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AULAS ESPECIAIS
PORTUGUÊS
OBRAS DA UNICAMP

A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA


1. PANORAMA HISTÓRICO DA ÉPOCA 1921 – Fundação da Siderúrgica Belgo-Mineira.
1922 – Fundação do Partido Comunista Brasileiro.
1908 – Nascimento de João Guimarães Rosa em – James Joyce publica Ulisses.
Cordisburgo, Minas Gerais. – Início do Movimento Tenentista.
– Expansão das plantações de café no Brasil. – Revolta do Forte de Copacabana.
– Primeiro filme de ficção realizado no – Mussolini sobe ao poder na Itália.
Brasil (Nhô Anastácio Chegou de Viagem). – Semana de Arte Moderna em São Paulo.
– Morte de Machado de Assis. 1923 – Revolução Libertadora no Rio Grande do
1909 – Manifesto Futurista de F. T. Marinetti. Sul.
– Assassinato de Euclides da Cunha. 1924 – Novas rebeliões tenentistas.
– Hermes da Fonseca candidata-se à Presi- – Coluna Prestes.
dência, e Rui Barbosa inicia a Campanha – Morte de Lênin.
Civilista. – Manifesto Surrealista de André Breton.
1910 – Hermes da Fonseca derrota Rui Barbosa na 1926 – Movimento Verde-Amarelo.
eleição para Presidência. 1927 – Congresso Regionalista do Recife.
– Proclamação da República Portuguesa. 1928 – Publicação de Macunaíma e A Bagaceira.
1912 – Crise da borracha. – Revista de Antropofagia.
– Oswald de Andrade retorna da Europa. 1929 – Quebra da Bolsa de Nova Iorque.
– Guerra do Contestado. – Crise internacional do café.
1913 – Exposição de Lasar Segall. – Inauguração do prédio Martinelli em São
1914 – Primeira Guerra Mundial. Paulo.
– Anita Malfatti faz sua primeira exposição 1930 – Fim da República Velha.
em São Paulo. – Revolução de 30.
– Governo Venceslau Brás. – Getúlio Vargas no poder.
1915 – Primeiro filme sonoro brasileiro. – Publicação de Alguma Poesia de Carlos
– Lima Barreto publica Triste Fim de Poli- Drummond de Andrade.
carpo Quaresma. – Suicídio do poeta russo Maiakóvski.
– Publicação da revista Orpheu, inaugurando – Nazistas vencem as eleições na Alemanha.
o Modernismo Português. 1931 – Criação do Ministério do Trabalho, Indús-
1917 – Revolução Socialista Russa. tria e Comércio, bem como da Lei de
– Greve de 150.000 trabalhadores no Brasil. Sindicalização e das Leis Trabalhistas no
– Brasil declara guerra à Alemanha. Brasil.
– Anita Malfatti expõe cinquenta e três – Guimarães Rosa passa a exercer a função
trabalhos; em reação, Monteiro Lobato de oficial-médico do 9º Batalhão de
escreve a crítica Paranoia ou Mistificação? Infantaria, em Barbacena.
– Estreia literária de Manuel Bandeira (A 1932 – José Lins do Rego publica Menino de En-
Cinza das Horas). genho.
1918 – Guimarães Rosa passa a residir em Belo – Revolução Constitucionalista em São Pau-
Horizonte. lo.
– Fim da Primeira Guerra Mundial. – Vitória das forças do governo.
– Monteiro Lobato publica Urupês. – Crescimento da indústria brasileira em
1920 – Recenseamento revela a aceleração do 50%.
crescimento industrial do País. – Salazar no poder em Portugal.
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1933 – Extensão do voto às mulheres. atômicas sobre o Japão.


– Política da “Boa Vizinhança” de Roosevelt – Morte de Mário de Andrade.
(EUA). 1946 – Publicação de Sagarana.
1934 – Guimarães Rosa presta concurso para o – Posse do Marechal Eurico Gaspar Dutra na
Itamaraty. Presidência da República.
1935 – Tentativa de golpe dos comunistas, coman- – Nova Constituição brasileira.
dada por Luís Carlos Prestes. – Fechamento dos cassinos e proibição do
– Perseguição e prisão de vários escritores e jogo em território nacional.
intelectuais brasileiros. – Perón é eleito presidente da Argentina.
