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Marcus Sacrini

ACIENTIFICIDADENA
FENOMENOLOGIA DE HUSSERL

Edições Loyoli
95
# ;l! }'..:

Marcus Sacrini
A Coleção Filosofia FACULDADEJESUÍTADE
se propõe reunirtextos
Fn.OSOFIA E TEOR.OGIA(VIAJE)
de filósofos brasileiros ACIENTIFICIDADENA
contemporâneos, DELIRA:LAMENTODE FILOSOFIA
traduçõesdetextos
Av.[h. Cristiano Guimarães,2127
FENOMENOLOGIA DE HUSSERL
clássicose de outros
31720.300Belo Horkonte, MG
filósofos da atualidade,
pondoa serviço do
estudioso de Filosofia DIRETOR
instrumentos de João A. Mac Dowell, SJ
pesquisaselecionados
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MarmeloPerine PUC'SP

Edições Layola
-, } '
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP.Brasíl)

Sacriní. Marcus
São Paulo
A cientificidade na fenomenologia de Huss«l / Marcus Sacrini.
Edições Loyola. 2018. - (Coleção filosofia)
Bibliografia
ISBN 978-85-15-04564-8

1 . Fenomenologia 2. Filosofia 3. Husserl. Edmund. 1 859-1938 1.Título. 11.Série.

CDD-142.7
18-21992

Índices para catá]ogo sistemático


142.7
1. Fenomenologia : Filosofia

Preparação: Mana Almeida de Sá


Capa: Manu Santos
Diagramação: So Wai Tam
Revisão: Fernanda Guerriero Antunes

Para Cartas Alberto R. de Moura

Edições Loyola Jesuítas


Rua 1822,341 -lpiranga
04216-000 São Paulo,SP
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escrita da Editora.

ISBN978-85-15-045644
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo,Brasil, 2018
;l} Ã,l,.'' '',à,'

Pode-sever claramente que a ciência que tem a função específica


de exercera crítica de todas as outras e, ao mesmo tempo, de si mesma
não é outra senão a fenomenologia
Edmund Husserli

1. 1deerzzu eíner reinam Pbdrzomeno/ogfe und pbdnor7zeno/ogisc/zenPhi/osopbie


ErsfesBuch: A/lgemeirze Eínfühmng in die reírzePAãnomeno/ogíe. Hua 111.Den Haag
MartinusNijhoff,1950,S62,147

l
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Sumário

Siglas das principias obras de E. Husserl citadas. 13


Introdução.... 15

Capítulo l
Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental 25
Apresentação 25
A) A fenomenologia como complemento filosófico à lógica pura 26
O prometo
lógico de Pro/egómerzos
à /ógícapura .......'......'. 26
O domínio da lógica pura 30
A lógica pura e as ciências empíricas 34
As tarefas da lógica pura e as condições do conhecimento. 36
A evidência das idealidades lógicas
Análise fenomenológica das vivências 49
B) A fenomenologia como ciência autónoma. 54
Reconfiguração da doutrina da ciência . 54
Lógica noética e fenomenologia transcendental . 62
A investigação transcendental como fenomenologia 69
A fenomenologia entre investigaçãoeidética e transcendental 81

Capítulo ll
A fenomenologia como ciência eidética e transcendental 87
Apresentação 87
A) A fenomenologia como ciência eidética 90
Posição do problema 90
Fatos c essências 91
r ./ ,r';'}
Ciências factuais e ciências eidéticas. 98
A eidética do psíquico 243
O problema de uma eidética material descritiva 105
A ontologiado mundo da experiência 251
Critérios gerais do rigor descritivo 114
B) Passagem à problemática transcendental 116 Capítulo IV
Ciências filosóficas e ciências dogmáticas 116 As ciênciascomo produção histórica no mundo da vida 259
Orientação natural e redução fenomenológica.. 118
Apresentação 259
As relações entre consciência e mundo 124 A) O problema da história .. 261
Da atestação do ser aos modos de ser atestados. 128
Uma relação ambígua com a história .. 261
O ser absoluto da consciência 134
As ciênciascomo parte da cultura 268
Uma legitimação eidética para o transcendental 141 A investigaçãode sentido... 275
C) A fenomenologia como ciência transcendental 144 Atestação da crise das ciências 285
A investigação de irrealidades 144
A gênese europeia da cientificidade 295
O caráter intencional da consciência 146
As condições motivacionais da orientação teórica 302
Aplicação da ePoc/zéàs ciências 149
A humanidade guiada por normas racionais 305
As tarefas clarificadoras 154
B) A crise das ciências e o papel fundante do mundo da vida 309
A fundamentação das ciências pela clarificação, e o A gênese histórico-intencional da crise 309
caso especial da psicologia 158 A matematização da natureza 314
A interpretação objetivista do ser e da ciência 327
Capítulo lll A oncologia do mundo da vida 338
Método estático e método genético na fundamentação das ciências. 165 Os componentes eidéticos do mundo da vida como
Apresentação 165 fundamentos das ciências 35 1
A) As correlações estáticas entre regiões eidéticas e C) Passagemà orientação transcendental 366
orientações teóricas 166 O a pHod do mundo da vida e a fenomenologia... 366
Os fios condutores para a análise constitutiva 166 A redução fenomenológica em A case das cíê7zcías.. 369
O problema da especificidade do espírito 168 O papel fundante da subjetividadc transcendental 373
A orientaçãonaturalista 170 O retorno crítico à orientação natural . 382
A natureza segundo as ciências naturais. 175
Conclusão
Naturalismo versus personalismo. 182 387
A prioridade do espírito sobre a natureza 189
Dificuldades 198 Referências bibliográficas 399
B) Análise genética do mundo da experiência 203
Um novo caminho 203
A tragédia da cultura científica 208
A análise da experiência pré-científica 212
A crítica filosófica às ciências 222
As classificações das ciências 225
As estruturas pré-teóricas fundentes do conhecimento 232
'4.&

PP,

Siglas das principais obras de E. Husserl citadasí

As edições utilizadas são as da coleção Husserliana (Hua) e Husser.


nana Materialien (HuaM).
MC Cartesíalzisc/ze
Medítatíorzen und PaHserVorfrdge. Hua l
Den Haag: Martinus Nijho#, 1973.
Idl Ideen zu eíner reírzerzP/zdnomerzo/ogíe urze p/zdnomerzo/ogís-
chen P/zí/osopbíe. Ersfes Buc/z: Ai/gemeíne Eín/ü/zmrzg ín díe
reirzeP/zdnomeno/ogíe.
Hua 111.Den Haag:Martinus Nijhoff.
1950
)
Idll Ideen zur einer íeinert Phãnomenologie und phdnomeno-
logischen Philasophie. Zweites Buch: Phãltomenologische
Untersuc/zurzge?z
zur Korzsfífufíon.Hua IV. Den Haag:Mar-
tinusNilhoa, 1952.
Idlll Ideen zur einer reinar Phdnomenologie und phanameno-
logischerl Philosophie. Díittes Buch: Die Phãnomenologie

l . Outros textosde Husserl serãomencionados no correr doscapítulos

13
A cientificidade na fenomeno]ogiade Husser]

und díe Fundamente der Wfssenscha/ten.Hua V. Den Haag:


r .f }

Martinus NijhoK, 1971


K Díe Krísís der europdíschen Wfssenscha/ten und díe trarzszen-
dentale Phãlzomenologíe.
Hua VI. Den Haag: Martinus
NijhoK, 1976
PP PhdnomenoZogische Psychoiogíe. Vorlesungen Sommersemes-
Introdução
ter. 1925.Hua [X. Den Haag: Martinus Nijhoff, 1968.
P Logísche Untersuchungen. Erster Tear.Prolegomena zur reí-
nelz LogíÉ. Hua XVIII. Den Haag: Martinus NijhoK, 1975.
LUI/LU2 Logísche Untersuchurzgen.Zweíter TeíJ.Untersuc/zu7zgenzur
P/zdnomeno/ogíe und TheoHe der Ertenntnís. Zwei Bãnden.
Hua XIX/l ; XIX/2. Den Haag:Martinus Nijhoff, 1984
LFT Formale und hanszerzdenta/e LogíÉ. Hua X\rll. Den Haag:
Martinus NijhoK, 1974.
ILTC Einleítung in díe LogíÊ und ErÉerzntnísfheoríe. Vor/esungen
1906-07. Hua XXIV. Den Haag: Martinus Nijhoff, 1985.
PSW P/zíZosoP/zíe
aZsstrenge WíssenschaÊ, in AuÉsdtze und Vodrdge
(]91 1--]921). Hua XXV. Den Haag: Martinus Niihoff: 1987,
3-62
Kll Díe Krisís der europaíschen Wíssenscha/ten und díe transzeTZ Este livro se dedica a uma leitura e interpretação de textos de
Edmund Husserl, fundador da fenomenologia. O título escolhido é
UXÍ:;:Bm;;f?:H"gH=:!'d=:.'E,!'" ambÜuo em relação ao papel da cientificidade na fenomenologia hus-
NG2 N.ztur u7zdGeíst: Vor/esungen Sommersemester1927. Hua serliana.A cientificidade se deixa entender tanto como um tema pri-
XXXII. Dordrecht: Kluwer, 2001.
vilegiado das análises fenomenológicas quanto como uma caracteüs-
NG Ncztur und Geíst. Vorlesungen Sommersemester 1919. HuaM tícczdessasanálises.A formulação ambígua não é gratuita, pois almejo
IV. Dordrecht: Kluwer, 2002.
mostrar que em certos núcleos da obra de Husserl essesdois sentidos
foram desenvolvidos correlativamente. E verdade, assim, que a explo-
raçãodaquilo que atribui cientificidade às ciências constitui um dos as-
suntos centrais das análises fenomenológicas husserlianas, como já no-
tado por vários comentadores'. Porém parece importante delinear de
modo mais claro que essaproblematização dasciências contribui para
a formulação de diferentes apresentações do prometofenomenológico
Tenho em vista aqui o fato de que uma das principais preocupações
de Husserl ao tematizar as ciências é demarcar as características dessas

1. Cf., p. ex-, Gurwitsch, 1974,parte 1, e mais recentemente Hardy, 2013, cap 2

15
14
A cientificidade na fenomenologiade Husser]
Introdução

Em relaçãoa essaprogressão,selecionei quatro momentos em que


um prometofilosófico específicoé atribuído à fenomenologia e escolhi
textosque, a meu ver, melhor expõem e elaboram as tesesmarcantes
sesmomentos. Em termos gerais, tenciono mostrar que nessasqua-
tro formulações a tematização da cientificidade, embora não da mesma
forma, é uma operação.privilegiada para a circunscrição daquilo que
a própria fenomenologia pretende ser. Essesmomentos serão expos-
em sua ordem cronológica, e a cada um deles corresponderáum
capítulo desta obra. Não descarto que seja possível discernir na vasta
obrade Husser]outrosmomentos-chave
em que o prometofenome-
nológico tenha sido novamente reconfigurado, nem que outras preo-
cupaçõesteóricas tenham acompanhado o autor nesselongo percurso
Contentar-me-ei em mostrar que em algumas dasobras principais de
Husserl a configuração das tarefas da fenomenologia ocorre por meio
de uma tematização da cientificidade das ciências (do ponto de vista
da demarcação e da fundamentação), o que leva , dumareflexão cor-
respondente acerca do estatuto científico da própria fenomenologia.
] '0 momento inicial que buscarei caracterizar é o da apresentação
da fenomenologia ao grande público quando da publicação do livro
Pro/egóme7zos à /ógíca pura, em 1900. É ali que Husserl usapela pri-
meiravez em suaobra publicada o termo "fenomenologia", indicando
por meio dele uma disciplina filosófica autónoma responsávelpor fun.
damentaro conhecimento científico. É obvio que a problemática con .
em Pro/egõmenos poderia ser remetida a textos prévios do autor,
sendo então caracterizada como uma maturação de posições anterio-
res; No entanto, acredito que Husserl oferece nesse livro um prometo
filosófico autossuficiente,o qual, embora respondaa dificuldades teó-
ricas enfrentadas pelo autor em seu período pré-fenomenológico, pode
ser estudado por si só como o momento inaugural da fenomenolo râ.'

16
17
i
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Introdução

Deste momento inaugural, salientarei uma distinção conceitual Essadivisão de tarefas sobre a sistematização das condições da
que servirácomo veículo para tornar visível a paulatina complexifica- cientificidade permaneceno correr da obra de Husserl de modo cada
ção do prometofenomenológico nos momentos posteriores. Trata-se da vez mais complexificado. Ainda no final do primeiro capítulo, vere-
distinção, exposta no parágrafo 32 de Pro/egõmenos, entre condições ob- mos que Husserl admite, já em l7zvestigaçõé?s /ógícas e de modo mais
/etívas e condições sub/etívas do conhecimento. Ambas são pressupos- desenvolvido no curso llztrodução à /ógíca e à feoría do con/zecímento,
tos, de ordens diferentes, da produção do saber. Para Husserl, uma das de 1906-1907,que não só restriçõesformais compõem as condições
principais característicasda cientificidade é seucaráterfundamentado. objetivaspara a produção de teorias, mas também restriçõesreferen-
Nessesentido, conhecimento científico é aquele remissívela princí- tes à própria estrutura dos domínios objetivos a que as ciências se de
pios teóricos que justifiquem sua formulação. Ocorre que muitos desses dicam. Esboça-seaqui a formulação das ontologias materiais enquanto
princípios fundacionais do saberoperam de modo obscuro na prática disciplinas científicas que deveriam circunscrever as possibilidades
científica. Ainda que essaausência de clareza não impeça a obtenção ideaisque constituem os diferentes tipos de domínios objetivos possí-
de resultadosválidos, Husserl insistirá em afirmar que a compreen- veis. Em paralelo a essaampliação das condições objetivas do conheci-
são plenamente racional do sentido e do alcance da cientificidade das mento, Husserl formula a versão franscendenfa/ da fenomenologia lan-
ciências exige a explicitação dessascondições que tornam possível o co- çando o prometode investigação das condições subjetivas de atribuição
nhectmen\o. Esboça-se aqui a tarefa de fundamentação do saber cien de sentido não só das restrições formais explicitadas pela lógica pura
típico colho explicitação e sistematização dos pressupostosteóricos que jcomo era o casoem Pro/egómenosl,mas de toda a experiência. E a
condicionam a produção desseúltimo. Os pressupostosobjetipos são res- partir de então que Husserl consideraráa cientificidade não somente
trições formais para a formulação de teorias significativas e portado- como tema das análisesfenomenológicas, mas também como um com
ras de teses verdadeiras acerca de quaisquer domínios temáticos. Eles potente da fenomenologia. Em sua versão transcendental, a fenome-
devem ser sistematizados por meio de métodos lógico-matemáticos, o nologia é designadacomo ciência da c07zscíêncícz
pura, e issoabrirá a
que levará ao desenvolvimentode uma ciência formal fundente de to problemática acerca daquilo que compõe a cientificidade da própria
das as demais disciplinas científicas, a saber, a lógica pura. Por sua vez, fenomenologia
os pressupostos subjetívos referem-se às restrições de apreensão e ates- No segundo capítulo, eu reconstruo a versão madura da fenome-
tação evidente dos conteúdos teóricos pela subjetividade cognoscente. no[ogia transcendental estática, desenvolvida em ]deíczsparcauma
A descrição das estruturas subjetivas responsáveispela atestaçãodo co-
nhecimento (qualquer que seja o seu conteúdo) exige uma disciplina prometode Bolzano de uma Wíssenscbaáts/e/zre;
no sentido estrito, ela é então definida
especial, uma vez que nenhuma ciência, bem mesmo a lógica pura, pomo uma teoria de todos os tipos de teoria. Mas parece legítimo estender essadoutrina
da ciência para uma teoria do conhecimento e construí-la como uma doutrina geral da
preocupa-se em aclarar as condições cognoscentes d pdorí pelas quais razão e do Juízo" (Fisette, 2003a, 42). Husserl reconstrói o ideal clássico de uma dou-
elas mesmas se exercem. Desde então, Husserl propõe a áerzomeno/agia trina da ciência clariâcadora da cientiflcidade ao complementa-la, inicialmente, com a
como a doutrina filosófica que complementará a lógica pura na tarefa investigação fenomenológica das fontes noéticas de atestação evidente do conteúdo ló-
gico. Esse prometoserá paulatinamente expandido conforme reflexões posteriores acerca
global de oferecer fundamentaçãoparatodo sabercientífico'. da especificidade dasciências empíricas e dos diferentes níveis de análise fenomeno-
lógica. Fisette apenasindica no final de seu artigo parte dessaexpansão,enfatizando o
acréscimo das ontologias materiais e da ética no prometo husserliano (cf. F'isette, 2003a,
4. D. Fisette nota que, dessamaneira, Husserl reformula o profeta clássico de dou 49-57). Neste livro, pretendo descreverde modo bastante detalhado a montagem do
crina da ciência: "no sentido estrito a doutrina da ciência aparece como uma retomada prometode uma doubina da ciência em Pro/egómenose a sua expansãoposterior por
do prometoleibniziano de uma matbesísuníversa/ísou como uma versãoenriquecida do meio da ideia de ontologias materiais.

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A cientiflcidade na fenomenologiade Husserl Introdução
4

Deste momento inaugural, salientarei uma distinção conceitual Essadivisão de tarefas sobre a sistematização das condições da
que sewirá como veículo para tornar visível a paulatina complexifica- cienti6icidade permanece no correr da obra de Husserl de modo cada
ção do prometofenomenológico nos momentos posteriores. Trata-se da
vez mais complexificado. Ainda no final do primeiro capítulo, vere-
distinção, exposta no parágrafo 32 de Pro/egõmenos,entre cozzdíções
ob-
mosque Husserl admite, já em Irzvesfígações/ógícase de modo mais
/efípczse condições sub/efívas do conhecimento. Ambas são pressupos- desenvolvido no curso J7zfrodução à /ógíca e à teoria do conhecíme7zto,
tos, de ordens diferentes, da produção do saber. Para Husser], uma das
de 1906-1907,que não só restrições formais compõem as condições
principais características da cientificidade é seu caráter fundamentado.
objetivas para a produção de teorias, mas também restrições referen-
Nessesentido, conhecimento científico é aquele remissívela princí- tes à própria estrutura dos domínios objetivos a que as ciências se de-
pios teóricos que justifiquem sua formulação. Ocorre que muitos desses dicam. Esboça-seaqui a formulação das ontologias materiais enquanto
princípios fundacionais do saberoperam de modo obscuro na prática disciplinas científicas que deveriam circunscrever as possibilidades
científica. Ainda que essaausência de clareza não impeça a obtenção ideais que constituem os diferentes tipos de domínios objetivos possí-
de resultados válidos, Husserl insistirá em afirmar que a compreen- veis.Em paralelo a essaampliação das condições objetivas do conheci-
são plenamente racional do sentido e do alcance da cientificidade das
mento, Husserl formula a versão transcendenfa/ da fenomenologia lan-
ciências exige a explicitação dessascondições que tornam possível o co- çando o prometode investigação das condições subjetivas de atribuição
rxheclmento. Esboça-seaqui a tarefa de fundamentação do saber cien-
de sentido não só das restrições formais explicitadas pela lógica pura
!íPco como explicitação e sistematização dos pressupostosteóricos que
jcomo era o caso em Pro/egõme7zos),
mas de toda a experiência. É a
condicionam a f)redução desseúltimo. Os pressuf)oitos objetivos são res-
partir de então que Husserl considerará a cientificidade não somente
trições formais para a formulação de teorias significativas e portado- como tema dasanálisesfenomenológicas, mas também como um com-
ras de teses verdadeiras acerca de quaisquer domínios temáticos. Eles porzenfeda fenomenologia. Em sua versão transcendental, a fenome-
devem ser sistematizadospor meio de métodos lógico-matemáticos, o
nologia é designadacomo ciência da consciênciapura, e issoabrirá a
que ]evará ao desenvolvimento de uma ciência formal fundente de to-
problemática acerca daquilo que compõe a cientificidade da própria
das as demais disciplinas científicas, a saber, a lógica pura. Por sua vez, fenomenologia.
os pressupostos sub/etívos referem-se às restrições de apreensão e ates- No segundocapítulo, eu reconstruo a versãomadura da fenome-
tação evidente dos conteúdos teóricos pela subjetividade cognoscente nologia transcendental estática, desenvolvida em Ideias para uma
A descrição das estruturas subjetivas responsáveis pela atestação do co-
nhecimento (qualquer que seja o seu conteúdo) exige uma disciplina prometo
de Bolzano de uma Wísse7zscha/ts/e/zre;
no sentido estrito. ela é então definida
especial, uma vez que nenhuma ciência, nem mesmo a lógica pura, como uma teoria de todos os tipos de teoria. Mas parece legítimo estender essadoutrina
preocupa-se em aclarar as condições cognoscentes czpüorí pelas quais da ciência para uma teoria do conhecimento e construí-la como uma doutrina geral da
razãoe do Juízo" (Fisette, 2003a, 42). Husserl reconstrói o ideal clássico de uma dou-
elas mesmas se exercem. Desde então, Husserl propõe a áenomeno/ogía trina da ciência clari6icadorada cientificidade ao complementa-la, inicialmente, com a
como a doutrina filosófica que complementará a lógica pura na tarefa investigaçãofenomenológica dasfontes lloéticâs de atestaçãoevidente do conteúdo ló-
global de oferecer fundamentação para todo saber científicos gico. Essepro)eto será paulatinamente expandido conforme reflexões posteriores acerca
da especificidade das ciências empíricas e dos diferentes níveis de análise fellomeno-
lógica. Fisette apenas indica no final de seu artigo parte dessa expansão, enfatizando o
acréscimo das ontologias materiais e da ética no prometohusserliano (cf. Fisette, 2003a
4. D. Fisette nota que, dessamaneira, Husser] reformula o prometoclássico de dou-
49-57). Neste livro, pretendo descrever de modo bastante detalhado a montagem do
trina da ciência; "no selltido estrito a doutrina da ciência aparece como uma retomada
prometode uma doubina da ciência em Pro/egómerzos e a sua expansãoposterior por
do prometoleibniziano de uma rrzafAesfs
uníversa/zsou como uma versãoenriquecida do meio da ideia de antologias materiais

18
19

l
A cientificidade na fenomenologia de Husserl Introdução
/ ,/J'} 4

áenomeno/agiapurcze umcz/í/oso/ía áe7zomeno/ógíca


1, ou simplesmente do conhecimento, o que implica que os fios condutores para asanálises
Ideíczs1, publicada em 1913. Nesse texto, a exploração das condições
propiciarão formulações mais amplas do próprio prometofenomenoló-
objetivas do conhecimento é atribuída a um sistema de ontologias res- gico. No terceiro capítulo, após acompanhar a tentativa de fundamen-
ponsáveis por ordenar as restrições d f)doH formais e materiais a que o tar fenomenologicamente as ciências naturais e humanas em Ideias ll,
conhecimento científico deve se submeter. Já a explicitação das condi- reconstruo alguns dos elementos envolvidos nas análisesgelzétícczs da
ções subjetivas do saber continua uma tarefa da fenomenologia, porém cientificidades. No período anterior, aquele das Ideíczs,os pressupostos
inserida em uma problemática científica própria, a saber, as aná/ases fundentes da cientificidade são considerados em correlações estátícczs:
corzstíMfívas do sentido das experiências possíveis da consciência pura. aosconceitos ontológicos basilares das disciplinas científicas deve cor-
Vale notar que em Ideias 1, Husserl sedebruça demoradamente sobre o respondero sistema de fitos subjetivos nos quais seu sentido era cons-
caráter científico da fenomenologia, o qual é remetido a dois principais tituído. Por sua vez, no correr da década de 1910 e 1920, o filósofo re-
aspectos, o eídéfíco e o tra7zscenderzta/.
A fenomenologia será, assim, conhece que essetipo de análise não esgota a exploração das condi-
uma descriçãodas estruturasd pHori de uma regiãoontológica especí- çõesfundacionais do conhecimento. As ontologias devem estudar as
fica, a consciência.Porém essaregião exerceráuma função especial;a restriçõesa pHorí formais e materiais das ciências; mas tais restrições
saber, ela será a fonte de sentido por meio da qual setornará compreen- sãopor elas abordadascomo um tema teórico pronto, sem que haja
sível a possibilidade de acessoa qualquer tipo de objetividade. uma preocupação em evidenciar as camadas de experiência fundente
Quanto à tarefa de fundamentação das ciências pela explicitação de nas quais essaspróprias restrições podem ser inicialmente reconheci-
suascondições subjetivas,veremos que Husserl a propõe como uma es- das e isoladas como tema científico. Husserl aponta, assim, para pressu-
pécie de ap/ícczçãoda fenomenologia transcendental(Cf. Idl, S62). Essa postosdo conhecimento na experiência pré-teórica do mundo, na qual
tarefa é desenvolvida principalmente em alguns trechos de Ideias lll os diferentes temas das ontologias aparecem entrelaçados em vivên-
(texto escrito na mesma época de Ideias 1, porém publicado postuma- cias intencionalmente densas. A exploração sistemática da experiên-
mente). Fica claro ali um esquema de análise que Husserl manterá até cia pré-teóricalança, desse modo, nova luz sobre a legitimidade das
o fim de sua carreira: tomar as análises sobre as condições objetivas do investigaçõescientíficas, das distinções entre asdisciplinas e da conve-
conhecimento (as quais devem ser realizadas por ciências devidamente niência dos seusmétodos. Acerca dessevasto horizonte temático, privi-
voltadas a essestemas, tais como as antologias formais e materiais) legiarei o exemplo da distinção entre ciências humanas e ciências natu-
como /ios condutores para a explicitação das operações transcendentais rais por meio da remissão à experiência pré-teórica, tema desenvolvido
fundentes de todo sabercientífico. Esseprocedimento fenomenológico por Husserl nos dois cursos intitulados Naturez e espírito (ministrados
de pautar-sepelo objeto constituído para então revelar a atividade sub- respectivamente em 1919 e 1927). Importa tornar visível de que ma-
jetiva constituinte já está de certo modo em vigor desde Pro/egõmenos à neira Husserl inclui a exploração do mundo da experiência pré-teórica
rógíca pura. Trata-se da empreitada de c/arí/ícação do sezztídode algum como parte da clarificação dos pressupostoscondicionantes da produ-
tópico objetivo pela remissão à sua origem fenomenológica. Porém em çãocientífica. Veremos,quanto a isso, que o filósofo proporá no curso
Ideias IIJ esseprocedimento é sistematizado como a atividade por meio Psíco/ogía
áerzomeno/ógíca
(ministrado
em 1925,1926e 1928)uma
da qual a fenomenologiapoderá explicitar osfundamentos últimos que
garantem a cientificidade de qualquer sabercientífico.
5. Não pretendo reduzir a complexa elaboração do método fenomenológico ge-
Nos dois capítulos finais deste trabalho, mostro de que maneira nético a uma respostaao tema da cientificidade, embora essemétodo, como veremos
Husserl desenvolve ainda mais a sistematização das condições objetivas ofereça uma nova abordagem a essetema

20 21
A cientificidade na fenomenologia de Husserl Introdução
#
ciência específicapara tratar dessepressupostogenético, a saber,uma iniciais dos livros Meditações caüesícznczs(publicado em 1931) e Lógica
oito/agia do mulzdo da expeHêncíaque servirá como fio condutor para Óomza/e trcznscende7zta/
(publicado em 1929)
a consecução das análisesfenomenológicas constitutivas genéticas. A análise das condições históricas da cientificidade não se con-
No correr da décadade 1920e em particular na décadade 1930, funde com aquela das condições genéticasda sua produção. No en-
as análises husserlianas do mundo da experiência pré-teórica desem- tanto, em A crise das cíêrzcías europeias e a Óerzomeno/ogía trarzscende7z-
bocam, ao menos em parte, no tema do muradoda vida, cuja explora-l faJ, Husser] tematizará con/urzfamé?ntea historicidade das ciências e sua
ção científica (entenda-se,por meio de uma ontologia própria) permi- fundaçãogenéticano mundo da vida, oferecendo um fio condutor ex-
tirá esclarecer de modo bastante detalhado os pressupostos pré-teóricos tremamente abrangente para as descrições fenomenológico-transcen-
condicionantesda cientificidade, além de oferecer uma nova via intro- dentais.Pretendo, no correr do quarto capítulo, tornar compreensível
dutória à fenomenologia transcendental. No quarto capítulo, recons- a articu]ação proposta por Husser] entre o caráter histórico da ciente
truí a análise husserliana da cientificidade à luz do tema do mundo da 6icidade,a crise anualda humanidade europeia e o papel fundante do
vida, além de pormenorizar a especificidade do prometofenomenoló- mundo da vida para asciências, tendo em vista que todos esseselemen-
gico transcendental correspondente à ênfase nesse tema. O texto em tossãoordenadoscomo uma via introdutória para a fenomenologia
que essaanálise é mais bem desenvolvida e que será aqui privilegiado é transcendental
A case das ciências europeias e a Óenomerzo/ogíatranscende7zfa/, publi- Eis o percurso a ser seguido por esta obra. Trata-se, em termos ge-
cado parcialmente em 1936.Ocorre que, como fica claro na parte ini- rais, de acompanhar a complexificação de um problema lançado em
cial dessetexto, a oncologia do mundo da vida rzão opera de modo íso/ado Prolegõmenos à /ógíca pura: que a peúeição estrutural das ciências
como explicitação dos pressupostospré-teóricos da cientificidade e, por exigea clarificação de todos os pressupostosque condicionam a pro-
conseguinte, como fio condutor para as análisesconstitutivas transcen- dução do saber científico enquanto devidamente fundamentado. Esses
dentais. A exploração genética do mundo da vida é entrelaçada a outro pressupostossão de ordens objetivo ou subjetiva. No correr de sua car-
tema, o que torna bastante difícil expor de modo fidedigno a posição fi- reira, até sua última obra publicada em vida (A crise das cíêrzcíaseuro-
nal de Husserl sobre a cientificidade e o papel da fenomenologia. Esse peias e a áenomeno/ogía tr rtscendenfa/), Husser] ampliou o sentido e
outro tema é aquele da /zístóría. Husserl considerará, e issoao menos a o alcance dessascondições. Expus os momentos-chave em que ascon-
partir da década de 1910, que as ciências são historicamente constituí- dições objetivas do conhecimento, delineadas inicialmente como res-
dasconforme o ideal de conhecimento absolutamente fundamentado trições formais, são desdobradas em condições formais e materiais, em
originalmente propostona Grécia Antiga. Dessamaneira, a produção seguida são exploradas em sua infraestrutura pré-objetiva e por fim são
científica não se encerra nos arosindividuais daquelesque atualmente remetidasa uma tradição histórica que em muito excede a atividade
a conduzem, mas deve ser também avaliada do ponto de vista da reati- científica anual.Em paralelo, mostrei que essaabertura temática em
vação de uma ideia fundadora que deveria justamente nortear as pro- relação aos fundamentos objetivos das ciências supõe sucessivasreela-
duções contemporâneas. Desde então, o caráter histórico do sentido da boraçõesdo prometofenomenológico apresentado inicialmente como
cientificidade é reconhecido por Husserlcomo um tipo de pressuposto investigaçãonoéticada lógica pura, então expandidoem fenomeno-
da ativídade científica, o qual permitirá mesmo diagnosticaruma crise logia banscendental estática, a qual será ampliada em fenomenologia
no estado atual das ciências. Para tornar explícito essetema da histori- genéticae por fim elaboradacomo uma ciência universal da consciên-
cidade das ciências, utilizarei vários textos de Husserl, em particular o cia que assume a tarefa de refundar o ideal histórico de cientificidade
artigo A #/oso/ia como cíêncíczrigorosa (publicado em 1911) e as partes por meio do qual a própria humanidade poderá superar a crise presente

22 23
A cienti6lcidadena fenomenologia de Husserl
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e almejar a instituição de unia cultura racional. Note-seque as preten-
sõesde Husserl em relação à fenomenologia são crescentes,bem como
a complexidade de suasanálises,o que se refletirá na construção dos
capítulos destelivro. Não é, assim,casualque o capítulo final seja bem CAPITULOI
maior que os iniciais. Simplesmente há cada vez mais elementos eu
jogo para responder a uma mesma problemática de fundo. Por meio Da fenomenologia noética à
do percurso aqui delineado, espero ter levado em conta os tópicos mi- fenomenologia transcendental
nimamente necessáriospara se compreender o tratamento do tema da
cientificidade em quatro momentos da obra de Husserl

Uma primeira versãodestaobra foi apresentadacomo teseem um


concurso de livre-docência a que me submeti na Universidade de São
Paulo em 2016. Agradeço aos professores-membrosdaquela banca
(Ricardo R. Terra, Franklin Leopoldo e Silva, Mário A. G. Porta, Jarro
J. da Silvo e JoséTornes) pelas sugestõese pelos comentários críticos
que contribuíram para a versão final deste livro.
Apresentação
Na primeira parte do capítulo, reconstruo a primeira versãoda fe-
nomenologia lançada ao grande público no livro Pro/egõmenosà/(igíca
pura, volume inicial da obra Investigações/ógícas(publicada inicial-
mente em 1900-1901 e reeditada em 1913 e em 1921:). Cabe à feno-
menologia, nesselivro, complementar a lógica pura na tarefa de ex-
plicitação dos fundamentos das ciências. Em seguida, contrasto o sen-
tido e o alcancedessaprimeira fenomenologiacom a fenomenologia
transcendental tal como sistematizada de modo inicial por Husserl no
curso lízüodução à /ógíca e à teoríczdo con/zecímento, ministrado em
1906-1907.

1. Todas ascitações de Investigações/ógícas referem-se, salvo menção explícita em


contrário,à segunda edição

24 25
A cientificidade na fenomenologia de Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental
./ rj' Ã,b

A) A fenomenologia como complemento filosófico à lógica pura necessário desenvolver uma investigação sobre a legitimidade dos pres-

O prometológico de Prolegâmenos à lógica pura supostos que condicionam a construção das teorias científicas.
Ao estabelecera necessidade de uma investigação dos fundamen-
O livro Pro/egõmenos
é comumente associadoà crítica ao psicolo.
tos lógico-conceituaisdas ciências, Husserl logo encontra a segunda
cismo, corrente filosófica que pretende atribuir à psicologia (enquanto
motivaçãoparao prometode Pro/egõmenos.E que a própria lógica esta-
ciência empírica) a tarefa de esclarecer os fundamentos teóricos da ló-l
ria em estadode inacabamento teórico. Os grandeslógicos estudados
Bica. Em ao menos sete dos onze capítulos desselivro, Husserl critica
no início do séculoXX não concordavamnem quanto ao conteúdo
duramente as tentativas de explicar a validade lógica por remissão a fa-
da disciplina lógica e nem mesmo quanto à própria definição desta
tos psíquicos, tachando a empreitada psicologista como confradítóría,
Tecnologia da ciência, arte do reto pensar, cálculo de consequências,
uma vez que ela seserve do caráter universal e necessáriode princípios
etc. Diferentes concepções da lógica vigoravam, sem que se elucidas-
lógicos básicospara construir suas teses,as quais justamente tentam
semplenamente quais tipos de vínculo ou hierarquia existiam entre
mostrar que as leis lógicas no fim das contas não são necessárias,mas
elas. Essa situação de desacordo exige um retorno às "questões de prin-
no máximo remetem a regularidadesnaturais (Cf. P, SS21-24). Sem
detalhar muito mais essacríticaz, importa notar que, apesarda exten- cípio" (P, S2), o que significará oferecer a delimitação evidente do do-
mínio de atuaçãoda lógica bem como uma sistematizaçãodasdife-
são da temática do psicologismo, o próprio Husserl não a considerava
rentes abordagens por meio das quais os temas lógicos são estudados
o núcleo de Pro/egóme7zos;. Na verdade,a refutaçãodo psicologismo
Husserldistingue inicialmente a lógica como díscíp/irz prática e como
constitui uma etapa preliminar de um prometobem mais audacioso,a
dÍscíp/ínanor77zafiva.Enquanto disciplina prática, a lógica atua como
saber,propor uma doutrina geral acercadaquilo que atribui cientifici-
dade às disciplinas ditas científicas. Há duas motivações gerais para esse uma arte ou um conjunto de técnicas submetidas a uma finalidade ge-
ral, a saber, a obtenção confiável de conhecimento científico nas mais
prometo.A primeira delas é o reconhecimento de que as ciências em ge-
diversassituações concretasõ. Além disso, em termos mais gerais, a ló-
ral, apesar de seu crescente sucessotécnico, permanecem em um es-
gica é uma disciplina normativa, isto é, um conjunto de normas rela-
tado de impeúeição teórica. Segundo Husserl, falta clareza em relação
aos métodos e conceitos basilares utilizados nas investigações científi- tivas às operações lógicas ordenadas conforme relações de hierarquia,
cas. Os cientistas supõem a vigência de certos conceitos e procedimen- e issoindependentemente de sua instrumentalização por finalidades
tos que permitem a construção de teorias convincentes, embora nor- práticasimediatas. Desseponto de vista, as disciplinas práticas supõem
malmente não se preocupem em Justificar explicitamente a validade disciplinas normativas em sua base que justamente ordenam as regras
dessespressupostos lógicos sobre os quais trabalham'. Torna-se, assim, relacionadas aos procedimentos a ser aplicados para os casos em vista

2. Uma excelente coletânea de artigos em torno dascríticas de Husserl ao psico- dosúltimos fundamentos de sua atividade, e embora os resultados obtidos possuam para
logismoé EdmundHusser/:$erzomerzo/ogía,
psfcoZogísmo,
psíco/ogía,
de Mário A. G eles e para outros a força de um convencimento racional, eles não podem pretender ter
Porta (2013) provado no geral as premissas últimas de suas conclusões e dos princípios sobre os quais
3. No primeiro fragmento do esboço de um prefácio a Invesflgações/ógícas, escrito repousaa validade [Tn/tígÊeítl de seusmétodos. A isso se refere o estado de imperfeição
em 1913 mas só pub]icado postumamente, Husser] lamenta que muitos leitores se li- detodasasciências"(P,S4, 25-6)
mitem à discussão do psicologismo "para poder ajuizar sobre o sentido dos esforços que 5. "Hoje ainda estamosmuito distantes de um acordo multilateral em relação ao
eu tentei em lógica e em teoria do conhecimento, e sobre o valor filosófico da obra tema da de6lnição da lógica e do conteúdo de suasteorias essenciais" (P $ 1, 19).
(Husser1,
2002a,S2,276) 6. "Uma lógica orientada para a prática é um postulado inevitável de todas as ciên-
4. "Mesmo o matemático,o físico e o astrónomonão necessitam,para conduzir cias,e a estefato correspondetambém que a lógica se originou historicamente por mo-
suas operações ILesífungenl científicas mais significativas, da visão evidente IEinsfchtl tivos práticos ligados ao empreendimento científico" (P, $ 13, 44)

26 27
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcender.tal
#
Além disso, Husserl defende que toda norma pressupõe um conteúdo circunstânciasconcretas. Essasleis nos permitem pensar sobre fatos e
teórico sobre o qual se estabeleceo deversernomativo em vista para situações particulares, mas não são derivadas dessas últimas. Conforme
cada caso.Isso significa que a lógica como uma disciplina normativa insisteo filósofo, "as leis denominadas como 1(5gicas
em sentido pleno
supõe a validade independente dos seusconteúdos temáticos, os quais (...) possuemexatidão absoluta. Toda interpretação que lhes atribua
podem ser investigadospor uma disciplina puramente teórica, que os indeterminações empíricas, que pretenda tornar a sua validade depen-
estude de modo autónomo, antes mesmo de serem convertidos em re- dente de 'circunstâncias'vagas,alteraria profundamente o seu signifi-
gras para guiar a produção do conhecimento. Essateseé formulada de cado" (P, S 21, 73). Ora, se esseconteúdo teórico da lógica (as estrutu-
modo bastante claro no parágrafo 14 de Pro/egõmenos: ras formais regidas por leis a priori) fosse derivado da investigação psi-
"Toda disciplina normativa e, do mesmo modo, toda disciplina prá- cológica, então ele seria apenas mais ou menos provável, uma vez que
tica assentamsobre uma ou mais disciplinas teóricas,na medida ern sujeito a mudanças conforme o avanço do saber experimental (Cf. P,
que as suasregras têm de possuir um conteúdo teórico separável do pen- S 21). Mas essenão é o caso;o conteúdo estritamente teórico dasnor-
samento da normatividade (do dever ser), conteúdo cuja investigação mas e dos procedimentos lógicos utilizados nas ciências é necessaría-
científica compete precisamente àquelas disciplinas teóricas" (P, 53). menfevá/ído'
Consideremos,por exemplo, uma norma segundoa qual se deve É claro que, ao se referir às leis lógicas, os sujeitos têm certas expe-
evitar o uso de contradições em uma cadeia dedutiva. Essanorma su- riências psíquicas particulares, as quais são mais ou menos claras e in-
põe um conteúdo teórico do que é uma contradição lógica e de suas tensas.Mas não se devem confundir as vivências com o conteúdo lógico
consequências. Por sua vez, esseconteúdo não é normativo; ele exige yísczdo
por e/as.Os fitos psíquicos sãoeventos reais, compostosde causas
outro tipo de investigação para ser devidamente tematizado. Daí que e efeitosparticulares, que se desenrolam num tempo determinado; já
a lógica, enquanto disciplina normativa, suponha uma ciência teórica asestruturaslógicas têm uma validade onitemporal, a qual não se mo
do conteúdo temático de que suasnormas se compõem. E é em re- difica conforme a variação das vivências psíquicas. Essasestruturas são
lação a essapassagemdas normas lógicas para seu conteúdo teórico baseadas
em conceitos ou categoriasformais cujo sentido não é deri-
de base que se instaura a polêmíca com o psicologismo. Todo o pro- vado de experiências particulares, as quais são, por sua vez, o material
blema é esclarecer qua/ díscíp/ína teóríccr deve investigar os conteúdos básico da investigação psicológica (Cf. P, S 37).
lógicosem sua autorzomiafanática. Segundo a interpretação psicolo- Voltarei a tematizar a referência subjetiva à validade a priori da ló-
gista da lógica, a disciplina teórica fundente deve sera psicologia, tese gica. Por ora, basta enfatizar que, diante da recusa da psicologia como
que Husserl julga ter refutado ao apontar para o caráter necessárioe a disciplina teórica fundente da lógica, Husserl almeja o seguinte resul-
priori dos temas lógicos, especificidade não abarcável por uma ciên-l tado: "a delimitação IAussondemngl de uma ciência nova e puramente
cia que trata de fatos. A investigação psicológica, assim crê Husserl, al- teórica que constitui toda técnica do conhecimento científico e possui
meja a construção de teorias explicativas quanto aos estados psíquicos o caráter de uma ciência a príoH puramente demonstrativa" (P, S 3, 23-
humanos. As tesesveiculadas por tais teorias se baseiam em constata- 24).Trata-sede mostrarque muito além de uma tecnologia prática ou
çõesempíricas e se apresentamcomo generalizaçõesindutivas passí- de um conjunto de normas, a lógica deve ser desenvolvida como uma
veis de aperfeiçoamento aTltea obtenção de novos dados experimen- disciplinateórica independente,a /ógíc pura, uma disciplina cujo
tais. Por sua vez, as estruturas lógicas exibem uma validade absoluta, as
leis que regem as inferências dedutivas não se originam de generaliza- 7. As leis lógicas "enconbam a sua fundamentação e )usti6lcação não por meio de
ções empíricas, mas são válidas czpríod, isto é, independentemente das indução,mas por evidência apodítica" (P, S 21, 74)

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A cientificidade na fenomenologia de Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental.
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escopo, como se verá a seguir, será aquele das condições de sentido e do conhecimento científico exige, desde então, que todos os resultados
validade basilaresde qualquer investigação científica. remetam aosrespectivosprincípios legitimadores. Porém, conforme já
mencionado na seção anterior, o diagnóstico husserliano é de que na
prática científica falta clareza em relação aos fundamentos últimos do
O domínio da lógica pura conhecimento obtido. Os métodos de legitimação de conhecimentos
A meta das investigações científicas, como nos expõe Husserl, é a mediatos, os princípios nos quais se baseiam, nada disso está sistemati-
obtenção de conhecimento verdadeiro justificado (Cf. P, S 6). No en- :ado, de forma que falta ainda uma compreensão racional da produção
tanto asciênciasnão se limitam a formular conhecimentosde modo científica conforme suascondições teóricas mais básicas.
esparso, mas os propõem de forma sistemática. Essa sistematicidade, Segundo Husserl, cabe investigar em sua czutonomía feódccztodos
por sua vez, não é derivada de alguma idiossincrasiaestética dos su- esses
métodosde fundamentação (bem como seusconceitose princí-
jeitos cognoscentes;ela é exigida pelos próprios temas científicos, os pios constituintes) que permitem o estabelecimento de teorias legítimas
quais por si mesmosse encadeiam de forma sistêmica'. Os laços sis- em sua tarefa de expressar as características definidoras dos domínios in-
temáticos das teorias devem, assim, refletir a ordenação objetivo dos vestigados.Essaautonomia teórica remete sem dúvida ao próprio modo
assuntos estudados. Contudo, essa ordenação não é desvelada de ma- como essesmétodos por si sós operam. Afinal, eles são (Cf. P, S 7):
neira imediata. O conhecimento evidente, que se impõe sem media- a) conjuntos de procedimentos fixos, quer dizer, uma sequên-
ções, ocorre somente em relação a um grupo muito restrito de temas cia não arbitrária de operações;
Diante disso,o edifício científico deve contar com vários métodos que b) procedimentos típicos, isto é, que não selimitam a situações
legitimem a obtenção de conhecimentos mediatos confiáveis com únicas, mas podem ser aplicados a inúmeros casossimilares;
base naqueles imediatos9, de maneira a construir teorias capazes de ex- c) procedimentos cuja forma não depende das particularidades
primir as características e relações dos domínios objetivos estudados. concretas do domínio em que são aplicados
Deve-se acentuar aqui que para Husserl o caráter marcante da cienti- Os métodos de fundamentação do saber (e seus componentes con-
ficidade é a legitimidade ou a justificação teórica de todos os passosna ceituais elementares bem como as leis que regem sua validade) cons-
produção do conhecimento. Conhecimento científico é, assim, con/ze. tituem o núcleo teórico mais geral do qual as mais diversasinvestiga
cimento /ulzdame7ztadoem métodos e princípios que legitimem as vá ções científicas se desenvolvem. O estudo dessas estruturas, em sua pu-
rias etapasdas construçõesteóricas'o.O ideal de conhecimento cien- rezaformal, circunscreve o domínio temático da lógica pura, a qual,
tífico aponta, dessemodo, para "teorias cristalinas, nas quaisa função dessamaneira, se caracteriza como "doutrina da ciência" IWíssens
de todos os conceitos e tesesestivessecompletamente concebida, todos
cba/ts/ebrel (P, S 5, 271, quer dizer, como investigação daquilo que
os pressupostos rigorosamente analisados, e o todo estivesse assim ele- confere cientificidade às disciplinas científicas''. Husserl retoma
vado acima de qualquer dúvida teórica" (P, S 4, 26). A cientificidade
11. Husserl encontra inspiração para seu prometona obra Wissensc/za/ts/gare
de
8. "A sistematizaçãoque é própria à ciência (...) não somosnós que a inventa' Bolzano. Ali, "encontramos excelentes ideias concernentes à delimitação de nossa dis-
ela reside nas coisas, nas qu ais nós simplesmente a encontramos, a descobrimos ciplina" (P, S 12,43), afirma. Essaobra, de 1837, "no que concerne à 'teoria lógica ele-
mentar', ultrapassade longe tudo o que a bibliografia mundial nos oferece como esboço
(P,S6 30-sserl
chama
esses
métodos
de"fundamentos"
IBegdndungenl
(P,S6) de uma lógica sistemática" (P, apênd. S 61, 227). No entanto, Husserl nota que falta
10. Husserl afirma isso explicitamente no parágrafo 62: "o conhecimento cientí- naobra de Bolzano "investigaçõesque façam compreender de ulll ponto de vista pro-
fico é, comotal, conbecímenfo
co«z/andamento"(P,233) priamente filosófico as funções lógicas do pensamento e, por aí, a apreciação filosófica

30 31
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental
.} ,r'$'} H
explicitamente aqui o ideal leibniziano da mczt/zesís
uníversa/is,querdi. Vale notar que a lógica pura, tal como exposta,ainda não é uma
zer, do conhecimento universal fundente dossaberesparticulares (Cf. ciência plenamente desenvolvida. Haveria já explorações teóricas con-
P, S 60). Essa mat/zesís seria uma "disciplina de forma e rigor matemá-
sideráveisacerca dos temas centrais da lógica pura'', mas não aindaj
tico em todo o seusentido mais vastoe supremo" (P, S 60, 222), e con. sistematização unificadora dos seus resu]tados em uma só ciência. ]il
teria os princípios geraisque regem a produção do conhecimento nas importante destacara centralidade da mczfemátícapara o amadureci-
mais diversasáreas.A lógica pura permitiria realizar esseideal da filo- mento da lógica pura. Os encadeamentos proposicionais que permi-
sofia moderna ao elucidar a armadura formal que sustentaas teorias tem a construção de teorias válidas bem como aspropriedades formais
científicas. E, segundo Husser], a ordenação sistemática que permite de qualquer domínio pensável, tudo isso será investigado por recur-
melhor fundamentar a extração de consequências teóricas em uma in. soslógico-matemáticos.
Husserl tem aqui em vista as notáveistrans-
vestigação científica é a axiomática-dedutiva'Z. Vale notar que essaé a formações nos estudos lógicos do final do século XIX geradas pela in-
forma que a própria lógica pura deve ter, de maneira que ela funda- trodução em seu âmbito dos métodos matemáticos. Essastransforma-
menta a si própria, quer dizer, a forma sistemático-dedutivada lógica çõesrevelaramoslimites da sílogísticabadicional e explicitaram novas
pura é regida pelas leis lógicas a f)ríoH acerca da sistematicidade dedu- formasde encadeamentos dedutivos desconhecidas até então. Tal am-
tiva, leis que fazem parte de seu conteúdo teórico';. pliação dos recursos lógicos pela aplicação dos métodos matemáticos
Conforme já mencionado, as teoriascientíficas buscam exprimir a confirma para Husserl que o domínio das puras significações formais e
unidade sistemáticade um domínio objetivamente delimitado. Cabe suasinterações deve ser tratado conforme os métodos matemáticosiÕ.
aqui acentuar que essacorrelação é levada em conta pela lógica pura, Na verdade,Husserl crê que, de maneira geral, no que tange a todos
que analisa não somente os conceitos que formam proposições e seus os pressupostos lógicos das teorias científicas, a forma matemática "é a
encadeamentos dedutivos, mas também as propriedades e relações for- única que é científica, a única que apresenta o caráter e o acabamento
mais que os objetos correspondentes estabelecem entre si. A lógica de um sistema fechado, uma visão de conjunto sobre todas as questões
pura também inclui, assim,uma teoria /)ura do ob/eto,ou seja,uma e suasformas de solução possíveis" (P, S 71, 254). Notemos aqui que
análise em termos de categoriasformais de qualquer tipo de objeto pos- esseestilo matemático do desenvolvimento da lógica pura não está li-
sível em qualquer domínio concebível''. gadoà noção ingênua de quantidade, e sim ao rigor dedutivo das co-
nexões estabelecidas, o que permitirá exprimir com segurança as uni-
dadessistemáticasformais que garantem a cientificidade das ciências
da própria disciplina lógica" (P, apênd. S 61, 228). A empreitada husserlianaserá mar- (Cf.P,S70)
cada exatamente por incorporar uljla e/ucídação /í/osó/íca à lógica, conforme veremos
12. "A unidade sistemática da totalidade idealmente fechada de !eis, as quais re-
pousam em uma legalidade fundamental como seu fundamento último e sãodele de- 15. Em um texto pub]icado em 1903, Husser] sugere que devem compor a lógica
rivadas por dedução sistemática, é a urzídade de uma teoHa sfsfematicamente como/efa pura "a silogística tradicional, mas também a teoria pura das numerações, a teoria pura
Essalegalidade fundamental consiste aqui seja em uma lei fundamental, seja em uma dosnúmeros ordinais, a teoria cantoriana da multiplicidade, etc." (Husserl, 1979a, 205)
reunião de leis fundamentais homogêneas" (P, S 63, 234). 16. "Recentemente os matemáticos reivindicaram e se apropriaram da tarefa de
13. "Que a ciência que se refere a todas asciências no que concerne à sua forma se apeúeiçoara teoria do silogismo,a qual por todo tempo tinha sido computadana es-
aplique também eo ipso a si própria, eis o que soade maneira paradoxal, mas que não fera mais específica da filosoüla, e ela recebeu de suasmãos um desenvolvimento insus-
envolve nenhum tipo de incompatibilidade" (P, $ 42, 165) peito (. . .). E ao mesmo tempo descobriram-se (. . .) teorias de novos gêneros de raciocí-
14.Trata-sede "categorias objetivas puras ou formais", tais como "objeto, estado nios, que a lógica tradicional havia omitido ou desconhecido. Ninguém pode interditar
de coisas, unidade, pluralidade, número, relação, enlace, etc." (P, S 67, 245). Paraapro- osmatemáticos de reivindicar para eles mesmos tudo o que deve ser tratado com uma
fundamentos quanto a esseduplo desenvolvimento da lógica pura, cf. Smith, 2003 forma e um método matemático" (P, S 71, 254)

32 33
A cielltiRlcidade na fenomenologia de Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental
4

A. lógica pura e as ciências empíl'ices progressodas ciências empíricas está submetido a regrasformais de va-
A realização da cientificidade como unidade sistêmica dedutiva de lidade universal,passíveisde estudo pela lógica pura. Ocorre que es-
proposiçõesderivadasde princípios apodíticos não se cumpre plena- sasleis que regulam a construção do saberempírico não determinam
mente em relação a todas as ciências. Apenas as ciências abstratas ou necessariamenteos resultados obtidos, mas sim de modo prováve/. O
nomológicas (cujo tema decorre totalmente de leis .zpHod) veiculam caráterprováveldo conteúdo teórico das ciênciasempíricas implica
adequadamenteessepadrão de cientificidade. Essasciências (a mate. a sua provisoriedade, uma vez que sempre é possível que dados em-
mítica formal, a física matemática, a mecânica a príoH etc.) se desen- píricos futuros alterem o grau de probabilidade atribuído às tesesde
volvem somente com base em conceitos categoriais e oncológicos pu- que asteorias originalmente secompunhamt8. Issovale mesmo para as
ros, sem que sejam limitadas por circunstâncias factuais. Por sua vez, leis empíricas, asquais, justamente por isso, estabelecem regularidades
não é issoo que ocorre com as ciências empíricas. Para Husserl, a uni- que não se impõem de forma necessária tal como ocorre com as leis
dade teórica das disciplinas empíricas não decorre somente de leis a lógicas:9.Em todo caso,vale notar que as teoriasda probabilidade não
f)ríorí, apreensíveisem armaduras conceituais dedutivas, pois também são elas mesmas eventos empíricos prováveis, mas estruturas formais
depende de determinações oriundas do domhio empa'hcoestudado construídas de modo válido a priori, o que permite que, ao menos par-
jseja uma só coisa, como é o caso da Terra para a geografia, seja um gê- cialmente, a cientificidade das ciências empíricas seja tematizada pela
nero material, por exemplo, asespéciesde animais e plantas para a zoo- lógica pura. Segundo Husserl, numa situação epistêmica em que di-
logia e botânica -- Cf. P, S 64). As características dos domínios empíri- versasteorias sobre domínios empíricos competem entre si deve haver
cos não são deriváveis de leis a priori, mas devem ser apreendidas experi- uma escolhaótima, quer dizer, deve haver uma teoria que forneça ex-
mentalmente. Desse modo, as teorias relativas aos domínios empíricos plicaçõescom a maior probabilidade possívelem relação ao domínio
estão sempre abertas à revisão diante da obtenção de novos dados con- factual que e]a mesma circunscrevezo. Essa é a norma ]ógica suprema
cretos. Quanto a esse ponto, Husserl admite no final de Pro/egõmerzos que guia o progresso do saber empírico: as regras da probabilidade de-
uma concepção bastante arrojada de mudança teórica segundo a qual vem permitir escolher justificadamente, ainda que não de modo defi-
não somente as teorias se modificam, mas também o próprio domínio nitivo, uma teoria ou conjunto de teorias ante um determinado domí-
dos fatos a serem explicados. Segundo o autor, não existe somente uma nio factual. A esfera das leis da probabilidade constituiria, dessa ma-
sucessão de teoriascom vistasà explicaçãode um domínio empírico neira, um segundo grande conjunto de temas lógicos que guiariam as
fixo e totalmente alheio à investigaçãoem pauta. Mesmo aquilo que se pesquisascientíficas empíricas até a produção de teorias sistemáticas,e
julga fato consumado altera-seconforme a aplicação de novos métodos esseconjunto também encontraria suasbasesteóricas na lógica pura
e conforme os pressupostos teóricos das novas explicações propostas'
Assim, os domínios empíricos não são campos inertes em relação aos 18. As teorias empíricas são "de uma probabilidade evidente, elas são apenas teo
rias provisórias e ílão definitivas" (P, $ 72, 257)
quais as diferentes teorias seriam isentamente testadas.
19.Em um texto de 1903, Husserl explica a diferença entre as leis empíricas (reais) e
Essaatribuição de um caráter dinâmico intrínseco aos domínios asleis puramente lógicas: "no contexto crítico de Pro/egómenos,lei real não significa toda
factuais não exclui o reconhecimentode que ao menos em parte o proposição gera[ re]acionada a algo de real, mas um fato gera], ou ao menos uma propo-
sição que é carregada de um conteúdo de fato, à maneira de nossasafirmações sobre as
leisda natureza. De modo essencial,trata-seda diferença ente verdadesde fato e ver-
17. "É dos lfatosl que nós partimos, nós os consideramos como dados, e nós quere- dadesconceituais puras (leis ideais, leis no sentido mais esbito)" (Husser1, 1979b, 160>
mos meramente explica-los. Mas quando aí chegamos por hipóteses explicativas e após 20. "Nós pretendemos que haja a cada vez apenas um comportamento justificado
haver feito uso da dedução e da verificação (. ..), os próprios fatos não permanecem in- na avaliação das leis explicativas e na determinação dos fatos verdadeiros, e isso para
teiramente imutáveis,eles também se transformam" (P, S 72, 2 57). cadadegrau alcançado pela ciência" (P, S 72, 258).

34 35
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Da fenomenologia noética à fenameno]ogia transcendental.
.} +'1'} %,'.
Entretanto, sem justificar sua decisão, Husserl anuncia que não tratará dedutivos, também devem ser descritas conforme as leis a
dessedomínio em Irzvesfígações
Lógicas (Cf. P, S 72). Seja como for. príoH que as regem
vale ressaltar que a abordagem das ciências empíricas em Pro/egõmeno$ b) a fixação das /eís fundadas sobre as categorias formais que re-
não é isenta de problemas. Por um lado, Husserl atribuiu à forma teó- gulam a validade de configurações complexas formadas pe-
rica axiomática-dedutiva
o papelde expressão
máximada cientifici. los encadeamentosproposicionais e seus correlatos visados
dade. Por outro, admite que as ciências empíricas, ainda que não se ICf. P S 68). Husserl menciona as teorias do raciocínio, tais
exerçam conforme essaforma teórica, partilham, em parte, da cienti- como a silogística, como exemplo de conjuntos de leis sobre
ficidade. Husserl não parece dispostoa reduzir toda a cientificidade à asconexões dos conceitos de significação em proposições; e
aplicação de formas teóricas cabíveis apenas para as ciências abstratas a teoria pura dos números, como exemplo de um conjunto
e também não parece totalmente seguro a respeito de como circuns- de lei relativo às características formais dos correlatos possí-
crever a cientificidade esPecz'Hca
do saber empíricozi. Veremos no fi- veis dos encadeamentos proposicionais. Em suma, trata-se,
nal destecapítulo e no próximo de que maneira esseproblema é resol- nessenível, de investigar as leis referentes ao valor objetivo
vido por meio do desenvolvimento de uma noção de validade teórica das formas de unidade resultantes dos conceitos categoriais,
a pHorí que não estálimitada aos conteúdos formais da lógica pura. ou seja, leis segundo as quais se delimitam a validade e a não
validade das conexões proposicionais em geral e o ser e o não
ser de seus correlatos objetivos
As tarefas da lógica pura e as condiçõesdo conhecimento
c) a fixação das formas possíveis de teoria decorrente da ordena-
Detalhemos quais são as principais tarefas da lógica pura conce- ção sistemática das conexões proposicionais, tendo em vista
bida como sistematização geral da cientificidade das ciências. Dessa a expressão corneta das características dos correlatos objetivos
maneira, seráfinalmente possível marcar, por contraste, a especifici- (cí. p, S õ9).
dade da reflexãofenomenológicana constituiçãodo prometo
da dou- Configura-se,assim,a lógica pura como doutrina daforma da cien-
trina da ciência. Husserl retrata essastarefas nos parágrafos 67 a 69 de tificidade. Por meio dela, espera-serecensear os principais conceitos
Pro/egómerzos.Cabe à lógica pura: formais em torno dos quais se ordenam dedutivamente cadeias propo-
a) a fixação das categoriaspuras de significação e das categorias sicionais que, por sua vez, circunscrevem formas de teorias possíveiszz
objetivas correlatas (Cf. P, S 67). Trata-se de discriminar os Husserl havia mencionado que as ciências se encontram em um estado
conceitos primitivos que constituem a própria ideia de uni- de imperfeição por falta de clareza no que se refere aos próprios funda
dade teórica (por exemplo, verdade, idealidade, proposição, mantos que garantem, em todas as etapas da investigação, o caráter legí-
conceito etc.) e aquelesque se referem formalmente a qual- timo do conhecimento obtido. A lógica pura elucida um determinado
quer domínio possível (por exemplo, objeto, estadode coi- tipo de condição que deve ser preenchida para que o conhecimento
sas, multiplicidade etc.). Além disso, as formas elementares
proposicionais (por exemplo, forma disjuntiva, conjuntiva, 22. Eis como Husserl apresenta resumidamente, no parágrafo 10 de Pro/egómenos,
hipotética etc.), porquanto constituintes de encadeamentos a tarefa da lógica pura: "tratar das ciências enquanto urzídadessistemáticas de ta/ ou fa/
rzahreza, quer dizer, disso que as caracteriza enquanto ciência quanto à sua forma, disso
que determina sua delimitação recíproca, sua articulação intrínseca em domínios, em
21. Para uma exposição deta]hada acerca dos limites do prometofundacionista de teorias formando relativamente um todo, das diferenças essenciais entre suas espécies e
Pro/egónzerzospara as ciências empíricas, cf. Phil ipse, 2004. suasformas, etc." (P, $ 10, 40)

36 37
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Da fenomenologia poética à fenomenologia transcendental
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científico seja alcançado:;. Trata-se daquilo que Husserl chama de con- negracontingente a alguns juízos; ela é um tipo particular de vivência,
dições ob/etívas do conhecimento. Tem-se em vista aqui o arcabouça um modo específico de se relacionar com os objetos. Toda experiência
formal (naqueles três níveis explorados pela lógica pura) em que asteo- da evidência se caracteriza como doação originária daquilo que é vi-
rias devem estar baseadas(Cf. P, S 32). As leis a príoH da lógica pura sadoem tal experiência. Tal como afirma Husserl, "a coisa julgada com
devem ser o que sãode modo objetivo, quer dizer, independentemente evidência não foi somente julgada (...) mas, na experiência do juízo
de sua possível apreensão em episódios psíquicos de uma subjetividade vivido, dadacomo presente" (P, S 5 1, 193). A possibilidadede doação
cognoscente. Husserl caracteriza as leis e asverdades objetivas puras re- evidentedo tema visado é, assim,condição básicado conhecimento
ferentes à lógica pura como ideais, quer dizer, polos de unidade idên-l Sem ela, Husserl argumenta, seríamos conduzidos a um ceticismo ab-
ricos, cuja validade não oscila nem se altera, apesarde serem apreendi- soluto,já que nenhum raciocínio pareceria racionalmente melhor que
dos por inúmeros atou subjetivos diferentes entre si:'. qualquer outro26.E porque, por exemplo, certos juízos se impõem com
Voltarei a tratar do caráter ideal das leis lógicas. Por ora, insisto em evidência (por exemplo, aqueles derivados de estruturas formais váli-
afirmar que elas constituem as condições objetivas das teorias em ge- das tais como modas to//ens, silogismo hipotético etc.) que o conhe-
ral, inclusive da lógica pura. Importa notar que, ao lado delas,Husserl cimento aí veiculado se estabelece como conhecimento objetivo, por
enumera condições sub/etívas que também devem ser preenchidas para oposiçãoà mera opinião injustificada.
que o conhecimento esteja adequadamente fundamentado (Cf. P, Mesmo a lógica pura, teoria universal das formas de teorias pos-
S 32). Essascondições subjetivas referem-se à czPreeizsão
do conheci- síveis,deve respeitar as condições de evidência. Afinal, a lógica pura
mento válido. De nada adiantaria que uma teoria preenchesseas con- também deve vigorar como um conhecimento, e, assim, deve ser pas-
dições objetivas em sua formulação se os sujeitos não pudessem reco- sível de uma apreensão cognitiva evidente (Cf. P, S 32). No entanto a
nhecer sua correção. As estruturas teóricas devem vigorar para sujeitos lógica pura nela mesma, ao menos no sentido de mat/zesísuzlíversa/ís
que conhecem os domínios objetivos por meio delas. Para tanto, certas puramente objetivo, nada enuncia sobre as condições de sua doação
condições, ligadas ao reconhecimento da validade das estruturas teóri- epistêmicaz7.Tal mat/zesísdiscrimina os axiomas básicos e os encadea-
cas, tem de ser cumpridas para que o conhecimento seja atestado coma mentos válidos a pdorí que permitem a aquisição de conhecimentos lo-
racionalmente fundado. Husserl enfatiza como condição subjetiva bá- gicamente correios em qualquer investigação científica, mas essesaxio-
sica do conhecimento a experiência da evidência:s, quer dizer, a atesta- mase encadeamentos não se referem, no interior da lógica pura, ao su-
ção clara de que certo estado de coisas é o ou não é aquilo que parece jeito cognoscente.
ser. A evidência não é um sentimento acessório acrescentado de ma-
Como vimos no início deste capítulo, o conteúdo temático da ló-
gica pura é formado por conceitos e leis ideais a pHorí, com validade
23. Deve-se enfatizar que, para Husserl, o conhecimento científico pode ser obtido
ainda que não se tenha total clareza em relação àssuascondições fundantes. Esseponto
6tcarámais claro no que se refereàs condições "subjetivas" do conhecimento 26. "Se nós não mais pudéssemos con6lar lla experiência, como poderíamos ainda,
24. "0 que é verdadeiro é verdadeiro absolutamente, é verdadeiro 'em-si'; a ver- em geral, emitir a6lrmações e defendê-las racionalmente?" (P, S 40, 156)
dade é ídenticamente una quer sejam homens, super-homens, anjos ou deusesque a 27. Conforme comenta B. Bégout, "a lógica pura não determina (. . .) ascondições
apreendam peia juízo. É da verdade nesse sentido de unidade ideal, opondo-se à mul- de suaprópria efetuaçãoenquantoconhecimento, mas ela se limita a fixar as regras
tiplicidade real das raças, dos indivíduos e das experiências vividas, que falam asleis ló- universais de toda ciência possível. Ela é uma 'teoria das teorias', mas não uma teoria
gicas"(P,$ 36,125). da teorização.Ela simplesmente elucida conhecimentos (os a priori formais da malha
25. "0 conceito de conhecimento vai até onde se estende o de evidência" (P, $ 6, çísurzfversa/ís),
mas não o ato de conhecer como tal. Ela trata de verdades,masnão da
29) evidênciaque elas produzem no e para o sujeito cognoscente" (Bégout, 2001, 584)

38 39
A cientificidade ]ta feilomenalogia de Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental
4

absoluta. Ora, essesconceitos e leis assim caracterizados exigem UU cíveis.Por sua vez, esse será justamente o tema da investigação filosó-
tipo particular de apreensão subjetiva na qual se confirma sua validade Hlca,que, ainda veremos, se cumprirá como fenomenologia. Em outras
apodítica. Não é por um acúmulo de atestaçõesfactuais que, induti. palavras,é justamente por causa da necessidade de correlacionar, p:lr
vamente, é possível conhecer tais conceitos e leis em sua universali- um lado, verdadese leis lógicas, definidas como objetivamente váli-
dade. Deve-se supor aqui, como condição subjetiva fundente da lógica das,e, por outro, a subjetividade cognoscente que a problemática Óe-
pura, uma capacidade de atestação evidente dessesprincípios e leis eu nomenoZÓgíca vai serpela primeira vez montada na obra publicada de
sua pureza d pdorí. Além disso,vimos também que a lógica pura pos- Husserlz9.
O próprio autor confirma a importância dessetópico muitos
sui a particularidade de fundar a si própria, quer dizer, a sua ordena. ,nos depois do lançamento de Irzvestígações Lógic.zs, num trecho do
ção sistemáticase conforma aosprincípios e leis que ela mesma des-l curso PsÍco/agia Fenomeno/ógíca, de 1925, intitulado "Tarefa e signifi-
vela, sem depender de outra ciência ainda mais básica (o que levaria cado de Irzvestígações Lógicas". A fenomenologia, ali nos conta o autor,
a uma regressão ao infinito). A lógica pura repousa, assim, sobre prin- é a investigação que transforma "em tema de pesquisa essacorre/ação
cípios últimos que se estabelecempor si próprios sem remeter a nada particular entre ob/elos ídeczísda esfera lógica pura e o vivido subjetívo
de anterior. E issotambém deve ser reconhecido pelo sujeito cognos-l enferzdído como anão ITunl constíMinfe" (PP, S 3b, 26). A tarefa ini-
cente. Segundo Husserl: "é então evidente que a exigência de uma Jus- cial de Pro/egõmenosfoi delimitar um domínio puramente ideal dases-
tificação de princípio para todo conhecimento mediano somente pode truturas teóricas responsáveis pela cientificidade das ciências em geral
ter um sentido possívelse nós formos capazesde reconhecer imediata- Mas não cabe ao filósofo estudar sistematicamente essasestruturas for-
mente e com evidência leínsic/ztíglcertos princípios últimos nos quais mais. O desenvolvimento da lógica pura é tarefa dos matemáticos. O
toda fundamentação em basesúltimas se alicerça" (P, apêndice SS 25- que apareceentão como operação exclusivamente filosófica, e que será
26, 94). Deve haver, assim, uma apreensãosubjetiva evidente não só laboriosamente elaborada por Husserl no correr das seis Irzvestígações
das leis e dos princípios lógicos, mas também do caráter último, auto- 1(5gícas
que sucedem a Pro/egõmenos, é tematizar as capacidades subje-
fundante, dessesprincípios e dessasleis. tivasresponsáveis
pela apreensãode tal domínio ideal.
Vimos que em si mesmaa lógica pura nada legisla acercada A investigaçãodas condições subjetivas da lógica pura aparente-
apreensão subjetiva dos princípios e das leis czpriori que ela enumera. mente significa um retrocesso em relação aos resultados antipsicologis-
Daí que se deva complementa-la com outro tipo de investigação,que tasobtidos até então. Afinal, Husserl se esforçadapor delimitar o âmbito
tematize a doaçãoevidente de seu conteúdo para a subjetividade cog- da lógica pura como aquele das estruturas d pdorí de toda a cientifici-
noscente. É exatamente aqui que aparecerá a especificidade da inves- dade,âmbito que não caberia remeter à psicologia, )á que essaciência
tigação /iZosó/ica em Pro/egõmenos. Em várias passagens desse livro, avança d posteríoH. No entanto, ao apontar condições sub/etívas da ló-
Husserl reconhece que o desenvolvimento da lógica pura é uma tarefa gicapura, não estariaincoerentemente Husserl submetendo o âmbito
dos matemáticos, que, por meio de seusmétodos de axiomatização, iso- lógico-objetivo àquele psicológico-factual? Para responder a essaques-
lam as condições formais das ciências como um sistema de relações d tão, basta esclarecer o que o autor entende por condições subjetivas de
príoriz8. Entretanto a investigação das condições de apreensão subje- toda teoria. Nesse ponto, vale a pena expor uma citação mais longa
tiva escapa a essasistematização das estruturas formais de teorias pos-

29.Tal como já notava R. Schérer, "o problema em torno do qual a fenomenolo-


28. "A construção de teorias e a solução rigorosae metódica de todos os proble- gia nasceé aquele da natureza da subjetividade para a qual a verdade pode se dar como
mas formais permanecerão sempre o domínio próprio das matemáticas"(P, S71, 254) tal"(Schérer,
1967,28)

40 41
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Da fenomenologia noética à fenomeno]ogia transcendental
+ ,/';'}
por condições subjetivas de possibilidade, não se deve entender aqui etc. A evidência aqui é psicologicamente impossível e, entretanto,
condiçõesreaisque tenham sua raiz no sujeito singular do juízo ou idealmente falando, e]a é sem nenhuma dúvida uma experiência
na espécie mutável de seresque julgam (por exemplo, sereshuma- psíquica possível (P, S 50, 188)
nos), mas condições ideais que se enraizam na forma da subjetividade
Esseexemplo esclarece que, embora factualmente certos conheci-
em geral e na relação desta com o conhecimento. Para distingui-las mentosexcedam as capacidades reais da mente humana, ainda assim é
das primeiras, nós as chamaremos condições noéfícas (P, S 32, 1 19)
possível examina-los do ponto de vista de suas condições noéticas, quer
Husserl separa claramente o sub/etívo que condiciona as teorias dizer, do ponto de vista de sua doação evidente em uma experiência,
científicas e o psicológico.Assim, ao se referir a condiçõessubjetivas, mesmo seessaexperiência estiver fora do alcance da subjetividade real
o autor não tem em vista as particularidades empíricas, seja dos su- humana;'. A psicologia empírica pode se dedicar a um estudo dascon
jeitos tomados individualmente, seja tomados como espécie humana. dÍçÕesou restriçõesrea;s das experiências vividas com evidência e, as-
Nenhuma dessasparticularidades reais dos existenteshumanos deve sim, explicar as conexões causaisefetívas em que tais experiências sur-
ser assumidacomo condicionante da validade puramente objetívadas
gem e se esvaecem. No entanto, acima dessasrestrições reais, Husserl
teorias. As condições subjetivas do conhecimento partilham com o do-
reconhece condições subjetivas ideais, que não dependem dos sujeitos
mínio lógico-objetivo a ídea/idade, quer dizer, são condições válidas existentes,mas delimitam a forma geral da subjetividade;:
não porque demarcam singularidades factuais mas porque distinguem Vale notar que em várias passagens de Investigações /ógicas Husserl
certas estruturas idênticas a priori que constituem a /oma ou a essência afirma que a descrição das condições noéticas do conhecimento é uma
da subjetividade independentemente de sua realização nos sereshu- tarefapara um tipo especial de psicologia que não estávoltado para os
manos passados, presentes e futuros. Para evitar a confusão com os con- temasfactuais, para uma "psicologia descritiva", que é identificada à
dicionantes empíricos da atividade subjetiva humana, Husserl nomeia fenomenologia3z.Esseuso do termo psicologia para nomear a tarefa
essascondições subjetivas ideais, referentes à essência a priori da subje-
tividade, de ízoétícczs.
A investigação das condições noéticas das teorias não será uma ta- 30. Husserl reafirma essaideia em outro parágrafo: "se não há seres inteligentes,
seeles são excluídos pela ordem da natureza e por conseguinte são impossíveis real-
refa da psicologia empírica ou experimental. Eis por que o apelo a tais itlente (. . .), então as possibilidades ideais permanecem desprovidasda realidade que
condições não implica uma recaída no psicologismo. Para Husserl, a devepreenchê-las (. . .). Mas toda verdade em si permanece o que ela é; ela conserva a
suaexistência ideal" (P, S 39, 135-136).
psicologia empírica é uma ciência que investiga fatos da vida psíquica 31. Essa é uma das principais diferenças da filosofia de Husserl em relação à de
humana, e que, assim, se refere somente às condições pelas quais certas Kant. Conforme formula S. LuR, a fenomenologia de Husserl "é uma doutrina da expe
circunstâncias reais ocorrem. Por sua vez, as condições dizem respeito riência-como-tal,da consciência-como-taie, correlativamente, do fenómeno-como-tal
às estruturas subjetivas gerais que permitem a apreensão com evidência Não se tala acerca da maneira específica humarza de experimentar, mas a experiência
humana é somente uma maneira possível na qual uma subjetividade concreta experi-
de dados objetivos. Essasestruturas determinam possibilidades ideais menta o mundo. O que essafenomenologia prevê é, por assimdizer, uma eidética da
de doação evidente dos temas em questão. Husserl exemplifica da se- experiência como ta], do ser como ta] dado a um sujeito-como-tal. Husserl, assim, radi-
caliza o modelo antropocêntrico kantiano levando-o ao nível eidético (. . .), a situar-se
guinte maneira a especificidade dessaspossibilidades ideais de evidên- não na consciência bumcl7zamas na consciêrzcíacomo ta/". (LuR, 2007, 66)
cia em oposição a meras possibilidades reais: 32. Essadistinção entre uma psicologia descritiva e uma psicologia genético-em
há números decimais com cifras de grilhões,e há verdadesque a plrica havia sido proposta por Franz Brentano e fora aceita inicialmente por Husserl
Na primeira edição dasInvestigações/ógícas, lê-se no parágrafo 6 da introdução geral às
eles se relacionam. Mas ninguém pode representar verdadeiramente seisinvestigações;"a fenomenologia é psicologia descritiva. Por conseguinte, a crítica
tais números nem efetuar realmente suasadições,multiplicaçõcs, doconhecimento é, no essencial,psicologia ou, pelo menos, algo que só no campo da

42 43
A cientificidade na fenomenologia de Husserl
r' Da fenomenologia noética à fenomenologia transcerldental
.} P'i'} IP;A
fenomenológica alimentou mal-entendidos sobre o alcance do psico- apreendemos'a verdade como um conteúdo empírico que emerge do
logismo nessaobra.Já na recensãode um livro de Elsenhans,publi- fluxo de experiências, depois desaparece novamente; ela não é um fe
cada em 1903, Husserl rejeita essadefinição. Ali, ele reconhece que nâmeno entre fenómenos, mas ela é uma experiência vivida em um
toda psicologia parte da experiência cotidiana dada antes de qualquer sentidototalmente diferente no qual se diz que um universal, uma ideia
crítica, e incorpora certas determinações conceituais aí ingenuamente é uma experiência vivida" (P, S 39, 134-1 35). A experiência evidente da
em vigor (tais como a distinção entre interioridade psíquica e mundo verdadelógica tem uma estruturanoética própria; nela há a tomada
exterior)3;. Ora a investigação das condições puras do conhecimento de consciênciade uma idealidade idêntica que não se afeta pela du-
não deve se limitar por essasdeterminações reais em sua tarefa de ex- raçãotemporal e que permite subsumir diferentes eventossingulares
plicitar o modo como a subjetividade, em seusaspectosessenciais,se como instâncias da sua universalidade. Quanto a esseponto, o filósofo
relacionacom asestruturasda lógica pura. Conforme crê Husserl,"a afirmaque a verdade"é uma ideia e, como ta], além do tempo lÍiber-
elucidação IAu#/drulzgl crítica do conhecimento edificada sobre es- zeít/Ícbl" (P, S 39, 134). O que Husserl parece ter aqui em vista é que
sasanálises não é senão uma abstração adequada, intuitiva, que, nisso a atribuição de verdade a certas proposições teóricas, ao menos àque
que foi fixado fenomenologicamente, leva a uma consciência evidente, lasque exprimem relações conceituais puras3õ,não é um evento singu-
e então a uma compreensão'clara e distinta', a essênciageral, o 'con- lar, que se esgota na vivência concreta do Juízo que veicula tal prC)posi-
teúdo verdadeiro e próprio' dos conceitos e das leis lógicas";'. Desde ção.A verdade não é um conteúdo particular da experiência do Juízo,
então Husserl recusaa expressão"psicologia descritiva" para rotular a que surgee desaparececom tal experiência. Ela é uma ideia, no sen-
descrição das condições noéticas do conhecimento e mantém somente tido de uma espécieou de um "ente" universal, que se deixa apreender
o termo "fenomenologia" para designar essatarefa;s. como algo idêntico nos inúmeros juízos particulares que a veiculem.
Consideremos,como exemplo, o Juízomatemático "2 x 2 = 4". Afirma
Husserl: "a 'validade' ( . . .) não cabe à asserção como essavivência tem-
A evidênciadasidealidadeslógicas
poral, mas à asserção ín sPecie, à asserção (pura e idêntica) 2 x 2 = 4" (P,
A principal condição noética do conhecimento teórico é, con- S51, 194).Os juízos particulares que veiculam essasentençasomente
forme já anunciado, a capacidade de apreensão evídertfe das estruturas instanciama proposiçãopura "2 x 2 = 4", a qual permanececomo um
lógicas por meio das quais as disciplinas científicas avançam em suas polo ideal idêntico que não se confunde com nenhum dos seuscasos
investigações. Por sua vez, cabe investigar com mais detalhes qual é a particulares, mas permite reconhecê-los justamente como casosda es-
estrutura dessaexperiência da evidência. Segundo Husserl, "nós não
pécie ideal em vista. A atestação de uma verdade puramente teórica
exige,assim, que o sujeito não se limite ao caso concreto que é temati-
psicologia se pode edificar" (LUI, 24). Essetrecho foi significativamente reformulado zado,mas reconheça a estrutura universal avessaàscircunstâncias con-
nasegunda edição
33. A psicologia e a física "partem do mundo no sentido habitual, sihado antes de cretas que marcam o caso estudado.
toda crítica, com a separação dos fatos em materiais e espirituais. Ambas permanecem
não críticas, quaisquerque sejam as modificações que elas fazem lsicl ao conteúdo da
representaçãooriginária do mundo. Enquanto. ciências explicativas, elas pressupõem 36. Por suavez, asasserçõesque se referem a circunstâncias concretas ou que, no
uma objetivação pré-dada, sem sentir a necessidade de conhecer o sentido, de elucidar geral,servem-sede termos indexicais ou ocasionaisdependem ao menos em parte de
a possibilidade dessaobjetividade" (Husser1,1979a, 206) atestaçãointuitiva circunstancial para confirmar sua verdade. Husserl não explora a sua
34. Husser1. 1979a. 207. especi6lcidadeem Pro/egómenos,mas trata do tema no parágrafo 26 da primeira inves-
3 5. "Não se deve então designar sem mais a fenomenologia como uma psicologia tigaçãológica. Para uma análise detalhada do tratamento husserliano das expressões
descritiva"(Husser1, 1979a, 206) ocasionais, cf. Weigelt, 2008

45
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendÉdtá{ ;?'f

A idealidade da verdadesuscitou diversascontrovérsiaslogo em se- Essecaráter ideal da verdade exige que a subjetividade apreende
guida à publicação de Investigações Zógícas. Em 1913, no esboço de com evidência estruturas czpdoH3ç.A distinção obJetiva entre o caso sin-
prefácio a Jrzvestígações
/ógicas, Husserl ainda lamentava as incom- gular e a estrutura lógica ideal deve corresponder uma distinção subje-
preensões referentes a essetema. Ali, ele nota que, diante da noção de tiva entre diferentes tipos de vivência40.Com efeito, Husserl identifica
idealidade, muitos leitores julgavam se defrontar com uma versãodo um determinado ato ou uma vivência subjetiva como responsável pela
platonismo, ou seja, da doutrina metafísica que atribui rea/idade aos atestaçãoevidente dasidealidades. Como vimos, as idealidades operam
conceitos em geral. Ora, a doutrina dos objetos ideais ganha algum como espécie às quais os casos particulares se subsumem nas experiên-
conteúdo justamente por oposição aos objetos reais. Essesúltimos são ciasde Juízosparticulares. Entretanto, além disso,há um ato capaz de
indivíduos submetidos a leis causais e circunscritos a certa posição es- atestarde modo evidenteo ser ideal dos princípios e dasleis da lógica
paçotemporal. Por sua vez, a idealidade é um objeto gera/ e onífemPo-l pura. Trata-se da ídeação ou absü'ação ídea/;za7zte, que também é um
raZ.Em suma, ela rzãoexistecomo rea/idade; a idealidade "se mostra "pressuposto
da possibilidadedo conhecimento"(P, S 29, 109),uma
como algo que é verdadeiramente,ou em outras palavras,como algo condiçãosubjetiva para a efetuação do conhecimento científico. Por
de objetivo que existe e que entretanto não é real";7. Paracompreen- ideação deve-seentender a capacidade de reconhecer o universal que
der essadoutrina dos objetos ideais, é preciso aceitar uma ampliação da seinstancia nos casosparticulares, quer dizer, a capacidade de referis-
própria noção de ser, de maneira que o ser real não esgote a totalidade seà significação ou à lei ideal idêntica acima da infinidade de juízos
daquilo que existee de maneira que admitir a idealidade não signifique
atribuir rea/ídczde(com todos os seusqualificativos próprios) a essaca- seruma só e a mesmacoisa, quando se diz, por exemplo, de difereTltespessoasque elas
a6nmama mesma coisa (. . .). [Elsse sentido idêntico não é senão o gera], a espécie, em
tegoria ontológica. relaçãoa um certo momento presente em todos os enunciados anuaisdo mesmo sen-
Alguns anos antes, em 1903, em uma recensão de um livro de tido, que torna possível a identificação, enquanto habitualmente o conteúdo descritivo
Palágyi, Husserl já tentava esclarecer sua posição. As idealidades, dosvividos muda de maneira considerável" (Husserl, 1979b, 156-157)
39. Essa exigência configura mais uma característica particular da fenomenologia
afirma ali, não são um tipo especial de entes reais. Afinal, os entes reais anteo kantismo. D. Pradelle a expõe com acuidade: "não que as estruturasantropoló-
são sempre indivíduos submetidos à causalidade e limitados a certa ex- gicas do entendimento prescrevam possibilidades categoriais aos obÍetos, mas, inver-
samente,essasúltimas se atestam em modalidades de pensamento que sãoas mesmas
tensão espacial e duração temporal. Por sua vez, as idealidades são "ob-
paratodo entendimentoem geral". Segueum exemplo:"não é a naturezado enten-
jetos gerais" ou "espécies" válidas independentemeílte de limites espa- dimento humano que prescreve,com base nas leis subjetivas do ato de contar, as leis
çotemporais. As idealidades devem ser consideradas espéciesem rela- aritméticas, mas, inversamente, a pensabilidade dos domínios de números implica um
eídos do entendimento humano" (Pradelle, 2003, 171). Assim, são as características es-
ção ao conteúdo dasexperiênciasparticulares em que se reconhece a senciaisde uma região objetivo que sugerem à investigação fenomenológica as parti-
validade de uma tese para além das circunstâncias concretas em que cularidades da visada noética a ela correspondente. Tal como aüjrma D. F;anck, a aná-
ela é enunciada. A atestação da verdade de uma proposição em uma lise husserliana se ordeíla segundo os objetos, que servem de /íos condutores para o des-
velamento das síntesesintencionais que tornam possível a sua experiência como tal. A
ocasiãoparticular remete,nessescasos,à suaforma ideal, que não é dedução kantiana da objetividade tinha como Riocondutor o Juízo; já a análise da cons-
uma parte integrante da vivência, massim o princípio de identificação tituição da objetividade por Husserl toma como fio condutor o próprio objeto, que in-
dica a estrutura de consciência por meio da qual pode se manifestar (Cf. Franck, 1989)
do caso em pauta38.
Em diversosmomentos deste trabalho, servir-me-ei da noção de fio condutor para tor-
nar visíveisas particularidades do prometofenomenológico
40. "Se nós nunca tivéssemostomado consciência da racionalidade, do apodítico
37.Husser1,
2002a,S4, 282. que difere de um modo tão característico de nossatomada de consciência da factici-
38. "Por 'proposição em si', leãose deve entender nada de diferente do que é de- dade, nós tampouco teríamos a noção de ]ei, nós seríamos incapazes de distinguir uma
signado como o 'sentido' do enunciado na linguagem cotidiana (. . .), e que é declarado lei de um fato" (P, S 39, 141-142)

46 47
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Da fenomenologianoética à fenomenologia transcendent41
./ F;'} H

particulares reais em que tal objeto idêntico é exemplificado. Para Issoque dizer que a idealidade dos temasda lógica pura não é
Husserl, são dois atos noéticos estruturalmente diferentesvisar a uu 'ameaçada" ao tematizar a sua doação subjetiva. Ao descrever a idea-
exemplar empírico(e. g., "eis um livro vermelho") e visar à idealidade a çãocomo uma condição noética do conhecimento, Husserl não pre-
que esseexemplar está submetido (a espécie "vermelho", no que se re- tende reduzir os temas lógicos a elementos das vivências subjetivas.
fere à cor do objeto em questão). Husserl admite sem problemas que o Não setrata de tomar asvivências particulares como origem psicogené-
ato de ideação seja fundado em aros de intuição singulares, de maneira tica da validade lógica pelo sujeito. Trata-se, antes, de explicitar condi-
que se deva tomar um exemplar como suporte para a visada da espécie çõesde record/zecímento
evidente dessavalidade, o que circunscreverá,
le. g., "esse vermelho percebido é um casoda espécie vermelho"y' como veremos a seguir, o tema central da primeira doutrina fenomeno-
No entanto essapeculiaridade da ideaçãoem nada corrompe a pureza lógica proposta por Husserl
ideal do conteúdo por ela apreendido, já que não se trata de derivar dos
casos concretos em questão as leis e verdades a prior, mas somente de
Análise fenomenológica das pi'pências
servir-se deles como apoio para alçar-se até a apreensão da idealidade.l
Tal como argumenta Husserl, "ninguém pode afirmar seriamente que A descriçãodas condiçõesnoéticas da lógica pura é a primeira ta-
os casos particulares concretos (.. .) sobre a 'base' dos quais se realiza refa fenomenológica formulada por Husserl en] sua obra publicada. O
nossavisão justa da lei exercem uma função de base lógica, de premia-l termo "fenomenologia", embora presente nas reflexões de vários auto-
sas, como se a universalidade da lei pudesse resultar da existência do resdo período43,foi fixado de uma maneirainconfundível (tornando-
fato singular" (P, S 24, 86). A ideação é a capacidade de visar ao ideal seo nome de um método e de uma doutrina em particular) somente
ídê7ztícopor meio dos casosconcretos, mas essacapacidade não envolve com Husserl. A primeira vez que o termo apareceupara o grande pú-
a menor pretensão de gerar o primeiro com base no segundo. blico com essesentidoparticular foi nos Pro/egõmenos
à /ógícapura
Na já citada recensão de 1903, Husserl retorna à ideação incomo-l Paraser mais preciso, na primeira edição dessetexto, em 1900, o termo
dado com as incompreensões suscitadas por essanoção. Palágyi apre-l só apareceuma única vez, numa nota em que Husserl demarca a es-
sentara a vivência do juízo descrita por Husserl como uma junção inex- pecificidade da sua investigação ao excluir do campo da psicologia "a
plicável entre um componente supratemporal ou ideal e o conteúdo fenomenologiadescritiva da experiência interna" (P, S 57, nota 215)
real da vivência. Para Husserl, trata-se aqui de uma "desfiguração" que Na segunda edição (1913), Husser] reformula essetrecho de maneira
impede a compreensão do correto papel da ideação.Afinal, asidealida- a marcar sua posição ainda mais claramente: "eu estabeleço uma dis-
des não seriam um componente da vivência no mesmo sentido que as tinção profunda entre a psicologia empírica e a fenomenologia que Ihe
sensações,por exemplo; as idealidades são a espéciede que o conteúdo servede fundamento (assim como essafunda, de uma outra maneira, a
vivido pela subjetividade é o caso;elas não se confundem com os ele-l crítica do conhecimento)" (Id.). Em seguida, é explicado o sentido da
mentos reaisque constituem o ato subjetivo':. investigaçãoali proposta: "entendo por fenomenologia uma doutrina
pura eidética lreírze Weser2s/e/irei das experiências vividas" (Id.). Cabe
à fenomenologia descrever as vivências subjetivas en] que seatestam as
41. "Ninguém duvidará que o conhecimento das leis lógicas e.nquanto ato psí-
quico pressupoea experiência particular, que ele tem seu apoio fundamental em sua
baseconcreta"(P,S24,85)
42. E precisodistinguir entre "a espéciee o casoparticular, entre.o sentido.en- 43. H. Spiegelberg indica que, além de autores da escola hegeliana, BrentaTlo,
quanto ideia que se torna objetiva por absbaçãoespec'picante. Is/lezifizíerendeAbs- Maca e Hering já usavamessetermo antes de Husserl, embora com um sentido dife-
halfíon] e o momento do sentido psicológico-descritivo" (Husserl, 1979b, 157) rente.Cf. Spiegelberg,
1960,8, 27-28,53

48 49
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental
.} #3'}it,.
idealidades lógicas, mas não como experiências factuais desenroladas rlUCenvolveuma clara demarcaçãoentre ambasbem como instaura
causalmenteno fluxo temporal, e sim como Óomzczs ou essênciasde es- urn prometode /ulzdamentaçãodas ciências pela filosofia. Vale notar
truturas noéticas independentes de sua realização empírica. Trata-se, ernvez de percorrer várias ciências em sua especificidade, Husserl
como se vê, de propor uma doutrina acercados componentes a priori sefoca na lógica pura (uma vez que ela sistematiza as condições obje-
da subjetividade. Não importa, assim, à fenomenologia descrever os tivas por meio das quais qualquer tipo de ciência pode se desenvolver)
arospsíquicos empíricos, e sim as estruturas subjetivas puras, isto é, as para marcar as relações com a filosofia. Quanto à demarcação entre
essências das vivências intencionais que se correlacionam com as ver- ambas, cabe aos matemáticos, como já foi mencionado acima, o de-
dadesobjetivasH senvolvimentodo conteúdo lógico-objetivo da lógica pura. Contudo,
Na segunda edição de Pro/egõmenos,Husserl acrescenta mais duas tal como bem formulado no esboço de prefácio a Investigações/ógí-
menções explícitas à investigação $enomenoZógícaque confirmam o ca- cas, "torna-se necessário acrescentar à maf/zesís uníversa/ís (ou 'lógica
ráter puro da análiseem vista, conforme já expostona primeira edi- pura') por assimdizer ingênua e indiferente a toda teoria do conheci-
ção's. No parágrafo 5 1, Husser] afirma que o acréscimo fortuito de um mento uma filosofia dessamat/zesís,quer dizer, uma 'teoria do conhe-
sentimento de certeza à vivência de um juízo não é o que constitui cimento matemático', uma certa elucidação de seu verdadeiro sentido
a estrutura noética da evidência, já que "o conteúdo fenomenológico possívele de sua legitimidade"'8. Os matemáticos cumprem séu traba-
do Juízoem questão,considerado em si e por si, permanece identica- lho semse preocupar com os princípios subjetivos que garantem a le-
mente o mesmo, quer ele seja revestido por esse caráter ou não" (P. gitimidade das suasteorias, quer dizer, sem sepreocupar com as condi-
S 51, 192)%.Aqui argumenta-seque a experiência da evidência tem çõesde apreensão evidente das idealidades lógicas'ç. Cumpre aos filó-
sofoscomplementar o trabalho matemático com uma investigaçãodas
uma estrutura própria, que não é modificada (e muito menos produ-
estruturassubjetivasque permitem o reconhecimento evidentedos re-
zida) por sentimentoscontingentes. Essaestrutura é chamada de con-
sultadosmatemáticos.A filosofia desenvolve,dessemodo, um trabalho
teúdo fenomenológico, uma clara menção à disciplina cuja tarefa é
de "crítica do conhecimento" (P, S 71, 256), isto é, de elucidação das
descrever os diferentes tipos de estruturas noéticas. Já no parágrafo 67,
fontes subjetivas por meio das quais se reconhece a legitimidade das es-
o autor indica que a realização da primeira tarefa da lógica pura (a fi-
truturas objetivas da lógica pura.
xação das categorias puras de significação e as categorias objetivas cor-
Deve ficar claro que esseretorno às fontes subjetivas não significa
relatas) exige um retorno à "origem fenomenológica" (P, S 67, 246y'
uma recaída no psicologismo. Afinal, não se trata para Husserl nem de
ou seja, exige o esclarecimento de como tais categorias podem se doar
tomar os atospsíquicos empíricos como tema de sua investigação nem
com evidência à subjetividade noética.
de reconhecer os atos subjetivos como produtores das idealidades lógi-
Essa remissão à origem áerzomerzo/ógíca
implica uma concepção
cas,como se essasse reduzissem a conteúdos reais das vivências. Em
bem definida acercadas relaçõesentre filosofia e ciências,concepção
primeiro lugar, como já visto, a análise fenomenológica se centraliza
na esbutura eidética da subjetividade em geral e não em experiências
44. "Não sãofenómenos individuais, masformas de unidades intencionais que se-
rãoanalisadas"
(P,$ 47,178)
48. Husserl, 2002b, $ 1, 300
45 . Bégout afirma erroneamente que somente mais uma ocorrência do termo apa
49. "0 matemático constrói teorias dos números, dasgrandezas, dosraciocínios,
recenaediçãode1913.Cf.Bégout,2001,564. . . ,,. . .n,
dasmultiplicidades, sem ter necessidade para isso de possuir uma visão definitiva da es-
46. Na primeira edição, Husser] se refere ao "conteúdo psicológico" do guizotUr.
sênciade uma teoria em gera], nem da essênciados conceitos e dasleis que as condi-
P, S 5 1, 192} romeira edição, a expressãoaí usada era "origem lógica" (Cf. P, S 67, 246)- cionam"
(P,$ 71,255)

