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PORTUGUÊS 12.º ANO Ana Catarino Isabel Castiajo


Ana Felicíssimo Maria José Peixoto
De acordo com
Aprendizagens
Essenciais

NOVO

Sentidos
PORTUGUÊS 12. ANO
o
Ana Catarino Isabel Castiajo
Ana Felicíssimo Maria José Peixoto
ÍNDICE PROJETO DE LEITURA 10

Diagnose
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAÇÃO

17 “À Virgem Santíssima”

A Literatura Portuguesa
g no século XX
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAÇÃO

24 Friso cronológico: contextualização

1 Fernando Pessoa, Poesia do ortónimo


EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAÇÃO

33 “Marinha” 33; 34; 35; 36; 37; 38; 41; 44


34 “Autopsicografia” Antecipar sentidos
35 “Isto” 40 “Uma inteligência hipertrofiada”
36 “Ela canta, pobre ceifeira” 46 “O fingimento artístico”
37 “Gato que brincas na rua” 46 “A dor de pensar”
38 “Tenho tanto sentimento” 46 “A nostalgia da infância”
38 “Chove. Que fiz eu da vida?” 47 “Sonho/Realidade”
41 “Quando era criança” 47 “Estilo e linguagem”
41 “Quando as crianças brincam”
42 “Não sei, ama, onde era”
44 “Não sei se é sonho, se realidade”

52 CONSOLIDAÇÃO 53 VERIFICAÇÃO 54 AVALIAÇÃO

2
LEITURA ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

18 Artigo de opinião 16 Exposição (CO) 21 Texto de opinião 20 Funções sintáticas


– “Seja grato à vida, Modalidade e valor modal
sempre que for Atos ilocutórios
caso disso” Processos de formação
de palavras
Mecanismos de coesão textual
Classes de palavras
Orações subordinadas

LEITURA ORALIDADE
OR
O RA
R AL
LIIID
LID DAD
ADE
A DE
D E ESCRITA GRAMÁTICA

LEITURA ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

31 Artigo de opinião 30 Exposição (CO) 39 Apreciação crítica 31 Classes de palavras


– “Edgar Morin: 32 Documentário (CO) 43 Texto de opinião 31; 43; 45 Funções sintáticas
‘É preciso ensinar
43 Canção (EO) 31; 37; 39; 43; 45
a compreensão
48 Debate (CO) Orações subordinadas
humana’”
31; 43; 45
49 Artigo de opinião Mecanismos de coesão
– “Um junho textual
de Camões 43 Atos ilocutórios
e Pessoa”
43; 45 Dêixis
45 Processos fonológicos

50 Valor Aspetual

3
2 Fernando Pessoa, Poesia de heterónimos
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAÇÃO

65 Carta a Adolfo Casais Monteiro 70; 74; 78


Alberto Caeiro Antecipar sentidos
70 II – “O meu olhar é nítido como um girassol” 76 “Caeiro – o poeta da Natureza e das sensações”
72 X – “Olá, guardador de rebanhos” 76 “Linguagem, estilo e estrutura”
74 XXIII – “O meu olhar azul como o céu” 86 “Estilo e temáticas”
75 XXVIII – “Li hoje quase duas páginas” 86 “Epicurismo e ataraxia”
Ricardo Reis 97 “As fases poéticas
78 “Sofro, Lídia, do medo do destino” de Álvaro de Campos”
79 “Uns, com os olhos postos no passado” 97 “Campos e Pessoa”
80 “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio” 97 “Linguagem e estilo”
82 “Da nossa semelhança com os deuses”
Álvaro de Campos
88 “Ode triunfal”
94 “Essa velha angústia”
96 “Dobrada à moda do Porto”

98 CONSOLIDAÇÃO 99 VERIFICAÇÃO 100 AVALIAÇÃO

3 Mensagem, Fernando Pessoa


EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAÇÃO

110 “Ulisses” 110; 111; 112; 114; 115; 116; 123


111 “D. Dinis” Antecipar sentidos
112 “D. Sebastião, Rei de Portugal” 108 “Mensagem – Estrutura da obra”

114 “O Infante” 109 “Estrutura simbólica de Mensagem”

115 “Horizonte” 113 “Título da obra”

116 “O Mostrengo” 113 “Natureza épico-lírica da obra – O Quinto Império”

118 “Mar Português” 122 “O Quinto Império”

119 “Prece” 124 “Exaltação patriótica

120 “O Quinto Império” 124 “Sebastianismo, dimensão simbólica do herói”

123 “Nevoeiro”

127 CONSOLIDAÇÃO 128 VERIFICAÇÃO 129 AVALIAÇÃO

4 Contos
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAÇÃO

142; 147 “Sempre é uma companhia”, de Manuel da Fonseca 142; 147; 156
156 “George”, de Maria Judite de Carvalho Antecipar sentidos
137 “Conto”
141 “O espaço/Os habitantes do Alentejo”
151 “As personagens”
162 “A complexidade da natureza humana/
O diálogo entre realidade, memória e imaginação”
162 “As três idades da vida”
163 “Metamorfoses da figura feminina”

167 CONSOLIDAÇÃO 168 VERIFICAÇÃO 169 AVALIAÇÃO

4
LEITURA ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

61 Apreciação crítica 60 Opinião (CO) 73 Texto expositivo 63; 71; 73; 79; 81; 83; 85; 96
– “Caeiro, o poeta 64 Diálogo 81; 83 Apreciação crítica Funções sintáticas
que ensinou Pessoa argumentativo (CO) 63; 71; 85; 96
a desaprender” Mecanismos de coesão textual
69 Exposição (CO)
84 Texto expositivo 63; 71; 81; 85
77 Exposição (CO)
– “A história por Orações subordinadas
detrás da mudança 87 Exposição (CO) 73 Classes de palavras
de horário” 73 Atos ilocutórios
73; 83; 85
Modalidade e valor modal
85 Pronominalização

LEITURA ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

106 Artigo de opinião 106 Documentário (CO) 121 Texto de opinião 117 Orações subordinadas
– “Eu amo a 117 Exposição (EO) e coordenadas
portugalidade” 118; 126
125 Relato de viagem Mecanismos de coesão textual
– “Porto: daqui houve 118; 121
nome Portugal” Atos ilocutórios
119 Funções sintáticas
121 Modalidade e valor modal

LEITURA ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

152 Artigo de opinião 138 Reportagem (CO) 146 Apreciação crítica 146; 153; 161; 165
– “Mais do que nunca, 139 Opinião (EO) 163 Texto de opinião Funções sintáticas
o jornalismo é 146; 153; 161 Orações subordinadas
140 Reportagem (CO)
fundamental” 150 Valor aspetual
151 Exposição (EO)
164 Artigo de opinião 150; 161; 165
– “Portugal tem cada 155 Exposição (CO)
Mecanismos de coesão textual
vez mais idosos” 155 Apreciação critica (EO) 153; 161
163 Debate (EO) Processos fonológicos
153 Processos de formação
de palavras
153; 161
Modalidade e valor modal
161 Modos de relato do discurso
165 Atos ilocutórios

5
5 Poetas contemporâneos
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAÇÃO

Miguel Torga 178; 179; 180; 182; 184; 186; 189; 190; 192; 196; 200
178 “Regresso” Antecipar sentidos
179 “Maceração” 177 “O sentimento telúrico”
180 “Orfeu rebelde” 177 “O mito de Anteu”
Eugénio de Andrade 181 “O mito de Orpheu”
182 “Adeus” 181 “A arte poética”
184 “Green God” 187 “Valores simbólicos
186 “Apenas um corpo” na poesia de Eugénio
Manuel Alegre de Andrade”
189 “E alegre se fez triste” 188 “O que sei de poesia”
190 “País de Abril” (Manuel Alegre)
192 “Letra para um hino”
Ana Luísa Amaral
196 “Testamento”
198 “Técnica vs artesanato”
200 “Prece no Mediterrâneo”

202 CONSOLIDAÇÃO 204 VERIFICAÇÃO 205 AVALIAÇÃO

6.1 Memorial do convento, José Saramago


EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAÇÃO

Memorial do convento, José Saramago (leitura integral) 218; 222; 224; 227; 230; 234; 238; 243; 250; 256; 259
216 Visão global da obra Antecipar sentidos
218-220 Capítulo I 214 “O título, as linhas de ação
e a estrutura da obra”
222-223 Capítulo III
221 “Linguagem, estilo e estrutura: pontuação”
224-225 Capítulo IV
225 “Linguagem, estilo e estrutura:
227-229 Capítulo V
reprodução do discurso no discurso”
230-231 Capítulo VI
226 “O tempo histórico e o tempo da narrativa”
234-235 Capítulo VIII
231 “Intertextualidade”
235-237 Capítulo IX
238 Capítulo X
239 Capítulo XI
240 Capítulo XII e XIII
240-242 Capítulo XIV
243-244 Capítulo XV
245-247 Capítulo XVI
250-251 Capítulo XVII
251-252 Capítulo XVIII
252-254 Capítulo XIX
256-258 Capítulo XXI
259-260 Capítulo XXIII
260-261 Capítulos XXIV-XXV
221; 231; 255; 258
Construir sentidos

262 CONSOLIDAÇÃO 265 VERIFICAÇÃO 266 AVALIAÇÃO

6
LEITURA ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

194 Artigo de opinião 176 Documentário (CO) 197 Apreciação crítica 185; 191; 193; 201
– “Ovários de aço” 181 Exposição (EO) 201 Texto de opinião Mecanismos de coesão textual
199 Exposição (CO + EO) 185; 191; 197
Orações subordinadas
e coordenadas
185; 191
Valor aspetual
185 Processos de formação
de palavras
191; 193; 197; 199; 201
Funções sintáticas
191; 193
Modalidade e valor modal
191; 193
Atos ilocutórios
201 Classes de palavras
201 Processos fonológicos

LEITURA ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

232 Texto expositivo 212 Exposição (CO) 223; 261 229; 242; 261
– “O sonho” 213 Debate (EO) Texto expositivo Orações subordinadas
248 Artigo de opinião 214 Documentário (CO) 237 Texto de opinião 229 Modalidade e valor modal
– “Hoje é dia da 229; 242
226 Exposição (CO)
liberdade religiosa” Mecanismos de coesão textual
247 Apreciação crítica (EO)
229 Processos fonológicos
229; 233; 242
Funções sintáticas
261 Valor aspetual
242 Etimologia
261 Modos de relato do discurso

7
6.2 O ano da morte de Ricardo Reis, José Saramago
EDUCAÇÃO LITERÁRIA INFORMAÇÃO

O ano da morte de Ricardo Reis, José Saramago 278; 282; 288; 300; 305; 310; 316
(leitura integral) Antecipar sentidos
276 Visão global da obra 297 “Situação política no ano de 1936 em Portugal”
278-281 Capítulo I 298 “Intertextualidade”
282-284 Capítulo II 299 “Linguagem, estilo e estrutura”
288-289 Capítulo III 309 “Contexto geopolítico da Europa em 1936”
290-291 Capítulo IV 320 “Representações do amor”
294-295 Capítulo V
295-296 Capítulo VI
300-301 Capítulo VII
301-302 Capítulo VIII
302-303 Capítulo IX
305-306 Capítulos X e XI
307-308 Capítulos XII e XIII
310-311 Capítulo XIV
312-313 Capítulos XV e XVI
316-317 Capítulos XVII e XVIII
317-319 Capítulo XIX
285; 304 Construir sentidos

321 CONSOLIDAÇÃO 323 VERIFICAÇÃO 324 AVALIAÇÃO

B Bloco informativo
EDUCAÇÃO LITERÁRIA ESCRITA

RECORDAR E RELACIONAR COM SENTIDO(S) COMO ESCREVER


332 Esquemas-síntese 351 Síntese
338 Intertextualidade 353 Texto expositivo
COMO LER/ANALISAR 355 Texto de apreciação critica
347 Texto poético 357 Texto de opinião
349 Texto em prosa

413 Recursos expressivos

8
LEITURA ORALIDADE ESCRITA GRAMÁTICA

274 Diário 272 Documentário (CO) 285 Texto expositivo 275 Atos ilocutórios
– “Cadernos 273 Apreciação crítica (EO) 291 Síntese 275; 287; 296; 313; 319
de Lanzarote” Modalidade e valor modal
292 Debate (CO)
286 Texto expositivo 275; 287; 296; 303; 308
293 Debate (EO); Orações subordinadas
– “Salazar
Opinião (EO) 287; 313
e o Estado Novo”
304 Canção (CO + EO) Valor aspetual
314 Artigo de opinião
287; 303; 319
– “As ‘três Marias’
Funções sintáticas
e um legado para
296 Classes de palavras
o nosso futuro”
296; 303
Mecanismos de coesão textual

GRAMÁTICA MODOS LITERÁRIOS OUTROS MATERIAIS

360 Processos fonológicos; 383 Arcaísmos e neologismos; 406 Texto poético 359 Grelha
Etimologia: étimo campo lexical e campo 407 Texto dramático de autoavaliação
e palavras convergentes semântico; monossemia da produção escrita
407 Texto narrativo
e divergentes e polissemia 411 Géneros textuais
408 Modos
362 Processos regulares 383 Denotação e conotação; 415 Verbos instrucionais
de formação de palavras relações semânticas de expressão
da narrativa; 416 Ficha de leitura/
364 Flexão verbal 388 Processos irregulares
elementos apreciação crítica
366 Classes e subclasses de formação de palavras
da narrativa da obra
de palavras 390 Modalidade e valor modal
373 Funções sintáticas 392 Valor aspetual
ao nível da frase 394 Dêixis pessoal, temporal
374 Funções sintáticas internas e espacial
ao grupo verbal 396 Atos ilocutórios
375 Funções sintáticas internas 397 Marcadores discursivos/
ao grupo nominal; função conectores
sintática interna ao grupo 398 Reprodução do discurso
adjetival no discurso
377 Frase complexa – 401 Texto e textualidade −
coordenação e subordinação coerência e coesão
382 Frase ativa e frase passiva textual
383 Pronome pessoal 403 Sequências textuais
em adjacência verbal −
regras de utilização

9
PROJETO DE LEITURA
Organize um pequeno debate que permita partilhar experiências de leitura. Dê a conhecer aos
seus colegas os livros que mais lhe agradaram, a apreciação que deles faz e ouça também as
Glossário: Projeto de leitura suas sugestões.
De seguida, selecione uma ou várias obras do Projeto de Leitura, do qual apresentamos algumas
propostas, construindo, assim, um Projeto de Leitura individual.
Finalizada a leitura integral da(s) obra(s), tome notas que lhe permitam apresentar à turma uma
apreciação crítica, seguindo as orientações propostas nas páginas seguintes.

JORGE LUÍS BORGES (1899-1986) JOSÉ RÉGIO (1901-1969)

Ficções Poemas de Deus


Trata-se de uma coleção o e do Diabo
de 16 contos, numa admi- i- Marcados pelo subjetivismo o
rável prosa poética, em quee e pela introspeção, Poemas de
se destacam a fabulosa a Deus e do Diabo traduzem oss
imaginação, a erudição e o conflitos e os antagonismoss
humor deste escritor ar- r- que caracterizam o ser humano.o.
gentino mundialmente re- e- Ao expor-se a si próprio, nass
conhecido. As aventurass suas várias “máscaras”, Joséé
narrativas são um labirinto no qual se mistura a Régio reflete sobre a condição humana, as suas inquie-
g
verdade com a ficção e o real com o imaginário,, tações e contradições. Dicotomias como Deus/Diabo
fascinando o leitor de forma inesquecível. e Bem/Mal perpassam toda a obra,
contribuindo para o seu pendor
Sabia que…
marcadamente crítico e reflexivo.
Borges foi ficando cego e, segundo alguns
guns
estudiosos, essa progressiva cegueirara
Sabia que…
fez com que desenvolvesse a sua
Régio foi editor e diretor da revista Presença
imaginação, o que está patente no
e, para além de escritor, poeta e dramaturgo,
caráter fantástico da sua obra.
foi também desenhador e pintor.

GEORGE ORWELL (1903-1950)

1984
1984 apresenta-nos um mundo em guerra permanente, em que o Estado controla
tudo e elimina aqueles que não se deixam subjugar. Winston, a personagem principal,
vive aprisionado nessa sociedade totalitária, permanentemente
vigiado pelo Grande Irmão, tal como todos os habitantes.
É uma obra cada vez mais atual, que nos obriga a refletir sobre
o verdadeiro valor da liberdade.

Sabia que…
Orwell é considerado, por muitos críticos, o melhor cronista da cultura inglesa
do século XX.
O filme 1984, realizado por Michael Radford e considerado o mais fiel ao livro,
começou a ser filmado exatamente no dia em que inicia o diário de Winston:
4 de abril de 1984.

10
PRIMO LEVI (1919-1987) FERNANDO NAMORA (1919-1989)

Se isto é um Retalhos da vida


homem de um médico
Se isto é um homem é o Publicado em 1947, este ro-o-
relato da experiência dee mance de Namora retrata dra- a-
Primo Levi, em Auschwitz. z. mas humanos, realidadess
É um testemunho da mal- l- sociais, episódios que docu- u-
dade humana, da brutali- i- mentam a vida do médico-es- s-
dade, da desumanização o critor. Trata-se de uma obra a
progressiva a que eram su- u- fragmentada, constituída por or
jeitos os prisioneiros. O leitor depara-se com o excertos de memórias vividas pelo narrador, médico
sofrimento e o horror de situações vividas por nas aldeias das regiões centro e sul do
o país, numa épo-
aqueles a quem roubaram a dignidade. Segundo ca marcada por superstições, crendicesces e
o autor, o livro foi escrito para satisfazer a neces- etra-
charlatães. Constitui, por isso, um retra-
sidade de relatar a experiência vivida, “como li- to social da primeira metade do séc. XX.
bertação interior”, e ainda para Sabia que…
“fo
“fornecer documentos para um Namora participou na publicação coletiva Novo vo
estudo
estu sereno de alguns aspetos da Cancioneiro (1941), coleção poética que marcouu
alm humana”.
alma o surgimento do neorrealismo e que constituiu
um ponto de viragem na literatura portuguesa.
Sabia que…
A obra subiu ao palco pela Companhia
de Teatro de Almada, com encenação de GABRIEL GARCÍA MÁRQUES (1927-2014)
Rogério de Carvalho.
Cem anos de solidão
PABLO NERUDA (1904-1973) A obra do escritor colom- m-
biano, reconstrói a história da a
Vinte poemas América Latina a partir da a
de amor e fundação de uma aldeia fictí- í-
uma canção cia, Macondo, e da história dee
desesperada uma família, os Buendia, ao o
longo de várias gerações. s.
O amor, o erotismo, No romance, que foi conside- e-
o desejo, o desgosto e o rado o introdutor do “realismo mágico”, o autor re-
medo do abandono são corre à fantasia para retratar
tar a realidade de forma
alguns dos temas com os emas
magistral e refletir sobre temas
quais nos confrontamos como o incesto, a loucura, a,
ao ler esta coleção de poemas de Pablo Neruda, mas também a corrupção e a
uma das mais lidas de todos os tempos, que o poe- revolução.
ta chileno escreveu quando tinha cerca de 20 anos.
Sabia que…
Segundo o crítico literário Harold Bloom, Sabia que…
Neruda é, a par de Fernando Pessoa, o poe- Gabriel García Márques recebeu
ta mais destacado do século XX. Recebeu o Prémio Nobel da Literatura
o Prémio Nobel em 1971. em 1982.

11
PROJETO DE LEITURA
GERMANO ALMEIDA (1945-...) HARUKI MURAKAMI (1949-...)

Estórias de dentro Auto-retrato do


de casa escritor enquanto
Trata-se de uma obra a corredor de fundo
que inclui três novelas: “In
n Trata-se de um livro auto-
o-
memoriam”, “As mulheress biográfico, de confidências,s,
de João Nuno” e “Agravoss em que Murakami demonstra a
de um artista”, em que see que escrever e correr são duass
destacam o sentido de hu- u- ações fundamentais na sua a
mor e a vertente satírica a forma de estar no mundo. o
que o escritor cabo-verdiano nos habituou. Nela Num tom cativante e divertido, revela-nos o ho-
encontramos os costumes, as ambições, as con- mem por detrás do escritor, os seus sentimentos, a
venções sociais que caracterizam o mundo das importância da corrida na sua vida, as suas opções
personagens retratadas e nos permitem conhecer enquanto ser humano, apresentando-nos, simulta-
a sociedade em que se movimentam, ao mesmo neamente, uma reflexão sobre o ser humano.
tempo que nos proporciona uma reflexão sobre
nós próprios.
Sabia que…
Sabia que… Murakami é o mais céle-
Germano Almeida rece- bre escritor japonês vivo;
beu o Prémio Camões é entusiasta de desportos
em 2018. de resistência, um grande
maratonista e participa
também em triatlos.

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA (1960-...)

O vendedor de passados
O vendedor de passados é uma sátira perspicaz e cheia de humor
à sociedade angolana. A personagem principal do enredo, Felix x
Ventura, constrói passados falsos para clientes bem-sucedidos e en-
dinheirados, que têm, por isso, um futuro auspicioso, mas que ne-
cessitam de um passado ilustre que credibilize os seus sucessos,
função que Ventura desempenha meticulosamente. Um dia, porém,
chega à cidade um estrangeiro e, a partir daí, desenvolve-se uma a
trama que envolve mistério e morte.

Sabia que…
Agualusa, tal como Pepetela e Mia Couto, é um nome incontornável para aqueles que pre-
tendem desenvolver o seu conhecimento da literatura africana; considera que a escrita tem
o poder de transformar o mundo e escreveu este romance tendo por base um sonho.

12
Apreciação crítica oral da obra
Para a construção do texto, é necessário: Animação: Escrever uma
apreciação crítica
• Respeitar as marcas características deste género textual (assinaladas a cor no texto que
a seguir se propõe como exemplificação):
‒ comentário crítico pessoal;
‒ vocabulário de caráter valorativo;
‒ juízo de valor subjetivo, fundamentado.
• Não esquecer que o texto oral deve obedecer a uma estrutura idêntica à do texto es-
crito, a saber:
‒ introdução – sucinta e clara (por exemplo: título da obra, autor, elementos biobiblio-
gráficos relevantes, temáticas abordadas);
‒ desenvolvimento – exemplo: síntese da obra; referência a elementos/passagens/
argumentos que denotem um comentário crítico e justifiquem o juízo de valor, recor-
rendo a um vocabulário valorativo; sentimentos despertados pela leitura; identifica-
ção pessoal com as personagens; interesse da ação…
‒ conclusão – reforço das ideias apresentadas, sintetizando-as e confirmando o juízo
de valor efetuado.
• Ter em conta que, tratando-se de uma atividade de oralidade, há elementos que devem
ser observados na interação comunicativa, no sentido de captar o interesse do auditó-
rio: o ritmo do discurso, a entoação e o tom de voz, a postura, a gestualidade.

Observe o exemplo:

Os mistérios de Pessoa
Richard Zenith investigou a vida (poliédrica1) do poeta.
Chegado a Portugal em 1987, para traduzir os nossos cancioneiros medievais, Richard
Zenith embateu de frente com uma obra literária que lhe mudou a vida: “O Livro do Desas- Introdução
sossego”, de Bernardo Soares, cuja primeira edição só surgira cinco anos antes. Fascinado,
quis logo traduzi-lo para inglês. E foi assim que entrou no labirinto de Fernando Pessoa.
Como estabelecer a versão definitiva de um livro cujos limites são elásticos, dependendo dos
critérios de cada editor e da discutível inclusão (ou exclusão) de determinados fragmentos?
Para resolver as dúvidas, mergulhou no gigantesco espólio do poeta e nunca mais de
lá saiu, tornando-se um dos mais prolíferos investigadores pessoanos. Esse conhecimento
profundo da obra foi essencial para o projeto que o ocupou durante mais de uma década: Desenvolvimento
a escrita desta monumental biografia, que surgiu em 2021 nos países anglo-saxónicos, com • comentário crítico
rasgados elogios da crítica, e já este ano em português, traduzida por Salvato e Vasco Teles • vocabulário valorativo
• juízo de valor
de Menezes. Além da reconstituição da existência em Lisboa, sempre bem contextualiza-
fundamentado
da historicamente, tal como os múltiplos empreendimentos pessoais e literários, um dos
grandes trunfos do livro é a exaustiva investigação, in loco, sobre os anos da infância e ado-
lescência em Durban.
O retrato é poliédrico. A escrita aproxima-nos ao máximo do que o poeta foi. Ou melhor, Conclusão
do seu mistério.
José Mário Silva, E, A Revista do Expresso, ed. n.o 2596, 29/julho/2022.

1 próprio do que tem muitas faces planas

13
Diagnose
EDUCAÇÃO LITERÁRIA

“À Virgem Santíssima”

LEITURA

Artigo de opinião

ESCRITA

Texto de opinião

ORALIDADE

Exposição

GRAMÁTICA

• Funções sintáticas
• Modalidade e valor modal
• Atos ilocutórios
• Processos de formação de palavras
• Mecanismos de coesão textual
• Classes de palavras
• Orações subordinadas

Kazimir Severinovich Malevich, Sem título, 1916.


Diagnose

ORALIDADE COMPREENSÃO

Vídeo 1: Onde é que os 1 Visione atentamente o registo fílmico que se segue.


portugueses vão de férias?,
Portuguese With Leo 1.1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.
(11 min 07 s)
Vídeo 2: Onde é que os A. O autor do vídeo inicia a sua
portugueses vão de férias?, locução destacando o título do
Portuguese With Leo
(07 min 05 s) programa que vai conduzir.
B. Posteriormente, o autor refere-
-se à estrutura do episódio que
vai conduzir.
C. Internacionalmente, Portugal foi
o primeiro país a promulgar o di- Leo dedica episódio às férias
reito a gozar férias pagas. dos portugueses.

D. O direito a férias pagas foi con-


sagrado em 1948 pela Constituição Portuguesa.
E. Durante o regime político salazarista, a maioria das pessoas não tinha direito
a usufruir plenamente de férias.
F. Após o 25 de Abril de 1974, os portugueses puderam finalmente gozar mas-
sivamente de férias.
G. Entre outras razões, a incapacidade económica impediu, muitas vezes,
o gozo de férias em locais distantes da residência.
H. Atualmente, a maioria dos portugueses vai de férias para fora do país.
I. Só na segunda parte do episódio são revelados os destinos de férias dos
portugueses.
J. Segundo a informação veiculada, todos os portugueses que vivem no litoral
fazem férias no Algarve.

2 Visione novamente a segunda parte do registo fílmico.


2.1 Associe os segmentos da coluna A aos da coluna B, que completam corretamente
o seu sentido.

Coluna A Coluna B
1. maioritariamente, a praia, nas férias.
2. despovoada e as pessoas procuram a
a. Muitos lugares fantásticos são
Figueira da Foz para destino de férias.
b. Os portugueses procuram,
3. normalmente, as suas férias na zona.
c. A norte do país, elegem-se 4. diferenças significativas.
d. A cidade de Coimbra, no verão, fica 5. publicitados na segunda parte do vídeo.
e. Muitos lisboetas procuram 6. o destino de férias privilegiado pela
f. Outro destino escolhido mais para sul é maioria dos portugueses.
7. a costa vicentina, onde as praias são
g. O sul do país, nomeadamente o Algarve,
mais selvagens.
continua a ser
8. as praias da Nazaré, Ericeira e Peniche,
h. Os habitantes dos arquipélagos da Madeira
propícias à prática de surf.
e dos Açores passam,
9. Caminha, Póvoa de Varzim, Esposende
e Gerês como destinos de férias.

16
EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o soneto. Áudio: “À virgem santíssima”,


de Antero de Quental
Animação: O que é uma
metáfora?; O que é uma
À Virgem Santíssima adjetivação?; O que é uma
anástrofe?; O que é uma
comparação?; O que é uma
Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia apóstrofe?; O que é uma
personificação?; O que é uma
sinestesia?
Num sonho todo feito de incerteza,
De noturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
e (mais que piedade) de tristeza...

5 Não era o vulgar brilho da beleza,


Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura


10 Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!


Fita-me assim calada, assim chorosa...
Odilon Redon, Natureza morta – o sonho, c. 1904.
E deixa-me sonhar a vida inteira!

Antero de Quental, Poesia completa, 1842-1891 (org. e pref. de Fernando


Pinto do Amaral), Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001.

1 Comprove, justificadamente, a presença da dicotomia sonho/realidade.

2 Demonstre que os atributos tradicionalmente atribuídos à Virgem Santíssima não


são coincidentes com os da visão do sujeito poético.

3 Explicite a relação que se estabelece entre os dois primeiros versos e o último.

4 Justifique a utilização do verbo “ver” e do vocábulo “olhar” na construção do sentido


do texto.

5 Selecione as opções que completam corretamente as afirmações.


Estilisticamente, no soneto destaca-se o recurso à a. logo no 2.º
verso da 1.ª estrofe. O uso das b. (vv. 4, 6, 8, 9, 11 e 13) sugere a hesitação
do “eu” poético que, no 1.º verso da última estrofe, recorre à c. eà
d. .

a. b. c. d.

1. metáfora 1. reticências 1. anástrofe 1. personificação


2. dupla adjetivação 2. vírgulas 2. comparação 2. antítese
3. comparação 3. exclamações 3. apóstrofe 3. sinestesia

17
Diagnose

LEITURA ARTIGO DE OPINIÃO

Leia o texto.

Seja grato à vida,


sempre que for
caso disso

S
onhar é bom! Transporta-nos para uma li- laboral; financeiro, como começar uma poupança ou
nha de horizonte suave, de doçura e proje- não fazer uma compra desnecessária. […]
tos a concretizar. Põe, por momentos, um É certo que nem todos temos as mesmas oportu-
travão ao incessante gastar-se dos dias nidades de praticar o autocuidado. Se a vida nos brin-
5 que passam, tantas vezes iguais a si mes- 35 da com a conjugação de múltiplas responsabilidades,
mos e desencontrados de nós, da nossa essência. quando a nossa sustentabilidade financeira está em
É motor de esperança no futuro e espelha, por isso, risco, ou se estamos a atravessar uma crise, encon-
confiança no presente. E é também “uma constante trar tempo e espaço torna-se um desafio maior, em-
da vida, tão concreta e definida, como outra coisa bora nestas situações seja ainda mais importante
10 qualquer”, como diria António Gedeão. É o oposto de 40 cuidarmos de nós. […]
viver desencantado, amargurado e emocionalmente Numa altura em que muitos portugueses se en-
subnutrido, a preencher os dias com tardes-de-mais. contram de férias, aproveite a pausa para refletir so-
Sonhar é cuidar de nós e, quando cuidamos de nós, bre como cuidar melhor de si. Faça uma lista de todas
também cuidamos melhor dos outros, porque nos as atividades que o fazem sentir-se bem, relaxado e
15 sentimos melhor. Não é egoísmo! […] 45 feliz. Reserve um momento do seu dia, todos os dias,
Temos mesmo de cuidar de nós se queremos aju- para se dedicar a essas atividades. Comprometa-se
dar os outros. O autocuidado é algo que devemos pra- com um equilíbrio entre vida pessoal e profissional.
ticar diariamente e tornar-se um hábito. Cuidar E invista e alimente relações positivas e não tóxicas
intencionalmente do nosso bem-estar, através de ati- com familiares e amigos. Pode ajudar a diminuir o
20 vidades que escolhemos fazer regularmente e nos 50 stress, a tristeza, o desamparo e/ou a solidão e con-
fazem sentir bem, de bem com os outros e com a vida, tribuir para que se sinta melhor. “Amigo é a solidão
ajuda a manter a nossa saúde física e psicológica. derrotada”, já dizia Alexandre O’Neill.
O autocuidado pode ser físico, como fazer uma ca- Seja grato à vida, sempre que for caso disso. Nada
minhada, dançar ou fazer uma sesta; psicológico, nos torna mais felizes do que sentir sermos especiais
25 como escrever um diário ou falar com um amigo so- 55 para os outros, para o seu coração. Segundo Séneca,
bre como nos sentimos; espiritual, como passar tem- “quem acolhe um benefício com gratidão, paga a pri-
po na natureza, rezar ou meditar; relacional, como meira prestação da sua dívida”.
conviver com a família e amigos ou fazer voluntaria-
Raquel Raimundo, in https://www.publico.pt,
do; profissional, como realizar um trabalho de que consultado em 05/08/2022
30 gostamos e estabelecer limites no nosso horário (adaptado e com supressões).

18
1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.5, selecione a opção correta.
1.1 Considerando o conteúdo do primeiro parágrafo, o sonho
A. não traz qualquer benefício ao ser humano.
B. suaviza a monotonia que caracteriza os dias.
C. não está ao alcance de todo e qualquer ser humano.
D. não deve ser valorizado dada a sua irrealização.

1.2 Nos segundo e terceiro parágrafos destaca-se


A. a importância de cuidarmos de nós para cuidarmos dos outros.
B. a inutilidade da luta humana na procura do seu bem-estar.
C. o perigo para a saúde mental se não soubermos sonhar.
D. as vantagens decorrentes da prática de exercício físico.

1.3 No antepenúltimo parágrafo refere-se que o autocuidado


A. deve ser secundarizado.
B. é fundamentalmente físico.
C. assume diferentes dimensões.
D. deve privilegiar a espiritualidade.

1.4 No penúltimo parágrafo do texto afirma-se que


A. todos temos oportunidade de praticar o autocuidado.
B. uma crise financeira pode inviabilizar o autocuidado.
C. encontrar tempo e espaço para o autocuidado é fácil.
D. devemos listar atividades que nos façam sentir bem.

1.5 No último parágrafo do texto está presente


A. uma exortação, com recurso ao presente do conjuntivo.
B. um tom melancólico, recorrendo-se à adjetivação.
C. uma descrição, para se perceber o estado de alma do autor.
D. um apelo do autor, servindo-se de várias comparações.

2 Associe os segmentos da coluna A aos da coluna B que completam adequadamente


o seu sentido.

Coluna A Coluna B
1. serve-se da ironia e, exclusivamente, de citações.
a. Para referir a importância 2. concorrem para o nosso bem-estar e para o dos
do sonho, o autor outros.

b. O recurso ao verso de António 3. permite confirmar a importância do sonho para


Gedeão o ser humano.
4. faz-nos sentir mais felizes.
c. A saúde física e psicológica
5. serve-se de expressões ilustrativas da modalidade
do ser humano
apreciativa.
d. As relações positivas 6. proporcionam o bem-estar dos outros, mas não
e. Proporcionar felicidade o nosso.
aos outros 7. impede os outros de serem felizes.
8. depende do modo como cuidamos de nós.

19
Diagnose

GRAMÁTICA

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.6, selecione a opção correta.
1.1 O pronome pessoal “nos”, presente em “Transporta-nos” (l. 1) e “Se a vida nos
brinda” (ll. 34-35), tem a função sintática de
A. complemento indireto em ambos os casos.
B. complemento direto em ambos os casos.
C. complemento direto no primeiro caso e indireto no segundo.
D. complemento indireto no primeiro caso e direto no segundo.

1.2 A afirmação “Sonhar é cuidar de nós” (l. 13) exemplifica a modalidade e o valor
modal
A. apreciativa.
B. deôntica com valor de permissão.
C. deôntica com valor de obrigação.
D. epistémica com valor de certeza.

1.3 A frase “Temos mesmo de cuidar de nós se queremos ajudar os outros” (ll. 16-17)
configura um ato ilocutório
A. expressivo. C. declarativo.
B. diretivo. D. assertivo.

1.4 O processo de formação da palavra “autocuidado” (l. 17) designa-se por


A. composição (radical + palavra).
B. composição (palavra + palavra).
C. derivação por prefixação.
D. derivação por parassíntese.

1.5 O emprego da conjunção “ou” (l. 24) permite assegurar a coesão gramatical
A. temporal. C. referencial.
B. frásica. D. interfrásica.

1.6 Os “que” utilizados em “que gostamos” (ll. 29-30) e “que nem todos temos as mes-
mas oportunidades” (ll. 33-34) são
A. pronomes relativos nas duas ocorrências.
B. uma conjunção subordinativa e um pronome relativo, respetivamente.
C. um pronome relativo e uma conjunção subordinativa, respetivamente.
D. conjunções subordinativas nas duas ocorrências.

Gramática/Atividade:
Complemento direto;
2 Identifique a função sintática desempenhada pelos constituintes seguintes.
Complemento indireto; a. “para uma linha de horizonte suave” (ll. 1-2)
Valor modal: modalidade
apreciativa; Valor modal: b. “que passam” (l. 5)
modalidade deôntica;
Valor modal: modalidade
epistémica; Atos ilocutórios 3 Classifique as orações.
(atos de fala); Derivação;
Composição; Coesão a. “que o fazem sentir-se bem” (l. 44)
e coerência textual
b. “sempre que for caso disso” (l. 53)

20
ESCRITA

António Gedeão escreveu: Animação: Escrever um texto


de opinião
“Eles não sabem que o sonho
É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer”.

Mikalojus Konstantinas Ciurlionis, O sonho de José, 1907.

1 Escreva um texto de opinião, de 200 a 300 palavras, apresentando a sua perspetiva so-
bre a importância do sonho. Planifique previamente o texto, considerando as seguintes
orientações:
• estrutura tripartida (introdução, desenvolvimento e conclusão);
• apresentação do ponto de vista e explicitação de dois argumentos e dois exemplos
pertinentes, emitindo juízos de valor sobre as ideias apresentadas;
• seleção vocabular criteriosa, articulação coerente, correção linguística, sintática
e ortográfica.

Avalie o seu desempenho

Domínio Insuficiente Suficiente Bom Muito bom

Oralidade

Educação
Literária

Leitura

Gramática

Escrita

Critérios

Domínio Insuficiente Suficiente Bom Muito bom


0a7 8 a 12 13 a 15 16 a 18
Oralidade
respostas certas respostas certas respostas certas respostas certas
Educação 1 3 4 todas as
Literária resposta certa respostas certas respostas certas respostas certas
0a4 5a6 7a8 todas as
Leitura
respostas certas respostas certas respostas certas respostas certas
0a4 5a6 7a8 todas as
Gramática
respostas certas respostas certas respostas certas respostas certas

Escrita Nível 1 Nível 2 Nível 3 Nível 4

21
A Literatura
Portuguesa
no século xx

Theo van Doesburg,


Composição I, 1916.
A Literatura Portuguesa no século xx CONTEXTUALIZAÇÃO

1914
Eclosão
1912 da I Guerra
Mundial
Mu
Surgimento
do grupo da
Renascença
Portuguesa.
1910
Proclamação
da República,
1888
188 8 a 5 de outubro.
Nascimento Nomeação de Teófilo
filo
de Fernando Braga como Presidente
ente
Revolta do 31 de janeiro, da República.
Pessoa.
no Porto: sublevação
republicana. Publicação da revista
sta
A Águia.
Nascimento de Mário 1908
de Sá-Carneiro.
Assassinato
1891 do Rei D. Carlos,
a 1 de fevereiro, e do
seu filho D. Luís Filipe.

Crise do pensamento racional Transformações político-sociais do final


do século XIX e início do século XX
Nos finais do século XIX, início do século XX, dá-se
por toda a Europa uma crise civilizacional e cultural que Acontecimentos que acabaram por influenciar signi-
a arte acabará por espelhar. Segundo alguns críticos, ficativamente a literatura portuguesa do início de século
a crise foi provocada pela desconfiança da ciência, do XX: industrialização; migração interna (do campo para as
5 progresso científico, pelo cansaço do racionalismo e do cidades) e externa (sobretudo para o Brasil); consolidação
Romantismo. 5 do operariado e da pequena burguesia; baixo nível de vida
Esta crise deu origem a uma proliferação de estéti- sobretudo da população urbana; consolidação da Repúbli-
cas: Impressionismo e Simbolismo (mais ligados à cultu- ca, devido a divisões internas, a manifestações anarquis-
ra e literatura europeias) e Neogarretismo e Saudosismo tas, antidemocráticas e antiliberais; perda de prestígio
10 (mais ligados à cultura portuguesa), a título de exemplo. das forças armadas; instabilidade política e social.
10 Neste contexto, o movimento da Seara Nova e a Es-
Síntese feita a partir de Dionísio Vila Maior,
Introdução ao Modernismo, Coimbra, Almedina, 1994, pp. 11-18 querda Democrática lutam pela regeneração da Repú-
blica. Outros movimentos tentam o retorno à Monarquia,
defendendo uma política mais autoritária e conserva-
Dos movimentos de fim-de-século
dora. Esta tensão culmina no golpe de Estado de 28 de
à geração de Orpheu 15 maio de 1926.
Segundo Fernando Pessoa, a “arte moderna” vincula- Salazar ganha peso nas decisões políticas do país e
-se a um “sentimento decadente”, mas também a uma a institucionalização da República Unitária e Corporati-
linha de contemporaneidade, que se traduz na ligação às va, em 1933, imprime à nação uma ordem política mais
máquinas e ao progresso. Assim, a literatura portuguesa corporativa e ditatorial.
5 do fim do século XIX e início do século XX deve ser per- 20 Face à situação vivida, os intelectuais assumem
cecionada através da sua ligação ao contexto sociocul- uma ação mais acentuada, mais interventiva, pois con-
tural em que surge. sideram-se mais aptos para levar a cabo esta tarefa,
dada a especificidade da sua arte.
Síntese feita a partir de Dionísio Vila Maior,
Introdução ao Modernismo, Coimbra, Fernando Catroga, Paulo A. M. Archer de Carvalho,
Almedina, 1994, pp. 11-18. Sociedade e cultura portuguesas II, Lisboa,
Universidade Aberta, 1994, pp. 265, 285-286.

24
1926
Publicação
Instauração da
da revista
Ditatura Militar,
Orpheu.
pelo General
1915 Gomes da Costa,
a 28 de maio.

1927
Publicação do
primeiro número
Suicídio de Mário da revista
1922 Presença.
de Sá-Carneiro, Assassinato
em Paris. de Sidónio Pais. Nascimento de
Fim da I Guerra José Saramago,
1916 na Azinhaga,
Mundial.
1918 Golegã, no dia
16 de novembro.

Modernismo e Vanguarda O(s) Modernismo(s)


“Vanguarda” é um termo que designa os movimentos Como o sufixo -ismo deixa entender, trata-se de
de rutura com a tradição literária europeia. No “Moder- posicionamentos face à modernidade, que se consubs-
nismo” convergem duas tendências opostas: uma que tanciam em termos de Arte e Literatura e representam
defende o aprofundamento das tendências literárias do uma nova atitude estética. Assim, o Modernismo encara
5 fim-de-século, outra adepta das propostas de rutura 5 a Literatura como “linguagem que se constitui a partir
da vanguarda, sobretudo do Cubismo e do Futurismo. de um vazio, pela transposição ou fingimento – e já não
Em Pessoa, convergem ambas: uma “antitradicionalis- como expressão direta das vivências do Eu do Autor”,
ta”, outra “futurista”. como sucedia com o Romantismo.
A revista Orpheu é um marco essencial do Primeiro Característica comum aos diferentes modernismos
10 Modernismo português. 10 é também a aliança da literatura com as artes plásticas e,
Fernando Pessoa opõe-se à identificação de Orpheu por outro lado, a importância atribuída à palavra nas artes
como movimento futurista, pois nunca foi apologista da plásticas. Tais conceções novas estão ligadas aos diver-
completa rejeição do passado cultural europeu. sos modos e tipos de reação dos artistas à crise de cons-
António Quadros, no ensaio O Primeiro Modernismo ciência, que podem ser sintetizados da seguinte maneira:
15 Português: vanguardas e tradição (1989), considera 15 ‒ agressão e polémica, sarcasmo, “escândalo”;
que apenas sete personalidades são representativas do ‒ exercício e celebração das energias individuais
Modernismo Português: Fernando Pessoa, Mário de Sá- (Walt Whitman);
-Carneiro, Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor, Ama- ‒ sondagem do inconsciente (que nos anos
deo de Souza Cardoso, José Pacheco e António Ferro. 1920/1930, na Europa, e mais tarde em Portugal,
20 Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa são os maio- 20 originaria o Surrealismo);
res impulsionadores do Movimento Modernista Portu- ‒ entrega à vertigem das sensações, celebração da
guês, sendo este último autor de vários artigos sobre a força, da máquina, da cidade, da raça e da virili-
Nova Poesia Portuguesa publicados na revista A Águia. dade – presente em Marinetti e nos seus compa-
Síntese feita a partir de Carlos Reis, António Apolinário Lourenço,
nheiros futuristas.
História crítica da literatura portuguesa, vol. III, 2015,
Amélia Pinto Pais, Para compreender Fernando Pessoa,
Lisboa, Verbo, pp. 13-18.
Porto, Areal Editores, 1999, 1.ª ed., p. 26 (com supressões).

25
A Literatura Portuguesa no século xx CONTEXTUALIZAÇÃO

1936
Ocupação da Renânia
pela Alemanha Nazi.
Início da Guerra Civil
espanhola.
Publicação
de Mensagem, Revolta dos marinheiros
1928 contra a ditadura
de Fernando 1935
Eleição de General Carmona Pessoa. salazarista.
como Presidente da República. Morte de Fernando
1934 Pessoa, a 30
Reco
Reconhecimento do direito
de voto às mulheres. de novembro.

Assunção das
funções
f de Chefe do
Conselho
C por Salazar
(iminência
(i do regime
1933
ditatorial).
1932 Plebiscito sobre a
Constituição, que fará
nascer o Estado Novo.
Criação da PVDE.

A revista Orpheu
A publicação de dois números da revista Orpheu, em A revista de que apenas saíram dois números, em
1915, foi determinante na implementação do Modernismo Lisboa, em março e junho de 1915, teve um notável sig-
em Portugal. A revista foi alvo da chacota e da hostilida- nificado na História da Literatura Portuguesa por mar-
de do público e os seus fundadores foram acusados de car a introdução do Modernismo em Portugal. Orpheu 1,
5 loucura, mas foi sobretudo o poema “16”, de Mário de Sá- 5 correspondente ao primeiro trimestre desse ano,
-Carneiro, que causou mais impacto negativo na imprensa é dirigida por Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho.
da época, por se afastar claramente dos modelos poéti- Orpheu 2, já sob a direção de Pessoa e Sá-Carneiro,
cos tradicionalmente aceites e defendidos pela crítica. corresponde aos meses de abril, maio e junho. Apesar
No entanto, esta reação agradou aos poetas de Or- de este número ter provocado reação semelhante à
10 pheu, cujo objetivo era provocar escândalo, cientes de 10 suscitada pelo primeiro, a empresa deu prejuízo finan-
que essa seria uma forma de divulgar o seu trabalho, ceiro, e, por tal motivo, não pôde prosseguir. Todavia,
contribuindo para o acordar de consciências, como o Pessoa não deixou de pensar em publicar mais dois [em
próprio Pessoa defendia, numa carta dirigida a Arman- dezembro de 1916, anunciava a Cortês-Rodrigues que
do Côrtes-Rodrigues. a saída de Orpheu 3 estava para breve e que deveria
15 A provocação dos jovens poetas manteve-se, e dis- 15 inserir dois poemas ingleses dele, Pessoa, versos de
so é prova a publicação do número 2 de Orpheu, dirigido Camilo Pessanha e de Sá-Carneiro, poemas de Álvaro
por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. de Campos, etc.]. De facto, o número três estava, no
O número 3 da revista daria particular destaque ano seguinte, em grande parte, se não totalmente, im-
à publicação de “A cena do ódio, de José de Almada presso, mas nunca veio a lume.
20 Negreiros, poeta sensacionista e Narciso do Egito”, mas 20 Fernando Pessoa chegou a escrever, em inglês, no-
a publicação deste terceiro número foi cancelada por tas para uma apresentação de Orpheu, dando já como
Sá-Carneiro, cujo pai era o principal financiador. aparecido o projetado número três, ano e meio após o
Pessoa foi o principal impulsionador deste movimento número um. Tomaz Kim deu a conhecer esse texto, que
de vanguarda, que surgiu a par das vanguardas europeias. traduziu. Aí Pessoa considerava a revista “a soma e a
25 síntese de todos os movimentos literários modernos”.
António Apolinário Lourenço, Fernando Pessoa, Coimbra,
Edições 70, 2009, pp. 29-35 (texto adaptado). Dicionário de Literatura, vol. 3, Direção de Jacinto do Prado Coelho,
Porto, Figueirinhas, 1982, pp. 773/774 (com supressões).

26
1998
Atribuição
do Prémio Nobel
da Literatura
1974
1 a José
J Saramago
Revolução o
de Abril

2010
Morte de
José Saramago,
a 18 de junho

Início da Guerra
Gue
erra
do Ultrama
Ultramar
ar

1939-45 1961

II Guerra Mundial

O século XX português ou o tempo mesmo em corrigir as injustiças que nesse plano se veri-
da literatura ficavam. [...]
A literatura e os seus dilemas
O século XX encontra-se ainda demasiado próximo
de nós para poder ser apreciado com a justeza e a dis- Embora não pertençam já inteiramente a estas gera-
30 ções, nomes como José Saramago, Manuel Alegre, Sophia
tância crítica que requerem os fenómenos sociais e ain-
da mais os fenómenos de natureza artística, como é o de Mello Breyner Andresen, Vergílio Ferreira ou Eugénio de
5 caso da Literatura. [...] Andrade posicionam-se de forma relativamente clara
É no entanto possível dizer, desde já, que o século XX é quanto a esta questão. Nos dois primeiros escritores (em
literariamente o século de Fernando Pessoa, tal como o particular no primeiro) ecoa ainda a tese de que a Arte e a
35 Literatura não só não podem ignorar as injustiças sociais
século XVI foi o século de Camões e o século XIX foi o
século de Garrett, [...] tal como de Eça de Queirós, de Cami- como devem contribuir para inquietar as consciências e
10 lo Castelo Branco e de Cesário Verde que merecem figurar estimular as transformações sociais. [...] Boa parte dos
na galeria dos grandes nomes da literatura de Oitocentos. romances de Saramago e boa parte da poesia de Alegre
[...] traduzem ainda essa ética do combate por uma socie-
Momentos de rutura e de continuidade 40 dade mais justa. Saramago e Alegre [...] viriam a distin-
No que à Literatura diz respeito, o século XX abre guir-se pelo compromisso político-partidário de Esquerda.
com o movimento do Orpheu (1914-15) e com a rutura Em Portugal como na Europa, o século XX é feito de
15 que institui relativamente a uma tradição anterior [...]. muitos Ismos (Modernismo, Neorrealismo, Existencialis-
Na mesma linha, situa-se depois a geração da Presença mo, Surrealismo) [...] e igualmente de muitas personalida-
(1929-1940). [...] 45 des literárias. [...]
Mas, se entre os escritores do Primeiro e do Segundo Acima de todas as diferenças, porém, o século XX é
Modernismos existe uma continuidade evidente, o mesmo ainda um tempo de Literatura, uma época assinalada por
20 não sucede em relação às gerações seguintes. Os presen- um conjunto influente de heróis da escrita, reconhecidos [...]
cistas defendiam uma literatura “viva”, “original” e não pela sua capacidade de criar e recriar identidades, de reco-
especialmente comprometida com as preocupações so- 50 nhecer e transformar o mundo através da arte da palavra.
ciais e económicas; os escritores da geração seguinte (os
José Augusto Cardoso Bernardes, Professor Catedrático da Facul-
neorrealistas) hão de condenar este alheamento social, dade de Letras da Universidade de Coimbra e Diretor da Biblioteca
25 defendendo uma literatura empenhada em denunciar ou Geral da Universidade de Coimbra (adaptado e com supressões).

27
1
Fernando
Pessoa
Poesia
do ortónimo
EDUCAÇÃO LITERÁRIA LEITURA

“Marinha” Artigo de opinião


“Autopsicografia”
ESCRITA
“Isto”
“Ela canta, pobre ceifeira” Apreciação crítica
“Gato que brincas na rua” Texto de opinião
“Tenho tanto sentimento” ORALIDADE
“Chove. Que fiz eu da vida?”
Exposição
“Quando era criança”
Documentário
“Quando as crianças brincam”
Canção
“Não sei, ama, onde era”
Debate
“Não sei se é sonho,
se realidade” GRAMÁTICA
• Antecipar sentidos • Classes de palavras
• Informação • Funções sintáticas
• Orações subordinadas
• Processos fonológicos
• Mecanismos de coesão textual
• Atos ilocutórios
• Dêixis
• Valor aspetual
José de Almada Negreiros, Reading Orpheu 2, 1954
Fernando Pessoa

ORALIDADE COMPREENSÃO

Link: Pelo reencantamento Visione e escute atentamente o pequeno excerto de vídeo sobre um ciclo de conferências
do mundo, Mia Couto,
Fronteiras do pensamento internacionais e resolva as atividades seguintes.
(02 min 31 s)

1 Para completar cada um dos itens 1.1


a 1.5, selecione a opção correta.
1.1 O evento em que o orador discursa
chama-se
A. Fronteiras do Impossível.
B. Fronteiras do Pensamento.
C. Fronteiras da Aprendizagem.
Mia Couto é o orador convidado.
D. Fronteiras da Filosofia.

1.2 O orador é um
A. escritor africano.
B. escritor português.
C. filósofo português.
D. desconhecido.

1.3 Segundo o orador, as crianças


A. trazem problemas aos adultos.
B. levantam questões pertinentes.
C. trazem uma sensação de encantamento.
D. definem a palavra “nuvem” objetivamente.

1.4 O materialismo da sociedade atinge até


A. a poesia.
B. as crianças.
C. os autores.
D. os poetas.

1.5 A dessacralização do mundo


A. deve-se à desvirtualização da religião.
B. prende-se com a ausência de espiritualidade.
C. resultou de um conjunto de situações.
D. relaciona-se com a adoção de antigas crenças.

2 Complete, no seu caderno, os espaços, selecionando a opção adequada da caixa.

espiritual | sociedade | desencanto | racionalista | humanista | lucro | coisas | pessoas

O modelo de a. que o homem criou é responsável pelo b. do


mundo, onde as c. são avaliadas de acordo com o d. que
podem dar.
A relação e. que atualmente se estabelece com as coisas fez anular
a dimensão f. que também devia prevalecer.

30
Poesia do ortónimo

LEITURA ARTIGO DE OPINIÃO

Leia o texto.

Edgar Morin: “É preciso


ensinar a compreensão
humana”

P
ara uma melhor compreensão da realida-
de, para entender quem somos, que cada
um de nós é um ser complexo, que eu sou O objetivo do ensino deve ser ensinar a viver. Viver
um ser complexo, não podemos estar re- não é só adaptar-se ao mundo moderno. Viver quer di-
5 duzidos a um único aspeto da personalida- zer não somente, como tratar as grandes questões de
de, para saber que a sociedade é complexa, para que falamos, mas como viver na nossa civilização,
entender a globalização. Acredito que é sim necessário 30 como viver na sociedade de consumo.
um pensamento assim, senão temos um pensamento Produzimos coisas descartáveis em vez de objetos
mutilado, o que é muito grave, porque um pensamento reparáveis, que possam ser consertados. Então, há
10 mutilado leva a decisões erradas ou ilusórias. toda uma lógica e é preciso dar, no ensino, os meios
É preciso ensinar a compreensão humana, porque é àqueles que se vão tornar adultos, de poder escolher
um mal do qual todos sofrem em graus diferentes. Co- 35 alimentos, consumo, não usar o que não é bom e fa-
meça na família, onde os filhos não são compreendidos vorecer o que tem qualidade e o que é artesanal.
pelos pais e os pais não entendem os seus filhos. Pode Acho que é preciso ensinar não só a utilizar a inter-
15 continuar na escola, com os professores e os colegas. net, mas a conhecer o mundo da internet. É preciso
Continua na vida do trabalho, no amor e acho que temos ensinar a saber como é selecionada a informação nos
que ensinar também a enfrentar as incertezas. Porque 40 media, pois a informação passa sempre por uma se-
em todo o destino humano há uma incerteza desde leção – como e porquê? É preciso ensinar, há todo um
o nascimento. ensinamento, para a nossa civilização, que não está
20 Antes, toda a gente achava que existia um progresso pronto. A tudo isso acresce a importância do ensino
certo e agora o futuro é uma angústia. Por isso, suportar, para os problemas fundamentais e globais. Essa é a
enfrentar a incerteza é não naufragar na angústia, saber 45 reforma fundamental que precisa de ser feita.
que é preciso, de certa forma, participar com o outro,
https://www.fronteiras.com,
de algo em comum, porque a única reposta aos que têm consultado em setembro de 2022
25 a angústia de morrer é o amor e a vida em comum. (adaptado e com supressões).

1 Explique o que é necessário fazer para compreender a realidade, segundo Edgar Morin.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 368, 370, 375, 377 e 401.

1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.


A. Os “que” utilizados no primeiro período do texto são pronomes relativos.
B. A oração “onde filhos não são compreendidos pelos pais” (ll. 13-14) é substantiva relativa.
C. O constituinte “do ensino” (l. 26) é um complemento do nome.
D. Através da utilização de “é preciso”, no último parágrafo, assegura-se a coesão
lexical por reiteração.

31
Fernando Pessoa

ORALIDADE COMPREENSÃO

Linha do tempo: 1 Visione um vídeo sobre a vida e a obra


O Modernismo
Animação: O Modernismo de Fernando Pessoa e complete a tabela
Link: Vida e obra de Fernando
Pessoa, Ler Mais Ler Melhor,
de modo a construir uma breve biografia
RTP2 (até aos 01 min e 51 s) do poeta.
Vídeo: Fernando Pessoa: Fernando Pessoa com 3 anos.
biografia, Editora Globo
(27 min 05 s)

Datas Acontecimentos
a. Nascimento a 13 de junho

1896 Vivência na África do Sul

1905 b.

1934 c.

d. Morte a 30 de novembro devido a grave crise hepática

1988 e.

2 Visione um outro documentário sobre Fernando Pessoa e associe cada um dos interve-
nientes aos assuntos abordados.

Intervenientes Aspetos abordados

1. Refere-se aos livros que chegaram ao Brasil e estabelece


comparações entre os escritos pessoanos e os de outros
autores.
2. Pesquisa as obras encontradas no espólio de Fernando Pessoa
e está a organizar, há 20 anos, a 2.ª edição de uma obra que
inclui livros e artigos do e sobre o poeta português. Atribui a
a. Claufe Rodrigues paixão das pessoas pela poesia pessoana ao facto de ele ter sido
o primeiro a descrever, em termos poéticos, os problemas do
homem moderno.
b. Manuela Nogueira
3. Sublinha a influência de Camões em Fernando Pessoa, embora
estranhe a inexistência de qualquer livro do épico português na
c. José Blanco
biblioteca pessoana. Destaca como fundamental a formação
que o poeta teve na África do sul.
d. Amélia Pinto Pais
4. Conduz todo o documentário, apresenta o autor, refere-se ao
local onde repousa o corpo do poeta, aos locais lisboetas onde
e. Arnaldo Saraiva a sua figura permanece e à sua última morada – a Casa
Fernando Pessoa –, local de visita de milhares de estudantes.
f. Teresa Rita Lopes 5. Escritora e sobrinha de Fernando Pessoa, destaca o convívio e a
afetividade do tio, o seu humor e o jeito especial que tinha com
g. Gonçalo Tavares as crianças.
6. Vê diferenças significativas entre Pessoa e Camões. O primeiro
foi importante para a língua portuguesa, enquanto Fernando
Pessoa é muito contemporâneo, muito próximo.
7. Destaca o desejo de Fernando Pessoa querer sempre fazer
melhor do que os outros, estabelecendo comparações entre
as obras do poeta e a de outros vultos da literatura mundial.

32
Poesia do ortónimo

ANTECIPAR SENTIDOS

A poesia de Fernando Pessoa ortónimo tem características específicas que a individuali-


zam: a presença de uma fé ocultista, alternada com a suspeita de que tudo é sonho ou apa-
rência sem concretude, a extrema lucidez e a expressão de sentimentos indefinidos. Através
dessas contradições internas, a poesia do ortónimo denuncia-se também como busca de
solução para a angústia existencial que o poeta aparentemente aceita, mas na verdade recu-
sa. Equilibrando-se ironicamente entre a fé e a descrença, Fernando Pessoa coloca-se como
instância paradoxal e deixa transparecer toda a sua nostalgia da unidade perdida.
Lélia Parreira Duarte, “Simulacro e consciência irónica em Fernando Pessoa”,
in Fernando Pessoa – Estudos críticos (org. Vilson Brunel Meller e Sérgio de Castro Pinto),
Paraíba, Brasil, Associação de Estudos Portugueses Hernâni Cidade, 1985, p. 89.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema. Áudio: “Marinha”,


de Fernando Pessoa
Animação: Pessoa
na 1.a pessoa
Marinha
Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena...
Eu sofro sem pena a vida.

5 Doo-me até onde penso


E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar...

E sobe até mim, já farto


10 De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias. Maurice Prendergast, Maré baixa, c. 1896-c. 1897 (pormenor).
4-6-1927
Fernando Pessoa, Poesia do eu (ed. Richard Zenith),
Porto, Assírio & Alvim, 2014, p. 184.

1 Estabeleça uma relação entre o sujeito poético e os outros.

2 Explique o sentido do verso “Eu sofro sem pena a vida.” (v. 4), explorando a sua ex-
pressividade.

3 Descreva o estado de espírito do “eu” lírico, considerando a 2.ª e a 3.ª estrofes.

4 Exponha as suas conclusões relativamente à articulação que se estabelece entre


o poema e o conteúdo do excerto presente em “Antecipar sentidos”.

33
Fernando Pessoa

ANTECIPAR SENTIDOS

“Sinceridade” “insinceridade” – eis expressões sem sentido quando é um artista da


geração de 15 que está em causa. […] Pessoa […] afirma “Nada disto tem que ver com
a sinceridade. Em primeiro lugar ninguém sabe o que verdadeiramente sente; é possível
sentirmos alívio com a morte de alguém querido e julgar que estamos sentindo pena
porque é isso que se deve sentir nessas ocasiões. A maioria da gente sente convencio-
nalmente, embora com maior sinceridade humana, o que não sente é com qualquer es-
pécie ou grau de sinceridade intelectual e essa é que importa no poeta”. E nisto está […]
a chave da sinceridade-insinceridade de Fernando Pessoa.
João Gaspar Simões, in Vida e obra de Fernando Pessoa, História de uma geração,
4.ª ed., Livraria Bertrand, 1980, p. 275.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Autopsicografia”, Leia o poema.


de Fernando Pessoa

Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

5 E os que leem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


10 Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
1-4-1931 Henri Martin, O poeta, séc. XIX-XX.

Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada (ed. Manuela Parreira da Silva,
Ana Maria Freitas, Madalena Dine), Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 45-46.

1 Explique em que consiste o fingimento poético.

2 Registe as dualidades percetíveis no poema.

3 Identifique e explicite o valor do recurso expressivo presente i Bloco informativo | p. 413.


na última quadra.

4 Conclua acerca da expressividade decorrente dos tempos e modos verbais bem


como da pontuação utilizados.

34
Poesia do ortónimo

ANTECIPAR SENTIDOS

Para passar de mera emoção sem sentido à emoção artística […], essa sensação [que]
tem de ser intelectualizada segue dois processos sucessivos: a consciência dessa sen-
sação que a transforma já, passando a ser concebida como intelectualizada.
António Apolinário Lourenço, Fernando Pessoa, Lisboa, Edições 70,
2009, p. 93 (adaptado e com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema. Áudio: “Isto”,


de Fernando Pessoa
Animação: O que é uma
Isto interrogação retórica?

Dizem que finjo ou minto


Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
5 Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,


O que me falha ou finda,
É como que um terraço,
Sobre outra coisa ainda.
10 Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio


Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
15 Sentir? Sinta quem lê!
[abril de 1933]
Georgia O’Keeffe, Coração sangrando, 1932.
Fernando Pessoa, Poesia do eu (ed. Richard Zenith),
Porto, Assírio & Alvim, 2014, p. 184.

1 Estabeleça a distinção entre mentir e fingir, de acordo com a perspetiva do poeta.

2 Refira o papel do coração e da imaginação no ato da criação poética.

3 Identifique a que se refere o sujeito poético quando afirma “Por isso escrevo em
meio / Do que não está ao pé” (vv. 11-12).

4 Explique o sentido dos versos “Livre do meu enleio, / Sério do que não é.” (vv. 13-14).

5 Descodifique o valor expressivo da interrogação e o tom irónico presentes no último


verso.

35
Fernando Pessoa

ANTECIPAR SENTIDOS

Em “Ela canta pobre ceifeira” formula-se uma leitura que considera a ceifeira como a
imagem contraposta à pessoa do poeta, vítima da excessiva consciência de si mesmo […],
ansioso por um estado de inconsciência, sem contudo poder renunciar a ter consciência disso.
Dionísio Vila Maior, Fernando Pessoa: heteronímia e dialogismo,
Coimbra, Almedina, 1994, p. 171 (adaptado).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Ela canta, pobre Leia o poema.


ceifeira”, de Fernando Pessoa

Ela canta, pobre ceifeira


Ela canta, pobre ceifeira, Ah, canta, canta sem razão!
Julgando-se feliz talvez; O que em mim sente ’stá pensando.
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia 15 Derrama no meu coração
De alegre e anónima viuvez, A tua incerta voz ondeando!

5 Ondula como um canto de ave Ah, poder ser tu, sendo eu!
No ar limpo como um limiar, Ter a tua alegre inconsciência,
E há curvas no enredo suave E a consciência disso! Ó céu!
Do som que ela tem a cantar. 20 Ó campo! Ó canção! A ciência

Ouvi-la alegra e entristece, Pesa tanto e a vida é tão breve!


10 Na sua voz há o campo e a lida, Entrai por mim dentro! Tornai
E canta como se tivesse Minha alma a vossa sombra leve!
Mais razões p’ra cantar que a vida. Depois, levando-me, passai!
[dezembro de 1924]
Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datado (ed. Manuela Parreira da Silva,
Ana Maria Freitas, Madalena Dine), Lisboa, Assírio & Alvim, 2005, pp. 228-229.

1 Explicite a expressividade da adjetivação e do verbo “julgar-se” na 1.ª estrofe.


1.1 Relacione os adjetivos aí utilizados com a dicotomia consciência/inconsciência.
1.2 Explique a comparação utilizada no 1.º verso da 2.ª estrofe.

2 Indique os sentimentos que o canto da ceifeira suscita no sujeito poético.

3 Exponha os desejos expressos pelo “eu” poético nas duas últimas quadras, justi-
ficando-os.

4 Demonstre de que modo se evidencia, no poema, a dicotomia consciência/incons-


ciência, relacionando-a com a dicotomia felicidade/infelicidade.

36
Poesia do ortónimo

ANTECIPAR SENTIDOS

Fernando Pessoa buscou avidamente a felicidade, como quem nasceu para ser feliz. Bus-
cou sem encontrar, porque cedo o torturou a fome inextinguível de conhecer; […] o demónio
da análise amorteceu nele ambições e sentimentos vulgares até quase ao aniquilamento.
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, 7.ª ed.,
revista e atualizada, Editorial Verbo, p. 107 (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema.

Áudio: “Gato que brincas


Gato que brincas na rua na rua”, de Fernando Pessoa

Gato que brincas na rua


Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

5 Bom servo das leis fatais


Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,


10 Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu. Suzanne Valadon, Raminou sentado num pano, 1920.
Janeiro, 1931 (vinte e tantos)
Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935 e não datada (ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas,
Madalena Dine), Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 14-15.

1 Esclareça a intenção subjacente ao uso da comparação na 1.ª estrofe.

2 Caracterize o gato e o sujeito poético.

3 Explique o sentido do paradoxo presente nos dois últimos i Bloco informativo | p. 413.
versos do poema.

4 Identifique os recursos linguísticos e sintáticos que conferem ao poema maior obje-


tividade.

5 Comprove a impossibilidade de conciliação entre pensar e sentir.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | p. 377.

1 Classifique as orações.
a. “que brincas na rua” (v. 1) b. “Que tens instintos gerais” (v. 7)

37
Fernando Pessoa

ANTECIPAR SENTIDOS

O sentimento do eu como ficção não é para Fernando Pessoa da ordem da ficção ou da


abstração, mas da ordem do vivido. Este sentimento está nele desde a mais tenra infância.
Se nos importa, é como forma objetiva, como leitura do mundo e, sobretudo, como súmula
do sentimento mais genérico da existência inteira como ficção.
António Apolinário Lourenço, Fernando Pessoa, Lisboa, Edições 70, 2009, p. 193.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Tento tanto Leia os textos poéticos.


sentimento”, de Fernando
Pessoa; “Chove. Que fiz eu
da vida?”, de Fernando Pessoa

Vicent Van Gogh, Paisagem à chuva, 1890 (pormenor).

POEMA A POEMA B

Tenho tanto sentimento Chove. Que fiz eu na vida


Tenho tanto sentimento Chove. Que fiz eu da vida?
Que é frequente persuadir-me Fiz o que ela fez de mim…
De que sou sentimental, De pensada, mal vivida…
Mas reconheço, ao medir-me, Triste de quem é assim!
5 Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal. 5 Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Temos, todos que vivemos, Tenho saudade, entre o tédio,
Uma vida que é vivida Só do que nunca quis ter…
E outra vida que é pensada,
10 E a única vida que temos Quem eu pudera ter sido,
É essa que é dividida 10 Que é dele? Entre ódios pequenos
Entre a verdadeira e a errada. De mim, estou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!
Qual porém é verdadeira 23-10-1931
E qual errada, ninguém Fernando Pessoa, Poesias Inéditas (1930-1935)
Fernando Pessoa, Poesia 15 Nos saberá explicar; (nota prévia de Jorge Nemésio),
Lisboa, Ática, 1990, p.56
1931-1935 e não datada E vivemos de maneira
(ed. Manuela Parreira da Silva, (disponível em http://arquivopessoa.net).
Ana Maria Freitas, Madalena
Que a vida que a gente tem
Dine), Lisboa, Assírio & Alvim, É a que tem que pensar.
2006, pp. 162-163. 18-9-1933

38
Poesia do ortónimo

1 Responda às questões sobre o poema A.


1.1 Demonstre a presença de várias dicotomias.
Animação: O que é uma
metáfora?; Escrever uma
1.2 Explicite a expressividade da metáfora presente no verso 4. i Bloco informativo | p. 413. apreciação crítica
Gramática/Atividade:
1.3 Proceda à análise formal do poema. i Bloco informativo | p. 406. Orações subordinadas
adverbiais consecutivas;
Coesão e coerência textual
2 Leia novamente o poema B e resolva o questionário. Quiz: Discurso, pragmática
e linguística textual
2.1 Estabeleça aproximações entre o tempo meteorológico e o estado emocional do
“eu” lírico.
2.2 Refira-se à pontuação e à expressividade por ela conferida.
2.3 Apresente marcas da fragmentação do sujeito poético.
2.4 Caracterize o sujeito poético de acordo com a imagem que tem de si próprio.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 377 e 401.

1 Atente no poema A.
1.1 Registe da 1.ª estrofe a oração subordinada adverbial consecutiva.
1.2 Identifique os mecanismos de coesão lexical presentes nos versos 8 e 9.
1.3 Indique o valor da oração “que temos” (v. 10).

ESCRITA i Bloco informativo | p. 355.

1 Num texto bem estruturado, com um mínimo de 150 e um máxi-


FAZ SENTIDO RELACIONAR

mo de 250 palavras, faça a apreciação crítica do cartoon apresentado.

O seu texto deve obedecer às seguintes orientações:


● introdução: identificação do objeto em apreço, assumindo uma posição valorativa
sobre o mesmo;
● desenvolvimento: descrição da imagem, destacando elementos significativos
da sua composição bem como a relação que estabelecem com os poemas de
Fernando Pessoa presentes na página 38;
● conclusão: fecho do texto, adequado ao ponto de vista desenvolvido, sintetizando

a informação essencial; comentário crítico, fundamentando devidamente a rela-


ção estabelecida e utilizando um discurso valorativo.

39
Fernando Pessoa

INFORMAÇÃO

Uma inteligência hipertrofiada


A inteligência lembra uma varinha de condão: graças a ela, tudo o que dormia
o sono do nada, incluindo o próprio Homem, acorda para a existência. Ser é ser
objeto de conhecimento. A mesma varinha, porém, por um uso intenso e persis-
tente, acaba por esvaziar de realidade as coisas, fá-las regressar ao nada de onde
5 vieram. É um instrumento de destruição que vitima aquele que o maneja, lhe pro-
voca a dor da “universal ignorância”, a sensação de tatear nas trevas, e ao mesmo
tempo o cansa, o corrói, mina as condições elementares de felicidade.
Fernando Pessoa foi dos que mais sofreram com o terrível paradoxo. Voca-
cionado para o exercício exaustivo de uma inteligência esquadrinhadora que, na
10 clausura do “eu”, é vizinha impotente do caos obscuro da vida, e cuja presença
vigilante se manifesta até quando a intuição ou imaginação poéticas alcançam
a sua hora, experimentou, a par do orgulho de conhecer afirmando-se contra a
voragem, a pena mais frequente de lhe ser inacessível a felicidade dos que não
conhecem. O privilégio de uma extraordinária lucidez paga-se caro. Quanto mais
15 humano mais desumano. […] Pessoa padeceu dramaticamente o suplício da sua
grandeza: “O emprego excessivo e absorvente da inteligência” – diz ele na carta
a Cabral Metello publicada na Contemporânea em fevereiro de 1923 –, “o abuso
Vytautas Kasiulis,
da sinceridade, o escrúpulo da justiça, a preocupação da análise, que nada aceita
O pensamento do artista, como se pudesse ser o que se mostra, são qualidades que poderão um dia tornar-
c. 1950.
20 -me notável; privam, porém, de toda espécie de elegância porque não permitem
nenhuma ilusão de felicidade”.
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa,
Lisboa, Verbo, 1982, pp. 97-98 (adaptado e com supressões).

1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.

A. A inteligência é a responsável pelo despertar para a existência.


B. Pensar em excesso conduz o ser humano ao verdadeiro conhecimento.
C. O uso frequente do pensamento conduz a Humanidade à felicidade.
D. Fernando Pessoa usou exaustivamente a inteligência.
E. Fernando Pessoa foi feliz porque usou como ninguém o pensamento.
Teste interativo: Fernando F. A lucidez, alcançada pelo recurso à inteligência, teve efeitos destrutivos em
Pessoa, Poesia do ortónimo
Fernando Pessoa.

40
Poesia do ortónimo

ANTECIPAR SENTIDOS

A estrutura tão proustiana deste regresso “ao tempo perdido” não precisa, em princípio,
de explicações. Não é necessário ser Pessoa para sentir essa nostalgia lancinante. Ao poeta
pertence, porém, essa idealização fantasmática e localizada da sua experiência infantil,
inacessível, não apenas como para o comum dos homens, pelo empírico abismo temporal que
dela nos separa mas por uma culpa específica, como se fosse ele quem tivesse abandonado
a infância e não o contrário, como toda a gente.
Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa revisitado, Lisboa, Moraes Editores, 1981, p. 119.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia os poemas. Áudio: “Quando era criança”,


de Fernando Pessoa; “Quando
POEMA A POEMA B as crianças brincam”,
de Fernando Pessoa
Quando era criança Quando as crianças brincam
Quando era criança Quando as crianças brincam
Vivi, sem saber, E eu as oiço brincar,
Só para hoje ter Qualquer coisa em minha alma
Aquela lembrança. Começa a se alegrar.

5 É hoje que sinto 5 E toda aquela infância


Aquilo que fui. Que não tive me vem,
Minha vida flui, Numa onda de alegria
Feita do que minto. Que não foi de ninguém.

Mas nesta prisão, Se quem fui é enigma,


10 Livro único, leio 10 E quem serei é visão,
O sorriso alheio Quem sou ao menos sinta
De quem fui então. Isto no meu coração.
2-10-1933 5-9-1933

Fernando Pessoa, Poesias (nota explicativa de João Gaspar Fernando Pessoa, Poesias (nota explicativa de João Gaspar
Simões e Luiz de Montalvor), Lisboa, Ática, 1995, Simões e Luiz de Montalvor), Lisboa, Ática, 1995,
p. 187 (disponível em http://arquivopessoa.net). p. 166 (disponível em http://arquivopessoa.net).

1 Atente no poema A.
1.1 Comprove a presença da dicotomia passado/presente.
1.2 Demonstre a expressividade dos termos “minto” e “prisão”.
1.3 Evidencie a circularidade temática do texto.
1.4 Apresente, justificadamente, o tema do poema.

2 Releia o poema B.
2.1 Justifique a reflexão que o “eu” faz a partir da segunda quadra.
2.2 Enumere os sentimentos que se apossam do sujeito poético.

3 FAZ SENTIDO RELACIONAR Compare os dois poemas em termos temáticos e formais.

41
Fernando Pessoa

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Não sei, ama, onde Leia o poema.


era”, de Fernando Pessoa
Link /Áudio: “Melodia
da Saudade”, de Fernando
Daniel
Não sei, ama, onde era
Síntese: Guia de estudo:
Fernando Pessoa, Não sei, ama, onde era,
Poesia do ortónimo
Nunca o saberei...
Sei que era primavera
E o jardim do rei...
5 (Filha, quem o soubera!...).

Que azul tão azul tinha


Ali o azul do céu!
Se eu não era a rainha,
Por que era tudo meu?
10 (Filha, quem o adivinha?).

E o jardim tinha flores


De que não me sei lembrar...
Flores de tantas cores...
Penso e fico a chorar...
15 (Filha, os sonhos são dores...).

Qualquer dia viria


Qualquer coisa a fazer
Toda aquela alegria
Mary Cassatt, Ama e criança, 1896.
Mais alegria nascer
20 (Filha, o resto é morrer...).

Conta-me contos, ama...


Todos os contos são 1 espaço em branco deixado pelo autor

Esse dia, e jardim e a dama


Que eu fui nessa solidão...
25 (Filha,1)
23-5-1916

Fernando Pessoa, Poesia do eu (ed. Richard Zenith),


Porto, Assírio & Alvim, 2014, p. 184.

1 FAZ SENTIDO RELACIONAR Refira-se ao jogo temporal entre o passado e o presente eviden-

ciado na 1.ª estrofe e relacione-o com o do poema A da página anterior.

2 Identifique os interlocutores configurados na mensagem do texto poético.

3 Justifique a utilização dos versos parentéticos, explicitando a sua funcionalidade.

4 Descodifique o valor simbólico da cor reiterada na 2.ª estrofe.

5 Registe o verso ilustrativo da temática da “dor de pensar”.

42
Poesia do ortónimo

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 394, 396, 373 e 377.

1 Exemplifique um ato ilocutório expressivo e um diretivo.

2 Retire, da última estrofe do poema, marcas deíticas de natureza pessoal, temporal


e espacial.

3 Para completar cada um dos itens 3.1 a 3.4, selecione a opção correta.

3.1 No primeiro verso, o nome “ama” desempenha a função sintática de


A. modificador do nome apositivo.
B. vocativo.
C. sujeito.
D. modificador do nome restritivo.

3.2 No verso “Filha, os sonhos são dores” (v. 15), os constituintes destacados desempe-
nham, sequencialmente, a função sintática de
A. vocativo, sujeito e predicativo do sujeito.
B. sujeito, modificador e predicativo do sujeito.
C. vocativo, sujeito e complemento direto.
D. sujeito, modificador e predicativo do complemento direto.

3.3 As orações subordinadas presentes nos dois primeiros versos parentéticos (v. 5 e v. 10)
classificam-se como
A. adjetivas relativas restritivas nas duas ocorrências.
B. substantiva relativa no primeiro e substantiva completiva no segundo.
C. substantiva relativa nos dois casos.
D. adjetiva relativa explicativa e substantiva relativa, respetivamente.

3.4 A oração “que eu fui nessa solidão” (v. 24) classifica-se como subordinada
A. adjetiva relativa explicativa.
B. adjetiva relativa restritiva.
C. substantiva relativa.
D. substantiva completiva.

ORALIDADE EXPRESSÃO

1 Escute atentamente a
FAZ SENTIDO RELACIONAR

canção “Melodia da saudade”, de Fernando


Daniel, e estabeleça aproximações temáti-
cas com os três últimos poemas pessoanos
Cantor e compositor Fernando Daniel.
estudados.

ESCRITA i Bloco informativo | p. 357.

1 Redija um texto de opinião, entre 250 a 350 palavras, sobre a importância da infância
na construção da personalidade e na definição da conduta do ser humano, tendo
como referência a letra da canção que ouviu.

43
Fernando Pessoa

ANTECIPAR SENTIDOS

[…] Só no Sonho, clara e lucidamente visado como Sonho, Pessoa encontrou o fictício e real
repouso por que sempre almejou. Nesses campos-elísios sem aparições, espaço propício às
sucessivas e infindáveis “des-materializações” que da aparência grosseira nos reenviam à forma
do nosso “ser primeiro”, a imaginação da ausência de Pessoa dá livre curso à sua vontade de
anulação deste mundo e desta existência cujo ser é coexistente com a dor, o mal, o pecado. […]
Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa revisitado, Lisboa, Moraes Editores, 1981, p. 176.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Não sei se é sonho, Leia o poema.


se realidade”, de Fernando
Pessoa
Não sei se é sonho, se realidade
Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
5 É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri

Talvez palmares inexistentes,


Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego deem aos crentes
10 De que essa terra se pode ter
Felizes, nós? Ali, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada se desvirtua,


Só de pensá-la cansou pensar;
15 Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,


20 Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.
20-08-1933

Fernando Pessoa, Poesias (nota explicativa


de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor),
Lisboa, Ática, 15.ª ed., 1995, p. 158
(disponível em http://arquivopessoa.net). Odilon Redon, Sonho de poeta, s/d.

44
Poesia do ortónimo

1 Descreva o estado de espírito do sujeito poético.

2 Descodifique o sentido metafórico de “Aquela terra de suavidade” (v. 3).

3 Comprove, com elementos textuais, a inexistência da ilha.

4 Explicite a conclusão a que o “eu” lírico chega.

5 Divida o poema em três partes, considerando os temas: esperança, desalento, certeza.

6 Selecione as opções que completam corretamente a afirmação.


Para caracterizar a ilha, o sujeito poético serve-se da a. (“palmares
inexistentes / Áleas longínquas”, vv. 7-8) e de afirmações b. (sonho/
realidade, sonho/vida), expressando a c. em relação à existência da
ilha através da reiteração do d. “talvez”.

a. b. c. d.

1. repetição 1. antitéticas 1. certeza 1. adjetivo


2. adjetivação 2. metafóricas 2. dúvida 2. nome
3. comparação 3. comparativas 3. insatisfação 3. advérbio

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 373, 401, 394, 377, 383 e 373.

1 Classifique as orações seguintes.


a. “se é sonho, se realidade, / Se uma mistura de sonho e vida” (vv. 1-2)

b. “Que na ilha extrema do sul se olvida” (v. 4)

2 Identifique os processos fonológicos ocorridos na formação das palavras que se se-


guem.
a. REALITATE- > “realidade” (v. 1)

b. AMORE- > “amor” (v. 6)

3 Registe os deíticos de natureza pessoal, espacial e temporal presentes na 1.ª estrofe.

4 Indique o mecanismo de coesão que o termo sublinhado em “Só de pensá-la cansou


pensar” (v. 14) assegura.

5 Identifique o referente do pronome pessoal presente em “Só de pensá-la cansou Animação: O que é uma
pensar” (v. 14). comparação?
Gramática/Atividade: Coesão
e coerência textual; Dêixis
Resolução/Atividade:
6 Indique as funções sintáticas desempenhadas pelo pronome pessoal “nos” e pelo gru- Questão de exame explicada:
po preposicional “no coração” presentes em “Que o bem nos entra no coração” (v. 22). dêixis pessoal; Questão de
exame explicada: dêixis
6.1 Refira a subclasse do verbo “entrar”. temporal e espacial
Quiz: Dêixis pessoal, temporal
e espacial 2
6.2 Identifique o processo regular de formação de palavras ilustrado em “o bem”.

45
Fernando Pessoa

INFORMAÇÃO

TEXTO A

O fingimento artístico
Fernando Pessoa, em Páginas íntimas e de autointerpretação, afirma: “Para passar de mera
emoção sem sentido à emoção artística, e essa sensação tem de ser intelectualizada. Uma
sensação intelectualizada segue dois processos sucessivos: é primeiro a consciência dessa
sensação, e esse facto de haver consciência de uma sensação transforma-a já numa sensa-
5 ção de ordem diferente; é, depois, uma consciência dessa consciência, isto é: depois de uma
sensação ser concebida como tal – o que dá a emoção artística – essa sensação passa a ser
concebida como intelectualizada, o que dá o poder dela ser expressa.”
António Apolinário Lourenço, Fernando Pessoa, Lisboa, Edições 70, 2009, p. 93.

TEXTO B

A dor de pensar
Pessoa é o homem que se revela incapaz de sentir sem estar pensando e é no homem que
não sente sem pensar que a ciência encontra o melhor dos seus aliados. Porém, Pessoa não
era homem de ciência, mas homem de imaginação […], que prefere o sonho à realidade e
desdenha o pensamento pelo sentimento. E, assim, a vida não pode encontrar em Fernando
5 Pessoa o que a vida requer para ser vivida – completo abandono aos sentimentos que desper-
ta. Daí a dualidade desse homem que vive e pensa simultaneamente, e que, pensando o que
vive, pensa, precisamente, que a vida só vale a pena ser vivida sem pensamento, uma vez que
o pensamento [...] corrompe a inconsciência inerente à própria felicidade de viver.
João Gaspar Simões, Vida e obra de Fernando Pessoa, História de uma geração,
4.ª ed., Livraria Bertrand, 1980, pp. 405-406 (adaptado e com supressões).

TEXTO C

A nostalgia da infância
Na poesia de Pessoa está inscrita uma história pessoal, que se
pode reconstituir e partilhar em emoção, em simpatia e compai-
xão, no sentido etimológico desses termos. […]
Qualquer música, qualquer rumorejo de vento no arvoredo,
5 qualquer brilho incerto sobre o rio acorda de repente o “sentimen-
to-raiz”, recalcado, mas formidavelmente vivo […].
E é a infância que volta, inapagável, apesar de todos os des-
mentidos; a infância entre parênteses, como convém ao mais
secreto do ser [...] (“Sei muito bem que na infância de toda a gen-
10 te houve um jardim / Particular ou público, ou do vizinho //
E que a tristeza é de hoje”). […]
A infância é a plena realização do prazer visual e auditivo, co-
municação sensual do sujeito com o objeto, anterior à cisão que
o pensar imporá mais tarde entre ambos. A infância é cor, …
15 e é música. […]
Leyla Perrone-Moisés, Fernando Pessoa – Aquém do eu, além do outro,
São Paulo, Martins Fontes, 1982, pp. 105-106 (com supressões).

Paul Klee, Mural do tempo da saudade, 1922.

46
Poesia do ortónimo

TEXTO D

Sonho/Realidade
Ninguém mais do que ele [Pessoa] experimentou a sensação pungente de estar condena-
do à solidão, e condenado não apenas pela superioridade do seu espírito […], mas ainda por-
que só pelos sentimentos altruístas vencemos as barreiras individuais, e Pessoa, minado pela
ação de uma inteligência hipertrofiada, quase não era capaz desses sentimentos. Por essa
5 causa vive fechado no egoísmo, “só, só como ninguém ainda esteve” […]. O temperamento e
talvez as circunstâncias biográficas (órfão de pai aos cinco anos, aos sete a mãe deu-lhe um
padrasto) fizeram de Pessoa um homem segregado, antissentimental, anti-humanitário, se-
parado do mundo por “uma névoa”, entregue obsidiantemente ao pensamento especulativo
e virado para o sonho. […]
10 […] Não há dúvida: pensar, sonhar, constitui a sua vocação. Dissipados os fantasmas má-
gicos, de novo a existência fica terrivelmente vazia e sem sentido. O poeta dissipou os dias
erguendo sonhos inúteis a um céu impassível.
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa,
7ª ed., revista e atualizada, Editorial Verbo, 1982, pp. 107-109 (com supressões).

TEXTO E

Estilo e linguagem
Nos seus poemas, sempre rimados, Pessoa prefere em regra o verso curto, de número de
sílabas par ou ímpar, e a concisão da quadra ou da quintilha; alia assim a leveza da forma à
subtil densidade do pensamento […], uma linguagem selecionada, mas simples, com vocábu-
los de cariz romântico ou simbolista, mas um núcleo de palavras nuas e correntes que o
5 poeta habilmente rejuvenesce e enche de sentido. […] São certas palavras, certos símbolos
que sugerem aqui o inefável, a magia das visões ou a indecisão dos sentimentos […]. Mas a
expressão é límpida, a sintaxe sem pregas obscuras. Clássico pela constância e universalida-
de dos temas, pela severa redução do real ao não-real, …, Pessoa é-o igualmente pela sobrie-
dade translúcida, pela facilidade aparente, …, pela discrição dos sentimentos mentalizados
10 ou já de raiz intelectual […].
O mesmo caráter intelectual do estilo manifesta-se na frequência de antíteses, paradoxos,
jogos de conceitos e palavras. […]
Mas há também o jogo de palavras que não envolve o paradoxo, antes consiste na repeti-
ção da mesma palavra ou palavras homónimas ou afins. […]
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa,
Lisboa, Editorial Verbo, 1982, pp. 129-150 (com supressões).

1 Identifique o texto que corresponde ao assunto registado.

Assunto Texto
a. A supremacia do pensamento acaba por anular o sentimento, causando infelicidade.

b. A preferência pela redondilha, versos curtos, rima e temas clássicos


caracterizam a poesia ortónima de cariz tradicional.
c. A infância é convocada, frequentemente, por estímulos exteriores e
corresponde a um tempo de inconsciência.

d. A sensação, quando intelectualizada, transforma-se numa nova sensação.

47
Fernando Pessoa

ORALIDADE COMPREENSÃO

Link: A saúde mental dos Leia antecipadamente o questionário se-


portugueses, É ou não é? –
O Grande Debate, RTP1 guinte e resolva-o durante o visionamento
(36 min 27 s)
da primeira parte do debate.

1 Para completar cada um dos itens 1.1 Debate televisivo junta vários
especialistas.
a 1.3, selecione a opção correta.
1.1 O debate em análise
A. intitula-se “É ou Não é?”. C. reporta-se à guerra na Ucrânia.
B. está a ser transmitido na RTP. D. decorre no dia 25 de Abril.

1.2 O teor do debate incide


A. nos efeitos da covid. C. no problema da saúde mental.
B. nas consequências da guerra. D. nas implicações da covid no mundo.

1.3 De acordo com os estudos realizados, a pandemia e a guerra vieram


A. duplicar os casos de depressão e de ansiedade em Portugal.
B. comprovar a falta de investimento europeu na área da saúde mental.
C. mostrar que há necessidade de mais profissionais de saúde nesta área.
D. ensinar os afetados a encontrar soluções para os seus problemas.

2 Associe os convidados às funções que exercem.

Convidados Atividades exercidas


1. Presidente executivo da fundação José Neves que assumiu a
a. Miguel Xavier
causa da doença mental, desenvolvendo projetos para auxiliar
b. Francisco Miranda a população.
Rodrigues 2. Psicóloga clínica e psicoterapeuta que recebe diariamente as
queixas dos doentes.
c. Carlos Oliveira 3. Psiquiatra e coordenador nacional para as políticas de saúde.
d. Maria Inês Galvão 4. Cantora e paciente, vítima de depressão, que acedeu a partilhar
a sua situação para combater o estigma social.
e. Pedro Morgado 5. Psiquiatra e investigador da Universidade do Minho que participa
à distância.
f. Rita Redshoes
6. Psicólogo e bastonário da ordem dos psicólogos portugueses.

3 Ordene os assuntos tratados, de acordo com as seis intervenções.


A. O tema da saúde mental já existia, mas não estava a descoberto. A procura
aumentou e no SNS não houve o reforço prometido.
B. Os exercícios promovem o desenvolvimento pessoal, mas não substituem os
profissionais de saúde da área da doença mental.
C. Portugal acumulou problemas graves porque nas duas ou três últimas décadas
esteve debaixo de uma pedra que a covid veio destapar.
D. A maior parte dos problemas da saúde mental decide-se na base da pirâmide
e é nessa base que Portugal tem de investir.
E. A fundação está preocupada com o desenvolvimento pessoal e com o bem-
-estar das pessoas, disponibilizando uma ferramenta gratuita.

48
Poesia do ortónimo

LEITURA ARTIGO DE OPINIÃO

Leia o texto.

Um junho de Camões e Pessoa


10 de junho de 2022, por M. Correia Fernandes

[O]
mês de junho traz-nos sempre mesmo que por outros heterónimos tenha ido a Inglater-
algo de novo: não são apenas os ra ou ao Brasil? […]
dias longos, nem as festas dos Mas os nossos dois escritores maiores partilham tam-
chamados “santos populares”, bém projetos e dramas humanos. A criação poética é irmã
5 ou, neste ano, os dramas da 30 da criação do pensamento. Por isso sempre sentimos al-
guerra, insensata e desumana, para a qual ingenuamen- gum desconforto quando nos falam do “poeta Pessoa” ou
te se reclamam “corredores humanitários”. do “poeta Camões”, porque esses termos são limitativos da
Traz-nos também a memória repetida de duas das plenitude da sua identidade, como podemos ver também
mais notáveis figuras da nossa história, do pensamento, em outras figuras, como Antero de Quental, ou Jorge de
10 da poesia, da escrita, do conhecimento e da sabedoria. 35 Sena, ou Vitorino Nemésio e tantos outros dos nossos. (…)
Em 10 de junho de 1580 (segundo a opinião mais se- Sobre as expressões poéticas de Fernando Pessoa,
guida, apesar de algumas divergências) falecia Luís Vaz qualquer estudante com elas contactou, pelo menos de
de Camões (1525-1580), por volta dos 55 anos de idade. No uma forma superficial, porque os textos escolhidos para
dia 13 de junho de 1888 nascia Fernando António Noguei- os manuais escolares, em virtude da insistência na poe-
15 ra Pessoa, António por causa do santo do dia, falecido em 40 sia, nem sempre são os mais significativos do pensamen-
Pádua, no norte de Itália, em 13 de junho de 1231, aos 35 to. Há que completá-los com os escritos reveladores desse
anos de idade. Fernando Pessoa viria a falecer em 30 de pensamento, sendo essencial o Livro do Desassossego, no
novembro de 1935, em Lisboa, aos 47 anos de idade. qual expõe meditações […].
Que têm estas personalidades de comum? O dina- Não sei porquê, dei comigo a revisitar um livro de
20 mismo espiritual e evangélico de Santo António, que foi 45 Bernardo Xavier Coutinho, publicado em 1975, em que
de Lisboa, de Coimbra a Marrocos e até a Itália pelo ideal analisa a palavra “Lusíadas” e em que interpreta os retra-
franciscano; ou a dinâmica lírica e aventureira de Luiz tos de Camões, bem como um reencontro com “Diversi-
Vaz, que demandou as partes da Índia e da Ásia, em luta e dade e Unidade em Fernando Pessoa”, de Jacinto do Pra-
aventura; ou a visão pluralista de Fernando António, que do Coelho. São formas de recordar as figuras deste junho
25 de África do Sul encalhou definitivamente em Lisboa, 50 para além dos desfiles e das marchas.
https://www.vozportucalense.pt,
consultado em 31/08/2022 (com supressões).

1 Selecione as opções que completam corretamente a afirmação.


O autor do texto evoca dois grandes vultos literários, Camões e Pessoa, para os
a. e recordar no mês em que se celebra também b. , outra
figura de relevo na cultura portuguesa, escrevendo um texto expositivo-argumentativo
e usando um discurso c. .

a. b. c.

1. desprestigiar 1. Luís Vaz de Camões 1. depreciativo


2. homenagear 2. Antero de Quental 2. valorativo
3. desacreditar 3. Santo António 3. denotativo

49
GRAMÁTICA
SISTEMATIZAÇÃO APLICAÇÃO

SISTEMATIZAÇÃO

Gramática/Atividade:
Valor aspetual Valor aspetual
O aspeto é a categoria gramatical que exprime a estrutura temporal interna de uma
situação. As categorias tempo e aspeto são distintas. Porém, há formas verbais que expri-
mem simultaneamente um valor temporal e aspetual.
Ex.: Ricardo Araújo Pereira faz críticas destrutivas.

A forma verbal tem valor temporal de presente e um valor aspetual habitual, porque
expressa uma situação repetida no tempo.
O valor aspetual de um enunciado é construído com base em informação lexical e gra-
matical. A construção gramatical do valor aspetual relaciona-se com o valor dos tempos
verbais, de verbos auxiliares, de estruturas de quantificação, de certos tipos de nomes,
ou de modificadores. A combinação de elementos deste tipo permite representar uma si-
tuação como culminada/concluída (valor perfetivo), não culminada (valor imperfetivo),
genérica, habitual ou iterativa.

Valores aspetuais Caracterização Exemplificação


Situação culminada, ou seja, a situação expressa
no enunciado é considerada concluída, completa. • Fernando Pessoa criou
Valor
a teoria do fingimento
perfetivo O tempo verbal normalmente associado a este aspeto
artístico.
é o pretérito perfeito do indicativo.
Situação não culminada, isto é, a situação expressa pelo • Os alunos escreviam sobre
enunciado está ainda em curso, ou cujos limites não são a poesia de Fernando Pessoa.
Valor indicados.
imperfetivo • Fernando Pessoa
O tempo verbal normalmente associado a este aspeto desdobrava-se em
é o pretérito imperfeito do indicativo. heterónimos para escrever.
Situação que surge em enunciados relativos a situações
intemporais e universais.
Valor Os tempos verbais habitualmente associados a este • A poesia é imortal.
genérico aspeto são o presente do indicativo e o infinitivo • Ler é alimentar o espírito.
impessoal, conjugado com grupos nominais de
interpretação genérica.
Situação que surge em enunciados que expressam uma
pluralidade infinita de acontecimentos que se sucedem
• Costumamos estudar
num período de tempo ilimitado.
Fernando Pessoa no
Valor Os tempos verbais mais associados a esta situação 12.° ano.
habitual são o presente do indicativo e o pretérito imperfeito
do indicativo, dependendo do ponto de referência da
• Estudavam Caeiro depois de
Fernando Pessoa ortónimo.
enunciação. São também recorrentes expressões como
costumar, ser costume, ser habitual.
Situação que surge em enunciados que apresentam • Os alunos têm estudado
eventos que se repetem num período de tempo, limitado Fernando Pessoa ao fim
Valor ou não. de semana.
iterativo
O pretérito perfeito composto produz um efeito iterativo • Ele lia poemas sempre que
do mesmo modo que construções como andar a… arranjava tempo para isso.

50
APLICAÇÃO

1 Indique os valores aspetuais veiculados nos enunciados apresentados nas diversas


alíneas.

Exemplos Valor aspetual


a. Nas últimas aulas, os alunos têm estudado a poesia de Fernando
Pessoa ortónimo.
b. Quando era mais nova, lia as obras de Alice Vieira e inventava ou-
tros finais.
c. É costume considerar-se Fernando Pessoa um poeta genial.
Genérico
d. Os alunos, normalmente, analisam vários poemas do ortónimo.

e. Os resultados dos exames foram afixados no átrio da escola. Perfetivo

f. As dificuldades ultrapassam-se com empenho e estudo.


Imperfetivo
g. Os alunos esclareceram as suas dúvidas com o professor.

h. Os artistas são criativos. Habitual

i. Eles andavam ansiosos devido a terem de fazer a candidatura ao


ensino superior. Iterativo

j. Estes alunos vão quase todos os dias à biblioteca.

k. Normalmente, a poesia fernandina faz-nos evadir da realidade.

l. Elas costumam ir à biblioteca ao final da tarde.

2 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. i Bloco informativo | pp. 392.

A. O valor imperfetivo representa uma situação não culminada.


B. Uma situação habitual é percetível em enunciados que expressam aconteci-
mentos que sucedem num tempo limitado.
C. O valor perfetivo apresenta a situação como concluída.
D. Uma situação instantânea corresponde a um valor aspetual iterativo.
E. A forma verbal em “No início, os alunos não percebiam a poesia de Fernando
Pessoa” ilustra a situação como concluída.
F. O verso “Ser descontente é ser homem” exemplifica uma situação genérica.
G. O grupo verbal presente na frase “É costume comparar Fernando Pessoa a Ca-
mões” tem valor habitual.
H. Em “Foram analisados seis poemas de Fernando Pessoa” o complexo verbal
tem um valor imperfetivo.
I. A frase “Os portugueses conhecem bem Fernando Pessoa” ilustra uma situação
genérica.
J. Na frase “Eles andavam muito preocupados com os testes de avaliação” confi-
gura-se o valor aspetual imperfetivo.
Quiz: Valor aspetual 1; Valor
aspetual 2; Valor aspetual 3

51
CONSOLIDAÇÃO
Fingimento artístico A dor de pensar
Quiz: Fernando Pessoa: Consiste numa teoria que defende o princípio Estado psicológico que resulta do uso excessi-
poesia do ortónimo 1;
Fernando Pessoa: poesia de que o ato artístico é algo superior, sen- vo e permanente da inteligência, do intelecto,
do ortónimo 2 do, para isso, necessário fingir e recorrer à e que se relaciona com o recurso contínuo à
imaginação. Só o uso da razão, do intelecto, razão, levando o poeta a afirmar: “O que em
por oposição ao sentimento, permite aceder mim sente ‘stá pensando”. A intelectualização
ao fingimento. Além disso, quando o poeta dos sentidos ou sentimentos provoca dor e
comunica aos outros o que sentiu, adultera a infelicidade, por isso, o sujeito poético refugia-
sensação inicial e, por isso, finge, até porque -se, por vezes, na infância e emite o desejo de
o que se sente é intransmissível. Logo, ao se- ser instintivo ou inconsciente, como sucede
lecionar as palavras, que não são mais do que nos poemas “Gato que brincas na rua” e “Ela
convenções, o poeta já não expressa o que canta, pobre ceifeira”, respetivamente.
sentiu, mas o que experiencia no momento
em que o quer comunicar. Daí que Fenando
Pessoa afirme que o poeta “chega a fingir que
é dor / A dor que deveras sente” ou que fingir
não é mentir, como se pode ler em “Autopsi-
cografia” e “Isto”, respetivamente.

Fernando Pessoa – ortónimo

Sonho e realidade Nostalgia da infância

Consciente de que pelo sonho se pode afastar Perante a consciência de que o estado de in-
da realidade, o poeta evade-se, frequentemen- consciência corresponde ao período da infân-
te, para dimensões do domínio do onírico, ain- cia, o poeta evoca o tempo em que não tinha
da que estas possam, no fundo, concretizar-se direitos nem deveres, momento em que tudo
na realidade, uma vez que o poeta se encontra parecia possível, inclusive poder brincar no
num estado de quase permanente alheamen- jardim do rei e pensar que tudo era dele: “Não
to e de confusão como se vê em “Não sei se sei, ama, onde era”. Por isso, deseja viver num
é sonho se realidade”. Enquanto ortónimo, o estado de pura inocência, liberto do intelecto
poeta ilude a vida sonhando, ainda que os seus que o faz questionar-se continuamente e la-
sonhos se revelem inúteis e que a sua vocação mentar não ter usufruído desse anterior esta-
seja pensar e sonhar, como se confirma em do de pureza, quase instintivo.
“A febre do que me suponho / Tolda-me a fron-
te de o pensar. / Mas, se penso, somente so-
nho, / Porque a febre me faz sonhar”.

Estilo e linguagem

Na poesia do ortónimo, é visível a influência da lírica tradicional em alguns traços formais: na


preferência pela quadra e quintilha e no uso do verso curto (redondilha); na musicalidade e no
ritmo embalatório; na linguagem simples, mas frequentemente simbólica, metafórica; no recurso
às metáfora, anáfora, antítese, apóstrofe, gradação e personificação.

52
VERIFICAÇÃO
1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.
A. Fernando Pessoa recebeu uma educação inglesa por ter vivido longos anos em
Jogo: #DesafioLiterário:
Inglaterra. Fernando Pessoa
B. Fernando Pessoa e outros intelectuais criaram a revista Orpheu para divulgar
o Modernismo.
C. Pessoa participou em outras revistas literárias antes de ter fundado o Orpheu.
D. O Modernismo é um movimento estético que prima pela tradição literária e pelo
nacionalismo.
E. A literatura dos participantes na revista Orpheu, na época da sua publicação,
cativou os intelectuais.
F. A poesia dos colaboradores do Orpheu caracterizava-se pela irreverência e pela
alucinação.
G. Pessoa ortónimo sempre conseguiu conciliar o sentimento e o pensamento.
H. A teoria do fingimento poético consiste em representar as emoções, com re-
curso à imaginação.
I. O fingimento poético deve ser entendido como uma mentira e não como inte-
lectualização das emoções.
J. Algumas composições poéticas do ortónimo refletem vivências de um passado
que pode ser reconstruído pela imaginação.
K. Em certos textos poéticos, Fernando Pessoa manifesta um sentimento de soli-
dão, tédio e melancolia.
L. Para representar a realidade, o poeta recorre ao visualismo descritivo do
mundo exterior.
M. Fernando Pessoa consegue ser feliz graças à constante racionalização do
sentir.
N. Pessoa centra-se fundamentalmente no seu mundo íntimo.
O. O regresso à infância deve-se à necessidade de o poeta se libertar do pensa-
mento.
P. A procura incessante do autoconhecimento é responsável pela unificação do
“eu”.
Q. A dicotomia sonho/realidade espelha o desejo do “eu” de se libertar de uma vida
inútil.
R. O reconhecimento de que a realidade é fugaz faz de Fernando Pessoa um ser
lutador.
S. Formalmente, o ortónimo mostra preferência pela quadra e/ou quintilha e pela
redondilha.
T. A linguagem utilizada por Fernando Pessoa é concreta e objetiva, rejeitando, por
isso, as figuras de retórica.

53
AVALIAÇÃO
GRUPO I
Apresente as suas respostas de forma bem estruturada.
Áudio: “Boiam leves,
desatentos”, de Fernando
Pessoa; “Sonhei – nem
sempre o sonho é coisa vã”, PARTE A
de Fernando Pessoa
Animação: Escrever um Leia o poema.
texto expositivo

Boiam leves, desatentos,


Meus pensamentos de mágoa,
Como, no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
5 Do corpo morto das águas.

Boiam como folhas mortas


À tona de águas paradas.
São coisas vestindo nadas,
Pós remoinhando nas portas
10 Das casas abandonadas.

Sono de ser, sem remédio,


Vestígio do que não foi,
Leve mágoa, breve tédio,
Não sei se para, se flui;
15 Não sei se existe ou se dói.
4-8-1930

Fernando Pessoa, Poesias (nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor),
Lisboa, Ática, 1995, p. 120 (disponível em http://arquivopessoa.net).

1 Registe os elementos linguísticos ligados à indefinição/estagnação, indicando o auge


da indefinição.
2 Estabeleça aproximações entre o “eu” e os elementos referidos.
3 Caracterize o estado de espírito do sujeito poético.

PARTE B

Leia o poema.

Sonhei – nem sempre o sonho é coisa vã – Mas eu baixava os olhos, receoso


Que um vento me levava arrebatado, 10 Que traíssem as grandes mágoas minhas,
Através desse espaço constelado E passava furtivo e silencioso,
Onde uma aurora eterna ri louçã...
Nem ousava contar-lhes, às estrelas,
5 As estrelas, que guardam a manhã, Contar às tuas puras irmãzinhas
Ao verem-me passar triste e calado, Quanto és falsa, meu bem, e indigna delas!
Olhavam-me e diziam com cuidado:
Onde está, pobre amigo, a nossa irmã? Antero de Quental, Poesia completa, 1842-1891
(org. e pref. de Fernando Pinto do Amaral),
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001.

54
4 Demonstre a existência de um contraste entre os estados do “eu” e da Natureza.

5 Selecione a opção que completa corretamente a afirmação.


Neste soneto, a temática dominante é a do(a)
A. sonho e destacam-se personificações, adjetivação e interrogação retórica.
B. desespero do “eu”, expresso nas comparações e nas metáforas.
C. Natureza e a sua influência negativa no “eu”, dominando as personificações.
D. não correspondência amorosa, expressa através de metáforas e comparações.

PARTE C
6 Baseando-se na sua experiência de leitura, escreva uma breve exposição sobre a fun-
cionalidade do sonho em Antero de Quental e em Fernando Pessoa.
A sua exposição deve incluir:
• uma introdução ao tema;
• um desenvolvimento no qual compare a abordagem do sonho nos dois autores;
• uma conclusão adequada ao desenvolvimento.

GRUPO II
Leia o texto.

Fernando Pessoa: o homem


que decidiu ser um génio
Richard Zenith.

Quando recebeu o Prémio Pessoa, em 2012, espanhol Ángel Crespo e do francês Robert Bréchon
Richard Zenith já estava a trabalhar nesta biografia, não tinham verdadeiramente conseguido colmatar.
cuja edição portuguesa foi apresentada esta quinta- O próprio Zenith confessa aqui ter receado, quase
-feira na Gulbenkian. Lançada em julho de 2021 no até ao fim, que este Pessoa. Uma Biografia viesse apenas
5 mundo de língua inglesa e recebida pela imprensa 20 confirmar que o seu título propunha uma espécie de
norte-americana e britânica com críticas pouco me- contradição nos termos e que não era possível escre-
nos do que estratosféricas, esta obra monumental ver-se uma biografia satisfatória do elusivo criador de
chega agora, com a ajuda dos tradutores Salvato e heterónimos. Afinal é. E a espantosa quantidade de
Vasco Teles de Menezes, à língua e à cultura portu- pequenos factos desconhecidos, negligenciados ou es-
10 guesas, que ao longo de mais de 70 anos – desde que 25 quecidos que muitos anos de pesquisas lhe permitiram
João Gaspar Simões publicou, em 1950, a sua pioneira reunir neste livro, ou a luz inteiramente nova que lança
Vida e Obra de Fernando Pessoa – não se mostrou capaz sobre o papel desempenhado por alguns familiares do
de produzir uma biografia atualizada do seu mais biografado, como a prima-tia Lisbela ou o tio Cunha, ou
importante escritor moderno. Uma lacuna genuina- ainda as notáveis páginas em que contextualiza o mun-
15 mente enigmática e que as anteriores biografias do 30 do em que o poeta viveu, de Durban a Lisboa, sendo

55
AVALIAÇÃO
alguns dos inquestionáveis méritos desta obra, não 40 com elegância e imparcialidade, evitando impor juízos
devem ocultar o seu triunfo principal, que é ter real- ao leitor. Se esta biografia propõe uma tese é a de que
mente conseguido contar-nos a história de Fernando Pessoa era “um implacável transformador de si mes-
Pessoa. É uma figura viva que emerge destas páginas, mo” e que gostava de antecipar o que ainda não era
35 com uma existência exterior não tão monótona como para se obrigar a chegar lá. Foi assim que se tornou o
nos fizeram crer, e uma das mais vastas e complexas 45 génio que decidiu ser.
vidas imaginadas que algum cérebro acolheu. https://www.publico.pt,
A sexualidade, os interesses esotéricos, as posições consultado em setembro de 2022.
políticas, os preconceitos, tudo é tratado por Zenith

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.6, selecione a opção correta.
1.1 A biografia de Fernando Pessoa, da autoria de Richard Zenith, vem
A. substituir a biografia atualizada de João Gaspar Simões.
B. atualizar e complementar as diferentes biografias do icónico autor.
C. complementar as anteriores biografias, espanhola e francesa.
D. comprovar que havia ainda muito a dizer sobre este moderno escritor.

1.2 Os muitos anos de pesquisa do autor desta nova biografia


A. vieram confirmar que são muitos os factos que foram esquecidos.
B. mostraram que o que se disse sobre o autor era o mais significativo.
C. evidenciam que muitos factos foram negligenciados por outros.
D. confirmam o cuidado e interesse de Richard Zenith por Pessoa.

1.3 A oração “desde que João Gaspar Simões publicou, em 1950, a sua pioneira Vida
e Obra de Fernando Pessoa” (ll. 10-12) classifica-se como subordinada
A. adverbial concessiva. C. adjetiva relativa restritiva.
B. adverbial temporal. D. adjetiva relativa explicativa.

1.4 O segmento “de produzir uma biografia atualizada do seu mais importante escri-
tor moderno” (ll. 13-14) desempenha a função sintática de
A. complemento direto. C. complemento do nome.
B. complemento do adjetivo. D. predicativo do sujeito.

1.5 O vocábulo “aqui” (l. 18) é deítico com valor


A. temporal. C. espacial.
B. pessoal. D. temporal e pessoal.

1.6 Os “que” presentes nas linhas 34 e 37 são


A. ambos pronomes relativos e introduzem orações adjetivas relativas restritivas.
B. um pronome relativo e uma conjunção subordinativa, introduzindo, respeti-
vamente, uma oração adjetiva e outra substantiva.
C. duas conjunções subordinativas completivas e introduzem orações substan-
tivas completivas nas duas ocorrências.
D. ambos pronomes relativos e introduzem, respetivamente, uma oração adje-
tiva relativa restritiva e outra adjetiva relativa explicativa.

56
GRUPO III
Escolha uma das propostas apresentadas.
Animação: Escrever uma
apreciação crítica; Escrever
1 Num texto bem estruturado, com um mínimo de 150 e um máximo de 250 palavras, um texto de opinião
Quiz: Géneros textuais:
faça a apreciação crítica do cartoon abaixo apresentado. escrita

O seu texto deve incluir:


• a descrição do objeto apresentado, destacando elementos significativos da com-
posição da imagem;
• um comentário crítico, fundamentado em, pelo menos, três aspetos relacionados
com a importância dos sonhos e utilizando um discurso valorativo;
• uma conclusão adequada aos pontos de vista desenvolvidos.

2 Num texto de opinião bem estruturado, com um mínimo de 150 e um máximo de 250
palavras, apresente a sua perspetiva sobre a afirmação seguinte.

É comum que os desejos do inconsciente se manifestem nos sonhos e depois


este direcione as nossas ações para que aquele desfecho sonhado se concretize.

No seu texto:
• explicite o seu ponto de vista, fundamentando-o com dois argumentos, cada um
deles ilustrado com um exemplo significativo;
• formule uma conclusão adequada à argumentação desenvolvida;
• utilize um discurso valorativo (juízo de valor explícito ou implícito).

57
2
Fernando
Pessoa
Poesia
dos heterónimos
EDUCAÇÃO LITERÁRIA LEITURA

Carta a Adolfo Casais Monteiro Apreciação crítica


Alberto Caeiro Texto expositivo
II – “O meu olhar é nítido como ESCRITA
um girassol”
X – “Olá, guardador de rebanhos” Texto expositivo
XXII – “O meu olhar azul como o céu” Apreciação crítica
XXVIII – “Li hoje quase duas Texto de opinião
páginas”
ORALIDADE
Ricardo Reis
Diálogo argumentativo
“Sofro, Lídia, do medo do destino”
Exposição
“Uns, com os olhos postos
no passado” Opinião
“Vem sentar-te comigo, Lídia, GRAMÁTICA
à beira do rio”
• Funções sintáticas
“Da nossa semelhança com
os deuses” • Classes de palavras
• Mecanismos de coesão
Álvaro de Campos
textual
“Ode triunfal”
• Orações subordinadas
“Essa velha angústia”
• Atos ilocutórios
“Dobrada à moda do Porto”
• Modalidade e valor modal
• Antecipar sentidos • Pronominalização
Alfred Otto Wolfgang Schulze (Wols),
Composição, 1950. • Informação
Fernando Pessoa

ORALIDADE COMPREENSÃO

Vídeo: Sobre os heterónimos


de Fernando Pessoa, Teresa 1 Leia a atividade antes de visionar atenta-
Rita Lopes, Grupo Editorial mente um primeiro excerto do vídeo.
Global (04 min 26 s);
As muitas “Pessoas”
de Fernando Pessoa, 1.1 Assinale como verdadeiras ou falsas
Canal Curta! (03 min 21 s) as afirmações.
A. A oradora, Teresa Rita Lopes, Teresa Rita Lopes, escritora.
partilha das múltiplas interpreta-
ções sobre os heterónimos.
B. A estudiosa de Fernando Pessoa afirma que, para o poeta, não havia uma só
verdade.
C. O facto de Pessoa ser um poeta dramático pode justificar a criação das perso-
nagens a quem ele chamou “um drama em gente”.
D. As personagens criadas por Fernando Pessoa são autónomas e totalmente
independentes.
E. Pessoa pode ser o palco onde as personagens que criou se manifestam.
F. As personagens criadas por Fernando Pessoa têm estilos diferentes.
G. Ricardo Reis é o clássico herdeiro de Horácio.
H. Álvaro de Campos é quem rejeita a emoção.
I. Campos é mais cerebral do que emocional.
J. Fernando Pessoa sempre foi um solitário.

2 Visione um segundo excerto do vídeo.

2.1 Ordene as afirmações que se seguem.


A. Depois da morte de Fernando
Pessoa, descobriu-se Bernardo
Soares, personagem que o acom-
panhou durante a vida.
B. Fernando Pessoa enviou um poe-
Fernando Pessoa.
ma de Álvaro de Campos para
publicação na revista Orpheu,
dizendo, depois de questionado,
que não conhecia o poeta.
C. O poeta comunicava pouco com as pessoas; era um ser solitário.
D. A ficção fazia parte da vida de Fernando Pessoa, por isso, as personagens
eram para ele tão reais quanto nós.
E. Cleonice Berardinelle referiu-se a um poema em que Fernando Pessoa definiu
a poesia como vento.
F. Fernando Pessoa viveu intensamente, no início do século XX.
G. Alberto Caeiro apareceu depois de Álvaro de Campos e era o seu oposto.
H. O poeta participou no grupo Orpheu.
I. É extraordinário o que fez Fernando Pessoa ao abrir tantos leques.
J. Fernando Pessoa era vários.

60
Poesia dos heterónimos

LEITURA APRECIAÇÃO CRÍTICA

Leia o texto.

Caeiro, o poeta que ensinou


Pessoa a desaprender
Fernando Cabral Martins e Richard Zenith analisam a importância do “guardador de
rebanhos” na obra do escritor português, em livro lançado pela Companhia das Letras.

“Pessoa, através dos heterónimos, visava uma literatura totalizante. Queria, se


fosse possível, englobar todas as tendências, de todos os tempos. Não havia um poe-
5 ta mais ambicioso do que Fernando Pessoa’’.
Richard Zenith, especialista na obra de Fernando Pessoa

A Companhia das Letras lança, nesta terça-feira 35 poeta. “O surgimento de Caeiro marca o momento de
(9/8), dentro de sua coleção dedicada a Fernando Pes- viragem, em que Pessoa se torna um poeta verdadei-
soa, a nova edição de Poesia completa de Alberto ramente grandioso”, destaca.
10 Caeiro. A edição crítica ficou a cargo de dois renoma- “O meu ensaio debruça-se sobre as origens de
dos especialistas na obra do escritor português – Fer- Caeiro, sobre as influências – incluindo poetas como
nando Cabral Martins e Richard Zenith –, autores dos 40 Walt Whitman e Cesário Verde – mais importantes para
dois ensaios do livro. o surgimento deste poeta da Natureza, e sobre o triun-
Com base nos três conjuntos de poemas que com- fo que Caeiro, com a sua poesia tão singela, represen-
15 põem o volume – “O guardador de rebanhos”, “O pastor tou para um poeta cerebral como Pessoa”, sublinha.
amoroso” e “Poemas inconjuntos” –, Martins considera Zenith afirma que os “atributos paradoxais” cum-
que, de todos os heterónimos de Pessoa, Caeiro talvez 45 prem papel central na escrita do heterónimo, por aliar
seja o que corresponda ao “esforço de arquitetura” força, lucidez e estilo lapidar na obra que tem a Natu-
mais bem-sucedido. reza como eixo principal.
“A simplicidade de Caeiro é enganadora, pois toda
20 Simplicidade revolucionária a sua insistência em que as coisas são exatamente
Zenith observa que o heterónimo, que surgiu em 50 o que parecem ser, sem filosofia, constitui também
março de 1914, quando Pessoa tinha 26 anos, repre- uma espécie de filosofia”, ressalta.
sentou uma verdadeira revolução na trajetória do poe- Pessoa costumava referir-se a Caeiro como
ta, que se consagrou pelo estilo singular e bucólico, “o guardador de rebanhos” e como o “pagão”, ao pas-
25 capaz de aliar polos aparentemente opostos, como so que dois de seus outros heterónimos famosos,
simplicidade e profundidade. 55 Ricardo Reis e Álvaro de Campos, eram, respetiva-
“É com Caeiro que Fernando Pessoa aprendeu a de- mente, o “estoico” e o “sensacionista”.
saprender, esquecendo-se da sua vasta erudição para “Caeiro é, de certo modo, um materialista, mas
ver – e escrever sobre – o mundo como se o visse pela descreve um mundo que parece não ter peso. Embora
30 primeira vez”, diz. “A erudição de Pessoa ficou, diga- se identifique como um guardador, confessa no seu
mos, entre parênteses, nada ostensiva, mas está lá”, 60 primeiro poema: ‘Eu nunca guardei rebanhos / Mas é
aponta. como se os guardasse’. Todos estes e outros parado-
Richard Zenith diz que Caeiro ensinou Pessoa a fin- xos de Caeiro apontam para o impossível que se torna
gir, a “outrar-se” – termo empregado pelo próprio possível através da poesia”, diz Zenith.

61
Fernando Pessoa

O especialista observa que Caeiro não era pagão, 80 fosse possível, englobar todas as tendências, de todos
65 mas o próprio paganismo, segundo Ricardo Reis e Fer- os tempos. Não havia um poeta mais ambicioso do
nando Pessoa. que Fernando Pessoa”, destaca.
“Sendo ‘objetivista’ absoluto, não lhe fazia sentido Ele pontua que, segundo as “Notas para a recorda-
conceber deuses imanentes nas coisas. Para ele, as ção do meu mestre Caeiro”, assinadas por Álvaro de
coisas bastavam em si, sem mais nada. Reis, sim, era 85 Campos, os 49 poemas de “O guardador de rebanhos”
70 um pagão, e infeliz por se sentir deslocado, nascido apresentam Caeiro no seu auge, enquanto os “Poe-
no final do século XIX e não na Antiguidade. Era um mas inconjuntos” foram produzidos por um Caeiro às
heterónimo classicista que dava importância às for- vezes “doente”, menos incisivo.
mas das coisas”, afirma. Zenith também considera que alguns poemas des-
90 ta última coleção não estão à altura daqueles que
Ambição multifacetada compõem “O guardador de rebanhos”.
75 Para Álvaro de Campos, aponta o especialista,
o importante era sentir tudo de todas as maneiras.
“Pessoa, sendo o poeta modernista mais importante https://www.em.com.br,
consultado em 17/10/2022 (adaptado).
de Portugal, ia bem mais longe. Através dos heteró-
-nimos, visava uma literatura totalizante. Queria, se

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.7, selecione a opção correta.
1.1 O artigo apresentado tem como principal objetivo
A. apresentar um livro com a poesia de Fernando Pessoa.
B. apresentar uma nova edição da poesia de Alberto Caeiro.
C. divulgar a análise da obra do heterónimo Alberto Caeiro.
D. expor as marcas específicas da poesia de Alberto Caeiro.

1.2 A utilização das aspas no parágrafo a negrito justifica-se


A. dado que corresponde a uma citação de Albero Caeiro.
B. porque se trata do registo das palavras dos dois especialistas.
C. uma vez que se reproduzem as palavras do especialista Richard Zenith.
D. atendendo a que se recuperam as palavras usadas na introdução.

1.3 Segundo Zenith, o aparecimento de Caeiro no universo da heteronímia


A. constituiu uma verdadeira revolução na trajetória de Pessoa.
B. marcou uma viragem no percurso temático do seu criador.
C. permitiu a Fernando Pessoa libertar-se dos outros heterónimos.
D. revolucionou a poesia modernista e a do próprio Pessoa.

1.4 A grandiosidade de Fernando Pessoa deve-se, nas palavras de Zenith,


A. ao poeta clássico Ricardo Reis.
B. ao heterónimo Alberto Caeiro.
C. ao facto de Caeiro estar liberto da erudição.
D. à conjugação da simplicidade e da erudição.

62
Poesia dos heterónimos

1.5 O ensaio de Zenith dá conta das influências de Withman e Cesário em


A. Álvaro de Campos.
B. Ricardo Reis.
C. Bernardo Soares.
D. Alberto Caeiro.

1.6 A poesia do poeta da Natureza é


A. singela e a do criador cerebral.
B. toda ela intelectualizada.
C. desprovida de conteúdo poético.
D. complexa e de difícil compreensão.

1.7 De acordo com o especialista


A. Caeiro é pagão, Reis objetivista e Campos modernista.
B. Reis é objetivista, Caeiro sensacionista e Campos pagão.
C. Campos é sensacionista, Reis classicista e Caeiro objetivista.
D. Reis é estoico, Campos sensacionista e Caeiro modernista.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 373, 378 e 401.