1936 – Magma recebe um prêmio da A.B.L. 1947 – Comunistas excluídos do governo francês.
– Prisão de Jorge Amado e Graciliano Ra- 1948 – Rompimento das relações diplomáticas
mos. entre Brasil e URSS.
– Início da Guerra Civil Espanhola. – Plano Salte (Saúde, Alimentação, Trans-
1937 – Congresso Brasileiro é dissolvido. porte e Energia) do Governo Dutra.
– Estado Novo – ditadura Vargas principia. 1949 – Vitória da Revolução Chinesa.
– Nova prisão de Jorge Amado e apreensão – Proclamação da República Popular da
de seus livros. China Comunista.
1938 – Guimarães Rosa é nomeado cônsul adjunto 1950 – Eleição de Getúlio Vargas para a Presidên-
em Hamburgo. cia da República.
– Criação do Conselho Nacional do Petróleo. – Inauguração da primeira estação de televi-
– Formação do grupo “Os Comediantes” dá são no Brasil.
início ao Teatro Contemporâneo Brasileiro. – Estados Unidos fabricam a bomba H.
– Revolta Integralista. – Início da Guerra da Coreia.
– Hitler invade a Áustria. 1952 – Primeira novela brasileira vai ao ar: Sua
1939 – Início da Segunda Guerra Mundial com a Vida me Pertence.
ocupação da Polônia pelas forças do 1953 – Morte de Stálin.
Terceiro Reich. – Atentado contra Perón.
– Fim da Guerra Civil Espanhola. – Jânio Quadros eleito prefeito de São Paulo.
– Morte de Freud. 1954 – Suicídio de Getúlio Vargas.
– Criação da Companhia Siderúrgica Nacio- – Morte de Oswald de Andrade.
nal. – Boicote ao café brasileiro em Nova Iorque.
1940 – Início da construção da Usina Siderúrgica 1955 – Queda de Perón.
de Volta Redonda. – Morte de Carmem Miranda.
– Batalha da Inglaterra. – Instalação da indústria automobilística no
1941 – Ataque japonês aos Estados Unidos. Brasil.
1942 – Alemães arrasam a Tchecoslováquia e dão – Forças conservadoras mobilizam-se para
início à batalha de Stalingrado. impedir a posse do presidente Juscelino
– Brasil declara guerra à Alemanha. Kubitschek.
– Aliança Inglaterra-Rússia. 1956 – JK assume a Presidência.
1943 – Publicação de Fogo Morto de José Lins do – Israel invade o Egito.
Rego. – Publicação de Grande Sertão: Veredas.
– Mussolini é preso. – Difusão da poética concretista.
– Estreia de Vestido de Noiva de Nelson 1957 – José Lins do Rego falece em 12 de de-
Rodrigues. zembro.
1944 – Instituído o voto feminino na França. 1958 – Guimarães Rosa é promovido a ministro de
– Os Retirantes, de Portinari. primeira classe (diplomata).
– Guimarães Rosa volta ao Brasil. 1959 – Fidel Castro toma o poder em Cuba.
1945 – Término da Segunda Guerra Mundial e do – Revolta dos oficiais da Aeronáutica
Estado Novo. Brasileira.
– Morte de Hitler e Mussolini. 1960 – Inauguração de Brasília.
– Os Estados Unidos lançam duas bombas – Apogeu das Ligas Camponesas.
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– John Kennedy é eleito presidente dos EUA. 2. BIOGRAFIA DO AUTOR


1961 – Rompimento entre Estados Unidos e Cuba.
– Jânio Quadros assume a Presidência e Romancista e contista brasileiro contemporâneo,
renúncia após sete meses. Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais,
– Instituição do Regime Parlamentarista no em 27 de junho de 1908. Primeiro filho de um pequeno
Brasil. comerciante estabelecido na zona pastoril centro-norte
– João Goulart assume o poder. mineira, aprendeu as primeiras letras em sua cidade,
– Movimentos de cultura popular da UNE. mudando-se depois para Belo Horizonte, onde
– Teatro Arena e Cinema Novo. frequentou o Colégio Arnaldo, lugar em que também
– Yuri Gagarin vai ao espaço. estudou Carlos Drummond de Andrade.
Desde logo, o autor mostrou grande paixão pela
1962 – Palma de Ouro ao filme brasileiro O Paga-
língua, chegando a dominar o alemão, russo, francês,
dor de Promessas.
inglês, húngaro, grego, latim, italiano e espanhol.
