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• O Ano Vermelho — Reflexos da Revolução Russa no Brasil —

Moniz Bandeira
• Organismo Econômico da Revolução — D. A. Santillán
• Marxismo Heterodoxo — Maurício Tragtenberg (org.)
• PCB — 1922/1982 — Memória Fotográfica — Diversos
Autores
• A Sedução da Barbárie — 0 Marxismo na Modernidade —
Néison Brissac Peixoto
• Socialismo ou Barbárie — 0 Conteúdo do Socialismo —
Cornelius Castoriadis
• Um Socialismo a Inventar — Lúcio L. Rádice

Coleção Primeiros Passos


• 0 que é Anarquismo — Caio Tú/io Costa
• 0 que é Comunismo — Arnaldo Spindeí
• 0 que é Poder — Gérard Lebrun
• 0 que é Revolução — Florestan Fernandes
• 0 que é Socialismo — Arnaldo Spindel
• 0 que é Trotskismo — José Roberto Campos

Coleção Tudo é História


• A Primavera de Praga — Sonia Goldfeder
• Revolução Cubana: De José Marti a Fidel Castro (1868-1959)
— Abelardo Blanco e Carlos A. Dória
• Rússia (1917-1921) — Os Anos Vermelhos — Daniel A. Reis
Filho

Coleção Encanto Radical


• Emma Goldman — A Vida como Revolução — Elisabeth S.
Lobo
Henri Arvon

A revolta
de Kronstadt

1984
Copyright © 1980, Editions Complexe S.P.R.L. Diffusion,
Promotion, Information.
Título original: La Revolte de Cronstadt — Henri Arvon
Tradução: Elvira Serapico
Capa: Ettore Bottini
Revisão: José W.S. Moraes
b ra s ilie n s e

editora brasiliense s.a.


01223 — r. general jardim, 160
são paulo — brasil
índice___________________
O destino de um a R ev o lu ção ................................................. 7
As razões da insurreição......................................................... 16
A insurreição de K r o n s ta d t................................................... 38
A ambigiiidade de K ro n stad t................................................. 81
A Terceira R evolução............................................................. 111
Cronologia: os anos 1917-1921..................................... 130
B ib lio g rafía.............................................................................. 133
O destino
de uma Revolução
A evolução da Revolução de O utubro é perceptível antes
mesmo de sua eclosão; é determ inada pela dualidade de pode­
res que se instaura com o desm oronam ento do czarismo em
1917. Em 18 de fevereiro de 1917, uma greve paralisa a fábrica
Putilov, de Petrogrado, e alguns dias depois os trabalhadores
da maioria das grandes empresas industriais aderem ao movi­
mento. Os conselhos operários, denom inados sovietes, sur­
gem bruscamente; tal como quando dos acontecimentos de
1905, eles asseguram não apenas o controle e a gestão das
empresas mas decidem construir todo o conjunto social de
baixo para cima, e elegem os delegados para os sovietes locais,
regionais e centrais. O mesmo fenômeno se produz entre os
camponeses e em cada unidade do exército, de form a que
toda a Rússia envolve-se espontaneam ente num a rede de
acontecimentos políticos e econômicos segundo os princípios
de um a dem ocracia direta.
O poder dos sovietes, armados e soberanos em seu dom í­
nio eleitoral, manifesta-se sobre o plano nacional através do
Congresso Pan-russo dos Sovietes, cuja prim eira reunião
acontece em junho de 1917. A execução das decisões tomadas
é confiada a um Comitê Executivo Central que, apesar do
nome, não possui uma estrutura centralizada, ficando assim
num a estreita dependência das relações com os sovietes de
base. Q uanto à composição política dos sovietes, o primeiro
Congresso revela a fraqueza numérica dos bolcheviques: de
um total de 790 deputados, apenas 103 eram bolcheviques.
8 HENRI ARVON

Frente a essa democracia primitiva mas arm ada, o poder


legal do governo provisório, constantem ente desafiado pelos
sovietes, fica reduzido à impotência.
Assim, quando depois das “ jo rn ad as” de julho de 1917,
nas quais as manifestações revolucionárias em favor da tom a­
da do poder pelo soviete de Petrogrado haviam sido apoia­
das por vinte mil marinheiros e trabalhadores de Kronstadt,
Kerensky, chefe do governo provisório, exige do soviete de
K ronstadt a dissolução e reeleição do comitê central da frota
báltica, a prisão dos chefes e sua transferência para Petro­
grado, a resposta é o desconhecimento total das exigências.
Lenin, cujo único objetivo é tom ar um poder que parece
estar entre um governo burguês e os sovietes, estabelece uma
convergência de meios suscetíveis de o conduzirem rapida­
mente a esse objetivo tom ando resolutamente o lado dos
sovietes contra o governo e, simultaneamente, esforçando-se
para aproxim ar os sovietes da causa bolchevique. É essa táti­
ca dupla que ele expõe nas célebres “ Teses de A bril” , adota­
das pelo partido depois de seu retorno a Petrogrado.
As “ Teses de A bril” insistem sobre a particularidade
da situação na Rússia, no fato de que esta constitui um a tran ­
sição entre a primeira etapa da revolução, que entregou o
poder à burguesia, e a segunda etapa, que o entregará ao
proletariado. P o rtanto, não se coloca a questão de sustentar
e consolidar o governo burguês colaborando com ele. Os
bolcheviques devem reconhecer que são minoria, mas que
está assegurado, graças à sua ação, tornar-se maioria: a ação
consiste, por um lado, em denunciar os erros cometidos pelo
governo e, por outro, propagar incansavelmente a passagem
de todo o poder aos sovietes. Não se trata, com efeito, de
estabelecer um a república parlam entar, mas uma república
dos sovietes dos deputados operários e camponeses: esta últi­
ma eliminará a polícia, o exército, os funcionários em pro­
veito de outros cidadãos que serão eleitos e substituíveis a
qualquer mom ento. As terras serão nacionalizadas e, as dos
grandes proprietários, confiscadas; todos os bancos do país
serão agrupados em um único banco controlado pelos sovie­
tes: o soviete controlará igualmente a produção e a distribui­
ção; o estabelecimento do socialismo propriam ente dito virá
em seguida.
O fracasso da tentativa contra-revolucionária do general
A REVOLTA DE KRONSTADT 9

Kornilov em agosto, fracasso devido essencialmente à resis­


tência dos bolcheviques, que haviam sido reforçados com
a chegada a Petrogrado de vários milhares de marinheiros
armados de K ronstadt, ocasiona um a rápida bolchevização
dos sovietes. Em 31 de agosto, Trotsky é eleito presidente
do Soviete de Petrogrado. Poucos dias depois, os bolchevi­
ques tom am a direção do soviete de M oscou, de Kiev e de
outras cidades. A rápida progressão dos bolcheviques no seio
dos sovietes reflete-se na composição do segundo Congressio
Pan-russo dos Sovietes em 25 de outubro: entre os 675 depu­
tados havia 343 bolcheviques, que detinham assim a maioria.
Senhores a partir de então dos sovietes, os bolcheviques,
sob o com ando de Lenin, que em 10 de outubro havia retor­
nado a Petrogrado depois de seu exílio na Finlândia, prepa­
ram febrilmente a insurreição. Um Comitê M ilitar Revolucio­
nário é associado, sob a presidência de Trotsky, ao soviete
de Petrogrado. Em 25 de outubro, dia da abertura do C on­
gresso Pan-russo dos Sovietes, soldados e guardas vermelhos
ocupam a Central Telefônica, o Banco do Estado, as quatro
grandes estações e cercam o Palácio de Inverno, sede do
governo. Os marinheiros de K ronstadt e o A urora estão mais
um a vez em seus postos no Rio Neva: a artilharia do cruzador
dispara contra o Palácio de Inverno ao mesmo tempo que os
canhões da Fortaleza de Pedro e Paulo, em mãos dos bolche­
viques.
D errubado o governo provisório, a insurreição procede
à form ação de um governo puram ente bolchevique, denomi­
nado Conselho dos Comissários do Povo, que é presidido por
Lenin. A criação do Conselho dos Comissários do Povo é
aprovada pelo Congresso Pan-russo dos Sovietes; dois decre­
tos são adotados ao mesmo tem po. O primeiro é um a “ M en­
sagem à P az” . Os sovietes propõe a todos os povos e a todos
os governos um a paz im ediata sem anexações ou indeniza­
ções. O segundo determ ina a abolição da propriedade fundiá­
ria sem indenização. As grandes propriedades da C oroa e da
Igreja passam provisoriam ente às mãos dos sovietes locais.
Sobre as form as práticas dessa operação, Lenin, que apre­
senta esse “ decreto sobre a te rra” , não se estende prolonga­
damente: são os próprios camponeses que devem fixar os
detalhes, o im portante era que se certificassem de que a pro­
priedade fundiária não mais existia.
10 HENRI ARVON

Chegando ao poder graças ao apoio decisivo dos sovie­


tes, bolchevizados, Lenin parece verdadeiramente desejar
conceder-lhes a autonom ia que buscavam. Com efeito, o
poder econômico dos sovietes coexiste durante aqueles meses,
de outubro de 1917 à primavera de 1918, com o poder polí­
tico detido pelos bolcheviques. D urante esse período toda a
ação de Lenin é baseada nos sovietes, para os quais reclama
todo o poder político, econômico, social e militar. Assim, os
sovietes transform am -se nos órgãos de poder que comandam
as diversas atividades das grandes fábricas, bairros, cidades,
unidades militares. O decreto de 14 de novem bro consagra
seu poder econômico, legaliza a ingerência dos trabalhadores
na gestão das empresas suprimindo o segredo comercial, que
deixa de se constituir num domínio reservado aos patrões. No
Congresso dos Sindicatos, na primavera de 1918, Lenin define
os sovietes com o “ comunas, governando-se a si mesmas, os
produtores e consum idores” . No VII Congresso do Partido,
de 6 a 8 de março de 1918, Lenin faz com que sejam adotadas
as teses segundo as quais a produção socializada é adminis­
trada pelas organizações operárias, isto é, pelos sindicatos,
conselhos de fábrica, etc.
E ntretanto, esses direitos dos sovietes com portam desde
o início certas limitações; as prerrogativas econômicas do
proletariado, aparentem ente ilimitadas, reduziam-se em últi­
ma análise a um simples controle operário sobre uma produ­
ção que se m antinha submissa a uma gestão tecnocrática da
economia. Desde 5 de dezembro de 1917, a tom ada da econo­
mia pelos sovietes é represada e canalizada por meio de uma
legislação restritiva; as empresas industriais são, na verdade,
ocupadas por um Conselho Superior de Econom ia, cuja
função básica consiste em coordenar autoritariam ente a ação
de todos os órgãos da produção. O decreto de 28 de maio de
1918 estende a coletivização ao conjunto da indústria, trans­
form ando as socializações selvagens dos primeiros meses da
revolução, empresas apenas para o benefício dos trabalha­
dores das respectivas empresas, em nacionalizações submissas
daí em diante às diretivas de uma burocracia cada vez mais
autoritária.
As estruturas hierarquizadas das empresas assim cole-
livizadas são restabelecidas ou mantidas; os diretores e qua­
dros técnicos conservam suas funções, são designados pelo
A REVOLTA DE KRONSTADT 11

Estado. Simultaneamente, o Congresso dos Conselhos de


Economia, que se realiza de 26 de maio a 4 de junho de 1919,
fixa em apenas um terço a participação do trabalhadores na
direção das respectivas empresas, sendo os outros dois terços
nomeados pelas instâncias superiores, os Conselhos regionais
ou o Conselho Superior de Econom ia. Alguns meses depois,
o XI Congresso do Conselho Superior de Econom ia deter­
mina que os Conselhos de fábricas não são qualificados para
dirigir as fábricas, mas sim os Conselhos de administração.
O afastam ento progressivo dos sovietes é concluído em
1920, quando o “ controle” ainda exercido por eles até essa
data passa às mãos da inspeção operária e camponesa, orga­
nismo nom eado pelo Estado. No II Congresso dos Sindi­
catos, que se realiza em abril de 1920, o relator Lozovsky
sintetiza a substituição do poder operário pelo poder político
no futuro da Revolução de O utubro ao declarar: “ Renun­
ciamos aos velhos métodos do controle operário e guardamos
apenas o princípio estatal” .
O despojam ento progressivo dos sovietes é acom pa­
nhado de um reforço quase contínuo do P artido, que acaba
por desfrutar um a exclusividade total. No primeiro Conselho
dos Comissários do Povo, inteiram ente com posto por bol­
cheviques, não havia por que duvidar que a intenção de con­
ferir autoridade plena ao Partido é inerente ao leninismo; é
verdade, contudo, que as circunstâncias históricas particular­
mente dram áticas que a todo mom ento ameaçavam destruir a
obra revolucionária fizeram com que os bolcheviques agissem
como pessoas que, reduzidas a uma autodefesa desesperada,
não têm alternativas.
C ontudo, a passagem da democracia operária à ditadura
do Partido não foi imediata. Após a Revolução de O utubro,
o desejo de ver fo rm a rle um “ governo socialista com preen­
dendo todos os partidos soviéticos” é partilhado por um
número cada vez m aior de pessoas. Assim, a Confederação
geral dos trabalhadores ferroviários avaliando que “ o Con­
selho dos Comissários do Povo, apoiando-se em um só parti­
do, não pode ser reconhecido e sustentado por todo o país” ,
ameaça fazer greve caso este se recuse a form ar um outro
governo que “ tenha a confiança de todos os dem ocratas” .
Essa advertência leva 11 dos 15 comissários do povo a assina­
rem em 4 de novem bro de 1917 uma carta de demissão; eles
12 HENRI ARVON

afirmam que na constituição de um governo de concentração


não se poderia prenunciar outra coisa a não ser “ a m anuten­
ção de um governo puram ente bolchevique por meio do terror
político” . No mês seguinte, Lenin concorda com a entrada
em seu governo dos Socialistas Revolucionários de Esquerda,
isto é, dos representantes do campesinato.
A Revolução de O utubro havia desejado restituir a liber­
dade à imprensa, colocando-a a salvo da “ empresa burgue­
sa” . Esta aproveita para atacar violentamente o governo e em
particular Lenin e Trotsky. “ Lenin” , escreve, por exemplo,
Gorki em seu jornal, “ não é um taum aturgo todo-poderoso,
mas um prestidigitador cínico” para quem “ a classe operária
é como o metal para o metalúrgico” . Lenin responde a esse
ataque com a supressão da imprensa hostil aos bolcheviques
em novembro de 1917.
O decreto que havia instituído o governo dos Comis­
sários do Povo especificou que esse governo estava form ado
“ até a convocação da Assembléia C onstituinte” . A consulta
eleitoral através do escrutínio secreto que tem lugar em 12 de
novembro de 1917 constitui-se num revés para o Partido.
Entre os mais de 36 milhões de eleitores de ambos os sexos,
obtém 25% dos votos, enquanto os socialistas revolucioná­
rios têm 58% , os mencheviques 4% e os liberais C .D . 13%.
A Assembléia reúne-se em 5 de janeiro de 1918 e elege para
presidente Tchernov, socialista revolucionário de direita.
Sendo cham ada a pronunciar-se a respeito de uma “ Decla­
ração de direitos dos trabalhadores e dos explorados” apre­
sentada por Lenin, ela a rejeita por 244 votos contra 151. Um
deputado bolchevique sobe à tribuna para declarar que a
m inoria não tencionava dividir “ a responsabilidade pelos
crimes que os inimigos do povo estavam prestes a com eter” , e
para provar abandona a Assembléia. Como a sessão conti­
nuou pela noite, um marinheiro de K ronstadt, Jelezniakov,
chefe da guarda, fez saber ao presidente Tchernov que era
hora de encerrar a sessão, pois seus homens estavam cansa­
dos. Este obedece; no dia seguinte a Constituinte era dissol­
vida por decreto. Decisão segundo a convicção de Lenin, para
quem “ a república dos sovietes é um a form a de democracia
mais perfeita que a república burguesa com um a Assembléia
C onstituinte” .
Ao adm itir os socialistas revolucionários de esquerda no
A REVOLTA DE KRONSTADT 13

seio do governo, o Partido parecia haver-se acom odado à sua


camaradagem. Mas as relações se deterioraram rapidam ente
a partir do m om ento em que, para remediar a escassez de
alimentos que reina nas cidades superpopulosas, o governo
lança um a “ cruzada do trigo” , encarregando as equipes de
desempregados constituídos em batalhões de “ abastecedo­
res” de requisitar o trigo no cam po. Os camponeses m altra­
tados e espoliados viram-se para seus defensores nomeados,
os socialistas revolucionários de esquerda. Estes assumem sua
causa, tanto mais que haviam sido absolutam ente contrários
ao tratado de Brest-Litovsk assinado com a Alem anha, consi­
derado por eles um a abdicação intolerável do espírito revo­
lucionário ante o imperialismo alemão. O Q uinto Congresso
Pan-russo dos Sovietes, que se abre em julho de 1918, ofe-
rece-lhes a ocasião de se manifestarem contra Trotsky, trata­
do de “ fuzilador” , e acusam Lenin de sacrificar aos operá­
rios a classe camponesa.
A oposição dos socialistas revolucionários de esquerda
tom a as dimensões de uma revolta aberta. P ara protestar
contra o tratado de Brest-Litovsk, dois socialistas revolu­
cionários m atam o embaixador da Alem anha, o conde de
M irbach; o vice-presidente da TCHEKA, “ comissão extraor­
dinária de repressão” fundada em dezembro de 1917, pren­
de seu chefe, entrincheira-se com os “ tchekistas” na rúa
Trekhsviatitelski para atirar contra o Kremlin com os dois
canhões de que dispõem. Em 30 de agosto, Fanny Kaplan
atira com um revólver contra Lenin e o fere gravemente
no braço e no pescoço. Os bolcheviques reagem com ener­
gia e determinação. Os socialistas revolucionários de esquer­
da são expulsos dos sovietes, sofrendo assim a sorte dos
socialistas revolucionários de direita e dos outros partidos
antibolcheviques, que haviam sido excluidos desde abril de
1918. O Sexto Congresso Pan-russo dos Sovietes, reunido em
novembro de 1918, reflete a vitória do Partido; ele conta
com 950 deputados bolcheviques de um total de 967 depu­
tados.
Esse m onopólio do Partido, que é brutalm ente defen­
dido a partir do fím de 1918, está em contradição com a Cons­
tituição da República Socialista Federativa dos Sovietes vota­
da pelo Q uinto Congresso Pan-russo dos Sovietes em 10 de
junho de 1918, mas que jam ais foi aplicada. A História Ofi-
14 HENRI ARVON

