontes Doutrina de Luís de Molina
(1535-1600) que tentava
de água, […]. Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente conciliar a eficácia da graça
Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estô- com o livre-arbítrio.
mago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, 3
Miudezas sem valor.
45 ou azul, que com a luz de fora variam ou com o pensamento de dentro, e às 4
Injúrias.
vezes tornam-se negros noturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão 5
Dizer coisas à toa.
de pedra. Veio a esta casa não porque lhe dissessem que viesse, mas Blimunda 6
Designação injuriosa que
perguntara-lhe que nome tinha e ele respondera, não era necessária melhor se dava aos muçulmanos
e judeus que viviam em
razão. Terminado o auto de fé, varridos os restos, Blimunda retirou-se, o padre
Portugal.
50 foi com ela, e quando Blimunda chegou a casa deixou a porta aberta para que 7
Aro ou triângulo de ferro
Baltasar entrasse. […] que assenta sobre três pés
Blimunda levantou-se do mocho, acendeu o lume na lareira, pôs sobre a e sobre o qual se coloca
trempe7 uma panela de sopas, e quando ela ferveu deitou uma parte para duas a panela ao lume.
8
tigelas largas que serviu aos dois homens, fez tudo isto sem falar, não tornara a Benzeu-se.

55 abrir a boca depois que perguntou, há quantas horas, Que nome é o seu, e apesar
de o padre ter acabado primeiro de comer, esperou que Baltasar terminasse para
se servir da colher dele, era como se calada estivesse respondendo a outra pergun- PROFESSOR

ta, Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo
2.1 O povo é visto como
seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que se ignorante e sanguinário
60 perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda já tinha dito que sim antes de porque, não compreendendo
a opressão e a perseguição que
perguntada, Então declaro-vos casados. O padre Bartolomeu Lourenço esperou a Igreja exercia sobre os mais
que Blimunda acabasse de comer da panela as sopas que sobejavam, deitou-lhe desprotegidos, se regozija e se
excita com a violência infligida
a bênção, com ela cobrindo a pessoa, a comida e a colher, o regaço, o lume na aos seus semelhantes,
no decurso dos autos de fé,
lareira, a candeia, a esteira no chão, o punho cortado de Baltasar. Depois saiu. vividos como um momento
65 Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez Balta- festivo.
sar se levantou para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez 2.2 O narrador serve-se da
prolepse quando afirma
Blimunda espevitou o morrão da candeia que estava comendo a luz e então, “nunca se chegará a saber
de que mais gostam os
sendo tanta a claridade, pôde Sete-Sóis dizer, Por que foi que perguntaste o meu moradores, se disto, se das
nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber e queria que eu touradas, mesmo quando só
estas se usarem” (ll. 9-11).
70 o soubesse, Como sabes, se com ela não pudeste falar, Sei que sei, não sei como Esta observação, que serve
sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste, vieste e para denunciar a caráter
sanguinário do povo, contribui
não perguntaste porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei também para destacar e
de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não criticar a violência ainda hoje
presenciada nas touradas
fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é portuguesas.
75 preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não 3. Ironia. Ao referir que
Domingos Afonso Lagareiro
te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encan- tinha sido condenado por
to, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, ter visões e curar enfermos,
o narrador ironiza esta
Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sa- condenação, evocando a
bes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo. figura de Jesus Cristo, que
partilhava dos mesmos
80 Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e dons e é o responsável pela
Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais ve- existência do cristianismo,
o que não deixa de resultar
lha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e numa situação paradoxal.
indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se8 e fez uma cruz no peito 4. Quando apresenta a mãe
de Blimunda (Sebastiana de
de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. […] Jesus), o narrador permite
85 Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a que ela se assuma como voz
enunciativa, falando, por isso,
comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter na primeira pessoa.
acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro.

309
José Saramago

PROFESSOR EXCERTO 3 | Cap. VIII (p. 99)

5. Blimunda tem dezanove Dorme Baltasar no lado direito da enxerga, desde a primeira noite aí dorme,
anos e é filha de Sebastiana de porque é desse lado o seu braço inteiro, e ao voltar-se para Blimunda pode,
Jesus, que foi condenada ao
degredo pela Santa Inquisição 90 com ele, cingi-la contra si, correr-lhe os dedos desde a nuca até à cintura, mais
por ter “visões e revelações”. abaixo ainda se os sentidos de um e do outro despertaram no calor do sono e
É uma mulher forte já que,
para sua própria defesa, não na representação do sonho, ou já acordadíssimos iam quando se deitaram, que
revela quaisquer sentimentos este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na igreja, cuida
quando vê a mãe pela última
vez. No entanto, quando está pouco de regras e respeitos, e se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis,
em casa, chora copiosamente,
assim demonstrando a
95 quererá ele.
sua emotividade e a sua
tristeza. Revela-se uma
mulher pouco convencional
1. Explique de que forma a opressão da Igreja se fazia sentir sobre o povo.
para a época, dado que
não se coíbe de perder a 2. Centre-se na caracterização do povo.
virgindade com um homem
que acabara de conhecer, 2.1 Demonstre o seu caráter sanguinário e ignorante.
assumindo, nessa relação,
um papel ativo. Percebe- 2.2 Explicite a intenção crítica do narrador evidenciada na prolepse que faz.
-se ainda que tem poderes
sobrenaturais e místicos, uma 3. Identifique, comentando o seu valor semântico, o recurso expressivo presente em
vez que consegue comunicar
telepaticamente com a sua “imagine-se, como se tivesse sido ele o primeiro”. (l. 17)
mãe e se benze e faz uma
cruz no peito de Baltasar 4. Evidencie o caráter polifónico do narrador quando apresenta a mãe de Blimunda.
com o sangue da virgindade.
Fisicamente, o que mais a 5. Trace o retrato físico e psicológico de Blimunda.
distingue são os olhos que vão
variando de cor, consoante
a luz ou as emoções. 6. Explicite o papel de Sebastiana de Jesus no relacionamento entre Baltasar e Blimunda.
6. É ela quem,
telepaticamente, leva 7. Identifique, explicando a sua funcionalidade, os símbolos que consagram a união de
Blimunda a perguntar o nome Baltasar e de Blimunda.
a Baltasar, estabelecendo,
assim, o primeiro contacto
com aquele homem que se 8. Caracterize a relação deste par amoroso.
relacionará com ela – “que vai
ser deles” (ll. 34-35). 9. Estabeleça um contraste entre o ato sexual dos pares rei/rainha e Baltasar/Blimunda.

LEITURA

A propósito da vivência do povo retratada na obra de Saramago, leia o texto.


to.
PERA
CU R
RE

ÃO
E X P O S IÇ
A Inquisição 10.° ANO

A
Inquisição instalou-se em Portugal a pedido de D. João III que requisitou, para tanto,
a licença do Papa em 1531. A bula, concedida em 1536, veio legalizar uma situação de
facto que já durava desde 1534. E não há dúvida de que o procedimento inquisitorial
foi instaurado em terras portuguesas em nome da ameaça judaica e deve ser entendido não
5 apenas como defesa religiosa, mas como possibilidade de enriquecimento da Coroa através
dos bens confiscados aos judeus condenados.
A questão económica funcionava, pois, como o real motor do problema. De um lado, por
serem os judeus ricos e emprestarem dinheiro a juros, ganhavam facilmente o ódio dos seus
Auto de fé, c.1500, Pedro
Berruguete, Paredes de
devedores, que não hesitavam em acusá-los para cumprir deveres de “bons cristãos”. Por
Nava, Palancia, Ávila. 10 outro, a riqueza tentava a própria Inquisição, cujos poderes económicos não eram grandes

310
Memorial do convento

PROFESSOR
para manter o arsenal de funcionários de que necessitava, e que, segundo António José Sa-
7. É visível (1) no facto de
raiva, se dispunha “fabricar judeus como quem fabrica moeda falsa”, a fim de equilibrar o seu Blimunda ter esperado para
orçamento com os bens confiscados. comer da mesma colher
que Baltasar, situação que o
A Inquisição perseguia ainda outros crimes, inimigos da fé: a bigamia, a homossexuali- narrador associa à declaração
15 dade e a magia. formal de união que ocorre
num casamento; (2) no facto
Os julgamentos da Santa Inquisição conduziam a penas variadas, desde o açoite e a pri- de o padre ter abençoado
são perpétua até o degredo, o garrote e a fogueira. Mas “de qualquer maneira os condenados não só a casa e a comida mas
também a esteira no chão e
tinham que sofrer as humilhações do auto de fé e a confiscação de todos os seus bens”, além o punho cortado de Baltasar;
(3) no facto de Blimunda ter
de levarem a infâmia a todos os que estivessem ligados ao seu nome por laços da família até feito uma cruz no peito de
20 às gerações futuras. Baltasar e se ter benzido com
o sangue da virgindade, como
A cerimónia do auto de fé tinha requintes grandiosos: procissão, leitura das sentenças e, se estivesse a selar um pacto
enfim, os suplícios. entre os dois.
8. Por um lado, a relação
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago: entre a história e a ficção: uma saga de portugueses, assume contornos pouco
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 45-47 (com supressões). convencionais para a época,
na medida em que o casal
optou por não legitimar
formalmente a sua união,
1. Selecione, no seu caderno, a opção que melhor completa a afirmação. através do casamento, e
pelo facto de Blimunda se
1.1 A presença da Inquisição em Portugal ter entregado a Baltasar
no primeiro encontro.
[A] surgiu no reinado de D. João V. Por outro, este casal dá
mostras da vivência de um
[B] manteve-se durante séculos. amor puro, sincero e profundo,
visível quer na forma como,
[C] findou com o reinado de D. João III. estrategicamente, Baltasar
se coloca na cama para poder
[D] manifestou-se apenas no século XVI. abraçá-la quer na frequência
com que tinham relações
1.2 O seu estabelecimento no reino íntimas, respeitando a vontade
e o desejo de um e de outro.
[A] teve como propósito perseguir exclusivamente os judeus. 9. O ato sexual dos reis
reveste-se de um formalismo
[B] deveu-se apenas a uma questão religiosa. ritual, protocolar (os
preparativos ou a condução,
[C] trouxe grandes proveitos económicos à Coroa. em jeito de procissão, da
rainha pelo rei até à cama),
[D] foi imposto pela Santa Sé. apenas com o objetivo preciso
de gerar um herdeiro. Além
1.3 Os condenados pela Santa Inquisição disso, está isento de qualquer
afeto e intimidade, dada a
[A] tinham sempre o mesmo destino: a fogueira. presença de um conjunto de
criados. Baltasar e Blimunda,
[B] eram renegados pelas suas famílias, de forma a que estas não sofressem nenhum contrariamente, vivem a
dano moral. sexualidade com liberdade,
de forma pura e com uma
[C] eram castigados longe dos olhares públicos. entrega total, decorrente
apenas da vontade prazerosa
[D] sofriam penalizações físicas e económicas. de ambos: “e se a ele apeteceu,
a ela apetecerá, e se ela quis,
quererá ele” (ll. 94-95). O facto
2. Selecione, no seu caderno, as opções que completam corretamente a afirmação que se de Blimunda, findo o ato, se
benzer e fazer uma cruz com
segue. Quanto ao género textual, este texto classifica-se como uma exposição porque o sangue da sua virgindade
no peito de Baltasar traduz
[A] predomina nele o caráter persuasivo. o compromisso selado entre
ambos a partir daquele dia,
[B] se pretende com ele esclarecer um determinado tema. um compromisso em que não
cabem nem os pensamentos
[C] é explicitado nele um ponto de vista. libidinosos da rainha nem as
relações adúlteras do rei.
[D] as ideias apresentadas são fundamentadas.
[E] prevalece nele o caráter demonstrativo. Leitura
7.3; 7.7; 8.1
[F] é objetivo.
1.1 [B]; 1.2 [C]; 1.3 [D]
[G] predomina nele o discurso valorativo. 2. [B], [D], [E], [F]

311
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

O dom de Blimunda
Um dia e outro dia perguntou Baltasar a Blimunda por que comia todas as
manhãs antes de abrir os olhos, perguntou ao padre Bartolomeu Lourenço que
segredo era este, ela respondeu-lhe uma vez que se acostumara a isso em crian-
ça, ele disse que se tratava de um grande mistério, tão grande que voar faria
5 figura de pequena coisa, comparando. Hoje se saberá.
Quando Blimunda acorda, estende a mão para o saquitel1 onde costuma
guardar o pão, pendurado à cabeceira, e acha apenas o lugar. Tateia o chão, a
enxerga, mete as mãos por baixo da travesseira, e então ouve Baltasar dizer,
Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os olhos com os punhos
10 cerrados, implora, Dá-me o pão, Baltasar, dá-me o pão, por alma de quem lá
tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não posso, gritou
ela, e bruscamente tentou rolar para fora da enxerga, mas Sete-Sóis deitou-lhe
o braço são, prendeu-a pela cintura, ela debateu-se brava, depois passou-lhe a
perna direita por cima, e assim libertada a mão, quis afastar-lhe os punhos dos
15 olhos, mas ela tornou a gritar, espavorida, Não me faças isso, e foi o grito tal que
Baltasar a largou, assustado, quase arrependido da violência, Eu não te quero
fazer mal, só queria saber que mistérios são, Dá-me o pão, e eu digo-te tudo,
Juras, Para que serviriam juras se não bastassem o sim e o não, Aí tens, come, e
Baltasar tirou o taleigo2 de dentro do alforge que lhe servia de travesseira.
20 […] Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te olhei
1
por dentro, Lembro-me, Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste o que
Saquinho.
2
estavas a ouvir quando eu te disse que nunca te olharia por dentro. Baltasar não
Saco.
teve tempo de responder, ainda procurava o sentido das palavras, e outras já se
PROFESSOR ouviam no quarto, incríveis, Eu posso olhar por dentro das pessoas.
25 Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, incrédulo, e também inquieto, Estás a
Educação Literária
14.2; 14.4; 15.1; 15.2; mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das pessoas, Eu posso, Não
15.3; 16.2 acredito, Primeiro, quiseste saber, não descansavas enquanto não soubesses,
Gramática
17.1
agora já sabes e dizes que não acreditas, antes assim, mas daqui para o futuro
não me tires o pão, Só acredito se fores capaz de dizer o que está dentro de mim
1. Baltasar esconde o pão
de Sete-Luas porque quer,
30 agora, Não vejo se não estiver em jejum, além disso fiz promessa de que a ti
de uma vez por todas, nunca te veria por dentro, Torno a dizer que estás a mangar comigo, E eu torno
compreender a razão do
ritual de Blimunda: todas as a dizer que é verdade, Como hei de ter a certeza, Amanhã não comerei quando
manhãs, mal acorda, ela come acordar, sairemos depois de casa e eu vou-te dizer o que vir, mas para ti nunca
pão de olhos fechados.
olharei, nem te porás na minha frente, queres assim, Quero, respondeu Baltasar,
2. Blimunda, a não ser que
mude o quarto da lua, possui 35 mas diz-me que mistério é este, como foi que te veio esse poder, se não estás
o dom de ver as pessoas por
dentro, quando está em jejum.
a enganar-me, Amanhã saberás que falo verdade, E não tens medo do Santo
Por esta razão, e por respeitar Ofício, por muito menos têm outros pagado, O meu dom não é heresia, nem é
Baltasar, jurou que nunca se
iria servir daquele dom para feitiçaria, os meus olhos são naturais, Mas a tua mãe foi açoitada e degredada
o olhar por dentro. por ter visões e revelações, aprendeste com ela, Não é a mesma coisa, eu só vejo
3. Blimunda era 40 o que está no mundo, não vejo o que é de fora dele, céu ou inferno, não digo
constantemente confrontada
com visões terríveis e com rezas, não faço passes de mãos, só vejo, Mas persignaste-te com o teu sangue
situações que gostaria de
evitar, até porque, como diz,
e fizeste-me com ele uma cruz no peito, se isso não é feitiçaria, Sangue de vir-
“o que a pele esconde nunca gindade é água de batismo, soube que o era quando me rompeste, e quando o
é bom de ver-se” (ll. 48-49).
senti correr adivinhei os gestos, Que poder é esse teu, Vejo o que está por dentro

312
Memorial do convento

PROFESSOR
45 dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o que está por baixo
da pele, e às vezes mesmo por baixo das roupas, mas só vejo quando estou em 4. O dom de Blimunda poderá
vir a ser confundido com
jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem heresia e feitiçaria, situação
me dera que o não tivesse, Porquê, Porque o que a pele esconde nunca é bom que a levaria a ter problemas
com o Santo Ofício, podendo
de ver-se, Mesmo a alma, já viste a alma, Nunca a vi, Talvez a alma não esteja culminar com um destino
semelhante ao de sua mãe,
50 afinal dentro do corpo, Não sei, nunca a vi, Será porque não se possa ver, Será, e que foi açoitada e degredada.
agora larga-me, tira a perna de cima de mim, que me quero levantar. 5. Sete-Sóis soergueu-se na
Cap. VIII (pp. 100-103) enxerga, incrédulo, e também
inquieto:
− Estás a mangar comigo?!
1. Justifique o comportamento de Baltasar naquela manhã. Ninguém pode olhar por
dentro das pessoas.
− Eu posso.
2. Identifique o dom de Blimunda, relacionando-o com a promessa que esta fez a Baltasar. − Não acredito.
− Primeiro, quiseste saber, não
3. Explique por que razão Blimunda preferia não ter esse dom. descansavas enquanto não
soubesses, agora já sabes e
4. Aponte possíveis consequências que o dom pode trazer à personagem. dizes que não acreditas, antes
assim, mas daqui para o futuro
não me tires o pão.
G 5. Reescreva o quarto parágrafo até “saberás que falo verdade” (l. 36), tendo em conta as − Só acredito se fores capaz
normas atuais do português padrão na sua modalidade escrita. de dizer o que está dentro de
mim agora.
− Não vejo se não estiver em
6. Refira os antecedentes dos pronomes pessoais sublinhados em “Sangue de virginda- jejum, além disso fiz promessa
de é água de batismo, soube que o era quando me rompeste, e quando o senti correr de que a ti nunca te veria por
adivinhei os gestos”. (ll. 42-44) dentro.
− Torno a dizer que estás a
mangar comigo.
7. Identifique o valor do conector sublinhado em “que me quero levantar”. ((l. 51)) − E eu torno a dizer que é
PERA
verdade.
RE CU R − Como hei de ter a certeza?
− Amanhã não comerei quando
E S C R I TA acordar. Sairemos depois de
S ÍN T E S E casa e eu vou-te dizer o que
vir, mas para ti nunca olharei,
10.° ANO
Crenças no paranormal nem te porás na minha frente.
Queres assim?
− Quero – respondeu Baltasar –
O fenómeno das crenças no paranormal é definido mais comummente de acor- mas diz-me que mistério é
do com três critérios: a) é inexplicável em termos da ciência atual; b) a explicação este? Como foi que te veio
esse poder, se não estás a
é encontrada somente em amplas revisões dos limites básicos dos princípios da enganar-me…
ciência; e c) há incompatibilidade com perceções normativas, crenças e expec- − Amanhã saberás que falo
verdade.
5 tativas da realidade. As suas causas são complexas e a falta de educação formal 6. (“que o era”): água de
é uma explicação inadequada, uma vez que pessoas com alto nível educacional batismo; (“quando o senti”):
sangue da virgindade.
e alto nível de inteligência também mantêm crenças aparentemente incompatí- 7. Valor causal.
veis com essas características. Estudos realizados em diversos países indicam que
Escrita
pessoas de diferentes culturas, diferentes níveis educacionais e diversos níveis de 11.1; 12.1; 12.3; 12.4; 13.1.
10 inteligência mantêm crenças sobrenaturais em maior ou menor grau.
São considerados fenómenos
Crenças supersticiosas comuns e crenças no paranormal são resultados al- paranormais aqueles que
tamente previsíveis de processos que controlam a aprendizagem e a cognição a ciência não consegue
explicar, ou cuja explicação
humana. O comportamento supersticioso tende a surgir como uma resposta a supera os limites desta, ou
eventos incontroláveis, levando o indivíduo a acreditar que mantém o controlo que resultam de situações
não expectáveis. Podem ter
15 da situação ou que pode prevê-la, reduzindo a ansiedade, ou podem-se consti- várias causas e não dependem
tuir num erro de interpretação de eventos normais considerados como eventos da cultura, da educação ou
do QI. Frequentemente, são
paranormais. associados a superstições,
a ansiedade ou a más
Tatiana de Vasconcelos e Bartolomeu Trôccoli, "Crenças no paranormal e estilos de pensamento racional interpretações da realidade.
vs. experimental", in Pepsic, periódicos eletrónicos em Psicologia, versão online (adaptado, (50 palavras)
consultado em agosto de 2016).

BLOCO INFORMATIVO – p. 379


1. Faça a síntese do texto, reduzindo-o a um quarto da sua extensão. PREPARAR O EXAME – p. 51

313
José Saramago

1
Antigo soldado que deu EDUCAÇÃO LITERÁRIA
guarida a Baltasar, num
telheiro, na primeira vez
que este pernoitou em A construção da passarola (1.a fase)
Lisboa.
EXCERTO 1 | Cap. VI (pp. 78, 81-83, 88-89)
PROFESSOR
Atravessava o Terreiro do Paço o padre Bartolomeu Lourenço, que vinha do
Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.5; palácio aonde fora por instância de Sete-Sóis, desejoso de que se apurasse se
14.6; 14.7; 14.9; 15.1; sim ou não haveria uma pensão de guerra, se tanto vale a simples mão esquer-
15.2; 15.3; 16.1
Gramática
da, e quando João Elvas1, que da vida de Baltasar não sabia tudo, viu aproximar-
17.1; 18.3 5 -se o padre, disse em continuação da conversa, Aquele que ali vem é o padre
1. O padre Bartolomeu,
Bartolomeu Lourenço, a quem chamam o Voador, […].
fazendo uso das relações Agora me disse aquele meu amigo João Elvas que tendes apelido de Voador,
privilegiadas que tinha no
Paço, foi informar-se de uma padre, por que foi que vos deram tal nome, perguntou Baltasar. […] Porque eu
possível pensão de guerra voei, e disse Baltasar, duvidoso, Com perdão da confiança, só os pássaros voam,
destinada aos soldados
feridos na Guerra da Sucessão 10 e os anjos, e os homens quando sonham, mas em sonhos não há firmeza, Não
espanhola. tens vivido em Lisboa, nunca te vi, Estive na guerra quatro anos e a minha terra
2. Bartolomeu Lourenço era
conhecido como o Voador por
é Mafra, Pois eu faz dois anos que voei, primeiro fiz um balão que ardeu, depois
ter feito voar um balão, mais construí outro que subiu até ao teto duma sala do paço, enfim outro que saiu por
do que uma vez.
uma janela da Casa da Índia e ninguém tornou a ver, Mas voou em pessoa, ou só
3. Bartolomeu Lourenço
sente-se humilhado com essa 15 voaram os balões, Voaram os balões, foi o mesmo que ter voado eu, Voar balão
alcunha, porque sabe que ela
lhe foi atribuída por malícia,
não é voar homem, O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um
já que tinha havido muita dia voará, respondeu Bartolomeu Lourenço, […].
gente a ridicularizar os seus
inventos. […] Tenho sido a risada da corte e dos poetas […], se não fosse a proteção de
4. A enumeração, a gradação el-rei não sei o que seria de mim, mas el-rei acreditou na minha máquina e tem
e a metáfora presentes
neste segmento servem para
20 consentido que, na quinta do duque de Aveiro, a S. Sebastião da Pedreira, eu faça
ilustrar a evolução humana, os meus experimentos, enfim já me deixam respirar um pouco os maldizentes,
que acontece paulatinamente,
por etapas, e à custa que chegaram ao ponto de desejar que eu partisse as pernas quando me lanças-
da constante persistência, se do castelo, sendo certo que nunca eu tal coisa prometera, e que a minha arte
apesar dos eventuais
percalços. tinha mais que ver com a jurisdição do Santo Ofício que com a geometria, Pa-
5. Primeiro, o padre tenta 25 dre Bartolomeu Lourenço, eu destas coisas não entendo, fui homem do campo,
persuadi-lo de que com uma
mão e um gancho poderá
soldado deixei de ser, e não creio que alguém possa voar sem lhe terem nascido
fazer tudo o que quiser, até asas, quem o contrário disser, entende tanto disso como de lagares de azeite,
porque “um gancho não sente
dores se tiver de segurar um Esse gancho que tens no braço não o inventaste tu, foi preciso que alguém ti-
arame ou um ferro, nem se vesse a necessidade e a ideia, que sem aquela esta não ocorre, juntasse o couro
corta, nem se queima”
(ll. 42-43); depois, advoga que 30 e o ferro, e também estes navios que vês no rio, houve um tempo em que não
Deus é maneta, por não haver tiveram velas, e outro tempo foi o da invenção dos remos, outro o do leme, e,
ninguém que se sente à sua
esquerda, e mesmo assim fez assim como o homem, bicho da terra, se faz marinheiro por necessidade, por
o universo. Este argumento
acaba por ser decisivo quanto
necessidade se fará voador, […] Então foi por querer voar que conheceu a mãe de
ao intento do padre. Blimunda, por ser de artes subtis, Ouvi dizer que ela tinha visões de ver pessoas
6.1 A alusão ao bicho da terra, 35 voando com asas de pano, é certo que visões não falta por aí quem diga tê-las,
forma como Camões se refere
à fragilidade humana por mas havia tal verosimilhança no que me contavam, que discretamente a fui vi-
estar à mercê de um conjunto
de contrariedades inerentes
sitar um dia, e depois ganhei-lhe amizade, […].
à vida, serve para salientar Queres tu vir ajudar-me, perguntou. Baltasar deu um passo atrás, estupe-
a necessidade sentida pelo ser
humano de progredir e evoluir, facto, Eu não sei nada, sou um homem do campo, mais do que isso só me en-
para poder dar resposta às 40 sinaram a matar, e assim como me acho, sem esta mão, Com essa mão e esse
adversidades ou limitações
que lhe são impostas pela sua gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que um gancho faz melhor
natureza. que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver de segurar um arame

314
Memorial do convento

ou um ferro, nem se corta, nem se queima, e eu te digo que maneta é Deus,


e fez o universo.
45 Baltasar recuou assustado, persignou-se rapidamente, como para não dar
tempo ao diabo de concluir as suas obras, Que está a dizer, padre Bartolomeu
Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não
está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita,
à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda
50 de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de
Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é ma-
neta. Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mão esquerda.
Sete-Sóis ouvira com atenção. Olhou o desenho e os materiais espalhados
pelo chão, a concha ainda informe, sorriu, e, levantando um pouco os braços,
55 disse, Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela
e o arame que hão de voar. PROFESSOR

EXCERTO 2 | Cap. IX (pp. 121-122) 7. Esse cruzamento é visível


no facto de o padre declarar
Uma vez por outra, Blimunda levanta-se mais cedo, antes de comer o pão de que, para os seus inventos,
tem contado com a
todas as manhãs, e, deslizando ao longo da parede para evitar pôr os olhos em proteção de D. João V, que
Baltasar, afasta o pano e vai inspecionar a obra feita, descobrir a fraqueza escon- inclusivamente lhe cedeu a
quinta do duque de Aveiro, em
60 dida do entrançado, a bolha de ar no interior do ferro, e, acabada a vistoria, fica S. Sebastião da Pedreira, para
enfim a mastigar o alimento, pouco a pouco se tornando tão cega como a outra que pudesse continuar a fazer
as suas experiências.
gente que só pode ver o que à vista está. Quando isto fez pela primeira vez e Bal- 8. Blimunda serve-se do seu
tasar depois disse ao padre Bartolomeu Lourenço, Este ferro não serve, tem uma dom (de conseguir ver as
coisas por dentro), para fazer
racha por dentro, Como é que sabes, Foi Blimunda que viu, o padre virou-se a vistoria aos materiais usados
65 para ela, sorriu, olhou um e olhou outro, e declarou, Tu és Sete-Sóis porque vês na construção da passarola e
perceber, assim, as fraquezas/
às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até defeitos da construção.
aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batiza- 9. O batismo do padre salienta
a vidência de Blimunda ao
da estava, que o batismo foi de padre, não alcunha de qualquer um. Dormiram mesmo tempo que reforça a
nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no complementaridade existente
entre ela e Baltasar.
70 céu, Lua onde estás, Sol aonde vais.

315
José Saramago

EXCERTO 3 | Cap. IX (pp. 124-125, 129-130)

Assim nunca chegarei a voar, disse [o padre] em voz cansada, […] assim não
pode voar se lhe falta o éter, Que é isso, perguntou Blimunda, É o onde se sus-
pendem as estrelas, E como se há de ele trazer para cá, perguntou Baltasar, Pelas
artes da alquimia, em que não sou hábil, mas sobre isto não dirão nunca uma
75 palavra, suceda o que suceder, Então como faremos, Partirei breve para a Holan-
da, que é terra de muitos sábios e lá aprenderei a arte de fazer descer o éter do
espaço, de modo a introduzi-lo nas esferas, porque sem ele nunca a máquina
voará, Que virtude é essa do éter, perguntou Blimunda, É ser parte da virtude
geral que atrai os seres e os corpos, e até as coisas inanimadas, se os libertam do
80 peso da terra, para o sol, Diga isso por palavras que eu perceba, padre, Para que a
máquina se levante ao ar, é preciso que o sol atraia o âmbar que há de estar pre-
PROFESSOR
so nos arames do teto, o qual, por sua vez, atrairá o éter que teremos introduzido
dentro das esferas, o qual, por sua vez, atrairá os ímanes que estarão por baixo,
Documento os quais, por sua vez, atrairão as lamelas de ferro de que se compõe o cavername
Est. 106, canto I 85 da barca, e então subiremos ao ar, com o vento, ou com o sopro dos foles, se o
de Os Lusíadas
vento faltar, mas torno a dizer, faltando o éter, falta-nos tudo. […]
(Disponível na brochura A grande tristeza de Baltasar e Blimunda é não haver uma rede que possa ser
Educação Literária, p. 26 –
lançada até às estrelas e trazer de lá o éter que as sustenta, conforme afirma o
Dossiê do Professor)
padre Bartolomeu Lourenço, que vai partir um destes dias e não sabe quando
10. O padre Bartolomeu
Lourenço decide partir para
90 volta. A passarola que parecia um castelo a levantar-se, é agora uma torre em
a Holanda, com o intuito de ruínas, uma babel cortada a meio voo, cordas, panos, arames, ferros confun-
descobrir a forma de fazer
descer o éter do espaço, já didos, nem sequer ficou a consolação de abrir a arca e contemplar o desenho,
que sem ele a passarola não porque já o padre o leva na sua bagagem, amanhã partirá, […].
podia voar.
Deitou o padre Bartolomeu Lourenço a bênção ao soldado e à vidente, eles
11. O padre Bartolomeu revela
ser um homem influente e, 95 beijaram-lhe a mão, mas no último momento se abraçaram os três, teve mais
por isso, tenta interceder
por Baltasar relativamente
força a amizade que o respeito, e o padre disse, Adeus Blimunda, adeus Baltasar,
à pensão de guerra a que este cuidem um do outro e da passarola, que eu voltarei um dia com o que vou bus-
teria direito. Era apelidado,
de forma jocosa, “o Voador”, car, não será ouro nem diamante, mas sim o ar que Deus respira, guardarás a
por ter feito voar balões chave que te dei, e como vão partir para Mafra, lembra-te de vir aqui de vez em
no Paço. No entanto, o seu
projeto é apadrinhado pelo 100 quando ver como está a máquina, podes entrar e sair sem receio, que a quinta
rei D. João V, que lhe cedeu confiou-ma el-rei e ele sabe o que nela está, e tendo dito, montou na mula e
a quinta do duque de Aveiro,
em S. Sebastião da Pedreira. partiu.
É um homem sonhador, que
acredita no progresso e na
evolução da humanidade
e que se revela como o 1. Explique o que foi Bartolomeu Lourenço fazer ao palácio real.
mentor de uma invenção:
construir uma máquina que
permita ao homem voar. 2. Identifique, justificadamente, a alcunha atribuída ao padre.
Demonstra ser um padre
pouco convencional, já que se 3. Refira o sentimento de Bartolomeu Lourenço relativamente à alcunha que lhe foi atri-
interessa por artes ocultas
(travou conhecimento com a buída.
mãe de Blimunda) e profere
afirmações, como “maneta 4. Identifique, comentando o seu valor semântico, os recursos expressivos presentes em
é Deus, e fez o universo”, que
seriam consideradas heresia
“O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará”. (ll. 16-17)
por parte da Igreja. É ainda um
homem persuasivo quando 5. Explique como conseguiu o padre convencer Baltasar a ajudá-lo no seu projeto.
convence Baltasar a participar CD 2
no seu projeto. É persistente e, 6. Considere a estância 106 do canto I de Os Lusíadas, que o seu professor disponibilizará,
por isso, está disposto a partir AI
XA 2
F

para a Holanda para descobrir e a alusão ao “bicho da terra” (l. 32), no terceiro parágrafo do texto.
o segredo do éter.
6.1 Justifique a intertextualidade com Os Lusíadas.