– Morte de Marilyn Monroe. Quando terminou os preparatórios, começou o curso de
– Publicação, em livro, de Primeiras Es- Medicina em 1925, exercendo a profissão em cidades do
tórias. interior mineiro (Ibiúna e Barbacena). Nesse período,
1963 – Revogação do Parlamentarismo no Brasil. estudou sozinho alemão e russo.
– “Beatle-boom”. Através de concursos, Rosa publicou alguns contos
– Assassinato de Kennedy. na revista O Cruzeiro. Itaguara foi a primeira cidade que
1964 – Governo João Goulart é derrubado pelas o recebeu, já doutrinado, até que retornou a Belo
forças conservadoras. Horizonte. Participou da Revolução de 32, na qual serviu
– Assume a Presidência Castello Branco. como médico voluntário na Força Pública. Em 1934,
estando em Barcelona, como médico militar, fez
– Cassação de mandatos políticos.
concurso para o Itamaraty.
– Ato Institucional n.º 1.
Literariamente, Guimarães Rosa surgiu em 1936
– Solidificação do Cinema Novo (Glauber com o livro de poesias Magma, com o qual ganhou
Rocha). prêmio da Academia Brasileira de Letras. Ingressando na
– Início do Regime Militar. carreira diplomática, serviu de cônsul adjunto em
– Fundação do Grupo Opinião. Hamburgo, sendo, em 1942, internado em Baden-Baden
– Envolvimento dos Estados Unidos na com outras pessoas do corpo diplomático, quando o
Guerra do Vietnã. Brasil declarou guerra à Alemanha. Libertado em troca
– Morte de Ary Barroso. de diplomatas alemães, voltou ao Brasil e seguiu para
– Filme Deus e o Diabo na Terra do Sol de Bogotá como secretário da Embaixada brasileira até o
Glauber Rocha vence o festival da Itália. ano de 1944.
Em 1946, tornou-se chefe do Gabinete de João
1965 – Extinção dos partidos políticos, reduzidos à
Neves Fontoura. Tomou parte na delegação brasileira
Aliança Renovadora Nacional e ao Movi- presente à Conferência da Paz, em Paris. No mesmo ano,
mento Democrático Brasileiro. surgiu a obra Sagarana (contos), que lhe trouxe renome
– Festival de Música Popular da TV e caracterizou-se por um regionalismo diferente, em que
Excelsior de São Paulo. há muito de invenção, recriação do falar regional
– Minissaia revoluciona o mundo da moda. adaptado às exigências artísticas do prosador-poeta. Em
1966 – Segundo Festival de Música Popular da TV 1948, fez uma incursão ao Mato Grosso, quando coletou
Record. dados para a reportagem O Vaqueiro Mariano. Voltou,
1967 – Artur da Costa e Silva assume a Presidên- dois anos depois, à França, onde permaneceu até 1950.
cia. Guimarães Rosa fez uma viagem pelo sertão de
– Nova Constituição. Minas Gerais em 1952 e dela participou Manuel Narde,
vulgo Manuelzão, protagonista de “Uma Estória de
– Teatro Oficina monta O Rei da Vela, de
Amor”, incluída no volume Manuelzão e Miguilim.
Oswald de Andrade. Em 1958, tendo já sido nomeado chefe da Divisão de
– Beatles lançam Sgt. Peppers. Orçamento, foi designado embaixador. Apesar de sua
– Tropicalismo explode no Brasil. vida levada em ambientes diplomáticos, Rosa não perdeu
– Guimarães Rosa morre de enfarte pouco o contato com a terra, de que se mostrou profundamente
depois de assumir sua cadeira na Academia conhecedor. Um de seus últimos encargos foi a chefia do
Brasileira de Letras. Serviço de Demarcação de Fronteira, que o levou a tratar
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de casos espinhosos, como o do Pico da Neblina e o das • Se todo animal inspira sempre ternura, que houve,
Sete Quedas. então, com o homem?
Da sua carreira de escritor, em grande parte afastado • Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de
da vida literária, só obteve o reconhecimento geral a repente aprende.
partir de 1956 com os livros Corpo de Baile e Grande • Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento
Sertão: Veredas, obras que o colocaram na primeira linha da gente se torna mais forte do que o poder do lugar.
dos nossos grandes escritores. Viver é muito perigoso.