ciai do Partido Comunista, aliás, consagra-lhe apenas duas


linhas.
Os sovietes são a partir de então simples órgãos de exe­
cução do Partido, o poder central reina de maneira absoluta;
ele se resume em três organizações: o Bureau político, isto é,
o Partido; o Conselho Revolucionário da G uerra, isto é, o
exército; e a Comissão Extraordinária ou TCHEKA, isto é, a
polícia; dirigidas respectivamente por Lenin, Trotsky e Dzer-
jinski.
A guerra civil, agravada e sustentada pelas intervenções
estrangeiras, que vai de abril de 1919 a dezembro de 1920, fez
aparecer a liquidação do poder dos sovietes e a instauração de
um poder centralizado e totalitário como força da necessida­
de; os bolcheviques colocam-se no centro de um país atrasa­
do, isolado, esgotado pelos anos de guerra e atorm entado por
inimigos irreconciliáveis, que para sobreviver e alcançar a
vitória deve recorrer aos métodos ditatoriais. O comunismo
de guerra, com seu cruel cortejo de exigências brutais e repres­
sões impiedosas, podia passar por um a prática im posta pela
guerra e que desaparecería desde que fosse conseguida a paz.
O ra, os debates que se desenrolam no IX Congresso do
Partido, em m arço de 1920, m ostram bem que a propensão
dos bolcheviques à mais rigorosa das ditaduras não devia
nada ou devia m uito pouco às necessidades da guerra. Discu­
tia-se um problem a que será preocupação freqüente do P arti­
do: o papel que os sindicatos são cham ados a desempenhar
na economia com unista. A hegemonia absoluta do Partido é
confirm ada em um a moção votada, segundo a qual “ os sindi­
catos devem executar essas tarefas (as tarefas econômicas e
educativas) não mais como força independente organizada à
parte, mas no que respeita à m áquina principal do mecanismo
governam ental, guiado pelo Partido C om unista” . A subor­
dinação estreita dos sindicatos ao Estado é justificada por
Trotsky com a ajuda de um argum ento aparentem ente irrefu­
tável. “ Os sindicatos” , diz ele, “ pretendem defender os inte­
resses da classe operária contra o Estado, mas, uma vez que o
listado é ele próprio operário, essa defesa não tem qualquer
sentido.”
O aperto estatal não afrouxa quando term ina a guerra
em dezembro de 1920. A subordinação dos sovietes à vontade
exclusiva do Partido, a militarização dos sindicatos já priva-
A REVOLTA DE KRONSTADT 15

dos de independência, a supressão dos mercados e as exigên­


cias mais duras que já atingiram o cam pesinato provocam um
descontentam ento que é partilhado tanto pelo proletariado
quanto pelo cam pesinato. É nesta situação explosiva que os
marinheiros de K ronstadt, cuja maior parte é de origem cam­
ponesa, e que são apoiados por um a im portante fração da
população operária de Petrogrado, lançam um apelo pelo
retorno à dem ocracia soviética. De certo m odo, esse é o últi­
mo ato de uma com oção revolucionária que, realizada graças
à conjunção dos sovietes autônom os e de um partido rigo­
rosamente disciplinado, encaminha-se inexoravelmente para
a ditadura exclusiva do Partido Comunista.
Este último sobressalto da democracia soviética havia
sido precedido pela tentativa de Néstor M akhno de manter
na Ucrânia um sistema de comunas federadas do tipo anarco-
com unista. Tendo m ontado um exército popular de cinqüenta
mil homens, M akhno havia com batido ao lado dos vermelhos
contra os exércitos brancos de Denikin e de Wrangel. Mas,
levantando-se contra o “ comunismo de guerra” e rejeitando
com violência a intervenção dos “ organizadores” políticos,
isto é, dos revolucionários bolcheviques, ele recusa, depois da
vitória comum sobre os brancos, submeter-se ao governo
bolchevique. É em novembro de 1920 que o exército vermelho
lança contra os makhnovistas uma ofensiva que liquida os
últimos sovietes livres.
As razões da insurreição
D e uma maneira geral, os marinheiros, qualquer que seja sua
nacionalidade, parecem particularm ente permeáveis ao espí­
rito de revolta. Assim, a revolução alemã de 1918 começa
pela recusa das equipagens da frota de alto mar ancoradas
em Kiel e Wilhelmshaven de se lançarem ao mar. Quando se
quer explicar “ o eterno espírito de revolta” , o qual se disse
animava os marinheiros de Kronstadt, convém antes de tudo
levar em conta as condições de vida dos marinheiros a bordo
dos navios de guerra até um presente relativamente recente.
Estas eram particularm ente penosas.
A evolução da técnica nos navios de guerra a partir do
final do século anterior e até as 1.a G uerra M undial limita o
espaço destinado aos marinheiros. Assim, a bordo de um
couraçado, todo o espaço abaixo da ponte blindada é ocupa­
do pelas casam atas e torres, e instalações de artilharia e de
transmissões. À noite, os marinheiros penduram suas redes
nos tetos das baterias e desprendem-nas ainda de m adrugada,
pois as baterias devem estar livres para o com bate e m ano­
bras. As instalações sanitárias são inexistentes; a água potável
é distribuída em conta-gotas. O abastecim ento é frequen­
temente defeituoso; sabe-se que a revolta eclodiu a bordo
do Potem kin quando foi servida carne estragada aos m ari­
nheiros.
Estas condições de vida degradantes foram agravadas
pelo fosso que separava os oficiais dos marinheiros, segre­
gação social tanto mais sensível pois que se produzia no espa-
A REVOLTA DE KRONSTADT 17

ço restrito do navio, em um microcosmo onde os ressenti­


mentos dos marinheiros só podiam se exarcerbar. O corpo de
oficiais da m arinha era urna casta; durante séculos, a bordo
de todos os navios do m undo, a parte posterior ocupada
pelos oficiais estava estritamente separada da proa, onde se
instalava a equipagem.
Ora, essa diferença era particularmente pronunciada a
bordo dos navios de guerra russos: os oficiais da marinha
imperial eram quase todos descendentes de um a nobreza
ciosa de seus privilégios e pouco instruída. Agora que o nível
intelectual das equipagens se havia elevado, os navios mais e
mais aperfeiçoados exigindo especialistas de toda ordem, os
oficiais da m arinha russa continuavam a tratar o marinheiro
diplom ado canhoneiro, eletricista ou mecânico como muji-
que1atrasado.
O espírito de revolta que sem dúvida reinava em estado
latente em toda a frota russa era particularm ente sustentado,
anim ado e em certos momentos levado à incandescência pela
situação geográfica de Kronstadt. Ao mesmo tempo porto
militar, cidade e fortaleza, K ronstadt ocupa a extremidade
oriental da ilha de Kotlin, situada no Golfo da Finlândia,
trinta quilôm etros apenas a oeste de Leningrado, que até
1924 se cham ava Petrogrado.
Ora, as relações entre K ronstadt e Petrogrado eram
asseguradas durante todo o ano, de sorte que K ronstadt vivia,
por assim dizer, segundo a hora da capital. Antes da 1? Guer­
ra M undial, os vapores ligavam as duas cidades durante os
meses de verão. No inverno, entregavam a pesca de Kronstadt
a O raniem baum , cidade situada ao sul da ilha de Kotlin, que
daí era conduzida a Petrogrado por trem. Não era de espan­
tar que a partir de 1917 uma verdadeira interação revolucio­
nária se estabelecesse entre Petrogrado e os marinheiros de
Kronstadt, a cidade estimulando seu ardor pela ação e, por
sua vez, alimentando-se dei*
O primeiro ato de bravura revolucionária dos marinhei­
ros conseguinte à Revolução de Fevereiro é sangrento e atroz.
Em 28 de fevereiro os marinheiros superexcitados capturam
o almirante R. Viren, com andante da base, carregam-no
para a praça da  ncora que, situada no centro da cidade e

1 Mujique: camponês russo. {NT)


18 HENRI ARVON

podendo com portar 25 mil pessoas, torna-se daí em diante


o foro onde se desenrolam todos os acontecimentos revolu­
cionários im portantes, e o executam sumariamente. Quarenta
oficiais da m arinha e do exército têm a mesma sorte enquanto
outros duzentos oficiais são colocados na prisão.
O impulso revolucionário que dom ina os marinheiros de
K ronstadt — eles estão entre os primeiros a instituir a elegi­
bilidade do com ando e a suprimir a patente dos ombros, sím­
bolo da autoridade dos oficiais tão odiado que durante a
guerra civil os vermelhos prendiam -na nos ombros dos ofi­
ciais brancos feitos prisioneiros — opõem-nos fatalmente à
moderação do Governo Provisório, cuja maior preocupação
é a guerra com a Alem anha. Desde 1917, Kronstadt, consi­
derada como um ponto alto da revolução, passa por um peri­
goso foco de agitação contínua. Os jornais burgueses não
hesitam em im putar aos kronstadinos a intenção de se consti­
tuírem em república independente, cunhando sua própria
moeda e exortando as conferências de paz com os alemães,
desejando concluir com eles um tratado de paz separado.
A desconfiança do Governo Provisório com relação a
K ronstadt parece encontrar uma confirm ação manifesta
quando, em 26 de maio de 1917, o soviete de K ronstadt, for­
talecido por um a autonom ia que proclam a em altavoz, decla­
ra-se prestes a iniciar negociações com o Governo Provisório
em igualdade de condições. “ O poder encontra-se aqui de
hoje em diante” , declara explícitamente, “ nas mãos dos
sovietes dos operários, soldados e m arinheiros. O soviete de
K ronstadt coloca-se em contato com o Governo Provisório
para os negócios que interessam a todo o país.”
Na homenagem que rende à “ Com una de K ronstadt”
em 1923, Efim Y artchuk, que foi um dos membros desse
Soviete e que alcança certa notoriedade pelo papel de condu­
tor quando dos acontecimentos de julho em Petrogrado,
insiste sobre o caráter libertário das novas estruturas estabele­
cidas pelo Soviete. Em conform idade com os princípios anar­
quistas, aos quais adere Yartchuk, a sociedade kronstadina
encontra-se reconstruída a partir da base.

“ Durante esse tempo” (de 1917 a 1921), escreve Efim Yart-


chuk, “ Kronstadt tentava traçar uma prática construtiva. A
Uniflo dos Agricultores, organização dos operários possuindo
A REVOLTA DE KRONSTADT 19

uma ligação com o campo, pediu a todos aqueles que pos­


suíam ferros-velhos que os dessem para fabricar utensilios de
agricultura. A comissão técnica e militar do soviete cedeu até
uma certa quantidade de metal proveniente de velho material
militar (muitas peças de artilharia datavam quase de Pedro, o
Grande. Ele havia acumulado um depósito colossal). Os ope­
rários, membros da união, organizaram uma oficina especial
onde trabalhavam em suas horas de folga, à razão de muitas
horas por dia cada um. Os especialistas técnicos, os soldados
e marinheiros ajudaram-nos igualmente. Fabricaram foices,
relhas de arado, pregos, ferraduras. Todo o material fabri­
cado era relacionado em listas completas no Izvestia do
Soviete de Kronstadt. Cada objeto tinha a estampada “ União
dos Agricultores de Kronstadt” . Dava-se aos agitadores do
soviete, que seguiam para os campos, de acordo com as pos­
sibilidades, os objetos e instrumentos fabricados por essa
união; aos camponeses eram oferecidos por intermédio de
seus sovietes locais...
“ Foi então elaborado o princípio das comunas de cultura.
Essa organização forma-se da seguinte maneira: um grupo de
10 a 60 citadinos, segundo o local de trabalho ou domicílio,
entra em acordo por uma cultura comum da terra...
Já em 1918 as comunas de cultura ajudaram bastante os
kronstadinos na luta contra a fome. Depois da colheita, depois
de descontada a parte das famílias do comitê de abastecimen­
to, cada “ comuneiro” obtinha em média 10 quilos de legu­
mes. Na maioria das comunas a repartição se fazia segundo o
número de dias de trabalho...
As comunas confirmaram-se vigorosas; elas existiam sob a
mesma forma em 1921. Era a única organização que os bol­
cheviques não haviam suprimido. Isso talvez possa ser expli­
cado pelo fato de que Kronstadt opunha-se fortemente aos
decretos dos bolcheviques e defendeu por muito tempo sua
independência.”

A existência dessas com unas, preciosas segundo Kro-


potkin, que a Revolução de O utubro fez se estenderem por
toda a Rússia durante um breve período, testem unha sem
dúvida uma forte penetração das idéias anarquistas junto aos
marinheiros de K ronstadt, pelo menos em 1917, quando essa
organização tipicam ente libertária é adotada por eles. Com
efeito, conta-se então entre eles três fortes personalidades que
se proclamam abertam ente anarquistas: Efim Yartchuk, que
20 HENRI ARVON

se torna anarco-sindicalista após 1903; I. S. Bleikhman, que,


em 1917, faz discursos inflamados na praça da Áncora; e o
jovem marinheiro A natole Jelezniakov, que, com andando o
posto da guarda do Palácio onde funciona a Constituinte,
consegue dissolvê-la em 19 de janeiro de 1918, quando os
elementos de direita, depois de terem obtido a maioria nas
eleições, levam vantagem.
Pode-se afirm ar, portanto, que a insurreição de março
de 1921 deve ser atribuída à persistência da influência anar­
quista? Deve-se com partilhar a opinião comum dos anarquis­
tas que, tanto em Petrogrado quanto em Moscou, tom aram
para si o motim de Kronstadt, identificando-se com os m ari­
nheiros, e que depois não cessaram de inscrever essa revolta
em seu rol de prêmios, constituído mais de fracassos que de
sucessos, e dos bolcheviques, que se comprazem em denun­
ciar o caráter intrínsecamente anarquista de K ronstadt? Deve-
se acreditar no jornal bolchevique de Riga, N o vy Puts (O
Novo Cam inho), quando afirm a em seu número de 19 de
março, dia seguinte à derrota de K ronstadt: “ Os marinheiros
de K ronstadt são em sua maioria anarquistas. Eles não se
situam à direita dos bolcheviques, mas à sua esquerda. Em
seu último telegram a, declararam: ‘Viva o poder soviético!’
Nem uma única vez declararam: ‘Viva a Assembléia Consti­
tuinte !’ Temos aqui uma revolta de esquerda e não um a insur­
reição de direita” .
Certam ente, os marinheiros de 1921 são anarquistas na
medida em que o próprio Lenin é “ anarquista” em 1917
quando lança a palavra de ordem “ Todo o poder aos Sovie­
tes” ; eles permanecem fiéis à concepção de um a ordem livre
sobre a ação autônom a das unidades locais. Mas é um anar­
quismo de certo m odo instintivo que sustenta suas exigências
c que lhes fornece as palavras de ordem de ressonância anar­
quista, tais como “ Sovietes Livres” , “ Abaixo a Comissocra-
cia” , “ Terceira Revolução” : não obstante, o fundam ento
ideológico de todo o anarquismo, ou seja, a hostilidade incon­
dicional a todo poder político, qualquer que seja ele, quase
iino aparece em suas proclamações de 1921.
Entre os dirigentes não há qualquer um que se reclame
• M"« ■míenle anarquista. É possível que Perepelkin, mem-
I n o dii ( omilê Revolucionário Provisório e na qualidade de
i ui iiiM'itndo da agitação e propaganda, tenha sido anarquis-
A REVOLTA DE KRONSTADT 21

ta; ainda assim, não é certeza. Q uanto aos “ veteranos” anar­


quistas de 1917, estão ausentes no mom ento da torm enta de
1921. Y artchuk vive então em Moscou, estreitamente vigiado
pela TCHEKA; depois do esmagamento de K ronstadt ele é
preso, como todos os anarquistas de Petrogrado, Moscou e
de quase toda a Rússia, e deve à intervenção dos delegados
estrangeiros vindos para assistir ao III Congresso da Interna­
cional Com unista em junho de 1921 o fato de ter sido expulso
em vez de fuzilado. O orador anarquista I. S. Bleikhman
morre alguns meses antes da insurreição. O marinheiro Jelez-
niakov, que parte para o fr o n t para com bater os Brancos
como tantos outros marinheiros revolucionários, tom ba
durante a guerra civil.
M antendo um contato permanente com Petrogrado ao
longo de todo o ano crucial de 1917, os marinheiros de Krons­
tadt participam ativamente dos motins que se desenrolam em
3, 4 e 5 de julho. Assim, em 4 de julho, cerca de 12 mil operá­
rios, operárias, marinheiros e soldados deixam Kronstadt de
m adrugada, desembarcam nas margens do Neva e colocam-se
em m archa em direção ao Palácio Táurida, onde está a sede
do governo provisório, ostentando as bandeiras pretas e ver­
melhas, brandindo os slogans “ Todo o poder aos sovietes
locais dos delegados dos operários, camponeses e soldados” e
“ A fábrica para os operários — a terra para os camponeses” .
Após a derrota dessas manifestações, Kerensky, então
ministro da G uerra e da M arinha, envia em 7 de julho uma
mensagem oficial ao soviete de K ronstadt, na qual denuncia a
insubmissão perm anente dos marinheiros de Kronstadt; como
o debate entre o Governo Provisório e a extrema-esquerda
estava sobretudo cristalizado em torno do problem a da conti­
nuação ou do cessar da guerra contra a Alem anha, ele os
acusa de estar a soldo do inimigo.