316
Memorial do convento

7. Demonstre de que forma se assiste ao cruzamento entre a primeira e a quarta linhas


de ação.
PROFESSOR
8. Refira-se ao papel de Blimunda na construção da passarola.
12. A relação entre eles
9. Infira a simbologia do epíteto atribuído por Bartolomeu Lourenço a Blimunda.
alicerça-se não só na
profunda amizade que os une
10. Exponha a decisão tomada pelo padre, no excerto 3, apontando as razões para tal. (veja-se que na despedida
prescindiram da formalidade
11. Trace o retrato psicológico de Bartolomeu. a que o estatuto do padre
obrigava e acabam por se
abraçar os três) mas também
12. Caracterize a ligação existente entre Bartolomeu, Blimunda e Baltasar, relacionando-a na confiança mútua. Esta
com os seus próprios nomes. harmonia e forte ligação estão
espelhadas nos seus próprios
nomes, dado começarem
G 13. A expressão sublinhada em “Atravessava o Terreiro do Paço o padre Bartolomeu Lou- todos pela mesma letra do
renço”(l. 1) desempenha a função sintática de alfabeto.
13. [A]
[A] sujeito. [C] complemento do nome. 14. [B]
[B] complemento direto. [D] predicativo do sujeito. 15. [D]
16. [C]
14. No segmento “Estive na guerra quatro anos e a minha terra é Mafra” (ll. 11-12), estão pre-
sentes deíticos
Vídeo
[A] espaciais e temporais. [C] pessoais e espaciais. “Pedra filosofal”,
[B] temporais e pessoais. [D] temporais, pessoais e espaciais. Manuel Freire (5 minutos)

15. No primeiro excerto, a sequência textual predominante é a Oralidade


1.1; 3.1; 4.1; 5.1; 5.2; 5.3;
[A] narrativa. [C] argumentativa. 6.1; 6.2; 6.3
Educação Literária
[B] descritiva. [D] dialogal. 14.7; 15.4

16. Os processos fonológicos ocorridos em STELLA- > *estella>*esterla>estrela são 1.1 A canção versa sobre a
importância do sonho para a
[A] palatalização, sonorização e epêntese. [C] prótese, dissimilação e metátese. evolução e o desenvolvimento
humanos. Sem ele, o Homem
[B] aférese, sonorização e vocalização. [D] paragoge, assimilação e crase. não teria progredido nem
realizado missões como a
descoberta dos mares ou da
superfície lunar.
1.2 Comparação – “como esta
CO M P R E E N S Ã O/ EX P R E SS Ã O O RA L pedra cinzenta / em que me
sento e descanso”.
Metáfora – “que em verde
1. Ouça atentamente a canção “Pedra filosofal”, cantada e oiro se agitam”.
Enumeração – “é tela, é cor,
por Manuel Freire, cujo poema foi escrito por António é pincel, / base, fuste, capitel”.
Gedeão. 1.3 Da mesma forma que
o sujeito lírico afirma que
1.1 Identifique o tema e o assunto da canção. é o sonho que comanda a
vida e que é ele o promotor
1.2 Indique três recursos expressivos presentes no poema. da evolução humana, visível,
por exemplo, em inventos ou
1.3 Demonstre de que forma as palavras de Bartolomeu em manifestações artísticas,
Lourenço, no primeiro excerto, espelham os versos de também o padre Bartolomeu
“Pedra filosofal”, Manuel Freire
declara a importância do
António Gedeão. sonho, afirmando que a
necessidade, aliada à vontade
humana, fez o Homem
2. Tal como em Memorial do convento, na Mensagem, de Fernando Pessoa, a temática do
progredir ao longo dos tempos,
sonho/vontade é evidenciada. levando-o a ambicionar chegar
cada vez mais além.
2.1 Apresente, oralmente, a sua opinião, entre 4 e 6 minutos, sobre a forma como vê re-
tratada esta temática em ambas as obras e sobre a importância que o tratamento
deste tema pode ter na construção da sua identidade enquanto cidadão português. BLOCO INFORMATIVO – p. 378

317
José Saramago

PROFESSOR EDUCAÇÃO LITERÁRIA


Pág. 317
2.1 Poderão ser abordados, O regresso da Holanda e nova fase da construção
entre outros, os seguintes
aspetos: da passarola
− quer Fernando Pessoa quer
Saramago destacam na sua EXCERTO 1 | Cap. XI (pp. 157-160)
obra a importância do sonho,
como força motora capaz de Regressou o padre Bartolomeu Lourenço da Holanda […] e, agora que chegou
levar o homem a superar-se
e a progredir. de terras holandesas, vai tornar a Coimbra, um homem pode ser grande voador,
Mensagem mas é-lhe muito conveniente que saia bacharel, licenciado e doutor, e então,
Foi o sonho, aliado à vontade,
que levou os portugueses
ainda que não voe, o consideram.
a aventurarem-se nos 5 Bartolomeu Lourenço foi à quinta de S. Sebastião da Pedreira, três anos intei-
mares desconhecidos e a
construírem um Império, e ros haviam passado desde que partira […].
serão eles – sonho e vontade Passadas algumas semanas, com todas as disposições, licenças e matricu-
– que poderão resgatar
Portugal do estado de letargia lações necessárias, partiu o padre Bartolomeu Lourenço para Coimbra, […] não
em que se encontra. seria este o caminho se não tivesse de ir [primeiro] à vila de Mafra por lá estarem
Exemplos: “E a nossa grande
raça partirá em busca de uma 10 Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas.
Índia nova, que não existe no
espaço, em naus que são EXCERTO 2 | Cap. XI (pp. 167, 169-171)
construídas daquilo de que
os sonhos são feitos”, “Deus
quer, o homem sonha, a obra
Segurava Baltasar a mula, e Blimunda estava afastada alguns passos, de olhos
nasce”; “Triste de quem vive baixos, com o bioco1 puxado para diante, Bons dias, disseram eles, Bons dias,
em casa, / Contente com o seu
lar, / Sem que um sonho, no disse o padre, e perguntou, Blimunda ainda não comeu, e ela, da sombra maior
erguer de asa, / Faça até mais das roupas, respondeu, Não comi, […].
rubra a brasa / Da lareira
a abandonar!” 15 Diz o padre Bartolomeu Lourenço, […] na Holanda soube o que é o éter, não
Memorial do convento é aquilo que geralmente se julga e ensina, e não se pode alcançar pelas artes da
Foi o sonho do padre,
juntamente com as duas
alquimia, para ir buscá-lo lá onde ele está, no céu, teríamos nós de voar e ainda
mil vontades recolhidas por não voamos, mas o éter, deem agora muita atenção ao que vou dizer-lhes, an-
Blimunda (e que representam
a vontade humana), que levou tes de subir aos ares para ser o onde as estrelas se suspendem e o ar que Deus
a passarola a voar. 20 respira, vive dentro dos homens e das mulheres, Nesse caso, é a alma, concluiu
Exemplos: “Esse gancho que
tens no braço não o inventaste Baltasar, Não é, também eu, primeiro, pensei que fosse a alma, também pensei
tu, foi preciso que alguém que o éter, afinal, fosse formado pelas almas que a morte liberta do corpo, antes
tivesse a necessidade e a
ideia, que sem aquela esta de serem julgadas no fim dos tempos e do universo, mas o éter não se compõe
não ocorre, juntasse o couro das almas dos mortos, compõe-se sim, ouçam bem, das vontades dos vivos.
e o ferro, e também estes
navios que vês no rio, houve 25 […] Disse o padre, Dentro de nós existem vontade e alma, a alma retira-se
um tempo em que não tiveram
velas, e outro tempo foi o da
com a morte, vai lá para onde as almas esperam o julgamento, ninguém sabe,
invenção dos remos, outro mas a vontade, ou se separou do homem estando ele vivo, ou a separa dele a
o do leme, e, assim como o
homem, bicho da terra, se fez morte, é ela o éter, é portanto a vontade dos homens que segura as estrelas, é
marinheiro por necessidade, a vontade dos homens que Deus respira, E eu que faço, perguntou Blimunda,
por necessidade se fará
voador”; “é portanto a vontade 30 mas adivinhava a resposta, Verás a vontade dentro das pessoas, Nunca a vi, tal
dos homens que segura as como nunca vi a alma, Não vês a alma porque a alma não se pode ver, não vias
estrelas, é a vontade dos
homens que Deus respira”. a vontade porque não a procuravas, Como é a vontade, É uma nuvem fechada,
Que é uma nuvem fechada, Reconhecê-la-ás quando a vires, experimenta com
Baltasar, para isso viemos aqui, Não posso, jurei que nunca o veria por dentro,
1
35 Então comigo.
Mantilha ou envoltório
com que as beatas tapam Blimunda levantou a cabeça, olhou o padre, viu o que sempre via, mais iguais
o rosto. as pessoas por dentro do que por fora, só outras quando doentes, tornou a olhar,
disse, Não vejo nada. O padre sorriu, Talvez que eu já não tenha vontade, pro-
cura melhor, Vejo, vejo uma nuvem fechada sobre a boca do estômago. O padre
40 persignou-se, Graças, meu Deus, agora voarei. Tirou do alforge um frasco de

318
Memorial do convento

vidro que tinha preso ao fundo, dentro, uma pastilha de âmbar amarelo, Este
âmbar, também chamado eletro, atrai o éter, andarás sempre com ele por onde
andarem pessoas, em procissões, em autos de fé, aqui nas obras do convento,
e quando vires que a nuvem vai sair de dentro delas, está sempre a suceder,
45 aproximas o frasco aberto, e a vontade entrará nele, E quando estiver cheio, Tem
uma vontade dentro, já está cheio, mas esse é o indecifrável mistério das vonta-
des, onde couber uma, cabem milhões, o um é igual ao infinito, E que faremos
entretanto, perguntou Baltasar, Vou para Coimbra, de lá, a seu tempo, mandarei
recado, então irão os dois para Lisboa, tu construirás a máquina, tu recolherás as
50 vontades, encontrar-nos-emos os três quando chegar o dia de voar, [...].

EXCERTO 3 | Cap. XII (p. 176)


PROFESSOR
Pontualmente escrevera o padre Bartolomeu Lourenço quando se instalou
em Coimbra, notícia só de ter chegado e bem, mas agora viera uma nova carta, Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.5;
que sim, seguissem para Lisboa tão cedo pudessem, que ele, aliviando o estudo, 14.6; 14.7; 14.8; 15.1;
os iria visitar, […]. 15.2; 15.3.

EXCERTO 4 | Cap. XIII (pp. 193-196) 1. O padre tenciona retornar


a Coimbra para prosseguir
55 Quantas vontades recolheste até hoje, Blimunda, perguntou o padre nessa os seus estudos teológicos
e se sagrar doutor.
noite, quando ceavam, Não menos de trinta, disse ela, É pouco, […]. 2. O padre ficou a saber que,
Blimunda, lembra-te de que são precisas pelo menos duas mil vontades, duas antes de subir aos ares, o éter
vive dentro dos homens e das
mil vontades que tiverem querido soltar-se por as não merecerem as almas, ou mulheres, sob a forma de uma
os corpos as não merecerem, […] lembrem-se de que toda esta nossa obra terá nuvem fechada, que mais não
é do que a vontade dos vivos e
60 de ser feita em absoluto segredo, não o podem saber nem parente nem amigo, que se pode separar do homem
amigos mais que nós três não há, e se alguém aí vier com perguntas, dirão que ainda em vida ou na hora
da sua morte.
estão a guardar a quinta por ordem de el-rei, e que perante el-rei o responsável 3. Para que o mundo possa
sou eu, padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, De quê, perguntaram Blimunda evoluir e os projetos se
possam concretizar, torna-se
e Baltasar ao mesmo tempo, De Gusmão, foi assim que passei a chamar-me, imprescindível que os homens
65 por via do apelido de um padre que no Brasil me educou, Bartolomeu Lourenço manifestem vontade de o
fazer. Sem ela, nada acontece
era quanto bastava, disse Blimunda, não me vou habituar a dizer Gusmão, Nem nem se realiza.
precisarás, para ti e Baltasar serei sempre o mesmo Bartolomeu Lourenço, mas 4. Blimunda foi incumbida
de recolher as vontades
a corte e as academias terão de chamar-me Bartolomeu Lourenço de Gusmão, que se desprendessem dos
pois quem, como eu, vai ser doutor em cânones precisa ter um nome que lhe homens (duas mil no total).
Para tal, deveria usar um
70 assente à dignidade, […]. frasco com uma pastilha de
âmbar amarelo que possuía
a faculdade de atrair o éter.
1. Refira o plano do padre Bartolomeu Lourenço após o seu regresso da Holanda. 5. O padre tem esta atitude
porque chegou a temer ter
2. Explicite o que ficou o padre a saber na Holanda sobre o éter. perdido a vontade, quando,
numa primeira tentativa,
3. Apresente uma explicação para a afirmação do padre: “é portanto a vontade dos ho- Blimunda nada viu dentro dele.
Ele tem plena consciência de
mens que segura as estrelas”. (l. 28) que, sem ela, o seu projeto de
voar nunca se concretizaria.
4. Indique a missão incumbida a Blimunda. 6. A adoção de um novo nome
espelha uma sociedade
5. Explique a razão pela qual o padre se persignou e disse “Graças, meu Deus” (l. 40), quan- mesquinha, que valoriza
os títulos em detrimento da
do Blimunda viu uma nuvem fechada sobre a boca do seu estômago. essência do ser humano e que
distingue os seus membros
6. Demonstre de que forma o novo nome de Bartolomeu Lourenço espelha a sociedade em função do seu estatuto.
do seu tempo.

319
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A amizade com Scarlatti e as dúvidas do padre


EXCERTO 1 | Cap. XIV (pp. 215-220)

Já o padre Bartolomeu Lourenço regressou de Coimbra, já é doutor em câno-


nes, […].
Mora o padre cerca do paço, e ainda bem, pois muito o frequenta, [...] vai as-
sistir à lição de música d[a] infanta D. Maria Bárbara […], [el-rei] faz um sinal ao
5 padre para que se junte ao séquito, nem todos se podem gabar destes favores.
Está a menina sentada ao cravo, tão novinha, ainda não fez nove anos […]
e vem de Londres contratado Domenico Scarlatti. […] homem de completa fi-
PROFESSOR
gura, rosto comprido, boca larga e firme, olhos afastados, não sei que têm os
Educação Literária italianos, e então este, em Nápoles nascido há trinta e cinco anos, […].
14.2; 14.3; 14.4; 14.5 10 Terminou a lição, desfez-se a companhia, […] e no salão de música apenas
ficaram Domenico Scarlatti e o padre Bartolomeu de Gusmão. […] Senhor Scar-
1. Trata-se de um músico latti, disse o padre […], não me gabo de saber dessa arte, mas estou que até um
italiano, nascido em Nápoles,
que foi contratado para índio da minha terra, que dela sabe ainda menos do que eu, haveria de sentir-se
ensinar a infanta D. Maria
Bárbara a tocar cravo.
arrebatado por essas harmonias celestes, Porventura não, respondeu o músico,
É um homem com boa figura, 15 porque bem sabido é que há de o ouvido ser educado se quer estimar os sons
“rosto comprido”, “boca larga
e firme” e “olhos afastados” musicais, […] São palavras ponderadas, essas, que emendam as levianas mi-
(l. 8). nhas, é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam
2. O padre começa a duvidar querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade, Porém, para que os
de um dos dogmas mais
importantes da Igreja Católica – homens possam cingir-se à verdade, terão primeiramente de conhecer os erros,
a Santíssima Trindade.
Este dogma defende que,
20 E praticá-los, Não saberei responder à pergunta com um simples sim ou um
apesar de Deus ser uno em simples não, mas acredito na necessidade do erro. […]
essência, é trino em pessoa,
ou seja, Deus é uma unidade Tendes razão, disse o padre, mas, desse modo, não está homem livre de julgar
composta pelo Pai, pelo Filho abraçar a verdade e achar-se cingido com o erro, Como livre também não está de
e pelo Espírito Santo. A razão
para esta dúvida decorre, supor abraçar o erro e encontrar-se cingido com a verdade, respondeu o músico,
por um lado, do facto de 25 e logo disse o padre, Lembrai-vos de que quando Pilatos perguntou a Jesus o que
ter concluído, durante
a conversa com Scarlatti, que era a verdade, nem ele esperou pela resposta, nem o Salvador lha deu, Talvez
Pilatos e Jesus eram iguais. soubessem ambos que não existe resposta para tal pergunta, Caso em que, sobre
Por outro lado, o facto de se
ter sentido da mesma carne esse ponto, estaria Pilatos sendo igual de Jesus, Derradeiramente, sim, […].
e do mesmo sangue de uma
gaivota levou-o a concluir que
EXCERTO 2 | Cap. XIV (pp. 220-223)
participavam todos da mesma
essência de Deus e que,
por isso, Ele só podia ser um […] Veio a viúva do porteiro da maça dizer ao padre que tinha o jantar servido,
e estar presente em cada uma 30 [...]. Desgarrada das suas irmãs, uma gaivota pairou sobre o beiral do telhado
das coisas que criou.
3. Depois de ter ido à
[...] e o padre murmurou, Bendita sejas, ave, e em seu coração achou-se feito da
abegoaria, onde viu a mesma carne e do mesmo sangue, arrepiou-se como se estivesse sentindo que
passarola e conheceu
Baltasar e Blimunda, Scarlatti lhe nasciam penas nas costas, e sumindo-se a gaivota, viu-se perdido num de-
faz uma analogia entre os três serto, Caso em que Pilatos estaria sendo igual de Jesus, isto pensou de repente e
e o mistério da Santíssima
Trindade: o padre, enquanto 35 regressou ao mundo, transido por se sentir nu, esfolado como se tivesse deixado
mentor do projeto, identificar- a pele dentro do ventre da mãe, e então disse em voz alta, Deus é uno.
-se-ia com o Pai; Baltasar,
enquanto executor da vontade Todo esse dia ficou o padre Bartolomeu Lourenço fechado no quarto, gemen-
de Bartolomeu, com o Filho; do, suspirando, […] parecia que estava preparando o seu grande jejum, aguçando
Blimunda, por estar incumbida
de uma missão com contornos novos olhos de entendimento, embora não suspeitasse que coisas haveria mais
transcendentais, com
o Espírito Santo.
40 que entender, depois de haver proclamado a unidade de Deus às gaivotas do Tejo,
supremo arrojo, que seja Deus uno em essência é ponto que nem heresiarcas1

320
Memorial do convento

negam, mas ao padre Bartolomeu Lourenço ensinaram que Deus, se sim é uno 1
Fundador de uma heresia.
em essência, é trino em pessoa, e hoje as mesmas gaivotas o fizeram duvidar. [...]
[…] sentara-se o padre Bartolomeu Lourenço a escrever, Et ego in illo, E eu es-
45 tou nele, quando amanheceu ainda escrevia, era o sermão do Corpo de Deus, […].
EXCERTO 3 | Cap. XIV (pp. 223-225, 230)

Dias passados, estando Bartolomeu de Gusmão na capela real, veio o italiano


falar-lhe. [...] PROFESSOR
[…] Disseram-me, padre Bartolomeu de Gusmão, que por obra dessas mãos se
Oralidade
levantou ao ar um engenho e voou, Disseram a verdade do que então viram, de- 3.1; 4.1; 4.2; 5.1; 5.2; 5.3;
50 pois ficaram cegos para a verdade que a primeira escondeu, Gostaria de entender 6.1; 6.2; 6.3
melhor, Há doze anos que isso foi, desde então a verdade mudou muito, Repito
Nota
que gostaria de entender, Que é um segredo, A essa pergunta responderei que,
Pode dividir-se a turma em
quanto imagino, só a música é aérea, Então iremos amanhã a ver um segredo. [...] pequenos grupos para a
Disse o padre Bartolomeu Lourenço, Não irei revelar o segredo último do voo, realização simultânea do
diálogo argumentativo. Como
55 mas, tal como escrevi na petição e memória, toda a máquina se moverá por obra síntese da atividade, deverá
solicitar-se aos alunos a
de uma virtude atrativa contrária à queda dos graves, se eu largar este caroço apresentação de uma súmula
de cereja, ele cai para o chão, ora, a dificuldade está em encontrar o que o faça dos argumentos das várias
posições.
subir, E encontrou, O segredo descobri-o eu, quanto a encontrar, colher e reunir
é trabalho de nós três, É uma trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito santo, Poderão ser tratados, entre
60 Eu e Baltasar temos a mesma idade, trinta e cinco anos, não poderíamos ser outros, os seguintes aspetos:
− ao longo dos séculos,
pai e filho naturais, isto é, segundo a natureza, mais facilmente irmãos, mas, a religião constituiu-se
sendo-o, gémeos teríamos de ser, ora ele nasceu em Mafra, eu no Brasil, e as como um entrave ao
desenvolvimento e ao
parecenças são nenhumas, Quanto ao espírito, Esse seria Blimunda, talvez seja progresso: veja-se, por
ela a que mais perto estaria de ser parte numa trindade não terrenal, [...]. exemplo, a condenação à
fogueira de Copérnico, por
defender que a Terra girava em
torno do Sol, ou o conjunto de
1. Indique a função e os principais traços caracterizadores da figura de Scarlatti. conhecimentos que, durante
séculos, a Igreja impediu que
fossem divulgados;
2. Explicite a dúvida que começa a surgir no padre, apresentando duas situações que − na atualidade, há
justificam tal facto. investigações científicas
que a Igreja condena, como
a clonagem humana;
3. Explique a simbologia da tríade composta por Blimunda, Baltasar e Bartolomeu, con- − um crente defende ideias
siderando o papel desempenhado por cada um deles na construção da passarola e a incompatíveis com a ciência,
como a crença de que foi Deus
analogia estabelecida por Scarlatti entre eles e a Santíssima Trindade. a conceber o Universo, quando
a ciência defende a teoria do
Big Bang;
− o Vaticano promove a
EXPRESSÃO ORAL investigação científica:
por exemplo, na área da
astronomia;
− ao longo dos séculos, houve
O confronto entre as crenças religiosas e a objetividade da ciência é um tema fraturante várias figuras religiosas com
da sociedade. A obra de Saramago aflora esta questão, mas não esgota a polémica. contributos importantes
na área da ciência: veja-se o
caso de Rogério Bacon, que
1. Estabeleça um diálogo argumentativo (entre 8 e 12 minutos), em que os intervenien- inventou o telescópio;
− um crente consegue
tes assumam um diferente ponto de vista: facilmente conciliar a religião
com a ciência, aceitando, por
š a religião é um entrave ao desenvolvimento científico; exemplo, que a história de
Adão e Eva seja uma metáfora
š o ser humano é um ser religioso, e a religião é compatível com a ciência. do início da humanidade.
Tome uma posição, pesquise informação sobre o tema e planifique a sua intervenção.
Apresente argumentos válidos e exemplos que sustentem a sua tese, seja sucinto na
defesa dela e respeite o princípio da cortesia. BLOCO INFORMATIVO – p. 378

321
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

A recolha de vontades e a doença de Blimunda


EXCERTO 1 | Cap. XV (pp. 242-243)

[…] agora, sim, é que se irão ver as obras maiores do seu destino, quando o
padre Bartolomeu Lourenço chegar à quinta de S. Sebastião da Pedreira e disser,
Blimunda, está Lisboa atormentada de uma grande doença, morrem pessoas
em todas as casas, lembrei-me que não teremos melhor ocasião para recolher
5 as vontades dos moribundos, se as conservam ainda, mas é meu dever avisar-te
de que correrás grandes perigos, não vais se não quiseres, nem eu te obrigaria,
ainda que obrigar-te estivesse na minha mão, Que doença é essa, Dizem que
foi trazida por uma nau do Brasil e que primeiro se manifestou na Ericeira. […]
pelos sinais que dá, é vómito negro ou febre-amarela, o nome importa pouco, o
10 caso é que estão morrendo como tordos, que decides tu, Blimunda. Levantou-se
Blimunda do mocho onde estava sentada, ergueu a tampa da arca e lá de dentro
tirou o frasco de vidro, quantas vontades ali haveria, talvez umas cem, quase
nada para as necessidades, e mesmo assim fora uma longa e custosa caçada,
muito jejum, às vezes perdida num labirinto, onde está a vontade que a não
15 vejo, só vísceras e ossos, a rede agónica dos nervos, o mar de sangue, a comida
pastosa no estômago, o excremento final, Irás, perguntou o padre, Irei, respon-
deu ela, Mas não sozinha, disse Baltasar.

EXCERTO 2 | Cap. XV (pp. 248-249)

Passado um mês, calcularam ter guardado no frasco um milheiro de vonta-


des, força de elevação que o padre supunha ser bastante para uma esfera, com
20 o que segundo frasco foi entregue a Blimunda. Já em Lisboa muito se falava
daquela mulher e daquele homem que percorriam a cidade de ponta a ponta,
sem medo da epidemia, ele atrás, ela adiante, sempre calados, nas ruas por onde
andavam, nas casas onde não se demoravam, ela baixando os olhos quando
tinha de passar por ele, […].
25 Quando a epidemia terminou, já iam rareando os casos mortais e de repente
passara-se a morrer doutra coisa, havia, bem contadas, duas mil vontades nos
frascos. Então Blimunda caiu doente. Não tinha dores, febre não se lhe sentia,
apenas uma extrema magreza, uma palidez profunda que lhe tornava trans-
parente a pele. Jazia na enxerga, de olhos sempre fechados, noite e dia, porém
30 não como se dormisse ou repousasse, mas com as pálpebras crispadas e uma
expressão de agonia no rosto. Baltasar não saía de junto dela, a não ser para
preparar a comida [...]. O padre Bartolomeu Lourenço, sombrio, sentava-se no
mocho, e aí ficava horas. De vez em quando parecia rezar, mas nunca ninguém
pôde compreender as palavras que murmurava nem a quem as dirigia. Deixou
35 de os ouvir em confissão, […]. Mas, olhando Blimunda, consumida e retirada do
mundo, o padre mordia as unhas, arrependia-se de a ter mandado às instâncias
vizinhas da morte com tanta continuidade que a sua própria vida teria de pa-
decer, como se estava observando, essa outra tentação de passar para o lado de
lá, sem nenhuma dor, apenas como quem desiste de se segurar às margens do
40 mundo e se deixa afundar.

322
Memorial do convento

EXCERTO 3 | Cap. XV (pp. 250-254) 1


Depois de o segredo ter
Muitas vezes durante a doença, se doença foi, se não foi apenas um longo sido divulgado e de se ter
estabelecido a relação entre
regresso da própria vontade, refugiada em confins inacessíveis do corpo, muitas os quatro, Scarlatti trouxe
vezes veio Domenico Scarlatti, primeiro apenas para visitar Blimunda, informar- um cravo para a abegoaria,
-se das melhoras que tardavam, depois demorando-se a conversar com Sete- onde muitas vezes passava
45 -Sóis, e um dia retirou o pano de vela que cobria o cravo1, sentou-se e começou a tarde a tocar, enquanto
os trabalhos da passarola
a tocar, branda, suave música que mal ousava desprender-se das cordas feridas decorriam.
de leve, […]. Porventura seria esta a medicina que Blimunda esperava, ou, dentro 2
Lugar alto onde se guarda
dela, o que ainda estaria esperando alguma coisa, […]. Não esperaria Blimunda alguma coisa.
que, ouvindo a música, o peito se lhe dilatasse tanto, um suspiro assim, como
PROFESSOR
50 de quem morre ou de quem nasce, debruçou-se Baltasar para ela, temendo que
ali se acabasse quem afinal estava regressando. Nessa noite, Domenico Scarlatti Educação Literária
ficou na quinta, tocando horas e horas, até de madrugada, já Blimunda estava 14.2; 14.3; 14.4; 14.5

de olhos abertos, corriam-lhe devagar as lágrimas, se aqui estivesse um médico


1. Blimunda caiu doente,
diria que ela purgava os humores do nervo ótico ofendido, talvez tivesse razão, perdendo momentaneamente
55 talvez as lágrimas não sejam mais que isso, o alívio duma ofensa. a sua própria vontade, ficando
apática e num estado de
Durante uma semana, todos os dias, sofrendo o vento e a chuva pelos cami- letargia, provavelmente por
nhos alagados de S. Sebastião da Pedreira, o músico foi tocar duas, três horas, ter atingido um estado
de extrema exaustão, causado
até que Blimunda teve forças para levantar-se, […]. Uma manhã, tendo aliviado pelo confronto com visões
o mau tempo, desceram à cidade, […]. terríveis, e por ter estado
constantemente em contacto
60 O padre Bartolomeu Lourenço não estava em casa, […]. Enfim, lá pelo meio- com a morte.
-dia apareceu o padre, emagrecido por outra espécie de doença por outras visões, 2. O padre considerava-se
responsável pelo estado de
e, contra o seu costume desmazelado de traje, como se dormisse vestido. Ven- Blimunda, por a ter incumbido
do-os ali, à porta da casa, sentados num poial2, cobriu a cara com as mãos, mas de recolher vontades junto
dos moribundos e, por isso,
logo as retirou, e foi para eles como se tivesse acabado de ser salvo de um grande sentia-se com remorsos
65 perigo, não este que parecia pelas primeiras palavras que disse, Só tenho esta- e arrependido.
3. Blimunda recupera
do à espera de que Baltasar viesse para me matar, julgaríamos que temeu pela progressivamente graças
sua própria vida, e não é verdade, Não se faria justiça mais justa contra mim, à música do cravo tocada
por Scarlatti. Esta situação
Blimunda, se tivesses morrido, O senhor Escarlate sabia que eu estava melhor, poderá justificar-se pelo facto
Não o quis procurar, e quando me procurou ele, inventei pretextos para não o de a música ter a faculdade
de despertar emoções no
70 receber, fiquei à espera do meu destino, O destino chega sempre, disse Baltasar, ser humano. Ora, estando
não ter morrido Blimunda foi meu e nosso bom destino, e agora que faremos, Blimunda num estado de
letargia, a música poderá
[…] se enfim se concluiu o nosso trabalho, qual será o destino dele e de nós, pa- ter funcionado como um
dre Bartolomeu Lourenço. O padre tornou-se mais pálido, olhou em redor como estimulante para resgatar a
vontade que estaria “refugiada
se temesse que alguém estivesse ouvindo, depois respondeu, Terei de informar em confins inacessíveis
do corpo” (l. 42), fazendo-a
75 el-rei de que a máquina está construída, mas antes haveremos de experimentá- regressar à vida.
-la, não quero que tornem a rir-se de mim, como há quinze anos fizeram, agora 4. Por causa das dúvidas que o
voltem para a quinta, breve lá irei. começaram a assaltar acerca
dos dogmas da Igreja Católica,
[...] Deite-nos a sua bênção, padre, Não posso, não sei em nome de que Deus o padre recusa-se a abençoar
a deitaria, abençoem-se antes um ao outro, é quanto basta, pudessem ser todas Baltasar e Blimunda, por já
não saber “em nome de que
80 as bênçãos como essa. Deus” (l. 78) o faria. Por outro
lado, quando propõe que eles
se abençoem um ao outro,
afirmando que “pudessem
1. Infira as razões que justificam o estado de Blimunda após a sua missão. ser todas as bênçãos como
essa” (ll. 79-80), o padre
2. Explicite, justificadamente, o estado de espírito do padre perante a doença de Blimunda. acaba por sugerir que, mais
do que em qualquer religião,
3. Esclareça, justificadamente, a importância de Scarlatti para a cura de Blimunda. a humanidade poderá atingir
a plenitude se se deixar reger
pelo amor.
4. Justifique as últimas palavras do padre. (excerto 3)

323
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

O voo da passarola
EXCERTO 1 | Cap. XVI (pp. 260-261)

O padre Bartolomeu Lourenço entrou violentamente na abegoaria, vinha pá-


lido, lívido, cor de cinza, como um ressuscitado que já fosse apodrecendo, Te-
mos de fugir, o Santo Ofício anda à minha procura, querem prender-me, onde
estão os frascos. Blimunda abriu a arca, retirou umas roupas, Estão aqui, e Bal-
5 tasar perguntou, Que vamos fazer. O padre tremia todo, mal podia sustentar-se
de pé, Blimunda amparou-o, Que faremos, repetiu, e ele gritou, Vamos fugir na
máquina.
EXCERTO 2 | Cap. XVI (pp. 272-273)

Estão os três voadores à proa da máquina, vão na direção do poente, […].