1 Indique a função sintática desempenhada pelos constituintes selecionados.


a. “autores dos dois ensaios do livro” (ll. 12-13)
b. “ao ‘esforço de arquitetura’ mais bem-sucedido” (ll. 18-19)
c. “de Pessoa” (l. 30)
d. “um poeta verdadeiramente grandioso” (ll. 36-37)

e. “que” (l. 46)

2 Classifique as orações seguintes.


a. “que os ‘atributos paradoxais’ cumprem papel central na escrita do heterónimo”
(ll. 44-45)

b. “que tem a Natureza como eixo principal” (ll. 46-47)


c. “Embora se identifique como um guardador” (ll. 58-59)
d. “que se torna possível através da poesia” (ll. 62-63)
e. “se fosse possível” (ll. 79-80)

3 Identifique o mecanismo de coesão textual assegurado pelos elementos sublinhados.


a. “O especialista observa que Caeiro não era pagão, mas o próprio paganismo”
(ll. 64-65)

b. “não lhe fazia sentido conceber deuses imanentes nas coisas” (ll. 67-68) Gramática/Atividade:
Coesão e coerência textual
c. “que dava importância às formas das coisas” (ll. 72-73)

63
Fernando Pessoa

ORALIDADE COMPREENSÃO

Link: Fernando Pessoa,


Sociedade Civil, RTP2
1 Acompanhe o programa Sociedade Civil,
(até aos 18 min 48 s) da RTP2, sobre a heteronímia pessoana,
Vídeo: Fernando Pessoa:
biografia, Editora Globo e associe as opiniões da coluna B aos
(04 min 00 s)
respetivos oradores, da coluna A.

Programa Sociedade Civil.

Coluna A Coluna B
a. Luís Castro (jornalista 1. O seu estudo é sobre Ricardo Reis e a sua relação
e moderador) com Alberto Caeiro.
2. Defende que só se devem considerar três heterónimos
e o semi-heterónimo.
b. Mariana Grey de
Castro (investigadora 3. Dirige as perguntas aos intervenientes e comenta algumas
das universidades de das afirmações.
Oxford e de Lisboa) 4. Faz inicialmente uma síntese biográfica de Fernando Pessoa.
5. Considera que a explicação sobre a heteronímia deve ser
c. Clara Riso (diretora relativizada dada a extensão da obra que Pessoa diz ter sido
da Casa Fernando escrita numa noite, em 1914.
Pessoa) 6. Destaca a questão da heteronímia nas visitas à Casa
Fernando Pessoa.
7. Defende que as obras de Ricardo Reis e de Horácio
d. Nuno Amado
são semelhantes na forma, mas não no conteúdo.
(doutorando em Teoria
da Literatura) 8. Justifica a escolha do poema “Dobrada à moda do Porto”.

2 Visione o documento audiovisual sobre Fernando Pessoa e recolha informação para


completar os espaços.
Fernando Pessoa foi colaborador da a. durante b. anos,
onde alimentou várias c. . Assinou dezenas de textos como Alberto
Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares.
Teresa Rita Lopes – crítica literária – afirma que a heteronímia resulta da propen-
são do poeta para fazer d. . A e. teve como único colabora-
dor Fernando Pessoa desdobrado nas suas f. personalidades literárias.
Os três heterónimos estão à entrada da g. da Universidade de Lisboa,
num mural de h. : o mestre naturalista, Alberto Caeiro, o i. ,
Álvaro de Campos, e j. , Ricardo Reis. Ao pé deles o próprio k. .
O professor Ivo Castro convive há l. com estes e outros heterónimos
diariamente como coordenador da m. , criada pelo governo português no
n. do poeta, com a missão de decifrar e classificar a obra do escritor,
que tem na o. um espólio de p. .
Esta equipa contou com o reforço de uma das primeiras q. , Cleo-
nice Berardinelle, agora com 92 anos, e que r. Fernando Pessoa em
s. , ficando responsável pela obra assinada por t. , heterónimo
que funcionou como u. de Fernando Pessoa. Ricardo Reis é Fernando
Pessoa que voltou ao passado, indo buscar a métrica antiga e v. .

64
Poesia dos heterónimos

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia a carta que Fernando Pessoa escreveu a Adolfo Casais Monteiro a explicar-lhe a ori-
gem dos seus heterónimos.

A Adolfo Casais Monteiro

Caixa Postal 147


Lisboa, 13 de janeiro de 1935
Meu prezado Camarada:

Muito agradeço a sua carta, a que vou responder ime-


5 diata e integralmente. Antes de, propriamente, começar,
quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de
cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso
arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o
adiamento. […]
10 Passo agora a responder à sua pergunta sobre a géne-
se dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-
-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus
heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em
15 mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou,
mais propriamente, um histeroneurasténico. Tendo para
esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de
Almada Negreiros, Retrato
abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja de Fernando Pessoa, 1964.

como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e cons-
20 tante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim
e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida
prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós
comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e
coisas parecidas –, cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de
25 mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume
principalmente aspetos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora
fazer-lhe a história direta dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de
alguns dos quais já me não lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha
30 infância quase esquecida.
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cer-
car de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente
não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos
ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de
35 precisar mentalmente, em figura, movimentos, caráter e história, várias figuras irreais que
eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura
abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu,
tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta,
mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

65
Fernando Pessoa

40 Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu
primeiro conhecido inexistente – um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem
escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquis-
ta aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos
nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro
45 também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a
todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois
que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram
realidades.
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com ou-
50 tra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já
em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou
outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontanea-
mente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava,
e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim
55 arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda
hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho
saudades deles. [...]
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas
de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos,
60 mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa
penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido,
sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro –
de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro
65 como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada con-
segui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de março de 1914 – acerquei-me de
uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre
que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja Natureza não
conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri
70 com um título, “O guardador de rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém
em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase:
aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que,
escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e es-
crevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a “Chuva oblíqua”, de Fernando Pessoa.
75 Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando
Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como
Alberto Caeiro. [...]
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente –
uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o
80 nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação opos-
ta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina
de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a “Ode triunfal” de Álvaro de Campos –
a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei
85 as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências
de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve.
Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa.

66
Poesia dos heterónimos

Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre


Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferen-
90 tes, e como eu não sou nada na matéria. [...]
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante
de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os
gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu
95 em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures),
no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto
Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa,
mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profis-
são nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu
100 em Tavira, no dia 15 de outubro de 1890 (à 1,30 da tarde, diz-
-me o Ferreira Gomes, e é verdade, pois, feito o horóscopo
para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro
naval (por Glasgow), mas agora está aqui, em Lisboa, em ina-
tividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente António Costa Pinheiro, Fernando
Pessoa - Heterónimo, 1978.
105 frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas
muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura,
mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro
louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno,
tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado,
110 monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução
primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns peque-
nos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de
jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente
por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação
115 própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a
Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao
Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem sa-
ber ou sequer calcular o que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstrata,
120 que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para es-
crever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas
se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte
que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um
constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é,
125 não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afe-
tividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português
perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente
mas com lapsos como dizer “eu próprio” em vez de “eu mesmo”, etc., Reis melhor do que eu,
mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de
130 Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea,
em verso.)
Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em
meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho
escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever
135 imediatamente. Não sendo assim passariam meses sem eu conseguir escrever.

67
Fernando Pessoa

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo. Pergunta-me se creio no ocultis-


mo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respon-
do. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em
existências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente
140 Supremo, que presumivelmente criou este mundo. [...]
Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certa incoerência, às suas
perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme pu-
der e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não respon-
der tão depressa.
145 Abraça-o o camarada que muito o estima e admira,

Fernando Pessoa
Fernando Pessoa, Correspondência 1923-35 (ed. Manuela P. da Silva),
Lisboa, Assírio & Alvim, 1999 (com supressões).

1 Complete o quadro, considerando a informação recolhida na carta que leu.

a. Justificação para
o aparecimento
dos heterónimos:

1. 2. 3.
Almada Negreiros, Heterónimos de Fernando Pessoa, 1957-61.

b. Nome:

c. Data e local
de nascimento:

d. Características
físicas:

e. Instrução
e profissão:

f. Tipo de escrita:
Animação: Pessoa
na 1.a pessoa

68
ALBERTO CAEIRO Poesia dos heterónimos

ORALIDADE COMPREENSÃO

Visualize atentamente o excerto do vídeo, onde a explica-


ção dada por Pessoa para o surgimento dos heterónimos
vai ser posta em causa, e resolva a atividade.

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.7, selecione


Manuscrito de Fernando Pessoa.
a opção correta.

1.1 O trabalho de decifração e comparação de textos é


A. exaustivo. C. estimulante.
B. simplificado. D. fastidioso.

1.2 Os pesquisadores fizeram várias descobertas, nomeadamente sobre


A. o nascimento de Fernando Pessoa.
B. a criação dos heterónimos.
C. a colaboração de Pessoa na Atena.
D. as atividades esotéricas de Pessoa.

1.3 Os estudiosos têm a certeza de que


A. os heterónimos teriam nascido de uma só vez.
B. só “O guardador de rebanhos” foi escrito numa noite.
C. Ricardo Reis foi o primeiro heterónimo criado.
D. os heterónimos não surgiram todos na célebre noite.

1.4 Os estudiosos pessoanos encontraram no espólio do poeta


A. provas de que o dia triunfal foi uma série de dias.
B. a justificação para a criação dos heterónimos.
C. o rascunho da carta de Pessoa a Adolfo Casais Monteiro.
D. os horóscopos dos principais amigos de Fernando Pessoa.

1.5 O Livro do desassossego


A. foi escrito ao longo da vida de Pessoa, originando o entusiasmo pelo poeta.
B. foi escrito numa só noite e originou a admiração generalizada pelo poeta.
C. apresenta uma compilação dos melhores poemas dos heterónimos pessoanos.
D. suscitou a admiração dos estudiosos espalhados por todos os continentes.

1.6 Pessoa, durante a sua vida literária,


A. fez o seu mapa astral e o dos amigos.
B. dedicou-se, unicamente, à poesia.
C. escreveu sobre diversos temas.
D. preocupou-se em organizar a sua obra.

1.7 Nos últimos anos, Pessoa viveu


A. a pensar na publicação de Mensagem.
B. numa angústia existencial profunda.
Vídeo: Fernando Pessoa:
C. a prever o dia e a hora da sua morte. biografia, Editora Globo
(11 min 47 s)
D. obcecado com a organização da sua obra.

69
Fernando Pessoa

ANTECIPAR SENTIDOS

Através da heteronímia, Pessoa pôde inclusivamente encontrar uma maneira subtil de


um certo não-comprometimento estético, um modo de fugir a um alinhamento artístico que
seria necessariamente redutor, permitindo-lhe a incoerência de assumir e simultaneamen-
te recusar a vanguarda e o classicismo, o esoterismo ou o materialismo nominalista. […]
António Apolinário Lourenço, Fernando Pessoa,
Coimbra, Edições 70, Lda., 2009, p. 55.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA i Bloco informativo | p. 347.

Síntese: Guia de estudo: Leia o poema.


Alberto Caeiro
Áudio: “O guardador
de rebanhos II”,
de Alberto Caeiro
II
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
5 E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
10 Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo…

Creio no mundo como num malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
15 Porque pensar é não compreender…
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos… Vincent van Gogh, Três girassóis
numa jarra, 1888.
20 Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…

Amar é a eterna inocência,


25 E a única inocência é não pensar…
in “O guardador de rebanhos”, Fernando Pessoa, Poesia dos outros eus
(ed. Richard Zenith), Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, pp. 35-36.

70
Poesia dos heterónimos ‒ Alberto Caeiro

1 Comprove que Caeiro privilegia as sensações.

2 Justifique o privilégio dado à Natureza e/ou aos seus elementos.

3 Refira a importância do verso parentético.

4 Interprete o valor expressivo das reticências.

5 Evidencie a presença da dicotomia sentir/pensar.

6 Registe os dois versos que melhor evidenciam a recusa do pensamento.

7 Para completar os itens 7.1 e 7.2, selecione a opção correta.


7.1 Para dar conta da sua naturalidade e simplicidade, Albarto Caeiro recorre, logo no
primeiro verso, à
A. enumeração.
B. metáfora.
C. comparação.
D. anáfora.

7.2 A primazia dada ao olhar está bem evidenciada no uso do


A. presente do indicativo.
B. imperfeito do conjuntivo.
C. infinitivo pessoal.
D. gerúndio.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 373, 378-379 e 401.

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.3, selecione a opção correta.
1.1 A oração “ter o pasmo essencial” (v. 8) desempenha a função sintática de
A. complemento oblíquo.
B. completo direto.
C. predicativo do sujeito.
D. complemento indireto.

1.2 O pronome relativo presente em “Que tem uma criança” (v. 9) está ao serviço da Animação: O que é uma
coesão gramatical enumeração?; O que é uma
metáfora?; O que é uma
A. referencial. comparação?; O que é uma
anáfora?
B. interfrásica. Gramática/Atividade:
Complemento oblíquo;
C. temporal. Complemento direto;
Predicativo do sujeito;
D. frásica. Complemento indireto;
Coesão e coerência textual;
1.3 A oração “que nascera deveras” (v. 10) é subordinada Orações subordinadas
adjetivas relativas; Orações
A. adjetiva relativa restritiva. subordinadas substantivas
completivas; Orações
B. adverbial causal. subordinadas substantivas
relativas; Orações
C. substantiva completiva. subordinadas adverbiais
causais
D. substantiva relativa.

71
Fernando Pessoa

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “O guardador Leia mais um poema do heterónimo Caeiro.


de rebanhos X”,
de Alberto Caeiro
X
“Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?”

“Que é vento, e que passa,


5 E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?”

“Muita coisa mais do que isso,


Fala-me de muitas outras coisas.
10 De memórias e de saudades
E de coisas que nunca foram.”

“Nunca ouviste passar o vento.


O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
15 E a mentira está em ti.” Paul Gauguin, Pastor e pastora num prado, 1888.

“O guardador de rebanhos”, in Poemas de Alberto Caeiro, Fernando Pessoa (nota explicativa e notas de João
Gaspar Simões e Luiz de Montalvor), Lisboa, Ática, 1993, p. 40 (disponível em http://arquivopessoa.net).

1 Complete os espaços, atendendo ao conteúdo do poema que leu.


O poema "X" apresenta-se sob a forma de um a. entre um b. in-
determinado e um outro que se assume como c. . Assim, logo no início
(“Olá”), há uma d. própria de quem cumprimenta e quer estabelecer con-
versa; segue-se o vocativo, que corresponde ao recurso expressivo da e. ,
por meio da qual se chama pelo recetor do discurso. O tema da conversa é o da passa-
gem do vento, que tem significados distintos para os dois interlocutores.
Na 1.ª quadra há uma resposta próxima de Caeiro, aparentemente simplista, numa
f. de palavras ligadas ao g. “passar”, bem como dos sons
[s], [v], [z] e [∫], h. , e a sugestão da sensação i. . Além disso,
a repetição da mesma palavra em versos consecutivos (a j. ) demonstra
como o “antes” e o “depois” são próprios de um tempo cíclico: as estações e a vida da
Natureza. Contrária a esta é a resposta do interlocutor do pastor, que apresenta um
raciocínio complexo, como exemplifica o uso da k. , ao sugerir que o vento
lhe fala e traz memórias e saudades.
Na última estrofe, o pastor revela uma visão l. e primitiva, cheia de
m. e espontaneidade, sendo que o verso que melhor reflete esta postura
é n. , onde a o. é vista como realidade divina, única captada
pelas p. .
Assim, o q. pessoano nega a complexidade do pensamento, reconstruindo
a dicotomia sentir/pensar.

72
Poesia dos heterónimos ‒ Alberto Caeiro

GRAMÁTICA

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.5, selecione a opção correta. Gramática/Atividade:
Sujeito; Vocativo;
1.1 O grupo nominal “guardador de rebanhos” (v. 1) desempenha a função sintática de Complemento direto;
Modificador de frase;
Modificador de grupo verbal;
A. sujeito. Modificador de nome;
Predicado; Complemento do
B. vocativo. nome; Predicativo do sujeito;
C. modificador. Complemento oblíquo;
Atos ilocutórios (atos de fala);
D. complemento direto. Valor modal: modalidade
apreciativa; Valor modal:
modalidade deôntica;
1.2 Os “que” presentes nos versos 5 e 11 são Valor modal: modalidade
epistémica
A. ambos pronomes relativos. Quiz: Atos ilocutórios
(atos de fala)
B. ambos conjunções subordinativas. Animação: Escrever
um texto expositivo
C. respetivamente, um pronome e uma conjunção.
D. respetivamente, uma conjunção e um pronome.

1.3 A pergunta “Que te diz o vento que passa?” (v. 3) configura um ato ilocutório
A. expressivo.
B. assertivo.
C. diretivo.
D. compromissivo.

1.4 O verso “Nunca ouviste passar o vento” (v. 12) exemplifica a modalidade
A. epistémica com valor de certeza.
B. deôntica com valor de obrigação.
C. deôntica com valor de permissão.
D. epistémica com valor de probabilidade.

1.5 Os grupos frásicos sublinhados em “O vento só fala do vento” (v. 13) e “E a mentira
está em ti” (v. 15) desempenham, respetivamente, a função sintática de
A. complemento direto e predicado.
B. complemento do nome e predicativo do sujeito.
C. complemento oblíquo e predicativo do sujeito.
D. modificador do grupo verbal e predicado.

ESCRITA i Bloco informativo | p. 353.

A simplicidade de Caeiro é enganadora, pois toda a sua insistência em que as coi-


sas são exatamente o que parecem ser, sem filosofia, constitui também uma espécie
de filosofia.
Richard Zenith

1 Com base na sua experiência de leitura, e apoiando-se na citação acima apresen-


tada, explicite o modo como o heterónimo Alberto Caeiro vê o mundo, num texto
expositivo de 80 a 130 palavras.

73
Fernando Pessoa

ANTECIPAR SENTIDOS

Há dois Caeiros, o poeta e o pensador, sendo o primeiro que em teoria se desdobra no


segundo. Os motivos fundamentais do poeta consistem na variedade inumerável da Natu-
reza, nos estados de semiconsciência, de panteísmo sensual, na aceitação calma e gosto-
sa do mundo como ele é. […]
Vive de impressões, sobretudo visuais, e goza em cada impressão o seu conteúdo origi-
nal. […] Caeiro não admite a realidade dos números e não quer saber de passado nem de
futuro, pois recordar é atraiçoar a Natureza […] e o futuro é o campo das conjeturas, das
miragens. Ora, Caeiro é um poeta do real objetivo.
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, 7.ª ed., revista e atualizada,
Lisboa, Editorial Verbo, 1982, pp. 23-24 (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “O guardador Leia o texto poético.


de rebanhos XXIII”,
de Alberto Caeiro
XXIII
O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta…

5 Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer coisa no sol de modo a ele ficar mais belo...
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
10 Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol…
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não perceber que penso nisso…)
“O guardador de rebanhos”, in Poemas de Alberto Caeiro, Fernando Pessoa
(nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor),
Lisboa, Ática, 1993, p. 49 (disponível em http://arquivopessoa.net). Edvard Munch, O sol, 1911-1916.

1 Relacione a segunda estrofe do poema com a primeira.

2 Explicite a simbologia da cor azul no contexto em que surge.

3 Justifique a utilização dos parênteses na última estrofe.

4 Interprete o posicionamento do sujeito poético nos dois últimos versos.

74
Poesia dos heterónimos ‒ Alberto Caeiro

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema.

XXVIII
Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,


5 E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem


E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas as flores, se sentissem, não eram flores, Mikhail Vrubel, Flores, séc. XIX-XX.
10 Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios


15 Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
20 E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos


E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
25 Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.
“O guardador de rebanhos”, in Poemas de Alberto Caeiro, Fernando Pessoa (nota explicativa e notas de João
Gaspar Simões e Luiz de Montalvor), Lisboa, Ática, 1993, p. 53 (disponível em http://arquivopessoa.net).

1 Compare a posição do sujeito poético com a do poeta místico.

2 Caracterize o “eu” poético, comprovando a sua resposta com elementos textuais.


Áudio: “O guardador
3 Considere a escolaridade do heterónimo e relacione-a com a linguagem e estilo uti- de rebanhos XXVIII”,
lizados. de Alberto Caeiro
Quiz: Poesia dos heterónimos –
Alberto Caeiro 1
4 Exemplifique o recurso à comparação na 1.a estrofe, explicitando o seu valor expres- Animação: O que é uma
comparação?
sivo.

75
Fernando Pessoa

INFORMAÇÃO

Caeiro – o poeta da Natureza e das sensações


Logo no começo do “poema dum Guardador de rebanhos” [Caeiro] se declara pastor por
metáfora (e aqui desponta o “poeta bucólico de espécie complicada” que Pessoa, segundo a
carta a Casais Monteiro, quis inventar para pregar uma partida a Sá-Carneiro). De pastor tem
o deambulismo, o andar constantemente e sem destino, absorvido pelo espetáculo da inexau-
5 rível variedade das coisas […]. Os seus pensamentos não passam de sensações. Vive feliz
como os rios e as plantas, gostosamente integrado nas leis do Universo. Não havendo para
ele passado nem futuro, compreende-se que duvide do próprio eu. […] Caeiro limita-se a
existir, tendo nos lábios o sorriso “que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só
porque nos agradam – flores, campos largos, águas com sol –, um sorriso de existir, e não de
10 nos falar”. Às vezes, o seu misticismo naturalista leva-o a desejar dispersar-se, a desejar trans-
formar-se num rebanho “Para andar espalhado por toda a encosta / A ser muita coisa feliz ao
mesmo tempo”. Ou então deita-se na erva (consta da “biografia” que vive no campo, […] numa
aurea mediocritas horaciana), e o seu corpo “pertence inteiramente ao exterior” […].
Caeiro surge, pois, como lírico espontâneo, instintivo, inculto (não foi além da instrução
15 primária, informa Campos), impessoal e forte como a voz da Terra, de candura, lhaneza, pla-
cidez ideais. […] Às palavras procura transmitir Caeiro a inocência, a nudez da sua visão. Daí,
algumas vezes, a simplicidade quase infantil do estilo, as séries paratáticas, a familiaridade
de algumas expressões, as imagens e comparações comezinhas, realistas, caseiras […].
[…] [Caeiro] satisfaz-se calmamente com o manejo hábil de um número reduzido de vo-
20 cábulos, o que aliás provoca uma impressão de monótona pobreza condizente com a menta-
lidade supostamente primitiva do mestre não livresco. Por outro lado, o retorno e as
combinações das mesmas palavras ou séries de palavras compensam de algum modo a falta
de rima, tanto mais que estas podem repetir-se não apenas dentro dos versos como no final.
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, 7.ª ed.,
revista e atualizada, Editorial Verbo, 1982, pp. 25-26 e p. 124 (com supressões).

Linguagem, estilo e estrutura


Do mesmo modo que, em decassílabos rimados, heroicos ou sáficos, Camões cantou tan-
to os seus próprios problemas existenciais – tendo por centro o amor –, como as glórias da
pátria, utilizando, pois, um mesmo veículo para diferentes fins, o verso livre e branco dos
heterónimos pessoanos será usado por Caeiro como linguagem entre narrativa e reflexiva,
5 despida de ênfase, por vezes quase tocando a prosa.
Pode-se dizer que o Caeiro de “O guardador de rebanhos” é quase o mesmo dos “Poemas
inconjuntos”. O diferente é o de “O pastor amoroso”; e o que surpreende é a manutenção do
mesmo tom, manso e fluente, com repetições insistentes, anafóricas ou não, a reforçar
o empenho em persuadir, próprio do mestre. Enquanto guardador de rebanhos, o poeta rela-
10 ciona-se com o mundo fenomenológico através dos sentidos; enquanto pastor amoroso, tem
entre si e a Natureza o objeto do amor que lhe interceta a perceção pura, fazendo-o pensar
com o coração.
Cleonice Berardinelli, “O discurso inovador de Caeiro e Campos”, in Carlos Reis e António Apolinário Lourenço,
História crítica da literatura portuguesa, O Modernismo, vol. VIII, Lisboa, Editorial Verbo,
2015, pp. 152-153 (com supressões).

Quiz: Poesia dos


heterónimos – Alberto 1 Destaque quatro características (duas em termos temáticos e duas em termos de
Caeiro 2
estilo) do heterónimo Alberto Caeiro.

76
RICARDO REIS Poesia dos heterónimos

ORALIDADE COMPREENSÃO

Escute atentamente o registo áudio sobre Ricardo Reis e resolva a atividade. Áudio: Ricardo Reis,
1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.8, selecione a opção correta. o reinado da abdicação

1.1 O documento áudio que ouviu inicia com


A. uma questão colocada por uma voz feminina.
B. a declamação de um poema de Ricardo Reis.
C. a referência à criação heteronímica de Pessoa.
D. a apresentação das temáticas de Ricardo Reis.
1.2 No momento a seguir, uma voz feminina
A. destaca a biografia de Ricardo Reis.
B. realça a superioridade de Ricardo Reis.
C. assinala a estrutura da poesia de Reis.
D. apela à leitura das odes de Ricardo Reis.
1.3 Diz-se que Ricardo Reis
A. assume uma atitude de inquietação face à vida.
B. adota uma postura de tranquilidade face à vida.
C. vive o dia a dia por temer a brevidade da vida.
D. despreza o presente e age a pensar no futuro.
1.4 O cerne da obra poética de Ricardo Reis
A. está na forma como encara a vida.
B. reside na preocupação com o destino.
C. está em como viver ou passar pela vida.
D. assenta nas divindades da Antiguidade. Júlio Pomar, Edgar Poe, Fernando Pessoa
e o Corvo, 1985.
1.5 Uma das características presentes na obra poética de Reis
A. é a aceitação dos deuses mitológicos e da noite.
B. consiste na apologia do estoicismo e do futurismo.
C. é a aceitação do destino e da brevidade da vida.
D. é a comunhão que estabelece com a Natureza.
1.6 Na obra de Ricardo Reis, o imaginário poético
A. é recusado e, por isso, está ausente.
B. resulta da evocação do presente.
C. assenta no relato de acontecimentos históricos e mitológicos.
D. surge simbolizado no que remete para a brevidade da vida.
1.7 A poesia de Reis transmite uma espécie de código de conduta, daí que
A. se sirva da segunda pessoa do singular e da primeira do plural.
B. use a segunda pessoa do plural e a segunda pessoa do singular.
C. utilize a terceira pessoa do singular e a segunda do singular.
D. recorra à segunda pessoa do singular e a terceira do plural.
1.8 Ao longo do registo áudio
A. há um único texto de Ricardo Reis que é citado.
B. há dois textos poéticos de Ricardo Reis que são citados.
C. ouvem-se textos do ortónimo e do heterónimo Ricardo Reis.
D. ouvem-se vários excertos de poemas de Ricardo Reis.

77
Fernando Pessoa

ANTECIPAR SENTIDOS

Os temas da poesia de Ricardo Reis são aqueles (ou mais propriamente alguns daqueles)
1 aproveitar o dia; 2 ideal que que habitualmente encontramos no lirismo clássico, nomeadamente o carpe diem1, a aurea
defende o prazer relativo, mediocritas2 ou a tirania do fatum3. Doutrinariamente, apresenta-se ainda como um “pagão
moderado; 3 destino da decadência”, que procura conciliar o culto epicurista do prazer com a renúncia estoica,
tendo consciência que a renúncia aos bens materiais, o sábio usufruto dos pequenos pra-
zeres e aceitação da morte como fim natural da existência são o caminho certo para fugir
à infelicidade.
António Apolinário Lourenço, Fernando Pessoa, Coimbra, Edições 70, 2009, p. 58 (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia dois textos poéticos do heterónimo Ricardo Reis.

Áudio: “Sofro, Lídia, do medo POEMA A


do destino”, de Ricardo Reis
Sofro, Lídia, do medo do destino
Sofro, Lídia, do medo do destino.
Qualquer pequena cousa de onde pode
Brotar uma ordem nova em minha vida,
Lídia, me aterra.
5 Qualquer cousa, qual seja, que transforme
Meu plano curso de existência, embora
Para melhores cousas o transforme,
Por transformar
Odeio, e não quero. Os deuses dessem
10 Que ininterrupta minha vida fosse
Uma planície sem relevos, indo
Até ao fim.
A glória embora eu nunca haurisse, ou nunca
Amor ou justa estima dessem-me outros,
15 Basta que a vida seja só a vida Pablo Picasso, A musa, 1935.
E que eu a viva.
Poemas de Ricardo Reis, Fernando Pessoa (edição crítica de Luiz Fagundes Duarte), Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, p. 80 (disponível em http://arquivopessoa.net).

1 Segmente o poema em partes lógicas.

2 Evidencie a importância da presença do interlocutor.

3 Justifique o desejo do "eu" de ter uma vida que "fosse / Uma planície sem relevos"
(vv. 10-11).

4 Proceda ao levantamento de três recursos estilísticos, referindo-se ao seu valor


expressivo.

78
Poesia dos heterónimos ‒ Ricardo Reis

POEMA B

Uns, com os olhos postos no passado Áudio: “Uns, com os olhos


postos no passado”,
Uns, com os olhos postos no passado, de Ricardo Reis
Veem o que não veem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.

5 Porque tão longe ir pôr o que está perto –


A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora


10 Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
28-8-1933

Odes de Ricardo Reis, Fernando Pessoa


(notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor),
Lisboa, Ática, 1994, p. 154
(disponível em http://arquivopessoa.net).
Franz Kline, Olhos de amora, 1960.

1 Evidencie a posição do sujeito poético relativamente aos outros.

2 Justifique o recurso à interrogação no verso 6.

3 Apresente uma justificação para a utilização de formas verbais no modo indicativo.

4 Destaque três marcas características da filosofia de vida defendida por Ricardo Reis.

5 Selecione a opção que completa corretamente a afirmação.


Pela crítica que o sujeito poético tece a “uns” e a “outros”, depreende-se que
A. defende que o passado paira sempre sobre o presente.
B. recusa o passado e o futuro, privilegiando o presente.
C. prefere imitar os antigos na busca pela perfeição.
D. rejeita uma vivência assente exclusivamente no presente.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | p. 373.

1 Registe o grupo frásico retomado pelo pronome relativo “Que” (v. 10, poema B).

2 Indique a função sintática desempenhada pelo pronome pessoal “nos” (v. 10, poema B).

79
Fernando Pessoa

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Vem sentar-te Leia com atenção a ode de Ricardo Reis.


comigo, Lídia, à beira do rio”,
de Ricardo Reis
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).

5 Depois pensemos, crianças adultas, que a vida


Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.


10 Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
Francis Picabia, Margem do rio,
E sem desassossegos grandes. 1905 (pormenor).

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,


Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
15 Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,


Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
20 Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as


No colo, e que o seu perfume suavize o momento –
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

25 Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois


Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,


30 Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
12-6-1914

Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa (notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor),
Lisboa, Ática, 1994, p. 23 (disponível em http://arquivopessoa.net).

80
Poesia dos heterónimos ‒ Ricardo Reis

1 Caracterize a relação do sujeito poético com Lídia.

2 Explicite as normas de comportamento defendidas pelo “eu”. Animação: O que é uma


apóstrofe?; O que é uma
comparação?; O que é uma
3 Demonstre, recorrendo a elementos textuais pertinentes, a presença do estoicismo metáfora?; O que é uma
enumeração?; Escrever
(apatia) e do epicurismo (a ataraxia e o carpe diem). uma apreciação crítica

4 Preencha a tabela seguinte retirando do poema uma forma verbal exemplificativa dos
tempos e modos verbais indicados.

Modo Tempo Exemplos


Presente a.
Indicativo
Futuro b.
Presente c.
Conjuntivo
Futuro d.

4.1 Demonstre a expressividade dos diferentes tempos e modos verbais utilizados.

5 Explicite a simbologia das metáforas “rio” (vv. 1 e 10), “mar (v. 16), “sombra” (v. 25), “barqueiro
sombrio” (v. 29).

6 Complete a tabela com exemplos textuais ilustrativos dos recursos expressivos


elencados.

Recursos expressivos Exemplificação


Apóstrofe a.

Comparação b.

Metáfora c.

Enumeração d.

7 Descodifique o modo como o sujeito poético idealiza a vida.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 378-379 e 373.

1 Classifique a oração “Que a vida passa” (v. 3).

2 Indique a função sintática desenpenhada pelo constituinte sublinha-


do em “Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas” (v. 3).

ESCRITA i Bloco informativo | p. 355.

1 Faça uma apreciação crítica da pintura, procedendo à sua des-


crição objetiva, avaliando a sua pertinência e considerando
o conteúdo dos poemas analisados.
Planifique previamente o seu texto, conferindo-lhe uma estru-
tura tripartida e revendo-o no fim.
Michelangelo Buonarroti, Último julgamento, 1537.

81
Fernando Pessoa

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Da nossa Leia atentamente o poema seguinte de Ricardo Reis.


semelhança com os deuses”,
de Ricardo Reis
Da nossa semelhança com os deuses
Da nossa semelhança com os deuses
Por nosso bem tiremos
Julgarmo-nos deidades exiladas
E possuindo a Vida
5 Por uma autoridade primitiva
E coeva de Jove1.

Altivamente donos de nós-mesmos,


Usemos a existência
Como a vila que os deuses nos concedem
10 Para esquecer o estio.

Não de outra forma mais apoquentada


Nos vale o esforço usarmos
A existência indecisa e afluente
Fatal do rio escuro.

15 Como acima dos deuses o Destino


É calmo e inexorável,
Acima de nós-mesmos construamos
Um fado voluntário
Que quando nos oprima nós sejamos
20 Esse que nos oprime, Gustav Adolf Mossa, O destino, 1917.
E quando entremos pela noite dentro
Por nosso pé entremos.
30-7-1914

Ricardo Reis, “Odes – Livro Primeiro”, in Fernando Pessoa,


Poesia dos outros eus (ed. Richard Zenith),
Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, pp. 144-145.

1 Júpiter

1 Explicite o modo como, de acordo com o sujeito poético, a vida deve ser vivida pelos
humanos.

2 Indique as razões subjacentes à necessidade de viver a vida calma e placidamente.

3 Descodifique a hierarquia que o sujeito poético constrói.

4 Explique a simbologia associada ao “rio escuro” e à “noite”.

82
Poesia dos heterónimos ‒ Ricardo Reis

5 Selecione as opções que completam corretamente as afirmações.


O sujeito poético emprega um tom a. e exortativo para que os homens se liber- Gramática/Atividade:
tem da tirania dos b. . Aconselha-os a encarar a vida com c. usan- Valor modal: modalidade
apreciativa; Valor modal:
do, para veicular o valor de conselho, o modo d. (“construamos”, “sejamos”). modalidade deôntica;
Valor modal: modalidade
epistémica
a. b. c. d. Resolução/Atividade:
Questão de exame explicada:
1. erudito 1. deuses 1. regras 1. imperativo funções sintáticas 1;
Questão de exame explicada:
2. moralista 2. homens 2. intensidade 2. conjuntivo funções sintáticas 2
3. confessional 3. imprevistos 3. tranquilidade 3. indicativo Quiz: Valor modal
Animação: Escrever uma
apreciação crítica

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 373 e 390.

1 Indique a função sintática desempenhada pelos constituintes sublinhados.


a. “que os deuses nos concedem”, (v. 9)

b. “É calmo e inexorável” (v. 16)

2 Identifique a modalidade e o valor modal presentes nos versos “Usemos a existência /


Como a vila que os deuses nos concedem” (vv. 8-9).

3 Selecione a opção que completa corretamente a afirmação.


O pronome pessoal “nos”, presente nos versos 9 e 20,
A. corresponde ao complemento direto e indireto, respetivamente.
B. desempenha a função sintática de sujeito e de complemento direto, respetiva-
mente.
C. corresponde, na primeira ocorrência, ao sujeito e, na segunda, ao complemento
indireto.
D. desempenha a função sintática de complemento indireto e de complemento
direto, respetivamente.

ESCRITA i Bloco informativo | p. 355.

1 Faça uma apreciação crítica da ima-


gem, num texto de 150 a 200 pala-
vras, convocando o estudo da obra
pessoana e considerando as seguin-
tes orientações:
• descrição objetiva da imagem;
• referência ao seu significado, aten-
dendo à diversidade de Pessoa;
• apresentação de uma opinião funda-
mentada acerca desta representa-
ção visual do universo pessoano;
• uso de um discurso valorativo; Miguel Yeco, O teatro íntimo do ser, 1986.
• ...

83
Fernando Pessoa

LEITURA TEXTO EXPOSITIVO

Leia o texto.

A história por detrás


da mudança de horário

A
té ao século XIV, as civi-
lizações antigas dividiam
o dia em períodos de 12
horas. Mas, com a constru-
5 ção dos relógios mecânicos,
os dias passaram a ter 24 horas. Em 1784,
Benjamin Franklin propôs que se fizesse
um ensaio com a alteração da hora na pri-
mavera (mais uma hora), o que permitiria
10 uma poupança considerável nas velas. Isto
porque, caso se levantassem mais cedo, as
pessoas conseguiam aproveitar mais horas
de sol e, como tal, poupar no consumo de
energia, ou seja, de velas.
15 Contudo, esta medida apenas ganhou
força mais de 100 anos depois, em plena
Primeira Guerra Mundial. Com o desen-
volvimento da ferrovia, e depois de outros
pensadores apresentarem os vários bene-
20 fícios desta mudança, implementou-se a
alteração de horário na primavera para Arco da rua Augusta, Lisboa.
poupar combustível, escasso e racionado
na altura, na Alemanha e na Áustria. 35 4,6 milhões de inquiridos responderam que
Pouco tempo depois, Portugal, que des- queriam os relógios a seguirem o seu curso
25 de 1911 seguia a hora de Greenwich, imitou natural, sem influência externa. E a maioria
os outros países europeus, atrasando os disse preferir ficar com o horário de verão.
ponteiros dos relógios pela primeira vez “Milhões acreditam que, no futuro, a hora
a 17 de junho de 1916 (para fazer a operação 40 de verão deveria ser para o ano todo”, disse,
oposta a 1 de novembro). na altura, o ex-presidente da Comissão Euro-
30 Desde então, muito se tem discutido so- peia (CE), Jean-Claude Juncker. No entanto,
bre a pertinência da mudança de horário. apesar das avaliações, Portugal continua
Em 2018, um grande inquérito europeu ha- a mudar a hora duas vezes por ano.
via dado uma vitória esmagadora aos que
https://visao.sapo.pt,
defendiam a não mudança da hora: 80% dos consultado em novembro de 2022 (adaptado).

84
Poesia dos heterónimos ‒ Ricardo Reis

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.3, selecione a opção correta.
1.1 O adiantamento de uma hora na primavera
A. ganhou força em 1784, após a proposta de Benjamin Franklin.
B. ganhou mais força durante a Segunda Guerra Mundial.
C. resultou do racionamento imposto pela Segunda Guerra Mundial.
D. ocorreu na Alemanha e na Áustria após a Segunda Guerra Mundial.

1.2 Em Portugal, os ponteiros foram atrasados pela primeira vez em


A. novembro, 100 anos após a proposta de Benjamin Franklin.
B. 1911, por imitação dos outros países europeus.
C. 1916, imitando o que já se fazia pela Europa.
D. 2018, por uma questão de poupança energética.

1.3 A discussão em torno da pertinência da mudança da hora


A. levou à aplicação de um inquérito no parlamento europeu.
B. conduziu à aplicação de um inquérito aos portugueses.
C. permitiu concluir que no verão a hora deveria mudar.
D. mostrou que a maioria defende o curso normal do relógio.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 373, 378-379 e 401.

1 Indique a modalidade e o valor modal presentes no primeiro período do texto.

2 Identifique a função sintática desempenhada pelos constituintes seguintes.


a. “dos relógios mecânicos” (l. 5)
b. “uma poupança considerável nas velas” (l. 10)
c. “aos que defendiam a não mudança da hora” (ll. 33-34)

3 Classifique as orações a seguir apresentadas.


a. “caso se levantassem mais cedo” (l. 11)
b. “que desde 1911 seguia a hora de Greenwich” (ll. 24-25)
c. “que, no futuro, a hora de verão deveria ser para o ano todo” (ll. 39-40)
Gramática/Atividade:
Valor modal: modalidade
4 Refira o mecanismo de coesão textual assegurado pela locução “No entanto” (l. 42). apreciativa; Valor modal:
modalidade deôntica;
Valor modal: modalidade
epistémica; Coesão
5 Reescreva os segmentos seguintes, pronominalizando os complementos direto e indi- e coerência textual
reto sublinhados. Resolução/Atividade:
Questão de exame explicada:
a. “Portugal, que desde 1911 seguia a hora de Greenwich, imitou os outros países funções sintáticas 3; Questão
europeus” (ll. 24-26) de exame explicada: funções
sintáticas 4
b. “um grande inquérito europeu havia dado uma vitória esmagadora aos que defendiam Quiz: Valor modal;
Funções sintáticas
a não mudança da hora” (ll. 32-34)

85
Fernando Pessoa

INFORMAÇÃO

TEXTO A

Estilo e temáticas
Na ficção heteronímica, Reis gosta de se apresentar como discípulo mais consequente de
Caeiro, ainda que procurando estabelecer uma versão culta do paganismo espontâneo do seu
mestre. Enquanto poeta, sustenta-se em modelos greco-romanos, especialmente nas odes
horacianas. O seu discurso poético, profundamente intelectualizado, e onde convivem har-
5 moniosamente os cultismos e arcaísmos próprios da opção classicista, reflete a influência da
sintaxe latina, provocando uma sensação de estranheza ao leitor português. Os temas da sua
poesia são aqueles (ou mais propriamente alguns daqueles) que habitualmente encontramos
no lirismo clássico, nomeadamente o carpe diem, a aurea mediocritas ou a tirania do fatum.
Doutrinariamente, apresenta-se ainda como um “pagão da decadência”, que procura conciliar
10 o culto epicurista do prazer com a renúncia estoica, tendo consciência de que a renúncia aos
bens materiais, o sábio usufruto dos pequenos prazeres e a aceitação da morte como fim
natural da existência são o caminho certo para fugir à infelicidade.
António Apolinário Lourenço, Fernando Pessoa, Coimbra, Edições 70,
2009, pp. 57-58 (com supressões).

TEXTO B

Epicurismo e ataraxia
Marc Chagall, O poeta, 1912.
Reis procura na sabedoria dos antigos um remédio para os seus males. […] Copia-lhes
o exemplo. Não hesita em confessar a Lídia que […] prefere o presente precário a um futuro
que teme porque o desconhece. Embora com tintas de estoicismo, […] formula uma filosofia
da vida cuja orientação é, na verdade, epicurista. O homem de sabedoria edifica-se, conquis-
5 ta a autonomia interior na restrita área de liberdade que lhe ficou. Essa conquista começa por
um ato de abdicação […], um duro esforço de autodisciplina. O primeiro objetivo é a submis-
são voluntária a um destino involuntário […], aceitando livremente a morte. O segundo ob-
jetivo é evitar as ciladas da Fortuna, depurando a alma de instintos e paixões que nos prendam
ao transitório, alienando a nossa vida. Com Epicuro aprendeu Reis que a ataraxia é a primei-
10 ra condição de felicidade e não implica ausência de prazer mas indiferença perante todo o
prazer que nos compromete, colocando-nos na dependência dos outros ou das coisas. […]
Os prazeres tipicamente epicuristas são espirituais, como a volúpia levemente melancólica
de recordar os bons momentos do passado.
Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, Lisboa,
Editorial Verbo, 1982, pp. 26-27 (adaptado e com supressões).

1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações.


A. Reis, à semelhança do seu Mestre Caeiro, adota um discurso simplista e bas-
tante familiar.
Síntese: Guia de estudo: B. A poesia de Ricardo Reis reflete a inevitabilidade do destino.
Ricardo Reis
Quiz: Poesia dos C. Reis defende, na sua poesia, a necessidade humana de um enorme autocontrolo
heterónimos – Ricardo Reis 1; para não se ser surpreendido pela Fortuna.
Poesia dos heterónimos –
Ricardo Reis 2
D. Os prazeres epicuristas são fundamentalmente carnais.

86
ÁLVARO DE CAMPOS Poesia dos heterónimos

ORALIDADE COMPREENSÃO

Escute uma breve exposição sobre Álvaro de Campos e leia a atividade. Áudio: Álvaro de Campos,
a experiência de existir
1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.8, selecione a opção correta.
1.1 Segundo as primeiras palavras do enunciador, Álvaro de Campos
A. transpira desilusão, bem visível nos seus poemas.
B. transpira emoção e a vida pulsa nos seus textos.
C. deixa transparecer revolta face a um mundo caótico.
D. revela entusiasmo e alegria perante o mundo caótico.
1.2 O heterónimo pessoano quer
A. fugir do mundo caótico em que se encontra.
B. viver plenamente o presente por temer o futuro.
C. sentir tudo de todas as maneiras, ser tudo e todos.
D. controlar as suas emoções exageradas e abruptas.
1.3 Quando parte em busca do mistério, Álvaro de Campos
A. entusiasma-se e deprime-se.
B. regozija-se com o que vê.
C. sente náusea e evade-se.
D. manifesta repulsa e dor.
1.4 Enquanto prometeico, este heterónimo
A. procura a Antiguidade como evasão.
B. detesta e repudia os aspetos da modernidade.
C. afasta-se do mundo contemporâneo.
D. saúda o novo mundo, uma nova humanidade.
1.5 Álvaro de Campos mostra-se
A. seduzido pela tecnologia, pelas máquinas e pelo progresso.
B. atento a tudo o que representa o mundo da antiguidade.
C. revoltado face a um novo mundo tecnológico e material.
D. seduzido pelos deuses e tenta aproximar-se deles.
1.6 Álvaro de Campos concilia os contrários:
A. a vida e a morte; a emoção e a contenção.
B. a razão e a emoção; a infância e a vida adulta.
C. a entrada e a saída de um grande labirinto.
D. a razão e o sentimento; a alegria e o sofrimento.
1.7 Este heterónimo pessoano foi
A. o que menos desejou ser múltiplo.
B. o que menos se sentiu múltiplo.
C. o que mais desejou a pluralidade.
D. quem mais sofreu com a multiplicidade.
1.8 A poesia de Álvaro de Campos
A. retrata o universo do homem clássico.
B. explora o quotidiano dos intelectuais.
C. descreve o dia a dia dos contemporâneos.
D. retrata o universo do homem moderno.

87
Fernando Pessoa

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o texto poético. ambiente fabril - futurismo


dolorosa/tenho febre -
incomoda o poeta
ode = louvor
Ode triunfal
À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Áudio: “Ode triunfal”,
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
de Álvaro de Campos Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Estranha, provoca 5 Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
incomodo mas ele gosta
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
rodas - reforça o
ambiente fabril e nos
Em fúria fora e dentro de mim,
Sintomas de doença
maquinismos Por todos os meus nervos dissecados fora, Apesar de ele querer
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! absorver a modernidade
10 Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, , ele sente-se
incomodado "febre""doi-
De vos ouvir demasiadamente de perto, me a cabeça"
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Tal como o tropical ele
estranha o motores 15 Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Natureza - mundo ideal Aglotinadores o
Fabrica = ponto de Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força – presente depende do
equilibrio Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, passado e o presente
Desconhecido e remete o futuro
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
diferente
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas
20 Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta, Giorgio de Chirico, A grande
máquina, 1925.
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
25 Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Porque toda a gente
quer os ultimos modelos Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
30 Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento Perversão sexual
Ligação profunda entre
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões o poeta e as maquinas
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável! Adsorver tudo
Fraternidade com todas as dinâmicas!
insaciavel - queremos
Promíscua fúria de ser parte-agente sempre mais
35 Do rodar férreo e cosmopolita negra e artificial -
motores e maquinas
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Assiste a modernidade
e às novidades Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
40 E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas


Entre maquinismos e afazeres úteis!

88
sai da fabrica - e vai Poesia dos heterónimos ‒ Álvaro de Campos
para a cidade
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés – oásis de inutilidades ruidosas
45 Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
50 Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Atividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
55 E Piccadillies e Avenues de L’Opéra que entram
Pela minh’alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!


Tudo o que passa, tudo o que para às montras!
Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;
60 Membros evidentes de clubs aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
65 Presença demasiadamente acentuada das cocottes;
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
70 E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,


Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
75 Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,


80 Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes –
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
85 Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Victor Brauner, A cidade com que sonho, 1937 (pormenor).
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfato
E com o tato (o que palpar-vos representa para mim!)

89
Fernando Pessoa

90 E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!


Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!


Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
95 Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!


Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
100 Olá anúncios elétricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
August Macke, A loja de
chapéus, 1913.
105 Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
110 Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,


Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes –
115 Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!


120 Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
125 E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,


Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
130 E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor


135 Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.

90
Poesia dos heterónimos ‒ Álvaro de Campos

Atirem-me para dentro das fornalhas!


Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
140 Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,


Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

145 Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!


Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.

E ser levantado da rua cheio de sangue


Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,


150 Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
155 Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
160 E os gestos que faz quando ninguém o pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
165 Nas ruas cheias de encontrões!

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,


Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! –
170 Masturbam homens de aspeto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como os cães –,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
175 Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
180 Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida! Gino Severini, Comboio blindado em ação, 1915.

91
Fernando Pessoa

(Na nora do quintal da minha casa


O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
185 Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
190 Do que eu sou hoje...)
Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
195 De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Piet Mondrian, Sol, 1910. Eh-lá grandes desastres de comboios!


200 Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
205 A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!
Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
210 Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
215 Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
220 Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
225 Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.

92
Poesia dos heterónimos ‒ Álvaro de Campos

Engatam-me em todos os comboios.


230 Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios. Quiz: Poesia dos heterónimos –
Álvaro de Campos 1
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
235 Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!


Hé-há! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
240 Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!
Londres, 1914 − junho.
ÁLVARO DE CAMPOS
Dum livro chamado Arco do triunfo, a publicar.

In “O engenheiro sensacionista (1914-1922)”, Fernando Pessoa, Poesia de Álvaro de Campos


(ed. Teresa Rita Lopes), Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, pp. 81-90.

1 Identifique algumas marcas de modernismo, sensacionismo e futurismo.

2 Apresente a conceção de beleza aqui defendida.

3 Caracterize o estado de espírito dominante do sujeito lírico.

4 Comprove que o "eu" se identifica com as máquinas, os tempos, as pessoas e os


espaços.

5 Identifique as classes de palavras recorrentes, associando-as ao domínio referencial


para que apontam.

6 Refira a tipologia de frase que está ao serviço da emotividade do “eu”.

7 Indique os recursos expressivos que traduzem o excesso do canto.

8 Relacione a irregularidade métrica e estrófica com as intenções do sujeito lírico.

9 Proceda ao levantamento das figuras humanas evocadas nos versos 59 a 69, refe-
rindo a intencionalidade subjacente a essa evocação.

10 Sugira o valor expressivo do verso e da expressão parentéticos (vv. 72, 89).

11 Refira-se à intencionalidade do uso das frases de tipo imperativo nos versos 136-138.

12 Justifique o recurso às interjeições.

13 Explicite a relação entre as enumerações presentes nos versos 202-205 e o desen-


volvimento industrial.

14 Analise a progressão final do poema.

15 Selecione da parte final do poema exemplos que confirmem o sensacionismo defen-


dido pelo heterónimo.

16 Explicite a relação entre o título e o poema.

93
Fernando Pessoa
referencial existencial -
EDUCAÇÃO LITERÁRIA angustia, desalento,
frustação
Leia o poema.

Esta velha angústia


Áudio: “Esta velha angústia”,
de Álvaro de Campos

metafora visual, Giorgio de Chirico, A angústia da partida, 1914.


ele acumulou
tanto a angustia Esta velha angústia,
dentro dele que hiporbole
Esta angústia que trago há séculos em mim,
transbordou
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
5 Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum. Metáfora visual, as pregas
(angustia) são permanentes
o poeta considera Transbordou.
ser estar no meio Mal sei como conduzir-me na vida
é pior do que está Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
no meio ou no 10 Se ao menos endoidecesse deveras!
inicio. "coisifica-se Mas não: é este estar-entre,
" o que é mais Este quase,
doloroso Este poder ser que...,
Isto. Gradação -
enumeração com
intensificação do
sentimento
94
Anafora
Poesia dos heterónimos ‒ Álvaro de Campos

15 Um internado num manicómio é, ao menos, alguém.


Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio, antitese
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
20 Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim... uso das reticencias- enfase
da incerteza do ser
Pobre velha casa da minha infância perdida!
referencia a
fernando pessoa
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
ortonimo
25 Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!


30 Por exemplo, por aquele manipanso1
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê. ele diz que precisa de ter fé para a
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer – sua vida ganhasse sentido
35 Júpiter, Jeová, a Humanidade –
Qualquer serviria, Deseja morrer, partir o seu coração fragil
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo? A referencia a pintar remete as suas
mascaras
Ultima tentiva de se libertar da sua angustia,
Estala, coração de vidro pintado!
16-6-1934
desiste

In “O engenheiro aposentado (1931-1935)”, Fernando Pessoa, Poesia de Álvaro de Campos


(ed. Teresa Rita Lopes), Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, pp. 493-494.

1 ídolo africano

1 Divida o poema em partes lógicas, justificando a sua divisão.

2 Caracterize o estado emocional do sujeito poético.

3 Defina a relação passado/presente, fundamentando com elementos textuais.

4 Identifique dois recursos expressivos presentes nos versos 2 e 9 e refira a sua fun-
cionalidade.

5 Interprete os desejos do “eu” poético na penúltima estrofe e justifique o último


verso.

6 FAZ SENTIDO RELACIONAR Estabeleça uma relação entre este poema e a “Ode triunfal”.

95
Fernando Pessoa

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Dobrada à moda do Leia o poema.


porto”, de Álvaro de Campos
Dobrada à moda do porto
Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
5 Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

10 Quem sabe o que isto quer dizer?


Eu não sei, e foi comigo…
George Grosz, O homem
apaixonado, 1916.
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
15 E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,


Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
20 Mas trouxeram-me frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
In Poesias de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, Lisboa, Ática, 1993
(disponível em http://arquivopessoa.net).

1 Identifique e explicite o teor da metáfora presente na primeira estrofe.

2 Justifique a afirmação do sujeito poético no verso 2 da segunda estrofe.

3 Interprete e justifique os versos parentéticos.

4 Comprove que o “eu” lírico está consciente da sua infelicidade atual.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 373 e 401.

1 Indique a função sintática desempenhada pelos constituintes sublinhados nos versos


“Disse delicadamente ao missionário da cozinha / Que a preferia quente” (vv. 3-4).
1.1 Registe o referente do pronome pessoal usado no verso 4.
1.2 Identifique o mecanismo de coesão textual por ele assegurado.

96
Poesia dos heterónimos ‒ Álvaro de Campos

INFORMAÇÃO

As fases poéticas de Álvaro de Campos


Álvaro de Campos passa por três fases poéticas: a decadentista, exemplificada no poema
“Opiário”; a futurista, visível em “Ode triunfal”, e a última, a pessoal, já liberta de influên-
cias nítidas.
Sobre a segunda fase, a mais explorada, diz-se que ilustra a vitalidade, a estética não-a-
5 ristotélica, o amor ao belo feroz, um estilo esfuziante, com recurso ao verso livre, enume-
rações, apóstrofes, reiterações e interjeições. Neste estilo vertiginoso, Álvaro de Campos
cultivou uma personalidade que tudo integra em si e não respeita limites, elogiou as má-
quinas, a modernidade e a nova Humanidade. Contudo, a partir de 1916, Campos cai no
abatimento, na melancolia, aproximando-se de Pessoa no ceticismo, na dor de pensar e na
10 nostalgia da infância. Conclui-se que é na fase épica, a segunda, em que elogia as transfor-
mações decorrentes da modernidade, que Campos mais se afasta do seu criador e dos ou-
tros heterónimos.
Jacinto do Prado Coelho, in Diversidade e unidade em Fernando Pessoa,
Lisboa, Editorial Verbo, 1982, pp. 57-58 (adaptado e com supressões).

Campos e Pessoa
(…) Campos, desordenado, febril, ora nos surge na dependência da circunstância exterior,
do estado dos nervos, das sensações do momento, ora mergulha em si próprio para sentir o
terror do mistério de todas as coisas; de qualquer modo é o poeta da inspiração sem comando,
da expressão solta e desleixada, dos hiatos da inteligência que organiza e clarifica. Pelo con-
5 trário, Pessoa, fiel a uma longa tradição estética, procede a uma estilização mais avançada da
matéria lírica; transmite em versos musicais, densos, sóbrios, serenos, translúcidos, vivên-
cias subtis e dignas de recato. […]
Jacinto do Prado Coelho, in Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, 7.ª ed., revista
e atualizada, Editorial Verbo, 1982, p. 66 (adaptado e com supressões). Júlio Pomar, Fernando
Pessoa, 1983.

Linguagem e estilo
Após a descoberta do futurismo e de Whitman, Campos adotou, além do verso livre, já
usado pelo seu outro Mestre Caeiro, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos
versos de duas ou três linhas, anafórico, exclamativo, interjetivo, monótono pela simplicida-
de dos processos, pela reiteração de apóstrofes e enumerações de páginas e páginas, mas
5 vivificado pela fantasia verbal perdulária, inexaurível.
Neste estilo vagabundo, vertiginoso, cantou ele ora a hipertrofia de uma personalidade
viril que tudo integra em si e não respeita limites […], ora os impulsos que emergem da lava
sombria do inconsciente, o masoquismo, a volúpia sensual de ser objeto, vítima, a prostitui-
ção febril às máquinas, à Humanidade, ao mundo, a ponto de se tornar “um monte confuso
10 de forças”, um eu-Universo, disperso nas coisas mais díspares.
Jacinto do Prado Coelho, in Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, 7.ª ed., revista
e atualizada, Editorial Verbo, 1982, p. 61 (adaptado e com supressões).

Síntese: Guia de estudo:


Álvaro de Campos
1 Identifique uma semelhança e uma diferença entre Álvaro de Campos e Pessoa ortó- Quiz: Poesia dos heterónimos –
Álvaro de Campos 2
nimo.

97
CONSOLIDAÇÃO

Alberto Caeiro Ricardo Reis


Fingimento artístico Fingimento artístico
Concebido como poeta bucólico, pensado como Concebido como poeta clássico, adota o epi-
camponês praticamente desprovido de educa- curismo e o estoicismo como filosofias de vida
ção literária, recusa a abstração e a especula- e acredita no Destino como força superior aos
ção metafísica, porque vive no seio da Natureza próprios deuses, e ao qual também ele, en-
e capta a realidade pelos sentidos, descobrindo quanto ser humano, se submete.
sempre novidade nas coisas observadas, atri-
buindo-lhes sempre um sentido denotativo.

Reflexão existencial Reflexão existencial


O primado das sensações: o panteísmo sensual. A consciência da brevidade da vida fá-lo seguir
As sensações são para Caeiro a única forma de Epicuro na procura da ataraxia1, buscando, no
alcançar conhecimento, pois ver além do visí- presente, a felicidade relativa.
vel é não ver, é especular. O panteísmo fá-lo A encenação da mortalidade resulta do medo
ver Deus em todas as coisas e defender que o e da certeza da irreversibilidade do tempo.
próprio Universo é Deus. A sua conceção classicista fá-lo privilegiar te-
O conhecimento e todas as restantes faculda- mas do lirismo clássico, como o carpe diem,
des decorrem das sensações, daí que afirme a aurea mediocritas e o fatum.
que “ver é conhecer”.

Linguagem, estilo e estrutura Linguagem, estilo e estrutura


Estilisticamente, revela uma certa infantili- Aproxima-se de Caeiro pelo paganismo, mas
dade e simplicidade, privilegiando a coorde- escreve à maneira de Horácio. Tem um discur-
nação, expressões familiares e comparações so intelectualizado, um vocabulário culto, eru-
rudimentares. Formalmente, a sua poesia dito e arcaico, usando uma sintaxe alatinada,
apresenta variedade estrófica e métrica. recorrendo também à gradação, à metáfora,
1 ausência de inquietude;
à anáfora e à apóstrofe.
tranquilidade de ânimo

Álvaro de Campos
Fingimento artístico
Concebido como poeta da modernidade, na sua segunda fase, canta entusiasticamente a civiliza-
ção industrial, numa euforia que leva o sensacionismo ao paroxismo.

Imaginário épico
No discurso esfuziante reflete-se o arrebatamento do canto, que, invocando o imaginário épico,
faz do Moderno seu objeto de exaltação (matéria épica). A adoção do futurismo não o inibiu de
aceitar o passado e o futuro, fazendo-os confluir no presente. A deceção com o mundo civilizado
não se fez esperar, o que conduziu a uma fase de abatimento.

Reflexão existencial
Tendo plena consciência do tempo, sabe que não poderá recuperar o passado, mas evoca-o in-
sistentemente, muito em particular a infância, que é o objeto de uma nostalgia decorrente da sua
irrecuperabilidade.

Linguagem, estilo e estrutura


A vitalidade, o amor ao belo feroz e o êxtase sensacionista são expressos em longos poemas, com
grande variedade estrófica, versos longos, desordenados, com recurso a onomatopeias, enumera-
ções, interjeições, apóstrofes e metáforas, em particular na segunda fase.

98
VERIFICAÇÃO
1 Atribua os versos seguintes ao heterónimo a que pertencem.
a. “Sou fácil de definir. / Vi como um danado.”

b. “Segue o teu destino, / Rega as tuas plantas, / Ama as tuas rosas.”

c. “Além disso, fui o único poeta da Natureza.”

d. “Eu nunca guardei rebanhos, / Mas é como se os guardasse.”

e. “O tempo passa, / Não nos diz nada.”

f. “Sofro, Lídia, do medo do destino.”

g. “Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!”

h. “Eu, engenheiro como profissão, farto de tudo e de todos”

i. “Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos”

j. “O essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar”

k. “O único sentido oculto das coisas / É elas não terem sentido oculto nenhum”

l. “Os mesmos olhos no futuro, veem / O que não pode ver-se”

2 Para completar cada um dos itens 2.1 a 2.4, selecione a opção correta.
2.1 Ricardo Reis procura
A. alcançar a plena felicidade.
B. a felicidade relativa.
C. romper com a tradição.
D. imitar o seu Mestre Caeiro.

2.2 Nas odes de Álvaro de Campos


A. as sensações são sempre desprezadas.
B. as sensações não são convocadas.
C. as sensações são levadas ao paroxismo.
D. não existem traços de modernidade.

2.3 Alberto Caeiro recusa


A. o pensamento.
B. as sensações.
C. a Natureza.
D. a simplicidade.

2.4 Enquanto epicurista, Reis


A. defende o gozo pleno das coisas. Teste interativo:
Fernando Pessoa,
B. procura as paixões intensas. Poesia dos heterónimos
Quiz: Poesia dos heterónimos
C. vive apenas no seio da Natureza. Jogo: #DesafioLiterário:
Fernando Pessoa
D. preconiza um prazer contido.

99
AVALIAÇÃO
GRUPO I
Apresente as suas respostas de forma estruturada.
Áudio: “Na casa defronte
de mim e dos meus sonhos”,
de Álvaro de Campos
PARTE A

Leia atentamente o poema.

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos, Que grande felicidade não ser eu!
Que felicidade há sempre!
15 Mas os outros não sentirão assim também?
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi. Quais outros? Não há outros.
São felizes, porque não são eu. O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
5 As crianças, que brincam às sacadas1 altas, É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Vivem entre vasos de flores, 20 Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Sem dúvida, eternamente.
Os outros nunca sentem.
As vozes, que sobem do interior do doméstico, Quem sente somos nós,
Cantam sempre, sem dúvida. Sim, todos nós,
10 Sim, devem cantar. Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro. 25 Nada? Não sei…


Assim tem que ser onde tudo se ajusta – Um nada que dói…
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza. 16-6-1934

Poesias de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, Lisboa, Ática, 1993,


1 varandas pequenas p. 56 (disponível em http://arquivopessoa.net).

1 Comprove que as sensações são determinantes para a construção do quotidiano feliz


aqui evocado, atentando nas quatro primeiras estrofes.

2 Caracterize o tempo da infância, considerando a 3.a estrofe.

3 Selecione as opções que completam corretamente a afirmação.


Nas seis primeiras estrofes do poema, o sujeito poético tenta estabelecer uma relação
entre ele e os outros a. , concluindo que não se pode saber o que os outros
b. , dado que existe uma relação de c. entre todos os seres
d. .

a. b. c. d.

1. poetas 1. pensam 1. comunhão 1. terrestres


2. heterónimos 2. dizem 2. parceria 2. humanos
3. seres humanos 3. fazem 3. incomunicabilidade 3. do universo

100
PARTE B

Leia atentamente o poema.


Áudio: “Antes de nós
nos mesmos arvoredos”,
Antes de nós nos mesmos arvoredos de Ricardo Reis
Animação: O que é uma
Passou o vento, quando havia vento, metáfora?; O que é uma
comparação?; O que é uma
E as folhas não falavam interrogação retórica?;
De outro modo do que hoje. Escrever um texto expositivo

5 Passamos e agitamo-nos debalde.


Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.

Tentemos pois com abandono assíduo


10 Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Edvard Munch, Floresta, 1903.
Que a das árvores verdes.
Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Inutilmente parecemos grandes. Na areia o mar com ondas três o apaga.
Salvo nós nada pelo mundo fora Que fará na alta praia
15 Nos saúda a grandeza 20 Em que o mar é o Tempo?
Nem sem querer nos serve. 8-10-1914

Odes de Ricardo Reis, Fernando Pessoa (notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor),
Lisboa, Ática, 1994, p. 52 (disponível em http://arquivopessoa.net).

4 Relacione o “nós” com os elementos da Natureza.

5 Explicite o sentido da 3.ª estrofe, convocando a filosofia de vida de Ricardo Reis.

6 Selecione as opções que completam corretamente a afirmação.


Na última quadra, onde se destaca a a. , evoca-se a situação particular do
“eu”, que tem b. da fugacidade da vida e da passagem inexorável do tempo,
relevando-se o fosso existente entre a c. deste e a d. humana.

a. b. c. d.

1. metáfora 1. consciência 1. simplicidade 1. grandiosidade


2. comparação 2. medo 2. inutilidade 2. pequenez
3. interrogação retórica 3. dúvidas 3. vastidão 3. altivez

PARTE C

7 Partindo da afirmação abaixo, escreva um texto expositivo no qual comprove as pala-


vras do criador dos heterónimos.
Fernando Pessoa, em Páginas Íntimas e de Autointerpretação, afirma: “Por qualquer
motivo que me não proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de
mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribui
poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e ideias, os escreveria.”

101
AVALIAÇÃO
GRUPO II
Leia o texto. Se necessário, consulte as notas.

[…] A criação literária é, para Fernando Pessoa, uma das faces do mistério iniciático. Mis-
tério que se encontra subjacente na Mensagem, bem como todo o jogo da heteronímia, no
diálogo profundo entre os vários poetas: Caeiro que responde a Search e a Pessoa ele mesmo,
recusando o mistério que a eles permanentemente intriga […]; e Campos respondendo a
5 Caeiro que um orçamento é tão natural como uma árvore […] ou a Pessoa que este é o mo-
mento da “Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!”.
Trata-se para ele de dar corpo a vários corpos, a partir de um corpo só, de dar voz a várias
vozes, a partir de uma só voz. A iniciação, única e sempre a mesma, que encontramos no
pensamento filosófico como na atividade literária, é a do desdobramento que na criação se
10 verifica desde o primeiro ser, o Adão primordial de gnósticos, cabalistas, alquimistas – todos
os que se dizem herdeiros de uma tradição hermética1. Desdobramento, multiplicação, que
só depois de assumidos e esgotados permitem a unidade.
O poeta, adepto por excelência, tem o desejo (ora mais ora menos reprimido) desse pri-
meiro tempo de androginia2 perfeita. Mas só quando esgotar o mundo do possível pode
15 sonhar recuperá-lo.
Já que o mundo caiu, e caiu definitivamente, já que a infância se perdeu (na infância não
há ainda consciência da divisão), é na obra literária que Fernando Pessoa-adepto procura
realizar-se. O poeta transcende o homem, a obra transcende a vida, e foi essa transcendência
que ele se ofereceu inteiro.
Ivette K. Centeno, Fernando Pessoa: magia e fantasia, Porto, Edições ASA,
2004, pp. 63-64 (adaptado e com supressões).

1 obscura, difícil de compreender; 2 ambiguidade sexual

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.6, selecione a opção correta.

1.1 Na criação literária de Fernando Pessoa


A. encerra-se uma das faces do mistério iniciático.
B. não existe qualquer mistério iniciático.
C. os heterónimos não mantêm qualquer tipo de diálogo.
D. encontra-se a oposição entre o sonho e a infância.

1.2 O fenómeno heteronímico consiste em


A. utilizar vários nomes para designar a mesma pessoa.
B. recusar o mistério que intriga os outros poetas.
C. dar asas a personalidades latentes em Caeiro.
D. atribuir corpo e voz a várias personalidades.

1.3 A transcendência de Fernando Pessoa deve-se


A. às suas vivências. C. à sua obra literária.
B. à sua maneira de ser. D. à sua inconsciência.

102
1.4 O mecanismo de coesão textual assegurado pelo vocábulo sublinhado em “o Adão
primordial de gnósticos, cabalistas, alquimistas – todos os que se dizem herdeiros
de uma tradição hermética” (ll. 10-11) designa-se de Gramática/Atividade:
Coesão e coerência textual;
A. gramatical referencial. Valor modal: modalidade
apreciativa; Valor modal:
B. gramatical temporal. modalidade deôntica;
C. gramatical interfrásico. Valor modal: modalidade
epistémica; Valor aspetual
D. lexical por substituição. Animação: Escrever um texto
de opinião
1.5 Na frase “Mas só quando esgotar o mundo do possível pode sonhar recuperá-lo”
(ll. 14-15),
o grupo verbal “pode sonhar” expressa a modalidade
A. apreciativa.
B. epistémica com valor de certeza.
C. deôntica com valor de permissão.
D. epistémica com valor de probabilidade.

1.6 O valor aspetual da forma verbal presente em “já que a infância se perdeu” (l. 16) é
A. imperfetivo. C. genérico.
B. perfetivo. D. iterativo.

2 Classifique a oração “que na criação se verifica desde o primeiro ser” (ll. 9-10).

3 Indique o valor lógico do conector “ora” em “ora mais ora menos reprimido” (l. 13).

4 Identifique a função sintática desempenhada pelo grupo “desse primeiro tempo de


androginia perfeita” (ll. 13-14).

GRUPO III
1 José Saramago, aquando da receção do Nobel da Literatura, em Estocolmo, na Sué-
cia, a 10 de dezembro de 1998, proferiu um discurso no qual afirmou: “A mesma
esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar
a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas
pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.”
Num texto de opinião bem estruturado, com um mínimo de 200 e um máximo de 300
palavras, refira-se aos comportamentos controversos da humanidade, contemplando
a planificação a seguir apresentada e usando dois dos argumentos sugeridos.
● Introdução: comportamento bipolar da humanidade para que remete a citação.
● Desenvolvimento:
– 1.º argumento – a evolução da ciência/tecnologia + exemplo – os aparelhos
informáticos;
– 2.º argumento – a indiferença e a inércia da humanidade face ao sofrimento
dos seus semelhantes + exemplo – fome;
– 3.º argumento – as tentativas inúteis no combate à fome + exemplo – as reu-
niões das grandes potências.
● Conclusão: reflexão pessoal sobre o tema – a esperança num futuro melhor.

103
3
Fernando
Pessoa
Mensagem
EDUCAÇÃO LITERÁRIA LEITURA

“Ulisses” Artigo de opinião


“D. Dinis” Relato de viagem
“D. Sebastião, Rei de Portugal”
“O Infante” ESCRITA

“Horizonte” Texto de opinião


“O Mostrengo”
“Mar Português” ORALIDADE

“Prece” Documentário
“O Quinto Império” Exposição
“Nevoeiro”
GRAMÁTICA
• Antecipar sentidos
• Informação • Orações subordinadas
e coordenadas
• Mecanismos de coesão
textual
• Atos ilocutórios
• Funções sintáticas
• Modalidade e valor modal

Paul Klee, Sal, 1929.


Fernando Pessoa

ORALIDADE COMPREENSÃO

Vídeo: Portugal Visione atentamente um excerto do progra-


desconhecido (excerto),
History Channel Brasil ma “Portugal desconhecido”, do Canal His-
(08 min 26 s) tória, e tome notas que lhe permitam res-
ponder às questões colocadas.

1 Assinale como verdadeiras ou falsas Catarina de Bragança foi uma figura de


relevo na política europeia da época.
as afirmações. Corrija as falsas.
A. A assinatura genética advém de mutações aleatórias, mas também do cruza-
mento entre várias populações.
B. A sequência genética portuguesa é semelhante à dos restantes povos europeus.
C. Catarina de Bragança foi a rainha portuguesa que incutiu na corte britânica o hábito
de beber chá.
D. A expressão “ter falta de chá” significa “ter educação”, pois beber chá era hábito
da aristocracia.
E. A calçada portuguesa está presente nos cinco continentes.
F. As referências a Catarina de Bragança e à calçada portuguesa são exemplos das
marcas que os portugueses foram deixando pelo mundo.

LEITURA ARTIGO DE OPINIÃO

Leia o texto.

Eu amo a portugalidade
[…] Era eu secretário de Estado dos Assun-
tos Europeus, quando me pediram para ofere-
cer o almoço de despedida ao embaixador de
Cabo Verde, Onésimo da Silveira. […] No fim
5 do almoço, faço um brinde, com as banalida-
des usuais, apenas reforçadas pela forte singu-
laridade das relações entre os dois países e o
facto de saber que o meu convidado era poeta.
Fernando d’Oliveira Neves.
Quando acabo, o embaixador Onésimo da
10 Silveira levanta-se, com um pequeno caderno Este episódio ficou-me atravessado. […]
na mão e, antes de começar a ler, diz “Eu amo Agora, que tantos dislates1 se ouvem sobre
a portugalidade”. Fiquei encandeado perante a expansão portuguesa, esse valor que mais
a surpresa e a profunda sabedoria desta frase alto se alevantou e calou as musas, tenho-
maravilhosa. […] A conjugação do conceito de 25 -me lembrado dele.
15 portugalidade com o verbo amar enfeitiçou- É claro que o Império Português foi colo-
-me e fiquei, encantado, a ouvir a magia do nialista e racista e mais outras práticas con-
discurso que o embaixador continuou a ler, denáveis de todas as sociedades humanas.
levando-nos pelos meandros mágicos da ex- Dessa ignomínia não restam dúvidas. Apesar
periência dessa portugalidade, tão bem cog- 30 de tudo, parece avisado olhar para cada época
1 disparates 20 nominada. em função dos valores então prevalecentes.

106
Mensagem

[…] Mas todas as sociedades, por mais opres- de diversos países da Indochina falam um
soras que sejam, têm vida para além dessas português arcaico a que chamam christian,
dimensões. A expansão portuguesa foi mui- 70 que é para eles sinónimo de português, e por
35 to mais que isso. Foi uma das epopeias que isso se dizem portugueses.
mais mudaram a História, dando aos homens Portugalidade é ir ao Portuguese Settle-
uma nova e real dimensão do mundo em que ment de Malaca, encontrar uma mistura
viviam. […] inédita de raças, malaios, chineses, indianos
Não é fácil definir a portugalidade. Tal- 75 e ouvi-los a cantar e dançar o Tia Anica de
40 vez o resultado positivo desse intercâmbio Loulé, em trajes minhotos, e a falar um por-
seja a criação e perpetuação de laços afetivos tuguês compreensível.
e familiares entre gentes das mais diversas Portugalidade é um liurai timorense
partes do mundo. […]. Ou talvez não passe de desenterrar e entregar-nos uma bandeira
uma amarga saudade doce, de uma utopia 80 portuguesa e dizer que o pai dele a enterrou
45 que, por vezes e por instantes, se transforma quando Timor foi invadido pela Indonésia, e
em realidade. Talvez seja mais simples dar lhe disse para a dar aos portugueses quando
exemplos concretos. (não se) eles voltassem.
Portugalidade é estar na antecâmara Portugalidade é ir ao CCB assistir a uma
do chefe do Governo de Malaca, a conver- 85 sessão das comemorações dos 500 anos da
50 sar com um chinês, e de repente este dizer: Descoberta do Brasil e ouvir o embaixador
“Mas o Senhor é português? Eu também. brasileiro, Sinésio Sampaio Goes, […] a apre-
Sou da freguesia de S. Pedro em Singapura, sentar o chefe da maior tribo de índios do Bra-
e nos dias 13 de cada mês fazemos a procis- sil, os índios Tupi, se a memória não me falha.
são de Nossa Senhora de Fátima”. […] 90 Vemos entrar um senhor com um aberto ar
55 Portugalidade é ouvir um goês a manifes- jovial, envergando um casaco de tweed e um
tar o orgulho num seu remoto antepassado maravilhoso cocado que lhe caía pelas costas
agraciado com a Cruz de Cristo pela Rainha até aos calcanhares, e ouvi-lo dizer, com osten-
D. Maria II e outro a lembrar que o trisavô fora sivo júbilo e orgulho “o meu nome é António
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. 95 Cardoso e o meu avô era de Trás-os-Montes”.
60 Portugalidade é ir jantar ao Internatio- Acabou o Império colonial português e a
nal Hotel do Barém, onde decorria a sema- opressão de uma nação sobre as outras. Fica
na gastronómica do Texas, e chegar à mesa na História um admirável património univer-
um empregado indiano, vestido à cowboy, sal, físico e afetivo. Este último, símbolo notá-
que nos diz, em bom português, “boa noite” 100 vel de humanismo, será a portugalidade. Que
65 e tem na farda um dístico onde se lê o seu Onésimo da Silveira me ensinou a amar.
nome: Bragança. Fernando d’Oliveira Neves, in https://www.publico.pt,
Portugalidade é verificar que os católicos consultado em 20/08/2022 (com supressões).

1 Apresente uma justificação para o facto de o autor do artigo citar Onésimo Silveira.

2 Distinga argumentos e contra-argumentos, tendo em conta o 4.º parágrafo do texto.

3 Esclareça o contributo da apresentação de situações concretas e factos ocorridos


em diferentes locais do mundo para a argumentação desenvolvida.

4 Explicite o sentido da frase “Fica na História um admirável património universal,


físico e afetivo. Este último, símbolo notável de humanismo, será a portugalidade”
(ll. 97-100), justificando a sua inserção no final do texto.

107
Fernando Pessoa

INFORMAÇÃO

Mensagem – Estrutura da obra

Partes Subpartes e poemas


Primeiro – “O dos Castelos”
I. Os Campos
Segundo – “O das Quinas”
Primeiro – “Ulisses”
Segundo – “Viriato”
Terceiro – “O Conde D. Henrique”
Quarto – “D. Tareja”
II. Os Castelos
Quinto – “D. Afonso Henriques”
1.ª parte Sexto – “D. Dinis”
Sétimo I – “D. João, o Primeiro”
Brasão
Sétimo II – “D. Filipa de Lencastre”
Primeira – “D. Duarte, Rei de Portugal
Bellum sine bello
Segunda – “D. Fernando, Infante de Portugal”
(Guerra sem Guerra)
III. As Quinas Terceira – “D. Pedro, Regente de Portugal
Quarta – “D. João, Infante de Portugal
Quinta – “D. Sebastião, Rei de Portugal
IV. A Coroa “Nun’Álvares Pereira”
A Cabeça do Grifo – “O Infante D. Henrique”
V. O Timbre Uma Asa do Grifo – “D. João, o Segundo”
Outra Asa do Grifo – “Afonso de Albuquerque”
2.ª parte I. “O Infante” VII. “Ocidente”
II. “Horizonte” VIII. “Fernão de Magalhães”
Mar Português III. “Padrão” IX. “Ascensão de Vasco da Gama”
IV. “O Mostrengo” X. “Mar Português”
Possessio maris V. “Epitáfio de Bartolomeu Dias” XI. “A Última Nau”
(A Posse do Mar) VI. “Os Colombos” XII. “Prece”
Primeiro – “D. Sebastião”
Segundo – “O Quinto Império”
I. Os Símbolos Terceiro – “O Desejado”
Quarto – “As Ilhas Afortunadas”
3.ª parte Quinto – “O Encoberto”
Primeiro – “O Bandarra”
O Encoberto
II. Os Avisos Segundo – “António Vieira”
Terceiro – “Screvo meu livro à beira-mágoa”
Pax in excelsis
Primeiro – “Noite”
(Paz nas Alturas)
Segundo – “Tormenta”
III. Os Tempos Terceiro – “Calma”
Quarto – “Antemanhã”
Quinto – “Nevoeiro”

O livro divide-se efetivamente em três Partes ou três Épocas: Brasão, Mar Português e
O Encoberto, correspondentes, em termos lusíadas, às Idades do Pai (os fundadores da na-
ção portuguesa), do Filho (os que, recolhendo a herança, a dilataram pelos mares e continen-
tes) e do Espírito (que ainda não veio, embora tenha sido anunciado, o Espírito encoberto
que espera o Desejado).
António Quadros, “Estrutura simbólica da Mensagem”, in História crítica da Literatura Portuguesa
(O Modernismo), Carlos Reis e António Apolinário Lourenço, vol. 8, Lisboa, Verbo, 2015, p. 162.

108
Estrutura simbólica de Mensagem
Os estudiosos da estrutura de Mensagem têm inevitavelmente passado
pelo esoterismo1 que amplamente a inspira. Uma influência desde logo
sugerida na epígrafe da obra: “Benedictus Dominus Deus noster qui dedit
nobis signum” (“Bendito Deus, Nosso Senhor, que nos deu o sinal”), que
5 nos reenvia para a ideia de “sinal”, de “bandeira”, de “pendão entregue a
Deus”, símbolo de referência, como a divisa2 com que a obra termina, em
organizações de tipo esotérico.
Evidente é a divisão tripartida da obra: “Brasão”, “Mar Português” e
“O Encoberto”. Ora, o número Três, entre a significação abundante que lhe
10 é atribuída, […] representa a perfeição da unidade divina, a totalidade a
que nada pode ser acrescentado. Exprime também, segundo Chevalier e
Gheerbrant, um “mistério de ultrapassagem, de síntese, de união, de reso- Ivan Aivazovsky, Oceano, 1896.

lução”, o que faz pensar no Quinto Império.


Mas o número Três sugere também as três fases da evolução mítica: purgativa, ilumina-
15 tiva e unitiva, o que facilmente se liga à divisão tripartida de Mensagem. Da construção da
Nação ao esboço da ideia de Império que nasce com D. Dinis, da defesa e da consolidação dos
ideais nacionais ao sacrifício que isso impõe aos heróis representados nas Quinas, a Nação
vai-se depurando no sentido do destino divino que lhe cabe cumprir. Um percurso que em si
encerra o futuro, de que os heróis insertos no “Timbre” são a síntese. Está concluída a Pri- 1 ciência oculta; 2 são três
20 meira Parte da obra e a fase purgativa e aberto o caminho para a Segunda Parte – a ilumina- as divisas de Mensagem:
Bellum sine Bello (“Guerra
tiva – e que corresponde à Segunda Parte de Mensagem. Aqui canta-se o português
sem Guerra”) – primeira
desvendador de mundos que cumpriu o mar e criou um império que, na sua componente Parte; Possessio Maris
material, deixa adivinhar o seu próprio fim. Permanece, contudo, exemplar a ideia de desco- (“A Posse do Mar”) – segunda
berta, a febre de navegar, a atração pelo longe e pelo mistério, a ideia de universalidade e o parte; Pax in excelcis (“Paz
nas Alturas”) – terceira Parte;
25 sonho, ingredientes indispensáveis à procura da unidade perdida, que a Terceira Parte da
3 ”[a] simbologia
obra celebra. Entra-se na possibilidade da fase unitiva, onde o Desejado há de revelar “ao do Graal reenvia-nos para
mundo dividido” o “Santo Graal”3 quando, sob a forma de Encoberto, vier a ser a vida da a ideia de universalidade
Nação, instaurando o Quinto Império da fraternidade universal. e de procura da plenitude,
aspetos indispensáveis,
É esta uma das muitas leituras possíveis para a divisão tripartida de Mensagem […]. Certo em Mensagem, à construção
30 é que não podemos deixar de notar o sentido oculto dessa divisão tripartida. do Quinto Império”

Artur Veríssimo, Dicionário da Mensagem, Porto, Areal Editores, 2000, pp. 86-87.

1 Selecione a opção que completa corretamente a afirmação.


A leitura simbólica apresentada, para a estruturação de Mensagem em três partes,
aponta para
A. a paixão de Pessoa pelas ciências ocultas e para o gosto pelo latim, como língua
mãe do português.
B. a inspiração em tendências esotéricas e a simbologia do número três, e para
um percurso que remete para a construção do Quinto Império.
C. uma explicação exclusivamente mítica, atendendo às três fases – purgativa,
iluminativa e unitiva –, que explicam a divisão tripartida da obra. Síntese: Guia de estudo:
D. o objetivo de Pessoa em imortalizar os feitos de Portugal, desde a construção Fernando Pessoa,
Mensagem
da nação.

109
Fernando Pessoa

FAZ SENTIDO SABER


ANTECIPAR SENTIDOS
Ulisses, herói da Ilíada
e da Odisseia, de Homero, [A] verdadeira grandeza de Mensagem nada tem a ver com o que os seus símbolos repre-
foi, segundo a lenda, sentam nem com a mensagem ou mensagens que contém. Trata-se simplesmente […] de
o fundador da cidade
poesia fabulosa. Densamente carregada da história portuguesa e com estrofes elíticas, é uma
de Lisboa (Olissipo),
daí que os habitantes obra menos acessível do que outras de Pessoa, mas o leitor atento não deixará de notar
desta cidade se designem o engenho da sua construção nem de sentir o seu poder expressivo.
ulissiponenses.
Richard Zenith, Pessoa, uma biografia, Lisboa, Quetzal Editores, 2022. p. 977
(adaptado e com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Ulisses”, Leia o poema.


de Fernando Pessoa

Ulisses mito que deu nome a cidade de Lisboa


o mito não existe mas no entanto
deu nome a uma cidade O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
reforça o mito da crença religiosa, "
uma figura que não tem consistência É um mito brilhante e mudo –
real, tem um poder muito forte na
crença das pessoas" O corpo morto de Deus,
5 Vivo e desnudo.

mesmo não existindo deu


nome à cidade de lisboa Este, que aqui aportou,
Além de dar o nome À
cidade partilhou com lisboa Foi por não ser existindo.
partilhou com os
portugueses a sua Sem existir nos bastou.
capacidade maritima
Por não ter vindo foi vindo
10 E nos criou.

metáfora - escorre o mito vai Assim a lenda se escorre


entrar na vida das pessoas
gradualmente (dispersa) A entrar na realidade,
fecundá-la, criação entre a E a fecundá-la decorre.
realidade e o mito que dão
origem a uma nova realidade Em baixo, a vida, metade Claude Lorrain, Embarcação de Ulisses, 1646.
a vida sem mito não é nada
15 De nada, morre.

Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins), Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 19.

1 Indique o antecedente da referência deítica “Este”, no verso seis, clarificando o seu


contributo para a evolução do raciocínio do poeta.

2 Explicite o sentido dos dois últimos versos do poema, atendendo ao valor do conec-
tor discursivo que inicia a 3.a estrofe.

3 Demonstre que, do ponto de vista do conteúdo, o poema obedece a uma estruturação


lógica.

4 Comente a presença da figura de Ulisses numa obra da natureza de Mensagem, ten-


do em conta a sua localização na respetiva estrutura.

110
Mensagem

ANTECIPAR SENTIDOS

[A] forma mais elevada de realização poética, segundo a escala iniciática para os poetas
inventada por Pessoa, consiste na “fusão de toda a poesia, lírica, épica e dramática, noutra
coisa para lá de todas estas”. Essa fusão sublime foi por ele alcançada em Mensagem. […]
Richard Zenith, Pessoa, uma biografia, Lisboa, Quetzal Editores, 2022.
p. 957 (adaptado e com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema. Se necessário, consulte a nota. Áudio: “D. Dinis”, de Fernando


Pessoa; Estâncias 96-98,
cognome - O lavrador mandou plantar o pinheiral do canto III, de Os Lusíadas
D. Dinis de leiria e construiu a primeira universidade de
portugal, trovador bastante reconhecido Plantou o pinheiral de leiria
cuja madeira foi usada para
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo criar as naus dos
descobrimentos - sendo Destaque- Fernando Pessoa
O plantador de naus a haver, assim visto como um escreve que D.Dinis foi um
visionário visionário que ao tomar a
E ouve um silêncio múrmuro consigo: decisão de plantar o pinheiral
É o rumor dos pinhais que, como um trigo ouve um chamamento que previa o futuro do império e "
remete ao futuro império. plantou a semente" para que
5 De Império, ondulam sem se poder ver este fosse possível.

Presente intemporal- FP
escreveu o poema no presente
Arroio 1, esse cantar, jovem e puro, Ele pequeno "arroio" como um ribeiro que
procura o oceano, buscou o império para remeter a uma
Busca o Oceano por achar; inteporalidade
marulho - barulho das ondas
E a fala dos pinhais, marulho obscuro, é algo que ainda vai surgir
A história não é importante, é
importante o que esta
É o som presente desse mar futuro, representa
ele consegue sentir o futuro do Autor deconhecido, D. Dinis.
10 É a voz da terra ansiando pelo mar. império e os descobrimentos

Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins),


Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 24. em mensagem, é uma obra epico-lirica uma vez que
valoriza o herói e a parte histórica [conquista dos mares
e glorificação de um figura da história de portugal D
1 como um ribeiro Dinis] (epico) mas ao mesmo tempo a parte lirica está
presente na parte on de o sujeito poetico representa os
recursos liricos e a forma como este interpreta a história
(sujbetividade do eu)

1 Em Mensagem, mais do que as figuras históricas, valoriza-se o seu significado mítico.


1.1 Atendendo ao conteúdo da afirmação, explicite as duas facetas do rei D. Dinis.

2 Interprete o sentido dos dois últimos versos da 1.a estrofe, referindo o poder expressivo
dos recursos aí presentes.

3 Esclareça o valor simbólico dos vocábulos “noite”, “terra” e “mar”.

4 Segundo Richard Zenith, dá-se em Mensagem uma fusão entre a poesia lírica e épica.
4.1 Explicite de que modo o poema “D. Dinis” confirma a veracidade desta afirmação.

5 Escute atentamente as estâncias 96 a 98 do canto III de Os Lusía-


FAZ SENTIDO RELACIONAR

das e destaque aspetos comuns e/ou divergentes no modo como o rei é apresentado em
ambos os textos.

111
Fernando Pessoa

ANTECIPAR SENTIDOS

“O mito é o nada que é tudo”, assim começa o poema de Mensagem sobre Ulisses, o mí-
tico fundador de Lisboa, que, na Antiguidade, se chamava Olissipo […]. O mesmo princípio se
aplica à lenda sebastianista, cujo potencial para elevar o moral da nação assentava, segundo
Pessoa, na sua natureza mítica.
Richard Zenith, Pessoa, uma biografia, Lisboa, Quetzal Editores, 2022. p. 976 (adaptado e com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “D. Sebastião, Rei de Leia o poema.


Portugal”, de Fernando Pessoa

D. Sebastião, Rei de Portugal


Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
5 Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem


Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia, Cristóvão de Morais, Retrato de D. Sebastião,
10 Cadáver adiado que procria? c. 1571-1574.

Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins),


Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 33.

1 O sujeito poético começa por reconhecer a sua loucura.


1.1 Explicite em que consiste esse traço identitário de D. Sebastião, na opinião do rei.

2 Interprete o sentido do verso “Ficou meu ser que houve, não o que há” (v. 5), tendo em
conta a oposição passado/presente.

3 Relacione a última frase do texto apresentado na rubrica “Antecipar sentidos” com


o conteúdo do poema.

4 Esclareça o valor expressivo do presente do conjuntivo, no verso 6.

5 Comprove que, nos últimos três versos da 2.a estrofe, se assiste a uma mudança de tom
no poema.

6 Demonstre a pertinência do recurso à 1.ª pessoa do singular ao longo do poema.

7 FAZ SENTIDO RELACIONAR Estabeleça aproximações temáticas entre este poema e o culto
do sebastianismo em Frei Luís de Sousa.

112
Mensagem

INFORMAÇÃO

Título da obra
Na página final do caderno onde criou o Barão de Treive1 e o condenou a morrer, [Pessoa]
escreveu um esboço para Portugal, o livro de poesia portuguesa que viria a publicar seis anos
depois, alterando-lhe o título, à última hora, para Mensagem. Era uma canção da nação, mas
também, e de modo inextrincável, uma canção de si próprio. […] Por mais ligação que tivesse
5 com a terra debaixo dos seus pés, “Portugal” era, em última análise, uma pessoa, uma perso-
nagem, um heterónimo.
O Portugal dele [Pessoa] era uma lição simbólica, uma esperança, uma mensagem. Decidiu
que essa última palavra era a que melhor captava o espírito do livro. E mensagem funcionava
também como uma abreviatura – ou assim imaginou o autor nas notas que escreveu – para
10 mens ag[itat mol]em, “o espírito move a matéria”, de Virgílio. […] [O] livro de Pessoa era pontuado
por epígrafes latinas, e agora o latim encontrava-se imbricado no próprio título.

Natureza épico-lírica da obra – O Quinto Império


O Portugal concebido por Pessoa em setembro de 1928 também era épico, pelo menos na
dimensão, consistindo em curtos poemas líricos que, em conjunto, narrariam a história de
Portugal desde os seus começos humildes até à prevista apoteose como entidade dirigente
de um Quinto Império bastante maior do que o império marítimo português do século XVI.
5 Composto por poemas líricos dramáticos que contam uma história épica, Mensagem era um
híbrido poético que tentava modernizar e superar Os Lusíadas, cuja celebração da viagem inau-
gural de Vasco da Gama à Índia glorificava implicitamente todo o programa dos descobrimen-
tos e das façanhas oceânicas de Portugal. E ainda que seja difícil defender que Pessoa –
na tentativa de se tornar um super-Camões – conseguiu ultrapassar a obra-prima de Camões,
10 num certo sentido, Mensagem mostra-se mais vasta ao abarcar toda a história de Portugal
e proclamar o futuro imperial da nação. Inversamente a Os Lusíadas, que imortalizava o im-
pério marítimo português depois de este já se encontrar em declínio, Mensagem imortalizava
o Quinto Império antes de ele existir verdadeiramente no tempo e no espaço. Além do mais,
nunca iria existir, nem tal seria sequer possível, espacial e temporalmente, uma vez que se
15 tratava de um império – escreveu Pessoa – “de poetas” e “de gramáticos”, um império da
língua. […]
Richard Zenith, Pessoa, uma biografia, Lisboa, Quetzal Editores, 2022, pp. 809; 810; 960; 976
(adaptado e com supressões).

1 semi-heterónimo de Pessoa

1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.


A. O título inicialmente previsto para a obra Mensagem foi Portugal.
B. Os poemas que integram esta obra são de natureza lírica, mas também dramática
e épica.
C. Pessoa foi, segundo o autor, um super-Camões.
Quiz: Fernando Pessoa –
Mensagem 1
2 Refira o que, na opinião de Richard Zenith, distingue Mensagem de Os Lusíadas.

113
Fernando Pessoa

ANTECIPAR SENTIDOS

Embora não subscrevesse a doutrina da saudade […], o Portugal idealizado de Pessoa


alimentava-se de uma nostalgia pelos anos gloriosos da sua história marítima de séculos
idos. Os poemas [sob o título “Mar Português”] correspondiam a evocações patrióticas de
navegadores […]. Mas nem tudo se resumia a descobertas felizes. Uma nota de elegia atra-
vessa esses tributos poéticos. O primeiro poema da série, “O Infante”, homenageia o grande
patrono real e promotor dessas descobertas, glorifica o feito português de circum-navegação
do globo e lamenta a condição inglória em que Portugal, entretanto, se encontrava.
Richard Zenith, Pessoa, uma biografia, Lisboa, Quetzal Editores, 2022,
pp. 724-725 (adaptado e com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “O Infante”, Leia o poema.


de Fernando Pessoa

O Infante
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

5 E a orla branca foi de ilha em continente,


Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.


10 Do mar e nós em ti nos deu sinal. Óscar Pereira da Silva, Desembarque de Pedro
Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500, 1900.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins),


Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 49.

1 Explicite o sentido do primeiro verso, atendendo a que tem subjacente três planos,
o divino, o humano e o material e interpretando o desejo de Deus expresso nos ver-
sos seguintes.

2 Esclareça o sentido da predestinação associado ao Infante, justificando o recurso


à 2.a pessoa do singular.

3 Os dois últimos versos do poema poderão ilustrar as palavras de Richard Zenith:


“O Infante [...] lamenta a condição inglória em que Portugal, entretanto, se encontrava”.
3.1 Interprete o sentido desse lamento, esclarecendo o seu valor exortativo.

114
Mensagem

ANTECIPAR SENTIDOS

O Horizonte torna-se, por isso, metáfora de toda a procura, apelo irrecusável da Distância
a conquistar e caminho para o conhecimento. […]
Não é por acaso que um dos poemas de Mensagem recebeu justamente o título de “Hori-
zonte”, como não é por acaso que o sonho, a vontade ou a esperança são os ventos que
empurram “as naus da iniciação”. É a viagem de um iniciado em busca da Verdade que, sim-
bolicamente, o poema “Horizonte” celebra.
Artur Veríssimo, Dicionário da Mensagem, Porto, Areal Editores, 2000,
p. 61 (adaptado e com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema. Áudio: “Horizonte”,


de Fernando Pessoa
Animação: O que é
Horizonte uma gradação?

Ó mar anterior a nós, teus medos


Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
5 Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa –


Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
10 Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores, Claude Monet, Impressão,
nascer do Sol, 1872.
Onde era só, de longe a abstrata linha.

O sonho é ver as formas invisíveis


Da distância imprecisa, e, com sensíveis
15 Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade.

Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins), Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 50.

1 Explicite o sentido das referências ao mar na 1.ª estrofe, inferindo o valor expressivo
do pronome “nós”.

2 Explicite a função da gradação presente na 2.ª estrofe ao serviço do sentido do poema.

3 Selecione vocábulos ou expressões que completam a definição de sonho, apresentada


na última estrofe, interpretando o sentido dos versos em que estão integrados.

115
Fernando Pessoa

ANTECIPAR SENTIDOS

O que mais pode impressionar em Mensagem é o seu fundo épico. É nesse quadro que
se torna mais visível o diálogo com Os Lusíadas […].
Uma das figuras camonianas retomadas por Pessoa é, sem dúvida, o Mostrengo, que,
em parte, faz lembrar o Adamastor, o gigante que no canto V do poema camoniano surge
como último obstáculo à continuação da viagem marítima.
José Augusto Cardoso Bernardes

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema.

O Mostrengo
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
5 E disse: “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo:
“El-Rei D. João Segundo!”

10 “De quem são as velas onde me roço?


De quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso. J. M. W. Turner, Nascer do Sol com
“Quem vem poder o que só eu posso, monstros marinhos, c. 1845.

15 Que moro onde nunca ninguém me visse


E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu, e disse:
“El-Rei D. João Segundo!”

Três vezes do leme as mãos ergueu,


FAZ SENTIDO SABER
20 Três vezes ao leme as reprendeu,
Em 1488, sob o reinado
E disse no fim de tremer três vezes:
de D. João II, Bartolomeu
Dias foi o primeiro “Aqui ao leme sou mais do que eu:
europeu a dobrar Sou um Povo que quer o mar que é teu;
o Cabo das Tormentas. E mais que o mostrengo, que me a alma teme
Na esperança de
25 E roda nas trevas do fim do mundo,
abrir novos caminhos
às Descobertas Manda a vontade, que me ata ao leme,
portuguesas, o cabo foi De El-Rei D. João Segundo!”
rebatizado como sendo
da Boa Esperança. Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins),
In https://ensina.rtp.pt. Porto, Assírio & Alvim, 2012, pp. 52-53.

116
Mensagem

1 Atente nas duas primeiras estrofes.


1.1 Demonstre o caráter narrativo e épico do texto, inferindo a sua funcionalidade.

2 Explicite a expressividade do léxico e das sensações ao serviço da caracterização do


Mostrengo.

3 No decorrer do diálogo entre as duas personagens, a fala do Mostrengo vai sendo


sucessivamente mais curta, enquanto a do homem do leme vai ganhando destaque.
3.1 Infira o sentido dessa estratégia a que o poeta recorre.

4 Interprete o valor dos verbos “dizer” e “tremer” e os modos em que surgem ao longo
do poema.

5 Comprove que o rei D. João II, sendo uma personagem apenas referida, adquire uma
importância indiscutível no poema.

6 Esclareça a dimensão simbólica do Mostrengo e do homem do leme.

7 Refira a personagem que, na sua opinião, mais se destaca no poema, fundamentando


com argumentos pertinentes.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | p. 377.

1 Classifique as orações sublinhadas nos versos seguintes.


a. “De quem são as velas onde me roço?” (v. 10)

b. “Disse o mostrengo, e rodou três vezes” (v. 12)

2 Selecione a opção que completa corretamente a afirmação.


No segmento “Sou um Povo que quer o mar que é teu” (v. 23), estão presentes
A. uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva e uma subordinada substan-
tiva completiva, respetivamente.
B. uma oração subordinada substantiva completiva e uma subordinada adjetiva
relativa restritiva, respetivamente.
C. duas orações subordinadas adjetivas relativas restritivas.
D. uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva e uma subordinada adverbial
causal.

ORALIDADE EXPRESSÃO

1 Ouça as estâncias de Os Lusíadas relativas ao episódio do Ada-


FAZ SENTIDO RELACIONAR

mastor (canto V, estâncias 37 a 60) e tome notas que lhe permitam expor as conclu-
sões à turma.
Estabeleça uma relação de intertextualidade entre os textos de Camões e de Pessoa,
tendo em conta semelhanças e/ou diferenças relativamente a:
• conteúdo épico e valor simbólico;
• caracterização do Mostrengo e do Adamastor;
• figuras históricas destacadas.

117
Fernando Pessoa

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Link /Áudio: “Praia das Leia o poema.


lágrimas”, de Rui Veloso

Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
5 Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena


Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
10 Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Andreas Achenbach, Navio no mar tempestuoso, 1840.

Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins),


Porto, Assírio & Alvim, 2012, pp. 60.

1 Comprove que as duas estrofes que constituem o poema apresentam um tom diferen-
te, conferido pela expressividade da pontuação e pela alteração dos tempos verbais.
1.1 Interprete o sentido da 1.a estrofe, justificando o seu caráter circular.
1.2 Destaque os recursos expressivos e respetivo valor que estão ao serviço da men-
sagem transmitida nesta 1.a estrofe.

2 Justifique o título do poema, explicitando o valor expressivo do pronome “nosso” (v. 6).

3 Explicite o sentido dos versos que constituem as respostas à interrogação retórica


presente no início da 2.a estrofe.

4 Esclareça o caráter simbólico que os vocábulos “mar” e “céu” adquirem no contexto


do poema, explicitando a relação entre eles.

5 Ouça a canção de Rui Veloso, “Praia das lágrimas”, do “Auto


FAZ SENTIDO RELACIONAR

da pimenta”, e estabeleça uma relação temática entre o poema e a letra da canção.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 396 e 401.

1 Identifique o mecanismo de coesão textual assegurado pelos elementos destacados.


a. “Quantas noivas ficaram por casar” (v. 5)

b. “Para que fosses nosso, ó mar!” (v. 6)

2 Refira o ato ilocutório configurado no segmento “Tudo vale a pena / Se a alma não é
pequena” (vv.7-8).

118
Mensagem

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema. Áudio: “Prece”,


de Fernando Pessoa

Prece
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

5 Mas a chama, que a vida em nós criou,


Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –,


10 Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância –
Winslow Homer, Nordeste, 1995 (pormenor).
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins),


Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 63.

1 O poema inicia-se com um vocativo que introduz um desabafo.


1.1 Explicite-o, referindo o valor simbólico da noite.

2 Justifique o recurso à conjunção “mas” (v. 5) explicitando o seu valor.

3 Infira o sentido dos dois últimos versos do poema, justificando o recurso à maiúscula.

4 Demonstre o caráter lírico do poema.

5 Esclareça a sentido do título do poema.

6 Proceda à análise formal do poema, classificando as estrofes, a métrica, o esquema


rimático e os tipos de rima.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | p. 373.

1 Identifique as funções sintáticas desempenhadas pelos constituintes seguintes.


a. “nos” (v. 3)

b. “O mar universal e a saudade” (v. 4)


c. “que a vida em nós criou” (v. 5)

2 Refira o antecedente do pronome pessoal.


a. “a ocultou” (v. 7)

b. “erguê-la ainda” (v. 8)

119
Fernando Pessoa

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “O Quinto Império”, Leia o poema.


de Fernando Pessoa
Quiz: Fernando Pessoa –
Mensagem 2 O Quinto Império
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
5 Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!


Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
10 Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem


No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
15 Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro


Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Aleksey Savrasov, Destino do navio no mar, 1862.
20 Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,


Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
25 Que morreu D. Sebastião?

Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins),


Porto, Assírio & Alvim, 2012, pp. 72-73.

1 Infira a intenção das afirmações “Triste de quem vive em casa, / Contente com
o seu lar” e “Triste de quem é feliz”, à luz do contexto dessas duas estrofes.
1.1 Identifique o recurso expressivo presente nos versos 1 e 6, explicitando o seu valor.
1.2 Esclareça o valor do travessão presente no verso 9.

2 Demonstre que a 3.a estrofe funciona como uma espécie de conclusão desta primei-
ra parte do poema.

120
Mensagem

3 Estabeleça uma relação temática entre o verso “Ser desconten-


FAZ SENTIDO RELACIONAR

te é ser homem” (v. 13) e o conteúdo do poema “Horizonte”.


Gramática/Atividade:
Valor modal: modalidade
4 As duas últimas estrofes constituem a chave para o desvendar do sentido do poema, apreciativa; Valor modal:
modalidade deôntica;
tendo em conta sobretudo as referências ao passado, presente e futuro. Valor modal: modalidade
epistémica; Atos ilocutórios
4.1 Comprove a veracidade da afirmação anterior. (atos de fala)

5 O poema termina com uma exortação, em forma de interrogação.


5.1 Esclareça o sentido dessa exortação.

NOTE BEM
Simbolicamente, o regresso de D. Sebastião associa-se a um tempo de renovação
e de regeneração.

6 Refira o recurso presente no verso “Quem vem viver a verdade” (v. 24), explicitando
o seu valor expressivo.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 390, 392 e 396.

1 Indique a modalidade e o valor modal configurados nos seguintes versos.


a. “Triste de quem é feliz” (v. 6)

b. “Ser descontente é ser homem” (v. 13)

2 Refira o valor aspetual configurado nos versos seguintes.


a. “Triste de quem é feliz” (v. 6)
b. “E assim, passados os quatro / Tempos do ser que sonhou” (vv. 16-17)

3 Identifique o ato ilocutório configurado nos versos que se seguem.


“Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?”
(vv. 24-25)

ESCRITA i Bloco informativo | p. 357.

1 O sonho é uma das linhas estruturantes da obra Mensagem.


Elabore um texto de opinião, com 150 a 200 palavras, sobre a importância do sonho na
vida do ser humano.
O seu texto deve respeitar as marcas deste género textual e conter:
• uma introdução ao tema;
• um desenvolvimento no qual apresente uma argumentação pertinente;
• uma conclusão adequada ao desenvolvimento do tema.
Verifique o encadeamento lógico dos tópicos tratados e o correto uso dos mecanis-
mos de coesão textual.

121
Fernando Pessoa

INFORMAÇÃO

O Quinto Império
Texto A

O Quinto Império necessariamente fundirá


esses quatro impérios1 com tudo quanto esteja
fora deles, formando, pois, o primeiro império
verdadeiramente mundial, ou universal.
5 Este critério tem a confirmá-lo a própria so-
ciologia da nossa civilização. Esta é formada, tal
qual está hoje, por quatro elementos: a cultura
grega, a ordem romana, a moral cristã, e o indi-
vidualismo inglês. Resta acrescentar-lhe o espí-
10 rito de universalidade, que deve necessa-
riamente surgir do caráter policontinental da
Mikalojus Konstantinas Ciurlionis,
atual civilização. A criação do mundo VI, 1906.

Fernando Pessoa, Sobre Portugal – Introdução ao problema nacional (recolha de textos


de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão, introdução organizada por Joel Serrão),
Lisboa, Ática, 1979, p. 41 (disponível em http://arquivopessoa.net).

1 os quatro impérios referidos são, por ordem cronológica: o império grego, o império romano, o império cristão
e o império inglês

Texto B

Um poema sobre o Padre António Vieira que seria incluído no livro Mensagem reconhece-o
em simultâneo como profeta do Quinto Império português e “imperador da língua portugue-
sa”. O que é um pouco desconcertante, até percebermos que a língua portuguesa é o Quinto
Império. Vieira cumpriu a sua própria profecia atingindo um novo nível de vigor e eloquência
5 na utilização do português. Pessoa reverenciava de tal forma a mestria verbal de Vieira que lhe
atribuiu um “conhecimento alquímico da língua portuguesa”. O que nos remete novamente
para o fascínio de Pessoa pelas espiritualidades esotéricas. Segundo o poeta, tal como para
muitos outros entusiastas da alquimia, da magia, da cabala, do rosacrucianismo e da maçona-
ria, as palavras eram dos símbolos mais sedutores que ladeavam os caminhos possíveis para
10 a verdade oculta. Tinham o poder de conjurar, enfeitiçar, selar e iluminar, e era como se esse
poder emanasse das próprias palavras, independentemente do seu significado literal.
Richard Zenith, Pessoa, uma biografia, Lisboa, Quetzal Editores, 2022, pp. 894-895.

1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.


A. O império preconizado por Pessoa será o quinto, atendendo a que houve, antes
deste, quatro impérios civilizacionais.
B. Pessoa admirava Padre António Vieira pela sua profunda espiritualidade e pelas
profecias da sua autoria.
C. O Quinto Império será o império da língua e da cultura portuguesas, um império
imaterial e universal.
D. A palavra, para Pessoa, constituía uma forma de atingir a verdade e nisso foi
influenciado pela maçonaria.

122
Mensagem

ANTECIPAR SENTIDOS

A injunção “É a Hora!” funciona como um milagre que resolve o incerto, o disperso, o


vago da dimensão subjetiva, ao mesmo tempo que firma o regresso do Desejado, seu
“sonho” e seu “Senhor”.
Fernando Pessoa, Mensagem, Col. Biblioteca Fernando Pessoa e a Geração de Orpheu, Edição de Fernando
Cabral Martins, edição original de Assírio e Alvim, Lisboa, Planeta Agostini, 2006, p. 107 (adaptado).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema. Áudio: “Nevoeiro”,


de Fernando Pessoa

Nevoeiro
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
5 Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer,


Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
10 (Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a hora! Claude Monet, Nevoeiro, 1872 (pormenor).

Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins),


Porto, Assírio & Alvim, 2012, p. 91.

1 Atente no título do poema e exponha o seu valor sugestivo.

2 Comprove que o sujeito poético faz uma caracterização negativa de Portugal, refe-
rindo os traços que considere mais pertinentes.

3 Esclareça o sentido do verso entre parêntesis, explorando a sua expressividade.

4 O verso “Ó Portugal, hoje és nevoeiro…” é um dos mais expressivos do poema.


4.1 Interprete o seu sentido, evidenciando o valor da apóstrofe, da pontuação e do
advérbio “hoje”.

5 Demonstre que o último verso condensa não apenas a mensagem do poema, mas
também a mensagem de Mensagem.

123
Fernando Pessoa

FAZ SENTIDO SABER INFORMAÇÃO


Pessoa recebeu o prémio
Antero de Quental,
em 1934, com a obra
Exaltação patriótica
Mensagem, mas não
Pessoa sentia uma profunda ligação emocional ao seu país, sendo justo chamar-lhe na-
compareceu à entrega
do prémio, por parte cionalista. […] Os seus escritos políticos eram críticos da classe dirigente portuguesa […].
de Salazar, por discordar O único livro de poesia que publicou em português, Mensagem, era um apelo à nação para
da política salazarista. procurar na história própria as virtudes e lições que poderiam ajudá-la a emergir do estado
5 de anemia crónico que persistia mesmo em períodos de convulsão política e económica.

Sebastianismo, dimensão simbólica do herói


e exaltação patriótica
[…] João de Castro Osório aclamou Mensa-
gem como “a completa, total e definitiva “ex-
pressão” do sebastianismo na poesia. Era
uma caracterização apropriada: o rei D. Se-
5 bastião vem diretamente referido em nada
menos que dez poemas do livro. […]
Por mais universal e essencialmente poé-
tico que Mensagem possa ser, continua a
transbordar de nacionalismo. Pessoa espera-
10 va claramente que o mito corporizado pelo
livro se infiltrasse na realidade política por-
tuguesa e atuasse como um agente transfor-
mador. […] Mensagem desconcertou, e
desiludiu, sobretudo os codiretores da Presen-
15 ça, cuja própria recusa em assumir uma posi-
ção política correspondia a uma posição, a
uma forma de resistência, numa altura em
que as organizações, as publicações e os cida- Primeiro número da revista Presença, 1927.
dãos de renome estavam a ser pressionadas
20 para apoiar o Estado Novo. […] Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista
racional. Mas sou, à parte isso, até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas
coisas, pela mesma natureza do livro, a Mensagem não as inclui”.
Os epítetos com que Pessoa se descreve – “nacionalista místico” e “sebastianista racional”
– são pistas úteis para perscrutar a natureza do seu nacionalismo e a ambição do livro, cujo
25 simbolismo esotérico servia para reforçar o mito sebastianista, que era racionalmente
adotado por forma a estimular a psique nacional.
Richard Zenith, Pessoa, uma biografia, Lisboa, Quetzal Editores, 2022,
pp. 91; 975; 977; 978 (adaptado e com supressões).

1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.


A. Mensagem é uma obra marcada pelo nacionalismo e pelo sebastianismo.
Quiz: Fernando Pessoa – B. Pessoa considerava que o mito contribuiria para a transformação social.
Mensagem 3
C. Em Mensagem, simbolismo, esoterismo e mito anulam-se entre si.

124
Mensagem

LEITURA RELATO DE VIAGEM

Leia o texto.

Porto: daqui houve


nome Portugal

N
ão se entende o Porto sem Gaia, por
isso é apropriado que a UNESCO tenha
incluído a Serra do Pilar na sua classi-
ficação. Mas o seu centro irradiador é
5 mesmo o morro da Sé, que se foi ex-
pandindo até à Ribeira: é dali que houve Porto e é por
aí que caminhamos acompanhados por histórias de
conflitos entre bispos, burgueses e reis.
Há um tocador de banjo encostado à Torre dos 24,
10 há um tocador de guitarra na escada rente ao Paço
Episcopal. Pelo Terreiro da Sé do Porto há turistas […] da Vitória, onde sobressai a longa fachada do Mostei-
para todos os gostos […], fazendo o mesmo de sem- 40 ro de São Bento da Vitória. A sua ocupação foi poste-
pre: aproximando-se das bordas para as inevitáveis rior, sublinha Luís Miguel Duarte, e ali se instalou a
fotos. É o rio, é o casario da Sé até à Ribeira, é o mor- Judiaria do Olival, a mais importante das existentes
15 ro da Vitória que se avistam desde aqui. Aqui é donde no Porto, por ordem de D. João I. Este monarca teve
houve Porto, e daqui avista-se a zona mais icónica do uma ligação estreita com a cidade, depois de muitos
Porto Património Mundial da Unesco. Já percorrere- 45 reinados de permanente conflito entre a coroa e o
mos uma parte deste, por enquanto sentamo-nos nos bispo, […] que começou antes de ser coroado, quando
degraus do “pelourinho manuelino construído na dé- o Porto tomou o seu partido durante a guerra civil de
20 cada de 1940”. 1383-1385.
Ali, ao lado da catedral, veem-se restos da mura- Descemos a estreita Rua das Aldas, a antiga “rua
lha românica, “ameias direitinhas” […]. 50 da mancebia”, da prostituição.
Ouviremos muitas […] histórias ao percorrer os Desembocamos no trânsito da embocadura do tú-
caminhos medievais do Porto Património Mundial nel da Ribeira, na atual Rua do Infante que foi a Rua
25 (desde 1996), pelas ruelas sombrias que desenham o Nova do Porto do final do século XIV […]. No caos “de
dédalo da Sé até à Ribeira: é aqui que bate o coração ruas pequenas e irrespiráveis”, D. João I decidiu fazer a
da UNESCO, foi nestas ruas esconsas que nasceu a 55 sua “rua formosa”. O casario existente foi arrasado e
cidade. Foi por aqui que se digladiaram, às vezes lite- no seu lugar nasceram casas de granito, chaminés, al-
ralmente, clero, burguesia, coroa, povo e nobreza, em gumas até com vidros. Contudo, para além desta, con-
30 alianças variáveis. Deste confronto nasceram muitos tinuamos por ruelas onde há 700 anos soavam ruídos
mitos do Porto – alguns não tão nobres e leais como de tanoeiros, ferreiros, sapateiros, curtidores – tudo.
chegaram até hoje. 60 A Rua dos Canastreiros já se aproxima e o número
Abandonemos, então, o terreiro da Sé, empinado de esplanadas aumenta – até à grande esplanada que
ainda hoje em granito vivo, em direção ao Douro – é a Praça da Ribeira caminhamos sob os “cobertos da
35 como há séculos se faz. Detemo-nos um “andar” Ribeira”, herança medieva e testemunho de um tempo
abaixo, em nova esplanada que olha por cima da Igre- em que as pessoas “trabalhavam na rua”.
ja e Colégio de São Lourenço, mais conhecida como 65 De volta à esquina da Casa do Infante – suposto
“Igreja dos Grilos”; levantamos os olhos para o Morro local de nascimento de D. Henrique que, apesar desse

125
Fernando Pessoa

acaso e de aqui ter preparado a armada para Ceuta, atravessava a antiga cordoaria do bispo (diante da
nunca teve grande relação com a cidade – vemos o Cadeia da Relação – no café Porta do Olival ainda há
Mercado Ferreira Borges a impor o seu vermelho fér- restos), descia pelos Clérigos, passava pelas Cardosas
70 reo e o Palácio da Bolsa a sua desmesura neoclássica […] subia a Rua 31 de Janeiro, envolvia a Batalha
(na Idade Média eram hortas dos conventos das duas 85 (estas zonas profundamente modificadas durante o
ordens mendicantes, franciscanos e dominicanos, que século XIX), descia pela escarpa dos Guindais (onde se
aqui se haviam instalado no século XIII). Olhamos já a encontra o troço mais imponente – e a inevitável es-
cidade produto “dos Almadas”, pai e filho, urbanistas, planada do Guindalense F. C.) novamente até ao rio –
75 que no século XVIII e início de XIX revolucionaram o Ribeira. O Porto Património da UNESCO atravessa
tecido urbano portuense (e, de caminho, abriram por- 90 ainda o rio até à Serra do Pilar – as duas margens,
tas para o derrube das muralhas) e o deixaram com sempre de mão dada.
um traçado muito próximo do atual. https://www.publico.pt,
A Muralha Fernandina seguia pela margem do rio consultado em 20/08/2022
80 até ao limite de Miragaia, subia pelas Virtudes […] (adaptado e com supressões).

1 Para completar os itens 1.1 e 1.2, selecione a opção correta.


1.1 O texto destaca uma viagem pelo Porto
A. para assinalar o facto de ser uma cidade património mundial da UNESCO.
B. para defender o papel da cidade na história do país, ao longo dos tempos.
C. para dar a conhecer as origens da cidade e os vestígios da sua história, a par
da história do país.
D. para destacar as modificações arquitetónicas ocorridas nos séculos XVIII
e XIX.
1.2 “Porto: daqui houve nome Portugal” (título), “é dali que houve Porto” (l. 6) e “Aqui é
donde houve Porto” (ll. 15-16) são expressões que
A. evidenciam o papel do Porto nos reinados de D. João I e de D. Fernando.
B. comprovam a importância da cidade na construção da identidade nacional.
C. justificam a integração da cidade no Património Mundial da UNESCO.
D. demonstram o destaque da cidade na história do país desde os seus pri-
mórdios.

2 O texto inicia e termina com a referência à Serra do Pilar, em Gaia.


2.1 Esclareça o sentido dessa referência, explicitando o segmento “as duas mar-
gens, sempre de mão dada” (ll. 90-91).

GRAMÁTICA i Bloco informativo | p. 401.

1 Refira o mecanismo de coesão textual configurado nos elementos destacados na


Gramática/Atividade:
Coesão e coerência textual frase “a mais importante das existentes no Porto, por ordem de D. João I. Este mo-
Resolução/Atividade: narca teve uma ligação estreita com a cidade” (ll. 42-44).
Questão de exame explicada:
coesão referencial; Questão
de exame explicada: coesão 2 Identifique o referente do pronome pessoal em “e o deixaram com um traçado muito
interfrásica e referencial
próximo do atual” (ll. 77-78).

126
CONSOLIDAÇÃO
Mensagem – estrutura da obra
Brasão Mar Português O Encoberto

Os construtores do Império Realização/Concretização do sonho Império material moribundo


NASCIMENTO VIDA MORTE
Grifo – conclusão da luta entre Céu – transcendência Nevoeiro – indefinição, mas
o homem e o mar; águia e leão: Infante – sagração divina possibilidade de mudança, de luz
poder terreno + missão celeste António Vieira – língua, cultura
Gládio – defesa de valores
Cabeça – Infante D. Henrique: guia espirituais/sagração do herói Quinto Império – grandeza,
espiritual universalidade
Mostrengo – o perigo
Asas – D. João, O Segundo e Afonso D. Sebastião – esperança,
Noite – mistério
de Albuquerque, que concretizam renascimento
o gesto criador do Infante

“Sem a loucura, que é o homem “Senhor, a noite veio e a alma é vil” “Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
Mais que a besta sadia, É a Hora!”
Cadáver adiado que procria?”

Império espiritual emergente: O QUINTO IMPÉRIO


Um império português,
que substituirá
A ordem espiritual no Homem, no Universo, em Deus
os quatro antecessores
Exaltação patriótica

e superá-los-á, dado ter


um caráter universal
e espiritual.

SEBASTIANISMO

Mito reavivado e alimentado por Pessoa perante a necessidade de reerguer Portugal; é urgente que outros
tomem o sonho que outrora moveu D. Sebastião, que, transformado em messias redentor, conduzirá os
portugueses à construção de um novo império.

Linguagem e estilo
Num cruzamento esotérico, ocultista e mítico, Pessoa constrói textos em que desvaloriza a narração e
a descrição (mais típicas da epopeia), dando antes relevo ao pensamento, numa linguagem simbólica, com
recurso à apóstrofe, à metáfora, à gradação, à enumeração, à interrogação retórica, fazendo prevalecer
o imaginário em poemas breves, com uma organização estrófica, métrica e rimática de cariz tradicional.

127
VERIFICAÇÃO
1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.

A. Portugal era o título inicialmente pensado para a obra que viria a intitular-se
Mensagem.
B. Em Mensagem, a presença de epígrafes em latim denota o seu caráter esotérico.
C. Mensagem é uma obra que conjuga características da poesia lírica, épica e que
possui simultaneamente um pendor dramático.
D. A divisão tripartida da obra é simbólica, desde logo porque o número três repre-
senta a totalidade, a perfeição da unidade divina.
E. Ulisses representa o herói da Odisseia, de Homero.
F. D. Dinis surge na obra como o rei que iniciou a ideia do futuro império marítimo
português.
G. Foi no reinado de D. Manuel que os portugueses dobraram o Cabo das Tormentas.
H. A exaltação patriótica domina, sobretudo, a terceira parte de Mensagem.
I. A segunda parte de Mensagem corresponde a uma fase iluminativa por tratar
a época da construção do império material e acentuar o heroísmo dos nautas lu-
sitanos.
J. “Mar Português” simboliza o apogeu, o domínio do mar.
K. A Parte III de Mensagem assume uma dimensão mais simbólica.
L. O mito sebastianista está presente ao longo da obra e constitui uma forma de
elevar a moral e estimular os portugueses.
M. Mensagem dá a conhecer heróis e feitos da História de Portugal, mas não deixa
de revelar o desalento do poeta face à situação inglória do Portugal presente,
que ele denuncia.
N. O Quinto Império será um império universal e espiritual, que os portugueses
imporão através da sua língua e cultura.
O. O sonho, a predestinação dos portugueses como povo escolhido por Deus e a
busca do conhecimento são ideias estruturantes de Mensagem.
P. D. Sebastião alimenta o mito da regeneração da Pátria.
Q. No poema “Quinto Império”, exprime-se o desejo de superar, através do sonho,
o quotidiano de inércia e sem ambição.
R. O Quinto império simboliza a posse dos mares, adquirindo, por isso, uma dimen-
são material.
S. Segundo Fernando Pessoa, a futura civilização europeia será lusitana.
T. Através de Mensagem, Pessoa pretende despertar os portugueses, levá-los a
agir e a sair da apatia que está na base da situação de inércia e desalento em
que a nação se encontra.
U. Fernando Pessoa revelou-se um autor messiânico, particularmente em “O En-
coberto”.
V. O herói tem, em Mensagem, um caráter concreto, real e objetivo.
W. O tempo em que surge Mensagem é próspero, justificando-se o tom eufórico
Teste interativo: Fernando
Pessoa – Mensagem dos poemas.
Jogo: #DesafioLiterário:
Fernando Pessoa
X. São muitos os poemas de Mensagem que estabelecem uma relação intertextual
com Os Lusíadas, o que atesta o seu caráter épico.