50 51
A cientificidade na fenomenologia de Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental
.} Í3'} 4

concretas particulares de pessoasreais. Em segundo lugar, os fitos sub- ricacientífica.Conforme Husserl havia deixadoclaro já no início de
jetivos que serão descritos em sua pureza eidética são aqueles em que as pro/egõmelzos,evidenciar os pressupostosprincipiais que condicionam
idealidades lógicas são reconhecidas com evidência. Trata-se, assim, de
a atividade teórica é realizar a fundamentação do conhecimento e, as-
levar as construçõesobjetivasda lógica pura à intuição fundente; mas sim, dissipar as imperfeições teóricas que marcam as ciências atuais
essaintuição não é um ato produtor, e sim atestados.Essaé a origem ICf. P, S 4). Importa enfatizar, no entanto, que os fundamentos que
Óenomeno/ógíca
que se trata de investigar: o modo noético ou intencio- a filosofia estudanão são componentes internos às teoriascientíficas,
nal por meio do qual as objetividadeslógicas sãoapreendidascom evi- mas são as capacidades cognitivas puras, por meio das quais é possível
dência. E preciso distinguir essetópico daquele referente à origem psi- reconhecer a validade das teorias. Nesse sentido, a fundamentação fi-
cológica, ou seja, da produção efetiva de algo por fitos psíquicos. Não losófica não vai propor princípios alternativos capazes de corrigir even-
é esseo campo da fenomenologia em Pro/egõmenos.Os temas ideais Hais falhas teóricas.A fundamentação filosófica não aperfeiçoa nem
da lógica são considerados polos objetivos autónomos e não conteúdos
refuta as teorias científicas vigentes, mas as torna compreensíveis do
reais dasvivências. Em relação a essespolos interessaaclarar como eles
ponto de vista de suas condições subjetivas. Trata-se de elucidar, em
são reconhecidos pela subjetividade, que, então, por meio de certas vi- suapureza ideal, a$capacidadessubjetivas que condicionam a formu-
vências, atestaa validade universal dos princípios lógicos. Dessama- lação dasteorias válidas. Dessa maneira, o que a filosofia oferece como
neira, pretende-se legitimar epistemicamente as construções teóricas
fundamentação para asciências é um gan/zo de c/drgzczquanto às suas
da lógica pura. Como vimos, no correr de Pro/egõmenos,Husserl não fontes subjetivas, e não algum acréscimo de certeza acerca das teorias
só defende a objetividade ideal dos conceitos, das proposições e leis da
vigentesou a se construir.
lógica, mas também propõe investigaras estruturasnoéticas que reco- E importante enfatizar que essacrítica filosófica, capaz de funda-
nhecem tal objetividade, de maneira a elevar as reflexões sobre a inten-
mentar,à sua maneira, o conhecimento científico, se cumpre como
cionalidade psíquica a um novo patamar, aquele da idealidade. À con-
umaáerzomerzo/ogía. Dado o sentido que Husserl atribui a esseúltimo
cepção puramente ideal da lógica corresponde uma análise da subjeti-
termo, issoquer dizer que a fundamentação filosófica se dá não por
vidade em termos de suasestruturasideais.E por meio dessaanáliseda
análiseslógicas ou puramente conceituais, e sim por meio de descri-
subjetividade que a filosofia cumprirá o seu papel específico.
ções das essências subjetivas nas quais se atestam de modo evidente
Ao filósofo cumpre esclareceras condiçõessubjetivaspor meio das
os princípios lógicos. Por conseguinte, a crítica filosófica do conheci-
quais se reconhece a validade das formas puras de teorias. E então ta-
mento se demarca das ciências não só tematicamente, mas também
refa da filosofia investigar as condições noéticas da mathesís uníversa-
do ponto de vista metodológico. Afinal de contas, vimos que a forma
/ís objetiva, ou seja, investigar as estruturas intencionais subjetivas, em
teóricaque melhor exprime a cientificidade é a axiomática-dedutiva
sua pureza eidética, que permitem o acesso às idealidades lógicasso.
Diante disso,Husserl afirma que "a mera descrição(...) contradiz o
Essatarefa específica da filosofia oferece um tipo muito particular de
nossoconceito padrão de ciência" (P, S 64, 237), uma vez que a des-
/undamentação do saber científico. Trazer à luz as condições noéticas
crição deve se guiar pela unidade temática do objeto a ser descrito, o
de atestaçãoevidente é tornar visível um pressupostoa priori da prá-
que contraria a prioridade das leis formais puras na sistematização das
teorias possíveis. Dessa maneira, tzmczdíscíf)/ina plzramente descritiva
50. Conforme comenta D. Fisette, "a justificação racional da mafhesísdepende
em última análise das condições noéticas de todo conhecimento teórico. Assim, a Jus-
üão se caracteriza como científica, no sentido prescrito f)ela lógica f)ura
tificação de uma lei ou de um princípio nada seria senãoa apreensãoevidente de sua Daí que a fenomenologia deva ser exercida como crítica filosófica, a
essência(intuitiva)"(Fisette, 2003b, 151).
qual não se confunde com as ciências mas oferece um complemento
52 53
A cientifícidade na fenomenologia de Husserl Da fenomenologianoética à fenomenologia transcendent41
#
indispensável ao prometode fundamentação do conhecimento cientí- urzÍversa/ís,
masque universalizao problema crítico do conhecimento
fico. Parte dessafundamentação deve se cumprir por uma ciência, a IÓ. independentemente
dos desenvolvimentos
da lógica pura.O texto
gica pura, que sistematiza as condições ob)etivas das teorias científicas principal em que as etapas dessa ampliação são expostas é Introdução
de modo plenamente científico, isto é, ordenando-secomo disciplina à Lógica e à Teorí.zdo Conhecimento (doravante, ltXCI, curso minis-
nomológica, conforme a forma axiomática-dedutiva. No entanto, parte tradopor Husserl em 1906-1907 e publicado postumamente
da fundamentação remete às condições noéticas de atestaçãodo saber, Nos primeiros parágrafosde lt.TC, Husserl retoma em linhas ge
as quais não são devidamente apreciadas por nenhuma disciplina cien. tais ao menos parte do movimento argumentativo de Pro/egõmez70s,
tífica, nem mesmo pela psicologia, já que essase centraliza em eventos concentrando-se
em expor o prometode uma lógica pura como sistema
empíricos. Cabe então a uma disciplina filosófica, a fenomenologia, ex- geral dos princípios: métodos e formas de teorias possíveis, investiga-
plicitar essascondições subjetivas, fornecendo, dessemodo, um com- dos em sua pureza ideal (Cf. IL:l'C, SS 1-19). Não é preciso reconstruir
plemento crítico à fundamentação objetivo do saberpela lógica pura. sistematicamenteessetrecho da exposição de Husserl, mas sim as te-
sescontidas em alguns parágrafos posteriores, nos quais inicialmente
Husserlalterao escopoda lógica pura tendo em vista a especificidade
B) A fenomenologia como ciência autónoma dasciências empíricas e, em seguida, altera a própria tarefa da reflexão
Recon$guração da doutrina da ciência fenomenológica diante do prometoda maf/zesísurzíversa/ís.
Passemosà análise da nova Lematizaçãodas ciências empíricas por
Vimos que Husserl retrata a fenomenologiacomo uma reflexão
Husserl.Vimos que em Pro/egõmenosas ciências empíricas tomavam
epistemológica cuja meta é elucidar a origem (no sentido da doação
parte na cientificidade somente enquanto aplicavam as leis ideais da
evidente) dos conceitos e leis que constituem a mat/zesísuniverso/ís ob-
probabilidade na construção de suas teorias. Apenas nesseaspecto tais
jetivo. A reflexão fenomenológica complementaríao estudológico das
ciênciasconstituíam estruturasformais válidas capazesde fundamen-
categoriasgeraisde significação e de seuscorrelatos ontológico-formais
tar as teses defendidas. A exploração dos domínios objetivos empíricos
ao elucidar a sua justificação epistêmica, quer dizer, ao esclarecerde
eraconsideradamais como um entrave à realização adequada da cien-
que maneira tal sistema ideal de categorias se dá a conhecer de moda
tificidade que expressãodo caráter específico de um tipo de saber.A re-
evidente para a subjetividade. Dessamaneira, unindo-se análise obje-
ferência a tais domínios significava, em Pro/egõmenos, que as ciências
fíva dos fundamentos do conhecimento (a qual deveria ser conduzida
empíricas eram ao menos em parte determinadas pelo acréscimo con-
pelos matemáticos) e investigação sobre a legitimidade rzoétícade tais
fízzgentede dados experimentais advindos da exploração do domínio
fundamentos, formular-se-ia, em toda a sua amplitude, a douü'ína da
cíê7zcia.Essaúltima não só conteria de modo sistemáticotodo o arca- material em questão. Nesse livro, como vimos, a lógica pura explicita as
estruturasde encadeamento proposicional cuja validade deriva exclu-
bouço conceitual e inferencial básico que atribui cientificidade a quais-
sivamenteda articulação dedutiva das formas proposicionais e concei-
quer empreitadasditas científicas, maso conteria de modo justa/içado
hais. Essesistema puro de estruturas argumentativas fundadas em prin-
conforme os padrõescogllitivos da forma czf)ríorí da subjetividade.
cípios e leis imediatamente evidentes delimitava o caráter científico de
Nesta segunda parte do capítulo, veremos de que maneira nos
qualquer investigação. Assim, a cientificidade das investigações empí-
anos posteriores à publicação de Investigações Lógícczs Husserl amplia
ricasse limitaria à aplicação das formas absolutamente válidas de Jus-
o escopoda fenomenologia de modo a apresenta-lacomo uma disci-
tificação de conhecimentos; no caso, a teoria formal da probabilidade.
plina que não se limita a complemelltar epistemicamente a nzat/zesís
Porsua vez, em ll.TC, Husserl reconhece que a especificidade material

54 55
A cientiHlcidade na fenomenologia de Husserl [)a fenomenologia noética à fenomenologia transcendentl]
#
das investigações empíricas não é um aspecto desprezível ou um eH.
uma investigaçãoaprofundada sobre o sentido dos conceitos básicos
pecilho apesardo qual tais investigações ainda poderiam ser ditas ciên. dasdisciplinas empíricas favoreceria uma interpretação satisfatória do
das, mas que ela deve ser tomada como consfífuinfe da cíe7zfj/ícídade.
alcance e da validade dos resultados científicos empíricos. Tratar-se-ia,
Segundo Husserl, as ciências empíricas desenvolveram um campa nessecaso, de exibir as características definidoras dos temas básicos a
importante de conhecimentos e de aplicações técnicas com base eH
queasciências se dedicam, esclarecendo, assim, as possibilidades e os
conceitos (que delimitam os domínios empíricos estudados) não eluci. jimites das abordagensteóricas disponíveis. Husserl admite que esse
dados plenamente, muitas vezes oriundos de modo impreciso da expe.
tiPO de investigação das características gerais dos domínios reais tem
riência comum, tais como causa,corpo, vida etc. (Cf. ILTC, S 20, 96- sido buscado ao menos desde Aristóteles por meio da meta/Rica, enten-
97). Faltaria, assim, uma compreensão clara acerca do sentido desses dida como investigaçãosistemática sobre o sentido gera] do ser,sentido
conceitos elementares, de seu âmbito de aplicação e de suas possibili-
pressupostopor todas as ciências particulares que estudam domínios
dades de interação legítima com outros conceitoss' . E dada essaausên-
empíricos
(Cf. ILTC, S20,99).
cia de clareza acerca dos conceitos básicosque demarcam os temas No entanto, Husserl distingue duas maneiras pelas quais a investi-
empíricos, as ciências correspondentes padecem de um tipo particular
gaçãometafísica avançaria. Desse modo, ele parece tentar evitar asso-
de impeúeição teórica. Como vimos, em Pro/egõmenoso estadoatual ciar o seu prometode fundamentação do saber às inúmeras polêmicas
de imperfeição teórica das ciências remete à ausência de clareza acerca
historicamente ligadas a essadisciplina tão controvertida. Por um lado,
dos pressupostosoperantesna produção do saber. Naquela obra, do a metafísicapode partir das próprias ciências empíricas dadas, bus-
ponto de vista objetivo, Husserl limitava-se a apontar para pressupos- cando esclarecer os fundamentos dessascom base nas decisões concei-
tos lógico-formais das teorias que deveriam ser tematizados pela lógica tuais já operantes no seio das disciplinas anuais. Essa seria a "metaHsica
pura. Agora, ele reconhece que há outro tipo de pressupostoem vigor a posteriori" (ILTC, S 21, 102), que segue o deseíavolvimento concreto
nas ciências empíricas, que não se refere à armadura formal pela qual a
dasciências. Não é essainvestigação que interessa a Husserl, já que,
teoria é exprimida, massim às cczracfer&tícas
matedaís dosdomhíos a nessecaso, a metafísica supõe dadas restrições conceituais cujo sentido
se írzvesfígar, capturadas pelos conceitos basilares das disciplinas empí-
último e origem caberia justamente esclarecer. Caberia então elaborar
ricas. Como consequência dessa ausência de clareza sobre o conteúdo
a "metafísica a priori" (ibid.), que não se limitaria a estudar as condi-
e o limite dos conceitos fundamentais, sobram divergências relativas à
çõesantigas das ciências empíricas dadas, mas investigada asestruturas
interpretação dos resultados obtidos experimentalmente, divergências,
determinantes dos domínios empíricos em sua pureza ídea/s;.
por exemplo, sobre o alcance de certas noções e a conveniência de cer-
Essa meta/bica d priori permitiria compreender "a essência da rea-
tos métodos para diferentes domínios empíricoss:. Husserl defende que
lidade em geral, não da realidade efetiva, mas daquilo que no pen-
sarpertence de modo necessário jde7z&nofwendíglà realidade como
51. "Sem dúvida, tem-se resultados importantes, mas dada a falta de compreen-
tal, ao material isto/7] enformado como tal, mas não com respeito à
sãocrítica acerca do significado dos conceitos e princípios fundamentais, é-seincapaz
de decidir sobre o que de fato se possui, sobre o que, em sentido último, se obteve; por' mera forma" (]].-TC, S 22, 106). Essa investigação seria realizada de
tanto, sobreem que sentidose reivindica que os resultadossãoexpressõesdo serúltimo modo a pdorí, e, ainda assim, explicitada as categorias fundamentais
(ILTC, $ 20,98).
52. "Todos os cientistas naturais falam, por exemplo, de causa e efeito, permitem-
se guiar em toda parte pelo princípio de causalidade.Isso é parte do 'modelo básico 53. Devo o reconhecimento da importância da metafísica a príorf em ILTC à dis
Somente, não se pode questiona-lossobre o sentido último e a fonte desseprincípio' cussãosobre essetema apresentada por J. Farges em sua notável tese de doutorado (Cf
(ILTC, $ 20,99). Farges, 2011, } 16-125)

56 57
A cientificidade na fenomenologia de Husserl
Da fenomenologia poética à fenomenologia transcendental

determinantesnão só da realidade factualmente experimentada,mas materiaisparticulares, dos quais se busca apreender as características
da rea/idade em gera/, independentemente de sua manifestação nas ex.
geraiss'.Vale notar que a investigação metafísica também dá lugar a
periências dos sujeitos empíricoss'. Husserl distingue essametafísica a
uma lógica, no sentido de uma doutrina das possibilidades a priori do
príoH da teoria pura do objeto, componente da lógica pura. Essatec.. conhecimento da realidade em geral. Trata-se, nesse caso, de uma "ló.
ria pura investigada as características mais gerais pertencentes à noção
Bicareal" (ILTC, S 23, 112), de uma ciência que expõe as articulações
de objeto em virtude da concatenação significativa das formas daspro. básicasentre as categoriasmetafísicas, de maneira a reproduzir, no ní-
posições e de seus encadeamentos válidos; ela não está limitada àquilo vel da realidade material possível, o recenseamento das formas válidas
que é designadocomo objeto no domínio mefcz/kíco,a saber,àquilo de conexãoentre conceitos que a lógica pura realiza num nível pura-
que pode ser ígcz/.Para a teoria pura dos objetos, "é ente tudo o que menteformal.
pode figurar como sujeito de um enunciado, tudo aquilo sobre o que Husserlafirma que "a doutrina do abstratoe do concretode
nós falamos, tudo o que pode ser designado como ente" (ILTC, S 21. JnvestígaçÕes
/ógícas" (ILTC, S 22, 106) pertencia a essetipo de investi-
100). Dessemodo, o tema dessateoria pura é o ente enquanto visado gaçãodoscomponentesa príod do real. Dessemodo, aquilo que é pro-
por enunciados significativos, independentemente da sua realidade.
postode modo desenvolvido em ll.TC ( 1906-1907) estavajá incubado
Por sua vez, a metafísica que Husserl tem agora em vista se dedicaa na terceira investigação lógica ( 1901), intitulada "Sobre a doutrina dos
um âmbito bem mais restrito, a saber, as características gerais dos en-
todose das partes". Ali, Husserl explora as diferentes relações de depen-
tes enquanto entes possivelmente reais. A diferença entre ambas as dis-
dênciae independência entre objetos e mesmoentre suaspartes.Vale
ciplinas se marca pelo tipo de conceito em que cada uma se constitui.
a pena destacar dois pontos contidos nesse texto: primeiro, as relações
Ambas são compostas de conceitos gerais, mas a generalidade metafí-
queaí setem em vista não decorrem de diferentesmodos de represen-
sica não é como a generalidade lógico-formal. Nesse último caso,al-
taçãosubjetivos, mas descrevem restrições objetivas, isto é, que vigo-
meja-seformular conceitos referentessomente à forma do objeto em
ramem relaçãoaosobjetos em gerals7.Em segundo lugar, essasrela-
geral, o que leva à exclusãode qualquer restriçãomaterial dos conteú-
çõesde dependência constitutivas dos objetos não são explicitadas por
dos particulares que serviram de base para a generalizaçãoss. É dessa
experimentaçãoempírica ou qualquer tipo de procedimento czposte-
exclusão de toda característicamaterial que se molda não só a teoria
rior;. Husserl pretende revela-las como leis a priori, isto é, como porta-
pura dos objetos, mastambém a lógica formal que Ihe é correlata. Por
dorasde uma legalidade necessáriaque restringe, em nível geral puro,
sua vez, para alcançar os conceitos metafísicos, parte-se de conteúdos
aspossibilidadesde estruturação dos objetoss8

54. Husser] exemplifica da seguinte maneira essaanálise a priori da realidade:


56. "Nessageneralização, o olhar é dirigido para a particularidade do conteúdo, so-
deve serpossívelum grupo de investigaçõesque examinam simplesmente tudo aquilo
bresuaqualidade, sobre sua maneira de ser de tal e tal modo, e é justamente a maneira
sem o que a realidade em geral não pode ser pensada.Dele fariam parte a doutrinaa deserh gentequenóssalientamos"
(ILTC, S23, 109)
pnod do tempo, a cinemática a priori e a geometria pura, se têm razãoaquelesque pen-
sam que sem a relação de toda realidade a um espaçoeuclidiano tridimensional e ao
tempo unidimensiona] (. . .) uma rea]idade em geral não pode ser pensada.Com tais
investigações,nenhum conhecimento da realidade efetiva factual ainda estádado,pois
eles concernem tanto à realidade efetiva factual quanto à realidade efetiva possível"
(irlc, S2i, ioi).
55. Segundo Husserl, nos conceitos da teoria pura dos objetos "não entra manifes-
tamente nada da maneira de ser do intuído" (ILI'C, $ 23, 109).

58
59

l
A cientificidade na fenomenologiade Husserl
Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental
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Por meio desses dois pontos, Husserl indicava já em l?zvestígações


fundentedo conhecimento científico para além daquelapuramente
/ógícas que a vigência das relações de necessidade a priori não se res. formal.
tringe à esferapuramente lógico-formal, estudadapela lógica pura. Há É exatamente essatentativa de esboçar uma ciência pura das restri-
possibilidades ideais que não se referem somente à forma vazia do ob.
çõesczpdorí materiais que Husserl busca cumprir em IL'TC por meio
feto em geral, mas a gêneros materiais amplos, os quais supõem restri. da ideia de metafísica a priori ou oncologia metafísica. Caberia a ela es-
çõesczpriori em seu ordenamento objetivo, restriçõesque não sãore. tabelecer os princípios czf'ríorí da /ógíca purcz reco/,em contraste com os
dutíveis àquelas puramente formais. Distingue-se, nesse ponto, além
princípios da [ógica pura.formal. Essa ]ógica rea] não está obviamente
do d priori formal, um a priori material ou sintético, conforme o qual separadada lógica pura formal. Por um lado, a lógica real estásubsu-
diferentes tipos de gêneros objetivos podem ser investigados em suas mida à lógica formal, uma vez que as categorias gerais da realidade se
restrições necessárias,as quais se impõem para a consciência como vá. ordenam conforme as regras de conexão significativa formalmente es-
lidas mesmosem serenaproduzidaspor essa(assimcomo já ocorria tabelecidaspara quaisquer tipos de categorias concebíveis. A investi-
com a validade puramente formal dos temas da lógica pura). Husserl gaçãometafísica está, assim, circunscrita em última instância, e como
sugere já na terceira investigação lógica que a essadivisão de tipos de
qualqueroutra investigação metodicamente científica, às formas de
a priori deveria corresponderuma divisão de disciplinas puras: "essa fundamentaçãoestabelecidaspela lógica pura. No entanto, por outro
separaçãocardinal entre a esferadas essênciasformais e (...) mate- lado, de maneira bem menos óbvia, Husserl reconhece que a investiga-
riais fornece a distinção autêntica entre disciplinas anca/ífícasa pHod çãometafísicaforneceum tipo de baseou suportematerial paraaste-
e disciplinas sílzfétícasa priori" (LUI, 256). Antevê-seaqui que a teo- sesda lógica pura. Segundo o autor, as leis recenseadaspela lógica pura
ria pura dos objetos,contida na lógica pura, não esgotaa legalidadea sereferem de modo geral a toda ciência possível. No caso das ciências
priori que atumcomo fundamento pressupostopara o conhecimento, empíricas, as provas, as leis e os princípios teóricos utilizados tratam de
em particular para o conhecimento empírico. Dessamaneira, Husserl domínios reais, ainda que de modo genérico. Dessa maneira, "tudo o
já reelabora no correr de Investigações/ógícas o veredito acerca do ca- que é lógico reenvia, com sua generalidade indeterminada ao extraló-
ráter não essencial dos domínios objetivos na constituição da cientifi- gico, a um conteúdo objetivo ISac/z/za/fígÉeíf) que deve ser apreendido
cidade dasciências empíricas, tal como afirmado no parágrafo64 de de modo lógico, mas que deve estar lá de início para que a apreensão
Proíegâmenossç.O que Htca sugerido f)ela terceira in'pestigação lógica é lógica encontre algo a apreender" (ll.TC, S 22, 104). As formas lógicas
que os asf)actos materiais constituintes dos domínios objetivos empíricos puraspressupõem esferasmateriais possíveis, das quais justamente as
estãotambém subordinadosa uma /ega/idade a priori própria, a qual relaçõesformais indeterminadas são extraídas.Husserl chega a dizer
estabelece restrições que condicionam (e, assim, contribuem para fun-i que, se toda matéria do conhecimento pudesse ser afastada de modo
damentarl a escolha dos métodos e o alcance das investigações empí- absoluto,então o âmbito lógico puro "não teria mais sentido" (ibid.).
ricas. Cabe desenvolver as disciplinas que sistematizam essasrestrições Issoquer dizer que, embora a lógica pura seja construída justamente
a priori materiais, de maneira a expandir a esfera da legalidade lógica por meio da análise das formas teóricas válidas í7zdependerzfemezzfe
dos
domínios materiais em que estas são aplicadas, ela não ignora essesdo-
essencial que separa as 'necessidades sintéticas' das 'analíticas"' (LU 1, 256, texto da pri- mínios, os quais permanecem vigentes em sua indeterminação justa-
meira edição)
59. "Há, porém, em segundo lugar, pontos de vista não essenciaispara a coorde- mente como domínios de aplicação possível.O nível puramente ló-
nação de verdades em uma ciência, e ao mais óbvio chamamos a unidade da coisa em gico não está totalmente isolado dos domínios materiais, os quais, em
sentido literal" (P, S 64, 236, texto da primeira edição).
suageneralidade indeterminada, realizam o papel tácito de suporte de
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61
A cientificidade na fenomenologia de Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendent41
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aplicação dasformas puras- Essaremissão do âmbito puramente formal


cientificidade. Cabe analisar os fitos subjetivos que reconhecem a vali-
ao âmbito material indeterminado não era claramente mencionada eQ dadedasestruturasobjetivas do conhecimento, de maneira a atribuir
Pro/egõme7zos,
já que ali, como notamos, os domínios materiais eram a elas uma )ustificativa epistêmica racional. Tal qual em Pro/egõmenos,
avaliadoscomo inessenciaispara a cientificidade (Cf. P, S 64). Agora. Husserlacentua que essaelucidação não remete a nenhum grupo de
Husserl admite que nem todo fundamento ob/efivo pressupostopelo sujeitosempíricos determinados, mas à ideia geral de subjetividade, às
conhecimento científico é /ormaZ. Para as ciências que não são absba. característicaseidéticas que delimitam toda subjetividade possível: "so-
tas, que não se dedicam aos puros encadeamentos formais e a seuscor. bre a essência dos aros se fundam exigências de direito, e (...) inde-
relatos materialmente vazios, há pressupostos acerca das características pendentemente da contingência dos indivíduos e de sua especificidade
definidoras do domínio a se estudar, e essespressupostospodem seres.
psicológicaenquanto humanos ou não humanos, formas de fundação
mudados em suageneralidadepura por meio de um tipo específicode sãoJustificadase outras são injustificadas" (ll.TC, S 25b, 119). Daí que
lógica. E essalógica real ou material de certa maneira também é fun. o estudodessasestruturassubjetivas de justificação racional não seja
dancedo próprio trabalho de formalização da lógica pura. uma tarefa da psicologia, e sim de uma disciplina específica, a rzoétíca:
Importa notar, por fim, que por meio dessas ponderações Husserl que em Pro/egõmenos era identificada com a própria fenomenologia
amplia notavelmente o alcance das colzdíçõesob/etívas do conheci- Veremosque Husserl manterá a ideia de uma noétlca como comple-
mento. Inicialmente, no parágrafo 32 de Pro/egõmerzos,essascondições mentosubjetivopara a doutrina da ciência objetíva. No entanto, esta
objetivas referiam-se somente à armadura formal de conceitos e enca. deixará de ser identificada com a fenomenologia.
deamentos proposicionais em correlação cona as formas vazias de ob. Cabe à noética propor a princípio uma modo/ogíczdos diferentes ti-
fetos quaisquer. Agora a investigação dos pressupostos objetivos do co. pos de atos subjetivos, de maneira a distinguir aqueles que portam uma
nhecimento deverá levar em conta as determinações materiais puras estrutura imediata de legitimação daqueles que oferecem justificativas
que estabelecem possibilidades ideais em relação aos domínios objeti- de modo mediano. Oferece-se, assim, uma taxonomia dos diferentes ti-
vos a se estudar. A doutrina da ciência objetivo não poderá, portanto, se posde arosque atribuem legitimação racional para seu conteúdo. Em
reduzir à lógica pura, mas deverá incluir disciplinas que sistematizem seguida, essas análises morfológicas devem ser completadas por uma
as restrições d Í)riorí materiais. Em lll.TC, Husserl apenas esboça uma 'fisiologiado conhecimento" (ll.TC, S 29, 138), quer dizer, por uma
metafísica czf)ríorí para cumprir essatarefa. Veremos, ao analisar textos análisemais refinada das funções específicas da cada tipo de ato em
posteriores do autor, a proposta de orzto/ogíasmczteríczís
referentes aos vista das diferentes formas de conhecimento possível.
gêneros materiais supremos Importanotar que os níveis morfológico e fisiológico dos fitos noé-
ticosrzãoesgotamas questõesligadas àscondições subjetivas do conhe-
cimento. Na verdade, segundo Husserl, há "camadas de problemas de
Lógica poética e fenomenologia transcendental nossadoutrina do direito do conhecimento que são mais profundas
Reproduzindo o movimento argumentativo de Prolegõmerzos, jlUXC, S 30, 139). Essascamadasexcedemo âmbito da noética tal
Husserl, na segunda seção de ll.TC, apresenta a investigação r20é- como delimitado até então e se ligam aos problemas da "/í/oso/ía trans-
fíca como como/emerztoà doutrina da ciência objetivo.A circunscri- cenderzta/,
os mais difíceis de todos os problemas científicos em geral"
ção dos componentes formais elementares de toda investigaçãoteó- e também "os mais importantes de todos os problemas" (ibid.). Vimos
rica e das características gerais dos domínios objetivos correlatos não quea doubina objetivo da ciência nada esclarecea respeito da legitimi-
basta para oferecer uma elucidação completa acerca do que compõea dadedas apreensõessubjetivas de seu conteúdo, e que, por isso mesmo,

62 63
A cientihcidade na fenomenologiade Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental
[ r'S'}]t;.
ela deveria ser complementada pelas descrições das estruturas noéti- transcendentaldo reconhecimento de algo objetivo pela subjetividade
cas que justificam racionalmente a apreensão de certos temas como De fato, a investigação noética que complementa a lógica pura é apre-
válidos ou verdadeiros. Husserl deixa agora claro que a análise descri- sentadacomo uma "teoria do conhecimento" (LUI, 27) que deve pre-
tiva das formas e funções dos atos subjetivos justificadores da doutrina ceder todo exercício subjetivo empírico do conhecimento, explici-
objetivo da ciência ainda é írzsu/ícíentepara respondera todasas ques- tando seus condicionantes ideais. Assim, em correlação com a inves-
tões ligadas à teoria do conhecimento. Descrever as estruturas noéticas tigação das formas possíveis de teorias, a análise noética acabará por
que garantem a apreensão legítima dos princípios da lógica pura ou da elucidar "a ideia de conhecimento segundo seus elementos constitu-
lógica real metafísica, issotudo "não quer dizer ainda compreendero tivos ou as suas leis" (ibid.). No entanto essa análise segue limites es-
sentido e a possibilidade de um conhecimento válido, e, portanto, atin- tritos, estabelecidosjá em Pro/egõmerzos.A investigação noética do co-
gindo efetivamente uma objetividade" (ILTC, S 30a, 141). E é justa- nhecimento progredirá no interior daquilo que é "a grande tarefa" de
mente o problema universal da possíbí/idadedo c07zbecímenfo,enten- Investigaçõeslógicas, a saber, " levar à clareza e distinção ePistêmica as
dido como o problema do próprio reconhecimento pela subjetividade ideias lógicas, os conceitos e leis" (LUI, 9). Assim, nessa obra, os pro-
de algo como objetivo, aquele que levará Husserl a desenvolver a feno- blemasgeraisligados à possibilidade do conhecimento sãotratados por
meio de uma clarificação íloética da lógica pura, o que é avaliado em
menologia de modo autónomo em relação à noética.
ILTC como uma abordagem insuficiente
Em Pro/egõmenos,esseproblema geral era reconduzido àquele da
correlação entre dois grupos de estruturas e princípios d priori: o pri- Por que Husserl julga no curso de 1906 que a análise noética, tal
meiro se refere àsformas objetivamente válidas de conexão entre signi- como proposta em l?zvestígações /ógícas, não esgota a problematiza
ficações puras, e o segundo, às essências dos ates subjetivos. Essesdois çãofilosófica do conhecimento? Lembremo-nos, de início, que o autor
tipos de d pHorí concordavam harmonicamente entre si, de maneira apontou como problemas profundos banscendentais aqueles relativos
que bastava descrever, no nível da generalidade ideal, os fitos subjetivos à possibilidade geral pressuposto por todos os casos de conhecimento, a
saber,que algo objetivo seja reconhecido como tal pela subjetividade.
capazes de apreender justificadamente as estruturas objetivas da lógica
Asanálisesdessesproblemas devem se desenvolver no âmbito do puro
pura para tornar visíveis,em termos da essênciada subjetividade e das
direito, isto é, das condições que delimitam o sentido da própria ideia
formas mais gerais da objetividade lógica, quais eram ascondições teó-
do conhecer objetivamente legítimo, independentemente de suasinú-
ricas para o conhecimento válido.
Por sua vez, na introdução de Investigações /ógícas, Husserl explora meras realizações factuais. Na verdade, as situações factuais em que
ocorre efetivamente o conhecimento pressupõem o preenchimento
explicitamente o tema da possibilidade do conhecimento em gera/à dascondições a priori que justamente tornaram essassituações factuais
luz do prometofilosófico caçado em Pro/egõmenos.No segundo pará-
inicialmente possíveis,e são tais condições d priori que interessam à in-
grafo da introdução, Husserl afirma que as investigações subsequen-l
vestigaçãotranscendental
tes permitirão esclarecer problemas recorrentes da epistemologia, tais
O que essadistinção entre o direito e o fato do conhecimento im-
como a relaçãoentre o caráter em si do objeto conhecido e o caráter
plica para a investigação transcendental? E como isso nos ajuda a
subjetivo do conhecimento resultanteóo.Husserl antecipa aqui o tema

quesignifica a adaequafío rel ac ínfe//ectus cognitiva nos diferentes casos, conforme a


60. "0 que significa que o objeto seja 'em si' e 'dado' no conhecimento;coma apreendercognoscente diga respeito a algo individual ou geral, a um fato ou a uma lei?
a identidade do geral pode entrar, enquanto conceito ou lei, no fluxo de vivências Agora ficará claro que essas e ousas questões semelhantes são inseparáveis das questões
psíquicas reais e tornar-se, enquanto conhecimento, património daquele que pensa, aludidasacima acerca do esclarecimento do puro lógico"(LUI, l ã)

64 65
n4.
A cienti6jcidade ila fenomenologia de Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental

mentodasrelaçõesentre subjetividade e objetividade que tornam pos-


compreender as limitações da noética? Conforme visto, o pas:o i.ni-
clal de Husserl aqui foi apontar para um problema episte.mológico sívela obtenção de conhecimentos válidos.
universal, aquele das condições ideais da relação entre subjetividade Esseserá um ponto marcante de divergência com a noética. E ver-
e objetividade. Em seguida, reconhece-se, como também mencio- dade,como vimos, que o problema do direito do conhecimento já era
nado há pouco, que nas situações concretas em que se produz sonhe. tematizadopela investigação noética, que não se interessavapor ep:só'
cimento simplesmente supõem-se cumpridas essascondições ideais, diosfactuais de cognição, mas pela ideia do conhecer evidente como
sem que se tenha clareza acerca de quais são elas e de como operam. correlata das teses 1(5gico-objetivas da lógica pura. Entretanto é exata-
Ora. diante disso, Husserl sugere que "nenhum dos resultados cien- menteessacorrelação esbutural entre noética e lógica pura que restrin-
tíficos obtidos naturalmente estáisento [da ausência de clarezaj; nós gira a pureza das relações ideais explicitadas. Afinal, observa Husserl,
não podemos então utilizar nenhum deles como premissa pa.ra.deri- ;a lógica formal e a lógica noética estão em conexão estreita; a pn'
var o que nós buscamos"(ILTC, S 32c, 177). Uma vez que se trata de meira pode certamente ser elaborada independentemente da segunda,
esclarecer como a relação entre subjetividade e objetividade é pos- masnão o inverso" (ILTC, S 31a, 158). Essa dependência parece de-
sível. não se deve utilizar como ponto de partida para a investigação correr do seguinte: a noética almeja explicitar as condições subjeti-
transcendental nenhum conhecimento em que essapossibilidadeseja vasideaisnas quais os conteúdos da lógica pura podem ser justifica-
damenteafirmados, tarefa que supõe o progressote(iríco dessaú/tímcz
pressuposta, pois se trata de tematizar as condições gerais dessapossi-
bilida(i e, e não de aceita-lacomo já preenchida. A crítica transcenden- Desseponto de vista, a noética está atrelada aos avanços concretos da
tal do conhecimento que aqui se anuncia não se apoiará em nenhum lógica pura para se desenvolver. Ela esclarece as condições de atestação
sabercientífico já dado no qual as condiçõesde possibilidadedo co- ideal dos temas da lógica pura, o que pressupõeque essestemczssejam
nhecimento são ingenuamente pressupostas. Na verdade, segunda detív merztesístematízczdos.Em ll.TC, para deixar explícita essacode-
Husserl, o avanço factual do saber não contribui em nada para a reso- pendênciaentre lógica pura e noética, Husserl chega a nomear essaúl-
lução da questão transcendental. Husserl imagina a hipótese de que as tima de "lógica noética", conforme a citação acima, deixando patente
teorias da matemática pura se desenvolvessemde maneira plena, de o seu caráter compZemenfar em relação à lógica pura. Vale notar que
modo a esgotar,em uma cientificidade peúeitamente acabada,todo o emProlegõmenosnão só essaexpressão"lógica noética" não é usada
domínio que Ihe cabe serinvestigador'. Mesmo diante dessahipótese, como Husserl também faz questão de distinguir investigação lógica e
os problemas da crítica do conhecimento seriam ainda exatamente investigaçãonoéticaõz.Agora em ll.TC a noética é retratada como um
os mesmos" (ILTC, S 33c, 190), pois a perfeição teórica da matemá- tipo de lógica, como um ramo de uma investigação global das estrutu-
rasteóricasfundantes do conhecimento.
tica pura "seria um fato e nada mais. Diante da reflexão, ela seria um
problema" (ibid.). Sugere-seclaramente aqui que a reflexão filosófica Dessemodo, em ll.TC, Husserl distingue a reflexão filosófica so-
transcendental nada avança com o acréscimo paulatino de conheci- bre o conhecimento e a noética. Por sua vez, em Pro/egõmerzos, am-
mentos dos domínios objetivos. Afinal, interessa a essareflexão não a basestavamidentificadas; cabia à noética realizar a crítica filosófica
bato do conhecimento, mas a questão do direito, isto é, do estabeleci
62. "As condições ideais de possibilidade do conhecimento podem ser ( . . .) de duas
espécies.São, a saber, rzoétícasse sefundam na ideia do conhecimento enquanto tal e a

ÚIÜM=;;H=:IH=UaH;B::Ig
f)dorí,semqualquer relação com a particularidade empírica do conhecimento humana
emseucondicionamento psicológico; ou sãopuramente lógicas, i. e., fundam-sepura-
menteno 'conteúdo' do conhecimento" (P, S 65, 239-240).
seriapensável"(ILTC, S 33c, 190)

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A cientificidade na fenomenologiade Husserl Da fenomenologia naética à fenomenologia transcendental

do conhecimento ao investigar as condições subjetivas da lógica pura. uma investigação transcendental referente ao direito e ao sentido das
No entanto. Husserl avalia em ILTC que a noética estásubordinada empreitadas científicas não examina as ciências em seus estágios atuais
aosavanços efetivos da lógica pura; por conseguinte, ela não atinge eH depeúeição, masse dirige à própria ideia de cientificidade, tal como
toda a sua pureza e amplitude a questão do direito do conhecimento. aomenos esboçada em suas categorias e em seus métodos mais básicos,
Para exprimir essapureza, como vimos, Husserl sugere que, mesmo se e investiga de que maneira a objetividade visada por tais métodos e ca-
a matemática pura (e, com ela, toda a mathesís uníversa/ís objetiva) es- tegoriaspode ser legitimamente alcançada. Além disso, a investigação
tivesse terminada, isso em nada resolveria os problemas da crítica do transcendental também se aplica "ao conjunto das categorias noéticas
conhecimento. De modo inverso, issoquer dizer então que, ainda que jltXC, S 31d, 166), quer dizer, abarca a tarefa de recensear as fontes
a mathesís urzíversa/isnão esteja plenamente construída como dou- subjetivasde justificação das leis e dos princípios lógicos que comple-
trina, a investigaçãofilosófica pode avançarde modo autónomo'; mentaa mat/zesísobjetiva
Uma conclusão importante se anuncia. A teoria transcendentaldo
conhecimento cogitada por Husserl, ao perguntar pelo puro direito do
A investigação transcendental como 6enomenoZogía
saberobjetivo, não se reduz a um complemento da doutrina da ciên-
cia objetiva, já que avança independentemente dos progressos dessaúl- Essainclusão da noética no âmbito das doutrinas científicas a se
tima. Trata-se, como vimos, de uma reflexão que se situa em um nível rem c]arificadas pe]a investigação transcendental não só confirma a
diferente daquele do conhecimento científico atual e que, mesmo em autonomização
da crítica filosófica em relaçãoà construçãoda dou-
relação à doutrina da ciência efetiva, pretende fornecer um tipo de fun- trina da ciência, mas também permite reconsiderar a especificidade
damentação que falta ao saberobjetivo. A]ém das condições lógico-ob metodológica da filosofia. Mencionei acima que o tema da justificação
jetivas e lógico-noéticas pressupostaspelas ciências, há um pressuposto subjetivado conhecimento é herdado da noética pela reflexão filosó
epistêmico ainda mais básico: a posição de algo como objetivo pela fica ampliada. Poder-se-iapensar que a diferença entre ambas é ape-
subjetividade. Cabe à reflexão transcendental elucida-lo, clarificando, nasa ampliação do alcance da segunda, que não se limita a clarificar as
assim. o fundamento talvez mais primário do conhecer. Nesse sentido, condiçõessubjetivasda lógica pura, e sim do conhecimento em geral.
a teoria transcendental do conhecimento tenciona realizar-se como /i- Ocorre que essadiferença de alcance, essaproblematização do pressu-
doso/íaprimeira, quer dizer, como uma investigaçãodos princípios úl- postouniversaldo conhecimentoem geral (o problemado acessoda
timos sobre os quais o sentido e a possibilidade do conhecimento obje- objetividade pela subjetividade) supõe uma alteração radical no mé-
tivo se assentanlm.A teoria do conhecimento entendida, assim,como tododa investigação, o que, por fim, significará uma transformação da
própriafenomenologia.
Como vimos, a especificidade metodológica da reflexão transcen-
63. Husserl extrai essaconclusão no apêndice B ll de ILTC: "pode-?epartir direta-
mente em busca de uma fenomenologia do conhecimento (e de uma fenomenologia dentaljá se faz notar em sua independênciaquanto ao acabamento
em geral), sem ter o ponto de vista da doutrina da.ciência e os escrúpulos do ceticismo ou aperfeiçoamentodas ciências efetivas. Se as ciências disponíveis
para começar ( . ..). Se eu inicio pela doutrina da ciência, então eu também..devo desen fossemmais perfeitas do que são, isso em nada aliviaria os problemas
volver a fenomenologia independentemente dela, e vice-versa",(ILI'C, 405).. , .
64. Eis como Husserl expõea tarefa da filosofia primeira: "e/a é a.ciência dosPr.in.
cíf''o* 'q rà l;,'.:' ;lã;l. a.l «p/l"çõ' úlÇfm', d' ;«sfí#"çã' ' :l'l d"çr' d' sem;da
últimos, portanto, da clara/ilação'ú/fina, tudo issoserzdocompreerzdído no senffdoda ge' fundamentos, a todos os procedimentos metódicas, a todos os atou de pensamento que
neralídadede pnncíPío. Ela não se esgotaem parte alguma, e entretanto sua 'crítica, portam reivindicações de direito, segundo a essência das operações que eles realizam'
suaclariHicaçãodesentido, concernem a tudo, pois concernem em p'incípio a todos os (lnC, S 31d, 165-166)

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A cientificidade na fenomenologia de Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental
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epistemológicos transcendentais, assim crê Husserl. Além disso, cabe cientificamente sem investigar os princípios de que dependem o sen-
agora enfatizar que a resolução dessesproblemas não é um acréscimo tido último, o direito, a fonte de validade verdadeiramenteobjetiva
teórico para as ciências existentes.E é?sse
não é o casoda noétíca. No jltXC, S 31d, 164). Trata-sedaquilo que Husserl chamará posterior-
apêndice B VI de ILTC, Husserl asseverao seguinte: "o ideal da ciên. mentede orientação lzatura/ do pensamento, marcada pela ingenui-
cia objetivo é a perfeição lógico-noética, é o ideal lógico (o ideal noé. dadeem relação às suaspróprias condições puras de realização. Aqui
tico). Uma ciência realizou progressoà medida que é uma ciência não se devem confundir as ciências que, desseponto de vista epistê-
idealmente rigorosa, à medida que o conhecimento consumado do seu mico, são realizadasde modo natura/ com as ciências da lzatureza
campo foi obtido e nada mais aí resta para ser desejado" (ll.TC, 433). quer dizer, com as ciências que investigam os diferentes domínios do
O autor sugereque a obtençãode conhecimento noético auxilia na mundo real. Podem ser ciências da orientação natural mesmo ciências
tarefa de apeúeiçoamento teórico da doutrina da ciência. Embora se que compõem a lógica pura (a silogística, a álgebra, a teoria das multi-
deva distinguir entre os aros subjetivos examinadospela noética e os plicidadesetc.), de maneira que o caráter puramente formal da investi-
puros princípios formais recenseadospela lógica pura, o estudode am- gaçãoem nada a torna imune à ingenuidade epistemológica.Em rela-
bos se une para formar a doutrina geral da ciência, a qual, se estivesse çãoa essaorientação ingênua, a investigaçãofilosófica transcendental
plenamente realizada, exporia todas as formas de fundamentação lâ seapresentacomo "uma orientação de pensamento totalmente antina-
Bica válidas de que as ciências particulares poderiam efetivamente di$ tural" (ll.TC, S 3 Id, 165).A antinaturalidade da filosofia deriva de sua
por para apresentarconhecimentos verdadeiros,e as exporia segundo insistênciaem tornar aparente aquilo que as ciências ingênuas pressu-
asestruturas subjetivas que reconhecem a validade de tais formas como põem mas não tematizam, a saber, as operações subjetivas pelas quais
justificadas racionalmente a objetividade é legitimamente posta como tal. Na orientação natural,
Por sua vez, a investigação transcendental do conhecimento é, con- o fato de essasoperações se realizarem de modo bem-sucedido já é su
forme escrito no mesmo apêndice, "algo essencialmente diferente ante ficiente; foca-se então nos resultados de tais operações, as quais, nelas
a clarificação lógica e suas metas" (ll.TC, 433). Afinal de contas, essa mesmas,não são questionadas. Por sua vez, a investigação filosófica al-
investigação "não almeja a peúeição das ciências, mas a 'possibilidade mejajustamenteclarificar como é possívela relação entre a subjetivi-
do conhecimento', e como a relação do conhecimento com as objeti- dadee aquilo que por ela é visado como objetivo.
vidades transcendentes deve ser entendida" (ibid.). E de que maneira Apresentar a investigação filosófico-epistemológica como antinatu-
essa investigação da possibilidade do conhecimento será conduzida? ral significa situa-la em um nível diferente daquele dos conhecimentos
Aparentementehá uma grande dificuldade. Vimos que o problema obtidosna orientação natural. Essesúltimos ignoram o problema da
transcendental exige que nenhum conhecimento obtido sob o cum- possibilidadeda relação entre consciência subjetiva e polo objetivo e,
primento ingênuo das condições de possibilidade deve servir de ponto do ponto de vista filosófico, aparecem como proa/emátícos,no sentido
de partida. Segundo Husserl, as ciências em geral, e mesmo a lógica de carecerem de uma fundamentação acerca do sentido da própria ati-
pura em sua dimensão formal-objetiva, são construídas sem questiona- vidadeepistêmica que se concretiza na sua obtenção. Isso quer dizer
mento sobre suas condições gerais de possibilidade: o instrumental me- que, para a investigação transcendental, a validade de todos os conheci-
todológico é voltado para os temas objetivos a se pesquisar; certas teses mentos obtidos na orientação natural deve ser susPerzsa.A investigação
sãoformuladas com baseem tal pesquisae com elasse montam teorias transcendentalnão pode depender de nenhum conhecimento que as-
em que o conhecimento daqueles temas é exposto sistematicamente. sumaacriticamente como já cumpridas ascondições cl priori do acesso
Nesse modo ingênuo de proceder, "pensa'se, conhece-se, trabalha-se dasubjetividade à objetividade, condições que devem ser elucidadas.

70 71
A cientificidade na fenomenologia de Husserl Da fenomenologianoética à fenomenologia transcendental
/ #'

Fica clara agoraa dificuldade mencionada anteriormente: a suspen- Segundo Husserl, o que se mostra como a raiz da ingenuidade do
sãode todo o conhecimento natural não torna impossível a própria exe- conhecimentonatural é a posição de algo üanscenderzte.
O que o co-
cução da investigação transcendental? Afinal, como reconhece Husserl, nhecimento natural supõe sem nunca esclarecer é a relação das capaci-
a crítica filosó6lca pretende estabelecer certos conhecímelztos relativos dadessubjetivascom um polo objetivo transcendente,quer dizer, com
à possibilidadee ao sentido do conhecimento em geral. Contudo, se a algoque é apresentado como em-símas que se doa ou se manifesta de
posição de todo conhecimento é tomada como problemática, então os modo acessível para a consciência. Como é possível que a subjetividade
resultadosobtidos por tal crítica exigiriam outra crítica se aplicando sc- produtorado conhecimento reconheça a partir dela mesmaalgo que
bre eles, e assim ad íTZ/ínitumós. Husserl rejeita esseresultado.Afinal, vai além de si? Esseé o ponto obscuro marcante do conhecimento cien-
não se trata de rachar todo conhecimento concebível como necessaHa- tífico natural, e, por conseguinte, o principal tema a ser clarificado pela
merzteproblemático, mas somente o conhecimento obtido sob a posição teoriatranscendental do conhecimento. E então a transcendência, afir-
ingênua da objetividade. É preciso estabelecer o conhecimento aliso/u- mada de modo ingênuo, que deve ser suspensa para justamente ter suas
famerzte evídenfe das coizdíçõestranscendentais, conhecimento que não condiçõesde possibilidadeelucídadas.Segue-seque "a teoria do co-
será ingênuo em relação à objetividade, mas que permitirá esclarecer de nhecimento (. . .), no que concerne a toda transcendência, ela deve pra-
modo fundamentado como a validade objetivo de todo conhecimento ticar uma epoc/zéabsoluta" (ll.TC, S 35a, 204). Isso quer dizer que tudo
ingênuo é obtida. O ponto de partida é então reconhecer como um o que é posto como um dado objetivo pelo conhecimento científico
dado evidente o caráter problemático do conhecimento científico in- devesersuspenso,já que se trata exatameilte de esclarecerascondições
gênuo. Conforme expõe Husserl, "o teórico do conhecimento começa de possibilidade de tal posição da validade transcendente objetiva.
precisamente por esseenunciado: eu não compreendo o conhecimento, Não é pouco o que, dessamaneira, se exclui da crítica do conhe-
portanto eu não devo, sem exame, nada pressupor, nada fazer valer nem cimento. Todos os objetos da natureza tais como estudados pelas disci-
reivindicar como previamente dado" (ll.TC, S 34a, 194). A crítica do plinas científicas devem ser rejeitados como dados da investigação crí-
conhecimento reconhece reflexivamenteo caráterproblemático do cc- tica.E não só o mundo natural é retirado da investigação,mastambém
nhecimento dado (independentementede ele sercompleto ou incom- asidealidades puramente formais. Como observa Husserl, a explicita-
pleto) para elucidar sua possibilidadee seu sentido e, assim, oferecer ção das categorias formais e de suas conexões válidas pela lógica apo-
suafundação filosófica. Atesta-seaqui uma retrorreferênciado conheci- hntica "pode ela também serconstruída enquanto disciplina matemá-
mento a si próprio em busca das condições por meio das quais ele se rea- tica de modo puramente objetivo e sem clareza definitiva sobre aquilo
liza: o teórico do conhecimento reflete sobreo conhecimento ingênuo que é de princípio" (ILTC, S 31c, 162). Nessesentido, enquanto su-
e busca explicitar de modo preciso aquilo que nele é problemáticos. põeuma noção não clarificada de transcendência (ideal), nem mesmo
a lógica pura deve ser pressuposto pela teoria do conhecimento". E
65. Eis como Husserlapresentao problema: "a situaçãoparece de .início um
pouco desesperadora.Todo conhecimento deve ser problemático. Mas o conhecimento
pertencente à teoria do conhecimento que nós buscamos é também um conhecimento. mesmopara um Deus, a questãodo sentido do conhecimento tem um significado ra
Parece então que há necessidade da teoria do conhecimento para adquirir a teoria do cionale que, mesmo para um Deus, a resolução do problema do conhecimento não
conhecimento. O que parecedemonstrar que a teoria do conhecimento é por principia consistiria
senãoem uma crítica do conhecimentose retrorreferindoa si própria
impossível" (ILTC, S 34a, 193). jlnTC, $ 34a, 193-194)
66. "A necessáriaretrorreferência da explicitação do conhecimento a si próprio 67. "Mesmo a lógica formal no sentido antigo ou a mathesís formal que se rela-
é manifestamente algo que pertence à essênciado conhecimento.enquanto tal (....-). cionaa conceitos e a proposições, ou a objetos e estados de coisas (. . .) carece de uma
[ÉI evidentemente claro' que mesmo para um conhecimento absolutamente perfeito. fundaçãoe de uma avaliaçãopela crítica do conhecimento"(ILTC, S 3 1c, 162)

72 73
A cientificidade na fenomenologia de Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendente
.P'/ 4.

possívelaqui se questionar se tanta radicalidade por parte de Husserl suspende-se


a vigência ingênua do modo de pensar por meio do qual
não anula os próprios meios pelos quais a teoria do conhecimento se sesupõemcumpridas as condições do conhecimento e se toma como
exf)rime como teoria. Afinal, nem mesmo a lógica, enquanto disciplina dadaa transcendência em vista; assim, instaura-se uma orientação cog-
objetiva, deve ser assumidacomo dado. Isso significaria que as teses nitiva que recusa todo dado não devidamente clarificado em seuspres-
da teoria do conhecimento estariam livres de se submeter às relações supostos.Esseprocedimento é chamado por Husserl de redução$eno-
lógicas mais básicas?Husserl não tematiza de maneira clara essepro- merzo/ógíca(Cf. ll'TC, S 35d), e será a partir dele que se abrirá um
blema em ILTC, mas oferecerá uma resposta elaborada em Ideias l, campode pura evidência,com baseno qual a fenomenologia pretende
publicado em 1913.Voltarei a essetema no próximo capítulo, ao ex- resolvero enigma da transcendência70.Como veremos, será uma feno-
por algumas tesesdesselivro. Por ora, basta esclarecer que já em ILTC menologiareformulada em relação àquela originalmente contida em
Husserl atribui um alcance universal à e/)oc/zéda transcendência que Prolegõmenos,
que ainda se encontrava ligada a uma disciplina cientí-
abrangetambém a própria lógica pura. Cabe aqui notar que, além dos ficaobjetivo (a lógica pura) e, dessamaneira, não havia questionado de
temasdas disciplinas materiais e formais, o próprio sujeito cognoscente modoradical os pressupostosúltimos do conhecimento. Agora, a feno-
também é afetado pela suspensãoda transcendência. A concepção na- menologiaque se anuncia estálonge de ser um complemento de uma
tural ou ingênua do sujeito toma-o como um ente real localizado na doutrina científica objetiva; ela é uma disciplina que se desenvolve em
espacialidade e na temporalidade objetivas da natureza material. (Jra uma orientação do pensar diferente daquela em que todo conheci-
para Husserl, essaconcepção não é de modo nenhum um dado evi. mento objetivo é produzido; ela não dependerá de nenhum avanço do
dente; põe-seaqui o sujeito como algo transcendente,como casode conhecimento objetivo efetivo para o seu progresso,pois ela questiona
uma classe geral de entes objetivos cujo próprio modo de ser é obscuro pressupostos
de outra ordem, relativos ao sentido e àscondições de pos-
e deve ser esclarecido". A psicologia, enquanto ciência ingênua, supõe sibilidade mais gerais dos conhecimentos efetivos
essatranscendência da subjetividade em seus estudos, mas a investiga- Vamos analisar com mais detalhes a redução fenomenológica, tal
ção transcendental do conhecimento não pode aceita-la. Trata-se, an- comonarradaem ll.TC. Ela se compõe de uma etapa "negativa", por
tes, de purificar os dados da psicologia (bem como de todas as outras assimdizer, em que se suspende a vigência de toda transcendência do
ciências) de toda pressuposição sobre a transcendência, isto é, sobrea conhecimento. Realiza-se, assim, a epoc/zéde todos os Juízos científicos
posição cle existência de algo como objetivo" em relação aos seus temas. Isso quer dizer que os estados de coisas ob/e-
Por meio dessasérie de suspensõesde diferentes tipos de transcen- üvosveiculados por tais juízos, aquilo que ingenuamente o sujeito cog-
dência pressupostospelo conhecimento produzido sob a orientação noscentepensa atingir e revelar em seu em-si, são excluídos da inves-
natural, Husserl delimita um procedimento radical para circunscre- tigação,de maneira que nenhum dado transcendente (cuja condição
ver o domínio autêntico da investigaçãotranscendental: inicialmente,
70. Husserl já utiliza a expressão "redução fenomenológica" em seu curso de 7êo
68. "Eu ponho então a questão: o tempo objetivo, a doação temporal objetiva, a na gera/ do corzAecimenfo Í]902-]903). Porém, ali, a redução é somente um procedi-
personalidade, o eu idêntico como portador das aparições, é tudo isso dado no que se mentode exclusão daspropriedades factuais dos eventosde maneira a se poder ana-
chama de consciência interna? Isso tudo não é transcendentee não faz das próprias lisa-losem suaspuras características eidéticas (Cf. Husserl, 2001, 199). Essa expressão
aparências psíquicas, que são investigadasenquanto estadosobjetivos do eu, da pes passaa ser usadacom o sentido de indicar o método de acessoà fenomenalidade puri-
soa empírica, precisamente enquanto estados objetivos de algo real, transcendências?" Rcadade pressupostosnão clarificados em 1905, nos famososmanuscritos de Seefeld
(ILTC, S 35a,204) publicadosno volume X da coleção Husserliana (Cf. Husserl, 1969,237-268). 1LTC é
69. Dessamaneira, o psicologismo é rejeitado não somente como interpretação da o primeiro curso em que Husserl desenvolve de forma sistemáticao método da redu-
lógica, mas também como concepção epistemológica em geral çãofenomenológica

74 75
A cielltificidade na fenomenologiade Husserl Da fenomenologia noética à fenomerlologia transcendental
} #:i'}l},;.
transcendental está justamente em questão) vigore. Uma vez suspensa completo e forte, e reflete aqui sobre o que caracteriza tais casos"73.No
a posição dos ten)asobjetivos, que resta do conhecimento científico entanto,Descartesnão teria de fato liberada a pura evidência do âm
que se trata de elucidar e fundar filosoficamente? Adentra-seaqui na bits psicológico da alma e, assim, estaria preso a uma concepção in-
etapa por assim dizer "positiva" da redução. Cabe agora reconhecer ,ênua da subjetividade cognoscente,confundida com a interioridade
como resíduo da redução o ãenõmelzoda ciência, ou seja, o conjunta
psíquica": É justamente essaconfusão que a redução fenomenológica,
de teorias enquanto pretensão de atingir a objetividade''. Realiza-se, oor meio da circunscrição da ímcznêncíaczutê7ztíca,vem desfazer, como
assim, uma redução de toda atividade do conhecimento àquilo que veremosa seguir
se manifesta de maneira puramente fenomenal, sem nenhum pres- Em que medida a explicitação da pura fenomenalidade do conhe
suposto acerca da transcendência dos temas estudados.A redução fe- cer, uma vez suspensatoda transcendência posta ingenuamente no
nomenológica se completa, dessa maneira, pela consideração da áerzo- conhecimento, permite resolver o problema transcendental das con-
mencz/idade que resiste à aplicação da epoché, fenomenalidade que se diçõesde relação entre subjetividade e objetividade? Por meio da re-
atesta de modo absolutamente evidente. dução fenomenológica, estabelece-se uma esfera de dados evidentes a
Husserl reconhece a inspiração cartesianada redução fenomenoló- partir dos quais clarificam-se o sentido e a validade da pretensão à ob-
gica: "a meditação cartesianafundamental fornece o domínio indubi- jetividadeem vigor no conhecimento natural. Essaesferaé aquela da
tável, aquele dos fenómenos, mais precisamente dos fenómenos do co. iminência autêntica" (ll.TC, S 36, 219), a qual é definida pela exclu
nhecimento" (ll.TC, S 34b, 199). Essa inspiração nos procedimentos sãode toda transcendência, quer dizer, de toda posição injustificada
cartesianos já vem pelo menos do curso Teoria gera/ do conbecímenfo, da objetividade. Trata-se de uma "esfera limitada" (ll.TC, S 40, 238)
de 1902-1903.Ali Husserl admira o pioneirismo de Descartesao ele- justamentepor conta dessaexclusão; porém, nela, "o conhecimento
var os problemas epistemológicos a tema central da filosofia e discute a absoluto é acessível e a crítica da razão é factível" (ibid.). Nesse caso,
distinção cartesiana entre ideias inatas e adequadas. Segundo Husserl, o conhecimento absoluto é aquele cujas fontes de evidência que legi-
a demarcação das ideias inatas pelos critérios de clareza e distinção já timam o direito de sua apreensão estão esclarecidas's. Os dados obti-
indica uma tentativade circunscrever um âmbito de pura evidência de dospor meio da redução fenomenológica estariam livres do fardo da
dados absolutamente certos, com base nos quais é possível compreen- transcendênciae permitiriam, se descritos adequadamente,adquirir
der como a transcendência ganha sentido':. Dessamaneira, Descartes a compreensão acerca das bases gerais sobre as quais se pode afirmar
antecipa o método de análise fenomenológica do conhecimento: "ele
parte de exemplos em que o conhecimento é dado no sentido mais 73. Husserl, 2001, 70
74. "A palavra 'inato' já indica um caráter psicogenético. E de fato essecaráter tam-
bémé visadocomo tal. As ideiasinatas sãouma posseoriginária da alma, nela impreg
71. "Mas mesmo se nós co]ocamos ja natureza e os homens existentes] em dúvida, nadapor Deus (. . .). O caráter originário psicológico e mesmo a impregnação divina não
uma coisa certa é que agora, enquanto eu duvido ou questiono, tais e tais percepções podematribuir às ideiasnenhuma dignidade epistemológica" (Husser1,2001, 70-71)
são, (. . .) que nelas tais e tais objetos me aparecem, e, do mesmo modo, que a ideia da 75. "E àsfontes originárias da clareza e da essencialidade que nós devemos voltar,
ciência da natureza' é, que a ciência da natureza enquanto fenómeno é e, se eu pre- aí onde a proposição, a verdade, a falsidade, a contradição e, assim, todos os conceitos
sentiHlcotais e tais teorias,que os fenómenos de teoriassão.Ciências quaisquer,teorias e todas as relações conceituais se exibem em uma doação apropriada, intuitiva, e nós
quaisquer, conhecimentos quaisquer são, não enquanto validades, lhas enquanto pre- podemosde modo geral intuir que essasituação se funda sobre a essência como uma
tensões de validade, enquanto fenómenos de validade" (ILTC, $ 34b, 198-199) situaçãodadae indissociáveldela. Se eu intuo isso, estou então em possede uma ver-
72. "Ê óbvio para nós: Descartes reflete aqui sobre a essência do conhecimento; dadeabsoluta, de uma verdade que se funda purametl te sobre si própria e que não pode
retorna ao sentido do conhecimento para se salvar da dúvida absoluta" (Husserl, 2001, seratingida por nenhuma relativização ao eu ou ao mundo nem a uma esfera qualquer
70) contingente de individualidade" (lj:;l'C, S 39, 235-236).

76 77
A cientificidade na fenomenologia de Husserl [)a fenomeno[ogia noética à fenomenologia trg.n?çendenta]

algo como objetivamente conhecido. Na esfera dos puros dados feno. conhecimentodeve encontrar um modo de tratar dessacaracterística,
mentis, crê Husserl, "pode-se então observar o que corresponde aos la que justamente pretende esclarecer em quais condições a posição le-
conceitos de conhecimento (...) tais como ser, verdade, etc., o que é pítirna do ser objetivo ocorre. No entanto, é preciso levar em conta esse
aqui sua significação evidente e absolutamente clara; por conseguinte, direcionamento intencional dos fitos subjetivos sem readmitir a trans-
o sentido dessesconceitos pode ser estabelecido, com a única reserva cendência na esfera dos fenómenos reduzidos. No exemplo a seguir,
de que é talvez um sentido estreito que se apresentará Husserloferece uma solução para essadificuldade
195).A reduçãofenomenológica constitui, assim,uma dimensão feno. Por exemplo, eu percebo essamesavermelha. Pela redução fenome-
penal metodicamente modificada, na qual se apreende com clareza nológica, o ser dessamesae aquele do carátervermelho que Ihe cabe
o sentido do conhecimento. Nessa dimensão de iminência autêntica, são suspensos.Mas não podemos com um fundamento evidente, em
seria possível clarificar todos os principais conceitos e operações pelos relação ao fenómeno e ao momento vermelho que Ihe pertence de
modo imanente, dizer: vermelho? Na aparição da mesa, nós encon-
quais o conhecimento ocorre.
tramos uma aparição do vermelho. Nós distinguimos o vede//zo do
Cabe aqui detalhar o que exatamente faz parte da iminência autên-
teca.Uma vez excluído o polo transcendente para o qual se dirigem as objeto que aparece, e aparece tal como ele é visado sobre o objeto
como Ihc pertencendo, do venci/zo que /zabífa d aPaüção,e nós
percepções, os Juízos e todos os fitos subjetivos com base nos quais a o consideramos exatamente tal como ele aí é dado com evidência
conhecimento é adquirido, restam justamente essesfitos como
jlLTC, S37a,222).
sõesde validade. Conforme esclarece Husserl, "o que pertence à esfera
dos fenómenos no sentido da fenomenologia é cada percepção anual, Por meio desseexemplo, o autor defende ser possíveldistinguir o
cada juízo anual; são eles mesmos enquanto eles são, mas nada do que objetoenquanto um ente posto como transcendente e o objeto como
neles é percebido, julgado, posto ou implicitamente coposto no sen apariçãofenomênica. Não se trata de nenhuma distinção ontológica;
tido transcendente" (ILTC, S 35e, 214). A esfera dos puros fenómenos o objeto transcendente é o objeto da aparição, porém, posto ou jul-
é, inicialmente, formada pelasoperaçõessubjetivas,cuja análise deve gadocomo existente em si de modo independente das visadassubje-
permitir que seelucide justamente como seusobjetos podem ser legiti- tivas.Ao objeto como aparição se acrescentam certas crenças ou teses
mamente alcançados. Entretanto, deve-senotar que não só me atossub- iudicativasque o põem como transcendente. Ao se suspendertais cren
jetivos a esfera fenomenológica é composta. Afinal, cabe à própria es- çasou teses (por meio da epocbé), obtém-se o objeto no seu puro ma-
sência dos aros subjetivos se dirigir para ou visar a certos polos objetivos; nifestar-sefenomenal, como aparição essencialmente correlata ao ato
os aros são, nesse sentido, ínte7zcíonaís. Na orientação natural, essa vi- subjetivo, e, assim tomado, o objeto pode ser investigado pela teoria do
conhecimento'6
sada é tomada como algo óbvio e jamais problematizado a fundo. A in-
vestigaçãotranscendental do conhecimento, por suavez, almela tornar Como se vê, a esferada pura evidência aberta pela redução feno
explícitas exatamente as condições pelas quais essareferência a algo menológica não se limita aos atou subjetivos, mas também envolve os
objetivo pode se realizar de modo justificado Dada essacorrelação en- objetos a que esses fitos se dirigem enquanto justamente se manifestam
tre os fitos subjetivos e seus polos objetivos, Husserl admite que "não é como correlatos desses fitos. Quer dizer que ao intitular tal esfera como
simplesmente a percepção ou um outro ato objetivante que pertence aquelada imanêncíaautêntica, como vimos há pouco, Husserl não se
à esfera da iminência, mas também, de certo modo, cada objeto, mal-
grado sua transcendência" (ILTC, S 38, 231) Se é uma característica 76. O objeto em seu puro aparecer fenomenal será tematizado como rzoemaem
Ideiasl
essencia]dos alas subjetivos dirigirem-se para objetos, então a teoria do

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A cientificidade na fenomenologiade Husser]
Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental.
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A fenomenologiaentre investigação eidética e transcendental


É pela descrição dos fenómenos manifestados na esfera da pura
evidênciaque se pretende resolver os problemas da possibilidade e
do sentido de qualquer conhecimento válido concebível. Trata-se de
partir dos dadosfenomenais absolutamente evidentese então acom-

tificado atribuem sentido à noção de transcendência. Dessa maneira,


esclarecem-sequais são as condições mais gerais de acesso a algo ob-
jetivopelasubjetividade.A meta da investigaçãoé aqui levarà evi-
dência fenomenológica todas as etapas de constituição de sentido (em
termo de correlações dos fitos e seus polos objetivos) que terminam no
reconhecimentode algo como efetivamente transcendente.Não pre-
tendo acompanhar em detalhe a efetuação desse prometoem ll.TC,
mastematizar dois tópicos a ele ligados, o segundo deles exigindo um
aperfeiçoamento do prometolançado nesse curso, que amadurecerá
emIdeias l
Em primeiro lugar, vale acentuar o sentido da tarefa de clarifica-
ção das condições transcendentais do conhecimento. Tal como já for-
mulado em Pro/egõmenos, o programa fenomenológico de explicitação
de pressupostos operantes na produção do saber atribui certo tipo de
/ündamerztaçãopara as disciplinas científicas, perspectiva que perma'
tece válida em ll.TC. Fundamentar não quer aqui dizer tornar as teo-
riascientíficas mais certas, resolvendo problemas internos à sua formu-
lação. Não é esse tipo de problema com os fundamentos das ciências
quecumpre à fenomenologia transcendental resolver. Daí que Husserl
censure a empreitada epistemológica cartesiana em Meditações me-
fczÉz'sacas.
Ali, Descartes propunha um método cético de suspensãoda
validade de todo conhecimento duvidoso. Mostrava-se, assim, que ne-
nhuma ciência disponível tinha um fundamento seguro, estável,e tra-
tava-sejustamente de estabelecer as basesabsolutamente certas sobre
asquais todo conhecimento deveria se erigir (Cf. ll.TC, S 33c). Para
Husserl,essatentativa de fornecer, pela reflexão filosófica, asbaseste(t-
ricas interiores às próprias ciências é uma confusão de domínios, con-
fusão desculpável no caso de Descartes, já que, para a sua época, as
tarefas filosófica e científico-matemática não estavam separadas, mas

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A cienti6jcidade na fenomenologia de Husserl Da fenomenologia noética à fenomenologia transcendental,
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inaceitável ao menos desde a filosofia kantiana. "A crítica do conheci.
subjetiva,de maneira a esclarecerseu sentido e atestara legitimidade
mento não quer teorizar", afirma Husserl; e mais, "o que ela quer não de alcançar o polo objetivo por eles visados'
se situa nos caminhos dos matemáticos ou das ciências da natureza Quanto ao segundo ponto, trata-se de algo mais complexo, refe-
nem tampouco da psicologia. Ela quer 'explicitar', ela não quer nada rente ao papel da investigação eidética no desenvolvimento da feno-
deduzir, nada reenviar a leis como fundamentos explicativos, mas sim. menologia. Husserl nota que não se trata exatamente de descrever os
plesmente compreender o que se situa no sentido do conhecimento e fenómenosparticulares tais como experimentados por um ou outro su-
da objetividade" (ll.TC, S 33c, 190). A reflexão epistemológica não en- jeito em questão. A singularidade dos fenómenos se presta bem a uma
globa, dessamaneira, nenhum método para produzir os fundamentos apreensãointuitiva, mas não a uma elaboração conceptual, que deve
internos ainda faltantes dasciências. As ciências não setornam mais se- então se voltar para os conteúdos comuns aos dados singulares, de ma-
guraspor meio dos resultadosda crítica epistemológica,as teoriaspro- neira a visar não a essespróprios dados, mas suas características essen-
visórias não deixarão de ser provisórias; os métodos indutivos não dei- ciais,seusgêneros e modos de ser;'. Para Husserl, é possível apreen-
xarão de envolver diferentes graus de incerteza. Em suma, a validade der as essênciasdos fitos subjetivos e de seus polos objetivos correlatos
dos conhecimentos científicos permanecerá tal como estabelecida pe- de modo evidente e, assim, incluí-las na esfera da iminência autên-
los próprios parâmeb-os metodológicos vigentes nas disciplinas; a refle- tica em que a descrição fenomenológica deve se desenvolver. As vi-
xão crítica sobreo conhecimento em nada interfere nos fundamentos vênciassingulares são fluidas, logo desaparecem, mas as essênciascor-
interiores de cada uma delas. respondentesnão; elas são entidades ideais passíveisde análise quanto
Deve-se reconhecer, então, ao lado dessafundamentação interna àssuascaracterísticas idênticas. Os dados intuitivos singulares servem
às ciências, a fundamentação especificamente filosófica7ç. Essaúltima somentede exemplospara que, por ideação,se atinja a essênciada
não almeja sanarfalhas no interior das teorias científicas ou tornar tais experiência em questão, a qual então deve ser o tema das descrições
teorias de algum modo mais certas. Trata-se somente de esclarecer a fenomenológicasaz
possibilidade e o sentido do conhecimento, temas que são, sem dú- Husserl esclarece que a descrição das essências apreendidas em
vida, pressupostospelas investigações científicas, mas que não perten- evidência absoluta pode por si só se desenvolver em uma investigação
cem, assim como Husserl já reconhecia em relação aos atos noéticos, rigorosa,independentemente do problema da possibilidade e do sen-
ao conteúdo explícito das teorias científicas. Cabe à investigação filosó- tido do conhecimento83. Desse ponto de vista, "a $enomeno/ogíacon-
fica elucidar "reflexivamente asfontes subjetivase as questõesúltimas
sobreo sentido e a possibilidade de uma objetividade que se constrói 80. "fada a investigação se move assim na esfera da subjetividade, na esfera da in-
tuiçãoque torna evidente, aquelada consciência intuitiva. Os conceitosmatemáticos e
subjetivamente" (ILTC, S 3 lc, 163). Com essa elucidação, as ciências ontológicos, nós os clariHlcamospor um retorno à subjetividade, nós perguntamos o que
não vão se tornar mais ou menos certas; mas ao menos "elas se tornam elesvisampropriamente"(ll.TC, S 32b, 173)
81. "0 fenómeno é uma individualidade absoluta, e essaindividualidade é deter-
de um lado a outro compreensíveis" (ibid.), no que tange a seu sentido
minávelconceitualmente segundo$eu conteúdo, que a constitui, mas,enquanto indivi-
e sua legitimidade. O método de tal elucidação é clarificação fenome- dualidade, ela só pode ser apreendida na intuição" (ll.TC, $ 37a, 222)
nológica dos conceitos básicos teóricos, isto é, sua recondução à fonte 82. "Nós não deveríamos nos interessar pelos fenómenos anualmente dados en-
quanto isto-aqui jindividualidades], mas por aquilo que a abstração e a generalização
puramente intuitivas e realizadas de modo imanente sobre eles trazem à luz como vi-
79. Husserl costuma utilizar Begründunge?z
para os métodos de fundação ou ius- sõesgerais" (ILTC, S 37c, 228)
ti6lcaçãointernos à ciência e Fundamentíe rzgpara o trabalho de fundamentação ex- 83. "Nós fomos até aqui guiados por um interesse pertencente à teoria do conhe-
clusivamente filosófico. cimento, o qual exigia (. . .) a eliminação de todas as objetivações naturais, de todos os

82 83
r
l A cienti]icidade
ientificidade na
na fenomenologia
fenomenologiade
de Husser]
Husserl
' Da fenomenologia
fenomenologianoética
poética à fenomerlologia
fenomenologiatranscendelltal
transcendental . .
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,./'j'} .ç'',

serva um sentido ;ndependentemente da teoria do cora/zecímerzto" (ILTC titutiva da fenomenologia. Sobre esse ponto, comenta Husserl: "até
S 36, 217). Em um curso ministrado em 1905, Husserl já comentava onde se estende o título de fenomenologia? Manifestamente tão longe
algo semelhante a esseponto: "a fenomenologia pode ser considerada
quantoseestendea possibilidade de uma investigação puramente ima-
sem qualquer referência a problemas epistemológicos. Ela é então teo- nente,excluindo toda transcendência. Nós podemos dizer; ela é a ciên-
ria eidética pura, ciência dos gêneros e espécies (. ..) de conteúdos"84. cia universal da consciência pura" (ll.TC, S 36, 2 19)
Seta preocupaçõescrítico-transcendentais,a fenomenologia reduz-se De início, em Investigações /ógícas, Husserl apresentava a refle-
a uma oncologia,no sentido de uma descriçãodos componentes eidé- xãofenomenológica como um complemento filosófico à doutrina ge-
ticos que compõem um determinado domínio, no caso,o dos fitos da ral dasciências. Já em ll.TC, Husserl concebe a fenomenologia como
consciência e seus polos objetivos correlatos. urnainvestigaçãocíerzfz'#ca
autónoma, que não se limita a clarificar a
No entanto,no apêndiceB IV de ILTC, Husserlrecusaa ideiade possibilidadedessadoutrina geral da ciência, mas que busca esclare-
que a fenomenologia, em seusentido P/ergo,seja meramente uma on- cer ascaracterísticasessenciaisque condicionam a realização de qual-
tologia8s. E o que impede a identificação da fenomenologia a uma dou. querconhecimento ou, em termos gerais, de qualquer posição de uma
trina ontológica do domínio dos puros fenómenos da consciência é exa- objetividade,seja em âmbito cognitivo, afetivo ou prático. Mas qual o
tamente a questão transcendental acerca da possibilidade e do sentida sentidodessacientificidade atribuída à fenomenologia?Vimos que as
do conhecimento. Issofica claro, por exemplo, em uma nota do apên- ciênciastêm a sua validade suspensapela epocbé, uma vez que elas su
dice B 111de ILTC. Ali, Husserl questiona se a descrição fenomenoló. põem dadas ingenuamente as condições de acesso a seus respectivos
Bica da natureza reduzida (sem a pressuposição da transcendência) não domíniosobjetivos. De que maneira a investigaçãofenomenológica
seria um mero estudoontológico que põe seudomínio como válido ob- harmonizaa referência sistemática a um domínio de investigação(unia
jetivamente. Sua resposta:"não, pois em fenomenologia trata-seda re- marca da cientificidade), no caso, um domínio eidético, e a suspensão
lação entre 'natureza em geral' e conhecimento, e consciência; e vice da posiçãoda transcendência em relação a essedomínio (uma marca
versa" (ll.TC, 410). Aqui, a investigação crítica do conhecimento é um da tarefa crítica)? Para tanto, será preciso coordenar de modo preciso
fator determinante para que a fenomenologia exiba sua especificidade. doisaspectosda fenomenologiajá distinguidos em ILTC, conforme
Por essaperspectiva,a fenomenologia não pode ser totalmente inde- expostologo acima: o caráter ontológico-eidético e o carátertranscen-
pendente da questãocrítica pela possibilidade e pelo sentido do conhe- dental. Será justamente uma reflexão aprofundada acerca da imbrica-
cimento; do contrário, ela assumiria ingenuamente a posição transcen- çãode ambos que permitirá a Husserl expor de forma madura, no livro
dente do domínio eidético a ser descrito. Assim, a circunscrição de um Ideias1,a fenomenologia como um tipo muito especial de ciência.
âmbito de pura evidência pela exclusão da transcendência parece cons-

luízos empíricos, portanto, a redução fenomenológica. Mas uma vez obtido o solo feno-
menológico, vemos que sobre tudo o que pode ser explorado aqui um interesse teórico
apropriado pode se orientar, um interesse que não quer adquirir e elaborar os conhe-
cimentos fenomenológicos simplesmente sob os serviçosda crítica do conhecimento
(ILTC, $ 36,217).
84. Husserl, 2002. 46
85. "Os axiomas da geometria não pertencem à fenomenologia porque ela não é
uma teoria eidética dasformas, dos objetos espaciais.Em geral, ela não é antologia
(ILTC,422)

84 85
./ ,i'. À,i

CAPITULOll

A fenomenologia como ciência


eidética e transcendental

Apresentação
No capítulo anterior, expus a construçãodo prometoda fenomeno-
logiatranscendental como uma ampla investigação sobre ascondições
geraisde estabelecimento de correlações entre a subjetividade e aquilo
quepor e]a é visado como objetivo. Essainvestigaçãonão se limita a
uma teoria do conhecimento, }á que sua meta passaa serproblemati-
zarnosmais diversosâmbitos(teórico, prático, axiológico) as condições
geraisdasrelaçõesentre subjetividade e objetividade. Essaproblema-
tizaçãoé tomada, ao menos desde ILTC, como uma investigação cíen-
ü'Hcada consciência pura', o que certamente não é óbvio. Afinal de
contas,vimos que alguns anos antes, em Pro/egõmenos,Husserl distin-
guia a investigação fenomen ológica da científica. As dificuldades e par-
ticularidadesda atribuição do caráter científico à fenomenologia não
sãoexplicitamente discutidas em ll.TC, mas paulatinamente se tor-

1. Cf. ll-TC, parte 11,cap.VI Fenomenologia como ciência da consciência


pura

87
A cientificidade na fenomenologiade Husserl A fenomenologia coma ciência eidética e transcendental
} ,/)'}lP;.
naram temas centrais da reflexão husserliana, uma vez
que implicam m,rcante da filosofia (tal como ainda era o caso em Pro/egõmeizos),
e
qualificaçõesdecisivasparao prometo
fenomenológico. como uma Éa//za,uma limitação histórica a ser superada. Ora, em
Em um artigo publicado em 191 1, A /i/oso/ía como cíêzzcía 1906-1907),Husserl expunha a fenomenologia como científica,
rosa, Husserl desenvolve de modo explícito o tema da cientificidadeda
sugerindo assim,que ela atingiu a maturidade que, segundo o artigo
filosofia. Ali, ele caracterizao ideal de conhecimento fundamentado
de IÇ11, a filosofia ainda não alcançara em nenhum momento da sua
em princípios absolutamente evidentescomo sendo um desiderato da
história E o que garante a cientificidade da reflexão filosófica? De que
filosofia nos melhores momentos de sua histórias. Husserl insiste eu maneira ela realiza o ideal histórico de tornar-se ciências rigorosa' Não
afirmar que isso não foi satisfatoriamente obtido, de maneira que a file..
éde surpreender que a exposição da filosofia científica em 19 11 retome
sofranão teria ainda atingido a maturidade científica almejada desdeos
asprincipais características metodológicas da fenomenologia expostas
seusprimórdios. Não é o casode reconhecer que a filosofia é uma ciên. ein 1906-1907. Em A /i/oso/ia como ciência Hgorosa, Husserl critica a
cia incompleta; a filosofia nem mesmo começou a ser ciência afirma pretensão naturalista de esclarecer os fundamentos subjetivos do co-
de modo severoo autor;. Obviamente não se trata de negar, por sua .hecimento por meio da psicologia empírica. Essadisciplina é incapaz
vez, que as ciências já estabelecidascontêm imperfeições, como já era de realizaruma análise crítica verdadeiramente radical, que exigiria
reconhecido ao menos desde Pro/egõmerzos.No entanto apesardo es. clarificar quais são as condições gerais das relações entre subjetividade
lado de impeúeição das ciências anuaisno que se refere à clareza en e objetividade sem supor já preenchidas tais condições, isto é, sem su-
relação aos pressupostos teóricos que condicionam o seu próprio de- poi um domínio objetivo dado como ponto de partida da investigação
senvolvimento, há nas ciências um conteúdo teórico estabelecido e E a psicologia empírica supõe dado o mundo natural e assume inge-
partilhado intersubjetivamente. Esse conteúdo tira o espaçodas ODl- nuamente a interpretação pré-científica segundo a qual a consciencia
piões injustificadas e oferece um solo comum sobre o qual as discipli. nãoé senãouma parte do mundo'. Por suavez, a fenomenologia pro
nas avançam'. Por sua vez, no campo da filosofia, tudo parece sempre põeuma crítica radical do conhecimento ao suspender a aceitação in-
estar em discussão;não há conteúdos basilares partilhados por todos os gênuado mundo natural como um domínio existentedo qual a cons-
que exercema disciplina filosófica. Cada escolaou mesmo cada autor ciênciaseriauma mera parte. O rigor fenomenológicoexclui da sua
apresenta tesespróprias, muitas vezes justificadas por critérios que não análisetodo dado ingênuo no qual vigora acriticamente a objetividade
são afeitos pelos demaiss. Dessa forma, um dos pontos centrais expos- transcendente,cuja possibilidade trata-se justamente de esclarecer:
tos por Husserl no início de seu artigo é justamente a ausê7zcíade cíeit- Deve-separtir, assim,dospuros fenómenos, livres de todo pressuposto
fí#cídade da /i/oso/ia. Porém isso não mais é tratado como um aspecto nãoclarificado acerca da objetividade investigada. E essesfenómenos
devemser descritos em suas características eidéticas, as quais devem ser
atestadasintuitivamente e não como meros conceitos vagos8
2. "A filosofia(. . .) representa a aspiração inalienável da humanidade ao conheci-
mentopuroe absoluto"
(PSW.4)
3. "Eu não quero dizer que a filosoHla é uma ciência inacabada; eu digo pura e sim- 6. "Toda ciência da natureza é ingênua quanto ao seu ponto de partida. A natureza,
plesmente que ela nã.oé ciência,.que. ela ainda não começou a ser ciência" (PSW, 4). que se almeja investigar, está simplesmente aí" (PSW, 13)
4. Nas ciênciasbem estabelecidas
"existe um conteúdo a ser ensinado,que não 7. Anuncia-se, assim, "uma crítica que põe em questãoao mesmo tempo a rota
p'J' de.crescer e de se rami6icar. ( . .) Aqui não há, de modo geral, espaço para 'opi- lidadeda experiência em geral e o pensamento em vigor nas ciências da experiência
niões', 'intuições' e 'pontosdevista'privados"(PSW,4-5). ' ' ' '
lpsw, 14)
5. "Não é que a filosofia disporia de um corpo doutrinal inacabado e lagunar: ela 8. "Vê-se que a investigaçãodeve ser orientada para um conhecimento científico
simplesmente não dispõe de nenhum sistema.Tudo nela estásujeito à controvérsia eidéticoda consciência,para aquilo que a consciência em todas as suasdiferentes for-
(PSW.5). '
mações
[Gesfa/hnge7z],
conformea suaessência,
'é"' (PSW,15-16).

88 89
A cientificidade na fenomenologia de Husser] A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

Não vou explorar muito mais o texto A /í/osoPa como :iência h.


explicar o que são essênciase como se pode conhecê-las. Essassão lus-
morosa neste capítulos. Interessa, por ora, apenas acentuar que nesse as tarefas cumpridas pela primeira seção de Ideias 1, intitulada
artigo, de 191 1, Husser] apresenta as características lamente
metodológicas da "Essência e conhecimento de essência". E no primeiro capítulo dessa
fenomenologia tal como introduzida em ILTC como marcas cien.
seçãoque se esclarece como as ciências eidéticas são possíveis e de que
tificidade P/osó/íca:a reflexão crítica que suspendeos pressupostos vi.
modo elas exercem uma função fundante em relação àsdisciplinas em-
gentesna orientação natural e a análise dos dados evidentes em seus
aspectos eidéticos. Essas duas características serão píricas Veremos que, quanto a esseponto, Husserl retomará preocupa-
expostas de modo
çõesteóricas lançadas em Pro/egõmenos. Nessa obra, como vimos, tra-
detalhado na obra Ideias para uwcz áenome7zo/ogla pura e uma filosofia
tava-sede formular o prometoda doutrina da ciência, isto é, da investi-
$enomeno/ógíca l (ou simplesmente /delas l), publicadaem 1913.Vou das estruturas teóricas mais gerais que atribuem cientificidade a
cação
reconstruir alguns momentos argumentativoscruciais dessetexto para t.da empreitadaque merece o título de "científica". Esseprometode
a compreensãoda cientificidade atribuída por Husserl à fenomenolo. investigaras estruturas portadoras da cientificidade é reelaborado de
gia, expondo, dessamaneira, ao menos a figura geral que o projetofe. maneirabastantesignificativano primeiro capítulo de Ideias1,princi-
nomenológico assumenesseperíodo.
palmente nos parágrafos 7-10, os quais comentarei oportunamente.

A) A fenomenologia como ciência eidética


Pólos e essências
Posição do problema
Passemosa acompanhar como Husserl introduz a distinção en-
Na introdução de ideias J, Husser]expõe as característicascientífi. tre fato e essênciapara então chegar à distinção entre ciências empí-
cas gerais da fenomenologia ao compara-la com a psicologia. Essaúl. ricase ciências eidéticas. Essasdistinções já estavam em operação em
uma é uma ciência de gaios,os quais sãotomados como eventosreais ProZegõnzenos
à /ógícapura, embora lá não tenham recebidouma expo-
do mundo empírico. Por sua vez, a fenomenologia estudará os fenó- siçãotão detalhada quanto aquela contida no início de Ideias 1. E vale
menos em termos de essêrzcíae como inca/idades (Cf. Id 1,6). Assim. notar que, mais do que simplesmente operar com essasdistinções, nesse
por um lado, os temas fenomenológicos deverão ser abordados em seus livro Husserl as construirá paulatinamente, oferecendo, como veremos,
aspectos universais (eidéticos) e, por outro, deverão ser purificados de argumentosconvincentes para sua aceitação. O seu ponto de partida é
todo caráter real, justamente para que possamser apreendidos como ir- uma descrição sobre o modo como os conhecimentos empíricos são ha
realidades. São então formuladas de maneira explícita as duas princi- bitualmente obtidos (Cf. Idl, S 1). Trata-se, assim, de partir de certos
pais qualificações da investigação fenomenológica lá em operação ao procedimentosamplamente reconhecidos,de maneira a obter premis-
menos desde 1906-1907: ciência eídétíca e transce7zdenfa/,as quais re- sasbastante aceitáveis para a argumentação que se sucederá. Segundo
ceberão uma elucidação detalhada no correr do livro
o autor, o conhecimento empírico ou natural tem como "horizonte to-
De in.ócio,pretendo analisar o caráter eidético da fenomenologia. tal de investigações possíveis" (Idl, p. 10) o mundo, entendido como to-
Segundo Husser], essetema exige especificaçõesprévias à própria in- talidade do ser rea/. O modo intuitivo originário que legitima as teses de
trodução da disciplina fenomenológica. Trata-se da necessidade de basedo conhecimento natural é a experiênciasensível,a percepção''.

9. Voltarei a tratar desseartigo no último capítulo, ao abordar o problema da histó.


[O. Husser] já supõeaqui em vigor um princípio geralque seráformu]ado somente
ria para o prometofenomenológico
no parágrafo 24, a saber, que cada domínio temático prescreve por sua própria estrutura

90
91
A cientificidade na fenomenologiade Husser]
A fenomenologiacomo ciência eidética e transcendental
Assim, em relação ao mundo ./

as teorias que explicam os seus ev. 2 -- O reconhecimento dessacontingência não é contingente,


obtidos porexperiênciasensíve] massim admitido como uma característica geral de todos os
fatos
Í)
objetos que podem ser
domínio da natureza material 3 - A admissãodessanecessidadeestrutural dos fatos não se dá
seres
animados).
O primeiro como um fato oá que não se trata aqui de algo contingente).
ficas, e o segundo, 4 -- A necessidade estrutural em questão aponta para caracte-
plinas específicas rísticas que são essenciais aos fatos (por exemplo, a sua
(cf. Idl, l l). contingência)
Em suma,asciências 5 -- Conclusão: deve-seentão reconhecer que o domínio dos fa-
mundanose se baseiam. tos só se estabelececomo tal em correlação com o domínio
da necessidadeeidética.
acercade tais fenómenos,na
síve], por sua vez, oferece Husserltenta mostrar nesseargumento que o próprio entendi-
ridade sensível, ou seja, bafos. Dessa mento do que são fatos extrapola o âmbito das características factuais
crição do conhecimento paraum domínio de necessidadeeidética. Esseúltimo domínio é en-
rágrafode/delas1,ao tãodesveladocomo aquele em que se reconhecem atributos gerais ne-
almejada: osÉafos,ou cessários,
asessências,sem asquais nem mesmo seria possíveldiscrimi-
lizados no âmbito nar os diferentes tipos de fatos. final, não só a contingência aparecerá
partir da própria comocaracterísticaeidética dos fatos. Husserl defende que cada fato
dará ao segundo termo da comporta vários atributos passíveis de apreensão geral, os quais justa-
Aqui o caminho da mentepermitem reconhecê-lo como fato de tal espéciee não de outra
mento das teses do autor. Considerem,por exemplo, um som qualquer. Por mais contingente
eidético como ponto de queum som seja (quer dizer, por mais que ocorra em determinadas cir-
pretende defender cunstâncias que poderiam ser outras), deve haver certas características
tégia é mostrar que na necessárias
para que simplesmente seja reconhecido como som e não
implicada a essência. comocheiro, por exemplo. Um som particular porta, assim,os atribu-
proainteligibilidade factual. A tosda espécie "som em geral", a qual, por sua vez, se subsume à espécie
nosegundo parágrafo deldeíasl maisgenérica "dado sensível", e assim por diante (Cf. Idl, 13-14y:
l -- Os fatos (tais como admitidos
são contingentes, ou seja, têm
çoes espaçotemporais que poderiam ser 11. E importante acentuar, seguindo asformulações de D. Pradelle, que "as essên-
ciasnão são representações comuns produzidas pela espontaneidade abstrativa do es-
pírito, mas objetos que devem ser apreerzdídos pela intuição: seu conteúdo quiditivo e
suaordem de especificação, longe de serem os produtos de um método de abstração, se
impõem de fora ao ato de intuição" (Pradelle, 2000, 101). As essênciassãotratadaspor
um modo de intull2.o privilegiado para legitimar o conhecimento que dele pode seral- Husserlcomo um tipo específico de objeto, ao qual corresponde um modo particular
deintuição, como veremosa seguir
92
93
A cientificidade na fenomenologiade Husserl A fenomenologia como ciência eidética e transcendental
l ,r')'}
lp;.
O que se propõe aqui é que as características eidéticas se
em gêneros cada vez mais amplos, tema desenvolvido no
de Ideias 1, intitulado "Gênero e espécie". Ali,
essência (...) se insere numa escala eidética, numa escala
lidade e de especialidade" (Idl, 31). Nessa escala, c,da vez
cende,chega-se
a um gêneromaisabrangente,e o limite
aquele do gêzzerosupremo, acima do qual não há mais
E cada vez que se desce nessa escala se passa para as ,preendidocom evidência. E, após esseexercício, torna-se mais fácil
investigartal intuição sem meramente impâ-la aosleitores: a intuição
mais determinadas e particularizadas; aqui, o limite
deessêncianão é senão a apreensão objetivante evidente dos atributos
das "singularidades eidéticas", abaixo das quais não há mais
eidéticosdosindivíduos''
eidéticas, mas somente indivíduos factuais::. Husserl afirma
Nesteponto é importante notar que Husserl supõe, por um lado,
sências mais gerais estão contidas nas mais particulares, no umanoçãoampla de objeto, que não se limita àquilo que é individual
estarem implicadas na própria compreensão daquele domínio de masabrange tudo o que pode ser tema de predicações verdadeiras. Nesse
tos em questão (Cf. Idl, 3 1-32). Descarte, os fatos, ou as
sentido amplo, as essências, isto é, os atributos gerais e necessários que
individuais", implicam seupróprio modo de ser toda sesingularizam em indivíduos, são objetos. Por outro lado, Husserl es-
de essências por meio da qual eles são apreensíveis como caso tende a noção de írzMíção, a qual não deve ser identificada à experiên-
de um tipo e não de outro tipo qualquer. Assim, em ciasensível.Intuição deve ser entendida como o modo de apreensão
fato, há não só uma essência isolada, mas todo um sistema
privilegiadode um polo objetivo em questão,modo no qual essepolo se
ordenado hierarquicamente e imprescindível para a doa "em carne e osso". A intuição oferece acesso evidente àquilo que é
quilo que talfato é.
visado.Ora, essetipo de vivência se cumpre tanto em relaçãoa objetos
Após marcar a oposição entre fato e essênciai3,Husserl defende ha. sensíveis(o que exige a intuição sensível) quanto em relação às essên-
ver, no parágrafo 3 de Ideias 1, um modo específico de apreensãoin. cias.Por conseguinte, desidentificam-se aqui doação originária, atesta-
tuitiva das essências, assim como há um modo específico de apreen- çãoimediata de algum polo objetivo, e percepção sensível. O reconhe-
são dos fatos (nesse último caso, modo que está na base do conheci- cimento da essência como objeto nos deve levar a um conceito mais
mento natural, a saber, a experiência sensível). Trata-se da intuição de vastode intuição, que atesta com evidência essetipo de ser. Conforme já
essênciasou ídeação. Longe de impor de forma dogmática a existência sugeridono primeiro parágrafo de Ideias 1, cada domínio objetivo pres-
de uma tal intuição, o autor esperaque os leitores já a tenham exer- creve,dadasassuascaracterísticasesbuturais, um modo privilegiado de
acesso.No casodas coisasmateriais, por exemplo, é a percepção sensível
12. Vale notar que a singularidade eidética é a "diferença última" (Idl, S 13, 33) que as desvela com evidência, mas não é assim para os atributos gerais
dos atributos genéricos, tal como se manifesta em casosindividuais concretos. Deste
necessários.
Entretanto, sabemosque tais atributos são normalmente
modo, .as singularidades eidéticas marcam as propriedades do próprio indivíduo, tais
como diretamente instanciadasnele, e não sãoainda explicitaçõesgeraisdessesatribu-
tos. Cabe justamente passaraos níveis superiores na escala eidética para que a attálise 14. Conforme sugere Mohanty: "as essências são dadas no pensamento, este sendo
eidética implique então um,caráter geral. De início, enquanto explicitação de slngula. oúnico modo pelo qual elas sãodadas. Husserl está então tratando o pensamento coma
ridades eidéticas, a orla/íse das essênciasrzão é ainda gerzera/ízanfe. um modo de desvelamento, e não como um modo de construção ou análise (. . .). Nesse
13. Para análises bem mais detalhadas acerca das relações entre fatos e essências. sentido,o pensamentoé intuitivo, masnão em qualqueroutro sentido místico" (Mo-
cf. p. ex., Snlith, 2007, cap. 4; Strõker, 1993, 70-83; Brainard, 2002, parte 2. hanty, 1959, 222).