“ Desde o início da revolução, em Kronstadt e em certos navios


da Frota Báltica, sob a influência de agentes da Alemanha,
têm surgido elementos incitando atos perigosos para a revo­
lução e para a segurança da pátria...” Depois de ter feito
saber que havia mandado prender uma delegação kronstadina
que participara dos motins, Kerensky ordena “ às equipagens
dos navios de linha Petropavlosk, Respublika e Slava, que
são suspeitos de atividade contra-revolucionária e culpados
22 HENRI ARVON

de terem votado resoluções hostis ao Governo Provisório,


que detenham num prazo de 24 horas os chefes e conduzam-
nos a Petrogrado para instrução e julgamento, assim como
assegurar sua submissão ao Governo Provisório” .

O soviete de K ronstadt opõe franca recusa às exigências


de Kerensky; declara ser soberano no que concerne às deci­
sões relativas a K ronstadt, condena as prisões efetuadas pelo
Governo Provisório e trata de calúnia repugnante as alusões à
influência dos agentes da Alemanha.
Depois de ter contribuído para a derrota do complô do
general Kornilov participando aos milhares da defesa de
Petrogrado, os marinheiros de K ronstadt distinguem-se por
seu ardor revolucionário quando da Revolução de O utubro.
Numerosos são aqueles que se juntam aos Guardas Verme­
lhos quando do assalto ao Palácio de Inverno, enquanto o
cruzador A urora tenta desmoralizar os defensores disparando
com os canhões.
Durante toda a guerra civil de maio de 1918 a dezembro
de 1920, os marinheiros de K ronstadt participam em grande
número das operações militares; freqüentemente, eles se
constituem na ponta de lança do Exército Vermelho. É a esse
engajamento massivo dos marinheiros de K ronstadt na guerra
civil que Trostky, em seu artigo “ Luta O perária Belga” , de
26 de fevereiro de 1938, atribui a inversão ideológica que se
produz em K ronstadt e que está na base da tragédia de 1921.
Os marinheiros revolucionários de 1917, tendo em sua maio­
ria tom bado nos combates da guerra civil e os sobreviventes
tendo sido substituídos por outros, K ronstadt foi obrigada,
segundo Trotsky, a recrutar os novos marinheiros não como
no passado, entre o proletariado de Petrogrado consciente de
seus interesses de classe, mas entre o cam pesinato, que era
indiferente senão hostil à luta revolucionária, e, pior, entre o
campesinato ucraniano, infestado daquele espírito “ de anar-
co-banditism o” que M akhno e seus seguidores opunham à
ideologia bolchevique. P ara Trotsky, o marinheiro de 1921
não era mais o com batente revolucionário cujo nível político
era superior ao do Exército Vermelho em seu conjunto, mas o
mujique inculto e fácil de m anipular pelos adversários do
regime.

*
A REVOLTA DE KRONSTADT 23

Sem dúvida existe um a parcela de verdade nesta expli­


cação sobre a aparente m udança ideológica dos marinheiros.
Segundo as estatísticas oficiais, em 1921 mais de três quartos
dos marinheiros são de origem cam ponesa, porcentagem
bastante superior à de 1917. Pode-se objetar que a insurreição
propriam ente dita foi dirigida pelos velhos, por Petrichenko,
que estava engajado desde 1912, e por Iakovenko, que se
distinguiu nos com bates de 1917. Permanece, contudo, o fato
de que esses dois dirigentes partilham com os jovens recrutas
a origem ucraniana, que são portanto, em princípio, permeá­
veis ao descontentam ento camponês particularm ente sensível
na Ucrânia e que, em 1921, atinge raro nivel de exacerbação.
C ontudo, é possível rem ontar às origens da revolta até à
época em que os marinheiros pareciam fazer corpo com a
Revolução. Q uando em 7 de novem bro Lenin procede à for­
mação de um governo puram ente bolchevique, os m arinhei­
ros, libertários n ’alma e por essa razão inimigos de toda a
concentração de poder, pronunciam-se em favor de um gover­
no de coalizão com preendendo todos os grupos socialistas.
Mas é principalmente o Tratado de Brest-Litovsk, concluído
com a Alem anha em 3 de março de 1918, que os coloca contra
o poder bolchevique; eles tom am o lado dos comunistas de
esquerda, que criticam Lenin pela submissão ao imperialismo
alemão e pelo abandono da revolução alemã. Dois motivos
que lhes são particulares reforçam sua posição. Por um lado,
enquanto m arinheiros, eles temem que o governo liquide a
frota para satisfazer as exigências alemãs, por outro lado,
estando a U crânia ocupada pela A lem anha, eles querem
evitar a qualquer preço que seu país de origem se desligue da
República dos Sovietes.
Será todavia redução simplista da im portância da insur­
reição de K ronstadt buscar a razão unicamente nos proble­
mas colocados para os marinheiros pela Revolução de O utu­
bro. Como sempre, a causa ultrapassa em m uito as preocu­
pações imediatas daqueles que a defendem. A bem dizer, o
risco da luta em penhada temerariamente por K ronstadt é a
natureza do poder que, nos primeiros anos de uma nova era,
oscila entre os sovietes e o partido, entre a democracia popu­
lar e a ditadura do proletariado, enfim, entre a espontanei­
dade e a consciência. Com o no final das contas é Lenin quem
modela o novo poder, é a ele, teórico e homem político, que
24 HENRIARVON

se deve recorrer para determ inar os dados de um conflito que


o próprio bolchevismo carrega em seus flancos.
Seria falso acreditar que o ensinam ento e a ação revolu­
cionários de Lenin reduzem-se a urna única doutrina; um
abismo separa o autor de Que Fazer?, publicado em 1902, do
autor de O Estado e a Revolução, redigido às vésperas da
Revolução de O utubro.
A discussão que, no II Congresso do Partido Operario
Social-Democrata, de 1903, opõe os bolcheviques aos men­
cheviques, repousa essencialmente na concepção do partido:
a social-democracia deve contar com o levantam ento espon­
tâneo das massas e se contentar em orientá-lo a posteriori, ou
deve ser o m otor e o guia da ação revolucionária à qual arras­
taria as massas impondo-lhes uma disciplina quase militar?
Lenin não hesita diante desta alternativa; sua escolha é
im posta pelos dados específicos da realidade russa, a saber, a
existência de um a intelligentsia revolucionária sobrepondo-se
a um povo am orfo e apático, e uma autocracia cujo poder
repressivo encarnado pela OKHRANA obriga toda a oposi­
ção a agir na mais estrita clandestinidade. Lenin também
aborda as discussões do Congresso que o opõem aos menche­
viques M artynov, M artov e Axelrod com um a imagem bas­
tante precisa do partido a ser criado.

“ Afirmo” , havia ele escrito no jornal ilegal Iskra, às vésperas


do Congresso: “ 1) que não haverá movimento revolucioná­
rio sólido sem uma organização de dirigentes estável e que
assegure a continuidade do trabalho; 2) que quanto mais
numerosa for a massa envolvida espontaneamente na luta ...
mais imperativa é a necessidade de haver uma tal organiza­
ção, mais essa organização deve ser sólida ...; 3) que tal orga­
nização deve compor-se principalmente de homens que têm
por profissão a atividade revolucionária; ...”

A concepção leninista de partido é tanto mais m ono­


lítica quanto se apóia sobre a preferência que a social-demo­
cracia alemã de então dá à consciência de classe, opção que
justifica sua organização quase militar. Também no Que
Fazer? Lenin reproduz a seguinte passagem, escrita em 1901
pelo teórico mais im portante da social-democracia alemã,
Karl Kautsky: “ A consciência socialista é um elemento im por­
tado de fora na luta de classes do proletariado e não algo que
A REVOLTA DE KRONSTADT 25

surgiu espontaneam ente. O portador da ciência não é o prole­


tariado, mas a categoria dos intelectuais, foi do cérebro de
certos indivíduos dessa categoria que nasceu o socialismo” .
Lenin adota a tese de Karl Kautsky, que permanece
como orientação até o início da 1.a G uerra M undial. Duvi­
dando por sua vez das massas operárias, ele lhes concede essa
consciência trade-unionista, à qual os “ econom icistas” ape­
lam para reduzir o movimento operário a um sindicalismo
estreito e reform ista, e sobre a qual ele encontra um estudo
exaustivo em The H istory o f Trade-unionism, de Beatrice e
Sidney W ebb, que ele havia acabado de traduzir na Rússia.
“ A história de todos os países atesta” , ele constata peremp-
toriam ente em Que Fazer? e com o risco de ser ver contradi­
tado não m uito tem po depois pela geração espontânea dos
sovietes em 1905, e mais tarde, em uma escala mais vasta, em
1917, ‘‘que, pelas próprias forças, a classe operária não pode
chegar senão à consciência trade-unionista, isto é, à convic­
ção de que é preciso unir-se em sindicatos, conduzir a luta
contra os p atrõ e s...”
Essa recusa da espontaneidade por Lenin é motivada
essencialmente pela derrota do populismo. Os narodniki
(populistas) haviam colocado todas as suas esperanças na
capacidade de “ autoliberação” do povo russo, que para eles
se confundia com as massas camponesas, mas haviam sido
cruelmente traídos pela inércia quase congênita do campe­
sinato de seu país. Diante de uma ‘‘m ultidão” passiva, eles
decidem a partir de então assumir por seus próprios meios o
papel de “ heróis” ativos; reunidos na organização Narodnaia
Volia (A Vontade do Povo), contam com o terror para des­
pertar os instintos revolucionários das massas. O assassinato
do czar Alexandre II, em 1? de março de 1881, constitui nesse
sentido o ponto culminante de sua atividade. Após os anos 80
o populismo terrorista, incapaz de agitar as massas, declina
sem contudo desaparecer da cena política da Rússia; sua
sucessão será assegurada pelos “ socialistas-revolucionários” .
Os sovietes dos deputados operários que surgem aos
poucos em toda parte no final de 1905 e que exercem, de
acordo com os locais e m om entos, um poder ora oculto, ora
aberto, discordam da tese de Lenin. O mais im portante dos
sovietes é o de São Petersburgo, que dura três meses. Os
representantes dos partidos políticos são admitidos apenas a
26 HENRIARVON

título consultivo, apesar dos protestos do comité bolchevique


local. Lenin hesita diante de uma manifestação revolucio­
nária que não se enquadra em suas convicções íntimas; ele
não admite o soviete senão num a perspectiva puram ente táti­
ca. “ O soviete dos deputados operários” , ele escreve, ‘‘não é
um parlam ento operário ou órgão de autogoverno proletário,
é uma organização de com bate buscando fins determ inados.”
É em 1917 que Lenin parece adotar uma nova concepção
de poder político. Convencido no início da necessidade abso­
luta de um poder fortemente centralizado que confie o exer­
cício ao partido, Lenin vê surgir em 1917 os sovietes de 1905
numa escala m uito grande e com um a eficácia maior. Em
seguida a um a greve geral espontânea nas fábricas de São
Petersburgo, os sovietes se formam a fim de coordenar, na
ausência de todo o movimento sindical, a ação reivindicatória
das fábricas em greve. Depois de ter considerado o movi­
mento revolucionário como devendo cam inhar de cima para
baixo, Lenin vê desenvolver-se subitamente um impulso revo­
lucionário que age eficazmente no sentido inverso. Tático
hábil que acredita ter desta vez a revolução ao alcance da
mão, ele adm ite esta nova realidade constituída pelos sovie­
tes, nascidos precisamente de uma espontaneidade cuja eficá­
cia revolucionária ele não havia cessado de negar. Em O Esta­
do e a Revolução, livro inacabado, pois sua redação é inter­
rompida pela Revolução de O utubro, o poder político é enca­
rado, sob a impressão recente da geração espontânea dos
sovietes, como um a estrutura essencialmente igualitária na
base, enquanto que no escrito de 1902, Que Fazer?, o poder
político reveste um a form a autoritária.
Lenin preconiza um socialismo cujo funcionamento será
assegurado pelos sovietes e que, dessa form a, estará prote­
gido contra todas as tentativas de reconstrução de uma buro­
cracia parasita e opressiva. “ É certo” , ele escreve em O Esta­
do e a Revolução, ‘‘que na sociedade socialista uma ‘espécie
de P arlam ento’ com posto por deputados operários determi­
nará o regime do trabalho e fiscalizará o funcionam ento do
‘aparelho’, mas esse aparelho não será ‘burocrático’.”
A antiga concepção de um poder político exercido de
cima para baixo por meio de “ ministérios” é rejeitada por
Lenin. Estes últimos “ não poderíam ser substituídos” , per­
gunta-se Lenin, “ pelas comissões de especialistas dos sovietes
A REVOLTA DE KRONSTADT 27

soberanos e todo-poderosos dos deputados operários e sol­


dados?”
Preconizando ‘‘urna república dem ocrática do tipo da
com una ou urna república dos sovietes dos deputados operá­
rios e soldados” , Lenin não hesita em propor medidas que já
haviam sido colocadas pela Com una contra os “ burócratas”
na esperança de to rn ar dessa form a todo o retorno ofensivo
do Estado impossível:

“ 1) Não apenas elegibilidade mas também revogabilidade a


qualquer momento;
2) Salário não superior ao do operário;
3) Adoção imediata de medidas a fim de que todos se tor­
nem por um tempo ‘burocratas’ e dessa forma n in g u é m
possa tornar-se ‘burocrata’” .

Lenin, é verdade, só aceita essas utopias a longo prazo,


e tem a intenção de rejeitá-las no futuro. Mas está convencido
de que se trata de um a evolução necessária colocada pelo
capitalismo. “ N ão seria questão” , ele escreve em O Estado
e a Revolução, “ de suprimir de um a só vez, em toda parte e
com pletamente, a burocracia. Isso é utopia. Mas suprimir
imediatamente a velha m áquina adm inistrativa para iniciar
sem dem ora a construção de uma nova, que permitiría supri­
mir gradualm ente toda a burocracia, isso não é utopia, é a
experiência da Com una, é a tarefa direta, im ediata, do prole­
tariado revolucionário. O capitalismo simplifica as funções
administrativas do ‘E stado’, permite abolir a ‘hierarquia’ e
conduzir uma organização dos proletários (enquanto classe
dominante), que, em nome de toda a sociedade, engaja ‘os
operários, supervisores e os funcionários adm inistrativos’.”
C om parando os dois escritos de Lenin, Que Fazer? e O
Estado e a Revolução, pode-se dizer que se trata de duas con­
cepções sucessivas, uma oposta à outra? Isso seria desconhe­
cer o fato de que Lenin é menos doutrinário que homem de
ação. Em sua luta contra o governo provisório ele utiliza
todas as armas; decide servir-se dos sovietes, que considera
simples órgãos de insurreição; jamais considerou reconhecê-
los como órgãos de governo autônom o. Em conform idade
com sua profunda convicção segundo a qual “ o social-demo-
crata é um jacobino unido às massas” , Lenin procura, em
28 HENRIARVON

realidade, a tom ada do poder pelo partido servindo-se dos


sovietes.
Essa passagem dos sovietes ao partido, da democracia
operária à ditadura do proletariado, que é, como Bakunin
havia distinguido meio século antes, um a ditadura dos inte­
lectuais sobre o proletariado, é acelerada, é verdade, pelas
necessidades da guerra civil. Mas desde julho de 1917, quando
os sovietes declaram-se de acordo com a participação dos
mencheviques e dos socialistas-revolucionários no governo
provisório, Lenin renuncia à palavra de ordem “ todo o poder
aos sovietes” . “ Reclamar a transmissão do poder aos sovie­
tes seria h o je” , constata ele, “ quixotismo ou zom baria.” Daí
em diante não há mais para ele solução soviética. “ A lu ta” ,
ele escreve, “ não pode ter outro objetivo que não a tom ada
do poder pelo proletariado sustentado pelos camponeses
pobres, visando a aplicação do program a de nosso p artido.”
Se, no mês seguinte, diante do complô do general Kornilov,
Lenin retom a a velha palavra de ordem do poder aos sovietes,
é pelo fato de seu partido ter-se tornado m ajoritário nos
sovietes de Petrogrado e de Moscou; ele não é favorável aos
sovietes, a menos que obedeçam os bolcheviques.
A liquidação da dem ocracia soviética pelos bolcheviques
reflete-se na com posição sucessiva dos congressos pan-russos
dos sovietes. No primeiro congresso, que se realiza em junho
de 1917, não há mais que 103 bolcheviques entre os 790 depu­
tados; no sexto congresso, que se realiza em novembro de
1918, há 950 bolcheviques entre 967 deputados. O Congresso
Pan-russo dos Sovietes e seu Comitê Executivo Central tor­
nam-se a partir de então uma simples câm ara de registro das
decisões tom adas pelo partido. O poder é estritamente centra­
lizado; é detido por três órgãos: o Bureau político, dirigido
por Lenin; o Conselho Revolucionário da G uerra, dirigido
por Trotsky; e a Comissão Extraordinária ou VETCHEKA,
isto é, a polícia, dirigida por Dzerjinski.
Q uanto à burocracia, desabrocha necessariamente quan­
do um partido cuja estrita hierarquização é ainda acentuada
pela militarização, como foi o caso do partido bolchevique
durante a guerra civil, instala-se no exercício do poder polí­
tico e deixa, dessa form a, de ser revolucionário. Burocracia
tanto mais dócil às injunções do partido quanto se recruta
menos entre os antigos membros do partido, dos quais a
A REVOLTA DE KRONSTADT 29