128
AVALIAÇÃO
GRUPO I

Apresente as suas respostas de forma bem estruturada. Áudio: “Screvo meu livro à
beira-mágoa”, de Fernando
Pessoa
PARTE A

Leia o poema.

Screvo meu livro à beira-mágoa.


Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de água.
Só tu, Senhor, me dás viver.

5 Só te sentir e te pensar
Meus dias vácuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?

Quando virás a ser o Cristo


10 De a quem morreu o falso Deus,
E a despertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?

Quando virás, ó Encoberto,


Sonho das eras português,
15 Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anseio que Deus fez?

Ah, quando quererás, voltando,


Fazer minha esperança amor?
Da névoa e da saudade quando?
20 Quando, meu Sonho e meu Senhor?

Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins),


Porto, Assírio & Alvim, 2012, pp. 81-82.

1 Caracterize o estado de espírito do sujeito poético.

2 Refira o valor simbólico das expressões “Nova Terra” e “Novos Céus” (v. 12).

3 Comprove a presença de um pendor sebastianista no poema.

129
AVALIAÇÃO
PARTE B

Leia o texto.

CENA III

(MADALENA, TELMO, MARIA)

Maria (entrando com umas flores na mão, encontra-se com Telmo, e o faz tornar para a cena) –
Bonito! Eu há mais de meia hora no eirado passeando – e sentada a olhar para o rio a ver as
faluas e os bergantins que andam para baixo e para cima – e já aborrecida de esperar… e o
senhor Telmo, aqui posto a conversar com minha mãe, sem se importar de mim! – Que é do
5 romance que me prometestes? Não é o da batalha, não é o que diz:
Postos estão, frente a frente,
os dois valorosos campos;
é o outro, é o da ilha encoberta onde está el-rei D. Sebastião, que não morreu e que há de
vir num dia de névoa muito cerrada… Que ele não morreu; não é assim, minha mãe?
10 Madalena Minha querida filha, tu dizes coisas! Pois não tens ouvido, a teu tio Frei Jorge e
a teu tio Lopo de Sousa, contar tantas vezes como aquilo foi? O povo, coitado, imagina essas
quimeras para se consolar na desgraça.
Maria Voz do povo, voz de Deus, minha senhora mãe: eles que andam tão crentes nisto, al-
guma coisa há de ser. Mas ora o que me dá que pensar é ver que, tirado aqui o meu bom Telmo
15 (chega-se toda para ele, acarinhando-o), ninguém nesta casa gosta de ouvir falar em que escapasse
o nosso bravo rei, o nosso santo rei D. Sebastião. Meu pai, que é tão bom português, que não
pode sofrer estes castelhanos, e que até às vezes, dizem que é de mais o que ele faz e o que ele
fala… em ouvindo duvidar da morte do meu querido rei D. Sebastião… ninguém tal há de dizer,
mas põe-se logo outro, muda de semblante, fica pensativo e carrancudo; parece que o vinha
20 afrontar, se voltasse, o pobre do rei. – Ó minha mãe, pois ele não é por D. Filipe; não é, não?
Madalena Minha querida Maria, que tu hás de estar sempre a imaginar nessas coisas que
são tão pouco para a tua idade! Isso é o que nos aflige, a teu pai e a mim; queria-te ver mais
alegre, folgar mais, e com coisas menos…
Maria Então, minha mãe, então! – Veem, veem?... também a minha mãe não gosta. Oh! essa
25 ainda é pior, que se aflige, chora… ela aí está a chorar. (Vai-se abraçar com a mãe, que chora.) Minha
querida mãe, ora pois então! – Vai-te embora, Telmo, vai-te: não quero mais falar, nem ouvir falar
de tal batalha, nem de tais histórias, nem de coisa nenhuma dessas. – Minha querida mãe!
Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa (dir. Annabela Rita), Edições Caixotim, 2004, cena 3, ato I.

4 Distinga as posições de Maria e de Madalena face à morte de D. Sebastião.

5 Selecione as opções que completam corretamente a afirmação.


Maria mantém uma relação a. com Telmo, dirigindo-se-lhe de modo
b. ; no entanto, no início do diálogo, mostra-se c. .

a. b. c.

1. próxima 1. formal 1. indignada por ter esperado em vão por ele.


Quiz: Fernando Pessoa – 2. distante 2. familiar 2. alegre por ele ter feito companhia a sua mãe.
Mensagem 4 3. apenas social 3. distante 3. preocupada com o estado de espírito de Madalena.

130
PARTE C

6 Escreva uma breve exposição sobre a estrutura e o valor cultural da obra Mensagem.
Animação: Escrever
O seu texto deve incluir: um texto expositivo
• uma Introdução – referência à obra, ao autor e à estrutura externa;
• um desenvolvimento no qual apresente:
– a estrutura interna e respetiva simbologia;
– a referência a alguns heróis e ao seu valor simbólico;
• uma conclusão – importância da obra no panorama literário português.

GRUPO II
Leia o texto.

Não faz mal que seja verão


O meu coração dispara com o calor e o
ar parece custar a passar na traqueia. Que-
ro respirar, mas tenho sempre a sensação
de que estou demasiado cansada. […]
5 Passo esta estação a sonhar com a chega-
da do outono, tão bucólico e perfeito, com as
folhas coloridas que caem, as castanhas assa-
das e a temperatura que, enfim, se ameniza.
Exceto nos dias em que eles voltam e em que,
10 como por magia, somos todos outra vez. Edward Hopper, Sol da manhã, 1952.
Portugal é um país de emigrantes. Te-
nho para mim que não foi só no período da sobrinhas. É no verão que as cheiro e que
expansão marítima […] que nos demos ao vejo como cresceram. É no verão que lhes
mundo. Porque sei que nos damos ao mun- ouço a voz sem as interferências das video-
15 do de cada vez que um de nós parte para ou- 30 chamadas e que sei que são, enfim, reais.
tro país, tenha ou não a intenção de voltar. Chegam sempre com saudades de sopa e
Sou bisneta, neta e filha de quem encon- de bifanas. Sopa da mãe, bifanas da terra […].
trou em Portugal a saída para uma guerra. […] E chegam com um português enferrujado
Os meus são dos que vieram e criaram raí- que demora dois ou três dias a olear […].
20 zes. Mas nem por ter a mudança no sangue 35 Às vezes pergunto ao meu irmão quan-
deixou de me doer quando os frutos que es- do é que faz a tatuagem com o símbolo da
sas raízes geraram voltaram a partir. Federação Portuguesa de Futebol e ele ri-se
E é no verão, é sempre no verão, que eles e diz que já faltou mais. E sabem que mais?
chegam. É no mesmo verão de que não gosto Eu acharia adorável que o fizesse porque
25 que posso carregar no botão de pausa e abra- 40 me arrelia até ao âmago a pretensa superio-
çar o meu irmão, a minha irmã e as minhas ridade dos que ficaram e que, à chegada de

131
AVALIAÇÃO

agosto, começam a vomitar bestialidades na hora em que os papéis se invertem e nos


regadas a pedantismo que, quase sempre, cabe a nós ser país de acolhimento.
mete termos como “os avecs”. Somos o país da União Europeia com
45 Poucas coisas, aliás, me provocam a mais emigrantes em percentagem da po-
mesma repulsa que o tom jocoso com que 80 pulação. E estamos espalhados por todos
uma pretensa elite fala dos emigrantes e os continentes, da América à África, da Ásia
que, para mais, é quase sempre dirigido aos à Oceânia. O nosso país é do mundo. […]
emigrantes portugueses que saíram para Não fosse por eles e desconfio que me
50 trabalhar nos setores mais duros porque o dedicava à estivação. Mas eles existem, es-
nosso país lhes fechou as portas das opor- 85 tão quase a chegar e, por eles, abrem-se por-
tunidades ou decidiu pagar-lhes o suor ao tas, janelas, fronteiras e braços que abraçam
preço de esmolas. […] com a força de todas as estações. No abraço
Ser emigrante é, não duvido, uma das mais aos emigrantes da minha vida sinto o chei-
55 bipolares tarefas deste mundo. Porque se, por ro da primavera, a melancolia do outono e a
um lado, se está bem no país de acolhimento 90 força das chuvas de inverno. Mas acima de
e com condições que não se teriam no país de tudo sinto o calor. Um calor bom que cola os
origem, por outro vive-se num sítio onde nunca corpos e as almas e que regenera corações.
se consegue ter todo o coração. Há família, ami- Eles estão a caminho. E muitos deles espe-
60 gos, cheiros, sabores e lugares que ficam para raram o ano todo por estes dias no país que os
trás e que só se reencontram no verão quente 95 viu nascer. Eles estão a caminho e, nas malas
dos abraços e das festas da terra-mãe. […] que hão de voltar cheias de bolos regionais,
Eu não gosto do verão. Este calor desu- azeite e enchidos, trazem agora saudade. Sau-
mano faz-me mal ao corpo e à mente. Mas dade deste país que é o seu, dos avós que enve-
65 é o verão que os traz. De carro, de avião e, lhecem e que eles têm medo de perder lá lon-
às vezes, até de mota. E se o calor é o preço 100 ge, dos sobrinhos que lhes parecem tão mais
a pagar, pois que seja. crescidos a cada ano e dos cantos e recantos
Eles que venham, que cruzem as fron- que lhes recordam uma infância onde foram
teiras aéreas e terrestres, que invadam o profundamente felizes. Eles estão a caminho
70 país com os seus sotaques cantados e com e nós, que os esperamos, estamos em conta-
o seu português misturado. 105 gem decrescente desde que o calor começou.
Porque eles são quase 2,6 milhões, o que Eles estão a caminho. E, só por isso, nem
corresponde a cerca de 25% da população faz mal que seja verão.
residente no país. E é bom que, já agora, Carmen Garcia, in https://www.publico.pt
75 nenhum de nós se esqueça destes números (adaptado e com supressões).

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.6, selecione a opção correta.
1.1 A autora começa por afirmar “É no mesmo verão de que não gosto” (l. 24), para con-
cluir que “nem faz mal que seja verão” (ll. 106-107). Esta evolução do seu pensamento
deve-se ao facto de
A. ter refletido sobre a chegada, no verão, de entes queridos emigrados.
B. reconhecer que o verão é, por excelência, o período de pausa e descanso.
C. considerar necessário alterar a atitude face aos emigrantes.
D. verificar a alegria que os emigrantes trazem ao país, no verão.

132
1.2 Com o segmento “E é bom que, já agora, nenhum de nós se esqueça destes núme-
ros na hora em que os papéis se invertem e nos cabe a nós ser país de acolhimen-
to”, (ll. 74-77) a autora do artigo Animação: O que é uma
enumeração?; O que é uma
A. faz um apelo a que os portugueses recebam dignamente os imigrantes que comparação?; O que é uma
procuram o nosso país. metáfora?; O que é uma
metonímia?; Escrever um
B. manifesta o desejo de acolher imigrantes, já que parte da sua família procurou texto de opinião
o estrangeiro para trabalhar. Gramática/Atividade:
Orações subordinadas
C. deixa antever que os nossos emigrantes podem não ter vontade de regressar adverbiais temporais;
Orações subordinadas
se não forem bem acolhidos. substantivas completivas;
D. transmite a ideia de que é demasiado penoso para Portugal ter um tão elevado Orações subordinadas
adjetivas relativas; Coesão
número de emigrantes. e coerência textual

1.3 No contexto, a frase “O nosso país é do mundo” (l. 82) transmite a ideia de que
A. Portugal ocupa um lugar central no mundo.
B. Portugal tem uma enorme percentagem de população emigrante.
C. em geral, o mundo acolhe afavelmente os emigrantes portugueses.
D. Portugal projeta uma imagem muito positiva no mundo inteiro.

1.4 O segmento textual “abrem-se portas, janelas, fronteiras e braços que abraçam
com a força de todas as estações” (ll. 85-87) contém
A. uma enumeração e uma comparação.
B. uma comparação e uma sinédoque.
C. uma enumeração e uma metáfora.
D. uma metáfora e uma metonímia.

1.5 O segmento “quando os frutos que essas raízes geraram voltaram a partir” (ll. 21-22)
contém uma oração
A. subordinada adverbial temporal e uma oração subordinada substantiva com-
pletiva.
B. subordinada adverbial temporal e uma oração subordinada adjetiva relativa
restritiva.
C. subordinada adverbial temporal e uma oração subordinante.
D. subordinante e uma oração subordinada adverbial temporal.

1.6 Em “É no verão que as cheiro e que vejo como cresceram. É no verão que lhes ouço
a voz” (ll. 27-29), os elementos sublinhados asseguram o mecanismo de coesão textual
A. lexical por reiteração.
B. lexical por substituição.
C. gramatical frásica.
D. gramatical referencial.

GRUPO III

1 Elabore um texto de opinião bem estruturado, de 200 a 300 palavras, sobre as


questões levantadas pela emigração e imigração em Portugal, referindo-se no-
meadamente, a causas e consequências.

133
4
Contos
EDUCAÇÃO LITERÁRIA GRAMÁTICA

“Sempre é uma companhia”, • Funções sintáticas


de Manuel da Fonseca • Orações subordinadas
“George”, de Maria Judite • Valor aspetual
de Carvalho • Mecanismos de coesão
• Antecipar sentidos textual
• Informação • Processos fonológicos
• Processos de formação
LEITURA
de palavras
• Modalidade e valor modal
Artigo de opinião
• Modos de relato
do discurso
ESCRITA
• Atos ilocutórios
Apreciação crítica
Texto de opinião

ORALIDADE

Reportagem
Opinião
Exposição
Apreciação crítica
Debate

Vieira da Silva,
Jogo de cartas, 1937.
“Sempre
é uma
companhia”,
de Manuel
da Fonseca
MANUEL DA FONSECA “Sempre é uma companhia”

INFORMAÇÃO

Animação: O conto
Conto
O conto é um texto narrativo, que se caracteriza fundamentalmente pela sua reduzida
extensão, o que origina a concentração dos elementos constituintes da narrativa: espaço,
tempo, personagens, ação.
De forma geral, podemos sintetizar as características do conto através do seguinte
esquema:

Conto

Personagens Ação
(número reduzido – (uma ação central)
normalmente uma
(ou duas) dominante(s))
Tempo Espaço
(curto) (restrito)

Concentração espaciotemporal
(em termos de construção da narrativa)

Obriga o contista a concentrar Obriga o contista a reduzir


e a privilegiar a narração os segmentos descritivos

Assim, o conto “Sempre é uma companhia” apresenta:

Espaço
Alentejo: a aldeia de Alcaria e a venda de Batola.

Tempo
Três dias: a véspera do dia da chegada da telefonia;
o dia da chegada da telefonia e o dia final do prazo de um
mês (período em que a telefonia ficou à experiência).

Personagens (dominantes)
António Barrasquinho, o Batola; a mulher; o vendedor.

Ação
A chegada da telefonia e a mudança operada.

(com destaque especial para as peripécias inicial e final)

137
Contos

ORALIDADE COMPREENSÃO

Link: Regresso ao campo, No século XX, sobretudo durante a ditadura,


Montado do Freixo do Meio
(até aos 03 min 36 s) uma parte substancial do país vivia no e do
mundo rural. Após o 25 de Abril de 1974, essa
situação começou a alterar-se. Visione uma
reportagem que retrata essa situação.

1 Classifique as afirmações como verdadei-


ras ou falsas. Corrija as falsas.
O mundo rural após
A. As imagens foram recolhidas em o 25 de Abril.
1971, em Monsanto, contudo não
retratam a realidade portuguesa da época.
B. A pobreza que se vivia no campo, à época, foi o principal fator que originou
o êxodo rural.
C. A população fugia do mundo rural, em busca de melhores salários, embora
a atividade agrícola fosse satisfatória em termos profissionais.
D. No último quarto de século, o mundo rural foi palco de desenvolvimento, fruto da
mecanização da agricultura e dos subsídios comunitários.

2 Para completar cada um dos itens 2.1 a 2.4, selecione a opção correta.
2.1 Os novos rurais
A. buscam o reconhecimento da sua atividade e ascensão social.
B. são filhos ou netos das famílias que abandonaram o campo nos anos 70.
C. deixam a cidade atraídos pelos subsídios comunitários.
D. desejam experienciar a vida tal como os seus antepassados a viveram.

2.2 A preferência pelo campo


A. encontra explicação na busca por um estilo de vida mais solidário, mais hu-
mano e em comunhão com a natureza.
B. deve-se ao facto de haver inúmeras aldeias no Norte e Centro desertas e ao
abandono.
C. abrange só os que, na cidade, desempenham profissões mal remuneradas
ou estão desempregados.
D. justifica-se porque as pessoas, embora gostem da vida impessoal das cida-
des, pretendem novas experiências.

2.3 O caso específico apresentado destaca


A. o desenvolvimento de uma atividade recente e tipicamente citadina numa her-
dade rural.
B. as dificuldades económicas da vida no campo, por oposição às da vida na
grande cidade.
C. a vida de alguém que abandonou o campo para viver numa grande cidade
europeia.
D. a vivência de acordo com as regras da natureza e a promoção desta maneira
de pensar junto dos jovens.

138
MANUEL DA FONSECA “Sempre é uma companhia”

2.4 De acordo com Floresbela Mendes Pinto, as ideias de Alfredo Sendim


A. embora inovadoras, carecem de um dispêndio económico maior.
B. são inovadoras e respeitam o ambiente em termos de sustentabilidade.
C. embora respeitem a natureza, não apresentam consistência.
D. apresentam um caráter inovador, mas são características de meios urbanos.

3 Selecione a única opção que não é uma característica da reportagem.


A. O documento elucida sobre um tema e apresenta diversos testemunhos sobre
esse assunto.
B. O tom que atravessa o documento é informativo, ainda que, por vezes, também
apreciativo.
C. O final de cada intervenção é marcado por um apelo.
D. O documento apresenta testemunhos na 1.ª pessoa, sendo, por isso, evidenciada
a alternância entre a 1.ª e a 3.ª pessoas.
E. A linguagem é clara, precisa, objetiva, embora com preocupações estilísticas.

ORALIDADE EXPRESSÃO

1 Os cuidados ambientais são, cada vez mais, uma constante, e não é invulgar termos
contacto com pessoas ou organizações que colocam o ambiente num lugar cimeiro
das suas preocupações.
Apresente a sua opinião, em 4-6 minutos, sobre a importância da aplicação de me-
didas de sustentabilidade, tendo presente o conteúdo do vídeo da página anterior
e a imagem abaixo.

Planifique a sua intervenção de forma a:


• apresentar a sua posição: tese;
• elencar argumentos e exemplos que a suportem;
• fechar a intervenção com uma breve síntese da argumentação.
Observe ainda:
• o encadeamento lógico das ideias;
• a adequação dos recursos verbais e não verbais (correção linguística, variedade
vocabular, ritmo, entoação, gestos, regras de cortesia…).

139
Contos

ORALIDADE COMPREENSÃO

Áudio: Manuel da Fonseca


Link: Poesia em Manuel Atividade 1
da Fonseca, Município
Santiago do Cacém Visione o documento vídeo sobre o
(1 min 28 s) autor Manuel da Fonseca.

1 Assinale como verdadeiras ou fal-


sas as afirmações.
A. O documento inicia-se com
um excerto da obra Cerro- Manuel da Fonseca.
maior.
B. A Fundação Inatel e a Câma-
ra Municipal de Santiago do Cacém elaboraram este documentário para homena-
gear o autor por ocasião do Dia Mundial da Poesia.
C. Para o edil Álvaro Beijinha, embora não seja da terra, o escritor homenageou-a
na sua obra.
D. Diversos intervenientes destacam o lado humanitário e de defesa das grandes cau-
sas do poeta e contista, além de o referirem como alguém que promoveu as artes.

2 Assinale a ordem pela qual os seguintes tópicos surgem no vídeo.


A. A obra Seara de vento foi adaptada ao cinema por Sérgio Tréfaut, com o nome
Raiva.
B. As sobrinhas destacam como inolvidáveis as conversas, o gesto e a voz de Manuel
da Fonseca.
C. A autarquia propôs-se desenvolver, em Santiago do Cacém, uma iniciativa de
âmbito nacional para homenagear o autor.
D. O autor foi censurado e esteve privado da liberdade por ter tido a coragem de ter
uma voz ativa.
E. As grandes tertúlias literárias e políticas em que o escritor participava nos cafés
eram recriadas literariamente na sua obra.

Atividade 2

Escute atentamente uma pequena exposição sobre o autor e proceda à tomada de notas
ao longo da audição.

1 Complete a tabela com informações que registou.

Datas Acontecimentos
a. 1911

b. 1930

c. Décadas de 40 e 50

2 Enumere três características da obra de Manuel da Fonseca.

140
INFORMAÇÃO

O espaço/Os habitantes do Alentejo


Texto A
Determinado por circunstâncias de ordem sociopolítica, o neorrea-
lismo, enquanto movimento literário, corresponde a uma nova atitude
perante os homens e a natureza. […]
A repressão salazarista, bem como a agravação da situação interna-
5 cional, conduzem a uma tomada de consciência capaz de enriquecer a
literatura portuguesa com novos temas, novas personagens e, sobretu-
do, uma nova visão do espaço, preferencialmente situado a sul do Tejo
e funcionando como revelador de numerosos conflitos e tensões.
A grande novidade do neorrealismo consiste na atenção dada às ca-
10 madas populares, […] através da análise aprofundada das condições de
vida e das contradições da organização social. Segundo Eduardo Louren-
ço, é nas obras de ficção neorrealista que encontramos a ótica da luta de
classes com uma solução positiva dos conflitos. No entanto, o que carac-
teriza o neorrealismo não é simplesmente a escolha dos motivos popu-
15 lares, mas antes a posição ideológica tomada perante a realidade. Teresa Vasconcelos e Sá,
O salão verde, 2007.

Maria Graciete Besse, Manuel da Fonseca, o fogo e as cinzas, Mem Martins,


Publicações Europa-América, 1990, pp. 5-7 (com supressões).

Texto B
Em 1951, Manuel da Fonseca traz a lume novo livro de contos, intitulado O fogo e as cinzas.
Para Mário Sacramento, trata-se de “uma autêntica antologia de tudo o que o primeiro neor-
realismo pôde e soube fazer de belo”. […]
Ao percorrer, numa visão bastante rápida, a obra de Manuel da Fonseca, o que nos parece
5 importante sobretudo salientar é a sua capacidade de recriar um vasto painel de figuras e
terras profundamente tocadas pelo dramatismo.
A sua produção literária liga-se indissociavelmente ao Alentejo, cenário de exemplar en-
quadramento de conflitos e tensões, ao ponto de alguns críticos poderem apontar que a ver-
dadeira personagem da sua obra é esse Alentejo dos humilhados e ofendidos.
Maria Graciete Besse, Manuel da Fonseca, O fogo e as cinzas, Mem Martins,
Publicações Europa-América, 1990, pp. 14-16 (com supressões).

1 Complete as afirmações, considerando os textos lidos.

1.1 O espaço representado na obra de Manuel da Fonseca é o Alentejo rural, palco


de a. e b. .
1.2 A obra do prosador denuncia as a. das camadas populares.
1.3 a. da sua obra são caracterizadas pela b. e pela Animação: Manuel da Fonseca
na 1.a pessoa
c. .

141
Contos

ANTECIPAR SENTIDOS

A cena escolhida para apresentar o casal situara-o de modo intemporal (“todas as ma-
nhãzinhas”), num ponto entre o espaço privado e público. Batola e mulher cruzam-se sem
que dirijam palavra um ao outro, adivinhando-se a ausência de comunicação entre eles.
As causas para esta situação vão sendo progressivamente deslindadas. […]
Nas páginas iniciais de “Sempre é uma companhia” não são apenas indicados o isola-
mento geográfico, a solidão e o silêncio. […] De forma extraordinariamente delicada, vai-se
dando conta das condições sociais indignas que os habitantes de Alcaria enfrentam. Elas
são de tal ordem que os habitantes perdem as suas características humanas. Ao invés,
o mundo inanimado que os rodeia adquire-as.
Violante F. Magalhães, in Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3 (coord. Maria Isabel
Rocheta, Serafina Martins), Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 105 e 107 (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Fixação de texto Leia o excerto. i Bloco informativo | p. 349.


Conto Português. Séculos
XIX-XXI – Antologia crítica, “Sempre é uma companhia” (parte 1)
vol. 3 (coord. Maria Isabel
Rocheta, Serafina Martins), António Barrasquinho, o Batola, é um tipo bem achado. Não faz nada, levanta-se quando
Porto, Edições Caixotim,
2011, pp. 95-102. calha, e ainda vem dormindo lá dos fundos da casa.
É a mulher quem abre a venda e avia aquela meia dúzia de fregueses de todas as manhã-
zinhas. Feito isto, volta à lida da casa. Muito alta, grave, um rosto ossudo e um sossego de
5 maneiras que se vê logo que é ela quem ali põe e dispõe.
Pois quando entra para os fundos da casa, vem saindo o Batola com a cara redonda amar-
fanhada num bocejo. Que pessoas tão diferentes! Ele quase lhe não chega ao ombro, atar-
racado, as pernas arqueadas. De chapeirão caído para a nuca, lenço vermelho amarrado ao
pescoço, vem tropeçando nos caixotes até que lá consegue encostar-se ao umbral da porta.
10 Fica assim um pedaço, a oscilar o corpo, enquanto vai passando as mãos pela cara, como que
para afastar os restos do sono. Os olhos, semicerrados, abrem-se-lhe um pouco mais para os
campos. Mas fecha-os logo, diante daquela monotonia desolada.
Dá meia volta, enche a medida com o melhor vinho que há na venda, coloca-a sobre
o balcão. Ao lado, um copo. Puxa o caixote, senta-se e começa a beber a pequenos goles.
15 De quando em quando, cospe por cima do balcão para a terra negra que faz de pavimento.
Enterra o queixo nas mãos grossas e, de cotovelo vincado na tábua, para ali fica com um
olhar mortiço.
Às vezes, um rapazito entra na venda:
– Tio Batola, cinco tostões de café.
20 O chapeirão redondo volta-se, vagaroso:
– Hã?...
– Cinco tostões de café!
Batola demora os olhos na portinha que dá para os fundos da casa. Mas é inútil esperar
mais. “Ah, se a mulher não vem aviar o rapazito é porque não quer, pois está a ouvir muito
25 bem o que se passa ali na loja!” Quando se assegura que é esta e não outra a verdade dos
factos, Batola tem de levantar-se. Espreguiça-se, boceja, e arrasta-se até à caixa de lata enfer-
rujada. Mede o café a olho, um olho cheio de tédio, caído sobre o canudinho de papel.

142
MANUEL DA FONSECA “Sempre é uma companhia”

Volta a encher o copo, atira-se para cima do caixote. E, no jeito que lhe fica depois de
vazar vinho goela abaixo, num movimento brusco, e de ter cuspido com uns longes de raiva,
30 parece que acaba de se vingar de alguém.
Tais momentos de ira são pedaços de revolta passiva contra a mulher. É uma longa luta,
esta. A raiva do Batola demora muito, cresce com o tempo, dura anos. Ela, silenciosa e dis-
tante, como se em nada reparasse, vai-lhe trocando as voltas. Desfaz compras, encomendas,
negócios. Tudo vem a fazer-se como ela entende que deve ser feito. E assim tem governado
35 a casa.
Batola vai ruminando a revolta sentado pelos caixotes. Chegam ocasiões em que nem
pode encará-la. De olhos baixos, põe-se a beber de manhã à noite, solitário como um des-
graçado. O fim daquelas crises tem dado que falar: já muitas vezes, de há trinta anos para
cá, aconteceu a gente da aldeia ouvir gritos aflitivos para os lados da venda. Era o Batola,
40 bêbado, a espancar a mulher.
Tirando isto, a vida do Batola é uma sonolência pegada. Agora, para ali está, diante do
copo, matando o tempo com longos bocejos. No estio, então, o sol faz os dias do tamanho
de meses. Sequer à noite virá alguém à venda palestrar um bocado. É sempre o mesmo.
Os homens chegam com a noitinha, cansados da faina. Vão direito a casa e daí a pouco toda
45 a aldeia dorme.
Está nestes pensamentos o Batola quando, de súbito, lhe vem à ideia o velho Rata. Que
belo companheiro! Pedia de monte a monte, chegava a ir a Ourique, a Castro, à Messejana.
Até fora a Beja. Voltava cheio de novidades. Durante tardes inteiras, só de ouvi-lo parecia ao
Batola que andava a viajar por todo aquele mundo.
50 Mas o velho Rata matara-se. Na aldeia, ninguém ainda atina ao certo com a razão que
levou o mendigo a suicidar-se. Nos últimos tempos, o reumatismo tolhera-lhe as pernas,
amarrando-o à porta do casebre. De quando em quando, o Batola matava-lhe a fome; mas
nem trocavam uma palavra. Que sabia agora o Rata? Nada. Encostado à parede de per-
nas estendidas, errava o olhar enevoado pelos longes. Veio o verão com os dias enormes,
55 a miséria cresceu. Uma tarde, lá se arrastou como pôde e atirou-se para dentro do pego
da ribeira da Alcaria.

143
Contos

Aos poucos o tempo apagou a lembrança do Rata, o mendigo. Só o Batola o recorda lá de


vez em quando. Mas, agora, abandonou a recordação e o vinho, e vai até ao almoço. Nunca
bebe durante as refeições.
60 Depois, o sol desanda para trás da casa. Começa a acercar-se a tardinha. Batola, que acaba
de dormir a sesta, já pode vir sentar-se, cá fora, no banco que corre ao longo da parede. A seus
pés, passa o velho caminho que vem de Ourique e continua para o sul. Por cima, cruzam os
fios da eletricidade que vão para Valmurado, uma tomada de corrente cai dos fios e entra,
junto das telhas, para dentro da venda.
65 E o Batola por mais que não queira, tem de olhar todos os dias o mesmo: aí umas quinze
casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o telhado escuro, de sumidas que estão
no fundo dos córregos. Depois disso, para qualquer parte que volte os olhos, estende-se a
solidão dos campos. E o silêncio. Um silêncio que caiu, estiraçado por vales e cabeços, e que
dorme profundamente. Oh, que despropósito de plainos sem fim, todos de roda da aldeia,
70 e desertos!
Carregado de tristeza, o entardecer demora anos. A noite vem de longe, cansada, tomba
tão vagarosamente que o mundo parece que vai ficar para sempre naquela magoada pe-
numbra.
Lá vêm figurinhas dobradas pelos atalhos, direito às casas tresmalhadas da aldeia. Ne-
75 nhuma virá até à venda falar um bocado, desviar a atenção daquele poente dolorido. São
ceifeiros, exaustos da faina, que recolhem. Breve, a aldeia ficará adormecida, afundada nas
trevas. E António Barrasquinho, o Batola, não tem ninguém para conversar, não tem nada
que fazer. Está preso e apagado no silêncio que o cerca.
Ergue-se pesadamente do banco. Olha uma última vez para a noite derramada. Leva as
80 mãos à cara, esfrega-a, amachucando o nariz, os olhos. Fecha os punhos, começa a esticar os
braços. E abre a boca num bocejo tão fundo, o corpo torcido numa tal ansiedade, que parece
que todo ele se vai despegar aos bocados. Um suspiro estrangulado sai-lhe das entranhas e
engrossa até se alongar, como um uivo de animal solitário.
Quando consegue dominar-se, entra na venda, arrastando os pés. E, sem pressentir que
85 aquela noite é a véspera de um extraordinário acontecimento, lá se vai deitar o Batola, der-
rotado por mais um dia.

144
MANUEL DA FONSECA “Sempre é uma companhia”

1 Trace o retrato do casal António Barrasquinho e mulher, mostrando que se opõem


física e psicologicamente.
Quiz: “Sempre é uma
1.1 Explicite o tipo de relacionamento existente entre ambos. companhia”, de Manuel
da Fonseca 1

2 Observe os segmentos seguintes


a. “vem tropeçando nos caixotes” (l. 9)

b. “vai passando as mãos pela cara” (l. 10)

2.1 Comente a expressividade da utilização do gerúndio na caracterização de Batola.

3 De certa maneira, pode afirmar-se que o espaço circundante molda o caráter da


personagem.
3.1 Demonstre que a maneira de ser de Batola está relacionada com a paisagem alen-
tejana.

4 Descreva os espaços físicos onde se desenrola a ação, concluindo acerca da concen-


tração espacial.

5 Comprove, com expressões do texto, que a paisagem alentejana surge humanizada,


contrastando com a figura de Batola, que adquire características não humanas.
5.1 Identifique o recurso expressivo dominante nas expressões seguintes, comentan-
do a relação que se estabelece entre o espaço, o tempo e as personagens.
a. “daquela monotonia desolada” [dos campos] (l. 12)

b. “toda a aldeia dorme” (ll. 44-45)

c. “quinze casinhas desgarradas e nuas” (ll. 65-66)

d. “A noite vem de longe, cansada” (l. 71)

6 No conto, o espaço físico condiciona o espaço social.


6.1 Caracterize os ceifeiros, concluindo acerca da sua condição social.

7 O espaço psicológico não é apenas o modo como a personagem perspetiva o que


a rodeia mas também a expressão das suas memórias.
7.1 Comprove a afirmação, explicitando o papel da personagem Rata na narrativa.

8 Demonstre, recorrendo a exemplos textuais, que a passagem do tempo é subordina-


da ao espaço e ao modo de vida das personagens, concretamente de Batola.

145
Contos

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 373, 377 e 394.

Resolução/atividade:
Questão de exame explicada:
1 Indique a função sintática desempenhada pelos segmentos sublinhados nas frases.
funções sintáticas 1; Questão a. “Ela, silenciosa e distante, como se em nada reparasse, vai-lhe trocando as voltas”
de exame explicada: orações 1
Animação: Escrever uma (ll. 32-33)
apreciação crítica b. “para qualquer parte que volte os olhos, estende-se a solidão dos campos” (ll.67-68)
c. “pesadamente” (l. 79)

2 Classifique as orações sublinhadas nos segmentos que se seguem.


a. “que acaba de dormir a sesta” (ll. 60-61)

b. “que caiu” (l. 68)

c. “sem pressentir que aquela noite é a véspera de um extraordinário acontecimento”


(ll. 84-85)

3 Identifique o referente do pronome pessoal presente em “Leva as mãos à cara,


esfrega-a” (ll. 79-80).

ESCRITA i Bloco informativo | p. 355.

1 Observe o quadro do pintor Vítor Costa, que retrata, em certa medida, o espaço onde
se desenrola a narrativa do conto “Sempre é uma companhia”.

Vítor Costa, Paisagens alentejanas, 2010.

Redija um texto de apreciação crítica, em 160 a 200 palavras, observando os tópicos:


• indicação da temática sugerida pela pintura;
• descrição da imagem, destacando a simbologia dos elementos mais relevantes,
relativamente à variedade cromática, às figuras e respetivas posturas;
• comentário crítico fundamentado, utilizando um discurso valorativo;
• associação da imagem à intriga do conto;
• respeito pelas marcas específicas de género;
• correção sintática e ortográfica.

146
MANUEL DA FONSECA “Sempre é uma companhia”

ANTECIPAR SENTIDOS

A chegada da rádio permitiu que todos os aldeãos soubessem “o que acontec[ia] fora
dali”. Proporcionou-lhes a comunicação (há “assuntos de sobra para conversar”); inclusive,
mudou hábitos arreigados (“até as mulheres vêm para a venda depois da ceia”). Desistirem
dele significaria regressarem à vivência anterior, “recuar para muito longe, lá para o fim do
mundo, onde sempre tinham vivido”. […]
A própria relação matrimonial sofre uma previsível alteração. […] Contrastando com a
atitude altiva que a caracterizara até aí, a murmurar, ela [a mulher] sugere ao marido que
o aparelho fique, pois, conclui, “Sempre é uma companhia neste deserto”. […]
A radiotelefonia, uma inovação para a aldeia, devolveu a todos parte da humanidade
perdida (ou nunca antes experimentada).
Violante F. Magalhães, in Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3 (coord. Maria Isabel
Rocheta, Serafina Martins), Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 107-108 (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Síntese: Guia de estudo:


Leia o excerto. “Sempre é uma companhia”,
de Manuel da Fonseca
“Sempre é uma companhia” (parte 2)
De facto, na tarde seguinte apareceu uma nuvenzinha de poeira para as bandas do sul:
ouvia-se ronronar um motor. Pouco depois, o carro parou à porta da venda. Fazia anos que
tal se não dava na aldeia. Pelas portas, apareceram mulheres e crianças.
Dois homens saíram do carro. Um deles trazia fato de ganga, o outro, bem vestido, adian-
5 tou-se até à porta:
– Não nos pode dispensar uma bilha de água?
Batola, daí a pouco, sai com a infusa a escorrer. O do fato de ganga, que havia tirado a
tampazinha da frente do carro, pôs-se a deitar a água para dentro. Enquanto isto acontece, o
sujeito bem vestido dá uma mirada pela aldeia, pelos campos. Sopra, afogueado:
10 – Que sítio!...
Mas ao ver os fios da eletricidade e a ligação que entra junto das telhas da casa, olha
para o Batola com atenção, medindo-o de alto a baixo. Entra na venda, põe-se a observar as
prateleiras. O exame parece agradar-lhe. Volta-se, sorridente, para o Batola, que lhe segue,
desconfiado, todos os movimentos:
15 – Tem cerveja?
– Ná. Só vinho...
– Traga o vinho.
Muito instado, Batola bebe também. E aqui começa uma conversa que ele não entende.
Só percebe, e isso agrada-lhe, que o homem é simpático e franco. Mas agora há uma pergun-
20 ta a que tem de responder.
– Não, senhor...
O sujeito vai à porta, e diz para o motorista:
– Calcinhas, traz aí uma caixa do modelo pequeno.
A caixa é colocada sobre o balcão. De dentro sai uma outra caixa, mas de madeira polida. Ao meio
25 tem um retângulo azul, cheio de letras e, em baixo, ao comprido, quatro grandes botões negros.

147
Contos

– Não tem uma tomada?


Em face da resposta, o homem vai ao automóvel. Volta e sobe ao balcão. Tira a lâmpada,
enrosca aí a tomada, puxa o fio que sai da caixa, liga-o, e salta para o chão. Só nesse momento
o Batola compreende. A princípio, apenas saem ruídos ásperos da caixinha, mas, aos poucos,
30 desaparecem. Vem então uma música modulada, grave.
– Hem? Que tal?
Esfregando as mãos, começa a enumerar rapidamente as qualidades de um tal aparelho:
– É o último modelo chegado ao país. Quando se quer, é música toda a noite e todo o dia.
Ou então canções. E fados e guitarradas! Notícias de todo o mundo, desde manhã até à noite,
35 notícias da guerra!...
Aponta para o retângulo azul:
– Olhe, aqui, é Londres; aqui, a Alemanha; aqui, a América. É simples: vai-se rodando este
botãozinho...
Poisa a mão sobre o ombro do Batola, e exclama:
40 – Dou-lhe a minha palavra de honra que não encontra nenhum aparelho pelo preço deste!
Sem dar tempo a qualquer resposta, ordena:
– Traz a pasta, Calcinhas!
Vem a pasta. Batola, aturdido, olha para os papéis de várias cores que vão aparecendo
sobre o balcão. A música, vibrante, enche a venda, ressoa pelos campos.
45 – Aqui é Londres, hem! – grita o homem. – O senhor sabe ler? Então leia aqui!
Mostra os papéis, gesticula e sorri, sorri sempre. Batola coça o queixo com os dedos gros-
sos. Olha as contas que o outro lhe mostra, olha de soslaio para a mulher. Volta a coçar-se.
E tudo isto se repete durante uma longa hora.
Batola, por fim, cabisbaixo, emudece, como que vencido. Rapidamente, o vendedor preen-
50 che, sobre o balcão, um largo impresso e, depois, doze letras. São as prestações. Dá a caneta
ao Batola que se põe a assinar penosamente papelinho a papelinho. Está quase a acabar a
difícil tarefa quando a mulher o interrompe, numa voz lenta e carregada:
– António, tu não compras isso.
Então, inicia-se uma luta entre o vendedor e a mulher. Mas as frases e o sorriso do ho-
55 mem bem vestido não surtem agora o mesmo efeito: vão-se sumindo, sem remédio, diante
daquele rosto ossudo e decidido. Ali, só há uma palavra:
– Não.
A cara redonda do Batola começa a encher-se de fundas rugas. Num repente, pega na
caneta e assina o resto das letras:
60 – Pronto! Quem manda sou eu!
Os olhos da mulher trespassam-no. Volta o rosto pálido para o vendedor de telefonias,
torna a voltar-se para o marido. Por momentos, parece alheada de tudo quanto a cerca. Va-
garosa, no tom de quem acaba de tomar uma resolução inabalável, apruma-se, muito alta,
dominadora, e diz:
65 – António, se isso aqui ficar eu saio hoje mesmo de casa. Escolhe.
Toda a gente da aldeia que enche a venda sabe que ela fará o que acaba de dizer. Até o
vendedor pressente que assim será. Pensativo, olha para o Batola. De súbito, tira um papel
qualquer de dentro da pasta e adianta-se:
– Bem, a senhora não se exalte. Faz-se uma coisa: a telefonia fica à experiência, durante
70 um mês. Se não quiserem, devolvem-na; nós devolvemos as letras. Assine aqui, Sr. Barras-
Quiz: “Sempre é uma quinho. Pronto. Agora já a senhora pode ficar descansada.
companhia”, de Manuel – Mas – pergunta ainda a mulher – quanto se paga de aluguer por esse mês?
da Fonseca 2
– Nada! – responde o homem, de novo risonho. – Por isso não se paga nada!

148
MANUEL DA FONSECA “Sempre é uma companhia”

E, ao meter os papéis dentro da pasta, repara que já é muito tarde. Apressado, conta que
75 veio por ali devido a um engano no caminho. Sai da venda, entra no carro, e diz ao Batola,
aproveitando o ruído do motor:
– Você, agora, arrume a questão: tem um mês para a convencer.
Mal o carro parte, deixando uma nuvem de poeira à retaguarda, atira a pasta para o as-
sento de trás, e grita alegremente:
80 – Hem, Calcinhas! Levou-me uma tarde inteira, mas foi. Foi de esticão!
De facto, era sol-posto, pelos atalhos, os ceifeiros recolhiam à aldeia.
Mas, nessa tarde, vieram todos à venda, onde entraram com um olhar admirado. Uma
voz forte, rápida, dava notícias da guerra.
Só de lá saíram depois de a voz se calar. Cearam à pressa, e voltaram. Era já alta noite
85 quando recolheram a casa, discutindo ainda, pelas portas, numa grande animação.
Um sopro de vida paira agora sobre a aldeia. Todos sabem o que acontece fora dali. E sen-
tem que não estão já tão distantes as suas pobres casas. Até as mulheres vêm para a venda
depois da ceia. Há assuntos de sobra para conversar. E grandes silêncios quando aquela voz po-
derosa fala de cidades conquistadas, divisões vencidas, bombardeamentos, ofensivas. Também
90 silêncio para ouvir as melodias que vêm de longe até à aldeia, e que são tão bonitas!...
Acontece até que, certa noite, se arma uma festa na venda do Batola. Até as velhas dan-
çaram ao som da telefonia. Nos intervalos, os homens bebiam um copo, junto ao balcão, os
pares namoravam-se, pelos cantos. Por fim, mudou-se de posto para ouvir as notícias do
mundo. Todos se quedaram, atentos.
95 – Ah! – grita de repente o Batola. – Se o Rata ouvisse estas coisas não se matava!
Mas ninguém o compreende, de absorvidos que estão.
E os dias passam agora rápidos para António Barrasquinho, o Batola. Até começou a le-
vantar-se cedo e a aviar os fregueses de todas as manhãzinhas. Assim, pode continuar as
conversas da véspera. Que o Batola é, de todos, o que mais vaticínios faz sobre as coisas da
100 guerra. Muito antes do meio-dia já ele começa a consultar o velho relógio, preso por um fio
de ouro ao colete.
Só a mulher quase deixou de aparecer na venda. E ninguém sabe que pensa ela do que
contam as vozes desconhecidas aos homens da aldeia, pois, através do tabique de ripas sepa-
radas por grandes fendas, ouve-se tudo que se passa na venda. Ouve-se e vê-se, querendo, a
105 alegria que certas notícias trazem aos ceifeiros, o gosto e o propósito que eles têm ao ouvir
determinada voz que é de todas a mais desejada e acreditada.
E os dias custaram tão pouco a passar que o fim do mês caiu de surpresa em cima da
aldeia da Alcaria. Era já no dia seguinte que a telefonia deixaria de ouvir-se. Iam todos, de
novo, recuar para muito longe, lá para o fim do mundo, onde sempre tinham vivido.
110 Foi a primeira noite em que os homens saíram da venda mudos e taciturnos. Fora espe-
rava-os o negrume fechado. E eles voltavam para a escuridão, iam ser, outra vez, o rebanho
que se levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado
pelo cansaço e pela noite. Mais nada que o abandono e a solidão.
A esperança de melhor vida para todos, que a voz poderosa do ho-
115 mem desconhecido levava até à aldeia, apagava-se nessa noite para
não mais se ouvir.
Dentro da venda, o Batola está tão desalentado como os ceifei-
ros. O mês passou de tal modo veloz que se esqueceu de preparar
a mulher. Sobe ao balcão, desliga o fio e arruma o aparelho. Um
120 pouco dobrado sobre as pernas arqueadas, com o chapeirão a en-
cher-lhe a cara de sombra, observa magoadamente a preciosa caixa.

149
Contos

Assim está, quando um pressentimento o obriga a voltar a cabeça: junto da porta que dá
para os fundos da casa, a mulher olha-o com um ar submisso. “Que terá acontecido?”, pensa
o Batola, admirado de a ver ainda levantada àquela hora.
125 – António – murmura ela, adiantando-se até ao meio da venda. – Eu queria pedir-te uma
coisa...
Suspenso, o homem aguarda. Então, ela desabafa, inclinando o rosto ossudo, onde os
olhos negros brilham com uma quase expressão de ternura:
– Olha... Se tu quisesses, a gente ficava com o aparelho. Sempre é uma companhia neste
130 deserto.

1 Confirme a possibilidade de dividir o conto em duas partes, propondo, justificada-


mente, um subtítulo para cada uma delas.

2 Enumere três características do vendedor, fundamentadas com frases do texto,


clarificando a sua importância na narrativa.

3 Justifique o recurso ao discurso direto durante o processo de venda do aparelho


de rádio.

4 Explicite a importância da chegada da telefonia, referindo alterações no comporta-


mento
a. de António Barrasquinho;
b. dos ceifeiros.

5 Demonstre diferenças entre a primeira e a segunda partes do conto, relativamente


ao modo como é perspetivada a passagem do tempo.

6 Justifique a angústia dos ceifeiros no final do prazo estabelecido para a devolução


do aparelho.

7 No final do conto, observa-se uma transformação na personagem feminina.


7.1 Interprete as mudanças ocorridas.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 392 e 401.

1 Refira o valor aspetual das frases.


a. “o fim do mês caiu de surpresa em cima da aldeia da Alcaria” (ll. 107-108)
Gramática/Atividade:
Valor aspetual; Coesão b. “E eles voltavam para a escuridão” (l. 111)
e coerência textual
Resolução/Atividade:
Questão de exame explicada: 2 Identifique o mecanismo de coesão textual configurado nos elementos sublinhados.
coesão referencial; Questão
de exame explicada: coesão a. “o obriga a voltar a cabeça” (l. 122)
interfrásica e referencial b. “António – murmura ela, adiantando-se até ao meio da venda. – Eu queria pedir-te
Quiz: Valor aspetual 1
uma coisa” (ll. 125-126)

150
MANUEL DA FONSECA “Sempre é uma companhia”

ORALIDADE EXPRESSÃO

1 O título da coletânea da qual faz parte o conto estudado é O fogo Teste interativo: “Sempre
é uma companhia”, de Manuel
e as cinzas, que, na opinião do autor, dá “o antes e o depois dos da Fonseca
acontecimentos do livro… na ordem inversa das palavras”.
Faça uma breve exposição, de 2-3 minutos, em que avalie
a adequação da afirmação ao conto estudado.
Observe os seguintes tópicos:
• síntese dos acontecimentos de cada parte;
• modo de vida dos ceifeiros;
• caracterização do espaço;
• correção sintática e adequação lexical.

INFORMAÇÃO

As personagens
[…] À descrição física da mulher de Batola, dada pela tripla adjetivação “alta,
grave, um rosto ossudo”, segue-se a informação sobre o seu modo de estar e ser: o
“sossego de maneiras” que a caracteriza é, afinal, sintoma de circunstância de pôr e
dispor no governo quer da casa quer do negócio […].
5 Movendo-se em direção oposta à da mulher, surge Batola “com a cara redonda
amarfanhada num bocejo”. À frase […] “Que pessoas tão diferentes!”, sucede-se a
descrição da estatura e do porte de Batola (“atarracado, as pernas arqueadas”), da
indumentária que usa (o “chapeirão”, o “lenço vermelho amarrado ao pescoço”) –
que identificamos com o trajar do homem alentejano. […]
10 Mendigo e viajante, Rata figura o mensageiro, aquele que traz notícias do que
se passa extra muros. Ao escutá-lo durante tardes inteiras, também Batola parecia
viajar por “todo aquele mundo”. […] Quando ficou impossibilitado de viajar “pelos
longes”, Rata suicidou-se. […] Após o suicídio de Rata, a saudade que, “de vez em
quando”, Batola sente, agudiza-lhe a solidão. […]
15 Os homens de Alcaria são apresentados como “figurinhas” (de presépio?) que
vivem em casas “tresmalhadas”. […] [Eles] são “o rebanho que se levanta com o dia,
lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo cansaço e pela noite. Mais nada que
o abandono e a solidão.” A tudo isto acresce a falta de esperança e de solidão. Bato-
la não enfrenta aquele tipo de problemas. Pelo contrário, ele dá-se ao luxo de pre-
20 guiçar, bebe “o melhor vinho que há na venda”, carrega um fio de ouro no colete.
Violante F. Magalhães, in Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3 (coord. Maria Isabel
Rocheta, Serafina Martins), Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 104-107 (adaptado e com supressões).

1 Distinga Batola dos restantes aldeãos.

2 Mostre a importância de Rata na vida de Batola, transcrevendo uma frase que ilustre
a sua resposta.

151
Contos

LEITURA ARTIGO DE OPINIÃO

Leia o texto. Se necessário, consulte as notas.

Mais do que nunca,


o jornalismo é fundamental
Nuno Artur Silva1

F
az hoje precisamente 200 anos2 que foi pro- tistas, professores, artistas ou políticos está a acontecer
mulgada a primeira Lei de Imprensa em Por- também com os jornalistas.
tugal. Foi este “Decreto da Liberdade da Im- Por outro lado, este novo mundo digital esbate cada
prensa” que, pela primeira vez, estabeleceu 40 vez mais a diferença entre o que é opinião e o que é fac-
5 a possibilidade de “imprimir, publicar, com- tual, entre o que é impressão e o que é investigação, entre
prar e vender nos Estados portugueses quaisquer livros o que são muitas vezes “achismos” e o que é jornalismo.
ou escritos sem prévia censura”. Os próprios mediadores frequentemente quebraram
É certo que nos artigos imediatamente seguintes se re- o contrato e favoreceram a promiscuidade: tal como há
feria os condicionalismos (quatro tipos de abuso da liber- 45 políticos que valorizam mais a performance ou que se tor-
10 dade de imprensa: contra a religião católica, contra o Esta- naram mesmo entertainers, há jornalistas que passaram
do, contra os “bons costumes” e “contra os particulares”, a funcionar demasiado focados nas audiências, primeiro,
aos quais correspondiam sanções, multas e/ou prisão), e agora também com a obsessão do clickbait. […]
mas esta lei é um marco absolutamente assinalável. […] O reforço dos mecanismos de verificação e confirmação
Nunca será demais defender que a liberdade de ex- 50 de factos (o fact-checking) é sempre uma medida de saudar,
15 pressão não é negociável. Isto é, que não deve haver mas julgo que é importante referir que o problema não deve
quaisquer verificações prévias nem censura prévia. ser reduzido à determinação de saber se um dado facto é
O que é admissível – e está definido na lei – são pos- verdadeiro ou falso. Isso é importante em factos circunscri-
síveis consequências da liberdade de expressão, que se tos. Mas reduzir a informação a uma questão de verdade ou
devem limitar ao estritamente necessário para garantir 55 mentira é fazer o jogo simplista – que em si é perigosamen-
20 outros direitos de igual valor, como o direito à vida, à inte- te falso e populista – de ignorar que a realidade é complexa.
gridade física, às liberdades individuais ou ao bom nome Por fim, convém lembrar que o trabalho de procura da
de cada um. Ou seja, cada cidadão deve poder dizer o que verdade, o fact-checking, já existe há muito tempo – cha-
quiser, sobre o que quiser, a menos que o que diga possa ma-se jornalismo. […]
colocar em grave risco os aspetos antes referidos. […] 60 Talvez seja preciso perceber que, ao contrário de ou-
25 Outra é a questão da desinformação. Esta, sim, cons- tros tempos, empresas de comunicação social e jornalis-
titui um problema absolutamente central das sociedades mo possam não ser exatamente a mesma realidade. […]
democráticas contemporâneas. O impacto da desinfor- Para concluir, a resposta ao desafio do combate à desin-
mação nos dias de hoje vem da forma como a tecnolo- formação só pode ser no sentido do reforço do jornalismo
gia revolucionou o modo de os cidadãos se relacionarem 65 e, nesse contexto, neste dia, venho aqui, no mais antigo
30 com a informação. A passagem de um mundo físico para jornal nacional em circulação3, sinalizar a necessidade da
um mundo predominantemente digital, onde os centros revisão da Lei de Imprensa de forma a adequá-la a estes
informativos de referência são substituídos por múlti- novos tempos digitais e dizer que o governo tomou a ini-
plas redes sem mediação (ou mediação obscura ou algo- ciativa de criar um grupo de trabalho para iniciar essa dis-
rítmica), traz novos problemas. 70 cussão, que, como há 200 anos, é fundamental.
35 Por um lado, a quebra do valor e da confiança dos Nuno Artur Silva, in https://www.dn.pt,
mediadores, dos especialistas: o que acontece com cien- consultado em outubro de 2022 (adaptado e com supressões).

1 escritor, ficcionista e, à data, Secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media; 2 12 de julho de 1821; 3 Diário de Notícias

152
MANUEL DA FONSECA “Sempre é uma companhia”

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.4, selecione a opção correta.
1.1 A primeira Lei de Imprensa publicada em Portugal
A. foi importante, pois ditava casos em que a publicação infringia a lei.
B. proibia as liberdades individuais, embora não o fizesse de forma explícita.
C. não garantia totalmente uma imprensa livre de pressões.
D. ocorreu no século XX e vigorou só na metrópole portuguesa.

1.2 A liberdade de imprensa


A. deve estar sujeita a multas ou outras penalizações.
B. garante uma imprensa livre e isenta.
C. nunca pode violar os direitos dos outros.
D. gera, com certeza, desinformação.

1.3 A proliferação de informação digital


A. vincou ainda mais as barreiras entre o jornalismo e o entretenimento.
B. clarificou os limites do jornalismo sério, o que é uma mais-valia.
C. e a ausência de moderação favoreceram a confusão e a desinformação.
D. alargou a atividade de jornalista a professores e animadores.

1.4 Para limitar a tendência para a desinformação,


A. é preciso limitar o acesso às redes sociais.
B. é necessário distinguir entre o que é factual e o que é opinião.
C. deve limitar-se o trabalho de informar aos jornalistas.
D. deveria ser revista a Lei de Imprensa.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 377, 390, 373, 388 e 360.

1 Classifique as orações.
a. “que valorizam mais a performance” (l. 45)
b. “se um dado facto é verdadeiro ou falso.” (ll. 52-53)

2 Refira a modalidade e o valor modal das frases seguintes.


a. “cada cidadão deve poder dizer o que quiser, sobre o que quiser” (ll. 22-23)

b. “venho aqui, no mais antigo jornal nacional em circulação, sinalizar a necessidade


da revisão da Lei de Imprensa” (ll. 65-67)

3 Indique a função sintática desempenhada pelos constituintes seguintes.


a. “este novo mundo digital” (l. 39)

b. “cada vez mais” (ll. 39-40)

c. “a diferença entre o que é opinião e o que é factual” (ll. 40-41)

Gramática/Atividade:
4 Identifique o processo de formação do termo “clickbait” (l. 48). Valor modal: modalidade
apreciativa; Valor modal:
modalidade deôntica;
5 Indique os processos fonológicos ocorridos na evolução das palavras que se seguem. Valor modal: modalidade
a. SEMPER > “sempre” (l. 50) epistémica; Processos
irregulares de formação
b. VERITATE- > “verdade” (l. 54) de palavras
Quiz: Valor modal
c. LEGE- > “lei” (l. 67)

153
“George”,
de Maria Judite
de Carvalho
MARIA JUDITE DE CARVALHO “George”

ORALIDADE COMPREENSÃO

Visione atentamente o registo vídeo. Vídeo: António Damásio:


a educação dos sentimentos,
Fronteiras do pensamento
1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.3, (03 min 21 s)
Animação: Escrever uma
selecione a opção correta. apreciação crítica
Neurocientista português
1.1 Segundo António Damásio, António Damásio.

A. não há qualquer diferença entre os sentimentos de um humano e de outras


espécies porque, em ambos os casos, estamos perante uma base biológica.
B. os sentimentos são específicos da raça humana e, por isso, não são detetá-
veis em nenhuma outra espécie.
C. embora os sentimentos sejam inerentes a qualquer espécie, no caso dos
humanos, eles podem ser educados.
D. os sentimentos são inerentes a qualquer espécie, mas os animais podem
ser ensinados.
1.2 O exemplo de sociedades malévolas que o neurocientista utiliza serve para
A. corroborar a teoria por si defendida anteriormente.
B. refutar a teoria de outros investigadores.
C. demonstrar a diversidade de teorias existentes.
D. questionar a legitimidade das teorias atuais.
1.3 Na opinião de António Damásio,
A. a forma como cada indivíduo se comporta é da inteira responsabilidade
da sociedade em que se insere.
B. embora sofra influências do meio, o comportamento do ser humano é,
em grande parte, ditado por si próprio.
C. o comportamento individual de cada um de nós é totalmente influenciado
pela forma de ser dos outros.
D. cada indivíduo comporta-se de acordo com a sua personalidade, não havendo
qualquer influência do meio nas suas decisões.

ORALIDADE EXPRESSÃO

1 Faça a apreciação crítica da imagem, tendo em


conta os seguintes aspetos:

• descrição da imagem, destacando elemen-


tos significativos da sua composição;
• representatividade das cores;
• exploração da mensagem veiculada;

NOTE BEM

A sua apresentação deve refletir um comentá-


rio crítico, fundamentado em, pelo menos, três
aspetos relevantes, devendo ser utilizado um
discurso valorativo.
Chris Harvey, Destranque a sua mente, s/d.

155
Contos

ANTECIPAR SENTIDOS

À maneira de Fernando Pessoa, Maria Judite de Carvalho constrói um ser disperso, sem
unidade aparente. George aparece multifacetada e, tentando compreender-se, trava um
intenso diálogo (ou monólogo?) consigo própria. O narrador apresenta ao leitor o que se
passa no espaço interior de George: o confronto incessante entre esses diferentes “eus”.

Renata Quintella de Oliveira, “George”: a errância em busca da liberdade,


in file:///C:/Users/isabe/Downloads/12-Artigo+12.pdf, p. 198.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Animação: Maria Judite Leia o conto. Se necessário, consulte as notas.


de Carvalho na 1.a pessoa

“George”
Andam lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças contra o vento, ou
como quem caminha, também é possível, na pesada e espessa e dura água do mar. Mas não
FAZ SENTIDO SABER
há água nem vento, só calor, na longa rua onde George volta a passar depois de mais de vinte
anos. Calor e também aquela aragem macia e como que redonda, de forno aberto, que talvez
5 venha do sul ou de qualquer outro ponto cardeal ou colateral, perdeu a bússola não sabe
onde nem quando, perdeu tanta coisa sem ser a bússola. Perdeu ou largou?
Caminham pois lentamente, George e a outra cujo nome quase quis esquecer, quase es-
queceu. Trazem ambas vestidos claros, amplos, e a aragem empurra-os ao de leve, um deles
para o lado esquerdo de quem vai, o outro para o lado direito de quem vem, ambos na mesma
10 direção, naturalmente.
O rosto da jovem que se aproxima é vago e sem contornos, uma pincelada clara, e quando
Maria Judite de Carvalho
(1921-1998) foi uma os tiver, a esses contornos, ele será o rosto de uma fotografia que tem corrido mundo numa
escritora portuguesa, mala qualquer, que tem morado no fundo de muitas gavetas, o único fetiche de George.
unanimemente As suas feições ainda são incertas, salpicando a mancha pálida, como acontece com o rosto
considerada uma das
vozes femininas mais
15 das pessoas mortas. Mas, tal como essas pessoas, tem, vai ter, uma voz muito real e viva,
importantes da literatura uma voz que a cal e as pás de terra, e a pedra e o tempo, e ainda a distância e a confusão da
nacional do século XX. vida de George, não prejudicaram. Quando falar não criará espanto, um simples mal-estar.
É autora de contos,
Agora estão mais perto e ela encontra, ainda sem os ver, dois olhos largos, semicerra-
novelas, crónicas, assim
como de uma peça de dos, uma boca fina, cabelos escuros, lisos, sobre um pescoço alto de Modigliani1. Mas nesse
teatro e de um livro de 20 tempo, dantes, não sabia quem era Modigliani e outros que tais, não eram lá de casa, os pais
poesia. Trabalhou nos tinham sido condenados pelas instâncias supremas à quase ignorância, gente de trabalho,
periódicos Diário de
diziam como se os outros não trabalhassem, e sorriam um pouco com a superioridade dessa
Lisboa, Diário Popular,
Diário de Notícias e mesma ignorância se a ouviam falar de um livro, de um filme, de um quadro nem pensar,
O Jornal. Foi casada o único que tinham visto talvez fosse a velha estampa desbotada do Angelus2 que estava na
com Urbano Tavares 25 casa de jantar. Com superioridade, pois, e também com uma certa indignação. Ou seria mes-
Rodrigues e viveu em
França e na Bélgica entre
mo vergonha? Como quem ouve um filho atrasado dizer inépcias3 diante de gente de fora
1949 e 1955, ainda antes que depois, Senhor, pode ir contar ao mundo o que ouviu. E rir. E rir.
da sua estreia literária. Já não sabe, não quer saber, quando saiu da vila e partiu à descoberta da cidade gran-
O resto dos seus anos,
de, onde, dizia-se lá em casa, as mulheres se perdem. Mais tarde partiu por além-terra, por
passou-os na capital
portuguesa. 30 além-mar. Fez loiros os cabelos, de todos os loiros, um dia ruivos por cansaço de si, mais tar-
de castanhos, loiros de novo, esverdeados, nunca escuros, quase pretos, como dantes eram.

156
MARIA JUDITE DE CARVALHO “George”

Teve muitos amores, grandes e não tanto, definitivos e passageiros, simples amores, casou- 1 artista plástico e escultor
-se, divorciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar, quantas vezes? Agora está − esta- italiano que ficou célebre
va −, até quando? em Amesterdão. pelos seus retratos femininos,
35 caracterizados por rostos
Depois de ter deixado a vila, viveu sempre em quartos alugados mais ou menos modes-
e pescoços alongados,
tos, depois em casas mobiladas mais ou menos agradáveis. As últimas foram mesmo fran- à maneira das máscaras
camente confortáveis. Vives numa casa mobilada sem nada de teu? Mas deve ser um horror, como africanas; 2 quadro de autoria
podes?, teria dito a mãe, se soubesse. Não o soube, porém. As cartas que lhe escrevia nunca do pintor francês
Jean-François Millet e que
tinham sido minuciosas, de resto detestava escrever cartas e só muito raramente o fazia.
retrata dois agricultores a
40 Depois o pai morreu e a mãe logo a seguir. rezar; 3 tolices, absurdos;
Uma casa mobilada, sempre pensou, é a certeza de uma porta aberta de par em par, de 4 pessoas que negoceiam

mãos livres, de rua nova à espera dos seus pés. As pessoas ficam tão estupidamente presas a obras de arte

um móvel, a um tapete já gasto de tantos passos, aos bibelots acumulados ao longo das vidas
e cheios de recordações, de vozes, de olhares, de mãos, de gente, enfim. Pega-se numa jarra
45 e ali está algo de quem um dia apareceu com rosas. Tem alguns livros, mas poucos, como
os amigos que julga sinceros, sê-lo-ão? Aos outros livros, dá-os, vende-os a peso, que leve se
sente depois!
− Parece-me que às vezes fazes isso, enfim, toda essa desertificação, com esforço, com
sofrimento – disse-lhe um dia o seu amor de então.
50 − Talvez – respondeu −, talvez. Mas prefiro não pensar no caso.
Queria estar sempre pronta para partir sem que os objetos a envolvessem, a segurassem,
a obrigassem a demorar-se mais um dia que fosse. Disponível,
pensava. Senhora de si. Para partir, para chegar. Mesmo para
estar onde estava.
55 Os pais não sabiam compreender esse desejo de liberdade,
por isso se foi um dia com uma velha mala de cabedal risca-
do, não havia outra lá em casa. Mas prefere não pensar nos
primeiros tempos. E as suas malas agora são caras, leves,
malas de voar, e com rodinhas.
60 A outra está perto. Se houve um momento de nitidez
no seu rosto, ele já passou, George não deu por isso. Está
novamente esfumado. A proximidade destrói ultima-
mente as imagens de George, por isso a vai vendo pior
à medida que ela se aproxima. É certo que podia pôr os
65 óculos, mas sabe que não vale a pena tal trabalho. Param
ao mesmo tempo, espantam-se em uníssono, embora o
espanto seja relativo, um pequeno espanto inverdadei-
ro, preparado com tempo.
− Tu?
70 − Tu, Gi?
Tão jovem, Gi. A rapariguinha frágil, um vime, que
ela tem levado a vida inteira a pintar, primeiro à maneira
de Modigliani, depois à sua própria maneira, à de George,
pintora já com nome nos marchands4 das grandes cidades da
75 Europa. Gi com um pregador de oiro que um dia ficou, por tuta
e meia, num penhorista qualquer de Lisboa. Em tempos tão
difíceis.
− Vim vender a casa.
− Ah, a casa.

157
Contos

80 É esquisito não lhe causar estranheza que Gi continue tão jovem que podia ser sua filha.
Quieta, de olhar esquecido, vazio, e que não se espante com a venda assim anunciada, tão
subitamente, sem preparação, da casa onde talvez ainda more.
− Que pensas fazer, Gi?
− Partir, não é? Em que se pode pensar aqui, neste cu de Judas, senão em partir? Ainda não me fui em-
85 bora por causa do Carlos, mas... O Carlos pertence a isto, nunca se irá embora. Só a ideia o apavora, não é?
− Sim. Só a ideia.
− Ri-se de partir, como nós nos rimos de uma coisa impossível, de uma ideia louca. Quer comprar
uma terra, construir uma casa a seu modo. Recebeu uma herança e só sonha com isso. Creio que é
a altura de eu...
90 − Creio que sim.
− Pois não é verdade?
− Ainda desenhas?
− Se não desenhasse dava em maluca. E eles acham que eu tenho muito jeitinho, que hei de um dia
ser uma boa senhora da vila, uma esposa exemplar, uma mãe perfeita, tudo isso com muito jeito para
95 o desenho. Até posso fazer retratos das crianças quando tiver tempo, não é verdade?
− É o que eles acham, não é?
− A mãe está a acabar o meu enxoval.
− Eu sei.
Há um breve silêncio, depois George diz devagar:
100 − Que calor, cheira a queimado, o ar. Terá sido sempre assim?
− Farto-me de dizer: cheira a queimado, o ar. Ninguém me ouve.
− Ninguém ouve ninguém, não sabes? Que aprendeste com a vida, mulher?
A sua voz está mole, pegajosa, difícil, as palavras perdem o fim, desinteressadas de si
próprias, é como se se preparassem para o sono.
105 − Creio que estou atrasada − diz então, olhando para o relógio. − Estou mesmo − acrescenta,
olhando melhor. − E não posso perder o comboio. Amanhã bem cedo sigo para Amesterdão. Estou
a viver em Amesterdão, agora. Tenho lá um atelier.
− Amesterdão é? Onde fica isso?
Mas é uma pergunta que não pede resposta. Gi fá-la por fazer e sorri o seu lindo sorriso
110 branco de 18 anos. Depois ambas dão um beijo rápido, breve, no ar, não se tocam, nem tal
seria possível, começam a mover-se ao mesmo tempo, devagar, como quem anda na água ou
contra o vento. Vão ficando longe, mais longe. E nenhuma delas olha para trás. O esqueci-
mento desceu sobre ambas.

Agora está à janela a ver o comboio fugir de dantes, perder para todo o sempre árvores e
115 casas da sua juventude, perder mesmo a mulher gorda, da passagem de nível, será a mesma
ou uma filha ou uma neta igual a ela? Árvores, casas e mulher acabam agora mesmo de mor-
rer, deram o último suspiro, adeus. Uma lágrima que não tem nada a ver com isto mas com
o que se passou antes – que terá sido que já não se lembra? −, uma simples lágrima no olho
direito, o outro, que esquisito, sempre se recusa a chorar. É como se se negasse a comparti-
5 infâmia, desonra; 6 violinista
e compositor brasileiro;
120 lhar os seus problemas, não e não.
7 Claude Lévi-Strauss foi
um antropólogo, professor e A figura vai-se formando aos poucos como um puzzle gasoso, inquieto, informe. Vê-se
filósofo francês, considerado
um pedacinho bem nítido e colorido mas que logo se esvai para aparecer daí a pouco, nítido
um dos grandes intelectuais
do século XX. Existe também ainda, mas esfumado. George fecha os olhos com a força possível, tem sono, volta a abri-los
um americano de nome Levi com dificuldade, olhos de pupilas escuras, semicirculares, boiando num material qualquer,
Strauss que foi o inventor 125 esbranquiçado e oleoso.
das calças de ganga

158
MARIA JUDITE DE CARVALHO “George”

À sua frente uma senhora de idade, pri-


meiro esboçada, finalmente completa, olha-a
atentamente. De idade não, George detesta
eufemismos, mesmo só pensados, uma mu-
130 lher velha. Tem as mãos enrugadas sobre
uma carteira preta, cara, talvez italiana, ita-
liana, sim, tem a certeza. A velha sorri de si
para consigo, ou então partiu para qualquer
lugar e deixou o sorriso como quem deixa
135 um guarda-chuva esquecido numa sala de
espera. O seu sorriso não tem nada a ver com
o de Gi − porque havia de ter? −, são como
o dia e a noite. Uma velha de cabelos pinta-
dos de acaju, de rosto pintado de vários tons
140 de rosa, é certo que discretamente mas sem
grande perfeição. A boca, por exemplo, está
um pouco esborratada.
Sem voz e sem perder o sorriso diz:
− Verá que há de passar, tudo passa.
145 Amanhã é sempre outro dia. Só há uma coisa,
um crime, que ninguém nos perdoa, nada a fazer.
Mas isso ainda está longe, muito longe, para quê
pensar nisso? Ainda ninguém a acusa, ainda ninguém
a condena. Que idade tem?
150 − Quarenta e cinco anos. Porquê?
− É muito nova − afirma. − Muito nova.
− Sinto-me velha, às vezes.
− É normal. Eu tenho quase 70 anos. Como estava a chorar, pensei...
Encolhe os ombros, responde aborrecida:
155 − Não tive desgosto nenhum, nenhum. Um encontro, um simples encontro... tro...
− Também tenho muitos encontros, eu. Não quero tê-los mas sou obrigada bi d
brigada
a isso, vivo tão só. Cheguei à ignomínia5 de pedir a pessoas conhecidas retratos
etratos
da minha família. Não tinha nenhum, só um retrato meu, de rapariguinha. E retratos
de amigos, também. De amigos desaparecidos, levados pelas tempestades, os mais queridos, natural-
160 mente. Porque... o tal crime de que lhe falei, o único sem perdão, a velhice. Um dia vai acordar na sua
casa mobilada...
− Como sabe que...
− E verá que está só e olhará para o espelho com mais atenção e verá que está velha. Irremediavel-
mente velha.
165 − Tenho um trabalho que me agrada.
− Não seja tonta, menina. Outro dia vai reparar, ou talvez já tenha dado por isso, que está a ver
pior, e outro ainda que as mãos lhe tremem. E, se for um pouco sensata, ou se souber olhar em volta,
descobrirá que este mundo já não lhe pertence, é dos outros, dos que julgam que Baden Powell6 é um
tipo que toca guitarra e que Levi Strauss7 é uma marca de calças.
170 − Isso é ignorância, não tem nada a ver com a idade.
− Talvez seja ignorância, também. Talvez seja. Estou a incomodá-la, parece-me.
− Dói-me simplesmente a cabeça.
− Desculpe.

159
Contos

George fecha os olhos com força e deixa-se embalar por pensamentos


175 mais agradáveis, bem-vindos: a exposição que vai fazer, aquele quadro que
vendeu muito bem o mês passado, a próxima viagem aos Estados Unidos, o
dinheiro que pôs no banco. O dinheiro no banco, nos bancos, é uma das suas
últimas paixões. Ela pensa − sabe? − que com dinheiro ninguém está total-
mente só, ninguém é totalmente abandonado. A velha Georgina já o deve ter
180 esquecido. A velhice também traz consigo, deve trazer, um certo esquecimen-
to das coisas essenciais, pensa. Abre os olhos para lho dizer, para lho pensar,
para lho atirar em silêncio à cara enrugada, mas a velha já ali não está.
O calor de há pouco foi desaparecendo e agora não há vestígios daquela
aragem de forno aberto. O ar está muito levemente morno e quase agradável.
185 George suspira, tranquilizada. Amanhã estará em Amesterdão na bela casa
mobilada onde, durante quanto tempo?, vai morar com o último dos seus
amores.
Maria Judite de Carvalho, “George” in Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3
(coord. Maria Isabel Rocheta, Serafina Martins), Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 115-120.

1 No conto “George” observamos as três fases da vida da personagem. Concentre-se


na sua juventude (passado).

1.1 Identifique o processo temporal a que o narrador recorre para evocar esta fase da
vida da personagem.
1.2 Explicite o modo como é progressivamente desenhado o retrato de Gi.
1.3 Identifique, comentando o seu valor semântico, dois recursos expressivos pre-
sentes em “uma voz que a cal e as pás de terra, e a pedra e o tempo, e ainda
a distância e a confusão da vida de George, não prejudicaram” (ll. 16-17).
1.4 Demonstre de que forma se pode constatar a existência de um conflito de interes-
ses entre Gi e os seus pais.
1.5 Explique o que levou Gi a abandonar a sua aldeia, relacionando essas razões com
a crítica subjacente ao parágrafo 26 (ll. 93-95) e destacando os recursos expressivos
ao serviço dessa crítica.

2 Atente, agora, na fase da idade adulta da personagem (presente).

2.1 Caracterize a relação de George com os pais depois de esta ter abandonado a casa
paterna.
2.2 Indique a razão que levou George a regressar à sua aldeia natal, 20 anos depois de
a ter deixado, comentando a simbologia desta ação.
2.3 Explique o significado da interrogação “até quando?” (l. 34) relacionando-a com
o conteúdo de todo o parágrafo.
2.4 Avance uma explicação para o facto de George não ter uma casa própria, vivendo
em casas mobiladas, confortáveis até, mas sem nada de seu, relacionando essa
situação com o seu passado.
2.5 Apresente uma explicação para a adoção do nome “George” na fase adulta da
personagem.

160
MARIA JUDITE DE CARVALHO “George”

3 Considere, por fim, a projeção da vida futura de George.

3.1 Justifique a importância da evocação da figura de Georgina bem como a função


por ela desempenhada.

4 Demonstre o caráter fragmentário da figura feminina ao longo das três fases da sua
vida, caracterizando-a nesses diferentes períodos (passado, presente e futuro).

5 Justifique a inserção deste texto no género conto, considerando as suas caracte-


rísticas (consulte a rubrica “Informação”, p. 137).

6 FAZ SENTIDO RELACIONAR Relacione o comportamento de George com o de Inês na Farsa


de Inês Pereira.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 360, 373, 378, 390, 398 e 401.

1 Identifique os processos fonológicos ocorridos na evolução das seguintes palavras.


a. AQUA- > “água” (l. 2)

b. DIRECTU- > “direito” (l. 9)


c. PERSONA- > “pessoa” (l. 15)

d. MULIER > “mulher” (ll. 129-130)

e. PLORARE > “chorar” (l. 153)

2 Identifique as orações subordinadas presentes em cada frase e classifique-as.

a. “Mas não há água nem vento, só calor, na longa rua onde George volta a passar
depois de mais de vinte anos” (ll. 2-4)
b. “Mas nesse tempo, dantes, não sabia quem era Modigliani” (ll. 19-20)

c. “É esquisito não lhe causar estranheza que Gi continue tão jovem que podia ser sua
filha” (l. 80)
d. “Ela pensa − sabe? − que com dinheiro ninguém está totalmente só” (ll. 178-179)

3 Indique as funções sintáticas desempenhadas pelos segmentos seguintes.

a. “vago e sem contornos” (l. 11)


b. “em quartos alugados” (l 35)

c. “árvores e casas da sua juventude” (ll. 114-115)


d. “esbranquiçado e oleoso” (l. 125)

e. “da minha família” (l. 158)

4 Indique o mecanismo de coesão textual assegurado pela correlação entre os vocá-


bulos sublinhados em “Agora estão mais perto” (l. 18).

5 Identifique o modo de relato de discurso presente no segmento “que depois, Senhor,


pode ir contar ao mundo o que ouviu” (l. 27).

6 Refira a modalidade e o valor modal configurados em “Mas deve ser um horror” (l. 37).

161
Contos

INFORMAÇÃO

Texto A

A complexidade da natureza humana/O diálogo entre


realidade, memória e imaginação
[A] atitude de fuga e evasão permanentes, traço mais saliente da perso-
nalidade de George, não passa afinal de uma forma de autoilusão, de um
modo hábil mas não inteiramente eficaz de a personagem se mentir a si
própria sobre a vida tal como é: feita de sucessos, é certo, mas também de
5 fracassos; de ganhos, mas também de perdas irreversíveis; de luz, mas tam-

bém de sombras e fantasmas que nos fazem sofrer e, sobretudo, um cami-


nhar sem retrocesso para a morte e a solidão, inerentes à condição humana.
A própria George tem disso consciência plena ao confrontar o seu passado,
ainda que se recuse a admiti-lo perante si própria e o negue. Em diálogo
10 com Georgina, que lhe aponta as lágrimas derramadas sobre a juventude

perdida, de que acabara de despedir-se ao afastar-se para sempre de Gi,


afirma não ter tido “desgosto nenhum”, apenas “um encontro, um simples
encontro”. Recusa-se igualmente a dar crédito às palavras de desengano
daquele seu alter ego sobre o que a espera no futuro, quando Georgina lhe
15 indica a solidão por única companhia certa na velhice. Prefere então afun-

dar-se no esquecimento que lhe proporcionam o seu dinheiro, o seu suces-


so enquanto pintora, os seus múltiplos amores, as suas metamorfoses
Ivan Marchuk, Centáureas
(memórias de infância), séc. XX constantes, as viagens – as contínuas deslocações físicas e mentais a que se força para se
(pormenor).
sentir liberta e realizada e que configuram afinal a sua alienação. Passado e futuro, porém,
20 colheram-na já a meio deste percurso de fugitiva, cruzando-se com o presente. Dizendo
talvez melhor: passado e futuro tornam-se presentes, como se, abolidas as fronteiras do
Tempo, a personagem tivesse acesso a uma outra dimensão da existência, a uma outra per-
ceção do tempo.
Quiz: “George”, de Maria
Maria João Pais do Amaral, in Conto Português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3
Judite de Carvalho 1; Funções
sintáticas; “George”, de Maria (coord. Maria Isabel Rocheta, Serafina Martins), Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 129.
Judite de Carvalho 2;
Funções sintáticas
Gramática/Atividade: Texto B
Processos fonológicos
de inserção; Processos
fonológicos de supressão;
As três idades da vida
Processos fonológicos
de alteração; Coesão e George está agora de partida, já no comboio que a levará para longe da vila onde nasceu e
coerência textual; Discurso das memórias de um passado que tudo fizera para esquecer, mas que o regresso ao lugar de
direto, indireto e indireto
livre; Valor modal: origem inevitavelmente ressuscita. O reencontro com esse passado, de que a personagem não
modalidade apreciativa; guardara senão uma velha fotografia sua, acaba também por projetá-la no futuro, obrigando-
Valor modal: modalidade
deôntica; Valor modal: 5 -a a confrontar-se, primeiro com a sua juventude […] depois com a sua velhice – ambas figu-
modalidade epistémica
Síntese: Guia de estudo:
radas nessas duas imagens de mulher com quem enceta diálogo e que são afinal seus duplos
“George”, de Maria Judite com nomes que constituem formas curtas ou alongadas de George. […]
de Carvalho
Teste interativo: “George”, Maria João Pais do Amaral, in Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3
de Maria Judite de Carvalho (coord. Maria Isabel Rocheta, Serafina Martins), Porto, Edições Caixotim, 2011, pp. 123.
Animação: Escrever
um texto de opinião

162
MARIA JUDITE DE CARVALHO “George”

Texto C

Metamorfoses da figura feminina


[...] Destaque-se, no conto “George”, [...] que o texto integra uma única personagem, embo-
ra “dialogue” com a sua própria imagem em diferentes fases da vida. Estes diálogos ficcionais
travados entre Gi, de dezoito anos, George, de quarenta e cinco, e Georgina, de quase setenta,
mostram a incomunicabilidade latente, procurando esta mulher a sua própria imagem em
5 diferentes épocas para refletir sobre a vida e a sua angústia existencial.
Dulce Maria Pereira Tavares Novo, As palavras poupadas: o silêncio em Maria Judite de Carvalho,
in https://ria.ua.pt/bitstream/10773/2849/1/2010001223.pdf, p. 30 (com supressões).

1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.


A. Na sua juventude, Gi abandona a terra natal, em virtude da ânsia pela liberdade.
B. O regresso à vila natal afigura-se como um momento de confirmação do sucesso
de George.
C. Georgina representa o futuro promissor de George.
D. Apesar do diálogo com o passado e o futuro, George opta por, no presente,
se manter alheada dessas duas realidades.

ORALIDADE EXPRESSÃO

1 A pares, discuta com o seu colega as seguintes afirmações, tomando uma posição
fundamentada em relação a cada uma delas.
A. Eu seria incapaz de abandonar a minha terra natal.
B. A pressão social sentida por Gi no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade
está, atualmente, completamente ultrapassada.
C. Eu não tenho qualquer receio de envelhecer.
D. No futuro, a minha felicidade passará sobretudo pelo meu sucesso profissional,
que é o que eu mais valorizo.

ESCRITA i Bloco informativo | p. 357.

1 No conto “George”, somos confrontados com diferentes fases da vida e modos de pen-
sar e de agir da protagonista.
Escreva um texto de opinião, entre 200 a 250 palavras, sobre a forma como essas
diferentes formas de pensar acabam por conduzir frequentemente a um conflito de
gerações.
O seu texto deve respeitar as marcas deste género textual e conter:
• uma introdução ao tema;
• um desenvolvimento, no qual apresente uma argumentação pertinente;
• uma conclusão adequada ao desenvolvimento do tema.
Verifique o encadeamento lógico dos tópicos tratados e o correto uso dos mecanis-
mos de coesão textual.

163
Contos

LEITURA ARTIGO DE OPINIÃO

Leia o texto.

Portugal tem
cada vez mais idosos

N
em todos nós temos o direito a envelhe-
cer! Envelhecer é todo um processo que
decorre da natural passagem do tempo!
Envelhecer com dignidade é ainda mais
5 complexo!
O nosso ordenamento jurídico, no seu todo, salva-
guarda as pessoas idosas, considerando-as como um sando-se a participar em atividades diárias sem explica-
grupo de maior vulnerabilidade. Pessoas mais frágeis, ção, o que levará à diminuição do seu bem-estar e a uma
mais dependentes, mais facilmente expostas ao perigo, 40 baixa autoestima. Poderá apresentar perda de peso, má
10 em razão da idade. nutrição, desidratação. Encontrar-se suja ou sem banho
Portugal é claramente um País envelhecido! Por ra- tomado. Poderão ser tomadas decisões inesperadas so-
zões que aqui não importam, o rejuvenescimento da bre o património da pessoa idosa, levantamentos bancá-
população portuguesa é cada vez menor! E, segundo a rios significativos da conta ou, até, mudanças suspeitas
Organização Mundial de Saúde (OMS), é um dos países 45 de beneficiários de testamentos ou de bens.
15 com maior taxa de violência contra idosos, constituin- Proferir comentários desagradáveis/desprezíveis
do-se, assim, este como um grave problema social. […] a um idoso será “maus-tratos”? Não dar a assistência
Os “maus-tratos” assumem muitas vezes a forma devida a um idoso como uma refeição, higiene ou cuida-
de abusos físicos, psicológicos ou financeiros e podem dos médicos necessários será “maus-tratos”? A falta do
acontecer nos mais diversos ambientes, seja na casa 50 dever de cuidar a quem compete este dever será “maus-
20 das próprias pessoas idosas, na casa de familiares ou -tratos”? Privar os idosos de bens essenciais ao seu
amigos, ou até mesmo em ERPI’s, vulgo lares, englo- bem-estar será “maus-tratos”? Dispor dos bens patri-
bando uma série de comportamentos praticados por moniais do idoso será “maus-tratos”?
terceiros! O comportamento de fazer ou de não fazer! Ser velho, quer queiramos quer não e não raras ve-
Quanto ao “abandono”, como uma das formas de 55 zes, implica um pré-conceito de olharmos as pessoas
25 “maus-tratos” de pessoas idosas, não me pronunciarei idosas como improdutivas, incapazes de fazer algumas
porquanto é um tema relacional complexo. tarefas, de falta de lucidez e de serem um “estorvo”.
Na maioria dos casos, nos “maus-tratos” existe uma Quantos de nós já não dissemos, “mas o que é que o
relação de submissão e de dependência da pessoa ido- velho anda aqui a fazer!” ou “o velho não sabe fazer nada
sa para com a vontade de um terceiro. 60 de jeito!” ou “cala-te, tu já não dizes nada de jeito!” ou “És
30 Os “maus-tratos” poderão repercutir-se em diversas uma autêntica criança!”
formas: lesões sem explicação como feridas, nódoas ne- Independentemente de cada situação, cuidemos dos
gras ou cicatrizes recentes, fraturas ósseas, marcas que “nossos” idosos! Como alguém disse – “Devemos proteger
evidenciam o ato de ser amarrado, por exemplo, marcas as crianças e os idosos. As crianças porque são o futuro
nos pulsos ou nos tornozelos. A pessoa idosa poderá en- 65 e a alegria, os idosos porque são o passado e a sabedoria.”
35 contrar-se emocionalmente perturbada, com medo ou Margarida Pouseiro, in https://osetubalense.com,
vergonha de estar na presença de outras pessoas, com consultado em 20/12/2022 (adaptado e com supressões).
receio de falar ou distorcer o diálogo, depressiva, recu-

164
MARIA JUDITE DE CARVALHO “George”

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.5, selecione a opção correta.
1.1 De acordo com a autora do texto, o envelhecimento
A. é um processo complexo.
B. não garante os mesmos direitos a todos.
C. não contempla qualquer dignidade.
D. pressupõe direitos iguais para qualquer cidadão.
1.2 O segmento “Por razões que aqui não importam” (ll. 11-12) funciona como uma for-
ma de a autora demonstrar
A. a pouca importância que atribui ao envelhecimento da população portuguesa.
B. que não está interessada em perceber as razões que estão a levar ao enve-
lhecimento dos portugueses.
C. a falta de informação sobre as razões que estão a levar ao envelhecimento
da população portuguesa.
D. que não se quer dispersar em relação ao tema central que está a abordar.
1.3 De acordo com Margarida Pouseiro, os maus-tratos
A. são, muitas vezes, praticados por pessoas idosas contra terceiros.
B. podem assumir diversas facetas e ocorrer em espaços muito distintos.
C. são sempre praticados pelos familiares dos idosos.
D. acontecem quando as pessoas idosas estão mentalmente perturbadas.
1.4 Entre as linhas 46 e 53, a autora, para chamar atenção sobre os cuidados a ter com
os idosos, serve-se da pergunta retórica,
A. da enumeração e do paralelismo anafórico.
B. da enumeração e da comparação.
C. da comparação e da ironia.
D. da comparação e do paralelismo anafórico.
1.5 No final do texto, Margarida Pouseiro
A. faz uma reflexão sobre os comportamentos a ter com os idosos.
B. valoriza as competências das crianças em relação aos mais velhos.
C. apela a uma atitude punitiva em relação aos mais velhos.
D. alerta para o facto de as crianças tendencialmente desprezarem os idosos.

GRAMÁTICA

1 Identifique os atos ilocutórios presentes nos enunciados seguintes.


a. “Envelhecer é todo um processo que decorre da natural passagem do tempo!” (ll. 2-3)
b. “Envelhecer com dignidade é ainda mais complexo!” (ll. 4-5)

c. “Devemos proteger as crianças e os idosos” (ll. 63-64)

2 Atente no segmento “O nosso ordenamento jurídico, no seu todo, salvaguarda as pes-


soas idosas, considerando-as como um grupo de maior vulnerabilidade” (ll. 6-8).
2.1 Indique o antecedente retomado pelo pronome pessoal aí presente. Animação: O que é uma
enumeração?; O que é uma
2.2 Refira o mecanismo de coesão textual assegurado por esse pronome. comparação?
Gramática/Atividade:
2.3 Identifique a função sintática desempenhada pelo segmento “como um grupo de Atos ilocutórios (atos de fala);
Coesão e coerência textual
maior vulnerabilidade”.

165
CONSOLIDAÇÃO

“Sempre é uma companhia”

Personagens

Caracterização
Identificação e relação
Antes da rádio Depois da rádio

António Barrasquinho Preguiçoso, indolente, irresponsável, Determinado, animado, lúcido,


Batola, o marido infeliz, solitário, alcoólico. responsável, conversador, ansioso
por notícias.

A mulher do Batola Responsável, diligente, determinada, Aparentemente confusa, solitária,


autoritária. submissa, (quase) terna, conciliadora.

Rata Sociável, companheiro, conhecedor


– o mendigo, amigo do “mundo” além da aldeia.
de Batola

A população da aldeia: Exaustos do dia de trabalho, presos Admirados, animados, alegres, curiosos.
– os ceifeiros à rotina.

– as mulheres e as crianças Curiosas, conversadeiras; as velhas


alegres.

– os pares de namorados Apaixonados; absorvidos pela telefonia.

Dois estranhos:
– o vendedor Observador, dotado de sentido de oportunidade, simpático, sorridente, expedito.

– Calcinhas Obediente, prestável.

Alcaria, a aldeia alentejana (15 casinhas).


A venda e os fundos da casa de Batola.
A rua.
Espaço físico e social Os campos.
O velho caminho que vem de Ourique.
O povo trabalhador.
A inexistência de relações sociais.

Durante a Segunda Guerra Mundial:


• “Notícias de todo o mundo, desde manhã até à noite, notícias da guerra!”
Tempo histórico • “Olhe, aqui, é Londres; aqui, é a Alemanha; aqui, a América.”
(levantamento • “Há assuntos de sobra para conversar. E grandes silêncios quando aquela voz
de expressões) poderosa fala de cidades conquistadas, divisões vencidas, bombardeamentos,
ofensivas…”
• “o Batola (…) o que mais vaticínios faz sobre as coisas da guerra.”

166
“George”

Sistematização das principais


Personagem Tempo Espaço Função/Estado
linhas de ação
Passado/ Aldeia natal Retrato construído com recurso Recordar a George
Juventude (vila portuguesa) à memória; “rapariguinha frágil”; quem foi no passado.
18 anos; um lindo sorriso; propensão
para o desenho; tem namorado e a
mãe está a preparar-lhe o enxoval.

Gi
Através do diálogo entre Gi e George
percebe-se que a jovem tenciona
abandonar a terra natal (refere que
o namorado não tem outra ambição
senão a de ficar e construir uma
casa).

Presente/Idade Amesterdão Visita a aldeia onde cresceu para Espelhar a vida


adulta (embora esteja se desfazer da casa paterna (que presente da
de visita à terra recebeu como herança após a morte protagonista: vive
natal) dos pais), o que significa o corte com reconfortada com
o passado; é uma pintora famosa. o seu êxito como
pintora e com
as repercussões
Durante a fase adulta, tem financeiras que este
sofrido diversas transformações; lhe traz.
é inconstante no amor e de
George personalidade complexa – muda
constantemente a cor dos cabelos,
não possui nada de seu, mora em
casas alugadas, desfaz-se dos
livros; nada guarda do passado,
com exceção de uma fotografia
sua quando jovem.

A ânsia de liberdade caracteriza-a


desde a juventude.

Futuro/Velhice Viagem de Retrato construído com recurso Deixar antever


regresso a à imaginação; perspetivação a George o que será
Amesterdão do futuro da figura feminina. o seu futuro, um
(a viagem tempo marcado
do comboio pela solidão e pela
Georgina funciona como Trata-se de uma velha, degradação física,
metáfora e imperfeitamente maquilhada o que impedirá
projeção do com vários tons de rosa, cabelos a protagonista
futuro) cor de acaju; no entanto, usa uma de pintar.
carteira cara (italiana).

167
VERIFICAÇÃO
1 Atente no conto “Sempre é uma companhia”.

Jogo: #DesafioLiterário: 1.1 Associe corretamente os elementos da coluna B que completam o sentido de
Contos cada afirmação da coluna A.

Coluna A Coluna B

a. A ação de “Sempre é uma 1. o seu sofrimento perante a aridez e o isolamento


companhia” passa-se da terra.

b. O espaço onde se desenrola 2. como o mensageiro que mitiga a solidão


a ação remete de Batola graças às suas histórias.

c. O modo de agir e o 3. como a decisora que dirige a vida pessoal


comportamento de Batola e profissional do casal.
ilustram 4. vida social, recolhendo-se os ceifeiros logo
d. Rata funciona que saem do trabalho.

e. Antes da chegada da 5. durante o período da Segunda Guerra Mundial.


telefonia, a mulher de Batola 6. os ceifeiros, que acabam por abandonar os campos.
surge
7. o seu domínio sobre a mulher.
f. Durante a ação da primeira
parte do conto, em Alcaria 8. raramente, na venda, limitando-se à lida da casa.
não há 9. a vida de Alcaria, uma vez que permite o contacto
g. A chegada da telefonia com o mundo e a diversão.
transforma 10. para o isolamento e a solidão das personagens.

2 Considere o conto “George”.

2.1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.


A. No conto “George”, de Maria Judite de Carvalho, a protagonista dialoga tan-
to com as memórias e a figura de Gi como com a imaginação e a figura de
Georgina.
B. O encontro com Georgina ocorre quando George regressa à sua cidade natal
e reflete sobre a inevitabilidade da morte e a inexorabilidade da passagem
do tempo.
C. Este encontro de George com Georgina decorre de uma forma amistosa,
sendo que George está disposta a aceitar os conselhos de Georgina.
D. Na juventude, George abandonou a sua aldeia por causa do conflito que des-
de cedo iniciou com o irmão mais novo e pela ausência de apoio dos pais
face a este desentendimento duradouro.
E. O nome com que se identifica na idade adulta – George – acaba por ser fruto
do seu investimento num mercado particularmente dominado pelo público
masculino.
F. Ao longo do conto, é percetível a falta de apego que a protagonista tem para
com todos os objetos e lugares, vivendo sempre em casas alugadas e já
mobiladas, mantendo apenas supérfluas relações amorosas e evidenciando
um caráter marcadamente errante.
G. Em “George”, assiste-se a uma inevitável simbiose e confluência entre a
memória, a realidade e a ficção.

168
AVALIAÇÃO
GRUPO I
Apresente as suas respostas de forma estruturada.
Animação: O que é uma
metáfora?; O que é uma
PARTE A hipérbole?; O que é uma
personificação?
Selecione um dos textos (A ou B), de acordo com o conto que estudou.

Leia o texto A.

Depois, o sol desanda para trás da casa. Começa a acercar-se a tardinha. Batola, que aca-
ba de dormir a sesta, já pode vir sentar-se, cá fora, no banco que corre ao longo da parede.
A seus pés, passa o velho caminho que vem de Ourique e continua para o sul. Por cima, cru-
zam os fios da eletricidade que vão para Valmurado, uma tomada de corrente cai dos fios e
5 entra, junto das telhas, para dentro da venda.
E o Batola por mais que não queira, tem de olhar todos os dias o mesmo: aí umas quinze
casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o telhado escuro, de sumidas que estão
no fundo dos córregos. Depois disso, para qualquer parte que volte os olhos, estende-se
a solidão dos campos. E o silêncio. Um silêncio que caiu, estiraçado por vales e cabeços,
10 e que dorme profundamente. Oh, que despropósito de plainos sem fim, todos de roda da
aldeia, e desertos!
Carregado de tristeza, o entardecer demora anos. A noite vem de longe, cansada, tom-
ba tão vagarosamente que o mundo parece que vai ficar para sempre naquela magoada
penumbra.
Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”, in Conto Português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica,
vol. 3 (coord. Maria Isabel Rocheta, Serafina Martins), Porto, Edições Caixotim, p. 97.

1 Apresente dois traços psicológicos de Batola, demonstrando a influência que o meio


exerce sobre a personagem.

2 Demonstre a importância da existência de eletricidade na aldeia.

3 Selecione as opções que completam corretamente a afirmação.


No último parágrafo, a caracterização do tempo surge a. através da
utilização de b. (“A noite vem de longe, cansada”, l.12), sugerindo, assim,
a dimensão c. desta categoria da narrativa.

a. b. c.

1. relativizada 1. metáforas 1. social


2. humanizada 2. hipérboles 2. psicológica
3. desenhada 3. personificações 3. física

169
AVALIAÇÃO
Leia o texto B.

Animação: O que é uma A figura vai-se formando aos poucos como um puzzle gasoso, inquieto, informe. Vê-se
comparação?; O que é uma
interrogação retórica?; O que um pedacinho bem nítido e colorido, mas que logo se esvai para aparecer daí a pouco, nítido
é uma personificação?; O que ainda, mas esfumado. George fecha os olhos com a força possível, tem sono, volta a abri-los
é uma enumeração?; O que é
uma metáfora? com dificuldade […].
5 À sua frente uma senhora de idade, primeiro esboçada, finalmente completa, olha-a aten-
tamente. De idade não, George detesta eufemismos, mesmo só pensados, uma mulher velha.
Tem as mãos enrugadas sobre uma carteira preta, cara, talvez italiana, italiana, sim, tem a
certeza. A velha sorri de si para consigo, ou então partiu para qualquer lugar e deixou o sor-
riso como quem deixa um guarda-chuva esquecido numa sala de espera. O seu sorriso não
10 tem nada a ver com o de Gi – porque havia de ter? –, são como o dia e a noite. Uma velha de
cabelos pintados de acaju, de rosto pintado de vários tons de rosa, é certo que discretamente
mas sem grande perfeição. A boca, por exemplo, está um pouco esborratada.
Sem voz e sem perder o sorriso diz:
– Verá que há de passar, tudo passa. Amanhã é sempre outro dia. Só há uma coisa, um crime, que
15 ninguém nos perdoa, nada a fazer. Mas isso ainda está longe, muito longe, para quê pensar nisso? Ain-
da ninguém a acusa, ainda ninguém a condena. Que idade tem?
– Quarenta e cinco anos. Porquê?
– É muito nova – afirma. – Muito nova.
– Sinto-me velha, às vezes.
20 – É normal. Eu tenho quase 70 anos. Como estava a chorar, pensei...
Encolhe os ombros, responde aborrecida:
– Não tive desgosto nenhum, nenhum. Um encontro, um simples encontro...
– Também tenho muitos encontros, eu. Não quero tê-los mas sou obrigada a isso, vivo tão só. Che-
guei à ignomínia de pedir a pessoas conhecidas retratos da minha família. Não tinha nenhum, só um
25 retrato meu, de rapariguinha. E retratos de amigos, também. De amigos desaparecidos, levados pelas
tempestades, os mais queridos, naturalmente. Porque... o tal crime de que lhe falei, o único sem perdão,
a velhice. Um dia vai acordar na sua casa mobilada...
Maria Judite de Carvalho, “George” in Conto português. Séculos XIX-XXI – Antologia crítica, vol. 3
(coord. Maria Isabel Rocheta, Serafina Martins), Porto, Edições Caixotim, 2011.

1 Demonstre como neste excerto estão representadas três fases da vida de George.

2 Caracterize, justificando com elementos textuais, o futuro projetado por Georgina.

3 Selecione a opção que completa corretamente a afirmação.


No segmento “O seu sorriso não tem nada a ver com o de Gi – porque havia de ter? –,
são como o dia e a noite” (ll. 9-10) estão presentes
A. a interrogação retórica, a personificação e a enumeração.
B. a metáfora, a interrogação retórica e a antítese.
C. a interrogação retórica, a comparação e a antítese.
D. a enumeração, a interrogação retórica e a comparação.

170
PARTE B

Leia o poema. Áudio: “O céu, a terra,


o vento sossegado”,
de Luís de Camões
O céu, a terra, o vento sossegado… Animação: O que é uma
as ondas, que se estendem pela areia… aliteração?; O que é uma
comparação?; O que é uma
os peixes, que no mar o sono enfreia… apóstrofe?; O que é uma
anáfora; Escrever um texto
o noturno silêncio repousado… expositivo

5 O pescador Aónio, que, deitado


onde co vento a água se meneia,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado:

– Ondas (dezia), antes que Amor me mate,


10 torna-me a minha Ninfa, que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;


move-se brandamente o arvoredo; Pablo Picasso, Pescador sentado com um boné, 1946.
leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
Luís de Camões, Rimas (texto estabelecido e prefaciado por Álvaro J. da Costa Pimpão),
Coimbra, Almedina, 1994, p. 169.

4 Explicite a relação que se estabelece entre o estado de espírito do pescador Aónio e


o espaço circundante.

5 Demonstre a estrutura narrativa do poema.

6 Selecione a opção adequada para completar a afirmação.


No último verso do soneto, a voz do vento é acentuada através da
A. aliteração.
B. comparação.
C. apóstrofe.
D. anáfora.

PARTE C

7 Escreva uma breve exposição sobre a forma como Antero de Quental e Álvaro de
Campos refletem, na sua produção literária, a temática da “angústia existencial”.
O seu texto deve incluir:
• uma introdução: referência, de forma genérica, à temática da angústia existencial
nos dois autores;
• um desenvolvimento, no qual apresente: atitude e reação face à angústia existen-
cial nos dois poetas; exemplos que corroborem as afirmações;
• uma conclusão: retoma e comprovação da presença da temática da angústia exis-
tencial em ambos os autores.

171
AVALIAÇÃO
GRUPO II
Leia o texto.

O que a solidão faz à nossa saúde


Pode ter ar, água, comida e lugar para viver e dor-
mir, mas se o cérebro não receber sinais da ligação a ou-
tros é provável que atrofie, adoeça e perca anos de vida.

“Um dia, percebi que a minha vida não tinha sen-


5 tido e fui ao médico.” Assim começa o testemunho do
paciente inglês da campanha contra a solidão, lançada
no Reino Unido, há dois anos. A partir de quando é que
o corpo começa a sentir-se num deserto, como se fosse O que se passa com os nativos digitais e milenares?
invisível? A solidão é uma epidemia que os cientistas O estudo longitudinal do King’s College, divulgado no
10 definem como “discrepância entre o nível desejado ano passado, sob a coordenação do britânico Timothy
de conexão social e aquele que efetivamente se tem”. 35 Matthews, mostra que o aumento de sintomas de mal-
A sensação de isolamento aumenta em função dessa -estar e perturbações mentais estava relacionado com
discrepância, aloja-se no corpo e, com o tempo, ganha sentimentos de rejeição e falta de companhia.
a forma de sintomas e pode acabar em doença. Confir- O sentimento de solidão, com os consequentes ris-
15 mam-no os trabalhos da psicóloga e neurocientista ame- cos para a saúde, depende da qualidade dos contactos
ricana Julianne Holt-Lunstad: a solidão percebida e a 40 que se tem e não tanto do facto de se viver só (a menos
falta de laços sociais têm efeitos negativos no estado de que não seja uma escolha). Neste campo, aliás, estare-
saúde, agravando problemas já existentes e aumentan- mos melhor do que os britânicos: o Reino Unido ocupa
do em 30% o risco de depressão e de morte prematura. o 3.º lugar da lista dos países europeus com mais gente
20 A génese destes estudos está na Universidade da a viver só, Portugal ocupa o 17.º. São 939 mil portugue-
Califórnia, em Los Angeles (UCLA). Quando a equipa de 45 ses a viverem sós, o que corresponde a 9% da popula-
investigadores coordenada pelo psicólogo Daniel Rus- ção, sendo a média da União Europeia de 15 por cento.
sell desenvolveu a escala da solidão, há quatro décadas, Na Europa a 28, um terço das pessoas com 65 anos ou
estava longe de imaginar que os adolescentes e jovens mais vivem sozinhas, enquanto em Portugal ficamos
25 adultos eram mais propensos a sentir stress quando a pelos 22 por cento. Contudo, tendo em conta os eleva-
necessidade de se relacionarem não era satisfeita. Hoje, 50 dos níveis de problemas de saúde associados à solidão,
verifica-se o mesmo, e de forma ainda mais evidente. apetece perguntar, como os Beatles: “De onde vêm to-
Os resultados da aplicação da escala a um grupo etá- das as pessoas sós? Aonde pertencem elas?”
rio dos 21 aos 30 anos, em Berkeley, apontam para duas Clara Soares, in https://visao.sapo.pt,
30 vezes mais relatos de sentimentos de solidão compara- consultado em 29/10/2022 (com supressões).

tivamente com o grupo com idades entre 50 e 70 anos.

1 Para completar cada um dos itens 1


1.1
1a1
1.6,
6 selecione a opção correta
correta.
1.1 A utilização das aspas nas linhas 4 e 5 do texto justifica-se por se
A. tratar de uma citação.
B. estar perante uma afirmação irónica.
C. pretender destacar a afirmação que aí surge.
D. estar perante uma afirmação incomum.

172
1.2 Em “A partir de quando é que o corpo começa a sentir-se num deserto, como se
fosse invisível?” (ll. 7-9), a autora serve-se da
A. perífrase e da comparação para definir o que é a solidão. Animação: O que é uma
perífrase?; O que é uma
B. metáfora e da comparação para descrever o que é a solidão. metáfora?; O que é uma
interrogação retórica?;
C. hipérbole e da perífrase para justificar a forma como se está a sentir. O que é uma ironia?;
Escrever um texto
D. interrogação retórica e da ironia para desmistificar o que é a solidão. de opinião
Gramática/Atividade:
1.3 Segundo os cientistas, estamos perante a solidão quando Coesão e coerência textual
A. existe a perceção de que a realidade social de cada um não corresponde
ao expectável.
B. o ser humano, apesar de ter uma grande rede de amigos, se sente sozinho.
C. alguém não tem predisposição para conviver com os que lhe são próximos.
D. um indivíduo opta por se isolar por não se sentir integrado num grupo específico.
1.4 Quando a escala da solidão foi desenvolvida pelos investigadores não era expec-
tável que
A. tantas pessoas padecessem de solidão.
B. fossem os mais velhos o grupo etário a sofrer mais com este problema.
C. tão poucas pessoas confessassem sentir-se num estado de solidão.
D. os mais jovens padecessem tanto deste flagelo.
1.5 A referência aos Beatles, que surge no final do texto, serve para
A. demonstrar que a banda não era sensível a esta realidade.
B. incentivar as pessoas a servirem-se da música para afastar a solidão.
C. destacar o aumento e as consequências do problema da solidão.
D. incentivar as pessoas a fazerem como os Beatles e a lutarem contra a solidão.
1.6 O constituinte sublinhado em “Contudo, tendo em conta os elevados níveis” (ll. 49-50)
exemplifica o mecanismo de coesão textual gramatical
A. interfrásica.
B. frásica.
C. referencial.
D. temporal.

GRUPO III

1 Escreva um texto de opinião, entre 200 a 250 palavras, sobre a forma como a solidão
se manifesta na sociedade portuguesa.
O seu texto deve respeitar as marcas deste género textual e conter:
• uma introdução ao tema;
• um desenvolvimento, no qual apresente uma argumentação pertinente;
• uma conclusão adequada ao desenvolvimento do tema.
Verifique o encadeamento lógico dos tópicos tratados e o correto uso dos mecanis-
mos de coesão textual.

173
174
5
Poetas
contemporâneos
EDUCAÇÃO LITERÁRIA LEITURA

Miguel Torga Artigo de opinião


“Regresso”
ESCRITA
“Maceração”
Apreciação crítica
“Orfeu rebelde”
Texto de opinião
Eugénio de Andrade
“Adeus” ORALIDADE
“Green God” Documentário
“Apenas um corpo” Exposição
Manuel Alegre GRAMÁTICA
“E alegre se fez triste”
• Mecanismos de coesão
“País de Abril” textual
“Letra para um hino” • Orações subordinadas
Ana Luísa Amaral e coordenadas
“Testamento” • Valor aspetual
“Técnica vs. artesanato” • Processo de formação
de palavras
“Prece no Mediterrâneo”
• Funções sintáticas
• Antecipar sentidos
• Modalidade e valor modal
• Informação
• Atos ilocutórios
• Classes de palavras
• Processos fonológicos

Claude Monet, Sol poente no rio Sena, 1880.


Poetas contemporâneos

ORALIDADE COMPREENSÃO

Vídeo: Homenagem Visualize um excerto de um documentário


de Lisboa a Sophia de Mello
Breyner Andresen, de 02 sobre Sophia de Mello Breyner Andresen.
de julho de 2009 (excerto),
de João César Monteiro
(05 min 38 s)
1 Assinale como verdadeiras ou falsas
Síntese: Guia de estudo: as afirmações. Corrija as falsas.
Poetas contemporâneos
Sophia de Mello Breyner Andresen Sophia de Mello Breyner Andresen foi
uma das maiores poetas do século XX.
A. considera que a obra de arte é
propiciadora de realização e vida.
B. defende que a poesia é uma perseguição do real.
C. refere que mais importante do que manter uma relação justa com a Natureza
é manter uma relação justa com o Homem.
D. crê que a natureza moral da poesia leva o poeta a procurar a justiça.
E. argumenta que o ser humano, mais do que lutar pela sobrevivência, deve ter
como princípios a liberdade e a dignidade do ser.
F. revela partilhar de certa forma o pensamento de Fernando Pessoa ortónimo, ao
afirmar que “aquilo que eu procurei [na minha poesia] foi esse espírito de nudez,
foi pôr-me em frente de cada coisa como se ela nunca tivesse sido vista e come-
çar a olhar desde o princípio, como se fosse o primeiro dia do mundo”.

2 Refira a simbologia do voo dos pássaros e a sua adequação ou inadequação ao con-


texto comunicativo.

3 Recorde o poema lido integralmente por Sophia de Mello Breyner Andresen.

Esta gente
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos


5 Ora me lembra reis
Boris Grigoriev,
A terra do povo, 1918.
Faz renascer meu gosto E em frente desta gente
De luta e de combate Ignorada e pisada
Contra o abutre e a cobra Como a pedra do chão
O porco e o milhafre E mais do que a pedra
20 Humilhada e calcada
10 Pois a gente que tem
O rosto desenhado Meu canto se renova
Por paciência e fome E recomeço a busca
É a gente em quem De um país liberto
Um país ocupado De uma vida limpa
15 Escreve o seu nome 25 E de um tempo justo
https://arquivojosemariobranco.fcsh.unl.pt.

3.1 Refira três linhas temáticas presentes no poema demonstrando a coerência da obra
de Sophia de Mello Breyner, relativamente às ideias defendidas no documentário.

176
Miguel Torga

INFORMAÇÃO

O sentimento telúrico
Miguel Torga é o nome literário de Adolfo Correia Rocha, nascido
em S. Martinho de Anta, Trás-os-Montes, em 12 de agosto de 1907.
A simbologia do nome (Miguel, da Ibéria [Miguel de Cervantes], e Torga,
planta silvestre da montanha portuguesa) traduz uma profunda
5 opção telúrica1 que foi, desde sempre, a fonte inspiradora da sua obra.
António Arnaut, Estudos Torguianos, Coimbra, Editora Fora do Texto, 1992, p. 73.

Açor, Serra da Lousã, 25 de outubro de 1942 – Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no
mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me enten-
deram. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho
envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre gene-
5 rosa. […] As dobras e as cores do chão onde firmo os pés foram sempre, no meu espírito coisas
sagradas e íntimas como o amor. […] Vivo a natureza integrado nela. De tal modo que chego
a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espetáculo
me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do
eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na
10 linha de um perfil. Lá está o exemplo de Miguel Ângelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu de-
claro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nunca vi nada mais puro, mais
gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar um dia no alto das penedias
da Calcedónia, no Gerez. Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespeare... Palavra,
que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha2, Mãe!”
Miguel Torga, Diário – volume II, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2010, (com supressões).

1 relativa à terra; 2 tecido grosseiro

1 Explicite a relação de Miguel Torga com a Natureza.

2 FAZ SENTIDO RELACIONAR Estabeleça uma relação de intertextualidade entre a poesia de


Alberto Caeiro e o conteúdo do excerto de Diário II, de Miguel Torga, atendendo ao texto
seguinte sobre o mito de Anteu, que subjaz à poesia de Torga.

O mito de Anteu
Anteu – figura mitológica, filho da Terra (Gea) e de Neptuno, um gigante inven-
cível quando em contacto com a mãe Terra, a sua fonte de força e energia. Obrigava
os viajantes a lutarem com ele, vencia-os, matava-os e ornamentava o templo de Nep-
tuno com os seus despojos.
5 Um dia, Hércules, lutando contra ele, descobriu o segredo da sua invencibilidade:
Anteu recuperava forças colocando os pés na terra. Por isso, levantou-o do chão e, com
um forte abraço, sufocou-o, matando-o.
Atualmente, este mito simboliza a fé nas coisas terrenas, que alimenta a força
espiritual do ser humano e lhe permite encarar as adversidades. Animação: Miguel Torga
na 1.a pessoa

177
Fernando
Poetas contemporâneos
Pessoa

ANTECIPAR SENTIDOS

A paisagem que Torga acima de todas preza, a da sua terra natal, foi obra do verbo do que
chama “um Deus de terra” – a que não cessará nunca de prestar culto, pedindo inspiração
para lhe seguir o exemplo.
É da terra, útero primordial como aparece em tantas mitologias, que vem a força e a paz
e a harmonia.
Teresa Rita Lopes, Miguel Torga, Ofícios a um Deus de terra, Porto, Edições Asa, 1993, pp. 11 e 38.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema.

Regresso
Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! minha serra, minha dura infância!
Como os rijos carvalhos1 me acenaram,
Mal eu surgi, cansado, na distância!

5 Cantava cada fonte2 à sua porta:


O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.
Paul Cézanne, Monte de Santa Vitória, 1895.

Depois o céu abriu-se num sorriso,


10 E eu deitei-me no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos 1 símbolo da comunicação entre a terra e o céu,
Aos deuses do meu velho paraíso. os homens e Deus; 2 símbolo da maternidade, origem da vida

“Diário VI”, in Miguel Torga, Antologia Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2014, p. 290.

1 Refira os sentimentos que o sujeito poético experiencia no regresso à terra natal.

2 Destaque os elementos linguísticos que marcam a subjetividade do “eu” lírico.

3 Justifique a referência ao carvalho e à fonte (vv. 3 e 5), atendendo ao seu valor simbó-
lico.

4 Interprete o sentido dos versos “Atrás ia ficando a terra morta / Dos versos que
o desterro esfarelou” (vv. 7-8).

5 Identifique os recursos expressivos presentes nos versos “Depois o céu abriu-se


num sorriso, / E eu deitei-me no colo dos penedos” (vv. 9-10), clarificando o seu valor.

6 Consulte a rubrica “Informação” (p. 177) e, fazendo apelo à sua


FAZ SENTIDO RELACIONAR

experiência de leitura, relacione o mito de Anteu com o conteúdo global do poema.

178
Miguel Torga

ANTECIPAR SENTIDOS

Para Torga, o ato criativo implica um certo labor que não raro desgasta o poeta, ainda
que redima e que liberte. A arte poética é, pois, um processo doloroso, como confidencia
o escritor, num excerto do seu Diário VII: “É um esforço de paciente humildade, de resigna-
ção e, sobretudo, de inabalável esperança”.
Ana Paula Martins Liberato Ferrão, O pulsar de Eros na criação poética de Miguel Torga: um paradigma
da celebração da vida (Dissertação de Mestrado em Criações Literárias Contemporâneas),
Universidade de Évora, 2010, p. 23 (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema. Áudio: “Maceração”,


de Miguel Torga

Maceração1
Pisa os meus versos, Musa insatisfeita!
Nenhum deles te merece.
São frutos acres que não apetece
Comer.
5 Falta-lhes génio, o sol que amadurece
O que sabe nascer.

Cospe de tédio e nojo


Em cada imagem que te desfigura.
Nega esta rima impura
10 Que responde de ouvido.
Denuncia estas sílabas contadas, Edward John Poynter, A musa da poesia, 1870.
Vestígios digitais do evadido
Que deixa atrás de si as impressões marcadas.
1 abatimento; insatisfação

E corta-me de vez as asas que me deste.


15 Mandaste-me voar;
“Penas do Purgatório [1954]”, in Miguel Torga,
E eu tinha um corpo inteiro a recusar Antologia poética, Lisboa, Publicações
Esse ímpeto celeste. Dom Quixote, 2014, p. 175.

1 Identifique o destinatário do poema, referindo a sua simbologia.

2 Analise os efeitos de sentidos resultantes do recurso a formas verbais no imperativo,


identificando-as.

3 Explique o sentido das expressões “imagem que te desfigura” (v. 8) e “rima impura” (v. 9).

4 Interprete o sentido do verso “E corta-me as asas que me deste” (v. 14).

5 Esclareça a temática subjacente ao poema, comprovando a presença de uma auto-


crítica.

179
Fernando
Poetas contemporâneos
Pessoa

ANTECIPAR SENTIDOS

Mais do que no indivíduo ou num humanismo individualista […], a inquietação torguia-


na traduz-se nas polémicas implicações sociais, morais e até metafísicas do individualis-
mo e da liberdade. […] Sendo a vida o oposto sentido paralelo da morte e sendo a terra
o oposto sentido paralelo do paraíso, sendo Deus o vértice do paraíso e da morte e sendo
o Homem o vértice da terra e da vida – a liberdade e o destino transformam-se em gran-
dezas vetoriais inamovíveis. […]
Na mundividência torguiana, a consciência individual é indissociável da consciência so-
cial. […] a vontade de interpretar o mundo coincide sempre com a vontade de o transformar.
Fernão de Magalhães Gonçalves, Ser e ler Miguel Torga, Lisboa, Veja, 1986, pp. 21, 79, 119 (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Orfeu rebelde”, Leia o poema.


de Miguel Torga

Orfeu rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
5 Canto, a ver se o meu canto compromete Christian G. Kratzenstein-Stub,
Orfeu e Euridice, 1806 (pormenor).
A eternidade do meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam rouxinóis… Bicho instintivo que adivinha a morte


Eu ergo a voz assim, num desafio: No corpo dum poeta que a recusa,
Que o céu e a terra, pedras conjugadas 15 Canto como quem usa
10 Do moinho cruel que me tritura, Os versos em legítima defesa.
Saibam que há gritos como há nortadas, Canto, sem perguntar à Musa
Violências famintas de ternura. Se o canto é de terror ou de beleza.

“Penas do purgatório [1958]”, in Miguel Torga, Antologia poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2014, p. 185.

1 Refira os traços que o sujeito poético destaca na sua autocaracterização.

2 Interprete o sentido dos versos “Que na casca do tempo, a canivete / Gravasse


a fúria de cada momento” (vv. 3-4).

3 Esclareça a oposição entre o “eu” e os outros, patente no verso 7.

4 Explicite o desafio a que o poeta alude no verso 8.

5 Infira o conceito de poesia defendido pelo sujeito poético, atentando no conteúdo


da última estrofe.

6 FAZ SENTIDO RELACIONAR Leia o texto intitulado “O mito de Orfeu” (p. 181) e estabeleça uma

relação entre o conteúdo do poema e o referido mito.

180
Miguel Torga

ORALIDADE EXPRESSÃO

1 Recorde o estudo da poesia de Ricardo Reis e compare a atitude


FAZ SENTIDO RELACIONAR Quiz: Miguel Torga
de Reis e a de Torga face à inexorabilidade do tempo e à inevitabilidade da morte.
Exponha as suas conclusões à turma, em cerca de 2 a 4 minutos.

INFORMAÇÃO

O mito de Orfeu
Orfeu é uma figura mitológica, filho de Calíope, musa da poesia épica, e de Apolo, deus
da poesia e da música; sua mulher, Eurídice, faleceu pouco depois do casamento e Orfeu,
desesperado, desceu ao reino dos mortos e conseguiu, com o seu canto, convencer Hades e
Perséfone a permitirem que Eurídice regressasse ao reino dos vivos; no entanto, os deuses
5 estabeleceram uma condição: ele não poderia virar-se para trás nem olhar para ela enquan-
to não tivessem alcançado os limites do reino dos mortos. Orfeu caminhava, por isso,
à frente de sua mulher, mas, quando estavam prestes a chegar à superfície, virou-se para
confirmar se Eurídice o seguia. Então, nesse preciso momento, ela foi levada de regresso ao
mundo dos mortos, deixando Orfeu infeliz e inconsolável. Profundamente triste, ficou
10 a vaguear pelo mundo, recusando todas as mulheres. Um dia, as mulheres da Trácia, sen-
tindo-se desprezadas por ele, mataram-no e enterraram-no em Limetra. A partir desse dia,
os rouxinóis passaram a cantar aí as mais belas melodias e Zeus colocou entre as estrelas
a lira deste deus que amansava as feras com o seu canto. Orfeu conseguira, finalmente, ficar
junto de Eurídice.

A arte poética
TEXTO A1
Neste autor [Miguel Torga] configura-se uma mútua relação, de índole sensual, entre
poesia e vida. Neste [processo criativo], esculpe a linguagem, experimenta um estado de
expectação, entabula um jogo apaixonado, persegue a inspiração, constrói entusiasticamen-
te o fazer poético. […]
5 Ao processo criativo de Torga, regido no seu âmago, pela tensão entre inspiração e labo- 1 Ana Paula Martins Liberato
Ferrão, O pulsar de Eros na
ração, está, quase sempre, associada uma condição de excitação, de ansiedade, que estimula
criação poética de Miguel
a própria criação poética e a equaciona como uma construção. É essa exaltação […] que anima Torga: um paradigma da
o autor e funciona analogamente como motor do seu fazer poético. […] celebração da vida (Dissertação
Nos seus versos, encontramos a entrega total, o abandono de um ser que se entrega de Mestrado em Criações
Literárias Contemporâneas),
10 à criação poética num estado de imaculabilidade incauta.
Universidade de Évora, 2010
(adaptado e com supressões).
TEXTO B2
2 António Mendes Moreira,
Para Torga, de facto, a esperança está na criação poética. Di-lo no III tomo do Diário: “Um “Miguel Torga, o Homem e o
ato de fé na Poesia… Por ela ser a única vida que não morre por ela ser a liberdade”. […] Jesus Escritor”, in Aqui, neste lugar
Herrera em dado momento do seu livro Miguel Torga poeta ibérico [afirma]: “Se a missão social e nesta hora. Atas do primeiro
congresso internacional sobre
de toda a verdadeira poesia é a de libertar os homens de certas grilhetas sociológicas, a de Miguel Torga, Porto, Edições
5 Torga é duplamente libertadora: por ser poesia autêntica e por brotar das fontes da liberdade Universidade Fernando Pessoa,
e da rebeldia humanas.” 1994, p. 357 (com supressões).

1 Sintetize o conceito de arte poética em Miguel Torga.

181
Poetas contemporâneos

ANTECIPAR SENTIDOS

Animação: Eugénio Essa obsessão de aproximar a palavra da música por exigência diversa do simbolismo,
de Andrade na 1.ª pessoa
Áudio: “Adeus”,
para dizer o indizível da Terra, da Vida, do Corpo e não para lhe fugir, já está presente em
de Eugénio de Andrade As mãos e os frutos. […] No fundo é mais entre estes dois termos, o do “canto”, […] e o
do “silêncio”, que se joga a visão, mais inquieta e oscilante do mundo do que é costume
referir, quando se fala na poesia de Eugénio de Andrade. […] Se a evidência do lado solar
permanece tal como o poeta a mitificou, num diapasão que a aproxima do de Torga, […]
o que mais surpreende é a contínua referência ao “silêncio”, momento da equívoca sus-
pensão no centro da vida, recolhimento expectante porventura, mas mais ainda espaço
de perda e esquecimento.
Eduardo Lourenço, A breve música noturna de um poeta solar, Cadernos de Serrúbia,
n.º 2, dezembro, 1997, pp. 83-84 (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

FAZ SENTIDO SABER


Leia o poema.