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A cientificidade na Fenomenologia de Husser] A fenomenologia como ciência eidética e transcendental
.} f;)'} l},;A
intuídos (Husserl conduziu os leitores a realizar a intuição eidética
estudocientífico sobre as essências,de um estudo cuja intuição origi-
contingência dos fatos no parágrafo 2, característica sem a qual a
nária]egitimadora é a ideação, e não a percepção sensível.
noção de fato perde seu sentido). Deve-sereconhecer, desde
' Aqui vale a pena retornar ao parágrafo 3 de Ideias l para acentuar
há um modo de intuição específico para asessências,modo
um tÓPicode grande repercussão para a investigação das essências, a
nomeado "ideação" ou "intuição de essência".Assim, no
gumentativo de Ideiasl, lotagede assumirtal intuição como um
posto, ela é primeiro exercida e só depois delimitada.
;s;;:,';==:
h:=T ;:=ü=;=:==J==:::=:
dosa ela. Husserladmite que o procedimento para a apreensãointui-
Ao propor a intuição de essências,Husserl antecipa já no
tiva eidética supõe partir de vários indivíduos nos quais as essências
parágrafo de Ideias l a crítica ao empirismo radical, elaborada no
emquestãoestariam exemplificadas, para que, ao percorrer cognitiva-
gundo capítulo do livro (Cf. Idl, SS 19-20).Essetipo de empirismo l mentea série de indivíduos em questão, os aspectos invariantes estrutu-
põe justamente a identificação entre intuição
raissedeixem atestar de modo evidente (Cf. Idl, 15-16). Trata-se, nesse
do conhecimento e experiênciasensível,com as
caso,de uma consequência da correlação entre fato e essência estabe-
todo conhecimento legítimo é derivado da lecida no parágrafo 2. Todo fato, em relação aos seus atributos gerais,
que as ciências fundentes de todo saber são, por isso mesmo, as
implicauma hierarquia de essências.Assim, a intuição sensívelde in-
das empíricas.Ao reconhecer que as essênciasse doam como dividualidadescomporta a possibilidade de efetuar a intuição eidética
e que a essesobjetos certos juízos verdadeiros correspondem, De modo correspondente,toda intuição eidétíca abre a possibilidade
recusa a identificação entre intuição doadora originária e de uma consciência de exemplos singulares da essência em questão
sensível.Sem dúvida, o autor afirma que a intuição é a Contudo,nessasrelaçõesentre consciênciade fato e consciênciade
de legitimidade de todas as afirmações racionais" (Idl, S 19, 44), mas
essência,
não há nenhuma necessidadede pâr algo individual como
/zemsempred írzfuição é senshe/, uma vez que há objetos, tais como as
existente.
Afinal, por um lado, as essênciasnão são como fatos,não são
essências,que prescrevem outros modos de atestaçãoevidente que não
entesreais submetidos a determinações contingentes's; por outro lado,
a doação perceptiva.
dasessências
não cabederivar a posiçãode nenhum fato real a elas
E exatamenteessaconclusãoque se transformano "princípio de
ligado. Obviamente é possível passar de fatos reais do mundo empí-
todos os princípios", formulado no parágrafo24: "toda ntuição doa-
rico às essências portadoras dos atributos necessários desses fatos; nesse
dou originária é uma fonte de legitimação do wninnnniinl lnlB
caso,há exemplos reais ligados às essências.No entanto essaligação
o que nosé oferecidooriginariamentena intuição (...) deveser sim- não é necessáHa,pois é perfeitamente possível intuir essências mesmo
plesmente tomado tal como se dá, mas também nos limites dentro dos
partindo de eventos ou entes que não existem como fatos reais empíri-
quais se dá" (Idl, 52). Reconhece-seaqui que cada domínio de objetos: cos,tal como Husserl comenta no parágrafo 4 de ideias l
requer um modo específicode legitimação última para a produção do
Essa será, na verdade, a base do método de ideação apresentada
conhecimento. Essemodo é a intuição, a doação ev dente basilar do
nessaobra. Husserl sugere que se imaginem exemplos factuais para
tema em questão. Importa notar que não há um único modo de intui-
então buscar os aspectos eidéticos instanciados nessas imaginações.
ção legitimadora, mas tipos diferentes, conÃomzeas estruturas do do-
mínio objetivo em vista. A intuição sensívelé apenasum modo entre
15. Por isso Husserl nega veementemente ter se filiado ao realismo metafísico no
outros, e não esgotao domínio de objetividades passíveisde ser estu- que concerne às essências. Afinal, conforme exposto no parágrafo 22, as essências não
dadas racionalmente. Garante-se,dessemodo, a possibilidade de um sãoentes reais; elas têm outro modo de ser, o das idealidades atemporais

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A cientificidade na fenomenologiade Husser] A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

intuídos (Husserl conduziu os leitores a realizar a intuição eidéticada


estudocientífico sobre as essências,de um estudo cuja intuição origi-
contingência dos fatos no parágrafo 2, característica sem a
quala própria nárialegitimadora é a ideação, e não a percepção sensível.
noção de fato perde seu sentido). Deve-se reconhece. desdeentão
que Aqui vale a pena retornar ao parágrafo 3 de Ideias l para acentuar
há um modo de intuição específico para as essências, modo que é então
um tÓPico de grande repercussão para a investigação das essências, a
nomeado "ideação" ou "intuição de essência". Assim. no movimento ar.
Vber,que a posição da essênciacomo objeto ou tema ludicativo não
gumentativo de Idem(zs l, longe de assumir tal ntuição como um pressa.
implica a posição da existência de indivíduos contingentes subsumi-
posto, ela é primeiro exercida e só depois delimitada
dosa ela. Husserladmite que o procedimento para a apreensãointui-
Ao propor a intuição de essências,Husserl antecipa já no terceiro
tiva eidética supõe partir de vários indivíduos nos quais as essências
parágrafo de Ideias l a crítica ao empirismo radical, elaborada no se.
em questãoestariam exemplificadas, para que, ao percorrer cognitiva-
fundo capítulo do ]ivro (Cf. ]d], SS ]9-20). Esse tipo de empirismo prch
mente a série de indivíduos em questão, os aspectos invariantes estrutu-
põe justamente a identificação entre intuição originária legitimados;
raisse deixem atestar de modo evidente (Cf. Idl, 15-16). Trata-se, nesse
do conhecimento e experiência sensível, com as
consequênciasde que caso,de uma consequência da correlação entre fato e essência estabe-
todo conhecimento legítimo é derivado da experiência sensível, e de
lecida no parágrafo .2. Todo fato, em relação aos seus atributos gerais,
que as ciências fundantes de todo saber são, por isso mesmo. as ciên.
implica uma hierarquia de essências.Assim, a intuição sensívelde in-
clãs empíricas. Ao reconhecer que as essênciasse doam como objetos
dividualidadescomporta a possibilidade de efetuar a intuição eidética
e que a essesobjetos certos Juízosverdadeiroscorrespondem, Husserl
De modo correspondente,toda intuição eidética abre a possibilidade
recusaa identificação entre intuição doadora originária e experiência
de uma consciência de exemplos singulares da essência em questão
sensível. Sem dúvida, o autor afirma que a intuição é a "fonte última
Contudo, nessasrelações entre consciência de fato e consciência de
de legitimidade de todas as afirmaçõesracionais" (Idl, S19.44) essência,
não há neTlhumanecessidadede pâr algo individual como
nem semprea ílzfuÍção é sensúe/, uma vez que há objetos, tais como as
exÍsterzte.
final, por um lado, as essênciasnão são como fatos, não são
essências,que prescrevem outros modos de atestaçãoevidente que não entesreais submetidos a determinações contingentes:s; por outro lado,
a doação perceptiva
dasessênciasnão cabe derivar a posição de nenhum fato real a elas
E exatamente essaconclusão que se transforma no "princípio de
ligado. Obviamente é possível passar de fatos reais do mundo empí-
todos os princípios", formulado no parágrafo24: "toda intuição doa-
rico às essências portadoras dos atributos necessários desses fatos; nesse
dora originária é uma fonte de legitimação do conhecimento,tudo
caso,há exemplos reais ligados às essências. No entanto essaligação
o que nos é oferecido originariamente na intuição (...) deve ser sim-
rzãoé necessária, pois é perfeitamente possível intuir essências mesmo
plesmentetomado tal como se dá, mastambém nos limites dentro dos
partindo de eventos ou entes que não existem como fatos reais empíri-
quais se dá" (Idl, 52). Reconhece-se aqui que cada domínio de objetos
cos,tal como Husserl comenta no parágrafo 4 de Ideias l
requer um modo específico de legitimação última para a produção do
Essaserá, na verdade, a base do método de ideação apresentada
conhecimento. Essemodo é a intuição, a doação evidente basilar do
nessaobra. Husserl sugere que se ímagírzemexemplos factuais para
tema em questão.Importa notar que não há um único modo de intui-
entãobuscar os aspectoseidéticos instanciados nessasimaginações
ção legitimadora, mas tipos diferentes, colzÉomzeas estruturasdo do-
mínio objetivo em vista. A intuição sensívelé apenasum modo entre
15. Por isso Husserl nega veementemente ter se filiado ao realismo metafísico no
outros, e não esgotao domínio de objetividades passíveisde ser estu- que concerne às essências. Afinal, conforme exposto no parágrafo 22, as essências não
dadasracionalmente. Garante-se,dessemodo, a possibilidade de um sãoentes reais; elas têm outro modo de ser, o das idealidades atemporais

96 97
A cientificidade na fenomenologia de Husserl A fenomenologia como ciência eidética e transcendental
.} #>} 1;,'õ.
Trata-sede um procedimentode explicitaçãode essênciasque nada eidéticas.Começará .a surgir aqui ao menos parte da especificidade
deve aos fatos existentes no mundo empírico, uma vez que se
daciênciafenomenológica, apresentadapor Husserl como eidética e
em intuições não empíricas, isto é, na exibição de objetos ou Situações
transcendental.E no parágrafo7 de Ideias l que a distinção paralela
que não sãoexistentesno mundo real. Seria possível,assim,apreender eo pauta é introduzida. Ali, nota-se que fatos e essênciassão investi-
as essências com base em dados individuais ímczgírzados,o que deixa gadospor respectivasciências específicas, ou seja, por ciências de fa-
claro que a intuição de essênciasnão estáinvariavelmente ligada à tos(asquais já foram mencionadas no S 1) e por ciências eidéticas.
sição de fatos reaisn. Muito mais à frente em Ideias J, no parágrafo Em relaçãoa esseúltimo tipo, Husserl oferece alguns exemplos histo-
Husserl considera que a fenomenologia e outras ciências eidéticas ricamenteconsagrados:lógica pura, geometria pura, matemática pura.
como a geometria, devem favorecer a imaginação na obtenção de da. Aindanesseparágrafo,o autor propõe que as relaçõesentre fato e es-
dos individuais de base sobre os quais se buscam as essências. Por meio sênciafundam relaçõescorrespondentesentre ciências de fato e ciên-
da imaginação, o investigadortem a "liberdade inigualável de reconfi. ciasde essência. Por um lado, um pesquisador deve considerar diversos
gurar como quiser"(Idl, 162) tais dados, impoíldo-lhes sucessivasmoda. exemplares
factuais como ponto de partida para atingir uma essência
ficações imaginárias e, assim, facilitando a apreensão daquilo que é ín. Parademonstrar um teorema, por exemplo, um geâmetra pode dese-
vczHante
nos fenómenos em questãoe que compõe o domínio dos atri- nharfiguras em uma lousa ou meramente imaginar que faz isso. Em
butos eidéticos. Husserl chega mesmo a dizer que "a 'ficção' constitui o todo caso, não é a apreensão desses indivíduos reais ou imaginários o
elemento vital da fenomenologia" (Idl, 163), atribuindo um alto valor cerne do conhecimento das puras relações espaciais em questão; os fa-
epistêmico à imaginação na construção do conhecimento eidéticoi7. tosestãoali como suPo#e para que se atinja a cztestaçãointuitiva da es-
sêncícz,
e somente por meio dessaúltima estabelece-se o conhecimento
eidético, de va/idade necessáHae uníverscz/.Por outro lado, assim como
Ciências factuais e ciências eidéticas
aessêncianão implica a existência efetiva de indivíduos factuais,o co-
Cumpre agora explorar de que maneira a distinção entre fato e es- nhecimentoproduzido por uma ciência eidética se limita ao campo
sência dá ocasião à distinção paralela entre ciências factuais e ciências dasobjetividades eidéticas, e dele não cabe inferir a existência de fatos
queexemplifiquem as essênciasem questão.
Husserl explora com mais detalhes as relações entre ciências fac-
16. Essa concepção metodológica já vigora em Invesfígações /ógicczs. Em ProZegó-
menos, ao recusar a redução psicologista das leis lógicas a fatos mentais, Husserl afirma tuais e ciências eidéticas no parágrafo 8 de Ideias 1. Ali, acentua-se a
o seguinte: "a apreensão intuitiva da lei pode, psicologicamente, requerer dois passos:a princípio a independência das últimas em relação às primeiras. As ciên-
visada de particularidades da intuição e a intelecção legal a ela referida. Logicamente. ciaseidéticas não contêm resultados teóricos obtidos pelas ciências em-
porém, há um só. O conteúdo da intelecção não é consequência do particular" (P, S 24.
86). Desse modo, a apreensão do princípio geral deve partir de casosparticulares; no en- píricasfactuais, já que essas,como já vimos, têm como modo de intui-
tanto, issonão quer dizer que tal princípio se)aproduzido por esseseventosparticulares çãolegitimador último a constatação da realidade sensível, enquanto
osquais, de Fato,nada sãosenão instâi] das que justamente permitem reconhecer a idea-
o conhecimento eidético é um conhecimento purificado do lastro em-
lidade de que sãoexemplos. Quanto a tomar casosimaginados de partida, isso não era
enfatizado de modo tão veemente quanto em Ideias r, embora Husserl já reconhecesse pírico (de maneira que, como também já se mencionou, dele não cabe
que "a consciência da generalidade se constrói tanto sobre o fundamento da percepção extrair a existência de indivíduos factuais). Em seguida, Husserl acen-
quanto da imaginação conforme" (LU2, VI, $ 52, 691). Parauma análise detalhadada
tuaa depe7zdêrzcía das ciências factuais em relação àsciências eidéticas
intuição eidética em Investigações/ógfcas, cf. Lohmar, 2001
17. Acerca da centralidade da imaginação para a reflexão eidética fenomenoló- Trata-sesimplesmente de reconhecer que nenhuma investigaçãofac-
gica, cf. Mohanty, 1991; Elliott, 2005, parte l tual pode prescindir dos conhecimentos eidéticos formais e materiais,

98 99
A cientificidade na fenomenologia de Husser] A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

e isso porque, ao efetuar juízos sobre o seu domínio objetivo, toda ciên. essenciais desse domínio e a explicitação das possibilida-
características
cia empírica deve se submeter, em primeiro lugar, aos pnncípjos far. de concatenação de fenómenos no seu interior deveriam ser
desideais
mais que regem as possibilidades de estabelecer juízos verdadeirose por uma disciplina eidética específica,a antologia da natu-
.ealízadas
encadeamentos argumentativos válidos acerca de qualquer Essa disciplina investigada os "estados-de-essência" que circuns-
domíni.
objetivo em geral. Em segundolugar, os conhecimentos empíricos de. as possibilidadesmais gerais no interior das quais o conheci-
crevem
vem se submeter às determinações materiais que delimitam as possa. empírico da natureza real pode ser produzidoi8.
mente
bilidades factuais do domínio objetivo específico que está sendo estu. Em seguida, no parágrafo 10, é apresentado o conhecimento eidé-
dado. Os conhecimentos empíricos supõem, dessamaneira, ao menos
ligo formal, que também é um pressupostoteórico para o saberem-
dois t;Pos de conhecimentos eidéticos: os purczmenfeÓomaís, referentes Trata-se aqui do conhecimento acerca das significações e dos
PÍíico
às possibilidades de enunciação significativa de juízos, e os referentes anca deamentos argumentativos mais básicos, os quais tornam possível
à estmfura mczfería/do domínio a ser investigado.Começa a reapare- uma investigação coerente e válida se instaure sobre qualquer do-
que
cer aqui o problema das condições objetivas que operam como pres. mínio Husserlnomeia oito/ogía coma/ o estudo das categoriasgerais
supostospara o conhecimento, problema cujo desenvolvimento em delimitam até mesmo a própria ideia de região ontológica e tor-
que
Pro/egõmenose em ILTC foi retraçado no capítulo anterior Íamos nâlD possívelo reconhecimento de seuscomponentes.A ontologia for-
comoo temafoi articuladoem 1913.
mal investiga as formas gerais de significação por meio das quais é pos-
Nos parágrafos 9 e 10 de Ideias J, essadistinção entre Áomza/e ma. sívelteorizar acerca de qualquer domínio material. Nesse sentido, a
leda/ em vigor no seio do domínio eidético é elucidada. De início, no antologiaformal não estáno mesmo nível que as antologias materiais,
parágrafo9, o tema desenvolvidoé o do conhecimento eidético mete- massubordina todas essas,já que elas pressupõem tanto asformas lógi-
ria/. Já vimos que os indivíduos factuais portam atributos partilháveis. casde significação por meio das quais seu discurso faz sentido quanto
apreensíveis como características eidéticas daquele tipo factual. Os in. ascategoriasgerais que permitem tomar qualquer tema concebível
divíduos implicam essências, e essasestão organizadas em níveis de ge- comoobjeto de análise'9
neralidade cujo último termo da escala é um género supremo mczfedal. Com a consideração de que as ciências empíricas pressupõem co-
ou simplesmente uma região ozzfo/ógíca.Há, assim,tipos de ser dife- nhecimentos eidéticos materiais e formais e de que mesmo as onto-
rentes conforme a extensão dos gêneros eidéticos supremos. Segunda logiasmateriais supõem a oncologia formal, Husserl reformula o seu
Husserl, há ou deveria haver disciplinas ontológicas regionais, isto é, ideal de douüílza da cíêízcía, quer dizer, de explicitação sistemática
ciências eidéticas que tratariam justamente dos atributos essenciaise dasestruturas teóricas que permitem a obtenção de conhecimento
das suasrelaçõesque compõem uma determinada região.
Tais disciplinas ontológicas regionais são disciplinas puras, ou sela,
18. "Dessa maneira, por exemplo, a todas as disciplinas da ciência natural corres-
não dependem de nenhum conhecimento empírico e nem implicam a pondea ciência eidética da natureza física em geral (a anta/agia da lza reza), se à na-
posição de existência de indivíduos factuais. Elas são HinllHnienl:neruiíl tureza factual corresponde um eídos apreensível de maneira pura, a 'essência' 7zdtureza

fo/ogías maferíaís, pois tematizam as relações entre as essências de um emger.z/"(Idl, 24). Há vários comentários que detalham a noção de antologia material
naobra de Husserl. Cf. p. ex., Schuhmann, 1990; Kockelmans, 1994, em particular,
determinado domínio. Como exemplo, Husserlparte dasciênciasem- cap.2
píricas da natureza (química, física etc.): todas elas investigam a natu- 19. Cabe à antologia formal deülnir "os conceitos fundamentais inerentes à essên-
cia da proposição", ou seja, as signiHlcaçõese os encadeamentos lógicos mais básicos, e
reza física, ou seja, todas pretendem estabelecer conhecimento no in-
também"a essêncialógica do objeto em geral", quer dizer, as determinaçõesideaisque
terior de um certo domínio objetivo; mas justamente a delimitação das delimitam o "ser algo em geral" (Idl, 28)

100 101
A cientificidade lla fenomenologia de Husserl A fenomenologiacomo ciência eidética e transcendental
,r';}&,i
legítimo nas mais diversasdisciplinas científicas. Vimos, no tos eidéticos dos domínios a se investigar. E justamente essetema
capítulo, que cabia inicialmente à /ógícczpura essatarefa de
de um conhecimento d priori dos domínios materiais que o tema das
as categoriasde significação e suas correlativas categorias de objeto ontológicas materiais e, correspondentemente, das ontologias
regiões
tal nível de generalidade formal que então se comporia uma teoria
materiais leva à maturação em Ideias l.
conexões teóricas válidas possíveis, as quais seriam passíveis de ser Husserl reconhece nesse livro que as ciências factuais não depen-
]izadas em quaisquer disciplinas. Dessa maneira, a lógica pura
dem somente dos pressupostos teórico-formais para se estabelecer, mas
zaria os fundamentos teóricos que são condições objetivas F,mbém devem respeitar as características ãetimdoras da região ma-
por todas as ciências, embora não sejam clarificadas por essas terial a que se referem. Os alicerces teóricos das ciências particulares
(o que alimentava o estado de impeúeição teórica em que todas elas: nãose esgotam, assim, nas categorias lógico-formais, pois a delimita-
encontravam). E justamente essaideia de uma fundamentação do sa. daspossibilidadeseidéticas válidas para a região a ser investigada
Ção
ber científico pela elucidação dos pressupostosteóricos nelas operantes .íentificamente também figura como condição objetivo paratais ciên-
que Husserl retoma nos parágrafos iniciais de Ideias 1.No parágrafo lO cias.E essadelimitação passa a ser a tarefa das orzto/ogías materiais ou
ele explicitamente identifica a oncologiaformal e a lógica pura no regionais disciplinas científicas puras que devem discernir as possibi-
tido de doutrina geral da ciência:'. Fica então claro que para as ciências cidadesideais que circunscrevem a priori as características definidoras
empíricas estabelecerem-secomo plenamente racionais, de modo que dosdiferentes tipos de fatos estudados pelas ciências empíricas. Desse
cada novo passocognitivo remexa com clareza aos seus fundamentos modo, o problema da fundamentação dos pressupostos teóricos obje
bem estabelecidos, deve haver o desenvolvimento da ontologia formal uivosdas ciências não se reduz a uma explicitação de categorias for-
já que justamente será ela a doutrina dos componentes teóricos maisl mais, mas também exige uma análise de categorias materiais e possibi-
básicos em ação em qualquer empreitada científicazi. lidadesideais que ali se esboçam em virtude das articulações eidéticas
Mas a ideia de fundamentação das disciplinas científicas por uma daregiãoem questão,possibilidadesque não sãomerasparticulariza-
doutrina da ciência ganha complexidade em Ideias l em comparação iões de verdades formais válidas para quaisquer regioes, mas que es-
com Pro/egõmerzos, e isso por meio do desenvolvimento da algumas tão justamente ligadas às especificidades eidéticas de cada tipo de ser
noçõesjá presentesem ll.TC. Vimos que nessetexto Husserljá ava- em questão. Por exemplo, um estudo científico empírico de certos fa-
lia que a fundamentação formal não esgotaa explicitação das condi- tospsicológicos deve ser capaz, além de formular corretamente enca-
çõesobjetivas do conhecimento, em particular no que tange às ciên- deamentosproposicionais em teorias válidas, de respeitar os aspectos
cias empíricas. Essasciências devem respeitar, além das leis formais de essenciais
que permitem reconhecer os fatos em questãocomo sendo
encadeamentos teóricos, as características específicas do domínio ob- do tipo estudado,e não de outro tipo qualquer (como, por exemplo,
jetivo estudado. Husserl esboçava então ao lado da lógica pura uma /ó- um fato da natureza física). Assim, para estudar corretamente fatos psi-
gícczrea/, que deveria explicitar as restrições d /)ríorí materiais a que as cológicos, supõe-se que se saiba distinguir quais são os aspectos gerais
ciências empíricas estariam submetidas, isto é, restrições referentes aos que demarcam essesfatos de outros (de fatos biológicos ou físicos), de
forma a evitar confusõesde domínio. Deve haver então uma ciência
20. "Se partimos da antologia formal (sempre como lógica pura em toda a suaex- purada consciência, uma ontologia material que explicite as possibili-
tensão até a mathesis uníversa/ís), ela é, como sabemos, ciência eidética do objeto em
geral" (Idl, 27) dadesideais dellmitadoras daquilo que pode serreconhecido em geral
2 1. Há também muitos comentários que discutem a noção de antologia formal na como um fato psicológico. Essa ontologia da consciência esclarece um
obra de Husser]. Cf., por exemplo, Crosson, 1962; Poli, 1993. ' tipo especial de fundamento (a saber, as restrições d priori materiais)

102 103
A cientiflcidade na fenomenologiade Husser]
A fenorneno[ogia como ciência eidética e transcelidenta]

pressuposto por qualquer investigação


o caso em Ideias 1; não se trata, após descrever a versão am-
Muitas vezes, ocorre que, sem a devida
doutrina da ciência, de recorrer à fenomenologia como seu
mentor a príon materiais, as
subjetivo. Afinal de contas, a fenomenologia já foi defi-
fundir fatos que pertencem a
uma ciência eidética, de modo que e/a tomará Pcz#enessa
indireto, em tratar característicaseideticamente
de conhecimentos eidéticos af)rebentada pelo primeiro caPí-
um denominador comum
/furo.Embora Husserl não a localize explicitamente ali, a feno
turalismo comete ao pretender
não seráexterior a tal armadura eidética. Cabe então per-
da natureza: ignora-se, desse modo,
limitam os fatos de consciência
que tipo de ciêílcia eidética é a fenomenologia
próprio, com características [ugar, qual a relaçãoentre ela e essaestrutura d /)HoHdas
eidético natureza2z eidéticas,estrutura que, como Husserl acentua, foi explicitada
com base na lógica pura, sem nada dever a análises fenomeno-
Cabe notar que todas essas e uma ciência
considerações sobre as ciências eidé.
ricas, Husserl alega fazê-las do ponto de
vista da oncologia formal. E com a]gum papel no interior dessaestrutura a priori dos sabe-
o que fica claro no parágrafo 17, que encerra o primeiro capítujo de
eidéticos,então ela parece ser fundada pela antologia formal, que
Ideias 1. Ali Husserl assevera que as principais distin ções veiculadas
nesse capítulo foram obtidas "no solo da lógicapura" o material lógico-conceptual para todas as antologias particula-
Idl, 39), querdi- res.Ora, para avaliar exatamente o papel da oncologia formal em rela-
zer, sem se limitar a nenhuma região ontológica particular
mas expji.
citando ao menos o esquema geraldascondi Ção à fenomenologia, será preciso desenvolver a segunda característica
iões objetivas mais básicas atribuída por Husserl à ciência fenomenológica,
que fundamentam todo conhecimento possível. Desse esquema, deve a saber, o caráter tra?zs-
ceizderztaJ.
Ficará então claro que a fenomenologia não é somente mais
então fazer parte uma distinção de regioes o
ntológicas conforme os gê- uma ciência eidética ordenada segundo os parâmetros universalmente
neros eidéticos supremos, já que a perfeita fundamen ração das ciên-
válidosda antologia formal, mas que ela realiza uma tarefa fundente
ciasfactuaissupõe o desenvolvimento das ontologias materiais por elas
pressupostas. emrelaçãoa todas as ontologias, inclusive em relação àquela formal.
Entretanto, antes de tratar desse caráter transcendental da fenomenolo-
Essamençãoao solo da lógica pura é importante, pois esclarece
que até o parágrafo 17 nada ainda de específico foi estabelecido em re. gia,ainda há muito a elucidar a respeito do seu aspecto eidético.
lação à fenomenologia23 Aparentemente, o movimento argumentativo
é similar àquele de Pro/egómenos,segundo o qu a] se expôs promeiro O problema de uma eidética material desci'itiva
as condições objetivas do conhecimento (tema qu e deveria ser tratado
pela lógica pura sem nada pressuporda fenomenologia) para, em se- Jána introdução de Ideíczs1,o âmbito da fenomenologia é circuns-
crito como aquele da consciência, ou seja, das vivências subjetivas
cuida, anunciar a fenomenologia conlo o complemento filosófico da
Essaé a região a ser cientificamente investigada pela fenomenologia
estrutura teórico-formal investigada pela lógica pura. No entanto, não
em seusaspectos eídétícos. Husserl esboça as suas primeiras análises das
características essenciais da região ontológica consciência nos parágra-
22. Essa crítica já aparece em A Ó/oso/ia como ciência rigorosa (Cf PSW 2 ]-24\
fos 34-39 de seu livro. Essa análise inicial visa delimitar minimamente
L)arei destaque a esse tema no próximo capítulo. - ' ' ' ' ' ' -'
o campo de estudosfenomeno1(5gicos,mas ainda sem assumir a orien-
os" (Idl, 39).ção à fenomenologia, diz 'Husserl no parágrafo 17 que "ainda nada sa
tação específica na qual a fenomenologia deve ser exercida, a saber, a

104
105
A cientificidade na fenomenologiade Husserl A fenomena[ogia como ciência eidética e transcendental

orientação transcendental:'. Retomo, de maneira muito sucinta, asCa. por aquilo que loi intuído ou visto com evidência em sua generali-
racterísticas essenciaisda consciência enumeradas nessaspáginas.Ela dade (Idl, 153)
é um fluxo de vivências,cada uma sendo um ato subjetivo com suas Trata-se, assim, de levar à clareza intuitiva os aspectos essenciais da
característicaspróprias, porém entrelaçadasna unidade da experiên.
consciência e de descrevê-los de um modo conceitualmente fiel ao que
cia consciente (Cf. S 34). Cada vivência atua] está como que circuD. foi apreendido com evidência. A fenomenologia se apresenta, dessa
dada por vivências inatuais, implícitas, e potencialmente passíveisde se ..anRClla como uma ciência eidética material descritiva,uma caracte-
tornar consciência explícita (Cf. S 35). No entanto, atuais ou natuais, rísticaque não é óbvia, como veremos a seguir.
Eazparte da essênciadas vivências conscientes, nas suasmais diferentes Husserl propõe uma problematização acerca do caráter descritivo
modalidades, serem vivências í7zferzcíonaís, ou seja, que estão sempre dafenomenologia nos parágrafos71-75 de Ideias 1. A tarefa central
voltadas para algo, que visam algo (Cf. S 36):s.Além disso,embora a vi-
desse
trecho é garantir a possibilidade de uma ciência eidética mate-
vência intencional normalmente não estejavoltada para si mesma rial puramente descritiva. Ocorre que, historicamente, as únicas disci-
pa'a seu objeto, toda vivência consciente pode se tornar objeto de uma
pIlHaseidéticas desenvolvidas são disciplinas matemáticas quenaosao
reflexão, isto é, de uma vivência que se volta para outras vivências e as construíd as por descrição, o que sugere que as ciências eidétícas mate.
toma por objeto (Cf. S 38). dais possíveis são sempre disciplinas exatas. Se assim fosse, a investiga
Essessão ao menos alguns dos resultados da delimitação do âmbito çãoeidética da consciência deveria então resultar em uma matemática
eidético da consciência. E importante notar que essesresultadossão dosfenómenos, o que não será o caso.
descritivos, ou seja, pretensamente baseados em intuições evidentes, e A fim de garantir a possibilidade de uma eidética material pura-
não, por exemplo, extraídos dedutivamente de certos axiomas. No pa- mentedescritiva, Husserl inicialmente expõe uma distinção no interior
rágrafo 65 de Ideias 1, Husserl expõe rapidamente o funcionamento da dasdisciplinas eidéticas exatas (Cf. ]d], S 72-73). AÍ também é possível
descrição fenomenológica. A fenomenologia encontrardisciplinas formais e materiais. As disciplinas puramente for-
tem de pâr diante dos olhos, exemplarmente, puros eventos de bons. maiscompõem a oncologiaformal, e tratam, como já vimos, dascon-
ciência, tem de trazê-los à clareza mais completa, para, dentro dessa diçõeslógicas e ontológicas que fornecem a base teórica para o conhe-
clareza, analisa-los e apreender intuitivamente a sua essência,tem de cimento em qualquer área. Obviamente não há possibilidade de con-
perseguir os nexoseidéticos evidentes,formular o intuído em expres- fundira fenomenologiacom essetipo de disciplina excita,já que ela
sõesconceituais fiéis, cujo sentido só pode ser prescrito puramente pretendeser ciência eidética de uma região específica,a da consciên-
ciapura. No entanto, Husserl nota que há disciplinas exatasmcztedaís,
ou seja, cujas teses são limitadas a uma região específica e valem con-
24. P. Ricoeur já notavana introdução à sua tradução de Ideias / que há uma tor-
ção na exposição husserliana: a redução fenomenológica é apresentada nos parágrafos forme restrições a f)dorí regionais, não tendo, assim, o caráter pura-
3 1 e. 32; porém na descrição eidética da consciência elaborada a partir do parágrafo menteformal que implica a validade para qualquer esfera eidética pos-
34 ela não é pressuposta,o que indica que se trata ali de um exercício ontológico rea-
sível. Esseserá o caso da geomeüía, ciência cujos enunciados tratam
lizado na orientação natural (cf. Ricoeur, 1950, xv-xvi). Veremos no correr do capí-
tulo como as vertentes eidética e transcendental da fenomenologia serão unidas por dasrelaçõesespaciaispuras. Ora, o que vale para tais relaçõesnão se
usser
aplica necessariamente a todos os domínios objetivos concebíveis, de
25. Vale notar que há componentes dasvivências intencionais que sãonão inten-
cionais, tais como as sensações.Esseconteúdo não intencional é justamente animado maneiraque o conhecimento geométrico não é puramente formal, e
pelo ato subjetivo, que Ihe atribui então direcionalidade intencional, tornando-o con- simrestrito a um domínio ontológico específico. E então em relação à
teúdo acerca de algo. Cf. Idl, $ 85. geometria que se põe de modo específico o problema da possibilidade

106 10
A
icidade na fenomenolog a de Husser]
A fenomenologiacomo ciência eidética e transcendental
4
da fenomenologia como ciência
eidética material já dizer da geometria' Ela é ciência eidética das puras formas es-
\lasque
mesmo ser tomada como o modelo dais e de suasrelações. Ora, as formas espaciais são essências czbsüa-
Pa
seu alto grau de desenvolvimento ndentes de outras essênciasna composição de um todo con
üs, depe
de diversostipos de formas espaciaisgeométricas são momentos ou propriedades
creto.As
saber se a
de todos concretos consideradas isoladamente. Daí que a geometria
da consciência, deve seja urnaciênciaabstrata,em contraposiçãocom a ciência fenomeno-
Husserl inicia, no lógica culo tema é um concreto, a consciência
ção entre geometria e Cabeobservarque essadistinção não é decisiva, uma vez que, para
Jade dessa última. Para tanto. o avançam sistematicamente, a fenomenologia cinde metodologicamente

mentados inicialmente no consciênciaem subdomínios abstratos, que são então investigados de


noções de concreto e maneirarelativamente autónoma. A consciência como uma fofa/idade
cia e dependência.Se um objeto ou deexperiências
desenroladasem um fluxo contínuo não é passívelde
impensável sem referência a outro descriçãoexaustiva, já que, como admite Husserl, o nexo entre todas as
relação de dependência entre vivências
"/amais é algo dado ou a ser dado por um único olhar puro
siderado por si só como um jldl, S 83, 201). Enquanto totalidade de experiênciasvividasem um
todo maior do qual faz fluxo, a consciência não é apreensível como um objeto singular. A fe-
de algum todo mais nomenologia íso/a algumas vivências e busca seus componentes eidé-
um concreto. Husserl ticosestáticos,seus diferentes estratos de ordenação etc. Contudo, é
abstrato não somente metodologicamente inviável oferecer uma descrição que esgote a to-
Assim, as essências para as essências. talidade concreta da consciência. Na verdade, essa totalidade opera
tem a outras essências comouma ideia rega/adora para o progressoda fenomenologia, que
de deveentão almejar uma descrição abrangente da consciência, ainda
abstratas;e as
72. que isso exigisse esforços intermináveis. Seja como for, as descrições
as ciências são classificadas
neros supremos a que elas se dedicam
os gê- eáetívas
fornecidas pela fenomenologia são de alguns nexos de vivên
essênciascon- clãs,os quais formam unidades destacáveis do fluxo total da consciên
creias ou gêneros de essências,bstratas
de
essênciasdependentes cia.Tomadas por si sós, as vivências são todos dos quais se pode expli
Aqui já vai aparecer citar aspectos abstratos, mas, em sentido amplo, as vivências são elas
nologia. A mesmasmomentos abstratosde um todo concreto mais amplo, a sa-
plina eidética ber,a consciência como totalidade de uma vida desenrolado temporal-
consciência pura,a qual é mentez7.Dessa maneira, a distinção entre fenomenologia e geometria
enquantodistinção entre uma ciência concreta e uma ciência abstrata
por si mesmo, independentemente de
regiões ontológicas26. é aqui somente relativa.

com detalhe ai Coalciencia se)aindependente do mundo é um tema ao qual eu voltarei 27. Daí Husserl afirmar que "nenhuma vivência concreta pode ser considerada
como algo independente em sentido pleno" (Idl, 202)
108
109
A cientificidad
e na fenomenologia de Husser]
A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

Entretanto, há uma
nologia, referente ao modo de é justamente a exatidãodas essênciasdo domínio
questão. Eu já me referi a ela ao Há essênciasque, dada a sua própria configuração estru-
modo exczfoenquanto a um tratamento conceptual exala, passível de inclusão
tender de modo mais num sistema axiomática-dedutivo. Esseé o caso dasfor-
lógica entre ambas. Na abstratastratadaspela geometria. Mas há essênciasque
grato 72, não se trata de própria estrutura, se apresentam de maneira /puída, de modo
possíveis levando-as a a sua expressãoconceptual envolve um inescapávelcoeficiente
São as essêrzcíasírzexatas, que não se prestam a um trata-
de classificação morfológica. A
ções espaciais básicas dedutivo, uma vez que o seu domínio de extensãonão é total-
base nos quais deriva predeterminável por derivação dedutiva com base em poucos
julga Husserl no parágrafo /l), das essencias
síveis, além de esclarecer suas propriedades
quais, muitas vezes, nem são referentes
à consciência.Cada vivência se insere num buxo, no qual
compreendidas trãBSCorre
com graus maiores ou menores de indeterminação no que
corretamente o sistema axiomático de tangeà clareza,à intensidade,à duração. Seria ignorar a própria estru-
completamente o domínio das Hra fluida das vivências se se forçasse aqui uma abordagem exala:ç. E
claramente não é esse o entãopor 7zecessidade de essêlzcíaque a fenomenologia deve ser uma
de tomar alguns ciênciaeidética descritiva e não uma eidética material excitatal como
p'os axiomáticos dos quais se derivariam ageometria.A inexatidão e a vagueza inerentes à apreensãoeidética
vivências possíveis e suas intuitiva da consciência exigem um tratamento não axiomático-dedu-
na verdade, uma busca, tivo3'.Segue-sedaí que deve ser possíveluma eidética material descri-
evz-
derzfes a serem fixadas tiva,mesmo sehistoricamente essetipo de investigação ainda não tiver
feri. sido desenvolvido.
var consequências das quais, muitas
se tem uma Vale observarque dessaforma Husserl amplia de maneira conside-
apreensãointuitiva, mas de oferecer
regu- rávelo critério de cientificidade das ciências. Lembremo-nos de que em
fada pela intuição eidética.
Cabe notar que Husserl não se Pro/egõmenos
os pressupostosteóricos que condicionavam a produção
ças dos procedimentos dosaber apontavam para a forma axiomático-dedutiva como aquela que
por esclarecer a razão se esforça exprimiade modo adequado a construção sistematicamentefundada
racterísticas inerentes às essências
29. "A consciência tem em geral a peculiaridade de ser um flutuar que transcorre
estabelecer uma disciplina eidética
emdiferentesdimensões,de modo que não se pode falar de uma fixaçãoconceitual
exalade quaisquer concretos eidéticos e de todos os momentos que os constituem ime
diatamente" (Idl, 171-172)
30. Sobre esseponto, comenta R. Sokolowski; "nem todas as necessidadesou es-
sênciasexcluem indeterminação; se determinamos uma essênciamorfológica, nossa
intuição eidética desvela necessidades, mas não exclui a imprecisão e a vagueza; antes.
issomostra que certos tipos de imprecisão são essenciaispara certos tipos particulares de
coisas"(Sokolowski, 1979, 101)

110
ll l
A cientificidade na fenomenologiade Husser]
A fenomenologia como ciência eidétíca e transcendental
4
tão marcantedo conhecimentocientífico.A
nem mesmo era tomada como Essesúltimos são frutos de tematizações de essências
(Cf. P, S 63). Agora em Jdeíasl doamdiretamente à intuição e que se exemplificam em casos
axiomático-dedutiva para todo A obtenção das essências tenomenolC)Bicas nao
rar a especificidade de certos nenhuma operação de levar os dados ao limite da exatidão con-
não se deixam apreender de modo tas somente a apreensão intuitiva dos aspectos típicos e inva-
gorja de metodologia científica daquilo que se mostra como tal nos exemplares factuais ou ima-
exigem;:. E mais: de partida. Já a obtenção das essências geométricas não se dá
em forma teórica intuição eidética diretamente erigida sobre os exemplares empíri-
ao modo como a exatidão é obtida rnassupõe uma construção conceitual sobre os dados sensíveis de
temáticos. Desenvolvamos com E importante, assim,salientar que a fenomenologia não of)era
Husser] se aprofunda na idealização dos dados sensíveis (construindo essências exatas que
cas e fenomenológicas e, no seatualizam perfeitamente em exemplares sensíveis).Trata-se,
primeiras não são intuídas de capturar intuitivamente aquilo que é estável,típico (embora
ção conceptual particular, a inexato)nos exemplaressensíveis,os quais justamente são instâncias
ração, certos dados atestadosem dasessências
então intu ídas3z
mire, para que, assim, superem todas Notemosaqui que o caráter inexato das essênciasdo campo da
consciênciapura não condena a fenomenologia a se afundar em ambi-
ginana, sempre relativa a circunstâncias
características exatas. Por guidades e equivocidades que dificilmenteseriam associadas a um es-
sensivelmente contêm bdo científico. Embora no nível dos dadosiniciais se devamlidar com
figurados. Com base em que são singularidades inexatas, ao fixar os resultados em espécies e gêneros
bons- eidéticos amplos, é possível "uma diferenciação estável, uma conser-
trai a noção de regaou círculo
quais /cí 7zão vaçãoidentificadora e uma apreensãoconceitual rigorosa" (Idl, S 75,
;e exemptiHcam adequadamente em
zmagírz(iria 172).Husserl acredita que, mesmo sem ser ciência exala, a fenomeno
Pa ícu/ar. Os conceitos geométricos
ou lograpode, dessamaneira, oferecer resultados rigorosos e constituir-se
seja, os aspectoseidéticos ella
são levados à exatidão
excedam o âmbito das 32. Husserl assevera que, "embora elas tenham ligação, as ciências exatas e as cfên
cfczs
puramentedescrífívasjamais podem substituir umas às outras, e que, por maior
Husserl, sempre envolvem
queseja o desenvolvimejlto da ciência exala, isto é, da ciência que opera com substru-
diferença marcante crn çõesideais,ele não pode solucionar os problemas originais e legítimos da pura descri-
ção" (Idl, S74, 171). Firma-se aqui claramente a autonomia das disciplinas descritivas,
e sugere-seque desrespeitartal autonomia, ao insistir na forma exata corno expressão
unívocada cientificidade, significa ignorar o procedimento de idealização,que deixa
delado a especificidade dos domínios sensíveispara tomar apenasos conceitos exatos
construídos sobre eles. Por conseguinte, a forma axiomático-dedutiva não pode expri-
mir corretamente o conhecimento dos domínios objetivos inerentemente inexatos, mas
apenasde uma versãosubstruída de tais domínios. Voltarei no último capítulo a tratar
devidamentedessetema, ao acompanhar os textos de Husserl sobre o papel fundente do
mundo da vida em relação ao conhecimento científico

112
1} 3
A cienti6lcidadena fenomenologiade Husserl A fenomenologia como ciência eidética e transcendental
4

como disciplina científica. Cabe aqui analisarcom mais detalhes defende que as essências se doam conforme uma escala de
67, Husserl
são os componentes desserigor que justamente garante a cientifi mais baixo é o da obscuridade total, quando simples-
da descrição eidética fenomenológica.
clareza.
O grau
de ter relação intuitiva com a essência em questão, e o
mentedeixa-se
Dais alto é o da clareza plenamente adequada,no qual ela se dá
grau
Critérios gerais do rigor desci'itivo integram
ente como é, sem a interferência de representações concei-
As ciências exatas são construídas por meio da forma axiornático. não preenchidas intuitivamente. Husserl apresenta, no parágrafo
dedutiva, que garantea fundamentação das tesesmediadas 68 a clarificação como o método pelo qual se busca aproximar-se desse
princí.
nível máximo de doação intuitiva. "0 tornar claro consiste, pois, aqui
pios bem estabelecidos. Isso já era afirmado em Pro/egómenos
quanto às ciências eidéticas materiais descritivas?O que garante acien. em dois processos que se vinculam um ao outro: nos processos de tor-
tipicidade, isto é, o caráter fundamentado de suas nai intuitivo e nos processosde intensificação da clareza do já intuído
teses?Esse é o terna
desenvolvido nos parágrafos 66-70 de Ide;as l. 159), expõe ali o autor. Quanto ao primeiro processo definidor
No parágrafo66, é apresentadacomo uma condição da cientifjci- 'ln clarificação (tornar intuitivo), Husserl se refere ao fato de que mui-
dade fenomenológica a expressão dos resultados apreendidos em te.. tasvezes os dados exemplares pelos quais se tenta chegar à essência
mos e proposições cuidadosamente formulados. Do je, consequentemente, as próprias essências) estão entremeados de re-
rigor científico,as
severa Husserl, "também faz parte que as mesmas palavras e proposi- presentações vazias, meramente conceituais. Tornar intuitivo significa
aqui levar essasrepresentações vazias à verdadeira atestação intuitiva.
ções sejam univocamente ordenadas a certas essências ntuitivamente
apreensíveis, as quais constituem o 'preenchimento de sentido: d. Além disso, o segundo processo definidor da clarificação é intensificar
jldl, 1 54-1 55). A corneta fixação conceptual dos dados eidéticos, de ma.
a clarezado que já loi intuído. Importa nessecasolevar em conside-
negra a evitar ambiguidades na compreensão dos nexos eidéticos re- raçãoaquela escala de níveis de clareza dos dados e buscar modos de
velados, é, assim, um pressuposto da boa prática científica doaçãocom maior grau de evidência. No parágrafo69, Husserl expõe
fenomeno.
]ógica33. Para ser bem realizada, essa fixação não deve ser arbitrária, algumasestratégiasmais específicaspara obter os graus mais altos de
conforme indica a citação acima; os recursos inguísticos têm de ser clarezaintuitiva. Muitas vezes,quando a clareza eidética não é sufi-
lastreadospela doação intuitiva do tema descrito Isso aponta para pres ciente, faz-se necessário reaproximar-se dos exemplos de base a fim de
supostosainda mais básicosacerca da cientificidade fenomenológica, seatentar para outros aspectos, ou mesmo trocar os exemplos de base,
referentes aos próprios métodos de apreensão das essênciasa ser então de maneira a buscar pontos de partida por si sós já mais claros. Além
descritas univocamente disso,o autor nos lembra que todos os dados referentes às vivências da
consciênciaenvolvem um halo de aspectosinatuais não claramente
Deve-se destacar aqui a c/czrí/ícczçãoizzfuífíva, conjunto de procedi-
determinado (Cf. Idl, SS 35, 37). Esse halo pode ser paulatinamente
mentos por meio dos quais as essênciassão tematizadas.No parágrafo
explorado, dando oportunidade para esclarecer aspectos já apreendidos
33. M. Brainard acentua o caráter ativo dessa elaboração conceitual: "não há ne- e para abrir novas séries de investigações fenomenológicas.
nhuma prioridade 'natural' da essênciasobre sua expressão,de modo que ela exigisse No parágrafo70, uma etapa metodológica ainda mais básicaque
uma expressãoespecífica.Antes, é a consciência que primeiramente decide sobreum essasmencionadas acima é explorada, a saber, aquela por meio da qual
termo ou expressão e a impõe à essência; a expressão /íxa a essência" (Brainard, 2002,
asessênciassão inicialmente apreendidas.como tais. Retoma-se aqui o
110). O uso dos conceitos fenomenológicos não é algo que se imponha mecanica-
mente, mas uma habilidade que exige decisõesteóricas não óbvias a fim de capturar método da intuição de essênciascom base na análise de séries de indi-
corretamente as características dos fenómenos descritos. '
víduos,tópico explorado,como vimos, logo nos parágrafosiniciais de
114 1 15
A cientificidade na fenomenologiade Husserl
A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

Ideias J. Husserl assinala o privilégio dos dados


como tema daquilo que ele chama de "ciências de
como ponto de partida para a busca fenomenológica de essências
una filosófica", em oposição às "ciências de orientação dogmá-
vez que pela imaginação obtém-se uma
diversidade tal de dados quem últimas, os pesquisadoresnormalmente não se dedicam
reconhecimento dos aspectosinvariantes é Facilitado
além de se garan. problemas cénicos,os quais exigiriam o desenvolvimento de
tir a independência dasessênciasentrevistas em relaçã
o a Situações fac. teoriado conhecimento. Eles procedem de modo "dogmático'
duaisno murado empírico.
Eis então como Husserl sentido de simplesmente aplicar os seus métodos para investigar os
de sua área de estudo, sem preocupar-se em submeter tais mé-
facial até o pressuposto
a uma crítica filosófica. Husserl julga que essaatitude dogmática
buem rigor científico à
correrano que tange à ampliação do conhecimento objetivo, em-
termaldescritiva. É preciso
tal atitude deixe intactos os problemas gerais com relação à pos-
sências que discriminem sem
sibilidadedo conhecimento. Cumpre então às ciências de orientação
relevantes. Para tanto, deve-se
tuitiva das essênciasem filosófica,em uma dimensão que lhes é própria, investigaro sentido e
a
ibilidade do conhecimento em geral, temas que deverão escla-
doaçãointuitiva dos
recc[ qual o valor cognitivo dos conhecimentos obtidos na orientação
ção de séries de eventos
dogmáticas'. No parágrafo 33, Husserl sugere que é a passagem para o
modo que se possa atestar
domínioda consciência pura, região temática da fenomenologia, que
tes que justamente delimitam
permitirá a resolução do "problema epistemológico" que tanto carac-
como ta], e não como evento
terizaasciências de orientação filosófica. Daí Husserl designar a cons-
lecido, dessamaneira.
ciênciapura de consciência trczrzscendenta/,já que é por meio de seu es-
nologia como
hdo que se explicitam as condições de possibilidade das relações entre
doação evidente dos
osubjetivo e o objetivo;s
investigados, os quais deverão então ser clarificados e A fenomenologia não é, assim, somente um estudo científico so-
centosempregadosde modo coerente e unívoco. bre a região "consciência", ela não é uma ontologia material entre
outrasquaisquer, mas sim um tipo de investigação que, por meio da
Lematizaçãoda consciência pura, cumprirá a meta das ciências de
B) Passagemà problemática transcendental
orientação
/i/osó/ica,a saber,esclarecera possibilidadee o sentido
Ciências $1osó$case ciências dogmáticas do conhecimento objetivo. Husserl parece recuperar aqui, em linhas

Passemos a explorar a segunda qualificação atribuída à fenomeno.


34. "As investigações científicas da orientação epistemológica especificamente fi-
logia na introduçãode Ideias1: ciência transcendental.'Veremos que losófica(. ..) se ocupam dos problemas céticos da possibilidade do conhecimento, os
um longo caminho introdutório até a circunscrição da tarefa espe' solucionamprimeiro em generalidade de princípio, para então, pela aplicação dasso-
luções obtidas, tirar consequências para o julgamento do sentido e valor cognitivo defi-
cinicamente transcendental é proposto. Nesselivro, a primeira men- nitivos dos resultados alcançados nas ciências dogmáticas" (Idl, 56)
ção mais elaborada à problemática transcendental ocorre, ainda sem
35. "Motivos importantes, fundados na problemática epistemológica, justificarão
usar essetermo, no parágrafo 26. Husserl apresenta ali as questões re- quedesignemosa consciência'pura', da qual tanto se falará, também como conscíên
cíahanscendenfa/, da mesma maneira que designaremos como epoché transcendental
ferentesà possibilidade do conhecimento como lema cienfz'Hco,mais aoperaçãopor meio da qual é alcançada" (Idl, 73)

116
117
A cientificidade
iaâ
na renomeno] ogia de Husser]
A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

gerais, a distinção entre filosofia e


Pro/egõmenos; porém, consciênciana orientaçãonatural é o mundo, entendidocomo
conhecida como um indefinido llo qual se organizam os objetos com os quais se
mentor já estabelecidos constantemente (Cf. S 27). O mundo simplesmente aparece
ricadescritiva(buscade dado, isto é, como já aí mesmo antes de ser percebido, assim
por evidência intuitiva), as mais diferentes coisas mundanas também são dadas como dis-
metodológico próprio, a mesmo que não se preste atenção nelas, e mesmo que elas ex-
acesso ao domínio o campo atual de percepção da consciência. O próprio sujeito
a si mesmo como inserido no mundo, como sendo um eu
empírico dependente da totalidade mundana para ser o que
Orientação natural e redução fenomenológica O mundo é assim o horizonte geral da subjetividade, mundo que
A redução seestendeindefinidamente no espaçoe no tempo, e que permanece
ILTC, de 1906-1907. único apesardas incessantes variações do seu conteúdo parcial apreen-
Ideias 1,alterações importantes em dido.Ele impõe seu ser à subjetividade, que se reconhece na orienta-
concerne às relações entre natura[ como uma pequena parte dessatota]idade inescapáve].
lógicadopensar.
O trecho No parágrafo28, as diferentesformas do pensamentoteórico e de
de Ideias l. estadosafetivossão remetidas ao mundo circundante. O conjunto de
C) parágrafo 27 se intitula "0 mundo da fitossubjetivos conscientes, subsumido ali à expressãocartesiana co-
e meu mundo circundante". Trata-se de gjto,estáconstantemente voltado para o mundo e suasfronteiras inde-
como o mundo se apresenta Conforme certo finidas, as quais permanecem operantes mesmo que sejam assumidas
secamente f)essoalizada certaspreocupações teóricas bastante específicas, tais como aquelas li
e 29). Esseaspecto não dadasao teorizar matemático. l)esse modo, ao empregarem o pensa-
mundo da orientação mentomatemático, os sujeitos não rompem sua inserção no mundo
57), que aparentemente natural,o qual atumcomo fundo permanente para as reflexões matemá-
marcar bem esse caráte. ticas37.
Além disso,normalmente os matemáticos reproduzem no nível
Husserl diz que as dos"objetos matemáticos" a mesma ingenuidade da consciência natu
curso em primeira pessoa"(ibid.)3õ.O ral diante dos objetos mundanos: reconhecimento de uma objetividade
semquestionar suascondições de possibilidade.
No parágrafo29, há a explicitação do caráter intrinsecamente in-
tersubjetivo da orientação natural. firma-se ali: "tudo aquilo que vale
paramim mesmo vale também, como sei, para todos os outros seres

caráterem-si terá um lugar central. Essa concepção será contrastada com as caracterís-
ticaseidéticas da consciência
37. "0 mundo aritmético só está para mim aí se e enquanto minha orientação é
anfméfica.O mulldo natura], no entanto, como mundo no sentido habitual da pala-
wa, contírzuaa est'zrpara mfm aí enquanto estou naturalmente nele imerso" (Idl, 6 1)
118
119
A cientificidade na fenomeno]ogiade Husser] A fenomenologia como ciência eidética e transcendental
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humanos que encontro no mundo que me circunda"(Idl, 61). A


e hajao questionamento crítico das condições de possibilidade dessa
raçãonatural se refere a cada sujeito que a vivenda e a narra
mente, mas envolve o reconhecimento mtítuo das situações Codrn,zçaocaracterizada a "tese de ser" como componente carac-
Cada sujeito apreende a si e aos demais sujeitos como entes
voltados para o mesmo mundo, no interior do qual os
feitossão delimitados.
Os parágrafos27 a 29 de Ideias l compõem a narrativa LI.

zada da orientação natural. Os temas ali apresentadosem em


primeira pessoabuscam capturar a experiência ingênua do mundo tal
como poderia ser descrita por qualquer sujeito que habitualmente , sepodemaistomar essealgo como certo. Ora, consideremosa dúvida
vivenda. Por sua vez, no parágrafo 30 é formulada a fasegera/ que ca. acercado ser de algo, acerca da sua exístê7zcíaeÓetíva,dúvida que nos
racterizaa orientaçãonatural38.vale observarque a explicitação deus, dariasuspender a certeza sobre isso. Ao ser suspensa, a tese de ser a res-
tese é já claramente uma operação filosófica sobre a experiência ingê.
peitodesse.algoserevela não como um atributo necessariamentecons-
nua do mundo. Enquanto as pessoasseguem imersas na orientação na. tituinte dele (cuja suspensãolevaria à sua destruição ou inconcebibi-
rural (conforme narrado nos parágrafos 27-29), não há subsunçãodos lidade),mascomo uma espéciede crença que é posta em relação ao
aspectos gerais dessaexperiência a uma teoria ou tese l idicativamente algoem questão,e que justamente pode ser tirada de ação. O algo em
formulada. Cabe então ao filósofo tentar apreender e formular o sen. questãoainda seapresenta como algo, porém é apreendido de maneira
tido geral dessaorientação na seguinte tese (que aqui exprima com moda/içada,pois não faz mais parte dessa apreensão a certeza relativa
minhas palavras): o murado e ttzdo czquÍ/o que o compõe se doa para a aoseu ser, ou seja, a posição da sud existência eáetíva,a qual justamente
consciência como efetividade, como efetivamente existindo. e essadoação estáem dúvida
significa que sua existência efetiva af)prece como constatada, !móosta Vê-se, assim, que, aplicada metodicamente, a dúvida é um proce-
à corzscíêrzcía,que somente a recon/tece (Cf. Idl, 62-63). Desse modo. dimentopara pâr fora de ação um componente da apreensãosubjetiva
a orientação natural pode ser caracterizadacomo um tipo de postura dealgo, a saber,o componente de crença ou tese de existência. Não
realista ingênua segundo a qual a existência do mundo é simplesmente setrata, assim, de destruir o ser do qual se duvida, de passar da tese à
afirmada sem maiores problematizações.Em sentido mais amplo, a antítese(da afirmação do ser à sua negação), mas justamente de sus-
tese da orientação natural significa que todo conteúdo de experiên- penderum componenteque então (pela dúvida) se torna visível na
cia é espontaneamente submetido a uma interpretação ontologizante, composiçãoda experiência: a tese que põe o ser de algo como efetivo,
isto é, em termos de ser ou não ser. Aquilo que aparece sob a orienta- como existente;9. E esse momento de suspensão da tese de existência
ção natural do pensar é decodificado por parâmetrosoncológicossem jteseque afirma o ser ou mesmo o não-ser de algo) que Husserl man-
tém do uso metódico da dúvida por Descarnes.Esseexercício de sus-
.38. J.-F. Lavigne nos lembra que o sentido de "tese" utilizado por Husserl não é
de aHlrmaçãodoutrinária, e sim o sentido aristotélico de afirmação'de "uma proposi- 39. Como vimos no capítulo anterior, em ll.TC a epoc/zése aplicava à transcen-
ção não demonstrada,destinada a servir de fundamento lógico para uma demonstra- dência objetiva exprimida pelo conhecimento. Esse tema passa agora a ser incluído na
ção- (. =.) Traduz-sl?, assim, ao mesmo tempo o caráter dín mica élo ato de pâr e a falta problemática mais geral da posição de ser constituinte da experiência na orientação na-
de evidência e de fundamento racional que afeta uma ta] posição" (Lavigile, 2009,7(» tural.Pâr o conhecimento como transcendente é um casoda decodificação ontológica
nota
operantede modo universal na experiência ingênua

120 121
A cientificidade na fenomenologia de Husserl A fenomenologia como ciência eidética e transcendental
./ ,r';} 4

pensão,da tese da efetividade do ser é chamado em fenomenologia de


ef)oc/zé'n. ' '''
Após circunscrever, com base no método cartesiano,o sentidoda
e/)oc/zé,Husser] pretende aplica-la a toda a orientação natural quevi.
gora no âmbito prático da vida comum e mesmo na produção das ciên.
das ditas dogmáticas. Paratanto, não é preciso se dirigir a Cadains
tância singular da orientação natural; basta suspender EI. KNRHHr=g=
ge.
poderão.finalmenteser discutidas.
ral, referente à existência efetiva do mundo. Deve ocorrer então algo r Aqui é preciso perguntar mais claramente de que domínio se trata
notável: ao tirar de ação a validade da tese de existência do mundo rá entãoficar claro que a passagempara o âmbito transcenden-
tal como experimentada na orientação natural, essa existência que tal não é passagempara uma região particular, delimitada por outras
se apresentava como algo ;mPosfo aos sujeitos, que era somente
regiões,
massim uma pa1lsagem
para uma novaorientaçãodo pensar,
Latada e isso de modo irresistível, passa a se mostrar como algo que
parauma nova modalidade de experiência, a qual recobrirá todas as re-
é posto na experiência Pe/ossujeitos. A existência efetiva do mundo,
gIÕes
ob/eth'as, uma vez que eles sofram a modificação neutralizadora
das coisase mesmodos "eus" psicofísicosempíricos é modificável en- daepoc/zé4'.
Ao suspender a tese de existência, abre-seuma orientação
quanto crença. Ela não é uma imposição inescapável, mas uma opera. dopensarem que não se faz afirmações acerca do ser ou do não ser
ção passívelde neutralização. Aquilo que é suspenso,tirado de ação, do mundo natural, dos seus objetos, dos eus psicofísicos e das ciências
é então reveladocomo aquilo que compunha ativamente a experiên- poreles produzidas. Nenhuma proposição que supõe esselastro posi-
cia do mundo natural, masera ingenuamente vivido como imposição cional em relação à existência efetiva daquilo que é discutido deve en-
do mundo em relação ao sujeito. O mundo existente (e tudo do que tãoentrar na orientação fenomenológica. Desse modo, toda opinião e
se compõe, inclusive os eus empíricos), que se impunha à consciên mesmotodo conhecimento objetivo construídos sobre a pressuposição
cia na orientação natural, se mostra, uma vez aplicada a ePoc/zé,como ingênuada existência efetiva dos domínios investigadosnão comporão
muradoposto pela tesede ser, e desdeentão, uma vez que essateseé a fenomenologia, já que essase inicia pela suspensãode todos os domí-
justamente tirada de ação, o mundo e a totalidade de seus eventose niospostoscomo objetivamente válidos':.
coisas enquczrzfo exísferzfes são "colocados entre parênteses", quer dizer, A suspensãoda efetividade mundana não significa que vá brotar
têm a sua efetividade suspensa. magicamenteum novo domínio sobre o qual a fenomenologia se apli
Note-se, assim, que o método fenomenológico não é um método cada.A fenomenologia tratará ainda do mundo natural e das suasciên-
de recusacénicado mundo,não é nem mesmoum métodoque se cias,mas erzquanfo moda/ícados,enquanto reduzidos transcendental-
aplica a um ente ou a um conjunto de entes em particular. mente. E por isso que a redução fenomenológica não consiste somente
um procedimento que explicita a posição de ser, que constitui sub-rep-
ticiamente a experiência natural, para então suspendê-la, coloca-la fora 41. Conforme nota J. Benoist, "na redução, não seencontra nada de diferente da-
quilo que precisamente se excluiu, mas com um estatuto diferente, por assimdizer,
de ação. E dessamaneira que um domínio completamente novo vai 'forade uso'; a redução não abre nenhum 'ante mundo' e nenhuma profundidade mís
surgir como tema de investigação,o doma'níoüanscerzdenfa/,no qual liga em alguma antessalada consciência aquém do real, mas abre o próprio sentido do
quenelaestáretido"(Benoist,1994,176)
42. Mais adiante ficará claro que não só o domínio das objetividades mundanas é
40. Parauma avaliação mais elaborada da apropriação husserliana de Descartes, suspenso,mas também o das objetividades eidéticas, as quais são postas de modo ingê-
cf.: Moura, 1998; Crowel1, 2002; MacDonald, 2000
nuo pelas antologias formais e regionais.

122 123
A cientificidade na fenomenologia de Husser]
A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

na ePoc/zé, que justamente marca uma


também a necessidadede circunscrever material mundana como sua condição fundente'3. Por conseguinte:
resíduo da sua aplicação, a uma investigaçãoautónoma da consciência como fundamento da ex-
ciência e do conhecimento é desacreditada, já que o funcionamento
Nesseponto, Husserl recupera pe
da consciênciadeve ser reenviado, segundo essaconcepção, às condi-
Romena/idade, enquanto
embora não mais se @ materiais mundanas, sobre as quais as possibilidades inerentes à
mostra fundada por uma ---! ções
consciente seriam erigidas. Daí Husser] afirmar no parágrafo 33 de
E o que se afirma com IdeÍczs
J que "na orientação natural não se podia ver mesmooutra coisa
assevera que, após praticar a redução R o mundo natural. Enquanto não fora reconhecida a possibilidade
":«nmnn:HH orientação fenomenológica( . . .) a esfera de ser transcendental tillha
propriamente nada, mas ganhamos todo o ser nh'.
uto, o qual, carreta. de permanecer desconhecida e até quase não pressentida" (Idl, 73)
mente entendido, abriga todas as transcendências
mundanas, as 'bons. Há,assim,uma interpretação espontâneadas relaçõesentre mundo e
titui' em si" (Idl, 1 19). Garante-se aqui que a passagempara a ex
periên.
cia reduzida não implica nenhuma perda em relação à consciênciana orientação natural que praticamente impede que se as-
experiênciad, sumaa orientação fenomenológica, na qual se investigam os puros fe-
orientação natural. Na verdade, todo o conteúdo
vivido nessaorienta. nómenos,livres de todo lastro posicional ingênuo. Dessamaneira, re-
ção será recuperado, mas de maneira modificada
porquereferido aos,, visora interpretaçãonatural das relaçõesentre consciência e mundo
aliso/uto da consciência, ser por meio do
qual se tornará compreensível
como todos os entes transcendentes ofereceráuma espécie de garantia da independência da investigação
que compõem o mundo (e ele prâ fenomenal ógico-transcenden tal
prio) têm o seu sentido e a sua
possibilidade constituídos. Aqu cabees
clarecer em detalhe o que se entende porserabsoluto. Aqui é preciso atenção para acompanhar o movimento argumen-
tativo proposto por Husserl. No parágrafo 32 de Ideias 1, é anunciada
a redução fenomenológica, método pelo qual se suspende a validade
As relaçõescafre consciência e mundo da tese de ser que atum sobre todo conteúdo da experiência natural
Além disso, questiona-se ali pelo que resiste à epoc/zé, a saber, as vi-
vênciasda consciênciaem sua pura fenomenalidade.Os resultados
dessequestionamento são detalhados principalmente nos capítulos IT
e 111da segunda seção de /delas l (SS 33-55). No entanto, em grande
parte dessescapítulos, trata-se de investigar quais são as caracferõtícas

43. 'Eal como apresentada,essaconcepção ingênua envolve ]á uma antecipação


daorientação natura/isca(a orientação teórica assumidaquando se produzem as ciên-
ciasnaturais) na orientação natural. Esse tema é desenvolvido em Ideias 11, e teremos
ce de acompanháJo no próximo capítulo. Por ora, noto apenas que a orientação
naturalistapõe o mundo físico como fundente das demaisordensde'ser (vital e psí-
quica).Ora, essaposição do mundo como uma totalidade objetiva da qual a vida hu-
mana não é senão um segmento nela fundado já vigora, ainda que de maneira inexata
na concepção ingênua de mundo exposta em Idefczs1. Fica sugerido, assim, que a orien-
tação.naturalista é uma especialização teorizante da orientação natural do pensar, uma
especializaçãoque mantém intacta a ingenuidade marcante dessaúltima
124
125
A cientificidade na fenomenologiade Husser]

A fenomenologia como ciência eidética e transcendertt41

126

127
A cientificidade na fenomenologiade Husser]
A fenomeno[ogia como ciência eidética e transcendental
cer quais são as relações eidéticas ./ r ; À'''.

acompanhar com detalhe cada um 0 caminho percorrido no movimento inicial do argumento,


suavez, pode ser dividido em três submovimentos. O pri-
o qual,por
medesenrola nos parágrafos 38-41, consiste justamente em
melro, que
Da atestação do ser aos modos de ser atestados uma distinção entre dois modos de afesfação ou doação, de
oferecer
Lembremos. de tornar patente que a manifestação do mundo na expenên-
maneira a
elucidar seem su,s decorre de um tipo de percepção, a saber, aquela nomeada
cia se]
çada ao mundo e é dele
àe percepção hanscendente. A percepção transcendente das coisas e
no parágrafo
39.Ali mundanos, Husserl opõe a percepção imanente, aquela que
doseventos
perseguido: é preciso
sevoltaparaas próprias vivências da consciência. Vale a pena discor-
geral do mundo mais detalhessobre cada um dessesdois tipos de modos de
rer com
sibilina que eu
doação
existente diante de mim, que eu me No parágraio 38, Husserl expõe a percepção imanente ou o olhar
que eu mesmo nele me insira. Essa reflexivo que a consciência pode exercer sobre si mesma. Pela reflexão,
exPeriêrzc;a senso'e/"(Idl, $ é possível tornar uma vivência como objeto e acompanhar o seu desen-
é reconhecido como Husserl discrimina ao menos duas características dessapercep-
ciência para ser o que é. çãoimanente (Cf. Idl, 85-86):
nentes eidéticos desse caráter a) Os objetosvisadospor ela compõem o mesmo fluxo do qual
tipo de experiência que a própria percepção toma parte. Assim, ato perceptivo e ob-
outras palavras, jeto percebido fazem parte da consciência enquanto fluxo de
eindependente. vivendas
do mundo à
bl Percepção e percebido não só partilham do mesmo fluxo de
ou não do ser mundano vivências; entre eles se forma uma unidade, de maneira que
o objeto (a vivência refletida) só pode ser separado do ato re-
flexivo por abstração46.

Husserl afirma que essasduas características marcantes da percep-


çãoimanente estão ausentes na percepção hazzscendezzfe,
o que permite

sustentade modo legítimo. Independentemente da resposta a esseproblema específico,


La\igne deveria ter deixado mais claro lá de início que mesmo a "independência sobe
una" do ser deve ser atestada subjetivamente, o que garante a legitimidade ao menos
da aplicação inicial da estratégia husserliana. Pode-se duvidar de que Husserl efetiva
menteconsiga mostrar a dependência do ser em relação à consciência, mas seria sim-
plesmenteingênuo defender um sentido absoluto de transcendência, ignorando qual
seriaseu modo privilegiado de atestação subjetiva, exatamente o que Husserl busca'cir-
cunscrever nesseponto da sua argumentação
46. Para uma análise detalhada das características da reflexão em Ideias 1. cf. Re
naudie, 2012

128
129
A cientificidade
lomenologia de Husser]
A fenomenologia como ciência eidéticae transcendenta
con trastar ambas as B.m
mente diferentes. .ez fixada essadistinção entre dois modos de doação, Husserl
não estáincluído no aosegunda submovimento da primeira parte de seu longo argu-
feto é algo transcendem das duas diferentes experiências de doação ou atesta-
Além disso,oobjeto-coisa chega-se à distinção de dois modos de ser, tema explorado princi-
perceptivo, e pode dele ser :e no parágrafo 42. Trata-se ali de distinguir em termos de ca-
sas persistem ou sofrem :cds eÍdéticasaquilo que se apresenta em percepção imanente
fitos perceptivos que a elas se que se apresenta em percepção transcendente. "Surge, pois,
e aquilo
Husser] continua a eidética fundamental entre sé?rcomo vivência e ser como
cendente no a distinção
jldi, 95),anunciao autor.Em que consisteessadistinção?Faz
seu objeto não
daessênciado ser coisa e, no sentido amplo, daquilo que com-
parte
objeto transcendente é a percep-
inúmeros alas a visa. O ser-coisanão faz parte dos nexos de consciência, mas
Çãoque
alguns dos .,ã.e doa a essesde modo perfilado. E, por sua vez, há o ser-vivenda ou
inteiro. Deve-se
ser-consciência,
uma unidade concreta de experiênciasfluentes. Tal
pendentes envolve "um
comoasseveradono parágrato 'f), o modo de ser da consciência supoe
de aparências e
des "queum olhar de percepção intuitivamente possaser dirigido de ma
negra inteiramente imediata a toda vivência efetiva, viva como presente
com o caráteT
originário.Isso ocorre na forma de 'reflexão"' (Idl, 104). Faz parte, as-
A percepção
sim, das características essenciais da vivência que ela possa ser apreen
fis, ou seja,por dada
por uma percepçãoque partilha com ela o mesmofluxo de cons
de apreensãoquere ciência,de maneira que ambas formem uma unidade que dispensa per
apreendidospela percepção dilaçãonos moldes da percepção transcendente
Stcionamento espacial do observador Dessamaneira, com base em dois diferentes modos de atestação
evento que se perfila intuitivosde objetos, chega-sea dois diferentes tipos de ser passíveis
estabelecidas. E obviamente de atestaçãonessesdois modos de intuição dos quais se partiu. Em
menos apreendidos
em relação espacial
Umavivência presente se torna vivência passada retida em relação a uma nova vivên-
um lado da vivência e de
cia presente,que também se tornará passadaem relação a outra vivência presente, e
nessesentido,relação de assimpor diante. Nessesentido, "uma vivência também jamais é completamente per-
cebida;ela nãoé adequadamente
apreensívelem suaunidade plena" (Idl, S 44, 103)
dadoque sofre modificações constantes conforme a sua situação temporal. Contudo,
Husser] insiste em afirmar que "essa 'incompletude' ou 'imperfeição' inerente à essên-
cia da percepção da vivência é diferente, por princípio, daquela contida na essência da
percepçãotranscendente" (ibid.), na qual um objeto externo ao fluxo se doa parcial-
mente.A perfllação temporal da vivência não apaga a unidade entre reflexão e refletido
e, por isso,não interfere na distinção entre o ser imanente e o ser transcendente,que
comentarema seguir.
130
131
A cientificidade na fenomenologia de Husserl A fenomenologia como ciência eidétíca e transcendental
F ,r')} 4

seguida, no terceiro submovimento, Husserl propõe uma Dunavez que a doação perfilado jamais exclui a possibilidade de
certa
ção dessesdois diferentes tipos de ser, principalmente nos
44 e 46. No parágrafo44, o autor retoma inicialmente a uo desmentido
Ouanto à percepção imanente, no parágrafo 44, Husserl defende
ção do ser transcendente como aquele que sempre se doa de a vivência não se perfila, não revela suasqualidades parcialmente
que
parcial, cada perfil anunciando várias outras percepções a orientação espacial), mas de uma só vez. Isso quer dizer
quais diferentes aspectosserão manifestados em uma lconforn''
ser-vivênciaimplica como característica eidética a doação de si
que o
rica, de forma que a unidade de aparição da coisa um aliso/zzfo,no sentido daquilo "cuja existêncianão pode por
como
em um só ato perceptivo, mas exige a coesão de inúmeras ser negada" (Idl, S 46, 106). E só na percepção imanente
princípio
vas. No parágrafo 46, Husserl conclui, com base na análise absoluto, nesse sentido de algo cujo ser é atestado indubita-
queum
de doação constituinte do ser transcendente, que lzen/lema fielmente pode ser dado. Para Husserl, "toda percepção imanente ga-
transcendentegarante a existência do objeto que neta se unte necessariamentea existêítcia do seu objeto" (ibid.). Nessetipo
se trata de dizer que a percepção transcendente só nos dá forma-seuma unidade com a vivência refletida, e, en-
de percepção
sensações mentais de objetos em si mesmos inacessíveis; nada quantc
essaunidade vigora, a existência do objeto imanente estágaran-
Cadaperfil de um objeto transcendenteé dado com evidência tida poisele se dá tal como é, e não somente em perfis que pi)deviam
consciência visa por meio desseperfil o objeto como um todo çel corrigidos por dados futuros.
Com«do, "a existência da coisa (. ..) /amais é u«.a existência Avaliemoscom cuidado os resultados obtidos por Husserl nesseter-
como 7zecessána Pe/o dado, mas de certo modo é ceiro submovimento. O modo de ser transcendente (aquele das coi-
(Idl, 108).Cada perfil de uma coisa é evidente, mas sase do mundo) jamais se atesta de forma absoluta, como algo cuja
assegurar que a coisa em sua totalidade seja aquilo mesmo que existênciaestá garantida em sua maitifestação. O ser do mundo, posto
e não outra, ou mesmo que ela, em casosextremos, não seja. Nada im. pelapercepção transcendente, se mostra, após essainvestigação de suas
pede que no transcurso da experiência perfis vindouros obriguem a re- característicaseidéticas, como ser contíngerzte.Já asvivências da cons-
ver o que se tinha sintetizado com base em perfis anteriores. Husserl ciênciatêm, como marca eidética do seu ser, o caráter aliso/ufo: o seu
não sugere que essadecomposição da experiência vá de bafo acontecer. seré reconhecido necessczHczmentepela percepção imanente
que nossaspercepções sintetizadas até agora serão desfeitas por percep Devemos admitir que não é pouco o que já se obteve. No parágrafo
çõesfuturas". O autor somente acentua aqui uma possibilidade eideti. 39,Husserl partira de certas considerações tomadas como óbvias na
comente fundada no modo como o ser transcendente se relaciona com orientação natural, a saber, que o mundo é um todo formado por reali-
a percepção que o apreende: o peúil é dado com evidência, mas a uni- dadesque existem em si e por si, um todo em relação ao qual as cons-
dade da coisa nele anunciada é sempre presuntíva e não absolutamente ciênciasseriam uma parte dependente, entrelaçadascom a base ma-
terial do mundo de diversas formas. Ora, vemos agora que o mundo
estálonge de ser um em-si absoluto que existe necessariamente. Não;
48. Isso seria abrir a portapara um ?eticismo radical, cunha o qual Husserl sempre
se posicionou. No parágrafo 49, o filósofo acentua que não há boas razões para apostam
o mundo tem um modo de ser contingente, e somente a consciência
na hipótese cénica: "admitamos que a consciência esteja realmente em sua regulagem merece o título de absoluto, no sentido de existência que se atesta ne-
adequada,que do lado doscursos de consciência não falte nada que possaser exigido cessaHc!merzte.São sem dúvida resultados que abalam as certezas da
para a aparição de um mundo em sua unidade e para o conhecimento teórico racional
dele. Tendo pressupostotudo isso, perguntamos então: é ainda pensável,e não antes orientaçãonatural. Mas Husserl não para por aí, e pretende explo-
um contrassenso,que o mundo transcendentecorrespondente não exista?"(Idl, 116) rar, na segunda parte de seu argumento, as relações entre o ser como

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A cientificidade na fenomenologia de Husser]
A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

O ser absoluto da consciência

fenómenos concordantes em uma coisa ou um evento perce'


bodo.Husserl a apresenta com detalhes nos parágrafos41-42.
b) As coisassensíveis(que se unificam pelo primeiro tipo de
síntese)jamais se manifestam de modo isolado. Em torno de
cadacoisaou evento percebidoshá um fundo ou horizonte
próximo no qual eles estão inseridos. Esse tópico é exposto
claramente no parágrafo 35: "toda percepção de coisa tem,
assim, um halo de intuições de fundo (. ..) e este também é
um 'vivido de consciência' ou, mais brevemente, 'consciên-
cia', e mesmo consciência 'de' tudo aquilo que estáde fato
contido no 'fundo' objetivo cointuído" (Idl, S 35, 77). Dessa
forma, toda percepção de coisa implica uma síntese dos per-
fis com seu horizonte próximo.
c) O horizonte próximo das coisasdiretamente percebidasnão
está,por suavez, Isolado, como se para além dele houvesse
um vazio, e o mundo se reduzisseàquilo que é diretamente
atestável.Justamenteo que constitui o mundo como um
conjunto de eventosbem mais vastoque aquilo que se pode
acessardiretamente são os horizontes dísfantesde fenómenos

49. Sigo aqui a excelente análise proposta por C. Majolino, 2010, 621-630

134
135
A científicidade na fenomenologiade Husser]
fenomenologia como ciência eidética e transcendental

que hão se doam anualmente


rizontes distantes são relativas aos horizontes próximos e distantes. Então
um tipo específico de síntese da complexa, formada pela unidade de três sínteses,será
fzvaçâo. Por meio a uma destmíção em pensamento. No parágrafo 47, Husserl
distantes no espaço e de início que a estrutura "mundo transcendente de coisas:
serão experimentados com a consciência empírica que a apreendepermite a
põem o pano de fundo mais de conhecimentos científicos que excedem o dado intuitivo
interior da própria e se referem ao horizonte de eventos distantes. Operam aqui
tes próximos, certos motivos do mundo aquelassíntesesmotivacionais que legitimam
diretamente atestado, até de horizontes distantes. Em seguida, o filósofo observa que
ser diferente, já que 7zãoé /ogícczmenfe necessário que o
âmbito espaçotempora]. Assim, os
nência imediata tal como atestado na experiência transcendente, seja como é
doação imediata mundo empírico pode ser tomado como uma instância de certas
mos em sucessão eidéticas puras (por exemplo, as estruturas que se manifes-
do seu desenrolar tamnaquelestrês tipos de sínteses).Entretanto é concebível explicitar,
ções num passadolongínquo). A empensamento,muitas outras variantes de mundos possíveis.Desse
xlmas, põem-se domínios modo,que o mundo experimentado efetivamente seja este, é, ao me-
imediato. A aHrmação de nos em parte, contingente. Para mostrar algo de eideticamente neces-

tente depende, assim, de sínteses sáriona experiência do mundo, seria preciso distinguir componentes
tes aos eventos do quevigorariam em todas,asvariantes de mundos possíveis,e não só em
claro esseponto no nossomundo efetivos'. E desseponto de vista que serátestadaaquela
anuais,com o fundo que concepçãovigente na orientação natural, segundo a qual há determi-
percepções possíveis,mofívadas de naçãoda consciência pelo mundo. E preciso desvelar os componentes
com sempre novos eidéticosem ação para avaliar o que vigora nas correlações concebíveis
até aqueles entreconsciência e mundo. l)aí a importância da variação imaginária:
nexos de percepções
e â apreensão" (Idl, 105 pormeio dela se percorrem diversos mundos possíveise sebusca aquilo
me-
fiações metódicas queé invariante na relação entre a consciência e seus correlatos.
mesmo
as transcendências mais distantes Cumpre notar que essavariação não será completamente aleató
experiência ria, mas seguirá uma direção clara, a saber, aquela da dest íção da ob-
sensível e formam com os
uma só jetividade das coisas.Trata-se de propor situações imaginárias em que
realidade mundana.
paulatinamente
a estruturaeidética"coisa percebida"e, em termos
Eis como o mundo é retratado em ideias r.
dúvida, o mundo é maisgerais, "mundo de coisas" seja desfeita, e isso até o extremo, até
um ser transcendente, mas
tipo de percepção
50. Husserl privilegia a análise de possibilidades ideais para estabelecer relações
sedasnos parágrafos 41 e 42 do
necessárias:"a antiga doutrina ontológica segundo a qua/ o conhecímerzlo da$ 'possfbí/í
ê preciso ter em conta que sua experiência de dados'fenode preceder o cora/zecímerzlo
das eÓefívídadesé uma grande verdade, desde que
bem entendida e aproveitada da maneira carreta" (Idl, S 79, 194)

136
137
A cientificidade na fenomenologia de Husserl
A feriornenologia como ciência eidética e transcendental
imaginar "não-mulzdos . }} It'4.

de eventos caóticos. havia a doação para uma consciência possível. Em


"tDU lo" propostas
desmantelada. Somente mesmo nos mundos desordenados ou nos nao-mun-
nenhumcaso
duais tornar-se-á visível. a possibilidade de experiência era totalmente excluída. É
dos caóticos
relações necessárias. ue asvariaçõesna estrutura mundo ímf)/ícam variaçõesna exPe-
certo q
sência "mundo". Como se vê corresporzdenfe (por exemplo um mundo desordenado nao per-
dêrzcza
imagina então Situaçõesem a fixação de nexos racionais entre os dados). Não é verdade en-
0i
estrutura "mundo ordenado tão que qualquermundo poderia ser experimentado de qualquer ma-
47, é oferecido o exemplo de um neiraF
cornosea consciênciativesseo poder de constituir o sentido da
vação que nos levam
experiência como bem quisesse. Contudo, em todos essesmúltiplos ca
não funcionariam. Husser]insiste: há possibilidade de experiência consciente.
tassi. Por sua vez, no A partir daqui, chega-sea uma segunda conclusão,formulada no
Ali, o autorimagina parágrafo 49. Como vimos anteriormente, a variação imaginária da es-
coisassobreum horizonte tritura "mundo" (até a sua aniquilação) implica modificações no fluxo
pazesde constituir de consciência,mas não a destruição dessaúltima. Dessa maneira, a
Jadede referência estrutura eidética mínima que caracteriza a consciência permanece in
radouras.Chega-seaquia conceber tocadapor um aniquilamento do mundo, quer dizer, permanece in-
cia disforme, desorganizadas2 tocadamesmo se se a considera em correlação com transcendências
Quais as conclusõesdesse desordenadas.
Aqui é preciso cuidado para não distorcer o ponto em
lugar, Husserl afirma no questão.Não se trata de propor que diante do aniquilamento dos com.
envolve mundos e ponentes eidéticos mundanos a consciência permaneceria íso/aduz em
ricas eidéticas a possibilidade sÍ nzesma. Em nenhum momento Husser] rejeita a est fura í7zfencío
cia possível. Essa característica é rza/da consciência,a direção das vivências para algo transcendente
(EÜa/zrZ)ar&eíf).
Minamde contas, Ao aniquilar a estrutura eidética "mundo", Husserl somente propõe
queum dos correlatos possíveis da consciência seja desmantelados;
Issosignifica exatamente considerar a consciência em correlação com
outrostipos de transcendência (por exemplo, aquelas que constituem
não-mundos)s'. Desse modo, em nenhum momento Husserl deixa de
considerara consciência em correlação intencional com alguma trans-

53. Sigo aqui a interpretação de Carlos Alberto R. de Moura; "a experiência da


destruiçãodo mundo' não sedestina a mostrar a possibilidade de uma consciência sem

ÚÜPBHH:HHH$111g
objeto. Ela se destina apenas a mostrar a possibilidade da consciência sem esseobÍeto
não sem todo e qualquer po]o objetivo"(Moura, 1987, 9])
54. E o que Husserlesclarecenessacurta mas decisivapassagem:
a aiüquilação
.o mundo "não implica que estariam excluídos outros vividos e nexosde vividos" (]d],

138
139
A cientiflcidade na fenomenologiade Ht.isser] A fenomenologiacomo ciência eidética e transcendental
4

cendência nesseseu experimento de imaginação. Toda a O mundo, por sua vez, se revela como essencialmente referido
riqueza desse
exercício estájustamente em mostrar que a consciência a uma consciência possível, ]á que em todas as suas varian-
permanece es
triturada minimamente mesmo se se considerar que ela se
relacioh vigora a experienciabilidade como seu componentess
com escombros de mundo.
notar agora que, por meio dessa longa argumentação,
Qual é a estrutura eidética da consciência
acabapor inverter o discurso ingênuo sobreo ser, em vigor na
em correlação com todas as variantes de
natural (exposto no parágrafo 39). Segundo essediscurso, o
das?Além do caráterintencional, Husser]acentua
o ser em-si absoluto ao qual a consciência, enquanto um tipo
é um "fluxo de vivência em geral" (Idl, S 49, 11 seentrelaça. Ora, essaabordagem ingênua só consi-
cia têmpora/ de experiências, e issodevido ao seu
factuais como parâmetro para suastesese desco-
cia. A estrutura eidética "consciência" em seus
uma investigação sistemática das estruturas eideticamente inva-
um conjunto de vivênciasorde7zadas
segundouma da consciência. Contudo, uma vez levada a cabo a análise eidé-
femczque nada deve à estrutura eidética "mundo
deve tornar-se patente que a consciência não está subordinada ao
cebível uma cozzscíê?leia
em correlação com
mundos). Dessa maneira. masque, em sua pureza eidética, "tem de valer como uma con-
a definição de de ser fechada por si" (Idl, S 49, 117), quer dizer, a consciên-
é desveladacomo uma esfera de ser absoluta, que subsisteindepen-
mundo". Segue-sea seguinte
da estrutura "mundo" e não é por essa determinadasó
ser que se exiba e se ateste por aparição à consciência é
o ser da própria consciência (no sentido mais
(Idl, 1 1 5). A consciência se mostra. dessa
Umalegitimação eÍdétíca para o transcendental
sentido de um todo independente com uma
Com base nessesresultados, Husserl revê, no parágrafo 50 de
suficiente, que não precisa fazer parte de nenhum
Ideias1, o caráter transcendental da investigação fenomenológica,
mundo, por exemplo) para existir ordenadamente.
Husserl reformula essaconclusão de maneira a introduzidopor meio da reduçãofenomenológicas7.
Vimos que, en-
a esseaspecto:"o ser imanente é, quantoinvestigação transcendental, a fenomenologia assume as tare-
fasdasciências filosóficas, a saber, questionar as condições de possibi-
soluto no sentido de que ele, por
lidadedo acessoda subjetividade à objetividade. A investigação trans-
gume para existir"(Idl, ll 5). Como vimos, é
cendentalnão vai, assim,se limitar a descrevero domínio ontológico
ros mundos e não-mundos por
daconsciência pura, mas vai tentar esclarecer como, a partir dessedo-
veia de manifestação para a
a ser consciência diante de mínio, todas as demais regiões ontológicas podem ser conhecidas. Vai

nenhuma delas em particular


da consciência. 55. Na verdade, quanto ao mundo, Husserl afirma, além disso, a sua dependência
no que se refere à consciência, tema que tratarei mais adiante
E desse modo que Husserl completa o movimento pelo qual a ' 56.E precisoinsistir aqui em que a ideia de esferade serfechadanão exclui os cor-
Consciência merece duplamente a qualificação de absoluto, no sentido relatosaos quais a consciência se volta. Tratarei desse tópico mais adiante
57. Comenta Husserl na segunda alínea do parágrafo 50: "voltemos agora nossos
de um tipo de ser cuja existência não pode ser negada (S 46) e no sen-
pensamentosnovamente ao primeiro capítulo, a nossas considerações sobre a redução
tido de um todo independente de qualquer outra coisa para ser o que é fenomenológica" (Idl, 118)

140 141
A cientificidade na fenomenologiade Husser]
A fenomenologia como ciência eidética e transcendenta
se atribuir, desse
uma dimensão 118). Essa efetuação dependeu da comprovação ei-
do sentido de caráterabsoluto da consciência.
do
cla pura é aquela .erdade que a vertente transcendental da fenomenologia é,
aplica a epoc/zé se vê introduzida de modo secundário em relação à vertente ei-
como
gado a todo o mundo Nn entanto, uma vez assumida, a perspectiva transcendental
dética
32 de Ideias 1, mas à consciênciapura o papel central na elucidação das condições
atribui
lido como é hilidade do conhecimento e da experiência.E é justamente
de pois
da validade dessa perspectiva que Husserl torna visível o caráter depe7z-
a partir
explicitar os resultados do mundo em relação à consciência. De certa forma, issotam-
ciência e mundo, que se bémé possibilitado pela análise eidética. Vimos que por meio dessa
nomenológica ,náliserevelou-se a expeHencíabi/idadecomo um componente eidé-
da orientação Ligo de toda transcendência; assim, toda configuração mundana su-
fluxo em correlaçãocom uma referência à consciência possívelsç. Insinua-se, nesse ponto,
põe
cia do mundo empírico, o mesmo antesde efetuar a redução fenomenológica, que o mundo sem-
cimento se mostra remeteà consciênciaabsoluta para ter o seu serztídode ser estabe-
pre
pureza eidética, nâo tecido lssoé sugerido em passagensanteriores à efetuação da redução
tou mostrarnos fenomenológica:
eídeticamente, a . no S 47: "o que as coisas são (.. .) e/as o são como coisas da
tão o resduo da exPeHêrzcia.
E unicamente ela que lhes prescreveo seu sen-
essencialmente tido" (Idl, lll).
dética da
' no S 49: "todo o mundo esPaçotempora/ (. . .) é, segundo o seu
cu/ar para ser o serztído, mero ser írzfencíoncz/, portanto, tal que tem o sentido
cial do mundo meramente secundário, relativo de um ser para a conscien-
ser autónomo absoluto. É. cia. Ele é um ser de que a consciência põe a existênciaem
que a redução suasexperiências" (Idl, 117
está'uturalmen te E a mesma teseé então claramente exposta após a efetuação da
dade do ser do redução
consciência. Deve-se notar
' no S 50: "a realidade do mundo inteiro(...) não é em si algo
parágrafos 3] e 32, a
absoluto, (...) tem a essencialidadede algo que é por prin-
parágrafo 50 de Ide/as /.
cípio apertas um intencional, um conscientizado, um repre-
de viver ingenuamente
sentado, um aparecimento na forma de consciência" (Idl
118)

::;.:H;'===ã: : ::i:'=;::=::=:='fiel?.==S:lLTq'-" «".-, 59. Ou referência à consciência anual, tal como é o caso do nosso mundo empí
ricoCf. Idl, $ 48. '
142
143
A cientiticidade na fenomenologiade Husser]
A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

idadee, assim, remetem aos nexos de experiência da consciência)


exatamenteo que Husser] expõe no parágrafo 76 de /delas J. .4]i é
armadoque, após a redução fenomenológica, a consciência absoluta
rececomo a "protocategoria do ser em geral, na qual radicam todas
a$outras regiões do ser, à qual estas estão referidas por sua essência, e da
qual,portanto, todas são por essência dependentes" (Idl, 174). Desse
modo,do ponto de vista transcendental, a consciência será a fonte a
pararda qual a validade de ser é estabelecida. Lembremo-nos aqui do
movimento da redução fenomenológica: suspende-se a posição de ser
ingenuamente tomada como uma imposição à consciência justamente
paraacompanharcomo o sentido posicional de ser é paulatinamente
elaborado com base nas estruturas eidéticas da consciência. E isso vale
paraqualquer ser concebível: todo tipo de ser deve ter seu sentido ates-
C) A fenomenologia como ciência transcendental tadonos nexos de experiência da consciência. A investigação transcen-
A investigação de {nealidades dentalcabe então explorar quais são os componentes essenciaisdesses
nexos
e desvelarcomo a consciência refere-seàquilo que não é ela, ao
servisadonessesnexos.
Torna-semais claro agora porque Husserl apresentavaa fenomeno-
logia, na introdução de Ideias 1, não só como ciência de essências, mas
tambémcomo ciência de írrea/;dados.Aquilo que se considera como
realidadesupõe já realizado o trabalho de constituição da consciência
e aparece ingenuamente como um dado imposto aos sujeitos. A inves-
tigaçãotranscendental suspende esse caráter pronto dos eventos mun-
danosreduzindo-osa puros fenómenos, para então esclarecerde que
modoesseseventosganham o sentido (em nexos de experiência) de
eventosreais. E a partir da consciência que o sentido de ser "mundo
real", po! exemplo, será constituído, e, no geral, todos os problemas
transcendentais serão resolvidos. Isso é anunciado no parágrafo 86. Ali,
Husserlassevera:

é preciso, pois, investigar, na generalidade mais abrangente, como


unidades objetivas de cada região e categoria "se constituem para a
144
145
A cientificidade na fenomenologia de Husserl A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

consciência" (...). É preciso estudar sistematicamente e tornar Importa salientar que, por meio da intencionalidade, enquanto ca-
dente, em generalidade eidética, todas as espéciesfundamentais racterísHca
eidética, fica claro que a consciência absoluta não é um ente
consciência possível (. . .); é preciso estudar como prescrevem,
isolado,pois está sempre em correlação com aquilo que é visado como
diante sua essência própria, todas as possibilidades (e mpossibilida.
objetividade Vimos que Husserl concebe a consciência absoluta como
des) de ser (Idl, 214).
.sferafechada de ser, independente do mundo, afirmação que deve ser
Fica aqui estabelecido que, em sua vertente transcendental, a interpretadacom cuidado. Acompanhamos o argumento segundo o qual
menologia é uma aná/íseconsfiftztíva,ou seja, uma análise que inves nenhumconjunto particular de eventos (ordenado ou desordenado) é
tida por meio de quais nexos de consciência tais e tais objetividades re. necessáriopara que a consciência seja um fluxo temporal de vivências
bebem seu sentido e a validade de ser.Todas essasobjetividades sãoJul- Nessesentido, a consciência não carece de nenhuma coisa específica
gadasdependentes da consciência no sentido de que as condiçõesde parasero que é. No entanto, dada a intencionalidade,outra caracterís-
possibilidade da sua atesfação como objetividades são encontradas nas ticaeidética da consciência, deve-se entender que essaúltima está sem-
estruturas eidéticas da consciência. .re direcionada para a/gum conjunto de eventos. Daí o famoso mote de
quea consciência é sempre consciência de algo (Cf. Idl, S 84 204)
Dessemodo, a consciência absoluta não carece de nenhum mundo
O caráter intencional da consciência
emparticular para ser consciência (enquanto estrutura temporal), mas,
Para entender melhor essatarefa central da fenomenologia, a aná- enquanto é intencional, ela deve estar voltada para Pe/o merzosum con-
lise constitutiva, vale a pena explorar uma característica eidética da junto qualquer de transcendências. E será investigando as modalida-
consciência até aqui pouco mencionada, a saber,a intencionalidade. desintencionais da consciência que se esclarecem os problemas ligados
No parágrafo 84 de Ideias 1, Husserl qualifica a intencionalidade de à constituição de sentido dos diferentes tipos de transcendência possí-
tema fenomenológico capital", já que, ao estuda-la, evidencia-se a es- veis.Em relação a esseponto, reconhece Husserl: "assinalamos ante-
trutura eidética da consciência pela qual há referência à objetividade riormenteque a consciência em geral tem de valer como uma região
em geral. Ora, o problema da análise constitutiva (que não é senãoo ontológicaprópria. Mas então reconhecemos que a descrição eidética
problema das condições transcendentais de acessoà objetividade) é in- daconsciência remete à descrição daquilo que nela se é consciente, re-
vestigar como cada região ontológica recebe o seu sentido de ser em conhecemosque o correlato da consciência é inseparável da consciên-
nexos de experiência subjetiva. Esclarecer o problema da constituição ciae no entanto não está realmente nela contido" (Idl, S 128, 314)
do sentido de certo tipo de objetividade é, dessamaneira, explicitar Enfatiza-seaqui que a consciência está essencialmente ligada ao seu
quais são as correlações íntencí07zaís necessárias para que o tipo de ser correlatoe que, dessemodo, o domínio de investigaçãoda consciên-
em questão possa ser atestado de maneira correra. Por exemplo, se se ciaenvolvetudo aquilo a que essapossase referir intencionalmente.
pergunta "quais as condições transcendentais da atestação de coisasfí- Porisso já era garantido no parágrafo 50 que a investigação fenome-
sicas?",trata-se então de investigar quais são as estruturas intencionais nológico-transcendental, embora suspenda a validade de ser de todo o
da consciência que permitem a manifestaçãode uma objetividade tal mundonatural, dele não perde propriamente nada, e ainda ganha o ser
como aquela das coisas físicas. Nesse caso, a estrutura principal é a per- absoluto,"o qual, corretamente entendido, abriga todas astranscendên-
cepção sensível. Seria preciso, então, investigar mais especificamente ciasmundanas, as 'constitui' em si" (Idl, 119). Lembremo-nos de que
como a percepção oferece a doação das coisasfísicas, para então avan- a reduçãofenomenológica foi apresentada como método para suspen-
çar na análise constitutiva de um tipo específico de objetividade. der a validade ingênua das posições de ser acerca do mundo natural e