É Mafra, além, grita Baltasar, […]. Passam velozmente sobre as obras do con-
10 vento, mas desta vez há quem os veja, gente que foge espavorida, gente que se
ajoelha ao acaso e levanta as mãos implorativas de misericórdia, gente que atira
pedras, o alvoroço toma conta de milhares de homens, quem não chegou a ver
duvida, quem viu, jura e pede o testemunho do vizinho, mas provas já ninguém
as pode apresentar porque a máquina afastou-se na direção do sol, [...].
EXCERTO 3 | Cap. XVI (pp. 274-276)

15 O sol está pousado no horizonte do mar, […] está a despedir-se, adeus, até
amanhã, se houver amanhã para os três nautas aéreos que tombam como uma
ave ferida de morte, […]. Mas de súbito Blimunda solta-se de Baltasar, a quem
convulsa se agarrara quando a máquina precipitou a descida, e rodeia com os
braços uma das esferas que contêm as nuvens fechadas, as vontades, duas mil
20 são mas não chegam, cobre-as com o corpo, como se as quisesse meter dentro
de si ou juntar-se a elas. A máquina dá um salto brusco, [...], suspende-se por
um segundo, hesita, depois recomeça a cair, mas menos depressa, e Blimunda
grita, Baltasar, Baltasar, não precisou chamar três vezes, já ele se abraçara com
a outra esfera, fazia corpo com ela, Sete-Luas e Sete-Sóis sustentando com as
25 suas nuvens fechadas a máquina que baixava, agora devagar, tão devagar que
mal rangeram os vimes quando tocou o chão, só bandeou para um lado, […].
Onde estamos, perguntou Blimunda, […]. Estamos em tão grande perigo
como se não tivéssemos chegado a sair da quinta, se ontem não nos encontra-
ram, encontram-nos amanhã, Mas este lugar onde estamos, como se chama,
30 Todo o lugar da terra é antecâmara do inferno, umas vezes vai-se morto a ele,
outras vai-se vivo e a morte é depois que vem, Por enquanto ainda estamos vi-
vos, Amanhã estaremos mortos.
EXCERTO 4 | Cap. XVI (pp. 278-279)

[...] era o padre com um ramo inflamado que pegava fogo à máquina, já a
cobertura de vime estalava, e de um salto Baltasar pôs-se de pé, foi para ele,
35 e deitando-lhe os braços à cintura puxou-o para trás, mas o padre resistia, de
modo que Baltasar o apertou com violência, atirou-o ao chão, calcou a pés o
archote, enquanto Blimunda batia com o pano de vela as chamas que tinham

324
Memorial do convento

alastrado ao mato e agora, aos poucos, se deixavam apagar. Vencido e resigna-


do, o padre levantou-se. Baltasar cobria com terra a fogueira. Mal conseguiam
40 ver-se no escuro. Blimunda perguntou em voz baixa, num tom neutro, como
se conhecesse de antemão a resposta, Por que foi que deitou fogo à máquina, e
1
Depois de terem regressado
Bartolomeu Lourenço respondeu, no mesmo tom, como se estivesse à espera da
a Mafra, Baltasar passou
pergunta, Se tenho de arder numa fogueira, fosse ao menos nesta. Afastou-se a ser mais um entre os
para as moitas que ficavam da banda do declive, viram-no baixar-se rapida- milhares de trabalhadores
45 mente, e, olhando outra vez, já lá não estava, alguma necessidade urgente do nas obras do convento.

corpo, se ainda as tem um homem que quis deitar fogo a um sonho. O tempo
PROFESSOR
passava, o padre não reaparecia. Baltasar foi buscá-lo. Não estava. Chamou por
ele, não teve resposta. Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.8;
EXCERTO 5 | Cap. XVI (280-281) 15.3

Mal dormiram nessa noite. O padre Bartolomeu Lourenço não voltou. Ao ama-
1. O padre estava aterrorizado
50 nhecer, nasceria o sol daí a pouco, Blimunda disse, Se não estenderes a vela, se por saber que o Santo Ofício
não tapares bem tapadas as bolas de âmbar, a máquina vai-se sozinha, nem pre- andava à sua procura.
2. As palavras do padre
cisa de quem a governe, talvez fosse melhor deixá-la ir, […] e Baltasar respondeu, enfatizam as situações de
[…] a máquina, onde está, fica, e foi estender a vela embreada, cobrir de sombra terror a que qualquer pessoa
estava sujeita no século XVIII
o âmbar, mas não ficou satisfeito, podia a vela rasgar-se, ser afastada pelo vento. por causa do Santo Ofício.
55 Com a faca cortou ramos das moitas altas, cobriu com eles a máquina, [...] quem Assim, quando afirma que,
muitas vezes, o homem é
de longe olhasse naquela direção não veria mais que um amontoado vegetal no confrontado com o inferno
meio de um espaço de mato rasteiro, […]. ainda em vida, está na verdade
a referir-se às fogueiras a
Levaram dois dias a chegar a Mafra, [...]. Andava procissão na rua, todos dan- que eram sujeitos tantos
do graças pelo prodígio que fora Deus servido fazer, mandando voar por cima condenados pela Inquisição.
3. A ridicularização é visível
60 das obras da basílica o seu Espírito Santo. no facto de os habitantes de
Mafra que testemunharam o
EXCERTO 6 | Cap. XVII (pp. 302, 304-305) voo terem acreditado que se
tratava de uma aparição do
Meados de dezembro, voltava Baltasar para casa ao fim do dia1, quando viu Espírito Santo, com o intuito
de abençoar as obras do
Blimunda, que, como quase sempre, o viera esperar ao caminho, porém, havia convento. Este episódio serve
nela uma agitação e uma tremura não costumadas, […] O senhor Escarlate está o propósito de demonstrar a
fragilidade e a falsidade de
em casa do senhor visconde, que terá ele vindo cá fazer, […]. muitas situações que a Igreja
65 Saiu o músico a visitar o convento e viu Blimunda, disfarçou um o outro dis- Católica considerava como
milagres, constituindo assim
farçou, que em Mafra não haveria morador que não estranhasse, e estranhando uma crítica aos dogmas da
não fizesse logo seus juízos muito duvidosos, ver a mulher do Sete-Sóis conver- Igreja.
4. A passarola constitui-se
sando de igual com o músico que está em casa do visconde, que terá ele vindo cá como um bem em prol do
fazer, ora veio ver as obras do convento, para quê se não é pedreiro nem arqui- desenvolvimento humano, ao
passo que o convento é apenas
70 teto, para organista ainda o órgão nos falta, isso a razão há de ser outra, Vim-te um símbolo da vaidade e da
dizer, e a Baltasar, que o padre Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo, que é prepotência de um rei. Para
a construção da máquina
em Espanha, para onde tinha fugido, dizem que louco, e como não se falava de voadora foram necessárias
apenas três pessoas, movidas
ti nem de Baltasar, resolvi vir a Mafra saber se estavam vivos. pela vontade e pelo sonho;
em contraste, as obras
do convento obrigaram a
1. Esclareça por que razão o padre entrou violentamente na abegoaria. um trabalho hercúleo e de
sofrimento por parte de
milhares de trabalhadores.
2. Justifique a penúltima fala do padre, no final do terceiro excerto.
Ambas as construções
são finalizadas, mas só
3. Explique de que forma o narrador se serve do voo da passarola para ridicularizar os a do convento subsistiu,
dogmas da Igreja. situação que traduz, por
um lado, o poder da Igreja
e o absolutismo do rei e, por
4. Estabeleça um contraste entre a construção da passarola e a do convento, explicitan- outro, a opressão do povo.
do a sua simbologia.

325
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

O desencontro e o encontro
EXCERTO 1 | Cap. XXIII (p. 454)
1
Acontecer casualmente.
2
Tostar. […] Baltasar disse, Amanhã vou ao Monte Junto ver como está a máquina,
3
Fender, gretar. passaram seis meses desde a última vez, como estará aquilo, Vou contigo, Não
4
Pequena povoação, vale a pena, saio cedo, se não tiver muito que remendar estarei cá antes da noite,
lugarejo. melhor é ir agora, depois são as festas da sagração, se adrega1 de chover ficam
5 os caminhos piores, Tem cuidado, Descansa, a mim não me assaltam ladrões
PROFESSOR nem mordem lobos, Não é de lobos ou ladrões que falo, Então, Falo da máquina,
Dizes-me sempre que me acautele, eu vou e venho, mais cuidados não posso
Educação Literária
14.2; 14.3; 14.4; 14.5;
ter, Tem-nos todos, não te esqueças, Sossega, mulher, que o meu dia ainda não
14.6; 14.7; 14.8; 15.1; chegou, Não sossego, homem, os dias chegam sempre.
15.2; 15.3
Gramática EXCERTO 2 | Cap. XXIII (pp. 462-464)
17.1
10 Meteu-se já Baltasar pelos contrafortes do Monte Junto, procura o quase invi-
1. A premonição da tragédia sível caminho que por entre mato o levará à máquina de voar, […]. O sol brilhava
por parte de Blimunda é
visível não só nos conselhos com força, o ar estava quente. Por cima da asa, pisando cautelosamente para
que dá a Baltasar para que não ofender o revestimento de vime, Baltasar entrou na passarola. Algumas tá-
tenha cuidado na vistoria que
irá fazer à passarola, mas, buas do convés estavam apodrecidas. Teria de substituí-las, trazer os materiais
sobretudo, quando afirma 15 necessários, demorar-se aqui uns dias, ou então, só agora lhe ocorria a ideia,
“Não sossego, homem, os dias
chegam sempre” (l. 9). desmontar a máquina peça por peça, transportá-la para Mafra escondê-la de-
2. O reencontro de Blimunda baixo duma parga de palha, ou num dos subterrâneos do convento, se pudesse
com Baltasar pode ser visto
como o coroar de um esforço: combinar com os amigos mais chegados, confiar-lhes metade do segredo, con-
uma recompensa pelo sigo mesmo se espantava de nunca ter pensado nesta solução, quando voltasse
facto de Sete-Luas, durante
nove anos, ter procurado 20 falaria com Blimunda. Ia distraído, não reparou onde punha os pés, de repen-
incansavelmente Sete-Sóis. te duas tábuas cederam, rebentaram, afundaram-se. Esbracejou violentamente
Ao mesmo tempo, o facto de
esse reencontro ter ocorrido para se amparar, evitar a queda, o gancho do braço foi enfiar-se na argola que
na sétima vez em que a
personagem passava por
servia para afastar as velas, e, de golpe, suspenso em todo o seu peso, Baltasar
Lisboa sugere a renovação e a viu os panos arredarem-se para o lado com estrondo, o sol inundou a máquina,
completude da ligação entre
os dois, já que Blimunda se
25 brilharam as bolas de âmbar e as esferas. A máquina rodopiou duas vezes, des-
une novamente a Baltasar, pedaçou, rasgou os arbustos que a envolviam, e subiu. Não se via uma nuvem
recolhendo a sua vontade.
no céu.
3. Foi a voz que Blimunda
parecia ouvir que a aconselhou
a manter-se em jejum. Se EXCERTO 3 | Cap. XXV (pp. 487-488)
assim não fosse, Blimunda
não poderia ter recolhido a Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar. Conheceu todos os cami-
vontade de Baltasar e ficar nhos do pó e da lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangen-
permanentemente ligada
a ele. 30 te e assassina, dois nevões de que só saiu viva porque ainda não queria morrer.
4. Apesar de, fisicamente, Tisnou-se2 de sol como um ramo de árvore retirado do lume antes de lhe chegar
Baltasar e Blimunda se virem
obrigados ao afastamento, a hora das cinzas, arregoou-se3 como um fruto estalado, foi espantalho no meio
dado que Baltasar morre de searas, aparição entre os moradores das vilas, susto nos pequenos lugares e
queimado na fogueira,
espiritualmente o amor e a nos casais4 perdidos. Onde chegava, perguntava se tinham visto por ali um ho-
união entre os dois mantém- 35 mem com estes e estes sinais, a mão esquerda de menos, e alto como um solda-
-se, pelo facto de Blimunda
ter acolhido dentro de si a do da guarda real, barba toda e grisalha, mas se entretanto a rapou, é uma cara
vontade de Baltasar, o que
sugere que, enquanto viver,
que não se esquece, pelo menos não a esqueci eu, e tanto pode ter vindo pelas
Sete-Luas estará sempre estradas de toda a gente, ou pelos carreiros que atravessam os campos, como
acompanhada de Sete-Sóis.
pode ter caído dos ares, num pássaro de ferro e vimes entrançados, com uma

326
Memorial do convento

40 vela preta, bolas de âmbar amarelo, e duas esferas de metal baço que contêm o
maior segredo do universo, ainda que de tudo isto não restem mais que destro-
ços, do homem e da ave, levem-me a eles, que só de lhes pôr as mãos em cima
os reconhecerei, nem preciso olhar. Julgavam-na doida, mas, se ela se deixava
ficar por ali uns tempos, viam-na tão sensata em todas as mais palavras e ações
45 que duvidavam da primeira suspeita de pouco siso. Por fim já era conhecida de
terra em terra, a pontos de não raro a preceder o nome de Voadora, por causa da
estranha história que contava.
EXCERTO 4 | Cap. XXV (pp. 492-493)

Encontrou-o. Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima. Vinha do sul,
dos lados de Pegões. Atravessou o rio, quase noite na última barca que aprovei-
50 tava a maré. Não comia há quase vinte e quatro horas. Trazia algum alimento
no alforge, mas, de cada vez que ia levá-lo à boca, parecia que sobre a sua mão
outra mão se pousava e uma voz lhe dizia, Não comas, que o tempo é chegado.
Sob as águas escuras do rio, via passar os peixes a grande profundidade, cardu-
mes de cristal e prata, longos dorsos escamosos ou lisos. A luz interior das casas
55 coava-se através das paredes, difusa como um farol no nevoeiro. Meteu-se pela
Rua Nova dos Ferros, virou para a direita na igreja de Nossa Senhora da Oliveira,
em direção ao Rossio, repetia um itinerário de há vinte e oito anos. Caminhava
no meio de fantasmas, de neblinas que eram gente. Entre os mil cheiros fétidos
da cidade, a aragem noturna trouxe-lhe o da carne queimada. Havia multidão
60 em S. Domingos, archotes, fumo negro, fogueiras. Abriu caminho, chegou-se às
filas da frente, Quem são, perguntou a uma mulher que levava uma criança ao
colo, De três sei eu, aquele além e aquela são pai e filha que vieram por culpas
de judaísmo, e o outro, o da ponta, é um que fazia comédias de bonifrates e se
chamava António José da Silva, dos mais não ouvi falar.
65 São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distin-
guem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez
por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo.
E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem.
Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas,
PROFESSOR
70 se à terra pertencia e a Blimunda.
5. A circularidade é visível
1. Demonstre de que forma Blimunda parece antever a desgraça que se vai abater sobre no facto de a terceira linha de
ação finalizar praticamente
Baltasar. da mesma forma como se
inicia: Blimunda (re)encontra
2. Explicite a simbologia subjacente ao facto de Blimunda ter reencontrado Baltasar ao Baltasar num auto de fé no
Rossio.
fim de nove anos, na sétima vez que passou por Lisboa, considerando que o número
6. “Teria de substituí-las,
nove traduz o coroar de um esforço e o sete a renovação e a totalidade. trazer os materiais
necessários, demorar-se aqui
3. Revele a importância da voz que Blimunda parecia ouvir quando chegou a Lisboa, ten- uns dias, ou então, só agora
lhe ocorria a ideia, desmontar
do em conta o desfecho da história. a máquina peça por peça,
transportá-la para Mafra
4. Evidencie a espiritualização do amor de Baltasar e Blimunda. escondê-la debaixo duma
parga de palha, ou num dos
5. Demonstre a circularidade da terceira linha de ação. subterrâneos do convento,
se pudesse combinar com
os amigos mais chegados,
G 6. Transcreva, do segundo excerto, um exemplo de discurso indireto livre. confiar-lhes metade do
segredo” (ll. 14-18).
7. Indique duas outras palavras portuguesas que mantenham o mesmo étimo de “noite” 7. Noturno, notívago.
(l. 3), sabendo que esta palavra provém do étimo latino NOCTE-.

327
José Saramago

INFORMAR

Caracterização das personagens


e relação entre elas
Em Memorial do convento Saramago desloca o centro de interesse
para o que permanecia nas margens da história de Mafra: o esforço da
sua construção percebido como labor de milhares de homens, tirados
à força da sua terra, separados de famílias, reduzidos à condição de
5 escravos e que pagavam frequentemente com as suas próprias vidas.

O autor cria uma pequena galeria de homens-trabalhadores: Baltasar,


Francisco Marques, José Pequeno, João Anes e outros. As suas vidas
e os seus destinos são típicos; o que não é típico é individualizá-los
dessa maneira, identificando-os claramente, e ao seu trabalho, como
10 a verdadeira força construtora e criadora “do mundo e das verdades

que o sustentam”. Feitos “heróis”, em termos do romance histórico do


séc. XIX, esses personagens são ainda mais atípicos no seu realismo:
defeituosos, feios, ásperos, às vezes violentos.
Caso diferente apresenta o personagem Blimunda. Blimunda é da-
15 quelas figuras femininas que têm no romance de Saramago uma for-

te presença, desempenhando o papel de “desencadeadoras de ação”


e cuja importância é, como diz o autor, “motora”. Blimunda, além
de introduzir a perspetiva feminina no texto, serve também de veí-
culo para os elementos do maravilhoso. É ela que possui os poderes
20 sobrenaturais que consistem na capacidade de, quando em jejum,

ver “por dentro” das pessoas e objetos. Além disso caracterizam-na


Sete-Sóis e Sete-Luas, in José um excecional poder percetivo, de intuição e compreensão da complexidade
Santa-Bárbara, Vontades –
uma leitura do memorial
do mundo, qualidades que o próprio narrador denuncia como inverosímeis.
do convento, Lisboa, Blimunda aprendeu as coisas sobre a vida e a morte, sobre o pecado e o amor
Editorial Caminho, 2001. 25 “na barriga da mãe”, onde esteve “de olhos abertos”. Esta figura inesquecível
constitui um exemplo perfeito do personagem ex-cêntrico, nele se combinando
o realismo de uma protagonista popular com o fantástico e o fictício.
O padre Bartolomeu Lourenço é outro personagem ex-cêntrico, em contraste
com o clero da época: um pregador e padre devoto mas também um académico
30 cheio de dúvidas, que procura um Deus uno e indivisível, e um inventor, que se
atreve a construir uma máquina voadora. Com o padre Bartolomeu entramos no
grupo de personagens históricos, representados no romance pelo rei D. João V,
a rainha D. Maria Ana Josefa, os seus filhos, Domenico Scarlatti e outras figuras
que aparecem de passagem. Como no romance histórico tradicional, o padre
35 Bartolomeu e Domenico Scarlatti, personagens menos familiares e de menor
peso histórico, entram diretamente na ação, inter-relacionando-se com os per-
sonagens populares inventados, como Baltasar e Blimunda. O autor faz com que
ambos os grupos se encontrem e falem, mas isso não deixa de caber dentro dos
limites do verosímil. O ponto de vista que se afasta do tradicional é reservado
40 para os grandes vultos históricos: o rei D. João V e a rainha. De certa maneira, o
par real de Saramago [exprime] o espírito da época: o excesso, a riqueza, a cor-
rupção e até a sexualidade reprimida e subordinada ao falso código cerimonioso
e moral-religioso. Mas, no processo, o rei e a rainha chegam a ser desprovidos,

328
Memorial do convento

por um lado, da sua “realeza”, por outro, de qualquer grandeza histórica. Na sua PROFESSOR
45 versão da História, o autor marginaliza-os deliberadamente. A imagem da vida
real permanece sempre em contraste de carga negativa com a vida dos verdadei- Leitura
7.3; 8.1
ros heróis do romance: no amor, no casamento, no parto e até na morte.
Educação Literária
Helena Kaufman, “A metaficção historiográfica de José Saramago”, Colóquio/Letras, n.˚ 120, 14.7; 15.1; 15.2; 16.1
Lisboa, abril-junho de 1991, pp. 130-131 (com supressões).
1. A relação de Baltasar
1. Explique o contraste existente entre o par fictício e o par histórico da obra, referindo- e de Blimunda pauta-se
pelo amor profundo e
-se ao seu valor simbólico. verdadeiro: efetivou-se sem
os formalismos do
casamento; manifesta-se
Dimensão simbólica a todo o instante;
perdura além da morte.
Contrariamente, a relação do
TEXTO A rei e da rainha caracteriza-
-se pelo formalismo e pelo
Cremos não ser alheio a esta ideia de constante renovação, bem como à elei- convencionalismo. Nesta
ção de Baltasar como o herói representante de muitos anónimos marginalizados relação está ausente
a intimidade, a cumplicidade
pelas páginas das nossas Histórias, o facto de o simbólico número sete fazer e a pureza do sentimento –
parte não só do seu nome/alcunha, como também do seu trânsito pela vida de a rainha sonha com outros
homens, e o rei dorme com
5 que o narrador nos dá conta. outras mulheres.
Atentemos, pois, nas possíveis ilações que podemos extrair do significado Através do contraste
entre o par fictício e o par
cabalístico1 deste número, principalmente se combinado com o Sol e com a Lua: histórico da obra, o autor
pretende realçar a nobreza de
cada semana se renova após a passagem dos seus sete dias; cada período lunar sentimentos e atitudes das
dura o mesmo número de dias, fechando os quatro períodos o ciclo de vinte e classes mais desfavorecidas.
Poderá também evidenciar a
10 oito dias que constantemente será renovado. Ora, sendo este último número o opressão política e religiosa
que se obtém pela soma dos sete primeiros números não é difícil aceitar que a que estavam sujeitas
estas classes, já que os dois
sete evidencia uma ideia de mudança, de renovação constante após o final de amantes se veem forçados a
um ciclo. Por outro lado, a ideia de totalidade do universo em movimento é ob- separar-se fisicamente após
a morte de Baltasar.
tida pela soma do número quatro, símbolo da terra com os seus pontos cardeais,
15 e do três, símbolo do céu e da Santíssima Trindade.
Assim, se o sete associado ao sol, considerado como manifestação divina, 1
Oculto.
apenas parcialmente explica a importância da alcunha que ao herói é atribuída,
não podemos deixar de considerar que Baltasar surge sempre em íntima cone-
xão com Blimunda Sete-Luas, sendo, pois, por intermédio da relação com a sim-
20 bologia deste outro astro que o herói e a sua morte adquirem um significado
pleno. É que, se o facto de a lua desaparecer durante algum tempo, reaparecendo
sempre depois, nos permite fazer deste astro a metáfora da passagem da morte à
vida, a verdade é que podemos estender esta simbologia à etapa final do trajeto
do herói, na medida em que, depois de desaparecer nos céus levado pela passa-
25 rola é a Blimunda Sete-Luas quem cabe reencontrá-lo na sua sétima passagem
por Lisboa. Repetindo um itinerário de há vinte e oito anos (sete x quatro), fecha
o ciclo da narrativa e da vida do herói cuja vontade recolhe, assim lhe perpe-
tuando a “vida” até que, noutros espaços e noutros tempos, um outro narrador,
se não o mesmo, a fará reaparecer, ressuscitada por sonhos de outras vidas tam-
30 bém esquecidas por aqueles que só dos grandes mantêm viva a memória.
Ana Paula Arnaut, Memorial do convento. História, ficção e ideologia, Coimbra,
Fora do Texto, 1996, pp. 81-82.
TEXTO B
“A passarola, o desejo de voar, representa a ânsia de liberdade contra a opres-
são simbolizada pelo convento”, diz Mário Ventura.
Fernando Venâncio, A luz e o sombreado, Porto, Campo das Letras, 2000, p. 62.

329
José Saramago

PROFESSOR 1. De acordo com a leitura dos textos da página anterior, estabeleça, no seu caderno,
a correspondência entre os elementos da coluna A e a simbologia expressa na coluna B.
1.
[A] – [6]
Coluna A Coluna B
[B] – [8]
[C] – [5] [A] Três [1] Símbolo do final de um ciclo
[D] – [1]
[B] Quatro [2] Símbolo da opressão
[E] – [7]
[F] – [3] [C] Sete [3] Metáfora da passagem da morte à vida
[G] – [4]
[H] – [2] [D] Vinte e oito [4] Símbolo da Liberdade

[E] Sol [5] Símbolo de mudança e de renovação

[F] Lua [6] Símbolo do céu e do dogma nuclear da Igreja Católica

[G] Passarola [7] Metáfora da manifestação divina

[H] Convento [8] Símbolo da terra

O tempo histórico e o tempo da narrativa


TEXTO A
[Em Memorial do convento] conjugam-se dois tempos à volta dos quais a
ação se cumpre: o tempo que se evoca e o tempo da produção do próprio dis-
curso romanesco.
No primeiro, evidenciaremos os processos de representação do real, onde a
5 capacidade descritiva de Saramago se destaca na apresentação dos espaços e na
reflexão sobre os ambientes. No romance, a descrição é demorada, atende aos
pormenores mínimos, perde-se nas oscilações labirínticas do narrador enquan-
to personagem dos dois tempos, baseia-se numa rebuscada adjetivação e em
longas enumerações.
10 O narrador compraz-se em demonstrar uma postura irreverente no modo
como olha o passado e o evoca. Ora, é esta postura que nos remete para o segun-
do tempo que mencionámos: o tom frequentemente irónico e até sarcástico do
narrador apropria-se do passado histórico e, parodiando-o, inverte-lhe a leitura
ideológica. Aqui, surpreendemo-nos também com a própria paródia do discur-
15 so que ecoa inusitadamente devido aos contextos em que se insere. O discurso
do narrador é, pois, antiépico. Ao assumir um posicionamento de contrapoder,
pretende desmascarar prioritariamente o presente português. O passado histó-
rico é, portanto, terreno fértil para a ironia deste narrador que recorre múltiplas
vezes a comentários valorativos, a juízos e ao tom moralístico.
Teresa Azinheira e Conceição Coelho, Uma leitura de Memorial do convento de José Saramago, Lisboa,
Bertrand Editora, 1995, pp. 49-50 (com supressões).

TEXTO B
O tempo no romance é um tempo calendarizado, com datas precisas.
[A]pós a promessa do rei e a escolha do local para a edificação do complexo
palácio – basílica – convento, sobre que passaram alguns anos, temos o iní-
cio das obras e a bênção da primeira pedra assentada pelo próprio rei, a 16 de

330
Memorial do convento

5 novembro de 1717. Depois de mais alguns anos de trabalhos, D. João V decide


ampliar o convento e necessariamente a basílica, e marca a inauguração desta,
sem que nada esteja terminado, para o dia do seu quadragésimo primeiro ani-
versário, 22 de outubro de 1730.
Estes dois marcos cronológicos delimitam, na diegese, o princípio e o fim
10 do relato que diz respeito à construção do convento, mas não esgotam a ma-
téria diegética. Há coisas muito mais importantes para o narrador, como seja o
tempo da construção da passarola e do voo, este mais vivido que cronometra-
do, e o tempo, coincidente em parte com o anterior, mas ultrapassando-o, em
que Blimunda e Baltasar viveram juntos o seu amor: ela tinha 19 anos e ele 26
15 quando se uniram. Viveram alguns anos em Lisboa e em Mafra por duas vezes
alternadamente, até ao desaparecimento de Baltasar com a máquina. Sabemos
pelo narrador que Blimunda o procurou durante nove anos, um longo e dolo-
roso período em que espaço e tempo deixaram de ter significado para ela, se
confundem na sua mente, para não haver mais que a crua realidade que Baltasar
20 desapareceu.
Maria Joaquina Nobre Júlio, Memorial do convento de José Saramago: subsídios para uma leitura,
Lisboa, Replicação, 1999, pp. 105-106 (com supressões).

A história que se faz e refaz TEXTO INÉDITO

É no século XIX que o passado passa a ser sistematicamente convocado pelos


escritores, que o tomam, quase sempre, como referência positiva ou exemplar.
É o caso de Alexandre Herculano no conto intitulado “A abóbada” ou de Eça de
Queirós, no romance póstumo, publicado com o título A ilustre casa de Ramires.
5 Embora de forma diferente, as duas obras convocam acontecimentos ocorridos
na Idade Média, nela sobressaindo a humildade honrada de Mestre Afonso Do-
mingues ou a valentia dos Ramires do início da nacionalidade (respetivamente),
em contraste com as hesitações dos seus descendentes do Portugal oitocentista.
Mas nem sempre o passado serve como referência edificante. No caso de
10 Memorial do convento, por exemplo, passa-se algo de muito diferente. O século
XVIII recriado por Saramago é essencialmente um tempo de obscurantismo e
injustiça social, sem lugar para a vidência de Blimunda nem para o amor puro e
total que a une a Baltasar. Ditada por um voto do rei, a construção do convento
custa o esforço e a vida a muitos homens do povo, mobilizados para uma em-
15 presa gigantesca de que não beneficiam.
Em qualquer um dos casos apontados, a história não representa uma rea-
lidade estática. Pelo contrário: é o resultado de uma perspetiva. Na literatura
como na vida, a história é uma construção dinâmica. A Idade Média convocada
por Herculano ou por Eça não coincide com a mesma época quando ela é re- PROFESSOR
20 criada por historiadores ou mesmo por outros romancistas. O mesmo sucede
1. O tempo histórico é aquele
com o século XVIII que serve de pano de fundo ao romance de Saramago. Antes que é evocado pela ação e
do Memorial do convento havia um outro século XVIII. Tal como sucede com que se circunscreve a uma
determinada época. No caso
todas as outras épocas do passado, também essa vai continuar a ser objeto de de Memorial do convento, a
reinvenção. ação situa-se no século XVIII,
no reinado de D. João V.
José Augusto Cardoso Bernardes.
O tempo da narrativa diz
respeito ao tempo de duração
da ação: 28 anos, desde 1711
1. Estabeleça a diferença entre tempo histórico e tempo da narrativa em Memorial do até 1739.
convento, considerando a leitura que fez dos últimos três textos.