Adeus
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Eugénio de Andrade 5 Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
(1923-2005) é o gastámos as mãos à força de as apertarmos,
pseudónimo de José gastámos o relógio e as pedras das esquinas
Fontinhas. Nasceu no
em esperas inúteis.
Fundão, mas viveu
a maior parte da sua
vida no Porto. É um dos Meto as mãos nas algibeiras
poetas portugueses mais 10 e não encontro nada.
traduzidos. Recebeu vários
prémios, nacionais e
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
internacionais, entre eles era como se todas as coisas fossem minhas:
o Prémio Camões. Não quanto mais te dava mais tinha para te dar.
sofreu grandes influências
das escolas literárias
suas contemporâneas, Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
tendo considerado seus 15 E eu acreditava.
mestres Camilo Pessanha Acreditava, porque ao teu lado Gustav Klimt, O beijo, 1907-1908 (pormenor).
e Cesário Verde. Escreveu
todas as coisas eram possíveis.
dezenas de livros, entre os
quais As mãos e os frutos,
Os amantes sem dinheiro, Mas isso era no tempo dos segredos,
As palavras interditas, era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
Obstinato rigore, Limiar
dos pássaros, Matéria
20 era no tempo em que os meus olhos
solar, O sal da língua, eram realmente peixes verdes.
Os sulcos da sede, Hoje são apenas os meus olhos.
Aquela nuvem e outras,
É pouco, mas é verdade,
Os afluentes do silêncio.
uns olhos como todos os outros.

182
Eugénio de Andrade

25 Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada. Não temos já nada para dar.
E no entanto, antes das palavras gastas, Dentro de ti não há nada que me peça água.
tenho a certeza 35 O passado é inútil como um trapo.
30 de que todas as coisas estremeciam E já te disse: as palavras estão gastas.
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração. Adeus.

Eugénio de Andrade, Poesia de Eugénio de Andrade, s/l, Fundação Eugénio de Andrade, 2000, p. 51-52.

1 Analise os efeitos de sentido resultantes do emprego anafórico da forma verbal


“Gastámos”, na primeira estrofe.

2 Explicite a presença da dicotomia palavras/silêncio no poema.

3 Esclareça o sentido do uso recorrente do pronome indefinido “nada”, estabelecendo


a oposição relativamente a “tanto” (“tínhamos tanto para dar um ao outro”) (v. 11).

4 Demonstre o modo como o sujeito poético perspetiva a relação amorosa.

5 Preencha, no seu caderno, um esquema idêntico ao apresentado, de modo a explici-


tar o sentido metafórico das expressões selecionadas. Siga o exemplo.

Passado vs. Presente

• “o tempo em que o teu corpo era um • “o que nos ficou não chega / para afastar
aquário” (v. 19) o frio de quatro paredes” (vv. 2-3)

(Ex.: desejo; descoberta) (e. )

• “Às vezes tu dizias: os teus olhos • “Meto as mãos nas algibeiras / e não
são peixes verdes” (v. 14) encontro nada” (vv. 9-10)

(a. ) (f. )

• “ao teu lado / todas as coisas eram • “Dentro de ti / não há nada que me peça
possíveis” (vv. 16-17) água” (vv. 34-35)

(b. ) (g. )

• “o teu corpo era um aquário” (v. 19)


(c. )

• “todas as coisas estremeciam” (v. 30) • “As palavras estão gastas” (v. 37)
(d. ) (h. )

183
Poetas contemporâneos

ANTECIPAR SENTIDOS

Há livros que são um pequeno milagre, e As mãos e os frutos, de Eugénio de Andrade,


é um deles. Refiro-me, por exemplo, à musicalidade que embalará toda a poética euge-
niana; à melancolia de quem sabe estar apenas de passagem, como Horácio, e por isso
frui a efemeridade; à natureza rural e marítima, onde tantas vezes o poeta desvenda
metáforas para o corpo; a uma linguagem que surripia ao quotidiano termos simples,
como “mar”, “fontes”, “rio”, “barco”, “mãos” ou “ave”, e os investe com significados novos,
coerentes ao longo da sua produção poética.
João de Mancelos, “Era um Deus que passava: mitologia celta e romantismo inglês no poema
‘Green God’, de Eugénio de Andrade”, in Letras & Ciências: As duas culturas de Filipe Furtado
(org. Carlos Ceia, M. Alarcão e I. Ramos), Lisboa, Caleidoscópio, 2009.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Green God”, Leia o poema.


de Eugénio de Andrade
Quiz: Eugénio de Andrade
Green God1
Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
5 com as margens quando desce.

Andava como quem passa


sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
10 quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança. Henri Matisse, A dança, 1909.


E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
15 que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,


porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia 1 deus verde
20 duma flauta que tocava.
“As mãos e os frutos [1948]”, in Eugénio de Andrade, Poesia, s/l,
Fundação Eugénio de Andrade, 2000, p. 23.

184
Eugénio de Andrade

1 Interprete a pertinência da referência à fonte e ao rio, na primeira estrofe.

2 Destaque as características de Green God. Gramática/Atividade:


Derivação; Composição;
Coesão e coerência textual;
3 Explique em que medida a fonte e a flauta constituem elementos-chave na constru- Valor aspetual

ção do sentido do texto.

4 Comprove que este poema ilustra a musicalidade da poesia de Eugénio de Andrade e


a coerência interna do texto poético, tal como se afirma no texto da rubrica “Anteci-
par sentidos”.

5 Demonstre que o poema aborda de forma inovadora uma temática recorrente na


literatura.

6 Faça o esquema rimático do poema e classifique os tipos de rima.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 362, 377, 392 e 401.

1 Classifique as orações iniciadas com “que” nos versos: “E desfolhava ao dançar /


o corpo, que lhe tremia / num ritmo que ele sabia/ que os deuses devem usar”.
(vv.12-15)

2 Para completar cada um dos itens 2.1 a 2.4, selecione a opção correta.
2.1 O processo de formação de palavras que ocorreu no vocábulo “anoitece” (v.2) é
A. derivação por prefixação.
B. derivação por parassíntese.
C. derivação por sufixação.
D. composição radical + palavra.

2.2 A frase “Trazia consigo a graça / das fontes” (vv.1-2) possui um valor aspetual
A. imperfetivo
B. perfetivo.
C. genérico.
D. habitual.

2.3 Nos versos “cresciam troncos dos braços / quando os erguia no ar” (vv.9-10),
os elementos destacados asseguram o mecanismo de coesão
A. gramatical interfrásica.
B. gramatical frásica.
C. gramatical temporal.
D. gramatical referencial.

2.4 No último verso, o constituinte “que tocava” corresponde a uma oração subor-
dinada
A. substantiva completiva
B. substantiva relativa.
C. adjetiva relativa explicativa.
D. adjetiva relativa restritiva.

185
Poetas contemporâneos

ANTECIPAR SENTIDOS

“Na poesia de Eugénio de Andrade, uma das mais visíveis manifestações da metáfora
tem a ver com o desejo (“e tudo começa a ser ave/ou lábios e quer voar” – Ostinato Rigo-
re – p. 18), o que não quer dizer que a ideia do voo, e da altura, não apareça associada
a um certo sentido de pureza, de angelismo.”
Carlos Mendes de Sousa, O nascimento da música, A metáfora em Eugénio de Andrade,
Coimbra, Almedina, 1992, p. 87.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Apenas um corpo”, Leia o poema.


de Eugénio de Andrade

Apenas um corpo
Respira. Um corpo horizontal,
tangível, respira.
Um corpo nu, divino,
respira, ondula, infatigável.

5 Amorosamente toco o que resta dos deuses.


As mãos seguem a inclinação
do peito e tremem,
pesadas de desejo.

Um rio interior aguarda.


10 Aguarda um relâmpago,
um raio de sol,
outro corpo.

Se encosto o ouvido à sua nudez,


uma música sobe,
15 ergue-se do sangue, Michelangelo, Estudo de nu, 1511.

prolonga outra música.

Um novo corpo nasce,


nasce dessa música que não cessa,
desse bosque rumoroso de luz,
20 debaixo do meu corpo desvelado.
Eugénio de Andrade, in Poesia de Eugénio de Andrade, s/l, Fundação Eugénio de Andrade, 2000, p. 75.

1 Infira o significado das mãos, referidas na segunda estrofe, justificando a alusão


a diversos tipos de sensações.

NOTE BEM
Cardoso Bernardes destaca “o lirismo inconfundível do poeta, que sobressai pela
celebração do Amor, da Esperança, da Natureza e do Corpo.”

186
Eugénio de Andrade

2 Esclareça o conteúdo dos versos 9 e 11, atentando no valor simbólico do “rio” e do


“sol”, e considerando o esquema presente na rubrica “Informação”.

3 Interprete a referência à música nas últimas estrofes do poema.

4 Analise o efeito de sentido resultante da repetição do vocábulo “corpo”, consideran-


do a alteração do determinante que o rege: “um corpo” (v. 1); “outro corpo” (v. 12); “um
novo corpo” (v. 17).

5 Proceda à análise formal do poema, registando a variedade estrófica e métrica,


o esquema rimático e os tipos de rima, e inferindo o seu contributo para o sentido
do poema.

6 Identifique o recurso expressivo evidenciado no verso 9: “um rio interior aguarda”.

INFORMAÇÃO

Valores simbólicos na poesia de Eugénio de Andrade

Vocábulos Variações simbólicas dependentes do contexto

água fluir do tempo; juventude; vida; simbologia erótica (desejo)

ave/pássaros angelismo; liberdade; inocência; fragilidade; pureza; sublimação do desejo

choupos dor; sacrifício

corpo sensualidade; erotismo

flor fertilidade; metáfora maternal (“florir” – criação poética)

fogo sensualidade; luz

folhas/árvores fecundidade; frescura

fonte poesia; harmonia entre o sonho e a vida

frutos amadurecimento; poesia

luz corpo; harmonia

mãos comunicação; comunhão

noite plenitude

palavras criação

rosa muito mau tempo


fecundidade; fertilidade; materialidade; ruralidade; universo regulado pela
terra
ordem ideal; aprendizagem da vida
voar figuração do encontro amoroso

187
Poetas contemporâneos

INFORMAÇÃO

TEXTO A

O que sei de poesia


Animação: Manuel Alegre
na 1.a pessoa Não sei falar de literatura. Não sei se sei falar de poesia. Sobretudo não sei se a poesia
tem alguma coisa a ver com a literatura. […] Sei que a poesia não se explica, a poesia
implica, como costuma dizer a minha amiga Sophia de Mello Breyner. Sei que a energia,
como diz o meu amigo Herberto Helder, é a essência do mundo e que “os ritmos em que
5 se exprime constituem a forma do mundo”. […] Talvez tudo isto seja a poesia. Ou talvez ela
não seja mais do que o primeiro verso, aquele que nos é dado, como sempre dizia Miguel
Torga, porque os outros têm de ser conquistados. […]
A poesia é, assim, antes de tudo, uma forma de meditação. […] Uma encantada, encan-
tatória e desesperada tentativa de captar a essência do mundo e de, através da palavra,
10 “mudar a vida”, como queria Rimbaud. […]
A poesia é também a língua. E para mim a língua começa em Camões, que tinha uma
flauta mágica. A música secreta da língua. A arte e o ofício da língua e da linguagem. […]
Isto é o que sei de poesia. Talvez seja muito pouco. Mas não sei se é possível saber mais.
Manuel Alegre, 30 anos de poesia (prefácio de Eduardo Lourenço), Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1997, pp 743-744 (com supressões).

TEXTO B
Não foi por acaso que muito cedo a poesia de Manuel Alegre se encarnou em música
e canto. Por instinto, inscreveu tendencialmente os seus poemas no horizonte simbólico
e onírico da oralidade.
Na poesia de Manuel Alegre existe uma consciência profunda do tempo trágico que a
5 título pessoal ou coletivo lhe foi dado viver. Com o tempo, a consciência desse trágico
aprofundou-se, concebeu-se como coexistente com a vida mesma e não apenas como cor
de uma época de trevas destinadas a desvanecer-se com o triunfo da liberdade sobre
a tirania, mesmo se foram essas trevas que lhe impuseram o dever de as exorcizar
cantando-as.
10 Manuel Alegre, como combatente e como poeta, adivinha que a pseudoepopeia da guer-
ra colonial é a antecâmara de um novo Alcácer-Quibir.
A sua poesia é uma viagem entre os recifes, as ilhas encantadas, os arquipélagos da
fábula poética que nós chamamos Homero, Virgílio, Camões, Dante, Pessoa, Ezra Pound
ou de mais familiar convívio da sua alma errante, Torga e Sophia.
Eduardo Lourenço (prefácio), in Manuel Alegre, 30 anos de poesia, Lisboa, Publicações Dom Quixote,
1997, pp. III, VIII-IX, XV-XVI (adaptado e com supressões).

1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.


A. A pátria, o presente histórico e a liberdade são linhas temáticas da poesia de
Manuel Alegre.
B. Manuel Alegre recupera sobretudo a obra de Camões, Torga e Sophia de Mello
Breyner Andresen.
C. Para Manuel Alegre, o poeta deve cultivar a língua e exprimir sentimentos sobre
o mundo que o rodeia.

188
Manuel Alegre

ANTECIPAR SENTIDOS

Manuel Alegre não releva de nenhum propósito modernista, apenas de uma nova mo-
dernidade, esta de uma familiaridade naturalmente épica com um mundo sempre inun-
dado de sol sob o lusitano fundo de tristeza. A sua viagem […] recebeu sempre do corpo Áudio: “E alegre se fez triste”,
de Manuel Alegre; “Aquela
poético que lhe serviu de terra pátria […] a sua carta de prego de trovador marinheiro em triste e leda madrugada”, de
Luís de Camões
tempo de silêncio e histórica ressaca.
Eduardo Lourenço (prefácio), in Manuel Alegre, 30 anos de poesia, Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1997, pp. VII-VIII (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

FAZ SENTIDO SABER


Leia os poemas.

POEMA A POEMA B

E alegre se fez triste Aquela triste e leda madrugada


Aquela triste e leda madrugada,
Aquela clara madrugada que
cheia toda de mágoa e de piedade,
viu lágrimas correrem no teu rosto
enquanto houver no mundo saudade Manuel Alegre
e alegre se fez triste como se
quero que seja sempre celebrada. Nasceu em Águeda,
chovesse de repente em pleno agosto.
em 1936, e estudou
Direito na Universidade
5 Ela só, quando amena e marchetada
5 Ela só viu meus dedos nos teus dedos de Coimbra.
saía, dando ao mundo claridade, Foi preso pela PIDE,
meu nome no teu nome. E demorados
viu apartar-se de üa outra vontade, desertou do país
viu nossos olhos juntos nos segredos e viveu em Paris
que nunca poderá ver-se apartada.
que em silêncio dissemos separados. e em Argel até 1974.
Tem-se destacado pela
Ela só viu as lágrimas em fio, sua atividade política.
A clara madrugada em que parti.
10 que de uns e outros olhos derivadas Da sua vastíssima obra,
10 Só ela viu teu rosto olhando a estrada destacam-se: Praça da
se acrescentaram em grande e largo rio.
por onde um automóvel se afastava. canção, O canto e as
armas, Coisa amar,
Ela viu as palavras magoadas Com que pena – Vinte
E viu que a pátria estava toda em ti.
que puderam tornar o fogo frio, poemas para Camões
E ouviu dizer-me adeus: essa palavra e Senhora das
e dar descanso às almas condenadas.
que fez tão triste a clara madrugada. tempestades, tendo
sido galardoado com
Luís de Camões, Rimas (texto estabelecido
Manuel Alegre, Poesia - Primeiro volume (1960-90), o Prémio Pessoa.
e prefaciado por Álvaro J. da Costa Pimpão),
Lisboa, Publicações Dom Quixote, p. 141.
Coimbra, Almedina, 1994, p. 81.

1 Refira o papel da madrugada no poema A, explicitando a razão da sua transformação.

2 Interprete o sentido do verso “E viu que a pátria estava toda em ti” (v. 12, poema A).

3 FAZ SENTIDO RELACIONAR Este poema é uma espécie de escrita mimética do soneto ca-
moniano. Releia-o e estabeleça relações de intertextualidade entre os dois poemas.

189
Poetas contemporâneos

FAZ SENTIDO SABER ANTECIPAR SENTIDOS


Este poema é
considerado um poema Não é na linguagem puramente retórica de um “nacionalismo” de seita e de classe que
profético, pois, tendo Manuel Alegre se situa, mas na de um natural patriotismo, como o que de Camões até
sido escrito cerca de
Garrett ou Torga e Sophia não endeusa o que é nosso por ser nosso, mas o que em nós é
duas décadas antes de
1974, parece anunciar comum universalidade e humanidade. Linguagem daqueles a quem “dói um país neste
a futura Revolução de país” que o poeta identificando-se com Ulisses em “Lusíada exilado” consigo leva.
Abril.
Eduardo Lourenço (prefácio), in Manuel Alegre, 30 anos de poesia, Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1997, pp. XV-XVI.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “País de Abril”, Leia o poema.


de Manuel Alegre

País de Abril1
A Ernesto Melo Antunes

São tristes as cidades sob a chuva


e as canções que se atiram contra as grades
– minha pátria vestida de viúva
entre as grades e a chuva das cidades.

5 É triste o cão que ladra no canil


quando é março ou abril e lhe prendem as pernas
é triste a primavera no País de Abril
– minha pátria perfil de mágoas e tabernas.

É triste: uns vestem-se de Abril outros de trapos.


10 Tu ó estrangeiro é só por fora que nos olhas
– minha pátria bordada de farrapos
capa de trapos remendada a verdes folhas.
Vieira da Silva, A poesia está na rua:
25 de Abril de 1974, 1974.
Abril tão triste no País de Abril. Por fora
é tudo verde. (Abril com máscaras de festa).
15 Por dentro – minha pátria a rir como quem chora
(A festa da tristeza é tudo o que lhe resta).

Abril tão triste no País de Abril. Aqui 1 Abril, etimologicamente, do latim aprire, abrir,
a noite. Aqui a dor. Meninos velhos referência ao abrir dos botões das flores
– minha pátria a chorar como quem ri
20 em surdina em silêncio. E de joelhos.

Manuel Alegre, Poesia – Primeiro volume (1960-90),


Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2009, p. 49.

190
Manuel Alegre

1 Caracterize a pátria representada no poema, justificando a pertinência dos versos


iniciados por “minha pátria”.
Resolução/Atividade:
1.1 Analise os efeitos de sentido decorrentes do uso do travessão no início dos referi- Questão de exame explicada:
Funções sintáticas 2
dos versos. Gramática/Atividade:
Valor modal: modalidade
apreciativa; Valor modal:
2 Esclareça o sentido da oposição implícita no verso “É triste: uns vestem-se de Abril modalidade deôntica;
Valor modal: modalidade
outros de trapos” (v. 9), relacionando-a com o título do poema. epistémica; Atos ilocutórios
(atos de fala)
Quiz: Atos ilocutórios
3 Identifique o recurso expressivo presente nos versos ― minha pátria bordada de far- (atos de fala)

rapos / capa de trapos remendada a verdes folhas” (vv. 11-12), explicitando o seu valor.

4 Explicite o sentido dos segmentos textuais “(Abril com máscaras de festa)” (v. 14),
e “(A festa da tristeza é tudo o que lhe resta)” (v. 16), justificando o uso de parênteses.

5 Interprete a mensagem contida nos dois últimos versos.

6 Infira o conceito de poesia patente no poema.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 373, 377, 390, 392, 396 e 401.

1 Identifique a função sintática desempenhada pelos segmentos sublinhados nos ver-


sos seguintes.
a. “São tristes as cidades sob a chuva” (v. 1)

b. “que se atiram contra as grades” (v. 2)

c. “minha pátria perfil de mágoas e tabernas” (v. 8)

d. “Tu ó estrangeiro é só por fora que nos olhas” (v. 10)

2 Divida e classifique as orações que integram o verso “quando é março ou abril e lhe
prendem as pernas” (v. 6).

3 Mencione a modalidade e o valor modal expressos no verso “É triste. Uns vestem-se


de Abril outros de trapos” (v. 9).

4 Refira os atos ilocutórios configurados nos segmentos textuais.


a. “Abril tão triste no país de Abril” (v. 13)

b. “Por fora / é tudo verde” (vv. 13-14)

5 Refira o mecanismo de coesão textual assegurado pelos elementos sublinhados.


a. “(A festa da tristeza é tudo o que lhe resta)” (v. 16)
b. “Aqui a dor. Meninos velhos” (v. 18)

6 Identifique o valor aspetual configurado nas formas verbais do verso 19.

191
Poetas contemporâneos

ANTECIPAR SENTIDOS

O seu [de Manuel Alegre] primeiro livro sagra-o e consagra-o como “poeta da resis-
tência”, desarmado e armado de provocadora impaciência. […] A “poesia como arma”
podia servir de poética a gerações, unidas para além das diferenças de tempo e até de
ideologia, pela recusa de um mundo sem lugar para uma vida digna de ser vivida. Os ecos
dessa poética que era a de uma vida individual ou coletivamente silenciada ouvem-se bem
nos dois primeiros livros de Manuel Alegre. […]
Eduardo Lourenço (prefácio), in Manuel Alegre, 30 anos de poesia,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997, p. IV.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Letra para um hino”, Leia o poema.


de Manuel Alegre
Quiz: Manuel Alegre
Letra para um hino
“Porque mudando-se a vida
Se mudam os gostos dela.”
Camões, Babel e Sião, vv. 84-85

É possível falar sem um nó na garganta


é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

5 É possível andar sem olhar para o chão


é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
se te apetece dizer não grita comigo: não.

É possível viver de outro modo. É Júlio Pomar, 25 de Abril, 1974 (pormenor).


10 Possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.


É possível viver sem fingir que se vive.
15 É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.

Manuel Alegre, Poesia - Primeiro volume (1960-90),


Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2009, p. 180.

1 Analise os efeitos de sentido resultantes da utilização da anáfora.

2 Explicite a dualidade que está na base da construção do poema.

192
Manuel Alegre

3 Interprete o sentido dos versos “É possível andar sem olhar para o chão” (v. 5) e
“Os teus olhos nasceram para olhar os astros” (v. 7), referindo o seu contributo para
a construção do sentido do poema.
3.1 Identifique o recurso expressivo presente nos referidos versos, destacando o seu
valor.

4 Justifique a pertinência do último verso de cada estrofe.

5 Relacione o conteúdo do texto com o título e a citação de versos de Camões, em jeito


de homenagem poética, explicitando a mensagem veiculada no poema.

6 Comprove que este poema ilustra as afirmações de Eduardo Lourenço (“Antecipar


sentidos”, p.192), ao referir que Manuel Alegre é um “poeta da resistência” e a sua poesia

uma “arma”.

7 Infira possíveis sentidos sugeridos pelo título da obra em que se integra o poema:
O canto e as armas.

8 Selecione as opções que completam corretamente as afirmações.


O poema de Manuel Alegre encerra, simultaneamente, um a. de revolta
e b. à ação do homem. Esta dupla intencionalidade é visível no emprego
c. da afirmação “É possível”, e nos complexos verbais presentes no
verso 13, que adquirem um valor d. .

a. b. c. d.

1. elogio 1. um apelo 1. isolado 1. exclamativo


2. grito 2. uma crítica 2. reiterado 2. declarativo
3. desabafo 3. uma denúncia 3. esporádico 3. exortativo

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 373, 390, 396 e 401.

1 Refira o mecanismo de coesão textual configurado no verso “Se tens vontade de


cantar não tenhas medo: canta.” (v. 4), atentando nos elementos sublinhados.

2 Refira a modalidade e o valor modal expressos nos segmentos textuais


a. “Porque mudando-se a vida / Se mudam os gostos dela” (mote)

b. “É possível viver de outro modo” (v. 9)

c. “Não deixes que te domem” (v. 13)

3 Refira os atos ilocutórios configurados nas frases.


a. “É possível viver de pé.” (v. 12)

b. “Não te deixes murchar.” (v. 13)

4 Identifique a função sintática desempenhada pelos elementos sublinhados no verso


“É possível ser homem” (v. 15).

193
Poetas contemporâneos

LEITURA ARTIGO DE OPINIÃO

Leia o texto.

Ovários de aço

N
o dia em que o meu pai regressou da
Guerra Colonial, a minha avó acordou
cedo. […] E estava a meio da esfrega
quando uma vizinha apareceu, numa
5 correria desenfreada, a gritar:
“D. Mariana, D. Mariana, o seu filho voltou da guerra.”
Quando ouviu aquelas palavras, a minha avó não quis fracas, que lhes faltou coragem ou que se acobarda-
saber de mais nada. Deixou para trás a roupa e correu 40 ram. Mas falar daqui, do conforto do nosso sofá com
para casa onde o filho mais novo a esperava acabado de os filhos à distância de um braço ou de um telefone-
10 regressar de Moçambique. O que lhe disse ninguém ma, é capaz de nos dar uma perspetiva um tudo ou
sabe. E o que pensou só podemos adivinhar. Porque nada enviesada da questão. […]
a minha avó Mariana, como muitas avós que naquela As mulheres russas que têm saído à rua nas últi-
época eram só mães, foi forçada a escolher o silêncio. 45 mas semanas têm sido absolutamente incríveis. Ová-
Se em algum momento aquela mulher tão direita rios de aço, diria eu, mesmo correndo o risco de que
15 e com as pernas cravadas de varizes achou que a alguém se ofenda com o termo. E igualmente incrí-
guerra fazia sentido? Não. Se morreu por dentro quan- veis, neste momento, só mesmo as mulheres irania-
do se despediu do filho sem saber se o voltava a ver? nas que encheram as ruas na sua luta pela liberdade.
Com toda a certeza. Mas, mesmo assim, abominando 50 Luta essa que, em muitos casos, lhes tem custado
a guerra e vivendo enojada com o regime, a minha avó a vida. […].
20 não falou. Amaldiçoou para dentro, desejou vezes in- No Irão, por estes dias, as mulheres lutam, quei-
finitas a queda da ditadura que lhe tinha levado o filho, mam hijabs e cortam o cabelo na rua. Estas mulheres
mas nunca teve coragem de sair à rua e protestar. não aceitam mais ser levadas para centros de reedu-
Tinha demasiado presentes na memória as detenções 55 cação, onde, detidas durante horas, têm lições de mo-
de vizinhos e os relatos da crueldade a que foram sub- déstia que são sinónimo de aulas de submissão. São
25 metidos na prisão. Tinha medo pelos outros filhos que mulheres que não aceitam mais entregar-se a uma
continuavam em Portugal e pelo marido outrora fugi- polícia da moralidade que as maltrata, acossa e es-
do da guerra civil espanhola. panca. São mulheres que não aceitam mais respirar
E, tal como a minha avó paterna, também a minha 60 sem liberdade. São mulheres-coragem.
avó materna viu um filho partir para a guerra. Estava E os nossos olhos devem estar nestas mulheres
30 na Guiné o seu rapaz mais novo e tudo o que ela que- que têm, nas suas mãos, a capacidade de mudar
ria era o fim da ideia louca do império e das colónias. o mundo como o conhecemos. Ilya Yablokov dizia
[…] Aos medos comuns a todas as outras mulheres numa entrevista a este jornal que a liderança de Putin
juntava-se o pânico de que as paredes tivessem ouvi- 65 estará em risco quando os caixões começarem a che-
dos e percebessem que o marido, meu avô, na som- gar à Rússia.
35 bra, se juntava a quem tentava derrubar o regime. E eu concordo, sabem porquê? Porque estas mu-
E por isso escolheu calar-se. lheres já mostraram que não vão aceitar de ânimo
É fácil agora, e quase tentador, apontar o dedo ao leve receber nas mãos a bandeira que cobre o caixão
silêncio destas mulheres. Podemos dizer que foram 70 dos filhos.

194
O mundo esteve sempre cheio de mulheres incrí- 80 Há uma música espanhola que diz algures que “la
veis. E parece que agora essas mulheres começam mujer que mueve el mundo con sus manos (…) hace
a perder o medo. Pelos filhos, mas também por elas girar el día a su compás”1. Agora, imaginem quando em
próprias e pela sua liberdade. vez de uma mulher temos milhares, todas a empurrar
75 As mulheres não se tornaram corajosas hoje. Bas- para o lado certo, todas com a certeza de que a única
ta olharmos para a História para descobrir centenas 85 vida que vale a pena é aquela onde somos liberdade.
de exemplos de mulheres que mudaram o mundo. Carmen Garcia, in https://www.publico.pt,
A questão é que, neste momento, a coragem parece consultado em novembro de 2022 (com supressões).
ter rasgado as peles e deixado de lado a contenção.

1 “A mulher que move o mundo com as suas mãos transforma


o dia das suas companheiras”

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.3, selecione a opção correta.
1.1 No início do texto, a autora serve-se da sua experiência pessoal para
A. não deixar cair no esquecimento o sofrimento provocado pela guerra colo-
nial, durante a ditadura.
B. referir a falta de coragem das mulheres, fruto da educação e do contexto
em que viviam.
C. opor o silêncio das suas avós, apesar do seu sofrimento, à ação das mulhe-
res face a situações idênticas, na atualidade.
D. destacar que, numa situação de guerra, grande parte do sofrimento recai
sobre as mulheres que são mães.
1.2 As expressões “ovários de aço” (ll. 45-46) e “mulheres-coragem” (l. 60)
A. acentuam o contraste entre as mulheres russas e as iranianas, perante
a opressão de que são alvo.
B. demonstram que é nos regimes opressores que surgem grandes demons-
trações de coragem.
C. comprovam que, na atualidade, a luta pela liberdade recai essencialmente
sobre as mulheres.
D. permitem inferir que as mulheres russas e iranianas são um exemplo de luta
e de coragem.
1.3 O último parágrafo do texto
A. enfatiza a união e a força das mulheres na sua luta pelo direito à liberdade.
B. apela à necessidade de união entre as mulheres, apesar das inúmeras dife-
renças culturais.
C. confirma a urgência em reconhecer às mulheres igualdade de oportunidades,
em todas as partes do mundo
Teste interativo:
D. contesta que a música possa ser uma aliada na luta das mulheres pela Poetas contemporâneos
liberdade.

195
Poetas contemporâneos

ANTECIPAR SENTIDOS

[J]á nos anos 1990, Ana Luísa Amaral torna-se uma das poetas portuguesas a mais
se centrar nas questões de género e nas opressões daí derivadas. O “eu” da poesia de Ana
Luísa Amaral reivindica permanentemente um espaço fora da esfera doméstica a que está
votada, “um espaço a sério / ou terra de ninguém / que não me chega / o conquistado
à custa / de silêncios, armários / e cebolas perturbantes (AMARAL 1990: 7).
Num registo maternal bastante presente na poesia de Ana Luísa Amaral, o sujeito
feminino deseja para a sua filha uma vida em que a fantasia, o amor e o sonho sejam mais
importantes do que essas tarefas quotidianas.
Maria Leonor C. Figueiredo, Calma é apenas um pouco tarde − Resistência na poesia portuguesa contemporânea
(prefácio de Rosa Maria Martelo), Porto, Deriva Editores, 2015, pp. 81-84 (com supressões).

FAZ SENTIDO SABER EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema.

Testamento
Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos Preparem a minha filha
Ana Luísa Amaral nasceu para a vida
em Lisboa, em 1956, 5 Se eu morrer se eu morrer de avião
e faleceu em 2022. Foi
quero que a minha filha não se esqueça de mim e ficar despegada do meu corpo
professora na Faculdade
de Letras da Universidade que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada 20 e for átomo livre lá no céu
do Porto. A sua obra está e que lhe ofereçam fantasia
editada em vários países. mais que um horário certo Que se lembre de mim
Foi galardoada em Itália
10 ou uma cama bem feita a minha filha
com o Prémio de Poesia
Giuseppe Acerbi, em e mais tarde que diga à sua filha
Espanha, com o Prémio Dêem-lhe amor e ver que eu voei lá no céu
Rainha Sofia de Poesia dentro das coisas e fui contentamento deslumbrado
25
Ibero-Americana, e em
Portugal, com o Grande
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes ao ver na sua casa as contas de somar erradas
Prémio de Poesia da APE em vez de lhe ensinarem contas de somar e as batatas no saco esquecidas
(Associação Portuguesa 15 e a descascar batatas e íntegras
de Editores), entre
outros. Minha senhora Ana Luísa Amaral, Inversos (poesia 1990-2010), Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2010, p. 46.
de quê, A génese do
amor, Entre dois rios
e outras noites, Vozes
e Às vezes o paraíso são
1 Indique os aspetos do quotidiano socialmente valorizados, mas negativamente cono-
algumas das suas obras. tados pelo “eu” lírico, justificando.

2 Explique o sentido das referências ao canto e à fantasia, na segunda estrofe, e ao


amor e ao sonho, na terceira.

3 Refira o recurso expressivo presente no verso “sonhar com sóis azuis e céus brilhan-
tes” (v. 13), explicitando o seu valor.

196
Ana Luísa Amaral

4 Interprete o sentido dos versos “Preparem a minha filha / para a vida” (vv. 16-17),

relacionando-os com os últimos quatro versos do poema.

5 Infira a opinião que o sujeito lírico manifesta sobre a educação da mulher.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 373 e 377.

1 Divida e classifique as orações presentes no segmento textual “Se eu morrer / quero


que a minha filha não se esqueça de mim / que alguém lhe cante mesmo com voz
desafinada” (vv. 5-7).

2 Identifique as funções sintáticas desempenhadas pelos segmentos seguintes.


a. “com voz desafinada” (v. 7)

b. “a minha filha” (v. 22)

c. “que eu voei lá no céu” (v. 24)

ESCRITA i Bloco informativo | p. 355.

1 Redija uma apreciação crítica da pintura de Paula Rego, num texto de 100 a 200 pala-
vras, considerando os seguintes aspetos:
• estrutura tripartida do texto:
– introdução: descrição sucinta da pintura, considerando os vários planos;
– desenvolvimento: opinião pessoal – comentário crítico, atentando na intenção
veiculada, nas cores e nas formas;
– conclusão: fecho do texto e reforço da opinião pessoal, sintetizando aquilo que
a pintura lhe sugere e estabelecendo uma possível articulação com o poema de
Ana Luísa Amaral.
• redação clara e objetiva, respeitando os mecanismos de coerência e coesão textual;
• utilização de vocabulário adequado e diversificado.

Paula Rego, Branca de Neve engole a maçã envenenada, 1995.

197
Poetas contemporâneos

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Áudio: “Técnica vs Leia o poema.


artesanato”,
de Ana Luísa Amaral
Quiz: Ana Luísa Amaral Técnica vs artesanato
Vou falar de uma coisa:
comprei computador, aparelho
de larga inteligência e letra certa.
Fascinaram-me os bips,
5 a linguagem decifrada e tensa, as letras
(quase todas) a caberem.
Pensei: que bom será sem precisar de folha,
os meus poemas na fase inicial
pelo écran.

10 E comecei na escrita: um toque leve,


em intermédio bips, e a palavra
fugindo desabrida1.
Perseverei (que os tempos urgem
e a poesia já não doce folha de linhas,
15 já não tempo parado,
antes segura e galopante técnica).
Maria Lúcia Sandri, Palavras suaves são como o mel, 2012.

Mas faltava-me o risco,


os meus traços por cima das palavras,
a minha mão precária a entender refúgios,
20 os dedos viciados pelo lápis.
Faltava a minha raiva pela folha,
o meu carinho às vezes, embarcações macias
e barulho de remos.

Vou falar de uma coisa:


25 bips só no trabalho, o écran certo
e que viva o papiro, o pergaminho,
as pregas pelo tempo, a raiva toda aos riscos
e a poesia conquistada
1 atrevida
a vício.
Ana Luísa Amaral, Inversos, (poesia 1990-2010), Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 39-40.

1 Comprove que o poema possui um caráter narrativo, atentando nos tempos verbais
que ocorrem nas três estrofes iniciais.

2 Analise os efeitos de sentido decorrentes da utilização dos parênteses no verso 6.

3 Interprete o sentido do segmento “a palavra / fugindo desabrida” (vv. 11-12), identifi-


cando o recurso expressivo nele presente.

4 Justifique o recurso à conjunção “Mas”, no início da terceira estrofe.

198
Ana Luísa Amaral

5 Esclareça o sentido da expressão “a poesia conquistada / a vício” (vv. 28-29), relacio-


nando-o com o verso “os dedos viciados pelo lápis” (v. 20).

6 Explicite as razões que sustentam o desapego do “eu” ao computador, considerando


a terceira estrofe.

7 Justifique o título do texto.

8 Demonstre o caráter circular do poema.

9 Rosa Maria Martelo é de opinião que “A poesia de Ana Luísa Amaral [...] explora uma
sintaxe inovadora e transgressiva, sem deixar de desenvolver também uma temática
facilmente integrável pelo leitor no seu mundo habitual”.
9.1 Comprove a presença de “uma sintaxe inovadora e transgressiva”, atestando a ve-
racidade da afirmação citada.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | p. 373.

1 Para completar os itens 1.1 e 1.2, selecione a opção correta.


1.1 Os elementos textuais destacados em “aparelho / de larga inteligência e letra
certa” (vv. 2-3) desempenham a função sintática de
A. predicativo do complemento direto.
B. complemento direto.
C. modificador do nome apositivo.
D. complemento oblíquo.
1.2 O elemento textual assinalado em “Fascinaram-me os bips” (v. 4) desempenha
a função sintática de
A. complemento direto.
B. complemento indireto.
C. complemento oblíquo.
D. sujeito.

ORALIDADE EXPRESSÃO

1 Visualize um documento vídeo sobre a vida


e a obra de Ana Luísa Amaral. Tome notas
que lhe permitam compreender a sua ati-
tude face à escrita e, considerando a infor-
mação fornecida, faça uma exposição oral,
de 2 a 4 minutos, sintetizando a reflexão
que é feita em torno da sua arte poética. Ana Luísa Amaral passou a infância
em Sintra.
Considere as seguintes observações:
• planifique a sua apresentação contemplando uma introdução, um desenvolvimento Quiz: Funções sintáticas
Link: Vida e obra de Ana Luísa
e uma conclusão; Amaral, Ler Mais Ler Melhor
(09 min 35 s)
• atente na clareza do seu discurso, no tom de voz e na expressão não verbal.

199
Poetas contemporâneos

ANTECIPAR SENTIDOS

A poesia de Ana Luísa Amaral não acompanha modas e, sendo uma poesia de elevada
erudição, tem a capacidade de integrar o pequeno nada do quotidiano e a maior denúncia
da crueldade social. E faz isso incorporando a mais alta tradição poética ocidental e cris-
tã, que transfigura e subverte, com a maior comunicabilidade poética que a aproxima de
amplos públicos.
Isabel Pires de Lima, in https://www.publico.pt/2021/06/05,
consultado em novembro de 2022.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia o poema.

Prece no Mediterrâneo
Em vez de peixes, Senhor,
dai-nos a paz,
um mar que seja de ondas inocentes,
e, chegados à areia,
5 gente que veja com o coração de ver,
vozes que nos aceitem.

E tão dura a viagem


e até a espuma fere e ferve,
e, de tão cega
10 durante a travessia

Fazei, Senhor, com que não haja Anónimo, Milagre dos pães e dos peixes, séc. VI.

mortos desta vez,


que as rochas sejam longe,
que o vento se aquiete
15 e a vossa paz enfim
se multiplique

Mas depois da jangada,


da guerra, do cansaço,
depois dos braços abertos e sonoros,
20 sabia bem, Senhor,
um pão macio,
e um peixe, pode ser,
do mar

que é também nosso.

Ana Luísa Amaral, in “Ágora”, Lisboa, Assírio & Alvim, 2020, pp. 137-138.

200
Ana Luísa Amaral

1 Refira a viagem à qual se alude ao longo do poema.

2 Interprete o sentido das oposições que se estabelecem nas duas primeiras estrofes.

3 Analise o efeito de sentido decorrente do recurso à primeira pessoa do plural nos


versos 2 e 6 e no último verso do poema.

4 Explicite em que consiste a prece referida no título, assinalando os elementos for-


mais que a comprovam.

5 Comprove que se trata de um poema de “denúncia da crueldade social”, como é re-


ferido no texto da rubrica “Antecipar sentidos”.

6 Refira os recursos expressivos que ocorrem nos segmentos indicados, explicitando


o seu valor.
a. “e até a espuma fere e ferve” (v. 8)
b. “Mas depois da jangada, / da guerra, do cansaço” (vv. 17-18)

7 Interprete as manifestações de intertextualidade entre o poema


FAZ SENTIDO RELACIONAR

e o “Sermão de Santo António”, confirmando a transfiguração da “tradição ocidental


e cristã”, que Isabel Pires de Lima refere no texto da rubrica “Antecipar sentidos”.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 360, 366, 373 e 401.

1 Identifique as funções sintáticas desempenhadas pelos segmentos.


a. “Senhor” (v. 1)
b. “dai-nos a paz” (v. 2)

c. “à areia” (v. 4)

d. “vozes que nos aceitem” (v. 6)

2 Refira a classe de palavras em que se integram os elementos sublinhados.


a. “que as rochas sejam longe” (v. 13)

b. “que é também nosso” (v. 24)

3 Identifique os processos fonológicos ocorridos na evolução dos vocábulos.


a. SPUMA ≥ espuma
b. ARENA ≥ areia

4 Nomeie o mecanismo de coesão textual que ocorre no segmento “depois dos braços
abertos e sonoros” (v. 19), atendendo aos elementos sublinhados.

ESCRITA i Bloco informativo | pp. 360, 366, 373 e 401.

1 Escreva um texto de opinião, entre 150 e 200 palavras, sobre a educação feminina na
atualidade e o papel das mulheres na sociedade, considerando as seguintes orientações:
• estrutura tripartida:
– introdução – apresentação da tese e definição da posição a defender;
– desenvolvimento – referência a dois argumentos e dois exemplos ilustrativos;
– conclusão – retoma do tema e reiteração da posição defendida;
• redação clara e objetiva, contemplando a correção ortográfica e sintática e o corre-
to uso dos mecanismos de coerência e coesão textual.

201
CONSOLIDAÇÃO

Miguel Torga Eugénio de Andrade


• Poeta desiludido e inconformado
com o mundo que o rodeia, olha
criticamente a realidade
• Natureza, essencialmente
a paisagem transmontana,
é um elemento primordial • Evocação da infância/figura
e fonte de inspiração do poeta, materna: elemento preponderante
propícia à introspeção • Comunhão com a natureza (rural
• Telurismo: a Terra é a Grande e marítima) – quatro elementos:
Deusa Mãe, à qual o poeta presta fogo, terra, ar, água
culto e pede inspiração, é fonte • Perceção da passagem do tempo,
Temáticas de força, paz, esperança e associada às estações do ano
harmonia; assume uma dimensão • Celebração do amor,
maternal da esperança, da natureza,
• Inconformismo perante a morte, do corpo, do erotismo
que tenta combater através • Crença num deus transcendente
da escrita
• Fugacidade e fragilidade do amor
• Revolta contra a opressão
e as injustiças
• Reflexão sobre implicações
sociais, morais e metafísicas
do individualismo e da liberdade
• Ato criativo como um processo • Criação poética como um trabalho
doloroso que implica labor, de apuramento da linguagem,
esforço, por vezes desgastante; semelhante ao trabalho oficinal
tensão entre inspiração (do artesão)
Arte poética e laboração • Busca constante da depuração
• Poesia associada ao canto da linguagem
• Escrita como um exercício • Mão − surge, por vezes, como
de liberdade símbolo da criação poética
• Cantigas de Amigo (temática –
a Natureza)
• Luís de Camões − Os Lusíadas • Poesia trovadoresca (a Natureza,
Tradição (a condição humana) o bucolismo)
literária
• Fernando Pessoa/Alberto Caeiro • Fernando Pessoa
• Mitos da Antiguidade Clássica
(Anteu e Orfeu)
• Irregularidade métrica e estrófica,
recurso ao verso branco
• Ritmo e musicalidade excecionais/
• Tom confessionalista
aproximação entre a poesia e a
Linguagem, • Expressividade da metáfora
música
estilo e • Irregularidade métrica e estrófica,
• Recurso à metáfora e à imagem
estrutura recurso ao verso branco
• Linguagem do quotidiano, investida
de novos significados, fortemente
polissémica e simbólica
• Perceção sensorial

202
Manuel Alegre Ana Luísa Amaral

• Poeta da resistência, um ser


empenhado socialmente
• Defesa e luta pela liberdade
• Pátria, presente histórico,
revisitação da História • Visão feminista da educação

• Personificação da pátria (triste, • Questões de género e as


desamparada, oprimida, opressões daí resultantes
Temáticas em sofrimento) • Abordagem invulgar do quotidiano
• Consciência profunda do tempo • Solidariedade e defesa
trágico que Portugal viveu dos desfavorecidos
• Oposição entre o presente • Amor, sonho, fantasia
(opressão, servidão) e o
futuro (liberdade, igualdade de
oportunidades) – possibilidade de
construção de um mundo melhor

• Criação como paixão – misto


• Poesia como arma ao serviço
de prazer e de angústia
Arte poética da denúncia e da liberdade −
• Ligação indispensável entre
o poeta “engagé”
o artista e a sua arte

• Integração da tradição
poética ocidental e cristã
• Camões (epopeia e poesia lírica)
vs. transfiguração e subversão
Tradição • Cantigas de Amigo dessa tradição
literária • Miguel Torga • Luís de Camões − Os Lusíadas
• Sophia de Mello Breyner Andresen • Fernando Pessoa
• Petrarca

• Domínio das potencialidades


expressivas da língua
• Musicalidade (poesia próxima • Vocabulário próximo de usos
do canto) mais quotidianos
• Recurso à anáfora, • Sintaxe inovadora e transgressiva
Linguagem, à personificação • Recurso à aliteração
estilo e e à aliteração e à enumeração
estrutura
• Perceção sensorial • Utilização, por vezes, do soneto
• Recurso, por vezes, ao soneto • Irregularidade métrica e estrófica
e ao verso decassílabo e recurso ao verso branco (em
predomínio)
• Registo maternal

203
VERIFICAÇÃO
1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.4, selecione a opção correta.
1.1 Miguel Torga
Jogo: #DesafioLiterário:
Poetas contemporâneos A. revela, na sua obra poética, a esperança e a fé no ser humano, como acon-
tece no poema “Orfeu rebelde”.
B. escreve poemas que ilustram o telurismo, e defende que a criação literária
tem uma dimensão interventiva.
C. demonstra o seu apego à terra natal em poemas em que confessa a sua
descrença no ser humano.
D. mostra, na sua obra poética, um grande humanismo e consciência social,
e presta culto à “Grande Deusa Mãe” que é a Terra.
1.2 Eugénio de Andrade
A. trata temas como a melancolia, o erotismo, o apego à natureza, a crença
num deus divino e transcendente.
B. escreve poemas caracterizados pela irregularidade métrica e estrófica, em
que a personificação é a figura de eleição do poeta.
C. valoriza o corpo, os sentidos e o convívio com a natureza, em poemas for-
temente simbólicos que revelam uma grande proximidade com a música.
D. demonstra um forte apego à natureza, daí que seja esta a temática em que
os valores simbólicos se revelam mais intensos e pertinentes.
1.3 Manuel Alegre
A. recupera frequentemente a poesia lírica e épica de Camões e as Cantigas
de Amigo e defende a poesia como uma arma contra o conformismo e em
defesa da liberdade.
B. retoma características da poesia lírica tradicional, pois considera ser uma
forma de transmitir o seu apego à pátria.
C. expõe, na sua obra, de caráter marcadamente reflexivo, a opressão e as más
condições de vida dos portugueses durante o período do Estado Novo.
D. é considerado o “poeta trovador” e o “poeta de intervenção”, embora a sua
obra não revele relações óbvias com a sua biografia.
1.4 Ana Luísa Amaral
A. escreve sobre o quotidiano, sobre o qual tem uma visão pouco usual, sobre-
tudo em poemas cuja forma estrófica é o soneto.
B. defende, numa sintaxe invulgar e inovadora, os direitos de cidadania e da
igualdade de género, daí que a sua poesia tenha um tom emancipatório
e feminista.
C. desvaloriza temáticas como o amor e o sonho, já que escreve sobretudo
sobre os direitos da mulher na sociedade.
D. defende uma poesia acessível a todos, daí que as potencialidades linguísti-
cas e poéticas da língua não sejam sua preocupação.

204
AVALIAÇÃO
GRUPO I

Apresente as suas respostas de forma estruturada. Áudio: “Sobre um mote de


Camões”, de Manuel Alegre
PARTE A

Leia o poema.

Sobre um mote de Camões


Se me desta terra for
eu vos levarei amor.
Nem amor deixo na terra
que deixando levarei.

5 Deixo a dor de te deixar


na terra onde amor não vive
na que levar levarei
amor onde só dor tive.

Nem amor pode ser livre


10 se não há na terra amor.
Deixo a dor de não levar
a dor de onde amor não vive.

E levo a terra que deixo


onde deixo a dor que tive.
15 Na que levar levarei
este amor que é livre livre.

Manuel Alegre, Poesia ‒ Primeiro volume (1960-90),


Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2009, pp. 63-64.

1 Explique o sentido das oposições “deixar”/“levar” e “amor”/“dor”.

2 Enumere, justificadamente, os recursos que estão ao serviço da musicalidade e do


ritmo melódico do poema.

3 Refira os valores literários do passado que são recuperados no texto.

205
AVALIAÇÃO
PARTE B

Áudio: “Quem ora soubesse”, Leia o poema.


de Luís de Camões
a este moto:

Quem ora soubesse


onde o amor nace,
que o semeasse!

VOLTAS

5 D’amor e seus danos


me fiz lavrador;
semeava amor
e colhia enganos;
não vi, em meus anos,
10 homem que apanhasse
o que semeasse.

Vi terra florida
de lindos abrolhos,
lindos para os olhos,
15 duros para a vida;
mas a rês perdida
que tal erva pace
em forte hora nace.

Luís de Camões, Rimas (texto estabelecido, revisto e prefaciado


por Álvaro J. da Costa Pimpão), Coimbra, Almedina, 1994, p. 88.

4 Demonstre a relação existente entre o mote e as voltas, ao nível do conteúdo.

5 Selecione as opções que completam corretamente a afirmação.


A composição é constituída por mote e três voltas de versos a. e apresenta
rima b. , sendo que se trata de uma rima c. .

a. b. c.

1. de redondilha menor 1. interpolada e cruzada 1. toante


2. de redondilha maior 2. interpolada e emparelhada 2. toante no mote
3. decassílabos 3. emparelhada 3. consoante

206
PARTE C

6 Manuel Alegre afirma: “Se não tivesse vivido o que vivi, não teria escrito o que escrevi. Animação: Escrever
Vida e escrita são inseparáveis.” um texto expositivo
Escreva uma breve exposição em que refira dois elementos que ilustrem o conteúdo
da afirmação proferida aquando do agradecimento do Prémio “Vida e obra”, em 2019,
atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores.

GRUPO II

Leia o texto. Se necessário, consulte a nota.

A lata de Bob Dylan


Ainda não acabei de ler o novo livro de
Bob Dylan, porque não quero que acabe.
Chama-se The philosophy of modern song e
a primeira coisa a dizer é que o título está
5 bem posto e corresponde ao conteúdo.
Digo isto, porque algumas críticas têm
treslido o título para “The history of popular
music”. Daí que se proteste que está este,
que não presta, e não aquele, que é um gé-
10 nio indiscutível.
Ora Dylan não é historiador nem é crí-
tico. Poderia ter sido. Não lhe falta talento
ou inteligência para isso. O que Dylan é,
estranhamente, é alguém que até escreveu
15 uma canção ou duas que outras pessoas
têm gostado de cantar.
Como compositor de canções – e le-
trista também, recorde-se –, Dylan sempre
prestou muita atenção aos outros compo-
20 sitores e letristas, havendo uns de quem
gosta mais e outros de quem gosta menos.
É estranho, mas é assim.
Daí que Bob Dylan até nem seja a pior
pessoa, até pela idade e pela experiência, escolha as canções de que mais gostou, jun-
25 para escrever sobre a filosofia da canção 30 te o que disse e não disse acerca delas e faça
moderna. Afinal, teve um dos melhores um livro com isso.
programas de rádio de sempre e faz sentido Foi o que ele fez. O Telegraph publicou o
que, de entre todas as canções que passou, que ele escreveu sobre Volare, de Domenico

207
AVALIAÇÃO

Modugno. Para além do prazer de ler, no comovem, apesar de não percebermos uma
35 Telegraph, um texto assinado “by Bob Dylan”, 45 palavra que está a ser cantada?
Dylan fala do efeito emocional de ouvir Se até Bob Dylan com a idade que tem e
canções em línguas que não conhecemos e, a obra que deixou (e o Nobel, já agora) leva
a certa altura, diz: “Listen to fado music and na cabeça por escrever o que pensa e sente,
the sadness drips from it even if you don’t speak quando ouve as canções de que gostou ou
40 a lick of Portuguese.”1 50 ainda gosta de ouvir, então é bom sinal.
1 “Ouve fado e
as suas réstias
Será preciso dizer que, para perceber Miguel Esteves Cardoso,
de tristeza, mesmo o que ele está a dizer, não é preciso pen- in https://www.publico.pt,
que não fales nada sarmos no fado, mas nas canções que nos consultado em novembro de 2022.
de português.”

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.8, selecione a opção correta.
1.1 Nos três parágrafos iniciais, o autor
A. critica o facto de Bob Dylan não ter sido historiador nem crítico.
B. lamenta que Dylan tenha escrito poucas canções do agrado do público.
C. confessa que está a dar-lhe muito prazer ler o livro de Bob Dylan.
D. compreende os protestos quanto à seleção incluída na obra publicada.

1.2 Com a citação em inglês (ll. 38-40), Miguel Esteves Cardoso


A. revela a importância dos meios de comunicação, como o Telegraph, na divul-
gação de talentos musicais.
B. defende a divulgação do fado português no mundo, mesmo em regiões onde
não se fala a língua portuguesa.
C. destaca a necessidade de valorizar todos os tipos de música, ideia que é
partilhada por Bob Dylan.
D. demonstra a opinião de Dylan: as canções provocam emoções, ainda que
estejam escritas numa língua desconhecida.

1.3 A utilização dos parenteses em “(e o Nobel, já agora)” (l. 47) permite
A. fornecer uma informação considerada acessória e desnecessária.
B. destacar a pertinência desta referência, neste contexto.
C. ironizar com o facto de se tratar de um cantor que recebeu o Nobel.
D. defender a valorização da música através da atribuição de prémios de mé-
rito.

1.4 Prevalece no texto um tom acentuadamente


A. crítico e irónico.
B. exclusivamente crítico.
C. informativo.
D. exortativo.

208
1.5 Os “que” presentes no primeiro parágrafo são
A. ambos conjunções subordinativas completivas.
Gramática/Atividade:
B. ambos pronomes relativos. Complemento direto;
Complemento oblíquo;
C. uma conjunção subordinativa completiva e um pronome relativo, respetiva- Complemento indireto;
mente. Modificador do grupo verbal;
Coesão e coerência textual
D. um pronome relativo e uma conjunção subordinativa completiva, respetiva- Animação: Escrever
mente. um texto de opinião

1.6 A expressão sublinhada em “escreveu uma canção ou duas que outras pessoas
têm gostado de cantar” (ll. 14-16) desempenha a função sintática de
A. complemento direto.
B. complemento oblíquo.
C. complemento indireto.
D. modificador do grupo verbal.

1.7 A oração “que passou” (l. 28) classifica-se como subordinada


A. adverbial causal.
B. substantiva relativa.
C. adjetiva relativa restritiva.
D. adjetiva relativa explicativa.

1.8 No segmento textual “mas nas canções que nos comovem, apesar de não perce-
bermos uma palavra que está a ser cantada” (ll. 43-45), os elementos sublinhados
configuram a coesão textual
A. gramatical frásica.
B. gramatical interfrásica.
C. lexical por substituição.
D. gramatical referencial.

GRUPO III

1 Escreva um texto de opinião, com 150 a 200 palavras, sobre o papel da música
enquanto fator de união entre pessoas de diferentes países, línguas e culturas.
O seu texto deve apresentar dois argumentos e um exemplo ilustrativo para cada
um deles.

209
210
6.1
Memorial
do convento
José Saramago
EDUCAÇÃO LITERÁRIA ORALIDADE

Memorial do convento Exposição


(leitura integral) Debate
• Antecipar sentidos Documentário
• Informação Apreciação crítica
• Construir sentidos
GRAMÁTICA
LEITURA • Orações subordinadas
Texto expositivo • Modalidade e valor modal
Artigo de opinião • Mecanismos de coesão
textual
ESCRITA • Processos fonológicos
Texto expositivo
• Funções sintáticas
Texto de opinião
• Valor aspetual
• Etimologia
• Modos de relato
do discurso

Wassily Kandinsky, Caprichoso, 1930.


José Saramago

ORALIDADE COMPREENSÃO

Vídeo: Nós acreditamos Visione atentamente o registo fílmico.


que eles são o nosso futuro.
E vocês?, Amnistia
Internacional (05 min 53 s)
1 Para completar os itens 1.1 a 1.4, sele-
cione a opção correta.

1.1 No início do registo fílmico, os inter-


Amnistia Internacional promove
venientes assumem que, encontro nacional de jovens.

A. desde cedo, se preocuparam


com questões humanitárias.
B. quando eram crianças, não lhes foram concedidos os direitos humanitários
básicos.
C. desde tenra idade, se envolveram em projetos humanitários.
D. quando eram crianças, não tinham muita noção dos problemas humanitários.

1.2 Os jovens que se pronunciam no vídeo dão-nos conta


A. da experiência positiva que tiveram em participar na organização da Amnistia
Internacional.
B. dos traumas de que padecem todos os que se envolvem na organização da
Amnistia Internacional.
C. da carência de voluntários para participarem nos projetos da Amnistia Inter-
nacional.
D. das dificuldades que a organização da Amnistia Internacional enfrenta todos
os dias por falta de apoio.

1.3 Um dos aspetos que os jovens que estiveram durante quatros dias na Amnistia
Internacional mais valorizaram foi
A. a oportunidade de poderem afirmar-se internacionalmente, enquanto adoles-
centes conscientes e ativistas.
B. a tomada de consciência de que, nesse projeto, estavam envolvidos adoles-
centes de várias zonas do país.
C. o enriquecimento individual que adquiriram através do confronto de ideias
com adolescentes de outras regiões.
D. a tomada de consciência de que, em Portugal, todos os adolescentes viviam
à margem dos problemas globais.

1.4 Esta experiência acabou por fazer com que muitos jovens
A. sentissem que, por serem uma gota no oceano, não podiam fazer nada para
minimizar os problemas humanitários.
B. tomassem consciência dos problemas da humanidade, mas apenas durante
o período em que decorreu o projeto.
C. confessassem que não estavam preocupados com problemas humanitários
que não lhes diziam respeito.
D. compreendessem a importância de agir para tentar solucionar alguns dos pro-
blemas humanitários.

212
ORALIDADE EXPRESSÃO

1 Leia a seguinte afirmação.


Desde que publicou Manual de pintura e caligrafia, Saramago abriu
uma vasta reflexão, em registo ficcional, sobre questões cruciais do
Homem, da sociedade e da literatura do seu tempo. Por exemplo: a
questão da secular luta do Homem contra a opressão, vivida ao longo
de gerações e cruzada com os movimentos da História.

Carlos Reis, História crítica da literatura portuguesa,


do neo-realismo ao post-modernismo, vol. IX, Lisboa,
Editorial Verbo, 2005, pp. 307-308.

Oswaldo Guayasamin,
O grito I, 1993.
1.1 Organize um debate em torno da importância da liberdade, seja ela de que natu-
reza for, respeitando o número de intervenientes e respetivas funções, conforme
a tabela abaixo, e procurando explorar, entre outras, questões como as que a
seguir se apresentam.
• Em pleno século XXI, terá o ser humano finalmente alcançado a plena liberdade
de direitos?
• Será que a liberdade de cada um está obrigatoriamente condicionada pela do
outro?
• É legítima toda e qualquer forma de liberdade de expressão?
• Devem ser fixados limites para a liberdade de pensamento?
• A liberdade de cada indivíduo deve estar sujeita às leis e à cultura de um deter-
minado país?
• A liberdade religiosa pode constituir-se como uma ameaça para as sociedades?
• Sentir-se-á a mulher, hoje em dia, um ser realmente livre?

Intervenientes Funções

‒ Iniciar o debate, introduzindo, de forma sintética, o tema.


‒ Dar a palavra e verificar a distribuição equitativa dos tempos
Moderador
de intervenção.
‒ Introduzir novas questões para não tornar o debate repetitivo.

‒ Registar os argumentos utilizados por cada interveniente.


Secretários ‒ Apresentar as conclusões do debate, sintetizando
os argumentos, no final.

Oradores ‒ Defender os seus pontos de vista.


‒ dois (ou mais), ‒ Apresentar os seus argumentos e/ou exemplos.
defendendo
‒ Respeitar a autoridade do moderador.
posições
antagónicas ‒ Observar regras de cortesia durante as suas intervenções.

1.2 Faça uma exposição oral, entre 2 a 3 minutos, sintetizando as principais conclu-
sões do debate.

213
José Saramago

ORALIDADE COMPREENSÃO

Link: Saramago 100 anos, Visione atentamente os registos fílmicos.


Fundação José Saramago
(até aos 42 s);
José Saramago, Prémio 1 Tome nota da informação que lhe permita dar res-
Nobel da Literatura de 1998,
Fundação José Saramago posta aos itens que se seguem.
(a partir dos 08 min 14 s)
Vídeo: Ana Saramago Matos:
Fundação Saramago mantém a. Data de nascimento:
viva a memória do Nobel da
Literatura na Azinhaga, b. Naturalidade:
Mais Ribatejo (01 min 40 s)
c. Profissão: Saramago recebeu o Prémio Nobel
da Literatura em 1998.
d. Eventos para comemorar o centenário do nasci-
mento de Saramago:

1. 4.
2. 5.
3. 6.

e. Objetivo da delegação da Azinhaga:


f. Opinião de José Santa-Bárbara sobre Memorial do convento:

INFORMAÇÃO

O título, as linhas de ação e a estrutura da obra


TEXTO A
Ao tomar um tema histórico para o seu romance, José Saramago quis fazer simbolica-
mente justiça aos “humilhados e ofendidos” da História universal oficial, aos que a fazem
a suor e sangue, mas cujos nomes não constam dos documentos dos seus arquivos nem das
páginas dos seus manuais. Vimos a sua intenção de os imortalizar, ao apresentar alguns
5 nomes, como os construtores “reais” do convento, e, não lhe bastando isso, a enumeração
pelas iniciais cobrindo todo o alfabeto.
Maria Joaquina Nobre Júlio, Memorial do convento de José Saramago: subsídios
para uma leitura, Lisboa, Replicação, 1999, p. 90 (com supressões).

TEXTO B
O Memorial, sendo-o embora de um convento, é-o, sobretudo, de uma época da qual se
esqueceu a outra face composta por gente anónima cuja importância o narrador tenta per-
petuar pela listagem de nomes de A a Z. As vidas, essas, na impossibilidade de falar de todas,
“por tantas serem”, são transferidas para um representante individual. Com efeito, apesar
5 de serem narrados outros amores e outros dramas, nenhum o é com tanto relevo como
o protagonizado por Baltasar Sete-Sóis que, ao lado de Blimunda, cujo nome circularmente
completa o seu, Sete-Luas, aglomera vidas diversas: os trabalhos passados em guerras que
nem sempre são as próprias; o longo labutar na construção de uma basílica onde nem
o próprio Deus salva os homens; as privações travestidas de fome; a perseguição e morte
10 numa fogueira inquisitorial, em nome desse mesmo Deus ateada, porque com ele se dispu-
tou o lugar na terra e no céu visitado por sonhos que, por vezes, são passarolas.
Ana Paula Arnaut, Memorial do convento. História, ficção e ideologia,
Coimbra, Fora do Texto, 1996, pp. 71-72.

214
Memorial do convento

TEXTO C
Temos, em relação ao Memorial, um relato que entrelaça vários fios narrativos, aparentemen-
te independentes: o voto do rei e a consequente edificação de Mafra; o sonho várias vezes mile- Animação: José Saramago,
Memorial do convento
nar, mítico até, de fazer o homem voar e a construção da passarola; a história de amor de Baltasar
e Blimunda. Penso que a narrativa está centrada no amor de Blimunda e Sete-Sóis, presente
5 desde o auto de fé em que a mãe de Blimunda é sacrificada, até à clausura do romance por outro
auto de fé, e pelo reencontro dos dois amantes; bem como pela participação dos dois quer na
edificação de Mafra quer na construção da passarola, que assegura a unidade da obra.

Beatriz Berrini, Ler Saramago: o romance, Lisboa, Editorial Caminho, 1998, p. 64.

1 Justifique o título da obra, referindo as intenções que ele anuncia.

1.1 Com base nos textos anteriores, mencione uma das estratégias do narrador para
atingir os seus objetivos.

2 Preencha, no seu caderno, um esquema idêntico ao que se apresenta sobre o tema


central e os principais intervenientes de cada uma das linhas de ação da obra, tendo em
conta os textos lidos e a informação presente na contracapa do romance.

Primeira linha de ação Segunda linha de ação

a. b.

Quarta linha de ação Terceira linha de ação

d. c.

215
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Visão global da obra


Complete os espaços em branco, de forma a elaborar uma síntese de cada capítulo
de Memorial do convento.

Cap. Síntese da ação Ano

I Promessa de a. de construir um convento em Mafra.

II Gravidez da rainha D. Maria Ana Josefa.

III Procissão da b. após os excessos do Entrudo.

IV Regresso de Baltasar da guerra da c. , em d. .


1711
Auto de fé e encontro de e. (26 anos), Blimunda (19 anos)
V
e Bartolomeu (26 anos).

VI Convite do padre a Baltasar para o ajudar a construir f. .

VII Nascimento e batizado da infanta Maria Bárbara.

Vida em comum de Blimunda e Baltasar e revelação do g. da


personagem feminina ao soldado.
VIII
Nascimento do infante D. Pedro.
Escolha do local para a construção do convento.
1712
Mudança de Baltasar e Blimunda para h. , onde esta inspeciona
os materiais para construir a passarola e recebe a alcunha de i. .
IX
Partida de Bartolomeu para j. .
Ida de Sete-Sóis e Sete-Luas à tourada.

Partida de Baltasar e de Blimunda para Mafra, local onde ela conhece a família do
ex-soldado. Lá, Baltasar trabalha na agricultura, mas procura informar-se sobre
X o andamento do convento. 1713
Gravidez da rainha: infante D. José.

Regresso de Bartolomeu da Holanda e sua ida a Mafra, onde revela o segredo do


éter a Sete-Sóis e a Sete-Luas.
XI 1715
Construção do convento.
Distribuição de tarefas para a construção da passarola: Blimunda vai k. .

Ida do monarca a Mafra para a l. da primeira pedra da basílica.


XII 1717
Construção paralela da passarola e do convento.

XIII Procissão do Corpo de Deus, em Lisboa. 1719

216
Memorial do convento

Lição de cravo de Maria Bárbara.


Revelação do segredo da passarola a m. pelo padre Bartolomeu.
XIV
Início das dúvidas do padre.
Composição do sermão do Corpo de Deus. 1720
Doença de Blimunda após a recolha das vontades durante a epidemia que asso-
XV lou Lisboa.
Contributo da n. de Scarlatti para a cura de Blimunda.
Fuga de Bartolomeu, de Blimunda e de Baltasar na passarola, que sobrevoa
Mafra e leva os seus habitantes a acreditarem que se trata do o. .
Queda da passarola e fuga do padre Bartolomeu, depois de ter tentado incen-
XVI
diá-la.
Regresso de Blimunda e de Baltasar a Mafra depois de terem escondido
a passarola. 1724
Trabalho de Baltasar nas obras do convento.
Descrição das casas de acomodação dos trabalhadores na ilha da
XVII p. .
Ida de Scarlatti a Mafra para comunicar ao casal que o padre Bartolomeu
q. em Toledo.
Gastos do monarca na construção do convento.
XVIII 1725
Caracterização e apresentação dos r. do convento.

Transporte da pedra de s. – homenagem ao esforço humano.


XIX 1726
Morte de t. .
Ida de Blimunda e de Baltasar ao Monte Junto para averiguar o estado da pas-
XX 1727
sarola.

Resolução do rei de aumentar o convento de modo a albergar u. a


frades.
XXI 1728
Decisão de fazer a sagração da basílica no dia 22 de outubro de v. .
Opressão e tirania sobre os trabalhadores do convento.

XXII Cortejo real: casamento de w. e de D. José. 1729


Chegada a Mafra de um grupo de noviços.
Partida de Baltasar para Monte Junto.
XXIII
Novo x. da passarola com Sete-Sóis.
Referência aos 40 mil homens que dormem na ilha da Madeira. 1730
Festa da y. da basílica.
XXIV Procura de Baltasar, que não regressara após a ida a Monte Junto, por Blimunda.
Assassínio de um frade por Blimunda, como reação à tentativa de violação.

Buscas contínuas de Baltasar, levadas a cabo por Blimunda.


XXV 1739
Reencontro num z. , em que ele era um dos supliciados.

217
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

Memorial do convento dá as honras de abertura da narrativa a D. João V, corresponden-


do às expectativas de um leitor convencional de uma ficção de pendor historiográfico, como
Quiz: José Saramago – o título sugere. A maneira de designar a personagem – nome, forma de tratamento honorí-
Memorial do convento 1
fica, ordem na sucessão monárquica: “D. João, quinto do nome na tabela real” – é a primei-
ra estratégia para construir uma personagem de contornos históricos e para a inscrever
Fixação de texto num universo de referência dos poderosos, tradicionais protagonistas da História.
José Saramago, Memorial
do convento, 63.a ed., Júlia Cristina Carapinha dos Santos Figueiredo, A figuração das personagens em Memorial do convento:
Porto, Porto Editora, 2022. hipótese de leitura, Universidade de Coimbra, 2014, p. 27 (adaptado).

FAZ SENTIDO SABER

Nascido a 22 de outubro EDUCAÇÃO LITERÁRIA


de 1689, D. João V
foi aclamado rei a 1 Leia os seguintes excertos textuais. Se necessário, consulte as notas.
de janeiro de 1707, tendo
morrido a 30 de julho
de 1750. Casou em 1708 A promessa
com D. Maria Ana
de Áustria. Desse
casamento teve seis Excerto 1 | Cap. I (pp. 9-10, 11-13)
filhos, entre os quais,
D. Maria Bárbara, que D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria
casaria com Fernando IV, Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portugue-
rei de Espanha,
sa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a
e D. José, herdeiro
do trono. Teve mais rainha, provavelmente, tem a madre seca1, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas
filhos de várias ligações 5 delatoras e que só entre íntimos se confia. Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro
extramatrimoniais. porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudiadas
No seu reinado, em plena
tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino
guerra da Sucessão
de Espanha, as condições bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça. Além disso, quem se exte-
da economia portuguesa nua a implorar ao céu um filho não é o rei, mas a rainha, e também por duas razões. A pri-
no século XVIII 10 meira razão é que um rei, e ainda mais se de Portugal for, não pede o que unicamente está
melhoraram bastante,
sobretudo, dada a
em seu poder dar, a segunda razão porque sendo a mulher, naturalmente, vaso de receber,
abundância do ouro. há de ser naturalmente suplicante, tanto em novenas2 organizadas como em orações oca-
Culturalmente, o reinado sionais. Mas nem a persistência do rei, que, salvo dificultação canónica3 ou impedimento
de D. João V reveste-se
fisiológico, duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal, nem
de aspetos de extremo
interesse, quer no plano
15 a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces, se sacrifica a uma imobilidade
das belas-artes quer total depois de retirar-se de si e da cama o esposo, para que se não perturbem em seu gera-
no da história da cultura tivo acomodamento os líquidos comuns, escassos os seus por falta de estímulo e tempo,
portuguesa, embora, para
e cristianíssima retenção moral, pródigos os do soberano, como se espera de um homem que
isso, se tenha servido
da importação maciça ainda não fez vinte e dois anos, nem isto nem aquilo fizeram inchar até hoje a barriga de
de artistas estrangeiros. 20 D. Maria Ana. Mas Deus é grande.
Dicionário de História
de Portugal, dir. Joel
Serrão, 3.º vol., Porto,
Figueirinhas, 1992,
pp. 399-401 (adaptado
e com supressões). 1 útero infértil; 2 devoção religiosa que dura nove dias; 3 relativo aos cânones ou dogmas da Igreja; 4 fidalgo
ou fidalga ao serviço de membros da realeza; 5 enfeite na parte superior de blusas ou camisas

218
Memorial do convento

[…] Por enquanto, ainda el-rei está a preparar-se para


a noite. Despiram-no os camaristas4, vestiram-no com o
trajo da função e do estilo, passadas as roupas de mão
em mão tão reverentemente como relíquias de santas
25 que tivessem trespassado donzelas, e isto se passa na
presença de outros criados e pajens, este que abre o ga-
vetão aquele que afasta a cortina, um que levanta a luz,
outro que lhe modera o brilho, dois que não se movem,
dois que imitam estes, mais uns tantos que não se sabe
30 o que fazem nem por que estão. Enfim, de tanto se esfor-
çarem todos ficou preparado el-rei, um dos fidalgos re-
tifica a prega final, outro ajusta o cabeção5 bordado, já
não tarda um minuto que D. João V se encaminhe ao
quarto da rainha. O cântaro está à espera da fonte.
35 Mas vem agora entrando D. Nuno da Cunha, que é o
bispo inquisidor, e traz consigo um franciscano velho.
[…] Retiram-se a uma parte D. João V e o inquisidor, e este diz, Aquele que além está é frei
António de S. José, a quem falando-lhe eu sobre a tristeza de vossa majestade por lhe não dar
filhos a rainha nossa senhora, pedi que encomendasse vossa majestade a Deus para que lhe
40 desse sucessão, e ele me respondeu que vossa majestade terá filhos se quiser, e então pergun-
tei-lhe que queria ele significar com tão obscuras palavras, porquanto é sabido que filhos
quer vossa majestade ter, e ele respondeu-me, palavras enfim muito claras, que se vossa
majestade prometesse levantar um convento na vila de Mafra, Deus lhe daria sucessão,
e tendo declarado isto, calou-se D. Nuno e fez um aceno ao arrábido. […]
45 Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho,
levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade
e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos
na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que
estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser
50 posto à prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei António, se a potência do rei, ou, final-
mente, a fertilidade dificultosa da rainha.

Excerto 2 | Cap. I (pp. 13, 14-16)


[E]l-rei já se anunciou, e vem de espírito aceso, estimulado pela conjunção mística do
dever carnal e da promessa que fez a Deus por intermédio e bons ofícios de frei António de
S. José. […]
55 D. João V conduz D. Maria Ana ao leito, leva-a pela mão como no baile o cavaleiro à dama
[…].
Já se deitaram. Esta é a cama que veio da Holanda quando a rainha veio da Áustria, man-
dada fazer de propósito pelo rei, a cama, a quem custou setenta e cinco mil cruzados, que
em Portugal não há artífices de tanto primor, e, se os houvesse, sem dúvida ganhariam
60 menos. […]
D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria, que mesmo tendo aquecido debaixo
do cobertor logo arrefece ao ar gélido do quarto, e el-rei, que já cumpriu o seu dever, e tudo
espera do convencimento e criativo esforço com que o cumpriu, beija-lha como a rainha
e futura mãe, se não presumiu demasiado frei António de S. José. […]
65 Ainda que insistentemente tranquilizada pelo confessor, tem D. Maria Ana, nestas oca-
siões, grandes escrúpulos de alma. Retirados el-rei e os camaristas, deitadas já as damas que

219
José Saramago

a servem e lhe protegem o


sono, sempre cuida a rainha
que seria sua obrigação levan-
70 tar-se para as últimas orações,
mas, tendo de guardar o cho-
co6 por conselho dos médicos,
contenta-se com murmurá-las
infinitamente, passando cada
75 vez mais devagar as contas do
rosário, até que adormece no
meio duma ave-maria cheia de
graça, ao menos com essa foi
tudo tão fácil 7, bendito seja o fruto do vosso ventre, e é no do seu ansiado próprio que está
80 pensando, ao menos um filho, Senhor, ao menos um filho. Deste involuntário orgulho nunca
fez confissão, por ser distante e involuntário, tanto que se fosse chamada a juízo juraria, com
verdade, que sempre se dirigira à Virgem e ao ventre que ela teve. São meandros do incons-
ciente real, como aqueles outros sonhos que sempre D. Maria Ana tem, vá lá explicá-los,
quando el-rei vem ao seu quarto, que é ver-se atravessando o Terreiro do Paço para o lado dos
85 açougues8, levantando a saia à frente e patinhando numa lama aguada e pegajosa que cheira
ao que cheiram os homens quando descarregam, enquanto o infante D. Francisco, seu cunha-
do, cujo antigo quarto agora ocupa, alguma assombração lhe ficando, dança em redor dela,
empoleirado em andas, como uma cegonha negra.

6 repouso especial para ajudar na gravidez; 7 referência ao facto de, segundo a Igreja Católica, Maria, apesar de
virgem, ter concebido o filho, Jesus, por intermédio de Deus; 8 talho

1 Atente no primeiro parágrafo do excerto 1.


1.1 Explicite o problema que assola a corte real, referindo eventuais consequências.

1.2 Identifique, socorrendo-se de elementos textuais, o responsável, segundo o nar-


rador, por esta situação e as razões que apresenta para fundamentar a sua visão.

2 Esclareça o significado do primeiro parágrafo do excerto 2, tendo em conta a pro-


messa feita por D. João V no fim do excerto 1.

3 Baseando-se nos dois excertos, trace o retrato físico e psicológico de D. João V e de


D. Maria Ana Josefa.
3.1 Caracterize a relação existente entre ambos.

4 Identifique o recurso expressivo presente em “O cântaro está à espera da fonte” (ex-


certo 1, l. 34), comentando a sua expressividade.

5 Identifique a crítica subjacente às palavras do narrador: “que em Portugal não há artífi-


ces de tanto primor, e, se os houvesse, sem dúvida ganhariam menos” (excerto 2, ll. 58-60).
5.1 Estabeleça uma relação entre esta visão de Portugal e aque-
FAZ SENTIDO RELACIONAR

la que transparece em Os Maias, de Eça de Queirós, apresentando exemplos.

220
Memorial do convento

INFORMAÇÃO

Linguagem, estilo e estrutura: pontuação


Não é fácil a um principiante iniciar-se na leitura da escrita saramaguiana. A primeira difi-
culdade que lhe surge é a da pontuação em relação à fala das personagens, os diálogos. Estes são,
na escrita tradicional, marcados por dois pontos e travessão (: –) a indicarem o início da fala de
cada interveniente no diálogo. Em Saramago, nomeadamente em Memorial do Convento, não é
5 assim. A sua preocupação de aproximar a linguagem narrativa escrita da oral, fá-lo abolir a pon-
tuação tradicional da escrita, e substituí-la por simples sinais de pausas, as vírgulas, pois as
pessoas, ao falarem, fazem pausas, ou para respirar, ou para pensar no que hão de dizer. A marca
de que se trata, no texto de Saramago, de uma nova personagem e de uma nova fala, é a maiús-
cula, enquanto o termo da fala anterior é indicado pela vírgula. […]
10 Os finais de frase ou de parágrafo são marcados pelo tradicional ponto (.).
Onde pode haver também alguma dificuldade é quando o narrador se intromete no dis-
curso das personagens, quase sempre para o terminar com um comentário seu conclusivo,
muitas vezes irónico.

Maria Joaquina Nobre Júlio, Memorial do convento de José Saramago: subsídios para uma leitura,
Lisboa, Replicação, 1999, pp. 111-112 (adaptado).

1 De acordo com a informação recolhida no texto, reescreva o excerto abaixo, seguindo


a norma padrão do português atual.
“Retiram-se a uma parte D. João V e o inquisidor, e este diz, Aquele que além está é
frei António de S. José, a quem falando-lhe eu sobre a tristeza de vossa majestade
por lhe não dar filhos a rainha nossa senhora, pedi que encomendasse vossa majes-
tade a Deus para que lhe desse sucessão, e ele me respondeu que vossa majestade
terá filhos se quiser, e então perguntei-lhe que queria ele significar com tão obscuras
palavras […]” (ll. 37-41)

CONSTRUIR SENTIDOS

1 Leia o capítulo II de Memorial do convento.


Síntese: Guia de estudo:
José Saramago, Memorial
1.1 Associe os elementos da coluna A aos da coluna B de forma a completar o sentido do convento
de cada afirmação.

Coluna A Coluna B

a. O capítulo II entrelaça-se
1. acaba por indiciar que a rainha já saberia que estava
com o capítulo I, porque
grávida antes da promessa do rei, o que invalidava,
b. Ao longo do capítulo, e para assim, o poder miraculoso dos franciscanos.
atestar o poder miraculoso
2. se faz referência à questão dos milagres, numa clara
dos franciscanos,
alusão à potencial gravidez da rainha por graça divina.
c. Ao longo de todo o capítulo II,
3. o narrador utiliza recorrentemente um tom jocoso
d. O facto de se insinuar que e irónico.
possa ter sido o estudante
4. são apresentados exemplos vários, como o de
o responsável pelo roubo no
frei Miguel da Anunciação ou o do convento
convento de São Francisco
de São Francisco de Xabregas.
de Xabregas

221
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

A descrição de procissões, que ocupa páginas e páginas de texto (como a enumeração


de conventos, confrarias e irmandades), é ocasião de forte crítica à religião e à sua pre-
ponderância na vida social de então.

Maria Joaquina Nobre Júlio, Memorial do convento de José Saramago: subsídios para uma leitura,
Lisboa, Replicação, 1999, p. 34.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia os seguintes excertos textuais. Se necessário, consulte as notas.

A Quaresma

Excerto 1 | Cap. III (pp. 29-30)


No geral do ano há quem morra por muito ter comido durante a vida toda, razão por que
se repetem os acidentes apopléticos1 […]. Mas não falta, por isso mesmo falecendo mais fa-
FAZ SENTIDO SABER
cilmente, quem morra por ter comido pouco durante toda a vida […]. Mas esta cidade, mais
A Quaresma é o tempo
litúrgico que antecede
que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de escasso para o outro […].
a Páscoa cristã, logo 5 Porém, a Quaresma, como o sol, quando nasce, é para todos.
a seguir ao Carnaval/ Correu o Entrudo essas ruas, quem pôde empanturrou-se de galinha e de carneiro, de
Entrudo e tem como
sonhos e de filhós, deu umbigadas pelas esquinas quem não perde vaza autorizada, puseram-
objetivo preparar
a celebração da morte -se rabos surriados2 em lombos fugidiços, esguichou-se água à cara com seringas de clisteres,
e ressurreição de Jesus. sovaram-se incautos com réstias de cebolas, bebeu-se vinho até ao arroto e ao vómito, parti-
A duração de 40 dias 10 ram-se panelas, tocaram-se gaitas, e se mais gente não se espojou, por travessas, praças e
inspira-se nos 40 anos
becos, de barriga para o ar, é porque a cidade é imunda, alcatifada de excrementos, de lixo, de
que o povo de Israel viveu
no deserto, a caminho cães lazarentos e gatos vadios,
da Terra Prometida, e lama mesmo quando não cho-
e nos 40 dias que Jesus ve. Agora é tempo de pagar os
teria passado no deserto,
antes de iniciar a sua vida
15 cometidos excessos, mortificar
pública. Na Idade Média, a alma para que o corpo finja
a semana da Quaresma arrepender-se, ele rebelde, ele
era chamada a “semana
insurreto, este corpo parco e
dolorosa”, porque
a Paixão de Cristo era porco da pocilga que é Lisboa.
dramatizada pelo povo, 20 Vai sair a procissão de peni-
pondo em destaque tência. Castigámos a carne pelo
os aspetos do sofrimento
jejum, maceremo-la agora pelo
e da compaixão.
Os cronistas do século açoite. Comendo pouco purifi-
XVII, mencionam cam-se os humores, sofrendo
a existência deste tipo 25 alguma coisa escovam-se as cos-
de cortejos processionais
na Quarta-feira de Cinzas.
turas da alma.
Baseado em
http://www.paroquias.org;
https://agencia.ecclesia.pt;
https://repositorio.uac.pt. 1 provocados por uma hemorragia
cerebral; 2 apupados

222
Memorial do convento

Excerto 2 | Cap. III (pp. 30-31)


Passa a procissão entre filas de povo, e quando passa rojam-se pelo chão homens e mu- 3 conjunto de tiras ou
lheres, arranham a cara uns, arrepelam-se outros, dão-se bofetões todos, e o bispo vai fazen- correias usadas para
do sinaizinhos da cruz para este lado e para aquele, enquanto um acólito balouça flagelação
30 o incensório. Lisboa cheira mal, cheira a podridão, o incenso dá um sentido à fetidez, o mal
é dos corpos, que a alma, essa, é perfumada.
Nas janelas só há mulheres, é esse o costume. Os penitentes vão de grilhões enrolados às
pernas, ou suportam sobre os ombros grossas barras de ferro, passando por cima delas os
braços como crucificados, ou desferem para as costas chicotadas com as disciplinas3 feitas
35 de cordões em cujas pontas estão presas bolas de cera dura, armadas de cacos de vidro,
e estes que assim se flagelam é que são o melhor da festa porque exibem verdadeiro sangue
que lhes corre da lombeira, e clamam estrepitosamente, tanto pelos motivos que a dor lhes
dá como de óbvio prazer, que não compreenderíamos se não soubéssemos que alguns têm os
seus amores à janela e vão na procissão menos por causa da salvação da alma do que por
40 passados ou prometidos gostos do corpo.

Excerto 3 | Cap. III (pp. 32-33)


Assim maltratadas as carnes, alimentadas de magro, parece que se haveriam de recolher
as insatisfações até à libertação pascal e que as solicitações da natureza poderiam esperar
que se limpassem as sombras do rosto da Santa Madre Igreja, agora que se aproximam Paixão
e Morte. Mas talvez que a riqueza fosfórica do peixe atice o sangue, talvez que o costume de
45 deixar que as mulheres corram as igrejas sozinhas na quaresma, contra o uso do resto do ano,
que é tê-las em casa presas, salvo se são populares com porta para a rua ou nesta vivendo, tão
presas aquelas que se diz saírem, se são de nobre extração, para ir à igreja somente, e apenas
três vezes na vida, a ser batizada, a ser casada, a ser sepultada, para o resto lá está a capela da
casa, talvez que o dito costume mostre, afinal, quanto é insuportável a quaresma, que todo
50 o tempo quaresmal é tempo de morte antecipada, aviso que devemos aproveitar, e então,
cuidando os homens, ou fingindo cuidar, que as mulheres não fazem mais que as devoções
a que disseram ir, é a mulher livre uma vez no ano, e se não vai sozinha por não o consentir
a decência pública, quem a acompanha leva iguais desejos e igual necessidade de satisfazê-
-los, por isso a mulher, entre duas igrejas, foi a encontrar-se com um homem, qual seja,
55 e a criada que a guarda troca uma cumplicidade por outra, e ambas, quando se reencontram
diante do próximo altar, sabem que a quaresma não existe e o mundo está felizmente louco
desde que nasceu.

ESCRITA i Bloco informativo | p. 353.

1 Baseando-se na leitura dos três excertos, nas notas e na informação contida na rubri-
ca “Faz sentido saber”, escreva um texto expositivo em que dê conta da visão crítica
do narrador presente neste capítulo.
O seu texto deve incluir:
• uma introdução: referência de forma genérica aos aspetos alvo de crítica;
• um desenvolvimento, no qual apresente:
– a visão do narrador sobre Lisboa, as condições sociais e a vivência religiosa;
– exemplos que corroborem as afirmações; Animação: Escrever
um texto expositivo
• uma conclusão: retoma e comprovação da visão crítica do narrador.

223
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

[…] Baltasar representa a existência popular, ingénua, vagabunda mas amorosa, solidária,
trabalhadora, adaptadora instintiva a novas situações […] revelando simbolicamente em
todas as profissões que exerce ao longo da obra o povo trabalhador, reprodutor da base
material da sociedade, mas também criador se lhe forem concedidas possibilidades para tal.

Miguel Real, Narração, Maravilhoso trágico e sagrado em Memorial do convento de José Saramago,
Lisboa, Editorial Caminho, 1995, p. 54.

FAZ SENTIDO SABER EDUCAÇÃO LITERÁRIA


A guerra da Sucessão
Espanhola ocorreu entre Leia os excertos que se seguem. Se necessário, consulte as notas.
1702 e 1714, depois de
Carlos II de Espanha ter
morrido sem nenhum
Baltasar
herdeiro direto ao
trono. No entanto, por
testamento, foi declarado Excerto 1 | Cap. IV (pp. 37, 38, 39 e 40)
que lhe sucederia o neto
de Luís XIV de França, Este que por desafrontada aparência, sacudir da espada e desparelhadas vestes, ainda que
o que abriria descalço, parece soldado, é Baltasar Mateus, o Sete-Sóis. Foi mandado embora do exército por
a possibilidade de
já não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalha-
união entre esta nação
e Espanha. Algumas da por uma bala em frente de Jerez de los Caballeros, na grande entrada de onze mil homens
monarquias europeias, 5 que fizemos em outubro do ano passado e que se terminou com perda de duzentos nossos e
como a inglesa, debandada dos vivos, acossados pelos cavalos que os espanhóis fizeram sair de Badajoz. […]
sentindo-se ameaçadas
Por ser pouco o que pudera guardar do soldo, pedia esmola em Évora para juntar as moe-
com esta situação,
declararam-se contra das que teria de pagar ao ferreiro e ao seleiro se queria ter o gancho de ferro que lhe havia de
esta união e apoiaram fazer as vezes da mão. Assim passou o inverno […]. Saiu Sete-Sóis de Évora […].
a subida ao trono de 10 Veio andando devagar. Não tem ninguém à sua espera em Lisboa, e em Mafra, donde partiu
Leopoldo I, imperador da
Áustria, que era próximo
anos atrás para assentar praça na infantaria de sua majestade, se pai e mãe se lembram dele,
de Carlos II. Por decisão julgam-no vivo porque não têm notícias de que esteja morto, ou morto porque as não têm de
de D. Pedro II, pai que seja vivo. […] Baltasar Sete-Sóis leva os ferros no alforge1 porque há momentos, horas in-
de D. João V, Portugal
teiras, em que sente a mão como se ainda a tivesse na ponta do braço e não quer roubar a si
acabou por participar
também nesta guerra,
15 próprio a felicidade de se achar inteiro e completo como inteiros e completos se hão de sentar
depois de ter sido Carlos e Filipe em seus tronos, afinal haverá para os dois, quando a guerra acabar. […]
estabelecida uma aliança Passado Pegões, à entrada dos grandes pinheirais onde começa a terra de areia, Baltasar, aju-
anglo-luso-alemã.
dando-se com os dentes, ata ao coto o espigão, que fará, urgindo a necessidade, as vezes de adaga2,
Baseado em
em tempo que esta foi proibida por ser arma facilmente mortal. […] Matará adiante um homem,
https://www.infopedia.pt.
20 de dois que o quiseram roubar, mesmo tendo-lhes ele gritado que não levava dinheiros […].

Excerto 2 | Cap. IV (pp. 43 e 44)


Lisboa ali estava […].
Com pouco dinheiro no bolsilho, umas só moedas de cobre que soavam bem menos que os
ferros do alforge, desembarcado numa cidade que mal conhecia, tinha Baltasar de resolver que
1 espécie de bolsa passos daria a seguir, se a Mafra onde não poderia a sua única mão pegar numa enxada que requer
grande dividida em dois 25 duas, se ao paço onde talvez lhe dessem uma esmola por conta do sangue perdido. Alguém lhe
compartimentos; 2 espécie
de punhal comprido e de tinha dito isto em Évora, mas também lhe foram dizendo que era necessário pedir muito e por
lâmina larga; 3 naco muito tempo, com muito empenho de padrinhos, e apesar disso muitas vezes se apagava a voz e

224
Memorial do convento

acabava a vida antes que se visse a cor ao dinheiro. Na falta, aí estavam as ir-
mandades para a esmola e as portarias dos conventos que proviam ao caldo e
30 ao tassalho3 do pão.

1 Localize a ação deste excerto em termos históricos, tendo em


conta a rubrica “Faz sentido saber” (p. 224).

2 Trace o retrato físico e psicológico de Baltasar, explicando de que


forma, através da personagem, se espelha o sofrimento e a opres-
são das classes desfavorecidas.

3 Centre a sua atenção na figura do narrador, atendendo aos textos da rubrica “Infor-
mação” que se seguem.
3.1 Comprove como, neste excerto, o narrador se mostra presente no texto ficcional
e narra os factos como se estivesse a presenciá-los.
3.2 Apresente uma explicação para a adoção desta posição.
3.3 Justifique a alteração da terceira pessoa do singular para a primeira do plural.
3.4 Transcreva do excerto 2 um exemplo de discurso indireto.

4 Demonstre como, neste excerto, o tempo da narrativa não é linear (consulte a rubrica
“Informação”, p. 226).

INFORMAÇÃO

Linguagem, estilo e estrutura: reprodução do discurso


no discurso
TEXTO A
Em Saramago o narrador está sempre presente no texto ficcional. Tal não acontece
somente por causa do emprego da primeira pessoa, nas frequentíssimas intervenções no
presente da escrita […]. Por vezes é um eu que insensivelmente nos remete ao próprio autor.
Outras, esse eu é substituído por um nós, e na sua se adensam muitas vozes. O nós será então
5 o narrador mais o leitor, ou mais esta e aquela personagem. Ora se situa no passado da nar-
rativa ora no presente da escrita. […]

Beatriz Berrini, Ler Saramago: o romance, Lisboa, Editorial Caminho, 1998, pp. 56-57 (com supressões).

TEXTO B
Sucede então que [insistentemente nos romances de José Saramago] um continuum frásico
entre dois pontos finais finge falas de duas ou mais personagens, o diálogo interior de uma
delas, a interseção da voz do narrador, o movimento de pergunta sem ponto de interrogação;
tudo apenas marcado por vírgulas, maiúsculas e pela gestualidade enunciativa. Um tal jogo de
5 pontuação é, além disso mesmo, índice de que uma só frase pode ser o cruzamento de vários
enunciadores; índice de polifonia da enunciação, que, além disso, marca as unidades maiores do
texto. A voz narrativa pode então fazer-se de múltiplos registos discursivos […].

Carlos Reis, História crítica da literatura portuguesa, do neo-realismo ao post-modernismo,


vol. IX, Lisboa, Editorial Verbo, 2005, p. 333 (com supressões).

225
José Saramago

INFORMAÇÃO

O tempo histórico e o tempo da narrativa


TEXTO A
Na sua omnisciência, o narrador conhece o futuro e, assim, permite-se revelar proletica-
mente as grandes linhas por que a História se movimenta e o final global a que estas conduzem.

Miguel Real, Narração, maravilhoso, trágico e sagrado em “Memorial do convento”


de José Saramago, Lisboa, Editorial Caminho, 1995, p. 23
TEXTO B
Em Memorial do convento conjugam-se dois tempos à volta dos quais a ação se cumpre:
o tempo que se evoca e o tempo da produção do próprio discurso romanesco. São, por isso,
constantes os anacronismos do narrador quando, a propósito de situações que está a relatar
e que se inserem no tempo histórico do século XVIII, recorre a fenómenos do mundo moder-
5 no, o contexto em que ocorre a sua escrita.

Baseado em Helena Kaufman, “A metaficção historiográfica de José Saramago”, Lisboa, Colóquio/Letras,


n.º 120, abril-junho de 1991, pp. 127-128, e Teresa Azinheira e Conceição Coelho, Uma leitura
de Memorial do convento de José Saramago, Lisboa, Bertrand Editora, 2.ª ed., 1995, p. 49.

ORALIDADE COMPREENSÃO

Vídeo: A Inquisição, Museu Visione atentamente o registo fílmico.


de Lisboa (08 min 09 s)
Quiz: José Saramago –
Memorial do convento 2 1 Para completar os itens 1.1 a 1.4, selecione
a opção correta.
1.1 O tribunal do Santo Ofício foi criado
Cerimónia de auto de fé.
A. pelo papa Gregório IX, há 200 anos.
B. em 1233, para proteger os cátaros.
C. na Época Medieval e pretendia terminar com várias heresias.

1.2 No reinado de D. Manuel I,


A. todos os judeus foram expulsos de Portugal.
B. os judeus foram coagidos a converterem-se ao Cristianismo.
C. os judeus implementaram os autos de fé, em Lisboa.

1.3 Os tribunais da Inquisição


A. destinavam-se a julgar delitos praticados por judeus e por mulheres.
B. recorriam a métodos pouco convencionais para decretarem as acusações.
C. julgavam todos os casos mediante provas concretas contra os acusados.

1.4 Os autos de fé eram cerimónias


A. populares que despertavam na população sentimentos antagónicos.
B. do foro privado, destinadas a provocarem o medo e a excitação a quem assistia.
C. que se realizavam sempre na Igreja de S. Domingos, por serem os dominica-
nos os seus adeptos mais fervorosos.

226
Memorial do convento

ANTECIPAR SENTIDOS

Se no Memorial do convento é a religião católica que é visada, isso deve-se ao facto


de ser a religião única e oficial do país, com uma preponderância absoluta sobre as cons-
ciências (e os corpos) das pessoas, e devido ao conluio entre a Igreja e a corte […]; lem-
bremo-nos do Santo Ofício e dos seus autos de fé, de uma crueldade extrema e
verdadeiros divertimentos para o povo. E, enquanto, por um lado, se mantinha esta polí-
tica religiosa de aliança promíscua entre os dois poderes, o povo vivia na maior das mi-
sérias e na ignorância mais extrema.

Maria Joaquina Nobre Júlio, Memorial do convento de José Saramago: subsídios para uma leitura,
Lisboa, Replicação, 1999, p. 132 (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA
1 prática sexual; 2 doutrina
de Luís de Molina (1535-
Leia os excertos seguintes. Se necessário, consulte as notas.
-1600) que tentava conciliar
a eficácia da graça com
Baltasar e Blimunda – o encontro e a união o livre-arbítrio; 3 miudezas
sem valor; 4 fértil; 5 injúria;
6 dizer coisas à toa;

Excerto 1 | Cap. V (pp. 52, 54, 55, 56) 7 designação injuriosa que
se dava aos muçulmanos
Porém, hoje é dia de alegria geral, porventura a palavra será imprópria, porque o gosto vem e judeus que viviam em
Portugal; 8 aro ou triângulo
de mais fundo, talvez da alma, olhar esta cidade saindo de suas casas, despejando-se pelas ruas
de ferro que assenta sobre
e praças, descendo dos altos, juntando-se no Rossio para ver justiçar a judeus e cristãos-novos, três pés e sobre o qual se
a hereges e feiticeiros, fora aqueles casos menos correntemente qualificáveis, como os de so- coloca a panela ao lume
5 domia1, molinismo2, reptizar mulheres e solicitá-las, e outras miuçalhas3
passíveis de degredo ou fogueira. São cento e quatro as pessoas que hoje
saem, as mais delas vindas do Brasil, úbere4 terreno para diamantes e impie-
dades, sendo cinquenta e um os homens e cinquenta e três as mulheres. […]
E estando já passados quase dois anos que se queimaram pessoas em Lisboa,
10 está o Rossio cheio de povo, duas vezes em festa por ser domingo e haver
auto de fé, nunca se chegará a saber de que mais gostam os moradores,
se disto, se das touradas, mesmo quando só estas se usarem. […]
Grita o povinho furiosos impropérios5 aos condenados, guincham as
mulheres debruçadas dos peitoris, alanzoam6 os frades, a procissão é uma
15 serpente enorme que não cabe direita no Rossio […], aquele é Domingos
Afonso Lagareiro, natural e morador que foi em Portel, que fingia visões
para ser tido por santo, e fazia curas usando de bênçãos, palavras e cruzes,
e outras semelhantes superstições, imagine-se, como se tivesse sido ele o
primeiro, e aquele é o padre António Teixeira de Sousa, da ilha de S. Jorge,
20 por culpas de solicitar mulheres, maneira canónica de dizer que as apalpa-
va e fornicava, […] e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de
cristã-nova, que tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal
que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era
efeito demoníaco, que sei que posso ser santa como os santos o são, ou
25 ainda melhor, pois não alcanço diferença entre mim e eles, mas repreende-
ram-me de que isso é presunção insuportável e orgulho monstruoso,

227
José Saramago

desafio a Deus, aqui vou blasfema, herética, temerária, amordaçada para que não me ouçam
as temeridades, as heresias e as blasfémias, condenada a ser açoitada em público e a oito anos
de degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem co-
30 migo vai nesta procissão, não ouvi que se falasse da minha filha, é seu nome Blimunda, onde
estará, onde estás Blimunda, se não foste presa depois de mim, aqui hás de vir saber da tua
mãe, […] ai, ali está, Blimunda, Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não pode
falar, tem de fingir que me não conhece ou me despreza, mãe feiticeira e marrana7 ainda que
apenas um quarto, já me viu, e ao lado dela está o padre Bartolomeu Lourenço, não fales
35 Blimunda, olha só, olha com estes teus olhos que tudo são capazes de ver, e aquele homem
quem será, tão alto, que está perto de Blimunda e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, don-
de vem, que vai ser deles, poder meu, pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso
cortado, adeus Blimunda que não te verei mais, e Blimunda disse ao padre, Ali vai minha mãe,
e depois, voltando-se para o homem alto que lhe estava perto, perguntou, Que nome é seu, e
40 o homem disse, naturalmente, assim reconhecendo o direito de esta mulher lhe fazer per-
guntas, Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis.

Excerto 2 | Cap. V (pp. 57, 58-60)


Porém, agora, em sua casa, choram os olhos de Blimunda como duas fontes de água […].
Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que
ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se vi-
45 ram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou com o pensamen-
to de dentro, e às vezes tornam-se negros noturnos ou brancos brilhantes como lascado
carvão de pedra. Veio a esta casa não porque lhe dissessem que viesse, mas Blimunda per-
guntara-lhe que nome tinha e ele respondera, não era necessária melhor razão. Terminado
o auto de fé, varridos os restos, Blimunda retirou-se, o padre foi com ela, e quando Blimunda
50 chegou a casa deixou a porta aberta para que Baltasar entrasse. Ele entrou e sentou-se,
o padre fechou a porta e acendeu uma candeia à última luz de uma frincha […].
Blimunda levantou-se do mocho, acendeu o lume na lareira, pôs so-
bre a trempe8 uma panela de sopas, e quando ela ferveu deitou uma
parte para duas tigelas largas que serviu aos dois homens, fez tudo isto
55 sem falar, não tornara a abrir a boca depois que perguntou, há quantas

horas, Que nome é o seu, e apesar de o padre ter acabado primeiro de


comer, esperou que Baltasar terminasse para se servir da colher dele, era
como se calada estivesse respondendo a outra pergunta, Aceitas para a
tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o
60 que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que

se perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda já tinha dito que


sim antes de perguntada, Então declaro-vos casados. O padre Bartolo-
meu Lourenço esperou que Blimunda acabasse de comer da panela as
sopas que sobejavam, deitou-lhe a bênção, com ela cobrindo a pessoa, a
65 comida e a colher, o regaço, o lume na lareira, a candeia, a esteira no

chão, o punho cortado de Baltasar. Depois saiu.


Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez
Baltasar se levantou para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia,
e uma vez Blimunda espevitou o morrão da candeia que estava comendo
70 a luz e então, sendo tanta a claridade, pôde Sete-Sóis dizer, Por que foi que

perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe


o quis saber e queria que eu o soubesse, Como sabes, se com ela não

228
Memorial do convento

pudeste falar, Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze
9 benzeu-se
como fizeste, vieste e não perguntaste porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui,
75 Hei de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será
sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me
convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me
levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei,
Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizes-
80 te, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.
Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda res-
pondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue
sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda
persignou-se9 e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. […]
85 Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de
olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse,
Nunca te olharei por dentro.

1 Atente no primeiro excerto.


1.1 Explique de que forma a opressão da Igreja se fazia sentir sobre o povo.
1.2 Demonstre de que forma o povo, face aos autos de fé, apresenta um caráter
sanguinário e ignorante, associando essas características à prolepse aí eviden-
ciada (consulte a rubrica “Informação”, p. 226).
1.3 Identifique, comentando o seu valor semântico, o recurso expressivo presente em
“imagine-se, como se tivesse sido ele o primeiro” (ll. 18-19).
1.4 Demonstre como o narrador assume uma outra voz ao apresentar a figura de
Sebastiana de Jesus.

2 Considere, agora, os dois excertos.


2.1 Trace o retrato físico e psicológico de Blimunda.
2.2 Explicite o papel de Sebastiana de Jesus no relacionamento entre Baltasar e
Blimunda.
2.3 Identifique, explicando a sua funcionalidade, os símbolos que consagram a união
de Baltasar e de Blimunda.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 360, 378, 390 e 401.

1 Atente no segmento “nunca se chegará a saber de que mais gostam os moradores,


se disto, se das touradas” (ll. 11-12).
1.1 Classifique a oração “de que mais gostam os moradores”.
1.2 Identifique a modalidade e o valor modal expressos na frase citada.

2 Considere o enunciado “Porém, agora, em sua casa, choram os olhos de Blimunda” (l. 42).
2.1 Classifique o mecanismo de coesão textual assegurado pelo vocábulo “Porém”.
2.2 Identifique os processos fonológicos ocorridos na evolução de OCULU- para “olho”.
2.3 Indique a função sintática desempenhada pelo segmento “os olhos de Blimunda”.

229
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

No romance, o ato de voar aparece como uma conquista do progresso e da ciência,


como prelúdio do que mais tarde se chamará “aviação”. O ato de voar sintetiza, assim, na
economia da narrativa do Memorial do convento, o testemunho mais forte e mais eviden-
te da crença do narrador na vitória da razão sobre a crença religiosa e, consequentemen-
te, no triunfo de um futuro libertado sobre um passado considerado supersticioso
e alienante.
FAZ SENTIDO SABER
Miguel Real, Narração, maravilhoso, trágico e sagrado em “Memorial do convento”
Bartolomeu de Gusmão de José Saramago, Lisboa, Editorial Caminho, 1995, p. 65.
nasceu em S. Paulo, no
Brasil, onde se ordenou
padre. Desde muito cedo
se interessou pelo estudo
da Física, tendo concebido EDUCAÇÃO LITERÁRIA
uma máquina de elevação
de água a 100 metros de
altura. Em 1708, veio para Leia o excerto que se segue. Se necessário, consulte a nota.
Portugal, a fim de fazer
o curso de Cânones da A passarola
Universidade de Coimbra.
Em 1709 dirigiu uma
petição a D. João V,
anunciando que tinha
Excerto 1 | Cap. VI (pp. 63, 65, 66-67, 71-72)
descoberto “um Atravessava o Terreiro do Paço o padre Bartolomeu Lourenço, […] e quando João Elvas1 […]
instrumento para
se andar pelo ar da
viu aproximar-se o padre, disse […], Aquele que ali vem é o padre Bartolomeu Lourenço,
mesma sorte que pela a quem chamam o Voador […].
terra e pelo mar”. O rei Agora me disse aquele meu amigo João Elvas que tendes apelido de Voador, padre, por que
concedeu-lhe privilégio 5 foi que vos deram tal nome, perguntou Baltasar. […] Porque eu voei, e disse Baltasar, duvidoso,
para o seu instrumento
por alvará de 19 de abril Com perdão da confiança, só os pássaros voam, e os anjos, e os homens quando sonham […],
de 1709. Fez várias Pois eu faz dois anos que voei, primeiro fiz um balão que ardeu, depois construí outro que
experiências com balões subiu até ao teto de uma sala do paço, enfim outro que saiu por uma janela da Casa da Índia
de ar aquecido, algumas
e ninguém tornou a ver, Mas voou em pessoa, ou só voaram os balões, Voaram os balões, foi
delas na presença de
10 o mesmo que ter voado eu, Voar balão não é voar homem, O homem primeiro tropeça, depois
D. João V e da corte.
Em 1713, partiu para a anda, depois corre, um dia voará, respondeu Bartolomeu Lourenço […].
Holanda onde pretendia Tenho sido a risada da corte e dos poetas […], se não fosse a proteção de el-rei não sei o que
desenvolver as suas
experiências, tendo
seria de mim, mas el-rei acreditou na minha máquina e tem consentido que, na quinta do duque
regressado em 1716. de Aveiro, a S. Sebastião da Pedreira, eu faça os meus experimentos, enfim já me deixam respi-
Em 1720, foi nomeado 15 rar um pouco os maldizentes, […] Padre Bartolomeu Lourenço, eu destas coisas não entendo,
por D. João V fidalgo-
fui homem do campo, soldado deixei de ser, e não creio que alguém possa voar sem lhe terem
-capelão da casa real.
Pouco antes de morrer, nascido asas, quem o contrário disser, entende tanto disso como de lagares de azeite. Esse gan-
converteu-se ao judaísmo cho que tens no braço não inventaste tu, foi preciso que alguém tivesse a necessidade e a ideia,
e, em 1724, fugiu para que sem aquela esta não ocorre, juntasse o couro e o ferro, e também estes navios que vês no
Espanha, evitando
20 rio, houve um tempo em que não tiveram velas, […] e, assim como o homem, bicho da terra, se
as perseguições da
Inquisição de que era alvo. faz marinheiro por necessidade, por necessidade se fará voador […], Então foi por querer voar
Faleceu num hospital que conheceu a mãe de Blimunda, por ser de artes subtis, Ouvi dizer que ela tinha visões de ver
de Toledo, Espanha, pessoas voando com asas de pano, […] havia tal verosimilhança no que me contavam, que dis-
em 1724.
cretamente a fui visitar um dia, e depois ganhei-lhe amizade. […].
In http://cvc.
25 Queres tu vir ajudar-me, perguntou. Baltasar deu um passo atrás, estupefacto, Eu não sei
instituto-camoes.pt/
ciencia/p2.html (com nada, sou um homem do campo, mais do que isso só me ensinaram a matar, e assim como me
supressões). acho, sem esta mão, Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas

230
que um gancho faz melhor que a mão completa, um gancho
não sente dores se tiver de segurar um arame ou um ferro, nem
30 se corta, nem se queima, e eu te digo que maneta é Deus, e fez
o universo.
Baltasar recuou assustado, persignou-se rapidamente, […]
Que está a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se es-
creveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito,
35 só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua
direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala
nunca da mão esquerda de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à
esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é maneta.
Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mão esquerda.
40 Sete-Sóis ouvira com atenção […], e, levantando um pouco os braços, disse, Se Deus é ma-
neta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão de voar.

1 antigo soldado que deu guarida a Baltasar, num telheiro, na primeira noite
em que este chegou a Lisboa (ver cap. IV)

1 Refira o sentimento de Bartolomeu Lourenço quanto à alcunha que lhe foi atribuída.

2 Indique, comentando a sua expressividade, os recursos expressivos presentes em


“O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará” (ll. 10-11).

3 Explique como conseguiu o padre convencer Baltasar a ajudá-lo no seu projeto.

4 Justifique a intertextualidade com Os Lusíadas presente em


FAZ SENTIDO RELACIONAR

“e, assim como o homem, bicho da terra, se faz marinheiro por necessidade, por
necessidade se fará voador” (ll. 20-21). Consulte abaixo a rubrica “Informação”.

INFORMAÇÃO

Intertextualidade
[Em Memorial do convento, assiste-se à] exploração da intertextualidade e da multiplici-
dade de discursos referentes quer à História quer à ficção, já que encontramos referências
a diversos outros escritores, sendo as camonianas e pessoanas utilizadas com o intuito
de produzir um discurso antiépico, que desmascare a fragilidade do presente, evocando
5 coisas já escritas e já lidas.

Teresa Azinheira Conceição Coelho, Uma leitura de Memorial do convento de José Saramago,
Lisboa, Bertrand Editora, 2.ª ed., 1995, pp. 53-54 (adaptado e com supressões).

CONSTRUIR SENTIDOS

1 Leia o capítulo VII de Memorial do convento.


1.1 Faça uma breve exposição oral, apresentando os aspetos mais significativos visa-
dos nesse capítulo.

231
José Saramago

LEITURA TEXTO EXPOSITIVO

Leia o texto. Se necessário, consulte a nota.

O sonho

E
vocando a faculdade potenciadora do
imaginário e da fantasia, o sonho apre-
senta-se como um processo psicofisio-
lógico em que uma sequência de
5 imagens e vivências, que ocorrem du-
rante o sono, se articulam numa estrutura de asso-
ciações figurativas, assumindo, pois, a forma de uma
linguagem simbólica.
Embora as perspetivas psicológicas e filosóficas
10 nem sempre tenham sido consensuais e tenham so-
frido alterações e adaptações perante as ideologias e
o pensamento vigente em cada período da história,
assistiu-se sempre a uma tentativa de compreender
e interpretar o processo onírico, estabelecendo a sua
15 importância e a sua especificidade.
Na Antiguidade, o sonho era considerado um espa-
ço de contacto com o sobrenatural e com os deuses
que aconselhavam e orientavam o homem, revelando Henri Matisse, O sonho, 1940.

acontecimentos futuros. As profecias envoltas em


20 ambiguidade e aparentemente desprovidas de sentido Paralelamente ao sonho, surgiu a experiência vi-
eram decifradas por onirocritas e oniromantes1 que sionária, que ocorre em estado de vigília ou de êxtase,
interpretavam os sonhos de faraós, chefes de estado 40 implicando um processo de purificação que geral-
ou de heróis. mente se realiza através de viagens extraordinárias a
Influenciada pela tradição antiga e pelos textos bí- lugares transcendentes, onde se acede ao conheci-
25 blicos, surgiu, na Idade Média, uma literatura visionária mento e ao contacto divino. O sujeito libertar-se-ia,
em que o sonho geralmente assumia a forma de uma assim, do seu corpo e dos seus sentidos, elevando-se
alegoria, porque envolvia conflitos morais e espirituais. 45 em espírito às esferas do sagrado – ao Paraíso.
Rejeitando as experiências oníricas ligadas a enti- No Renascimento o fenómeno onírico continuou
dades demoníacas e ao mundo dos mortos, os textos a revelar um carácter profético, como o sonho
30 medievais deram continuidade à interpretação dos de D. Manuel em Os Lusíadas (IV, 67-75). Contudo,
sonhos e das visões como uma manifestação divina, ocorreram algumas alterações: o sonho passou a re-
um diálogo com Deus em que a Verdade e a Sabedoria 50 velar os desejos e ambições dos homens. A viagem de
são reveladas. Assim, a elite de sonhadores da Anti- Vasco da Gama é disso mesmo exemplo, ou seja, do
guidade foi substituída por santos, mártires e ermitas, sonho dos homens em encontrar o Paraíso Terrestre.
35 considerados os únicos sonhadores verdadeiros, de-
Carlos Ceia, in https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/sonho,
vido às suas virtudes e condutas que se aproximavam consultado em 07/02/2023 (adaptado e com supressões).
da esfera divina.
1 pessoas que adivinham o futuro através dos sonhos

232
Memorial do convento

1 Para completar os itens 1.1 a 1.4, selecione a opção correta.


1.1 O sonho pode ser encarado como uma sequência de imagens
A. ocorridas quando o indivíduo está desperto.
B. relacionadas com a faculdade potenciadora do imaginário e da fantasia.
C. que retratam sempre um acontecimento real.
D. que assumem uma dimensão concreta e palpável.
1.2 A tentativa de compreender e de interpretar o processo onírico
A. era uma prioridade no passado, mas já não o é atualmente, fruto das dife-
rentes perspetivas psicológicas e filosóficas.
B. foi sempre um objetivo, adaptando-se ao pensamento vigente em cada dé-
cada, seguindo as mesmas perspetivas psicológicas e filosóficas.
C. é uma prioridade hoje mais do que no passado, ainda que tenhamos assistido
a inúmeras perspetivas ideológicas e filosóficas.
D. continua a ser um objetivo, dada a sua importância e especificidade, mesmo
perante diferentes perspetivas psicológicas e filosóficas.
1.3 Paralelamente ao sonho, surgiu o interesse pela “experiência visionária” que
A. ocorre em estados de vigília e de êxtase, em que o sujeito, mantendo a sua
identidade e consciência corpórea, ascende a um patamar divino.
B. é alcançável, quando o indivíduo se encontra inconsciente e realiza, de for-
ma transcendental, viagens extraordinárias e exclusivamente sagradas.
C. se evidencia através de imagens e de vivências e que implica um processo
de depuração da alma que ocorre durante o sono.
D. permite ao indivíduo ascender a um patamar divino, libertando-se do seu
próprio corpo e sentidos e que ocorre em estado de vigília e de êxtase.
1.4 Comparando o ideal do sonho na Antiguidade com a sua visão renascentista, pode
concluir-se que,
A. na Antiguidade, os sonhos eram decifrados por faraós e chefes de estado e,
no Renascimento, o sonho passou a revelar um caráter profético.
B. no Renascimento, o sonho estava associado aos desejos e às ambições dos
homens, enquanto na Antiguidade era uma forma de contacto com os deuses.
C. na Antiguidade, o sonho evidenciava um caráter profético e onírico, revelan-
do acontecimentos passados e, no Renascimento, tinha a mesma leitura.
D. no Renascimento, o sonho encontrava-se envolto em profecias desprovidas
de sentido, tal como já havia acontecido na Antiguidade.

GRAMÁTICA

1 Indique as funções sintáticas desempenhadas pelos constituintes seguintes.


a. “do imaginário e da fantasia” (ll. 1-2)

b. “simbólica” (l. 8)

c. “por onirócritas e por oniromantes” (l. 21)

d. “um caráter profético” (l. 47)

2 Refira o valor aspetual configurado nos enunciados que se seguem.


a. “assistiu-se [...] a uma tentativa de compreender e interpretar o processo onírico”
(ll. 13-14)

b. “A viagem de Vasco da Gama é disso mesmo exemplo, ou seja, do sonho dos ho-
mens em encontrar o Paraíso Terrestre” (ll. 50-52)

233
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

Memorial do convento é uma grande sátira romanesca sobre o Portugal da primeira


metade do século XVIII – época feita de luzes e sombras: luzes eram o engenho mental
do Padre Voador, a determinação do rei em construir o convento de Mafra e as artimanhas
de pícaros1, como Baltasar e Blimunda, que sobreviviam das sobras que caíam das mesas
fartas das riquezas ultramarinas; sombras se faziam representar pela miséria do povo e
a omnipresença do Santo Ofício.

Paulo Pereira, “Inquisição: entre história e ficção na narrativa portuguesa”,


Lisboa, Colóquio/Letras, n.º 120, abril-junho de 1991, p. 120.

1 astuto

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

FAZ SENTIDO SABER Leia os excertos que se seguem. Se necessário, consulte as notas.
De acordo com Charles
Fréderic de Merveilleux, A tríade
existiria uma rapariga
portuguesa que residia
em Lisboa, que tinha
nascido com uns olhos Excerto 1 | Cap. VIII (pp. 79-82)
que bem podia dizer-se
de lince e que possuía,
Dorme Baltasar no lado direito da enxerga, desde a primeira noite aí dorme, porque é
desde a mais tenra idade, desse lado o seu braço inteiro, e ao voltar-se para Blimunda pode, com ele, cingi-la contra si,
o dom de ver o interior do correr-lhe os dedos desde a nuca até à cintura, mais abaixo ainda se os sentidos de um e do
corpo humano bem como
outro despertaram no calor do sono e na representação do sonho, ou já acordadíssimos iam
as entranhas da terra.
Este dom maravilhoso só 5 quando se deitaram, que este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na
o usufruía quando estava igreja, cuida pouco de regras e respeitos, e se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis,
em jejum. Nas mudanças quererá ele. […] Um dia e outro dia perguntou Baltasar a Blimunda por que comia todas as
de quarto de lua, a sua
manhãs antes de abrir os olhos, perguntou ao padre Bartolomeu Lourenço que segredo era
visão era perturbada
por uma quantidade de este, ela respondeu-lhe uma vez que se acostumara a isso em criança, ele disse que se trata-
pequenas partículas que 10 va de um grande mistério, tão grande que voar faria figura de pequena coisa, comparando.
lhe pareciam amarelas Hoje se saberá.
e lhe causavam uma
tal turvação que era
Quando Blimunda acorda, estende a mão para o saquitel1 onde costuma guardar o pão,
obrigada a tapar os olhos. pendurado à cabeceira, e acha apenas o lugar. Tateia o chão, a enxerga, mete as mãos por
A seguir perdia, durante baixo da travesseira, e então ouve Baltasar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela,
algum tempo, a sua
15 cobrindo os olhos com os punhos cerrados, implora. Dá-me o pão, Baltasar, dá-me o pão,
singular faculdade.
por alma de quem lá tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não posso,
Charles Fréderic de
Merveilleux, in Figuras gritou ela, e bruscamente tentou rolar para fora da enxerga, mas Sete-Sóis deitou-lhe o
da ficção (coord. Carlos braço são, prendeu-a pela cintura, ela debateu-se brava, […] tornou a gritar, espavorida, Não
Reis), Coimbra, Centro de me faças isso, e foi o grito tal que Baltasar a largou, assustado, quase arrependido da vio-
Literatura Portuguesa,
20 lência, Eu não te quero fazer mal, só queria saber que mistérios são, Dá-me o pão, e eu
2006, p. 47 (adaptado e
com supressões). digo-te tudo, […] Aí tens, come, e Baltasar tirou o taleigo2 de dentro do alforge que lhe ser-
via de travesseira. […]
Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te olhei por dentro, Lem-
bro-me, Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste o que estavas a ouvir quando eu disse
1 saquinho; 2 saco 25 que nunca te olharia por dentro. Baltasar não teve tempo de responder, ainda procurava

234
Memorial do convento

o sentido das palavras, e outras já se ouviam no quarto, incríveis, Eu posso olhar por dentro
das pessoas.
Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, incrédulo, e também inquieto, Estás a mangar comi-
go, ninguém pode olhar por dentro das pessoas, Eu posso, Não acredito, Primeiro, quiseste
30 saber, não descansavas enquanto não soubesses, agora já sabes e dizes que não acreditas,
antes assim, mas daqui para o futuro não me tires o pão, Só acredito se fores capaz de dizer
o que está dentro de mim agora, Não vejo se não estiver em jejum, além disso fiz promessa
de que a ti nunca te veria por dentro, Torno a dizer que estás a mangar comigo, E eu torno
a dizer que é verdade, Como hei de ter a certeza, Amanhã não comerei quando acordar,
35 sairemos depois de casa e eu vou-te dizer o que vir, mas para ti nunca olharei, nem te porás
na minha frente, queres assim, Quero, respondeu Baltasar, mas diz-me que mistério é este,
como foi que te veio esse poder, se não estás a enganar-me, Amanhã saberás que falo ver-
dade, E não tens medo do Santo Ofício, por muito menos têm outros pagado, O meu dom
não é heresia, nem é feitiçaria, os meus olhos são naturais, Mas a tua mãe foi açoitada e
40 degredada por ter visões e revelações, aprendeste com ela, Não é a mesma coisa, eu só vejo
o que está no mundo, não vejo o que é de fora dele, céu ou inferno, não digo rezas, não faço
passes de mãos, só vejo, Mas persignaste-te com o teu sangue e fizeste-me com ele uma
cruz no peito, se isso não é feitiçaria, Sangue da virgindade é água de batismo, soube que
o era quando me rompeste, e quando o senti correr adivinhei os gestos, Que poder é esse
45 teu, Vejo o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o que
está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das roupas, mas só vejo quando estou
em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem me
dera que o não tivesse, Porquê, Porque o que a pele esconde nunca é bom de ver-se, Mesmo
a alma, já viste a alma, Nunca a vi, Talvez a alma não esteja afinal dentro do corpo, Não sei,
50 nunca a vi […].

Excerto 2 | Cap. VIII (pp. 86 e 92)


Levantemos agora os nossos próprios olhos, que é tempo de ver o infante D. Francisco
a espingardear, da janela do seu palácio, à beirinha do Tejo, os marinheiros que estão empo-
leirados nas vergas dos barcos, só para provar a boa pontaria que tem, e quando acerta e eles
vão cair no convés, sangrando todos, um e outro morto, e se a bala errou não se livram de um
55 braço partido, dá o infante palmas de irreprimível júbilo, enquanto os criados lhe carregam
outra vez as armas, bem pode acontecer que este criado seja irmão daquele marinheiro, mas
a esta distância nem sequer a voz do sangue é possível ouvir, outro tiro, outro grito e queda,
e o contramestre não se atreve a mandar descer os marujos […].
El-rei foi a Mafra escolher o sítio onde há de ser levantado o convento. Ficará neste alto
60 a que chamam da Vela […].