146 147
A cienti6lcidade rla fenomenologia de Husserl A fenomenologia como ciência eidética e transcendental
.+#à}1.,
#,
liberar a pura fenomenalidade com base na qual se vai tratar do pro. somenteenquanto correlatos de fitos subjetivos, e nesse sentido eles
blema transcendental. Em seguida, houve aquela longa análise sobre los mesmosobjetos da orientação natural) são chamados de noe-
o caráter absoluto da consciência, que, entre outros resultados, tornou Das.Dessa forma, na orientação fenomenológica, Husserl recupera
compreensível como se desliga a validade de serdo mundo sem afetaro o mundo inteiro como correlato noemático dos atos intencionais da
ser da consciência. Agora, retornando à questãotranscendental, Husserl consciência.Daí que a consciência absoluta não tenha exterior, mas
destaca que, além de absoluta, a consciência é intencional e, nessesen- abarquetoda transcendênciaenquanto conteúdo noemático possível.
tido, envolve o mundo todo (do qual é independente em sua essência
E é justamente com base nesse conteúdo visado, o qual se manifesta
mais geral), abarcando todas as transcendências em si mesma. Dessa de modo evidente, que se pretende resolver o problema das condições
forma, o mundo natural inteiro faz parte do campo da consciência pura de possibilidade do acesso a qualquer objetividade possível. Trata-se
mas não como mundo real existente em si e por si(o que foi suspenso de investigar as sínteses intencionais por meio das quais ao conteúdo
pela epoc/zé), e sim como correlato intencional, como rzoei7zcz6i. noemáticoevidente é atribuído validade de ser transcendente ou, em
O noema não é uma parte real, interna às vivências, tal como a$ outraspalavras, de que maneira a noção de transcendência objetiva é
sensaçõese os alas, masé o que Husserl chama de componente inten- paulatinamente constituída com base no conteúdo noemático imedia-
cional das vivências (Cf. Idl, S 88). Trata-se do ser enquanto visado, en- tamente dado. Esse é o núcleo das análises constitutivas de Ideias l
quanto correlato de um ato de consciência que a ele se refere. Husserl Husserl dedica as duas últimas seções desse livro à análise cons-
sistematiza por meio dessanoção a ideia vigente ao menos desde 1906 titutiva, para dali extrair consequênciaspara a fenomenologia como
jconforme visto no capítulo anterior) de que o correlato intencional da uma teoria geral da razão enquanto afirmação justificada do ser efe-
consciência deve fazer parte da investigação transcendentalõz. Ê im- tivo. Desse modo, a análise constitutiva deve tornar visíveis as diversas
portante esclarecer que o noema não é uma espécie de representação operaçõessubjetivas que a partir da pura fenomenalidade evidente (o
interna à consciência e que operaria como uma "imagem do mundo" resultadodireto da epoché)abibuem diferentes sentidos de ser ao dado
após esseter sido reduzido fenomenologicamente. O noema não é um fenomenal,até a noção de ser eáetívczmente
existente.Não pretendo
tipo novo de objeto nessesentido; parece mais correio compreendê-lo acompanhar essasquestões, mas sim extrair algumas consequências do
como resultado de um novo modo de fematízar os objetos da orienta-
caráterconstituinte ou transcendental da consciência pura, enquanto
ção natural. Não há, nessa interpretação, um mundo de noemas criado
tema da fenomenologia, em relação às demais ciências. Mantenho-me,
pela redução;o que há é uma orientação não natural do pensarem re- assim,voltado para as preocupações gerais que me guiam neste traba-
lação aos mesmos objetos dados na orientação natural. Segundo essa lho, a saber,o problema da demarcaçãoentre filosofia e ciências e o
orientação não natural, os objetos são tomados somente em sua mani-
problemada fundamentação das ciências pela filosofia. Para isso, re-
festação fenomenal evidente e não como entes em si; são considerados construirei algumas teses dos parágrafos 56, 59-62 de ideias 1, textos
emque Husserlreflete sobreo impacto da orientação fenomenológica
61. Tal como observa L. Tengelyi, na segunda parte de Ideias 1, Husserl tem de paraasdemais atividades científicas
reunir as esferas de ser (consciência e mundo) que ele havia separado para delimitar o
resíduo "absoluto" da redução fenomenológica. A ênfase na intencionalidade pretende
justamentecumprir essatarefa.Cf. Tengelyi, 2010
62. Há interpretações divergentesacerca da noção de noema, e aqui, para Aplicação da epoché àscíêncÍas
longas digressões, assumirei uma delas comia corneta, embora admita que haja ampla
margem de divergência acerca do que exporei sucintamente a seguir. I'ara uma exposi' No parágrafo 56, Husserl acentua que a suspensão da validade exis-
ção detida das principais posições conflitantes sobre o noema, cf. Zahavi, 2004 tencialdo mundo natural pela epoc/zéfenomenológica atinge também

148 149
A fenomenologia como ciência eidética e transcenden@l
A cientificidade na fenomenologia de Husserl

Notemos que somente o domínio eidético material da consciên-


cianão é suspensoEmbora "consciência" também seja um domínio
ontológicomaterial, tal como a região eidética "natureza", as essên-
ciasreferentes ao primeiro domínio são essências de eventos imanen-
tes,passíveisde ser atestadosem intuição evidente. E a redução feno-
menológicasuspendea validade do que é transcendentepara acom-
panhara c:nstituição do seu sentido de ser por.meio daquilo que é
imanente.Desse modo, somente o domínio eidético material da cons-
ciênciapura resiste à epoc/zé, e a fenomenologia, assim como já ocor-
riaem relação às ciências naturais, não se servirá de nenhum conheci-
mentooriundo de outras ciências eidéticas materiais para construir as
astesesó3.
Todas as disciplinas eidéticas materiais transcendentes su-
jem dadaa possibilidade de estudar objetivamente seu domínio eidé-
lco, exatamenteo que a fenomenologia pretende esclarecer.Daí por
e avalidade dessasdisciplinas também seja suspensa e elas nada con-
ibuampara a resolução do problema transcendental.
Haveráuma dificuldade particular no que tange às disciplinas ei-
:loasque constituem o domínio da /ógícczpura ou oizto/agia forma/.
lbe a essaúltima oferecer uma teoria geral sobreas categoriasformais
pilaresque permitem construir conhecimentos significativos e váli-
acerca de quaisquer áreas específicas do saber. Há um conjunto
categoriasbásicas (tais como verdade, relação, proposição, objeto
.l que implicam restriçõeslógicas a ser seguidasem qualquer tipo
)esquina,
e há também certos métodos de legitimação do conheci-
lto aprovas
do cálculo proposicional, silogística etc.) que garantem
:idade das cadeias de inferência a respeito de qualquer assunto. O
lecimento que merece o nome de científico é aquele fundamen-
rigorosamentepor princípios que compõem esseconjunto de res-
:s formais. Ora, se é assim, se o conteúdo teórico da oncologia for-
l valeparaqualquer investigação científica, parece então que a feno-
)logiaé por ele condicionada. Não caberia, desdeentão, aplicar a

53.E o que Husserl deixa claro no seguinte trecho do parágrafo 60: "regiões e dis-
eidéticastranscendentesnão podem por princípio contribuir com nenhuma de
missas
parauma fenomenologia que pretenda efetivamentese ater à região das
puras" (Idl, 143).
enquanto uma dimensão eidética abstrata)
151
150
A cientificidade na fenomenologiade Husserl A fenomenologiacomo ciência eidética e transcendental
4.

epoc/zéà ontologia formal, e, por conseguinte, a fenomenologia .ue ja fenomenologial poderia oportunamente lançar mão, seriam por-
dependente de ao menos um tipo de doutrina científica objetiva tantosomente axionzas lógicos, como o princípio de contradição, cuja
é o problema central do parágrafo 59 de Ideias I'4. Diante dele, o palidezgeral e absoluta ela poderia, no entanto, tornar exemplarmente
nomenólogo propõe uma solução engenhosapara fazer valer a Zf)oché evidenteem seus dados próprios" (Idl, 142). Desde então, mesmo a an-
ao menos em relação a grande parte da oncologia formal. Trata-se tologiaformal, ciência dos fundamentos lógicos mais geraisdo conhe-
acentuar o caráfer descrífívo da fenomenologia, tendo em vista garantir cimento,deve ser suspensa pela epoc/zée, assim, não poderá servir de
a autonomia dessaúltima em relaçãoà ontologia formal. As tesesdak. premissapala o avanço. das investigações fenomenológicas.
nomenologia devem ser formuladas em estrita evidência; nada do que ' Vê-se,dessamaneira, que Husserl constrói uma ampla demarca-
ela defende no que se refere à consciência deve ultrapassar os limites çãoda fenomenologia em relação a todas as outras ciências, sejam essas
do que se doa de modo intuitivo. Não se trata então de propor longas empíricasou eidéticas. No parágrafo 62 de Ideias 1, ele tematiza essa
cadeias dedutivas, que se sustentam muito mais pelo caráter tÍI)ico d. demarcaçãocom base na oposição terminológica, fixada no parágrafo
certas passagenslógicas do que por uma apreensãoevidente do sentido 26,ente ciênciasde orientação dogmática e ciências de orientação fi-
daquilo que é veiculado em cada inferência. A fenomenologia secon- losófica.Fica agora patente que todas asciências afetadaspela redução
tenta com inferências simples, que se exibem com evidência, sãoassim fenomenológicasãodogmáticas, no sentido em que elas sãoproduzidas
sedimentadas e fomentam novas inferências simples, sem que haja, em semque se busque esclarecer quais são suas condições transcendentais
nenhum momento, extração de conclusões meramente por força de desentido. Por sua vez, também torna-se patente que a ciência filosó-
restriçõeslógicas independentes da apreensãodireta daquilo que é con- ficapor excelência, que justamente vai exercer uma crítica fundamen-
cluído's. Dessamaneira, a ontologia formal não é um pressupostoteó- tadoraem relaçãoa todos os conhecimentos dogmáticos,é a fenome-
rico da fenomenologia, já que grande parte do conteúdo temático dessa nologia.Caberá a ela, a partir da investigaçãointuitiva das estruturas
antologia se refere à "teoria das formas dos sistemas dedutivos em ge- daconsciência pura, revelar quais são "os pontos de partida imediatos
ral" (Idl, 141), sistemas que não são empregados pela fenomenologia. possíveis"
(Idl, 148) para que qualquer empreendimento científico se
Em todo caso, deve-sereconhecer que a fenomenologia seguia por desenvolvade modo legítimo. Dessamaneira, com baseno estudodas
alguns princípios lógicos gerais,ainda que muito genéricos. É impor- estruturasmais gerais da consciência, tornar-se-á compreensível como
tante observar que mesmo aí não é preciso remeter à antologia formal osconhecimentos são produzidos e sistematizados em estruturas teóri-
para garantir a validade dessesprincípios. A estratégia aqui é enfatizar casválidas.Husserl asseveraque
a evidência intuitiva inerente a eles.A formulação teórica da fenome- estãocontidos na fenomenologia todos os conhecimentos eidéticos
nologia supõe apenas noções lógicas que se confirmam com clareza na 1...) com os quais se dá resposta aos problemas radicais acerca da
própria análise dos dados fenomenológicos: "as proposições lógicas, de 'possibilidade" de quaisquer presumíveis conhecimentos e ciências
Como fenomenologia aplicada, ela Eaz,portanto, a crítica que adere
o valor último de toda ciência em sua especificidade de princípio e,
64. "Toda vivência pura também está subordinada ao sentido lógico mais ampla
de objeto. Não podemos, pois assim parece , colocar a lógica e a oncologia formal
com isso,realiza em particular a determinação última do sentido do
fará de circuito" (Idl, 141) 'ser" dos objetos e a clarificação de princípio do método dessaciên-
65. "jAI investigaçãoda consciência pura não se coloca (. . .) outra tarefa senãoa cia (Idl, 148)
da análise descritiva, que ela tem de solucionar em intuição pura: neste caso, asformas
de teorias das disciplinas matemáticas e todos os seusteoremas mediados não podem ter Aqui, atribui-se à fenomenologia a tarefa de aferir o valor último de
nenhuma serventia para ela" (Idl, 141) todaciência, e isso por meio da clarificação do sentido de ser dos seus

152 153
A cientificidade na fenomenologiade Husserl A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

condiçõessubjetivas, para que todas as ciências estejam feno-


as
comente fundamentadas. Era assim que Husserl pensavaem
menologi
rica e transcendental, a fenomenologia pura almeja c arificar as merzos Porém, ao menos desde 1906-1907, como vimos no ca-
está.
luras a príon de fitos subjetivos que tornam possível a constituição anterior, ele reconhece que há pressupostos materiais a pHorí
nificativa de qualquer experiência concebível. Ora um tema PÍHlo
particular condicionamo desenvolvimento das ciências não formais. Estão
que
no interior desseplano global é aquele da legitimidade ou clentifjci. nessesconceitos ontológicos certas restrições d priori que não
contidas

nhecimento
--'-H
é possível significa oferecer a ele uma fundamen
sãopuramente lógicas mas que remetem às relações dos conteúdos es-
tação es pacíficos das regiões em questão, conforme desenvolvido no início de
pecífica, tornando visíveisas condições transcendentais cu lo não cuU. r. Essasrestrições a priori circunscrevem, em termos de possibili-
IdeÍcls
primento inviabilizaria toda empreitada científica No entanto, no final ideais, os tipos de fenómenos daquela região ontológica em vista.
dades
do parágrafo 62, Husserl admite que não avançará na exploração desse
Daí que parafundamentar as ciências materiais não bastater claras as
tema em Ideias 1, e que ali ele somente adianta reflexões que )ustamente lógicas, pois também é preciso levar em conta essasrestri-
suas
perfazem o tema do ferceírolivro de Ideias, o qual nunca foi publicado
çõe: a príoH impostas pela estrutura interna de cada domínio temático.
em vida66.Proponho então acompanhar como essetema da fundamen. Por exemplo, uma análise bastante simples das coisas materiais reco-
t8rãn fpnomenológica das ciências foi esboçado em ideias lll.
nheceque elas têm cores e que, por sua vez, as cores supõem a exten-
sãopara se manifestar. Essaconstatação exemplifica uma regra a príod
As tarefas clarificadoras que delimita todos os casos possíveis de coisas materiais em relação a
esse aspecto. Essa regra eidética pode ser assim formulada: "toda exten-
No parágrafo 19 de Ideias /ll, Husserl retoma a ideia lançada em
sãoé colorida". Nega-la em uma investigaçãoempírica, afirmar, por
Pro/egõmenosde que há uma imperfeição teórica nas ciências, uma vez exemplo,que "a extensãoque se busca aqui não é colorida" significa
que seuspressupostosmais básicosnão estãodevidamente expostos e desrespeitar
um princípio eidético material puro. Note-seque não se
compreendidos. Acentuam-se agora os conceitos ltliiilniiitaitetnlnniH tratade apontar nenhuma falha lógica nessejuízo particular, nenhum
ciplinas, aqueles que circunscrevem a sua região ontológica de atuação descumprimentodas regrasda ontologia formal. No entanto essejuízo
e que permitem que essaregião seja legitimamente investigada. Esses deveser descartado não somente por razões empíricas, e sim porque
conceitos devem ser clarificados para que se torne explícito o caráter violauma restrição eidética a /)ríorí, uma restrição material ou sinté-
fundamentado e sistemáticodo conhecimento científico. tica, que trata da articulação de conteúdos possíveisde um domínio e
Em primeiro lugar, há os conceitosformais,ou seja,as categorias nãosomente de formas lógicas vazias.
mais amplas de significação e de objeto, sobre as quais a investigação Ainda em relaçãoao método de clarificação, no parágrafo20 de
de qualquer domínio deve se desenvolver. Em seguida, é preciso le\ar Ideias111é expostoum duplo aspectoda sua aplicação.Primeiro,
em conta os conceitos ontológico-regionais, que delimitam domínios Husserlpropõe uma separaçãoentre "tornar claro" (clarificar) e "tor-
de ser, isto é, áreas materiais específicas a se explorar. Não basta, assim, nardistinto". Essaúltima operaçãoé um procedimento que ocorre so-
remeter os conceitos formais à sua origem fenomenológica, desvelando mentena esfera do pensar lógico. Trata-se de elucidar o significado de
um conceito, de formular expressõesque veiculem o sentido ali con-
66. ."Com isso, entretanto, estamos adiantando fiJturas exposições (do terceiro livra tido analiticamente. Bem diferente disso é a clarificação, um proce-
destetrabalho"(Idl,148). ' ' ' dimento que não se limita a desenvolver linguisticamente o conteúdo

154 155
A cientificidade na fenomenologia de Husserl A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

conceitual analítico, mas que pretende reconduzi-lo aos atossubjetivos intuitiva da essênciaem pauta, a qual deve ser fixada justamente como
por meio dos quais recebeu seu sentido. Trata-se aqui de averiguar se aquiloque era visado pelo sentido conceitual analisado. Um conceito
a esseconteúdo conceptualcorresponde momentos intuitivos, delimi. basilarestá bem fundamentado; desseponto de vista, se exprime cor-
bando, dessemodo, o sentido do conceito ao oferecer um lastro de evi. retamente características eidéticas em questão que devem valer, ceteds
dência para avaliar os seusdiferentes usoslinguísticosó paHbus,para todos os seus casos empíricos possíveis. Husserl oferece o
Husserl sugere que a clarificação, ao tornar visível a correspondên- exemplode clarificação do conceito "coisa Hsica" (Cf. Idlll, S 19, 100)
cia ente momentos conceituais e momentos intuitivos, permite fixar Esseconceito deve veicular os aspectosessenciaisda região ontológica
com precisão o sentido dos termos científicos, evitando equívocos ao "coisa",tais quais materialidade, determinações espaçotemporais, in-
salientarqual é o uso conceitual relevantepor meio da referênciaà sua serção
em nexoscausaisetc. A clarificação atribui evidência intuitiva a
origem intuitiva. Rejeita-seaqui uma fixação meramente estipulativa de essas
característicasconceituais delimitadoras da região "coisa". Desse
sen\tdo, ao menos para os conceitos mais básicos das disciplinas cientí$- modo, fixa-se o sentido do conceito pela explicitação evidente das ca-
cas. Os conceitos científicos fundamentais devem exprimir as principais racterísticaseidéticas que deveriam ser por ele veiculadas.
relações e restrições do domínio ontológico a ser investigado. Tais con- Husserl acentua que, além desseaspecto da clarificação, ligado às
ceitos devem então ser remetidos à apreensão intuitiva dos aspectoseidé- relaçõesentre conceito e intuição correspondente,há uma tarefaes-
ticos que justamente delimitam tipos de ser (no casodos conceitos ma- pecíficano que tangeà própria doaçãointuitiva do tema em questão
teriais) ou tipos de relações formais (no caso dos conceitos formais). Por ICf.Idlll, S 20). Nesseponto, não se trata de remeter o conceito aosas-
meio da clarificação, Husserlpretende remeter o conteúdo dessescon- pectosnoemáticos da essência correspondente, mas de problematizar
ceitos aos noemas intuitivos por meio dos quais aquilo que é significado aprópria doação intuitiva da essência conceitual em questão. Aqui, a
se apresenta de modo evidente. Ora, aquilo que os conceitos básicos de- clarificação significa justamente tornar acessível a doação intuitiva da
vem veicular são os caracteres essenciais da região ontológica ou do prin- essênciaregional em vista, o que, por sua vez, implica avaliar a clareza
dosaspectos invariantes obtidos por meio da variação dos casos indivi-
cípio lógico em questão. Clarificar essesconceitos, remetê-los à origem
duaisde partida. Se necessário, como já apontado nos parágrafos 67-
intuitiva, significa, assim, reenviar o conteúdo conceitual à apreensão
69de Ideias 1, deve-seintensificar a evidência intuitiva eidética, o que
podemesmo exigir que se alterem os exemplos de partida.
67. J. Mohanty observaque nessaanáliseclarificatória se torna patenteo cará- A clarificação fenomenológica é, assim, apresentadacomo uma
ter aplicado ou especializadoda fenomenologia em relação as.tarefas.gerais da análise
constihtiva: "a fenomenologia não é mais uma ciência morfológica de essências,mas dupla tarefa: por um lado, buscar o máximo de clareza ou vivacidade
uma tentativa radical de clarificar sentidos,de levar formações signi6tcativasde ordem possível
em relaçãoà doaçãoda essênciaem questãoe, por outro lado,
superior a camadas mais básicas de sentidos e aos alas apropriados const.ituintes de tais buscaro maior grau possívelde preenchimento do conteúdo concep-
formações. Enquanto a busca por essências é guiada pelo ideal de verdade apodítica,
a atividade clarificação de sentidosé guiada pela meta de retornar à experiência 'origi- tualem vista pelos dadosintuitivos eidéticos. E pela conjunção dessas
nária"' (Mohanty, 1987, 202). Não creio, enbetanto, que se deva exagerar as supostas duastarefasque Husserl pretende fundamentar fenomenologicamente
particularidades'da clarificação enquanto fenomenologia apli.cadaem contrastecom.a asciências. Trata-se de um prometojá presente em Pro/egõmelzos,como
fenomenologia pura. Afinal, como veremos logo na sequência.do texto, a expe':ência
originária que se tem em vista na clarificação é justamente a doação intuitiva das.ca-
remissãodas estruturas objetivas da lógica pura à sua origem atestató-
racterísticas eidéticas que devem preencher o sentido dos conceitos. A busca apodítica ria.Clarificar os conceitos, desdeaquela obra, é explicitar os fitos em
pelas essências ainda é, assim, central para a fundamentação das ciências. Em suma,
queo conteúdo conceitual é apreendido e reconhecido com evidên-
na clari6cação trata-se'ainda de análisesconstitutivas, porém circunscritas ao âmbito
da cientificidade. cia.E essaideia de origem fenomenológica que ainda guia Husserl em

156 57

l
A cientificidade na fenomenologia de Husser] A fenomenologia como ciência eidética e transcendental

Ideias JI/, embora submetida a duas


Essas distinçõesde regiõesontológicas fundamentam a separação
formal em um conjunto de ontologias Assim, por exemplo, a ciência física da natureza se
materiais) e da noética em fenomenologia transcendente das áreascientíficas
nvestlgar os caracteres materiais dos eventos mundanos sem
limita a
conta as particularidades dos organismos. Por sua vez, a ciên-
levarem
vivos centraliza-se nos fatos que instanciam as especifici-
A fundamentação das ciências pela :ratificação, e o cia dos seres
dos organismos, sem trata-los como meros eventos da
casoespecialda psicologia jades eidéticas

Clarificar osconceitosde basedasciências(sejam .rdern física. Dessa maneira, as característicaseidéticas funcionam


eles formaisou cornor egrasa príoH que delimitam os tipos de características e relações
materiais) é então reconduzi-los à apreensãointuitiva de um determinado domínio se compõem,além de
das característi. de que os fatos
cas essenciais por eles expressas. Quanto às ciências um modo privilegiado de abordagem para que tais fatos
materiais, Husserl prescreverem
apresenta três diferentes regiões on
[ológicas cujas características esses sejam conhecidosconforme as característicasprincipais do domínio
dais de certo modo coordenama apreensão do nosso mundo
a que se subsumem6ç. Assim, por meio das ontologias materiais, deve
rico factual. Lembremo-nos de que fora estabelecido em Ideias r empÍ circunscrever tanto as principais características dos objetos
que os ser
fatos não são meras
singularidades incomparáveis, mas portadores de de um domínio possível quanto asformas de experiência privilegiadas
características gerais, e que seria possível analisar essascaracterísticas
para obtençãode conhecimento naquele domínio (Cf. IdITI, S 3) As
gerais em sua pureza, isto é, independentemente de sua mstanciação essênciasreglonats operam, desse modo, como pressupostosteóricos,
em situações concretas. Assim se formulariam ontol ogiasregionaisou como formas sintéticas a priori que delimitam o âmbito e o sentido dos
materiais, quer dizer, explorações sistemáticas das métodosdas ciências empíricas
característicaseidé.
ricas que circunscrevem domínios
possíveis de objetos. É a esse tema Aqui é preciso retomar aquela distinção, lançada em Prolegõmenos,
que Husserl retorna em Jdeías //J. de mnnr.irn h.
m mais específica,iá entrecondiçõesobjetivas e subjetivas do conhecimento para enten-
que ali é dito que nossomundo natural permite a explicitação de pelo dercorretamenteo que Husserl tem em vista em Ideias 111.Conforme
menos três regiões eídéficas: "coisa material". jásugerido no capítulo inicial de Ideias 1, as características essenciais
organismo" e "psique"
(Idlll, 1). Há uma estratificação constitutiva
entre essasregiões: o or- quedelimitam as regiões materiais devem ser a princípio tema de ciên-
ganismo se erige sobrea materialidade física das eidéticas.E assim, por exemplo, que ao estudo empírico do espaço
e,porsua vez,a psiquese
erige sobre o organismo; e cada nível eidético corresoondeuma doutrina pura do espaço,a saber,a geometria.Da
ras novas em comparação com os níveis anterioresõ8. mesmaforma, em relação aos aspectos eidéticos da coisa material, do
organismoe da psique caberia o desenvolvimento de ciências eidéticas
próprias, as quais por sua vez fundamentariam as ciências empíricas

69. Por exemplo, os métodos para investigar os organismos, se pretendem apreen'


der o que há de específico na vida, não devem ser os mesmos da apreensão das coisas
materiais,embora 'suponham a vigência dos conceitos referentes ao nível físico. Cf
Idlll, S 2. Tal como afirma T. Klein, "os conceitos sobre o corpo vivo só podem ser in-
troduzidos,ou emergem do interior de, em uma rede conceitual que já inclui os con-
ceitossobrea coisa material, enquanto essesúltimos podem ser inboduzidos em !edes
conceihais em que faltam os primeiros. No caso dos conceitos sobrea psique, eles já
pressupõem os dois tipos em uma rede conceptual". (Klein, 1996, 7 1)

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A cientificidade na fenomenologiade Husser]
A fenomenologia como ciência eidética e transcendental
B:M
correspondentes ao distinguir os
de uma investigação da consciência somente com base
condicionam. Nesse sentido, as
a pHorí que delimitam as possibilidades ideais ligadas à
da oncologia formal, doutrinas
consciência possível. E, como ciência eidética, a fenomeno-
ciências empíricas. Por sua vez, a
meter os conceitos científicos às suas investiga as estruturas a príoH do domínio da cons-
Daí Husserl afirmar, no parágrafo 8 de Ideias 111,que "nós pos-
condições sub/efívas da produção do
na, assim, realizada em na forma de fenomenologia -- uma porção considerável da
loção às ciências racional" (Idl11, 37), quer dizer, uma porção considerável da
dut)ta que funda o conhecimento empírico sobre os fatos psí-
Em outro trecho do mesmo parágrafo, o filósofo confirma esse
logicamente as disciplinas
objetos passíveis de fundacional da fenomenologia em relação à psicologia: "deve ser
não há ontologias a fenomenologia, ou melhor, a doutrina eidética das vivências
cas existentes, mas o seu incorporadana ideia de psicologia racional, abre um campo
de verdades, as quais, enquanto se relacionam d priori aos esta-
desenvolvera Ontologia
var a experiência e o conhecimento enriquecem infinitamente o conhecimento psicológico
nível de compreensão70.
Por outro Dessemodo, enquanto doutrina eidética de uma região de
gem intuitiva aquilo que foi estabelecidode .z priori (a consciência), a fenomenologia fundamenta o co-
crinas eidéticas, tornando nhecimento empírico dos fatos que exemplificam as estruturas a pHorí
objetividade eidética em detal região, ou seja, fundamenta a psicologia empírica
Importa agora destacar As relaçõesentre fenomenologia e psicologia são mesmo tortuo-
particular, essa dupla sas.Vimos que, na primeira edição de l7zvestígações
/ógícas,Husserl
ber, no caso da psicologia. A nomeou a fenomenologia de psicologia descritiva, apropriando-se da
herançabrentaniana. Alguns anos depois, para marcar a especificidade
tanto os fundamentos eidéticos (já
ciência pura, isto é, das dainvestigaçãopor ele almejada, recusou de modo veemente a iden-
os
fenómenos concebíveis tificação entre fenomenologia e psicologia descritiva. Agora o autor
tais (ligados à voltaa aproximar ao menos em parte fenomenologia e psicologia, uma
lógicos formam uma vezque se compreenda bem a distinção entre antologias eidéticas ma-
como todos os fatos, os eventos teriais e ciências empíricas correspondentes, distinção ausente em
des, mas portam características l7zvestígações/ógícas.Em Ideias 111,a psicologia, enquanto ciência em-
sua
forma pura, quer dizer, em suas pírica, é apresentada com a base de suas investigações em ocorrências
volver uma psíco/ogía rczcíona/ não no reais,em fatos concretos que se explicam por meio da formulação de
hipótesese teorias. Ora, a própria compreensão do que é um fato psico-
lógicoem oposição,por exemplo, a um fato da naturezafísica pressu'

;$$bhHWlw )ui: põea delimitação eidética da região "consciência". Essadelimitação,


baseadaem puras possibilidadesideais, cabe à fenomenologia, dou-
trina da consciência pura. Nesse sentido, psicologia e fenomenologia
160
161
A cientificidade na fenomenologia de Husserl
A fenomenologia como ciência eidética e transcendental
não se confundem. A
casos reais Nessesentido, todo objeto possível faz parte do âm-
(aquilo que
H menológ co enquanto ser experienciável. Por isso ela envolve
oito
referem as teorias outrasregiões eidéticas, já que importa considerar asessências
todas as
fica que procuraleise delimitam asregiões eidéticas como correlatas dos nexos de expe-
para isso se serve de casos em que elas são atestadas com evidência.
ciência
vestigação das essências. Aqu estánovamente em jogo a conversão de orientação tão mar-
dadospela cante da fenomenologia. Husserl sugere que as ontologias são monta-
análise eidética das na orientação natural do pensar. No parágrafo 15 de Ideias 111,o
nologia oferecem clareza filósofo
dá o exemplo da geometria, a qual admitira o caráter eidético
empírica (Cf. Idlll, S do espaço sem uma investigação correspondente das condições trans-
em dimensõesteóricas cendentais ali em jogo. Em seguida, Husserl acentua que para inves-
Nessesúltimos tjgar
tais condições é preciso uma mudança de orientação do pensar,
cia eidéticade de modo a explicitar as vivências da consciência nas quais os temas
papel fundacional antologias aparecem, esclarecendo, assim, quais estruturas da cons-
Poréma ciência tornam possível o acesso às essências. Na orientação natural
também é ciêncí, em que asantologias são montadas, os conceitos regionais básicos são
um modo particular não só a postos
como axiomas com validade objetiva. Revelam-se aqui, sem dú-
Ontologias e, pressupostos
do conhecimento empírico. Contudo, para realizar
tes. Husserl aponta uma fundamentação completa das ciências, Éaz-senecessário esc/atacar
menológica nos ascondiçõessubjetivas que tomam possíveisa posição e o conhecimento
enquanto análise das c/esses
conceitos básicos. [)esse ponto de vista, a fenomeno]ogia trans-
menologia é uma cendental é "a ciência das 'origens', das 'mães' de toda cognição" (Idlll,
doutrina S15,80), e a clarificação é justamente o método por meio do qual os
a estudar um único domínio conceitosbásicos das ciências são reconduzidos aos fitos subjetivos que
ontologias puras. Conforme tornampossívela sua posição como válidos objetivamente.
todo, e a Veremos,no próximo capítulo, que a explicitação dessascorrela-
coloria racional çõesestruturais estáticas entre as essências e os atos subjetivos de ates-
A sequênciadessetexto tação de seu sentido não esgota a tarefa clarificadora fenomenológica,
gia abarcatodasasontologias que será desdobrada na investigação da gênese das características eidé-
axiomas, na medida em ticasdasregiões científicas na experiência pré-teórica.
tos de consciência
cendental,a
nas d um domínio
cimento de relações

162
163
CAPITULOlll

Método estático e método genético


na fundamentação das ciências

Apresentação
Acompanhamos no capítulo anterior a montagem do prometode
fundamentação
transcendentaldasciênciaspor meio da clarificação
de seus conceitos basilares, prometo esboçado em Ideias l e Ideias lll.
Nessestextos, Husserl propõe uma estratificação do conhecimento
científico: as ciências empíricas tratam dos fatos mundanos, os quais
não são totalmente contingentes mas partilham de atributos eidéti
cos que podem ser explicitados de modo puro (sem a pressuposição
daexistênciade indivíduos concretos que os exemplifiquem) e, desse
modo, dão ocasião a investigações eidéticas. Os aspectos eidéticos ma-
teriais são aqueles que circunscrevem regiões ontológicas, ou seja, ti-
pos de ser específicos. Além disso, há os temas eidéticos puramente
formais, relativos à forma das significações e dos Juízospor meio dos
quaiso conhecimento em relação a qualquer área material é expri-
mido. Husser] defende que o conhecimento eidético é fundente em
relação ao conhecimento empírico porque delimita as características
principais dos fenómenos a se investigar concretamente e prescreve

165
A cientificidade na âenomenoJogia de
métodos estático e método genético na fundamentação das ciências.

tos eidétjcos .} r;} l;,'»,

será aplicada. Husser tematiza o sentido dessa estratégia em alguns momentos


particular, a inv 1.No final do parágrafo17 é anunciadaa tarefade recen-
de/delas
tos centrais do eidéticossupremostendo em vista a subordinaçãodos
diretamente ,s concretosà sua região eidética correspondentee, por con-
indivíduos
Neste terceiro seguinte
a produçãode conhecimento empírico fundado eidetica-
tido como esse Assim, grande parte do problema da clarificação dos diversos
mente.
Husserl refletiu científicos se resolveria com esserecenseamento,in-
conhecimentos
Veremos lastreado das diversas regiões do ser caque saoos con
Hitivamente
bre esses Feitos eidéticos amplos (que exprimem gêneros supremos) aqueles que
ampliação justificariamas próprias divisões das disciplinas científicas. Essa ênfase
giba, de modo , nos conceitoseidéticos formais e regionais é retomada nos parágrafos
constitutivos. a 52 de Ideias J. Ali, é afirmado que tanto os conceitos eidéticos
Conhecid, formaisquanto os materiais, postos de modo ingênuo pelas ontologias
tema geral da correspondentes como válidos objetivamente, designam hdíces para
posto em um novo a análiseconstitutiva. Essetema é, como veremos a seguir, desenvol-
de vidomuito mais em relação às ontologias materiais, tópico que passoa
da acompanhara partir de agora.
Segundo o parágrafo 149 de Ideias l, "cada região oferece aqui o
Êocondutor para seu próprio grupo fechado de investigação" (\d\, i64).
Assim,em relaçãoa cadaesferaontológica ampla, que delimita um
As Correõesoeseicaticas entre regiões eidétÍcas e
tipo geral de ser (por exemplo, região "coisa" ou "consciência"), deve-
$emostrar como as principais determinações eidéticas ali em vigor su-
põem operações específicas da consciência. Cada objeto individual é
determinado por suas características eidéticas, o que envolve exigên-
ciasa pHorí em relação ao tipo de intuição e aos graus de clareza de re-
presentaçãocom que esseobjeto é cognitivamente apreensível. Assim,
no nível das essências,já ocorre uma delimitação das possibilidades
de doação ou atestação dos objetos subsumidos a seus respectivos gê-
neros regionais. Husserl afirma no parágrafo 150 (tomando por base o
exemploda região ontológica "coisa") que a "ideia de região prescreve
sériesde aparições inteiramente determinadas, precisamente ordena-
das, progredindo írz ín/irzíhm, rigorosamente fechadas enquanto tota-
lidade ideal" (Idl, 370). Cabe aqui à fenomenologia elucidar essasne-
cessidadeseidéticas, tornar visíveis as sínteses da consciência por meio
das quais tais necessidades são atestadas, enfim, revelar os complexos
]66
167
A científicidade na fenomenologiade Husser]
estático e método genético na fundamentação das ciênoiBS
.} i/ } r 'r .

o ponto de vista que serve como fio condutor para a


vista é aquele das cíêncíczs7zaturais'
Trata-se,assim, em Ideias 111,de recuar das regiões objetivas estu.
dadas pelasciências naturais até as síntesessubjetivas que tornam pos-

cível o reconhecimento de tais regiões. Entretanto, Husserl admite ali


no mesmoparágrafo que considerações bem diversas provavelmente
seriam formuladas se se tomasse a f)osso.z/idade esPírífua/ como domí.
nio ontológico autónomo E é exatamente essaregião ontológica que
na proposta de Ideias llJ: a região do espírito (no sentido da pessoa-
lidadeconcreta e suasproduções culturais intersubjetivas), cujas parti-
cularidadesconstitutivas não são exploradas nesselivro
Deve-senotar aqui que já se havia apontado para o espírito na for-
mulaçãodo tema das regiões ontológicas como fios condutores para a
análiseconstitutiva, em JdezasJ. E verdade que ali Husserl nao seguia
nenhumaorientação particular em que asciências dogmáticas saopro-
duzidas,interessando-lhe muito mais unir todas as produções científi-
cassobas tesesda orientação natural do pensar, à qual contrapunha
a orientaçãofenomenológica. Ainda assim, isto é, mesmo sem acen-
tuar uma orientação persona/isca do pensar, reconhece-se que as pes-
soam e suas comunidades formam, sim, objetos de uma ordem superior,
a da cíví/íz.zção entendida como um amplo contexto de instituições
e práticas culturais regidas por diversos tipos de valores (éticos, estéti-
cosetc.):. E, quanto a essanova ordem, são apresentadascaracterísti-

1. "Se objetos psíquicos se conectam com outros, estão combinados em associa-


ções,sociedadesde diferentesníveis, issonão produz novas obÍetidades ]Ob;elüfdfen]
emrelaçã.oà fulldação pela naturezaoriginal. (...) O que se tem aqui, do ponto de
vistada ciência natural, é um certo número de indivíd'uos humanos, cada un] com
umaconsciênciaparticular, uma psique particular com um ego particular pertencente
a.cada uma. .(.....) O. que aparece aqui é sempre somente novos estados das psiques in-
dividuais"
(Idl11,20). ' ' '
2. Essaposição é mantida no curso Lógica e fecha gerei/da cíêrzcia,ministrado por
sserlem 1917-1918 e publ.içado postumamente como volume XXX da coleção Hus-
ser/lona. Nesse curso, Husserl retoma a ideia lançada em Pro/egõmenosda doutrina da
ciênciaclarificadora da cientificidade de todo conhecimento. Essadouh-ina deve en-
ver?além dasdisciplinas que revelam os pressupostosformais do saber,as antologias
materiais,responsáveispela delimitação dasrestriçõesa príod que demarcamdom ínios
materiaispossíveis.Um dosdomínios materiais que exige uma investigaçãoontológica
168
169
A cientificidade na fenomenologia de Husserl Método estático e método genética na fundamentação das ciências
,r';} 4

casnão tão fáceis de conciliar. Admite-se que essenovo


rÍmento argumentativo global desse texto paul em seguida, dedi-
é fundado nos eventos tematizados pelas ciências naturais.
We a alguns problemas específicos referentes à fundamentação das
vel não seria assim completamente independente das
iciâs,obviamente sem pretensão de esgotara complexidade dessa
casexploradaspor essetipo de ciência. Contudo,

ã
riste em afirmar que os objetos dessenovo nível "são arredias ' O plano do texto parece indicar um movimento de ascensãona
interpretações psicologizantes e naturalistas" (Idl, S 152, iseconstitutiva: tratar-se-ia de tematizar as diferentes regiões on-
justamente não se deixam abarcar por uma
gicasque circunscrevem as possibilidadesde eventosreais como
cada pelas ciências naturais. Há aqui uma
=lllgoÜ/Ícadas,
ou seja,cujo nível superior seria fundado nos níveis in-
nio da cultura ou do espírito se funda nos objetos naturais fervores,
embora a cada novo nível propriedades particulares emerjam,
mas não se deixa abordar corretamente por uma orientação demodo a legitimar disciplinas científicas próprias. Dessa maneira, o
mente nos aspectos naturais dos objetos. O domínio do
fio condutor da obra é dado pelos objetos tais como estudadospelas
assim, exceder as regiões antológicas abordadas ciências,
e a tarefa fenomenológica é elucidar em cada nível temático
das ciências naturais (a orientação naturalista
quaisoperações.subjetivas permitem apreender legitimamente, em
domínio de Ideias llJ, obra que seguecomo seusaspectoseidéticos, tais objetos. Trata-se, assim, de demarcar, no
ostemasobjetivosdessaorientação.
O domínio
plano das necessidades eidéticas, as operações subjetivas que tornam
análise constitutiva particular para ter
possívelo conhecimento acerca de cada nível objetivo'
tológica, tema que foi densamente Os níveis objetivos apresentados no correr do livro são a 7zaturez
Husserl mostrará os limites das ciências naturais para lidar com @ícae, sobre ela, a rzatureza animada (primeiro, no que tange ao corpo
rito e começará a estabelecer a especificidade dessa vivoe, em seguida, à vida ps@uíca) e finalmente o mundo do espírito
que, por sua vez, será fundente das ciências do
Ocorreque, como veremos,esseúltimo nível não será simplesmente
ciências humanas, conforme nossaterminologia maisum estrato organizado sobre os níveis estruturais inferiores, e sim
umdomínio ontológico autónomo em correlação com operaçõessub-
A orientação naturaZísfa jetivasdiferentes daquelas pelas quais os níveis anteriores de objetos
eran]constituídos, ou seja, recebiam seu sentido de ser. Em outras pa-
Ideias ll é um texto que foi inicialmente produzido na sequência lavras,a natureza física e a natureza animada são objetos (em sentido
de Ideias l (por volta de 1912) e sofreu diversasmodificações no cor- amplo) que se doam em correlação com uma certa orientação do pen-
rer dos anos sem que Husserl se satisfizesse com os resultados obtidos. sar,a saber,aquela dasciências naturais (orientação naturalista). Mas
preferindo, assim,não publica-lo em vida;. A princípio, vou destacaro não será assim com o domínio do espírito, que estará em correlação
com outro tipo de orientação do pensar (orientação personalista). Essa

própria.é o.do 'espírito comum" (Husserl, 1995, S 64, 283), isto é, da vida cultural em
comunidade. Segundo o autor, "também abre-seaqui um''campo de consideraçõesa 4. Conforme observaE. Behnke, na exposiçãode Ideíczsll, "a fenomenologia
priori, uma antologia do espírito comum, uma doutrina eidética a pnorí que antecede operacomo uma metaorientação, investigando correlações essenciaisrecíprocasentre,
asas ciências do espírito empírico do mesmo modo como o a priori da natureza an- por um lado, orientações constituintes e, por outro, objetívidades constituídas, com-
tecede as ciências naturais" (ibid. ) preendendo qualquer orientação dada 'do interior' (embora sem realmente 'adotá-la')
]aç) Parauma história do manuscrito do texto até a versãopublicada, cf. Biemell e mantendo uma noção rigorosa acerca de qual orientação está em ação a cada mo-
mento"(Behnke,1996,138)

170 171
A cientifícidade na fenomenologia de Husser]
estáticoe método genético na fundamentação das ciê»das
mudança de
loções vigentes entre ; feÓdcado pensar.Segundo tal orientação, o sujeito apreendea
Eis, de modo como realidade espaçotemporal, salientando certos aspectos
.atureza
mento argumentativo Ides dos objetos em detrimento de outros que poderiam ser
mais detalhes os em correlação com outras formas de pensará.No parágrafo
das ciências por detalhar a especificidade da orientação teórica diante dasde-
3, tenta-se
cas correspondentes. orientações possíveis do pensar. Ali esclarece-se que a orientação
Dais
da orientação do é maisespecíficaque a orientação dóxica ou objetivante geral,
do objeto a que na qua simplesmenteo correlato para o qual o ato subjetivo se dirige é
grato ] desse como sendoa/go. Essaposição genérica de algo como objeto tam-
postc
piseconstitutiva bém ocorre, por exemplo, nas orientações estética ou prática. Por sua
quantoobjeto dasciências na orientaçãoteórica há algo mais específico,a saber,uma inten-
não escolhem arbitrariamente Ção atenta que apreende explicitamente o dado em questãotendo em
pnod decorrentes da essênci, da a obtenção de e7ztendíme77to. Nesse caso, não somente se vivenda
possível o reconhecimento de urnasituação conforme seus predicados típicos comumente ínanifes-
reis. E a delimitação m,is Lados
na doação perceptiva. Sobre essadoação, erige-se uma operação
natureza é o campo das atava,guiada por um interesse especificamente cognitivo voltado para
espaçotemporais" (Id]], S ], ] ajaunsaspectosdo objeto em vista, o que implica uma suspensão ao me-
como natural o domínio nosparcial das características práticas ou estéticas presentes na situação
ralmente ordenado de vividas.E importante observar, dessaforma, que a orientação teórica
nio dasrealidades.
nãoé a conte dos próprios dados que investiga, mas supõe a sua doação
Husserl admite em fitos objetivantes mais básicos, que, em última instância, remetem à
rece de
doaçãosensível'. Explorar a remissão dos dados teóricos à sua base sensí-
normalmente se vel pré-teórica seria traçar a gênese das operações cognitivas em sínteses
zem parte da essência da passivas
da consciência.Embora anunciado, essecaminho não é deta-
Husser] se refere aqui a
comumente excluídos da o que exclui os próprios modos de doação fenomênicos, já que são essencialmente ine-
realidade xatos,do domínio natural fundante
dos,o autor 6. Por exemplo, numa orientação estética, destacam-seos predicados de beleza
dosobjetos; numa orientação prática, destacam se os predicados ligados à utilidade etc
mais detalhada da 7. "Uma coisaé estarconscienteem geral de que o céu é azul, e outra coisaé
No parágrafo 2, fica viverna realizaçãodo juízo (que o céu é agoraazul) de um modo atento,explici-
tamente apreensivo, especificamente intencional. As vivências dóxicas nessa atitude.
jetivadas aparece somente em
nessemodo de realização explícita (eu penso, eu realizo um ato em um sentido especí-
fico, eu ponho o sujeito e em seguida o predicado etc.), nós as chamamos de atou teó
ricos"(Idll, S3, 3-4)
8. "Os objetos fenomenologicamente assim caracterizados os objetos primá-
-;...:,=:E=.=======:==:=:=Tã;::.H=:=1====S:::=:
sua constituição
rios,por assim dizer, aqueles aos quais todos os objetos possíveis, em conformidade com
fenomenológica, referem-se são os objefos sezzsheís" (Idll, S 8, 17)
172
173
A cíentificidade na fenomenologia de Husser]
Métodc estático e método genético na fundamentação das ciênc.jasl

Ihado em /delas 1/, e só será efetivamente


a ênfase em outros aspectosdos dados investigados''
décadade 1910,quando Husserl
somente acentuar que a natureza como totalidade es-
menologia. Eu comentarei com
é correlatade uma orientação teórica em particular, que
fundo essemétodo. Por ora, basta
os dadoscognitivos.
ção teórica, porserfundada
uma correlação estrita entre determinado modo de co-
original, como se exigisse
e um modo de caracterizar a natureza. E não se
dais pré-teóricos para se instaurar
correlação arbitrária, que corça ilegitimamente certas es-
certos aspectos em detrimento de
sobreum objeto alheio a tais determinações. Esseé um
cos a fim de maximizar o interesse
11 de Ideias 11.Ali, Husserl esclarece: "deve ser
Husserl retoma essetema
do interior, com base em fontes fenomenológicas, que
parágrafo 49e, ele afirma
de predicados pertencentes à esfera do valor e da prática
reis ê uma orieíltação
sedução de procedimentos abstraçãoarbitrária" (Idl1, 25). O filósofo crê que em seus
habituados com tais eidéticos a ideia de natureza comporta a sua apreensão como
de objetos sem valores ou qualidades estéticas.Ocorre aqui um
aquisições pessoaissedimentadas
dores podem até mesmo de suspensãoda validade de predicados subjetivos que
à própria redução fenomenológicaiz. Assim, a apreensão
poníve] ao pensar. No
não cria uma ideia arbitrária de natureza, mas suspende a vi-
orientação teórica supõe um subjetivos, para que os dados apareçam somente em
ção do sujeito
espaçotemporais apreendidas objetivamente. Não se
dos dados em detrimento
imposição dogmática de propriedades estranhas aosdados
das ciências naturais não é ela
mas de scz/sentaraspectos que a eles já pertencem e, nesse
nea ou original. E, para não confundir ta]
estãoprevistos pela própria essência da natureza.
natural do pensar (contrastada com a
Jdeías[), Husser] a nomeia
E então na Anaturezasegundoas ciênciasnaturais
cidade
Como se estrutura a natureza para a orientação naturalista? Tal
ficas ou éticas). Isso ocorre comojá vimos na análise de Ideias 111,há uma ordenação esüatí/ícada
ção teórica, quer dizer, na
(ainda a se precisar) do 11. Esse será justamente o caso da oríerzÊação persorza/isca, na qual as ciências hu
dade prático-estética-valorativa. manasse realizam
12. "Nós ganhamos uma tal ideia a priori fechada de natureza -- como a ideia de
cidade de haveroutrostipos de um mundo de meras coisas , dado que nós nos tornemos sujeitos puramente teóricos,
sujeitosde um interesse puramente teórico, e então procedamos apenas para satisfazer
aesseinteresse.Então estamosrealizando um tipo de 'redução'. Nós colocamos entre

: !Ü :l: ::l l E:x,':,;:::j:x : :si:,':


10. Expressão que aparece pela primeira vez em Ideias ll no parágrafo 12
parênteses, por assim dizer, todas as intenções de sentimento (. . .) em virtude das quais
constantemente aparecem a nós, antes de todo pensamento, objetidades espaçotEmpo'
reis,intuitivamente imediatas, carregadas de certas características práticas e de valor --
característicasque transcendem o estrato da mera coisa" (Idll, S 1 1, 25)

174
175
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Método estático e método genético na fundamentação das ciências

A natureza é inicialmente tematizada como natureza material ou fí. em função de tais relações são justamente atestadasas suas
modoque
fica, sobre.a qual se desenvolvea vida orgânica e psíquica a natureza .,jades materiaisn
animada. E assimque as ciências naturais pretendem proPli
explicar o dono F assimque se constitui a noção de coisa real dotada de proprieda-
nio da rea/idade, cubascamadas constitutivas cabe agora clarificar.
constantes,sujeitas a modificações quando submetidas a determi-
Quanto ao primeiro nível, o da naturezamaterial 0 circunstâncias ambientais. As propriedades reczissão justamente
filósofo dá
ênfase à constituição da noção de coisa material reconhecíveis em interações causais, ou seja, dependentes dos
Pode-sealemar aqui.
com razão, que por meio dessa noção o domínio da ambientais em que estão inseridas (Cf. Idll, S 15e). Husserl
natureza mate.
real ou física não se esgota,já que muitos fenómenos físicos não ne. que nesseprimeiro nível de constituição da objetividade natu-
cessariamente envolvem coisas. Contudo, antes de optar por uma aná. ascorrelações causais são apreendidas de modo f)ercePtivo. E, dado
lise exaustiva,Husserl privilegia como fio condutor uma noção básic; perfilado inerente ao que é percebido, então, nessenível, a
que terá papel fundente na constituição de ao menos um coílceito cen. jamais se doa de modo a esgotar completamente suas característi-
trai das ciências naturais, aquele de ob/eto /bico. Assim, ainda quenão cas(Cf. Idll, S 16). Cabe então à ciência prosseguir com a determina-
exaustiva, a análise da natureza material tomando dosnexosde relaçõescausaispara além da doação interminável das
por fio Condutora Ção

noção de coisa pretende servir de modelo para a compreensão dasprin. coisas na experiência imediata:s
cipais etapas de constituição das noções científicas naturalistas, estabe. Vale enfatizar que os níveis de realidade objetivo apresentados
lecendo, desde então, as basesde uma reflexão por Husserl até agora supõem operações perceptivas básicas, em rela-
que poderia seresten.
dadapara outros conceitos centrais das ciências naturaísl Ção às quais é cabível buscar um grau muito maior de exatidão. Em
A primeira característicaconstituinte da coisa,discernidano pa- um primeiro nível de manifestação da coisa, há então correlação di-
rágrafo 13 de Ideias 11,é a extensão, ou seja, a ocupação de um deter- reta entre as regularidades causais atestadase as capacidades percep-
minado espaço. Coisas se apresentam sempre como sendo espaciais,e tivas.Supõe-se aqui um critério de norma/idade perceptiva em relação
isso é determinante para suas demais propriedades sensíveis cor, tex- à qual as regularidades causais seriam corretamente apreendidas (Cf.
Lura etc.). Porém nem tudo o que se apresenta de forma extensaà per- Idll, S 18b), normalidade que seria partilhada por diferentes sujeitos
de uma comunidade, de maneira que a realidade da coisa possaser
cepção é apreendido como coisa (por exemplo, um arco-íris ou o pró-
prio céu azul). Há, dessamaneira,ao menosmais uma característica reconhecidaínfersub/etívamente (Cf. Idll, S 18e). Cabe observar que

fundente das coisas (exposta no parágrafo 15), a saber, a materialidade, nessaexperiência perceptiva coordenada intersubjetivamente se es-
tabeleceuma distinção entre mera aPczrêrzcía
e dado e$etívo.Já nesse
a qual envolve propriedades particulares, tais como peso, elasticidade,
condutividade, entre outras. E importante observar cn.fn,m. .

grato 15c, que as propriedades ligadas à materialidade devem ser rena. !4. Por exemplo, em meio a um forte vento, vemosa elasticidade dosbambus que
securvam. Se um bambu permanecessecompletamente imóvel, alheio à ventania,
nhecidas em relação ao corzfexfocausa/ em que a coisa está inserida. eleteria um aspecto ilusório. Nesse caso, ainda haveria propriedades sensíveis extensas
Aparece perceptivamente como material a coisa que estáinserida num jcor,preenchimento do espaço) mas que não se confirmariam como uma coisa, pois
tecido de relações causais com outras coisas ou eventos naturais, de não estão sintetizadas com as qualidades materiais atestadas pelas interações causais
15. "Perseguir essesnexos [causaisl e determinar as propriedades reais no pensa-
mentocientífico, com basena progressãoda experiência, essaé a tarefa da física (num
sentidolato), a qual, partindo das unidades mais básicasna sequência hierárquica de
13. Essa exposição é retomada com detalhes por diversos comentadores Cf n ex
experiênciase daquilo que se manifesta primordialmente aí, atinge unidades sempre
Mohanty,2011, 13-42;Rang,1990,52-105. '' '' ' ' -"' maisaltas"(Idll, S 15e,45)

176
A cientiflcidade na fenomenologiade Husserl
estático e método genético na ftJndamentação das ciênçlias

nível se reconhecem circunstâncias anormais de


dessetrecho que não pretendo explorar aqui''
torcem a apreensãoda coisa tal como se daria em reconstruir o movimento geral realizado pela
apreensão. Em suma, aí se distinguem entre a coisa ta]
naturalistaparaem seguidacontrastaressaúltima com a
si mesma e aparências de coisas relativas
de apreensão do espírito. Em relação à natureza
jetivas anormais de apreensão.
naturalista reconhece aí novas propriedades on-
ainda permanece ]igada a
seacrescentam à base objetiva física com relativa autono-
Com basenos result,dos
a delimitar um campo próprio de estudos (o da biologia e
coisa, um novo estrato da
experimental, como veremos). Trata-se inicialmente
a noção de ob/efo /ikico como
a camada estesiológica ou de sensaçõesvividas que anima o
termos de propriedades exatas, entidade
vivo, o qual é, em seu aspecto mais básico, uma coisa material.
gerência mesmo aos parâmetros de
boaparte da segunda seção de Ideias 11,Husserl tenta mostrar
Nesse novo estrato, consideram-se
maneira se constitui como um dado para a consciência o corpo
minadas matemática ou
Por um lado, o corpo animal ou humano tem um aspecto
física tal como ela é. As
objetivo, por intermédio do qual está inserido, juntamente
de manifestação ascoisas,no tecido da causalidade mundana. Mas, por outro, o
ceptiva, serviriam somente como índices
é portador de sensações, é sede de uma atividade senciente que
vel puramente físico. Para das meras coisas materiais (Cf. Idll, S 36). E cada sujeito
priedades matemáticas e
constatar isso em relação a si próprio, já na experiência pré-teó-
subjetivas amuam, tais
Importa a Husserl compreender como a partir dessaapreensão ge-
as discute em detalhe em Ideias JI, e
raldo corpo animado a orientação naturalista constrói uma abordagem
próximo capítulo, ao comentarA crisedas teóricaobjetivante da natureza animada
menologiatranscendental.Pol O ponto crucial para a objetivação dos organismosvivos é, con-
de objeto físico matematizado, a forme a análise husserliana, estabelecer as correlações causais en-
mente ospredicadosestéticos, tre circunstâncias materiais e estados sensíveis. Busca-se determinar
ceptiva dosdados, de forma cada vez mais precisa as correlações entre o contexto causal
namenteobjetivo:'. jcompreendido como conjunto de estímulos) e assensações,que desde
Após apresentar as etapas pelas quaisa naturezafísica, em seusas- então passam a se apresentar como reações localizadas corporalmente
peitos essenciais,é constituída Husserl passaa explicitar a constitui- ICf. Idll, S 40). O ser vivo é então inserido no espaço-tempoobjetivo
ção do segundonível de fenómenos naturais reconhecido pela orienta- jque já havia sido delimitado no primeiro nível de constituição da na
ção naturalista: a natureza animada (Idll, SS 19-47) rá muitos temas dureza)por meio da localizaçãodasvivênciassensíveisem mecanis
mos fisiológicos em interação causal com as circunstâncias ambien-
tais. Esse procedimento de objetivação não se limita à vida sensível

u:i l ;i:ini:n
H#$1#!ii: 17. Para uma análise detalhada dessaseção de Ideias JI, cf. Mohanty, 201 1, 29-42
Bernet, 2008

178
179
A cientificidade na fenomenologiade H usserl
Método estática e método genético na fundamentação das ciências

animal, mas também é estendido à vida estesiológico (e daí o enraizamento


a serlocalizada no cérebro. b.Porém, ele insiste, há uma
leis causais da natureza coordenando a apreensão dessesda-
vaçao, uma vez que os mecanismos fisiológicos e o do fluxo temporal da consciência:'. A
maparentespara o sujeito que vivenda suas imanente de historicidade que é mais com-
quicos, ou seja, não se atestam como tais em sua as vivências cons-
tam fluxo temporal
pré-teórica. Para atingir esse nível de objetivação do
põem-se aqui dissecações e experimentos elas não desaparecemsem deixar
tas propõem hipóteses sobre a fundação instauram tendências, dispo-
estrato material objetivo do corpoi9 subjetivas. Assim, em
Cabe acentuar que essafundação naturalista das deveria reconhecer que
tos subjetivos na base objetiva material não não se reduzem totalmente a intera-
pelas ciências naturais de uma relativa então admitir uma complexidade ine-
dores de fenómenos. Por isso Husserl uma vez que propriedades bas-
bio/og;a e da psico/ogícz em relação à exemplo, a orclena-
animada constituem-se propriedades vivências no fluxo da
nível físico, e, embora dependentes
fico, essas propriedades requerem estratificada naturalista
Quanto a essas propriedades, vimos há propriedades
mada é constituída como vid e dependência
tituição do níve] psíquico,no qual física basilar. Veremos, entre-
relativa autonomia ontológica. Em as características do es-
acentua a dependência da consciência em relação aos dados emergentes da natureza física, mas
caráter ontológico fundante

clãs"'.(Idll, S33,136)

180 181
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Método estático e método genético na fundamentação das ciênf=iqs
. rf ;'i' A.

Naturalismo versus personalismo ndidas. E esse outro tipo de orientação (intitulada "persona-
comprei
se desenvolvem as ciências humanas.
Tentei recuperarminimamente as linhas gerais de
da natureza conforme a orientação teórica naturalista. O Éírnportante ter em vista que esselimite da orientação naturalista
mento dessetema é apresentado,na primeira parte de Ideias no interior dela mesma,já que sobesseponto de
nãoé reconhecido
nenhuma censura quanto ao modo naturalista de abordar a t'isto os fenómenos ligados às enter-relações pessoais seriam abarcáveis
Tem-se até a impressão, ao final dessa narrativa. de licativos causais (tratar-se-ia de representações psíqui
turalista abarcada todos os fenómenos mundanos. assensivelmente e processadas segundo as regulações ce
c8sestimulad
de fornecer explicações exczustívassobre a Na verdade, Husserl alerta para uma tentativa de universa-
.ebraisetc.)
vida estesiológica e dessanos eventos físicos. jizaçãodas propostas explicativas naturalistas. No entanto, ele buscara
do livro Husserl aponta talvez pela primeira vez nessa universalizante não se cumpre justamente
mostrarque essapretensão
mífe da explicação naturalista dos fenómenos reais. .qi. e não é possívelabordar corretamente a complexidade dosfenâ-
porqu
apreensão naturalista do ser humano acentua os nexos de menosespirituais/humanos apenas do ponto de vista de suas depen-
cia causal entre consciência, corpo e ambiente físico. e dências causais
esgota a complexidade da experiência da Torna-seagora patente que não há uma passagemhamzõnícada
lações interpessoaisZZ.
Haveria, então, um oríent çã0 71atura/esta r)ara a f'ersonalísta, como se do interior da pri-
cedeaquilo que é investigadona orientação naturalista. Beira se reconhecessemlimites inbínsecos que então levariam os pes-
dona como exemplos relações estéticas ou a admitir a autonomia de uma outra orientação do pensar.
qu
belecidas com as coisasou situações Na verdade, é o próprio Husserl que se distancia do procedimento ex-
preciso tomar decisõesou estabelecerfins e plicativo naturalista e aponta para a existência de outras orientações a
ou relações normativas com as instituições se assumir.Essamobilidade entre as diferentes orientações do pensar é
gredir regras, por exemplo). Em todos essescasos,as comentadano parágrafo 49d de Ideias 11.Ali, o autor nota que os pes-
pendência causalentre corpo e ambiente não são quisadoresnaturalistas têm dificuldades de reconhecer que seusresul-
bém parecem não ser decisivaspara entender como o Lados supõem certas decisões teóricas e restrições metódicas, e que os

fere em seu meio cultural e social. mesmosfenómenos por eles estudados poderiam ter outros aspectos
Trata-se aqui de defender a tese de que os recursos explicativos das acentuados,se explicitados em correlação com orientações teóricas di-
ciências naturais não captaram a especificidade das relações pessoais, ferentesz3.
Dessa dificuldade não padece o filósofo que pratica a redu-
ou seja, o fato de que elas não se guiam por nexos causais submetidos ção fenomenológica, pois ele sabe neutralizar a orientação natural do
a leis físicas, e sim por 77zofívos,
/izza/idades,em suma, por categorias pensarem suasvárias modalidades para revelar exatamente asetapas de
que exigem outro tipo de orientação do pensar para ser devidamente constituição do sentido de objetividade por ele visado:'. E é apenaspor

23. "0 homem natural, e particularmente o pesquisador da natureza,,não está


J 22. "A apreensãona qual o ser humano é dado como uma pessoaque vive, agee conscientedessasresbições jde sentido por meio da orientação assumidas;ele não vê
padece: e de quem somos conscientes como uma pessoarea/ que se comporta sob as cir- que a todos os seusresultados adere um índice determinado, que manifesta o seu sen-
cunstâncias de sua vida pessoal agora.desse jeito e agora desse outro jeito, parece mnler tido meramente relativo" (Idll, S 49d, 179)
unzexcessoque não se apresentasimplesmente como um mero complexode momentos 24. Como vimos, a orientação naturalista é somente uma especialização teórica no
constitutivos de apreensãodo tipo que descrevemos"(Idll, S 34, 140) interior da orientação natural

182 183
A cienti6cidade
na fenomenologia de Husser]
Método estático e método genético na fundamentação das ciências
meio dos recursos da
claras as distinções nos deõonta, remetendo-os a nexos causais objetivamente estabeleci-
raçõesnaturalista e Ocorre,assim,uma ampliação do sentido de "orientação". Em todo
E como essesentido amP/o supõe as operações teóricas daquele sentido res-
com a orientação naturalista ? naturalismo, em que se descartam as propriedades subjetivas a
tas como dois modos deiso[ar as puras re]ações de dependência causa]. Afinal, a orienta-
indica
naturalistacomo modo amplo de atribuição de sentido justamente
dos. Nesse os dados mundanos como eventos espaçotemporais-causais, de-
(e píc.-««a) «ão estabelecidapelas particularidades metódicas do naturalismo
visado nos dois orientação teórica restrita. E, em relação a esseaspecto metó-
dado em questãozõ. jresponsávelpor direcionar o modo geral de apreensãodos dados),
egopsqujco (tema de estudo da iterença notável entre naturalismo e personalismo
o ego pessoa/ (ta] como Husserl, a apreensãopersonalista dos dados nao supoe
nânimos, embora apreendidos nenhumtipo de abstraçãometódica, tal como ocorre no naturalismo
apercepçãoz7.Em cada Esseé um dos principais temas expostos no parágrafo 49e de Ideias IJ.
sentido constitutjvo Aorientação personalista é a orientação na qual originalmente os su)ei-
(egocomo unidade xos
seapreendemcomo pessoasinseridasem um meio cultural e social.
Há aqui, sem Éa orientaçãopor meio da qual se vivem as interaçõesintersubjetivas,
tido de combasena qual aspessoasse comunicam, fazem planos, realizam in-
lista. Nina]. a orientação natura. tenções,
enfim, por meio da qual as pessoasconcretasse inseremem
modo de pensar teórico. era apresentadacomo um comunidadese instituições históricas. Dessaforma, a oderzfczção
perso-
Eemincidosaspectos, a atençãoem de. rza/esta
é czoríenfaçâo natura/, ou seja, a orientação do pensar na qual
em contaste com outros (e isso aspessoas
habitualmente exercem o seu ser pessoalconcreto em inte-
ético etc.). No entanto raçõescom outras pessoasem um certo ambiente cultural. Isso,de fato,
também almeja a já estavaanunciado no parágrafo 27 de Ideíczs1. Ali a oríenfação lzatu
a quaisquer dadoscom ra/ era caracterizada como aquela por meio da qual as pessoas se rela-
cionamcom o mundo como um dado que se impõe à consciência(e a
passagempara a orientação fenomenológica se dava justamente ao se
suspenderessaimposição do ser do mundo por meio da epoc/zé).Ao de-
linearali minimamente o mundo da orientação natural, já se reconhe-
cia:osdados da orientação natural não são puras coisas(tais como deli-
mitadas pelas ciências naturais), pois os cczrczcferes
axío/ógicos e f)rátícos
sãoconstitutivos dos objetos e das situações disponíveis aos sujeitos:'.

28. "0 mundo estáaí para mim não somente como mero mundo de coisas,mas
também,com a mesma imediatidade, como mundo de va/ares.como mundo de bens
como mundo práfíco" (Idl, $ 27, 59)
184
185
A cientificidade na fenomenologia de Ht.isserl
Método estático e método genético na fundamentação das ciênc\as

E importante então observar


sonalista não compõem Começa a ficar mais claro, assim, qual é aquele excessohumano ou
a realidade caracterizada pela orientação naturalista. Se
como duas metadescom direitos
o mundo e o eu na orientação personalista,desvelam-se
dialmente personalista,é uma
mais ricos, com propriedades mais complexas que aque-
mundanas se doam não como
materiais e causaisacentuadas pelo naturalismo. E uma
uma tardia construção teórica h; ..:e-m"t'
da terceira seção de Ideias ll é dedicada à explicitação de
predicados valorativos, estéticos e boaparte
desses componentesdo mundo e do eu tal como apreendidos
amplos29. Deve-se, assim, admitir
fiada da apreensão naturaldo .a orientaçãopersonalista. Husserl parece esboçar aqui ao menos em
oncologia do espírito", ou seja, uma exposição das caracte-
E precisoque se parteuma
eidéticasque demarcam uma região ontológica material espe-
místicas
lizar a apreensão
então tomar tais característicascomo fios condutores até
cífica,para
caçõesde dependênciacausal,excluir os que tornam possívela atestaçãode tal tipo de ser.
os fitos subjeti'
sua vez, a orientação personalista não
Retornando aqui de modo muito rápido tal esboço,vale observarque
assumida, já que é nela que as
o filósofo acentuaque o mundo vivido na orientaçãopersonalistaé
se desenrolam30. Desse modo. a
essencialmente diferente do mundo apresentado pelo naturalismo, o
volve abstração, pois ela se é composto de objetos em-si em interações causais;:. Na orienta-
do dado originário do eu e do mundo3i.
Çãopersonalista os sujeitos se relacionam com o mundo circundante
Umwe/tl que é sempre portador de qualidades subjetivas (valores,

propriedadesestéticas, finalidades etc.). Instauram-se entre sujeito e


29. "Nós estamos na
relações de motivação: conforme o sentido da situação ou da
nos rodeiam precisamente coisaem pauta para o sujeito, essepode ou não assumircertos cur-
como ê para as ciências naturais'
sosde ação tendo em vista certos fins. Da mesma forma, os sujeitos na
30. Na verdade.
ção da epoc/zé,a orientaçãopersonalista não se apreendem como complexos de vivên-
31.Em ciastendo por base reaçõesorgânicas dependentes de condições físicas
uma modificaçãoteorizante
cessaé uma descrição teórica tardia, construída pelo naturalismo), mas
orientação natural do
uva dos correlatosa como pessoasconcretas, portadoras de intenções e interessesem inte-
ponto: "a orientação natural é raçõespré-linguísticas e linguísticas com outras pessoassob as regras de
mente os sereshumanosdesenvolvidos instituiçõese de determinações culturais amplas (Cf. Idll, SS 5 1-52).
orientação,supomosa existênciade
torno de nós, e
dadesnesse
em suamaior parte não crítico, dos seres 32. "0 mundo circundante de qualquer pessoa não é a realidade física pura e sim-
como pessoas (orientação ples,semqualificações, mas é o mundo circundante apenasna medida em que a pes'
ciências naturais soa'sabe'dele, enquantoela o apreendepor apercepçãoe (...) é dele conscientena
turalista, não deixamos horizonte da sua existência (. ..). Se a pessoa nada sabe das descobertas da física, então
quisasquantitativamente orientadas -- e a nós o mundo com o conteúdo de sentido da física não pertence ao seumundo circundante
efetivo" (Idll, S 50, 186). Veremos tlo decorrer do capítulo que em textos posteriores
gamoso mundo" (Staiti, 2014,105-106)
Husserlminimiza essadistinção entre mundo da física e mundo circundante concreto

186
187
A cientificidade na fenomenologia de Husser]
Método estático e método genético na fundamentação das ciência:

Cabe aqui observarque é no interior do desenvolv


normas que permitem legitimar os resultados sob elas obtidos),
de determinadas instituições sociais que o interesse sebusca assentimento para as posições teóricas propostas. O
grupos humanos pede ser sistematizado em um
supõe, dessemodo, interações comunicativas normativas,
mentos transmitidos e aperfeiçoados de geração baseadasem razõese almejando o consenso,algo bem dife-
Beira que o con/zecímentocÍenfÍHco
de interações meramente guiadas por reações causais o princi-
zido e sedimentadocomo um bem
explicativo naturalista para as relações pessoais3s
se deixam apreender como frutos das
assim,reconhecer que a obtenção de resultadosnatura-
nalistas (interações em que preponderam os válidos acerca dos componentes objetivos da natureza pressupõe
não a Causalidade material). Com base nessa humanas guiadas por normas racionais. Essaé uma condi-
zar certa püoãdade da orientação personalista a constituição do domínio teórico naturalista que não é devi-
tentei mostrar que essaúltima envolvia um tematizada conforme os recursos teóricos disponíveis para o
ta[idade do rea] como um conjunto de 3ó.O naturalismo tem então como pressuposto estruturas
causalmente sobre a base física. Mesmo as
que só são explicitadas em uma orientação não naturalista,
que envolvessem propriedades emergentes, forma que nem todas as suas condições teóricas poderiam ser devi-
como um conjunto de reações
damente
tematizadaspor meio do instrumental metodológicocom o
nucassubmetidas àsleis físicas.
qualopera.
é esse prometo llaturalista de
bebe uma fundamentação
o contextohistórico no interior do qual foi desenv( Apdoddadedo espíHtosobrea natureza
mteressesteóricos sedimentados em Vimos que as operaçõesconstitutivas da orientação naturalista
e disseminam seusprocedimentos e são inicialmente retratadas em Ideias ll seno nenhum tipo de cen-
ralismo (que pretende fundar as sura quanto às suas pretensões. Ao centrar-se em relações causais ob
sais) é fundado pelasrelações de jetivaspor meio das quais as camadas de eventos superiores seriam re-
mundo humanos'. O llaturalismo é um metidasà camada física fundante, o naturalismo desenvolveum es-
versostipos de interações quemateórico por meio do qual tenta explicar toda a realidade.No
entanto, Husserl destaca um excesso temático que escapa à abordagem

35. Essa incapacidade naturalista de dar conta de seus pressupostos personalistas


teráum grande papel na tematização da crise das ciências nos textos tardios de Husserl.
Conformecomenta J. Benoist, "para Husserl, a crise da Europa está ligada ao fato de
queela tenha se pervertido em uma racionalidade (o que então a caracteriza) exc/usíva-
menferzaMra/isca,que, como tal, é incapaz de pâr para ela mesma a suaprópria ques-
tão" (Benoist, 1994, 260). Veremos com detalhes no último capítulo de que maneira as
limitaçõestemática e metodológica do naturalismo ou objetivismo alimentam a crise
dasciências europeias.
36. Sigo aqui a interpretação de Scanlon, 1996.

188 189
A cientificidade na fenomenologia de Husser]
Método estático e método genético na fundamentação das ciências

naturalista e só seria bem compreendido como conjunto de relações causais objetivas nas quais a pes-
sonalista37. Nesse ponto, torna-se visível
estáinserida, dadasas cadeias de dependência da vida psí-
ção husserliana. Tentei mostrar que a
relação ao substrato material do corpo e deste em relação ao
ração natural, no sentido de
Hsico. Por outro lado, no entanto, ao investigar os componen'
cas e valorativas pelas quais
do espírito ou da pessoalidade concreta enquanto região
entre si e com o mundo. Por sua vez. a
ontológica, desvela-seaí a natureza (tal como tematizadape-
essa base de interações personalistas em suas
naturais) como um produto de associaçõesintersubjetivas
oração é um recurso metódico
normas racionais. A situação é então a seguinte: "parece
meneado Culturalmente no interior de
em um círculo vicioso" (Idl1, 2 10), no qual cada uma das
normas. Ocorre que muitos pesquisadores
orientações em questão pretende fundamentar a outra. Estaremos
cer essespressupostos de seu l
condenadosa uma oposição irreconciliável de apreensõesglo-
sonalista, pretendem univer!
divergentes,cada qual pretendendo sobrepor-se à outra? Na ver-
Husser] asseverano parágrafo 49e de Ideias
Husserl julga que o círculo pode ser desfeito, de maneira a não
'somente adquire certa autoílomia
alternância de dois modos de apreensão sem comunica-
do ego pessoal, autoesquecimento
si. E qual será então a orientação verdadeiramente fundente?
mamente seu mundo, a natureza'
aquelas considerações críticas quanto à pretensão universalizante
ralista de esgotara exploração de
naturalismo já nos dão a pista a seguir: o fenomenólogo tencionará
exibir o caráter fundacional do esf)ú'íto em relação à natureza.
Cabe notar que inicialmente Husserl concede que "todo espírito
temum 'lado natural"' (Idll, S 61, 279). Mesmo do ponto de vista per-
sonalista,as pessoasnão são agentes racionais abstratos,e sim indiví-
duos concretos inseridos em um entorno sensível-histórico-cultural.
Deve-selevar em conta que as interações humanas concretas não ocor-
remsomente mediadas por normas racionais, mas também por hábitos
ou disposiçõescuja origem pode ser até mesmo desconhecidapara os
quc lido Sa0 sujeitosque as exercem. Husserl aponta aqui para a infraestrutura de
ficará mais clara tendênciase impulsos, para asformações disposicionais sensíveispassi-
passagempara o personalismo vas,que se sedimentam como camadas retencionais do fluxo da cons-
círculo dos fundamentos parece ter sido
parece ter sido criado
criado em Jdeías11.Esse«c- '
em Ideias ciência, tornando-se, assim, parte da história pessoal que condiciona,
enfrentado no parágrafo
blema é explicitamente enfrentado parágrafo 53 do livro. Por um ao menos em parte, as esco]has do eu raciona]38. ])aí Husserl afirmar
lado, ao acompanhar os resultados da orientação natural esta,desvelou-se que "toda a vida do espírito é permeada pelas operações cegas de asso-

::'ú 11;u:ç : : : : :: ;:;::.=


38. Um artigo que expõe de modo claro as tesesprincipais relativas a essetema é
:1:::: Sakakibara,1998. Parauma abordagem mais aprofundada do tema da passividadena
fenomenologia husserliana, cf. Montavont, 1999, e Biceaga, 2010

190
191
A cientilicidade na fenomenologia de Husserl Nlétodo estático e método genético na fundamentação das ciências
# ,r';} #
fiações, impulsos, sentimentos ( . . . ), tendências que concreta é um sujeito encarnado, inserido em ambientes ma-
A pessoa
curidade" (Idll, S 61, 277). Cabe aqui, porém, acentuar determinados. Por essa perspectiva, deve-se admitir que
terialmente
unção entre atividade racional e passividadedisposicional é inúmeras circunstâncias subjetivas "a causalidade natu-
cimano interior da própria orientação personalistae irão também" (IdlT, S 61, 276). Husserl elucida essetópico
ral entra aqui
reconduçãoda vida pessoalao substratofísico
como seguinte exemplo: "dada uma queda séria, alguém pode se tor-
das naturais. Trata-se, antes, do reconhecimento, pelos naraleijado e isso tem consequências para sua vida espiritual: certos
tos, da base passiva para suas operações espirituais, e isso motivação estão mortos a partir de então" (ibid.). Muitos
gruposde
tifica com as tesesteóricas de dependência causal do espírito em los
outrosexemp podem ilustrar esseponto: se o corpo próprio de al-
ção aos estratos materiais básicos da natureza. No final do émé mutilado então seu âmbito de ação espiritual se reduz; se há
Husserl afirma que essabasepassivado espírito "não é ;nvenenamento do organismo, há uma correspondente alteração do
objetiva (natural)" (Idl1, 280), ou seja, não é uma campoperceptivo etc. Em suma, dada a inserção da vida pessoalnos
pela aplicação dos métodos naturalistas, mas um conjunto nexoscausaisdo mundo material e dos processosfisiológicos, é então
ções experimentadas pelos sujeitos em suas vivências pré-teóricas. peúeitamentecabível propor diversas correlações entre certos eventos
conjunto, longe de ser um constructo teórico, segue uma físicos ou condições orgânicas e certos eventos no domínio pessoal.
imanente" (ibid.), ou seja, trata-se de uma estrutura d príon Husserl observaque essascorrelações de dependência estão limi-
irredutível, assim, às relações causais acentuadas pelo naturalismo. fadas a circunstâncias em que há objetos reais em interações objetivas
Husserl admite, desse modo, uma camada "natural" (em um sen- jmecânicas elétricas, ópticas etc.). Somente nessescasosseria possível
tido amplo) sobre a qual o espírito se erige, embora issonão signifique delimitar relações de dependência causal entre a pessoae seu meio
atribuir prioridade à abordagem naturalista, como se essa[ililelluKíi Masjustamente importa acentuar que os sujeitos espirituais estabele-
lesseos fundamentos de toda atividade espiritual. Ainda assim,o autor iuiiniaui«eiw entre si e com o mundo mesmo quando não /zá ob/elos
concede que a base passivado espírito pode ao melros em parte serÍn. reaisdefemzínando-os.No parágrafo 55 de Ideias 11,distinguem-se re-
vestígada em temposnatura/estas. Conforme o parágrafo 53 de Ideiasll. laçõesreais (em que objetos existentes interagem causalmente) e re-
a natureza (enquanto correlata da orientação naturalista) e o espírito laçõesírzte7zcíorzaís.
Nesse último tipo, a consciência se volta para seu
(enquanto correlato da orientação personalista)não são regiões onto- correlato em diferentes modalidades intencionais (prática, estética,
lógicas incomunicáveis; ervagrande medida, os temas de ambos são os cognitiva etc.). Essevoltar-se para algo já é estabelecer alguma rela-
mesmos, embora explicitados por modos de apreensão diferentes. Há, cao ainda que o conelato em questão nem mesmo exista efetivamente
dessamaneira, "relações de sentido" (Idl1, 2 1 1) entre os dados naturais comoob/eto rzo tecido causa/ da n dureza, sendo apenas imaginado ou
e espirituais, e não meramente oposiçãoou mesmo ausência de rela- mesmoilusório. Nessetipo de relação, importam a qualidade ou a mo-
ção. E uma das possibilidades de explicitar tais relações de sentido é dalidade do visar intencional e as relações de motivação firmadas entre
o estabelecimento de correlações de coordenação hncionat entre o suba osujeito e seu correlato (esseúltimo servindo de motivo para diferentes
trato matedcz/-orgáízícoe as rea/ízações pessoais. Daí Husserl conceder atitudesassumidaspelo sujeito)
que parte da vida espiritual possa ser investigada naturalísticamente3ç.

e espirituais.Em todo caso,desde ali, era sugerido que a naturalização em vista é se


39. Vimos que essaconcessãojá estavapresente de modo muito geral no pará- mente parcial, e que aspectos essenciais da vida do espírito, como veremos a seguir, es
grafo 152 de Ideias 1, em que se apontava para o entrelaçamento entre eventos naturais capim a qualquer tentativa de explicação naturalista

192 93
A cienti6jcidade na fenomenologia de Husser]
Método estático e método genético na fundamentação dasciênçias

As relaçõesintencionais vigoram na
lco
fíçico4 Por "paralelismo psicofísico" entende-se aqui uma dou-
são irredutíveis a relações
há nenhuma causalidade real crina
naturalista segundo a qual todos os estados e conteúdos da cons-
sujeito intencional visa ciência poderiam ser remetidos a interações físicas cerebrais, o que
çõesde motivação se que a atividade consciente é ontologicamente dependente da
provaria
qualquerpercepção de base neuras.A recusa do paralelismo vai tornar patente que a passagem
biológicos destravados entre orientação naturalista e personalista envolve mais do que uma
simplesmudança no modo de apreensão geral sobre um mesmo dado,
dúvida, há aqui relações ,edis
Mas essasrelações, que erva oque seria passívelde dupla exploração. A princípio, parecia que a di-
ferença entre ambas as orientações era apenas essa, conforme sugeria
sentidos até determinadas regiões cerebrais,
as motivações assumidas aquele
exemplo de que ego psíquico e ego pessoal são o mesmo. No
.«tanto Husserl defenderá agora que não se trata de apontar para um
buição de um valor.
dadoneutro que se deixaria apreender integralmente, seja pela orien-
instauram sempre como relações
su)eito e os correlatos visados taçãonaturalista, seja pela orientação personalista. Esse não é o caso,
tido. Ora, conexões nervosas pois haverá componentes estruturadores da consciência pessoal que
nao sãoabarcadospela orientação naturalista (o que implica que o ego
investigações teóricas bastante
ciência subjetiva e, assim, não pessoal só pczrcía/mente é o ego psíquico). Daqui resultará uma consi-
derável autonomia da região ontológica do espírito en] relação à natu-
nalistas e nem, por l
As relações reza,apesarda sobreposiçãoFareja/ reconhecida há pouco.
des imanentes" à este.a Pararecusar o paralelismo psicofísico, Husserl enfatiza as caracte-
que o na- rísticaseidéticasda consciência,ou seja, aquilo que pertenceria à no-
turalismo não esgota
ex-
plicitados na çãode consciência independentemente de sua realização empírica
to-
tal entre os domínios Pretende-se neste ponto que as características definidoras daquilo que
sepoderia chamar de "consciência" remetam a determinações eidéti-
funcional do segundo em relação motiva-
ção são um claro casa priori (que valeriam para qualquer noção concebível de consciên-
espírito em cia),sem nada dever, assim, a relações reais entre as partes cerebrais.
relação à natureza.
Valeobservarque essetema lembra a explicitação do caráter absoluto
Husserl complexifica a sua exposiçãoacerca desse
excessodo espí- daconsciênciano parágrafo49 de Ideias1. De fato, entre asdetermi-
rito em relação à natureza no parágrafo 63 de /delas ll em
que rejeita, naçõesa priori da consciência,Husserl destacao fluxo temporal, com
ao apelar para legalidades imanentes à esfera espiritual
o paralelismo sua abertura protensional que se preenche impressionalmente e se se-
dimenta em retenções, tal como havia sugerido em Ideias 1. Trata-se
aqui de uma forma predelineada a príoH e no interior da qual o con-
teúdo empírico das estimulações sensíveis (o qual, sem dúvida, pode

41. Uma exposiçãomais detida desse tema pode ser encontrada em Marcelle
20o6

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A cientificidade na fenomenologia de Husser] Método estático e método genético na fundamentação das ciênçfas

ser descrito empiricamente) se ordena'z. A estimulação recusado paralelismo psicofísico, uma prioridade especificamente
sensível(ca..
salmente explicável) é sempre uma sucessãode dados do espírito (e da orientação correspondente, o persona-
por sua vez,a Or. arztoZÓgícú
denação temporal da consciência, em termos de fnrmn eidética. é relação à natureza e ao naturalismo
una lisrno)em
rede intencional que se estende ao futuro e ao passado,e para a qual A argumentação acerca dessa prioridade ontológica é exposta, con-
assimcrê o autor, não há paralelismo neuronal estrito. Na mencioneihá pouco no parágrafo64 de Ideias11.A recusado
consciência, forme
cada experiência presente está inserida em um fundo de c:onexões
paralelismo psicofísico sustenta a tese da autonomia ontológica do es-
tencionais passivasque se estendem para além do momento de
nnpres pírito o que impede uma total rlatura/ízação de suaspropriedades (ou
são e que poderiam ser desdobradas em novos aros associados à vivên. sela urna aplicação dos métodos naturalistas capaz de explicar todas as
cia principal. ..rncterísticas espirituais). Com base nessaautonomia, Husserl almeja
A estrutura eidética da temporalidade imanente é o principal tema umateseainda mais forte, a saber,que "a natureza é um campo geral
explorado por Husserl, ao lado daquele da motivação, para evidenciar derelatividades, e deve ser assim porque essasúltimas são sempre rela-
a impossibilidade de reduzir a região ontológica espírito à natureza+3 tivasa um absoluto, ao espírito, o qual, por conseguinte, sustenta todas
Garante-se,assim, a relativa independência de ambas. Entretanto, ess. asrelatividades" (Idl1, 297). Fica claro que não se trata somente de ga-
não é o ponto final da argumentação.No parágrafo 64 de Ideias IJ, rantir a autonomia da região espírito, dada sua irredutibilidade aos ne-
Husserl pretende revelar a prioridade do ?sf)frito enquanto domínio hn xoscausaisque compõem a natureza, mas sim de marcar que essaúl-
dance da lzaüreza. Vimos inicialmente uma circularidade entre orien. timaé dependente,em sua estrutura eidética, do espírito, enquanto esse
raçõesnaturalista e personalistano que concerne à pressuposiçãode é apresentadocomo absoluto. Nesseponto, fica explícita a referência
uma pela outra, e em seguida a defesado caráter prioritário do espí. aoparágrafo49 de Ideias J, longamente discutido no capítulo anterior.
rito em relaçãoà natureza. Essaprioridade se atestavapelo fato de que Assimcomo a consciência era absoluta em Ideias l por se revelar inde-
a orientação naturalista é uma abstraçãometódica sobre a orientação pendentedo curso de eventos que compõem o mundo empírico, o es-
personalista, abstração que então supõe essaúltima, de modo que con- pírito também será dito absoluto em um sentido similar, já que não de-
dições importantes para a realização dos propósitos naturalistas só se. penderiade referênciasà naturezapara sero que é, ao menos em seus
riam explicitadas por recurso a noções personalistas (tais como con- aspectos
eidéticos«.Há, dessamaneira,uma unidade do espíritoque
sensoracional, submissãoa normas de justificação etc ). Estabelecia-se. nadadeve à natureza e que, como veremos a seguir, seráresponsável
dessa maneira, uma prioridade ePísfêmíca do personalismo sobre o na- pelaunidade da natureza enquanto campo de relatividades.
turalismo, dada a insuficiência dos recursoswulignimõEsniununiiiill O argumentocentral para defender essaúltima teseé uma distin-
para teorizar a sua própria prática científica. Contudo, Husserl nãose ção entre dois sentidos hierarquizáveis de individualidade: um sentido
contenta com tal resultado e tenta mostrar, ao estender os result,dos de relativo,aplicável às coisase aos eventosnaturais, e um sentido abso-
luto, aplicável aos espíritos. As coisas físicas se individuam, no sentido
dese tornar discerníveis de outras coisas semelhantes, por sua inserção
42. 'Apenas aquilo que os nexos essenciaisdeixam em aberto pode ser empirica-
mente condicionado. Por exemplo, apenasa sensaçãopoderia ser con(iicionada. mas
nao o que estáessencialmenteligado a ela em termos'de retenções Ou, maispreci- 44. "Se pudéssemos eliminar todos os espíritos do mundo, então seria o fim da na-
samente,o que é condicionado seria somente o conteúdo da sensação,no interior da tureza.Mas, se eliminamos a natureza, a existência intersubjetiva-objetiva, 'verdadeira',
forma prl?Sielineadada sequênciaretencional" (Idll, S 63, 293) então ainda resta algo: o espírito enquanto espírito individual. Ele apenas perde a pos-
43. Há também uma menção às relaçõesintersubjetivas como irredutíveis a Feia. sibilidade de sociabilidade, a possibilidade de compreensão, que pressupõe a intersub-
ções reais, tema que não explorarem.Cf. Idll, S 63, 295-297 jetividade corporal" (Idl1, 297)

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A cíentificidade na fenomenologiade Husser]
Método estático e método genético na fundamentação das ciências
4
em nexosde relaçõescausaisem uma
çotemporal. Nesse ern temas relativos à região ontológica natureza (pressuposta
individualidade em si ciênciasnaturais) e pouco ou nada mencionava a região ontoló-
nexos de relações decorre da pelas ciências humanas, o espírito. A análise dessaúl-
testadaspaulatinamente e em Ideias ll deveria preencher essalacuna. O espírito deve-
Cogiloscente, tal como o autor entãoser a região temática de um tipo de investigação realizada em
qualldo explicitou a orientaçãoprópria, a saber,o personalismo. Com efeito, é o que
orientação naturalista. A no parágrafo 48 de Ideias 11,segundo o qual a delimitação da
rurais deriva então do processode espírito levará a cabo a crítica incipiente de Dilthey à interpre-
cia, uma produção naturalista das ciências humanas's. No esboço da ontologia do
não é relativa a que se segue a esseparágrafo (esboço que supõe a explicitação
temporal do fluxo da consciência. persona-
retenções e propensõesdo campo de lista),fica então claro que Husserl tinha em mente a circunscrição de
querem seu caráter único. Desse certosmétodos científicos próprios às ciências humanas. Isso quer di-
próprios espíritos (os zerquea orientação personalista, na qual imediatamente as pessoasse
denação d pdod da situamno mundo, também comporta o desenvolvimentode um tipo
píritos, nexos de experiências particularde produção de conhecimento. Daí, por exemplo, Husserl
venspela comentar,no final do parágrafo49d, que a passagemda orientação
de aparência naturalista para a personalista significa, entre outras coisas, uma passa
Segundo Husserl, a gemdasciências respectivamente produzidas em tais orientações%.
a priori para o ser relativo da No entanto, essaassociaçãode certo tipo de conhecimento cientí-
natural depende da existência fico com a orientação personalistanão é algo óbvio. Afinal de contas,
forma, a prioridade do Husserlapresentaessaorientação como pré-teórica, eminentemente
no nível ontológico, na prática e valorativa, na qual os sujeitos estão inseridos em relações m
e uma tersubjetivasdesenroladas em ambientes sócio-históricos particulares.
condição para o estabelecimento
Como se vê agora, além disso, o autor também considera a orienta-
çãopersonalistacomo produtora de conhecimento científico. Dessa
Di$culdades
maneira,a orientação personalista é pré-teórica e teórica; ela é um
modo geral de apreensão centrado em aspectos práticos e axiológicos
dos dados, mas também um modo de circunscrição de dados teóricos

45. "Somente uma investigação radica/, dirigida àsfontes fenomenológicas da cons-


tituição das ideias de natureza, corpo e alma, e das várias ideias de ego e pessoa, pode
aqui oferecer elucidações decisivas e ao mesmo tempo garantir os direitos dos motivos
válidos de todas essasinvestigações jde Dilthey e outros autores da épocas" (Idl1, 173)
46. E possível passar "de uma atitude a outra, da naturalista para a persona/iscae
quanto às respectivas ciências, das ciências naturais para as ciências do esPz'nto"(Idl1, 180)
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A cientificidade na fenomenologia de Husserl Nlétodo estático e método genético na ftlndamentação das ciências
4

De que modo, porém, essasduas funções diversassão realizadaspela eOsuarelaçãocom o mundo circundante. Pararesolveressatarefa, "o
mesma orientação do pensar?De que modo ocorre a passagemdos da- cientistahumano não tem necessidadede nenhuma reduçãofenome-
dos pré-teóricos para os dados teóricos no personalismo?
nológico-transcendental aos fenómenos da fenomenologia" (Idll, ap-
Husserl pouco desenvolve esseproblema em Ideias 11.Em suacrí. 12, S 12, 367), assegura-nosHusserl em um apêndice de Ideias 11.As
tica ao paralelismo psicofísico, ele sugere que haveria tÓPicosespecÍ. ciênciashumanas, empíricas ou eidéticas, desenvolvem-sesob a posí-
ficou das ciências humanas que não seriam corretamente tematizá. cãode ser dos seus temas (tal como ocorre com as ciências naturais). E
veis pelas ciências naturais. Entre essesestão os nexos de motivacã.
os verdadeque, mediante o exercício da epoché aplicada às ciências hu-
quais já eram mencionados como tema das ciências humanas no pa- manas,abre-seuma via à orientação fenomenológica que Husserl julga
rágrafo 56f. Ali, é sugerido que a explicação científica (em termos au- maisfrutífera do que se se partisse das ciências naturais4s.Nessapassa'
pios) fornecida pelas ciências humanas se desenvolve como uma
expjo- gernao domínio fenomenológico-transcendental, a validade objetiva
ração dos mofívos que levaram os agentes (individual ou coletivamente) do eu pessoal e de seu mundo circundante seria suspensa, restando
a agir ou não agir de certa maneiras'. Mas em que medida a explicação
apenasos seus fenómenos, com base nos quais se acompanharia a
teórica da motivação difere da sua vivência pré-teórica, ou, em term. constituiçãoda objetividade espiritual. Husserl distingue, assim, entre
mais gerais, o que caracteriza a especificidade teórica do personalismo asciências humanas, voltadas para estudar as estruturas do ego pessoal
em contraste com a experiência personalista pré-teórica? Não parece inseridoem um mundo concreto intersubjetivo e cultural, e a inves-
haver uma respostanítida a esseponto. Dessamaneira, a tigaçãofenomeno[ógico-transcendental, voltada para "a subjetívidade
oferecer uma clarificação acercados fundamentos dasciências huma. constitutiva mundana pré-pessoal, escondida na orientação mundana
nas com base na exposição da constituição de sua região ontológica
pessoal-- a subjetividade transcendental em sentido próprio" (Idll,
temática não se concretiza plenamente, uma vez que não são 369).Essaúltima investigaçãonão se limitaria a uma morfologia das
dados os modos específicos de produção de conhecimento no interior estruturas espirituais humanas, mas almejada as possibilidades puras
de uma orientação considerada eminentemente prática e axiológica. deestruturasde consciência sob uma legalidade eidética universal
Além disso, o esboço da região ontológica espírito em correlação A antologiado espíritoe a fenomenologiatranscendentaldeve-
com uma orientação do pensar (personalismo) é problemático no que riam,dessamaneira, sedistinguir temática e metodologicamente. Con-
tange à sua distinção em relação ao domínio da própria fenomenologia tudo,issoparece não ocorrer em alguns momentos de Ideias 11.Husserl
transcendental, a saber, aquele da consciência pura Segundo o prometo
reconheceessadificuldade no apêndice IV do livro. Ali, ele afirma que
husserliano de clarificação das ciências, reconhece-se BllH@HHmmiml! 'a constituição de uma eidética do espírito impele imediatamente à vi-
mento científico é desenvolvidode modo dogmático na orientaçãona- sãode que a fenomenologia é uma disciplina aí incluída" (Idl1, 314)
tural, sem depender de qualquer reflexão transcendental. Isso ocorre Quer dizer, os elementos da eidética do espírito sugerem uma assimi-
tanto no nível empírico quanto no eidético. Quanto às ciências huma-
lação da própria temática fenomenológica, uma consequência que
nas, caberia ao pesquisador personalista investigar os sujeitos concretos borrada a distinção entre ambas apregoada em outros trechos da obra
Masquaiselementossugeririam a inclusão da fenomenologia na eidé-
47. "Na esferadas ciências do espírito, dizer que historiadores, sociólogos ou antro- üca do espírito? Lembremo-nos de que, no parágrafo 64 de Ideíczs11,o
pólogos culturais 'explicam' fatos cie]] típicos humanos significa que eles querem eluci-
dar motivações, tornar inteligível como as pessoas em questão 'vieram a fazer isso', vie-
ram a se comportar de tal modo, quais influências elas sofreram e quais elas exerceram, 48. "Não sãoas ciências da natureza mas as ciências humanas que conduzem às
o que as determinou na e para a comunidade de ação e assim por diante"(Idl1, 229) profundezas 'filosóficas"'(Idl1, 366)