331
CONSOLIDAR Memorial do convento

O TÍTULO – MEMORIAL DO CONVENTO


š Resgate do esquecimento dos verdadeiros obreiros do convento
š Homenagem ao povo (listagem de nomes de A a Z).
š Construção que resulta da promessa feita pelo rei, caso a rainha engravidasse.
š Epopeia de um povo − enaltecimento da coragem e do esforço do povo português
e denúncia do sofrimento e dos sacrifícios por que teve de passar.

AS LINHAS DA AÇÃO
Primeira linha
š Promessa de edificação de um convento por D. João V.
Segunda linha
š Construção do convento pelo povo.
Terceira linha
š História de amor de Baltasar e Blimunda.
Quarta linha
š Sonho de Bartolomeu Lourenço de construção da passarola.

O TEMPO HISTÓRICO E O TEMPO DA NARRATIVA


Tempo histórico Tempo da narrativa
š Século XVIII A ação decorre durante 28 anos.
š Reinado de D. João V
1711 1717 1724 1729 1730 1739
š 1711-1739
Início da narração: Bênção da Voo da Casamento de D. José Sagração do Condenação
– Promessa de D. João V; primeira pedra passarola. com Mariana Vitória e convento de de Baltasar
– Encontro de Baltasar da basílica. da infanta Bárbara com Mafra. à fogueira.
e Blimunda. D. Fernando.

VISÃO CRÍTICA
š Megalomania do rei.
š Má gestão financeira.
š Falta de produtividade do reino.
š Opressão do povo pelos poderosos.
š Perseguição religiosa.
š Hipocrisia religiosa.
š Ignorância do povo.
š Corrupção da Justiça.
š Ausência de valores (adultério, incumprimento de votos de castidade, assassínios, ...).

332
CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS/RELAÇÃO ENTRE ELAS

D. João V Personagem histórica, que reinou em Portugal de 1706 a 1750. Casado com D. Maria Ana Josefa, não se coibiu
de ter relações adúlteras, das quais resultaram vários filhos bastardos. É o protótipo do rei absolutista,
megalómano, prepotente, caprichoso e displicente com a gestão das finanças. Sente-se apavorado com a ideia
da morte e, por isso, antecipa a inauguração do convento, fazendo recair sobre o povo uma maior opressão.

D. Maria Personagem histórica, de origem austríaca, casa com D. João V em 1708 e, durante alguns anos, revela
Ana Josefa dificuldades em engravidar. Para que a rainha engravide, garantindo a sucessão, o rei promete edificar
o convento de Mafra. Negligenciada pelo marido, torna-se extremamente devota e refugia-se em sonhos
libidinosos.

Povo Personagem coletiva que desempenha o papel de herói da obra, ainda que possa assumir contornos de anti-
-herói, sobretudo pelas características físicas que são apontadas a alguns dos seus membros – marrecos,
zarolhos, manetas –, facto que acaba por valorizar ainda mais a sua importância. São os homens anónimos
que Saramago pretende imortalizar (embora alguns deles, como Manuel Milho ou Francisco Marques, surjam
individualizados). Ainda que ignorantes, são os verdadeiros obreiros da construção do convento. São o espelho
da opressão, do sofrimento, do sacrifício e da superação humana.

Baltasar Personagem fictícia, embora haja registos de que viveu realmente em Mafra a família dos Sete-Sóis. Foi
soldado na Guerra da Sucessão de Espanha, onde perdeu a mão esquerda; foi o executor do projeto do
padre Bartolomeu Lourenço e, mais tarde, trabalhou nas obras de edificação do convento. Morre às mãos
da Inquisição, queimado numa fogueira. É um homem simples, determinado, destemido e leal.

Blimunda Personagem fictícia, ainda que possa ser baseada numa figura real da época*. Apesar de mulher, revela-se um
elemento ativo quer na relação que mantém com Baltasar quer na construção da passarola. Em jejum, possui
o dom de ver as pessoas por dentro, mas perde temporariamente essa capacidade quando muda o ciclo lunar.
Blimunda procura incessantemente por Baltasar, durante nove anos, tornando-se guardiã da sua vontade
quando ele morre. É astuta, destemida, persistente e pouco convencional para a época (sobretudo, no que
respeita à relação amorosa).

Bartolomeu Personagem histórica, de origem brasileira. Sob a proteção de D. João V, terá mesmo feito voar um balão
Lourenço no paço. Na obra, surge como frade oratoriano, doutor em leis por Coimbra, funcionário da Corte e mentor
do projeto da passarola. Chega a pôr em causa os dogmas da Igreja; é perseguido pela Inquisição, mas foge
e morre, louco, em Espanha. É resiliente, de trato fácil, curioso, ambicioso, sonhador e visionário.

Domenico Personagem histórica, de origem italiana. Convidado por D. João V para ser o professor de música da infanta
Scarlatti D. Maria Bárbara e para assumir as funções de mestre da capela real. Bartolomeu Lourenço acaba por lhe
confiar o segredo da passarola e, por isso, ele torna-se uma presença habitual na abegoaria. É ele que, através
da sua música, consegue curar Blimunda quando esta entra num estado de letargia. É fiel, sensível e sonhador.

š D. João V vs. D. Maria Ana Josefa relação convencional e fria * Sobre o facto de Blimunda
poder ser baseada numa figura
š D. João V vs. Povo opressor/oprimidos real, sugere-se a leitura de mais
um testemunho de Charles
š D. João V vs. Bartolomeu Lourenço vs. Domenico Scarlatti proteção Fréderic de Merveilleux in Figuras
da ficção (coord. Carlos Reis),
š Baltasar vs. Blimunda amor verdadeiro e profundo
Coimbra, Centro de Literatura
š Baltasar vs. Blimunda vs. Bartolomeu Lourenço relação de amizade verdadeira (trindade Portuguesa, 2006, p. 47 (vide
brochura Educação Literária,
terrestre)
p. 27 – Dossiê do Professor).
š Baltasar vs. Blimunda vs. Bartolomeu Lourenço vs. Domenico Scarlatti relação de lealdade
(partilha do segredo e do sonho)

333
CONSOLIDAR Memorial do convento

DIMENSÃO SIMBÓLICA

Sonho/vontade Força motora que conduz à evolução e ao progresso.

Passarola/convento Metáfora da liberdade e do poder do Homem vs. opressão e poder de Deus.

Símbolo da união e da plenitude. O primeiro representa o dia, a força física, o trabalho. A segunda, a noite,
Sete-Sóis/Sete-Luas a magia, o transcendente, o mundo onírico. A união de ambos simboliza a perfeição, visível não só nas
alcunhas, como no número sete e nas três sílabas que compõem o seu nome.

Três Representa a ordem espiritual e intelectual. É o número perfeito, a expressão da totalidade.

Quatro Símbolo da Terra com os seus pontos cardeais. Representa a totalidade do espaço e do tempo.

Sete Símbolo de mudança, de renovação, de totalidade.

Nove Número da procura, da gestação, simboliza o coroar do esforço.

Vinte e oito Símbolo do final de um ciclo.

LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA


Intertextualidade
Ao longo da obra, Saramago estabelece relações de intertextualidade com provérbios, com
a Bíblia ou com outros autores da literatura portuguesa, nomeadamente, Camões, Padre An-
tónio Vieira e Fernando Pessoa. Essas alusões, paródias ou citações funcionam quase sempre
como ponto de partida para ironizar e ridicularizar outras situações que estão a ser relatadas.

Pontuação
Os únicos sinais de pontuação usados por Saramago são o ponto final e a vírgula. É através
desta e do uso da maiúscula que o autor marca as falas em discurso direto, e é o contexto que
ajuda o leitor a perceber quando se trata de uma declaração, de uma exclamação ou de uma
interrogação.

Reprodução do discurso no discurso


Ao longo da obra, o discurso do narrador evidencia um conjunto de outras vozes que não a
sua (polifonia). É o que acontece, por exemplo, quando assume a voz de Sebastiana de Jesus,
quando se faz passar por um guia moderno do convento de Mafra ou quando se esconde por
detrás do fidalgo que relata os acontecimentos relacionados com o cortejo e com o casamento
real a que João Elvas não tem acesso.
São visíveis também nas suas palavras os vários modos de relato do discurso:

Citação “ave-maria cheia de graça”. (cap. I)

Discurso direto “então ouve Baltasar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os olhos com os punhos
cerrados, implora, Dá-me o pão, Baltasar, dá-me o pão, por alma de quem lá tenhas” (cap. VIII)

Discurso indireto “Veio a viúva do porteiro da maça dizer ao padre que tinha o jantar servido”. (cap. XIV)

Discurso indireto livre “Pontualmente escrevera o padre Bartolomeu Lourenço quando se instalou em Coimbra, notícia só de ter
chegado e bem, mas agora viera uma nova carta, que sim, seguissem para Lisboa tão cedo pudessem”.
(cap. XII)

334
VERIFICAR
PROFESSOR
1. Classifique, no seu caderno, as afirmações seguintes como verdadeiras ou como
falsas. Corrija as falsas.
Apresentação
a. O objetivo de Saramago com o seu Memorial é homenagear a figura de D. João V pela
Síntese da Unidade 6.2
grandiosidade que este conferiu ao Império durante o seu reinado.
Educação Literária
b. O Memorial do convento é constituído por quatro linhas de ação, que funcionam de 14.3; 14.6; 14.7; 15.1;
forma autónoma e independente. 15.2

1. a. F − O objetivo é
c. É estabelecida uma relação antitética entre os pares D. João V/D. Maria Ana Josefa resgatar da sombra aquele
e Baltasar/Blimunda. que Saramago considera
ser o verdadeiro herói e
d. Blimunda percebe que Baltasar era o homem ideal para si, depois de o ter visto por protagonista da construção
do convento: o povo.
dentro na primeira vez que o encontrou, num auto de fé. b. F − As linhas de ação
entrecruzam-se a cada passo,
e. Blimunda, na última vez que avista Baltasar, recolhe a vontade dele, porque não quer conferindo unidade à obra.
que Baltasar suba até Deus. c. V
d. F − Foi Sebastiana de Jesus
f. O papel de Blimunda na construção da passarola é irrelevante. quem telepaticamente deu
essa indicação à filha.
g. Blimunda, Baltasar e Scarlatti formam, no entender do padre Bartolomeu, uma trin- e. F − Blimunda recolhe a
dade terrestre. vontade de Baltasar para que a
união entre eles se mantenha,
enquanto ela viver.
h. O músico acaba por ter um papel preponderante na construção da passarola.
f. F − O papel de Blimunda
foi extremamente
i. O episódio do transporte da pedra de Pero Pinheiro para a varanda assume contor- importante, pois, sem a
nos heroicos pelo facto de ela ter sido trazida para Mafra numa nau da Índia. recolha das vontades por ela
protagonizada, a passarola
j. Identifica-se o tempo da narrativa do Memorial do convento com todo o século XVIII. nunca teria voado.
g. F − É no entender de
k. As prolepses existentes na obra referem-se a acontecimentos relacionados com as Scarlatti que Baltasar,
Blimunda e Bartolomeu
personagens e as situações que se reportam ao tempo do autor. Lourenço formam uma
trindade terrestre.
l. Uma das instituições mais veementemente criticadas por Saramago na obra é a h. F − É na cura de Blimunda
Igreja. que Scarlatti tem um papel
preponderante.
m. No seu romance, Saramago denuncia sobretudo a ignorância e a mesquinhez do i. F − O episódio assume
contornos heroicos pela força
povo, em contraste com a clarividência dos poderosos. hercúlea que os homens
tiveram de despender, pelo
n. O facto de a ação decorrer em 28 anos não tem nenhum significado simbólico. sofrimento causado e pela
superação humana.
o. A passarola funciona como um símbolo da vontade, da ânsia pela liberdade e do j. F − O tempo da narrativa
progresso. é o que decorre de 1711 a 1739.
k. V
p. A cumplicidade de Baltasar e de Blimunda é também visível nos seus nomes. l. V
m. F − Denuncia sobretudo a
q. No romance, para além da intertextualidade estabelecida com outras obras literá- opressão do povo em face dos
rias, são frequentes as alusões bíblicas e as citações de provérbios. caprichos dos poderosos.
n. F − Constitui-se como um
r. O estilo de Saramago distingue-se pelo facto de, na sua escrita, ele não usar qual- ciclo perfeito e acabado (7x4)
e corresponde ao tempo
quer sinal de pontuação. da duração da ação.
o. V
s. O discurso indireto livre é um modo de relato do discurso frequente em Memorial do
p. V
convento. q. V
r. F − Saramago usa apenas
dois sinais de pontuação:
o ponto final e a vírgula.
s. V

335
José Saramago
AVA L I A R Memorial do convento
GRUPO I
1
Espadeiros.
2
Instrumento cortante com
Apresente as suas respostas de forma bem estruturada.
lâmina curva.
3
Litígio, questão judicial. A
4
Chicana, burla.
5
Leia o texto.
Evasivas, rodeios.
Dizem que o reino anda mal governado, que nele está de menos a justiça,
PROFESSOR e não reparam que ela está como deve estar, com sua venda nos olhos, sua
balança e sua espada, que mais queríamos nós, era o que faltava, sermos os
tecelões da faixa, os aferidores dos pesos e os alfagemes1 do cutelo2, constan-
Ficha 5 temente remendando os buracos, restituindo as quebras, amolando os fios,
Ficha de Avaliação – e enfim perguntando ao justiçado se vai contente com a justiça que se lhe
Unidade 6.2
faz, ganhado ou perdido o pleito3. Dos julgamentos do Santo Ofício não se
Apresentação
Soluções Ficha fala aqui, que esse tem bem abertos os olhos, em vez de balança um ramo de
de Avaliação oliveira, e uma espada afiada onde a outra é romba e com bocas. Há quem
10 julgue que o raminho é oferta de paz, quando está muito patente que se trata
GRUPO I
do primeiro graveto da futura pilha de lenha, ou te corto, ou te queimo, por
Educação Literária isso é que, havendo que faltar à lei, mais vale apunhalar a mulher, por suspei-
14.3; 14.4; 14.6; 14.7;
14.8, 14.9; 16.2 ta de infidelidade, que não honrar os fiéis defuntos, a questão é ter padrinhos
que desculpem o homicídio e mil cruzados para pôr na balança, nem é para
1. O narrador critica a
atuação/aplicação da 15 outra coisa que a justiça a leva na mão. Castiguem-se lá os negros e os vilões
justiça, pelo facto de não ser
equitativa. Os poderosos são
para que não se perca o valor do exemplo, mas honre-se a gente de bem e de
constantemente poupados bens, não lhe exigindo que pague as dívidas contraídas, que renuncie à vin-
por serem “gente de bem
e de bens” (ll. 16-17), por terem gança, que emende o ódio, e, correndo os pleitos, por não se poderem evitar
“padrinhos” (l. 13) ou dinheiro de todo, venham a rabulice4, a trapaça, a apelação, a praxe, os ambages5, para
para fintar a justiça. No lado
oposto, os mais desprotegidos 20 que vença tarde quem por justa justiça deveria vencer cedo, para que tarde
são frequentemente perca quem deveria perder logo. É que, entretanto, vão-se mungindo as tetas
condenados, quanto mais
não seja para servirem de do bom leite que é o dinheiro, requeijão precioso, supremo queijo, manjar de
exemplo: “para que não se meirinho e solicitador, de advogado e inquiridor, de testemunha e julgador, se
perca o valor do exemplo”
(l. 16). falta algum é porque o esqueceu o padre António Vieira e agora não lembra.
2. No “Sermão de Santo Cap. XVI (pp. 255-256)
António”, para demonstrar que
“os homens se comem uns aos
outros”, Padre António Vieira
serve-se do exemplo de um 1. Identifique a crítica explícita feita pelo narrador neste excerto.
homem com problemas com
a justiça, enumerando um 2. Justifique a intertextualidade com Padre António Vieira.
conjunto de pessoas que tiram
proveito disso, tais como o
advogado, o solicitador ou 3. Identifique, comentando o seu valor semântico, o recurso expressivo presente em
o inquiridor. Como Saramago
também pretende denunciar “venham a rabulice, a trapaça, a apelação, a praxe, os ambages”. (l. 19)
a corrupção dos que gravitam
em torno da justiça, evoca,
assim, António Vieira, para
melhor fundamentar a sua
posição e para imprimir ao
discurso um tom jocoso.
3. A enumeração presente no
segmento serve para acentuar
todo o tipo de subterfúgios
usados pelos poderosos para
evitarem ou fazerem tardar
a aplicação da justiça.

336
B
Leia o texto.

Subitamente, com uma ideia, palpou por sobre o bolso a carteira onde na
véspera guardara a carta do Dâmaso… “Eu t’arranjo!”, murmurou ele. E aba-
lou, desceu a rua da Trindade […]. Era a redação d’“A Tarde”. […]
Ao ver o Ega (um íntimo do Gouvarinho) ali na redação […], Neves cravou
5 nele os olhos tão curiosos, tão inquietos, que o Ega apressou-se a dizer:
− Nada de política, negócio particular… […].
− Então que é?
− É isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi ofendido aí por um sujei-
to muito conhecido. Nada de interessante. Um parágrafo imundo na “Corneta
10 do Diabo”, por uma questão de cavalos…
O Maia pediu-lhe explicações. O outro deu-as, chatas, medonhas, numa
carta que quero que vocês publiquem.
A curiosidade do Neves flamejou:
– Quem é?
15 – O Dâmaso.
O Neves recuou de assombro:
– O Dâmaso!? Ora essa! Isso é extraordinário! Ainda esta tarde jantei com
ele! Que diz a carta?
– Tudo. Pede perdão, declara que estava bêbado, que é de profissão um
20 bêbado…
O Neves agitou as mãos com indignação:
– E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Dâmaso, nosso amigo
PROFESSOR
político! […] Isso não pode ser! É absurdo! Aí há história… Deixa ver a carta.
E, mal relanceara os olhos ao papel, à larga assinatura floreada, rompeu 4. Com este episódio,
25 num alarido: Eça pretende denunciar a
corrupção, o compadrio e a
– Isto não é o Dâmaso nem é letra do Dâmaso!... Salcede! Quem diabo é parcialidade da imprensa. Tal
Salcede? Nunca foi o meu Dâmaso! é visível no facto de o Neves se
ter recusado a publicar a carta
– É o meu Dâmaso – disse o Ega. – O Dâmaso Salcede, um gordo… de Dâmaso, por pensar que se
O outro atirou os braços ao ar: tratava de um amigo político.
Contudo, depois de se desfazer
30 – O meu é o Guedes, homem, o Dâmaso Guedes! Não há outro! Que diabo, o equívoco, não teve qualquer
pudor em mandar publicar,
quando se diz o Dâmaso é o Guedes!... na primeira página, a referida
Respirou com alívio: carta, uma vez que até poderia
ser uma forma de se vingar de
– Irra, que me assustaste! Olha agora neste momento, com estas coisas alguém com quem no passado
de Ministério, uma carta dessas escrita pelo Guedes… Se é o Salcede, bem, tivera atritos.
35 acabou-se! Espera lá… Não é um gordalhufo, um janota que tem uma pro- 5. Este episódio insere-se
na crónica de costumes, já
priedade em Sintra? Isso! Um maganão que nos entalou na eleição passada, que se pretende denunciar
a falta de ética da imprensa.
fez gastar ao Silvério mais de trezentos mil réis… Perfeitamente, às ordens… Articula-se com a intriga
Ó Pereirinha, olhe aqui o sr. Ega. Tem aí uma carta para sair amanhã, na pri- principal, uma vez que o que
está em causa é a publicação
meira página, tipo largo… pelo jornal A Tarde de uma
Eça de Queiroz, Os Maias: episódios da vida romântica (fixação de texto Helena Cidade Moura), carta de Dâmaso Salcede a
admitir que é bêbado. Trata-se
Lisboa, Livros do Brasil, 28.a ed., s/d, cap. XV, pp. 571-573.
de uma vingança, pois Salcede
publicara uma missiva
injuriosa no jornal Corneta
4. Explicite a intenção crítica de Eça presente neste excerto. do Diabo sobre os amores
de Carlos e Maria Eduarda.
5. Insira este episódio na estrutura da obra, relacionando-o com a intriga principal.

337
José Saramago
AVA L I A R Memorial do convento
GRUPO II

Responda às questões. Nas respostas aos itens de escolha múltipla, selecione, no seu
caderno, a opção correta.

A corrupção e os portugueses

D
e todas as formas de fraude, a corrupção é a ato prejudicial à instituição a que pertence para obter
mais abordada nos noticiários, a mais sentida vantagens noutra a que, inconfessadamente, está asso-
pelos cidadãos, provavelmente a mais estuda- ciado). Habitualmente considera-se que as fases do ato
da. As informações quantificadas internacionais confir- de corrupção se verificam em momentos próximos (ex.
5 mam que é uma das mais frequentemente detetadas. 30 pedido, seguido de favor, seguido de pagamento), mas
O que cada um de nós entende por corrupção (as- as “portas giratórias” entre as instituições políticas e
sumido espontaneamente, sem uma reflexão precisa e as empresas (passagens de indivíduos de umas para as
uma crítica das evidências), provavelmente capta ape- outras, ora num sentido, ora noutro) podem criar hiatos
nas uma parte daquela realidade complexa. Admitindo de anos entre os favores e os pagamentos. Também os
10 que os comportamentos éticos são, ainda, o “normal” 35 conluios, as barreiras nacionais à investigação policial,
nas sociedades organizadas, “a corrupção é uma prá- as famigeradas offshores, as redes internacionais de
tica ou comportamento desviante” que será diferente “cidadãos acima de qualquer suspeita”, as organizações
conforme se tome como coordenadas de referência secretas e o crime económico organizado fazem prolife-
as normas legais, as normas éticas, as práticas econó- rar as ramificações ora subterrâneas ora legais, e o bran-
15 micas equitativas, a aceitabilidade social, a cidadania 40 queamento de capitais.
partilhada, ou outra. Frequentemente associada à ideia Não é mais aceitável considerar a corrupção como
de que “o poder corrompe”, surge, para muitos, como uma “criminalidade sem vítima”. Ela atinge o “cidadão-
específico das instituições públicas, mas esse mesmo -contribuinte”, o “cidadão-consumidor”, o “cidadão-
comportamento desviante também surge nas institui- -ecológico”, o “cidadão-democrata”, enfim, o cidadão.
20 ções privadas. 45 A corrupção está associada à criminalidade transnacio-
Abarca o suborno (doação/receção a priori para in- nal. Todas as “atividades-sombra” ilegais (do tráfico de
fluenciar um ato), as gratificações ilegais (similar ao an- armas à droga, do contrabando à prostituição, por exem-
terior, mas a posteriori, como recompensa), a extorsão plo) exigem a corrupção para existirem e expandirem-se.
(exigência indevida de um pagamento para a realização Carlos Pimenta, Visão, edição online de 29 de abril de 2009
25 de um ato), e o “conflito de interesses” (realização de um (consultado em agosto de 2016).

PROFESSOR
1. A corrupção é uma realidade muito complexa porque
GRUPO II
[A] envolve quantias avultadas de dinheiro.
Leitura
7.3 [B] pode assumir facetas muito variadas.
Gramática [C] dificilmente é detetada.
17.1; 18.2; 18.3; 19.3;
19.4 [D] ninguém a consegue explicar.

1. [B]
2. A corrupção é uma prática ou comportamento desviante
2. [B]
3. [A] [A] por ser uma realidade muito rara.
4. [C]
5. [D] [B] porque, em norma, os indivíduos têm um comportamento ético.
6. [C] [C] dado o conjunto muito alargado de cidadãos que a ela recorre.
7. [D]
[D] uma vez que se insere no código ético das sociedades modernas.

338
3. Segundo o autor do artigo, os atos de corrupção
PROFESSOR
[A] são prejudiciais ao cidadão.
[B] restringem-se ao suborno e a gratificações ilegais. 8. Político é o homem do
Estado, é aquele que tem por
[C] não se podem associar a “atividades-sombra”. obrigação gerir os destinos da
cidade, e por extensão, do país.
[D] são específicos das instituições públicas.
9. Empréstimo.
10. Valor genérico.
4. A expressão sublinhada em “Frequentemente associada à ideia de que ‘o poder
corrompe’" (ll. 16-17) desempenha a função sintática de GRUPO III
[A] sujeito. [C] complemento do nome.
Escrita
[B] complemento direto. [D] complemento oblíquo. 10.1; 11.1; 12.1; 12.2; 12.3;
12.4; 13.1

5. Os termos “tráfico de armas”, “droga”, “contrabando” e “prostituição” estabelecem Sugere-se o plano seguinte:
com a expressão “atividade-sombra” um mecanismo de coesão lexical por Introdução – A imagem
apresenta quatro homens,
[A] reiteração. aparentemente de negócios
(pelas roupas que vestem),
[B] substituição – sinonímia. de costas, que vão
negociando/trocando,
[C] substituição – meronímia/holonímia. às escondidas, dinheiro
e documentos.
[D] substituição – hiponímia/hiperonímia.
Desenvolvimento – Poderão
ser realçados os seguintes
6. No segmento “Não é mais aceitável considerar a corrupção como uma ‘criminalida- aspetos:
de sem vítima’.” (ll. 41-42), estamos perante a modalidade − o aspeto digno que
aparentam (estão vestidos
[A] epistémica (valor de probabilidade). [C] apreciativa. de fato, alinhados e de pé)
vs. os atos cometidos de forma
[B] epistémica (valor de certeza). [D] deôntica (valor de permissão). oculta;
− a cor cinzenta, conotada
com a ilegalidade da situação
7. O último parágrafo do texto é predominantemente bem como com a necessidade
de sigilo que esta acarreta;
[A] narrativo. [C] explicativo. − a similitude dos homens
que pode representar uma
[B] descritivo. [D] argumentativo. situação que já se tornou
generalizada.
8. Explique o significado literal da palavra “político”, sabendo que deriva do termo Conclusão – A imagem
coaduna-se, assim, de forma
grego POLIS, que significa ‘cidade’. exemplar e extremamente
representativa, com a prática
9. Classifique o vocábulo “offshores” (l. 36) quanto ao processo de formação de palavras. da corrupção, um ato ilegal,
feito na sombra, e que
consiste na atribuição de
10. Indique o valor aspetual do complexo verbal presente em “A corrupção está asso- uma recompensa em troca de
favores prestados.
ciada à criminalidade transnacional”. (ll. 45-46)

GRUPO III

Faça uma apreciação crítica, entre 150 e 200 palavras, da


imagem apresentada, atendendo aos seguintes aspetos:
š descrição sucinta da imagem;
š análise e significado da pose/atitudes;
š simbologia das cores;
š pertinência da imagem em termos simbólicos;
š comentário valorativo;
š possíveis relações com os textos dos grupos I e II.

339
RELACIONAR A variedade do sentimento amoroso
E
C O amor é um tema presente de forma transversal em toda a literatura portuguesa
produzida ao longo dos séculos. Tratado nas suas mais diversas vertentes, permite ao
O leitor não só contactar com a vivência do sentimento de um ponto de vista social mas
R também com a reflexão em torno da sua dimensão individual. Trata-se de um tema
D que alberga uma diversidade de manifestações que permite olhares diversos que tanto

A
identificam pontos de continuidade como aspetos contrastivos.

R
Poesia trovadoresca – cantigas de amigo e cantigas de amor
Na poesia trovadoresca, o amor é um tema dominante que se explora sob diferentes óticas:
š o amor popular/burguês (a simplicidade amorosa): presente nas cantigas de amigo, é um
sentimento amoroso expresso por uma jovem apaixonada e que se associa a manifestações de alegria,
tristeza, preocupação, saudade ou ira, em função da situação amorosa vivida com o amigo;
os sentimentos apresentados são, aparentemente, mais espontâneos e realistas do que
os encontrados nas cantigas de amor;
š o amor cortês: sentimento amoroso do trovador por uma mulher, normalmente casada, de uma
classe social superior, a quem este deve prestar homenagem; trata-se de um sentimento idealizado
correspondência
e marcado pelo sofrimento amoroso (“coita de amor”) dada a indiferença ou a não corres
amorosa
amoros “senhor”;
sa daa “se amorosa, pelo que
s nhor”; segue um conjunto de regras codificadas, como a vassalagem amor
o sentimento
sent
n im
nt men to é mais convencional do que o presente nas cantigas de amigo.
nto

Rimas, de Luís de Camões


O amor é um tema maior na lírica camoniana. O poeta reflete sobre as experiências amorosas e sobre a
própria essência do sentimento amoroso, relacionando-o com a mulher amada, seja esta real ou imaginada,
e considerando-o um Bem superior. No âmbito deste tema, destacam-se os seguintes aspetos:
š o amor neoplatónico: sentimento idealizado que o poeta experimenta por uma mulher ideal,
inatingível, que pode existir apenas na imaginação do poeta ou que, sendo real, é um reflexo terreno
da beleza divina; o amor eleva o espírito do poeta, permitindo-lhe o acesso ao Bem e à realidade
extraterrena e está cristalizado na mulher amada;
š as contradições do amor: o poeta vive a divisão entre o amor físico, feito de sentidos, e o metafísico,
feito de espírito; o amor é visto como sentimento capaz de provocar as maiores felicidades mas
também sofrimento e dor incalculáveis.

340
por Carla Marques

Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco


Construída sob o signo do sentimento amoroso, a obra ilustra o confronto entre os direitos do coração e as
convenções sociais da época, abordando perspetivas diferentes do amor:
š o amor-paixão: o amor é apresentado como um destino que define a vida e a morte e é associado
a Teresa, Simão e Mariana; os enamorados experimentam-no de forma desenfreada, profunda e
Sécs. incondicional e, na impossibilidade de o realizarem, lutam por ele, indo além das próprias forças
XIII-XIV e resistindo a todo o tipo de obstáculos; o sentimento amoroso traz consigo sofrimento e infelicidade,
pois contraria as regras sociais; a força do amor permite a remissão até dos erros do passado,
conseguindo transformar aqueles que amam; incapaz de vencer os obstáculos que se lhe colocam,
o amor é vencido pela desgraça e leva os amantes à destruição, à morte;
š o amor-renúncia: amor que leva a personagem (Mariana) a renunciar à própria felicidade em nome da
felicidade alheia, indo esta ao ponto de abdicar da própria vida, passando a viver exclusivamente para
o outro.