Excerto 3 | Cap. IX (pp. 93 e 96-97)


Outro ferro anda agora no alforge de Sete-Sóis, é a chave da quinta do duque de Aveiro,
que tendo vindo ao padre Bartolomeu Lourenço os falados ímanes, mas ainda não as subs-
tâncias de que faz segredo, podia enfim adiantar-se a construção da máquina de voar e pôr-se
em obra material o contrato que fazia de Baltasar a mão direita do Voador […]. E sendo a
65 Costa do Castelo longe de S. Sebastião da Pedreira, de mais para ir e vir todos os dias, decidiu
Blimunda que deixaria a casa para estar onde estivesse Sete-Sóis. […]
Uma vez por outra, Blimunda levanta-se mais cedo, antes de comer o pão de todas as
manhãs, e, deslizando ao longo da parede para evitar pôr os olhos em Baltasar, afasta o pano

235
José Saramago

e vai inspecionar a obra feita, descobrir a fraqueza escondida do entrançado, a bolha de ar no


70 interior do ferro, e, acabada a vistoria, fica enfim a mastigar o alimento, pouco a pouco se
tornando tão cega como a outra gente que só pode ver o que à vista está. Quando isto fez pela
primeira vez e Baltasar depois disse ao padre Bartolomeu Lourenço, Este ferro não serve, tem
uma racha por dentro, Como é que sabes, Foi Blimunda que viu, o padre virou-se para ela,
sorriu, olhou um e olhou outro, e declarou, Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás
75 Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua
mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava, que o batismo foi de padre,
não alcunha de qualquer um. Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as
estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais.

Excerto 4 | Cap. IX (pp. 97-98)


[…] De el-rei não falemos, que sendo tão moço ainda gosta de brinquedos, […] por isso se
80 diverte tanto com as freiras nos mosteiros e as vai emprenhando, uma após outra, ou várias
ao mesmo tempo, que quando acabar a sua história se hão de contar por dezenas os filhos
assim arranjados, coitada da rainha, que seria dela se não fosse o seu confessor António Stieff,
jesuíta, por lhe ensinar resignação, e os sonhos em que lhe aparece o infante D. Francisco
com marinheiros mortos pendurados dos arções das mulas […].

Excerto 5 | Cap. IX (pp. 98-99)


85 Assim nunca chegarei a voar, disse-o [o Padre] em voz cansada, […] assim não pode voar
se lhe falta o éter, Que é isso, perguntou Blimunda, É o onde se suspendem as estrelas, E como
se há de ele trazer para cá, perguntou Baltasar, Pelas artes da alquimia, em que não sou hábil,
mas sobre isto não dirão nunca uma palavra, suceda o que suceder, Então como faremos,
Partirei breve para a Holanda, que é terra
90 de muitos sábios e lá aprenderei a arte de
fazer descer o éter do espaço, de modo a
introduzi-lo nas esferas, porque sem ele
nunca a máquina voará, Que virtude é
essa do éter, perguntou Blimunda, É ser
95 parte da virtude geral que atrai os seres e
os corpos, e até as coisas inanimadas, se
os libertam do peso da terra, para o sol,
Diga isso por palavras que eu perceba,
padre, Para que a máquina se levante ao
100 ar, é preciso que o sol atraia o âmbar que
há de estar preso nos arames do teto, o
qual, por sua vez, atrairá o éter que tere-
mos introduzido dentro das esferas, o
qual, por sua vez, atrairá os ímanes que
105 estarão por baixo, os quais, por sua vez,
atrairão as lamelas de ferro de que se
compõe o cavername da barca, e então
subiremos ao ar, com o vento, ou com o
sopro dos foles, se o vento faltar, mas tor-
110 no a dizer, faltando o éter, falta-nos tudo.

236
Memorial do convento

Excerto 6 | Cap. IX (pp. 102 e 103)


A grande tristeza de Baltasar e Blimunda é não haver uma rede que possa ser lançada até
às estrelas e trazer de lá o éter que as sustenta, conforme afirma o padre Bartolomeu Louren-
ço, que vai partir um destes dias e não sabe quando volta. […]
Deitou o padre Bartolomeu Lourenço a bênção ao soldado e à vidente, eles beijaram-lhe
115 a mão, mas no último momento se abraçaram os três, teve mais força a amizade que o res-
peito, e o padre disse, Adeus Blimunda, adeus Baltasar, cuidem um do outro e da passarola,
que eu voltarei um dia com o que vou buscar, não será ouro nem diamante, mas sim o ar que
Deus respira, guardarás a chave que te dei, e como vão partir para Mafra, lembra-te de vir
aqui de vez em quando ver como está a máquina, podes entrar e sair sem receio, que a quin-
120 ta confiou-ma el-rei e ele sabe o que nela está, e tendo dito, montou na mula e partiu.

1 Atente nos excertos 1, 3, 5 e 6.


1.1 Caracterize a relação de Baltasar e Blimunda (excerto 1).
1.2 Explique a razão que levou Baltasar a esconder o saco do pão de Blimunda (excerto 1).
1.3 Identifique o dom de Blimunda, relacionando-o com a promessa que esta fez a
Baltasar (excerto 1).
1.4 Mencione possíveis consequências que o dom pode trazer à personagem (excerto 1).
1.5 Refira-se ao papel de Blimunda na construção da passarola (excerto 3).
1.6 Explique a simbologia do epíteto atribuído por Bartolomeu Lourenço a Blimunda
(excerto 3).

1.7 Exponha a decisão tomada pelo padre, apontando as razões que a justificam (excerto 5).
1.8 Caracterize a ligação existente entre Bartolomeu, Blimunda e Baltasar, relacio-
nando-a com os seus nomes (excertos 5 e 6).

2 Considere, agora, os excertos 2 e 4.


2.1 Indique o que foi o rei D. João V fazer a Mafra (excerto 2).
2.2 Demonstre de que forma nessas passagens se evidencia a visão crítica do narra-
dor.

3 Estabeleça um contraste entre a relação do rei e da rainha e a


FAZ SENTIDO RELACIONAR

do par Baltasar e Blimunda.

ESCRITA i Bloco informativo | p. 357.

1 Escreva um texto de opinião, entre 250 e 300 palavras, sobre a importância dos avan-
ços técnico-científicos para o progresso e para a evolução humana.
O seu texto deve respeitar as marcas deste género textual e conter:
• uma introdução ao tema;
• um desenvolvimento no qual apresente uma argumentação pertinente;
• uma conclusão adequada ao desenvolvimento do tema.
Verifique o encadeamento lógico dos tópicos tratados e o correto uso dos mecanis-
mos de coesão textual.

237
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

O padre Bartolomeu Lourenço é outro personagem excêntrico, em contraste com o


clero da época: um pregador e padre devoto, mas também um académico cheio de dúvi-
das, que procura um Deus uno e indivisível, e um inventor, que se atreve a construir uma
máquina voadora. Com o padre Bartolomeu entramos no grupo de personagens históricos,
representados no romance pelo rei D. João V, a rainha D. Maria Ana Josefa, os seus filhos,
FAZ SENTIDO SABER
Domenico Scarlatti e outras figuras que aparecem de passagem. Como no romance his-
A parábola do “Filho
Pródigo”, relatada por tórico tradicional, o padre Bartolomeu e Domenico Scarlatti, personagens menos familia-
Jesus, centra-se na res e de menor peso histórico, entram diretamente na ação, inter-relacionando-se com
história de um homem os personagens populares inventados, como Baltasar e Blimunda.
que tinha dois filhos.
A certa altura, o mais Helena Kaufman, “A metaficção historiográfica de José Saramago”,
novo pediu ao pai a Lisboa, Colóquio/Letras, n.º 120, abril-junho de 1991, pp. 130-131.
parte da herança que
lhe caberia e partiu para
uma terra muito
distante, onde gastou
o que possuía. Depois de EDUCAÇÃO LITERÁRIA
ter passado por grandes
agruras, e pensando na
casa farta do pai, este Leia os excertos que se seguem. Se necessário, consulte as notas.
filho decidiu regressar.
Ainda ele vinha longe Bartolomeu Lourenço
e já o pai o tinha visto.
Cheio de ternura, correu
para ele, apertou-o nos
braços, cobriu-o de beijos
Excerto 1 | Cap. X (pp. 109, 112, 117 e 118)
e mandou que fosse Regressou o filho pródigo, trouxe mulher, e, se não vem de mãos vazias, é porque uma lhe
preparada uma festa
em sua homenagem.
ficou no campo de batalha e a outra segura a mão de Blimunda, se vem mais rico ou mais
Quando o filho mais pobre não é coisa que se pergunte, pois todo o homem sabe o que tem, mas não sabe o que
velho, que estava no isso vale. Quando Baltasar empurrou a porta e apareceu à mãe, Marta Maria, que é o seu
campo, regressou a
5 nome, abraçou-se ao filho, abraçou-o com uma força que parecia de homem e era só do cora-
casa e se deparou com
as músicas, a dança ção. […]
e a comida em O pai disse, Vendi a terra que tínhamos na Vela, não que a vendesse mal, treze mil e qui-
abundância, sentiu-se nhentos réis, mas vai fazer-nos falta, Então por que a vendeu, Foi el-rei quem a quis, a minha
revoltado porque para
e outras, E para que as quis el-rei, Vai mandar construir ali um convento de frades, não ou-
ele, que sempre tinha
estado junto do pai, nunca 10 viste falar disso em Lisboa, Não senhor, não ouvi, Disse aí o vigário que foi por causa duma
lhe tinha sido preparada promessa que el-rei fez, se lhe nascesse um filho, quem agora pode ganhar bom dinheiro é o
uma festa. Então, o pai teu cunhado, vão precisar de pedreiros. […]
respondeu-lhe: “Tu estás
sempre comigo e tudo
Baltasar Sete-Sóis foi vadiar por perto, ao alto da Vela, donde se vê toda a vila de Mafra no
o que eu tenho é teu, seu buraco, ao fundo do vale. […]
mas era preciso 15 Haviam sido terras de cultivo, agora estão abandonadas. As estremas que ainda se man-
fazermos uma festa
têm visíveis, as sebes, os caniçados, os valados já não separam propriedades. Tudo isto per-
e alegrarmo-nos, porque
o teu irmão estava morto tence ao mesmo dono, a el-rei, que se ainda não pagou, pagará, que lá de boas contas é ele,
e voltou a viver, estava faça-se-lhe essa justiça. […]
perdido e reapareceu”. E o convento, vai ser coisa grande, perguntara Baltasar ao cunhado, e este respondeu,
Baseado em http:// 20 Primeiro falou-se em treze frades, depois subiu para quarenta, agora já andam os francisca-
www.estudos-biblicos.net.
nos da albergaria e da capela do Espírito Santo a dizer que hão de ser oitenta […].

238
Memorial do convento

Excerto 2 | Cap. XI (pp. 125 e 127)


Regressou o padre Bartolomeu Lourenço da Holanda, […] e, agora que chegou de terras
holandesas, vai tornar a Coimbra, um homem pode ser grande voador, mas é-lhe muito con-
veniente que saia bacharel, licenciado e doutor, e então, ainda que não voe, o consideram.
25 Bartolomeu Lourenço foi à quinta de S. Sebastião da Pedreira, três anos inteiros haviam
passado desde que partira […].
Passadas algumas semanas, com todas as disposições, licenças e matriculações necessá-
rias, partiu o padre Bartolomeu para Coimbra […], não seria este o caminho se não tivesse de
ir [primeiro] à vila de Mafra por lá estarem Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas.

Excerto 3 | Cap. XI (pp. 133-136)


30 Segurava Baltasar a mula, e Blimunda estava afastada alguns passos, de olhos baixos, com
o bioco1 puxado para diante, Bons dias, disseram eles, Bons dias, disse o padre, e perguntou, 1 mantilha ou envoltório com

Blimunda ainda não comeu, e ela, da sombra maior das roupas, respondeu, Não comi […]. que as beatas tapam o rosto

Diz o padre Bartolomeu Lourenço, […] na Holanda soube o que é o éter, não é aquilo que
geralmente se julga e ensina, e não se pode alcançar pelas artes da alquimia, para ir buscá-lo
35 lá onde ele está, no céu, teríamos nós de voar e ainda não voamos, mas o éter, deem agora
muita atenção ao que vou dizer-lhes, antes de subir aos ares para ser o onde as estrelas se
suspendem e o ar que Deus respira, vive dentro dos homens e das mulheres, Nesse caso, é a
alma, concluiu Baltasar, Não é, também eu, primeiro, pensei que fosse a alma, também pensei
que o éter, afinal, fosse formado pelas almas que a morte liberta do corpo, antes de serem
40 julgadas no fim dos tempos e do universo, mas o éter não se compõe das
almas dos mortos, compõe-se, sim, ouçam bem, das vontades dos vivos. […]
Disse o padre, Dentro de nós existem vontade e alma, a alma retira-se
com a morte, vai lá para onde as almas esperam o julgamento, ninguém
sabe, mas a vontade, ou se separou do homem estando ele vivo, ou a sepa-
45 ra dele a morte, é ela o éter, é portanto a vontade dos homens que segura
as estrelas, é a vontade dos homens que Deus respira, E eu que faço, per-
guntou Blimunda, mas adivinhava a resposta, Verás a vontade dentro das
pessoas, Nunca a vi, tal como nunca vi a alma, Não vês a alma porque a
alma não se pode ver, não vias a vontade porque não a procuravas, Como é
50 a vontade, É uma nuvem fechada, Que é uma nuvem fechada, Reconhecê-
-la-ás quando a vires, experimenta com Baltasar, para isso viemos aqui,
Não posso, jurei que nunca o veria por dentro, Então comigo.
Blimunda levantou a cabeça, olhou o padre, viu o que sempre via, mais
iguais as pessoas por dentro do que por fora, só outras quando doentes,
55 tornou a olhar, disse, Não vejo nada. O padre sorriu, Talvez que eu já não
tenha vontade, procura melhor, Vejo, vejo uma nuvem fechada sobre a boca
do estômago. O padre persignou-se, Graças, meu Deus, agora voarei. Tirou
do alforge um frasco de vidro que tinha presa ao fundo, dentro, uma pas-
tilha de âmbar amarelo, Este âmbar, também chamado eletro, atrai o éter,
60 andarás sempre com ele por onde andarem pessoas, em procissões, em
autos de fé, aqui nas obras do convento, e quando vires que a nuvem vai
sair de dentro delas, está sempre a suceder, aproximas o frasco aberto, e a
vontade entrará nele, E quando estiver cheio, Tem uma vontade dentro, já
está cheio, mas esse é o indecifrável mistério das vontades, onde couber
65 uma, cabem milhões, o um é igual ao infinito, E que faremos entretanto,

239
José Saramago

2 escavação para
perguntou Baltasar, Vou para Coimbra de lá, a seu
assentamento de alicerces; tempo, mandarei recado, então irão os dois para
3 fundador de uma heresia Lisboa, tu construirás a máquina, tu recolherás as
vontades, encontrar-nos-emos os três quando che-
70 gar o dia de voar, abraço-te Blimunda, […] abraço-te
Baltasar, até à volta.

Excerto 4 | Cap. XII (p. 140)


Pontualmente escrevera o padre Bartolomeu
Lourenço quando se instalou em Coimbra, notícia
só de ter chegado e bem, mas agora viera uma
75 nova carta, que sim, seguissem para Lisboa tão
cedo pudessem, que ele, aliviando o estudo, os iria
visitar […].

Excerto 5 | Cap. XII (p. 140)


[E]ntretanto começou a constar em Mafra, e foi confirmado pelo vigário no sermão, que
vinha el-rei a inaugurar a obra da raiz dos caboucos2 para cima, colocando com as suas reais
80 mãos a primeira pedra.

Excerto 6 | Cap. XIII (pp. 155-157)


Quantas vontades recolheste até hoje, Blimunda, perguntou o padre nessa noite, quando
ceavam, Não menos de trinta, disse ela, É pouco, […] lembra-te de que são precisas pelo menos
duas mil vontades, duas mil vontades que tiverem querido soltar-se por as não merecerem
FAZ SENTIDO SABER
as almas, ou os corpos as não merecerem, […] lembrem-se de que toda esta nossa obra terá
Domenico Scarlatti foi
um compositor italiano,
85 de ser feita em absoluto segredo, não o podem saber nem parente nem amigo, amigos mais
notabilizado por ter do que nós os três não há, e se alguém aí vier com perguntas, dirão que estão a guardar
composto 555 sonatas a quinta por ordem de el-rei, e que perante el-rei o responsável sou eu, padre Bartolomeu
para órgão, para cravo
Lourenço de Gusmão, De quê, perguntaram Blimunda e Baltasar ao mesmo tempo, De Gus-
e para violino.
Nasceu em 1685, em mão, foi assim que passei a chamar-me, por via do apelido de um padre que no Brasil me
Nápoles, Itália, e morreu 90 educou, Bartolomeu Lourenço era quanto bastava, disse Blimunda, não me vou habituar
em 1757, em Madrid, a dizer Gusmão, Nem precisarás, para ti e Baltasar serei sempre o mesmo Bartolomeu Lourenço,
Espanha.
mas a corte e as academias terão de chamar-me Bartolomeu Lourenço de Gusmão, pois quem,
Em 1720, viajou para
Portugal, após ter sido como eu, vai ser doutor em cânones precisa ter um nome que lhe assente à dignidade […].
nomeado maestro da
capela da Corte de
Lisboa.
Excerto 7 | Cap. XIV (pp. 173, 174, 175-177)
Nos arquivos da Sé Já o padre Bartolomeu Lourenço regressou de Coimbra, já é doutor em cânones […]. Mora
existem restos do
trabalho que Scarlatti fez
95 o padre cerca do paço, e ainda bem, pois muito o frequenta, não tanto por obrigações firmes
em Portugal, um motete do seu título de capelão fidalgo, mais honorífico que efetivo, mas por lhe querer bem el-rei,
(trova), um Te Deum e […] que vai assistir à lição de música de sua filha a infanta D. Maria Bárbara […].
uma peça para as festas
Está a menina sentada ao cravo, tão novinha, ainda não fez nove anos […] e vem de Lon-
do casamento da infanta
D. Maria Bárbara. dres contratado Domenico Scarlatti […], homem de completa figura, rosto comprido, boca
In 100 larga e firme, olhos afastados, não sei que têm os italianos, e então este, em Nápoles nascido
https://www.infopedia.pt há trinta e cinco anos […].
(adaptado e com
Terminou a lição, desfez-se a companhia […], e no salão de música apenas ficaram Dome-
supressões).
nico Scarlatti e o Padre Bartolomeu de Gusmão. […] Senhor Scarlatti, disse o padre […], Senhor

240
Memorial do convento

Scarlatti não me gabo de saber dessa arte, mas estou que até um índio da minha terra, que
105 dela sabe ainda menos do que eu, haveria de sentir-se arrebatado por essas harmonias celes-
tes, Porventura não, respondeu o músico, porque bem sabido é que há de o ouvido ser edu-
cado se quer estimar os sons musicais, […] São palavras ponderadas, essas, que emendam as
levianas minhas, é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam
querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade, Porém, para que os homens
110 possam cingir-se à verdade, terão primeiramente de conhecer os erros, E praticá-los, Não
saberei responder à pergunta com um simples sim ou um simples não, mas acredito na ne-
cessidade do erro. […]
Tendes razão, disse o padre, mas, desse modo não está o homem livre de julgar abraçar
a verdade e achar-se cingido com o erro, Como livre também não está de supor abraçar o erro
115 e encontrar-se cingido com a verdade, respondeu o músico, e logo disse o padre, Lembrai-vos
de que quando Pilatos perguntou a Jesus o que era a verdade, nem ele esperou pela resposta,
nem o Salvador lha deu, Talvez soubessem ambos que não existe resposta para tal pergunta,
Caso em que, sobre esse ponto, estaria Pilatos sendo igual de Jesus, Derradeiramente, sim […].

Excerto 8 | Cap. XIV (pp. 178 e 179)


[…] Veio a viúva do porteiro da maça dizer ao padre que tinha o jantar servido […]. Des-
120 garrada das suas irmãs, uma gaivota pairou sobre o beiral do telhado, sustentava-a o vento
que soprava da terra, e o padre murmurou, Bendita sejas, ave, e em seu coração achou-se
feito da mesma carne e do mesmo sangue, arrepiou-se como se estivesse sentindo que lhe
nasciam penas nas costas, e, sumindo-se a gaivota, viu-se perdido num deserto, Caso em que
Pilatos estaria sendo igual de Jesus, isto pensou de repente e regressou ao mundo, transido
125 por se sentir nu, esfolado como se tivesse deixado a pele dentro do ventre da mãe, e então
disse em voz alta, Deus é uno.
Todo esse dia ficou o padre Bartolomeu Lourenço fechado no quarto, gemendo, suspirando,
[…] parecia que estava preparando o seu grande jejum, aguçando novos olhos de entendimen-
to, embora não suspeitasse que coisas haveria mais que entender, depois de haver proclamado
130 a unidade de Deus às gaivotas do Tejo, supremo arrojo, que seja Deus uno em essência é ponto
que nem heresiarcas3 negam, mas ao padre Bartolomeu Lourenço ensinaram que Deus, se sim
é uno em essência, é trino em pessoa, e hoje as mesmas gaivotas o fizeram duvidar. […]
[S]entara-se o padre Bartolomeu Lourenço a escrever,
Et ego in illo, E eu estou nele, quando amanheceu ainda
135 escrevia, era o sermão do Corpo de Deus […].

Excerto 9 | Cap. XIV (pp. 179, 181 e 185)


Dias passados, estando Bartolomeu de Gusmão na ca-
pela real, veio o italiano falar-lhe. […]
Disseram-me, padre Bartolomeu de Gusmão, que por
obra dessas mãos se levantou ao ar um engenho e voou,
140 Disseram a verdade do que então viram, depois ficaram ce-
gos para a verdade que a primeira escondeu, Gostaria de
entender melhor, Há doze anos que isso foi, desde então a
verdade mudou muito, Repito que gostaria de entender,
Que é um segredo, A essa pergunta responderei que, quan-
145 to imagino, só a música é aérea, Então iremos amanhã a ver
um segredo. […]

241
José Saramago

Disse o padre Bartolomeu Lourenço, Não irei revelar o segredo último do voo, mas, tal
como escrevi na petição e memória, toda a máquina se moverá por obra de uma virtude
atrativa contrária à queda dos graves, se eu largar este caroço de cereja, ele cai para o chão,
150 ora, a dificuldade está em encontrar o que o faça subir, E encontrou, O segredo descobri-o eu,
quanto a encontrar, colher e reunir é trabalho de nós três, É uma trindade terrestre, o pai,
o filho e o espírito santo, Eu e Baltasar temos a mesma idade, trinta e cinco anos, não pode-
ríamos ser pai e filho naturais, isto é, segundo a natureza, mais facilmente irmãos, mas,
sendo-o, gémeos teríamos de ser, ora ele nasceu em Mafra, eu no Brasil, e as parecenças são
155 nenhumas, Quanto ao espírito, Esse seria Blimunda, talvez seja ela a que mais perto estaria
de ser parte numa trindade não terrenal […].

1 Atente no excerto 1.
1.1 Justifique a intertextualidade presente logo no início do excerto com a parábola
do “Filho Pródigo” (consulte a rubrica “Faz sentido saber”, p. 238).
1.2 Assinale a intenção crítica associada à venda da terra na Vela por parte do pai
de Baltasar.

2 Concentre-se, agora, no excerto 3.


2.1 Refira o que aprendeu o padre, na Holanda, sobre o éter.
2.2 Apresente uma explicação para a afirmação do padre: “é portanto a vontade dos
homens que segura as estrelas” (ll. 45-46).
2.3 Indique a missão de que Blimunda ficou incumbida.
2.4 Explique por que razão o padre se persignou e disse “Graças, meu Deus”, quando
Blimunda viu uma nuvem fechada sobre a boca do seu estômago.

3 Considere os excertos 6 a 9.
3.1 Demonstre de que forma o novo nome de Bartolomeu Lourenço espelha a socie-
dade do seu tempo.
3.2 Explicite a dúvida que começa a surgir no padre, apresentando as duas situações
que o levaram a esse estado.
3.3 Explique a simbologia da tríade Blimunda, Baltasar e Bartolomeu, considerando
o papel de cada um deles na construção da passarola e a analogia que Scarlatti
estabelece entre eles e a Santíssima Trindade.

4 Explique como nestes excertos se verifica o cruzamento entre várias linhas de ação.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 360, 373, 378 e 401.

1 Atente no segmento “abraçou-o com uma força que parecia de homem e era só
do coração” (ll. 5-6, excerto 1).
1.1 Refira a função sintática desempenhada pelo pronome pessoal “o”.
1.2 Identifique o mecanismo de coesão textual assegurado por esse pronome.
1.3 Classifique a oração “que parecia de homem”.
1.4 Indique duas palavras portuguesas que provenham do étimo latino CORDE-,
que designava “coração”.

242
Memorial do convento

ANTECIPAR SENTIDOS

A assunção do poder do Homem, da sua capacidade para se tornar o local, o centro,


de concretizações utópicas, passa, também, pelo polémico tópico da religião, implicando,
na obra ficcional saramaguiana, a necessidade de negar a força do divino. O poder a al-
cançar, e a manter, é o que decorre da vontade humana. A vontade que não é a alma, nem
com ela deve ser confundida, como Bartolomeu Lourenço diz a Baltasar Sete-Sóis […].
Parece-nos […] correto, a propósito, relevar a importância de, em Memorial do convento,
o engenho voador construído pela santíssima trindade terrestre (Bartolomeu, Baltasar e
Blimunda) se elevar nos ares por causa das duas mil vontades de homens e de mulheres;
vontades recolhidas por Blimunda e distribuídas pelas duas esferas da Passarola.
[…] em Memorial do convento, “é a vontade dos homens que segura as estrelas”,
sendo “fácil ver que, faltando os homens, o mundo para”.
Ana Paula Arnaut, José Saramago: da realidade à utopia. O homem como lugar onde,
pp. 48-49, in https://books.google.pt/ (adaptado e com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia os excertos seguintes. Se necessário, consulte as notas.

A vontade e a loucura

Excerto 1 | Cap. XV (pp. 195-196)


[A]gora, sim, é que se irão ver as obras maiores do seu
destino, quando o padre Bartolomeu Lourenço chegar à quin-
ta de S. Sebastião da Pedreira e disser, Blimunda, está Lisboa
atormentada de uma grande doença, morrem pessoas em
5 todas as casas, lembrei-me que não teremos melhor ocasião
para recolher a vontade dos moribundos, se as conservam
ainda, mas é meu dever avisar-te de que correrás grandes
perigos, não vais se não quiseres, nem eu te obrigaria, ainda
que obrigar-te estivesse na minha mão, Que doença é essa,
10 Dizem que foi trazida por uma nau do Brasil e que primeiro
se manifestou na Ericeira. […] [P]elos sinais que dá, é vómito
negro ou febre-amarela, o nome importa pouco, o caso é que
estão morrendo como tordos, que decides tu, Blimunda. Le-
vantou-se Blimunda do mocho onde estava sentada, ergueu
15 a tampa da arca e lá de dentro tirou o frasco de vidro, quantas
vontades ali haveria, talvez umas cem, quase nada para as
necessidades, e mesmo assim fora uma longa e custosa caça-
da, muito jejum, às vezes perdida num labirinto, onde está a
vontade que a não vejo, só vísceras e ossos, a rede agónica
20 dos nervos, o mar de sangue, a comida pastosa no estômago,
o excremento final, Irás, perguntou o padre, Irei, respondeu
ela, Mas não sozinha, disse Baltasar.

243
José Saramago

Excerto 2 | Cap. XV (pp. 199-200 e 201)


Passado um mês, calcularam ter guardado no frasco um milheiro de vontades, força de
elevação que o padre supunha ser bastante para uma esfera, com o que o segundo frasco foi
25 entregue a Blimunda. Já em Lisboa muito se falava daquela mulher e daquele homem que
percorriam a cidade de ponta a ponta, sem medo da epidemia, ele atrás, ela adiante, sempre
calados, nas ruas por onde andavam, nas casas onde se demoravam, ela baixando os olhos
quando tinha de passar por ele, e se o caso, todos os dias repetido, não causou maiores sus-
peitas e estranhezas, foi por ter começado a correr a notícia de que cumpriam ambos peni-
30 tência, estratagema inventado pelo padre Bartolomeu Lourenço quando se ouviram as
primeiras murmurações. […]
Quando a epidemia terminou, já iam rareando os casos mortais e de repente passara-se a
morrer doutra coisa, havia, bem contadas, duas mil vontades nos frascos. Então Blimunda
caiu doente. Não tinha dores, febre não se lhe sentia, apenas uma extrema magreza, uma
35 palidez profunda que lhe tornava transparente a pele. Jazia na enxerga, de olhos sempre fe-
chados, noite e dia, porém não como se dormisse ou repousasse, mas com as pálpebras cris-
padas e uma expressão de agonia no rosto. Baltasar não saía de junto dela, a não ser para
preparar a comida ou para satisfazer necessidades expulsórias do corpo, não parecia bem
fazê-lo ali mesmo. O padre Bartolomeu Lourenço, sombrio, sentava-se no mocho, e aí ficava
40 horas. De vez em quando parecia rezar, mas nunca ninguém pôde compreender as palavras
que murmurava nem a quem as dirigia. Deixou de os ouvir em confissão […]. Mas, olhando
FAZ SENTIDO SABER
Blimunda, consumida e retirada do mundo, o padre mordia as unhas, arrependia-se de a ter
Para Platão, a música
mandado às instâncias vizinhas da morte com tanta continuidade que a sua própria vida
seria capaz de atingir teria de padecer, como se estava observando, essa outra tentação de passar para o lado de lá,
mais profundamente 45 sem nenhuma dor, apenas como quem desiste de se segurar às margens do mundo e se deixa
a alma de um cidadão,
afundar.
podendo moldá-la para
o bem ou para o mal.
O uso correto da Excerto 3 | Cap. XV (pp. 202-203, 204 e 205)
educação musical
serviria para abrandar Muitas vezes durante a doença, se doença foi, se não foi apenas um longo regresso da
os irascíveis e afastar própria vontade, refugiada em confins inacessíveis do corpo, muitas vezes veio Domenico
os maus vícios, assim
Scarlatti, primeiro apenas para visitar Blimunda, informar-se das melhoras que tardavam,
como atrairia as boas
virtudes, coragem, ordem 50 depois demorando-se a conversar com Sete-Sóis, e um dia retirou o pano de vela que cobria
à alma e até mesmo o cravo1, sentou-se e começou a tocar, branda, suave música que mal ousava desprender-se
justiça. das cordas feridas de leve […]. Porventura seria esta a medicina que Blimunda esperava, ou,
In
dentro dela, o que ainda estaria esperando alguma coisa […]. Não esperaria Blimunda que,
https://hugoribeiro.com.br
(adaptado). ouvindo a música, o peito se lhe dilatasse tanto, um suspiro assim, como de quem morre ou
55 de quem nasce, debruçou-se Baltasar para ela, temendo que ali se acabasse quem afinal esta-
va regressando. Nessa noite, Domenico Scarlatti ficou na quinta, tocando horas e horas, até
1 depois de o segredo ter
de madrugada, já Blimunda estava de olhos abertos, corriam-lhe devagar as lágrimas, se aqui
sido divulgado e de se ter estivesse um médico diria que ela purgava2 os humores do nervo ótico ofendido, talvez tives-
estabelecido a relação entre se razão, talvez as lágrimas não sejam mais que isso, o alívio duma ofensa.
os quatro, Scarlatti trouxe um
60 Durante uma semana, todos os dias, sofrendo o vento e a chuva pelos caminhos alagados
cravo para a abegoaria, onde
muitas vezes passava a tarde de S. Sebastião da Pedreira, o músico foi tocar duas, três horas, até que Blimunda teve forças
a tocar, enquanto os trabalhos para levantar-se […]. Uma manhã, tendo aliviado o mau tempo, desceram à cidade […].
da passarola decorriam; O padre Bartolomeu Lourenço não estava em casa. […] [L]á pelo meio-dia apareceu o pa-
2 limpar, purificar pela
dre, emagrecido por outra espécie de doença, por outras visões, e, contra o seu costume,
eliminação das impurezas ou
matérias estranhas; 3 lugar 65 desmazelado de traje, como se dormisse vestido. Vendo-os ali, à porta da casa, sentados num
alto onde se põe alguma coisa poial3, cobriu a cara com as mãos, mas logo as retirou, e foi para eles como se tivesse acabado

244
Memorial do convento

de ser salvo de um grande perigo, não este que parecia pelas primeiras palavras que disse, Só
tenho estado à espera de que Baltasar viesse para me matar, julgaríamos que temeu pela sua
própria vida, e não é verdade, Não se faria justiça mais justa contra mim, Blimunda, se tives-
70 ses morrido, O senhor Escarlate sabia que eu estava melhor, Não o quis procurar, e quando
me procurou ele inventei pretextos para não o receber, fiquei à espera do meu destino,
O destino chega sempre, disse Baltasar, não ter morrido Blimunda foi meu e nosso bom des-
tino, e agora que faremos, […] se enfim se concluiu o nosso trabalho, qual será o destino dele
e de nós, padre Bartolomeu Lourenço. O padre tornou-se mais pálido, olhou em redor como
75 se temesse que alguém estivesse ouvindo, depois respondeu, Terei de informar el-rei de que
a máquina está construída, mas antes haveremos de experimentá-la, não quero que tornem
a rir-se de mim, como há quinze anos fizeram, agora voltem para a quinta, breve lá irei. […]
Deite-nos a sua bênção, padre, Não posso, não sei em nome de que Deus a deitaria, abençoem-
-se antes um ao outro, é quanto basta, pudessem ser todas as bênçãos como essa.

Excerto 4 | Cap. XVI (pp. 207)


80 Dizem que o reino anda mal governado, que nele está de menos a justiça, e não reparam
que ela está como deve estar, com sua venda nos olhos, sua balança e sua espada, que mais
queríamos nós, era o que faltava, sermos os tecelões da faixa, os aferidores dos pesos e os
alfagemes do cutelo, constantemente remendando os buracos, restituindo as quebras, amo-
lando os fios, e enfim perguntando ao justiçado se vai contente com a justiça que se lhe faz,
85 ganhado ou perdido o pleito. Dos julgamentos do Santo Ofício não se fala aqui, que esse tem
bem abertos os olhos, em vez de balança um ramo de oliveira, e uma espada afiada onde
a outra é romba e com bocas. […]

Excerto 5 | Cap. XVI (pp. 210-211)


Tornou Blimunda a perguntar, De que tem mais medo, padre
Bartolomeu Lourenço, do que poderá vir a acontecer, ou do que
90 está acontecendo, Que queres dizer, Que já o Santo Ofício acaso
se está aproximando como se aproximou de minha mãe, conhe-
ço bem os sinais, é como uma aura que envolve aqueles que se
tornaram suspeitos aos olhos dos inquisidores, ainda não sabem
do que vão ser acusados e já parecem culpados, Eu sei do que me
95 acusarão, se a minha hora chegar, dirão que me converti ao ju-
daísmo, e é verdade, dirão que me entrego a feitiçarias, e tam-
bém verdade é, se feitiçaria é esta passarola e outras artes em
que não paro de meditar, e com o que acabo de dizer estou nas
mãos de ambos e perdido estarei se me forem denunciar. Disse
100 Baltasar, Perdesse eu a outra mão, se tal fizesse. Disse Blimunda,
Se tal fizesse, não pudesse eu mais fechar os olhos e vissem sem-
pre eles como em jejum constante.

Excerto 6 | Cap. XVI (pp. 211-212)


O padre Bartolomeu Lourenço entrou violentamente na abe-
goaria, vinha pálido, lívido, cor de cinza, como um ressuscitado
105 que já fosse apodrecendo, Temos de fugir, o Santo Ofício anda à
minha procura, querem prender-me, onde estão os frascos.

245
José Saramago

Blimunda abriu a arca, retirou umas roupas, Estão aqui, e Baltasar perguntou, Que vamos
fazer. O padre tremia todo, mal podia sustentar-se de pé, Blimunda amparou-o, Que faremos,
repetiu, e ele gritou, Vamos fugir na máquina […].

Excerto 7 | Cap. XVI (p. 221)


110 Estão os três voadores à proa da máquina, vão na direção do poente […]. É Mafra, além,
grita Baltasar, […] É a minha terra, reconhece-a como um corpo. Passam velozmente sobre as
obras do convento, mas desta vez há quem os veja, gente que foge espavorida, gente que se
ajoelha ao acaso e levanta as mãos implorativas de misericórdia, gente que atira pedras, o
alvoroço toma conta de milhares de homens, quem não chegou a ver, duvida, quem viu, jura
115 e pede o testemunho do vizinho, mas provas já ninguém as pode apresentar porque a máqui-
na afastou-se na direção do sol, tornou-se invisível contra o disco refulgente, talvez não ti-
vesse sido mais que uma alucinação, já os céticos triunfam sobre a perplexidade dos que
acreditaram.

Excerto 8 | Cap. XVI (pp. 222-224)


O sol está pousado no horizonte do mar, […] está a despedir-se, adeus, até amanhã, se
120 houver amanhã para os três nautas aéreos que tombam como uma ave ferida de morte […].
Mas de súbito Blimunda solta-se de Baltasar, a quem convulsa se agarrara quando a máquina
precipitou a descida, e rodeia com os braços uma das esferas que contêm as nuvens fechadas,
as vontades, duas mil são mas não chegam, cobre-as com o corpo, como se as quisesse meter
dentro de si ou juntar-se a elas. A máquina dá um salto brusco, levanta a cabeça, cavalo a que
125 puxaram o bridão4, suspende-se por um segundo, hesita, depois recomeça a cair, mas menos
depressa, e Blimunda grita, Baltasar, Baltasar, não precisou chamar três vezes, já ele se abra-
çara com a outra esfera, fazia corpo com ela, Sete-Luas e Sete-Sóis sustentando com as suas
nuvens fechadas a máquina que baixava, agora devagar, tão devagar que mal rangeram os
vimes quando tocou o chão, só bandeou para um lado […]. Onde estamos, perguntou Blimun-
130 da, […] Não conheço onde estamos, nunca estive neste sítio, a mim parece-me uma serra,
talvez o padre Bartolomeu Lourenço tenha informações. […] Estamos em tão grande perigo
como se não tivéssemos chegado a sair da quinta, se ontem não nos encontraram, encon-
tram-nos amanhã, Mas este lugar onde estamos, como se chama, Todo o lugar da terra é
antecâmara do inferno, umas vezes vai-se morto a ele, outras vai-se vivo e a morte é depois
135 que vem, Por enquanto ainda estamos vivos, Amanhã estaremos mortos.

Excerto 9 | Cap. XVI (pp. 225-226)


[E]ra o padre com um ramo inflamado que pegava fogo à máquina, já a cobertura de vime
estalava, e de um salto Baltasar pôs-se de pé, foi para ele, e deitando-lhe os braços à cintura
puxou-o para trás, mas o padre resistia, de modo que Baltasar o apertou com violência, ati-
rou-o ao chão, calcou a pés o archote, enquanto Blimunda batia com o pano de vela as chamas
140 que tinham alastrado ao mato e agora, aos poucos, se deixavam apagar. Vencido e resignado,
o padre levantou-se. Baltasar cobria com terra a fogueira. Mal conseguiam ver-se no escuro.
Blimunda perguntou em voz baixa, num tom neutro, como se conhecesse de antemão a res-
posta, Porque foi que deitou fogo à máquina, e Bartolomeu Lourenço respondeu, no mesmo
tom, como se estivesse à espera da pergunta, Se tenho de arder numa fogueira, fosse ao
145 menos nesta. Afastou-se para as moitas que ficavam da banda do declive, viram-no baixar-se
4 freio rapidamente, e, olhando outra vez, já lá não estava, alguma necessidade urgente do corpo, se

246
Memorial do convento

ainda as tem um homem que quis deitar fogo a um sonho. O tempo passava, o padre não
reaparecia. Baltasar foi buscá-lo. Não estava. Chamou por ele, não teve resposta.

Excerto 10 | Cap. XVI (pp. 226-227)


Mal dormiram nessa noite. O padre Bartolomeu Lourenço não voltou. Ao amanhecer,
150 nasceria o sol daí a pouco, Blimunda disse, Se não estenderes a vela, se não tapares bem ta-
padas as bolas de âmbar, a máquina vai-se sozinha, nem precisa de quem a governe, talvez
fosse melhor deixá-la ir, […] e Baltasar respondeu, […] a máquina, onde está, fica, e foi esten-
der a vela embreada, cobrir de sombra o âmbar, mas não ficou satisfeito, podia a vela rasgar-
-se, ser afastada pelo vento. Com a faca cortou ramos das moitas altas, cobriu com eles a
155 máquina, e, passada uma hora, dia claro, quem de longe olhasse naquela direção não veria
mais que um amontoado vegetal no meio de um espaço de mato rasteiro […].
Levaram dois dias a chegar a Mafra, depois de um largo rodeio, por fingimento de que
vinham de Lisboa. Andava procissão na rua, todos dando graças pelo prodígio que fora Deus
servido fazer, mandando voar por cima das obras da basílica o seu Espírito Santo.

1 Atente nos excertos 1 a 3.


1.1 Indique possíveis razões para o estado de Blimunda, após a sua missão.
1.2 Explicite o estado de espírito do padre, face à doença de Blimunda, apontando
as razões para tal.
1.3 Esclareça a importância de Scarlatti para a cura de Blimunda, avançando possíveis
justificações (consulte a rubrica “Faz sentido saber”, p. 244).
1.4 Explique as últimas palavras do padre no excerto 3.

2 Concentre-se, agora, nos restantes excertos.


2.1 Exponha a razão que levou o padre a entrar violentamente na abegoaria.
2.2 Justifique a penúltima fala do padre, no final do excerto 8.
2.3 Explicite de que forma o narrador se serve do voo da passa-
rola para parodiar os dogmas da Igreja.

ORALIDADE EXPRESSÃO

1 Faça a apreciação crítica da imagem ao lado, tendo em conta os


seguintes aspetos:
• descrição da imagem, destacando elementos significativos da
sua composição;
• representatividade das cores;
• exploração da mensagem veiculada pela imagem;
• utilização de um discurso valorativo, num comentário crítico que
integre, pelo menos, três aspetos relevantes.

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247
José Saramago

LEITURA ARTIGO DE OPINIÃO

Leia o texto.

Hoje é Dia da Liberdade Religiosa

E
m 2019, a Assembleia da República apro-
vou, por unanimidade, a instituição de 22
de junho como o Dia da Liberdade Religio-
sa e do Diálogo Inter-religioso.
5 Andou bem o Parlamento ao perpetuar
de tal forma essa lei estruturante do regime demo-
crático. É que há um conjunto próprio de aspetos fun-
damentais que caracterizam a maneira como a nossa
Constituição, leis e instituições se ocupam da liberda-
10 de religiosa.
O primeiro é que ela é um direito pessoal fundamen- o contributo incalculável das confissões, em particular
tal. A adesão a um credo e estrutura religiosa não é uma da Igreja Católica, em áreas fundamentais para a coe-
consequência do passado, da família ou do entorno so- são nacional – designadamente na solidariedade so-
cial, que prevaleceria sobre os indivíduos, mas uma li- cial, no apoio às famílias, no cuidado pelos mais velhos.
15 berdade essencial de cada um deles. Uma liberdade 45 A sua força económica, cultural e espiritual também é
bem entendida: a liberdade de consciência, ou seja, de justamente considerada. Por isso, o Estado laico, sem
pensar, sentir e julgar por si próprio, agindo em confor- deixar de sê-lo, valoriza a presença das religiões no
midade; logo, a liberdade de crença, que é a de enunciar espaço público, integra-as no grande quadro democrá-
o que se pensa e sente como um saber e uma atitude tico, coopera com todas e, sem ferir o pluralismo e a
20 religiosa específica; e, logo, a liberdade de culto, que é 50 igualdade, reconhece o peso próprio da Igreja social-
a de se juntar com outros e de praticar sem receio, coa- mente mais representativa.
ção ou limitação, os atos correspondentes a tal crença. Julgo, não – muitos julgam. E prova disso é o pro-
Esta liberdade não se circunscreve à escolha entre tagonismo crescente de Portugal nas atividades inter-
as religiões. É, crucialmente, a liberdade de decidir ter nacionais de diálogo inter-religioso. Que Jorge Sampaio
25 ou não ter religião, ter e deixar de ter religião, mudar de 55 tanto estimulou enquanto primeiro representante para
religião, opinar sobre o fenómeno e as fés religiosas, a Aliança das Civilizações. Que o Centro Norte-Sul do
examinar criticamente os seus fundamentos e preten- Conselho da Europa, estabelecido em Lisboa, há vários
sões, sem ser impedido ou penalizado por isso. E, não anos promove. Que a escolha da nossa capital para a
menos importante, é a liberdade de cada um e cada sede mundial do Imamat Ismaeli tão bem simbolizou.
30 uma, nas decisões que lhe digam respeito, não ter de se 60 E que tem agora uma nova valência, com a instalação
conformar, total ou parcialmente, se o não quiser, com em curso, entre nós, do KAICIID (Centro Rei Abdullah
os preceitos da sua religião. para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural, que junta,
Em terceiro lugar, também aqui liberdade quer dizer além de Portugal, a Arábia Saudita, a Áustria, a Espa-
pluralismo – como aceitação e valorização da diversi- nha e o Vaticano).
35 dade das consciências, das crenças e dos cultos – e 65 Liberdade de religião, igualdade entre religiões, diá-
igualdade entre as várias religiões, as quais dispõem do logo das religiões entre si e com toda a sociedade, em
mesmo direito a existir, divulgar-se, agir e participar na clima de tolerância e respeito mútuo: não são esses
sociedade, sem constrangimento ou discriminação. bons motivos para celebrar este dia?
Portugal deve orgulhar-se de ser um dos países do Augusto Santos Silva, in https://www.parlamento.pt,
40 mundo com maior liberdade religiosa. E de contar com consultado em 01/12/2022 (com supressões).

248
Memorial do convento

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.5, selecione a opção correta.

1.1 Dos aspetos fundamentais que caracterizam a maneira como no nosso país é vista
a liberdade religiosa destaca-se o facto de a
A. liberdade política ser um direito pessoal fundamental.
B. adesão a um credo ser uma consequência do passado de cada um.
C. liberdade de pensar e de julgar por si próprio ser um direito de cada um.
D. liberdade de culto e de coação serem direitos fundamentais humanos.

1.2 A afirmação “Esta liberdade não se circunscreve à escolha entre religiões” (ll. 23-24),
significa que
A. a opção religiosa de cada um deve ir ao encontro das crenças familiares.
B. se deve opinar, sem escrúpulos, sobre as diferentes fés religiosas.
C. todos devem aceitar os fundamentos religiosos da sua comunidade.
D. a liberdade de decidir ter ou não religião e de ser crítico tem de ser respeitada.

1.3 Quando o autor do texto encara a liberdade como uma forma de “pluralismo”,
pretende
A. afirmar que todos somos seres diferentes e únicos e, mesmo não sendo todos
iguais, temos de obedecer à norma padrão das sociedades.
B. reivindicar a necessidade de todos os cidadãos do mesmo país adotarem cren-
ças, costumes e cultos religiosos iguais.
C. confirmar a uniformidade da sociedade em que vivemos, onde se assiste ao
comungar das mesmas crenças religiosas entre indivíduos.
D. evidenciar a importância da aceitação e valorização de diferentes e diversas
crenças, culturas e cultos religiosos.

1.4 Portugal é, na atualidade, um dos países com maior liberdade religiosa sendo que
A. o Estado laico promove a integração das diferentes religiões no quadro demo-
gráfico, valorizando a sua presença no espaço público.
B. a força económica, cultural e espiritual da Igreja é crucial para assegurar a
presença de uma só religião em cada cidade ou conjunto de cidades.
C. o contributo das confissões, em particular da Igreja Evangélica, para a coope-
ração e coesão nacionais, é incalculável.
D. o respeito pelo pluralismo e pela igualdade são máximas respeitadas incondi-
cionalmente em todo o país, por existir uma religião dominante.

1.5 O crescente protagonismo de Portugal nas atividades internacionais de diálogo


inter-religioso
A. deve-se a vários políticos portugueses, ainda que Jorge Sampaio não estives-
se de acordo.
B. está simbolizado na atual presença dos nossos principais representantes
políticos nas conferências religiosas internacionais.
C. foi estimulado pelo Centro Norte-Sul, enquanto primeiro representante para a
Aliança das Civilizações. Teste interativo:
D. está muito bem representado pela escolha da nossa capital para a sede mun- José Saramago, Memorial
do convento
dial do Imamat Ismaeli.

249
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

[…] O tratamento irónico, até sarcástico, que o narrador dá à matéria da narrativa, no


que diz respeito à primeira ação […], a construção do convento de Mafra em cumprimento
de um voto de D. João V […], cumpre assim uma estratégia narrativa que consiste em des-
mistificar (mostrar a falsidade, ou, pelo menos, a parcialidade) da História que sempre nos
tem sido transmitida oficialmente. Essa História é sempre a História dos vencedores (dos
varões vencedores), poderosos, e porque poderosos, exploradores das fraquezas dos outros,
das mulheres e dos humildes. Há toda uma outra História por fazer, e José Saramago, em
Memorial do convento, decidiu-se por não bem fazer a História (ele não é nem pretende ser
historiador), mas incluir na história da construção do convento precisamente os humilhados
e ofendidos, os explorados e mortos, aqueles cujos nomes vão de A a Z, o que quer dizer
anónimos, irmãos, em tempo de cristandade e em país cristão, para maior escândalo […]

Maria Joaquina Nobre Júlio, Memorial do convento de José Saramago: subsídios para uma leitura,
Lisboa, Replicação, 1999, p. 43.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia os excertos. Se necessário, consulte as notas.

O sacrifício dos verdadeiros heróis

Excerto 1 | Cap. XVII (pp. 233-234, 235, 237 e 238)


[O] sítio […] era conhecido pelo nome de Ilha da Madeira, e bem posto lhe fora, porque,
tirando umas poucas casas de pedra e cal, todo o mais era de tabuado, mas construído para
durar. Havia oficinas de ferreiros, […] e outras artes […], mais tarde se juntarão as dos latoei-
1 o que faz ou vende obras de ros1, dos vidraceiros, dos pintores, e quantas mais. Muitas das casas de madeira tinham so-
latão ou de lata; 2 pavimento 5 brados2, em baixo acomodavam-se as bestas e os bois, em cima as pessoas de muita ou
de madeira; 3 administração;
4 depois de terem regressado
alguma distinção, os mestres da obra, os matriculadores e outros senhores da vedoria-geral3,
a Mafra, Baltasar passou a ser e oficiais da guerra que governavam os soldados. A esta hora da manhã estavam saindo das
mais um entre os milhares lojas os bois e as mulas, outros teriam sido levados mais cedo, o chão empapava-se de urina
de trabalhadores nas obras
e excrementos […].
do convento
10 Nestas grandes barracas de madeira dormem os homens, não comporta cada uma menos
de duzentos […].
[S]e Cristo em pessoa andou pelo mundo, aqui não chegou, porque nesse caso teria sido
no alto da Vela o seu calvário […].
Desde que o sol nasce até que se põe, […] setecentos, mil, mil e duzentos homens, carre-
15 gam os carros com terra e pedras […].

Excerto 2 | Cap. XVII (pp. 244 e 246)


Meados de dezembro, voltava Baltasar para casa ao fim do dia4, quando viu Blimunda,
que, como quase sempre, o viera esperar ao caminho, porém, havia nela uma agitação e uma
tremura não costumadas, […] [O] senhor Escarlate está em casa do senhor visconde, que terá
ele vindo cá fazer […].

250
20 Saiu o músico a visitar o convento e viu Blimunda, disfarçou
um, o outro disfarçou, que em Mafra não haveria morador que
não estranhasse, e estranhando não fizesse logo seus juízos mui-
to duvidosos, ver a mulher do Sete-Sóis conversando de igual
com o músico que está em casa do visconde, que terá ele vindo
25 cá fazer, ora veio ver as obras do convento, para quê se não é pe-
dreiro nem arquiteto, para organista ainda o órgão nos falta, isso
a razão há de ser outra, Vim-te dizer, e a Baltasar, que o padre
Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo, que é em Espanha,
para onde tinha fugido, dizem que louco, e como não se falava de
30 ti nem de Baltasar, resolvi vir a Mafra saber se estavam vivos.

Excerto 3 | Cap. XVIII (pp. 249-251 e 252)


Em seu trono entre o brilho das estrelas, com seu manto de
noite e solidão, tem aos seus pés o mar novo e as mortas eras,
o único imperador que tem, deveras, o globo mundo em sua mão, este tal foi o infante
D. Henrique, consoante o louvará um poeta por ora ainda não nascido, lá tem cada um as suas
35 simpatias, mas, se é de globo mundo que se trata e de império e rendimentos que impérios
dão, faz o infante D. Henrique fraca figura comparado com este D. João, quinto já se sabe de 5 indivíduo encarregado da
contabilidade; 6 embutidos
seu nome na tabela dos reis, sentado numa cadeira de braços de pau-santo, para mais como-
de metal em aço ou ferro;
damente estar e assim com outro sossego atender ao guarda-livros5 que vai escriturando no 7 tubérculo; 8 substância
rol os bens e as riquezas, de Macau as sedas, os estofos, as porcelanas, os lacados, o chá, a pi- corante de azul; 9 espécie
40 menta, o cobre, o âmbar cinzento, o ouro, de Goa os diamantes brutos, os rubis, as pérolas, a de goma ou resina parecida
com o incenso
canela, mais pimenta, os panos de algodão, o salitre, de Diu os tapetes, os móveis tauxiados6,
as colchas bordadas, de Melinde o marfim, de Moçambique os negros, o ouro, de Angola outros
negros, mas estes menos bons, o marfim, que esse, sim, é o melhor do lado ocidental da África,
de São Tomé a madeira, a farinha de mandioca, as bananas, os inhames7, as galinhas, os car-
45 neiros, os cabritos, o indigo8, o açúcar, de Cabo Verde alguns negros, a cera, o marfim, os
couros, ficando explicado que nem todo o marfim é de elefante, dos Açores e Madeira os panos,
o trigo, os licores, os vinhos secos, as aguardentes, as cascas de limão cristalizadas, os frutos,
e dos lugares que hão de vir a ser Brasil o açúcar, o tabaco, o copal9, o indigo, a madeira, os
couros, o algodão, o cacau, os diamantes, as esmeraldas, a prata, o ouro, […] tudo somado, de
50 dentro e de fora, entram nas burras de el-rei para cima de dezasseis milhões de cruzados […].
Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza,
medita hoje e ontem meditou, e sempre conclui que a alma há de ser a primeira consideração
[…]. Vá pois ao frade e à freira o necessário, vá também o supérfluo, porque o frade me põe
em primeiro lugar nas suas orações, porque a freira me aconchega a dobra do lençol e outras
55 partes, e a Roma, se com bom dinheiro lhe pagámos para ter o Santo Ofício, vá mais quanto
ela pedir por menos cruentas benfeitorias, a troco de embaixadas e presentes, e se desta pobre
terra de analfabetos, de rústicos, de toscos artífices não se podem esperar supremas artes e
ofícios, encomendem-se à Europa, para o meu convento de Mafra, pagando-se, com o ouro
das minhas minas e mais fazendas, os recheios e ornamentos, que deixarão, como dirá o
60 frade historiador, ricos os artífices de lá, e a nós, vendo-os, aos ornamentos e recheios, admi-
rados. De Portugal não se requeira mais que pedra, tijolo e lenha para queimar, e homens para
a força bruta, ciência pouca. […] Desde que na vila de Mafra, já lá vão oito anos, foi lançada a
primeira pedra da basílica, essa de Pêro Pinheiro graças a Deus, tudo quanto é Europa vira
consoladamente a lembrança para nós, para o dinheiro que receberam adiantado, muito mais
65 para o que hão de cobrar no termo de cada prazo e na obra acabada […].

251
José Saramago

Vão as formigas ao mel, ao açúcar derramado, ao maná que cai do céu, são quê, quantas,
talvez umas vinte mil […].

Excerto 4 | Cap. XIX (pp. 265-267 e 270)


[H]ouve notícia de que era preciso ir a Pêro Pinheiro buscar uma pedra muito grande que
lá estava, destinada à varanda que ficará sobre o pórtico da igreja, tão excessiva a tal pedra
70 que foram calculadas em duzentas as juntas de bois10 necessárias para trazê-la, e muitos os
homens que tinham de ir também para as ajudas. Em Pêro Pinheiro se construíra o carro que
haveria de carregar o calhau, espécie de nau da Índia com rodas, isto dizia quem já o tinha
visto em acabamentos e igualmente pusera os olhos, alguma vez, na nau da comparação.
Exagero será, decerto, melhor é julgarmos pelos nossos próprios olhos, com todos estes ho-
75 mens que se estão levantando noite ainda e vão partir para Pêro Pinheiro, eles e os quatro-
centos bois, e mais de vinte carros que levam os petrechos para a condução, […] vão na viagem
José Pequeno e Baltasar, conduzindo cada qual sua junta, e, entre o pessoal peão, só para as
forças chamado, vai o de Cheleiros, aquele que lá tem a mulher e os filhos, Francisco Marques
é o nome dele, e também vai o Manuel Milho, o das ideias que lhe vêm e não sabe donde. Vão
80 outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos os Baltasares, e haverá Joões, Álvaros,
Antónios e Joaquins, talvez Bartolomeus, mas nenhum o tal, e Pedros, e Vicentes, e Bentos,
Bernardos e Caetanos, tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também,
sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vi-
das, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para
85 isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão,
Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre,
Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada
um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes nomes serão os próprios
do tempo e do lugar, menos ainda da gente, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não
90 se acabarão os trabalhos, e alguns destes estarão no futuro

de alguns daqueles, à espera de quem vier a ter o nome e


a profissão. De quantos pertencem ao alfabeto da amostra
e vão a Pêro Pinheiro, pese-nos deixar ir sem vida contada
aquele Brás que é ruivo e camões do olho direito, não tar-
95 daria que se começasse a dizer que isto é uma terra de de-

feituosos, um marreco, um maneta, um zarolho, e que


estamos a exagerar a cor da tinta, que para heróis se deve-
rão escolher os belos e formosos, os esbeltos e escorreitos,
os inteiros e completos, assim o tínhamos querido, porém,
100 verdades são verdades […].

[A] laje tem de comprimento trinta e cinco palmos, de


largura quinze, e a espessura é de quatro palmos, e, para
ser completa a notícia, depois de lavrada e polida, lá em
Mafra, ficará só um pouco mais pequena, trinta e dois pal-
105 mos, catorze, três, pela mesma ordem e partes, e quando

um dia se acabarem palmos e pés por se terem achado me-


tros na terra, irão outros homens a tirar outras medidas e
encontrarão sete metros, três metros, sessenta e quatro
centímetros, tome nota, e porque também os pesos velhos
110 levaram o caminho das medidas velhas, em vez de duas

mil cento e doze arrobas, diremos que o peso da pedra

252
Memorial do convento

da varanda da casa a que se chamará de Benedictione é de trinta e um mil e vinte e um quilos,


10 par de bois;
trinta e uma toneladas em números redondos, senhoras e senhores visitantes, e agora pas- 11 o que abastece de água;
semos à sala seguinte, que ainda temos muito que andar. 12 medida antiga que
equivalia à quarta parte de um
almude (= 25 litros); 13 corda
Excerto 5 | Cap. XIX (pp. 282, 283, 284 e 285-286) grossa; 14 que não condiz com
a cronologia
115 Em todo aquele verão não houve dia mais quente, a terra parecia uma braseira, o sol uma
espora cravada nas costas. Os aguadeiros11 corriam a longa fila, levando quartões12 de água
ao ombro, iam buscá-la aos poços que por ali havia, nas terras baixas, às vezes muito afasta-
dos, e tinham de trepar monte acima por carreiros de pé posto, para encher as dornas, não
podem as galés ser piores do que isto. Perto da hora de jantar chegaram a um alto donde se
120 via Cheleiros, no fundo do vale. Com isto mesmo é que Francisco Marques vinha contando,
quer conseguissem descer quer não, esta noite em companhia da mulher é que ninguém lha
tiraria. […] [A] plataforma ia descer a pulso. Não havia outra maneira. […]
Como foi, digam-no outros que mais saibam. Seiscentos homens agarrados desesperada-
mente aos doze calabres13 que tinham sido fixados na traseira da plataforma, seiscentos ho-
125 mens que sentiam, com o tempo e o esforço, ir-se-lhes aos poucos a tesura dos músculos,
seiscentos homens que eram seiscentos medos de ser, agora sim, ontem aquilo foi uma brin-
cadeira de rapazes, […] e tudo por causa de uma pedra que não precisaria ser tão grande, com
três ou dez mais pequenas se faria do mesmo modo a varanda, apenas não teríamos o orgulho
de poder dizer a sua majestade, É só uma pedra, e aos visitantes, antes de passarem à outra
130 sala, É uma pedra só, por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai disseminando o ludí-
brio geral, com suas formas nacionais e particulares, como esta de afirmar nos compêndios
e histórias, Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez
se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha
e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica14 voz. […]
135 O carro vai descendo até à entrada da curva, tão encostado à parte interior dela quanto
possível, e aí é calçada a roda da frente desse mesmo lado, porém, não há de o calço ser tão
sólido que por si só trave o carro inteiro, nem tão frágil que se deixe esmagar pelo peso, se
achar que não tem o caso supremas dificuldades é porque não levou esta pedra de Pêro
Pinheiro a Mafra e apenas assistiu sentado, ou se limita a olhar de longe, do lugar e do tempo
140 desta página. […] A regra é outra, a regra é outra vez a enorme força que vai ser preciso aplicar
nos sítios ótimos […]. Aplicam-se as alavancas às quatro rodas posteriores, tenta-se deslocar o
carro, meio palmo que seja, para o lado exterior da curva, os homens que trabalham às cordas
ajudam puxando na mesma direção, é uma balbúrdia, com os das alavancas de fora entre uma
floresta de calabres esticados e tensos como fios de lâmina, com os das cordas às vezes dispos-
145 tos pela encosta abaixo, não raro escorregando e rolando, por enquanto sem maior mal. Cedeu
finalmente o carro, deslocou-se um ou dois palmos, mas, lá à frente, pelo tempo que esta
manobra durou, a roda do lado de fora foi sucessivamente calçada e descalçada, para prevenir
o perigo de se desmandar a plataforma no meio de um destes movimentos […]. Em cima deste
valado está o diabo assistindo, pasmando da sua própria inocência e misericórdia por nunca
150 ter imaginado suplício assim para coroação dos castigos do seu inferno.
Um dos homens que trabalham aos calços é Francisco Marques. Provou já a sua destreza,
[…] por acaso agora nem pensa na mulher, a cada coisa seu tempo, toda a atenção se fixa na roda
que vai começar a mover-se, que será preciso travar, não tão cedo que torne inútil o esforço que
lá atrás estão fazendo os companheiros, não tão tarde que ganhe o carro velocidade e se escape
155 ao calço. Como agora aconteceu. Distraiu-se talvez Francisco Marques, ou enxugou com o an-
tebraço o suor da testa, ou olhou cá do alto a sua vila de Cheleiros, enfim se lembrando da
mulher, fugiu-lhe o calço da mão no preciso momento em que a plataforma deslizava, não se

253
José Saramago

sabe como isto foi, apenas que o corpo está de-


baixo do carro, esmagado, passou-lhe a primeira
160 roda por cima, mais de duas mil arrobas só a pe-
dra, se ainda estamos lembrados. […]
Tiraram Francisco Marques de debaixo do
carro. A roda passara-lhe sobre o ventre, feito
numa pasta de vísceras e ossos, por um pouco
165 se lhe separavam as pernas do tronco, falamos
da sua perna esquerda e da sua perna direita,
que da outra, a tal do meio, a inquieta, aquela
por amor da qual fez Francisco Marques tantas
caminhadas, dessa não há sinal, nem vestígio, nem um simples farrapito. Trouxeram um
170 esquife15, puseram-lhe o corpo em cima, enrolado numa manta que ficou logo empapada em
sangue, dois homens pegaram aos varais16, outros dois para revezamento os acompanharam,
os quatro para dizer à viúva, Trazemos aqui o seu homem, vão declará-lo a esta mulher que
assomou agora ao postigo, que olha o monte onde está seu marido, e diz aos filhos, Vosso pai
esta noite dorme em casa.

Excerto 6 | Cap. XIX (pp. 289-290)


175 Ao outro dia, que foi domingo, houve missa e sermão. […] Pregou o frade e disse, como
dizem todos, Amados filhos, dos altos céus nos vê Nossa Senhora e o seu Divino Filho, dos
altos céus nos contempla também o nosso padre Santo António, por amor de quem levamos
esta pedra à vila de Mafra, é certo que pesada, mas muito mais pesados são os vossos pecados,
e contudo andais com eles no coração como se vos não carregassem, por isso deveis tomar
180 esta transportação como penitência, e também amorosa oferta, singular penitência, oferta
estranha, pois não só vo-las pagam com o salário do contrato, como também vo-las remune-
rará a indulgência do céu, porque em verdade vos digo que levar esta pedra a Mafra é obra
tão santa como foi a dos antigos cruzados quando partiram a libertar os Santos Lugares, sabei
que todos quantos lá morreram gozam hoje da vida eterna, e juntamente com eles, contem-
185 plando a face do Senhor, já lá está aquele vosso companheiro que morreu anteontem, precio-
so sucesso que foi ter sido a sua morte a uma sexta-feira, sem dúvida morreu sem confissão,
não houve tempo de chegar-lhe um confessor à cabeceira, já estava morto quando fostes por
ele, mas salvou-o ser cruzado desta cruzada […].

Excerto 7 | Cap. XIX (p. 291)


Dormiram ainda outra noite no caminho. Entre Pêro Pinheiro e Mafra gastaram oito dias
190 completos. Quando entraram no terreiro, foi como se estivessem chegando duma guerra
15 pequeno leito modesto;
16 varas onde se atrela perdida, sujos, esfarrapados, sem riquezas. Toda a gente se admirava com o tamanho desme-
o esquife dido da pedra, Tão grande. Mas Baltasar murmurou, olhando a basílica, Tão pequena.

1 Atente no excerto 1.
1.1 Exponha as condições a que os trabalhadores das obras do convento estavam
sujeitos.
1.2 Explique a intenção do narrador quando afirma “se Cristo em pessoa andou pelo
mundo, aqui não chegou, porque nesse caso teria sido no alto da Vela o seu cal-
vário” (ll. 12-13).

254
Memorial do convento

2 Concentre-se, agora, no excerto 2.


2.1 Indique o que foi Domenico Scarlatti fazer a Mafra.

3 Preste atenção ao excerto 3.


3.1 Identifique “o poeta por ora ainda não nascido” referido pelo narrador logo no início
do excerto.
3.2 Demonstre de que forma se assiste, neste excerto, à presença de dois tempos
distintos: o da história e o da narrativa.
3.3 Comente a expressividade da enumeração presente no 1.º parágrafo do excerto.
3.4 Explicite a crítica feita pelo narrador sobre a forma como os portugueses eram
reconhecidos.
3.5 Demonstre a negligência do rei D. João V na gestão dos bens da coroa.

4 Considere, agora, os excertos 4 a 7.


4.1 Refira os elementos que contribuem para que se possa afirmar que o transporte
da pedra da varanda assume contornos descomunais.
4.1.1 Refira as estratégias linguísticas mobilizadas para a construção desse ce-
nário.
4.2 Relacione as palavras do narrador – “Em cima deste valado está o diabo assis-
tindo, pasmando da sua própria inocência e misericórdia por nunca ter imaginado
suplício assim para coroação dos castigos do seu inferno” (ll. 148-150, excerto 5) – com
a dimensão heroica vislumbrada.
4.3 Explique a intenção do narrador ao enunciar os nomes de homens, percorrendo
todo o alfabeto, e ao descrever fisicamente os trabalhadores do convento.
4.4 Justifique as palavras do narrador, quando afirma “com perdão da anacrónica voz”
(l. 134, excerto 5).

4.5 Explique a visão crítica subjacente ao sermão pregado pelo padre no dia seguinte
à morte de Francisco Marques (excerto 6).

5 Trace um paralelo entre os heróis de Os Lusíadas e os homens


FAZ SENTIDO RELACIONAR

que transportaram a pedra quanto à forma como o seu trabalho foi reconhecido.

CONSTRUIR SENTIDOS

1 Leia, agora, na íntegra, os capítulos XIX e XX de Memorial do convento e responda


às questões que se seguem.
1.1 Sintetize a história narrada por Manuel Milho durante os dias que demorou o trans-
porte da pedra.

1.2 Relacione a história contada por Manuel Milho com a relação do rei e da rainha
e com os trabalhadores que transportaram a pedra.

1.3 Faça um pequeno resumo dos acontecimentos narrados no capítulo XX.

255
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

Símbolo da prepotência de um rei caprichoso que não sabia como delapidar as imensas
FAZ SENTIDO SABER
riquezas que lhe chegavam do Brasil e da Índia, o convento de Mafra, réplica da basílica
O convento de Mafra
de S. Pedro em Roma, que D. João quis, mas não pôde imitar em Lisboa, é a expressão,
começou por ser um
projeto de pequenas que ficou para a História, de uma época de contradições, de aparências, de perversos
dimensões, para albergar conluios entre a política e a religião, o poder do rei absoluto e da Igreja, também ela ab-
13 frades com voto de soluta. Este aspeto é francamente denunciado no romance com a ironia, o sarcasmo, que
pobreza, no entanto,
acabou por ser um
caracterizam a escrita do autor quando os temas sobre os quais se debruça, e este é, sem
imponente testemunho dúvida, um deles, a isso o convidam.
da promessa de D. João V, Mas se os podres da alta sociedade civil e eclesiástica do séc. XVIII são francamente
pelo nascimento
denunciados, os simples e os pobres, os que, por motivos hoje irrisórios, eram condena-
de um filho.
A partir da primeira dos aos autos de fé, e os milhares de trabalhadores que, a suor e sangue, alguns ao
pedra, lançada no dia preço da própria vida, construíram o convento, são objeto [de] compaixão.
17 de novembro de
1717, a aldeia ficaria Maria Joaquina Nobre Júlio, Memorial do convento de José Saramago: subsídios para uma leitura,
outra, transformada num Lisboa, Replicação, 1999, pp. 29-30.
enorme estaleiro onde
iriam trabalhar cerca
de 45 mil operários e
sete mil soldados: já não
era apenas um convento EDUCAÇÃO LITERÁRIA
para franciscanos que
estava a ser erguido, Leia os excertos que se seguem. Se necessário, consulte as notas.
mas um grandioso e
complexo edifício capaz
de acomodar centenas A megalomania do rei
de hóspedes.
Treze anos depois
do início da construção, Excerto 1 | Cap. XXI (pp. 309-310 e 312)
obra inicialmente a cargo
do arquiteto alemão D. João V mandou chamar o arquiteto de Mafra, um tal João Frederico Ludovice, que é ale-
Frederico Ludovice, mas mão escrito à portuguesa, e disse-lhe sem outros rodeios, É minha vontade que seja construída
a quem se seguiriam
depois outros arquitetos,
na corte uma igreja como a de S. Pedro de Roma, […]. Ora, a um rei nunca se diz não, e este
ficou a basílica pronta Ludovice […] sabe que uma vida, para ser bem-sucedida, haverá de ser conciliadora […]. Porém,
para o aniversário 5 há limites, este rei não sabe o que pede, é tolo, é néscio, se julga que a simples vontade, mesmo
do rei, porém, seriam
real, faz nascer um Bramante, um Rafael, um Sangallo, um Peruzzi, um Buonarroti,
necessários muitos anos
de trabalho até à sua um Fontana, um Della Porta, um Maderno1, se julga que basta vir dizer-me, a mim, […] Que-
execução principal estar ro S. Pedro, e S. Pedro aparece feito, quando eu o que sei fazer é só Mafras, […] o que é preci-
concluída, em 1744. so é dar-lhe a boa resposta, aquele não que mais lisonjeia do
O monumento possui uma
10 que o sim lisonjearia, […] A vontade de vossa majestade
fachada com mais de
230 metros de é digna do grande rei que mandou edificar Mafra,
comprimento, 4500 portas porém, as vidas são breves, majestade, e S. Pedro,
e janelas, 880 quartos entre a bênção da primeira pedra e a consagra-
e salas, torres com
62 metros de altura
ção, consumiu cento e vinte anos de trabalhos
e mais de 200 toneladas 15 e riquezas, vossa majestade, que eu saiba,
de sinos dos icónicos nunca lá esteve, julga pelo modelo de armar
carrilhões que ainda
que aí tem, talvez nem daqui a duzentos e
tocam em dias de festa.
In quarenta anos o conseguíssemos, estaria vos-
https://ensina.rtp.pt sa majestade morta, mortos estariam vossos
(adaptado e com 20 filho, neto, bisneto, trineto e tetraneto, o que eu
supressões).
pergunto, com todo o respeito, é se vale a pena

256
estar a construir uma basílica que só ficará terminada no ano dois mil, supondo
que nessa altura ainda há mundo, no entanto vossa majestade decidirá […].
Enfim o rei bate na testa, resplandece-lhe a fronte, rodeia-a o nimbo2 da inspira-
25 ção, E se aumentássemos para duzentos frades o convento de Mafra, quem diz du-
zentos, diz quinhentos, diz mil, estou que seria uma ação de não menor grandeza que
a basílica que não pode haver. O arquiteto ponderou, Mil frades, quinhentos frades,
é muito frade, majestade, acabávamos por ter de fazer uma igreja tão grande como
a de Roma, para lá poderem caber todos, Então, quantos, Digamos trezentos, e mes-
30 mo assim já vai ser pequena para eles a basílica que desenhei e está a ser construída,
com muitos vagares, se me é permitido o reparo, Sejam trezentos, não se discute mais, é esta a
minha vontade […].
1 artistas conceituados;
2 círculo luminoso, auréola;
Excerto 2 | Cap. XXI (pp. 313-314)
3 tesoureiro da casa real;
[F]icou o rei, que está em sua casa, agora esperando que regresse o almoxarife3 que foi pelos 4 livro que tem o formato de
folhas de impressão dobradas
livros da escrituração, e quando ele volta pergunta-lhe, depois de colocados sobre
uma vez, resultando em duas
35 a mesa os enormes infólios4, Então diz-me lá como estamos de deve e haver. O guarda-livros […] folhas que formam quatro
contenta-se com dizer, Saiba vossa majestade que, haver, havemos cada vez menos, páginas
e dever, devemos cada vez mais, Já o mês passado me disseste o mesmo, E também o outro mês,
e o ano que lá vai, por este andar ainda acabamos por ver o fundo ao saco, majestade, Está longe
daqui o fundo dos nossos sacos, um no Brasil, outro na Índia, quando se esgotarem vamos sabê-lo
40 com tão grande atraso que poderemos então dizer, afinal estávamos pobres e não sabíamos, Se
vossa majestade me perdoa o atrevimento, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos […].

Excerto 3 | Cap. XXI (pp. 320, 321-324 e 325)


Subitamente, el-rei compreende que a sua vida será curta, […] que ele próprio poderá ama-
nhã fechar os olhos para todo o sempre. […] Ora, Mafra já engoliu onze anos de trabalho, das
riquezas nem se deve falar, Quem me garante que estarei vivo quando se fizer a sagração […].
45 [E] então el-rei mandou apurar quando cairia o dia do seu aniversário, vinte e dois de outu-
bro, a um domingo, tendo os secretários respondido, após cuidadosa verificação do calendário,
que tal coincidência se daria daí a dois anos, em mil setecentos e trinta, Então é nesse dia que
se fará a sagração da basílica de Mafra, assim o quero, ordeno e determino, e quando isto ouvi-
ram foram os camaristas beijar a mão do seu senhor, vós me direis qual é mais excelente, se ser
50 do mundo rei, se desta gente.
Deitaram reverentemente alguma água na fervura João Frederico Ludovice e o doutor Lean-
dro de Melo, […] os quais […] disseram que o estado da obra não consentia tão feliz previsão […].
Carregou-se o sobrecenho de D. João V, porque a cansada lisonja em nada o aliviara, e indo abrir
a boca para responder com secura, preferiu chamar outra vez os secretários e perguntar-lhes
55 em que data voltaria a cair a um domingo o seu aniversário, passada esta de mil setecentos e
trinta, pelos vistos não bastante prazo. Trabalharam eles afanosamente as suas aritméticas e
com alguma dúvida responderam que o acontecimento tornaria a dar-se dez anos depois, em
mil setecentos e quarenta. […]
Porém, D. João V teve um pensamento negro, viu-se-lhe na cara, e faz rápidas contas, mentais,
60 com ajuda dos dedos, Em mil setecentos e quarenta terei cinquenta e um anos, e acrescentou
lugubremente, Se ainda for vivo. E por alguns terríveis minutos tornou a subir este rei ao Monte
das Oliveiras, ali se agoniou com o medo da morte e o pavor do roubo que lhe seria feito, agora
acrescentando um sentimento de inveja, imaginar seu filho já rei, com a rainha nova que está
para vir de Espanha, gozando ambos as delícias de inaugurar e ver sagrar Mafra, enquanto ele

257
José Saramago

65 estaria apodrecendo em S. Vicente de Fora […]. Estavam os circunstantes olhando o rei […]. Todos
esperavam. E então D. João V disse, A sagração da basílica de Mafra será feita no dia vinte e dois
de outubro de mil setecentos e trinta, tanto faz que o tempo sobre como falte, venha sol ou venha
chuva, caia a neve ou sopre o vento, nem que se alague o mundo ou lhe dê o tranglomango5. […]
Ordeno que a todos os corregedores do reino se mande que reúnam e enviem para Mafra
70 quantos operários se encontrarem nas suas jurisdições, sejam eles carpinteiros, pedreiros ou
braçais, retirando-os, ainda que por violência, dos seus mesteres, e que sob nenhum pretexto os
deixem ficar, não lhes valendo considerações de família, dependência ou anterior obrigação, por-
que nada está acima da vontade real, salvo a vontade divina, e a esta ninguém poderá invocar, que
o fará em vão, porque precisamente para serviço dela se ordena esta providência, tenho dito. […]
75 Foram as ordens, vieram os homens. De sua própria vontade alguns, aliciados pela pro-
messa de bom salário, por gosto de aventura outros, por desprendimento de afetos também,
à força quase todos. […]
Já vai andando a récua6 dos homens de Arganil, acompanham-nos até fora da vila as infeli-
zes, que vão clamando, qual em cabelo, Ó doce e amado esposo, e outra protestando, Ó filho,
80 a quem eu tinha só para refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha, não se aca-
bavam as lamentações, tanto que os montes de mais perto respondiam, quase movidos de alta
piedade, enfim já os levados se afastam, vão sumir-se na volta do caminho, rasos de lágrimas
os olhos, em bagadas caindo aos mais sensíveis, e então uma grande voz se levanta, é um labre-
go de tanta idade já que o não quiseram, e grita subido a um valado que é púlpito de rústicos,
85 Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem justiça, e tendo assim clamado, veio
dar-lhe o quadrilheiro7 uma cacetada na cabeça, que ali mesmo o deixou por morto.

5 qualquer doença ou mal; 6 fileira de bestas de carga; 7 soldado que fazia a ronda das ruas

1 Demonstre como os três excertos refletem a megalomania e o absolutismo de D. João V.


1.1 Apresente outras facetas de D. João V que contrastam com as anteriores.

2 Demonstre como no 1.º parágrafo do excerto 1 se assiste a diferentes modos de repro-


dução do discurso no discurso.

3 FAZ SENTIDO RELACIONAR Justifique a intertextualidade com Os Lusíadas presente no


excerto 3.
3.1 Exponha as semelhanças e as diferenças entre o velho do Restelo e “o labrego
de tanta idade”, avançando uma explicação que justifique as diferenças encontradas.

CONSTRUIR SENTIDOS

1 Leia, agora, na íntegra, o capítulo XXII de Memorial do convento.


1.1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações.
A. Neste capítulo, assiste-se ao casamento da Infanta Maria Bárbara com
o príncipe D. Fernando de Castela e ao casamento do príncipe D. José com
Mariana Vitória.
B. Antes de se casar, a Infanta Maria Bárbara vai visitar as obras do convento.
C. Durante uma conversa entre João Elvas e Julião Mau Tempo é lançada a
suspeita de que Baltasar teria voado com Bartolomeu Lourenço de Gusmão.

258
Memorial do convento

ANTECIPAR SENTIDOS

A lógica da personagem de Baltasar, como elemento do maravilhoso popular, contém


em si o elemento do trágico, não pela sua deficiência, […] mas pelo que Baltasar ousou:
subir aos céus, o que desafiava a autoridade religiosa, dado o céu ser considerado mora-
da divina, e, portanto, inacessível ao homem. Neste desafio e nesta ousadia assentam
o seu destino final; Baltasar é reduzido a nada pelo fogo da instituição que bloqueou
o avanço português de Quinhentos […].
Mas, verdadeiramente, Saramago […] não poderia reduzir a nada Baltasar-povo, a von-
tade de Baltasar não poderia ir para as estrelas e aí perder-se como ar da respiração de
Deus, a vontade de Baltasar teria que ficar na terra, no corpo de Blimunda, que, como outra
representante do povo, a continuará e a passará, formando uma corrente de vontades que
um dia desembocarão na revolução popular.
Miguel Real, Narração, maravilhoso, trágico e sagrado em “Memorial do convento” de José Saramago,
Lisboa, Editorial Caminho, 1995, p. 54 (adaptado e com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia os excertos que se seguem. Se necessário, consulte as notas.

O desencontro e o encontro

Excerto 1 | Cap. XXIII (p. 367)


Baltasar disse, Amanhã vou ao Monte Junto ver como está a máquina, passaram seis
meses desde a última vez, como estará aquilo, Vou contigo, Não vale a pena, saio cedo, se não
tiver muito que remendar estarei cá antes da noite, […] Tem cuidado, Descansa, a mim não
me assaltam ladrões nem mordem lobos, Não é de lobos ou ladrões que falo, Então, Falo da
5 máquina, Dizes-me sempre que me acautele, eu vou e venho, mais cuidados não posso ter,
Tem-nos todos, não te esqueças, Sossega, mulher, que o meu dia ainda não chegou, Não sos-
sego, homem, os dias chegam sempre.

Excerto 2 | Cap. XXIII (pp. 374-375)


Meteu-se já Baltasar pelos contrafortes do Monte Junto,
procura o quase invisível caminho que por entre mato o levará
10 à máquina de voar […]. O sol brilhava com força, o ar estava
quente. Por cima da asa, […] Baltasar entrou na passarola. Al-
gumas tábuas do convés estavam apodrecidas. Teria de substi-
tuí-las, trazer os materiais necessários, demorar-se aqui uns
dias, ou então, só agora lhe ocorria a ideia, desmontar a máqui-
15 na peça por peça, transportá-la para Mafra, escondê-la debaixo
duma parga de palha, ou num dos subterrâneos do convento,
se pudesse combinar com os amigos mais chegados, confiar-
-lhes metade do segredo, consigo mesmo se espantava de nun-
ca ter pensado nesta solução, quando voltasse falaria com
20 Blimunda. Ia distraído, não reparou onde punha os pés,

259
José Saramago

de repente duas tábuas cederam, rebentaram, afundaram-se. Esbracejou violentamente para


se amparar, evitar a queda, o gancho do braço foi enfiar-se na argola que servia para afastar as
velas, e, de golpe, suspenso em todo o seu peso, Baltasar viu os panos arredarem-se para o lado
com estrondo, o sol inundou a máquina, brilharam as bolas de âmbar e as esferas. A máquina
25 rodopiou duas vezes, despedaçou, rasgou os arbustos que a envolviam, e subiu. Não se via uma
nuvem no céu.

Excerto 3 | Cap. XXIV (p. 392)


Enfim, chegou o mais glorioso dos dias, a data imorredoira de vinte e dois de outubro do
ano da graça de mil setecentos e trinta, quando el-rei D. João V faz quarenta e um anos e vê
sagrar o mais prodigioso dos monumentos que em Portugal se levantaram, ainda por acabar,
30 é verdade, mas pela catadura1 se conhece o catacego2.

Excerto 4 | Cap. XXV (pp. 395-396)


Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar. Conheceu todos os caminhos do pó e da
lama […]. Tisnou-se3 de sol como um ramo de árvore retirado do lume antes de lhe chegar a hora
das cinzas, arregoou-se4 como um fruto estalado, foi espantalho no meio de searas, aparição
entre os moradores das vilas, susto nos pequenos lugares e nos casais5 perdidos. Onde chegava,
35 perguntava se tinham visto por ali um homem com estes e estes sinais, a mão esquerda de
menos, e alto como um soldado da guarda real, barba toda e grisalha, mas se entretanto a rapou,
é uma cara que não se esquece, pelo menos não a esqueci eu, e tanto pode ter vindo pelas estra-
das de toda a gente, ou pelos carreiros que atravessam os campos, como pode ter caído dos ares,
num pássaro de ferro e vimes entrançados, com uma vela preta, bolas de âmbar amarelo, e duas
40 esferas de metal baço que contêm o maior segredo do universo, ainda que de tudo isto não
restem mais que destroços, do homem e da ave, levem-me a eles, que só de lhes pôr as mãos em
cima os reconhecerei, nem preciso olhar. Julgavam-na doida, mas, se ela se deixava ficar por ali
uns tempos, viam-na tão sensata em todas as mais palavras e ações que duvidavam da primei-
ra suspeita de pouco siso. Por fim já era conhecida de terra em terra, a pontos de não raro
45 a preceder o nome de Voadora, por causa da estranha história que contava.

Excerto 5 | Cap. XXV (pp. 399-400)


Encontrou-o. Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima. Vinha do sul, dos lados de
Pegões. Atravessou o rio, quase noite, na última barca que aproveitava a maré. Não comia há
quase vinte e quatro horas. Trazia algum alimento no alforge, mas, de cada vez que ia levá-lo à
1 aparência; 2 que tem falta de
visão; 3 tostar; 4 fender, gretar; boca, parecia que sobre a sua mão outra mão se pousava e uma voz lhe dizia, Não comas, que o
5 pequena povoação, lugarejo 50 tempo é chegado. Sob as águas escuras do rio, via passar os peixes a grande profundidade,
cardumes de cristal e prata, longos dorsos escamosos ou lisos. A luz
interior das casas coava-se através das paredes, difusa como um
farol no nevoeiro. Meteu-se pela Rua Nova dos Ferros, virou para a
direita na igreja de Nossa Senhora da Oliveira, em direção ao Ros-
55 sio, repetia um itinerário de há vinte e oito anos. Caminhava no

meio de fantasmas, de neblinas que eram gente. Entre os mil chei-


ros fétidos da cidade, a aragem noturna trouxe-lhe o da carne quei-
mada. Havia multidão em S. Domingos, archotes, fumo negro,
fogueiras. Abriu caminho, chegou-se às filas da frente, Quem são,
60 perguntou a uma mulher que levava uma criança ao colo, De três

sei eu, aquele além e aquela são pai e filha que vieram por culpas de

260
Memorial do convento

judaísmo, e o outro, o da ponta, é um que fazia comédias de bonifrates e se chamava António


José da Silva, dos mais não ouvi falar.
São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele
65 extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, pro-
dígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu
corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não
subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.

1 Demonstre de que forma Blimunda parece antever a desgraça que se vai abater so-
bre Baltasar (excerto 1).

2 Explicite a simbologia subjacente ao facto de Blimunda ter reencontrado Baltasar ao


fim de nove anos, na sétima vez que passou por Lisboa, considerando que o número
nove traduz o coroar de um esforço e o sete a renovação e a totalidade.

3 Revele a importância da voz que Blimunda parecia ouvir, quando chegou a Lisboa,
para o desfecho da história.

4 Evidencie a espiritualização do amor de Baltasar e Blimunda.

5 Demonstre a circularidade da terceira linha de ação – a história de Baltasar e Blimun-


da – tendo ainda em conta que esta se desenrola durante 28 anos, um número que
simboliza o final de um ciclo.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 378, 392 e 398.

1 Indique o valor aspetual configurado nos seguintes segmentos textuais


a. “O sol brilhava com força” (l. 10, excerto 2)
b. “Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis” (l. 67, excerto 5)

2 Refira o modo de relato de discurso presente em “se pudesse combinar com os ami-
gos mais chegados, confiar-lhes metade do segredo” (ll. 17-18, excerto 2).

3 Classifique a oração “se tinham visto por ali um homem com estes e estes sinais”
(l. 35, excerto 4).

ESCRITA i Bloco informativo | p. 353.

1 Baseando-se na leitura integral da obra Memorial do convento, escreva um texto


expositivo onde caracterize Blimunda Sete-Luas.
O seu texto deve incluir:
• uma introdução: referência de forma genérica à importância de Blimunda na obra;
• um desenvolvimento no qual apresente:
Gramática/Atividade:
– as várias facetas de Blimunda e o papel fulcral que a personagem desempenha; Discurso direto, indireto e
indireto livre; Valor aspetual
– exemplos que corroborem as afirmações; Animação: Escrever um texto
• uma conclusão: retoma e comprovação da importância da personagem Blimunda. expositivo

261
CONSOLIDAÇÃO

Memorial do convento
Visita virtual: • Resgate do esquecimento dos verdadeiros obreiros do convento
O Palácio-Convento de Mafra
(guia de exploração) • Homenagem ao povo (listagem de nomes de A a Z).
Jogo: #DesafioLiterário:
José Saramago • Construção que resulta da promessa feita pelo rei, caso a rainha engravidasse.
• Epopeia de um povo − enaltecimento da coragem e do esforço do povo português e denúncia
do sofrimento e dos sacrifícios por que teve de passar.

As linhas da ação
Primeira linha Promessa de edificação de um convento por D. João V.
Segunda linha Construção do convento pelo povo.
Terceira linha História de amor de Baltasar e Blimunda.
Quarta linha Sonho de Bartolomeu Lourenço de construção da passarola.

O tempo histórico e o tempo da narrativa

• Século XVIII
Tempo
• Reinado de D. João V
histórico
• 1711-1739

• A ação decorre durante 28 anos.


1711 1717 1724 1729 1730 1739

Tempo Início da narração: Bênção da Voo da Casamento de Sagração Condenação


– Promessa de primeira passarola. D. José com do de Baltasar
da narrativa
D. João V; pedra Mariana Vitória convento à fogueira.
– Encontro de da basílica. e da infanta Maria de Mafra.
Baltasar e Bárbara com
Blimunda. D. Fernando.

Visão crítica

• Megalomania do rei.
• Má gestão financeira.
• Falta de produtividade do reino.
• Opressão do povo pelos poderosos.
• Perseguição religiosa.
• Hipocrisia religiosa.
• Ignorância do povo.
• Corrupção da Justiça.
• Ausência de valores (adultério, incumprimento de votos de castidade, assassínios...).

262
Caracterização das personagens/Relação entre elas
Personagem histórica, que reinou em Portugal de 1706 a 1750. Casado com D. Maria Ana Josefa,
não se coibiu de ter relações adúlteras, das quais resultaram vários filhos bastardos. É o protótipo
D. João V do rei absolutista, megalómano, prepotente, caprichoso e displicente com a gestão das finanças.
Sente-se apavorado com a ideia da morte e, por isso, antecipa a inauguração do convento, fazendo
recair sobre o povo uma maior opressão.
Personagem histórica, de origem austríaca, casa com D. João V em 1708 e, durante alguns anos,
D. Maria revela dificuldades em engravidar. Para que a rainha engravide, garantindo a sucessão, o rei pro-
Ana Josefa mete edificar o convento de Mafra. Negligenciada pelo marido, torna-se extremamente devota e
refugia-se em sonhos libidinosos.
Personagem coletiva que desempenha o papel de herói da obra, ainda que possa assumir contornos
de anti-herói, sobretudo pelas características físicas que são apontadas a alguns dos seus mem-
bros – marrecos, zarolhos, manetas –, facto que acaba por valorizar ainda mais a sua importância.
Povo São os homens anónimos que Saramago pretende imortalizar (embora alguns deles, como Manuel
Milho ou Francisco Marques, surjam individualizados). Ainda que ignorantes, são os verdadeiros
obreiros da construção do convento. São o espelho da opressão, do sofrimento, do sacrifício e da
superação humana.
Personagem fictícia, embora haja registos de que viveu realmente em Mafra a família dos Sete-
-Sóis. Foi soldado na guerra da Sucessão de Espanha, onde perdeu a mão esquerda; foi o executor
Baltasar do projeto do padre Bartolomeu Lourenço e, mais tarde, trabalhou nas obras de edificação do con-
vento. Morre às mãos da Inquisição, queimado numa fogueira. É um homem simples, determinado,
destemido e leal.
Personagem fictícia, ainda que possa ser baseada numa figura real da época. Revela-se um ele-
mento ativo quer na relação que mantém com Baltasar quer na construção da passarola. Em jejum,
possui o dom de ver as pessoas por dentro, mas perde temporariamente essa capacidade quando
Blimunda
muda o ciclo lunar. Blimunda procura incessantemente Baltasar, durante nove anos, tornando-se
guardiã da sua vontade quando ele morre. É astuta, destemida, persistente e pouco convencional
para a época (sobretudo, no que respeita à relação amorosa).
Personagem histórica, de origem brasileira. Sob a proteção de D. João V, terá mesmo feito voar um
balão no paço. Na obra, surge como frade oratoriano, doutor em leis por Coimbra, funcionário da
Bartolomeu
Corte e mentor do projeto da passarola. Chega a pôr em causa os dogmas da Igreja; é perseguido
Lourenço
pela Inquisição, mas foge e morre, louco, em Espanha. É resiliente, de trato fácil, curioso, ambicio-
so, sonhador e visionário.
Personagem histórica, de origem italiana. É convidado por D. João V para ser o professor de música
da infanta D. Maria Bárbara e para assumir as funções de mestre da capela real. O padre Bartolo-
Domenico
meu Lourenço acaba por lhe confiar o segredo da passarola e, por isso, ele torna-se uma presença
Scarlatti
habitual na abegoaria. É ele que, através da sua música, consegue curar Blimunda quando esta
entra num estado de letargia. É fiel, sensível e sonhador.

Personagens Relação entre elas


D. João V vs. D. Maria Ana Josefa Convencional e fria
D. João V vs. Povo Opressor/oprimidos
D. João V vs. Bartolomeu Lourenço vs. Domenico Scarlatti Proteção
Baltasar vs. Blimunda Amor verdadeiro e profundo
Baltasar vs. Blimunda vs. Bartolomeu Lourenço Amizade verdadeira (trindade terrestre)
Baltasar vs. Blimunda vs. Bartolomeu Lourenço vs. Domenico Scarlatti Lealdade (partilha do segredo e do sonho)

263
CONSOLIDAÇÃO
Dimensão simbólica
Sonho/Vontade Força motora que conduz à evolução e ao progresso.

Passarola/Convento Metáfora da liberdade e do poder do Homem vs. opressão e poder de Deus.


Símbolo da união e da plenitude. O primeiro representa o dia, a força física, o trabalho.
A segunda, a noite, a magia, o transcendente, o mundo onírico. A união de ambos simbo-
Sete-Sóis/Sete-Luas
liza a perfeição, visível não só nas alcunhas, como no número sete e nas três sílabas que
compõem o seu nome.
Representa a ordem espiritual e intelectual. É o número perfeito, a expressão da totali-
Três
dade.
Símbolo da Terra com os seus pontos cardeais. Representa a totalidade do espaço e do
Quatro
tempo.
Sete Símbolo de mudança, de renovação, de totalidade.

Nove Número ligado à procura, à gestação. Simboliza o coroar do esforço.

Vinte e oito Símbolo do final de um ciclo.

Linguagem, estilo e estrutura


Intertextualidade
Ao longo da obra, Saramago estabelece relações de intertextualidade com provérbios, com a Bíblia ou com
outros autores da literatura portuguesa, nomeadamente, Camões, Padre António Vieira e Fernando Pessoa.
Essas alusões, paródias ou citações funcionam quase sempre como ponto de partida para ironizar e ridicula-
rizar outras situações que estão a ser relatadas.

Pontuação
Os únicos sinais de pontuação usados por Saramago são o ponto final e a vírgula. É através desta e do
uso da maiúscula que o autor marca as falas em discurso direto, e é o contexto que ajuda o leitor a perceber
quando se trata de uma declaração, de uma exclamação ou de uma interrogação.

Reprodução do discurso no discurso


Ao longo da obra, o discurso do narrador evidencia um conjunto de outras vozes que não a sua (polifonia).
É o que acontece, por exemplo, quando assume a voz de Sebastiana de Jesus, quando se faz passar por um
guia moderno do convento de Mafra ou quando se esconde por detrás do fidalgo que relata os acontecimentos
relacionados com o cortejo e com o casamento real a que João Elvas não tem acesso.
São visíveis também nas suas palavras os vários modos de relato do discurso:

Citação “ave-maria cheia de graça”. (cap. I)


“então ouve Baltasar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os olhos com os pu-
Discurso direto
nhos cerrados, implora, Dá-me o pão, Baltasar, dá-me o pão, por alma de quem lá tenhas” (cap. VIII)

Discurso indireto “Veio a viúva do porteiro da maça dizer ao padre que tinha o jantar servido”. (cap. XIV)
“Pontualmente escrevera o padre Bartolomeu Lourenço quando se instalou em Coimbra, notícia
Discurso indireto
só de ter chegado e bem, mas agora viera uma nova carta, que sim, seguissem para Lisboa tão
livre
cedo pudessem”. (cap. XII)

264
VERIFICAÇÃO
1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.

A. O objetivo de Saramago com Memorial do convento é homenagear a figura de


D. João V pela grandiosidade que este conferiu ao Império durante o seu reinado.
B. Memorial do convento é constituído por quatro linhas de ação, que funcionam
de forma autónoma e independente.
C. É estabelecida uma relação antitética entre os pares D. João V/D. Maria Ana
Josefa e Baltasar/Blimunda.
D. Blimunda percebe que Baltasar era o homem ideal para si, depois de o ter visto
por dentro na primeira vez que o encontrou, num auto de fé.
E. Blimunda, na última vez que avista Baltasar, recolhe a vontade dele, porque não
quer que Baltasar suba até Deus.
F. O papel de Blimunda na construção da passarola é irrelevante.
G. Blimunda, Baltasar e Scarlatti formam, no entender do padre Bartolomeu, uma
trindade terrestre.
H. O músico acaba por ter um papel preponderante na construção da passarola.
I. O episódio do transporte da pedra para a varanda, vinda de Pêro Pinheiro, assu-
me contornos heroicos pelo facto de ela ter sido trazida para Mafra numa nau
da Índia.
J. Identifica-se o tempo da narrativa de Memorial do convento com todo o século
XVIII.
K. As prolepses existentes na obra referem-se a acontecimentos relacionados
com as personagens e a situações que se reportam ao tempo do autor.
L. Uma das instituições mais veementemente criticadas por Saramago na obra é
a Igreja.
M. No seu romance, Saramago denuncia sobretudo a ignorância e a mesquinhez do
povo, em contraste com a clarividência dos poderosos.
N. O facto de a ação decorrer em 28 anos não tem nenhum significado simbólico.
O. A passarola funciona como um símbolo da vontade, da ânsia pela liberdade e
do progresso.
P. A cumplicidade de Baltasar e de Blimunda é também visível nos seus nomes.
Q. No romance, para além da intertextualidade estabelecida com outras obras lite-
rárias, são frequentes as alusões bíblicas e as citações de provérbios.
R. O estilo de Saramago distingue-se pelo facto de, na sua escrita, ele não usar
qualquer sinal de pontuação.
S. O discurso indireto livre é um modo de relato do discurso frequente em Memo-
rial do convento.

265
AVALIAÇÃO
GRUPO I

1 soldados que faziam


Apresente as suas respostas de forma estruturada. Se necessário, consulte as notas.
a ronda das ruas; 2 ter Parte A
idade avançada; 3 terra
que se lavra e se deixa Leia o excerto que se segue. Se necessário, consulte as notas.
em pousio, para que
descanse; 4 animais
Foram as ordens, vieram os homens. De sua própria vontade alguns, aliciados pela promessa
quadrúpedes
de bom salário, por gosto de aventura outros, por desprendimento de afetos também, à força
quase todos. Deitava-se o pregão nas praças, e, sendo escasso o número de voluntários, ia o corre-
gedor pelas ruas, acompanhado dos quadrilheiros1, entrava nas casas, empurrava os cancelos dos
5 quintais, saía ao campo a ver onde se escondiam os relapsos, ao fim do dia juntava dez, vinte, trin-
ta homens, e quando eram mais que os carcereiros atavam-nos com cordas, variando o modo, ora
presos pela cintura uns nos outros, ora com improvisada pescoceira, ora ligados pelos tornozelos,
como galés ou escravos. Em todos os lugares se repetia a cena, Por ordem de sua majestade, vais
trabalhar na obra do convento de Mafra, e se o corregedor era zeloso, tanto fazia que estivesse
10 o requisitado na força da vida como já lhe escorregasse o rabo da tripeça2, ou pouco mais fosse
que menino. Recusava-se um homem primeiro, fazia menção de escapar, apresentava pretextos,
a mulher no fim do tempo, a mãe velha, um rancho de filhos, a parede em meio, a arca por con-
fortar, o alqueive3 necessário, e se começava a dizer as suas razões não as acabava, deitavam-lhe
a mão os quadrilheiros, batiam-lhe se resistia, muitos eram metidos ao caminho a sangrar.
15 Corriam as mulheres, choravam, e as crianças acresciam o alarido, era como se andassem os
corregedores a prender para a tropa ou para a Índia. Reunidos na praça de Celorico da Beira, ou
de Tomar, ou em Leiria, em Vila Pouca ou Vila Muita [...], nas terras da raia ou da borda do mar,
[...] em Santarém e Beja, em Faro e Portimão, em Portalegre e Setúbal, em Évora e Montemor,
[...] e em Viseu e Guarda, em Bragança e Vila Real, em Miranda, Chaves e Amarante, em Vianas
20 e Póvoas, em todos os lugares aonde pôde chegar a justiça de sua majestade, os homens, atados
como reses4, [...] viam as mulheres e os filhos implorando o corregedor, procurando subornar
os quadrilheiros com alguns ovos, uma galinha, míseros expedientes que de nada serviam [...].
José Saramago, Memorial do convento, 63.ª ed., Porto, Porto Editora, 2022, cap. XXI, pp. 323-325.

1 Esclareça o assunto retratado neste excerto.

2 Explicite a importância da personagem povo em Memorial do convento.

3 Selecione a opção que completa corretamente a afirmação.


No primeiro período do texto, é acentuada a opressão do rei sobre o povo através da
A. metáfora. B. sinédoque. C. antítese. D. perífrase.

Parte B

Leia o texto. Se necessário, consulte as notas.

Das tribulações que Lixboa padecia per mingua de mantiimentos.


Na cidade nom havia triigo pera vender, e se o havia, era mui pouco e tam caro que as pobres
Animação: O que é uma
metáfora?; O que é uma gentes nom podiam chegar a ele; [...] e padeciam mui apertadamente, ca dia havia i que, ainda
antítese?; O que é uma que dessem por uũ pam ũa dobra, que o nom achariam a vender; e começarom de comer pam de
perífrase?
5 bagaço d’azeitona, e dos queijos1 das malvas e raizes d’ervas, e doutras desacostumadas cousas,

266
pouco amigas da natureza; e taes i havia que se mantiinham em alféloa2. No logar u3 costuma-
1 bolbos; 2 melaço
vom vender o triigo, andavom home~es e moços esgaravatando a terra; e se achavom alguũs cristalizado; 3 onde;
grãos de triigo, metiam-nos na boca sem teendo outro mantimento; outros se fartavom d’ervas, 4 falta; 5 viviam deles (dos

e beviam tanta agua, que achavom mortos home ~es e cachopos jazer inchados nas praças e em porcos); 6 passando fome;
7 fome; 8 preces;
10 outros logares. 9 tristeza, aborrecimento;
Das carnes, isso meesmo, havia em ela grande mingua4; e se alguũs criavom porcos, man- 10 preocupado; 11 contudo;
tiinham-se em eles5; […] assi que os pobres per mingua de dinheiro, nom comiam carne e pade- 12 inimigos

ciam mal; e começarom de comer as carnes das bestas, e nom soomente os pobres e minguados,
mas grandes pessoas da cidade, lazerando6, nom sabiam que fazer; e os geestos mudados com
15 fame7, bem mostravom seus encubertos padecimentos. Andavom os moços de tres e de quatro
anos pedindo pam pela cidade por amor de Deos, como lhes ensinavam suas madres, e muitos
nom tiinham outra cousa que lhe dar senom lagrimas que com eles choravom que era triste cou-
sa de veer; e se lhes davom tamanho pam come ũa noz, haviam-no por grande bem. Desfalecia
o leite aaquelas que tiinham crianças a seus peitos per mingua de mantiimento; e veendo lazerar
20 seus filhos a que acorrer nom podiam, choravom ameúde sobr’eles a morte ante que os a morte
privasse da vida. Muitos esguardavom as prezes8 alheas com chorosos olhos, por comprir o que a
piedade manda, e nom teendo de que lhes acorrer, caíam em dobrada tristeza.
Toda a cidade era dada a nojo9, chea de mezquinhas querelas, sem neuũ prazer que i hou-
vesse: uũs com gram mingua do que padeciam; outros havendo doo dos atribulados; e isto nom
25 sem razom, ca se é triste e mezquinho o coraçom cuidoso10 nas cousas contrairas que lhe aviinr
podem, veede que fariam aqueles que as continuadamente tam presentes tinham? Pero11 com
todo esto, quando repicavom, neuũ nom mostrava que era faminto, mas forte e rijo contra seus
~emigos12.

Fernão Lopes, in Teresa Amado (apresentação crítica), Crónica de D. João I de Fernão Lopes
(textos escolhidos), ed. Revista, Lisboa, Editorial Comunicação, 1992 [1980], cap. 148.

4 Faça a contextualização deste excerto na estrutura da obra.

5 Demonstre de que forma o excerto evidencia a consciência coletiva do povo.

6 Selecione a opção que completa corretamente a afirmação.


A interrogação retórica presente no último parágrafo do texto ilustra… do narrador
face à situação vivida pelo povo.
A. a solidariedade C. a resignação
Animação: Escrever
B. a censura D. a sátira um texto expositivo; O que é
uma metáfora?; O que é uma
hipérbole?; O que é uma
antítese?; O que é um
PARTE C eufemismo?
Gramática/Atividade:
7 Escreva uma breve exposição sobre o modo como o povo português é apresentado em Orações subordinadas
adverbiais consecutivas;
Os Lusíadas, de Camões, e em Mensagem, de Fernando Pessoa. Orações subordinadas
adverbiais concessivas;
O seu texto deve incluir: Orações subordinadas
• uma introdução – referência genérica ao papel do povo português nas duas obras; adverbiais causais; Orações
subordinadas adverbiais
• um desenvolvimento – apresentação da importância que o povo português assu- finais; Complemento oblíquo;
Complemento do nome;
me para os dois autores e exemplos que corroborem as afirmações; Complemento do adjetivo;
Modificador do nome;
• uma conclusão – retoma e comprovação do papel do povo nas duas obras. Processos fonológicos
de alteração

267
AVALIAÇÃO
GRUPO II

Leia o texto. Se necessário, consulte a nota.

Idiossincrasias1 do povo português


Ser português é pedir um ramo de salsa
ao vizinho e ficar lá meia hora a conversar,
embora ser português seja morar num pré-
dio em que não se sabe o nome de nenhum
5 dos vizinhos […]. Ser português é ter na
guelra o sangue quente arrefecido por uma
ditadura […]. Ser português é fecharem-se
tascas para abrir hotéis boutiques e lojas
de conservas para turistas. Ser português
10 é passar anos a dizer que Portugal devia empurrados e sem querer. Ser português é
apostar mais no turismo. Ser português ter o mar no horizonte e nunca olhar para
é queixarmo-nos que há turismo a mais e 40 terra, é seguir em frente até o mar acabar.
que as rodinhas dos trolleys fazem muito Ser português é dizer que temos uma histó-
barulho. ria grandiosa, embora não saibamos meta-
15 Ser português é estar na esplanada a de dela. É dizer que Saramago é um grande
ver a bola à beira-mar plantados. Ser por- escritor sem nunca ter lido um livro dele.
tuguês é ter orgulho em sê-lo mesmo quan- 45 Ser português é ter o nosso passado dos
do se diz o contrário. É ir lá fora e falar de Descobrimentos como o único motivo de
fado, da comida, da praia, de tudo o que orgulho e, por isso, ficar chateado quando
20 nos orgulhamos quando temos saudades. nos dizem que, se calhar, fomos um povo
Ser português é ter saudades e acreditar no que fez muita asneira […].
mito de que essa palavra só existe em por- 50 Ser português é dizer mal, mas ai de
tuguês e que é intraduzível. Ser português quem diga mal e não seja português. Ser
é dizer que ninguém faz sopas como a avó português é não ser patriótico, mas sentir
25 nem arroz-doce como a mãe. Ser português os olhos aguados ao ouvir o hino […]. Ser
é ser nostálgico, mas ter amnésia seletiva português é não saber aproveitar quando
de 4 em 4 anos e queixar-se que está tudo 55 as coisas nos correm bem porque achamos
na mesma. que o fado da má sorte é uma característica
Ser português é improvisar. É encon- nossa.
30 trar caminho sem perguntar. Ser portu- Ser português é ser pessimista quando
guês é pedir indicações e ter logo a ajuda as coisas estão boas, mas otimista quando
de vários desconhecidos. Ser português é 60 estão más. Ser português é viver acima das
dizer “a ver se combinamos um almoço”, possibilidades até no tamanho da nossa
mesmo quando sabemos que nunca mais alma, que não é pequena.
35 vamos ver aquela pessoa. Ser português é Guilherme Duarte, in https://24.sapo.pt,
ter os melhores lá fora porque é lá fora que consultado em 02/12/2022
(adaptado e com supressões).
se faz o melhor. É ter emigrantes forçados,

1 característica peculiar

268
1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.6, selecione a opção correta.
1.1 Uma das críticas presentes no primeiro parágrafo do texto prende-se com o facto de se
ter noção da importância do turismo para Portugal, mas
A. simultaneamente não se estar disponível para os efeitos colaterais que gera.
B. nada se fazer para o incrementar de forma eficaz.
C. o país não ter as condições logísticas necessárias para o fazer.
D. ao mesmo tempo não se demonstra orgulho pelo país.

1.2 Ao longo do texto, o autor serve-se, entre outros recursos,


A. da metáfora, para salientar as dificuldades económicas dos portugueses.
B. da hipérbole, para destacar a importância do povo português.
C. da antítese, salientando contrariedades do temperamento português.
D. do eufemismo, para suavizar comportamentos rudes do povo português.

1.3 A utilização das aspas em “a ver se combinamos um almoço” (l. 33) justifica-se por se
estar perante uma
A. citação. C. representação de discurso direto.
B. expressão popular. D. expressão idiomática.

1.4 A oração “embora ser português seja morar num prédio” (ll. 3-4) classifica-se como su-
bordinada adverbial
A. consecutiva. C. causal.
B. concessiva. D. final.

1.5 A função sintática desempenhada pelo segmento “por uma ditadura” (ll. 6-7) é
A. complemento oblíquo. C. complemento do adjetivo.
B. complemento do nome. D. modificador do nome restritivo.

1.6 O processo fonológico ocorrido na passagem de FATU- para “fado” (l. 19) é
A. assimilação. C. palatalização.
B. dissimilação. D. sonorização.

GRUPO III

1 Escreva um texto de opinião, entre 250 e 300 palavras, sobre a importância do povo
português em alguns acontecimentos históricos mais marcantes da nação.
O seu texto deve respeitar as marcas deste género textual e conter:
• uma introdução ao tema;
• um desenvolvimento, no qual apresente uma argumentação pertinente;
• uma conclusão adequada ao desenvolvimento do tema.

269
270
6.2
O ano da morte
de Ricardo Reis
José Saramago
EDUCAÇÃO LITERÁRIA ORALIDADE

O ano da morte de Ricardo Reis Documentário


(leitura integral) Apreciação crítica
• Antecipar sentidos Debate
• Informação Opinião
• Construir sentidos Canção

LEITURA GRAMÁTICA
Diário • Atos ilocutórios
Texto expositivo • Modalidade e valor modal
Artigo de opinião • Orações subordinadas
• Valor aspetual
ESCRITA • Funções sintáticas
Texto expositivo • Classes de palavras
Síntese • Mecanismos de coesão
textual

Wassily Kandinsky,
Amarelo, vermelho, azul, 1925.
José Saramago

ORALIDADE COMPREENSÃO

Vídeo: 25 de abril de 1974: Visione o excerto de um documento


a Revolução dos Cravos,
Portuguese with Leo vídeo sobre o Estado Novo, de modo a
(09 min 48 s)
contextualizar o tempo da ação de O ano
da morte de Ricardo Reis.

1 Assinale como verdadeiras ou falsas


as afirmações. Corrija as falsas.
A. O regime ditatorial do Estado Miguel Brandão e Leo discutem
Novo teve o seu início em 1933, a Revolução dos Cravos.

com Salazar, e terminou no dia


25 de Abril de 1974, quando o governo era chefiado por Marcelo Caetano.
B. Durante o regime ditatorial de direita, o povo, embora tenha perdido alguns direi-
tos, continuava a poder militar livremente num partido político.
C. A discordância do regime poderia causar a perda de liberdade; regra geral,
as pessoas eram encarceradas em Peniche ou no Tarrafal.
D. Portugal, em termos geográficos, restringia-se ao território continental e às ilhas
dos Açores e da Madeira.
E. Salazar, presidente do Conselho, tinha intenção de libertar as colónias, tal como
os restantes países europeus.
F. Em 1961, iniciou-se uma guerra, a chamada Guerra do Ultramar, organizada por
Portugal, que pretendia ampliar o número de colónias que possuía.

2 Associe os elementos da coluna A aos da coluna B de modo a obter afirmações corretas,


considerando o conteúdo do documento vídeo.

Coluna A Coluna B

1. manifestou-se através de diversas proibições: liberdade


a. Para alimentar a guerra, de expressão, pensamento e associação, por exemplo.
em termos humanos
2. não impediu as pessoas de se associarem livremente
b. Muitos dos em partidos políticos.
combatentes não
3. saíram à rua, no dia 25 de Abril de 1974, e libertaram
sofreram efeitos
o país.
físicos da guerra,
4. visava impossibilitar a reorganização e reação das forças
c. A opressão do regime
leais ao poder.
ditatorial
5. foram recrutados jovens cidadãos e militares, que
d. Algumas das
combateram durante 13 anos.
consequências deste
tipo de políticas 6. originaram níveis elevados de analfabetismo e de pobreza.

e. O Estado Novo foi 7. quase sem derramamento de sangue e ficou marcada


derrubado por militares, pelos cravos vermelhos que lhe deram o nome
que, organizadamente, “Revolução dos Cravos”.

f. O rápido controlo de 8. no entanto, foram acometidos por diversos traumas


centros de informação e perturbações mentais.

g. A queda efetiva do 9. aconteceu quando Marcelo Caetano, sucessor de Salazar,


poder se refugiou no quartel do Carmo.

h. A revolução foi feita 10. aconteceu quando Marcelo Caetano, sucessor de Salazar,
refugiado no quartel do Carmo, se rendeu.

272
O ano da morte de Ricardo Reis

ORALIDADE EXPRESSÃO

No artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ler-se que “todo o
ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão”, no entanto, nem sempre
este direito é respeitado.

1 Observe e analise o cartoon, da autoria de Syed Rashad Imam Tanmoy.


Emita uma opinião acerca da temática aí ilustrada, considerando as seguintes orien-
tações:
• a duração de 3-4 minutos;
• uma postura formal;
• o vocabulário diversificado e um registo de língua apropiado;
• a adequação da linguagem não verbal (gestos, expressões faciais…);
• um tom de voz apropriado.
O seu discurso deve incluir:
• uma introdução que identifique o objeto em apreço, a sua temática e que assuma
uma posição valorativa;
• a descrição da imagem apresentada, destacando elementos significativos da sua
composição, bem como a relação existente entre eles e a temática abordada;
• um comentário crítico, fundamentando devidamente a sua apreciação e utilizando
um discurso valorativo;
• a intencionalidade crítica do cartoonista e respetiva mensagem veiculada;
• a associação do cartoon (total ou parcial) ao documento vídeo analisado, através
de uma referência concreta;
• a indicação dos direitos humanos violados;
• uma conclusão adequada ao ponto de vista desenvolvido. https://cartoonmovement.com/cartoon/press-freedom-vs-self-censorship.

273
José Saramago

LEITURA DIÁRIO

Leia o texto. Se necessário, consulte a nota.

Cadernos de Lanzarote
18 de fevereiro

P
eru e Equador andam às turras, desde há duas semanas, por causa de
uns quantos quilómetros quadrados de selva amazónica que ambos
juram a pés juntos pertencer-lhes. Como sempre acontece nestes epi-
sódios, o conflito foi motivo para que os “profissionais” do patriotismo
5 dos dois lados saíssem à rua em manifestações de apoio mais ou menos
histéricas, com a habitual abundância de bandeiras, hinos gloriosos, burguesas penteadas, donzelas atirando
beijinhos e criancinhas à espera de crescer para irem também à guerra. Sem esquecer os títulos inconsequentes
e garrafais da imprensa. Agora fui beneficiado com dois minutos de discurso do senhor Fujimori1 na televisão que
para alguma coisa há de servir. Não me lembro de ter assistido, em toda a minha vida, a um espetáculo político
10 mais sórdido, a uma demagogia mais repugnante. O que ali estava era simplesmente um traficante a querer pas-
sar por pessoa séria. Agora diz-se que foi acordado entre os dois beligerantes aquilo a que se chama “suspensão
de hostilidades”, excelente propósito que levará ou não à resolução do tal conflito de fronteiras. Entretanto, vai-se
anunciando que andam por 500 os mortos, feridos e desaparecidos, uns mais mártires do que outros, segundo o
ponto de vista, mas todos sacrificados nos altares das respetivas pátrias. Para que o Peru e o Equador fizessem
15 as pazes foi preciso primeiro levantar uma boa pilha de cadáveres, em cima da qual os senhores presidentes já
poderão assinar o tratado de acerto definitivo da fronteira. Duas perguntas agora: a paz, a que é inevitável chegar
algum dia, não poderia ter sido conseguida antes? Foi necessário que morressem estupidamente umas quantas
centenas de homens e mulheres que não tinham nada que ver com o assunto? E uma pergunta mais: não se
descobrirá uma lei universal que julgue e condene os responsáveis de tais crimes, que não são menos contra a
20 humanidade por serem cometidos em nome das pátrias? Podia-se começar, já que estaríamos com a mão na
massa, por estes presidentes do Equador e do Peru, últimos da infinita lista de criminosos do mesmo tipo a quem
se devem as páginas desgraçadas da história da humanidade.
Proposta para um debate sobre os nacionalismos: o inimigo não é a Nação, mas o Estado.
José Saramago, Cadernos de Lanzarote III, 4.ª ed., Porto, Porto Editora, 2017, pp. 46-47.

1 Alberto Fujimori desempenhou as funções de presidente do Peru de 28 de julho de 1990 a 19 de novembro de 2000

1 Selecione as opções que completam corretamente a afirmação.


O texto selecionado aborda questões como
A. a luta pela posse territorial.
B. o caráter pacífico das manifestações.
C. a imprensa sensacionalista.
D. as consequências do conflito.
E. a certeza de que os responsáveis pelo conflito serão punidos.

274
O ano da morte de Ricardo Reis

2 Ordene as seguintes afirmações, de acordo com a progressão do texto.


A. Necessidade de, em termos universais, serem punidos aqueles que, sob uma
pretensa defesa da pátria, cometem crimes contra o ser humano.
B. Crítica à atitude e comportamento daqueles que são caracterizados como “pro-
fissionais do patriotismo”.
C. Morte de várias centenas de pessoas, em virtude da guerra travada pelos dois
países.
D. Desavenças entre Peru e Equador por discordâncias relativamente aos limites
fronteiriços entre os dois países.
E. Apreciação depreciativa do presidente do Peru e do seu discurso.
F. Comparação dos presidentes do Equador e do Peru a outros líderes que deixaram
uma mancha na história da humanidade.

3 Destaque termos ou expressões do texto que lhe confiram um tom irónico.

4 Retire do texto uma enumeração.

5 Selecione as opções que completam corretamente a afirmação.

As expressões “andam às turras” (l. 1) e “juram a pés juntos” (l. 3) exemplificam


o registo a. do uso da linguagem e significam, respetivamente
b. e c. , conferindo, assim, ao texto um tom d. .

a. b. c. d.
1. formal 1. andam em conflito 1. julgam criticamente 1. erudito
2. informal 2. estão de acordo 2. afirmam perentoriamente 2. lírico
3. denotativo 3. andam indispostos 3. garantem erradamente 3. coloquial

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 378, 379, 390 e 396.

1 Classifique a oração “que levará ou não à resolução do tal conflito de fronteiras” (l. 12).

2 Indique o ato ilocutório dominante entre as linhas 16 e 20.

3 Identifique a modalidade e o valor modal configurados na expressão sublinhada em


“já que estaríamos com a mão na massa” (ll. 20-21).

4 Selecione a opção que completa corretamente a afirmação.


O único segmento que não inclui uma oração subordinada substantiva completiva é
A. “Agora diz-se que foi acordado entre os dois beligerantes aquilo a que se chama
Gramática/Atividade:
‘suspensão de hostilidades’” (ll. 11-12) Atos ilocutórios (atos de fala);
Valor modal: modalidade
B. “Entretanto, vai-se anunciando que andam por 500 os mortos, feridos e desapa- apreciativa; Valor modal:
recidos” (ll. 12-13) modalidade deôntica;
Valor modal: modalidade
C. “Foi necessário que morressem estupidamente umas quantas centenas de ho- epistémica
Quiz: Valor modal
mens e mulheres” (ll. 17-18) Resolução/Atividade:
Questão de exame explicada:
D. “não se descobrirá uma lei universal que julgue e condene os responsáveis orações 2
de tais crimes” (ll. 18-19)

275
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Visão global da obra


1 Complete os espaços em branco, no seu caderno, de forma a elaborar uma síntese de cada
capítulo de O ano da morte de Ricardo Reis.

Ao fim de dezasseis anos no Brasil, Ricardo Reis desembarca em a. e hospeda-se


I no Hotel Bragança, onde vê, pela primeira vez, b. , figura que lhe desperta interesse
por ter a mão esquerda c. .
Ricardo Reis lê jornais para se inteirar das notícias sobre a morte de d. e, poste-
riormente, visita o túmulo do poeta no Cemitério dos Prazeres.
II
Já no Bragança, contacta pela primeira vez com e. , criada do hotel, cujo nome
o deixa surpreso.
Ricardo Reis presencia o “bodo do Século”, onde foram distribuídos dez escudos a cada um de
mais de mil necessitados.
III Na noite da passagem de ano, depois de regressar do Rossio, Reis depara-se, no quarto, com
a visita de f. , que o informa de que tem ainda oito meses para circular à vontade
no mundo dos vivos.
Ricardo Reis tem o primeiro contacto físico com Lídia – põe-lhe a mão no braço – e diz-lhe que
a acha bonita. No entanto, estes atos fazem-no sentir-se ridículo.
Fernando Pessoa volta a encontrar-se com Ricardo Reis, na esquina da rua de Santa Justa,
IV
e os dois conversam sobre a multiplicidade de eus e sobre g. .
Ricardo Reis envolve-se com a criada, que entra no seu quarto, durante a noite, deitando-se
com ele.
Ricardo Reis vai ao Teatro D. Maria com a intenção de travar conhecimento com o doutor Sam-
V paio e com Marcenda. À noite, recebe a visita de Fernando Pessoa no seu quarto e os dois falam
sobre Lídia e sobre o fingimento. Lídia volta a dormir com Ricardo Reis.
Ricardo Reis e Marcenda conversam na sala de estar do hotel sobre a sua debilidade física e a
VI jovem pede-lhe a sua opinião profissional. Nessa noite, Ricardo Reis janta com o doutor Sampaio
e com Marcenda e Lídia não o visita porque está com ciúmes.
Ricardo Reis lê h. , obra que lhe foi recomendada pelo doutor Sampaio e que relata
a lealdade da jovem Marília ao sistema.
VII Lídia volta a dormir com Ricardo Reis ao fim de cinco dias.
Ricardo Reis encontra Fernando Pessoa num café do bairro e, a propósito da vitória da esquerda
em Espanha, falam sobre i. e o regresso de Reis a Portugal.
Ricardo Reis fica doente, com febre, e Lídia dispensa-lhe todos os cuidados. Dias depois, ele re-
cebe uma intimação para se apresentar j. , situação que desperta a desconfiança
entre o pessoal e entre os hóspedes do hotel.
Lídia fica preocupada e tenta prevenir Reis das práticas dessa instituição.
VIII k. marca um encontro com Ricardo Reis, no Alto de Santa Catarina. Enquanto
aguarda por ela, Reis é “visitado” por Fernando Pessoa que o questiona sobre as suas relações
amorosas.
Durante o encontro, a filha do doutor Sampaio pede a Ricardo Reis que lhe escreva a dar notícias
da entrevista para que fora intimado.
Ricardo Reis vai à polícia e é interrogado num clima de suspeição. Regressado ao hotel, diz
a Lídia que tudo correu bem e escreve a Marcenda, tranquilizando-a. Mais tarde, informa a cria-
IX
Animação: José Saramago da de que vai deixar o Bragança, e esta prontifica-se a ir visitá-lo nos seus dias de folga. Ricardo
na 1.a pessoa Reis aluga casa l. , defronte à estátua m. .