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A cientificidade na
fenomenologiade Husser]
Método estático e método genético na fundamentação das ciências
espírito é descrito como
qual a individualidade
l Análisegenéticado mundo da experiência
ráterabsoluto daindiv
consciência, da lzovocaminho
Ora, essa
Nosanos subsequentesà escrita de Ideias 11,Husserl paulatina-
exatamente o que mente reformula sua abordagem à distinção entre as regiões eidétícas
existência autónoma em e espírito e, por conseguinte, o seu próprio modelo de funda-
rece ser qualificada de rnentaçao filosófica das ciências correspondentes. Vimos nos capítulos
Consciência absoluta ,.tenores que, ao menos desde Pro/egõmenos,o filósofo propõe a cla-
a especificidade da rificação dos conceitos básicos científicos (o seu reenvio às operações
ter absoluto da consciência subjetivasque os constituem) como principal estratégia para oferecer
Justificativa da osfundamentos da prática científica. Essa estratégia foi complexificada
reza em Ideias 11.Nesse à medidaque a noção de ciências eidéticas materiais, responsáveispor
no interior da eidética do delimitar o âmbito e a metodologia apropriada para a produção de co-
liga fenomenológica nhecimentopelas respectivasciências empíricas, foi elaborada. Em
mítica no domínio das IdeÍczs
l propõe-seque os conceitos definidores das regiões ontológicas
caráter absoluto da sirvamde fios condutores para a explicitação das operações subjetivas
rito. O caráter absoluto da responsáveis
pela constituição de tais regiões.Mas acabamosde ver
ontología material quea aplicação dessemétodo em Ideias ll chega a certos impassesdifí-
Jade da
ceisde se superar sob o quadro teórico ali assumido. Nesse texto, tenta-
antologia do da sedesvelarinicialmente os componentes eidéticos da natureza e, em
clãs objetivas), se as Ciên- seguida,do espírito. Há obviamente tentativas de expor "relações de
pados por ta] sentido entre essasduas regiões, mas é notável que, na maior parte do
Creio que essas tempo, cada uma delas seja tomada como um dado ílz;cia/ que se trata
recado por /delas //, e será simplesmente de descrever.As regiões ontológicas são aquelas explora-
para buscar as respostas. daspelas respectivas orientações teóricas, e importa tornar visível a cor-
relação entre as características eidéticas em questão e a orientação teó-
rica que as investiga. Ora, é essaassunção das regiões otltológicas como
dadosprontos a partir dos quais se marcam as diferenças teóricas entre
naturalismo e personalismo que será prob]ematizada por Husser] até o
final da década de 1910so
Numa conferênciade 1919,intitulada "Natureza e espírito", já é
possívelvislumbrar o novo caminho a ser percorrido. Ali, inicialmente,

50. Vários comentadores acentuam a importância dessapassagem na obra de Hus.


será.Cf., por exemplo, Pradelle, 2010, 160-162; Perreau,2003, 371-374
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A cientificidade na fenomenologiade Husserl Método estático e método genético na fundamentação das ciências

demuitas questões que não serãoexploradasaqui, um novo tipo de


intitulada arzá/ísegenética. A luz dessanova
análise Husserl avalia alguns dos seus textos anteriores como represen'

ta.tesdo que então denomina aízá/íse estática. Nesse último tipo de


investigação busca-se explicitar os constituintes dos objetos em corre-
loçãocom as capacidades subjetivas que os atestam. Trata-se de uma
análise
poético-noemáticatal como articulada em Ideias1: almeja-se
ejucidar em seu aspecto eidético ascorrelações estruturais entre os mo-
dosde doação fenomênicos e as operaçõessubjetivasque assimos re-
conhecem Em um texto de 1921 sobre os diferentes tipos de análise
fenomenológica,Husserl reconhece que as análises constitutivas que
dos domínios objetivos prontos como fios condutores são aná-
partem
iõesestáticass', e delas distingue a arzá/ísegenética, que se dedica a
desvelara história da constituição do sentido em diferentes camadas da
consciência,nas quais as operações sintéticas se desenrolam primeiro
demodo passivo,quer dizer, sem a intervenção dosfitos voluntários do
eucognoscente"
O movimento argumentativo pelo qual Husserl deixa de se centrar
na explicitação das correlações estáticas entre regiões eidéticas e orien-
raçõesdo pensar e passaa buscar as etapasde formação dasprincipais
regiõescom base na experiência mundana explicita a aplicação do mé-
todo genético. Segundo essenovo método, interessadesvelarcomo o

5 1. "Não é a fenomenologia estática precisamente a fenomenologia dos Eloscon-


dutores, a fenomenologia dos tipos condutores de objetidades em seu ser, e a fenome-
nologia da constihição do seu não ser, de meras ilusões, de nulidades, de inconsistên-
cias?"(Husser1, 1973, 41). Isso não quer dizer que será preciso abandonar o método dos
6os condutores objetivos a fim de exercer a análise fenomenológica genética. Será pre
caso,no entanto, adapta-lo para as llovas exigências metodológicas em vista
52. "A fenomenologia'da gênese segue a história, a história necessária dessaobje:
tivaçãoe portanto a história do próprio objeto como objeto de conhecimento possível"
IHusserl,'1966, 345). A análise genética pode ser aplicada a vários níveis da vida sub-
zrzft/zfzvcz do ?7zu7zdo. ' r -'' jetiva;é possível,por exemplo, acompanhar a história das decisõesludicativas do ego.
delineatldo assim a géneseafíva da objetivação. Também é possível acompanhar as for-
mações sensíveis passivas por meio das quais a objetivação inicialmente.ocorre. Em um
último nível, "a história primordial dos objetos conduz aos objetos hi/éticos e àqueles
imanentes em geral, isto 'é, à gênese deles na consciência originária do tempo" (ibid.)
Nestecapítulo, vou me deter principalmente nas análisesgenéticaspassivas,sem aden-
trar nesseúltimo nível

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A cieiitificidade na fenomenologia de Husserl Nlétodo estático e método genético na fundamentação das ciênci?s.
4

conhecimento científico se origina na experiênciaintuitiva do rnund. :terísticas essenciaisque tornam inteligíveis as realizaçõesda expe-
ordenada passivamente e sobre a qual, paulatinamente, as próprias íiêncta
(FTL, 373). Não basta, a partir de então, reenviar as produções
giões eidéticas são circunscritas. Vamos acompanhar como esse«.. para os fitos de pensamento produtores; é preciso, se se quer
científicas
blema é montado em outro texto do mesmoperíodo. ' r"b
.umprir de modo radical a elucidação fenomenológica da possibilidade
deconhecimento mostrar que o próprio pensar teórico (em correlação
com seu domínio objetivo) está enraizado em operações pré-teóricas
voltadas para o mundo da experiência. Nesse sentido, Husserl afirma: "é
;ível entender o que o pensamento é de modo específico a fim de
trodução dessecurso, Husserl inicialmente retoma a noção de douhina podem
ser exprimido pela linguagem(. . .) e a fim de prover uma ciência,
da ciência como "a ciência da essência da ciência genuína em geral«s3 uma teoria, se não retomamos a antes do pensamento, a aqueles fitos e
Assim concebida, a doutrina da ciência atumcomo "ideia-guia" lli'H. realizações que compõem a mais extensaparte da nossavida" (ibid.)
371) do desenvolvimento histórico das ciências, a qual teria permane.
Aponta-se aqui para a vida pré-teórica da consciência como corzdíçãoda
cêdoobscura na maior parte dessedesenvolvimento, mas que deve I us aüvidade conceitual por meio da qual o pensamento produz os resulta-
lamente ser elucidada se sequer atribuir plena racionalidade ao edifício dns científicos. Desde então, a elucidação do conhecimento científico
científico. A doutrina da ciência deveria,por um lado, recensearasprin.. nãose limita a revelar as correlações estruturais enü-e teorias e opera
cipais formas pelas quais resultados objetivos são exprimíveis nas mais çõesnoéticas, mas explora a í?z»aestmturczde experiência sobre a qual
diversasciências e, por outro, tornar explícitos os processossubjetivos opensamento teórico é construído. E isso, afirma Husserl, "sob o ponto
de constituição desseconhecimentos4. Segundo Husserl, com O surgi. devista condutor de uma doutrina da ciência" (ibid.). Isso quer dizer
mento da fenomenologia, a correlação entre o aspecto ideal objetivo das que,longe de abandonar o prometode fundamentação dasciências pelo
teorias e a atividade subjetiva pôde finalmente se tornar compreensível: (desenvolvimentode uma Wíssensc/za#s/e/zre,
a exploração dascamadas
foi somente com a fenomenologia que tivemos caminhos de acesso inferioresda vida da consciência é feita em nome desseprometo,embora,
métodose intuições que tornam possíveluma doutrina da ciência efe. agora,de um ponto de vista diferente: "começando de baixo e ascen-
uva, a saber, por meio da sua radicalidade em retornar à consciência dendo,para mostrar como o pensamento genuíno em todos os seus ní-
doadora de sentido e ao todo da vida consciente" (ibid.). Husserl sere. veisaqui emerge, como ele é motivado e construído em sua realização
fere, de início, à explicitação estáticadascorrelaçõesnoético-noemáti- fundada" (ibid.). Assim, o que Husserl esboça no final da década de
cas pelas quais se compreende a constituição do sentido das realizações 1910,à luz do desenvolvimento das análisesgenéticas, é uma nova ma-
teóricas.No entanto, a análise fenomenológica não para nesseponto. neirade enunciar o problema da fundamentação das ciências, a qual, a
Além de mostrar os nexos estruturais entre formas teóricas e atos subjeti- partir de então, não se limitará a formular as correlações estáticas entre
vos, a fenomenologia "remonta, indo de todos os tipos de objetos como asformas teóricas e os atos do pensar, mas recuará até a base experien
substratos de teorias possíveis para a consciência experienciadora e suas cialda consciência para, a partir daí, acompanhar a construção do pen-
samentoteórico e de seuscorrelatos objetivos
53. HussERI., EDMUNn, Varbereiteitende Betrachtungen zur vorlesung tiber transz- Vê-seaqui que o tema da fundamentação do conhecimento pela
endental: Logik" in Forma/e urze trarzszerzdeizfa/eLogfê, 371 . '
clarificaçãofenomenológica se entrelaça com o tema da fundação da
54. ' Os esforçosde elucidação do conhecimento científico pertencentes à dou-
trina da ciência ou lógica teriam de ser duplos: subjetivamente dirigidos para a atividade atividadecognitiva nas estruturas passivasda sensibilidade. De certo
de conhecer e objetivamente dirigidos para a teoria" (liTL, 371) modo, isso já se encontrava em Investigações/ógícczs.Lá, conforme

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A cientificidade na fenomenologiade Husser]
Método estático e método genético na fundamentação das ciências
visto no primeiro
ficava levar os Husser[ inicia esse curso com um tema que ]he é caro ao menos
negra a tornar visíveis os fitos de desde a P ublicação de seu artigo A /í/oso/ia como czenczcz
rigorosa, a
sabei, que o surgime
nto da cu/ftzra cíent@ca (localizado por ele na
Interessava, nesse ponto, desvelar as
como pressupostos teóricos do GréciaAntiga) instaurou um novo ideal de formação humana, baseado
por meio deles se garante o nas Justificativas racionais e não em superstições ou mitos. Esse ideal
jetiva dos princípios lógicos. Mas, além não servesomente ao desenvolvimento de um interesse puramente teó-
Bica, Husser] busca remeter essa rico mastambém a uma reforma de toda a vida prática, que passaria
lógica (chamada de "intuição entãoa se guiar por metas racionais. (.) desenvolvimento da ciência
si mesmas são pré-teóricasss. Nesse moderna,com seus potentes métodos explicativos, mas também com
é somente aquela da ênfasena resolução de problemas práticos da humanidade, significaria
enquanto um a assunçãoconsciente da constituição da cultura científica como um
Também se analisa dosmarcoscentrais da vida cultural europeia (Cf. NG, 4)
dos em camadas pré-teóricas Contudo, no decorrer da modernidade, faltava unia cl,re:, de
independente dasua princípio acerca da divisão dos temas a estudar e dos próprios proce-
dimentos metódicos científicos, julga Husserl. Muitas vezes, a ciên-
da década de ]910 e começo
zar os problemas da fundamentação do ciaavançavasem uma crítica suficiente de seus conceitos basilares.
ção genética de modo bem mais osquais envolviam obscuridades que tingiam todo o edifício do saber.
que a basegenética (que também Husserlmenciona como circunstância decisiva dessaausência de cla-
rico) do conhecimentocientífico rezasobreos princípios da produção do saber a tecnicização do mé-
inserção concreta em um mundo pré-teórico. todocientífico, isto é, a aplicação de algoritmos preestabelecidos tendo
emvista a obtenção de certos resultados, sem a devida clare:a em re-
lação às razões pelas quais essessão os procedimentos escolhidos e os
A tragédiada cultura científica resultados alcançados ICf. NG, 6). Com a especializaçãodasdiscipli
nas, esse tipo de uso pouco refletido dos procedimentos metódicos se
multiplica visto que muitas vezes só se investigam partes de um tema
mais amplo sem que se tenha a chance de acompanhar a síntesedos
resultados parciais fixados Segundo Husserl, essatecnicização dos pro
sedimentos científicos
inibe o progressoda cultura científica" (NG,
6), uma vez que dispensaos cientistas, na medida em que essesapenas
buscam
computar resultados,de ganhar clareza no que se refere aos
conceitos
mais básicos que definem a sua própria área de atuação.
Nesse
ponto, Husserl retoma sua crítica àspretensõesuniversalizan-
tes do naturalismo
presente já em ideias IJ. É justamente por ausência
de clareza em relação ao sentido do conceito de natureza. delimitador
55. Cf. LU2, VI, SS40-52. Um excelente artigo sobre o tema é Lohmar, 2001.
do âmbito de ação das ciências naturais, que se tenta ingenuamente
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A cientificidade na fenomenologiade Husserl b'métodoestático e método genético na fundamentação das ciências
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estender o tipo de análise aplicável ao domínio natural para fenâHe. Bata-se


de propor uma investigaçãodos /ürzdamezztos
da produção
nos que pertencem a outro domínio ontológico (aquele do espírito, por científica, de retornar às "fontes últimas" do conhecimento para ali ga-
exemplo). Essa ingenuidade derivaria da ignorância relativa às diferem. nhar clareza no que se refere à legitimidade e aos limites das determi-
ças radicais entre os domínios natural e espiritual (Cf. NG, 1 1), diferem. naçõescientíficas (Cf. NG, 13)5'. Husserl reconhece que a experiência
ças que são desrespeitados se se insiste em aplicar procedimentos prees- pré-científicaé vaga, e que somente por meio das operaçõesteóricas
tabelecidos sem investigar profundamente a sua adequação metodolÓ. seobtémconhecimento preciso sobre o que é experienciado(Cf. NG,
gica para o âmbito em vista. Cabe observar que também se reconhecem 15). Desse modo, é razoável esperar que as ciências naturais e humanas
problemas semelhantes nas ciências humanas: falta muitas vezesaos esclareçamas principais características dos domínios da natureza e do
pesquisadores dessasáreas clareza de princípio relativa à especificidade espírito respectivamente estudados por elas. Apesar disso, Husserl de-
da sua região temática e dos métodos adequados para explora-la. Daí a; fendeque "toda determinação lógica jproduzida teoricamentel deriva
assunção ingênua de técnicas das ciências naturais, quer dizer, a adoção seusentido de um pré-lógico, de uma fonte originária (...). Somente
de procedimentos bem-sucedidos na investigação naturalista sem Uma quando entendermos essadoação de sentido primitiva poderemos es-
reflexão detida sobre a especificidade dessesprocedimentos e de possí- perarentender as operações elevadas das ciências" (NG, 17). A com-
veisincompatibilidades com o domínio espiritual (Cf. NG, l l). preensãodo sentido último dos temas e das abordagenscientíficas
Em suma, a tecnicização da investigação científica é lamentada exige,dessamaneira, uma investigaçãodo domínio pré-científico so-
como um dos principais motivos responsáveispela degradaçãodo ideal bre o qual a investigação teórica se erige. Nesse domínio, devem se es-
de cultura científica. E Husserl não deixa de acentuar a situação "trá- clarecer as principais divisões temáticas e mesmo as prescrições me-
gica" a que se chegou: o ideal de uma vida guiada em todos os seus todológicasadequadaspara a produção de conhecimento. Os objetos
âmbitos por princípios racionais, livre de superstições limitadoras, ali- científicos, mesmo aqueles que envolvem aspectos inobserváveis dire-
mentou o progressodas ciências,tendo em vista a implementação de tamente, remetem a um substrato último de experiência pré-teórica
uma cultura científica. Porém o desenrolarefetivo de disciplinascada sobreo qual todasas práticas científicas sãoconstruídas (Cf. NG, 19).
vez mais especializadase tecnicizadas leva ao resultado inverso. Afirma Cabeentão explorar essavivência pré-científica e o seu correlato geral,
Husserl: "a ciência deve nos tornar livres, primeiro teoricamente livres omundo pré-teórico, para trazer à luz os fundamentos últimos do saber
e então livres em todo nosso agir e criar. Mas a ciência que se especia- científico.Tal como crê Husserl, "a estrutura originária do mundo da
liza e setecniciza não nos torna nem mesmo livres teoricamente" (NG,
12). Sem clareza em relação aos princípios de sua própria prática, os 57. A. Staiti ajuda a entender asamplas pretensões de Husserl com sua análise cla-
cientistas muitas vezes se limitam a acumular teses que não portam rificadora em NG: trata-se "de um incremento teórico ao trabalho da pesquisa especiali-
zada,a fim de trazer preenchimento genuíno ao ideal de conhecimento ingenuamente
nelas mesmas a sua evidência legitimadora. O sentido dos resultados
abraçado mas nunca plenamente escrutinado pelos pesquisadores especializados. (. . .)
fragmentadosse opacifica, de maneira que o conhecimento deixade Ao mesmo tempo, espera-se que uma clarificação basilar das regiões e tarefas perten-
fomentar o impulso racional da culturasõ. centesàs diferentes áreas da pesquisa científica seja relevante no desenvolvimento fu-
turo da própria ciência, prevenindo o desperdício de energias intelectuais em caminhos
E diante dessequadro crítico que Husserl propõe sua tarefa filosó-
depesquisainevitavelmente estéreis,e superandoa imagem unilateral de mundo que
fica. Não se pretende ensinar os cientistas a cumprir bem o seu métíer; emanadas ciências naturais ainda não desenvolvidas" (Staiti, 2014, 140). Assim, a ex-
ploraçãoda experiência fundante do conhecimento deve revelar toda uma riqueza fe-
nomenal que por vezes escapa aos métodos especializados, bem como atentar para os
56. Husserl explorará com vagar em textos tardios essaperspectiva cultural alimen- errosde tentar forçar certo padrão metodológico na análise de fenómenos cujas caracte-
tada pelo desenrolarhistórico dasciências.\voltarei a essetema no próximo capítulo rísticas esbuturais escapam aos recursos técnicos e conceituais empregados

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A cientificidade na fenomenologiade Husserl Método estático e método genético na fundamentação das ciências
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consciência pré-científica e as demarcações esboçadasem seu sentia. ..nsciência,daquilo que se atestadiretamente no agora vivido, é pos-
próprio determinam direções .essencialmente diferentes de investiga- síveldistinguir dois conjuntos de dados: aqueles relativos ao próprio eu
ções teóricas possíveis e, com isso, determinam as ciências por princí. f,s vivências, passíveis de uma percepção reflexiva que as apreende de
pio possíveis" (NG, 21). E então como tentativa de descrição da e*.. bodo absoluto) (Cf. NG, 25-27; Idl, S 42) e aqueles relativos ao que é
riência pré-científica (em seus dois polos constituintes: a consciência esüangeiro
ou transcendenteao eu, e que só se doa de maneira inade-
pré-teórica e o mundo por ela visado) que Husserl passará a desenvol. .fiada, sendo sempre passível de dúvida (NG, 32-33; Idl S46)
ver a sua análise sobre os fundamentos de sentido da prática científica ' Husserl recupera, dessemodo, na descrição da vida pré-teórica da
análise que pretende contribuir para a crítica da tecnicização dasciên. consciência,a sua doutrina da experiência imanente e transcendente e
clãs e de suas consequências daninhas para a cultura científica dosrespectivos graus de evidência a ela atribuídos. Em seguida, a feno-
menologia é anunciada como ciência eídétíca do domírzío ímanerzte da
elpeHêrzcía,
também de uma maneira que, em linhas gerais,segueos
A análise da experiência pré-científica
princípios firmados em Ideíczs1. Não interessa aqui retomar essaexposi-
Vamos acompanhar com mais detalhes os frutos dessa descrição. çãometodológica, mas simplesmente notar que muitos dos temas que
que muitas vezes Husserl intitula de "estética transcendental" (NG. ernIdeias l apareciam sob uma perspectiva estática são agora recupera-
175, 187, 193, 195), no sentido de uma análise lata dos componentes da dosdo ponto de vista da "história" das produções intencionais da cons-
experiência referentes à doação intuitiva básica, por oposição às forma- ciência,ou seja, do ponto de vista genético. No entanto, Husserl fará
ções lógico-categoriais superioress'. Cabe observar que em uma parte maisdo que simplesmente repetir suas teses outrora estabelecidas sob
considerável dessecurso de 1919 (NG, 21-117) Husserl retoma, ainda uma perspectiva metodológica diversa. O avanço na investigação gené-
que com modificações,algumasde suasprincipias tesessobrea estrll- ticapropiciará resultados novos, como veremos a seguir.
tura da consciência pura (tais como formuladas principalmente em Ao caracterizar o conteúdo daquilo que se mostra ao eu de modo
Ideias 1) e as expõe como resultados da descrição da consciência pré- transcendente,Husserl distingue dois tipos de entes reconhecíveis na
científica. Não há de fato nenhuma menção explícita a Ideíczs1,embora experiênciapré-científica: coisas(entes materiais mais ou menos dis-
a similaridade temática se imponha para o leitor atento. Em Natureza poníveis aos sujeitos) e os próprios sujeitos (entes animados com uma
e esPíhfo, Husserl inicia a caracterização da experiência pré-científica vidapsíquicaprópria) (Cf. NG, 119-120). Cabe detalhar de que forma
ao caracterizar como sua forma geral o fluxo temporal (Cf. NG, 22; Idl, a consciência pré-científica experimenta esses entes como dados de
SS81-82, 84). A vida pré-teórica do eu é descrita como um contínuo seu campo de impressões imanentes. Conforme já estabelecido em
perceber IPerzípíerenl, no sentido amplo de doação intuitiva daquela Ideias1, toda objetidade transcendente se doa de modo perfilado, por
que é visado, um perceber que se estrutura como um centro de impres- meio de fenómenos que se sucedem e progressivamente constituem o
sões (no qual o visado se doa de modo original, em pessoa) ao qual se sentido global daquilo que é visado, sentido que não se esgota em ne-
ligam aberturas protensionais (nas quais há expectativas em relação ao nhuma manifestação particular. Husserl nota que essadoação progres-
visado) e retencionais (nas quais o visado é presentificado para a cons- sivados objetos transcendentes não ocorre de forma caótica, mas como
ciência -- Cf. NG, 24; Idl, S 82). No âmbito da esferaimpressionalda um "sistema interminável de múltiplas manifestações IErsc/zé?írzungenl
possíveis"(NG, 38). O percurso sucessivo da doação transcendente é
58. Parauma análise detalhada do prometohusserliano de uma estética transcen- regidopelos tipos gerais das objetidades apreendidas,que funcionam
dental, cf. Summa, 2014.
como normas de prescrição de dados possíveispara a continuidade

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A cientificidade na fenomenologia de Husserl Método estático e método genético na fundamentação das ciências
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harmónica da experiência. Esse papel prescritivo dos tipos Objetivos seesperaque haja mais de um lado a se pe'ceber). Aqui já seesclarece
gerais para a ordenação da experiência perfilado dos objetos transcen' minimamente a naaneira como os sujeitos e as coisas são apreendidos
dentes já era reconhecidoem Ideias1. Ali, no parágrafo47, eraagir naconsciência pré-teórica: como tipos gerais que prescrevemcerto modo
mado que os horizontes indeterminadas de cada dado transcendente deprogressãodos dados Í?zdívíduczís.Sujeitos e coisas se atestam paulati-
apreendido são ordenados numa progressãoprescrita pelo tipo eidétlco namente, à medida que os horizontes dos dados impressionais se atua-
de cada objeto em questão. No entanto, Husserl não se aprofundava jizamsegundo uma certa expectativa ou prescrição que guia a apreen-
no modo como essadeterminação dos horizontes dos dadosperfilados são dos dados (por exemplo, espera-se que a apreensão de um dado
ocorria. E de fato, em relaçãoa esseponto, em um texto de 1929,in. parcialde um possível sujeito se funda com outros dados capa:es de
fluído como apêndice45 no volume complementar a Ideias 1,Husserl confirmar se tratar de uma pessoa e não de um boneco de cera). Certos
reconhece que a doação válida das coisas e do mundo Supõe Uma tiposgerais presentes na experiência pré-teórica guiam a síntese dos da-
consciência universal de horizonte" (Husserl, 1988, 599) em relação dosparciais em objetos apreendidos intuitivamente. Será a partir desses
à qual ideias J não teria realizado uma análise crítica satisfatóriasç.
Por tiposque asregiões antológicas, que depois se tornarão tema das inves-
sua vez, no curso de 1919, Husserl explora com muito mais vagar essa tigaçõescientíficas, se delimitarão, o que confirmaria a gênesedos con-
determinação dos horizontes da experiência transcendente. ceitoscientíficos fundamentais na experiência pré-científicaõo.
Segundo Natureza e esPú'ífo, cada dado transcendente apreen- Cabe notar que o estabelecimento da gênese das categoriais regio-
dido no presente impressionamda consciência envolve un] halo ina. naisna experiência pré-teórica não é algo tão simples. A divisão das re-
tuas cointuído de novos dados passíveis de apreensão impressional pela giões científicas "natureza" e "espírito" não é meramente fruto da te-
coíasciência.Esseé o "horizonte externo" (NG, 39) dos dados trans. matizaçãoteórica da experiência pré-teórica de coisase sujeitos; não se
pendentes,ou seja,a aberturaa um ambienteou fundo que sempreé trata de uma passagem linear dos tipos eidéticos de coisas e pessoas para
cointuído com cada dado anual e pode ser tematizado diretamente na a reflexãoteórica. Essetópico se torna mais claro por meio da explici-
sequência perceptiva. Além disso, há também o "horizonte interno" taçãodos predicados atribuídos pré-teoricamente pela consciência aos
(ibid.) de cada dado impressional, ou seja, possibilidades de explora- dados com os quais se defronta. Husserl nota que na experiência pré-
ção dos seus componentes,os quais poderiam ser tematizadoscomo científica os objetos se mostram normalmente dotados de "predicados
novos dados (por exemplo, cada lado de um objeto percebido pode ser de sentido" (NG, 122), que se caracterizam principalmente por reme-
tematizado em sua coloração, textura, dando assim ocasião para no- ter, tácita ou explicitamente, a operações subjetivas específicas (apre-
vas percepções dessescomponentes). E assim que a progressão percep- ciações estéticas, valorações morais, determinações de finalidade etc.).
tiva dos dados transcendentesocorre: cada dado impressional seordena Trata-seaqui de predicados éticos, estéticos ou práticos, que são espon-
em sequênciasde doaçõesintuitivas possíveisconforme suasrelações taneamente atribuídos seja a coisas, seja a sujeitos (Cf. NG, 131)
externase internas. Os horizontes externo e interno atualizam as ca- Aqui Husserl parece retomar a exposição, contida já em Ideias ll,
racterísticas antecipadas pelo tipo geral de objetidade em questão (por do caráter original da orientação personalista enquanto orientação na-
exemplo, se se trata de um objeto material sensível, então por essência tural originária. No entanto, não setrata exatamente do mesmo recorte

59. "Tudo isso aponta com efeito para investigaçõescircunstanciadas e difíceis, 60. O detalhamento dasoperaçõessintéticas que constituem os objetos com base
cuja realização suficiente e concreta só posteriormente seráalcançada. No primeiro es- nostipos geraisnão é oferecido por Husserl nessecurso de 1919, mas somente alguns
boço de ideias, ela ainda não foi levada satisfatoriamente a termo" (Husserl, 1988, 600). anos depois, no curso Nczfureza e esPz'Hto,de 1927, como ainda veremos

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A cientificidade na fenomenologia de Husserl Método estático e método genético na fundamentação das ciênçias
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temático (e a ausência de qualquer referência à expressão Lembremo-nos de que, ao menos em um momento de Ideias ll
personalista" nessecurso de 1919 parece sintomática das
t 11),Husserl admite que a natureza enquanto tema das ciências na-
análise). Em Jdeías11,acentuava-seque na orientação
nraisnão é constituída por abstraçõesarbitrárias, já que a circunscri-
teórica o sujeito se defronta com um Umwe/f dotado de
á. de um domínio de dadosobjetivos seria prescrita a príod pela pró-
subjetivas,não tendo, assim,a experiência da "realidade níiâ essênciada natureza em geral. No entanto, ao passar a descrever a
simples,sem qualificação"(Id 11,S 50, 186),a qual seria
r'periênciado mundo na orientação personalistapré-teórica, Husserl
constituída por meio dos recursos teóricos naturalistas. Por sua
insistiaem afirmar que aí o sujeito não se relaciona com objetos na-
curso de 19 19, Husserl enfatiza que já na experiência pré-científica Hrais(desprovidosde predicadossubjetivos),já que essesderivariam
só os predicadosde sentido são apreendidos,mas também os de urna abstração teorizantem. Por sua vez, em Natureza e esPz'Hto,
cados reais", a saber, aspectos ligados às formas espaciais e Husserladmite explicitamente que aquilo que é tematizado pelas ciên-
aos atributos materiais e às conexões causais que daí se ciasnaturais se anuncia na experiência pré-teórica (como predicados
os dados (Cf. NG, 120-121, 130). Os predicados reais são aqueles reais),tornando assim verdadeiramente operante a tese da não arbitra-
não remetem a nenhuma operaçãosubjetiva como sua ãorzfe riedadeda circunscrição científica da natureza objetiva, formulada em
e que permitem circunscrever o domínio do "puro real" (NG, l Idem(zs
11.Trata-se de reconhecer que, na experiência concretas as pes-
seja, daquilo que Eazparte objetivamente dos próprios dados'i. soasserelacionam com os predicados gerais da natureza (ao menos no
picados são reconhecidos tanto nas coisas quanto nos sujeitos e, sentidoamplo de que os fenómenos naturais sempre se ordenam espa-
forma, servem de base para a atribuição dos predicados de sentido, os cial,temporal e causalmente) e entrelaçam suas motivações com os fe-
quais se apresentam como momentos dependentes de todos Concretos nómenosnaturais (tais como passivamente apreendidos). Por exemplo,
reaisõz.Será por meio dos predicados reais que se delimitará o que sere- um dia extremamente frio ou quente altera os planos políticos que um
conhece cientificamente (na orientação naturalista) como "natureza governoalmejava implementar; uma tempestade inesperada fomenta
quer dizer, domínio das propriedadesreais independentes das opera- novoslaços sociais etc. Nesses casos, embora os complexos laços cau-
ções produtivas subjetivas (Cf. NG, 127). Vale observar que, tais como saisque geraram tais eventos naturais não sejam, enquanto objetos iso-
discutidas em Natureza é?é?sPüíto,essaspropriedades reais não sãofruto lados,o tema imediato das vivências, eles certamente ajudam a com-
de abstraçõesmetódicasõ3,quer dizer, não são construções teóricas tar- por o ambiente concreto em que as motivações pessoais e sociais se
dias (como parecia ser o caso em algumas páginas de Ideias 11),masjá desenrolamõs
compõem o dado da experiência pré-teórica.

64. Husser] chega a reconhecer, por exemplo, que "também as causalidades coi-
61 . Obviamente os predicados reais supõem a consciência intuitiva para que justa- sais(natural-real,natural) são dadasintuitivamente" (Idll, $ 56f. 230), ou seja,são
mente sejam atestadoscomo tais. Mas essaatesfaçãosubjetiva é bastante diferente das apreendidasna orientação pré-teórica. Porém, algumas páginas depois, ao comentar so-
operações criadoras da subjetividade no que tange aos predicados de sentido bre a percepçãopré-teórica de outrem, Husser] afirma que "estamosfora da orientação
62 "lado? os predicados de sentido sãofundados, são obÍetos de grau superior requerida para apreender a causa]idade natura]" (]d]], $ 56g, 235). Há, assim, como se
(NG, 124). Pode-sesem dúvida conceber a atribuição de predicados de sentido a en- vê, ao menos hesitação, em Ideias 11,para admitir que os temas explorados pelas ciên-
tes não existentes espaçotemporalmente (personagens míticos OIl Htccionais, etc.). Con- ciasnaturais possamser experimentadospré-teoricamente. So#er ( 1996a, em especial
tudo, importa acentuar que, na experiência pré-teórica, os dados concretamente expe- 43) e Crowel1 (1996, em especial 101) já haviam notado essa hesitação e discutido suas
rimentados envolvem um misto de predicados reais e de sentido consequências
63. "0 que chamamos de realidade, de mero objeto natural, é um concreto. um 65. Diante desseinescapáve] entre]açamento do natural e do cultural na expe-
algoindependente
completo"(NG, 127). riência pré-teórica, Husserl admitirá, no curso Psíco/ogíaáenome7zo/ógíca,
ministrado

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A cientiflcidade na fenomenologia de Husserl Método estático e método genético na fundamentação das ciências

Assim, segundo o curso de 1919, já se encontram na


experiência sisóspropriedades de sentido (por exemplo, as leis decididas por um
pré-científica predicados reais, e não só predicados de .urlamento -- Cf. NG, 134). Importa observar que, de maneira geral,
sentido, com.
parecia ser o caso em alguns trechos de Ideias /l. Quanto a
essesÚltj. ospredicadosde sentido produzidos por indivíduos supõem oslaços so-
mos, Husserl acentua que se trata de predicados "irreais' NG cids nos quais certas formas de apreensão do mundo circundante são
já que não estão submetidos a relações causais no espaço Objetivo ivilegiadas e transmitidas como tradiçõesó8
Obviamente essespredicadospodem ser atribuídos a coisas e Sujeitos ' O domínio dos predicados de sentido produzidos no interior de tra-
reais, mas sem serem partes ou fragmentos reais deles (Cf. NG, 132). diçõessociais é denominado como aquele da cu/furcz (Cf. NG, 137), ou
'tais predicados são resultantes de relações intencionais, seja,domínio de objetidades dotadas de sentido remissível à produção
rme já
reconhecido em Ideíczs11,supondo assim sempre uma remissão a uma subjetivae eventualmente ligadas a um substrato real. Husserl acentua
produção subjetiva de sentidoóõ
que"espírito" ou ' cultura" são termos que se referem a um mesmo do-
Husserl acentua que os predicados de sentido são transmitidos en- mínio com uma diferença de ênfase: ao mencionar "espírito", atenta-
tre os sujeitos, formando tradições sociais de apreensãodas coisase su. separa a "subjetividade do ponto de vista de toda operação realiza-
jeitos (Cf. NG, 124). Os objetos do mundo circundante são espanta- dora" (NG, 140), e ao mencionar "cultura", atenta-se para os produtos
neamente apreendidos segundo os predicados de sentido em vigor na dessaoperação. Prefigura-se aqui a região ontológica posteriormente
comunidade em questão, de maneira que a própria percepção sensível a serexploradapelasciências humanas. Isso quer dizer que o âmbito
é carregada culturalmenteõ7. Além disso,as s se do espíritose prenuncia na experiência pré-teórica não porque nessa
ordenam em unidades "subjetivas" superiores, capazes de produzir simplesmenteaparecem pessoas,seresanimados. Na verdade, a espera
esl)iritual é delimitada pelos predicados de sentido constituídos em rela-
pela primeira vez em 1925, que a mvestigação teórica do ponto de vista personalista
çõesírzferzcíonaís,predicados atribuíveis tanto a sujeitos quanto a coisas,
não deve ignorar os fatos naturais objetivos. Parao pesquisadorem ciências humanas. e essesentes, por sua vez, também são apreendidos pré-teoricamente
a natureza em geral não está entre parênteses: enquanto natureza que é objeto da ex. conforme seuspredicados reais.
penência, que tem uma existência conforme a experiência e que se atestaem seucará-
ter de experiência em um modo pré:teórico, ela é sempre pressuposto" (PP, S 45 232)
Dessamaneira, os domínios posteriormente reconhecidos na
66. Por exemplo, um pedaço de pau tem proprieda(ies reais que não' dependem orientação teórica como natureza e espírito enconfrczm-se entre/czçczdos
de nenhuma produção da consciência para existir,'mas somente para serem atestadas
rzaexperiência pré-teórica. Não há aí um conjunto de objetos apreen-
tuitivamente (tais como forma, co!, texhra etc.). Mas essepedaçode pau podere
ceber uma função específica, servindo como bastãopara empurrar uma bola segundo didocomo natural e outro como espiritual. Na maior parte dos casos,
regras em algum tipo de jogo. Trata-se aqui de um predicado que remete a uma osdados pré-teóricos portam propriedades reais e de sentido, e será por
p'oduç.ão de sentido subjetivo, o qual não é uma parte real do pedaço'de pau, mas uma
ênfaseteórica sobre cada uma delas que as orientações teóricas natu-
objetividade fundada intencionalmente, o que por si só não anula a vigência 'dos predi-
cados reais (Cf. NG, 124). ' ' ' ralista e personalista (para manter os termos de Ideias 11)se constitui-
67. Husserl considera que somente os predicados de sentido se constituem em di- rão. Husserl minimiza, assim, ao menos em sua gênese, as distinções
ferentestradições culturais. Não há nenhuma menção dessetipo em relaçãoaospredi- femáfícasdessasduas orientações teóricas (os âmbitos da natureza e
cados reais, os quais, então, não dependeriam de tradições culturais para ser transmiti-
dos. O filósofo pa'ecS supor que tais predicados estariam aquém das variações culturais o âmbito do espírito), distinções que em muitos trechos de Ideias ll
e poderiam ser partilhados pelas mais diversas culturas. Está aqui implícita a ideia de
que, ao menos em parte, a estrutura do mundo da experiência pré-científica antecipaa
obje.tividadeuniversalalmejada pelo conhecimclnto científico, tema desenvolvido prin. 68. Husserl chega a dizer que a produção de predicadosde sentido faz parte dos
cipalmente em textos tardios, tais como A crise das ciências europeias e a áerzomerlología 'atessociaisdo eu" (NG, 134),embora deixe em aberto a possibilidade de que essapro-
fran celzderzfa/,que analisarei no próximo capítulo dução ocorra de modo associam,
por um suposto indivíduo isolado (Cf. NC, 139)

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recebiam grande destaque, visto que ]á, na maior parte do tempo s objetidadesintuídas. A prioridade é agora atribuída a essaexpe'
enfatizada a correlação intencional estáfíca entre uma determinada . ência, em relação à qual as investigações científicas são.especifica-
giro eidética e a orientação teórica correspondente,sem destacar Ões
posteriores. Que um tipo de ciência inclua entre seüÉ'téhas o prós
em sua origem os componentes eidéticos de tais regiões não se enc} rio fazercientífico é algo legitimado pela experiência pré-científica,
trem separados
'.ue desmonta qualquer tipo de competição entre ciências naturais e
Também vale notar que ao demarcar o domínio da Cultura cor umanasno que se refere ao caráter fundente da sua investigação em
aquele das produçõesesPírífuaís a serem posteriormente estudadas loçãoà outra
las ciências humanas, Husserl volta a admitir uma tese já reconhecia Essessão alguns dos resultados principais contidos no curso de
em Ideíczs11, a saber, que as próprias ciências são construções huna lg19.Trata-seda exploração de um novo caminho para.aresolução da
disponíveis no mundo circundante, de maneira que os sujeitos poden .roblemática da fundamentação das ciências por meio do qual se tenta
se relacionar ao menos com alguns de seus aspectos de modo Pré-& mostrarcomo, na correlação entre a consciência pré-teórica e o mundo
rico (por exemplo, com as aplicações tecnológicas derivadas daste aí intuído, se esboçam certas estruturas que prefiguram os domínios
rias, com as associaçõescientíficas enquanto comunidades intersubje- objetivosestudadospejos diferentes tipos de ciências. Tal como já esta-
tivas guiadas por normas racionais etc.). Para chegar à experiência da belecidodesdeIdeias 1, há ciências empíricas ou eidéticas, e essasúlti-
mundo circundante, Husserl inicialmente buscou caracterizar um do. massão pressupostas pelas primeiras, no sentido de delimitar as possi-
mínio anterior à atividade científica69. Contudo, é preciso reconhecer bilidadesa priori que circunscrevem o domínio factual em questão (Cf.
agora que as ciências se sedimentam como produções de sentido passí- NG, 145-146).Agora, porém, fica claro que o conhecimento não é fun
veis de apreensãopré-teórica. E se a região ontológica do espírito'(cor- lamentado somente por referência à região eidética correspondente,
relata da orientação teórica personalista, por assim dizer) é constituída poisessaspróprias regiões ontológicas derivam dczexperiência pré-teó-
com base nas produções intencionais de sentido, então as ciências,en. ricado mundo. Desdeentão, a tarefa fenomenológica de clarificar os
quanto produto espiritual das comunidades humanas, devem ser tema fundamentosdo conhecimento científico deveoferecer uma análise
das ciências humanas. "As ciências com todas as suas objetidades teó. dessa
experiênciae do mundo tal como vivido pré-teoricamente"
ricas devem ter o seu lugar no mundo circundante enquanto compo- Cabenotar que essaanálisenão seráuma descriçãoempírica da
nentes da cultura e da história" (NG, 144), asseveraHusserl, de moda vida pré-teórica, mas uma exploração dos componentes a É)Horaque de-
que na exploração dos dados da experiência pré-científica se prenuncia terminama ideia de um mundo da experiência em geral. Essescom-
que o próprio fazer científico será estudado pelas ciências humanas. ponentesseriamexplicitados pela variação imaginária de casosindivi-
Em IdeiczsIJ, o autor apontavapara um aparentecírculo viciosoen- duaisde partida (Cf. NG, 164), de forma a delinear puras possibilida-
tre ciências naturais e humanas. A retomada dessetema em 1919 mini- desestruturaisde experiência, independentemente de sua realização
miza já de saída essa circularidade entre os diferentes tipos de ciências. Eactual7i.
E é em direção a essadescrição das estruturas a priori da expe-
Ambas se enraizam na experiência pré-teórica, ou seja, têm osseusdo- riênciae do mundo pré-teóricos que Husserl avança no correr dos anos
mínios prefigurados nos diferentes tipos de predicados reconhecidos
70. "A tarefa fenomenológica ou transcendental seria estudar reflexivamellte esse
mundoconforme sua típica lrrpíkl na consciênciaoriginalmente atestadora"(NG,
69. "No início, nós excluímos todas as ciências a fim de alcançar o mundo pré- 142] 43\
científico. Mas deixamos em aberto todo tipo de operação, de predicados de sentido, 71. Husserl retoma aqui essemétodo estabelecido em Ideias 1. Alguns anos de-
por meio dos quais o sujeito encontra seu mundo circundante"(NG, 140) pois,no curso Psfco/agiaáerzomenorógica,
ele reconhece poder haxer diferentes níveis

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A cientificidade na fenomenologia de Husser] Método estático e método genético na fundamentação das ciências

1920. Com efeito, nessecurso de 1919, como


ciência,e ciência no sentido mais alto e rigoroso" (NG2, S 1, 4), e
essameta e já amealha alguns resultados. É v.
meramente expressãode uma visão de mundo relativa. "A filosofia
tas questões ainda não se resolvem. Embora
seusinteresses e respectivamente sua esfera de conhecimento pró
os temas apreendidos pela consciência
mente explorados nas no universal, em oposição às ciências particulares que os têm no
(NG2, S 1, 5), acredita o autor. Enquanto cada ciência par-
discutido acerca da
te dedica a uma região temática delimitada, a filosofia abarca a
ã experiência pré-teórica. Na parte final do
do (...) cognoscível" (NG2, S 1, 6), e isso porque investiga
durezacomo tema científico é finalmente
condiçõestranscendentais que tornam o conhecimento particular
lida há ali somente uma retomada da
a qualquer área objetivo) possível. Dessamaneira, a filosofia
termal"pelas ciências naturais, tal como
'uma crítica dos fundamentos de princípio, dos conceitos bási-
NG, 168). Quase nada é dito.
rito, uma ausência notável em um curso princípio das ciências" (NG2, S 2, 9), ou seja, uma exploração
dascondiçõestranscendentais de toda prática científica
Somente nas últimas páginas do
Mas de que modo essacrítica filosófica se exerce?Husserl reafirma
psicologia experimental ao domínio
a lura já assumida no curso de 1919. Referindo-se àsciências empí-
pidamente o caráter absoluto do
ricas ele asseveraque "todas as ciências positivas se relacionam ( . . .) ao
Jade da natureza (Cf. NG, 2]5)
mundocontinuamente pré-dado" (NG2, S 3, 14), ao mundo tal como
modo bem mais paciente no final de Ideias /l.
intuído na experiência pré-científica. E sobre essaexperiência que a
encerra nenhum grande
atividadecientífica se ergue, de maneira que nela se devem buscar ao
buição dessecaráterabsoluto
humanas, as menos algumas das suas condições estruturais basilares, tornando claro
quais se realizam na orientação natural. Será estudar uma s.. em que medida construções conceituais que delimitam e prescrevem
gorda versão do curso Natureza e
1927, para oscaminhosda investigaçãocientífica, tais como "natureza" e "espí-
encontrar algumas das respostas não
rito", remetem à infraestrutura pré-teórica. Assim, a tarefa geral lan-
çada na introdução do curso de 1927 é mostrar de que modo a expe-
A crítica $1osófica às ciêntcias riência pré-teórica seorganiza e como a atividade científica se erige so-
bre ela. Cumprindo tal tarefa, a reflexão filosófica se realizaria como
"filosofiaprimeira", ou seja,como "o solo originário para a clarificação
radical de todos os pressupostos e fundamentos das ciências positivas
ING2, S 3, 18). Por meio dessainvestigação filosófica genética seria en-
tãopossívelatribuir uma justificativa racional plena ao conhecimento
da ciência, tal como ocorrera no curso homónimo anterior, mas sim a científico, quer dizer, uma justificativa que não deriva meramente da
retomada de um tema caro a Husserl ao menos desde seu'artigo A /} aplicaçãotécnica de algoritmos tendo em vista certos fins, e sim da
/osoPa como cíêrzcía rigorosa (191 1), a saber, que "a filosofia pretende compreensãodos pressupostospré-teóricos de que a legitimidade da
atividade científica depende
da exploração da experiência pré-teórica, nem todos servindo se des- -- á-- . Esseprometofilosófico é apresentadode modo bem geral na in-
pretendo mostrarno finaldocapítulo. '' '" - "b»ç "içLUao, como
trodução do curso de 1927. No entanto o próprio Husserl reconhece
222
223
A cientificidade na fenomenologia de Husser]
bTétodo estático e método genético na fundamentação das ciências 4,

que não poderá aplica-lo a todos os tipos de ciências, o


delimitação originária das regiões ontológicas ocorrerá de acordo com
cussõesmuito mais complexas do do mundo da experiência pré-científica. E aí que se enrai
asestrutt
filosofia. É assim, por exemplo como o fenomenólogo já mostrara no seu curso de 1919, asdife
Barão
em que medidaas ciênciasformais, tais como a
rençasprmc'pa's que sustentarão a distinção de regiões sobre as quais
a lógica, poderiam também ser remetidas ao
diferentesciências vão se debruçar. Assim, para justificar as diferenças
pré-científica (Cf. NG2, S 3, 18-lg). No
ente asciências e seusmétodos, para levar a cabo uma clarificação ra-
1927,Husserl delimita como âmbito MI dos tipos de ciências, será preciso, como disse há pouco, descrever
cação das diferenças entre ciências
}próprias estruturas do mundo da experiência.
sim, dirimir disputas
de disciplinas.O método
será uma série de c/asse/ilações capazes de elucidar as Asctassi$cações
dasciências
racterísticas das ciências em vista (Cf Antes de propor uma tipologia das ciências por remissãoàs estru-
tipologia das ciências remeterá, em última Hrasda experiência pré-teórica, Husserl expõe, no segundo capítulo
ção das próprias estruturas do mundo da docurso de 1927, uma série de classificações Óomaís das ciências, isto
bre o qual elas se constroem (Cf. NG2, S 5, é. referentes à ideia de ciência em geral (no sentido de um sistema de
A expectativa de Husser] é elucidar como tesesordenadas por relações de justificação e voltadas para a explica-
mente delimitados das ciências
çãodosfenómenos de um domínio objetivo), independentemente de
Luras. Para tanto, de início, destaca a
quaisquer das suas realizações concretas (Cf. NG2, S 6, 30-3 1). Ali, to-
delimita um domínio de certo dasas ciências possíveisse deixam classificar segundo vários parescon-
forme já estabelecera na ceituais. Elas podem ser ciências
ciência em sentido forte não é algo pré-dado sem
' czpriori ou a posteríoH (conforme seus juízos se direcionem
uma partefundamental de uma
seja para as puras idealidades, como é o caso das matemáti-
(NG2, S 5, 28). Isso quer dizer
cas, seja para entes espaçotemporais, tais como as ciências
ontológica em correlação com
empíricas Cf. NG2,S7);
o problema dasdistinçõesfundamentais entre as e formais ou materiais (conforme seus principais conceitos se-
pareciaocorrerem Ideias11.A
jam vazios de qualquer referência a algum tipo de domínio
tomada como um dado último.
específico,tal como ocorre com a lógica, ou conforme seus
ções que pretendem elucidar as estruturas constituintes da principais conceitos já contenham delimitações referentesa
cia pré-científica. Segundo Husserl, «a ideia de
uma região ontológica específica, tal como ocorre com as
esfera de ser essencialmente fechada
ciências naturais ou humanas, as quais podem avançar de
dente" (NG2, S 5, 29). Rompe-se modo a priori ou a posteríoH-- Cf. NG2, S 7.2);
região ontológica e orientação teórica ' concretas ou abstratas(conforme sua região temática seja for-
escopo das regiões ontológicas é
mada por indivíduos concretos tomados em sua totalidade,
sumir a orientação teórica correspondente, a qual deve se submeter tal qual ocorre com a zoologia ou a botânica; ou conforme
às restrições eidéticas anunciadas já na experiência pré-teórica. Essa sua região temática seja formada por aspectosdependentes
224 225
A cientificidade na fenomenologiade Husser] Nlétodo estática e método genético na fundamentação das ciências

isolados das tonalidades Coílcretas a investigar


ocorre com a geometria
paciaís abstraídasdos do mundo da experiên-
tudo os corpos somente vista material, o problema
mentos -- Cf. NG2. Contudo, de fato, pouco
' dependentes ou
elaboradano curso de 1927,o qual se
rica abra um
tomam quasea totalidade da
domínios, tal como ocorre das ciências73.Antes de propor
a Terra, planeta inserido no eidéticas do mundo da experiência, duas
abrindo assim a possibilidade material das ciências são criticadas
ou conforme a região temática não 14, remete, em última ins-
investigaçãopara além dos seus a distinção dos fenómenos reais
com a matemática e a lógica pura -- Cf. assim, dois âmbitos sobre os
Husser] pouco desenvolve essas deveria se debruçar. Para Husserl, essa
das. Elas permitem a complexidade da organização
científica, porém, não Na verdade, a separaçãoentre fenâme-
nal ú/rima para a 'mundo real existindo em si" (NG2, S 14,
em regime de análise eventos relativos a uma parte específica do
toda teorização7Z.É não é um dado da consciência pré-teó-
classificação material das da experiência. A circunscrição
texto. O caráter mafería/ em exclusivamente físicos, aos quais se atri-
creio específico ao científica, ou seja,de um pro-
sificação, trata-se características dos dados sen-
quais asregiões exatos, objetivos, com base em
forme já havia sido assim, aos fenómenos físicos idea-
devem ser tomadas psíquicos são tomados
das à sua origem no causal com os eventos
zar de maneira radical a das noções de "físico"
efetivo sob os olhos na estudo desseúltimo deva sempre remeter
creia" (NG2, S 13, 68), e então favorece o desenvolvi-
vigor na experiência a fim de da consciência. A
desse mundo. Descarte, recusar esseresultado é questionar se
e psíquicos abarca adequadamente

ti720P4ral 52.1 5q alise detida das classificações formais propostas por Husserl, Cf.
73. Veremos que essaantologia é desenvolvida no curso Psicologia $enomenológíca

226 227
A ciejjti6lcidadena fenomenologia de Husserl Método estático e método genético na fundamentação das ciências
r 4

a complexidade da experiência pré-teórica. O mundo


é apreendido como um "mundo circundante
ap- V, 193) e não como exibição de um em-si
dadesfísicas.Dessamaneira,o próprio mundo já
cia como dotado de propriedades subjetivas, as
conhecidas como meros dados da interioridade
encontrar o em-si excitoe a psique (distintos)
tífica é então projetar aí resultados
Husserl também critica uma
da experiência e de classificar o
ele. Trata-se da análise proposta dependeria'dasoperaçõesobjetivantes das formas conceituais para.ad-
de Baden, Wilheim quirir inteligibilidade. A assunção ingênua desse press:aposto.implica
pâs (no texto Hisfóría e c;ê,leia da natureza) uma que,na análise de Rickert, ' o mundo enquanto sentido coeso da ex-
ciências naturais e humanas baseadanão na periência(.. .) permanecenão questionado, bem como a vida experts
:tentadora universal enquanto aquela que constitui essesentido uno
dos a que elas se refeririam (por exemplo,
ING2, S 16, 100). Mais uma vez, a tentativa de classificar as ciências
na especificidade metodológica de cada investigação. As
natureza seriam nomoféfícas, ou seja, estudariam os porsuareferênciaao mundo concreto falha justamentepela dificul-
dadede apreenderas estruturasdo mundo tais como se revelam na
casos de leis, as quais deveriam ser explicitadas a fim de
experiênciapré-científica. Daí que Husserl rejeite a classificaçãodas
timamente o conhecimento dos casos em questão. Já
ciênciasem nomotéticas e ideográficas:Rickert não teria conseguido
manas seriam ídeogrcí/ocas,isto é, investigariam os fenómenos
aspectosúnicos, sem a preocupaçãode formular leis às legitimaressadistinçãocom baseno mundo da experiência,pois as
uMdades de sentido integrantes desse mundo são ignoradas em favor de
nâmenos deveriam se subsumir. De maneira
uma concepção artificial de heterogeneidade sensível a ser superada
divisão metodológica e (principalmente em
mação conceptual das ciências naturais) busca por categoriascognitivas. Segundo Husserl, é preciso retornar às es-
truturasconcretas do mundo da experiência para acompanhar de que
talmente ao distinguir duasmaneiras
modoali já seanunciam as divisões temáticas das ciências e como já se
subjetividade transcendental produziria
material da experiência74. prescrevemas diferenças metódicas entre elas. E issoRickert não teria
feito, contestando-seem defender que o sujeito porta em si asformas
sserl discute principalmente essatentativa rickertiana de legi- de conhecimento e que por meio delas molda a experiência do mundo,
timar a distinção metodológicaentre as ciênciaspor uma espéciede
queem si mesma seria ilógica
dedução transcendental" (NG2, S 15b, 87), quer (fizer, por uma tenta.
Após criticar essas duas tentativas de remeter as ciências à sua ex-
uva de mostrar como conceitos a priori se reportam a objetos7s.Rickert
periência fundadora, Husserl oferece a sua própria classificação mate-
rial das ciências, e issoao mostrar de que modo já na experiência pré-
t74 Para uma exposllf(l:mais detalhada acerca das posições desses autores quanto teórica do mundo vigoram estruturas que antecipam as diferençasde
75. Sigo aqui, em lin.has gerais,a interpretação de Julien Farges(2010a) sobrea conteúdo e de método das ciências. Haveria, assim, continuidade en-
críticahusserlianaaosneokantianos.' ' ' ~-''"' tre o mundo verdczdeiro,
tal como proposto pelas teorias científicas, e

228 229
A cientificidade na fenomenologiade Husser]
Método estático e método genético na fundamentação das ciênc)a+ #,

o mundo
Nessa última, já do nosso mundo da experiência (Cf. NG2, S 17, 106). Nesse
amplo de 10 .Ível de generalidade formal, delimitam-se possibilidades ideais
les padrões derivados da decircunscnçao de formas objetivas (entendidas como multiplicida-
se contrapõe ao neokantismo des
rnatemáticasvazias de qualquer conteúdo material), possibilida-
princípio no mundo da des regidas somente pela "concebibilidade sem contradição" (NG2,
anterioràs operações 17,108).A partir daí, tenta-sepropor restriçõesde conteúdo (não so-
posições atacadas por Husser] mente referentesà exclusão de contradição) que permitam delimitar
rente ao mundo da ssibilidades eidéticas não mais de quaisquer tipos de experiência for-
ficava os fenómenos .ajmente concebíveis, mas de experiências materialmente compostas
da racionalidade cadavez mais concretas. Para Husserl, "dessemodo resulta um cami-
cismo, elas aí não nhodescendente do formal-analítico ao formal-material, das condições
Ora, dessamaneira. legal: de possibilidade de mera ausência de contradição às novascondi-
(querela se ções legais da verdade material possível" (NG2, S 17, 110).
E ambas falham. Há, entretanto, uma segundaalternativa para evidenciar as condi-
pré-teórica,a qual,para çõesda experiência e do conhecimento, um caminho ascerzdenfe,
pri-
a atestação de distinções vilegiado por Husserl ao menos desde o final da década de 19 10, o qual
ção Cuidadosado mundo da parte"da intuição concreta do mundo que nos é dado na experiên-
cimento científico se enraiza cia" (Ibid.). Nesse caminho, consideram-se as experiências concretas
va.
gueza inerente, não deixam domundo intuído ainda em nível pré-teórico, e, em seguida,por meio
do conhecimento cientíâco dométodo da variação imaginária dessescasos de partida, busca-se des-
Com esseprometode gênese velaras estruturasa priori que delimitam o sentido e o alcance de tais
riêncta pré-teórica do experiências (Cf. NG2, S 18, 1 17-8). Como resultado, as restrições ma
na
intl'adução do curso sobre teriaisa que as ciências devem se submeter (por exemplo, as possibili-
de
que haveria um camín/zo dadesideaisque demarcam uma determinada região ontológica) não
da legitimidade do aparecemcomo meras particularizações de relaçõesformais vigentes
0
autor compara duas paratodo conhecimento possível, mas como exigênciasque se enraí
dições que as ciências zdm nas estruturas eidéticas que delimitam a experiência cottcreta do
NG2, S 17-]9). A primeira marido. Assim, por meio desse caminho ascendente de investigação,
certo modo o passam-sedas experiências particulares (tomadas como exemplos) para
minho asestruturasa priori materiais que condicionam tais experiencias e a
de qualquer objeto produção de conhecimento sobre domínios objetivos particulares. Fica
claro, dessamaneira, que o problema da fundamentação das ciências
não se resolve apenas pela explicitação das formas teóricas objetivas

-.;...= ,;'::lUg'
J:.T:l!:ã:'Tl:::.=.;8:.::!::::,=:=.r::==}.:s" «'
básicasem correlação com os fitos subjetivos de atestação de tais for-
mas, conforme Husserl propusera em Pro/egõmerzos. Muitas ciências
230
231
A cientificidade na fenomeilojogia de Husser] Método estático e método genético na fundamentação das ciências

sereferem a domínios objetivos pré-teórica, nível em


eles se referem são
cialmente em experiências
sesdomínios objetivos
-- 1927,ofilósofo
sensível pré-teórica se
que Condicionam a produção do saber.
do mundo so-
sua fundamentação racional
do saber às estruturas concretas da rte um sujeito isolado.
lamentar asciências envolve. ao abordagem artificial, uma vez
de fundação (no sentido de relações de envolve relações intersubletivas em um
K 23, 143), características que
teórico em relação à experiência
das vivências pré-teón-
trições eidéticas em ação nessa desvelar
dução do conhecimento, os
tornar visível a
corriqueira cielltífica e exigem uma
sim, recensearasformações estruturais a produção de conhecimento, como
pré-científica para esclarecer como, a
como essencialmente
e asprescriçõesmetodológicascientíficas(Cf. NG2, S lg, ll de contínuas doações
evidência. Porém, o con-
As estruturas pré-teóricasfundentes do conhecimento a totalidade de aspectos do
poroutros
'validade relativa:
é efetivamente apreendido sempre
são cointuí-
que o fluxo
vigora um nu-
o qual é
(NGZ,SZZ,is7),
como
exemplo, na
os demais já estão ali
de vista. Além
intuído e dá lugar

úiU:=:,i?u:!:u
E : : an
típico nelas se funda.

232 233
A cientificidade na fenomenologia de Husser]
Pvlétodo estático e método genético na fundamentação das ciências

.düzindoum curso de exploraçãopreenchedora dos horizontes fu-


Hrosdo conteúdo impressional. Ao rodear uma mesa, por exemplo,
cadaponto de vista subjetivo permite a apreensãosomente de certos
aspectos
do obleto. Mas cada percepção não está encerrada nessesas-
pectosimpr.essionaisparciais. O movimento do olhar já antecipa como
serãoas outras faces da mesa, ou seja, como ela será apreendida de
outroponto de vista ligado coerentemente ao ponto de vista anual,e
Issocom basena modificação contínua já vivenciada entre alterações
depontos de vista e alteraçõescorrespondentes dos dados intuídos. Da
mesmaforma, ao ouvir uma melodia, não se está limitado ao som que
imediatamentevibra, pois os sons já soldos permanecem retidos e su-
geremuma antecipação dasnotas que virão a ser percebidas (conforme
o timbre, o andamento, a tonalidade etc.). Dessemodo, a percepção,
enquantoabertura pré-teórica ao mundo percebido, ocorre como um
campoordenadopor uma ;adução originária, em que as vivênciasreli
daspermitem antecipar ao menos o está/odos dados que serãoassimila-
dosà medida que a exploração perceptiva continua;'
Cabe notar que por meio dessaindução originária o sujeito percep-
tivo jamais se limita ao caráter singular dos dados impressionais, pois reco-
nhecef)adrõescom base nas experiências sedimentadas. O que é apreen-
dido impressionalmente são dados particulares, porém, como vimos, a
percepçãonão se reduz a um registro de sensaçõessingulares isoladas; os
dadosimpressionais estão inseridos em um campo de relações intencio-
naispassivas,
de modo que sãosintetizadosem continuidade com dados
já percebidos, o que permite pré-delinear horizontes de novas doações
impressionaispossíveisconforme o sentido já esboçado nos dados reti-
dos, ou seja, como casos de certos f;Pos ob/ef;vosai. O campo perceptivo

80. Tal como nos lembra D. Lohmar, essaprefiguração de dados é falível, de ma


fieiraque há sempre alguma margem para que os dadosimpressionaisvindouros rom
pam a expectativa que vinha se formando, constituindo, assim, outras pré-Gtguraçõeste
mágicas:"o conteúdo dessasexpectativasconcretas é bem precisamente determinado
maspermanece Hexívele sempre contém um grau de vagueza, de modo que as expec
cativas podem se ajustar a uma percepção sensível anual (. . . ). Dessa maneira, nossas ex
pectativassãorevisáveis,elas podem ser reconfiguradasno curso da experiência" (Loh
79. Escopre-delimea8o NG2tiva se dá ou por padrõesanalógicos(Cf. NG2, S22, mar, 2014, 50)

81. "Tudo o que percebemos é 'apercebido' conforme o seu tipo"(NG2, S23, 145)

234
235
A cientificidade na fenomenologia de Husserl
Nlétodo estático e método genético na fundamentação das ciências

teóricoà investigação personalísta, no entanto, permanecia ali não cla-


.Ócado.Fina]mente, no curso Natureza e espírito ] 927, essalacuna
foipreenchidapor meio da descriçãoda indução originária.
'No curto e importante apêndice Vll desse curso, propõe-se uma
demarcaçãodas orientações teóricas praticadas nas ciências naturais e
humanascom base nos aspectostípicos que amuamna indução originá-
riaperceptivas'. Cabe agora notar que, além das características acentua-
dasem Ideias JI, a passagemda orientação pré-científica para a orienta-
çãocientífica estáligada à explicitação dessasgeneralidades estruturan-
tesdo conteúdo impressional, as quais serão tomadas como princípios
explicativosda diversidade factual da experiência:s. Segundo Husserl,
haveriadois ti/)os de geizera/idades que se anunciam na experiência por
meioda indução originária, e a lematização de cada um dessestipos,
devido às suas exigências próprias, demarca a especificidade das orien-
taçõesteóricas naturalista e personalista
Um primeiro tipo de generalidadeque se esboçana experiência
pré-científica está essencía/merzte/ígado à estatura concreta do mundo
círcurzda71te,sempre podendo, assim, ser remetido aos fatos apreendi-
dosintuitivamente pela percepção.Husserl asseveraque é a tematiza-
çãodessasgeneralidades concretas que marca a especificidade teórica
dasciências naturais descritivas (tais como a botânica e a zoologia) e,
principalmente, das ciências humanas8Õ.Revela-seaqui ao menos uma
especificidadedo personalismo enquanto orientação teórica: tematiza-
ção de generalidades essencialmente ligadas ao mundo circundante.
Na experiência pré-científica, essasgeneralidades amuampassivamente
naorganização do campo perceptivo, e a passagempara a postura cien-

84. Sigo aqui, em linhas gerais, a interpretação de A. Konopka (2009) acerca desse
tema
85. "Em qualquer momento podemos também mirar as generalidadesexplicita-
mente como generalidades e nos interessar teoricamente por elas"(NG2, ap. Vl1, 200)
86. "Aqui jao mundo-ambiente concreto] pertencem a maior parte das ciências
descritivasprovavelmente bem conhecidas, a botânica descritiva, a mineralogia, as
ciênciasculturais e pessoaisdescritivas. Elas são todas ciências do mundo ambiente e se
mantêm todas no quadro dos modos de acesso ]Zugdng/íc/zÊeften] concreto-intuitivos,
rezae espírito --pl)ãil;anda gênesedo naturalismo era repetida no final do curso Nclh- diretosou indiretos, do mundo, que é o universo do mundo ambiente humano, o palco
de toda praxis humana" (NG2, ap. Vl1, 201)

236
237
A cientiflcidade na fenomenologiade Husserl Método estático e método genético na fundamentação das ciências
F

Lítica personalista supõe ativamente explora-las como da ídea/ízação,o que produz resultadosteóricosbas-
,sedimento
lematização dos fatos individuais. O personalismo
Ente diferentes daqueles obtidos pelo personalismo. Por meio da idea-
ção teórica se mostra, assim, uma orientação desconsidera-se qualquer vagueza, fluidez ou variação de in
libação
na qual se deve apreender e elaborar conceitualmente inerentes à experiência pré-teórica sensível e se leva a ge-
densidade
que, em última instância, sempre remetem a
neralidade ali esboçadaao limite, construindo-a então como conceito
Há também um segundotipo de Descarte, "os conceitos exatos transcendem a intuição no mé
excito.
periência pré-científica87. Esse
gado ao mundo circundante
.0da 'idealização"' (NG2, 219), quer dizer, os aspectos gerais que
tratamento de determinação idealizante de seus contor-
fato de que tais generalidadesaceitam passam pelo
nos nao encontram preenchimento intuitivo na experiência efetiva,
cular (a idealização), por meio da qual são
naqual todos os aspectostípicos sempre figuram com diferentes graus
clãs concretas em que se esboçam inicialmente. A
deinexatidão As generalidades não essencialmente ligadas ao mundo
segundo tipo de generalidade caracteriza a
concreto são, assim, passíveis de se submeter a um procedimento de
ção teórica naturalista exala de seu sentido. E são os conceitos exatos, fruto da
determinação
E claro que asgeneralidades essencialmente ligadas ao mu i,realizaçãodessetipo de generalidade, que se tornam princípios expli-
ndo cir.
cundante suportam um tratamento relativamente descolado
das ex. cativosna orientação naturalista
periênciasefetivas.Afinal, na :ematização feódca de tais Mas quais são exatamente essasgeneralidades idealizáveis? No
generalida-
des, elas são tomadas como princípios
descritivos amplos com os quais cursode 1919, o domínio de investigação do naturalismo era esboçado
se pretende esclarecer fenómenos aparentemente díspares,fazer
pre- naexperiência pré-teórica como aquele dos predicados reais'8,os quais
visõesetc. Em todo caso, cabe notar que as generalidades essencial- nãoremetem a nenhuma operação criadora da subjetividade como sua
mente ligadas ao mundo concreto mantêm como característica defi. fonte, mas se anunciam como partes integrantes dos dados atestados
nidora, não importando o nível de abstraçãoteórica em que sejam uti. pelaatividade perceptiva. No curso de 1927, acentua-se que os temas
lizadas, a possibilidade de remissão a experiências efetivas dos sujeitos
centraisdas ciências explicativas naturalistas são construídos por idem
perceptivos. Essa característica estará ausente das generalidadesnãoes. lização. Fica, assim, sugerido que são justamente os predicados reais
sencialmente ligadas ao mundo concreto, asqua
s )ustamente compot- aquelespassíveisde uma forma de objetivação que os descole da expe-
tam uma objetivação idealizante por meio da qual as suas versões teó. riênciaefetiva e produza conceitos exatos. Cabe aqui notar que asgene-
ficas não mais são remissíveisa experiências efetivas, como veremos. ralidadesidealizáveistambém operam na indução originária e se dei-
No apêndice XIV de Natureza e espúífo -- ]927, Husser] acen. xam aí apreender como formas típicas de ordenação dos dados percebi-
tua que todas as generalidadesque operam diretamente na indução dos.Nesse nível, obviamente elas estão ligadas à apresentação intuitiva
espontânea são inexatas e passíveisde uma descrição meramente mor- do mundo para a subjetividade pré-teórica. Porém os conceitos gerais
fológica. No entanto, a construção de teorias com basenas generali- exatosconstruídos sobre elas não estão mais diretamente relacionados
dades não essencialmente ligadas ao mundo circundante se serve do a experiências efetivas, já que, segundo Husserl, a exatidão não é uma
característicadas generalidades operantes na indução originária.

:='lU=:;=H==
=;:;E:.h=Tl:*;.=:
:;il'l==:
s:'E::=::
: 88. Predicadosreferentesà forma espaçotemporal,às propriedades materiais e às
relaçõescausais

238 239
A cientificidade na fenomenologia de Husserl Método estático e método genético na fundamentação das ciências f' / ? .?' 4

No apêndice VI ao curso de 1927, Husserl acentua a disso, a idealização das generalidades operantes na expe'
osaspectosgeraisidealizadose como um critério de demarcação entre ciências
de casosconcretos. Nesse humanas. Essas últimas devem destacar e descrever
típicos de diferentes experiências, isolando-os de outros em torno dos quais a experiência dos predicados
exemplo, acentuo a vermelhidão com baseem vários de atestação direta em situa
apreendidos intuitivamente). Aqui, o métodos de idealização
merlfo depeizdente da totalidade exatasos predica-
trato intuitivo. Não é o que ocorre no casoda dos fenómenos naturais. Assim, ciências naturais e humanas
essaúltima não é um momento dependente em razão de suasmetodologias, capa
mtuitivamente nos casosconcretos em pauta. Os frutos da dos dados concretos da experiência
não são assimiláveis intuitivamente na experiência devem então se separar simplesmente por-
mais se atestam dados exatos. A idealização não é, desdesempre distintos aos quais elas
uma versãoda abstração;trata-sede um recursos epistêmicos próprios (os quais
criação de um domínio de puras formas e derivados de capacidades formais da subjetividade
sãopreenchidospor intuição concreta (Cf. NG2. Rickert), conforme prescrições
Por meio da idealização, objetivam-se de do dado concreto. A distinção
dades (que exprimem predicados reais) naturalista e personalista é então legiti-
tânea da experiência pré-teórica. Esse fundante da atividade teórica se
cidade da orientação teórica se encontram entrelaçados predicados
tais conceitos ideais como princípios um tratamento metódico específico
menal. Por sua vez, é possível inferir e analisados teoricamente. Se as ciên-
que não há idealizaçãodaquelas cegamente os procedimentos melódicos das
das ao mundo circundante, ou servindo-sede conceitos idealizados, romperiam en
são. Em contraste com as generalidades temáticas sugeridas pela experiência pré-teórica.
predicados reais, as generalidades anuncia-seum tipo de generalidade que não se
curam aqueles predicados de não se presta a um tratamento exato, tal como
duções culturais. Essesdevem ser os reais tematizados pelas ciências físicas.
enquanto orientação teórica. Trata-se,nessecaso, de no curso de 1927 são oferecidas expo-
ver as generalidades típicas que induzem à das orientações científicas na
de sentido na experiência. Essasgeneralidades, Husserl recusa os conceitos básicos
teoricamente, poderiam, em última instância, ser como dadosúltimos, e pretende,
concretas em que seriam reconhecíveis intuitivamente8ç. divisão das regiões objetivas, às

8q Cabe notar que um autor como Max Weber discordaria desseponto, uma vez Parauma discussãosobre as consequênciasdo método da idealização nas ciências hu-
que defende a utilização de tipos ideais qualitativos nas pesquisasde ciências sociais. manas, tendo em vista uma comparação entre Weber e Husserl, cf. Moinat, 2005.

240 241
A cientificidade na fenomenologiade Hitsserl
Nlétodo estático e método genético na fundamentação das ciências

tentei acompanhar ao menos em parte a exposição husserliana


esseponto no que concerne à fundação das ontologias materiais
pré-teórica,tópico que julgo relativamentepouco ex-
comentadores. Por sua vez, há muitos outros textos, tais
sobre as sínteses passivas e atiras, Experiência e juízo e
trechos de Lóg;ca /omza/ e üarzscerzdentcz/,em que Husserl pro-
um movimento argumentativo similar tendo em vista os compo
da oncologiaformal, de modo a mostrar que mesmo ela se en
em operaçõespassivasda vida subjetiva inserida no mundo da
Não pretendo recuperar as particularidades da fundação
categoriaslógicas na experiência passivado mundo, tema que se
desenvolve
com tantas minúcias que praticamente exigiria um novo
jivropara ser devidamente rêconstruído9'. Pretendo, a partir de agora,
acompanharmais detalhadamente como se dará a exploração das es-
truturasque constituem o mundo da experiência,o qual serviria como
basepré-teórica para o desenvolvimento ulterior tanto das ciências ma-
teriaisquanto das formais. Para isso, analisarei alguns trechos do curso
psÍco/ogíaÓenomeno/ógíca,ministrado por Husserl inicialmente em
1925e repetido com modificações em 1926 e em 1928.
e,---u--a '-'-----"-"""ud õuuie Q inundo, que, longe de se apresentar como
conjunto de dados irracionais, revela ]á estruturas típicas ou estilosge-
rais sobre os quais o conhecimento pode se erigir. Desse modo 'a "' co- A.eidéticado psíquico
ração fenomenológica da vida concreta revela uma continuidade entre Na introdução do curso Psíco/ogía $enomeno/ógíca, Husserl aponta
a inserção pré-teórica no mundo e a produção de conhecimento cientí- parao desenvolvimento de uma ontologia da vida psíquica. A expli-
fico. Como vimos, já há na vida pré-teórica o esboço de padrões gerais citação das possibilidades eidéticas puras revela necessidadesestrutu-
raisque delimitam o campo dos fenómenos concretos corresponden
tes,necessidadesque operam como normas sintéticas a príod que con
nal de conhecimento, mas justamente é o seu fundamento enquanto dicionam a justificação dos conhecimentos empíricos acerca de tais
envolve padrões pré-teóricos de ordenação da experiência fenómenos.'Teriasido a sistematizaçãode um quadro a f)ríon de rela-
çõesexatas(pela matemática e geometria) a razão do notável desen
volvimento das ciências empíricas naturais como ciências explicati-
vasbaseadasem leis. De modo paralelo, para elevar o conhecimento

91. E de fato alguns livros já foram escritos sobre essetema, visivelmente mais
discutido entre os comentadores. Cf. Bégout, 2000; Kaminski, 2003; Courtine, 2013

242
243
A cientificidade na fenomenologiade Husserl
Método estático e método genético na fundamentação das ciências 4

empírico sobre a vida


transcendental (como detalharei logo à frente), o filó-
tido a normas a priori seria não deve ser aqui pressuposta nem exercida
des eidéticas que delimitam a fundamentação eidética dos conhecimentos empíri
cológica empírica (Cf. PP, S 2). Já em em Ideias 111ocorria direta-
nologia teria iniciado a circunscrição desse na orientação natural,
vida psíquica, comenta Husserl no em relação a todos os outros domínios
no/ógíca. No correr desse trecho. o
nomenologia e acentua a busca de proximidade e distância entre psi-
vidade. No curso de 1925. pura, Husserl defende haver
uma ciência psicológica eidétíca de qual não implica a identifica-
outras palavras, de uma psíco/ogía . também haveria uma dí$erença de oHenta
mirar os componentes eidéticos do domínio temático, Husserl crê que as
se servirá do método descritivo-intuitivo e pela psicologia fenome-
especificidades das estruturas transcendental e
cológicosdeinspiração O autor exprime de maneira lapidar essaidentidade temá-
Por meio dessa proposta, altera-se Óenomeno/ógíca:"o universo
ideias Jll (exposta no capítulo anterior), originária [transcendentall
conhecimento psicológico empírico, a ao universo de dados atestáveisda minha experiência pura-
retamente, realizando o papel de unia (PP, 45 1)ç:. Dessa maneira, experiência transcenden-
insiste em afirmar que deve haver uma filosofia) e experiência psíquica pura (tema da ciência ei-
entre o conhecimento
não se distinguem tematicamente, mas somente
tal, tal qual já era admitido teórica em que avançam.Issotorna com-
Ideias Jll. É essaciência intermediária. a fenomenológicos pela onto-
que será esboçada no correr do curso Vimos na parte inicial do capítulo que,
ciência que seráfundente não só da sobre a natureza, Husserl re-
das ciências humanas empíricas, na consciência, tópico que havia sido
produções decorrentes da atividade espiritual fenomenologicamente em Ideias l. Ora, em Psicologia Óe-
uma "ciência das formas e das leis as mais
(Cf. PP, S 5, 53), as quais prescreveriam os
cimento das ciências humanas e da 92. Husserl parece ignorar aqui a delimitação da fenomenologia como explicita
Ocorre, assim, uma distlncão dasestruturas a /)ríorí da consciência em geral e não somente da consciência hu-
mana tal como afirmado em Proregómenose em Ideias 1. Nessestextos, ficava aberta a
fenomenologia transcendental,
possibilidade de se desvelar estruturas puras de .consciência que não se realizam como
ideias /[J. Husser] admite que o estruturashumanas. Desse ponto de vista, delimitar a estrutura da consciência pura
como aquilo que pode se atestarna expe'iência psíquica humana (ainda que eidética)
ocorre"naorientação
natural"(PP,S4, 48). seriacometer um psicologismo transcendental, do qual Husserl parece seaproximar aa
que a psicologia fenomenológica ofereça um caminho de menos em algumas passagensda sua argumentação

2'H 245
A cienti6lcidade na fenomenologia de Husserl h/métodoestático e método genético na fundamentação das ciências

jetivo, mas em Ideias ll ele já apresentavaessaúltima como Umadis.


ciplina independente, estratégiaargumentativa que não ficava total.
mente compreensíve] ao ]eitor. Em Psíco/ogía áenomeno/(jgica, essasi- dasuspensãodo ser mundano exigido por eles94. .
tuação é esclarecida:o tema da eidética do subjetivo (ou'do espírito, Retomemos à tarefa central de delimitação da ciência psicológica
conforme Ideias 11)é o mesmoda fenomenologia. O que se are.a é eidética. Sua principal tarefa é tornar patentes as necessidades estrutu-
a orientação do pensar em que as disciplinas se desenvolvem. Dessa raisque delimitam o domínio dos eventos psíquicos possíveis.Husserl
maneira, é verdade que em ideias l Husserl apresentaraa fenomeno. aplicaassim à psicologia fenomenológica a sua concepção do papel
logra como ciência transcendental e eidética. Porém, posteriormente. fundante das ontologias materiais em relação ao conhecimento empí-
ele considerará, ecoando alguns trechos de ll.TC, que essavertente rico, conforme estabelecido já em Ideias 1. No entanto, ao problema-
eidética pode se autonomizar em uma disciplina própria, a ontologia tizar o desenvolvimentoda psicologia fenomenológica, leva-seagora
do subjetivo, a qual se desenvolve independentemente das questões em conta a ênfase genética no tratamento do tema da fundamentação
transcendentais. A fenomenologia certamente se servirá dos resultados dasciências, tal como ocorre ao menos desde o curso Natureza e espí-
dessaoncologia, já que aborda a consciência pura em seus aspectoses.. rito -- ]9]9. Essa ênfase aparece claramente a partir do parágrafo 5 de
senciais;mas a sua marca central é a problemática transcendentale o Psíco/ogíaÓenomerzoZógíca,
segundo o qual a circunscrição dos aspectos
método específico para o seu tratamento (a redução).
especificamente psíquicos dos eventos mundanos (revelando, assim, as
A psicologia fenomenológica se desenvolve na orientação natu- característicaseidéticas delimitadoras de toda vida psíquica possível)
ral do pensar93.Enquanto ciência dogmática, ela supõe a posiçãoda envolveobscuridades difíceis de superar. Essasobscuridades são relati-
mundo da experiência e do ego psíquico mundanizado como referen- vasao entrelaçamento dos fenómenos naturais e espirituais no mundo
tes últimos de suas teses. Se se realiza a epoc/zé transcendental e se sus- da experiência pré-teórica, o que pode fomentar sobreposições ilegíti-
pende a vigência dessasuposição,passa-seentão do domínio eidético masdas investigações das ciências naturais e humanas. Por exemplo,
psicológico para a experiência transcendental pura. Husserl insiste, en-
tão, em afirmar que a psicologia fenomenológica "oferece um ponto de 94. Dado o paralelismotemático entre ambas,a psic.ologiaferlomenológicapo-
partida natural a /)ríorí possívelparater acessoa uma fenomenologiae deriaser desenvolvida por meio da modificação das tesesda fenomenologia banscen-
dental. Esseseria um caminho de sistematizaçãoda ciência eidética.da subjetividade
uma filosofia transcendental em geral" (PP, S 4, 47). A investigação pei-
que nada de\ ena aos métodos da orientação naturalista. Entretanto, devido à ausência
hstórica de uma oncologia descritiva do subjetivo, as ciências psicológicas e humanas
93. Para desenvolver a psicologia fenomenológica, Husserl afirma: "nós quere- empíricas tenderam a seguir a metodologia naturalista. Veremos no p'oxlj=o capitulo
mos permanecer na orientação natural, nós não queremos ser senão psicólogos que, de .s escla.ecmentos de Husserl acerca dos pressupostos históricos que condicionaram
modo natural e humano, dirigidos para o mundo objetivo enquanto realidade efetiva, o desenvolvimento da psicologia como investigação nahralista. Sobre esseponto, cf
esforçam-separa estuda-locomo mundo do espírito" (PP, S 4, 48) Feest,2012

246 247
A cientificidade na fenomenologia de fitisserl
Nlétodo estático e método genético na fundalnerltação das ciências

ta] qual já expostoem /delas


relativas às atividades teóricas construídas sobre essenúcleo
temas básicos por exclusão
subjetivas. No A experiência pré-teórica que se tem em vista deve, desde en-
objetiva, as ciências dos resultados dos pensamentos teóricos ativos que
quina enquanto variante da Paratanto, propõe-sedistinguir entre, por um lado, "o
Husserl, ignoram as a nós como imediatamente percebido, como isso de que se faz
domínio eidético do a experiênciaenquanto existindo em carne e ossoe que
ciências humanas de olhar e apreender em pessoa" e, por outro lado, "o
catenação dos eventos aí se exerce,e os pensamentosque aí se formam so-
cia dos métodos (PP, S 6, 57). Trata-se de delimitar, artificialmente, um
sido incapazesde obter doaçãointuitiva, no qual o mundo é apreendido sem
psíquico-espiritual. ao pensamentoativo, o que implica
toda teorização, mas também de toda
E preciso, assim, superar certas
são teórica dos limites da e denominação (Cf. PP, S 6, 59)
julga Husserl, por um retomo à
aqui uma dificuldade importante: muitas de-
doam "como pertencentes a isso de que se faz a
ies temas, a saber, a experiência
concreto. Cabe então. S 6, 57) são oriundas das funções ativas do pensa
1919, "partir dessaunidade tal como ocorre, por exemplo, com alguns predicadosde sen-
casos,importa salientar que mesmo o que foi produção
penêncla pré-científica e clarificar
do sujeito pode ser passivamente experimentado e, nessesentido,
orientações teóricas do pensamento
e como. conta como parte da vivência pré-teórica que se tenta circunscrever.
nessecontexto, natureza e espírito
temasunitários uni. Admite-se,assim, que o domínio da experiência pré-teórica ao menos
verbais,sempre
Natureza e espírito são temas (pp, S õ, 55) em parte deve seu conteúdo a operações do pensamento ativo. Não
na experiên- setrata, desdeentão, de buscar como conteúdos pré-teóricos apenas
cia pré-teórica; é então nessaúltima
cials que permitem demarcar o o que é originalmente passivo o que jamais se misturou com as ope
quico, a ser tematizado raçõesativas da subjetividade cognoscente. Busca-se distinguir, índe-
essaúltima é fundada pe7zderztemenfe de sua origem Última (Cf. PP, S 6, 59), se o conteúdo
de experiência em questão se ordena apenas pelas associaçõespassi-
que somente por uma análise
nhará clareza acerca dos temas e que se ga vasatuantesna percepçãoou se dependede funçõessintéticassupe'
do domí. dores,da ordem da atividade subjetiva em geral. Deve-seentão aten
nio psicológico-espiritual
Em relação às características tar somente para aquilo que é atualmente assimilado de forma passiva,
rica do mundo, Husserl busca mesmo se em suas origens tenha sido fruto de operações ativas. E assim
àquela abordagem limitada quese circunscreve o núcleo de experiência pré-teórica sobreo qual se
e eSPÍTito-- 1927. desenvolvem formações teóricas posteriores.
Em Psíco/ogía
teórica apenas a camada experiência pré- Husserl também volta a problematizar um tópico com o qual
por oposição já se preocupava ao menos desde Ideias 1, a saber, a possiblidade de
248
249
A cientificidade na fenomenologia de Husser] Método estática e método genético na fundamentação das ciências r'/ } ;l,'.,

apreensão do mundo como correlato da esclarecercertas delimitações temáticas e metodológi


PP, S 6, 60-62). A dificuldade surge e, dessamaneira, cumprir a tarefa de funda-
é sempre limitada a un] campo do conhecimento enquanto elucidação dos pressu
tece que falar de "mundo" como a produção de resultados científicos válidos
seria já apelar para uma produção atiça do
mação racional que se acrescentaria aos
cia sensível.E, conforme o critério estabelecido do mundo da experiência
AontoZogía
das as produções subjetivas ativas devem ser ocorre uma notável inflexão na exposição hus-
A partir desseponto
dance a experiência pré-teórica em z'hto após anunciar o domínio da
Porém, feita essaexclusão. serliana.Nos cursosNatureza e esP lesmente
de descreverquaisfor-
bém deveria ser deixada de !!-"'"-«-nE
a divisão teórica posterior das regiões natureza
maçõesali antecipariam
Para salvaguardar o "mundo" como correlato medida, essa descrição era apresentada como
espontaneamente e espírito. Em grande
atestado na experiência pré-teórica, Husserl retoma a sua doutrin t reÉd d.z áerzomeno/ogí'z No entanto, no curso Psicologia ãeno-
a dos
horizontes cointuídos em cada dado para o qual a atenção da cona- mero/ógíca,a descrição da experiência pré-teórica será desenvolvida
ciência atualmente se volta. O campo perceptivo da consciência não comouma ontologia específica que expora os principais componentes
se encerra nos dados assimilados impressionalmente, Nesse sentido, a análise do mundo
mas envolve um; eidéticosdo mundo da experiência
abertura para dados a se experimentar (e isso co] rme do ponto de vista fenomenoló-
o estilo geral pré-teóriconão ocorrerá imediatamente
dos dados já experimentados), de de vista da orientação natural.
maneira que a experiência pré-teó. Bico mas sim do ponto
rica é formada por uma continuidade de
experiências concordantes É preciso aqui atentar para o movimento argumentativo plane-
que lança expectativasde que novos dados nam à ordem Íá con. lado. Husserl iniciou seu curso pelo reconhecimento da necessidade
figurada. E, nesse sentido de abertura regrada a horizontes de no. de fundação eidética para o conhecimento empírico psicológico-espi-
vas experiências, o próprio mundo é passivamente visado na vivência
ritual,o que o levou a propor uma psicologia fenomenológica respon'
pré-teórica9s.Tal como proposto desde os cursos Natureza e espÍHto, sávelpor delimitar a príon o domínio dos eventos psíquicos. Em se-
essavivência será explorada como fonte das teorizações cienl .cas,a
cuida,notou que a própria caracterização dos eventospsíquicos remete
qual permitirá esclarecer a divisão temática das
ciências e a prescri- àexperiência pré-teórica na qual essesse encontram entrelaçados com
ção de seusmétodos. Husserl defende que a experiência pré-teóricaeo
eventosposteriormente associadosao domínio da natureza. Faz-sene-
mundo que aí se anuncia são "o pressuposto de todas as ciências obíe-
cessário, a partir daqui, retornar à experiência pré-teórica para ali obter
uvas" (PP, S 6, 63), já que elas supõem a continuidade ordenada daex. clareza sobre a circunscrição dos eventos psíquico-espirituais, os quais
per'ência e supõem o ser do mundo que aí se anuncia como mundo a terão,posteriormente, suasestruturas d priori investigadaspela psicolo-
ser cientificamente explorado. Cabe, assim, explorar essabase pré-teó- gia fenomenológica. Cabe agora notar que também não seráa própria
psicologia fenomenológica a disciplina responsável por tal exploração
daexperiência pré-teórica a ela cabendo apenas a formulação dos prin
cípios a prior que delimitam o domínio dos eventos psíquicos possa
veia.Essa formulação supõe a antecipação do sentido dos fenómenos
psíquicos na experiência pré-teórica já que é sempre sobre essaque o

250 251
A cientificidade na fenomenologiade Husserl
N/método
estático e método genético na fundamentação das ciências
H
pensamento teórico (do qual a
de uma explicitação das características gerais que delimitam
plo) se erige. Isso quer dizer ideais constituintes de todos os eventosparticulares
detalha restriçõeseidéticas
em questão.Trata-se de buscar as generalidades típicas que
em correlação com o mundo percebido. Dessa da experiência do mundo em geral. Nesse parágrafo,
em última instância tais restrições, é
que "devemos partir de exemplos de experiências do
se esboçam no mundo pré-teórico
em vigor" (PP, S 7 66), ou seja,que as generali
pré-teórica) .
em vista devem ser obtidas com base em exemplos factuais de
Tudo issojá estava,de certo modo, em O método para a obtenção dessasgeneralida-
e esPÚífo. A inovação marcante de closhorizontes cointuídos na assimilação de qual-
uma disciplina eidética especificamente
experiência: parte-sede um exemplo factual qualquer en-
riência pré-teórica e exprimir seus resultados no
impressional da consciência e se explicitam as
eidéticas. E, assim como fez com a
poderiam vivenciar por meio da atualização dos
eidéticas do psíquico, Husserl
com o dado originalmente apreendido.Nessa
da fenomenologia transcendental,
que as antecipações indeterminadas de novos da
antologia do mundo da
são prefiguradas conforme experiências fama
supõe a posição objetivo das essências a
que estilos gerais de doação sensível do mundo se
em formular os problemas
reconhecerna organizaçãodo campo fenomenalpelo qual a
Porém, cabe notar aqui que a
sensível ocorre. Como exemplos desses estilos gerais de ex-
mundo da experiência não
mundana, Husserl aponta para certas formas de ligação dos
em dois níveis diferentes:inicialmente, como
a saber, o espaço, o tempo e a causalidade, bem como para
rais do mundo Éacfua/da experiência e, em
característicastípicas das coisas (por exemplo, propriedades materiais
puras possibilidades que constituem um
tis ou ligadas à duração temporal em geral)
ralçõ.Vamos ver com mais detalhes cada um
ssim que se obteria um primeiro conceito amplo de mundo da
E no parágrafo 7 de Psíco/og;a
composto das generalidades estruturais típicas que consti-
cia a necessidade de desenvolver uma ciência
asvivênciasÉactuczís
dessemundo, e que seria pressupostopelas
temática geral do mundo pré-dado na sobrea ciênciasque se dedicam a explorar os fenómenos factuais mundanos. A
qual as ciências empíricas se
explicitação desseconceito científico de mundo da experiência deveria
velar essaestrutura geral é a
auxiliar as ciências particulares em prol de obter clareza em relação à
neira completamente geral do mundo considerado em sua totalidade. extensãoe aos limites de seustemas, bem como acerca de prescrições
puramente enquanto mundo apenasda experiência, quaisquer quese- metodológicas para respeitar a especificidade das estruturas eidéticas
Jamo momento e o lugar em que se examine a experiência como ex mundanas No parágrafo 8 de Psíco/ogía Óenomeno/ógíca, Husserl ad-
periência do mundo?" (PP, S 7, 65). Como se vê,desde
vê, desde o início, a ciên- mite que essesresultados ainda estãoconectados ao domínio empírico,
cia do mundo da experiênciaé concebidacomo uma oncologia,no já que as considerações gerais foram obtidas a partir de exemplos con-
cretos,e antevêuma formulação ainda mais ampla da ciência eidética
96. Sigo aqui de perto a interpretação de Sou a, 2010.
do mundo pré-teórico, a saber,como "ciência pura e a príoH" (PP, S 8,
252 253
A cientificidade na fenomenologia de Husserl
Método estático e método genético na fundamentação das ciências

