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M.

BRAGA DA CRUZ

Teorias Sociológicas
OS FUNDADORES
IVOL. | E
OS CLÁSSICOS

(ANTOLOGIA DE TEXTOS)
$
x
'

4.º edição

SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS


FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN | LISBOA
º (1872-73); Dialéctica da Natureza (1875-76); Anti-Duering (1878); Do
Socialismo Utópico ao Socialismo Científico (1880); A Origem da Família,
da Propriedade e do Estado (1884); Ludwig Feuerbach e o Fim da Filo-
sofia Clássica Alemã (1886).

1. TESES SOBRE FEUERBACH (*)

A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias


'— o de Feuerbach incluído — é que as coisas [der Gegenstand], a reali-
:dade, o mundo sensível são tomados apenas sob a forma do objecto [das
Objekte] ou da contemplação [Anschauung]; mas não como actividade
sensível bumana, práxis, não subjectivamente. Por isso aconteceu que
o lado activo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idea-
lismo — mas apenas abstractamente, pois que o idealismo naturalmente
não conhece a actividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objectos
[Objekte] sensíveis, realmente distintos dos objectos do pensamento; mas
não toma a própria actividade humana como actividade objectiva [gegen-
stândiiche Tátigkeit]. Ele considera, por isso, na Essência do Cristianismo,
apenas a atitude teórica como a genuinamente humana, ao passo que a
práxis é tomada e fixada apenas na sua forma de manifestação sórdida e
judaica. Não compreende, por isso, o significado da actividade «revolu-
cionária», de crítica prática.

A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade


objectiva nãoé uma questão de teoria, mas uma questão prática. É na
práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade

(*) Ob. cit. 1 vol. (1982), p.p. 1:3


|
o

e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a reali- 6


dade ou não-realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma .
questão puramente escolástica. Feuerbach resolve a essência religiosa na essência humana. Mas a
essência humana não é uma abstracçãoinerentea cada indivíduo. Na Na su
sua
“realidade ela é o conjunto
A das relações sociais.
Feuerbach, que não entra na crítica desta essência real, é por isso
3
obrigado:
1. a abstrair do processo histórico e a fixar o sentimento [Gemiit]
A doutrina materialista de que os seres humanos são produto das cir- religioso por si e a pressupor um indivíduo abstractamente
— isolada-
cunstâncias e da educação, [de que] seres humanos transformados são por- mente — humano;
tanto produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada, 2. nele, por isso, a essência humana só pode ser tomada como
esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres «espécie», como generalidade interior, muda, que liga apenas naturalmente
humanos e que o educador tem, ele próprio, de ser educado. Ela acaba, os muitos indivíduos.
por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma
das quais fica elevada acima da sociedade (p. ex., em Robert Owen). 7
A coincidência do mudar das circunstâncias e da actividade humana
só pode ser tomada e racionalmente entendida como práxis revolu- Feuerbach não vê, por isso, que o próprio «sentimento religioso» é
cionantite. um produto social e que o indivíduo abstracto que analisa pertence na
realidade a uma determinada forma de sociedade.

4 8
i A : :
| A vida socialé essencialmente prática. Todos os mistérios que
Feuerbach parte do facto da auto-alienação religiosa, da duplicação
;seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na
do mundo num mundo religioso representado, e num real. O seu trabalho
ipráxis humana e no compreender desta práxis.
- consiste em resolver o mundo religioso na sua base mundana, Ele perde
de vista que depois de completado este trabalho ainda fica por fazer o prin-
cipal. É que o facto de esta base mundana se destacar de si própria e se 9
fixar um reino autónomo, nas nuvens, só se pode explicar precisamente | O máximo que o materialismo contemplativo [der anschauende Mate-
pela autodivisão e pelo contradizer-se a si mesma desta base mundana. |rialismus] consegue, isto é, o materialismo que não compreende o mundo
É esta mesma, portanto, que tem de ser primeiramente entendida na sua sensível como actividade prática, é a visão [Anschauung] dos indivíduos
contradição e depois praticamente revolucionada por meio da eliminação 'isolados na «sociedade civil.
da contradição. Portanto, depois de, por exemplo, a família terrena estar
descoberta como o segredo da sagrada família, é a primeira que tem então 10
de ser ela mesma teoricamente criticada e praticamente revolucionada.
O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade «civil»; o ponto
de vista do novo a sociedade humana, ou a humanidade socializada.
5
11
Feuerbach, não contente com o pensamento abstracto, apela ao
conhecimento sensível [sinnliche Anschauung], mas não toma O mundo | Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes;
sensível como actividade humana sensível prática. a questão, porém, é transformá-lo.

8 9 i
2. A IDEOLOGIA ALEMÃ (*) .

pH

| [£.1] Segundo anunciam ideólogos alemães, a Alemanha passou nos


últimos anos por uma revolução sem paralelo. O processo de decompo-
sição do sistema de Hegel, iniciado com Strauss, transformou-se numa fer-
mentação universal para a qual são arrastados todos os «poderes do pas-
sado». No caos geral, poderosos impérios se formaram para logo de novo
ruírem, emergiram momentaneamente heróis para serem de novo reme-
tidos para a obscuridade por rivais ousados e mais poderosos. Foi uma
revolução ao pé da qual a Revolução Francesa é uma brincadeira de
crianças; uma luta universal face à qual as lutas dos Diádocos parecem mes-
quinhas. Os princípios expulsaram-se uns aos outros, os heróis do pensa-
mento derrubaram-se uns aos outros com uma pressa inaudita, e nos três
anos entre 1842 e 1845 varreu-se mais do passado na Alemanha do que
anteriormente em três séculos.
Tudo isto teria ocorrido no pensamento puro.
Trata-se, por certo, de um acontecimento interessante: do processo
de putrescência do espírito absoluto. Depois de extinta a última centelha
de vida, as várias partes constitutivas deste caput mortuum entraram em
decomposição, estabeleceram novas combinações e formaram novas subs-
tâncias. Os industriais da filosofia, que até aí tinham vividdo da exploração
do espírito absoluto, lançaram-se agora sobre as novas combinações. Cada

(*) Primeiro capítulo de A Ideologia Alemã. Ob. cit., I vol., (1982), pp. 4-62.

ii
Toda a crítica filosófica alemã de Strauss a Stirner se reduz à crítica
um procedeu, com o maior zelo possível, à venda ao desbarato do qui-
de representações religiosas. Partiu-se da religião real e da autêntica teo-
nhão que lhe coubera. Isto não podia sair bem sem concorrência. Esta
logia. O que são consciência religiosa e representação religiosa foi poste-
foi inicialmente conduzida de um modo bastante burguês e respeitável. riormente definido de maneiras diversas. O progresso constitui em sub-
Mais tarde, quando o mercado alemão estava saturado e a mercadoria,
sumir [subsumieren] as representações metafísicas, políticas, jurídicas,
a despeito de todos os esforços, não encontrava acolhimento no rhercado morais e outras, pretensamente dominantes, também na esfera das repre-
mundial, o negócio foi estragado à maneira habitual na Alemanha — pela sentações religiosas ou teológicas; e, do mesmo modo, em explicar a cons-
produção em grande escala e fictícia, pela deterioração da qualidade, pela ciência política, jurídica e moral como consciência religiosa ou teológica,
adulteração da matéria-prima, pela falsificação dos rótulos, por compras e o homem político, jurídico e moral — em última instância «o Homem» —
fictícias, por vigarices no saque de letras €'por um sistema de crédito des- como religioso. Pressupunha-se o domínio da religião. Gradualmente, cada
tituído de qualquer base real. A concorrência acabou numa luta encarni- relação dominante foi explicada como uma relação da religião e transfor-
cada que agora nos é exaltada e apresentada como uma mudança de impor- mada em culto: culto do direito, culto do Estado, etc. Por toda a parte
tância histórica, como geradora dos resultados e conquistas mais pro- se lidava apenas com dogmas e com a fé em dogmas. O mundo foi cano-
digiosos. nizado numa medida sempre crescente, até que por fim o venerável São
Para apreciar correctamente esta charlatanice filosófica, que até no Max o pôde declarar santificado en bloc, e deste modo despachá-lo de uma
peito do cidadão alemão honesto desperta um grato sentimento nacional, Vez por todas.
da tacanhez provinciana de todo este Os Velhos-Hegelianos tinham compreendido tudo logo que reduzido
para dar bem a ideia da mesquinhez,
do contraste tragicómico uma categoria lógica de Hegel. Os Jovens-Hegelianos criticaram tudo,
movimento jovem-hegeliano, nomeadamente
ilusões sobre esses feitos, substituindo a tudo representações religiosas ou declarando-o teológico.
entre os verdadeiros feitos destes heróis e as
é necessário observar todo Os Jovens-Hegelianos concordam com os Velhos-Hegelianos na crença no
a história da natureza e a história dos homens,
domínio da religião, dos conceitos, do universal do mundo existente. Só
o espectáculo de um ponto de vista exterior à Alemanha.
que uns combatem o domínio como usurpação, e outros celebram-no
como legítimo.
Como para Os Jovens-Hegelianos as representações, ideias, conceitos,
/[1. A ideologia em geral, nomeadamente a alemã] em geral os produtos da consciência, por eles autonomizada, valem como
os grilhões autênticos dos homens, do mesmo modo que para os Velhos-
/ [£2] A crítica alemã não abandonou, até aos seus esforços mais -Hegelianos significam os verdadeiros elos da sociedade humana, percebe-
recentes, o terreno da filosofia. Longe de examinar as suas premissas filo- -se que os Jovens-Hegelianos também só tenham de lutar contra estas ilu-
| sóficas gerais, as suas questões saíram todas do terreno de um sistema filo- sões da consciência. Como, segundo a sua fantasia, as relações dos homens,
| sófico determinado, o de Hegel. Não apenas nas suas respostas, mas já nas tudo o que os homens fazem, os seus grilhões e barreiras, são produtos
próprias questões estava uma mistificação. Esta dependência de Hegel é da sua consciência, os Jovens-Hegelianos colocam-lhes o postulado moral,
a razão pela qual nenhum destes críticos mais recentes tentou sequer uma consequentemente, de trocarem a sua consciência presente pela cons-
crítica ampla do sistema de Hegel, por mais que cada um deles afirme estar ciência humana, crítica ou egoísta, e deste modo eliminarem as suas bar-
para além de Hegel. A sua polémica contra Hegel, e entre si, reduz-se ao reiras. Esta exigência de mudar a consciência conduz à exigência de inter-
pretar de outro modo o que existe, ou seja, de o reconhecer por meio
| facto de cada um deles ter chamado a si uma faceta do sistema de Hegel
;
de outra interpretação. Os ideólogos jovens-hegelianos são, apesar das
| e tê-la virado contra todo o sistema como contra as facetas reclamadas pelos
frases com que pretendem «abalar o mundo», os maiores conservadores.
* outros. A princípio chamavam a si categorias puras de Hegel, não falsifi-
Os mais novos dentre eles encontraram a expressão correcta para a sua
cadas, como substância e consciência de si. Mas posteriormente profanaram
actividade quando afirmam que lutam apenas contra «frases». Esquecem,
estas categorias com nomes mais mundanos, como Espécie, o Único, o
apenas, que a estas mesmas frases nada opõem senão frases, e que de
Homem, etc.

13 ,
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modo nenhum combatem o mundo real existente se combaterem apenas “forma determinada de exprimirem a sua vida, de um determinado modo
as frases deste mundo. Os únicos resultados a que esta crítica filosófica de vida dos mesmos. Como exprimem a sua vida, assim os indivíduos são.
pôde conduzir foram alguns esclarecimentos, e ainda por cima unilaterais Aquilo que eles são coincide, portanto, com a sua produção, com 0 que
— de história da religião — , sobre o cristianismo; todas as suas demais produzem e também com o como produzem. Aquilo que os indivíduos
afirmações são apenas outros tantos adornos para a sua pretensão de são depende, portanto, das condições materiais da sua produção.
haverem proporcionado, com estes esclarecimentos insignificantes, des- Esta produção só surge com o aumento da população. Ela própria
cobertas de importância histórica e universal. pressupõe, por seu turno, um intercâmbio [Verkebr] dos indivíduos entre
Não ocorreu a nenhum destes filósofos procurar a conexão da filo- si. A forma deste intercâmbio é, por sua vez, condicionada pela produção.
sofia alemã com a realidade alemã, a conexão da sua crítica com o seu pró-
prio ambiente material.
/8. Produção e intercâmbio. Divisão do trabalho e formas de pro-
priedade: tribal, antiga e feudal)
/2. Premissas da concepção materialista da história]
[f.3] As relações de diferentes nações entre si dependem do grau em
| / [p.3] As premissas com que começamos não são arbitrárias, não são ique cada uma delas desenvolveu as suas forças produtivas, a divisão do
| dogmas, são premissas reais, e delas só na imaginação se pode abstrair. (trabalho e o intercâmbio interno. Esta proposição é geralmente aceite. Mas
: | São os indivíduos reais, a sua acção e as suas condições materiais de vida, não só a relação de uma nação com outras, também a própria estrutura
| tanto as que encontraram como as que produziram pela sua própria acção. (interna dessa nação depende da fase de desenvolvimento da sua produção
| Estas premissas são [p.4], portanto, constatáveis de um modo puramente e do seu intercâmbio interno e externo. Até onde chega o desenvolvimento
| empírico. das forças de produção [Produktionskráfte] de uma nação é indicado, com
| A primeira premissa de toda a história humana é, naturalmente, a exis- a maior clareza, pelo grau atingido pelo desenvolvimento da divisão do
| tência de indivíduos humanos vivos. O primeiro facto a constatar é, por- | trabalho. Cada nova força produtiva, na medida em que não é uma sim-
tanto, a organização física destes indivíduos e a relação que por isso existe 'ples extensão quantitativa das forças produtivas até aí já conhecidas (por
com o resto da natureza. Não podemos entrar aqui, naturalmente, nem | exemplo, o arroteamento de terrenos), tem como consequência uma nova
|na constituição física dos próprios homens, nem nas condições naturais | constituição da divisão do trabalho.
| que os homens encontraram — as condições geológicas, oridrográficas, A divisão do trabalho no seio de uma nação começa por provocar
climáticas e outras. Toda a historiografia tem de partir destas bases natu- a separação do trabalho industrial e comercial do trabalho agrícola, e, com
j rais e da sua modificação ao longo da história pela acção dos homens. .ela, a separação de cidade e campo e a oposição dos interesses de ambos.
j Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela reli- “O seu desenvolvimento posterior levaà separação do trabalho comercial
í' gião, por tudo o que se quiser. Mas eles começam à distinguir-se
f -se dos ani- ido industrial. Ao mesmo tempo, com a divisão do trabalho, desenvolvem-
í
i mais assim que começam a|produ Os seus
zir meios de vida, passo este [ -se por seu turno, no seio destes diferentes ramos, diferentes grupos entre
que é condicionado pela sua organização física. Ao produzirem os seus os indivíduos que cooperam em determinados trabalhos. A posição de cada
| meios de vida, os homens produzem indirectamente a sua própria vida um destes grupos face aos outros é condicionada pelo modo como é rea-
! material. - lizado o trabalho agrícola, industrial e comercial (patriarcalismo, escrava-
O modo como os homens produzem os seus meios de vida depende, tura, estados*, classes). As mesmas condições se verificam, com um inter-
em primeiro lugar, da natureza à dos próprios meios de vida encontrados câmbio mais desenvolvido, nas relações de diferentes nações entre si.
e a reproduzir. As diferentes fases de desenvolvimento da divisão do trabalho são
[p.5] Este modo da produção não deve ser considerado no seu mero outras tantas formas diferentes de propriedade; ou seja, cada uma das fases
Í aspecto de reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se já, isso : da divisão do trabalho determina também as relações dos indivíduos entre
| | sim, de uma forma determinada da actividade destes indivíduos, de uma : si no que respeita ao material, ao instrumento e ao produto do trabalho. no

14 15 ,
A primeira forma de propriedade é a propriedade tribal [Stammei-
A terceira forma é a propriedade feudal, ou de estados [ou ordens
gentum]. Esta corresponde à fase não desenvolvida da produção em que
um povo se alimenta da caça e da pesca, da criação de gado ou, sociais — stândigch]. Se a Antiguidade partiu da cidade e da sua pequena
quando área, a Idade Média partiu do campo. A população ao tempo existente,
muito, da agricultura. Pressupõe, neste último caso, uma grande
massa de pouco densa e dispersa por uma grande área, e que não cresceu grande-
terrenos não cultivados. A divisão do trabalho está nesta fase
ainda muito mente com os conquistadores, condicionou este ponto de partida dife-
pouco desenvolvida e limita-se a um prolongamento da divisão
natural rente. Em contraste com a Grécia e Roma, o desenvolvimento feudal
do trabalho existente na família. A estrutura social limita-se,
por isso, a começa, por isso, num território muito mais extenso, preparado pelas con-
uma extensão da família: os chefes patriarcais da tribo, abaixo
deles os quistas romanas e pela expansão da agricultura a elas inicialmente ligada.
membros da tribo, e por fim os escravos. A escravatura
latente na família Os últimos séculos do império romano em declínio e a conquista pelos
só se desenvolve gradualmente com o aumento da populaçã
o e das neces- próprios bárbaros destruíram grande quantidade de forças produtivas; a
sidades e com o alargamento do intercâmbio externo, tanto
de guerra como agricultura afundara-se, a indústria declinara por falta de mercado, o
| de comércio de troca.
comércio adormecera ou fora violentamente interrompido, a população
A segunda forma é a propriedade comunal e estatal antiga,
a qual rural e urbana decrescera. Estas condições ao tempo existentes e o modo
resulta nomeadamente da união de várias tribos que formam
uma cidade de organização da conquista por elas condicionado desenvolveram, sob
por meio de acordo ou conquista: nela continua a existir
ae

à escravatura. a influência da constituição militar germânica, a propriedade feudal, Esta


A par da propriedade comunal desenvolve-se já a proprie
dade privada assenta, como a propriedade tribal e comunal, novamente sobre uma
móvel e, mais tarde, também a imóvel, mas como uma forma
anormal e comunidade [Gemeiniwesen] face à qual se encontram, não como face à
subordinada à propriedade comunal. Os cidadãos só em comum antiga Os escravos, mas Os pequenos camponeses servos como classe pro-
possuem
o poder sobre os seus escravos trabalhadores, estando dutora directa. Ao mesmo tempo, com a completa formação do feuda-
logo, por esse
ecra

motivo, ligados à forma da propriedade comunal. É a proprie lismo, surge também a oposição contra as cidades. A estrutura hierárquica
dade privada
comum dos cidadãos activos, os quais são obrigados, face aos da propriedade fundiária e os séquitos armados a ela ligados deram à
escravos,
a permanecer neste modo natural de associação. Por isso decai toda nobreza o poder sobre os servos. Esta estrutura feudal era, do mesmo modo
a estru-
: tura da sociedade baseada nesta forma de propriedade, e com que a antiga propriedade comunal, uma associação face à classe produ-
ela o poder
|do povo, à medida que se desenvolve, nomeadamente, a proprie tora dominada; só que a forma de associação e a relação com os produ-
dade pri-
'vada imóvel. A divisão do trabalho está já mais desenvolvida. Encont tores directos era diferente, porque existiam diferentes condições de
ramos
já a oposição [Gegensaiz] de cidade e de campo, e mais tarde produção.
à oposição
entre Estados que representam, uns, o interesse urbano, A esta estrutura feudal da propriedade fundiária correspondia, nas
e outros o inte-
resse do campo, e, mesmo no interior das cidades, encontramos cidades, a propriedade corporativa, a organização feudal dos ofícios.
a opo-
sição entre a indústria e o comércio marítimo. A relação de classes A propriedade consistia [f.4] aqui principalmente no trabalho de cada indi-
entre
cidadãos e escravos está completamente formada. | víduo. A necessidade da associação contra a rapina da nobreza associada,
Com o desenvolvimento da propriedade privada surgem aqui, pela | a carência de mercados cobertos comuns num tempo em que o industrial
primeira vez, as mesmas relações que voltamos a encontrar na proprie- | era simultaneamente comerciante, a concorrência crescente dos servos
fugitivos que confluíam para as cidades fluorescentes e a estrutura feudal
dade privada moderna, só que nesta em maior escala. Por um lado,
| centração da propriedade privada, que em Roma começou muito
a con-
cedo
|| de todo o país deram origem às corporações; os pequenos capitais gra-
I (prova: a lei agrária liciniana) e se processou muito rapidamente dualmente economizados de artesãos individuais e o número estável destes
desde as
guerras civis e sob os imperadores; por outro lado, e em conexão ; na população crescente desenvolveram a relação de oficial e aprendiz, que
com
isto, a transformação dos pequenos camponeses plebeus num proletariado, : originou nas cidades uma hierarquia semelhante à do campo.
Oii qual, porém, dada a sua posição média entre os cidadãos possuido | A propriedade principal consistiu assim, durante a época feudal, por
res
i
|€ OS escravos, não conseguiu um desenvolvimento autónomo. um lado na propriedade fundiária e no trabalho servo a ela preso, e por
outro no trabalho próprio com um pequeno capital a dominar a trabalho
16
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! dos oficiais. A estrutura de um e de outro estava condicionada pelas rela-
;ções de produção [Produktionsverbáltnisse] limitadas — a pequena cul- tgião, da metafísica, etc., de um povo. Os homens são os produtores das;
É suas representações, ideias, etc., mas OS homens reais, os homens que rea- :
“tura agrícola rudimentar e a indústria artesanal. Pouca foi a divisão do tra-
“balho que teve lugar no apogeu do feudalismo. Todos os países tinham lizam [die wirklichen, wirkenden Menschen], tal como se encontram con-
em si a oposição de cidade e campo; a estrutura de estados [ou ordens * dicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produ-
.
sociais) era certamente muito marcada, mas além da diferenciação de prín- “tivas e do intercâmbio que a estas corresponde até às suas formações mais
cipes, nobreza, clero e camponeses, no campo, e de mestres, oficiais e
avançadas. A consciência [das Bewussisein], nunca pode ser outra coisa
aprendizes, e em breve também a plebe de jornaleiros, nas cidades, não i senão o ser consciente [das bewusste Sein], e O ser dos homens é O seu
-
teve lugar nenhuma divisão importante. Na agricultura era dificultada pela * processo real de vida. Se em toda a ideologia os homens e as suas relações
cultura parcelada, a par da qual surgia a indústria caseira dos próprios cam- aparecem de cabeça para baixo como numa Camera escura, é porque este
poneses; na indústria, o trabalho não estava nada dividido em cada um fenómeno deriva do seu processo histórico de vida da mesma maneira
dos ofícios, e muito pouco entre eles. A divisão de indústria e comércio que a inversão dos objectos na retina deriva do seu processo directamente
encontrava-se já em cidades mais antigas, mas só mais tarde se desenvolveu físico de vida.
nas mais novas, quando as cidades entraram em relação umas com as outras. Em completa oposição à filosofia alemã, a qual desce do céu à terra,
A reunião de territórios maiores em reinos feudais era uma necessi- lou sobe-se da terra ao céu. Isto é, não se parte daquilo que os homens
dade para a nobreza latifundiária como para as cidades. A organização da * dizem, imaginam ou se representam, e também não dos homens narrados,
classe dominante, a nobreza, tinha por isso, em toda a parte, um monarca pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em
à cabeça. * | carne e osso; parte-se dos homens realmente activos, e com base no seu
| processo real de vida apresenta-se também o desenvolvimento dos reflexos
| Refiexe] e ecos ideológicos deste processo de vida. Também as fantasma-
[é. A essência da concepção materialista da história. Ser social e | gorias no cérebro dos homens são sublimados necessários do seu processo
consciência social] 4 | de vida material, empiricamente constatável e ligado a premissas materiais.
o IA moral, a religião, a metafísica e a restante ideologia, e as formas da cons-
[£.5] O facto é, portanto, este: o de determinados indivíduos, que tra- ciência que lhes correspondem, não conservam assim por mais tempo a
balham produtivamente de determinado modo, entrarem em determinadas aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento, são
relações sociais e políticas. A observação empírica tem de mostrar, em cada os homenss que ddesenvolvem a sua produção material e o seu intercâmbio
um dos casos, empiricamente e sem qualquer mistificação e especulação, 1 esta sua realidade, Imúdam também o seu1 pen-
DE
a conexão da estrutura social e política com a produção. A estrutura social € do seu pensamento.| Não é éa 1 consciência + que deter-
| samento eos ; produtos
[e o Estado decorrem constantemente do processo de vida de determinados
|mina a vida, é a vida que determina a consciência. No primeiro modo de
indivíduos; mas, destes indivíduos não como eles poderão parecer na sua como indivíduo vivo; no segundo,
“consideração,párte-se da consciência
mamae

iprópria representação ou na de outros, mas como eles são realmente, ou


íi ue correspondeà vida real, parte-se dos próprios indivíduos vivos e reais
treme rate

eja, como agem, como produzem materialmente, como trabalham, por-


í ie considera-se a consciência apenas como a sua consciência.
an e o

o anto, em determinados limites, premissas e condições materiais que não Este modo de consideração não é destituído de premissas. Parte das
i ;dependem da
i sua vontade. -
| premissas reais e nem por um momento as abandona. As suas premissas
A produção das ideias, representações, da consciência está a princípio
siim

| são os homens, não num qualquer isolamento e fixidez fantásticos, mas


| directamente entrelaçada com a actividade material e o intercâmbio mate-
SO

| no seu processo de desenvolvimento real, perceptível empiricamente, em


«ria dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o inter-
| determinadas condições. Assim que este processo de vida activo é apre-
oque remar e

icâmbio espiritual dos homens aparecem aqui ainda como efluxo directo
E sentado, a história deixa de ser uma colecção de factos mortos — como
ido seu comportamento material. O mesmo se aplicaà produção espiritual
.
icomo ela se apresenta na linguagem política, das leis, da moral, da reli- | é para os empiristas, eles próprios ainda abstractos —, ou uma acção ima-
' ginada de sujeitos imaginados, como para os idealistas.
18
19
Lá onde a especulação cessa, na vida real, começa, portanto, a ciência
real, positiva, a representação da actividade prática, do processo de desen- iciência de si e da crítica pura, tal como o absurdo religioso e teológico,
volvimento prático dos homens. Cessam as frases sobre a consciência, o e depois eliminam-no de novo quando estão suficientemente desenvol-
PR

ii saber real tem de as substituir. Com a representação da realidade, a filo- vidas. Como é natural, num país como a Alemanha, onde se processa
sofia autónoma perde o seu meio de existência. Em seu lugar pode, quando apenas um desenvolvimento histórico miserável, estes desenvolvimentos
muito, surgir uma súmula dos resultados mais gerais que é possível abs- do pensamento, estas trivialidades transfiguradas € ineficazes, encobrem
trair da cofisideração do desenvolvimento-histórico. Estas abstracções não a falta do desenvolvimento histórico, fixam -se e têm de ser combatidas.
têm, separadas da história real, o menor valor. Só podem servir para faci- Mas esta é uma luta de importância local.
litar a ordenação do material histórico, para indicar a sequência de cada
um dos seus estratos. Mas não dão, de modo nenhum, como a filosofia,
uma receita ou um esquema segundo o qual as épocas históricas possam /2. Crítica do materialismo contemplativo e inconsequente de
ser ajeitadas ou ajustadas. A dificuldade começa, pelo contrário, precisa- Feuerbach]
mente quando nos damos à consideração e ordenação do material, seja
- de uma época passada seja do presente, à representação real. A eliminação -..[8] na realidade, e para o materialista prático, isto é, para o comu-
destas dificuldades está condicionada por premissas que de modo nenhum nista, trata-se de revolucionar o mundo existente, de atacar e transformar
podem ser aqui dadas, e que só resultarão claras do estudo de processo na prática as coisas que encontra no mundo. Se em F euerbach, por vezes,
real da vida e da acção dos indivíduos de cada época. Vamos escolher aqui se encontram tais ideias, a verdade é que estas nunca vão além de conjec-
algumas destas abstracções, que utilizamos em contraposição à ideologia, turas isoladas e têm uma influência demasiado reduzida no seu modo geral
e vamos explicá-las com exemplos históricos. de ver para que aqui possam ser consideradas algo mais do que embriões
capazes de se desenvolverem. A «concepção» de Feuerbach do mundo sen-
sível limita-se, por um lado, à mera contemplação deste, e, por outro, à
EI mera sensação; ele diz «o Homem» em vez de o(s) «homens históricos reais».
«O Homem» é, realiter, «o Alemão». No primeiro caso, na contemplação
[1. Condições da libertação real do bomem]
do mundo sensível, esbarra necessariamente em coisas que contradizem
a sua consciência e o seu sentimento, que perturbam a harmonia, por ele
[1] Não nos vamos, naturalmente, dar ao trabalho de esclarecer os
pressuposta, de todas as partes do mundo sensível, e nomeadamente do
nossos sábios filósofos sobre o facto de que a «libertação» do «Homem»
“homem com a natureza. Para eliminar tais coisas, tem de procurar refúgio
não avançou um único passo por terem resolvido a filosofia, a teologia,
numa dupla contemplação, entre uma profana, que só avista O «trivialmente
a substância e todo o lixo na «Consciência de Si», por terem libertado o
óbvio», e uma superior, filosófica, que avista a «verdadeira essência» das
«Homem» do domínio destas frases sob as quais ele nunca foi escravo; de
coisas. Ele não vê que o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa
que não é possível conseguir uma libertação real a não ser no mundo real
dada directamente da eternidade, sempre igual a si mesma, mas antes O
e com meios reais, de que não se pode abolir [aufbeben] a escravatura sem
produto da indústria e do estado em que se encontra a sociedade, e preci-
a máquina a vapor e a mule-jenny, nem a servidão sem uma agricultura
samente no sentido de que ele é um produto histórico, o resultado da acti-
aperfeiçoada, de que de modo nenhum se pode libertar os homens
vidade de toda a série de gerações, cada uma das quais aos ombros da ante-
enquanto estes não estiverem em condições de adquirir comida e bebida,
rior e desenvolvendo a sua indústria e o seu intercâmbio e modificando
habitação e vestuário na qualidade e na quantidade perfeitas. A «libertação»
a sua ordem social de acordo com necessidades já diferentes. Mesmo os
é um acto histórico, não um acto de pensamento, e é efectuada por rela-
objectos da mais simples «certeza sensível» são-lhe apenas dados por meio
ções históricas, pelo [nívlel da indústria e do com[ércio], da [agrijcultura,
do desenvolvimento social, da indústria e do intercâmbio comercial.
do inter[câmbio]... [2] então, ulteriormente, consoante as suas diferentes
À cerejeira, como é sabido, e bem assim quase todas as árvores de fruto,
etapas de desenvolvimento, o absurdo da substância, do sujeito, da cons-
só há poucos séculos foi transplantada para a nossa zona por meio do
20 Y
21
comércio, e por isso só [9] por meio desta acção de uma determinada socie-
que Feuerbach vive, é a natureza que hoje em dia, à excepção talvez de
dade num determinado tempo foi dada à «certeza sensível» de Feuerbach.
uma ou outra ilha de coral australiana de origem recente, já em parte
De resto, nesta concepção da coisas tal como elas realmente são e
nenhuma existe, e que portanto não existe para Feuerbach.
aconteceram, todos os problemas filosóficos profundos se resolvem, como Feuerbach tem, no entanto, [10] sobre os materialistas «puros», a
mais adiante se revelará ainda com maior nitidez, muito simplesmente num
grande vantagem de compreender que também o homem é «objecto sen-
facto empírico. Por exemplo, a questão importante da relação do homem
sível»; mas, à parte O facto de entender o homem apenas como «objecto
com a natureza (ou, como Bruno diz (p. 110), as «antíteses na natureza
sensível», e não como «actividade sensível», como também aqui se mantém
e na história», como se estas fossem duas «coisas» separadas uma da outra,
na teoria, e não concebe os homens na sua dada conexão social, nas suas
como se o homem não tivesse sempre diante de si uma natureza histórica
condições de vida reais que fizeram deles aquilo que são, nunca chega
e uma história natural), da qual saíram todas as «obras imperscrutavelmente
aos homens activos, aos homens realmente existentes; fica-se pela abs-
elevadas» sobre «substância» e «consciência de si», desfaz-se por si própria
tracção de «o Homem», e só consegue reconhecer o «homem corpóreo,
com a compreensão de que a celebrada «unidade do homem com a natu-
individual, real» no sentimento, ou seja, não conhece outras «relações
reza» desde sempre existiu na indústria e existiu em todas as épocas de .
humanas» «do homem com o homem» além de amor e amizade, e mesmo
formas diferentes, segundo o menor ou maior desenvolvimento da indús-
assim idealizados. Não faz nenhuma crítica às condições de vida actuais.
tria, tal como a «luta» do homem com a natureza, até ao desenvolvimento
Nunca chega, portanto, a conceber o mundo sensível como a totalidade
das suas forças produtivas numa base correspondente. A indústria e o
da actividade sensível viva dos indivíduos que o constituem, e é por isso
comércio, a produção e a troca das necessidades da vida por um lado con-
obrigado — quando vê, por exemplo, em vez de homens saudáveis, uma
dicionam — e por outro lado são condicionados, no modo como se pro-
turba de famélicos escrofulosos, esgotados pelo excesso de trabalho e
cessam, por — a distribuição, a articulação das diferentes classes sociais;
tuberculosos — a buscar o seu refúgio na «observação superior» e na ideal
e assim acontece que Feuerbach, em Manchester, por exemplo, só vê
«compensação na espécie», e portanto a recair no idealismo precisamente
fábricas e máquinas onde há um século se viam apenas rodas de fiar e teares,
onde o materialista comunista vê a necessidade e, ao mesmo tempo, a con-
ou na Campagna di Roma só descobre pastagens e pântanos onde no
dição de uma transformação tanto da indústria como da estrutura social.
tempo de Augusto nada teria encontrado a não ser vinhedos e vilas de
Enquanto materialista, para Feuerbach a história não conta, e quando
capitalistas romanos. Feuerbach fala nomeadamente da observação da
considera a história não é materialista. Para ele, materialismo e história .
ciência da natureza, menciona segredos que apenas se revelam aos olhos
divergem completamente, o que de resto se explica já pelo que ficou dito.
do físico e do químico; mas, sem a indústria e o comércio, onde estaria
a ciência da natureza? Mesmo esta ciência «pura» da natureza só alcança
||
:
i o seu objectivo, bem como o seu material, por meio do comércio e da
/3. Relações históricas primordiais, ou os aspectos básicos da acti-
| indústria, por meio da actividade sensível dos homens. E de tal modo esta
' vidade social: produção dos meios de subsistência, produção
i
| actividade, este trabalho e esta criação sensíveis contínuos e esta produção
de novas necessidades, reprodução das pessoas (a família), inter-
são a base de todo o mundo sensível como ele agora existe, que, se fossem
câmbio social, consciência]
interrompidos ao menos um ano, Feuerbach não só encontraria uma
enorme mudança no mundo natural como muito em breve daria pela falta
E [11] Com os alemães, que não dispõem de quaisquer premissas, temos
de todo o mundo dos homens e da sua própria faculdade de observação —
| ide começar por constatar a primeira premissa de toda a existência humana,
mais, da sua própria existência. É certo que, no meio de tudo isto, se
e portanto, também, de toda a história, ou seja, a premissa de que os
mantém a prioridade da natureza exterior, e é certo que tudo isto não tem
homens
j têm de estar em condições de viver para poderem «fazer história».
tratores

qualquer aplicação aos homens originais produzidos por generatio aequi- í


| Mas da vida fazem parte sobretudo comer e beber, habitação, vestuário
voca; rias esta diferenciação só tem sentido na medida em que se consi-
| e ainda algumas outras coisas. O primeiro acto histórico é, portanto, a pro-
dera o homem como sendo diferente da natureza. De resto, esta natureza
nisi

| | dução dos meios para a satisfação destas necessidades, a produção da pró-


que precedeu a história humana não é, de modo nenhum, a natureza em
|pria vida material, e a verdade é que este é um acto histórico, uma con-
22 Y

23
dição fundamental de toda a história, que ainda hoje, tal como há milhares para Os alemães, três «momentos» que, desde o começo da história e desde
de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para 20 menos manter os primeiros homens, existiram simultaneamente, e que ainda
hoje se
os homens vivos. Mesmo quando o mundo sensível é reduzido ao mínimo, afirmam na história.
a um bastão, como com o sagrado Bruno, pressupõe a actividade da pro- A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, como da alheia,
dução deste bastão. Assim, a primeira coisa a fazer em qualquer concepção jna procriação, surge agora imediatamente como uma dupla [13] relação:
i
da história é observar este facto fundamental em todo o seu significado ipor um lado como relação cultural, por outro como relação social
ie em toda a sua dimensão, e atribuir-lhe a importância que lhe é devida. | — social no sentido em que aqui se entende a cooperação de vários indi-
'como é sabido, os alemães nunca fizeram, e por isso nunca tiveram uma | víduos seja em que circunstâncias for e não importa de que modo e com
'base [Basis] terrena para a história nem, consequentemente, um histo- |: que fim. Daqui resulta que um determinado modo de produção, ou fase
| riador. Os franceses e os ingleses, embora tenham concebido a conexão | industrial, está sempre ligado a um determinado modo de cooperação, ou
deste facto com a chamada história apenas de um modo extremamente fase social, e este modo da cooperação é ele próprio uma «força produ-
i
a
unilateral, nomeadamente enquanto enredados na ideologia política, | tiva»; € que a quantidade das forças produtivas acessíveis aos homens con-
fizeram não obstante as primeiras tentativas para dar à historiografia uma |, diciona o estado a sociedade, e portanto a «história da humanidade» tem
base materialista, tendo sido os primeiros a escrever histórias da sociedade de ser sempre estudada e tratada em conexão com a história da indústria
|e da troca. Mas também
* civil, do comércio e da indústria. É
é evidente que na Alemanhaé impossível escrever”
essa história, porque para tanto faltam aos alemães não só a capacidade
O segundo ponto é [12] este: a própria primeira necessidade satis-
de concepção e o material, mas também a «certeza sensível», e para além
-. feita, a acção da satisfação e o instrumento já adquirido da satisfação,
do Reno não se pode colher experiência destas coisas, pois lá já nenhuma
conduz a novas necessidades — e esta produção de novas necessidades
história se processa. Revela-se, assim, logo de princípio, uma conexão mate-
éo primeiro acto histórico. Logo por aqui se revela de quem descende
rialista dos homens entre si, a qual é. condicionada pelas necessidades e.
espiritualmente a grande sageza histórica dos alemães, os quais, ao faltar-
pelo 1 modo da produção e tão velha como. » OS próprios “homens, — uma
lhes o material positivo e não se tratando de nenhum absurdo teológico,
conexão que assume sempre formas novas e que, por conseguinte, apre-
nem político, nem literário, não reconhecem nenhuma história, mas O
senta uma «história», mesmo que não exista um qualquer absurdo polí-
«tempo pré-histórico», sem entretanto nos esclarecerem como deste
tico ou religioso que una ainda mais os homens.
absurdo da «pré-história» se chega à verdadeira história — embora, por | Só agora, depois de já termos considerado quatro momentos, quatro

ntopie,
outro lado, a sua especulação histórica se lance muito particularmente sobre acetas das relações históricas primordiais, verificamos que o homem
esta «pré-história», porque acredita estar aí mais segura face às incursões itambém tem «consciência». Mas também que não de antemão, como cons-
dos «factos crus» e ao mesmo tempo, porque pode soltar as rédeas ao seu

re en
ciência «pura». O «espírito» tem consigo de antemão [14] a maldição de

RE
impulso especulativo e produzir e derrubar hipóteses aos milhares. jestar «preso» à matéria, a qual nos surge aqui na forma de camadas de ar
A terceira relação, que logo desde o início entra no desenvolvimento Jem movimento, de sons, numa palavra, da linguagem. A linguagem é tão
histórico, é esta: os homens que, dia a dia, renovam a sua própria vida Ivelha como a consciência — a linguagem é a consciência real prática que
: começam a fazer outros homens, a reproduzir-se — a'relação entre homem | existe também para outros homens e que, portanto, só assim existe também
: e mulher, pais e filhos, a família. Esta família, que a princípio é a única | para mim, e a linguagem só nasce, como a consciência, da necessidade,
relação social, torna-se mais tarde, quando o aumento das necessidades da carência física do intercâmbio com outros homens. Onde existe uma
: cria novas relações sociais e o aumento do número dos homens cria novas i relação, ela existe para mim, o animal com nada se «relaciona», nem sequer
necessidades, uma relação subordinada (excepto na Alemanha), e tem então ||se «relaciona». Para O animal, a sua relação com os outros não existe como
. de ser tratada e desenredada segundo os dados empíricos existentes, e não :|relação. A consciência é, pois, logo desde o começo, um produto social,
“segundo o «conceito de família», como se costuma fazer na Alemanha. De “e continuará a sê-lo enquanto existirem homens. A consciência, natural-
resto, estas três facetas da actividade social não devem ser entendidas como mente, começa por ser apenas consciência acerca do ambiente sensível
três fases diferentes, mas apenas como três facetas ou, para escrever claro imediato e a consciência da conexão limitada com outras pessoas e coisas
,
ki
24 25
fora do indivíduo que se vai tornando consciente de si; é, ao mesmo tempo, de uma nação (como agora na Alemanha); mas como esta contradição
consciência da natureza, a qual a princípio se opõe aos homens como um parece existir apenas como contradição dentro da consciência nacional,
poder completamente estranho, todo-poderoso e inatacável, com o qual parece então a esta nação que também a luta se confina a esta porcaria
os homens se relacionam de um modo puramente animal e pelo qual se nacional, precisamente porque esta nação é a porcaria em si e para si.
[16] De resto, é completamente indiferente o que quer que seja que

raia mrmepaim
deixam amedrontar como os animais; é, portanto, uma consciência pura-
mente animal da natureza (religião natural). a consciência comece a fazer sozinha; de toda esta porcaria extraímos

Por aqui se vê imediatamente: esta religião natural ou esta determi- apenas um resultado — o de que estes três momentos, a força de produção,
o estado da sociedade e a consciência, podem e têm de cair em contra-

remain
nada relação com a natureza é condicionada pela forma de sociedade e
dição entre si, porque com a divisão do trabalho está dada a possibili-
vice-versa. Aqui, como em toda a parte, também se manifesta tanto a iden-
tidade de natureza e homem que a relação limitada dos homens com a dade, mais, a realidade de a actividade espiritual e a actividade material,

raia
natureza condiciona a sua relação limitada uns com os outros, e a sua o prazer e o trabalho, a produção e o consumo caberem a indivíduos dife-
relação limitada uns com os outros condiciona a sua relação limitada com rentes; e a possibilidade de não caírem em contradição reside apenas na

qc irmasr stream messes


a natureza, precisamente porque a natureza mal está ainda historicamente superação da divisão do trabalho. É de resto evidente que os «espectros»,
modificada; e, por outro lado, a consciência da necessidade [Notwendig- os «vínculos», O «ser superior», O «conceito», a «escrupulosidade» são mera-

keit] de entrar em ligação com os indivíduos à sua volta é o começo da mente a expressão religiosa idealista, a representação, aparentemente, do
consciência do homem de que vive de facto numa sociedade. Este começo indivíduo isolado, a representação de grilhões e limites muito empíricos
é tão animal como a própria vida social desta fase, é mera consciência de dentro dos quais o modo de produção da vida e a forma de intercâmbio
horda, e o homem distingue-se aqui do carneiro apenas pelo facto de a
àquele ligada se movem.
sua consciência lhe fazer as vezes do instinto, ou de o seu instinto ser cons-
ciente. Esta consciência de carneiro, ou tribal, recebe o seu desenvolvi-
fá. A divisão social do trabalho e as suas conseguências: a proprie-
mento e formação posterior do aumento da produtividade, da multipli-
dade privada, o Estado, a «alie ção» da actividade social]
cação das necessidades e do aumento da população [15] que está na base
desta e daquele. Deste modo se desenvolve a divisão do trabalho, que ori-
ginalmente nada era senão a divisão do trabalho no acto sexual, e depois H
Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas estas contradi-
Ena e a qual por sua vez assenta na divisão natural do trabalho na família
a divisão espontânea ou «natural» do trabalho em virtude da disposição
| E na separação da sociedade em famílias individuais e opostas umas às
natural (por exemplo, a força física), de necessidades, acasos, etc., etc.
| utras, está ao mesmo tempo dada também a repartição, e precisamente
A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento
Í a repartição desigual, tanto quantitativa como qualificativa, do trabalho
em que surge uma divisão do trabalho material e espiritual. A partir deste
“e dos seus produtos, e portanto a propriedade, [17] a qual já tem o seu
momento, a consciência pode realmente dar-se à fantasia de ser algo dife-
A embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são
rente da consciência da práxis existente, de representar realmente alguma
“ os escravos do homem. A escravatura latente na família, se bem que ainda
coisa sem representar nada de real — a partir deste momento, a consciência
muito rudimentar, é a primeira propriedade, que de resto já aqui corres-
é capaz de se emancipar do mundo e passar à formação da teoria «pura»,
ponde perfeitamente à definição dos modernos economistas, segundo a
da teologia, da filosofia, da moral, etc., «puras». E mesmo quando esta
qual ela é o dispor de força de trabalho [Arbeiiskraft] alheia. De resto,
teoria, teologia, filosofia, moral, etc., entram em contradição com as rela-
divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas
ções vigentes, isso só pode acontecer pelo facto de as relações sociais
— uma enuncia-se em relação à actividade o mesmo-que na outra se
vigentes terem entrado em contradição com a força de produção exis-
enuncia relativamente ao produto da actividade.
tente — o que, de resto, também pode acontecer num determinado cír-
: Além disso, com a divisão do trabalho está dada, ao mesmo tempo,
culo nacional de relações pelo facto de a contradição se fazer sentir, não
a contradição entre o interesse de cada um dos indivíduos ou de cada uma
neste âmbito nacional, mas entre esta consciência nacional e a práxis das
| das famílias e o interesse comunitário de todos os indivíduos que mantêm
outras nações, ou seja, entre a consciência nacional e a consciência geral
+

26 27 :
: intercâmbio uns com os outros; e a verdade é que este interesse comuni- riamente, mas sim naturalmente, a própria acção do homem se torna para
' tário de modo nenhum existe meramente na representação, como «uni- este um poder alheio e oposto que o subjuga, em vez de ser ele a dominá-
: versal», mas antes de mais na realidade, como dependência recíproca dos “Ja. É que assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem
|indivíduos entre os quais o trabalho está dividido. um círculo de actividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e
E é precisamente por esta contradição do interesse particular e do do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico, e terá
interesse comunitário que o interesse comunitário assume uma forma autó- de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência — ao
-noma como Estado, separado dos interesses reais dos indivíduos e do todo, passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um cfr-
e ao mesmo tempo como comunidade ilusória, mas sempre sobre a base culo exclusivo de actividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que
“real [realen Basis] dos laços existentes em todos os conglomerados de famí- preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo,
“ias e tribais — como de carne e sangue, de língua, de divisão do trabalho torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de
“muma escala maior, e demais interesses —, e especialmente, como mais manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal
tarde desenvolveremos, das classes desde logo condicionadas pela divisão como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou |
!
7; do trabalho e que se diferenciam em todas essas massas de homens, e das crítico.
Í“quais uma domina todas as outras. Daqui resulta que todas as lutas no seio [18] Esta fixação da actividade social, esta consolidação do nosso pró- |
: | do Estado, a luta entre a democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta prio produto como força objectiva acima de nós que escapa ao nosso con- |
: pelo direito de voto, etc., etc., não são mais do que as formas ilusórias trolo, contraria as nossas expectativas e aniquila os nossos cálculos, é um |
em que são travadas as lutas reais das diferentes classes entre si (disto os dos factores principais no desenvolvimento histórico até aos nossos dias.
teóricos alemães não percebem uma sílaba, apesar de lhes ser dado para O poder social, istoé, a força de produção multiplicada que surge pela!
isso indicações suficientes nos s Deuisch-Franzôsische Jabrbiúcher e em cooperação dos diferentes indivíduos condicionada na divisão do trabalho,
aparece a estes indivíduos — porque a própria cooperação não é volun-
pus mst

- domínio, mesmo quando o seu domínio, com


como é o caso do proletariado, tária, mas natural — não como o seu próprio poder unido, mas como uma
: condiciona a“Superação de toda a forma | velha da sociedade e da-domi- força alheia que existe fora deles, da qual não sabem de onde vem e a que ;
DT emeai

: nação em geral, têm primeiro de*conquistar O poder político, para por se destina, que eles, portanto, já não podem dominar e que, pelo con-
“sua
ua VEZ
vez representarem o o seu interesse como o interessee geral, Coisa1 que trário, percorre uma série peculiar de fases e etapas de desenvolvimento Í
no primeiro momento são
ão obrigadas
obrigadas aa fazer. To = independente da vontade e do esforço dos homens, e que em primeiro :
Precisamente porque os indivíduos F procuram apenas o seu interesse lugar dirige essa vontade e esse esforço. De outro modo, como poderia, |
particular, o qual para eles não coincide com o seu interesse comuni- por exemplo; a propriedade ter uma história, assumir várias formas, e, por
tário — a verdade é que o geral é a forma ilusória da existência da comu- exemplo, a propriedade fundiária, conforme as diferentes condições exis-
nidade —, este é feito a valer com interesse que lhes é «alheio» [18] e «inde- tentes, passar em França do parcelamento para a centralização em poucas
pendente» deles, como um interesse «geral» que é também ele, por seu mãos, e em Inglaterra da centralização em poucas mãos para o parcela-
turno, particular e peculiar, ou eles próprios têm de se mover nesta dis- mento, como é hoje realmente o caso? Ou como explicar que o comércio,
córdia, como na democracia. Por outro lado, também a luta prática destes “que não é de facto mais do que a troca de produtos de diferentes indiví-
interesses particulares, que realmente se opõem constantemente aos inte- duos e países, domine o mundo inteiro pela relação de procura e forneci-
resses comunitários e aos interesses comunitários ilusórios, torna neces- mento /Nachfrage und Zufubr] — uma relação que, como diz um econo-
sários a intervenção e o refreamento práticos pelo interesse «geral» ilu- mista inglês, paira sobre a Terra semelhante ao Destino antigo e com mão
sório como Estado. invisível distribui a felicidade e a infelicidade aos homens, funda impérios
[17] E, finalmente, a divisão do trabalho oferece-nos logo o primeiro e destrói impérios, faz nascer [19] e desaparecer povos —, ao passo que
exemple de como, enquanto os homens se encontram na sociedade com a supressão da base, da propriedade privada, com a regulação comu-
natural, ou seja, enquanto existir a cisão entre o interessse particular e O nista da produção e aniquilamento a ela inerente do alheamento [Fremd-
comum, enquanto, por conseguinte, a actividade não é dividida volunta- beit] com que os homens se relacionam com o seu próprio produto, O

28 29 '
poder da relação de procura e fornecimento se dissolve em nada e os da concorrência. O proletariado só pode, por conseguinte, existir à escala
homens voltam a ter sob o seu domínio a troca, a produção, o modo da histórico-mundial, tal como só pode haver comunismo, a sua acção, como
sua mútua relação?
existência «histórico-mundial»; existência histórico-mundial dos indivíduos,
ou seja, a existência dos indivíduos directamente ligada à história mundial.
É [18] O comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser
6. Desenvolvimento das forças produtivas como uma premissa | estabelecido, um ideal pelo qual a realidade [terá] de se regular. Chamamos
material do comunismo]
' comunismo ao movimento real que supera O actual estado de coisas. As
condições deste movimento resultam da premissa actualmente existente.
[18] Esta «alienação» [Entfremdunsg), para continuarmos compreen-
* | síveis para os filósofos, só pode ser superada, evidentemente, dadas duas
: | premissas práticas. Para que ela se torne um poder «insuportável», isto
é, um poder contra o qual se faça uma revolução, é necessário que tenha
criado uma grande massa da humanidade «destituída de propriedade» e
| [19] A forma de intercâmbio condicionada em todos os estádios his-
ao mesmo tempo em contradição com um mundo existente de riqueza
ltóricos até aos nossos dias pelas forças de produção existentes, e que por
e cultura, o que pressupõe um grande aumento da força produtiva, um
[seu turno as condiciona, é a sociedade civil, a qual, como se torna claro
grau elevado do seu desenvolvimento — e, por outro lado, este desen-
| pelo que já foi dito, tem por premissa e base a família simples e a família
volvimento das forças produtivas (com o qual já está dada, simultanea-
| composta, o chamado sistema tribal, cujas características marcantes mais
mente, a existência empírica concreta dos homens a nível histórico-
| precisas se encontram contidas em páginas precedentes. Já por aqui se
“mundial, em vez de a nível local) é também uma premissa prática
revela que esta sociedade civil é o verdadeiro lar e o teatro de toda a his-
absolutamente necessária porque sem ele só a penúria se generaliza, e, i
| tória, e que é absurda a concepção da história até hoje defendida que des-
portanto, com a miséria também teria de recomeçar a luta pelo neces-
preza as relações reais ao confinar-se às acções altissonantes de chefes e
sário e de se produzir de novo toda a velha porcaria, e ainda porque só
Ci de Estados. o
este desenvolvimento universal das forças produtivas estabelece um inter-
o | Até aqui considerámos principalmente uma das facetas da actividade
câmbio universal dos homens, que por um lado produz o fenómeno da
umana, O trabalho da natureza pelos homens. A outra faceta, O trabalho
grande massa «destituída de propriedade» em todos os povos ao mesmo
idos homens pelos bomens... o
tempo (concorrência geral), torna todos eles dependentes das revoluções civil.
Origem do Estado e a relação do Estado com a sociedade
uns dos outros e, por fim, colocou indivíduos empiricamente universais,
indivíduos histórico-mundiais, no lugar dos indivíduos locais. Sem isto,
Í 1) o comunismo só poderia existir como fenómeno local, 2) os poderes
! [6. Conclusões da concepção materialista da história: continuidade
|
do intercâmbio não teriam eles próprios podido desenvolver-se como
do processo histórico, transformação da história em história
poderes universais, e por isso insuportáveis, e teriam permanecido «cir-
| mundial, a necessidade de uma revolução comunista]
| cunstâncias» de superstição caseira, e 3) todo o alargamento do intercâmbio
! suprimiria o comunismo
local. Empiricamente, o comunismo só é pos-
|
!

|
sível como o acto dos povos dominantes «de repente» e ão mesmo tempo,
[20] A história não é senão a sucessão das diversas gerações, cada uma
das quais explora os materiais, capitais, forças de produção que lhe são
|câmbio
t O que pressupõe o desenvolvimento universal da

mundial que com ele se liga.


força produtiva e o inter- legados por todas as que a precederam, e que por isso continua, portanto,
por um lado, em circunstâncias completamente mudadas, a actividade
[19] De resto, a massa de meros operários — força operária [Arbei-
transmitida, e por outro lado, modifica as velhas circunstâncias com uma
terkraft] massiva separada do capital ou de qualquer limitada satisfação —,
actividade completamente mudada, o que permite a distorção especula-
e por isso também a perda já não temporária deste mesmo trabalho como
tiva de fazer da história posterior o objectivo da anterior, por exemplo,
uma fonte assegurada de vida, pressupõe 0 mercado mundial por meio
colocar como subjacente ao descobrimento da América o objectivo de pro-
1
30 31
7
porcionar a eclosão da Revolução Francesa; deste modo, a história recebe tados das várias barreiras nacionais e locais, colocados em relação prática
então os seus objectivos à parte, e torna-se uma «pessoa a par das outras com a produção (também com a espiritual) de todo o mundo e colocados
pessoas» (como sejam: «Consciência de Si, Crítica, Único», etc.), enquanto em condições de adquirir a capacidade de fruição para toda esta variada
aquilo que se designa com as palavras «Determinação», «Finalidade», produção da Terra inteira (as criações dos homens). A dependência inte-
«Germe», «Ideia» da história anterior não é mais do que uma abstracção gral, esta forma natural de cooperação bistórico-mundial dos indivíduos,
formada a partir da história posterior, uma abstracção a partir da influência é transformada [22] por esta revolução comunista no controlo e domínio
activa que a história antiga exerce sobre a posterior. consciente destes poderes que, gerados da acção dos homens uns sobre
Quanto mais se expandem, no curso deste desenvolvimento, os os outros, até aqui se lhes têm imposto e os têm dominado como poderes
diversos círculos que actuam uns sobre os outros, quanto mais o isola- completamente estranhos. Ora, esta visão pode, de modo fantástico como
mento original da cada nacionalidade é aniquilado pelo modo de produção «autogeração da espécie» (a «sociedade como sujeito»), e deste modo a série
e o intercâmbio já formados e pela divisão do trabalho entre as diferentes consecutiva de indivíduos em conexão entre si, ser imaginada como um
nações assim naturalmente produzida por eles, tanto mais a história se torna único indivíduo que realiza o mistério de se gerar a si próprio. Torna-se
história mundial, pelo que, por exemplo, quando em Inglaterra é inven- aqui relevante que os indivíduos se fazem de facto uns aos outros, física
tada uma máquina que deixa sem pão inúmeros operários na Índia e na e espiritualmente, mas não se fazem a si próprios, nem no sentido absurdo
China e transforma profundamente toda a forma de existência destes impé- do sagrado Bruno, nem no sentido do «Único», do homem «feito».
rios, este invento torna-se um facto histórico-mundial; o açucar e também Por fim, da concepção da história que desenvolvemos, obtemos ainda
> café provaram a sua importância mundial no século XIX pelo facto de os seguintes resultados: 1) no desenvolvimento das forças produtivas
a falta destes produtos, provocada pelo Sistema Continental Napoleónico, Jatinge-se um estádio no qual se produzem forças de produção e meios de
ter levado os Alemães [21] à revolta contra Napoleão e se ter tornado a intercâmbio que, sob as relações vigentes, só causam desgraça, que já não
base real das guerras gloriosas de libertação de 1813. Daqui decorre que; são forças de produção, mas forças de destruição (maquinaria e
esta transformação da história em história mundial não é, de modo! dinheiro) — e, em conexão com isto, é produzida uma classe que tem de
nenhum, um mero acto abstracto da «Consciência de Si», do Espírito doj suportar todos os fardos da sociedade sem gozar das vantagens desta e
mundo ou de qualquer outro espectro metafísico, mas um acto totalmente que, excluída da sociedade [23], é forçada ao mais decidido antagonismo
material, demonstrável empiricamente, um acto cuja prova é fornecida por: a todas as outras classes; uma classe que constitui a maioria de todos os
cada indivíduo no seu dia-a-dia, ao comer, ao beber e ao vestir-se. h membros da sociedade e da qual deriva a consciência sobre a necessidade
Na história até aos nosso dias é, sem dúvida, igualmente um facto de uma revolução radical, a consciência comunista, a qual, evidentemente,
empírico que cada um dos indivíduos, à medida que a actividade se alarga também se
se pode formar no seio das« outras classes por meio da observação
à escala histórico-mundial, fica cada vez mais escravizado sob um poder da posição desta classe; 2) que as condições, no seio das quais podem ser
que lhe é estranho (cuja pressão eles imaginaram como chicana do cha- aplicadas determinadas forças de produção, são as condições do domínio
mado Espírito do mundo, etc.), um poder que se tornou cada vez mais de uma determinada classe da sociedade, cujo poder social, decorrente
desmedido, e que em última instância se legitima como o mercado mun- da sua propriedade, tem a sua expressão prática-idealista na respectiva
dial. Mas, do mesmo modo, está empiricamente provado que pelo derru- E, por isso toda a luta revolucionária se dirige contra uma
bamento do estado de coisas vigente na sociedade por meio da revolução classe que até então dominou; 3) que em todas as revoluções anteriores
comunista (da qual mais adiante falaremos) e da abolição da propriedade o modo da actividade permaneceu sempre intocado e foi só uma questão
privada que àquela é idêntica, este poder tão misterioso para Os teóricos de uma outra distribuição desta actividade, de uma nova repartição do tra-
alemães será dissolvido, e então será realizada a libertação de cada um dos balho a outras pessoas, ao passo que a revolução comunista se dirige contra.
indivíduos na medida em que a história se transforma completamente em o-modo da actividade até aos nossos-dias, elimina o trabalbo e suprime.
história mundial . Depois do que atrás ficou dito, torna-se claro que a ver- o domínio de todas as classes, suprimindo as próprias classes, porque é
dadeira riqueza espiritual do indivíduo depende completamente da riqueza realizada pela classe qu
que na sociedade já não vale como uma classe, não
das suas relações reais. Só deste modo os diferentes indivíduos são liber- 'lé reconhecida como uma classe, é já a expressão da dissolução de todas
x
E!
32 33
as classes, nacionalidades, etc., no seio da sociedade actual; e 4) que, tanto e the dá um determinado desenvolvimento, um carácter especial — mostra,
para a produção massiva desta consciência comunista como para a reali- portanto, que as- circunstâncias
unstâncias fazem
fazem os
os homens
homens tanto
tanto [25]
[25] como-os;;
Í
zação da própria causa, é necessária uma transformação massiva dos homens fazem as circunstâncias.
homens que só pode processar-se num movimento prático, numa revo-
:| Iução; que, portanto, a revolução não é só necessária porque a classe domi- social, que todos os indivíduos e todas as gerações vêm encontrar como
nante de nenhum outro modo pode ser derrubada, mas também porque algo de dado, é o fundamento real daquilo que os filósofos tém represen-
a classe que a derruba só numa revolução consegue sacudir dos ombros tado como «substância» e «essência do Homem», daquilo que têm apoteo-
é toda a velha porcaria e tornar-se capaz de fundar uma nova sociedade. tizado e combatido — um fundamento real que de modo nenhum é afec-
tado nos seus efeitos e influências sobre o desenvolvimento dos homens
pelo facto de estes filósofos se rebelarem contra ele como «Consciência
[7. Resumo da concepção materialista da história] de Si» e o «Único». Estas condições de vida que as diferentes gerações já !

qe ra tr a ar ms
encontram vigentes é que decidem, também, se o abalo revolucionário
[24] Esta concepção da história assenta, portanto, no desenvolvi- periodicamente recorrente na história será suficientemente forte ou não
' mento do processo real da produção, partindo logo da produção material para deitar abaixo a base de todo o existente, e quando estes elementos|
da vida imediata, e na concepção da forma de intercâmbio intimamente materiais de um revolucionamento total — ou seja, por um lado, as forças
“ligada a este modo de produção e por ele produzida, ou seja, a sociedade produtivas existentes, por outro, a formação de uma massa revolucionária

metem ae
civil nos seus diversos estádios, como base de toda à história, e bem assim que faz a revolução não apenas contra estas ou aquelas condições da socie- |
na representação da sua acção como Estado, explicando a partir dela todos dade anterior, mas contra a própria «produção da vida» vigente até agora,
Os diferentes produtos teóricos e formas da consciência — a religião, a filo- contra a «actividade actual» em que se baseava -— não estão presentes, então ;
'sofia, a moral, etc., etc. — e estudando a partir destas o seu nascimento; é completamente indiferente para o desenvolvimento prático que a ideia |
deste modo, naturalmente, a coisa pode também ser apresentada na tota- desta transformação profunda já tenha sido expressa centenas de vezes — |
lidade (e por isso também a acção recíproca destas diferentes facetas). AO como o prova a história do comunismo.
contrário da visão idealista da história, não tem de procurar em todos os
períodos uma categoria, pois permanece constantemente com os pés
assentes no chão real da história; não explica a práxis a partir da ideia, /8. Falta de fundamento da concepção anterior da história, a con-
explica as formações .de.ideias.a.partir -da práxis material, e chega; em con- cepção idealista, particularmente da filosofia alemã pós-
sequência disto, também a este resultado: todas as formas e produtos da -begeliana]
consciência podem ser resolvidos não pela crítica espiritual, pela disso-
lução na «Consciência de Si» ou pela transformação em «aparições», «espec- Toda a concepção da história até hoje ou deixou, pura e simples-
tros», «manias», etc., mas apenas pela transformação prática [revolucionária] mente, por considerar esta base real da história, ou viu nela apenas algo
das relações sociais reais de que derivam estas fantasias idealistas — à força de secundário e sem qualquer conexão com o curso histórico. A história
motora da história, da religião, da filosofia e de toda a demais teoria, não tem, por isso, de ser sempre escrita segundo um critério que lhe é extrín-
é a crítica, mas sim a revolução. Ela-mostra-que a. história-não termina) ! seco; a produção real da vida aparece como historicamente primitiva,
resolvendo-se-na-«Consciência de Si» como «espírito do espírito», mas que | enquanto o que é histórico aparece como existindo separado da vida em
nela, em todos os estádios, se encontra um resultado material, uma soma !| comum, como extra-supraterreno. A relação das histórias com a natureza
i
de forças de produção, uma relação historicamente criada com a natureza, fica, deste modo, excluída da história, pelo que é gerado o antagonismo
e dos indivíduos uns com os outros que a cada geração é transmitida pela de natureza e história. Daí que tal concepção só tenha podido ver na his-
sua predercessora, uma massa de forças produtivas, capitais e circunstân- : tória acções políticas de chefes e de Estados e lutas religiosas e teóricas
cias que, por um lado, é de facto modificada pela nova geração, mas que |i em geral, e tenha tido, em especial, em cada época histórica, de partilhar |
por outro lado também lhe prescreve as suas próprias condições de vida A da ilusão dessa época. Por exemplo, se uma época imagina ser determi- /

34 35
nada por motivos puramente «políticos» ou «religiosos», embora a «reli: apenas de explicar essa fraseologia teórica a partir das relações reais
gião» e a «política» sejam apenas formas dos seus motivos reais, o seu his.. vigentes. A resolução prática, real, dessa fraseologia, a eliminação destas
í
toriógrafo aceita esta opinião. A «ilusão», a «representação» destes homens, í: representações da consciência dos homens, é operada, como já dissemos,
determinados sobre a sua práxis realé transformada no único poder deter) pela mudança das circunstâncias, e não por meio de deduções teóricas.
minante e activo que domina e determina a práxis desses homens. Quando Para a massa dos homens, isto é, para o proletariado, não existem estas
a forma rudimentar em que aparece a divisão do trabalho dos Indianos representações teóricas, e, portanto, para ele, não precisam de ser resol-
e entre os Egípcios dá origem, nestes povos, ao sistema de castas no seul vidas; e se essa massa teve quaisquer representações teóricas, por exemplo,
Estado e na sua religião, o historiador acredita ser o sistema de castas [26]! a religião, já há muito que estas se encontram resolvidas pelas circuns-
j
o poder que gerou esta forma social rudimentar. | tâncias.
Enquanto os Franceses e os Ingleses se agarram pelo menos à ilusão L O que há de puramente nacional nestas questões e soluções revela-
política, que está mais perto da realidade, os Alemães movem-se no reino -se ainda no facto de estes teóricos acreditarem, com toda a seriedade,
do «espírito puro» e fazem da ilusão religiosa a força motora da história. que ficções do cérebro como «Homem-Deus», «o Homem», etc., tivessem
A filosofia da história de Hegel é a última consequência, levada à sua alguma vez presidido a cada uma das épocas da história — o sagrado Bruno
«expressão mais pura», de toda esta Historiografia Alemã, na qual a questão chega mesmo ao ponto de afirmar que só «a crítica e os críticos fizeram
não é a dos interesses reais, nem sequer dos interesses políticos, mas dos a história» — e de, quando eles próprios se dedicam a construções histó-
pensamentos puros, e que depois tem de aparecer ao sagrado Bruno como ricas, saltarem, com a maior das pressas, sobre tudo o que é mais remoto
uma série de «pensamentos» que se devoram uns aos outros € que por e passarem logo do «Mongolismo» para a história autêntica e «cheia de con-
fim se afundam na «Consciência de Si» e, de um modo ainda mais conse- teúdo», isto é, a história dos Hallische e dos Deutsche Jabrbiicher e da
quente, este curso histórico tem de aparecer ao sagrado Max Stirner, O dissolução da escola hegeliana para uma bulha geral. São esquecidas todas
qual nada sabe de toda a história real, como uma mera história de «cava- as nações, todos os acontecimentos reais, o theatrum mundi confina-se
leiros», salteadores de espectros, face às visões dos quais ele naturalmente à Feira do Livro de Leipzig e às desavenças mútuas da «crítica», do «Homem»
só sabe salvar-se pela «impiedade» . Esta concepção é realmente religiosa, e do «Único». Se a teoria se dá alguma vez ao trabalho de tratar temas
faz passar o homem religioso pelo homem original do qual parte toda a realmente históricos, como, por exemplo, o século XVIII, os seus adeptos
história, e coloca, na sua imaginação, a produção de fantasias religiosas dão só à história das representações, desligada dos factos e dos desenvol-
no lugar da produção real nos meios de subsistência e da própria vida. vimentos práticos que lhes estão na base, e mesmo assim apenas com a
Toda esta concepção da história, juntamente com a sua dissolução intenção de apresentarem esse tempo como um estádio preliminar imper-
e os escrúpulos e dúvidas dela resultantes, é um assunto meramente feito, como precursor ainda limitado do verdadeiro tempo histórico, ou
nacional dos Alemães e tem interesse apenas local para a Alemanha, como, seja, do tempo da luta dos filósofos alemães de 1840/44. A este objectivo
por exemplo, esta questão importante, e muito recentemente tratada: como de escrever uma história de um período anterior para fazer brilhar, com
é que de facto «se vem do reino de Deus para o reino dos homens», como mais fulgor ainda, a glória de uma pessoa a-histórica e das suas fantasias
se este «reino de Deus» tivesse alguma vez existido em qualquer outra parte corresponde o facto de não se mencionarem nenhuns factos realmente
que não na imaginação, e os doutos senhores não vivessem continuamente, históricos, nem mesmo as intervenções realmente históricas da política
sem o saberem, no «reino dos homens» para o qual agora procuram na história, e de, em vez disso, se dar uma narrativa assente não em estudos
caminho, é como se o divertimento científico, pois não é mais do que mas em construções e historietas de mexericos literários — como acon-
isso, de explicar a singularidade desta nefelibatice teórica não residisse pre- teceu com o sagrado Bruno na sua já esquecida História do Século XVIII.
cisamente em, ao contrário, demonstrar o seu nascimento a partir das rela- Estes patéticos e arrogantes merceeiros de ideias, que crêem estar infinita-
ções terrenas reais. A verdade é que, para estes Alemães, a questão é sempre mente acima de todos os preconceitos nacionais, são, pois, na prática, ainda
a de resolverem o contra-senso com que deparam [27] numa outra tolice muito mais nacionais do que os filisteus bebedores de cerveja que sonham
qualquer, ou seja, de pressuporem que todo esse contra-senso tem, de com a unidade da Alemanha. Não reconhecem como históricos os actos
facto, um sentido especial que há que descobrir, ao passo que se trata de outros povos, vivem na Alemanha pela Alemanha [28] e para a Ale-

+
36 357 '
[29] de modo nenhum corresponde à sua «essência», isto é, segundo o passo
manha, transformam a canção do Reno num hino religioso, e conquistam
citado, uma desgraça inevitável que deve ser suportada tranquilamente.
a Alsácia e a Lorena roubando, não o Estado francês, mas a filosofia fran-
Estes milhões de proletários ou comunistas, porém, pensam de modo total-
cesa, e germanizando, não províncias francesas, mas as ideias francesas.
mente diferente, e prová-lo-ão a seu tempo, quando, de um modo prá-
Comparando aos Sagrados Bruno e Max, que no domínio universal da
tico, por meio de uma revolução, estabelecerem a harmonia entre o seu
teoria proclamam o domínio universal da Alemanha, Herr Venedey é um «ser» € a sua «essência». Feuerbach, portanto, nunca fala do homem nestes
cosmopolita.
casos, refugia-se sempre na natureza exterior, e, para mais, na natureza
que ainda não foi dominada pelos homens. Mas cada invenção, cada avanço
da indústria, separa outro pedaço, deste domínio, pelo que diminui con-
[9. Crítica adicional de Feuerbach, da sua concepção idealista da
tinuamente a área que produz os exemplos ilustrativos das proposições
história]
de Feuerbach. A «essência» do peixe é o seu «ser», a água — para no
ficarmos por esta proposição. A «essência» do peixe de água doceé a água
Destas disputas torna-se também claro quando Feuerbach se ilude ao
de um rio. Mas esta deixa de ser a «essência» do peixe, e já não é um meio
declarar-se, em virtude da qualificação «homem comunitário» [Gemein-
adequado de existência, assim que o rio é posto ao serviço da indústria,
mensch], um comunista (Wigand's Vierteljabrsschrift, 1845, Bd. 2), ao
assim que é poluido com as tintas e outros produtos residuais, e navegado
transformar comunista num predicado «do» Homem, ou seja, ao julgar
por barcos a vapor, ou assim que a sua água é conduzida para canais onde
poder transformar a palavra comunista, que o mundo que existe designa
bastam os esgotos para privar o peixe do seu meio de existência. A expli-

a eee
o adepto de um determinado partido revolucionário, de novo numa mera
cação de todas estas contradições são inevitáveis anormalidades não difere
categoria. Toda a dedução de Feuerbach quanto à relação dos homens entre
essencialmente da consolação que o Sagrado Max Stirner oferece aos des-
si não vai além de provar que os homens precisam, e sempre precisaram,

ea
contentes, quando lhes diz que esta contradição é a contradição própria
uns dos outros. Ele quer estabelecer a consciência deste facto, isto é, como
deles e esta situação aflitiva a situação aflitiva própria deles, pelo que deve-
os restantes teóricos quer apenas produzir uma consciência correcta acerca
riam ou tranquilizar O espírito, guardar para si próprios O seu horror, ou
dum facto existente, ao passo que ao comunismo real o que importa é der-
revoltar-se contra ela de um qualquer modo fantástico. Do mesmo modo,
rubar este existente. De resto, reconhecemos perfeitamente que Feuer-
pouco difere a alegação de São Bruno de que estas circunstâncias infelizes
bach, ao esforçar-se por criar a consciência precisamente deste facto, vai
se ficam a dever ao facto de que as pessoas estão presas no esterco da «subs-
longe quando qualquer teórico pode ir sem deixar de ser um teórico e
tância», não avançaram para a «absoluta Consciência de Si», e não com- í
um filósofo. Mas o que é característicoé que os Sagrados Bruno e Max
preendem que estas condições adversas são espírito do seu espírito. Í
coloquem logo a noção de comunista real, o que em parte sucede precisa-
mente para poderem combatér o comunismo também como «espírito do
espírito», como categoria filosófica, como adversário da mesma con-
dição — e da parte do Sagrado Bruno também por interesses pragmáticos.
[LN
Como exemplo do reconhecimento, e ao mesmo tempo desconhe-
[1. A classe dominante e consciência dominante. Formação da con-
cimento, do que existe — que Feuerbach continua a partilhar com os
cepção de Hegel do domínio do espírito na história]
nossos adversários —, recordamos o passo da Filosofia do Futuro em que
ele expõe que o ser de uma coisa ou de um homem é, ao mesmo tempo,
| [50] As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias

É|
a sua essência, que as determinadas condições de existência, o modo de
d ominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da socie-
vida e a actividade de um indivíduo animal ou humano são aquilo mesmo
d ade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que
em que a sua essência se sente satisfeita. Aqui se entendem todas as excep-
tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao
ções expressamente como acasos infelizes, como uma anormalidade que
mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão
não se pode alterar. Se, portanto, milhões de proletários não se sentem
/ assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a que
de modo nenhum satisfeitos nas suas condições de vida, se o seu «ser»
s
39 i
38
Í faltam os meios para a produção espiritual. As ideias dominantes não são dominaram os conceitos honra, lealdade, etc., durante o domínio da bur-
: | mais do que a expressão ideal [ideel!] das relações materiais dominantes, guesia dominaram os conceitos liberdade, igualdade, etc. Em média, isto
las relações materiais dominantes concebidas como ideais; portanto, das é o que a própria classe dominante imagina. Esta concepção da história,
relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias que a todos os historiadores é comum, em especial a partir do século XVII,
do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também há-de necessariamente dar com o [32] fenómeno de que dominam ideias
têm, entre outras coisas, consciência, e daí que pensem; na medida, por- cada vez mais abstractas, isto é, ideias que assumem cada vez mais a forma
tanto, em que dominam como classe e determinam todo o conteúdo de da universalidade. É que cada nova classe-.que se coloca no lugarde outra
uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão, € ue dominou antes dela, é obrigada; apenas para realizar c)o seu propósito,
portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como a apresentar O seu interesse como o interesse comunitário de todos os mem-
produtores de ideias, regulam a produção e a distribuição de ideia do seu bros da sociedade, ouou sei
aa Expressão. ideal fideetn dar
a às suas
as ideias
tempo; que, portanto, as suas ideias são as ideias dominantes da época.
Numa altura, por exemplo, e num país em que o poder real, a aristocracia Vest.
e a burguesia lutam entre si pelo domínio, em que portanto o domínio cípio, já que tem pela frente uma classe , não como classe, mas como repre-
emana

está dividido, revela-se ideia dominante a doutrina da divisão dos poderes, sentante de toda a sociedade, ela aparece como uma massa inteira da
: que é agora declarada uma «lei eterna». sociedade face à única classe, a dominante . E consegue-o porque, a prin- |
É A divisão do trabalho, que já atrás (pp. [15-18]) encontrámos como cípio, o seu interesse anda realmente ainda mais ligado ao interesse comu- :
“uma das principais forças da história até aos nossos dias, manifesta-se agora nitário de todas as demais classes não dominantes, porque sobre a pressão :
também na classe dominante como divisão do trabalho espiritual e [31] das condições até aí vigentes ele não pôde ainda desenvolver-se como inte- |
material, pelo que no seio desta classe uma parte surge como os pensa- resse particular de uma classe particular. A sua vitória aproveita também,
dores desta classe (os ideólogos conceptivos activos da mesma, os quais por isso, a muitos indivíduos das demais classes que não se tornam domi-
fazem parte da formação da ilusão desta classe sobre si própria a sua prin- nantes, mas apenas na medida em que permite a estes indivíduos subirem
cipal fonte de sustento), ao passo que os outros têm uma atitude mais pas- à classe dominante. Quando a burguesia francesa derrubou a aristocracia,
siva e receptiva em relação a ideias e ilusões, pois que na realidade são tornou desse modo possível a muitos proletários subirem acima do prole-
eles os membros activos desta classe e têm menos tempo para criar ilu- tariado, mas apenas na medida em que se tornaram burgueses. Cada nova
sões e ideias sobre si próprios. No seio desta classe pode esta cisão da classe, por isso, instaura O seu domínio apenas sobre uma base mais ampla
' mesma chegar a uma certa oposição e hostilidade entre ambas as partes, do que a da até aí dominante, pelo que, em contrapartida, mais tarde
: mas que por si própria desaparece em todas as colisões práticas em que também o antagonismo da classe não dominante contra a agora dominante
. a própria classe fica em perigo, desaparecendo então também a aparência se desenvolve muito mais aguda e profundamente. Por ambas as razões
- de que as ideias dominantes não seriam as ideias da classe dominante e é determinado o facto de que a luta a travar contra a nova classe domi-
«teriam um poder distinto do poder desta classe. A existência de ideias revo- nante por seu turno visará uma negação mais radical, mais decidida, das
lucionárias numa época determinada pressupõe já a existência de uma condições sociais até aí vigentes [33] do que fora possível a todas as classes
classe revolucionária, e já atrás ficou dito o que era necessário sobre as que anteriormente procuraram dominar.
premissas (pp. [18-19, 22-23). Toda esta aparência de que o domínio de uma determinada classe
Ora se na concepção do curso da história desligarmos as ideias da seria apenas o domínio de certas ideias cessa, naturalmente, por si mesma
classe dominante da classe dominante, se lhes atribuirmos uma existência logo que o domínio de classes em geral deixa de ser a forma da ordem
autónoma, se nos ficarmos porque numa época dominaram estas e aquelas social, logo que, portanto, deixa de ser necessário apresentar um interesse
ideias, sem nos preocuparmos com as condições da produção e com os particular como geral ou «o geral» como dominante.
produtores destas ideias, se, portanto, deixarmos de fora os indivíduos Uma vez separadas as ideias dominantes dos indivíduos dominantes,
e as condições do mundo que estão na base das ideias, então poderemos e sobretudo das relações decorrentes de uma dada fase do modo de pro-
dizer, por exemplo, que durante o tempo em que dominou a aristocracia dução, e atingido assim o resultado de que na história dominam sempre

40 41 :
! 1

; as ideias, é muito fácil abstrair destas várias ideias «a ideia», a Ideia, etc., | [35] Enquanto na vida comum cada shopkeeper sabe muito bem dis-
“como o que domina na história, e entender assim todas as diferentes ideias | | tinguir entre aquilo que alguém pretende ser e aquilo que é realmente,
.e conceitos como «autodeterminações» do conceito que se desenvolve na t
Háa verdade é que a nossa historiografia ainda: não atingiu este reconheci
ihistória. E, então, também é natural que todas as relações dos homens mento trivial. Ela acredita que todas as épocas são, literalmente, aquilo
'possam ser derivadas do conceito de Homem, do Homem tal como repre- | que dizem e imaginam ser.
: sentado, da essência do Homem, do Homem. Foi o que fez a filosofia espe-
: culativa. O próprio Hegel confessa, no fim da Filosofia da História, que
«apenas considerou o curso do conceito» e que a história apresentou a «ver-
dadeira teodiceia» (p. 446). Podemos agora voltar aos produtores do «con- [EV]
ceito«, aos teóricos, ideólogos e filósofos, e chegamos então a esta con-
[1. Instrumentos de produção e formas de propriedade]
clusão: os filósofos, os pensadores, como tais, desde sempre dominaram
a história — uma conclusão que, como vemos, já foi expressa por Hegel.
-[40] Do primeiro, decorre a premissa de uma divisão do trabalho
Todo o truque de demonstrar na história a soberania do espírito (a hierar-
quia, em Stirner) reduz-se, portanto, aos seguintes três esforços: já desenvolvida e de um extenso comércio; do segundo a localidade. No
[34] N.º 1. É preciso separar as ideias dos que dominam por razões primeiro caso, os indivíduos têm de ser reunidos, no segundo caso
empíricas, em condições empíricas e como indivíduos materiais, destes descobrem-se, a par do instrumento de produção dado, a si como instru-
mesmos que dominam, e por esta via reconhecer o domínio das ideias mentos de produção. Entra aqui, portanto, a diferença entre os instru-
ou ilusões na história. mentos de produção naturais e os que foram criados pela civilização.
N.º 2. É preciso pôr ordem neste domínio das ideias, demonstrar uma A terra (a água, etc.) pode ser considerada como um instrumento de pro-
conexão mística entre as ideias que sucessivamente dominam, o que se “dução natural, No primeiro caso, no caso de um instrumento de produção
consegue pela via de considerá-las «autodeterminações do conceito» (e isto ;natural, os indivíduos são subordinadosà natureza; no segundo caso a um
é possível pelo facto de estas ideias, graças à sua base empírica, estarem | produto do trabalho. No primeiro caso, a propriedade (propriedade da
realmente em conexão entre si, e pelo facto de elas, entendidas como Í terra) surge, por isso, também como domínio natural directo, no segundo
à
meras ideias, se tornarem autodistinções, diferenças feitas pelo pen- | como domínio do trabalho, em especial do trabalho acumulado, do capital.
IH
à
samento). | O primeiro caso pressupõe que os indivíduos se encontram ligados por
N.º 3. Para eliminar o aspecto místico deste «conceito que se auto- | algum vínculo, seja a família, a tribo, a própria terra, etc.; o segundo caso,
determina», transformam-no numa pessoa — «a Consciência de Sir —, ou, | que são independentes uns dos outros e apenas unidos pela troca. No pri-
para parecerem verdadeiramente materialistas, numa série de pessoas que | meiro caso, a troca é principalmente uma troca entre os homens e a natu-
representam «o conceito» na história, nos «pensadores», nos «filósofos», ireza, uma troca em que o trabalho de um é trocado contra os produtos
nos ideólogos, que agora de novo são entendidos como os fabricantes da ida outra; no segundo caso, elaé, predominantemente, troca dos homens
história,como o «Conselho dos Guardiões», como os dominantes . Deste entre si. No primeiro caso, chega o senso comum dos homens, a activi-
modo eliminaram da história todos os elementos materialistas, e puderam [dade manual e a intelectual não estão ainda separadas; no segundo caso,
então dar rédea solta ao seu corcel especulativo. [tem de estar já consumada na prática a divisão entre trabalho intelectual
Este método histórico que dominou na Alemanha, e especialmente e manual. No primeiro caso, o domínio do proprietário sobre os não pro-
a razão por que dominou, têm de ser explicados a partir da conexão com - iprietários pode assentar em relações pessoais, sobre uma espécie de comu-
a ilusão dos ideólogos em geral, por exemplo, as ilusões dos juristas, polí- jnidade; no segundo caso, ele tem de ter assumido uma forma concreta
ticos (entre os quais, também, os estadistas práticos), a partir das divaga- num terceiro elemento, o dinheiro. No primeiro caso, existe a pequena
ções dogmáticas e distorções destes sujeitos, ilusão essa que muito sim- indústria, mas subordinada à utilização do instrumento de produção
plesmente se explica pela sua posição prática na vida, pela sua actividade natural, e por isso sem repartição do trabalho por vários indivíduos; no
e pela divisão do trabalho. segundo caso, a indústria existe apenas na e pela divisão do trabalho.