maior parte pereceu durante a guerra civil, que entre os novos


membros, cujo oportunism o desenfreado acomoda-se facil­
mente a um a total sujeição às ordens do partido. Assim,
Trotsky acredita poder atribuir a alteração do ideal revolu­
cionário ao advento das novas “ elites” . “ Os representantes
mais notáveis da classe operária” , ele escreve em A Revolu­
ção Traída, “ tendo perecido na guerra civil, ou subido alguns
degraus, desligaram-se das massas. Desta maneira sobrevêm,
após uma prodigiosa tensão de forças, esperanças e desilu­
sões, um longo período de cansaço, depressão e desilusão. O
refluxo da ‘altivez plebéia’ teve em conseqüência um afluxo
de oportunism o e de pusilanimidade. Essas marés levaram ao
poder uma nova cam ada de dirigentes.” E acrescentando às
colocações subseqüentes, que dizem m uito sobre esse fenô­
meno que o chefe menchevique Axelrod, dotado de rara pres-
ciência, havia denunciado antecipadam ente qualificando-o
de “ absolutism o burocrático” : “ A desmobilização de um
Exército Vermelho de cinco milhões de homens teve neces­
sariamente de representar na form ação da burocracia um
papel considerável. Os com andantes vitoriosos tom aram os
postos im portantes nos sovietes locais, na produção, nas
escolas, e isso acabou por levar a toda parte, obstinadam ente,
o regime que os tinha feito ganhar a guerra civil. As massas
foram pouco a pouco eliminadas da participação efetiva no
poder” .
O próprio Lenin inquieta-se com essa burocracia tenta-
cular que progressivamente invade o aparelho de Estado. Em
seu discurso sobre O im posto em espécie, após o VIII C on­
gresso dos Sovietes, que discutiu a questão do burocratismo,
e após o X Congresso do Partido Com unista Russo (março de
1921), que ordenou o balanço dos debates estreitamente
am arrados à análise do burocratism o, ele declara: “ Na pri­
mavera de 1921 vemos esse mal erguer-se diante de nós ainda
mais claro, mais preciso, mais am eaçador” . Lenin, bem
entendido, não liga esse fenômeno, que am eaça paralisar a
vida econômica e política do jovem Estado, à natureza jaco­
bina do partido do qual é inspirador e cuja organização cen­
tralizadora exige a manutenção de uma rede burocrática extre­
mamente densa, mas às causas efêmeras devidas ao atraso da
Rússia e ao estado de guerra em que se acha mergulhada;
atacado e encurralado em uma resistência excessiva, o pro-
10 HENRIARVON

letariado dá cam inho ao mais urgente; para poder consa­


grar todas as suas forças à luta revolucionária foi necessário
aum entar desmesuradamente o aparelho da ditadura em com­
paração com os recursos materiais disponíveis.
Entre as múltiplas causas que provocaram a insurreição
de K ronstadt, a situação catastrófica do campesinato, do
qual provém a maioria dos marinheiros, teve sem dúvida um
papel determ inante. A definição do povo russo feita por Ale­
xandre Herzen no número de janeiro de 1868 do jornal Kolo-
ko l (O Sino) ainda era válida meio século depois: “ Descen­
dentes de colonos e não de conquistadores, somos um povo
de camponeses dominados por uma cam ada superficial de
destacados” . É essa “ cam ada superficial de destacados” que
constitui o elemento m otor da Revolução de O utubro, um
proletariado urbano pouco numeroso dirigido por um peque­
no número de intelectuais revolucionários. Portanto, é evi­
dente que, para am pliar a base do poder bolchevique, Lenin
devia associar o campesinato ao proletariado. No próprio dia
de sua chegada a Petrogrado em 1917, em suas “ Teses de
Abril, ele reclama não apenas a paz imediata, mas lança simul­
taneamente a palavra de ordem “ A terra aos camponeses e as
fábricas aos operários” . Aparentem ente, essa aliança se con­
cretiza nos sovietes, que compreendem ao mesmo tem po os
operários, camponeses e soldados.
H á, entretanto, um a profunda divergência entre as
verdadeiras aspirações do proletariado e do campesinato;
enquanto os proletários buscam estabelecer o comunismo
que, por definição, implica a abolição da propriedade pri­
vada, os camponeses, por esta razão qualificados de “ peque-
no-burgueses” pelos bolcheviques, estão em luta pela pro­
priedade privada. Esta é para eles uma aspiração secular que
jam ais havia sido satisfeita. Até a instauração da servidão no
final do século XVI, a terra cabia à com unidade, que dele­
gava a posse a cada trabalhador. A longa servidão tornou
ainda mais candente “ a religião da te rra” professada pelo
camponês russo frustrado há tanto tem po. Assim, desde o
surgimento dos primeiros sovietes, em março de 1917, os
camponeses apossam-se das terras da nobreza sem esperar a
reunião da C onstituinte; no mom ento da Revolução de O utu­
bro, a terra p ara os camponeses não é mais uma exigência que
cabe ser satisfeita, mas um fato inscrito na realidade russa, à
A REVOLTA DE KRONSTADT 31

qual convém prover uma existência legal. Mas o campesinato


não iria ganhar m uito tempo com as novas terras adquiridas.
A guerra civil lhe traz conseqtiências desastrosas. A neces­
sidade de fornecer alimentos, a qualquer custo, para as cida­
des e para o exército, leva os bolcheviques a praticar, frequen­
temente de m aneira brutal e abusiva, pesadas requisições no
cam po. O “ com unismo de guerra’’, que cobre os três primei­
ros anos da Revolução, priva os camponeses não apenas do
fruto de seu trabalho, mas às vezes até de seus instrumentos
de trabalho e sementes indispensáveis. “ A essência do com u­
nismo de guerra” , Lenin reconhece mais tarde, “ era que nós
tomávamos do camponês todo o seu excedente, e às vezes não
apenas seu excedente mas um a parte dos grãos de que ele
precisava para se alim entar.”
O utra causa de descontentam ento, menos explosiva pelo
fato de não dizer respeito à sobrevivência imedita, mas mais
profunda e durável porque revelava o fosso intransponível
que separava o campesinato dos com unistas, foi a criação,
em plena guerra civil, das fazendas de Estado em muitos
domínios que haviam sido da nobreza. Assim, a divisão geral
das terras visadas pelos decretos agrários que os bolcheviques
haviam prom ulgado em 26 de outubro de 1917 e em 19 de
fevereiro de 1918 parecem promessa vã. O próprio Lenin
resume bem a m entalidade dos camponeses frustrados com o
confisco parcial das terras pelo Estado, escrevendo que “ o
camponês pensa: já que existem as grandes explorações, vou
me tornar operário agrícola” .
A hostilidade do campesinato no que diz respeito ao
Estado é tanto mais viva que aquele, movido por uma des­
confiança secular em relação ao poder central, só reconhece a
com una rural; ele guarda no espírito as gigantescas jacque-
ries2 do passado e venera seus chefes, Stenka Razin, chefe de
uma revolta cam ponesa que vai de 1667 a 1670, e Pugatchev,
que subleva os cossacos em 1773. Tem endo perder as terras,
cuja posse acabavam de tom ar, os camponeses apoiam os
bolcheviques durante a guerra civil ou, quando menos, supor­
tam passivamente as requisições freqüentemente abusivas.
Mas quando o perigo branco é afastado, as jacqueries reben-

2 Jacquerie: insurreição de camponeses contra a nobreza, na França, em


1358; designação de qualquer levante camponês. iNT)
32 HENRIARVON

tam em toda parte. Em fevereiro de 1921, isto é, às vésperas


da insurreição de K ronstadt, um relatório da TCHEKA de­
nuncia 118 movimentos insurrecionais por todo o país.
A ilustração mais clara do estado de espírito do campe­
sinato russo após a Revolução de O utubro é sem dúvida for­
necida pela atitude que os camponeses adotam na Ucrânia. O
ucraniano Néstor M akhno, antigo trabalhador de fazenda,
iletrado, mas dotado de um prodigioso espírito de liderança,
fascina e arrasta irresistivelmente seus com patriotas para
o cam inho de um a revolução que se pode qualificar tanto
de populista quanto de anarquista. A construção de um siste­
ma de comunas federadas em vastas zonas é acom panhada
da constituição de um exército popular de 50 mil homens.
Com andado por M akhno, que se revela um estrategista nato,
este ajuda o Exército Vermelho a derrotar os Exércitos Bran­
cos de Denikin e de Wrangel. Mas, contrários à política
centralizadora do “ comunismo de guerra” e rejeitando com
violência a intervenção dos “ organizadores” políticos, isto é,
os bolcheviques, os camponeses ucranianos, sob a direção de
M akhno, recusam, após a vitória comum sobre os brancos,
submeter-se ao governo bolchevique e são aniquilados pelo
Exército Vermelho. Os sovietes livres da Ucrânia são liqui­
dados em novem bro de 1921, alguns meses após o esmaga-
mento da revolta de Kronstadt.
O comunismo de guerra, que tinha como uma de suas
tarefas assegurar o abstecimento das cidades, acaba por secar
as fontes; as requisições forçadas e as repressões que frequen­
temente as acom panham fazem baixar a produção agrícola
em proporções catastróficas, e a desorganização dos trans­
portes faz o restante para abandonar a população urbana
a um a fome endêmica. Além disso, com a falta de combustí­
veis e matérias-primas, a produção industrial cai abaixo de
um quinto daquela de antes da guerra. Numerosas medidas
repressivas tom adas pelo governo para remediar uma situa­
ção cada vez mais intolerável só fazem acentuar o descon­
tentam ento da população.
D urante a guerra civil, o governo havia decidido conce­
der rações alimentares superiores aos trabalhadores das fábri­
cas de arm am ento. Esse sistema preferencial, aceito pela
população enquanto durou a guerra civil, é tido como injusto
a partir do m om ento em que o fim da guerra em 1920 resta­
A REVOLTA DE KRONSTADT 33

beleceu a igualdade entre os diferentes trabalhadores; nada


parecia justificar uma repartição que atribuía aos operários
das fundições e altos-fornos de Petrogrado rações diárias de
800 gramas de produtos alimentares quando os trabalhadores
comuns deviam contentar-se com 200 gramas.
Compelidos pela fome, muitos habitantes das cidades
percorrem o cam po para trocar por víveres suas roupas ou
tudo quanto haviam conseguido furtar em seu local de traba­
lho. Esse tráfico, ilícito, mas im posto por uma situação que
não oferecia outra alternativa, foi com batido pelos destaca­
mentos arm ados que barravam o caminho e confiscavam as
provisões adquiridas. Nos próprios locais de trabalho, onde
se punia a ausência e o furto de todo material que pudesse
servir para troca, procede-se à “ militarização do trabalho” ; a
m ão-de-obra industrial suporta a dura violência do com u­
nismo de guerra, um a disciplina de ferro e uma vigilância
estreita exercida pelos destacamentos militares designados
para as diferentes fábricas no mom ento preciso em que o fim
da guerra civil fazia nascer a esperança de um retorno a uma
liberdade m uito grande.
O fosso que se cava entre todas as camadas da popula­
ção e o poder burocratizado e centralizado exercido exclusi­
vamente pelo P artido é igualmente sensível no plano do exér­
cito e particularm ente no da frota. Uma vez concluído o
Tratado de Brest-Litovsk com a Alem anha, o governo apro­
veita o breve m om ento de descanso para restabelecer uma
certa disciplina militar; a elegibilidade dos oficiais é supri­
mida e a hierarquia restaurada. Essa reorganização que põe
fim às liberdades adquiridas em 1917 encontra um a resistên­
cia renitente no seio dos m arinheiros, que são unânimes em
rejeitar os “ costumes do exército” . O governo, que durante a
guerra civil não ousara estender a repressão à frota, crê poder
aproveitar-se do fim da guerra para igualmente disciplinar os
marinheiros renitentes. A reação é im ediata e violenta, uma
grande parcela dos marinheiros inscritos no Partido deixa-o à
guisa de protesto. Assim, em janeiro de 1921, cinco mil mari­
nheiros do Báltico desligam-se do Partido; entre março e
agosto de 1921, os efetivos do Partido em K ronstadt redu­
zem-se à metade dos quatro mil membros inscritos.
Trata-se de um a reação espontânea mas consciente, uma
vez que sustentada pelas idéias da Revolução de O utubro que
34 HENRI ARVON

o governo, por suas medidas autoritárias, parece trair; ela se


orienta num sentido bastante preciso. Como a “ oposição
m ilitar” no seio do Exército Vermelho e a “ oposição operá­
ria” no interior do Partido, a “ oposição da fro ta” tenciona
defender a liberdade dos sovietes contra a autoridade do P ar­
tido, a descentralização, isto é, a organização da base para
cima, contra a centralização praticada brutalm ente pelo
governo bolchevique.
A rejeição do “ espírito ditatorial” das instâncias encar­
regadas do controle político da frota manifesta-se claramente
na resolução votada pelos trezentos delegados da segunda
Conferência Com unista da frota, em 15 de fevereiro de 1921:

“ A segunda Conferência dos marinheiros comunistas consi­


dera que o trabalho do PUBALT (Secção Política da Frota do
Báltico) é de tal forma ruim que é a causa do seguinte:

1? O PUBALT está não apenas desligado das massas como


também dos funcionários ativos, e transformou-se em
órgão burocrático, não gozando de qualquer autoridade
junto aos marinheiros;
2? No trabalho do PUBALT pode-se constatar ausência total
de planejamento e sistema, de forma que falta coordena­
ção com o centro e com as resoluções do IX Congresso do
Partido Comunista;
3? O PUBALT, estando totalmente desligado das massas do
Partido, destruiu toda a iniciativa local e transformou
todo o trabalho político em papelada que repercutiu de
maneira negativa sobre a organização das massas da frota.
Durante o período de junho a novembro, 20°7o dos comu­
nistas deixaram o Partido. O fato se explica pelos métodos
e procedimentos de trabalho errôneos do PUBALT;
4? A Conferência considera que as causas que determinaram
esses fatos encontram-se no próprio princípio de organi­
zação do PUBALT, e que esse princípio deve ser mudado
no sentido de uma democracia plena” .

A justaposição das diversas oposições, adormecidas


durante a guerra civil mas que irrompem brutalm ente quando
não há mais necessidade de ju n tar todas as forças para der­
rotar os Brancos, dem onstra que a m anutenção prolongada
do comunismo de guerra produzira uma explosão popular
praticamente inevitável. Essa “ colcha de retalhos” , que con­
A REVOLTA DE KRONSTADT 35

siste em definir o estado de espirito reinante na Rússia por


volta do inicio de 1921 pela soma de todos os descontenta­
mentos da população, é, entretanto, devido a seu caráter apa­
rentemente discordante, menos esclarecedora que a revolta de
K ronstadt, que parece refleti-lo em sua implacável totalidade.
Com justiça, Lenin pôde dizer que ela “ foi o raio que, melhor
que qualquer outro, iluminou a realidade” .
K ronstadt, é verdade, revela a realidade russa após a
guerra civil, mas na form a de um flash; a imagem é cegante
por um mom ento e logo volta a ser opaca. É um simples epi­
sódio, trágico certamente, mas limitado tanto no tempo
quanto em suas conseqüências, da história da União Sovié­
tica. P ara situar K ronstadt em relação à evolução posterior
da Revolução de O utubro, convém reportarmo-nos ao X Con­
gresso do Partido Comunista, que se inicia em 8 de março de
1921, portanto, alguns dias apenas após a insurreição de
Kronstadt, e no qual as discussões e decisões tratam grosso
m odo dos problemas levantados pelos kronstadinos. Há
concordância entre K ronstadt e o X Congresso na medida em
que o comunismo de guerra é objeto de um a posição comum.
As reivindicações econômicas dos kronstadinos são satisfeitas
pela instauração da N EP (nova política econômica) anun­
ciada por Lenin no curso do X Congresso: um im posto em
espécie substitui a partir de então as requisições arbitrárias de
abastecim ento, e a liberdade de comércio interior é restabele­
cida.
Entretanto, seria errôneo concluir que entre Kronstadt e
o Partido há um a simples defasagem e que esperando mais
oito horas os kronstadinos teriam podido economizar uma
revolta, que a partir daquele m om ento não tinha mais obje­
tivo. Pois se o Partido estava prestes a fazer concessões eco­
nômicas aos camponeses e artesãos, de form a alguma estava
disposto a renunciar às suas prerrogativas políticas, pelo con­
trário, o X Congresso leva a uma aceleração do processo de
burocratização, de centralização e de tirania ideológica sobre
os membros de um partido cada vez mais monolítico. O Izves-
tia de Kronstadt de 14 de março de 1921 precisa bem essa
discordância fundam ental entre os insurrectos e o governo
bolchevique ao escrever: “ K ronstadt exige não a liberdade de
comércio, mas o verdadeiro poder dos sovietes” .
A atitude dos delegados do X Congresso ilustra bem o
36 HENRIARVON

que dentre as exigências dos kronstadinos era passível de


consideração ou inaceitável pelo Partido. Destaquemos antes
de tudo que a particularidade do X Congresso é ter sido o
último a adm itir um a oposição no seio do Partido. A elimi­
nação dos partidos rivais, mencheviques e socialistas-revolu-
cionários, havia permitido instaurar a partir de 1919 a dita-
dura do partido único mas, paradoxalm ente, na medida em
que o direito de cisão fora suprimido, a liberdade de crítica
no interior do P artido parecia ganhar em intensidade. Assim,
ao lado dos centralistas democráticos, que reclamavam essen­
cialmente a dem ocratização do Partido, a “ Oposição O perá­
ria” , dirigida por Alexandre Chliapnikov (metalúrgico que se
tornara ministro do Trabalho no primeiro governo de Lenin
— e que seria depois assassinado por Stalin) e por Alexandra
Kollontai, prim eira mulher a tom ar parte do governo revolu­
cionário de Lenin, opõe-se à onipotência do partido. Em um
folheto que distribui ao Congresso, sem poder difundi-lo
entre o público, ela exige, aparentemente em concordância
com os kronstadinos, que a gestão da produção e da econo­
mia seja confiada aos coletivos operários das fábricas, que
uma direção colegiada substitua a direção única. No debate
apaixonado que essas teses levantam entre os delegados do
Congresso, Trotsky insiste sobre o perigo m ortal que tal
dualidade de poder colocaria ao Estado, evocando precisa­
mente o motim de K ronstadt, onde o poder dos sovietes locais
ousa dirigir-se contra a vontade do governo central.
Lenin, por sua vez, utiliza-se do espantalho de Kronstadt
para desacreditar a Oposição Operária, cujas críticas teriam
encorajado os marinheiros a pegar em arm as. Ele consegue
que sejam votadas duas resoluções, uma que condena o pro­
gram a da Oposição Operária, qualificado de “ desvio anarco­
sindicalista” , e outra que se refere nominalmente a Kronstadt,
segundo a qual as dissensões exploradas pela contra-revolu­
ção desembocaram num a revolta aberta, para exigir a dis­
solução de todas as facções no interior do Partido. Assim,
Kronstadt, que havia desejado restabelecer a democracia
operária, acaba por obter o resultado inverso; seu exemplo,
tornado espantalho perm anente do P artido, serve para legi­
timar todos os expurgos futuros.
A REVOLTA DE KRONSTADT 37

Os delegados que haviam sido eleitos para defender os


principios do centralismo dem ocrático e da oposição operá­
ria, são os mais ardentes na condenação do motim; sem dúvi­
da, eles haviam percebido que se o P artido podia permitir-se
fazer um sacrifício no que concernia à doutrina econômica do
marxismo, ele estava proibido de transigir no domínio polí­
tico num m om ento em que todas as fraquezas do governo
seriam aproveitadas por uma contra-revolução sempre alerta.