Os Maias, de Eça de Queirós


Um dos temas presentes n’Os Maias é o amor, sentimento que é perspetivado, por um lado, na ótica da
caracterização da alta sociedade lisboeta do séc. XIX e, por outro, como um elemento trágico. Estes aspetos
Séc. podem ser observados em alguns dos tópicos associados ao tratamento deste sentimento na obra:
XVI
š o amor adúltero: em estreita relação com a crónica de costumes,
mas também presenteente nas intrigas principal e secundária,
o adultério está representado
presentado por diferentes personagens e
consiste na práticaa da infidelidade conjugal; na obra, aparece
associado sobretudodo às mulheres casadas da alta sociedade
lisboeta que, assim,
m, colocam em causa as convenções sociais;
š o amor-paixão: sentimento
entimento avassalador, que leva as
personagens a desafiar
safiar a sociedade e as suas convenções;
š o amor incestuoso:o: sentimento de características
altamente excecionais
nais na obra, surge ligado aos dois
irmãos, protagonistas
stas da intriga principal, e te terá
erá

consequências trágicas
ágicas para ambos; inici
inicialmente,
iallm meentntee,,
Séc. trata-se de um incesto
cesto inconsciente que
quue resultou
rreessu
ult
ltou
ou
XIX do facto de o Destino
ino ter aproximado aass du
duas
d uas
a
personagens, mas,, depois de Carlos tter
er ttido
er iddo
conhecimento da verdade por Ega, evolui
evo
voluui
para um incesto consciente
onsciente
(por parte de Carlos).
os).

O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago


O tema do amor surge, na obra, a partir das relações entre Ricardo Reis e Lídia, por um lado, e Reis e
Marcenda, por outro. A forma como estas relações são encaradas mostra duas vertentes do amor na obra:

Séc. š o amor físico: ilustrado pela relação entre Reis e Lídia, trata-se de sentimento concreto, ligado
XX exclusivamente ao prazer físico, momentâneo e efémero, desligado, portanto, de qualquer ligação
sentimental; na obra evidencia-se que a ligação do amor físico ao amor emocional só seria possível
se as personagens pertencessem à mesma classe social;
š o amor contemplativo: sentimento presente na relação entre Reis e Marcenda, que consiste na
incapacidade revelada por ambos de concretizar o sentimento levemente correspondido que nutrem
um pelo outro.

341
RELACIONAR Representações do quotidiano
E
C O facto de o texto literário, em algumas situações, assumir a realidade extraliterária
como pano de fundo da ficção apresentada permite ao leitor ter acesso a aspetos do
O quotidiano de diferentes épocas e contextos, assumindo-se a obra como um documen-
R to histórico que oferece acesso a realidades que, por vezes, se encontram escassamente
D documentadas. Assim, a análise dos textos possibilita, não raro, a consciência de reali-

A
dades socioculturais específicas e inclusive da sua evolução através dos tempos.

R Poesia trovadoresca: cantigas de amigo


Embora convencionais, estas cantigas permitem o contacto com realidades do quotidiano medieval galego-
-português, associadas a ambientes domésticos e naturais, tais como:
š o núcleo familiar: constituído essencialmente por mulheres: a mãe é responsável pela família (porque
o marido está ausente), desempenhando um papel de vigilante e conselheira da filha;
š atividades femininas quotidianas: entre as atividades desenvolvidas pela mulher na sociedade
medieval estão as tarefas domésticas como o fiar; as danças, em ambiente religioso ou profano;
o ato de ir buscar água ao rio ou à fonte ou de aí ir lavar o cabelo, camisas ou tomar banho;
š a religiosidade: espelhada nas referências a romarias a ermidas de pequenas localidades que estariam
próximas do local de habitação das jovens; as romarias associavam-se a festividades que eram
o espaço propício ao convívio e, logo, ao encontro amoroso ou à descoberta do amor;
š a guerra: o homem era obrigado a partir ao serviço do rei ou do senhor em campanhas militares
de defesa territorial, o que deixava a mãe sozinha com os filhos a cargo e levava à separação
dos apaixonados.

Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente


A Farsa ilustra um universo essencialmente rural, característico dos finais da Idade
Média em Portugal, denotando aspetos da vivência quotidiana:
š a condição de mulher: a casa era o espaço (de onde ela saía apenas para ir
à missa, por exemplo) da rotina da mulher, que passava por tarefas como
coser ou bordar ou associadas à maternidade; em sociedade,
o comportamento da mulher deveria ser discreto e reservado (ousadias de
qualquer natureza eram próprias de mulheres de moral duvidosa) e manifestar
submissão e dependência da figura masculina;
š a conceção de casamento: concebido como um negócio, entre famílias
abastadas e/ou nobres e também entre outras classes sociais, sendo habitual
o recurso a casamenteiros(as); a jovem que casava normalmente levava um
dote (bens ou dinheiro) que seria entregue ao futuro marido;
š figuras da sociedade: evidenciadas na Farsa por meio de tipos sociais:
a alcoviteira, mediadora de casamentos ou de encontros amorosos, que
envolviam, não raro, elementos do clero; o fidalgo menor, figura com
dificuldades económicas que procurava adquirir algum prestígio social
através das aparências enganadoras ou por meio do envolvimento na
guerra; os judeus, classe associada ao materialismo e às atividades
lucrativas; os elementos do clero, classe associada a práticas
e a comportamentos amorais.

342
por Carla Marques

Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco


Em Amor de perdição, encontramos diversas situações que permitem conhecer alguns aspetos do quotidiano
da sociedade burguesa oitocentista:
š a questão patrimonial: as famílias mais abastadas pretendiam manter o seu estatuto ou, então,
buscavam o prestígio e a ascensão social; apenas o filho mais velho, o morgado, tinha direito à herança
Sécs. do património e títulos familiares, tendo os restantes de optar pela vida religiosa ou militar (no caso dos
XIII-XIV homens) ou por fazer um bom casamento;
š a conceção do casamento: era combinado entre famílias e, normalmente, tinha lugar entre membros
da mesma classe social;
š a condição da mulher: encarada como um ser dependente da vontade do pai e, mais tarde, da do
marido; ao longo da sua vida, era preparada para o casamento, sendo o seu pretendente escolhido pelo
pai, que detinha o poder exclusivo para decidir sobre o rumo da vida da filha;
š o atraso da vida rural portuguesa: no início da obra, revela-se um contraste acentuado entre
a qualidade de vida na cidade e, em particular, nos espaços mais nobres e o atraso característico
da vida no campo/vila;
š a imoralidade dos membros do clero: casos de padres e de freiras que abusam do álcool, que não
respeitam os votos de celibato; diversas situações relacionadas com a vida nos conventos mostram
Sécs. que a vida aí está distante da pureza ou da paz.
XV-XVI
Poesia de Cesário Verde
Na poesia de Cesário Verde estão presentes temas que ilustram o quotidiano dos finais do séc. XIX,
relacionados com questões de ordem social e com os espaços físicos que o poeta frequenta:
š as diferentes classes trabalhadoras, consideradas pelo poeta socialmente oprimidas, ilustram o
desenvolvimento do proletariado urbano e as profissões típicas associadas à pesca ou à agricultura
e realçam o valor do trabalho;
š os contrastes citadinos: o poeta observa a cidade de Lisboa e realça os contrastes entre os novos
bairros burgueses, com as suas casas luxuosas e as ruas macadamizadas, e os bairros populares, com
as ruas de terra batida e sem iluminação ou água canalizada, plenas de imundice; o desenvolvimento
da cidade fica patente na referência à construção de prédios ou à iluminação a gás;
Séc. š a doença: na cidade, a tuberculose marcava uma presença assustadora, sobretudo nos bairros onde
XIX a higiene escasseava, o que levava aqueles que tinham posses a refugiarem-se no campo, espaço
saudável, capaz de restabelecer os doentes.

“Sempre é uma companhia”, de Manuel da Fonseca


O conto ilustra a realidade de uma pequena aldeia perdida no Alentejo, na altura da II Guerra Mundial,
evidenciando alguns aspetos da vida desta sociedade rural:
š o isolamento do meio rural: sem meios de transporte rápidos, os habitantes vivem “presos” no espaço
físico da sua terra; este isolamento alastra-se à própria relação entre as pessoas;
š o atraso das aldeias portuguesas: verifica-se um atraso significativo face à vida citadina, com
evidentes reflexos na vida dos aldeões;
š o trabalho rural: nas aldeias alentejanas, sobretudo nas mais isoladas, a vida centrava-se na
Séc. a gricultura ou na pastorícia, o que constituía um trabalho duro e penoso;
XX š o pequeno comércio: misto de mercearia e café, a venda era o local onde se vendiam os bens
de primeira necessidade; era também o espaço de convívio da população;
š o álcool e a violência conjugal: o conto traz à luz a situação da violência conjugal associada
ao consumo excessivo de álcool;
š o suicídio: a realidade do suicídio é associada a este universo rural e isolado.

343
RELACIONAR Matéria épica
E
C O género épico visa enaltecer os feitos grandiosos de um herói individual ou coletivo,
imortalizando-o. O herói e a sua ação grandiosa constituem componentes essenciais
O da matéria épica dos textos clássicos. O herói é marcado por traços distintivos como a
R coragem, a ousadia e a capacidade de superação de obstáculos diversos e das limitações
D da sua própria condição. Sendo um género maior da Antiguidade clássica, a epopeia foi

A
recuperada na época do Renascimento por autores como Camões. Ao longo dos tempos
até à atualidade, é possível assinalar obras onde o épico tem a sua presença, embora a
R matéria épica tenha sofrido alterações.

Os Lusíadas, de Luís de Camões


Na Proposição, o poeta define a matéria épica a ser cantada com
o objetivo de imortalizar os feitos gloriosos (reais e não imaginados)
do herói coletivo, o povo português:
š a viagem de Vasco da Gama e dos seus marinheiros à Índia:
constitui o assunto central da obra, sendo destacados a coragem
dos marinheiros e a sua superioridade moral;
š os heróis da História de Portugal: relatam-se os feitos de
diferentes heróis que, ao serviço da fé e da pátria, se lançaram
à aventura e desafiaram forças superiores;
š os homens cujos feitos os libertam do esquecimento: homens
que, pelos feitos extraordinários praticados, ficaram na memória
dos homens, libertando-se da “lei da morte”(esquecimento).
Embora o tom do poema seja o de louvor das ações grandiosas do povo,
o poeta não deixa de perspetivar o presente como um tempo de “austera,
apagada e vil tristeza”, que caberá a D. Sebastião procurar redimir
(na luta contra os infiéis do Norte de África), constituindo nova matéria
épica, digna de um novo poema.

“O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde


Escrito em homenagem a Luís de Camões por ocasião da celebração do tricentenário da sua morte, este
poema estabelece uma relação intertextual com Os Lusíadas contrapondo o imaginário épico (a realidade
desejada) com a realidade efetiva (o real antiépico). Alguns poemas subvertem a memória épica e servem
de contraponto à enclausurante realidade citadina e ao presente decadente do poeta:
š a viagem marítima: o tema, característico da epopeia, é recuperado através da evocação das
“soberbas naus”, mas o poeta conclui que a glória associada a esta empresa não tem lugar no presente,
onde o único barco que se vislumbra é o “couraçado inglês” que significa a humilhação nacional
manifestada na nossa submissão ao poder e esplendor estrangeiros;
š os heróis: o poeta evoca os heróis do passado que gostaria de ver ressuscitados, o que significa que
no presente não existem homens gloriosos; os filhos das varinas, ao contrário dos seus antepassados,
limitar-se-ão a ser marinheiros que naufragarão sem glória;
š o poeta épico: Camões, poeta épico que cantou os feitos grandiosos do povo português, é agora um
“épico doutrora”, convertido numa estátua esquecida numa praça sem honra.
Porque o presente é o tempo da agonia do império passado, o poeta ousa sonhar com uma futura glória
portuguesa, constituindo uma possível matéria épica futura assente em:
š o tema da viagem marítima: o poeta sonha com a grandeza de novas descobertas, mas rapidamente
conclui que a grandeza do passado está perdida porque os cidadãos estão presos dentro da cidade de
Lisboa.

344
por Carla Marques

Mensagem, de Fernando Pessoa


Poema épico dos tempos modernos, Mensagem assume traços líricos e épicos. No que respeita ao cariz
épico, o poema não convoca uma matéria épica similar à que encontrámos n’Os Lusíadas, pois aqui
conjuga-se uma dimensão real que mobiliza factos do passado histórico de Portugal, desde a sua formação
até à empresa dos Descobrimentos e à decadência do Império, com uma dimensão mítica que aponta para
um futuro não realizado historicamente. Adotando como marca épica um tom marcadamente
messiânico, o poeta profetiza a libertação da pátria de um Império passado que se “desfez” no sentido
de encontrar um novo heroísmo, combinado com elementos espirituais, místicos e patriotas, que possa
Séc. constituir o caminho para o advento do Quinto Império, um império espiritual que, segundo o poeta, constitui
XVI o destino de Portugal. Assim, a matéria épica, não visando o elogio dos feitos históricos passados e não
sendo constituída por elementos concretos ou factuais, é antes reinterpretada e apresentada por meio
de imagens simbólicas. O imaginário épico de Mensagem fica patente em componentes como:
š a estrutura da obra: dividida em três partes, suscetíveis eis de interpretação
simbólica que marca uma ascensão espiritual da pátria: a: Parte I,
nascimento da pátria, através da sua fundação como nação;
Parte II, a vida, através da incursão marítima; Parte III, a morte
e o renascimento, através do novo ciclo constituído pelo lo
Quinto Império;
š os heróis: são mobilizadas um conjunto de figuras da
História de Portugal que contribuíram para a glória
do império passado e um conjunto de figuras míticas,
ligadas à consolidação da pátria; sendo figuras simbólicas cas
na obra, os heróis são figuras individuais e a sua ação,
ligada a um domínio épico espiritual, não se associa ao o
relato de feitos passados, pois é vista como estando ao o
serviço de uma força superior (que os próprios heróis
Séc.
desconhecem); D. Sebastião, elevado à condição de mito, to,
XIX
é apresentado como enviado de Deus para conduzir Portugal ortugal
ao seu destino, o Quinto Império;
š a exaltação nacional: não se encontra ligada ao poderr mate-
rial, nem às conquistas territoriais ou marítimas, pois o império
terminou, tendo deixado o país mergulhado na decadência;ência; por esta
razão, o poeta busca ser a voz da consciência nacional e, fundando-se
num imaginário épico de natureza metafísica, aponta para um Portugal
cuja glória seja reabilitada não através da ação, como sugeria Camões
no final d’Os Lusíadas, mas através do poder do sonho.

“Ode triunfal”, de Álvaro de Campos


A segunda fase de Álvaro de Campos, momento futurista e sensacionista, exprime a vitalidade da arte
poética do heterónimo. É neste período também que Campos integra o imaginário épico na sua poesia.
O poema “Ode triunfal” ilustra com particular acuidade a associação do épico ao moderno por meio de dois
traços particulares:
Séc.
XX š a ação épica: no poema, a máquina, símbolo maior da modernidade, é louvada como se de um
verdadeiro herói da modernidade se tratasse; dada a vitalidade, força e beleza da máquina, o poeta
sente a necessidade de igualar o seu canto à genialidade dos maquinismos e gostaria mesmo de se
poder igualar ele próprio a eles;
š a exaltação épica: através de recursos expressivos como a anáfora, a interjeição, a exclamação, a
onomatopeia, a enumeração ou a apóstrofe, o poeta verbaliza e glorifica de forma viva, intensa e quase
violenta a sociedade contemporânea, o desenvolvimento tecnológico patente nas máquinas e as
consequências de toda esta modernidade no “eu”.

345
RELACIONAR Crítica
E
C Na literatura, observa-se, frequentemente, um diálogo entre o texto, a sociedade e a
cultura da época de produção da obra, que permite expor situações ou comportamentos
O considerados negativos. A crítica social evidencia a estreita relação entre o texto literário
R e as suas intenções, por um lado, e a época de criação (ou a época recriada) e o contexto
D social, político, moral e cultural, mobilizado direta ou indiretamente pela obra, por outro.

A
A crítica pode associar-se, ainda, à ironia ou à sátira (através da qual se ridiculariza
a situação visada) ou mesmo à metáfora ou à alegoria. De uma forma global, a aborda-
R gem crítica da realidade numa dada obra/texto visa não só a denúncia como também
a mudança social – procura-se, muitas vezes, corrigir a ação da sociedade, pelo que a
obra se investe de uma função pedagógica e edificante.

Poesia trovadoresca: cantigas de escárnio e maldizer


Estas composições abordam satiricamente uma grande variedade de temas e de situações individuais e
coletivas, refletindo sobretudo a vida quotidiana da corte e o seu ambiente social, político, moral e cultural.
Entre elas, encontramos a crítica a aspetos como:
š o amor cortês: a paródia das cantigas de amor denuncia a convencionalidade dos sentimentos
e os traços estereotipados da “senhor”;
š os costumes: sátira de aspetos relacionados com a realidade social da época: decadência da nobreza,
conflitos entre o jogral e o trovador, relacionados sobretudo com a falta de dotes poéticos ou artísticos
do jogral, ou a pelintrice de alguma fidalguia;
š factos políticos e militares ou aspetos relacionados com a moralidade ou com agentes religiosos
(frades, freiras, …), entre muitos outros temas.

Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente


Tendo como pano de fundo a sociedade do séc. XVI, a crítica assenta sobretudo em personagens-tipo que
representam classes sociais, profissionais ou mesmo mentalidades. Expõem-se, com um intuito satírico,
diferentes temas que colocam em evidência uma certa crise de valores característica da época:
š o desejo de ascensão social e sátira à conceção do casamento como forma de emancipação: Inês
Pereira, uma moça solteira e sonhadora, ambiciona um casamento que lhe assegure a ascensão social
e o contacto com um ambiente de cultura cortês;
š a pelintrice disfarçada de fidalguia (ser vs. parecer): o Escudeiro, representante de uma pequena
nobreza decadente que não pretende abdicar de uma determinada aparência social, exibe um
discurso galante, por entre mentiras que dissimulam a sua condição social miserável;
š o materialismo: a denúncia da valorização excessiva do dinheiro é associada aos casamenteiros,
à alcoviteira Lianor Vaz e aos judeus, que encaram o casamento como uma encomenda que implicará
uma compensação material em troca dos seus serviços, que não serão necessariamente honestos;
š a subversão dos valores morais: as situações associadas aos membros do clero na Farsa evidenciam
a dissolução de costumes e a imoralidade clerical.

Os Lusíadas, de Luís de Camões


O plano das reflexões do poeta está marcado por considerações didáticas e críticas relacionadas com a
época da escrita. Nestes momentos, a voz do poeta ergue-se para denunciar e apontar vícios e desvios que
afastam a pátria e os portugueses do caminho da glória, o que o leva a deixar críticas e conselhos aos seus
contemporâneos. Neste âmbito, destacam-se as críticas relacionadas com
š o desprezo pela cultura e pela literatura;
š a corrupção pelo dinheiro: as suas consequências negativas ficam evidentes em atitudes de tirania,
de traição ou de mentira e implicam todas as classes sociais, inclusive o próprio clero.

346
por Carla Marques

Sermão de Santo António, de Padre António Vieira


Produzido no séc. XVII, numa época de instabilidade política e económica, na qual o problema dos direitos
dos índios do Brasil, explorados pelos colonos brancos, se colocava com grande acutilância, o sermão de
Vieira visa todos os estratos da sociedade, denunciando, por meio de uma elaborada alegoria, vícios humanos
ligados à corrupção e à exploração. Não perdendo de vista os objetivos da eloquência, a crítica
Sécs. consubstancia-se no docere, pelo seu cariz moralizador, e no movere, pela exortação à mudança que
XIII-XIV a denúncia implica. A crítica social processa-se por meio da exploração das características de espécies de
peixes particulares que funcionam como alegoria de determinadas formas de agir em sociedade, associadas
a diferentes tipos de colonos. Colocam-se em evidência os seguintes vícios:
š a ictiofagia: exploração dos pequenos pelos poderosos, em diferentes planos sociais;
š a arrogância e a prepotência: vícios associados ao peixe roncador, que ilustra o tipo humano que
procura um poder e um saber que, na realidade, não possui;
š o parasitismo social e o oportunismo: vícios explicitados pelo peixe pegador, que caracteriza aqueles
que vivem à custa da exploração de outros, associando-se a (dependo de) quem tem mais poder;
š a ambição e a vaidade: vício ilustrado pelo peixe voador, que representa o tipo de homem que deseja
ter mais do que aquilo que lhe é característico, ambicionando sempre ser melhor do que os outros;
š a traição: vício representado pelo polvo, que surge associado também a defeitos como
Séc. a dissimulação ou a hipocrisia que se manifestam nas relações com o outro e que servem os seus
XVI intuitos destruidores.

Os Maias, de Eça de Queirós


O subtítulo da obra, Episódios da vida romântica, agrega um conjunto de episódios que denunciam
a sociedade lisboeta decadente da segunda metadde do séc. XIX. Por meio da ironia, o narrador apresenta
tipos sociais, representativos da vida política, social e cultural, que ilustram determinadas mentalidades,
conceções políticas e costumes que importa criticar:
š a literatura: criticam-se os vícios e as consequências dos excessos líricos do Ultrarromantismo
(representado por Tomás de Alencar), responsáveis pela deformação do caráter, mas também
se rejeita o Naturalismo quando associado ao excesso de cientificismo na literatura (João da Ega,
no jantar do Hotel Central, como defensor do Naturalismo);
Séc. š as finanças: denuncia-se a débil situação financeira do país, que vive de empréstimos
XVII do estrangeiro;
š o provincianismo da capital: diversos episódios
dios expõem o cosmopolitismo postiço
da sociedade portuguesa, que pretende imitar ar o “chic” do estrangeiro, e a sua falta
de civismo (cf. o episódio da corrida de cavalos);
os);
š a imprensa: o baixo nível e a parcialidade caracterizam
racterizam um jornalismo
incompetente e venal (ver episódios do jornalal A Tarde e da Corneta
do Diabo);
š a ignorância e a mediocridade da classe dirigente:
rigente: em diversos
episódios, é possível constatar a superficialidade
dade das conversas,
a incapacidade de diálogo, a falta de cultura, o passadismo e a
incapacidade de análise e reflexão;
Séc. š a educação tradicional como deformadora de carateres,
XIX as consequências negativas deste modelo educativo
ducativo são
evidenciadas por meio de personagens representativas
sentativas
de uma forma de pensar, de estar e de agir tanto
anto
em sociedade como individualmente.

347
RELACIONAR Crítica
E
C
O Poesia de Manuel Alegre

R O poeta assume na sua poesia (sobretudo na produção anterior ao 25 de Abril) o perfil do poeta
militante, interventivo, que tem como função primordial a denúncia de situações de cariz
D político-social que configuram a realidade de um país que importa expor e mudar. A poesia é vista
A como uma forma de intervenção social através da denúncia e do protesto expressos pelo recurso
à simbologia das palavras. Os principais temas abordados resultam do contexto histórico-político
R do Estado Novo que o poeta recusa e contra o qual se insurge por meio da palavra poética:
š poder totalitário e opressivo
š Guerra Colonial e suas consequências
š falta de liberdade
Séc.
š ação da PIDE XX
š censura

O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago


Centrando a ação do romance entre 1935-36, o narrador
procede a um regresso ao passado histórico mesclado com
acontecimentos ficcionais, o que constitui uma estratégia que
permite repensar criticamente a visão oficial da História do início
do século XX, enfatizando a voz dos excluídos, dos silenciados.
É através da ironia que se procede à denúncia e à desconstrução
de diferentes domínios de ação do Estado Novo em Portugal e dos
regimes ditatoriais um pouco por toda a Europa, sendo de destacar
aspetos como:
š a ação repressiva do Estado: aspeto denunciado em diversas
dimensões que emanam de uma vigilância estrita de todos
os segmentos da sociedade por parte dos agentes do Estado e levada
a cabo por meio
− da manipulação da imprensa, que surge como um veículo
fundamental de divulgação do sistema de valores do poder instituído e, por diversas
ocasiões, o narrador denuncia a visão comprometida dos factos históricos e o discurso
populista por parte dos jornais, que não se apresentam como um intermediário neutro,
mas moldado por razões ideológicas;
− da ação da censura;
− do controlo da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE);
− do aniquilamento de qualquer voz ou ação contrária ao poder;
š a situação política da Europa: são perspetivados criticamente os acontecimentos
políticos e militares ocorridos na época, que anunciam quer a ascensão das ditaduras quer a
II Guerra Mundial; entre eles destacam-se a Guerra Civil espanhola, a Frente Popular francesa,
a expansão nazi na Alemanha, a ascensão de Mussolini na Itália e a guerra da Etiópia.

348
Sugestões de atividades

1. As obras literárias, ao longo dos séculos, invocam aspetos do quotidiano da época


em que foram produzidas.
Num texto de 130 a 170 palavras, faça uma exposição sobre o tema “representações
do quotidiano” nas obras Farsa de Inês Pereira e Amor de perdição, identificando as-
petos de continuidade. Deverá fazer alusão à sua experiência de leitura, referindo
momentos da obra que considere pertinentes.
Baseie-se na planificação que se segue para produzir o seu texto:
šIntrodução
Identificação de aspetos do quotidiano comuns às obras:
– conceção do casamento;
– condição da mulher.

šDesenvolvimento
Condição da mulher:
– clausura (Inês Pereira, no início da peça e após o casamento com o Escudei-
ro; Teresa, durante o namoro com Simão);
– dependência relativamente às figuras de poder − mãe, pai, marido (relação
de Inês Pereira com a mãe e, posteriormente, com o Escudeiro; Teresa, fi-
gura sem autonomia de decisão relativamente à sua vida, dependente da
vontade do pai).
Conceção de casamento: ao serviço de intenções de natureza social e desligado do
sentimento amoroso (Inês Pereira e a mãe contratam casamenteiros para encontrar
o marido que corresponda aos seus interesses; Tadeu de Albuquerque pretende ca-
sar a filha com o primo de forma a manter o património na família e não permite o
namoro da filha com Simão por as famílias serem inimigas).

šConclusão
As obras permitem uma perspetiva de aspetos característicos da vida e da moralidade
quotidianas, que constituem uma forma de acesso à realidade de diferentes épocas.

2. O amor é um tema constante na literatura portuguesa ao longo dos tempos.

Num texto de 130 a 170 palavras, faça uma exposição sobre as variedades do senti-
mento amoroso presentes na lírica camoniana e na obra de Saramago O ano da morte
de Ricardo Reis.
Deverá fazer alusão à sua experiência de leitura, referindo aspetos das obras que con- PROFESSOR
sidere pertinentes.
Educação Literária
3. Desenvolva um trabalho de pesquisa que vise a comparação de temas, ideias e valores 14.2; 14.3; 14.5; 14.7;
15.1; 15.2; 15.5; 16.2
expressos em obras da mesma época ou de épocas distintas.
Selecione um dos temas apresentados nas alíneas infra, relacione-os com duas ou
mais obras e apresente as conclusões da sua reflexão num texto expositivo de 200 a Documento
Relacionar/Recordar
300 palavras.
a. Representações da mulher na literatura. Nota: Disponíveis, no Guia
do Professor, cenários de
b. A crítica da literatura. resposta para as questões
2 e 3.
c. A reflexão existencial.

349
B L O C O I N F O R M AT I V O
I – GRAMÁTICA (Sistematização)

Fonética e fonologia

Processos fonológicos de inserção

Prótese Adição de uma unidade fónica no início da palavra. SCRIBERE- > escrever

Epêntese Adição de uma unidade fónica no interior da palavra. HUMILE- > humilde

Paragoge Adição de uma unidade fónica no fim da palavra. ANTE > antes

Processos fonológicos de supressão

Aférese Queda de uma unidade fónica no início da palavra. alá (port. antigo)> lá
Síncope Queda de uma unidade fónica no meio da palavra. GENERU- > genro

Apócope Queda de uma unidade fónica no fim da palavra. AMARE > amar

Processos fonológicos de alteração


Alteração de uma unidade fónica por influência de outra, ou seja, duas unidades fónicas
Assimilação diferentes tornam-se mais semelhantes ou iguais porque uma se aproxima articulatoria- IPSE > esse
mente da outra.
Processo exatamente inverso à assimilação, ou seja, duas unidades iguais ou com
Dissimilação LILIU- > lírio
características semelhantes distanciam-se articulatoriamente.
Transformação de uma consoante surda (por exemplo, /p/, /t/, /k/) na sua correspondente
Sonorização VITA- > vida
sonora (nestes casos, /b/, /d/, /g/).
Tipo de assimilação que acontece quando uma unidade ou sequência ganha uma articulação
Palatalização CLAMARE- > chamar
palatal (assim se formam as consoantes palatais do português).
Metátese Troca de posição de unidades mínimas ou sílabas no interior de uma palavra. SEMPER > sempre
Transformação de uma consoante em vogal (depois de outra vogal, esta unidade realiza-se
Vocalização OCTO > oito
como semivogal).
Crase Contração de duas vogais numa só. TIBI > tii > ti
Contração Transformação em ditongo de uma sequência de duas vogais em hiato, pela
Sinérese LEGE- > lee > lei
semivocalização (transformação em semivogal) de uma delas.
Enfraquecimento de uma vogal em posição átona. Na atualidade, no português europeu, esse fenómeno é observável
Redução
quando comparamos formas como mesa/mesinha, em que uma mesma vogal surge com diferentes timbres, consoante
vocálica
se encontra em sílaba tónica (mesa) ou em sílaba átona (mesinha).

Etimologia: étimo e palavras convergentes e divergentes


Segundo o dicionário terminológico (DT online − dt.dge.mec.pt), etimologia significa o estudo da origem e evolução das pala-
vras. Já étimo é definido como palavra da qual deriva, diacronicamente, outra palavra.

Palavras convergentes Palavras divergentes


Palavras que apresentam a mesma forma, embora provenham Palavras que apresentam formas diferentes, apesar de terem o
de étimos diferentes, dando origem a palavras homónimas. São mesmo étimo. São exemplo deste tipo de palavras as seguintes:
exemplo de palavras convergentes:
RIDEO (forma verbo rir) solteiro
rio (verbo ou nome) SOLITARIU-

RIVU- (= curso de água) solitário

350
Bloco informativo

MORFOLOGIA

Processos regulares de formação de palavras *NOTA


Base − é o
constituinte
O léxico de uma língua é formado por todos os constituintes morfológicos portadores de significado. Dele morfológico
fazem parte não apenas as palavras do vocabulário atual mas também as palavras que já não se usam e que contém o
significado lexical
todas as que podem ser criadas através de processos regulares (derivação e composição) ou através de (exclui os afixos)
e a partir do qual
processos irregulares (ver página 369). se formam novas
palavras.

Derivação não afixal


Processo de formação de palavras que gera nomes deverbais, acrescentando marcas
de flexão nominal a um radical verbal.
Exs.: troc- troca; troco
abraç- abraço
(sem junção de afixos)
Conversão
Processo de formação de palavras, também chamado derivação imprópria, que
consiste na integração de uma dada unidade lexical numa nova classe de palavras por
via sintática, sem que se verifique qualquer alteração formal.
Exs.: olhar verbo olhar nome
Estás a olhar para mim. Tem um olhar penetrante.