42 43 '
os instrumentos de produção como de cidade e campo pode ser também tomada como a divisão de capital
[41] Até aqui temos tomado
e propriedade fundiária, como o começo de uma existência e desenvolvi-
ponto de partida, e já aqui se revelou a necessidade da propriedade para
mento do capital independente da propriedade fundiária, do capital, ou
certas etapas industriais. Na industrie extractive, a propriedade privada
seja, uma propriedade que tem a sua base meramente no trabalho e na
ainda coincide completamente com o trabalho; na pequena indústria, e
troca.
em toda a agricultura até aos nossos dias, a propriedade é consequência
Nas cidades que, na Idade Média, não tinham sido recebidas já feitas
necessária dos instrumentos de produção existentes; na grande indústria,
da história anterior e se formaram a partir dos servos da gleba que se tinham
pela primeira vez, é produto desta a contradição entre o instrumento de
e para produzir tal contradição tem tornado livres, o trabalho particular de cada um era a sua única proprie-
| produção e a propriedade privada, dade, além do pequeno capital que trazia consigo e que consistia quase
! de estar já muito desenvolv ida. Por isso, só com a grande indústria éé
! só na mais necessária ferramenta do ofício. A concorrência dos servos
também possível a abolição da propriedade privada.
à A ma
fugidos que ocorriam à cidade, a guerra permanente do campo contra as
cidades e, com ela, a necessidade de um poder armado organizado das
da cidades, o vínculo comum de um determinado trabalho, a necessidade
/2. A divisão do trabalho material e intelectual. Separação
de edifícios comuns para venda das suas mercadorias numa altura em que
cidade e do campo. O sistema de corporações]
os artesãos eram, ao mesmo tempo, commerçanis, e a consequente
exclusão destes edifícios dos que nada tinham a ver com a profissão, opo-
A maior divisão do trabalho material e intelectual é a separação da
sição de interesses dos diferentes ofícios entre si, a necessidade de pro-
cidade e do campo. A oposição [Gegensatz] entre a cidade e campo começa
tecção do trabalho penosamente aprendido e a organização feudal de todo
com a transição da barbárie para a civilização, do sistema tribal para O
o país foram as causas da união dos operários de cada um dos ofícios em
Estado, da localidade para a nação, e estende-se através de toda a história
corporações. Não temos aqui de entrar nas múltiplas modificações do sis-
da civilização até aos nossos dias (a Anti-Corn-Law League).
tema corporativo surgidas ao longo de desenvolvimentos históricos pos-
Com a cidade, está ao mesmo tempo dada a necessidade da adminis-
teriores. A fuga dos servos para as cidades teve ininterruptamente lugar
tração, da polícia, dos impostos, etc., em suma, do sistema municipal [des
durante toda a Idade Média. Estes servos, perseguidos no campo pelos seus
Gemeindewesens] e, assim, da política em geral. Aqui se revelou primeiro
senhores, vinham isolados para as cidades, onde já encontravam uma
' a divisão da população em duas grandes classes, a qual assenta directa-
comunidade organizada contra a qual nada podiam e na qual tinham de
| mente na divisão do trabalho e nos instrumentos de produção. A cidade
se submeter à posição que lhes apontavam a necessidade do seu trabalho
é já realidade da concentração da população, dos instrumentos de pro-
e o interesse dos seus concorrentes organizados da cidade. Estes operá-
dução, do capital, dos prazeres, das necessidades, ao passo que o campo
rios, que entravam um por um, nunca puderam construir um poder,
torna patente precisamente a realidade oposta, o isolamento e a solidão.
porque se o seu trabalho era regulado pelas corporações e tinha de ser
A oposição entre cidade e campo só pode existir no quadro da proprie-
aprendido, os mestres das corporações submetiam-nos a si e organizavam-
dade privada. É a expressão mais crassa da subordinação do indivíduo à
-nos segundo o seu interesse, ou, se o seu trabalho não tinha de ser apren-
divisão do trabalho, a uma actividade determinada que lhe é imposta, uma
dido, e não era por isso regulado pelas corporações, mas trabalho de jorna, 1i
subordinação que de um faz um animal limitado da cidade, do outro um
nunca chegaram a uma organização, e permaneceram plebe desorganizada.
animal limitado do campo, e que dia a dia de novo produz a oposição dos
A necessidade do trabalho de jorna nas cidades criou a plebe.
interesses de ambos. O trabalho é aqui, de novo, o principal, o poder sobre
y

Estas cidades eram verdadeiras «associações», criadas pela necessidade |


os indivíduos, e enquanto este existir tem de existir também a proprie-
[43] imediata, pelo cuidado com a protecção da propriedade, e para mul- /
dade privada. A abolição da oposição de cidade e campo é uma das pri-
tiplicar os meios de produção e os meios de defesa de cada um dos mem/
meiras condições [42] da comunidade, uma condição que, por seu turno,
bros. A plebe destas cidades ficou privada de todo o poder pelo facto de
depende de um grande número de premissas materiais € que a simples
vontade não consegue preencher, como qualquer pessoa vêa primeira Lo
se compor de indivíduos estranhos entre si e que haviam chegado isola!
damente, os quais, sem organização, se contrapunham a um poder orga:
vista. (Estas condições têm ainda de ser aqui desenvolvidas.) A separação q

44 45
nizado, equipado para a guerra, que OS vigiava zelosamente. Os oficiais /3. Maior divisão do trabalho. Separação do comércio e da indús-
e aprendizes estavam organizados, em cada ofício, da maneira que melhor tria. Divisão do trabalho entre as várias cidades. Manufactura]
correspondia ao interesse dos mestres; a relação patriarcal em que se encon-
travam face aos mestres dava a estes um poder dobrado, por um lado na
: O alargamento seguinte da divisão do trabalho foi a separação de pro-
sua influência directa sobre toda a vida dos oficiais, e depois porque, para |
dução
4 e intercâmbio, a formação de uma classe especial de comerciantes,
os oficiais, O trabalharem com o mesmo mestre era um vínculo real que ik uma separação que nas cidades historicamente herdadas fora transmitida
os unia face aos oficiais dos restantes mestres e deles os separava, e final- Í
(entre outrás coisas, com os Judeus) e que nas cidades recém- -formadas
mente os oficiais estavam desde logo atados à ordem vigente pelo inte-/
imuito cedo surgiu. Estava, assim, dada a possibilidade de uma ligação
resse que tinham em tornar-se eles próprios mestres. Enquanto, por isso,:
comercial que ultrapassava os limites locais, uma possibilidade cuja reali-
a plebe pelo menos se ergueu em motins contra toda a ordem da cidade,
zação dependia dos meios de comunicação existentes, do estado da segu-
os quais, no entanto, dada a sua falta de poder, não produziram quaisquer
rança pública no campo condicionado pelas condições políticas (em toda
efeitos, os oficiais chegaram tão-só a pequenas insubordinações no seio
a Idade Média, como é sabido, os comerciantes deslocavam-se em cara-
de corporações separadas e de acordo com a existência do próprio sis-
vanas armadas), e das necessidades mais cruas ou mais desenvolvidas, con-
tema das guildas. Os grandes levantamentos da Idade Média partiram todos
do campo, mas ficaram igualmente sem qualquer êxito devido à dispersão soante o nível de cultura respectivo, da região acessível ao intercâmbio.
| Com o intercâmbio constituído numa classe especial, com o alarga-
dos camponeses e à crueza que dela decorre.
O capital, nestas cidades, era um capital natural, que consistia na casa, mento do comércio pelos comerciantes para além dos arredores imediatos
nas ferramentas do ofício e dos compradores hereditários naturais, e que, da cidade, surge imediatamente uma acção recíproca entre a produção e
devido ao intercâmbio não desenvolvido e à escassa circulação, tinha de o intercâmbio. As cidades entram em ligação umas com as outras, de uma
se transmitir de pais a filhos como irrealizável. Não era este capital, ao con- cidade são levadas para outra novas ferramentas, e a divisão entre a pro-
trário do moderno, um capital avaliável em dinheiro e para o qual é indi- dução € o intercâmbio em breve dá origem a uma nova divisão da pro-
ferente estar investido nesta ou naquela coisa, mas um capital directamente dução entre [45] cada uma das cidades, cada uma das quais em breve
ligado ao trabalho particular do possuidor, absolutamente inseparável explora um ramo predominante da indústria. A limitação local inicial
deste, e nessa medida, um capital de estado [ou de ordem social — começa a ser gradualmente dissolvida.
siândisches Kapital). Se as forças produtivas ganhas numa localidade, nomeadamente
A divisão do trabalho nas cidades entre [44] as diferentes corpora- “inventos, se perdem ou não para o desenvolvimento posterior depende
ções era ainda [completamente natural] e nas próprias corporações não simplesmente do alargamento do intercâmbio. Enquanto não existe um
era realizada entre os diferentes operários. Cada operário tinha de ser ver- intercâmbio que ultrapasse a vizinhança imediata, cada invento tem de ser
sado num ciclo inteiro de trabalhos, tinha de saber fazer tudo o que se feito separadamente em cada localidade, e simples contingências, como
podia fazer com as suas ferramentas; O intercâmbio reduzido e a escassa irrupções de povos bárbaros, as próprias guerras habituais, são O bastante
ligação das diferentes cidades entre si, a falta de população e a limitação para fazer regressar uma região com forças produtivas € necessidades desen-
das necessidades não permitiram o aparecimento de uma maior divisão volvidas ao ponto em que tem de começar tudo de princípio. Na história
do trabalho, e por isso todo aquele que queria ser mestre tinha de dominar inicial, cada invento tinha de ser feito diariamente de novo e independen-
maps acres remota verme,

completamente o seu ofício. Por isso, nos artesãos medievais se encontra temente em cada localidade. Quão pouco a salvo de uma ruína completa
ainda um interesse no seu trabalho especial e em ser destro nele, que podia estão forças produtivas desenvolvidas, até mesmo quando existe um
elevar-se a um certo sentido artístico limitado. Mas também por isso cada comércio relativamente bastante extenso, demonstram os Fenícios, cujos
artesão medieval se entregava completamente ao seu trabalho, mantinha iniventos em grande parte se perderam por longo tempo devido à expulsão
com ele uma grata relação de servo e estava muito mais subordinado a desta nação do comércio, à conquista de Alexandre e ao declínio que se
ele do que o operário moderno, ao qual o seu trabalho é indiferente. lhe seguiu. E o mesmo acontece na Idade Média, por exemplo, com os
i'
+

46 47 ,
: vitrais. SÓ quando o intercâmbio se torna intercâmbio mundial e tem por i sentido moderno, tanto quanto as condições de então no-lo permitem
| base a grande indústria é que está assegurada a duração das forças produ- | afirmar. O segundo progresso veio com a manufactura, a qual de novo
itivas conquistadas. | mobilizou uma massa do capital natural e, no geral, aumentou a massa do
A divisão do trabalho entre as diferentes cidades teve por conse- | capital móvel face ao natural.
* quência imediata o nascimento das manufacturas, dos ramos de produção A manufactura tornou-se, ao mesmo tempo, um refúgio dos campo-
* que tinham ultrapassado o sistema corporativo. O primeiro florescimento neses contra as corporações que os excluíam ou lhes pagavam mal, do
das manufacturas — na Itália, e mais tarde na Flandres — teve como sua mesmo modo que anteriormente as cidades das corporações tinham [ser-
premissa histórica o intercâmbio com nações estrangeiras. Em outros vido] aos camponeses de refúgio [47] contra [a nobreza rural que os
países — Inglaterra e França, por exemplo — as manufacturas limitaram- oprimia].
-Se inicialmente 20 mercado interno. As manufacturas têm por premissa, Com o começo das manufacturas coincidiu um período de vagabun-
além das premissas mencionadas, ainda uma concentração já avançada da dagem, ocasionado pela dissolução dos séquitos feudais, pela desmobili-
população — nomeadamente no campo — e do capital, tendo este come- zação dos populosos exércitos que tinham servido os reis contra Os vas-
çado a acumular-se nas mãos de indivíduos, em parte nas guildas, a des- salos, pelo aperfeiçoamento da agricultura e pela transformação de grandes
peito das leis corporativas, em parte entre os comerciantes. extensões de solo arável em pastagens. Já por aqui se vê como esta vaga-
[46] Foi o trabalho que desde o início pressupôs uma máquina, ainda bundagem se encontra em rigorosa conexão com a dissolução do feuda-
que na mais tosca das formas, que a muito breve trecho se mostrou o mais lismo. Já no século XIII ocorrem algumas épocas desta natureza, mas no
'capaz de desenvolvimento. A tecelagem, anteriormente exercida no campo fim do século XV e princípio do século XVI é que esta vagabundagem surge
| pelos camponeses, como actividade secundária, para se proverem com como um fenómeno geral e permanente. Estes vagabundos, que eram tão
o vestuário necessário, foi o primeiro trabalho a receber um impulso e numerosos que Henrique VIII de Inglaterra, para só falar dele, mandou
| uma maior evolução com o alargamento do intercâmbio. A tecelagem foi enforcar 72 000, só com as maiores dificuldades e pela miséria mais
a primeira manufactura, e permaneceu a principal. A procura de tecidos extrema eram levados a trabalhar — e mesmo assim só ao cabo de longa
para o vestuário, que crescia à medida que aumentava a população, o resistência. O rápido florescimento das manufacturas, nomeadamente em
começo da acumulação e mobilização do capital natural devido à cir- | Inglaterra, absorveu-os gradualmente.
culação acelerada, a necessidade do luxo assim provocada e favorecida t Com a manufactura, as diferentes nações entram numa relação de con-

|
pelo gradual alargamento do intercâmbio em geral, deramà tecelagem, corrência, numa luta comercial que se travou em guerras, protecções alfan-
quantitativa e qualitativamente, um impulso que a arrancou da forma de

|
degárias e proibições, ao passo que anteriormente as nações, tanto quanto
produção precedente. A par dos camponeses que teciam para uso pró- e stavam em ligação entre si, tinham prosseguido uma troca inofensiva
prio, Os quais continuaram e ainda continuam a existir, surge nas cidades umas com as outras. De ora em diante, o comércio tem importância
uma nova classe de tecelões cujos tecidos se destinavam a todo o mer- b
política. |
cado interno e, as mais das vezes, também a mercados estrangeiros. Com a manufactura, passa ao mesmo tempo a haver uma relação dife-
À tecelagem, um trabalho que na maior parte dos casos pouca habili- rente do operário com quem lhe dá trabalho. Nas corporações continuava
dade exigia e que cedo se subdivide em inúmeros ramos, opunha-se, por a existir a rêlação patriarcal entre os oficiais e o mestre; na manufactura,
toda a sua natureza, às peias da guilda. A tecelagem foi também por isso ocupa o lugar daquela a relação de dinheiro entre operário e capitalista;
exercida sem organização corporativa, principalmente em aldeias e em vilas uma relação que, no campo e em pequenas cidades, conservou uma cor
mercatórias que a pouco e pouco se tornaram cidades e, a curto prazo, patriarcal, mas que nas cidades maiores, nas cidades realmente manufac-
as cidades mais florescentes de cada país. tureiras, desde cedo perdeu quase toda a coloração patriarcal.
Com a manufactura liberta das corporações mudaram também, ime- A manufactura, e em geral o movimento da produção, recebeu um
diatamente, as relações de propriedade. O primeiro progresso sobre o enorme ascenso com o alargamento do intercâmbio que teve lugar com
capital natural de estado [ou de ordem social] verificou-se com o ascenso o descobrimento da América e do caminho marítimo para a Índia. Os novos
"dos comerciantes, cujo capital era, desde o princípio, móvel, capital no produtos dali importados, nomeadamente as quantidades de ouro e prata

48 49 :
que entraram em circulação e alteraram completamente a posição das satisfeitos com a medida; os privilégios anteriores tornaram-se uma fonte
classes face umas às outras e vibraram duro golpe na propriedade fundiária de receitas para O governo e eram vendidos por dinheiro; na legislação
feudal e nos operários, as expedições de aventureiros, a colonização e, alfandegária apareceram os direitos de exportação, os quais, [colocando]
sobretudo, o alargamento agora tornado possível, e de dia para dia a apenas um obstáculo no caminho da indústria [49], tinham um objectivo
estabelecer-se cada vez mais, dos mercados, que se transformam em mer- meramente fiscal.
cado mundial, deram origem a uma nova fase [48] do desenvolvimento O segundo período teve início por meados do século XVII, e durou
histórico em que aqui, no geral, não vamos entrar. Pela colonização das quase até ao final do século XVIII. O comércio e a navegação tinham-se
terras recém-descobertas, a luta comercial das nações umas contra as outras expandido mais depressa do que a manufactura, que desempenhava um
recebeu novo alimento e, consequentemente, maior extensão e encarni- papel secundário; as colónias começaram a tornar-se consumidores impor-
çamento. tantes, as diferentes nações repartiram entre si, em longas lutas, o mer-
A expansão do comércio e da manufactura acelerou a acumulação cado mundial que se abria. Este período começa com as leis da navegação
e nmirrtmo

do capital móvel, enquanto nas corporações, que nenhum estímulo conhe- e os monopólios coloniais. A concorrência das nações entre si era, tanto
ceram para uma produção mais larga, o capital natural permaneceu estável quanto possível, excluída por meio de tarifas, proibições e tratados; e, em
ou diminuiu mesmo. O comércio e a manufactura criaram a grande bur- última instância, a luta de concorrência era conduzida e decidida por meio
guesia, nas corporações concentrava-se a pequena burguesia, a qual agora de guerras (especialmente guerras marítimas). A nação mais poderosa no
já não dominava como antes nas cidades, e tinha de se dobrar ao domínio mar, os Ingleses, conservaram a sua preponderância no comércio e na
dos grandes comerciantes e proprietários e manufacturas. Daí o declínio manufactura. Já aqui a concentração num país.
das corporações assim que entr[aram] em contacto com a manufactura. A manufactura estava permanentemente protegida por direitos alfan-
A relação das nações entre si no seu intercâmbio assumiu duas formas degários de protecção no mercado interno, por monopólios no mercado
diferentes durante a época de que temos estado a falar. A princípio, a colonial e, no mercado externo, pelo maior número possível de direitos
pequena quantidade do ouro e da prata em circulação condicionaram a diferenciais. O trabalho do material produzido no próprio país era favo-
proibição da exportação destes metais; e a indústria, na sua maior parte recido (lã e linho na Inglaterra, seda na França), proibida a exportação da
importada do estrangeiro e tornada necessária pela necessidade de dar tra- matéria-prima produzida no país (a lã, na Inglaterra) e o [trabalho] da
balho à população crescente das cidades, não podia dispensar os privilé- matéria-prima importada era descurado ou reprimido (o algodão, em Ingla-
gios que podiam ser concedidos, e naturalmente não apenas contra a con- terra). A nação predominante no comércio marítimo e no poderio colo-
corrência interna, mas principalmente contra a externa. O privilégio local nial assegurava para si, como é evidente, também a maior expansão quan-
das guildas foi alargado, nestas proibições originais, a toda a nação. Os titativa e qualitativa da manufactura. A manufactura de modo nenhum
direitos alfandegários nasceram dos tributos que os senhores feudais impu- podia dispensar a protecção, pois que pode perder o seu mercado e
nham aos comerciantes que atravessavam as suas regiões para não os arruinar-se com a mais pequena mudança que se opere noutros países; é
pilharem, tributos que mais tarde foram igualmente impostos pelas cidades fácil introduzi-la num país desde que haja condições relativamente favo-
e constituíram, quando do aparecimento dos Estados modernos, o pri- ráveis, e por isso mesmo é fácil destruí-la. Pelo modo como era realizada,
meiro dos meios de o fisco arranjar dinheiro. nomeadamente no campo, durante o século XVII, está tão ligada às cón-
O surgimento do ouro e da prata americanos nos mercados europeus, dições de vida de uma grande massa de indivíduos que nenhum país pode
o desenvolvimento gradual da indústria, o rápido ascenso do comércio arriscar-se a pôr em jogo a sua existência com a permissão da livre con-
e o florescimento, assim provocado, da burguesia não corporativa e do corrência. Por isso, na medida em que consegue exportar, a manufactura
dinheiro deram a estas medidas uma outra importância. O Estado, que de depende do alargamento ou da restrição do comércio e exerce [sobre ele],
dia para dia menos podia dispensar o dinheiro, manteve, por considera- por seu turno, um efeito rela[tivamente] muito pequeno. Daí a sua [impor-
ções fiscais, a proibição da exportação de ouro e prata; os burgueses, para tância] secundária, e daí a influência dos [comerciantes], no século XVIII.
os quais estas quantidades de dinheiro lançadas recentemente no mercado [50] Foram os comerciantes, e especialmente os armadores, que antes de
eram o objecto principal de compra especulativa, ficaram completamente todos os outros insistiram na protecção do Estado e nos monopólios; os

50 51 :
proprietários de manufacturas também exigiram e conseguiram protecção, dade de comércio), estabeleceu os meios de comunicação e o mercado |
é certo, mas em importância política ficaram sempre atrás dos comer- mundial moderno, submeteu a si o comércio, transformou todo o capital
ciantes. As cidades comerciais, especialmente as cidades do litoral, em capital industrial e criou assim a rápida circulação (o desenvolvimento |
tornaram-se em certa medida civilizadas e da grande burguesia, ao passo da finança) e concentração dos capitais. Com a concorrência universal |
que nas cidades fabris subsistiu a mais marcada atmosfera da pequena bur- obrigou todos os indivíduos à mais intensa aplicação da sua energia. Ani- |
guesia. Cf. Aikin, etc. O século XVII foi o do comércio. Pinto di-lo expres- quilou, tanto quanto lhe era possível, a ideologia, a religião, a moral, etc. ? |
samente: «Le commerce fait la marotte du siecle», e: «Depuis quelque temps e onde não o conseguiu fez delas uma mentira palpável. Foi ela que, pela |
il n'est plus question que de commerce, de navigation et de marine». primeira vez, criou a história universal, na medida em que tornou depen- |
Este período é também caracterizado pelo fim das proibições de dentes de todo o mundo todas as nações civilizadas e todos os indivíduos Í
exportação de ouro e prata, pelo aparecimento do comércio de dinheiro, nelas existentes para a satisfação das suas necessidades, e aniquilou a exclu- |
dos bancos, das dívidas do Estado, do papel-moeda, da especulação com sividade até aí natural de cada uma das nações. Subordinou ao capital a |Ê
acções e obrigações, da agiotagem em todos os artigos e da formação da ciência da natureza e retirou à divisão do trabalho a última aparência de
finança em geral. De novo o capital perdeu uma grande parte do carácter naturalidade. Dum modo geral, aniquilou a naturalidade, tanto quanto é
natural que ainda trazia consigo. possível no seio do trabalho, e resolveu todas as relações naturais em rela- |
ções de dinheiro. No lugar das cidades surgidas naturalmente criou as |
grandes cidades industriais modernas, nascidas de um dia para o outro. |
[4. A divisão do trabalho mais extensa. A grande indústria] Onde penetrou, destruíu o artesanato e, dum modo geral, todas as fases
anteriores da indústria. Completou a vitória [da] cidade comercial sobre
| Desenvolvendo-se irresistivelmente no século XVII, a concentração o campo. [A sua primeira premissa] é o sistema automático. [O seu desen-
i do comércio e da manufactura num país, a Inglaterra, foi criando para este volvimento] criou uma massa de for[ças produltivas para as quais a fpro-
i
país um relativo mercado mundial e, com ele, uma procura dos produtos priedade] privada se tornou um grilhão, [52] do mesmo modo que a cor-
: manufacturados deste país que já não podia ser satisfeita pelas forças pro- poração para a manufactura e a pequena oficina rural para o artesanato
| dutivas até aí existentes na indústria. Esta procura, que crescera mais do em desenvolvimento. Sob a propriedade privada, estas forças produtivas
Ê
:;+ que as forças de produção, foi a força motora que deu origem ao terceiro recebem um desenvolvimento apenas unilateral, tornam-se forças destru-
i
5
i:
[51] período da propriedade privada desde a Idade Média com a criação tivas para a maioria, e uma grande quantidade destas forças não pode sequer
| da grande indústria — a aplicação de forças elementares para fins indus-
é
ser aplicada na propriedade privada. Criou, em geral, por toda a parte, |
triais, a maquinaria e a mais extensa divisão do trabalho. As restantes con- as mesmas relações entre as classes da sociedade, e aniquilou, por este meio, |
dições desta nova fase — a liberdade de concorrência no interior da nação, a particularidade de cada uma das nacionalidades. E, finalmente, ao passo|
o desenvolvimento da mecânica teórica (a mecânica aperfeiçoada por que a burguesia de cada nação ainda conserva interesses nacionais parti-
Newton foi, em geral, a ciência mais popular em França e Inglaterra no culares, a grande indústria criou uma classe que, em todas as nações, tem|
século XVIIN), etc. — existiam já em Inglaterra. (A livre concorrência dentro o mesmo interesse, e na qual a nacionalidade está já anulada, uma classe |
da própria nação teve em toda a parte de ser conquistada por meio de que realmente já está livre de todo o velho mundo e, ao mesmo tempo, |
: uma revolução — em 1640 e 1688 em Inglaterra, em 1789 em França.) a ele se contrapõe. Torna insuportável para o operário não só a relação
A concorrência em breve obrigava todos os países que queriam con- com o capitalista mas o próprio trabalho.
servar o seu papel histórico a proteger as suas manufacturas com novas Como se compreende, a grande indústria não atinge em todas as loca-
medidas alfandegárias (os velhos direitos já não serviam contra a grande lidades de um país o mesmo nível de desenvolvimento. Isto, contudo, não
indústria), e logo a seguir a introduzir a grande indústria sob direitos alfan- detém o movimento de classe do proletariado, visto que os proletários
degários protectivos. A despeito destes meios de protecção, a grande indús- criados pela grande indústria tomam a vanguarda deste movimento e
tria universalizou a concorrência (ela é a liberdade prática de comércio, arrastam consigo toda a massa, e visto que os operários excluídos da grande
os direitos protectivos são nela apenas um paliativo, uma defesa na liber-: indústria são atirados por esta grande indústria para uma condição de vida
À

52 53
própria grande indústria. Do mesmo /6. A concorrência dos indivíduos e a formação das classes. Desen-
ainda pior do que a dos operários da
desenvolvida uma grande indústria volvimento da contradição entre os indivíduos e as condições
modo actuam os países em que está
da sua vida. A comunidade ilusória dos indivíduos na socie-
sobre os países plus ou moins * não industriais, na medida em que estes
dade burguesa e a unidade real dos indivíduos no comunismo.
são arrastados para à luta universal de concorrência pelo intercâmbio
A subjugação das condições de vida da sociedade ao poder dos
mundial.
indivíduos unidos]
E

A concorrência isola os indivíduos uns contra os outros, não apenas


os burgueses mas ainda mais os proletários, e isto a despeito de os apro-
Estas diferentes formas são outras tantas formas da organização do
ximar. Daí que demore muito tempo até que estes indivíduos se possam
trabalho e, assim, da propriedade. Em todos os períodos teve lugar uma unir, para não referir o facto de que os meios necessários para esta união
unificação das forças produtivas existentes, na medida em que as necessi- — a fim de não ser meramente local —, as grandes cidades industriais e
dades a tornavam necessária.
as comunicações baratas e rápidas, têm primeiro de ser estabelecidos.pela
grande indústria, e por isso só ao cabo de longas lutas se consegue vencer
todo o poder organizado contraposto a estes indivíduos isolados que vivem
no seio de relações que diariamente reproduzem o isolamento. Reclamar
o contrário seria o mesmo que reclamar a não existência de concorrência
[5. A contradição entre as forças produtivas e a forma de inter-
nesta época histórica determinada, ou que os indivíduos banissem da
câmbio como base de uma revolução social] cabeça relações sobre as quais, enquanto isolados, não têm nenhum
controlo.
Esta contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio,
que, como vimos, já várias vezes ocorreu na história até aos nossos dias
sem, contudo, pôr em perigo a base da mesma, teve todas as vezes de
rebentar numa revolução, assumindo então, ao mesmo tempo, várias Construção de casas. Entre os selvagens, é coisa mais natural que cada
formas secundárias, como totalidade de colisões, como colisões de dife- família tenha a sua própria caverna ou cabana, como entre os nómadas
rentes classes, como contradição da consciência, luta de ideias, luta polí- a tenda separada de-cada família. Esta economia doméstica separada é tor-
tica, etc. A partir de um ponto de vista limitado, pode-se isolar uma destas nada ainda mais necessária pelo desenvolvimento posterior da proprie-
formas secundárias e considerá-la como a base destas revoluções, o que dade privada. Entre os povos agrícolas, a economia doméstica comum é
acontece com toda a facilidade, visto que os indivíduos dos quais partiram tão impossível quanto a cultura comum do solo. Foi um grande progresso
as revoluções se iludiram, segundo o seu grau de educação e a etapa do a construção de cidades. Em todos os períodos até hoje, entretanto, a abo-
desenvolvimento histórico, sobre a sua própria actividade. lição [Aufbebung] da economia separada, a qual não se pode separar da
Todas as colisões da história têm, pois, segundo a nossa concepção, abolição da propriedade privada, era simplesmente impossível, dado que
a sua origem na contradição entre as forças produtivas e a forma de [53] não existiam ainda as condições materiais para ela. A instituição de uma
intercâmbio. Não é, de resto, necessário que esta contradição tenha sido economia doméstica comum pressupõe o desenvolvimento da maquinaria
con-
levada ao extremo num país para conduzir a colisões nesse país. A da utilização das forças naturais e de muitas outras forças produtivas.
mais desenvolv idos, provocada por — por exemplo, água canalizada, [54] iluminação a gás, aquecimento a
corrência com países industrialmente
para criar uma vapor, etc., abolição [da oposição] de cidade e campo. Sem estas condi-
um intercâmbio internacional mais alargado, é suficiente
menos ções, a economia comum não seria ela própria, por seu turno, uma nova
contradição semelhante também em países com uma indústria
iado latente na Alemanh a, feito surgir força de produção, careceria de toda a base material, assentaria num
desenvolvida (por exemplo, o proletar fun-
damento meramente teórico, isto é, seria uma simples mania e não pas-
pela concorrência da indústria inglesa).

54 55
saria de economia monástica. O que foi possível revela-se na aglomeração outro lado, a classe autonomiza-se, por seu turno, face aos indivíduos, pelo
nas cidades e na construção de casas comuns com vários objectivos deter- que estes encontram já predestinadas as suas condições de vida, é-lhes indi-
minados (prisões, casernas, etc.). Que a abolição da economia não se pode cada pela classe a sua posição na vida — e, com esta, o seu desenvolvi
separar da abolição da família por si mesmo se compreende. | mento pessoal —, estão submetidos na classe. É este o mesmo fenómeno -
que a subordinação [Subsumtion] de cada um dos indivíduos à divisão do
trabalho, e só pode ser eliminado por meio da abolição da propriedade
privada e do próprio trabalho. Como esta subordinação dos indivíduos
à classe se desenvolve numa subordinação a toda a série de representa-
(A afirmação, tão frequente em São Max, de que cada um é tudo O |Ições, etc., já foi por nós referido variadas vezes.
que é por meio do Estado, é no fundo o mesmo que dizer que o burguês Se se considera filosoficamente este desenvolvimento dos indivíduos
é apenas um exemplar da espécie burguesa; uma afirmação que pressupõe nas condições comuns de existência das ordens e classes que se sucedem
que a classe dos burgueses existisse já antes dos indivíduos que a cons- historicamente, e nas representações gerais que assim lhes são impostas,
tituem). é certamente fácil imaginar que nestes indivíduos se desenvolveu a espécie,
Os burgueses de todas as cidades eram obrigados, na Idade Média, ou o Homem, ou que eles desenvolveram o Homem; um imaginar com
“a unir-se contra a nobreza rural para salvarem a pele; a expansão do que se dá à história algumas sonoras bofetadas. Pode-se então tomar estes
'* comércio, o estabelecimento de comunicações, levou as diferentes cidades diferentes estados [ou ordens sociais] e classes como especificações da
* a conhecer outras cidades, as quais tinham afirmado os mesmos interesses expressão geral, como subespécies da espécie, como fases de desenvolvi
' na luta contra o mesmo contrário. Das muitas corporações locais de bur- mento do Homem.
| gueses de cada uma das cidades nasceu, a princípio muito gradualmente, Esta subordinação dos indivíduos a determinadas classes não pode
a classe dos burgueses. As condições de vida de cada um dos burgueses
ser abolida antes que se tenha formado uma classe que, contra a classe
tornaram-se, ao mesmo tempo, pelo antagonismo contra as relações
dominante, já não tenha de afirmar nenhum interesse particular de classe.
vigentes, e pelo tipo de trabalho por aquelas condicionado, condições que
: a todos eles eram comuns e independentes de cada um deles. Os burgueses
,: tinham criado estas condições na medida em que haviam cortado com o
| vínculo feudal, e foram por elas criados na medida em que foram condi-
“ cionados pelo seu antagonismo contra a feudalidade que já encontraram
A transformação dos poderes (relações) das pessoas em duas coisas
“vigente. Como estabelecimento da ligação entre as diferentes cidades, estas
| [sachliche] por meio da divisão do trabalho também não pode ser abolida
condições comuns desenvolveram-se e tornaram-se condições de classe.
pelo facto de se banir da cabeça a sua representação geral, mas apenas pelo
| As mesmas condições, o mesmo contrário, os mesmos interesses, tinham
facto de os indivíduos submeterem de novo a si estes poderes das coisas
| também de dar origem, por toda a parte e dum modo geral, a costumes
e abolirem a divisão do trabalho. Isto não é possível sem a comunidade.
iguais. A própria burguesia só com as suas condições progressivamente
Só na comunidade [com outros, é que cada] indivíduo tem [56] os meios
. se desenvolve cinde-se de novo em diferentes fracções segundo a divisão
de desenvolver em todas as direcções as suas aptidões; só na comunidade,
! do trabalho, e acaba por absorver em si todas as classes possuidoras pre-
portanto, se torna possível a liberdade pessoal. Nos substitutos precedentes
s

da comunidade, no Estado, etc., a liberdade pessoal existiu apenas para


amarmo

| que encontrou e uma parte das « classes até aí ossuidoras numa nova classe,
» proletariado), na medida em que toda a propriedade que encontrou é Os indivíduos desenvolvidos nas relações da classe dominante, e tão-só
'o
1
comi

í
na medida em que eram indivíduos dessa classe. A comunidade aparente
renas

í
| transformada em capital comercial ou industrial.
1 :
Os indivíduos isolados só formam uma classe na medida [55] em que em que se uniram, até aqui, os indivíduos autonomizou-se sempre face
insira

|
a eles, e foi, ao mesmo
têm de travar uma luta comum contra uma outra classe; de resto, tempo, por ser uma união de uma classe face a
contrapõem-se de novo hostilmente uns aos outros, em concorrência. Por outra, para a classe dominada não só uma comunidade completamente

56 : 57
na nova posição, e desenvolveram-no libertando-o dos seus grilhões ante-
ilusória como também um novo grilhão. Na comunidade real, os indiví-
riores, que [já] não correspondiam ao desenvolvimento já atingido.
duos conseguem, na e pela sua associação, simultaneamente a sua liberdade.
No caso dos proletários, pelo contrário, a sua própria condição de
Os indivíduos partiram sempre de si, mas, naturalmente, de si no
vida, o trabalho, e com ele todas as condições de existência da sociedade
quadro das suas condições e relações históricas dadas, não do indivíduo
actual, tornou-se para eles algo acidental sobre que cada um dos proletá-
«puro» no sentido dos ideólogos. Mas no curso do desenvolvimento his-
rios não tem nenhum controlo, e sobre que nenhuma organização social
tórico, e precisamente pela autonomização das relações sociais, que é ine-
lhes pode dar um controlo, e a contradição entre a personalidade do pro-
vitável no quadro da divisão do trabalho, sobressai uma diferença entre
letário individual e a condição de vida que lhe é imposta, O trabalho, tor-
a vida de todos os indivíduos enquanto ela é pessoal e na medida em que
na-se patente para ele mesmo, nomeadamente porque ele já desde a juven-
ela está subordinada a um qualquer ramo de trabalho e às condições res-
tude é sacrificado e porque lhe falta a oportunidade de alcançar, no seio
pectivas. (Isto não deve ser entendido como se, por exemplo, quem vive
o capitalista, etc., deixassem de ser pessoas; mas à sua da sua classe, as condições que o coloquem na outra.
de rendimentos,
[58] N. B. Não esquecer que já a necessidade de existirem os servos
personalidade está condicionada e determinada por relações de classe
e a impossibilidade da grande exploração agrícola que a repartição dos
muito bem definidas, e a diferença só se torma patente no antagonismo
aliotmenis pelos servos acarretava, a muito breve trecho reduzia as obri-
face a uma outra classe, e para eles mesmo apenas quando ficam arrui-
gações dos servos face aos senhores feudais a uma média de pagamentos
nados.) No estado [ou ordem social] (e, ainda mais, na tribo) isto ainda
em géneros e de corveias que tornou possível ao servo a acumulação de
está oculto, por exemplo um nobre é sempre um nobre, o roturier é
propriedade móvel, e assim facilitou que escapasse à posse do seu senhor
sempre um roturier, independentemente das suas demais relações, uma
e lhe deu a perspectiva do seu progresso como burguês da cidade; pro-
qualidade indissociável da sua individualidade. A diferença do indivíduo
duziu também gradações entre os servos, pelo que os'servos que fogem
pessoal contra o indivíduo da classe, o carácter acidental das condições
já são meios burgueses. Com isto se torna igualmente óbvio que os cam-
de vida para o in[divíduo], sugere apenas, com o aparecimento da classe,
poneses servos peritos num ofício eram os que mais possibilidade tinham
que é ela própria um produto da burguesia. À concorrência e luta [dos]
aa pela primeira vez, pau este de adquirir propriedade móvel.
indivíduos entre si projéual e
Enquanto, por conseguinte, os servos fugitivos só queriam desen-
volver livremente e fazer valer as suas condições de existência já presentes,
e por isso, em última instância, apenas chegaram ao trabalho livre, os pro-
dé do rn
do5 poder letários têm de abolir a sua própria condição de existência anterior, que
| mente, menos livres, porque mais abraços
é simultaneamente a de toda a sociedade anterior, o trabalho, para valerem
do estado [ou ordem social] sobressai nomeadamente ao anta-
PÁ “diferença
como pessoas. Por isso, encontram-se também em antagonismo directo
gonismo da burguesia contra o proletariado. Quando o estado [ou ordem
com a forma em que até aqui os indivíduos da sociedade se deram uma
social] dos burgueses citadinos, as corporações, etc., surgiram face à
expressão global, o Estado, etêm de derrubar o Estado para
para afirmarem
afirmarem
| nobreza rural, a sua condição de existência — a propriedade móvel e o —
a sua personalidade.
| trabalho artesanal, que já tinham uma existência latente antes da sua sepa- Erin
A HE
| ração do vínculo feudal — apareceu como algo positivo que era feito valer
| contra a propriedade fundiária feudal, e daí que, por seu turno, tenha come-
| cado também por assumir, a seu modo, à forma feudal. É certo que os
servos fugitivos tratavam a sua servidão anterior como algo acidentalà sua
, Decorre de todo o desenvolvimento anterior que a relação comuni-
personalidade. Mas aqui eles faziam apenas o mesmo que fazem todas as
tária em que entraram os indivíduos de uma classe, e que era condicio-
classes que se libertam de um grilhão, e depois não se libertaram como
nada pelos seus interesses comunitários face a terceiros, foi sempre uma
classe, mas isoladamente. Além disso, não saíram do domínio do sistema
comunidade à qual os indivíduos só pertenceram enquanto indivíduos
de estados [ou de ordens sociais], mas apenas formaram um novo estado
médios, apenas na medida em que viviam nas condições de existência
[ou ordem social] e conservaram o seu modo de trabalho anterior também
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da sua classe, uma relação em que eles não tomaram parte enquanto indi- í foi 4 í à 4 x cio
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víduos, mas enquanto membros da classe. No caso da comunidade dos

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proletários revolucionários, ao invés, que tomam sob o seu controlo as
condições [59] de existência e as de todos os membros da sociedade, as
coisas passam-se precisamente ao contrário; nela os indivíduos tomam parte
enquanto indivíduos. É justamente a união dos indivíduos (naturalmente,
no quadro da premissa das forças produtivas agora desenvolvidas) que
coloca as condições do livre desenvolvimento e movimento dos indiví-
duos sob o seu controlo, condições que até aqui estavam abandonadas
ao acaso e que se tinham autonomizado contra cada um dos indivíduos,
precisamente devido à sua separação como indivíduos, devido à sua união
necessária que fora dada pela divisão do trabalho e se tornara, pela sua
3. MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA *
separação, um elo que lhes era estranho. Até aqui a união era uma união
(de modo nenhum arbitrária, como por exemplo é apresentada no con- Anda um espectro pela Europa — o espectro do Comunismo. Todos
trat social, mas necessária) nestas condições (compare-se, por exemplo, os poderes da velha Europa se aliaram para uma santa caçada a este
a formação do Estado norte-americano e as repúblicas sul-americanas) em espectro: o papa € o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e polí-
que os indivíduos tinham então o prazer da acidentalidade. A este direito cias alemães.
de se poder dedicar em paz com a acidentalidade em determinadas condi- Onde está o partido na oposição que não tivesse sido vilipendiado
ções dava-se, até aqui, o nome de liberdade pessoal. Estas condições de pelos seus adversários no poder como comunista, onde está o partido na
existência são apenas, naturalmente, as respectivas forças de produção e oposição que não tivesse, em resposta, brandido o ferrete do comunismo
formas de intercâmbio. . tanto contra os oposicionistas mais progressistas como contra os seus
adversários reaccionários?
Deste facto decorrem duas conclusões.
O comunismo é já reconhecido por todos os poderes europeus como
um poder.
O comunismo distingue-se de todos os movimentos anteriores por Já é tempo de os comunistas exporem abertamente ao mundo inteiro
transformar radicalmente a base de todas as relações de produção e de o seu modo de ver, os seus fins, as suas tendências, e de contraporem à

intercâmbio anteriores e por tratar conscientemente, pela primeira vez, lenda do espectro do comunismo um Manifesto do próprio partido.
Para este fim reuniram-se em Londres comunistas das mais diversas
todas as premissas naturais como criaturas dos homens anteriores, por
nacionalidades e delinearam o Manifesto seguinte, que é publicado em
despi-las da sua naturalidade e submetê-las ao poder dos indivíduos unidos.
inglês, francês, alemão, italiano, flamengo e dinamarquês.
A sua instauração é, por isso, essencialmente económica, a produção mate-
rial das condições desta união; ela faz das condições existentes condições
de união. A realidade que o comunismo cria é precisamente a base objec-
tiva para tornar impossível que essa realidade seja independente dos indi- Burgueses e Proletários
víduos, na medida, todavia, em que essa realidade mais não é do que um
produto do intercâmbio anterior dos próprios indivíduos. Os comunistas, A história de toda a sociedade até hoje é a história de lutas de classes.
portanto, tratam na prática como inorgânicas as condições criadas pela Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burguês da
produção e intercâmbio anteriores, sem contudo imaginarem que as gera- corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em cons-
ções anteriores tinham tido o plano de, ou estavam destinadas a, fornecer-
lhes material, e sem, acreditarem que estas condições eram inorgânicas
para os indivíduos que as criaram. * Ob. cit, I vol. (1982), pp. 106-117

60 61 :
“tante antagonismo entre si, travaram uma luta ininterrupta, umas vezes A grande indústria criou o mercado mundial que o descobrimento
oculta, aberta outras, uma luta que acabou sempre com uma transformação da América preparara. O mercado mundial veio dar ao comércio, à nave-
revolucionária de toda a sociedade ou com o declínio comum das classes gação e às comunicações por terra um desenvolvimento imensurável. Este,
em luta. por sua vez, veio reagir sobre a expansão da indústria, e na mesma medida
Nas épocas anteriores da história encontramos quase por toda a parte em que a indústria, o comércio, a navegação e os caminhos-de-ferro se
uma articulação completa da sociedade em vários estados [ordens expandiram, desenvolvia-se também a burguesia, que multiplicava os seus
sociais — Stánde], uma múltipla graduação das posições sociais. Na Roma capitais e relegava para um plano secundário todas as classes que a Idade
antiga temos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, Média tinha legado.
senhores feudais, vassalos, burgueses das corporações, oficiais servos, e Vemos, pois, como a burguesia moderna é ela própria o produto de
para mais com novas graduações particulares dentro de quase todas estas um longo curso de desenvolvimento, de uma série de profundas transfor-
classes. mações no modo de produção e de intercâmbio.
A moderna sociedade burguesa, saída do declínio da sociedade feudal, Cada uma destas etapas de desenvolvimento da burguesia foi acom-
não aboliu os antagonismos de classe. Limitou-se a colocar novas classes, panhada de um correspondente progresso político. Estado [ou ordem
novas condições de opressão, novas formas de luta, no lugar das anteriores. social — Stand] oprimido sob o domínio dos senhores feudais, associação
A nossa época, a época da burguesia, distingue-se, contudo, por ter armada e auto-administrada na comuna, aqui uma cidade-república inde-
simplificado os antagonismos de classe. Toda a sociedade está a cindir-se, pendente, além um terceiro-estado da monarquia sujeito a impostos, depois
cada vez mais, em dois campos hostis, em duas grandes classes em con- ao tempo da manufactura contrapeso contra a nobreza na monarquia de
fronto directo: a burguesia e o proletariado. estados [ou ordens sociais — stândisch] ou absoluta, a base principal das
Dos servos da Idade Média saíram os burgueses com direito de cidade grandes monarquias em geral, acabou por conquistar, desde o estabeleci-
[Pfahlbiirger] das primeiras cidades; a partir destes munícipes desenvol- mento da grande indústria e do mercado mundial, o domínio político
veram-se os primeiros elementos da burguesia [Bourgeoisie). exclusivo no moderno Estado parlamentar. O executivo do Estado
O descobrimento da América, a circum-navegação de África, criaram moderno não é mais do que uma comissão para administrar os negócios
um novo campo de acção para a burguesia em ascensão. O mercado das colectivos de toda a classe burguesa.
Índias orientais e da China, a colonização da América, a troca com as coló- A burguesia desempenhou na história um papel altamente revolu-
nias, a multiplicação dos meios de permuta e das mercadorias em geral cionário. ,
deram ao comércio, à navegação e à indústria um impulso nunca até então A burguesia, onde ascendeu ao poder, destruíu todas as relações feu-
conhecido, e, com ele, um rápido desenvolvimento ao elemento révolu- dais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem compunção todos os variegados laços
cionário na sociedade feudal em desintegração. feudais que prendiam o homem aos seus superiores naturais e não deixou
A organização até aí feudal ou corporativa da indústria já não era sufi- outro laço entre homem e homem que não o interesse nu, o do insensível
ciente para a procura que crescia com novos mercados. Substituíu-a a «pagamento em dinheiro». Afogou a sagrada reverência da exaltação devota,
manufactura. Os mestres das corporações foram desalojados pela classe do fervor cavalheiresco, da melancolia sentimental do burguês filistino,
média industrial; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desa- na água gelada do cálculo egoísta. Resolveu a dignidade pessoal no valor
pareceu ante a divisão do trabalho dentro de cada uma das próprias de troca, e no lugar de um sem-número de liberdades legítimas e estatuídas
oficinas. colocou a liberdade única, sem escrúpulos, do comércio. Numa palavra,
Mas os mercados continuavam a crescer, a procura continuava a subir. no lugar da exploração encoberta com ilusões políticas e religiosas, colocou
Também a manufactura deixou de bastar. Então o vapor e a maquinaria a exploração seca, directa, despudorada, aberta.
revolucionaram a produção industrial. Para o lugar da manufactura veio A burguesia despiu todas as actividades até aqui veneráveis e estimadas
a grande indústria moderna; para O lugar da classe média industrial vieram com piedosa reverência da sua aparência sagrada. Transformou o médico,
os milionários industriais, os chefes de exércitos industriais inteiros, Os O jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assala-
burgueses modernos. riados pagos por ela.

62 63 '
A burguesia arrancou à relação familiar o seu comovente véu senti- na produção material, assim também na produção espiritual. Os produtos
mental e reduziu-a a uma mera relação de dinheiro. espirituais de cada uma das nações tornam-se bem comum. A unilaterali-
A burguesia pôs a descoberto que a exibição brutal de força, que a dade e estreiteza nacionais vão-se cada vez mais tornando impossível, e
reacção tanto admira na Idade Média, teve na mais indolente mandriice das muitas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial.
o seu complemento adequado. Foi ela quem primeiro demonstrou o que Pelo rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produção,
a actividade dos homens pode conseguir. Realizou maravilhas completa- pelas comunicações infinitamente facilitadas, a burguesia arrasta todas as
mente diferentes das pirâmides egípcias, dos aquedutos romanos e das cate- nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização. Os baixos preços das
drais góticas, levou a cabo expedições completamente diferentes das suas mercadorias são artilharia pesada com que derruba todas as muralhas
antigas migrações de povos e das cruzadas. chinesas, com que força à capitulação o ódio mais obstinado dos bárbaros
A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os aos estrangeiros. Compele todas as nações a apropriarem o modo de pro-
instrumentos de produção, por conseguinte as relações de produção, por dução da burguesia, sob pena de ruína total; compele-as a introduzirem
conseguinte todas as relações sociais. A conservação, sem alterações, do no seu seio a chamada civilização, isto. é, a tornarem-se burguesas. Num
antigo modo de produção era, pelo contrário, a condição primeira de exis- palavra, a burguesia cria para si um mundo à sua imagem e semelhança.
tência de todas as anteriores classes industriais. O permanente revolucionar A burguesia submeteu o campo ao domínio da cidade. Criou cidades
da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incer- enormes, aumentou num grau elevado o número da população urbana face
teza e o movimento eternos distinguem a época da burguesia de todas as à rural, e deste modo arrancou uma parte significativa da população à idiotia
outras. Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu cortejo de vetustas [Idiotismus] da vida rural. E do mesmo modo que tornou dependente o
representações e concepções, são dissolvidas, todas as recém-formadas campo da cidade, tornou dependentes os povos bárbaros e semibárbaros
envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo O que era dos estados dos civilizados, os povos agrícolas dos povos burgueses, o Oriente do
[ou ordens sociais — stândisch] e estável se volatiliza, tudo o que era Ocidente.
sagrado é dessagrado, e os homens são por fim obrigados a encarar com Cada vez mais a burguesia suprime a dispersão dos meios de pro-
os olhos bem abertos a sua posição na vida e as suas relações recíprocas. dução, da propriedade e da população. Aglomerou a população, centra-
A necessidade de um mercado em constante expansão para os seus lizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos.
produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre. Tem de se fixar A consequência necessária disto foi a centralização política. Províncias inde-
em toda a parte, estabelecer-se em toda a parte, criar ligações em toda a pendentes, quase somente aliadas, com interesses, leis, governos e direitos
parte. alfandegários diversos, foram reunidas numa nação, num governo, numa
A burguesia, pela sua exploração do mercado mundial, deu uma forma lei, num interesse nacional de classe, numa linha aduaneira.
cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Para grande Com o seu domínio de classe de um escasso século, a burguesia criou
pesar dos reaccionários, roubou à indústria a base nacional em que assen- forças de produção mais massivas e mais colossais do que todas as gera-
tava. As primitivas indústrias nacionais foram aniquiladas, estão ainda dia ções passadas juntas. Subjugação das forças naturais, maquinaria, aplicação
a dia a ser aniquiladas. São desalojadas por novas indústrias cuja introdução da química à indústria e à lavoura, navegação a vapor, caminhos de ferro,
se torna uma questão de vida ou de morte para todas as nações civilizadas, telégrafos eléctricos, arroteamento de continentes inteiros, criação da nave-
por indústrias que já não trabalham matérias-primas nacionais, mas gabilidade nos rios, populações inteiras brotando do solo — que século
matérias-primas oriundas das zonas mais afastadas, e cujos produtos são anterior teve ao menos um pressentimento de que estas forças de pro-
consumidos não só no próprio país mas em todos os continentes ao mesmo dução estavam adormecidas no seio do trabalho social?
tempo. Em lugar das velhas necessidades, satisfeitas pelos produtos do país, Vimos assim que: os meios de produção e de intercâmbio.sobre cuja
surgem necessidades novas que exigem para a sua satisfação os produtos “base se formou a burguesia foram criados na sociedade feudal. Numa certa
dos países e dos climas mais longínquos. Em lugar da velha auto-suficiência etapa do desenvolvimento destes meios de produção e de intercâmbio,
e do velho isolamento locais e nacionais, surgem um intercâmbio genera- as relações no quadro das quais a sociedade feudal produzia e trocava,
lizado e uma dependência generalizada das nações entre si. E tal como a organização feudal da agricultura e da manufactura — numa palavra, as

64 65 '
relações de propriedade feudais — deixaram de corresponder às forças pro- Mas a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trazem a morte;
dutivas já desenvolvidas. Tolhiam a produção, em vez de a fomentarem. também gerou os homens que vão usar essas armas — os operários
Transformaram-se em outros tantos grilhões. Tinham de ser quebradas, modernos, os proletários.
e foram quebradas. E na mesma medida em que a burguesia, isto é, o capital se desen-
Em seu lugar surgiu a livre concorrência, com a constituição social volve, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos operários
e política a ela adequada, com o domínio económico e político
da classe modernos, os quais só vivem enquanto têm trabalho e só têm trabalho
burguesa. enquanto o seu trabalho aumenta o capital. Estes operários, que têm de
Um movimento semelhante desenrola-se diante dos nossos olhos. As se vender a retalho, são uma mercadoria como qualquer outro artigo de
relações burguesas de produção e de intercâmbio, as relações de proprie- comércio, e então, por isso, igualmente expostos a todas as vicissitudes
dade burguesas, a sociedade burguesa moderna que desencantou meios da concorrência, a todas as flutuações do mercado.
tão poderosos de produção e de intercâmbio, assemelha-se ao feiticeiro O trabalho dos proletários perdeu, com a expansão da maquinaria
que já não consegue dominar as forças ocultas que trouxe à luz. De há e a divisão do trabalho, todo o carácter autónomo e, portanto, todos os
decénios para cá, a história da indústria e do comércio é apenas a história atractivos para Os operários. Ele torna-se um mero acessório da máquina
da revolta das modernas forças produtivas contra as modernas relações ao qual se exige apenas o manejo mais simples, mais monótono, mais fácil
de produção, contra as relações de propriedade que são as condições de de aprender. Os custos que o operário ocasiona reduzem-se por isso quase
vida da burguesia e do seu domínio. Basta mencionar as crises comerciais só aos meios de subsistência de que carece para o seu sustento e para a
que, na sua recorrência periódica, põem em causa, cada vez mais ameaça- reprodução da sua raça. O preço de uma mercadoria, e portanto também |
doras, a existência de toda a sociedade burguesa. Nas crises comerciais do trabalho, é, porém, igual ao seu custo de produção. Na medida em que |
é regularmente destruída uma grande parte não só dos produtos produ- aumenta a repugnância causada pelo trabalho decresce portanto o salário.
zidos como das forças produtivas já criadas. Nas crises declara-se uma epi- Mais ainda: na medida em que crescem a maquinaria e a divisão do tra-
demia social que teria parecido um contra-senso a todas as épocas ante- balho, cresce também a quantidade de trabalho, seja pelo aumento das
riores — a epidemia da sobreprodução. A sociedade vê-se de repente horas de trabalho seja pelo aumento do trabalho exigido num dado lapso
retransportada a um estado de momentânea barbárie; parece-lhe que uma de tempo, pelo funcionamento acelerado das máquinas, etc.
fome, uma guerra de destruição generalizada lhe cortaram todos os meios A indústria moderna transformou a pequena oficina do mestre
de subsistência; a indústria e o comércio parecem-lhe aniquilados. E patriarcal na grande fábrica do capitalista industrial. Massas de operários,
porquê? Porque a sociedade possui civilização em excesso, meios de-sub- reunidas na fábrica, são organizadas como exércitos. São colocados, como
sistênçia em excesso, indústria em excesso, comércio em excesso. As forças soldados rasos industriais, sob a vigilância de uma hierarquia completa de
produtivas de que dispõe deixam de servir para a promoção das relações sargentos e de oficiais. Não são apenas servos da classe burguesa, do Estado
|
de propriedade burguesas; pelo contrário, tornaram-se demasiado pode- burguês; dia a dia, hora a hora, são feitos servos da máquina, do capataz,
t
|| rosas para estas relações, e são por elas tolhidas; e assim que superam este e sobretudo de cada um dos próprios burgueses fabricantes. Este despo-
obstáculo lançam na desordem toda a sociedade burguesa, põem em perigo tismo é tanto mais mesquinho, mais odioso, mais exasperante, quanto mais
a existência da propriedade burguesa. As relações burguesas tornaram-se abertamente proclama ser o lucro a sua finalidade.
demasiado estreitas para conterem a riqueza por elas criada. — E como Quanto menos habilidade e dispêndio de força o trabalho manual
supera a burguesia as crises? Por um lado, pela destruição forçada de uma exige, isto é, quanto mais a indústria moderna se desenvolve, tanto mais
massa de forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mer- o trabalho dos homens é suplantado pelo das mulheres. Diferenças de sexo
cados e pela exploração mais profunda de mercados velhos. Como, então e de idade já não têm qualquer validade social para a classe operária. Há
Preparando crises mais generalizadas e mais graves, e reduzindo os meio apenas instrumentos de trabalho que, segundo a idade e o sexo, têm custos
para prevenir as crises. o “ diferentes:
“TAS aftrias com que a burguesia derrubou o feudalismo viraram-se agora Terminada temporariamente a exploração do operário pelo fabricante,
contra a própria burguesia. na medida em que recebe o seu salário em dinheiro, logo lhe caem em
+
66 67 '
cima os outros sectores da burguesia, O senhorio, o merceeiro, o penho- de duas classes. Os operários começam por formar coligações contra os
rista, etc. burgueses; juntam-se em defesa do seu salário. Fundam eles mesmos asso-
As pequenas classes intermédias anteriores, os pequenos industriais ciações permanentes para se prevenirem das insurreições ocasionais. Aqui
e comerciantes e os rentiers, OS artesãos e os camponeses, todas estas e além a luta declara-se em motins.
classes caem no proletariado, em parte porque o seu pequeno capital não De tempos a tempos vencem os operários, mas só transitoriamente.
chega para o grande empreendimento industrial e sucumbe na concor- O verdadeiro resultado das suas lutas não é o êxito imediato, é a união
rência com os capitalistas maiores, em parte porque a sua habilidade é des- dos operários que cada vez mais se amplia. Fomentam-na os meios cres-
valorizada por novos modos de produção. De todas as classes da popu- centes de comunicação, criados pela grande indústria, que pôem os ope-
lação se recruta, assim, o proletariado. = rários das diferentes localidades em ligação uns com os outros. E só é neces-
O proletariado passa por diferentes etapas de desenvolvimento. A sua sária esta ligação para centralizar as muitas lutas locais, por toda a parte
luta contra a burguesia começa com a sua existência. com o mesmo carácter, numa luta nacional, numa luta de classe. Mas todas
A princípio os operários lutam individualmente, depois os operários as lutas de classes são lutas políticas. E a união, para a qual os burgueses
de uma fábrica, depois os operários de um ramo de trabalho numa locali- da Idade Média, com os seus caminhos municipais, precisaram de séculos,
dade contra cada um dos burgueses que os exploram directamente. conseguem os modernos proletários com os caminhos-de-ferro em poucos
Dirigem os seus ataques não só contra as relações de produção burguesas, anos.
dirigem-nos contra os próprios instrumentos de produção; destroem as Esta organização dos proletários em classe, e deste modo em partido
mercadorias estrangeiras concorrentes, destroçam as máquinas, deitam político, é rompida de novo a cada momento pela concorrência entre os
fogo às fábricas, e procuram recuperar a posição desaparecida do trabalho próprios operários. Mas renasce sempre, mais forte, mais sólida, mais pode-
medieval. rosa. Obtém o reconhecimento na lei de interesses isolados dos operá-
Nesta etapa os operários formam uma massa dispersa por todo o país rios, na medida em que aproveita as divisões entre a burguesia. Assim acon-
e dividida pela concorrência. A coesão de massas dos operários não é ainda “ teceu em Inglaterra com a lei das dez horas.
a consequência da sua própria união, mas a consequência da união da bur- De um modo geral, as colisões da velha sociedade fomentam, de
guesia, a qual, para atingir os fins políticos que lhe são próprios, tem de muitas maneiras, o curso do desenvolvimento do proletariado. A burguesia
pôr em movimento todo o proletariado, e por enquanto ainda o consegue. acha-se em luta permanente: primeiro contra a aristocracia; mais tarde
Nesta etapa os proletários combatem, pois, não os seus inimigos, mas os contra os sectores da própria burguesia cujos interesses entram em con-
inimigos dos seus inimigos, os restos da monarquia absoluta, os proprie- tradição com o progresso da indústria; sempre contra a burguesia de todos
tários da terra, os burgueses não industriais, os pequenos burgueses. Todo ' os países estrangeiros. Em todas estas lutas vê-se obrigada a apelar para
o movimento histórico está, assim, concentrado nas mãos da burguesia; o proletariado, a recorrer à sua ajuda, e deste modo a arrastá-lo para o movi-
todas as vitórias assim alcançadas são vitórias da burguesia. mento político. Ela mesma leva, portanto, ao proletariado os seus próprios
Mas com o desenvolvimento da indústria o proletariado não se mul- elementos de formação, ou seja, armas contra si mesma.
tiplica apenas; é reunido em massas maiores, a sua força cresce, e ele sente-a Além disto, como vimos, com o progresso da indústria, sectores
mais. Os interesses, as condições de vida no interior do proletariado inteiros da classe dominante são lançados no proletariado, ou pelo menos
tornam-se cada vez mais semelhantes, na medida em que a maquinaria vai vêem ameaçadas as suas condições de vida. Também estes levam ao pro-
obliterando cada vez mais as diferenças do trabalho e quase por toda a letariado uma quantidade de elementos de formação.
parte faz descer o salário a um mesmo nível baixo. A concorrência cres- Por fim, em alturas em que a luta de classes se aproxima da decisão,
cente dos burgueses entre si e as crises comerciais que daqui decorrem o'processo de dissolução no seio da classe dominante, no seio de toda
tornam o salário dos operários cada vez mais flutuante; o aperfeiçoamento a velha sociedade, assume um carácter tão cru, tão violento, que uma
incessante da maquinaria, que cada vez se desenvolve mais depressa, torna pequena parte da classe dominante se desliga desta e se junta à classe revo-
a sua posição na vida cada vez mais insegura; as colisões entre o operário lucionária, à classe que traz nas mãos o futuro. Assim, tal como anterior-
isolado e o burguês isolado assumem cada vez mais o carácter de colisões mente uma parte da nobreza se passou para a burguesia, também agora

E
68 69
uma parte da burguesia se passa para O proletariado, e nomeadamente uma Pela forma, embora não pelo conteúdo, a luta do proletariado contra
parte dos ideólogos burgueses que conseguiram elevar-se à compreensão a burguesia começa por ser uma luta nacional. O proletariado de cada um
teórica de todo o movimento histórico. dos países tem naturalmente de começar por resolver os problemas com
De todas as classes que hoje em dia defrontam a burguesia só O pro- a sua própria burguesia,
letariado é uma classe realmente revolucionária. As demais classes vão-se Ao traçarmos as fases mais gerais do desenvolvimento do proletariado,
arruinando, soçobram com a grande indústria; o proletariado é O produto seguimos de perto a guerra civil mais ou menos oculta no seio da socie-
mais característico desta. dade burguesa vigente até ao ponto em que estala abertamente uma revo-
As camadas médias, o pequeno industrial, o pequeno comerciante, lução, e o proletariado, pelo derrube violento da burguesia, lança os fun-
o artesão, o camponês, todos eles, face ao declínio, combatem a burguesia damentos do seu próprio domínio.
para assegurar a sua existência como camadas médias. Não são, pois, revo- Até aqui a sociedade assentou, como vimos, no antagonismo de classes
lucionárias, mas conservadoras. Mais ainda, são reaccionárias, procuram opressoras e oprimidas. Mas para se poder oprimir uma classe, têm de lhe
fazer andar para trás a roda da história. Se são revolucionárias, são-no ser asseguradas condições em que possa pelo menos ir arrastando a sua
apenas à luz da sua iminente passagem para O proletariado, e assim não existência servil. O servo da gleba chegou, sem deixar de ser servo à
defendem os seus interesses presentes, mas futuros, e assim abandonam membro da comuna, tal como o pequeno burguês chegou a grande bur-
a sua posição própria para se colocarem na do proletariado. — guês sob o jugo do absolutismo feudal. Pelo contrário, o operário moderno
O lumpenproletariado, esta putrefacção passiva das camadas infe- em vez de se elevar com o progresso da indústria, afunda-se cada vez mais
riores da velha sociedade, é aqui e além atirado para o movimento por fundo nas condições da sua própria classe. O operário passa a indigente
uma revolução proletária, e por toda a situação que ocupa na vida estará e a indigência desenvolve-se mais rapidamente do que a população e a
mais disposto a deixar-se comprar para maquinações reaccionárias. riqueza. Torna-se com isto evidente que a burguesia é incapaz de conti-
As condições de vida da sociedade velha já estão destruídas nas con- nuara ser por muito mais tempo a classe dominante da sociedade e aimpor
dições de vida do proletariado. O proletário não é proprietário; a sua à. sociedade como lei reguladora as condições de vida da sua classe, Fla
relação com a mulher e os filhos já nada tem de comum com a relação é incapaz de dominar porque é incapaz de assegurar ao seu escravo a pró-
familiar burguesa; o trabalho industrial moderno, à subjugação moderna pria existência no quadro da escravidão, porque é obrigada a deixá-lo
ao capital, que é a mesma na Inglaterra e na França, na América e na Ale- afundar-se numa situação em que tem de ser ela a alimentá-lo, em vez de
manha, tirou-lhe todo o carácter nacional. As leis, a moral, a religião são ser alimentada por ele. A sociedade já não pode viver sob a sua dominação,
para ele outros tantos preconceitos burgueses, atrás dos quais se acoitam isto é, a sua vida já não é compatível com a sociedade.
outros tantos interesses burgueses. À condição essencial para a existência e para o domínio da classe bur-
Todas as classes anteriores que conquistaram o poder procuraram pro- guesa É a acumulação da riqueza nas mãos de particulares, a formação e
teger uma posição já alcançada na vida, submetendo toda a sociedade às multiplicação do capital; a condição do capital é o trabalho assalariado.
condições do seu lucro. Os proletários só podem conquistar as forças pro- O trabalho assalariado assenta exclusivamente na concorrência entre os
ão €
dutivas sociais abolindo o seu próprio modo anterior de apropriaç operários. O progresso da indústria, de que a burguesia é portadora abú-
têm
com ele todo o modo anterior de apropriação. Os proletários nada lica e inerte, coloca num lugar do isolamento dos operários por meio da
de destruir todas as segurança s privadas e
de-seu a assegurar, têm sim concorrência a sua união revolucionária por meio da associação. Com o
seguros privados anteriores. desenvolvimento da grande indústria é retirada debaixo dos pés da bur-
Todos os movimentos anteriores foram movimentos de minorias ou guesia a própria base sobre que ela produz e se apropria dos produtos.
no interesse de minorias. O movimento proletário é o movimento autó- Ela produz, antes do mais, o seu próprio coveiro. A sua queda e a vitória
nomo da maioria imensa no interesse d da maioria imensa. O proletariado, do proletariado são igualmente inevitáveis.
a camada inferior da sociedade actual, não pode levantar-se, não pode Ria peço KFRA
que
endireitar-se, sem fazer ir pelos ares toda a superestrutura das camadas
formam a sociedade oficial.

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4. PREFÁCIO AO «PARA A CRÍTICA DA ECONOMIA
POLÍTICA» *

O primeiro trabalho, empreendido para resolver as dúvidas que me


assaltavam, foi uma revisão crítica da filosofia do direito de Hegel, um tra-
balho cuja introdução apareceu nos Deuisch-Franzóôsische Jabrbiicher
publicados em Paris em 1844. A minha investigação desembocou no resul-
tado de que relações jurídicas, tal como formas de Estado, não podem ser
compreendidas a partir de si mesmas nem a partir do chamado desenvol-
vimento geral do espírito humano, mas enraízam-se, isso sim, nas relações
materiais da vida, cuja totalidade Hegel, na esteira dos ingleses e franceses
do século XVIII, resume sob o nome de «sociedade civil», e de que a ana-
tomia da sociedade civil se teria de procurar, porém, na economia polí-
tica. A investigação desta última, que comecei em Paris, foi continuada
em Bruxelas, para onde me mudara em consequência duma ordem de.
expulsão do sr. Guizot. O resultado geral que se me ofereceu e, uma vez
ganho, serviu de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado assim
sucintamente: na produção social da sua vida os homens entram em deter-
minadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvi
mento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações
de produção forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre
a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, e à qual corres-
pondem determinadas formas da consciência social. O modo de produção

* Parte do prefácio ao Para a Crítica da Economia Política. Ob. cit., I vol, pp.
5350-531.

73
da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espi-
ritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inver-
samente, o seu ser social que determina a sua consciência. Numa certa etapa
do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade
entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que
é apenas uma expressão jurídica delas, com as relações de propriedade
no seio das quais se tinham até aí movido. De formas de desenvolvimento
das forças produtivas, estas relações transformam-se em grilhões das
mesmas. Ocorre então uma época de revolução social. Com a transfor-
mação do fundamento económico revoluciona-se, mais devagar ou mais
depressa, toda a imensa superestrutura. Na consideração de tais revolu-
cionamentos tem de se distinguir sempre entre o revolucionamento mate- 5. PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO ALEMÃ
rial nas condições económicas da produção, o qual é constatável rigoro- DE «O CAPITAL» *
samente como nas ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas,
religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, ideológicas, em que os homens O meu método dialéctico é, pela base, não apenas diverso do de Hegel
ganham consciência deste conflito e o resolvem. Do mesmo modo que
mas O seu directo oposto. Para Hegel, o processo do pensamento — que
não se julga o que um indivíduo é pelo que ele imagina de si próprio, tão-
ele transforma mesmo num sujeito autónomo sob o nome de Ideia — é
-pouco se pode julgar uma tal época de revolucionamento a partir da sua
o demiurgo do real, que forma apenas o seu fenómeno exterior. Para mim
consciência, mas se tem, isso sim, de explicar esta consciência a partir das inversamente, o ideal [das Ideelle] não é senão o material trans poOStO e tra-
contradições da vida material, do conflito existente entre forças produ-
duzido na cabeça do homem.
tivas e relações de produção sociais. Uma formação social nunca decai antes Critiquei o lado mistificador da dialéctica de Hegel há já quase 30
de estarem desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais é sufi- anos
numa altura em que ela ainda estava em moda. Mas, precisa
mente, quando
cientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e supe- elaborava o primeiro volume de Das Kapital,a espionagem rabujent
a, arro-
riores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido gante e medíocre, cuja palavra pesa hoje na Alemanha culta, compraz
ia-se
chocadas no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca a tratar Hegel como o bom do Moses Mendelssohn, no tempo
de Lessing
sempre a si mesma apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a uma tinha tratado Spinoza, a saber: como «cão morto». Confessei-me,
portanto,
consideração mais rigorosa, se achará sempre que a própria tarefa só apa- abertamente discípulo daquele grande pensador e coqueteei mesmo
rece onde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar, as aqui
e ali no capítulo sobre a teoria do valor com o modo de
expressão que
condições materiais da sua resolução. Nas suas grandes linhas, os modos lhe é peculiar. A mistificação que a dialéctica sofre às mãos
de Hegel de
de produção asiático, antigo, feudal e, modernamente, burguês podem ser modo nenhum impede que tenha sido ele à expor pela primeir
a vez, de
designados como épocas progressivas da formação económica e social. um modo abrangente e consciente as suas formas de movime
nto univer-
As relações de produção burguesas são a última forma antagónica do pro- sais. Nele, ela está de cabeça para baixo. Há que virá-la
para descobrir o
cesso social da produção, antagónica não no sentido de antagonismo indi- núcleo racional no invólucro místico.
vidual mas de um antagonismo que decorre das condições sociais da vida | | Na sua forma mistificada, a dialéctica tornou-se moda alemã,
porque
dos indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da ai Parecia glorificar o existente. Na sua figura racional,
ela é um escân-
sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para O e uma abominação para a burguesia e para os seus
porta-vozes dou-
a resolução deste antagonismo. Com esta formação social encerra-se, por
isso, a pré-história da sociedade humana.
ii erre mmm
* sina ia alemã
Parte do prefácio à 2.º edição de O Capital. Ob. cit., Il vol, 1983, p. 102.

74 75
a
Principais obras:

Programa dos trabalhos científicos necessários para a reorgani-


zação da sociedade (1822); Curso de Filosofia Positiva (1830-1842); Tra-
tado elementar de Geometria Analítica (1843); Discurso sobreo Espírito
Positivo (1844); Sistema de Política Positiva (1851-1854); Catecismo Posi-
tivista (1852); Apelo aos Conservadores (1855).

-
nremieim
1. IMPORTÂNCIA DA FILOSOFIA POSITIVA *

1 — O objecto desta primeira lição é expor claramente o fim do Curso,


isto é, determinar exactamente o espírito dentro do qual serão conside-
rados os diversos ramos fundamentais da filosofia natural, indicados pelo
programa sumário que vos apresentei.
Sem dúvida, a natureza deste curso não estaria em condições de ser
completamente apreciada, de maneira a poder formar-se uma opinião defi-
nitiva sobre ele, senão quando as suas diversas partes tivessem sido suces-
sivamente desenvolvidas. Tal é o inconveniente ordinário das definições
relativas a sistemas de ideias muito extensos, quando precedem a expo-
sição delas. Mas as generalidades podem ser concebidas sob dois aspectos:
ou como esboço duma doutrina a estabelecer, ou como resumo duma dou-
trina já estabelecida.
Se somente sob este último ponto de vista adquirem todo o seu valor,
não têm, no entanto, sob o primeiro, menos importância, por se caracte-
rizar desde o começo o assunto a considerar.
A circunscrição geral do campo das nossas investigações, traçado com
toda a severidade possível, é, para o nosso espírito, um preliminar parti-
cularmente indispensável num estudo tão vasto e até agora tão pouco deter-
minado como aquele de que nos vamos ocupar.
É com o fim de obedecer a esta necessidade lógica que creio devermos
indicar desde já a série de considerações fundamentais que deram origem
a este novo curso e que serão, além disso, especialmente desenvolvidas,
a seguir, com toda a extensão que reclama a alta importância de cada uma
delas.

mem

* É a primeira lição do Curso de Filosofia Positiva. Ob. cit., pp. 17-68.

138 139 à
à verdadeira natureza e o Finalmente, no estado positivo, o espírito humano,
2 — Para explicar convenientemente reconhecendo
vel lançar em primeiro
carácter próprio da filosofia positiva, é indispensá
I a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem
a progressiva do espírito e destino do universo, e a conhecer as causas íntimas dos fenómenos para
lugar um golpe de vista geral sobre a march
se entregar unicamente a descobrir, pelo uso bem combinado
. “

concepção qualquer não do racio-


'

humano, encarada no seu conjunto, porque uma


sua histór ia. , cínio e da observação, as suas leis efectivas, isto é, as relações invariáveis
pode ser bem conhecida senão pela !
"=
de sucessão e de semelhança.
í

da inteligência I|
a Estudando deste modo o desenvolvimento total ———A-explicação dós factos, reduzida então aos seus termos
desde o seu primeiro des- reais, não
humana nas suas diversas esferas de actividade,
1

é, daqui em diante, mais do que a ligação estabelecida entre os diversos


berto uma grande lei funda-
pontar até aos nossos dias, creio ter desco
sidade e que me parece fenómenos particulares e alguns factos gerais, cujo número os progressos
" mental, à qual está sujeito por uma invariável neces da ciência tendem cada vez mais a diminuir.
racionais fornecidas
poder ser solidamente estabelecida, quer por provas
o, quer por verifi cações históricas
pelo conhecimento da nossa organizaçã 4 — O sistema teológico chegou à mais alta perfeição de que é sus-
. resultantes dum exame atento do passado. ceptível, quando substituíu pela acção providencial dum único ser o jogo
pções principais,
A1 | Esta lei consiste em que cada uma das nossas conce variado de numerosas divindades independentes que tinham sido imagi
suces sivam ente por três
cada ramo dos nossos conhecimentos, passa nadas primitivamente. a
o| | estados teóricos diferentes: estado teológico ou fictício;
estado metafísico
Da mesma forma, o último termo do sistema metafísico consiste em
| | || ou abstracto; e estado científico ou positivo. conceber, em vez das diferentes entidades particulares, uma única grande
palavras, O espírito humano, por necessidade íntima,
Por outras entidade geral — a natureza —, encarada como a origem de todos
s três métodos
| emprega sucessivamente em cada uma das suas investigaçõe fenómenos. º
e mesmo radicalmente
| de filosofar, cujo carácter é essencialmente diferente Semelhantemente, a perfeição do sistema positivo, para a qual tende
segui damente o método
| oposto: em primeiro lugar O método teológico, sem cessar, ainda que seja muito provável que nunca a atinja, seria poder
| metafísico, e por fim O método positivo. representar todos os diferentes fenómenos observáveis como casos parti-
concepções sobre
Daí três espécies de filosofias, ou sistemas gerais de culares dum só facto geral, tal como o da gravitação, por exemplo.
em mutua mente : aprimeira é O
o conjunto dos fenómenos, que se exclu
ra, o seu estado
ponto de partida necessário da inteligência humana; atercei 5 — Não é agora a ocasião de demonstrar especialmente esta lei fun-
a segund
fixo e definiti transição.
de vir
vo;a é unicamente destinada a ser damental do desenvolvimento do espírito humano e deduzir-lhe as con-
sequências mais importantes. Trataremos disso directamente, com toda
o humano, essencial
o 3 — No estado teológico — dirigindo o espírit a extensão conveniente, na parte deste curso relativa ao estudo dos fenó-
seres, para as causas
| mente, as suas investigações para a natureza íntima dos menos sociais.
, numa palavra, para
| primárias e finais de todos os efeitos que os chocam | Considero-a agora, somente para determinar com precisão o verda-
fenóme nos como pro; deiro carácter da filosofia positiva, em oposição às duas outras filosofias
os conhecimentos absolutos — representam-se OS
sobrenaturais mais ou que têm dominado sucessivamente, até os últimos séculos, todo o nosso
duzidos pela acção directa € contínua de agentes
todas as anomalias sistema intelectual. Por agora, para não deixar inteiramente sem demons-
menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica
. tração uma lei desta importância, cujas aplicações se apresentarão frequen-
: aparentes do universo.
uma simples modi- temente em toda a extensão deste curso, devo limitar-me a uma rápida
No estado metafísico, que não é no fundo senão
s são substituídos pelas | indicação dos motivos gerais mais sensíveis que podem verificar-lhe a
ficação geral do primeiro, os agentes sobrenaturai
personificadas) ine- exactidão.
' forças abstractas, verdadeiras entidades (abstracções
como capazes de engen- Em primeiro lugar basta, parece-me, enunciar uma tal lei, para que
' rentes aos diversos seres do mundo, € concebidos
ados, cuja explicação con- a sua justeza seja imediatamente comprovada por todos aqueles que têm
drar por si mesmas todos Os fenómenos observ
correspondente. algum conhecimento aprofundado da história geral das ciências. Não há,
siste então em assinalar a cada um a entidade
141 ,
140
positivo, de forma que e Assim, coacto entre a necessidade de observar para formar teorias
com efeito, uma só que tenha chegado ao estado
o essencialmente cons- reais, e a necessidade, não menos imperiosa, de criar quaisquer teorias para
cada um não possa facilmente supor-se no passad

ssa
metafísicas, e, recuando um pouco mais, inteira- se entregar a observações seguidas, o espírito humano, ao nascer
tituído por abstracções
os mesmo, infeliz- encontrar-se-ja encerrado num círculo vicioso, de que nunca teria tido meio
mente dominado pelas concepções teológicas. Terem
nas diversas partes deste de sair se não tivesse aberto, felizmente, uma saída natural pelo desenvol-
mente, mais de uma ocasião formal de reconhecer,
hoje alguns
curso, que as ciências mais aperfeiçoadas conservam ainda vimento espontâneo das concepções teológicas, que apresentaram um
ivos.
traços muito sensíveis destes dois estados primit ponto de reunião dos seus esforços, e forneceram alimento à sua actividade
Esta revolução geral do espírit o human o pode, além disso, ser facil- Talé, independentemente das altas considerações sociais que se rela-
l, ainda que indirecta,
mente verificada hoje, duma maneira muito sensíve cionam com isto e que não devo mesmo indicar neste momento, o motivo
gência individual.
considerando o desenvolvimento da inteli fundamental que demonstra a necessidade lógica do carácter puramente
educação do
=, Sendo o ponto de partida necessariamente o mesmo na teológico da filosofia primitiva.
ais da primeira devem
|f| indivíduo e na da espécie, as diversas fases princip Esta necessidade torna-se ainda mais sensível atendendo à perfeita
'|
|| representar as épocas
fundamentais da segunda. Ora cada um de nós, con- [concordância da filosofia teológica com a natureza própria das investiga-
que tem sido sucessi-
templando a sua própria história, não se recorda de
Íí
i ções sobre as quais o espírito humano, na sua infância, concentra tão emi-
, teólogo na infância,
vamente, quanto às suas mais importantes noções nentemente toda a sua actividade.
i; verificação é hoje fácil
metafísico na juventude, e físico na idade viril? Esta | Ê muito notável, com efeito, que as questões mais radicalmente ina-
|; para todos os homens ao nível do seu século
.
cessíveis aos nossos meios, a natureza íntima dos seres, a origem e o fim
| Mas, além da observação directa, geral ou individ ual, que prova a €xac-
de todos os fenómenos, sejam precisamente aquelas a que a nossa inteli-
a, mencionar as con-
' tidão desta lei, devo sobretudo, nesta indicação sumári gência se propõe acima de todas neste estado primitivo, sendo quase enca-
| siderações teóricas que fazem sentir-lhe a necessidade.
'
pos como indignos de meditações sérias todos os problemas verdadei-
E amente solúveis.
a na própria natu-
6 — A mais importante destas considerações, apoiad Facilmente se concebe a razão disso, porque só a experiência nos tem
em todos os tempos, duma teoria
reza do assunto, consiste na necessidade, podido dar a medida das nossas forças; e, se o homem não tivesse come-
a impossibilidade evidente,
qualquer para ligar Os factos, combinada com gado primeiro por ter acerca delas uma opinião exagerada, jamais. pode-
teorias baseadas em obser-
para o espírito humano, na sua origem de formar riam adquirir todo o desenvolvimento de que são susceptíveis. Assim o
vações. exige a nossa organização.
, que não há conhe-
Todos os espíritos lúcidos repetem, desde Bacon Mas como quer que seja, representemo-nos tanto quanto possível esta
factos observados. Esta máxima
“cimentos reais senão os que assentam sobre disposição tão universal e pronunciada, e interroguemo-nos sobre o aco-
se se aplica, como convém,
| fundamental é evidentemente incontestável, lhimento que teria recebido numa tal época, supondo-a formada, a filo-
tando-nos à formação dos.
'ao estado viril da nossa inteligência. Mas repor sofia positiva, de que a mais alta ambição é descobrir as leis dos fenómenos
que o espírito humano, no seu
'nossos conhecimentos, não é menos certo e cujo primeiro carácter próprio é precisamente olhar como necessaria-
pensar assim.
jestado primitivo, não podia nem devia mente interditos à razão humana todos estes sublimes mistérios, que a filo-
" Porque se por um lado toda a teoria positiva deve necessariamente
compreensível, por outro, sofia teológica explica, pelo contrário, com tão admirável facilidade, até
ser fundada sobre observações, é igualmente Nas suas mais insignificantes minúcias.
espíri to tem necessidade duma
que, para se entregar à observação, o nosso
enos os não ligássemos ime- O mesmo poderia dizer-se considerando sob o ponto de vista prá-
teoria qualquer. Se contemplando os fenóm
te nos seria impossível com- tico a natureza das investigações que ocupam primitivamente o espírito
| diatamente a alguns princípios, não somen humano.
consequência, tirar disso qualquer
| binar estas observações isoladas e, por
incapacitados de os reter; €, ; Sob este aspecto, oferecem elas ao homem o atractivo tão energé-
' fruto, mas estaríamos mesmo inteiramente . tico dum domínio ilimitado a exercer sobre o mundo exterior, encarado
passariam despercebidos aos nossos olhos.
: muitíssimas vezes, Os factos

142 143 vo.


como inteiramente destinado ao nosso uso, e como apresentando em todos 8 — Concebe-se sem esforço que o nosso entendimento, constran-
os seus fenómenos relações íntimas e contínuas com a nossa existência. gido a caminhar apenas por graus quase insensíveis, não podia passar brus-
Ora estas esperanças quiméricas, estas ideias exageradas da impor- camente, e sem intermediário, da filosofia teológica à filosofia positiva.
tância do Homem no Universo, que a filosofia teológica faz nascer, e que | A teologia e a física são tão profundamente incompatíveis, as suas con-
a primeira influência da filosofia positiva destrói sem remissão, são, na |cepções têm um carácter tão radicalmente oposto, que, antes de renun-
origem, um estimulante indispensável, sem o qual não se poderia certa- ciar a uma para empregar exclusivamente a outra, a inteligência humana
mente conceber como o espírito humano se sujeitou primitivamente a viu-se obrigada a utilizar concepções intermediárias, de um carácter bas-
penosos trabalhos. tardo, próprias, por isso mesmo, para operar gradualmente a transição.
Tal é o destino natural das concepções metafísicas: não têm outra utili-
7 — Estamos hoje de tal maneira afastados destas primeiras disposi- dade real.
ções, pelo menos quanto à maior parte dos fenómenos, que temos difi- Substituindo, no estudo dos fenómenos, a acção sobrenatural direc-
culdade em imaginar exactamente o poder e a necessidade de semelhantes
Íi
(tora por uma entidade correspondente e inseparável, mesmo que esta fosse
t

considerações. A razão está actualmente bastante amadurecida para concebida a princípio como uma simples emanação da primeira, o homem
empreendermos laboriosas investigações científicas sem ter em vista habituou-se pouco a pouco a considerar apenas os próprios factos, tendo
nenhum fim estranho capaz de agir fortemente sobre a imaginação, como sido gradualmente subtilizadas as noções destes agentes metafísicos a ponto
o que se propunham os astrólogos ou os alquimistas. de mais não serem, aos olhos de um espírito recto, do que os nomes abs-
A nossa actividade intelectual é suficientemente excitada pela pura itractos dos fenómenos. É impossíveli imaginar que por outro processo o
esperança de descobrir as leis dos fenómenos, pelo simples desejo de con- nosso entendimento teria podido passar de considerações francamente
firmar ou infirmar uma teoria. sobrenaturais às considerações puramente naturais, do regime teológico
'
Mas não podia ser assim na infância do espírito humano. Sem os atrac- ao regime positivo. .
tivos quiméricos da astrologia, sem as enérgicas decepções da alquimia, Depois de ter assim estabelecido, tanto quanto posso fazê-lo sem
por exemplo, onde teríamos nós adquirido a constância e o ardor neces- entrar numa discussão especial que seria deslocada neste momento, a lei
sários para recolher as longas séries de observações e de experiências que geral do desenvolvimento do espírito humano, tal como a concebo, ser-
mais tarde serviram de fundamento às primeiras teorias positivas de uma -nos-á agora mais fácil determinar com precisão a natureza própria da filo-
e outra classe de fenómenos? sofia positiva, que é o objecto essencial deste discurso.
Esta condição do nosso desenvolvimento intelectual foi vivamente
sentida desde há muito por Kleper, para a astronomia, e justamente apre- 9 — Vemos pelo que precede que o carácter fundamental da filosofia
ciada em nossos dias por Berthollet, para a química. “positiva é olhar todos os fenómenos como sujeitos a leis naturais invariá-
Vê-se, então, por este conjunto de considerações, que, se a filosofia : veis, cuja descoberta precisa e* redução : ao menor número.possível. são.O
positiva é o verdadeiro estado definitivo da inteligência humana, aquele | mm
|fim de todos Os nossos “Esforços, considerando como absolutamente ina-
para o qual tem sempre caminhado cada vez mais, ela não podia deixar cessível' vazia de sentido pará nós a investigação das causas, quer pri-
de empregar necessariamente, primeiro e durante uma longa série de meiras, quer finais.
séculos, seja como método, seja como doutrina provisória, a filosofia teo- É inútil insistir muito sobre um princípio tornado agora tão familiar
lógica: filosofia cujo carácter é ser espontânea e, por isso mesmo, a única a todos aqueles que têm feito um estudo um tanto aprofundado das ciên-
possível na origem, a única também que poderia oferecer ao nosso espí- cias de observação.
rito nascente um interesse suficiente. Todos sabem, com efeito, que nas nossas explicações positivas,
É muito fácil sentir que, para passar desta filosofia provisória à filo- mesmo as mais perfeitas, não temos de modo nenhum a pretensão de expor
sofia definitiva, o espírito humano teve naturalmente de adoptar como as causas geradoras dos fenómenos, pois então só faríamos recuar a difi-
filosofia transitória os métodos e as doutrinas metafísicas. Esta última con- culdade, mas simplesmente analisar com exactidão as circunstâncias da
sideração é indispensável para completar a apreciação geral da grande lei sua produção, e ligá-las umas às outras por relações normais de sucessão
que indiquei. E de semelhança.

144 145
agitada entre os partidários da matéria calorífica e os que fazem consistir
o calor nas vibrações
Assim, para citar o exemplo mais admirável, dizemos que os
dum éter universal. E, não obstante. as mais altas
10 —
questões, algumas das quais nunca tinham sido postas, são tratadas nesta
fenómenos gerais do universo são explicados, tanto quanto podem sê-lo,
obra, prova palpável de que o espírito humano, sem se lançar em
pela lei da gravitação newtoniana, porque, por um lado, esta bela teoria pro-
blemas inabordáveis e restringindo-se às investigações de uma ordem intei.
mostra-nos toda a imensa variedade dos factos astronómicos, como sendo
sob diversos pontos de vista; a ten- ramente positiva, pode encontrar aí um alimento inesgotável à sua activi-
um único e mesmo facto, encarado
directa dade, por mais profunda que seja.
dência constante de todas as moléculas umas para as outras na razão
|i ; enquanto
i das suas massas € na razão inversa dos quadros das suas distâncias
i extensão 12 — Depois de ter caracterizado, tão exactamente quanto me é pos-
í por outro lado este facto nos é apresentado como uma simples
sível fazê-lo nesta apreciação geral, o espírito da filosofia
de um fenómeno eminentemente familiar, e que, por isso mesmo, olhamos
| positiva, que este
superfície curso completo é destinado a desenvolver, devo agora
como perfeitamente conhecido — a gravidade dos corpos à examinar em que
época da sua formação se encontra hoje e o que resta fazer para acabar
da terra.
Quanto a determinar o que são em si mesmas esta atracção e esta gra-
de o constituir.
, Para este efeito é preciso considerar em primeiro lugar que os dife-
vidade, quais as suas causas, são questões que olhamos como insolúveis
rentes ramos dos nossos conhecimentos não têm percorrido com igual
que não são do domínio da filosofia positiva e que abandonamos com razão
mani- velocidade as três grandes fases do seu desenvolvimento atrás indicadas
à imaginação dos teólogos ou às subtilezas dos metafísicos. A prova
| nem, por consequência, chegaram simultaneamente 20 estado positivo.
festa da impossibilidade de obter tais soluções é que, todas as vezes que-
racional, Existe sob este aspecto uma ordem invariável e necessária que os noss s
se procura dizer a este respeito qualquer coisa de verdadeiramente
têm podido senão definir estes dois princípio s diversos.géneros de concepções têm seguido e devem seguir na sua pro-
os maiores espíritos não
que não é mais do que uma gra- gressão, e cuja consideração exactã é o complemento indispensável daei
um pelo outro, dizendo, para à atracção,
simples- fundamental enunciada precedentemente.
vidade universal, e seguidamente, para a gravidade, que consiste
Esta ordem será O assunto especial da próxima lição.
mente na atracção terrestre.
à ] Basta-nos, por agora, saber o que é conforme à natureza-diversa-dos
Tais explicações, que fazem sorrir quando se pretende conhecer
geração dos fenómeno s, são no fenómenos e que é determinada pelo seu grau de generalidade, de simpli-
natureza íntima das coisas e o modo de
o-nos sidade e de independência recíproca— três considerações que “embora
entanto tudo o que podemos obter de mais satisfatório, mostrand
foram
como idênticas duas ordens de fenómenos que durante muito tempo
distintas, concorrem para o mesmo fim.
espírito justo o Assim, os fenómenos astronómicos, em primeiro lugar por serem os
olhadas como não tendo nenhuma relação entre si. Nenhum
mais gerais, os mais simples e os mais independentes de todos os outros
procura ir hoje mais além.
e sucessivamente, pelas mesmas razões, os fenómenos da física terrestre
nume- própriamente dita, os da química e por fim os fenómenos
11 — Seria fácil multiplicar estes exemplos, que se apresentarão fisiológicos
que dirige exclu- tigaram-se às teorias positivas.
rosos na sequência deste curso, pois tal é agora o espírito
intelect uais. E impossível determinar a origem precisa desta revolução, pois pode
sivamente as grandes combinações
entre Os trabalhos contemporâneos, dizer-se com exactidão, como de todos os outros grandes acontecimentos
Para citar um, neste momento,
a teoria do calor. humanos, que se realiza constantemente e cada vez mais, particularmente
escolherei a bela série de investigações de Fourier sobre
gerais precedentes. desde os trabalhos de Aristóteles e da escola de Alexandria e em seguida
Ela oferece-nos a verificação muito sensível das notas
eminentemente desde a introdução das ciências naturais na Europa Ocidental pelos Árabes.
Com efeito, neste trabalho, cujo carácter filosófico é tão
dos fenóme nos térmicos º Entretanto, visto que convém fixar uma época para impedir a diva-
positivo, as leis mais importantes € mais precisas
pado uma única gação das ideias, indicarei a do grande movimento imprimido ao espírito
encontram-se aclaradas sem que o autor se tenha preocu
nado — doutra humano, há dois séculos, pela acção combinada dos preceitos de Bacon
vez com a natureza íntima do calor, sem que tenha mencio
a controvérsia tão das concepções de Descartes e das descobertas
forma que não seja para indicar O vazio da questão —
de Galileu, como o mo-

146 147
ar-se Os métodos teológicos e metafísicos que, relativamente a todos os
ofia positiva começou à pronunci
mento em que o espírito da filos físi co. | outros géneros de fenómenos, já não são actualmente empregad dor r io
ao espírito teológico € meta
no mundo, em oposição evidente amen te guém, quer como meio de investigação, quer somente como meio des cu
epções positivas se libertam clar
É então, com efeito, que as conc menos mentação, são ainda, pelo contrário, exclusivamente usados Sob im
ástica que desnaturava mais ou
da influência supersticiosa € escol , outro aspecto, em tudo o que diz respeito aos fenómenos sociai ain a
Os trabalhos anteriores.
o verdadeiro carácter de todos filos ofia
| que a sua insuficiência a este respeito seja sentida por todos os or epi -
movimento de asce nsão da
Desde esta memorável época, O | ações intermináveis
ritos, cansados destas contestações i ináv entre o direito
ireito divino
divi
v
ia da filosofia teológica e metafísica
positiva e o movimento de decadênc ira pronun-
têm sido extremamente acentuados. São, enfim, de tal mane r
aqui então a grande, mas evidentemente a única, , lacuna que se
1

com cons-
el hoje, a todos os observadores
i Eis i i

ciados, que se tornou impossív humana trata a preencher para acabar de constituir a filosofia positiva
destino final da inteligência
ciência do seu século, desconhecer O e netAs ora
aa qu eo espírito
fri humano fundou a físicaísi celeste, a física terrestre
o seu afastamento, de ora em diant
como
para os estudos positivos, assim q o ca, quer química, e a física orgânica, quer vegetal, quer animal,
dout rina s e destes métodos provisórios que não
irrevogável, desta s vãs . ” . sa . /

resta-lhe terminar o sistema das ciências de observação r fundand


ando a fi fsica
ica
desabrochar. DT Ciao
podiam convir senão ao primeiro social. Tal é hoj e, sob
2
vários irai
aspe e capita .
realizar-se-á necessariamente em meces
eme sidad e da Toa intel igênc i P is, a maior e mais insta nte
Assim, esta revolução fundamental , algum : é, ouso mesmo dizê-lo , O prime imaiiro
alguma grande conquista à fazer . deste curso, O seu fim: especial.
' toda a sua extensão. Se resta ainda certo de fim
ectual a invadir, pode-se estar
ramo principal do domínio intel
se efectuaram todas as outras, pois
que a transformação se operará como tão dis- dos sor14 — A S Concepções õ que tentarei i apresentar relativamente ao estudo
o supor que o espírito humano,
seria evidentemente contraditóri
sse indefinidamente, para uma só os emo n s sociais, e, de que esper o, este curso deixará
dei ent rever O
posto à unidade do método, conserva chegou se eme ão poderam ter por objecto dar imediatamente à física social o
ira primitiva de filosofar, quando
- classe de fenómenos, à sua mane de carácter
r cs
mesm E rau e perfeição que aos ramos anteriores da filosofia natural
o resto uma marcha filosófica
uma vez a adoptar para todo o q es ia evidentemente quimérico, visto que estes oferecem já entre
absolutamente oposto. ofia posi- aaA e respeito, »uuma grande de desi igualdade, ; aliás
iás inevitável
i itável; mas serãoã
questão de facto: a filos
Tudo se reduz, então, a uma simples 1 nadas aimprimir “a esta última classe dos nossos conhecimentos este
séculos tomo u gradualmente uma tão grande
tiva, que nos dois últimos carácter positivo já tomado por todos-os outros” TT
as ordens de fenómenos?
extensão, abraça hoje todas g Tm qu mg q cm eme vnpt
Rod e cata Condição for um dia realmente preenchida, o sistema filosó-
ncia resta ainda uma grande ope-
É evidente que não, e por consequê ter de uni-. PA ' mo ao estará enfim fundado no seu conjunto, porque nenhum
dar à filosofia positiva este carác
ração científica a executar para a no observável
ê deixará : de ent rar em 2alguma das cinco grandes cate-
sua constituição definitiva.
versalidade, indispensável à gorias, desde então estabelecidas, dos fenómenos astronómicos, 2 físicos ,
| químicos, fisiológicos e sociais.
I
principais de fenómenos natl-
| 13 — Com efeito, nas quatro categorias químicos Tornando-se homogéneas todas as nossas concepções fundamentai
físicos,
os fenómenos astronómicos,
| rais, enumerados agora — a dosora estará definitivamente constituída no estado positivo; sem nunca
san
uma lacuna essencial relativa aos fenómenos
| e fisiológicos —, nota-se cre aee rem cana rm
Po a mudar de carácter, só se torna possível desenvolver-se indefinida-
implicitamente entre Os fenómenos
. ns
eme imieemaçÃa
“sociais, que, embora compreendidos pelas aquisições, sempre crescentes, que resultarão inevitavelmente
culdades
sua importância, quer pelas difi
fisiológicos, merecem, quer pela de novas observações ou de meditações mais profundas.
pet

formar uma categoria distinta.


1 próprias do seu estudo, fenómenos mais Tendo adquirido assim o carácter de universalidade que lhe falta
que se reporta aos
Esta última ordem de concepções, todos Os Outros, aos a filosofia positiva tornar-se-á apta a substituir inteiramente, com
cados e mais dependentes de
particulares, mais compli lentamente que ca a du DN a filosofia teológica e a filosofia metafi-
isso só, aperfeiçoar-se mais
'* deve necessariamente, por os mais especiais a que varas ã ade é hoje a única propriedade real, e que, pri-
sem atender aos obstácul
* todas as precedentes, mesmo evidente que ainda não Cena ing ivo de preferência, não terão mais do que uma exis-
Seja como for, é
que consideraremos mais tarde. para OS nossos sucessores.
- entrou no domínio da filosofia positiva.
149 '
148
: .
|1 munido,
i á diss
além o, do conhecimento das principais leis dos fenómenos
ial deste curso, é fácil com-
15 — Exposto assim O objectivo espec
geral, o que faz dele um curso de | anteriores, que influem todos, duma maneira mais ou menos directa, ; sobr e
preender o seu segundo fim, o seu fim
curso de física social. i os factos sociais?
filosofia positiva e não somente um Ainda que todas as ciências fundamentais não inspirem aos espírit
, completando, enfim, O sis-
!i Com efeito, a fundação da física social vulgares um igual interesse, não há nenhuma que deva ser des rezada um
e mesmo necessário resumir OS
| tema das ciências naturais, torna possível fixo e
a estudo como aquele que empreendemos. Quanto à sua importânci para
, chegados então a um estado
| diversos conhecimentos adquiridos
do-os como ramos de um a felicidade da espécie humana, todas são certamente equivalentes úando
| homogéneo, para os coordenar, apresentan corpos se encaram duma maneira aprofundada. No entanto, aquelas cujos re
a concebê-los, somente, como
| tronco único, em vez de continuar tados apresentam, à primeira vista, menor interesse prático recomendam
| isolados.
o dos fenómenos eminentemente, quer pela maior perfeição dos seus métodos uer co o
. É com este fim que, antes de proceder ao estud
na ordem enciclopédica anunciada fundamento indispensável de todas as outras. É uma considera ão 5 bre
| sociais, considerarei sucessivamente,
ivas já formadas. a qual terei, especialmente, ocasião de me pronunciar na próxima lição.
| mais acima, as diferentes ciências posit
trata aqui de uma série de
| É supérfluo, creio, advertir que se não . 16 = Para prevenir, tanto quanto possível, todas as falsas interpreta-
ipais ramos da filosofia natural,
| cursos especiais sobre cada um dos princ
empresa, é claro que seme- ções que é legítimo temer acerca da natureza de um curso tão novo com
Sem falar da duração material duma tal
minha parte e, creio poder adiantar, este, devo acrescentar, sumariamente, às explicações precedentes, algu s
lhante pretensão seria insustentável da
o actual da educação humana. considerações directamente relacionadas com esta universalidade d :
da parte de quem quer que seja, no estad
deste exige, para ser con- conhecimentos especiais, que juízes irreflectidos poderiam olhar com :
Antes pelo contrário, um curso da natureza
a de estudos especiais sobre as tendência deste curso e que é encarada com tão justa razão como inteir -
venientemente entendido, uma série prévi mente contrária ao verdadeiro espírito da filosofia positiva
as. Sem esta condição, é muito o
diversas ciências que nele serão considerad Estas considerações terão além disso a vantagem mais importante de
xões filosóficas de que estas ciên-
difícil sentir e impossível julgar as refle apresentar este espírito sob um novo ponto de vista próprio para acaba
Curso de filosofia positiva, e não
cias serão assunto. Numa palavra: é um
propon ho
fazer . - OT o (de esclarecer-lhe a noção geral. ,
de ciências positivas que deme consi derar aqui cada ciênc ia funda menta l nas Po No estado primitivo dos nossos conhecimentos não existe nenhum
Trata-se unicamente
suas relações com o sistema positivo completo, € quan to ao espírito que divisão regular entre os nossos trabalhos intelectuais; todas as ciências sã o
dos seus métodos essenciais e cultivadas simultaneamente pelos mesmos espíritos. e
a caracteriza, isto é, sob o duplo aspecto a Este modo de organização dos estudos humanos, primeiro inevitável
ssimas vezes, mesmo, limitar-me-ei
dos seus principais resultados. Muití pro-
ecimentos especiais, para e mesmo indispensável, como teremos oportunidade de verificar mais
mencionar estes últimos, conforme os conh tarde, muda pouco a pouco, à medida que as diversas ordens de conce
curar apreciar a sua importância. | ões se desenvolvem. e
mente ao duplo fim deste curso,
A fim de resumir as ideias relativa
um especial, O outro geral, que me | . Por uma lei cuja necessidade é evidente, cada ramo do sistema cien-
devo observar que os dois obectivos, | úfico se separa insensivelmente do tronco quando tomou suficiente desen-
si mesmos, são necessariamente inse-
proponho, ainda que distintos em
conceber um curso de filosofia [ponto dep para comportar uma cultura isolada, isto é, quando chega ao
paráveis. Por um lado, seria impossível Esencia : poder ocupar por si só a actividade permanente de algumas inte-
o,
um elem
ia, entã ento
positiva sem a fundação da física social, pois faltar a ter este
epções não estariam aptas
essenciale;por-issó.r esmo, as. conc ngue E a esta repartição das diversas espécies de investigações por dife-
.ser o seu princip: | atributo e disti
carácter de generalidade que deve lado, como oo ordens n cédios que devemos, evidentemente, o desenvolvimento
estudos espec iais. Por outr o
o nosso estudo actual da série dos O mentos Da a ou em nossos dias cada classe distinta dos conheci-
a 40 estu do positivo dos fenómenos sociais se
proceder com seguranç ada dos modes anos, e que toma manifesta a impossibilidade, entre os
ação apro fund
Í espírito não está, primeiro, preparado pela consider
! Os fenó meno s menos complicados € s, desta universalidade de investigações especiais, tão fácil e tão
| métodos positivos já julgados para

150 ist
o do trabalho intelec-
“comum nos tempos antigos. Numa palavra, a divisã
Consiste, pelo contrário, no aperfeiçoamento da divisão do próprio
mais importantes atributos carac- - | trabalho.
“ tual, aperfeiçoada cada vez mais, é um dos
Basta, com efeito, fazer do estudo das generalidades científicas u
| terísticos da filosofia positiva.
grande especialidade mais. Que uma classe nova de sábios preparados or
setas comme remar mam meme

ados desta divisão, (uma conveniente educação, sem se entregar à cultura especial de nenhum
17 — Mas, conhecendo os prodigiosos result
funda menta l da organização jramo particular da filosofia natural, se ocupe unicamente, considerando
vendo nela daqui em diante a verdadeira base
lado, não ser chocado com
geral do mundo sábio, é impossível, por outro ps diversas ciências positivas no seu estado actual, a determinar exacta-
estado actual, pela exces-
os inconvenientes capitais que engendra, no seu mente o espírito de cada uma delas, a descobrir as suas relações € o se
siva particularidade das ideias. encadeamento, a resumir, se é possível, todos os seus princípios pró rios
ponto, como
Este importuno efeito é sem dúvida inevitável até certo num menor número de princípios comuns, conformando-se sem cessar
é, por nenhuma razão nós
inerente ao próprio princípio da divisão; isto com as máximas fundamentais do método positivo. Que ao mesmo tempo
o os antigos , entre-0s quais uma tal
conseguiríamos igualar sob este aspect os outros sábios, antes de se entregarem às suas especialidades respectivas
o desen volvimento dos seus
superioridade resultava sobretudo do escass se tornem aptos daqui em diante, por uma educação que incida sobre o
conhecimentos. conjunto dos conhecimentos positivos, a aproveitar imediatamente as |
espalhadas por estes sábios votados ao estudo das generalidades, e rec
meios convenientes,
18 — Entretanto, podemos, parece-me, por
4
procamente a rectificar os seus resultados, estado de que os sábios actuais
alidad e -exage rada, sem preju-
«evitar Os mais perniciosos efeitos da especi se aproximam visivelmente de dia para dia.
|i igações. É urgente que
| | dicar a influência vivificante da separação das invest Uma vez preenchidas estas duas grandes condições (é evidente que
inconvenientes, que, pela
“|| | nos ocupemos seriamente disso, porque estes elas o podem ser), a divisão do trabalho nas ciências será levada ; sem
| mente, começam a tornar-se
o | sua natureza, tendem a aumentar incessante nenhum perigo, tão longe quanto o desenvolvimento das diversas ordens
“| t
í muito sensíveis.
l
de conhecimentos o exigir.
para maior perfeição
Por confissão de todos, as divisões estabelecidas Uma classe distinta, incessantemente verificada por todas as outras
da filosofia natural, são final-
|. dos nossos trabalhos, entre Os diversos ramos é já
tendo por função própria e permanente ligar cada nova descoberta arti-
não obstante esta confissão,
| | mente artificiais. Não esqueçamos que, cular ao sistema geral, não mais nos fará temer que uma excessiva aten ã
de inteligências que abraçam
,

muito pequeno no mundo sábio o número prestada às minúcias impeça de aperceber o conjunto. e
a única, que não é, entretanto,
nas suas concepções o conjunto duma ciênci . Numa palavra, a “Organização moderna do mundo sábio estará desde
todo. A maior parte limita-se
por sua vez, senão uma parte dum grande então completamente fundada,e só terá, para se desenvolver indefinida-
duma secção mais ou menos
já, inteiramente, à consideração isolada mente, que.conservar sempre o mesmo a EE TT
ocupar muito da relação destes
extensa duma ciência determinada, sem se Formar assim do estudo das generalidades científicas uma secção dis-
dos conhecimentos positivos.
trabalhos particulares com o sistema geral tinta do grande trabalho intelectual é simplesmente estender a aplicação
se torne mais grave.
Apressemo-nos à remediar este mal, antes que do mesmo princípio de divisão que tem sucessivamente separado as
se perder em trabalhos de por-
Temamos que o espírito humano acabe por diversas especialidades; porque enquanto as diferentes ciências positivas
essencialmente O lado fraco
menor. Não dissimulemos que é aí que está estavam pouco desenvolvidas, as suas relações mútuas não podiam ter sufi-
s filosofia teológica e da filosofiá metafísica podem
pelo qual os partidárioda ciente importância para dar lugar, pelo menos duma maneira permanente
à filosofia positiva.
ainda atacar com alguma esperança de sucesso deleté
ncia ria de que o futuro a uma classe particular de trabalhos, e ao mesmo tempo a necessidade deste
n O verdadeiro meio de deter a influê
consequência duma exagerada novo estudo era muito menos urgente.
intelectual parece estar ameaçado, como
duais, não poderá ser, evidente- Mas hoje cada uma das ciências tomou separadamente bastante
| especialização das investigações indivi
ho, que tenderia a fazer retro- extensão para que o exame das suas relações mútuas possa dar lugar a tra-
: mente, voltar a esta antiga confusão de trabal
se tornou, além disso, felizmente balhos seguidos, ao mesmo tempo que esta nova ordem de estudos se torna
| gradar O espírito humano e que hoje
indispensável para prevenir a dispersão das concepções humanas.
' impossível.