276
O ano da morte de Ricardo Reis

Ricardo Reis escreve a Marcenda para a informar da nova morada. Dias depois deixa o hotel.
X Na sua primeira noite na casa alugada, recebe a visita de Fernando Pessoa e falam sobre soli-
Síntese: Guia de estudo:
dão. José Saramago – O ano da
morte de Ricardo Reis 1
Lídia vai visitar Ricardo Reis para verificar se está bem instalado e ele acaba por beijá-la na boca.
XI Dias depois, recebe a visita de n. , que, pela primeira vez na vida, é beijada por
um homem.
Lídia prontifica-se a cuidar da limpeza da nova casa e os dois acabam por se envolver.
Ricardo Reis escreve uma carta confusa a Marcenda. Começa, entretanto, a trabalhar, substi-
XII tuindo temporariamente um colega especialista em coração e pulmões. Esta situação leva-o
a escrever novamente a Marcenda. Entretanto, quase ao fim de um mês, recebe o.
da jovem de Coimbra, anunciando que o visitará no consultório.
Ricardo Reis encontra-se com Fernando Pessoa junto à estátua do Adamastor e os dois conver-
sam acerca da relação de Reis p. e sobre a vida e a morte.
Ao chegar a casa, Ricardo Reis depara-se com q. e, a propósito disso, ortónimo
e heterónimo falam da ida de Ricardo Reis à polícia, de Salazar e de Hitler.
XIII
Lídia, enquanto faz limpeza, é seduzida por Reis. Contudo, percebendo que está com um proble-
ma de impotência, o médico repele-a, o que a deixa tristíssima e sem perceber o que se passava.
Marcenda aparece no consultório e Ricardo propõe r. . Ela recusa, alegando
s. .
Reis recebe uma carta de Marcenda a assegurar que nunca mais se voltarão a ver, a pedir-lhe
para nunca mais lhe escrever e a informá-lo de que irá a Fátima.
XIV
Restabelece-se, entretanto, a relação de Reis com Lídia, mas o médico vai a t. ,
com o intuito de ver Marcenda. No entanto, não consegue encontrá-la.
Ricardo Reis fica a saber que o colega que está a substituir vai retomar o seu lugar e isso leva-o
a começar a pensar em regressar ao Brasil.
XV
Fernando Pessoa visita novamente Ricardo Reis e os dois falam sobre o facto de Reis continuar
a ser vigiado por Victor, sobre as relações amorosas de ambos e sobre o destino e a ordem.
Ricardo Reis escreve um poema dedicado a u. .
Lídia comunica-lhe que está grávida e que não tenciona v. .
XVI Fernando Pessoa faz nova visita a Ricardo Reis e os dois falam sobre a perspetiva do regime em
relação a diferentes personalidades e sobre o seu obscurantismo. Durante a conversa, Ricardo
Reis confessa-lhe que vai ser pai e que ainda não decidiu se vai ou não perfilhar a criança.
Ricardo Reis vai visitar Fernando Pessoa ao Cemitério dos Prazeres e dialogam sobre o golpe
XVII
militar ocorrido em Espanha.
Enquanto lava a loiça na cozinha de Ricardo Reis, Lídia questiona-se sobre o seu papel naquela
casa e chega a pensar w. .
XVIII
Ricardo Reis vai assistir a um comício em defesa do Estado Novo e de Salazar. Dias depois, envia
para Marcenda o poema que lhe dedicou.
Lídia chega a casa de Ricardo Reis, chorosa, e anuncia que o seu irmão e outros marinheiros se
vão x. . No dia seguinte, Ricardo Reis assiste ao bombardeamento do Afonso de e
Albuquerque, barco onde seguia o irmão de Lídia, e do Dão.
XIX a
Ricardo Reis vai ao Hotel Bragança à procura de Lídia, mas não a encontra. Mais tarde fica
a saber que Daniel y. .
Fernando Pessoa visita pela última vez Ricardo Reis e este decide z. em direção
o
à morte.

277
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

José Saramago recorre muitas vezes ao passado, assumindo-o como pano de fundo
da ação dos seus romances. […]
O ano da morte de Ricardo Reis (1984) inscreve-se nessa tendência para dialogar com
outro tempo e com os fantasmas que o habitam. A personagem principal, Ricardo Reis,
tem a particularidade de ser uma figura literária, inicialmente criada por Fernando Pessoa.
Aproveitando o facto de o criador da personagem a situar no Brasil, sem referir nenhuma
data para a sua morte, Saramago imagina Reis a regressar a Lisboa, no final de 1935.
O país que vem encontrar é o Portugal que acabara de entrar na ditadura do Estado Novo,
sob apertada vigilância. […]
A obra em apreço surge assim dotada de um enredo próprio, inscrito num tempo e num
espaço bem identificados, que serve ao autor para evocar uma memória essencialmente
negativa.
José Augusto Cardoso Bernardes

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Fixação de texto
José Saramago, Leia os excertos textuais. Se necessário, consulte as notas.
O ano da morte
de Ricardo Reis,
Porto, Porto Editora, Chegada a Lisboa
2021.

Excerto 1 | Capítulo I (pp. 7-10)


Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm
turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland
Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para
atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, com uma lançadeira nos caminhos do
5 mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio
de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na via-
gem, ainda tocará em Vigo e Boulogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai en-
trando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia. [...] Por trás dos vidros embaciados de sal,
os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre colinas, como se só de casas térreas
10 construída, por acaso além um zimbório1 alto, uma empena2 mais esforçada, um vulto que
parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera, miragem criada pela movediça
cortina das águas que descem do céu fechado. [...]
É domingo. Para além dos barracões do cais começa a cidade sombria, recolhida em fron-
tarias e muros, por enquanto ainda defendida da chuva, acaso movendo uma cortina triste e
15 bordada, olhando para fora com olhos vagos, ouvindo gorgolhar a água dos telhados, algeroz3
abaixo, até ao basalto das valetas, ao calcário nítido dos passeios, às sarjetas pletóricas4,
levantadas algumas, se houve inundação.

Quiz: José Saramago –


O ano da morte
1 parte externa e superior da cúpula de um edifício; 2 peça de madeira que une as vigas ao cume; 3 cano que
de Ricardo Reis 1
recebe as goteiras de todo o telhado; 4 demasiado cheias

278
O ano da morte de Ricardo Reis

Excerto 2 | Capítulo I (pp. 11, 12-13, 14-16)


Um homem grisalho, seco de carnes, assina os últimos papéis, recebe as cópias deles, pode-
-se ir embora, sair, continuar em terra firme a vida. […] Enquanto o motorista baixava o porta-
20 -bagagens fixado na traseira do automóvel, o viajante perguntou, pela primeira vez se lhe
notando um leve sotaque brasileiro, Por que estão na doca aqueles barcos, e o bagageiro respon-
deu, ofegando, ajudava o motorista a içar a mala grande, pesada, Ahn, é a doca da marinha, foi
por causa do mau tempo, rebocaram-nos para aqui anteontem, senão eram bem capazes de
garrar e ir encalhar a Algés. Chegavam outros táxis, tinham-se atrasado, ou o vapor atracara
25 antes da hora esperada, agora havia no terreiro feira franca, tornara-se banal a satisfação da
necessidade, Quanto lhe devo, perguntou o viajante, Por cima da tabela é o que quiser dar,
respondeu o bagageiro, mas não disse que tabela fosse a tal nem o preço real do serviço, fiava-se
na fortuna que protege os audaciosos, ainda que descarregadores, Só trago dinheiro inglês
comigo, Ah, isso tanto faz, e na mão direita estendida viu pousar dez xelins, moeda que mais
30 do que o sol brilhava, enfim logrou o astro-rei vencer as nuvens que sobre Lisboa pesavam. […]
O bagageiro levanta o boné e agradece, o táxi arranca, o motorista quer que lhe digam, Para
onde, e esta pergunta, tão simples, tão natural, tão adequada à circunstância e ao lugar, apanha
desprevenido o viajante, como se ter comprado a passagem no Rio de Janeiro tivesse sido e
pudesse continuar a ser resposta para todas as questões, mesmo aquelas, passadas, que em seu
35 tempo não encontraram mais que o silêncio, agora mal desembarcou logo vê que não, talvez
porque lhe fizeram uma das duas perguntas fatais, Para onde, a outra, e pior, seria, Para quê.
O motorista olhou pelo retrovisor, julgou que o passageiro não ouvira, já abria a boca para re-
petir, Para onde, mas a resposta chegou primeiro, ainda irresoluta, suspensiva, Para um hotel,
Qual, Não sei, e tendo dito, Não sei, soube o viajante o que queria, com tão firme convicção
40 como se tivesse levado toda a viagem a ponderar a escolha, Um que fique perto do rio, cá para
baixo, Perto do rio só se for o Bragança, ao princípio da Rua do Alecrim, não sei se conhece, Do
hotel não me lembro, mas a rua sei onde é, vivi em Lisboa, sou português, Ah, é português, pelo
sotaque pensei que fosse brasileiro, Percebe-se assim tanto, Bom, percebe-se alguma coisa, Há
dezasseis anos que não vinha a Portugal, Dezasseis anos são muitos, vai encontrar grandes
45 mudanças por cá, e com estas palavras calou-se bruscamente o motorista.
Ao viajante não parecia que as mudanças fossem tantas. A avenida por onde seguiam coin-
cidia, no geral, com a memória dela, só as
árvores estavam mais altas, nem admira,
sempre tinham sido dezasseis anos a crescer,
50 e mesmo assim, se na opaca lembrança guar-
dava frondes verdes, agora a nudez invernal
dos ramos apoucava a dimensão dos renques,
uma coisa dava para a outra. A chuva rareara,
só algumas gotas dispersas caíam, mas no es-
55 paço não se abrira nem uma frincha de azul,
as nuvens não se soltaram umas das outras,
fazem um extensíssimo e único teto cor de
chumbo. [...] Passa devagar o comboio de Cas-
cais, [...] mas fica para trás, entra na estação
60 quando o automóvel já está a dar a volta ao
largo, e o motorista avisa, O hotel é aquele,
à entrada da rua. Parou em frente de um café,
acrescentou, O melhor será ir ver primeiro se
há quartos, não posso esperar mesmo à porta

279
José Saramago

65 por causa dos elétricos. […] Já ia vencendo os degraus exteriores do hotel quando compreendeu,
por estes pensamentos, que estava muito cansado, era o que sentia, uma fadiga muito grande,
um sono da alma, um desespero, se sabemos com bastante suficiência o que isso seja para
pronunciar a palavra e entendê-la.

Marcenda

Excerto 3 | Capítulo I (pp. 23, 25-26)


Pontual, quando ainda ecoava a última pancada das oito no relógio de caixa alta que or-
70 namentava o patamar da receção, Ricardo Reis desceu à sala de jantar. […]
A porta abriu-se outra vez, agora entrou um homem de meia-idade, alto, formal, de rosto
comprido e vincado, e uma rapariga de uns vinte anos, se os tem, magra, ainda que mais
exato seria dizer delgada, dirigem-se para a mesa fronteira à de Ricardo Reis […]. A rapariga
fica de perfil, o homem está de costas, conversam em voz baixa, mas o tom dela subiu quan-
75 do disse, Não, meu pai, sinto-me bem, são portanto pai e filha, conjunção pouco costumada
em hotéis, nestas idades. [...] A rapariga magra acabou a sopa, pousa a colher, a sua mão di-
reita vai afagar, como um animalzinho doméstico, a mão esquerda que descansa no colo.
Então Ricardo Reis, surpreendido pela sua própria descoberta, repara que desde o princípio
aquela mão estivera imóvel, recorda-se de que só a mão direita desdobrara o guardanapo, e
80 agora agarra a esquerda e vai pousá-la sobre a mesa, com muito cuidado, cristal fragilíssimo,
e ali a deixa ficar, ao lado do prato, assistindo à refeição, os longos dedo, estendidos, pálidos,
ausentes. Ricardo Reis sente um arrepio, é ele quem o sente, ninguém por si o está sentindo,
por fora e por dentro da pele se arrepia, e olha fascinado a mão paralisada e cega que não sabe
aonde há de ir se a não levarem […]. Chegou ao fim da refeição, ainda se demora um pouco,
85 a dar tempo, que tempo e para quê, enfim levantou-se, afasta a cadeira, e o rumor do arras-
tamento, acaso excessivo, fez voltar-se o rosto da rapariga, de frente tem mais que os vinte
anos que antes parecera, mas logo o perfil a restitui à adolescên-
cia, o pescoço alto e frágil, o queixo fino, toda a linha instável do
corpo, insegura, inacabada.

Ricardo Reis lê os jornais

Excerto 4 | Capítulo I (pp. 28-29, 30-31)


90 O sofá do quarto é confortável, as molas, de tantos corpos que
nelas se sentaram, humanizaram-se, fazem um recôncavo suave,
e a luz do candeeiro que está sobre a secretária ilumina de bom
ângulo o jornal, nem parece isto um hotel, é como estar em casa,
no seio da família, do lar que não tenho, se o terei, são estas as
95 notícias da minha terra natal, e dizem, O chefe do Estado inaugu-
rou a exposição de homenagem a Mousinho de Albuquerque na
Agência Geral das Colónias, não se podem dispensar as imperiais
comemorações nem esquecer as figuras imperiais, Há grandes
receios na Golegã, não me lembro onde fica, ah Ribatejo, se as
100 cheias destruírem o dique dos Vinte, nome muito curioso, donde
lhe virá, veremos repetida a catástrofe de mil oitocentos e noven-
ta e cinco, noventa e cinco, tinha eu oito anos, é natural não me
lembrar, A mais alta mulher do mundo chama-se Elsa Droyon

280
O ano da morte de Ricardo Reis

e tem dois metros e cinquenta centímetros de altura,


105 a esta não a cobriria a cheia, e a rapariga, como se
chamará, aquela mão paralisada, mole, foi doença, foi
acidente, Quinto concurso de beleza infantil, meia
página de retratos de criancinhas, nuazinhas de todo,
ao léu os refegos, alimentadas a farinha lactobúlgara,
110 alguns destes bebés se tornarão criminosos, vadios e
prostitutas por assim terem sido expostos, na tenra
idade, ao olhar grosseiro do vulgo, que não respeita
inocências, Prosseguem as operações na Etiópia5,
e do Brasil que notícias temos, sem novidade, tudo
115 acabado, Avanço geral das tropas italianas, não há
força humana capaz de travar o soldado italiano na
sua heroica arrancada, que faria, que fará contra ele
a lazarina6 abexim7, a pobre lança, a mísera catana,
[…] No Coliseu está A última Maravilha com a azougada e escultural Vanise Meireles, estrela
120 brasileira, tem graça, no Brasil nunca dei por ela, culpa minha, aqui a três escudos a geral,
fauteuil a partir de cinco, em duas sessões, matinée aos domingos, O Politeama leva As Cru-
zadas, assombroso filme histórico, Em Port-Said desembarcaram numerosos contingentes
ingleses, tem cada tempo as suas cruzadas, estas são as de hoje, constando que seguiram para
a fronteira da Líbia italiana, […] Bodos aos pobres por todo o país de cá, ceia melhorada nos
125 asilos, que bem tratados são em Portugal os macróbios8, bem tratada a infância desvalida,
florinhas da rua, e esta notícia, O presidente da câmara do Porto telegrafou ao ministro
do Interior, em sessão de hoje a câmara municipal da minha presidência apreciando o decreto
de auxílio aos pobres no inverno resolveu saudar vossa excelência por esta iniciativa de tão
singular beleza, e outras [...].

5 referência à invasão da Etiópia por Mussolini; 6 arma de fuzil, comprida, de pequeno calibre e de carregar pela
boca; 7 da Abissínia, atual Etiópia; 8 pessoas que têm idade avançada

1 Observe as semelhanças entre a primeira frase do romance Saramaguiano e o verso 3


da estância 20, canto III, de Os Lusíadas, “[aqui] onde a terra se acaba e o mar começa”.
1.1 Apresente uma justificação para a recriação deste verso, por Saramago, consi-
derando o tempo da ação de O ano da morte de Ricardo Reis e o regime político
vigente.

2 A cidade e a sua descrição apresentam um grande relevo nestes excertos.


2.1 Descreva-a, fundamentando a sua resposta com citações textuais.
2.2 Descodifique a metáfora que esta descrição encerra, considerando o ano de 1936.

3 Evidencie semelhanças entre o Ricardo Reis pessoano e o saramaguiano, consideran-


do o conhecimento que tem do heterónimo.

4 Explicite a reação de Ricardo Reis à particularidade física de Marcenda e relacione-a


com as características do heterónimo, considerando o excerto 3.

5 Uma das maneiras de Reis se inteirar da atualidade passa pela leitura dos jornais.
5.1 Comente o interesse e a importância das notícias destacadas pelo narrador (excerto 4).

281
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

A cidade, porém, no mundo ficcional do romance, não se apresenta só na sua realida-


de geográfica, incorpora-se também nela o ambiente social e intelectual, onde os prota-
gonistas se movem e atuam, substanciando uma época, na sua maneira de pensar, de
sentir e de agir […].
Em O ano da morte de Ricardo Reis, Saramago parte do labirinto da cidade para revi-
sitar, repensar, reescrever e até reinventar a História de Portugal, numa longa viagem
pelo tempo factual através do tempo simbólico e alegórico […].
A memória gloriosa eternizada nas estátuas, da cidade que foi outrora a “cabeça do
mundo”, graças à descoberta que dele fez em termos geográficos, científicos e culturais,
contrasta com a Lisboa de 1936, atrasada, oprimida e miserável.
[…] O passeio de Ricardo Reis por Lisboa, revisitando a cidade, aproxima o leitor à obra
“Viagens” de Almeida Garrett e ao “Sentimento de um ocidental” de Cesário Verde […].
Maria Fernanda Miranda Gomes Moreira Barbosa, O ano da morte de Ricardo Reis: romance pós-moderno?,
Porto, Universidade Fernando Pessoa, 2010, pp. 55-58 (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia atentamente os excertos. Se necessário, consulte as notas.

Ricardo Reis percorre a cidade

Excerto 1 | Capítulo II (pp. 33-35)


Ricardo Reis saiu cedo do hotel, foi ao Banco Comercial cambiar algum do seu dinheiro
inglês pelos escudos da pátria […]. Da Rua do Comércio, onde está, ao Terreiro do Paço distam
poucos metros, apeteceria escrever, É um passo, se não fosse a ambiguidade da homofonia, mas
Ricardo Reis não se aventurará à travessia da praça, fica a olhar de longe, sob o resguardo das
5 arcadas, o rio pardo e encrespado, a maré está cheia, quando as ondas se levantam ao largo
parece que vêm alagar o terreiro, submergi-lo, mas é ilusão de ótica, desfazem-se contra a mu-
ralha, quebra-se-lhes a força nos degraus inclinados do cais. Lembra-se de ali se ter sentado em
outros tempos, tão distantes que pode duvidar se os viveu ele mesmo, Ou alguém por mim,
talvez com igual rosto e nome, mas outro. Sente frios os pés, húmidos, sente também uma
10 sombra de infelicidade passar-lhe sobre o corpo, não sobre a alma, repito, não sobre a alma, esta
impressão é exterior, seria capaz de tocar-lhe com as mãos se não estivessem ambas agarrando
o cabo do guarda-chuva, escusadamente aberto. Assim se alheia do mundo um homem, assim
se oferece ao desfrute de quem passa e diz, Ó senhor, olhe que aí debaixo não lhe chove, mas
este riso é franco, sem maldade, e Ricardo Reis sorri de se ter distraído, sem saber porquê mur-
15 mura os dois versos de João de Deus, célebres na infância das escolas, Debaixo daquela arcada
passava-se a noite bem.
Veio por estar tão perto e para verificar, de caminho, se a antiga memória da praça, nítida
como uma gravura a buril, ou reconstruída pela imaginação para assim o parecer hoje, tinha
correspondência próxima na realidade material de um quadrilátero rodeado de edifícios por
20 três lados, com uma estátua equestre e real ao meio, o arco do triunfo, que donde está não al-
cança a ver, e afinal tudo é difuso, brumosa a arquitetura, as linhas apagadas, será do tempo
que faz, será do tempo que é, será dos seus olhos já gastos, só os olhos da lembrança podem ser

282
agudos como os do gavião. […] Afasta-se Ricardo Reis em direção à Rua do
Crucifixo, atura a insistência de um cauteleiro que lhe quer vender um dé-
25 cimo para a próxima extração da lotaria, É o mil trezentos e quarenta e nove,
amanhã é que anda a roda, não foi este o número nem a roda anda amanhã,
mas assim soa o canto do áugure, profeta matriculado com chapa no boné,
Compre, senhor, olhe que se não compra pode-se arrepender, olhe que é
palpite, e há uma fatal ameaça na imposição. Entra na Rua Garrett, sobe ao
30 Chiado, estão quatro moços de fretes encostados ao plinto1 da estátua, nem
ligam à pouca chuva, é a ilha dos galegos, e adiante deixou de chover mesmo,
chovia, já não chove, há uma claridade branca por trás de Luís de Camões, um nimbo, e veja-se
o que as palavras são, esta tanto quer dizer chuva, como nuvem, como círculo luminoso, e não
sendo o vate Deus ou santo, tendo a chuva parado, foram só as nuvens que se adelgaçaram ao
35 passar, não imaginemos milagres de Ourique ou de Fátima, nem sequer esse tão simples de
mostrar-se azul o céu. […]

Excerto 2 | Capítulo II (pp. 45-47)


Ricardo Reis almoçou sem ligar a dietas [...]. Da mesa onde está, por entre os intervalos das 1 base em que assentam os
cortinas, vê passarem lá fora os carros elétricos, ouve-os ranger nas curvas, o tilintar das cam- pés de uma estátua; 2 verter
pelos poros; 3 pátio estreito
painhas soando liquidamente na atmosfera coada de chuva, como os sinos duma catedral
e descoberto, no interior de
40 submersa ou as cordas de um cravo ecoando infinitamente entre as paredes de um poço. edifícios ou que separa duas
Os criados esperam com paciência que este último freguês acabe de almoçar, entrou tarde, traseiras de prédios; 4 mulas
pediu por favor que o servissem, e graças a essa prova de consideração por quem trabalha é
que foi retribuído quando já na cozinha se arrumavam as panelas. Agora, sai, urbanamente
deu as boas-tardes, e agradecendo saiu pela porta da Rua dos Correeiros, esta que dá para a
45 grande babilónia de ferro e vidro que é a Praça da Figueira, ainda agitada, porém nada que se
possa comparar com as horas da manhã, ruidosas de gritos e pregões até ao paroxismo. Res-
pira-se uma atmosfera composta de mil cheiros intensos, a couve esmagada e murcha, a ex-
crementos de coelho, a penas de galinha escaldadas, a sangue, a pele esfolada. Andam a lavar
as bancadas, as ruas interiores, com baldes e agulheta, e ásperos piaçabas, ouve-se de vez em
50 quando um arrastar metálico, depois um estrondo, foi uma porta ondulada que se fechou.
Ricardo Reis rodeou a praça pelo sul, entrou na Rua dos Douradores, quase não chovia já, por
isso pôde fechar o guarda-chuva, olhar para cima, e ver as altas frontarias de cinza parda, as
fileiras de janelas à mesma altura, as de peitoril, as de sacada, com as monótonas cantarias
prolongando-se pelo enfiamento da rua, até se confundirem em delgadas faixas verticais, cada
55 vez mais estreitas, mas não tanto que se escondessem num ponto de fuga, porque lá ao fundo,
aparentemente cortando o caminho, levanta-se um prédio da Rua da Conceição, igual de cor,
de janelas e de grades, feito segundo o mesmo risco, ou de mínima diferença, todos porejando2
sombra e humidade, libertando nos saguões3 o cheiro dos esgotos rachados, com esparsas
baforadas de gás […]. A rua está calçada de pedra grossa, irregular, é um basalto quase preto
60 onde saltam os rodados metálicos das carroças e onde, em tempo seco, não este, ferem lume
as ferraduras das muares4 quando o arrasto da carga passa as marcas e as forças. Hoje não há
desses bojadores, só outros de menos aparato, como estarem descarregando dois homens
sacas de feijão que, pelo vulto, não pesam menos de sessenta quilos, ou serão litros, como se
deve dizer quando se trata destas e doutras sementes, passando então os quilos a menos do
65 que os ditos, porque sendo o feijão, de sua íntima natureza, mais ligeiro, cada litro seu orça
por setecentos e cinquenta gramas, termo médio, oxalá tenham os medidores atendido a estas
considerações de peso e massa quando encheram os sacos.
É para o hotel que Ricardo Reis vai encaminhando os passos.

283
José Saramago

Lídia

Excerto 3 | Capítulo II (pp. 50-52)


Ouviu passos no corredor, ressoaram discretamente uns nós de dedos na porta, Entre, [...]
70 Como se chama, e ela respondeu, Lídia, senhor doutor, e acrescentou, Às ordens do senhor
doutor […], mas ele não respondeu, apenas pareceu que repetira o nome, Lídia, num sussur-
ro, quem sabe se para não o esquecer quando precisasse de voltar a chamá-la, há pessoas
assim, repetem as palavras que ouvem, as pessoas, em verdade, são papagaios umas das ou-
tras, nem há outro modo de aprendizagem, acaso esta reflexão veio fora de propósito porque
75 não a fez Lídia, que é o outro interlocutor, deixemo-la sair então, se já tem nome, levar dali
o balde e o esfregão, vejamos como ficou Ricardo Reis a sorrir ironicamente, é um jeito de
lábios que não engana, quando quem inventou a ironia inventou a ironia, teve também de
inventar o sorriso que lhe declarasse a intenção, alcançamento muito mais trabalhoso, Lídia,
diz, e sorri. Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas, lê alguns versos
80 apanhados no passar das folhas, E assim, Lídia, à lareira, como estando, Tal seja, Lídia, a qua-
dro, Não desejemos, Lídia, nesta hora, Quando, Lídia, vier o nosso outono, Vem sentar-te
comigo, Lídia, à beira-rio, Lídia, a vida mais vil antes que a morte, já não resta vestígio de
ironia no sorriso, se de sorriso ainda justificam o nome dois lábios abertos sobre os dentes,
quando por dentro da pele se alterou o jogo dos músculos, ricto agora ou doloroso esgar se
85 diria em estilo chumbado. Também isto não durará. Como a imagem de si mesmo refletida
num trémulo espelho de água, o rosto de Ricardo Reis, suspenso sobre a página, recompõe
as linhas conhecidas, daqui a pouco poderá reconhecer-se, Sou eu, sem nenhuma ironia, sem
nenhum desgosto, contente de não sentir sequer contentamento, menos ser o que é do que
estar onde está, assim faz quem mais não deseja ou sabe que mais não pode ter, por isso só
90 quer o que já era seu, enfim, tudo. [...] Ricardo Reis faz um gesto com as mãos, tateia o ar
cinzento, depois, mal distinguindo as palavras que vai traçando no papel, escreve, Aos deu-
ses peço só que me concedam o nada lhes pedir […].

A Europa nos jornais

Excerto 4 | Capítulo II (pp. 55-56)


Ricardo Reis já tinha aberto um dos jornais, passara todo aquele dia em ignorância do que
acontecera no mundo, não que por inclinação fosse leitor assíduo, pelo contrário, fatigavam-
95 -no as páginas grandes e as prosas derramadas, mas aqui, não havendo mais que fazer, e para
escapar às solicitudes de Salvador, o jornal, por falar do mundo geral, servia de barreira con-
5 em janeiro de 1936;
tra este outro mundo próximo e sitiante, podiam as notícias daquele de além ser lidas como
6 referência às denúncias
feitas pelo Imperador da remotas e inconsequentes mensagens, em cuja eficácia não há muitos motivos para acreditar
Etiópia (Negus) à Sociedade porque nem sequer temos a certeza de que cheguem ao seu destino, Demissão do governo
das Nações, após a invasão 100 espanhol, aprovada a dissolução das cortes5, uma, O Negus num telegrama à Sociedade das
dos italianos. Esta figura
Nações diz que os italianos empregam gases asfixiantes6, outra, são assim os periódicos, só
torna-se um símbolo
de resistência ao fascismo sabem falar do que aconteceu, quase sempre quando já é tarde de mais para emendar os erros,
de Mussolini os perigos e as faltas […].

1 Evidencie, nos excertos 1 e 2, as viagens física e literária que ocorrem em paralelo.

2 Explicite a viagem literária de Reis, a propósito do nome da criada de hotel (excerto 3).

284
O ano da morte de Ricardo Reis

3 Demonstre e justifique a evolução na atitude de Ricardo Reis.

4 Caracterize o clima que se vivia na Europa, considerando as notícias lidas. Animação: Escrever
um texto expositivo
5 Evidencie aproximações entre a perceção que Reis tem da cidade
FAZ SENTIDO RELACIONAR

e a descrição feita por Cesário Verde, em “O sentimento dum ocidental”.

ESCRITA i Bloco informativo | p. 353.

1 FAZ SENTIDO RELACIONAR Os espaços têm a capacidade de despertar em nós sentimen-


tos/sensações diversas. Escreva um texto expositivo, com um mínimo de 180 e um
máximo de 280 palavras, referindo a importância da cidade de Lisboa em Os Maias,
“O sentimento dum ocidental” e O ano da morte de Ricardo Reis.
Observe as seguintes orientações:
• introdução – referência à cidade retratada nas imagens abaixo;
• desenvolvimento – alusão a:
– ambiente geral da cidade descrito nas obras;
– espaços destacados e respetiva simbologia/importância;
– perceção crítica do autor e/ou de personagens sobre o espaço.
• conclusão – importância das obras enquanto documentos culturais.

https://maislisboa.fcsh.unl.pt/chiado-na-literatura. Horácio Novais, Praça Duque da Terceira, Cais do Sodré.

CONSTRUIR SENTIDOS

1 Releia o capítulo II a partir de “Deu oito horas o relógio do patamar” (p. 57) até ao final.
1.1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.
A. Quando o relógio deu as oito horas, Ricardo Reis, que não tinha fome, hesitou
na decisão de ir jantar, tendo continuado calmamente a leitura dos jornais.
B. Na descrição feita pelo narrador, é referido um traço coincidente com a
caracterização do heterónimo: o facto de ambos serem poetas e cultivarem
o género ode.
C. A diligência de Ricardo Reis em apressar-se para jantar justifica-se porque
a personagem tinha interesse em observar os hóspedes do hotel.
D. Reis ficou a saber pelo maître de hotel que os hóspedes eram de Lisboa e a
menina se chamava Marcenda.
E. Ricardo Reis comunicou a Salvador a intenção de, num próximo encontro,
avaliar clinicamente o caso de Marcenda.

285
José Saramago

LEITURA TEXTO EXPOSITIVO

Leia o texto.

Salazar e o
Estado Novo

A
pós o golpe de 28 de maio de
1926 que derrubou a I Repú-
blica portuguesa, iniciou-se
um processo longo e con-
5 turbado de ditadura militar, formação de uma ditadura militar numa
que se transformaria numa ditadura civil – ditadura civil, que instituiu, depois, ela pró-
ou “nacional”. […] O programa político e pria, o partido único do Estado Novo. […]
ideológico do ditador e chefe de Estado Novo 40 A nova Constituição Política – aprovada
baseava-se na rejeição do liberalismo e do co- em 19 de março de 1933 numa votação obri-
10 munismo assim como na apropriação de um gatória, com 40,2 por cento de abstenções
Estado nacionalista, corporativo, antiliberal contadas como votos favoráveis – recusava
e autoritário, política e economicamente in- tanto o liberalismo como o totalitarismo
terventor (Fernando Rosas). Segundo a defi- 45 estatal. Embora contivesse resquícios libe-
nição dada pelo próprio Salazar, ao apresen- rais […], o texto constitucional negava os
15 tar, em 1932, as bases da nova Constituição, fundamentos democráticos e parlamenta-
o novo regime seria nacionalista porque era ristas do Estado e as “abstrações” da sobera-
propósito do regime reintegrar Portugal “na nia popular, do cidadão e da liberdade como
sua grandeza histórica, na plenitude da sua 50 conceitos legitimadores do regime. […]
civilização universalista de vasto império”. Segundo o ditador, a Constituição asse-
20 Seria também antiliberal, anti-individua- gurava nomeadamente “a liberdade e a invio-
lista e corporativo, porque, no regime sala- labilidade das crenças e das práticas religio-
zarista, o indivíduo se deveria submeter ao sas”, atribuía “aos pais e seus representantes
“Interesse Nacional” e ao “Bem Comum”, só 55 a instrução e a educação dos filhos”, reconhe-
tendo existência própria como parte inte- cia “a Igreja com as suas organizações pró-
25 grante das famílias, das corporações e dos prias, e deixa[va]-lhe livre a ação espiritual”.
municípios. O novo Estado seria, finalmente, Embora o texto constitucional repetisse
forte e autoritário, para se defender dos ad- que o Estado não utilizaria a violência e as-
versários políticos, considerados “inimigos 60 seguraria o reconhecimento das liberdades
da Nação”, contra os quais o poder executi- e dos direitos políticos, admitia uma exce-
30 vo podia e devia usar “a força” para realizar ção que abria a porta a todas as exceções:
“a legítima defesa da Pátria”. […] Ao contrá- não seriam toleradas quaisquer “ofensas
rio do que aconteceu na Itália fascista e na à atividade governativa nem aos fins da
Alemanha nacional-socialista, o regime 65 Constituição”. […]
salazarista não teve origem na tomada
Irene Pimentel, in Público | El País, Século XX, –
35 de poder por um movimento político de “O Estado Novo”, fascículo 11, pp. 246-247
massas mobilizador: despontou da trans- (com supressões).

286
O ano da morte de Ricardo Reis

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.4, selecione a opção correta.
1.1 A ditadura civil ou “nacional”
A. teve início com o golpe militar de maio de 1926.
B. resulta de um processo conturbado, imediato ao derrube da I República.
C. decorre da ditadura militar que derrubou a I República.
D. foi iniciada por Salazar, que criou o movimento durante a I República.
1.2 Da ideologia salazarista constavam
A. a repressão, embora num ambiente de alguma liberdade.
B. a apologia do estado liberal e a rejeição do comunismo.
C. políticas de direita que visavam o desenvolvimento do país.
D. a valorização da grandeza e dimensão universalista de Portugal.
1.3 A nova constituição política de 1933
A. refutava a soberania popular e a liberdade dos cidadãos.
B. estava assente em ideais liberais como o da democracia.
C. foi aprovada respeitando a contagem dos votos.
D. preconizava o liberalismo e o totalitarismo.
1.4 A exceção preconizada pelo texto constitucional
A. visava regular o exercício da liberdade, embora não a restringisse.
B. era, no fundo, a negação total do texto constitucional.
C. era uma influência de outros Estados, como o alemão, por exemplo.
D. pretendia tornar a igreja um aliado da ação do Estado.

GRAMÁTICA

1 Para completar os itens 1.1 e 1.2, selecione a opção correta.


1.1 A oração “que derrubou a I República” (ll. 2-3) classifica-se como subordinada
A. adjetiva relativa restritiva. C. substantiva relativa.
B. adjetiva relativa explicativa. D. substantiva completiva.
1.2 O segmento “no regime salazarista, o indivíduo se deveria submeter ao ‘Interes-
se Nacional’ e ao ‘Bem Comum’” (ll. 21-23) exemplifica a modalidade
A. deôntica com valor de obrigação.
B. apreciativa.
C. epistémica com valor de probabilidade.
Gramática/Atividade:
D. epistémica com valor de certeza. Orações subordinadas
adjetivas relativas;
Orações subordinadas
substantivas relativas;
2 Identifique o valor aspetual configurado no segmento “[o regime salazarista] despontou Orações subordinadas
da transformação de uma ditadura militar numa ditadura civil” (ll. 36-38). substantivas completivas;
Valor modal: modalidade
apreciativa; Valor modal:
3 Indique a função sintática desempenhada pelos seguintes segmentos. modalidade deôntica;
Valor modal: modalidade
a. “aos pais e seus representantes” (l. 54) epistémica; Valor aspetual
Resolução/Atividade:
b. “quaisquer ‘ofensas à atividade governativa nem aos fins da Constituição’” (ll. 63-65) Questão de exame explicada:
funções sintáticas 2; Questão
de exame explicada: orações 3
4 Classifique a oração “Embora o texto constitucional repetisse” (l. 58)

287
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

Nas páginas de O ano da morte de Ricardo Reis, são raros os momentos em que nelas
não confluem indicadores de consciência social […]. Apesar de por vezes disfarçadas, ou
talvez não, pelo véu da ironia e de outros recursos estilísticos; apesar de dissimuladas
sob o tecido intertextual, a ideologia do autor e a consequente crítica àquele tempo em
concreto (1936) não passam, portanto, despercebidas ao leitor. Desta forma, num para-
lelismo possível com a realidade portuguesa (e do mundo), sabemos dos “jornais cor de
cinza, baços”, meios de difusão de notícias “em cuja eficácia há muitos motivos para
acreditar porque nem sequer temos a certeza de que cheguem ao seu destino”. Ficamos
também a conhecer, num entrelaçamento temático com a questão da censura, a parcia-
lidade da imprensa.
Ana Paula Arnaut, O ano da morte de Ricardo Reis de José Saramago,
Porto, Edições ASA, 2017, p, 19 (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Quiz: José Saramago – Leia os seguintes excertos. Se necessário, consulte as notas.


O ano da morte de Ricardo
Reis 2
Viagem literária

Excerto 1 | Capítulo III (pp. 65-67, 69)


Deixou de chover, o céu aclarou, pode Ricardo Reis, sem risco de molha incómoda, dar um
passeio antes do almoço. […] Sobe Ricardo Reis a Rua do Alecrim, […] para diante da estátua
de Eça de Queirós, ou Queiroz, por cabal respeito da ortografia que o dono do nome usou, ai
como podem ser diferentes as maneiras de escrever, e o nome ainda é o menos, assombroso é
5 falarem estes a mesma língua e serem, um Reis, o outro, Eça, provavelmente a língua é que vai
escolhendo os escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte pequena
do que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós viver.
Já as primeiras dificuldades começam a surgir, ou não serão ainda dificuldades, antes diferen-
tes e questionadoras camadas do sentido, sedimentos removidos, novas cristalizações, por
10 exemplo, Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia1, parece clara a sentença,
clara, fechada e conclusa, uma criança será capaz de perceber e ir ao exame repetir sem se
enganar, mas essa mesma criança perceberia e repetiria com igual convicção um novo dito,
1 epígrafe da obra A Relíquia, Sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade, e este dito, sim, dá muito mais
de Eça de Queirós; 2 verso que pensar, e saborosamente imaginar, sólida e nua a fantasia, diáfana apenas a verdade, se
de Camões, pertencente
15 as sentenças viradas do avesso passarem a ser leis, que mundo faremos com elas, milagre é
à écloga V, a D. António de
Noronha; 3 arbusto; 4 região não endoidecerem os homens de cada vez que abrem a boca para falar. É instrutivo o passeio,
da Itália Antiga, onde foi ainda agora contemplámos o Eça e já podemos observar o Camões, a este não se lembraram
fundada a cidade de Roma;
de pôr-lhe versos no pedestal, e se um pusessem qual poriam, Aqui, com grave dor, com triste
5 estátua de mármore feita
na Antiguidade Clássica que acento2, o melhor é deixar o pobre amargurado, subir o que falta da rua, da Misericórdia que
representa o deus Apolo; 20 já foi do Mundo, infelizmente não se pode ter tudo nem ao mesmo tempo, ou mundo ou mi-
6 primeiro verso de A divina sericórdia. [...] Ricardo Reis atravessa o jardim, vai olhar a cidade, o castelo com as suas mura-
Comédia, de Dante; 7 frase
lhas derrubadas, o casario a cair pelas encostas. O sol branqueado bate nas telhas molhadas,
com que se inicia a novela
Menina e Moça, de Bernardim desce sobre a cidade um silêncio, todos os sons são abafados, em surdina, parece Lisboa que é
Ribeiro feita de algodão, agora pingando. Em baixo, numa plataforma, estão uns bustos de pátrios

288
O ano da morte de Ricardo Reis

25 varões, uns buxos3, umas cabeças romanas, descondizentes, tão longe dos céus lácios4, é como
ter posto o zé-povinho do Bordalo a fazer um toma ao Apolo do Belvedere5.

O bodo do Século

Excerto 2 | Capítulo III (pp. 77-78)


Ricardo Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou ao Camões, era
como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar, a este
bronze afidalgado e espadachim, espécie de D’Artagnan premiado com uma coroa de louros
30 por ter subtraído, no último momento, os diamantes da rainha às maquinações do cardeal, a
quem, aliás, variando os tempos e as políticas, ainda acabará por servir, mas este aqui, se por
estar morto não pode voltar a alistar-se, seria bom que soubesse que dele se servem, à vez ou
em confusão, os principais, cardeais incluídos, assim lhes aproveite a conveniência. São horas
de almoçar, o tempo foi-se passando nestas caminhadas e descobertas, parece este homem
35 que não tem mais que fazer, dorme, come, passeia, faz um verso por outro, com grande es-
forço, penando sobre o pé e a medida, nada que se possa comparar ao contínuo duelo do
mosqueteiro D’Artagnan, só os Lusíadas comportam para cima de oito mil versos, e no en-
tanto este também é poeta, não que do título se gabe, como se pode verificar no registo do
hotel, mas um dia não será como médico que pensarão nele, nem em Álvaro como engenhei-
40 ro naval, nem em Fernando como correspondente de línguas estrangeiras, dá-nos o ofício o
pão, é verdade, porém não virá daí a fama, sim de ter alguma vez escrito, Nel mezzo del camin
di nostra vita6, ou, Menina e moça me levaram da casa de meus pais7, ou, En un lugar de la
Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme8, para não cair uma vez mais na tentação de 8 primeira frase da obra
D. Quixote de la Mancha,
repetir, ainda que muito a propósito, As armas e os barões assinalados, perdoadas nos sejam
de Miguel Cervantes;
45 as repetições, Arma virumque cano9. 9 primeiro verso de A Eneida,
de Virgílio, obra em que
Camões se inspirou para
Excerto 3 | Capítulo III (pp. 75-76) a conceção de Os Lusíadas

Ricardo Reis alcançou o meio da rua, está defronte da entrada do grande prédio
do jornal O Século, o de maior expansão e circulação, a multidão alarga-se, mais
folgada, pela meia-laranja que com ele entesta. À entrada estão dois polícias, aqui
perto outros dois que disciplinam o acesso, a um deles vai Ricardo Reis perguntar,
50 Que ajuntamento é este, senhor guarda, e o agente de autoridade responde com de-
ferência, vê-se logo que o perguntador está aqui por um acaso, É o bodo do Século,
Mas é uma multidão, Saiba vossa senhoria que se calculam em mais de mil os con-
templados, Tudo gente pobre, Sim senhor, tudo gente pobre, dos pátios e barracas,
Tantos, E não estão aqui todos, Claro, mas assim todos juntos, ao bodo, faz impressão,
55 A mim não, já estou habituado, E o que é que recebem, A cada pobre calha dez escu-
dos, Dez escudos, É verdade, dez escudos, e os garotos levam agasalhos, e brinquedos,
e livros de leitura, Por causa da instrução, Sim senhor, por causa da instrução, Dez
escudos não dá para muito, Sempre é melhor que nada, Lá isso é verdade, Há quem
esteja o ano inteiro à espera do bodo, deste e dos outros, olhe que não falta quem
60 passe o tempo a correr de bodo para bodo, à colheita, o pior é quando aparecem em
sítios onde não são conhecidos, outros bairros, outras paróquias, outras beneficên-
cias, os pobres de lá nem os deixam chegar-se, cada pobre é fiscal doutro pobre, Caso
triste, Triste será, mas é bem feito, para aprenderem a não ser aproveitadores, Muito

289
José Saramago

65 obrigado pelas suas informações, senhor guarda, Às ordens de vos-


sa senhoria, passe vossa senhoria por aqui, e, tendo dito, o polícia
avançou três passos, de braços abertos, como quem enxota galinhas
para a capoeira, Vamos lá, quietos, não queiram que trabalhe o sa-
bre, com estas persuasivas palavras a multidão acomodou-se [...].

Salazar

Excerto 4 | Capítulo IV (pp. 93-95, 109-110)


70 Diz-se, dizem-no os jornais, quer por sua própria convicção,
sem recado mandado, quer porque alguém lhes guiou a mão, se
não foi suficiente sugerir e insinuar, escrevem os jornais, em esti-
lo de tetralogia, que, sobre a derrocada dos grandes Estados, o por-
tuguês, o nosso, afirmará a sua extraordinária força e a inteligência
75 refletida dos homens que o dirigem. Virão a cair, portanto, e a pa-

lavra derrocada lá está a mostrar como e com que apocalíptico es-


trondo, essas hoje presunçosas nações que arrotam de poderosas,
grande é o engano em que vivem, pois não tardará muito o dia,
fasto sobre todos nos anais desta sobre todas pátria, em que os
80 homens de Estado de além-fronteiras virão às lusas terras pedir

opinião, ajuda, ilustração, mão de caridade, azeite para a candeia, aqui, aos fortíssimos ho-
mens portugueses, que portugueses governam, quais são eles, a partir do próximo ministé-
rio que já nos gabinetes se prepara, à cabeça maximamente Oliveira Salazar, presidente do
Conselho e ministro das Finanças […]. Dizem também os jornais, de cá, que uma grande
85 parte do país tem colhido os melhores e mais abundantes frutos de uma administração e
ordem pública modelares, e se tal declaração for tomada como vitupério, uma vez que se
trata de elogio em boca própria, leia-se aquele jornal de Genebra, Suíça, que longamente
discorre, e em francês, o que maior autoridade lhe confere, sobre o ditador de Portugal, já
sobredito, chamando-nos de afortunadíssimos por termos no poder um sábio. Tem toda a
90 razão o autor do artigo, a quem do coração agradecemos, mas considere, por favor, que não
é Pacheco menos sábio se amanhã disser, como dirá, que se deve dar à instrução primária
elementar o que lhe pertence e mais nada, sem pruridos de sabedoria excessiva, a qual, por
aparecer antes de tempo para nada serve, e também que muito pior que a treva do analfabe-
tismo num coração puro é a instrução materialista e pagã asfixiadora das melhores inten-
95 ções, posto o que, reforça Pacheco e conclui, Salazar é o maior educador do nosso século, se
não é atrevimento e temeridade afirmá-lo já, quando do século só vai vencido um terço.

Lídia e Ricardo Reis

Excerto 5 | Capítulo IV (pp. 95-96, 109-110)


Já conhecemos a criada que traz o pequeno-almoço, é a Lídia, […] tem quê, os seus trinta
anos, é uma mulher feita e bem feita, morena portuguesa, mais para o baixo que para o alto,
se há importância em mencionar os sinais particulares ou as características físicas duma
100 simples criada que até agora não fez mais que limpar o chão, servir o pequeno-almoço e, uma
vez, rir-se de ver um homem às costas doutro, enquanto este hóspede sorria, tão simpático,
mas tem o ar triste, não deve de ser pessoa feliz, ainda que haja momentos em que o seu
rosto se torna claro […].

290
O ano da morte de Ricardo Reis

Chegou ao hotel, abriu-lhe Pimenta a porta […]. Entrou no quarto, e, não advertindo que
105 fazia este movimento antes de qualquer outro, olhou a cama. Não estava aberta como de
costume, em ângulo, mas por igual dobrados lençol e colcha, de lado a lado. E tinha, não uma
almofada, como sempre tivera, mas duas. Não podia ser mais claro o recado, faltava saber até
que ponto se tornaria explicito. […] Deitou-se, apagou a luz, deixara ficar a segunda almofada,
fechou os olhos com força, vem, sono, vem, mas o sono não vinha, na rua passou um elétrico,
110 talvez o último, quem será que não quer dormir em mim, o corpo inquieto, de quem, ou o que
não sendo corpo com ele se inquieta, eu por inteiro, ou esta parte de mim que cresce, meu
Deus, as coisas que podem acontecer a um homem. Levantou-se bruscamente, e, mesmo às
escuras, guiando-se pela luminosidade difusa que se filtrava pelas janelas, foi soltar o trinco
da porta, depois encostou-a devagar, parece fechada e não está, basta que apoiemos nela
115 subtilmente a mão. Tornou a deitar-se, isto é uma criancice, um homem, se quer uma coisa,
não a deixa ao acaso, faz por alcançá-la, haja vista o que trabalharam no seu tempo os cruza-
dos, espadas contra alfanges, morrer se for preciso, e os castelos, e as armaduras, depois, sem
saber se ainda está acordado ou dorme já, pensa nos cintos de castidade de que os senhores
cavaleiros levaram as chaves, pobres enganados, aberta foi a porta deste quarto, em silêncio,
120 fechada está, um vulto atravessa tenteando, para à beira da cama, a mão de Ricardo Reis
avança e encontra uma mão gelada, puxou-a, Lídia treme, só sabe dizer, Tenho frio, e ele ca-
la-se, está a pensar se deve ou não beijá-la na boca, que triste pensamento.

1 Clarifique o contributo da caracterização da cidade (ll. 22-24) para o conhecimento da rea-


lidade do ano de 1936.

2 Comprove que o narrador denuncia o aproveitamento ideológico de Camões por parte


do regime.

3 Trace um retrato do país, inferindo sobre a intencionalidade do poder político, ao promo-


ver a caridade (excerto 3).

4 Justifique a utilização recorrente da primeira pessoa do plural por parte do narrador.

5 Descreva a figura de Salazar tal como é retratada nos jornais.

6 Trace o retrato físico e psicológico de Lídia (excerto 5), comparando-a à musa das odes
de Ricardo Reis.

7 FAZ SENTIDO RELACIONAR Relacione a afirmação “essas hoje presunçosas nações que arro-
tam de poderosas” (l. 76, excerto 4) com o peixe roncador retratado por Vieira.

ESCRITA i Bloco informativo | p. 351.

1 Releia o texto presente na página 286, “Salazar e o Estado Novo”.


Faça a síntese desse texto, reduzindo-o a cerca de 100 palavras.

291
José Saramago

ORALIDADE COMPREENSÃO

Link: Europa: jovens forças Visione um excerto de um debate


do velho continente, Público
(até aos 12 min 02 s) sobre a Europa e resolva as atividades
propostas.

1 Indique o tema do debate e o con-


texto em que ocorre.

Discussão sobre as jovens forças do Velho


2 Identifique a questão levantada pela Continente.
moderadora.

3 Complete a tabela, sintetizando os argumentos e exemplos apresentados por cada inter-


veniente.

Intervenientes Posição defendida Argumentos/exemplos

• o nascimento após a integração


a.
• a possibilidade de fazer Erasmus
Catarina Neves
e.
f.
b. g.
• a resistência que a UE
tem mostrado perante
Mateus Carvalho • o símbolo de uma as adversidades
sociedade próspera
h.
que poderá ainda
desenvolver-se mais i.

c.
j.
d. • a oportunidade de estudar
e morar fora do país

• a necessidade de adotar k.
Mariana Riquito uma postura crítica face l.
à atuação da UE • a expansão dos direitos das
• o não esquecer a pessoas que não sejam dados
dimensão social em como adquiridos, para uma UE
detrimento da questão mais democrática
económica

4 Um dos intervenientes teve necessidade de clarificar a sua posição.


4.1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.
A. A Europa soube reinventar-se de uma maneira estrutural ao longo das dife-
rentes crises.
B. A questão social e humanitária não tem tido, por parte da UE, a mesma in-
tervenção que a questão económica.
C. Apesar das falhas da UE, devemos ser críticos, mas não pessimistas.
D. A UE tem lidado de forma apropriada com a crise dos refugiados.

5 Indique três características do documento que comprovem que se trata de um debate.

292
O ano da morte de Ricardo Reis

ORALIDADE EXPRESSÃO

Em O ano da morte de Ricardo Reis, a personagem inteira-se da conjuntura nacional


e europeia através da leitura dos jornais.

ATIVIDADE 1 – Debate
1 Leia a seguinte afirmação.

Uma imprensa independente é garantia de informação isenta e é um dos pilares


da liberdade das sociedades e das democracias, privilégios que não estão ao alcance
dos jornalistas em estados totalitários.

1.1 Organize um debate em torno da temática apresentada, tendo em conta as se-


guintes orientações.

Intervenientes Funções

– Iniciar o debate, introduzindo, de forma sintética, o tema.


– Dar a palavra e verificar a distribuição equitativa dos tempos
Moderador
de intervenção.
– Introduzir novas questões para não tornar o debate repetitivo.
– Registar os argumentos utilizados por cada interveniente.
Secretários
– Apresentar as conclusões do debate, sintetizando os argumentos.
Oradores – Defender os seus pontos de vista.
• dois (ou mais), – Apresentar os seus argumentos e/ou exemplos.
defendendo
– Respeitar a autoridade do moderador.
posições
diferentes – Observar regras de cortesia durante as suas intervenções.

A. Em regimes ditatoriais:
– a censura inibe a comunicação da verdade/realidade;
Exemplos de – a perda da liberdade (e, por vezes, da vida dos jornalistas);
argumentos – o fecho dos órgãos de informação, por parte do poder.
que podem ser B. Em sociedades livres:
utilizados – a comunicação social pode servir para “vigiar o poder político”;
– os jornalistas têm liberdade e meios para investigar e entrevistar;
– a imprensa constitui-se como um parceiro em debates sobre
questões fulcrais para os habitantes: saúde, educação, economia.

ATIVIDADE 2 – Opinião
1 Exponha a sua opinião, em 3-5 minutos, sobre o tema proposto para a Atividade 1.
Planifique a sua intervenção de forma a:
• apresentar a sua posição: tese;
• identificar argumentos e/ou contra-argumentos que invalidem ou enfraqueçam
os argumentos alheios;
• fechar a intervenção com uma breve síntese da argumentação.
Observe ainda:
• o encadeamento lógico das ideias;
• a adequação dos recursos verbais e não verbais (correção linguística, variedade
vocabular, ritmo, entoação, gestos, regras de cortesia…).

293
José Saramago

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia os excertos. Se necessário, consulte as notas.

Fernando Pessoa visita Ricardo Reis

Excerto 1 | Capítulo V (pp. 131-132)


Fechou por alguns segundos os olhos e quando os abriu estava Fernando Pessoa sentado
aos pés da cama […], Não o esperava a estas horas, disse, e sorriu, amável, para que ele não
notasse a impaciência do tom, a ambiguidade das palavras, que tudo isto junto significaria,
Escusava bem de ter vindo hoje. Tinha boas razões, ainda que apenas duas, a primeira, porque
5 só lhe apetecia falar da noite de teatro e de quanto acontecera, mas não com Fernando Pessoa,
a segunda, porque nada mais natural que entrar-lhe Lídia pelo quarto dentro, não que hou-
vesse o perigo de se pôr ali aos gritos, Acudam, um fantasma, mas porque Fernando Pessoa,
embora lhe não estivesse no feitio, podia querer deixar-se ficar, coberto pela sua invisibilida-
de, ainda assim intermitente segundo os humores da ocasião, a assistir às intimidades car-
10 nais e sentimentais, não seria nada impossível, Deus, que é Deus, costuma fazê-lo, nem
o pode evitar, se está em toda a parte, mas a este já nos habituámos. Apelou para a cumplici-
dade masculina, Não vamos poder conversar muito tempo, talvez me apareça aí uma visita,
há de concordar que seria embaraçoso, Você não perde tempo, ainda não há três semanas que
chegou, e já recebe visitas galantes, presumo que serão galantes, Depende do que se queira
15 entender por galante, é uma criada do hotel, Meu caro Reis, você, um esteta, íntimo de todas
as deusas do Olimpo, a abrir os lençóis da sua cama a uma criada de hotel, a uma serviçal, eu
que me habituei a ouvi-lo falar a toda a hora, com admirável constância, das suas Lídias,
Neeras e Cloes, e agora sai-me cativo duma criada, que grande deceção, Esta criada chama-se
Lídia, e eu não estou cativo, nem sou homem de cativeiro, Ah, ah, afinal a tão falada justiça
20 poética sempre existe, tem graça a situação, tanto você chamou por Lídia, que Lídia veio, teve
mais sorte que o Camões, esse, para ter uma Natércia precisou de inventar o nome e daí não
passou, Veio o nome de Lídia, não veio a mulher, Não seja ingrato, você sabe lá que mulher
seria a Lídia das suas odes, admitindo que exista tal fenómeno, essa impossível soma de
passividade, silêncio sábio e puro espírito, É duvidoso, de facto, Tão duvidoso como existir,
25 de facto, o poeta que escreveu as suas odes, Esse sou eu, Permita-me que exprima as minhas
dúvidas, caríssimo Reis, vejo-o aí a ler um romance policial, com uma botija aos pés, à espera
duma criada que lhe venha aquecer o resto, rogo-lhe que não se melindre com a crueza da
linguagem, e quer que eu acredite que esse homem é aquele mesmo que escreveu Sereno e
vendo a vida à distância a que está, é caso para perguntar-lhe onde é que estava quando viu
30 a vida a essa distância [...].

Marcenda e Reis

Excerto 2 | Capítulo V (p. 112)


Ainda faltam duas horas para o jantar, neste meio tempo chegarão os hóspedes de Coim-
bra se não houver atraso do comboio, Mas a mim que me interessa, pergunta Ricardo Reis
enquanto sobe a escada para o seu quarto, e responde que é sempre agradável conhecer gen-
te doutros lugares, pessoas educadas, além do interessante caso clinico que é Marcenda,
35 estranho nome, nunca ouvido, parece um murmúrio, um eco, uma arcada de violoncelo,

294
O ano da morte de Ricardo Reis

les sanglots longs de l’automne1, os alabastros, os balaústres2, esta poesia de sol-posto e doen-
1 “Os longos soluços do
te irrita-o, as coisas de que um nome é capaz, Marcenda […]. outono”, versos transcritos
com alterações, que iniciam
a “Canção de outono”, do
Excerto 3 | Capítulo VI (pp. 142-143) poeta francês Paul Verlaine;
Ricardo Reis fez uma pausa, parecia refletir, depois, debruçando-se, estendeu as mãos 2 alusão, em conjunto com
a referência que antecede
para Marcenda, perguntou, Posso, ela inclinou-se também um pouco para a frente e, conti- os versos de Verlaine, ao
40 nuando a segurar a mão esquerda com a mão direita, colocou-a entre as mãos dele, como uma poema “Os violoncelos”,
ave doente, asa quebrada, chumbo cravado no peito. Devagar, aplicando uma pressão suave de Camilo Pessanha
mas firme, ele percorreu com os dedos toda a mão dela, até ao pulso, sentindo pela primeira
vez na vida o que é um abandono total, a ausência duma reação voluntária ou instintiva, uma
entrega sem defesa, pior ainda, um corpo estranho que não pertencesse a este mundo.

Reis e o doutor Sampaio

Excerto 4 | Capítulo VI (pp. 154-155, 156)


45 Era porém inevitável que sabendo o doutor Sampaio que
Ricardo Reis fora para o Brasil por razões políticas, embora
seja muito difícil apurar como o soube ele, não lho disse Sal-
vador, que também o não sabe, explicitamente o não confes-
sou Ricardo Reis, mas certas coisas suspeitam-se por meias
50 palavras, silêncios, um olhar, bastava que tivesse dito, Parti
para o Brasil em mil novecentos e dezanove, no ano em que
se restaurou a monarquia no Norte, bastava tê-lo dito num
certo tom de voz, o ouvido finíssimo de um notário, habituado
a mentiras, testamentos e confissões, não se enganaria, era
55 inevitável, dizíamos, que de política se falasse. Por caminhos
desviados, apalpando o terreno, tenteando a ver se havia mi-
nas escondidas ou armadilhas, Ricardo Reis deixou-se ir na
corrente porque não se sentia capaz de propor uma alternati-
va à conversa, e antes da sobremesa já tinha declarado não
60 acreditar em democracias e aborrecer de morte o socialismo,
Está com a sua gente, disse risonho o doutor Sampaio, a Mar-
cenda não parecia interessar muito a conversa, por alguma
razão pôs a mão esquerda no regaço, se resplendor havia, apa-
gou-se. A nós o que nos vale, meu caro doutor Reis, neste can-
65 tinho da Europa, é termos um homem de alto pensamento e
firme autoridade à frente do governo e do país, estas palavras
disse-as o doutor Sampaio, e continuou logo, Não há compa-
ração possível entre o Portugal que deixou ao partir para o Rio
de Janeiro, e o Portugal que veio encontrar agora, bem sei que
70 voltou há pouco tempo, mas, se tem andado por aí, a olhar
com olhos de ver, é impossível que não se tenha apercebido
das grandes transformações, o aumento da riqueza nacional,
a disciplina, a doutrina coerente e patriótica, o respeito das
outras nações pela pátria lusitana, sua gesta, sua secular his-
75 tória e seu império, Não tenho visto muito, respondeu

295
José Saramago

Ricardo Reis, mas estou a par do que os jornais dizem, Ah, claro, os jornais, devem ser lidos,
mas não chega, é preciso ver com os próprios olhos, as estradas, os portos, as escolas, as obras
públicas em geral, e a disciplina, meu caro doutor, o sossego das ruas e dos espíritos, uma
nação inteira entregue ao trabalho sob a chefia de um grande estadista, verdadeiramente uma
80 mão de ferro calçada com uma luva de veludo, que era do que andávamos a precisar, Magní-
fica metáfora, essa [...].

1 Comprove que Saramago ironiza com a religião no excerto 1.

2 Demonstre que, no excerto 1, a viagem literária está ao serviço da caracterização


de Ricardo Reis (consulte a p. 298).

3 Selecione as opções que completam corretamente a afirmação, considerando o ex-


certo 2.
O segmento textual remete para algo distante, a. , o que prenuncia
a vivência de um amor b. e remete, de imediato para c.
do envolvimento romântico de Ricardo Reis e Marcenda.

a. b. c.

1. inacessível e intocável 1. físico, embora puro 1. a inviabilidade


2. tangível, mas inacessível 2. concretizado fisicamente 2. a intensidade
3. etéreo, embora tangível 3. de contornos platónicos 3. a concretização

4 Sintetize a opinião do doutor Sampaio relativamente a Salazar e às transformações


que este operou no país, atentando no excerto 4.

5 Explicite o significado da metáfora utlizada pelo doutor Sampaio para caracterizar


Salazar.

6 A polifonia é uma característica da prosa saramaguiana.

6.1 Identifique as diversas vozes que se evidenciam no excerto 4, entre as linhas 64 e 76 ‒


“A nós o que nos vale [...] mas estou a par do que os jornais dizem” (consulte a p. 298).

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 378, 390 e 401.

1 Indique a modalidade e o valor modal configurados na frase sublinhada “Não vamos


poder conversar muito tempo, talvez me apareça aí uma visita” (l. 12).

2 Classifique a oração “que Lídia veio” (l. 20).

3 Indique a classe e subclasse a que pertencem as palavras sublinhadas no segmento


Animação: O que é uma
metáfora? “à espera duma criada que lhe venha aquecer o resto, rogo-lhe que não se melindre
Gramática/Atividade: Valor
modal: modalidade com a crueza da linguagem” (ll. 26-28).
apreciativa; Valor modal:
modalidade deôntica; Valor 4 Indique o mecanismo de coesão textual configurado nos constituintes sublinhados em
modal: modalidade
epistémica; Coesão e “continuando a segurar a mão esquerda com a mão direita, colocou-a entre as mãos
coerência textual
dele” (ll. 39-40).

296
O ano da morte de Ricardo Reis

INFORMAÇÃO

Situação política no ano de 1936 em Portugal

Salazar – Estado Novo


Ideologia fascista, alicerçada em:
• política repressiva a cargo da PVDE;
Portugal
• propaganda elogiosa do poder e de Salazar, veiculada pelos jornais e por ações governativas,
nomeadamente os bodos;
• desenvolvimento do sentimento patriota através, por exemplo, do recurso e da manipulação
da figura e das palavras de Camões.

[Em O ano da morte de Ricardo Reis] a evocação nacionalista da história da pátria portugue-
sa aproveita-se de grandes mitos históricos: o do império, que, por sua vez, se apropria do
discurso camoniano, e o do messianismo português ou da missão portuguesa/cristã do mun-
do. O mito messiânico é explorado de duas maneiras: como justificação da existência e da
5 defesa do império colonial em nome da proteção de “raças inferiores” – um “imperativo ca- Cartaz de propaganda eleitoral
presidencial com ênfase
tegórico da história que as gerações presentes e futuras devem perpetuar” – e como uma no lema do salazarismo
“Deus, Pátria, Família”.
missão mundial que transforma Salazar, o salvador da moralidade cristã resumida na trin-
dade Deus, Pátria, Família, no salvador da civilização ocidental na sua luta contra a heresia
comunista.
10 […] Assim, a glorificação de Salazar e da ordem e prosperidade anunciados nos jornais
portugueses e estrangeiros é contrastada com as cenas da vida nos bairros populares e na
zona rural – a falta de higiene, o crime, a pobreza e o analfabetismo, às vezes perdidos nas
páginas dos mesmos jornais. […]
O narrador ataca também as manipulações do texto camoniano. Enquanto obra literária,
15 a epopeia desempenha um papel crucial na criação da mitologia nacional e funciona, ao
mesmo tempo, como fonte popular do conhecimento histórico. […] Assim, a ideologia sala-
zarista celebra Camões como “cantor sublime das virtudes da raça” e serve-se das sua pala-
vras, como tristemente observa Ricardo Reis: “veja o Camões, onde estão as palavras dele”.
O estado fascista é um exemplo extremo de exploração da História, mas prova que ela sempre
20 se escreve num contexto e não pode existir objetivamente sem carga ideológica […].
Helena Kaufman, “A Metaficção Historiográfica de José Saramago”, Colóquio/Letras, n.º 120,
abril-junho de 1991, pp. 134-135 (com supressões).

1 Indique a frase que sintetiza uma ideia que não é veiculada pelo texto.
A. Durante a Ditadura, assiste-se ao endeusamento da figura de Salazar, enquanto Vídeo: Características
garante da proteção da civilização ocidental contra o comunismo. do Estado Novo

B. A figura e a obra de Camões eram utilizadas para manipular a população e de-


senvolver o culto da pátria.
C. O narrador aceita e elogia a ideia de promover a figura do ditador através dos
meios de comunicação.
D. Os jornais elogiam a figura e a ação de António de Oliveira Salazar.

297
José Saramago

INFORMAÇÃO

Intertextualidade
Cesário Verde

Ricardo Reis, tal como Cesário Verde, dotado de uma atitude deambulatória,
observa a cidade, descreve-a, realçando o seu aspeto físico (as ruas, os sons,
os cheiros, o ambiente), mas também destacando alguns tipos socioprofis-
sionais, sobretudo os mais frágeis e desprotegidos, mostrando até simpatia
por estas personalidades.
À semelhança de Cesário, a observação objetiva gera uma avaliação subjeti-
va, de tom impressionista, através do recurso às sensações, nomeadamente
auditivas e visuais.

Luís de Camões

As palavras do épico português são retomadas por Saramago amiúde ao lon-


go do romance, desde logo ao parodiar o verso “[aqui] Onde a terra se acaba
e o mar começa” a abrir e a fechar a narrativa. No entanto, ao contrário de
Camões, que se referia a um tempo de prosperidade e de abertura ao mundo,
fruto das descobertas e de uma nova postura do homem, em virtude da era
Renascentista, Saramago, com a frase “Aqui o mar acaba e a terra principia”,
refere-se a um tempo de obscurantismo, de opressão e de fechamento ao
mundo causados pela ditadura. É também parodiando o verso Camoniano
José que a obra termina, “Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera”, contudo,
Saramago, ao contrário do sentido da primeira frase, haverá aqui, no verbo “esperar”,
leitor de alguma ânsia de novos tempos (que demorarão a chegar).
Em segundo lugar, é através da figura do épico que Saramago faz críticas ao
poder político pela apropriação de Camões como figura patriota, numa tenta-
tiva de desenvolver e exacerbar no povo o sentimento de “devoção à pátria”.

Fernando Pessoa

A obra do modernista português está presente em O ano da morte de Ricardo


Reis, através de pontos de contacto, da recriação e/ou da paráfrase, quer de
versos da sua obra quer da dos heterónimos, também de Caeiro e de Cam-
pos, por vezes. No entanto, estas referências estão ao serviço da reflexão e
da problematização de questões relativas ao ser humano, nomeadamente
a fragmentação/multiplicidade, a individualidade ou as dúvidas existenciais
que o acometem.

Outros escritores, outras referências e outras obras pontuam o discurso sa-


ramaguiano, nomeadamente Eça de Queirós, Almeida Garrett ou a Bíblia.

298
O ano da morte de Ricardo Reis

Linguagem, estilo e estrutura

Léxico e tom oralizante; pontuação; reprodução do discurso


no discurso
A primeira impressão que se tem ao ler um texto de Saramago é a de que o seu estilo al-
tera as regras tradicionais.
A escolha de um léxico propositadamente coloquial aliada à utilização de estruturas mor-
fossintáticas simples (típicas da modalidade oral) conquistam o leitor e, neste caso, dão um
5 sabor estranho, mas interessante, ao discurso poético conhecido do heterónimo pessoano.
A linguagem de Saramago reinventa a escrita, combinando características do discurso
literário com o discurso oral, construindo uma narrativa marcada por uma espécie de con-
versa entre o narrador e o narratário.
A reprodução da oralidade na escrita constitui uma comunicação entre autor e leitor, uma
10 vez que o narrador utiliza um discurso problematizador da realidade histórica, sendo a nar-
rativa uma forma de conjugação do pensamento e da realidade.

Maria Fernanda Miranda Gomes Moreira Barbosa, O ano da morte de Ricardo Reis: romance pós-moderno?,
Porto, Universidade Fernando Pessoa, 2010, pp. 62-67 (adaptado e com supressões).

Marcas essenciais da prosa saramaguiana

• A ausência de pontuação convencional.


• A utilização da vírgula como sinal de maior relevância, marcando as intervenções das perso-
nagens, o ritmo e as pausas.
• O uso de maiúscula no interior da frase.
• O emprego de exclamações e “apartes”.
• A coexistência de segmentos narrativos e descritivos sem delimitação clara.
• A utilização predominante do presente – marca do fluir constante entre o passado e o pre-
sente.
• A mistura de discursos – direto, indireto, indireto livre e monólogo interior – que aponta para
uma reminiscência da tradição oral, em que contador e ouvintes interagem.
• A presença constante de marcas de coloquialidade construídas pela relação narrador/
narratário.
• A intervenção frequente do narrador através de comentários, o que dificulta a identificação
das vozes intervenientes.
• O emprego de aforismos, provérbios e ditados populares que introduzem no discurso narrativo
a peculiar característica da linguagem corrente e familiar (ao serviço de discurso reflexivo).

299
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

O mesmo Victor que, em conjunto com o homem que o interroga, um dos inspetores
da PVDE, a cujas instalações vai “de alma inquieta” e “aflita”, é corresponsável pela ins-
crição da temática da opressão social e política no Portugal do Estado Novo, ou, se qui-
sermos enveredar por uma dimensão simbólica facultada pela sugestão intertextual com
um dos poemas de Pessoa (“Cai chuva do céu cinzento”), um dos que é corresponsável
pela “chuva” que cai “do céu cinzento”, isto é, pelo tempo que sobre nós chove e “nos
afoga”. Ou, em termos mais gerais, pela chuva que cai “na rua e no mundo como se o céu
fosse um mar suspenso que por goteiras inúmeras se escoasse intérmino”. Não por aca-
so, mais uma vez, subvertendo o provérbio “candeia que vai à frente alumia duas vezes”,
a contrafé que Ricardo Reis leva às instalações da Rua António Maria Cardoso, indo em-
bora “adiante” dele, vai apagada.
Ana Paula Arnaut, O ano da morte de Ricardo Reis de José Saramago, Porto, Edições ASA, 2017, p, 53.

1 histórico dirigente do EDUCAÇÃO LITERÁRIA


Partido Socialista Operário
Espanhol, ocupou o cargo
de Presidente do Governo
Leia atentamente os excertos. Se necessário, consulte as notas.
de Espanha de 1936 a 1937;
2 movimento fascista Conflitos na Europa
espanhol criado a 23 de
outubro de 1933, encabeçado
por José António Primo de Excerto 1 | Capítulo VII (pp. 164-165)
Rivera, filho do ex-ditador
Miguel Primo de Rivera que Em terra de nuestros hermanos é que a vida está fusca, a família muito dividida, se ganha
liderou a Espanha entre 1923 Gil Robles as eleições, se ganha Largo Caballero1, e a Falange2 já fez saber que fará frente, nas
e 1930; 3 primeiro-
ruas, à ditadura vermelha. Neste nosso oásis de paz assistimos, compungidos, ao espetáculo
-ministro em França, entre
24 de janeiro e 4 de junho duma Europa caótica e colérica, em constantes ralhos, em pugnas políticas […], agora cons-
de 1936; 4 força militarizada 5 tituiu Sarraut3 em França um governo de concentração republicana e logo lhe caíram as di-
denominada de Secção de reitas em cima com a sua razão delas, lançando salvas sucessivas de críticas, acusações e
Assalto (S.A.), criada pelo
partido inicial nazi e que se
injúrias, um desbocamento de tom que mais parece de arruaceiros que de país tão civilizado,
dedicava a atacar comunistas, modelo de maneiras e farol da cultura ocidental. O que vale é haver ainda vozes neste conti-
sindicalistas, judeus, entre nente, e poderosas elas são, que se erguem para pronunciar palavras de pacificação e concór-
outros. Pelo facto de os seus
10 dia, falamos de Hitler, da proclamação que ele fez perante os camisas castanhas 4, A Alemanha
membros vestirem uma farda
castanha, eram também só se preocupa em trabalhar dentro da paz, e, para calar definitivamente desconfianças e
chamados de “Camisas ceticismos, ousou ir mais longe, afirmou perentório, Saiba o mundo que a Alemanha será
Castanhas”; 5 este discurso pacífica e amará a paz, como jamais povo algum soube amá-la5. É certo que duzentos e cin-
de Hitler levou à reocupação
quenta mil soldados alemães estão prontos a ocupar a Renânia e que uma força militar alemã
da zona desmilitarizada da
Renânia em março de 1936 15 penetrou há poucos dias em território checoslovaco, porém, se é verdade que vem às vezes
pela Alemanha; 6 estadista Juno em forma de nuvem, também não é menos verdade que nem todas as nuvens Juno são,
britânico e o último membro a vida das nações faz-se, afinal, de muito ladrar e pouco morder, vão ver que, querendo Deus,
do Partido Liberal a ser
primeiro-ministro do Reino
tudo acabará na bela harmonia. Com o que nós não podemos concordar é que venha Lloyd
Unido. Em 1936, era membro George6 dizer que Portugal está demasiadamente favorecido de colónias, em comparação
do Parlamento e redigiu um 20 com a Alemanha e a Itália.
documento para a distribuição
das colónias

300
O Estado beneficiente

Excerto 2 | Capítulo VII (p. 180)


Mas os motivos do nosso próprio contentamento, esses sobejariam, quer seja
a ordem dada pelo governo para que se comece a estudar a construção duma
ponte sobre o Tejo, […] ou o bodo a trabalhadores do Douro, com cinco quilos de
arroz, cinco quilos de bacalhau e dez escudos por cabeça, que não espante a ex-
25 cessiva prodigalidade, o bacalhau é o que temos de mais barato, e por estes dias
discursará um ministro a preconizar a criação duma sopa dos pobres em cada
freguesia, e o mesmo ministro, vindo dos lados de Beja, declarará aos jornais,
Verifiquei no Alentejo a importância da beneficência particular na debelação da
crise do trabalho, o que, traduzindo para português de todos os dias, quer dizer,
30 Uma esmolinha senhor patrão por alma de quem lá tem.

A PVDE e a deambulação de Reis

Excerto 3 | Capítulo VIII (pp. 196-197, 198-199, 201)


É na manhã de quarta-feira que vêm trazer uma contrafé a Ricardo Reis. Levou-lha o
próprio Salvador, em mão de gerente, dada a importância do documento e a sua proveniência,
a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado […]. Já todo o pessoal do hotel sabe que o hóspede
do duzentos e um, o doutor Reis, aquele que veio do Brasil há dois meses, foi chamado à po-
35 lícia, alguma ele teria feito por lá, ou por cá, quem não queria estar na pele dele bem eu sei,
ir à pvde7, vamos a ver se o deixam sair, contudo, se fosse caso de prisão não lhe tinham
mandado a contrafé, apareciam aí e levavam-no. Quando ao princípio da noite Ricardo Reis
descer para jantar, [...] verá como o vão olhar os empregados, como subtilmente se afastarão
dele, não procede Lídia desta desconfiada maneira, entrou no quarto mal Salvador acabara
40 de descer ao primeiro andar, Dizem que foi chamado à polícia internacional, está alarmada
a pobre rapariga, Fui, tenho aqui a contrafé, mas não há motivo para preocupações, deve ser
qualquer coisa de papéis, Deus o ouça, que dessa gente, pelo que tenho ouvido, não se pode
esperar nada de bom, as coisas que o meu irmão me tem contado […]. Ficou Ricardo Reis a
saber que a polícia onde terá de apresentar-se na segunda-feira é lugar de má fama e de obras
45 piores que a fama, coitado de quem nas mãos lhe caia, ele são as torturas, ele são os castigos,
ele são os interrogatórios a qualquer hora […].

Excerto 4 | Capítulo VIII (pp. 208-209)


Ricardo Reis saiu, eram três menos um quarto, tempo de ir andando, atravessou a praça
onde puseram o poeta, todos os caminhos portugueses vão dar a Camões, de cada vez muda-
do consoante os olhos que o veem, em vida sua braço às armas feito e mente às musas dada,
50 agora de espada na bainha, cerrado o livro, os olhos cegos, ambos, tanto lhos picam os pombos
como os olhares indiferentes de quem passa. Ainda não são três horas quando chega ao Alto
de Santa Catarina. As palmeiras parecem transidas pela aragem que vem do largo, mas as
rígidas lanças das palmas mal se mexem. Não consegue Ricardo Reis lembrar-se se já aqui
estavam estas árvores há dezasseis anos, quando partiu para o Brasil. O que de certeza não
55 estava era este grande bloco de pedra, toscamente desbastado, que visto assim parece um
mero afloramento de rocha, e afinal é monumento, o furioso Adamastor, se neste sítio o 7 Polícia de Vigilância
instalaram não deve ser longe o cabo da Boa Esperança. Lá em baixo, no rio, vogam fragatas, e Defesa do Estado

301
José Saramago

8 grande barca para um rebocador arrasta atrás de si dois batelões8, os navios de guerra estão amarrados às boias,
transporte de artilharia ou
com a proa apontada à barra, sinal de que a maré está a encher. Ricardo Reis pisa o saibro9
quaisquer objetos pesados;
60 húmido das áleas estreitas, o barro mole, não há outros contempladores neste miratejo se
9 areia grossa com pequenas
pedras à mistura não contarmos dois velhos, sentados no mesmo banco, calados, provavelmente conhecem-se
há tanto tempo que já lhes falta de que falarem, talvez andem só a ver quem morrerá primei-
ro. Friorento, levantando a gola da gabardina, Ricardo Reis aproximou-se da grade que rodeia
a primeira vertente do morro, pensar que deste rio partiram, Que nau, que armada, que frota
65 pode encontrar o caminho, e para onde, pergunto eu, e qual […].

Excerto 5 | Capítulo IX (pp. 217-218, 220, 221)


Seguiu o homem, que cheirava intensamente a cebola, por um corredor comprido, com
portas de um lado e do outro, todas fechadas, ao fundo o guia bateu de leve numa delas,
abriu-a, ordenou, Entre [...]. Tem advogado, Não tenho, mas posso contratar os serviços de
um, Os advogados não entram nesta casa, além disso o senhor doutor não foi acusado de
70 qualquer crime, isto é apenas uma conversa, Será uma conversa, mas não fui eu quem a
escolheu, e, pelo teor das perguntas que me estão a ser feitas, tem muito mais de devassa
que de conversa, Voltemos ao assunto, que amigos eram esses seus, Não respondo, Senhor
doutor Ricardo Reis, se eu estivesse no seu lugar, responderia, é muito melhor para si, escu-
samos de complicar desnecessariamente o caso, […] Acha Portugal diferente do que era
75 quando partiu para o Brasil, Não posso responder, ainda não saí de Lisboa, E Lisboa, acha-a
diferente, Dezasseis anos trazem mudanças, Há sossego nas ruas, Sim, tenho reparado,
O governo da Ditadura Nacional pôs o país a trabalhar, Não duvido, Há patriotismo, dedica-
ção ao bem comum, tudo se faz pela nação, Felizmente para os portugueses, Felizmente para
si, o senhor também é um deles [...].

Planos de Reis

Excerto 6 | Capítulo IX (pp. 231-232)


80 Vai-se embora, não me tinha dito, Mais tarde ou
mais cedo teria de ser, não ia ficar aqui o resto da
vida, Nunca mais o tornarei a ver, e Lídia, que des-
cansava a cabeça no ombro de Ricardo Reis, deixou
cair uma lágrima, sentiu-a ele, Então, não chores, a
85 vida é assim, as pessoas encontram-se, separam-se,
quem sabe se amanhã não casarás, Ora, casar, já es-
tou a passar a idade, e para onde é que vai, Arranjo
casa, hei de encontrar alguma que me sirva, Se qui-
ser, Se quiser, o quê, Posso ir ter consigo nos meus
90 dias de folga, não tenho mais nada na vida, Lídia, por
que é que gostas de mim, Não sei, talvez seja pelo
que eu disse, por não ter mais nada na vida, Tens a
tua mãe, o teu irmão, com certeza tiveste namora-
dos, hás de tornar a tê-los, mais do que um, és boni-
95 ta, e um dia casarás, depois virão os filhos, Pode ser
que sim, mas hoje tudo o que eu tenho é isto, És uma
boa rapariga, Não respondeu ao que lhe perguntei,
Que foi, Se quer que eu vá ter consigo quando tiver

302
O ano da morte de Ricardo Reis

a sua casa, nos meus dias de saída, Tu queres, Quero, Então irás, até que, Até que arranje al-
100 guém da sua educação, Não era isso que eu queria dizer, Quando tal tiver de ser, diga-me
assim Lídia não voltes mais a minha casa, e eu não volto, Às vezes não sei bem quem tu és,
Sou uma criada de hotel, Mas chamas-te Lídia e dizes as coisas duma certa maneira, Em a
gente se pondo a falar, assim como eu estou agora, com a cabeça pousada no seu ombro, as
palavras saem diferentes, até eu sinto, Gostava que encontrasses um dia um bom marido,
105 Também gostava, mas ouço as outras mulheres, as que dizem que têm bons maridos e fico a
pensar, Achas que eles não são bons maridos, Para mim, não, Que é um bom marido, para ti,
Não sei, És difícil de contentar, Nem por isso, basta-me o que tenho agora, estar aqui deitada,
sem nenhum futuro […].

1 Trace um retrato geopolítico da Europa no ano de 1936 (excerto 1).


1.1 Transcreva e explique o sentido da metáfora que, no excerto 1, se refere à situa-
ção portuguesa.

2 Explique a importância do excerto 2 para comprovar a crise social que se vivia no


país e a manipulação do povo português por parte do poder político.

3 Exponha as diferentes reações que causou a contrafé feita a Ricardo Reis, explicitan-
do o significado deste documento.
3.1 Apresente, considerando os excertos 3 e 5, o modo de agir da polícia política.

4 Sintetize a importância da referência à figura e à obra de Camões.

5 Prove que Lídia se afasta do modelo de comportamento de mulher da primeira me-


tade do século XX.

6 Exemplifique o tom oralizante do discurso Saramaguiano.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 373, 378-379 e 401.

1 Classifique as orações.
a. “que de país tão civilizado, modelo de maneiras e farol da cultura ocidental” (ll. 7-8)
b. “que ele fez perante os camisas castanhas” (l. 10)
c. “que a Alemanha será pacífica” (ll. 12-13)

2 Transcreva o referente do pronome.


a. “amá-la” (l. 13)
b. “Levou-lha” (l. 31)

2.1 Identifique o mecanismo de coesão textual que configura a sua utilização.

3 Indique a função sintática desempenhada pelos constituintes seguintes.


a. “onde puseram o poeta” (l. 48)
b. “às musas” (l. 49)
c. “aqui” (l. 53)

303
José Saramago

ORALIDADE COMPREENSÃO/EXPRESSÃO

Link /Áudio: “Anda 1 Escute a canção “Anda estragar-me


estragar-me os planos”,
interpretada por Salvador
os planos”, de Salvador Sobral.
Sobral e Tim Bernardes Produza uma exposição, em 2-3 minu-
tos, estabelecendo semelhanças/oposi-
ções entre Ricardo Reis e Marcenda e a
situação descrita na canção.
Considere os seguintes tópicos:
Salvador Sobral.
• filosofia de vida estoico-epicurista
do heterónimo;
• submissão de Marcenda à vontade do pai.
Observe ainda:
• o encadeamento lógico das ideias;
• a adequação dos recursos verbais e não verbais (correção linguística, variedade
vocabular, ritmo, entoação, gestos, regras de cortesia…)

CONSTRUIR SENTIDOS

1 Releia os capítulos VIII e IX.


1.1 Associe o conteúdo das colunas A e B, de modo a obter afirmações verdadeiras.

Coluna A Coluna B

1. dialogou com Pessoa, que teceu comentários irónicos


sobre os seus encontros amorosos.
a. Ricardo Reis garantiu
2. foi abordado por Lídia, que manifestou interesse
ao doutor Sampaio
no resultado da conversa com a PVDE.
b. Marcenda marcou
3. alugou uma casa no Alto de Santa Catarina.
um encontro com
4. para o informar de que não regressaria a Coimbra e para
o médico no Alto
lhe pedir que lhe comunicasse por carta o resultado
de Santa Catarina
da ida à polícia política.
c. Enquanto aguardava
5. ter gostado do livro Conspiração, o que causou
Marcenda, Reis
estranheza ao pai de Marcenda face à ida à PVDE.
d. Durante o encontro,
6. escreveu a Marcenda, dando conta do resultado do
Marcenda
interrogatório e iniciou a carta por “Minha querida”.
e. Ao regressar ao hotel,
7. confessou ter perdido as esperanças na cura, embora
após o interrogatório,
tenha posto a hipótese de procurar ajuda em Fátima.
Reis
8. não ter gostado do livro Conspiração, o que não lhe
f. Como combinado,
causou estranheza face à ida à PVDE.
o médico
9. escreveu uma carta breve a Marcenda, hesitando no
g. Após algumas
vocativo, a dar conta do resultado do interrogatório,
diligências,
e comunicou que, provavelmente, se mudaria.
Ricardo Reis
10. para o informar de que, face às desconfianças da polícia,
seria melhor nunca mais se verem.

304
José Saramago O ano da morte de Ricardo Reis

ANTECIPAR SENTIDOS

A ligação entre Ricardo Reis e Marcenda intensificar-se-á, portanto, por ocasião da Quiz: José Saramago –
segunda visita da família Sampaio a Lisboa, apesar de, por exigência do pai, já conhecedor O ano da morte de Ricardo
Reis 3
do interesse da PVDE por Ricardo Reis, Marcenda se ver obrigada a manter-se afastada
dele. O novo encontro, sigilosamente marcado pela jovem, […] decorrerá, pois, fora do
Hotel, no alto de Santa Catarina, sob o olhar do “furioso Adamastor” […].
Tal como a figura mitológica, rejeitada por Tétis, Ricardo Reis será rejeitado por Mar-
cenda, não pela sua “grandeza feia”, mas, eventualmente, por preconceito em relação à
idade; por pretender protegê-lo da sua invalidez […]; ou, apenas, porque […] ela conside-
ra que “não seríamos felizes”.
Ana Paula Arnaut, O ano da morte de Ricardo Reis de José Saramago, Porto, Edições ASA, 2017, p, 67.

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia os excertos. Se necessário, consulte as notas.

Ricardo Reis e Marcenda

Excerto 1 | Capítulo X (p. 256)


Ricardo Reis tem a testa gelada, apoiou-a na vidraça e ali se esqueceu, vendo cair a
chuva, depois ouvindo-lhe apenas o rumor, até que veio o acendedor dos candeeiros, então
ficou cada lampião com seu fulgor e aura, sobre as costas de Adamastor cai uma já esmo-
recida luz, rebrilha o dorso hercúleo, será da água que vem do céu, será um suor de agonia
5 por ter a doce Tétis sorrido de escárnio e maldizendo, Qual será o amor bastante de ninfa,
que sustente o dum gigante, agora já ele sabe o que valiam as prometidas abondanças.
Lisboa é um grande silêncio que rumoreja, nada mais.

Excerto 2 | Capítulo XI (pp. 285, 286, 287-288)


Hoje é o derradeiro dia do prazo que ninguém marcou. [...] Uma vez, dez vezes viu Ricar-
do Reis as horas, são quatro e meia, Marcenda não veio e não virá, a casa escurece, os móveis
10 escondem-se numa sombra trémula, é possível, agora, compreender o sofrimento de Ada-
mastor. E porque mais do que tanto seria crueldade, soam no último minuto as duas panca-
das da aldraba da porta. [...] Recuou Ricardo Reis para a porta, Marcenda sobe o último
lanço […]. Ricardo Reis pega-lhe na mão direita, não para a cumprimentar, apenas quer guiá-
-la neste labirinto doméstico, para o quarto nunca, por impróprio, para a sala de jantar seria
15 ridículo, em que cadeiras da comprida mesa se sentariam, um ao lado do outro, defronte,
e aí quantos seriam, inúmeros ele, ela decerto não única, seja então para o escritório, ela
num sofá, eu noutro, entraram já, estão enfim todas as luzes acesas, a do teto, a da secretá-
ria, Marcenda olha em redor […], então Ricardo Reis diz, Vou beijá-la, ela não respondeu,
num gesto lento segurou o cotovelo esquerdo com a mão direita, que significado poderá ter
20 o movimento, um protesto, um pedido de trégua, uma rendição, o braço assim cruzado por
diante do corpo é uma barreira, talvez, uma recusa, Ricardo Reis avançou um passo, ela não
se mexeu, outro passo, quase lhe toca, então Marcenda solta o cotovelo, deixa cair a mão
direita, sente-a morta como a outra está, a vida que há em si divide-se entre o coração

305
José Saramago

violento e os joelhos trémulos, vê o rosto do homem aproximar-se devagar, sente um soluço


25 a formar-se-lhe na garganta, na sua, na dele, os lábios tocam-se, é isto um beijo, pensa, mas
isto é só o princípio do beijo, a boca dele aperta-se contra a boca dela, são os lábios dele que
descerram os lábios dela, é esse o destino do corpo, abrir-se, agora os braços de Ricardo Reis
apertam-na pela cintura e pelos ombros, puxam-na, e o seio comprime-se pela primeira vez
contra o peito de um homem, ela compreende que o beijo ainda não acabou, que neste mo-
30 mento não é sequer concebível que possa terminar, e voltar o mundo ao princípio, à sua
primeira ignorância, compreende também que deve fazer mais alguma coisa que estar de
braços caídos, a mão direita sobe até ao ombro de Ricardo Reis, a mão esquerda está morta,
ou adormecida, por isso sonha, e no sonho relembra os movimentos que fez noutro tempo,
escolhe, liga, encadeia os que, a sonhar, a erguem até à outra mão, agora já se podem entre-
35 laçar os dedos com os dedos, cruzarem-se por trás da nuca do homem, não deve nada a Ri-
cardo Reis, responde ao beijo com o beijo, às mãos com as mãos, pensei-o quando decidi vir,
pensei-o quando saí do hotel, pensei-o quando subia aquela escada e o vi debruçado do
corrimão, Vai beijar-me. A mão direita retira-se do ombro, escorrega, exausta, a esquerda
nunca lá esteve, é a altura de o corpo ter um movimento ondulatório de retração, o beijo
40 atingiu aquele limite em que já não se pode bastar a si mesmo, separemo-nos antes que a
tensão acumulada nos faça passar ao estádio seguinte, o da explosão doutros beijos, preci-
pitados, breves, ofegantes, em que a boca se não satisfaz com a boca, mas a ela volta cons-
tantemente, quem de beijos tiver alguma experiência sabe que é assim, não Marcenda, pela
primeira vez abraçada e beijada por um homem [...].

Excerto 3 | Capítulo XIII (pp. 340, 344-345)


45 […] Peço-lhe que diga ao senhor doutor que está aqui
Marcenda Sampaio, mas só quando não houver mais
doentes [...]. Ricardo Reis segurou-lhe a mão esquerda, le-
vou-a aos lábios, depois bafejou-a muito devagar como se
estivesse a reanimar uma ave transida de frio, no instante
50 seguinte era a boca de Marcenda que ele beijava, e ela a
ele, segundo e já voluntário beijo, então como uma alta
cascata, trovejando, o sangue de Ricardo Reis desce às
profundas cavernas, metafórico modo de dizer que se er-
gue o seu sexo […]. Sentiu-o Marcenda, por isso se afastou,
55 para tornar a senti-lo se aproximou outra vez, e juraria
que não se fosse interrogada, virgem louca, mas as bocas
não se tinham separado, enfim ela gemeu, Tenho de ir,
saiu-lhe dos braços, sem forças sentou-se numa cadeira,
Marcenda, case comigo, disse Ricardo Reis, ela olhou-o,
60 subitamente pálida, depois disse, Não, muito devagar o
disse, parecia impossível que uma palavra tão curta levas-
se tanto tempo a pronunciar, muito mais tempo do que as
outras que disse depois, Não seríamos felizes. Durante
alguns minutos ficaram calados, pela terceira vez Mar-
65 cenda disse, Tenho de ir, mas agora levantava-se e cami-
nhava para a porta, ele seguiu-a, queria retê-la, mas ela já
estava no corredor, ao fundo aparecia a empregada, então
Ricardo Reis em voz alta, Eu acompanho-a, e assim fez,
despediram-se apertando as mãos, ele disse, Os meus

306
O ano da morte de Ricardo Reis

70 cumprimentos a seu pai, ela falou doutra coisa, Um dia, e não acabou a frase, alguém a con- 1 Alcalá Zamora – jurista
tinuará sabe-se lá quando e para quê, outro a concluirá mais tarde e em que lugar, por en- e político espanhol,
quanto é isto apenas, Um dia. desempenhou as funções
de Presidente da República
espanhola entre 1931 e 1936;
O bodo da Páscoa foi destituído do cargo em
7 de abril de 1936; 2 título
Excerto 4 | Capítulo XII (pp. 304, 305-306) eclesiástico que, desde
o século XIX, é geralmente
Mas o mundo, por tão grande ser, vive de lances mais dramáticos, para ele têm pouca concedido ao bispo-auxiliar
que desempenha as funções
importância estas queixas que à boca pequena vamos fazendo de faltar a carne em Lisboa,
de vigário-geral do patriarca
75 não é notícia que se dê lá para fora, para o estrangeiro. [...] Mas há entre os nossos portugue- de Lisboa
ses muita sede de martírio, muito apetite de sacrifício, muita fome de abnegação, ainda no
outro dia foi dito por um destes senhores que mandam em nós, Nunca mãe alguma, ao dar à
luz um filho, pode atirá-lo para um mais alto e nobre destino do que o de morrer pela sua
terra, em defesa da pátria, filho duma puta, estamos a vê-lo a visitar as maternidades, a apal-
80 par o ventre às grávidas, a perguntar quando desovam, que já vão faltando soldados nas
trincheiras, quais, ele o saberá, também podem ser projetos para o futuro. O mundo, como
destas amostras se pode concluir, não promete soberbas felicidades, agora foi Alcalá Zamora
destituído da presidência da República1 e logo começou a correr o boato de que haverá um
movimento militar em Espanha, se tal coisa lá fizerem, tristes dias estão guardados para
85 muita gente. [...] A nós tanto nos faz pátria como mundo, a questão é encontrar um sítio onde
se possa comer e juntar algum dinheiro, Brasil seja, para onde em março foram seiscentos e
seis, ou Estados Unidos da América do Norte, para onde viajaram cinquenta e nove, ou Ar-
gentina, que já lá tem mais sessenta e cinco, para os outros países, por junto, só foram dois,
para a França, por exemplo, não foi ninguém, não é país para labrostes portugueses, aí é
90 outra civilização.
Agora que veio o tempo da Páscoa, o governo mandou distribuir por todo o país bodo geral,
assim reunindo a lembrança católica dos padecimentos e triunfos de Nosso Senhor às satis-
fações temporárias do estômago protestativo. Os pobrezinhos fazem bicha nem sempre pa-
ciente às portas das juntas de freguesia e das misericórdias, e já se fala que para os finais de
95 maio se dará uma brilhante festa no campo do Jockey Club a favor dos sinistrados das inun-
dações do Ribatejo, esses infelizes que andam de fundilhos molhados há tantos meses [...].

Portugal visto por Pessoa

Excerto 5 | Capítulo XIII (pp. 327, 328, 331‒332)


Diga-me, Fernando, quem é que é este Salazar que nos calhou em sorte, É o ditador por-
tuguês, o protetor, o pai, o professor, o poder manso, um quarto de sacristão, um quarto de
sibila, um quarto de Sebastião, um quarto de Sidónio, o mais apropriado possível aos nossos
100 hábitos e índole, [...] mas voltando ao Salazar, quem diz muito bem dele é a imprensa estran-
geira, Ora, são artigos encomendados pela propaganda, pagos com o dinheiro do contribuin-
te, lembro-me de ouvir dizer, Mas olhe que a imprensa de cá também se derrete em louvações,
pega-se num jornal e fica-se logo a saber que este povo português é o mais próspero e feliz
da terra, ou está para muito breve, e que as outras nações só terão a ganhar se aprenderem
105 connosco, O vento sopra desse lado, Pelo que lhe estou a ouvir, você não acredita muito nos
jornais, Costumava lê-los […].
[S]egundo a declaração solene de um arcebispo, o de Mitilene2, Portugal é Cristo e Cristo
é Portugal, Está aí escrito, Com todas as letras, Que Portugal é Cristo e Cristo é Portugal,

307
José Saramago

Exatamente. Fernando Pessoa pensou alguns instantes, depois largou a rir, um riso seco, tos-
110 sicado, nada bom de ouvir, Ai esta terra, ai esta gente, e não pôde continuar, havia agora lágri-
mas verdadeiras nos seus olhos, Ai esta terra, repetiu, e não parava de rir, Eu a julgar que tinha
ido longe de mais no atrevimento quando na Mensagem chamei santo a Portugal, lá está, São
Portugal, e vem um príncipe da Igreja, com a sua arquiepiscopal autoridade, e proclama que
Portugal é Cristo, E Cristo é Portugal, não esqueça, Sendo assim, precisamos de saber, urgen-
115 temente, que virgem nos pariu, que diabo nos tentou, que judas nos traiu, que pregos nos
crucificaram, que túmulo nos esconde, que ressurreição nos espera, Esqueceu-se dos milagres,
Quer você milagre maior que este simples facto de existirmos, de continuarmos a existir, não
falo por mim, claro, Pelo andar que levamos, não sei até quando e onde existiremos, Em todo
o caso, você tem de reconhecer que estamos muito à frente da Alemanha, aqui é a própria
120 palavra da Igreja a estabelecer, mais do que parentescos, identificações, nem sequer precisá-
vamos de receber o Salazar de presente, somos nós o próprio Cristo, Você não devia ter mor-
rido tão novo, meu caro Fernando, foi uma pena, agora é que Portugal vai cumprir-se […].

1 Interprete a alusão recorrente à figura de Adamastor nos encontros entre Ricardo


Reis e Marcenda.

2 Considere o segmento “bafejou-a muito devagar como se estivesse a reanimar uma


ave transida de frio” (excerto 3, ll. 48-49) e o significado do nome Marcenda – palavra
derivada do verbo latino marcere, que se encontra no gerúndio e que significa “estar
murcho”.
2.1 Identifique e interprete o recurso expressivo presente no segmento transcrito aci-
ma, relacionando-o com o nome da personagem.

3 Descreva as intenções do regime ao promover bodos para o povo (excerto 4).

4 Demonstre o contributo da conversa entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa para


o conhecimento da situação política em Portugal, no que diz respeito:
a. à liberdade de expressão;
b. à conivência da Igreja com o poder político.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | p. 366.

1 Para completar os itens 1.1 e 1.2, selecione a opção correta.


1.1 A conjunção “Mas” (l. 73) introduz no discurso a ideia de
A. causa.
B. consequência.
C. oposição.
D. condição.

1.2 O termo “que”, nos segmentos “que nos calhou em sorte” (l. 97) e “que este povo
português” (l. 103), introduz uma oração subordinada
A. adjetiva relativa restritiva em ambos os casos.
Gramática/Atividade:
Orações subordinadas B. adjetiva relativa restritiva e substantiva completiva, respetivamente.
adjetivas relativas;
Orações subordinadas C. adjetiva relativa explicativa e substantiva completiva, respetivamente.
substantivas completivas
D. substantiva completiva em ambos os casos.

308
O ano da morte de Ricardo Reis

INFORMAÇÃO

Contexto geopolítico da Europa em 1936

Alemanha1 Itália2

Em 1935, Hitler tinha obtido um grande


êxito com a esmagadora vitória no ple- [Benito Mussolini] em outubro de 1935,
biscito que marcava a reintegração na empreendeu a conquista da Abissínia a
Alemanha da bacia carbonífera do Sarre, partir da vizinha Eritreia, uma possessão
sob ocupação francesa desde a derrota italiana. A resistência […] nada pôde con-
de 1918, na esteira da qual ousou tam- tra os tanques dos italianos […]. A guerra
1936 foi um desastre diplomático. A Sociedade
bém reocupar a Renânia, que se encon-
trava desmilitarizada desde a mesma das Nações, de que a Abissínia era mem-
data. […] bro desde 1923, impôs sansões econó-
micas à Itália […]. Em maio de 1936, as
O regime começou a definir-se em todo tropas italianas entravam finalmente em
o seu horror no período de 1935-1936, Adis Abeba.
com as leis de Nuremberga. […]

Tanto em Espanha como em França, a evolução política anterior a 1936 era favorável a uma direita
cuja posição política era muito diferente nos dois países. Em Espanha, a direita católica não tinha
feito profissão de fé republicana, apesar de assumir responsabilidades governativas desde outubro
de 1934. […] Em França, pelo contrário, os problemas de regime não existiam e os radicais e radi-
cais-socialistas formavam um sólido centro político que dava estabilidade à República. […]
Espanha O “reflexo instintivo de defesa” trouxe consigo uma nova esperança política de esquerda e concre-
tizou-se num “espírito de Frente Popular”. Em Espanha, a Frente Popular concorreu às eleições
e de fevereiro de 1936, preconizando uma ressurreição da República do 14 de abril de 1931 […].
Em França, a Frente Popular também arquitetou um “espírito de 36”, com o ressurgimento de outros
França3 momentos decisivos da vida nacional. […]
Ambas as Frentes Populares triunfaram em 1936, embora a direita tenha, apesar de tudo, mantido
força eleitoral. […] Ambas as Frentes Populares sofreram problemas de estabilidade. A espanhola
não foi capaz de controlar as suas massas e, sobretudo, deparou-se com uma sublevação de grande
parte da direita e dos militares. A francesa titubeou, se não no apoio à república espanhola pelo
menos no modo como o fez, e foi destroçada precisamente pela guerra civil.

Imprensa

Estes acontecimentos políticos são dados a conhecer a Ricardo Reis através da leitura dos jornais
Ricardo Reis (no caso espanhol, também através das conversas dos hóspedes/refugiados desse país que esta-
vam instalados no hotel Bragança), contudo, a personagem não faz nenhum esforço para os analisar
e criticamente, mantendo a sua posição de “espetador do mundo”.
Já o narrador tem uma posição crítica, apresentando uma atitude irónica, face ao que narra ou ao
Narrador que ouve, consciente de que as notícias tinham sido previamente peneiradas (tal como acontecia
com as que se referiam à situação portuguesa).

1 Fonte: M.A. Bastenier, Público | El País, Século XX ‒ “1933-1936”, fascículo 12, pp. 273-274 (adaptado e com supressões).
2 Fonte: Joaquin Estefanía, Público | El País, Século XX ‒ “1933-1936”, fascículo 12, p. 277 (adaptado e com supressões).
3 Fonte: Javier Tusell, Público | El País, Século XX ‒ “1933-1936”, fascículo 12, pp. 280-281 (adaptado e com supressões).

309
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

Link kahoot: José Ao nível da afetividade, Lídia não para de crescer. Deita-se com Reis e protege-o,
Saramago, O ano da morte
de Ricardo Reis
é materna e submissa; no hotel e na casa nova serve, criada que é, mas é servida também
no gozo e na paixão, na liberdade que se dá de amar, de ter ciúmes da musa Marcenda
que entre os dois se interpõe, mas sobretudo de ter um filho e de assumi-lo sozinha como
consequência de um ato só seu. […]
Sem dúvida, Lídia tem a seu favor a voz do narrador que se expõe sempre no intuito
de favorecer – ao menos no nível do desejo – os oprimidos. E ela faz parte desses que
não herdam nem dominam e só deixam como herança a tenacidade na luta diária, cum-
prida em silêncio até ao dia em que se puderem levantar do chão. É ela a espera fecun-
da que se metaforiza no filho que assume sem ajuda nem divisão de tarefas e de
responsabilidades.
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago: entre a história e a ficção: uma saga de portugueses,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 185 e seguintes (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia os excertos. Se necessário, consulte as notas.

A fé

Excerto 1 | Capítulo XIV (pp. 347-348)


Aos poucos dias chegou uma carta, a conhecida cor de violeta exan-
gue, [...] as mesmas palavras, Foi grande imprudência visitá-lo, não vol-
tará a acontecer, nunca mais nos tornaremos a ver, mas acredite em
mim, ficará para sempre na minha lembrança por muitos anos que viva,
5 se as coisas fossem diferentes, se eu fosse mais velha, se este braço sem
remédio, sim, é verdade, fui desenganada, o médico acabou por reco-
nhecer que não tenho cura, que são tempo perdido os banhos de luz, as
correntes galvânicas, as massagens, eu já esperava, nem tive ânimo de
chorar, e não é de mim que tenho pena, é do meu braço, tomo conta dele
10 como de uma criança que nunca poderá sair do berço, acaricio-o como
se não me pertencesse, animalzinho achado na rua, pobre braço, que
seria dele sem mim, adeus, meu amigo, meu pai continua a dizer que
devo ir a Fátima e eu vou, só para lhe dar gosto, se ele disto precisa para
ficar em paz com a consciência, assim acabará por pensar que foi a von-
15 tade de Deus, bem sabe que contra a vontade de Deus nada

podemos fazer nem devemos tentar, meu amigo, não lhe digo
que se esqueça de mim, pelo contrário, peço-lhe que se lembre
todos os dias, mas não me escreva, nunca mais irei à posta-res-
tante, e agora termino, acabo, disse tudo.

310
O ano da morte de Ricardo Reis

Excerto 2 | Capítulo XIV (pp. 372-373) 1 hino internacionalista que,


apesar de estar associado
20 Tudo parece absurdo a Ricardo Reis, este ter vindo de Lisboa a Fátima como quem veio
aos movimentos socialistas,
atrás duma miragem sabendo de antemão que é miragem e nada mais [...]. é usado também pelos
O sol vai descendo, mas o calor não abranda. No terreiro imenso parece não caber um comunistas, social-
alfinete, e contudo, de toda a periferia, movem-se contínuas multidões, é um escoar ininter- -democratas e anarquistas;
2 presidente do governo da
rupto, um desaguar, lento à distância, mas deste lado há ainda quem procure alcançar os
Frente Popular, em França,
25 melhores lugares, o mesmo estarão fazendo além. Ricardo Reis levanta-se, vai dar uma volta em 1936; a Frente Popular
pelas cercanias, e então, não pela primeira vez, mas agora mais cruamente, apercebe-se duma era uma coligação de
outra peregrinação, a do comércio e mendicância. Aí estão os pobres de pedir e os pedinchões, partidos de esquerda que foi
constituída em 1935; 3 político
distinção que não é meramente formal, que escrupulosamente devemos estabelecer, porque italiano, fundador do Partido
pobre de pedir é apenas um pobre que pede, ao passo que pedinchão é o que faz do pedir modo Nacional Fascista; tornou-se
30 de vida, não sendo caso raro chegar a rico por esse caminho. Pela técnica não se distinguem, primeiro-ministro em 1922
e manteve-se no poder até
aprendem da comum ciência, e tanto lamuria um como suplica outro [...].
1943; 4 político conservador
e estadista britânico, foi
Portugal e a Europa primeiro-ministro entre 1940
e 1945 e de 1951 a 1955;
5 capital e a maior cidade
Excerto 3 | Capítulo XIV (pp. 351-352, 353-354, 355) da Etiópia, foi ocupada pelas
tropas italianas em 6 de maio
[A] Portugal, como um todo, não faltam alegrias. Agora se festejaram duas datas, a primeira
de 1936. Esta invasão foi
que foi do aparecimento do professor António de Oliveira Salazar na vida pública, há oito anos, consentida pela França e pela
parece que ainda foi ontem, como o tempo passa, para salvar o seu e o nosso país do abismo, para Inglaterra (daí a referência
35 o restaurar, para lhe impor uma nova doutrina, fé, entusiasmo e confiança no futuro, são pala- a Winston Churchill);
6 expressão ou dito
vras do periódico, e a outra data que também diz respeito ao mesmo senhor professor, sucesso
espirituoso; 7 militar e político
de mais íntima alegria, sua e nossa, que foi ter completado, logo no dia a seguir, quarenta e sete italiano; 8 físico italiano,
anos de idade, nasceu no ano em que Hitler veio ao mundo e com pouca diferença de dias, vejam inventor da telegrafia sem fios.
lá o que são coincidências, dois importantes homens públicos. E vamos ter a Festa Nacional do Até à sua morte (1937) foi um
forte apoiante do fascismo e
40 Trabalho com um desfile de milhares de trabalhadores em Barcelos, todos de braço estendido, de Mussolini; 9 Anthony Eden –
à romana [...]. Ora, diante da magnífica alegria, bem podemos proclamar, é mesmo nosso dever, subsecretário de Estado das
que as comemorações do Primeiro de Maio perderam por toda a parte o seu sentido clássico, não Relações Exteriores do Reino
Unido que tentou mediar um
temos culpa que em Madrid o festejem nas ruas a cantar a Internacional1 e a dar vivas à Revo-
acordo de paz entre a Itália
lução, são excessos que não estão autorizados na nossa pátria, A Dios gracias, manifestam em e a Etiópia; 10 jornal diário
45 coro os cinquenta mil espanhóis que a este oásis de paz se recolheram. Agora o que vamos ter britânico; 11 político alemão
de mais certo é virem por aí abaixo outros tantos franceses, que já a esquerda de lá ganhou as e ministro da Propaganda na
Alemanha Nazi entre 1933
eleições, e o socialista Blum2 declarou-se pronto a constituir governo de Frente Popular. [...]
e 1945
E terminou a guerra da Etiópia. Disse-o Mussolini3 do alto da varanda do palácio, [...] pro-
clamado com todas as letras e em todas as línguas imperador da África Oriental Italiana, en-
50 quanto Winston Churchill4 está abençoando, No estado atual do mundo, a manutenção ou
agravamento das sanções contra a Itália poderia ter tido como consequência uma guerra he-
dionda, sem disso resultar o menor proveito para o povo etíope.
Addis-Abeba5, ó linguístico donaire6, ó poéticos povos, quer dizer Nova Flor. Addis-Abeba está
em chamas, as ruas cobertas de mortos, os salteadores arrombam as casas, violam, saqueiam,
55 degolam mulheres e crianças, enquanto as tropas de Badoglio7 se aproximam. […] Mussolini
anunciou, Deu-se o grande acontecimento que sela o destino da Etiópia, e o sábio Marconi8 pre-
veniu, Aqueles que procurarem repelir a Itália caem na mais perigosa das loucuras, e Eden9 insi-
nua, As circunstâncias aconselham o levantamento das sanções, e o Manchester Guardian10, que
é órgão governamental inglês, verifica, Há numerosas razões para serem entregues colónias
60 à Alemanha, e Goebbels11 decide, A Sociedade das Nações é boa, mas as esquadrilhas de aviões
são melhores. […]

311
José Saramago

As confidências de Lídia

Excerto 4 | Capítulo XV (pp. 387-388)


[…] Então, o teu irmão, isto é apenas um começo, O meu irmão está bem por que é que per-
gunta, Lembrei-me dele por causa duma notícia que li no jornal, um discurso de um tal engenhei-
ro Nobre Guedes, tenho-o aí ainda, Não sei quem é esse senhor, Da maneira como ele fala dos
65 marinheiros, quem não haveria de querer chamar-lhe senhor era o teu irmão, Que é que ele diz,
Espera, que eu vou buscar o jornal. Saiu Ricardo Reis, foi ao escritório, voltou com O Século,
o discurso ocupava quase uma página, Isto é uma conferência que o tal Nobre Guedes leu na
Emissora Nacional contra o comunismo, em certa altura fala dos marinheiros, Diz alguma coisa
do meu irmão, Não, do teu irmão não fala, mas disse isto, por exemplo, publica-se e espalha-se às
70 ocultas a folha repugnante do Marinheiro Vermelho, Que é que quer dizer repugnante, Repug-
nante é uma palavra feia, quer dizer repelente, repulsivo, nauseabundo, nojento, Que mete nojo,
Exatamente, repugnante quer dizer que mete nojo, Eu já vi o Marinheiro Vermelho e não me
meteu nojo nenhum, Foi o teu irmão quem to mostrou, Sim, foi o Daniel, Então o teu irmão é
comunista, Ai isso não sei, mas é a favor, Qual é a diferença, Eu olho para ele, e é uma pessoa como
75 as outras, Achas que se fosse mesmo comunista tinha um aspeto diferente, Não sei, não sei expli-
car, Bom, o tal engenheiro Guedes também diz que os marinheiros de Portugal não são vermelhos,
nem brancos, nem azuis, são portugueses, Até parece que português é cor, Essa tem graça, quem
olhar para ti dirá que não partes um prato, e lá de vez em quando deitas abaixo o guarda-louça […].

Excerto 5 | Capítulo XVI (pp. 417, 418, 420-421, 422, 423)


À tarde, ao regressar do almoço, [Ricardo Reis] reparou que havia ramos de flores nos de-
80 graus da estátua de Camões, homenagem das associações de patriotas ao épico, ao cantor su-
blime das virtudes da raça, para que se entenda bem que não temos mais que ver com a
apagada e vil tristeza de que padecíamos no século dezasseis, hoje somos um povo muito con-
tente, acredite, logo à noite acenderemos aqui na praça uns projetores, o senhor Camões terá
toda a sua figura iluminada, que digo eu, transfigurada pelo deslumbrante esplendor, bem
85 sabemos que é cego do olho direito, deixe lá, ainda lhe ficou o esquerdo para nos ver, se achar
que a luz é forte de mais para si, diga, não nos custa nada baixá-la até à penumbra, à escuridão
total, às trevas originais, já estamos habituados. […] A esta mes-
ma hora, naquele segundo andar da Rua de Santa Catarina, Ri-
cardo Reis tenta escrever um poema a Marcenda, para que
90 amanhã não se diga que Marcenda passou em vão, Saudoso já

deste verão que vejo, lágrimas para as flores dele emprego na


lembrança invertida de quando hei de perdê-las, esta ficará sen-
do a primeira parte da ode, até aqui ninguém adivinharia que
de Marcenda se vai falar, embora se saiba que muitas vezes co-
95 meçamos por falar de horizonte porque é o mais curto caminho

para chegar ao coração. […]


Lídia volta-se para Ricardo Reis e ele para ela, […] ela sorri,
mas a expressão do olhar tem outro sentido, [...] Acho que es-
tou grávida, tenho um atraso de dez dias […] E procura ganhar
100 tempo, Que foi que disseste, Tenho um atraso, acho que estou

grávida, dos dois o mais calmo é outra vez ela, há uma semana
que anda a pensar nisto, todos os dias, todas as horas […]. Ele
espera que ela faça uma pergunta, por exemplo, que hei de

312
fazer, mas ela continua calada, quieta, apagando o ventre com a ligeira flexão dos joelhos,
105 nenhum sinal de gravidez à vista, salvo se não sabemos interpretar o que estes olhos estão
dizendo, fixos, profundos, resguardados na distância uma espécie de horizonte, se o há em
olhos. Ricardo Reis procura as palavras convenientes, mas o que encontra dentro de si é um
alheamento, uma indiferença, assim como se, embora ciente de que é sua obrigação contri-
buir para a solução do problema, não se sentisse implicado na origem dele, tanto a próxima
110 como a remota. [...] Então Ricardo Reis decide-se, quer perceber quais são as intenções dela,
não há mais tempo para subtilezas de dialética, salvo se ainda o for a hipótese negativa que
a pergunta esconde mal, Pensas em deixar vir a criança, o que vale é não haver aqui ouvidos
estranhos, não faltaria ver-se acusado Ricardo Reis de sugerir o desmancho, e quando, termi-
nada a audição das testemunhas, o juiz ia proferir a sentença condenatória, Lídia mete-se
115 adiante e responde, Vou deixar vir o menino. Então, pela primeira vez, Ricardo Reis sente um
dedo tocar-lhe o coração. Não é dor, nem crispação, nem despegamento, é uma impressão
estranha e incomparável, como seria o primeiro contacto físico entre dois seres de universos
diferentes, humanos ambos, mas ignotos na sua semelhança, ou, ainda mais perturbadora-
mente, conhecendo-se na sua diferença. […] Lídia aconchegou-se melhor, quer que ele a abra-
120 ce com força, por nada, só pelo bem que sabe, e diz as incríveis palavras, simplesmente, sem
nenhuma ênfase particular, Se não quiser perfilhar o menino, não faz mal, fica sendo filho
de pai incógnito, como eu. Os olhos de Ricardo Reis encheram-se de lágrimas, umas de ver-
gonha, outras de piedade, distinga-as quem puder, num impulso, enfim, sincero, abraçou-a,
e beijou-a, imagine-se, beijou-a muito, na boca, aliviado daquele grande peso, na vida há
125 momentos assim, julgamos que está uma paixão a expandir-se e é só o desafogo da gratidão.

1 Caracterize a relação de Ricardo Reis e Marcenda, considerando os excertos 1 e 5


e o seu conhecimento da obra.

2 Apresente uma justificação para a ida de Ricardo Reis a Fátima e clarifique a crítica
que é feita à vivência da fé (excertos 1 e 2).

3 Justifique a reação dos refugiados espanhóis em Portugal, perante as diferenças


entre os festejos do dia 1.º de Maio em ambos os países (excerto 3).

4 Explicite a posição da comunidade internacional e da imprensa perante o massacre


ocorrido em Adis-Abeba (excerto 3).

5 Caracterize Lídia, considerando os excertos 4 e 5.

6 FAZ SENTIDO RELACIONAR Demonstre, comparando, que, tal como Lídia, também Inês
Pereira, personagem de Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, é uma mulher decidida
e que foge ao modelo de mulher da sua época.

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 390 e 392.

1 Indique o valor aspetual configurado nos segmentos textuais.


a. “O sol vai descendo” (l. 22) b. “E terminou a guerra da Etiópia” (l. 48)

2 Indique a modalidade e o valor modal configurados no segmento “No terreiro imenso


parece não caber um alfinete” (ll. 22-23).

313
José Saramago

LEITURA ARTIGO DE OPINIÃO

Leia o texto. Se necessário, consulte a nota.

As “Três Marias” e um
legado para o nosso futuro
Graça Fonseca 1
11 de março de 2022

C
umpriram-se, em 2021, cinquenta anos Realço todos estes nomes, porque as lutas e conquistas
desde que as Novas Cartas Portuguesas só duram se forem recordadas e partilhadas. Também por
começaram a ser escritas e cumprem-se, isso, é fundamental que continuemos a trabalhar todos os
em 2022, cinquenta anos da publicação dias para reconhecer e promover a Igualdade de Género em
5 desta obra que representou um momento 40 todos os domínios culturais, fazendo justiça às lutas do pas-
decisivo para o feminismo em Portugal e uma das pri- sado e para escrever uma história igual para as gerações
meiras grandes causas feministas portuguesas com vindouras. […]
repercussão internacional. […] Cumpre-nos saber olhar para o passado e ver tudo
Abordando temas proibidos e censurados durante a aquilo que a criatividade e o talento no feminino construí-
10 ditadura, como a guerra colonial, a falta de liberdade, a 45 ram, mas é, também, fundamental, antecipar o futuro,
violação, o aborto ou a subordinação da mulher na socie- mudar e mostrar que as artes e o património cultural po-
dade portuguesa, as Novas Cartas Portuguesas foram dem e devem ser agentes de consciencialização e de pro-
proibidas pelo regime, que as considerou uma obra por- gresso social e cultural. […]
nográfica e contrária à moral estabelecida, e as suas au- É, também por isso, uma honra, enquanto mulher que
15 toras foram acusadas e levadas a julgamento, num caso 50 temporariamente assume estas funções de Ministra da
que ficou para a história como o julgamento das “Três Cultura, participar no Fórum da Igualdade, na bela cidade
Marias”. de Angers, onde pude partilhar com uma audiência inter-
Em Portugal é impossível menosprezar o impacto nacional a história das “Três Marias”, num momento tão
social e político da coragem das Três Marias, uma cora- especial como este em que, no âmbito da Presidência
20 gem transversal, tanto na decisão de escrever e publi- 55 Francesa do Conselho da União Europeia e da Temporada
car, como na forma como enfrentaram a perseguição Cruzada Portugal-França 2022, homenageamos o ato de
política, as proibições, os passaportes apreendidos, os coragem e desafio de três grandes mulheres portugue-
interrogatórios degradantes e, até, a atitude exemplar sas, cujos nomes não podemos deixar de exaltar repeti-
com que nunca recuaram perante o escrito, mesmo damente: Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e
25 quando a injustiça censória prometia em troca o fim do 60 Maria Teresa Horta.
julgamento. As Novas Cartas Portuguesas representaram um mo-
O seu gesto tornou-as, por direito, marcos na história mento central na afirmação da mulher na sociedade por-
da luta pelos direitos das mulheres na Europa, junto a tuguesa, mas constituíram também uma denúncia
outras grandes mulheres portuguesas como Ana de Cas- incisiva do regime opressivo, tendo igualmente um papel
30 tro Osório, Adelaide Cabete, Carolina Beatriz Ângelo, So- 65 central na luta pela liberdade e democracia.
phia de Mello Breyner Andresen, entre outras que poderia https://mundoatual.pt/as-tres-marias-e-um-legado-para-o-nosso-
citar, a quem tanto devemos, mas a quem, muito parti- -futuro/, consultado a 30/08/2022 (adaptado e com supressões).
cularmente, devo enquanto mulher na vida política, seja
pelo seu sacrifício e pelas suas conquistas seja pela ale-
35 gria com que o fizeram. […] 1 socióloga, política e, à data, ministra da Cultura

314
O ano da morte de Ricardo Reis

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.3, selecione a opção correta.
1.1 A escrita de uma obra versando temas proibidos pela ditadura
Animação: O que é uma
A. ditou o julgamento das autoras, embora a obra tivesse continuado a ser metáfora?; O que é uma
antítese?; O que é uma
vendida. enumeração?
B. levou à sua interdição e à prisão das autoras, apesar das manifestações
internacionais.
C. permitiu a reflexão sobre estes, embora as autoras tivessem sido julgadas
e a obra proibida.
D. foi bem vista pela comunidade internacional, que se prontificou a publicar
o livro.

1.2 Toda a situação, desde a escrita do livro ao julgamento e à atitude das autoras,
A. trouxe-lhes notoriedade, mas também reconhecimento por terem enfrenta-
do o poder da Ditadura.
B. levou a sociedade a censurar as “Três Marias” e a não as reconhecer como
agentes de mudança.
C. diminuiu, em Portugal, a sua importância no domínio da escrita, embora as
catapultasse no domínio político.
D. acabou por não ter grande impacto, já que ficou circunscrita à cidade de
Lisboa e ao tempo da Ditadura.

1.3 O terceiro parágrafo do texto é, fundamentalmente,


A. descritivo.
B. narrativo.
C. dialogal.
D. argumentativo.

2 Selecione as opções que completam corretamente a afirmação.


A a. presente no quarto parágrafo pretende realçar b. portu-
guesas, cuja vida serve de exemplo pelo seu percurso, transformando-se num verda-
deiro c. para a autora do artigo bem como para todas as d. .

a. b. c. d.

1. metáfora 1. individualidades 1. impulso 1. mulheres


2. antítese 2. derrotas 2. modelo 2. situações
3. enumeração 3. ações 3. motor 3. homenageadas

3 Transcreva, do último parágrafo do texto, dois nomes que refiram valores inexisten-
tes durante o Estado Novo.

4 Registe duas marcas gramaticais ilustrativas do caráter subjetivo do texto.

315
José Saramago

ANTECIPAR SENTIDOS

[Lídia] Sabe que o irmão, e com ele o sonho da revolta, está acabado. Mas fica porque
“a terra espera” e Daniel é a vítima fecunda de um espetáculo que tem de continuar.
É nesse impasse entre o mar e a terra, entre o passado e o presente, entre a utopia
ou o sonho ou a irrealidade ou o mito e a História que o romance se finda. Fernando Pes-
soa tem o seu tempo encerrado e já não vagueia pelo mundo. Será para sempre uma voz
lida pelos outros e que se não pode mais transformar. Ricardo Reis percebe também a
sua própria encruzilhada: com Lídia mergulharia no mundo, no tempo e na História, mas
sofre a sua própria incapacidade de segui-la. […]
Também Daniel naufraga. Mas nesse naufrágio do barco fica uma espera da terra. Uma
espera de Lídias que permanecem vivas numa terra que, como ela, está grávida de frutos,
um dia, não abortados nem vencidos.
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago: entre a história e a ficção: uma saga de portugueses,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 185-190 (com supressões).

EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Leia os excertos. Se necessário, consulte as notas.

A Mocidade Portuguesa

Excerto 1 | Capítulo XVII (pp. 447-448)


Em Portugal afluem as inscrições de voluntários para a Mocidade Portuguesa, são jovens
patriotas que não quiseram esperar pela obrigatoriedade que há de vir, eles por sua esperan-
çosa mão, em letra escolar, sob o benévolo olhar da paternidade, firmaram a carta, e por seu
firme pé a levam ao correio, ou trémulos de cívica comoção a entregam ao porteiro do minis-
5 tério da Educação Nacional, só por respeito religioso não proclamam, Este é o meu corpo, este
é o meu sangue, mas qualquer pessoa pode ver que é grande a sua sede de martírio.

O destino dos jovens portugueses

Excerto 2 | Capítulo XVIII (pp. 465-466, 467, 468-469)


[Ricardo Reis] Lembra-se de que Lídia está grávida, de um menino, segundo ela de cada
vez afirma, e esse menino crescerá e irá para as guerras que se preparam, ainda é cedo para
as de hoje, mas outras se preparam, repito, há sempre um depois para a guerra seguinte, fa-
10 çamos a contas. Virá ao mundo lá para março do ano que vem, se lhe pusermos a idade apro-
ximada em que à guerra se vai, vinte e três, vinte e quatro anos, que guerra teremos nós em
mil novecentos e sessenta e um, e onde, e porquê, em que abandonados plainos, com os olhos
da imaginação, mas não sua, vê-o Ricardo Reis de balas traspassado, moreno e pálido como
é seu pai, menino só da sua mãe porque o mesmo pai o não perfilhará. […]
15 Depois na cozinha, enquanto lava a louça suja acumulada, desatam-se-lhe as lágrimas, pela
primeira vez pergunta a si mesma o que vem fazer a esta casa, ser a criada do senhor doutor,
a mulher a dias, nem sequer a amante porque há igualdade nesta palavra, amante, amante,
tanto faz macho como fêmea, e eles não são iguais, e então já não sabe se chora pelos mortos

316
O ano da morte de Ricardo Reis

de Badajoz, se por esta morte sua que é sentir-se nada. Lá dentro,


20 no escritório, Ricardo Reis não suspeita o que se está passando
aqui. [...] Quando Lídia, concluídos os seus trabalhos domésticos,
entrou no escritório, Ricardo Reis tinha o livro fechado sobre os
joelhos. Parecia dormir. Assim exposto, um homem quase velho.
Olhou-o como se fosse um estranho, depois, sem rumor, saiu. Vai
25 a pensar, Não volto mais, mas a certeza não tem.
[…] Anunciaram pois os sindicatos nacionais a promoção de
um comício contra o comunismo, e mal foi conhecida a notícia
perpassou em todo o corpo social o frémito dos grandes mo-
mentos históricos, publicaram-se prospetos assinados por asso-
30 ciações patrióticas, as senhoras, individualmente ou reunidas
em comissão, reclamaram bilhetes e, com vista ao fortalecimen-
to dos ânimos, à preparação dos espíritos, alguns sindicatos or-
ganizaram sessões dedicadas aos seus associados […]. Em todas
estas sessões é lido e aplaudido o manifesto dos sindicatos na-
35 cionais, veemente profissão de fé doutrinária e de confiança nos
destinos da nação, o que se demonstra com estes poucos excer-
tos colhidos ao acaso, Sem dúvida os sindicatos nacionais repe-
lem com energia o comunismo, sem dúvida os trabalhadores
nacionais-corporativos são intransigentemente portugueses e
40 latino-cristãos, os sindicatos nacionais pedem a Salazar, em
suma, grandes remédios para grandes males, os sindicatos na-
cionais reconhecem, como bases eternas de toda a organização
social, económica e política, a iniciativa privada e a apropriação
individual dos bens, dentro dos limites da justiça social.

A revolta dos marinheiros

Excerto 3 | Capítulo XIX (pp. 480, 481)


45 Lídia começa a chorar baixinho, […] Vai ser uma desgraça, uma desgraça, Ó criatura, não
sei de que estás a falar, explica-te por claro, É que, interrompeu-se para enxugar os olhos e
assoar-se, é que os barcos vão revoltar-se, sair para o mar [...]. A ideia é irem para Angra do
Heroísmo, libertar os presos políticos, tomar posse da ilha, e esperar que haja levantamentos
aqui, E se não os houver, Se não houver, seguem para Espanha, vão juntar-se ao governo de
50 lá, É uma rematada loucura, nem conseguirão sair a barra […].

Excerto 4 | Capítulo XIX (pp. 487-489)


Abriu a janela, na rua havia pessoas assustadas, uma mulher gritou, Ai que é uma revolu-
ção, e largou a correr, calçada acima […]. Quando Ricardo Reis chegou ao jardim havia já
muitas pessoas […]. Não eram os navios de guerra que estavam a bombardear a cidade, era o
forte de Almada que disparava contra eles. Contra um deles. Ricardo Reis perguntou, Que
55 barco é aquele, teve sorte, calhou dar com um entendido, É o Afonso de Albuquerque. Era
então ali que ia o irmão de Lídia, o marinheiro Daniel, a quem nunca vira, por um momento
quis imaginar um rosto, viu o de Lídia [...]. O forte de Almada continua a disparar, parece o
Afonso de Albuquerque que respondeu mas não há a certeza. Deste lado da cidade começaram
a soar tiros, mais violentos, mais espaçados, É o forte do Alto do Duque, diz alguém, estão

317
José Saramago

60 perdidos, já não vão poder sair. E é neste momento que outro barco começa a navegar, um
contratorpedeiro, o Dão, só pode ser ele, procurando ocultar-se no fumo das suas próprias
chaminés e encostando-se à margem sul para escapar ao fogo do forte de Almada, mas, se
deste escapa, não foge ao Alto do Duque, as granadas rebentam na água, contra o talude,
estas são de enquadramento, as próximas atingem o barco, o impacte é direto, já sobe no Dão
65 uma bandeira branca, rendição, mas o bombardeamento continua, o navio vai adernado,
então são mostrados sinais de maior dimensão, lençóis, sudários, mortalhas, é o fim, o Bar-
tolomeu Dias nem chegará a largar a boia. São nove horas, cem minutos passaram desde que
isto principiou, a neblina da primeira manhã já se desvaneceu, o sol brilha desafogado, a esta
hora devem andar a caçar os marinheiros que se atiraram à agua. […] Ricardo Reis levanta-se
70 do banco, os velhos, ferozes, já não dão por ele, o que valeu foi ter dito uma mulher, compas-
siva, Coitadinhos, refere-se aos marinheiros, mas Ricardo Reis sentiu esta doce palavra como
um afago, a mão sobre a testa ou suave correndo pelo cabelo, e entra em casa, atira-se para
cima da cama desfeita, escondeu os olhos com o antebraço para poder chorar à vontade, lá-
grimas absurdas, que esta revolta não foi sua, sábio é o que se contenta com o espetáculo do
75 mundo, hei de dizê-lo mil vezes, que importa àquele a quem já nada importa que um perca e
outro vença.

Excerto 5 | Capítulo XIX (pp. 492-494)


Durante toda a tarde, Lídia não apareceu. Na hora da distribuição dos vespertinos Ricardo
Reis saiu para comprar o jornal. Percorreu rapidamente os títulos da primeira página, procu-
rou a continuação da notícia na página central dupla,
80 outros títulos, ao fundo, em normando, Morreram doze

marinheiros, e vinham os nomes, as idades, Daniel Mar-


tins de vinte e três anos, Ricardo Reis ficou parado no
meio da rua, com o jornal aberto, no meio de um silêncio
absoluto, a cidade parara, ou passava em bicos de pés
85 com o dedo indicador sobre os lábios fechados, de repen-

te o barulho voltou ensurdecedor […]. É quase noite. Diz


o jornal que os presos foram levados primeiro para o
Governo Civil, depois para a Mitra, que os mortos, al-
guns por identificar, se encontram no necrotério. Lídia
90 andará à procura do irmão, ou está em casa da mãe, cho-

rando ambas o grande e irreparável desgosto.


Então bateram à porta. Ricardo Reis correu, foi abrir,
já prontos os braços para recolher a lacrimosa mulher,
afinal era Fernando Pessoa, Ah, é você, Esperava outra
95 pessoa, Se sabe o que aconteceu, deve calcular que sim,

creio ter-lhe dito um dia que a Lídia tinha um irmão na


Marinha, Morreu, Morreu. Estavam no quarto, Fernan-
do Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa
cadeira. Anoitecera por completo. Meia hora passou
100 assim, ouviram-se as pancadas de um relógio no andar

de cima. É estranho, pensou Ricardo Reis, não me lem-


brava deste relógio, ou esqueci-me dele depois de o ter
ouvido pela primeira vez. Fernando Pessoa tinha as
mãos sobre o joelho, os dedos entrelaçados, estava de
105 cabeça baixa. Sem se mexer, disse, Vim cá para lhe dizer

318
O ano da morte de Ricardo Reis

que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter
dito que só tinha para uns meses, Lembro-me. Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis subiu
o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa de cabeceira buscar The god of the
labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou
110 consigo, Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei que devia, Para a consolar do desgosto de
ter ficado sem o irmão, Não lhe posso valer, E esse livro, para que é, Apesar do tempo que
tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitu-
ra é a primeira virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais
incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas mesmo
115 assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma. Saíram de casa, Fernan-
do Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu, Melhor do que eu sabe que não se usa
lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos
montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não
se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde
120 o mar se acabou e a terra espera.

1 Indique a relação intertextual presente no excerto 1 e explicite a prolepse aí apre-


sentada.

2 Refira o destino dos jovens portugueses, durante o Estado Novo, considerando


a reflexão que o narrador faz no excerto 2.
2.1 Explicite a convocação de outros textos literários a propósito desta reflexão.

3 Demonstre a conivência dos sindicatos com o poder político (excerto 2).

4 Sintetize o que se expõe, no excerto 4, sobre a “revolta dos marinheiros”.

5 Relacione a máxima do heterónimo “sábio é o que se contenta com o espetáculo do


mundo” (ll. 74-75) com a reação de Ricardo Reis à tragédia que presenciou.

6 Apresente uma explicação para a decisão final de Ricardo Reis.

7 Relacione as frases que abrem e fecham a obra, justificando a estrutura circular


para que apontam.

8 Esclareça o sentido do último período da obra, relacionando-o


FAZ SENTIDO RELACIONAR

com o poema “O Infante”, de Mensagem (p. 114).

GRAMÁTICA i Bloco informativo | pp. 373 e 390.

1 Indique a função sintática desempenhada pelos constituintes.


a. “que os presos foram levados primeiro para o Governo Civil” (ll. 87-88)

b. “à porta” (l. 92)

Gramática/Atividade: Valor
2 Indique a modalidade e o valor modal dos segmentos seguintes. modal: modalidade apreciativa;
Valor modal: modalidade
a. “Lídia andará à procura do irmão” (ll. 89-90) deôntica; Valor modal:
modalidade epistémica
b. “Não irá ter tempo” (l. 112)

319
José Saramago

INFORMAÇÃO

Representações do amor
Marcenda tem um nome subtilmente ardiloso pois guarda em sua morfologia
a reminiscência latina, além dessa sonoridade “de raça gerúndia” que não “usam
as mulheres, [pois] são palavras doutro mundo, doutro lugar”. Teria, assim, os
componentes da musa ideal, não fora a fundamental discrepância semântica que
5 o mesmo sintagma anuncia: marcenda é aquela que deve murchar, aquela a quem
falta a eternidade e que está fadada a ser mortal. […]
Marcenda é o pássaro sem voo, a mão inerte é como a asa quebrada, a liberdade
impossível, a prisão no labirinto. No espaço do romance o seu tempo não acontece
porque a sua fragilidade a impede de estar no tempo. Não faz a História nem faz a
10 sua história. Não se inscreve, é inscrita por vontades alheias. Oprimida pela voz do
pai, não é capaz de prolongar os pequenos voos que se permitira por momentos
ousar. […]
Obedece às regras, às leis, vai a Fátima sem fé – “meu pai continua a dizer que
devo ir a Fátima e eu vou, só para lhe dar gosto, se ele disso precisa para ficar em
15 paz com a consciência” –, vem a Lisboa e vai ver o doutor, sabendo, de antemão, que
a ida é só um artifício para justificar arranjos amorosos paternos. Obedece, não
luta, cede, agrada, mente até, se necessário, não assume. Está, pois, a murchar num
tempo que exige dos homens posições mais radicais, para não fugir ao molde pes-
soano, “o todo, ou o seu nada”. […]
Max Ernst, Viva o amor, 1923.
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago: entre a história e a ficção: uma saga de portugueses,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 183-184 (com supressões).

Lídia será sempre aquela com quem [Ricardo Reis] satisfaz a sua “longa abstinência”. […]
O desejo por Lídia não passará, portanto, de uma forma de cumprir as exigências físicas do
corpo […].
A Lídia caberá, contudo, como temos vindo a sugerir, um papel bem mais importante:
5 o de contribuir para o desenvolvimento de uma consciência ideológica no heterónimo, por
mais ténue que ela seja. Aos exemplos que já registámos, relativos, entre outros aspetos, ao
que do irmão Daniel e dos seus futuros companheiros de revolta relatará a Ricardo Reis, ou
aos que se referem ao massacre de Badajoz, cabe evocar que, quando o poeta é chamado à
polícia internacional, Lídia, à afirmação de que “não há motivo para preocupações” porque
10 “deve ser coisa de papéis”, replica com a constatação de que “dessa gente […] não se pode es-
perar nada de bom”.
Na sequência deste diálogo, como desse outro que se segue ao regresso das instalações
da PVDE, em que sabemos da consciência de Lídia sobre o que ali se passa, é também pos-
sível verificar que, apesar de tudo, Ricardo Reis não é de todo desprovido de sentimentos
15 por ela.
Ana Paula Arnaut, O ano da morte de Ricardo Reis de José Saramago,
Porto, Edições ASA, 2017, pp. 62-63 (adaptado e com supressões).

Teste interativo: José


Saramago – O ano da morte
de Ricardo Reis
1 Apresente dois aspetos em que contrastem as personagens femininas.

320
CONSOLIDAÇÃO
Tempo histórico e político – 1936

Portugal Europa
• Regime ditatorial, liderado por Salazar, sustentado • Proliferação das ditaduras de índole fascista, mas os
numa intensa propaganda política, fomentando a ideia movimentos de esquerda tentavam triunfar em alguns
da prosperidade e grandeza do império. países, como França e Espanha.
• Conivência da Igreja que corrobora a visão de Salazar • Golpe de estado em Espanha, para derrubar as forças
como o salvador da moralidade cristã. comunistas, liderado pelo general Franco, o que resul-
• Criação de movimentos, como o da Mocidade Portugue- tou depois numa sangrenta guerra civil.
sa, que desde cedo incutiam na população os valores e • Afirmação da Alemanha e da Itália como grandes po-
a ideologia do regime. tências económicas e tentativa de alargamento do seu
• Atitude repressiva através de perseguições, torturas e domínio, através da invasão/ocupação da Renânia (por
prisão dos que se opunham ao regime. parte da Alemanha) e da Etiópia (no caso da Itália).
• Ausência de liberdade de expressão e de pensamento – • Indiferença/apatia da Sociedade das Nações perante
censura de jornais, de livros... esta situação.
• Vida miserável do povo e do país, mergulhado num es- • Escusa da Inglaterra de tomar uma posição sancionató-
tado de estagnação. ria contra a Alemanha e a Itália, ao mesmo tempo que
reivindicava a redistribuição de colónias portuguesas.

Espaço

• Cidade de Lisboa, apresentada como um labirinto, monótona, sem condições higiénicas, onde abundava a pobreza.
• Cidade sombria, silenciosa, chuvosa, de águas turvas, metáforas que contribuem para destacar a opressão
e a repressão exercidas pelo regime sobre o povo e daí a constatação final de que a terra aguarda pela mudança.
• Deambulação de Ricardo Reis pela cidade, o que leva a uma viagem literária, constatando que, ao fim de 16 anos,
tudo continua igual (o que remete para a estagnação).

Personagens

Ricardo Reis – “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”:


• informa-se sobre o país e o mundo através dos jornais e de Lídia;
• mantém algumas características do heterónimo, mas permite-se ceder, momentaneamente, a emoções;
• guia o leitor, através da sua deambulação, por uma cidade sombria, reflexo do país;
• envolve-se fisicamente com Lídia, embora nunca equacione o casamento com a criada;
• pontualmente, envolve-se fisicamente com Marcenda e pretende casar com ela.

Lídia Marcenda

• Mulher independente, ativa, perspicaz e questionadora, • Mulher passiva, sem vontade nem convicções,
preocupada com o mundo que a rodeia. obediente ao pai, deficiente – representa a inér-
• Fértil, engravida de um filho que poderá ajudar a preparar cia, a apatia, a desistência de Ricardo Reis e, por
o futuro. essa razão, não luta e não aceita o pedido de
• Representa a possibilidade de Ricardo Reis vingar e viver casamento.
sem o seu criador, transformando-se num agente ativo e • Aquela que murcha, que não é eterna – contrasta
não num mero espectador. com as musas das odes, no entanto, será ela
• Contrasta com a Lídia das odes – platónica, tranquila, quieta. a imortalizada numa ode de Reis.

321
CONSOLIDAÇÃO

Intertextualidade: José Saramago, leitor de Camões,


Cesário Verde e Fernando Pessoa
• Imitação criativa do verso de Os Lusíadas “Onde a terra se acaba e o mar começa” no início e no fecho
da obra e citação de outros versos.
Luís de
• Presença constante, ao longo da obra, da estátua de Camões e de Adamastor, como forma de des-
Camões
tacar a produção camoniana como um marco inquestionável da literatura portuguesa (“todos os
caminhos portugueses vão dar a Camões”).
• Denúncia da subversão e do aproveitamento das palavras e da figura de Camões por parte do regime.

• Configuração do espaço da cidade de Lisboa como uma realidade confinadora e destrutiva (“Ricardo
Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou ao Camões, era como se estivesse
dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar”).
Cesário • Deambulação geográfica como ponto de partida para outras evasões (viagem literária).
Verde • Comiseração e identificação do narrador com certas figuras do povo observadas.
• Remissão para a questão épica e para a evocação de um passado glorioso contrastante com a estag-
nação de um presente moribundo.
• Visualismo impressionista e convergência dos sentidos.
• Construção da personagem de Ricardo Reis à luz das características fixadas pelo seu criador, Fer-
nando Pessoa.
Fernando • Evocação das características, quer da personalidade do ortónimo e dos heterónimos quer do seu
Pessoa estilo literário, através, por exemplo, das conversas entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa.
• Citações, alusões, imitações criativas, paráfrases e paródias de versos do ortónimo e dos vários
heterónimos.

Linguagem, estilo e estrutura


Estrutura da obra
Tom oralizante Pontuação
Externa Interna
• Marcas de coloquialidade. • Uso apenas do ponto final e da
• Estrutura circular: • Diálogo com o narratário. vírgula. É através desta e do uso
‒ recriação do verso • Comentários do narrador. da maiúscula que o autor marca
de Camões “Onde as falas em discurso direto, sendo
• 19 • Estruturas morfossintáticas simples. que é o contexto que ajuda o lei-
a terra se acaba e
capítulos • Aforismos, ditados populares, provérbios. tor a perceber quando se trata de
o mar começa”;
uma declaração, de uma excla-
‒ viagem de Ricardo • Mistura de vários modos de relato do discurso.
mação ou de uma interrogação.
Reis. • Coexistência de segmentos narrativos e
descritivos sem delimitação clara.

Reprodução do discurso no discurso


Citação • “Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos” (cap. I)
Discurso direto • “é Fernando Pessoa quem primeiro fala, Soube que me foi visitar” (cap. III)
• “os espanhóis descruzavam a perna impaciente, mas o doutor Sampaio retinha-os, garantia-
Discurso indireto
-lhes que em Portugal poderiam viver em paz pelo tempo que quisessem” (cap. VIII)
• “Já todo o pessoal do hotel sabe que o hóspede do duzentos e um, o doutor Reis, aquele que
Discurso indireto
veio do Brasil há dois meses, foi chamado à polícia, alguma ele teria feito por lá, ou por cá,
livre
quem não queria estar na pele dele bem eu sei” (cap. VIII)

322
VERIFICAÇÃO
1 Associe as afirmações da coluna A às da coluna B de modo a obter afirmações
verdadeiras.
Jogo: #DesafioLiterário:
José Saramago
Coluna A Coluna B

a. A ação de O ano da morte 1. quer a nível interno quer externo, era a de governante modelo.
de Ricardo Reis decorre 2. funciona como uma metáfora da situação histórica e políti-
em 1936, ca que se vivia em Portugal em 1936.
b. Em Portugal, vivia-se um
3. de que sábio é aquele que se contenta com o espetáculo
clima
do mundo.
c. A imagem de Salazar,
4. era a de um líder rigoroso, mas solidário e protetor.
d. A forma como o espaço
5. altura em que se assistia na Europa a uma grande instabi-
da cidade de Lisboa apa-
lidade política, nomeadamente pela existência de ditaduras
rece caracterizado
fascistas.
e. Através da sua obra,
José Saramago quis ne- 6. de prosperidade e paz, largamente divulgado nos jornais.
gar a máxima, atribuída 7. de opressão e de miséria, embora a propaganda do Estado
a Ricardo Reis, quisesse passar uma imagem de prosperidade.

2 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.


A. A personagem de Ricardo Reis criada por Saramago é fidedignamente decalca-
da da figura concebida por Fernando Pessoa.
B. A deambulação de Ricardo Reis pela cidade assemelha-se, em muitos aspetos,
à verificada em Cesário Verde.
C. A viagem literária a que se assiste na obra decorre do facto de o poeta Ricardo
Reis ter regressado a Portugal, ao fim de 16 anos.
D. Camões é uma das figuras literárias mais relevantes em O ano da morte de
Ricardo Reis.
E. A intertextualidade presente na obra concretiza-se sempre através da citação
de versos de Fernando Pessoa.
F. Ricardo Reis estabelece uma relação simultânea com Lídia e Marcenda pelo
facto de ambas serem mulheres muito semelhantes.
G. De entre as duas mulheres, Lídia apresenta-se como a única capaz de resgatar
Ricardo Reis da sua inércia.
H. A obra apresenta uma estrutura circular, uma vez que a ação termina exata-
mente nove meses depois de Fernando Pessoa ter morrido.

3 Para completar os itens 3.1 e 3.2, selecione a opção correta.

3.1 O tom oralizante da obra de Saramago resulta


A. do discurso direto das personagens.
B. da conjugação de modos de relato de discurso.
C. do diálogo estabelecido entre as personagens.

3.2 A escrita de Saramago caracteriza-se pela utilização


A. predominante da vírgula.
B. das formas verbais sempre no presente do indicativo.
C. da descrição e da narração devidamente delimitadas.

323
AVALIAÇÃO
GRUPO I

Apresente as suas respostas de forma bem estruturada.


Parte A

Leia o texto.

Agora, esperar. Ler as gazetas, neste primeiro dia também as da tarde, reler, medir, ponderar
e corrigir desde o princípio as odes, retomar o labirinto e o deus dele, olhar da janela o céu, ouvir
falarem na escada a vizinha do primeiro andar e a vizinha do terceiro andar, perceber que as
agudas vozes lhe são destinadas, dormir, dormitar e acordar, sair só para o almoço, de fugida,
5 ali pertinho, numa casa de pasto do Calhariz, tornar aos jornais já lidos, às odes arrefecidas, […]
decidir que este silêncio é insuportável sem uma nota de música, que um destes dias irá comprar
uma telefonia, e para se informar do que melhor lhe convenha procura os anúncios das marcas,
Belmont, Philips, RCA, Philco, Pilot, Stewart-Warner, vai tomando notas, escreve super-heteródi-
no sem perceber mais que o super, mesmo assim com dúvidas, e, pobre homem solitário, pasma
10 diante de um anúncio que promete às mulheres um peito impecável em três a cinco semanas
pelos métodos parisienses Exuber, […] e depois regressa resignado às notícias já lidas, morreu
Alexandre Glazunov, autor do Stenka Rázine, por Salazar, esse ditador paternal, foram inaugura-
dos refeitórios na Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, a Alemanha anuncia que não
retirará as suas tropas da Renânia, novos temporais assolaram o Ribatejo, foi declarado o estado
15 de guerra no Brasil e presas centenas de pessoas, palavras de Hitler, Ou dominamos o nosso des-
tino ou perecemos, enviadas forças militares para a província de Badajoz onde milhares de traba-
lhadores invadiram propriedades rurais, [...] começaram as filmagens da Revolução de Maio que
conta a história de um foragido que entra em Portugal para fazer a revolução, não aquela, outra,
e é convertido aos ideais nacionalistas pela filha da dona da pensão onde vai hospedar-se clan-
20 destino, esta notícia leu-a Ricardo Reis primeira, segunda e terceira vezes, a ver se libertava um
impreciso eco que zumbia no fundo recôndito da memória, Isto lembra-me qualquer coisa, mas
das três vezes não conseguiu, e foi quando já passara a outra notícia, greve geral na Corunha, que
o ténue murmúrio se definiu e tornou claro, nem sequer se tratava de uma recordação antiga, era
a Conspiração, esse livro, essa Marília, a história dessa outra conversão ao nacionalismo e seus
25 ideais, que, a avaliar pelas provas dadas, sucessivas, têm nas mulheres ativas propagandistas,
com resultados tão magníficos que já a literatura e a sétima arte dão nome e merecimento a esses
anjos de pureza e abnegação que procuram fervidamente as almas masculinas transviadas […].
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, Porto,
Porto Editora, 2021, cap. XI, pp. 282-284.

1 Trace um perfil de Ricardo Reis, explicitando dois traços que o caracterizem.

2 Exponha três notícias lidas pela personagem, explicitando a sua importância para a ca-
racterização do século XX na Europa e em Portugal.

3 Demonstre o contributo do livro Conspiração para o sucesso da ideologia Salazarista.

324
PARTE B

Leia o excerto do capítulo 11 da Crónica de D. João I. Se necessário, consulte as notas.


1 porque; 2 em lugar de;
– Acorramos ao Meestre, amigos, acorramos ao Meestre, ca1 filho é del-Rei dom Pedro. 3 onde; 4 não parava; 5 lá;
E assi braadavom el e o Page indo pela rua. 6 não faltava; 7 Conde João
Soaram as vozes do arroido pela cidade ouvindo todos braadar que matavom o Meestre; e Fernandes Andeiro, nobre
galego, amante da rainha
assi como viuva que rei nom tiinha, e como se lhe este ficara em logo2 de marido, se moverom
e por ela nomeado conde
5 todos com mão armada, correndo a pressa pera u3 deziam que se esto fazia, por lhe darem vida de Ourém; 8 todos animados
e escusar morte. Alvoro Paaez nom quedava4 d’ir pera alá5, braadando a todos: pela mesma coragem;
– Acorramos ao Meestre, amigos, acorramos ao Meestre que matam sem por quê! 9 desejo; 10 logo que
chegaram; 11 arrombassem;
A gente começou de se juntar a ele, e era tanta que era estranha cousa de veer. Nom cabiam
12 alguns deles; 13 traidor;
pelas ruas principaes, e atravessavom logares escusos, desejando cada uũ de seer o primeiro; 14 adúltera – alusão a
10 e preguntando uũs aos outros quem matava o Meestre, nom minguava6 quem responder que D. Leonor Teles; 15 insistiam;
16 insultos
o matava o Conde Joam Fernandez7, per mandado da Rainha.
E per voontade de Deos todos feitos duũ coraçom8 com talente9 de o vingar, como forom10
aas portas do Paço que eram já çarradas, ante que chegassem, com espantosas palavras come-
çarom de dizer:
15 – U matom o Meestre? que é do Meestre? quem çarrou estas portas?
Ali eram ouvidos braados de desvairadas maneiras. Taes i havia que certeficavom que o
Meestre era morto, pois as portas estavom çarradas, dizendo que as britassem11 pera entrar
dentro, e veeriam que era do Meestre, ou que cousa era aquela.
Deles12 braadavom por lenha, e que veesse lume pera poerem fogo aos Paaços, e queimar o
20 treedor13 e a aleivosa14. Outros se aficavom15 pedindo escaadas pera sobir acima, pera veerem
que era do Meestre; e em todo isto era o arroido atam grande que se nom entendiam uũs com
os outros, nem determinavom ũ cousa. E nom soomente era isto aa porta dos Paços, mas ainda
arredor deles per u home~ es e molheres podiam estar. Ũas viinham com feixes de lenha, outras
tragiam carqueija pera acender o fogo cuidando queimar o muro dos Paaços com ela, dizendo
25 muitos doestos16 contra a Rainha.
Fernão Lopes, in Teresa Amado (apresentação crítica), Crónica de D. João I de Fernão Lopes
(textos escolhidos), ed. Revista, Lisboa, Editorial Comunicação, 1992 [1980], pp. 95-96.

4 Exponha as ações praticadas pelo povo para salvar o Mestre, assim que chegou aos
paços da rainha.

5 Selecione as opções que completam corretamente as afirmações


A afirmação da consciência coletiva é visível neste excerto no facto de o povo
a. . Esta posição é salientada pelo uso de recursos expressivos como
a b. , visível em expressões como c. .

a. b. c.

1. ter tomado consciência 1. “desejando cada uũ de seer


da traição iminente o primeiro” (l. 9)
1. personificação
2. se ter unido na defesa 2. “E per voontade de Deos todos
2. antítese Animação: O que é uma
dos interesses do reino feitos duũ coraçom” (l. 12) personificação?; O que é uma
3. metáfora antítese?; O que é uma
3. ter acorrido às ruas para 3. “que se nom entendiam uũs
metáfora?
denunciar o plano de Álvaro Pais com os outros” (ll. 21-22)

325
AVALIAÇÃO
PARTE C

6 Em ambos os textos presentes na Parte A se assiste à exaltação do sentimento patrio-


Animação: Escrever um
texto expositivo ta. Escreva uma breve exposição sobre a intencionalidade e a importância desse apelo,
considerando o contexto e a cronologia dos factos narrados.
A sua exposição deve incluir:
• uma introdução ao tema;
• um desenvolvimento no qual apresente, referindo pelo menos um exemplo signi-
ficativo para cada um dos tópicos:
– a realidade vivenciada;
– a necessidade do apelo ao patriotismo;
• uma conclusão adequada ao desenvolvimento do tema.

GRUPO II

Leia o texto.

Centenário de Saramago
As celebrações do centenário de José Sa-
ramago iniciaram-se em novembro e pro-
longam-se até dia 16 de novembro de 2022,
dia em que o escritor faria 100 anos. O plano
5 foi elaborado pelo professor Carlos Reis a ainda vai publicar novas capas dos livros de
convite da Fundação José Saramago. Saramago. Portanto, “será um programa dig-
Em declarações ao JPN, à margem do 25 no da dimensão de José Saramago”.
evento na Lello, Sérgio Machado Letria ga- As celebrações vão decorrer em vários
rante que o programa é “muito diversifica- pontos do país e até no estrangeiro, como
10 do, com uma grande componente de outras em Lanzarote (ilha espanhola onde o escri-
linguagens artísticas em diálogo com a lite- tor viveu) e no Brasil. Assim, estão previstas
ratura de Saramago”, sendo que as leituras 30 sessões em bibliotecas de diferentes zonas
são o “eixo fundamental”. Exemplo disso vão do país e as leituras centenárias estão distri-
ser as adaptações teatrais de textos de Sara- buídas por 300 escolas nacionais.
15 mago e as peças de bailado contemporâneo Durante o evento foi dada a oportunida-
e clássico, a partir da obra do escritor. de ao público de colocar questões aos dife-
Além disso, também vão ser publica- 35 rentes membros do painel. Sérgio Machado
das reedições da obra e dois livros novos: Letria terminou a sessão com a leitura de
uma fotobiografia de Saramago, que vai ser um texto de Saramago, intitulado “Os es-
20 dada à estampa no início do próximo ano; e critores perante o racismo”, comprovando a
uma edição especial da Viagem a Portugal, que atualidade do compromisso ético da escrita
foi publicada recentemente. A Porto Editora 40 de José Saramago.
https://www.jpn.up.pt, consultado em agosto de 2022
(adaptado e com supressões).

326
1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.6, selecione a opção correta.

1.1 O programa das celebrações do centenário de José Saramago Gramática/Atividade:


Valor aspetual; Orações
A. foi proposto pelo Professor Carlos Reis à Fundação José Saramago. subordinadas substantivas
completivas; Orações
B. foi elaborado em conjunto por Carlos Reis e pela Fundação José Saramago. subordinadas adjetivas
relativas; Orações
C. é da responsabilidade de Carlos Reis, sob orientação da Fundação Saramago. subordinadas adverbiais
consecutivas; Sujeito;
D. ficou a cargo de Carlos Reis, convidado para o efeito pela Fundação. Complemento direto;
Predicativo do sujeito;
Complemento oblíquo;
1.2 Da obra de Saramago consta o texto intitulado “Os escritores perante o racismo”, Coesão e coerência textual
Animação: Escrever
A. o que mostra a atitude pacífica do autor perante a realidade. um texto de opinião
B. o que revela o caráter crítico de Saramago, no que toca a outros povos.
C. o que demonstra a atitude de propósito ético do escritor e da sua obra.
D. o que denuncia que o tema não é abordado em literatura.

1.3 O valor aspetual configurado no segmento “O plano foi elaborado pelo professor
Carlos Reis” (ll. 4-5) é
A. imperfetivo. C. iterativo.
B. habitual. D. perfetivo.

1.4 A oração “que o programa é ‘muito diversificado’” (ll. 9-10) classifica-se como
subordinada
A. substantiva completiva. C. adjetiva relativa explicativa.
B. adjetiva relativa restritiva. D. adverbial consecutiva.

1.5 O segmento “o ‘eixo fundamental’” (l. 13) desempenha a função sintática de


A. sujeito. C. predicativo do sujeito.
B. complemento direto. D. complemento oblíquo.

1.6 A relação que se estabelece entre os elementos sublinhados em “As celebrações


vão decorrer em vários pontos” (ll. 26-27) exemplifica a coesão
A. gramatical interfrásica. C. lexical por reiteração.
B. gramatical referencial. D. gramatical frásica.

2 Classifique a oração “que vai ser dada à estampa no início do próximo ano” (ll. 19-20).

3 Indique a função sintática desempenhada pelo constituinte “centenárias” (l. 31).

GRUPO III

1 As obras literárias inscrevem-se num determinado tempo e num certo lugar, e, por-
tanto, através do olhar atento e crítico do seu criador, elas podem constituir-se
como retratos da realidade em que nasceram.
Num texto de opinião bem estruturado, com um mínimo de 200 e um máximo de 300
palavras, apresente a sua perspetiva sobre o tema apresentado, fundamentando-a
em dois argumentos, cada um ilustrado com um exemplo.

327
Bloco
informativo
I – RECORDAR E RELACIONAR COM SENTIDO(S)

ESQUEMAS-SÍNTESE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 332
A visão crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 332
As sombras da tragédia e as contradições do “eu” . . . . . . . . . 333
A Natureza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 334
Ficção com aparência de verdade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 335
Meditação sobre Portugal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 336
Realidade e transformação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337

INTERTEXTUALIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338
A variedade do sentimento amoroso . . . . . . . . . . . . . . . . 338
Representações do quotidiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 340
Matéria épica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342
Crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 344

COMO LER/ANALISAR
Texto poético . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 347
Texto em prosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 349

COMO ESCREVER
Síntese . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351
Texto expositivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 353
Texto de apreciação crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355
Texto de opinião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 357
Autoavaliação da produção escrita . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359

Robert Delaunay, Natureza


morta portuguesa, 1917.
Bloco informativo

II – GRAMÁTICA

FONÉTICA E FONOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 360


Processos fonológicos de inserção . . . . . . . . . . . . . . . . . 360
Processos fonológicos de supressão . . . . . . . . . . . . . . . . 360
Processos fonológicos de alteração . . . . . . . . . . . . . . . . 360

360
ETIMOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Étimo e palavras convergentes e divergentes . . . . . . . . . . . 360

MORFOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 362
Processos regulares de formação de palavras . . . . . . . . . . . 362
Flexão verbal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 364

CLASSES DE PALAVRAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 366

SINTAXE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373
Funções sintáticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373
Funções sintáticas ao nível da frase . . . . . . . . . . . . . 373
Funções sintáticas internas ao grupo verbal . . . . . . . . 374
Funções sintáticas internas ao grupo nominal . . . . . . . 375
Função sintática interna ao grupo adjetival . . . . . . . . . 375
Frase complexa – coordenação e subordinação . . . . . . . . . . . 377
Coordenação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 377
Subordinação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 378
Frase ativa e frase passiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 382
Pronome pessoal em adjacência verbal − regras de utilização . 383
Colocação do pronome átono . . . . . . . . . . . . . . . . . 383

LEXICOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 386
Arcaísmos e neologismos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 386
Campo lexical e campo semântico . . . . . . . . . . . . . . . . . . 386
Monossemia e polissemia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 386
Denotação e conotação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 387
Relações semânticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 387
Processos irregulares de formação de palavras . . . . . . . . . . . 388

SEMÂNTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 390
Modalidade e valor modal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 390
Valor aspetual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 392
DISCURSO, PRAGMÁTICA E LINGUÍSTICA TEXTUAL . . . . . . . . . . 394
Dêixis pessoal, temporal e espacial . . . . . . . . . . . . . . . . . 394

ATOS ILOCUTÓRIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 396


Marcadores discursivos/conectores . . . . . . . . . . . . . . . . . 397
Reprodução do discurso no discurso . . . . . . . . . . . . . . . . . 398
Texto e textualidade − coerência e coesão textual . . . . . . . . . 401
Sequências textuais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 403

III – MODOS LITERÁRIOS

TEXTO POÉTICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 406

TEXTO DRAMÁTICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 407

TEXTO NARRATIVO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 407


Modos de expressão da narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 408
Elementos da narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 408
Tempo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 408
Espaço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409
Ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409
Personagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409
Narrador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 410
Narratória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 410

IV – GÉNEROS TEXTUAIS – DOMÍNIOS E MARCAS . . . . . . . . . . 411

V – RECURSOS EXPRESSIVOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413

VI – VERBOS INSTRUCIONAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 415

VII – FICHA DE LEITURA / APRECIAÇÃO CRÍTICA DA OBRA . . . . . 416


I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

ESQUEMAS-SÍNTESE

A visão crítica

Poesia trovadoresca Gil Vicente


Cantigas de escárnio Farsa de Inês Pereira
e maldizer
Crítica ao desconcerto
Críticas a comportamentos moral da época
observados na sociedade

Conteúdos: JOSÉ SARAMAGO Conteúdos:


• dimensão satírica: a paródia Memorial do convento • representação do quotidiano
do amor cortês e a crítica Conteúdos: • dimensão satírica
de costumes • visão crítica e dimensão simbólica − • dimensão religiosa
o absolutismo
• megalomania de D. João V
• exploração e miséria do povo
+
O ano da morte de Ricardo Reis
Crítica ao regime salazarista, às políticas
Padre António Vieira e condições sociais vigentes no século XX
em vários países da Europa
“Sermão de Santo António”
Conteúdos:
• representações do século XX Camões
Crítica social: louvores e • tempo histórico e acontecimentos
repreensões aos homens políticos em Portugal e na Europa Poesia lírica e poesia épica

Crítica à injustiça e aos tiranos, aos


que se acomodam na ociosidade
Conteúdos:
• objetivos da eloquência:
docere, delectare, movere Conteúdos:
• intenção persuasiva • tema do desconcerto
e exemplaridade • tema da mudança
• crítica social e alegoria • reflexões do poeta
• linguagem, estilo e estrutura

332
As sombras da tragédia e as contradições do “eu”

Antero de Quental
Almeida Garrett
Sonetos completos
Frei Luís de Sousa
D. Madalena Temática do amor Poeta filosófico
de Vilhena puro, ofendido
pelas conveniências Profunda inquietude Dimensão
(episódio de Inês sociais e políticas metafísica
de Castro) ou religiosa
Vertente de tragédia
A importância de D. Sebastião Regresso
e de D. João de Portugal ao passado
Fase sombria Desejo de Entendimento
O conflito interior de Telmo e desesperada e de Luz
A heroicidade e o patriotismo
de Manuel de Sousa Coutinho Fase mais aberta
à esperança
A força e resistência
dos portugueses Impotência do sujeito
para conhecer e para agir
Conteúdos:
• dimensão patriótica e a sua expressão simbólica Suicídio
• Sebastianismo: História e ficção Conteúdos:
• recorte das personagens principais • angústia existencial
• dimensão trágica • configurações do Ideal

FERNANDO PESSOA Camões


O fingimento artístico Poesia lírica e poesia épica
As dicotomias
A heteronímia: o drama em gente A complexidade Inês de Castro
interior do “eu” D. Sebastião
M.ª JUDITE DE CARVALHO
As três idades da vida O valor dos heróis
O diálogo entre realidade, memória
e ficção Conteúdos:
As metamorfoses da figura feminina • reflexão sobre a vida pessoal
A complexidade da natureza humana • matéria épica: feitos históricos
• mitificação do herói

333
A Natureza

Almeida Garrett
Viagens na minha terra

Percursos Ação centrada na Pátria Poesia trovadoresca


− físicos − Portugal em crise Cantigas de amigo
− emocionais − abandono do património
Relação da donzela
Dimensão coletiva de algumas personagens com a Natureza
− ílhavos
coragem Conteúdos:
− campinos
• relação com a Natureza
Importância da Natureza
− descrição do vale de Santarém Valores de pureza

Sociedade moderna
− relação com Joaninha

Carlos
Conteúdos:
• deambulação geográfica e sentimento nacional
• representação da Natureza
• dimensão reflexiva e crítica Camões
• personagens românticas (narrador, Carlos Joaninha)
Rimas

Angustiosa reflexão sobre


a Natureza e os efeitos do amor
ALBERTO CAEIRO
Poeta bucólico
Primado das sensações Conteúdos:
• tema do desconcerto
RICARDO REIS • tema da mudança
Fruição estética da Natureza • reflexão sobre a vida pessoal

334
I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

Ficção com aparência de verdade

Camilo Castelo Branco


Amor de perdição

Ficção Verosimilhança
Fernão Lopes
Livros de antigos
assentamentos da cadeia Crónica de D. João I
da Relação do Porto

A preocupação com a verdade


Prisão e degredo
dos factos
de Simão Botelho

Relação de Simão e Teresa Fontes orais e escritas

Tema dos amores contrariados

(Inês de Castro / D. Pedro)


Conteúdos:
• sugestão biográfica (Simão e narrador) e construção do herói romântico
• obra como crónica da mudança social
• relações entre personagens
• amor-paixão
Camões
Os Lusíadas
JOSÉ SARAMAGO
Memorial do convento A preocupação com Inês de Castro
a verdade histórica (amores contrariados)

A verdade histórica: Bartolomeu de Gusmão,


D. João V e D. Maria Ana Josefa Conteúdos:
• matéria épica: feitos históricos
O ano da morte de Ricardo Reis

As personagens

335
Meditação sobre Portugal

Eça de Queirós Camões


Os Maias Os Lusíadas

Denúncia de valores morais


Pendor satírico Fatalidade de e culturais
− crítica à sociedade portuguesa várias gerações
de uma família

caricatura e ironia
Conteúdos:
− denúncia de um Portugal entorpecido • reflexões do poeta
− caricatura da classe dirigente,
incapaz de se regenerar a si
própria e de conduzir
o país relação com Almeida Garrett
Camões JOSÉ SARAMAGO
Frei Luís de Sousa
O ano da morte de Ricardo Reis
Conteúdos:
• representação de espaços Patriotismo de Manuel
sociais e a crítica de Representações do século XX em Portugal: de Sousa Coutinho
costumes a ditadura salazarista, a censura, a PVDE… e ideais/convicções
• espaços e seu valor Memorial do convento
de Telmo Pais
simbólico e emotivo
• descrição do real e o papel Conteúdos:
das sensações Despotismo e megalomania de D. João V;
a exploração do povo • sebastianismo
• representações do e patriotismo (perda
sentimento e da paixão
MANUEL ALEGRE da independência
• características trágicas e domínio filipino)
dos protagonistas O poeta “engagé”

Gil Vicente Padre António Vieira


Farsa de Inês Pereira “Sermão de Santo António”

Visão satírica Visão crítica

Conteúdos: Conteúdos:
• dimensão satírica • crítica social

336
I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

Realidade e transformação

Cesário Verde Eça de Queirós


Cânticos do Realismo Os Maias
Literatura visualizante
Pormenores Investimento
das descrições simbólico
Poeta de rutura − poesia feita a partir
do olhar
− abundância de imagens Ruas de Lisboa Ramalhete
− transformação do real

Conteúdos:
Conteúdos: • espaços e seu valor
• representação da cidade e dos tipos sociais simbólico e emotivo
• deambulação e imaginação: o observador • descrição do real e
acidental papel das sensações
• perceção sensorial e transfiguração poética
do real
• imaginário épico (em “O sentimento dum
ocidental”)

Fernão Lopes
Crónica de D. João I
JOSÉ SARAMAGO
A vivacidade do discurso
O ano da morte de Ricardo Reis
na representação da realidade

Deambulação
A representação da cidade
A viagem geográfica e literária

MANUEL DA FONSECA
A representação do Alentejo

337
INTERTEXTUALIDADE por Carla Marques

A variedade do sentimento amoroso

O amor é um tema presente de forma transversal em toda a literatura portuguesa produzida ao


longo dos séculos. Tratado nas suas mais diversas vertentes, permite ao leitor não só contactar
com a vivência do sentimento de um ponto de vista social mas também com a reflexão em torno da
sua dimensão individual. Trata-se de um tema que alberga uma diversidade de manifestações que
permite olhares diversos que tanto identificam pontos de continuidade como aspetos contrastivos.

Poesia trovadoresca – cantigas de amigo e cantigas de amor


Na poesia trovadoresca, o amor é um tema dominante que se explora sob diferentes óticas:
• o amor popular/burguês (a simplicidade amorosa): presente nas cantigas de amigo, é um
sentimento amoroso expresso por uma jovem apaixonada e que se associa a manifestações
de alegria, tristeza, preocupação, saudade ou ira, em função da situação amorosa vivida com
o amigo; os sentimentos apresentados são, aparentemente, mais espontâneos e realistas do
que os encontrados nas cantigas de amor;
• o amor cortês: sentimento amoroso do trovador por uma mulher, normalmente casada,
de uma classe social superior, or, a quem este deve prestar homenagem; trata-se de um
sentimento idealizado e
marcado pelo sofrimento
amoroso (“coita de amor”)
dada a indiferença ou a não
correspondência amorosa
da “senhor”; segue um
conjunto de regras codifi-
cadas, como a vassalagem
amorosa, pelo que o sen-
timento é mais convencio-
nal do que o presente nas
cantigas de amigo.

Rimas, de Luís de Camões


O amor é um tema maior na lírica camoniana. O poeta reflete sobre as experiências amorosas
e sobre a própria essência do sentimento amoroso, relacionando-o com a mulher amada, seja
esta real ou imaginada, e considerando-o um bem superior. No âmbito deste tema, destacam-
-se os seguintes aspetos:
• o amor neoplatónico: sentimento idealizado que o poeta experimenta por uma mulher ideal,
inatingível, que pode existir apenas na imaginação do poeta ou que, sendo real, é um reflexo
terreno da beleza divina; o amor eleva o espírito do poeta, permitindo-lhe o acesso ao Bem e
à realidade extraterrena e está cristalizado na mulher amada;
• as contradições do amor: o poeta vive a divisão entre o amor físico, feito de sentidos, e o
metafísico, feito de espírito; o amor é visto como sentimento capaz de provocar as maiores
felicidades mas também sofrimento e dor incalculáveis.

338
I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco


Construída sob o signo do sentimento amoroso, a obra ilustra o confronto entre os direitos do
coração e as convenções sociais da época, abordando perspetivas diferentes do amor:
• o amor-paixão: o amor é apresentado como um destino que define a vida e a morte e é as-
sociado a Teresa, Simão e Mariana; os enamorados experimentam-no de forma desenfrea-
Sécs. da, profunda e incondicional e, na impossibilidade de o realizarem, lutam por ele, resistindo
XIII-XIV
a todo o tipo de obstáculos; o sentimento amoroso traz consigo sofrimento e infelicidade;
a força do amor permite a remissão até dos erros do passado, conseguindo transformar
aqueles que amam; incapaz de vencer os obstáculos que se lhe colocam, o amor é vencido
pela desgraça e leva os amantes à destruição, à morte;
• o amor-renúncia: amor que leva a personagem (Mariana) a renunciar à própria felicidade em
nome da felicidade alheia, indo esta ao ponto de abdicar da própria vida, passando a viver
exclusivamente para o outro.

Os Maias, de Eça de Queirós


Séc. Um dos temas presentes n’Os Maias é o amor, sentimento que é perspetivado, por um lado, na
XVI ótica da caracterização da alta sociedade lisboeta do séc. XIX e, por outro, como um elemento
trágico. Estes aspetos podem ser observados em alguns dos tópicos associados ao tratamento
deste sentimento na obra:
• o amor adúltero: em estreita relação com a crónica de costumes, mas também presente nas
intrigas principal e secundária, o adultério está representado por diferentes personagens e
consiste na prática da infidelidade conjugal; na obra, aparece associado sobretudo às mulhe-
res casadas da alta sociedade lisboeta que, assim, colocam em causa as convenções sociais;
• o amor-paixão: sentimento avassalador, que leva as personagens a desafiar a sociedade e as
suas convenções;
• o amor incestuoso: sentimento de características altamente excecionais na obra, surge ligado
aos dois irmãos e terá consequências trágicas para ambos; inicialmente, trata-se de um inces-
to inconsciente que resultou do facto de o Destino ter aproximado as duas personagens, mas,
Séc. depois de Carlos ter tido conhecimento da verdade por Ega, evolui para um incesto consciente
XIX
(por parte de Carlos).

O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago


O tema do amor surge, na obra, a partir das relações entre Ricardo Reis e Lídia, por um lado,
e Reis e Marcenda, por outro. A forma como estas relações são encaradas mostra duas ver-
tentes do amor na obra:
• o amor físico: ilustrado pela relação entre Reis e Lídia, trata-se de sentimento concreto, liga-
do exclusivamente ao prazer físico, momentâneo e efémero, desligado, portanto, de qualquer
ligação sentimental; na obra evidencia-se que a ligação do amor físico ao amor emocional só
Séc. seria possível se as personagens pertencessem à mesma classe social;
XX • o amor contemplativo: sentimento presente na relação entre Reis e Marcenda, que consiste
na incapacidade revelada por ambos de concretizarem o sentimento levemente correspondi-
do que nutrem um pelo outro.
• Em Memorial do convento, sobressaem dois tipos de relações amorosas: uma de caráter for-
mal e protocolar, sem amor nem intimidade – a de D. João V e D. Maria Ana Josefa –, e outra
que traduz o amor em plenitude entre dois seres que se complementam e cujo sentimento
assume contornos de eternidade.

339
Representações do quotidiano

O facto de o texto literário, em algumas situações, assumir a realidade extraliterária como pano de
fundo da ficção apresentada permite ao leitor ter acesso a aspetos do quotidiano de diferentes épo-
cas e contextos, assumindo-se a obra como um documento histórico que oferece acesso a realidades
que, por vezes, se encontram escassamente documentadas. Assim, a análise dos textos possibilita,
não raro, a consciência de realidades socioculturais específicas e inclusive a sua evolução através
dos tempos.

Poesia trovadoresca: cantigas de amigo


Embora convencionais, estas cantigas permitem o contacto com realidades do quotidiano me-
dieval galego-português, associadas a ambientes domésticos e naturais, tais como:
• o núcleo familiar: constituído essencialmente por mulheres: a mãe é responsável pela família
(porque o marido está ausente), desempenhando um papel de vigilante e conselheira da filha;
• atividades femininas quotidianas: entre as atividades desenvolvidas pela mulher na socieda-
de medieval estão as tarefas domésticas como o fiar; as danças, em ambiente religioso ou
profano; o ato de ir buscar água ao rio ou à fonte ou de aí ir lavar o cabelo, camisas ou tomar
banho;
• a religiosidade: espelhada nas referências a romarias a ermidas de pequenas localidades que
estariam próximas do local de habitação das jovens; as romarias associavam-se a festivida-
des que eram o espaço propício ao convívio e, logo, ao encontro amoroso ou à descoberta do
amor;
• a guerra: o homem era obrigado a partir ao serviço do rei ou do senhor em campanhas mi-
litares de defesa territorial, o que deixava a mãe sozinha com os filhos a cargo e levava à
separação dos apaixonados.

Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente


A Farsa ilustra um universo essencialmente rural, característico dos finais da Idade Média em
Portugal, denotando aspetos da vivência quotidiana:
• a condição de mulher: a casa era o espaço (de onde ela saía apenas para ir à missa, por exemplo)
da rotina da mulher, que passava por tarefas como coser ou bordar ou associadas à maternidade;
em sociedade, o comportamento da mulher deveria ser discreto e reservado (ousadias de qual-
quer natureza eram próprias de mulheres de moral duvidosa) e manifestar submissão e depen-
dência da figura masculina;
• a conceção de casamento: concebido como um negócio entre famílias abastadas e/ou no-
bres e também entre outras classes sociais, sendo habitual o recurso a casamenteiros(as);
a jovem que casava normalmente levava um dote (bens ou dinheiro) que seria entregue ao
futuro marido;
• figuras da sociedade: evidenciadas na Farsa por meio de tipos sociais: a alcoviteira, mediado-
ra de casamentos ou de encontros amorosos, que envolviam, não raro, elementos do clero;
o fidalgo menor, figura com dificuldades económicas que procurava adquirir algum prestígio
social através das aparências enganadoras ou por meio do envolvimento na guerra; os judeus,
classe associada ao materialismo e às atividades lucrativas; os elementos do clero, classe
associada a práticas e a comportamentos amorais.

340
I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco


Em Amor de perdição, encontramos diversas situações que permitem conhecer alguns aspetos
do quotidiano da sociedade burguesa oitocentista:
• a questão patrimonial: as famílias mais abastadas pretendiam manter o seu estatuto ou,
então, buscavam o prestígio e a ascensão social; apenas o filho mais velho, o morgado, tinha
Sécs. direito à herança do património e títulos familiares, tendo os restantes de optar pela vida re-
XIII-XIV ligiosa ou militar (no caso dos homens) ou por fazer um bom casamento;
• a conceção do casamento: era combinado entre famílias e, normalmente, tinha lugar entre
membros da mesma classe social;
• a condição da mulher: encarada como um ser dependente da vontade do pai e, mais tarde, da
do marido; ao longo da sua vida, era preparada para o casamento, sendo o seu pretendente
escolhido pelo pai, que detinha o poder exclusivo para decidir sobre o rumo da vida da filha;
• o atraso da vida rural portuguesa: no início da obra, revela-se um contraste acentuado entre
a qualidade de vida na cidade e, em particular, nos espaços mais nobres e o atraso caracte-
rístico da vida no campo/vila;
• a imoralidade dos membros do clero: casos de padres e de freiras que abusavam do álcool,
que não respeitavam os votos de celibato; diversas situações relacionadas com a vida nos
Sécs. conventos mostram que a vida aí estava distante da pureza ou da paz.
XV-XVI

Poesia de Cesário Verde


Na poesia de Cesário Verde estão presentes temas que ilustram o quotidiano dos finais do séc.
XIX, relacionados com questões de ordem social e com os espaços físicos que o poeta frequenta:
• as diferentes classes trabalhadoras, consideradas pelo poeta socialmente oprimidas, ilus-
tram o desenvolvimento do proletariado urbano e as profissões típicas associadas à pesca ou
à agricultura e realçam o valor do trabalho;
• os contrastes citadinos: o poeta observa a cidade de Lisboa e realça os contrastes entre os novos
bairros burgueses, com as suas casas luxuosas e as ruas macadamizadas, e os bairros populares,
com as ruas de terra batida e sem iluminação ou água canalizada, plenas de imundice; o desen-
volvimento da cidade fica patente na referência à construção de prédios ou à iluminação a gás;
Séc.
XIX • a doença: na cidade, a tuberculose marcava uma presença assustadora, sobretudo nos bair-
ros onde a higiene escasseava, o que levava aqueles que tinham posses a refugiarem-se no
campo, espaço saudável, capaz de restabelecer os doentes.

“Sempre é uma companhia”, de Manuel da Fonseca


O conto ilustra a realidade de uma pequena aldeia perdida no Alentejo, na altura da II Guerra
Mundial, evidenciando alguns aspetos da vida desta sociedade rural:
• o isolamento do meio rural: sem meios de transporte rápidos, os habitantes vivem “presos” no
espaço físico da sua terra; este isolamento alastra-se à própria relação entre as pessoas;
• o atraso das aldeias portuguesas: verifica-se um atraso significativo face à vida citadina, com
Séc. evidentes reflexos na vida dos aldeões;
XX • o trabalho rural: nas aldeias alentejanas, sobretudo nas mais isoladas, a vida centrava-se na
agricultura ou na pastorícia, o que constituía um trabalho duro e penoso;
• o pequeno comércio: misto de mercearia e café, a venda era o local onde se podiam adquirir
os bens de primeira necessidade; era também o espaço de convívio da população;
• o álcool e a violência conjugal: o conto traz à luz a situação da violência conjugal associada
ao consumo excessivo de álcool;
• o suicídio: a realidade do suicídio é associada a este universo rural e isolado.

341
Matéria épica

O género épico visa enaltecer os feitos grandiosos de um herói individual ou coletivo, imortalizando-
-o. O herói e a sua ação grandiosa constituem componentes essenciais da matéria épica dos textos
clássicos. O herói é marcado por traços distintivos como a coragem, a ousadia e a capacidade de su-
peração de obstáculos diversos e das limitações da sua própria condição. Sendo um género maior da
Antiguidade Clássica, a epopeia foi recuperada na época do Renascimento por autores como Camões.
Ao longo dos tempos e até à atualidade, é possível assinalar obras onde o épico tem a sua presença,
embora a matéria épica tenha sofrido alterações.

Os Lusíadas, de Luís de Camões


Na Proposição, o poeta define a matéria épica a ser cantada com o objetivo de imortalizar os feitos
gloriosos (reais e não imaginados) do herói coletivo, o povo português:
• a viagem de Vasco da Gama e dos seus marinheiros à Índia: constitui o assunto central da
obra, sendo destacadas a coragem dos marinheiros e a sua superioridade moral;
• os heróis da História de Portugal: relatam-se os feitos de diferentes heróis que, ao serviço da fé
e da pátria, se lançaram à aventura e desafiaram forças superiores;
• os homens cujos feitos os libertam do esquecimento: indivíduos que, pelos feitos extraordi-
nários praticados, ficaram na memória dos homens, libertando-se da “lei da morte”(esque-
cimento).
Embora o tom do poema seja o de louvor das ações grandiosas do povo, o poeta não deixa de
perspetivar o presente como um tempo de “austera, apagada e vil tristeza”, que caberá a D. Se-
bastião procurar redimir (na luta contra os infiéis do Norte de África), constituindo nova matéria
épica, digna de um novo poema.

“O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde


Escrito em homenagem a Luís de Camões por ocasião da celebração do tricentenário da sua mor-
te, este poema estabelece uma relação intertextual com Os Lusíadas contrapondo o imaginário
épico (a realidade desejada) com a realidade efetiva (o real antiépico). Alguns momentos do poe-
ma subvertem a memória épica e servem de contraponto à enclausurante realidade citadina e ao
presente decadente do poeta:
• a viagem marítima: o tema, característico da epopeia, é recuperado através da evocação das
“soberbas naus”, mas o poeta conclui que a glória associada a esta empresa não tem lugar no
presente, onde o único barco que se vislumbra é o “couraçado inglês” que significa a humilha-
ção nacional manifestada na nossa submissão ao poder e esplendor estrangeiros;
• os heróis: o poeta evoca os heróis do passado que gostaria de ver ressuscitados, o que sig-
nifica que no presente não existem homens gloriosos; os filhos das varinas, ao contrário dos
seus antepassados, limitar-se-ão a ser marinheiros que naufragarão sem glória;
• o poeta épico: Camões, poeta épico que cantou os feitos grandiosos do povo português, é
agora um “épico doutrora”, convertido numa estátua esquecida numa praça sem honra.

Porque o presente é o tempo da agonia do império passado, o poeta ousa sonhar com uma
futura glória portuguesa, que constituiria uma possível futura matéria épica:
• a viagem marítima: o poeta sonha com a grandeza de novas descobertas, mas rapidamente
conclui que a grandeza do passado está perdida porque os cidadãos estão presos dentro da
cidade de Lisboa.

342
I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

Mensagem, de Fernando Pessoa


Poema épico dos tempos modernos, Mensagem assume traços líricos e épicos. No que res-
peita ao cariz épico, o poema não convoca uma matéria épica similar à que encontrámos
n’Os Lusíadas, pois aqui conjuga-se uma dimensão real que mobiliza factos do passado histó-
rico de Portugal, desde a sua formação até à empresa dos Descobrimentos e à decadência do
Império, com uma dimensão mítica que aponta para um futuro não realizado historicamente.
Adotando como marca épica um tom marcadamente messiânico, o poeta profetiza a libertação
da pátria de um Império passado, que se “desfez” no sentido de encontrar um novo heroísmo,
Séc. combinado com elementos espirituais, místicos e patriotas, que possa constituir o caminho
XVI
para o advento do Quinto Império, um império espiritual que, segundo o poeta, constitui o des-
tino de Portugal. Assim, a matéria épica, não visando o elogio dos feitos históricos passados
e não sendo constituída por elementos concretos ou factuais, é antes reinterpretada
p e
apresentada por meio de imagens simbólicas. O imaginário épico de Mensagem
ensagem fica
patente em componentes como:
• a estrutura da obra: dividida em três partes, suscetíveis de interpretação
ação
simbólica que marca uma ascensão espiritual da pátria: Parte I, nasci-
mento da pátria, através da sua fundação como nação; Parte II, a vida,
através da incursão marítima; Parte III, a morte e o renascimento,
através do novo ciclo constituído pelo Quinto Império;
• os heróis: correspondem a um conjunto de figuras da História de
Portugal, que contribuíram para a glória do império passado, e a um
conjunto de figuras míticas, ligadas à consolidação da pátria; sendo
simbólicos na obra, os heróis são figuras individuais e a sua ação,
ligada a um domínio épico espiritual, não se associa ao relato de feitoss
Séc. passados, pois é vista como estando ao serviço de uma força superior rior
XIX (que os próprios heróis desconhecem); D. Sebastião, elevado à condição dição
de mito, é apresentado como enviado de Deus para conduzir Portugal ao seu
destino, o Quinto Império;
• a exaltação nacional: não se encontra ligada ao poder material, nem m às con-
quistas territoriais ou marítimas, pois o império terminou, tendo deixado
xado o país
mergulhado na decadência; por esta razão, o poeta busca ser a voz da consciência
nacional e, fundando-se num imaginário épico de natureza metafísica, ca, aponta para
um Portugal cuja glória seja reabilitada não através da ação, como sugeria Camões no final
d’Os Lusíadas, mas através do poder do sonho.

“Ode triunfal”, de Álvaro de Campos


A segunda fase de Álvaro de Campos, momento futurista e sensacionista, exprime a vitalidade
da arte poética do heterónimo. É neste período também que Campos integra o imaginário épico
na sua poesia. O poema “Ode triunfal” ilustra com particular acuidade a associação do épico ao
Séc. moderno por meio de dois traços particulares:
XX • a ação épica: no poema, a máquina, símbolo maior da modernidade, é louvada como se de um
verdadeiro herói da modernidade se tratasse; dada a vitalidade, força e beleza da máquina,
o poeta sente a necessidade de igualar o seu canto à genialidade dos maquinismos e gostaria
mesmo de se poder igualar ele próprio a eles;
• a exaltação épica: através de recursos expressivos como a anáfora, a interjeição, a exclamação,
a onomatopeia, a enumeração ou a apóstrofe, o poeta verbaliza e glorifica de forma viva, inten-
sa e quase violenta a sociedade contemporânea, o desenvolvimento tecnológico patente nas
máquinas e as consequências de toda esta modernidade no “eu”.

343
Crítica

Na literatura, observa-se, frequentemente, um diálogo entre o texto, a sociedade e a cultura da épo-


ca de produção da obra, que permite expor situações ou comportamentos considerados negativos.
A crítica social evidencia a estreita relação entre o texto literário e as suas intenções, por um lado,
e a época de criação (ou a época recriada) e o contexto social, político, moral e cultural, mobilizado
direta ou indiretamente pela obra, por outro.
De uma forma global, a abordagem crítica da realidade numa dada obra/texto visa não só a denúncia
como também a mudança social – procura-se, muitas vezes, corrigir a ação da sociedade, pelo que
a obra se investe de uma função pedagógica e edificante.

Poesia trovadoresca: cantigas de escárnio e maldizer


Estas composições abordam satiricamente uma grande variedade de temas e de situações
individuais e coletivas, refletindo sobretudo a vida quotidiana da corte e o seu ambiente social,
político, moral e cultural. Entre elas, encontramos a crítica a aspetos como:
• o amor cortês: a paródia das cantigas de amor denuncia a convencionalidade dos sentimentos
e os traços estereotipados da “senhor”;
• os costumes: sátira de aspetos relacionados com a realidade social da época: decadência da
nobreza, conflitos entre o jogral e o trovador;
• factos políticos e militares ou aspetos relacionados com a moralidade ou com agentes reli-
giosos (frades, freiras…), entre muitos outros temas.

Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente


Tendo como pano de fundo a sociedade do séc. XVI, a crítica assenta sobretudo em persona-
gens-tipo que representam classes sociais, profissionais ou mesmo mentalidades. Expõem-se,
com um intuito satírico, diferentes temas que colocam em evidência uma certa crise de valores
característica da época:
• o desejo de ascensão social e sátira à conceção do casamento como forma de emancipação:
Inês Pereira, uma moça solteira e sonhadora, ambiciona um casamento que lhe assegure a
ascensão social e o contacto com um ambiente de cultura cortês;
• a pelintrice disfarçada de fidalguia (ser vs. parecer): o Escudeiro, representante de uma peque-
na nobreza decadente que não pretende abdicar de uma determinada aparência social, exibe
um discurso galante, por entre mentiras que dissimulam a sua condição social miserável;
• o materialismo: a denúncia da valorização excessiva do dinheiro é associada aos casamen-
teiros, a alcoviteira Lianor Vaz e os judeus, que encaram o casamento como uma encomenda
que implicará uma compensação material em troca dos seus serviços, que não serão neces-
sariamente honestos;
• a subversão dos valores morais: as situações associadas aos membros do clero na Farsa
evidenciam a dissolução de costumes e a imoralidade clerical.

Os Lusíadas, de Luís de Camões


No plano das reflexões do poeta surgem considerações didáticas e críticas e a voz do poeta er-
gue-se para denunciar e apontar vícios e desvios que afastam a pátria e os portugueses do ca-
minho da glória, deixando críticas e conselhos aos seus contemporâneos, com destaque para:
• o desprezo pela cultura e pela literatura;
• a corrupção pelo dinheiro: as suas consequências negativas ficam evidentes em atitudes de
tirania, de traição ou de mentira e implicam todas as classes sociais, inclusive o próprio clero.

344
I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

"Sermão de Santo António", de Padre António Vieira


Produzido no séc. XVII, numa época de instabilidade política e económica, na qual o problema
dos direitos dos índios do Brasil, explorados pelos colonos brancos, se colocava com grande
acutilância, o sermão de Vieira visa todos os estratos da sociedade, denunciando, por meio
de uma elaborada alegoria, vícios humanos ligados à corrupção e à exploração. Não perden-
do de vista os objetivos da eloquência, a crítica consubstancia-se no docere, pelo seu cariz
Sécs.
moralizador, e no movere, pela exortação à mudança que a denúncia implica. A crítica social
XIII-XIV
processa-se por meio da exploração das características de espécies de peixes particulares que
funcionam como alegoria de determinadas formas de agir em sociedade, associadas a diferen-
tes tipos de colonos. Colocam-se em evidência os seguintes vícios:
• a ictiofagia: exploração dos pequenos pelos poderosos, em diferentes planos sociais;
• a arrogância e a prepotência: vícios associados ao peixe roncador, que ilustra o tipo humano
que procura um poder e um saber que, na realidade, não possui;
• o parasitismo social e o oportunismo: vícios explicitados pelo peixe pegador, que caracteriza
aqueles que vivem à custa da exploração de outros, associando-se a (dependendo) quem tem
mais poder;
• a ambição e a vaidade: vício ilustrado pelo peixe voador, que representa o tipo de homem que
deseja ter mais do que aquilo que lhe é característico, ambicionando sempre ser melhor do
Séc. que os outros;
XVI
• a traição: vício representado pelo polvo, que surge associado também a defeitos como a
dissimulação ou a hipocrisia, que se manifestam nas relações com o outro e que servem os
seus intuitos destruidores.

Os Maias, de Eça de Queirós


O subtítulo da obra, Episódios da vida romântica, agrega um conjunto de episódios que denun-
ciam a decadência da sociedade lisboeta da segunda metade do séc. XIX. Por meio da ironia, o
narrador apresenta tipos sociais, representativos da vida política, social e cultural, que ilustram
determinadas mentalidades, conceções políticas e costumes que importa criticar:
• a literatura: criticam-se os vícios e as consequências dos excessos líricos do Ultrarroman-
Séc.
tismo (representado por Tomás de Alencar), responsáveis pela deformação do caráter, mas
XVII
também se rejeita o Naturalismo quando associado ao excesso de cientificismo na literatura
(João da Ega, no jantar do Hotel Central, como defensor do Naturalismo);
• as finanças: denuncia-se a débil situação financeira do país, que vive de empréstimos do
estrangeiro;
• o provincianismo da capital: diversos episódios expõem o cosmopolitismo postiço da socie-
dade portuguesa, que pretende imitar o “chic” do estrangeiro,
strangeiro, e a sua falta de
civismo (cf. o episódio da corrida de cavalos);
• a imprensa: o baixo nível e a parcialidade caracterizamam um jornalismo incom
incom-
m-
petente e corrupto (ver episódios do jornal A Tarde e da Corneta do Diabo);
• a ignorância e a mediocridade da classe dirigente: em m diversos episódios,
é possível constatar a superficialidade das conversas,, a incapacida-
Séc. de de diálogo, a falta de cultura, o passadismo e a incapacidade
apacidade de
XIX
análise e reflexão;
• a educação tradicional como deformadora de carateres, ateres, as
consequências negativas deste modelo educativo são o eviden-
ciadas por meio de personagens representativas de uma
forma de pensar, de estar e de agir tanto em sociedade dade
como individualmente.

345
Poesia de Manuel Alegre
O poeta assume na sua poesia (sobretudo na produção anterior ao 25 de Abril) o perfil do poe-
ta militante, interventivo, que tem como função primordial a denúncia de situações de cariz
político-social que configuram a realidade de um país que importa expor e mudar. A poesia é
vista como uma forma de intervenção social através da denúncia e do protesto expressos pelo
recurso à simbologia das palavras. Os principais temas abordados resultam do contexto histó-
rico-político do Estado Novo que o poeta recusa e contra o qual se insurge por meio da palavra
poética:
• poder totalitário e opressivo
• Guerra Colonial e suas consequências
• falta de liberdade Séc.
• ação da PIDE XX
• censura

O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago


Centrando a ação do romance entre 1935-36, o narrador procede a um regresso ao passado
histórico mesclado com acontecimentos ficcionais, o que constitui uma estratégia que permite
repensar criticamente a visão oficial da História do início do século XX, enfatizando a voz dos
excluídos, dos silenciados.
É através da ironia que se procede à denúncia e à desconstrução de diferentes domínios de
ação do Estado Novo em Portugal e dos regimes ditatoriais um pouco por toda a Europa, sendo
de destacar aspetos como:
• a ação repressiva do Estado: aspeto denunciado em diversas dimensões que emanam de
uma vigilância estrita de todos os segmentos da sociedade por parte dos agentes do Estado
e levada a cabo por meio:
− da manipulação da imprensa, que surge como um veículo fundamental de divulgação do
sistema de valores do poder instituído; por diversas ocasiões, o narrador denuncia a vi-
são comprometida dos factos históricos e o discurso populista por parte dos jornais, que
não se apresentam como um intermediário neutro, mas moldado por razões ideológicas;
− da ação da censura;
− do controlo da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE);
− do aniquilamento de qualquer voz ou ação contrária ao poder;
• a situação política da Europa: são perspetivados criticamente os acontecimentos políticos e
militares ocorridos na época, que anunciam quer a ascensão das ditaduras quer a II Guerra Mun-
dial; entre eles destacam-se a Guerra Civil espanhola, a Frente Popular francesa, a expansão
nazi na Alemanha, a ascensão de Mussolini na Itália e a guerra da Etiópia.
• a ação é centrada no século XVIII, aquando da edificação do convento de Mafra:
− a exploração do povo;
− a pobreza, que contrasta com a megalomania real.

346
I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

COMO LER/ANALISAR

Texto poético

Para exemplificar
Atente nas etapas a considerar para proceder à análise de um texto poético.

1 Ler globalmente o texto e as questões que o acompanham.

2 Reler o texto e destacar elementos-chave, como se exemplifica:

Ao longe, ao luar, • referentes temporal e espacial


No rio uma vela, • caracterização do elemento presente no novo espaço
Serena a passar,
Que é que me revela? • indicadores da pessoa gramatical (1.a), reforçados pela interrogação,
sugerindo dúvida
5 Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho, • adjetivo que caracteriza o enunciador
E eu sonho sem ver • expressão que sugere a imaterialidade do sonho
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça? • nomes com carga semântica oposta, mas relativos ao sentimento
10 Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.
[dezembro de 1924]
Fernando Pessoa, Poesias (nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor),
Lisboa, Ática, 15.ª ed., 1995, p. 105 (disponível em http://arquivopessoa.net/textos/2420).

3 Tirar conclusões relativamente ao tema e à forma como se desenvolve, nomeadamente:


– tom disfórico, revelador da angústia existencial de um “eu” que se desconhece e que se vê impossi-
bilitado de concretizar os seus sonhos, dado que a noite permanece.

4 Reler atentamente as questões que se colocam sobre o texto e interpretar os verbos de coman-
do. Atente nos exemplos:

4.1 Descreva o estado de espírito do sujeito poético.


A questão implica dizer que o “eu” se encontra num estado de letargia, despertado pelo tempo
envolvente, mas também numa situação de reflexão, visível nas interrogações. Para além disto,
percebe-se a confusão em que se encontra, quando afirma que o seu ser se tornou estranho,
desconhecendo-se a si próprio.

4.2 Interprete a estranheza do sujeito poético em relação a si próprio, considerando a questão


heteronímica.
O enunciado exige que se considere, em primeiro lugar, as afirmações aí presentes: “estranheza
do sujeito poético em relação a si próprio” e “questão heteronímica”. Só depois se deverá inter-
pretar, como solicitado, apresentando uma resposta que aborde:
A diversidade de “eus” que o autor do texto criou (os heterónimos) levou-o a desconhecer-se
a si próprio, afirmando, frequentemente, não saber quem é. Esta pode ser a explicação para
a estranheza que diz sentir em relação ao seu “eu”.

347
4.3 Explique a afirmação “E eu sonho sem ver / Os sonhos que tenho.” (vv. 7-8)
A pergunta requer que se desmonte a afirmação:
“Sonhar sem ver” os sonhos é perfeitamente normal. Contudo, neste contexto, significa a ir-
realização desses sonhos, ou seja, a incapacidade de os concretizar. Os sonhos podem não se
ver enquanto idealizados, mas, quando se concretizam, surge a obra, que já pode ser vista. No
entanto, no caso do sujeito poético, os sonhos não dão origem a realizações, o que justifica o seu
estado de tristeza e de abatimento.

APLICAÇÃO

Texto poético

Leia o poema e responda às questões.

Não sei ser triste a valer

Não sei ser triste a valer


Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
5 Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma


E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
10 Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.


Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
15 Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,


Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E a ambos nos vêm calcar.

20 Está bem, enquanto não vêm


Vamos florir ou pensar.
3-4-1931

Fernando Pessoa, Poesias inéditas (1930-1935) (nota prévia de Jorge Nemésio),


Lisboa, Edições Ática, 1990, p. 41 (disponível em http://arquivopessoa.net).

1 Descreva o estado de espírito do sujeito poético.

2 Explique a comparação que se pode estabelecer entre o pensar e o florir.

3 Justifique o recurso às expressões declarativas, interrogativa e exclamativa.

348
I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

Texto em prosa

Para exemplificar
Atente nas etapas a considerar para proceder à análise de textos em prosa.

1 Ler integralmente o texto e as questões que o acompanham.

2 Reler o texto, sublinhar palavras-chave e destacar ideias principais (ver exemplo).

3 Tirar conclusões relativamente ao tema e à forma como se desenvolve.

4 Reler as questões que se colocam sobre o texto e interpretar os verbos de comando.

Carregou-se o sobrecenho de D. João V, porque a cansada lisonja em nada • Caracterização psicológica de D. João V
o aliviara, e indo abrir a boca para responder com secura, preferiu chamar • Referência temporal – data prevista
outra vez os secretários e perguntar-lhes em que data voltaria a cair a um da sagração da Basílica de Mafra,
que permite a localização da ação por
domingo o seu aniversário, passada esta de mil setecentos e trinta, pelos vis- volta de 1728.
5 tos não bastante prazo. Trabalharam eles afanosamente as suas aritméticas • “Porém” advérbio conectivo com
e com alguma dúvida responderam que o acontecimento tornaria a dar-se dez valor adversativo; introduz no dis-
anos depois, em mil setecentos e quarenta. curso uma oposição entre o modo de
pensar da corte e a do próprio mo-
Estavam ali oito ou dez pessoas, entre rei, Ludovice, Leandro, secre-
narca (não vê vantagens na data de
tários e fidalgos de semana, e todos acenaram gravemente a cabeça, 1740, pois já terá 51 anos).
10 como se o próprio Halley tivesse acabado de explicar a periodicidade • O descontentamento com a data é
dos cometas, as coisas que os homens são capazes de descobrir. Porém, sublinhado através da utilização do
D. João V teve um pensamento negro, viu-se-lhe na cara, e faz rápi- advérbio “lugubremente” e pela ora-
ção condicional, introduzida por “Se”.
das contas, mentais, com ajuda dos dedos, Em mil setecentos e quarenta
• Comparação irónica entre o sofri-
terei cinquenta e um anos, e acrescentou lugubremente, Se ainda for vivo.
mento de Cristo no Monte das Olivei-
15 E por alguns terríveis minutos tornou a subir este rei ao Monte das Olivei- ras (intertextualidade com a Bíblia)
ras, ali se agoniou com o medo da morte e o pavor do roubo que lhe seria e o calvário que foi para D. João V
feito, agora acrescentando um sentimento de inveja, imaginar seu filho já constatar a sua mortalidade.
• A possibilidade de não ser ele a inau-
rei, com a rainha nova que está para vir de Espanha, gozando ambos as de-
gurar a basílica de Mafra deixa an-
lícias de inaugurar e ver sagrar Mafra, enquanto ele estaria apodrecendo tever traços de caráter de D. João V
20 em S. Vicente de Fora, perto do infantezinho D. Pedro, morto tão peque- que o caracterizam como um rei ego-
nino da brutalidade do desmame. Estavam os circunstantes olhando o rei, cêntrico, vaidoso e megalómano, que
pretende a imortalidade através da
Ludovice com alguma curiosidade científica, Leandro de Melo indignado construção e inauguração da basílica.
contra a severidade da lei do tempo que nem as majestades respeita, os • Despotismo do rei – reitera a ideia de
secretários duvidando de terem acertado nos bissextos, os camaristas ava- que se trata de um monarca absolu-
25 liando as suas próprias probabilidades de sobrevivência. Todos esperavam. tista. A sua vontade concretizar-se-á
a qualquer custo, como provam as
E então D. João V disse, A sagração da basílica de Mafra será feita no dia vinte
expressões disjuntivas sublinhadas.
e dois de outubro de mil setecentos e trinta, tanto faz que o tempo sobre como
falte, venha sol ou venha chuva, caia a neve ou sopre o vento, nem que se
alague o mundo ou lhe dê o tranglomango.
José Saramago, Memorial do convento, 63.a ed., Porto,
Porto Editora, 2022, cap. XXI, pp. 321-323.

349
4.1 Evidencie, comprovando com elementos textuais, o despotismo do rei D. João V.
A resposta deverá mostrar, através de exemplos (evidenciar), a prepotência e o absolutismo
do rei:
• a persistência em levar avante uma decisão megalómana por capricho e vaidade:
− “em que data voltaria a cair a um domingo o seu aniversário, passada esta de mil setecentos
e trinta, pelos vistos não bastante prazo”;
− “Em mil setecentos e quarenta terei cinquenta e um anos, e acrescentou lugubremente,
Se ainda for vivo. E por alguns terríveis minutos tornou a subir este rei ao Monte das Oliveiras,
ali se agoniou com o medo da morte e o pavor do roubo que lhe seria feito”;
• a forma como se serve do seu poder para ordenar que seja feita a sua vontade:
− “A sagração da basílica de Mafra será feita no dia vinte e dois de outubro de mil setecentos
e trinta.

4.2 Explique a importância da relação intertextual estabelecida com a Bíblia na caracterização


do rei.
O enunciado solicita que se dê exemplos para provar a afirmação: importância da relação inter-
textual na caracterização do rei. Assim, a resposta deverá:
• indicar os pensamentos que assolam o rei após a súbita noção da sua finitude:
− medo da morte, o que o impediria de usufruir da construção do convento;
− inveja dos seus descendentes no usufruto da sua obra.
• indicar o sofrimento do rei decorrente destes pensamentos;
• associar o episódio do sofrimento e da agonia de Jesus no Monte das Oliveiras, quando se pre-
parava para morrer, ao estado de alma do monarca português;
• explicitar a forma como o narrador ridiculariza o sofrimento do rei:
− D. João V sofre pelo seu egoísmo/Jesus sofre pelo seu altruísmo.

4.3 Demonstre em que medida a enumeração, a comparação e a ironia contribuem para acen-
tuar o servilismo dos súbditos do rei D. João V.
O aluno deverá mostrar, através de exemplos, o recurso à enumeração, à comparação e à ironia,
explorando o seu valor semântico, de forma a justificar que, com o seu uso, se acentua o servi-
lismo dos súbditos do rei. A resposta deverá contemplar aspetos como:
• identificação textual dos recursos expressivos:
− enumeração: “Estavam ali oito ou dez pessoas, entre rei, Ludovice, Leandro, secretários e
fidalgos de semana…”; “Estavam os circunstantes olhando o rei, Ludovice com alguma curio-
sidade científica, Leandro de Melo indignado contra a severidade da lei do tempo que nem as
majestades respeita, os secretários duvidando de terem acertado nos bissextos, os camaris-
tas avaliando as suas próprias probabilidades de sobrevivência”.
− comparação: “todos acenaram gravemente a cabeça, como se o próprio Halley tivesse aca-
bado de explicar a periodicidade dos cometas”
− ironia: “as coisas que os homens são capazes de descobrir.”
• comentário sobre o valor semântico dos recursos expressivos:
− os três recursos expressivos demonstram a grandiosidade do séquito de D. João V, que é
convocado para que o monarca possa ser devidamente aconselhado, a fim de tomar uma de-
cisão. O rei faz-se ladear de súbditos que desempenham diferentes funções, que tudo fazem
para corresponder às solicitações de D. João V, ainda que sejam colocados perante questões
de difícil resposta, e que vão aguardando temerosa e curiosamente pela sua decisão, saben-
do, de antemão, que a vontade do monarca será sempre cumprida.

350
I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

COMO ESCREVER

Síntese Animação: Escrever


uma síntese

A síntese é um género textual que pressupõe a redução de um texto ao essencial da informação


por seleção crítica das ideias-chave, mobilizando-se, portanto, informação seletiva e utilizan-
do-se criteriosamente conectores, de forma a garantir a integridade das ideias expressas no texto
de partida.

Para recordar
Considere as três fases essenciais para a elaboração de uma síntese: (1) fase preparatória;
(2) fase de redação e (3) fase da revisão.

1 Fase preparatória
• Leia o texto de partida para apreender a sua estrutura e o seu sentido global.
• Sublinhe as ideias/os factos subjacentes à progressão textual (eliminando pormenores, repe-
tições, exemplificações…).
• Selecione vocabulário ou expressões-chave.
• Assinale os conectores ou os articuladores que ligam frases ou parágrafos entre si, estabe-
lecendo relações de semelhança, de contraste/oposição, de posteridade, de anterioridade,
de causa…
• Registe, à margem do texto, a ideia central de cada parágrafo (ver “Para exemplificar”).

2 Fase da redação
• Utilize uma linguagem própria.
• Respeite as ideias do texto, não obrigatoriamente pela ordem da apresentação.
• Evite a colagem ao texto de partida.
• Elimine pormenores desnecessários.
• Substitua sequências textuais por outras mais económicas.

3 Fase da revisão
• Verifique a articulação lógica das ideias (coerência) e a gramaticalidade da escrita (coesão).
• Corrija falhas ao nível da ortografia, da acentuação, da pontuação, da sintaxe e da seleção
do vocabulário.
• Respeite a extensão textual indicada, normalmente correspondente a um quarto do texto de
partida (ou seja, um texto de 350 palavras dará origem a um texto de cerca de 90 palavras).
• Avalie o cumprimento das marcas específicas deste género textual.

351
Para exemplificar
A. Texto de origem

Os heterónimos

1.˚ PARÁGRAFO Os heterónimos são personalidades satélites da sua, máscaras nas quais [Pes-
Os heterónimos são
máscaras de Pessoa, uma
soa] se esconde. Neste sentido, constituem não só uma invenção literária como
invenção necessária uma necessidade para o seu equilíbrio psicológico e para a procura da sua identi-
ao equilíbrio emocional dade profunda e complexa. São necessários para a expressão e para a plena reali-
e à incessante busca da
identidade do poeta. 5 zação humana e literária do poeta.
Eduardo Lourenço defende que “não é o homem Pessoa que é múltiplo ou plural,
2.˚ PARÁGRAFO
Estas personalidades é sim sua inspiração, seu estilo, sua prosódia”. Assim, os heterónimos não terão
constituem-se como criado os poemas, os poemas é que o terão forçado a criar os heterónimos. Deste
alternativas estilísticas
a Pessoa, já que foram
modo, os heterónimos de Pessoa seriam não só alternativas filosóficas como al-
criadas para serem 10 ternativas estilísticas. Como reafirma Casais Monteiro: “inventou as biografias para
os autores dos poemas. as obras, e não as obras para as biografias.”
Sabendo ser a perfeição absoluta a Unidade impossível de atingir, tenta a per-
feição relativa desdobrando-se em diversas personalidades distintas e até contra-
3.˚ e 4.˚ PARÁGRAFOS
Pessoa desdobrava-se ditórias entre si. Como ele afirmou: “E porque são estilhaços / Do ser, as coisas
em personalidades 15 dispersas / Quebro a alma em pedaços / E em pessoas diversas.”
distintas de si, numa
tentativa de atingir Eduardo Lourenço assegura: “Pessoa compreende que o Absoluto é um mito e
a Unidade. que não há senão uma pluralidade de caminhos, todos com a mesma possibilidade
de serem essa Verdade que não existe.”
Assim vai o poeta “mudando de personalidade”, enriquecendo-se “na capacidade
5.˚ PARÁGRAFO 20 de criar personagens novas, novos tipos de fingir”, para deste modo compreender
O poeta tenta compreender
o mundo através desse o mundo, ou antes, “de fingir que se pode compreendê-lo”, e esclarece: “Pus no
enriquecimento de Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda
personalidade, que lhe
proporcionam os a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de
heterónimos. Campos toda a emoção que não dou nem a mim, nem à vida.”
25 De entre as dezenas de heterónimos (e semi-heterónimos e pseudónimos) que
6.˚ PARÁGRAFO criou ao longo da vida, destacam-se pela sua constância e produção: Alberto Caeiro,
Os heterónimos Ricardo Reis e Álvaro de Campos. De facto, muitas das suas “personalidades literá-
que mais se destacam
pela riqueza das suas rias” têm, na realidade, muitos mais projetos do que realizações. Ao poeta ocorre
obras são Caeiro, Reis um jorrar incessante de ideias novas acerca dos seus heterónimos sem que tenha
e Campos.
30 o tempo ou a vontade necessária para as concretizar.
(346 palavras)

Paulo Marques, “Fernando Pessoa, um rasgo de génio puro 1888-1935”, in Cadernos


biográficos de personalidades portuguesas do século XX (parceria A. M. Pereira),
Lisboa, Livraria Editora, Lda, 2008, pp. 49-51.

B. Síntese do texto “Os heterónimos”

Os heterónimos são máscaras de Pessoa e são uma invenção necessária ao seu equilíbrio
emocional e à sua busca de identidade. Uma vez que foram concebidos para serem autores dos
poemas criados, constituem-se como alternativas estilísticas ao poeta.
Este desdobramento em personalidades distintas de si é uma tentativa de o poeta atingir a
Unidade que, no entanto, sabe inatingível.
Assim, o poeta tenta compreender o mundo através desse enriquecimento de personalidade
que lhe proporcionam os heterónimos, dos quais se destacam Reis, Caeiro e Campos.
(84 palavras)

352
I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

Texto expositivo
Animação: Escrever
um texto expositivo
O texto expositivo tem como objetivo elucidar de forma clara, concisa e objetiva um determinado
tema. Apresenta, por isso, um caráter demonstrativo.

Para recordar
Atente nas três fases essenciais para a elaboração de uma exposição sobre um tema: (1) fase
preparatória; (2) fase de redação e (3) fase da revisão.

1 Fase preparatória
• Selecione os temas/subtemas a contemplar.
• Pesquise informação tendo por base fontes credíveis (livros, textos críticos de autores conhe-
cedores do tema, revistas, jornais ou sítios de internet com credibilidade).
• Comprove os factos apresentados, identificando as fontes usadas, assim como datas, estatís-
ticas, dados bibliográficos e outros.
• Planifique o texto, organizando a informação selecionada.

2 Fase da redação
• Identifique, na introdução, o assunto a tratar.
• Organize sequencialmente as informações a transmitir, utilizando adequadamente os conec-
tores discursivos.
• Indique corretamente as fontes consultadas, assim como as citações, estatísticas ou dados
apresentados.
• Utilize uma linguagem própria.

3 Fase da revisão
• Corrija eventuais erros de ortografia, pontuação e acentuação.
• Verifique a coerência do discurso e a utilização adequada dos conectores (coesão textual).
• Certifique-se do cumprimento das marcas específicas deste género textual.

Para exemplificar
Leia o texto, prestando atenção à informação registada lateralmente.

O poder do olfato TÍTULO


Delimita
objetivamente
o tema.
Os cheiros estão intimamente ligados à memória. Passar daí para o consumo por impulso é
1.˚ PARÁGRAFO
o próximo objetivo das empresas de cosmética. Identificação do
Já nos aconteceu a todos: passamos inocentemente num sítio qualquer e, de repente, um assunto que vai ser
explorado − o poder
cheiro familiar remete-nos de imediato para outro espaço e tempo. Só o olfato, entre os cinco dos cheiros.
5 sentidos, tem essa capacidade – porque é o único que passa diretamente para o lado direito do 2.˚ PARÁGRAFO
cérebro, o do domínio do irracional. Este aspeto básico e primário do cheiro foi responsável pela Fundamentação −
de entre todos os
sobrevivência do homem durante séculos, guiando-o para longe de situações de perigo. Da sentidos, especifica
mesma forma que um cheiro mau ou estranho (como o de um cadáver) desencadeia um instinto o poder do olfato,
referindo

353
quer a influência de fuga, os bons aromas – seja o cheiro a lareira, da relva acabada de cortar ou de bolos no
dos cheiros bons quer
a dos cheiros maus: 10 forno – fazem-nos sentir seguros e amados. Controlar a forma como nos sentimos e agimos é
• os maus provocam uma das potencialidades de decifrar os cheiros, para depois os poder espoletar de modo a
desagrado
e afastamento;
aumentar a produtividade ou determinar uma compra por impulso. E esses são comportamen-
• os bons estimulam tos que interessam às empresas e marcas que vendem serviços e produtos. Como as de
sentimentos positivos.
perfumes.
3.˚ PARÁGRAFO 15 Um estudo realizado por Rachel Herz, da Universidade de Brown (EUA), e Haruko Sugiyama
Demonstração/ e colegas, da empresa de cosmética japonesa Kao Corporation, publicado no mês passado,
elucidação da
ideia apresentada procurou identificar o modo como o cheiro evoca memórias e emoções pessoais e influencia a
anteriormente, decisão de comprar.
recorrendo à
identificação de uma Os cheiros têm também o poder de desbloquear memórias subconscientes. A indústria dos
fonte. 20 perfumes tenta obter a maior quantidade de informação para melhorar as suas vendas. Ao criar
4.˚ PARÁGRAFO um perfume de raiz, um perfumista mistura e harmoniza centenas de aromas individuais, na-
Apresentação de nova
fundamentação – os
turais ou sintéticos. No fundo, tenta “compor uma sinfonia olfativa”, explica o perfumista por-
cheiros desencadeiam tuguês Lourenço Lucena, o único luso que é membro da Société Française des Parfumeurs.
memórias
subconscientes.
“Compor um perfume é contar uma história com um final feliz”, na qual viajamos, criando a
Recurso novamente 25 partir daí uma “memória positiva”. Do mesmo modo, o perfume de alguém de que não gostamos
a uma fonte transporta-nos logo para uma memória negativa. “Esse despertar da memória imediata só
conhecedora do
assunto em causa –, acontece porque o olfato é o único sentido que não passa por um processo de cognição. Vai
o perfumista Lourenço direto ao hemisfério direito, o das emoções, onde tem também lugar a memória”.
Lucena.
Será possível alguma vez adivinhar e generalizar os cheiros que geram empatia? Ou o olfato
5.˚ PARÁGRAFO
Conclusão, em forma 30 continuará a ser um agradável mistério?
de interrogação,
deixando em aberto Katya Delimbeuf, in revista E – Expresso, ed. n.˚ 2229, 18 de julho de 2015
a possibilidade de (com supressões).
novas descobertas.

APLICAÇÃO

Texto expositivo

1 Redija um texto expositivo, de 130 a 160 palavras, sobre a importância dos sentidos
na vida do ser humano.
Considere a proposta de planificação que se apresenta e siga as instruções respeitantes
à produção de um texto expositivo.
Proposta de planificação:
• Introdução
− Os cinco sentidos: ferramentas essenciais para que o ser humano compreenda
o mundo que o rodeia.
• Desenvolvimento
− A importância de cada um dos sentidos para a compreensão do mundo.
− Relevância de particularidades de alguns dos sentidos.
− Alusão às consequências decorrentes da ausência de um dos sentidos.
(Explicitação de fontes credíveis que corroborem a informação acima exposta.)
• Conclusão
− Reforço da ideia da importância dos sentidos para a compreensão do mundo.

354
I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

Texto de apreciação crítica

A apreciação crítica é um género textual que apresenta uma descrição sucinta seguida de um Animação: Escrever
uma apreciação crítica
comentário crítico sobre o objeto tratado (um debate, um livro, um filme, uma peça de teatro ou
outra manifestação cultural). Este género textual deve, portanto,
• apresentar um conteúdo informativo (descrição do objeto);
• incluir apreciações pessoais/comentários críticos;
• recorrer à argumentação e à exemplificação para fundamentar o ponto de vista adotado;
• utilizar uma linguagem valorativa, mas clara.

Para recordar
Considere as três fases essenciais para a elaboração de uma apreciação crítica: (1) fase da plani-
ficação; (2) fase de redação e (3) fase da revisão.

1 Fase da planificação
• Introdução
− Descrição sucinta do objeto a apreciar.
• Desenvolvimento
− Comentário crítico valorativo (positivo ou negativo).
− Organização, por tópicos, dos argumentos e dos exemplos que fundamentam o ponto de
vista emitido.
• Conclusão
− Síntese do comentário veiculado.

2 Fase da redação
• Organize sequencial e coerentemente os tópicos elencados na fase anterior, tendo em conta
a estrutura tripartida proposta.
• Explore os argumentos e os exemplos, para que validem e sustentem os comentários críticos
efetuados.
• Utilize a primeira pessoa.
• Escolha um vocabulário cuidado e valorativo.
• Empregue, de forma diversificada e correta, os conectores discursivos.

3 Fase da revisão
• Certifique-se de que cumpriu a extensão indicada.
• Assegure-se de que usou corretamente a ortografia, a sintaxe e a pontuação.
• Verifique o uso adequado dos mecanismos de coesão textual e da articulação lógica das ideias
(coerência).
• Valide o cumprimento das marcas específicas deste género textual.

355
Para exemplificar
Considere os dois objetos de análise: uma obra literária e uma pintura. Atente na informação registada a vermelho.

António Tabucchi,
1.˚ PARÁGRAFO
Os três últimos dias de Fernando Pessoa
Introdução
Apresentação sucinta da Em Os três últimos dias de Fernando Pessoa, António Tabucchi, herdeiro de Pessoa, cruza
obra (objeto em análise). a biografia com a ficção, recriando os últimos momentos da sua vida.
2.˚ PARÁGRAFO Como um biógrafo, rememora a vida do poeta e apresenta-o no Hospital de São Luiz dos
Desenvolvimento
Síntese do conteúdo da
Franceses, para onde foi transportado devido a uma crise hepática, recebendo, durante três
obra, seguida de comentário 5 dias consecutivos, no leito de morte, os seus heterónimos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro
crítico: “o leitor reconhece
de Campos, Bernardo Soares e António Mora, e com eles discutindo temas e visões do mundo.
facilmente […] e a elas
adere, com a vivacidade […] No diálogo que travam, recordam juntos momentos vividos e Pessoa comunica-lhes os seus
escrita simples e melodiosa” últimos desejos. Nestas conversas, o leitor reconhece facilmente cada uma das personalida-
– argumentação e
exemplificação. des em questão e a elas adere, com a vivacidade de quem revisita lugares conhecidos, graças
10 a uma escrita simples, mas melodiosa.
3.˚ PARÁGRAFO
Assim, o autor presta uma homenagem a Pessoa, ao levantar questões como a identidade
Conclusão
Síntese do comentário, e as diferentes visões do mundo por parte de cada heterónimo, num romance caracterizado
reforçando as ideias por alguns críticos como um “delírio” de Tabucchi.
apresentadas, introduzido
por um advérbio conclusivo. Texto das autoras.

René Magritte, Golconda


A pintura retrata uma cena de homens idênticos, em camadas,
vestidos com sobretudos e chapéus-coco, flutuando, parecendo
gotas de chuva intensa, num plano de fundo de céu azul e edifícios.
A composição da imagem, combinando homens e rua, colo-
5 cando os primeiros num plano superior, confere-lhe um caráter
ilusório, logo, irreal. Embora se atinja um efeito cómico, a orga-
nização padronizada e geométrica das figuras humanas resulta
numa crítica ao homem comum e à mentalidade de massas.
No entanto, o facto de os homens apresentarem pequenas dife-
10 renças ao nível da postura poderá sugerir a falsidade da represen-
tação artística.
Assim, tendo em conta a representação insólita do mundo con- René Magritte, Golconda, 1953.

creto, visível na organização ilógica do espaço, e a crítica subjacente aos padrões comportamentais e convenções
sociais, poderá inferir-se a influência do Surrealismo nesta pintura que, embora causando estranheza, não deixa
15 de ser sugestiva.
Texto das autoras.

APLICAÇÃO

Apreciação crítica

1 Redija um texto, de 130 a 170 palavras, onde apresente uma apreciação crítica do filme que constitui uma
adaptação do romance Balada da praia dos cães, de José Cardoso Pires, proposto no Projeto de Leitura.
Exponha o seu ponto de vista com clareza e pertinência, fundamentando o comentário crítico efetuado
e recorrendo a um vocabulário valorativo.

356
I Recordar e Relacionar com Sentido(s)

Texto de opinião

O texto de opinião explicita um ponto de vista relativamente a um determinado tema. O autor, Animação: Escrever
um texto de opinião
servindo-se de argumentos e de exemplos justificativos, pretende atingir o objetivo primordial de
persuadir o leitor/ouvinte da validade das suas opiniões, que são apresentadas de forma clara e
pertinente, através de um discurso valorativo.

Para recordar
A redação de um texto de opinião requer uma planificação prévia, que engloba:
(1) a fase preparatória; (2) a fase da redação e (3) a fase da revisão, tal como a seguir se demons-
tra.

1 Fase preparatória
• Defina a tese.
• Pesquise sobre o tema.
• Liste e ordene os argumentos (e contra-argumentos), e respetivos exemplos ilustrativos (para
fundamentação do ponto de vista/tese).
• Planifique previamente o texto, de acordo com a seguinte sugestão:
− apresentação e enquadramento do tema e da tese a defender (introdução);
− argumentação: apresentação de argumentos e de exemplos justificativos, com recurso a
citações e/ou a dados estatísticos que permitam confirmar a tese defendida (desenvolvi-
mento);
− síntese: reforço das ideias defendidas e eventuais sugestões (conclusão).

2 Fase da redação
• Complete e organize sequencialmente os tópicos elencados na fase anterior.
• Use a primeira pessoa e expressões valorativas.
• Indique corretamente citações e/ou fontes.
• Diversifique e adeque os conectores discursivos e o vocabulário.

3 Fase da revisão
• Certifique-se de que cumpriu a extensão indicada.
• Assegure-se de que fez o uso correto da ortografia, da sintaxe e da pontuação.
• Verifique a adequação dos mecanismos de coesão textual e da articulação lógica das ideias
(coerência).
• Valide o cumprimento das marcas específicas deste género textual.

357
Para exemplificar
Leia o texto, prestando atenção à informação registada lateralmente.

Refugiados

INTRODUÇÃO
A vaga de refugiados que acode através de diferentes rotas ao coração da Europa é um
Opinião pessoal daqueles problemas complexos, que desafia qualquer raciocínio simplista. É um problema es-
sobre a origem
tratégico, relacionado com erros de política externa do Ocidente no Iraque (2003), na Líbia (2011),
e as razões da
vaga de refugiados na Síria (2012-13)? Sem dúvida, mas não é só isso. É um problema da guerra secular que divide
que assola 5 o mundo islâmico, entre sunitas e xiitas? Parece claro que sim, mas é muito mais do que isso.
a Europa.
Nas vagas de refugiados encontra-se gente que foge da morte violenta (refugiados políticos),
DESENVOLVIMENTO mas também gente que foge de sociedades que se deixaram degradar ao ponto de não ofere-
– Apresentação das
razões (argumentos)
cerem a possibilidade de alimentar a sua população. Como distinguir um refugiado político de
e de exemplos um refugiado económico, se ambos fogem da morte? Por entre as múltiplas e entrecruzadas
que sustentam 10 causas, espreita também a sombra de longa duração e de profundo impacto da crise global do
a tese (o êxodo
de populações) ambiente, e em particular das alterações climáticas.
– a ausência de Na verdade, politicamente, este processo de deslocação das placas demográficas foi ace-
alimentos.
– Explicitação do lerado com a chamada “Primavera Árabe”, começada na Tunísia no início de 2011. Sabemos
contexto que levou hoje que a Primavera Árabe de 2011, tal como a Revolução Francesa de 1789, foi (também)
às migrações de
2011, comparando 15 espoletada por uma enorme escassez e carestia de alimentos. Em 2010, as ondas de calor
com o exemplo da anormais na Rússia, que incendiaram milhões de hectares de florestas, levaram-na a suspen-
Revolução Francesa.
– Constatação de der as suas exportações agrícolas. Tal como ocorrera em 2007, quando as exportações de
que na base da cereais dos EUA sofreram uma quebra brusca, registou-se um aumento acentuado de preços,
“Primavera Árabe”
esteve também um
numa combinação de especulação e equilíbrio da oferta e da procura através do mecanismo
problema 20 dos preços.
de carência
As massas árabes de 2011 protestavam, em primeiro lugar, por pão e não tanto por liberdade.
de alimentos.
Um pão que, com as alterações climáticas em curso, se tornará cada vez mais inseguro, de-
CONCLUSÃO pendendo tanto ou mais de flutuações climáticas do que de jogos de mercado. A atual “crise de
Reforço das ideias
defendidas. refugiados” é apenas o sinal do perigoso e inquietante mundo novo que se abre à nossa frente.
25 E estamos apenas no início do princípio.

Viriato Soromenho Marques, in Visão, edição online de 22 de setembro de 2015


(acedido em agosto de 2016).

APLICAÇÃO

Texto de opinião

1 Redija um texto de opinião, de 170 a 200 palavras, sobre as consequências, tanto para a
Europa como para os países de origem, da vaga de refugiados que, diariamente, tentam a
entrada no velho continente em busca de uma vida melhor e de um futuro de esperança.
Exponha o seu ponto de vista com clareza e pertinência, apresentando exemplos e argu-
mentos comprovativos da tese defendida.
Considere as instruções expostas no que respeita à produção de um texto de opinião.

358
Autoavaliação da produção escrita

Data de realização do texto

FASES PARÂMETROS
Planificação

Pesquisei informação sobre o tema em análise


e defini a minha tese.

Elaborei o plano.

Respeitei o tema e o género textual:


− explicitei o meu ponto de vista com clareza
e pertinência;
− selecionei os argumentos e os exemplos
mais significativos.

Produzi um discurso valorativo, através


da emissão de juízos de valor.
Redação/textualização

Respeitei:
− a estrutura textual;
− o número de palavras indicado.

Utilizei corretamente mecanismos de coesão,


conectores.

Diversifiquei o vocabulário.

Marquei parágrafos e respeitei as regras


de pontuação, de acentuação, de ortografia
e de citação.

Usei o(s) registo(s) de língua adequado(s).

Procedi à leitura do texto produzido.


Revisão

Reformulei e/ou retifiquei incorreções.

Nota
Assinale + / − / +− em frente a cada parâmetro.

Quiz: Géneros textuais

359
II Gramática (sistematização/aplicação)

FONÉTICA E FONOLOGIA

Processos fonológicos de inserção


Prótese Adição de uma unidade fónica no início da palavra. SCRIBERE- > escrever

Epêntese Adição de uma unidade fónica no interior da palavra. HUMILE- > humilde

Paragoge Adição de uma unidade fónica no fim da palavra. ANTE > antes

Processos fonológicos de supressão


Aférese Queda de uma unidade fónica no início da palavra. ALÁ (port. antigo)> lá

Síncope Queda de uma unidade fónica no meio da palavra. GENERU- > genro

Apócope Queda de uma unidade fónica no fim da palavra. AMARE > amar

Processos fonológicos de alteração


Alteração de uma unidade fónica por influência de outra, ou seja, duas unidades fónicas
Assimilação diferentes tornam-se mais semelhantes, ou iguais, porque uma se aproxima IPSE > esse
articulatoriamente da outra.
Processo exatamente inverso à assimilação, ou seja, duas unidades iguais ou com
Dissimilação LILIU > lírio
características semelhantes distanciam-se articulatoriamente.
Transformação de uma consoante surda (por exemplo, /p/, /t/, /k/) na sua
Sonorização VITA- > vida
correspondente sonora (nestes casos, /b/, /d/, /g/).
Tipo de assimilação que acontece quando uma unidade ou sequência ganha uma
Palatalização CLAMARE- > chamar
articulação palatal (assim se formam as consoantes palatais do português).

Metátese Troca de posição de unidades fónicas ou sílabas no interior de uma palavra. SEMPER > sempre
Transformação de uma consoante em vogal (depois de outra vogal, esta unidade
Vocalização OCTO > oito
realiza-se como semivogal).

Crase Contração de duas vogais numa só. TIBI > tii > ti
Contração Transformação em ditongo de uma sequência de duas vogais em hiato,
Sinérese LEGE- > lee > lei
pela semivocalização (transformação em semivogal) de uma delas.
Enfraquecimento de uma vogal em posição átona. Na atualidade, no português europeu, esse fenómeno é
Redução
observável quando comparamos formas como mesa/mesinha, em que uma mesma vogal surge com diferentes
vocálica
timbres, consoante se encontra em sílaba tónica (mesa) ou em sílaba átona (mesinha).

ETIMOLOGIA

Étimo e palavras convergentes e divergentes


Etimologia significa o estudo da origem e da evolução das palavras. O étimo é definido como palavra da qual, diacronica-
mente, deriva outra palavra.

Palavras convergentes Palavras divergentes


Palavras que apresentam a mesma forma, embora provenham Palavras que apresentam formas diferentes, apesar de terem
de étimos diferentes, dando origem a palavras homónimas. o mesmo étimo.
São exemplo de palavras convergentes:
solteiro
RIDEO (FORMA DO VERBO RIR)
rio (verbo ou nome) SOLITARIU-
RIVU- (= CURSO DE ÁGUA) solitário

360
APLICAÇÃO

Processos fonológicos e etimologia Gramática/Atividade:


Processos fonológicos de
1 Para classificar o(s) processo(s) fonológico(s) ocorrido(s) em cada situação, inserção; Processos
fonológicos de supressão;
selecione a opção correta. Processos fonológicos de
alteração; Etimologia:
1.1 PLUVIA- > chuva palavras convergentes e
divergentes
A. Epêntese C. Palatalização Quiz: Processos fonológicos 1;
Processos fonológicos 2;
B. Prótese D. Assimilação O português: génese, variação
e mudança; Etimologia
Resolução/Atividade:
1.2 LACU- > lago Questão de exame explicada:
processos fonológicos
A. Sonorização C. Assimilação
B. Palatalização D. Metátese

1.3 DOLOR > door > dor


A. Síncope e sinérese
B. Apócope e crase
C. Apócope e sinérese
D. Síncope e crase

1.4 REGNU- > reino


A. Epêntese
B. Vocalização
C. Paragoge
D. Palatalização

1.5 OPERA- > opra > obra


A. Síncope e sonorização
B. Aférese e vocalização
C. Sonorização e assimilação
D. Metátese e sonorização

2 Indique duas palavras que integram os étimos latinos seguintes e use-as numa
frase.
a. DOMUS b. APICULA c. PERSONA

2 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.


A. Os processos fonológicos que ocorrem em EPISCOPU- > pispu > bispo são afé-
rese, síncope e sonorização.
B. Em CLAMARE > chamar ocorreram os processos da palatalização e síncope.
C. Os processos sofridos em VEDERE > veder > ver são prótese, síncope e crase.
D. Na evolução de LEGE- > lei ocorre a síncope e a sinérese.
E. O processo que ocorre em mata/matinha tem o nome de redução vocálica.
F. Na evolução de LILIU > lírio, ocorre a assimilação.

361
MORFOLOGIA
Nota
Base − Constituinte
Processos regulares de formação de palavras morfológico que contém
o significado lexical (exclui
O léxico de uma língua é formado por todos os constituintes morfológicos portadores de os afixos) e a partir do qual
significado. Dele fazem parte não apenas as palavras do vocabulário atual mas também se formam novas palavras.
as palavras que já não se usam e todas as que podem ser criadas através de processos
regulares (DERIVAÇÃO e COMPOSIÇÃO) ou através de processos irregulares.

Derivação não afixal


Processo de formação de palavras que gera nomes deverbais, acrescentando
marcas de flexão nominal a um radical verbal.
Exs.: troc- troca; troco
abraç- abraço

Sem junção de afixos


Conversão
Processo de formação de palavras, também chamado derivação imprópria,
que consiste na integração de uma dada unidade lexical numa outra classe
de palavras por via sintática, sem que se verifique qualquer alteração formal.
Exs.: olhar verbo olhar nome
Estás a olhar para mim. Tem um olhar penetrante.

Derivação
Prefixação
Consiste na adição de um prefixo a uma base.
Exs.: desfazer; macroeconomia

Afixal Sufixação
Processo morfológico Consiste na adição de um sufixo a uma base.
que consiste na
associação de um Exs.: cozinheiro; caçada
afixo a uma base
Parassíntese
Processo morfológico de formação de palavras que consiste na adição
simultânea de um prefixo e um sufixo a uma base.
Exs.: a[padrinh]ar; a[podr]ecer; a[noit]ecer

Processo de composição que associa um radical a outro(s) radical(is) ou a


Radical + radical uma ou mais palavras. De um modo geral, entre os radicais ou entre o radical
Radical + palavra e a palavra associada ocorre uma vogal de ligação.
(morfológica) Exs.: [agr]+ i +[cultura] = agricultura; [lus] + o +[descendente]= lusodescendente;
[psic]+ o +[pata] = psicopata
Composição

Processo de composição que associa duas ou mais palavras. A estrutura destes


Palavra + palavra compostos depende da relação sintática e semântica entre os seus membros,
(morfossintática) o que tem consequências na forma como são flexionados em número.
Exs.: surdo-mudo; guarda-chuva; via láctea; fim de semana; saca-rolhas

362
II Gramática

APLICAÇÃO

Processos regulares de formação de palavras


Gramática/Atividade:
Derivação; Composição
1 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.
A. O processo de formação do termo bioengenharia é composição morfossintá-
tica, isto é, palavra + palavra.
B. O termo porta-chaves obedece ao processo de formação derivação não afixal.
C. Nas frases “O comboio rápido chega às dez.” e “O rápido de Lisboa chegou
a horas.”, o processo de formação do termo sublinhado designa-se por con-
versão.
D. O vocábulo vice-diretor exemplifica o processo de formação designado por pre-
fixação.
E. O termo mentalidade obedece ao processo de formação por sufixação.
F. O infinitivo verbal amanhecer exemplifica o processo de formação por prefi-
xação.

2 Assinale com um "X" o processo de formação que corresponde às palavras


apresentadas.

Derivação Composição

Palavras radical palavra


por por por
não afixal + +
prefixação sufixação parassíntese
palavra palavra

a. jovialidade

b. guarda-fatos

c. pesca

d. enterrar

e. envelhecer

f. marítimo

g. neurocirurgião

h. desfazer

i. renumerar

j. pontiagudo

363
Flexão verbal
O verbo apresenta diferentes formas, em função dos valores de pessoa e número, do modo e do tempo.
Estas formas podem ser simples ou compostas.

Modo Tempo Exemplificação


Presente saio, sais, sai, saímos, saís, saem

Pretérito imperfeito saía, saías, saía, saíamos, saíeis, saíam

simples saí, saíste, saiu, saímos, saístes, saíram


Pretérito
perfeito tenho saído, tens saído, tem saído, temos saído, tendes saído, têm
Indicativo composto
saído
Pretérito simples saíra, saíras, saíra, saíramos, saíreis, saíram
mais-que-
tinha saído, tinhas saído, tinha saído, tínhamos saído, tínheis saído,
-perfeito composto
tinham saído
Futuro sairei, sairás, sairá, sairemos, saireis, sairão

Presente saia, saias, saia, saiamos, saiais, saiam


Formas
finitas Pretérito imperfeito saísse, saísses, saísse, saíssemos, saísseis, saíssem
tenha saído, tenhas saído, tenha saído, tenhamos saído, tenhais
Pretérito perfeito composto
saído, tenham saído
Conjuntivo Pretérito mais-que-perfeito tivesse saído, tivesses saído, tivesse saído, tivéssemos saído,
composto tivésseis saído, tivessem saído
simples sair, saíres, sair, sairmos, sairdes, saírem
Futuro tiver saído, tiveres saído, tiver saído, tivermos saído, tiverdes saído,
composto
tiverem saído
simples sairia, sairias, sairia, sairíamos, sairíeis, sairiam
Condicional teria saído, terias saído, teria saído, teríamos saído, teríeis saído,
composto
teriam saído
Imperativo Presente sai, saí

simples sair, saíres, sair, sairmos, sairdes, saírem


Pessoal ter saído, teres saído, ter saído, termos saído, terdes saído, terem
composto
Infinitivo saído
simples sair
Formas Impessoal
não finitas composto ter saído

simples saindo
Gerúndio
composto tendo saído
Particípio passado saído

• Quanto à flexão, os verbos podem ser regulares – quando mantêm a forma do radical e os sufixos
típicos da flexão de toda a conjugação (exs.: canto / cantarei / cantasse) –, ou irregulares – quando
apresentam variação na forma do radical e/ou nos sufixos de flexão (exs.: faço / fazia / fiz).
• Um verbo defetivo é aquele que não apresenta todas as formas flexionadas possíveis. Os verbos
defetivos podem ser: impessoais, se apresentam apenas formas no infinitivo e na 3.a pessoa do sin-
gular (exs.: chover, trovejar, haver, quando significa "existir") e unipessoais, se apresentam apenas
formas no infinitivo e na 3.a pessoa do singular e do plural (exs.: cacarejar, chilrear, ladrar, miar,
zurrar...).

364
II Gramática

APLICAÇÃO

Flexão verbal

1 Complete corretamente as frases da coluna A com as opções da coluna B.

Coluna A Coluna B
a. Gostaríamos que mais concursos de poesia.
b. Como seria de esperar, recurso da decisão
do júri, certo? 1. soube-se

c. Teria melhor classificação, caso analisar 2. saísse


poesia. 3. soubesse
d. Se ele mais cedo, viria visitar-nos. 4. interpuseste
e. pela rádio que o ator tinha morrido. 5. vieram
f. Qualquer que seja a tarefa que executa, ele 6. criticasse
sempre bem. 7. sai-se
g. Ela temia que alguém a . 8. viram
h. O ano passado, poucos alunos à festa final. 9. houvesse
i. Hoje em dia, tudo e todos. 10. critica-se
j. Nem todos os alunos a declamar Fernando
Pessoa.

2 Complete as frases com as formas verbais conjugadas nos tempos e modos indi-
cados.
Era bom que eles a. (querer – imperfeito do conjuntivo) participar no
concurso. Mas se alguém b. (supor – imperfeito do conjuntivo) que
c. (poder – condicional) ganhar um prémio aliciante, talvez
d. (ir – imperfeito do conjuntivo) muitos os candidatos.
Para que e. (haver – presente do conjuntivo) mais investimento na leitura,
as escolas f. (intervir – futuro do indicativo), g. (promover –
gerúndio) vários concursos e, assim, os alunos já h. (ver – presente do
indicativo) o benefício que daí i. (retirar – futuro do indicativo).

3 Utilize a forma verbal adequada para completar os espaços.


a. Tu (mostrar) a nota do teste aos teus pais?
b. Se tu (poder) planificar o trabalho, agradeço.
c. Professor, já selecionei os livros que queria. (trazer), por favor?
d. Venci o torneio de leitura, por isso, meninos, (dar) os parabéns.
e. Se (requisitar) livros na biblioteca, (ter) de registar o nosso
nome.

4 Complete as frases com o infinitivo pessoal simples dos verbos indicados.


a. Durante a aula projetou-se um PPT para os alunos (compreender) melhor
o assunto.
b. As consequências de nós (estar) desatentos virão mais tarde.
c. Para vós (perceber) a importância da escola, falai com os vossos pro-
fessores.

365
CLASSES DE PALAVRAS

“Conjunto das palavras que, por partilharem características morfológicas, sintáticas e/ou semânticas,
podem ser agrupadas na mesma categoria” – in Dicionário terminológico.

Classes Subclasses Características Exemplificação

Próprio1: designa uma Nome que tem por referentes entidades 1


José Saramago recebeu o Prémio
entidade individualizada, com existência real ou imaginária. Apresenta Nobel da Literatura.
única. características semânticas (dado designar
entidades), morfológicas (porque varia em
Comum2: não designa número, e alguns em género e grau)
2
Os poemas de Pessoa são
Nome

necessariamente e ainda sintáticas (uma vez que é o núcleo conhecidos além-fronteira.


um referente único. do grupo nominal, podendo ser antecedido
de determinantes ou de quantificadores).
Comum coletivo3: designa, 3
A multidão assistia à procissão
no singular, um conjunto da Quaresma.
de seres ou entidades do
mesmo tipo.

Adjetivo que exprime ordem ou sucessão, • Mensagem foi a primeira obra


ocupa geralmente uma posição pré-nominal, de Pessoa que li.
Numeral podendo ser antecedido por determinantes.
Corresponde à classe tradicional dos
numerais ordinais.
Adjetivo

Adjetivo que exprime uma qualidade ou • As rosas vermelhas são o símbolo


propriedade do nome. Ocupa, geralmente, do amor.
posição pós-nominal, embora alguns ocorram
Qualificativo quer à esquerda quer à direita, originando, • Manuel da Fonseca foi um grande
todavia, valores semânticos diferentes. contista.
Varia em número e alguns em grau; quando • Os avós de Saramago viviam numa
biformes, varia em género. casa pequena.
1
Advérbio que contribui com informação José Saramago dedicou-se mais
sobre grau ou quantidade. Pode ocorrer à prosa.
internamente ao predicado1, ou como 2
Qualquer escritor é muito dedicado
Quantidade e grau modificador de grupos adjetivais2 ou à sua obra
adverbiais3. Alguns destes advérbios são 3
Fernando Pessoa deambulava muito
utilizados para a formação do grau dos
calmamente pelas ruas.
adjetivos e advérbios.

Advérbio que contribui para reverter • Ricardo Reis, na verdade, não


Negação o valor de verdade de uma frase afirmativa existiu.
Valores semânticos

ou para negar um constituinte.


Advérbio

1
Advérbio que se utiliza em resposta ‒ Tencionam ir à visita de estudo?
a interrogativas globais1 ou como modificador − Certamente.
Afirmação de um constituinte2, contribuindo para 2
Lemos a obra, sim, e gostámos
asserir ou reforçar o valor afirmativo muito.
de um enunciado.

Advérbio que modifica, incluindo • Participaram todos na


Inclusão o constituinte num conjunto. representação, até o João
que é tímido.
1
Advérbio que permite realçar Fernando Pessoa só ganhou um
o constituinte que modifica, excluindo-o prémio literário.
Exclusão de um conjunto1. Pode modificar cada um 2
Apenas um conto de Manuel da
dos grupos constituintes de uma frase2. Fonseca faz parte do Programa
de 12.˚ ano.

366
II Gramática

Classes Subclasses Características Exemplificação

Advérbio que evidencia uma ideia • Talvez Mário de Carvalho possa vir à nossa escola.
Dúvida
de incerteza, indecisão ou hesitação.

Advérbio que remete para a indicação • Eis o escritor que convidámos.


Designação
de algo ou alguém.
1
Advérbio que habitualmente, pode ser Os trabalhadores do convento viviam mal.
Valores semânticos

modificador de predicado1, da frase2 ou, 2


Felizmente, Blimunda recolheu a vontade
(continuação)

Modo ocasionalmente, predicativo do sujeito3. de Baltasar.


Advérbio

3
Depois de reencontrar o seu passado, George
não ficou bem.

Advérbio que geralmente é modificador. • Amanhã tenho de fazer o trabalho sobre O ano
Tempo
da morte de Ricardo Reis.
1
Advérbio que pode ser complemento José Saramago morou lá, em Lanzarote.
oblíquo1, predicativo do sujeito2 2
Esta tarde ficamos aqui para visitar a Casa
Lugar ou modificador3. de Pessoa.
3
Saramago discursou aí quando recebeu o Prémio
Nobel.

Advérbio que identifica o constituinte • Quando começaste a ler a obra?


interrogado numa construção interrogativa,
sendo substituível por grupos adverbiais
• Porquê analisar tantos poemas?
Interrogativo ou preposicionais. • Como te sentes hoje?
• Onde compraste o livro de Maria Judite
de Carvalho?

Advérbio que estabelece nexos entre frases1 1


Lemos a poesia do ortónimo e depois a dos
ou constituintes da frase, nomeadamente heterónimos.
relações de consequência2, de contraste3 2
Analisámos muitos textos, portanto estamos
ou de ordenação4. preparados para o teste.
Distingue-se de conjunções com valor 3
Gosto de ler romances, contudo prefiro obras
Advérbio
Funções

Conectivo idêntico por poder, por exemplo, ocorrer menos extensas.


entre o sujeito e o predicado5. 4
Primeiro viram o documentário, seguidamente
responderam às questões.
5
Fizemos um trabalho sobre o conto. A professora,
porém, ainda não o avaliou.
1
Advérbio que introduz uma oração A obra onde interagem Ricardo Reis e Fernando
subordinada relativa, permitindo identificar Pessoa chama-se O ano da morte de Ricardo Reis.
uma relação com o nome antecedente (no 2
A maneira como Saramago cativa os leitores
caso das orações subordinadas adjetivas é inovadora.
Relativo
relativas1-2). 3
Vou onde houver declamação de poemas.
Introduz também orações relativas sem
antecedente (orações subordinadas
substantivas relativas3).

Valores semânticos Exemplos

• locativo • à esquerda, de fora, de longe, em cima...