Foi eleito por unanimidade para a vaga de João • O senhor sabe? Já tentou sofrido o ar que é
Neves Fontoura na Academia Brasileira de Letras. Adiou saudade? Dize que tem saudade de ideia e saudade de
a posse por quatro anos e, finalmente, em 16 de coração...
novembro de 1967, assumiu sua cadeira na data do • Esperar é reconhecer-se incompleto.
aniversário de seu antecessor. Em 19 de novembro desse • O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente
ano, Guimarães Rosa faleceu de enfarte, aos 59 anos, no mesmo, demais.
Rio de Janeiro, três dias depois de admitido solenemente • Ser forte é parar quieto; permanecer.
à Academia: “As pessoas não morrem, ficam • Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe:
encantadas.” pão ou pães, é questão de opiniães...
• Viver é aprender a viver; toda a vida é ensinada.
3. OBRAS DO AUTOR • Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se
gasteja.
• Sagarana, 1946 – Contos • Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava
• Corpo de Baile, 1956 – Novelas tudo o que podia e comecei a transformar em lenda o
• Grande Sertão: Veredas, 1956 – Romance ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência,
• Primeiras Estórias, 1962 – Contos era e continua sendo uma lenda.
• Tutameia: Terceiras Estórias, 1967 – Contos • Cada um tem a sua hora e a sua vez.
• Estas Estórias, 1969 – Contos
• Ave, Palavra, 1970 – Contos 5. CARACTERÍSTICAS
DO PERÍODO LITERÁRIO
4. PENSAMENTOS DE GUIMARÃES ROSA
O Terceiro Tempo Modernista teve por início o ano
• As aventuras não têm tempo, não têm princípio de 1945, quando se realizou o Primeiro Congresso
nem fim. E meus livros são aventuras; para mim são Brasileiro de Escritores, marcado pelo repúdio à ditadura
minha maior aventura... Escrevendo descubro sempre um do Estado Novo, enquanto no mundo terminava a
novo pedaço de infinito. Segunda Guerra Mundial.
• Às vezes, quase acredito que eu mesmo, João, seja A periodização literária desta época é passível de
um conto contado por mim. alterações, uma vez que ela ainda está desdobrando-se,
• A gramática e a chamada filologia, ciência porém, reconhecem-se já algumas tendências ou
linguística, foram inventadas pelos inimigos da poesia. agrupamentos destacados a seguir:
• A gente é portador. Cada pessoa é apenas o
portador de uma mensagem. Todos nós somos mais que 5.1. A poesia da geração de 45
um símbolo para significar algo que nós mesmos
sabemos o que seja. A geração de 45 centrou-se na reação contra o
• No sertão, o homem é o eu que ainda não encon- desleixo e o à vontade dos modernistas de 1922,
trou um tu; por ali os anjos e o diabo ainda manuseiam a retomando o rigor formal parnasiano, a preocupação
língua. estilística, a rima, a métrica e o soneto tradicionais. O
• O real não está nem na saída nem na chegada. Ele respeito ao metro exato e a fuga à temática banal e ao
se dispõe para a gente é no meio da travessia. vocabulário piegas já se delineavam com Geir Campos,
• A vida da gente nunca tem termo real. Ledo Ivo, Péricles Eugênio da Silva e João Cabral de
• O senhor ... Mire, veja: o mais importante e bonito Melo Neto (superando depois os traços parnasianos e
do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, simbolistas).
ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre Os poetas, então, utilizavam-se de uma linguagem
mudando. erudita, propondo o sublime, o ideal, o universal,
• O sertão é do tamanho do mundo. abandonando as preferências pelo prosaico, pelo
• O medo é a extrema ignorância em momento concreto, pelo nacionalismo exagerado, que marcaram o
muito agudo. Modernismo de 1922 a 1930.