152 153 ;
Tais são evidentemente as duas únicas vias gerais, complementares
no da filosofia positiva no
Tal é a maneira como eu concebo o desti uma da outra, pelas quais se pode chegar a algumas noções racionai er
iamente ditas. Tal é, pelo menos,
sistema geral das ciências positivas propr dadeiras sobre os fenómenos intelectuais. na
o fim deste curso. Vê-se que não há lugar, sob qualquer ponto de vista, para essa psi
logia ilusória, última transformação da teologia, que tanto em vão set eta
amente quanto me tem
19 — Agora que procurei determinar, tão exact reanimar hoje e que, sem se inquietar com o estudo fisiológico dos nossos
O espírito geral de um curso
sido possível fazê-lo, nesta primeira revista, seu
órgãos intelectuais, nem com a observação dos processos racionais que
mir a este quadro todo o
de filosofia positiva, creio dever, para impri dirigem efectivamente as nossas investigações científicas, pretende n gar
vantagens gerais que pode ter
carácter, assinalar rapidamente as principais à descoberta das leis fundamentais do espírito humano contem la ' So
são convenientemente preen-
um trabalho, se as suas condições essenciais em si mesmo, isto é, fazendo completa abstracção não só das causas e mo
do espírito humano.
chidas, relativamente aos progressos também dos efeitos. “Como
ões à indicação de quatro
Reduzirei esta última ordem de consideraç A preponderância da filosofia positiva acentuou-se desde Bacon;
propriedades fundamentais. tomou hoje, indirectamente, um tão grande ascendente, mesmo sobre os
va, considerando os resul-
Primeiramente o estudo da filosofia positi espíritos que mais estranhos se conservaram ao seu imenso desenvolvi
intelectuais, fornece-nos O único
tados da actividade das nossas faculdades mento, que os metafísicos, entregues ao estudo da nossa inteligência não
ncia as leis lógicas do espírito
verdadeiro meio racional de pôr em evidê podem esperar retardar a decadência da sua pretensa ciência senão
aqui por vias tão pouco próprias
humano, que têm sido procuradas até esforçando-se por apresentar as suas doutrinas como sendo também fun-
dadas sobre a observação dos factos.
para as revelar.
pensamento a este respeito,
Para explicar convenientemente o meu
filosófica da mais alta importância,
devo primeiro recordar uma concepção a Com este fim, imaginaram nestes últimos tempos distinguir, por
dos seus Princípios Gerais de
exposta por Blainville na bela introdução uma subtileza muito singular, duas espécies de observações de igual impor-
tância, uma exterior e outra interior, a última das quais é unicamente des-
Anatomia Comparada.
especialmente todo o ser vivo, tinada ao estudo dos fenómenos intelectuais.
Consiste em que todo o ser activo, €
enos sob dois aspectos funda-
pode ser estudado em todos os seus fenóm como
dam Não é dsora ocasião de entrar na discussão especial deste sofisma fun-
o aspecto dinâmico, isto é, ca ental. Devo limitar-me a indicar a principal consideração que prova
mentais, sob o aspecto estático € sob
nte. amente que esta pretendida contemplação directa do espírito por si
apto a agir e como actuando efectivame
as consi derações que se possam apre- mesmo é uma pura ilusão.
É claro, com efeito, que todas A iunca ai .
OUtrO modo.
sentar entrarão necessariamente num Ou
nei cedia se ainda há pouco tempo ter explicado a visão, dizendo
mental ao estudo das fun- a acção uminosa dos corpos determina sobre a retina quadros repre-
Apliquemos esta luminosa máxima funda
nt ativos das formas e das cores exteriores. A isto têm objectado os fisio-
ções intelectuais.
de vista estático, o seu estudo dgsts, com razão, que, se era como imagens que actuavam as impres-
Se se encaram estas funções sob o ponto
das condições orgânicas de que ões uminosas, seria preciso outro olho para as olhar. Não ocorre isso
só pode consistir na determinação ainda com mais razão no caso presente?
essencial da anatomia e da fisiologia.
dependem: forma assim uma parte
vista dinâmico, tudo se reduz à ato Ad com Co, que, por uma necessidade invencível, o espí-
“ Considerando-as sob o ponto de
humano em exercício, pelo exame U ano pode observar directament e todos os fenómen
á
estudar a marcha efectiva do espírito os próprios.
para obter OS diversos conheci- dh CHER
dos processos realmente empregados Pois por quem seria feita a observação?
constitui essencialmente o objecto
mentos exactos já adquiridos, o que ss conceDe-se, relativamente aos fenómenos morais, que o homem
tenho definido neste discurso.
geral da filosofia positiva, como à dor ao servar-se a si mesmo, sob o aspecto das paixões que o animam
s científicas como outros tantos
Numa palavra, olhando todas as teoria sd a razão anatômica: que os órgãos que são a sua sede são distintos
Az . a mu '

observação aprofundada destes


grandes factos lógicos, é unicamente pela s. S destinados às funções observadoras.
elevar ao conhecimento das leis lógica
factos que nos podemos
155 Y
154
Ainda que cada um tenha feito sobre si tais observações, é evidente Mas pode afirmar-se que tudo o que nos seus escritos não consiste,
'que elas nunca teriam grande importância científica; o melhor meio de segundo a judiciosa expressão dum ilustre filósofo positivista (Cuvier), em
conhecer as paixões será sempre observá-las de fora, porque todo o estado metáforas tomadas por raciocínios e apresenta alguma noção verdadeira,
| de paixão pronunciado, isto é, precisamente aquele que seria mais essen- em vez de provir do seu pretenso método, tem sido obtido por observa-
| cial examinar, é necessariamente incompatível com o estado de observação. ções efectivas sobre a marcha do espírito humano, às quais deveria dar
| Mas quanto a observar da mesma maneira Os fenómenos intelectuais origem, de tempos a tempos, o desenvolvimento das ciências.
| enquanto se produzam há manifesta impossibilidade. O indivíduo pen- Mesmo, ainda, estas noções tão claras e fecundas, proclamadas com
| sante não pode cindir-se em dois, um dos quais raciocinaria enquanto o tanta ênfase e que só são devidas à infidelidade dos psicólogos ao seu pre-
|outro veria raciocinar. Sendo neste caso idênticos o órgão observado e tenso método, encontram-se muitíssimas vezes ou muito exageradas ou
'o órgão observador, como poderia ter lugar a observação? muito incompletas, e ainda inferiores às observações já feitas sem osten-
Este pretenso método psicológico é, então, radicalmente nulo no seu tação pelos sábios sobre os processos que empregam.
princípio. Seria fácil citar exemplos chocantes, se eu não receasse conceder aqui
Consideremos, também, a que processos profundamente contradi- demasiado espaço a tal discussão: vede, entre outros, o que aconteceu com
tórios ele conduz imediatamente! Por um lado recomenda-se que vos iso- a teoria dos signos.
leis, tanto quanto possível, de toda a sensação exterior; é necessário sobre-
tudo inibir-vos de qualquer trabalho intelectual, porque, se estiverdes 21 — As considerações que acabo de indicar, relativamente à ciência
ocupados mesmo a fazer o cálculo mais simples, em que se tornaria a obser- lógica, são ainda mais manifestas quando as transportamos para a arte
vação interior? lógica.
Por outro lado, depois de ter enfim, à força de precauções, atingido Com efeito, quando se trata não somente de saber o que é o método
este estado perfeito de sono intelectual, deveis ocupar-vos a contemplar positivo, mas ter dele um conhecimento suficientemente claro e profundo
as operações que se executarão no vosso espírito quando aí não corra mais para poder fazer disso um uso efectivo, é em acção que é necessário
nada! Os nossos descendentes verão, sem dúvida, tais pretensões trans- considerá-lo; são as diferentes grandes aplicações já verificadas que o espí-
portadas um dia para O palco. rito humano dele tem feito que convém estudar.
Os resultados duma tão estranha maneira de proceder são perfeita- Numa palavra, é evidente que só pelo exame filosófico das ciências
mente conformes com o princípio. Há dois mil anos que os metafísicos se pode chegar a isso. O método não é susceptível de ser estudado sepa-
cultivam assim a psicologia e não puderam ainda convir numa única pro- radamente das investigações em que é empregado; ou, pelo menos, é um
posição inteligível e solidamente estabelecida. Estão ainda hoje divididos estudo improdutivo, incapaz de fecundar o espírito que se lhe entrega.
numa multidão de escolas que discutem sem cessar sobre os primeiros ele- Tudo o que se pode dizer de real, quando se encara abstractamente,
mentos das suas doutrinas. reduz-se a generalidades de tal maneira vagas que não poderiam ter a menor
A observação interior engendra quase tantas opiniões divergentes influência sobre o regime intelectual.
quantos os indivíduos que julgam entregar-se a ela. Quando se estabelece bem, como tese lógica, que todos os nossos
Os verdadeiros sábios, os homens votados aos estudos positivos,
em conhecimentos devem ser fundados sobre a observação, que devemos
vão continuam a pedir a estes psicólogos que lhes citem uma só desco- partir ora dos factos para os princípios, ora dos princípios para Os factos,
berta real, grande ou pequena, que seja devida a este método tão gabado. e alguns outros aforismos semelhantes, conhece-se muito menos clara-
Isto não quer dizer que os seus trabalhos não tenham conduzido, em mente o método do que quem estudou, duma maneira aprofundada, uma
absoluto, a qualquer resultado relativamente aos progressos gerais dos única ciência positiva, mesmo sem intenção filosófica. É por terem des-
nossos conhecimentos, independentemente do eminente serviço que têm conhecido este facto essencial que os nossos psicólogos são levados a tomar
prestado sustentando a actividade da nossa inteligência, na época em que as suas divagações por ciência, julgando compreender o método positivo
ela não podia ter um alimento mais substancial. por terem lido os preceitos de Bacon ou o discurso de Descartes.

156 157 %
Ignoro se, mais tarde, se tornará possível fazer a priori um verda- Se um bom espírito quiser hoje estudar os principais ramos da filo-
deiro curso do método, inteiramente independente do estudo filosófico sofia natural, a fim de formar um sistema geral de ideias positivas, será
das ciências; mas estou convencido de que isto é inexequível hoje, não obrigado a estudar separadamente cada um deles segundo o mesmo modo
podendo ser ainda explicados os grandes processos lógicos Com suficiente e com a mesma minúcia que se quisesse tornar-se especialmente astró-
precisão, separadamente das suas aplicações. Ouso mesmo acrescentar, nomo, ou químico, etc., O que torna uma tal educação quase impossível
além disso, que quando mesmo uma tal empresa pudesse ser realizada no e necessariamene muito imperfeita, mesmo para as mais altas inteligên-
futuro, o que com efeito é concebível, não seria nunca, aliás, senão pelo cias colocadas nas circunstâncias mais favoráveis.
estudo das aplicações regulares dos processos científicos que se poderia Uma tal maneira de proceder seria pois inteiramente quimérica, rela-
chegar a formar um bom sistema de hábitos intelectuais; o que é, no tivamente à educação geral. E, não obstante, esta exige absolutamente um
entanto, O fim essencial do método. conjunto de concepções positivas sobre todas as grandes classes de fenó-
Não tenho necessidade de insistir mais, neste momento, sobre um menos naturais.
assunto que reaparecerá frequentemente em toda a sequência deste curso É um tal conjunto que se déve tornar, daqui em diante, numa escala
e a respeito do qual apresentarei especialmente novas considerações na mais ou menos extensa, mesmo nas massas populares, a base permanente
próxima lição. de todas as combinações humanas; que deve, numa palavra, constituir O
Tal deve ser o primeiro grande resultado directo da filosofia posi- espírito geral dos nossos descendentes.
tiva, a manifestação por experiência das leis que seguem no seu desem- Para que a filosofia natural possa terminar a regeneração, já tão pre-
penho as nossas funções intelectuais e, por consequência, o conhecimento parada, do nosso sistema intelectual, é pois indispensável que as diferentes
preciso das regras gerais convenientes para proceder seguramente na inves- ciências de que se compõe, apresentadas a todas as inteligências como os
tigação da verdade. diversos ramos dum único tronco, sejam reduzidas em primeiro lugar ao
que constitui o seu espírito, isto é, aos seus métodos principais e aos seus
22 — Uma segunda consequência, não menos importante, € dum inte- resultados mais importantes.
resse muito mais imediato, que é necessariamente destinado a produzir É só assim que o ensino das ciências se pode tornar entre nós a base
hoje o estabelecimento da filosofia positiva definida neste discurso, é pre- duma nova educação geral verdadeiramente racional. Que em seguida a
sidir à refusão geral do nosso sistema educativo. esta instrução fundamental se juntem os diversos estudos científicos espe-
Com efeito, já excelentes espíritos reconhecem unanimemente a ciais, correspondentes às diversas educações especiais que devem suceder
| necessidade de substituir a nossa educação europeia, ainda essencia
lmente à educação geral, isto não pode, evidentemente, ser posto em dúvida.
teológica, metafísica e literária, por uma educação positiva conforme ao Í Mas a consideração essencial que eu quis indicar aqui consiste em
espírito da nossa época e adaptada às necessid ades da civilizaçã o moderna. | que todas estas especialidades, mesmo penosamente acumuladas, seriam
As variadas tentativas que se têm multiplicado cada vez mais há um : necessariamente insuficientes para renovar realmente o sistema da nossa
século, particularmente nestes últimos tempos, para espalhar e aumenta
r | educação se não repousassem sobre a base prévia deste ensino geral, resul-
sem cessar a instrução positiva e às quais os diversos governos
europeus | tado directo da filosofia positiva definida neste discurso.
com ardor, quando não têm tomado a sua inicia-
| se têm sempre associado
(tiva, testemunham suficientemente que em toda a parte se desenvo lve o 23 — Não somente o estudo especial das generalidades científicas é
sentimento espontâneo desta necessid ade. destinado a reorganizar a educação, mas deve também contribuir para Os
Mas, secundando quanto possível estas úteis empresas, não se deve progressos particulares das diferentes ciências positivas, o que constitui
4

dissimular que, no estado presente das nossas ideias, elas


não são de forma a terceira propriedade fundamental que me propus assinalar.
|nenhuma susceptíveis de atingir O seu fim principal — a regenera
ção fun- | Com efeito, as divisões que estabelecemos entre as nossas ciências,
| damental da educação geral — porque a especial idade exclusiv a e o isola- sem serem arbitrárias, como alguns crêem, são essencialmente artificiais.
mento demasiado pronunciado, que caracter izam ainda a nossa maneira Na realidade a matéria de todas as nossas investigações é uma; não a divi-
| de conceber e de cultivar as ciências, influem necessariamente em alto grau dimos senão na medida em que é necessário separar as dificuldades para
sobre a maneira de as expor no ensino. melhor as resolvermos.

158 159 ;
| Seja como for, uma ordem nova de considerações, pertencendo igual-
Resulta daí, mais de uma vez, que, contrariamente às nossas reparti-
mente à química e à fisiologia, é evidentemente necessária para decidir
ções clássicas, questões importantes exigiram uma certa combinação de
'finalmente, de qualquer maneira, esta grande questão de filosofia natural.
diversos pontos de vista especiais, que não pode ter lugar na constituição
| Julgo conveniente ainda aqui um segundo exemplo da mesma natu- |
actual do mundo sábio, o que leva a deixar estes problemas sem solução
reza, mas que, reportando-se a um assunto de investigações muito mais
muito mais tempo do que seria necessário. Um tal inconveniente deve
(particular, é ainda mais concludente para mostrar a importância da filo-
apresentar-se sobretudo para as doutrinas mais essenciais de cada ciência sofia positiva na solução das questões que exigem a combinação de várias
positiva em particular.
iciências.
Podem citar-se, facilmente, exemplos disso, muito frisantes, que eu Tomo-o também da química.
assinalarei cuidadosamente, à medida que o desenvolvimento natural deste Trata-se da questão ainda indecisa que consiste em determinar se
curso no-los apresentar. o azoto deve ser considerado, no estado presente dos nossos conhe-
Poderia mencionar no passado um exemplo eminentemente memo- (cimentos, como um corpo simples ou como um corpo composto.
rável, considerando a admirável concepção de Descartes relativa à geo- Sabeis por que considerações puramente químicas o ilustre Berze-
metria analítica. lius chegou a abalar a opinião de quase todos os químicos actuais, relati-
Esta descoberta fundamental, que revelou a ciência matemática e na vamente à simplicidade deste gás.
qual se deve ver o verdadeiro germe de todos os grandes progressos ulte- Mas o que não devo deixar de fazer notar, particularmente, é a
riores, que é ela senão o resultado da aproximação estabelecida entre duas influência exercida a este respeito no espírito de Berzélius, como ele pró-
ciências, concebidas até então duma maneira isolada? prio confessou, por esta observação fisiológica: que os animais que se ali-
Mas a observação será mais decisiva fazendo-a incidir sobre questões mentam de matérias não azotadas encerram na composição dos seus tecidos
tanto azoto como Os animais que se alimentam de carne. É
ainda pendentes. Limitar-me-ei a escolher na química a doutrina tão impor-
tante das proporções definidas. É claro que, por isso, para decidir realmente se o azoto é ou não corpo
imples, será necessário fazer intervir a fisiologia e combinar com as con-
Certamente a memorável discussão levantada em nossos dias, relati-.
siderações químicas propriamente ditas uma série de investigações novas
vamente ao princípio fundamental dessa teoria, não poderá ainda, quais-
obre a relação entre a composição dos corpos vivos e o seu modo de
quer que sejam as aparências, ser considerada irrevogavelmente determi-
limentação.
nada, porque isso não é, parece-me, uma simples questão de química.
Seria supérfluo multiplicar mais os exemplos destes problemas de
Creio poder acrescentar que para obter a este respeito uma decisão
natureza múltipla, que só poderiam ser resolvidos pela íntima combinação
verdadeiramente definitiva, isto é, para determinar se devemos considerar
de várias ciências cultivadas hoje duma maneira completamente indepen-
como lei da natureza que as moléculas se combinam necessariamente em dente. Os que acabo de citar bastam para fazer sentir, em geral, a impor-
números fixos, será indispensável reunir o ponto de vista químico com | tância da função que deve preencher no aperfeiçoamento de cada ciência
o ponto de vista fisiológico. | natural, em particular a filosofia positiva, imediatamente destinada a orga-
O que o indica é que, segundo confessam os próprios químicos ilus- | nizar duma maneira permanente combinações tais que, sem ela, se não
tres que mais poderosamente contribuíram para a formação desta doutrina, | poderiam formar convenientemente.
pode. dizer-se, quando muito, que se verifica constantemente na compo-
sição dos corpos inorgânicos; mas ela falha constantemente nos compostos | 24 — Finalmente devo fazer notar desde já uma quarta e última pro-
orgânicos, aos quais parece até agora inteiramente impossível estendê-la. ||priedade fundamental no que chamei a filosofia positiva e que deve, sem
Ora, antes de erigir esta teoria num princípio realmente fundamental, dúvida, merecer mais do que qualquer outra a atenção geral, visto que
não será necessário primeiro tomar em conta esta imensa excepção? Não | é hoje a mais importante para a prática: é que ela pode ser considerada
resultará ela deste mesmo carácter geral, próprio de todos os corpos orga- como a única base sólida da reorganização social que deve pôr termo ao
na

| jestado de crise em que se encontram há tanto tempo as nações mais civi-


nizados, que faz que em nenhum dos seus fenómenos haja lugar para con-
| ceber números invariáveis? | lizadas.

160 161
A última parte deste curso será especialmente consagrada a estabe- Nr É claro que se uma qualquer destas três filosofias obtivesse na reali-
lecer esta proposição, desenvolvendo-a em toda a sua extensão. Mas o | dade uma preponderância universal e completa haveria uma ordem social
esboço geral do grande quadro que me propus indicar neste discurso determinada, ao passo que o mal consiste, sobretudo, na ausência de toda
falharia num dos seus elementos mais característicos se evitasse assinalar a verdadeira organização.
aqui uma consideração essencial também. | É a coexistência destas três filosofias opostas que impede absoluta-
Algumas reflexões muito simples bastarão para justificar o que uma mente que haja acordo sobre qualquer ponto essencial. Ora, se esta maneira
tal qualificação parece apresentar, à primeira vista, de excessivamente ide ver é exacta, só se trata de saber qual das três filosofias pode e deve
ambiciosa. | prevalecer pela natureza das coisas; todo o homem sensato deverá segui-
Não é aos leitores desta obra que julgarei dever provar que as ideias damente, quaisquer que tenham podido ser, antes da análise da questão,
governam e resolvem o mundo, ou ainda, por outras palavras, que todo as suas opiniões particulares, esforçar-se por concorrer para o seu triunfo.
o mecanismo social assenta finalmente sobre opiniões. | Uma vez reduzida a investigação a estes termos simples, parece não
Eles sabem sobretudo que aà grandee darei e moral das socie- | dever ficar muito tempo incerta, porque é evidente, por todas as espécies
| de razões, de que tenho indicado neste discurso algumas principais, que
“O nosso mal maisis grave consiste, com efeito; “na profunda divergência | a filosofia positiva é a única destinada a prevalecer segundo o curso ordi-
que existe agora entre todos os espíritos relativamente a todas as máximas | Inário das coisas.
fundamentais cuja fixidez é a primeira condição duma verdadeira ordem Eí Só ela tem estado, há uma longa série de séculos, constantemente
social. Enquanto as inteligências individuais não tiverem aderido, por um em progresso, enquanto as suas antagonistas têm estado constantemente
assentimento unânime, a um certo número de ideias gerais capazes de iem decadência. Que isto seja errado ou certo, pouco importa; o facto geral
formar uma doutrina social comum, não podemos dissimular que o estado ||é incontestável e isso basta.
das nações ficará necessariamente revolucionário, apesar de todos os palia- Pode-se deplorá-lo, mas não destruí-lo, nem por consequência
tivos políticos que poderão ser adoptados, e não comportará realmente : desprezá-lo, sob pena de nos entregarmos somente a especulações ilusórias.
senão instituições provisórias. à Esta revolução geral do espírito humano está quase inteiramente rea-
É igualmente certo que, se esta reunião dos espíritos numa mesma ' lizada: resta apenas, como expliquei, completar a filosofia positiva, com-
comunhão de princípios pode ser obtida, resultarão daí, necessariamente, | preendendo nela o estudo dos fenómenos sociais, e seguidamente resumi-la
as instituições convenientes, sem dar lugar a nenhum abalo grave, ficando | num só corpo de doutrina, homogéneo.
já dissipada por este único facto a maior desordem. | Quando iver suficientemente adiantado, 0.
este duplo trabalho estiver
É pois para isso que deve incidir principalmente a atenção de todos | triunfo definitivo da filosofia positiva terá lugar espontaneamente € resta-
aqueles que sentem a importância dum estado de coisas verdadeiramente a ordem ána sociedade,
|| belecer —
normal. A preferência tão pronunciada que quase todos os espíritos, desde
Agora, no ponto de vista elevado em que nos têm colocado gradual- os mais altos até aos mais vulgares, concedem hoje aos conhecimentos
mente as diversas considerações indicadas neste discurso, é fácil ao mesmo positivos sobre as concepções vagas e místicas, anuncia O acolhimento
tempo caracterizar claramente, na sua íntima profundidade, o estado actual que esta filosofia receberá quando tiver adquirido a única qualidade que
das sociedades, e deduzir daí por que via é possível mudá-lo essen- | lhe falta ainda, um carácter de generalidade conveniente.
cialmente. Em resumo, a filosofia teológica e a filosofia metafísica disputam hoje
Reportando-me à lei fundamental enunciada no começo deste dis- ia tarefa, muito superior às forças de uma e outra, de reorganizar a socie-
curso, creio poder resumir exactamente todas as observações relativas à dade: é só entre elas que subsiste ainda a luta, sob este aspecto. A filosofia
positiva só interveio até aqui nesta contenda para as criticar a ambas e
eo

situação actual da sociedade, dizendo simplesmente que a desordem actual:


las
das inteligências sese liga, em última análise, ao emprego simultâneo das três
e rr er
| desempenhou tão bem o seu papel que as desacreditou inteiramente.
filosofias radicalmente incompatíveis: a filosofia teológica, a filosofia meta- | Ponhamo-la, enfim, em estado de tomar um papel activo, sem nos
| física ea filosofia positiva, ds inquietarmos por muito tempo com debates que se tornam inúteis.
aa

162 163
soraia
Y

EN

Completando a vasta operação intelectual começada por Bacon, por minha opinião, ligando todos os fenómenos naturais à lei mais geral que
Descartes e por Galileu, construamos directamente o sistema de ideias conhecemos — a lei da gravitação —, que liga já todos os fenómenos astro-
gerais que esta filosofia é destinada daqui em diante a fazer prevalecer inde- nómicos a uma parte dos da física terrestre.
|'
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finidamente na espécie humana, e a crise revolucionária que atormenta Laplace expôs efectivamente uma concepção pela qual se poderia ver
|
í os povos civilizados estará essencialmente terminada. nos fenómenos químicos simples efeitos moleculares da atracção newto-
Tais são os quatro pontos de vista principais sob os quais julguei dever
Í
niana, modificada pela figura e posição mútua dos átomos.
indicar desde já a influência salutar da filosofia positiva, para servir de com- Mas além da indeterminação em que esta concepção provavelmente
plemento essencial à definição geral que dela tentei expor. sempre ficaria, pela ausência de dados essenciais relativos à constituição
íntima dos corpos, é quase certo que a dificuldade de a aplicar seria tal
25 — Antes de terminar, desejo chamar, por um instante, a atenção que nos veríamos obrigados a considerar artificial a divisão hoje estabele-
para uma última reflexão que me parece conveniente para evitar, tanto cida como natural entre a astronomia € a química.
quanto possível, que se forme antecipadamente uma opinião errónea da De resto, Laplace não apresentou esta ideia senão como um simples
natureza deste curso. jogo filosófico, incapaz de exercer, realmente, qualquer influência útil
Atribuindo à filosofia positiva o objectivo de resumir num só corpo sobre os progressos da ciência química.
de doutrina homogéneo o conjunto dos conhecimentos adquiridos, rela- Mas há mais ainda, porque supondo mesmo vencida esta insuperável
tivamente às diferentes ordens de fenómenos naturais, está longe do meu dificuldade, não se teria ainda atingido a unidade científica, pois seria pre-
pensamento querer proceder ao estudo geral destes fenómenos, ciso seguidamente tentar reduzir à mesma lei o conjunto dos fenómenos
considerando-os todos como diversos efeitos dum princípio único, como psicológicos, o que, na verdade, não seria a parte menos difícil da empresa.
submetidos a uma só e mesma lei. E não obstante, a hipótese que acabámos de examinar seria, bem conside-
Ainda que deva tratar especialmente esta questão, na próxima lição, rada, a mais favorável a esta unidade tão desejada.
julgo dever declará-lo desde já a fim de prevenir as censuras mal fundadas Não necessito de mais pormenores para acabar de convencer que O
que me poderiam lançar aqueles que, por uma falsa apreciação, classifi- fim deste curso não é de forma nenhuma apresentar todos os fenómenos
cassem este curso entre as tentativas de explicação universal que se vêem inaturais como sendo idênticos no fundo, salvo a variedade das circuns-
surgir diariamente da parte de espíritos inteiramente estranhos aos métodos ftâncias.
e conhecimentos científicos. Não se trata aqui de nada semelhante; e O | A filosofia positiva seria, sem dúvida, mais perfeita se pudesse ser
desenvolvimento deste curso fornecerá a prova disso, manifesta a todos assim. Mas esta condição não é, de forma nenhuma, necessária à sua for-
aqueles para os quais os esclarecimentos contidos neste discurso pode- mação sistemática, como o não é à realização das grandes e felizes conse-
riam deixar algumas dúvidas a este respeito. 'quências que a temos visto destinada a produzir; não há para isto unidade
Na minha profunda convicção pessoal, considero estas tentativas de indispensável senão a unidade de método, que pode e deve
evidentemente
explicação universal de todos os fenómenos por uma única lei como emi- lesistire se encon jáestabelecidana maior parte.
nentemente quiméricas, mesmo quando são tentadas pelas mais compe- Quanto à doutrina, não é necessário que seja una; basta que seja
tentes inteligências. Creio que os meios do espírito humano são demasiado i homogénea.
' fracos e o universo muito complicado para que uma tal perfeição cientí-
| fica esteja um dia ao nosso alcance, e penso, além disso, que formamos | 26 — É pois sob o duplo ponto de vista da unidade dos métodos e
' geralmente uma ideia muito exagerada das vantagens que daí necessaria- | da homogeneidade das doutrinas que consideramos, neste curso, as dife-
' mente resultariam se ela fosse possível. | rentes classes de teorias positivas. Tentando tudo para diminuir, o mais
Em todos os casos parece-me evidente que, dado o estado presente possível, o número das leis gerais necessáriasà explicação positiva dos
dos nossos conhecimentos, estamos ainda muito longe disso, para que tais fenómenos naturais, que é, com efeito, o fim filosófico da ciência, consi-
tentativas possam ser razoáveis antes dum considerável lapso de tempo. | deraremos como temerário aspirar um dia, mesmo no futuro mais lon-
Porque, se pudéssemos ter esperança de chegar lá, só poderia ser, em ii gínquo, a reduzi-las rigorosamente a uma só.

164 165 '


determinar, tão exactamente quanto me foi
Tentei, neste discurso,
positiva. .
possível, o fim, o espírito e à influência da filosofia
, e tenderão
Marquei, pois, O termo para O qual têm sempre tendido
quer de qualquer
sem cessar, todos os meus trabalhos, quer neste curso,
outra forma.
das minhas
Ninguém mais do que eu está convencido da insuficiência ú
ao seu valor
forças intelectuais, mesmo que elas fossem muito superiores
É
o que não pode
real, para preencher uma função tão vasta e tão alta. Mas
única vida, pode ser proposto cla-
ser feito por um só espírito, nem numa
ramente por um só.
Tal é toda a minha ambição.
ponto
Tendo exposto o verdadeiro fim deste curso, isto é, fixado O 2. LEI DOS TRÊS ESTADOS *
is da filosofia
de vista sob o qual considerarei os diversos ramos principa
ómenos gerais, passando
natural, completarei, na próxima lição, estes proleg Segundo esta doutrina fundamental, todas as nossas especulações,
enciclo pédica que
à exposição do plano, isto é, à determinação da ordem quaisquer que sejam, estão inevitavelmente sujeitas, quer no indivíduo,
naturais, e, por
convém estabelecer entre as diversas classes de fenómenos quer na espécie, a passar sucessivamente por três estados teóricos dife-
consequência, entre as ciências positivas correspondentes. rentes que as habituais denominações de teológico, metafísico e positivo
poderão precisar suficientemente, pelo menos aos olhos dos que tiverem
compreendido bem o seu verdadeiro significado geral. Ainda que, sob
todos os aspectos indispensável, o primeiro estado deve ser sempre con-
siderado, de hoje para o futuro, como puramente provisório e preambular;
o segundo que não constitui, realmente, senão a dissolução daquele, nunca
comporta senão um destino transitório, a fim de gradualmente conduzir
ao terceiro; é neste, único totalmente normal, que sob todos os aspectos
consiste o regime
e
definitivo da razão humana.e

Estado teológico ou fictício

No seu primitivo desenvolvimento, necessariamente teológico, todas


as nossas especulações manifestam espontaneamente uma predilecção
característica pelos problemas insolúveis, pelos assuntos
mais radicalmente
-—Jjnacessíveis a qualquer investigação válida. Por um paradoxo que, para
nim

nós, deve, a princípio, parecer inexplicável, mas que, no fundo, está, então,
une

* Ob. cit., pp. 46/63 Lisboa, Seara Nova, 1947. Tradução de Joel Serrão, por amável
cedência.

166 167 '


ência, na
Em vão experiências repetidas lhe ensinaram que esta omnipot
foi sempre para ele uma causa
ilusão da qual se mantém com complacência,
a
de fraqueza; que o seu império sobre as coisas só começou realmente
própria
partir do momento em que reconheceu que estas têm uma natureza
as outras ciên-
e se resignou a aprender delas o que são. Expulso de todas
ia.
cias, este deplorável preconceito mantém-se pertinazmente em sociolog
amente
Não há pois nada mais urgente que procurar libertar dele efectiv
esforços .
a nossa ciência; é esse o objectivo principal dos nossos

2. A DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL *

Este livro é, antes de mais, um esforço para abordar os factos da vida


moral segundo o método das ciências positivas. Mas tem-se feito desta
expressão um uso que lhe desnatura o sentido e que não é o nosso. Os
moralistas que deduzem a sua doutrina não de um princípio a priori, mas
de algumas proposições emprestadas de uma ou de várias ciências posi-
tivas como a biologia, a psicologia, a sociologia, qualificam a sua moral
de científica. Tal não é o método que nos propomos seguir. Não queremos
extrair a moral da ciência, mas fazer a ciência da moral, o que é bem dife-
rente. Os factos morais são fenómenos como os outros; consistem em
regras de acção que se reconhecem por certos caracteres distintivos; deve
portanto ser possível observá-los, descrevê-los, classificá-los e procurar
as leis que os expliquem. É o que vamos fazer para alguns dentre eles.
Objectar-se-á com a existência da liberdade. Mas se verdadeiramente ela
implica a negação de toda a lei determinada, ela é um obstáculo insupe-
rável não apenas para as ciências psicológicas e sociais, mas para todas as
ciências, porque como as volições humanas estão sempre ligadas a alguns
movimentos exteriores, ela torna o determinismo tão ininteligível no exte-
rior como no interior de nós. Todavia, ninguém contesta a possibilidade
das ciências físicas e naturais. Reclamamos o mesmo direito para a nossa
ciência.
Assim entendida, esta ciência não está em oposição com nenhuma
espécie de filosofia, porque se insere num campo bem diferente. É possível
que a moral tenha algum fim transcendente que a experiência não pode

* Ob. cit., pp. 43-49; 78-86.

313
312
atingir; é assunto para ocupar o metafísico. Mas aquilo que é certo antes uma maneira muito sumária; contentam-se mesmo frequentemente em
de mais, é que ela se desenvolve no decurso da história e sob a influência erigir um movimento da sua sensibilidade, uma aspiração um tanto viva
de causas históricas; é que ela tem uma função na nossa vida temporal, do seu coração, que contudo não é senão um facto, numa espécie de impe-
Se ela é isto ou aquilo num dado momento, é porque as condições nas rativo perante o qual inclinam a sua razão e nos pedem para inclinar a nossa.
quais então vivem os homens não permitem que seja outra coisa e a prova Objecta-se que ao método de observação faltam regras para apreciar
disso está em que ela muda quando essas condições mudam, e apenas nesse os factos recolhidos. Mas tais regras decorrem dos próprios factos, como
caso. Hoje não é já possível acreditar que a evolução moral consiste no teremos ocasião de demonstrar. Em primeiro lugar, há um estado de saúde
desenvolvimento de uma mesma ideia que, confusa e indecisa no homem moral que unicamente a ciência pode determinar com competência, e
primitivo, se torna clara e se precisa potico a pouco através do progresso como não existe em parte alguma integralmente realizado, é já um ideal
espontâneo das luzes. Se os antigos Romanos não tinham a larga concepção tentar aproximarmo-nos dele. Além disso, as condições desse estado
que temos hoje da humanidade, isso não era consequência de um erro mudam porque as sociedades se transformam, e os problemas práticos mais
à estreiteza da sua inteligência; é que semelhantes ideias eram incompatí- graves que temos a resolver consistem precisamente em o determinar de
veis com a natureza da cidade romana, O nosso cosmopolitismo não podia novo, em função das mudanças que se realizaram no meio. Ora a ciência,
aí desaparecer, tal como uma planta não pode germinar num solo incapaz ao fornecer-nos a lei das variações pelas quais aquele estado tem passado,
de a alimentar e, aliás, isso não podia ser para ela senão um princípio de permite-nos antecipar as que estão em vias de se produzir e que a nova
morte. Inversamente, se mais tarde fez a sua aparição, não foi no segui- ordem das coisas reclama. Se soubermos em que sentido evolui o direito
mento de descobertas filosóficas; não foi porque os nossos espíritos se de propriedade à medida que as sociedades se tornam mais volumosas e
tenham aberto a verdades que desconheciam; foi porque produziam mais densas, e se qualquer novo acréscimo de volume e de densidade torna
mudanças na estrutura das sociedades que tornaram necessária esta necessárias novas modificações, poderemos prevê-las e, prevendo-as,
mudança nos costumes. A moral forma-se, transforma-se e mantém-se por querer antecipá-las. Enfim, comparando o tipo normal com ele próprio
razões de ordem experimental; são apenas estas razões que a ciência da - — operação estritamente científica —, poderemos ver que ele não está
moral pretende determinar. completamente de acordo consigo, que contém contradições, quer dizer,
Mas, se nos propomos antes de mais estudar a realidade, não se segue imperfeições, e procurar eliminá-las ou rectificá-las; eis um novo objec-
que renunciemos a melhorá-la: acharíamos que as nossas pesquisas não tivo que a ciência oferece à vontade. Mas, diz-se, se a ciência prevê, ela
merecem uma hora de atenção, se elas tivessem só um interesse especula- não comanda. É verdade; ela diz-nos somente o que é necessário à vida.
tivo. Se separamos com cuidado os problemas teóricos dos problemas Mas, supondo que o homem queira viver, como não ver que uma operação
práticos, não é para negligenciar estes últimos: é, pelo contrário, para nos muito simples transforma imediatamente as leis que ela estabelece em
colocarmos em situação de melhor os resolver. É contudo um hábito normas imperativas de conduta? Sem dúvida, transforma-se então em arte;
censurar todos aqueles que empreendem o estudo científico da moral pela mas a passagem de uma a outra faz-se sem solução de continuidade. Resta
sua impotência em formular um ideal. Diz-se que o seu respeito pelo facto saber se devemos querer viver; mesmo sobre esta questão última, a ciência,
não lhes permite ultrapassá-lo; que podem bem observar o que é, mas não acreditamo-lo, não é muda.
fornecer-nos regras de conduta para O futuro. Esperamos que este livro Mas se a ciência da moral não faz de nós espectadores indiferentes
sirva pelo menos para abalar este preconceito, pois nele se verá que a ou resignados da realidae, ensina-nos ao mesmo tempo a abordá-la com
ciência pode ajudar-nos a encontrar o sentido no qual devemos orientar a mais extrema prudência, comunica-nos um espírito sensatamente conser-
a nossa conduta, a determinar o ideal para que tendemos confusamente. vador. Pôde-se censurar, e com razão, certas teorias que se dizem cientí-
Somente, não nos elevaremos a esse ideal senão depois de termos obser- ficas por serem subversivas e revolucionárias; mas é que elas não são cien-
vado o real, mas havemos de o encontrar; será possível proceder de outro tíficas senão de nome. Com efeito, constroem, mas não observam. Vêem
modo? Mesmo os idealistas mais imoderados não podem seguir outro na moral não um conjunto de factos adquiridos, que é preciso estudar,
método, já que o ideal não repousa sobre nada se não firmar as suas raízes mas uma espécie de legislação sempre revogável e que cada pensador
na realidade. Toda a diferença está em que eles estudam esta última de institui de novo. A moral realmente praticada pelos homens não é então

314 315
uma colecção de hábitos, de preconceitos, que como noutro lado, supõe uma inteira liberdade de espírito. É preciso
considerada senão como
na; e como esta doutrina é desfazermo-nos dessas maneiras de ver e de julgar, que um longo hábito
só têm valor se estiverem conformes à doutri
vação dos factos fixou em nós; é preciso submetermo-nos rigorosamente à disciplina da
derivada de um princípio que não é induzido da obser
ável que ela contradiga dúvida metódica. Esta dúvida não oferece, de resto, perigo; pois incide
morais, mas tomada a ciências estranhas, é inevit
moral existente. Estamos menos que não sobre a realidade moral, que não está em questão, mas sobre a expli-
em mais de um ponto a ordem
é para nós um sistema de cação que uma reflexão incompetente e mal formada dela nos dá.
ninguém expostos a este perigo, pois a moral
do mundo . Ora um facto não Devemos precaver-nos de admitir alguma explicação que não assente
factos realizados, ligada ao sistema global
é desejáv el. Aliás, como em provas autênticas. Apreciar-se-ão os processos que utilizámos para dar
se altera com uma habilidade, mesmo quando isso
cado sem que estes sejam às nossas demonstrações o máximo rigor possível. Para submeter à ciência
é solidário de outros factos, não pode ser modifi
antecipadamente o resul. uma ordem de factos não basta observá-los atentamente, descrevê-los,
atingidos, e é muitas vezes bem difícil prever
isso O espírito mais audacioso classificá-los; mas, O que é muito mais difícil, é preciso ainda, segundo a
tado final desta série de repercussões; por
riscos. Enfim, e sobre- palavra de Descartes, encontrar O viés por onde eles são científicos, quer
torna-se reservado face à perspectiva de semelhantes
morais — não dizer, descobrir neles algum elemento objectivo que comporte uma deter-
tudo, qualquer facto de ordem vital — como são os factos
se não responder minação exacta e, se possível, a medida. Esforçámo-nos por cumprir esta
pode geralmente durar se não servir para alguma coisa,
em contrá rio, ele tem direito condição de toda a ciência. Ver-se-á, em particular, como estudámos a soli-
a alguma necessidade; portanto, até prova
não ser tudo aquilo dariedade social através do sistema de normas jurídicas; como, na pesquisa
ao nosso respeito. Sem dúvida, sucede que ele pode
para intervir, como das causas, afastámos tudo o que se presta em demasia aos juízos pessoais
que devia ser e que, por consequência, haja motivo
enção élimitada: tem e às apreciações subjectivas, no intuito de atingir certos factos de estru-
acabamos nós próprios de admitir. Mas então a interv
nte uma moral ao lado ou acima da tura social bastante profundos e que podem ser objecto de entendimento
por objecto não elaborar completame
lmente . e, consequentemente, de ciência. Ao mesmo tempo, impusemo-nos renun-
que reina, mas corrigi-la ou melhorá-la parcia
tentou esta- ciar ao método muito frequentemente seguido por aqueles sociólogos que,
Deste modo desaparece a antítese que frequentemente se
o qual os místicos para provarem as suas teses, se contentam em citar, sem ordem e ao acaso,
belecer entre a ciência e a moral, argumento temível com
ar à razão human a. Para regular um número mais ou menos relevante de factos favoráveis, sem se preo-
de todos os tempos quiseram fazer soçobr
recorr er a outros meios cuparem com os factos contrários. Preocupámo-nos em estabelecer verda-
as nossas relações com os homens, não é necessário
es com as coisas; deiras experiências, quer dizer comparações metódicas. Não obstante,
diferentes daqueles que nos servem para regular as relaçõ
caso. Aquilo que tomem-se as precauções que se tomarem, é bem verdade que tais ensaios
a reflexão, metodicamente utilizada, basta num e noutro
a da moral; pois ao mesmo tempo não podem ser ainda senão muito imperfeitos, mas por mais defeituosos
reconcilia a ciência e a moral é a ciênci
de a que sejam pensamos que é necessário tentá-los. Efectivamente, não há
que nos ensina a respeitar à realidade moral, fornece-nos os meios
senão uma maneira de elaborar uma ciência, é ousá-la, mas com método.
melhorar.
ser feita sem Sem dúvida é impossível fazê-lo se toda a matéria prima faltar. Mas, por
Cremos assim que a leitura desta obra pode e deve
s. T odavia , O leitor deve esperar outro lado, cai-se em vã esperança ao acreditar que a melhor maneira de
desconfiança e sem quaisquer reserva
certas opiniõ es feitas. lhe preparar o aparecimento é acumular pacientemente todos os materiais
encontrar nela proposições que se irão chocar com
compr eender que irá utilizar, porque apenas se pode saber quais são aqueles de que vai
Como sentimos a necessidade de compreender, ou de querer
moral bem antes de esta precisar se ela tiver já alguma ideia de si e das suas necessidades, por conse-
as razões da nossa conduta, a reflexão abordou a
de representar e de guinte, se existir.
se ter tornado objecto da ciência. Uma certa maneira
-se-no s assim habitual, Quanto à questão que esteve na origem deste trabalho, trata-se das
explicar os principais fáctos de vida moral tornou
ao acaso € sem relações entre a personalidade individual e a solidariedade social. Como
embora nada tenha de científico; porque se elaborou
dizer, feitos é que acontece que ao ir tornando-se mais autónomo o indivíduo vá depen-
método, resulta de exames sumários, superficiais por assim
dessas ideias já feitas, é eviden te que dendo mais estreitamente da sociedade? Como pode ser ele simultanea-
de passagem. Se não nos libertarmos
vão seguir: a ciência , aqui mente mais pessoal e mais solidário? Porque é incontestável que estes dois
não podemos entrar nas considerações que se

317 ;
316
prosseguindo para- se é essa realmente a função da divisão do trabalho, ela deve ter um carácter
movimentos, por mais contraditórios que pareçam, vão
u-nos que º que moral, porque a necessidade de ordem, de harmonia, de solidariedade
lelamente. Tal é o problema que nos pusemos. Parece
da solidariedade | social, passam geralmente por ser morais.
resolvia esta aparente antinomia era uma transformação Mas, antes de examinar se esta opinião comum é fundamentada, é
considerável da divisão
social, devida ao desenvolvimento sempre mais preciso verificar a hipótese que acabamos de apresentar sobre o papel da
para objecto
do trabalho. Eis assim como fomos levados a tomar esta última divisão do trabalho. Veremos se efectivamente nas sociedades em que
o não vivemos é dela que deriva fundamentalmente a solidariedade social.
os assim levados a perguntar-nos se a divisão do trabalh
vastos; se, nas socied ades Mas como proceder a esta verificação?
desempenharia o mesmo papel nos grupos mais
que seno não Não temos simplesmente que procurar se, neste tipo de sociedade,
contemporâneas, onde ela tomou O desenvolvimento existe uma solidariedade social que provém da divisão do trabalho. É uma
a unidade. a
teria por função integrar O corpo social, assegurar-lhe verdade evidente, pois a divisão do trabalho está aí muito desenvolvida
que acabam os de observa r se repro mem
legítimo supor que os factos
s socied ades po fticas e produz a solidariedade. Mas é preciso sobretudo determinar em que
aqui, mas com maior amplitude; que estas grande
à especia- medida a solidariedade que ela produz contribui para a integração geral
não podem, também elas, manter-se em equilíbrio senão graças da sociedade: pois é somente então que saberemos até que ponto ela é
, se não a única,
lização das tarefas; que a divisão do trabalho é a origem
perspectiva necessária, se é um factor essencial da coesão social ou, pelo contrário,
pelo menos a principal da solidariedade social. Foi já nesta
é, entre todos os soció- se não é senão uma condição acessória e secundária. Para responder a esta
que se colocou Comte. Tanto quanto sabemo s, ele
não eo questão, é preciso comparar este laço social com os outros, a fim de medir
| logos, o primeiro a ver na divisão do trabalho outra coisa que a parte que lhe pertence no efeito total, e para isto é indispensável começar
ão essenci
| um fenómeno puramente económico. Ele viu nela «a condiç
a sua dimens ão racional, por classificar as diferentes espécies de solidariedade social.
| da vida social», uma vez que a encara mos «em toda
as nossas divers as opera Mas a solidariedade social é um fenómeno completamente moral que,
isto é, que a apliquemos ao conjunto de todas
como é muito e por si próprio, não se presta à observação exacta nem sobretudo à medida.
ções, quaisquer que sejam, em vez de a circunscrever,
ele, «ela eva Para proceder, quer a esta classificação, quer a esta comparação, é preciso
la simples usos materiais». Considerada sob este aspecto, diz
mas também, portanto substituir o facto interior, que nos escapa, pelo facto exterior,
imediatamente a olhar não somente os indivíduos e as classes,
simult aneame nte partici- que o simboliza, e estudar o primeiro através do segundo.
sob muitos aspectos, Os diferentes povos, como
precis amente deter- Este símbolo visível é o direito. Com efeito, onde a solidariedade
pantes, segundo um modo próprio e um grau particular
olvimento social existe, apesar do seu carácter imaterial, ela não permanece no estado
minado, numa obra imensa e comum cujo inevitável desenv
dos seus de potência pura, mas manifesta a sua presença através de efeitos sensíveis.
gradual articula, aliás, também os cooperadores actuais à série
série dos seus diversos Onde ela é forte, inclina fortemente os homens uns para Os outros, põe-
predecessores, quaisquer que sejam, e mesmo à
difere ntes trabalh os -nos frequentemente em contacto, multiplica as ocasiões de entrarem em
sucessores. É portanto a repartição contínua dos
que se torna relação. Em rigor, no ponto a que chegámos, é difícil dizer se é ela que
humanos que constitui principalmente a solidariedade social e
te do organismo produz estes fenómenos ou pelo contrário, se deles resulta; se os homens
a causa elementar da extens ão e da comple xidade crescen
| se aproximam porque ela é enérgica, ou se, pelo contrário, é enérgica
». | porque eles se aproximam
uns dos outros. Mas, de momento, não é neces-
esta hipótese fosse demonstrada, a divisão do trabalho desempe- L
í

a
vulgar- sário elucidar a questão e basta verificar que estas duas ordens de factos
nharia um papel muito ais importante do que o que se lhe atribui
de um se encontram ligadas e variam ao mesmo tempo e no mesmo sentido.
mente. Ela não serviria'somente para dotar as nossas sociedades
da sua existência. Quanto mais os membros de uma sociedade são solidários, mais eles
luxo, talvez invejável, mas supérfluo; seria uma condição
assegu- mantêm relações diversas, quer uns com os outros, quer com o grupo
É através dela, ou pelo menos sobretudo através dela, que seria
sua cons- tomado colectivamente: porque, se os seus encontros fossem raros, eles
rada a sua coesão; é ela que determinaria os traços essenciais da
o de não dependeriam uns dos outros senão de uma maneira intermitente e
tituição. Por isso mesmo, e embora não estejamos ainda em situaçã
o entreve r desde já que, fraca. Por outro lado, o número destas relações é necessariamente propor-
| resolver a questão com rigor, pode-s e no entant
â

319 ;
318
aee

social,
as determinam. Com efeito, a vida Poder-se-á ir mais longe e sustentar que a solidariedade social não
cional ao das normas jurídicas que inev itav el
uma maneira durável, tende se encontra por completo nas suas manifestações sensíveis? Que estas
por todo o lado onde existe de é outra
e a organizar-se, e o direito não apenas a expressam em parte e imperfeitamente? Que para além do direito
mente a tomar uma forma definida mais estável
ção, naquilo que ela tem de e dos costumes existe o estado interior donde ela deriva e que, para a
coisa senão esta mesma organiza nder -se num |
sociedade não pode este conhecer verdadeiramente, é preciso atingi-la em si própria e sem inter-
e de mais preciso. A vida geral da temp o |
ica para aí se estenda ao mesmo mediários? Mas não podemos conhecer cientificamente as causas senão
certo sentido sem que à vida juríd r reflec- |
s assim estar certos de encontra através dos efeitos que produzem e, para melhor determinar a sua natu-
e na mesma proporção. Podemo l.
es essenciais da solidariedade socia reza, a ciência não faz senão escolher de entre esses resultados aqueles
tidas no direito todas as variedad que são mais objectivos e que melhor se prestam à medida. Ela estuda O
as relações sociais podem fixar-se
Poder-se-ia objectar, é verdade, que n- calor através das variações de volume que as mudanças de temperatura
jurídica. Assim é, quando a regulame
sem tomarem para isso uma forma produzem nos corpos, a electricidade através dos seus efeitos físico-
olidação € de precisão; mas nem
tação não atinge um dado grau de cons serem regu- -químicos, a força através do movimento. Porque é que a solidariedade
terminadas; em vez de
por isso aquelas relações ficam inde social haveria de ser excepção?
O direito não reflecte, portanto,
tadas pelo direito são-no pelo costume. ce senão Aliás, O que é que subsistiria dela uma vez despojada das suas formas
consequência, não nos forne
senão uma parte da vida social e, por sociais? O que dá as suas características específicas é a natureza do grupo de
problema. Há mais: acontece frequen-
dados incompletos para resolver O e que ela assegura a unidade, é por isso que ela varia consoante os tipos
em concordância com o direito; diz-s
temente que os costumes não estão igem sociais. Não é a mesma no seio da família e nas sociedades políticas; nós
ram os rigores, que lhe corr
incessantemente que aqueles lhe mode ito não estamos vinculados à nossa pátria da mesma maneira que o Romano
mesmo estão animados de um espír
os excessos formalistas, por vezes estava à cidade, ou o Germano à sua tribo. Mas porque estas diferenças
acontecer que manifestem espécies
completamente diferente. Não poderá exprime?
têm que ver com causas sociais, só podemos configurá-las através das dife-
elas que o direito positivo
de solidariedade social diferentes daqu renças que os efeitos sociais da solidariedade apresentam. Assim, se negli-
uz em circunstâncias absolutar
Mas esta oposição somente se prod genciarmos estas últimas, todas estas variedades se tornam indiscerníveis
isso que O direito já não corresponda
mente excepcionais. É preciso para e já não nos apercebemos senão do que lhes é comum a todas, a saber,
no entanto, ele se mantenha sem
à situação vigente na sociedade e que, a tendência geral à sociabilidade, tendência que é sempre e por todo o
efeito, neste caso, € apesar disso,
razão de ser, pela força do hábito. Como lado a mesma, e não está ligada a nenhum tipo social em particular. Mas
deixam de se organizar; porque
as novas relações que se estabelecem não estão em
este resíduo não é senão uma abstracção; pois a sociabilidade em si não
lidar-se. Somente, como
não podem subsistir sem procurar conso dos,
se encontra em parte nenhuma. O que existe e vive realmente são as formas
persiste, não ultrapassam o estádio
conflito com o antigo direito que É assim |
particulares da solidariedade, a solidariedade doméstica, a solidariedade
vida jurídica prop riam ente dita.
costumes e não chegam a entrar na OA
Í profissional nacional, a de ontem, a de hoje, etc. Cada uma tem a sua natu-
este não se pode produzir senão em
que surge O antagonismo. Mas |
reza própria; por consequência, estas generalidades não poderiam em qual-
prolongar-se sem perigo. Norma -
raros e patológicos, que não podem quer caso dar do fenómeno senão uma explicação bem incompleta, pois
mas pelo contrário |
mente, os costumes não se opõem ao direito, que deixam necessariamente escapar aquilo que tem de concreto e de vivo.
é verdade, que sobre esta base nada: O estudo da solidariedade releva assim da Sociologia. É um facto social
constituem-lhe a base. Pode acontecer,
que apenas comportem essa sue
se erga. Pode haver relações sociais que não se pode conhecer bem a não ser por intermédio dos seus efeitos
e
costumes, mas é porque carecem sociais. Se tantos moralistas e psicólogos puderam tratar da questão sem
mentação difusa que provém dos
bem entendido, nos casos anormais seguir este método, foi porque tornearam a dificuldade. Eliminaram do
importância € continuidade, excepto,
acontecer que haja tipos de soli- fenómeno tudo o que ele tem de mais especificamente social para apenas
que acabamos de tratar. Assim, se pode
manifestam, são certamente muito reterem o núcleo psicológico de que ele é o desenvolvimento. Com efeito,
dariedade social que só os costumes
reproduz todos aqueles que são é certo que a solidariedade, sendo em primeiro lugar um facto social,
secundários; pelo contrário, O direito
temos necessidade de conhecer.: depende do nosso organismo individual. Para que ela possa existir, é pre-
essenciais e esses são os únicos que

320 321
mente todo o direito é público, no sentido em que ele é uma função social
ciso que a nossa constituição física e psíquica a comporte. Em rigor,
e que todos os indivíduos são, embora a diversos títulos, funcionários da
podemo-nos pois contentar em estudá-la sob este aspecto. Mas, neste caso,
sociedade. As funções maritais, paternais, etc., não são delimitadas nem
dela não se vê senão a parte mais indistinta e menos específica; não se
organizadas de maneira diferente das funções ministeriais e legislativas e
trata dela propriamente, mas antes do que a torna possível.
não foi sem razão que o direito romano qualificou a tutela de munus
Mesmo este estudo abstrato não poderia ser muito fecundo em resul-
publicum. O que é então o Estado? Onde começa e onde acaba? Sabe-se
tados. Porque enquanto permanece no estado de simples predisposição
quanto é controversa a questão; não é científico fazer assentar uma classi-
da nossa natureza psíquica, a solidariedade é qualquer coisa de demasiado
ficação fundamental numa noção tão obscura e mal analisada.
indefinido para que se possa facilmente atingi-la. É uma virtualidade intan-
Para proceder metodicamente é preciso encontrar alguma caracte-
gível que não se abre à observação. Para que tome uma forma perceptível,
rística que, sendo essencial aos fenómenos jurídicos, seja susceptível de
é preciso que algumas consequências sociais a traduzam no exterior. Além
variar quando eles variam. Ora, todo o preceito de direito pode ser defi-
disso, mesmo nesse estado de indeterminação, ela depende de condições
nido: uma regra de conduta sancionada. Por outro lado, é evidente que
sociais que a explicam e de que, consequentemente, não pode ser desli-
as sanções mudam conforme a gravidade atribuída aos preceitos, o lugar
gada. É por issso que não é raro que nestas análises de pura psicologia
que ocupam na consciência pública, o papel que desempenham na socie-
se encontrem misturados alguns pontos de vista sociológicos. Por exemplo,
dade. É conveniente assim classificar as normas jurídicas segundo as dife-
dizem-se algumas palavras sobre a influência do estado gregário na
rentes sanções que lhes estão adstritas.
formação do sentimento social em geral; ou então indicam-se rapidamente
Trata-se de duas espécies. Umas consistem essencialmente numa pena,
as principais relações sociais de que a solidariedade depende de maneira
ou, pelo menos, numa limitação infligida ao agente; têm por objecto atingi-
mais aparente. Certamente que estas considerações complementares, intro-
“lo no seu pecúlio, ou na sua honra, ou na sua vida, ou na sua liberdade,
duzidas sem método, a título de exemplo e sugeridas ao acaso, não pode-
privá-lo de qualquer coisa de que goza. Diz-se que são repressivas; é o caso
riam bastar para elucidar grandemente a natureza social da solidariedade.
do direito penal. É verdade que aquelas que estão adstritas às normas pura-
Elas demonstram, pelo menos, que o ponto de vista sociológico se impõe
mente morais têm o mesmo carácter: apenas estão distribuídas de uma
mesmo aos psicólogos.
maneira difusa por toda a gente indistintamente, enquanto que as do direito
O nosso método está asssim completamente traçado. Já que o direito
penal não são aplicadas senão por intermédio de um órgão definido; estão
reproduz as forças principais da solidariedade social, não temos mais do
organizadas. Quanto à outra espécie, ela não implica necessariamente um
que classificar as diferentes espécies de direito para procurar em seguida
sofrimento do agente, mas consiste somente na reposição das coisas, no
quais são as diferentes espécies de solidariedade social que lhe corres-
restabelecimento das relações atingidas na sua forma normal, quer o acto
| pondem. Desde já, é provável que haja uma que simbolize essa solidarie-
incriminado seja reconduzido pela força à forma de que se desviou, quer
“dade especial de que a divisão do trabalho é a causa. Feito isto, para medir
seja anulado, isto é, privado de qualquer valor social. Deve-se portanto
a importância desta última bastará comparar o número de normas jurídicas
repartir em dois grandes tipos as normas jurídicas, consoante sejam sanções
que a exprimem ao volume total do direito.
repressivas organizadas ou sanções apenas restitutivas. A primeira
Para este trabalho, não nos podemos servir das distinções comuns
compreende todo o direito penal; a segunda, o direito civil, o direito
dos jurisconsultos. Criadas pela prática, podem ser muito cómodas desse
comercial, o direito processual, o direito administrativo e constitucional,
ponto de vista, mas a ciência não pode contentar-se com estas classifica-
abstracção feita das normas penais que aí se podem encontrar.
ções empíricas e aprôximadas. A mais divulgada é a que divide o direito
Procuremos agora a que espécie de solidariedade social corresponde
em direito público e emi direito privado; o primeiro é suposto regular as
cada um destes tipos.
relações entre o indivíduo e o Estado, o segundo as relações dos indiví-
duos entre si. Mas quando se trata de analisar os termos com mais minúcia,
a linha de demarcação, que parecia tão nítida à primeira vista, esbate-se.
Todo o direito é privado no sentido em que são sempre e por todo o lado
os indivíduos que se encontram em presença e que agem; mas principal-

323
322
3. SOLIDARIEDADE MECÂNICA E ORGÂNICA *

O laço de solidariedade social a que corresponde o direito repres-


sivo é aquele cuja ruptura constitui o crime; designamos por este nome
todo o acto que, num qualquer grau, determina contra o seu autor essa
reacção característica a que se chama a pena. Procurar que laço é este é
portanto perguntar qual é a causa da pena, ou, mais claramente, em que
é que o crime essencialmente consiste.
(..)
A análise da pena confirmou a nossa definição de crime. Começámos
por estabelecer indutivamente que este último consistia essencialmente
num acto contrário aos estados fortes e definidos da consciência comum;
acabamos
de ver que todos os caracteres da pena derivam efectivamente
desta natureza do crime. Portanto, é porque as normas que ela sanciona
exprimem as similitudes sociais mais essenciais. o o
ves assim que espécie de solidariedade o direito penal simboliza.
Com efeito, toda a gente sabe que existe uma coesão social cuja causa se
encontra numa certa conformidade de todas as consciências particulares
a um tipo comum, que não é outro senão o tipo psíquico da sociedade.
Assim, nestas condições, não só todos os membros do grupo são indivi-
dualmente atraídos uns para Os outros, pois que se assemelham, mas
também se encontram vinculados áquilo que é a condição de existência
deste tipo colectivo, isto é, à sociedade que pela sua união eles consti-
tuem. Não somente os cidadãos se amam e se procuram entre si de prefe- ;
rência aos estrangeiros, como amam a sua pátria. Querem-lhe como querem |

* Ob. cit. pp. 87, 125-127, 150, 131-135, 148-153, 195-207.

325
repressivo configura materialmente, pelo menos no que tem de essencial.
pois que, sem ela,
asi próprios, velam por que seja duradoura e próspera, A parte que tem na integração geral da sociedade depende evidentemente
o ficaria entra
a .

há toda uma parte da sua vida psíquica cujo funcionament


“ =
'

da amplitude maior ou menor da vida social que a consciência comum


todas estas
vado. Inversamente, a sociedade vela por que eles mantenham abarca e regulamenta. Quanto mais relações diversas houver em que esta
Há em |
semelhanças fundamentais, já que é uma condição da sua coesão.
a e oe
ta cmg les
rare rama
última faça sentir a sua acção, mais também ela cria laços que prendem
nós duas.s consciências: uma não comporta senão estados
que são pessoais
o indivíduo ao grupo; consequentemente, mais a coesão social deriva
estados que
a cada um de nós e que nos caracterizam, enquanto que os = [| completamente desta causa e dela traz a marca. Mas, por outro lado, o
dade A primeira não repre-
m uns a toda a soci iedade.
â cocotritiiis
m reende são ||
a outra compreende são número destas relações é ele próprio proporcional ao das normas repres-
individual e constitu
lidade indivi itui-a; seg
ía; aa segunda pre,
repre-:
senta senão a nossa personajalidade sivas; determinando qual a fracção do aparelho jurídico que representa
à socieda de sem a qual não |
senta o tipo colectivo e, por consequência, o direito penal, medimos portanto simultaneamente a importância rela-
determi na a nossa |
existiria. Quando é um dos elementos desta última que tiva desta solidariedade. É verdade que ao procedermos desta maneira não
s, mas :
conduta, não é com vista ao nosso interesse pessoal que actuamo levamos em conta certos elementos da consciência colectiva que, em
n-
prosseguimos fins colectivos. Ora, embora distintas, estas duas conscié

a
virtude da sua menor energia, ou da sua indeterminação, permanecem
senão
cias estão ligadas uma à outra, pois que em suma elas não formam estranhos ao direito repressivo, contribuindo sempre para assegurar
substra cto orgânico . | a
uma, não havendo para as duas um único e mesmo harmonia social; são aqueles que são protegidos por penas simplesmente
que,
Elas são portanto solidárias. Daí resulta uma solidariedade sui generis difusas. Mas o mesmo se passa com as outras partes do direito. Não
; há
oriunda das semelhanças, vincula directamente O indivíduo à socie nenhuma delas que não seja completada pelos costumes, e como
o capítulo por que propomo s não há
Poderemos mostrar melhor no próxim razão para supor que a relação entre o direito e os costumes não seja
aço a
designá-la por mecânica. Esta solidariedade não consiste só numa mesma nessas diferentes esferas, esta eliminação não corre o risco de
ao] alterar
geral e indeterminada do indivíduo ao grupo, mas torna também os resultados da nossa comparação.
colec-
nico o detalhe dos movimentos. Com efeito, como estes móbiles (.)
tivos por todo o lado são os mesmos, por todo o lado produz em os nem
À própria natureza da sanção restitutiva basta para mostrar que a soli-
vontades
efeitos. Por consequência, cada vez que entram em jogo, as | dariedade social, à qual corresponde este direito, é de uma espécie comple-
movimentam-se espontânea e conjuntamente no mesmo sentido. -tamente diferente.
É esta solidariedade que o direito repressivo exprime, pelo menos O que distingue esta sanção é que ela não é expiatória, mas reduz-se
qualifica
no que possui de vital. Com efeito, os actos que proíbe e que a uma simples reposição das coisas. Um sofrimento proporcional ao dano
direct amente uma disse
de crimes são de duas espécies: ou manifestam não é infligido âquele que violou o direito, ou que o desconhece; este
colectiv o,
melhança muito violenta entre o agente que os realiza e o tipo meme
a EPI é simplesmente condenado a submeter-se-lhe. Se houver já factos consu-
como
ou então ofendem o órgão da consciência comum. Tanto num caso mados, o juiz repõe-nos tal como deveriam ser. Ele dita O direito, não dita
sofre o choque e O recalca é portant o |
no outro, à força que com o crime penas. As perdas e danos não têm carácter penal; é apenas um meio
mais essencia is € tem | de
a mesma; ela é um produto das similitudes sociais voltar ao passado para o restituir tanto quanto possível à sua forma normal.
E esta força
por efeito manter a coesão social que resulta destas similitudes. Tarde supôs, é verdade, ter encontrado uma espécie de penalidade
o ao | civil
que o direito penal protege contra todo o enfraquecimento, exigind na condenação às custas, que são sempre encargo da parte que perde.
Mas,
mesmo tempo de cada um de nós um mínimo de semelhanças, sem as quais | tomada nesse sentido, a expressão não tem senão
o- um valor metafórico.
o indivíduo seria uma ameaça para a unidade do corpo social, e impond Para que houvesse pena, deveria haver pelo menos alguma proporção
em e resume m, entre
-nos o respeito pelo símbolo que estas semelhanças exprim O castigo e a falta e para isso seria necessário que o grau de gravidade desta
ao mesmo tempo que são por ele garantidas. última fosse seriamente estabelecido. Ora, efectivamente, aquele que perde
O processo paga as despesas mesmo quando as suas intenções eram puras,
ata deste capítulo que existe uma solidariedade social que provém mesmo quando não era culpado senão de ignorância. As razões desta norma
do facto de um certo número de estados de consciência serem comuns parecem assim ser bem outras: dado que a justiça não é prestada gratuita-
direito
a todos os membros da mesma sociedade. É essa solidariedade que o
327 ;
326
sejam suportadas por quem o toda a espécie. Mesmo na sua parte mais geral, isto é, O direito civil, ele
mente, parece razoável que as despesas
ectiva destas despesas detenha não é aplicado senão graças a funcionários particulares: magistrados, advo-
deu ocasião. Aliás é possível que a persp
para fazer disso uma pena gados, etc., que se tornaram aptos para este papel graças a uma cultura
o litigante temerário, mas não é suficiente
a preguiça ou a negligência, pode muito especial.
O temor da ruína, que vulgarmente segue
e, todavia, a ruína não é, no sentido Mas, se bem que estas normas estejam mais ou menos fora da cons-
tornar o negociante activo € aplicado
suas faltas. ciência colectiva, elas não dizem respeito somente aos particulares. Se assim
próprio da palavra, à sanção penal das
o punido com uma pena fosse, O direito restitutivo não teria nada em comum com a solidariedade
O incumprimento destas normas não é mesm
não é difamado. A sua honra social, porque as relações que ele regula ligariam os indivíduos uns aos
difusa. O litigante que perdeu o seu processo
nar que estas normas sejam dife- outros sem os vincular à sociedade. Seriam simples acontecimentos da vida
não fica manchada. Podemos até imagi
e. À ideia de que O assassínio privada como, por exemplo, as relações de amizade. Mas estamos longe
rentes do que são, sem que isto nos revolt
amos muito bem que o direito de que a sociedade esteja ausente desta esfera da vida jurídica. É verdade
possa ser tolerado indigna-nos, mas aceit
ebem mesmo que possa ser supri- que, em geral, ela não intervém por si própria e pelo seu próprio movi-
sucessório seja modificado e muitos conc
recusamos discutir. Do namo mento; é preciso que seja solicitada pelos interessados. Mas, sendo provo-
mido. É pelo menos uma questão que não
das servidões ou dos ua ue cada, a sua intervenção nem por isso é menos a engrenagem essencial do
modo, admitimos sem custo que O direito
obrigações do vendec or e so mecanismo, pois que ela o faz funcionar. É ela que dita o direito por inter-
seja organizado diferentemente, que às
maneira, que as funções a | médio dos seus representantes.
comprador sejam determinadas de outra À
outros princípios. Como estas | Tem-se sustentado, no entanto, que este papel não tem nada de
nistrativas sejam distribuídas de acordo com
nenhum sentimento e como em propriamente social, mas se reduz ao de conciliador dos interesses
prescrições não correspondem em nós a
mente as razões de ser, uma vez privados; que, por consequência, qualquer particular o pode desempe-
geral nós não lhe conhecemos cientifica
uem raízes na maior parte de nhar e que se a sociedade se encarrega disso é unicamente por razões de
que esta ciência não está feita, elas não poss
amos a ideia de que um compro- icomodidade. Mas nada é menos exacto como fazer da sociedade uma
nós. Sem dúvida, há excepções. Não toler
quer pela violência quer pela espécie de terceiro-árbitro entre as partes. Quando é chamada a intervir,
misso contrário aos costumes, OU obtido
isso, quando a opinião pábica não é para pôr de acordo interesses individuais: ela não procura qual pode
fraude, possa vincular os contratantes. Por
o, mostra-se menos indi fe. per a solução mais vantajosa para os adversários e não lhes propõe compro-
se encontra em presença de casos deste géner
pela sua reprovação a sanção missos; mas aplica ao caso particular que lhe é submetido as normas gerais
rente do que há pouco dizíamos € agrava
moral não estão radicaiménio e tradicionais do direito. Ora o direito é em primeiro lugar coisa social,
legal. É que os diferentes domínios da vida
nuos e, por conseguinte, - ja qual tem um objecto muito diferente do interesse dos litigantes. O juiz
separados uns dos outros; pelo contrário, são contí
ntram simultaneamente carac- | que examina uma pretensão de divórcio não se preocupa em saber se esta
há entre eles regiões limítrofes, onde se enco
precedente permanece verda- | separação é verdadeiramente desejável pelos esposos, mas se as causas que
teres diferentes. No entanto, à proposição
de que as normas de sanção | são invocadas cabem numa das categorias previstas na lei.
deira na grande maioria dos casos. É a prova t
iência colectiva, ou apenas Mas, para apreciar bem a importância da acção social, deve-se obser-
restitutiva ou não fazem de todo parte da consc
corresponde àquilo que é vá-la não somente no momento em que a sanção se aplica, em que a relação
são estados fracos desta. O direito repressivo
m; as normas puramente morais abalada é restabelecida, mas também quando se institui.
o coração, o centro da consciência comu
mente, o direito restitutivo surge Com efeito, ela é necessária quer para fundamentar quer para modi-
são dela uma parte já menos central; final
muito para além. Quanto mais ficar numerosas relações jurídicas que este direito regula e que o consen-
em regiões muito excêntricas, estendendo-se
se afasta. o timento dos interessados não basta nem para criar nem para modificar.
se torna verdadeiramente ele próprio, mais
és da maneira pela qual Tais são, especialmente, as que dizem respeito ao estado das pessoas.
Este carácter torna-se aliás manifesto atrav
tende a permanecer difuso na Embora o casamento seja um contrato, os cônjuges não podem nem reali-
funciona. Enquanto o direito repressivo
cada vez mais especiais: tribu- zá-lo nem anulá-lo à sua vontade. O mesmo acontece com todas as outras
sociedade, O direito restitutivo cria órgãos
e tribunais administrativos de relações domésticas e, com mais forte razão, com todas'as que o direito
nais consulares, comissões de conciliação
,

328 329
a possam representar de um único e mesmo ponto de vista. Sem dúvida,
administrativo regula. É verdade que as obrigações propriamente contra-
enquanto as funções têm uma certa generalidade, toda a gente pode ter
tuais podem fazer-se e desfazer-se unicamente com O acordo das vontades.
Mas não se deve esquecer que se o contrato tem o poder de vincular,
é delas alguma sensibilidade: quanto mais se especializam, mais também se
reduz o número daqueles que têm consciência de cada uma delas; conse-
a sociedade que lho comunica. Suponhamos que ela não sanciona as obri-
quentemente, mais ultrapassam a consciência comum. As normas que as
gações contraídas; estas tornam-se simples promessas que não têm senão
determinam não podem portanto ter essa força superior, essa autoridade
uma autoridade moral. Todo o contrato supõe, portanto, que atrás das
transcendente que, quando é ofendida, reclama uma expiação. É efectiva-
partes que se comprometem a sociedade esteja inteiramente pronta a
mente também da opinião, mas de uma opinião localizada em regiões
intervir para fazer respeitar os compromissos tomados; por isso ela não;
restritas da sociedade, que lhes advém a sua autoridade, assim como a das
empresta essa força obrigatória senão aos contratos que possuem por si
normas penais.
próprios um valor social, isto é, que são conformes às normas do direito|
é ainda mais positiva. Além disso, mesmo em círculos especiais onde elas se aplicam e onde,
Veremos mesmo que por vezes a sua intervenção
por consequência, estão presentes nos espíritos, não correspondem a senti-
Ela está assim presente em todas as relações que o direito restitutivo deter,
mentos muito vivos nem mesmo,
mina, mesmo naquelas que parecem mais completamente privadas, e a sua a maior parte das vezes, a nenhuma
espécie de estado emocional. Porque, como fixam a maneira pela qual as
presença, mesmo não sendo sentida, pelo menos em condições normais,
N | diferentes funções devem colaborar nas diversas combinações de circuns-
nem por issoé menos essencial.
a tâncias que podem apresentar-se, os objectos a que elas se reportam não
Já que as normas de sanção restitutiva são estranhas à consciênci
estão sempre presentes nas consciências. Não se tem sempre de adminis-
comum, as relações que determinam não são das que indistintamente
trar uma tutela, uma curatela, nem
atingem toda a gente; quer dizer que estas se estabelecem imediatamente, de se exercer os direitos de credor ou
de comprador, etc., nem sobretudo de os exercer nesta ou naquela
não entre o indivíduo e a sociedade, mas entre partes restritas € especiais
não . condição. Ora os estados de consciência não são fortes senão na medida
da sociedade, que liga entre si. Mas, por outro lado, uma vez que esta
em que são permanentes. A violação destas normas não atinge assim nas
está ausente, é preciso que ela esteja mais ou menos directamente interes-
suas partes vivas nem a alma comum da sociedade, nem mesmo, pelo
sada, que lhe sinta as incidências. Então, consoante a vivacidade com a
menos em geral, a destes grupos especiais, e por consequência não pode
qual as sente, intervirá mais ou menos prontamente e mais ou menos acti-
determinar senão uma reacção muito moderada. Tudo aquilo que nos é
vamente por intermédio de órgãos especiais encarregados dea representar.
necessário é que as funções colaborem de uma maneira regular; portanto,
Estas relações são assim bem diferentes daquelas que O direito repressivo
se esta regularidade for perturbada, basta-nos que seja restabelecida. Isto
regula, pois ligam directamente, e sem intermediários, a consciência parti-
dizer, o indivíduo à sociedade. não é dizer, seguramente, que o desenvolvimento da divisão do trabalho
cular à consciência colectiva, quer
não possa repercutir-se no direito penal. Há, sabemo-lo já, funções admi-
Mas estas relações podem tomar duas formas muito diferentes: umas
nistrativas e governamentais em que certas relações são reguladas pelo
vezes são negativas e reduzem-se a uma pura omissão; outras são positivas
direito repressivo por causa do carácter particular por que está marcado
ou de cooperação. Às duas classes de normas que determinam umas e
o órgão da consciência comum e tudo aquilo que se lhe reporta. Noutros
outras correspondem duas espécies de solidariedade social que é neces-
casos ainda, os laços de solidariedade que unem certas funções sociais
sário distinguir.
podem ser tais que da sua ruptura resultam repercussões bastante gerais
€.) para suscitar uma reacção penal. Mas, pela razão que dissemos, estes outros
Ss. i

|
Em resumo, as relações reguladas pelo direito cooperativo de sanções
restitutivas e a solidariedade que exprimem resultam da divisão do trabalho
aspectos são excepcionais.
Em definitivo, este direito desempenha na sociedade um papel
N

social. De resto explica-se que, em geral, as relações cooperativas não


análogo ao do sistema nervoso no organismo. Com efeito, este tem por
comportam outras sanções. Com efeito, é da natureza das tarefas especiais
tarefa regular as diferentes funções do corpo, de maneira a fazê-las
escaparà acção da consciência colectiva; pois, para que uma coisa seja
concorrer harmonicamente: exprime assim, muito naturalmente, o estado
objecto de sentimentos comuns, a primeira condição é que seja comum,
de concentração a que chegou o organismo, em consequência da divisão
quer dizer, que esteja presente em todas as consciências e que todas estas
,

330 331
fuga, que não podem crescer ao mesmo tempo. Não nos podemos desen-
entes níveis da escala animal,
jido trabalho fisiológico. Por isso, nos difer volver simultaneamente em dois sentidos opostos. Se temos uma viva
consoante O desenvolvimento
“pode-se medir o grau desta concentração de tendência para pensar e actuar por nós próprios, não podemos estar forte-,
pode igualmente medir O grau
ido sistema nervoso. Isto é dizer que se mente inclinados a pensar e a actuar como os outros. Se o ideal é cons-.
dade em consequência da divisão
oncentração a que chegou uma socie truicmos uma fisionomia própria e pessoal, ele não poderá ser asseme-
vimento do direito cooperativo
ido trabalho social, consoante O desenvol lharmo-nos a toda a gente. Além disso, no momento em que esta solida-
a utilidade que este critério terá.
ide sanções restitutivas. Pode prever-se toda riedade exerce a sua acção, a nossa personalidade desvanece-se, pode-se
z por si própria nenhuma
| Já que a solidariedade negativa não produ dizer, por definição; porque nós não somos já nós próprios, mas o ser
de espec ífico, reconheceremos
jintegração e que, de resto, ela não tem nada colectivo.
positiva, que apresentam Os
somente duas espécies de solidariedade As moléculas sociais, que seriam coerentes apenas desta maneira, não
seguintes caracteres: poderiam portanto mover-se conjuntamente senão na medida em que
íduo à sociedade sem
A primeira liga directamente O indiv
ia det esa

1.º possuem movimentos próprios, como fazem as moléculas dos corpos inor-
e depende da sociedade, porque
nenhum intermediário. Na segunda, aquel gânicos. Eis por que nos propomos chamar mecânica a esta espécie de
depende das partes que à compõem. | y solidariedade. Este termo não significa que ela seja produzida por meios
o nos dois casos.
i
2.º A sociedade não é vista sob o mesmo ângul f | mecânicos e artificialmente. Designamo-la assim apenas por analogia com
o et

é um conjunto mais ou menos


' No primeiro, o que se designa por este nome
em

a coesão que une entre si os elementos dos corpos brutos, por oposição
s comuns a todos os membros do
- organizado de crenças € de sentimento à que faz a unidade dos corpos vivos. O que completa a justificação desta
a sociedade de que somos soli-
grupo: é o tipo colectivo. Pelo contrário, designação é que o laço que une desta maneira o indivíduo à sociedade
funções diferentes e especiais que
| dários no segundo caso é um sistema de é inteiramente análogo ao que une a coisa à pessoa. A consciência indivi-
o

não constituem, aliás, senão


ligam relações definidas. Estas duas sociedades dual, considerada sob este aspecto, é uma simples dependência do tipo
a reali dade, mas que não exigem
| uma. São duas faces de uma única e mesm colectivo e segue-lhe todos os movimentos, como o objecto possuído
rate ei

' menos ser distinguidas. segue aqueles que o seu proprietário lhe imprime. Nas sociedades em que
que vai servir-nos
| 3.º Desta segunda diferença decorre uma outra, esta solidariedade está muito desenvolvida, o indivíduo não se pertence,
espécies de solidariedade. .
|i para caracterizar e designar estas duas icomo veremos mais à frente; é literalmente uma coisa de que a sociedade
que as ideias e as tendén-
A primeira só pode ser forte na medida em
!
f [dispõe Por isso, nestes mesmos tipos sociais, os direitos pessoais não se
dade ultrapassem em número
É “cias comuns a todos os membros da socie | | distinguem ainda dos direitos reais.
idualmente a cada um deles. Ela
| e em intensidade as que pertencem indiv Vo Tudo se passa de modo diferente com a solidariedade produzida pela
ente for mais considerável. Ora,
| “é tanto mais enérgica quanto este exced | | divisão do trabalho. Enquanto que a precedente implica que os indivíduos
que cada um de nós tem de próprio
| oque faz a nossa personalidade é aquilo º se assemelhem, esta supõe que difiram uns dos outros. À primeira não é
dos outros. Esta solidariedade não
| e de característico, o que o distingue possível senão na medida em que a personalidade individual está absor-
|! | pode portanto aumentar senão na razão invers
cada uma das nossas consciências, disse
a da personalidade. Há em
mo-lo, duas consciências: uma, que
| vida na personalidade colectiva; a segunda não é possível senão quando

|
| quência, não se reduz a
cada um tem uma esfera de acção que lhe é própria, consequentemente
il é comum a todo o nosso grupo, que, por conse uma personalidade. Assim, é necessário que a consciência colectiva deixe
a outra, pelo
| nós próprios, mas é a sociedade viva e actuante em nós; descoberta uma parte da consciência individual, para que aí se estabeleçam
naquilo que temos de pessoal
| contrário, que não nos representa senão a nós |
am funções especiais que ela não pode regulamentar; e quanto mais
duo. A solidariedade, que deriva
Ê

Í É e distinto, naquilo que faz de nós um indiví extensa esta região for, mais forte é a coesão resultante desta solidarie-
mum quando a consciência
das semelhanças, encontra-se no seu maxi | | dade. Com efeito, por um lado, cada qual depende tanto mais estreitamente
iência total e coincide em
colectiva recobre exactamente a nossa consc da sociedade quanto mais dividido estiver o trabalho e, por outro lado,
to, a nossa individualidade
todos os pontos com ela: mas, nesse momen a sua actividade é tanto mais pessoal quanto mais especializada for. Sem
a comunidade tomar em nós
é nula. Ela não pode nascer senão quando dúvida, por mais circunscrita que seja, ela não é nunca completamente
uma centrípeta, outra centrl-
menos lugar. Há nisso duas forças contrárias,
333
332
conformamo-nos à usos fé tanto mais sólida quanto estes laços são mais numerosos e mais fortes.
original; mesmo no exercício da nossa profissão,
corpor ação. Mas, mesmo neste vê-se quanto é inexacto defini-la, como se fez frequentemente, pela liber-
e práticas que são comuns à toda a nossa
menos pesado que quando a dade; consiste antes num estado de dependência. Longe de servir para
caso, O jugo que sofremos é seguramente
bem mais lugar ao livre jogo da | emancipar o indivíduo, para o libertar do meio que o circunda, tem, pelo
sociedade pesa toda ela sobre nós, e dá
ade do todo aumenta ao | contrário, por função essencial fazer dele a parte integrante de um todo
nossa iniciativa. Portanto, aqui a individualid

petertm
torna-se mais capaz de se por consequência, de tirar alguma coisa à liberdade dos seus movi-
mesmo tempo que a das partes; à sociedade E
cada um dos seus elementos mentos. Encontram-se por vezes, é verdade, almas que, sem deixar de ser
mover em conjunto, ao mesmo tempo que
riedade assemelha-se à que se nobres, não toleram, todavia, a ideia desta dependência. Mas é que elas
tem mais movimentos próprios. Esta solida
tem aí efectivamente a sua não compreendem as fontes de onde decorre a sua própria moralidade,
observa nos animais superiores. Cada órgão
e, deste modo, a unidade do orga- porque estas fontes são demasiado profundas. A consciência é um mau
fisionomia especial, a sua autonomia
for essa individualização das

rm
nismo é tanto maior quanto mais acentuada juiz para aquilo que se passa no fundo do ser, porque não penetra aí.
designar de orgânica a soli- se acredita, um aconteci-
partes. Em virtude desta analogia, propomos A sociedade não é, como frequentemente

dariedade devida à divisão do trabalho. | mento estranho à moral, ou que não tem sobre ela senão repercussões

eee
fornecem-nos Os meios | secundárias; é dela, pelo contrário, a condição necessária. Não é uma
Simultaneamente, este capítulo e O precedente
dois laços sociais no resul- | simples justaposição de indivíduos que trazem, ao entrar nela, uma moral
para calcular a parte que cabe a cada um destes
contribuem para produzir. | intrínseca; mas o homem não é um ser moral senão porque vive em socie-
tado total e comum que por vias diferentes eles
se simbolizam estas duas | dade, uma vez que a moral consiste em ser solidário de um grupo e varia
Com efeito, sabemos sob que formas exteriores
de normas jurídicas que icom esta solidariedade. Fazei desaparecer toda a vida social, e a vida moral
espécies de solidariedade, isto é, qual é o corpo
para conhecer a sua
corresponde a cada uma delas. Por consequência, 'desaparecerá igualmente, por não ter já objecto a que prender-se. O estado
basta comparar à extensão de natureza dos filósofos do séc. XVIII, se não é imoral é pelo menos
importância respectiva num dado tipo social,
exprimem, uma vez que amoral; é o que Rousseau, ele próprio, reconhecia. De resto, não voltamos
respectiva das duas espécies de direitos que se
que regula. por isso à fórmula que exprime a moral em função do interesse social.
o direito varia sempre, como as relações sociais
Sem dúvida que a sociedade só pode existir se as duas partes lhe forem
efeito, a classi- solidárias; mas a solidariedade não é senão uma das suas condições de exis-
O ecessidades do nosso tema obrigaram-nos, com
suas principais espécies. tência. Há outras que não são menos necessárias e que não são morais.
ficar as normas morais € a passar em revista as
condições de perceber, Além disso, pode acontecer que nesta rede de laços, que constituem a
Estamos assim, melhor do que no princípio, em
o sinal exterio r, mas O carácter moral, haja alguns que não sejam úteis por si mesmos ou que tenham uma
ou pelo menos de inferir, não já apenas
servir para as definir. força sem relação com o seu grau de utilidade. A ideia de útil não entra
interno que lhes é comum a todas e que pode
repressiva, quer difusa, portanto como elemento essencial na nossa definição.
Repartimo-las em dois géneros: as normas de sanção
Vimos que as primeiras Quanto àquilo a que se chama a moral individual, se se entender por
quer organizada, e as normas de sanção restitutiva.
corram rm

e sui generi s, que deriva das isso um conjunto de deveres de que o indivíduo é ao mesmo tempo O
exprimem as condições desta solidariedad
as segund as, as da soli- sujeito e o objecto, que não o ligam senão a si próprio e que portanto
semelhanças e à qual demos o nome de mecânica;
portanto dizer,
| dariedade negativa e da solidariedade orgânica. Podemos subsistem mesmo quando ele está só, é uma concepção abstracta que não
i
i| | de uma maneira geral, que a característica das normas morais é que elas corresponde a nada na realidade. A moral, em todos os seus graus, nunca
e social. O direito e se encontrou senão no estado de sociedade, nunca variou senão em função
enunciam as condiçoes fundamentais da solidariedad
em uns aos outros e à de condições sociais. É portanto sair dos factos e entrar no domínio das
|a moral são o conjunto dos laços que nos prend
agregado e um todo hipóteses gratuitas e das imaginações não verificáveis o perguntar-se em
sociedade, que fazem da massa dos indivíduos um
solidariedade, tudo que é que ela poderia tornar-se, se as sociedades não existissem. Os deveres
icoerente. É moral, pode dizer-se, tudo o que é fonte de
outrem , à pautar os seus movimentos do indivíduo para consigo próprio são, na realidade, deveres para com
O que força o homem a contar com
e à moralidade
| por outra coisa diferente dos impulsos do seu egoísmo, a sociedade; correspondem a certos sentimentos colectivos que não é mais

334 335
permitido ofender, nem quando o ofendido e o ofensor são uma só e zá-la. Devemos limitar o nosso horizonte, escolher uma tarefa definida e
mesma pessoa, nem quando são duas pessoas distintas. Hoje, por exemplo, a ela meter ombros inteiramente, em vez de fazer do nosso ser uma espécie
há em todas as consciências sãs um sentimento muito vivo de respeito de obra de arte acabada, completa, que retira todo o seu valor de si mesma
pela dignidade humana a que somos obrigados a submeter a nossa conduta e não dos serviços que presta. Por último, esta especialização deve ser
tanto nas relações com nós próprios como nas relações com outrem, e levada tanto mais longe quanto a sociedade for de uma espécie mais
é mesmo isso o essencial da moral chamada individual. Todo o acto que elevada, sem que seja possível atribuir-lhe outro limite. Sem dúvida,
a transgrida é condenado, mesmo quando o agente e o paciente do delito devemos também trabalhar para realizar em nós o tipo colectivo na medida
são um só. Eis por que, segundo a fórmula kantiana, devemos respeitar em que ele exista. Há sentimentos comuns, ideias comuns sem as quais,
a personalidade humana em toda a parte em que ela se encontre, isto É, como se diz, não se é um homem. A regra que nos prescreve a especiali-
tanto em nós como nos nossos semelhantes. É que o sentimento de que zação permanece limitada pela regra contrária. A nossa conclusão não é
elaé objectoé tão ofendido num caso como no outro. que seja bom levar a especialização tão longe quanto possível, mas tão
| Ora, não apenas a divisão do trabalho apresenta o carácter pelo qual longe quanto é necessário. Quanto à parte que cabe a estas duas necessi-
definimos a moralidade, mas tende cada vez mais a tornar-se a condição dades antagónicas, ela determina-se pela experiência e não poderia ser
:/essencial da solidariedade social. À medida que se avança na evolução, calculada a priori. Basta-nos ter mostrado que a segunda não é de natu-
|lafrouxam os laços que prendem o indivíduo à família, à terra natal, às tradi- reza diferente da primeira, mas que ela própria é moral, e que, além disso,
'ições que o passado lhe legou, aos usos colectivos do grupo. Com mais este dever se torna cada vez mais importante e mais premente, porque
“imobilidade, muda mais facilmente de meio, deixa os seus para ir viver as qualidades gerais, que acabámos de tratar, bastam cada vez menos para
algures uma vida mais autónoma, constrói mais por si próprio ideias e senti- socializar o indivíduo.
fmentos. Sem dúvida não desaparece por isso toda a consciência comum; Não é sem razão que a opinião pública sente um afastamento cada
permanecerá sempre, pelo menos, o culto da pessoa, da dignidade indivi- vez mais pronunciado face ao diletante e mesmo face ao homem dema-
; | dual de que acabámos de falar e que hoje em diaé o único centro de ligação siado voltado para uma cultura exclusivamente geral, que recusa dei-
f ; de tantos espíritos. Mas que pouca coisa isso é quando se pensa na extensão xar-se prender completamente nas malhas da organização profissional.
sempre crescente da vida social e, por repercussão, das consciências indi- É que, com efeito, se ele não se prende bastante à sociedade ou, se se
| | viduais! Porque, como elas se tornam mais amplas, como a inteligência quiser, se a sociedade não o prende bastante, ele escapa-se-lhe e, precisa-
: | se torna mais rica, a actividade mais variada, para que a moralidade perma- mente porque ele não a sente nem com a vivacidade nem com a continui-
| neça constante, isto é, para que o indivíduo permaneça fixo ao grupo com dade que seria preciso, não tem consciência de todas as obrigações que
uma força simplesmente igual à de outrora, é preciso que os laços que lhe impõe a sua condição de ser social. O ideal geral a que se prende,
aí O prendem se tornem mais fortes e mais numerosos. Se, portanto, não sendo, pelas razões que expusemos, formal e flutuante, não pode fazê-lo
|| se formassem outros laços além dos que derivam das semelhanças, o desa- sair muito de si próprio. Não nos prendemos a grande coisa quando não
E | parecimento do tipo segmentar seria acompanhado de um abaixamento temos objectivo mais determinado e, por consequência, pouco nos
| regular da moralidade. O homem deixaria de estar suficientemente condi- elevamos acima de um egoísmo mais ou menos requintado. Aquele que,
cionado, deixaria de sentir em volta dele e acima dele essa pressão salutar pelo contrário, se entregou a uma tarefa definida, é a cada instante chamado
i da sociedade, que modera o seu egoísmo e que faz dele um ser moral. ao sentimento da solidariedade comum pelos mil deveres da moral pro-
1 Eis aquilo que faz “O valor moral da divisão do trabalho. É que, por ela, fissional.
o indivíduo retoma a consciência do seu estado de dependência face à Mas, não será que a divisão do trabalho, ao fazer de cada um de nós
| sociedade; é dela que provêm as forças que o detêm e contêm. Numa um ser incompleto, implica uma diminuição da personalidade individual?
| palavra, uma vez que a divisão do trabalho se torna a fonte eminente da É uma crítica que frequentemente se lhe dirige.
|| solidariedade social, ela torna-se, ao mesmo tempo, a base da ordem moral. Notemos em primeiro lugar que é difícil ver porque estaria mais na
Pode-se assim dizer à letra que, nas sociedades superiores, o dever lógica da natureza humana desenvolver-se em superfície do que em profun-
não é estender a área da nossa actividade, mas concentrá-la e especiali- didade. Porque é que uma actividade mais extensa mas mais dispersa seria

336 537
É portanto consequência de uma verdadeira ilusão acreditar, por
é que
superior a uma actividade concentrada mas circunscrita? Porquê vezes, que a personalidade é mais global enquanto a divisão do trabalho
em ter-se
haveria mais dignidade em ser-se completo e medíocre do que não a tiver penetrado. Sem dúvida, vendo de fora a diversidade de ocupa-
mas mais intensa, sobretudo se nos for
uma vida mais especializada, ções, que então o indivíduo abarca, pode parecer que se desenvolve de
associação
possível reencontrar aquilo que perdemos com isso, pela nossa uma maneira mais livre e mais completa. Mas, na realidade, esta actividade
a?
com outros seres que possuem aquilo que nos falta e que nos complet que ele manifesta não é sua. É a sociedade, é a raça, que agem nele e por
natureza de
Parte-se do princípio de que o homem deve realizar a sua ele; ele é apenas o intermediário pelo qual elas se realizam. A sua liber-
dizia Aristóte les. Mas esta natureza
homem, a sua orxeloy é £yoy, como dade não é senão aparente e a sua personalidade emprestada. Porque a
não permanece constante nos diferentes momentos da história; modifi- vida destas sociedades é, em certos aspectos, menos regular, imaginamos
do homem
ca-se com as sociedades. Nos povos inferiores, o acto próprio que os talentos originais podem aí surgir mais facilmente, que é mais fácil
traços do
é assemelhar-se aos seus companheiros, é realizar nele todos os
hoje, com O a cada um seguir aí os seus gostos próprios, que um lugar mais largo é
tipo colectivo, que então se confund em, mais ainda do que
sua natureza é, em aí deixado à livre fantasia. Mas, é esquecer que os sentimentos pessoais
tipo humano. Mas, nas sociedades mais avançadas, a
ca, por são então muito raros. Se os motivos que governam a conduta não actuam
grande parte, ser um órgão da sociedade, e a sua acção específi
com a mesma periodicidade que hoje, não deixam de ser colectivos, por
consequência, é desempenhar o seu papel de órgão.
consequência, impessoais, e o mesmo se passa com as acções que inspiram.
Há mais: longe de ser desmantelada pelos progressos da especiali-
. Por outro lado, mostrámos acima como a actividade se torna mais rica e
zação, a personalidade individual desenvolve-se com a divisão do trabalho
de acção. mais intensa à medida que se especializa.
Com efeito, ser uma pessoa é ser uma fonte autónoma
Deste modo, os progressos da personalidade individual e os da divisão
O homem não adquire esta qualidade senão na medida em que há nele
do trabalho dependem de uma mesma e única causa. É portanto impos-
qualquer coisa que lhe pertence só a ele e que o individualiza, onde ele
sível querer uns, sem querer os outros. Ora, ninguém contesta hoje o
é mais do que uma simples encarnação do tipo genérico da sua raça e do
carácter obrigatório da norma que nos impõe ser e ser cada vez mais uma
-seu grupo. Dir-se-á que, em qualquer caso, ele é dotado de livre arbítrio
e que isto basta para fundamentar a sua personalidade. Mas, O que quer pessoa.
que se passe com esta liberdade, objecto de tantas discussões, não é este Uma última consideração vai mostrar a que ponto a divisão do
atributo metafísico, impessoal, invariável, que pode servir de base única trabalho está ligada a toda a nossa vida moral.
à personalidade concreta, empírica e variável dos indivíduos. Esta não É um sonho há muito tempo acariciado pelos homens chegar final-
poderia ser constituída pelo poder absolutamente abstracto de escolher mente a realizar nos factos o ideal da fraternidade humana. Os povos
entre dois contrários; mas seria preciso ainda que esta faculdade se exer- desejam ardentemente um estado em que a guerra não mais seja a lei das
cesse sobre fins e motivos próprios ao agente. Noutros termos, é preciso relações internacionais, em que as relações das sociedades entre elas sejam
que os próprios materiais da sua consciência tenham um carácter pessoal. reguladas pacificamente, como são já as dos indivíduos entre si, em que
Ora, vimos, no segundo livro desta obra, que este resultado se produz todos os homens colaborem na mesma obra e vivam a mesma vida. Se
progressivamente, à medida que a própria divisão do trabalho progride. bem que as aspirações sejam, em parte, neutralizadas por aquelas que têm
O desaparecimento do tipo segmentar, ao mesmo tempo que necessita por objecto a sociedade particular de que fazemos parte, elas não deixam
uma maior especialização, liberta parcialmente a consciência individual de ser muito vivas e tomam cada vez mais força. Ora elas não podem ser
do meio orgânico que a suporta como do meio social que a envolve e, satisfeitas a não ser que todos os homens formem uma mesma sociedade,
no seguimento desta dupla emancipação, O indivíduo torna-se antes um submetida às mesmas leis. Porque da mesma forma que os conflitos
factor independente da sua própria conduta. A divisão do trabalho privados apenas podem ser contidos pela acção reguladora da sociedade,
contribui, ela própria, para esta libertação; porque as naturezas individuais, que envolve os indivíduos, os conflitos intersociais não podem ser contidos
' ao especializarem-se, tornam-se mais complexas e, por isso mesmo, senão pela acção reguladora de uma sociedade que compreende no seu
| subtraem-se, em parte, à acção colectiva e às influências hereditárias que seio todas as outras. O único poder que pode servir de moderador ao
se exercem apenas sobre as coisas simples e gerais.
339 ;
338
. egoísmo individual é o do grupo; o único que pode servir de moderador
individuais e temporários. Consequentemente, para avaliar Os interesses
ao egoísmo dos grupos é o de um outro grupo que os abarque.
em conflito e a maneira como devem equilibrar-se, isto é, para determinar
Na verdade, quando se põe o problema nestes termos, é bem preciso
as condições nas quais a troca se deve fazer, apenas os indivíduos são
| reconhecer que este ideal está ainda longe de se realizar integralmente;
competentes; e, como estes interesses estão em perpétua transformação,
| porque há demasiada diversidade intelectual e moral entre os diferentes
não há lugar para nenhuma regulamentação permanente. Mas uma tal
tipos sociais que coexistem na terra, para que eles possam confraternizar
concepção é, de todos os pontos de vista, desadequada aos factos. A divisão
no seio de uma mesma sociedade. Mas o que é possível é que as socie-
do trabalho não põe em presença indivíduos, mas funções sociais. Ora,
dades da mesma espécie se agreguem. Já vimos que, acima dos povos euro-
a sociedade está interessada no jogo destas últimas: consoante concorram
peus, tende a constituir-se, por um movimento espontâneo, uma socie-
regularmente ou não, ela será sã, ou doente. A sua existência depende
Idade europeia que tem já alguma consciência de si própria e um começo
portanto disso, e tanto mais estreitamente quanto mais divididas estiverem
de organização. Se a formação de uma sociedade humana única é para
as funções sociais. É por isso que ela não as pode deixar num estado de
sempre impossível, o que, entretanto, não está demonstrado, pelo menos
indeterminação, e de resto elas determinam-se a si próprias. Assim se
ja formação de sociedades cada vez mais vastas aproxima-nos indefinida-
formam estas normas, cujo número aumenta à medida que o trabalho se
mente do objectivo. Estes factos não contradizem, de resto, em nada a
divide e cuja ausência torna a solidariedade orgânica ou impossível, ou
idefinição que demos de moralidade, pois que, se estamos presos à huma-
imperfeita.
nidade e se aí devemos continuar presos, é que ela é uma sociedade em
lvias de se realizar deste modo e de que nós somos solidários. Mas não basta que haja normas, é preciso ainda que elas sejam justas,
e para isso é necessário que as condições exteriores da concorrência sejam
Ora, sabemos que sociedades mais vastas não podem formar-se sem
iguais. Se, por outro lado, nos lembrarmos de que a consciência colectiva
que a divisão do trabalho se desenvolva: não apenas porque elas não pode-
se reduz cada vez mais ao culto do indivíduo, ver-se-á que o que caracte-
riam manter-se em equilíbrio sem uma especialização crescente das
riza a moral das sociedades organizadas, comparada às das sociedades
funções, mas ainda porque a elevação do número de concorrentes bastaria
segmentares, é que ela tem qualquer coisa de mais humano, portanto de
para produzir mecanicamente este resultado; e isso tanto mais quanto o
mais racional. Ela não prende a nossa actividade a fins que não nos tocam
acréscimo de volume não se passa geralmente sem um acréscimo de densi-
' directamente; não faz de nós servidores de potências ideais de uma natu-
dade. Pode-se assim formular a seguinte proposição: o ideal da fraterni- |
'reza completamente diferente da nossa, que seguem as suas vias próprias
dade humana não pode realizar-se senão na medida em que a divisão do
'sem se preocupar com os interesses dos homens. Pede-nos apenas que
trabalho progrida. É preciso escolher: ou renunciar ao nosso sonho, se |
sejamos amáveis para com os nossos semelhantes, que sejamos justos, que
nos recusamos a circunscrever mais a nossa actividade, ou então prosse-;
cumpramos bem a nossa tarefa, que trabalhemos de modo a que cada um
guir realizando-se, mas na condição que acabamos de assinalar.
'seja chamado à função que melhor pode desempenhar e receba o justo
Porém, se a divisão do trabalho produz a solidariedade, não é só
'prémio dos seus esforços. As normas que a constituem não são uma força
porque faz de cada indivíduo um agente de troca, como dizem os econo-
/ imperativa, que abafa o livre arbítrio; mas, porque são mais feitas para nós
mistas; é porque cria entre os homens todo um sistema de direitos e
: e, num certo sentido, por nós, somos mais livres face a elas. Queremos
deveres, que os ligam uns aos outros de uma maneira durável. Do mesmo
compreendê-las e temos menos medo de as mudar. É preciso impedirmo-
modo que as similitudes sociais dão origem a um direito ea uma moral,
-nos, aliás, de considerar um tal ideal insuficiente, a pretexto de que ele
que as protege, a divisão do trabalho dá origem a normas, que asseguram
é demasiado terrestre e está demasiado ao nosso alcance. Um ideal não
o concurso pacífico e regular das funções divididas. Se os economistas.
é mais elevado por ser mais transcendente, mas porque nos faculta mais
acreditaram que ela podia gerar uma solidariedade suficiente, qualquer que
largas perspectivas. O que importa não é que ele plane bem acima de nós
fosse o modo como se fizesse, e se, seguidamente, sustentaram que as socie-
a ponto de nos tornar estranhos, mas que abra á nossa actividade uma
dades humanas podiam e deviam transformar-se em associações puramente
carreira bastante longa, e isto parece que não está em vésperas de ser reali-
económicas, é porque acreditavam que ela não afectava senão interesses
zado. Nós bem sentimos quanto é obra laboriosa edificar essa sociedade
1
340 E)