Prefixação
Consiste na adição de um prefixo a uma base.
Derivação
Exs.: desfazer; macroeconomia; infiel

Sufixação
Consiste na adição de um sufixo a uma base.
Exs.: cozinheiro; caçada
Afixal
Processo morfológico que
consiste na associação de Prefixação e sufixação
um afixo a uma forma base* Consiste na adição de um prefixo e de um sufixo a uma base.
Ex.: in>condicional>mente
incondicionalmente

Parassíntese
Processo morfológico de formação de palavras que consiste na adição simultânea de
um prefixo e um sufixo a uma base.
Exs.: a[padrinh]amento; a[podr]ecimento; a[noit]ecer

Processo de composição que associa um radical a outro(s) radical(is) ou a uma ou mais


Radical + radical palavras. De um modo geral, entre os radicais ou o radical e a palavra associada ocorre
Radical + palavra uma vogal de ligação.
(morfológica) Exs.: [agr]+ i +[cultura] = agricultura; [lus] + o +[descendente]= luso-descendente;
[psic]+ o +[pata] = psicopata
Composição

Processo de composição que associa duas ou mais palavras. A estrutura destes


Palavra + palavra compostos depende da relação sintática e semântica entre os seus membros, o que
(morfossintática) tem consequências na forma como são flexionados em número.
Exs.: surdo-mudo; guarda-chuva; via láctea; fim de semana; saca-rolhas

351
Bloco informativo

Flexão verbal
O verbo apresenta diferentes formas, que variam em função da pessoa e do número, do modo e do
tempo. Estas formas podem ser simples ou compostas.

Modo Tempo Exemplificação


Presente saio, sais, sai, saímos, saís, saem

Pretérito imperfeito saía, saías, saía, saíamos, saíeis, saíam

Pretérito simples saí, saíste, saiu, saímos, saístes, saíram


perfeito composto tenho saído, tens saído, tem saído, temos saído, tendes saído, têm saído
Indicativo
Pretérito simples saíra, saíras, saíra, saíramos, saíreis, saíram
mais-que- tinha saído, tinhas saído, tinha saído, tínhamos saído, tínheis saído,
-perfeito composto
tinham saído
Futuro sairei, sairás, sairá, sairemos, saireis, sairão

Presente saia, saias, saia, saiamos, saiais, saiam


Formas
finitas Pretérito imperfeito saísse, saísses, saísse, saíssemos, saísseis, saíssem
tenha saído, tenhas saído, tenha saído, tenhamos saído, tenhais saído,
Pretérito perfeito composto
tenham saído
Conjuntivo Pretérito mais-que-perfeito tivesse saído, tivesses saído, tivesse saído, tivéssemos saído, tivésseis saído,
composto tivessem saído
simples sair, saíres, sair, sairmos, sairdes, saírem
Futuro tiver saído, tiveres saído, tiver saído, tivermos saído, tiverdes saído, tiverem
composto
saído
simples sairia, sairias, sairia, sairíamos, sairíeis, sairiam
Condicional
composto teria saído, terias saído teria saído, teríamos saído, teríeis saído, teriam saído

Imperativo Presente sai, saí

simples sair, saíres, sair, sairmos, sairdes, saírem


Pessoal
composto ter saído, teres saído, ter saído, termos saído, terdes saído, terem saído
Infinitivo
simples sair
Formas Impessoal
não composto ter saído
finitas
simples saindo
Gerúndio
composto tendo saído

Particípio saído

š Quanto à flexão, os verbos podem ser regulares – quando mantêm a forma do radical e os sufixos
típicos de flexão em toda a conjugação (exs.: canto / cantarei / cantasse) – ou irregulares – quando
apresentam variação da forma do radical e/ou dos sufixos de flexão (exs.: faço / fazia / fiz).

š Um verbo defetivo é aquele que não apresenta todas as formais flexionadas possíveis. Os verbos de-
fetivos podem ser: impessoais, se apresentam apenas formas no infinitivo e na 3.a pessoa do singular
(exs.: chover, trovejar, haver, quando significa 'existir') e unipessoais, se apresentam apenas formas no
infinitivo e na 3.a pessoa do singular e do plural (exs.: cacarejar, chilrear, ladrar, miar, zurrar, ...).

352
Bloco informativo

CLASSES DE PALAVRAS

“Conjunto das palavras que, por partilharem características morfológicas, sintáticas e/ou semânticas
podem ser agrupadas na mesma categoria”
In Dicionário Terminológico

Classes Subclasses Características Exemplificação

Próprio1: designa Os nomes têm por referentes entidades com 1


José Saramago recebeu o Prémio
uma entidade individualizada, existência real ou imaginária. Apresentam Nobel da Literatura.
única. características semânticas (dado designarem 2
Os poemas de Pessoa são conhecidos
2
Comum : não entidades), morfológicas (porque variam em além-fronteira.
Nome

designa necessariamente número, e alguns em género e grau) e ainda 3


A multidão assistia à procissão
um referente único. sintáticas (uma vez que são o núcleo do grupo
da Quaresma.
nominal, podendo ser antecedidos
Coletivo3: designa, no de determinantes ou de quantificadores).
singular, um conjunto de seres
ou entidades do mesmo tipo.

Exprimem ordem ou sucessão, ocupam š Mensagem foi a primeira obra


geralmente uma posição pré-nominal, de Pessoa que li.
Numeral podendo ser antecedidos por determinantes.
Correspondem à classe tradicional dos
numerais ordinais.
Adjetivo

Exprimem uma qualidade ou propriedade š As rosas vermelhas são o símbolo


do nome. Ocupam, geralmente, posição do amor.
pós-nominal, embora alguns ocorram quer š Manuel da Fonseca foi um grande
Qualificativo à esquerda quer à direita, originando, todavia, contista.
valores semânticos diferentes. Variam em
š Os avós de Saramago viviam numa
número e alguns em grau; quando biformes,
casa pequena.
variam em género.

1
Advérbios que contribuem com informação José Saramago dedicou-se mais
sobre grau ou quantidade. Podem ocorrer à prosa.
internamente ao predicado1, ou como 2
Qualquer escritor é muito dedicado
Quantidade e grau modificador de grupos adjetivais2 ou à sua obra
adverbiais3. Alguns destes advérbios são 3
Fernando Pessoa deambulava muito
utilizados para a formação do grau dos
calmamente pelas ruas.
adjetivos e advérbios.

Advérbio que contribui para reverter šRicardo Reis, na verdade, não existiu.
Negação o valor de verdade de uma frase afirmativa
Valores semânticos

ou para negar um constituinte.


Advérbio

1
Advérbios que se utilizam em resposta a − Tencionam ir à visita de estudo?
interrogativas globais1 ou como modificador de − Certamente.
Afirmação
um constituinte2, contribuindo para asserir ou 2
Lemos a obra, sim, e gostámos muito.
reforçar o valor afirmativo de um enunciado.

Advérbios que modificam, incluindo šParticiparam todos na representação,


Inclusão
o constituinte num conjunto. até o João que é tímido.

1
Advérbios que permitem realçar o constituinte Fernando Pessoa só ganhou um
que modificam, excluindo-o de um conjunto1. prémio literário.
Exclusão Podem modificar cada um dos grupos 2
Apenas um conto de Manuel da
constituintes de uma frase2. Fonseca faz parte do Programa
de 12.˚ ano.

353
Bloco informativo

Classes Subclasses Características Exemplificação

Advérbios que evidenciam uma ideia š Talvez Mário de Carvalho possa vir à nossa escola.
Dúvida
de incerteza, indecisão ou hesitação.

Advérbios que remetem para a indicação š Eis o escritor que convidámos.


Designação
de algo ou alguém.

1
Valores semânticos

Advérbios que habitualmente, podem ser Os trabalhadores do convento viviam mal.


modificadores de predicado1, da frase2 ou, 2
Felizmente, Blimunda recolheu a vontade de Baltasar.
(continuação)
Advérbio

Modo ocasionalmente, predicativos do sujeito3. 3


Depois de reencontrar o seu passado, George não
ficou bem.

Advérbios que geralmente são modificadores. š Amanhã tenho de fazer o trabalho sobre O ano
Tempo
da morte de Ricardo Reis.

1
Advérbios que podem ser complementos José Saramago morou lá, em Lanzarote.
oblíquos1, predicativos do sujeito2 2
Esta tarde ficamos aqui para visitar a Casa de Pessoa.
Lugar ou modificadores3. 3
Saramago discursou aí quando recebeu o Prémio
Nobel.

Advérbios que identificam o constituinte š Quando começaste a ler a obra?


interrogado numa construção interrogativa šPorquê analisar tantos poemas?
Interrogativo (direta ou indireta), sendo substituíveis por
š Diga-nos porque lemos tantas obras.
grupos adverbiais ou preposicionais.
š Diz-me onde compraste o livro de Maria Judite
de Carvalho.

Advérbios que estabelecem nexos entre frases1 1


Lemos a poesia do ortónimo e depois a dos
ou constituintes da frase, nomeadamente heterónimos.
relações de consequência2, de contraste3 2
Analisámos muitos textos, portanto estamos
ou de ordenação4. preparados para o teste.
Advérbio

Distinguem-se de conjunções com valor


Funções

3
Gosto de ler romances, contudo prefiro obras menos
Conectivo idêntico por poderem, por exemplo, ocorrer
extensas.
entre o sujeito e o predicado5.
4
Primeiro viram o documentário, seguidamente
responderam às questões.
5
Fizemos um trabalho sobre o conto. A professora,
porém, ainda não o avaliou.

1
Advérbio que introduz uma oração subordinada A obra onde interagem Ricardo Reis e Fernando
relativa, permitindo identificar uma relação Pessoa chama-se O ano da morte de Ricardo Reis.
com o nome antecedente (no caso das orações 2
A maneira como Saramago cativa os leitores
Relativo
subordinadas adjetivas relativas1-2). Introduz é inovadora.
também orações relativas sem antecedente
3
(orações subordinadas substantivas relativas3). Vou onde houver declamação de poemas.

Valores semânticos Exemplos

šlocativo šà esquerda, de fora, de longe, em cima, ...

Locuções adverbiais štemporal šà noitinha, desde cedo, por agora, …


São constituídas por duas ou mais palavras šmodo šde bom grado, por acaso, à pressa, …
e têm comportamento e classificação igual šnegação šde modo algum, de maneira nenhuma, …
à de um advérbio.
šquantidade e grau šno mínimo, de mais, tão pouco, …
de facto, na verdade, sem dúvida, …

354
Bloco informativo

Classes Subclasses Características Exemplificação

Antepõem-se ao nome, contribuindo para a sua šA obra de que mais gosto
leitura genérica ou indefinida. é Memorial do convento.
Artigo O artigo indefinido nunca antecede um nome šUm texto interessante
šDefinido: próprio nem coocorre com os quantificadores desperta a nossa atenção.
o, a, os, as todos e ambos.
šIndefinido: Os artigos definidos e indefinidos surgem, muitas
um, uma, uns, umas vezes, contraídos com as preposições a, de, em e
por: ao (a+o), à (a+a), da (de+a), num (em+um),
pela (por+a).

Variam em género e número, têm valor deítico šEsta personagem revela


Demonstrativo ou anafórico, contribuindo para a construção da poderes extraordinários.
este(s), esta(s), esse(s), essa(s), referência do nome que os precede tendo em
aquele(s), aquela(s) šAquele aluno leu a obra
conta a sua relação de proximidade ou distância. de Pessoa em dois dias.
Determinante

1
Possessivo Variam em pessoa, género e número Os nossos resultados no teste
meu(s), minha(s); e em contextos definidos. sobre Caeiro foram bons.
teu(s), tua(s); seu(s), sua(s); São geralmente precedidos por um 2
Estas minhas preferências por
nosso(s), nossa(s); vosso(s), artigo definido1 ou por um determinante poesia são inexplicáveis!
vossa(s) demonstrativo2.

Variam em género e número e são utilizados em šCertos estudantes leem muitos


Indefinido
contextos em que se assume que o referente romances, outros só leem
certo(s), certa(s),
do nome que precedem não corresponde a contos.
outro(s), outra(s)
informação específica ou identificada.

Variam em género e número e estabelecem a šAs obras, cuja ação se baseia


Relativo
ligação entre o nome seu antecedente e a oração em factos verídicos, são as
cujo, cuja, cujos, cujas
relativa que introduz. minhas preferidas.

Precedem um nome em construções šQue livro de Mário de Carvalho


Interrogativo interrogativas, permitindo a identificação do leste?
que, qual, quais constituinte interrogado. šQuais poemas são para leitura
de férias?

Pessoal Variam em pessoa e número, e alguns variam em šEles encontraram-se ontem.


género. šPerguntaram-nos se lhes
šFormas tónicas: eu, tu, você, ele/
As formas átonas ocorrem adjacentes ao verbo indicávamos o caminho.
ela, nós, vós, vocês, eles/elas; mim,
(à esquerda do verbo − em próclise −, à direita
ti, si šAprender-se-ia mais com a
− em ênclise −, ou ainda no interior das formas
šFormas átonas: me, te, o, a, lhe, de futuro do indicativo e condicional − em leitura integral das obras.
nos, vos, os, as, lhes, se mesóclise); as restantes são formas tónicas.

1
Demonstrativo Variam em género e número e têm um valor Estas linhas de leitura da obra
Pronome

šFormas tónicas variáveis : 1 deítico ou anafórico. Estabelecem a sua são mais interessantes do que
este(s), esta(s) referência tendo em conta a relação de aquelas.
esse(s), essa(s) proximidade ou de distância em relação a um 2
Aquilo que me disseste sobre
aquele(s), aquela(s) participante do discurso ou a um antecedente a obra foi importante.
textual.
šFormas tónicas invariáveis2: 3
Percebeu a intenção do autor
isto, isso, aquilo e demonstrou-a.
šFormas átonas3: o(s), a(s) 4
Revelou que tinha gostado
šForma átona invariável : 4 da obra de Reis/ Revelou-o.
o (usada na substituição
de constituintes oracionais)

355
Bloco informativo

Classes Subclasses Características Exemplificação

Possessivo Variam em pessoa, género e número šGostei muito do teu texto. Gostaste do meu?
šUm possuidor: e têm um valor deítico ou anafórico, šA professora reviu os nossos trabalhos. E os
meu, minha, meus, minhas referindo-se, tipicamente, a um vossos?
teu, tua, teus, tuas participante do discurso
seu, sua, seus, suas ou a um antecedente tomado como
dele, dela possuidor, respetivamente.
São geralmente precedidos de artigo
šVários possuidores: definido.
nosso, nossa, nossos, nossas
vosso, vossa, vossos, vossas

Indefinido Alguns admitem variação em género šNinguém chegou tarde ao teste.


(continuação)
Pronome

šFormas invariáveis : 1-3 e número, quando correspondentes šTodos gostaram da obra de Manuel
alguém, ninguém, tudo, nada, ao uso pronominal de um da Fonseca.
algo, outrem quantificador ou de um determinante
indefinido. Referem uma terceira
šFormas variáveis4-5: pessoa ou uma quantidade
algum(a), alguns, algumas, indeterminadas.
nenhum(a), nenhuns, nenhumas,
outro(a)(s), muito(a)(s),
pouco(a)(s), todo(a)(s), vário(a)
(s), tanto(a)(s)

Relativo Ocorrem no início das orações šEstá é a pessoa à qual Saramago dedicou
šVariáveis: o qual, os quais, a qual, relativas. Podem remeter para a obra.
as quais um constituinte anterior, quando šIndico-te quem me falou do Livro do
šInvariáveis: (o) que, quem possuem antecedente. desassossego.

1
Dividem-se em várias subclasses, O padre Bartolomeu morreu!
de acordo com as suas restrições 2
Blimunda, no fim da narração, encontrou
de seleção. Baltasar. Blimunda, no fim da narração,
1
Intransitivo
encontrou-o.
Transitivo direto2 3
O diretor de turma telefonou ao meu pai.
3-4
Transitivo indireto
principal

O diretor de turma telefonou-lhe.


Transitivo direto e indireto5-6 4
Fernando Pessoa viveu em Lisboa.
Transitivo-predicativo7 5
Ricardo Reis escreveu uma carta a Marcenda.
(achar, considerar, julgar, nomear, Ricardo Reis escreveu-lhe uma carta.
eleger, declarar, chamar, supor, ter 6
Fernando Pessoa colocou o casaco no quarto
por, tratar por)
de Reis.
Fernando Pessoa colocou-o no quarto de Reis.
Verbo

7
Lídia tratou Ricardo Reis por “meu amor”.
copulativo

Ocorre numa frase em que existe um šOs alunos permanecem atentos.


(ser, estar, ficar, continuar, parecer, constituinte com a função sintática šO João tornou-se um leitor exímio.
permanecer, tornar-se, revelar-se, ...) de sujeito e outro com a função
sintática de predicativo do sujeito.

1
Os verbos auxiliares são usados Ele tem lido todas as obras indicadas pelo
na formação de tempos compostos1 professor.
(ter/haver), em construções passivas2 2
O livro foi lido por todos os alunos desta
auxiliar

(ser), podendo, ainda, contribuir turma.


(ser, ter, haver, estar, dever, poder)
para veicular valores modais3 (dever,
3
poder) Todos os alunos devem ler o livro.
ou aspetuais4 (estar). 4
A aluna está a ler uma das obras
de Saramago.

356
Bloco informativo

Classes
Quantificador Subclasses Características Exemplificação

Expressam uma quantidade numérica šO Pedro comprou duas mochilas azuis.
inteira precisa, um múltiplo de uma šAinda só li um terço das obras do Programa
Numeral quantidade ou uma fração precisa do 12.˚ ano.
de uma quantidade.
šJá li metade da “Ode triunfal”.

Ligam elementos com igual valor šA Maria e a Joana gostam de poesia e o Pedro
sintático, sejam palavras ou grupos gosta de prosa.
Conjunções coordenativas de palavras numa só oração, sejam šFinalizámos o trabalho, mas já depois do
š copulativas: e, nem orações diferentes, mas equivalentes prazo estipulado.
sintaticamente e independentes
š adversativas: mas šEscreves um texto de opinião ou defendes
umas das outras.
š disjuntivas: ou essa ideia oralmente?
š conclusivas: logo šNão ouvi a orientação, logo tive dificuldades
na realização da tarefa.
š explicativas: pois, que
šAcho que o teste correu bem ao Pedro, pois
ele estava feliz.

1
Introduzem orações subordinadas Afirmaram que tinham estudado. / Perguntou
Conjunção

Conjunções subordinativas que desempenham uma função se havia TPC. / Pediu para sair mais cedo.
sintática relativamente à 2
Como gostaram da obra, os resultados foram
− Substantivas completivas1:
subordinante. bons.
que, se, para
− Adverbiais: 3
Encarnou a figura de Pessoa tão bem como
š causais2: porque, como se fosse um ator.
š comparativas3: como, 4
conforme Embora goste de prosa, a poesia dá-me um
š concessivas4: embora, encanto especial.
5
malgrado Se me preparar bem, terei êxito na
š condicionais5: se, caso apresentação oral.
š consecutivas6: que 6
Estudei tanto que era impossível ter má nota.
(antecedido de tão, tanto, …)
7
š finais7: para Li todos os contos de Manuel da Fonseca para
š temporais8: apenas, conhecer melhor a escrita deste autor.
enquanto, quando, mal 8
Quando terminaram a tarefa, comunicaram-
-no ao professor.

São constituídas por duas ou mais palavras cujo valor semântico se associa ao das conjunções coordenativas
ou subordinativas.

šcopulativas: não só… mas/como também; nem… nem; tanto… como


Locuções conjuncionais

Coordenativas
šdisjuntivas: ou… ou; já… já; ora… ora

šcausais: visto que; dado que; uma vez que; atendendo a que; dado que
šcomparativas: bem como; assim como; tal… qual; tão/tanto… como; mais… (do) que
šconcessivas: se bem que; ainda que; nem que; não obstante
Subordinativas šcondicionais: salvo se; desde que; sem que; exceto se; contanto que; a não ser que
šconsecutivas: de modo que; de maneira que; de forma que
šfinais: para que; a fim de/que; com a finalidade de
štemporais: antes de/que; logo que; agora que; cada vez que; até que; assim que

357
Bloco informativo

Classe Características Exemplificação

1
Palavra invariável que exige sempre ser complementada por: Os alunos foram para onde
uma oração1, um grupo nominal2, um grupo adverbial3. o professor indicou.
2
a, ante, após, até, com, contra, de, desde, em, entre, para, Com vontade de vencer,
Preposição perante, por, segundo, sem, sob, sobre, trás as barreiras ultrapassam-se.
3
Só sei que não vou por ali.
Nota: as preposições a, de, por e em podem ocorrer contraídas
com artigos (definidos e indefinidos), determinantes e pronomes
demonstrativos, advérbios, …

São formadas tipicamente por um advérbio ou um nome seguido de uma preposição ou por um advérbio no meio
Locuções de duas preposições.
prepositivas
Exs.: apesar de, junto a, além de, em redor de, perto de, defronte a/de, por causa de, em vez de, antes de, para com, …

Classe
Valores semânticos
Interjeição Locuções interjetivas

oh!; ah!; eia! que bom! muito bem! Alegria

eia!; vamos!; coragem!; upa! vamos lá! toca a andar! Incitamento/encorajamento

bravo!; viva!; boa!; apoiado!; fixe!; bis!; eia! muito bem! é assim mesmo Aplauso

ai!; ui!; Jesus!; credo! valha-nos Deus! ai Jesus! ai que aflição! Aflição, dor, tristeza, terror

atenção!; cuidado!; oh! Advertência ou repreensão

ó!; pst; olá!; eh!; socorro! ó da guarda! ó senhor! Chamamento, invocação

oh!; oxalá!; tomara! quem me dera! Deus queira! se Deus quiser! Desejo

hum! Dúvida

ah!; oh!; hi!; ena!; caramba!; diabo!; credo!;


essa é boa! não é possível! não acredito! essa agora! Espanto ou surpresa
chi!; puxa!; bolas!

Impaciência, irritação
bolas!; irra!; fogo!; arre!; mau! ora bolas!; raios partam; mau, mau!
ou aborrecimento

irra!; homessa!; apre!; ora! ora essa! nem pensar! Indignação

chega!; basta!; alto! Interrupção ou suspensão

silêncio!; caluda!; fora!; rua!; alto!; chega! fora daqui!; toca a andar!; em frente! Ordem

paciência!; pronto! que remédio!; é a vida!; deixa lá! Resignação

olá!; adeus! ora viva! boa noite! bem haja! bons olhos o vejam! Saudação

psiu!; silêncio!; caluda! toca a calar! Silêncio

Nota: A interjeição não estabelece relações sintáticas com outras palavras e tem uma função exclusivamente emotiva.
O valor de cada interjeição depende do contexto de enunciação e corresponde a uma atitude do falante ou do enunciador.

358
Bloco informativo

SINTAXE

Funções sintáticas

Funções sintáticas ao nível da frase

Sujeito

Função sintática desempenhada pelo constituinte da frase que controla a concordância verbal. Pode ser (1) um
grupo nominal, substituível pelos pronomes pessoais eu, tu, ele/ela, nós, vós, eles/elas, ou (2) um constituinte
oracional. Encontra-se, por norma, em posição pré-verbal.

Sujeito com realização lexical. Pode ser: Sujeito sem realização lexical. Pode ser:
š Simples š Subentendido
Exs.: Manuel da Fonseca é um contista exímio. Ex.: Fez uma apresentação oral sobre a obra
(grupo nominal) Saramaguiana.
Quem ler Saramago ficará fascinado. (depreende-se da forma verbal – Ele)
(oração) š Indeterminado
š Composto Ex.: Lê-se muito a prosa do século XX.
(alguém lê)
Exs.: Maria Judite de Carvalho e Mário de
Carvalho não são irmãos. (coord. de grupos nominais)
Quem visitou o convento de Mafra e quem
leu Memorial do convento ficou a conhecer
melhor o reinado de D. João V. (duas ou mais orações)

Vocativo

Função sintática desempenhada por um constituinte que não controla a concordância verbal e que serve apenas
para interpelar ou chamar o interlocutor, em posição inicial, medial ou final, surgindo em frases de tipo imperativo1,
interrogativo2 ou exclamativo3.

Exs.: 1 Meninos, abram os livros.


2
Achas, João, que consegues responder?
3
Pode preparar-se para a procissão, Majestade?

Predicado

Função sintática desempenhada por um grupo verbal. Pode corresponder só ao verbo ou ao verbo com os seus
respetivos complementos e/ou predicativos requeridos, e ainda os modificadores (do grupo verbal). Assim temos:
š Predicado — só com verbo ou grupo verbal (por norma, quando o verbo é intransitivo)
Ex.: A cidade adormecera.
š Predicado — verbo + complementos e/ou predicativos e modificadores
Ex.: Ricardo Reis deambulou pela cidade.

Modificador (de frase)

Função sintática desempenhada por um constituinte de uso facultativo, não selecionado por nenhum dos seus
elementos. Acrescenta um juízo de valor sobre o conteúdo da frase/oração e pode ser eliminado sem que a frase se
torne agramatical. Pode ser desempenhada por um grupo adverbial1, por um grupo preposicional2 ou uma oração
subordinada3.

Exs.: 1 Infelizmente, nem todos leram a poesia de Pessoa.


2
Com convicção, a professora expõe as matérias.
3
Ainda que os contos sejam textos breves, transmitem uma forte carga emotiva aos leitores.

359
Bloco informativo

Funções sintáticas internas ao grupo verbal

Complemento direto

Função sintática selecionada por verbos transitivos diretos, transitivos diretos e indiretos ou transitivos-predicativos,
sendo exercida por grupos nominais (GN) ou constituintes oracionais. Os GN que exercem esta função são prono-
minalizáveis pelos pronomes pessoais o, a, os, as, e os constituintes oracionais são substituíveis pelos pronomes
demonstrativos invariáveis isto, isso, aquilo.
Exs.: Os alunos preferem textos em prosa. Os alunos preferem-nos.
Saramago demonstrou que os autos de fé eram inaceitáveis. Saramago demonstrou isso.

Complemento indireto

Função sintática selecionada por um verbo transitivo indireto, ou transitivo direto e indireto. O constituinte sin-
tático que exerce a função de complemento indireto é introduzido pela preposição a e pronominalizável pelos
pronomes lhe, lhes.
Ex.: Ricardo Reis agradeceu a Lídia. Ricardo Reis agradeceu-lhe.

Complemento oblíquo

Função sintática selecionada por um verbo transitivo indireto, ou transitivo direto e indireto. O constituinte sintático
que exerce a função de complemento oblíquo é introduzido, maioritariamente, por uma preposição. Pode assumir
um valor locativo1, de movimento2, de duração3, de necessidade ou de carência4.
Exs.: 1 Saramago viveu em Lisboa e em Lanzarote.
2
O interesse pela obra de Pessoa levou-o à África do Sul.
3
A procura de Blimunda por Baltasar prolongou-se por nove anos.
4
Os poetas precisam de inspiração.

Complemento agente da passiva

Função sintática desempenhada por um constituinte selecionado por um verbo transitivo direto conjugado
na passiva, tendo como auxiliar o verbo ser.
Ex.: Reis, Campos e Caeiro foram criados por Fernando Pessoa.

Predicativo do sujeito

Função sintática desempenhada por um constituinte selecionado por um verbo copulativo que atribui uma propriedade
ao sujeito.
Exs.: Alguns alunos ficaram apaixonados pela poesia de Caeiro.
A obra de Manuel da Fonseca é aliciante.

Predicativo do complemento direto

Função sintática desempenhada por um constituinte selecionado por um verbo transitivo-predicativo que atribui uma
propriedade ao complemento direto.
Ex.: Fernando Pessoa considerava Camões um modelo.

Modificador (do grupo verbal)

Função sintática desempenhada por um constituinte do grupo verbal e que pode ser eliminado sem que a frase
se torne agramatical. A função de modificador (do grupo verbal) pode ser desempenhada por uma oração
subordinada1, por um grupo preposicional2 ou por um grupo adverbial3.
Exs.: 1 Quando chegou a Lisboa, Ricardo Reis instalou-se num hotel.
2
Ricardo Reis procurou Marcenda com convicção.
3
Lídia olhava Ricardo Reis comovidamente.

360
Bloco informativo

Funções sintáticas internas ao grupo nominal

Complemento do nome

Função sintática desempenhada por um constituinte selecionado por um nome e que lhe completa a referência.
Corresponde geralmente a um grupo preposicional, a uma oração introduzida por uma preposição ou a um grupo
adjetival. Requerem complemento:
š nomes de graus de parentesco1
š nomes de profissões que derivam de outros nomes2 (guia, condutor, …)
š nomes icónicos3 (gravura, fotografia, …)
š nomes epistémicos4 (hipótese, desejo, …)
š nomes que derivam de verbos5, por norma, transitivos (construção, pesca, …)
š nomes que designam cargos6 (presidente, ministro, cônsul, …)
š numerais fracionários e multiplicativos7 (dobro, terço, …)

Exs.: 1 O pai de Marcenda vivia em Coimbra.


2
O guia de Baltasar era o padre Bartolomeu.
3
A deambulação de vários poetas permitiu traçar um retrato de Lisboa.
4
A hipótese de se encontrar com Fernando Pessoa agradava a Ricardo Reis.
5
A construção do convento de Mafra deveu-se a uma promessa de D. João V.
6
O ministro da educação avaliou o conteúdo do Programa de Português.
7
A leitura de Memorial do convento requer o dobro do tempo da leitura de “George”.

Modificador do nome

Constituinte do grupo nominal que lhe modifica o sentido, apesar de não ser por ele selecionado. Pode ser:
šModificador do nomerestritivo: restringe/limita a referência do nome que modifica. Pode configurar-se num
grupo adjetival1, preposicional2, numa oração adjetiva relativa3, numa oração subordinada final4.
Exs.: 1 A prosa contemporânea é muito interessante.
2
A obra de Fernando Pessoa requer ainda muita investigação.
3
A análise que alguns críticos fazem de “Autopsicografia” é brilhante.
4
Os livros sugeridos para lermos em projeto de leitura são muito interessantes.

šModificador do nome apositivo: não restringe nem limita a referência do nome que modifica. É obrigatoria-
mente delimitado por vírgula(s), e pode estar configurado num grupo nominal1, adjetival2 ou preposicional3,
mas também numa oração adjetiva relativa explicativa4.
Exs.: 1 Alberto Caeiro, o poeta da Natureza, não seguia correntes literárias.
2
Alguns textos, claros e objetivos, elucidam sobre o simbolismo de Mensagem.
3
Os estudantes, com ideais progressistas, gostam muito da obra de Saramago.
4
A obra de Maria Judite de Carvalho, que me fascinou, tem sido pouco divulgada.

Função sintática interna ao grupo adjetival

Complemento do adjetivo

Função sintática exercida por um constituinte selecionado por um adjetivo e que ocorre normalmente à direita
desse adjetivo, sendo composto, normalmente, por um grupo preposicional1, mas também por um grupo oracional2.

Exs.: 1 Saramago estava convicto da irracionalidade dos atos de alguns homens.


2
Os alunos estão ansiosos por visitar a Casa Fernando Pessoa.

361
Bloco informativo

Frase complexa – coordenação e subordinação


A frase complexa é aquela que apresenta mais do que um verbo principal ou copulativo, ou seja, trata-
-se de uma frase com mais do que uma oração, podendo obter-se pelo recurso à coordenação e/ou à
subordinação.

Coordenação
Processo de combinação de duas ou mais frases equivalentes. Por isso, a oração coordenada está con-
tida numa frase complexa, não mantendo uma relação de subordinação sintática com a(s) frase(s) ou
oração(ões) com que se combina. Distingue-se, tipicamente, das orações subordinadas por não poder
ser anteposta. As orações coordenadas podem ser:

š Assindéticas
Orações coordenadas justapostas, sem recurso a conjunções ou locuções conjuncionais.
Ex.: Fernando Pessoa foi empregado de escritório, escreveu uma vasta obra sob diversas identi-
dades, traduziu textos de autores estrangeiros, fundou revistas que se destacaram na lite-
ratura portuguesa.