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5.2. A prosa de ficção pós-45 O espaço é o sertão, e lá é o mundo. Guimarães


perpetua dessa forma os aspectos culturais e existenciais
A permanência realista do testemunho humano, pri- de um povo. É o responsável por iniciar, com Sagarana,
vilegiando o aspecto social e aproximando-se do o caráter experimental na prosa regionalista do Terceiro
neo-naturalismo americano e do neorrealismo italiano, Tempo Modernista. Pouco antes, Mário de Andrade, com
marca alguns autores de 45, assim como a atração pelo Macunaíma, e Oswald de Andrade, com Memórias
transreal, a exploração do insólito, do absurdo, o homem Sentimentais de João Miramar, trazem ao Modernismo
projetado no mundo mítico, fantástico e mágico da arte. brasileiro o romance fragmentário, a inovação e a ruptura
O grande inovador do período foi Guimarães Rosa, com a tradição literária.
que explorou os segredos da linguagem não letrada e Em Guimarães Rosa, o traço marcante é o
colocou-se a serviço da literatura na qual o mítico, o experimentalismo com a linguagem, com a visão
infantil e o desconhecido assumem a base de sua obra. regional que ultrapassa o mero formalismo, até então
O experimentalismo, a pesquisa da linguagem, a veiculado por Euclides da Cunha e Monteiro Lobato,
reinvenção do código linguístico, o romance e o conto tentando traduzir a essência íntima da existência humana
instrumentalista têm como preocupação principal a e dando um espírito desconcertante ao seu trabalho.
palavra, a linguagem como o elemento que cria o real.
Podemos aproximar por este motivo a obra de Guimarães 7. SAGARANA
Rosa e a de Clarice Lispector, que buscavam a
universalização do romance nacional, sendo que o Sagarana compõe-se de nove contos, com os seguin-
primeiro se preocupava mais com o enredo e o suspense, tes títulos:
enquanto a autora mergulhava na consciência das
personagens. 1. “O Burrinho Pedrês”
Alguns escritores preocupavam-se com a vida 2. “A Volta do Marido Pródigo”
moderna e procuravam penetrar nos conflitos do homem 3. “Sarapalha”
e da sociedade, como Lygia Fagundes Telles, José 4. “Duelo”
Cândido de Carvalho, Aníbal Machado, Fernando 5. “Minha Gente”
Sabino, Dalton Trevisan, e os mistérios inconscientes e 6. “São Marcos”
psicológicos com Clarice Lispector e Osman Lins. 7. “Corpo Fechado”
8. “Conversa de Bois”
6. A OBRA DE GUIMARÃES ROSA 9. “A Hora e Vez de Augusto Matraga”

Guimarães Rosa foi nosso primeiro escritor que


captou o mundo regional por meio de uma visão univer- 8. “A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA”
salizante. Deu ao romance brasileiro uma dimensão
metafísica pela sua originalidade criadora, em que as “Eu sou pobre, pobre, pobre,
palavras são tratadas como símbolos que reproduzem a vou-me embora, vou-me embora...
relação existente entre a linguagem e o mito. ..............................................................
Observador da terra e do homem sertanejo, soube Eu sou rica, rica, rica,
caracterizar os costumes e ambientes sem violar aspectos vou-me embora daqui!...”
e pormenores. A palavra inventada – aproximando o falar (CANTIGA ANTIGA)
de gente primitiva ao universo clássico da literatura –
originou uma sintaxe própria, orientada por um símbolo “Sapo não pula por boniteza,
que descarta seu significado tradicional, assumindo o mas porém por percisão.”
factual. (PROVÉRBIO CAPIAU)
As suas histórias aproximam-se da dualidade
sagrado versus profano, criando, por vezes, fábulas em
que se unem o bem e o mal, o divino e o demoníaco. RESUMO
Guimarães percorria o sertão com seu caderninho de
anotações a colecionar a maneira de falar do povo Narrado na terceira pessoa, o conto enfatiza duas
brasileiro para adaptá-la às suas necessidades constantes da vida do sertão: a violência e o misticismo,
posteriores. As palavras que colhia eram portadoras de na interminável luta do bem e do mal.
sons e formas que revitalizam recursos da poesia velhos Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves,
e ultrapassados, originando, repleta de musicalidade, a das Pindaíbas e do Saco-da-Embira, conhecido como
fala sertaneja. Nhô Augusto e também como Augusto Matraga, é o
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maior valentão do lugar, briga com todo mundo e valentão”.