341
/
ter fim senão na medida em que se estabeleça e se consolide uma disci-
em que cada indivíduo tenha o lugar que merece, seja recompensado como Í
merece, onde toda a gente, por conseguinte, concorra espontaneamente |
N
plina nova. Numa palavra, o nosso primeiro dever é actualmente elabo-
rarmo-nos uma moral. Uma tal obra não poderá improvisar-se no silêncio
para o bem de todos e de cada um. Da mesma forma, uma moral não está
1

dos gabinetes; não pode senão construir-se a partir de si mesmas, pouco


acima de uma outra, porque comanda de uma maneira mais seca e mais
a pouco, sob a pressão das causas internas, que a tornam necessária. Mas
autoritária, porque está mais subtraída à reflexão. Sem dúvida, ela deve
aquilo para que a reflexão pode e deve servir é para marcar o objectivo
ligar-nos a algo diferente de nós próprios; mas não é necessário que nos que é préciso atingir. Foi o que tentámos fazer.
+
prenda até à imobilidade.
. | Diz-se, com razão, que a moral — e por isso deve entender-se não
apenas as doutrinas, mas os costumes — atravessa uma crise temível.
o que precede pode ajudar-nos a compreender a natureza e as causas deste
estado doentio. Mudanças profundas produziram-se, e em pouco tempo,
na estrutura das nossas sociedades; libertaram-se do tipo segmentar com
uma rapidez e em proporções de que não se encontra outro exemplo na
| história. Por consequência, a moral que corresponde a este tipo social
| regrediu, mas sem que outra se desenvolvesse suficientemente depressa
para que preenchesse o espaço que a primeira deixava vago nas nossas
| consciências. A nossa fé foi abalada; a tradição perdeu o seu domínio; O
| juízo individual emancipou-se do juízo colectivo. Mas, por outro lado, as
i funções que se dissociaram no decurso da tormenta não tiveram tempo
| de se ajustar umas às outras, a vida nova que surgia abruptamente não pôde
| organizar-se por completo e, sobretudo, não se organizou de molde a satis-
fazer a necessidade de justiça, que mais ardentemente despertava nos
|
| nossos corações. Se assim é, o
remédio para o mal não é procurar ressus-
1 citar, apesar de tudo, tradições e práticas que, não correspondendo já às

|
condições presentes do estado social, não poderiam viver senão de uma
vida artificial e aparente. O que é preciso é fazer cessar esta anomia,
| encontrar os meios de fazer concorrer harmonicamente
Estes órgãos, que
é

(se chocam ainda em movimentos discordantes, é introduzir nas suas réla-


ções mais justiça, atenuando cada vez mais as desigualdades exteriores,
| que são a origem do mal. O nosso mal-estar não é portanto, como parece
| por vezes crer-se, de ordem intelectual; deve-se a causas mais profundas.
Nós não sofremos, porque não sabemos mais em que noção teórica apoiar
| a moral que praticâmos até aqui, mas porque, em algumas das suas partes,
| esta moral está irremediavelmente abalada e que a que nos é necessária
está apenas em vias de formação. A nossa ansiedade não provém do facto
da crítica dos cientistas ter destruído a explicação tradicional dos nossos
| deveres e, por consequência, não é um novo sistema filosófico que poderá
alguma vez vir a dissipá-la; mas é que, não se baseando já alguns destes
: deveres na realidade das coisas, daí resulta um relaxamento que não pode

343
342
cimento que envolvem a relação entre o indivíduo e o seu grupo social
resultarão de uma causa correspondente. A dependência da espécie e da
sociedade em que o ser singular se encontra em conteúdos fundamentais
e essenciais é uma dependência tão geral e de uma tal validade que só a
custo ela consegue uma específica e clara consciência para si. O homem
é um ser da diferença. Tal como nós nunca percebemos à grandeza abso-
luta de um estímulo, mas apenas a sua diferença em comparação com o
estado das sensações até ao momento, assim também o nosso interesse
não é inerente àqueles conteúdos de vida que estão sempre e por toda
a parte espalhados e que são universais, mas àqueles por via dos quais cada
um se distingue de cada um. O fundamento comum sobre o qual se cons-
trói todo o individual é algo de óbvio e não pode, portanto, exigir nenhuma 2. INFLUÊNCIA DO NÚMERO DAS UNIDADES SOCIAIS
atenção especial que é, pelo contrário, inteiramente consumida pelas dife- SOBRE AS CARACTERÍSTICAS DAS SOCIEDADES *
renças individuais. De facto, todos os interesses práticos, toda a determi- NA pe MAI)
nação da nossa posição no mundo, toda a utilização dos outros homens 1 Se a Sociologia toma como seu problema investigar as leis da consti-
se apoia nestas diferenças entre dois homens, enquanto o terreno comum tuição e do desenvolvimento das sociedades, ela deve, de qualquer
onde tudo isto se passa é um factor constante que a nossa consciência pode maneira, desembaraçar-se de uma ideia superficial segundo a qual a «Socie-
negligenciar, porquanto ele toca de igual modo cada uma das diferenças dade» seria um ser único, ao qual se aplicaria uma só lei, sempre e em toda
importantes. Tal como a luz e o ar não têm qualquer valor económico, a parte, como a lei da gravitação se aplicaà «Matéria». Ela deverá, sem mais,
porque eles pertencem a todos de igual modo, assim O conteúdo da alma reconhecer que, perante a diversidade infinita Lea complicação das condi-
colectiva como tal não possui nenhum valor de consciência, porque ções sociais históricas, a «Sociedade» é apenas “um conceito abstracto e
nenhuma pessoa o possui numa medida diferente da de qualquer outra. vazio, e que só podemos tratar de conhecer as relações de causa e de efeito
Também aqui é válido o princípio segundo o qual aquilo que é objectiva- que existem entre as determinações e as fases particulares das associações;
mente primeiro é último para O nosso conhecimento; e aí então o conhe- cada sociedade concreta apresenta uma combinação individual destes ele-
cimento que corresponde às novas exigências só dificiimente encontra mentos e destas forças.
categorias nas quais as relações do seu conteúdo sejam formuláveis sem As características comuns à maioria das sociedades são relativamente
contradição, especialmente quando se trata de domínios vastíssimos para fáceis de descobrir. A questão principal será a de investigar como essas
os quais não há analogias. formas e essas funções simples e primárias são modificadas e especializadas
O único domínio em que a formação social, enquanto tal, cedo acedeu pelas circunstâncias especiais da vida das sociedades particulares. Será
à consciência é o domínio da política prática e, muito mais tarde, o da necessário, por exemplo, investigar como as formas gerais da associação
comunidade eclesial. Neste caso, a diferença exigida para a aquisição da se especializam consoante os fins perseguidos pela sociedade são econó-
consciência foi dada pela oposição a outros grupos; para além disso, a
micos, ou religiosos, ou simplesmente mundanos. Será necessário estudar
relação. entre o singular e a colectividade exige contributos muito sensí-
as transformações da própria sociedade económica na sua relação com as
veis do primeiro pelo seu lado político, o que sempre desperta uma cons-
diferentes fases da produção, mostrar que a cada uma destas fases corres-
ciência mais forte que a recepção passiva que prevalece nas outras rela-
pondem certas formas da vida comum, substituindo por exemplo os cen-
ções entre o indivíduo e o seu grupo. Em contraste com os movimentos
tros rurais pelos centros urbanos — estudar também as diferentes formas
do grupo inteiro que se apresentam ao pensamento sociológico como o
objecto mais próximo, as reflexões que se seguem devem essencialmente
delinear a posição e os destinos do singular no modo como eles lhe são
dados por aquela interacção com os outros que engloba o singular e Os
* Ob. cit., pp. 373- 385.
outros num todo social. :
Sa

550 551
de associação que correspondem aos diferentes ofícios. Quanto mais as social: por exemplo, a poliandria reina nas montanhas do Tibete, e não
leis gerais e, por isso mesmo, abstractas, da sociologia forem sendo deter- por acaso; a esterilidade do país não permite, com efeito, qualquer aumento
minadas por estas leis especiais, que só se aplicam a domínios particulares forte da população; se a descoberta de novos recursos alimentares tornasse
do fenómeno universal, mais nos aproximaremos do objectivo, que é deter- possível esse aumento, a poliandria deixaria de ser encarada como a forma
minar, de todas as vertentes, através de leis, os fenómenos sociais con- de casamento melhor adaptada ao fim social.
Em todas as considerações deste género tem faltado, até ao presente,
cretos.
| Uma das primeiras vias para especificar os conceitos gerais da socio- precisão e rigor. Os conceitos de grande e de peguena sociedade são muito
logia é pôr a seguinte questão: à associação produz-se num círculo grande relativos e fugidios e só os usamos porque não temos outros melhores;
'ou pequeno? Muitas vezes uma só e mesma influência social muda total- são convenções necessárias. É, aliás, assim que usualmente nos servimos
imente o seu curso, consoante as diferenças puramente quantitativas dos dos conceitos gerais, enquanto não conhecemos os seus elementos parti-
círculos em que penetra. Todos sabemos como uma mesma impressão nos culares e concretos. Não há dúvida que um estudo mais maduro e mais
'marca diferentemente, se nos encontrarmos num cículo de dez ou num profundo — mas impossível, há que reconhecê-lo, antes de um tempo
à quan-
círculo de mil pessoas. Abstraindo de todas as diferenças pessoais indeterminado — pode fornecer números precisos para todos os casos em
de todos os géneros cresce tão que as variações quantitativas do número dos membros de um círculo
tidade de sugestões e de acções recíprocas
evidentemente com o número de pessoas reunidas que o estado psíquico fazem mudar os seus efeitos ou os seus movimentos interiores, mudanças
de cada indivíduo é com isso inevitavelmente alterado: veja-se, por que hoje só podemos caracterizar de uma forma muito geral, como con-
mani- sequências da sua grandeza relativa.
exemplo, como um homem que será absolutamente arrebatado pelas
festações de emoção de uma multidão ficará frio se essa mesma emoção Apesar de tudo, podemos desde já, apoiando-nos em observações psi-
cológicas, indicar algumas particularidades destas associações que têm lugar
for manifestada apenas por dez pessoas. Todas as constituições económicas
cir-
mudam de carácter consoante se apliquem a grandes ou a pequenos entre um número limitado de pessoas, e são caracterizadas por esta
em limitação.
culos. Até hoje a ordem comunista só foi aproximadamente realizada
com difi- O grau mais baixo de associação, do ponto de vista quantitativo, é
círculos estreitos, e parece, em círculos mais largos, defrontar-se
a associação entre duas pessoas. Se pertencer a uma «Sociedade» consiste
culdades técnicas inultrapassáveis; quanto à ordem individualista, pelo con-
no facto de, pela soma dos seres particulares se formar uma unidade nova,
trário, Marx diz, falando do seu alcance moral, que somente em pequenas
de acima e ao lado dos indivíduos produzir-se uma realidade diferente da
sociedades ela pode existir sem ferir a justiça e que nas grandes ela só sub-
sistiria com o desprezo de toda a justiça. Da mesma maneira, só depois sua mera soma, de que o todo social, seria a Sociedade, o número dois
é evidentemente o número mais baixo no qual este processo se pode mani-
de um grande crescimento dos grupos é que apareceu esse processo socio,
estar Que a díade como forma social, nos efeitos que produz sobre cada
lógico tão importante, pelo qual as forças, interesses e funções sociais são
uma das unidades, guarde o carácter determinado pela sua categoria numé-
hipostasiados em formas, ideais e símbolos independentes, que surgem
diante dos indivíduos como seres impessoais. E basta-me lembrar a forma tica, eis o que parece evidente se compararmos esta díade com uma Socie-
o cristianismo mudou de carácter, desde que, em vez de continuar dade de três pessoas. Uma empresa, uma convenção, uma fortuna comum
como
envolvem
a ser uma religião de pequenas comunidades, como nos primeiros tempos, diversamente e mais profundamente cada um dos membros,
se tornou numa evo das sociedades maiores. Em geral os dogmas de se eles forem só dois ou se forem três. Cada um dos dois sabe que o outro
algumas seitas, por € x emplo dos Valdenses, dos Memnomitas e dos irmãos só pode apoiar-se nele, e em nenhuma outra pessoa senão nele. Isto dá
| jum carácter particularmente sagrado a todas as relações que, por definição,
Moravos, não comportam nenhuma aplicação a círculos mais latos; O seu -
,

laço específico mostrajuma estrutura tal que, se O quiséssemos estender, + só unem duas pessoas: por exemplo o casamento, a amizade.
t

se quebraria. É evidente que a riqueza ou a pobreza numérica da popu- À associação a dois distingue-se de qualquer associação mais nume-
rosa pelo facto de só por referência a um terceiro aparecer como uma uni-
lação, distribuída por ipa certa porção de espaço, influencia a forma social;
einen

mas é também evidente que essas determinações quantitativas não são dade social, como um todo; enquanto que, para cada um dos seus mem-
apenas causas, mas ainjda efeitos das mais importantes qualidades da vida bros, ela não se eleva acima da relação pessoal; cada um deles só tem

552 553
1 um outro diante de si e não pode, como pode um terceiro, estar em relação lado, propensões determinadas, ali onde as suas qualidades se encontram
à
icom o todo desta sociedade, como com uma realidade particular. Daí numa relação especial diferente de todas as outras.
o par “A associação a três torna muito clara a significação da associação af |
decorre um carácter prático da mais alta importância, que distingue
dois.
de todas as outras formas sociais: é que aquela operação pela qual o indi-
Quase nunca,
de facto, numa associação de A, Be C, as relações, | i
i
|
i víduo transporta por assim dizer os deveres, as responsabilidades, as
pre- sentimentos e acções A-B, B-C, A-C são absolutamente semelhantes. Quase:

venções, para os encargos da unidade social impessoal que surge diante inevitavelmente, as relações que unem dois dos membros são de alguma
|
| dele, essa operação que caracteriza tantas vezes, e com tantas desvanta- maneira diferentes, mais intensas, mais individuais do que aquelas que
gens, a vida social, já não é aqui possível. O particular que é membro de unem 20 terceiro cada um desses dois. É assim que em toda a parte acon-
|
uma grande Sociedade sente-se coberto por ela, a tal ponto que por vezes tece que, de três pessoas que compõem uma sociedade, duas formam um
ousa, como unidade de um grande número, acções das quais, como parti- partido contra a terceira. Naturalmente, não é necessário que este termo !
cular, se envergonharia. Recordemos apenas que as Sociedades de grandes partido faça pensar em qualquer hostilidade; ele deve apenas indicar aqui
capitalistas fazem oficialmente requerimentos sobre tarifas proteccionistas, a existência de relações particulares entre dois dos membros que formam,
leis de trabalho, câmbio de moeda, e que uma administração oficial fre- em relação ao terceiro, uma unidade mais ou menos perfeita, interior à
quentemente admite abusos que obrigariam um particular a corar, se tivesse unidade mais larga que os três membros constituem.
de os reconhecer como seus. A comunidade, pela qual o indivíduo, Não apenas muitas das opiniões e das acções têm, num grupo de dois,
enquanto tal, não é responsável, e que por conseguinte aparece como um um carácter completamente diferente do que têm num grupo de três, como
ser impessoal, dá-lhe cobertura, € ele pode atribuir à comunidade, enquanto
ainda os crescimentos seguintes do grupo, ao estender-se a quatro pes-
potência objectiva, tudo aquilo que não poderia atribuir a si próprio. Eis soas, depois a mais, não acarretam, na essência dessas uniões e dessas
acções,
o que é impossível numa associação de duas pessoas, porque cada um dos mudanças correspondentes. Assim, um casal com um filho tem
dois só tem diante de si uma pessoa particular, e não uma unidade mai um carácter completamente diferente de um casal sem filhos, enquanto
alta, objectiva, superior aos indivíduos que a compõem. . que entre um casal que tem um filho e um casal que tem dois ou mais
Tiramos apenas uma outra consequên cia desta mesma relação, se | filhos as diferenças não são tão marcadas; embora, a bem dizer, entre o
observarmos que um par, essa constituiçã o de um todo graças à apenas primeiro e o segundo filho, o salto seja bastante maior do que entre o

si,
dois membros, supõe, em cada um desses membros, uma individualização segundo e o terceiro ou entre o terceiro e os seguintes. Da mesma maneira,
para distinguir essencialmente as formas de casamento, é preciso saber se
maior do que nos casos em que os membros são mais numerosos. Poderia

ig
dizer-se cum grano salis que, quando se trata de uma relação entre duas | o homem tem uma mulher ou mais do que uma; mas que ele tenha duas,
pessoas, cada um dos dois determina por si só toda esta relação; mas basta f três ou vinte, isto é relativamente pouco importante para O carácter da

ein
Í forma em causa; a questão decisiva é esta: as relações conjugais unem, de
um terceiro entrar na Sociedade para que cada membro tenha contra si
uma maioria que pode alcançar uma superioridade completa sobre ele. uma maneira geral, duas ou mais de duas pessoas?
De modo geral, a socialização diminui à individualização, trazendo o indi; Ao lado do par, a «tríade» tem também a sua significação sociológica
víduo àquele nível comum para a formação do qual a sua con particular. A tríade dos elementos é típica em todos os casos de mediação
pessoal é quase insensível. O par, pelo contrário, é favorável ao desenvol | e de intercessão. A díade constituía ao mesmo tempo a primeira síntese
vimento dd individualidade, cuja conservação ele requer e supõe. q | e união, e também a primeira divisão, a antítese. A entrada em cena do
Compreender -se-ia depois disto, a ser verdade que de uma forma geral | terceiro significa agora transição, conciliação, abandono das contradições
as mulhefes são menos diferenciadas e individualizadas do que os homens, pe A atitude comum de dois membros perante um terceiro cons-
porque élas são, pelo menos nas fases primitivas do desenvolvimento psi- titui tipos sociológicos da mais alta importância. Por vezes a inimizade
cológich, menos capazes de amizade do que estes. Como a amizade é uma comum contra O terceiro leva a uma união entre os dois. «O inimigo de
um inimigo é um amigo». Por vezes, pelo contrário, uma afeição por um
relação| absolutamente pessoal, que não é, como o próprio casamento,
determinada por relações sociais objectivas, ela só tem ocasião de nascer
cada uma do seu
| terceiro torna-se comum a dois membros que se detestam. Neste último
caso, conforme a inimizade destes dois preceda ou siga a sua amizade pelo
ali E as individualidades, como tais, desenvolvem,
1
7
554 555
terceiro, coloca-se a este último a alternativa do Tertius gaudens ou a do os Hundreds desempenhavam um grande papel político, social, eclesiás-
Divide et impera. Enfim, num grupo composto por três elementos, um |, tico e jurídico; mas, sem qualquer dúvida, havia nestes grupos, umas vezes
atingir um poder bastante elevado mais, outras vezes menos do que cem pessoas. Em Barcelona, na Idade
deles, por muito fraco que seja, pode
porque estabelece o equilíbrio entre os outros dois; a sua adesão pode Média, o Senado chamava-se a «Centena», embora tenha chegado a ter

trazer a um deles apenas um mínimo de poder, que seja no entanto sufi- duzentos membros. Sem dúvida, a centena apresenta, por causa da sua
ciente para que este triunfe sobre o terceiro. Todas estas relações, ligadas |; forma aritmética, um tipo mais perfeito da unidade de um grande número
à tríade dos elementos do grupo, aparecem naturalmente, ali mesmo onde de elementos do que apresentaria qualquer outro número vizinho; por
os três elementos constituintes são eles próprios, não pessoas, mas grupos, isso foi tomada como o nome de certos grupos estritamente unidos, e a
que, agindo como unidades, formam em conjunto um grupo de ordem prova de que o seu papel era simbolizar a sua unidade é justamente o facto
superior; porque, da mesma maneira que O grupo é, em muitas relações, de ela ter prosperado como ficção apesar das variações reais de número
uma imagem do organismo, as relações dos indivíduos entre si apresentam dos elementos.
também, muitas vezes, uma imagem da relação dos indivíduos entre si. A significação de números determinados para a formação dos grupos
Chegar-se-ia enfim, depois disto, a distinguir os casos em que a tríade só surge ainda mais claramente quando as prescrições jurídicas ou outras mos-
vem tornar possível aquele tipo de relações sociológicas'que seriam, pelo tram que se atribuem certas consequências à determinação do número
crescimento dos elementos, alterados apenas na sua quantidade, e não no máximo ou do número mínimo dos elementos das associações. O Con-
seu carácter — € os casos em que o carácter destas relações, estando ligado verticle Act, no reinado de Carlos II, proibiu quaisquer reuniões religiosas
à tríade, seria, pela variação do número dos elementos, completamente de mais de cinco pessoas, por casa; a reacção inglesa de 1819 proibiu quais-
subvertido. quer reuniões de mais de cinquenta pessoas que não fossem anunciadas
Entre os outros números determinados, o número dez tem uma com antecedência. Napoleão III proibiu qualquer sociedade com mais de
importância sociológica já muitas vezes realçada. Desde logo, nas civiliza- vinte pessoas que não tivesse sido especialmente autorizada. No estado
ções mais antigas, vemos à síntese de dez membros ser considerada como de sítio, muitas vezes, não é permitido a mais de três ou cinco pessoas
uma unidade particular, a tal ponto que muitas vezes, com dez dessas uni- ao mesmo tempo formarem grupos na rua. Até aqui, tem sido o número
| dades, era constituída uma unidade nova: a centena. É bem evidente que máximo de pessoas a ser fixado; outras vezes, é fixado um mínimo. Em
| o número de dedos inspirou esta divisão. O mais importante é que os Inglaterra é preciso que uma associação económica tenha pelo menos sete
dedos, por um lado pela sua relativa independência, por outro pela sua membros para poder gozar dos direitos atribuídos às corporações. O direito
| relação e sua acção comum, ofereciam um modelo absolutamente típico germânico da baixa Idade Média reclamava a presença de pelo menos doze
| para a união social dos indivíduos. Além disso, o número de dedos, como jurados. Em toda a parte é exigido, para instituir um julgamento, um
princípio de formação das unidades sociais, apresenta, nas épocas primi- número determinado de juízes — sendo, aliás, esta determinação extre-
tivas, a vantagem de um cálculo mais fácil. Apoiando-se na analogia dos mamente variável. As reuniões regulares dos monges budistas de um certo
dedos, tinha-se, na ausência total de qualquer habilidade aritmética, um distrito, a fim de renovarem o ensino das regras ou de operarem certas
primeiro meio de contar as unidades sociais, de as dividir e de as orga- confissões, requeriam a presença de pelo menos quatro monges. É este
nizar em grupos maiores ou menores. Ainda muito recentemente a socie- o número que à partida constitui o sínodo.
dade secteta checa Omiadina constituíu-se segundo o princípio do número Por muito acidentais e arbitrárias que sejam as inumeráveis regras
de dedós: a sua direcção pertencia a várias «mãos», que se compunham deste género, todas elas contêm esta suposição, tão importante do ponto
de um/ «polegar», director supremo, e de «quatro dedos». de vista sociológico, de que uma certa consciência comum, um certo
Da significação sociológica da dezena decorre, muito naturalmente, acordo, uma certa força, uma certa tendência, se produzem sempre no
ja da centena. Esta tornou-se tão característica para a formação dos grupos interior de um número determinado de pessoas, e apenas no interior desse
“sociais, que muitas vezes se chamou a um grupo fechado «os Cem», mesmo número determinado. A partir do momento em que os governos proíbem,
se na realidade o grupo comportava um pouco mais ou um pouco menos acima de um determinado número de membros, as reuniões momentã-
do que cem membros. Na Inglaterra anglo-saxónica dos primeiros tempos, neas ou duráveis, há que supor a existência desta convicção de que, apenas
1
|
|
556
a um
557
dentro de um grupo desta dimensão, se encontra a energia necessária à
execução de certas acções detestadas pelos governos; que assim uma certa
força social específica sai de uma certa dimensão numérica das sociedades;
que, em tais sociedades, cada membro está submetido a influências quali-
tativamente diferentes daquelas que sentiria se o número de membros fosse
inferior. Sem dúvida a própria variedade dos limites numéricos que os dife-
rentes governos, tendo o mesmo fim em vista, consideram necessários,
prova que a relação que une o número de membros de um grupo à inten-
sidade das tendências a que são submetidas não é fixa, ou é impossível
fixá-la com exactidão; fixar-se-ão, pelo contrário, para um fim prático,
números que serão umas vezes muito altos, outras vezes muito baixos.
Mas o que é necessário supor para que esta relação, em cada caso, exista
3. SUPERIORIDADE E SUBORDINAÇÃO *
é que ela seja regularmente determinada, ainda que escape ao nosso conhe-
cimento exacto, se quisermos também reconhecer um sentido a estas pres-
Dum modo geral ninguém está interessado em que a sua influência
crições baseadas na probabilidade dos resultados. E isto passa-se tanto com
seja determinante para o outro, mas sim que esta influência, este deter-
as prescrições positivas que fixam um mínimo como com as prescrições
minar do outro, reverta sobre si próprio. Por isso existe já uma acção recí-
negativas que fixam um máximo; as duas formas deixam-se facilmente
proca naquela sede de domínio que se dá por satisfeita quando o fazer
| reduzir uma à outra. Se se estabelece que uma sociedade ou uma comissão ou o padecer, o estado positivo ou negativo do outro se apresenta ao sujeito
/ deve ter um número mínimo de membros para poder exercer certas fun- como produto da sua própria vontade. Este exercício, por assim dizer solip-
l ções, supõe-se assim a insuficiência dos indivíduos; a nenhum deles,
sista, dum poder dominador, cujo significado para quem está em posição
tomado em particular, é atribuída a competência necessária, mas as suas
superior consiste exclusivamente na consciência da sua eficácia, é, no
| insuficiências individuais compensam-se entre si, e é por isso que a quan-
entanto, apenas uma forma sociológica rudimentar, por força da qual existe
| tidade necessária de inteligência, de moderação e de força colectiva só
ializ ação ttão reduzida como entre um artista e a sua estátua, que
| aparece com esse número definido.
Por muito obscuras e incertas que elas sejam, as experiências psico-
contudo também volta a actuar sobre ele na consciência do seu poder
criador. De resto, a sede de domínio, mesmo nesta forma sublimada, cujo
lógicas sobre a significação sociológica de números determinados devem
sentido prático não é a exploração do outro, mas a mera consciência dessa
ser pressupostas para explicar como se chega, de uma maneira geral, a tais
possibilidade, não significa de modo algum uma forma extrema de des-
(determinações.
consideração egoísta. É que a sede de domínio, por muito que queira que-
brar a resistência interior do submetido (enquanto o egoísmo só se cos-
tuma importar com a vitória sobre o seu exterior) ainda assim tem uma
espécie de interesse pelo outro, é para ela um valor. Só quando o egoísmo
nem sequer é sede de domínio e o outro lhe é absolutamente indiferente,
mero instrumento para objectivos que estão acima dele, é que desaparece
a última sombra de colaboração socializadora.
O princípio, formulado pelos juristas romanos tardios, de que a
societas leonina já se não pode considerar como contrato de sociedade,

* Ob. cit., pp. 101-106.

| 558 559
e TT
ridade» pressupõe — em grau maior do que se costuma reconhecer — a
mostra de modo relativo que a eliminação de todo e qualquer significado
liberdade daquele que está sujeito à autoridade; ela própria, mesmo quando
autónomo de uma das partes suprime o próprio conceito de sociedade.
parece «oprimi-lo», não se reduz a uma coacção e a mero ter-que-se-
Com referência aos operários menos qualificados nas grandes empresas
-submeter. A forma característica de «autoridade» que tem importância para
modernas, que excluem toda a concorrência eficaz no seu recrutamento
a vida social nos graus mais variados, incipientemente como no exagero,
por empresários rivais, disse-se, neste mesmo sentido, que a diferença de
em estado agudo como permanentemente, parece surgir de duas maneiras.
posição estratégica entre eles e os patrões é tão avassaladora que o con-
porque Uma determinada pessoa, superior pela sua importância e energia, con-
trato de trabalho deixa de ser um «contrato» no sentido normal,
medida a quista no seu meio, próximo ou mais distante, credibilidade e confiança,
uns estão incondicionalmente entregues aos outros. Nesta
um peso normativo para as suas opiniões, a ponto de adquirir o carácter
máxima moral de nunca utilizar uma pessoa como simples meio, revela-se
duma instância objectiva. Tal personalidade ganhou prerrogativas e as suas
como a fórmula de toda a socialização. Quando o significado de uma das
decisões têm credibilidade axiomática, que assim supera o valor variável,
partes desce a um ponto em que a acção emanada do eu como tal, já não
relativo, sujeito à crítica, duma personalidade subjectiva. Na medida em
entra na relação, não se pode mais falar de sociedade, tão pouco como
que uma pessoa actua «com autoridade», a quantidade da sua importância
entre o carpinteiro e o seu banco.
transforma-se numa nova qualidade, adquirindo para o seu meio como
Porém, o eliminar de toda a espontaneidade dentro duma relação de
que o estado agregado da objectividade. Pode chegar-se ao mesmo resul-
subordinação é, na realidade, mais raro do que aquilo que se pode deduzir
tado pelo caminho inverso: uma potência supra-individual, o Estado, a
da gíria popular, muito generosa em expressões como «coacção», «não ter
Igreja, a Escola, organizações familiares ou militares, conferem por si uma
opção», «necessidade incondicional». Mesmo nas situações de sujeição mais
personalidade individual, um prestígio, uma dignidade, um poder de
pressoras e cruéis existe uma margem considerável de liberdade pessoal.
decisão de última instância que nunca emanariam da sua simples indivi-
Temos consciência disso, não só porque a sua preservação em tais casos,
dualidade. A «autoridade», cuja essência consiste em que uma pessoa decide
custa sacrifícios, que está fora de questão não aceitarmos. À coacção «incon-
com aquela segurança e necessidade imperiosa de reconhecimento que ,
dicionab que o tirano mais cruel exerce sobre nós é, na verdade, limitada,
logicamente só compete aos axiomas e deduções supra-pessoais e objec-
nomeadamente pelo facto de querermos escapar à pena prevista oua outras)
||
tivos — neste caso como que desceu sobre essa pessoa vinda de cima,
consequências da insubmissão. Vendo bem, a relação de superiori4
enquanto que, no primeiro caso, ela emerge das qualidades pessoais, como .
dade/subordinação só aniquila a liberdade do submetido em caso de vio,
lência física directa; de resto, costuma exigir apenas um preço para a reali- | se através de generatio aequivoca. É neste ponto da transição e viragem
que tem visivelmente de começar a funcionar a crença mais ou menos |
|

zação da liberdade, que não estamos dispostos a pagar € pode reduzir cada
voluntária de quem está sujeito à autoridade. É que aquela troca de posição |
vez mais o espaço das condições exteriores em que ela se realiza visivel- andam
entre o valor supra pessoal e o valor da personalidade, que acrescenta a, |
mente. Porém, a não ser em caso de grande violência física, não o pode:
este uma vantagem, ainda que mínima, sobre aquilo que comprovada e |
nunca eliminar totalmente. O lado moral destas considerações não nos/|
racionalmente lhe compete, é realizada pelo próprio que crê na autori-
diz respeito, mas sim o sociológico: a acção recíproca, quer dizer, mutua
dade, é um acontecimento sociológico que reclama a colaboração espon
mente determinada, partindo apenas dos centros da personalidade, subi
tânea do elemento subordinado. Mais, o facto de se sentir uma autoridade,
siste mesmo naqueles casos de superioridade e subordinação, fazendo deles
como «opressora» aponta precisamente para a autonomia do outro, aliás,
uma forma social, enquanto que, segundo a ideia corrente, a coacção por
pressuposta e nunca totalmente eliminada.
uma das partes tira à qutra toda à espontaneidade e bem assim toda a ver-
Deve distinguir-se da autoridade esse cambiante de superioridade a$
dadeira sinfuência» fue seria um lado da acção recíproca.
que se chama prestígio. A este falta o momento da importância supra;
Para a análise dé existência socialé da maior importância, em face
-subjectiva, da identificação da personalidade com uma força ou uma,
do papel preponderante das relações de superioridade e subordinação,
norma objectivas; para a chefia, a força individual é decisiva. Não só existe:
ter ideias claras sobre aquela espontaneidade e participação do sujeito
a plena consciência disso como, no caso do tipo médio do chefe, que apre-
subordinado, dadas as múltiplas formas de encobrimento que se verificam
senta sempre uma certa mistura de elementos pessoais com elementos
em ideias correntes superficiais. Por exemplo, aquilo a que se chama «auto-
561
560
objectivos que se lhe juntaram, o prestígio advém da personalidade pura, Em relações pessoais, cujo conteúdo e sentido é determinado por
tanto como a autoridade emana da objectividade de normas e poderes. uma das partes para O serviço exclusivo da outra, o grau completo desta
Embora precisamente esta superioridade tenha a sua essência no «arrastar», entrega está muitas vezes ligado ao facto de que esta se entrega também
no levar atrás de si um séquito incondicional de indivíduos e massas — àquela, apesar de numa outra camada da relação. Disse Bismarck sobre
mais do que a autoridade, cujo carácter de norma, mais elevado; mas mais a sua relação com Guilherme I: «As leis determinam um certo grau de
frio, permite a crítica dos seguidores — ela surge, contudo, como uma entrega, as convicções políticas um grau muito maior; tudo O que vá para
espécie de homenagem voluntária ao superior. Talvez exista de facto, no além disto fequere um sentimento pessoal de reciprocidade. A minha
reconhecimento da autoridade, uma liberdade mais profunda do sujeito adesão fundamentava-se, por princípio, na fidelidade à monarquia: mas,
do que no encantamento criado pelo prestígio dum príncipe ou dum sacer- na forma específica em que ela existia, isso só era possível sob o efeito
dote, dum chefe militar ou espiritual. Porém, no sentir dos que são con- de uma certa reciprocidade — entre senhor e servidor.» O caso mais carac-
duzidos, as coisas sucedem de modo diferente: muitas vezes não nos terístico desta situação talvez seja a sugestão hipnótica. Um hipnotizador
podemos defender da autoridade, mas o entusiasmo com que vamos atrás excelente salientou que, em qualquer hipnose tem lugar uma acção do
do prestígio contém sempre a consciência da espontaneidade. Precisamente hipnotizado sobre o hipnotizador, é certo que não é fácil de determinar,
porque a entrega aqui se dirige apenas à pessoa, ela parece nascer, também, e sem a qual o efeito não se obteria. Enquanto que a aparência mostra a
da personalidade apenas com a sua irrevogável liberdade. É certo que o influência absoluta por um dos lados, e a passividade total pelo outro, a
homem se engana inúmeras vezes sobre o grau de liberdade a investir em verdade é que se esconde aqui uma acção recíproca, um intercâmbio de
qualquer acção, já porque falta clareza e segurança à consciência com que influências que converte a pura parcialidade da relação de superioridade
nos prestamos contas sobre aquele facto interior. Porém, seja qual for a e de subordinação em forma sociológica. 1
interpretação que dermos à liberdade, poder-se-á dizer que ela está pre- Mencionarei alguns casos de superioridade e subordinação tirados de /
sente sempre que a sentirmos e dela estivermos convictos, embora talvez áreas jurídicas em que, por detrás da aparência da pura infuência unila- /
não na medida em que julgamos. teral, se descobre sem dificuldade a existência real duma acção recíproca. /
Existe uma actividade ainda mais positiva pela parte do elemento apa- Quando, numa situação de despotismo ilimitado, o senhor associa às suas
rentemente passivo em relações como estas. O orador perante a assem- ordens a ameaça de pena ou a promessa de recompensa, isso significa que
bleia ou o professor perante a aula parecem ser o único chefe superior ele próprio quer estar ligado à ordem por ele ditada: quem se submete
a todos naquele momento; no entanto, quem se encontra em tal situação deve ter o direito de, por seu lado, exigir algo do déspota que se compro-
sente a influência determinante e orientadora da massa, aparentemente só mete, com a fixação da pena, por muito horrenda que seja, a não infligir
passiva e por ele guiada. E isto não acontece apenas quando se enfrentam nenhuma mais elevada. Se ele, depois, de facto fez cumprir, ou não. à
directamente. Todos os chefes são também conduzidos, assim como em recompensa prometida e manteve as proporções da pena por ele fixadas,
| muitos casos o senhor é o escravo dos seus escravos. «Eu sou o chefe deles, já é outra questão. O sentido da relação é que, na verdade, o que está em
por isso tenho que os seguir», disse um dos maiores dirigentes partidários posição superior determina por completo o subordinado, mas que a este
alemães, referindo-se aos seus seguidores. A situação mais flagrante é a do é assegurado um direito que ele pode fazer valer ou a que pode renun-
jornalista, que dá conteúdo e orienta as opiniões duma multidão silenciosa, ciar. Esta forma extrema da relação contém portanto ainda espontanei-
mas que tem de ouvir, relacionar, prever quais as tendências dessa mul- dade do subordinado.
tidão, o que ela quer ouvir ou ver confirmado, para onde deseja ser con- Em singular transposição, o motivo da acção recíproca, dentro da
duzida. O público parece estar só sugestionado por ele, mas a inversa é, subordinação em aparência puramente unilateral e passiva, manifesta-se
na realidade, igualme fe verdadeira. É uma acção recíproca altamente com- numa das teorias medievais do Estado: a origem do Estado está em que
plexa, com as cespectihas forças espontâneas assumindo formas muito dife- os homens se comprometem uns perante os outros a submeter-se a um
rentes, a que, portanto, se esconde aqui sob a aparência da superioridade chefe comum. Esse senhor — mesmo dominando sem limitações — é
pura dum dos elementos em relação ao deixar-se conduzir passivo do escolhido com base num contrato dos súbditos entre si. É assim que a ideia
outro. da reciprocidade passa da relação de domínio — para onde as teorias simul-
,
563
to
in
a
tâneas do contrato entre o senhor e o povo a deslocam — para a base desta prerrogativa significa, é certo, a unidade exclusivista de que ciosamente
própria relação: o dever para com o príncipe é sentido como mera forma; reveste a sua autoridade — correspondia-lhe na Antiguidade grega o direito
expressão ou técnica duma relação de reciprocidade entre os indivíduos de cada um falar ao povo, que caracterizava a democracia perfeita. Porém,
do povo. E se, para Hobbes, o soberano não pode por nenhum processo está presente ali o reconhecimento da importância que o discurso tem para
violar o contrato perante os seus súbditos, porque nomeadamente não o povo e bem assim a do próprio povo. Essa importância consiste em que
fez qualquer contrato com eles, o correlativo disso é que o súbdito, mesmo o povo, apesar de ter recebido apenas aquela influência unilateral era, con-
quando se revolta contra O soberano, também não viola qualquer con- tudo, uma parte contratante, mesmo que o direito de celebrar o contrato
trato que tenha celebrado com ele. Viola, sim, o que celebrou com os res- estivesse reservado a uma só pessoa.
tantes membros da sociedade no sentido de se deixar governar por este Com estas observações prévias pretendia-se apenas mostrar O carácter
soberano. sociológico e sociogénico das relações de superioridade e subordinação
A verificação de que a tirania duma colectividade sobre um seu mesmo naqueles casos em que, em vez duma relação social, parece haver
membro é pior do que a dum príncipe explica-se com a supressão do uma relação meramente mecânica: a posição do subordinado como objecto
momento da reciprocidade. O facto de a colectividade, e não apenas polí- ou meio nas mãos do superior, e privado de espontaneidade. Mas, pelo
tica, não considerar um seu membro como ser que se situa diante dela, menos em vários casos, conseguimos mostrar como, por detrás da
mas como uma parte de si própria, gera muitas vezes uma falta de consi- influência unilateral, se esconde a acção recíproca, sociologicamente
deração peculiar por ele, que se distingue bem da crueldade pessoal dum decisiva.
soberano. Aquele estar frente a frente formal, mesmo quando, no con-
teúdo, é uma atitude de sujeição, é afinal uma acção recíproca que, por
princípio, inclui sempre as limitações de cada elemento, só se desviando
disso em situações de excepção individual. Quando a relação de superio-
ridade manifesta aquela falta de consideração específica, como no caso
da colectividade que dispõe do seu membro, então não existe aquele frente,
a frente, em cuja forma de acção recíproca se realiza a espontaneidade dos!
dois elementos e bem assim a sua limitação mútua. L
O primitivo conceito romano de lei exprime isto muito bem. No seu
sentido puro, a lei exige uma submissão que não inclui qualquer esponta-
neidade ou reacção daquele que lhe está sujeito. Não importa aqui o facto
de ele ter colaborado na legislação, de se ter dado a si próprio a lei que
considera válida; neste caso ele cindiu-se em sujeito e objecto da legis-
lação e a determinação da lei que passa daquele para este não altera O seu
sentido pelo facto de ambos estarem casualmente reunidos na mesma
pessoa física. Contudo, os romanos aludiram directamerite, no conceito
da lei, à ideia de acção recíproca. «Lex» significa na origem contrato, é
certo que no sentido em que as suas condições são fixatlas pelo propo-
nente, podendo a outra parte apenas aceitá-las ou rejeitá-las em bloco.
Assim a lex publica populi romani significava originariamente que O rei
a propunha e o povo a aceitava. Deste modo, o conceito qu parece mais
categoricamente excluir a acção recíproca está, no entanto, destinado, pela
sua expressão linguística, a referir-se-lhe. Isto manifesta-se, por assim dizer,
na prerrogativa do rei romano de só ele poder falar ao povo. Uma tal

564
4. A LUTA *

Em princípio, não se contesta que a luta tem importância socioló-


gica, na medida em que produz ou modifica comunidades de interesses,
tendências uniformizadoras, organizações. Pelo contrário, à opinião co-
mum pode parecer paradoxal a pergunta, se a própria luta não é já em
si uma forma de socialização, abstraindo das suas consequências ou efeitos.
À primeira vista estamos perante uma mera questão de palavras. Se toda
a acção recíproca entre pessoas é uma socialização, então a luta, que cons-
titui uma das acções recíprocas mais vivas e logicamente não se pode
reduzir a um único elemento, deve ser justamente considerada uma socia-.
lização, De facto, as causas da luta são um verdadeiro estado de dissociação:
ódio e inveja, necessidade e cobiça. Quando a luta é desencadeada a partir
daqui, torna-se na verdade um movimento que contraria o dualismo desa-
gregador e é um caminho para chegar a qualquer espécie de unidade,
mesmo pela aniquilação duma das partes. O mesmo se passa mais ou menos
com as manifestações mais violentas duma doença, que tantas vezes repre-
sentam os esforços do organismo para se libertar de perturbações ou outros
elementos nocivos. Isto não significa de modo algum a trivialidade do
si
vis pacem, para bellum, mas é regra geral, de que este caso específic
o
constitui uma derivação. A luta em si é já o desencadear da tensão entre
os contrários; o facto de ela estar dirigida para a paz é apenas a expressão
natural de que ela é uma síntese de elementos, um confronto que,
junta-
mente com a solidariedade, se deve incluir num mesmo conceito supe-
rior. Este conceito caracteriza-se pela oposição comum das suas formas
de

* Ob. cit., pp. 186-190.

567
à recusa / qualquer relação quantitativa de harmonia e desarmonia, associação e con-
ntos. Tanto
relacionamento à indiferença recíproca entre eleme corrência, favor e desfavor, para chegar a uma determinada forma. Mas
negações; mas precisamente do con-

Excess nencanseremosaes
como a diluição da socialização são O seu carácter
estas dissenções não são meras formas sociológicas passivas, instâncias
positivo que, com
a luta designa o momento
” trário delas, 1
impossível
negativas, de maneira a dizer-se que a sociedade definitiva, real, só existe
abstracta, mas de facto
vai convergir numa unidade
negativo , pelas outtitorçs sociais positivas, e só na medida em que aquelas o não
no
de quebrar. impeçam. Esta ideiq corrente é totalmente superficial; a sociedade, tal como
dade soci ológica da luta todas as forma
Ê Do ponto de vista da positivi que, se apresenta, é o resultado das duas categorias de acções recíprocas, e por
particular. Vê-se de imediato
ções sociais adquirem uma ordem isso têm ambas um fapel igualmente positivo.
si — ao contrário do que cada um
quando as relações dos homens entre ia de consi- O mal-entendido), como se uma destruísse o que a outra constrói e
ctos — constituem matér
em si próprio e na relação com obje nero como se o que por fim Yemos fosse o resultado da sua subtracção (quando
icionais da sociologia Doro
derações especiais, os assuntos trad r. na realidade o é da sua adição) — este mal-entendido provém do sentido
ia muito ampla, verda leiram ace
uma secção secundária desta ciênc a : duplo do conceito de unidade. Chamamos unidade à concordância ou
apenas dois objectos u
minada por um princípio. Parecia haver cons i união de elementos sociais, ao contrário da sua desunião, isolamento, desar-
da ciência do homem: à unidade do indivíduo e à unidade monia. Mas a unidade significa também para nós a síntese total de pes-
se um terceiro caso iva o
partir de indivíduos, à sociedade, como n o soas, energias e formas num grupo, afinal a totalidade em que estão inse-
como tal, isto é, abstraindo dos conta
camente excluído. Então a luta Sar ridas, e que inclui tanto as relações de unidade no sentido restrito como
ade da sociedade, não a
que presta às formas directas de unid ão nO as dualistas. Assim, explicamos os grupos, que sentimos como «unidos»,
sui gene, issea sua +
próprio de investigação. Ela é um facto signitica com aqueles seus elementos funcionais que, de modo específico, actuam
nta quanto infecunda, pois
conceito de unidade seria tão viole . unitariamente, excluindo portanto o outro significado mais amplo da
ã idade. palavra. Para esta imprecisão contribui, do outro lado, o correspondente
na doutrina das relações
Í Do numa classificação mais abrangente, sentido duplo da dissenção ou oposição. Na medida em que esta vai paten-
em uma unidade, portanto as sociais
entre os homens, aquelas que constitu teando o seu sentido negativo ou destrutivo entre os vários elementos,
nguir-se das outras que actuam cone
no sentido restrito, parecem disti supomos que ela deveria actuar no mesmo modo sobre a relação total.
que toda a relação histórica sea ce
a unidade. Mas há que ter em conta não a = Na realidade, porém, aquilo que, entre indivíduos caminhando numa deter-
. Assim como O nao
tuma participar das duas categorias j minada direcção e isoladamente, é negativo e prejudicial, não tem que fun-
as para que OS conteúdos esta
à unidade da sua personalidade apen ane cionar do mesmo modo dentro da totalidade da relação. É que aqui
objectivas, relig iosas ou ética s,
em harmonia com normas lógicas ou — como mostra claramente a concorrência entre indivíduos dentro duma
prec edem tal unidade, como actuam a .
a contradição e a luta não só unidade económica — existe, juntamente com outras acções recíprocas
não deveria haver qualquer aa A é
a cada momento da vida — também não afectadas pelo conflito, um quadro completamente novo, em que o
entos não fosse inseparave nas
social em que a convergência dos elem : que é negativo e dualista desempenha um papel inteiramente positivo, uma
fosse pura e simplesmente ce
por linhas divergentes. Um grupo que vez descontado o que foi destruído na esfera das relações individuais.
q

empiricamente e
peto e harmonioso, meta «associação», seria não SÓ
noi Os casos mais complicados apresentam aqui dois tipos opostos. Pri-
esso vital propriamente ao
como não se daria nele qualquer proc
nim

o Pa E Í meiro temos laços comuns, exteriormente estreitos, abrangendo múltiplas


Dante julgava ver na om
sível que a sociedade dos santos, que
em inioinnm coin

an a relações, como o casamento. Não só para casamentos claramente falhados,


é susceptíve l de mu
se comporte assim, mas também não ao mas também para aqueles que encontraram um modus vivendi suportável
es da Igreja, na Disp uta e
lução. Já a assembleia sagrada dos-padr o ou pelo menos suportado, há sempre um certo grau de desavenças, de
ra luta, pelo menos ms
se apresenta, se não como uma verdadei e dissenção interior e controvérsias exteriores, ligadas organicamente a tudo
linhas de pensamento, daí Vo
diferenciação de estados de espírito e cor el o que afinal sustém a relação e se não pode dissociar da unidade da orga-
adeiramente orgâ nico daqu ela
toda a vida e o enquadramento verd qa | nização sociológica. Tais casamentos não o são menos por neles haver con-
ssita de «amor e ódio» , de a
vência. Assim como o cosmos nece “tenda; a verdade é que eles foram crescendo como totalidade caracte-
form a, também a sociedade precisa
atracção e repulsão para ter uma A

o 569
rística a partir de elementos múltiplos, a que pertence sempre esta porção Na verdade, a oposição produz esse efeito não só quando não chega
de contenda. Do outro lado sobressai o papel inteiramente positivo e inte- a resultados perceptíveis, mas também quando, à partida, não se mani-
grador do antagonismo, naqueles casos em que a estrutura é caracterizada festa para O exterior, permanecendo puramente interior. Mesmo quando
pela precisão e pureza, cuidadosamente preservada, das divisões e hierar- mal se exterioriza pode gerar, por vezes nos dois elementos da relação,
quias sociais. Assim, O sistema social indiano assenta não só na hierarquia equilíbrio interior, calma e um sentimento ideal de poder, salvando assim
das castas, mas também directamente na sua repulsa mútua. As hostilidades - relações cuja perdurabilidade é incompreensível para quem está de fora.
não só impedem que as demarcações dentro do grupo se vão progressiva- Nesse caso, a oposição é um membro da própria relação e chega a adquirir
mente diluindo — de maneira a poderem ser cultivadas conscientemente exactamente os mesmos direitos que os restantes fundamentos da sua exis-
como garantia das constituições existentes — como, para além disso, são tência; não é apenas um meio de conservar a relação total, mas também
sociologicamente produtivas e dum modo directo: frequentemente são uma das funções concretas que a constituem. Quando as relações são pura-
elas a fornecer a classes e personalidades a sua posição mútua. Ora isto | mente exteriores e não têm intervenção prática, a forma latente da luta
não aconteceria, pelo menos desta maneira, se as causas objectivas da hos- presta O seguinte serviço: a aversão, o sentimento duma estranheza €
tilidade, existindo e actuando assim, não fossem acompanhadas pelo sen- repulsa recíprocas que, no momento em que houvesse um contacto pró-
timento e pelas manifestações de inimizade. ximo, logo se transformariam em ódio positivo e luta. Sem esta aversão,
Não teríamos nunca uma vida comunitária, cada vez mais rica e plena, a vida na grande cidade, que põe cada pessoa diariamente em contacto
se dela desaparecessem as energias repulsivas e mesmo, nalguns casos, as com inúmeras outras, não seria imaginável. Toda a organização interior
destrutivas — assim acontece com uma fortuna, que aumenta considera- deste movimento urbano se baseia numa gradação extremamente variada
velmente logo que o seu passivo desaparece.Teríamos, sim, outro quadro, de simpatias, indiferenças e aversões mais ou menos breves e duradouras.
bem diferente e muitas vezes irrealizável, como se tivessem desaparecido A esfera de indiferença é, no entanto, relativamente pequena; a actividade
as forças da cooperação e da simpatia, da ajuda mútua e da harmonia de da nossa alma responde a quase todas as impressões vindas de outra pessoa
interesses. Isto é válido não só a um nível alargado para a concorrência com uma determinada sensação, cujo carácter subconsciente, transitorie-
que, enquanto pura relação de tensão formal e independentemente dos dade e inconsciência é que parecem dilui-la na indiferença. De facto, a
seus resultados objectivos, determina a forma do grupo, a posição mútua indiferença seria para nós tão pouco natural como insuportável seria O
e a distância entre os elementos, mas também quando a união assenta no carácter vago da sugestão recíproca indiscriminada. É precisamente a anti-
estado de espírito das pessoas individuais. Assim, por exemplo, a oposição, | patia, o estádio anterior ao antagonismo prático que nos protege deste dois
dentro da mesma sociedade, dum elemento a outro, não é um factor soci perigos típicos. Ela cria as distâncias e as estadias sem as quais este tipo
negativo, pois é, em muitos casos, O único meio que ainda torna possíve | de vida não era possível. São os seus graus e cruzamentos, o ritmo do seu
a convivência com personalidades na verdade intoleráveis. Se não tivés- | aparecimento ou desaparecimento, as formas que a satisfazem, é tudo isto,
ermncim

semos o poder e o direito de nos opormos à tirania e à obstinação, aos juntamente com os motivos unificantes no sentido restrito, que constitui
repente
assis

caprichos e à falta de tacto, não seríamos capazes de suportar as relações um todo inseparável no modo de viver da grande cidade; aquilo que ali
com pessoas que nos fazem sofrer, antes seríamos impelidos para actos surge directamente como dissociação é, na verdade, apenas uma forma
desesperados que certamente destruiriam a relação, embora precisamente
não sejam «luta». E isto não é só pelo facto — aqui não essencial — de que A FAab re Do .

pa
>
3
a opressão costuma aumentar quando a toleramos tranquilamente e sem
protesto. É que a oposição proporciona-nos satisfação interior, distracção, |
alívio — como o fazem, noutras circunstâncias psicológicas, a humildade
e a paciência. A oposição dá-nos a sensação de não estarmos completa-
mente oprimidos dentro da relação, permiteà nossa energia afirmar-se
conscientemente e empresta vivacidade e reciprocidade a relações às quais
tempere

nos teríamos esquivado, a todo o preço, sem esta compensação.

570 571
5. O CRUZAMENTO DE CÍRCULOS SOCIAIS *

A diferença entre o pensamento desenvolvido e o elementar ma-


nifesta-se na diversidade dos motivos que determinam as associações entre
representações. Ao princípio basta a coincidência casual no espaço e
no tempo para que as representações se associem psicologicamente.
A reunião de propriedades constituindo um objecto concreto surge pri-
meiro como um todo uno, estando cada propriedade em associação estreita
com aqueles em cuja proximidade aquela confluência foi verificada.
Enquanto conteúdo da representação que existe por si, só tomamos cons-
ciência dela quando surge também em muitas outras combinações, de natu-
reza diferente. É então que sobressai claramente o que há de igual em todas
elas. Ao mesmo tempo, vemo-las reciprocamente ligadas, na medida em
que essa igualdade se liberta cada vez mais dos laços com o objectivamente
diferente, daquilo que só por coincidência casual se encontra associado
no mesmo objectivo. Deste modo a associação, elevando-se acima do estí-
mulo por meio daquilo que é perceptível no momento presente. passa
a basear-se no conteúdo das representações, ao nível da construção supe-
rior dos conceitos, extraindo-se então as igualdades a partir do entrelaça-
mento com as mais diversificadas realidades.
A evolução que se verifica aqui entre as representações tem a sua ana-
logia na relação dos indivíduos entre si. O indivíduo vê-se primeiramente
colocado num meio que, sendo relativamente indiferente à sua individua-
lidade, o prende ao seu próprio destino e lhe impõe uma convivência
estreita com aqueles junto de quem foi colocado pelo acaso do nascimento.

(*) Ob. cit.. pp. 305-306: 311: 312-313; 316: 317: 318: 319: 325-320.

573
«Primeiramente» significa os estados iniciais tanto da evolução filogené- indivíduo de modo mais preciso e inequívoco. A pertença a cada um deles
tica como ontogenética. Porém, a continuação desta evolução visa asso- deixa ainda um campo de acção vasto à individualidade; mas, quanto mais
ciar partes homogéneas de círculos heterogéneos. Assim, a família abrange forem, mais improvável é que as outras pessoas apresentem a mesma com-
as mais diversas individualidades que, ao princípio, precisam desta ligação binação de grupos, que estes mesmos círculos se voltem a cruzar num
estreita. Mas, à medida que se vai desenvolvendo, cada membro vai esta- ponto. O objecto concreto perde individualidade para o nosso conheci-
belecendo laços com personalidades fora deste círculo inicial de associa- mento quando, a partir duma característica sua, o submetemos a um con-
ções que, em vez destas, mantêm com ele uma relação baseada na igual- ceito geral, inas recupera-a quando são ressaltados os outros conceitos com
dade objectiva de predisposições, tendências, actividades, etc. A associação que é permitido classificar as suas outras características. Assim, como diria
através da convivência exterior vai sendo substituída cada vez mais pelas Platão, cada coisa participa de tantas ideias quantas as qualidades que
i possui, adquirindo deste modo a sua determinação individual. Ora é pre-
relações de conteúdo. Assim como o conceito superior reúne o que é
comum a um grande número das mais diversas concepções, também os cisamente nestes termos que se comporta a personalidade perante os cír-
pontos de vista práticos superiores reúnem indivíduos semelhantes, de | culos a que pertence.
grupos totalmente estranhos e desligados entre si. Surgem então novos Referimo-nos ao objecto substancial colocado perante nós como a
círculos de contactos atravessando, nos mais diversos ângulos, os primi- síntese de impressões sensoriais, de tal maneira que o ser de cada um é
tivos, relativamente mais naturais e sustentados por relações sensoriais. tanto mais sólido quanto mais qualidades sensoriais se tiverem reunido
:
para a sua existência. De igual modo construímos, a partir de cada ele- |
(..) mento de vida, gerado ou enredado na Sociedade, aquilo a que chamamos
a subjectividade «ae "coxv'v, a personalidade, que combina a nível indi- |
O número dos vários círculos a que o indivíduo está ligado é um dos vidual os elementos da cultura. Após a síntese do subjectivo ter gerado |
'aferidores de cultura. O homem moderno pertence primeiro à família dos objectivo é a vez da síntese do subjectivo produzir uma nova e mais ele- |
, a - Do
X

pais, depois à que ele próprio fundou e bem assim à da mulher, em seguida vada subjectividade — tal como a personalidade se entrega ao círculo
à profissão que, por si, O integrará muitas vezes em vários círculos de inte- social, submergindo nele, para recuperar a sua especificidade através dos
jresses (por exemplo, em todas as profissões em que há superiores e subor- círculos sociais que nela individualmente se cruzam. Aliás, a sua determi-./
idinados, cada um se situa no círculo do seu negócio específico, repartição, nação prática torna-se em certa medida a contrapartida da casual. Consi-
| fescritório, etc., que inclui sempre pessoal superior e subordinado e, além derando a origem da personalidade, ela tem sido explicada como ponto
disso, situa-se no círculo dos que têm igual posição nos diversos negó- de cruzamento de inúmeros fios sociais, como resultado das transmissões
! os etc.). Tem consciência da sua cidadania e da pertença a uma deter- hereditárias dos mais diversos círculos e períodos de adaptação e a sua)
“minada camada social, podendo ser, por acréscimo, oficial na reserva, per- individualidade como a singularidade das quantias e combinações, nos
itencer a algumas associações, possuir uma rede de contactos sociais pelos quais os elementos da espécie se reunem. Se ela, porém, se junta de novo;
ais diversos círculos. Ora tudo isto constitui uma grande variedade de com a variedade dos seus instintos e interesses, a formas sociais, tal cons-;
j grupos, dos quais muitos estão coordenados mas outros se podem ordenar titui, por assim dizer, um irradiar e uma restituição daquilo que recebeu, |
i de modo a que um surja como a ligação primeira, a partir da qual o indi- de forma análoga mas superior e mais consciente. :

' víduo; devido às suas qualidades especiais, que o distinguem dos restantes Da personalidade moral emanam determinações completamente
' membros do círculo, se volta para zonas mais alargadas. Mas a relação com novas, mas também novas tarefas, quando sai do círculo em que se desen-
“aquele primeiro pode permanecer, do mesmo modo que uma parte duma volveu para entrar na zona de intersecção de muitos círculos. A clareza
| representação complexa, ainda que psicologicamente tenha há muito e a segurança iniciais cedem o lugar, de início, a uma oscilação das ten-
adquirido associações objectivas, não tem necessariamente de perder a dências de vida. Neste sentido, diz o velho provérbio inglês, que quem
' relação com o todo a que está ligada-no espaço e no tempo. fala duas línguas é um patife. Pertencer a vários grupos sociais, na maioria | |
Os grupos a que o indivíduo pertence constituem como que um sis- dos casos, gera conflitos de natureza exterior e interior que ameaçam o |
| indivíduo com o dualismo psíquico e mesmo a dilaceração. Porém, isso |
! tema de coordenadas, de tal maneira que cada novo grupo determina O

574 575
não constitui qualquer prova contra o efeito de consolidação e reforço, nada do que para além do que esta comparação designa, a subordinação
da unidade pessoal que aquela pertença gera. É que o dualismo e a uni- do carvalho ao conceito de planta tem um significado, que a subordinação
dade suportam-se reciprocamente: é porque a personalidade é unidade que | ao conceito de árvore, por muito que ela inclua logicamente o conteúdo
pode admitir a cisão; quanto mais variados forem os grupos de interesses, conceptual de planta, não possui: nomeadamente a relação com tudo o
que confluem em nós e se querem exprimir, tanto mais claramente o eu! que é planta sem ser árvore. A construção concêntrica de círculos é, assim,

terá consciência da sua unidade. o estádio intermédio, sistemático e muitas vezes também histórico, para
que, justapostos, esses círculos se venham a encontrar numa e na mesma
f A determinação sociológica do indivíduo aumentará se os círculos personalidade.
determinantes forem sucessivos mais que concêntricos. Quer dizer, cir- No que se refere ao sucesso pessoal existe uma grande diferença entre
culos que se vão estreitando progressivamente como a nação, posição aquela forma concêntrica e o caso de alguém que, para além da sua posição
social, profissão e categorias singulares dentro desta não indicarão à pessoa profissional, pertence, por exemplo, a uma associação científica, ou é

que deles participa nenhum lugar individual especial, porque mesmo o membro do Conselho Fiscal duma sociedade por acções ou tem um cargo
mais estreito deles significa, por si, a participação nos mais amplos. Con- honorífico municipal; quanto menos a participação num círculo por si indli-
tudo, estes círculos encaixados uns nos outros, por assim dizer, não deter- ciar a participação noutro, mais firmemente a pessoa se define como
minam os seus indivíduos de modo uniforme, a sua relação de concentri- estando no ponto de intersecção de ambos. Na medida em que se trata
cidade pode ser mecânica, em vez de orgânica, de maneira que, apesar aqui da participação em cargos e instituições, depende naturalmente da
desta relação, actuam sobre os indivíduos sucessiva e independentemente. amplitude da divisão de trabalho, se a reunião de várias funções numa só
| Apesar dos embaraços e dificuldades criados ao indivíduo pela sua personalidade permite que nela se salientem uma combinação caracterís-
| inserção em círculos que o envolvem concentricamente, esta é uma das tica de talentos e um largo espectro de actividades. A estrutura das formas
| primeiras e mais imediatas formas que lhe possibilitam, a ele que começou sociais objectivas proporciona, deste modo, maior ou menor possibilidade
ja sua existência social submergindo num círculo, a participação na maioria de constituir ou expressar, por meio delas, o carácter inconfundível e sin-
| dos outros. As características próprias das associações medievais, em face gular do sujeito.
das modernas, já foram várias vezes ressaltadas: ocupavam o homem todo, | A possibilidade da individualização cresce desmedidamente pelo facto
de a mesma pessoa poder ocupar posições relativas, em tudo diferentes,
serviam não apenas uma finalidade eventual, objectivamente parafraseável, |
mas eram uma união cooperativa dos que se tinham juntado para esse fim, nos diversos círculos a que pertence em simultâneo.
e que abrangia a pessoa toda. Se o impulso para a formação dessas coope-
rativas continua activo, podia ser satisfeito na junção em associações de O desenvolvimento do espírito público revela-se no facto de exis-
ordem superior. Enquanto não se criou a associação para fins específicos, tirem suficientes círculos duma certa forma objectiva e também organi-
(a possibilidade de colaborar com outras pessoas mediante contributos pura- zação para proporcionar aos vários aspectos essenciais duma personali-
mente objectivos, para fins puramente objectivos, preservando à totali- dade multifacetada um espaço de reunião e de cooperação. Através disto
dade do eu, foi na realidade o meio sociologicamente genial (embora agora consegue-se uma aproximação equilibrada ao ideal tanto do colectivismo
nos pareça simplista) de fazer participar o indivíduo numa maioria de cír- como do individualismo. É que, por um lado, cada um encontra, para as
| culos, sem o alienar da pertença local ao meio originário. O enriquecimento suas inclinações e esforços, uma comunidade que lhe facilita a respectiva
“do indivíduo como ser social assim conseguido era, na verdade, limitado, satisfação e oferece às suas actividades uma forma experimentada na prá-
o que não acontece dentro da associação para fins específicos — mas era tica, bem como todas as vantagens de pertencer a um grupo; por outro
suficientemente grande. É que aquilo que a associação superior dava ao
indivíduo não estava de modo algum contido na associação mais estreita, | lado, o que é específico da individualidade é garantido pela combinação
dos círculos, que pode variar de caso para caso. Assim, pode dizer-se que
do mesmo modo que o conceito de árvore, a que o carvalho começa por | a sociedade nasce dos indivíduos mas também que o indivíduo nasce das.
ú sociedades. Ô avanço da cultura alarga “Cada vez mais-o-círculo social a
a e ea

pertencer, já contém em si todas as componentes do conceito planta, que


por sua vez engloba o de árvore. E mesmo que não se tivesse ganho mais que
que pertencemos com toda a nossa personalidade, mas ao mesmo tempo

576 577 '


faz com que o indivíduo conte apenas consigo próprio, tirando-lhe muitos
dos apoios e vantagens do grupo restrito. Assim, a formação de círculos
e associações, em que se podem juntar todos quantos estiverem interes-
sados no mesmo objectivo, gera uma compensação para o isolamento da
personalidade, isolamento oriundo da ruptura com a estreiteza das situa-
ções primitivas.

XII

MAX WEBER *

a
en

* Os textos deste capítulo foram retirados de:

1.,4.,5.,6.€ 7. Max Weber Wirtschaft und Geseliscbaft. Grundriss der rerstebenden


Soziologie, J. C. B. Mohr Túbingen (Paul Siebeck), 1972. (Tradução de Sura Seruya)
2. Max Weber Gesammelte Aufsitze zur Wissenscbaftslebre. 4. Autlage,J. C. B.Mohr
Túbingen (Paul Siebeck), 1973. (Tradução de Lídia Campos Rodrigues e Sara Seruva).
3. Max Webêr Gesammelte Aufsitze zur Religionssoziologie,1.J. C. B. Mohr Túbingen
(Paul Siebeck), 1972. (Tradução de M. Fernanda Portela).
primeiros escritos sociológicos, designadamente o ensaio sobre 4 objecti-
vidade nas ciências sociais e os dois capítulos da Etica Protestante e o
Espírito do Capitalismo. o |
Os anos que precedem a guerra foram de profunda actividade inte-
lectual, em que começou a redigir Economia e Sociedade, em que publicou
importantes ensaios metodológicos e redigiu volumosas obras sobre as reli-
giões mundiais. .
A partir de 1916 desenvolve esforços no sentido da preparação do
pós-guerra. Como membro do Comité para a Europa Central do pastor
Naumann, faz deslocações a Viena e Budapeste, na procura da criação de
um mercado central europeu. Preconiza a parlamentarização do regime,
a reforma eleitoral, exige a abdicação do Kaiser, mas opõe-se à «paz a qual- 1. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE SOCIOLOGIA *
quer preço». Aceita participar na elaboração da Constituição de Weimar,
adere ao Partido Democrático Alemão, mas recusando convites tanto para Nota breliminar
o governo, como para O parlamento e para a diplomacia. Em 1919
pronuncia-se contra a dívida de guerra e contra o Tratado de Versailles. O método desta definição introdutória de conceitos, de que dificil-
Regressou ao ensino na Universidade de Munique (1918), onde dá mente se prescinde, embora eles se afigurem inevitavelmente como abs-
um curso de História Económica Geral (publicado postumamente) e onde tractos e estranhos à realidade, não pretende ser de modo algum inovador.
profere as duas importantes conferências sobre O político como vocação Pelo contrário, deseja apenas formular de modo — assim esperamos —
ea Ciência como vocação. mais apropriado e um pouco mais correcto (mas tornando-se talvez, por
Morre em 1920, com algumas obras por publicar. isso mesmo, pedante) aquilo que toda a sociologia empírica efectivamente
entende ao falar das mesmas coisas. Isto igualmente onde se utilizam
expressões aparentemente desusadas ou novas. Em relação ao meu ensaio
Principais obras em Logos IV (1913, pp. 253 ss. [Gesammelte Aufsóitze zur Wissenschafts-
lebre, 3.º ed., p. 427 ss.]), a terminologia foi, na medida do possível, sim-
Contribuição para a história das organizações comerciais medie- plificada e, por conseguinte, também várias vezes modificada, a fim de
vais (1889); História agrária romana e seu significado para o direito facilitar tanto quanto possível a sua compreensão. A exigência de uma vul-
público e privado (1891); O Estado Nacional e a Economia Política (lição garização incondicional nem sempre é, certamente, compatível com a exi-
inaugural na Universidade de Friburgo) (1895): A objectividade do conhe- gência tão grande quanto possível de rigor conceptual, devendo nesse caso
cimento nas ciências e na política sociais (1904); Estudos críticos para sujeitar-se-lhe.
servir à lógica das ciências da cultura (1906); Ensaio sobre algumas cate- Sobre a noção de «compreender», veja-se a Aligemeine Psychopatho-
gorias da sociologia compreensiva (1912): À ética económica das reli logie, de K. Jaspers (alguns comentários de Rickert na 2.º ed. de Grenzen
giões universais (1915);O induismo e o budismo (1916): O judaismo der naturiwissenschaftlichen Begriffsbildung (1913, pp. 514-523] e nomea-
antigo (1917); Parlamento e Governo no novo ordenamento da Alemanha damente de Simmel nos Probleme der Geschichtisphbilosophie, têm aqui
(1917); O político e o cientista (1918); Ensaio sobre a neutralidade axio- cabimento). No respeitante ao método, remeto aqui também, como já o
lógica nas ciências sociais e económicas (1918); História económica geral fiz de outras vezes, para F. Gottl, em Die Herrschaft des Worts, obra cuja
(1924); Economia e Sociedade (1919-1922).

* Ob. cit. pp. I-11.

Os
SA
Oo
raciocínios | jectivamente visado, é absolutamente fluida. Uma parte substancial de todo
redacção é sem dúvida algo difícil de compreender, e cujos
desenvo lvidos; em termos | o comportamento sociologicamente relevante, nomeadamente o agir pura-
por certo que nem sempre estão exaustivamente
o de E. Tônnies,
de conteúdo, remeto antes de mais para o belo trabalh
| mente tradicional (ver mais adiante) situa-se na fronteira entre ambos. Em
para 9 equívoco livro numerosos casos de processos psico-físicos não se encontra minimamente
Gemeinschaft und Geselischaft. Da mesma forma,
materia listischen Ges- uma acção significativa, quer dizer, compreensível; noutros, ela não existe
de R. Stammler, Wirischaft und Recbt nach der
Sozialt Issenscha fé
chichtsauffassung e a crítica que lhe fiz no Archiv fiir
senão aos olhos do especialista; os processos místicos, e portanto não ade-
ehre, 5.º ed. p.2 21 quadamente comunicáveis em palavras, não são inteiramente compreen-
XXIV (1907. [Gesammelite Aufsitze zur Wissenschaftsl
do que a seguir
ss.]), que contém já, em diversos aspectos, 08 fundamentos
síveis a quem não seja acessível a este tipo de vivência. Em contrapartida,
(nas suas obras Soziolo gie e Phi- a capacidade de produzir a partir de si próprio um agir análogo não é pres-
se expõe . Divirjo do método de Simmel
que possível. «sen- suposto de compreensibilidade: «não é preciso ser-se César para com-
losophie des Geldes) na medida em que separo, sempre
Simmel não só nem preender César». A «capacidade de revivenciar» integralmente é importante
tido» visado de «sentido» objectivamente válido, que
vezes deliber adament e confunde. para a evidência da compreensão, mas não é condição absoluta da inter-
sempre separa, como muitas
pretação significativa. Os elementos compreensíveis e não compreensí-
aqui se toma esse veis de um processo estão frequentemente misturados e ligados.
81. Entendemos por sociologia (no sentido em que
a que se propõe com 3. Toda a interpretação, como em geral toda a ciência, aspira à «evi-
termo tão ambiguamente utilizado) uma ciênci
para deste modo a explica
r
r
ter
dência». A evidência da compreensão pode ser de carácter: [a)] racional
preender interpretativamente(a acção social,
a : ' !
ad

. Por «acção» entendemos (e nesse caso, ou lógico, ou matemático), ou [b)| empaticamente reviven-
causalmente.no seu desenrolar e nos seus cícitos
(quer se trate de um acto exterior ou.
aqui um comportamento humano uma
cial (emocional, artístico-receptivo). Racionalmente evidente é, na esfera
tolerância) sempre e contanto u da acção, antes de mais, aquilo que é compreendido intelectualmente, na
interior, de uma omissão ou de
o agente ou agentes lhe associem WAISEH iso subjEcuVO Por acção usacialo, sua conexão de sentido visado, de modo exaustivo e límpido. Empatica-
sentido visado
ii o,
“no entant deverá entender-se uma acção que, segundo o mente evidente é, na acção, aquilo que é plenamente revivenciado na sua
e ao comportamento de ouITent, por ek
a
refere conexão de sentimentos. Racionalmente compreensíveis, ou seja, signifi-
pelo agente-ou-agentes,-s
cativamente apreensíveis, intelectualmente, de modo imediato e unívoco,
são, ao mais alto grau e em primeira linha, as conexões de sentido que
se encontram numa inter-relação de enunciados matemáticos e lógicos.
1. Fundamentos metodológicos Compreendemos de modo em absoluto unívoco o que significativamente
se entende quando alguém mental ou argumentativamente faz uso da pro-
o subjectivo
1. «Sentido», neste contexto, quer dizer, ou a) O sentid posição 2 x 2 = 4 ou do Teorema de Pitágoras, ou quando alguém efectua

visado na realidade « por um agente num caso historicamente dado ou e conclui «correctamente» — segundo os nossos hábitos de pensar — um
e aproximativamente, pelos agentes numa determinada encadeamento lógico. Do mesmo modo quando alguém, a partir de «factos
6. em média
tivamente visado num empíricos» por nós tidos como «conhecidos» e de objectivos dados, extrai
massa de casos, ou b) esse mesmo sentido subjec
ou agentes conside no seu agir as consequências daí univocamente resultantes (segundo as
tipo puro conceptualmente construído pelo agente
er sentido objectivamente nossas experiências) quanto à natureza dos «meios» a utilizar. Toda a inter-
rados como tipos. Não se trata de um qualqu
, metafi sicamente fundado. Aí pretação de uma acção dirigida a um fim assim racionalmente orientada
«correcto», ou de um sentido «verdadeiro»
acção — a sociologia e possuí — com vista à compreensão dos «meios» empregados — o mais ele-
reside a diferença entre as ciências empíricas da
a jurisprudência, a lógica, vado grau de evidência. Contudo, compreendemos também, com evi-
a história —, e todas as ciências dogmáticas como
nos seus objectos, O sen- dência não idêntica, mas suficiente para a nossa exigência de explicação,
a ética ou a estética, que pretendem investigar,
aqueles «erros» (incluindo «emaranhados de problemas») a que nós pró-
tido «correcto» e «válido».
um comportamento
2. A fronteira entre uma acção significativa e prios somos susceptíveis ou cuja génese podemos revivenciar empatica-
ado a um sentido sub- mente. Em contrapartida, ndo somos capazes de compreender com inteira
meramente reactivo (chamemos-lhe assim) não associ

584 | 585
evidência muitos dos «fins» e «valores» últimos pelos quais a acção de um * - serve nestes casos de tipo («tipo ideal») à sociologia, graças à sua evidente
compreensibilidade e à sua univocidade — esta intimamente ligada à racio-
indivíduo se pode orientar empiricamente. Mas já conseguimos apreendeê-
por outro nalidade —, a fim de compreender o agir real, influenciado por irraciona-
Jos intelectualmente, em determinadas circunstâncias embora,
lidades de toda a ordem (afecções, erros) como «desvio» em relação ao
lado, nesse caso, quanto mais radicalmente eles se afastam dos nossos pró-
desenrolar que seria de esperar em presença de um comportamento pura-
prios valores últimos, mais dificilmente se nos tornam revivencialmente
“mente racional.
compreensíveis através da imaginação empática. Somos então obrigados,
Nesta medida, e apenas por este motivo de adequação metodológica,
conforme a situação de cada caso, a contentar-nos com interpretá-los
é «racionalista» o método da sociologia «compreensiva». Este processo não
apenas intelectualmente ou revivenciá-los empaticamente de um modo
pode, porém, naturalmente, compreender-se como preconceito raciona-
aproximado, tornando compreensível para nós o desenrolar da acção por
lista da sociologia, mas meramente como recurso metodológico. impor-
eles motivada. Inserem-se neste caso, por exemplo, numerosas manifes-
tando, pois, não lhe dar interpretação diferente,
tações virtuosas de carácter religioso e caritativo, para quem não lhes é nomeadamente no sen-
tido da crença no efectivo predomínio do racional na vida. Pois nada nos
receptivo. Do mesmo modo também fanatismos de racionalismo extre-
adiantará sobre a medida em que,
mado («direitos do homem»), para quem rejeita pelo seu lado com horror, na realidade, considerações racionais
dirigidas em finalidade determinam ou não a acção efectiva. (Não se negue.
radicalmente, tais perspectivas. Somos tanto mais capazes de revivenciar
de um modo evidente, estados de alma momentâneos contudo, o perigo manifesto de interpretações racionalistas em local ina-
emocionalmente,
a cólera, a ambição, a inveja, O ciúme, O amor, propriado. Toda a experiência confirma, infelizmente, a sua existência).
(afecções como o medo,
4. Para todas as ciências da acção, os processos e objectos alheios
o entusiasmo, o orgulho, a sede de vingança, a piedade, a devoção € ape-
ao sentido são considerados como:
tências de toda a ordem) bem como as reacções irracionais deles decor- ensejo, resultado, incentivo ou obstá-
culo da actividade humana. «Alheio ao sentimento» não é idêntico u «ina-
rentes (consideradas do ponto de vista do agir racional dirigido a um fim),
nimado» ou «não humano». Todo o artefacto, uma «máquina» por exemplo,
quanto mais lhe formos nós próprios acessíveis. Em todo o caso, porém,
se torna interpretável e compreensível apenas a partir do sentido que a
mesmo quando pela sua intensidade ultrapassam em absoluto as nossas
acção humana (de linhas de orientação possivelmente muito diversas)
próprias possibilidades, somos capazes de os compreender no seu pleno
emprestou (ou pretendeu emprestar) ao fabrico e utilização deste artefacto;
sentido, empaticamente, e de os contabilizar intelectualmente quanto aos
sem O recurso a esse sentido, permanece totalmente incompreensível.
seus efeitos sobre a direcção e os meios da acção.
'O compreensível nele é, portanto, a referência à acção humana. quer como
Para o estudo científico que tende a construir tipos, todas as cone-
«meio», quer como «fim», presente no espírito do agente ou dos agentes,
xões de sentido irracionais do comportamento, condicionadas afectiva.
o agir, são predominante e visivelmente investi- pela qual orientou ou orientaram o seu agir. Só nestas categorias tem lugar
mente que influenciam
uma compreensão de tais objectos. Em contrapartida, permanecem alheios
gadas e apresentadas como «desvios» de um desenrolar dessa mesma acção
ao sentido todos os processos ou realidades — animados, inanimados.
construída, e puramente racional em finalidade. Por exemplo, para a expli-
extra-humanos ou humanos — que não tenham conteúdo significativo
cação de um <pânico de Bolsa>, determinar-se-á, em primeiro lugar, ade-
visado, contando que não entrem em relação com
quadamente: como é que a acção se teria desenrolado sem influência de a acção, como «meio»
ou como «fim», e representem apenas um ensejo, incentivo ou obstáculo
afecções irracionais, registando depois esses comportamentos irracionais
dessa mesma acção. O rompimento do dique do Dollart em fins do séc.
como «perturbações». Do mesmo modo, no caso de uma operação polí-
de forma adequada: como XHI (1277) tem (quiçá! significado «histórico» porque desencadeou deter-
tica ou militar, determinar-se-á primeiramente,
minados processos de transplantação de populações com considerável
é que a acção se teria desenrolado com conhecimento de todas as cir-
alcance histórico. O ordenamento da mortalidade e o próprio ciclo orgã-
cunstâncias e de todas as intenções dos intervenientes e com selecção de
nico da vida, do desamparo da criança ao desamparo do ancião, tem natu-
meios rigorosamente racional em finalidade, orientada pela experiência
ralmente um alcance histórico de primordial importância, pelos diversos
por nós tida como válida. Só assim se torna então possível a imputação
modos pelos quais a acção humana se orientou e se orienta por tal estado
causa! de desvios às irracionalidades que os condicionaram. A construção
de coisas. Uma categoria por sua vez diferente constituem os princípios
de uma acção rigorosamente racional dirigida a um fim, por conseguinte,
I
586 587 '
demonstração científica, numa avaliação técnica ou outra acção em cujo
de experiência compreensíveis referentes ao desenrolar de algumas mani-
memória, etc., mas não contexto tal proposição cabe, pelo seu sentido para nós compreensível.
festações psico-fisiológicas (fadiga, exercício,
quer dizer: adquire uma conexão de sentido para nós compreensível (com-
menos também, por exemplo, euforias típicas em determinadas formas
preensão racional por motivação). Compreendemos o cortar da lenha ou
de mortificação, diferenças típicas dos modos de reacção segundo ritmo,
de coisas é, o apontar da arma não só actual como também motivacionalmente, ao
variedade, transparência, etc.). Em última análise, o estado
sabermos que o lenhador executa tal acção ou contra salário ou então por
porém, idêntico ao verificado em outros factos incompreensíveis: tal como
necessidade própria ou para recreação (de forma racional), ou quiçá porque
aquele que age na prática, assim à apreciação compreensiva Os assume
«descarregava uma excitação» (de forma irracional), ou quando o que dis-
como «dados» com os quais há que contar.
para O faz por ordem de outrem para fins de execução ou de combate
Ora, dá-se a possibilidade de que à investigação futura detecte também
a inimigos (de forma racional), ou por vingança (afectivamente, portanto,
regularidades incompreensíveis num comportamento significativamente
neste sentido: de forma irracional). Compreendemos, por último, quanto
diferenciado, por pouco que até à data isso se venha verificando. Quando
à motivação, a cólera, ao sabermos que lhe está subjacente o ciúme, a vai-
e contanto que fosse produzida prova estatisticamente conclusiva da sua
dade ferida ou a honra ofendida (se ela está condicionada afectivamente,
influência sobre o modo de comportamento sociologicamente relevante,
portanto: forma irracional, em termos de motivação). Tudo isto são cone-
nomeadamente sobre o agir social quanto à natureza da sua relatividade
xões de sentido compreensíveis, cuja compreensão consideramos como
de sentido, seriam de aceitar, como dados, para a sociologia as diferenças
explicação do efectivo desenrolar da acção. «Explicar» significa, pois, para
oriundas da herança biológica («raças», por exemplo), tal como o faz para
da uma ciência que se ocupa do sentido da acção, exactamente: apreensão
certos factos fisiológicos, como o tipo de alimentação ou os efeitos
mento do seu significado causal do contexto de sentido onde se insere, pelo sentido subjectivamente
senescência sobre a actividade. O reconheci
da sociologia (tão-pouco visado, uma acção actualmente compreensível. (Sobre o significado casual
em nada alteraria, minimamente sequer, a tarefa
desta «explicação», cf. N.º6.) Em todos estes casos, incluindo processos
dasciências da acção em geral), que é: compreender interpretativamente.
do domínio das afeições, designaremos por sentido «visado» o sentido sub-
as acções orientadas significativamente. Ela inseríria nos seus contextos
dos jectivo do processo ocorrido, ultrapassando assim o uso oral habitual, que
de motivação compreensivelmente interpretáveis, em determina
contextos típicos costuma falar de «visar», nesta acepção, meramente no caso de um agir
pontos, somente factos incompreensíveis (por exemplo:
ou do grau |racional e intencional com direcção a um fim.
da frequência de determinadas direcções de finalidade da acção
ou quais- 6. «Compreender» significa, em todos estes casos: apreensão inter-
da sua racionalidade típica, como o índice craniano, a cor da pele
as fisiológica s, como já hoje em dia pretativa do sentido ou contexto de sentido: a) realmente visado no caso
quer outras características hereditári
particular (à luz da apreciação histórica) ou b) em média e aproximativa-
acontece (veja-se atrás).
mente visado (à luz da apreciação sociológica de massas) ou c) a construir
5. Compreender pode significar: 1.a compreensão actual do sentido
por cientificamente para O tipo puro (tipo ideal) de um fenómeno frequente
visado de um acto (inclusive de uma manifestação). Compreendemos,
da proposiçã o 2 x 2 = 4, que ouvimos (sentido ou conexão de sentido «ideal-típico/a»). São, por exemplo, cons-
exemplo, de modo actual o sentido
de cólera truções ideal-típicas como essas os conceitos e «leis» estabelecidos pela
ou lemos (compreensão racional actual de ideias) ou uma erupção
s, em movi- teoria macro-económica pura. Expõ6em como se desenrolaria uma acção
que se manifesta numa expressão fisionómica, em interjeiçõe
ou O com- humana de determinada natureza se fosse rigorosamente racional dirigida
mentos irracionais (compreensão irracional actual de afectos),
para a um fim, imperturbada por erros e afeições e, além disso, se estivesse muito
portamento de um lenhador ou de alguém que agarra no puxador
racional univocamente orientada para um só fim (a economia). A acção real só em
fechar uma porta, ou que aponta a arma a um animal (compreensão
querer dizer: casos raros (Bolsa), e mesmo assim apenas aproximadamente, decorre tal
actual de actos). — Compreender pode, contudo, também
. qual como construída no tipo ideal (sobre a finalidade de tais construções, cf.
2. Compreensão explicativa. Compreendemos, quanto à motivação
2x2=+ ja minha exposição no] Archiv fiir Sozialwissenschaft XIX, p. 64 ss.
o sentido que uma pessoa que pronuncia ou escreveu a proposição
feito precisame nte neste momento [sGesammelte Aufsátze zur Wissenschaftslebre. p.190 ss.] e também ON.º
lhe associou de modo a que o tenha
numa 11, adiante).
e neste contexto em que a vemos ocupada num cálculo comercial,

588 589 '


É certo que toda a interpretação aspira à evidência [N.º 3]. Porém. riência mental», ou seja, pensar como não existentes componentes iso-
uma interpretação, por muito evidente que seja significativamente, não lados da cadeia de motivação e construir o decurso então provável para
pode pretender, como tal e por motivo desse carácter de evidência, ser alcançar uma imputação causal.
também a interpretação causalmente válida. Em si, ela é sempre uma mera A chamada «ei de Gresham», por exemplo, é uma interpretação racio-
hipótese causal particularmente evidente. a) Com alguma frequência, nalmente evidente da actuação humana em determinadas condições e sob
«motivos» e «repressões» alegados (ou seja, antes de mais: motivos incon- o pressuposto ideal-típico de uma acção
puramente racional dirigida a um
fessados) encobrem precisamente ao próprio agente o verdadeiro contexto fim. Só a experiência (que em última análise se deve exprimir, em prin-
da orientação do seu agir, de tal modo que os próprios auto-testemunhos, cípio, de uma maneira ou de outra «estatisticamente») sobre o efectivo desa-
subjectivamente sinceros, não têm senão valor relativo. Neste caso, depara- parecimento de circulação das espécies de moedas avaliadas demasiado
-se à sociologia a tarefa de determinar interpretativamente este contexto, inferiormente no respectivo sistema monetário poderá ensinar-nos até que
embora ele não tenha sido elevado à consciência ou, a maioria das vezes, ponto efectivamente se age de acordo com ela: a experiência elucida-nos,
não o tenha sido em plenitude, tal como quando «visado» in concreto: de facto, sobre a sua ampla validade. Na realidade, foi o seguinte o per-
um caso-limite da interpretação pelo sentido. b) Podem estar subjacentes curso do conhecimento: primeiro, estiveram presentes as observações
a processos exteriores da acção por nós tidos como «iguais» ou «parecidos», empíricas, depois foi formulada a interpretação. Sem esta interpretação
as mais variadas conexões de sentido no agente ou nos agentes, e nós «com- conseguida, a nossa necessidade causal ficaria notoriamente insatisfeita.
preendemos» também uma acção muito fortemente discrepante, amiúde Sem a comprovação, por outro lado, de que o desenrolar mentalmente
francamente contraditória significativamente, perante situações que con- inferido — assim o assumiremos — do comportamento também intervém
sideramos «análogas» entre si (exemplo em Simmel, Probleme der Ges- realmente, a uma escala qualquer, uma tal «lei», por muito evidente que
chicbispbilosopbie). c) Perante determinadas situações, as pessoas actuantes em si seja, para o conhecimento do agir real seria uma construção sem
estão muito frequentemente expostas a impulsos contraditórios que se valor. Neste exemplo, a concordância entre adequação de sentido e prova
debatem entre si, impulsos esses que nós «compreendemos» na sua totali- empírica é absolutamente conclusiva, e os casos suficientemente nume-
dade. No entanto, saber qual é a intensidade relativa com que as diversas rosos para considerar também a prova como suficientemente assegurada.
conexões de sentido subjacentes à «contenda de motivos», para nós igual- A engenhosa hipótese de Ed. Meyer, deduzível significativamente e apoiada
mente compreensíveis entre si, se costumam manifestar no agir, é algo em ocorrências sintomáticas (comportamento dos oráculos e profetas helé-
que, segundo a experiência, não pode avaliar normalmente, e em muitís- nicos para com os persas), quanto ao significado causal das batalhas de
simos casos nem sequer aproximadamente. Só o desfecho efectivo da con- Maratona, Salamina e Plateia para a peculiaridade do desenvolvimento da
tenda de motivos nos elucida a esse respeito. É por conseguinte indispen- cultura helénica (e com ela da cultura ocidental) só é corroborável pela
sável, como em qualquer hipótese; um “controlo da interpretação com- prova que se pode estabelecer dos exemplos do comportamento dos persas
preensiva do sentido através do resultado: do desfecho do desenrolar efec- em caso de vitória (Jerusalém, Egipto, Ásia Menor) e que, em muitos
aspectos, necessariamente tem de permanecer imperfeita. A notória evi-
tivo. "56 nos casosinfelizmente escassos e muito especificamente apro-
dência racional da hipótese tem forçosamente de ser aqui chamada como
priados da experimentação psicológica podemos alcançá-lo. Só com uma
apoio. Em casos muito numerosos de imputação histórica, na aparência
aproximação altamente diferenciada, através da estatística, nos casos (igual-
bem evidente, falha no entanto toda a possibilidade sequer de uma prova
mente limitados) de fenómenos de massa quantificáveis e unívocos na
tal como a que no citado caso ainda se logrou. Daí a imputação quedar-se
imputação. Nos demais, dispomos apenas da possibilidade de comparação
em definitivo precisamente como «hipótese». Wo —T
de um número tão grande quanto possível de decursos da vida histórica
7. Por «motivo» entende-se um contexto de sentido que ao próprio
ou quotidiana que, sendo em natureza semelhantes, diferem contudo num
agente ou observador aparece como «razão» significativa de um compor-
ponto decisivo: no «motivo» ou «ensejo» pesquisado de cada vez pela sua
tamento. Um comportamento que se desenrola dentro de uma conexão
relevância prática: uma tarefa importante da sociologia comparada. Infe-
será designado por «adequado significativamente» na medida em que a
lizmente, não nos resta muitas vezes senão o inseguro recurso da «expe- relação entre os seus componentes for por nós afirmada, segundo os nossos

590 591
hábitos médios de pensar e sentir, como contexto de sentido típico (cos- quer grau de aproximação. Nem de longe se quer com isto dizer que, para-
remm lelamente à adequação de sentido inferível, cresce sempre também a efec-
tumamos dizer: «correcto»). Uma sucessão de ocorrências será, em con-
er reeraen

tiva probabilidade da frequência do desenrolar que lhe corresponde. Mas


trapartida, designada por «causalmente adequada» na medida em que,
que só a experiência externa pode mostrar a cada caso se isso assim é.
segundo regras da experiência, exista uma possibilidade de que ela se
ema