,rificação, espera-seabrir o caminho para o desenvolvimento de uma


iênciapsicológica livre dos cacoetes naturalistas (Cf. PP, 88), os quais
iam sido historicamente assimilados pela investigação psicológica
çasà ausência de clareza em relação à especificidade eidética do do-
míniopsíquico-espiritual
Husserl apresenta alguns resultados dessa exploração científica
dasestruturasa priori do mundo da experiência, retomando tesesque
desenvolveraem outros textos, porém, desassociando-asda problemá-
ticatranscendental, já que agora elas são expostas por uma disciplina
eidéticadesenvolvida na orientação natural. No parágrafo 1 1, afirma-
seque todo ob/eto índív;dua/ real só se doa na experiência inserido
emum horizonte cointuído por meio do qual justamente esseobjeto
seatestacomo ob/efo de um mundo. Além disso, deve-se reconhecer
queessaforma ontológica do mundo "só é possívelsevista mais de
pertocomo um mundo de formasuniversaisdo espaçoe do tempo
IPP,S 11, 97), de maneira que cada realidade mundana concebível
não é senão,ao menos em sua infraestrutura eidética, um certo es-
paço e um certo tempo preenchidos concretamente. No que con-
cerneàs realidades mundanas singulares, Husserl expõe no parágrafo
13a distinção entre indivíduos concretos reais (coisasem sentido am-
plo Cf. PP, S 14) e os atributos, características dependentes dos
indivíduos concretos. Além disso, os indivíduos concretos se distin-
guementre sujeitos, portadores de vida psíquica, e não sujeitos ou
coisasem sentido estrito (Cf. PP, S 14), tal como já se propôs no curso
de 1919.E a partir daqui, finalmente, que "a espiritualidade aparece
como momento estrutural no mundo da experiência"(PP, S 14, 104),
a saber,como componente de certas realidades individuais, os sujei-
tos,osquais, ao menos se se enfatiza o estilo geral empírico do mundo
ICf. PP, S 15, 107), são sujeitos encarnados, isto é, unidades psicofí-
sicasinseridas no ambiente por seu corpo próprio, o que atestao en-
recerao as normas a pr;orí para o desenvolvimento das ciências par- te/açamerzto,na experiência pré-teórica, dos temas posteriormente
.culares do nosso mundo (Cf. PP, S 10, 92). Em 1particular,','expli-
"» H'HE) u VAI/ll divididos entre ciências naturais e humanas. Em seguida, Husserl
citação dos domínios mundanos fundamentais permitirá clarificar a
expõeno parágrafo 16 que há predicados irreais ligados à ativídade
distinção teorica entre natureza e espírito (Cf. PP, S ]0, 90), tema que subjetivaresponsáveis
pela elaboraçãoda cultura, e que é pela ex-
Husserl analisa ao menos desde/delas 11,como vimos. Por meio dessa
clusão desses predicados e, no geral, dos modos subjetivos de doação
254
255
A cientificidade na fenomenologiade Husser] Método estático e método genético na fundamentação das ciências

fenomenal
dascoisas(Cf.
PP,S]8)que as ciências naturaisse ao caminho ascendente de fundamentação do conheci-
teoricamente97 erigeh um passo
10 científico. Não se trata simplesmeTlte de remeter os concei-
Sugere-se,assim, que a orientação teórica em
turaissão produzidas não tos on tológicos regionais
e formais à experiência pré-teórica fundente,
nologicamente Essa própria experiência e o mundo
do domínio subjetivo, que descritarenome
Ihe é correlato devem por sua vez ser tema de uma disciplina pró-
cem. Dessa maneira, a
da ontologia do mundo da experiência pré-científica, disciplina
domínio exige uma orientação
sua vez, fundamentará, de um modo que Husserl não havia
mento de examinar "a especificidade que,por
recon decido
antes de desenvolver a fenomenologia genética, as onto-
gênero de investigação que são característicos
loglas
formal e regionais. Do ponto de vista de sua gênese, essason-
(PP, S 27, ]50). Esboça-se finalmente ,
tojogias enquanto veiculam conceitos teóricos basilares para a pes'
estruturas invariantes gerais que empírica, dependem das restrições d priori vigentes na expenên-
qutsa
creção do mundo da experiência
ciapré-científica em geral. Confirma-se, assim,que a fundamelltação
um domínio em particular, a das ciências, no sentido de explicitação dos seus pressupos-
obÍetiva
vestigações da oncologia do mundo da 'nsteóricos, não se encerra com a análise das restrições eidéticas for-
tadossuficientes,então cabe
maisou materiais que esteticamente delimitam o alcance das opera'
ção de Psíco/ogía teóricas basilares das ciências correspondentes. E preciso eluci-
tecado domínio subjetivo. e isso no nível da validade eidética, as estruturas pré-teóricas que
Não pretendo acompanharem detalhe a eidética do subjetivo estãona origem das restrições formais e materiais. E será na direção do
apresentada nessecurso, a qual não oferece desenvolvimentode uma antologia do mundo da vida (não mais abar-
grandes contribuições .m
comparação com Ideias // e os cursos N,it cadode forma artificialmente limitada, e sim em toda a sua concre-
reza e espÚÍfoç8.Interessa
enfatizar que em Psíco/ogía Áenomeno/Ógíca Husserl acrescenta mais tudesensível-histórico-culturallque Husserl seencaminhará em textos
dadécada de 1920 e 1930, elaborando, assim, o que parece ser a versão
maissofisticada do prometode fundamentação das ciências, conforme
veremosno próximo capítulo

256
257
CAPÍTULOIV

As ciênciascomo produçãohistórica
no mundo da vida

Apresentação
Nos capítulos anteriores, vimos as linhas gerais do prometode fun-
damentação das ciências por meio da clarificação dos conceitos básicos
dasdisciplinascientíficas eidéticas.Clarificar significa reenviar os con-
ceitosque circunscrevem regiõesontológicas e os conceitos formais à
suaorigem fenomenológica, quer dizer, aos nexos de consciência que
ibuem sentido a essasformações objetivas. Com o desenvolvimento
do método fenomenológico genético, esseprometorecebe alterações
importantes.A fenomenologia genética investiga as diversascamadas
de operações da consciência na constituição do sentido dos fenóme-
nos,de maneira a reconstituir uma espécie de "história" da subjetivi-
dade,segundo a qual a atividade ludicativa (em que o conhecimento
científico é produzido) se funda na experiência perceptiva, em sentido
amplo. Essaperspectiva genética abre novos desafios para o prometode
fundamentação fenomenológica do conhecimento. Tal como apre'
sentado no período das Ideias, esse prometoelegia como ponto de par-
tida para a análise constitutiva fenomenológica os conceitos básicos das

259
A cieiltificidade na fenornenojogiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

ontologias, ou seja, temas já elaborados fenomenológica (dedicada às condições subjetivas da


aplica a análise genética a tais conceitos, deve-se sentido de sendaobjetividade)
as atividades teóricas por meio das quais eles são essanova lematização dos funda-
operações pré-teóricas, asquais a ela associado.Antes,
a qual as produções científicas são o horizonte teórico em que Husserl insere
Tais considerações revelam rel notar que há outro tó-
ao conhecimento científico, cuja textos finais, as tarefas da feno-
feto de fundamentação do que deve serreunido àquele da
tividade é uma condição estrutural mundo para obter o entendimento
e cabe estuda-la em detalhe para fenomenologia. Trata-se aqui da
operaçõeselevadasdo pensar ludicativo. ampla reflexão sobre o desenvoJ-
tos textos na década de 1920 para descrever a E no interior dessareflexão que
em seus dois polos constitutivos: as tornará plenamente compreensível
experiência tal como visadopor elas para o exercício da fenomenologia trans-
Quanto ao polo objetivo, trata-sedo mundo v vido na no correr do capítulo.
orientação
natural do pensar, no qual nos situamos imediatamente
, sem reflexões
críticas. Esse mundo se apresenta composto de coisase eventos
nata-
raís, mas também de objetos e situações culturais em AI O problema da história
que as pessoasse
relacionam entre si como seres Umarelação ambígua com d hístóHa
concretos inseridos em contextos só.
cio-históricos. Há, assim, diversas camadas de Cabe notar, de início, que, em seus primeiros trabalhos, Husserl
fenómenos que consti-
quem o mundo da experiência (camada
puramente sensível, Camada pouco ou nada avalia as tarefas da fenomenologia de um ponto de vista
social, camada histórica); e, tomado em toda a sua complexidade, esse
histórico. Como vimos, em Pro/egõmenose em textos do mesmo pe'
mundo da vivência pré-teórica é o mulzdo da vida, no seíltido de sero díodo, a fenomenologia era apresentada como uma investigação eidé-
domínio de manifestação originária da subjetividade por meio de suas tica das estruturas d /)Horada consciência. As ponderações históricas se
diferentes capacidades
intencionais. Caberia então explorar as estruhi. limitavam ao reconhecimento do estadode imperfeição teórica atuaZ
ras dessemundo da vida a fim de tornar dasciências, sem se preocupar com a problemática da constituição do
compreensível de que maneira
a experiência pré-científica condiciona a produção de conhecimento conhecimentocientífico no tempo histórico. Ali, a análise fenomeno-
objetivo. Para isso, Husserl propõe uma 07zfo/agiado mundo
pré-dado lógica almejava mostrar os componentes subjetivos ideais (e, porá.acto,
à subjetividade, o que é esboçado (principalmente em relação à ca- não submetidos à temporalidade empírica) responsáveis pela atestação
made puramente sensível da experiência) no
=urso Psicologia fe evidente das estruturas objetivas das teorias científicas. Era, então, prin-
no/óbice, conforme expus na parte final do capítulo anterior. Essaon.
cipalmente a armadura teórica a priori do conhecimento que interes-
tologia seria uma disciplina pré-fenomenológica e ofereceria uma via savaa Husserl, tomada como fio condutor para a explicitação dascon-
de acesso privilegiada à problemática transcendental. Estaria mantida.
dições noéticas de atribuição de sentido aos princípios objetivamente
assim, mesmo no nível da análise genética, a demarcação entre inves- válidos, e não o fato de que essaarmadura foi proposta por comunida-
ligação científica (dedicada às condições objetivas do conhecimen to) des científicas historicamente situadas

260 261
A cientificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

#H lilR IE:%:$ seriao sentido originário de conhecimento científico ou rigoroso, sen-


tido que alimentaria, ainda que implicitamente, o desenvolvimento
dasciênciasespecializadas
Todos essessão temas apresentados de forma muito rápida na intro-
duçãode seu artigo. Não sabemos,por exemplo, que estatuto teórico
atribuir a essa"constatação" de que desde o seu início a filosofia pre-
tendeser ciência rigorosa.Paulatinamente, Husserl deixaráclaro que
O autor recusatratar as ciências como fenómenos sociaishistóri. seuinteressenão é o de fornecer juízos historiográficos empíricos, e
simde marcar a instituição de uma tarefa histórica que se revela ur-
,entedo ponto de vista do estadode crise presente.Por ora, importa
acentuar que, apesar da pouca elaboração, já se entrevê ali um papel
centralà reflexão histórica, ao menos no que tange à história da filo-
sofia,paraa justificação do próprio prometoteórico da fenomenologia
A tentativa de construir uma filosofia de caráter cíent@co (no sentido
blemas ligados à fundamentação do conhecimento quanto a apresenta-
amplo de elaboração de tesesválidas e justificadas à luz de princípios
ção das tarefas fenomenológicas dispensava qualquer recurso à história
stands o apelo a estruturas ideais, cuja validade não estaria limitada partilhados por uma comunidade) é apresentada como consecução
ao desenrolar dos eventostemporalmente determinados. de uma ideia por meio da qual a filosofia se formou historicamente
Husserldescreve alguns momentos históricos decisivos na tentativa de
Em alguns textos publicados Tla década de 1910, Husserl passaa
admitir o interesse histórico do prometofenomenológico, embora man.. implementação de uma filosofia rigorosa: o momento socrático-plató-
nico e o momento cartesiano. Em ambos, uma crítica radical das tra-
tenha uma postura ambígua em relação a essetema. Consideraremdois
deles para tornar visíveis as hesitações do filósofo quanto a esseponto: diçõesepistêmicas estabelecidas é realizada, e pretende-se estabelecer

o artigo A /í/oso/ia como cíêlzcía rigorosa, publicado em 19 11, e alguns osprincípios últimos sobre os quais o conhecimento é produzido de
parágrafos de Ideias 1, de 1913. No artigo, o autor combate duramente maneira corneta. Segundo Husserl, é esse movimento de crítica global
o naturalismo e o historicismo, interpretaçõesfilosóficas que enfraque- queguia o desenvolvimento da filosofia, ao menos em seus melhores
cem ou distorcemo ideal de uma filosofia científica. Esseideal é apre- momentos, apontando para a sistematização paulatina de um modo de
sentado como uma espécie de nomza /zísfórícczque teria guiado os filó- investigaçãorigoroso,daquilo que é chamado de "filosofia científica
sofos de diferentes épocas e que se anuncia como uma tarefa a ser as- em sentido amplo:. E a fenomenologia pretende justamente retomar
sumida pela fenomenologia, a qual, desde então, passaa ser avaliada
em relaçãoà história da filosofia:. Segundoo autor, a filosofia teria sis- vistaético-religioso uma vida regrada pelas normas puramente racionais. Essapreten-
sãofoi asseveradaora com mais ora com menos energia, masnunca foi completamente
abandonada"
(PSW,3).
1. "Desde o seu início, a filosofia pretendeu ser ciência rigorosa, e até mesmo a 2. "As 'viradas'decisivaspara o progressoda filosofia são aquelasem que a pre'
ciência que satisfaz às necessidadesteóricas mais altas e torna possível de um ponto de tensãodas filosofias anteriores de serem científicas é desintegradapela crítica de seu

262 263
A cienti6lcidadena fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

esseímPu/se /zísfóüco de formação de uma filosofia crítica temas investigados,os quais Husserl propõe fina-
rigorosa e es. derivardos próprios
tabelecer algo como um terceiro momento fundente da paulatin; método da intuição de essências,sem nada dever a uma re-
rea- lidarpelo
lização do ideal filosófico anunciado pelosgregos antigos;. histórica dos conceitos filosóficos
consüuçao
Além disso, Husserl acrescenta certa
Nal erdade, para ser mais preciso, o autor admite que as reflexões
filosofia científica. No final da introdução do artigo afirma-se para a filosofia. Mas não se trata
que a históricas têm alguma importância
exposição subsequente se apoia na tese de que "os mais a
tos interes. i de fornecer dados para análisestemáticas. Não é a história factual
aqu
sesda cultura humana exigem a construção de uma fila-. ,leve interessar ao filósofo e sim o conteúdo das filosofias de ou-
fia rigorosa. que
mente científica" (PSW, 7). Mais adiante, uma referência hora retomadas como "estimulantes" (ibid.) para a reflexão contempo-
ainda mais
dramática aparece: o naturalismo filosófico seria uma conde
PÇãocolos O apeloà história deve ter em vista explicitar "a força de mon-
rânea.
erros "significam um perigo crescente para a nossacultura"
(psW 81 fiaçõesvivas"(ibid.), que inspiram os filósofos atuais a empreender suas
O naturalismo implicaria uma distorcão do leal de filosofia Lisas Porém,de que tipo de história não factual se trata aqui e de
rigorosa.
pois simplesmente transportaria, sem crítica, os princípios e procedi. do passadoaguasobre asrefle-
quemodo essainspiração motivaciona]
mentos das ciências naturais para o tratamento das questões concel iões presentes, são questões não esclarecidasnesseartigo, mas que te-
duaise valorativas. Ora, essadistorção da ideia de filosofia cientíHlcaé rão um papel central ns análise introdutória tardia à fenomenologia,
apresentada como uma ameaça cultural, e, como veremos.
por outro lado, a assunção
correra da tarefa de construir tal filosofia Antes de passar a essaanálise, quero expor mais um exemplo de
aparece como uma exigên.
cia marcanteda cultura humana. Como entender tal exigência? Por hesitação de Husserl sobre o papel da história (no caso, da história da
que cabe ao desenvolvimento da filosofia como
con hecimento rigoroso fenomenológico extraído agora de Ideíasl,li-
filosofia)parao prometo
preenchê-la? São temas inexplorados nesseartigo de 1911, cuja men. foi próxima do artigo de 191 1. Já analisei vários tre-
ção permite ao menos confirmar um esforçoinicial para
para integra.
integrar ,. chosdesselivro no segundocapítulo, em que acentuei a apresentação
prometofenomenológicoreflexõeshistóricassobreafilosofia e astarefas da fenomenologia como ciência eidética e transcendental. Em termos
da fenomenologia.
gerais,essaapresentaçãoparece seguir à risca a recomendação do final
No entanto, conforme mencionei há pouco, o reconhecimentoda doartigo de 1911,segundo a qual não é por meio da história da filoso-
importância da história nesseperíodo da obra de Husser] é ambíguo. fia que se constrói um programa filosófico, e sim por reflexão direta se
No final do artigo de 1911, o autor praticamente recusaqualquer im- bre os temas a se tratar. Essa pretensão fica bem clara, por exemplo, no
portância teórica à história da filosofia: "não é por meio das filosoHns enrrerdo orimeiro capítulo de Ideias 1, que, segundo o autor, teria sido
que nos tornamos filósofos. Permanecer na história, ver-se imerso em desenvolvido de modo "puramente lógico" (Idl, S 17, 38), sem pr'ssu
atividade histórico-crítica, e esperarobter a ciência filosófica por meio poi nenhum dado factual ou mesmo filosófico. Ademais, o alcance e os
de assimilação eclética e de um renascimento anacrónico: métodosda própria fenomenologia sãoelaborados sem grande menção
apenastentativasvãs" (PSW, 61). O impulso filosófico deve, por fim, filosóficas com exceçãodo reconhecimento de que a re-
àstradiçõesfilosóficas,
dução fenomenológica foi inspirada pela dúvida hiperbólica cartesiana
supostoprocedimento científico e.em que deve ser remoldada a vontade plenamente ICÍ. Idl, SS3 1-32).Por sua vez, na aplicação dessemétodo em toda a
ente de filoso6ta no sentido de uma ciência radicalmente rigorosa" (PSW 6)
3. "Nós reconhecemos uma ciência de cuja extraordinária extensão nossos contem-
sua extensão, é a ligação da fenomenologia com quaisquer tradições fi-
porâneos não têm ideia, uma ciência da consciência que não é a psicologia, uma fenome- losóficas (enquanto produzidas na orientação natural) que é suspens'
nologia da consciência enquanto oposta à ciência natural sobre a consciência" (PSW, ] 7). Tratemos com vagar desseúltimo ponto-

264 265
A cientificidade na fenomenologiade Husserl
As ciências como produção histórica no mundo da vida
Lembremo-nos de
cidadeda orientação asquaistêm a sua validade suspensa Desde então, a fenomenologia se
peia vida subjetiva. constróisomente a partir da aplicação dos seusmétodos a problemas
pela consciência é específicos,tal como já recomendado no final de A /í/osoPa como cíên-
que as operaçõesconstituintes cjÓ Hgorosa
ser sejam clarificadas. A Contudo, como mencionei logo acima, há hesitações quanto à re-
vida pré-científica, mas laçãoentre o prometofenomenológico e as tradiçõesfilosóficas. Vimos
dogmático, o que afeta que por meio da ePoc/zéfilosófica, busca-segarantir o desenvolvimento
filosóficas? São elas independente da fenomenologia em relação às filosofias passadas
notar que Husserl Porém,em outro trecho de Ideias 1, o autor claramente liga a feno-
sentido de suspender rnenologia ao menos a algumas das filosofias passadas, ecoando agora
postos para o prometo outra linha de considerações presentes no artigo de 191 1, aquela que
parágrafo 18 de/deíasJ,logo apontavadiferentes estágiosde uma ideia-guia que se realizava paulati-
tre as regiões eidéticas namentena história Em Ideias 1,essareflexão ocorre no parágrafo 62
sido realizada somente Ali, a fenomenologia é reafirmada como ciência crítica, ou seja, aquela
Husserl: queesclarece a possibilidade de obtenção de conhecimento por todas
asoutrasciências.E, dessaforma, "compreende-seque a fenomenolo-
gia é, por assim dizer, o anseio secreto de toda a filosofia moderna" (Idl,
133).Em seguida, Husserl menciona "esforços para chegar a ela« reco-
nhecíveisnas filosofias de Descartes, Locke, Hume e Kant
O que se exprime nessestrechos é bem diferente da posição assu-
mida no parágrafo 18. Agora, a continuidade histórica entre a fenome-
nologiae a tradição filosófica moderna é acentuada, e issode forma a
salientar que essatradição já apontava, ainda de modo tateante, para a
formulação da fenomenologia. Há, dessamaneira, a retomada da no-
ção de.sucessão de etapas que realizam de modo cada vez naais aper-
feiçoadoum ideal de filosofia. Contudo, não há uma elaboraçãomais
refinada dessaconcepção de ideal filosófico, e isso porque, de modo
geral, a referência às tradições filosóficas foi suspensa, como vimos há
pouco' Descarte, a fenomenologia deve se desenvolver de modo inde-
pendente de qualquer impulso histórico, e, no interior dos marcos teó.

4. M. Brainard captura de modo lapidar a posição husserliana:"Husserl entende


a si mesmo como continuador do efAosradical da filosofia moderna enquanto também
tem de romper com seuspredecessores"(Brainard, 2002, 19). Entretant;u Brainard não
esclarecede que maneira Husserl harmonizará essasduas exigênciasaparentemente
contrárias

266
267
A cientiâcidade na fenomenologia de Husser]

As ciências como produção histórica no mundo da vida .r / f' ,:'

ricos de /delas J, ma] se compreende de


que maneira um profeta que
suspende a validade de todas as filosofias ao mesmo tem
POpode sere. Husser] pergunta se os
conhecer como uma espécie de realização dessas meta/bicas "poderiam
45). Há nesse ponto a
as ciências como parte da cultura motivações para animar
Não interessa propriamente
cartesiana, mas sim extrair dela um
para fazer avançar as tarefas anuais da
seservede um autor clássicota] como
czênctarigorosa
não buscava fatos. e
propiciada pelas obras dos auto-
ainda são significati-
Esse tipo de interesse
Já no primeiro parágrafo
reconstrói rapidamente a
por meio de uma evidência indubi.
absolu tamen te fundamen-
ciências se desenvolveriam
porquepermite uma leitura historio-
porta "uma signi-
e as novas formações
transcenden
na obra de Descarnes.
já em desenvolvimento
motivacional contida nessaobra dará
assim, a Descarnes para renovar
da fenomenologia, a qual
maneira imperfeita, e cuja conti-
é "uma tarefa imposta pela própria Lis-

i:ÜZHU :l'õ:::;:: ,:: %J::l parabem além dissmficará claro que a posição de Husserl acerca da história avançará

2003 e Lavigne a2descrição detalhada das posições de Husser] nessa obra, cf. Smith,

268
1:iii:$iiEU 3i 269
!iiBi:i: ) :::
A cientificidade na fenomenologiade Husserl
As ciências como produção histórica no mundo da vida

Qual a legitimidade dessaideia de ciência filosófica universal?Para

:.,.:..«.: il HF:l:E iHiill:ll$ Husserl,essaideia, ao menos em seu sentido geral, se deixa reconhe-
cerno desenrolar das ciências factualmente existentes. As mudanças de
teorias,o apeúeiçoamento dos métodos e da linguagem conceitual, por

IHiÜW:jHlliZ:
a crença nessaciência esmoreceu com o correr dos séculos(Cf. MC
exemplo,são propostos pelos cientistas em nome de um conhecimento
cadavez mais bem estabelecido, com maior abrangência fenomenal e
capacidadede predição. Vigora, assim, no correr da história dos sistemas
científicos, a perspectiva de produzir um conhecimento absolutamente

:l BX l:qXilH$Xlilr
rização da própria filosofia em diferentes sistemasdoutrinários mui-
justificado, evidente e com o maior escopo possívelto. Por sua vez, o reco
nhecimento da atuação desse ideal nos diferentes momentos históricos
daempreitada científica não implica um comprometimento
riasjá defendidashistoricamente, uma vez que nenhuma delas teria con-
com as teo-

tas vezes incompatíveis entre si. No entanto, o autor crê que o anseio ido realizar de forma adequada esseideal. Husserl reconhece que as
ciênciassão"fatos da cultura objetiva" (MC, S 4, 50) e têm seu desenvol-

:W;Z:i;!iiEX;:Sina;lE:
siana, na qual o ideal dessaciência filosófica já estavapresente
vimento atrelado a limitações concretas que dificultam a sua realização
plena.Mas importa reconhecernessedesenvolvimentocultural con-
cretodas ciências uma aspiração gera/ que guia o apeúeiçoamento do
Cabe acentuar que esse esquema teórico, que ainda amadurecerá
fazercientífico. Ora, o prometocartesiano de uma ciência universal expli-
em outros textos, permite resolver aquelas hesitações presentes nos tex. citaexatamenteo ideal que anima o desenvolvimento concreto dasciên-
tos do início da década de 1910 entre a herança histórica e o prometofe-
cias,ainda que esseideal esteja muito distante de se cumprir''. Assim,
nomenológico. No parágrafo 3 de Medífações carfesianas,Husserl re.
toma o procedimento cartesiano de suspensãodas convicções tradicio-
nais para estabelecer um conhecimento absolutamente fundamentado. bansmitidas pela .tradição e pelo senso comum, assim como pelas ciências, que pre
tendemreagir a eles. (. . .) Entretanto, o sentido do começo da'filosofia só se e;cla;ec.
Essasuspensão envolve todas as ciências existentes, devido a obscurida- verdadeiramente graças à consciência de sua finalidade. Com efeito, essecomeço é de
des nelas presentes que as impedem de tornar-se exemplo dessetipo de um sógolpe determinado por uma certa ideia de filosofia e de seusfins fundamentais
IBégout, 2008, 25)
conhecimento. Mas que dizer da própria ideia que guia as reflexõescar-
10. Conforme Bégout, a ideia de ciência que resiste à epoché "se revela primeira-
tesianas, a saber, aquela de uma ciência filosófica onienglobante? Essa mentecomo exigência:há um ideal normativo de ciência que transcende todasas figu-
ideia continua valendo como norma para a reflexão radical que se tem rashistóricasque asciênciastomaram, tomam e tomarão, um ideal cuja validade não íoi
aindaesclarecida autenticamente, já que a cada vez ela é assimilada a I'rabaffue surf uma
em vista?Husserl sustentaque essaideia não é apenasmais um pressu-
concepçãodeterminada da ciência ' (Bégout, 2008, 28). Mais à frente, Bégout detalha o
posto tradicional a ser suspenso, e sim que ela é legítima justamente en- sentidoda normatividade do ideal de ciência: "toda prática científica não deseja simples-
quanto guia a reflexão filosófica para além das ciências imperfeitas exis- menteemitir juízos acerca de tal ou tal estado do mundo, mas fundamenta-los em última
tentes rumo ao fe/osdo conhecimento absolutamente fundamentados. instância sobre uma verdade irrecusável= A fundamentação aqui requerida significa a legi-
bmaçãoúltima, aquela que, por suaevidência inegável, encerra toda busca por uma justi-
ficação.ulterior mais satisfatória" (id., 30). O ideal normativo de ciência lança, assim, a ta-
refadebuscarum conhecimento absolutamentefundamentado em evidência apodítica
9 B. Bégout exprime bem a posição de Husser] nesseponto: "o começo radical da
11. Como uma norma no interior da cultura, o [e/os do conhecimento abso]ut,
filosofia exige a exclusão prévia das verdades do dia, de todos os dias, de todas ascertezas
mentefundamentado é normalmente assumidode forma passivapelos indivíduos que se

270
271
A cientificidade na fenomenologiade Husser]
4,
As ciências como produção histórica no mundo da vida
longe de simplesmente cortar
enquanto impeúeitas, o
Husserl delineia, dessaforma.
do conhecimento deve
para a fenomenologia, no qual a ePo-
senvolvimento histórico de
mas para a qual se oferece uma lustifi-
desdeentão,a relevância do
o reconhecimento de um ideal científico
meter com as formas históric,s
fenomenologia vai apare.
Essasolução
muito maior, de
losófica contidas
abrangente já em vigor na
a validade de todasas ciências e
da ciência aponta
ainda pretende fundar uma
por evidência
fará as intenções da filosofia
para o qual tenderia, de modo interminá.
como historicamente
de conhecimento (Cf. MC S 5). E Husser] re.
qual a justificativa
devese exerceràluz desseideal
dição filosófica
como um pressuposto tradicional assumido acri-
cientificidade como um
uma motivação ílzfema que justamente receberá
ção natural, por
da seuscomponentes e do alcance por meio dos re-
tibilizar a
desenrolar após a estruturar de sentido legi-
o reconhecimento concreta. As metas ge-

o próprio Husserl confessa no quesegue


modo bem mais nãosão tópicosar-
E um problema de uma investigação do
/delas 1, mas que inserção do próprio pro-
dutor já está aqui bem afastado da-
em Meditações cartesianos.
a qual pouco importa, paratratar
rias científicas vigentes, devido às
cientificidade, o exame das ciên.
cer que em seu desenrolar histórico
reis, se submetem à Agora
menos implícito toda ciencias que se
sentido geral de cientiHci-
nologia, como veremos). A
da fundamentação das ciências deve
=UTclObietiva ou concreta para a
o caráter histórico do próprio ideal
dedicam às tareias fundamentado. Essainves-
tiver o sentido
via introdutória à fenomenologia, pouco
a graves
que ganhará um amplo
uma crise das Ciêllcias derivada
e A crise das ciências euro-
franscezzderzta/.
Em um manuscritoum pouco
272
273
A cienLificidadena fenomenologiade Httsserl As ciências como produção histórica no mundo da vida r' / f' .:'

mais tardio (]937) publicado no volume de textos .rlTzê7zCZa do senfído para dí$erentes gerações. Husserl reconhece
crise das ciências (Husser/fará XXIX, doravante
a ideia-guia de ciência opera como um unificador da atividade das
segue-seque uma introdução sistemática que
que se dedicam à produção científica. Cabe então investigar o
começa e se realiza a partir do problema gerações
é essesentido que não se esgota na experiência isolada e é comun-
produz a ePoc/zésem a análise histórica, então o que
da vida ou antes da história universal gadopor diferentes sujeitos entrelaçados em uma temporalidade histó-
ricaBruce Bégout explicita de modo bem claro algumas das questões
nac/zl. Embora a introdução de Jdefas l
envolvidas no apelo ao ideal de ciência como uma norma histórica à
tomo a via histórica por mais sistemática e
a própria fenomenologia deve se submeter: "Com efeito, qual a
trecho, além de deixar claro que as bilidade de doação fenomenal desseideal? O que garante a sua
novo caminho introdutório à posei
apreensão? En quanto ideal, a ideia de ciência absoluta nao parece pu-
se pode simplesmente ignorar a derserdada em um fenómeno singular presente, em uma realização
estaria, por assim dizer, à espreita, e acabaria por se
anualqualquer" (Bégout, 2008, 28). O desenvolvimento adequadoda
pressupostoinescapável ao
via histórica exige, assim, um tipo de investigação que torne compreen-
ideias J, como vimos, a
sível a eficácia das unidades de sentido /zístórícas. Esboça-se aqui um
permanecia latente, tornando difícil
novotipo de fio condutor para as análises fenomenológicas, um ponto
ções que deveriam guiar os fenomenóloaos. Agora. a ínçprr6- ,.1.',.
departida que não se reduz a um objeto estático e nem mesmose es-
gotana exploração das camadas genéticas da sua doação subjetiva.

Importa observar, por ora, que Husserl eleva em Medífações cade-


szanasa um novo nível de problematização conceitual aquelas conside- A investigação de sentido
raçõessobre o valor da história lançadasno artigo de 1911. Ali, o inte- A reflexãosobreo conhecimento como fato cultural guiado por um
ressepela história era principalmente exortativo, de modo a encontrar feiosque predelineia o desenvolvimento histórico das ciências avança
nos exemplos do passado inspiração para as análises presentes. Vimos consideravelmente
na introdução de uma obra escrita no mesmope-
que essecaráter exortativo não é abandonado em Meditações ca#esía- ríodo de Meditações cartesíanas, a saber, Lógica coma/ e franscenden-
nas; mas agora ele é notavelmente desenvolvido quanto a seuspressu- fa/ (doravante, LFT), publicada em 1929.Ali, Husserl retoma o prometo
postos. Afinal de contas, para que os exemplos do passadofaçam sentido dedoutrina da ciência lançado muitos anos antes,em Pro/egóme7zos
à
para o presente, supõe-seuma corztinuídade /zísfóríca do sentido que é lógicapura. Ta] como nessaobra anterior, propõe-sea elaboraçãode
então partilhado geracionalmente. Se os filósofos clássicos inspiram o uma teoria lógica ampla, que explicite as condições objetivas de formu-
presente, é porque as tareias globais a que eles se dedicaram ainda são laçãodo conhecimento, e em paralelo a isso, uma reflexão filosófica
as nossas, e abre-se aqui o questionamento sobre o que significa essa que tematize as condições subjetivas de constituição desse arcabouço
lógico objetivo. Porém, diferentemente de Pro/egõmenos,Husserl traça
SoKerPlra uma análise detalhada dos manuscritossobre história publicados em Kll, agoraa história desseideal de doutrina da ciência, remetendo de forma
muito mais detalhada a ideia de ciência como conhecimento absoluta-

i:,:==Zll$$ 1=:=!.=='=:.==r:h!
:l.?;=::';= mente fundamentado (tematizada já em A /i/oso/íci como ciência rigo-
rosa)à Grécia Antiga.
274
275
A cienLificidade na fenomenologia de Husserl
As ciências como produção histórica no mundo da vida
#'' / i ii' #.

Husserl atribui a gênese histórica do sentido


a Platãoi4. Ciência, nessesentido independentes" ILFT, 2) e cada vez mais se dividiram em disciplinas
alizadasque se fiam em procedimentos técnicos autónomos para
das teses defendidas. E "lógica'
obter seusresultados. Paulatinamente, as ciências deixaram de seguiar
çao por princípios racionais gerais. O sentido
normas de fundamentação absoluta tematizadas pela doutrina da
por Platão supõe, assim, que cada pelas
riêRCla e passarama avançar sem clareza de princípio no que se refere
justificado, de maneira que possa
válido, de acordo com princípios" (LFT, 1). Não aospróprios passosmetódicos e do sentido dos resultados obtidos. E
mente selecionar dados e buscar mesmoa lógica, pouco a pouco, também teria abandonado a sua tarefa
central de exibir os princípios capazes de fundamentar todas as forma-
tífica exige que os procedimentos
iões teóricaspossíveis,pois ela também "se tornou uma ciência par-
princípios que garantam a legitimidade dos resultados
ticular' ILFT, 4), absorvida na resolução de problemas específicos.
então, "ciência" exprime um conhecimento
Ora, o desenvolvimento histórico das ciências, narrado, é verdade,
eles mesmos, bem estabelecidos.
demodo muito sintético até esteponto, teria levado as "ciências euro-
Concomitantemente a essadelimitação da ciência em sentido
ge- peias"(Lli1', 9) a se afastardo te/os de fundamentação absoluta em
nuíno, Platão teria esboçado a lógica como disciplina que
investiga- princípios claramente compreendidos. Por conseguinte, as pessoasnão
na os princípios do conhecimento em ação em qualquer
empreitada maisapreendem as ciências como "auto-objetivação da razão humana
científica. Surge aqui, como condição para que o conhecimento cien-
típico possa ser devidamente ou a atividade universal que a humanidade planejou para si a fim de
compreendido, o esboçode uma douhn. tornar possível uma vida totalmente satisfat(ária" (ibid.). A crença na
da ciência que recuaria até os
princípios últimos de regitimação do sa.
ciência como fonte crítica de sabedoria e mesmo de felicidade perdeu
ber e esclareceria de que modo as investigações científicas devem re.
força. Apesar dos múmeros progressos tecnológicos das ciencias espe-
meter a esses fundamentos para garantir resultados justificados. Aa ser
cializadas, "o mundo se tornou ininteligível" (ibid.) e o conhecimento
atribuído a Platão, esse prometo de doutrina da ciência ganha
um lugar científico não oferece mais os parâmetros para uma prática racional
de destaque para o entendimento da história da filosofia e, como vere-
Husserlretoma aqui uma ideia já presenteem Ideias IJI. No parágrafo
mos, mesmo da própria cultura europeia. Conforme já acontecia em
Medífações cdrfesíd?zczs,Husserl passaa admitir que a ideia de uma dis- 18dessetexto, admite-se que o desenvolvimento da ciência pode pres-
cindir da clareza intuitiva acerca do sentido e do alcance dos seusmé-
ciplina que garanta o caráter justiflcado do conhecimento científico era
todos.Com efeito, reconhece-se ali que seria difícil evitar essasepara-
uma norma-guia para osfilósofos antigos, de modo que é possívelacom.
ção entre clareza intuitiva e produção teórica à medida que asciencias
panhar desdea Antiguidade diferentes etapas de realização desseideal.
se tornam mais complexase refinadas, e issoporque elas se tornam,
Na introduçãode LFT, Husserlainda não detalha a história dessa
norma-guia,e sefoca em um momento em que teria se cristalizado em seu desenvolvimento, cada vez mais simbólicas's. Em seu avanço,

uma mudança nas relaçõesentre asciências particulares e a doutrina da


ciência. Na Modernidade, conta-noso autor, "as ciências se tornaram 15. "Prevalece uma notável teleologia no desenvolvimento da cultura humana em
geral,e assimtambém na cultura científica, de modo que resultadosválidos podem
surgir sem visão intuitiva ou por meio de uma mistura de visão intuitiva e instinto no
exercício das forças psíquicas. (. . .) Quanto mais altamente desenvolvida se torna uma

:!HliBÊ 111 :. .:=:::!


illilliXJ%l: ciência, (...) mais o seu trabalho principal recorre à esferasimbólica do pensamento
osconceitosoriginalmente orientados para a intuição sãousadosde modo meramente
simbólicos" (Idl11, 94-95)

277
A cientificidade na fenomenologiade Husser]
As ciências como produção histórica no mundo da vida

as ciências se servem cada vez mais de sistemas de


dais, os quais facilitam consideravelmente a
tos, embora impliquem em uma
fontes intuitivas que legitimam
tos. O fenomenólogo
liga do pensarcientíflco
menos de algumas delas) como
a serem comercializadasem
ponto de vista, devem se guiar
sar à extração de
trote sobre os eventos
tecnológicas sejam tantas vezesadmiráveis.
que "os avanços das ciências não nos
tuições evidentes. O mundo não está
por causa deles; ele apenas se tornou mais
O mesmo diagnóstico, como vimos há
ção de LFT. Apesar do sucessotécnico
pouco se avança na instituição
mundo. Por meio dessas
ramente a ideia de crise das
volve todos os pressupostos,uma
nessaobra, em apontar um método
diante dessediagnóstico.
Após analisar sucintamente as ciências contemporâneas, Husserl
compara a suasituação com a de Descarnes exatamente como
propõe
no parágrafo 2 das Medífações cczüesíanas' Diante da
profusão de se-
bebesdesconectados das fontes originárias de lustiücação, é preciso
renovar a crença no ideal de ciência enquanto conhecimento funda

Conforme sugerido em Medífações carfesiazzas,a via histórica não


exigeum rompimento ;7zÍcÍd/com toda a experiência natural, tal qual
ocorria na via cartesiana. Pelo contrário, trata-se de justificar a passa-
17. Há mesmo uma nota na introdução de LIÍT qilese refere ao te},to 1- A'-J.,.
çõe8cade farás, então noprelo, Cf. L]iT,']], nota. ' '' ' '-- -vud'""ullu- gem para a. orientação.fenomenológica por meio da explicitação da
ideia-guia de cientificidade que teria norteado o desenvolvimento
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279
A cientificidade na fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no monda da vida

Como se vê, a via histórica que vai se delineando na introdução

Husserlfala em Besínnurzgcomo o procedimento analítico especifico


não se tenha mais tanta clareza sobre as exigências da fundamentação dessa
via histórica. Cabem aqui algumas consideraçõesetimológicas.
por princípios(por exemplo, que ela supõe a construção da doutrina da 'BesÍ7znung"normalmente designa um processo meditativo ou inves-
ciência, a qual, por sua vez, exige a clarificação transcendental), a Ciên. Ügativo,em sentido amplo, que serve para esclarecer o sentido de algo
cia ainda é, ao menos em parte, conhecimento fundamentado, e cabe Incite-seque o termo "sentido" -- Sínn -- já está contido na palavra
esclarecero sentido dessareivindicação em sua progressãohistórica. "BesÍnnu7zg").
Realizar uma Besííznungé então propor uma tentativa
Desde então, Husserl assumeas ciências em sua formação histórico. de compreender o sentido de algo em questão. Embora, de modo ge-
cultural como ponto de padída para o prometode fundamentação do sa. ral,não haja problema em traduzir "Besínnung" por "reflexão" ou "me-
ber pela doutrina da ciência. "Quer as ciências e a lógica sejam autên. ditação" (enquanto pensamento metodicamente conduzido), é pre-
Ficas,quer não, nós temos experiência delas como formações Culturais cisocerto cuidado devido ao caráter técnico atribuído por Husserl a
pré-dadasque portam em si seu 'sentido'" (LFT, 13), asseverao autor. esses
termos. É melhor evitar chamar "Besírzrzung"de "reflexão", uma
E esse sentido, formado no correr de diferentes gerações, cada uma vezque, em fenomenologia, entende-sepor esseúltimo termo um re-
buscando realizar da melhor forma possívelas tarefascientíficas e ]e. tornoa si como esferaprivilegiada de ser imanente. Não é assim que
gando às posteriores novas tarefas e as normas pelas quais deveriam jul- Husserl pretende realizar uma Besínnung. Nessa última, não se supõe
gar os resultados obtidos, que Husserl almeja agora clarificar. Essacla. uma esfera imanente como fonte de sentido, mas busca-se obter cla-
rificação supõe então assumir as teorias científicas enquanto produção reza acerca de sentidos em relação aos quais justamente não se tem a
cultural histórica. O desenrolar histórico-cultural das ciências torna-se. evidência imanente como garantia. A Besínrzungenvolve uma explici-
desde então, um pressuposto dessaefaf)czda ínvesfígação'9, a qual, longe taçãopaulatina de um sentido que não se esgota nas operações sintéti-
de suspender de partida todas as produções da orientação natural, se casimanentes a uma subjetividade particular.
serviráde algumasdelasparadelimitar o significadoda própria ativi- Ao sistematizar a Besínnung como recurso metodológico, Husserl
dade científica, que a fenomenologia, conforme tentarei mostrar, an- tem clareza de abordar o problema das unidades ideais de sentido para
seiaretomar em seualcance originário. além dos limites da constituição subjetiva isolada. O sentido de for-
mações históricas não se revela como um dado estático correlato de

18. "Mas o essencialera que essaexigência radical conduzia um correspondente algum tipo de apreensão subjetiva especial, e nem mesmo se resolve
esforçoprático paraa peúeiçãoe que à lógica permaneciaatribuídaa grandefunção nas diversas camadas genéticas por meio das quais a subjetividade or-
de investigar em generalidadede essênciaos caminhos possíveisaosprincípios últimos dena conteúdos objetivos idênticos conforme as sínteses da temporali-
(. . .), dando à ciência efetiva norma e condução" (LFT, 4)
dadeimanente. O tema do sentido histórico envolve particularidades
] 9. "Assim, nós pressupomos as ciências, bem como a lógica, com base na sua 'ex-
periência' pré-dada"(LFT, 12) que não são adequadamente abordadas pelas análises fenomenológicas

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A cientificidadena fenomenologiade Husserl
As ciências como produção histórica no mundo da vida

estáticasou genéticas2'.A explicitação do caráfer /zíst(iricodo sentido de modo Obscuro com o aprendizado da atividade cien.
::.'=== =::1.,='=
:1::T:TiTT':? y' """';.m''.d.IÓ;i ganhar clareza em relação
que é constantemente rea
embora sem ser aí explicita-
científico enquanto preen-
e um pressuposto não cla-
a isso, Husserl alerta que a
nítido do que inteiramente constituído pelas síntesesindividuais. A.sua
um sentido pretensamente
A sedimentação do sentido his-
l$1Zl;X;l:HE:l:F f: l uma reativação evidente das formações
aideialegada geracio-
O desvelamento desse caráter histórico envolve uma recupera-
original está sujeito a desloca-
ção das cadeiasde transmissãopor meio das quais o sentidoperna-
que novas conexões conceituais seso-
nece para além da experiência de reativação por sujeitos individuais.
essassão distorcidas por meio de com
Husserl propõe a Besínnuizgcomo um método específico paraexplo- Diante disso, haverá uma tarefa
rar ossentidos de formações ideais enquanto historicamente lastreados
histórico, capaz de salientar as
isto é, colo conteúdo objetivo se constitui por meio de uma cadeia mul.
com o correr dasgerações.No 1i.
tigeraciona] de transmissão e reativação. Para resguardar a particulari-
novamente" (LFT, ]4), quer dizer,
dade desse método, proponho traduzir "Besí?znung" por "investigação patente oseu conteúdo fundador.
de sentido

Como essa investigação de sentido se aplica ao tema da cientiHi- sentido originária signi-
indeterminada.
cidade? O sentido geral da prática científica tem sido herdado a cada
que se originam dos des-
geração que a ela se dedica e contribui para a sua sedimentação como
preluízos que conflitam
componente da cultura. Porém, trata-se de um sentido "pairando va-
Não se trata, assim. mera-
gamente diante de nós" (LFT, 13), ou seja, em relação ao qual não
da ciência tal como assimilado pas-
há clareza, mesmo que ele continue a operar como um componente
morecuperar suascadeiasde trens.
e criticar as distorções a ele associadas.
20..B. Hopkins captu'a de modo convincente esseponto. Segundo esseautor, a
caráter histórico das formações de sentido "excede a forma eidética universal da gê- por Husserl exige, então, investigar, de par-
nese intencional. pertencente à temporalidade interna da identidade dessaapresentação que em visão panorâmica nos são fome.
imediata. A análise husserliana da necessidade de investigar a gênese desses elemen-
líbia.), o que, por sua vez, supõe a
tos torna evidente o fato de que as origens constitutivas dessasformações categoriais,
que compõem o sentido intencional da unidade de um objeto, excedem a históriase-
dimentada desse sentido tal como ele é reproduzido em termos de sua temporalidade
mterna ' (Hopkins, 2010, 184). Assim, a explicitação da gênese histórica não se reduz
à descrição.da história do sentido sedimentada nos limites da temporalidade imanente
de um sujeito

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283
A científlcidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

imersão, ainda que provisória, no domínio da cultura, o qual, longe d. lconformell.TC e mesmo Idl) e incluirá a respons'bilidade de reno-
ter sua validade suspens' logo de início (como era o caso em Ideias il varo te/os de cientiflcidade que permite uma transformação radical em
servirá de guia para o reconhecimento do sentido de ciência de quem todaa humanidade. Para chegar a essetema, é preciso acompanhar a
própria fenomenologia partilha. E essereconhecimento envolvepor si 'investigação de sentido" em ação. Por meio dela, vai se revelar uma
só uma espécie de purificação crítica dos aspectos conceituais indevi. gravecrise afligindo a humanidade europeia
damente identificados ao sentido em vista, de maneira a tornar visíveis
as intenções originais das quais as formações teóricas anuais derivaram.
Atestaçãoda case das ciências
Nesse ponto, compreende-se que a abordagem histórica aqui proposta
não seja uma historiografia dasciências, isto é, uma narrativa factual. Vimos que, ainda sem utilizar o termo "crise", Husserl aponta, na
introdução de LFT, para uma perda da crença na capacidade científica
mente lastreadade momentos-chaveda prática científica. Mais do que
o registro de fatos, o que se almeja por meio da Besínnung é o desvela. defornecer inteligibilidade aoseventos mundanos e fomentar modos
mento de estmtur.zs intencionais de transmissão e sedímenfação por di- deação racionalmente fundados.Configura-se aqui um núcleo temá-
ferentes gerações de um serztído, de um ídea/. O desinteresse pelos fatos, tico ao qual o autor passaase dedicar cada vez mais na década de 1930.
marcante já desdeA /i/oso/ia como ciência Hgorosa,encontra no mé. A Besínízung, ao fazer aparecer as transformações h istóricas sofridas pe-

todo da Besí7znnung a sua justificação: trata-se de explicitar a /zistóría las ciências, permite circunscrever mudanças nas expectativas em re-
í7ztencíona/ da ideia de ciência e não a sua história factual. A sucessão lação ao saber científico e nas formas de apropriação de seus resulta-
dos. Em um texto de 1934 A tarefa cztua/ da /i/oso/ia, que Husserl
empírica envolve inúmeros aspectoscontingentes, mas a produção e
a transmissãodo sentidopor meio dessesfatosdependemde estrutu- pretendia enviar para um congresso de filosofia em Praga:; , já apa-
rece de modo mais preciso o diagnóstico de crise da cultura europeia.
rasintencionais que constituem uma historicidadeordenadaconforme
Ali, Husserl localiza no século XIX o momento em que "a crença di-
nexos multigeracionais de experiências de transmissão e sedimentação
nâmica na filosofia e na ciência(...) vacila"(Husserl, 1989b, 208), de
Interessam a Husserl as relações de motivação entre as gerações, aspos-
modo que, ao menos desde então, deve-se reconhecer "uma Europa,
sibilidades e os riscos da assimilação sedimentadora de sentidos que
perturbadapelo ceticismo, que vive essascrises" (ibid.). Cabe notar
permanecem para além da atestaçãosubjetiva isolada.
que Husserl não tem em vista certos desarranjos socioeconómicos ge-
Com basenessemétodo, seráelaboradauma nova introdução à fe-
raisque repercutiriam no campo da filosofia. Lembremo-nos de que a
nomenologiazz. O sentido histórico (em particular aquele da cientifici-
Besí7znung não se volta, ao menos inicialmente, para aspectossociopo-
dade) serve de fio colldutor específico para a problematização fenome-
líticos empíricos da vida europeia, mas busca elucidar a história do sen-
nológico-transcendental. E, como veremos, não se trata de uma mera
tido de ciência formulado na Antiguidade e herdado pela contempora-
introdução exterior ao prometofenomenológico, uma vez que, à luz
neidade.Importa mencionar, por ora, que a noção de crise das ciências
dessasconsiderações históricas, a fenomenologia deixará de ser conce-
europeiasnão seráderivada de uma constatação de problemas conjun-
bida como instauração de uma ciência universal da consciência pura
turais da sociedade, e sim o contrário: diversas situações sociais proble-
máticas serão remetidas à crise das ciências, como veremos
22. Veremos mais adiante que, alguns anos mais tarde, Husserl reconhece.que
essaproposta de história intencional é uma abordagem das ciências do espírito. E, as-
sim, na orientação personalista que a via histórica é construída como introdução à 23. Paradetalhes acerca dascircunstâncias históricas dessetexto, Cf. Nenon, T
fenomenologia. Sepp, H., 1989, xxv-xix.

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A cientificidade na fenomenologiade Husserl
As ciências como produção histórica no mundo da vida f' #,

sabercientífico, e sim um refinamento dos instrumentos teóricos (em


buscade maior alcance explicativo e capacidadepreditiva) que acaba
realizar de forma ainda mais aprimorada a cientificidade referente
certo âmbito fenomênico. Não parece, assim, haver razão, se se toma
asciênciasestabelecidas,para anunciar uma crise.
No segundoparágrafo do livro, revela-se qual é o ponto de vista a
partirdo qual é significativo reconhecer uma crise das ciências. Esse
ponto de vista é aquele da relevância das ciências em geral para a exis-
tência humana (K, 3). No que tange às questões acerca do sentido ou
nãosentido do existir humano enquanto se desenrola historicamente
limo pretendia ainda desenvolver mais duas partes para complementar
no mundo, a ciência contemporânea, mesmo com todo o esplendor de
a obra (Cf. .K, 514-5 16), as quais nunca foram efetivamente compostas.
seusresultadostécnicos, "nada tem a nos dizer" (K, 4), asseverapesa-
damenteo autor. Tal como no texto A tarefa fua/ da /í/oso/ia, Husserl
volta a apontar o século XIX como o momento em que as ciências cris-
talizam um modo de produção do saber guiado pela verificação mera-
mentefactual, modo que afastaa investigaçãocientífica das questões
prementesdo existir (tais como a finitude, as metas pessoaisa que se
dedicar, as responsabilidades éticas etc.). Essas questões exigem valora-
ções,tomadas de posição diante do significado das circunstâncias con-
Husserl inicia o texto admitindo que dificilmente o alerta de crise cretase dos objetivos a se cumprir. Por sua vez, as ciências. desenvol-
das ciências soa convincente diante da enorme profusão de disciplinas
vidasde modo positivista ao menos desde o século XIX, excluem con-
científicas bem estabelecidas e capazes de gerar aplicações técnicas no-
sideraçõesvalorativas, resumindo-se a mostrar correlações gerais entre
táveis:ó. Não se trata, da sua parte, de questionar a correção metodoló-
fatos.Ora, se as ciências se limitam a investigações sobre domínios fe-
gica das ciências e nem de lamentar que teorias clássicassejam substi- nomenaisempíricos, então toda dimensão ética do existir fica excluída
tuídas por outras. Essasamplas mudanças teóricas, tais como a passa- do seu alcance, e, consequentemente, as resoluções subjetivas ou in-
gem da física newtoniana para a einsteiniana, não atestam o fracassodo
tersubjetivasacerca de uma condução satisfatória da vida concreta (do
ponto de vista das possibilidades de sentido que Ihe cabem) pouco ou
24. Cabe notar que o parágrafo 73, com o qual a parte 3 se encerra na edição pós- nadapodem se servir dos resultados científicos.
a da coleção husserliana, é na verdade um manuscrito independente, que o editor E então do ponto de vista do sentido da existência humana con-
escolheu como conclusão para a obra, embora isso não tivesse sido previsto claramente
por Husser] creta que se diagnostico uma crise nas ciênciasz7.E preciso atenção
25. Para mais detalhes acerca da edição de K, Cf. Biemel, 1976, e Moran, 2012,
cap
27. Certamente a referência a esseponto de vista não é algo banal. Atribuindo
26. Dessaexortaçãoda efic.iênciacientífica, Husser]exclui a psicologia.A razão
para tanto é que a psico]ogiaainda ma] teria clarezada especiülcidadedo seudomínio e centralidade à existêllcia concreta, Husserl indica que dispõe de recursos conceituais
dos procedimentos exigidos para estuda-lo, deixando-se guiar ingenuamente pelos mé- para abarcar essetema em uma reflexão rigorosa. Essa perspectiva conHlante já havia
todos das ciências exatas. Voltarei a essetema no correr da exposição. sidolançadaem uma conferênciaintitulada Rerzomeno/agia
e anhopo/ogza,de 1931
na qual assevera que por meio das análises fenomenológicas "torna se possível uma
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287
A cientificidade na fenomenologiade Husserl .\s ciências como produção histórica no mundo da vida

para com o tipo de problema que se pretende analisar aqui. O termo de Husserl aqui é que as ciências a princípio teriam algo a dizer
crise" tem, entre outras, conotaçõesmedicinais, e sugere um estado para as questões da existência humana e, assim, teriam ao menos se es-
ou uma situação vivenciada como gravemente problemática. Trat. baça do historicamente de forma sa
no entanto, de um estado provisório, e não definitivo; um estado No parágrafo3, Husserl tematiza explicitamente essepressuposto
qual se adensa mediante certas circunstânciase do qual se esperasair .m vigor no início de K. Ali, é dito que "nem sempre as questões especi-
de forma positiva, seguindo certas recomendações. Assim, se do ponto ficas da humanidade estiveram banidas do domínio da ciência" (K, 5),
de vista do sentidoda existênciaatesta-seuma crise dasciências,su. demodo que seria possívelreconhecer momentos em que a ciencia
põem-se, por contraste, uma condição "saudável" das ciências e um pôde reivindicar um significado para a humanidade europeia" (ibid.)
momento em que as modificações das circunstâncias marcam jus- Para justificar essas afirmações, Husserl põe em ação a Besin7zung
tamente a manifestaçãoda "doença". Ao falar em termos de "crise" trata-sede explicitar o sentido de ciência em vigor em certa configura-
Husserl parece supor que nem sempre as ciências não tiveram nadaa çãohistórico-cultural para acompanhar criticamente suastransforma-
dizer sobre a existência humana, e que cabia a elas, entre outrastape. ções.E a configuração privilegiada no início de K é o Renascimento
fas, oferecer uma base racional para o desenrolar significativo do existir europeu, abordado em termos das intenções /i/osó/ocas dos seus repre-
concreto. Além disso, ao findar do parágrafo 2, já fica também sugerido sentantes,e não em relação aos eventosfactuais que o delimitaram
que a crise das ciências, se tiver remédio, se resolverá por uma recons- No Renascimento, garante-nos Husserl, houve uma desvalorização do
trução do laço, obscurecido desdeo século XIX, entre a cíentj/icídadee modomedieval de existir (centrado nas instituições religiosas)e unia
o dírecionamento racíona/ do existir corzcreto.A crise semanifesta justa- retomadado ideal grego de existência filosófica, no sentido de coorde-
mente como perda da crença no papel condutor da ciência paraa exis- naçãoda vida prática por princípios racionais. Dessaforma, o início da
tência e, mesmo, como veremos, para a cultura em geralz8, e o pressu- Modernidade europeia se marca por uma retomada auspiciosa de um
idealde filosofia que já determinará a configuração histórico-cultural
daGrécia Antigazç.
investigaçãorealmente radical daquilo que existede modo último e absoluto" (Husserl.
1989a, 178). As questões existenciais não escapariam, assim, à fenomenologia trans-
cendental. Conforme bem comenta G. HeKernan, "é evidente que, enquanto rejeitaa 29. Nesse ponto, fica mais claro que, ao sereferir à ideia originária de ciência, H us-
acusaçãode que a fenomenologia falha em lidar com os problemas da 'assimchamada ser]não pretende fazer a datação historiográfica de um fato. A referência à Crécia An-
existência', Husserl reconhece que tais problemas existem e que uma filosofia universal tigaé mediada pela referência à Modernidade, e essa,por sua vez, é tematizada à luz de
deles trata. Assim, seriaprecipitado assumirque Husserl não põe as questõesconcretas questõesprementes para a contemporaneidade. No parágrafo 15 de K, o autor esclarece
da existência humana a que os Exísfenzphí/osophenapontam" (HeHernan, 2015, 18SI que setrata de encontrar na Grécia Antiga a instituição originária IUrstí/tungl da tarefa
Ao construir o início de K centrado na existência concreta, Husserl julga oferecerum deconhecimento que teria concentrado de modo único asforças culturais da Europa
poderoso exemplo de como seus métodos descritivos conseguiriam abarcar as questões No entanto, esse"encontrar" não é uma mera atestaçãode um atributo inerente à falo
referentes a essedomínio. É verdade que asanálises iniciais de K ainda não pressupõem sofragrega("seruma instituiçãooriginária"), assimcomo seencontrariaum bssil com
a passagempara a orientação transcendental. Contudo, veremos no final do capitula taise tais características.O reconhecimento do caráter originário da ideia de filosofia
mesmo após a epoc/zé,as questões relativas à existência concreta no mundo ainda ocorredo ponto de vista de uma refundação INac/zstí/tungl dessaideia no presente.É,
são centrais para Husserl então,a partir de uma questão retroativa IRticÃ#agel, centrada nos temas urgentes da
28. E, no entanto, Husserl não deixará, a partir de Ideias 111,de descrever um exa- contemporaneidade,
que a instituição originária pode serlocalizada.O caráter insti-
cerbado entusiasmomuitas vezesacrítico em relação à implementação de tecnologias tuinte originário não é um atributo objetivo que opera de maneira causalmente cega;
extraídas de teorias científicas. Na verdade, a crítica inicial de K às ciências permanece elese deixa reconhecer por meio da refundação do seu conteúdo de sentido pelos Hjló-
mesmo se se salienta esse aspecto: em termos gerais, as implementações tecnológicas sofospresentes.Conforme bem nota J. Dodd, "o caráter originário dessecomeço como
propiciam maior conforto e, em alguns casos,longevidade, mas não respondem,por sí um problema histórico é assim somente válido 'para nós'; ele não se aplica para os pró-
sós,às questões de sentido e não sentido do existir concreto priosgregos,pois não fazia nenhum sentido para eles ser um começo para rzós os

288 289
A cientificidade na fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida H

Depois veremos que essaretomada já envolveu Obscuridades


que instaura um fe/os de conhecimeTltO absolutamente fundamentado que
fomentarem a limitação positivista das ciências contem
porâneas. Husserlretoma ao tematizar a noção de ciência onienglobante. E im-
Importa circunscreverde início qual é esseideal de fi osofia herdad.
cortante acentuar, conforme já notei ao tratar de Meditações caNesía-
dos antigos. Vale notar, para tanto, que Husserl começa revela como ideia instituinte da ciencia nao uma
que a Besírz?zune
ncZS,
aqui a ampliar
sua análise de que uma ideia de filosofia teria guiado d
versosprojetos teoriafixa ou um conjunto determinado de axiomas; o que é explici-
filosóficos no correr dos séculos (já proposta em A.filosofia coma ciên Fadoé uma tczre/apara asgeraçõesfuturas. A ideia originária de ciencia
cía ngoros.z). Em 191 1, essa análise valia
prmcipaimente para clarifi. apontadapela Besínizu/zgnão envolve nenhuma teoria acabada,mas
car o desenvolvimento histórico da filosofia
como veremos, essa motiva um determinado modo de pensar e agir; essaideia lança um
análise abarcará o próprio destino da Itumanidade euros)eia.
curso de desenvolvimento histórico ao qual sucessivasgerações devem
Segundo Husserl, o sentido de filosofia forjado na Grécia Antiga e r..
aderirpara que paulatinamente teorias rigorosas acerca dos mais diver-
sosdomínios temáticos sejam formuladas;'

:K lliiK:::il;i:xilil$
Antiga
aquilo que é,não
fatos ou eventos empíricos, mas de todos os domínios de fenõmen.s
Voltemos a nos centrar no texto de K. A retomada desseideal fi-
losóficode conhecimentoexaustivodo ser por princípios racionaisé
a "instituição inaugural da Modernidade filosófica" (K, S 5, 10), asse-
que inclui, por exemplo, aqueles dos valores e das ações éticas (Cf. K, veraali o fenomenólogo. A crise dasciências decorre do "desmorona-
7). A Besínntzng desvela esse ideal fundante das ciências como o sentido mento da crença na 'razão"' (ibid.), ou seja, do enfraquecimento da
originário de filosofia: instituição do ideal de conhecimento abrangente crençanesseideal que iluminaría todos os âmbitos do existir humano.
com base no qual as ciências particulares poderiam paulatinamente se
Aqui a Besírznungexerce seu potencial crítico: é preciso reconhecer
concretizar. Nesse sentido originário, a filosofia é então retratada como a
que "esse ideal experimenta uma dissolução interna" (ibid.), de naodo
ciência-matriz de todos os ramos particulares do saber30
que o avanço das ciências deixa de ser fazer em nome do sentido ori
Como se nota, Husserl reelabora aqui temas explorados ao menos
Bináriode conhecimento onienglobante racional. Daí, como já se ha
desde Medífações ca#esíczlzas.Vimos que nos IUIHlgHlleinn neini na l
via reconhecido nas páginas iniciais de K, a ênfase quase exclusiva das
texto e na introdução de Lógica Áomza/ e trar2scenderzfa/, tratava-se de
ciênciascontemporâneasnos fatos e eventosempíricos, o que exclui
apresentaro ideal de ciência universalcomo um ideal de origem fi.
dasabordagens científicas as questões relativas ao significado do existir
losófica que, mesmo se de forma obscura, ainda guiada as produções
humano. Ora, é verdade que a dissolução do laço entre as investigações
científicas concretas. É essaideia de que, em sua origem, a filosofia
científicaspositivistas e o ideal de cientificidade universal não altera os
resultados particulares a que tais investigações chegam, os quais se de-
gregos não eram cônscios do sentido em que eles se tornariam algum dia rzossosgregos" vemà aplicação carreta dastécnicas de obtenção de dados e verificação
(Dodd, .2004,74)...É porque há uma tarefa global do conhecimento em nossotempo,é de hipóteses vigentes no interior de cada disciplina. Por isso Husserl ha-
porque isso constitui, de forma ingenuamente sedimentada, o horizonte de nossaspreo
cupações culturais, que é cabíve] reavivar o sentido desseempreendimento, atribuindo- viaconcedido que não há nenhuma crise dasciências em relação aos
Ihe uma refundação crítica (a qual, ao mesmo tempo, põe a sua fundação originária)
como esclarecimento da herança com a qual temos de anualmente lidar
30. Esse impu]so 6t]osófico original para a produção cientí6lca ainda seria reconhe-
31. Daí que nos textos em que Husserl retomava os filósofos do passado,interes
cível em todasas disciplinasparticulares.No texto A farejaafia/ da /í/oso/ía,o autor sa\amenos referir-se a dados historiográficos que recuperar neles a continuação desse
afirma: "aí onde uma ciência verdadeiraestáem ação, a filosofia estáviva. e aí ondehá impulso motivacional de construção histórica da ciência onienglobante, impulso que
filosofia, há ciência" (Husserl, 1989b, 185). '
também deve alimentar os esforços dos filósofos do preseílte

290 29]
A científicidade na fenomenologiade Husserl
.\s ciências como produção histórica no mundo da vida

métodos e resultados específicos das ciências


humanidade europeia e a adoção do ideal filosófico de conhecimento
há uma crise em relação ao sentida gera! da
as quais perdem a clareza quanto à sua remissão oníenglobante. Esselaço é delineado de modo um pouco mais claro
no parágrafo 6 de K. Ali, afirma-se que o nascimento da filosofia im
conhecimento onienglobante do
da /í/oso/ia, Husserl afirma de Plicou a instauração de um fe/os (a saber, a existência orientada, em
que "existe na finalidade de toda ciência sUaS dimensões teórica e prática, por razões) para toda a /zunzalz;Jade.
Essete/os teria moldado, ao menos de início, o desenrolar histórico da
ciência e filosofias (. . .), uma coordenaçãointencional
humanidadeeuropeia enquanto unidade espiritual que se reconhece
manecer implícita a tais trabalhos jespecializadosdas
como essencialmente guiada por razões.Assim, se há uma crise nas
estar ausente de sua significação temática, enquanto
ciênciasdevido à perda de clareza em relação ao sentido originário que
terminar o sentido pleno e concreto de todas as
particulares e de todas as teorias" (Husserl, 1989b. l guiadao seu desenvolvimento deve haver então uma crise da própria
humanidadeeuropeia, uma vez que seria dela constitutivo guiar-se pe-
nas ciências especializadas, ainda
lasnormas racionais expressasno saber teórico
sófico de conhecimento exaustivo
Cabe esclarecer que a submissão as normas racionais enquanto
Esseideal impulsiona o progressodessas
guiapara a existência concreta não é julgada por Husserl como uma
perde a clareza em relação a ele, tal progresso
gam mesmo a renegar a importância da particularidadeantropológica dos europeus, que poderia ser relativi-
produção do conhecimento. zadaante particularidades de outros povos, tais como os chineses ou in-
dianos,citados no parágrafo 6 de K3z.A racionalidade seria um aspecto
Essa é ao menos em parte a situação que Husserl busca apontar esselzcía/do ser humano
com a noção de "crise". Não se trata simolesmen te de criticar a limita. ainda que em muitas configurações cultu-
rais isso não se manifeste
ção positivista aos fatos, mas sim de tornar visíveis quaisoscondicionan. abertamente. Longe então de ser a porta-
dou exclusiva da racionalidade a humanidade europeia renasomente
tes de sentido de tal decisão teórica. É
porque o ideal-guia de cientifi. o mérito de ser a
cidade racional onienglobante não mais reluz como um sentido cona. primeira a se conduzir conscientemente pelas nor-
mas racionais, submetendo-se a um ideal que não é relativo às idios-
cientemente assumido, é porque se perde a referência a essanorma sincrasias
geral de cientificidade que as ciências se transmutaram em das nações europeias, mas partilhável pelas mais diferentes
nvestiga- culturas
ções positivistas. A redução do escopo teórico aos temas empíricos,a que também despertem,por assim dizer, para a centralidade
das normas teóricas na organização da vida concreta. Daí Husserl afir-
exclusão do significado do existir do âmbito científico não é senãocon.
mar que "a filosofia, a ciência, seria então o movimento histórico da
sequência desseobscurecimento do sentido-guia da cientificidade.
revelação da razão universal,'inata' como tal à humanidade" (K, 13-
Antes de detalhar as razões para a crise, cabe notar que o obscure-
14). Irredutível a uma particularidade antropológica, a ideia de filo-
cimento do fe/os científico
mplica uma perda de referência para o sofia, estabelecida
desenvolvimento da cultura humana. A Besízzrzuzzg originalmente na Grécia Antiga, revela algo de es-
aponta uma liga- senciala toda a humanidade, a saber, a capacidade e mesmo (em um
ção essencialentre a ideia de ciência e a
próPHa humanidade, a qual sentido ainda
pretendo reconstruir no correr do a se esclarecer) a zzecessídadede se guiar por normas ra-
capítulo. Por ora, enfatizo que, para cionais. Desse
modo, a realização da filosofia, a consecução interminá-
Husserl, "a instituição originária da nova filosofia é (...) a institui-
ção inaugural da humanidadeeuropeiamoderna" rK l
dizer que há um laço constitutivo entre o autorreconhecimentoda 32. Segundo Husserl, enquanto exprime uma ideia tmiversalizável de razão. a
Europanão seria "uin tipo meramente empírico, como a China ou a Índia" (K, 14)
292
293
A cientificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

vel do seuideal, implica uma transformaçãoda própria hu--- ..


que passaa seguiar por normas racionais. ""-Unidade,

sentidogeradoras da crise

A gêlzese europeia da cíentí/icÍdade


Vamos acompanhar com mais detalhes como o fe/os que nortea-
dao desenvolvimento da humanidade é descrito por Husserl nos textos
doperíodoaqui estudado.Nos parágrafosiniciais de K, expostosna se-
ção anterior, narra-se principalmente a retomada moderna desse te/os (a
qual é marcada por obscuridades), mas pouco se explora a sua formação,
o que justamentepermitiria compreender com mais clareza as marcas
dessaapreensãomoderna. Contudo, em uma conferência ministrada
em Viena em 1935 (que muito provavelmente foi levada em conta na
dade mteiramente pessoal pelo nosso verdadeiro ser próprio, enquanto
escritadessesparágrafosiniciais de K), Husserl explora com vagaro fe/os
filósofos na nossaíntima vocação pessoal,traz em si, ao mesmo tempo,
racional da humanidade. Trata-se do texto A crise da humanidade euro-
a responsabilidadepelo verdadeiro serda humanidade, o qual só é en.
peia e a /í/osoPa, incluído como apêndice na edição póstuma de K.
quanto ser dirigido a um fe/os" (K, 15), crê Husserl. Dessamaneira,a
A tarefa central dessetexto é compreender a "crise europeia" (K,
missão central dos filósofos deve ser explicitar o te/os filosófico capaz de
guiar a transformação histórica da humanidade 314) à luz do desenrolar histórico da filosofia enquanto núcleo cen-
tral da cultura. O autor deixa claro que a sua abordagem dessetema
Nesse ponto, entrelaçam-se os temas construídos pela Besí7zzzung
com a atividade pessoal filosófica. Conforme J. Dodd observa de modo é pré-ÓenomerzoZógíca,
no sentidode pressupora históriae as produ-
çõesculturais da Europa, temas que se atestam na orientação natural
convincente, o enfrentamento da crise presente não é apresentadopor

::;=c;:J : i: 2 c:iJ=:='=üí:
do pensar. "0 nosso tema da Europa espiritual", revela-nos Husserl, é

i.::ii tratado "como um problema puro das ciências do espírito" (K, 318).
Dessemodo, é do ponto de vista da orientação personalista,uma for-

=.::=H::::= :::}:i:==
1".=1:=::===f ':==: maçãoteórica que participa da orientação natural, que a cultura euro-
peia será estudada. Confirma-se aqui o que já estava esboçado na intro-
dução de LFT e se repete na primeira e segunda partes de K: as consi-
33. "A história não vem de fora, empurrando nos em seu fluxo e atribuindo-nos
deraçõesacerca da historicidade das ciências compõem um camínbo
um desígnio que não é. originalmente nosso ma? forçado sobre nós pelos acasosdas
transmissõespassadas;ela emerge.como uma unidade interna de sentido que descobri- ínüodutórío à fenomenologia, o qual não supõe ainda a realizaçãoda
moscomonossa,
no nível'pessoal"'
(Dodd, 2004,65). ' epoché transcendental. Na conferência de 1935, trata-se de um novo

294 295
A cientificidade na fenomenologia de Husserl
As ciêi leias cama produção histórica no mundo da vida
8' / } .'1' 4

exercício de Besínrzt/lzg,que o autor pretende realizar "sem preconcei. nãode uma grande transformação da vida europeia à luz de outras cul-
tos" (K, 321), de maneira a tornar visível o lugar central da filosofia na Hras,tais como a indiana, por exemp]o. Husser] diz que os europeus,
vida espiritual europeia. "se nos compreendermos bem, nunca nos indianizaremos" (K, 320)
Vamos reconstruir os tópicos centrais dessa Besínnungacercada Essasafirmações, que soam inicialmente como pretensiosasou mesmo
Europa. De início, Husserl esclareceque, ao mencionar "vida espiri- preconceituosas,recebem uma justificativa argumentativa complexa,
tual", tem em vista as realizações culturais das pessoasunidas em torno quetentarei reconstruir a seguir.
de diferentes tipos de produções de sentido (tais como instituições, re. Em termos gerais, para compreender a posição husserliana, é im-
aras sociais etc.) sedimentadas e reatualizadas no correr das gerações. portante retomar a tese de que a forma espiritual europeia teria sido for-
A Europa será então perscrutadocomo uma "forma espiritual", isto é jadaem torno de um ideal que permite explicitar algo essencialà hu-
como a unidade dos arosintersubjetivos que criam, sustentame trens. manidade,a saber, a possibilidade de reger a existência finita por ideais
formam a vida cultural em toda a sua complexidade de interpretações teóricos cuja realização exigiria um desenrolar interminável da histó-
valores, finalidades e interesses (Cf. K, 322). Essa ênfase nas produções ria. Esseseria um resultado intimamente ligado ao ideal de cientifici-
culturais como critério de demarcação da forma espiritual europeia dadeonienglobante e absolutamentefundamentada lançado pela pri
permite a Husserl não se comprometer com descrições geográficas ou medravez na história pelos filósofos gregos e assumido sucessivamente
dados demográficos. A EuroPa que se fem em vísfa não é de/ímífada geo pelasgerações que constituíram a forma de vida europeia justamente
gra$camente pelos países que compõem a comunidade europeia, nem ao tomar por base tal ideal. Nesse sentido, há uma singularidade da
os europeus são necessariamente aquelas pessoasnascidas nos ten'itórios cultura europeia, devido à posição central nela atribuída ao ideal de fi-
geoPo/ífícameízfe pedencezzfes à EuroPa. Comunidades guiadas pelos losofia.Segundoo autor, na Grécia Antiga, por volta dosséculosVll e
ideais culturais que demarcam a vida espiritual europeia podem ser vl a.C., um novo tipo de orientação do pensar ganha corpo, a saber, a
denominadas europeias, ainda que distantes geograficamente do conti- orientação puramente teórica; e, como sua expressão,constitui-se a fi-
nente europeu;'. Por outro lado, comunidadesque não partilham des- losofa enquanto um ideal de conhecimento universal. Essacompreen
sesideais não são denominadas europeias, ainda que se encontrem em são da filosofia está exposta, como vimos, nos parágrafos iniciais de K.
territórios oficialmente europeus;s. Porém, ali Husserl não aprofundou o tema da constituição do te/os de
cientificidade universal por meio do nascimento da filosofia. Na confe-
Essadesferríforia/ilação da Europa leva Husserl a privilegiar um
tipo de europeização de outras comunidades ou formas espirituais que rência de 1935, essetema é esmiuçado; fica patente então que a ideia
não é a anexação imperialista territorial, e sim o compartilhamento vo- defilosofia ou ciência universal envolve dois aspectosconstitutivos. O
luntário das tarefas racionais instituídas pela teleologia imanente à vida primeiro deles, o único elaborado na primeira parte de K, é o aspecto
espiritual europeia. De modo aparentemente polêmico, o autor crê que temático: a filosofia lança o prometo de "ciência universal, ciência do
essemovimento intercultural é unilateral. Em outraspalavras,antevê- todo mundano, da unidade total de tudo aquilo que é"(K, 321), e desse
se a possibilidade de europeização das outras formas espirituais3Õ,mas modo ela seria a matriz de todas as disciplinas especializadas constituí-
dasno correr dos séculos que se esforçam por realizar, em relação à sua
áreade estudo, esseideal geral. No entanto, há outro aspecto da ideia
34. Husserl cita como exemplo "os domínios ingleses,os EstadosUnidos" (K, 321)
35. Husserl cita "os ciganosque perpetuamente circunvagueiam pela Europa"(K, originária de filosofia, referente à va/idade írzfersub/etíva.A investiga
321) çãocientífica pretende estabelecer teses cuja validade não é provisória
36. Conforme o parágrafo 6 de K, o "espetáculo da europeização" (14) já ocorre.
ou ligada às relatividades do contexto cultural em que foi produzida
296 297
A cientificidade na fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

Nas palavrasde Husserl, "aquilo que o fazer científico Paraentender em toda a sua radicalidade essaideia de historicidade
algo real, mas sim ideal" (K, 323), isto é, não limitado às racionalou científica, é preciso ainda esmiuçar a orientação específica
clãsempíricas atuais e que, em seu grau máximo de crê Husserl,a ideia de filosofia teria sido forjada. Somenteen-
na qua:
para todos os tempos. Essecaráter onitemporal dos claro por que o autor julga que esseprocessode ampliação
tõn ficará
cos permite a sua apreensão por pessoas que não deuma cultura racional é exclusivamentefomentado pela Europa, da
descoberta ou expressãoprimeira. As idealidades
qual p artériaum movimento unilateral cletransnacionalização
miudas por geraçõese conservamseu sentido, de modo que Para compree nder a singularidade da filosofia nascida na Grécia
um que repita corretamente os passosargumentativos utilizados
jque instaura o ideal de desenvolvimento científico na Europa), é pre-
seu estabelecimento poderá atesta-lascom evidência: caso acentuar que ela sedesenvolve em uma nova orientação do pensar
A universalidade instaurada pelo ideal filosófico de conhecimento ali expressa em toda a sua autonomia, a saber, a orientação puramente
onienglobante não se refere apenas à possibilidade de abarcar a totall
feérica (Cf. K, 326). Nessa orientação ocorre uma "epoc/zé voluntária
Jade dos fenómenos mundanos, mas também à possibilidade de tnstau- de toda e qualquer praxis" (K, 328), quer dizer, uma suspensão da vali-
rar teses válidas para todos aqueles que se dispuserem a reconstruir as
dadede todos os interessespráticos. Aquele que teoriza, enquanto es-
etapas lógicas de fundamentação das teses,e isso independentemente
peccador desinteressadodas finalidades práticas dos fenâmerlos, per-
das particularidades culturais dos sujeitos envolvidos Esboça-seaqui junta pelo ser em sí, por aquilo que é, independentemente dos usos ou
o ideal de ob/etívídade como recon/zecímerzfo
ev;dente untersubjetivoda
interesseshumanos. Nessa investigação, importa somente conhecer os
va/idade ídea/ das tesescíenfz'ocas.E a realização paulatina desse
aspectos
definidores dos fenómenos em questão.Teria sido por meio
fomenta a assimilaçãodastesesfilosófico-científicas em círculos cada
dessemodo de pensar, sedimentado inicialmente em pequenos grupos
vez maiores de pessoasque se disponham a seguir os passosmetódicos
depessoase paulatinamente institucionalizado em comunidades, que
para o estabelecimento do saberválido. Daí que haja, para Husserl,um
a ideia de ciência universal foi forjada, ideia que teria se tornado o te/os
processo de europeização: a produção científica constituída na Grécia
paraa progressãohistórica da cultura europeia
e consolidada na Europa é passívelde reconstrução com evidência por
Husserl admite que componentes temáticos dessaorientação po-
outras comunidades espirituais, as quais então podem aceitar volunta.
dem ser empiricamente confirmados em vários povos antigos que não
riamente o modo de pensar científico. O reconhecimento da validade
osgregos, tais COTÃO
a astronomia e a matemática estabelecidas por ba-
científica por esferascada vez mais amplas de pessoasnão depende se-
bilónicos e egípcios (Cf. K, 331). Porém, nessescasos,essasdisciplinas
não do exercício da capacidade racional dessas pessoas. A europeiza-
seriamainda submetidasa uma orientação mítico-prática do pensar,
ção a que Husserl aponta sigrlifica, assim,"racíoncz/ízação",difusãodo
naqual se elaboram visõesde mundo que almejam responderàs ques-
pensar metódico científico, e não a imposição de modos de vida idios-
tõesdo bem-estare do infortúnio humano. Husserl asseveraque, nas
sincráticos constituídos nos territórios da Europa. A noção de europei-
zação em pauta aqui envolve uma inserção livre das pessoasno tios de sociedadesem que vigora essaorientação mítico-prática, "todo o sa-
historicidade esboçadacom a formulação do te/osde ciência universal, ber especulativo tem como finalidade servir aos homens nas suas me

e não tem nada a ver com algum tipo de dominação imperialista. tashumanas,para que mordem suavida mundana do modo mais feliz
possível,e possamse proteger da doença, da fatalidade de todo tipo, da
penúria e da morte" (ibid.). Nessas condições, o saber teórico está limi-
37. "As pessoasligadas umas às outras na compreensão recíproca anual não podem
deixar de experimentar o que foi produzido pelos respectivos companheiros, em arosde tado por interessespráticos, ainda que notavelmente gerais. Somente
produção iguais, como identicamente o mesmo que aquilo que eles produzem" (K, 323). na Grécia Antiga teria se desenvolvidoem toda a sua autonomia a
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A cientificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

orientação teórica pura, a qual, longe de se submeter a interessesprá- tarefade cn'tícczracíorzcz/voltada aos modos de vida tradicionais. Dessa
ticos, transforma a vida prática ao gerar uma "síntese" (K, 329) inédita forma, ospovos não se europeízam porque assimilam hábitos europeus
com essaúltima, da qual surgiria aquilo que caracteriza,em seunú. jsuasreligiões, a culinária, as danças folclóricas etc.), mas porque as-
cleo, o que Husserl reconhece então como comunidade esPíríüa/ euro sumem uma postura crítica em relação ao seu próprio modo de vida,
peia. Não se deve pensar, dessa maneira, que a orientação teórica pura alvejando transforma-lo conforme normas racionais. E essatarefa de
se desenvolve de modo alheio às questões práticas. O que ocorre, na consbuir uma praxis racional vale mesmo para a Europa geográfica,
verdade, é uma inversãodas relaçõesentre teoria e prática tais como paraas suastradiçõese os seuscostumes,que devem receberuma crí-
ordenadas nas comunidades mítico-práticas. Nessas últimas, são os in. tica constantese pretendem pertencer à comunidade espiritual euro-
teressespráticos que guiam as descobertas teóricas. Porém, sob a orien. peia, no sentido empregado por Husserl38
ração teórica pura, a vida prática é transformada à luz dos ideais de co. Como se vê, a europeização husserliana não é senão a divulgação
nhecimento absolutamente fundamentado. e sedimentação, em círculos humanos cada vez mais amplos, de uma
A respeito dessasíntese entre teoria e prática propiciada pela orien- cultura racional39.A Grécia Antiga e a Europa que dela se formou fo-
tação teórica do pensar, Husserl menciona que ela seexpressaem uma ramresponsáveis
por lançar na história humana esseideal de crítica
;posturacrítica" (K, 333) de alcance universal, isto é, não limitada a universal. Isso marcaria a singularidade da cultura europeia: lançar um
questõesteóricas especializadas,masaplicável a todos osdomínios exis- fe/osinédito, que nenhuma civilização anterior vislumbrou, mas do
tenciais. Por meio da orientação teórica, circunscrevem-se idealidades qualtodas as posteriores podem participar. E, uma vez fixada a meta
de validade universal independente de relatividades culturais. Na pos- devida racionalmente guiada, Husserl insiste em afirmar que a huma-
tura crítica, essasidealidadesajudam a constituir normas para a justifi- nidade "não mais pode e não mais quer viver a não ser na livre forma-
cação das atividades práticas, de maneira que asformas tradicionais de ção da sua existência, da sua vida histórica, a partir da ideia da razão, a
ação nos contextos sociais passam a ser avaliadas pelo crivo da verdade partir de tarefas infinitas" (K, 319). Cabe ainda esclarecer esse tom de
ideal incondicionada. Nas palavrasde Husserl, "resulta daí uma trans- rzecess;dczde
atribuído à vida racional. Por que a humanidade europeia,
formação de grande alcance da praxis inteira da existência humana e, enquantohumanidade formada pelo ideal de guiar a vida por normas
racionaisderivadas da noção de validade universal, não pode viver de
portanto, da vida cultural em seu todo; ela não mais deve deixar que as
suasnormas sejam tomadas da empina ingênua do cotidiano e da tradi- outra forma? Ao responder a essa questão, começará a ficar claro que

ção, mas, antes, da verdade objetiva" (ibid.). Toda a vida cultural tradi- a crise das ciências europeias não é só um problema te(5rico, mas uma
ameaçaao próprio modo de ser da Europa.
cional é, assim,paulatinamente transformada,à medida que a postura
crítica constrói contextos práticos guiados por normas racionais e não
38. Talvez Husserl evitasse alguns mal-entendidos que levam a caracterizar sua po-
meramente pela autoridade tradicional. E assim que se vai formando o
sição, nesse ponto, como eurocentrista se, em vez de "Europa espiritual", se referisse de
que Husserl chama de /zuzna7zídade europeia, quer dizer, não simples- modo mais explícito a uma "cultura racional", e se em vez de "europeização", apontasse
mente um conjunto de pessoascasualmente nascidasem territórios eu- simplesmente para uma "racionalização" dos modos de vida tradicionais. No entanto, é
precisolevar em consideraçãoo contexto histórico-social da conferência de 1935. Hus-
ropeus, e sim uma unidade espiritual alimentada por todos aquelesque
ser]se dirigia a seuscontemporâneos europeus (no sentido tradicional) tentando justa
aceitam o ideal de uma vida guiada por normas racionais, independen- mentelegitimar um sentido de "europeu" não diluível nos nacionalismos então cada
temente de sua origem étnica. A europeização não é, volto a insistir, de vez mais aflorados. O autor pretendia despertar os europeus "nativos" para um sentido
espiritual-racional de Europa, para uma tarefa crítica em torno da qual poderiam se unir
nenhum modo uma transmissão(forçada ou não) de costumese cren- paraalém dasdivisõesnacionais, políticas e religiosasda Europa geográfica
ças tradicionais vigentes nos territórios da Europa, mas a aceitação da 39. Para reflexões mais detalhadas acerca dessetema, cf. Hart, 1992

300 301
A cientificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

As condições mofívacíonaís da oríenfação teóHca çãoa essefato ocorrido, supõe-seque certas restriçõesintencionais de
transmissão e sedimentação de sentidos tenham se cumprido. São as-
Husserlenfatiza que a novidade da orientação teórica e o seupo-
tencial transformador da humanidade só são bem compreendidoseD simascondições intencionais da formação histórica da orientação teó-
contrastecom o modo de vida tradicional que justamente passarásob rica je da imposição de um modo de vida particular a seuspraticantes)
o crivo da crítica universal40. Deve-se então reconhecer "uma primeira quere busca narrar4z
Parareconstruir os condicionantes histórico-intencionais da orien-
historicidade" (K, 326) dasculturas humanas, ainda anterior à instou.
ração da orientação teórica. E importante notar que não se pretende taçãoteórica, é preciso recorrer a alguns textos publicados em Kll, em
fornecer uma descriçãoempírica das estruturasculturais prático-míti- particular, A vida buma7za rz /zísforícídade e Díáererztesformas de histo-
ricidade, ambos de 1934, cujas teses ainda se fazem presentes na con-
cas. Husserl mantém-se fiel aos limites da história intencional: nãose
trata de focar-se nos acontecimentos contingentes, e sim nas estruturas ferência de 1935. Nesses dois textos, propõem-se algumas etapas de or-
intencionais de produção e modificação históricas do sentido investi- denaçãosocial como momentos intencionais que devem ser cumpri-
gado. Na conferência de 1935 há uma complexificação dessaprescri- dosparaque o surgimento da orientação teórica se torne possível.Isso
ção geral. Toma-se ali um evento empírico consolidado (no caso, a ir- querdizer que a orientação teórica não é um evento aleatório, mas um
rupção da orientação teórica na Grécia Antiga) e busca-se pelas condi- acontecimento que supõe realizadas certas relações motivacionais en-
tre as pessoas. Vamos acompanhar de perto esse tópico
ções mofívacíonaís que o tornaram possível. Há, então, apelo a relações
motivacionais enquanto restrições estruturantes de eventos factuais O Uma primeira etapa de ordenação social concebível refere-se aos
surgimento da orientação teórica na Grécia não será,desseponto de pequenosagrupamentos ou povos, ainda com unidade familiar. Nesses
vista, esclarecido por meio da enumeração de fatos pontuais. Almeja-se povos,vigorariam relações hierárquicas bem estabelecidas,com base
formular quais seriam as estruturas intencionais que condicionam a nasquais os potenciais conflitos acerca da compreensão dos fatos e das
passagemà orientação teórica, sem a pretensão de explicar asparticula- prescriçõespara a ação seriam resolvidos. No entanto, nesse estágio ini-
ridades empa'ocas do caso grego. Essas estruturas operariam como uma cial de sociabilidade, poucos problemas com relação às divergências
espécie de a priori írztezzciona/-/zístóríco,isto é, restrições que delimitam interpretativas surgiriam, uma vez que os indivíduos aí se formariam de

a possibilidadede instauraçãofactual de algo como a orientaçãoteó- modo bastante homogêneo, à luz de opções culturais restritas (Cf. Kll,
rica'i. Husserl não buscara narrar fatos comprovados ou a se compro- 3-7).Do crescimento dessespovos e da complexificação das institui-
var relativos à história empírica grega, e sim aclarar laços motivacio- çõesregentes da vida social, molda-se o que Husserl chama de nação:
nais que delimitam a configuração da orientação teórica enquanto fato gruposhumanos bem maiores, mas que partilham de um sistema rela-
histórico. Que essaconfiguração tenha se realizado na Grécia Antiga ti\amente coeso de valores e crenças míticos, que atribuem identidade
e não em algum outro lugar é uma facticidade que escapa ao esquema àsformações culturais produzidas em seu interior (Cf. Kl1, 44-5). Já nas
de análise das condições motivacionais a príod. Em todo caso, em rela- relaçõesintranacionais os indivíduos se confrontam com relatividades
advindosdasfunções sociais, das condições económicas, de alguns cos-
40. "Em sua novidade, a orientação teórica refere-seretrospectivamentea uma tumesetc. Diante dessascircunstâncias,diferentesconflitos interpreta-
orientação precedente, que antes era a norma" (K, 326) tivos com relação ao sentido dos fatos ou da correção das ações podem
41 . Segundo Husserl, "em uma das orientações naturais historicamente factuais da
humanidade devem surgir, a partir da situaçãointerna e externa que em um determi-
nado momento do tempo se tornou concreta, motivos que, de seu interior, levem pri- 42. Parauma discussãomais detalhada sobreos laços histórico-intencionais como
meiro homens isolados e depois grupos humanos a uma conversão" (K, 327). estruturascondicionantes a priori do sentido dos fatos, cf. Pradelle, 2003

302 303
A cieljtificidade na fenomenologiade Husser] As ciências Gamo produção histórica no mundo da vida

surgir. Husser] supõe, contudo, que essasrelatividades


É a partia desseponto, ou seja,é com basenessaestrutura intencio-
veia por referência às normas valorativasúltimas
das para a vida nacional. As nal de soda ização (a historicidade política) que se instaura o impulso
o surgimento de uma nova orientação do pensar e do agir, que
das e de recomendação de para
estabelecer a validade do conhecimento e dos valores que enfor-
padrões de crença vigentes para a
main as anõespara além das visõesde mundo constituídas como relati-
Uma nova etapa do desenvolvimento
vídadesculürais (Cf. Kl1, 12 et seq.; 41 et seq.). Trata-se justamente da
quando se estabelecem re/anões entre
tadora de um sistema orientaçãofeóHca enquanto busca daquilo que é íne/atívo, da verdade
condicionada por idiossincrasias culturais e que se atesta de modo
etapa de "historicidade política'
evidente para aqueles que se puserem a seguir a sua formulação metó
novo de desafio, derivado da convivência
dica.Não é o caso aqui meramente do enriquecimento de certa visão
pacífica: impõe-se um tipo especial de
demundotradicional, e sim do rompimento com o modo tradicional
em última instância para a relatividade
de justificação de crenças (por mitos e valores circunscritos à unidade
sustentadoras da normalidade nacional.
nacional)e de aberturapara um novo modo de organizaçãoda exis-
diferentes nações têm costumes muito diversos.
tência,a saber,aquele guiado pelas normas racionais irrelativas. Daí
que vigoram sob critérios variados, crenças míticas incompatíveis e ao Husserlinsistir, conforme vimos há pouco, em que aspessoasformadas
se comunicarem, irrompem dissensosreferentesà interpretação
interpretação da ex. pelo modo de vida fundado na orientação teórica não poderiam viver
penência que não são solucionáveis por meio do apelo aos
por meio do apelo aos valores
valores fun- deoutra forma. Diante de inúmeros conflitos interpretativos instaura-
como ocorria com
dentes de cada ordenação social, como ocorria com os conflitos intra. dos,uma vez atestada a relatividade insuperável das visõesde mundo,
nacionais, e isso porque tais dissensos podem
podem se
se referir
referir a esses próprios não resta senão a busca por elaborar teses verdadeiras independente-
valoresfundantes.
mente dos valores nacionais, teses que se atestariam como válidas in-
Os membros de uma nação se remetem ao seu próprio sistemade ternacionalmente. Conforme a conferência de 1935, dado o contraste
valores e crenças para resolver os conflitos de interpretação de fatos e entre asculturas, "sobrevém a distinção entre representação de mundo
ações.Isso, porém, não basta para convencer membros de outra na. e mundo efetivo, e surge a nova pergunta pela verdade; não então a ver-
ção, que, por sua vez, apelam à validade do seu próprio sistema de va- dade do cotidiano, veiculada à tradição, mas antes uma verdade idên-
lores tradicionais. Assim, entre outros resultados possíveis,
possíveis o confafo ín tica, válida para todos os que não estão ofuscados pela tradição, uma
:emocional fomenta uma tomada de consciênciaacerca da relatividade verdadeem si" (K, 332). Assim, o surgimento da orientação científica
mesmodas Honras tradíci07tais tomadas como absolutas no interior da estáligado à tarefa de desvelamento irrelativo do mundo, a qual aponta
vida nacíorza/.Não é mais possíveljustificar as interpretaçõestradicio- para a superação das visões de mundo das tradições mítico-práticas
nais do que compõe a realidade e de como se deve agir apenas por re-
gerênciaà visão de mundo nacional, já gue as relações internacionais
revelam que cada visão de mundo não é senão uma formação espiritual A humanidade guiada por nomtas racionais
entre tantas outras possíveis.As crenças tradicionais perdem o seu valor
Como se vê, a configuração da orientação teórica supõe um des-
outrora absoluto ao se marcarem como fruto de
ma configuração cui- vencilhamento das visões de mundo tradicionais e a paulatina sedi-
tural particular, o que fomenta uma situaçãoexistencial de confusão e mentação do conhecimento e da ação sustentados por princípios racio-
até mesmo angústia.
nais universais. Daí Husserl sugerir uma "conversão" para a orientação
304
305
A cientificídade na fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

teórica e a cultura transnacional por ela fomentada: "a filosofia vê nn a humanidade" (K, 336). A filosofia e as ciêllcias particulares derivadas
mundo o universodaquilo que é, e o mundo torna-se mundo Objetivo deseu ideal de conhecimento onienglobante constituem o centro de
diante dasrepresentações de mundo, que mudam do ponto de vista desenvolvimento da cultura europeia (no sentido de cultura racional)
dasnaçõese das subjetividadesindividuais" (K, 340). Essabuscapelo Husserl tem consciência de que essacultura racional não esgota todos
irrelativo leva à elaboração de um modo de vida que não se guia mais osaspectosda cultura europeia tradicional e que obviamente seria in-
pela autoridade tradicional, sempre ligada a uma visão de mundo en. gênuo identificar os dois sentidos de "europeu" em )ogo aqui. No en-
tre outras, mas por princípios racionais. Por sua vez, essemodo de Vida tanto, ao explicitar a formação do ideal de filosofia na Grécia Antiga, o
crítico implica uma transformaçãoda própria humanidade, na medida autor julga ter revelado talvez o núcleo da cultura europeia tradicional.
em que as configuraçõessociaiscada vez mais passema se pautar por Háuma passagemimportante na conferência de 1935em que essapo-
critérios racionais. Abre-se uma tarefa infinita, a compreensão racional siçãofica clara: "a filosofia universal com todas as ciências particulares
onienglobante do mundo e a transformação da praxis pela postura crí. constitui certamente uma aparição parcelar da cultura europeia. Mas
rica mencionada acima, que passaos hábitos sociais pelo crivo racional. jaz no sentido de toda a minha exposição que essaparte é, por assim
Essa transformação se propaga pelas sucessivas gerações que se deixam dizer, o cérebro operante, de cHIa funcionamento normal depende a
p'utar pelo ideal de validade objetivo. Assim, "a nova humanidade" IK, autêntica e saudávelespiritualidade europeia" (K, 338). Haveria, en-
332), conduzida por normas racionais, configura-se por meio de tarefas tão,como centro legislador do desenrolar da cultura europeia, um nú-
que são desconhecidas por aquelas nações isoladas em sua relatividade cleo racíorza/ que não está ligado a relatividades culturais das nações
mítico-prática. Nessasnações,o conhecimento serveàs finalidadesde particulares,mas que justamente impulsiona a humanidade europeia
manutenção da felicidade nos limites da ordem social tradicional, con- paraa universalidade, de maneira que até mesmo outros povos distan-
siderada ingenuamente como válida de modo absoluto. Já a humani- testerritorialmente da Europa possamse identificar com essemovi-
dade racional contribui para "edificar conhecimento teórico sobreco- mentointerminável de construção de um conhecimento racional e se
nhecimento teórico ín írz/ínítum" (ibid.), de maneira a se guiar não so- reconhecer como parte dessahumanidade europeia
mente pela obtenção de felicidade na vida finita conforme os valores Agora é possívelentender mais claramente por que Husserl se re-
tradicionais vigentes, mas principalmente pela meta de contribuir para fere às ciências euros)elasno título de K. Não se trata de uma adjetiva-
a realização interminável da ciência onienglobante do ser. çãorestritiva, que marca particularidades étnicas que distinguiriam en-
E assimque a filosofia se desenvolvecomo um movimento transna- tre diferentes tipos de ciências possíveis(nessesentido, asciências euro-
cional, adregando mais e mais pessoas que assumem a tarefa de passar peiassediferenciariam das ciências japonesasou turcas, por exemplo).
pe[o crivo crífíco o seu modo de vida tradicional, contribuindo, dessa Com a expressão "ciências europeias", Husserl tem em vista uma adie
forma, para a reformulação racional das instituições sociais e, em geral, tivação explicativa por meio da qual se desvela uma característica cons-
para a divulgação de uma cultura racional, quer dizer, de hábitos cen- titutiva da própria noção de ciência. A ideia de ciência enquanto co-
tradosnão em costumesarbitrários, masem princípios e normaspassí- nhecimento teórico justificado e o seu desenrolar histórico enquanto
veis de atestação evidente. Essa busca pela validade justificada racio- produção paulatina de um saber onienglobante remetem à Europa en
nalmente foi, acredita Husserl, fundamental para a formação de uma quanto berço da orientação teórica e da postura crítica universal dela
humanidade particular na história, a saber, a europeia. Cabe aqui enfa- derivada. Outras nações em diferentes momentos históricos desenvol-
tizar o papel central da filosofia: "em uma humanidade europeia, cons- veram conhecimentos parciais de fenómenos mundanos. Porém, como
tantemente a filosofia tem de exercer a sua função arcântica para toda já vimos, julga Husserl que essesconhecimentos estavam limitados por