Quando em 10 de março Trotsky volta a Moscou e diante


do Congresso reunido a portas fechadas apresenta um rela­
tório pessimista sobre K ronstadt, 300 delegados, isto é, mais
de um quarto dos participantes do Congresso, pedem para
partir para a frente de batalha. A porcentagem de voluntários
é particularm ente elevada entre os membros da oposição. O
papel dos delegados é sobretudo elevar o moral das tropas
comunistas e solapar o dos am otinados. Eles desempenham
essa tarefa conscienciosamente e com sucesso; alguns dentre
eles não hesitam em renegar os princípios que haviam aca­
bado de apresentar e defender com tanto ardor no Congres­
so. Assim, num panfleto destinado aos kronstadinos, poder-
se-ia ler que a exigência do restabelecimento dos “ sovietes
livres” favorecia de fato o retorno “ da burguesia, dos pro­
prietários, dos generais, dos almirantes, dos aristocratas, dos
príncipes e de outros parasitas” , e que a palavra de ordem em
questão estava na realidade destinada a preparar “ o desmo­
ronam ento do poder dos sovietes, do poder dos explorados, e
a restauração do poder dos exploradores capitalistas” .
A insurreição de Kronstadt
A causa imediata da insurreição de K ronstadt foi a situação
explosiva que reinava em Petrogrado no inicio de 1921; o
desm oronam ento econômico da Rússia, que datava da Revo­
lução de fevereiro de 1917 mas que fora agravado pelos anos
de guerra e pelo inverno particularm ente rigoroso de 1920-
1921, havia causado problemas sociais. Em 24 de fevereiro de
1921 os operários dos moinhos de Trubetzkoi entram em
greve para obter melhores rações alimentares e combustíveis.
Como a greve é proibida por uma decisão do Conselho dos
Comissários do Povo, datada de 20 de novembro de 1920 e
que não foi jam ais revogada, o governo age brutalmente,
enviando contra os grevistas os destacamentos de kursanty
arm ados, com postos por jovens comunistas aprendizes de
oficial; estes atiram para o ar para dispersar os operários
reunidos.
A atitude intransigente das autoridades, que se recusam
a discutir com os grevistas enquanto eles não retornarem ao
trabalho, desencadeia uma série de greves; para m ostrar soli­
dariedade com seus cam aradas, outros operários, movidos
por esse “ orgulho operário” que Víctor Serge reconhece nos
proletários durante os primeiros anos do novo regime, em
particular os operários das fábricas de Baltisky e Laferme,
logo seguidos pelos das fábricas Admirai Teiski, Georges
Bormann, Metalichevski e enfim dos estaleiros Putilov, dei­
xam seus locais de trabalho.
A REVOLTA DE KRONSTADT 39

Às reivindicações econômicas para o restabelecimento


dos mercados, liberdade para circular num raio de 50 quiló­
metros e supressão das barreiras de milicias ñas estradas, logo
se acrescentam palavras de ordem políticas colocando em
questão a autoridade ditatorial do Partido. A partir daí as
medidas repressivas se acentuam; é dada ordem para que os
operários retornem às suas fábricas, caso contrário seriam
privados de suas rações alimentares.

É constituído um Comitê de Defesa na form a de troika-,


seu primeiro ato consiste em proclam ar o estado de sítio. A
ordem seguinte é afixada nos muros de Petrogrado:

“ Ordem do Comitê de Defesa da região fortificada de Petro­


grado:
Por decreto do Comitê Executivo do Petrosoviete de 24 de
fevereiro, o Comitê de Defesa da região fortificada de Petro­
grado está encarregado de proclamar o estado de sítio na
cidade de Petrogrado.
Na execução desse decreto passamos ao conhecimento da
população de Petrogrado que

1? a circulação nas ruas da cidade é categoricamente proibida


após as 23 horas;
2? são proibidos todos os encontros, ajuntamentos e reu­
niões, tanto a céu aberto quanto em locais fechados, sem
autorização especial do Comitê de Defesa. As pessoas
culpadas da não-execução desta ordem serão julgadas com
toda a severidade das leis dos tempos de guerra. Este de­
creto entra em vigor a partir de sua promulgação.

O comandante da Região Militar de Petrogrado: Avrov. Um


membro do Conselho de Guerra: Lachevich. O comandante
do sítio fortificado de Petrogrado: Bulin” .

Simultaneamente, o Partido procede à mobilização de


seus membros, a TCHEKA prende os dirigentes. U m a só
concessão é feita aos grevistas: suprimem-se as barreiras ao
redor de Petrogrado.
Fiéis à sua aliança com o proletariado de Petrogrado,
forjada no curso da Revolução, os marinheiros de K ronstadt
não poderíam deixar de se interessar pelos grevistas. Em 26
de fevereiro enviam uma comissão a Petrogrado para infor-
40 HENRI ARVON

mar-se de suas reivindicações. Dois dias depois, após haver


tom ado conhecimento do relatório feito por essa comissão, a
equipagem do navio de linha Petropavlosk vota a seguinte
resolução:

“ Depois de ter ouvido o relatório dos representantes enviados


a Petrogrado pela Assembléia Geral das Equipagens para
examinar a situação, os marinheiros decidem: considerando
que os sovietes atuais não exprimem a vontade dos operários
e camponeses,

1) proceder imediatamente à reeleição dos sovietes pelo voto


secreto. A campanha eleitoral entre os operários e cam­
poneses deverá desenrolar-se com plena liberdade de
palavra e ação;
2) Estabelecer a liberdade de palavra e de imprensa para
todos os operários e camponeses, para os anarquistas e
partidos socialistas de esquerda;
3) Conceder liberdade de reunião aos sindicatos e às organi­
zações camponesas;
4) Convocar por fora dos partidos políticos uma Confe­
rência dos operários, soldados vermelhos e marinheiros
de Petrogrado, de Kronstadt e da província de Petro­
grado para 10 de março de 1921, o mais tardar;
5) Libertar todos os prisioneiros políticos socialistas e tam­
bém todos os operários, camponeses, soldados vermelhos
e marinheiros presos em conseqüência dos movimentos
operários e camponeses;
6) Eleger uma comissão com o fim de examinar o caso da­
queles que se encontram nas prisões e campos de concen­
tração;
7) Abolir os ‘oficiais políticos’, pois nenhum partido polí­
tico deve ter privilégios para a propaganda de suas idéias,
nem receber do Estado meios pecuniários para esse fim.
Deve-se instituir em seu lugar comissões de educação e de
cultura, eleitas em cada localidade e financiadas pelo
governo;
8) Abolir imediatamente todas as barreiras;
9) Uniformizar as rações para todos os trabalhadores, exceto
para aqueles que exercem profissões perigosas para a
saúde;
10) Abolir os destacamentos comunistas de choque em todas
as unidades do exército, assim como a guarda comunista
nas fábricas e usinas. Em caso de necessidade, esses cor-
A REVOLTA DE KRONSTADT 41

pos de guarda poderão ser designados no exército pelas


companhias e ñas usinas e fábricas pelos próprios ope­
rários;
11) Conceder aos camponeses plena liberdade de ação no que
concerne a suas terras e também o direito de possuir gado,
com a condição de que eles mesmos executem suas tare-
fas, isto é, sem recorrer ao trabalho assalariado;
12) Designar uma comissão ambulante de controle;
13) Autorizar o livre exercício do artesanato, sem emprego de
trabalho assalariado;
14) Pedimos a todas as unidades do exército e também aos
camaradas kursanty militares que se juntem à nossa reso­
lução; >
15) . Exigimos que todas as nossas resoluções sejam larga­
mente publicadas pela imprensa” .

Essa resolução foi apresentada em 1? de março de 1921


quando de um a reunião convocada pelos marinheiros da 1? e
2.a Esquadras da Frota do Báltico. Dezesseis mil pessoas,
entre marinheiros, soldados e civis, cercaram um tablado
m ontado na imensa Praça da Âncora, sobre o qual postaram -
se três dirigentes comunistas: Vassiliev, presidente do Soviete
de K ronstadt; Kuzmin, comissário político da Frota do Bálti­
co; e Kalinin, presidente do Comitê Executivo Pan-russo dos
Sovietes, vindo de Petrogrado especialmente para assistir ao
encontro.
A reunião é presidida pelo marinheiro furriel Petri-
chenko, designado na véspera por seus cam aradas do Petro­
pavlosk. Ele inicia concedendo a palavra aos marinheiros que
haviam sido enviados a Petrogrado para obter informações
sobre a situação dos grevistas. É seu relato que serve de intro­
dução à resolução lida depois por Petrichenko. No curso dos
debates intervém em primeiro lugar Kuzmin, que ataca vio­
lentamente não apenas a resolução mas também os grevistas
de Petrogrado e os marinheiros que adotam a mesma con­
duta, acusando-os de “ fazer o jogo da contra-revolução” ;
em seguida fala Kalinin, que retom a o mesmo argumento
para term inar com esta frase carregada de ameaças: “ Krons­
tadt não é toda a Rússia” . Tendo o terceiro dirigente, Vas­
siliev, renunciado à palavra, a resolução é colocada em vota­
ção. Os únicos a votar contra são os três oficiais comunistas;
quanto aos comunistas de base, abstêm de m anifestar sua
42 HENRIARVON

discordância. Mas a ruptura entre o governo e os marinheiros


não parece ainda consumada; Kalinin pode retornar livre­
mente a Petrogrado; Kuzmin e Vassiliev serão presos apenas
no dia seguinte à reunião transcorrida na Casa da Educação,
depois que Kuzmin proferiu a ameaça: “ Se vocês querem a
luta aberta, vocês terão ” .
No m om ento em que a maioria das insurreições, pela
razão mesma de seu surgimento espontâneo, escapa a todas
as análises estreitas, K ronstadt oferece um program a esta­
belecido com antecedência, cuja interpretação parece afastar
todas as ambiguidades. O texto é com posto por duas partes; a
primeira expõe em oito pontos as exigências políticas dos
marinheiros, a segunda reúne suas exigências econômicas. É
bastante surpreendente que esse texto não contenha qualquer
exigência específica dos marinheiros e de suas condições de
vida; refletindo o descontentam ento geral, e em particular o
dos camponeses e artesãos, ele podería m uito bem ter surgido
de uma assembléia reunindo todas as camadas populares.
De qualquer form a, qualquer que seja a im portância que se
queira atribuir a esse texto redigido antes da eclosão de uma
revolta que, a bem dizer, só adquire todo o seu significado
após o desencadeamento das hostilidades, não se deve superes­
timá-lo. É evidente que, do ponto de vista ideológico, os
marinheiros mantêm-se ainda a reboque dos grevistas de
Petrogrado.
As exigências políticas dos m arinheiros, aliás, em estrita
conform idade com os “ direitos” que figuram na Constitui­
ção de outubro de 1918 (que jam ais foi aplicada), colocam
em questão a ditadura do Partido. Sabe-se que no mom ento
da Revolução de O utubro os bolcheviques — eles se cham a­
rão comunistas a partir de março de 1918 — são m inoria na
cena política. Q uando das eleições para a Constituinte, em
23 de novem bro de 1917, os bolcheviques obtêm apenas 25%
dos votos, enquanto os socialistas-revolucionários, que repre­
sentam essencialmente o cam pesinato, reúnem 58% dos
votos, os mencheviques 4% e os cadetes 13%. Não estando
disposto a dividir um poder cuja finalidade, segundo os prin­
cípios expostos em Que Fazer?, só poderia ser a ditadura do
proletariado, Lenin começa por dissolver o partido dos cade­
tes (em 7 de dezembro de 1917); no mesmo instante, é verda­
de, ele faz com que entrem para o governo os socialistas-revo-
A REVOLTA DE KRONSTADT 43

lucionários de esquerda. Mas sendo a conclusão do Tratado


de Brest-Litovsk com a Alem anha em 3 de março de 1918
violentamente com batida pelos outros partidos de esquer­
da, Lenin pratica um a política de terror contra os partidos
rivais; em abril de 1918 todos os seus representantes são expul­
sos dos sovietes. Após o assassinato do em baixador da Ale­
m anha por dois socialistas-revolucionários de esquerda, que
dessa form a pretendiam protestar contra a política exterior
de Lenin, seu partido é esmagado militarmente em 1918.
Todavia, alguns fragmentos de democracia subsistem até
1921. Se a im prensa liberal e democrática desaparece em 1918
e a dos mencheviques em 1919, a dos anarquistas e socialis­
tas-revolucionários mantém-se até 1921. Sem dúvida, porque
essa imprensa que sobreviveu vegeta num a legalidade precá­
ria, que se am esquinha de mês a mês, é que a resolução recla­
ma “ a liberdade de palavra e de imprensa^., para os anarquis­
tas e para os partidos socialistas de esquerda” .
Em seu conjunto, a primeira parte da resolução levanta­
se contra os diferentes aspectos da exclusividade comunista
que a colocação na ilegalidade de todos os outros partidos
tornou possível. E ntretanto, a propaganda com unista detur­
pou as intenções dos kronstadinos imputando-lhes a palavra
de ordem ‘‘Os sovietes sem os com unistas” . Em parte alguma
se coloca a questão de eliminar o partido com unista; o único
objetivo dos m arinheiros é restabelecer a soberania dos sovie­
tes, arrancá-los do empecilho dos partidos, quaisquer que
sejam. Essa tom ada de posição é resumida no chamado difun­
dido pelo rádio, que aparece no Izvestia de Kronstadt de 6 de
março de 1921.