— Existem estatísticas de processos albeios ao sentido (estatísticas de mor-


desenrole efectivamente sempre do mesmo modo. Adequada significati-
talidade, fadiga, rendimento de máquinas, pluviosidade) exactamente no
vamente, nesta acepção do termo, é por exemplo a solução de um pro-
mesmo sentido em que existem de processos significativos. Estatística
blema aritmético correcto segundo as normas para nós correntes de cál-
teriam

culo ou pensamento. Adequada causalmente é — no âmbito da ocorrência sociológica, porém, (estatística criminal, de profissões, preços, culturas)
não existe senão destes últimos (são naturalmente frequentes os casos que
estatística — a probabilidade verificada, segundo regras comprovadas da
comportam ambas: por exemplo, a estatística de colheitas).
experiência, de uma solução «correcta» ou «falsa» — do ponto de vista
8. Processos e regularidades que, por incompreensíveis, não podem
das normas que hoje para nós são correntes —, ou também de um «erro
ser designados de «situações de facto» ou «regras sociológicas» no sentido
de cálculo» típico ou de um «emaranhado de problemas» típico. Explicação
aqui utilizado do termo, não perdem naturalmente por isso, digamos,
causal significa pois a constatação de que, segundo uma regra de proba-
bilidade de algum modo avaliável, ou exprimível numericamente no caso imporiância. Tão-pouco sequer para a sociologia, no sentido aqui adop-
ideal — raro —, a um determinado processo (interno ou externo) obser- tado do termo (que se confina à «sociologia compreensiva», e que não deve
vado segue-se um outro processo determinado (ou: dá-se conjuntamente nem pode ser imposto a ninguém). Apenas se deslocam, por razões meto-
dológicas em absoluto inevitáveis, para outro compartimento, que não o
com ele).
da actuação compreensível: o das «condições», «ensejos»,
Tenda. «entraves» e
Uma interpretação causal correcta de um agir concreto significa que E eai
«encorajamentos» dessa actuação.
o desenrolar exterior e o motivo são reconhecidos como pertinentes e
9. Acção, no sentido de uma orientação, compreensível significati-
simultaneamente compreensíveis significativamente na sua conexão. Uma
vamente, do comportamento próprio, existe para nós sempre como mero
interpretação causal correcta de um agir típico (tipo de acção compreen-
sível significa que o decurso afirmado como típico não só se afigura como comportamento
de uma ou mais pessoas singulares.
Para outras finalidades do conhecimento pode ser útil ou necessário
adequado significativamente (em qualquer medida) como pode ser esta-
conceber o indivíduo singular por exemplo como uma socialização de
belecido como adequado causalmente (em qualquer medida). Falhando
«Células» ou um complexo de reacções bioquímicas, ou a sua vida «psí-
a adequação de sentido, estamos apenas em presença de uma probabili-
quica» como constituída por elementos singulares (independentemente do
dade estatística incompreensível (ou apenas imperfeitamente compreen-
modo como se qualifiquem). Essa via permite indubitavelmente adquirir
sível), mesmo no caso de uma regularidade do desenrolar (tanto exterior
conhecimentos valiosos (regras causais). Acontece, porém, que nós não
como psíquico) máxima e numericamente indicável com precisão na sua
compreendemos o comportamento, expresso em regras, destes elementos.
probabilidade. Por outro lado, até a mais evidente adequação de sentido
representa apenas, para o âmbito dos conhecimentos sociológicos, uma Muito menos tratando-se de elementos psíquicos, e tanto menos, quanto
mais exactamente forem apreendidos no foro das ciências naturais. Jamais
asserção causal correcta na medida em que seja produzida prova da exis-
será este o caminho para uma interpretação a partir de um sentido visado.
tência de uma probabilidade (de alguma maneira determinável) de que
Para a sociologia (na acepção aqui utilizada do termo, e tal como para a
a acção habitualmente assuma, efectivamente, com frequência ou apro-
istória), porém, o objecto de apreensão é precisamente o contexto de
ximação determinável (em média ou no caso «puro») o desenrolar que se
sentido da acção. Podemos (pelo menos segundo o princípio) observar
afigura como adequado em sentido. Só as regularidades estatísticas que |
correspondem a um sentido visado compreensível de um agir social cons- ou procurar inferir, a partir de observações, o comportamento das uni-
tituem tipos da acção compreensíveis (na acepção aqui utilizada do termo), dades fisiológicas: das células, por exemplo, ou quaisquer elementos psí-
ou seja: «regras sociológicas». Constituem tipos sociológicos do acontecer quicos, ganhar regras («leis») para esse comportamento e «explicar» cau-
salmente com a sua ajuda, ou seja: colocar, sob regras, processos singulares.
real apenas as construções racionais de uma acção compreensível signifi-
À interpretação da acção, no entanto, apenas regista tais factos e regras
cativamente que possam observar-se na realidade pelo menos com um qual-
+

592 593
na mesma medida e sentido em que toma conhecimento de quaisquer cado causal altamente poderoso, amiúde francamente dominante, para a
outras situações de facto (por exemplo, físicas, astronómicas, geológicas, natureza do desenrolar da acção das pessoas reais. Em primeira linha como
metereológicas, geográficas, botânicas, zoológicas, fisiológicas, anatómicas, representações de algo que dere (ou também: não deve) — ser-válido. Um
psicopatológicas alheias ao sentido, ou condições científicas de factos «Estado» moderno existe, em parte não desconsiderável, nesta forma: —
técnicos). , como complexo de uma actuação comum específica de pessoas, — porque
Para finalidades por sua vez diferentes do conhecimento (jurídicas, determinadas pessoas orientam a sua actuação segundo a representação
por exemplo) ou para fins práticos, pode por outro lado ser adequado e de que ele existe ou deve existir desta maneira: de que, por conseguinte.
francamente inevitável tratar estruturas sociais («Estado», «Cooperativa», são válidos regulamentos dessa natureza orientada juridicamente. Sobre
«Sociedade Anónima», «Fundação») exactamente como se se tratasse de isto, veja-se adiante). Enquanto que para a terminologia própria da socio-
indivíduos singulares (por exemplo na qualidade de portadores de direitos logia (cf. a) seria possível, embora manifestamente pedante e prolixo, eli-
e deveres ou de autores de actos juridicamente relevantes). Para a inter- minar totalmente da linguagem comum os conceitos utilizados não só para
pretação compreensiva do agir por parte da sociologia, em contrapartida, o dever — ser — válido jurídico como também para o acontecer real. e
estas estruturas não passam de desenvolvimentos e conexões da acção espe- substituí-los por palavras construídas totalmente de novo, para um estado
cífica de pessoas singulares, uma vez que são veículos compreensíveis de de coisas importante como este, pelo menos, isso estaria naturalmente
excluído; — c) O método da chamada sociologia «organicista» (tipo clás-
acção orientada significativamente. Apesar disto, a sociologia não poderá
sico: a engenhosa obra de Shãffle: Bau und Leben des Sozialen Kôrpers)
ignorar, mesmo para Os seus próprios fins, essas estruturas colectivas de
procura explicar a acção conjunta social a partir de um «todo» (por
pensamento de outras perspectivas de análise. Pois a interpretação do agir
exemplo, de uma «macro-economia»), no seio da qual o particular e o seu
relaciona-se com esses conceitos colectivos das seguintes três formas: a)
comportamento são interpretados de modo semelhante, como por
ela própria se vê frequentemente obrigada a trabalhar com conceitos colec-
exemplo a fisiologia trata a posição de um «órgão» do corpo no «orça-
tivos muito semelhantes (amiúde designados mesmo de modo idêntico),
mento» do organismo (quer dizer, a perspectiva da sua «conservação»).
meramente para lograr adquirir uma terminologia compreensível. Tanto
(Atente-se, comparativamente, ao célebre dito de um fisiólogo em sessão
a linguagem dos juristas como a linguagem do quotidiano designam, por
académica: «$x:: O baço. Sobre o baço nada sabemos, meus senhores. E
exemplo, por «Estado» simultaneamente o conceito e essa realidade da
é tudo, quanto ao baço.» Na realidade, a pessoa em questão «sabia», natu-
acção social para a qual as regras jurídicas pretendem ser válidas. Para a
ralmente, bastantes coisas sobre o baço: situação, volume, forma, etc. —
sociologia, a realidade «Estado» não é necessariamente constituída apenas
só não sabia determinar-lhe a «função», e é a esta incapacidade que cha-
ou precisamente pelas componentes juridicamente relevantes. E em qual-
mava «nada saber».) Deixemos por debater, por agora, até que ponto nou-
quer caso não existe para ela personalidade colectiva «actuante». Ao falar
tras disciplinas este tipo de apreciação funcional das «partes» de um «todo»
de «Estado», ou «nação», ou «sociedade anónima», ou «família», ou «corpo
deve ser (necessariamente) definitivo: é sabido que a análise bioquímica
militar», ou «estruturas» semelhantes, refere-se, sim, meramente a um
e biomecânica não iria, por princípio, dar-se por satisfeita com essa apre-
desenrolar, de natureza determinada, de actuação social de singulares, efec-
ciação. Para uma sociologia interpretativa, esse modo de expressão: 1. pode '
tiva ou construída como possível, emprestando portanto ao conceito jurí-
servir fins de ilustração prática e orientação provisória (sendo, nesta função.
dico, que utiliza por força da sua precisão e familiaridade, um sentido sub-
altamente útil e necessário, mas sem dúvida também, em caso de sobre-
jacente totalmente distinto; — b) a interpretação do agir deve ter em conta
-estimação do seu valor cognitivo e de um falso realismo conceptual, alta-
o facto fundamentalmente importante de que estas estruturas colectivas mente prejudicial). E 2.: só ele nos pode, em determinadas circunstâncias,
pertencentes ao pensamento quotidiano, ao pensamento jurídico (ou a ajudar a descobrir a acção social cuja compreensão interpretativa é impor-
outra disciplina do pensamento), são representações de algo que, em parte, tante para a explicação de um contexto. Mas é neste ponto precisamente
é ente, em parte é um dever — ser-válido na mente de pessoas reais (não que começa, e só então, o trabalho da sociologia (na acepção aqui enten-
só de juízes e funcionários, mas também do «público»), pelas quais a sua dida do termo). É que, no caso das «estruturas sociais» (em oposição a «orga-
acção se orienia, e que essas representações, como tais têm um signifi- nismos»), encontramo-nos na situação, para lá da mera constatação de

594 595
conexões e regras funcionais («leis»), de realizar algo de eternamente ina-)' com a constatação do qual a investigação se tem de contentar. Durante
cessível a toda a «ciência da natureza» (no sentido do estabelecimento de largo tempo, tudo 6 que foi mais além não passou de mera especulação.
regras causais para acontecimentos e estruturas, e da «explicação» dos acon- como as pesquisas acerca da medida em que herança, por um lado, meio
tecimentos singulares daí decorrentes): precisamente a «compreensão» do ambiente por outro, poderiam ter intervenção no desenvolvimento destas
comportamento dos singulares intervenientes, enquanto não «compreen- predisposições «sociais». (Inserem-se aqui nomeadamente as controvérsias
demos» o comportamento, por exemplo, de células, mas apenas o conse- entre Weismann — cuja «omnipotência da selecção natural» jogava forte-
guimos apreender funcionalmente, determinando-o então segundo regras mente nos seus fundamentos, com deduções extra-empíricas — e Gótte.)
do seu desenvolvimento. Sem dúvida que este rendimento acrescido da A investigação séria está naturalmente de acordo em que essa limitação
explicação interpretativa perante a observada é conseguido à custa do ao conhecimento funcional se trata justamente de uma auto-satisfação
carácter essencialmente mais hipotético e fragmentário dos resultados forçada e, assim se espera, meramente provisória. (Sobre o actual estado
alcançáveis por interpretação. Seja como for: é isso precisamente que 0 da investigação acerca das térmites, veja-se por exemplo o trabalho de
conhecimento sociológico tem de específico. Escherich 1909.) Não gostaríamos precisamente de nos limitar a reconhecer
Deixamos inteiramente por debater, por ora, em que medida também a «importância para a conservação», bastante facilmente apreensível, das
o comportamento dos animais nos é «compreensível» significativamente, funções de cada um desses tipos diferenciados, e acolher como demons-
e inversamente — o que, num caso como no outro, é de sentido altamente trada a maneira como essa diferenciação é explicável aceitando ou não
incerto e alcance problemático —, e em que medida, portanto, teorica- (e, no primeiro caso, com que tipo de interpretação dessa aceitação) a here-
mente, poderia também existir uma sociologia das relações do homem com ditariedade de características adquiridas. Importa também saber: 1. 0 que
os animais (animais domésticos, animais de caça) (muitos animais «com- será que decide o surgimento da diferenciação do indivíduo inicial ainda
preendem» uma ordem, cólera, amor, um intento agressivo, e reagem-lhes neutro e indiferenciado, — 2. o que ocasiona que o indivíduo diferen-
manifestamente, amiúde, de modo não exclusivamente mecânico- ciado se comporte (em média) de uma forma que efectivamente serve os
-instintivo, mas de certa forma também em consciência significativamente interesses de conservação do grupo diferenciado. Onde quer que o tra-
e segundo uma orientação de experiência). O grau da nossa capacidade balho neste domínio progrediu, fê-lo por via experimental, através de com-
de empatia ante o comportamento dos «homens da natureza» em si não provação (ou suposição) de excitantes químicos ou situações fisiológicas
é essencialmente superior. Não dispomos, porém, minimamente, ou de (processos de nutrição, castração parasitária, etc.) nos indivíduos singu-
modo apenas muito insuficiente, de meios seguros para determinar a rea- lares. Até que ponto subsiste a problemática esperança de tornar provável,
lidade subjectiva no animal: os problemas da psicologia animal são, como experimentalmente, também a existência de uma orientação «psicológica»
é sabido, tão interessantes quanto espinhosos. É sobejamente conhecida e «significativa», É coisa que de momento o próprio especialista terá difi-
a existência de socializações animais da mais variada espécie: «famílias» culdade em dizer. Uma imagem controlável da psique destes indivíduos
monogâmicas e polígamas, rebanhos, manadas e por fim «Estados» com animais sociais, baseada numa «compreensão» significativa, apenas se afi-
repartição de funções. (O grau de diferenciação funcional destas socializa- gura alcançável, mesmo como objectivo ideal, sem dúvida dentro de
ções animais não acompanha de modo algum em paralelo o grau de dife- estreitos limites. Seja como for, não é a partir daí que há a esperar a «com-
renciação dos órgãos ou do desenvolvimento morfológico da espécie preensão» do agir social humano, mas precisamente o inverso: é com ana-
animal em questão. É assim que a diferenciação nas térmites é mais acen- logias humanas que aí se trabalha e se tem de trabalhar. Poderemos esperar,
tuada, e consequentemente os seus artefactos de longe mais diferenciados quiçá, que tais analogias venham um dia a ser-nos úteis para a formação
do que entre as formigas e abelhas.) Aqui, a apreciação puramente fun- do seguinte problema: como se deve apreciar, nos estádios primitivos da
cional, ou seja, a determinação das funções, decisivas para a conservação diferenciação social humana, a esfera da diferenciação puramente mecà-
das espécies animais em questão, funções como a alimentação, defesa, pro- nica — instintiva relativamente ao que é compreensível significativamente
pagação, reprodução, próprias dos tipos singulares de indivíduos («reis», ao indivíduo e por conseguinte ao que é criado conscientemente de modo
«rainhas», «obreiras», «soldados», «zângão», «reprodutores», «rainhas subs- racional. A sociologia compreensiva deverá obviamente estar ciente de que,
titutas», etc.), é muito frequentemente, pelo menos para já, o definitivo nos estádios primitivos também do homem, a primeira das duas compo-

596 597
nentes é absolutamente predominante, devendo permanecer co mesmo interpretativamente, em termos exactamente tão
«individualistas», ou seja,
consciente da sua contínua intervenção (no a ç c a partir do agir dos singulares, dos tipos de
modo «funcionários» que nela
importância decisiva) nos estádios ulteriores da evolução. To Ação ocorrem —, como por exemplo os processos de
troca o são através da
«tradicional» (82) e largas camadas do «carisma» (Cap ID), na au ace de teoria da utilidade marginal (ou qualquer outro métod
o «melhor» a encon-
núcleos de um «contágio» psíquico e por conseguinte veículos de «estí- trar, mas análogo neste ponto). Pois invariavelme
nte, e aqui também, o
mulos sociológicos ao desenvolvimento» aproximam-se De com trabalho empírico-sociológico começa antes de
mais pela pergunta: que
fronteiras de gradação imperceptíveis — desses processos que só os motivos determinaram e determinam os funcionários
e membros singu-
camente se podem compreender e que só fragmentariamente, s não lares desta «comunidade» a que se comportem de
maneira a que ela sur-
mesmo de todo, são interpretáveis em termos de compreensão ç Exp cá gisse e perdurasse? Toda a estrutura conceptual
funcional (partindo do
veis em termos de motivação. Tudo isso, porém, não cornos aa co «todo») realiza, nisso, um mero trabalho prévio,
cuja utilidade e indispen-
logia compreensiva da tarefa de realizar, na consciência os ai e os sabilidade — seja ele executado correctamente —
são naturalmente incon-
limites a que está confinada, aquilo que precisamente, mais L, testáveis.
Ó lizar. =" 10. As «leis», termo pelo qual se costumam design
ar várias proposi-
ve de dios trabalhos de Othmar Spann, amiúde ricos em boas ideias, ções da sociologia compreensiva, — por exemp
lo a «lei» de Gresham —
aliadas, é certo, a mal-entendidos ocasionais € acima de tudo a saca. são probabilidades típicas, corroboradas pela observ
ação, de um desen-
tações baseadas em puros juízos de valor que não perene a rolar da acção social que, em presença de deter
minado estado de coisas.
a en qe se pode esperar — e que são compreensíveis a partir
gação empírica, têm indubitavelmente razão em de motivos típicos
essa, aliás, por ninguém seriamente contestada — o na era e de um sentido tipicamente visado dos agentes.
Compreensíveis e uní-
-questionamento funcional (a que chama «método universa jota) P Joc vocas ao mais alto grau, sê-lo-ão contando que motivo
s puramente racio-
a sociologia. Certamente que precisamos antes de mais de saber q nais dirigidos a um fim estejam subjacentes ao decurs
o tipicamente obser-
acção que funcionalmente é importante do ponto de vista da «conser- - vado (ou sejam tomados, por razões de adequação,
como fundamento do
vação» (mas para além disto e acima de tudo precisamente dnem o tipo metodologicamente construído), e na medid
a em que, ao mesmo
ponto de vista da singularidade cultural!) e da perspectiva do ese ont tempo, for unívoca (no caso do meio «inevitável»
, segundo princípios de
mento, numa determina da direcção, de um tipo de acção o oua P a experiência, a relação entre meio e fim. Neste
caso, é admissível o enun-
depois podermos colocar a questão: como se dá esta aeção! Quais o ciado de que, se se actuasse de forma rigorosament
e racional dirigida a
motivos que a determinam? Há que saber, primeiro, aquilo qu e um fim, deveria actuar-se de uma certa maneira
e não de outra (porque
um «funcionário», um «empresário», um «proxeneta», um as Os intervenientes, para servir os seus fins — univo
camente determiná-
lizam; que «acção» típica (sendo isso, exclusiva mente, que permite r pia veis — dispõem, por razões técnicas, destes meios apenas, e de nenhum
sob uma destas categorias) é, pois, important e para a análise cm o outro). Precisamente este caso demonstra, simult
aneamente, como é
consideração, antes de podermos passar à análise propriamente ita (a e erróneo considerar uma «psicologia» qualquer
como o «fundamento»
rência aos valores» no sentido de H. Rickert). Mas só esta a pe o último da sociologia compreensiva. Hoje em dia,
cada pessoa entende por
lado, realiza aquilo que a compreensão sociológica da acção ) pe VS «psicologia» uma coisa diferente. Objectivos metod
ológicos bem deter-
singulares tipicamente diferenciadas (e: só no caso do comem 2 e minados justificam, para um tratamento científico-n
atural de certos pro-
portanto, deve realizar. Em todo o caso, há que eliminar o e a cessos, a separação entre o «físico» e o «psíquico»,
que neste sentido é alheia
-entendido segundo o qual um método «individualista» signi a às disciplinas da acção. Os resultados de uma ciênci
a psicológica, qual-
valoração individualista (em qualquer sentido possível) do mesmo E o quer que seja a sua estruturação metodológica, que
investigue o psíquico
que a opinião de que o carácter inevitavelmente (relativamente) ra om apenas no sentido de uma metodologia científico-n
atural, com meios pró-
lista da estrutura conceptual significa a crença no predomínio dos mo De prios das ciências da natureza, e que por conseg
uinte, ndo interprete o
racionais, ou mesmo, uma valoração positiva do sracionalismo». . o comportamento humano no seu sentido visado —
o que é totalmente dife-
uma economia socialista deverá, sociologicamente, ser compreen ; Tente —, podem naturalmente, na exacta medida
dos de qualquer outra

598 599 l
“cimento desta na medida em que, mediante indicação do grau de aproxi-
ciência, adquirir, em casos particulares, significado para uma constatação
mação de um fenómeno histórico a um ou mais destes conceitos, pode
sociológica, alcançando-o mesmo, € em larga medida, muitas das vezes.
classificar tais fenómenos. O mesmo fenómeno histórico pode, por
Contudo, a sociologia não tem com ela quaisquer relações de um modo
exemplo, ser de natureza «feudal» em parte dos seus componentes, «patri-
geral mais estreitas do que as verificadas com todas as outras disciplinas.
«psf, monial» numa outra parte, «burocrático» numa outra ainda, é «carismático»
O erro reside no conceito de «psíquico»: o que não é «físico», será
numa última. Para que com estes termos se vise algo de unívoco, a socio-
quico». Mas o sentido, visado por alguém, de um cálculo aritmético, não
logia terá de elaborar tipos («ideais») «puros» de estruturas desses géneros
será seguramente «psíquico». À reflexão de uma pessoa sobre se um deter-
que revelem, cada uma em si, a unidade coerente de uma adequação de
minado acto será ou não profícuo a interesses definidamente dados,
sentido tanto quanto possível completa, mas que precisamente por isso
segundo as consequências que dele há a esperar, e a decisão tomada de
ocorrem de facto, nesta forma pura absolutamente ideal, talvez tão escas-
acordo com o resultado, não se tornam minimamente mais compreensí-
samente como uma reacção física considerado sob o pressuposto de um
veis por intermédio de considerações «psicológicas». E porém precisamente
espaço absolutamente vazio. Só a partir do puro tipo («ideal») é possível
sobre tais pressupostos racionais que a sociologia (incluindo a macro-
uma casuística sociológica. É por si evidente que a sociologia, para além
-economia) constrói a maior parte das suas" gleis». Em contrapartida, na
disso, utiliza, segundo as ocasiões, também o tipo médio, do mesmo género
explicação sociológica de irracionalidades do agir, a psicologia compr er
rele-
dos tipos empírico-estatísticos: — uma construção que não requer escla-
siva pode na realidade, sem dúvida, prestar serviços decisivamente
recimento metodológico especial. Quando fala, porém, de casos «típicos»,
vantes. O que, porém, em nada altera o estado de coisas fundamental da
. refere-se sempre, em caso de dúvida, ao tipo ideal, que pelo seu lado pode
metodologia.
jser racional ou irracional, embora na maior parte das vezes (na teoria macro-
11. A sociologia constrói — como várias vezes se pressupõe como
“económica, por exemplo) seja racional, e invariavelmente construído com
evidente — conceitos-tipo, e procura regras gerais do acontecer. Em con-
adequação de sentido.
traposição com a história, que se empenha na análise e imputação causais
Importa estarmos cientes de que na esfera sociológica «médias» e por
| de actos, estruturas e personalidades individuais culturalmente impor-
conseguinte «tipos médios» apenas se podem construir em alguma medida
tantes. A estrutura conceptual da sociologia vai buscar o seu material , sob
univocamente quando se trate de meras diferenças de gradação em com-
a forma de paradigmas, essencialmente embora não exclusivamente, às rea-
portamentos qualitativamente iguais em espécie, determinados significa-
lidades da acção que são também relevantes na perspeciiva da história.
tivamente. Casos como esses apresentam-se. Na sua
Constrói os seus conceitos e busca as suas regras, igualmente com o Objec-
maioria, porém, a
actuação histórica ou sociologicamente relevante é influenciada por
tivo de, por esse meio, poder prestar serviço à imputação causal histórica
-| motivos qualitativamente heterogéneos, de entre os quais se não pode de
dos fenómenos culturalmente importantes. Tal como em toda a ciência
modo algum retirar uma «média», no verdadeiro sentido. As construções
generalizadora, a singularidade das suas abstracções determina necessaria-
ideal-típicas da acção social de que trata, por exemplo, a teoria económica,
mente que os seus conceitos, face à realidade concreta do histórico, sejam
são pois «estranhas à realidade» no sentido em que — neste caso — se inter-
relativamente vazios de conteúdo. O que em contrapartida tem para ofe-
rogam sem excepção como se actuaria no caso de uma racionalidade em
recer, é uma acrescida univocidade de conceitos. Esta univocidade acres-
finalidade simultaneamente ideal e de orientação puramente
cida é alcançada por meio de um óptimo tão perfeito quanto possível de económica,
para 1. poder compreender a acção real co-determinada por inibições tra-
adequação significativa, como é aspiração da construção conceptual socio-
dicionais, afeições, erros, intervenção de objectivos ou considerações não
lógica. Esta adequação pode alcançar-se com suma integralidade — e esse
económicos, e assim compreen em queder
medida essa acção foi de facto
tem sido até agora o objecto preponderante de consideração — em con-
co-determinada economicamente, eracional emment
finalidade
e , no caso
ceitos e regras racionais (racionais em valor ou racionais em finalidade).
concreto, ou em que medida
o é habitualmente — quando a análise incida
Mas a sociologia procura também apreender fenómenos irracionais (mis-
sobre a média, 2. mas também: para facilitar o conhecimento dos seus ver-
ticos, proféticos, pneumáticos, afectivos) em conceitos teóricos € signifi-
cativamente adequados. Num e noutro caso, quer se trate do racional, dadeiros motivos, precisamente através da distância entre o seu real desen-
rolar e o desenrolar ideal-típico. De modo exactamente correspondente
quer do irracional, a sociologia distancia-se da realidade e serve o conhe-

600 601
teria de proceder uma construção ideal-típica de uma atitude a-cósmica
| coerente, misticamente condicionada, perante a vida (por exemplo, face
à política e à economia). Quanto mais rigorosa e univocamente construídos
forem os tipos ideais, quanto mais alheios ao mundo, portanto, neste sen-
tido, melhor cumprem a sua função, não só em termos de terminologia
e classificação, como também heuristicamente. A imputação casual con-
creta de eventos singulares por obra da história não procede, em subs-
tância, diferentemente quando, para explicar por exemplo o desenrolar
da campanha de 1866, começa por determinar (em pensamento), tanto
com respeito a Moltke como a Benedek (e assim tem de fazer, absoluta-
mente): como é que cada um deles teria disposto, e em caso de uma racio-
nalidade com finalidade ideal, com conhecimento cabal da sua própria
2. A «OBJECTIVIDADE» DO CONHECIMENTO NAS CIÊNCIAS
situação e da situação do inimigo, para com isso comparar como é que,
SOCIAIS E EM POLÍTICA SOCIAL *
efectivamente se dispôs, e então explicar casualmente o afastamento jus-
tamente observado (seja ele condicionado por informações falsas, seja por
À primeira interrogação com que uma revista de ciências sociais e,
erro efectivo ou de raciocínio, temperamento pessoal ou considerações
sobretudo, de política social costuma ser acolhida, ao aparecer ou ao tran-
extra-estratégicas). Também aqui é utilizada (de forma latente) uma cons-
sitar para um novo corpo redactorial, é a de saber qual a sua «tendência».
trução ideal-típica racional dirigida a um fim.
da sociologia, contudo, são ideal-típicos Também nós não nos podemos esquivar a uma resposta a essa pergunta
Os conceitos construtivos
e dela trataremos, colocando-a de certo modo como uma questão de prin-
não só externa como também internamente. A acção real desenrola-se,
cípio, na sequência das observações feitas na nossa «nota introdutória».
na grande maioria dos casos, na obscura semi-consciência ou na incons-
Com isso se proporciona a oportunidade de esclarecer, em vários aspectos,
ciência do seu «sentido visado». O agente «sente-o» mais indefinidamente
a especificidade daquilo que entendemos por trabalho em «ciências
do que o saberá, ou mais que dele «estaria claramente ciente», actua na
sociais» — o que pode ser útil, se não ao especialista, pelo menos a muito
maioria dos casos instintivamente ou por hábito. Só ocasionalmente — e
no caso de acções análogas em massa, só com alguns indivíduos —, se eleva leitor mais afastado da praxis do trabalho científico, embora estejam em
à consciência um sentido (seja racional, seja irracional) do agir. Acção ver- causa «evidências», ou antes, precisamente porque são «evidências» que
estão em causa.
dadeira e efectivamente significativa, quer dizer, que o é em plena cons-
ciência e clareza, não passa em realidade, invariavelmente, de um caso- 4 par do alargamento dos nossos conhecimentos sobre as «condi-
limite. Toda a apreciação histórica ou sociológica, ao analisar a realidade, ções sociais de todos os países», isto é, sobre os factos da vida social, desde
terá sempre de tomar em consideração este facto. Tal não deverá, no sempre tem sido também objectivo declarado da Archiv a formação do

| entanto, impedir que a sociologia construa os seus conceitos por classifi- exercício do juízo sobre problemas práticos dessa mesma vida social e,
cação do «sentido visado» possível, ou seja, portanto, como se o agir Se do mesmo passo, — na medida, naturalmente muito modesta, em que um

|desenrolasse efectivamente com orientação consciente de sentido.


Tratando-se da apreciação da realidade na sua concreticidade, terá em toda
tal objectivo pode ser promovido por estudiosos a nível privado — a crí-
tica ao trabalho sócio-político da praxis, incluindo mesmo os factores legis-
e qualquer altura de tomar em consideração o afastamento em relação a lativos. Ora, não obstante, a Archiv pretendeu, desde o princípio, ser uma
essa realidade, determinando-o em grau e género. E revista exclusivamente científica, trabalhar apenas com os meios de inves-
| Em termos de método, precisamente, depara-se-nos, com frequência, tigação científica. Pôe-se então a questão de saber como, por princípio,
iapenas uma escolha entre termos confusos e termos claros, embora irreais
le «ideal-típicos». Neste caso, contudo, deverão preferir-se, cientificamente,
leste últimos. (Sobre tudo isto, veja-se o meu já citado artigo no Archiv
/ fiir Sozialwissenschaft XIX, loc. cit. [veja-se supra pág. 4,n.º 6). * Ob. cit, pp. 146-214.

602 603
então preponderância na nossa ciência uma combinação de evolucionismo
se pode conciliar o objectivo atrás referido com a limitação a estes meios.
ético e de relativismo histórico, a qual tentou despir as normas éticas do
Quando a Archiv permite que nas suas colunas se emitam juízos sobre
relati-. seu carácter formal e, através da inclusão da totalidade dos valores cultu-
medidas legislativas e administrativas ou sobre propostas práticas
as normas para rais no âmbito do «moral», procurou determinar o conteido deste último
vamente a essas medidas, o que significa isso? Quais são
e, assim, elevar a economia política à dignidade de uma «ciência ética» de
esses juízos? Qual é a validade dos juízos de valor formulados por aquele
escritor? bases empíricas. AO imprimir a marca do «moral» à globalidade de todos
que julga ou dos que estão subjacentes às propostas práticas de um
os possíveis ideais culturais fazia-se desvanecer a dignidade específica dos
Em que sentido se encontram eles então no terreno da discussão cienti-
imperativos éticos, sem que isso, no entanto, em nada contribuísse para
fica, já que o traço característico científico está em que os seus resultados
a «objectividade» do valor daqueles ideais. Podemos e devemos, entre-
têm de valer «objectivamente» como verdade?
tanto, abster-nos aqui de uma discussão de princípios a esse respeito,
Vamos apresentar primeiro O nosso ponto de vista sobre essa questão,
atendo-nos simplesmente ao facto de ainda não ter desaparecido — e ser
para depois a ligarmos a outra, de âmbito mais vasto, que é a seguinte:
mesmo corrente entre os práticos, como é compreensível — a noção con-
em que sentido pode dizer-se que há «verdades objectivamente válidas»
fusa de que a economia política elabora, ou tem de elaborar, juízos de
no domínio das ciências da cultura em geral? Perante uma contínua
mais valor a partir de uma «mundividência» especificamente «económica».
mudança, e dada a acesa luta em torno dos problemas aparentemente
da maneira de formar os seus ; Como representante de uma disciplina empírica, a nossa revista não .
| elementares, dos seus métodos de trabalho,
não pode ser iludicda. pode deixar de recusar fundamentalmente essa noção — queremos
| conceitos e da validade destes, esta segunda questão
r | declará-lo desde já —, uma vez que somos de opinião de que jamais poderá
. O que aqui pretendemos não é oferecer soluções, mas sim apresenta
(mp a uma ciência empírica o estabelecimento de normas e ideais
- problemas — nomeadamente aqueles a que a nossa revista terá de dedicar
vinculativos, para deles poder derivar receitas para a praxis.
| a sua atenção para satisfazer as exigências da tarefa que até agora tem sido i

Ora, que consequências tem esta posição? Não é, de modo algum,


a sua, e de que continuará a incumbir-se no futuro.
de concluir que os juízos de valor se subtraem à discussão científica pelo
facto de, em última análise, se basearem em determinados ideais e, por-
tanto, serem de origem «subjectiva». A praxis e o objectivo da nossa revista
contrariam repetidamente essa posição. A crítica não se detém perante
juízos de valor. A questão está antes em saber o que significa e o que pre-
Todos sabemos que a nossa ciência, tal como toda a ciência (à
tende a crítica científica de ideais e juízos de valor. E esta questão requer
excepção talvez da história política) que tenha como objectivo as institui-
em uma análise mais aprofundada.
ções e os processos culturais humanos, teve origem historicamente
imediato e inicialme nte, | Toda a reflexão sobre os elementos últimos da actividade humana
considerações de ordem prática. O objectivo
icom sentido está, antes de mais, ligada às categorias «objectivo» e «meio».
único, foi a elaboração de juízos de valor sobre determinadas medidas esta-
|Nós queremos qualquer coisa ir concreto, ou «pelo seu próprio valor»,
tais de política económica. Ela era uma «técnica», mais ou menos no sen-
/ ou como meio ao serviço do que queremos em última instância. A questão
tido em que o são, também, as disciplinas clínicas das ciências médicas.
| que em primeiro lugar se impõe como acessível à investigação científica
Ora, é sabido como essa situação se modificou gradualmente, sem que,
[é a da adequação dos meios perante um dado objectivo. Uma vez que
no entanto, se tivesse levado a efeito uma separação de princípio entre
o conhecimento daquilo «que é» e o conheci mento daquilo que «dcve sem | temos a capacidade de estabelecer de forma válida (dentro dos limites que
| se põem em cada caso ao nosso saber) quais os meios que são adequados
a opinião de que os processos econó-
A esta separação obstou, primeiro, |
| ou inadequados para alcançar o objectivo que nos propomos, podemos,
micos seriam dominados por leis naturais invariavelmente idênticas e,
por essa via, ponderar as probabilidades de atingir um determinado objec-
depois, uma outra, segundo a qual esses mesmos processos seriam regidos
- tivo com os meios à nossa disposição. Podemos, portanto, exercer uma
por um unívoco princípio de desenvolvimento, pelo que o dever ser coin-
| crítica indirecta sobre o próprio objectivo proposto, considerando, em
cidiria, ou — no primeiro caso — como imutável ente, ou — no segundo
função da situação histórica do momento, que tem sentido, do ponto de
caso — inevitável devir. Com o despertar do sentido histórico, ganhou

604 605
4 Mas o tratamento científico dos juízos de valor não consiste apenas
vista prático ou, pelo contrário, conforme as condições, que carece de
sentido. Quando se revela evidente a possibilidade de atingir um objec- em fazer compreender e reviver os objectivos pretendidos e os ideais que
itivo proposto, e dado que num acontecimento tudo está inter-relacionado, lhes estão subjacentes. Consiste, acima de tudo, em ensinar a «julgá-los»
criticamente. É claro que essa crítica só pode ter carácter dialéctico, isto
Ipodemos também — sempre dentro dos limites do nosso saber, natural-
mente — determinar que consequências teria o emprego dos meiós neces- é, só pode constituir uma avaliação lógico-formal da matéria contida nos
sários, para além da eventual consecução do objectivo visado. Damos juízos de valor e nas ideias historicamente dados, examinando os ideais
então àquele que age a possibilidade de ponderar as consequências não à luz do postulado da não contradição interna daquilo que se quer. A crí-
ipretendidas da sua actividade e, com isso, de responder a esta pergunta: tica pode, propondo-se esse objectivo, ajudar aquele que quer a tomar,
«custa» a prossecução do objectivo pretendido, isto é, que outros valores consciência dos axiomas últimos que estão subjacentes ao conteúdo
se prevê sejam lesados? Como, na grande maioria dos casos, todo o objec- daquilo que ele quer ou dos valores-padrão de que ele inconscientemente
tivo almejado «custa» ou pode custar neste sentido alguma coisa, a cons- parte ou deveria partir para ser consequente. Elevar à consciência os
ciência do homem que age responsavelmente não pode evitar confrontar padrões últimos que se manifestam no juízo de valor concreto é, de resto,
o objectivo com as consequências da actividade. Possibilitar esse confronto a última coisa que ela pode permitir-se fazer sem pisar o terreno da espe-
é uma das funções essenciais da crítica técnica, que temos estado a consi- culação. Se o sujeito que ajuíza deve ou não professar esses padrôesúltimos,
derar. Mas passar desse confronto à decisão já não pode evidentemente, depende da questão da sua vontade e da
isso é com gie. Bessoalmente, def
competir à ciência; isso
compete
à pessoa que quer. É ela que pondera sua consciência, e não do saber empírico.
e escolhe, segundo a sua própria consciência e a sua mundividência pes- Uma-ciência-empírica
não poderá ensinar a ninguém. o que.deve. mas ” .
soal, entre valores que estão em jogo. A ciência pode ajudá-la a tomar cons- apenasO que pode e, eventualmente, O que quer. É verdade que no
ciência de que todo o agir, como naturalmente também, conforme as cir- domínio das nossas ciências costumam intervir constantemente as mun-
cunstâncias, O não agir, significa pelas suas consequências uma tomada 'divisões pessoais, inclusivamente na argumentação científica, que frequen-
de posição em favor de determinados valores e, por isso, em regra, contra temente perturbam. Levam a avaliar de modo diverso o peso dos argu-
| outros valores — o que de bom agrado se tende a ignorar hoje em dia. mentos ; científicos, mesmo no âmbito da investigação de relações de
LÉ à pessoa que compete a escolha. causalidade simples, conforme o resultado faz diminuir ou aumentar as
Para a ajudar a decidir-se, podemos ainda dar-lhe a conhecer o signi- probabilidades de sucesso dos ideais pessoais, isto é, a possibilidade de
| ficado daquilo que ela pretende. Podemos ensiná-la a conhecer os objec- querer determinada coisa. A este respeito também os editores e colabora-

|
à tivos que quer e entre os quais escolhe, em função das suas conexões e dores da nossa revista crêem decerto que «nada do que é humano lhes
do seu significado, começando por indicar e desenvolver, de maneira logi- é alheio». Mas vai uma grande distância entre esta confissão de fraqueza
camente correcta, as «ideias» que estão ou podem estar subjacentes ao humana e a crença numa ciência «ética» da economia política que teria

|
objectivo concreto. Porque é óbvio que uma das tarefas essenciais de toda como função a elaboração de ideias a partir da sua própria matéria ou de
a ciência da vida cultural humana consiste em revelar à compreensão do normas concretas por aplicação a essa matéria de imperativos éticos gerais.
espírito as «ideias» pelas quais, real ou supostamente, os homens lutaram É verdade também que são precisamente os elementos mais íntimos da
ou lutam. Isso não ultrapassa os limites de uma ciência que aspira a uma isto é, os juízos de valor últimos e supremos, que deter-
«personalidade»,
«ordenação racional da realidade empírica», ainda que os meios que servem
minam a nossa actividade e dão sentido e significação à nossa vida, que
para a interpretação de valores do espírito dificilmente-se possam consi-
nós sentimos como algo de «objectivamente» dotado de valor. Só podemos
derar «induções» no sentido usual da palavra. De resto, essa palavra sai,
mesmo defendê-los se eles se nos apresentarem como válidos, decorrendo
pelo menos em parte, do âmbito da estrita ciência económica, nas suas
dos nossos valores vitais supremos, e se se forem desenvolvendo como
especialidades habituais, competindo antes à filosofia social. Acontece,
tal na luta contra os obstáculos da vida. E a dignidade da «personalidade»
porém, que o poder histórico das ideias teve e continua a ter tanta impor-
tância para o desenvolvimento da vida social, que a nossa revista não reside, sem dúvida, no facto de para ela haver valores a que se refere a
poderá furtar-se a essas questões, e incluirá entre os seus mais importantes sua própria vida — mesmo que se dê o caso particular de esses valores
deveres o seu estudo. se situarem exclusivamente dentro da esfera da própria individualidade.

606 607
Então a ideia que lhe serve de referência será O «gozar a vida» nos aspectos de outros factores, se torna também decisivo o grau de afinidade electiva
que pretende que sejam considerados valores. Como quer que seja, só que liga essa mundividência ao seu «interesse de classe» — se é que
pressupondo a crença em valores é que tem sentido tentar defender exte- podemos aceitar aqui este conceito, apenas unívoco na aparência. Em todo
riormente juízos de valor. Mas ajuizar da validade de tais valores é do o caso, uma coisa é certa: quanto «mais geral» é o problema em análise,
domínio da crença, cabendo talvez também ao pensamento especulativo for o alcance do seu significado cultural, tanto menos
” . A -

ou seja, quanto maior


e à interpretação do sentido da vida e do mundo, mas não é, com certeza, acessível ele se torna a uma resposta unívoca a partir dos recursos do saber
objecto de -uma.ciência empírica, no sentido em que deve ser praticada empírico, e tanto maior é a interferência dos axiomas últimos, eminente-
na nossa revista. O factor decisivo desta separação não é, como muitas mente pessoais, da crença e das ideias de valor. É pura ingenuidade acre-
vezes se pensa, o facto empiricamente comprovável de que os fins últimos ditar, ainda que alguns especialistas por vezes o façam, que o papel da
são controversos € historicamente variáveis. Com efeito, também o conhe- ciência social prática consiste, acima de tudo, em estabelecer € consolidar
cimento das proposições mais certas do nosso saber teórico — como, por a validade científica de «um princípio», de que possam ser depois univo-
exemplo, as das ciências exactas, naturais ou matemáticas — é antes de camente deduzidas as normas para a solução dos problemas práticos par-
mais produto da cultura, tanto quanto o é o apurar e o refinar da cons- ticulares. Por muito necessário que seja, em ciências sociais, discutir pro-
ciência. Quando, porém, nos debruçamos sobre os problemas práticos da blemas práticos em termos de «princípios», isto é, remeter Os juízos de
política económica e da política social (no sentido habitual da palavra), valor que se nos impõem, independentemente de qualquer reflexão, para
então verificamos que há realmente muitas, há inúmeras questões parti- o seu conteúdo em ideias, e ainda que a nossa revista se proponha dedicar
culares de ordem prática em cuja discussão se parte por acordo unânime também especial atenção a esse género de questões, não lhe compete, no
da consideração de determinados objectivos como evidentes: pense-se, entanto, como não pode competir, em geral, a qualquer ciência empírica,
por exemplo, nos créditos de emergência, em tarefas concretas da higiene a elaboração de um denominador comum prático para Os nossos problemas
pública ou da assistência aos pobres, em medidas como as inspecções às na forma de ideais últimos universalmente válidos. Tal tarefa seria, não
fábricas, os conselhos de indústria, as verificações de trabalho, e em muitos só eventualmente insolúvel na prática, como também contraditória em si
aspectos da legislação laboral. Em todos estes casos, pelo menos aparen- mesma. E como quer que se interpretem o fundamento e o modo e vin-
temente, o que está em causa são apenas os meios para atingir o objec- culação dos imperativos éticos, o certo é que não se podem deduzir uni-
tivo. Mas mesmo que aí tomássemos como verdade a aparência de evi- vocamente conteúdos culturais a partir deles como se fossem normas para
dência — o que a ciência nunca faria impunemente — e pretendêssemos a actividade concretamente condicionada do indivíduo — e tanto menos
ver os conflitos que a tentativa de realização prática desses objectivos ime- quanto mais abrangentes forem os conteúdos em causa. Só as religiões
diatamente desencadeia como problemas puramente técnicos relacionados positivas, ou, mais exactamente, as seitas vinculadas a dogmas, podem
com a sua oportunidade — o que seria muitas vezes erróneo —, seríamos conferir ao conteúdo dos valores culturais a dignidade de mandamentos
obrigados a dar-nos conta de que também essa aparência de evidência éticos incondicionalmente válidos. Fora delas, os ideais culturais que o indi-
dos valores-padrão reguladores desaparece logo que passamos problemas víduo quer realizar e os deveres éticos que deve cumprir têm princípios
de dignidade variável. É o destino duma época cultural que se nutriu da
concretos da assistência social e económica, de feição caritativo-policial,
árvore do conhecimento o ter de saber que não podemos ler o sentido
para as questões da política social e económica. O que distingue o carácter.
do devir universal a partir do resultado da investigação que dele levamos
sócio-político de um problema é exactamente o facto de não poder ser
a efeito, por muito perfeita que seja. Temos de ser nós próprios capazes
resolvido com base em considerações meramente técnicas suscitadas por
de o criar. As «mundivisões» nunca podem ser produto dum progresso
objectivos firmemente estabelecidos, e de se poderem discutir os próprios
do saber empírico e, portanto, os mais elevados ideais, aqueles que mais
valores-padrão reguladores, de termos mesmo de os discutir, porque O ,
fortemente nos impelem, manifestam-se em todos os tempos apenas em
problema ascende ao âmbito das questões gerais da cultura. E essa dis- | luta contra outros ideais, que são tão sagrados para outros quanto o são,
E
|
cussão verifica-se não apenas, como se crê hoje em dia, entre «i s para nós, Os nossos.
de
classe», mas também entre mundividências. Com isso não se nega, é Só um sincretismo optimista, como o revelado, por vezes, pelo rela-
claro, que, seja qual for a mundividência que o indivíduo defende, a par tivismo histórico e evolucionista, se pode deixar iludir no plano teórico

608 609 o
acerca da extrema gravidade destes factos, ou furtar-se às suas consequên.' apreender bem o valor científico daquela análise teórica. A nossa revista
| cias na prática. E claro que, subjectivamente, num caso particular, para não vai, naturalmente, ignorar as tentativas, sempre e inevitavelmente reno-
: A . a
| O político prático pode ser exactamente tão conforme ao dever conciliar - vadas, de determinar inequivocamente o sentido da vida cultural. Pelo con-
duas opiniões que estão em oposição, como tomar partido por uma delas, trário: essas tentativas são até dos testemunhos mais importantes dessa
Mas isso não tem nada a ver com «objectividade» científica. O «meio termo» mesma vida cultural, e contam-se talvez entre as suas forças impulsiona-
não é nem um milímetro mais verdade científica do que os ideais parti- doras mais vigorosas. Por isso, seguiremos também sempre atentamente
dários extremistas de direita ou de esquerda. Não há lugar onde o inte- o desenvolvimento de discussões sócio-filosóficas neste sentido. Mais ainda:
resse científico acabe por estar mais mal defendido, do que onde não se longe de nós o preconceito de que as reflexões sobre a vida cultural que
querem ver os factos desagradáveis e a realidade da vida na sua dureza, tentam interpretar o mundo metafisicamente, passando além da ordenação
A Archiv combaterá incondicionalmente a prejudicial ilusão de que seja racional do dado empírico, não possam, por virtude deste seu carácter,
possível obter normas práticas com validade científica por síntese ou por desempenhar uma função em prol do conhecimento. A determinação
média de várias perspectivas partidárias. É que, comprazendo-se em enco- dessas funções é sem dúvida, um problema da teoria do conhecimento,
brir os seus próprios valores-padrão sob a capa do relativismo, ela repre- em primeiro lugar, e, tendo em vista os nossos objectivos, devemos e
senta um perigo muito maior para a isenção da investigação do que a velha podemos abster-nos de aqui lhe dar resposta. Para o nosso trabalho há
* * crença ingénua dos partidos na «demonstrabilidade» científica dos seus uma coisa em que insistimos: uma revista de ciência social, tal como a
dogmas. O que nós pretendemos é desenvolver de novo e com mais fir- entendemos, deve, na medida em que se ocupa de ciência, ser um lugar
““meza a capacidade de estabelecer a distirição entr nhecer e julgar, e onde se procura a verdade que — retomando o mesmo exemplo —
“cumpri tanto. o dever científico de vera verdade dos factos, Ever também para o chinês exige a validade de uma ordenação racional da rea-
prático de defender os próprios ideais. Co lidade empírica. Claro que os editores desta revista não podem em abso-
Há e haverá sempre — e é isso que é importante — uma diferença luto impedir-se a si próprios, nem impedir os seus colaboradores, de
intransponível entre uma argumentação que se dirige aos nossos senti- expressar também em forma de juízos de valor os ideais que os animam.
mentos e à capacidade de nos entusiasmarmos com fins práticos concretos Mas resultam daí duas obrigações importantes. À primeira consiste em,
ou com formas e conteúdos culturais, e aquela que, estando em causa a cada momento, tomarem eles próprios aguda consciência, e conscien-
normas éticas, se dirige à nossa consciência ou, finalmente à nossa capaci- cializarem os leitores, de quais são os valores-padrão segundo os quais
dade e à nossa necessidade de ordenar racionalmente a realidade empí- é medida a realidade e dos quais se faz derivar o juízo de valor, em vez
rica. E esta afirmação não deixa de ser exacta pelo facto de, como veremos de, como acontece com frequência, se andarem a iludir em torno dos con-
ainda, os supremos «valores» do interese prático serem, agora e sempre, flitos entre ideais, por uma imprecisa entrosagem de valores da mais diversa
de importância decisiva para a orientação adoptada em cada caso pela acti- espécie, pretendendo «oferecer alguma coisa a todos e a cada um». Se esta
vidade ordenadora do pensamento no domínio das ciências da cultura. obrigação for rigorosamente satisfeita, tomar uma posição avaliadora em
Pois é uma verdade indubitável que uma demonstração científica metodi- questões práticas pode ser, no interesse puramente científico, não apenas
camente correcta no domínio das ciências sociais, para atingir o seu objec- inócuo, mas até francamente útil e mesmo necessário. Na crítica científica
tivo, tem de ser reconhecida como certa também por um chinês ou, mais de propostas legislativas e de outras propostas práticas, não há, muitas
precisamente, é esse o alvo, quiçá não atingível por falta de material, que, vezes, outra maneira de esclarecer, de forma nítida e compreensível, o
em todo o caso, tem que ser almejado. Além disso, também a análise lógica alcance das motivações do legislador e dos ideais do autor criticado, senão
do conteúdo e dos axiomas últimos dum ideal e a exposição das conse- através do confronto dos valores-padrão do crítico. Toda a apreciação
quências que resultam, logicamente e na prática, da busca desse ideal, têm, dotada de um sentido, de um guerer alheio só pode ser uma crítica deri-
para serem consideradas bem feitas, de ser válidas também para um vada de uma mundivisão própria, uma contestação do ideal albeio com
chinês — conquanto ele possa ter falta de «ouvido» para os nossos impe- base no próprio ideal. Se, portanto, se der o caso de ser preciso, não só
rativos éticos e conquanto possa recusar, e muitas vezes recusará decerto, | definir e analisar cientificamente o axioma de valor último que está subja-
o próprio ideal e as valorizações dele decorrentes, não podendo, por isso, cente a uma manifestação prática da vontade, mas também evidenciar as
1
610 611 '
| relações que tem com outros axiomas de valor, então é inevitável a crítica lizmente, di-no-lo a experiência, em toda a parte e sobretudo na Alemanha,
«positiva» através da exposição destes últimos para efeitos de relacionação. os seus entraves psicológicos. Sintoma de um fanatismo partidário limi-
Por isso, nas colunas desta revista, especialmente quando se tratar tado e da falta de desenvolvimento de uma cultura política, que deve ser
de leis, a par da ciência social — a ordenação racional dos factos —, terá combatido a todo o custo, esse aspecto encontra-se numa revista como
também necessariamente a palavra a política social — a expósição dos a nossa particularmente agravado pela circunstância de o impulso para a
ideais. Mas não nos passa pela cabeça apresentar controvérsias dessa natu- abordagem de problemas científicos, no domínio das ciências sociais, partir
reza como «ciência», e desenvolveremos todos os esforços no sentido de normalmente, como o demonstra a experiência, de «questões» práticas.
jprecaver essa confusão. Então já não é a ciência que fala e, assim, o segundo Daí que o simples reconhecimento da existência de um problema cientí-
mandamento fundamental da isenção científica consiste em tornar, nesses fico se situe em dualística união com o querer, orientado numa direcção
casos, sempre claro aos leitores (e, repetimos, sobretudo a nós próprios!) determinada, de homens que vivem. Nas colunas de uma revista que inicia
que e onde acaba de falar o investigador racional e começa a falar o homem a sua existência sob a influência de um interesse generalizado por um pro-
que quer, onde os argumentos se dirigem ao entendimento e apelam aos blema concreto, encontrar-se-á, portanto, a colaboração regular de pes-
sentimentos. A constante confusão entre discussão científica dos factos soas que dedicam o seu interesse pessoal a esse problema por lhes parecer
| e argumentações axiológicas é uma das características mais vulgarizadas que os valores ideais em que crêem estão sendo ameaçados por determi-
|
|dos trabalhos da nossa especialidade, e também das mais perniciosas.' nadas situações concretas que estão em contradição com esses mesmos
| É contra essa confusião e não, por exemplo, contra a defesa dos próprios valores. A afinidade electiva de ideias semelhantes manterá então coeso
ideais que são dirigidas as observações precedentes. Falta de convicções esse círculo de colaboradores, e permitirá novos recrutamentos no seu
e «objectividade» científica não têm qualquer espécie de afinidade intrín- seio, O que imprimirá à revista, pelo menos no tratamento de problemas
seca. A Archiv nunca foi nem há-de ser — pelo menos, é essa a sua de política social, um determinado «carácter». Esse «carácter» é a mani-
intenção — lugar onde se desenvolva polémica contra determinados par- festação concomitante, inevitável, de toda a acção comum de homens que
tidos políticos ou sócio-políticos,
nem lugar onde se faça propaganda a vivem e sentem e que nem sempre reprimem totalmente, mesmo no tra-
favor ou contra ideais políticos ou sócio-políticos. Existem, para esse efeito, balho puramente teórico, uma atitude avaliadora perante os problemas,
outros órgãos. A especialidade da revista tem antes consistido, desde o expressando-a também, e — respeitando os pressupostos acima discuti-
princípio, e assim continuará a ser até onde isso depender dos seus edi- dos — muito legitimamente, na crítica de propostas e de medidas práticas.
tores, em que nela se reúnem para realizar trabalho científico ferozes adver- Ora, a Archiv iniciou a sua experiência numa altura em que no primeiro
sários políticos. Não foi até agora um Órgão «socialista», e não será futura- plano das discussões em ciências sociais se encontravam determinados pro-
mente um órgão «burguês». Não exclui do seu círculo de colaboradores blemas práticos da «questão laboral», no sentido tradicional do termo. As
ninguém que se queira colocar no terreno da discussão científica. Não pode personalidades para as quais os problemas que a revista se propunha tratar
ser uma arena para «refutações», réplicas e tréplicas, mas não salvaguarda estavam ligadas às mais elevadas e determinantes ideias de valor e que,
ninguém, nem os seus colaboradores, nem tão-pouco os seus editores, de por essa razão, se tornaram os seus colaboradores mais regulares, eram,
nas suas colunas ficar exposto à crítica científica objectiva, por muito dura justamente por isso, também ao mesmo iempo defensoras de uma con-
que seja. Quem não puder suportar isso ou quem não se achar disposto cepção de cultura idêntica, ou pelo menos semelhante, determinada por
a colaborar, nem mesmo pela causa do conhecimento científico, com pes- essas ideias de valor. Toda a gente sabe também que, se a revista recusou
soas que trabalham ao serviço de ideais diferentes dos seus, que se man- terminantemente seguir uma «tendência», confinando-se expressamente
tenha afastado dela. a debates «científicos» e solicitando expressamente a colaboração de «par-
Mas é evidente — não queremos criar ilusões a esse respeito — que, tidários de todos os quadrantes políticos», não obstante ela possuía sem
na prática, hoje em dia esta última frase diz, infelizmente, mais do que dúvida um «carácter» no sentido acima indicado. Esse carácter foi pelo
à primeira vista parece. Em primeiro lugar, como já demos a entender, círculo dos seus colaboradores regulares. Eram, na generalidade, pessoas
a possibilidade de nos encontrarmos de espírito isento com adversários que, com toda a diversidade de pontos de vista noutros aspectos, tinham
políticos em terreno neutro — no plano social ou no das ideias — tem infe- por objectivo defender a saúde física das massas trabalhadoras e dar-lhes

612 613
a possibilidade de uma participação mais ampla nos bens materiais e espi- “conhecimento, isto é, de ordenação racional da realidade empírica, válido
rituais da nossa cultura. Como meio para atingir esse fim, preconizavam, em absoluto. Esta suposição é agora problematizada, na medida em que
porém, a combinação da intervenção estatal na esfera dos interesses mate- temos de discutir o que pode significar, na nossa área de investigação, a
riais com uma evolução liberal da ordem política e jurídica existente e qual- «validade» objectiva da verdade a que aspiramos. Que o problema existe
quer que fosse a sua opinião sobre a estruturação da ordem social num como tal e não está aqui a ser criado por bizantinice, é um facto que não
futuro mais remoto aceitavam para O presente um desenvolvimento capi- pode ser ignorado por quem quer que observe a luta travada em torno
talista. Não que essa forma de organização social se lhes afigurasse a melhor. de métodos, «conceitos fundamentais» e pressupostos, a constante troca
quando confrontada com outras mais antigas. Simplesmente, parecia-lhes de pontos de vista e a constante redefinição dos «conceitos» utilizados,
ser ela inevitável na prática, e que a tentativa de a combater em absoluto e que veja com a perspectiva teórica e a perspectiva histórica continuam
não promoveria, antes inibiria, O acesso da classe operária à luz da cul- a estar separadas por um fosso aparentemente intransponível. «Há duas
tura. Nas condições actualmente existentes na Alemanha — não será neces- economias políticas», queixava-se há tempos um examinando vienense em
sário pormenorizá-las aqui — essa atitude era inevitável, como seria ainda desespero. Que significa aqui objectividade? É esta questão que vamos
hoje. E reverteu até em favor do êxito de uma participação generalizada discutir no capítulo seguinte.
na discussão científica, constituindo um factor de vitalidade para a revista
e, atendendo às condições, talvez mesmo um dos títulos justificativos da
sua existência. H
Ora, é indubitável que o desenvolvimento de um «cardcier» neste
sentido pode, numa revista científica, significar um perigo para à isenção
do trabalho científico. E sê-lo-ia efectivamente, se houvesse um plano Desde o início a revista tem tratado aquilo que tem sido objecto da
prévio de selecção unilateral dos colaboradores. Nesse caso, o cultivar de sua análise como sendo de natureza sócio-económica. Por pouco opor-
um «carácter» significaria praticamente o mesmo que a existência de uma tuno que seja proceder aqui a definições de conceitos e delimitações de
«tendência», os editores têm plena consciência da responsabilidade que ciências, é preciso, ainda assim, esclarecermos sumariamente o que isso
esse estado de coisas lhes impõe. Não tencionam mudar o carácter da significa.
Archiv segundo um plano prévio nem conservá-lo artificialmente restrin- À nossa existência física, tal como a satisfação das nossas necessidades
gido, de forma intencional, o círculo de colaboradores a cientistas com mais ideais, depara por toda a parte com a limitação quantitativa e com
determinadas opções partidárias. Aceitam esse carácter como tal, e a insuficiência dos meios exteriores que lhe são necessários, exigindo pla-
aguardam a sua posterior «evolução». A forma como ele se apresentará no neamento previdente e trabalho, luta com a natureza e socialização com
futuro e, dado o inevitável alargamento do círculo dos nossos colabora- os outros homens. Estas são as realidades básicas a que se ligam todos os
dores, talvez a forma como se há-de transformar dependerá, antes de mais, fenómenos que designamos, no sentido mais lato do termo, como «sócio-
da singularidade das personalidades que entrarem nesse círculo com o pro- -económicos». Mas um acontecimento não é um fenómeno «sócio-
pósito de servir o trabalho científico e se tornarem, ou continuarem, fami- -económico» por, como tal, ter «objectivamente» essa qualidade; esta é
liarizados com as colunas da revista. E dependerá também da ampliação antes condicionada pela orientação de interesses do nosso conhecimento,
da esfera dos problemas cujo estudo a revista se propunha fomentar. tal como suscitada pelo significado cultural específico que, em cada caso,
Com esta observação chegamos à questão, ainda não considerada até atribuímos ao processo em causa. Sempre que um acontecimento da vida
agora, da delimitação material do domínio do nosso trabalho. Mas não cultural esteja ligado, nos aspectos da sua singularidade em que para nós
é possível dar uma resposta a essa questão sem ao mesmo tempo levantar assenta O seu significado específico, aos factos acima referidos, seja direc-
também a questão da natureza da finalidade do conhecimento científico tamente, seja de maneira mediata, então contém — ou pode, pelo menos,
em geral, no âmbito das ciências sociais. Ao estabelecer uma separação conter, na medida em que for esse o caso — um problema de ciência
" de princípio entre «juízos de valor» e «saber empírico», temos até agora social, isto é, uma tarefa que compete a uma área de investigação que tenha
pressuposto que haveria, no domínio das ciências sociais, um tipo de como objecto o esclarecimento do alcance daquelas realidades básicas.

614 615
várias espé-
Entre os problemas sócio-económicos podemos distinguir Como se tornou corrente na ciência sócio-económica a partir de Marx
instituições, etc., e Roscher, a nossá revista não se ocupa só de fenómenos «económicos»,
cies. Há processos e conjuntos de processos, normas,
almente do seu mas também de fenómenos «economicamente relevantes» e «cconomica-
cujo significado cultural consideramos depender essenci
aspecto económico e que — como acontece, por exemplo, com processos mente condicionados». É claro que o âmbito desses objectos — fluido
da actividade bancária ou da Bolsa — em primeiro lugar nos interessam como é, conforme a orientação que pode tomar o nosso interesse —
)
apenas sob esse ponto de vista. Será esse em regra (mas não exclusivamente estende-se manifestamente à globalidade de todos os processos culturais.
o caso, quando se trata de instituições que conscientemente foram criadas Entram em acção motivações especificamente económicas — isto é, moti-
ou são utilizadas com objectivos económicos. A esses objectos do nosso vações cujos aspectos específicos para nós significativos estão ligados aos
icas»
conhecimento podemos chamar processos ou instituições «económ factos básicos acima referidos — sempre que a satisfação de uma necessi-
em sentido estrito. Há outros — exemplo, os da vida reli-
como, por dade, por mais imaterial que seja, esteja relacionada com a utilização de
em
giosa — que não nos interessam, ou seguramente não nos interessam, meios exteriores limitados. O peso da sua influência tem condicionado
primeira linha, do ponto de vista do seu significado económico ou por e transformado, por isso, não apenas a forma de satisfação das necessi-
causa dele, mas que podem adquirir esse tipo de significado por produ- dades culturais mas também o conteúdo dessas necessidades, mesmo as
zirem efeitos que nos interessam na perspectiva económica. Trata-se então de natureza mais íntima. A influência indirecta de relações sociais, insti-
de fenómenos «economicamente relevantes». E por fim, há, entre os não tuições e agrupamentos humanos pressionados por interesses «materiais»
«económicos» (no sentido que atribuímos ao termo) aqueles cujos efeitos estende-se (sem que disso haja consciência, muitas vezes) a todos os domí-
e
económicos não têm para nós qualquer interesse, ou não têm interess nios da cultura, sem excepção, penetrando nos matizes mais subtis da sen-
artístic o de uma
considerável — por exemplo, a orientação do gosto sibilidade estética e do sentimento religioso. As ocotrências da vida quo-
época — mas que, em determinados aspectos significativos da sua especi- tidiana, não menos do que os acontecimentos «históricos» da alta política,
por
ficidade são, em casos particulares, por seu tumo influenciados os fenómenos colectivos e de massas, tal como as acções «singulares» de
intensi dade. No exempl o apre-
motivos económicos, com maior ou menor homens de estado ou as produções literárias e artísticas individuais, são
social
sentado, poderíamos considerar a influência do tipo de estratificação influenciados por motivos económicos, são «economicamente condicio-
ca-
do público que se interessa por arte. Estes são os fenómenos economi nados». Por outro lado, o conjunto de todas as manifestações e de todas
e de
mente condicionados. O complexo de relações humanas, de normas as condições de vida de uma cultura historicamente dada actua sobre a
a que chamam os «Estado » é, por
situações normativamente definidas configuração das necessidades materiais, sobre o modo de as satisfazer,
, um fenóme no «eco-
exemplo no que respeita à gestão das finanças públicas sobre a formação de grupos de interesses materiais e sobre o modo como
sobre
nómico»; é «cconomicamente relevante» na medida em que aciua se processa o «desenvolvimento económico»; isto é, torna-se «economi-
a vida económica, no aspecto legislativo ou em outros (incluindo aqueles camente relevante». Ao imputar, em regressão causal, causas individuais
em que o seu comportamento é explicitamente determinado por pontos — de carácter económico ou não económico — a fenómenos culturais eco-
de vista muito diferentes dos económicos); é, enfim, «economicamente
especifi- nómicos, a nossa ciência aspira a um conhecimento «histórico». Ao acom-
condicionado» na medida em que o seu comportamento € à sua
por panhar, através das mais diversas relações culturais, O significado de um
cidade, mesmo em aspectos não «económicos», são determinados
os de expor, compre ende-s e elemento específico das manifestações culturais — o económico — ela
motivos económicos. Por aquilo que acabam
aspira a uma interpretação histórica sob um determinado ponto de vista
que no âmbito das manifestações «económicas» seja fluido e difícil de deli-
«eco: e oferece uma imagem parcial, um irabalho preliminar com vista ao pleno
mitar com precisão; por outro lado, torna-se evidente que os aspectos
nómicos» de um fenómeno não podem ser, por exemplo, ou cipenas «eco»
conhecimento histórico da cultura.
condicionados» ou apenas «economicamente actuantes», € Embora nem sempre que se verifique a intervenção de elementos eco-
nomicamente
medida nómicos, sob a forma de consequência ou de causa, estejamos perante
que um fenómeno reveste, em geral, um carácter «económico» na
em que e apenas enquanto O nosso interesse incide exclusi
vamente sobre um problema sócio-económico — pois este só surge quando o significado
o significado que possui para à luta material pela existência. desses factores é precisamente problemático, podendo apenas ser averi-
A

616 617 '


a expressão «social» para significar aquilo que é determinado por problemas
guado através da aplicação dos métodos da ciência sócio-económica —
concretos da actualidade. Se se quiser chamar «ciências da cultura» às dis-
considera-se, mesmo assim, imenso o campo de acção da perspectiva sócio-
-económica. ciplinas que consideram os acontecimentos da-vida humana do ponto de
vista do seu significado cultural, então a ciência social, tal como a enten-
Numa auto-limitação que foi bem ponderada, a nossa revista tem até
demos, pertence a essa categoria. Veremos adiante que consequências isso
agora renunciado, em geral, a ocupar-se de toda uma série de domínios
tem no que diz respeito aos princípios.
especiais, extremamente importantes, da nossa área de investigação,
O relevo dado ao aspecto sócio-económico da vida cultural representa
nomeadamente os da economia descritiva, da história da economia, em
sentido estrito, e da estatística. Do mesmo modo, deixou a outros órgãos indubitavelmente uma limitação muito sensível dos nossos temas. Dir-se-
-á que a perspectiva económica ou, adoptando uma expressão menos pre-
o cuidado de discutir as questões de técnica financeira e os problemas
cisa igualmente utilizada, a perspectiva «materialista» em que é conside-
técnico-económicos da formação de preços e mercados na moderna eco-
rada a vida cultural, é «unilateral». É-o decerto — e essa unilateralidade é
nomia de troca. O seu campo de investigação tem sido o significado actual
intencional. A convicção de que caberia ao progresso do trabalho cientí-
e o desenvolvimento histórico de certas constelações e conflitos de inte-
resses que surgiram, com o papel preponderante de um capital em busca fico obstar à «unilateralidade» da perspectiva económica, ampliando-a de
de valorização, na economia dos países de cultura moderna. Não se limitou, modo a torná-la uma ciência social geral, padece desde logo de um defeito:
entretanto, aos problemas práticos do desenvolvimento histórico que cons- é que o ponto de vista do «social», isto é, da relação entre os homens,
tituem a chamada «questão social» no sentido mais estrito, ou seja, as rela- só possui precisão suficiente para a delimitação dos problemas científicos
se for provido de qualquer predicado especial que lhe defina o conteúdo.
ções entre a moderna classe dos assalariados e a ordem social existente.
De outro modo, considerado como objecto de uma ciência, abrangeria
É certo que o aprofundamento científico do interesse crescente que entre
naturalmente tanto a filologia, por exemplo, como a história da Igreja e
nós suscitou, nos anos 80 do séc. XIX, essa questão especial tinha de ser
designadamente todas as disciplinas que se ocupam do mais importante
uma das suas primeiras tarefas essenciais. Mas, quanto mais o estudo prá-
elemento constitutivo da vida cultural — o Estado — e da forma mais
tico da condição dos trabalhadores se foi tornando, também entre nós,
importante da sua regulação normativa — o direito. Considerar a economia
objecto da actividade legislativa e da discussão pública, tanto mais o centro
social como percursora de uma «ciência social geral», pelo facto de se
de atenção do trabalho científico era obrigado a deslocar-se para a deter-
ocupar de relações «sociais», é tão pouco justificável quanto o é considerá-la
minação das relações mais universais em que se incluem esses problemas,
parte da biologia, pelo facto de se ocupar de fenómenos da vida, ou, ainda,
e a assumir a missão de uma análise de todos os problemas criados pela
um ramo de uma futura astronomia revista e aumentada, por se ocupar
especificidade dos fundamentos económicos da nossa cultura, ou seja, por-
de acontecimentos que ocorrem num corpo celeste. Não são as conexões
tanto, dos problemas específicos da cultura moderna. À revista começou,
«materiais» das «coisas» mas sim as conexões conceptuais dos problemas,
pois, desde muito cedo, a ocupar-se também das condições de vida mais
que constituem a base da delimitação dos domínios do trabalho cientí-
diversas — quer «economicamente relevantes», quer «economicamente
fico. Quando se estuda um problema novo com métodos novos, permi-
condicionadas» — das outras grandes classes das modernas noções de cul-
tindo a descoberta de verdades que abrem novas perspectivas significa-
tura, € a investigar, do ponto de vista histórico, estatístico e teórico as rela-
tivas, aí, sim, surge uma nova «ciência».
ções que têm entre si. É de acordo com esse procedimento que designamos:
Ora, não é por acaso que verificamos que o conceito de «social», que
agora O campo de acção próprio da revista como a investigação científica
parece ter um sentido muito geral, comporta sempre, quando utilizado,
do significado cultural geral da estrutura sócio-económica da vida
um significado muito particular, com a coloração específica, ainda que,
humana em comunidade e das suas formas históricas de organização. Era
na maior parte das vezes, indefinida. De facto, o que nele há de «geral»
isso e não qualquer outra coisa que estava na nossa ideia quando intitu-
não resulta senão precisamente da sua indefinição. É justamente quando
lámos a revista «Archiv fúr Sozialwissenschaft» («Arquivo da ciência social»).
9 tomamos no seu significado «geral» que ele não fornece qualquer espécie
Com essa expressão se pretende abranger o estudo histórico e teórico dos
de pontos de vista específicos que permitam esclarecer o significado de
problemas que a «política social», no sentido mais lato do termo, tem por
elementos culturais determinados.
objecto solucionar na prática. Fazemos assim uso do direito de empregar

618 619
que se revelar importante para os nossos pontos de vista. Esperemos que. .
Ainda que não partilhemos a crença obsoleta de que a totalidade dos
ou como função com um trabalho metodicamente orientado, seja ultrapassado gradual-
fenómenos culturais poderia ser deduzida como produto
cremos, no entanto, pela nossa mente esse estádio em que o facto de se remeterem para a «raça» as causas
de constelações de interesses «materiais»,
dos acontecimentos culturais apenas documentou o nosso não saber — à
parte, que a análise dos fenómenos sociais e dos acontecimentos cultu-
€ do seu alcance semelhança do que aconteceu com a explicação por referência ao «meio»
rais do ponto de vista especial do seu condicionamento
ou, anteriormente, às «circunstâncias» da época. Se alguma coisa preju-
económicos foi um princípio científico de fecundidade criadora, e conti-
dicou até agora essa investigação, foi de facto de alguns diletantes zelosos
nuará a sê-lo ainda num futuro próximo, se aplicado com prudência e sem
imaginarem que ela poderia fornecer, para o conhecimento da cultura,
parcialidade dogmática. À chamada «concepção materialista da história»,
algo de especificamente diferente e mais importante do que o aumento
considerada como «mundivisão» ou como denominador comum da expli-
mais categó- da possibilidade de imputar com mais segurança os acontecimentos cul-
cação causal da realidade histórica, é de rejeitar da maneira
turais concretos e singulares da realidade histórica a causas concretas. bis-
rica; a prática de uma interpretação económica da História é um dos objec-
toricamente dadas, através da aquisição de meios de observação excctos.
tivos essenciais da nossa revista. Estas afirmações carecem de explicação
seleccionados sob pontos de vista específicos. Só se conseguirem pro-
mais circunstanciada.
A chamada «concepção materialista da História», no velho sentido pri-
porcionar-nos isso é que os resultados dessa investigação têm interesse
comunista, por exemplo, domina hoje para nós, e habilitam a «biologia das raças» a ser algo mais do que um pro-
mitivo e genial do «Manifesto»
duto da moderna febre de fundação de novas ciências.
apenas a cabeça de leigos e diletantes. Com efeito, entre eles continua difun-
O mesmo acontece com o significado da interpretação económica
dida a curiosa ideia de que a necessidade de explicação causal de um fenó-
pelo do histórico. Se, após um período em que foi desmedidamente superva-
meno histórico não é satisfeita enquanto não tiver sido demonstrado,
que, algures e de alguma maneira, há intervenção lorizado, hoje quase há o perigo de as suas potencialidades científicas serem
menos aparentemente,
se subestimadas, isso deve-se à falta de espírito crítico sem precedentes com
de causas económicas. Mas se é esse O caso, por outro lado, contentam-
que se tem utilizado a interpretação económica da realidade como método
então com a hipótese mais gasta e com às fórmulas mais gerais pois, a partir
qual «universal» no sentido de uma dedução de todos os fenómenos culturais
desse momento, dão por satisfeita a necessidade dogmática segundo a
«ver- — isto é, de tudo o que neles há, para nós, de essencial — como sendo,
«as forças motrizes» de ordem económica são as «reais», as unicamente
são em toda a parte decisivas». em última análise, economicamente condicionados. A forma lógica com
dadeiras», aquelas que, «em última instância,
que se apresenta essa interpretação não é, hoje em dia, completamente
Este fenómeno não é, porém, único no seu género. Da filologia à biologia,
a pre- homogénea. Onde a explicação puramente económica depara com difi-
quase todas as ciências se têm arrogado, em determinado momento,
culdades, há diversos meios à disposição para manter a sua validade geral
tensão de elaborar mundivisões e não apenas um saber especializado.
de factor causal decisivo. Um deles consiste em tratar tudo aquilo que na
E, sob a influência do enorme significado cultural das modernas transfor-
realidade histórica não pode ser deduzido a partir de motivos económicos
mações económicas e, em especial, do extraordinário alcance da «questão
O como sendo, por isso, «casualidade», insignificante do ponto de vista cien-
operária», a inexterminável tendência monista que caracteriza todo
te, tífico. Ou então dilata-se o conceito de económico a tal ponto que se torna
conhecimento refractário à crítica de si próprio resvalou, naturalmen
em que à luta política e comercial que «as irreconhecível, de modo a incluir nele todos os interesses humanos que.
por essa via. Na nossa época,
acerba, é a antropolog ia que de algum modo, estão ligados a meios exteriores. E se está historicamente
nações desenvolvem entre si é cada vez mais
vul- estabelecido que se reagiu de maneira diferente — por serem diferentes
se encontra afectada por essa tendência. Com efeito, está hoje muito
his- os condicionamentos políticos, religiosos, climatéricos e muitos outros,
garizada a crença de que, «em última análise», todo o acontecimento
de «qualidade s rácicas» inatas. À sim- de natureza não económica — a duas situações que são, no entanto, iguais
tórico é produto do antagonismo
pela
ples descrição acrítica das «características dos povos» foi substituída
do ponto de vista económico, então, a fim de manter a supremacia do
muito pro- económico, degradam-se todos esses factores à categoria de «condições»
exposição ainda mais acrítica de «teorias sobre a sociedade»
na nossa historicamente acidentais sob as quais os motivos económicos actuam
prias, na base das «ciências da natureza». Seguiremos com atenção,
da investigaçã o antropológ ica, na medida em como «causas». Mas é evidente que todos esses factores que a interpre-
revista, o desenvolvimento

620 621 )
tação económica considera «acidentais» seguem as suas próprias leis exac- Mas a análise unilateral da realidade cultural sob «pontos de vista»
tamente no mesmo sentido que os factores económicos e que. inversa- específicos — no nosso caso, o do seu condicionamento económico —
mente, para uma interpretação que analise o seu significado, as «condi- justifica-se, no aspecto puramente metodológico, pelo facto de que a espe-
ções» económicas serão, no mesmo sentido, «historicamente acidentais». cialização do olhar na observação dos efeitos de categorias de causas qua-
Ha, por fim, uma outra tentativa, em voga, de salvar, apesar de tudo, a litativamente semelhantes, e a utilização constante do mesmo aparelho con-
importância preponderante da economia, que consiste em interpretar a ceptual e metodológico apresentarem todas as vantagens da divisão do
constante cooperação e interacção dos elementos singulares da vida cul- trabalho. Essa análise não é «arbitrária» enquanto O sucesso depuser a seu
tural como uma dependência causal ou funcional de uns em relação à favor, isto é, enquanto der a conhecer conexões que revelem ter valor
outros, ou melhor, de todos em relação a um: o económico. Quando a no que respeita à atribuição de causas a processos históricos concretos.
instituição singular não económica desempenhou historicamente também Note-se, porém, que a «unilateralidade» e a irrealidade da interpretação
uma determinada «função» ao serviço de interesses económicos de classes, puramente económica do histórico é apenas um caso específico de um
tornando-se seu instrumento — por exemplo, quando determinadas ins- princípio muito geral que rege o conhecimento científico da realidade cul-
tituições religiosas se deixam utilizar e são utilizadas como «polícia tural. Elucidar os fundamentos lógicos desse princípio e as suas consequên-
negra» —, então toda a instituição é apresentada como tendo sido criada cias gerais no plano metodológico é o objectivo essencial das observações
para essa função ou, muito metafisicamente, como sendo marcada por uma que se seguem.
«tendência desenvolvimentista de origem económica». Não há nenhuma análise científica absolutamente «objectiva» da vida
Actualmente, nenhum especialista precisa que lhe seja explicado que cultural, ou — para empregar uma expressão de sentido mais restrito mas
esta interpretação do objectivo da análise económica da cultura foi, por cujo significado não é, para o nosso objectivo, essencialmente diferente —
um lado, produto de uma determinada constelação histórica que orientou dos «fenómenos sociais», que seja independente de pontos de vista espe-
o interesse científico para determinados problemas da cultura condicio- ciais e «unilaterais» segundo os quais — explícita ou implicitamente, cons-
nados economicamente e, por outro lado, de um «chauvinismo» exacer-
ciente ou inconscientemente — esses fenómenos são seleccionados como
bado no que respeita às competências científicas. Hoje em dia, ela é. no objecto de investigação, analisados, organizados e apresentados. À razão
mínimo, antiguada. A redução a causas exclusivamente económicas não disso reside no carácter peculiar da finalidade do conhecimento em toda
a investigação no domínio das ciências sociais que pretenda ir além da con-
é exaustiva em sentido nenhum e em nenhum domínio das manifestações
sideração puramente formal das normas — jurídicas ou convencionais —
culturais — nem sequer no dos processos «económicos». Em princípio,
da coexistência social.
uma história da actividade bancária de um povo qualquer que só invo-
Quanto a nós, a ciência social de que pretendemos ocupar-nos é uma
casse motivações económicas para efeitos de explicação é evidentemente
ciência da realidade. Queremos compreender na sua especificidade a rea-
tão impossível como o seria, por exemplo, a «explicação» da Madona da
lidade da vida que nos rodeia e na qual estamos inseridos; queremos
Capela Sistina a partir dos fundamentos sociais e económicos da vida cul-
conhecer, por um lado, a configuração actual do contexto e do signifi-
tural da época em que essa pintura surgiu; em princípio, também não é,
cado cultural das suas manifestações particulares e, por outro lado, as razões
de maneira nenhuma, mais exaustiva do que aquela que fizesse derivar
por que o seu devir histórico se deu de uma forma e não de outra. Ora,
o capitalismo de certas transformações nos conteúdos da consciência reli-
quando nós tentamos tomar consciência da maneira como a vida directa-
giosa que intervieram na génese do espírito capitalista, ou do que aquela
mente se nos apresenta, ela oferece-nos, «em» nós e «fora de» nós, uma
que interpretasse uma estrutura política qualquer a partir de condições multiplicidade pura e simplesmente infinita de acontecimentos que vão
geográficas. Para a determinação do grau de importância a atribuir aos con- surgindo e desaparecendo uns após outros e a par de outros. E a absoluta
dicionalismos económicos é, em todos esses casos, decisivo saber a que infinitude dessa multiplicidade não é minimamente atenuada quando, ao
classe de causas se devem imputar, no fenómeno em questão, os elementos considerarmos isoladamente um único «objecto» — por exemplo, um acto
específicos a que nós atribuímos, em cada caso particular, o significado de troca concreto — nos propomos seriamente tentar descrever esse
que para nós é relevante. «único» de maneira exaustiva, em todos os seus componentes individuais,

622 623
e com maior razão ainda quando tentamos apreender o seu condiciona- : vez que essas constelações individuais se revestem para nós de signifi-
mento causal. Todo o conhecimento reflexivo da realidade infinita por cado. Naturalmente, cada constelação individual que ela nos «explica» ou
parte de um espírito humano finito assenta, por isso, no pressuposto implí- prevê, só pode explicar-se causalmente como consequência de outra igual-
cito de que, em cada caso, apenas um fragmento finito da mesma reali- mente individual, que a precede. E, por muito que recuemos na bruma
dade constituirá objecto da apreensão científica, de que só essa parte será cinzenta do mais longínguo passado, a realidade a que essas leis se aplicam
«essencial», no sentido de que só a ela «vale a pena conhecer». Mas, segundo e são válidas, continua a ser igualmente individual, igualmente pouco pas-
* quais princípios é seleccionado esse fragmento? Frequentemente se tem sível de ser deduzida a partir de leis. Um «estado original» do cosmos que
pensado que também nas ciências da cultura a característica decisiva se apresentasse um carácter não individual ou menos individual do que a rea-
poderia encontrar, em última análise, na repetição, «regida por leis», de lidade cósmica do presente seria, evidentemente, um pensamento absuído.
determinadas relações de causa a efeito. Segundo essa concepção, o con- Mas não subsistirão na nossa área científica vestígios fantasmagóricos de
teúdo das «leis» que conseguimos discernir na imensa multiplicidade de ideias desse género quando se admite, ora por inferência do direito natural,
aspectos da evolução dos fenómenos é necessariamente a única coisa que ora pela observação de «povos primitivos», que há, no âmbito sócio-
neles há de «essencial» para a ciência. Logo que é estabelecido o «carácter -económico, «estados originais» «isentos de casualidades» históricas — de
de lei» de uma relação de causa a efeito ou demonstrando, com os meios que seriam exemplos o «comunismo agrário primitivo», «a promiscuidade»
de uma indução histórica abrangente, que a sua validade não admite sexual, etc. — a partir dos quais surgiria depois, por uma espécie de peca-
excepção, ou pondo-a em evidência imediatamente intuitiva à experiência minosa queda no concreto, o desenvolvimento histórico individual?
íntima, todos os casos semelhantes, por muito numerosos que sejam, se Em ciências sociais, o ponto de partida do interesse científico é, sem
subordinam a cada fórmula assim encontrada. Aquilo que, após essa dúvida, a configuração real e, portanto individual, da vida cultural da socie-
selecção do «regido por leis», fica, em cada caso, por compreender na rea- dade que nos rodeia, no seu contexto universal (o qual não tem, por isso,
lidade individual, é considerado um resíduo ainda não trabalhado cienti- uma configuração menos individual) e no seu desenvolvimento a partir
ficamente e que, com o aperfeiçoamento progressivo do sistema de «leis», de outros estádios culturais da sociedade, os quais têm também, natural-
virá a ser incluído nesse sistema; ou então permanece como «acidental», mente, carácter individual. É óbvio que a situação que acabamos de co-
e fica de lado como não sendo essencial do ponto de vista científico, jus- mentar, tomando como caso-limite a astronomia — a que também os lógi-
tamente, porque não é «compreensível em termos de lei» e, portanto, não cos costumam recorrer para o mesmo efeito — se apresenta em proporção
se inclui no «tipo» do processo, só podendo, por isso, ser objecto de «curio- especificamente mais elevada nas ciências sociais. Enquanto à astronomia
sidade ociosa». Nesta conformidade, é frequente haver — mesmo entre interessa apenas considerar os corpos celestes nas suas relações quantita-
representantes da escola histórica — quem pense que o ideal para que tivas, susceptíveis de uma medição exacta, em ciências sociais O que nos
tende, mesmo que num futuro longínquo, todo o conhecimento, incluindo importa é o aspecto qualitativo dos acontecimentos. Acresce que o
o das questões culturais, seria um sistema de teoremas, a partir do qual domínio de investigação destas últimas inclui a intervenção de fenómenos
se poderia «deduzir» a realidade. Houve, como se sabe, um mestre das ciên- do espírito, cuja «compreensão» por revivência é, naturalmente, uma tarefa
cias da natureza para quem a finalidade ideal (inatingível de facto) desse especificamente diferente daquela que as fórmulas do conhecimento exacto
tratamento da realidade cultural podia ser como conhecimento «astronó- da natureza de todo podem ou querem resolver. Apesar de tudo, as dife-
mico» dos factos da vida. Apesar de estas coisas terem já sido objecto de renças não são em si tão principais como pode parecer à primeira vista.
muita discussão, não vamos deixar de, pela nossa parte, as reconsiderarmos. Também as ciências naturais exactas — abstraindo a mecânica pura — não
Em primeiro lugar, torna-se evidente que o conhecimento «astronómico» podem dispensar a noção de qualidade. Além disso, encontramos no
em que nesse caso se está a pensar não consiste em discernir leis, mas domínio da nossa especialidade a opinião — equívoca, é verdade — de
em utilizar as leis com que trabalha, e que vai buscar a outras disciplinas, que pelo menos esse fenómeno fundamental para a nossa cultura que é
como a mecânica, como pressupostos do seu trabalho. Mas a questão que a circulação monetária é quantificável e, por isso, apreensível «na forma
lhe interessa é a de saber qual é o resultado individual produzido pela acção de lei». Refira-se ainda que depende da acepção mais estreita ou mais lata
dessas leis sobre uma constelação com a sua configuração individual, uma do conceito de «lei» que por esse termo se queira entender também as

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regularidades que, por não serem quantificáveis, não são apreensíveis em fenómeno cultural que consideramos historicamente significativo: e, se
termos numéricos. No que respeita em particular à intervenção de moti- quiséssemos «explicar causalmente» esse agrupamento individual, teríamos
vações do âmbito do «espírito», ela não exclui, em todo o caso, a possibi- de recorrer sempre a outros agrupamentos igualmente individuais, a partir
lidade de estabelecer regras de acção racional. E, acima de tudo, ainda dos quais os «explicaríamos», utilizando naturalmente os tais conceitos de
não está hoje completamente desvanecida a ideia de que cabéria à psico- «lei» (hipotéticos!). O estabelecimento dessas leis e desses factores (hipo-
logia desempenhar, em relação às «ciências do espírito» consideradas indi- téticos!) seria, em todo o caso, apenas o primeiro dos vários trabalhos que
vidualmente, um papel comparável ao da matemática, ao competir-lhe conduziriam ao conhecimento por nós pretendido. A tarefa seguinte. que
decompor os complicados fenómenos da vida social nos seus condicio- não é possível levar a bom termo sem apoio daquele trabalho preliminar.
namentos e nos seus efeitos psíquicos, ao reduzir estes a factores psíquicos mas em relação ao qual constitui uma operação independente e completa-
tão simples quanto possíveis, ao classificar, por sua vez, esses factores em mente nova, consistiria em analisar e expor metodicamente, não só o modo
espécies e ao investigar as suas conexões funcionais. Criar-se-ia. assim, se singular como se agrupam esses «factores», tal como dado historicamente
não numa «mecânica», pelo menos uma espécie de «química» dos funda- em cada caso, mas também a concreta acção conjunta daí resultante. sig-
mentos psíquicos da vida social. Não cabe aqui decidir sobre o eventual nificativa à sua maneira, e, acima de tudo, em fazer compreender por que
valor desse género de investigações nem sobre — o que não é a mesma razão e de que maneira ela é significativa. A terceira operação consistiria
coisa — a utilidade dos seus resultados parciais para as ciências da cultura. em recuar tão longe quanto possível no passado para seguir o desenvolvi-
Em todo o caso, isso não teria qualquer interesse para a questão de saber mento das particularidades individuais desses agrupamentos que se tor-
se a finalidade do conhecimento sócio-económico, no sentido em que naram significativas para O mundo actual, e em explicá-las historicamente
o entendemos, isto é, conhecimento do significado cultural e do contexto a partir de constelações anteriores igualmente individuais. Poderia haver,
causal da realidade, pode ser atingida através da determinação daquilo por fim, uma quarta fase de trabalhos que consistiria na avaliação de pos-
que se repete em conformidade com leis. Se se desse o caso de alguma síveis constelações no futuro.
vez ser possível, através da psicologia ou de qualquer outra via, analisar Para todos estes objectivos, teriam grande interesse, digamos mesmo
em quaisquer «factores» últimos elementares todas as relações de causa que seria indispensável dispor de conceitos claros e conhecer as referidas
a efeito de fenómenos da convivência humana jamais observadas, bem «leis» (de natureza hipotética), enquanto meios heurísticos — mas apenas
como todas as imagináveis em qualquer tempo futuro, abrangendo-as como tal. No entanto, mesmo nessa função, o seu alcance revela-se limi-
depois exaustivamente numa gigantesca casuística de conceitos e de regras tado num ponto crucial. A constatação dessa limitação conduz-nos à deci-
que funcionassem como leis rígidas, em que é que o resultado disso con- siva especificidade da observação em ciências da cultura. Designámos como
tribuiria para o conhecimento do mundo da cultura dado historicamente, «ciências da cultura» as disciplinas que aspiram a conhecer o significado
ou mesmo apenas para o de qualquer fenómeno particular, como, por cultural dos fenómenos da vida. Mas o significado da configuração de um
exemplo, o capitalismo, no seu desenvolvimento e no seu significado cul- fenómeno cultural e o fundamento desse significado não podem ser
tura? Como meio de conhecimento, tanto ou tão pouco quanto. por extraídos de nenhum sistema de conceitos de lei, por muito perfeito que
exemplo, um léxico das combinações de química orgânica para o conhe- seja, como também não podem ser justificados ou tornados inteligíveis
cimento biogenético da fauna e da flora. Num caso como noutro, ter-se-ia por esse modo, visto que pressupõem a referência dos fenómenos cuitu-
produzido um trabalho preliminar certamente importante e útil. Mas num rais a ideias de valor. O conceito de cultura é um conceito de valor. Con-
caso como noutro, jamais poderia deduzir-se a realidade da vida a partir sideramos que a realidade empírica é «cultura» porque e na medida em
das tais «leis» e dos tais «factores». Não é que nos fenómenos da vida con- que a referimos a ideias de valor; nessa medida, ela abrange os elementos
tinuem necessariamente a ocultar-se quaisquer «forças» superiorese mis- da realidade que se tornam para nós significativos com essa relação — e
teriosas («dominantes», «enteléquias» ou como quer que tenham sido cha- apenas esses elementos. Há uma minúscula parte da realidade individual
madas) -— isso é outra questão. A razão está simplesmente em que, para considerada em cada caso que é colorida pelo nosso interesse, condicio-
conhecer a realidade, o que para nós é importante é a constelação em que nado por aquelas ideias de valor, e só essa parte é que para nós tem signi-
os tais «factores» (hipotéticos!) se encontram agrupados. formando um ficado. Tem-no, porque apresenta relações que consideramos importantes

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por estarem ligadas a ideias de valor. Só por isso, e desde que assim seja.
guidade, por exemplo, em que
é que consideramos que a sua especificidade merece ser conhecida. Mas a troca apresentava exactamente
caracteres genéricos que hoje, os mesmos
aquilo que para nós tem significado não pode, é claro, ser deduzido quando portanto queremos sabe
por reside O significado da «economi r em que
nenhuma análise do dado empírico «isenta de pressupostos». Pelo con- a monetária», então introduzem-s
e na aná-
lise princípios lógicos de origem
trário: é a sua identificação que é um pressuposto para que algo se torne absolutamente heterogénea. Fare
dos conceitos que nos são forn mos uso
objecto de análise. O significativo, evidentemente, também ecidos pela investigação dos
não coincide,
genéricos dos fenómenos económ elem entos
como tal, com nenhuma lei, e tanto menos quanto mais geral for a vali- icos de massas, na medida em
estejam contidos elementos sign que neles
dade dessa lei. Com efeito, onde o significado específico que um compo- ificativos da nossa cultura. Mas util
“emos como meios de descriçã izá-los-
nente da realidade tem aos nossos olhos não se encontra é exactamente o. A finalidade do nosso trabalho
esgota, porém, com a exposiçã não se
nos aspectos co-relativos que partilha com o maior número possível de o, por muito exacta que seja, dess
ceitos e dessas leis. Além disso, es con-
outros componentes — como é natural. Referir a realidade a ideias de valor a questão de saber o que é que
tituir objecto da formação de conc deve cons-
que lhe conferem significado, bem como seleccionar e ordenar — eitos genéricos não é de modo
do «isenta de Pressupostos», antes algu m
ponto de vista do seu significado cultural — os componentes do real assim foi decidida em função do signific
têm para a cultura determinados ado que
postos em evidência, é uma perspectiva plena de heterogeneidade e diver- componentes dessa infinita mult
dade a que chamamos «transac iplici-
sidade quando comparada com a análise da realidade que tem em vista ção». O que nós pretendemos
conhecimento de um fenómeno atin gir é o
descobrir leis e ordená-las em conceitos gerais. Esses dois modos de histórico, isto é, de um fenóme
orde- ficativo na sua especificidade. E no signi-
nação racional da realidade não têm entre si qualquer espécie de relições o ponto crucial a esse respeito é
a noção de um conhecimento de o segu inte:
lógicas necessárias. Podem, eventualmente, coincidir nalgum caso isolado, fenómenos individuais só ganh
tido lógico se admitirmos o pres a sen-
mas essa coincidência acidental não deve iludir-nos — o que teria as mais suposto de que apenas uma part
da infinita abundância de fenóme e finita
funestas consequências — sobre a sua divergência de princípios. O signi- nos é significativa. Mesmo que
semos o conhecimento mais abra tivés-
ficado cultural dum fenómeno, como, por exemplo, a troca monetária, ngente possível de todas as «leis»
Permaneceríamos perplexos ante do devir ,
pode consistir no facto de se manifestar como fenómeno de massas, esta questão: como é possível expl
O que causalmente icar
é uma componente fundamental da vida cultural do nosso iempo. um facto individual, se nem
Mas a descrição do
mais pequeno
fragmento da realidade podemo
então é precisamente o facto histórico de ele desempenhar esse papel s conceber que seja exaustiva?
que € à natureza das causas que dete O número
é preciso tornar inteligível no que respeita ao seu significado cultural, rminaram um qualquer aconteci
o vidual são sempre infinitos, e não ment o indi-
que é preciso explicar causalmente quanto à sua génese histórica. A inves- há nas coisas em si nenhum traç
tintivo que permita seleccionar o dis-
tigação que incide sobre a natureza geral da troca e sobre a técnica das uma parte delas como sendo a
deve ser tomada em consideração únic a que
transformações de mercado é um trabalho Preliminar — ainda que . Tentar um conhecimento da
extre- «isento de pressupostos» redundar real idade
mamente importante e indispensável! Mas não só não dá resposta à questão ia apenas num caos de «juízos
ciais» sobre inúmeras percepçõ exis ten-
de saber como é que a troca adquiriu historicamente o significado funda- es singulares. E mesmo esse resu
aparentemente seria possível, ltad o só
mental que tem hoje, como, acima de tudo, não esclarece aquilo que visto que a realidade de cada
em única, ao ser perc epçã o
última análise nos importa, que é O significado cultural da economia mone- examinada de mais perto, revela sempre
uma
infinidade de
elementos únicos, que jamais pod
tária, É unicamente por causa desse significado que nos interessamos em ser expressos de maneira exau
pela em juízos de percepção. O que stiva
descrição da técnica das transacções comerciais, só por sua causa põe ordem nesse caos é apenas
existe tância de, em cada Caso, soment a circ uns-
hoje uma ciência que se ocupa dessa técnica. E ela não deriva de nenhuma e uma parte da realidade indi
para nós interesse e significado, vidu al ter
das referidas «leis», Os caracteres genéricos da troca, da compra, etc., por estar em relação com as idei
têm valor culturais com que aborda as de
interesse para O jurista, mas, a nós, o que nos diz respeito é justamente mos a realidade. É por isso que
certos aspectos da multiplicida apenas
a análise do significado cultural do facto histórico de a troca ser hoje de infinita de fenómenos isolados
um damente aqueles a que atribuím , nome a-
fenómeno de massas. Quando há que explicar esse facto, quando queremos os um significado cultural gera
ser conhecidos, e só eles são obje l, mer ece m
compreender o que diferencia a nossa cultura sócio-económica da da cto de explicação causal. Mas
Anti- essa explicação causal acusa, também
por sua vez, o mesmo fenóme
no: numa
628
regressão causal exaustiva a partir da realidade total dum fenómeno con- tação, e até que ponto não é tributário do apoio de domínios científicos
creto não é apenas impossível, é simplesmente um absurdo. Nós esco- especiais que lhe possibilitem essa tarefa, depende das circunstâncias de
lhemos apenas as causas às quais são imputáveis os componentes de um cada caso particular. Em toda a parte, porém, e portanto também no
acontecimento que, em cada caso, são «essenciais». Quando se trata da domínio de processos económicos complicados, a segurança com que
individualidade dum fenómeno, o problema da causalidade não se põe se efectua a imputação é tanto maior quanto mais seguro e mais abran-
em termos de saber quais as leis, mas sim quais as conexões de causali- gente for o nosso conhecimento geral. E esta asserção não é posta em causa-
dade concretas; não consiste em saber a que fórmula se deve subordinar com o facto de, mesmo quando se trata das chamadas «leis económicas».
o fenómeno considerado como exemplar de uma espécie, mas sim a que estarmos sempre, sem excepção, perante conexões causais adequadas
constelação individual deve ser imputado, enquanto resultado. E uma expressas em regras, e não em «leis» (no sentido mais restrito das ciências
questão de imputação. Sempre que entra em consideração a explicação naturais exactas), de estarmos, enfim, perante a aplicação — que não nos
causal dum «fenómeno culturab — de um «indivíduo bistórico», para usar cabe aqui aprofundar — da categoria da «possibilidade objectiva». Porém,
uma expressão já utilizada de quando em quando na metodologia da nossa mesmo o estabelecimento de tais regularidades não é uma finalidade, mas
área científica, e que se tem tornado corrente em lógica, com uma formu- um meio de conhecimento. Se se deve ou não formular como «lei» uma
lação mais precisa — o conhecimento de leis da causalidade não pode ser regularidade na relação da causa a efeito, conhecida a partir da experiência
um objectivo, mas apenas um meio da investigação. Facilita e torna pos- quotidiana, é uma questão de adequação em cada caso considerado. Para
sível a imputação causal dos elementos dos fenómenos que têm indivi- as ciências naturais exactas, as «leis» são tanto mais importantes e têm tanto
dualidade culturalmente significativa às suas causas concretas. Só na medida mais valor quanto mais geral for a sua validade; para o conhecimento
em que preste esse serviço é que tem valor para o conhecimento de cone- dos pressupostos concretos dos fenómenos históricos, as leis mais gerais
xões individuais. E quanto mais «gerais», isto é, quanto mais «abstractas» são, em regra, também as que têm menos valor por serem as mais vazias
são essas leis, menos satisfazem as necessidades da imputação causal de de conteúdo. Com efeito, quanto mais abrangente é a validade de um con-
fenómenos individuais e, indirectamente, menos contribuem para à com- ceito genérico, maior é a sua extensão, tanto mais ele nos afasta da riqueza
preensão do significado dos processos culturais. da realidade, visto que, para conter o que há de comum ao maior número
O que podemos então concluir de tudo isto? Não será de concluir, possível de fenómenos, tem de ser o mais abstracto possível e, por isso,
evidentemente, que o conhecimento do geral, a formação de conceitos pobre de conteúdo. Em ciências da cultura, o conhecimento do geral não
genéricos abstractos, o conhecimento de regularidades e a tentativa de for- tem para nós valor em si mesmo.
mulação de conexões em forma de «leis» não têm legitimidade científica Do que foi dito até agora concluímos que um estudo «objectivo» dos
no domínio das ciências da cultura. Muito pelo contrário. Se o conheci- processos culturais, no sentido de a finalidade ideal do trabalho científico
mento do historiador em termos de causalidade é uma imputação de con- dever consistir numa redução do empírico a «leis», não tem qualquer sen-
sequências concretas a causas concretas, é absolutamente impossível uma tido. E não o tem, não porque, como tem sido muitas vezes afirmado,
imputação válida de qualquer consequência individual sem recurso a um o desenvolvimento dos processos culturais ou, digamos, dos processos
conhecimento «nomológico», isto é, o conhecimento das regulariciades do espírito, esteja «objectivamente» menos sujeito a leis, mas porque
das conexões de causalidade. Em caso de dúvida, só podemos determinar 1) conhecer leis sociais não é conhecer a realidade social, mas constitui
se um componente único e individual dum contexto na realidade tem in apenas um dos diversos meios a que o nosso pensamento recorre para
concreto significado causal para a consequência cuja explicação causal pre- o efeito; 2) não é possível conceber nenhum conhecimento dos processos
tendemos, avaliando as influências que em geral costumamos esperar dele culturais que não seja na base do significado que para nós tem a reali-
e dos outros elementos do mesmo complexo considerados para efeito de dade da vida, de carácter sempre individual, em determinadas relações
siy-
explicação — influências que são então os efeitos «adeguados» dos ele- gulares. Mas nenhuma lei nos revela em que sentido e em gue aspectos
mentos causativos em questão. Até que ponto o historiador (no sentido se verifica esse significado, porque isso decide-se segundo ideias de valor,
mais lato da palavra), com uma fantasia alimentada de experiência pessoal às quais subordinamos a nossa perspectiva de «cultura» em cada caso par-
de vida e educada no método, pode executar com segurança essa impu- ticular. «Cultura» é um fragmento finito, extraído da absurda infinidade