š Sindéticas
Orações coordenadas ligadas por conjunções ou por locuções conjuncionais.
Ex.: Fernando Pessoa foi empregado de escritório e escreveu não só uma vasta obra sob diver-
sas identidades como também traduziu textos de autores estrangeiros e fundou revistas
que se destacaram na literatura portuguesa.

Estas orações estabelecem, entre si, relações semânticas expressas pelas conjunções ou locuções coor-
denativas que as unem, tal como se sistematiza na tabela seguinte.

Oração Conjunções/locuções
Sentido Exemplificação
Coordenada conjuncionais coordenativas

e, nem, nem… nem,


não só… mas também, š Lemos a obra de Saramago e, posteriormente,
Copulativa Adição
não só… como (também), participámos numa visita de estudo a Mafra.
tanto… como

Oposição, š Marcenda gostava de Ricardo Reis, mas não se quis


Adversativa mas
contraste casar com ele.

ou, ou… ou, Alternativa,


š Fazes a síntese do conto ou analisas um fragmento
Disjuntiva outra
ora… ora do Livro do desassossego?
possibilidade

š Já visitei o Alentejo, logo já percebo melhor a obra


Conclusiva logo Conclusão
de Manuel da Fonseca.

š Compra um livro de Mário de Carvalho, pois é um autor


Justificação, muito conceituado.
Explicativa pois, que
explicação š Compra um livro de Mário de Carvalho que é um autor
muito conceituado.

362
Bloco informativo

Subordinação
Processo de combinação de duas ou mais orações em que uma delas, a subordinada, está sintaticamen-
te dependente de outra, a subordinante. As orações subordinadas classificam-se como substantivas,
adjetivas ou adverbiais.

Orações subordinadas substantivas

Oração subordinada Elementos


Exemplificação
substantiva de ligação

Completa o sentido de

a. outra oração
Completiva š Penso que o romance Memorial do convento é um dos melhores
Podem desempenhar as de Saramago.
funções sintáticas de š conjunções
subordinativas š O João disse para analisarmos melhor o poema.
sujeito, de complemento
de um verbo, de completivas: š Perguntei-lhe se já tinha lido a obra.
complemento de um nome que, se, para b. um nome
ou de complemento de um
adjetivo. š George tinha a certeza de que não queria voltar à sua terra natal.

c. um adjetivo
š Ricardo Reis estava convicto de que seria visitado por Pessoa.

Relativa
Podem desempenhar as
funções sintáticas de sujeito, š pronomes š Quem leu o Memorial do convento ficou mais informado sobre
de complemento direto, relativos: o séc. XVIII.
de complemento indireto, quem, (o) que
š No final, o Batola não era quem a sua mulher conhecera.
de complemento oblíquo, š advérbio relativo:
de predicativo do sujeito e onde š A multidão ia onde passasse a procissão.
de modificador (do grupo
verbal).

Orações subordinadas adjetivas

Oração subordinada adjetiva Elementos de ligação Sentido/Exemplificação

Introduzida por um relativo que retoma um antecedente. Fornece


š pronomes relativos: informação adicional sobre o constituinte que modifica.
Relativa explicativa que, quem (invariáveis), š Ricardo Reis, que não é o único heterónimo de Pessoa, era
o qual (variável em género monárquico.
e número)
Nota: estas orações são sempre separadas por vírgulas, ou travessões.
š determinante relativo:
cujo (variável em género
Introduzida por um relativo que retoma um antecedente. Restringe
e número)
a referência do constituinte que modifica.
Relativa restritiva
š advérbio relativo: onde š Analisamos os poemas de Fernando Pessoa que foram
selecionados pela professora.

363
Bloco informativo

Orações subordinadas adverbiais


Orações que desempenham a função sintática de modificador e que devem ser destacadas por vírgu-
la(s) quando antecedem a subordinante ou quando surgem intercaladas.

Oração
Conjunções ou locuções
subordinada Sentido Exemplificação
conjuncionais subordinativas
adverbial
š Saramago tornou-se
mundialmente conhecido
porque, que, como, dado, Indica a razão, a causa, o motivo ou porque recebeu o Nobel.
Causal dado que, uma vez que, visto que, a justificação da situação expressa
pois, já que, ... na subordinante. š Como recebeu o Nobel,
Saramago tornou-se
mundialmente conhecido.
Expressa uma comparação, contendo
o segundo elemento da comparação
mais/menos… do que, qual (depois estabelecida com o conteúdo š Saramago tanto elogia o povo
de “tal”), quanto (depois de da subordinante. pela construção do convento
Comparativa
“tanto”), tanto/tão… como, bem como critica o rei pelo seu
como, como se, que nem, ... As subordinadas comparativas podem despesismo e arrogância.
corresponder a construções elípticas,
nas quais o grupo verbal é elidido.
Apresenta uma ideia ou um facto š Ainda que a construção
embora, conquanto que, ainda que,
que contrasta com o expresso na do convento fosse muito
Concessiva mesmo que/se, posto que,
subordinante, mas não impede a sua dispendiosa, D. João V não
se bem que, por mais/menos que, ...
realização. abandonou a sua edificação.
Apresenta a condição ou a hipótese š Caso não tivesse regressado
se, caso, desde que, contanto que,
Condicional exigida para a realização da situação do Brasil, Ricardo Reis nunca se
salvo se, a menos que, a não ser que, ...
expressa na subordinante. encontraria com o seu criador.
š A criação literária de Fernando
tão/tanto… que, a ponto de, Expressa o efeito ou a consequência Pessoa foi tão intensa que
Consecutiva
de tal modo… que, ... do que é dito na subordinante. ainda hoje surgem textos
inéditos deste autor.
para, para que, com a finalidade/
Refere o propósito, a intenção ou š Ricardo Reis visitou o cemitério
o objetivo de, de modo a/que,
Final a finalidade da ação expressa na com a finalidade de ver
de forma a que, a fim de (que),
subordinante. Fernando Pessoa.
de maneira a (que), ...
quando, enquanto, apenas, mal, logo
Cria uma referência temporal à luz da
que, depois de/que, antes de/que, até š Mal leias o conto, inicia a
Temporal qual a ação expressa na subordinante
que, sempre que, todas as vezes que, resolução das atividades.
deve ser interpretada.
agora que, cada vez que, assim que, ...

Frase ativa e frase passiva


Frase Explicação Exemplos

A frase é ativa quando apresenta um grupo verbal constituído por um


šOs alunos leem vários capítulos
Ativa verbo principal transitivo direto, transitivo direto e indireto ou transitivo-
de Memorial do convento.
-predicativo, podendo ser antecedido ou não de verbo auxiliar.
A frase é passiva quando apresenta um grupo verbal constituído por um
verbo principal no particípio passado, antecedido pelo verbo auxiliar ser.
Na transformação da frase ativa para a frase passiva,
šVários capítulos de Memorial do
Passiva – o complemento direto da frase ativa é transformado
convento são lidos pelos alunos.
no sujeito da frase passiva.
– o sujeito da frase ativa, se for realizado, transforma-se
em complemento agente da passiva.

364
Bloco informativo

Pronome pessoal em adjacência verbal − regras de utilização


As formas átonas (tais como o, a, os, as, nos, vos, lhe, lhes) ocorrem em adjacência verbal, ou seja, junto
ao verbo, desempenhando a função de complemento direto ou de complemento indireto.

Colocação do pronome pessoal átono

1. Tradicionalmente, o pronome surge em posição pós-verbal (ênclise).

Ex.: O aluno leu todas as obras recomendadas. O aluno leu-as.

š Nesta posição, os pronomes átonos o, a, os, as podem sofrer alterações, se a forma verbal termi-
nar em -r, -s ou -z. Neste caso, estas consoantes desaparecem e os pronomes tomam as formas
-lo(s), -la(s).
Ex.: Aquele jovem fez o trabalho sozinho. Aquele jovem fê-lo sozinho.

š Se a forma verbal terminar em -ns, passa a -m, quando seguida de pronome átono o, a, os, as, e os
pronomes tomam as formas -lo(s), -la(s).
Ex.: Tu tens o meu livro. Tu tem-lo.

š Quando a forma verbal termina em ditongo nasal (-m, -õe, -ão), os mesmos pronomes assumem
as formas -no(s), -na(s).
Exs.: Os alunos leem os livros recomendados. Os alunos leem-nos.
A Rita põe o dever acima de tudo. A Rita põe-no acima de tudo.

2. Quando ocorrem com formas verbais do futuro do indicativo e do condicional, os pronomes átonos
são colocados no interior dessa forma verbal (mesóclise).
Exs.: O Miguel apresentará o seu trabalho no segundo período. O Miguel apresentá-lo-á no
segundo período.
Ele trataria melhor os mais pequeninos. Ele tratá-los-ia melhor.

3. O pronome átono desloca-se para antes do verbo – próclise – em construções frásicas como as
seguintes:

a. Frases de polaridade negativa.

Exs.: Ele nunca apresentou o trabalho. Ele nunca o apresentou.


A Joana não fez a análise do poema. A Joana não a fez.

b. Frases com conjunções coordenativas com um elemento de polaridade negativa (não só… mas
também; nem… nem; etc.) e conjunções coordenativas disjuntivas (ou… ou; etc.).
Exs.: O Henrique não só analisou o poema como também apresentou o poema à turma.
O Henrique não só o analisou como também o apresentou à turma.
Ou ajudais o vosso colega ou ele perde-se. Ou o ajudais ou ele perde-se.

365
Bloco informativo

c. Frases com pronomes indefinidos como alguém, ninguém.

Ex.: Ninguém percebeu a ironia de José Saramago. Ninguém a percebeu.

d. Frases em que o verbo é antecedido de advérbios como mal, sempre, ainda, já, apenas, só, talvez,
aqui, …
Ex.: Ainda li este poema ontem. Ainda o li ontem.

e. Orações introduzidas por uma conjunção subordinativa.

Exs.: A turma garantiu que leu o poema "Isto". A turma garantiu que o leu.
Diz-me quando vais comprar o livro recomendado. Diz-me quando o vais comprar.
A professora disse para lermos o livro. A professora disse para o lermos.

f. Orações relativas (adjetivas ou substantivas).


Exs.: O autor que criticou a sua época foi admirado. O autor que a criticou foi admirado.
Quem criticou a Inquisição foi José Saramago. Quem a criticou foi José Saramago.

g. Frases ou orações iniciadas por um pronome relativo1 ou por um advérbio interrogativo2.

Exs.: 1 Quem leu os livros recomendados? Quem os leu?


2
Onde puseste o livro? Onde o puseste?

h. Frases de tipo exclamativo nas quais se manifestem emoções ou desejos1 ou aquelas em que
o falante constrói frases com determinada intencionalidade, destacando certos constituintes
e desviando-os da ordem padrão2.
Exs.: 1 Oxalá percebas os poemas todos! Oxalá os percebas todos!
2
Que Deus proteja os jovens! Que Deus os proteja!

4. Colocação do pronome pessoal átono em complexos verbais.

a. Nos complexos verbais com os auxiliares dos tempos compostos (ter e haver) e o auxiliar da
passiva (ser), o pronome é colocado à direita do verbo auxiliar.
Exs.: O professor tinha aconselhado mais estudo aos alunos.
O professor tinha-lhes aconselhado mais estudo.

O livro é emprestado pela bibliotecária aos alunos.


O livro é-lhes emprestado pela bibliotecária.

b. Pode ocorrer antes do complexo verbal quando algum elemento requer a próclise.

Ex.: Ninguém quis ler em voz alta o poema. Ninguém o quis ler em voz alta.

c. Nos complexos verbais com auxiliares como começar a, acabar de, estar a, andar a, o pronome
ocorre depois do verbo principal.
Ex.: Estou a apreciar o conto “Sempre é uma companhia”. Estou a apreciá-lo.

366
Bloco informativo

LEXICOLOGIA

Arcaísmos e neologismos
š Arcaísmos
Palavras ou expressões que deixam de ser comummente utilizadas pela comunidade e que, por isso,
passam a considerar-se antiquadas. É o caso de coita, forma antiga para referir ‘sofrimento’, ‘infeli-
cidade’.

š Neologismos
Palavras novas ou novas associações de forma e sentido que resultam, fundamentalmente, da necessi-
dade de renovação do léxico. Assim, o neologismo tanto pode resultar da atribuição de um novo sen-
tido a uma palavra já existente, como acontece com alguns termos da área da informática (rato, sítio,
portal, navegar, …), como pode decorrer da atuação dos diferentes processos de formação de pala-
vras (cf. europeizar, aerogerador, eurodeputado). Também do contacto com outras línguas pode resultar
a integração de novo vocabulário (empréstimos – cf. p. 369).

Campo lexical e campo semântico


š Campo semântico
Conjunto de significados que uma palavra pode ter, dependendo dos contextos em que ocorre.
O campo semântico de mar, por exemplo, integra os significados que, em situações distintas, o nome
adquire.
Exs.: Andava um mar de gente nas ruas da baixa.
Nem tudo é um mar de rosas.

š Campo lexical
Conjunto de palavras que, pelo seu significado, se associam a um determinado conceito ou ideia. Por
exemplo, ao campo lexical de mar, associam-se muitas outras palavras: pescadores, traineiras, mestre,
varinas, peixeiras, embarcações, …

Monossemia e polissemia
š Palavras monossémicas
Palavras que têm um só significado. Predominam nos textos científicos dado que neles se procura
veicular uma mensagem objetiva, que deve ser entendida por todos os leitores.
Exs.: cartografia, biologia, caligrafia, ...

š Palavras polissémicas
Palavras que apresentam uma propriedade semântica que lhes permite apresentarem vários signifi-
cados, de acordo com o contexto em que surgem, havendo, todavia, um elo comum nesses múltiplos
sentidos.
O termo ilha pode surgir como:
Exs.: š espaço rodeado de água Visitei a ilha da Madeira.
š designação de um local “Sabia já Baltasar que o sítio onde se encontrava era conhecido
pelo nome de Ilha da Madeira”
š pessoa tímida e com dificuldades de relacionamento Aquele rapaz é uma ilha!
š espaço que, pelas suas características geográficas, fica isolado Esta aldeia é uma ilha!

367
Bloco informativo

Denotação e conotação
š Denotação
Significado literal da palavra ou expressão e que, normalmente, é comum a todos os falantes.

š Conotação
Significado atribuído a uma palavra, que não o normal ou literal.
Exs.: Ele traz uma flor. (sentido denotativo)
Ele não é flor que se cheire. (sentido conotativo/figurativo – “má pessoa”).

Relações semânticas
As relações semânticas entre palavras podem ser de vários tipos.

š Relações de hierarquia: hiperonímia e hiponímia


Relação hierárquica de inclusão entre palavras:
 –hiperónimo – sentido mais genérico: peixe
 –hipónimo – sentido mais específico: pescada, carapau, sardinha, robalo, …
O hipónimo mantém com o hiperónimo traços semânticos comuns. Por isso, as espécies de peixes
elencadas são hipónimos do hiperónimo peixe, e vice-versa.

š Relações de todo/parte: holonímia/meronímia


Relação de hierarquia semântica entre palavras.
 –holónimo – refere o todo, a unidade: carro
 –merónino – refere uma parte dessa unidade: chassis, volante, bancos, guarda-lamas, para-
-choques, …

Os merónimos correspondem a partes do todo – neste caso o holónimo carro integra todos os
elementos referidos, os merónimos.

š Relações de semelhança/oposição: sinonímia e antonímia


 –sinonímia – relação de equivalência de significado entre duas ou mais palavras.
Exs.: bonito/lindo; carro/automóvel; pão/carcaça, ...
 –antonímia – relação semântica de oposição entre duas ou mais palavras.
Exs.: dia/noite; subir/descer; rápido/lento, ...

368
Bloco informativo

Processos irregulares de formação de palavras

Designação Definição

Criação de um vocábulo através da junção de letras ou sílabas de um grupo de palavras, que se pronunciam
Acrónimo como uma só palavra.
Ex.: ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações)

Criação de uma palavra a partir das iniciais de um grupo de palavras.


Sigla
Exs.: SCP (Sporting Clube de Portugal) / FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia)

Transferência de uma palavra de uma língua para outra, com ou sem adaptações às características formais da
Empréstimo língua recetora.
Ex.: Dossiê (do francês dossier)

Criação de novos sentidos para uma palavra já existente na língua que, contudo, não perde o(s) significado(s)
Extensão anterior(es).
semântica
Ex.: Rato (aplicado à informática como comando manual do computador)

Criação de um termo que se caracteriza pela eliminação de parte da palavra de que deriva.
Truncação
Ex.: Metro (metropolitano)

Criação de uma palavra a partir da junção de partes de duas ou mais palavras.


Amálgama
Ex.: Informática (informação + automática)

SEMÂNTICA

Valor temporal – formas de expressão do tempo


A categoria Tempo serve para localizar as situações (eventos ou estados) expressas em diferentes enun-
ciados. É através dos tempos verbais que mais frequentemente se marca essa localização. Porém, os ad-
vérbios ou expressões adverbiais de tempo ou até certas construções podem também ter essa função.

Uma situação localiza-se temporalmente em relação a um outro tempo que pode ser marcado de diver-
sas formas. Assim, conclui-se que o tempo linguístico é uma categoria relacional.

Os tempos gramaticais referem-se ao tempo entendido como ordenação linear orientada do passado
para o futuro, levando a considerar-se que os tempos gramaticais se articulam em três domínios:

š passado, usados para referências a ações anteriores ao momento da enunciação;

š presente, que se reporta ao momento da enunciação e ao que lhe é simultâneo ou sobreposto;

š futuro, o que é posterior ao momento da enunciação.

369
Bloco informativo

Assim, estabelecem-se relações de anterioridade, simultaneidade e posterioridade, que podem expres-


sar-se através dos tempos verbais e/ou de certos advérbios ou orações temporais. A título de exemplo:

Relações temporais Exemplificação

1
Anterioridade Fiz muitos exercícios sobre o valor temporal.
Marcada pela utilização do pretérito perfeito do indicativo1, pela 2
Ontem, encomendei uma gramática nova.
utilização de advérbios2 (ou expressões adverbiais), ou por uma 3
Antes de guardarmos os livros, preparámos a apresentação
oração subordinada adverbial temporal3. oral.

1
Simultaneidade Ando a ler um romance de Saramago.
Marcada pela utilização do presente do indicativo1 (no complexo 2
Neste momento, não sei dizer se prefiro ler prosa ou ler poesia.
verbal), pela utilização de advérbios2 (ou expressões adverbiais), 3
Enquanto a professora explicava as funções sintáticas,
ou por uma oração subordinada adverbial temporal3. eu ouvia-a atentamente.

Posterioridade 1
Decidirei que obra vou ler quando chegar a hora.
Marcada pela utilização do futuro1, pela utilização de advérbios2 2
No futuro, quero tornar-me médico.
(ou expressões adverbiais), ou por uma oração subordinada
3
adverbial temporal3. Quando chegar a casa, vou fazer (farei) a seleção dos poemas.

Valor aspetual
O aspeto gramatical relaciona-se com o valor dos tempos verbais, de verbos auxiliares, de estruturas
de quantificação, de certos tipos de nomes ou de modificadores. A combinação de elementos deste tipo
permite representar uma situação como culminada/concluída (valor perfetivo), não culminada (valor
imperfetivo), genérica, habitual ou iterativa.

Valor aspetual Exemplificação

Perfetivo
O tempo verbal normalmente associado a este aspeto é o pretérito perfeito do indicativo. šGeorge vendeu a casa dos pais.
A situação expressa no enunciado apresenta-se concluída.

Imperfetivo
šOs ceifeiros ouviam as emissões
O tempo verbal normalmente associado a este aspeto é o pretérito imperfeito do
de rádio todas as noites.
indicativo. A situação expressa no enunciado apresenta-se em curso ou por concluir.

Genérico
O tempo verbal normalmente associado a este aspeto é o presente do indicativo ou o šViajar abre horizontes.
infinito impessoal conjugado com grupos nominais de interpretação genérica. Apresenta-se šA Terra gira em torno do Sol.
em enunciados que veiculam informações aceites como universais e intemporais.

Habitual
Os tempos verbais mais associados a esta situação são o presente do indicativo e o šCostumamos viajar por Portugal
pretérito imperfeito do indicativo, dependendo do ponto de referência da enunciação. nas férias.
São também recorrentes expressões como costumar, ser costume, ser habitual, … šLiam poesia sempre que estavam
Apresenta situações que surgem em enunciados que expressam uma pluralidade infinita apaixonados.
de acontecimentos que se sucedem num período de tempo construído como ilimitado.

Iterativo šDesde a chegada da rádio, Batola


O tempo verbal associado a este valor aspetual é o pretérito perfeito composto tem trabalhado bastante na loja.
do indicativo e construções como “andar a”, ou outras expressões de valor temporal.
Apresenta-se em enunciados que expressam situações que se repetem num período šOs alunos do 12.˚ andam a ensaiar
de tempo delimitado ou não. a leitura expressiva da “Ode triunfal”.

370
Bloco informativo

Valor modal
Exprime a atitude do locutor relativamente àquilo que diz e a quem o diz. Através do valor modal expres-
sam-se apreciações - modalidade apreciativa - sobre o conteúdo de um enunciado, representam-se
valores de probabilidade ou de certeza - modalidade epistémica, de permissão ou obrigação - valor
deôntico.

Assim, há três tipos de modalidade: apreciativa, epistémica e deôntica.

Modalidade Exemplificação

Apreciativa šLamento que não tenhamos feito uma visita de estudo


O locutor exprime um juízo valorativo sobre uma situação, à Fundação José Saramago.
utilizando construções exclamativas e/ou verbos como lamentar, šInfelizmente, Marcenda recusou casar com Ricardo Reis.
gostar, apreciar, admirar, … šEste romance é magnífico!

Valor de certeza1-2
1
O locutor assume uma posição A mulher apoiou, no final, a decisão de Batola.
Epistémica de certeza face ao que afirma. 2
Ricardo Reis receava o interrogatório da PVDE.
3
Valor de probabilidade3-4 Talvez António Barrasquinho vivesse revoltado com a atitude
O locutor não assume a falsidade ou da mulher.
verdade do que afirma, antes supõe que 4
É provável que George se sentisse angustiada.
possa ser verdade ou não o seu juízo.

Deôntica
O locutor procura agir sobre o interlocutor impondo, proibindo 1
Podes fazer o que quiseres depois de ler os contos! (permissão)
ou autorizando. 2
Ouve o que tenho para te contar. (obrigação – impor)
Os valores deônticos subdividem-se, assim, em
3
− valor de permissão1 (autorizar); Deves estudar mais! (obrigação – impor)
− valor de obrigação2-3 (impor ou proibir).

Para exprimir os valores modais, vários recursos podem ser utilizados:


š a frase ou construção de tipo exclamativo;

š a entoação (na oralidade);

š o emprego de advérbios e locuções adverbiais que formalizam os diversos tipos de modalidade


(ex.: certamente, evidentemente, possivelmente, talvez, felizmente, francamente, …);
š o emprego de adjetivos reveladores da perspetiva do locutor em relação ao que enuncia (ex.: bom,
mau, agradável, desagradável, horrível, importante, permitido, proibido, …);
š a variação do modo ou do tempo verbal (ex.: no uso do imperativo, emerge a modalidade deôntica);

š o emprego de verbos auxiliares com determinado valor modal (ex.: dever, ter de, poder + infinitivo);

š o emprego de verbos principais com valor modal (ex.: saber, crer, pensar, duvidar, obrigar, autorizar,
permitir, gostar de, agradar, apreciar, detestar, lamentar, …);
š o emprego do verbo ser em expressões reveladoras de diversos tipos de modalidade (ex.: é pena
que, é lamentável que, é necessário que, é certo que, é preciso que, é obrigatório que, é possível que).

371
Bloco informativo

DISCURSO, PRAGMÁTICA E LINGUÍSTICA TEXTUAL

Dêixis: pessoal, temporal e espacial


Os deíticos são mecanismos linguísticos de caráter pessoal, espacial e temporal, que remetem para a
situação de enunciação. Esta, por sua vez, pressupõe sempre um eu/tu, um aqui e um agora.

Os deíticos não têm, portanto, referência fixa; a sua interpretação depende das circunstâncias de enun-
ciação,isto é, a sua referenciação só pode ser identificada tendo em conta os participantes na interação
verbal, uma vez que é o contexto situacional do “eu”/“tu”, “aqui”, “agora” que fornece os dados para essa
mesma referenciação.

Só é possível interpretar um enunciado com deíticos se houver um conhecimento do contexto de enun-


ciação que permita identificar quem produziu o enunciado, a pessoa a quem se dirige, o espaço e o tempo
referenciados.

Exemplificando:

Deíticos Exemplos de enunciados Marcas linguísticas

− Formas verbais conjugadas na 1. a pessoa


(do singular): “Tenho”; “quero” “sou”;” falei”
“− Também tenho muitos encontros, eu.
Não quero tê-los mas sou obrigada a
isso, vivo tão só. […] Porque... o tal crime A denunciarem a presença do locutor (eu)
Pessoal de que lhe falei, o único sem perdão, a − Determinantes possessivos e pronomes
velhice. Um dia vai acordar na sua casa pessoais de 3. a pessoa: “lhe” e “sua”
mobilada...”
Maria Judite de Carvalho, “George”
A denunciarem a presença do interlocutor
(tu-você)

“− Partir, não é? Em que se pode pensar


aqui, neste cu de Judas, senão em
Espacial partir? Ainda não me fui embora por − Advérbio com valor locativo: “aqui”
causa do Carlos, mas...”
Maria Judite de Carvalho, “George”

“Sai da venda, entra no carro, e diz ao


Batola, aproveitando o ruído do motor: − Advérbio com valor temporal: “agora”
Temporal − Você, agora, arrume a questão: tem − Marcas de flexão verbal que assinalam o
um mês para a convencer.” presente do indicativo: “sai”, “entra”
Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”

Em síntese: os elementos de referência deítica podem ser pronomes pessoais, determinantes e prono-
mes possessivos e demonstrativos, advérbios, tempos verbais, algumas preposições e locuções preposi-
tivas, alguns adjetivos (atual, contemporâneo, futuro, …), alguns nomes (véspera, …).

372
Bloco informativo

Marcadores discursivos/conectores
São unidades linguísticas invariáveis que, embora não desempenhem uma função sintática no âmbito da
frase nem contribuam para o sentido proposicional do discurso, têm uma função relevante na sua produ-
ção, estabelecendo conexões entre os enunciados, organizando-os e indicando o seu sentido argumentati-
vo, introduzindo novos temas, mantendo e orientando o contacto do locutor com o interlocutor.
Os marcadores discursivos podem subdividir-se em:
š estruturadores da informação, sobretudo com a função de ordenação.
Exs.: em primeiro lugar, por outro lado, por último, ...
š reformuladores, sobretudo com a função de explicação e de retificação.
Exs.: ou seja, por outras palavras, dizendo melhor, ou antes, ...
š operadores discursivos, sobretudo com a função de reforço argumentativo e de concretização
Exs.: de facto, na realidade, por exemplo, mais concretamente, efetivamente, nomeadamente, ...
š marcadores conversacionais ou fáticos
Exs.: ouve, olha, presta atenção, homem, ...
š conectores, como os que se apresentam na tabela seguinte, e que têm uma determinada função lógi-
ca/sintática:

Função lógica/sintática Listagem de conectores Exemplificação


Os ceifeiros não saíam de casa nem conviviam.
Adição (aditivo, copulativo) e / nem / bem como /
Agrupa, adiciona segmentos, sequências. não só... mas também... Não só li o conto “George” como também
resolvi as atividades propostas.
Alternativa / exclusão (disjuntivo) (ou... ) ou... / ora... ora... / Ou por vontade ou por interesse, a mulher
Apresenta opções, alternativas. seja... seja... de Batola acedeu a ficar com o rádio.
Causa (causal) porque / como / visto que / Dada a extensão do livro, iniciei a leitura
Introduz a causa, a razão. dado (que) / uma vez que / já que no verão.
Concessão (concessivo) embora / ainda que / mesmo Leio poesia embora prefira a prosa.
Nega o efeito, a conclusão da frase que / conquanto / apesar de /
subordinada, sem impedir o que nela é dito. malgrado / não obstante Apesar de preferir a prosa, também leio poesia.

Conclusão (conclusivo) portanto / assim / logo / O teste é decisivo; logo, tenho de me preparar
Traduz a conclusão lógica, a inferência resultante. por conseguinte bem.
Condição (condicional) se / caso / desde que /
Se respeitares, serás respeitado.
Introduz hipóteses ou condições. a não ser que / contanto que
como / tal como... (assim...) /
Comparação (comparativo) Tal como os alunos se mostraram interessados,
bem como... também... /
Traduz a comparação. também os professores revelaram satisfação.
mais (menos) do que…
O professor afirmou que a obra Mensagem
Completamento (completivo) tem um caráter simbólico.
Introduz o elemento sintático que completa que / se / para
o sentido do núcleo do grupo verbal. O aluno perguntou se a linguagem era
metafórica.
Consequência (consecutivo) daí (que) / por isso / de tal forma... Ele gosta tanto dos poemas de Ricardo Reis
Introduz a ideia de efeito, consequência. que... / tanto, tão, tal... que... que os decorou facilmente.
Finalidade (final) para (que) / a fim de / de modo Participou na visita de estudo a Mafra para
Traduz a intenção visada, o objetivo. (forma) a / com o objetivo de apreciar melhor a obra saramaguiana.
Oposição (adversativo) mas / todavia / porém / contudo / Alguns autores têm uma escrita hermética,
Articula conclusões adversárias, diferentes. no entanto mas a beleza das obras mantém-se.
quando / enquanto / mal /
Tempo (temporal) Quando assistimos à leitura expressiva de
entretanto / logo que / depois de /
Exprime relações de tempo. poemas, o seu conteúdo torna-se mais claro.
antes de / desde que

373
Bloco informativo

Reprodução do discurso no discurso

Formas de
Definição e estratégias Exemplificação
representação

1
Reprodução de um texto ou de um fragmento de texto Exemplo explícito da citação direta são as
(escrito ou oral) noutro texto, sendo destacado por aspas ou citações bíblicas utilizadas pelo Padre António
por um tipo de letra diferente. Vieira. Estas citações conferem autoridade
A citação pode ser direta ou indireta: utiliza-se a primeira argumentativa ao seu discurso.
(direta)1 para reproduzir as palavras de alguém ou de fontes 2
Tal como se afirma no Dicionário Terminológico,
Citação
consultadas; a segunda (indireta)2 consiste em parafrasear a citação deve ser ” assinalada com referência ao
ou condensar uma ideia ou assunto abordado por outrem. autor e/ou à obra aos quais pertencem, …”
As normas de citação exigem a identificação do autor e da(s) dt.dge.mec.pt
fonte(s) consultada(s). Pode ter uma função argumentativa
(autoridade), uma finalidade didática ou de paródia.

Modalidade de reprodução do discurso que consiste em “Poisa a mão sobre o ombro do Batola,
reproduzir, por escrito, características próprias da oralidade e exclama:
(realizações fonéticas, hesitações, repetições, pausas, − Dou-lhe a minha palavra de honra que não
interjeições, deíticos, ...) numa espécie de simulação ou encontra nenhum aparelho pelo preço deste!
reprodução do discurso testemunhado, mostrando as Sem dar tempo a qualquer resposta, ordena:
características contextuais vividas por quem é citado. − Traz a pasta, Calcinhas!”
Aparece, normalmente, marcado graficamente por: Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”
Discurso
direto  šverbos de tipo declarativo − afirmar, perguntar, responder,
sugerir, concordar, declarar, explicar, podendo estes ser
eliminados para conferir mais vivacidade, naturalidade e
fluidez ao discurso;
 šaspas;
 šdois pontos, parágrafo, travessão;
 šitálicos.