“ Nós derrubamos o Soviete comunista, proclamam os mari­


nheiros de Kronstadt. Dentro de alguns dias nosso Comitê
Revolucionário Provisório procederá às eleições do novo
Soviete, o qual, eleito livremente, refletirá a vontade de toda
a população trabalhadora e da guarnição, e não a de um
punhado de loucos ‘comunistas’.
Nossa causa é justa. Somos pelo poder dos Sovietes e não dos
partidos. Somos pela eleição livre dos representantes das
massas trabalhadoras. Os sovietes falsificados, monopoli­
zados e manipulados pelo partido comunista sempre foram
surdos às nossas necessidades e exigências; a única resposta
que recebemos foi a bala assassina.”
44 HENRI ARVON

Sabe-se que não foram os kronstadinos que reclamavam


“ os sovietes sem os com unistas” mas um exército camponês,
composto por cerca de cinqüenta mil homens, que ao sul de
Moscou, na região de Tam bov, massacrou alegremente os
comunistas execrados.
Querer preservar os sovietes de todo desvio é aos olhos
dos kronstadinos defender a causa do povo, é situar-se reso­
lutamente à esquerda. A própria resolução é testemunho
disso na medida em que não reivindica a liberdade senão para
os partidos de esqueda e a libertação somente para “ todos os
prisioneiros políticos socialistas e também para todos os ope­
rários, camponeses, soldados vermelhos e marinheiros presos
em conseqüência de movimentos operários e cam poneses” .
Mas a linha de demarcação entre a direita e a esquerda é deter­
minada sobretudo pela tom ada de posição em relação a uma
Constituinte. O ra, os marinheiros de K ronstadt pretendem
situar-se a igual distância tanto da ditadura com unista quanto
do parlam entarism o burguês. Em um artigo do Izvestia de
Kronstadt de 8 de março de 1921, pode-se ler a esse respeito:
“ Os operários e camponeses cam inham à frente, irresistivel­
mente. Eles deixam para trás a Constituinte com seu regime
burguês, e a ditadura do partido comunista com sua TCHEKA
e seu capitalismo de Estado que aperta o laço no pescoço dos
trabalhadores e am eaça estrangulá-los” .
Víctor Tchernov, antigo presidente da Constituinte dis­
solvida no mesmo dia em que se reuniu porque os bolchevi­
ques estavam em minoria, e líder dos socialistas-revolucio-
nários de direita, lança de seu exílio um apelo premente aos
marinheiros, no qual procura associar a causa da Constituinte
à dos Sovietes: “ Os bolcheviques” , ele escreve aos insurrec­
tos, “ fizeram m orrer a causa da liberdade e da democracia
quando conseguiram opor os Sovietes à Constituinte no espí­
rito do povo. Em vez de fazer dos sovietes um sustentáculo da
Constituinte, um vínculo poderoso entre esta e o país, eles
dirigiram os sovietes contra a Assembléia Constituinte e desta
form a fizeram m orrer tanto a própria Constituinte quanto os
sovietes. Enfim vocês com preenderam , vocês, operários,
soldados e m arinheiros, que foram enganados. Que sua pala­
vra de ordem — liberdade de eleição para os sovietes — ecoe
mais altó para avançar pelo caminho dos sovietes na direção
da Assembléia C onstituinte” .
A REVOLTA DE KRONSTADT 45

Um segundo apelo, no qual Tchernov promete aos insur­


rectos vir em sua ajuda, term ina dando vivas à revolução
popular, aos sovietes livres e à Constituinte. Contudo, o
Comitê Revolucionário Provisório hesita em aceitar uma
ajuda que teria por contrapartida o reconhecimento da pala­
vra de ordem da Constituinte, seja por considerar essa união
como traição às idéias que procura defender, seja por temer
uma reação hostil dos marinheiros. Em um a sessão do Soviete
de Petrogrado de 20 de março de 1921 o com unista Komarov
relata as revelações feitas por Perçpelkin, membro do Comitê
Revolucionário Provisório, feito prisioneiro durante a repres­
são e fuzilado em seguida, segundo as quais Petrichenko,
presidente do Comitê, teria feito secretamente um acordo
com Victor Tchernov pedindo-lhe que esperasse ainda doze
dias para que o agravamento da situação fizesse os m ari­
nheiros adm itirem uma colaboração com os socialistas-revo-
lucionários de direita. Em um artigo publicado em janeiro
de 1926 no Znam ia Borby, órgão dos socialistas-revolucio-
nários de esquerda, o próprio Petrichenko declara que queria
ter deixado ao soviete recentemente eleito a resposta à oferta
de Tchernov; quanto a Tchernov, declarou por sua vez que
estava convencido de que os insurrectos teriam acabado por
adotar a palavra de ordem da Constituinte.
As exigências econômicas da resolução, revolucionárias
na medida em que se opõem ao comunismo de guerra, pare­
cem, ao contrário, cam inhar no sentido da política governa­
mental quando se traça um paralelo entre elas e a N EP, que
elas anunciam , de certo m odo preparando e justificando; não
é exagero dizer que por determinados aspectos, como por
exemplo a liberdade de comércio, elas são mesmo um recuo
em relação à política econômica bem mais audaciosa que o
governo bolchevique prepara-se para colocar em prática.
Em P etrogrado mesmo são tom adas numerosas medidas
para pôr fim às greves; essas medidas tornam obsoletos vários
pontos da resolução. Desde 27 de fevereiro, portanto antes
mesmo que a resolução fosse votada, Zinoviev, presidente do
Comitê de Defesa de Petrogrado, autoriza a população a
procurar abastecim ento no campo e ordena aos destacam en­
tos, encarregados de controlar o tráfigo nas estradas, que
ajam apenas contra os especuladores. Ao mesmo tem po,
46 HENRIARVON

anuncia que o governo acabara de adquirir carvão no exterior


para distribuí-lo à população. Em IP de março são levantadas
as barreiras das estradas, os destacamentos militares retirados
das fábricas. Essas concessões colocam um fim nas greves de
Petrogrado para grande prejuízo dos insurrectos de Krons-
tadt, que dessa form a ficam sem a justificativa im ediata para
seu movimento e os virtuais aliados no continente.
Mas é sobretudo o X Congresso do Partido Com unista
em Moscou que executa uma virada m uito mais brutal que
aquela exigida pelos marinheiros. C onfrontado com as con­
vulsões interiores que ameaçam o regime, Lenin retorna a seu
principio constante: fazer todos os sacrifícios necessários a
fim de conservar os privilégios políticos do Partido. A NEP
que sucede o com unismo de guerra é uma reedição de Brest-
Litovsk: a capitulação econômica sucede a capitulação mili­
tar e diplom ática com o único objetivo de salvar o regime
político.

“ Os fatos aí estão” , Lenin declara na tribuna do C on­


gresso. “ A Rússia éstá am eaçada pela fome porque os cam­
poneses são contra os sovietes. Todo o sistema do comunismo
de guerra entrou em choque com os interesses dos cam po­
neses.” Como rem ediar a situação? “ Uma revolução socia­
lista” , prossegue Lenin, “ em um país onde a imensa maioria
da população compõe-se de pequenos produtores não é pos­
sível senão pela aplicação de toda um a série de medidas de
transição que seriam inúteis nos países de capitalismo desen­
volvido.” A revolução não pode, p o rtanto, manter-se sem
um acordo entre o proletariado, que detém o poder, e a arra-
sadora m aioria da população do cam po. “ Sabem os” , Lenin
afirm a, “ que somente um entendim ento com o cam pesinato
pode salvar a revolução socialista na Rússia ... Não podemos
dissimular o fato de que os camponeses estão descontentes,
que eles desejam um a m udança na situação. Eles manifestam
claramente sua vontade: é aquela das amplas massas trab a­
lhadoras.”
Que quer o cam pesinato? Essencialmente duas coisas:
dispor de certa liberdade para o escoam ento de seus produ­
tos, e também pode obter as m ercadorias e consumi-las como
quiser. Deve-se satisfazê-los. “ Evidentem ente” , concede
Lenin,. “ a liberdade de comércio significa o desenvolvimento
A REVOLTA DE KRONSTADT 47

do capitalismo privado. Isso não se poderia negar, e aquele


que tentasse seria um ingênuo. A liberdade de trocas é liber­
dade do comércio, e a liberdade do comércio é a volta ao
capitalismo. É possível restabelecer em certa medida a liber­
dade do comércio sem solapar o fundam ento do poder polí­
tico do proletariado? Sim, é possível: é urna simples questão
de m edida... É certo que fomos arrastados para mais longe
do que era teórica e praticam ente necessário. Podemos por­
tanto voltar um pouco sobre nossos passos sem por isso des­
truir a ditadura do proletariado e consolidando-a ainda mais
dessa maneira. Com o realizá-lo é um a questão de prática.
M inha tarefa é dem onstrar a vocês que do ponto de vista
teórico não há nada que se o p onha.”
Após as explicações dadas por Lenin, o Congresso votou
uma moção aprovando o princípio de uma nova política eco­
nômica, e, a titulo de prim eira medida prática, a substituição
dos levantam entos parciais obrigatórios das reservas de trigo
por um im posto em espécie notavelmente menos elevado. O
m ontante desse im posto deveria ser tornado público a cada
ano antes das semeaduras da prim avera, com indicação das
datas de entrega: feita a entrega, o camponês disporia livre­
mente dos excedente e poderia comercializá-lo.
A nova tática do Partido, eficaz pois consegue isolar os
marinheiros de K ronstadt, ocasiona um a modificação em sua
plataform a. O econômico, que na resolução contesta o polí­
tico, é abandonado; subsiste apenas a palavra de ordem dos
sovietes livres. A satisfação pelos bolcheviques de todas as
exigências que não tocam a ditadura do Partido é apresen­
tada no Izvestia de Kronstadt como um simples artifício para
que seja esquecida a opressão política.
Assim, no número de 11 de março de 1921, as medidas
tom adas pelo governo são apresentadas como a expressão do
desprezo que os dirigentes sentem pelo povo. “ Ao inform ar
ao Soviete de Petrogrado que o governo havia destinado
milhões de rublos-ouro para a com pra de diversos produtos,
Zinoviev calculou que isso equivalería a 50 rublos para cada
operário. Aí está, cam aradas operários, o preço por cabeça
pelo qual a corja bolchevique espera vos com prar.” E a pro­
pósito do X Congresso do Partido, o número de 15 de março
de 1921 term ina um com entário cortante (“ tinha razão o
48 HENRI ARVON

camponês que declarou no VIII Congresso dos Sovietes:


Tudo vai m uito bem. Mas se a terra é para nós, o pão é para
vocês, isto é, para os comissários; a água é para nós, mas o
peixe é para vocês; as florestas são para nós, mas a madeira é
para vocês.’’) com esta apreciação sarcástica das promessas
feitas por Lenin: “ Lenin promete conceder alguns favores
aos pequenos produtores, ampliar os quadros da economia
livre. Como o bom velho senhor, ele prepara alguns favores
para apertar mais o pescoço dos trabalhadores, mais tarde,
no torno da ditadura do partido. Pode-se vê-lo bem por esta
afirmação: ‘C ertam ente, não poderemos nos abster das difi­
culdades, pois o país está cansado e num a terrivel miséria’.
Isso é claro: pode-se arrancar a última camisa de um mise­
rável. É assim que Lenin concebe a tarefa de construção: con­
cessões comerciais por cima, impostos por baixo” .
A revolta de K ronstadt e o X Congresso do P artido exer­
cem assim um a sobre a outra um extraordinário poder de
levantamento de questões e esclarecimentos. Se o barulho do
canhão da F rota do Báltico repercute tragicamente sobre as
deliberações do Congresso e parece im por aos delegados um
retorno ideológico radical, os marinheiros de K ronstadt, por
seu lado, tom am consciência, graças à orientação exclusiva­
mente econômica do X Congresso, de que o único problem a
verdadeiro é não uma volta ao passado burguês nem mais
uma organização do presente, mas a superação resoluta da
primeira revolução de fevereiro de 1917, que havia engen­
drado ‘‘a Constituinte com seu regime burguês” , e da segun­
da revolução de outubro de 1917, que havia segregado ‘‘a
ditadura do partido com unista com sua TCHEKA e seu capi­
talismo de E stado” , por esta “ terceira revolução” dos sovie­
tes livres, da qual os marinheiros de K ronstadt declaram que­
rer ser os agentes.
Sobretudo por m arcar o início da revolta, é que a reso­
lução dos marinheiros de K ronstadt foi m antida como um
documento de base; na verdade, ela não é senão o eco dos
problemas que agitam Petrogrado, e perde seu valor a partir
do mom ento em que sua parte propriam ente econômica é
esvaziada em sua substância pelas decisões econômicas tom a­
das pelo governo. Se se dispusesse apenas desse texto, Krons­
tadt aparecería como um simples episódio ligado às greves de
Petrogrado e à passagem do comunismo de guerra à N EP; o
A REVOLTA DE KRONSTADT 49

recurso às armas seria devido a um trágico m al-entendido que


poderia ter sido evitado se o governo estivesse decidido a
abandonar as violências do comunismo de guerra, ou ainda
se os marinheiros de K ronstadt tivessem tido a sabedoria de
esperar as decisões do X Congresso.
Ora, possuímos outro texto bem mais próprio para reve­
lar o verdadeiro alcance de K ronstadt; ele é publicado, tam ­
bém em um mom ento crucial da revolta, no Izvestia de Krons­
tadt de 8 de m arço de 1921, quando “ o prim eiro disparo de
fogo é executado por Trotsky” . Daí em diante, o que está em
jogo na batalha, definitivamente iniciada, não deixa mais
dúvidas; do lado governam ental tratar-se de defender a todo
custo, mesmo que ao preço do sangue daqueles que consti­
tuíam até então o núcleo da revolução, a ditadura do partido,
a “ com issariocracia” , e do lado dos insurrectos trata-se de
promover um socialismo novo, síntese de todas as liberdades
não apenas econômicas mas sobretudo políticas.
Esse texto, intitulado “ Por que nós com batem os” , não
perdeu sua força crítica e profética; é a m arca indelével que
Kronstadt deixou na história do socialismo, rica em prom es­
sas em ancipadoras e em violências intoleráveis.

“ Ao fazer a Revolução de Outubro, a classe operária espe­


rava obter sua emancipação. Mas o resultado foi uma escra­
vidão ainda maior da individualidade^ humana. O poder da
monarquia policialesca passou às mãos dos usurpadores — os
comunistas — que, em lugar de dar liberdade ao povo, reser­
vou-lhe o medo dos cárceres da TCHEKA, cujos horrores
ultrapassam em muito os métodos da gendarmería czarista.
Ao fim de longos anos de lutas e sofrimentos, o trabalhador
da Rússia soviética não obteve senãq ordens impertinentes,
golpes de baionetas e o silvo das balas dos ‘cossacos’ da
TCHEKA. De fato, o Poder Comunista substituiu o emblema
glorioso dos trabalhadores — a foice e o martelo — por outro
símbolo: a baioneta e as barreiras, que permitiram à nova
burocracia, aos comissários e funcionários comunistas assegu­
rar para si uma vida tranqüila e sem inquietações.
Mas o que é mais abjeto e criminoso é a escravidão espiritual
instaurada pelos comunistas: eles também colocam a mão
sobre o pensamento, sobre a vida moral dos trabalhadores,
obrigando cada um a pensar unicamente segundo a fórmula
deles. Através dos sindicatos estatizados, eles amarraram o
operário à máquina e transformaram o trabalho em uma
50 HENRIARVON

nova escravidão em vez de algo agradável. Aos protestos dos


camponeses, avançando até as revoltas espontâneas, às recla­
mações dos operários, obrigados por suas próprias condições
de vida a recorrer às greves, eles respondem com os fuzila­
mentos em massa e com uma violência que faria inveja aos
generais czaristas.
A Rússia dos trabalhadores, a primeira a erguer a bandeira
vermelha da emancipação do trabalho, é contestada no san­
gue dos mártires pela glória maior da dominação comunista.
Os comunistas afogam neste mar de sangue todas as grandes e
belas promessas e possibilidades da Revolução proletária.
Tornou-se cada vez mais claro, e hoje torna-se evidente, que o
partido comunista não é, como fingiu ser, o defensor dos
trabalhadores. Os interesses da classe operária lhe são estra­
nhos. Depois de haver conquistado o poder, há apenas uma
preocupação: não perdê-lo. Também considera que todos os
meios são válidos: difamação, mentira, violência, assassinato,
vingança sobre as famílias dos rebeldes. Mas a paciência dos
trabalhadores martirizados está no fim. O país ilumina-se
aqui e ali com o incêndio das rebeliões na luta contra a opres­
são e a violência. As greves operárias se multiplicam.
Os cães bolcheviques vigiam. Todas as medidas são tomadas
para impedir e abafar a inevitável Terceira Revolução. Apesar
de tudo, ela está crescendo. As próprias massas trabalhadoras
a realizam. Os generais do comunismo vêem que é o povo que
se levanta, convencido de que eles traíram suas idéias da
Revolução. Temendo por sua pele e sabendo que não poderão
esconder-se em parte alguma para escapar à cólera dos traba­
lhadores, os comunistas procuram aterrorizar os rebeldes
através de seus ‘cossacos’, pela prisão, execução e outras
atrocidades. Sob o jugo da ditadura comunista, a própria
vida tornou-se pior que a morte.
O povo trabalhador em revolta compreendeu que na luta
contra os comunistas e o regime de servidão restabelecido,
não se pode ficar no meio do caminho, deve-se ir até o fim.
Os comunistas fingem admitir concessões; levantam as bar­
reiras na_ província de Petrogrado; destinam dez milhões de
rublos-ouro para a compra de produtos no exterior. Mas que
ninguém se engane: é o pulso de ferro do mestre, do ditador,
o que se esconde por detrás desse engodo; do mestre que,
recobrada a calma, fará pagar caro essas concessões. Nada de
ficar no meio do caminho! É vencer ou morrer!
Kronstadt, a Vermelha, terror da contra-revolução tanto de
esquerda quanto de direita, dá o exemplo. É aqui que o grande
A REVOLTA DE KRONSTADT 51

impulso novo da Revolução aconteceu. Aqui foi içada a


bandeira da revolta contra a tirania dos três últimos anos,
contra a opressão da autocracia comunista que fez empalide­
cerem os três séculos de jugo monarquista. É aqui, em Krons-
tadt, que foi lançada a pedra fundamental da Terceira Revo­
lução, que romperá as últimas amarras do trabalhador e lhe
abrirá o novo e grande caminho da edificação socialista.
Essa nova revolução sacudirá as massas trabalhadoras
do Oriente e do Ocidente, pois mostrará o exemplo de uma
nova construção socialista em oposição à ‘construção’ comu­
nista, mecânica e governamental. As massas trabalhadoras
além de nossas fronteiras serão convencidas pelos fatos de
que tudo o que foi fabricado em nosso país até o presente, em
nome dos operários e camponeses, não é o socialismo. O pri­
meiro passo nesse sentido é dado sem um único golpe de fuzil,
sem derramar uma única gota de sangue. Somente em caso de
legítima defesa correrá sangue. Apesar de todos os atos revol­
tantes dos comunistas, teremos bastante domínio de nós mes­
mos para nos limitarmos a isolá-los da vida social para impe­
di-los de prejudicar o trabalho revolucionário com sua falsa e
mal-intencionada agitação.
Os operários e camponeses caminham à frente, irresistivel­
mente. Deixam para atrás a Constituinte com seu regime bur­
guês, e a ditadura do partido comunista, com sua TCHEKA e
seu capitalismo de Estado, que aperta o laço no pescoço dos
trabalhadores e ameaça estrangulá-los. As mudanças que
acabam de ser produzidas oferecem finalmente às massas
trabalhadoras a possibilidade de garantir os sovietes livre­
mente eleitos e que funcionarão sem qualquer pressão vio­
lenta de um partido. Essa mudança lhes permitirá também
reorganizar os sindicatos estatizados em associações livres de
operários, camponeses e trabalhadores intelectuais. A má­
quina policial da autocracia comunista está finalmente des­
truída.”