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é considerado como conta de que, em virtude das ideias de valor com que inconscientemente
do devir universal, que do ponto de vista do bomem,
abordou a matéria em estudo, seleccionou um componente ínfimo da abso-
tendo sentido e significado. E é-o, mesmo quando o homem se opõe figa-
luta infinidade, e só esse componente lhe interessa considerar. A selecção
dalmente a uma cultura concreta e reclama um «regresso à natureza». Com
de «aspectos» especiais e singulares daquilo que acontece, levada a efeito
efeito, só poderá tomar essa atitude se referir às suas ideias de valor a cul-
sempre e em toda a parte, consciente ou inconscientemente está relacio-
tura concreta e concluir que é «demasiado superficial». E esté conjunto
nada com outra concepção dominante acerca do trabalho em ciências da
de factos, de natureza puramente lógico-formal, que temos em mente
cultura. Segundo essa concepção, aquilo que uma obra científica tem de
quando dizemos que todos os indivíduos históricos estão «ancorados» de
«pessoal» seria o que nela verdadeiramente tem valor: e, para além de outros
maneira logicamente necessária a «ideias de valor». O pressuposto trans-
não está, por exemplo, no facto méritos que tivesse, toda a obra deveria ser a expressão de uma «persona-
cendental de toda a ciência da cultura
lidade». Com certeza! Sem as ideias de valor do investigador não haveria
de acharmos que determinada «cultura» ou, em geral, qualquer «cultura»
um princípio que permitisse a selecção da matéria, nem o conhecimento
tem muito valor, mas no facto de sermos pessoas de uma cultura, dotadas
do real na sua individualidade faria sentido. E, assim como não tem sen-
da capacidade e da vontade de conscientemente tomar posição em relação
tido o trabalho que incide sobre o conhecimento da realidade individual,
ao mundo, e de lhe conferir um sentido. Qualquer que seja esse sentido,
se O investigador não acreditar no significado de quaisquer conteúdos
conduzirá a que seja na base dele que julgaremos determinados fenómenos
culturais, assim também será a orientação da sua crença pessoal, a refracção
da convivência humana, e que tomaremos posição em relação a esses fenó-
dos valores no espelho da sua alma, que imprimirá direcção ao seu tra-
menos, enquanto significativos (positiva ou negativamente). Qualquer que
balho. E os valores aos quais o génio científico refere os objectos da sua
seja o conteúdo dessa tomada de posição, os fenómenos têm para nós sig-
investigação poderão determinar a «concepção» de toda uma época, isto
nificado cultural, e é apenas nesse significado que assenta o seu interesse
é, poderão ser decisivos — não apenas para aquilo que nos fenómenos
científico. Oxalá a terminologia que adoptámos, seguindo os lógicos
deve ser considerado «de grande valor», mas também para O que deve ser
modernos, quando falámos da condicionalidade do conhecimento da cul-
considerado significativo ou insignificante, «importante» ou «sem impor-
tura por ideias de valor, não se exponha a equívocos tão grosseiros como
tância».
o de pensar que só se deve atribuir significado cultural a fenómenos de
tanto como a religião O conhecimento no domínio da ciência da cultura, tal como o enten-
grande valor. Fenómeno cultural é a prostituição,
demos aqui, encontra-se, pois, ligado a pressupostos «subjectivos»
ou o dinheiro. São-no os três, apenas porque e apenas na medida em que
enquanto se ocupa apenas dos componentes da realidade que têm uma
a sua existência e a forma que historicamente assumem, tocam Os nossos
qualquer relação — por indirecta que seja — com ocorrências a que atri-
interesses culturais directa ou indirectamente, e estimulam o nosso impulso
buimos um significado cultural. Não deixa, naturalmente, por isso de ser
de conhecimento sob pontos de vista que procedem de ideias de valor,
um conhecimento puramente causal, exactamente no mesmo sentido do
as quais tornam significativo para nós o fragmento da realidade que é pen-
conhecimento de processos da natureza individuais, significativos de
sado naqueles conceitos.
carácter qualitativo. Paralelamente aos muitos erros e adulterações que a
Todo o conhecimento da realidade cultural é, por consequência,
incursão do pensamento formal-jurídico na esfera das ciências da cultura
sempre um conhecimento sob pontos de vista especificamente particit-
provocou, veio à luz recentemente, entre outras, a tentativa de «refutar»
larizados. Quando exigimos do historiador ou do investigador de ciên-
principalmente a «concepção materialista da história» mediante uma série
cias sociais que saiba distinguir — como pressuposto elementar — o impor-
de engenhosos sofismas: perfilhava-se que, uma vez que toda a vida eco-
tante do não importante, e que para operar essa distinção possua Os
nómica se deveria desenrolar sob formas reguladas jurídica ou conven-
necessários «pontos de vista», isso quer dizer simplesmente que ele terá
cionalmente, todo o «desenvolvimento» económico teria de assumir a
de saber referir — consciente ou inconscientemente — os processos da
forma de anseios com vista à criação de novas formas jurídicas, e por
realidade a «valores culturais» e, de acordo com isso, seleccionar as cone-
conseguinte seria compreensível apenas a partir de máximas morais, e por
xões que para nós são significativas. A opinião, com que deparamos fre-
esta razão diferente, na essência, de todo o desenvolvimento «natural».
quentemente, de que aqueles pontos de vista poderiam ser «retirados à
O conhecimento do desenvolvimento económico teria, pois, carácter
própria matéria», provém da ingênua ilusão do especialista que não se dá

632 633 É
«teleológico». Sem pretender discutir aqui o significado do ambíguo con- O que varia é mais o grau de interesse conforme as pessoas. Por outras
ceito de «desenvolvimento» na ciência social, e tão-pouco o conceito não palavras: são as ideias de valor dominantes para O investigador e para O
menos ambíguo em termos de «teleológico», observe-se apenas, neste con- seu tempo que determinam o que vai ser o objecto da análise, e em que
texto, que o desenvolvimento económico não é necessariamente «teleo- medida esta análise se estende pela infinidade das conexões causais. Como
lógico» no sentido que esta perspectiva pressupõe. Havendo total identi- veremos, é no «como?», no método da investigação, que o «ponto de vista»
dade formal das normas jurídicas em vigor, O significado cultural das orientador é determinante para a construção dos instrumentos concep-
relações jurídicas normalizadas, e por conseguinte também das próprias tuais que ele utiliza; porém, no modo como são utilizados, o investigador
normas, pode alterar-se radicalmente. Se nos dispusermos a mergulhar em está evidentemente, aqui como sempre, vinculado às normas do nosso
devaneios fantasistas acerca do futuro, alguém poderia, por exemplo, con- pensamento. É que a verdade científica é só aquilo que pretende valer para
ceber teoricamente como consumada uma «socialização dos meios de pro- todos os que querem a verdade.
dução» sem que alguma vez se tivesse manifestado qualquer «anseio» Do que se disse decorre o seguinte: a falta de sentido da ideia por
visando conscientemente tal resultado, e sem que tivesse sido suprimido vezes dominante, mesmo nos historiadores da nossa disciplina, de que o
ou acrescentado algum parágrafo à nossa legislação: a incidência estatís- objectivo das ciências da cultura, mesmo que longínquo, possa ser a cons-
tica de cada uma das relações juridicamente normalizadas sofreria, sem trução de um sistema fechado de conceitos em que a realidade fosse con-
dúvida, alterações de raiz, baixando mesmo em muitos casos até zero, densada numa estratificação de qualquer modo definitiva, para depois ser
grande parte das normas jurídicas perderia significado prático, e todo o de novo deduzida a partir desse sistema. A corrente do incomensurável
significado cultural se modificaria ao ponto de se tornar irreconhecível. acontecer flui infindavelmente rumo à eternidade. Os problemas cultu-
A concepção materialista da História podia, pois, eliminar com razão dis- rais que tocam os homens vão-se construindo sempre de novo e com novas
cussões de lege ferenda, uma vez que o seu ponto de vista fulcral con- tonalidades; o que assim permanece indefinido é o âmbito de tudo aquilo
sistia justamente na inevitável transformação do significado das institui- que, a partir daquele fluxo sempre infindável do individual, adquire para
ções jurídicas. Aquele a quem se afigure como subalterno o despretensioso nós sentido e significado, tornando-se «indivíduo histórico». As conexões
trabalho da compreensão causal da realidade histórica, que o evite, se de pensamento segundo as quais esse «indivíduo histórico» é encarado é
quiser, — substituí-lo por uma qualquer «teleologia» é impossível. «Fim» cientificamente apreendido, variam. Os pontos de partida das ciências da
é, na nossa apreciação, a representação de um resultado que se torna causa cultura permanecem, assim, variáveis por tempo indeterminado, enquanto
de um acto; tomamo-la em consideração do mesmo modo que conside- uma espécie de entorpecimento chinês da vida do-espírito não desabituar
ramos toda e qualquer causa que contribui ou pode contribuir para um a humanidade de levantar sempre novas questões à vida inesgotável. Um
resultado significativo. E o seu significado específico assenta somente no sistema das ciências da cultura, mesmo que só no sentido de uma fixação
facto de nós não só constatarmos a acção humana, como a podermos e sistematizadora, definitiva e objectivamente válida, das questões e domi-
querermos compreender. nios que elas devem estar vocacionadas para tratar, seria em si um absurdo.
Não é questionável que essas ideias de valor são «subjectivas». Entre Uma tal tentativa resultaria sempre numa justaposição de vários pontos
de vista, especificamente singularizados, entre si heterogéneos e díspares
o interesse «histórico» que nos desperta uma crónica de família, e aquele
sob vários aspectos, pontos de vista esses segundo os quais a realidade
que dedicamos ao desenvolvimento dos fenómenos mais importantes da
foi ou é para nós, em cada caso, «cultura», istO é, significativa na sua espe-
cultura que é possível imaginar, que foram e são durante épocas prolon-
cificidade.
gadas comuns a uma nação ou à humanidade, existe toda uma gradação
Depois destas prolongadas considerações, podemos finalmente voltar-
infindável de «significados», cujos escalões terão para cada um de nós indi-
-nos para a questão que metodologicamente nos interessa para uma aná-
vidualmente uma outra ordem de sequência. E são também, naturalmente,
lise da «objectividade» do conhecimento da cultura: qual é a função lógica
variáveis historicamente segundo o carácter da civilização e do próprio
e a estrutura dos conceitos com as quais a nossa ciência, como todas as
pensamento que domina os homens. Daí não decorre evidentemente que
outras, trabalha? Ou, mais especificamente e tendo em conta O problema
também a investigação da ciência da cultura só possa ter resultados que decisivo: qual é o significado da teoria e da construção teórica de con-
sejam «subjectivos» no sentido de que valem para uns e não para outros. ceitos para o conhecimento da realidade cultural?

634
635
Já vimos que a economia política era originariamente «técnica», pelo ceito de um princípio de desenvolvimento de validade geral, permitindo
menos segundo os pontos fulcrais dos assuntos nela debatidos, isto é, enca- ordenar num sistema de leis de validade geral, pelo menos aparente-
rava Os fenómenos da realidade sob uma perspectiva de valor pelo menos mente — mas não na realidade — tudo o que era essencial nestes objec-
aparentemente unívoca, estável e prática: a da multiplicação da «riqueza» tivos, dir-se-ia estender-se sobre todas as ciências o crepúsculo dos deuses
dos cidadãos de um Estado. Por outro lado, ela não foi só «técnica» desde de todas as perspectivas axiológicas. Com efeito, dado que o evento dito
o princípio, pois foi incorporada na poderosa unidade da mundivisão, histórico também era uma parcela da realidade total e que o princípio de
racionalista e orientada pelo direito natural, do século XVIII. Mas a espe- causalidade, pressuposto de todo o trabalho científico, parecia exigir a
cificidade daquela mundivisão, com a sua crença optimista na possibili- decompoição de todo o evento em «leis» de validade geral, e porque, final-
dade teórica e prática de racionalizar O real, teve uma acção essencial, na mente, nos encontrávamos na presença do prodigioso sucesso das ciên-
medida em que impediu que o carácter problemático daquele ponto de cias da natureza que tinham efectivado tal ideia, parecia não ser possível
vista pressuposto como evidente fosse revelado. Como a apreciação dar ao trabalho científico um outro sentido que não o da descoberta das
racional da realidade social nascera em estreita ligação com a evolução leis do evento em geral. Apenas aquilo «que se relaciona com leis» podia
moderna das ciências da natureza, permaneceu próxima destas em todo construir o elemento científico essencial de todos os fenómenos, e os
o seu modo de apreciação. Ora, nas disciplinas das ciências naturais, a pers- «acontecimentos individuais» não podiam entrar em linha de conta senão
pectiva prática de valor do que ao nível da técnica é imediatamente útil, como «tipos», isto é, como representações ilustrativas das leis. Manifestar
esteve desde o começo estreitamente ligada à esperança, herdada da Anti- interesse por esses elementos singulares, por si próprios, dir-se-ia não ser
guidade e posteriormente desenvolvida, de que seria possível, por via da de interesse «científico».
abstracção generalizante e da análise do empírico orientada para as cone- É-nos impossível seguir aqui as consideráveis repercussões que esta
xões legais, chegar a um conhecimento puramente «objectivo», quer dizer, disposição de espírito do monismo naturalista, cheia de segurança, teve
Í
neste caso, desligado de todos os valores, e simultaneamente racional, quer '
ií nas disciplinas económicas. Assim que a crítica socialista e o trabalho dos
dizer, liberto de todas as «casualidades» individuais; isto é, de que seria historiadores começaram a transformar as perspectivas axiológicas origi-
Í
possível chegar a um conhecimento monista de toda a realidade na forma nárias em problemas, o prodigioso desenvolvimento da pesquisa bioló-
de um sistema de conceitos de validade metafísica e forma matemática. gica, por um lado, e a influência do panlogismo de Hegel, por outro, impe-
As disciplinas das ciências naturais vinculadas a perspectivas de valor, tal diram a economia política de reconhecer com precisão, em toda a sua
como a medicina clínica e sobretudo aquilo a que normalmente se chama amplitude, a relação entre conceito e realidade. O resultado que aqui nos
«tecnologia», tornaram-se «artes» puramente práticas. interessa é que, apesar da forte barreira que a filosofia idealista alemã, desde
Os valores que tinham de servir — a saúde do doente e o aperfeiçoa- Fichte, as realizações da histórica escola alemã de direito e o trabalho da
mento técnico de um processo de produção concreto, por exemplo — histórica escola alemã de economia política opuseram à intrusão dos
tornaram-se inabaláveis para cada uma delas. Os meios aos quais recor- dogmas naturalistas, não é menos verdade, em parte por causa destes
reram consistiam, e só podiam consistir, no aproveitamento de conceitos esforços, que as perspectivas do naturalismo não estão ainda ultrapassadas
de carácter legal descobertos pelas disciplinas teóricas. Todo o progresso num certo número de aspectos determinantes. Entre elas é necessário citar,
de princípio no estabelecimento de leis era ou podia então suscitar um em particular, a relação entre o trabalho «teórico» e o trabalho «histórico»,
progresso na disciplina prática. Permanecendo os fins imutáveis, a redução que permanece tão problemática na nossa especialidade.
progressiva das diversas questões práticas (um caso de doença ou um pro- Mesmo nos nossos dias, o método «abstracto»-teórico continua a opor-
blema técnico), enquanto caso especial, a leis de validade geral, por con- -se com uma radicalidade abrupta e aparentemente intransponível à pes-
seguinte a extensão do conhecimento teórico, estava directamente asso- quisa empírico-histórica na nossa disciplina. Ele reconhece, e com toda
ciada e identificada ao alargamento das possibilidades técnico-práticas. No a razão, a impossibilidade metodológica de substituir o conhecimento his-
dia em que a biologia moderna conseguiu também os componentes da tórico da realidade pela formulação de «leis», ou, inversamente, de vir a
realidade que nos interessam historicamente, ou seja, pela forma segundo estabelecer «leis», no sentido restrito do termo, por uma simples justapo-
a quai se desenrolaram desta e não de outra maneira, debaixo de um con- sição de observações históricas. Ora, para alcançá-las — pois está convicto

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de que é a isto que a ciência tem de aspirar como fim supremo — parte ao abrigo destes conceitos, algo que estaria próximo das ciências da natu-
do princípio de que, continuamente, vivenciamos de forma directa as cone- reza, conduzira precisamente a uma leitura errada do sentido destas estru-
xões da acção humana na sua própria realidade, de modo que, segundo turas do pensamento teórico. Julgava-se tratar-se do isolamento psicoló-
ele, podemos tornar o seu desenrolar intelegível imediatamente, com evi- gico de um «instinto» específico no homem, o instinto de aquisição, ou
dência axiomática, e assim inferi-lo nas suas «leis». A única forma exacta então da observação isolada de uma máxima específica da acção humana,
do conhecimento, a formulação de leis imediata e intuitivamente evidentes. a do chamado princípio económico. A teoria abstracta pensava poder
seria ao mesmo tempo, porém, a única que nos permitiria deduzir sobre apoiar-se em axiomas psicológicos; daí resultou que os historiadores ape-
os acontecimentos não imediatamente observados. Por conseguinte, a
laram a uma psicologia empírica, para provar a não validade desses axiomas
construção de um sistema de teoremas abstractos e portanto plenamente
e poder inferir psicologicamente o curso dos acontecimentos económicos.
formais, por analogia com os das ciências exactas da natureza, seria, pelo
Não temos intensão de fazer aqui uma crítica circunstanciada do signifi-
menos no que diz respeito aos fenómenos fundamentais da vida econó-
cado de uma ciência sistemática da «psicologia social» — que ainda está
mica, o único meio de dominar espiritualmente a multiplicidade social.
por criar — enquanto fundamento vindouro das ciências da cultura e espe-
Apesar da distinção metodológica de princípio entre conhecimento legal
cialmente da economia social. Os ensaios, por vezes brilhantes, de inter-
e conhecimento histórico, efectuada em primeiro lugar pelo — único —
pretação psicológica dos fenómenos económicos de que temos conheci-
autor da teoria, ele não deixou de reclamar para os teoremas da teoria abs-
mento até este momento, mostram, contudo, uma coisa: é que não se
tracta uma validade empírica no sentido da deductibilidade da verdade
progride partindo da análise das qualidades psicológicas humanas para a
a partir das «leis». É certo que não no sentido da validade empírica dos
das instituições sociais, mas que, pelo contrário, o esclarecimento dos pré-
teoremas económicos abstractos em si mesmos, mas de forma que, quando
requisitos e dos efeitos psicológicos das instituições pressupõe a perfeita
se tiverem construído teorias «exactas» correspondendo a cada um dos
familiarização com estes últimos, e a análise científica das suas conexões.
outros elementos que entram em linha de conta, a soma de todas estas
A análise psicológica significa então, muito simplesmente, um aprofunda-
teorias abstractas deveria conter em si a verdadeira realidade das coisas —
mento precioso, em cada caso concreto, do conhecimento da sua condi-
ou seja, tudo aquilo que da realidade vale a pena ser conhecido. A teoria
cionalidade e do seu significado histórico-culturais. O que nos interessa
exacta da economia estabeleceria os efeitos de um motivo psíquico,
no comportamento psíquico do homem no seio das suas relações sociais
enquanto outras teorias teriam por tarefa desenvolver, de um modo aná-
está especificamente particularizado, em cada caso, segundo o significado
logo, todos os outros motivos num conjunto de teoremas de validade hipo-
tética. Quanto ao resultado do trabalho teórico — as teorias abstractas de cultural específico da relação em questão. Trata-se, no entanto, de moti-
formação de preços, juros, pensões, etc. — alegou-se, em consequência, vações e influências psíquicas extremamente heterogéneas entre si e muito
aqui e acolá, de maneira fantasista, que seria possível, segundo uma — concretamente intercombinadas. A pesquisa em psicologia social repre-
pretensa — analogia com os teoremas da física, empregá-las para deduzir senta uma triagem dos diversos géneros particulares de elementos cultu-
de premissas reais dadas resultados quantitativamente determinados — rais multiplamente díspares entre si, orientada para a sua capacidade de
portanto, leis no sentido mais restrito do termo — que teriam validade interpretação no uso da nossa compreensão por revivência. Partindo do
para a realidade da vida, uma vez que, perante um dado fim, a economia conhecimento das instituições particulares, esta procura ensinar-nos a com-
humana seria «determinada» univocamente com referência aos meios. Não breender intelectualmente, em crescente medida, a sua condicionalidade
se tomou em consideração o facto de que, para se obter este resultado, e o seu significado culturais, mas não a deduzir estas instituições a partir
mesmo no caso mais simples, seria necessário estabelecer previamente de leis psicológicas ou pretender explicá-las a partir de fenómenos psico-
como «dada» e pressupor como conhecida a totalidade da realidade his- lógicos elementares.
tórica, a cada momento, compreendendo todas as suas conexões causais, Esta a razão por que a polémica, vastamente disseminada, que girou
e que, se alguma vez este conhecimento fosse acessível ao espírito finito, em volta da questão da legitimidade psicológica das construções abstracto-
não seria concebível um qualquer valor epistemológico de uma teoria abs- -teóricas, do alcance de «instinto de aquisição» e do «princípio económico»,
tracta. O preconceito naturalista segundo o qual seria preciso elaborar, etc., se revelou pouco fecunda.

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Não é senão aparentemente que, nas construções da teoria abstracta, «genético». Ao fazê-lo, forma-se o conceito de «economia urbana», não
nos encontramos perante «deduções» a partir de motivos psicológicos fun- como média dos princípios económicos que efectivamente existiram na
damentais; na realidade, trata-se, sim, de um caso especial de uma forma totalidade das cidades examinadas, mas também como tipo ideal. Obtém-se
de construção conceptual própria das ciências da cultura humana e que, o tipo ideal por potenciação unilateral de um ou vários pontos de vista,
em certa medida, lhe é indispensável. Vale a pena caracterizá-la aqui com e fundindo uma pluralidade de fenómenos particulares dados que
mais pormenor, pois dessa maneira nos aproximamos da questão principal ocorrem difusa e discretamente, ora em grande número, ora em pequeno
do significado da teoria para o conhecimento sócio-científico. Deixaremos número, pontualmente de todo em todo, que se ordenam segundo esses
pendente, uma vez por todas, a questão de saber se as construções teó- pontos de vista seleccionados unilateralmente, para formar uma imagem
ricas que utilizamos como exemplos ou aquelas às quais fazemos alusão, mental em si homogénea. Não se encontrará empiricamente na realidade,
correspondem, tal como são, ao fim que pretendem servir, logo, se são em parte alguma, esta imagem mental na sua pureza conceptual: é uma
formadas objectivamente de modo adequado. A questão de saber até onde utopia. E para o trabalho histórico surge a tarefa de determinar, em cada
se deverá desenvolver, por exemplo, a actual «teoria abstracta» é afinal caso particular, quanto a realidade se aproxima ou se afasta desta imagem
também uma questão de economia do trabalho científico, que ainda com- ideal, em que medida, pois, se deve abordar o carácter económico das
porta outros problemas. «A teoria de utilidade marginal» é, ela também, condições de uma determinada cidade como próprio «de uma economia
subordinada à «lei da utilidade marginal», urbana» no sentido conceptual. Porém, aplicado com prudência, este con-
A teoria abstracta da economia oferece-nos justamente um exemplo ceito presta serviços específicos em termos de pesquisa e de clareza. Exac-
desta espécie de sínteses habitualmente designadas por «ideias» de fenó- tamente do mesmo modo se pode, para analisar outro exemplo ainda, dese-
menos históricos. Apresenta-nos, com efeito, um quadro ideal dos acon- nhar sob forma de utopia a «ideia» do «trabalho artesanal», congregando
tecimentos ocorridos no mercado de bens, no caso de uma organização numa imagem ideal em si não contraditória certos traços presentes de
de sociedade regida pelo princípio da troca, da livre concorrência e de maneira difusa em certas artes e ofícios das mais diversas épocas e países,
uma acção estritamente racional. Esta imagem mental reúne determinadas potenciados unilateralmente nas suas consequências, e referindo-os a uma
relações e acontecimentos da vida histórica num cosmos em si não con- expressão mental que se encontre ali manifestada. Pode-se tentar, além
traditório de conexões pensadas. No seu conteúdo, a construção reveste disso, desenhar uma sociedade na qual todos os ramos de actividade eco-
o carácter de uma utopia em si, obtida por potenciação conceptual de nómica, e mesmo intelectual, sejam dominados por máximas que se nos
determinados elementos da realidade. A sua relação com os factos empiri- afigurem como aplicação do mesmo princípio que é característico do «tra-
camente dados da vida consiste simplesmente nisto: onde se constatam balho artesanal» elevado à categoria de tipo ideal. Pode-se ainda contrapor,
ou se adivinham como actuantes nalguma medida, na realidade, conexões como antítese, a esse tipo ideal de trabalho artesanal, um tipo ideal cor-
do género das apresentadas abstractamente na construção pré-citada, ou respondente de um sistema industrial capitalista, abstraindo de certos traços
seja, processos dependentes do «mercado», podemos visualizar pragma- da grande indústria moderna e, na sequência disso, tentar delinear a utopia
ticamente e tornar compreensível e especificidade desta conexão segundo de uma cultura «capitalista», isto é, dominada exclusivamente pelos inte-
um tipo ideal. Esta possibilidade pode ter valor, mesmo ser indispensável, resses de valorização de capitais privados. Ela teria de congregar certos
não só heuristicamente como em termos de exposição. No que diz res- traços difusos isolados da vida material e espiritual moderna, potenciados
peito à pesquisa, o conceito ideal-típico propõe-se formar o juízo de impu- na sua especificidade, numa imagem ideal não contraditória à nossa apre-
tação: não é uma «hipótese», mas pretende apontar o caminho à elabo- ciação. Aí teríamos, então, uma tentativa de desenhar uma «ideia» de cul-
ração das hipóteses. Por outro lado, não é uma representação do real, mas tura capitalista — fica necessariamente por decidir, de momento, se e
propõe-se dotar a representação de meios de expressão unívocos. É, pois, como tal tentativa poderia resultar. Todavia, não só é possível como se
a «ideia» de organização da sociedade moderna, historicamente dada, deve considerar como certo poder-se esboçar várias, seguramente mesmo
baseada numa economia de troca, que é desenvolvida segundo princípios numerosas utopias deste género, das quais nenhuma será igual a outra e
lógicos exactamente idênticos ao modo, por exemplo, como se construíu das quais, sobretudo nenhuma se poderá encontrar na realidade empírica
a ideia de «economia urbana» na Idade Média sob a forma de um conceito enquanto ordem efectivamente em vigor num contexto social; das quais,

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porém, cada uma reclama constituir uma representação da «ideia» de cul- mesmo para O «caracterizar», trabalha e só deve trabalhar com conceitos
tura capitalista, e das quais também cada uma pode ter tal pretensão na que, em regra, só são rigorosa e univocamente determináveis em termos
medida em que efectivamente retirou da realidade certos traços da nossa de tipo ideal. Ou será que conceitos como, por exemplo, «individualismo»,
cultura significativos na sua especificidade e os reuniu numa imagem ideal «imperialismo», «feudalismo», «mercantilismo», «convencional», e tantas
homogénea. Com efeito, os fenómenos que nos interessam enquanto mani- outras construções conceptuais semelhantes por meio das quais tentamos
festações culturais derivam regra geral deste seu interesse — o seu «signi- captar a realidade pelo pensamento e pela compreensão, são definíveis,
ficado cultural» — de ideias de valor muito diversas às quais nós os de acordo com o seu contéudo, pela descrição «sem pressupostos» de uma
podemos referir. Tal como existe uma grande variedade de «perspectivas» qualquer manifestação concreta, ou pelo contrário pela síntese abstracta
segundo as quais podemos considerar estes fenómenos como significa- daquilo que é comum a diversos fenómenos concretos? A linguagem do
tivos, assim também se pode recorrer aos mais variados princípios para historiador contém, em centenas de palavras, tais imagens mentais impre-
seleccionar o tipo de conexões a admitir num tipo ideal de uma determi- cisas oriundas da necessidade de expressão não governada pela reflexão
nada cultura. e cujo significado primeiramente só é sentido de modo intuitivo, e não
Qual é então o significado de tais conceitos ideal-típicos para uma pensado com clareza. Num grande número de casos, sobretudo na his-
ciência empírica tal como nós nos propomos praticar? Primeiramente, que- tória política narrativa, a imprecisão do seu conteúdo não prejudica, porém,
ríamos insistir na necessidade de separar cuidadosamente a ideia do dever a clareza da exposição. Basta então que, em cada caso, se sinta o que O
ser, do «modelar», destas estrututras «ideais» de pensamento no sentido historiador tem em mente, ou, de outra maneira, poderemos contentar-
puramente lógico, a que nos estamos referindo. Trata-se da construção -nos com que o carácter de determinação particular do conteúdo con-
de conexões que estão suficientemente justificadas perante a nossa ima- ceptual de significado relativo para cada caso seja presente ao espírito como
ginação, sendo, portanto, «possíveis objectivamente», e que se afiguram tendo sido pensado. Contudo, quanto mais nitidamente se elevar à cons-
adequadas ao nosso saber nomológico. ciência a relevância de uma manifestação cultural, tanto mais inevitável
Quem quer que esteja convencido de que o conhecimento da reali- se torna a necessidade de operar com conceitos claros, e determinados
dade histórica pode ou deve ser uma ilustração «sem pressupostos» de não só parcial, mas abrangentemente. Evidentemente que é absurdo querer
factos «objectivos», negar-lhes-á todo e qualquer valor. E mesmo quem dar a estas sínteses do pensamento histórico uma «definição» segundo o
reconheceu que, ao nível da realidade, não há um «estádio sem pressu- esquema: genus proximum et diferentia specifica — faça-se a prova. Uma
postos» no sentido lógico, e que mesmo o mais simples excerto de uma tal forma de estabelecer o significado das palavras só se encontra nas dis-
acta ou de um documento só pode ter algum sentido científico por refe- ciplinas dogmáticas que operam com silogismos. Também não há, ou
rência a «significados» e, por conseguinte, a ideias de valor em última ins- apenas aparentemente existe uma simples «decomposição descritiva»
RS

tância, será levado a olhar a construção de qualquer «utopia» histórica como daqueles conceitos nos seus elementos, pois o que importa é precisamente
um meio de ilustração perigoso para a imparcialidade do trabalho histó- saber quais são, de entre estes elementos, aqueles que devem ser conside-
a

rico, mas sobretudo como um simples passatempo. Efectivamente, não rados como essenciais. Quando nos propomos dar uma definição gené-
se pode decidir a priori se se trata de um simples jogo de pensamento tica do conteúdo conceptual, não existe outra forma senão a do tipo ideal,
ou de uma construção conceptual cientificamente fecunda; também aqui no sentido indicado mais acima. O tipo ideal é uma imagem mental que
só há um critério, o do sucesso em termos do conhecimento de manifes- não é a realidade histórica ou sequer a «verdadeira» realidade e cuja função
Ada

tações culturais concretas no seu contexto, da sua condicionalidade causal ainda menos é servir de esquema no qual se pudesse ordenar a realidade
e do seu significado. Por conseguinte, a construção de tipos ideais abs- como modelo. Tem, antes, o significado de um conceito-limite puramente
tractos não entra em linha de conta com um fim, mas unicamente como ideal, pelo qual se mede a realidade para clarificar certos componentes
meio. Qualquer observação atenta dos elementos conceptuais da repre- importantes do seu conteúdo empírico, e com o qual ela é comparader.
sentação histórica mostra, porém, que o historiador, que tenta elevar-se Estes conceitos são estruturas em que construímos conexões, utilizando
acima da simples verificação de conexões concretas para determinar o sig- a categoria da possibilidade objectiva, que a nossa imaginação, formada
nificado cultural de um acontecimento singular, por simples que seja, e orientada segundo a realidade, julga adequadas.

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Nesta função, O tipo ideal é particularmente uma tentativa de gens conceptuais teóricas o «verdadeiro» conteúdo, a «essência» da reali-
apreender indivíduos históricos, ou os diferentes elementos que os cons- dade histórica; ou elas são utilizadas como uma espécie de leito de Pro-
tituem, em conceitos genéticos. Tomemos, por exemplo, os conceitos de custa no qual se introduzirá à força a História; ou se hipostasiam mesmo
«Igreja» e de «seita». É possível decompô-los num complexo de caracterís- as «ideias» como «verdadeira» realidade situada atrás do fluxo dos fenó-
ticas pela via da classificação pura, sendo necessário que, nesse processo, menos, como «forças» reais que desenrolaram os seus efeitos na História.
não só a fronteira entre os dois, como também o conteúdo conceptual Este último perigo em particular, é tanto mais de temer quanto nos
permaneçam sempre flexíveis. Porém, se me proponho apreender geneti- habituámos a compreender e mesmo em primeira linha por «ideias» de
camente o conceito de «seita», por exemplo, em relação a certos signifi- uma época, os pensamentos ou os ideais que dominaram a massa ou uma
cados culturais importantes que o «espírito de seita» tem tido para a cul- fracção de homens que historicamente ganhou importância nessa época,
tura moderna, determinadas características destes dois conceitos tornam-se e que assim se revelaram significativos como componentes para a sua espe-
essenciais porque se encontram em relação causal adequada com aqueles cificidade cultural. Podem-se juntar aqui duas outras observações. Em pri-
efeitos. Todavia, neste caso os conceitos tomam ao mesmo tempo a forma meiro lugar existem, regra geral, certas relações entre a «ideia» tomada no
de tipo ideal, o que quer dizer que não se manifestam, ou então só espo- sentido de tendência do pensamento prático ou teórico de uma época,
radicamente, na sua absoluta pureza conceptual. Aqui, como sempre, qual- e a «ideia» no sentido de um tipo ideal dessa época, construído por nós
quer conceito que não seja puramente classificatório afasta-nos da reali- para servir de auxiliar conceptual. Acontece que o tipo ideal de certas con-
dade. Mas é a natureza discursiva do nosso conhecimento, isto é, o facto dições sociais, que se pode obter pela abstracção de certas manifestações
de não apreendermos a realidade senão através de uma cadeia de trans- sociais características de uma época, pode ter aflorado mesmo à mente
formações na ordem da representação, que postula uma tal estenografia dos contemporâneos enquanto ideal pelo qual há que lutar praticamente,
de conceitos. Certamente que a nossa imaginação pode por vezes dispensar ou enquanto máxima destinada a regulamentar determinadas relações
a formulação conceptual explícita como meio de investigação, mas no sociais — exemplos deste género são aliás muito frequentes. Assim se passa
que respeita à exposição, desde que a pretendamos unívoca, a sua utili- já com a «ideia» de «protecção dos bens de subsistência» e de muitas outras
zação ao nível da análise cultural é, em inúmeros casos, inevitável. Quem teorias dos canonistas, especialmente São Tomás de Aquino, relativamente
a rejeita, por princípio, é obrigado a limitar-se ao aspecto formal dos fenó- ao conceito ideal-típico de «economia urbana» da Idade Média, em uso
menos culturais, por exemplo, no seu aspecto histórico-jurídico. É evi- actualmente, a que nos referimos acima. O mesmo acontece, e com maioria
dente que o cosmos das normas jurídicas é simultaneamente, sob o ponto de razão, como o alardeado «conceito fundamental» da economia política:
de vista conceptual, claramente determinável, e é válido para a realidade o de «valor económico». Desde a escolástica até à teoria de Marx que se
histórica (no sentido jurídico!). Pelo contrário, é o seu significado prático tem verificado uma amálgama entre a ideia de algo «objectivamente» válido,
que constitui objecto de trabalho da ciência social, tal como a entendemos. ou seja, de um dever-ser, e uma abstracção a partir do processo empírico
Ora, é muito frequente que se não possa elevar claramente à consciência da formação de preços. Deste modo, a ideia de que o «valor» dos bens
este significado, senão relacionando o que é empiricamente dado a um deveria ser regulado segundo certos princípios do «direito natural» teve
caso-limite ideal. Se o historiador (no sentido mais lato do termo) recusa uma importância incalculável para o desenvolvimento da cultura — não
a tentativa de formular um tal tipo ideal sob o pretexto de que é «cons- somente na Idade Média —, e continua a tê-lo nos nossos dias, tendo
trução teórica», isto é, inapta ou dispensável para os fins concretos do também influenciado de modo particularmente intenso o processo empí-
ag

conhecimento, daí resulta, regra geral, ou que aplica, consciente ou incons- rico da formação de preços. Contudo, só graças a uma construção con-
da AU

cientemente, outras construções análogas sem as formular explicitamente, ceptual rigorosa, isto é, ideal-típica podemos realmente esclarecer, sem
e sem elaboração lógica, ou que fica encravado na esfera daquilo que é equívoco, o que se depreende e se pode depreender por esse conceito
«sentido» indeterminadamente. teórico de valor. Eis um bom tema de reflexão para aqueles que desde-
Porém, nada é, sem dúvida, mais perigoso do que a confusão entre nham da teoria abstracta, apelidando-a de «robinsonada», pelo menos
teoria e História, que tem a sua origem nos preconceitos naturalistas. Essa enquanto não consigam apresentar em seu lugar nada de melhor, ou seja,
confusão apresenta-se sob diversas formas: ou se crê ter fixado nestas ima- neste caso, de mais claro.

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A relação de causalidade entre a ideia historicamente constatável, que da lógica pura — e o marxismo é disso exemplo excelente —, o processo
empírico-histórico que se desenrola na mente dos homens tem de ser
comanda os homens e aqueles componentes da verdade histórica a partir
dos quais se pode abstrair O tipo ideal que lhe corresponde, pode todavia, entendido em regra como processo condicionado psicológica e não logi-
em prin-
naturalmente, apresentar as mais diversas configurações. De reter, camente. O carácter ideal-típico de tais sínteses de ideias historicamente
cípio, é apenas que ambos são, como é evidente, coisas radicalmente dife- actuantes revela-se mais nitidamente ainda quando esses princípios nor-
rigor teadores e postulados básicos não habitam ou deixaram de habitar na mente
rentes. Mas algo mais se lhe vem juntar: só podemos apreender com
conceptual as próprias «ideias» que governam OS homens de uma época, desses indivíduos dominados pelos pensamentos logicamente deles decor-
isto é, que actuam difusamente neles — desde que se trate de quaisquer
rentes, ou por eles desencadeados através de associações; isto porque a
tipo ideal, «ideia» histórica e originariamente subjacente, ou morreu, ou só vingou
estruturas de pensamento mais complicadas — na forma de um
indeter- em amplitude nas suas consequências. E o carácter da síntese como uma
pois que elas vivem empiricamente na cabeça de uma pluralidade
neles experime ntando múltiplas grada- «ideia» por nós criada ressalta ainda mais vincadamente quando tais prin-
minada e variável de indivíduos,
componen tes da vida cípios norteadores básicos desde o início acederam imperfeitamente ou
ções de forma e conteúdo, clareza € sentido. Aqueles
época da Idade não acederam sequer claramente à consciência, ou pelo menos não adqui-
espiritual de cada indivíduo singular numa determinada
Média, por exemplo, podemos designar por «cristianismo» desses indiví
riram a forma de conexões claras de pensamento. Quando então empreen-
é demos este processo, como acontece e tem de acontecer tantas vezes, trata-
duos, seriam, caso conseguíssemos representá-los integralmente, como
de pensamen to e de senti- -se, no caso desta «ideia» — por exemplo do «liberalismo» de um
natural, um caos de toda a espécie de conexões
infinitamente diferenciadas e altamente contraditórias, embora à determinado período, ou do «metodismo», ou de alguma espécie de «socia-
mento
lismo» intelectualmente não elaborado —, de um tipo ideal puro de
Igreja da Idade Média tenha sem dúvida conseguido impor, em larga escala,
da fé e dos costumes. Ora, se levantarmos a questão de saber carácter totalmente idêntico às sínteses de «princípios» duma época eco-
a unidade
com nómica, das quais partimos. Quanto mais abrangentes são as conexões de
em que é que afinal consistiu O «cristianismo» da Idade Média, termo
o qual temos de funcionar como se dum conceito fixamente estabelecido
cuja representação se trata, e quanto mais multifacetado for o seu signifi-
insti- cado cultural, tanto mais a sua representação sistemática condensadora
se tratasse, se nos interrogarmos sobre o que haverá de «cristão» nas
logo se revela que também aqui, como em se aproxima, num sistema de conceitos e pensamentos, do carácter do tipo
tuições da Idade Média, desde
conceptua l pura criada por ideal, e tanto menos é possível manusear como sucesso 171 tal conceito;
cada caso particular, é aplicada uma estrutura
s
nós. Aquilo que reunimos numa «ideia» é uma combinação de princípio
e tanto mais naturais e inevitáveis são, por isso, as tentativas, sempre reno-
vadas, de trazerà consciência aspectos relevantes sempre novos por meio
de fé, normas de direito eclesiástico e éticas, máximas de vida e inúmeros
ríamos de novas construções de conceitos ideal-típicos. Todas as representações
contextos particulares: trata-se de uma síntese a que não consegui
aplicação de conceitos ideal-típic os. da «essência» do cristianismo, por exemplo, são tipos ideais de validade
chegar, isentos de contradições, sem a
seio dos quais repre- desde sempre e necessariamente muito relativa e problemática, quando
A estrutura lógica dos sistemas conceptuais no
pretendem ser encarados como representação histórica daquilo que existe
sentamos tais «ideias», € a sua relação com aquilo que nos é dado de modo
diferentes. empiricamente. Pelo contrário, esses tipos ideais têm um elevado valor
imediato na realidade empírica, são, porém, naturalmente muito
de heurístico para a investigação, e um alto valor sistemático para a repre-
O assunto ainda se apresenta de modo relativamente fácil tratando-se
res teóricos facilment e sentação, quando aplicados naquelas representações simplesmente como
casos em que são um ou mais princípios orientado
de Cal- meios conceptuais de comparação e medição da realidade. Nesta função
captáveis em fórmulas — por exemplo a crença na predestinação
am é que eles são francamente indispensáveis. Porém, a estas representações
vino —, ou postulados morais claramente formuláveis, que se apoderar
. Assim, podemos estratifica r a típicas ideais é regularmente inerente um outro momento que vem com-
dos homens produzindo efeitos históricos
vai desenvol vendo logi- plicar ainda mais o seu significado. Pretendem ser, ou são inconsciente
«ideia» numa hierarquia de pensamentos que se
e e regularmente, tipos ideais em sentido não só lógico, como prático: tipos
camente a partir desses princípios norteadores. E certo que aqui facilment
modelares que, no nosso exemplo, contêm aquilo que o cristianismo deve
se descura que, por muito marcante que tenha sido na História o signifi-
ser segundo a perspectiva do autor da representação, aquilo que no cris-
cado do poder do pensamento imperativo, mesmo do ponto de vista

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tianismo é para ele o «essencial», porque continuamente dotado de valor. Forçosamente, temos de deixar aqui de lado a discussão circunstan-
Se é este, porém, o caso, consciente ou — como é mais frequente — ciada do caso bem mais complicado e interessante que é a questão da estru-
inconscientemente, então essas representações contêm ideais aos quais o tura lógica do conceito de Estado. Observe-se apenas o seguinte: quando
seu autor refere o cristianismo de modo valorativo: tarefas e objectivos nos interrogamos a que corresponde na realidade empírica a ideia de
pelos quais ele norteia a sua «ideia» de cristianismo, e que, naturalmente, Estado, encontramos uma infinidade de acções e condescendências hu-
podem ser muito diferentes, e o serão sempre decerto, dos valores com manas difusas e discretas, de relações factuais e juridicamente ordenadas
os quais os contemporâneos, por exemplo os primeiros cristãos, relacio- de carácter, ora único, ora regularmente recorrente, que se mantêm coesas
navam o cristianismo. Nesta acepção, as «ideias» deixam naturalmente de mediante uma ideia, a crença em normas efectivamente válidas ou que
ser meios auxiliares puramente lógicos, deixam de ser conceitos pelos quais devem valer e relações de domínio do homem sobre o homem. Esta crença
a realidade é medida comparativamente, para se tornarem ideais a partir é, em parte, património espiritual conceptualmente desenvolvido, em parte
dos quais ela é ajuizada valorativamente. Não se trata já aqui de um pro- obscuramente sentida, e ainda em parte passivamente aceite, existindo em
cesso puramente teórico de referência do empírico a valores, estamos, múltiplas gradações na mente dos indivíduos que, caso pensassem a «ideia»
sim, perante juízos de valor incorporados no «conceito» de cristianismo. com clareza enquanto tal, não precisariam da «doutrina geral do Estado»
Uma vez que aqui o tipo ideal reivindica validade empírica, invade a área que ela pretende desenvolver. Ora, o conceito científico de Estado, seja
de interpretação valorativa do cristianismo: o campo da ciência empírica qual for a sua formulação, é naturalmente sempre uma síntese a que nós
é abandonado; estamos perante uma confissão pessoal, não perante uma procedemos para determinados objectivos de conhecimento. Mas, por
construção conceptual ideal-típica. Por muito principal que esta diferen- outro lado, é também abstraído das sínteses, não muito claras, existentes
ciação seja, a amálgama daqueles dois significados, basicamente diferentes na mente dos homens históricos. Porém, o conteúdo concreto que o
da «ideia» ocorre com extraordinária frequência no decurso do trabalho «Estado» histórico adquire naquelas sínteses dos contemporâneos, só pode,
histórico. Ela é sempre bem palpável, assim que o historiador apresentando por sua vez, ser ilustrado por orientação segundo conceitos ideal-típicos.
os acontecimentos começa a desenvolver a sua «concepção» duma perso- Além disso, não há qualquer dúvida de que o modo como aquelas sín-
nalidade ou duma época. Ao contrário dos critérios éticos — que se
teses, de forma logicamente sempre imperfeita, são realizadas pelos con-
mantêm constantes — que Schlosser utilizou no espírito do racionalismo,
temporâneos, de que a natureza das «ideias» que eles têm de Estado
o historiador moderno, de formação relativista, pretendendo por um lado,
— por exemplo a metafísica «orgânica» do Estado na Alemanha, em opo-
«compreender» a época de que fala a «partir de si própria», mas, por outro
sição à concepção «comercial» americana — são de significado eminente-
lado, também «ajuizá-la», sente a necessidade de ir buscar os padrões do
mente prático; não há dúvida nenhuma, por outras palavras, de que
seu juízo à «matéria», isto é, de fazer brotar a «ideia» no sentido do ideal
também aqui a ideia prática considerada como devendo-ser-válida ou
da «ideia» no sentido do «tipo ideal». E os atractivos estéticos de um tal
como válida e o tipo ideal teórico construído para objectivos de conheci-
procedimento aliciam-no continuamente a diluir a linha em que ambos
mento, decorrem paralelamente, evidenciando a tendência permanente
se separam — uma meia-medida que, por um lado, não pode dispensar
para se inter-penetrarem.
o juízo valorativo, mas que, por outro lado, aspira a rejeitar a responsabi-
Tínhamos considerado acima deliberadamente o «tipo ideal», no
lidade pelos seus juízos. Em face disso, é dever elementar do auto-controlo
essencial —- embora não exclusivamente —, como construção intelectual
científico e o único meio de evitar fraudes, separar com rigor a referência,
logicamente comparativa da realidade, a tipos ideais no sentido lógico, para medir e caracterizar de modo sistemático conexões individuais, isto
do ajuizar valorativo da realidade a partir de ideais. Um «tipo ideal», tal é, relevantes na sua especificidade — como o cristianismo, o capitalismo,
como aqui é entendido — e seja permitido repeti-lo mais uma vez — é algo etc. Fizemo-lo para eliminar a concepção corrente segundo a qual, no
de totalmente indiferente perante o ajuizar valorativo, nada tem a ver com domínio das manifestações culturais, o que é abstractamente típico seria
outra «perfeição» que não a puramente lógica. Há tipos ideais de bordéis idêntico ao que é abstractamente próprio do género. Não é esse O caso.
tanto como de religiões, e, no primeiro caso, há-os que, do ponto de vista Sem que possamos aqui analisar principalmente o conceito de «típico»,
da ética policial actual, pareceriam tecnicamente «adequados», assim como tão discutido e fortemente desacreditado por abuso, podemos desde já
os há que são exactamente o contrário. concluir, do que foi dito, que a construção de conceitos de tipos no sen-

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O facto de que os tipos ideais, incluindo os que são próprios do
tido da eliminação do «casual» ocorre também e precisamente nos indiví-
género, podem ser e são utilizados, oferece interesse metedológico apenas
duos históricos. Contudo, também esses conceitos genéricos que encon-
em relação com outra realidade.
tramos continuamente como componentes de representações históricas
Até agora só conhecemos os tipos ideais fundamentalmente como
e de conceitos históricos concretos, podem, como é natural, ser formados
conceitos abstractos de conexões, concebidos por nós enquanto perma-
como tipos ideais por abstracção e potenciação de determinados elementos necentes no fluxo do acontecer, enquanto indivíduos históricos nos quais
que lhes são essenciais em termos de conceito. Este é mesmo um caso se efectivam evoluções. Ora, surge aqui uma complicação que facilmente
importante de aplicação dos conceitos ideal-típicos e que, na prática, ocorre volta a activar, recorrendo ao conceito de «típico», o preconceito natura-
frequentemente, e cada tipo ideal individual compõe-se de elementos con- lista de que o objectivo das ciências sociais teria de ser a redução da reali-
ceptuais genéricos e formados enquanto tipos ideais. Também neste caso dade a «leis». Também as evoluções se podem construir como tipos ideais,
se manifesta a função lógica específica dos conceitos ideal-típicos. Há um € estas construções podem ter um notável valor heurístico. Mas pode surgir.
conceito simples de género no sentido de um complexo de características e em larga escala, o perigo de que tipo ideal e realidade invadam os res-
comuns a vários fenómenos que é, por exemplo, o de «troca», desde que pectivos campos. Pode, por exemplo, chegar-se ao resultado teórico de
se abstraia do significado dos componentes do conceito, ou seja, pois, que, numa sociedade rigidamente organizada «segundo o trabalho arte-
que se analise simplesmente o uso na fala quotidiana. Se se relacionar, sanal», a única fonte de acumulação de capital seja o rendimento fundiário.
porém, este conceito com a «lei de utilidade marginal», e construir o con- Sem que esteja aqui em análise a justeza da construção talvez se possa,
ceito de «troca económica» como um processo economicamente racional. a partir daí, construir uma imagem ideal de uma transformação da forma
então este conceito, como qualquer um integralmente desenvolvido em económica artesanal em capitalista, estritamente condicionada por deter-
termos lógicos, contém um juízo sobre os condicionalismos típicos da minados factores simples, como sejam a escassez de terras, o crescimento
troca em si. Esse conceito adquire carácter genético, tornando-se assim demográfico, o afluxo de metais preciosos, a racionalização do modo de
simultaneamente ideal-típico no sentido lógico, isto é, afastando-se da rea- vida. Ora, só recorrendo a esta construção como meio heurístico seria de
lidade empírica que só pode ser comparada e referida a ele. Algo de seme- analisar, na senda da comparação entre tipo ideal e «factos», se o decurso
lhante se passa com todos os chamados «conceitos fundamentais» da Eco- empírico-histórico da evolução foi efectivamente o construído. Estivesse
nomia política: só se podem desenvolver de forma genética enquanto tipos O tipo ideal «correctamente» construído, e não correspondendo o decurso
ideais. A oposição entre simples conceitos genéricos que se limitam a con- efectivo ao ideal-típico, seria asssim fornecida prova de que a sociedade
densar o que é comum às manifestações empíricas, e tipos ideais próprios medieval precisamente em determinados aspectos não era com rigor uma
do género — como por exemplo um conceito ideal-típico da «essência» sociedade «de trabalho artesanal». E se o tipo ideal for contruído de modo
do trabalho artesanal — é naturalmente esbatida, em cada caso. Todavia, heuristicamente «ideal» — e não consideramos aqui minimamente se e
nenhum conceito genérico possui, enquanto tal, carácter «típico», e não como assim poderia acontecer no nosso exemplo —, então ele orientará
existe um tipo «médio» estritamente próprio do género. Onde quer que simultaneamente a investigação no sentido duma apreensão mais rigorosa
falemos de grandezas «típicas», por exemplo na estatística, estamos perante dos componentes da sociedade medieval não próprios do trabalho arte-
algo mais que uma mera média. Quanto mais se trata de uma classificação sanal na sua singularidade e no seu significado histórico. Quando conduz
simples de processos que se verificam na realidade enquanto manifesta- a este resultado, terá cumprido o seu objectivo lógico, justamente ao mani-
ções de massa, tanto mais se trata de conceitos genéricos; quanto mais, festar a sua própria irrealidade. Terá constituído — neste caso — o ensaio
pelo contrário, se formam conceptualmente conexões históricas compli- de uma hipótese. O processo não suscita quaisquer reservas metodoló-
cadas naqueles seus componentes em que assenta o seu significado cul- gicas, desde que tenhamos sempre presente que a construção de processos
de evolução ideai-típica, e a história, são duas coisas que há que distin-
tural específico, tanto mais o conceito — ou o sistema conceptual —
guir com todo o rigor, e que a construção aqui não foi senão o meio de
comportará em si o carácter de tipo ideal. Pois O objectivo da construção
realizar concertadamente a imputação válida de um processo histórico
conceptual ideal-típica é sempre, não trazer com nitidez à consciência º
às suas causas reais a partir do âmbito das que são possíveis segundo a
que é próprio do género, mas inversamente à especificidade dos fenó-
situação do nosso conhecimento.
menos culturais.

650 651
trativamente o empírico — análise histórica utilizando conceitos teóricos
Ora, manter esta separação rigorosa é frequentemente muito dificul-
da como casos-limite ideais, — acrescentando-se ainda as diversas complica-
tado, como mostra a experiência, pelas circunstâncias. No interesse
ideal-típica, tentar- ções possíveis a que aqui nos limitámos a aludir: tudo isto são constru-
demonstração concreta do tipo ideal ou da evolução
ções conceptuais cuja relação com a realidade empírica do que é dado ime-
-se-á clarificar essa separação por meio de materiais concretos extraídos
si per- diatamente é problemática em cada caso: — esta amostragem, só por si,
da realidade empírico-histórica. O perigo deste procedimento, em
ser- revela bem o infinito entrelaçar dos problemas metódico-conceptuais
feitamente legítimo, reside em que o saber histórico surge aqui como
ou sempre vivos no domínio das ciências da cultura. E devíamos, pura e sim-
vidor da teoria, em vez do inverso. O teórico é facilmente tentado,
plesmente, renunciar a tratar com seriedade as questões práticas metodo-
a encarar esta relação como normal, ou, O que é mais grave, a permitir
lógicas onde e quando os problemas apenas deviam ser apresentados, e
que teoria e História se interpenetrem e mesmo que venham a confun-
discutir mais profundamente as relações do conhecimento ideal-típico com
dir-se. É o que acontece de modo ainda mais acentuado quando a cons-
o «baseado em leis», dos conceitos ideal-típicos com os conceitos colec-
trução ideal de uma evolução com à classificação conceptual de tipos ideais
tivos, etc....
de certas estruturas culturais (por exemplo, de formas de exploração indus-
Depois de tudo o que foi argumentado, o historiador persistirá sempre
trial partindo duma «economia doméstica fechada», ou de conceitos reli-
em que a predominância da forma ideal-típica de formação e de construção
giosos começando nos «deuses do momento») tende a ser trabalhada e com-
conceptual é sintoma específico da juventude de uma disciplina. E nisso
binada numa classificação genética. A sequência de tipos resultante das
há que lhe dar, até certo ponto, razão, embora retirando consequências
características conceptuais seleccionadas surge então como uma sucessão
diferentes das suas. Tomemos alguns exemplos doutras disciplinas. É certo
histórica desses tipos necessária em termos de lei. A ordem lógica dos con-
que o martirizado aluno do secundário, tanto como o filólogo primitivo,
ceitos, por um lado, e o ordenamento empírico do concebido no espaço,
começam por imaginar uma língua «organicamente», ou seja, como um
no tempo e na relação de causa a efeito, por outro, surgem de tal modo
todo supra-empírico regido por normas, e a tarefa da ciência como sendo
entrosados que a tentação de violentar a realidade para corroborar à vali-
a de determinar aquilo que deve valer como regra linguística. A primeira
dade real da construção na realidade torna-se quase irresistível.
tarefa que normalmente se coloca a uma «filologia» é trabalhar logicamente
Foi propositadamente que se evitou proceder a demonstrações no
a «linguagem escrita», como por exemplo o fez a Crusca, reduzindo o seu
caso, para nós de longe mais importante, de construções ideal-típicas: Marx.
conteúdo a regras. E mesmo que perante isto um filólogo eminente hoje
Fizemo-lo para não complicar ainda mais a exposição introduzindo inter-
proclame o «falar de cada um» objecto da filologia, a elaboração de um
pretações de Marx e para não nos anteciparmos às discussões da nossa
tal programa só é possível depois de existir na linguagem escrita um tipo
revista que terá, como objecto regular de análise crítica, a literatura sobre
ideal relativamente fixo com o qual a investigação da infinita variedade
e em relação com o grande pensador. Por conseguinte, verifica-se aqui
é natural, todas as «leis» e construções de processos do falar, de contrário falha de orientação e sem delimitação, possa operar
apenas que, como
teo- (pelo menos tacitamente). E não de outro modo que as construções das
de evolução especificamente marxistas, na medida em que estiverem
teorias de Estado inspiradas no direito natural e organicistas ou, para
ricamente isentas de erro, têm carácter ideal-típico. O significado eminente,
recordar um tipo ideal tal como nós o entendemos aqui, a teoria do Estado
e mesmo singularmente beurístico destes tipos ideais, quando usados para
antigo de Benjamin Constant, funcionavam de certo modo, como portos
com eles comparar a realidade, e bem assim a sua perigosidade, desde
de abrigo, até que aprendemos a orientar-nos no mar imenso dos factos
que apresentados como valendo empiricamente ou mesmo como «forças
empíricos. A ciência amadurecida significa, pois, de facto, sempre supe-
actuantes» reais (isto é, na verdade: metafísicas), «tendências», etc., são
ração do tipo ideal, conquanto ele seja concebido como válido empirica-
conhecidos de todos os que já trabalharam com conceitos marxistas.
mente ou como conceito de género. Contudo, não é só, por exemplo, a
Conceitos genéricos — tipos ideais — conceitos ideal-típicos de
utilização da engenhosa construção de Constant que ainda hoje é perfei-
género, — ideias no sentido de associações de pensamento actuando empi-
tamente legítima para a demonstração de certos aspectos € singularidades
ricamente em pessoas históricas — tipos ideais de tais ideias — ideais que
históricas da vida de Estado na Antiguidade, assim que lhe fixemos cuida-
governam as pessoas históricas — tipos ideais de tais ideais — ideais que
o carácter ideal-típico; mais importante é, sim, que há ciências
servem de referência ao historiador; — construções teóricas utilizando iluts-
dosamente

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que gozam de eterna juventude, e são elas todas as disciplinas históricas, segundo o conteúdo da própria cultura. A relação entre o conceito e aquilo
todas aquelas às quais o contínuo fluir da cultura vai sempre suscitando que é concebido nas ciências da cultura traz consigo a transitoriedade de
novos problemas. Nelas, a transitoriedade de todas, mas simultaneamente qualquer dessas sínteses. As grandes tentativas de construir conceitos têm
a inevitabilidade de construções ideal-típicas sempre novas são próprias tido o seu valor, no domínio da nossa ciência, de um modo geral justa-
da essência da sua missão. . mente no facto de que puseram a descoberto os limites do significado
Vão-se repetindo, sem cessar, as tentativas de determinar o sentido daquele ponto de vista que lhes subjazia. Os progressos de maior alcance
«concreto», «verdadeiro» dos conceitos históricos, e jamais chegam a bom no domínio das ciências sociais prendem-se objectivamente com a alte-
termo. Por conseguinte, em regra, as sínteses com as quais a História con- ração dos problemas culturais práticos, revestindo a forma duma crítica
tinuamente trabalha, ou permanecem conceitos apenas relativamente deter- da construção conceptual. Será uma das mais nobres tarefas da nossa revista
minados, ou, assim que se queira por força extrair univocidade do con- servir o objectivo desta crítica, e bem assim a análise dos princípios de
teúdo conceptual, o conceito converte-se em tipo-ideal abstracto, assim síntese no domínio das ciências sociais.
se revelando como um ponto de vista teórico, «unilateral» portanto, sob Perante as consequências a tirar do que foi dito, chegamos agora à
o qual a realidade vem à luz, ao qual ela pode ser referida, mas que, em um ponto em que as nossas opiniões talvez divirjam, aqui e acolá, das de
termos de sistema no seio do qual ela pudesse ser disposta e integralmente muitos representantes da escola histórica, mesmo dos mais eminentes, de
ordenada, obviamente demonstra ser inapropriado. É que nenhum desses quem nós também nos consideramos discípulos. É que eles persistem
sistemas de pensamento que não podemos dispensar para a apreensão dos muitas vezes, expressa ou implicitamente, na opinião de que é fim último,
componentes significativos da realidade, a cada momento, pode alguma que é objectivo de toda a ciência ordenar a respectiva matéria num sis-
vez esgotar a sua infinita riqueza. Nenhum deles é outra coisa que não a tema conceptual cujo conteúdo se pode adquirir e ir aperfeiçoando pela
tentativa de, com base no estádio respectivo do nosso saber e das estru- observação de regularidades empíricas, pela construção de hipóteses e pela
turas conceptuais à nossa disposição, trazer ordem ao caos daqueles factos verificação das mesmas, até que daí se tenha gerado uma ciência «perfeita»
que vamos introduzindo no círculo dos nossos interesses. O aparelho con- e por isso dedutiva. Consideram tais representantes que, para atingir este
ceptual desenvolvido no passsado — por meio dum tratamento reflexivo, objectivo, o trabalho histórico-indutivo do presente é uma tarefa preli-
o que quer dizer, em boa verdade, por meio da transformação reflexiva minar condicionada pela imperfeição da nossa disciplina: desta perspec-
da realidade imediatamente dada, e através do seu ordenamento naqueles tiva, nada suscita naturalmente mais reservas do que a formação e a utili-
conceitos que correspondiam ao estádio do conhecimento dessa realidade zação de conceitos rigorosos, que necessariamente se precipitariam na
e à orientação do seu interesse —, esse aparelho encontra-se em perma- antecipação daquele objectivo que pertence a um futuro longínquo. Esta
nente confronto com aquilo que podemos e queremos ganhar em conhe- concepção seria, em princípio, inatacável no terreno da teoria do conhe-
cimentos novos da realidade. É nesta luta que se vai realizando o progresso cimento da escolástica antiga, ainda muito enraizada na massa dos espe-
do trabalho científico-cultural. O seu resultado é um processo de trans- cialistas da escola histórica: pressupõe-se que o objectivo dos conceitos
formação permanente dos conceitos com os quais procuramos apreender é eles serem reproduções da realidade «objectiva», a nível da representação;
a realidade. A história das ciências da vida social, portanto, é e permanece daí a referência, sempre recorrente, à irrealidade de tais conceitos rigo-
uma contínua alternância entre a tentativa de ordenar mentalmente os rosos. Quem pensar até às últimas consequências a ideia fundamental da
factos através da construção de conceitos, isto é, de decompor as ima- moderna teoria do conhecimento, que remonta a Kant, segundo a qual
gens mentais assim adquiridas pelo alargamento e deslocação do horizonte os conceitos são e só podem ser instrumentos mentais para dominar espi-
científico, e a formação renovada de conceitos com base nesta nova ritualmente o que é empiricamente dado, não poderá acolher como con-
situação. Não é o que há de errado na tentativa de formar, em geral, sis- traditório que, por um lado, conceitos genéticos rigorosos sejam necessa-
temas conceptuais que aqui se revela — qualquer ciência, mesmo a His- riamente tipos ideais, mas que, por outro lado, não se possa impedir a
tória simplesmente expositiva, trabalha com o ideário conceptual da sua formação de tais tipos ideais. Para ele, inverter-se-á a relação entre con-
época — mas sim o facto de que nas ciências da cultura humana a formação ceito e trabalho histórico: aquele fim último afigura-se-lhe logicamente
dos conceitos depende da colocação dos problemas, e de que esta varia impossível, os conceitos não são fim, mas instrumento do conhecimento

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das conexões significativas sob os pontos de vista individuais: precisamente clara. E, na verdade, são sobretudo os conceitos colectivos retirados da
porque os conteúdos dos conceitos históricos são necessariamente variá- linguagem da vida que aqui são fonte dos maiores contratempos. Para pegar
veis, têm de ser necessariamente, a cada momento, formulados com rigor. num exemplo tão claro quanto possível para O leigo tomemos o conceito
Porá apenas a exigência de que, ao serem aplicados, o seu carácter de estru- de «agricultura», tal como ele surge na expressão «interesses da agricul-
turas mentais seja sempre mantido, cuidadosamente fixado, e tipo ideal tura». Comecemos por tomar Os «interesses da agricultura» como a ideia
e história não sejam confundidos. Julgará que, uma vez que os conceitos subjectiva, empiricamente constatável e mais ou menos clara, que cada
históricos verdadeiramente definitivos, perante a inevitável mutação das agente económico individualmente faz dos seus interesses, e abstraiamos
ideias dominantes de valor, não entram em consideração como fim último completamente dos inúmeros conflitos de interesses de agricultores que
de ordem geral, julgará que, justamente pelo facto de, para o ponto de se dedicam à criação de gado, à engorda de gado, à plantação de cereais,
vista particular, dominante a cada vez, serem construídos conceitos rigo- à produção de rações, à destilação de aguardente, etc.: nem todo o leigo,
rosos e unívocos, existe a possibilidade de, a cada vez, conservar nitida- mas todo o especialista conhece o poderoso intrincado, difusamente sub-
mente na consciência as fronteiras da sua validade. jacente, de relações de valor que aí se interpenetram e se entrechocam.
Ora, apontar-se-á, e nós próprios o admitimos, que um contexto his- Enumeremos apenas algumas: os interesses de agricultores que querem
tórico concreto pode perfeitamente, a cada caso, ser clarificado de modo vender a sua propriedade, estando, por isso, apenas interessados numa
intuitivo quanto ao seu decurso, sem que seja continuamente referido a alta rápida do preço dos solos; o interesse precisamente oposto daqueles
conceitos definidos. E, em conformidade com isto, reclamar-se-á ao his- que querem comprar, agregar ou arrendar terrenos; o interesse daqueles
toriador da nossa disciplina, que, tal como foi dito a respeito do histo- que aspiram a manter uma determinada propriedade para os seus suces-
riador político, fale a «linguagem da vida». Sem dúvida que assim é! Sim- sores por razões de vantagem social, estando por isso interessados na esta-
plesmente, há que acrescentar que, neste procedimento, permanece bilidade da posse da terra; O interesse contrário daqueles que, por si ou
necessariamente questão de acaso, muitas vezes em larga medida, se o pelos seus filhos, desejam que a posse das suas terras se mova no sentido
ponto de vista segundo o qual o processo em apreciação ganha signifi- de quem melhor as administre, ou, O que não é a mesma coisa, se oriente
cado acede claramente à consciência. Não nos encontramos, de um modo no sentido do comprador de maior poder financeiro; o interesse puramente
geral, na conveniente situação do historiador político, para quem os con- económico na liberdade de movimentos dos lavradores «mais capazes» do
teúdos culturais a que refere a sua apresentação são, em regra, — ou ponto de vista da economia privada; em conflito com este, o interesse de
parecem ser — unívocos. Toda a representação meramente intuitiva traz certas camadas dominantes na conservação da posição social e política tra-
inerente a si a especificidade do significado de um retratar artístico: «Cada dicional do seu próprio «status» e consequentemente do da sua descen-
um vê aquilo que traz no coração», — juízos válidos pressupõem sempre dência; O interesse social das camadas não dominantes de agricultores no
e em toda a parte O tratamento lógico do intuitivo, ou seja, a aplicação desaparecimento daqueles outros estratos que oprimem a sua própria
de conceitos; aliás, é possível, e muitas vezes esteticamente atraente, tê- posição; o seu interesse, que em determinadas circunstâncias colide com
“los mentalmente à mão, mas não deixa de afectar a segurança da orien- isto, em ter nessas camadas dominantes chefes políticos que preservem
tação do leitor, muitas vezes do próprio escritor, quanto ao conteúdo e os seus interesses materiais. A lista ainda poderia ser extensamente aumen-
alcance dos seus juízos. tada, sem que lhe encontrássemos um fim, embora tenhamos procedido
Contudo, o negligenciar de uma construção conceptual rigorosa pode tão sumária e imprecisamente quanto possível. Deixemos de parte o facto
tornar-se sobremaneira perigoso quando se trata de debater questões prá- de que a estes interesses «egoístas» se podem misturar ou associar, podendo
ticas do foro político-económico e sócio-económico. Para quem está de mesmo impedi-los ou desviá-los, os mais diversos valores puramente ideais,
fora, é francamente incrível a confusão suscitada aqui, por exemplo, pela para recordarmos antes de mais que, quando falamos de «interesses da agri-
utilização do termo «valor» — esse filho-problema da nossa disciplina, ao cultura», em regra não pensamos só naqueles valores materiais e ideais aos
qual só pode ser atribuído um qualquer sentido unívoco de um modo ideal- quais cada agricultor refere os seus próprios «interesses», mas também nas
-típico —, ou de palavras como «produtivo», «da perspectiva económica», ideias de valor, em parte totalmente heterogéneas, pelas quais nós podemos
etc., que não toleram minimamente qualquer análise conceptualmente pautar a agricultura. Vejam-se os seguintes exemplos: interesses de pro-

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dução, derivados do interesse numa alimentação barata da população. que possíveis é O único caminho que dá saída à falta de clareza da frase feita.
nem sempre coincide com o de uma alimentação de qualidade — podendo O «argumento do comércio livre», enquanto mundivisão ou norma válida,
aqui os interesses da cidade e do campo existir em múltiplas colisões, e é ridículo; porém, trouxe consigo graves prejuízos aos nossos debates sobre
podendo o interesse das gerações actuais não ser de todo idêntico aos inte- política comercial — independentemente, por sinal, de quais os ideais de
resses prováveis das gerações futuras. Outro exemplo constituem os inte- política comercial que cada um quer defender — ao ponto de termos sub-
resses demográficos, nomeadamente o interesse numa população rural “estimado no seu valor heurístico, a velha sabedoria de vida dos maiores
numerosa, oriundo, seja dos interesses «do Estado», por uma questão de comerciantes da terra, condensada em tais fórmulas ideal-típicas. SÓ através
política do poder ou de política interna, seja de outros interesses ideais de fórmulas conceptuais ideal-típicas é que os pontos de vista conside-
de natureza entre si diversa, por exemplo, na esperada influência duma rados a cada caso se tornam verdadeiramente nítidos na sua especificidade,
população rural numerosa sobre a especificidade cultural de um país. Este na senda do confronto do empírico com o tipo ideal. O uso dos conceitos
interesse demográfico pode colidir com os mais diversos interesses da eco- colectivos indiferenciados com os quais a linguagem do quotidiano tra-
nomia privada por parte de todos os sectores da população rural, e é balha serve sempre para encobrir aspectos obscuros do pensar ou do
mesmo imaginável que colida com todos os interesses actuais da massa querer, e muitas vezes é instrumento de expedientes suscitando as maiores
da população rural, Outro caso é o interesse numa determinada forma de reservas, e sempre um meio de obstruir a evolução da colocação correcta
estratificação social da população rural, devido à natureza das influên- dos problemas.
cias culturais ou políticas que daí resultam: este interesse pode colidir, con- Chegámos ao final destas considerações, que apenas visam salientar
forme a sua orientação em cada caso, com todos os interesses de presente a linha tantas vezes ténue, que separa a ciência da crença, e trazer ao conhe-
e de futuro mais prementes que se possa imaginar de cada agricultor, bem cimento o sentido do esforço cognitivo do campo sócio-económico.
como do «Estado». E o que complica ainda mais a questão é que o «Estado», A validade objectiva de todo o saber empírico assenta apenas em que a
por cujo «interesse» gostamos de pautar tais interesses individuais e muitos realidade dada se ordena segundo categorias que são subjectivas num'sen-
outros semelhantes, serve muitas vezes para nós de cobertura a um intrin- tido específico, nomeadamente expondo os pressupostos do nosso conhe-
cado altamente complexo de ideias de valor pelas quais ele, por sua vez. cimento, e que estão associadas ao pressuposto de valor daquela verdade
é por nós pautado em cada caso: segurança militar em relação ao exterior; que só o saber empírico é capaz de nos dar. Não temos nada a oferecer,
asseguramento da posição de domínio duma dinastia ou de certas classes com os recursos da nossa ciência, âqueles para quem esta verdade não
a nível interno; interesse na preservação e no alargamento da unidade da é dotada de valor — e a crença no valor da verdade científica é produto
nação do ponto de vista formal e do Estado, por si própria ou no inte- de certas culturas e não um dado da natureza. Esses procurarão em vão
resse da conservação de certos valores culturais objectivos, entre si muito outra verdade que tome o lugar da ciência naquilo que só ela é capaz de
diversos, que nós julgamos defender enquanto povo unido em termos de produzir: conceitos e juízos que não são a realidade empírica, que também
Estado; transformação do carácter social do Estado no sentido de certos não a reproduzem, mas que a ordenam reflexivamente de modo válido.
ideais culturais, por sua vez muito diversos — levar-nos-ia longe demais Vimos como, no domínio das ciências da cultura empíricas e sociais, a pos-
querermos apenas aludir a tudo o que se abriga sob a designação colec- sibilidade de um conhecimento significativo daquilo que para nós é essen-
tiva de «interesses estatais», aos quais podemos referir a agricultura. cial na infinita riqueza do acontecer, está associada à aplicação incessante
O exemplo aqui escolhido, e sobretudo a nossa análise sumária, são gros- de pontos de vista de carácter particularizado, em última instância todos
seiros e simples. Experimente o leigo analisar de modo semelhante (e mais orientados por ideias de valor que, pelo seu lado, são, é certo, constatá-
profundo) o conceito de «interesse de classe dos trabalhadores», para ver veis e vivenciáveis empiricamente enquanto elementos de todo o agir
que emaranhado contraditório, em parte de interesses e ideais dos traba- humano significativo, mas não fundamentáveis na sua validade a partir
lhadores, em parte de ideais à luz dos quais encaramos os trabalhadores, da matéria empírica. A «objectividade» do conhecimento sócio-científico
se lhe esconde por trás. É impossível ultrapassar as palavras de ordem da depende antes de que o empiricamente dado de facto é sempre orientado
luta de interesses pela acentuação puramente empírica da sua «relatividade». por aquelas ideias de valor que, só elas, lhe emprestam valor cognitivo.
A verificação conceptual, clara e rigorosa, dos vários pontos de vista O significado dessa objectividade é compreendido a partir dessas ideias

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de valor; contudo, jamais pode ser erguido a pedestal para comprovação diante. Então, também a ciência se arma para mudar posições e aparelho
" empiricamente impossível da sua validade. E a crença, que habita em todos conceptual, e mirar do cimo do pensamento o fluir do acontecer. Pros-
nós sob qualquer forma, na validade supra-empírica de ideias de valor segue na senda dos astros que, só eles, são capazes de apontar sentido e
últimas e supremas nas quais fundeamos o sentido da nossa existência, orientação ao seu trabalho:
não exclui, antes inclui a incessante variabilidade dos pontos de vista con-
cretos sob os quais a realidade empírica adquire significado: a vida na sua «.. desperto o novo impulso,
realidade irracional, e o seu conteúdo em significados possíveis, são ines- Veloz me vou beber sua eterna luz,
gotáveis, pelo que a configuração concreta da relação de valor permanece Diante de mim o dia, por trás a noite,
fluida, sujeita como está à mudança projectada no futuro obscuro da cul- Acima de mim o céu, abaixo o mar revolto.»
tura humana, A luz irradiada por essas ideias de valor supremas, vai inci-
dindo sobre uma parcela finita, sempre variável, do fluxo imensamente
caótico de acontecimentos que percorre o tempo.
Ora, não se interprete mal tudo isto, no sentido de a verdadeira tarefa
das ciências sociais dever ser a demanda permanente de pontos de vista
e construções conceptuais sempre novos. Pelo contrário, nada deve ser
aqui tão rigorosamente acentuado quanto o enunciado de que servir o
conhecimento do significado cultural de conexões históricas concretas
é o seu fim único e exclusivo, que o trabalho de construção e crítica de
conceitos, para além de outros meios, também deve servir. Para usar as
palavras de F. Th. Vischer, também há na nossa disciplina «jeiras de matéria»
e «jeiras de sentido». A goela da primeira, ávida de factos, só se consegue
atulhar com pilhas de documentação, tomos e inquéritos estatísticos, sendo
insensível à subtileza de qualquer pensamento novo. A guloseima da
segunda adultera o gosto pelos factos através de destilações de pensamento
sempre novas. Aquela veia artística autêntica que, por exemplo, entre os
historiadores, Ranke possuía em tão elevado grau, costuma manifestar-se
precisamente no facto de saber criar sempre algo de novo referindo factos
conhecidos a pontos de vista conhecidos.
Todo o trabalho científico-cultural, numa era de especialização, uma
vez orientado, por determinadas maneiras de colocar os problemas, para
uma determinada matéria, e depois de se ter munido de princípios meto-
dológicos, contemplará o tratamento desta matéria como objectivo pró-
prio, sem controlar sempre conscientemente o valor cognitivo de cada
um dos factos de per si pelas ideias de valor últimas, e mesmo sem de todo
permanecer consciente de como tais factos estão ancorados a estas ideias
de valor. E é bom que assim seja. Mas chega a altura em que esmorece
e se altera a convicção: o significado dos pontos de vista irreflectidamente
valorizados torna-se incerto, o rumo esbate-se e perde-se no lusco-fusco
crepuscular. A luz dos grandes problemas culturais é projectada mais para

660 661
3. A ÉTICA PROTESTANTE, E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO *

Ao abordarem os problemas de história universal, os filhos do


moderno mundo cultural europeu fá-lo-ão — inevitavelmente, e com toda
a pertinência — perspectivando a sua análise em função da seguinte inter-
rogação: a que conjunto de circunstâncias se ficará a dever que tenha sido
precisamente no Ocidente, e só aqui, que surgiram fenómenos culturais
que — pelo menos, como nós gostamos de pensar — se situaram numa
linha evolutiva cuja importância e validade são de alcance universal?
É apenas no Ocidente que existe «ciência» naquele estádio de desen-
volvimento que nós, hoje em dia, consideramos como «válido». Em outras
partes do mundo — sobretudo na Índia, na China, na Babilónia, e no
Egipto — teve lugar toda uma série de manifestações culturais, tais como:
conhecimentos empíricos; reflexão sobre os problemas da vida e do
mundo; filosofia prática da mais profunda, tanto no domínio filosófico
como no teológico (embora, neste último caso, tenha sido a parte da Cris-
tandade que sofreu a influência helenística a desenvolver plenamente uma
teologia sistemática — e sendo apenas no Islão, bem como em algumas
seitas da Índia, que podemos registar algumas poucas manifestações disto,
de somenos importância); um saber erudito e observações de extraordi-
nário nível. Porém, tanto a astronomia da Babilónia, como todas as outras
astronomias, careciam de fundamentação matemática (o que, de resto, faz
com que o desenvolvimento da astronomia da Babilónia, em especial, seja
tanto mais assombroso); esta fundamentação matemática só lhe foi dada
pelos Gregos. A Geometria da Índia não possuía a «demonstração» racional,

Ob. Cit., pp. 1-16

663
«demonstração» esta que é, por sua vez, um produto do espírito helenís- têm sido interpretadas harmonicamente de forma racional desde o Renas-
tico. Espírito este que foi também o primeiro a criar a Mecânica e a Física. cimento; a nossa orquestra, tendo, por um lado, o quarteto de cordas
como
Igualmente na Índia, as Ciências Naturais — que estavam excepcionalmente núcleo central, e, por outro, a organização do conjunto dos instrumentos
desenvolvidas no campo da observação — careciam tanto da experimen- de sopro; o baixo-contínuo; a nossa escrita musical (e que, só ela, faz com
tação racional (que é essencialmente um produto do Renascimento, inde- que seja possível compor música, bem como executar as modernas obras
pendentemente de algumas manifestações embrionárias que se haviam veri- musicais — logo, que torna de todo em todo possível a perenidade dessas
ficado na Antiguidade), como do laboratório moderno. E é deste modo obras); as nossas sonatas; as sinfonias; as óperas — embora, em todos os
que a Medicina, que, na Índia, tinha atingido um elevado nível no domínio géneros de música, e por mais diferentes que eles fossem, tivesse havido,
técnico e empírico, não tinha nem fundamentação biológica, nem — sobre- como modos de expressão, a música de programa ou programática, os tons,
tudo — bioquímica. Não há nenhuma civilização, com excepção da oci- a alteração, as escalas cromáticas, e, enfim, como meio material para os
dental, que tenha uma Química racional. A historiografia chinesa, com todo
executar, todos os nossos instrumentos musicais básicos, quais sejam: o
o seu alto grau de desenvolvimento, não tem o pragmatismo da de Tucí-
Órgão, O piano e o violino.
dides. Maquiavel tem precursores na Índia; só que, a toda a filosofia asiá-
O arco em ogiva existiu também, como elemento decorativo, em
tica do Estado falta completamente uma sistematização do mesmo género
outras partes do mundo — na Antiguidade e na Ásia; do mesmo modo,
da de Ariostóteles, do mesmo modo que não dispõe de conceitos racio-
parece que a abóbada gótica não era desconhecida no Oriente. No entanto,
nais. No campo do Direito, não é possível falar, nas restantes partes do
já os seguintes aspectos não os encontramos noutras partes, fora do Oci-
mundo para além do Ocidente, de uma ciência jurídica de carácter
dente; a utilização racional da abóbada gótica como processo da distri-
racional — apesar de todas as incipientes manifestações que podemos
buição, pelos pontos de saída, da pressão provocada pelo peso, quer da
encontrar na Índia (Escola de Mimansa), e mesmo tendo também em conta,
cobertura em abóbada de espaços construídos obedecendo apenas ao gosto
por um lado, as vastas colectâneas de leis, sobretudo na Ásia Menor, e,
e à vontade dos arquitectos; e, muito especialmente, também não se
por outro, a série de tratados jurídicos da Índia e de outros países. E não
encontra essa mesma utilização da abóbada gótica nem como princípio
se pode falar, aí, de ciência jurídica racional, porque não encontramos os
básico de construção de edifícios monumentais, de grandes dimensões,
rigorosos quadros conceptuais e esquemas jurídicos, que são próprios do
nem como pressuposto e condição necessária de um estilo que incorpo-
Direito Romano — e, bem assim, do Direito do Ocidente, que tomou
aquele como modelo e, desse modo, se desenvolveu e aperfeiçoou. Para rava em sia escultura e a pintura, tal como apareceu na nossa Idade Média.
E, do mesmo modo, também não deparamos — embora
além disto, é só no Ocidente que se encontra um produto do género do os aspectos téc-
Direito Canônico. nicos essenciais tenham sido colhidos no Oriente — nem com aquela par-
As coisas passam-se de modo semelhante no domínio da Arte. A sen- ticular solução do problema da cúpula, nem com aquela espécie de racio-
sibilidade musical dos outros povos terá sido, segundo parece, mais apu- nalização «clássica» da arte em geral (caracterizada, no caso da pintura, pela
rada do que é actualmente entre nós; de qualquer modo, menos delicada utilização racional da perspectiva linear e aérea) — as quais surgiram, entre
é que não terá sido. A polifonia de diversas espécies estava espalhada por nós, com O Renascimento.
todo o mundo. E noutras regiões, que não apenas no Ocidente, Na China houve artes gráficas. Porém, foi só no Ocidente que apa-
encontravam-se, do mesmo modo, quer a instrumentação, quer o tiple; receu uma literatura impressa — uma literatura destinada apenas a ser
isto mesmo acontecia com todos os nossos intervalos musicais, de natu- impressa, e que só pelo facto de ser impressa é que tinha possibilidades
reza racional — os quais eram conhecidos, e bem assim caiculados. Porém, de existir: a «imprensa» e as «revistas», sobretudo.
é já só no Ocidente que encontramos toda uma série de outros aspectos, Na China e no Islão existiram, do mesmo modo, instituições de ensino
que passamos a enumerar: a música harmónica, de natureza racional (tanto superior, e de todas as espécies que se possam conceber — tendo-as
o contraponto, como a harmonia); a composição musical baseada nos três também havido que, nos seus aspectos externos, se assemelhavam às nossas
trítonos, com a terceira harmónica; as nossas escalas cromáticas, e a har- Universidades, ou mesmo às nossas Academias. Porém, é só no Ocidente
monia, que não têm como fundamento as distâncias, mas, pelo contrário, que encontramos — em qualquer sentido que seja, na linha da sua actual

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importância como factor dominante da e na cultura — uma actividade cien- A questão põe-se igualmente nos mesmos termos com a força que
tífica especializada, de carácter racional e sistemático: o conjunto de espe- mais decisiva influência teve na nossa vida moderna — isto é, com o capi-
cialistas com formação académica. talismo.
E é apenas no Ocidente que, muito especialmente, deparamos com Em si mesmo, aquilo que vulgarmente se designa por «instinto de aqui-
o funcionário público especializado — a trave-mestra, no Ocidente, tanto sição», «ânsia de lucro» — sede de dinheiro, e de tanto quanto possível —
do Estado moderno, como da moderna economia. Nas outras civilizações não tem absolutamente nada a ver com o capitalismo. Este instinto
existem apenas formas embrionárias desta espécie de funcionário, o encontrava-se — e encontra-se — em toda a gente: em criados de restau-
qual — em nenhum lado, e de nenhuma maneira — teve um papel tão rante, em médicos, cocheiros, artistas, meretrizes de alto coturno, fun-
preponderante na formação da organização social. Como se torna evidente,
cionários públicos corruptos, soldados, salteadores, cruzados, jogadores
o «funcionário público» (e também o funcionário público especializado
de jogos de azar, mendigos. Pode-se dizer que deparamos com um tal ins-
em determinadas funções) é um fenómeno antiquíssimo em todas as civi-
tinto em «all sorts and conditions of men» — em toda à parte e em todas
lizações, por mais diversas que elas sejam. Porém, um aspecto houve em
as épocas, onde e quando de qualquer modo houvesse (e haja) objectiva-
que nunca em nenhum país e em nenhuma época as coisas se passaram
mente a possibilidade de tal. Pôr de lado, de uma vez por todas, esta sim-
de modo semelhante ao que aconteceu no moderno Ocidente — ou seja:
plista definição do conceito — é uma coisa elementar e que se impõe. Uma
a total e absoluta dependência de toda a nossa vida (das condições ele-
sede imoderada de ganho, que não conheça quaisquer limites, não é de
mentares da nossa existência — a nível político, técnico e económico) de
modo nenhum o mesmo que capitalismo — e ainda menos tem a ver com
uma organização de funcionários públicos com formação especializada,
o espírito do capitalismo. O capitalismo pode ser precisamente o mesmo
da competência exclusiva dos quais faziam parte as mais importantes fun-
que o refreamento deste instinto irracional — ou, pelo menos, o esforço
ções do dia-a-dia da vida social. Eram os funcionários de formação téc-
de o moderar por meio da Razão. Porém, o capitalismo já se identifica
nica, de formação comercial, — e, sobretudo, o funcionário de formação
com a ânsia de lucro na empresa capitalista, racional e contínua — com
jurídica.
a ânsia de obter sucessivamente lucro, ou seja, rentabilidade. O capita-
Em todo o mundo podemos verificar como os grupos políticos e
lismo, com efeito, tem necessariamente que ser isto mesmo. Dentro
sociais se organizaram em função do seu status social. Porém, é só no dos
parâmetros duma economia estruturada, no seu todo, em termos capita-
Ocidente que encontramos — no especial sentido que isto tem na nossa
listas — uma empresa capitalista que não tivesse como objectivo a renta-
civilização ocidental — o Estado fundado sobre este tipo de organizações:
«rex et regnum».
bilidade estaria condenada a desaparecer.
Foi só no Ocidente que surgiram Parlamentos de «representantes do Comecemos por definir o conceito com um pouco mais de rigor,
povo» eleitos periodicamente (os «demagogos»), bem como foi também do que aquilo que frequentemente acontece. Para nós, um acto econó-
só aqui que se verificou o predomínio de chefes partidários como «minis- mico capitalista significa, em primeiro lugar, um acto que se baseia na
tros» responsáveis perante o Parlamento — embora, naturalmente, em todo expectativa de lucro, aproveitando as oportunidades de troca — que tem
o mundo tenha havido «partidos», no sentido de organizações para con- como fundamento, portanto, a obtenção de lucro em termos (formalmente)
quistar e influenciar o poder político. pacíficos. O lucro obtido por meio da violência (tanto formalmente, como
Finalmente, só no Ocidente é que existe o «Estado» no sentido de no plano dos factos) tem as suas regras próprias; e não é correcto (embora
instituição política — com uma «Constituição» e um Direito estatuídos não possamos impedir ninguém de fazê-lo) colocá-lo na mesma categoria
racionalmente, e bem assim com uma Administração que se oriente por do comércio que (em última análise) se orienta pelas oportunidades de
regras, igualmente estatuídas em termos racionais — as «eis» — e gerida obter lucro mediante a troca.
por funcionários públicos especializados. Só o Ocidente é que conhece Onde e quando se procura obter racionalmente um lucro capitalista,
o Estado nesta combinação das suas características fundamentais (e com- a actividade respectiva toma como ponto de orientação o cálculo do
binação que para esse Estado é essencial) — independentemente de todas capital. Significa isto que essa actividade se desenvolve no quadro duma
as manifestações destas características que, de forma mais ou menos inci- utilização planificada de prestações úteis, de natureza material ou pessoal,
piente, se possam encontrar noutras civilizações. como processo de obtenção de lucro. E de tal modo, que o valor final

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de um empreendimento isolado, contabilizado monetariamente no termo as civilizações do mundo — como pode ser provado através da documen-
dum período económico — ou, então, O valor monetário do activo, ava- tação de carácter económico, por mais recuada que ela seja no tempo. Foi
liado periodicamente, no caso duma actividade empresarial contínua — assim na China, na Índia, na Babilónia, no Egipto, na Antiguidade do Medi-
deve exceder o capital (logo, no caso duma actividade contínua, deve terrâneo, na Idade Média e na Idade Moderna. E não se tratou somente
excedê-lo sucessivamente), e entendendo-se por «capital» o valor conta- de operações isoladas, mas também de empreendimentos económicos que
bilizado dos meios de produção materiais utilizados para a obtenção do se baseavam totalmente em novas e sucessivas operações isoladas capita-
lucro por meio da troca. Quer se trate de um conjunto de bens «in natura» listas, e bem assim de «explorações» permanentes — embora o comércio
que sejam entregues «in comenda» a um caixeiro viajante, e cujo rendi- não tivesse tido, durante largo tempo, as características da nossa activi-
mento final possa consistir, por sua vez, em outras mercadorias «in natura» dade económica permanente, mas, essencialmente, o de uma série de ope-
obtidas através da actividade comercial, ou se trate, por outro lado, de rações isoladas, só aos poucos e poucos tendo passado a actividade dos
uma instalação fabril, cujo activo — representado por edifícios, máquinas, comerciantes por grosso (destes precisamente) a apresentar uma coorde-
reservas em dinheiro, matérias-primas, produtos acabados e semi-acabados nação interna, e orientada em função dos diversos ramos comerciais. De
— se contraponha ao passivo, — o aspecto decisivo é sempre este: que qualquer modo: a empresa capitalista, bem como o empresário capita- .
seja feita uma contabilização do capital em dinheiro, e sendo indiferente lista — não só ocasional, mas também permanente — são antiquíssimos,
que essa contabilização se processe no moderno plano da contabilidade, e existiram em todas as partes do mundo. Porém, o grau de importância
ou, pelo contrário, seja feita de um modo primitivo e superficial. Tudo que o capitalismo atingiu no Ocidente, bem como (o que, de resto, cons-
se faz em termos de balanço: tanto no início do empreendimento (balanço titui a razão de tal) todas as espécies, formas e orientações de que aqui
inicial); como antes de qualquer transacção isolada (cálculo estimativo do se revestiu, — isto é o que não se encontra em mais nenhuma parte. Houve
lucro provável); ou aquando do controlo e verificação da utilidade da tran- negociantes em todo o mundo — negocciantes por grosso, e retalhistas;
sacção (cálculo posterior); ou, então, no final, para controlar o que tenha comerciantes locais e à distância —; houve negócios de crédito de toda
sido o lucro (balanço final). O balanço inicial de mercadorias entregues a espécie; houve Bancos com funções variadíssimas, mas que, na essência,
«in comenda» é, por exemplo, a fixação, por acordo entre as partes. do foram pelo menos semelhantes às que tiveram no nosso século XVI. Os
valor em dinheiro, das mercadorias em causa — na medida em que elas créditos marítimos, as consignações, as associações e negócios em coman-
não se revistam já da forma de dinheiro; o balanço final é a avaliação feita dita, — estavam também largamente divulgados. Sempre que se punha a
no fim, e que serve de base para a distribuição dos lucros ou das perdas; questão de crédito monetário para os organismos públicos, aparecia o
quanto ao cálculo estimativo do lucro provável, pois é um pressuposto financiador: na Babilónia, na Grécia, na Índia, na China, em Roma, E, sobre-
— no caso de as coisas se passarem em termos racionais — de todo e qual- tudo, para O financiamento das guerras e da pirataria, para fornecimentos
quer acto da pessoa que recebe as mercadorias «in comenda». Que cál- e construções de toda a espécie. Na política ultramarina surgiam como
culos e estimativas que sejam realmente exactos não tenham lugar — isto empresários colonialistas, adquiriam plantações, procediam à respectiva
é, que se proceda ou por pura avaliação, ou então, muito simplesmente, exploração (ou com escravos, ou com trabalho forçado, directa ou indi-
em termos tradicionais e convencionais —, é coisa que tem acontecido rectamente). Lançavam-se na especulação com as rendas dos grandes domí-
em todas as formas de empresa capitalista até hoje, sempre que as circuns- nios senhoriais, com os cargos públicos, e, sobretudo, com a cobrança
tâncias não imponham um cômputo exacto. Mas isto são aspectos que de impostos. Financiavam os chefes partidários, para as eleições, e os «con-
afectam apenas o grau de racionalidade da actividade capitalista. dottieri», para as guerras civis. Enfim, o financeiro aparecia como «espe-
Para a caracterização do conceito, o que releva é apenas o seguinte culador» em todo o género de actividades em que pudesse fazer dinheiro.
aspecto: que o ponto de orientação, real e efectivo, da actividade econó- Esta espécie de empresários — os aventureiros capitalistas — houve-os em
mica, seja a comparação entre o resultado expresso em dinheiro, por um todo o mundo. Variando segundo o ponto sobre o qual incidia a tónica
lado, e, por outro, O investimento que tenha sido feito igualmente em principal, as actividades deles — com excepção do comércio, e dos negó-
dinheiro. Neste sentido, houve «capitalismo» e «empresas capitalistas», cios bancários e de crédito — ou se revestiam de um carácter puramente
mesmo com uma sofrível racionalização do cálculo do capital, em todas irracional e especulativo, ou, então, estavam orientadas para a aquisição
i