maltrata por pura perversidade. Debochado, tira as Passados seis anos, tem notícias de sua ex-família,
mulheres e namoradas dos outros. Não se preocupa com através do Tião da Thereza: a esposa, Dona Dionóra,
sua mulher, Dona Dionóra, nem com sua filha, Mimita, vive feliz com Ovídio, e vai-se casar com ele; Mimita,
nem com sua fazenda, que começa a se arruinar. sua filha, foi enganada por um cometa (espécie de
Já em descrédito econômico e político, sobrevém o caixeiro viajante) e caiu na perdição. Matraga sofre, mas
castigo: sua mulher, Dona Dionóra, foge com Ovídio se resigna.
Moura, levando ainda consigo a filhinha, e seus bate-paus Certo dia, aparece o Joãozinho Bem-Bem, jagunço
(capangas), malpagos, põem-se a serviço do seu pior de larga fama, acompanhado de seus capangas: Flosino
inimigo; o Major Consilva. Quim Recadeiro foi quem Capeta, Tim Tatu-tá-te-vendo, Zeferino, Juruminho,
levou essas duas notícias ruins. Nhô Augusto resolve ter Epifânio e Teófilo Sussuarana. Matraga hospeda-os
com eles, antes de se deslocar para matar Dionóra e com grande dedicação e admira as armas e o bando de
Ovídio, mas é atacado, numa tocaia, por seus inimigos, Joãozinho Bem-Bem. Mas se recusa a acompanhar os
que o espancam e o marcam com ferro de gado em brasa. bandidos, mesmo convidado pelo chefe, e não aceita
Quase inconsciente, no momento em que vai ser qualquer ajuda dos jagunços. Quer mesmo ir para o céu.
assassinado, reúne as últimas forças e se atira no Tempos depois, totalmente recuperado, Matraga
despenhadeiro do rancho do Barranco. Tomam-no por despede-se dos velhinhos e parte, sem destino, num
morto. É, contudo, encontrado por um casal de negros jumento. Chega ao Arraial do Rala-Coco, onde
velhos: a mãe Quitéria e o pai Serapião, que tratam de Nhô reencontra Joãozinho Bem-Bem e seu bando, prestes a
Augusto, que sara, mas fica com sequelas deformantes. executar uma cruel vingança contra a família de um
Começa então uma nova vida, no povoado do assassino que fugira. Augusto Matraga intervém em
Tombador, para onde levou os pretos, seus protetores. nome da justiça, opõe-se ao chefe do bando, liquida
Regenera-se e, esperando obter o céu, leva uma vida de diversos capangas, tomado de verdadeiro furor. Bate-se
trabalho duro, penitência e reza. Arrependido de suas em duelo singular com Joãozinho Bem-Bem. Ambos
maldades, ajuda a todos, e reza com devoção: quer ir para morrem – Joãozinho primeiro. Nessa hora, Augusto
o céu, “nem que seja a porrete”, e sonha com um “Deus Matraga é identificado por um antigo conhecido.

Exercícios
1. (PUC – Adaptada) – Sagarana, coletânea de contos, E o camarada Quim sabia disso, tanto que foi se
escrita por Guimarães Rosa, enfoca o ambiente rural encostando de medo que ele entrou. Tinha poeira até na
brasileiro e aponta novos rumos para a prosa literária boca. Tossiu:
modernista. Assim, — Levanta e veste a roupa, meu patrão Nhô Augusto,
a) considerando que o espaço geográfico onde se de- que eu tenho uma novidade meia ruim, p’ra lhe contar.
senrolam as narrativas de Guimarães Rosa é o do (Guimarães Rosa. “A Hora e Vez de Augusto
norte de Minas Gerais e o do sul da Bahia, que novo Matraga”. In: Sagarana. Rio de Janeiro:
conceito se pode ter de regionalismo na obra desse Nova Fronteira, 2013, 71.ª ed., pp. 371-2.)
autor?
b) que características de linguagem podem ser perce- 2. (PUC – Adaptada) – Além do coloquialismo, co-
bidas nas narrativas que constituem Sagarana? mum ao diálogo, a linguagem de Quim e de Nhô Augusto
caracteriza também os habitantes da região onde
Texto para as questões de 2 a 6. transcorre a história, conferindo-lhe veracidade. Suponha
que a situação do Recadeiro seja outra: ele vive na cidade
Quando chega o dia da casa cair – que, com ou sem e é um homem letrado. Aponte a alternativa caracteriza-
terremotos, é um dia de chegada infalível, – o dono pode dora da modalidade de língua que seria utilizada pela
estar: de dentro, ou de fora. É melhor de fora. E é a só personagem nas condições acima propostas:
coisa que um qualquer-um está no poder de fazer. a) Levanta e veste a roupa, meu patrão senhor Augusto,
Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto que eu tenho um novidade meia ruim para lhe contar.
da porta da rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado b) Levante e veste a roupa, meu patrão senhor Augusto,
na cama – o pior lugar que há para se receber uma que eu tenho uma novidade meia ruim, para te
surpresa má. contar.