A resolução adotada por Kronstadt em 1? de março


sobre a “ reeleição dos Sovietes pelo voto secreto” , exigência
prim ordial pois que figura em prim eiro lugar no texto, era
tanto mais efetiva que o Soviete de K ronstadt deveria ser
regularmente renovado no dia seguinte. É assim que a casua­
lidade das datas acelera um movimento de revolta que, esti­
mulada por um a dinâmica de certo modo autônom a, passará
das negociações, discussões e enfrentam entos verbais que
durarão até 6 de março, ao conflito arm ado e à repressão,
52 HENRI ARVON

cujo ponto culminante é a tom ada de K ronstadt pelo Exército


Vermelho em 18 de março.
O desenrolar dessa tragédia, lento e hesitante nos pri­
meiros dias e que em seguida se precipita de form a singular, a
marcha inexorável para o enfrentam ento final de dois princi­
pios que dirigem a Revolução de O utubro, os Sovietes e o
Partido, pode ser medido, depois de três anos de ambigüi-
dade e dissimulação, em dias que ocupam , cada um, um lugar
determinado na sucessão dos acontecimentos. P ara vermos
de form a mais clara esse dram a condensado em 15 dias, pare­
ce que o melhor é adotar a ordem estritamente cronológica,
dividir a narrativa histórica da K ronstadt revoltada em relatos
diários.

2 de março: 300 delegados reúnem-se na Casa da Edu­


cação para adotar definitivamente a resolução votada na
véspera a bordo do Petropavlosk e para discutir em que con­
dições o novo Soviete de Kronstadt deveria ser eleito. Os
comunistas Kuzmin e Vassiliev assistem tam bém a esta reu­
nião, mas depois de terem sido forçados a deixá-la são colo­
cados em estado de prisão no Petropavlosk. Essa é urna medi­
da grave e irreversível que deverá necessariamente provocar
uma reação dos dirigentes de Petrogrado. A anarquista
Emma G oldm an, cujos esforços eram no sentido de evitar a
ruptura definitiva entre os dois campos em conflito e que
além disso tendiam a vir em socorro dos m arinheiros, que ela
acreditava com partilharem de suas idéias, servindo-se das
relações que m antinha com os dirigentes comunistas de P etro­
grado, fez um a descrição sem dúvida um pouco suavizada
dessa prisão.

“ Havíamos ouvido rumores” , ela escreve em sua interessante


autobiografia Living my Life, “ segundo os quais Kuzmin e
Vassiliev teriam sido presos pelos marinheiros em um encon­
tro de 300 delegados da frota, da guarnição e do soviete dos
sindicatos. Perguntamos aos nossos dois camaradas (que
haviam assistido ao encontro) o que sabiam. Eles confirma­
ram que os dois homens haviam sido presos realmente. A
razão era que, no encontro Kuzmin havia denunciado os
marinheiros como traidores, e os grevistas de Petrogrado
como chkurniky (vadios), declarando que daí em diante o
partido comunista iria combatê-los até o fim como contra-
A REVOLTA DE KRONSTADT 53

revolucionários. Os delegados haviam igualmente tomado


conhecimento de que Kuzmin tinha dado ordens para evacuar
todos os suprimentos e munições de Kronstadt, abandonando
a cidade à inanição. Por essa razão, os marinheiros da guar­
nição de Kronstadt haviam decidido prender os dois homens e
tomar precauções para que as provisões não fossem retiradas
da cidade. Mas esse não era de maneira nenhuma o indício
de qualquer intenção de rebelião, nem de que os homens de
Kronstadt tinham deixado de acreditar na integridade revolu­
cionária dos comunistas. Pelo contrário, os delegados comu­
nistas puderam falar tanto quanto os outros. Outra prova de
confiança no regime foi dada pelo envio de um comitê de
trinta homens para discutir com o Petrosoviete visando a uma
conciliação para a greve.”

Suprema ironia do destino ou talvez inversão própria de


todas as revoluções que produzem um a realidade diam etral­
mente oposta ao objetivo fixado no início, o encontro de 2 de
m arço, convocado para deliberar a respeito da eleição do
novo Soviete, longe de restituir-lhe a liberdade que havia
perdido devido ao peso cada vez mais tirânico do Partido,
suprime-o decididam ente para substituí-lo por um Comitê
Revolucionário Provisório eleito, durante a sessão, com o
levantamento das mãos e investido de poderes ditatoriais; ele
permanecerá em exercício até a derrocada da revolta. Para
que K ronstadt abandonasse uma aspiração da qual, graças às
suas proclamações, permanecerá o símbolo flamejante, bas­
tou que Petrichenko, baseando-se nos falsos rumores que
circulavam pela cidade, subisse precipitadam ente à tribuna
para declarar em tom dram ático: ‘‘Tenho conhecimento de
que dois mil soldados do Exército Vermelho estão em marcha
a caminho daqui” . Na realidade, tratava-se4exluzentos kur-
santy da escola política superior que se preparavam para
deixar K ronstadt e dirigir-se ao forte Krasnaia G orka, situado
no continente.
A eleição de um novo soviete poderia ter passado por
um simples ato de insubordinação, pois não colocava aberta­
mente em questão o poder central; a designação de um Comitê
Revolucionário Provisório, em com pensação, cham ado a
com andar a frota e o exército presentes em K ronstadt, era um
desafio colocado abertam ente aos dirigentes comunistas:
Kronstadt encontrava-se a partir desse m om ento em estado
54 HENRI ARVON

de rebelião arm ada contra o governo. O apelo lançado no


mesmo instante à população da fortaleza e da cidade de
K ronstadt é um a verdadeira ordem de mobilização. Mas o
que mais cham a a atenção no texto que será publicado no dia
seguinte no Izvestia de Kronstadt é a perturbadora semelhança
entre a argum entação dos bolcheviques, para quem a dita-
dura do proletariado é indispensável para alcançar esse reino
da liberdade que será o comunismo, e o estranho raciocinio
dos dirigentes kronstadinos, que fazem da constituição do
Comitê Revolucionário Provisorio a condição indispensável
para a eleição do novo soviete. “ O Comitê Revolucionário
Provisorio exporta todas as organizações operárias, todos os
sindicatos marítim os e outros, todas as unidades de terra e de
mar, assim como todos os cidadãos individualmente, a pres­
tar sua ajuda. Sua missão é garantir, em cooperação fraternal
com vocês, as condições necessárias para as eleições justas e
honestas do novo Soviete.”
A prim eira preocupação do Comitê Revolucionário é
assegurar a defesa da fortaleza de K ronstadt. Por volta das
nove horas da noite, o estado de defesa está quase concluido;
a maioria dos fortes que cercam a ilha de Kotlin e todas as
unidades de soldados vermelhos da fortaleza aderem ao movi­
mento insurrecional. Todos os edificios públicos e as vias de
comunicação são guardadas pelas sentinelas do Com itê R evo­
lucionário Provisorio.
O êxito da revolução dependia de suas chances de se
estender ao continente. O Comitê Revolucionário Provisório
tinha tanta consciência disso que desde sua constituição encar­
regou os emissários de distribuir os exemplares da resolução
do Petropavlosk em Petrogrado e nas cidades ao redor do
Golfo da Finlândia. Essa tentativa de am pliar o movimento
de dissidência chocou-se com a vigilância dos comunistas,
que conseguiram interceptar as mensagens, especialmente em
Petrogrado. Somente urna parte da guarnição de Oranien-
baum , os soldados da prim eira esquadrilha aeronaval, decla-
rou-se decidida a juntar-se aos kronstadinos; um a delegação
de três homens foi a K ronstadt para colocar em prática uma
ação comum. Mas na volta eles são presos pela TCHEKA.
Colocado a par da sublevação, o comissário da guarnição de
Oranienbaum m andou cercar o acantonam ento da esqua­
drilha e prender seus ocupantes. Q uarenta e cinco homens
A REVOLTA DE KRONSTADT 55

são fuzilados, entre os quais o com andante dos aviadores da


m arinha vermelha, o presidente e o secretário do Comité
Revolucionário de O ranienbaum , que tinham acabado de ser
eleitos. Q uanto aos kronstadinos, que estavam dispostos a
tudo, despacharam ¡mediatamente 250 homens para Oranien­
baum , mas recebidos pelas rajadas de m etralhadoras, eles
retrocederam . C ontida e limitada pelos comunistas graças
precisamente àquela disciplina de ferro que os kronstadinos
não cansaram de reprovar e que, contudo, é o primeiro atri­
buto do deus da guerra, a revolta parece, desde o primeiro
dia, destinada ao fracasso.

3 de março: Esse dia de espera é m arcado pela suspensão


definitiva das greves em Petrogrado. A maioria das fábricas
volta a funcionar. Isso põe fim à aliança com o proletariado
de Petrogrado, que os marinheiros de K ronstadt esperavam
estabelecer para dar a seu movimento uma base mais ampla e
mais sólida. A inda na véspera, o Com itê Revolucionário Pro­
visório planejara enviar uma nova delegação a Petrogrado, e
somente o receio de novas prisões o havia impedido. Através
de uma hábil com binação de medidas repressivas e de conces­
sões econômicas, o Com itê de Defesa de Petrogrado, sob a
direção de Zinoviev, conseguiu circunscrever um incêndio
que ameaçava ampliar-se. Pode-se falar de uma traição dos
operários de Petrogrado para com os marinheiros de Krons­
tadt, que haviam corrido em seu socorro e que foram aban­
donados no m om ento decisivo? Essa é a crítica que os anar­
quistas fazem à população de Petrogrado em um folheto dis­
tribuído alguns dias depois. “ Foi por você, povo de Petro­
grado, que os m arinheiros se levantaram. Liberte-se de sua
letargia e parta para o com bate à ditadura com unista, após o
que a anarquia se instalará’’. Mas como exigir isso de homens
cuja energia revolucionária foi dobrada simultaneamente
pela miséria fisiológica, que é sua condição após alguns anos,
e por um terror sabiamente organizado? Somente a vontade
de sobreviver havia conseguido arrancá-los de um estado pró­
ximo da prostração; tendo o governo satisfeito, por pouco
que fosse, suas exigências de víveres e combustíveis, a agita­
ção havia cessado quase que instantaneam ente.
Em K ronstadt, o Com itê Revolucionário Provisório
volta a encontrar-se à tarde num a reunião para a qual é con-
56 HENRI ARVON

vocado um certo número de “ especialistas militares” . É de­


signado um conselho militar de defesa, encarregado de orga­
nizar a defesa da fortaleza. Avaliando que a defesa apenas é
insuficiente para alcançar a vitória, os “ especialistas milita­
res” propõe um a operação militar contra Oranienbaum ,
cidade situada na margem sul do continente, a fim de tom a­
rem os víveres estocados no entreposto “ Spassatelnaia” . Mas
os marinheiros opõem-se abertam ente. Pouco inclinados a
lançar-se em operações terrestres por múltiplas razões, sendo
que a principal é sem dúvida sua profunda aversão por toda
ação que exija disciplina, eles se agarram à esperança quimé­
rica de fazer o governo ceder sem serem obrigados a recorrer
às armas.
O fato mais notável desse dia é, entretanto, a publicação
do primeiro núm ero do Izvestia de Kronstadt. Publicado sem
interrupção até 16 de março pelo Comitê Revolucionário
Provisório, o jornal segue com excepcional fidelidade a rápi­
da evolução de um movimento que, iniciado por um simples
apoio aos grevistas de Petrogrado, acaba por colocar em
questão não apenas o regime com unista global, mas a própria
doutrina que o sustenta. É graças a seus artigos lúcidos e nota­
velmente redigidos que a insurreição de K ronstadt atravessa
o cenário puram ente histórico em que a quiseram confinar
e continua a viver menos na memória que no coração dos
homens.

4 de março: O Soviete de Petrogrado reúne-se em assem­


bléia extraordinária a fim de discutir os acontecimentos de
Kronstadt. Zinoviev e Kalinin denunciam sem trégua a sub­
versão dos kronstadinos. Para Kalinin, “ medida alguma
pode ser severa demais para os contra-revolucionários que
ousam erguer a mão contra nossa gloriosa revolução” . Mas o
exorcismo praticado pelos dirigentes comunistas, se incita o
fanatismo da turba, não age sobre dois oradores que ousam
tom ar a defesa dos marinheiros. Cena admiravelmente des­
crita por Em ma Goldm an, que em com panhia de outro anar­
quista, Alexandre Berkman, existe a essa sessão memorável.

“ Acima da algazarra do populacho que uivava e batia os pés,


uma única voz procurou fazer-se ouvir: a voz tensa e grave de
um homem nas primeiras fileiras. Era o delegado dos empre-
A REVOLTA DE KRONSTADT 57

gados grevistas do Arsenal. Ele se via forçado a protestar,


disse ele, contra as acusações falsas lançadas da tribuna contra
os homens de Kronstadt, corajosos e leais. Olhando para
Zinoviev e apontando-lhe o dedo, o homem falou com vee­
mência: ‘É a vossa cruel indiferença e a de vosso partido o
que nos levou à greve e que provocou a simpatia de nossos
irmãos marinheiros, que lutaram lado a lado conosco na revo­
lução. Eles não são culpados de qualquer outro crime e vós o
sabeis! Vós os caluniais voluntariamente e apelais para seu
extermínio...’. Os gritos de ‘Contra-revolucionário! Traidor!
C h k u r n i k ! Menchevique! Bandido!’ transformaram areunião
numa verdadeira casa de loucos. O velho operário perma­
neceu em pé, sua voz elevava-se sobre o tumulto. ‘Há apenas
três anos Lenin, Trotsky, Zinoviev e todos vocês foram de­
nunciados como traidores e espiões alemães...’, ele gritou. <
‘Nós, os trabalhadores e os marinheiros viemos em vossa
ajuda e vos salvamos do governo Kerensky. Fomos nós que
vos levamos ao poder! Esquecestes isso? Hoje vós nos amea­
çais com a espada... Lembrai-vos de que estais brincando
com fogo! Vós repetis os erros e os crimes do governo de
Kerensky. Cuideis para que um destino idêntico não vos seja
reservado!’ ... Zinoviev estremeceu ante esse desafio. Sobre a
tribuna, os outros, bastante embaraçados, agitaram-se em
seus assentos. A assistência comunista pareceu no momento
terrificada por esse sinistro alerta.
Nesse momento, outra voz se elevou... Um homem alto em
uniforme de marinheiro ergueu-se no fundo da sala. Nada
havia mudado o espírito revolucionário de seus irmãos do
mar, declarou ele. Eles estavam prontos, até o último homem,
a defender a revolução com cada gota de seu sangue, p pôs-se
a ler a resolução de Kronstadt, adotada no encontro massivo
de 1? de março. O tumulto que se ergueu contra essa audácia
impediu que fosse entendido, exceto por aqueles que estavam
muito próximos. Mas ele resistiu £xontinuou a ler até o fim.
A única resposta que receberam esses dois corajosos filhos da
revolução foi a resolução de Zinoviev, exigindo a total e ime­
diata rendição de Kronstadt, sob pena de extermínio. Ela foi
votada apressadamente em meio a um pandemônio de con­
fusão e as vozes da oposição foram abafadas.”