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por meio da violência, sobretudo o saque — o saque levado a efeito por nado com este primeiro aspecto, a contabilidade racional. A separação,
actos de guerra, ou o saque permanente de natureza fiscal (exploração dos no espaço físico, entre a oficina ou a loja, por um lado, e, por outro, a
súbditos). casa de habitação, — este aspecto encontra-se em outros lados (no «bazar»
O capitalismo mercantil, o dos grandes especuladores, o colonialista, do Oriente, e nos ergástulos de outras civilizações). Do mesmo modo, a
bem como o moderno capitalismo financeiro — já o que desenvolve a criação de associações capitalistas com uma contabilidade própria encontra-
sua actividade em termos de paz mas sobretudo todo o capitalista que esteja -se tanto na Ásia Oriental, como nos países do Próximo-Oriente e da Ásia
especificamente orientado para a guerra — todas estas formas de capita- Central, e bem assim na Antiguidade. No entanto, isto não passa de sim-
lismo apresentam ainda frequentemente estas características no Ocidente ples manifestações rudimentares em face da moderna autonomia das
dos nossos dias; do mesmo modo, alguns sectores (só alguns) do grande empresas. E, sobretudo, porque os processos internos desta autonomia
comércio internacional têm aspectos semelhantes a este género de capita- ou não existem, ou se encontram num estado incipiente de desenvolvi-
lismo — hoje em dia, como desde sempre. mento: a nossa contabilidade de natureza racional, e a nossa separação,
No Ocidente, porém, surgiu na Idade Moderna — para além deste em termos jurídicos, entre o património da empresa e o património pes-
género de capitalismo — uma outra espécie, completamente diferente, e soal. Aliás, a evolução mostrou em toda a parte a tendência para fazer apa-
que não se desenvolveu em mais nenhuma outra parte do mundo: a orga- recer empresas como partes da casa de um príncipe ou de um grande
nização capitalista e racional do trabalho (formalmente) livre. Nas outras senhor (do «oiko»); uma evolução que, aliás, não obstante uma aparente
partes do mundo só se podem encontrar formas embrionárias desta espécie semelhança, diverge em alto grau e acaba por ser exactamente o contrário
de capitalismo. Com efeito, a própria organização do trabalho servil só da outra — coisa que Rodbertus já tinha reconhecido. Em última análise,
atingiu um certo grau de racionalidade nas plantações, e, em medida muito porém, foi só através do seu relacionamento com a organização capita-
reduzida, nos ergástulos da Antiguidade. Este grau de racionalidade foi lista do trabalho, que todos estes aspectos específicos do capitalismo oci-
ainda menor, nos começos da Idade Moderna, nos campos trabalhados dental alcançaram a importância que têm hoje em dia. Em relação com
por servos não-livres e nas oficinas artesanais dos latifúndios, ou nas indús- esta organização do trabalho está igualmente aquilo que se costuma
trias domésticas dos grandes domínios senhoriais em que vigorava o regime designar por «comercialização» — o desenvolvimento dos papéis de cré-
de trabalho servil. Quanto ao trabalho livre, fora do Ocidente só espora- dito, e a racionalização da especulação: a Bolsa. E isto na medida em que
dicamente é que se podem encontrar, documentadas com segurança, todos estes aspectos, incluindo a evolução no sentido da comercialização,
«indústrias domésticas» propriamente ditas; por outro lado, o recurso a nem de longe teria tido o mesmo alcance (se é que teria chegado, ao menos,
trabalhadores pagos ao dia (coisa que, evidentemente, se encontra em toda a ser possível) sem a organização capitalista e racional do trabalho. Sobre-
a parte) nem levou a que surgissem manufacturas — isto, pondo de lado tudo para a estrutura social, e para todos os problemas com ela relacio-
alguns casos particulares, e que são puras excepções: muito poucas, muito nados, e que são específicos do Ocidente moderno. É só na base do tra-
especiais, e, de qualquer modo, que diferiam consideravelmente da balho livre que, precisamente, se torna possível fazer um cálculo
moderna organização industrial (sobretudo, monopólios do Estado) —, exacto — cálculo que é o fundamento de tudo o resto. E, do mesmo modo
como nem sequer levou a uma organização racional do ensino dos ofí- que no mundo — para além do Ocidente moderno — nunca se verificou
cios, com as características que isto teve na Idade Média do Ocidente. uma organização racional do trabalho, — foi também assim que, em
No entanto, esta organização industrial de carácter racional — e que nenhuma outra parte do mundo igualmente com idêntica excepção, surgiu
não se orientava pela especulação irracional nem pela da política de vio- um socialismo assente em bases racionais; e esta relação que acabamos
lência, mas sim pelas oportunidades oferecidas pelo mercado de bens — de estabelecer, entre a organização racional do trabalho e o socialismo de
não é o único fenómeno específico do capitalismo ocidental. A moderna carácter racional, também se pode pôr em termos de causa e efeito. É certo
organização racional da empresa capitalista não teria sido possível sem que, no mundo, do mesmo modo que houve a economia urbana, a polí-
outros dois importantes factores de desenvolvimento: por um lado, a sepa- tica urbana de alimentação, o mercantilismo, a política de assistência social
ração entre a casa € a empresa — coisa que, hoje em dia, pura e simples- dos príncipes, o racionamento, a regulação da economia, o proteccio-
mente domina a vida económica —, e, por outro, e intimamente relacio- nismo, e as teorias do laissez-faire (na China), — também existiram eco-

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à
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nomias comunistas e socialistas, com características muito diferentes umas em íntima relação com o aparecimento da organização capitalista do tra-
das outras. Assim, houve o comunismo familiar, o religioso, o comunismo balho, por outro, e como é óbvio, não se identifica com tal. E isto na
determinado por razões militares; bem como houve toda uma série de orga- medida em que, já antes do desenvolvimento do capitalismo especifica-
nizações das mais diferentes espécies — o socialismo de Estado (no Egipto), mente ocidental, havia o conceito de «burguês» no sentido de condição
de monopólio dos cartéis, e de consumidores. Porém, nem o conceito social — mas, sem dúvida também, única e exclusivamente no Ocidente.
de «burguês» nem o de «burguesia» surgiram em mais nenhuma parte, exe- O capitalismo ocidental especificamente moderno foi manifestamente
cepto no Ocidente moderno — embora, em todo o lado, as cidades tenham co-determinado, e em larga medida, pela evolução da Técnica; hoje em
tido privilégios de mercado, tenha havido nelas corporações de ofícios dia, a sua racionalidade está essencialmente dependente da previsibilidade
e de comerciantes, e tenham sido estabelecidas no plano jurídico toda a dos factores técnicos fundamentais — e que constituem a base do cálculo
espécie de distinções, revestindo as mais variadas formas entre a cidade exacto. Isto significa, porém, que este capitalismo está dependente da espe-
e o campo. E, do mesmo modo que não houve o conceito de «burguês» cificidade da ciência do Ocidente — e muito especialmente das Ciências
nem o de «burguesia», também não existiu em qualquer outra parte do Naturais, que, em termos matemáticos e por meio da experimentação, são
mundo, a não ser no Ocidente, o «proletariado» como classe — e tinha fundamentadas racionalmente e de modo exacto. Por outro lado, o desen-
necessariamente que ser assim, uma vez que não havia a organização volvimento destas ciências, bem como da Técnica nelas baseada, foi (e
racional do trabalho livre, como empresa. Desde sempre que houve, em é) decisivamente impulsionado pelos interesses capitalistas, que esperam
toda a parte, assumindo conforme os casos diferentes formas, «lutas de que da aplicação dessas ciências e dessa Técnica à economia, possa resultar
classe» entre estratos sociais de credores e de devedores, entre proprietá- um aumento dos seus ganhos e lucros. É certo que o nascimento da Ciência,
rios fundiários, de um lado, e, do outro, os que nada tinham, os servos no Ocidente, não foi determinado por tais interesses. Já na Índia se faziam
ou os rendeiros, entre comerciantes e consumidores ou proprietários de cálculos — e cálculos utilizando algarismos posicionais — e se cultivava
terras. Mas já das lutas que, na Idade Média, tiveram lugar no Ocidente a Álgebra; aliás, foi na Índia que se inventou o sistema numérico posicional.
entre, por um lado, aqueles empresários que tinham a trabalhar por sua No entanto, foi só no Ocidente que este sistema foi posto ao serviço do
conta, contra pagamento de salário, pequenos artesãos, os quais desen- capitalismo em ascensão, não tendo na Índia dado lugar a um cálculo e
volviam esta sua actividade ou nas suas próprias casas ou nas suas oficinas, contabilidade modernos. Do mesmo modo, não foi aos interesses de ordem
e, por outro, estes mesmos artesãos, — disto só se encontram aspectos capitalista que se ficou a dever o nascimento da Matemática e da Mecá-
muito incipientes nas outras partes do mundo. E o que de modo nenhum nica. Porém, já a aplicação técnica dos conhecimentos científicos — a apli-
se encontra, a não ser no Ocidente, é a moderna oposição entre o grande cação da Ciência à Técnica: uma evolução que teve uma influência deci-
empresário industrial e o trabalhador assalariado livre — pelo que também siva no género de vida dos povos do Ocidente — se ficou a dever às
não pôde haver, em mais nenhuma parte, uma problemática da mesma vantagens económicas de que tal aplicação advinham, e as quais, no Oci-
espécie da do socialismo moderno. dente, assentavam precisamente nisso. Estas vantagens, porém, decorriam
Deste modo, numa história universal das civilizações, a questão ful- de especificidade da ordem social do Ocidente. Deste modo, terá que se
cral — numa perspectiva puramente económica — não é para nós, em pôr a seguinte interrogação: de que partes desta especificidade? (E de que
última análise, a evolução da actividade capitalista como tal — e que, em partes, pois sem dúvida que nem todas terão tido a mesma importância).
toda a parte, só na forma é que se vai modificando ao longo dos tempos: Das que são indubitavelmente importantes faz parte a estrutura racional
do tipo aventureiro, do comercial, ou, enfim, do orientado para a guerra, do Direito e da Administração. E isto, porque para o moderno capitalismo
para a política, para a Administração — e para as possibilidades de lucro empresarial racional, eram necessários, por igual, tanto os meios técnicos
que aqui se oferecem. Pelo contrário: o ponto de vista que para nós releva de produção de carácter previsível, como um Direito previsível e uma
é o aparecimento do capitalismo empresarial burguês, com a respectiva Administração dotada de regras formais. Sem um Direito e uma Adminis-
organização racional do trabalho livre. Ou então, e pondo a questão em tração desta espécie, pode existir, é certo, o capitalismo aventureiro e O
termos de história da cultura: o nascimento da burguesia ocidental, com capitalismo comercial de tipo especulativo, bem como todas as espécies
as suas características específicas — o que, se por um lado está, sem dúvida, que se possam imaginar de capitalismo politicamente orientado; o que,

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porém, já não pode existir, é a empresa privada de carácter racional, com da civilização, é, em primeiro lugar, determinar quais as esferas que
um capital fixo e um cálculo rigoroso. Foi apenas o Ocidente que pôs sofreram este prócesso de racionalização e em que sentido é que foram
à disposição dos círculos dirigentes da economia um tal Direito e uma tal racionalizadas. Portanto, trata-se mais uma vez de, em primeiro lugar, reco-
Administração — com esta perfeição técnico-jurídica e formalista. De onde nhecer a natureza específica do racionalismo ocidental (e, dentro deste,
veio este Direito ao Ocidente? — terá, portanto, que se perguntar. É indu-
do moderno), bem como de explicar como é que essa natureza apareceu.
bitável que, para além doutras circunstâncias, foram também interesses Tomando-se em consideração a importância fundamental da economia
de ordem capitalista que, por seu lado, abriram caminho à preponderância todas as tentativas de explicação deste género não podem, assim, deixar
dos juristas —considerados em função do seu status social —, com uma de ter em conta sobretudo o condicionalismo económico; porém, não é
formação académica especializada em Direito de carácter racional, na juris- lícito também deixar de atender às relações de causa e efeito, de natureza
prudência e na Administração; e isto mesmo é comprovado por todas as
inversa. Pois do mesmo modo que o nascimento do racionalismo econó-
investigações neste domínio. Mas de modo nenhum se pode afirmar que mico está inteiramente dependente de uma Técnica e de um Direito que
tenham sido exclusivamente aqueles interesses — nem sequer principal- sejam, ambos, de carácter racional, — também o está da capacidade e da
mente eles. Como também não foi dos interesses capitalistas que aquele disposição que as pessoas tenham de assumir certas formas de conduta,
Direito brotou, como emanação própria deles. Pelo contrário, para além de carácter prático e racional. Nos casos em que, devido a blogueamentos
desses interesses foram outras forças de natureza completamente diferente de natureza psíquica, essas formas de conduta não puderam ter lugar,
que desempenharam um papel decisivo na criação deste Direito. E por
também do mesmo modo o desenvolvimento de condutas racionais no
que motivo não terão levado os interesses capitalistas ao mesmo resultado,
domínio económico chocou com graves resistências interiores. Ora, entre
na China ou na Índia? A que razões se ficará a dever que, nesses países,
os mais importantes elementos constitutivos das formas de conduta
nem o desenvolvimento científico nem o artístico, nem o político nem
contavam-se — no passado, e em toda a parte — as forças religiosas e
o económico, tenham enveredado pelo rumo da racionalização, carac-
mágicas, bem como as concepções éticas do sentido do dever, alicerçadas
terístico do Ocidente?
na crença naquelas forças. É destas que versa o tema dos ensaios seguida-
Com efeito, em todos estes casos de especificidade que acabamos de mente aqui reunidos e completados.
mencionar, trata-se manifestamente dum género de «racionalismo» pró-
Pelo que diz respeito à organização desta colectânea, foram colocados
prio da civilização ocidental. Acontece que este termo pode ser interpre-
no início dois ensaios mais antigos: neles se procura, através duma questão
tado em diversos sentidos diferindo todos uns dos outros em elevado
pontual de grande importância, fazer uma abordagem daquele aspecto do
grau — tal como os ensaios mais recentes, dos que nesta colectânea se
problema que, na maioria das vezes, mais difícil se torna de apreender —
encontram reunidos, irão tornar claro, por mais de uma vez. Por exemplo,
nomeadamente: de que maneira é que determinadas crenças religiosas con-
há «racionalizações» da contemplação mística — ou seja: racionalizações
dicionam o aparecimento duma «moralidade económica» (ou seja: do
dum comportamento que, quando considerado a partir de outras áreas
«ethos» duma determinada forma de economia); é este estudo é feito à luz
da vida humana, é especificamente «irracional». E, do mesmo modo, depa-
das relações do moderno «ethos» económico com a ética racional do Pro-
ramos com racionalizações da economia, da técnica, do trabalho cientí-
testantismo ascético. Aqui, portanto, será tratado apenas um dos dois
fico, da educação, da guerra, da prática jurídica e da Administração. Avan- aspectos da relação de causa e efeito.
çando ainda mais, pode-se «racionalizar» cada um destes domínios em
Nos ensaios mais recentes, sobre a «Ética económica das religiões do
função de pontos de vista e objectivos últimos, altamente divergentes uns
mundo», e dada uma visão geral das relações entre as mais importantes
dos outros — e de tal modo, que aquilo que seja «racional» quando pers-
religiões dos povos civilizados, por um lado, por outro, a estratificação
pectivado em função de um desses pontos de vista e objectivos, possa
social do meio em que existiram (ou existem) — assim se procurando inves-
já ser «irracional» se considerado a partir de um outro. Por conseguinte,
tigar os dois termos da relação da causa e efeito, e aprofundar a investi-
nos diversos domínios da vida humana houve racionalizações de espécie
gação tanto quanto necessário, para descobrir os pontos de comparação
muitíssimo diferente em todos os círculos culturais. O elemento caracte-
com a evolução no Ocidente, que será, também ela, analisada, pois só deste
rístico para se estabelecer a diferença entre elas, em termos de história
modo é que se torna de todo em todo viável abordar decisivamente a

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questão — em certo sentido, evidente — de determinar quais os elementos função destes especiais pontos de vista. Estes ensaios estão condenados
da ética económica de natureza religiosa do Ocidente que terão desempe- a ser rapidamente «ultrapassados» — e numa medida e num sentido incom-
nhado o papel de causa — e elementos que, ao contrário de outros, são paravelmente maiores do que aquilo que, em última análise, é o destino
específicos desta ética. de todos os trabalhos de carácter científico. Acontece que, neste género
Estes ensaios não pretendem ser, assim, análises completas de civili- de trabalhos, não é possível evitar incursões em outros domínios especia-
zações — mesmo que de forma assaz resumida; pelo contrário, obedecem lizados, com a finalidade de se estabelecerem comparações — e por
ao propósito deliberado de acentuar o que em cada civilização estava (e maiores que sejam as reservas que isto suscite; a consequência disto, é que
está) em contradição com a evolução cultural do Ocidente. Por conse- nós teremos que assumir uma atitude de grande resignação, pelo que diz
guinte, estes ensaios têm como seu ponto de referência exclusivo, aquilo respeito ao alcance daquilo que esteve dentro das nossas possibilidades
que, deste ponto de vista, a propósito da exposição da evolução no Oci- fazer.
dente, parece ser importante. Considerando o objectivo que nos pro-
Actualmente, apraz à moda, ou à nostalgia de literatos, acreditar que
pomos, pareceu-nos que qualquer outro método não teria sido talvez pos-
pode dispensar o especialista, ou relegá-lo para o lugar de um trabalhador
sível. Mas, a fim de se evitarem mal-entendidos, devem ser aqui
subalterno para o «espectador». Quase todas as ciências devem alguma coisa
expressamente indicados estes limites desse nosso objectivo. Há ainda mais
aos diletantes — e, frequentemente, pontos de vista muito valiosos. Mas
um aspecto que nos obriga a prevenir quem não esteja dentro do
o diletantismo como princípio básico da Ciência seria o seu fim. Quem
assunto — pelo menos estes —, de que não devem sobrevalorizar o alcance
pretenda «espectáculo», que vá ao cinema: hoje em dia, a oferta maciça,
destes ensaios. Como é evidente, o sinólogo, o indianista, o semitista, e
mesmo em forma literária, e precisamente no domínio desta problemá-
o egiptólogo não encontrarão nestes ensaios nada que, em questões de
tica. Uma tal atitude está nos antípodas da sobriedade com que foram tra-
fundo, constitua novidade para eles. De desejar seria apenas que estes espe-
tados os temas destes ensaios, os quais — segundo a intenção a que obe-
cialistas não deparem como nada de essencial, no domínio das questões
decem — são rigorosamente empíricos. E não quero deixar de acrescentar
de fundo, que eles tenham que considerar como um erro na matéria. Até
que, quem deseje «sermões», que procure uma seita religiosa. Não iremos
que ponto nos foi possível aproximar-nos deste desiderato — pelo menos,
escrever uma palavra que seja a discutir o problema do valor que as civili-
até ao ponto que esteja dentro das possibilidades de quem não é especia-
lista na matéria — é coisa que o autor não pode saber. Naturalmente que zações objecto destes ensaios, e aqui tratadas no plano comparativista,
possam ter umas em relação às outras. É bem certo que o curso dos des-
uma pessoa que se tenha que servir de traduções, bem como, por outro
lado, e pelo que diz respeito ao modo de utilização e de avaliação das tinos da humanidade só pode causar profunda comoção a quem observe
monumentais fontes, documentais ou literárias, seja obrigado a recorrer uma pequena parte dele. Mas esse estudioso procederá avisadamente se
à bibliografia especializada — já de si frequentemente muito controversa, guardar para si os seus comentários pessoais, de somenos importância
e sobre cujo valor essa pessoa não esteja em posição de se pronunciar por — tal como acontece quando contemplamos o mar ou as montanhas.
si própria — tem todas as razões para formar uma opinião muito modesta À menos que ele sinta dentro de si a vocação, e os dotes naturais, para
acerca do valor que possa ter o trabalho que realizou. E isto é tanto mais a criação artística ou para responder ao apelo profético. Nos casos em que
assim, quanto o número de traduções existentes das «fontes autênticas» assim não seja, o muito que se fala de «intuição» esconde apenas, na maior
(isto é, de inscrições e de documentos) é ainda, em parte, muito pequeno parte das vezes, a incapacidade de se distanciar do objecto — o que deve
(sobretudo pelo que diz respeito à China), quando comparado com aquilo ser julgado nos mesmos termos em que o seja a atitude idêntica relativa-
que existe e que é importante. De tudo isto resulta que estes ensaios tenham mente aos homens.
um carácter absolutamente provisório, muito especialmente nos pontos Torna-se necessário esclarecer um outro ponto — o facto de, para
que se referem à Ásia. É só aos especialistas que compete formar um juízo o objectivo que nos propomos neste ensaio, se ter apenas recorrido em
de valor definitivo. De resto, estes ensaios foram escritos apenas porque grau relativamente reduzido aos dados fornecidos pela investigação etro-
até agora não existiam quaisquer trabalhos de especialistas — o que se com- gráfica. Considerando o desenvolvimento actual da ermnografia, seria evi-
preende facilmente — com este especial objectivo e perspectivados em dentemente imprescindível que se tivesse recorrido em muito maior escala

676 677
e
a esta disciplina, para que se pudesse fazer uma exposição verdadeirament consideravelmente elevado de desenvolvimento — é que será talvez lícito
O facto de esperar resultados satisfatórios também para aquele problema. Por
profunda, em particular no que toca à religiosidade asiática.
isso não ter sido aqui feito, não se deve apenas à circunstância de a capa- enquanto, parece-me que falta essa condição; pelo que, remetermo-nos
para o legado seria renunciar precipitadamente a tudo aquilo que hoje é
cidade de trabalho duma pessoa ter os seus limites. Isso pareceu-nos lícito,
sobretudo porque aqui se tinha precisamente que tratar das conexões da talvez possível saber, do mesmo modo que seria deslocar o problema para
ntantes factores que, presentemente, são ainda desconhecidos.
ética de base religiosa daquelas camadas sociais que eram «represe
em causa. Trata-se, na verdade, das influências que
culturais» da região
também
foram exercidas pela sua conduta. É inteiramente correcto que
estas influências só podem ser apreendidas na sua especificidade de modo
realmente exacto, se as confrontarmos com a realidade etnográfica. Pelo
que reconheço expressamente, € acentuo, que, neste ponto, há uma lacuna
objec-
a que o etnógrafo, com boas razões, não poderá deixar de levantar
r, quando pro-
ções. Espero poder dar alguns contributos para a preenche
isso aqui,
ceder a um estudo sistemático da sociologia das religiões. Fazer
destes ensaios, com os seus reduzido s
porém, seria ultrapassar os limites
nestes ensaios tive que me contentar em descobrir, tanto
objectivos;
da civili-
quanto possível, os pontos de contacto com as nossas religiões
zação ocidental.
Finalmente, não podem deixar de ser feitas algumas considerações
con-
acerca do aspecto antropológico dos problemas. Quando verificamos
lvem no Oci-
tinuamente que certas espécies de racionalizações se desenvo
pes-
dente, e só no Ocidente — mesmo em domínios da conduta das
se desenvo lvem indepen denteme nte uns dos
soas, que (aparentemente)
outros — somos naturalmente levados a admitir que, aqui, foram factores
tal.
de natureza hereditária que constituíram o fundamento decisivo para

Devo confessar que — tanto em termos pessoais, como subjectivos
tenho natural tendência para atribuir um alto valor à importância da herança
antro-
biológica. Não ignoro os importantes contributos da investigação
possibil idade
pológica. Só que, presentemente, não vejo ainda qualquer
de determinar exactamente (ou mesmo de só a isso aludir, e no plano das
suposições) qual seja a quota-parte dos factores hereditários no processo
aqui analisado — nomeadamente: qual a sua extensão, e (sobretudo) qual
a sua espécie e quais os pontos em que fizeram sentir a sua influência. Uma
das tarefas da investigação sociológica e histórica terá que ser precisamente
a de começar por descobrir, na medida do possível, todas aquelas influên-
cias e conexões causais, que sejam satisfatoriamente explicáveis através
— e
das reacções aos destinos humanos e ao meio ambiente. Só então
das raças;
quando, para além disso, à psicologia e a neurologia comparativas
que actualmente se encontram ainda nos seus primórdios (de resto, bas-
nível
tante promissores, em determinados aspectos) tiverem atingido um

678 679
4. TIPOS DE DOMINAÇÃO *

1. Validade de legitimidade

S 1. Chamar-se-á «dominação», segundo a definição dada (veja-se


'[Cap. I, 8 16) à probabilidade de encontrar obediência a ordens específicas
Í (ou a todas as ordens) por parte de um dado grupo de pessoas. Não, pois,
ilatodo género de probabilidade de exercício de «poder» e «influência» sobre
outras pessoas. Dominação («autoridade»), neste sentido, pode assentar.
num caso particular, nas mais diversas motivações de docilidade: a começar
na mais morna habituação, e a acabar em considerações puramente racio-
nais — finalizadas. Toda a relação autêntica de dominação comporta um
mínimo determinado de vontade de obedecer, por conseguinte, de inte-
resse (exterior ou interior) em obedecer.
Nem toda a dominação se serve de recursos económicos Juito
menos ainda existem motivos económicos subjacentes a toda a dominação.
Mas toda a dominação sobre uma pluralidade de pessoas requer normal-
mente (não necessariamente sempre) um quadro de pessoas (veja-se
«Quadro administrativo», Cap. 1, 8 12), ou seja, a probabilidade (normal-
mente) crível de uma acção exclusivamente dirigida à execução das suas
disposições gerais e ordens concretas por parte de determinadas pessoas
garantidamente obedientes. Este quadro administrativo pode estar vincu-
lado à obediência do seu dominador (ou dominadores) puramente pelo
hábito, por motivos puramente afectivos ou por circunstância de interesses
materiais ou motivos ideais (racionais — valorizados). É a natureza destes

Ob.cit.,pp. 122-148 e 155-158.

681
Motivos excluir-se a ideia de uma relação de dominação quando originada por um
| motivos que em larga medida determina O tipo de dominação.
finalizados, de vinculação entre domi-
contrato formalmente livre: é o caso da dominação do patrão sobre o tra-
| puramente materiais e racionais —
per- balhador, manifestada nos regulamentos
nador e quadro administrativo, implicam, aqui como sempre, uma e instruções de trabalho, ou da
se lhe dominação do senhor feudal sobre o vassalo que livremente aderiu à
manência relativamente instável desse vínculo. Regra geral, outros
casos relação de vassalagem. Que a obediência seja formalmente «in-voluntária»,
acrescentam — de ordem afectiva ou racional — valorizada. Em
. No quotidian o, em virtude da disciplina militar, ou formalmente «voluntária», em virtude
extra-quotidianos estes podem, por si só, ser decisivos
O interesse material. racional — da disciplina oficinal, em nada altera o facto de a própria disciplina ofi-
é O costume e, concomitantemente
cinal constituir sujeição a uma dominação. A própria situação de funcio-
finalizado, que dominam tanto estas como outras relações. Mas nem o cos-
afec- nário é assumida por contrato e rescindível e até a relação de «súbdito»
tume ou uma situação de interesses, nem mesmo motivos puramente
pode ser livremente assumida e (dentro de certas limitações) anulada.
tivos ou puramente racionais valorizados poderiam representar funda-
nte, A compulsoriedade absoluta só existe no escravo. No entanto, e por outro
mentos seguros de uma dominação. A eles vem juntar-se, normaime
| lado, um «poder» económico condicionado por uma situação monopo-
(a
um outro factor: —sença na legitiimiliade]
lista, ou seja, neste caso, a possibilidade de «ditar» aos parceiros de troca
| Nenhuma dominaçã o, segundo a experiência, se satisfaz, de livre von-
meramente afectivos ou mera- as condições dessa troca, tão-pouco deverá, por si só, ser designada por
: tade, com motivos meramente materiais,
«dominação», do mesmo modo que qualquer outra «influência» condicio-
mente racionais de valor com probabilidades de perdurabilidade. Pelo con-
nada por uma superioridade erótica, desportiva, dialéctica ou outra.
| trário, toda e qualquer dominação procura despertar € cultivar a crença
conforme a natureza da legitimidade Quando um grande banco se encontra em situação de impor a outros
| na sua «legitimidade». No entanto,
bancos um «cartel de condições», tal não poderá ser apelidado de «domi-
! reivindicada, assim também o tipo de obediência e de estado-maior admi-
como O carácter do exercício da nação» enquanto não estiver criada uma relação imediata de obediência,
| nistrativo destinado a assegurá-la, bem
de tal modo que daí resultem directivas dos corpos gerentes desse banco
| dominação serão fundamentalmente diferentes. Consequentemente,

|
com a pretensão e a probabilidade de, puramente como tais, encontrarem
iltambém os seus efeitos. Torna-se, pois, adequado distinguir os géneros
li
de legitimidade que lhes é típica. observância, e que sejam controladas na sua execução. Naturalmente,
H| de dominação segundo a reivindicação também aqui, como em toda a parte, a transição é fluída: da responsabili-
processo em que se afigura adequado partir de circunstancialismos
| zação por dívidas à servidão por endividamento, vai toda uma série de
proceso, e portanto conhecidos.
gradações intermédias. E a posição de um «salão» pode chegar a aflorar
Os limites de um poderio autoritário, sem por isso necessariamente ser
1. Só o resultado pode justificar que se seleccione este e não qual-
«dominação». Em realidade, muitas vezes não é possível uma separação
quer outro ponto de partida para essa distinção. O facto de neste processo
rigorosa, pelo que mais necessários se tornam então conceitos claros.
certas outras características distintivas típicas passarem provisoriamente
a segundo plano, e só posteriormente poderem ser introduzidas, não
3. A «egitimidade» de uma dominação deve naturalmente também
deverá constituir contratempo determinante. A «legitimidade» de uma
ser considerada apenas como probabilidade de ser tida e de ser, na prá-
dominação não tem de modo algum — pelo simples facto de possuir rela-
tica, considerada, em relevante medida, como tal. Nem de longe se pre-
ções muito determinadas com a legitimidade da posse — um alcance apenas
tende dizer que toda a docilidade perante uma dominação se orienta pri-
«ideal»,
mordialmente (ou mesmo sempre) por essa crença. A docilidade pode ser
simulada por meras razões de oportunidade, exercida na prática por inte-
2. Nem toda a «reivindicação» convencionalmente ou juridicamente
resse material próprio, aceite como inevitável por fraqueza e impotência
garantida deve ser designada como relação de dominação. Caso contrário
individual, por parte de indivíduos ou grupos inteiros. Isso não é, porém,
o trabalhador, no âmbito da sua reivindicação salarial, seria «senhor» do
determinante para a classificação de uma dominação. Determinante é que
seu patrão, visto que, a instâncias suas, deverá ser-lhe posto à disposição
de a sua própria reivindicação de legitimidade, segundo a sua natureza, se
o oficial de justiça. Na realidade, eleé formalmente um seu parceiro
ida, não deve torne em relevante medida «válicia», consolide a sua existência e co-de-
troca, com «direito» a receber prestações. Em contrapart

682 683
[termine o modo de dominação escolhido. Uma dominação pode além | material da chamada «democracia». Há, porém, que conceder-lhes, na
disso — um caso frequente, na prática — ser tão absolutamente assegu- | quase totalidade dos casos imagináveis, um mínimo de poder de comando
rada por uma evidente comunidade de interesses entre o dominador e o | decisivo e nessa medida, pois, de «dominação».
seu quadro administrativo (guarda-costas, pretorianos, guardas «vermelhas»
ou «brancas») frente aos dominados e em virtude da indefesa destes, que S 2. São três os tipos puros de dominação legítima. A validade dessa
- desdenhe ela própria da sua reivindicação de legitimidade. Mesmo neste | legitimidade pode fundamentalmente ser:
caso, o género de relação de legitimidade entre dominador e quadro acimi-
nistrativo apresenta configurações bem diversas, conforme a natureza do 1. de carácter racional: assentando na crença na legalidade de regu-
fundamento de autoridade que entre eles exista, sendo em grande medida lamentos estatuídos e do direito a estabelecer directivas por parte daqueles
determinante para a estrutura da dominação como se demonsirará. que são chamados, por esses regulamentos, ao exercício da dominação
(dominação legal); — ou
4. «Obediência» significa que a acção daquele que obedece se desen-
rola em essência como se ele tivesse feito do conteúdo da ordem, por si 2. de carácter tradicional. assentando na crença quotidiana na san-
mesmo, uma máxima do seu comportamento, e isto unicamente por força tidade de tradições válidas desde tempos imemoriais e na legitimidade
da relação formal de obediência, sem ter em conta a sua própria opinião daqueles que por elas são chamados à autoridade (dominação tradi-
sobre o valor ou desvalor dessa ordem, como tal. cional); — ou, por fim

S. De um ponto de vista puramente psicológico, a cadeia de causali- 3. de carácter carismático: assentando na entrega extra-quotidiana
dade pode apresentar-se de diferentes maneiras, podendo nomeadamente à santidade, heroicidade ou exemplaridade de uma pessoa, e nas ordena-
consistir em «sugestão» ou «empatia». Esta distinção, porém, não é utili- ções por ela reveladas ou criadas (dominação carismática).
zável aqui na construção dos tipos de dominação. , No caso da dominação estatutária, obedece-se à ordem impessoal.
objectiva, legalmente estatuída, e ao superior através dela designado. por
6. O âmbito das influências com carácter de dominação presentes | orça da legalidade formal das disposições deste, e no respectivo âmbito.
nas relações sociais e nos fenómenos culturais é substancialmente mais |; No caso da dominação tradicional, obedece-se à pessoa do senhor do
vasto do que à primeira vista parece. Exemplo disso é o género de domi- | : poder, a ele chamado pela tradição e vinculado à tradição (na respectiva
nação exercido na escola, que impregna as formas de linguagem e de | | sfera), por força da reverência e no âmbito consuetudinário. No caso da
escrita, que valem como ortodoxas. Os diálogos que funcionam como lín- | ominação carismática, obedece-se ao chefe carismaticamente
rea narra iai
qualificado.
guas oficiais dos agrupamentos politicamente sautocéfalos, portanto | omo tal, por força da confiança pessoal na revelação, heroicidade ou
daqueles que sobre eles dominam, converteram-se nestas formas ortodoxas exemplaridade, no âmbito da validade da crença neste seu carisma.
de linguagem e escrita, estando na origem das separações «nacionais» (por
exemplo a da Holanda e da Alemanha). A dominação dos pais e a domi- 1. Só o rendimento alcançado, em termos de sistemática, por esta divisão, pode atesum
a sua pertinência. O conceito de «carisma» (dom da graça) é retirado da terminologia do pri-
nação da escola ultrapassam, no entanto, largamente, a influência desses
mitivo cristianismo. Foi Rudolph Sohm quem, no seu Airchenrecht. primeiro elucidou sobre
bens culturais formais (formais, aliás, apenas em aparência) sobre o perfil o conceito de hierocracia cristã, se não na terminologia, pelo menos na essência; outros (por
da juventude, e consequentemente de todas as pessoas. exemplo Karl Holl, em Enthusiasmus und Bubgewal! [1898], clarificaram determinadas con-
sequências importantes desse conceito. Não se trata, portanto, de algo de novo.
2. O facro de nenhum dos três ripos ideais, que iremos tratar já de seguida, costumar
| 7. O facto de o dirigente e o quadro administrativo de um agrupa- “— (qqacorrer historicamente, em estado verdadeiramente «puro», não poderá naturmente impedir.
mento se apresentarem, segundo a forma, como «servidores» dos domi- +“ *taqui como em qualquer outro contexto, a fixação conceptual em moldes tão puros quanto
possível. Posteriormente se tratará da transformação do carisma puro através da rotinização.
inados, nada demonstra minimamente contra o carácter de «dominação».
dessa forma se reforçando substancialmente a sua ligação às formas empíricas de dominação.
' Mais
|
tarde se falará destacadamente das situações
1 PR
de facto com carácter
re
Mas, mesmo aí, para todo o fenómeno empírico histórico de dominação é válido, sem cos-
'

684 685
tumar tratar-se de um «livro elaborado até à última subtileza». E à tipologia sociológica ofe-
rece ao trabalho empírico-histórico exclusivamente à vantagem. mesmo assim amiúde não 4. Como mais frequentemente é expresso, aquele que obedece não
sub-estimável, de no caso concreto poder determinar. em relação 4 um modo de dominação. obedece senão como membro da associação, e apenas «ao direito».
o que nele há de «carismático hereditário» (88 10, 11), «carismático de função», «patriarcal»
(8 7), «burocrático» (8 4), próprio de uma «condição social», etc., ou o que nele se aproxima
Como membro da união, membro da comunidade, membro da igreja,
de um destes tipos, e de poder realizar esse trabalho com conceitos razoavelmente unívocos.
| f Estamos tão longe quanto possível aqui de acreditar que à realidade histórica global seja ecap- no Estado: cidadão.
“ turável» no esquema conceptual adiante desenvolvido.

5. Em conformidade com o n.º 3, é válida a concepção de que os


membros da associação, enquanto obedientes ao senhor do poder, não
2. Dominação legal com quadro administrativo
obedecem à sua pessoa mas sim àquela ordem impessoal, pelo que apenas
burocrático
estão obrigadosa essa obediência no âmbito das atribuições objectivas,
racion te delimitadas, que lhe são conferidas pela dita ordem..
| Nota prévia: tomamos intencionalmente aqui como ponto de par-
tida a forma especificamente moderna de administração, para depois a
As categorias fundamentais de dominação racional são, pois:
podermos confrontar com outras.
1. um exercício de funções continuado, vinculado a regras, no seio de:
8 3. A dominação legal assenta na validade das seguintes concep-
2. uma competência (atribuições), que significa:
ções, reciprocamente interdependentes:

a) uma esfera de deveres de prestação de serviços objectivamente


1. todo e qualquer direito poderá ser
estatuído.
por pacto ou outorga,
delimitada em virtude de uma distribuição dessa prestação:
dentro de uma orientação racional, racional-finalizada ou racion:
b) com agregação dos poderes de comando necessários a esse fim, e
Yalorizada (ou ambas), com reivindicação de observância pelo menos por
parte dos membros da associação, mas em regra também por parte de pes-
c) com sólida delimitação dos meios coercivos eventualmente lícitos
e dos pressupostos da sua aplicação.
sõas que, HO seio da esfera de poder (no caso de ão
daassociaç associa-.
ções territoriais, dentro do território), se envolvam em determinadas rela-
A uma actividade assim ordenada chamar-se-á autoridade constituída.
ções sociais declaradas como relevantes pelo regula damento
associação.

«autoridades constituídas», neste sentido, existem em grandes empresas privadas, par-


2. todo o direito, na-sua essência, será um cosmos de regras abs- tidos, exércitos, naturalmente como no «Estado» e na «Igreja». «Autoridade constituída», na
tractas, por norma estatuídas intencionalmente (a ministração de justiça, acepção desta terminologia, é também o presidente eleito de um Estado (ou o colégio dos
ministros ou «representantes do povo» eleitos). Estas categorias, contudo, não nos interessam
a aplicação destas regras ao caso concreto, a administração, o cultivo
de momento. Nem todas as autoridades constituídas possuem, em idêntico sentido. «poderes
racional de interesses previstos por regulamentos da associação. dentro de comando»; essa distinção. porém, não nos interessa aqui.
dos limites das regras jurídicas) e segundo princípios. seralmente determi-
náveis, que encontram aprovação ou pelo menos não encontram desa- Acrescente-se-lhe:
provação dentro do regulamento da associação;
3. o princípio da hierarquia de funções, quer dizer, a organização
3. por conseguinte, o típico senhor legal do poder — o «superior» —. de instâncias fixas e controlo e fiscalização para cada autoridade consti-
: | enquanto dispõe, e portanto enquanto ordena, obedece por seu lado à tuída, com direito de apelação ou queixa por parte dos subordinados aos
| [ordem impessoal pela qual orienta as suas disposições. superiores. No entanto, são diversos os modos de regular a questão de
saber se e quando a instância de reclamação substitui ela própria a dispo-
Isto é válido também para o detentor legal do poder que não é «fun-
sição e a emenda por uma outra mais «correcta», ou se delega no serviço
cionário», por exemplo um presidente eleito de um Estado. que lhe é subordinado, através do qual a queixa é apresentada.

686 687
4. As «regras», segundo as quais se procede, podem ser: lisar, intencionalmente, em termos ideal-típicos, burocracia como cerne
de toda a administração de massas. Só a pequena empresa (política, hie-
a) regras técnicas; rocrática, unionista, econômica) poderia prescindir amplamente dela. Tal
b) normas. como o capitalismo, no seu estádio de desenvolvimento actual, exige a
burocracia — embora um e outro provenham de raízes históricas dife-
Num caso como no outro, a sua aplicação exige, para uma integral rentes —, assim também ele constitui o fundamento económico mais
racionalidade, formação técnica. Normalmente, apenas é qualificado para racional que lhe permite perdurar sob a mais racional das formas, por fis-
integrar O quadro administrativo de uma associação o técnico que, com- calmente lhe colocar à disposição os necessários recursos financeiros.
provadamente e com sucesso, possui essa formação, só nessas condições
A par dos pressupostos fiscais, existem para a administração buro-
podendo ser contratado como funcionário. São «funcionários» que cons-
crática condições essencialmente ligadas à técnica de comunicações. A sua
tituem o quadro administrativo típico das associações racionais, sejam elas
precisão exige o caminho de ferro, o telégrafo e o telefone, estando pro-
políticas, hierocráticas, económicas (nomeadamente: capitalistas) ou outras.
gressivamente mais ligada a estes meios. Uma ordem socialista em nada
alteraria este estado de coisas. Resta saber (veja-se Cap. II, S 12) se estaria
5. É válido (no caso da racionalidade) o princípio da total separação
em posição de criar, à semelhança da ordem capitalista, condições para
entre quadro administrativo e meios de administração e aquisição. Os fun-
uma administração racional, o que precisamente para ela significaria rigi-
cionários, empregados, trabalhadores do quadro administrativo não são
damente burocrática, segundo regras formais ainda mais rigorosas. Assim
proprietários dos meios materiais de administração e aquisição. mas
não sendo, estaríamos aqui mais uma vez perante uma daquelas grandes
adquirem-nos em espécie ou dinheiro, estando obrigados à prestação de
irracionalidades — a antinomia entre racionalidade formal e racionalidade
contas. Existe O princípio da total separação entre o património (ou seja,
material — que a sociologia tão frequentemente tem de constatar. .
capital) do serviço público (ou da exploração) e o património privado
(doméstico), e entre o local de exercício da função e o local de residência. Administração burocrática significa dominação por força do saber:
esse o seu carácter fundamental, especificamente racional. Para lá da
6. Não existe, no caso de racionalidade completa, qualquer apro- enorme posição de poderio condicionada pelos conhecimentos especia-
priação do cargo por parte do detentor. Onde esteja constituído um lizados, a burocracia (ou detentor do poder que dela se serve) tem ten-
«direito» à «função» (como, por exemplo, no caso dos juízes e, recente- dência para reforçar ainda mais o seu poder por intermédio dos conheci-
mente, entre sectores crescentes do funcionalismo e do próprio opera- mentos de serviço: conhecimentos adquiridos no decurso do serviço ou
riado), ele não serve normalmente fins de apropriação por parte do fun- «constantes dos registos». O conceito, não exclusiva mas especificamente
cionário, antes visa assegurar o trabalho puramente objectivo burocrático, de «segredo de ofício» — comparável, na sua relação com o
(independente), apenas vinculado a normas, na sua função. saber especializado, por exemplo, à que se verifica, numa empresa, entre
segredos comerciais e segredos técnicos — provém desta aspiração de
7. O princípio da conformidade à obrigatoriedade de Registo escrito poder.
da administração é válido mesmo onde a discussão oral efectivamente seja Superior à burocracia em saber — saber especiliazado e conheci
regra ou franca prescrição: as discussões preliminares e propostas, pelo mento factual —, no seio do seu campo de interesses, é, por norma, apenas
menos, e bem assim as decisões, disposições e regulamentos, na sua forma quem está interessado numa actividade privada lucrativa. Ou seja: o empre-
definitiva, são fixados por escrito. Registos escritos e actividade continuada sário capitalista. É ele a zínica instância verdadeiramente imune (pelo menos
de funcionários, conjuntamente, produzem o escritório, como fulcro de em termos relativos) à inelutabilidade da dominação burocrática racional
toda a acção associativa moderna. do saber. Todos os demais se entregaram inescapavelmente à sujeição do
império burocrático nas associações de massas, do mesmo modo exacta-
8. A dominação legal pode assumir formas muito diversas, das quais mente que ao domínio da máquina técnica de precisão na produção de
posteriormente se falará em particular. De seguida, começaremos por ana- bens em massa.

688
689
Socialmente, a dominação burocrática significa, no geral: seu lado também formais e na maioria dos casos manuseados formalistica-
mente (a tratar na sociologia do direito). Esta tendência para uma raciona-
1. tendência para o pesnivelamento no interesse
nao do recrutamento uni- lidade material encontra apoio por parte de todos aqueles dominados que
mem
versal de entre os mais qualificados na Lolespecialidade; não pertencem à camada (caracterizada no n.º 1) dos interessados em «asse-
gurar» as oportunidades já possuídas. A problemática que neste contexto
2. tendência para a piutocratização no interesse de uma aprendi- aflora pertence à teoria da «democracia».
zagem técnica tão prolongada quanto possível (muitas vezes até ao final
dos trinta anos);
3. Dominação tradicional
3. domínio da impersonalidade formalista: sine ira et studio, sem
ódio nem paixão, por conseguinte sem «amor» nem «entusiasmo», sob $ 6. Deve entender-se por tradicional uma dominação cuja legiti-
pressão de noções despretensiosas de dever; o funcionário ideal desem- midade assenta e colhe crédito na santidade de ordenações e poderes de
senhorio transmitidos e aceites desde tempos remotos (que «existem desde
penha a sua função «sem consideração pela pessoa», formalmente, de um
sempre«). O senhor (ou diversos senhores) do poder é determinado por
modo igual para «toda a gente», ou seja, para todos os interessados que
força de uma regra transmitida por tradição. Recebe obediência por vir-
se encontrem em idêntica situação de facto.
tude da dignidade própria que lhe é atribuída pela tradição. A associaçã
o
de dominação é, no caso mais simples, primordialmente uma associação
Porém, assim como a burocratização origina um nivelamento de con-
de reverência determinada por uma comunidade de educação. Aquele que
dições sociais (segundo a tendência normal, historicamente também
domina não é «superior», mas senhor pessoal, o seu quadro administra-
demonstrável como normal), assim também, inversamente, todo o nive-
tivo compõe-se principalmente, não de «funcionários», mas de «servidores»
lamento social, na medida em que elimina aquele que detém o poder em
pessoais, sendo os dominados não «membros» da associação, mas 1) «com-
virtude do status e da apropriação dos meios de administração e do poder
panheiros tradicionais» (8 7a), ou 2) «súbditos». Não são os deveres objec-
administrativo, e na medida em que afasta, no interesse da «igualdade»,
tivos da função, mas a fidelidade pessoal dos servidores que determinam
os que ocupam, em virtude da propriedade, de cargos «honoríficos» ou
as relações entre o quadro administrativo e o senhor do poder.
«secundários» favorece a burocratização, que é, por toda a parte, sombra
Obedece-se, não a regras estatuídas, mas à bessoa a isso chamada por
inescapável da «democracia de massas» em progresso — dela falaremos
tradição ou pela entidade dominante determinada pela tradição, cujas
noutro contexto aprofundadamente.
ordens são legítimas nos dois aspectos seguintes:
O «espírito» normal da burocracia racional é, falando em termos gerais,
o seguinte:
a) em parte por força
tra da diç
que ão
univocamente determina o con-
teúdo das disposições, e no sentido e medida em que nelas se crê,
o que,
1. Formalismo, exigido por todos quantos se interessam, seja de que a ser abalado por transgressão das fronteiras tradicionais, se tornaria even-
forma for, em assegurar as possibilidades pessoais de vida — pois, assim
eme a . . a

tualmente perigoso para a própria situação tradicional desse senhor:


não sendo, surgiria como consequência a arbitrariedade, e porque o for- b) em parte por força do livre arbítrio do senhor do poder, ao qual
malismo é a linha de menor força. Em contradição aparente e em parte a tradição atribui um alcance correspondente.
real, com esta tendência, por parte deste género de interessados,
encontra-se: Tal arbitrariedade tradicional assenta primordialmente na ilimitação,
de princípio, da obediência conforme ao dever de reverência.
2. o pendor dos funcionários para um tratamento material e utili- Existe, por conseguinte, o duplo domínio:
tário das suas tarefas administrativas, ao serviço dos dominados que assim a) da acção do senhor do poder materialmente vinculada à tradição;
se pretendem contentar. Simplesmente, este utilitarismo material costuma b) da acção do senhor do poder materialmente desvinculada da
manifestar-se no sentido da exigência de regulamentos condizentes — por tradição.

690 691
Sobre a) q): É princípio administrativo muito corrente das domina-
| Dentro deste último, o senhor pode dispensar o seu «favor» por livre
ções tradicionalistas preencher os postos mais importantes com membros
| graça ou des-graça, simpatia ou antipatia pessoal, e arbítrio estritamente
da estirpe do senhor do poder.
pessoal, nomeadamente também comprável por presentes — a origem das
Sobre a) 8): Encontram-se escravos e (a É) alforriados em dominações
«taxas». Tanto quanto procede segundo princípios, tais como O da equi-
patrimoniais, amiúde até nas posições mais elevadas (não era raro ver
dade, da justiça material ética ou da adequação utilitária, não são porém —
antigos escravos chegar a grão-vizires).
“tal como na dominação legal — princípios formais. O modo efectivo de
Sobre a) y): Os funcionários domésticos típicos — senescal (grão-
exercício da dominação rege-se por aquilo que habitualmente o senhor -escudeiro), marechal (palafreneiro), camareiro, mordomo-mor, regente
do poder (e o seu quadro administrativo) se pode permitir face à tradi-
da côrte (superintendente da criadagem e eventualmente dos vassalos)
cional docilidade dos súbditos, sem os provocar à resistência. Essa resis-
— encontram-se por toda a parte na Europa. No Oriente acrescenta-se-
tência, quando surge, é dirigida contra a pessoa do senhor (ou: do ser-
lhes, como particularmente importante, o grande eunuco (guardião do
vidor) que desrespeitou os limites tradicionais do poder, mas não contra
harém); entre os príncipes negros, muitas vezes o verdugo; e ainda, um
jo sistema enquanto tal («revolução tradicional»).
pouco por toda a parte, muitas vezes o médico de família, o astrólogo par-
No tipo puro de dominação tradicional é impossível «produzir» de
ticular e outros cargos semelhantes.
novo, premeditadamente, por norma estatuída, princípios jurídicos ou
administrativos. Novas criações efectivas só podem, pois, legitimar-se
Sobre a) 8): A clientela real foi, na China como no Egipto, a fonte do
| quando reconhecidas como válidas desde sempre, e apenas por «sabedoria»
funcionalismo patrimonial.
de cariz consuetudinário. Como instrumentos de orientação para o esta-
Sobre a) e): Todo o Oriente conheceu exércitos de colonos, mas
belecimento do direito, apenas entram em consideração documentos da
t
1 também a dominação da nobreza romana (o Oriente islâmico dos tempos
| tradição: «precedentes» e «preconceitos».
modernos ainda conheceu exércitos de escravos).
Sobre b) a): O sistema económico de «favoritos» é específico de todo
| $ 7. O senhor do poder domina, ou 1. sem quadro administrativo,
o patrimonialismo, e frequentemente ensejo de «revoluções tradiciona-
| ou 2. com quadro administrativo. Sobre o primeiro caso, veja-se S7a. N.ºl.
listas« (cf. conceito no final do 8).
| O quadro administrativo típico pode ser recrutado:
Ê
Sobre b) 8): Trataremos os «vassalos» à parte.
| Sobre b) y): A «burocracia» teve a sua primeira origem nos Estados
a) tradicionalmente, por laços de reverência, entre os vinculadores
patrimoniais, surgindo como funcionalismo de recrutamento extra-
ao senhor («recutamento patrimonial»):
-patrimonial. Estes funcionários, porém, começaram por ser. como se verá
o). consanguíneos
em breve, servidores pessoais do senhor do poder.
B). escravos
Y). funcionários domésticos, em servidão, nomeadamente empre-
Ao quadro administrativo da dominação tradicional, no tipo puro,
igados «ministeriais»
falta:
| ô). clientes
a) «competência» fixa segundo uma regra objectiva;
| e). colonos
b) hierarquia racional fixa;
E). alforriados .
c) admissão ao posto regulada por contrato livre e promoção regulada;
d) formação profissional (como norma);
/ b) «extra-patrimonialmente», por:
e) (muitas vezes) a remuneração fixa e (mais frequentemente ainda)
o). relações pessoais de confiança («favoritos» livres de toda a casta)
remuneração paga em dinheiro.
B). ou pacto de fidelidade com aquele que é legitimado como senhor
(vassalo), e, finalmente,
Sobrea) Em vez de competência objectiva fixa estabelece-se a con-
Y). entre funcionários livres que se envolvem numa relação de reve-
corrência recíproca das nomeações e plenos poderes a cada momento con-
| rência para o senhor do poder.
693
692
feridos pela entidade dominante, a princípio por seu livre-arbítrio. mas senhor, como seu moderno tanchão: a «justiça de gabinete». Na Idade Média o «tribunal
que depois se tornam duradouros e acabam muitas vezes estereotipados supremo» é com particular frequência a autoridade jurisprudencial de onde se import o
direito de uma região.
pela tradição, concorrência essa criada sobretudo pela concorrência em
volta das probabilidades de emolumentos que são apanágio tanto dos man-
datários como do próprio detentor do poder perante os esforços -de que Sobre c): Os funcionários domésticos e favoritos são muito frequen-
são chamados a usar. São estes interesses que frequentemente estão na temente recrutados de um modo puramente patrimonial: escravos ou
origem da constituição de competências objectivas e, por conseguinte, servos (ministeriais) do senhor do poder. Ou, quando recrutados extra-
da existência de uma «autoridade constituída». -patrimonialmente, prebendários (ver abaixo), que ele transfere segundo
Todos os mandatários munidos de atribuições duradouras começam o seu juízo formalmente livre. Só a admissão de vassalos livres e a con-
por ser empregados domésticos do senhor; a sua competência de vínculo cessão de cargos por força de contrato de vassalagem vem alterar funda-
não doméstico («extra-patrimonial») é uma competência assente sobre o mentalmente este estado de coisas, não produzindo no entanto — uma
vez que os feudos não são de modo nenhum determinados, em género
seu serviço doméstico segundo afinidades objectivas, muitas vezes bas-
tante superficiais, de campo de actividade, ou que, atribuída de princípio e função, por pontos de vista objectivos — qualquer alteração nos pontos
a total bel-prazer do senhor, foi posteriormente estereotipada pela tradição. a)e b). Ascensão só é possível, excepto em determinadas circunstâncias,
A par dos funcionários domésticos, havia originalmente apenas mandatá- no caso de uma estrutura prebendária do quadro administrativo (veja-se
rios ad boc. 88), por arbítrio e graça do senhor do poder.

O conceito de «competência» ausente ressalta facilmente ao passarmos em revista por Sobre d): Formação especializada racional, como qualificação de prin-
exemplo a lista de designações dos funcionários no antigo Oriente. É impossível — com raras
cípio, falta em primeiro lugar a todos os funcionários domésticos e favo-
excepções — detectar, como algo de permanente e fixamente estabelecido, uma esfera de
actividade objectiva, delimitada racionalmente, ao jeito da nossa «competência». ritos do senhor. O início da aprendizagem especializada dos empregados
A delimitação de atribuições permanentes de carácter factual a partir da concorrência (seja de que tipo forem) marca época por toda a parte na modalidade de
e do compromisso entre interesses de emolumentos é uma realidade observável em primeira administração.
linha na Idade Média. Foram muito extensos os efeitos de tal circunstância. Em Inglaterra.
interesses de emolumentos da parte dos poderosos tribunais da coroa e da não menos pode-
rosa Ordem Nacional dos Advogados em parte frustraram, e em parte limitaram, a domi- Desde muito cedo que um certo grau de formação empírica se revelou indispensável
nação do direito romano e do direito canónico. Em todas as épocas. a delimitação irracional para alguns cargos. Entretanto, foi sobretudo a arte de ler e escrever, originalmente ainda
de inúmeras atribuições de função foi estereotipada pela então verificada delimitação das uma «arte» do mais alto valor de raridade, que muitas vezes — exemplo mais importante.
esferas de interesses de emolumentos. a China — influenciou decisivamente todo o desenvolvimento da cultura. através do modo
de vida dos homens de letras, e eliminor recrutamento intra-patrimonial dos funcionários.
restringindo deste modo também o poder do senhor no seu «status». (Veja-se $ 7a, n.º3)
Sobre b): A determinação sobre se a decisão acerca de um assunto
ou de uma queixa a ele relativa deve caber a um mandatário, e nesse caso
qual, ou ao próprio senhor do poder, é: Sobre e): Os funcionários domésticos e favoritos são primordialmente
a. ou tradicionalmente regulada, às vezes mediante consideração da sustentados à mesa do senhor e equipados do seu guarda-roupa. O seu
proveniência de determinadas normas jurídicas ou precedentes colhidos afastamento progressivo e estratificado, da mesa do senhor, representa,
regra geral, o estabelecimento de prebendas (a princípio em espécie) cuja
do exterior (sistema do tribunal supremo), ou:
$. inteiramente confiada à discrição momentânea
natureza e extensão facilmente se estereotipam. Paralelamente (ou em seu
do senhor do poder,
perante o qual, onde quer que apareça em pessoa, todos os mandatários lugar), é apanágio tanto nos órgãos mandatados extra-domesticamente do
se curvam. senhor como do próprio senhor a percepção de «taxas» (amiúde sem qual-
quer tarificação, mas acordadas caso a caso com o requerente de um
Paralelamente ao sistema tradicionalista do tribunal supremo existe o princípio do direito
«favor»).
alemão derivado do poderio senhorial: a presença do senhor desvinculada dispensa toda
a jurisdição, e bem assim o jts erocandi, decorrente da mesma fonte e da livre graça do Sobre o conceito de «prebenda», veja-se 8 8.

694 695
8 7a.1. Os tipos primeiros de dominação tradicional são os casos de Os «companheiros de associação» só então se convertem em «súb-
ausência de um quadro administrativo pessoal do detentor do poder: ditos»,
e o direito do senhor, até então interpretado como direito preemi-
a) gerontocracia, € nente dos panheiros, em seu direito próprio,
um direito que lhe éapro-
b) patriarcalismo primário. priado (em princípio) de forma idêntica a um objecto de posse de qualquer
natureza,e em princípio também valorizável (vendável, hipotecável, par-
|. Entende-se por gerontocracia a situação em que, desde que minima- tilhável por sucessão) como qualquer oportunidade econômica. Exterior-
mente se exerça dominação no seio de uma associção, ela é praticada pelos mente, o poder patrimonial do senhorio apoia-se em escravos (frequente-
mais velhos (originariamente, no sentido literal, mais velhos em anos) como mente marcados a ferro), colonos, súbditos oprimidos ou — com o fim
os melhores conhecedores que são da tradição sagrada. Existe com fre- de tornar a comunidade de interesses tão indissolúvel quanto possível para
quência em associações não primordialmente económicas ou familiares. estes últimos —, guarda-costas e exércitos mercenários (exércitos patri-
Por patriarcalismo entende-se a situação em que, no seio de uma associação moniais). É por força deste poder que o senhor alarga a extensão do seu
(doméstica), a maior parte das vezes primordialmente económica e fami- arbítrio, favores e graça, não subordinados a tradição, à custa da vincu-
liar, um indivíduo determinado normalmente por regras fixas de sucessão lação patriarcal e gerontocrática a essa tradição. Deve entender-se por domi- |
exerce a dominação. Gerontocracia e patriarcalismo andam não raramente nação patrimonial toda a dominação primordialmente orientada pela tra-
lado a lado. O que aí é decisivo é o facto de o poder dos gerontocratas, dição, mas exercida por força de direito próprio absoluto; por dominação
tal como o do patriarca, se orientar pela concepção, por parte dos domi- sultanista, uma dominação patrimonial que se movimenta, no seu modo
nados («companheiros de associação»), de que tal dominação é realmente de administração, primordialmente na esfera do livre arbítrio vinculada
direito próprio tradicional do senhor do poder, mas que, materialmente, pela tradição. A distinção é completamente fluída. É a existência de um
deve ser exercida como direito preeminente dos companheiros de asso- quadro administrativo que distingue ambas, incluindo o sultanismo, do
ciação, por conseguinte no seu interesse de companheiros, não funcio- patriarcalismo primário.
nando, pois, como apropriação livre do senhor. A ausência, que nestes A forma sultanista de patrimonialismo é por vezes, na aparência
| tipos é total, de um quadro administrativo puramente pessoal («patrimo- — na realidade, jamais concretamente — absolutamente desvinculada da
nial») do senhor do poder é aqui determinante. O detentor do poder está, tradição. Não está, porém, racionalizada objectivamente, nela existindo
portanto, ainda largamente dependente da vontade de obedecer dos asso- apenas, pelo contrário, a esfera do livre arbítrio e da graça desenvolvida
ciados, uma vez que não possui «quadro». Os «companheiros de associação» ao extremo. Nisso se diferencia de todas as formas de dominação racional.
são portanto, ainda «companheiros», e não ainda «súbditos». Mas são «com-
panheiros» por força da tradição, e não «membros» por força de estatuto. 3. Deve entender-se por dominação de «status» aquela forma de domi-
São devedores de obediência ao senhor do poder, não à zegra-estatuída. nação patrimonial na qual determinados poderes de senhorio e as corres-
Mas são-no apenas conforme a tradição. O detentor do poder, por seu pondentes possibilidades económicas se encontram apropriados pelo
lado, está rigorosamente vinculado por essa tradição. quadro administrativo. A apropriação pode dar-se — como em todos os
casos semelhantes (Cap.II, 819):
Sobre as formas de gerontocracia, ver mais adiante. O patriarcalismo primário é-lhe a) por parte de uma associação, ou de uma categoria de pessoas des-
afim, na medida em que a dominação apenas actua, necessariamente. no seiô da casa: no tacadas por determinadas características, ou
demais, porém — como entre os xeiques árabes — não actua senão exemplarmente, ou seja b) individualmente, e neste caso meramente Com carácter vitalício
ao jeito da dominação carismática, por exemplo, então por conselho e meios de influência.
ou também hereditário, ou como propriedade livre.

2. Com o advento de um quadro administrativo (e militar) puramente Dominação de condição significa, pois:
“|pessoal do detentor do poder, toda a dominação tradicional se inclina para a) sempre, limitação da livre selecção do quadro administrativo por
jo patrimonialismo e, no supremo grau do poder de senhorio, para o sul- parte do senhor, por meio da apropriação dos cargos ou poderes de
ftanismo: senhorio:

696 697
e. por uma associação, 4. privilégio pessoal, hereditário ou livremente apropriado, incondicionado ou con-
dicionado por prestações, outorgado:
8. num estrato qualificado de «status» (Cap. IV), ou:
a) como remuneração por serviços ou para comprar complacências. ou
b) em reconhecimento da efectiva usurpação de poderes de senhorio;
b) frequentemente— e devendo isto valer aqui como «tipo» —, 5. apropriação por uma associação ou estrato qualificado por «status» em geral conse-
quência de um compromisso entre senhor do poder e quadro administrativo, ou entre o
também por meio de: ,
senhor do poder e o estrato socializado com características de «status»; apropriação que pode:
«e. apropriação dos cargos, por conseguinte (eventualmente) das opor- e. deixar ao senhor do poder inteira ou relativa liberdade de escolha no caso par-
tunidades de lucro criadas pela ocupação de tais postos, ticular, ou ,
B. estatuir regras fixas para o preenchimento pessoal do cargo;
8. apropriação dos meios objectivos de administração, 6. enfeudamento, de que se tratará em destacado.
”. apropriação dos poderes de comando pelos membros individuais
do quadro administrativo. 1. Na gerontocracia e no patriarcalismo puro, os meios administrativos são — segundo
a concepção imperante, por sinal a maior parte das vezes não clarificada — apropriados a
favor dos administrados ou dos seus agregados domésticos individuais intervenientes na admi-
Historicamente, no entanto, os apropriadores podem, tanto 1 .emanar nistração: a administração é conduzida «para» a associação. A apropriação na pesso do senhor
de um quadro administrativo anterior não oriundo de um «status», como enquanto tal pertence exclusivamente ao mundo conceptual do patrimonialismo, podendo
realizar-se plenamente de modos muito distintos — até ao pleno direito de soberania sobre
2. não lhe ter pertencido antes da apropriação.
o solo e à plena escravidão senhorial dos súbditos («direito de venda» do senhor). Apropriação
Aquele que, por razões do seu «status», detém poderes de senhorio gerada por «status» significa apropriação pelo menos de parte dos meios administrativos na
por ele apropriados, faz face às despesas de administração com meios pessoa dos membros do quadro administativo. Enquanto, pois, no patrimonialismo puro
se verifica a total separação entre administrador e meios de administração, no putrimonia-
próprios, que nele estão indivisamente apropriados. Os detentores de
lismo de «status» passa-se exactamente o contrário: aquele que administra está de posse dos
poderes de senhorio militar ou membros de um exército de «status» meios administrativos, na sua totalidade ou pelo menos em parte substancial. Assim, pois
equipam-se a si próprios e, eventualmente, equipam também os contin- o vassalo que se eguipava a si próprio, o conde investido de feudo que colectava para si
custas de justiça e outras taxas e tributos, fazendo face às suas obrigações para com o suse-
gentes que virão a contratar por recrutamento patrimonial ou, por um prin-
rano com meios próprios (onde também cabiam os apropriados), o jagirdar indiano que anga-
cípio de «status» (exército de «status»). Ou então: a angariação dos meios riava o seu contingente de exército a partir das suas prebendas tributárias, todos eles estavam
administrativos e do quadro administrativo é apropriada directamente, de plena posse dos meios de administração; em contrapartida, o coronel que instalava, como
empreendimento próprio, um regimento de mercenários, pelo que recebia determinadas quan-
como objecto de um empreendimento lucrativo e contra serviços de
tias retiradas dos cofres do príncipe, e que se fazia pagar pelo défice reduzindo as suas pres-
empreitada, a partir dos armazéns ou da caixa do senhor, como foi nomea- tações ou recorrendo a presas de batalha ou confiscações, estava de posse parcial (e reguta-
damente (mas não só) o caso do exército mercenário dos séculos XVI e mentada) dos meios de administração. Enquanto que o faraó, que montava exércitos de
escravos ou colonos, entregando-os ao comando de clientes régios, e os vestia nos seus arma-
XVI na Europa (exército capitalista). Nos casos de absoluta apropriação
zéns, os alimentava e armava, estava na qualidade de senhor patrimonial, na plena posse pessocl
decorrente de um «status» o poder global é em regra partilhado entre o dos meios de administração. A regulamentação formal nem sempre é, porém, decisiva: os
senhor do poder e os membros apropriadores do quadro administrativo, mamelucos eram formalmente escravos, eram recrutados formalmente por «compra» do
senhor, mas de facto monopolizavam os poderes de senhorio tão completamente como qual-
por força do seu direito próprio, ou então podem existir poderes regu-
quer grupo de empregados ministeriais o faz em relação a feudos lígios.
lados por ordenações específicas do senhor, ou compromissos particu- A apropriação de terras lígias por uma associação fechada, mas sem apropriação indi-
lares com os apropriados. vidual, ocorre tanto por meio de provimento livre, no seio da associação, por parte do senhor
(caso 5 ado texto) como através de regulação da eligibilidade para a assunção de funções
(caso 5 £ do texto), por exemplo, por existência de uma qualificação militar ou outra (ritual)
Caso 1: por exemplo, as funções cortesãs de um senhor, apropriadas como feudos. do pretendente ou ainda por direito de preferência dos parentes consanguíneos (havendo-
Caso 2: por exemplo, senhores fundiários que, por força de privilégio senhorial ou usur- -os) mais próximos. O mesmo se passa com certos postos de artesão ou camponês formal-
pação (a maior parte das vezes o primeiro é a legalização do segundo), se apropriam de direitos mente adstritos a uma corte senhorial ou de uma corporação, cujas prestações se destinam
de senhorio. a satisfazer necessidades militares ou administrativas.
2. A apropriação por arrendamento (nomeadamente renda tributária), hipoteca ou venda
A apropriação na pessoa de indivíduos pode assentar em: era conhecida no Ocidente, mas também no Oriente e nas Índias; na Antiguidade, à con-

1. arrendamento: cessão de cargos sacerdotais por leilão não era coisa rara. No caso do arrendamento, o objectivo
2. hipoteca; era um objectivo momentâneo puramente político-financeiro (situação de emergência nomea-
3. venda; damente decorrente de despesas de guerra), em parte de natureza técnica-financeira (asse-

698 699
guração de receita fixa aplicável orçamentalmente); nos casos de hipoteca é venda. tratava- os súbditos pode então assumir carácter patrimonial (ou seja, pode tornar-se
-se de fins exclusivamente político-financeiros, a que se acrescentava, no Estado da Igreja.
| transmissível por herança, alienável ou partilhável).
|
criação de rendas nepotistas. A apropriação por hipoteca ainda desempenhou papel consi-
derável no século XVII em França no estatuto dos juristas (parlamentos); e bem assim a apro-
priação por compra (regulamentada) de cargos de oficiais, no exército inglês, ainda no século 1. A subsistência à mesa do senhor ou, retirada, à sua livre discrição, das suas reservas,
XIX. Na Idade Média, o privilégio, como sanção de usurpação, salário ou meio de angariação
era a forma originária, tanto entre os servidores de príncipes como entre os funcionários
de serviços políticos, era coisa corrente, tanto no ocidente como noutros lugares. domésticos, sacerdotes e todas as categorias de servos patrimoniais (por exemplo de senhores
fundiários). A «assembleia de varões», a mais antiga forma de organização militar profissional
(de que se tratará mais tarde em particular) tinha muito frequentemente carácter de comu-
$8. O servidor patrimonial pode retirar O seu sustento: nismo senhorial para a gestão do consumo. O afastamento progressivo da mesa do senhor
a) abastecendo-se à mesa do senhor; (ou do templo, ou da catedral), e a substituição deste meio directo de subsistência por pres-
b) de remunerações (predominantemente em espécie) oriundas das tações em espécie ou terra lígia, de modo algum constituiram sempre aspirações, embora
fosse regra no caso de fundação de família própria. As prestações em espécie a sacerdotes
reservas do senhor em bens e dinheiro;
de templos e funcionários estratificadamente apartados foram em todo o Próximo Oriente
c) de terras lígias; a forma original de subsistência de funcionários, e existiam igualmente na China. na Índia
cd) apropriando-se de oportunidades de receita decorrentes de rendas, e, proliferamente, no Ocidente. Por todo o Oriente, desde os primórdios da Antiguidade,
e igualmente na Idade Média alemã, encontram-se terras lígias, contra prestação de serviços
taxas ou impostos;
militares, como modo de subsistência de funcionários ministeriais, funcionários de cortes
e) de feudos. senhoriais, empregados domésticos e outros. Os rendimentos dos sipas turcos, do mesmo
Denominar-se-ão de «prebendas» as formas de sustento de b) a d) modo que dos samurais japoneses e numerosos funcionários ministeriais e cavaleiros orien-
tais do mesmo género constituem — na nossa terminologia — «prebendas», e não feudos.
quando conferidas e por sistema renovadas tradicionalmente segundo
como posteriormente se debaterá. Podem depender, não só de determinadas rendas fundiá-
amplitude (b) e (c) ou jurisdição (d), e apropriadas individualmente mas rias, como das receitas fiscais de determinadas circunscrições. Neste último caso, andam asso-
não por via sucessória; e denominar-se-á de «prebendismo» a existência ciados — não necessariamente, mas segundo a tendência geral — à apropriação de poderes
de uma modalidade de quadro administrativo assim estabelecido em de senhorio nestas circunscrições, ou então acarretam uma tal apropriação. O conceito de
«feudo» só em conexão com o conceito de «Estado» pode ser debatido com maior pormenor.
princípio. Pode ter como objecto, não só uma terra de senhorio (ou seja, dominação patrimonial). como
Pode aqui existir promoção por idade ou serviços prestados objecti- as mais diversas formas de possibilidades de rendas ou taxas.
vamente avaliáveis, podendo também ser requerida qualificação com base 2. Possibilidades de receita a partir de rendas, taxas e impostos encontram-se larga-
mente difundidas na qualidade de prebendas e feudos de toda a espécie; na Índia, em parti-
no «status» e consequentemente, honras de «status» (sobre o conceito de cular, encontramo-las em forma autónoma e altamente desenvolvida: concessão de rendi-
«status», cf. Cap.IV). mentos contra alistamento e disponibilização de contingentes militares e pagamento dos custos
: -
| Designar-se-ão por feudos os poderes de senhorio. apropriados
. de administração.

quando conferidos por força de contrato primordialmente a entidades


qualificadas individualmente e quando os recíprocos direitos e deveres 8 92. A dominação patrimonial, nomeadamente a dominação patrimo-
estão orientados primordialmente segundo conceitos de bonra conven- 4| nial com características de «status», no seu tipo puro, considera todos os
cionais referidos a um «status», nomeadamente miilitaristas. Chamar-se-á |! poderes e direitos económicos de senhorio como possibilidades econó-
feudalismo de vassalagem à existência de um quadro administrativo pri- | micas privadas apropriadas. Isso não exclui que os distinga qualitativa-
mordialmente estabelecido à base de feudos. mente. Sobretudo ao apropriar-se proeminentemente de um ou de outro,
Feudos e prebendas militares interpenetram-se amiúde a ponto de sob a forma particularmente regulamentada. Nomeadamente, ao tratar a
se tornarem indistinguíveis (sobre este assunto, veja-se o exposto acerca apropriação de poderes judiciais ou de senhorio militar como fundamento
do «status», Cap. IV). jurídico da situação privilegiada de «status» do apropriado, perante a apro-
Nos casos d) e e), por vezes também no caso c), o detentor, por apro- priação das possibilidades puramente económicas (dominiais, fiscais ou
priação, dos poderes de senhorio faz as despesas de administração, even- de emolumentos); e distinguido por sua vez dentro destas últimas, quanto
tualmente de equipamento, na forma já indicada, com os meios colhidos ao modo de apropriação, as que são primordialmente patrimoniais das que
da prebenda ou do feudo. A sua própria relação de dominância para com são primordialmente extra-patrimoniais (fiscais). Para a nossa terminologia
otra vma een ema meça

700 701
deverá ser determinante o facto de considerar, por princípio, os direitos Neste sentido, o patrimonialismo pode ter os mais diversos signifi-
senhoriais e as possibilidades que com eles se prendem, qualquer que seja cados. Típicos são, porém:
o conteúdo, como outras tantas possibilidades económicas. a) Oikos do senhor com cobertura das necessidades total ou primor-
dialmente litúrgica e em espécie (corveias e contribuições em espécie).
Razão tinha de sobejo von Below (Der deustche Staat des Mittelalters) em sublinhar Neste caso, as relações económicas encontram-se estritamente vinculadas
que à apropriação da dominância judicial recebia tratamento destacado e era fonte de colo-
"cações especiais regidas por critério de «status», e que em geral não se pode estabelecer o à tradição, e o desenvolvimento do mercado entravado; o uso do dinheiro
carácter puramente patrimonial ou puramente feudal do agrupamento político medieval. está orientado para O consumo e processa-se essencialmente em espécie,
Todavia, na medida em que a dominância judicial e outros direitos de origem puramente e o aparecimento do capitalismo não é possível.
política eram tratados como legítimos direitos privados, afigura-se-nos adequado terminolo-
Um caso, nos seu efeitos a este, é o da:
gicamente, para os nossos fins, falar de «dominação patrimonial». O conceito propriamente
dito provém (na sua formulação consistente) da restauração da ciência política, devida a Haller. b) cobertura das necessidades associada a privilégios de status.
Historicamente nunca existiu um Estado «patrimonial» puro, absolutamente ideal-típico. Também aqui o desenvolvimento do mercado é limitado, embora não
necessariamente em igual medida, pela exploração, em espécie —
4. Deve entender-se por partilha de poderes por «status» a situação prejudicial ao «poder de compra» — dos bens de Ray e da capacidade pro-
em que privilegiados por «status» e por força de poderes de senhorio apro- dutiva das economias individuais para fins do grupo de dominância.
priados, criam, por meio de compromisso com o senhor do poder, caso O patrimonialismo pode também ser:
a caso, estatutos políticos ou administrativos (ou ambos), disposições admi- c) monopolista, com cobertura das necessidades em parte através
nistrativas concretas ou ainda prescrições de fiscalização administrativa, de uma economia de lucro, em parte por via de taxas, em parte ainda pelo
pondo-os em prática eventualmente eles próprios, por vezes através de fisco. Neste caso, o desenvolvimento do mercado encontra-se restringido
quadros administrativos pessoais, em determinadas circunstâncias com irracionalmente, com maior ou menor acuidade, conforme o género de
monopólio, enquanto as grandes possibilidades de lucro estão concen-
[poderes de comando próprios.
tradas nas mãos do senhor e do seu quadro administrativo, e o capitalismo,
no seu desenvolvimento, por conseguinte, se apresenta:
Í 1. O facto de certos estratos não privilegiados por «status» (camponeses) serem também,
| em determinadas circunstâncias, arrastados para o poder, em nada vai alterar este conceito. a. em caso integral gestão própria da administração, entravado
Pois é o direito próprio dos privilegiados que é tipicamente decisivo. A ausência de todas imediatamente; ou
as camadas privilegiadas por «status» acarretaria, como é evidente, de imediato, um outro
tipo. 8. caso existam, como prescrições financeiras, o arrendamento
2. O tipo só se encontra plenamente desenvolvido no Ocidente. Falar-se-á, à parte.
de impostos, o arrendamento de cargos e o aprovisionamento capitalista
da sua especificidade e das razões do seu surgimento.
3. Um quadro administrativo próprio, de «status», não era regra; acompanhado de poder do exército ou da administração, desviado para o terreno do capitalismo
de comando próprio, era mesmo absoluta excepção. . Orientado politicamente (Cap.ll 831).
| A economia financeira do patrimonialismo, e mais ainda a do sulta-

S 9. Uma dominação tradicional actua sobre o modo de condução | nismo, opera, mesmo quando monetária, de modo irracional:
económica em regra e em primeiro lugar através de um fortalecimento
1) pela co-existência de:
da disposição de espírito tradicional; assim acontece, vincadamente, com
a. vinculação à tradição, na natureza e amplitude da requisição
a dominação gerontocrática e com a dominação puramente patriarcal que,
não se apoiando de modo nenhum num quadro administrativo que se
|
1
de fontes directas de impostos, €
!| 8. total liberdade, ou seja, arbitrariedade na extensão e modali-
encontre em oposição aos companheiros de associação, regem-se, na vali-
|nde de: 1. estabelecimento de impostos; 2. estabelecimento de tributos
dade da sua legitimidade própria, pela salvaguarda da tradição sob todas
À le 3. estruturação formal dos monopólios. Tudo isto existe em qualquer
as formas,
caso, por pretensão; na história, passou efectivamente à prática a maior
De resto, a actuação sobre a economia orienta-se:
parte das vezes em 1. (em conformidade com o princípio da «actividade
1. pela modalidade de financiamento típica da associação de domi- peticionária» do senhor do poder e do seu quadro), com muito menos
nância (Cap. II 838). frequência em 2. e com intensidade variável em 3.

702 703
2. Falta, no entanto, em absoluto, para uma racionalização da eco- | b) através da ausência típica de quadro administrativo de fun-
nomia, a possibilidade de calcular com certeza não só a extensão como |cionários formalmente especializados. O surgimento e um tal quadro no
também os custos da liberdade de angariação privada de lucro. seio do patrimonialismo ocidental decorreu, como será demonstrado, de
3. É certo que, num caso particular, o fiscalismo patrimonial pode | condições singulares que só aí ocorriam, e proveio originariamente de
ter acção racionalizadora, cultivando planificadamente a capacidade fiscal, fontes inteiramente diferentes;
e através da criação racional de monopólios. Trata-se, porém, de um «caso» c) através do vasto âmbito de arbítrio material e actuação discri-
condicionado por circunstâncias históricas especiais, ocorridas parcial- cionária puramente pessoal do senhor e do quadro administrativo, — no
mente no Ocidente. que a eventual venalidade, que não é senão a degenerescência do direito
A política financeira em caso de partilha de poderes por status tem de imposição não regulamentado, teria ainda o mínimo relativo de signifi-
como propriedade típica impor cargas fixadas por compromisso, ou seja cado, porque calculável praticamente, se representasse uma grandeza
calculáveis, suprimir ou pelo menos restringir fortemente a arbitrariedade estável e não, pelo contrário, um factor constantemente variável consoante
do senhor na angariação de tributos, nomeadamente de monopólios. Até
a pessoa do funcionário. Imperando o arrendamento de cargos, o funcio-
que ponto neste processo a política financeira material incentiva ou entrava
nário vê-se imediatamente na dependência de uma valorização máxima
a economia racional depende da natureza do estrato predominante nessa
do seu capital investido, recorrendo a todos e quaisquer meios de extorsão,
situação de poderio, sobretudo do facto de ser:
por irracionais que os seus efeitos redundem;
a) feudal, ou
d) através da tendência, inerente a todo o patriarcalismo, e a todo
b) patrício.
o patrimonialismo, decorrente do modo de validade da legitimidade e do
O predomínio do primeiro, por virtude da estrutura, em regra pre- interesse em satisfazer os dominados, para uma regulação da economia
ponderantemente patrimonial, dos direitos de dominância enfeudados, cos- orientada materialmente — por ideais de «cultura» utilitários, socio-éticos
tuma limitar rigidamente a liberdade de angariação de lucro e o desenvol- ou materiais —, ou seja: para a ruptura da sua racionalidade formal, orien-
vimento do mercado, ou mesmo neutralizá-los deliberadamente, em termos ltada pelo direito dos jurisconsultos. É no patrimonialismo orientado hie-
de política de poder; o predomínio do segundo pode ter uma acção inversa. rocraticamente que esta acção se revela decisiva ao mais alto grau, enquanto
que o sultanismo opera mais pelo seu arbítrio fiscal.
1. Ficaremos por aqui quanto a0 exposto, uma vez que voltaremos Por todas estas razões, sob o domínio de poderes patrimoniais nor-
a abordar a questão, com mais pormenor, nos mais diversos contextos. mais radicam e florescem muitas vezes, com a maior exuberância:
a) o capitalismo de comerciantes;
2. Exemplo:
Referentes a 1.4) (Oikos): o antigo Egipto e a Índia,
b) o capitalismo de arrendamento de impostos, e arrendamento
. Referentes a b): esferas consideráveis do helenismo, o Império Romano tardio, a China, e compra de cargos;
a Índia, parcialmente a Rússia e os Estados islâmicos. c) o capitalismo de fornecedores do Estado e financiamento de
Referentes a c): O Império Prolomaico, Bizâncio (em parte), e, noutro género. a domi-
nação dos Stuarts.
guerras;
Referente a d): os Estados patrimoniais ocidentais à época do «despotismo iluminado» d) em certas circunstâncias, o capitalismo de plantação e o capi-
(nomeadamente o colbertismo). talismo colonial.

2. Não é só através da sua política financeira que o patrimonialismo Não é, porém, o caso do empreendimento lucrativo de capitalismo
normal causa entraves à economia racional, mas antes de mais pela singu- fixo e organização racional do trabalho livre e, orientado pela situação
laridade geral da sua administração. Nomeadamente: de mercado dos consumidores privados, de forma que é ao mais alto grau
a) através das dificuldades que o tradicionalismo levanta à exis- sensível contra irracionalidades da prática da justiça, da administração e
tência de regulamentos formalmente racionais e de duração assegurada, da tributação. ,
e por conseguinte calculáveis no seu alcance e aproveitabilidade eco- Em modalidade fundamentalmente diferente o patrimonialismo
nómicos; ocorre apenas quando o senhor patrimonial recorre, por interesses pró-

704 705
prios, financeiros e de poder, a uma administração racional com funcio- fmenos, especificamente extra-ordinárias, não acessíveis a qualquer um,
nários especializados. Para isso, são necessários: ou é tomado como enviado de Deus, ou como exemplar, e por conse-
1. a existência de uma formação técnica; 2. um motivo suficien- -guinte como «chefe». É evidente que, conceptualmente, é de todo indife-
temente forte, regra geral uma concorrência agudizada entre vários poderes | rente aqui o modo como seria de valorizar correctamente, no plano «objec-
patrimoniais parciais no seio do mesmo círculo cultural; 3. um momento 'tivo», a qualidade em questão, de um ponto de vista ético, estético ou
sobremaneira peculiar: a incorporação de associações municipais nos outro; importa, sim, exclusivamente, o modo como ela é valorizada
Ata mto tio trt tr Ss QEpor
poderes patrimoniais em concorrência, como suporte do poder financeiro. parte dos que são dominados “carismaticamente, os «adeptos».
O carisma de um «berserker», o nórdico guerreiro furioso (cujos ata-
1. O capitalismo moderno, especificamente ocidental, foi forjado nas ques maníacos eram atribuídos, aparentemente sem razão, ao uso de deter-
associações municipais especificamente ocidentais, administradas de modo
minados venenos; em Bizâncio, na Idade Média, alguns destes homens
(relativamente) racional (tratar-se-á em destacado da sua singularidade);
dotados do carisma do frenesi guerreiro eram manipulados como uma
desenvolveu-se, do século XVI ao século XVIII, primordialmente no seio
espécie de instrumentos de guerra); de um «xaman» (mágicos entre os quais,
de associações políticas de «status» holandesas e inglesas, caracterizadas
no tipo puro, a possibilidade de ataques epilépticos é tida como condição
pelo predomínio do poder burguês e de interesses de angariação de lucros;
prévia do êxtase); ou quiçá do fundador dos Mormons (representando por-
em contrapartida, as suas reproduções secundárias, condicionadas fiscal ventura, mas não com certeza, um tipo refinado de charlatão); o de um
e utilitariamente, que ocorreram nos Estados do continente puramente
literato rendido aos seus próprios sucesssos demagógicos, como Kurt
patrimoniais ou influenciados por situações feudais ou de «status», e bem
Eisner, — todos são tratados pela sociologia desvinculada de valorações
assim exactamente as indústrias monopolistas dos Stuarts, não se deram
como carisma de «supremos» heróis, profetas e salvadores, conforme a
em real continuidade com o desenvolvimento capitalista autónomo que
apreciação comum.
posteriormente se instalou, embora certas medidas isoladas (de política
agrária e industrial), na medida e pelo facto de se terem pautado por mo-
1. É o reconhecimento por parte dos dominados — reconhecimento
delos ingleses, holandeses ou, mais tarde, franceses, tenham proporcio-
nado condições evolutivas de suma importância para a sua génese (disso livre, assegurado por verificação (originalmente sempre através do mi-
se tratará também em particular). lagre), nascido de um abandono à revelação, à veneração do herói, à
2. Os Estados patrimoniais da Idade Média distinguiram-se principal- confiança no líder — que decide sobre a validade do carisma. Ele não é,
mente dos restantes quadros administrativos de todas as associações polí- porém, fundamento da legitimidade, mas sim dever daqueles que, por força
ticas do mundo pela natureza formalmente racional de parte do seu quadro de vocação e verificação, são chamados ao reconhecimento dessa quali-
administrativo (nomeadamente: juristas, leigos e canonistas). Analisaremos dade. Esse «reconhecimento», psicologicamente, constitui uma entrega de
à parte, com mais pormenor, a fonte deste desenvolvimento e o respec- cariz altamente pessoal, eivada de crença, nascida do entusiasmo ou da
tivo significado. Neste contexto deverão bastar, provisoriamente, os miséria e da esperança.
comentários de ordem geral feitos no final do texto.
Nenhum profeta considerava a sua qualidade como dependente da opinião que dele
fazia a multidão, tão-pouco o rei sagrado por sufrágio ou o duque carismático tratavam os
opositores ou os que se mantinham de parte de outra maneira senão como incumpridores
á. Dominação carismática de um dever: a não-participação na expedição de guerra de um chefe, recrutada formalmente
por voluntariado, era por todos retribuída com escárnio.
$ 10. Deve entender-se por «carisma» a qualidade, tida por extra-
|-ordinária (determinada, magicamente na origem, tanto no caso de pro- 2. Ausência prolongada de verificação, revelando-se aquele que
fetas como de curandeiros, sábios árbitros, chefes de caça ou heróis de recebeu a graça do carisma abandonado pelo seu deus ou pelos seus
guerra), de uma personagem por virtude da qual ele é considerado como poderes mágicos ou heróicos, e se o sucesso lhe permanece duradoura-
dotado de forças ou características sobre-naturais, sobre-humanas ou, pelo mente vedado, e, principalmente, se a sua liderança não traz qualquer

706 707
bem-estar aos dominados, então existe a possibilidade de que a sua auto-
icipe guerreiro genuíno ou qualquer chefe genuíno em geral, proclama,
ridade carismática se dissipe. É este o sentido carismático genuíno do «pela
| ria, exige preceitos novos, — no sentido originário do carisma: por força
graça de Deus».
ide revelação, oráculo, inspiração ou de uma vontade concreta de estrutu-
'ração reconhecida, por razões da sua origem, pela comunidade de crença,
Mesmo entre os antigos reis germânicos ocorre a figura do «desdenhador» público. | de armas, de partido ou outra. Este reconhecimentoé conforme ao dever.
. Igualmente, e com grande frequência, entre os povos ditos primitivos. Na China, a gualifi-
cação carismática do monarca (não-modificada no sentido carismático hereditário, cf. 411)
Desde que a uma directiva seja contraposta uma directiva concorrente de
estava consolidada de feição tão absoluta que todo e qualquer infortúnio. independente- um outro com reivindicação de validade carismática, dar-se-á um combate
mente da sua natureza — não só a desventura na guerra, como também secas, inundações, entre chefes que, em última análise, apenas se poderá decidir por meios
ocorrências astronómicas funestas, etc., — o obrigava a expiação pública, eventualmente
mágicos ou por reconhecimento (conforme ao poder) da comunidade;
à abdicação. Não era então detentor do carisma da «virtude» (determinada classicamente)
requerida pelo espírito celeste, pelo que não era legítimo «filho dos céus». neste combate apenas poderão entrar em jogo, necessariamente, de um
lado, a justiça, de outro, a injustiça, obrigando à expiação.
Í A dominação carismática, como extra-quotidiana que é, encontra-se
3. A associação de dominação é uma comunização de carácter emo-
'jem absoluta oposição, não só à dominação racional, nomeadamente à buro-
ee

cional. O guacdiro administrativo do senhor carismático não é um «fun-


' | crática, como à dominação tradicional, nomeadamente à patriarcal, patri-
cionalismo», muito menos um funcionalismo de formação técnica. Não
o monial, ou de status. Ambas são formas quotidianas específicas de domi-
é seleccionado em função do status, nem por considerações de depen-
; nação — a (genuinamente) carismática é especificamente o contrário.
dência doméstica ou pessoal, mas sim em função de qualidades carismá-
O

A dominação burocrática é especificamente racional no sentido da vincu-


ticas: ao «profeta» correspondem os «discípulos», ao «príncipe guerreiro»
lação a regras discursivamente analisáveis, enquanto a dominação caris-
“O «séquito», ao «chefe» em geral, os «homens de confiança». Não há «colo-
mática é especificamente irracional no sentido de um alheamento face a
: cação» nem «destituição», tão-pouco «carreira» ou «promoção»; mas apenas
regras. A dominação tradicional está ligada aos precedentes do passado
' um chamamento, segundo a inspiração do chefe, assente na qualificação
e, nessa medida, igualmente orientada por regras; a dominação carismá-
: do chamado. Não há «hierarquia», mas apenas intervenção do chefe, even-
tica subverte (dentro da sua esfera) o passado, sendo, neste sentido, espe-
'tualmente na seguência de apelo, perante insuficiência geral, ou verificada
cificamente revolucionária. Não conhece apropriação do poder de senhorio
“num caso particular, da parte do quadro administrativo, no respeitante
do género da propriedade de bens, quer por parte do detentor do poder,
' a uma determinada tarefa. Não há «jurisdições» nem «competências», nem
quer por parte de poderes de status. É legítima apenas na medida e
: mesmo apropriação dos poderes da função através de «privilégio». Existem,
enquanto o carisma pessoal é tido por «válido» por força de verificação,
| sim, apenas (porventura) limitações materiais de local ao carisma e à
ou seja, só encontra reconhecimento, só é «utilizável» pelo homem de con-
. «missão». Não há «vencimento» nem «prebendas». Acontece, sim, que os
fiança, discípulo ou séquito durante o tempo de duração da sua credibili-
: : discípulos ou seguidores vivem (primordialmente) com o senhor em comu-
dade carismática estabelecida.
nismo de amor ou de camaradagem, de meios angariados por mecenato.
'Não há «autoridades» estabelecidas, mas tão-somente emissários manda-
O exposto quase dispensaria esclarecimentos. É válido tanto para o dominador caris-
“tados carismaticamente, no âmbito das tarefas incumbidas pelo senhor e mático puramente «plebiscitário» (0 «império do génio». de Napoleão. que fez de plebeus
pelo próprio carisma. Não há regulamento, não há postulados jurídicos reis e generais) como para o profeta ou o herói de guerra.
'abstractos, não há instituição racional de jurisprudência que por eles se
oriente, nem tão-pouco directrizes jurídicas ou decisões legais pautadas
4, O carisma puro é especificamente alheio à economia. Onde surge,
- por precedentes de ordem tradicional; formalmente, são, sim, determi-
( constitui uma «vocação» no sentido empático do termo: como «missão»
| nantes, as criações jurídicas de cada momento, caso a caso, originariamente
; OU «tarefa» interior. No seu tipo puro, desdenha e rejeita o aproveitamento
'apenas juízos de Deus e revelações. Materialmente, contudo, é válida para
económico dos dons da graça como fonte de rendimento — o que, sem
| toda a dominação genuinamente carismática a proposição: «está escrito —
; dúvida, prevalece amiúde mais como exigência do que como facto real.
- eu, porém — digo-vos»; o profeta genuíno, do mesmo modo que o prín-
Não quer isto dizer que o carisma renuncie sempreà propriedade e ao
708
709
lucro, como em determinadas circunstâncias o fazem os profetas e seus ! ciência e dos factos, sob a absoluta reorientação de todas as atitudes perante
discípulos. Os heróis de guerra e o seu séquito procuram a presa, o domi- “todas as formas particulares de vida e perante o «mundo» em geral. Nas
nador plebiscitário ou dirigente partidário carismático, meios materiais para épocas pré-racionalistas, tradição e carisma quase partilham entre si a tota-
o seu poder; o primeiro, além disso, procura o esplendor material da sua lidade dos sentidos de orientação da acção.
dominação, para consolidação do seu prestígio senhorial. O que todos eles
desdenham — enquanto perdure o tipo carismático genuíno — é a eco-
nomia quotidiana tradicional ou racional, à realização de «receitas» regu-
5. Rotinização do carisma
lares através de uma actividade económica contínua dirigida para esse fim.
As formas típicas de cobertura de necessidades de índole carismática são
f 811. Na sua forma genuína, a dominação carismática é de carácter
a subsistência pelo mecenato — ou grande mecenato (doações, fundações,
4 especificamente extra-quotidiano, apresentando uma relação social estri-
corrupção, gorjeta elevada) — ou mendicidade, por um lado, e a presa
| tamente pessoal, associada à validade carismática de qualidades pessoais
de guerra e a extorsão violenta ou (formalmente) pacífica, por outro lado.
Í e à sua comprovação. Não se quedando esta, porém, como efémera, mas
Trata-se, da perspectiva de uma economia racional, de uma força típica
“i assumindo carácter de relação duradoura — «comunidade» de compa-
'|nheiros de fé, de guerreiros ou de discípulos, ou associação partidária, asso-
cruzamento com O quotidiano. Apenas pode, com absoluta indiferença
|ciação política ou hierocrática —, a dominação carismática, que, no estado
interior, «aproveitar», por assim dizer, um lucro ocasional flutuante.
“ideal-típico puro, não existia, por assim dizer, senão in statu nascendi,
O «viver de rendas» como forma de se eximir de qualquer gestão econó-
à vê-se obrigada a alterar substancialmente o seu carácter: tradicionaliza-se,
mica, pode — para intimeras modalidades — constituir o fundamento eco-
| Ou racionaliza-se (legaliza-se), ou uma e outra coisa simultaneamente, a
nómico de existências carismáticas. No entanto, isto por regra não é válido
: Vários títulos. Os motivos impulsores aqui são os seguintes:
para os «revolucionários» carismáticos normais.
a) O interesse ideal ou também material dos adeptos na perdu-
ração e contínua revivificação da comunidade;
A recusa de cargos eclesiásticos por parte dos jesuítas é uma aplicação racionilizad
a b) o interesse ideal e material ainda mais fortes, por parte do
deste princípio de «discipulado». Que todos os heróis da ascese, ordens mendicantes e com-
batentes da fé estão aqui inseridos, é facto que não deixa dúvidas. Quase todos os profetas quadro administrativo — séquito, discipulado, homens de confiança do
colhiam o seu sustento do mecenato. A frase de São Paulo dirigida contra o parasitismo
dos partido, etc., em:
missionários: «quem não trabalhe, não coma», de modo nenhum signífica, naturalmente, uma
afirmação da «economia», mas tão somente o dever de, seja por que meios for, 1. prosseguir a existência da relação, concretamente;
angariar o
necessário sustento «na profissão acessória», porque a parábola, verdadeiram
ente carismá- 2. prossegui-la de modo a que a posição própria seja assente,
tica, dos «lírios do campo», não era transmissível no seu sentido literal, mas apenas
no sen- ideal e materialmente, num fundamento guotidiano duradouro: externa-
tido de uma despreocupação quanto ao dia de amnhã. — Por outro lado. é concebível.
no mente, estabelecimento da existência familiar ou de uma existência de satis-
caso de um discipulado carismático primordialmente artístico, que a eximição
das lutas cco-
nómicas pela limitação dos apelos, no verdadeiro sentido, a «cconomicamente independente

fação, em vez das «missões» desprendidas deste mundo, alheias à família
(vivendo de percepções rentísticas) valha como norma (assim se passa, pelo menos
em pri- e à economia.
meira intenção, no círculo de Stefan George).
Estes problemas tornam-se tipicamente actuais em caso de supressão
da pessoa do portador do carisma, e aquando da questão que então surge
1
o 5. O carisma é o grande poderio revolucionário em épocas vincu- da sucessão. O modo como ela é solucionada — guando é solucionada,
| ladas à tradição. Distinguindo-se do poderio igualmente revolucionário da e por conseguinte quando a comunidade carismática subsiste (ou se gera
| «ratio», que, ou opera directamente a partir do exterior, por alteração das nesse instante) — é essencialmente determinante para a natureza global
circunstâncias e dos problemas da vida e, daí, indirectamente, das atitudes das relações sociais que então se geram.
iperante estes, ou também por intelectualização, o carisma pode consistir À questão pode ter as seguintes modalidades de solução:
numa transformação a partir do interior, que, nascida da necessidade ou a) Nova procura de um indivíduo que como portador do carisma
ido deslumbramento, significa uma alteração da direcção central da cons- esteja qualificado, segundo traços distintivos, para senhor do poder.