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c) Levante e vista a roupa, meu patrão senhor Augusto, 8. (UFOP – Adaptada) – Sobre a “A Hora e Vez de
que eu tenho uma novidade meia ruim, para lhe Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, assinale a
contar. alternativa incorreta.
d) Levante e vista a roupa, meu patrão senhor Augusto, a) Em “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, a natureza
que eu tenho uma novidade meio ruim para lhe funciona como simples cenário onde se desenrolam
contar. as ações ou como instrumento da celebração ufanista
e) Levanta e vista a roupa, meu patrão Senhor Augusto, das grandezas do Brasil.
que eu tenho uma novidade meio ruim para te contar. b) O conto narra a trajetória de um homem que trilha o
penoso caminho da santidade, só atingida, de forma
3. Qual a “novidade meia ruim” que Quim tinha para surpreendente, na hora de sua morte.
contar a Matraga?
c) Os sofrimentos por que passa Nhô Augusto após a
surra dos capangas do Major Consilva são
4. Qual termo no trecho “E o camarada Quim sabia
considerados pelo protagonista uma amostra do
disso, tanto que foi se encostando de medo que ele
inferno e uma oportunidade dada por Deus para que
entrou” serve para qualificar o caráter de Quim
ele se dedique à salvação de sua alma.
Recadeiro, tornando-o destoante do meio em que está
d) A alegria do protagonista no duelo final com Seu
inserido? Explique.
Joãozinho Bem-Bem resulta da realização do
5. Qual ação surpreendente será praticada por Quim “martírio segundo sua índole”, ou seja, do
Recadeiro? Explique por que tal feito pode ser entendido autossacrifício na forma de luta armada.
como admirável.
9. (UNICAMP) – Leia a seguinte passagem de “A
6. O que sente Nhô Augusto ao saber da ação de Quim Hora e Vez de Augusto Matraga”:
Recadeiro apontada na resposta da questão anterior?
Qual o efeito dessa emoção para o amadurecimento do O casal de pretos, que moravam junto com ele, era
protagonista? quem mandava e desmandava na casa, não trabalhando
um nada e vivendo no estadão. Mas, ele, tinham-no visto
7. (PUC-SP – Adaptada) – Segundo Antonio Candido, mourejar até dentro da noite de Deus, quando havia luar
referindo-se à obra de Guimarães Rosa, ser jagunço tor- claro.
na-se, além de uma condição normal no mundo-sertão, Nos domingos, tinha o seu gosto de tomar descanso:
uma opção de comportamento, definindo um certo modo batendo mato, o dia inteiro, sem sossego, sem espingar-
de ser naquele espaço. Daí a violência produzir da nenhuma e nem nenhuma arma para caçar; e, de tar-
resultados diferentes dos que esperamos na dimensão dinha, fazendo parte com as velhas corocas que rezavam
documentária e sociológica, — tornando-se, por exem- o terço ou os meses dos santos. Mas fugia às léguas de
plo, instrumento de redenção. — Assim sendo, o ato de viola ou sanfona, ou de qualquer outra qualidade de
violência que em “A Hora e Vez de Augusto Matraga” música que escuma tristezas no coração.
justifica tal afirmação é
(João Guimarães Rosa, “A Hora e Vez de Augusto
a) seguir a personagem uma trajetória de vida desregra-
Matraga”, In: Sagarana. Rio de Janeiro:
da, junto às mulheres, ao jogo de truque e às caçadas.
Ed. Nova Fronteira, 1984, p.359.)
b) ser ferido e marcado a ferro, após ter sido abandona-
do pela mulher e por seus capangas.
a) Identifique o casal que vive junto com o protagonista
c) cumprir penitência através da reza, do trabalho e do
da narrativa.
auxílio aos outros para redenção de seus pecados.
d) integrar o bando de Joãozinho-Bem-Bem e vingar-se b) Explique o comportamento do protagonista no trecho
dos inimigos, principalmente do Major Consilva. acima, confrontando-o com sua trajetória de vida.
e) reencontrar-se, em suas andanças, com Joãozinho c) O que há de contraditório no descanso dominical a
Bem-Bem, matá-lo e ser morto por ele. que o narrador se refere?