Modalidade de reprodução do discurso onde não há “E, ao meter os papéis dentro da pasta, repara
interferência direta da(s) personagem(ns), porque as que já é muito tarde. Apressado, conta que veio
suas falas são reproduzidas pelo narrador. Apresenta, por ali devido a um engano no caminho.”
normalmente: Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”
 šverbos declarativos – dizer, afirmar, responder, pedir,
Discurso perguntar;
indireto
 šorações subordinadas substantivas completivas ou
infinitivas;
 šutilização da terceira pessoa gramatical, que implica
também alterações das expressões deíticas bem como
de tempos e modos verbais.

Modalidade que implica uma fusão entre a enunciação do “Algumas tábuas do convés estavam
emissor-relator (narrador) com a enunciação do locutor- apodrecidas. Teria de substituí-las, trazer os
-personagem. É frequente no texto ficcional e permite ao materiais necessários, demorar-se aqui uns dias,
narrador integrar, no seu discurso, as manifestações verbais ou então, só agora lhe ocorria a ideia, desmontar
Discurso das personagens, sem recorrer aos verbos introdutórios a máquina peça por peça, transportá-la para
indireto livre declarativos. Mantêm-se as marcas do discurso indireto ao Mafra escondê-la debaixo duma parga de palha,
nível de pessoa, tempo e modos verbais, mas recorre-se a ou num dos subterrâneos do convento, se
marcas do discurso oral, também presentes no discurso direto, pudesse combinar com os amigos mais chegados,
como: interjeições, exclamações, expressões modalizadoras, confiar-lhes metade do segredo”
marcadores discursivos (ora, pois bem, sendo assim, …) José Saramago, Memorial do convento

374
Bloco informativo

Texto e textualidade − coerência e coesão textual


š Coerência textual
A coerência resulta da articulação lógica entre as diferentes partes e ideias de um texto. Depende
ainda da intencionalidade do autor, da ordenação e estruturação do conteúdo informacional dos
textos bem como da competência linguística, da capacidade interpretativa e do conhecimento que
o falante possui do mundo.

Para haver coerência textual é necessário que o texto:

š apresente progressão, ou seja, que acrescente novos factos š privilegie informação relevante, ou seja, que evite quaisquer
ou ideias; dados ou factos que não sejam pertinentes para o tema;
š obedeça à regra da não contradição, isto é, que não exponha š espelhe a continuidade de sentido, isto é, que não haja
ideias ou informações incompatíveis com outras já enunciadas; afastamento do tema/assunto.
š renove a informação, eliminando as repetições inúteis;

š Coesão textual
A coesão realiza-se através de mecanismos linguísticos lexicais e gramaticais que conferem con-
tinuidade, sentido e progressão entre os elementos da superfície textual, pelo que está intimamente
ligada à coerência.

Mecanismos de coesão/
Processos implicados Exemplificação
Definição

Coesão lexical š Reiteração: repetição de uma mesma unidade lexical ou expressão no Exs.:
Mecanismo que se texto. “D. João, quinto do seu
baseia na repetição š Substituição: substituição de unidades lexicais e expressões por outras nome na tabela real, irá
da mesma palavra ao que se relacionam no texto através de relações de: esta noite ao quarto de
longo do texto ou na sua mulher1, D. Mariana
− sinonímia1;
sua substituição por Ana Josefa1, que3 chegou
outras que com ela se − antonímia;
há mais de dois anos da
relacionam, constituindo − hiperonímia-hiponímia (hierarquia)2; Áustria”
assim uma rede − holonímia/meronímia (parte/todo).
semântica adequada “o sol inundou a máquina2,
ao tema desenvolvido. brilharam as bolas de
âmbar2 e as esferas2…”
Coesão gramatical š referencial3: relaciona-se com o uso anafórico de pronomes.
Relaciona-se com a š frásica4 (concordância): refere-se aos mecanismos linguísticos usados “A máquina4 rodopiou4
organização interna dos na ligação dos elementos que constituem as frases ou cada uma das duas vezes, despedaçou4,
elementos linguísticos suas partes, como: rasgou4 os arbustos que5 a3
e com os princípios envolviam, e5 subiu.”
− a ordenação das palavras na frase;
da concordância
− a flexão e concordância (género e número); “Sete-Sóis e Sete-Luas, se
− as regências verbais ou outras exigidas na construção de uma nome tão belo lhe3 puseram,
unidade de sentido. bom é que o3 use, não
š interfrásica5: reporta-se aos mecanismos que servem para ligar as desceram de S. Sebastião
frases, os períodos e os parágrafos de um texto através de conectores da Pedreira…”
ou apenas da pontuação quando se pressupõe a elipse de conectores.
š temporal6: relaciona-se com mecanismos linguísticos, como advérbios “Amanhã6 Blimunda terá6
e tempos verbais, que instituem uma relação temporal com sentido, na os seus olhos, hoje6 é6 dia
superfície textual. Verifica-se através da: de cegueira”
− utilização correlativa dos tempos verbais;
* Todos os excertos pertencem à obra
− compatibilidade entre os advérbios de localização temporal e os Memorial do convento.
tempos verbais selecionados.

375
Bloco informativo

Intertextualidade
Qualquer texto pode manter ou constituir com outros textos relações de ordem semântica ou retóri-
co-estilística, às quais se dá o nome de intertextualidade e consiste numa ligação entre um hipertexto
(texto produzido a partir de outros ou sobre outros) com um ou diversos hipotextos (que além de lite-
rários, podem ser musicais, icónicos, …) e pode ocorrer de diversas formas: alusão, citação, paráfrase,
paródia (ou imitação criativa) e plágio.

Observe alguns exemplos de intertextualidade visíveis em obras da literatura portuguesa.

Hipotexto Hipertexto Relação

“quando, inesperadamente, Carlos apareceu em Lisboa “Esta é a cama que veio da Holanda quando a rainha
com um arquiteto decorador de Londres (…). veio da Áustria, (…), que em Portugal não há artífices
Vilaça ressentiu amargamente esta desconsideração de tanto primor, e, se os houvesse, sem dúvida
pelo artista nacional” ganhariam menos.” Alusão
Eça de Queirós, Os Maias José Saramago, Memorial do convento

“Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria


"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça”
sem justiça” Ironia
Luís de Camões, Os Lusíadas
José Saramago, Memorial do convento

“Este, que aqui aportou,


“Ulisses é, o que faz a santa casa
Foi por não ser existindo.
À Deusa que lhe dá língua facunda;
Sem existir nos bastou.
Que se lá na Ásia Troia insigne abrasa,
Por não ter vindo foi vindo Alusão
Cá na Europa Lisboa ingente funda.”
E nos criou.”
Os Lusíadas, canto VIII
Fernando Pessoa, Mensagem

Sequências textuais
Qualquer texto é constituído por um conjunto de sequências que podem ser de natureza narrativa, des-
critiva, argumentativa, explicativa e dialogal, cada uma correspondendo a um modelo definido por um
conjunto de características, conforme a tabela seguinte. Recorde-as.

Natureza da sequência Natureza da sequência Exemplificação

Narrativa š Pretérito perfeito alternando com


Narração de acontecimentos pretérito imperfeito e presente do
realizados por personagens “O táxi desceu a Calçada da Estrela, virou nas
indicativo.
num determinado espaço e Cortes, em direção ao rio, e depois, pelo caminho já
š Conectores de natureza espácio- conhecido, ganhou a Baixa, subiu a Rua Augusta”
que apresentam uma certa
-temporal.
sequencialização temporal José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis
(conto, fábula, lenda, novela, š Articuladores que demarcam a
romance, …). sequencialização narrativa.

š Predomínio de verbos de estado (ser/


estar/parecer…).
Descritiva “Por uma dessas alongadas ruas do Porto, que sobe
š Utilização do presente e/ou imperfeito
Apresentação da descrição de um que sobe e não se acaba, há de encontrar-se um
do indicativo para transmitir a
objeto/tema ao qual se atribuem cruzamento alto, de esquinas de azulejo, janelas
perspetiva durativa.
caraterísticas/qualidades de guilhotina, telhados de ardósia em escama.”
(retrato, adivinha, …). š Estruturas qualificativas
Mário de Carvalho, “Famílias desavindas”
(modificadores/orações relativas, …).
š Recurso a figuras de estilo.

376
Bloco informativo

Natureza da sequência Natureza da sequência Exemplificação

Esfregando as mãos, começa a enumerar


rapidamente as qualidades de um tal aparelho:
Argumentativa − É o último modelo chegado ao país. Quando
A intenção comunicativa é š Verbos no presente do indicativo. se quer, é música toda a noite e todo o dia. Ou então
a de convencer, persuadir o canções. E fados e guitarradas! Notícias de todo
š Estruturação do discurso
interlocutor. A argumentação o mundo, desde manhã até à noite, notícias da
argumentativo:
está presente em várias situações guerra!...
do dia a dia, nomeadamente tese argumentação conclusão. Aponta para o retângulo azul:
discussões, debates, conversas š Abundância de conectores que − Olhe, aqui, é Londres; aqui, a Alemanha; aqui, a
(artigos de opinião, discursos marcam a progressão e articulam América. É simples: vai-se rodando este botãozinho...
políticos, sermões, textos as diferentes partes do texto. Poisa a mão sobre o ombro do Batola, e exclama:
publicitários, …). − Dou-lhe a minha palavra de honra que não
encontra nenhum aparelho pelo preço deste!
Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”

Explicativa š Utilização predominante do presente


do indicativo. “O sistema é simples […]. Um homem pedala
A intenção comunicativa é a numa bicicleta erguida a dez centímetros do chão
de explicar, expor e informar. š Discurso predominantemente
por suportes de ferro. A corrente faz girar um
O objetivo é conduzir o leitor de terceira pessoa.
imã dentro de uma bobina. A energia gerada vai
à compreensão da informação š Especificidade lexical (de acordo com acender as luzes de um semáforo, comutadas pelo
fornecida (artigos de natureza a temática abordada). ciclista.”
científica ou enciclopédica, š Estruturas qualificativas
definições, …). Mário de Carvalho, “Famílias desavindas”
(modificadores, orações relativas, …).

“− Que pensas fazer, Gi?


− Partir, não é? Em que se pode pensar aqui,
neste cu de Judas, senão em partir? Ainda não me
š Referenciação deítica.
fui embora por causa do Carlos, mas... O Carlos
š Marcas relacionadas com a situação pertence a isto, nunca se irá embora. Só a ideia
Dialogal de produção do discurso: alternância o apavora, não é?
Ocorre sempre que os da primeira e da segunda pessoa
interlocutores conversam, usando − Sim. Só a ideia.
e formais verbais no presente
da palavra alternadamente. − Ri-se de partir, como nós nos rimos de uma coisa
do indicativo.
Está presente em qualquer impossível, de uma ideia louca. Quer comprar uma
interação verbal em diferentes š Discurso marcado pelas características terra, construir uma casa a seu modo. Recebeu uma
situações e contextos da oralidade (repetições, pausas…). he¬rança e só sonha com isso. Creio que é a altura
(diálogos, debates, entrevistas, …). š Na escrita apresenta travessões de eu...
e mudança de linha para assinalar − Creio que sim.
a mudança de interlocutor. − Pois não é verdade?
− Ainda desenhas?”
Maria Judite de Carvalho, “George”

377
II – GÉNEROS TEXTUAIS - Domínios e marcas textuais

Géneros Definição e marcas Domínios / ano

Género textual que faz a apresentação de um


publicitário

Uso de uma linguagem apelativa. Oralidade


Anúncio

determinado objeto/assunto evidenciando


Recurso a frases interrogativas e exclamativas. (compreensão
o seu interesse e as suas características. do oral)
Uso de recursos expressivos.
Possui um caráter apelativo e recorre a [10.˚]
múltiplas linguagens (verbal, não verbal). Utilização de neologismos.

Texto onde se faz a apreciação valorativa Encadeamento lógico dos tópicos abordados. Oralidade
(expressão oral)
Apreciação

de um determinado objeto (livro, disco, Recurso a mecanismos de coesão − conectores,


crítica

exposição, …), deíticos, ... [10.˚/ 11.˚]


observando-se, sob uma perspetiva crítica, Uso de uma linguagem valorativa. Leitura
as suas características, funcionalidades Utilização expressiva da pontuação e da linguagem. Escrita
e interesse. Predomínio dos nomes e dos adjetivos. [10.˚/ 11.˚/ 12.˚]

Texto expositivo sobre um determinado


divulgação

Uso de uma linguagem clara, objetiva e específica


científica
Artigo de

aspeto de uma área do saber com o objetivo de uma determinada área. Leitura
de divulgação.
Utilização de frases declarativas. [10.˚/ 11.˚]
Caracteriza-se pelo rigor, pela objetividade
e pela informação seletiva e criteriosa. Hierarquização das ideias e explicitação das fontes.

Texto de natureza expositiva-argumentativa, Encadeamento lógico dos tópicos abordados.


Artigo/Texto

Oralidade
de opinião

onde se desenvolve um determinado assunto Recurso a mecanismos de coesão − conectores,


(expressão oral)
sob uma perspetiva pessoal, emitindo um deíticos, …
Leitura
juízo de valor de forma clara, através do Uso de uma linguagem valorativa. Escrita
recurso a argumentos e aos respetivos Recurso às frases declarativas, à linguagem objetiva,
exemplos. [11.˚/ 12.˚]
a nomes e a adjetivos.
argumentativo

Interação verbal de caráter persuasivo, Uso de um discurso conciso e claro. Oralidade


Diálogo

(compreensão
onde cada interveniente defende um ponto Respeito pelas normas reguladoras da interação do oral e
de vista, através do recurso a argumentos comunicativa (princípios da cortesia e da expressão oral)
e a exemplos válidos. cooperação). [12.˚]

Texto caracterizado pela variedade de temas,


uma vez que o emissor “discorre” sobre Utilização do discurso de primeira pessoa.
Diário

o quotidiano. Leitura
Utilização expressiva da linguagem.
Predominam as sequências narrativas, [12.˚]
os acontecimentos estão ordenados Encadeamento lógico dos tópicos tratados.
cronologicamente.

Utilização de uma linguagem clara e objetiva. Oralidade


Interação verbal, de caráter argumentativo, (compreensão
onde diferentes intervenientes defendem Evidência de um discurso apelativo. do oral)
Debate

um ponto de vista/tese. Respeito pelas normas reguladoras da interação [11.˚]


Predomínio do caráter persuasivo através comunicativa (princípios da cortesia e da (compreensão
do oral e
da validade da argumentação, da contra- cooperação). expressão oral)
-argumentação, das provas.
[11.˚/ 12.˚]

378
Bloco informativo

Géneros Definição e marcas Domínios / ano

Texto argumentativo de interesse global, Recurso à coerência e validade dos argumentos, Oralidade
Discurso
político

cujo objetivo é a persuasão, através da contra-argumentos, provas, …). (compreensão


defesa de um ponto de vista. São colocadas do oral)
Utilização de recursos expressivos. Leitura
em destaque as capacidades de expor,
de argumentar, ... Predomínio da primeira pessoa do singular. [11.˚]

Texto que faz a apresentação de um Recurso a variedade de tema, cobertura de um tema


Documentário

determinado assunto/tema colhido da ou acontecimento. Oralidade


realidade e tratado sob uma determinada Presença do discurso direto e indireto. (compreensão
perspetiva. do oral)
Diversidade de registos (objetivos/subjetivos).
Veicula informação criteriosa e seletiva com Emprego de mecanismos de coesão e de recursos [10.˚]
um fim didático. verbais e não verbais.

Oralidade
Exposição sobre um

(compreensão do oral
Encadeamento lógico dos tópicos abordados. e expressão oral)
Texto de caráter demonstrativo onde se Recurso a mecanismos de coesão − conectores, [11.˚]
tema

disserta de forma clara e fundamentada deíticos, …


sobre um determinado tema, mobilizando Uso de uma linguagem clara, objetiva e denotativa. Leitura
informação relevante sobre o assunto. Predomínio dos nomes e dos verbos e das frases [10.˚]
declarativas. Escrita
[10.˚/ 11.˚/ 12.˚]

Texto de caráter pessoal, versando assuntos


passados.
Memórias

Utilização do discurso de primeira pessoa.


Variedade de temas e narratividade. Leitura
Utilização expressiva da linguagem.
Possui valor documental: pode permitir [12.˚]
Encadeamento lógico dos tópicos tratados.
a reconstrução de espaços, épocas, vivências
pessoais.

Texto predominantemente narrativo


e descritivo, versando uma variedade Predomínio do discurso de primeira pessoa.
Relato de
viagem

de temas, onde se registam as impressões Uso de uma linguagem valorativa. Leitura


do emissor acerca de lugares visitados. Utilização expressiva da pontuação e da linguagem. [10.˚]
Prevalece o discurso pessoal e, portanto, Predomínio dos nomes e dos adjetivos.
subjetivo.
Reportagem

Peça jornalística que se caracteriza pela Uso de uma linguagem objetiva e clara. Oralidade
multiplicidade de temas abordados e de Recurso ao discurso direto e indireto. (compreensão
intervenientes, o que implica a diversidade do oral)
de pontos de vista e a veiculação de Recurso à subjetividade do autor.
Utilização da primeira e da terceira pessoas. [10.˚]
informação ampla e seletiva.

Texto que se caracteriza pela condensação Encadeamento lógico dos tópicos abordados. Oralidade
Síntese

das ideias de um texto de partida − redução


Recurso a mecanismos de coesão. (expressão oral)
a cerca de um quarto − através da seleção Escrita
das ideias essenciais, de forma a manter Recurso às frases declarativas e à linguagem
a informação fundamental. objetiva. [10.˚]

Nota: informação recolhida e sistematizada a partir do documento oficial Programa e Metas Curriculares de Português – Ensino Secundário.

379
III – RECURSOS EXPRESSIVOS
Bloco informativo

No texto literário, o desvio relativamente ao uso normalizado da língua é uma marca do poder criativo da linguagem. Contra-
riamente ao texto informativo e de linguagem corrente, o texto literário sugere muito mais do que diz, explora a diferença, a
estranheza bem como o caráter plurissignificativo da linguagem. Para tal, a contribuição dos recursos expressivos que a língua
permite é fundamental.

Tal é conseguido porque a língua permite construções que evidenciam mecanismos estilísticos e expressivos vários. Neles
cabem os recursos expressivos como:

Recurso
Definição Exemplificação
expressivo

“Leve, breve, suave, / Um canto de ave”


Adjetivação Utilização expressiva e recorrente da classe dos adjetivos.
Fernando Pessoa, [Leve, breve, suave]

“Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando”


Aliteração Repetição sucessiva de um tipo de sons consonânticos.
Álvaro de Campos, “Ode triunfal”

“Poder ir na vida triunfante como um automóvel


Repetição de uma palavra ou expressão no início de versos último-modelo! / Poder ao menos penetrar-me
Anáfora
ou de frases sucessivos. fisicamente de tudo isto”
Álvaro de Campos, “Ode triunfal”

“Ouvi-la alegra e entristece”


Antítese Aproximação de duas ideias opostas ou contraditórias.
Fernando Pessoa, “A ceifeira”

Interpelação, chamamento do recetor a quem é destinado “Senhor, falta cumprir-se Portugal!”


Apóstrofe
o discurso. Fernando Pessoa, Mensagem

“Tira a lâmpada, enrosca aí a tomada, puxa o fio que


Supressão intencional de articuladores/conectores entre palavras, sai da caixa, liga-o.”
Assíndeto
expressões ou frases sucessivas.
Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”

“Andam lentamente, mais do que se pode, como


Relação de realidades, colocadas em paralelo, por meio de um quem luta sem forças contra o vento”
Comparação
termo comparativo ou verbos como parecer, lembrar, sugerir, ...
Maria Judite de Carvalho, “George”

“Buscar na linha fria do horizonte


Apresentação sucessiva de elementos, frequentemente da mesma A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte”
Enumeração
categoria gramatical ou com o mesmo tipo de estruturação.
Fernando Pessoa, Mensagem

“Quando […] formos vultos solenes”


Atenuação na transmissão de uma ideia ou de uma realidade (= quando morrermos)
Eufemismo
excessiva, semanticamente negativa.
Ricardo Reis, [Só o ter flores pela vista fora]

“Ah, poder exprimir-me todo como um motor se


Recurso a sequências/frases de tipo exclamativo, marcando
Exclamação exprime!”
reações, atitudes expressivas e subjetivas
Álvaro de Campos, “Ode triunfal”

Sucessão de, pelo menos, três termos sintaticamente equivalentes, “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”
Gradação organizados segundo uma ordem crescente (progressiva)
Fernando Pessoa, Mensagem
ou decrescente (regressiva).

380
Bloco informativo

Recurso
Definição Exemplificação
expressivo

Atribuição, ao ser ou entidade designado por uma palavra,


de uma qualidade ou ação logicamente pertencente a outro “À dolorosa luz das grandes lâmpadas”
Hipálage
ser ou entidade expresso ou subentendido na mesma frase Álvaro de Campos, “Ode triunfal”
ou sequência textual.

Utilização de termos excessivos para efeito de exagero “Esta angústia que trago há séculos em mim!”
Hipérbole
da realidade. Álvaro de Campos, [Esta velha angústia]

Separação de palavras ou membros de frase (sintaticamente “De todo o esforço seguremos quedas / as mãos.”
Hipérbato
ligados) por intercalação de outros segmentos frásicos. Ricardo Reis, [Só o ter flores pela vista fora]

“Ó mar salgado, quanto do teu sal


Encadeamento de metáforas e/ou de comparações, São lágrimas de Portugal!”
Imagem contribuindo para uma associação de realidades que têm Por te cruzarmos, quantas mães choraram.”
características comuns.
Fernando Pessoa, Mensagem

“Quem vem viver a verdade


Interrogação Questão que se formula não para obter resposta, mas para
Que morreu D. Sebastião?”
retórica melhor orientar/realçar a ideia a transmitir.
Fernando Pessoa, Mensagem

Troca da ordem normal dos elementos numa construção “As rosas amo dos jardins de Adónis”
Inversão
sintática. Ricardo Reis, [As rosas amo dos jardins de Adónis]

Expressão de palavra/ideia polemicamente orientada para “D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria”
Ironia conclusão diferente daquilo que é o sentido literalmente
José Saramago, Memorial do convento
proferido.

Reconstrução, por analogia, do significado normal de uma “iam ser, outra vez, o rebanho que se levanta com o dia”
Metáfora palavra ou expressão, aproximando-o ou associando-o a um
Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”
campo semântico distinto.

Relação sintática de termos com lógica contraditória no seio “Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?”
Oxímoro
de um juízo. Álvaro de Campos, “Ode triunfal”

Utilização de uma expressão composta por vários termos “O plantador de naus a haver” (= D. Dinis)
Perífrase
em vez da possibilidade de utilizar uma só palavra. Fernando Pessoa, Mensagem

Atribuição de sentimentos, ações ou ideias próprias do “Breve, a aldeia ficará adormecida”


Personificação
ser humano a objetos ou elementos da Natureza. Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”

“Penso com os olhos e com os ouvidos


Repetição intencional de articuladores entre palavras ou
Polissíndeto E com as mãos e os pés”
frases sucessivas.
Alberto Caeiro, [Sou um guardador de rebanhos]

“E ao imenso e possível oceano


Expressão da parte pelo todo, do singular pelo plural, do
Sinédoque Ensinam estas Quinas, que aqui vês.”
abstrato pelo concreto e vice-versa.
Fernando Pessoa, Mensagem

“E me deito ao comprido na erva,


Fusão de sensações decorrentes da perceção de diferentes
Sinestesia E fecho os olhos quentes”
sentidos.
Alberto Caeiro, [Sou um guardador de rebanhos]

381
IV – NOÇÕES DE VERSIFICAÇÃO
Bloco informativo

Os textos poéticos em verso evidenciam um conjunto de aspetos técnicos e versificatórios sistematizados no quadro abaixo.

Aspetostécnicos[versificatórios

šExtensão do verso pelo número de sílabas métricas


(escansão até à sílaba tónica da última palavra do verso, considerando-se ainda a elisão de sons vocálicos
quando pronunciados numa só emissão de voz; não é coincidente com o número de sílabas gramaticais).

Exs.:
O/poe/ta é/um/fin/gi/dor, – 7 sílabas métricas
1 2 3 4 5 6 7

Métrica Quan/do/pa/sso/,sem/pre e/rran/te – 7 sílabas métricas (mas 8 sílabas gramaticais)


1 2 3 4 5 6 7

Fernando Pessoa
No verso

šDesignação do verso pelo número de sílabas métricas:


monossílabo (uma), dissílabo (duas), trissílabo (três), tetrassílabo (quatro), pentassílabo ou redondilha
menor (cinco), hexassílabo (seis), heptassílabo ou redondilha maior (sete), octossílabo (oito), eneassílabo
(nove), decassílabo (dez), hendecassílabo (onze), dodecassílabo ou alexandrino (doze).

Acento Verso agudo (oxítono ou masculino), grave (paroxítono ou feminino) ou esdrúxulo (proparoxítono).
silábico

Verso binário (dois segmentos com uma pausa); verso ternário (três segmentos com duas pausas); verso
Ritmo
quaternário (quatro segmentos com três pausas).

šClassificação da estrofe pelo número de versos:


Número
monóstico (um), dístico (dois), terceto (três), quadra (quatro), quintilha (cinco), sextilha (seis), sétima (sete),
de versos oitava (oito), nona (nove), décima (dez), irregular (mais de dez versos).

šRima interna – a correspondência de sons verifica-se no interior dos versos.


Ex.: “irei beber a luz e o amanhecer” (Sophia de Mello Breyner)

šRima de sons finais ou rima externa – a correspondência de sons verifica-se no final dos versos:
– emparelhada (rima de sons em pares – aa, bb, cc, ...)
Esquema – interpolada ou intercalada (um tipo de som final intercala outro diferente – a b c a)
rimático – cruzada (sons alternam entre versos ímpares e pares – a b a b a c a)
Na estrofe

šRima encadeada – a última palavra de um verso rima com o meio do verso seguinte:
Ex.: "Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte"
Florbela Espanca

Em função da šConsoante (rimam vogais e consoantes)


correspondência de sons šToante (rimam só as vogais tónicas)

Tipo
de rima šRica (a rima incide em unidades pertencentes a classes de palavras
Em função da classe diferentes)
gramatical das palavras šPobre (a rima incide em unidades que pertencem à mesma classe
de palavras)

382
V – VERBOS INSTRUCIONAIS
Bloco informativo

A compreensão de um enunciado é fundamental para o desenvolvimento de um raciocínio correto, que conduza a uma respos-
ta clara e contextualizada. Para se perceber as operações implicadas nas questões que são colocadas, elencam-se os verbos
mais utilizados na questionação a que está sujeito.

Verbo Operações que implica


Examinar com atenção; observar atentamente o universo de referência, estabelecendo conexões entre as partes, de
Analisar
modo a descodificar os sentidos do todo.
Apresentar Mostrar; expor uma ideia, um conceito, uma conclusão.
Associar Fazer corresponder ideias ou aspetos que se relacionam entre si; ligar elementos.
Avaliar Apreciar, emitindo um juízo de valor.
Apresentar a descrição pormenorizada e exata; mostrar as características de determinado espaço, personagem,
Caracterizar
comportamento.
Clarificar Demonstrar com clareza o sentido de um excerto textual, de uma ideia, de uma posição.
Interpretar criticamente uma ideia, um excerto textual, uma imagem, evidenciando pormenores; explicar emitindo
Comentar
um juízo de valor.
Comparar Apresentar as semelhanças ou as diferenças entre dois termos / objetos / universos em análise.
Concluir Formular uma dedução; estabelecer uma ilação.
Deduzir Expor de forma fundamentada uma conclusão, através de um raciocínio.
Definir Apresentar o significado ou o sentido.
Delimitar Indicar claramente o início e o fim de um excerto textual, de uma ideia; indicar os limites.
Demonstrar Fazer ver; provar através de uma reflexão, com exemplos, uma determinada ideia; explicar de forma convincente.
Distinguir Estabelecer as diferenças entre dois termos / objetos / universos; identificar ideias ou opiniões diferentes.
Elaborar Construir; organizar corretamente as partes ou elementos de um todo.
Elencar Apresentar por ordem; enumerar.
Exemplificar Dar exemplos para provar uma conclusão, um raciocínio ou uma afirmação.
Explicar Interpretar de forma clara e evidente; expor, através de desconstrução, uma determinada ideia, comportamento.
Explicitar Esclarecer uma ideia; mostrar claramente; concluir a partir das palavras de outrem.
Expor Apresentar determinado assunto ou ideia de forma clara e inequívoca; explicar; mostrar de modo evidente.
Identificar Indicar de forma inequívoca quem é ou qual é; nomear; indicar o nome.
Indicar Mostrar; mencionar; dar a conhecer.
Inferir Retirar uma conclusão; fazer uma dedução.
Explicar determinado texto ou parte de texto; retirar o sentido ou a intenção de determinada expressão, ideia,
interpretar
comportamento.
Provar uma afirmação ou uma opinião quer através de exemplos quer apresentando os motivos que conduziram à
Justificar
reflexão apresentada.
Mencionar Referir; citar; indicar.
Mostrar Revelar; expor uma ideia; comprovar; tornar visível, claro, evidente.
Realçar Dar destaque; mostrar a importância.
Registar Anotar; apresentar determinada ideia, tema, conteúdo.
Relacionar Estabelecer uma relação entre dois aspetos ou duas ideias, apresentando uma conclusão.
Copiar de um texto um excerto, uma frase, uma palavra (devem ser usadas aspas que permitam o destaque
Transcrever
do segmento copiado).

383
VI – FICHA DE LEITURA / APRECIAÇÃO CRÍTICA DA OBRA
Bloco informativo

POESIA

SOBRE O AUTOR
E A SUA ESCRITA

Título:
Editora/ano da edição:
SOBRE
A OBRA Estrutura (partes/subpartes):
SELECIONADA Temáticas recorrentes nos vários poemas:
Adequação dos títulos e subtítulos aos poemas:
Descrição formal (estrofes, métrica, rima, …):

APRECIAÇÃO Comentário crítico:


CRÍTICA

PONTOS DE CONTACTO Obras do Programa estudadas:


COM CONTEÚDOS DE Outras obras ou outras formas de arte (filmes, peças de teatro, …):

TEXTO NARRATIVO/DRAMÁTICO

SOBRE O AUTOR
E A SUA ESCRITA

Título:
SOBRE
A OBRA Editora/ano da edição:
SELECIONADA Estrutura: divisão em partes/capítulos/atos/cenas/etc.
Sim. Quantos? Não. Qual?

Tema:
SOBRE
A HISTÓRIA, Acontecimentos principais:
A AÇÃO
Outros acontecimentos:

SOBRE O ESPAÇO E O TEMPO O espaço:


(lugares e características
principais) O tempo:

Protagonista(s):

SOBRE Caracterização do(s) protagonista(s):


AS PERSONAGENS Outras personagens:
Relevância para a compreensão da obra:

APRECIAÇÃO Descrição sucinta da obra:


CRÍTICA Comentário crítico:

PONTOS DE CONTACTO / Obras do Programa estudadas:


AFASTAMENTO COM… Outras formas de arte (filmes, peças de teatro,…):

384

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