710 71
Tipo consideravelmente puro: a procura do novo dalai-lama (criança a seleccionar É este o sentido originário da coroação de reis e bispos, pelo clero e pelos príncipes,
segundo sinais distintivos de encarnação do divino, exactamente à semelhança da procura no Ocidente, com a aquiescência da comunidade, e também o sentido de inúmeros pro-
do boi Apis). cessos análogos por todo o mundo. O facto de a ideia de «eleição» ter surgido daí será deba-
tido posteriormente.

A legitimidade do novo detentor do carisma está então associada a


e) Conceito de que o carisma é uma qualidade de sangue, estando
traços distintivos, OU Seja, a «regras», para as quais se cria uma tradição
portanto fixado, intimamente ligado à estirpe, particularmente aos parentes
(tradicionalização); assim se vai retomando o carácter puramente pessoal.
mais próximos do seu detentor: carisma hereditário. No entanto, a ordem
b) Revelação: oráculo, sorte, juízo de Deus ou outras técnicas
de sucessão não é necessariamente regida pela apropriação de direitos, mas
de selecção. A legitimidade do novo portador do carisma é então decor-
sim muitas vezes heterogénea, ou então o herdeiro «correcto» tem de ser
rente da legitimidade da técnica (legalização).
apurado com recurso aos meios contidos no seio da estirpe, de a) a d).

Os shôfetim israelitas tinham por vezes, segundo se diz, um tal carácter. Foi o velho O duelo entre irmãos ocorre entre os negros. Na China, por exemplo, verifica-se uma
oráculo de guerra que, segundo reza a história, designou Saul. ordem de sucessão configurada de maneira a que a relação com os espíritos dos antepas-
sados não resulte afectada (geração mais próxima). No Oriente, era muito frequente o mor-
gadio ou a designação pelo séquito (daí o «dever» de exterminar todos os outros candidatos
c) Designação do sucessor por parte daquele que até ao momento imagináveis na casa de Osman).
detinha o carisma, e reconhecimento por parte da comunidade.
À parte um ou outro caso isolado, foi só no Ocidente medieval e no
Forma muito corrente. Originariamente, a criação das magistraturas romanas (preser- Japão que o princípio inequívoco do direito sucessório de primogenitura
vada com máxima nitidez na criação do ditador e na instituição do «interrex») teve em abso-
penetrou no poder, assim fomentando fortemente a consolidação das asso-
luto um tal carácter.
ciações políticas (evitando as lutas entre vários pretendentes da estirpe caris-
mática hereditária).
A legitimidade converte-se então numa legitimidade adquirida por [ As qualidades carismáticas da pessoa deixam de valer como base da
designação. (crença, que assenta, sim, em legítima aquisição por força da ordem de
d) Designação de sucessor por parte do quadro administrativo | sucessão (tradicionalização e legalização). O conceito do «pela graça de
qualificado carismaticamente e reconhecimento por parte da comunidade. | Deus» é totalmente alterado em sentido, passando a significar: senhor por
Em relação a este processo, no seu significado genuíno, importa afastar i direito próprio, não dependente do reconhecimento dos dominados.
qualquer interpretação de «eleição», nomeadamente como «direito de O carisma pessoal pode estar absolutamente ausente.
selecção preliminar» ou «direito de sugestão de candidato». Não se trata
de uma selecção livre mas sim de uma selecção rigorosamente vinculada Inserem-se neste contexto a monarquia hereditária, as numerosas hierocracias heredi-
tárias da Ásia e O carisma hereditário, enquanto sinal distintivo de categoria e qualificação
a uma conformidade ao dever; não se trata de uma votação de maioria,
para feudos e prebendas (ver $ seguinte).
mas sim de uma designação correcta, selecção do elemento correcto, do
verdadeiro portador do carisma, que a própria minoria pode também ter
f) Concepção de que o carisma é uma qualidade gerável (magi-
descoberto como apto. A unanimidade é postulado, o reconhecimento
camente, de origem) ou transmissível de um portador a outros por meios
do erro, dever, a persistência nele, falta grave, uma escolha «errada», engano
hierúrgicos: objectivação do carisma, particularmente carisma de função.
e injustiça que obriga à expiação (originariamente de carácter mágico).
À crença na legitimidade não vale então já pela pessoa, mas sim pelas qua-
É certo, porém, que a legitimidade se afigura então facilmente como
lidades adquiridas e pela eficácia dos actos hierúrgicos.
uma legitimidade de aquisição jurídica tocada de todas as precauções de
exactidão, a maior parte das vezes ligada a determinadas formalidades
Exemplo mais importante: o carisma sacerdotal, transmitido ou sancionado por ungi-
(entronização, etc.). mento, consagração ou imposição das mãos, e o carisma régio, por ungimento ou coroação.

713
O carácter indelével significa o desprendimento das capacidades carismáticas de função das 2.) As normas carismáticas facilmente podem transformar-
qualidades da pessoa do sacerdote. Precisamente por isso deu azo — começando pelo dona-
-se em normas tradicionais próprias de um status (carismáticas hereditá-
tismo e o montanismo, e acabando na revolução puritana (baptista) — a lutas permanentes
(o «assalariado», mercenário dos quakers, é o pregador carismático de função). rias). Existindo o carisma hereditário do chefe-($11 e), e sendo reconhe-
cido como válido, é de supor também, com grande probabilidade, o
carisma hereditário do quadro administrativo e, eventualmente, dos pró-
812, Lado a lado com a quotidianização do carisma por motivo da
prios adeptos, como regra de selecção e utilização. Onde uma associação
“angariação de sucessor, ocorrem os interesses de quotidianização do
política se encontre rigorosa e integralmente dominada por este princípio
quadro administrativo. SÓ em statu nascendi e enquanto o senhor caris-
do carisma hereditário, efectuando-se toda a ordem de apropriação de
mático governar de modo genuinamente extra-quotidiano, a direcção
poderes de senhorio, feudos, prebendas e possibilidades de lucro em con-
administrativa pode viver do mecenato, da presa de guerra ou de rendi-
formidade com esse princípio, aí existe o tipo de «estado de linhagens».
mento de ocasião com esse senhor, reconhecido como tal por fé e entu-
Poderes e oportunidades de toda a ordem tradicionalizam-se. Os cabeças
siasmo. Só o reduzido estrato de discípulos e seguidores entusiastas está,
de estirpe (ou seja, gerontocratas ou patriarcas tradicionais, pessoalmente
em si, disposto a fazê-lo, a mais longo prazo, «fazendo» da «vocação» sua
não legitimados por carisma) regulam o respectivo exercício, que não pode
vida, em termos meramente «ideais». A massa dos discípulos e seguidores
ser subtraído à sua estirpe. Não é a natureza da posição que determina a
quer fazer vida, também em termos materiais, da sua «vocação», o que
«categoria» do homem ou da sua estirpe, é, sim, a categoria da estirpe caris-
aliás se lhe impõe, sob pena de desaparecer.
mática hereditária que é decisiva para as posições que be cabem.
Daí decorre que:
1. A rotinização do carisma também tem lugar sob a forma de
Exemplos principais: o Japão antes da burocratização: sem dúvida, em larga medida.
apropriação de poderes de senhorio e possibilidades lucrativas a favor também a China (as «velhas famílias»), antes da racionalização nos estados fraccionados: à
do séquito ou discipulado e sob regulamentação do seu recrutamento. Índia, na estruturação em castas; a Rússia, antes da introdução do mjestnitschestwo ce. pos-
teriormente, sob uma outra forma; e ainda, por outra parte. todos os «status» privilegiados
2. Esta tradicionalização ou legalização (conforme haja ou não
por «nascimento» (a este respeito, veja-se Cap. IV).
estatuto racional) pode assumir diversas formas típicas:
1) O modo de recrutamento genuíno é o que atende ao
carisma pessoal. Os seguidores ou discípulos podem, no processo de quo- 3.) O quadro administrativo pode requerer e fazer implantar
tidianização, estabelecer normas para O recrutamento, nomeadamente: a criação e a apropriação de posições individuais e possibilidades de lucro
a) normas de educação; para Os seus membros. Surgem então, conforme se verifique tradicionali-
b) normas de comprovação. zação ou legalização:
a) Prebendas (prebendalização, veja-se supra);
O carisma só pode ser «despertado» e «posto à prova», não «apreen- b) Cargos (patrimonialização e burocratização,
veja-se supra);
idido» ou «inculcado». Todos os géneros de ascese mágica (feiticeiros,
heróis) pertencem a esta categoria de fechamento da associação represen- c) Feudos (feudalização, veja-se infra 812 Db) ).
que agora, em lugar do abastecimento, de origem puramente acósmico.
tada pela direcção administrativa (sobre a educação carismática, veja-se
pelos meios do mecenato ou de presa de guerra, são apropriados. Mais
Cap. IV). Apenas o noviço testado é admitido aos poderes senhoriais.
concretamente:
O chefe carismático genuíno pode opor-se, com sucesso, a tais preten-
sões — mas não o seu sucessor, muito menos aquele que seja sagrado (811,
Caso a):
d) ) pelo quadro. administrativo.
a. prebendas de mendicidade;
8. prebendas de rendas em espécie;
Cabem aqui todas as modalidades de ascese mágica e guerreira da «assembleia de varões».
a que se juntam a iniciação de jovens e as classes de idade. Quem não tiver passado e ven- Yy. prebendas fiscais em dinheiro;
cido provas de guerra, permanece «mulher», quer dizer, excluído do séquito. ô. prebendas de emolumentos;

714 715
por regulação do aprovisionamento, de início assente estritamente no Í nial, nomeadamente de status, ou burocrática. O carácter específico pri-
mecenato (x) ou estritamente na presa de guerra (y) mediante uma organi- mitivo manifesta-se.na honra do status, carismática hereditária ou caris-
zação financeira racional. mática de função, dos beneficiários da apropriação, tanto do senhor como
Sobre a: o budismo; do quadro administrativo, manifesta-se, pois, na natureza do prestígio
Sobre 8: prebendas em arroz, na China e no Japão; senhorial. Um monarca hereditário «pela graça de Deus» não é um sim-
Sobre y: regra em todos os estados conquistadores ples senhor patrimonial, um patriarca ou um xeique, do mesmo modo que
racionalizados; um vassalo não é um empregado ministerial ou um funcionário. Uma expli-
Sobre ô: exemplos individualizados por toda a parte, nomea- cação mais pormenorizada pertence ao domínio da teoria dos status.
damente eclesiásticos e cavaleiros; mas, na Índia, também poderes militares. Em regra, a quotidianização não se realiza sem luta. A princípio não
são esquecidas as exigências pessoais do carisma do senhor, e a luta entre
Caso b): A transformação das missões carismáticas em carisma de função ou hereditário, de um lado, e o carisma pessoal, por
«função» pode pender mais para uma patrimonialização Ou para uma buro- ioutro lado, é um processo típico na história.
cratização. A primeira é, sem dúvida, regra geral, enquanto a segunda se
encontra na Antiguidade e na era moderna, no Ocidente, e mais raramente,
1. A conversão do poder de penitência (eximição remissão dos pecados mortais) de
como excepção, noutros lugares. um poder senhorial apenas próprio da pessoa do mártir ou do asceta, em poder de função
do bispo e do sacerdote deu-se muito mais lentamente no Oriente do que no Ocidente,
Caso c): «. feudo de terras, com preservação do carácter de sob a influência do conceito romano de «função». Revoluções de líderes carismáticos contra
missão do posto, enquanto tal; poderes carismáticos hereditários ou poderes de função encontram-se em todos os agrupa-
mentos, do Estado aos sindicatos (no momento actual, precisamente!). Porém, quanto mais
8. apropriação integral dos poderes do senhorio, desenvolvidas estiverem as dependências inter-económicas da economia monetária, mais forte
em regime feudal. se torna a pressão das necessidades quotidianas dos adeptos e, com ela, a tendência para
Uma e outra são dificilmente separáveis. No entanto, o pendor para a rotinização que por toda a parte operou, e triunfou, regra geral rapidamente. O carisma
o carácter de missão do posto não desaparece totalmente com facilidade, é o fenómeno inicial típico de dominações religiosas (proféticas) ou políticas (de conquista).
cedendo, no entanto, às forças do quotidiano, logo que a dominação se encontre assegu-
nem mesmo na Idade Média.
rada e, acima de tudo, logo que ela tenha assumido carácter de massa.
2. Motivo impulsionador da quotidianização do carisma é naturalmente, em qualquer
$12a. É pressuposto da quotidianização a eliminação do alheamento caso, a aspiração à segurança, o que quer dizer legitimização das posições sociais de senhorio
; do carisma face à economia, a sua acomodação a formas fiscais (financeiras) e das possibilidades económicas em favor de séquito e adeptos. Um outro motivo é a objec-
tiva necessidade de adaptação dos regulamentos e do quadro administrativo às exigências
| de cobertura das necessidades e, daí, a condições económicas geradoras
e condições normais do quotidiano de uma administração. Pertencem u este caso, em parti-
ide impostos e tributos. Os «leigos» das missões em processo de preben- cular, pontos de referência para uma tradição de administração e jurisprudência, tal como
dalização contrapõem-se ao «clero», o membro interessado, («participe») a requerem não só o quadro administrativo normal como os dominados. E também toda
da direcção administrativa agora quotidianizada (sacerdotes da «Igreja» nas- a ordenação dos postos a atribuir aos membros do quadro administrativo. Finalmente, e acima
cente); os súbditos tributáveis» contrapõem-se aos vassalos, prebendários, de tudo — voltaremos ao assunto mais tarde, em destacado — a acomodação dos quadros
administrativos e de todas as prescrições administrativas às condições económicas quoti-
funcionários da associação política nascente e, em caso de racionalidade,
dianas; a cobertura das despesas por presas de guerra, contribuições, doações ou hospitali-
ao «Estado» ou porventura aos funcionários do partido de ora em diante dade, tal como se verifica num estádio pleno de carisma guerreiro e profético, não é funda-
contratados e admitidos como «homens de confiança». mento possível de uma administração durável do quotidiano.
3. A rotinização não é, por conseguinte, desencadeada exclusivamente pelo problema
Pode observar-se, como típico, entre os budistas e as seitas hinduístas (cf. sociologia da sucessão, e está bem longe de dizer respeito apenas a tal problema. Pelo contrário, a tran-
da religião). Igualmente também no caso dos impérios conquistadores racionalizados em estru- sição da direcção e dos princípios administrativos carismáticos para a direcção e princípios
turas duradouras. E ainda no caso de partidos e outras estruturas à origem puramente caris- administrativos quotidianos constitui o problema capital. Mas o problema da sucessão afecta
mática. a rotinização do núcleo carismático — do próprio senhor do poder e da sua legitimidade,
revelado, em contraposição ao problema da transição para regulamentos e quadros adminis-
| a - trativos tradicionais ou legais, concepções peculiares e características, compreensíveis apenas
| Com a quotidianização, a associação de dominação carismática desem- da perspectiva deste processo. As mais importantes de entre estas concepções são a desig-
| boca, em larga medida, nas formas de dominação quotidiana — patrimo- nação carismática do sucessor e o carisma hereditário.

716 77
4. Roma é, como já foi referido, o exemplo historicamente mais important
e de desig- No restante, nada se pode dizer de geral (e que, simultaneamente,
nação de sucessor por parte do próprio detentor carismático
do poder. No caso do «rexo,
é a tradição que o assevera; quanto à nomeação do ditador
e do co-regente e sucessor no tenha conteúdo objectivo e certo valor) acerca das diversas possibilidades
principado, encontra-se fixamente estabelecida na era
histórica; o modo de nomeação de de adaptação à economia: é coisa que deve ficar reservada para apreciação
todos os funcionários superiores com imperium demonstr
a claramente que, também aí, se em particular. A prebendalização, a feudalização e a apropriação carismá-
verificava a designação do sucessor por parte do comandan
te de campo, apenas sob reserva
de reconhecimento por parte do exército dos cidadãos. Pois
a prova e exclusão, de origem
tica hereditária de possibilidades de toda a ordem podem, em todos os
abertamente arbitrária, dos candidatos por parte do magistrad casos, exercer os seus efeitos estereotipantes quando haja evolução a partir
o em funções, ilustra clara-
" mente a evolução.
do carisma, do mesmo modo exactamente que no caso de evolução a partir
5. Os exemplos mais importantes de designação do sucessor por parte
do séquito caris-
mático são a nomeação dos bispos, nomeadamente do
Papa, por designação — origina-
de circunstâncias iniciais patrimoniais e burocráticas, e, a partir daí, reagir
riamente — pelo clero e reconhecimento por parte da comunida sobre a economia. A força do carisma, por regra poderosamente revolu-
de, e (como U. Stutz a tornou
plausível) a eleição do rei alemão, depois transformada
a exemplo da nomeação episcopal: cionária também no domínio económico — de princípio muitas vezes des-
designação por determinados príncipes e reconhecimento
por parte do «povo» (em armas).
Encontram-se com muita frequência formas semelhantes. trutiva, pela sua orientação nova e «despida de pressupostos» — converte-
6. A Índia foi o país clássico do desenvolvimento do carisma hereditári -se então no oposto da sua acção inicial. ,
o. A validade
de todas as aptidões profissionais e, particularmente, de todas
as qualificações de autoridade Tratar-se-á, em devido tempo, da economia nas revoluções (carismá-
€ posições senhoriais, encontravam-se estreitamente vinculadas 20 carisma hereditário.
A pretensão a feudos de direitos senhoriais prendia-se com
a pertença à estirpe real, os feudos ticas). É extremamente variado o seu papel.
eram pedidos para exploração junto do mais velho da
estirpe. Todos os cargos hierocrá-
ticos, incluindo o ofício extremamente importante e influente
de guru (directeur de Vâme).
todas as relações de clientela susceptíveis de repartição,
todos os cargos no seio do «esta-
blishment» da aldeia (padre, barbeiro, lavadeiro, guarda,
etc.), valiam como vinculados à um 7. Reinterpretação do carisma alheada de qualquer dominação
carisma hereditário. Qualquer fundação de uma seita significav
a a fundação de uma hierar-
quia hereditária. (É o caso, também, do taoismo chinês).
Do mesmo modo, no «Estado de 814. O princípio carismático de legitimidade, interpretado autorita-
linhagens» japonês (antes do Estado patrimonial-funcionalista,
introduzido segundo o modelo
chinês, que depois conduziu à prebendalização e à feudalizaç
ão), a articulação social era de
'riamente no seu sentido originário, pode ser re-interpretado de modo anti-
natureza puramente carismática hereditária (a explanar
noutro contexto). “autoritário. Pois a efectiva validade da autoridade carismática assenta, na
Este direito carismático hereditário às posições de senhorio
desenvolveu-se de modo realidade, em absoluto no reconhecimento por parte dos dominados, reco-
semelhante no mundo inteiro. A qualificação por capacidad
e ou feitos próprios foi substi-
tuída pela qualificação por origem. Este fenómeno está, em
toda a parte, na base do desen- inhecimento esse que é condicionado pela «verificação», e que funciona
volvimento da condição de nascimento, tanto na nobreza
romana como no conceito, segundo em termos de conformidade ao dever perante aquele que carismaticamente
Tácito, de «stirps regia» entre os germanos, nas regras
do torneio-e da fundação religiosa é qualificado e, por conseguinte, legítimo. Em caso de crescente raciona-
da Idade Média tardia, nas modernas investigações de
«pedigree» da nova aristocracia ameri-
cana, e por toda a parte, em geral, onde se tenha instalado
€ aclimatado uma diferenciação
lização das relações da associação, é, porém, de conceber que esse reco-
«por status» (ver infra). i
/| nhecimento seja considerado como fundamento de legitimidade (legiti-
i
| midade democrática), em vez de o ser como consequência dessa
Relação com a economia: A rotinização do carisma identifi ' legitimidade, que a (eventual) designação pelo quadro administrativo o seja
ca-se em |
sentido muito essencial com a acomodação às condiçõ á
i1 como «selecção preliminar» pelo antecessor como «sugestão», sendo o reco-
es da economia
como força do quotidiano continuamente em acção. A 1
economia aqui é t nhecimento pela própria comunidae considerado como «eleição». O de-
dirigente, não dirigida. Em medida muito larga, a transfo tentor do poder legítimo por força do carisma próprio torna-se então
rmação carismá-
tica hereditária ou carismática de função serve aqui de meio senhor do poder pela graça dos dominados, que livremente, a seu Del-
de legitimi-
zação de poderes de disposição existentes ou adquiridos. -prazer, O elegem e põem na posição de mando, e eventualmente também
Nomeadamente
O apego às monarquias hereditárias -— de paralelo com depõem, do mesmo modo que a perda do carisma e da sua comprovação
as ideologias de
fidelidade, certamente não indiferentes — é fortemente condicionado haviam acarretado a perda da legitimidade genuína. O senhor do poder
pela
consideração de que todo o património herdado e legitim
amente adqui- é agora o chefe livremente eleito. Do mesmo modo, o reconhecimento
rido é abalado quando cesse a vinculação interior ao
carácter sagrado da pela comunidade das ordenações jurídicas carismáticas evolui então no
sucessão ao trono; daí que um tal apego seja, não por
acaso, mais ade- sentido da concepção de que a comunidade poderá, a seu bel-prazer, ins-
quado às camadas possidentes do que ao proletariado.
tituir, reconhecer e revogar o direito, não só de um modo geral como no

718 719
caso particular, — enquanto que, na dominação genuinamente carismá- Onde quer que se aspirou à legitimidade nesta forma de dominação, ela foi procurada no
tica, Os casos de disputa sobre o direito «correcto», muito embora factual- reconhecimento plebiscitário por parte do povo soberano. O quadro administrativo pessoal
mente regulados, com frequência, por decisão da comunidade, eram-no é recrutado carismaticamente, de entre os plebeus dotados (no caso de Cromwell, atendendo
à qualificação religiosa; com Robespierre, de par com a confiança pessoal inspirada, também
debaixo da pressão psicológica de que só existia uma única decisão con-
a determinadas qualidades «éticas»; no caso de Napoleão, exclusivamente segundo a aptidão,
forme ao dever, e correcta. É assim que o tratamento do direito se apro- o dom pessoal e utilizabilidade para os fins da imperial «dominação do génio»). No apogeu
xima da concepção legal. O tipo de transição mais importante é a domi- da ditadura revolucionária, esse quadro reveste o carácter de administração assente num puro
mandato ocasional revogável (como se passa na administração de agentes à época do Comité
nação plebiscitária, que encontra a maior parte dos seus tipos nas
de Salut Publique). Do mesmo modo, nas cidades americanas, houve que conceder aos dita-
«chefaturas partidárias» do Estado moderno. Mas existe onde quer que o dores municipais, acedidos a altos postos, o direito de nomearem livremente, eles próprios,
detentor do poder se sinta legitimado como homem de confiança das as suas forças auxiliares. A ditadura revolucionária ignora em igual medida a legitimidade
massas, e reconhecido como tal. O meio adequado para o alcançar é o tradicional e a legalidade formal. A justiça e a administração da dominação patriarcal, que
operam segundo fundamentos materiais de justeza, fins utilitários e conveniências de Estado,
plebiscito. Nos casos clássicos dos dois Napoleões, foi aplicado após con- encontra nos tribunais revolucionários e nos postulados materiais de justiça da democracia
quista do poder de Estado pela força; no segundo, reiteradamente invo- radical, na Antiguidade e no socialismo moderno, paralelos correspondentes (a tratar na socio-
cado após perdas de prestígio. É indiferente (neste contexto) como possa logia do direito). A rotinização acusa depois transformações análogas às que o processo cor-
respondente traz à luz noutros contextos: o caso do exército mercenário inglês, resíduo do
ser apreciado o seu real valor: em qualquer caso, trata-se, formalmente,
princípio de voluntariado vigente no exército de combatentes da fé, e o sistema francês de
do meio específico de derivar a legitimidade da dominação da confiança prefeitos, resíduo da administração carismática da ditadura revolucionária plebiscitária.
livre (formalmente e segundo a ficção) dos dominados. 2. O funcionário eleito significa, sempre e em todo o lugar, a radical transformação
da posição senhorial do chefe carismático em «servidor» dos dominados. Não tem cabimento
O princípio de «eleição», uma vez aplicado ao senhor do poder, como numa burocracia tecnicamente radical. Pois uma vez que não é nomeado pelo seu «supe-
: re-interpretação do carisma, pode também ser aplicado ao quadro admi- rior», não depende dele para as suas possibilidades de subida, antes devendo o seu lugar
nistrativo. Os funcionários eleitos, legítimos por força da confiança dos ao favor dos dominados; o seu interesse por uma disciplina diligente, que lhe ganhe o louvor
dos superiores, é escasso; daí que funcione como dominação «autocéfala». Por conseguinte,
“dominados e, por conseguinte, destituíveis por declaração de desconfiança em regra, não será possível obter, como uma direcção de funcionários eleitos, um rendi-
“por parte destes, são típicos em «democracias» de determinada natureza, mento técnico de alta qualidade. (Exemplos: a comparação entre os funcionários eleitos dos
' por exemplo na América. Não são figuras «burocráticas». Porque legiti- Estados federados americanos e os funcionários nomeados da União, e bem assim as expe-
riências com os funcionários municipais eleitos frente aos comités instalados à sua própria
| mados com toda a independência, encontram-se nos seus postos em subor-
discrição pelos mayors plebiscitários, oriundos de reformas). Ao tipo de democracia plebis-
| dinação hierárquica débil, e com possibilidades de subida na carreira, e citária de chefe opõem-se os tipos (de que se falará mais adiante) da democracia sem chefe.
(de emprego, fora da influência do «superior» (verificam-se analogias nos caracterizada pela tendência e pela procura de uma minimização da dominação do homem
(casos de numerosos carismas qualitativamente diferenciados, como por sobre o homem.
É em geral característico da democracia de chefe o carácter naturalmente emocional
exemplo entre o dalai-lama e o tachi-lama). Uma administração composta da entrega e da confiança no líder, de que costuma decorrer a tendência para seguir como
| de tais funcionários fica, como «instrumento de precisão», tecnicamente chefe aquele que sai fora do ordinário, que mais promete e que mais intensamente opera
muito aquém da administração formada burocraticamente por funcioná- com meios aliciatórios. O cambiante utópico de todas as revoluções tem aqui o seu funda-
mento natural. É também aqui que se encontram os limites da racionalidade desta adminis-
| rios nomeados. tração na era moderna — que até mesmo na América nem sempre correspondeu às expec-
tativas.
1. A «democracia plebiscitária» — o tipo mais importante de democracia de líderes — é,
Í|no seu sentido genuíno, um modo de dominação carismática dissimulada sob a forma de
Relação com a economia: 1. A re-interpretação anti-autoritária do
i| uma legitimidade derivada da vontade dos dominados, e que apenas persiste por força dessa
| vontade. O chefe (demagogo) domina efectivamente por virtude do apego e da confiança carisma conduz normalmente a caminhos de racionalidade. O dominador
idos seus seguidores políticos na sua pessoa enquanto tal. Em primeiro lugar, reina sobre plebiscitário, regra geral, procurará apoiar-se num quadro de funcionários
os adeptos que ganhou para si, depois, caso estes lhe assegurem a dominação, no seio da diligentes e libertos de atritos. Procurará vincular ao seu carisma, como
associação. O tipo é-nos apresentado pelos ditadores das revoluções da Antiguidade e da
era moderna: Os aisymnetas, tiranos e demagogos helénicos; em Roma, Graco é os seus suces-
«verificado», os dominados, quer pela glória nas armas e pela honra, quer
sores; nas cidades-Estado italianas, os «capitani del popolo» e burgomestres (a ditadura demo- pela promoção do seu bem-estar material — em determinadas circunstân-
crática de Zurique foi O tipo correspondente na Alemanha); nos Estados modernos, a dita- cias, tentará uma combinação de ambos. O seu primeiro objectivo será
dura de Cromweil, os governantes revolucionários e o imperialismo plebiscitário em França.
a desintegração dos poderes e possibilidades de obtenção de prerrogativas

720 721
tradicionais, feudais, patrimoniais ou quaisquer outros poderes e prerro- uma justiça «material», na realidade, à base de lamentações, bajulação, invectivas demagó-
gativas de cariz autoritário; O seu segundo objectivo, a criação de interesses gicas e ditos de espírito (veja-se a «oratória de processo» dos retores áticos — que em Roma
apenas encontram analogia nos processos políticos: Cícero). Daí adveio, como consequência.
económicos que lhe estejam vinculados por solidariedade de legitimidade.
a impossibilidade do desenvolvimento de um direito formal e de uma ciência jurídica formal
Na medida em que, nesse processo, se sirva da formalização e da legali- ao estilo romano. Com efeito, os heliastas eram um «tribunal popular», do mesmo modo
zação do direito, pode fomentar muito sensivelmente a economia «formal- exactamente que os «tribunais revolucionários» da revolução francesa e da revolução alemã
. mente» racional. (de Conselhos), que de modo algum apresentaram aos seus tribunais de leigos exciusira-
mente processos relevantes em termos políticos. Em contrapartida, nenhuma revolução inglesa
2. Os poderes plebiscitários tornam-se facilmente periclitantes para alguma vez feriu a justiça, excepto no caso de processos de alta política. É certo que, em
a racionalidade (formal) da economia, quando a dependência em que a compensação, a justiça dos juízes de paz era, a maior parte das vezes, uma justiça de cádi
sua legitimidade se encontra perante a crença e a entrega das massas, inver- -— porém, só na medida em que não tocava nos interesses dos possidentes, em que tinha,
pois, carácter policial.
samente, os obriga a defender, também economicamente, postulados mate- No respeitante ao $ 3, a União norte-americana é o paradigma. Perguntando eu, ainda
riais de justiça, quando os obriga, portanto, a romper o carácter formal há dezasseis anos atrás, a trabalhadores anglo-americanos por que se deixavam governar por
da justiça e da administração por meio de uma justiça (de «cádi») material gente de partidos, gente muitas vezes corruptível, foi-me respondido: porque «our big country»
oferece possibilidades tais que, mesmo que se roubasse, extorquisse ou desviasse dinheiro
(tribunais revolucionários, sistemas de senhas de racionamento, todas as
aos milhões, ainda haveria bastante para ganhar, e também porque esses «profissionais» são
modalidades de produção e consumo racionados e controlados). Nesta uma casta em cima da qual «nós» (os trabalhadores) cuspimos, enquanto que funcionários
medida, trata-se, pois, de um ditador social, o que não tem ligação com especializados ao estilo alemão constituiriam uma casta que haveria de «cuspir em cima dos
trabalhadores».
as formas socialistas modernas. Não é ainda aqui a altura própria de expor
Todos os pormenores das conexões com a economia inserem-se não aqui, mas na expo-
quando se verifica este caso, e quais as consequências. sição particularmente dedicada ao assunto, mais adiante.
3. O funcionalismo eleito é fonte de perturbações da economia for-
malmente racional, porque, em regra, é um funcionalismo de partido, e
não um funcionalismo profissional com formação técnica, e porque as pos-
sibilidades de destruição ou de não-reeleição são impedimento de uma
justiça e uma administração rigorosamente objectivas, despreocupadas das
consequências. Só não é perceptível a sua obstrução à economia (formal-
mente) racional onde, na sequência da possibilidade de praticar uma gestão
por meio da aplicação de realizações técnicas e económicas de culturas
antigas a território novo, onde os meios de subsistência ainda não sofreram
apropriação, as potencialidades dessa gestão económica deixam um campo
de manobra suficientemente amplo para contabilizar como despesas a cor-
rupção então quase inevitável dos funcionários eleitos, logrando muito
embora obter ganhos à mais alta escala.

No que respeita ao 8 1, o bonapartismo constitui o paradigma clássico. Com Napo-


leão I: o código civil; a partilha compulsória de sucessões; a destruição no mundo inteiro
de todos os poderes transmitidos por tradição; em contrapartida, feudos para dignitários
de mérito comprovado; na realidade, o soldado é tudo, o cidadão, nada, mas em compen-
sação: glória e — no seu conjunto — nível de vida tolerável para a pequena burguesia. Com
Napoleão Hi: acentuada prossecução do lema régio burguês «enrichissez-vous»; construções
gigantescas; crédit mobilier, com as consequências de todos conhecidas.
No que respeita ao 8 2, é exemplo clássico a «democracia» da era de Péricles e da époci
pós-Péricles. A resolução dos processos não cabia, como em Roma, a jurados individuais
vinculados a instruções recebidas do pretor ou à lei, nem tão-pouco se fazia de acordo com
o direito formal; os processos eram, sim, decididos pelos heliastas, que actuavam segundo

722 723
|
i
i
5. PARTIDOS *
|
|
t

$18. Devem ser designados por partidos formas de socialização


assentes na angariação (formalmente!) livre, que têm por finalidade atri-
| buir aos seus dirigentes o poder dentro de uma associação, proporcionando
aos seus membros activos, dessa forma, possibilidades — ideais ou mate-
riais — de prossecução de finalidades objectivas ou de obtenção de van-
|tagens pessoais, ou de ambas. Podem constituir associações efémeras ou
duradouras, aparecer em agrupamentos de toda a espécie e surgir como
agrupamentos de toda a forma: séquitos carismáticos, criadagem tradi-
cional, adeptos racionais (adesão racional finalizada, racional valorizada
lou racional referida a uma «mundivisão»). Podem orientar-se mais por inte-
r!
esses pessoais ou por interesses objectivos. Na prática, podem, em parti-
cular, visar, oficial ou efectivamente, de um modo exclusivo, a atenção
do poder para o dirigente e o preenchimento dos lugares do corpo admi-
histrativo pelo seu quadro (partido de patrocinato). Ou podem estar orien-
jjdos predominante e conscientemente pelo interesse de status ou de
classes (partidos de status ou de classe), ou ainda por princípios abstractos
(partido de mundivisão). A conquista dos lugares do quadro administrai,
tivo para os seus membros costuma, porém, ser pelo menos finalidade cola-
teral, e os programas objectivos não raro apenas meios de recrutamento ;
“dos elementos activos que estão fora das suas fileiras.
Do ponto de vista do conceito, os partidos apenas são possíveis no
seio de uma associação cuja direcção pretendem influenciar ou conquistar;
todavia, são possíveis, e não muito raros, os cartéis de partidos inter-
-associações.

(*) Ob. cit., pp. 167-169.

725
Os partidos podem empregar todos os meios para à obtenção do No que diz respeito à organização, os partidos podem inscrever-se
poder. Onde a direcção é provida por eleição (formalmente) livre, e os nos mesmos tipos dos restantes agrupamentos, e portanto estar orientados
estatutos são estabelecidos por votação, eles são primariamente organiza- segundo uma forma carismático-plebiscitária (Crença no chefe), tradicional
ções para angariação de votos e, em votações de sentido previsto, par- (adesão ao prestígio social do detentor do poder ou do vizinho preemi-
tidos legais. Os partidos legais significam sempre, na prática, em conse- nente) ou racional (adesão aos dirigentes e quadros constituídos por
quência do seu fundamento principalmente voluntarista (assente sobre votação estatutária), no que se refere à obediência tanto dos adeptos quanto
o livre recrutamento), que o empreendimento da política é uma activi- dos quadros administrativos.
Quaisquer outros elementos mais pormenorizados (materiais) caem
dade de interessados (não estamos a considerar aqui minimamente a ideia
no âmbito da sociologia do Estado.
de interessados «económicos»: trata-se de interessados políticos, ou seja,
Economicamente, O financiamento do partido é uma questão fulcral
interessados ideologicamente orientados para o poder enquanto tal).
para o modo de repartição de influências e de orientação material da acti-
O que significa que tal empreendimento:
vidade partidária: se por pequenas contribuições das massas, se por mece-
a) está nas mãos de dirigentes partidários e quadros partidários,
nato ideológico, se por compra interessada (directa ou indirecta), se por
— junto dos quais
taxação das possibilidades conferidas através do partido ou taxação dos
b) os membros activos do partido figuram a maior parte das vezes opositores que lhe estão submetidos — também esta problemática, nas suas
apenas como aclamantes e, em certas circunstâncias, como instâncias de particularidades, cai no âmbito da sociologia do Estado.
controlo, discussão, protesto e resolução no seio do partido, — enquanto
c) as massas não activamente co-associadas (de eleitores e 1. Ex definitione, só existem partidos no seio de associações (políticas ou outras) e
votantes) constituem apenas objecto de angariação para as épocas de na luta pelo respectivo domínio. No interior dos partidos pode, por sua vez, haver sub-partidos,
e há-os com grande frequência (como associações efémeras, ocorrem tipicamente em qual-
eleição ou votação («simpatizantes» passivos), cujo estado de espírito só quer campanha para nomeação do candidato à presidência, nos partidos americanos; como
é levado em consideração como instrumento de orientação para o trabalho associações duradouras, por exemplo em fenómenos como os «jovens liberais» aqui na Ale-
de angariação do quadro partidário, em caso de actual luta pelo poder. manha). — Como ilustração de partidos inter-associações, confronte-se, por um lado, os
guelfos e gibelinos na Itália do século XIII (associação de status), por outro lado, os modernos
Em regra (não sempre), permanecem ocultos;
socialistas (associação de classes).
d) os mecenas do partido. 2. Considera-se como essencial do partido a característica de angariação (formalmente!)
Outros partidos, organizados formal-legalmente no seio de uma asso- livre, Os fundamentos voluntaristas (formalmente, do ponto de vista das regras da associação),
o que significa uma diferença sociologicamente profunda em relação a todas as formas de
ciação formal-legal, podem ser primordialmente:
socialização prescritas e reguladas pelos ordenamentos das associações. Esse momento volun-
a) partidos carismáticos: desacordo sobre a qualidade carismá- tarista permanece intacto também onde o ordenamento da associação regista a existência
tica do detentor do poder, sobre o detentor do poder carismaticamente de partidos, e procede até à regulamentação da respectiva constituição — como por exemplo
nos Estados Unidos e no nosso sistema proporcional alemão. Quando um partido se con-
«certo» (forma: O cisma);
verte numa forma de socialização fechada, incorporada no quadro administrativo pelo orde-
b) partidos tradicionalistas: desacordo sobre a forma de exercício namento da associação — como por exemplo acabou por se tornar a «parte guelfa» nos esta-
do poder tradicional na esfera do livre arbítrio e da graça do detentor do tutos florentinos do século XIII — então já não é mais um partido, mas uma associação parcelar
de uma associação política.
poder (forma: obstrução ou revolta aberta contra «inovações»);
3. Num grupo de dominação genuinamente carismática, os partidos são necessaria-
c) partidos de crença: em regra, mas não inevitavelmente, idên- mente seitas carismáticas e a sua luta uma luta de crenças que, como tal, não é definitiva-
ticos a a) desacordo sobre conteúdos de mundividência ou de convicção mente resolúvel. Pode dar-se uma situação análoga numa associação estritamente patriarcal.
(forma: heresia, que também pode ocorrer nos partidos racionais — Estas duas espécies de partidos, onde ocorram em estado puro, são normalmente estranhas
aos partidos na acepção moderna. Seguidores agrupados enquanto pretendentes à feudos
socialismo); ou cargos, aglomerados em torno de um pretendente ao trono, confrontam-se tipicamente
d) partidos de pura apropriação: desacordo com o detentor do nas habituais associações carismático-hereditárias e de status. Séquitos pessoais predominam

poder e o seu quadro administrativo acerca do modo de preenchimento também nas associações de notáveis (cidades-estados aristocráticas), mas não menos num
número considerável de democracias. Os partidos só assumem o seu tipo moderno no Estado
dos quadros administrativos muito frequentemente (mas, como é evidente, legal de constituição representativa. A exposição mais pormenorizada seguir-se-á na socio-
não necessariamente) idêntico a b). logia do Estado.

726 727
4. No Estado moderno, constituem exemplos clássicos de puros partidos de patroci-
nato os dois grandes partidos americanos da última geração. Exemplos de partidos com fins
objectivos e de partidos de «mundividência» forneceram-nos, no seu tempo, o antigo con-
servadorismo, o antigo liberalismo e a antiga democracia burguesa, mais tarde a social-
-democracia — em todos eles com forte interferência de interesses de classe — e o partido
do Centro; este último, uma vez satisfeitas todas as suas reivindicações, tornou-se marcada-
mente um puro partido de patrocinato. Em todos eles, mesmo no mais puro partido de classe,
o interesse próprio (ideal e material) pelo poder, pelos cargos e pela provisão pessoal cos-
tuma ser co-determinante para a atitude dos líderes de partido e do quadro partidário, e a
salvaguarda dos interesses do seu eleitorado só costuma verificar-se na medida em que seja
inevitável para o não-comprometimento das possibilidades eleitorais. Este último momento
é um dos princípios explicativos da oposição aos partidos.
5. Há que tratar separadamente, a seu tempo, das formas de organização dos partidos.
A todas é comum um núcleo de pessoas em cujas mãos repousa a condução activa — a for-
mulação das palavras de ordem e a selecção dos candidatos — a que se agregam «membros»
com papel essencialmente passivo; enquanto a massa dos membros da associação apenas 6. Status e Classes *
desempenha o papel de objecto, cabendo-lhe a selecção entre os vários candidatos e pro-
gramas que lhe são apresentados pelo partido. Tal estado de coisas é inevitável nos partidos, 81. Por «situação de classe» deve entender-se a possibilidade típica,
em razão do seu carácter voluntarista, e representa aquilo a que aqui chamámos actividade
de «interessados». (Por «interessado» entenda-se aqui, como já foi dito, interessado político em termos de:
e não interessado material). É esse o segundo ponto principal de ataque da oposição ao sis- 1. abastecimento de bens,
tema partidário enquanto tal, e constitui a afinidade formal entre as actividades partidárias 2. situação exterior de vida,
e as actividades capitalistas, que igualmente repousam sobre o recrutamento formalmente
3. curso interior de vida,
livre do trabalho.
6. O mecenato, como base de financiamento, não é de forma alguma um exclusivo que, no seio de uma dada ordem económica, decorre da amplitude e da
dos partidos burgueses. Paul Singer, por exemplo, foi um mecenas partidário socialista (aliás, natureza do poder de disposição (ou ausência desse poder) sobre bens ou
também um mecenas humanitário) do melhor estilo (e das mais puras intenções, tanto quanto
qualificações para o desempenho de serviços, e da natureza específica da
se sabe). Toda a sua atitude como presidente do partido assentava nisso. A revolução russa
de Kerenski foi co-financiada (através dos partidos) por grandes mecenas moscovitas. Outros sua utilizabilidade para obtenção de rendimentos ou proventos.
partidos alemães (das «direitas»), pela indústria pesada; o partido alemão do Centro, ocasio- Por «classe» deve entender-se todo o grupo de homens que se
nalmente, por multimilionários católicos.
encontra numa mesma situação de classe.
As finanças dos partidos constituem, porém, por razões compreensíveis, o capítulo
da história dos partidos menos transparente para a investigação, e todavia um dos seus mais a) Chamar-se-á classe de propriedade a uma classe na medida em
importantes capítulos. Em casos particulares, torna-se verosímil que uma «máquina» que sejam diferenças de património que determinam primariamente a
(«caucus» — sobre o conceito, vide infra) seja directamente comprada. De resto, subsiste a situação de classe.
escolha. Ou são os candidatos à eleição que suportam a parte de leão dos custos eleitorais
(sistema ingiês) — resultado: plutocracia dos candidatos —, ou é a «máquina» — resultado:
b) Chamar-se-á classe de produção a uma classe na medida em
dependência dos candidatos relativamente aos funcionários dos partidos. Assim tem acon- que sejam as possibilidades de colocação e valorização, no mercado, de
tecido, de uma ou de outra forma, desde que existem partidos como organizações dura- bens ou prestações de serviços, que determinam primariamente a situação
douras. Na Itália do século XIII, não menos do que na actualidade. E estas coisas não devem
de classe.
ser encobertas por qualquer fraseado. O financiamento de um partido tem certamente limites
ao seu poder: só pode fazer figurar com meios de angariação aquilo que tem «mercado». c) Chamar-se-á classe social à tonalidade daquelas situações de
Mas, tal como no empresariado capitalista, na relação com o consumo, sucede que hoje em classe entre as quais com facilidade é possível e costuma ocorrer, tipica-
dia o poder da oferta está tremendamente aumentado pela sugestão dos meios de publici-
mente, uma mudança
dade, designadamente nos «partidos radicais» (à esquerda ou à direita — para o caso é indi-
ferente). a. pessoal;
6. na sucessão das gerações.

* Ob. cit., pp. 177-180.

728 729
Podem surgir formas de socialização dos interessados de uma classe II. São tipicamente classes de propriedade negativamente privile-
(associação de classe) tendo por base todas estas três categorias. Isso não giadas:
tem, porém, forçosamente de acontecer: situação de classe, e classe em a) os que são objecto de posse (os não-livres — veja-se Status);
si, designam apenas realidades de situações de interesse típicas iguais (ou b) os desclassizados, ou desqualificados em termos de classe
semelhantes) nas quais o indivíduo, de par com muitos outros, se encônira. («proletários», na acepção dos antigos);
'Em princípio, o poder de disposição sobre todo o género de bens de con- c) os endividados;
sumo, meios de aprovisionamento, fortuna, meios de aquisição ou pro-
d) os «pobres».
vento, qualificação para prestação de serviços, constitui em cada caso uma
Entre ambas situam-se as «classes médias», abrangendo as
situação de classe particular, e só a total «impreparação» dos destituídos camadas
de todo o género que, providas de património ou de aptidões
de património, dependentes dos proventos do trabalho quando não é per- adquiridas
por instrução, retiram daí o seu sustento. Algumas delas podem
manente a ocupação, constitui uma situação de classe uniforme. As transi- ser «classes
de produção» (empresários, de privilégios essencialmente
ções de umas para as outras são, sob diversas formas, fáceis e lábeis; daí positivos; pro-
letários, com privilégios essencialmente negativos). Mas nem
que a unidade da classe «social» apresente um cunho muito diversificado. todas o são
(camponeses, artesãos, funcionários).
[A respeito de] a): O significado primário de uma classe de proprie-
dade positivamente privilegiada reside: À estratificação pura em classes de propriedade não é «dinâmica»,
quer
a. na monopolização do abastecimento de bens de consumo dizer, não conduz necessariamente a lutas de classe e a
revoluções de
a preços elevados (onerosos), na compra; classe. A classe de propriedade, privilegiada de forma acentua
damente posi-
8. na situação monopolista e na possibilidade de uma política tiva, dos que vivem da propriedade de homens, por exemplo
, co-existe
planificada de monopólio, na venda; com a classe muito menos positivamente privilegiada dos
camponeses,
y. na monopolização da possibilidade de constituição de for- mesmo dos desclassizados, muitas vezes sem quaisquer antagon
ismos de
tuna através dos excedentes não utilizados; classe, por vezes até com solidariedade (por exemplo face aos
não-livres).
ô. na monopolização das possibilidades de constituição de Só a oposição de classes possidentes entre:
capital por poupança, ou seja, pois, na possibilidade de aplicação de for- 1. Os que vivem de rendimentos fundiários e desclassizados
;
tuna como capital de empréstimo e, com isso, no dispor das possibilidades 2. Credores e devedores (muitas vezes = patrícios urbanos
e
dirigentes (empresariais); camponeses rurais ou pequenos artesãos urbanos),
E. em privilégios de status (privilégios de educação), na medida
em que são onerosos. bode conduzir a lutas revolucionárias, que todavia não
têm como fito
I Classes de propriedade positivamente privilegiadas são tipicamente: necessariamente uma modificação da estrutura económ
as dos que vivem dos seus rendimentos. Estes podem ser: ica, mas sim pri-
mariamente apenas da disposição e da distribuição da
a) os que vivem dos rendimentos da propriedade de homens propriedade (revo-
luções de classes de propriedade).
(proprietários de escravos);
Exemplo clássico da ausência de antagonismos de classe
b) os que vivem dos rendimentos fundiários; foi a situação
do «poor white trash» (brancos não proprietários de escravo
c) os que vivem dos rendimentos da exploração mineira; s) relativamente
aos plantadores nos Estados do Sul. O «poor white trash»
“dos que vivem dos rendimentos de instalações (proprietários era ainda muito
de instalações laborais e aparelhos); mais hostil aos negros do que os plantadores que, na sua
posição, muitas
e) os que vivem dos rendimentos de navios; vezes eram dominados por sentimentos patriarcais. É a
Antiguidade que
f) credores, mais precisamente: oferece os principais exemplos da luta dos desclassizados
contra os possi-
a. credores de gado, dentes, do mesmo modo que da contraposição credores-devedores, e
B. credores de cereais, senhores da terra vivendo dos respectivos rendimentos
— desclassizados.
y. credores de dinheiro; 82. [A respeito de] b): O significado primário de uma classe
de pro-
8) os que vivem dos rendimentos de valores. dução positivamente privilegiada reside:

730 731
a. na monopolização da condução da produção de bens em dentro de prazos não muito dilatados, em detrimento do trabalho «qualificado» e inclusiva-
mente por vezes do trabalho «não-qualificado», é aqui decisivo. Ainda assim, capacidades
prol dos interesses de aquisição dos membros de classe por parte destes;
de semi-qualificação constituem também, com frequência, qualidades monopolísticas (os tece-
B. no assegurar das possibilidades de aquisição através da lões chegam a atingir, tipicamente, o grau máximo de produtividade ao fim de cinco anos!).
influência da política económica das associações políticas e outras. A transição para pequeno-burguês «por conta própria» era almejada como finalidade por todos
I. São tipicamente classes de produção positivamente privilegiadas: os trabalhadores. Mas a possibilidade de realização é cada vez mais escassa. Na sucessão das
gerações, a «ascenção» de classe social y (técnicos, empregados de comércio) é relativamente
. Empresários:
mais fácil tanto para « como para 8. Dentro da classe ô o dinheiro compra, de forma cres-
a) comerciantes, cente, tudo — pelo menos na sucessão de gerações. A classe y tem, particularmente nos bancos
b) armadores, e sociedades por acções, as possibilidades de ascenção a ô, e os funcionários [têm-nas nos
c) empresários industriais, escalões superiores].
d) empresários agrários,
e) banqueiros e empresários financeiros; Uma actuação de classe de cariz societal pode ser criada, com a
e, em certas circunstâncias:
máxima facilidade:
8) «profissões liberais», dotadas de capacidades ou preparação a) contra adversários e interesses imediatos (trabalhadores
que são objecto de tratamento preferencial (advogados, médicos, artistas),
contra empresários, e não [contra] accionistas que, na realidade, auferem
g) trabalhadores com aptidões monopolísticas (inatas, culti-
rendimentos «sem trabalho»; tãÃo-pouco camponeses contra terratenentes);
vadas ou aprendidas).
b) apenas em presença de uma situação de classe tipicamente
H. São tipicamente classes de produção privilegiadas negativamente:
os trabalhadores assalariados nas suas diferentes categorias qualitativa- semelhante, e de massa;
mente singularizadas: c) havendo a possibilidade técnica de fácil congregação, em
a) qualificados, particular numa comunidade laboral concentrada num local (comunidade
b) semi-qualificados (especialização não prolongada no posto oficinal);
de trabalho), d) somente quando haja condução para fins fáceis de com-
c) não-qualificados. preender, em regra estabelecidos ou interpretados por pessoas não per-
Entre ambas figuram também aqui como «classes médias» os campo- tencentes à classe (intelectuais).
neses e artesãos por conta própria. Além destes, com muita frequência:
a) funcionários (públicos e privados),
83. Deve entender-se por situação de status um privilégio, positivo
b) a categoria referida sob If) e os trabalhadores com aptidões
ou negativo, de apreciação social, tipicamente reivindicado de forma efec-
monopolísticas, pessoas excepcionais (cultivadas ou aprendidas) [Ig)].
tiva, baseado:
[A respeito de] c): São classes sociais:
a) no estilo de vida — e, por conseguinte,
«. O operariado no seu conjunto, tanto mais quanto mais auto-
matizado se tornar o processo de trabalho, b) num modo formal de educação, mais precisamente em:
B. a pequena burguesia, e a. ensinamento empírico, ou
Y. OS intelectuais e os peritos profissionais não possuidores B. ensinamento racional, e posse das formas de vida cor-
de bens (técnicos, «empregados» comerciais e outros, o funcionalismo, respondentes;
eventualmente qauito afastados entre si do ponto de vista social, consoante c) em prestígio de origem ou prestígio profissional.
os custos de formação), Na prática, a situação própria do staius manifesta-se, antes de mais:
ô. as classes dos proprietários e dos que têm acesso privilegiado a«. no connubium,
à instrução.
8. no comensalismo, — eventualmente:
Y. com frequência, na apropriação monopolística de pos-
A conclusão inacabada do «Capital» de Karl Marx pretendia, manifestamente, ocupar-
-se do problema da unidade de classe do proletariado a despeito da sua diferenciação quali- sibilidades de aquisição privilegiadas ou estigmação de certas formas de
tativa. O significado crescente do trabalho semi-qualificado, aprendido com a própria máquina aquisição,

732 733
ô. em convenções («tradições») de outro género, asso- ciada ao status. Uma sociedade deve ser designada por sociedade de status
ciadas ao staius. quando a estratificação social ocorre preferencialmente por status, e deve
A situação própria do status pode repousar sobre uma situação de ser designada por sociedade «de classes» quando essa estratificação ocorre
classe de uma natureza determinada, ou de natureza equívoca. Mas não preferencialmente por classes. De entre as «classes», a que está mais pró-
é determinada somente por este: a posse de dinheiro e a situação de empre- xima do status é a classe «social», sendo a «classe de produção» a que dele
sário não constituem em si já qualificações de status — se bem que possam está mais distante. Com frequência, os staius são constituídos, no seu
conduzir a elas —, a ausência de património não significa, em si, desquali- núcleo, por classes de propriedade.
ficação de status, embora possa levar a ela. Por outro lado, uma situação Toda a sociedade de status é de organização convencional, ordenada
de status pode co-condicionar ou condicionar por si só uma situação de por regras de modo de vida, criando, por conseguinte, condições de con-
classe, sem contudo lhe ser idêntica. A situação de classe de um oficial, sumo economicamente irracionais, e desta forma impedindo, através de
de um funcionário, de um estudante, determinada pela sua fortuna, pode apropriações monopolísticas e pela eliminação do livre dispor da capaci-
ser extraordinariamente diversa, sem que por isso se diferencie a situação dade de aquisição própria, a livre formação do mercado. Mas deste ponto
própria do status, dado que o modo de vida resultante da educação é o se tratará em particular.
mesmo nos aspectos decisivos no ponto de vista do status.
Deve entender-se por status uma pluralidade de homens que, no seio
de um agrupamento, reivindicam de forma efectiva:
a) uma apreciação particular específica do status — e portanto
também eventualmente
b) monopólios particulares específicos do status.
Os status podem ser:
a) primariamente, por um modo de vida próprio, associado
ao status, e aí, em particular, pela natureza da profissão (status de modo
de vida ou status profissionais);
b) secundariamente, por carisma hereditário, através de reivin-
dicações, bem sucedidas, de prestígio, por virtude da condição de origem
(status de nascimento);
c) por apropriação monopolista, por parte de um status, de
poderes de senhorio políticos ou hierocráticos (status políticos, ou hie-
rocráticos).
O desenvolvimento do status de nascimento é, de ordinário, uma
forma de apropriação (hereditária) de privilégios, por parte de uma asso-
ciação ou de particulares qualificados. Toda a apropriação sólida de pos-
sibilidades em particulas [de] [poderes] de senhorio ou de possibilidades
de [aquisição], tende a conduzir à formação de status. Qualquer consti-
tuição de status tende a conduzir à apropriação monopolística de poderes
de senhorio e de possibilidades de aquisição.
Enquanto as classes de produção crescem sob a base da economia
orientada pelo mercado, os status são originados e subsistem preferen-
cialmente sob a base da satisfação de necessidades patrimoniais por parte
das associações, satisfação de natureza político-litúrgica, feudal ou asso-

734 735
7. Classes, Status e Partidos *

Todo o ordenamento jurídico (e não apenas o «estatal») influi direc-


tamente, pela sua configuração, sobre a divisão do poder no seio de uma
dada comunidade, quer se trate do poder económico quer de qualquer
outro. Por «poder» entenda-se aqui, de forma inteiramente genérica, a pos- :
sibilidade que um homem ou uma pluralidade de homens tem de fazer :
prevalecer a sua própria vontade numa actuação comunitária, mesmo
contra a resistência de outros intervenientes. Poder «economicamente con- í
:
dicionado» não é, naturalmente, idêntico a poder em geral. O surgimento Ê
5
do poder económico pode antes, pelo contrário, ser consequência do í

|
poder já existente sobre outros fundamentos. O poder, porém, por sua f
it
t

vez, não é almejado apenas para fins económicos (de enriquecimento). Pelo -
contrário, o poder, até mesmo o económico, pode ser valorado «por si :
mesmo», e com muita frequência a aspiração dele é co-condicionada pela o
«honra» social que traz consigo. Mas nem todo o poder acarreta honra ..
social. O «boss» americano típico, tanto quanto o grande especulador
típico, renunciam conscientemente a ela; e, de modo muito geral, justa-
mente o poder «meramente» económico, sobretudo o poder monetário
«simples e cru», não constitui de forma alguma um fundamento reconhe- :
cido de «honra» social. Inversamente, a honra social (prestígio) pode ser |
base de poder também de natureza económica, e foi-o muito frequente-
mente. O ordenamento jurídico pode, tal como garante o poder, assim
também garantir honra. Mas, pelo menos normalmente, não constitui a
sua fonte primária, embora também aqui represente um factor adicional

* Op. cit., pp. 531-540.

737 o
que aumenta a possibilidade de o deter, sem porém o poder assegurar. de estas se tornarem efectivas na luta de preços ou na luta de concorrência. i
Designaremos por «ordem social» a forma como a «honra» social é distri- Dentro desta, porém, diferenciam-se ainda as situações de classe consoante É
buída no seio duma comunidade entre os grupos típicos dos seus partici- a espécie de posse utilizável para aquisição de lucros, por um lado, e as:
pantes. Na sua relação com o ordenamento jurídico, situa-se naturalmente prestações a oferecer no mercado, por outro. A posse de prédios de habi-
de forma semelhante àquela em que se posiciona a ordem económica: Não tação, de oficinas, armazéns ou estabelecimentos de venda; a posse de ter-
é idêntica a esta, pois que a ordem económica é para nós exclusivamente renos utilizáveis para a agricultura e, dentro destes, por sua vez terrenos
a forma de distribuição e utilização dos bens e serviços económicos. de grande oi pequena dimensão — uma diferença quantitativa com even-
É, porém, naturalmente, em larga medida condicionada por ela, reper- tuais repercussões qualitativas —; a posse de minas, de gado, de homens
cutindo-se, por sua vez, sobre ela. (escravos); o dispor de instrumentos de produção móveis ou de instru- |
Ora, constituem fenómenos da divisão do poder no seio de uma mentos de aquisição de todo o género, antes de mais dinheiro ou objectos
| comunidade as «classes», Os status e Os «partidos». especificamente fáceis de, a qualquer momento, serem trocados por ;
í
Às «classes» não constituem quaisquer comunidades no sentido aqui dinheiro; o dispor de produtos de trabalho próprio ou alheio, variável con-
“estabelecido, antes répresentam apenas fundamentos possíveis (e fre- soante os vários estádios de desenvolvimento do consumo, de monopó-
quentes) de uma acção comunitária. Falaremos de uma «classe» onde 1.: lios negociáveis de toda a casta — todas estas disponibilidades diversificam |
é comum a uma pluralidade de homens uma componente causal especí- as situações de classe dos possidentes, do mesmo modo que o «sentido» .
: fica das suas possibilidades de vida, na medida em que 2. esta componente que podem dar e dão ao aproveitamento da sua posse e, antes de mais,
é representada apenas por interesses económicos de posse de bens e de da sua posse de bens monetários, consoante, portanto, eles pertençam,
aquisição de proventos e, mais precisamente,3. sujeita aos condiciona- por exemplo, à classe dos que vivem de rendimentos ou à classe dos empre- ;
“lismos do mercado (de bens ou de trabalho) («situação de classe»). Cons- sários. E de forma não menos vincada se diferenciam os que, destituídos
-titui o facto económico de entre todos mais elementar que a forma como de posse, oferecem prestações de trabalho, e isto consoante a espécie deste
| está distribuído o dispor da posse de coisas no seio de um pluralidade de e bem assim consoante o utilizam numa relação contínua com um utili-
'homens que no mercado se encontra e concorre com o propósito da troca, zador, ou segundo as circunstâncias de cada caso. Todavia, característica
crie por si só possibilidades de vida específicas. De acordo com a lei da sempre presente no conceito de classe é o facto de a natureza das possibi-
utilidade marginal, da concorrência mútua, ela exclui os não-possidentes lidades que se oferecem no mercado constituir a instância que determina
de todos os bens de elevada cotação, em favor dos possidentes, consti- oO condicionamento c«comum do destino do indivíduo. «Situação | de classe»
tuindo de facto em monopólio destes a respectiva aquisição. Monopoliza,
em circunstâncias no geral idênticas, as possibilidades de lucro derivado pes “estádio preliminar de uma 4 verdadeira formação de «classes» aquele
da troca a favor de todos aqueles que, providos de bens, não estão abso- efeito da mera possessão, puramente como tal que, entre os criadores de
lutamente dependentes da troca, € aumenta, pelo menos de forma geral, gado, entrega ao poder dos proprietários de gado, como escravos ou
a sua potencialidade na luta de preços com aqueles que, destituídos, não servos, os que são destituídos de posse. No entanto, é aqui, no emprés-
têm para oferecer senão os préstimos do seu trabalho, quer na forma timo de gado e na dureza crua do direito regulador de dívidas de tais comu-
natural, quer na forma de produtos do seu próprio trabalho, e que têm nidades, que a simples «posse», como tal, pela primeira vez emerge como
de os colocar necessariamente para de todo em todo sobreviverem. Mono- determinante para o destino do indivíduo, em absoluta oposição às comu-
poliza a possibilidade de fazer passar a posse da esfera da utilização nidades agrárias assentes no trabalho. A relação credor-devedor só veio
enquanto «património» à esfera da sua valoração como «capital», mono- a constituir fundamento de «situações de classe» nas cidades onde se desen-
polizando, pois, a favor dos possidentes a função empresarial e todas as volveu um «mercado de crédito» — por primitivo que fosse — com taxas
possibilidades de participação, directa ou indirectamente, nos rendimentos de juro aumentado conforme as necessidades de cada momento, e mono-
do capital. Tudo isto no interior da esfera de vigência de puras condições polização efectiva das operações de empréstimo por parte de uma pluto-
de mercado. A «posse» e a «ausência de posse» constituem, pois, as cate- 4í cracia. Assim começam as «lutas de classes». Em contrapartida, uma plura-
í
gorias fundamentais de todas as situações de classe, independentemente +
lidade de homens cujo destino não é determinado pela possibilidade de

738 739
valorar no mercado, por si próprios, bens ou trabalho — como escravos,
comunitária dos pertencentes a uma classe), como atesta a experiência.
por exemplo — não constitui, no sentido técnico, uma «classe» (mas sim
A natureza condicional e os efeitos da situação de classe têm de ser nitida-
um siatus).
mente reconhecíveis. Pois só então o contraste das possibilidades de vida
: De acordo com esta terminologia, são interesses univocamente eco-
pode ser apreendido, sentido, como algo não pura e simplesmente dado
* nómicos, nomeadamente vinculadosà existência do «mercado», que geram
e que há que aceitar sem mais, mas sim, ou 1. como algo que resulta da
'a «classe». Todavia, o conceito «interesse de classe» é um conceito equí-
distribuição da propriedade vigente ou 2. da estrutura da ordem econó-
|voco, aliás nem sequer claramente empírico, desde o momento em que
mica concreta; e só então se pode reagir contra tal situação, não só através
'por ele entendermos outra coisa que não a orientação efectiva do inte-
de actos de protesto intermitente e irracional, mas também sob a forma
'resse, decorrente, com um certo grau de probabilidade, da situação de
de associações racionais. «Situações de classe» da primeira categoria ocor-
classe, comum a uma determinada «média» dos que se lhe subordinam.
reram, em modalidade especificamente crua e transparente como essa, na
Em presença de uma mesma situação de classe e também de circunstân-
Antiguidade e na Idade Média, nos centros urbanos, nomeadamente
cias no geral idênticas, o sentido pelo qual o trabalhador individual, com
quando, através de um comércio efectivamente monopolizado em pro-
probabilidade, irá orientar a perseguição dos seus interesses, pode ser muito
dutos industriais da localidade em questão, ou em bens alimentares, se
diferente, consoante ele for alta, mediana ou escassamente qualificado,
acumulavam grandes fortunas; em determinadas circunstâncias, existiram
'segundo as suas aptidões, para a prestação em causa. Poderá igualmente
também na agricultura das mais diversas épocas, em presença de um cres-
“haver essa diferença consoante tenha ou não decorrido dessa «situação
cente aproveitamento económico lucrativo. O exemplo histórico mais
- de classe» uma acção comunitária de uma parte maior ou menor daqueles
importante da segunda categoria é a situação de classe do «proletariado»
que comummente são afectados por ela, ou até mesmo uma socialização
moderno.
-; entre eles (um «sindicato», por exemplo), da qual o indivíduo possa esperar
A: Toda e qualquer classe pode, pois, ser veículo de qualquer «acção
| determinados resultados. Que de uma situação comum de classe desponte
jde classe», possível em inúmeras formas, mas não tem necessariamente
'uma socialização ou mesmo uma acção de comunidade, não constitui de
| ideo ser, e em qualquer caso não constitui, por si própria, uma comuni-
modo nenhum um fenómeno universal. O seu efeito pode limitar-se antes
| dade, dando lugar a equívocos tratá-la, conceptualmente, como equipa-
ao desencadear de uma reacção de natureza essencialmente idêntica, por
: rada às comunidades. E a circunstância de em regra, pessoas em idêntica
conseguinte (segundo a terminologia aqui seleccionada), de uma «acção
situação de classe reagirem a situações tão palpáveis como o são as eco-
de massas»; ou poderá nem sequer ter tais consequências. Frequentemente,
nómicas mediante uma actuação de massas norteada pelos interesses mais

na
aliás, desenvolve-se meramente uma acção comunitária amorfa. É o caso,
adequados à média — facto tão importante para a compreensão de eventos
por exemplo, do «murmurar» descontente dos trabalhadores, bem conhe-
históricos quanto é fundamentalmente simples — não deve em absoluto
cido na ética do antigo Oriente: a desaprovação moral do comportamento
conduzir âquele género de manipulação pseudo-científica do conceito de
do chefe, que, no seu significado prático, equivalia presumivelmente a um
«classe» ou de «interesse de classe» hoje em dia tão corrente, e que encon-
fenómeno que volta a manifestar-se como crescentemente típico do mais
trou a sua expressão mais clássica na afirmação de um talentoso escritor:
recente desenvolvimento industrial: a «travagem» por parte do operariado
é verdade que o indivíduo se pode enganar quanto aos seus interesses,
(redução deliberada da produtividade do trabalho) decorrente de acordo
mas a «classe», essa, é «infalível» no que respeita aos seus.
tácito. A medida em que, a partir da «acção de massas» dos pertencentes
Se, pois, as classes em si não «são» comunidades, não é menos ver-
a uma classe, se origina uma «acção de comunidade» e também, eventual- dade que as situações de classe são engendradas meramente na base de
mente, certas «socializações», estão dependentes de condições culturais
um processo de agregação comunitária. Simplesmente, a acção comuni-
de ordem geral, nomeadamente de natureza intelectual, e bem assim da
tária que constitui a sua génese não é, no seu aspecto fulcral, uma actuação
amplitude dos contrastes surgidos, como, designadamente, da transpa-
dos participantes de uma mesma classe, mas sim uma actuação entre mem-
rência da conexão entre os fundamentos e as consequências da «Situação
bros de diferentes classes. As acções comunitárias que determinam de
de classe». Uma diferenciação das possibilidades de vida, por muito vin-
modo imediato a situação de classe de trabalhadores e empresários são
cada que seja, não engendra, por si só, uma «actuação de classe» (acção
o mercado de trabalho, o mercado de bens e a empresa capitalista. A exis-

740
741
tência de uma exploração capitalista pressupõe, porém, a seu turnó, a exis- Monopólios, precedência na compra, açambarcamento, retenção e
tência de uma acção comunitária de natureza muito específica, que salva- não-colocação de mercadorias no mercado para fins de elevação de
guarde a posse de bens enquanto tal, sobretudo o poder de disposição, preços — estes motivos de protesto por parte-dos destituídos na Antigui-
principalmente livre, dos particulares sobre os meios de produção; ou seja, dade e na Idade Média. Em contrapartida, a fixação dos salários é hoje em
pressupõe uma «ordem jurídica», ordem que terá uma natureza específica. dia o ponto fulcral. A transição é constituída pelas lutas pelo acesso ao
Todo o tipo de situação de classe, assente sobretudo no poder da posse mercado e em torno da fixação de preços dos produtos, ocorridas entre
estritamente enquanto tal, atinge então a mais pura das eficácias quando distribuidores e artesãos da indústria domiciliária na passagem para a Era
os demais motivos determinantes das relações recíprocas estão, dentro do Moderna. Fenómeno de cariz muito geral e por conseguinte digno de
possível, eliminados no seu significado, sobressaindo assim e impondo-se menção aqui, próprio dos antagonismos de classe condicionados pela
tanto quanto possível soberanamente no mercado o aproveitamento do situação do mercado, é o facto de tais antagonismos costumarem imperar,
poder da posse. Ora, fazem parte dos entraves a uma realização conse- com suprema agudez, entre os que real e directamente intervêm na luta
quente do princípio puro do mercado Os status que, neste contexto, nos de preços como opositores. Não é o que vive dos rendimentos, o accio-
interessam em primeira linha apenas deste ponto de vista. Antes de entrar nista ou O banqueiro que é atingido pelo rancor dos trabalhadores — ainda
numa breve apreciação, seja-me dado observar ainda, a esse respeito, que que entrem mais na sua bolsa do que na do fabricante ou director de uma
pouco de geral há a dizer sobre o carácter mais especial dos antagonismos empresa lucros em parte mais volumosos, em parte ganhos sem tra-
entre as «classes» (no sentido aqui estabelecido). A grande deslocação que balho — mas sim, quase exclusivamente, o próprio fabricante ou director
se operou do passado até ao presente pode bem resumir-se, tolerando de empresa, enquanto adversário directo na luta de preços. Este simples
alguma inexactidão, no seguinte: que a luta determinante da situação de facto foi com muita frequência decisivo para o papel da situação de classe
classe foi progressivamente passando de uma fase de crédito de consumo, na formação dos partidos políticos. Possibilitou, por exemplo, as diversas
em primeiro lugar, à luta da concorrência no mercado de bens, depois variedades de socialismo patriarcal e as tentativas pelo menos outrora fre-
à luta de preços no mercado de trabalho. As «lutas de classes» da Antigui- quentes, de facto entre estratos ameaçados no seu status € O proletariado,
dade — enquanto «lutas de classes» que efectivamente eram, e não «lutas contra a «burguesia».
entre status» — começaram por ser lutas de devedores do campesinato Os status são, ao contrário das classes, por norma comunidades, ainda
(e concomitantemente também artesãos) ameaçados de servidão por endi- í que amiúde de carácter amorfo. Em oposição à «situação de classe», deter-
vidamento, contra credores estabelecidos nas cidades. Pois, tal como o “minada por motivos puramente económicos, designaremos por «situação
é entre os criadores de gado, a servidão por dívidas é também nas cidades de status» toda a componente típica do destino vital dos homens condi-
mercantis, sobretudo nos centros de comércio marítimo, a consequência cionada por uma estimação social específica, positiva ou negativa, da
normal da diferenciação de fortuna. A relação de endividamento, enquanto «honra» que se prende com uma qualquer qualidade comum a muitos.
tal, engendrou acções de classe inclusivamente até à era de Catilina. Con- Essa honra pode também estar associada a uma situação de classe: as dife-
comitantemente, surgiu, com o crescente abastecimento da cidade através renças de classe entram nas mais variadas combinações com as diferenças
de importações de cereais, a luta pelos géneros alimentícios, acima de tudo de status, e, tal como observámos, a propriedade, como tal, alcança com
centrada no abastecimento e no preço do pão, luta que atravessa a Anti- extraordinária regularidade, embora nem sempre, valor de status. Num
guidade e se arrasta por toda a Idade Média, congregando os destituídos, agrupamento de vizinhos economicamente auto-suficiente, acontece
enquanto tais, contra os verdadeiros e os pretensos interessados no enca- muitas vezes, no mundo inteiro, que o «chefe de fila» é simplesmente o
recimento deste produto, e afectando todos os bens essenciais à existência, homem mais rico, estritamente enquanto tal, o que frequentemente repre-
e também os essenciais à produção artesanal. Durante a Antiguidade e a senta uma pura prerrogativa honorífica. Na chamada «democracia» pura,
Idade Média, e até à Era Moderna, só é possível falar de lutas de salários dos tempos modernos, quer dizer, naquela democracia que dispensa e
como ocorrências em estádio rudimentar, de germinação lenta; apagam-' afasta todo e qualquer privilégio de status expressamente sistematizado,
-se inteiramente atrás, não só das sublevações de escravos, como também acontece, por exemplo, que só as famílias de classe tributária aproxima-
das lutas travadas no mercado de bens. damente idêntica dançam entre si (como se conta de algumas pequenas

742 743
cidades singulares da Suiça). Porém, a honra de um status não tem neces-.. com famílias «distintas», assume importância idêntic
a à que por exemplo
sariamente de estar associada a uma «situação de classe», antes se encontra : a «capacidade de desagravo» tem para nós. E, de
resto, existe usurpação
por norma em radical oposição às pretensões da posse simples e crua : de honra de «status» por parte de determinadas família
s de há muito radi-
enquanto tal. Possidentes e destituídos podem pertencer a um mesmo. cadas num lugar (e, é evidente, correspondentemente
abastadas) — o caso
status, e frequentemente assim acontece, com consequências altamente das «F. F. V.» = «firts families of Virginia» — ou os
reais ou pretensos des-
palpáveis, por precária que seja, com o decorrer do tempo, esta «igual. |1 cendentes da «princesa índia» Pocahontas ou dos
Padres peregrinos puri-
dade» na apreciação social. A «igualdade» do «gentleman» americano, tanos, dos Knickerbocker, dos membros de uma seita de penetração difícil
quanto ao status, manifesta-se, por exemplo, no facto de que, fora da e de diversos círculos destacados por qualquer outro
traço distintivo. Tra-
subordinação vigente na empresa, condicionada em termos puramente ta-se, neste caso, de uma estratificação puramente convencional, essen-
objectivos, seria considerado como de supino mau gosto — onde impere cialmente assente na usurpação (como aliás, de origem
, normalmente quase
ainda a velha tradição — que mesmo o mais rico dos «chefes» não tratasse toda a «honra» associada a um status). Mas daí até
um privilegiar jurídico j!U;
de alguma forma como seu igual, de parte inteira, o seu «empregado de (positivo e negativo), o caminho é facilmente praticá !
vel, desde que se tenha /
escritório», por exemplo em fim de tarde no clube, na sala de bilhar, à «aclimatado» efectivamente uma determinada estrati
ficação da ordem social, 4 |
mesa de jogo, e lhe dispensasse aquela «benevolência» condescendente que, na sequência da estabilização da distribuição
do poder económico, |
que marca a diferença de «posição», benevolência essa que o chefe alemão tenha também pelo seu lado alcançado estabilidade
jamais consegue banir do seu espírito — aliás, umas das principais razões até às últimas consequências, O status evolui no
. Onde isto for levado |
pelas quais os clubes alemães nunca conseguiram alcançar o poder atrac- fechada. Ou seja: paralelamente à garantia conven
sentido de uma «casta»
|
cional e jurídica, verifica-
. tivo dos clubes americanos. -se também uma garantia ritual da separação por
status, de tal modo que
o Em termos de conteúdo, a honra do status encontra normalmente todo e qualquer contacto físico com um membr
o de uma casta conside-
| expressão, sobretudo, na existência de um modo de vida de natureza espe- rada «inferior» é tomado pelos pertencentes à casta
«superior» como mácula
U cífica a todo aquele que pretenda pertencer a esse círculo. Em conexão ritualmente contaminadora, sujeita, em termos
religiosos, a expiação, che-
com isso, encontra também expressão na restrição do trato «social», ou gando mesmo as diversas castas a, em parte,
desenvolver cultos e criar |
seja das relações que não servem fins «objectivos», económicos ou comer- deuses completamente separados.
Í
ciais, incluindo nomeadamente o matrimónio normal, ao círculo desse A estratificação por status, porém, apenas se

po
intensifica até chegar:
status, que assim chega a atingir um total isolamento endógeno. Desde a tais consequências, regra geral, quando lhe estão
na base diferenças con-
que não se trate de uma imitação meramente individual e socialmente irre- sideradas como «étnicas». A casta é precisamente
a forma normal pela qual
levante de um estilo de vida importado, mas que se esteja em presença as comunidades étnicas que crêem no parentesco
por consanguinidad
de uma acção comunitária consensual desta natureza, está desencadeado e excluem o conúbio e o trato social com quem lhes seja exterior, cos-:
um processo evolutivo «de status». Assim se desenvolve actualmente nos tumam viver e conviver entre si em «socializaçã
o». É o caso, a seu tempo
Estados Unidos, a partir da democracia tradicional, a estratificação baseada já abordado, do fenómeno dos povos «párias»,
que se estende a todo o
no «status», assente no fundamento de um modo de vida convencional. mundo: comunidades que ganharam tradições especí
ficas no domínio do
É assim que, por exemplo, só o morador de uma determinada rua («the artesanato ou de outra natureza, que cultivam
a crença na comunidade
Street») é considerado como pertencente à «society» e socialmente freguen- étnica e agora, rigorosamente apartadas de todo
o trato pessoal não abso-
tável, visitado e convidado. Mas, antes de mais, é assim que a rigorosa lutamente indispensável, e em condição juridicament
e precária, embora,
sujeição à moda que a cada momento impera na «Society» também entre . em virtude da sua indispensabilidade económica,
toleradas e frequente-
os homens, e em medida para nós desconhecida, é reputada como sin- mente mesmo privilegiadas, vivem em «diáspora»,
dissiminadas [em] comu-
toma de que o indivíduo em questão pretende a qualidade de «gentleman», nidades políticas. Os judeus constituem o exemp
lo histórico de maior
determinado em consequência, pelo menos «prima facie», que ele também monta. À separação por «status», intensificada em
«casta», e a separação
como tal seja tratado, o que, por exemplo, em relação às suas possibili- meramente «étnica», diferem na sua estrutura pelo
facto de a primeira con-
dades de colocação em firmas «boas», mas sobretudo para o trato e enlace verter em sobreposição vertical social à justaposição
horizontal não con-

744 745
jugada que é a da última. Melhor dizendo: pelo facio de uma socialização ções por status, é com razão uma questão absolutamente
a resolver em
abrangente reunir as comunidades etnicamente separadas numa acção cada caso individual concreto: muito frequentemente, O status, que na
comunitária específica, de natureza política. Nos seus efeitos, diferem pre- verdade tem um efeito de carácter fortemente exclusivo,
e que assenta
cisamente pelo facto de a justaposição étnica, que condiciona a repulsa numa selecção dos pessoalmente qualificados (na ordem
de cavalaria:
e o desdém recíprocos, permitindo a cada comunidade étnica considerar daqueles que física e psiquicamente são aproveitáveis para
a guerra), cons-
a sua própria honra como a mais elevada, trazer consigo na estratificação titui, por sua vez, um meio de selecção e cultura de um
tipo antropoló- |
de castas uma subalternização social, um «acréscimo» reconhecido de gico. Porém, a selecção pessoal está bem longe de constituir a única
ou :
«honra» a favor de castas e status privilegiados, dado que aqui, as dife- a principal via de formação de status: à filiação política ou
[a] situação de :
renças étnicas se converteram em diferenças de «função» no seio da asso- classe decidiram, desde tempos imemoriais, pelo menos
com igual fre-
ciação política (guerreiros, sacerdotes, artesãos politicamente importantes quência, sendo a última hoje em dia de longe a preponderante
[na decisão]
para a guerra e as construções, etc.). Até O povo pária mais desprezado Pois a possibilidade de um estilo de vida próprio de um
«status» costuma, :
tem por hábito preservar e cultivar de alguma maneira aquilo que é pró- Por natureza, ser co-condicionado por factores económ
icos.
prio das comunidades étnicas e de status: a crença numa «honra» própria, Numa apreciação prática, a organização em status anda
por toda a
específica (o caso dos judeus). Acontece apenas que, nos status negati- parte a par com uma monopolização de bens ou possibi
lidades ideais e
vamente privilegiados, o «sentimento de dignidade» — decorrência sub- materiais, na forma que nos é já conhecida como típica.
Paralelamente à
jectiva da honra social e das exigências convencionais que o staius posi- honra específica do status, sempre assente na distância e
no exclusivismo,
tivamente privilegiado faz relativamente ao estilo de vida dos seus e ao lado de prerrogativas honoríficas como o privilégio
de usar determi-
membros —- assume pendor especificamente discrepante. O sentimento nado traje, de ter à sua mesa determinados alimentos negados
, por tabu,
de dignidade dos status positivamente privilegiados é referido, por natu- a outros, o privilégio do porte de armas, tão fortemente
palpável nas suas
reza, à sua «existência», que não remete para lá de si, à sua «beleza e exce- consequências, o direito a determinadas modalidades não
lucrativas mas
lência» (Kato ka'yaMa). O seu reino é «deste mundo», e vive para O pre- diletantes de prática da arte (determinados instrumentos
musicais, por
sente e do passado glorioso. O sentimento de dignidade das camadas exemplo), par a par, pois, com tudo isto, regista-se a existên
cia de mono-
negativamente privilegiadas pode, por natureza, referir-se apenas a um pólios materiais de todo o género. Raras vezes exclusivamen
te, mas quase
futuro situado para além do presente, neste ou no noutro mundo; por sempre em grande medida, são estes monopólios que propor
cionam os
outras palavras, tem de alimentar-se da crença numa «missão» providen- motivos mais efectivos do exclusivismo do status. Para
O conúbio de
cial, num lugar específico de honra junto de Deus, enquanto «povo eleito», status, verifica-se, a par com o monopólio sobre a mão das
filhas do cír-
de modo, portanto, que num Além «os últimos serão os primeiros», que culo em questão, o interesse das famílias na monopolizaçã
o dos poten-
neste mundo há-de aparecer um redentor que há-de trazer à luz a honra, ciais pretendentes inseridos nesse círculo, com o fim de
assegurar o sus-
escondida dos olhos do mundo, do povo (os judeus) ou do status pária tento precisamente dessas filhas, encontrando-se um e outro
pelo menos
que o mundo rejeita. É este simples estado de coisas, cujo significado se equiparados em importância. As possibilidades convencionai
s de priori-
discutirá noutro contexto, e não o «ressentimento» tão fortemente real- dade em determinadas nomeações acentuam-se, aumentando
o hermetismo
çado na muito admirada construção de Nietzsche (na «Genealogia da do status, até à formação de um monopólio legal sobre determ
inadas fun-
moral»), que constitui a fonte do carácter da religiosidade cultivada pelos ções a favor de determinados grupos definidos pelo seu status.
Determi-
status párias, Carácter que — de resto, como já vimos — só restritamente nados bens, tipicamente e por toda a parte os domínios
feudais cedidos
é aplicável, e que aliás num dos exemplos principais de Nietzsche (o por empréstimo a nobres, frequentemente também a posse
de escravos
budismo) não é mesmo de todo pertinente. De resto, a origem étnica da ; ou servos, e por fim determinados ramos de actividade profissional,
formação de status não constitui de modo algum o fenómeno normal. Pelo convertem-se em objecto de monopolização por parte de
um status. Mono-
contrário. E uma vez que não são de modo algum «diferenças de raça» | polização essa que tanto pode ser positiva —de tal maneira
que apenas
objectivas que estão na base de todo o sentimento subjectivo de comu- O siatus em causa a pode chamar a si e explorar —, como
negativa — de
nhão «étnica», a fundamentação, em última-análise rácica, das estratifica-i tal maneira que, para a preservação do seu modo de vida
específico, um

746 747
de. Pois
determinado status não pode chamar a si ou explorar tal activida tal, e a maioria das vezes tanto mais fortemente quanto mais ameaçados
a «honra de
o papel decisivo que o «modo de vida» desempenha para se sentirem: o tratamento respeitoso do camponês por parte de Calderón.
de todas as
status» implica que os status sejam portadores e fixadores por exemplo, em contraste com o ostensivo desprezo pela «canalha», a
vida, quaisqu er que sejam as suas ralé, em Shakespeare, seu contemporâneo, atesta estas diferenças entre
«convenções»: toda a «estilização» da
por um
manifestações, ou tem a sua origem num siaius ou é conservada o reagir próprio de uma estratificação social por status solidamente implan-
que os prin-
status. Por grande que seja a sua diversidade, não há dúvida tada, e o de outra que economicamente entrou em vacilação, e é a
camadas mais
cípios das convenções de staíus, nomeadamente entre as expressão de um estado de coisas que se repete um pouco por toda à parte.
De uma forma muito geral, há Precisamente por isso os grupos privilegiados por status jamais aceitaram
privilegiadas, revelam certos traços títicos.
ficação de status relati-
entre os grupos privilegiados pelo status, desquali a «parvenu» verdadeiramente sem reservas — por muito fielmente que o
o das velhas seu estilo de vida se tenha adaptado ao deles — mas tão-somente os seus
vamente ao trabalho físico comum, tendência que, ao contrári
tradições, de sinal precisa mente oposto, também na América se vai insta- descendentes, educados segundo as convenções do status do seu estrato.
temente , toda a activida de de tipo e que nunca mancharam a honra do status trabalhando para o provento
lando actualmente. Muito frequen
provent o, nomead amente próprio.
racional dirigida para aquisição de sustento ou
fica-
também a «actividade de empresário», é considerada como desquali Em conformidade, e de uma forma muito geral, é, pois, constatável,
é consi-
tiva em termos de status; também a actividade artística e literária como resultado da organização por status, apenas um momento, aliás de
desde que explora da para sustento pró- extrema importância: o entrave ao livre desenvolvimento do mercado.
derada como trabalho degradante,
físico penoso, como, por
prio ou pelo menos quando associada a esforço A princípio, em relação aos bens que os status subtraem directamente,
pó, ao jeito
exemplo, no caso de um escultor que trabalha com guarda- por monopolização, à livre circulação, quer seja de modo legal, quer con-
de
de um canteiro, em oposição ao pintor, com o seu «atelier» em jeito vencional — o caso, por exemplo, dos bens de raíz herdados em muitas
salão e às formas de prática da música que são aceites pelo staius. cidades helénicas da época em que especificamente imperavam os status
A tão frequente desqualificação daquele que trabalha e que vive dos e (como o demonstra a velha fórmula de interdição para dissipadores) ori-
razões
proventos da sua actividade, enquanto tal, constitui, paralelamente a ginalmente também em Roma; e igualmente também os domínios feudais
do
particulares que afloraremos mais adiante, uma consequência directa cedidos a nobres por empréstimo, quintas de camponeses, herdades de
princípio da «estratificação» em siatus da ordem social, e da sua opo- sacerdotes e, acima de tudo, a clientela de uma indústria corporativa ou
de mer-
sição à regulação da distribuição do poder em termos puramente de uma guilda. O mercado é restringido, o poder da nua propriedade,
operam não :
cado. O mercado € os processos económicos que nele se enquanto tal, poder que imprime o seu cunho à «formação de classes».
que nele
conhecem a «consideração pela pessoa»; são interesses «materiais» é reprimido. Os efeitos disso podem ser da mais diversa ordem, e de modo
À ordem assente em status significa pre- algum pendem necessariamente, como é evidente, para uma atenuação
imperam. Nada sabe de «honra».
segundo a «honra» e O estilo de
cisamente O inverso — organização social dos contrastes da situação económica; frequentemente, bem pelo con-
ameaçad a na sua
vida próprio do status, encontrando-se, enquanto tal, trário. Seja como for, não pode falar-se de uma concorrência de mercado
própria raíz quando a mera aquisição económica e o mero poder econó- verdadeiramente livre, no sentido actual, onde quer que as estratificações
a
mico, simples e cru, enquanto tal, trazendo ainda estampada no rosto por status perpassem tão intensamente uma comunidade como a ocor-
sua origem extra-status, estiver em posição de conferir, a todos quantos rida em todas as comunidades políticas da Antiguidade e da Idade Média.
e de
tenham logrado aceder-lhe, honra igual — uma vez que em igualdad Porém, de maior alcance ainda do que esta exclusão directa de determi-
honra de status a posse representa sempre ainda um excedente, mesmo nados bens do mercado é a circunstância, decorrente da mencionada opo-
os
que inconfessado — ou inclusivamente superior, consoante os resultad sição entre a ordem assente nos status e a ordem puramente económica,
à honra que, em virtude do seu modo de vida, pretendem para de o conceito de honra do status na maioria dos casos ter absoluto horror
obtidos,
si os interessados pertencentes a um status. Os interessados inseridos numa precisamente ao que é específico do mercado, ao regatear, não só entre
jus-
estratificação por status reagem, por conseguinte, com especial acidez companheiros de status, como por vezes em relação aos membros de um
o
tamente contra as pretensões da aquisição puramente económica, enquant qualquer status em geral, havendo, por conseguinte, em toda a parte status,

748 749
por sinal quase sempre os mais influentes, para os quais quase toda a moda- ú consequência, honra para os seus dirigentes e adeptos ou, como aliás
lidade e envolvimento aberto num trabalho orientado para o provento Í 4 sucede por norma, um e outro simultaneamente. Daí que os partidos
— próprio é tomada simplesmente como mácula. . ; também apenas sejam possíveis no seio de comunidades por seu lado de
E Poder-se-ia, pois, numa simplificação porventura excessiva, dizer que : - certa maneira socializadas, possuindo portanto uma qualquer ordem
as «classes» se subdividem segundo as conexões com a produção e com ' racional e um aparelho de pessoas dispostas a pô-la em execução. Pois
a aquisição de bens, e os status segundo os princípios do seu consumo . é finalidade dos partidos precisamente influenciar tal aparelho e, sempre
:ad j de bens sob forma de géneros específicos de «estilo de vida». Uma «cate- -. que possível, compô-lo à base de adeptos partidários. Podem, num ou
'goria profissional, ou profissão, também é status, ou seja, aspira, com - noutro caso concreto, defender interesses condicionados por uma
: sucesso, à «honra» social, em regra apenas através do «modo de vida» espe- «situação de classe» ou um status social, recrutando o seu corpo de
-cífico, eventualmente condicionado pela profissão. Sem dúvida que as dife- : adeptos de acordo com tal estado de coisas. Não necessitam, porém, de
renças se diluem amiúde e são precisamente as comunidades de status mais '- ser partidos puramente de «classe» ou de status, na maior parte dos casos
“rigorosamente apartadas segundo a sua «honra» — as castas indianas — que ... “| são-no apenas em parte, e frequentemente não o são sequer minimamente.
| hoje em dia dão prova, embora dentro de certos limites bem fixos, de um -. Podem apresentar configurações efémeras ou perenes, e os seus meios para
' grau relativamente elevado de indiferença perante a «actividade lucrativa», alcançar o poder podem ser os mais diversos, desde a força crua, de todo
' que nomeadamente entre os bramas é procurada nas mais diversas formas. O género, até à angariação por expedientes grosseiros ou subtis: dinheiro,
Sobre as condições económicas gerais do predomínio de estratificação - influências sociais, poder do discurso, sugestão e impostura rotunda, €
por status, apenas haverá a dizer, em termos gerais e em conexão com “também até à táctica mais grosseira ou mais elaborada de obstrução no
o que acabámos de constatar, que uma certa (relativa) estabilidade dos fun- seio das instâncias parlamentares. A sua estrutura sociológica é, necessa-
| damentos da aquisição e distribuição de bens a favorece, enquanto todo riamente, basicamente diversa, consoante a estrutura da acção comuni-
e qualquer abalo ou convulsão técnico-económica a ameaça, deslocando tária que lutam por conseguir influenciar, consoante a comunidade, por
para primeiro plano a «situação de classe». Eras e países em que a situação exemplo, se encontra ou não articulada em status ou em classes, e acima -
'de classe mera e crua assume significado preponderante, são em regra de tudo consoante a estrutura de «dominação» reinante no seu seio dessa
| épocas de convulsão técnico-económica, enquanto qualquer retardamento comunidade. Pois, para os seus dirigentes, o que está habitualmente em
dos processos de reajustamento económico conduz de imediato ao des- causa é afinal a conquista daquela. No conceito geral em que aqui nos
: pontar de estruturas de «status», restituindo a «honra» social à sua rele- fixámos, não constituem apenas produtos de formas de dominação espe-
| vância. É cificamente modernas: designaremos igualmente como tais os partidos da
Enquanto as «classes» encontram a sua verdadeira pátria na «ordem Antiguidade e da Idade Média, apesar da sua estrutura tão fundamental-
“: económica», e Os status na «ordem social», ou seja, na esfera da repar- mente diferente da moderna. É certo, porém, que, em consequência destas
' tição da «honra», e a partir daí não só se influenciam reciprocamente, como diferenças estruturais de dominação, nada se pode também afirmar a res-
“ influenciam é por sua vez são influenciados pela ordem jurídica, os «par- peito da estrutura do partido, que é sempre uma formação em luta por ;
| “tidos» movem-se primordialmente na esfera do «poder». A sua acção uma dominação e, por conseguinte, ela própria muitas vezes organizada
etnias mt ca meaarrmra

-orienta-se no sentido de um «poder» social, ou seja, de uma influência sobre


e rear

rigorosa e autoritariamente, sem um exame das formas estruturais da domi-


“uma acção comunitária, qualquer que seja o seu conteúdo. Em princípio, nação social. Daí que nos ocuparemos agora deste fenómeno central de
podem existir partidos tanto no seio de um «clube» de convívio como de todo o social.
“um «Estado». À acção comunitária a nível de «partidos» comporta sempre Antes, porém, há ainda que dizer, em geral, acerca das «classes»,
'uma socialização, contrariamente à acção comunitária de «classes» e siatus e «partidos», O seguinte: o facto de pressuporem necessariamente
status, em que não se passa necessariamente assim. Pois a acção comu- uma socialização que as abarque, especialmente uma acção comunitária
: initária de partidos é sempre dirigida a um fim metodicamente perseguido, política, no seio da qual movimentam a sua existência, não quer dizer que
| “seja ele «objectivo» — implantação de um programa com propósitos ideais | eles próprios estejam vinculados às fronteiras de uma única comunidade
“ou materiais, seja «pessoal» — por aspiração de prebendas, poder e, em política. Pelo contrário, desde sempre esteve na ordem do dia que a socia-

750 | 751
qe

lização, inclusivamente uma associação visando a aplicação conjunta da


força militar, ultrapassa as fronteiras das agremiações políticas — os exem-
plos vão desde a solidariedade de interesses entre oligarcas e democratas
na Grécia, entre guelfos e gibelinos na Idade Média, do partido calvinista
na época das lutas religiosas, até à solidariedade dos senhores da terra (Con-
ÍNDICE
gresso Internacional de Agrários), príncipes (Santa Aliança, Resoluções de d
|
Carlsbad), trabalhadores socialistas, conservadores (ânsia, por parte dos
conservadores prussianos, de uma intervenção russa, em 1850). Acontece,
no entanto, que a sua finalidade aí não é necessariamente a instauração
de uma nova dominação internacional, política — territorial, digamos, mas
sim quase sempre a influência sobre a que já existe.
PREFÁCIO ........ aeee VII

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] 1. Teses sobre Feuerbach .......... eins 7
t 2. A ideologia alemã...
3. Manifesto do Partido Comunista ............. Ceererirerreriees 61
4. Prefácio ao «Para a crítica da economia política» ............ 73
' 5. Prefácio à segunda edição alemã de «O Capital» ............. 75
6. A chamada acumulação original... 77
7. O socialismo científico ...........es eeeereerarrrrerara 113
8. Crítica do economicismo .........erns 131

AUGUSTO COMTE... eneerareaa


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1. Importância da Filosofia Positiva .........mes 139
2. Lei dos três Estados ....i......ereeienarreis 167

HERBERT SPENCER .................. eereernarecereeaaaneneaer


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| 1. A evolução superorgânica .............. eis 185


2. O que é uma sociedade? ....... eretas 191
3. A sociedade é um organismo .........iiesss 193
4. Crescimento social ............ errecenenaaeraceracennaanenaeea
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! 5. Estruturas sociais .......... iai “215
6. Funções sociais... 227
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