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A cientificidade na fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

Daí Husserl afirmar que, diante da crise, uma alternativa é a "deca-


interessespráticos, ainda que muito gerais. Somente na Grécia Antiga
e na Europa que dela se formou, investigações puramente teóricas te. dênciada Europa na alienação diante do seu próprio sentido racional
riam sido sistematizadas de maneira a constituir a própria ideia de ciên. devida, a quedana hostilidade espiritual e barbárie" (K, 347). Ceder
cia em sentido forte. As ciências são então genefícamenteeuropeias à crise seria a autodestruição da Europa enquanto cultura guiada
pois a formação espiritual que alme)a o conhecimento universal e ins. nor normas racionais. Por sorte, essenão é um destino inescapável,
taura a noção de validade irrelativa teria vindo à luz inicialmente na e Husserl pretende, com toda essa longa investigação sobre a gênese
cultura europeia, cultura que é modificada por essaformação à medida dosentido de cientificidade, tornar a crise "compreensível a partir do
que a tarefa de crítica universal aos modos de vida tradicionais é prati- panode fundo da teleologia da história europeia, desvelável filosofica-
cada em círculos comunitários cada vez mais amplos" mente" (ibid.). Uma vez compreendido que a crise da cultura europeia
Vê-se, assim, que Husserl conecta intimamente a humanidade nãoé uma crise dassuasinstituições particulares, mas uma crise refe-
europeia e o desenrolar histórico da cientificidade. Torna-seentãovi- renteà condução do devir histórico da humanidade pelas normas ra-
sível o alcance da problemática da crise das ciências. Essaúltima se cionais de cientificidade, esboça-se outra alternativa, a saber, "o renas-
revela principalmente como perda da confiança no ideal de Ganhe. cimento da Europa a partir do espírito da filosofia" (K, 348), ou seja, a
cimento englobante e na praxis racional daí derivada. A humanidade retomadaevidente da ideia-guia de Europa, uma vez feita a crítica de
europeia estáem crise porque deixa de se reconhecer nesseideal ou sua deriva histórica
em outras palavras,porque esseideal não é mais apreendido em todo
o seu poder unificador da cultura e transformadordasgeraçõesque
nele se formam. Conforme os parágrafosiniciais de K, as ciênciasnão B)A crise das ciências e o papel fundante do mundo da vida
mais dizem respeito à totalidade da vida humana, não mais oferecem
A génesehístódco-ínfencíonaZ da case
normas racionais capazesde enformar a existência prática, que de-
veria ser conduzida pela crítica universal.Há certamente muito en- Acredito ter reconstruído os elementos principais da noção de crise
tusiasmo com as tecnologias inseridas constantemente no cotidiano; empregadapor Husserl. Para circunscrever o sentido de "crise dasciên-
masessesucessoprático não significa um reforço do ideal de com- ciaseuropeias", o filósofo supõe uma elaborada Besinnung histórico-in-
preensão racional do mundo e de crítica radical dos modos práticos de tencionalpor meio da qual se revela a teleologia imanente ao vir-a-ser
vida. Ora, a análise histórico-intencional pretende ter desveladoquea da humanidade europeia. Cabe agora investigar por que tal teleologia
ideia de cientificidade onienglobante estáno coração da cultura euro- fraquejae deixa de receber o apoio dos "bons europeus". Cabe agora
peia enquanto cultura racional. Se essaideia estáem crise, à medida perguntarqual a deriva histórica que desfigurou a realização concreta
que a ciência deixa de legislar sobre as questõesprementes do existir dasciências de modo que, na contemporaneidade, como se pretende
humano e deixa de receber o apoio efusivo dasnovas gerações,então ter constatado, elas nada tenham a dizer a respeito das questões últimas
é a própria humanidade europeia que perde seu centro e arrisca-sea da existência humana. Essetema ainda faz parte da introdução à feno-
dissolvero sentido teleológico do seu devir histórico enquanto objeti- menologiaplanejada por Husserl em K, e o método para sua aborda-
vação interminável da razão. gem ainda será o mesmo (a Besííznu7zg
hist(5rico-intencional). Como
vimos, por meio desse método não se trata de investigar fatos efetiva-
43. Parauma aná]isebastantedetalhada do papel da Europa nasreflexõeshusser- mente ocorridos, mas sim conexões motivacionais que, por um lado,
lianas, cf. Mietbnen, 2013 alimentam o interesse dos filósofos atuais para realizar suastarefas e,

308 309
A cientificidade na fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida
..r #' 4

por outro, estabelecem condições de


compreensão de certos eventos contemporaneidadesupõe uma situação, por assim dizer, de racio-
históricos empíricos.
nalidade"saudável",que Husserl localiza na Grécia Antiga, quando
Dessa maneira, pode-se dizer que, em seusanos finais, Husse.l
Huss..l ..
daprópria formação da ideia de cientificidade onienglobante. No en
mportância entre os problemas tanto, não se trata aqui de propor uma espécie de "época de ouro" da
como estabelecida
filosofia,em que os filósofos tinham plena clareza da amplitude de sua
ãgorosa. Nesse texto, conforme
tarefae dos melhores métodos para cumpri-la. A crítica radical das rela-
r' . 1 1 s'--- exortadora
--- UH-+-''-'-' diante
-'x''xxt.x- dos
uvo problemas
J:'p'L\"/U.lt;llld.S 1110S0- tividadesculturais pela orientação teórica impõe a tarefa de conhecer
explorados aquilo que é irra/afívo, que existe em sí mesmo,e não como mero efeito
história passa de escolhas subjetivas arbitrárias. Conforme narra Husserl, "a filosofia
apêndice vê no mundo o universodaquilo que é, e o mundo torna-semundo ob-
qualquer dúvida de que temos jetivo diante das representações do mundo, que mudam conforme os
aprofundar em considerações históricas, se devemos poder nos com- pontos de vista das nações e das subjetividades individuais" (K, 340). A
preender como filósofos e compreender isso que em nós surgirá como buscapor um conhecimento irrelativo, de validade universal, torna-se
filosofia. Já não basta,por assim dizer, captar
captar problemas de trabalho buscapela objetividade, busca que se inicia por aquilo que mais fácil
ainda
no impulso ingênuo da vida e da ação, ainda que vindos das profun- mente se atesta às pessoas:as coisas concretas do mundo espaçotempo-
dezas existenciais da personalidade" (K, 510). O trabalho filosófico é.
))

ral. Independentemente de quaisquer predicados culturais que tais coi-


dessemodo, reconhecido não como um CçenrPn
esforço isolado, mas como re. sasrecebam, elas são atestáveis perceptivelmente por todas as pessoas
geracional em que os temas e pro-
sultante da inserção em uma cadeia geracional deconstituição dita normal. Daí, afirma Husserl,
blemas amadurecem, tendo em vista
vista uma
uma teleologia
teleologia racional. A dedi. começa a filosofia como cosmologia; como é compreensível,ela
cação satisfatória às tarefas filosóficas anuais exige
exige, assim, uma perspec- está,no seu interesse teórico, dirigida primeiro para a natureza cor-
hierarquizam em grausde
tiva histórica a partir da qual tais tarefasse hierarquizam póreo (. . .). Pessoase animais não são simplesmente corpos, mas na
urgência. Diante do estadoatual da crise dasciênciaseuropeias,o en- direção do olhar mundano, eles aparecem como algo que existe cor-
tendimento da deriva histórica do racionalismo torna-secentral, já que poralmente e, por conseguinte, aparecemcomo realidades inseridas
estáem jogo aqui a continuidade do fazer filosófico não como merasa- na espaço-temporalidadeuniversal(íd.).
tisfação de proletos pessoaisidiossincráticos, e sim como paulatina se- É, assim, a materialidade mundana que oferece de modo mais sim-
dimentação de uma cultura racional. E esseentendimento seráobtido ples dadosirrelativos, de forma que, já na Antiguidade, a tareia do co-
por meio de uma Besínnung realizada de modo "despreocupado com a nhecimento onienglobante foi principalmente centrada em análises
historicidade científica" (K, 512), quer dizer, por uma investigaçãoque ligadas aos fenómenos materiais-espaçotemporais. Daí também que
vai buscar as condições motivacionais constitutivas de certa situação uma das primeiras ciências a atingir um alto grau de fundação rácio-
histórica, sem se limitar a dados historiográficos objetivos. nal tenha sido a geometria, que trata das relaçõesinerentes a formas
reconstrl l ir a análise husserliana das con-
Vamos então começar a reconstruir espaciais abstratas. Descarte, no próprio desenvolvimento da cientifi
dições histórico-intencionais que tornam compreensível a deforma- cidade antiga, vigora, conforme Husserl destaca em um texto de 1936
ção histórica do racionalismo científico em un] positivismo limitado, (publicado em Kll), certo tipo de objetívísmo, quer dizer, de associa-
conforme já anunciadono começode K. De início, é importante sa- ção da objetividade a ser expressapelo conhecimento ao substrato ma-
lientar o seguinte: o diagnóstico de crise das ciências europeias na terial dos fenómenos. Segundo Husserl, essa associaçãofavorece a
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A cientificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

desconsideração de outros aspectos constituintes da experiência que racional de quaisquer relações aí estabelecidas) teria sido claramente
não podem ser plenamente compreendidos à luz dessaredução da ob. concebida's
jetividade racionalmente válida à atestação dos aspectos materiais irre. O que Husserlpretende tornar visível por meio dessainfinitização
lativos. E issojá ocorria na filosofia antiga: "a ingenuidade dos filóso. moderna da matemática é a inclusão do domínio da natureza concreta
fos gregos, seu objetivismo se devem a uma idealização da ideia de um entre os temas a serem compreendidos pela racionalidade matemática.
mundo em si, a qual determina todo o seu agir fundente metódico, en- Serápor meio do desenvolvimentode uma ciência matemática da na-
quanto eles, sobre o subjetivo dessemétodo, desseagir subjetivamente tureza que ocorre, na Modernidade, uma transformação redutora do
fundente(...), não fazem nenhuma reflexão"(Kl1, 161). O ideal de co. ideal de conhecimento englobante do ser. Na Modernidade, concebe-
nhecimento onienglobante avançavana Grécia Antiga principalmente sea matemática como aplicável a toda forma de ser concebível, inclu-
em relação às determinações materiais do mundo (por abordagensem- siveàquelas formas que compõem o mundo da experiência concreta.
píricas ou mesmo eidéticas, como no caso da geometria)H. Havia, as- As ciências modernas da natureza logo assumiram os métodos mate-
sim, certas limitações na execuçãoda tarefa da filosofia, de maneira máticospara explicar os fenómenos naturais e, em seguida,tentou-se
que, mesmo na Antiguidade, o ideal de conhecimento universal não o desenvolvimentode uma psicologia experimental que explicasseos
havia sido plenamente explorado. E será justamente uma exacerbação fenómenos da vida psíquica e humana segundo o modelo do conheci-
dessaslimitações na Modernidade, acumulando sobre o te/osfilosófico mento físico. Assim, a paulatina matematização das ciências modernas
várias obscuridades, que comentará a manifestação concreta da crise parece oferecer um novo caminho para esgotar o conhecimento da to-
das ciências como redução positivista. talidade daquilo que é'ó. Porém, como insistirá Husserl, a universali-
Essainterpretação restritiva moderna do sentido de universalidade dadeproduzida pela aplicação generalizada da matemática é /imitada,
do conhecimento tem início curiosamente com uma exParzsãodo do- baseada na idem/ízação de certos aspectosda experiência(espaciaise
mínio de aplicação da matemática e da geometria, ciências herdadas quantitativos,principalmente) e incapaz de dar a devida importância
do mundo antigo. Tal como narra Husserl no parágrafo 8 de K, asmate- a outros aspectos constituintes dessa experiência (por exemplo, o pa-
máticas antigas já acumulavam resultados ideais sistemáticos, ordena- pel ativo da subjetividade como produtora do conhecimento). Dessa
dos axiomática-dedutivamente, de modo a antever logicamente as pos- maneira, a reapropriação moderna do ideal grego de conhecimento
sibilidades contidas em um domínio temático. No entanto, "a geome- onienglobante envolve um desvio notável do sentido de cientificidade
tria euclidiana e a matemática antiga em geral, contudo, só conhecem originalmente antevisto.Cabe ao filósofo, por meio da sua Besírznung
tarefas finitas, um a f)doó #níto fechado" (K, 19), garante-nos o autor. histórico-intencional, explicitar criticamente esse desvio e suas dele-
Para os teóricos gregos, o domínio das matemáticas não se estendein- térias consequências, a fim de reavivar o sentido originário da tarefa
definidamente, e somente na Modernidade a ideia de um espaçogeo-
métrico infinito (juntamente com as possibilidades de determinação 45. V. Cérard compreende a especificidade do uso moderno da matemática por
meio da ênfasena definibilidade extensional, conceito que permite determinar a tota-
lidade de objetos concebíveis sem deixar possibilidades indeterminadas, em contraste
44. Em outro texto do mesmo período, A areia c tua/ da /í/osoPa, Husserl admite com a ênfasedos antigos na deRinibilidade elementar, segundo a qual meramente se
que houve reflexõesdos filósofos antigos sobre a subjetividade, mas insuficientes para determinam os componentes de conjuntos específicos ao definir se um objeto pertell ce
estabe[ecer uma ciência a priori sobre o subjetivo, ta] como ocorre com as formas espa- ou não a eles. Nesse último caso, não há a pretensão de esgotar a totalidade dos objetos
ciais tratadaseideticamente pela geometria, e nem, de maneira geral, capazesde "re- possíveis.Cf. Cérard, 2008
futar a pretensãodo adversário jobjetivistal de um conhecimento absoluto do mundo 46. Para uma análise detalhada do papel dessanova concepção de matemática na
(Husser1, 1989b, 196). ordenação das ciências, cf. Casché, 2010

312 313
A cientificidade na fenomenologia de Husser]
As ciências como produção histórica no mundo da vida

da filosofia, Obscurecido no
Husserl fará no longo doque fruto de uma pesquisahistoriográfica. Importa, ali, acentuar a
tencionais que levaram à diHcaçãode sentido na tarefa geral do conhecimento científico ge-
radapela investigação matemática da natureza. Galileu é reconhecido
comoo principal ator dessamodificação, mas a meta central dasaná-
A matematjzação da natureza jisesé capturar o sentido de tal evento histórico e não oferecer um es-
Hdo detido da vida e da obra de Galileu, as quais são expostas de modo
assumidamenteesquemático
Vamos acompanhar mais de perto as etapas de modificação do sen-
tido da investigação científica na Modernidade. De início, Husserl ex-
pjicita qual a tradição do pensamentoem que Galileu, enquanto fun-
dador da física matemática, se insere. Trata-se de trazer à luz, nesse
ponto,quais as formações teóricas e práticas herdadaspor Galileu e
a partir das quais uma compreensão matemática do mundo concreto
seráproposta. Conforme o início do parágrafo 9b, Galileu tinha à sua
disposiçãocertos ramos da matemática e principalmente da geometria
já bem desenvolvidos desde os antigos. Além disso, diferentes contextos
científicos e extracientíficos de aplicação do instrumental matemático-
geométrico (astronomia, engenharia, agrimensura etc.) também já es-
tavam substancialmente avançados em sua época. E a partir dessa he-
rança cultural que Galileu constrói a proposta de estudar a totalidade
da natureza enquanto multiplicidade matemática. Esses são os moti-
vosconscientes sobre os quais Galileu opera. No entanto, crê Husserl,
Galileu não se interessou em questionar profundamente o sentido epis-
têmico dessaherança teórica, o que seria fundamental para estabelecer
com clareza a justificação e os limites do conhecimento matemático.
Galileu "estavamuito longe de pensar que para a geometria (.. .) pu-
desseser re]evantee atéde uma importância fundamental tomar como
problema a evidência geométrica, o 'como' da sua origem" (K, S 9b,
26). Não há nada a estranhar aqui, na verdade. O cie7ztístaGalileu se
move na esfera da orientação natural do pensar, a qual supõe a objeti-
vidadedo mundo paraa qual asdiferentesoperaçõessubjetivassediri-
gem. Nessaorientação, considera-seque o instrumental teórico, uma
vez evitados os erros de sua aplicação, dirige-se à verdadeira natureza
semgrandes complicações. Essacrença ingênua, afirma Husserl no iní-
cio do parágrafo 9, é uma motivação subjacente à concepção científica
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A cientificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

galílaica, a qual, então, sem problematizar criticamente as condições exatas,purificados de todas as circunstâncias relativizantes empíricas
de possibilidade do conhecimento, serve-seda geometria como instou. Játratei dela rapidamente no capítulo anterior. Agora, teremos chance
mento de exploração do mundo". de disseca-la com vagar. Para Husserl, "as coisas no mundo circundante
Por sua vez, para o filósofo que busca exibir os deslocamentos histó. intuível estão,em geral, e segundo todas as suaspropriedades, na osci-
ricos da noção de cientificidade, há um interesse "essencial" em realizar lação do que é meramente típico" (K, S9a, 22). Na experiência pré-teó-
uma "conversão do olhar" e tematizar "a 'origem' do conhecimento"(K, rica, as coisas carecem de exatidão, manifestando-se segundo caracte-
S 9b, 27) propiciado pela geometria. SÓ assim será possível compreen- rísticas identificáveis em diferentes graus de intensidade. Isso quer di-
der o alcance da ciência natural matemática para além da interpretação zer que as formas exatasda geometria não são díretame7zte
infuúeis,
ingênua que o próprio Galileu Ihe atribui. Dessamaneira, Husserlpro- massupõem, para sua validação, uma elaboração metódica sobre a ex-
põe uma czná/íse /zístódco-íízterzcíona/
nos parágrafos9a-b de K, acerca periência mundana, que, por si só, é inexata. E justamente aqui que
do sentido geral da atividade geométrica.Nessaanálise, é imprescindí- entra em cena a "idealização", composta das seguintes etapas: a princí-
vel abandonar nossa familiaridade contemporânea com os resultados da pio, reconhecem-senascoisasintuídas no mundo circundante diferen-
geometria, em relação aosquais normalmente não se vê descontinui- tes graus em relação a vários aspectos ligados principalmente à forma
dade com os objetos da experiência concreta, e acompanhar a própria espacial (as coisas aparecem como mais ou menos curvas, regas etc.).
elaboraçãodo conhecimento geométrico como aplicado ao mundo«. Dessemodo, com as experiências intuitivas, "temos já um horizonte
A principal operação que constitui o domínio temático da geometria abertode aperfeiçoamentoconcebível, a conduzir sempremais além
é a ídea/ízação, quer dizer, a construção de formas com determinações IK, 23). As coisassão ordenáveis em graus de concretização de certo as-
pecto espacial, e essasérie interminável de aperfeiçoamento possível
sugere uma extrapolação conceitual (quer dizer, para além daquilo que
47. Em uma palavra, Galileu assumiu a herança teórica e prática da geometria
como uma "obviedade" (Se/bshersfdnd/íc/zleíf).Vale a pena detalhar um pouco mais se doa intuitivamente), segundo a qual o aspecto em questão se apre-
essanoção, bastante empregadana análise da matematizaçãoda natureza. O que apa- senta em sua perfeição, quer dizer, como uma Éomzcz-/imite
ideal, que
rece como óbvio é algo habitual, algo em relaçãoao qual seestáacostumado.Em ousas
porta em si mesmaa exatidão49.Determinam-se, assim,formas puras,
palavras, o que é óbvio não precisa ser questionado, e é aceito em sua suposta evidência,
sem que se retomem as camadas formadoras do sentido sedimentado. Conforme bem asquais por de#níção contêm atributos exatos.A exploração conceitual
comenta J. Dodd sobreessetema, "a própria familiaridade que abre para nós o mundo dessasformas, das suas relações e transformações configura o trabalho
ao mesmo tempo introduz o perigo de uma eskanha obscuridade. E estranha porque
do geâmetra, trabalho que pode ser sumarizado como uma lida com
não é uma obscuridade oposta à claridade, que o entendimento, como um poder, po-
deria tentar penetrar; antes,trata-sede uma obscuridade sistêmicano interior do desen- objetosconceituaislivres de toda relatividade empírica. Conforme
rolar histórico da claridade como tal" (Dodd, 2004, 71). As obviedadesa que Husserl afirma Husserl, "nessa prática matemática alcançámos aquilo que nos
se refere envolvem um sentido manipulável sem grandes dificuldades, uma compreen-
são disponível acerca de um tema que é então aceito sem proa/emafizaçõescrfHcas é vedado na prática empírica: 'exatidão', porque, para as figuras ideias
Daí que a suposta evidência da obviedade implique uma obscuridade a ser superada: o abre-sea possibilidade de determina-las em identidade absoluta, de
sentido disponível dispensa a reativação da sua produção, do seu alcance e mesmo dos conhecê-lasde modo absolutamente idêntico e metodicamente uní-
seusprincipais componentes. Enquanto obviedade, um tema se perpetua segundo uma
interpretação tomada de modo ingênuo como evidente, quando na verdade inclui ca- voco" (K, 24). Dessaforma, em princípio, há uma notável descontínuí-
madas de decisões teóricas que devem ser justamente reativadas e criticadas para que
seobtenha uma compreensãoplena do sentido ali veiculado. Essareativaçãocrítica é,
como vimos, a principal tareia da Besfnnurzg proposta por Husserl 49. É verdadeque, ao equiparar grausde manifestaçãode certo aspectoempírico
48. Para um comentário deta]hado acerca das aná]ises de Husser] sobre a geome- Íá se supõe o conceito idealizado como medida dessa escala; caberá ao geâmetra forma
tria, cf. Silva, 2012. lar explicitamente essamedida

316 317
A cientificidade na fenomenologiade Husser]
As ciências como produção histórica no mundo da vida.
#'' /

aqui o procedimento chamado por Husserl de subsfmção (Cf. K, S 9d).


Nele, não se trata de tomar um padrão a f)ríoH exato como guia para
a mensuraçãode fenómenos concebidos em si mesmos como inexa-
tos.A substTUÇão implica uma idealização da própria experiência empí-
rica inexata, e isso por meio de uma atribuição de características puras
Ídeczís
aos ob/elosque lze/czse czpresenfamsi.
Os fenómenos empíricos
substruídossão então passíveisde decodificação exala, e isso porque
passama ser considerados como portadores de características exatas.O
exemploprivilegiado por Husserl é o da extensãoempírica, que, uma
vez substruída, é analisável como infinitamente divisível em partes ho-
mogêneas,tornando-se tema do cálculo infinitesimal. Atribui-se, desse
trocossedá de modo mais visível como me7zsuraçâo.As figuras geométri. modo, uma característica excita(a divisibilidade homogênea) a um ele-
caspuras e os teoremas que delas se extraem servem como guia a pHoH mento empírico (a extensão), o qual, desde então, contaria com uma
p'ra a determinação dos aspectos (peúectíveis em termos de exatidão) Ílz/}aestrufura idealizada
das coisas inexatas da experiência do mundo circundante. Obtêm-se/ Essa noção de infraestrutura permite sublinhar um aspecto mar-
assim, parâmetros intersubjetivamente válidos para a aplicação de me. cante do processo de substrução. Conforme já notado acima, a expe-
dições em relação às características aproximadas das coisas sensíveis. riência do mundo circundante só nos oferece coisascom atributos ine-
Por exemplo, as dimensões dos terrenos, as distâncias a se percorrer, a xatos. Para considera-las em si mesmas portadoras de características
determinação da posição dos objetos, tudo isso passaa ser tratado como exatas,deve-seestabelecerque, embora essasúltimas não se doem à in-
mensurável com precisão. l)essa maneira, as técnicas de mensuração, tuição, formam uma espécie de camada constituinte basilar dos fenó-
ao incorporarem resultados exatosda geometria, oferecem meios de menos inexatos. No parágrafo 34d de K, Husserl apresenta as caracte-
determinação universalmente válidos dos dados empíricos. E verdade rísticassubstruídascomo "algo por princípio não perceptível, por prin-
que as necessidades práticas de mensuração antecedem a maturação cípio não experienciáve]no seu ser si mesmo" (K, 130). A substrução
de uma ciência das puras formas espaciais (Cf. K, 24-25). No entantc.. permite então idealizar os fenómenos concretos ao reconhecer neles
uma vez desenvolvida tal ciência geométrica, ocorre um enorme refi- uma base ou infraestrutura, não intuível diretamente, de características
namento das técnicas gerais de mensuração, cujas unidades de medida passíveisde descrição excita.
passam a ser estabelecidas com base nas formas idealizadasso.
Ainda em relação à substrução, ela é um procedimento progressivo
Há pelo menos mais uma "técnica" que aproxima os resultados de idealização da experiência sensível. No texto A orzto/ogía do mundo
exatos geométricos da experiência sensível, que não é simplesmente da vida e czsciências concretczs,publicado em Kll, Husserl comenta
uma ap/ícação dos dados de um domínio para outro. Tenho em vista

somente a projeção ideal em direção à superhcie, mastambém a projeção ideal de uni-


50. R. Sokolowski ajuda a enteTlder esseponto: "quando estabelecemos uma forma
dades que medem a superfície e seus lados" (Sokolowski, 1979, 102)
exala, quando partimos: poTexemplo, do tampo de uma mesapara uma superfície geo- 5 1. Por meio dessemétodo, "é idealizada também a empiricidade impeúeita, na
métrica.(.-..): a forma ideal não ;e torna uma unidade de medida; ela ='torna uma
qual a nossa experiência anual progride das coisas conhecidas para as desconhecidas; é,
forma ideal de algo medido. Partedo sentido desseideal é que unidades ideais de me- assim,substruída no curso do apeúeiçoamento iterativo, uma iteração pura e simples
dida também são estabelecidas em ftJnção da forma a ser medida. isto é, nós não temos da infinidade como ideal" (K, 361, nota)

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A cienti6lcidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

que a idealização matemática se inicia pelo espaço,passapelo tempo e aossentidos, não comportam uma matematização direta, como ocorre
abarca as noções de movimento e alteração qualitativas2. Como resul. com as qualidadesligadas à figura e à extensão.Essasúltimas, já vi-
Ladodessesdiferentes níveis de idealização, cumpre se a "substrução mos, se ordenam em diferentes graus de perfectibilidade, de modo que
idealizante de um mundo de coisasinfinito, estruturalmente moldado. é possívelconceberuma forma-limite em que o abibuto em questão
de parte a parte, de modo homogêneo, na forma universal da espaço- é expressocom exatidão. Em seguida, dada a aplicação dessasformas
temporalidade" (Kl1, 142). Destarte, a substrução se aplica a vários as. ideais em situações empíricas, é possível determinar aspectos objetivos
pectos da experiência sensível, atribuindo a cada um deles um cara. emmeio à relatividade empírica e operar sobreeles com grande capa-
ter infraestrutural exato. Em linhas gerais, Husserl sustenta que essa cidade preditiva. Ora, nada disso parece valer para as qualidades sen-
operação ocorre díretamenfe apenas em relação às propriedades liga- síveis;não é possível isola-las abstratamente em séries de aperfeiçoa-
das à forma e à extensão. Porém, há a cossubstrução das qualidades fe. mento, sugerindo um padrão ideal exato que serviria como norma para
nomenais diretamente ligadas aos sentidos corporais (visão, tato etc.)53 ordenar os casos concretos. As qualidades sensíveis não são passíveis de
Isso significa estender a idealização geométrica para a fofa/idade dcziza. idealizaçãoconstrutiva. Não há, por exemplo, o conceito ideal "doce'
furezczconcreta. Propõe-se, assim, algo inédito na história do conheci. ou "rugoso" que permitisse mensurar os exemplos empíricos de forma
mento; a saber, que a natureza, em todos os seus aspectos, é "constou. objetiva, quer dizer, por meio de conceitos puros. Há somente diferen
vivamente determinável" (K, 31). Não se trata aqui apenas de conside- çasde gradação ligadas diretamente a circunstâncias subjetivas de ates-
rar formas mais abrangentes e refinadas de mensuração, obtendo mais tação. Não se pode chegar, nesse caso, a um padrão idealizado que sirva
campos de aplicação para a matemática, mas sim de conceber a pró- de medida objetivo pura para classificar as experiências concretas.
pria natureza como idealizada matematicamente. Dessa maneira, segundo Husserl, não há uma matematização das
Cabe investigar de que modo Galileu leva adiante essaproposta. qualidades sensíveis segundo o método da construção idealizante, pelo
Como vimos, ele herdou a geometria como ciência de idealidades e já qual os aspectos ligados à forma ou à extensão dos objetos foram previa-
aplicada em contextos empíricos, de modo que, por meio dela, se ob- mente idealizados. O que se pode reconhecer na experiência concreta
tinha "uma objetivação do mundo corpóreo concreto-causal nas esfe- dessasqualidades, conforme o parágrafo 9c, é "uma espécie de causa-
ras limitadas relevantes" (K, S9c, 35). A proposta galilaica é estender a lidade geral que vincula momentos de um concreto" (K, 34), quer di-
objetivação guiada por parâmetros exatospara a totalidade de aspectos zer, relações de conjunção constante entre dados sensíveis e aspectos
concretos da natureza. Contudo, a dificuldade é que asqualidades sen- relativos à figura e à extensão. Ambos "estão regularmente irmanados'
síveisou P/eras (gosto, odor, rugosidade, cor etc.), diretamente ligadas IK, 33). Por exemplo, a experiência ensina que uma barra de ferro ex-
bemamente aquecidatem alteraçõesde cor e forma correlatas.E a
52. "À idealização matemática do espaçoe de suasformas sucedeu a idealização partir de uma universalizaçãod priori dessetipo de regularidadeen
do tempo, que começou primeiramente como aquela dos corpos fixos, em repousoe tre os diferentesatributos das coisasque Galileu obtém a "matemati
imutáveis, e compreendia a decomposição e a recomposição idealizante em umas rea-
zação indireta" (K, 32) das qualidades sensíveis. A estratégia aqui é sus-
lizações intelectuais IgedanÊ/fcAerl in ín/inítum. Ela se transpôs, correlativamente, às
ideias de 'movimento', 'deformação', 'alteração qualitativa"' (Kl1, 142) tentar que "qualquer alteração experienciável de qualidades específi-
53. "A infinidade extensivae intensiva, que era substruída com a idealização dos casdos corpos intuíveis, imaginável na experiência efetiva e possível,
fenómenos sensíveis para além de todos os passos da intuição efetiva -- a separabilidade
e a divisibilidade in ín/ínffum, assim como tudo o que pertence ao confirzuum matemá-
depende causalmente de ocorrência no estrato do mundo abstrato de
tico --, significa uma substruçãode infinidades para as qualidades do P/erzum,eo ipso figuras" (K, 34). Desde então, a mera regularidade factual é transfor-
cossubstruídas" (K, $ 9d, 37) madaem uma cczuscz/idade
ulzíverscz/
d priori, que liga univocamente

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A cientificidade na fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida
F 4

as qualidades sensíveis às qualidades da extensão e Como sevê, a física galilaica é sustentada pela ideia de causalidade
mente idealizadas: "tudo o que nas qualidades
se anuncia como real deve ter o seu hdfce
das esferasdas figuras, pensadasobviamente
das" (K, 3 5). As qualidades sensíveis nelas
mas são remetidas, graças à suposição de uma
IE:U: llER:l: jl:l;
Hczo caráter hipotético de t / ideia. O fenomenólogo admite que "para
Galileu essaindutividade universal não era certamente entendida
mterações entre as qualidades da forma e da extensão
como/zípótese"(K, S 9d, 38). Confiante nos resultados da geometria
como ficará mais claro adiante, o donaínio
,plicada aos asp'ctos formais-extensosdos objetos, Galileu teria jul-
redutíveis a explicações exatass4. secundárias
gado,por meio da distinção.entre qualidades primárias e
e da suposição de sua correlação causal estrita, apenas estender sem
mandedificuldade as possibilidades de determinação unívoca forneci-
daspelo método matemático. Dessa maneira, para Galileu, "era óbvia
uma causa/idade excita ulzíversa/, a qual, naturalmente, não se obtém
porindução a partir da identificação de causalidades particulares, mas
queprecede todas as induções de causalidades particulares e as con-
duz"' (ibid.). Essa universalização das correlações causais, porém, de
Segue-se que todos os fatos experimentados em sua riqueza gradativa maneiraa permitir a determinação dos fenómenos mundanos por meio
no mundo circundante são passíveisde determinação objetiva unívoca da recondução das qualidades sensíveisàs qualidades objetivas, não se-
desde que se faça corretamente a redução dos P/ena a interações causais ria digo írztuítívamenfe bem /undcimentado. De fato, há rega/arídade
entre as qualidades diretamente idealizadas. Abre-se o caminho, dessa nas interações entre os aspectos fenomenais das coisas e dos eventos,
maneira, para uma investigação matemática da natureza que pretende e, com basenessaconstataçãogeral, é legítimo formular um princípio
explicar todos osfenómenos do mundo natural pela redução de sua ma.
a priori de causalidadena experiência. No entanto, segundo Husserl,
nifestação subjetiva a relações objetivas causalmente determinadasss. esseprincípio dweria envolver a indetenninação de relações causais con-
cretas,já que não é possívelantecipar d priori que todas as alterações
54. Para uma análise detalhada desse tema, Cf. Drummoíld. 1992 das qualidades sensíveis remetam univocamente a alterações das quali-
dadesdiretamente matematizadassõ.Deve-se reconhecer, diante disso,
que todas as confirmações paulatinas do método da física matemá-
nas passam.a ser consideradas como os atributos constituintes da realidade física do tica não alteram o caráter hipotético da sua estrutura explicativa geral.
mundo. Além disso,por sua intrínseca exprimibilidade em linguagem exala, essasca-
racterísticas podem ser compreendidas por todos aqueles que sabem lidar com o inshu-
mental matemático. Desse modo, os dois sentidosde universalidade contidos na ideia texturas, cores, cheiros e sons do mundo. Elas são aspectos que nossos sentidos vei-
originária de ciência serão aqui modificados. J. Mensch captura bem esseponto: "as culam. (. . .) O que se reporta nessaárea não é objetivo, mas irremediavelmente de 'pri-
qualidades primárias dos corpos são seus aspectos numericamente mensuráveis. En- meira pessoa' e subjetivo" (Mensch, 201 5, 190)
quanto mensuráveis,elas portam aquilo que pode ser chamado uma objetividade de 56. Exceções à ideia de uma causalidade universal unilateral são concebíveis;
'terceira pessoal.Assim, dadas as unidades comuns de medidas, qualquer um pode con- por exemplo,sensações
geradaspor membros-fantasmas
em amputados,que, embora
cordar acerca das dimensões de. um objeto,.de sua velocida(ie, massa temperatura,'e sejamvivenciadascom grande impacto subjetivo, não remetem à infraestrutura objetiva
assim por diante. (. . .) As qualidades secundárias, por contraste. consistem'de gostos material de que elas parecem ser índices

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A cientifícidade na fenomenologia de Husserl As ciências cama produção histórica no mundo da vida
4

Para Husserl, "a hipótese permanece também, apesar da confirmação, construção de jómzu/as que permitissem operar de modo reiterável e
ainda e sempre hipótese; a confirmação (a única para ela concebível) é unívoco com os aspectos idealizados dos fenómenos em questão. A ob
um curso infinito de confirmações" (K, 41). Dada a complexidade dos tenção da fórmula relativa a certo tipo de fenómeno (movimento acele-
fenómenos naturais, que muitas vezesenvolvem aspectosinesperados. radodos corpos, queda dos corpos etc.) oferecia a possibilidade de lidar
novas relações e interações com outros aspectosjá conhecidos, e dada com dadosobjetivos da experiência, o que, por sua vez, parecia atestar
a possibilidade de alteração das teorias acerca de fenómenos já explo- o caráter exato dos fenómenos naturais. Contudo, longe de provar a
rados e a se explorar, dever-se-ia reconhecer que a ideia de correlação exatidão dos fenómenos, o pensar científico centrado em fórmulas se
universal e unilateral entre dados sensíveise qualidades objetivasnão limita a operarsimbolicamente com termos que representamcaracte-
estáefetivamente /)sovada.Mesmo diante de notáveis confirmações da rísticas/á idem/ízadczs
arzferiomente, sem que o próprio sentido dessa
causalidade unidirecional universal, essaúltima ainda guarda o caráter idealização seja problematizado criticamente.
hipotético, e não deveria simplesmente ser tomada como algo certo. O pensarsimbólico fazia parte da herança científica disponível para
Husserl insiste na "estranheza" (K, S9c, 35) ao menos inicial dessa Galileu.Afinal, segundoHusserl,"já antesde Galileu" (K, S 9f, 43)
hipótese fundadora da física matemática. Com o passar das gerações a tecnicização crescente dos métodos científicos era notória. Importa
e a sedimentação cultural de resultados teóricos confiáveis baseados acentuarque os feitos teóricos galilaicos foram rapidamente assimila-
nessemétodo, é verdade que a hipótese de uma causalidadeunidire- dosna comunidade científica conforme os recursos técnico-simbólicos
cional universal foi reconhecida como evidente. No entanto, de início. disponíveis. É assim, por exemplo, que ocorre a "aritmetização da geo-
não se tratava de uma tese óbvia. Desse modo, a sua aceitação depen- met:ria" (K, 44), ou seja, a redução dos métodos consbutivos geométri-
deu de ao menos mais uma condição histórico-intencional em vigor cos ao cálculo. Desde então, as idealidades geométricas (figuras-limite
na Modernidade. Nesseponto da exposição,Husserl retoma uma ob- concebidas como portadoras de exatidão) são tratadas por meio do sim-
servação geral acerca do pensamento científico defendida desde antes bolismo matemático, sem qualquer necessidade de remissão às séries
de Pro/egõmenos à /ógíca pura, a saber, que há uma tendência a um intuitivas de manifestação gradual das qualidades em pauta para com-
emprego tecnícízado dos métodos científicos, ou seja, enquanto opera- preender qual sua especificidade. A formalização ou simbolização téc-
çõessobre símbolos, sem preocupações referentesàs intuições funden- nica torna desnecessáriaqualquer referência das idealidades geométri-
tes que delimitam o alcance e o sentido de tais métodoss7.No parágrafo cas à sua base intuitiva inicial. Em relação aos métodos da física, essa
9fde K, o autor defende que a ênfase da ciência natural, já na época de formalização torna inaparentes as operações de construção dos dados
Galileu, estavaem buscade sistematizações
do entendimentodosfe- exatos, os quais passam a ser ingenuamente considerados como um as-
nómenos naturais por meio de coordenações funcionais entre aspectos pecto constituinte da natureza.
quantificáveis dessesfenómenos. Em outras palavras, a ênfase estava na Eis como se cumpre efetivamentea matematízaçãoda natureza,
uma vez que Galileu teria facultado principalmente a sua geomefrí-
57. A raiz do pensar tecnicizado estána inescapabilidade do uso de representações
zação.Por meio da subsunçãoda geometria ao cálculo, pela forma-
simbólicas na investigação teórica de conteúdos temáticos que fogem ao alcance da in-
tuição direta. Por meio delas,discriminam-se objetossomente por coordenação concep- lização das relaçõesconstrutíveis geometricamente, consolida-seum
tual submetida a regraslógico-gramaticais, sem que seja preciso recuar geneticamente modo de pensar que se descola da base intuitiva fundentes'. Conforme
até os alas intuitivos fundentes que dão acessoaosdomínios objetivos em pauta. Vale
notar que Husserl reconhece o caráter indispensável das operações sobre símbolos para
o desenvolvimento da ciência (cf., p. ex., Husserl, 1970, cap. Xlll; um bom livro sobre 58. Tal qual observa D. Cair, a transformação moderna no sentido de natu-
o tema é Centrone, 2010). reza "pode ser separada em dois passos: a geomeMzação galileana da natureza e a

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A cientificidade na fenomenologia de Husser] As ciências como produção histórica no mundo da vida

vimos, a idealizaçãode formas-limite supõeuma comparaçãointuitiva Cabe agora acompanhar de que maneira a assunçãocomo óbvia
dos graus de manifestação empírica de certo atributo. Formalizado, o jernvirtude da tecnicização do pensar) da hipótese galilaica gerou uma
pensar científico pouco atenta para as intuições fundantes dos seusda. interpretaçãodo trabalho científico que fomenta a crise da humani-
dos teóricos. E teria sido em decorrência desseapagamento (já em vi. dadeeuropeia, e qual o prometode Husserl para reativar o sentido origi-
gor no pensar formalizante dos cientistas da época) do caráterprimário nário de ciência obscurecido por tal crise.
da experiência concreta que a ideia de causalidade a priori universal
foi se impondo como uma obviedade. A tecnicização do pensar cientí.
A.interpretação objetivista do ser e da ciência
fico torna-seum obstáculoparao questionamentocrítico pelo sentido
e alcance dos métodos teóricos, cristalizando, assim, interpretações in. No parágrafo 9h, Husserl sistematiza o sentido geral da matemati-
gênuas acerca do seu funcionamento. No parágrafo 9g, Husserl deixa zaçãoda natureza e começa a extrair suas consequências. Ali, de iní-
claro que não é de nenhum modo contrário ao desenvolvimentoda cio, o fenomenólogo nota que por meio dostrabalhos de Galileu, base
do desenvolvimentoda física moderna, ocorre "uma substituição do
matemática formal ou da física matemática. O autor reconhece que,
tendo em vista as possibilidades de explorações temáticas muito mais único mundo efetivo ( . . .), do único mundo alguma vez experienciado
amplas e complexas por elas propiciadas, a formalização "é algo total- e experienciável -- o nosso mundo da vida cotidiano -- pelo mundo
mente legítimo e mesmo necessário"(K, 46). Ocorre que a formali- matematicamente substruído das idealidades" (K, 49). E sobre essa
zação do pensar implica tecnicização, ou seja, operações simbólicas operação complexa que a ciência moderna da natureza é fundada. Há
uma substrução geral da experiência concreta do mundo (via hipótese
visando à aquisição de resultados sem a reativação do sentido originá-
rio dospróprios métodos utilizados. E a ausênciade clareza acercadas da causalidade a priori unilateral) que atribui aos aspectos sensíveis da

experiências fundantes e das decisões teóricas sobre as quais os méto- experiência uma infraestrutura de qualidades idealizadas descritíveis
dos científicos se consolidam favorece interpretações distorcidas da ati- com exatidão. Mas, nota Husserl, Galileu não propõe somente uma
universalização do método de substrução. O que marca a ciência nato
vidade científica. Ora, as reflexões históricas de Husserl visam justa-
mente construir uma via de acessoao sentido originário dasformações ral galilaica é a substituição do mtzndo taJ como dado na experiência co-
fíd;ana Pe/osdados subsfmídos matematícamezzte.Em outras palavras,
teóricas, de maneira a tornar visíveis os deslocamentos de sentido que
levam até o estado contemporâneo de crise essesdados substruídos passam a valer como a realidade, como a ver-
dadeira objetividade, e a natureza passaa ser considerada em si mesma
como constituída de componentes exatos
anmefízczçãoda geometria realizada por Descarnese Leibniz" (Carr, 1974, 122-123) Como vimos, essaconcepção remete à ingenuidade de Galileu em
A aritmetização propiciada pelas técnicas modernas do cálculo pressupõea geome-
zação da.natureza e, assim, envolve em mais uma camada de decisões teóricas que
relaçãoà herançateórica a partir da qual promoveu suasinvestigações
se sedimentam como "obviedades" as modintcações do sentido de mundo (e da tarefa científicas. Galileu não investigou o sentido dos métodos de idealiza-
científica que ]he seria correlata) decorrentesdo trabalho de Galileu. Ao enfatizar esse ção geoméhica e nem, por conseguinte, explicitou o enraizamento das
trabalho e não a aritmetização da natureza, Husserl pretendeu recuar para o momento
decisivo em que ascondições histórico-intencionais fundantes da matematização da na.
idealidades no solo da experiência intuitiva do mundo circundante. Os
dureza foram postas em ação. Se se aceitam as propostas teóricas de Galileu. a efetiva resultados dessesmétodos foram interpretados sob a orientação natu-
matematização da natureza (por meio do cálculo) se segue sem grandes complicações
ral, que supõe dado o domínio objetivo a que o método teórico se di-
A transformação de sentido decisiva que deve ser clarificada não é a mera aplicação do
cálculo às formações geométricas ideais, mas sim as decisões teóricas que tornam possí rige. Assim, Galileu toma "pelo verdadeiro ser aquilo que é método
vel compreender a natureza por meio dessasformações IK, S 9h, 52), ou seja, compreende que a "natureza é matemática no

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A cientificidade na fenomenajogiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

. papel,em vigor constantemente na vida pré-científica, de contato di-


retOcom o mundo e, quando muito, pode funcionar, do ponto de vista

s:=:::=K:=;===1==
::à!:;::===i===:
seguintetrecho
seo mundo intuível de nossavida é naeramentesubjetivo,entãosão
invalidados todas as verdades da vida pré e extracientíficas que dizem
respeito ao scu ser de fato. Essasverdades só não são destituídas de
valor na medida em que, embora falsas,anunciam vagamente uma
experiência possível que reside por trás desse mundo, um em-si a elas
transcendente
(K, 54).
Uma das consequênciasprincipais da substituição do mundo cir-
cundantepelo mundo substruído matematicamente é justamente to-
mar o ser real como uma camada de eventosintrinsecamente exatos
que escapa à apreensão intuitiva. Desse modo, estabelece-se que o "ser
verdadeiro"almejado pela ciência natural matemática não é apreen'
sávelpor experiência sensívelóo
e, desdeentão, o desenvolvimentodo
conhecimento científico do mundo pode dispensar a especificidade
da experiência cotidiana intuitiva, que, nela mesma, em nada contri-
buiria para a realização da cientificidade. Esboça-seaqui aquela cisão,
anunciada no início de K, entre o desenrolar da existência humana, en-
experiência cotidiana, sobre a qual os métodos de idealizaçãoforam volta em suasquestõespróprias de valores e finalidades, e um determi-
historicamente desenvolvidos, é mascarado, e as propriedades exatas nadomodo de realizaçãoda cientificidade que se cristaliza a partir da
Modernidade. Em suma, esboça-seaqui a crise das ciências europeias
passíveisde descriçdoselo formalismo matemático são tomadascomo
do ponto de vista da especificidade da vida humana. Husserl pretende
Vale a pena enfatizar este ponto: a substituição da realidade do ter revelado que rza próPHa constituição da ciência morfema dcznatureza
mundo circundante por um mundo substruído matematicamente /eva há uma depreciação da experiência concreta do mundo, da experiên-
à desfia/oHzaçâoda exPeríê7zciairzfuífíva pré-cíerztí#cacomo forma de cia subjetiva, que passaa ter interesse somente enquanto anuncia rela-

=:S=:ll. :; T =1=:===1::::1.!=,:;.:Z
: : :: çõesobjetivas que ela mesma não captura diretamente. Distinguem-se,
assim,o mundo objetivo, identificado a interaçõesentre componen'
sensíveis üe interações ocorridas no domínio das propriedades exatas tes passíveisde descrição matemática (componentes físicos), e a ex-
apreendidas pelo formalismo matemático, essaexperiência deixa de ter periência subjetiva, encerrada em uma esfera de efeitos psicológicos

60. Com efeito, reconhece Husserl no parágrafo 34d de K= :o objetivo justamente


as, das 'teorde,contas, como insiste Husserl, "o sentido próprio do método, das f6r-
não é jamais experienciável como ele mesmo"(K, 131)

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A cientificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

ciência onienglobante. O em-si mundano, aquilo que vale de modo ir-


lli;ll«, é ia;.-n«d. à .bj.""id,a n:i«, . , -:««,iid;a d. :.-,
que deveriaguiar uma ampliação interminável do conhecer, torna-se
limitada à atestação do ser objetivo físico. Desde então, a ciência física
matemáticase torna "modelo para todo conhecimento autêntico" (K,
62).Transformadaa própria ideia de mundo, identificado o ser verda-
deiro à objetividade física, cabe às ciências, em sua tarefa geral de co-
nhecer "aquilo que é", investigar de modo cada vez mais detalhado a
infraestrutura física ou material mundana. Essaé a interpretação obje-
tivista moderna do ser e da ciência. Vimos algumas páginas atrás que
e mundo anímico, dos quais esse último, dado o modo de sua referên...
osfilósofos antigos já adotavam uma postura objetivista ao enfatizar os
aspectoscosmológicos como base da ciência onienglobante. p'orém o
objetivismo antigo não pretendia o alcance universal obtido pelo obje-
tivismo moderno, o qual implica até mesmo o tratamento da subjetivi-
leais das coisasenquanto descritíveis de modo exato. E, uma vez que o dadecomo domínio ântico secundário, submetido a correlaçõescau-
mundo em si mesmo é compreendido como um conjunto de proprie- sais objetivas. Esse é um prometo que marca especificamente o desen-
dades exatas, todos os aspectos subjetivos de sua doação'(diferenças de volvimento das ciências modernas''
grau e intensidade do reconhecimento dos dados,e mesmo os predi- Deve-se notar, assim, que o grande avanço das ciências modernas,
cados culturais atribuídos aos objetos) são tomados como dados psim-
confirmado, por exemplo, pela profusão de linhas de pesquisa cada vez
lógicos em vigor somente na esfera psíquica. O sub/eüvo é reduzido do
mais especializadas, ocorre à luz da compreensão da universalidade
pszco/ógzco,comPreerzdídocomo um domínio /imitado e dependente d
esfmfura cduscz/do mundo ob/etívo.
Essa modificação no sentido do mundo está entrelaçada a uma 61. "A preocupaçãocientífica antiga com as pessoastomava-aspor pessoascog'
nascentes e agentes, e os enunciados racionais e as verdades sobre elas nunca [ivcmiu
modificação do sentido do fe/os filosófico enquanto "conhecimento
o sentido daquela objetividade com que desde Descarnesa ciência objetiva geral tem a
daquilo que é", ou seja, enquanto realização paulatina da ciência tarefa de lidar" (Kl1, 162).

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A cienti6lcidade na fenomenologia de Husserl
As ciências como produção histórica no mundo da vida

do ser como forma física descritível de modo exato.Tal como not, dasciências físicas: a vida intuitiva experimentada no âmbito psíquico
Husserl, com base na física galilaica, muitas novas ciências se deseHI. deveser remetida a interaçõesfísicas entre o corpo (ou, mais especifi-
verem, e nesse desenvolvimento "especializaram a ideia de uma fi- camente,o cérebro) e o meio ambiente. Ocorre, destarte,uma "natu-
losofia racional motivada pela nova ciência da natureza, e dela rec.. ralização do psíquico" (K, 64), isto é, o caráter subjetivo da experiência
bem o seu impulso de progressoe de conquista de novos domínios" passaa ser investigado em função do ser físico objetivo que se anun
(K, S 11: 63). Importa acentuar que as cíêizcíasf'romovídasa parfír da cia na experiência sensível sem ser aí diretamente apreendido, e exige,
Modernidade supõem uma interpretação redutora da universalidade dessaforma, os métodos exatospara uma exploração satisfatória
do ser czse desvendar. São ciências que reconhecem como ser verda. A investigaçãodo domínio subjetivo na Modernidade é depen-
deiro as propriedadesfísicasdescritíveispelo formalismo matemático. dente das ciências naturais matemáticas, e isso, a princípio, em relação
Husserl admite que, em sentido geral, a enorme proliferação de estu- à delimitação dessepróprio domínio, entendido como uma esferares-
dos científicos com base nessa nova compreensão da universalidade do trita de fenómenos, determinada causalmente pela totalidade dos cor-
ser e dos métodos para explora-la é "sem dúvida um enorme progresso" pose eventos naturais. Em segundo lugar, há dependência em relação
IK, S 12, 67). Esseprogresso,porém, não foi acompanhado'de "inves. aopróprio método, já que a ênfase das investigações psicológicas desde
Ligações filosóficas de sentido IP/zí/osop/zísc/zen BesÍzzlzu7zgenj" acerca a Modernidade tem sido, segundo Husserl, a circunscrição de corre-
de "quão longe a modelaridade destas ciências podem ser estendidas" lações causais entre eventos psíquicos e as infraestruturas materiais do
(íd.). As ciências modernas progridem sob a assunção ingênua de que corpo e do ambiente. O destaqueexcessivoa esseprocedimento leva
osprocedimentos matemáticos atestam diretamente o ser do mundo . E àquelesproblemas epistêmicos mencionados de passagemhá pouco. A
a extensão dessemodelo de conhecimento para todos os domínios cria subjetividade se torna um tema parcial no desenvolvimento do conhe-
crê Husserl, proa/amas ePístên2ícosÍnso/úveís, o que, por sua vez, fn cimento do ser objetivo. Ela é tomada como esfera limitada de ser, re-
menta um amplo ceticismo em face do entendimento do próprio fun- missível causalmente aos eventos do ser objetivo. No entanto, é a sub-
cionamento da atividade científica.
jetividade que opera essaremissão, bem coma toda a produção científica.
Essesproblemas referentesà extensão indevida do método da fí- Desseponto de vista, a subjetividade é o foco ativo pelo qual o conhe-
sica para a exploraçãoda totalidade do ser se manifestam claramente cimento é criado e ordenado em teorias e, nessesentido, e/a não é umcz
no que tange ao estudo daquilo que é sub/etívo. O subjetivo deixa de pare isolávet do mundo, mas um meio universal de recorLhecimentodo
ser uma característica essencial da manifestação do mundo circun- ser.Ora, o avanço da ciência moderna, guiada pelo desvelamentodo
dante na experiência cotidiana e passaa ser interpretado como efeito mundo objetivo entendido como ser em-si apreensível pelo formalismo
psicológico de interações entre as propriedades objetivas do mundo. matemático, pressupõe esseúltimo sentido de subjetividade, mas não
Propõem-se, dessa forma, procedimentos para investigar esse subje- consegue abarca-lo como tema científico. Desse modo, o progresso da
tivo interiorizado, procedimentos inspirados no sucessoobtido pela fí- cientificidade sob a linha interpretativa objetivista (que reduz a objeti-
sica matemática. Sendo assim, Husserl observaque na Modernidade vidade do ser às qualidades físicas que constituem o em-si do mundo)
surge "uma psicologia de um estilo inteiramente estranho ao passado, encontra um limite, a saber,a compreensão da sua própria possibili-
esboçada concretamente ( . . .) como uma antropologia psicofísica" (K, dade, já que a especificidade da vida subjetiva enquanto sistema de
S ] 1, 63). O subjetivo é reduzido a uma camada de efeitos psíquicos operações que permite o acesso válido aos mais diferentes domínios ob-
na interioridade humana, e passaa ser estudadoconforme as indica-
jetivos parecenão encontrar lugar nessaperspectiva.A priorização, na
çõesda hipótese de causalidade universal que estána base do progresso obtenção do conhecimento, do ser real entendido de modo objetivista,
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333
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P 4

C)transcendentalismo, a que Husserl se filia, oferece uma interpre-


dificulta, no correr da Modernidade, a compreensãoda própria origem
subjetiva do conhecimento. ' ''
taçãoda atividade científica que reconhece o papel fundante da sub-
íetividade. Com isso, em linhas gerais, pretende-se supera.r a crise das

=;:::ill::Hlilli X; ãlliã
dantes das ciências físicas. Para o autor, é apenas com Hume que se to..
ciências consolidada em grande parte devido ao pendor objetivista do
desenvolvimentocientífico. A desvalorizaçãoda experiência intuitiva
cotidiana(como fundante do contato com o mundo) em consequên-
nam explícitas as dificuldades de compreensão da subjetividade soba cia da construção das ciências naturais sob a hipótese da causalidade
interpretação objetivista do progressocientífico. A proposta humiana a priori unilateral leva o conhecimento científico a paulatinamente se
compreender a noção de causalidade como fruto dos princípios psÍ: afastardas questõesaxiológicas e existenciais, que, no máximo, funcio-
quicos da associaçãorevela,ainda que de modo problemático, "o que nam como índice do em-si mundano. Daí que se possafalar em crise
nas ciências tinha passadototal e inteiramente despercebido -- que a dasciências do ponto de vista do valor dessasciências para as questões
vida da consciência é vida produtora, correta ou incorretamente pro- Últimas do significado da existência humana, tal como exposto no iní-
dutora de sentido de ser; já o é como vida sensivelmente intuidora e. d cio de K. De fato, essaconclusão já era exhaída na parte final da con-
Êoüíorí,como científica" (K, S 24, 92). A obra de Hume abala a inter. ferência de 1935, em que, após mencionar o mal-estar europeu con'
predação objetivista da atividade científica e atesta o papel fundante da temporâneo, Husserl assevera:"estessão problemas que provêm. intei-
subjetividade na construção do conhecimento. Porém a explicitação ramente da ingenuidade com que a ciência objetivista toma aquilo que
das operações subjetivas por Hume ainda estaria tingida por prejuízos ela designa como mundo objetivo pelo universo de todo o ser, sem com
naturalistas, os quais se tornam superáveispela abertura da orientação issoatentar que a subjetividade operante na ciência não pode, por di-
tra7zscendelzta/,por Kant. Não setrata, com essanova perspectiva, de se reito, comparecerem nenhuma ciência objetivo" (K, 342): Vimos que
contrapor à ciência, de apontar erros em seus resultados e, no geral, de a crise da humanidade europeia se manifesta como perda da confiança
desacredita-la,mas sim de questionar a ingenuidade da interpretação no seu próprio devir enquanto auto-objetivação da razão por meto das
objetivista da atividade científica, segundo a qual a subjetividade não é ciências, perda da confiança na expressão de sua essência racional pelo
senão uma esfera limitada de eventos determinados causalmente pelo paulatino avanço do saber científico. E sabemos agora que a principal
ser objetivo do mundo. Essa interpretação dificulta o entendimento motivação para a crise foi a interpretação obtetivista da noção de univer-
da própria produção subjetiva do sabercientífico, e é contra ela que a so/idade do ser,noção que deveria guiar a exploração interminável pe-
transcendentalismo se levanta. Conforme observaHusserl, em conso- lasciências "daquilo que é". Daí que a crise não remexa à própria estru-
nância com Kant, tura da racionalidade humana ou "à essência do próprio racionalismo",
mas derive "da alienação deste, da sua absorção no 'naturalismo' e no
a nossaopinião não é que a evidência do método cientí6lco-positivo
'objetivismo"' (K, 347).
é uma ilusão, e que suas realizações são ilusórias, mas que essaevi-
Formula-se, assim, um diagnóstico razoavelmente detalhado da
dência é ela mesma urn problema; que o método científico-objetivo
repousa sobre um fundamento subjetivo profundamente oculto e ja- crise das ciências europeias,que é, em seu núcleo, uma crise da pró-
mais questionado, cuja elucidação filosófica faz unicamente resultar pria humanidade europeia, pois a identidade dessaúltima estáligada
o verdadeiro sentido das realizações da ciência positiva, e correlativa- ao desenrolar sadio da cientificidade. Esse diagnóstico foi construído
mente o verdadeiro sentido de ser do mundo objetivo como um por meio de uma Besínrzuízgque pretendeu desvelar não só o sentido
sentido justamente subjetivo-transcendental (K, S 27, 103). originário da cientificidade como também certas distorçõesna sua

334 335
A cientificidade na feilomenojogia de Husserl As ciências como produção histórica na mundo da vida

contidas em Psíco/ogía Óenomeno/ógíca,texto estudado no capítulo an-


terior. Agora a investigação do mundo circundante deve revelar que
a experiência subjetiva está na origem das operações idealizantes que
permitem a sedimentação da ciência matemática; e issodeve confir-
marque o serobjetivo visadopor essaciência é uma circunscnçâo me-
tódica de certos aspectos do mundo, a qual não esgota a riqueza ontoló-
.ica dessemundo e da vida subjetiva a que ele se doa. Desde então, os
resultadosobjetivistas não poderão ser tomados como o único caminho
paraa realização do Ideal de conhecimento onlenglobante'*
A investigaçãodo mundo da experiênciajá é anunciadano pará-
,rato 9h de K, em que Husserl comenta o sentido da matematização
teria ainda sido cumprida por nenhum filósofo no correr dos séculos, da natureza como substituição do mundo da vida continuamente ex-
julga Husser]. Mesmo Kant, sistematizador da orientação transcenden. perimentadoem nossavida pré-científicapor um mundo substruído
tal, não teria explicitado em toda a sua complexidade o fundamento matematicamente. As operações de idealização e substrução supõem,
subjetivo último que invalida o pretensouniversalismoobjetivista (Cf. assim,a experiência pré-científica do mundo. O fato de que tais ope-
K, S 27, 102). Cabe então fazer avançar a crífíca ao ob/efívísnzode um raçõespermitam a decodificação dos fenómenos por meio de fórmu-
modo desconhecido pelos filósofos anteriores, a saber, por meio de uma lasmatemáticas(utilizadas, de forma técnica, como algoritmos capa:es
nlálise genética reveladora do mundo circundante da experiência pré- de oferecer resultados confiáveis) favorece a interpretação objetivista
;ientÍfica (mundo da vida) como solo de sentido sobreo qua! as oPera- segundoa qual a experiência subjetiva não é senãoefeito psicológico
;ões científicas seerigetn do serobjetivo que trata justamente de explicar de modo matemático.
Vimos, no capítulo anterior, que o método fenomenológico gené- No entanto, para Husserl, importa justamente questionar aspretensas
tico leva à explicitação das etapas de constituição do sentido, reme- obviedadesassociadasao desenvolvimento técnico das ciências e reati-
tendo, por exemplo, as construçõesconceituais científicas à experiên- varo sentido originário dasproduções científicas, o que implicará bus-
cia sensível origmária. As reflexões sobre o alcance do método genético car a gênese desse sentido na experiência do mundo da vida. E exata-
levaram Husserl a conceber uma orzfo/ogíado mu7zdoda experiência mente esseo tema que vamos acompanhar a seguir: de que modo uma
pré-cíenfz'bica,
ou seja, um estudo acerca dos condicionantes estrutu. antologia do mundo da vida permite tornar visível o solo de sentido ig-
reis da experiência mundana pressupostos pelo exercício da atividade norado pelas ciências matemáticas tecnicizadas,e de que modo isso
científica. Essa antologia do mundo da experiência, embora inspirada
pelo método fenomenológico genético, realizar-se-ia, do ponto de vista 62. E. Strõker alerta corretamente "que a teoria husserliana do mundo da vida,
tal como formulada em A crise das ciências, não começa no ponto em que ela poderia
da orientação natural, como uma espéciede antologia material fun- indicar um novo caminho até a fenomenologia transcendental, mas apareceno .meio
dante das divisões entre diferentes regiões de ser, e poderia servir como de suasreflexões históricas preparatórias, é algo que não deve passardespercebido
uma via de acessoà problemática transcendental. Esseesquema de re- (Strõker,1997, 198).De fato, em K, o tema do mundo da vida está intrinsecamente
flexão (recuo às estruturas do mundo da experiência pressupostas pelo enbelaçado àquele 'da história da cienti6lcidade e da humanidade europeia. E. a pas
à reflexão transcendental que será instituída a partir dele levará em conta uma
pensar científico) é amplamente explorado em K. No entanto, nesse renovação do ideal originário de cientificidade e uma superação da crise das ciências,
texto, as preocupações teóricas de Husserl são mais amplas que aquelas como veremos

336
A cientificidade na fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

contribui paraa saídado estadode criseem que a humanidadeeuro- valendo somente como índice de correlações causais objetivas a ser ex-

peia está envolvida. plicadas matematicamente. Parece que bastaria então expandir o domí-
nio da cientificidade e simplesmente incluir o mundo da vida como um
tópico a ser abordado pelos recursos científicos em vigor. Abrir-se-ia, as-
A antologia do mundo da vida sim, uma via para o tratamento científico do mundo da vida. Husserl a
Vimos que o desenvolvimento das ciências modernas sob a inter- formula da seguinte maneira: "o modo como chegamos aqui ao mundo
pretação da universalidade do ser como forma física e substrato mate- da vida como um tema científico o faz aparecer como um tema auxi-
rial substruídos leva a um desprezo pela investigação da experiência liar ou parcial no interior do tema completo da ciência objetiva em ge-
pré-científica em toda a sua riqueza. Ora, se essainterpretação redu- ral« (K, 124-125). Em outras palavras, a princípio, pode-se pen?ar que
tora da universalidade do ser alimenta a crise da humanidade europeia um estudo científico do mundo da vida envolveria apenasa aplicação
jcuja história saudávelestáligada à consecuçãopaulatina do ideal de dos recursos metodológicos das ciências estabelecidas para um domínio
conhecimento onienglobante), en tão, para sair da situação crítica, cabe ainda não considerado.No entanto essaé apenasa formulação inicial
rec'operar o sentido não resüíto de ser, que inclui a experiência subjetiva do problema da investigação científica do mundo da vida, a qual logo se
como um tema científico autónomo. E o que propõe Husserl no pará- mostra insatisfatória, conforme é narrado no parágrafo 34 de K

grafo 29 de K, a partir da seguinte pergunta retórica: "preenche a filoso- Nesseparágrafo, Husserl questiona mais diretamente qual o mé-
fia o seu sentido fundador original, como ciência universal e de funda- todo e o estilo geral de cientificidade adequadospara o estudo do
mentação última se deixa este domínio ficar em seu 'anonimato'?" (K, mundo da vida. Ao propor a Lematizaçãocientífica do mundo da vida,
114-115). Husserl tem em vista o domínio de "fenómenos puramente Husserltinha em vista aquela ideia geral de cientificidade que, desde
subjetivos sem restrição" (K, 114) que compõem a experiência coti- a Grécia Antiga, teria guiado o desenrolar histórico da humanidade
diana do mundo, fenómenos que não teriam sido devidamente pesqui- europeia. E preciso então cuidado para não substituir "por força da tra-
sador por nenhuma ciência consolidada por meio do modelo matemá- dição secular em que todos jnósl fomos educados, o conceito de ciên-
tico vigente desdea Modernidade. E preciso estudarsistematicamente cia em geral pelo conceito de ciência objetiva" (K, S 34a, 127) Era
essacamada de fenómenos, sese quer fazer justiça à ideia-guia de ciên- com essapossibilidadeque se jogavano correr do parágrafo33, ou seja,
cia como conhecimento da totalidade daquilo que é. ali levava-seem conta somente a interpretação moderna do que é a ati-
Após estabelecer a meta de exploração sistemática da experiência vidade científica. No parágrafo 34, entretanto, logo de início, Husserl
pré-científica e do mundo da vida como antídoto à interpretação re- alerta para a ingenuidade de supor que a cientificidade objetiva mo-
dutora da universalidade do ser pelas ciências modernas, o autor se de- derna atualiza plenamente a ideia originária de cientificidade. Diante
dica, na primeira seção da terceira parte de K, a esclarecer asmaneiras dessenovo alerta, torna-se difícil aceitar que a mera expansãodas ciên-
de cumprir esseobjetivo. Esse problema é sistematizado, em uma pri- cias existentes, formadas conforme o modelo objetivista da cientifici-
meira etapa da sua formulação, no parágrafo33. Tal como anunciado dade moderna, possa esgotar a complexidade do mundo da vida ao in-
em seu título, nesse parágrafo o mundo da vida é tomado "como uma cluí-lo como tema parcial de suaspesquisas
A fim de atestara insuficiência dessaprimeira abordagemcientífica
parte do problema geral da ciência objetiva"(K, 123). Considera-se aqui
uma interpretaçãobastantesimplória do avançodo conhecimento sob do mundo davida, Husserlsugereque "a cientificidade que estemundo
as restrições da cientificidade moderna. O mundo da vida tem sido his- da vida, como tal e na sua universalidade, exige talvez seja uma cien-
toricamente desvalorizado em sua especificidade como tema científico, tificidade específica,justamente não lógico-objetiva" (K, S 34a, 127)

339
338
A cienti6icidade na fenomenologia de Husserl
As ciências como produção histórica no mundo da vida

Dessemodo, não basta simplesmente tentar aplicar a racionalidade das relatividades subjetivas da experiência, a ciência objetivo "como praxis
ciências modernas ao mundo da vida. O ponto nevrálgico em questão
teóricahumana pertence ao meramente relativo ao sujeito e (...), si-
é que o estabelecimento da noção moderna de conhecimento Objetivo multaneamente,não pode deixar de ter as suaspremissas,assuasfontes
se dá por contraste com a experiência subjetiva (Cf. K, S 34b, 128 129). de evidência naquilo que é relativo ao sujeito" (K, 135-136). A ciência
Como vimos, essaúltima é reduzida a índice de relaçõescausaisdes.
é o resultado da atividade humana em certa orientação do pensar, a sa-
critíveis matematicamente, e a objetividade tematizada pelasciências
ber,a teórica. Essa orientação teórica se erige da vida intencional pré-
é identificada às propriedades físicas substruídas, as quais excedem o
teórica,de maneira que as produções científicas se enraizam, em úl-
âmbito da experiência intuitiva (Cf. K, S 34d). Ora, afirma o autor. o
tima instância, na experiência subjetiva do mundo. Desse modo, para
mundo da vida "se destaca ( . . . ) precisamente pela sua efetiva experien-
uma clarificação completa dos pressupostos de sentido das produções
ciabilidade" (K, S 34b, 130), enquanto o ser em si objetivo almejado pe- científicas,"bem como de todas as outras aquisições da atividade hu-
las ciências modernas "não é jamais experienciável como ele mesmo"
mana,tem de ser levado em consideraçãoprimeiramente o mundo
(K, 13 1). Há, assim, incompatibilidade de princípio entre as operações
concretoda vida" (K, 136). Do ponto de vista da fundação do sentido, o
centrais das ciências modernas e o mundo da vida. As primeiras estabe.
mundoda vida não é mero tema parcial das ciências objetivas, mas são
lecem seusresultadosválidos por meio do ultrapassamento da experiên-
cia subjetiva rumo ao em-si objetivo. /á o mundo da vida é /ustamerzfe !asasúltimas que se revelam como uma dimensão particular da exPeriên-
cí(zsub/etÍva do mundo corzcreto.A análise do mundo da vida deve então
o correlato da experiência subjetiva em toda a sua riqueza intencional.
Trata-se do mundo enquanto vivido pelos sujeitos concretos, constan- ajudar a tomar compreensíveis os fundamentos de sentido das próprias

temente experimentado conforme diferentes modalidades intencio- ciênciasobjetivas, e isso oferece mais uma razão pela qual não se deve
simplesmenteforçar a cientificidade lógico-objetiva sobre ele. Afinal
nais. Não faz sentido explora-lo sob dlretrizes metodológicas que levam
de contas,como nota Husserl, asciências objetivas "estão incluídas no
à superação da experiência subjetiva, exatamente aquilo pelo qual o
mundo da vida se manifesta em toda a sua complexidade. Daí Husserl problema, não poderiam ser pressupostos utilizados à maneira de pre-
recusarque o tratamentocientífico do mundo da vida possaocorrer missas"(K, 1 35). A investigação do mundo da vida deve esclarecer os
simplesmente por uma aplicação dos padrões metodológicos das ciên- fundamentos últimos de sentido das ciências objetivas(cujos pressupos-
cias modernas ao que seria um mero tema parcial por elas englobado. tosgenéticosserãoclarificados), de maneira que elas não podem, por
Não é corneto tomar o mundo da vida somente como um campo limi- issomesmo, ser assumidas como válidas no início dessa investigação.
tado no interior das ciências guiadas pela objetividade moderna. Aliás, No parágrafo 35 de K, propõe-se um procedimento crítico em re-
se se atenta para o papel do mundo da vida como pressupostogenético [ação.àsciências ]ógico-objetivas tradicionaisM. Trata-se da ePoc/zédas
dos resultados teóricos, as ciências objetivas é que devem ser avaliadas ciênciasobjetivas, ou seja, da suspensãoda validade das produções
como parciais no interior da problemática geral do mundo da vida.
Essa inversão da questão colocada inicialmente no parágrafo
33 ocorre no parágrafo34f, embora já fosseindicada em outrostre-
chosõ3.AJI, o autor observa que, apesar de exigir uma superaçãodas

63. "Se a ciência racional (...) se torna problema,então teria de serantesde


tudo considerado (...) que a ciência é, em geral, um entre outros tipos de realizações

340
341
A cietlti6icidadena fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

científicas compostasà luz da orientação teórica moderna do pensar. subjetivaconcreta (aspectosestéticos, axiológicos, práticos etc.). Dessa
Essa suspensão não implica uma passagem à orientação transcenden. forma, a ciência objetivo avança por meio de um interesse que salienta
tal; trata-se de um recurso neutralizador de uma perspectiva tradicio. somente certos componentes dos fenómenos da experiência concreta
nal de atividade científica a fim de abrir o caminho para outro modo do mundo. Na orientação teórica moderna, o cientista se dedica, as-
de exercer essaúltima, mas sem ainda explicitar as preocupaçõesge- sim, apenas a domínios particulares, e o mundo da vida elzquanto cor-
rais do acesso da subjetividade à objetividade, que tanto marcam a ePo- relato da vida Ínte7zcíona/ em todczsas suas moda/idades /uncíonando
c/zéfenomenológica. Vale notar que essaepochédas ciências não apaga corzjzz7ztamelzte
permanece não tematizado. Suspender a validade das
as produções científicas presentesem nossacultura, como se magica- ciências objetivas implica a suspensãodas abordagens teóricas parti-
mente fossepossívelse transportar para um rincão livre de toda aqui- cularizantes,que não abarcam o mundo da vida em todas as suasdi-
siçãocultural científica.Não setrata de delimitar um domínio purifi- mensõesintencionais cooperantes.
cado da produção teórica, mas simplesmente de inibir o interessee as Husserl chega a estender essaepoché do interesse teórico particula-
operações teóricas tradicionais, de maneira a suspender a vigência da rizante para todos os interessespessoais(mesmo os pré-teóricos) que
cientificidade lógico-objetivo moderna. Por que issoé preciso?Vimos íso/amdomínios privilegiados sobre a universalidade pressupostado
que a cientificidade moderna implica uma desvalorização da experiên- mundo da vida. Na experiência cotidiana concreta, normalmente enfa-
cia subjetiva pré-científica. Ora, para tornar visívela especificidadedo tiza-secerto contexto fenomenal, tendo em vista a consecução de cer-
mundo da vida em toda a sua riqueza fenomenal, é preciso tirar de tos fins válidos segundo interesses específicos. Como afirma Husserl,
ação os procedimentos que meramente instrumentalizam a experiên- "como homens normais, estamos permanente e simultaneamente em
cia subjetiva, que dela se servem apenas como índice para atingir o su- muitas 'profissões' (orientações de interesse): somos simultaneamente
posto em si mundano. A proposta de uma epocbédas ciências objetivas pais de família, cidadãos, etc."(K, S 35, 139). O exercício de cada um
barra essadesvalorizaçãodo mundo vivido e permite recupera-lo em dessespapéis cotidianos implica a circunscrição de certo âmbito de
toda a sua densidade intencional intrínseca. ação,de maneira que ao vivencial os interessesligados a essasdiferen-
Essa epoc/zé permite evidenciar outro inconveniente das ciências tesatividades"não há normalmente motivo para tornar o mundo da
lógico-objetivas modernas em relação ao mundo da vida, a saber, a par- vida explicitamente temático de modo universal, como mundo" (K, ap.
fícu/arídadedo interesseteórico por meio do qual tais ciênciassede- XVl1, 459). Mesmo na experiência cotidiana pré-científica, as pessoas
senvolveram. No apêndice XVTT de K, Husserl nota que o cientista, estãovoltadas apenaspara domínios limitados do mundo, circunscritos
en] geral, "não tem olhos para mais nada a não ser para os seusfins e o conforme seus interessesprivados ou comunitários preponderantes. E
horizonte da sua obra" (K, 462). A orientação teórica, como vimos no verdadeque não se vive em completa ignorância do mundo. Husserl
capítulo anterior, é um estilo de pensar que isola certos tópicos do con- acentuaque "vivemos conscientesdele como horizonte de nossosfins
texto prático-subjetivo da experiência a fim de analisar seuscomponen- particulares" (ibid.), de maneira que os interessesparticularizantesas-
tes e relações constituintes. Ela supõe, assim, um interesse muito bem sumidos no dia a dia constantemente remetem a um amplo pano de
focado e um âmbito correlativo circunscrito artificialmente, com base fundo ontológico em que estãoinseridos.Porém, essaremissãolate
na exclusão metódica de diversosaspectosque compõem a experiência ral não significa uma verdadeira tematização do mundo da vida em
sua universalidade. Daí Husserl propor, no parágrafo 36, uma comple-
sebem que diferentemente das nossasciências, têm de ter a sua 'obÍetividade', uma va- mentação à suspensãodo interesse teórico tradicional. Os interesses
lidade necessáriaatribuída de modo puramente metódico" (K, 136). particularizantes originados pelas diferentes funções sociais ou tarefas

342 343
A cientificidade na feitomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

cotidianas exercidasna experiência pré-científica também devemS.r orincÍPios sobre a uníverscz/idade daquilo que é. Trata-se agora de fa-
zer valer essainspiração e de tematizar o mundo da vida em seu caráter

$HHHl$UiHlilH
não bastaa ePochéda orientação teórica tradicional para tornar visível
o mundo da vida; essa ePoc/zé não é senão um caso de uma Suspensão
próprio (solo de sentido e horizonte para os aios e interessesparticula-
res,como ainda veremos). Para tanto, é preciso promover uma orien-
taçãoteórica que não tenha sido afetada pela interpretação objetivista
do trabalho científico. A solução será propor "uma doutrina pura da
essência
do mundo da vida" (K, S 36, 145), quer dizer, uma oito/o-
generalizada do exercício de interessesparticularizantes no interior do pta. no sentido já fixado ao menos desde o início da década de 1910,
mundo da vida. É a universalidadedessemundo, enquanto fundo per- de explicitação dos constituintes a priori que delimitam em termos de
manente para os alas particulares, que deve ser explorada, e para isso possibilidades ideais os fenómenos de um determinado domínio. Por
tanto a orientação teórica tradicional quanto as atividades prático-se. meio de uma ontologia, fixam-serigorosamenterelaçõesd f)Horaentre
dais pré ou extrateóricas são insuficientes.
oscomponentes de um domínio e, assim, antecipam-se as pr'nclpa:s
Husserl indica de modo bem claro nesseponto que a recusada aderi. características dos eventos empíricos que exemplificam as possibilida-
:ação lógico-objetivo moderna não signi$ca o abandono da orientação tec- desideaisque configuram certo tipo de ser.Uma oncologiafornece, en-
em geral e um consequenteprinzado da vivência f)ré-científica para tão,conhecimento rigoroso e com capacidade preditiva, e issosem ne-
a descóçâodo mundo da vid . As situaçõesvividas pré-teoricamente na cessariamentepartilhar da interpretaçãoobjetivista,que atribui proe-
maioria das vezes não tematízam o mundo da vida, mas o pressupõem minência (epistêmica e mesmo ontológica) à infraestrutura física dos
como horizonte inesgotávelde inúmeros domínios particulares circuns. fenómenos. As ontologias, no sentido husserliano, buscam invariantes
crivos conforme os interessesvigentes. Desse modo, o mundo da vida não quepermitem discriminar ascaracterísticas definidoras de domínios de
aparece em toda a sua riqueza no mero fluir da vida pré-científica. A so- eventospossíveis;e para essafunção não é preciso apelar para méto-
lução para alcançar o mundo da vida em sua universalidade é apelar para dosmatemáticosõs.Dessa maneira, propor uma ontologia do mundo
unia orientação teórica diferente daquela sedimentada ao menos desde da vida significa, no contexto de K, atestar a limitação da abordagem
a Modernidade, que justamentedesvalorizaa riquezada vida intencio- científica moderna e reatar com a perspectiva universalista que consti-
nal e se centra em atributos infraestruturais passíveisde análise exala tui, segundoo autor, o sentido originário da cientificidade, que deveria
Nesse ponto, a pretensãode Husserl é retomar, em sua intenção guiar o desabrochar da humanidade racional
geral, aquela ideia ampla de cientificidade que marca o te/os da huma- No parágrafo 51 de K, Husserl expõe uma importante precisão
nidade europeia. Como vimos, o estabelecimento das ciências moder- dessaantologia pretendida: e/a serea/íza Hczorientação natura/ do pen-
nas supôs uma interpretação restritiva da ideia originária de cientifi- sar, ou seja, não supõe o método da redução fenomenológica para o
cidade, centrando a investigação científica no estudo de propriedades desvelamento do seu temaóó.Isso quer dizer que, ao menos de início, a
Hsicasdescritíveismatematicamente. Essalimitação acabapor excluir
o mundo da vida em sua especí/icídade sub/etíva do âmbito científico, 65. Afinal, como vimos no segundo capítulo, há ontologias que estabelecem co-
reduzindo-o a índice de propriedades objetivas que constituiriam o nhecimento rigoroso mesmo sobreessênciasinexatas.A própria fenomenologia era as-
sim apresentada em Ideias 1, SS71-75
ser para além dasaparênciassensíveis.Porém, em sua inspiração ori-
66. "0 mundo da vida poderia sem qualquer interessetranscendental, ou.seja,na
ginária, a cientificidade não recusavaautonomia a nenhum domínio
orientação natural' (. . .) tornar-setema de uma ciência própria -- de uma antologia do
temático, pois ela se caracteriza como uma investigaçãofundada em mundo da vida como mundo da experiência"(K, 176)

3# 345
A cientificidade na fenomenologiade Htisserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

objetivos.Dessemodo, propor uma antologia do mundo da vida não é


investigar uma região material entre outras quaisquer, e sim recuar ao
andamento pré-teórico da diversidade de orientações teóricas e domí-
nios matedaís padíctz/ares. Husserl retoma aqui a investigação gené-
tica proposta, por exemplo, em trechos de Psíco/ogía áenomeno/ógíca.
Trata-sede buscar os invariantes estruturais constituintes do mundo da
experiência concreta que está na base da circunscrição de quaisquer
domínios objetivos particulares a se estudar teoricamente. A ontologia
Aqui cabe outra precisão importante. A oncologia do mundo da do mundo da vida deve então fornecer o quadro restritivo a priori no
interior do qual torna-se legítimo estabelecer antologias materiais par-
ciais, tais como as da natureza e da cultura. Em outras palavras, a anto-
logiado mundo da vida vem explicitar ascondiçõesúltimas pressupos-
taspelas disciplinas científicas, mesmo pelas ontologias formal e mate-
riais. Conforme afirma Husserl no texto A 07zto/ogíado mundo da vida
e as ciências concretas,escrito na mesma época que K, "todas as onto-
certos interessesteóricos particularizantes. Contudo, para iluminar o logias pressupõem enquanto verdadeira oncologia fundamental aquela
mundo da vida em sua universalidade, foi preciso suspendera efetivj- do mundo da vida (ainda não idealizado)" (Kl1, 151). Dessamaneira,
dade desse tipo de interesse teórico e, por conseguinte, dos domínios a ontologia do mundo da vida não é só mais uma entre outras ontolo-
objetivos correlatos. Revela-se,dessemodo, que a efetuação de inte- gias materiais, mas se localiza em um nível geneticamente fundante
ressesteóricos particularizantes, mesmo no caso da produção das on- em relação a elas.
tologias, isola certo conjuntos de temas de uma experiência anterior Além desse caráter basilar em relação às demais ontologias, a ciên-
composta por muitos outros dados intencionais. Essefoi, conforme o cia eidética do mundo da vida destasse demarca pela especificidade do
capítulo anterior, um dos mais importantes resultados das investiga- seu tema. No parágrafo 36 de K, Husserl propõe diferenciar o czpriori
ções genéticas propostas por Husserl no correr da década de 1920: os objetivo, com baseno qual as construçõescientíficas se edificam, e o cz
conceitos fundantes das ontologias materiais são remetidos à experiên- priori universaldo mundo da vida, que ofereceo solo ou o fundamento
cia pré-teórica, na qual há um entrelaçamento originário de diversosti- último para o a príoH objetivo. O a priori do mundo da vida é mar-
pos.de fenómenos que poderão ser explorados isoladamente, conforme cado por uma peculiaridade que obviamente falta ao d príod objetivo
tenham suasrestriçõeseidéticas especificadas.Nessesentido, a expe- (o qual inclui as ontologias materiais e formal): trata-se de um "a /)ríorí
riência pré-científica e o mundo que Ihe é correlato sãofundantesdas 'relativo ao sujeito"' (K, S 36, 143). Isso quer dizer que, ao buscar as ca
orientações teóricas particularizantes e de seus respectivos domínios racterísticasdefinidoras do mundo da vida, não sevai enumerar atribu
tos que comportam realidades autónomas, pois justamente o muízdo da

ü:HIRIÊ :l: :õnn::


vida é o mundo tal como se doa na uc4)eriência subjetiva e intersubtetiva
A oncologia do mundo da vida não pretende, desde então, formular res-
trições a priori de fenómenos mundanos independentes de qualquer
exploração do mundo da vida. ' ''"''""- -'
relaçãocom a subjetividade. Revelar o caráterem-si dos fenómenos é
346
34
A cientificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

sentido" (Ibid.). Assim, bem entendido, o axioma da oncologia concreta


,evelaque o a priori subjetivo-relativo do mundo da vida é na verdade
.nna przoríí?ztersubjetivo-re/atívo,
uma vez que o mundo concreto em
todaa sua riqueza fenomenal não é somente mundo da experiência
subjetiva isolada, mas de comunidades que partilham predicados cultu-
.aishistoricamente instituídos.
Essacaracterísticamarcante do mundo da vida suscita uma apa
rente dificuldade ao prometo husserliano. Afinal de contas, é preciso re-
conhecerque o caráter eminentemente subjetivo do mundo da vida
pareceimplicar uma relativização daquilo que essemundo e: uma
o mundo tal como vivenciado pelos sujeitos, e não um domínio que vezque ele sempre vigora em correlação com capacidadessubjetivas
poderia ser circunscrito em seuscomponentes puramente objetivos. A e intersubjetivas particulares. A própria formulação do axioma da on-
antologia do mundo da vida visa a, dessemodo, desvelar as estruturas cologiaconcreta faculta essaconsequência, já que não se vincula ali
eidéticasque delimitam as possibilidadesde um mundo ta/ comoexpe- o mundo da vida a uma forma geral de subjetividade, e sim a pessoas
rimentado subjetiva e intersubjetivamente. concretas. O mundo da vida é o correlato da experiência de pessoas
A validade írztersub/etívada experiência concreta do mundo é quevivem em comunidadesformadas historicamente e nasquais vigo-
acentuada em outro manuscrito publicado em Kll, Sobre a exp/Ícífa- ram sistemasinterpretativos de fatos e ações não plenamente compa'
ção da vida de consciência do murado. Segundo essetexto, para caracte- cíveisentre si. As pessoasassim consideradas avaliam sua experiência
rizar a vida intencional que sustentao mundo da vida, "não podemos conforme critérios valorativose interpretativos delimitados histórica e
nos permitir negligenciar uma grande obviedade que pertence estrutu- culturalmente. Segundo Husserl, no parágrafo 73 de K, "o mundo não
ralmente a toda vida" (Kl1, 197), a saber, que as validades ou os senti- é jamais dado ao sujeito e às comunidades de sujeitos senão como va-
dos de ser por meio dos quais a experiência do mundo se organiza não lendo de maneira subjetivo-relativa para eles, com issoque a cada vez é
são frutos de um sujeito isolado, mas sempre de operações ;zzfersub/etí- seuconteúdo de experiência" (K, 272). Em outraspalavras,o mundo é
vas. Husserl chega mesmo a atribuir o caráter de necessidade eidética válido enquanto experimentado intersubjetivamente, e a constituição
a essaconstituição intersubjetiva do sentido: "o mundo ( . . .) que a cada intersubjetiva de sentido envolve particularidades culturais que por ve'
vez eu compreendo com respeitoà minha consciênciado mundo logo zespodem levar a diferenças marcantes de crenças acerca daquilo que
perde seu sentido de ser ( . . . ) se eu abstrair os meus semelhantes" (Kll seapresentana experiência
198). O mundo da vida não é, descarte, jamais mundo para um sujeito Husserl exemplifica rapidamente a possibilidade de conflitos
isolado; a vida que sustentaa experiência concreta do mundo é sem- cognitivosresultantesda relatividadecultural no parágrafo36 de K.
pre vida írztersub/etíva,constituição conjunta de sentido. Um pouco Interpretadaà luz da cultura científica europeia, o mundo da vida apa-
à frente da citação anterior, Husser] reforça ainda mais o seu ponto: rece como formado por tais e tais tipos de fatos, em relação aosquais se
se eu eliminasse de um só golpe todos os outros homens, o horizonte tem grande segurançasobre o seu sentido e modo de funcionamento.
completo da humanidade, eu perderia o mundo e, sobretudo, o seu Em seguida, nota Husserl, "mas se nos deslocamos para um círculo de
sentido de ser para mim. Não é somente que não haveria o 'mundo relações estranho, para os negros no Conho, para os camponeses chine-
de fato' como se houvesseum outro. O mundo perderia todo o seu ses, então confrontamo-nos com o fato de que as suas verdades, os fatos

348 349
A cientificidade lla fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

Oscomponenteseidéticos do mundo da vida como


andamentosdasciências
Paracompreender a estrutura geral do mundo da vida, é preciso ter
em mente o axioma geral que relaciona essemundo à experiência sub-
jetiva e intersubjetiva. Diante disso, a estrutura geral em vista não carac-
teriza o "em si" mundano, e sim as formas gerais pelas quais um mundo
particulares
concreto pode ser experimentado e receber diversos predicados (entre
Poderia essarelatividade da experiência do mundo constituir uma os quais aqueles responsáveis pela relativização prático-cognitiva do seu
dificuldade para o desenvolvimento de uma ontologia? Husserl não sentido de ser). Husserl já havia esboçado algumas análisesdos consti-
julga que os conflitos interpretativossão insuperáveis nem que asco. tuintes da forma eidética "mundo" como correlato da experiência em
munidades estão condenadas a só experimentar "mundos" particulares ideias IÓ8.Algumas das conclusões ali entrevistas são retomadas nessa
válidos conforme suascrençastradicionais. Além disso,a antologia do circunscrição da essência do mundo da experiência concreta. Em parti-
mundo da vida não seráuma mera descriçãode conteúdosde expe- cular, acentua-seque a estatura gercz/do mundo não é formada por um
cias particulares de sujeitos ou comunidades quaisquer. Vimos que conjunto Pxo de entes, e sim por um modo geral de ordenação da experiên
as atividades e os interesses práticos particularizantes no interior da ex. cía,a saber,a relaçãoentre dadospróximos, que tendem a se sintetizar
periência do mundo devem justamente ser suspensospara que se evi- em vivências concordantes, e horizontes amplos de sentido, que ofere-
dencie o mundo da vida em sua universalidade. O que se trata de bus. cem os esquemaspara essasíntese. Essa estrutura geral valeria não só
car são os componentes a priori de um mundo da vida em geral e não paraa vida perceptiva, mas para os diversos níveis de atividades intencio-
interpretações empíricas parciais acerca da experiência mundana. Na nais que se entrelaçam na experiência mundana (intencionalidade lin-
verdade, como veremos, é ao exibir a estrutura a pHori do mundo da guística,afetiva, empática). Conforme afirma Husserl, "o mundo da vida
vida que se pode entender como múltiplas interpretaçõesrelativasda 1...) estáem um movimento de permanente relatividade de validade e
realidade são possíveis.A relatividade da experiência concreta deve ser referencialidade aosque vivem em relação mútua" (K, ap. XVTl1, 465).
remetida aos e/eme/ztosíne/cztívosque constituem a essênciado mundo C)mundo não tem entãocomo seu a pdorí um conjunto fixo de entes,e
da vida. Nas palavras de Husserl, a solução é a seguinte: "a dificuldade sim certa mobilidade constante dos conteúdos da experiência subjetiva
desaparece assim que nos damos conta de que este mundo da vida, em e intersubjetiva, mobilidade que não é aleat(ária porque desenrolada sob
todas as suas relatividades, tem a sua estmfura gera/. Essa estrutura ge- horizontes de possibilidades que pré-delineiam as validades de ser que se
ral, a que todo ente relativo estávinculado, não é ela mesmarelativa atestamou se desconfirmam no correr da experiência. Asseverao autor
Podemos observa-la em sua generalidade e, com o devido cuidado, es- no mesmo texto: "o mundo, como o horizonte comum com perma-
tabelecê-la igualmente como acessívelde uma vez por todas" (K, S 36, nente validade de ser das coisas que são, tem sempre e de antemão a vali-
142). Enquanto ontologia, a investigaçãocientífica do mundo da vida dade de ser algo corrigível por coerência, coerentemente experienciável
deve tornar evidentes as cczracfe7útícaseídéfícas que constituem as pos- e corrigível onilateral e mutuamente" (K, 464). O mundo é, desseponto
sibilidades ideais de fenómenos mundanos. Essascaracterísticas eidéti-
de vista, o que se doa a cada vez na experiência concreta sobrehorizon-
cas delimitam de modo necessário o sentido e o alcance das mais varia- tes de validades de ser que abrem expectativas de continuação do pró-
das e relativas experiências empíricas no mundo da vida. Vamos acom-
panhar como Husserl ascaracteriza. 68. Esseponto foi discutido no capítulo ll

350 35 1
A cienti6icidade na fenomenologia de Husserl As ciências coma produção histórica no mundo da vida
r

prio curso da experiência (em seusdiferentes níveis intencionais)óç.Pn. rIDetange às relações intersubjetivas sedimentadas à luz de horizontes
culturais. Assim, certos dogmas de uma visão de mundo têm sua legiti-
midadeabaladaem virtude de conflitos interculturais, como ocorre na
"historicidade política", exposta no início deste capítulo. Desde então, a
por exemplo) que constituem um horizonte geral de perceptibilidade estruturageral de experiência por meio da qual o mundo da vida se ma-
no interior do qual efetuo minhas diversasvivências particulares nifesta(permanente mobilidade de conteúdos à luz de horizontes tam-
E importante enfatizar que essaexperiência na qual o mundo se bém móveis)permite compreender, ao mesmo tempo, que haja relativi-
atestaconcretamente
estáem "permanente
mobilidade"(K,465),de dadesculturais e também que elasnão sejam totalmente insuperáveis.
maneira que ela permite "transformações e correções" (ibid.) acerca da Afinal, ao menos de modo ideal, é possível antever vias de consenso por
validade de ser que é atribuída aos conteúdos que nela paulatinamente meio de alteraçõesdos horizontes vigentes de sentido. Os conflitos in-
seperfilam. Essascorreçõesocorrem em duasdireções.Por um lado,de terpretativoscom relação à validade de certa crença remetem, muitas
maneira mais óbvia, o sentido manifestado por atesparticulares pode ser vezes,a horizontes de sentido incompatíveis entre si. A aproximação
corrigido por referência ao horizonte geral em vigor. Assim, por exem- desses
horizontes por meio de esforçosinterpretativos convergentesde
p[o, uma percepção i]usória é atestadacomo ta] à ]uz do desenrolarco.. certos fatos ou eventos mutuamente disponíveis poderia mitigar ao me
rente do fluxo perceptivo conforme as expectativasgerais de percepti- nos os graus extremos de relativização cultural''. Dessa maneira, ao en-
bilidade por meio das quais a progressãoda experiêncianormalmente fatizar a estrutura de horizonte móvel, revela-se a experiência não como
se ordena. Por outro lado, o próprio horizonte de sentido em vigor é imposiçãode um bloco de dadoscom sentidoúnico, e sim como um
alterável à luz de vivênciasparticulares cruciais, que atestem os limi- fluir constante de conteúdos que sãosintetizados sempre em função da
tes dos esquemas amplos de apreensão e interpretação em vigor70.Essa coerê?leiag/oba/ das vivências à luz de amplas normas interpretativas.
última possibilidade se efetiva de modo consideravelmente comum no E ao menos nos níveis intencionais superiores (interações linguísticas,
crenças,predicados culturais), para cada unidade cultural ou visão de
mundo, diversas normas interpretativas, não plellamente compatíveis
69. "0 que a cada vez é ativamente consciente e, correlativamellte, a posseatava
da consciência, o ativo estar dirigido para, estar ocupado com, permanece sempre cir- entre si, poderiam operar como horizonte de compreensão dos fatos vi-
cundado por uma atmosferade validadesmudas, ocultas, mas cofuncionais, por um Ào- vidos. Essa relativização do sentido da experiência, porém, graças à mo-
nzonfe vivo em que o eu anualpode também se situar voluntariamente ao reativaraqui- bilidade inerente aos próprios horizontes esquematizadores do sentido,
sições antigas, ao apreender conscientemente ocorrências aperceptivas, transformando-
as em intuições. Assim, em virtude dessa /zorizorzfa/idade em permanente curso, toda não é insuperável, uma vez que tais horizontes sãopassíveisde transfor-
a validade efetuada na vida natural do mundo pressupõe sempre já validades, fazenda mação conforme o desenrolar das experiências particulares':
remontar, imediata ou mediatamente,até um subsolo necessáriode verdadesobscuras.
embora ocasionalmente disponíveis, as quais constituem todas entre si, e juntamente
com os fitos propriamente ditos, uma única conexão vital inseparável" (K, $ 40, 152) eventos singulares resistem à esquematização pelos padrões disponíveis nos horizontes
70. S. Geniusas expõe de modo claro esse ponto: "os horizontes são despertados de sentido e forçam mesmo uma recon6lguração dessesúltimos
como horizontes de determinabilidade indeterminada. Isso quer dizer que o fenâmena 71. Husserl crê que a cultura racional tem um forte potencial transformador dos
em suaduraçãoenvolve não apenaspreenchimento permanente, mastambém elemen- horizontes prático-mítico de sentidos, uma vez que a atestação dos resultados cientí6lcos
tos de frustração, que modificam a configuração proÍetada de sentido que acompanha a levaria ao abandono de certas crenças tornadas então insustentáveis. Voltarei ao tema da
objetividade manifestada. Assim, o horizonte de pré-reconhecimento típico é deÕlzfdor ciênciacomo transformadorado horizonte mundano
mas não de/irzffívo;é defermfnanfe, mas não determinado. As modificações incessan- 72. J. Benoist ajuda a compíeertder esseponto. Apesar de sempre medrado por
tes de que o horizonte é passívelindicam que o horizonte, apesarde governar os fenó- crençasculturais relativas, o mundo da vida é experimentado como o mundo verda-
menos manifestados, é por sua vez governado por elas" (Geniusas, 2012, 102). Certos deiro e não como alguma imagem relativa de um em-si universal. Cada comunidade

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A cientificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

pré-cientificamente, o mundo já é um mundo espaçoternporal:


é
certo que em relação a essa espaçotemporalidade não se fala de paRI..
tos matemáticos ideais, de retasou planos 'puros', tampouco dacon.
tinuidade matematicamente infinitesimal, da 'exatidão' pertencente
ao sentido do a prior geométrico (...). O mesmo se passacom a
causalidade ou com a infinidade espaçotemporal. O categorial do
mundo da vida tem os mesmos nomes, masnão se preocupa, por as-
sim dizer, com as idealizações teóricas e substruções hipotéticas do
geõmetra e do físico (K, 142-143).