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10_Aulas Especiais_Unicamp_A Hora e Vez de Augusto Matraga_GK 16/09/15 14:22 Page 8

GABARITO
PORTUGUÊS
OBRAS DA UNICAMP

A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA


1) a) O regionalismo de João Guimarães Rosa é de 6) Ao saber por meio de Tião da Thereza que Quim Reca-
âmbito universal. Esse autor transfigura no sertão deiro morrera para honrar seu patrão, Nhô Augusto
brasileiro, norte de Minas Gerais, sul da Bahia, e sente-se extremamente humilhado, pois não pode vin-
também Goiás, mitopoéticos universais. No conto gar quem deu a vida por ele. Dentro da narrativa, esse
“A Hora e Vez de Augusto Matraga”, há a evento servirá como provação que o protagonista terá
problemática ontológica: a procura da ação que de passar, o que contribuirá para o fortalecimento de
justifique plenamente a existência. Augusto seu caráter, abrindo caminho para a sua “hora e vez”.
Matraga só se redime ao superar o maniqueísmo
(Bem x Mal), juntando elementos aparentemente 7) O reencontro de Augusto Esteves com Joãozinho
antagônicos: a violência com o misticismo. Bem-Bem representa o clímax do conto, ou seja, a hora
b) Nas narrativas de Sagarana, percebe-se linguagem e vez do protagonista. Em outras palavras, a persona-
instrumentalizada, valorizando-se o significante, o gem passou por um processo de provação e amadureci-
aspecto plástico, carregado de conceitos. É a mento para preparar-se para cumprir um desígnio
linguagem poética, em que a mensagem se evidencia divino: lutar, em nome de Deus, em defesa dos mais
por si mesma, devido às aliterações, à cadência fracos e injustiçados, evitando que Bem-Bem reali-
rítmica, aos arcaísmos, aos regionalismos e aos zasse uma vingança desumana contra uma família
neologismos. O título do livro é um neologismo que desamparada.
provém do germânico (saga = feito heroico) Resposta: E
misturado com o tupi (rana = à maneira de).
8) Nas narrativas de Guimarães Rosa, a natureza não
2) O discurso correto precisa manter coerência entre as funciona como mero cenário ou como instrumento
formas verbais e as pronominais de terceira pessoa do para a manifestação de um ufanismo em relação às
singular. Além disso, o termo “meio”, como é advérbio “grandeza do Brasil”. Sua literatura, de cunho metafí-
que determina o adjetivo “ruim”, é invariável, não sico e universalizante, atribuirá elementos simbólicos
aceitando, portanto, flexão no feminino. até mesmo à paisagem descrita. Ela funcionará,
Resposta: D portanto, como parte da significação do texto em que
está inserida.
3) A “novidade meia ruim” que Quim tinha de transmitir a
Resposta: A
Matraga era a de que a esposa de seu patrão o havia
abandonado, preferindo viver com Ovídio.
9) a) Serapião e Mãe Quitéria são o casal que passa a
4) O termo “medo” serve para qualificar o caráter de viver com Augusto Esteves durante seu período de
Quim Recadeiro, pois ele era uma personagem domina- recuperação e provação.
da pela falta de coragem, o que o faz destacar-se em um b) Augusto Esteves entrega-se a uma vida de ascese
meio dominado pela valentia de bandidos e jagunços. religiosa, o que se opõe à vida desregrada que
possuía antes do trecho apresentado e que o
5) Quim Recadeiro, pouco depois da suposta morte de Nhô preparará para o grande evento no final da
Augusto, invadirá a casa de Major Consilva para tentar narrativa, em que cumprirá uma missão divina: dar
vingar a morte do patrão. O aspecto surpreendente está a sua vida em defesa dos desprotegidos.
no fato de que justamente a personagem mais covarde c) Nhô Augusto usa o domingo, dia tradicional de
foi a única a lutar por seu antigo senhor, chegando a descanso, para andar sem parar pelo mato, com a
matar alguns capangas, sendo por fim abatido já dentro intenção de martirizar o corpo, ou seja, de não obter
da casa do inimigo. descanso.
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