Locuções adverbiais • temporal • à noitinha, desde cedo, por agora…


São constituídas por duas ou mais palavras • modo • de bom grado, por acaso, à pressa…
e têm comportamento e classificação igual
à de um advérbio.
• negação • de modo algum, de maneira nenhuma…
• quantidade e grau • no mínimo, de mais, tão pouco…
de facto, na verdade, sem dúvida…

367
Classes Subclasses Características Exemplificação

Antepõe-se ao nome, contribuindo para a sua • A obra de que mais gosto


leitura genérica ou indefinida. é Memorial do convento.
Artigo O artigo indefinido nunca antecede um nome • Um texto interessante
• Definido: próprio nem coocorre com os quantificadores desperta a nossa atenção.
o, a, os, as todos e ambos.
• Indefinido: Os artigos definidos e indefinidos surgem,
um, uma, uns, umas muitas vezes, contraídos com as preposições
a, de, em e por: ao (a+o), à (a+a), da (de+a),
num (em+um), pela (por+a).

Varia em género e número, tem valor • Esta personagem revela


Demonstrativo deítico ou anafórico, contribuindo para poderes extraordinários.
este(s), esta(s), esse(s), essa(s), a construção da referência do nome que • Aquele aluno leu a obra
aquele(s), aquela(s) o precede tendo em conta a sua relação de Pessoa em dois dias.
de proximidade ou distância.
Determinante

1
Varia em pessoa, género e número Os nossos resultados no teste
Possessivo
e em contextos definidos. sobre Caeiro foram bons.
meu(s), minha(s); teu(s), tua(s);
É geralmente precedido por um artigo 2
Estas minhas preferências por
seu(s), sua(s); nosso(s), nossa(s);
definido1 ou por um determinante poesia são inexplicáveis!
vosso(s), vossa(s)
demonstrativo2.

Varia em género e número e é utilizado • Certos estudantes leem


Indefinido em contextos em que se assume que muitos romances, outros
certo(s), certa(s), o referente do nome que precede não só leem contos.
outro(s), outra(s) corresponde a informação específica
ou identificada.

Varia em género e número e estabelece • As obras, cuja ação se baseia


Relativo
a ligação entre o nome seu antecedente em factos verídicos, são as
cujo, cuja, cujos, cujas
e a oração relativa que introduz. minhas preferidas.

Precede um nome em construções • Que livro de Mário de Carvalho


Interrogativo interrogativas, permitindo a identificação leste?
que, qual, quais do constituinte interrogado. • Quais poemas são para leitura
de férias?

Variam em pessoa e número, e alguns • Eles encontraram-se ontem.


Pessoal variam em género. • Perguntaram-nos se lhes
• Formas tónicas: eu, tu, você, ele/ As formas átonas ocorrem adjacentes ao indicávamos o caminho.
ela, nós, vós, vocês, eles/elas; verbo (à esquerda do verbo − em próclise −, • Aprender-se-ia mais com
mim, ti, si à direita − em ênclise −, ou ainda no interior a leitura integral das obras.
• Formas átonas: me, te, o, a, lhe, das formas de futuro do indicativo
nos, vos, os, as, lhes, se e condicional − em mesóclise); as restantes
são formas tónicas.
Pronome

1
Demonstrativo Varia em género e número e tem um valor Estas linhas de leitura da obra
• Formas tónicas variáveis :1 deítico ou anafórico. Estabelece a sua são mais interessantes do que
este(s), esta(s) esse(s), essa(s) referência tendo em conta a relação aquelas.
aquele(s), aquela(s) de proximidade ou de distância em relação 2
Aquilo que me disseste sobre
a um participante do discurso ou a obra foi importante.
• Formas tónicas invariáveis2:
a um antecedente textual. 3
Percebeu a intenção do autor
isto, isso, aquilo
e demonstrou-a.
• Formas átonas3: o(s), a(s) 4
Revelou que tinha gostado da
• Forma átona invariável4: o obra de Reis./Revelou-o.
(usada na substituição
de constituintes oracionais)

368
II Gramática

Classes Subclasses Características Exemplos

Varia em pessoa, género • Gostei muito do teu texto. Gostaste do meu?


Possessivo
e número e tem um valor
• Um possuidor:
deítico ou anafórico,
• A professora reviu os nossos trabalhos.
meu, minha, meus, minhas E os vossos?
referindo-se, tipicamente,
teu, tua, teus, tuas
a um participante do discurso
seu, sua, seus, suas
ou a um antecedente
dele, dela
tomado como possuidor,
• Vários possuidores: respetivamente.
nosso, nossa, nossos, nossas
É geralmente precedido
vosso, vossa, vossos, vossas
de artigo definido.

Indefinido Alguns admitem variação • Ninguém chegou tarde ao teste.


(continuação)

em género e número,
Pronome

• Formas invariáveis: • Todos gostaram da obra de Manuel


alguém, ninguém, tudo, quando correspondentes
da Fonseca.
nada, algo, outrem ao uso pronominal de um
• Formas variáveis: quantificador ou de um
algum(a), alguns, algumas, determinante indefinido.
nenhum(a), nenhuns, Refere uma terceira
nenhumas, outro(a)(s), pessoa ou uma quantidade
muito(a)(s), pouco(a)(s), indeterminada.
todo(a)(s), vário(a)(s),
tanto(a)(s)

Relativo Ocorre no início das orações • Esta é a pessoa à qual Saramago


• Variáveis: o qual, os quais, relativas. Pode remeter para dedicou a obra.
a qual, as quais um constituinte anterior,
quando possui antecedente.
• Indico-te quem me falou do Livro
• Invariáveis: (o) que, quem do desassossego.

1
Divide-se em várias O padre Bartolomeu morreu!
subclasses, de acordo 2
Blimunda, no fim da narração, encontrou Baltasar.
Intransitivo1 com as suas restrições Blimunda, no fim da narração, encontrou-o.
Transitivo direto2 de seleção. 3
O diretor de turma telefonou ao meu pai.
Transitivo indireto3-4 O diretor de turma telefonou-lhe.
principal

Transitivo direto e indireto5-6 4


Fernando Pessoa viveu em Lisboa.
Transitivo-predicativo7 5
Ricardo Reis escreveu uma carta a Marcenda.
(achar, considerar, julgar, Ricardo Reis escreveu-lhe uma carta.
nomear, eleger, declarar, 6
Fernando Pessoa colocou o casaco no quarto
chamar, supor, ter por, tratar de Reis.
por)
Fernando Pessoa colocou-o no quarto de Reis.
7
Lídia tratou Ricardo Reis por “meu amor”.
Verbo

Ocorre numa frase em que • Os alunos permanecem atentos.


copulativo

(ser, estar, ficar, continuar, existe um constituinte com


parecer, permanecer, tornar- a função sintática de sujeito
• O João tornou-se um leitor exímio.
se, revelar-se...) e outro com a função sintática
de predicativo do sujeito.

1
É usado na formação de Ele tem lido todas as obras indicadas pelo
tempos compostos1 professor.
(ter/haver), em construções 2
O livro foi lido por todos os alunos desta turma.
auxiliar

(ser, ter, haver, estar, dever, passivas2 (ser), podendo, 3


poder) Todos os alunos devem ler o livro.
ainda, contribuir para veicular 4
A aluna está a ler uma das obras de Saramago.
valores modais3 (dever, poder)
ou aspetuais4 (estar).

369
Classes Subclasses Características Exemplificação

Expressa uma quantidade • O Pedro comprou duas mochilas azuis.


numérica inteira precisa, um
Numeral múltiplo de uma quantidade
• Ainda só li um terço das obras do Programa
Quantificador

do 12.˚ ano.
ou uma fração precisa de uma
quantidade. • Já li metade da “Ode triunfal”.
Refere-se à totalidade dos • Nenhum aluno quis participar no concurso.
Universal
elementos de um conjunto.
Expressa uma quantidade • Bastantes pessoas gostam de ler.
Existencial
imprecisa.
Ligam elementos com igual • A Maria e a Joana gostam de poesia e
valor sintático, sejam palavras o Pedro gosta de prosa.
Conjunções coordenativas ou grupos de palavras numa
só oração, sejam orações
• Finalizámos o trabalho, mas já depois
• copulativas: e, nem do prazo estipulado.
diferentes, mas equivalentes
• adversativas: mas sintaticamente • Escreves um texto de opinião ou defendes
• disjuntivas: ou e independentes umas essa ideia oralmente?
das outras.
• conclusivas: logo • Não ouvi a orientação, logo tive dificuldades
• explicativas: pois, que na realização da tarefa.
• Acho que o teste correu bem ao Pedro, pois
ele estava feliz.
1
Conjunções subordinativas Introduzem orações Afirmaram que tinham estudado. /
Conjunção

subordinadas que Perguntou se havia TPC. / Pediu para sair


− Substantivas completivas1: desempenham uma função mais cedo.
que, se, para sintática relativamente 2
Como gostaram da obra, os resultados
− Adverbiais: à subordinante. foram bons.
3
• causais2: porque, como Encarnou a figura de Pessoa tão bem como
se fosse um ator.
• comparativas3: como, conforme 4
Embora goste de prosa, a poesia tem
• concessivas4: embora, malgrado um encanto especial.
5
Se me preparar bem, terei êxito
• condicionais5: se, caso
na apresentação oral.
• consecutivas6: que 6
Estudei tanto que era impossível ter
(antecedido de tão, tanto…) má nota.
7
• finais7: para Li todos os contos de Manuel da Fonseca
para conhecer melhor a escrita deste autor.
• temporais8: apenas, enquanto, 8
Quando terminaram a tarefa, comunicaram-
quando, mal -no ao professor.

Constituídas por duas ou mais palavras cujo valor semântico se associa ao das conjunções coordenativas
ou subordinativas.
Locuções conjuncionais

• copulativas: não só… mas/como também; nem… nem; tanto… como


Coordenativas
• disjuntivas: ou… ou; já… já; ora… ora

• causais: visto que; dado que; uma vez que; atendendo a que; dado que
• comparativas: bem como; assim como; tal… qual; tão/tanto… como; mais… (do) que
• concessivas: se bem que; ainda que; nem que; não obstante
Subordinativas • condicionais: salvo se; desde que; sem que; exceto se; contanto que; a não ser que
• consecutivas: de modo que; de maneira que; de forma que
• finais: para que; a fim de/que; com a finalidade de
• temporais: antes de/que; logo que; agora que; cada vez que; até que; assim que

370
II Gramática

Classe Características Exemplificação


1
Palavra invariável que exige sempre ser complementada por: Os alunos foram para onde o professor
uma oração1, um grupo nominal2, um grupo adverbial3. indicou.
a, ante, após, até, com, contra, de, desde, em, entre, para, 2
Com vontade de vencer, as barreiras
perante, por, segundo, sem, sob, sobre, trás ultrapassam-se.
Preposição 3
Só sei que não vou por ali.
Nota
as preposições a, de, por e em podem contrair com artigos (definidos
e indefinidos), determinantes e pronomes demonstrativos, advérbios…

São formadas tipicamente por um advérbio ou um nome seguido de uma preposição ou por um advérbio
Locuções no meio de duas preposições.
prepositivas Exs.: apesar de, junto a, além de, em redor de, perto de, defronte a/de, por causa de, em vez de, antes de,
para com…

Classe
Valores semânticos
Interjeições Locuções interjetivas

oh!; ah!; eia! que bom! muito bem! Alegria


eia!; vamos!; coragem!; upa! vamos lá! toca a andar! Incitamento/encorajamento
bravo!; viva!; boa!; apoiado!; fixe!; bis!; eia! muito bem! é assim mesmo! Aplauso
ai!; ui!; Jesus!; credo! valha-nos Deus! ai Jesus! ai que aflição! Aflição, dor, tristeza, terror
atenção!; cuidado!; oh! Advertência ou repreensão
ó!; pst; olá!; eh!; socorro! ó da guarda! ó senhor! Chamamento, invocação
oh!; oxalá!; tomara! quem me dera! Deus queira! se Deus quiser! Desejo
hum! Dúvida
ah!; oh!; hi!; ena!; caramba!; diabo!; credo!; essa é boa! não é possível! não acredito! essa
Espanto ou surpresa
chi!; puxa!; bolas! agora!
Impaciência, irritação
bolas!; irra!; fogo!; arre!; mau! ora bolas!; mau, mau!
ou aborrecimento
irra!; homessa!; apre!; ora! ora essa! nem pensar! Indignação
chega!; basta!; alto! Interrupção ou suspensão
silêncio!; caluda!; fora!; rua!; alto!; chega! fora daqui!; toca a andar!; em frente! Ordem
paciência!; pronto! que remédio!; é a vida!; deixa lá! Resignação
olá!; adeus! ora viva! boa noite! bem haja! bons olhos o vejam! Saudação
psiu!; silêncio!; caluda! toca a calar! Silêncio

Nota
A interjeição não estabelece relações sintáticas com outras palavras e tem uma função exclusivamente emotiva.
O valor de cada interjeição depende do contexto de enunciação e corresponde a uma atitude do falante ou do enunciador.

371
APLICAÇÃO

Classes de palavras/Grupos frásicos

1 Identifique as alíneas cujas expressões a negrito não integram adjetivos.


A. Este poema foi lido sem entusiasmo.
B. Quando visitamos a Casa Fernando Pessoa, o dia estava chuvoso.
C. Os heterónimos de Fernando Pessoa são distintos.
D. A nostalgia da infância resulta da dor de pensar.
E. Aquele longo poema de Alberto Caeiro deixou-me pensativo.

2 Assinale o item que só contém preposições.


A. quando, até, sob, contra, desde
B. a, de, mas, logo, desde que
C. com, contra, cujo, aquele
D. para, por, perante, sobre

3 Assinale como verdadeiras ou falsas as afirmações. Corrija as falsas.


A. Em “Aquele engenheiro é mais arrojado que este”, os termos destacados
são ambos pronomes demonstrativos.
B. Na frase “Os poemas cuja temática é o amor proliferam na nossa literatu-
ra”, os vocábulos a negrito pertencem à classe dos determinantes, relativos
e possessivos, respetivamente.
C. Em “Vamos analisar apenas três poemas de Alberto Caeiro para termos
tempo de ver Ricardo Reis", estão destacados um advérbio de exclusão
e uma conjunção subordinativa final.
D. As palavras a negrito em “Fernando Pessoa é considerado genial devido ao
ecletismo da sua produção literária” são adjetivos.

4 Associe os grupos frásicos da coluna A às frases da coluna B cujos sublinhados


lhe correspondem.

Coluna A Coluna B
1. Esta obra é muito difícil de perceber.
a. GAdv. + GN
2. Álvaro de Campos defendia acerrimamente a modernidade.
b. GV + GrPrep. + GrPrep.
3. Caeiro seria incapaz de viver na cidade.
c. GN + GPrep.
4. Ricardo Reis acreditava no destino porque recebeu uma
d. GrPrep. + GV
educação clássica.
e. GAdj. + GPrep.
5. Perceberam o heterónimo pessoano tardiamente.
f. GN + GAdv.
6. Responderam às questões com muita dificuldade.

5 Identifique o grupo frásico a que correspondem os termos destacados.


a. O professor explicou exaustivamente a temática do fingimento artístico.
b. Caeiro foi considerado o poeta das sensações.
c. Campos apresenta uma fase futurista e uma fase pessimista.

372
II Gramática

SINTAXE

Funções sintáticas Gramática/Atividade:


Sujeito; Vocativo;
Funções sintáticas ao nível da frase Predicado;
Modificador de frase

Sujeito
Função sintática desempenhada pelo constituinte da frase que controla a concordância verbal. Pode ser
(1) um grupo nominal, substituível pelos pronomes pessoais eu, tu, ele/ela, nós, vós, eles/elas, ou (2) um
constituinte oracional. Encontra-se, por norma, em posição pré-verbal.

Sujeito com realização lexical. Sujeito sem realização lexical.

Pode ser: Pode ser:


• Simples • Subentendido
Exs.: Manuel da Fonseca é um contista exímio. Ex.: Fez uma apresentação oral sobre a obra
(grupo nominal) Saramaguiana.
Quem ler Saramago ficará fascinado. (depreende-se da forma verbal – Ele)
(oração)
• Indeterminado
• Composto Ex.: Lê-se muito a prosa do século XIX.
Exs.: Maria Judite de Carvalho e Mário de (alguém lê)
Carvalho não são irmãos.
(coord. de grupos nominais)
Quem visitou o convento de Mafra e quem
leu Memorial do convento ficou a conhecer
melhor o reinado de D. João V.
(duas ou mais orações)

Vocativo
Função sintática desempenhada por um constituinte que não controla a concordância verbal e que serve
apenas para interpelar ou chamar o interlocutor; aparece em posição inicial, medial ou final, surgindo em
frases de tipo imperativo1, interrogativo2 ou exclamativo3.
Exs.: 1 Meninos, abram os livros.
2
Achas, João, que consegues responder?
3
Pode preparar-se para a procissão, Majestade?

Predicado
Função sintática desempenhada por um grupo verbal. Pode corresponder só ao verbo ou ao verbo com os
seus complementos e/ou predicativos requeridos, e ainda com os modificadores (do grupo verbal). Assim
temos:
• Predicado ‒ só com verbo ou complexo verbal (por norma, quando o verbo é intransitivo)
Ex.: A cidade adormecera.
• Predicado ‒ verbo + complementos e/ou predicativos e modificadores
Ex.: Ricardo Reis deambulou pela cidade.

Modificador (de frase)


Função sintática desempenhada por um constituinte que tem uso facultativo, não sendo selecionado por
nenhum dos constituintes da frase. Acrescenta um juízo de valor sobre o conteúdo da frase/oração e pode
ser eliminado sem que a frase se torne agramatical. Pode ser desempenhada por um grupo adverbial1, por
um grupo preposicional2 ou uma oração subordinada3.
Exs.: 1 Infelizmente, nem todos leram a poesia de Pessoa.
2
Com convicção, a professora expõe as matérias.
3
Ainda que os contos sejam textos breves, transmitem uma forte carga emotiva aos leitores.

373
Funções sintáticas internas ao grupo verbal

Complemento direto

Função sintática selecionada por verbos transitivos diretos, transitivos diretos e indiretos ou transitivos-
-predicativos, sendo exercida por grupos nominais (GN) ou constituintes oracionais. Os GN que exercem
esta função são pronominalizáveis pelos pronomes pessoais o, a, os, as, e os constituintes oracionais são
substituíveis pelos pronomes demonstrativos invariáveis isto, isso, aquilo.
Exs.: Os alunos preferem textos em prosa. Os alunos preferem-nos.
Saramago demonstrou que os autos de fé eram inaceitáveis. Saramago demonstrou isso.

Complemento indireto

Função sintática selecionada por um verbo transitivo indireto ou transitivo direto e indireto. O constituinte
sintático que exerce a função de complemento indireto é introduzido pela preposição a e pronominalizável
pelos pronomes lhe, lhes.
Ex.: Ricardo Reis agradeceu a Lídia. Ricardo Reis agradeceu-lhe.

Complemento oblíquo

Função sintática selecionada por um verbo transitivo indireto, ou transitivo direto e indireto. O constituinte
sintático que exerce a função de complemento oblíquo é introduzido, maioritariamente, por uma
preposição. Pode assumir um valor locativo1, de movimento2, de duração3, de necessidade ou de carência4.
Exs.: 1 Saramago viveu em Lisboa e em Lanzarote.
2
O interesse pela obra de Pessoa levou-o à África do Sul.
3
A procura de Blimunda por Baltasar prolongou-se por nove anos.
4
Os poetas precisam de inspiração.

Complemento agente da passiva

Função sintática desempenhada por um constituinte selecionado por um verbo transitivo direto conjugado
na passiva, tendo como auxiliar o verbo ser.
Ex.: Reis, Campos e Caeiro foram criados por Fernando Pessoa.

Predicativo do sujeito

Função sintática desempenhada por um constituinte selecionado por um verbo copulativo que atribui uma
propriedade ao sujeito.
Exs.: Alguns alunos ficaram apaixonados pela poesia de Caeiro.
A obra de Manuel da Fonseca é aliciante.

Predicativo do complemento direto

Função sintática desempenhada por um constituinte selecionado por um verbo transitivo-predicativo que
atribui uma propriedade ao complemento direto.
Ex.: Fernando Pessoa considerava Camões um modelo.

Modificador (do grupo verbal)


Gramática/Atividade:
Complemento direto; Função sintática desempenhada por um constituinte do grupo verbal e que pode ser eliminado sem que
Complemento indireto;
Complemento oblíquo; a frase se torne agramatical. A função de modificador (do grupo verbal) pode ser desempenhada por uma
Complemento agente oração subordinada1, por um grupo preposicional2 ou por um grupo adverbial3.
da passiva; Predicativo
do sujeito; Predicativo Exs.: 1 Quando chegou a Lisboa, Ricardo Reis instalou-se num hotel.
do complemento direto; 2
Ricardo Reis procurou Marcenda em Fátima.
Modificador do grupo verbal 3
Lídia olhava Ricardo Reis comovidamente.

374
II Gramática

Funções sintáticas internas ao grupo nominal

Complemento do nome Gramática/Atividade:


Complemento do nome;
Modificador do nome;
Função sintática desempenhada por um constituinte selecionado por um nome e que lhe completa Complemento do adjetivo
a referência. Corresponde geralmente a um grupo preposicional, a uma oração introduzida por uma
preposição ou a um grupo adjetival. Requerem complemento:
• nomes de graus de parentesco1
• nomes de profissões que derivam de outros nomes2 (guia, condutor…)
• nomes icónicos3 (gravura, fotografia…)
• nomes epistémicos4 (hipótese, desejo…)
• nomes que derivam de verbos5, por norma, transitivos (construção, pesca…)
• nomes que designam cargos6 (presidente, ministro, cônsul…)
• numerais fracionários e multiplicativos7 (dobro, terço…)

Exs.:1 O pai de Marcenda vivia em Coimbra.


2
O guia de Baltasar era o padre Bartolomeu.
3
A deambulação de vários poetas permitiu traçar um retrato de Lisboa.
4
A hipótese de se encontrar com Fernando Pessoa agradava a Ricardo Reis.
5
A construção do convento de Mafra deveu-se a uma promessa de D. João V.
6
O ministro da educação avaliou o conteúdo do Programa de Português.
7
A leitura de Memorial do convento requer o dobro do tempo da leitura de “George”.

Modificador do nome

Constituinte do grupo nominal que lhe modifica o sentido, apesar de não ser por ele selecionado. Pode ser:
• Modificador do nome restritivo: restringe/limita a referência do nome que modifica.
Pode configurar-se num grupo adjetival1, preposicional2, numa oração adjetiva relativa3, numa oração
subordinada final4.

Exs.: 1 A prosa contemporânea é muito interessante.


2
A arca de Fernando Pessoa requer ainda muita investigação.
3
A análise que alguns críticos fazem de “Autopsicografia” é brilhante.
4
Os livros sugeridos para lermos em projeto de leitura são muito interessantes.

• Modificador do nome apositivo: não restringe nem limita a referência do nome que modifica.
É obrigatoriamente delimitado por vírgula(s), e pode estar configurado num grupo nominal1, adjetival2
ou preposicional3, mas também numa oração adjetiva relativa explicativa4.

Exs.: 1 Alberto Caeiro, o poeta da Natureza, não seguia correntes literárias.


2
Alguns textos, claros e objetivos, elucidam sobre o simbolismo de Mensagem.
3
Os estudantes, com ideais progressistas, gostam muito da obra de Saramago.
4
A obra de Maria Judite de Carvalho, que me fascinou, tem sido pouco divulgada.

Função sintática interna ao grupo adjetival

Complemento do adjetivo

Função sintática exercida por um constituinte selecionado por um adjetivo e que ocorre normalmente
à direita desse adjetivo, sendo composto, normalmente, por um grupo preposicional1, mas também por
um grupo oracional2.
Exs.: 1 Saramago estava convicto da irracionalidade dos atos de alguns homens.
2
Os alunos estão ansiosos por visitar a Casa Fernando Pessoa.

375
APLICAÇÃO

Sintaxe

1 Identifique as funções sintáticas desempenhadas pelos segmentos sublinhados.


a. A beleza de Marcenda atraiu Ricardo Reis.
b. O autor de Mensagem é Fernando Pessoa.
c. As obras que estudarmos até novembro serão objeto de análise profunda.
d. A hipótese do reencontro com o seu passado perturbava George.
e. “Olhaste-me por dentro” – disse Baltasar.
f. Manuel da Fonseca, romancista neorrealista, escreveu diversos contos que con-
sidero inovadores.
g. As personagens de Memorial do convento, que estão bem construídas, são do
agrado de todos.
h. Ao longo do primeiro período, os alunos estiveram sempre atentos.
i. Os professores comunicaram aos alunos que irão a Lisboa visitar a Fundação
José Saramago.
j. Considero a obra de Campos a mais ilustrativa do Futurismo.
k. Fernando Pessoa viveu sempre em Lisboa, mas José Saramago preferiu a ilha
de Lanzarote.

2 Identifique nas frases os segmentos que correspondem às funções sintáticas


referidas e transcreva-as.
2.1 Todas as obras de Saramago continuam atuais.
a. sujeito
b. predicativo do sujeito

2.2 A visão da pátria, visível em Mensagem, impressiona-me e agrada-me.


a. complemento do nome
b. complemento direto
c. complemento indireto

2.3 Naturalmente, a obra de Saramago tem de figurar no programa de Português.


a. modificador (da frase)
b. complemento oblíquo

2.4 O professor, que revela grande conhecimento da obra pessoana, cativa os alunos.
a. modificador do nome apositivo
b. complemento direto

2.5 O livro azul é uma edição da poesia de Caeiro.


a. modificador do nome restritivo
b. complemento do nome

Resolução/Atividade: 2.6 – Jovens, empenhem-se ‒ diz o professor aos alunos.


Questão de exame a. vocativo
explicada: funções
sintáticas 1; b. sujeito
Questão de exame
explicada: funções 2.7 Reis estava convicto da filosofia epicurista, mas Caeiro permanecia um apai-
sintáticas 2; Questão de
exame explicada: funções xonado pela Natureza.
sintáticas 3; Questão de
exame explicada: funções
a. complemento do adjetivo
sintáticas 4 b. predicativo do sujeito
Quiz: Funções sintáticas

376
II Gramática

Frase complexa – coordenação e subordinação


A frase complexa é aquela que apresenta mais do que um verbo principal ou copulativo, ou seja, Gramática/Atividade:
trata-se de uma frase com mais do que uma oração, que pode obter-se pelo recurso à coordena- Orações coordenadas

ção e/ou à subordinação.

Coordenação
Processo de combinação de duas ou mais frases equivalentes. Por isso, a oração coordenada está
contida numa frase complexa, não mantendo uma relação de subordinação sintática com a(s) frase(s)
ou oração(ões) com que se combina. Distingue-se, tipicamente, das orações subordinadas por não
poder ser anteposta. As orações coordenadas podem ser:
• Assindéticas
Orações coordenadas justapostas, sem recurso a conjunções ou locuções conjuncionais.
Ex.: Fernando Pessoa foi empregado de escritório, escreveu uma vasta obra sob diversas
identidades, traduziu textos de autores estrangeiros, fundou revistas que se desta-
caram na literatura portuguesa.
• Sindéticas
Orações coordenadas ligadas por conjunções ou por locuções conjuncionais.
Ex.: Fernando Pessoa foi empregado de escritório e escreveu não só uma vasta obra sob
diversas identidades como também traduziu textos de autores estrangeiros e fundou
revistas que se destacaram na literatura portuguesa.

Estas orações estabelecem, entre si, relações semânticas expressas pelas conjunções ou locuções
coordenativas que as unem, tal como se sistematiza na tabela seguinte.

Oração Conjunções/locuções
Sentido Exemplificação
coordenada conjuncionais coordenativas

e, nem, nem… nem,


não só… mas também,
• Lemos a obra de Saramago e,
Copulativa Adição posteriormente, participámos
não só… como (também),
numa visita de estudo a Mafra.
tanto… como

Adversativa mas
Oposição, • Marcenda gostava de Ricardo Reis,
contraste mas não se quis casar com ele.

ou, ou… ou, Alternativa, • Fazes a síntese do conto


Disjuntiva outra ou analisas um fragmento
ora… ora possibilidade do Livro do desassossego?

• Já visitei o Alentejo, logo


Conclusiva logo Conclusão já percebo melhor a obra
de Manuel da Fonseca.

• Blimunda ainda deve ter os olhos


Justificação, fechados, pois ainda não comeu o pão.
Explicativa pois, que
explicação • Blimunda ainda deve ter os olhos
fechados, que ainda não comeu o pão.

377
Subordinação
Processo de combinação de duas ou mais orações em que uma delas, a subordinada, está sinta-
ticamente dependente de outra, a subordinante. As orações subordinadas classificam-se como
substantivas, adjetivas ou adverbiais.

• Orações subordinadas substantivas

Oração subordinada Elementos


Exemplificação
substantiva de ligação

Completa o sentido de:


a. outra oração
• Penso que o romance Memorial do convento é um
Completiva dos melhores de Saramago.
Pode desempenhar as • O João disse para analisarmos melhor o poema.
funções sintáticas de sujeito,
• conjunções
subordinativas • Perguntei-lhe se já tinha lido a obra.
de complemento de um
completivas: b. um nome
verbo, de complemento de
que, se, para
um nome ou de complemento • George tinha a certeza de que não queria voltar
de um adjetivo. à sua terra natal.
c. um adjetivo
• Ricardo Reis estava convicto de que seria visitado
por Pessoa.
Relativa
Pode desempenhar as • pronomes
funções sintáticas de sujeito, • Quem leu o Memorial do convento ficou mais
relativos:
de complemento direto, informado sobre o séc. XVIII.
quem, (o) que
de complemento indireto, • No final, o Batola não era quem a sua mulher
de complemento oblíquo, • advérbio conhecera.
de predicativo do sujeito e relativo:
onde
• A multidão ia onde passasse a procissão.
de modificador (do grupo
verbal).

• Orações subordinadas adjetivas

Oração subordinada adjetiva Elementos de ligação Sentido/Exemplificação

Introduzida por um relativo que retoma um


antecedente, fornece informação adicional
sobre o constituinte que modifica.
• pronomes relativos: • Ricardo Reis, que não é o único heterónimo
Relativa explicativa que, quem (invariáveis), de Pessoa, era monárquico.
o qual (variável em género
e número) Nota
Estas orações são sempre separadas por vírgulas,
• determinante relativo: parênteses ou travessões.
cujo (variável em género
e número) Introduzida por um relativo que retoma
Gramática/Atividade: um antecedente, restringe a referência
Orações subordinadas • advérbio relativo:
substantivas completivas; onde do constituinte que modifica.
Orações subordinadas Relativa restritiva
substantivas relativas;
• Analisamos os poemas de Fernando
Orações subordinadas Pessoa que foram indicados pela
adjetivas relativas professora.

378
II Gramática

• Orações subordinadas adverbiais


Orações que desempenham a função sintática de modificador e que devem ser destacadas por
Gramática/Atividade:
vírgula(s) quando antecedem a oração subordinante ou quando surgem intercaladas. Orações subordinadas
adverbiais causais;
Orações subordinadas
Oração adverbiais comparativas;
Conjunções ou locuções Orações subordinadas
subordinada Sentido Exemplificação adverbiais concessivas;
conjuncionais subordinativas
adverbial Orações subordinadas
adverbiais condicionais;
Orações subordinadas
• Saramago tornou-se adverbiais consecutivas;
mundialmente Orações subordinadas
conhecido porque adverbiais finais;
porque, como, dado, dado Indica a razão, a causa, Orações subordinadas
recebeu o Nobel.
Causal que, uma vez que, visto que, o motivo da situação adverbiais temporais
pois, já que... expressa na subordinante. • Como recebeu o Nobel,
Saramago tornou-se
mundialmente
conhecido.

Expressa uma comparação,


contendo o segundo
mais/menos… do que, elemento da comparação que
qual (depois de “tal”), se estabelece com a situação • Saramago tanto elogia o
expressa na subordinante. povo pela construção do
quanto (depois de “tanto”),
Comparativa convento como critica o
tanto/tão… como, As subordinadas
bem como, como se, rei pelo seu despesismo
comparativas podem
que nem... e arrogância.
corresponder a construções
elípticas, nas quais o grupo
verbal é elidido.

embora, conquanto que,


Apresenta uma ideia ou um • Ainda que a construção
facto que contrasta com do convento fosse muito
ainda que, mesmo que/se,
Concessiva o expresso na subordinante, dispendiosa, D. João V
posto que, se bem que, por
mas que não impede a sua não abandonou a sua
mais/menos que...
realização. edificação.

Apresenta a condição ou
• Caso não tivesse
se, caso, desde que, contanto regressado do Brasil,
a hipótese exigida para
Condicional que, salvo se, a menos que, Ricardo Reis nunca se
a realização da situação
a não ser que... encontraria com o seu
expressa na subordinante.
criador.

Expressa o efeito
• A criação literária de
Fernando Pessoa foi tão
tão/tanto… que, a ponto de, ou a consequência
Consecutiva intensa que ainda hoje
de tal modo… que... do que é dito na
subordinante. surgem textos inéditos
deste autor.

para, para que, com


a finalidade/o objetivo de,
Refere o propósito, • Ricardo Reis visitou
a intenção ou a finalidade o cemitério com
Final de modo a/que, de forma
da ação expressa a finalidade de ver
a que, a fim de (que),
na subordinante. Fernando Pessoa.
de maneira a (que)...

quando, enquanto, apenas,


mal, logo que, depois de/ Cria uma referência temporal
que, antes de/que, até que, à luz da qual a ação expressa
• Mal leias o conto,
Temporal inicia a resolução
sempre que, todas as vezes na subordinante deve ser
que, agora que, cada vez que, interpretada. das atividades.
assim que...

379
APLICAÇÃO

Orações coordenadas e subordinadas

1 Associe a classificação das orações coordenadas, na coluna A, às frases que as


exemplificam, na coluna B.

Coluna A Coluna B
1. Estudamos a poesia ortónima, mas também analisamos poemas
dos heterónimos.
a. Adversativa 2. Lemos a “Ode Triunfal”, mas não abordamos a “Ode Marítima”.
b. Conclusiva 3. ‒ Meninos, hoje analisamos dois poemas ou apresentam o trabalho
sobre Saramago.
c. Copulativa 4. Visitaremos a Fundação José Saramago, logo, será mais fácil
perceberem o autor.
d. Disjuntiva
5. Nem identificaram o patriotismo nem perceberam a presença
e. Explicativa do sebastianismo em Mensagem.
6. Eles não devem gostar muito de poesia, pois aderiram melhor
aos contos.

2 Identifique, sublinhando, as orações subordinadas adverbiais, nas frases da colu-


na A, associando-as, corretamente, à sua classificação, na coluna B.

Coluna A Coluna B
a. Gostei tanto de O Ano da Morte de Ricardo Reis como 1. Subordinada adverbial
gostei do Memorial do convento. causal
b. Teriam obtido melhores resultados caso se 2. Subordinada adverbial
lembrassem das recomendações dadas. comparativa
c. Como não reviram os conteúdos de 11.º ano, tiveram 3. Subordinada adverbial
mais dificuldades no exame. concessiva
d. Consegui resolver o questionário ainda que tenha sentido 4. Subordinada adverbial
dificuldades. condicional
e. Fiz revisão destes conteúdos, mal a professora 5. Subordinada adverbial
aconselhou. consecutiva
f. Eles revelaram tanto interesse na obra Saramaguiana 6. Subordinada adverbial
que resolvemos visitar a sua fundação. final
g. Resolvemos as atividades de preparação para exame 7. Subordinada adverbial
para que os resultados sejam bons. temporal

3 Transcreva as orações subordinadas relativas (adjetivas e substantivas), classifi-


que-as e indique a função sintática que desempenham.
a. Indicaremos quem vos vai acompanhar na visita de estudo.
b. Li os dois contos que a professora nos indicou.
c. Quem distingue bem os heterónimos não os confunde.
d. O poema, onde Pessoa expõe a teoria do fingimento artístico, é difícil.
e. Os livros onde encontrei resumos das matérias estavam à venda na Fnac.
f. Ele frequentou aquela escola que agora está em obras.
g. Eles foram onde a professora lhes disse que encontrariam o livro.
h. Este é o autor a quem pedi que me autografasse o livro.
i. Fernando Pessoa não era quem dizia ser.
j. Os textos, que alguns escolheram, não foram indicados pelo professor.

380
II Gramática

APLICAÇÃO

4 Para completar cada um dos itens 4.1 a 4.5, selecione a opção correta. Resolução/Atividade:
Questão de exame
explicada: orações 1;
4.1 As frases seguintes apresentam uma oração subordinada substantiva, exceto Questão de exame
explicada: orações 2
A. Não estudar regularmente implica que os resultados sejam pouco satis- Quiz: A frase complexa:
fatórios. coordenação e
subordinação 1; A frase
B. A experiência mostrou-me que os sacrifícios compensam. complexa: coordenação
e subordinação 2; A frase
C. A incerteza de ter uma boa classificação consumiu-o durante algum tempo. complexa: coordenação
e subordinação 3
D. Ele estudou tanto que só podia ter tido uma boa nota.
4.2 Na frase “Reconhecer que erramos é uma atitude que muitos assumem humil-
demente”, a palavra “que” introduz
A. orações substantivas completivas em ambos os casos.
B. uma oração substantiva completiva, no primeiro caso, e uma oração su-
bordinada adjetiva relativa restritiva, no segundo.
C. orações subordinadas adjetivas relativas restritiva, em ambos os casos.
D. uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva, no primeiro caso,
e uma oração substantiva completiva, no segundo.
4.3 A frase “Mal saímos do cinema, perguntei aos meus colegas se gostaram do
filme” integra, sequencialmente,
A. uma oração substantiva completiva e uma oração subordinada adverbial
causal.
B. uma oração subordinada adverbial temporal e uma oração subordinada
adverbial condicional.
C. uma oração subordinada adverbial temporal e uma oração subordinada
substantiva completiva.
D. uma oração subordinada adverbial comparativa e uma oração subordina-
da adverbial condicional.
4.4 Em “Os meus colegas evoluíram de tal forma que a professora se mostrou
satisfeita com os resultados que obtiveram” estão presentes duas orações
subordinadas introduzidas por “que”.
A. A primeira é subordinada adverbial consecutiva e a segunda subordinada
adjetiva relativa restritiva.
B. A primeira é subordinada adverbial comparativa e a segunda subordinada
adjetiva relativa restritiva
C. A primeira é subordinada adverbial consecutiva e a segunda subordinada
adjetiva relativa explicativa.
D. A primeira é subordinada adverbial consecutiva e a segunda subordinada
substantiva completiva.
4.5 A frase “O diretor entregou o prémio a quem participou nas atividades” integra
A. uma oração subordinante e uma subordinada substantiva relativa.
B. duas orações subordinadas, uma substantiva e outra adjetiva relativa
restritiva.
C. duas orações: uma subordinante e outra subordinada adverbial temporal.
D. uma oração subordinada substantiva completiva e outra coordenada
explicativa.

381
Frase ativa e frase passiva
Frase ativa
A frase é ativa quando apresenta um grupo verbal constituído por um verbo principal
transitivo direto, transitivo direto e indireto ou transitivo predicativo, podendo ser antecedido
ou não de verbo auxiliar.
Ex.: Os alunos colocaram as obras lidas na carteira.

Frase passiva
A frase é passiva quando apresenta um grupo verbal constituído por um verbo principal
no particípio, antecedido pelo verbo auxiliar ser.

Na transformação da frase ativa para a frase passiva:


• o complemento direto da frase ativa é transformado no sujeito da frase passiva;
• o sujeito da frase ativa, se for realizado, transforma-se em complemento agente
da passiva.
Ex.: As obras lidas foram colocadas na carteira pelos alunos.

Esquema ilustrativo da transformação de uma frase ativa numa frase passiva

Um aluno apresentou o soneto. Frase ativa

sujeito verbo principal compl. direto

O soneto foi apresentado por um aluno. Frase passiva

sujeito Verbo aux. ser + verbo principal (particípio) compl. agente da passiva

Nota
• Uma frase passiva pode ser construída sem recurso ao verbo auxiliar ser, utilizando-se o pronome pessoal se.
• O complemento agente da passiva pode não estar expresso.

Exs.: Os sentidos constroem-se paulatinamente.


Os sentidos são construídos paulatinamente.

Nota
Na transformação de uma frase ativa em frase passiva, o verbo auxiliar da passiva (ser) terá de ficar no mesmo tempo e modo em
que se encontrava o verbo principal da frase ativa. Este, por seu lado, terá de ser colocado no particípio, concordando em género e
em número com o novo sujeito da passiva.

382
II Gramática

Pronome pessoal em adjacência verbal − regras de utilização


As formas átonas (tais como o, a, os, as, nos, vos, lhe, lhes) ocorrem em adjacência
verbal, ou seja, junto ao verbo, desempenhando a função de complemento direto ou de
complemento indireto.

Colocação do pronome pessoal átono

1 Tradicionalmente, o pronome surge em posição pós-verbal (ênclise).


Ex.: O aluno leu todas as obras recomendadas. O aluno leu-as.

• Nesta posição, os pronomes átonos o, a, os, as podem sofrer alterações, se a forma


verbal terminar em -r, -s ou -z. Neste caso, estas consoantes desaparecem e os
pronomes tomam as formas -lo(s), -la(s).
Ex.: Aquele jovem fez o trabalho sozinho. Aquele jovem fê-lo sozinho.

• Se a forma verbal terminar em -ns, passa a -m, quando seguida de pronome átono
o, a, os, as, e os pronomes adquirem as formas -lo(s), -la(s).
Ex.: Tu tens o meu livro? Tu tem-lo?

• Quando a forma verbal termina em ditongo nasal (-õe, -ão), os mesmos pronomes
assumem as formas -no(s), -na(s).
Exs.: Os alunos leem os livros recomendados. Os alunos leem-nos.
A Rita põe o dever acima de tudo. A Rita põe-no acima de tudo.

2 Quando ocorrem com formas verbais do futuro do indicativo e do condicional, os pronomes


átonos são colocados no interior da forma verbal (mesóclise).
Exs.: O Miguel apresentará o seu trabalho no segundo período. O Miguel
apresentá-lo-á no segundo período.
Ele trataria melhor os mais pequenos. Ele tratá-los-ia melhor.

3 O pronome átono desloca-se para antes do verbo ‒ próclise ‒ em construções frásicas


como as seguintes:

a. Frases de polaridade negativa.


Exs.: Ele nunca apresentou o trabalho. Ele nunca o apresentou.
A Joana não fez a análise do poema. A Joana não a fez.

b. Frases com conjunções coordenativas com um elemento de polaridade negativa


(não só… mas também; nem… nem; etc.) e conjunções coordenativas disjuntivas
(ou… ou; etc.).
Exs.: O Henrique não só analisou o poema como também apresentou o poema
à turma. O Henrique não só o analisou como também o apresentou
à turma.
Ou ajudais o vosso colega ou ele perde-se. Ou o ajudais ou ele
perde-se.

383
c. Frases com pronomes indefinidos como alguém, ninguém.
Ex.: Ninguém percebeu a ironia de José Saramago. Ninguém a percebeu.

d. Frases em que o verbo é antecedido de advérbios como mal, sempre, ainda, já,
apenas, só, talvez, aqui…
Ex.: Ainda li este poema ontem. Ainda o li ontem.

e. Orações introduzidas por uma conjunção subordinativa.


Exs.: A turma garantiu que leu o poema “Isto”. A turma garantiu que o leu.
Diz-me quando vais comprar o livro recomendado. Diz-me quando
o vais comprar.
A professora disse para lermos o livro. A professora disse para
o lermos.

f. Orações relativas (adjetivas ou substantivas).


Exs.: O autor que criticou a sua época foi admirado. O autor que a criticou foi
admirado.
Quem criticou a Inquisição foi José Saramago. Quem a criticou foi José
Saramago.

g. Frases ou orações iniciadas por um pronome interrogativo1 ou por um advérbio


interrogativo2.
Exs.: 1 Quem leu os livros recomendados. Quem os leu?
2
Onde puseste o livro? Onde o puseste?

h. Frases de tipo exclamativo nas quais se manifestem emoções ou desejos1 ou


aquelas em que o falante constrói frases com determinada intencionalidade, des-
tacando certos constituintes e desviando-os da ordem padrão2.
Exs.: 1 Oxalá percebas os poemas todos! Oxalá os percebas todos!
2
Que Deus proteja os jovens! Que Deus os proteja!

4 Colocação do pronome pessoal átono em complexos verbais.

a. Nos complexos verbais com os auxiliares dos tempos compostos (ter e haver) e o
auxiliar da passiva (ser), o pronome é colocado à direita do verbo auxiliar.
Exs.: O professor tinha aconselhado mais estudo aos alunos. O professor
tinha-lhes aconselhado mais estudo.
O livro é emprestado pela bibliotecária aos alunos. O livro é-lhes empres-
tado pela bibliotecária.

b. Pode ocorrer antes do complexo verbal quando algum elemento atrás referido requer
a próclise.
Ex.: Ninguém quis ler em voz alta o poema. Ninguém o quis ler em voz alta.

c. Nos complexos verbais com auxiliares como começar a, acabar de, estar a, andar a,
o pronome ocorre depois do verbo principal.
Ex.: Estou a apreciar o conto “Sempre é uma companhia”. Estou a apreciá-lo.

384
II Gramática

APLICAÇÃO

Frase ativa e frase passiva/Pronome em adjacência verbal

1 Assinale as frases que se encontram na forma passiva.


A. O rei D. João V mandou erguer um convento em Mafra.
B. Baltasar e Blimunda, que se conheceram num auto de fé, foram casados por
padre Bartolomeu.
C. A compra da telefonia foi feita por Batola contra a vontade da mulher.
D. A dor de pensar atormentava Fernando Pessoa.
E. A casa dos pais foi vendida por George quando esta era adulta.
F. A passarola foi desenhada por padre Bartolomeu e construída por Baltasar
e Blimunda.
G. Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, poetas portugueses, foram
criados por Fernando Pessoa.

1.1 Transforme as frases ativas em frases passivas.

1.2 Indique as funções sintáticas dos segmentos sublinhados.

2 Reescreva as frases seguintes, substituindo os segmentos sublinhados pelo pro-


nome pessoal adequado.
a. Os trabalhadores construíram o convento.
b. Os trabalhadores ouviam a rádio com atenção.
c. A mulher de Batola impediria o negócio.
d. Pessoa construiu uma rede de poetas.
e. Eu nunca tinha lido esta obra.
f. ‒ Não compras a rádio, António!
g. Comprarias toda a obra poética de Caeiro?
h. Pessoa, diz-se, escrevia os seus poemas numa cómoda alta!
i. Vou emprestar o meu livro de Português ao António.
j. Consultamos a biografia de Saramago se for necessário.
k. Não encontro a análise do poema.

3 Reescreva as seguintes frases, substituindo os segmentos sublinhados pelos


pronomes correspondentes.
a. António Barrasquinho, embora respeitasse a mulher, não quis perguntar à mulher
se queria comprar o rádio.
b George mostrava muito desprendimento de bens materiais, por isso vendia
os bens materiais.
c. Os ceifeiros dirigiam-se à venda ao fim do dia e Batola servia bebidas aos cei-
feiros alegremente.
d. Quando a clientela era muita, Barrasquinho chamava a mulher para atender
a clientela.

385
LEXICOLOGIA

Arcaísmos e neologismos

Palavras ou expressões que deixam de ser comummente utilizadas pela


Arcaísmos comunidade e que, por isso, passam a considerar-se antiquadas. É o caso
de coita, forma antiga para referir “sofrimento”, “infelicidade”.

Palavras novas ou novas associações de forma e sentido que resultam,


fundamentalmente, da necessidade de renovação do léxico. Assim,
o neologismo tanto pode resultar da atribuição de um novo sentido
a uma palavra já existente, como acontece com alguns termos da área da
Neologismos
informática (rato, sítio, portal, navegar…), como pode decorrer da atuação
dos diferentes processos de formação de palavras (cf. europeizar,
aerogerador, eurodeputado). Também do contacto com outras línguas pode
resultar a integração de novo vocabulário (empréstimos – cf. p. 388).

Campo lexical e campo semântico

Conjunto de significados que uma palavra pode ter, dependendo dos


contextos em que ocorre. O campo semântico de mar, por exemplo,
Campo integra os significados que, em situações distintas, o nome adquire.
semântico
Exs.: Andava um mar de gente nas ruas da baixa.
Nem tudo é um mar de rosas.

Conjunto de palavras que, pelo seu significado, se associam a um


Campo determinado conceito ou ideia. Por exemplo, ao campo lexical de mar,
lexical associam-se muitas outras palavras: pescadores, traineiras, mestre,
varinas, peixeiras, embarcações…

Monossemia e polissemia

Palavras que têm um só significado. Predominam nos textos científicos


Palavras dado que neles se procura veicular uma mensagem objetiva, que deve ser
monossémicas entendida por todos os leitores.
Exs.: cartografia, biologia, caligrafia...

Palavras que têm uma propriedade semântica que lhes permite


apresentarem vários significados, de acordo com o contexto em que
surgem, havendo, todavia, um elo comum nesses múltiplos sentidos.
O termo ilha pode surgir como:
Exs.: • porção de terra rodeada de água ‒ Visitei a ilha da Madeira.
Palavras • designação de um local ‒ “Sabia já Baltasar que o sítio onde
polissémicas
se encontrava era conhecido pelo nome de Ilha da Madeira.”
• pessoa tímida e com dificuldades de relacionamento ‒ Aquele
rapaz é uma ilha!
Quiz: Arcaísmos • espaço que, pelas suas características geográficas, fica
e neologismos; Campo
lexical e campo semântico isolado ‒ Esta aldeia é uma ilha!

386
II Gramática

Denotação e conotação

Significado literal da palavra ou expressão que, normalmente, é comum


Denotação
a todos os falantes.

Significado atribuído a uma palavra, que não o comum ou literal.


Conotação Exs.: Ele traz uma flor. (sentido denotativo)
Ele não é flor que se cheire. (sentido conotativo/figurativo –
“má pessoa”).

Relações semânticas
As relações semânticas entre palavras podem ser de vários tipos.

Relação hierárquica de inclusão entre palavras:


– hiperónimo – significado mais genérico: peixe
hiperonímia – hipónimo – significado mais específico: pescada,
Relações carapau, sardinha, robalo…
e
de hierarquia O hipónimo mantém com o hiperónimo traços
hiponímia
semânticos comuns. Por isso, as espécies de
peixes elencadas são hipónimos do hiperónimo
peixe, e vice-versa.

Relação de hierarquia semântica entre palavras:


– holónimo – refere o todo, a unidade: carro
holonímia – merónimo – refere uma parte dessa unidade:
Relações chassis, volante, bancos, guarda-lamas,
e
de todo/parte para-choques…
meronímia
Os merónimos correspondem a partes do todo –
neste caso, o holónimo carro integra todos
os elementos referidos, os merónimos.

Relação de semelhança/oposição entre palavras:


– sinonímia – relação de equivalência de
significado entre duas ou mais palavras.
Relações
sinonímia Ex.: bonito/lindo; carro/automóvel;
de
e pão/carcaça...
semelhança/
antonímia
oposição
– antonímia – relação semântica de oposição entre
duas ou mais palavras.
Exs.: dia/noite; subir/descer; rápido/lento...

387
Processos irregulares de formação de palavras

Designação Definição

Criação de um vocábulo através da junção de letras ou sílabas de um


Acrónimo grupo de palavras, que se pronunciam como uma só palavra.
Ex.: ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações)

Criação de uma palavra a partir das iniciais de um grupo de palavras,


que é pronunciada letra a letra.
Sigla
Exs.: SCP (Sporting Clube de Portugal) / FCT (Fundação para a Ciência
e a Tecnologia)

Transferência de uma palavra de uma língua para outra, com ou sem


Empréstimo adaptações às características formais da língua recetora.
Ex.: Dossiê (do francês dossier)

Criação de novos sentidos para uma palavra já existente na língua que,


Extensão contudo, não perde o(s) significado(s) anterior(es).
semântica Ex.: Rato (aplicado à informática como comando manual
do computador)

Criação de um termo que se caracteriza pela eliminação de parte


Truncação da palavra de que deriva.
Ex.: Metro (metropolitano)

Criação de uma palavra a partir da junção de partes de duas ou mais


Amálgama palavras.
Ex.: Informática (informação + automática)

Palavra que tem origem na imitação de um som.


Onomatopeia
Ex.: miau, miau...

APLICAÇÃO

Lexicologia
1 Associe as palavras da coluna A, que atualmente caíram em desuso, aos respe-
tivos significados, na coluna B.

Coluna A Coluna B
a. simpreza 1. cuidadosa, apressada
b. sôbolos 2. mãe
c. madre 3. à maneira de
d. aguçosa 4. enlouquecer
e. à guisa de 5. quarto
f. louçana 6. simplicidade
g. ledo 7. alegre, feliz
h. ensandecer 8. depressa, rápido

Gramática/Atividade:
i. asinha 9. sobre
Processos irregulares j. câmara 10. bela, linda
de formação de palavras

388
II Gramática

APLICAÇÃO

2 Atente nas frases seguintes. Quiz: Lexicologia:


processos irregulares
de formação de palavras
A. Preciso de fazer um workshop em cibersegurança.
B. O rato do meu computador não tem fios e isso é muito prático.
C. Para fazer o trabalho, acedi ao portal do ministério da educação.
D. A professora aconselhou a fazermos um back-up para não perdermos os tra-
balhos.
E. A ofensiva da Rússia teve uma resposta a nível pan-europeu.
F. Depois de terminarmos a análise do poema, temos de fazer o upload do trabalho.
G. Não consigo ouvir a professora, preciso de consultar um otorrino.
H. A professora inscreveu-nos numa conferência muito longa, mas há um coffee
break a meio da manhã.
I. A plataforma de entrega de trabalhos não está a responder.

2.1 Transcreva de cada frase o(s) termo(s) que configura(m) neologismo(s).

2.2 Identifique os que exemplificam processos irregulares de formação de pala-


vras e indique-os.

3 Identifique, em cada conjunto de palavras, aquela que não pertence ao mesmo


campo lexical.
a. mesa, cadeira, cama, sofá, patinagem, móvel.
b. Portugal, França, Angola, Espanha, Itália, Alemanha.
c. palco, ator, literatura, ponto, cenário, encenador.
d. Mercúrio, Vénus, Marte, Sol, Terra, Júpiter.

4 Considere as frases.
A. O Pedro fez o trabalho de português durante uma hora.
B. O João magoou-se e levou dois pontos na perna.
C. A análise que cada um faz da realidade obedece a um ponto de vista.
D. Cesário Verde percorria a cidade a horas mortas.
E. A Maria não dá ponto sem nó.
F. Os livros estão pela hora da morte.
G. No fim do ano letivo é a hora do aperto.
H. O ponto de admiração é pouco utilizado pelos escritores.

4.1 Indique as palavras em torno das quais se construíram campos semânticos.

4.2 Proponha um sinónimo para cada uma das frases em que essas palavras sur-
gem com sentido conotativo.

5 Construa dois pares de frases em que os termos seguintes tenham sentido cono-
tativo.
a. mão
b. ilha

389
SEMÂNTICA

Modalidade e valor modal


Exprime a atitude do locutor relativamente àquilo que diz e a quem o diz. Através do valor modal
expressam-se apreciações ‒ modalidade apreciativa ‒ sobre o conteúdo de um enunciado, re-
presentam-se valores de probabilidade ou de certeza ‒ modalidade epistémica, de permissão ou
obrigação ‒ valor deôntico.
A modalidade pode ser transmitida através de expressões modais (Acredito que; na minha opi-
nião…), de advérbios ou locuções adverbiais (provavelmente, talvez, com toda a certeza…), de
verbos modais (auxiliares como dever, poder…, ou principais com valor modal como crer, pensar,
obrigar…), de adjetivos com sentido modal (capaz, provável…), entre outras formas.

Designação e valor expresso Exemplos

Apreciativa • Lamento que não se façam mais


O locutor exprime um juízo valorativo sobre uma situação, dramatizações de Memorial do convento.
descrita no enunciado, utilizando construções exclamativas • Infelizmente, Reis e Lídia não puderam
e/ou verbos como lamentar, gostar, apreciar, admirar… ser felizes.

Valor de certeza • Ricardo Reis privilegiava os jornais para


O locutor assume uma posição obter informação.
de certeza face ao que afirma.
• Marcenda e o pai vinham de Coimbra.
Epistémica Valor de probabilidade
O locutor não assume a falsidade ou • Talvez Marcenda amasse verdadeiramente
verdade do que afirma, antes apresenta a Reis.
situação como algo que poderá ocorrer (ou
não); supõe que possa ser verdade (ou não) • É provável que a morte de Fernando
o seu juízo. Pessoa tenha afetado Ricardo Reis.

• – Pode visitar o meu consultório disse Reis


a Lídia.
Valor de permissão • – Podes ir visitar-me – disse Reis a Lídia.
O locutor permite ao recetor, sem
restrições, a realização da situação • – Não podem prescindir da leitura integral
Deôntica expressa no enunciado. das obras.
• – Têm de reler os dois primeiros capítulos
Valor de obrigação
de Memorial do convento para a aula de
O locutor proíbe ou impõe algo ao recetor.
amanhã.
• – Deves casar com alguém que te mereça –
disse o pai a Marcenda.

Gramática/Atividade:
Valor modal: modalidade
apreciativa; Valor modal: Nota
modalidade deôntica; O verbo auxiliar modal dever pode também transmitir o valor de probabilidade da modalidade epistémica (Devem ter chegado muito tarde!).
Valor modal: modalidade O verbo auxiliar modal poder transmite frequentemente o valor de probabilidade, mas pode também ter valor de certeza, ambos de modalidade
epistémica
epistémica, quando significa capacidade (Este pode dirigir a empresa).

390
II Gramática

Para exprimir os valores modais, vários recursos podem ser utilizados:


• a frase ou construção de tipo exclamativo;
• a entoação (na oralidade);
• o emprego de advérbios e locuções adverbiais que formalizam os diversos tipos de modalida-
de (ex.: certamente, evidentemente, possivelmente, talvez, felizmente, francamente…);
• o emprego de adjetivos reveladores da perspetiva do locutor em relação ao que enuncia (ex.:
bom, mau, agradável, desagradável, horrível, importante, permitido, proibido…);
• a variação do modo ou do tempo verbal (ex.: no uso do imperativo, emerge a modalidade deôntica);
• o emprego de verbos auxiliares com determinado valor modal (ex.: dever, ter de, poder + infinitivo);
• o emprego de verbos principais com valor modal (ex.: saber, crer, pensar, duvidar, obrigar,
autorizar, permitir, gostar de, agradar, apreciar, detestar, lamentar…);
• o emprego do verbo ser em expressões reveladoras de diversos tipos de modalidade (ex.:
é pena que, é lamentável que, é necessário que, é certo que, é preciso que, é obrigatório que,
é possível que).

APLICAÇÃO

Modalidade e valor modal

1 Atente na frase: "Hoje podem fazer o quizz que vos vou apresentar, mas tenham
cuidado, porque pode haver armadilhas."

1.1 Na frase estão presentes as modalidades e o respetivo valor modal


A. epistémica com valor de certeza, deôntica com valor de obrigação
e deôntica com valor de permissão.
B. deôntica com valor de permissão, deôntica com valor de obrigação
e epistémica com valor de probabilidade.
C. deôntica com valor de permissão, deôntica com valor de obrigação
e apreciativa.
D. epistémica com valor de certeza, epistémica com valor de probabilidade
e deôntica com valor de obrigação.

2 A frase “Adorei a adaptação teatral de O ano da morte de Ricardo Reis.” expressa


um valor modal de
A. certeza. C. obrigação.
B. probabilidade. D. apreciação.

3 Associe o valor modal (coluna A) aos enunciados da coluna B.

Coluna A Coluna B
1. Que calor insuportável!
a. Certeza
2. Os resultados não foram os esperados.
b. Permissão 3. Talvez não tenham esclarecido as dúvidas todas.
c. Obrigação 4. Não podem esperar que resolvam os vossos problemas.
Resolução/Atividade:
d. Probabilidade 5. Têm de se preparar antes de qualquer prova. Questão de exame explicada:
6. Depois de acabarem o teste, podem sair. valor modal 1;
e. Apreciação Questão de exame explicada:
7. É possível que haja atrasos na publicação dos resultados. valor modal 2
Quiz: Valor modal

391
Valor aspetual
O aspeto gramatical relaciona-se com o valor dos tempos verbais, de verbos auxiliares,
de estruturas de quantificação, de certos tipos de nomes ou de modificadores. A com-
binação de elementos deste tipo permite representar uma situação como culminada/
concluída (valor perfetivo), não culminada (valor imperfetivo), genérica, habitual ou
iterativa.

Valor aspetual Exemplificação

Perfetivo
O tempo verbal normalmente associado a este aspeto
• George vendeu a casa dos pais.
é o pretérito perfeito do indicativo. A situação expressa
no enunciado apresenta-se concluída.
Imperfetivo
O tempo verbal normalmente associado a este aspeto é • Os ceifeiros ouviam as emissões
o pretérito imperfeito do indicativo. A situação expressa de rádio todas as noites.
no enunciado apresenta-se em curso ou por concluir.
Genérico
O tempo verbal normalmente associado a este aspeto é o
presente do indicativo ou o infinito impessoal conjugado com • Viajar abre horizontes.
grupos nominais de interpretação genérica. Apresenta-se • A Terra gira em torno do Sol.
em enunciados que veiculam informações aceites como
universais e intemporais.
Habitual
Os tempos verbais mais associados a esta situação são o
presente do indicativo e o pretérito imperfeito do indicativo,
dependendo do ponto de referência da enunciação. São • Costumamos viajar por Portugal
também recorrentes expressões como costumar, ser nas férias.
costume, ser habitual, • Liam poesia sempre que
Apresenta situações que surgem em enunciados que estavam apaixonados.
expressam uma pluralidade infinita de acontecimentos
que se sucedem num período de tempo construído como
ilimitado.

Iterativo • Desde a chegada da rádio,


O tempo verbal associado a este valor aspetual é o pretérito Batola tem trabalhado bastante
perfeito composto do indicativo e construções como na loja.
“andar a”, ou outras expressões de valor temporal. • Os alunos do 12.˚ ano andam
Apresenta-se em enunciados que expressam situações que a ensaiar a leitura expressiva
se repetem num período de tempo delimitado ou não. da “Ode triunfal”.

APLICAÇÃO

Valor aspetual

1 Indique o valor aspetual presente nos seguintes enunciados.


a. Os alunos realizaram o teste de Português.
b. Estamos a ler o Memorial do convento.
c. Os golfinhos são amistosos.
d. Todas as semanas vou visitar os meus avós.

Gramática/Atividade: e. Ultimamente, ando a estudar mais com os meus colegas.


Valor aspetual

392
II Gramática

APLICAÇÃO

2 Construa frases que apresentem os valores aspetuais indicados, usando as pala- Quiz: Valor aspetual 1; Valor
aspetual 2; Valor aspetual 3
vras dadas.
2.1 Pedro / escrever / texto
a. valor perfetivo
b. valor habitual

2.2 Artistas / expor / trabalhos


a. valor imperfetivo
b. valor iterativo

2.3 Associação de estudantes / promover / angariação de fundos


a. valor imperfetivo
b. valor iterativo

2.4 Joana / correr / amigos


a. valor habitual
b. valor imperfetivo

2.5 Duarte e João / participar / concurso de contos


a. valor habitual
b. valor iterativo

3 Associe os enunciados (coluna A) ao respetivo valor modal na coluna B.

Coluna A Coluna B
a. Tenho o hábito de ir ao cinema uma vez
por mês.
1. Perfetivo
b. Os alunos do 12.º ano realizaram uma ficha
2. Imperfetivo
de gramática.
3. Genérico
c. Os meus colegas estão a ler o Memorial
do convento. 4. Habitual

d. Nas últimas semanas tenho lido diariamente. 5. iterativo

e. O Homem é um ser dotado de razão.

393
DISCURSO, PRAGMÁTICA E LINGUÍSTICA TEXTUAL

Dêixis pessoal, temporal, espacial


Uma situação de enunciação pressupõe a existência de um sujeito de enunciação – EU – que se dirige a um destinatário –
TU – num determinado contexto, nomeadamente espaciotemporal.

Observe:
AGORA
TEMPO

EU “Ficas comigo, aqui, a ver o filme, agora, Maria? ” TU


(nós) (vós)

AQUI
ESPAÇO

Assim, os deíticos são mecanismos linguísticos de referenciação relativos a esta situação de enunciação e apresentam
valor:
• pessoal – EU – TU (Maria);
• temporal – agora;
• espacial – aqui.
No entanto, a interpretação destes elementos depende das circunstâncias em que ocorre o ato de comunicação, logo, a sua
referenciação só pode ser identificada tendo em conta o conhecimento que temos do contexto da interação, uma vez que
é este que permite identificar quem produziu o enunciado, a pessoa a quem se dirige, o espaço e o tempo referenciados.

Observe atentamente a tabela que se segue.

Deíticos Exemplos de enunciados Marcas linguísticas

“− Também tenho muitos encontros, eu. Não • Formas verbais conjugadas na 1.ª pessoa (do singular):
quero tê-los mas sou obrigada a isso, vivo tão “Tenho”; “quero” “sou”; ”falei”
só. […] Porque... o tal crime de que lhe falei, o
único sem perdão, a velhice. Um dia vai acordar
na sua casa mobilada...” A denunciarem a presença do locutor (eu)
Pessoal Maria Judite de Carvalho, “George”
• Determinantes possessivos e pronomes pessoais de
3.ª pessoa: “lhe” e “sua”

A denunciarem a presença do interlocutor (tu-você)


“− Partir, não é? Em que se pode pensar aqui, • Advérbio com valor locativo: “aqui”
neste cu de Judas, senão em partir? Ainda não
Espacial
me fui embora por causa do Carlos, mas...”
Maria Judite de Carvalho, “George”

“Sai da venda, entra no carro, e diz ao Batola, • Advérbio com valor temporal: “agora”
aproveitando o ruído do motor: • Marca de flexão verbal que aponta para o momento
− Você, agora, arrume a questão: tem um mês da enunciação: "arrume"
Temporal
para a convencer.” • Expressão "tem um mês" (que estabelece um
Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia” intervalo temporal de 30 dias a contar do momento
da enunciação

Em síntese: os elementos de referência deítica podem ser pronomes pessoais, determinantes e pronomes possessivos
e demonstrativos, advérbios, tempos verbais, algumas preposições e locuções prepositivas, alguns adjetivos (atual, con-
temporâneo, futuro…), alguns nomes (véspera…).

394
II Gramática

APLICAÇÃO

Dêixis Gramática/Atividade: Dêixis


Resolução/Atividade:
1 Destaque os deíticos presentes nas frases que se seguem, indicando o respe- Questão de exame explicada:
dêixis pessoal; Questão
tivo valor, e registe-os na tabela. de exame explicada: dêixis
temporal e espacial
a. – Ontem houve uma grande tempestade. Quiz: Dêixis pessoal,
temporal e espacial 1;
b. – Ali, onde construíram o convento, havia uma horta dos frades. Dêixis pessoal, temporal
e espacial 2
c. – António, se tu quiseres, podemos ficar com a rádio, disse a mulher de Batola.

d. – Aqui há uma tomada – disse o vendedor.

e. – Hoje, vou recolher vontades – disse Blimunda a Baltasar.

f. – Irei embora desta terra, conquistar o meu sonho, disse Gi aos seus pais.

g. – Agora, tu ficarás aqui a construir a passarola.

Alínea Deíticos Valor

a.

b.

c.

d.

e.

f.

g.

395
ATOS ILOCUTÓRIOS
Dependendo da intencionalidade comunicativa, o locutor/emissor terá de selecionar
determinados atos ilocutórios.

Atos
Características Exemplos
ilocutórios

Demonstram o modo como o locutor se – Julgo que, atualmente,


Assertivos posiciona face à verdade/falsidade do a internet dá um contributo
enunciado. valioso na vida dos estudantes.

Revelam a intenção do emissor de – Quero que te empenhes


Diretivos persuadir o interlocutor, fazendo com na defesa do planeta.
que execute determinada ação.

Evidenciam o compromisso do emissor – Comprometemo-nos a reduzir


que assume praticar determinada ação o recurso a combustíveis
Compromissivos
no futuro. poluentes – disseram os líderes
europeus.

Expressam o estado psicológico/emotivo – A visita ao novo parque urbano


Expressivos do locutor através do conteúdo do fascinou-me.
enunciado.

Implicam a transformação de uma – O réu é condenado a pagar


situação a partir de um enunciado a limpeza do rio – disse o juiz.
Declarativos
proferido por um locutor a quem seja
reconhecida autoridade para isso.

APLICAÇÃO

Atos ilocutórios

1 Associe a classificação presente na coluna A às frases da coluna B.

Coluna A Coluna B
1. – Inscrevam-se no concurso de leitura!
2. Asseguro-vos que há prémios para os melhores
a. Ato ilocutório classificados.
assertivo
3. – Fantástico! A vossa turma conseguiu o primeiro
b. Ato ilocutório e o segundo lugares no concurso de escrita!
expressivo
4. – Determino a redução dos dias de férias, – disse o senhor
c. Ato ilocutório primeiro-ministro.
diretivo
5. Os alunos da turma participaram numa visita de estudo.
d. Ato ilocutório
6. – Sentem-se nas primeiras filas!
compromissivo
7. – Gostei do vosso empenho na elaboração do trabalho!
e. Ato ilocutório
8. – Prometo que faremos uma aula de campo.
declarativo
Gramática/Atividade:
Atos ilocutórios ou declaração 9. Fernando Pessoa é o único autor do 12.º ano que criou
(atos de fala) uma rede de heterónimos.
Quiz: Atos ilocutórios (atos
de fala)1; Atos ilocutórios 10. – Considerem a sentença anulada – disse o juiz.
(atos de fala) 2

396
II Gramática

Marcadores discursivos/conectores
São unidades linguísticas invariáveis que, embora não desempenhem uma função sintática no âmbito da frase nem
contribuam para o sentido proposicional do discurso, têm uma função relevante na sua produção, estabelecendo
conexões entre os enunciados, organizando-os e indicando o seu sentido argumentativo, introduzindo novos temas,
mantendo e orientando o contacto do locutor com o interlocutor.
Os conectores discursivos podem subdividir-se em:
• estruturadores da informação, sobretudo com a função de ordenação.
Exs.: em primeiro lugar, por outro lado, por último...
• reformuladores, sobretudo com a função de explicação e de retificação.
Exs.: ou seja, por outras palavras, dizendo melhor, ou antes...
• operadores discursivos, sobretudo com a função de reforço argumentativo e de concretização.
Exs.: de facto, na realidade, por exemplo, mais concretamente, efetivamente, nomeadamente...);
• marcadores conversacionais ou fáticos.
Exs.: ouve, olha, presta atenção, homem...
• conectores, como os que se apresentam na tabela seguinte, e que têm uma determinada função lógica/sintática.

Função lógica/sintática Listagem de conectores Exemplificação

• Os ceifeiros não saíam de casa nem


Adição (aditivo, copulativo) e, nem, bem como, conviviam.
Agrupa, adiciona segmentos, sequências. não só... mas também... • Não só li o conto “George” como também
resolvi as atividades propostas.
Alternativa/exclusão (disjuntivo) (ou... ) ou..., ora... ora..., • Ou por vontade ou por interesse, a mulher
Apresenta opções, alternativas. seja... seja... de Batola acedeu a ficar com o rádio.
Causa (causal) porque, como, visto que, • Dada a extensão do livro, iniciei a leitura
Introduz a causa, a razão. dado (que), uma vez que, já que no verão.
Concessão (concessivo) embora, ainda que, mesmo que, • Leio poesia embora prefira a prosa.
Nega o efeito, a conclusão da frase conquanto, apesar de, malgrado, • Apesar de preferir a prosa, também leio
subordinada, sem impedir o que nela é dito. não obstante poesia.
Conclusão (conclusivo)
Traduz a conclusão lógica, a inferência
portanto, assim, logo, • O teste é decisivo; logo, tenho de me
por conseguinte preparar bem.
resultante.
Condição (condicional) se, caso, desde que,
Introduz hipóteses ou condições. a não ser que, contanto que
• Se respeitares, serás respeitado.

Comparação (comparativo)
como, tal como... (assim...), • Tal como os alunos se mostraram
bem como... também..., interessados, também os professores
Traduz a comparação.
mais (menos) do que… revelaram satisfação.
• O professor afirmou que a obra Mensagem
Completamento (completivo)
tem um caráter simbólico.
Introduz o elemento sintático que completa que, se, para
o sentido do núcleo do grupo verbal. • O aluno perguntou se a linguagem era
metafórica.
Consequência (consecutivo) daí (que), por isso, de tal forma... • Ele gosta tanto dos poemas de Ricardo
Introduz a ideia de efeito, consequência. que..., tanto, tão, tal... que... Reis que os decorou facilmente.
Finalidade (final) para (que), a fim de, de modo • Participou na visita de estudo a Mafra para
Traduz a intenção visada, o objetivo. (forma) a, com o objetivo de apreciar melhor a obra saramaguiana.
Oposição (adversativo) mas, todavia, porém, contudo, • Alguns autores têm uma escrita hermética,
Articula conclusões opostas, diferentes. no entanto mas a beleza das obras mantém-se.

Tempo (temporal)
quando, enquanto, mal, • Quando assistimos à leitura expressiva
entretanto, logo que, depois de, de poemas, o seu conteúdo torna-se mais
Exprime relações de tempo.
antes de, desde que claro.

397
Reprodução do discurso no discurso

Formas de
Características Exemplos
representação
1
Reprodução de um texto ou de um fragmento de texto Exemplo explícito da citação direta são as citações
(escrito ou oral) noutro texto, sendo destacado por bíblicas utilizadas pelo Padre António Vieira. Estas
aspas ou por um tipo de letra diferente. citações conferem autoridade argumentativa ao seu
A citação pode ser direta ou indireta: utiliza-se discurso.
a primeira (direta)1 para reproduzir as palavras 2
Tal como se afirma no Dicionário Terminológico,
de alguém ou de fontes consultadas; a segunda a citação deve ser "assinalada com referência ao
Citação
(indireta)2 consiste em parafrasear ou condensar autor e/ou à obra aos quais pertencem…"
uma ideia ou assunto abordado por outrem. dt.dge.mec.pt
As normas de citação exigem a identificação do autor
e da(s) fonte(s) consultada(s). Pode ter uma função
argumentativa (autoridade), uma finalidade didática
ou de paródia.

Modalidade de reprodução do discurso que consiste “Poisa a mão sobre o ombro do Batola, e exclama:
em reproduzir, por escrito, características próprias − Dou-lhe a minha palavra de honra que não
da oralidade (realizações fonéticas, hesitações, encontra nenhum aparelho pelo preço deste!
repetições, pausas, interjeições, deíticos...) numa Sem dar tempo a qualquer resposta, ordena:
espécie de simulação ou reprodução do discurso − Traz a pasta, Calcinhas!”
testemunhado, mostrando as características
contextuais vividas por quem é citado. Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”

Aparece, normalmente, marcado graficamente por:


Discurso direto
• verbos de tipo declarativo − afirmar, perguntar,
responder, sugerir, concordar, declarar, explicar,
podendo estes ser eliminados para conferir mais
vivacidade, naturalidade e fluidez ao discurso;
• aspas;
• dois pontos, parágrafo, travessão;
• itálicos.

Modalidade de reprodução do discurso em que não há “E, ao meter os papéis dentro da pasta, repara
interferência direta da(s) personagem(ns), porque as que já é muito tarde. Apressado, conta que veio por ali
suas falas são reproduzidas pelo narrador. Apresenta, devido a um engano no caminho.”
normalmente: Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”
• verbos declarativos – dizer, afirmar, responder,
Discurso indireto pedir, perguntar;
• orações subordinadas substantivas completivas
ou infinitivas;
• utilização da terceira pessoa gramatical, que
implica também alterações das expressões
deíticas bem como de tempos e modos verbais.

Modalidade que implica uma fusão entre [...] Era acaso verosímil que tal se passasse,
a enunciação do emissor-relator (narrador) com com um amigo seu, numa rua de Lisboa, numa
a enunciação do locutor-personagem. É frequente no casa alugada à mãe do Cruges?... Não podia ser!
texto ficcional e permite ao narrador integrar, no seu Esses horrores só se produziam na confusão social,
discurso, as manifestações verbais das personagens, no tumulto da Meia Idade! Mas numa sociedade
Discurso indireto sem recorrer aos verbos introdutórios declarativos. burguesa, bem policiada, bem escriturada, garantida
livre Mantêm-se as marcas do discurso indireto ao nível por tantas leis, documentada por tantos papéis,
de pessoa, tempo e modos verbais, mas recorre-se com tanto registo de batismo, com tanta certidão
a marcas do discurso oral, também presentes no de casamento, não podia ser! Não! [...]
discurso direto, como: interjeições, exclamações, Os Maias, cap. XVI, p. 621
expressões modalizadoras, marcadores discursivos
(ora, pois bem, sendo assim…)

398
II Gramática

Recorde as transformações operadas na passagem do discurso direto para o indireto.

Gramática/Atividade:
Discurso direto Discurso indireto Citação; Discurso direto,
indireto e indireto livre

1.ª e 2.ª pessoas 3.ª pessoa

Eu, tu, nós, vós, me, nos Ele(s), ela(s), o(s), a(s), lhe(s)

Meu(s), minha(s), teu(s), tua(s), nosso(s),


Seu(s), sua(s), dele(s), dela(s)
nossa(s), vosso(s)

Este(s), esta(s), isto, esse(s), essa(s), isso Aquele(s), aquela(s), aquilo

Aqui, cá, aí, ali, lá, acolá Ali, lá, naquele lugar, naquele sítio

Naquele momento, imediatamente,


Agora, neste momento, já, hoje, ontem,
naquele dia, na véspera, no dia anterior,
amanhã, logo
no dia seguinte, depois
Complemento indireto do verbo introdutor
Vocativo
do discurso
Frase interrogativa indireta (introduzida
Frase interrogativa direta
pela conjunção subordinativa “se”)
Verbos vir e trazer Ir e levar
Presente do indicativo Pretérito imperfeito
Pretérito perfeito do indicativo Pretérito mais-que-perfeito do indicativo
Futuro do indicativo Condicional
Presente do conjuntivo Pretérito imperfeito do conjuntivo
Futuro do conjuntivo Pretérito imperfeito do conjuntivo
Pretérito imperfeito do conjuntivo ou infinitivo
Imperativo
impessoal (precedido de “para”)

Exemplos

[Em 2007, ganhou o Prémio Saramago. Que


importância real é que um prémio, ou melhor,
que esse prémio teve na sua vida?] [Na resposta à questão colocada] Valter Hugo
Mãe afirmou que começava por dizer, desde
Começo por dizer, desde já, o seguinte: logo, que o Prémio Saramago era o único que
o Prémio Saramago é o único que traz mesmo trazia mesmo uma mudança à vida de um
uma mudança à vida de um escritor. Antes escritor. Antes de mais, era dado pelo próprio
de mais, era dado pelo próprio Saramago – Saramago – de resto, não sabia se ele teria
de resto, não sei se ele terá a mesma força a mesma força com o Saramago morto. […]
com o Saramago morto. […] O que mais me O que mais o comovera na distinção que ele
comoveu na distinção que ele quis fazer-me, quis fazer-lhe, prendia-se com o facto de ele
prende-se com o facto de ele não ser uma [Saramago] não ser uma pessoa de elogio
pessoa de elogio fácil, e que só expunha fácil, e que só expunha as ideias em que
as ideias em que efetivamente acreditava. efetivamente acreditava.
(in https://www.dn.pt, excerto da entrevista
a Valter Hugo Mãe, consultado em outubro de 2021)

Nota
As transformações apresentadas no quadro ocorrem quando o verbo introdutor do discurso indireto se encontra no passado
(cf. verbos destacados).

399
APLICAÇÃO

Reprodução do discurso no discurso


1 Leia atentamente alguns excertos de obras estudadas ao longo do ano.
A. E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei de ir para Mafra, tenho
lá família, Mulher, Pais e irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo
de partires […].
Memorial do convento, p. 59.

B. Sentou-se Ricardo Reis, o maître diz-lhe o que há para comer, a sopa, o peixe,
a carne, salvo se o senhor doutor preferir a dieta, isto é, outra carne, outro
peixe, outra sopa, eu aconselharia, para começar a habituar-se a esta nova
alimentação […].
O ano da morte de Ricardo Reis, p. 24.

C. […] finge o marido que acorda, finge a mulher que o acordou, e se ele pergunta,
Então, já sabemos o que lá responderá, que vem morta de canseira, moidinha dos
pés, arrastadinha dos joelhos, mas consolada a alma.
Memorial do convento, p. 34.

D. […] quando Lídia entrou para vir buscar a bandeja afligiu-se, O senhor doutor
não gostou, e ele disse que tinha gostado, pusera-se a ler o jornal, distraíra-se,
Quer que mande fazer outras torradas, aquecer outra vez o café […].
O ano da morte de Ricardo Reis, p. 99.

E. Mas se o general Sanjurjo, que, segundo aquele boato que correu em Lisboa, iria
chefiar em Espanha um movimento monárquico, produziu o formal desmentido
que sabemos, Não penso em sair tão cedo de Portugal, então a questão é menos
complicada […].
O ano da morte de Ricardo Reis, p. 441.

1.1 Distinga segmentos exemplificativos de diferentes modos de reprodução do


discurso, preenchendo a tabela.

Modos de
reprodução Exemplo(s) Marcas
do discurso

a. Discurso
direto

b. Discurso
indireto
livre

c. Citação

d. Discurso
indireto

400
II Gramática

Texto e textualidade − coerência e coesão textual


Coerência textual
A coerência resulta da articulação lógica entre as diferentes partes e ideias de um texto. Depende ainda da intencionalidade
do autor, da ordenação e estruturação do conteúdo informacional dos textos bem como da competência linguística, da ca-
pacidade interpretativa e do conhecimento que o falante possui do mundo.

Para haver coerência textual é necessário que o texto:

• apresente progressão, ou seja, que acrescente novos factos • privilegie informação relevante, ou seja, que evite quaisquer
ou ideias; dados ou factos que não sejam pertinentes para o tema;
• obedeça à regra da não contradição, isto é, que não • espelhe a continuidade de sentido, isto é, que não haja
exponha ideias ou informações incompatíveis com outras já afastamento do tema/assunto.
enunciadas;
• renove a informação, eliminando as repetições inúteis;

Coesão textual
A coesão realiza-se através de mecanismos linguísticos lexicais e gramaticais que conferem continuidade, sentido e pro-
gressão entre os elementos da superfície textual, pelo que está intimamente ligada à coerência.

Mecanismos de coesão/
Processos implicados Exemplificação
Definição

Coesão lexical • reiteração: repetição de uma mesma unidade lexical ou expressão no *Exs.:
Mecanismo que se baseia texto. “D. João, quinto do seu
na repetição da mesma • substituição: substituição de unidades lexicais e expressões por outras nome na tabela real,
palavra ao longo do texto que se relacionam no texto através de relações de: irá esta noite ao quarto
ou na sua substituição de sua mulher1, D. Mariana
por outras que com − sinonímia1;
Ana Josefa1, que3 chegou
ela se relacionam, − antonímia; há mais de dois anos
constituindo assim uma − hiperonímia-hiponímia (hierarquia)2; da Áustria”
rede semântica adequada
− holonímia/meronímia (parte/todo). “o sol inundou a máquina2,
ao tema desenvolvido.
brilharam as bolas de
âmbar2 e as esferas2…”
Coesão gramatical • referencial3: relaciona-se com o uso anafórico de pronomes.
Relaciona-se com a “A máquina4 rodopiou4
• frásica4 (concordância): refere-se aos mecanismos linguísticos usados duas vezes, despedaçou4,
organização interna dos na ligação dos elementos que constituem as frases ou cada uma das
elementos linguísticos e rasgou4 os arbustos que
suas partes, como:
com os princípios a3 envolviam, e5 subiu.”
da concordância − a ordenação das palavras na frase;
“Sete-Sóis e Sete-Luas, se
− a flexão e concordância (género e número); nome tão belo lhe3 puseram,
− as regências verbais ou outras exigidas na construção de uma bom é que o3 use, não
unidade de sentido. desceram de S. Sebastião
• interfrásica5: reporta-se aos mecanismos que servem para ligar as da Pedreira…”
frases, os períodos e os parágrafos de um texto através de conectores “Amanhã6 Blimunda terá6
ou apenas da pontuação quando se pressupõe a elipse de conectores. os seus olhos, hoje6 é6 dia
• temporal6: relaciona-se com mecanismos linguísticos, como advérbios de cegueira”
e tempos verbais, que instituem uma relação temporal com sentido, na
superfície textual. Verifica-se através da:
* Todos os excertos pertencem
− utilização correlativa dos tempos verbais; à obra Memorial do convento.

− compatibilidade entre os advérbios de localização temporal e os


tempos verbais selecionados.

401
APLICAÇÃO

Texto e textualidade – coerência e coesão textual

1 Para completar cada um dos itens 1.1 a 1.4, selecione a opção correta.

1.1 Na frase “O rei D. Sebastião é evocado em várias obras literárias, como, por
exemplo, Os Lusíadas e Mensagem, que apresentam o monarca como Salva-
dor da pátria”, os termos destacados asseguram a coesão textual
A. gramatical referencial.
B. gramatical temporal.
C. lexical por substituição.
D. gramatical frásica.

1.2 Em “Falei com a professora sobre as minhas dificuldades na análise textual”,


os vocábulos destacados são ilustrativos da coesão textual
A. gramatical referencial.
B. gramatical temporal.
C. lexical.
D. gramatical frásica.

1.3 Em “Quando se fala do ‘Dia dos Avós’ é assim um pouco como se falássemos
do Dia da Mãe, ou Dia da Criança, existe, e ainda bem que existe, mas ninguém
se preocupa em saber como é que ele chegou até nós”, os vocábulos sublinha-
dos asseguram a coesão textual gramatical
A. interfrásica.
B. referencial.
C. temporal.
D. frásica.

1.4 Na frase anterior, os termos destacados a negrito exemplificam a coesão textual


A. gramatical frásica.
B. lexical por substituição.
C. lexical por reiteração.
D. gramatical temporal.

2 Identifique os mecanismos de coesão textual assegurados pelos elementos numera-


dos no excerto que se segue:
Na casa1 dos meus avós2, a cozinha1 estava aberta 24h. A hora de dormir era ne-
Gramática/Atividade:
Coesão e coerência gociável. Passava horas a ouvir os meus avós2 a contarem-me3 histórias da sua
Resolução/Atividade: infância e4 a partilhar tradições. […]
Questão de exame
explicada: coesão Em mim não há nenhuma criança. Entendo-as3 muito bem, sei como abordá-las3 –
referencial; Questão de mas4 sou uma adulta a fazer isso3.
exame explicada: coesão
interfrásica e referencial Alice Vieira e Nelson Mateus, "Diário de uma avó e de um neto", in https://visao.sapo.pt,
Quiz: Discurso, pragmática consultado em setembro de 2022 (adaptado e com supressões).
e linguística textual

402
II Gramática

Sequências textuais
Qualquer texto é constituído por um conjunto de sequências que podem ser de natureza narrativa, descritiva, argu-
mentativa, explicativa e dialogal, cada uma correspondendo a um modelo definido por um conjunto de características,
conforme a tabela seguinte. Recorde-as.

Natureza da sequência Marcas linguísticas Exemplificação


Narrativa • Pretérito perfeito alternando com “O táxi desceu a Calçada da Estrela, virou nas Cortes,
Narração de acontecimentos pretérito imperfeito e presente do em direção ao rio, e depois, pelo caminho já conhecido,
realizados por personagens indicativo. ganhou a Baixa, subiu a Rua Augusta”
num determinado espaço e • Conectores de natureza José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis
que apresentam uma certa espaciotemporal.
sequencialização temporal
(conto, fábula, lenda, novela, • Articuladores que demarcam
romance…). a sequencialização narrativa.

Descritiva • Predomínio de verbos de estado “Por uma dessas alongadas ruas do Porto, que sobe que
Apresentação da descrição (ser/estar/parecer…). sobe e não se acaba, há de encontrar-se um cruzamento
de um objeto/tema ao qual • Utilização do presente e/ou alto, de esquinas de azulejo, janelas de guilhotina,
se atribuem caraterísticas/ imperfeito do indicativo para telhados de ardósia em escama.”
qualidades (retrato, transmitir a perspetiva durativa. Mário de Carvalho, “Famílias desavindas”
adivinha…).
• Estruturas qualificativas
(modificadores/orações relativas…).
• Recurso a figuras de estilo.
Argumentativa • Verbos no presente do indicativo. Esfregando as mãos, começa a enumerar
A intenção comunicativa é • Estruturação do discurso rapidamente as qualidades de um tal aparelho:
a de convencer, persuadir o argumentativo: − É o último modelo chegado ao país. Quando
interlocutor. A argumentação se quer, é música toda a noite e todo o dia. Ou então
está presente em várias tese argumentação canções. E fados e guitarradas! Notícias de todo o
situações do dia a dia, conclusão. mundo, desde manhã até à noite, notícias da guerra!...
nomeadamente discussões, • Abundância de conectores que Aponta para o retângulo azul:
debates, conversas marcam a progressão e articulam − Olhe, aqui, é Londres; aqui, a Alemanha; aqui,
(artigos de opinião, discursos as diferentes partes do texto. a América. É simples: vai-se rodando este botãozinho...
políticos, sermões, textos Poisa a mão sobre o ombro do Batola, e exclama:
publicitários…). − Dou-lhe a minha palavra de honra que não encontra
nenhum aparelho pelo preço deste!
Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”

Explicativa • Utilização predominante do presente “O sistema é simples […]. Um homem pedala numa
A intenção comunicativa é a do indicativo. bicicleta erguida a dez centímetros do chão por suportes
de explicar, expor e informar. • Discurso predominantemente de ferro. A corrente faz girar um imã dentro de uma
O objetivo é conduzir o de terceira pessoa. bobina. A energia gerada vai acender as luzes de um
leitor à compreensão da semáforo, comutadas pelo ciclista.”
informação fornecida • Especificidade lexical (de acordo
Mário de Carvalho, “Famílias desavindas”
(artigos de natureza com a temática abordada).
científica ou enciclopédica, • Estruturas qualificativas
definições…). (modificadores, orações relativas…).
Dialogal • Referenciação deítica. “− Que pensas fazer, Gi?
Ocorre sempre que os • Marcas relacionadas com a situação − Partir, não é? Em que se pode pensar aqui, neste cu
interlocutores conversam, de produção do discurso: alternância de Judas, senão em partir? Ainda não me fui embora
usando da palavra da primeira e da segunda pessoa por causa do Carlos, mas... O Carlos pertence a isto,
alternadamente. Está e formais verbais no presente nunca se irá embora. Só a ideia o apavora, não é?
presente em qualquer do indicativo. − Sim. Só a ideia.
interação verbal em − Ri-se de partir, como nós nos rimos de uma coisa
diferentes situações • Discurso marcado pelas
características da oralidade impossível, de uma ideia louca. Quer comprar uma terra,
e contextos construir uma casa a seu modo. Recebeu uma herança
(diálogos, debates, (repetições, pausas…).
e só sonha com isso. Creio que é a altura de eu...
entrevistas…). • Na escrita apresenta travessões
− Creio que sim.
e mudança de linha para assinalar
a mudança de interlocutor. − Pois não é verdade?
− Ainda desenhas?”
Maria Judite de Carvalho, “George”

403
APLICAÇÃO

Sequências textuais
1 Leia as sequências textuais pertencentes ao conto “Sempre é uma companhia”.
A. “[…] aí umas quinze casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o te-
lhado escuro, de sumidas que estão no fundo dos córregos.”
B. “Ergue-se pesadamente do banco. Olha uma última vez para a noite derrama-
da. Leva as mãos à cara, esfrega-a, amachucando o nariz, os olhos.”
C. “− Bem, a senhora não se exalte. Faz-se uma coisa: a telefonia fica à expe-
riência, durante um mês. Se não quiserem, devolvem-na; nós devolvemos as
letras. Assine aqui, Sr. Barrasquinho. Pronto. Agora já a senhora pode ficar
descansada. − Mas − pergunta ainda a mulher − quanto se paga de aluguer por
esse mês? − Nada! − responde o homem, de novo risonho. − Por isso não se
paga nada!”
D. “E o silêncio. Um silêncio que caiu, estiraçado por vales e cabeços, e que dor-
me profundamente.”
E. “− Olhe, aqui, é Londres; aqui, a Alemanha; aqui, a América. É simples: vai-se
rodando este botãozinho […].”
F. “E, ao meter os papéis dentro da pasta, repara que já é muito tarde. Apressado,
conta que veio por ali devido a um engano no caminho. Sai da venda, entra no
carro, e diz ao Batola, aproveitando o ruído do motor”.
G. “Nos intervalos, os homens bebiam um copo, junto ao balcão, os pares namo-
ravam-se, pelos cantos.”
H. “− Dou-lhe a minha palavra de honra que não encontra nenhum aparelho pelo
preço deste!”

1.1 Preencha no seu caderno, uma tabela semelhante à seguinte, seguindo as


orientações.

Exemplo Tipologia dominante Marcas específicas (duas)


A.

B.

C.

D.

E.

F.

G.

H.

404
I Gramática

APLICAÇÃO

2 Leia alguns excertos dos contos “Famílias desavindas”, de Mário de Carvalho,


e “George”, de Maria Judite de Carvalho.
A. “Por uma dessas alongadas ruas do Porto, que sobe que sobe não se acaba,
há de encontrar-se um cruzamento alto, de esquinas de azulejo, janelas de
guilhotina, telhados de ardósia em escama.”
B. “No dobrar do século XIX, Gerard Letelessier, jovem engenheiro francês, fra-
cassou em Paris e em Lisboa, antes de convencer um autarca do Porto de que
inventara um semáforo moderno, operado a energia elétrica, capaz de bem
ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois e landós da sociedade.
A autoridade gostou do projeto e das garrafas de Bordéus que o jovem enge-
nheiro oferecia.”
C. “O sistema é simples e, pode dizer-se com propriedade, luminoso. Um homem
pedala numa bicicleta erguida a dez centímetros do chão por suportes de fer-
ro. A corrente faz girar um imã dentro de uma bobina. A energia gerada vai
acender as luzes de um semáforo, comutadas pelo ciclista.”
D. “O rosto da jovem que se aproxima é vago e sem contornos, uma pincelada
clara, e, quando os tiver, a esses contornos, ele será o rosto de uma fotografia
que tem corrido mundo numa mala qualquer, que tem morado no fundo de
muitas gavetas, o único fetiche de George.”
E. “Mais tarde partiu por além-terra, por além-mar. Fez loiros os cabelos, de
todos os loiros, um dia ruivos por cansaço de si, mais tarde castanhos, loiros
de novo, esverdeados, nunca escuros, quase pretos, como dantes eram. Teve
muitos amores, grandes e não tanto, definitivos e passageiros, simples amo-
res, casou-se, divorciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar [...]”.

2.1 Transcreva a tabela para o seu caderno e complete-a de acordo com as indi-
cações.

Exemplo Sequência dominante Marcas/Exemplificação

A.

B.

C.

D.

E.

405
III Modos literários

TEXTO POÉTICO

Os textos poéticos em verso evidenciam um conjunto de aspetos técnico-versificatórios sistematizados no quadro abaixo.

Aspetos técnicos e versificatórios

• Extensão do verso pelo número de sílabas métricas


(escansão até à sílaba tónica da última palavra do verso, considerando-se ainda a elisão de sons
vocálicos quando pronunciados numa só emissão de voz; pode não ser coincidente com o número
de sílabas gramaticais)
Exs.:
O/poe/ta é/um/fin/gi/dor, – 7 sílabas métricas
1 2 3 4 5 6 7
Métrica Quan/do/pa/sso/,sem/pre e/rran/te – 7 sílabas métricas (mas 8 sílabas gramaticais)
1 2 3 4 5 6 7
No verso

Fernando Pessoa

• Designação do verso pelo número de sílabas métricas:


monossílabo (uma), dissílabo (duas), trissílabo (três), tetrassílabo (quatro), pentassílabo (cinco)
(redondilha menor), hexassílabo (seis), heptassílabo (sete) (redondilha maior), octossílabo (oito),
eneassílabo (nove), decassílabo (dez), hendecassílabo (onze), dodecassílabo (doze) (alexandrino)

Acento Verso agudo (oxítono ou masculino), grave (paroxítono ou feminino) ou esdrúxulo (proparoxítono).
silábico

Verso binário (dois segmentos com uma pausa); verso ternário (três segmentos com duas pausas);
Ritmo
verso quaternário (quatro segmentos com três pausas).

Número
• Classificação da estrofe pelo número de versos:
monóstico (um), dístico (dois), terceto (três), quadra (quatro), quintilha (cinco), sextilha (seis), sétima
de versos
(sete), oitava (oito), nona (nove), décima (dez), irregular (mais de dez versos).

• Rima interna – a correspondência de sons verifica-se no interior dos versos.


Ex.: “irei beber a luz e o amanhecer” (Sophia de Mello Breyner Andresen)

• Rima de sons finais ou rima externa – a correspondência de sons verifica-se no final dos versos:
– emparelhada (rima de sons em pares – aa, bb, cc...)
Esquema – interpolada ou intercalada (um tipo de som final intercala com outro diferente – a b c a)
rimático – cruzada (sons alternam entre versos ímpares e pares – a b a b a c a)
Na estrofe

• Rima encadeada – a última palavra de um verso rima com o meio do verso seguinte:
Ex.: "Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte"
(Florbela Espanca)

• Consoante (rimam vogais e consoantes)


Em função da
correspondência de sons • Toante (rimam só as vogais tónicas)

Tipo
de rima • Rica (a rima incide em unidades pertencentes a classes de palavras
diferentes)
Em função da classe
gramatical das palavras • Pobre (a rima incide em unidades que pertencem à mesma classe
de palavras)

406
TEXTO DRAMÁTICO

O texto dramático apresenta marcas distintivas que se configuram na sua estrutura dialogal, (através da qual progri-
de a intriga ou ação dramática, destinando-se, prioritariamente à representação. Por isso, é conveniente reconhecer
o conjunto de elementos que o integram e que permitem distingui-lo dos textos poéticos e narrativos. De entre esses
elementos constitutivos destacam-se os que se indicam no quadro.

Elementos que caracterizam o texto dramático

• Corresponde às falas das personagens (as réplicas), pelas quais se dá a progressão dramática.
• Integra acontecimentos, situações, ou ações experienciados pelas personagens, que surgem contextualizados
Texto num determinado espaço e num determinado tempo.
principal
• Desenvolve-se, fundamentalmente, em diálogo (interação estabelecida pelas personagens intervenientes),
podendo também surgir o monólogo (expressões associadas à exteriorização de reflexões ou pensamentos da
personagem) ou os apartes (interação direta entre a personagem e o leitor/espectador).

• Corresponde ao conjunto de didascálicas (partes dos textos marcadas graficamente por outro tipo de letra ou por
parênteses);
• Representa as indicações cénicas fornecidas pelo dramaturgo, nas quais se encontram informações
imprescindíveis à representação do texto principal;
• Integra informações dirigidas ao encenador, ao técnico de luz e de som, ao figurinista, às personagens, do tipo:
Texto – identificação das personagens;
secundário
– caracterização física e psicológica dos interlocutores;
– indicações sobre o modo como as falas devem ser proferidas;
– registo de aspetos paraverbais como a movimentação, as expressões corporais e faciais, o tom de voz,
os gestos;
– caracterização do espaço e do tempo, da intensidade e focalização da iluminação, da disposição dos objetos em
cena, vários aspetos a contemplar na representação.

A estrutura do texto dramático pode ainda ser percecionada por outras características, normalmente associadas à sua
segmentação e tradicionalmente ligadas aos seguintes aspetos:

Estrutura tradicional do texto dramático

Ato Associa-se à mudança de cenário ou a momentos cruciais do desenvolvimento da ação dramática.

Cena Corresponde à entrada ou à saída de personagens.

Nota
Muitos textos dramáticos fogem a este tipo de estrutura e, no teatro moderno, verifica-se mesmo o recurso a jogos de luzes para proceder à mudança de situação/ação.

TEXTO NARRATIVO

Embora “narrativo” signifique, em sentido lato, tudo o que se conta, devemos distinguir entre narrativa de factos (no-
tícias, crónicas, reportagens…) e narrativa de ficção, aquela que encontramos, por exemplo, em Amor de perdição ou
em Os Maias. Os elementos que compõem a narrativa são diversos. A saber: – uma entidade responsável pela narração
(o narrador) que relata acontecimentos a outra entidade (real ou não), o narratário; essas ações, que tanto podem ser
totalmente ficcionadas como baseadas em acontecimentos reais, são protagonizadas por personagens que se movimen-
tam num determinado tempo e espaço.

407
Modos de expressão da narrativa
A apresentação da narrativa pode revestir-se de diferentes formas de expressão literária, dependendo delas a reação
do leitor. Por isso, é importante o modo como se contam os factos, devendo observar-se os seguintes aspetos:
• A narração – É o reconto feito pelo narrador dos factos/ações/acontecimentos experienciados pelas personagens
e a sua movimentação nos diversos espaços e tempos. Como marcas linguísticas apresenta, em geral, o recurso a
verbos de movimento no presente e no pretérito perfeito e surge (quase) sempre acompanhada de outras formas
de expressão: o diálogo, a descrição…
• O diálogo – É a reprodução da fala das personagens. Promove o desenvolvimento da ação e tem como marcas
linguísticas o discurso direto, os registos oral e informal da linguagem, sobretudo.
• O monólogo – Corresponde à reprodução da fala de um locutor, que se encontra sozinho ou acompanhado por
outras personagens, mas não se lhes dirige no seu discurso.
• A descrição – Utiliza-se para apresentar algo ou alguém e introduz pausas na narração, designadas por segmen-
tos descritivos. Embora a descrição possa ser objetiva, muitas vezes é, no entanto, através da visão subjetiva do
narrador que acedemos à dimensão psicológica das personagens ou a determinadas intencionalidades do narra-
dor. É também através da descrição que a dimensão espaciotemporal chega ao narratário.
As marcas linguísticas da descrição são, em geral:
– recurso a adjetivos e advérbios;
– verbos de estado (ser, estar…) no pretérito imperfeito;
– utilização do gerúndio;
– recursos expressivos, como a comparação, a metáfora, a hipérbole, entre outros;
– frases adjetivas relativas.
Exemplo de um segmento descritivo: Personificação
“Uma brasa morria no fogão. A noite parecia mais áspera. Comparação
Eram de repente vergastadas de água contra as vidraças, Verbos de estado
trazidas numa rajada, que longamente, num clamor teimoso, Adjetivação
faziam escoar um dilúvio dos telhados; depois havia uma calma Forma verbal no pretérito imperfeito
do indicativo
tenebrosa, com uma sussurração distante de vento fugindo
Formal verbal no gerúndio
entre ramagens…”
Eça de Queirós, Os Maias, cap. II
Oração adjetiva relativa

Elementos da narrativa
Tempo
Sucessão cronológica dos acontecimentos. Pode também remeter para a época/o contexto histórico em que se inscre-
ve a ação. Assim, o tempo pode ser observado a dois níveis, conforme se apresenta a seguir:

Ao nível da história narrada ou diegese Ao nível da narrativa

Cronológico – o desenvolvimento/a sucessão cronológica Tempo do discurso – marca a ordem pela qual os acontecimentos
dos acontecimentos, é dado(a), normalmente, através de são narrados, que pode ser linear ou não; logo, pode coincidir ou não
referências temporais concretas: dias, meses, anos… com o tempo da diegese.
Psicológico – é o modo como a personagem perceciona Quando os acontecimentos não se sucedem linearmente, o narrador
a passagem do tempo; de forma geral, prende-se com o recorre a artifícios narrativos, tais como:
estado psicológico, da personagem e a densidade dramática Elipse – omissão de partes da história;
da situação;
Analepse – recuo no tempo para narrar acontecimentos passados;
Histórico – quando, em certas narrativas, existem
referências ao momento da História (da Humanidade – Prolepse – avanço no tempo, referindo acontecimentos que só terão
guerras mundiais, do país…) em que acontecem as ações. lugar num tempo posterior da narrativa.

408
II Modos literários

Espaço
Fornece informações sobre o local, ou locais, onde decorre a ação. Pode ser analisado a vários níveis:
• Físico – refere-se ao local, ou locais, onde a ação acontece, em termos geográficos, mais restritos ou mais abran-
gentes: casa, rua, país, região.
• Sociocultural – transmite informações sobre o meio social, económico, cultural em que se movimentam as
personagens, integrando-as em grupos sociais, por exemplo, e revelando os seus costumes, valores, tradições…
• Psicológico – prende-se com o modo como cada personagem perceciona um dado espaço físico e transmite
informações sobre os seus sentimentos face a esse local.

Ação
Corresponde ao conjunto de acontecimentos narrados e ao seu encadeamento. Normalmente, existe mais do que
uma ação:
• Principal – engloba os acontecimentos mais relevantes ou que merecem mais destaque, da história.
• Secundária – contribui para a compreensão da ação central e do comportamento das personagens, por exemplo,
trazendo aportes a diversos níveis.
As ações podem organizar-se de diferentes modos:
• Por encadeamento: seguindo uma ordem temporalmente linear.

A B C

• Por encaixe: existe uma ação central e outra(s) encaixada(s) nessa.

B A C

• Por alternância: as ações acontecem de forma alternada, mas podem cruzar-se, ou não, em determinados momentos.

A B A C D

Personagens
São as entidades que praticam as ações. Podem ser caracterizadas de acordo com a sua relevância e sob determinadas
perspetivas; podem ainda ser individuais (quando representam um indivíduo) ou coletivas (quando representam um grupo
social, profissional...). Assim, podemos caracterizá-las de várias formas:
• Relevo (ou papel)
– Principais ou protagonistas – aquelas que protagonizam a ação central e que têm, por isso, maior destaque.
– Secundárias – participam na ação, mas não desempenham um papel decisivo, sendo, por isso, menos importan-
tes do que os protagonistas.
– Figurantes – a sua existência não contribui para o desenvolvimento da ação; por vezes, têm uma função mera-
mente ornamental. Podem contribuir para a definição do espaço sociocultural da obra.

409
• Composição
– Modeladas ou redondas – normalmente, são dinâmicas, o seu comportamento pode evoluir ao longo da ação,
sendo dotadas de densidade psicológica.
– Planas – personagem estáticas, o seu comportamento não sofre alterações ao longo da ação; por esta razão as
suas atitudes mostram-se lineares, sem evolução, sendo, por isso, desprovidas de densidade psicológica. Tam-
bém são personagens planas as personagens-tipo que, pelos traços que as acompanham ao longo de toda
a ação, representam, com frequência, um grupo profissional ou social.
• Caracterização
– Direta
› Autocaracterização – quando o aspeto físico e psicológico é apresentado através do discurso da própria persona-
gem;
› Heterocaracterização – quando é o narrador ou outra personagem a fornecer informações que permitem
caracterizar as personagens.
– Indireta
› Quando o retrato das personagens é inferido com base nos seus comportamentos, gestos, atitudes, valores…

Narrador
É a figura/entidade que conta a história; é uma entidade ficcional e não deve ser confundida com o autor. Pode ser carac-
terizado a diversos níveis.
• Presença
– Autodiegético – (auto > o eu; diegese > história = o “eu” é a personagem principal) – a narração é feita na 1.ª
pessoa, a figura do narrador coincide com a da personagem principal e o narrador assume a narração dos acon-
tecimentos.
– Homodiegético – (homo > o homem; diegese > história = outro é personagem principal) – a figura do narrador
coincide com a de uma personagem, mas secundária.
– Heterodiegético – (hetero > os outros; diegese > história = a história é relativa a outros) – a narração é feita na
3.ª pessoa e o narrador não protagoniza nenhuma ação.
• Focalização
– Omnisciente – é o narrador que tem conhecimento integral de tudo (omni): dos acontecimentos; de quem os
protagoniza – incluindo os seus pensamentos, anseios, dúvidas; dos espaços e do tempo em que decorre a ação.
– Interna – a visão do narrador é a de alguém que participa na narrativa, sendo os acontecimentos relatados sob
a perspetiva dessa personagem.
– Externa – a visão do narrador é a de alguém exterior à narrativa; por isso, ele apresenta só aspetos exteriores
das personagens e dos acontecimentos porque apenas conhece o que ouve e/ou vê superficialmente.
• Posição – o narrador pode ainda ser analisado face à posição que toma relativamente às personagens e aos acon-
tecimentos, podendo ser:
– Objetivo – se relata as situações de forma imparcial, distanciando-se e não comentando os factos, as atitudes
ou os comportamentos.
– Subjetivo – se opina sobre as situações que está a relatar, criticando, condenando, aconselhando…

Narratário
É a entidade a quem a história é contada. Pode ser:
• Extradiegético – quando é exterior à história que se está a narrar.
• Intradiegético – se faz parte integrante da narrativa.

410
IV Géneros textuais - Domínios e marcas

Géneros Definição e marcas Domínios/Ano

O cartoonista expõe a sua


Desenho humorístico ou satírico
opinião ou ponto de vista sobre
Cartoon

que retrata situações do quotidiano


determinada realidade, pessoa(s) ou Leitura
de forma satírica ou crítica,
acontecimento, através do desenho, [10.˚]
normalmente publicado em
fazendo-o acompanhar ou não
revistas e/ou jornais.
de linguagem verbal.

Encadeamento lógico dos tópicos


abordados. Oralidade
Apreciação crítica

Texto onde se faz a apreciação Recurso a mecanismos de coesão − (expressão


valorativa de um determinado conectores, deíticos... oral)
objeto (livro, disco, exposição…), [10.˚/ 11.˚]
Uso de uma linguagem valorativa.
observando-se, sob uma perspetiva
crítica, as suas características, Utilização expressiva da pontuação Leitura
funcionalidades e interesse. e da linguagem. Escrita
Predomínio dos nomes [10.˚/ 11.˚/ 12.˚]
e dos adjetivos.

Encadeamento lógico dos tópicos


Texto de natureza expositiva- abordados. Oralidade
Artigo/Texto

argumentativa, onde se desenvolve Recurso a mecanismos de coesão −


de opinião

(expressão
um determinado assunto sob uma conectores, deíticos… oral)
perspetiva pessoal, emitindo um
Uso de uma linguagem valorativa. Leitura
juízo de valor de forma clara, através
Recurso às frases declarativas, Escrita
do recurso a argumentos e aos
à linguagem objetiva, a nomes [11.˚/ 12.˚]
respetivos exemplos.
e a adjetivos.

Texto caracterizado pela variedade Utilização do discurso de primeira


de temas, uma vez que o emissor pessoa.
Diário

“discorre” sobre o quotidiano. Leitura


Utilização expressiva da linguagem.
Predominam as sequências [12.˚]
narrativas, os acontecimentos estão Encadeamento lógico dos tópicos
ordenados cronologicamente. tratados.

Interação verbal, de caráter Utilização de uma linguagem clara Oralidade


argumentativo, onde diferentes e objetiva. (compreensão
intervenientes defendem um ponto do oral)
Evidência de um discurso apelativo.
Debate

de vista/tese. [11.˚]
Respeito pelas normas reguladoras
Predomínio do caráter persuasivo (compreensão
da interação comunicativa (princípios
através da validade da argumentação, do oral e
da cortesia e da cooperação).
da contra-argumentação, expressão oral)
das provas. [11.˚/ 12.˚]

Texto argumentativo de interesse Recurso à coerência e validade dos


argumentos, contra-argumentos, Oralidade
global, cujo objetivo é a persuasão,
Discurso
político

provas…). (compreensão
através da defesa de um ponto de
do oral)
vista. São colocadas em destaque as Utilização de recursos expressivos.
Leitura
capacidades de expor, Predomínio da primeira pessoa [11.˚]
de argumentar... do singular.

411
Géneros Definição e marcas Domínios/Ano

Texto que faz a apresentação de um Recurso a variedade de tema, cobertura de um


Documentário

determinado assunto/tema colhido da tema ou acontecimento. Oralidade


realidade e tratado sob uma determinada Presença do discurso direto e indireto. (compreensão
perspetiva. Diversidade de registos (objetivos/subjetivos). do oral)
Veicula informação criteriosa e seletiva Emprego de mecanismos de coesão e de recursos [10.˚]
com um fim didático. verbais e não verbais.

Oralidade
(compreensão
Encadeamento lógico dos tópicos abordados. do oral
Exposição sobre

Texto de caráter demonstrativo onde se Recurso a mecanismos de coesão − conectores, e expressão


um tema

disserta de forma clara e fundamentada deíticos… oral)


sobre um determinado tema, mobilizando Uso de uma linguagem clara, objetiva e denotativa. [11.˚]
informação relevante sobre o assunto. Predomínio dos nomes e dos verbos e das frases Leitura
declarativas. [10.˚]
Escrita
[10.˚/ 11.˚/ 12.˚]

Texto predominantemente narrativo


e descritivo, versando uma variedade Predomínio do discurso de primeira pessoa.
de viagem
Relato

de temas, onde se registam as impressões Uso de uma linguagem valorativa. Leitura


do emissor acerca de lugares visitados. Utilização expressiva da pontuação e da linguagem. [10.˚]
Prevalece o discurso pessoal e, portanto, Predomínio dos nomes e dos adjetivos.
subjetivo.

Peça jornalística que se caracteriza pela


Reportagem

Uso de uma linguagem objetiva e clara. Oralidade


multiplicidade de temas abordados e de Recurso ao discurso direto e indireto. (compreensão
intervenientes, o que implica a diversidade
Recurso à subjetividade do autor. do oral)
de pontos de vista e a veiculação de
Utilização da primeira e da terceira pessoas. [10.˚]
informação ampla e seletiva.

Texto que se caracteriza pela condensação Encadeamento lógico dos tópicos abordados. Oralidade
Síntese

das ideias de um texto de partida − redução a (expressão


Recurso a mecanismos de coesão.
cerca de um quarto − através da seleção das oral)
ideias essenciais, de forma a manter Recurso às frases declarativas e à linguagem Escrita
a informação fundamental. objetiva. [10.˚]

Nota
Informação recolhida e sistematizada a partir do documento oficial Programa e Metas Curriculares de Português – Ensino Secundário.

412
V Recursos expressivos

No texto literário, o desvio relativamente ao uso normalizado da língua é uma marca do poder criativo da linguagem.
Contrariamente ao texto utilitário, informativo e de linguagem corrente, o texto literário sugere muito mais do que diz,
explora a diferença, a estranheza, bem como o caráter plurissignificativo da linguagem. Para isso, o contributo dos
recursos expressivos que a língua permite é fundamental.

Tal é conseguido porque a língua permite construções que evidenciam mecanismos estilísticos e expressivos vários.
Neles cabem os recursos expressivos como:

Recurso
Definição Exemplificação
expressivo

“Leve, breve, suave, / Um canto de ave”


Adjetivação Utilização expressiva e recorrente da classe dos adjetivos.
Fernando Pessoa, [Leve, breve, suave]

“Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo,


Aliteração Repetição sucessiva de um tipo de sons consonânticos. ferreando”
Álvaro de Campos, “Ode triunfal”

“Poder ir na vida triunfante como um automóvel


Repetição de uma palavra ou expressão no início de versos último-modelo! / Poder ao menos penetrar-me
Anáfora
ou de frases sucessivos. fisicamente de tudo isto”
Álvaro de Campos, “Ode triunfal”

“Ouvi-la alegra e entristece”


Antítese Aproximação de duas ideias opostas ou contraditórias.
Fernando Pessoa, “A ceifeira”

Interpelação, chamamento do recetor a quem é destinado “Senhor, falta cumprir-se Portugal!”


Apóstrofe
o discurso. Fernando Pessoa, Mensagem

“Tira a lâmpada, enrosca aí a tomada, puxa o fio


Supressão intencional de articuladores/conectores entre
Assíndeto que sai da caixa, liga-o.”
palavras, expressões ou frases sucessivas.
Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”

Relação de realidades, colocadas em paralelo, por meio de “Andam lentamente, mais do que se pode, como
Comparação um termo comparativo ou verbos como parecer, lembrar, quem luta sem forças contra o vento”
sugerir... Maria Judite de Carvalho, “George”

Apresentação sucessiva de elementos, frequentemente “Buscar na linha fria do horizonte


Enumeração da mesma categoria gramatical ou com o mesmo tipo de A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte”
estruturação. Fernando Pessoa, Mensagem

“Quando […] formos vultos solenes”


Atenuação na transmissão de uma ideia ou de uma realidade
Eufemismo (= quando morrermos)
excessiva, semanticamente negativa.
Ricardo Reis, [Só o ter flores pela vista fora]

“Ah, poder exprimir-me todo como um motor se


Recurso a sequências/frases de tipo exclamativo, marcando
Exclamação exprime!”
reações, atitudes expressivas e subjetivas
Álvaro de Campos, “Ode triunfal”

Sucessão de, pelo menos, três termos sintaticamente


“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”
Gradação equivalentes, organizados segundo uma ordem crescente
Fernando Pessoa, Mensagem
(progressiva) ou decrescente (regressiva).

413
Recurso
Definição Exemplificação
expressivo

Atribuição, ao ser ou entidade designado por uma


palavra, de uma qualidade ou ação logicamente “À dolorosa luz das grandes lâmpadas”
Hipálage
pertencente a outro ser ou entidade expresso ou Álvaro de Campos, “Ode triunfal”
subentendido na mesma frase ou sequência textual.

Utilização de termos excessivos para efeito de exagero “Esta angústia que trago há séculos em mim!”
Hipérbole
da realidade. Álvaro de Campos [Esta velha angústia]

Separação de palavras ou membros de frase


“De todo o esforço seguremos quedas / as mãos.”
Hipérbato (sintaticamente ligados) por intercalação de outros
Ricardo Reis [Só o ter flores pela vista fora]
segmentos frásicos.

“Ó mar salgado, quanto do teu sal


Encadeamento de metáforas e/ou de comparações,
São lágrimas de Portugal!”
Imagem contribuindo para uma associação de realidades que têm
Por te cruzarmos, quantas mães choraram.”
características comuns.
Fernando Pessoa, Mensagem

“Quem vem viver a verdade


Interrogação Questão que se formula não para obter resposta, mas
Que morreu D. Sebastião?”
retórica para melhor orientar/realçar a ideia a transmitir.
Fernando Pessoa, Mensagem

Expressão de palavra/ideia polemicamente orientada “D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e
Ironia para conclusão diferente daquilo que é o sentido fria”
literalmente proferido. José Saramago, Memorial do convento

Reconstrução, por analogia, do significado normal “iam ser, outra vez, o rebanho que se levanta com
Metáfora de uma palavra ou expressão, aproximando-o ou o dia”
associando-o a um campo semântico distinto. Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”

“Ó mar salgado, quanto do teu sal


Substituição de uma palavra por outra que designa uma
Metonímia São lágrimas de Portugal!” [= dos Portugueses]
realidade que lhe é próxima.
Fernando Pessoa, Mensagem

Relação sintática de termos com lógica contraditória no “Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?”
Oxímoro
seio de um juízo. Álvaro de Campos, “Ode triunfal”

Utilização de uma expressão composta por vários


“O plantador de naus a haver” (= D. Dinis)
Perífrase termos em vez da possibilidade de utilizar uma só
Fernando Pessoa, Mensagem
palavra.

Atribuição de sentimentos, ações ou ideias próprias do “Breve, a aldeia ficará adormecida”


Personificação
ser humano a objetos ou elementos da Natureza. Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”

“Penso com os olhos e com os ouvidos


Repetição intencional de articuladores entre palavras ou
Polissíndeto E com as mãos e os pés”
frases sucessivas.
Alberto Caeiro [Sou um guardador de rebanhos]

“E ao imenso e possível oceano


Expressão da parte pelo todo, do singular pelo plural, do
Sinédoque Ensinam estas Quinas, que aqui vês.”
abstrato pelo concreto e vice-versa.
Fernando Pessoa, Mensagem

“E me deito ao comprido na erva,


Fusão de sensações decorrentes da perceção de
Sinestesia E fecho os olhos quentes”
diferentes sentidos.
Alberto Caeiro [Sou um guardador de rebanhos]

414
VI Verbos instrucionais

A compreensão de um enunciado é fundamental para o desenvolvimento de um raciocínio correto, que conduza a uma
resposta clara e contextualizada. Para perceber as operações implicadas nas questões que lhe são colocadas, elencam-
-se os verbos mais utilizados na questionação a que está sujeito.

Verbo Operações que implica


Examinar com atenção; observar atentamente o universo de referência, estabelecendo conexões entre as partes,
Analisar
de modo a descodificar os sentidos do todo.
Apresentar Mostrar; expor uma ideia, um conceito, uma conclusão.

Associar Fazer corresponder ideias ou aspetos que se relacionam entre si; ligar elementos.

Avaliar Apreciar, emitindo um juízo de valor.


Apresentar a descrição pormenorizada e exata; mostrar as características de determinado espaço, personagem,
Caracterizar
comportamento.
Clarificar Demonstrar com clareza o sentido de um excerto textual, de uma ideia, de uma posição.
Interpretar criticamente uma ideia, um excerto textual, uma imagem, evidenciando pormenores; explicar emitindo
Comentar
um juízo de valor.
Comparar Apresentar as semelhanças ou as diferenças entre dois termos/objetos/universos em análise.

Concluir Formular uma dedução; estabelecer uma ilação.

Deduzir Expor de forma fundamentada uma conclusão, através de um raciocínio.

Definir Apresentar o significado ou o sentido.

Delimitar Indicar claramente o início e o fim de um excerto textual, de uma ideia; indicar os limites.

Demonstrar Fazer ver; provar através de uma reflexão, com exemplos, uma determinada ideia; explicar de forma convincente.

Distinguir Estabelecer as diferenças entre dois termos/objetos/universos; identificar ideias ou opiniões diferentes.

Elaborar Construir; organizar corretamente as partes ou elementos de um todo.

Elencar Apresentar por ordem; enumerar.

Exemplificar Dar exemplos para provar uma conclusão, um raciocínio ou uma afirmação.

Explicar Interpretar de forma clara e evidente; expor, através de desconstrução, uma determinada ideia, comportamento.

Explicitar Esclarecer uma ideia; mostrar claramente; concluir a partir das palavras de outrem.

Expor Apresentar determinado assunto ou ideia de forma clara e inequívoca; explicar; mostrar de modo evidente.

Identificar Indicar de forma inequívoca quem é ou qual é; nomear; indicar o nome.

Indicar Mostrar; mencionar; dar a conhecer.

Inferir Retirar uma conclusão; fazer uma dedução.


Explicar determinado texto ou parte de texto; retirar o sentido ou a intenção de determinada expressão, ideia,
Interpretar
comportamento.
Provar uma afirmação ou uma opinião quer através de exemplos quer apresentando os motivos que conduziram
Justificar
à reflexão apresentada.
Mencionar Referir; citar; indicar.

Mostrar Revelar; expor uma ideia; comprovar; tornar visível, claro, evidente.

Realçar Dar destaque; mostrar a importância.

Registar Anotar; apresentar determinada ideia, tema, conteúdo.

Relacionar Estabelecer uma relação entre dois aspetos ou duas ideias, apresentando uma conclusão.
Copiar de um texto um excerto, uma frase, uma palavra (devem ser usadas aspas que permitam o destaque
Transcrever
do segmento copiado).

415
VII Ficha de leitura / Apreciação crítica da obra

Poesia

Sobre o autor
e a sua escrita

Título:
Editora/ano da edição:
Sobre Estrutura (partes/subpartes):
a obra
selecionada Temáticas recorrentes nos vários poemas:
Adequação dos títulos e subtítulos aos poemas:
Descrição formal (estrofes, métrica, rima…):

Apreciação Comentário crítico:


crítica

Pontos de contacto Obras do Programa estudadas:


com conteúdos de Outras obras ou outras formas de arte (filmes, peças de teatro…):

Texto Narrativo/Dramático

Sobre o autor
e a sua escrita

Título:
Sobre Editora/ano da edição:
a obra
selecionada Estrutura: divisão em partes/capítulos/atos/cenas/etc.
Sim. Quantos? Não. Qual?

Tema:
Sobre
a história, Acontecimentos principais:
a ação
Outros acontecimentos:

Sobre o espaço e o tempo O espaço:


(lugares e características
principais) O tempo:

Protagonista(s):

Sobre Caracterização do(s) protagonista(s):


as personagens Outras personagens:
Relevância para a compreensão da obra:

Apreciação Descrição sucinta da obra:


crítica Comentário crítico:

Pontos de contacto / Obras do Programa estudadas:


Afastamento… Outras formas de arte (filmes, peças de teatro…):

416
Para o Aluno
• Manual
• Caderno de Atividades
• Apoio internet www.sentidos12.asa.pt
(inclui recursos áudio)

Recomenda-se a utilização conjunta do Manual e do


Caderno de Atividades para facilitar a aprendizagem
e contribuir para o sucesso escolar. Estes materiais
podem, no entanto, ser vendidos separadamente.

ISBN 978-989-23-5666-2

9 789892 356662
I VA I NCLU Í D O 6 %
www.leya.com www.asa.pt €36,11

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