Isso quer dizer que as estruturaseidéticaspor meio das quaiso


mundo da vida se revela como um conjunto de fenómenos universal.
mente típicos são fique/asanalisadaspelas ciências objetivas. E cabí-
vel até mesmo usar os mesmos nomes para tematizar essasestruturas, a
saber, espacialidade, temporalidade, causalidade; no entanto, deve-se
observarque no mundo da vida essasestruturas portam certo padrão
de organização que não envolve determinação objetivo unívoca. As

pretende, assim, que o mundo vivido particularmente seja válido para lodos. A vigên-
cia do mtmdo supõe, desse modo, o asserzffmerzfodos denzaís acerca daquilo que eie é
Aqui se encontra uma forte possibilidade de modificação dos horizontes culturais. Aâ-
nal de contas,"na própria pretensãode atingir o mundo como ele é (...), estáaberta
a possibilidade de que ele seja de um modo outro que não aquele em que nos é ime-
diatamente dado" (Benoist, 1998, 228). Ocorre que a validade universal das experiên-
cias culturalmente carregadas riem senzPrese con/ir17za,o que justamente instaura con-
flitos interpretativos interculturais acerca do sentido dos fatos em vista. Cada visão de
mundo particular visa ao mundo universalmente, o que obriga a buscar o assentimento
a[heio para confirmar o caráter universal da própria visada. "Não há mundo que não
seja delimitado (. . .) pela possibilidade, sempre pressuposta,do questionamento por
outrem, na medida mesma em que não há mundo que não seja uma demanda de assen-
timento" (rd., 229). Essademanda interminável por acordo como garantia da universa-
lidade do mundo visadoabre oportunidades de alteraçãodoshorizontes tradicionais de
compreensãoà luz do convívio intercultural.

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A cientificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

mente típico, na experiência mundana. Daí que Husserl insistisseprin- tabelecidos no correr da década de 1920, nos cursos em que buscava a

;:i =: J::==::, :1:*::n41


Tiidi
cipalmente em uma desfia/odzaçâoda experiência subjetivc-relativa e
não em uma total desapariçãodessacomo resultadodo exercício in.
gênuo das ciências modernas. Essasse servem das estruturas típicas do
mundo da vida; porém, interpretam que os domínios objetivos exatos.
construídos teoricamente, são o fundamento ontológico da experiên-
cia mundana. E essefoi o ponto duramente criticado por nossoautor:
Ü ii! ii ::R :i R i:iul
que por sua base corporal exercem funções vitais) e .inanimadas. E os
a interpretação objetivista, que toma aquilo que resulta da aplicação organismosse dividem entre aqueles portadores de vida psíquica com-
dos métodos matemáticos como explicitação do em-sí mundano7+ Por
sua vez, a oncologia do mundo da vida permite atribuir o devido peso
às produções teóricas modernas. Trata-se da objetivação de domínios
de relações exatas, o que se obtém pela aplicação de métodos de idea-
lização e substrução sobre as características típicas da experiência do
ül=1::=:u::?;l!illql
tençõestípicas da experiência mundana não são desenvolvidas em K, e
somente ecoam resultados obtidos em textos anteriores. A sua menção,
mundo da vida, as quais formam, então, em um sentido ainda a escoa.
no entanto, funciona aqui para marcar o caráter /undczntedo muradoda
recer, uma camada ontológica fundente do conhecimento científico. vida em relação àsciências. Para Husserl, "tais distinções e agrupamen'
A explicitação da continuidade entre resultadoscientí6lcose estru- da expe-
tos mais geraissão,a partir do mundo da vida como mundo
turas constituintes da multiplicidade fenomênica do mundo da vida nencia originária, determinantes para as distinções dos domínios cien-
de todas
vale não só para as ciências exatas,mas para todas asciências possíveis, tíficos ( . .). Por outm lado, abstrações universais abrangentes
conforme anuncia o parágrafo66 de K. Ali, afirma-se que "a simples as concreções codeterminam, simultaneamente, temas para as ciências
possíveis"(K, S 66, 230). As típicas regionais de fenómenos mundanos
74. A. Steinbock resume de forma muito clara o problema aqui em vista: "de antecipam a delimitação dos domínios científicos, os quais são então
acordo com Husserl: as ciências obÍetivas têm as 'mesmas' estruturas que o mundo da
vida 'pré-cientíâco'- Mas as ciências as pressupõem e delas esquece em sua substrução metodicamente investigados principalmente por meio da abstração ou
deuma'verdadeemsi"'(Steinbock, 1995,95). ' '"'''"'-' do isolamento de características a se analisar em detrimento de outras

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As ciências como produção histórica no mundo da vida
A cientificidade na fenomenologia de Husserl f 4

para nós que nele vivemos despertos, existindo sempre.}á de antemão,


que compõem a experiência concreta. Torna-se, assim, possível acom-
o 'solo' para toda praxis, tanto teórica quanto extrateórica" (K, 145).
panhar a gênesedo conhecimento científico em sua especificidadete-
Nessafunção geral, o mundo "é pré-dado como horizonte, não uma
mática e metodológica (por exemplo, esclarecendo as diferenças en-
vez, ocasionalmente, mas sempre e necessariamente como campo um'
tre as ciências exatas e humanas) com base nas estruturas eidéticas do
mundo da vida7s. versal de toda a praxis efetiva e possível. A vida é permanentemente vi-
ver na certezado mundo" (ibid.). Enquanto solo, o mundo funciona
A antologia do mundo da vida almeja, dessamaneira, explicitar
como pano de fundo de crenças tácitas sobre o qual os interessespar'
condições "objetivas" últimas que devem ser cumpridas para a produ-
ticulares se desenrolam. O "tomar por tema" ou o "dirigir-se para algo
ção do conhecimento, isto é, os pressupostos genéticos referentes às
em particular" supõem esquemas amplos de ordenação dos dados de
regiões mundanas por meio das quais os domínios objetivos e as disci-
forma coerente,o que ocorre por remissãoa horizontesde validades
plinas científicas correspondentes são formulados. Já no primeiro capí-
de ser que sustentam contínua e passivamente a progressão dessasex-
hilo havíamos estabelecido: fundamentar o conhecimento científico
periências. Nessesentido, o mundo da vida é "para nós sempre:xls-
é, para Husserl, clarificar os pressupostos que delimitam seu sentido e
tente, continuamente pré-dado" (K, S 34e, 133); ele permanece válido
alcance, atribuindo, dessemodo, a perfeição racional que faz justiça à
como solo de sentido sobre o qual as mais diversasatividadespartícula
ideia original de cientificidade, segundo a qual o conhecimento cien-
tífico deveserfundamentadoem princípiosde maneiraevidente.No res (pré-teóricas e teóricas) ocorrem. Desse ponto de vista, o mundo da
vida não é só uma espécie de premissa inicial assumida pelo trabalho
correr de sua carreira, Husserl amplia a noção de condições objetivas
científico, masum conjunto de validadesde serpressupostaspor todos
do conhecimento, considerando não só a armadura formal pela qual as
os aros subjetivos particulares, uma estrutura geral de pré-doação da ex-
teses são exprimidas, mas também as restrições a príoã dos domínios
periência que acompanha o desenrolar de qualquer tarefa pessoal, in-
a se estudar. E, por meio da análise genética, reconhece-se que é pre-
clusive aquelas da esfera cieTItífica7ó
ciso recuar até a origem dessascondições objetivas estáticas no próprio
Deve-seenfatizar que mesmo nessafunção de solo o mundo da
mundo vivido pré-teoricamente, sobre o qual os domínios científicos
vida não é um ente estático. Conforme o apêndice XVlll de K, os juí-
são circunscritos. A ontologia do mundo da vida fornece, desse modo,
zos científicos são produzidos sobre o solo do mundo da vida, pressu'
uma clarificação última dos pressupostostemáticos que tornam possí-
vel a atividadecientífica. Tal como esboçadaem K, essaclarificação posto em todas asfases da consecução das atividades particulares, como
"o fundamento de uma validade universal de ser que se produz na per'
fundente ocorre pelo menosem dois níveis. manentemobilidade da vida de validade subjetiva" (K, 465). A pro-
Em um nível maisgeral,o mundo da vida é explicitadoem sua
dução científica particular remete ao solo do mundo, ou seja, supõe
função de se/o para toda a experiência natural, inclusive para.as práti.
evidências originárias básicas que acompanham toda progressão de
cas científicas. Segundoo parágrafo37 de K, "o mundo da vida é (.. l
76. Conforme observa D. Follesdal, "toda reivindicação de validade ou ve.idade jaz
75. Husserl havia realizado em parte esseprograma em Ideias 11,ao tentar mostrar
sobre esse'iceberg' de aceitações antejudicativas não tematizadas ( . . .)-.Husserl defende
as fases(ie constituição da noção de' objeto físico a partir da experiência pré-científica
que é exatamente a natureza não tematizada do mundo da vida que o torna.solo último
do mundo. Não é corneto então, como afirma J. C. Evans, que a análise.de K implica de justificação Aceitação e crença não sãoatitudes que decidimos ter por algum ato de
decisão ludicativa. O que aceitamos, e o próprio fenómeno da aceitação, são integrais
ao nossomundo da vida, e não há como começar do zero" (Follesdal, 2010,45) Nesse
sentido. o mundo da vida constitui um pano de fundo de crençasbásicasnão questio-
nadas, sobre as quais os alas pessoais particulares se desenvolvem
prefiguram os domínios e métodos científicos
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A cientificidade na fenomenologia de Husserl
As ciências como produção histórica no mundo da vida

atividades particulares, evidências tais como a existência do própria queaspossibilidades do desenvolvimento dasciências estãosempre an-
mundo, a coerência do fluir da experiência, os estilos tÍPicosde feno. tecipadasno mundo da vida. Por sua vez, a produção científica pode se
menos por meio dos quais se pode antecipar o avanço dos eventos. Mias sedimentar,por meio da educação e de hábitos culturais, como parte
é, em sua essência,uma estrutura geral móvel, já discutimos do pano de fundo vivenciado passivamente como horizonte de valida-
há pouco. .Afinal, a compreensão daquilo que o próprio mundo é pode desde ser no qual as pessoasrealizam seusfins e suasatividadesparti-
se are.rar, bem como a compreensão de quais os princípios que regem culares.Husserl nota que, muitas vezes,a ciência "é corzüastadacom o
os estilos típicos de síntese da experiência mundana. ' '
mundo da vida (. . .). Por outro lado, tudo o que surge e surgiu pelo ser
Cabe enfatizar que uma fonte de transformaçãoda compreensão humano (individualmente e em comunidade) é também uma parte do
dos componentes do mundo é a própria atividade científica. Issoé re. mundo da vida: assim o contraste se anula" (K, ap. XVl1, 462).
conhecido no parágrafo 34e de K: "os resultados teóricos têm o caráter A resolução desse aparente paradoxo ensina algo importante.
de validades para o mundo da vida, as quais constantemente acrescer.
Tomadoem sua concretudede experiência,o mundo da vida não é
fam o seu conteúdo e são,então, de antemão a ele pertencentes, como
redutível a um núcleo de conteúdos puramente sensíveis,anterior a
horizontes de realização possíveis da ciência em surgimento" (K, 134). qualquer atividade conceitual". O mundo da vida em sua doação con-
Os resultadoscientíficos e o pensar teórico em geral são adicionados cretaenvolve uma multiplicidade de diferentes conteúdos intencionais
à experiência do mundo da vida e constituem, ao menos em parte, a apreendidos simultaneamente (por fitos perceptivos, mas também lin-
horizonte de sentido geral no qual os aros particulares da experiência
guísticos,empáticos etc.). Ele envolve, assim, em seus horizontes de
fluem. Dessamaneira,"o mundo da vida concreto (...) simultane;.
sentido, regrasou crenças culturais amplas, o que indica que a produ-
mente é o solo fundente para o mundo 'cientificamente verdadeiro'e ção científica não é algo que ocorre cora do mundo da vida, mas um
o compreende na sua própria concreção universal" (ibid.). Pareceha-
tipo de atividade realizada sob os /zorízor7fescu/forais mundanos, uma
ver aqui um paradoxo:por um lado, o mundo da vida é a basedaspro- atividadeque também compõe o mundo da vida e que, em particular,
duções científicas, que, dessaforma, o supõem. Por outro lado, a ati-
tem grande potencial para alterar estruturas amplas de crença e de mo-
vidade científica toma parte na composição dos horizontes de sentido da dp nrãn78
que constituem o próprio mundo da vida. Contudo, essadificuldadese
desfaz quando se leva em conta que as produções científicas são remis-
síveisao a priori do mundo da vida como fonte última de sentido.Daí 77. Em alguns textos, Husserl propõe uma desconstrução metódica da experiência
a fim de circunscrever a sua camada puramente sensível (por exemplo, em Psfco/ogia
Husserl afirmar, na citação acima, que tais resultadospertencem "de
lenomeno/ógíca,S.6), conforme vimos no capítulo anterior. Nesses'casos,trata-se,po-
antemão" ao mundo da vida. Vimos que asestruturas típicas mundanas rém, claramente do isolamento artificial de alguns componentes da experiência e não
são exploradas de forma metódica e especializada pelas ciências, cujos de uma apresentação do mundo da vida concreto. Conforme observa J.'Farges, "não se
deveria tentar identi6lcar [asl 'coisas do mundo da vida' a simp]es substratossensíveis
resultadosnão estão,dessemodo, em oposiçãoao, massim em conti- naturais; sãounidades intersubjetivas de sentido, carregadasde predicados espirituais,
nuidade com o mundo da vida. Destarte, a sedimentação de resultados ainda que não haja contradição em pensar o mundo ambiente da vida como mundo
científicos na cultura não vem destruir o que seria um supostomundo histórico-cu]tura] e em determina-lo 'simultaneamente como 'mundo de coisas"' (Far-
ges,2010b, 31). Tal como já delineado nos cursos Nahreza e espídÍo, o mundo da ex-
da vida puro, pois trata-se de explicitações metodicamente conduzidas
periência pré-científica apresentapredicados naturais e culturais entrelaçadosem uni-
de aspectos que /á co?zstífuema exPeríêlzcícz
concreta. Os dom ínios cien- dades significativas
tíficos nada mais são que delimitações idealizantesde estruturasque 78. No mesmo texto citado na nota acima, J. Fargesdescrevebem a característica
central do mundo da vida em questãoaqui: "o mundo da vida é fundamento da vala
pertencem, em seu caráter típico, à experiência mundana, de forma dade dasverdadesda ciência enquanto é simultaneamente potência de incorporação do

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A cientiflcidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

Apenas para reforçar esseponto, lembremos que em sua função de culturais. Daí que, em sua função de solo de sentido, o mundo da vida
solo, o mundo da vida é como um conjunto de certezas ou evidências inclua sedimentações culturais oriundas de investigações teóricas''
Toda essadiscussãoainda se refere apenasà função geral do mundo
básicas, não questionadas senão em circunstâncias especiais (de trans.
formação dos horizontes de sentido) e assumidas como óbvias, solo se. da vida como solo de sentido. Há também outro papel do mundo re-
bre o qual as mais diversaspráticasparticulares se desenrolamsignifi- ferente à fundamentação das ciências, que diz respeito à questão par-
cativamente. Não se deve então propor nenhuma restriçãoem relação ticular da validade das teses científicas. Husserl menciona claramente
à origem intencional dos componentes desseshorizontes de validades essepapel no parágrafo36, ao afirmar que o a priori das ciências ob-
ser; não se deve exigir que eles se)am, por exemplo, conteúdos mera. jetivasremete ao a priori do mundo da vida. "Este estar remetido é o
mente sensíveise não culturais. Conteúdos intencionalmente origina- de uma fundamentação de validade" (K, 143), acrescenta o autor. De
dos em fitos teóricos podem se sedimentar e vigorar como Componen- fato, no parágrafo 34d, já se havia comentado acerca dessafundamen-
tes dos horizontes passivamente vivenciados como solo sobre o qual os tação da validade das teses científicas por remissão ao mundo da vida.
interesses pessoais particulares são vivenciados. Esse é o caso do hora. O trecho em questãoé o seguinte:
zonte de sentido da cultura científica europeia, conforme o qual certos tem de ser totalmente esclarecido(. . .) que toda evidência dasprodu
fenómenos mundanos são espontaneamente compreendidos à luz do çõeslógico-objetivas, nas quais a teoria objetivo (a teoria matemática
sabercientífico em vigor (por exemplo, um raio em uma tempestade e a cientí6lco-natural) está fundada, quanto à forma e ao conteúdo,
é apreendido como um fenómeno elétrico e não como uma manifes- tem as suasfontes ocultas de fundamentação na vida produtiva, na
tação demoníaca). Em muitos momentos de K, Husserl propôs uma qual os dados evidentes do mundo da vida permanentemente têm,
suspensãodessaapreensãoóbvia do mundo segundo a vestimenta de adquirem e readquirem o seu sentido de ser pré-cientí6lco. O cami-
ideias científicas. Não se tratava, entretanto, por meio disso, de apon- nho conduz aqui da evidência lógico-objetivo ( . . .) de volta à evidên-
tar para um mundo inteiramente sensível e anterior a toda contribui- cia originária na qual o mundo da vida é permanentemente pré-dado
ção cultural, e sim, como sabemos agora, de apontar para as estruturas (K
típicas do mundo da vida, as quais, como vimos, pré-delineiam toda Salienta-seaqui que o mundo da vida exerce um papel fundante
atividade e todo domínio científicos possíveis.Husserl centralizou sua em relação à própria evidência lógico-objetiva dos resultados teóricos
crítica somentena indevida operaçãoobjetivista por meio da qual o Essasevidências remeteriam a evidências do mundo da vida, e, assim,
mundo da vida era substituído por uma natureza substruída. Essainter- ao menos em parte, a fundamentação das premissas teóricas depende
pretação objetivista levavaa crer que o mundo era em si mesmoa na- da experiência do mundo da vida. O que Husserl parece ter em vista
tureza idealizada.Contra essainterpretação, o autor recupera a prece- nesseponto é que a validação de tesescientíficas (tesesque podem tra-
dência do mundo da experiência concreta, que vale como solo de sen- tar de domínios objetivos que nem mesmo se doam diretamente à ex-
tido paraa própria atividadecientífica. Que fique claro, porém, que em periência, como é o caso lia física de partículas, por exemplo) supõe.o
nenhum momento tratou-sede afirmar que essemundo concreto é um apelo a experiências disponíveis no mundo da vida enquanto mundo
mero conjunto de dadossensíveiscompletamente alheios àsproduções
79. Como reconhece Husserl, "o mundo, que é o universo aberto,( . . .) campo uni-
predicativo e do teórico em suaprópria imediatidade pré-teórica" (Farges,2010b, 33) versal do ente, que toda a praxis pressupõe e enriquece nos seus resultados" (K, S 52:
As produções teóricasauxiliam na constituição doshorizontes de sentido por meio dos 180 itálico meu). Os resultados das atividades particulares contribuem, assim, para '
quais o mundo é vivido, ainda que de forma passiva,em sua concretude significativa. elaboraçãodo horizonte geral do mundo

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A cientificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

partilhado intersubjetivamente. Esse tema é explorado no parágrafo Cabe acentuar, entretanto, que o fenomenólogo notara essaexigência.
34b de K. Ali, observa-seque a validação das teses científicas depende O dado sensívelusado pelo cientista ou, em outras palavras, a evidên-
do recursoa evidênciasque não estãono mesmonível lógico-objetivo cia perceptiva de que ele se serve tem de ser "acessívela ele bem como
das teses defendidas, mas sim no nível das evidências mundanas co. a toda a gente no mundo pré-científico" (K, 128), asseveraHusserl
muns. Trata-se, por exemplo, das evidências perceptivas pelas quais se ao discutir especificamentea experiência de Michelson utilizada por
leem os resultados dos aparelhos de mensuração e se cometam dados Einstein. Fica aqui claro que, ao insistir na função fundamentadora
observáveispublicamente. Assim, em momentos cruciais de suaativi. da validade científica, Husserl não tem em vista o mundo da vida en-
dade, o cientista recorre às evidências do domínio subjetivo-relativo. quanto fenómeno sensívelprivado, e sim como estrutura de horizonte
que, nessesentido, "não funciona para ele como uma transcriçãoirre- intencionalmente densa, na qual os conteúdos sensíveis, os predicados
levante, mas como aquilo que é em última instância fundamentador culturais e as possiblidades de interações linguísticas estão entrelaça-
da validade de ser teórico-objetivo para toda confirmação objetiva, ou dos.O cientista, ao tratar o mundo como domínio em-si objetivo ou
seja, funciona como fonte de evidência, como fonte de confirmação mesmo ao tratar objetivamente do ser humano (enquanto conjunto de
(K, S 34b, 129). A atestação de teses objetivas, a afirmação da sua cor- órgãosem relações de dependência causal com o meio), depende das
reção, remete à experiência sensívelcotidiana, na qual se tem acesso evidências do mundo da vida para validar suas teses: evidências sen-
aosdados que efetivamente confirmam ou desconfirmam os resultados síveisinterpretáveis segundo normas de discurso racional, partilhadas
acerca dos domínios objetlvos. nas comunidades científicas, as quais estão inseridas em sociedades
Sem dúvida, Husserl valoriza nesseponto a experiência perceptiva complexas e que assimilam e reproduzem ritos e comportamentos em
como capacidade intencional fundente das validades das teses cientí- vigor em determinado período histórico. E esseconjunto perceptivo-
ficas. Dessaforma, é mantido o papel de destaqueatribuído à percep- normativo-tradicional que funciona como fonte de validade das teses
ção já no parágrafo28 de K: "em todasas confirmaçõesda vida na- das ciências objetivas80
tural de interesses,da vida contida puramenteno mundo da vida, o E assimque o mundo da vida é explicitado em seu papel de fun-
retorno à intuição 'sensivelmente' experienciadora desempenha um damento da ciência, e issoem uma dupla função: por um lado, como
papel proeminente" (K, 108). No entanto, como nota o comentador pressuposto constante de sentido para o desenrolar de cada passo da ati-
Claude Romano, em tom crítico, os resultados experimentais observá- vidade científica, e por outro, como fonte de evidências originárias res-
veis a que os cientistas recorrem para validar suas teses não têm valor ponsáveispela atestaçãoda validade das tesesacerca dos domínios obje-
de prova apenas porque são temas perceptíveis sensivelmente, como se tivos,muitas vezes,em si mesmosnão intuíveis. A ontologia do mundo
a percepção estivessea salvo de toda possibilidade de engano. O valor da vida revelaria, dessemodo, as condições "objetivas" últimas do co-
de prova dessesresultados experimentais jaz "na reprodutibilidade da nhecimento científico, referentesà doação da experiência pré-cientí-
experiência e na possibilidade de pâr-se de acordo sobre sua especifi- fica. Vale observarque essesresultadossão muito mais programáticos
cação para a teoria" (Romano, 2009, 120). O papel fundente dasevi-
dências do mundo da vida não está, assim, ligado à atestação perceptiva 80. Insiste Husserl em relação ao caráter intersubjetivo da vivência do mundo
individual, pois decorre dasinteraçõesracionaisem que se discutem cada um tem as suaspercepções, assuas presentificações, assuascoerências, desvalori-
zaçõesdas suascertezas em meras possibilidades, dúvidas, questões, ilusões. No viver em
os resultados experimentais na comunidade científica. Essaprecisão
relação mútua, porém, cada um pode tomar parte na vida do outro. Assim, o mundo não
de Romano é importante, na medida em que esclarece que não é o ca- é, de todo, existentesomente para a pessoaisolada, mas para a comunidade humana.
ráter privado sensívelaquilo que justifica ou funda as tesescientíficas. e, na verdade, isso já é assim pelo tornar-se comum da mera percepção" (K, S47, 166)

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A cientiHjcidadena fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

do que definitivos. A ontologia do mundo da vida ainda não é urn; dcZsubjetívídczdeque o vivência e assim o sustenta enqua7zto mundo sub-
ciência acabada,e, no correr de K, Husserl muito mais indica suasli. ktívo-re/atívo. Isso quer dizer que a antologia do mundo da vida não se
nuas gerais do que a desenvolve plenamente. Em todo caso, não deve encerraem si mesma, pois se abre para uma investigação das estrutu-
passar despercebido que, ao propor essaontologia, o fenomenólogo re. rasa pHorí da subjetividade em geral. Esseponto é sugerido no pará-
toma, de forma visivelmente ampliada, aquele esquemade fundamen. grafo37 de K. Ali, é esboçadauma distinção ontológica a priori basilar
acercado mundo da vida, a saber,aquela entre as coisasparticulares e
ração das ciências lançado muitos anos antes em Pro/egõmenos à J(5gíca
pura: levar à clarificação pressupostosjá em atuação na prática cien- o próprio mundo como horizonte geral englobante dessascoisas.Para
tífica, atribuindo, dessemodo, perfeição estrutural ao conhecimento darconta dessadistinção, deve-setornar visível "uma diferença funda-
científico, que, segundo seu sentido ideal, deve sempre remeter com mental na maneira da consciência do mundo e da consciência do ob-
evidência seusresultados aos princípios que os legitimam. ieto" (K, 146). A consciência do mundo será remetida à experiência
doshorizontes de sentido enquanto a consciência das coisasé marcada
pelasíntesede perfis parciais experimentados em uma progressãocoe-
C) Passagemà orientação transcendental rente. Importa acentuar que a possibilidade de lematização das pro-

O a priori do mundo da víd e a ãenomenoZogía priedadeseidéticas pelas quais o mundo da vida se manifesta implica
uma remissão às capacidades sub/etívas de apreensão. Conforme asse-
Por meio da ontologia do mundo da vida, Husserl tem em vista os veraHusserl no mesmo parágrafo: "essadiferença dos modos de ser de
componentes eidéticos do mundo pré-teórico pressupostosna atividade um objeto no mundo e do próprio mundo prescrevemanifestamente
científica. Essa oncologia se desenvolve sob a orientação natural do pen- a cada um modos de consciência correlativos fundamentalmente dife-
sar,o que significa que ela ofereceuma nova via de passagemà proble- rentes" (K, 146). Dessa maneira, a circunscrição de estruturas típicas
mática transcendental, assim como ocorria com as ontologias materiais vigentesno interior do mundo da vida só pode serfeita por uma expli-
no período dasIdeias. Como vimos, os temasontológicos servemde fios citação dos modos de consciência em que o mundo se doa como tal.
condutores para a explicitação dos fitos constituintes de sentido doscor- Ora, isso é bem diferente da exploração eidética das regiões objetivas
relatos visados. Entretanto a passagem da oncologia do mundo da vida à científicas, passíveisde investigação sem que houvesse uma remissão
fenomenologia transcendental envolverá especificidadesmarcantesem quaseimediata à consciência que produz o sentido de ser ali em pauta.
relação às outras vias abertas por Husserl no correr de sua obra. Nessecaso, a referência à consciência marcava justamente o início da
Paracompreender tais especificidades, voltemos, de início, a acen- reflexãofenomenológica, que se servedo a priori objetivo em questão
tuar a particularidade do a r)ríori do mundo da vida em relaçãoao a como fio condutor para tornar visível a atividade constituinte da sub
priori das regiões objetivas exploradascientificamente. O mundo da jetividade. Por sua vez, no caso da ontologia do mundo da vida, por sí
vida deve ser eideticamente referido aos sujeitos, já que sempre é "sub- mesmaela reenvia à tematização da subjetividade produtora de sentido
jetivo-relativo". Tanto é assim que, ao descrever as características eidé- Dessa forma, trata-se de uma antologia muito especial, que não isola de
ticas que restringem as possibilidadesfenomenais do mundo da vida, modo ingênuo um domínio objetivo de investigação, pois sua própria
Husserl não trata de espéciesde entes ou propriedades, e sim de modos execução impõe uma análise da subjetividade81. Daí Husserl comentar
de orderzaçãodas experiências, nos quais o estilo geral dos tipos feno-
menais mundanos se atesta. Dessa maneira, czoírzvestigar os írzvaríantes 8 1. Como bem nota J. Farges,"a ontologia do mundo da vida não é senãouma ta-
eidéticos do mundo da vida, é preciso remeter-seàs estaturas invariantes refapreparatória" (Farges, 20 10c, 49) para a investigação transcendental da experiência

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A cienti6icidadena fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

davida leva intrinsecamente à formulação de uma "ciência da subje-


tividade pré-doadora do mundo" (ibid.); em uma palavra, leva à feno-
menologia,enquanto investigaçãodos fundamentos subjetivos da ex-
periência do mundo em geral. A oncologia do mundo da vida foi con-
cebida como uma disciplina que explorada em sua base genética os
pressupostos objetivos das ciências, isto é, pressupostos ligados à pró-
pria distinção das regiões temáticas e dos métodos adequados para ex-
plora-las.No entanto, ao recuar ao mundo pré-teórico enquanto fun-
doação subjetivos por meio dos quais se vivenda o mundo, tema mar- dante do saber científico, revela-se um mundo eideticamente ligado à
cante da fenomenologiasz subjetividade,de maneira que, nessenível eidético fundente, as con
Como se vê, a antologia do mundo da vida não trata especifica- dições objetivas do conhecimento não são separáveis como um tema
mente das condições ob/et;vas últimas pressupostas pelas ciências. pois plenamente autónomo. Elas estão entrelaçadas às cor)dições subjetivas
a compreensão dos seus temas centrais exige uma investigação das es. de sua doação, de maneira que é preciso passarpara a análise fenome-
truturas eidéticas da consciência e da vida subjetiva como tal. Ao bus. nológica para que os fundamentos genéticos do saber sejam correta-
car revelar o a priori desse mundo, essaoncologia leva ao reconheci. mente elucidados.
mento da "vida universalmente produtora, em que o mundo jél para
nós permanentemente numa particularidade fluente" (K, S 38, 148).A
sua execução plena requer, então, uma análise das condições subjeti- A redução ãenomenoZ(igíca em A crise das ciências
vasda experiência, o que para Husserl é assunto de uma ciência muito A lematizaçãoeidética do subjetivo enquanto tal, das estrutu-
específica, a saber, a fenomenologia transcendental. Trata-se de uma rasa f)ríori que delimitam o que pode ser uma vida intencional que
ciência que "em contraste com todas as evidências objetivas até aqui apreendeum mundo concreto da experiência, implica, assim,a passa-
delineadas seria uma ciência do como universal da doação prévia do gem da problemática ontológica para a problemática transcendental.
mundo, ou seja, daquilo que constitui o seu ser-solo para toda e qual- Essapassagem já era anunciada no parágrafo 37 de K, em que Husserl
quer objetividade" (K, 149). Dessamaneira, a explicitação do mundo aponta para uma "tarefa que, como se verá, é muito maior e, na ver-
dade, que também abarca a formulação da oncologia do mundo da
do mundo. Cabe à fenomenologia transcendental "regressarreflexivamentedasunida- vida" (K, 145). Na continuação desse texto, o autor assevera: "essa te
des antológicas estruturais assim exibidas até a multiplicidade sintética de abasda cons-
mágica nova que concerne por essência ao mundo da vida, mas que não
ciência pura nas quais essasunidades se constituem e recebem seu sentido objetivo
ZDZ
é, entretanto, uma temática ontológica" (ibid.). Tem-se em vista nesse
82. S. Luft.ellfatiza que "a antologia do mundo da vida (. ..) produz um caminho ponto exatamente a investigação transcendental, que é exigida pela
para o transcendentall uma vez que entendamos que o mundo da' vida é um 'produto
da constituição- (. . .) É preciso a redução para explicitar a esfera da subjetividade trans-
análise ontológica do mundo da vida, embora não possaser confundida
cendental que constitui essemundo como o mundo da orientação natural« (Luft, 2004, com ela. Mantém-se aqui a distinção em vigor no período dasIdeias en-
2 19).A oncologia do mundo da vida exige, em razão do próprio modo como o mundo tre as ontologias, ciênciasdogmáticas,e a fenomenologia, ciência filo-
da experiência é nela desvelado, a assunção da orientação transcendental. No entanto,
conforme visto anteriormente, tal como apresentado em K, o tema do mundo da vida sófica que esclarece as condições subjetivas d priori do conhecimento e
está entrelaçado àquele da história da humanidade europeia. Veremos de que maneira da experiência em geral. A ciência da subjetividade pura, a fenomeno-
issoé levado em conta pela fenomenologia transcendental
logia transcendental, elucida os pressupostos subjetivos das atividades

368 369
A cieijtificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica na mundo da vida

cognitivas, inclusive aqueles por meio dos quais as próprias ontologias pensar e o correspondente abandono da orientação em que comu-
setornam possíveis. mente as ontologias são desenvolvidas.
Essa reafirmação da especificidade do trabalho fenomenológico A redução fenomenológica foi exposta com detalhes no segundo
(que não se confunde com a mera análise ontológica) complexifica o capítulo dessetexto, em que Ideias r é analisado. Pode-sedizer, sem
entendimento da relação entre a ontologia do mundo da vida e a feno- exagero,que Husserl retoma a radicalidade da aplicação da redução
menologia. Vimos que essaoncologia, uma vez que estávoltada à ex- daquele livro em K. Trata-se de desvelara vida produtora de sentido
plicitação do a priori subjetivo-relativomundano, conduz, em seu de- por meio da qual há a experiênciado mundo vivido concretamente
senrolar próprio, a uma consideração das estruturas da consciência que Dessemodo, não se deve pressupor nenhum componente do mundo,
sustentam e atribuem sentido à experiência mundana. No entanto essa ou, em outraspalavras,não se devepressupornenhuma validade de
consideração, ao se desenvolver como uma disciplina científica autó- ser já constituída como mundo, pois justamente o que está em causa
noma, não vai simplesmente ser um subtema no interior da ontologia é mostrar de que maneira o sentido de ser "mundo" é constituído
do mundo da vida. Afinal de contas, o estudo da subjetividade como Propõe-seentão a epoc/zéuniversal em relação à doação espontânea do
vida produtiva que atribui sentido e torna possívela experiência se faz mundo na vida científica e pré-científica, de maneira a tornar visível o
em uma orientação específica do pensar, diferente daquela das anto- seupuro aparecerfenomenal. AsseveraHusserl que, por meio da ePo-
logias em geral. Trata-se aqui da orientação fenomenológico-transcen- ché,"o olhar do filósofo se torna pela primeira vez inteiramente livre
dental. E, para assumiressaorientação, sem carregarpressupostosin- (. ..) do vínculo interno mais forte e mais universal de todos, e por isso
gênuos da orientação natural (em que as ontologias se desenvolvem), é mais oculto, o vínculo da pré-doação do mundo" (K, S41, 154). Vimos
preciso aplicar o método da redução fenomenológica. que o mundo da vida é o horizoíite universal de validade de ser pressu'
Lembremo-nos de que, no parágrafo 51, Husserl reconhece que posto por todas as nossasações e pelos interesses particulares, que su-
a oncologia do mundo da vida avança na orientação natural;;. No en- põem, assim, uma doação passivado sentido de ser do mundo. E justa-
tanto, já sabemos, em seu desenvolvimento essaontologia exige uma mente essavalidade ubíqua do mundo que deve ser suspensapela ePo-
investigação da subjetividade produtora de sentido da própria experiên- ché fenomenológica, o que implica uma neutralização da apreensão
cia do mundo, cuja investigação,por sua vez, não pode pressuporo ingênua do solo de validades mundanas e, por conseguinte, das práti-
mundo, que justamentetem seu sentidode ser constituídopor meio casparticulares que se erigem sobre eles'
das operaçõessubjetivas que se trata de explicitar. Há, assim, uma ten-
são inerente à ontologia do mundo da vida, o que talvez tenha levado
Husserl a chamar de absurda a sua própria empreitada, conforme cita- 84. Na experiência natural, o mundo da vida estádado como fundo universal de to-
dos os aros particulares; e esse "estar dado" é aceito ingenuamente sem que.se. pe'junte
ção acima. Afinal de contas, a investigaçãoda subjetividade, tornada por suascondiçõestranscendentaisde constituição. Conforme nota J. Dodd, "a questão
necessáriano interior da própria ontologia do mundo da vida, não será da realização do ter o mundo não é uma questão que possaser posta no interior da expe-
riência que foi formada e recebeu seu sentido no despertar do evento do mundo em.sua
por essaúltima completada, e sim pela fenomenologia, disciplina que
pré-doação. A própria aceitação do mundo como pré-dado bloqueia esta questão. (. . .)
exige para a sua consecuçãocorrera uma mudança na orientação do O mundo como pré-dado é justamente o mundo que não precisaserrealizado; ele sem-
pre lá foi 'tido' por nós,e não aparececomouma realizaçãoe sim como um horizonte
para realizações" (Dodd, 2004, 188-189). Soljlente por meio da epocbé fenomenal.ógica
83. "0 mundo da vida poderia sem qualquer interesse transcendental, ou seja, na suspende-sea validadedo mundo como horizonte no interior do qual os aros partícula
:orientação natural' ( . ..) tornar-se tema de uma ciência própria de uma ontologia do res se desenrolam; dessamaneira, abre-se o caminho para perguntar pelas próprias con-
mundo da vida como mundo da experiência" (K, 176). diçõesde constituição de sentido do mundo como horizonte pré-dado

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A cientiHlcidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

Segundo Husserl, ao praticar a epoc/zé,o filósofo "recusa-sea levar. terna de um modo de pensar dogmático e passaa servir como po:to
tar questões sobre o solo do mundo disponível, questões de ser, ques- de partida para as análisesconstitutivas transcendentes. Conforme afir-
tões de valor, questões práticas, questões pelo ser ou não ser, pelo ser vá. madono parágrafo50, "o mundo da vida torna-seuma primeira ru-
brica, z'ndíce,fio condutor intencional para o questionamento retros-
lido, ser útil, ser bom etc. Assim, todos os interesses naturais estão fora estruturas inten-
de ação" (K, 155). Por meio dessaef)oc/zé,garante-nos Husserl, "de um pectivo dos múltiplos modos de aparição e das suas
cionais" (K, 176). O mundo da vida perde a sua autonomia temática
só golpe" (K, S 40, 153) toda a efetividade ou validade de ser na qual
o mundo, enquanto estrutura de horizonte, se doa é suspensa Dessa (aqual, de fato, já era problemática no interior do próprio pensar on-
forma, o horizonte mundano e as experiências particulares que nele se tológico, como vimos) e "se transforma, em nosso contexto transcen-
desenrolam (teóricas ou pré-teóricas) sãopostosentre parênteses,isto é, dental-filosófico, no fenómeno meramente transcendental. [0 mundo
têm as suasvalidades de ser metodicamente interrompidas's. da viral permanece aí, em sua essênciaprópria, o que era, mas mos-
Por meio dessasuspensão dos interesses práticos e teóricos naturais büa-se,
então, por assimdizer, como mero 'componente'da subjetivi-
(inclusive aqueles por meio dos quais as ontologias são produzidas), é dadetranscendental concreta" (K, S 51, 177). Tal como ocorria em
possívelassumir o ponto de vista transcendental, que toma o ser mun- Ideias1, o mundo passaa vigorarna orientaçãofenomenológicaso-
dano como fenómeno manifestado nos nexos de experiência da cons- mentecomo fenómeno, como correlato das operaçõesda subjetivi-
ciência. Dessamaneira, reafirma-seem K (em particular nos parágra- dade constituinte, a qual, desde então, não tem exterior, já que todos os
domínios mundanos são a ela referidos justamente para receber o seu
fos 48-49) o prometode análise constitutiva sistematizado em Ideias l.
Aquilo que na experiência natural apareciacomo ser é reduzido pela sentido de ser.
epoc/zéao seu aPczrecer,e cabe, desde então, tornar evidentes assínte-
sessubjetivas pelas quais se atribui paulatinamente validade ontológica
O papel filndante da subjetividade transcendenüt
aos fenómenos revelados em sua pureza transcendental8ó.
De modo similar a Ideias 1, em K, Husserl também apresenta a
Ocorre, assim, uma transformação global da experiência mun-
dana, que deixa de ser vivida ingenuamente e passaa ser explicitada em subjetividade transcendental como absoluta, como um todo indepen-
suasfunções constituintes de sentido. O mundo da vida, que serviu de dente que envolve o próprio mundo enquanto seu correlato. Issoper'
via de acessopara a perspectiva transcendental, deixa de vigorar como mire resolveruma ambiguidade que despontavano interior da ontolo-
gia do mundo da vida e que também é central para a psicologia. Essa
85. "Pretendemos observar,concretamente, o mundo da vida circundante na sua ambiguidade já aparece no parágrafo 28 e é desenvolvida nos parágra-
desprezada relatividade e segundo todos os modos de relatividade que Ihe são essencial- fos 53 a 55 de K. Trata-se do estatuto paradoxal da subjetividade no
mente próprios, o mundo (. .) tal como se nos doa na simples experiência (. . .). N.ão .é mundo da vida. Tal como mencionado no parágrafo 28,
nosso tema, por conseguinte, se as coisas e as realidades do mundo são e o que são(.:.),
nem tampouco o que o mundo efetivamente é (. . .). Excluímos, por conseguinte, todos em termos do mundo da vida, somosnele objetos entre objetos,a
osconhecimentos,'todas asconfirmações do verdadeiro sentido e de verdades predicati- saber, estando aqui e ali, na certeza simples da experiência, antes
vas, tal como necessárias para a praxis da vida aviva (. . .); mas também todas as ciências
de todas as observaçõescientíficas (. . .). Somos por outro lado sujei-
(...) com os seus conhecimentos sobre o mundo tal como ele é 'em si', na 'verdade ob-
jetiva"' (K, S44, 158-159) tos para este mundo, a saber,como os eus sujeitos a ele referidos de
86. Na orientação transcendental, "todo ente vivido, para mim e para qualquer modo teleologicamente ativo (...), para quem este mundo circun-
sujeito imaginável, como sendona efetividade é, assim,conelativamente com necessi- dante tem somente o sentido de ser que nossasexperiências (. . .) em
dade de essência, índice de suas multiplicidades sistemáticas" (K, S48, 169) de modos
cadacasoIhe conferem (K, 107).
de doação subjetivos nos quais o sentido de ser se constitui.

373
372
J
A cíentificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida
+,

remeteao polo constituinte, que é revelado em toda a sua amplitude


pelafenomenologia transcendental8=
' A dificuldadede compreendera especificidadeda vida produ-
tora subjetiva sem o apelo à redução fenomenológica se faz sentir não
nomenais típicos do mundo da vida. No entanto, em sentido geral,o só na ontologia do mundo da vida, mas também na psicologia, con
mundo da vida é caracterizado conforme os modos de experiência em forme mencionei há pouco. Vimos que a psicologia moderna nasce
que ele se manifesta, o que supõe a subjetividade como atribuidora de sobo pressupostoda ciência matematizada da natureza, que de ante-
sentido ao próprio mundo. Desse último ponto de vista, os sujeitos não mão toma o mundo como conjunto de propriedades determinadas de
modo univocamente excito, em relação ao qual toda vivência subjetiva
sãoum mero componentetípico mundano, masaquilo mesmoque
constitui o sentido de ser do mundo. ' sereduz à interioridade psicológica, situada no interior da natureza já
Essa duplicidade do papel do sujeito é exprimida no parágrafo idealizada. Conforme o parágrafo 60 de K,
53 como "o paradoxoda subjetividadehumana". Ali seformula cla. a psicologia começou (...) com un] conceito de alma derivado do
o problema referente ao papel da subjetividade na antologia dualismocartesiano,que Ihe tinha sido oferecidopor uma ideia
do mundo da vida: "como pode uma parte constitutiva do mundo. a constitutiva anterior, de uma naturezacorpórca e de uma ciência
subjetividade humana, constituir o mundo inteiro, constituí-jo como matemática da natureza. Assim, foi a psicologia antecipadamente
sua configuração intencional?" (K, 183). No interior da oncologia do carregadacom a tarefa de ser uma ciência paralela e com a concep'
mundo da vida não há como solucionar esseparadoxo,já que ali a ção:a alma seu tema -- seria algo real em um sentido semelhante
subjetividade é atestadaconcomitantemente nessesdois papéis.É so- àquele da natureza corpórea, tema da ciência da natureza (K, 2 16)
mente por meio da passagemà orientação fenomenológico-transcen- O psicólogo moderno trata ingenuamente a vida psíquica como
dental que se hierarquizam de modo inequívoco essespapéis da sub- um domínio temático fechado (a interioridade da alma), tal qual a na-
jetividade, desfazendoo paradoxo vigente na orientação natural, em tureza corpóreo formaria por si só um domínio objetivo. Dessa ma-
que a antologia do mundo da vida é construída. Após a redução feno- neira, mal se consegue apreender a especificidade da vida subjetiva,
menológica, deve ficar claro que a subjetividade enquanto produtora conforme ela se deixa antever, ainda que paradoxalmente, na ontologia
de sentido é /urzdarzfeda subjetividade enquanto componente típico do mundo da vida. No parágrafo62 de K, Husserl critica, à luz dessa
da concreção do mundo da vida. Conforme asseveraHusserl, "na ePo- ontologia, a equiparaçãoda esferasubjetiva, interpretada como alma
c/zée no puro olhar parao polo eu funcional (. ..) não se mostranada
de humano ( . . . ), não se mostra o homem como real psicofísico -- tudo 87. J. Dodd observa com razão que a descrição ontológica do mundo da vida "é
isso pertenceao 'fenómeno', ao mundo como polo constituído" (K, um recurso importante na elaboração das implicações fllosó6icasdesseparadoxo. En-
S 54a, 187). Dessamaneira, desfaz-sea posição paradoxal da subjetivi- betanto, não se trata de um recurso suficiente para desfazer o paradoxo; o que ela faz
é permitir reconhecer que a ingenuidade da orientação natural oculta um paríldoxo
dade.As duas funções da subjetividade reconhecidas pela antologia do e que esseocultamento faz parte das próprias estruturasdo mundo da vida". (Dodd,
mundo da vida não estão no mesmo nível. Uma delas, a subjetividade 2004, 215). É por meio da descrição do mundo da vida que o caráter paradoxal da sub-
jetividade apareceenquanto um componente dessepróprio mundo. Dessa forma, a an-
como parte dos fenómenos típicos mundanos, é um polo constituído
tologia do mundo da vida anuncia a função transcendental da subjetividade Íá em.açãa
que, como todas as configurações concretas da experiência mundana, na experiência ingênua, função que serádevidamente tematizada pela fenomenologia

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A cientificidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

real, ao domínio de corpos estudadospela física. Essaequiparação"é perspectiva de Ideias l e 111,segundo a qual, em sua vertente eidética,
contrária ao que é essencialmentepróprio aos corpos e às almas, tal a fenomenologia delimita as restrições puras que fundamentam as in-
como é efetivamente dado na experiência do mundo da vida, de modo vestigaçõesempíricas psicológicas. No entanto, enquanto investigação
determinante para o selltido genuíno de todos os conceitos científicos" nscendental, a fenomenologia não se confunde com nenhuma on-
(K, 219). Nesseponto, a oncologia do mundo da vida é utilizada de cologia material, já que pressupõe uma modificação na orientação do
modo crítico em relação à psicologia empírica. Como todas as ciên- nsar na qual as ontologias são propostas;8
cias, a psicologia explora uma região temática específica. Entretanto, Enquanto descrição eídétíca da subjetividade, a fenomenologia
o estabelecimentofrutífero de um domínio científico deve respeitaras fundamentará materialmente a cientificidade da psicologia empírica,
restrições a priori que regem os agrupamentos fenomênicos em vista.A ao explicitar o a pHorí temático no interior do qual essaúltima deve
análise eidética do mundo da vida explicita ascaracterísticas marcantes se mover. Esclarecem-se,assim, os princípios específicosda investi-
dos fenâmeiios tais como manifestados na vivência pré-científica. Essa gação psicológica, sem modelar essainvestigação pelos esquemasdas
análise torna visível que a psicologia moderna mal conseguiu delimi- ciências físicas matemáticas. Há aqui um sentido maior nesse gesto
tar corretamente o seu âmbito de ação, visto que tenta explorar o seu fundante da psicologia. A fenomenologia, enquanto ciência eidética
tema central, a vida subjetiva, sem respeitar as particularidades eidéti- e transcendental da subjetividade, rompe com a interpretação redu-
caspelas quais ela se anuncia no mundo da vida. Segundo uma dessas tora da cientificidade pelas ciências exatas modernas, retomando, por
particularidades, a vida subjetiva é constituinte do sentido do mundo conseguinte, o ideal trans-histórico de cientificidade onienglobante.
da vida enquanto mundo experienciado concretamente. Conforme de- Segundo Husserl, "a filosofia, como ciência objetíva universal ( ..)
fende Husserl, "tudo no mundo da vida é manifestamente algo de 'sub- com todasas ciênciasobjetivas,não é, de todo, uma ciência univer-
jetivo"' (K, $ 63, 223), de modo que seria contrário à essênciados fenó- sal«(K, S 52, 179).A ênfaseem estudaro caráterem si do mundo, já
menos subjetivos trata-los como um domínio fechado (a interioridade
anímica) em paralelo ao domínio dos corpos físicos. Em outras pala-
88. Na verdade, a posição de Husserl sobre a psicologia no final de K envolve mais
vras, a vida subietiva não é redutível à interioridade psicológica. Dada complexidades.Admite-se, no parágrafo7 1, que na condução do .trabalhoda psicologia
sua estrutura intencional, a subjetividade estásempre voltada para os
correlatosmundanos, que, nessesentido, também compõem a esfera Ihl=liÉÜ'ililE::::: 1: m ir'1l$:':X8
72, dado esse caminho de passagem ente as reduçõe?, é a6lrmado. que "a. psicologia
subjetiva e deveriam então ser integrados a qualquer estudo que preten- 1,;1;':'=;';1'.;:1i=1'L=ü:l;'fRI..n,.«;?.nd'h''l .«m. .iê-l'j'.f' T11:yÜ'm:
desse compreender em toda a sua extensão a vida subjetiva. Isso já era 1;1il Jã:É;J,; '(K, IÍó 1). n-«"r ;«g". .m «I'çõ' à P?íc./ogi. ídéüca. «m «,"ím"t:
emethante àquele relativo à antologia do mundo da vida, que do.seu intenoí exige uma
atestado,ainda que de modo problemático, pela antologia do mundo
investigação da vida subjetiva em sua.dimensão tramcendental de produção ae :enuuo.
da vida, e só se resolvia com a passagem à fenomenologia transcenden- Confa7mecomenta J. Kockelmans,"o psicólogo lida com o mundo como um.p'oduto
tal. Da mesma forma, a psicologia, sob a influência das ciências físicas intersubjetivo de uma comunidade indefinidamente aberta de sujeitos cujas vidas cons-
cientes estão entrelaçadas. Mas a lógica dessedesenvolvimento exige.que o psicólogo
modernas, é incapaz de apreender satisfatoriamente a vida subjetiva, e realize a re(iução transcendental, de modo que se torne claro como ele, enquanto ega
também dependeda fenomenologia para vislumbrar a verdadeiraam- transcen(mentalpuro, apreende outros egos como similares a ele; e também que ele possa
ver como entra em comunicação com eles a fim de constituir, por cooperam;ãointersub-
plitude do seu tema. Daí Husserl reconhecer no final de K que a feno-
jetiva em suasdiversasformas, o mundo .idêntico único comum a todos' (Kockelmans-
menologia exerceo pape/ de psíco/agia pura, ou seja, de uma explici- 1987. 24). Dessamaneira, a delimitação dasestruturas eidéticas da subjetividade (a tareia
tação das características a priori do tema a ser explorado pela psicolo- central da psicologia eidética ou fenomenológica) exige o reconhecimento da a\ividade
hanscendental suc'lesiva,o que implica a passagempara a o'tentação fenomenológica
gia empírica, a saber,a subjetividade (Cf. K, S 72). Retoma-seaqui a

376 377
A cientificidade na fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida
4

presente na tradição antiga e que se tornou praticamente hegemónica epoc/zénada se perde" (K, S 52, 179; Cf. K, S41, 155) dos interesses e fi-
na Modernidade, não esgota a totalidade do ser, e as ciências objetivas nalidades particulares nas quais os diferentes aspectos típicos mundo da
daí derivadasnão devem pretender realizar de modo pleno o ideal de vida são vivenciados. Nada se perde da experiência natural, quer dizer,
conhecimento onienglobante. Essa ênfaseno "objetivo" ignora a es- a totalidade mundana que aí se prefigura é preservada, tendo apenas a
pecificidade da vida subjetiva, que envolve a totalidade do mundo en. sua validade de ser neutralizada para que sejam desveladas as etapas de
quanto fenâmeilo constituído nos nexos da consciência transcenden. constituição de seu sentido. Ora, cabe aqui lembrar que essajá era uma
tal. Por meio da elaboração da perspectiva transcendental, tornam.se das maiores promessas de Ideias 1. Ali, ao colocar o mundo entre parên-
visíveis as limitações das investigações lógico-objetivas tradicionais, e teses,surgia como resíduo a consciência purificada, na qual toda a expe-
reata-se com o sentido originário da tarefa científica. No parágrafo 56, riência natural poderia ser recuperada sob a neutralização dasvalidades
ao retomar o percurso de suas análisesanteriores, o autor reconhece já de ser nela em vigor (Cf. Idl, S 50). Vê-se, de modo geral, que, em K,
ter obtido, "em um esboço provisório, o estilo de uma filosofia trens. Husserl mantém as metas do prometoproposto em 1913; porém a via do
cendental efetivamente científica" (K, 195), e em seguida defende que mundo da vida permite evidenciar mais claramente a ausência de qual-
somente uma tal filosofia, numa tal indagação retrospectiva até o úl- quer perda temática na passagempara a orientação transcendental89.
timo fundamento pensável no ego transcendental, pode preencher o No parágrafo43 de K, Husserladmite que o caminho anterior
sentido inato à filosofia desde a sua fundação inaugural" (ibid.). A feno- para a epoc/zé,narrado em Ideias 1, era "muito mais curto" (K, 157),
menologia vem assimreavivar o ideal de cientificidade onienglobante e que essarapidez em atingir a orientação transcendental geravapro-
que deveria guiar a humanidade europeia. Dessa maneira, a $erzome- blemas:a via cartesianade ideias l conduzia "como que por um salto
no!ogia restabeleceriaa crença Tlaracionalidade comocapaz de tratar, já até o ego transcendental, mas esse,dado que falta toda exploração
cam rigor científico, mesmo das questõesreferentes ao sentido da existên- prévia, conduz o olhar até um aparente vazio de conteúdo" (K, 158).
cí.z(questõesque fazem parte da vida subjetiva no mundo), e aPorzfaHa Em Ideias 1, o ego transcendental é explicitado por meio da suspensão
f)ara umd saída da crise padecida pela humanidade europeia. da validade de ser da experiência do mundo, de maneira que se aceTl-
E importante acentuar de que modo a fenomenologia garantea tua a consciênciapura como aquilo que restada epoc/zé,ou seja,como
possibilidade de tematizar a vida subjetiva em sua universalidade. A via uma experiência eideticamente não dependente do mundo. Essaên-
de acessoà orientação transcendental privilegiada em K é aquela do fasepode sugerir, erroneamente, que a consciência vigora de modo se-
mundo da vida, que "fornece-nos de antemão, em sua típica essencial paradodo seu correlato intencional, o que lamenta mal-entendidos9'.
invariável, todos os temas científicos possíveis"(K, S 66, 229). Dessa Husserljulga agoraevita-los,uma vez que a via trilhado por K deixa
maneira, a totalidade do ser, que deveria ser a meta do conhecimento claro que a subjetividade transcendental é sempresub/etívídadepara
científico, estáantecipada na experiência pré-científica do mundo da um mundo colzcretoda exPeHêncía.Daí que a oncologiado mundo da
vida. Por conseguinte, ao tematizar a subjetividade transcendental pela vida exigisse do seu interior uma análise da subjetividade produtora de
via do mundo da vida, a fenomenologia respeita a totalidade do ser aí sentido.A correlação entre o mundo e a subjetividade é enfatizada, e
anunciado e abre uma linha de investigaçãocientífica desconhecida
pelas ciências objetivas, a saber, aquela da subjetividade enquanto pro- 89. Para um comentário detalhado acercadas particularidades do mundo da vida
dutora do sentido da experiência, e não meramente como interioridade como ponto de partida para a reflexão transcendental em contrastecom a orientação
natural tal como circunscrita em Ideias J, cf. Moran, 2013
psíquica dependente causalmente da natureza idealizada. Daí Husserl 90. Analisei no segundo capítulo a possívelfonte dessesmal-entendidos: o argu
afirmar ao menos em dois trechos que "na mudança de orientação da mento husserlianoda aniquilação, em pensamento, do mundo.

378 379
A cientificidade na fenomenologiade Husser] As ciências como produção histórica no mundo da vida

Cabe lembrar que todas as ciências supõem as operações da vida


subjetivaprodutora de sentido e que, ao investigar essaúltima, a fe-
nomenologia explicita as "condições subjetivas" pressupostas para a
obtenção do conhecimento em qualquer área. Nesse sentido, a tarefa
de fundamentação clarificadora do conhecimento, anunciada desde
Pro/egómenos à /ógíca pura, permanece ainda reconhecível, embora
não sejamais central. No parágrafo44 de K, Husserl reconhece que a
Fica assim mais claro que nada se perde da experiência natural na passagem do mundo da vida à subjetividade transcendental "foi origi-
pas:agem para a orientação transcendental. A totalidade de ser anun. ' ' A U lt=
nariamente motivada pela necessidade de aclarar realizações evidentes
dada na expe.ciênciado mundo da vida é respeitadana orientação dasciências positivas. Desta motivação já nos ] ibertamos. São agora ne-
transcendental, que a toma como fio condutor para as análisesconsti. cessáriasconsiderações mais profundas sobre como seu tema pode se
tutivas. E, dessamaneira, partindo da experiência concreta no mundo
tornar uma tareia autónoma, um campo de problemas a se trabalhar'
da vida, recupera-se a universalidade do fe/os da cultura europeia, uma IK, 159). O problema da fundamentação das ciências se torna, dessa
vez que se torna possível explicitar, por um lado, todos os temas cien.
maneira, um tema parcial no interior da investigação científica autó-
tíficos que se prefiguram na experiência pré-teórica do mundo e, por noma sobre a vida subjetiva produtora de sentido';. Husserl é extrema-
outro, a própria vida subjetiva produtora de sentido. Em relação ; esse
menteotimista em relaçãoà abrangênciatemática da fenomenologia
último aspecto,a fenomenologia abre uma dimensão fenomenal des-
No parágrafo 55, o autor nos garante que "não há nenhum problema
conhecida pelasciências objetivas;ela se firma, assim,como "ciência
da filosofia concebível com sentido até hoje e nenhum problema con-
nova" (K, S 43, 157), que tematiza algo encoberto pela cientificidade
cebível do ser em geral que a fenomenologia transcendental não tenha
objetivista. Dessaforma, a fenomenologia se coloca sob o ideal trans.
alguma vez no seu caminho de alcançar" (K, S 55, 192). Crê-se aqui
histórico de conhecimento universal e, assim,reinserea cultura euro-
que a fenomenologia poderá, com seus instrumentos críticos, reformu-
peia em seu movimento teleológico originário, que teria sido Obscure-
cido pela interpretação objetivista moderna9z lar todos os problemas filosóficos significativos, de maneira que parece
correto apresenta-lacomo a reformulação, em novo patamar, da inten-
ção rigorosa que guiava a produção filosófica desdeos seusinícios. A fe-
9.1
..ConformeafirmaHusse1lno parágrafo
52de K, "na epocbé
retomamosà (. ..)
s.ubjetividadejá dotada de mundo" (]80). Não se trata aqui de negar o experimento nomenologia abarcada, assim, até mesmo aqueles problemas referen-
da aniquilação em pensamento do mundo. Sem dúvida, a variação dos correlatosaté tesà existência humana, problemas com basenos quais se fez inicial-
o limite de não-mundos não implica a aniquilação das estruturas mais básicas da cons-
ciência, tais quais a intencionalidade. No entanto, em K, interessaao autor descrever mente o diagnóstico de crise das ciências. Essesproblemas receberiam
]s estruturas eidéticas da subjetividade enquanto voltada para um mundo da experiência da fenomenologia um tratamento científico, o que contribuiria a resta-
que perr7zffaa áormu/anão de cora/zecímenloscíerzfÜcos. Não se trata, assim, de desfazer belecero laço entre a cientificidade e a existência subjetiva concreta,
paulatinamente assíntesesde que o mundo seconstitui, conforme propostoem Ideiasl,
rompido pelas ciências modernas, que reduziram a vida subjetiva a um
mas.de explorar.em toda a sua riqueza o que está eideticamente implicado na experiên-
cia de um mundo concreto em geral. Parauma análise dasdiferentesvias propostaspor conjunto de efeitos psíquicos do mundo objetivo.
Husserl para a redução fenomenológica, cf. Kern, 1962; Drummond, 1975; Luft, 2004
92. Acerca desseideal, afirma Husserl, "o racionalismo da época do Iluminismo está
fora de questão, não mais podemos seguir os seus grandes filósofos, nem os do passado 93. Um resultado semelhante já havia sido extraído por Husserl quando da formu
em geral. A sua intenção, porém -- considerada no seu sentido mais geral --, não pode [ação da primeira versão da fenomeno]ogia transcendenta], no final da década de 1910
jamais morrer em nós" (K, S 56, 200)
conforme discuti no final do primeiro capítulo.

380 381
A cienti6lcidade na fenomenologia de Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida
r 4

O retorno crífíco à odenfação nafuraZ fenomenologia não termina com essalematização antinatural da ex-
periência natural. Husserl enfatiza em seus textos tardios que há um
Esboça-se,dessemodo, em termos bem gerais, um caminho para
fora do estadode crise da humanidadeeuropeia.Trata-seda renova. retomo da orientação transcendental para a orientação natural, a qual
ção do racionalismo por meio de uma ciência nova, que abarca com ri- então incorpora os resultados obtidos na primeira.
Aqui se deve atentar para a equivocidade desse"retorno". Conforme
gor os temas ligados ao sentido da existência concreta, ignorados pela
sugere Husserl, há um tipo de volta à orientação natural decorrente
cientificidade lógico-objetivo. Cabe aqui perguntar de que forma a in-
da mera írztermpçãoda atividade filosófica e retomada dos interesses
vestigação transcendental poderia oferecer um tratamento racional das
práticos da lida mundana. Nesse caso, nada se acrescenta à orienta
questões acerca do sentido e não sentido da existência. Husserl pouco
ção natural, que volta a ser vivida de modo transcendentalmente in
desenvolveefetivamente essespontos em K. No entanto, um tópico es-
gênuo. Diferentemente disso,a fenomenologia institui uma rzovare/a
boçado ali, além de em vários outros textos da década de 1920 e 1930
çãocom a experiêncianatural, por meio de um retorno a essaúltima
fornece algumas ideias de como a fenomenologia transcendental con-
que não é uma mera pausa na reflexão filosófica, pois envolve uma c/a-
tribuiria para a autocompreensão racional dos sujeitos históricos. Esse
rí/ícação cn'fica dos pressupostos transcendentais vigentes nessa expe-
tópico é aquele do retomo da oríerztação üarzscelzdenta/ para a oríerzta-
riênciaçs. Dessa forma, a fenomenologia não se esgota na suspensão da
ção natura/94. Em grande parte de sua obra, Husserl busca estabelecer a
orientação natural e exploraçãoeidétíco-transcendentaldosa priori aí
passagemda orientação natural para a transcendentalpor meio da ins-
em vigor. Mais que isso,a fenomenologia possibilita uma retomada crí-
tauração da investigação fenomenológica. Inúmeros esclarecimentos
tica da experiência natural, que não apagaos ganhos adquiridos com a
se fazem necessários quanto aos diferentes aspectos dessa investigação,
reduçãofenomenológica, quer dizer, que permite relacionar-secom o
de maneira que o filósofo dedicou muito tempo para elaborar vários mundo semd ingenuidade que marcava essaexperiência antes da prá-
textos que garantissem, de modo cada vez mais aperfeiçoado, a própria
tica da epoc/zé9ó.
A fenomenologia abre, assim, um novo modo de expe-
inteligibilidade de seu prometoglobal. Cabe aqui retomar a principal ra-
rimentar o existir mundano, por meio de um saber crítico acerca das
zão de suspender a orientação natural para assumir a orientação trans- operações constituintes de sentido aí em ação.
cendental. Não se trata de uma duplicação gratuita da experiência, da Segundo Husserl, na orientação natural pré-fenomenológica, "per-
criação de uma região artificial que o filósofo dominaria sem dificulda- manece constante e necessariamente oculto" (K, S 38, 149) o subjetivo
des, mas sim de pensar segundo um ponto de vísfa que não parti//za de enquanto produtor geral do sentido da própria mundanidade. Nessa
cenas "obvíed des" vígerztes za exPeríêrzcíanaturcz/, tendo em vista, as- situaçãopré-fenomenológica, "sou o eu transcendental, mas não sou
sim, tornar essaexperiência mais compreensível. A meta da fenomeno- conscientedisto, (. ..) estou totalmente entregue aos polos objetivos,
logia jamais foi isolar-seem um domínio separadoda experiênciana- inteiramentevinculado aos interessese às tarefasdirigidos exclusi-
tural, mas simplesmente modifica-la para revelar seus condicionantes vamente a eles" (K, S 58, 209). Isso quer dizer que na orientação na-
eidéticos e transcendentais. Importa agora acentuar que o trabalho da tural /á /zá atívídade tra7zscendenta/, e a passagem para a orientação

94. Algulls dessestextosestão contidos no volume XXXIV da coleção Husserliana, 95. Para Husserl, com o avanço das análises constitutivas, o fenomenólogo jamais
intitulado Zur phdnonzerzoZogíscAen
ReduÊtíorz.
Por exemplo,o primeiro texto publi- pode "recuperar a antiga ingenuidade" (K, S 59, 214), de maneira que só Ihe resta esse
cado nessevolume se chama "lama e epoché.O sentidoda redução fenomenológica. O retorno crítico à orientação natural
prob[ema do retorno à orientação natural (outubro 1926)" (Husser], 2002c, p. v.). Em 96. No S 72 de K, Husserl menciona claramente um "retorno à orientação natural
todo caso,vou me limitar aqui a tratar dos ecosdessetema em trechos de K agora não mais ingênua" (K, 267)

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A cientificidade na fenomenologiade Husserl As ciências como produção histórica no mundo da vida

fenomenológica não é a invenção de tópicos artificiais, e sim a expji- meio dela fica ao menos sugerido de que maneira a fenomenologia po
citação metódica das operações constituintes que atuam na vida mun. deria explorar rigorosamente a existência humana concreta e, assim
dana natural. A orientação transcendental torna visíveis essasopera- contribuir para minimizar os danos da crise das ciências
ções e possibilita, desde então, uma experiência natural ampliada pelo
entendimento da constituição de sentido das vivências mundanas.
Conforme nota Husserl, "cada nova descoberta transcendental enri.
quece, assim,no retorno à orientação natural, a minha vida anímica
(K, S 59, 2 15). A fenomenologia instaura a possibilidade de vivenciar a
existência concreta no mundo com um saber outrora ausente dos ele.
mentes constituintes transcendentais que nela operam. A subjetivi-
dade natural se reconhece, então, como subjetividade transcendental
esquecida de si, objetivada ou mundanizada9'; ela ganha, nessecaso.
por meio da fenomenologia, uma compreensão daquilo que ela já era,
porém de modo oculto, a saber,polo instituinte de sentido.A experiên-
cia natural é, dessaforma, elevadaa um novo patamar de autocom.
preensão no qual a subjetividade mundana se sabe portadora de capaci-
dades constituintes do sentido das situações confrontadas98. Conforme
mencionei há pouco, essatemática não é desenvolvidaem K, maspor

97. "Pertence essencialmente à operação constihidora do mundo que a subjetivi-


dade se objetive a si mesmacomo subjetividade humana, como conteúdo do mundo
(K, $ 29, 115-1 16). Muito se discute entre os comentadores sobre o sentido dessa mun-
danização da subjetividade transcendental. Não pretendo avançar nesse tema, mas so-
mente menciona-lo como exemplo dos tópicos criticamente desenvolvidospela feno-
menologia para problematizar a existência humana concreta. Parauma exposiçãode-
talhada do problema da mundanização do transcendental, cf. Van Kerckhoven, 2003
98. Ao exibir essestemas, a fenomenologia contribui para a difusão daquela pos-
furczcrífíca historicamente derivada do avanço da orientação teórica. Conforme visto
por meio dela, os sujeitosnão deveriam aceitar a arbitrariedade dos modos de vida tra-
dicionais, mas buscar justifica los à luz de princípios racionais, conforme expostona
primeira seção deste capítulo. Por sua vez, o retorno crítico à orientação natural im-
plica que os sujeitos desvelem os princípios gerais pelos quais atribuem sentido à pró-
pria experiência, a qual, em termos globais, deixa de ser vivida ingenuamente. Sobre
esseponto, comenta S.LuR: "a concepçãohusserlianade serhumano jdestaca]a ha-
bilidade de justificar a si mesmo em todos os momentos e de fontes profundas, que
devem estar na subÍetividade. Isso é viver uma vida crítica em sentido pleno, autocrí-
tica e crítica dos ouros e do mundo que criamos e moldamos.(...) Após a crítica feno-
menológica, o mundo foi compreendido a partir de suasfontes mais profundas como
sendo em todos os momentos um produto da criação humana. A mais profunda e então da ideia central de Husserl: a correlação entre subÍetividade e mundo da vida
abrangente compreensão do mundo, que leva a justifica-lo e a nós mesmos nele, deriva ll,uft, 2011,356)

384 385
Conclusão

Proponho sistematizar os principais resultados obtidos nesse longo


percurso analítico trilhado nos capítulos anteriores para então tentar
capturar o sentido geral da tarefa fenomenológica como crítica das
ciências.A empreitada central destelivro foi reconstruir o duplo papel
da cientificidade na obra de Husserl (tema e componente da fenomeno-
logia), tornando visível que há uma complexificação.paralela entre a te-
matizaçãoda cientificidade e o carátercientífico da fenomenologia. Ao
menos desdeProlegómenosà lógica f)ura a cientificidade é associada
ao caráter plenamente fundamentado ou justificado do conhecimento,
o que por sua vez exige uma ordenação sistemática capa: de veicular
essetipo de saber. Em Prolegõmerzos,Husserl considera que somente
os sistemas dedutivos são capazes de garantir a validade das relações
de fundamentação por meio das quais o conhecimento portaria cien-
tificidade (Cf. P, S 64). Essacláusula restringe a atribuição plena de
cientificidade às ciências moldadas conforme estruturasformais dedu-
tivas, segundo as quais todos os resultados são reenviáveis a princípios
explicativos fundantes. Cabia à /ógíca pura recensear os pr'ncíp'os, as

387
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Conclusão

leis e formas teóricas possíveis (nas quais o conhecimento científico se cadadomínio objetivo uma unidade regida por leis sintéticas czpriori,
exprime), oferecendo, assim,uma explicitação dos pressupostosObje- o que permite antever uma sistematização do conhecimento dessesdo-
tivos formais por meio dos quais a cientificidade é garantida. Por sua mínios também coordenada por relações de fundamentação (tal qual
vez, nessequadro teórico, cabia à áenomenologíainvestigar as condi- no caso da estrutura das teorias puramente formais), embora não de
ções noéticas de atestaçãoevidente dos conceitos e princípios basilares modo axiomático-dedutivo. Legitima-se, assim, que o caráter funda-
recenseadospela lógica pura, complementando, dessamaneira, a exi- mentado do saberse cumpra também em relaçãoàs ciências empíri-
bição dascondiçõesfundacionais do conhecimento científico. Deve-se cas,em particular em relaçãoàs disciplinasdescritivas,cuja unidade
notar, no entanto, que a fenomenologia ofereceuma crítica do Ganhe. teórica deve respeitara legalidade d f)ríorí conforme a qual o domínio
cimento em estilo descritivo,clarificando o conteúdo formal-objetivo investigado se compõe
da lógica pura ao remetê-lo à sua origem intuitiva. Ora, dada a restrição Em Ideias 1, Husserl sugere o desenvolvimento de ciências eidéti-
da cientificidade plena às ciências abstratasou nomológicas', resulta cas materiais (ontologias) para discernir as relações sintéticas a pHorí
que a própria crítica filosófica não poderia ser científica, em sentido que constituem as possibilidades ideais dos domínios estudados empi-
estrito. Dessamaneira, em Pro/egõmenos,a cientificidade é principal- ricamente. Desse modo, revelar-se-ia outro tipo de pressuposto obje-
mente lema da fenomenologia, mas não é ainda, em sentido forte, seu tivo que garante o caráter fundamentado das ciências não puramente
componente. Para que a fenomenologia seja uma ciência, é preciso am- formais. Os pressupostosfundacionais das ciências não são apenasas
pliar o escapo das relações sistemáticas de fundamentação do saber, estruturas formais estudadas pela lógica pura ou pela oncologia for-
de maneira que mesmo disciplinas que não são unificadaspela forma mal; no caso das ciências que se dedicam a domínios materiais especí-
axiomática-dedutiva sejam julgadas plenamente científicas. ficos, a própria estrutura eidética a pHorí daquele domínio condiciona
Reconstruo essaampliação tal como exposta nos textos de Inüodu- o avanço do conhecimento científico. Desde então, fundamentar as
ção à /ógíca e à teoria do con/zecímenfo e em Ideias 1. Ali, Husserl admite ciências do ponto de vista objetivo significa não apenas formular as res-
que os domínios objetivos a que as ciências não puramente formais se trições formais para a elaboração das teorias, mas também, no caso das
dirigem também operam como princípios essenciaisde unificação das ciências empíricas, tornar visíveis as restrições materiais czpriori que de
teorias. Em Pro/egõmenos, apenas as estruturas formais, baseadasdedu- limitam em termos de possibilidades ideais os tipos de fenómenos de
tivamente em princípios explicativos, ateavam como unificadores es- um domínio objetivo.
senciaisdo conhecimento teórico (Cf. P, S 64). Paraatribuir igual va- A essaampliaçãodasanálisessobrea cientificidade do ponto de
lor à referência aos domínios objetivos, Husserl desenvolve a ideia de a vista da sua fundamentação objetiva corresponde uma reformulação
príoH sintético ou material, inicialmente lançada em Irzvestígações ló- importante do prometofenomenológico. A descrição fenomenológica
gicas. As investigações empíricas não estão condenadas a diluir a estru- das vivências passa a ser considerada plenamente científica, e a fe-
tura fundacional da ciência ao se confrontarem com os fatos, pois es- nomenologia é apresentada como uma ciência da consciência pura
sesnão são meros agregadoscontingentes. Os domínios objetivos con- Explicita-se, dessa maneira, o caráter científico da própria fenomeno-
cretos instanciam possibilidades ideais que delimitam a príoH os tipos logia enquanto um tipo de doutrírza eídétícczmaferícz/que busca explo-
possíveis de fenómenos de que se compõem. Desse modo, haveria para rar de forma rigorosa as possibilidades ideais de um domínio eidético
particular, a saber, aquele da consciência. Desse modo, não é que a fe-
1. "101 objetivo essencial do conhecimento científico só pode ser alcançado pela nomenologia passoua ser científica porque Husserl a submeteu aospa-
teoria no sentido rigoroso dasciências nomológicas" (P, S 65, 239). râmetros de validade das ciências formais. Pelo contrário, o esforço do

388 389
A cientificidade na fenomenologia de Husserl Conclusão

filósofo nesseperíodo (1906-1913) foi o de garantir a cientificidade do pelo autor no correr da década de 1910 em diante. Vimos que o filósofo
procedimento descHfívo,corrigindo a estreiteza de Pro/egõmenosem propôs uma série de disciplinas eidéticaspara a explicitação dos pres-
relação a esseponto. supostosteóricos que garantem a cientificidade dos resultados cientí-
Deve-senotar, entretanto, que Husserl não reduz a fenomenolo. ficos. Em relação aos pressupostosobjetivos, caberia às antologias for-
gia a uma antologia material entre outrasquaisquer. A ampliação da mal e materiais formular asleis a príoH (analíticas e sintéticas)que tor-
cientificidade para além dos limites puramente formais é um movi- nam possívela produção sistemática de conhecimento. Em seguida
mento parcial na construção de um novo prometofenomenológico, de ao menos desdeo final da década de 1910, Husserl passaa explorar os
cunho transcendente/. Husserl deixa de associara fenomenologia à in- conceitosfundentes das disciplinas ontológicas não mais como dados
vestigação das capacidades noéticas ligadas à atestação dos temas da ló- científicosacabados,e sim como resultantesde processosde teoriza-
gica pura e atribui para ela a tarefa central de investigar as condições ção aplicados sobre a experiência pré-científica. Desde então, abre-se o
transcendentais do conhecimento em geral. E verdade que essaversão campo da invé?stígação
gelzétíccz
da cíentí/icídade, que busca explorar os
ampliada do problema do conhecimento já havia sido mencionada no condicionantes estruturais da experiência que antecede as possibilidades
parágrafo 65 de Pro/egõnzerzose na introdução de Investigações /ógícas ePístêm;cas
da orientaçãoteórica. Uma vez que o conhecimentoteó-
Contudo a problemática transcendental parece, nessasobras, restrita rico é fundado sobre a doação pré-teórica de conteúdos vividos, torna-
aos avanços da lógica pura enquanto ciência natural, a qual forneceria se imperativo investigar essadoação como um pressupostoda atividade
o material objetivo para que a análise das condições noéticas progre- científica. Do ponto de vista das condições objetivas materiais da expe-
disse.Em llztrodução à /ógíca e feoría do con/zecímento,Husserl escla- riência, issosignifica recuar das regiõesobjetivas cientificamente deli-
rece de modo definitivo que o problema transcendental não depende mitadas para o mundo da experiência pré-teórica. Husserl propõe uma
do avanço Factual das ciências, já que se põe no nível do direito. A cla- ontologia específica para essetema, uma descrição eidética do mundo
rificação fenomenológica dos conceitos fundentes das ciências deve da experiência que torne compreensíveis aspossibilidades de produção
se aplicar às ciências eidétícas objetivas, elucidando, assim, o funda- de conhecimento racional com base na doação pré-teórica dos con-
mento subjetivo delas mesmas e das ciências empíricas por elas funda- teúdos mundanos vividos. Essa oncologia do mundo da experiência é
das.E issoé estabelecidopor prínc@ío, isto é, ainda que nem mesmo fundente das antologias materiais específicas,as quais tratam de do
haja ciências eidéticas materiais desenvolvidas (com exceção da geo- mínios especializados de restrições ideais que compõem a essência de
metria). Dessemodo, o tema da fundamentação subjetiva dasciências um mundo concreto em geral. Do ponto de vista das condições sub-
é inserido em um contexto teórico muito mais vasto, a saber,aquele jetivas, Husserl amplia as descrições fenomenológicas para abarcar as
da investigação das condições transcendentais de qualquer conheci- operações subjetivas anteriores à atestação da validade dos conceitos
mento concebível. ontológicos basilares. Lembremo-nos de que o programa de clarifica-
Após acompanhar o estabelecimento da fenomenologia transcen- ção fenomenológica pretendia levar à origem fenomenológica os con-
dental como análise constitutiva estática da experiência e do conheci- ceitos básicos das disciplinas eidéticas, o que tornaria visíveis os pressu-
mento, tentei mostrar como Husserl amplia o prometofenomenológico postostranscendentais de constituição de sentido dessesconceitos. Em
ao abarcaras problemáticas genética e histórica da produção do sen- regime de análise fenomenológica genética, o reenvio à origem feno-
tido. Essasproblemáticas se desenrolamna obra husserlianade modo menológica TlãOse encerra ao revelar os atos subjetivos em direta corre-
muito mais complexo do que expostonestetrabalho. Limitei-me a reto- lação com os conceitos basilares das ontologias, mas recua até o desve-
mar o papel da cientificidade à luz dessasnovasabordagensexploradas lamento das camadassubjetivas fundentes dessesfitos superiores, o que

390 391
A cientificidade na fenomenologiade Husserl Conclusão

leva Husserl a explorar as sínteses passivascomo responsáveis pela aber- fenomenológica. Por meio da ontologia do mundo da vida, Husserl sis-
tura pré-teórica ao mundo da experiência. tematiza tanto um novo nível da análise dos fundamentos das ciências
Das análises fenomenológicas genéticas, eu reconstruí somente a quanto uma nova via introdutória à fenomenologia transcendental.
descriçãoda indução originária da percepção,contida no curso Natu- Ocorre que, ao menos em A crisedas ciênciaseuropeiase d áeno-
reza e espírito 1927. Em muitos outros textos, tais como Aná/iões so- merzologíatranscenderzta/,a exploraçãodo mundo da vida como hori-
bre as síntesespassivas,MaTtuscritosde Bemau e Expaiência e juíza, zonte pressupostoe solo de sentido para as atividades científicas não
Husserl descreve níveis ainda mais básicos da ordenação da experiên- operade modo isoladocomo uma via de passagemà fenomenologia
cia pré-teórica, tornando visível como as próprias categoriasbasilares transcendental. No quarto capítulo, tentei mostrar que Husserl propõe
da onto]ogia formal encontram sua gênesena síntesepassivados con- uma ílzvestígaçãode serztídoque tematiza o caráter bísf(iríco da cientifi-
teúdos percebidos. Tal qual em outros momentos deste trabalho, não cidade, enquanto uma ideia-guia transmitida e reativada por uma longa
busqueireconstituir em detalhesnenhum dos resultadosobtidospe- cadeia de gerações. Trata-se de buscar os nexos motivacionais que pro-
las diferentes versõesdo prometofenomenológico, mas simplesmente duziram transformaçõesmarcantesna ideia de ciência em momentos-
mostrar como esseprometose desenvolve em paralelo à tematização chave da história. Em particular, o filósofo pretende ter mostrado que a
da cientificidade. Além disso, em relação às análisesgenéticas, inte- constituição da ciência matemática da natureza, na Modernidade, su-
ressou-mesalientar que elas oferecem uma via de introdução à feno- pôs uma interpretação restritiva do ser do mundo e, por conseguinte,
menologia que relativiza a cisão entre condiçõessubjetivase objetivas da tarefa onienglobante definidora da ciência (estudar tudo aquilo que
do conhecimento. Esseponto é tornado explícito no quarto capítulo, é). As propriedades fenomenais descritíveis matematicamente passam
em que analiso principalmente alguns textos husserlianosda década a ser ingenuamente tomadas como os componentes efetivos da reali-
de 1930.Husserl desenvolveo tema da ontologiado mundo da expe- dade mundana, e os aspectos subjetivos da experiência passam a ser
riência pré-teórica por meio da noção de mtz7zdo
da vida enquanto solo concebidos como efeitos causalmente reconduzíveis a interações en
sensível-cultural-históricode sentido para as produções científicas. E tre as propriedades "exatas" mundanas. Sedimenta-se, assim, uma in-
proposta a oito/ogia do mundo da vida, ou seja, uma descrição das es- terpretação objetívísta do conhecimento científico, que desfia/oríza
truturas essenciaispelas quais o mundo é vivenciado como horizonte a subjetívíd de enquanto instância autónoma instituinte da própria
sempre pressuposto para as atividades subjetivas. Ocorre que essaon- cientificidade e instaura uma crise da própria humanidade europeia
cologia do mundo da vida, supostamente uma disciplina eidética ma- enquanto humanidade formada sob a vigência do ideal originário de
terial que explicitada as condições objetivas últimas do saber, revela ciência. E nesseponto que as consideraçõeshistóricas se entrelaçam
como estruturas essenciaisa prior do mundo não um conjunto de en- com asanálises genéticas do mundo da vida como fundente de todo sa-
tes ou atributos, mas /amas de shtese, quer dizer, operações subjeti- ber. A concepção científica moderna da realidade mundana como um
vas. Dessa maneira, no nível pré-teórico, as condições objetivas para a conjunto de atributos físicos passíveisde apreensão excita apaga o pa-
atividade científica (as restrições referentes à ordenação lógica das teo- pel fundante da experiência pré-científica do mundo na produção do
rias e às possibilidades ideais que definem domínios materiais de atua- conhecimento, tema que Husserl havia explorado sistematicamente ao
ção) não estão separadasda experiência concreta do mundo. A análise menos desde os cursos Natureza e esPúífo. Dessa maneira, um cami-
genética dos condicionantes pré-teóricos da atividade científica exige, nho para abandonar a concepção restritiva do ser vigente na interpre-
assim, unia investigação dos modos subjetivos de ordenação da expe- tação objetivista moderna das ciências é lançar a oizto/ogía do mundo
riência mundana, ou seja, exige a passagem para a análise constitutiva da vida, a qual torna explícitos, com o rigor promovido pela intuição

392 393
Conclusão
A cientificidade na fenomenologiade Husserl

de essências,aspectosconstituintes da experiência do mundo que não defendidas ou as substituam por teorias que julguem mais satisfatórias.
são abarcados pelos modelos explicativos das ciências matemáticas Desse modo, nenhuma geração pode vangloriar-se por abranger teorias
modernas. Como vimos, essaantologia exige, do seu interior, uma in- construídas sobre bases definitivas, embora a busca por conhecimento

vestigaçãotranscendental da atividade constituinte da subjetividade. fundamentado deva guiar a produção científica de todas elas:
Estabelece-se,assim,como fio condutor para a fenomenologia trans- Por sua vez, no correr de sua obra, Husserl sempre defende que
cendental não só a experiência pré-cielltífica do mundo, mas também cabe à fenomenologia tornar explícitas as condições subjetivas que fun-
damentam o conhecimento científico, isto é, as estruturas a pHorí dos
astransformações históricas do sentido de ciência. Por sua vez, a passa-
gem para a orientação transcendental marca, no período final da obra atousubjetivosque constituem o sentido da própria objetividade a ser
husserliana,não só a instituição da fenomenologiacomo ciência da investigada pelas ciências. E essatarefa envolve, tal como reconhecido
ao menos desde 1906,uma cientificidade própria. A fenomenologia é
consciência pura, mas também como disciplina responsávelpor rea-
então sistematizadacomo uma ciência capaz de oferecer os fundamen-
vivar o ideal-guia de cientlficidade então recoberto pela interpretação
objetivista. E essareativação realimentaria as esperanças na transfor- tos críticos (ligados às operações da subjetividade) a todas as demais
ciências. No entanto é preciso cuidado para entender corretamente
mação racional da humanidade, o que arrefeceriaa aguda crise cons-
tatada pelo autor no início de A crise das ciências europeias e d Óelzome- essaprecedência da fenomenologia transcendental em relação às
no/agia transcendenfa/. outras disciplinas científicas. Não se trata certamente de pretender as-
De maneira bastante sintetizada, essefoi o percurso trilhado por segurar o conhecimento científico, tornando certas as teorias dos mais
estetrabalho. Torna-se patente que Husserl foi paulatinamente dando- diversosâmbitos de pesquisa.A fenomenologia almeja elucidar os pres'
se conta da complexidade de pressupostosque garantem a cientifici- supostostranscendentais que condicionam a produção do saber cientí-
dade do conhecimento científico. Do ponto de vista das condições ob- fico semserdevidamente reconhecidospor tal saber.Essaexibição dos
fundamentostranscendentaisdo conhecimento não implica, em prin-
jetivas, não só a infraestrutura lógica garanteo caráter fundamentado
do saber, mas também restrições czpriori materiais (no caso das ciên- cípio, nenhum aperfeiçoamento das teorias científicas. Lembremo-nos
cias empíricas), além de condicionantes genéticos (nos quais os atou de que, ao apresentara problemática transcendental no curso ll.TC,
teóricos superiores estão fundados) e históricos (que demarcam para Husserl alertava que era indiferente se o conhecimento científico es-
tivesse desenvolvido de forma plena ou apenas em seus rudimentos,
asgeraçõesde cientistas o sentido e o alcance de suaspróprias tarefas).
Essacomplexificação da análise temática da cientificidade deixa explí- uma vez que o questionamento banscendental não sepõe no nível dos
cito que Husserl não defende algum tipo de fundacionismo segundo fatos, mas naquele das condições de possibilidade a priori das ciências
o qual para haver ciências é preciso dispor de fundamentos que garan- em geral. Isso'quer dizer que a análise constitutiva transcendental não
concorre ou colabora com as teorias científicas vigentes, que estão vol-
tam attzaZmente
a legitimidadede todo resultadoteórico proposto.A
cientificidade das ciências enquanto caráter fundamentado do saber é tadaspara seusdomínios objetivos, enquanto a fenomenologia procu'a
reconhecida já nos textos iniciais do autor, e principalmente naque-
les em que trata da história, como uma c07zdíção ídea/ cuja realização 2. Essaperspectiva de aperfeiçoamento interminável das teorias científicas vale
r-''r"' ' '
paraafenomenologia,que,lo lge
. de ser
. um sistema
. filosófico acabado,é reconhecida
..----...Á
enganageraçõesde cientistas em um trabalho colaborativo interminá-
como uma investigaçãocientífica também submetida às limitaç.ões,daépocaem que:e
vel. A cada geração,busca-seconstruir as melhores teorias possíveis produzida. Esseponto lá 6ca claro na seguinte passagemde ideias l: "a fenomenologia
por meio dos dadose recursosmetodológicos disponíveis.Nada disso sedá em nossasexponçoes como ciência que está em seu início. Somente o futuro há de
ensinar o quanto dos resultados das análises aqui tentadas é definitivo" (Idl, S'Jb, Z't l ).
impede que as geraçõesfuturas encontrem falhas nas teorias outrora
395
394
A cientificidade na fenomeno]ogia de Husser] Conclusão
F 4

revelar, em sua validade eidética, as condições subjetivas que consti- Diante disso, deve-seter em conta que a posição de Husserl em
tuem o sentido do conhecimento científico em geral. relação às ciências equilibra-se entre dois pontos. Por um lado, a crí-
Deve-se notar que essaabsoluta neutralidade em relação à pro- tica fenomenológica revela as estruturas subjetivas czpríoH que condi-
gressãofactual das ciências parece ser relativizada ao setratar da psico- cionam de modo eidético a produção científica, sem que isso interfira
logia. Vimos diferentespassagens em que Husserlcritica explicações em nada na particularidadedas teoriasatualmenteaceitas.Mas, por
de cunho psicológico experimental para alguns fenómenos da cons- outro lado, à medida que a análise constitutiva fenomenológica foi am-
ciência e mesmo para a possibilidade do conhecimento. Nessescasos, pliando seuescopotemático paraalém dascorrelaçõesintencionais es-
porém, trata-semuito mais de uma indevida invasãoda psicologia na táticas, explicitando condicionantes genéticose históricos à cientifici-
searafilosófica do que o contrário. Por exemplo, é porque a psicologia dade, abre-sea perspectiva de uma crítica transformadora das ciências,
experimental pretende reduzir a possibilidade do conhecimento a uma caso essas,mal orientadas por interpretações filosóficas questionáveis,
análise de episódios cognitivos factuais que ela é criticada, uma vez que ignorem os condicionantes estruturais oriundos do mundo da vida e da
essetipo de abordagem elude o caráter especificamente a pdorí do pro- própria historicidadeda empreitada teóricas.Esseponto novamente
blema transcendental. Husserl deixa claro o alcance da sua crítica na
pode ser exemplificado pela psicologia. Fascinados pelos íiotáveis re-
seguinte passagemde Ideias l: "se é efetivamente a ciência da natureza sultados dos métodos matemáticos em física, os psicólogos insistiram
que fala, nós de bom grado ouvimos, na condição de discípulos. Mas em mensurar as atividadessubjetivas,como se a obtenção dessesda-
nem sempre é a ciência da natureza que fala quando falam os cientis- dos objetivos por si só esgotassea especificidadeeidética da vida sub
tas naturais, e seguramente não é ela quando eles falam em 'filosofia da jetiva (Cf., p. ex., K, S 11). Por sua vez, as descrições fenomenológicas
natureza' e de 'teoria do conhecimento da ciência natural"' (Idl, S 20, da subjetividade tornam visíveis condicionantes estruturais que não se
46). O fenomenólogo não pretende nenhuma intervenção nas teorias deixam revelar por meio de fatos mensuráveis (Cf., p. ex., Idl, SS73-
científicas construídas corretamente conforme os métodos vigentes nas
75). Indica-se,dessamaneira, que a hegemonia do modelo matemá-
áreas do saber; no entanto, quando cientistas servem-se dos métodos tico do saber, instaurado na Modernidade, não dá conta de abarcar "a
empíricos para tratar de questões da ordem do direito (tais quais aque-
totalidade daquilo que é" nem, por conseguinte, de realizar o ideal de
las acerca da possibilidade do conhecimento), eles estão na verdade to-
saberonienglobante. Ainda que essaindicação não implique que o filó-
mando posições filosóficas específicas, as quais são passíveisde crítica
sofo desautorize diretamente as teorias empíricas tingidas por interpre-
conceptual. Tratar os problemas clássicos filosóficos por métodos em-
tações filosóficas frágeis, pretende-se garantir por meio dela ao menos
píricos implica tomar partido nos debatesfilosóficos de um ponto de que a reflexão filosófica tenha algo a contribuir nas discussõesacerca
vista muito particular, o qual pode então ser legitimamente criticado
do direcionamento histórico e da abrangência teórica das ciências dis-
por outros pontos de vista filosóHcos. [)aí a crítica fenomenológica ao
naturalismo e ao objetivismo, os quaissãomuito mais interpretaçõesfi-
losóficas associadasao trabalho científico do que parte essencial desse 3. Comenta Husserl sobrea importância do ponto de vista fenomenológico paraa
ciência: "o conhecimento do método constitutivo 'interior', onde todo método cientí
trabalho e de seusresultados.No entanto, dado que o objetivismo te- fico-objetivo recebe o seu sentido e possibilidade, não pode ser certamente sem signifi-
nha fomentado uma compreensão redutora do ser e da tarefa histórica cado para o pesquisador da natureza e para cada cientista objetivo. Posto que setrata do
mais radical e profundo autoestudoda subjetividade realizadora,como não deveriaser-
da ciência geradora da crise da humanidade europeia, vê-se que a crí-
vir para prevenir a realização ingênua-habitual de erroscomo, por exemplo, se pode ob-
tica fenomenológica das interpretações associadasà atividade cientí- servarcopiosamentena influência da teoria do conhecimento naturalista e no endeusa-
fica não é uma tarefa menor. mento de uma lógica que não se compreende a si mesma?" (K, S 55, 193)

396 39
A cientifícidade na fenomenologia de Husserl
'v
poníveis. Em particular, trata-sede problematizar os limites teóricos do
modelo dominante de pesquisacientífica desde a Modernidade, e de
sugerir o desenvolvimento de novasestratégiasde investigação que per-
mitam o cumprimento da vocação universalizante do conhecimento
científico. Essacontribuição não se pauta pelos critérios técnicosvi-
gentes internamente a cada disciplina científica para testar suas hipóte- Referências bibliográficas
ses, mas assume o ponto de vista da descrição eidética da subjetividade
produtora do próprio saber'. É desseponto de vista, uma vez realizada
a crítica às interpretações redutoras da tarefa científica, que se pode
antever uma ressignificação da importância da ciência para a humani-
dade, de maneira a apontar uma saída para a crise em que essaúltima
encontra-se mergulhada.

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Ao longo dos quase quarenta anos de sua carreira' Êfosóâca, Edmund
Husserl desenvolveu a fenomenologia em diferentes versões que foram sendo
ulteriormente elaboradas durante seusestudos.Neste livro, reconstruímos
aspectos centrais de quatro formulações do projeto fenomenológico husser-
liano a fenomenologia noética; a fenomenologia transcendental estática;
a fenomenologia transcendental genética e a fenomenologia transcendental
'histórica" --, buscando mostrar as interconexões entre essas formulações e

tornar explícita certa complexificação progressivadas pretensõesfenomeno'


lógicas aí contidas. Nossa hipótese de leitura é que um fator decisivo para as
modificações nesseprojeEOfenomenológico foi a constante reflexão do autor
acercadaquilo queconstitui a cientificidade dasciências.Essareflexão,por
um lado, delimita o sentido e o escapo da investigação fenomenológica por
demarcação desta com asciências e, por outro, estabelece como tarefa feno-
menológica nuclear a fundamentaçãode todo o conhecimento científico.

Marcus Sacrini é professor livre-docentedo departamentode Filosofia da


Universidade de São Paulo, onde trabalha desde 2010. Sua formação acadêmíca
centrou-se na filosofia contemporânea, em particular na tradição fenomenológica
Publicou dois livros sobre Merleau-Ponty 10 trar7scender?ta/
e o ex/sferlfe em
Merleau-Ponty, 2006. Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponta, 2Q09\
e desenvolveu um estudo sobre a argumentação, que foi explorado no livro
/nfroduçáo à aná/ise argumentar/va. ãeoría e prática, 2016. Além disso, possui
diversos artigos em revistas nacionais e internacionais.

ISBN 978-85-15-04564-8 Q

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