Em represália às prisões de Kuzmine Zinoviev em Krons­


tadt, o Com itê de Defesa de Petrogrado decide reter como
reféns as famílias dos marinheiros kronstadinos que moram
em> Petrogrado. A noção de responsabilidade coletiva, con-
58 HENRI ARVON

trária ao direito das pessoas mas tentador em tempos de guerra


— ela deveria em seguida encontrar larga aplicação em todos
os regimes totalitários — foi criada por Trotsky, que durante
a guerra civil procurara por meio dela assegurar-se da fideli­
dade dos oficiais ex-czaristas, que ele havia incorporado ao
Exército Vermelho; num a ordem datada de 30 de setembro de
1918, ele conclama “ aqueles que queriam m udar de lado, a
traírem ao mesmo tempo os membros de sua própria família,
pai, mãe, irmãs, irmãos, esposa e filhos” .
Um avião governamental lança sobre K ronstadt folhetos
inform ando a população a respeito daquelas prisões. “ O
Com itê de Defesa anuncia que mantém as famílias dos mari­
nheiros como reféns em resposta à prisão dos cam aradas
comunistas pelos insurrectos de K ronstadt, em particular o
comissário da Frota, Kuzmin, e o presidente do Soviete de
K ronstadt, Vassiliev. Se for tocado um fio de seus cabelos,
esses reféns responderão com suas cabeças.”
Qual era na realidade a situação dos comunistas em
Kronstadt? Diz-se que um grande núm ero deles havia deixado
o partido antes mesmo que a insurreição eclodisse, e aqueles
que haviam permanecido fiéis ao partido estavam estreme­
cidos. O Com itê Revolucionário Provisório fez prender cerca
de 300 com unistas, isto é, perto de um quinto do efetivo total
do partido em K ronstadt. Ainda que alguns tivessem come­
tido atos de traição, transm itindo informações militares ao
com andante do forte Krasnaia G orka, não houve execuções e
nem mesmo m aus-tratos. Uma vez libertado, Kuzmin, de
quem se tinha dito que havia sido m altratado e am eaçado de
pelotão de execução, afirm ou a Víctor Serge que tudo aquilo
foi exagerado e que ele mesmo assim como seus camaradas
tinham sido corretam ente tratados.
É possível que o fato de o governo ter retido os reféns é
que tenha incitado os marinheiros à m oderação; mas todo o
seu com portam ento, sobretudo na condução das operações
militares, mostra que a despeito de todas as críticas que faziam
ao poder com unista, entendiam que estavam do lado da revo­
lução. No fundo, am bos os lados consideravam-se não como
inimigos m ortais mas como irmãos que divergiam, estan­
do m om entaneam ente separados. A nota publicada no dia
seguinte pelo Izvestia de Kronstadt levanta-se com justeza
contra todos os falsos rumores concernentes aos comunistas
A REVOLTA DE KRONSTADT 59

presos em K ronstadt: “ O Com itê Revolucionário Provisório


deseja desmentir os boatos segundo os quais os comunistas
presos sofreriam violências. Os comunistas presos estão em
completa segurança. Com relação a muitos comunistas pre­
sos, um a parte deles foi colocada em liberdade. Um repre­
sentante do partido com unista fará parte da comissão encar­
regada de averiguar as causas das prisões. Os camaradas
comunistas Ilin, K obanoff e Pervuchin dirigiram-se ao Comi­
té Revolucionário e foram autorizados a visitar os detidos do
navio Petropavlosk. Isso é o que os cam aradas confirmam
colocando aqui suas assinaturas: Ilin, K obanoff, Pervuchin.
Está conform e, assinado: N. A rkhipoff, membro do Comité
Revolucionário. Pelo secretário, assinado: P. B ogdanoff.”

5 de março: Q uando Trotsky, excluido do Partido em


1927 e exilado dois anos depois, empreende nos anos 30 a for­
mação de um novo partido, a IV Internacional, cujo principal
objetivo é lutar contra o centralismo excessivo e a burocracia
tentacular que proliferam sob Stalin, ele parece copiar os
kronstadinos de 1921. Mas é só a partir de 1923 que Trotsky,
assustado pelo poder cada vez mais absoluto de um aparelho
independente do conjunto do Partido e da classe operária,
passa,' com o escreveu Isaac Deutscher, da “ autoridade á
liberdade” .
N a época dos acontecimentos de Kronstadt, Trotsky é
ainda o partidário mais feroz de urna disciplina de ferro e de
um centralism o estreito. Ele propõe até mesmo a introdução,
na fábrica, da organização militar do trabalho por intermé­
dio dos sindicatos estatizados. Quando o X Congresso do
P artido coloca em discussão as teses da Oposição Operária
sobre a dem ocracia dentro do Partido e a gestão operária que
deveria, segundo ela, ser confiada aos sindicatos, Trotsky é o
primeiro a condená-las. De form a que em 1921 parece-lhe
necessário esmagar a revolta de K ronstadt com a maior bruta­
lidade.
Mas com partilhando depois das idéias dos kronstadinos
sobre o partido e sobre a burocracia antes de compartilhar sua
sorte, ele tenta minimizar suas responsabilidades na repres­
são. Em um artigo publicado em agosto de 1928 na revista
The N ew International, ele escreve a propósito do papel que
lhe é atribuido nos acontecimentos de K ronstadt: “ O fato é
60 HENRIARVON

que não tomei pessoalmente a menor parte na pacificação da


sublevação de K ronstadt ou na repressão que se seguiu” .
Segundo ele, a inteira responsabilidade dos acontecimentos
pertence a Zinoviev e à TCHEKA, dirigida por Dzerjinski.
Q uanto a ele, afirm a não ter deixado Moscou durante todo o
tempo em que se realizaram as operações militares contra
Kronstadt.
Ora, trata-se de um a antífrase. Se é verdade que Trotsky
não é a figura central do dram a de K ronstadt, permanece o
fato de que enquanto comissário da G uerra e presidente do
Conselho de Guerra Revolucionário, ele tinha tom ado intei­
ramente a decisão de extirpar o quanto antes o abscesso de
Kronstadt. Em 5 de março, depois de ter deixado a Sibéria
oriental, onde dirigira as operações militares contra as suble-
vações camponesas, ele chega a Petrogrado. As decisões
importantes são tom adas imediatamente. M. N. Tukhat-
chevski, jovem oficial de 29 anos que se tornara célebre na
guerra civil com andando um exército contra os poloneses, é
encarregado por Trotsky do com ando do 7? Exército e de
todas as tropas do distrito de Petrogrado; portanto, é ele que,
por ordem de Trotsky, organizará e conduzirá o assalto con­
tra Kronstadt.
Julgando que era inútil prolongar a espera, Trotsky
assina com Tukhatchevski e S. S. Kamenev, comandante-em-
chefe do Exército Vermelho, o seguinte ultim ato, que expi­
raria em 24 horas e que exigia da parte dos amotinados uma
capitulação sem condições:

“ O governo operário e camponês ordena a Kronstadt que


coloque, sem demora, Kronstadt e os navios amotinados à
disposição da República Soviética. Ordeno pois, a todos
aqueles que levantaram a mão contra a pátria socialista, que
deponham imediatamente as armas, que desarmem os que se
obstinam e que entreguem-nos às autoridades soviéticas, que
libertem imediatamente os comissários e os representantes do
poder. Somente aqueles que se renderem sem condições pode­
rão contar com a clemência da República Soviética. Ao mes­
mo tempo, dou ordens para a preparação do esmagamento da
rebelião e dos amotinados pela força armada. A responsa­
bilidade pela desgraça que se abater em conseqüência sobre a
população pacífica repousará inteiramente sobre os ombros
dos insurrectos. A presente advertência é a última” .
A REVOLTA DE KRONSTADT 61

Ao lado deste ultimato de extrema dureza mas que, não


obstante, abstém-se de insultar o adversário, o Com ité de
Defesa de Petrogrado dirigido por Zinoviev, de quem o míni­
mo que se pode dizer é que não tinha tem peram ento ou cará­
ter militar, envia simultaneamente a K ronstadt um a mensa­
gem ultrajante para os m arinheiros, mas que, de fato, vol-
tava-se contra seus remetentes, a tal ponto que o próprio
Pukhov, autor do melhor relato soviético da insurreição,
achou-a m uito grosseira.
“ Aos de Kronstadt, enganados:
Agora vocês percebem aonde foram levados pelos patifes? Eis
onde vocês estão!... Todos esses Petrichenko e outros Tukin
(membro do Comitê Revolucionário Provisório encarregado
do abastecimento, ex-soldado e, segundo os bolcheviques,
proprietário de seis casas e de três lojas em Petrogrado) são
manipulados como marionetes pelo general czarista Koz-
lovsky, pelos capitães e outros guardas brancos reconhecidos.
Vocês estão sendo enganados!...
Vocês estão cercados por todos os lados. Algumas horas mais
e serão obrigados a render-se. Kronstadt está sem pão e sem
combustíveis. Se vocês persistirem serão caçados como per­
dizes. Todos esses generais de Kozlovsky, todos esses patifes
como Petrichenko, Tukin... fugirão no último minuto...
Rendam-se imediatamente sem perder um minuto. Aquele
que se render voluntariamente será perdoado. Rendam-se
imediatamente!”
A am eaça “ se vocês persistirem serão caçados como per­
dizes” é freqüentemente atribuída a Trotsky; injustam ente,
pois o texto redigido pelo Com itê de Defesa de Petrogrado
foi distribuído independentemente do ultim ato de Trotsky.
Após alguns dias de hesitação perante o horror fratri­
cida, o enfrentam ento entre o poder bolchevique ç t >s m ari­
nheiros alcançou um ponto de não-retorno. Entretanto, uma
última tentativa é feita para evitar o inevitável; os anarquistas
Alexandre Berkm an, Em ma G oldm an, Perkus e Petrovsky,
que em Petrogrado assistem impotentes à agudização inexo­
rável de um enfrentam ento, como reflexo fiel de sua própria
divisão em face da Revolução de O utubro, oscilando entre a
liberdade a que aspiram e a autoridade que detestam, con­
clamam Zinoviev a não renunciar ainda à esperança de conse­
guir um acordo pacífico.
62 HENRIARVON

Aqui está em toda a sua comovente ingenuidade o apelo


redigido por Alexandre Berkman:
“ Ao Soviete dos Sindicatos e da Defesa de Petrogrado. Presi­
dente Zinoviev.
Manter o silêncio tornou-se impossível: seria mesmo crimi­
noso! Os acontecimentos recentes levam-nos, os anarquistas,
a falar e a definir nossa posição diante da situação atual.
O espírito de excitação e descontentamento que se manifesta
entre os trabalhadores e marinheiros é o resultado de causas
que exigem nossa séria atenção. O frio e a fome produziram o
descontentamento, e a falta de discussão e de crítica forçam
os operários e os marinheiros a expor publicamente suas
queixas.
Os grupos de Guardas Brancos vão querer, e poderão tentar,
explorar esse descontentamento no interesse de sua própria
classe. Camuflados por detrás dos trabalhadores e marinhei­
ros eles lançam slogans exigindo a assembléia constituinte, o
comércio livre, e colocando reivindicações similares.
Nós, os anarquistas, denunciamos já há muito tempo o erro
desses slogans e declaramos para o mundo inteiro que vamos
combater, de armas nas mãos, contra toda tentativa contra-
revolucionária, em cooperação com todos os amigos da revo­
lução socialista e de mãos dadas com os bolcheviques.
No que concerne ao conflito entre o governo soviético e os
trabalhadores e marinheiros, pensamos que deve ser regulado
não pela força das armas, mas pelos mecanismos da camara­
dagem, por um acordo revolucionário e fraternal.
A decisão de derramar sangue, tomada pelo governo sovié­
tico, não tranquilizará os trabalhadores na situação atual.
Pelo contrário, servirá apenas para agravar as coisas e refor­
çará o jogo da Entente e da contra-revolução no interior.
Mais grave ainda, o uso da força pelo governo dos trabalha­
dores e camponeses contra os operários e marinheiros terá um
efeito reacionário sobre o movimento revolucionário inter­
nacional e causará o maior dano à revolução socialista.
Camaradas bolcheviques, reflitam antes que seja tarde demais!
Não brinquem com fogo: vocês estão a ponto de dar um passo
decisivo e muito grave.
Nós lhes submetemos a seguinte proposta: permitam a eleição
de uma comissão composta por cinco pessoas, compreen­
dendo dois anarquistas. Essa comissão irá a Kronstadt para
resolver o conflito por meios pacíficos. Na presente situação,
é o método mais radical. Ela será de uma importância revolu­
cionária internacional.
A REVOLTA DE KRONSTADT 63

Petrogrado, 5 de março de 1921


Alexandre Berkman
Emma Goldman
Perkus
Petrovsky” .

P or que os anarquistas, cuja simpatia estava incontes-


tavelmente com os insurrectos de K ronstadt, acreditavam
poder assumir o papel de mediadores nesse conflito? A Revo­
lução de O utubro com a palavra de ordem lançada por Lenin
“ Todo o poder aos sovietes” , tinha-os entusiasmado; eles
acreditaram ter descoberto a realização da Revolução social
(por oposição à Revolução política) à qual aspiravam. Mas, a
partir de 1918, sua atitude tanto em relação ao governo bol­
chevique quanto em relação aos sovietes se diferencia; ainda
que um pequeno número deles adira ao comunismo, a maio­
ria opõe-se ao governo bolchevique, acusando-o de instaurar
a ditadura de um partido, regime diametralmente oposto aos
seus valores libertários, e desconfiam dos sovietes, que, de
expressão da vontade dos operários e camponeses que eram
no início, transform am -se cada vez mais em simples instru­
mentos nas mãos dos bolcheviques. Esse ponto de vista encon­
tra-se claramente form ulado em um a resolução do Nabat
(Sino; trata-se da confederação das organizações anarquistas
da Ucrânia) quando de seu congresso em abril de 1919, onde
a organização anarquista declara opor-se a “ toda a partici­
pação nos sovietes, que se transform aram em órgãos pura­
mente políticos, organizados sobre uma base autoritária,
centralista e estatal” .
Efetivam ente, os anarquistas são alvo de perseguições
bem piores que as que sofreram sob o czarismo; elas se inicia­
ram seis meses apenas após a Revolução de O utubro com
uma incursão sangrenta da TCHEKA contra o edifício que
abrigava os escritórios do jornal Anarquia, em M oscou, e só
tiveram fim em 1922 quando aqueles que Trotsky não hesitou
em tratar de “ bandidos de estrada” estavam m ortos, presos,
banidos, ou no mínimo reduzidos ao silêncio.
Mas os anarquistas conservam um certo fraco pelos bol­
cheviques; eles atribuem os desvios burocráticos, estatizantes
e ditatoriais não à doutrina em si dos bolcheviques, mas aos
efeitos nefastos das intervenções estrangeiras e da guerra civil. *
64 HENRI ARVON

Quando perguntam ao príncipe anarquista K ropotkin, que


retornara à Rússia por causa da Revolução, se ele tinha uma
mensagem para dirigir aos operários do m undo ocidental, ele
manifesta sua simpatia indefectível pela Revolução de O utu­
bro pedindo-lhes que não se tornassem auxiliares da contra-
revolução na Rússia: “ Não apenas os operários” , ele escre­
veu em 28 de abril de 1919 em um a C arta aos Trabalhadores
da Europa Ocidental, “ mas todos os elementos progressistas
das nações civilizadas devem pôr term o ao apoio dado até
aqui aos adversários da revolução. Não que não haja o que
combater nos métodos do governo bolchevique. Longe disso!
Mas toda intervenção arm ada de um a potência estrangeira
provoca necessariamente um aprofundam ento das tendências
ditatoriais dos governantes e paralisa os esforços dos russos
dispostos a ajudar a Rússia, independentemente de seu gover­
no, na restauração de sua vida. Os males inerentes à ditadura
de partido foram portanto aum entados pelas condições de
guerra em meio às quais esse partido se mantém. O estado de
guerra tem sido um pretexto para reforçar os métodos ditato­
riais do partido, como sua tendência a centralizar cada deta­
lhe da vida nas mãos do governo, o que teve por efeito deter a
imensa ramificação das atividades usuais da nação. Os males
naturais do comunismo de Estado aum entaram dez vezes sob
o pretexto de que todas as misérias de nossa existência devem-
se à intervenção estrangeira” .
Querendo evitar a qualquer preço Um enfrentam ento
sangrento entre o governo e os insurrectos de K ronstadt, os
anarquistas não obedeciam apenas um sentimento de hum a­
nidade; da mesma form a que K ropotkin, m orto em 1920,
alguns meses antes da insurreição de K ronstadt (seus funerais
em Moscou foram a última grande manifestação dos anar­
quistas russos), os anarquistas de Petrogrado acreditavam
que qualquer repetição da guerra civil só acentuaria os vícios
de um regime que são os primeiros a condenar.

6 de março: A intervenção dos anarquistas parece ter


produzido algum efeito. Depois de ter suspendido o ultimato
de 24 horas, o Soviete de Petrogrado faz saber aos kronsta-
dinos por telegrama que está disposto a enviar uma delegação
composta por membros do partido e por pessoas sem partido
a fim de colocar-se a par da situação. Os kronstadinos res-
A REVOLTA DE KRONSTADT 65

pondem com um a arrogância que beira a insolência; depois


de terem declarado que não têm confiança na independência
das pessoas supostas sem partido escolhidas pelo Soviete, eles
exigem que a designação dos delegados se faça em presença
de observadores de Kronstadt, para quem os meios de trans­
porte deveriam ser assegurados pelo Soviete de Petrogrado,
e consentem que precisamente 15% de delegados comunis­
tas nomeados pelo Soviete de Petrogrado se juntem a eles.
Resposta incompreensível que equivalia a um term o de não-
aceitação, a um a verdadeira provocação. Talvez os marinhei­
ros, iludidos pelo entusiasmo que reinava em K ronstadt, acre­
ditassem que ainda estavam em posição de força. Os dias que
se seguiram trouxeram-lhes uma cruel desilusão.

7 de março: É em 7 de março que começa a segunda fase


da insurreição de Kronstadt: na prática, sucedem as hostili­
dades. Às 18 horas e 45 minutos, as baterias costeiras abrem
fogo contra os fortes de Kronstadt. As conseqüências do
canhoneio não são muito mortíferas; o “ com unicado” de
K ronstadt assinala que dois soldados foram feridos e deram
entrada no hospital e que os prejuízos materiais são nulos.
Mas como se apresenta então a situação de K ronstadt do
ponto de vista militar? O mínimo que se pode dizer é que não
é muito brilhante. A ilha de Kotlin, da qual K ronstadt ocupa
a parte oriental, é cercada em três lados pelas costas muito
próximas do G olfo da Finlândia, onde se erguem os pode­
rosos fortes de Sestroretsk e de Lisy Nos ao norte, e o forte de
Krasnaia G orka, munido de uma artilharia de longo alcance,
ao sul, todos nas mãos do governo e providos de canhões que
podiam atingir Kronstadt.
K ronstadt também possui fortes arm ados de canhões,
ao norte os fortes de Totleben e de Krasnoarnets, bem como
uma linha de sete outros fortes na direção da costa da Carélia,
ao sul os fortes C onstantin, Alexandre, Pedro, Paulo e dois
outros fortes simplesmente num erados. Mas o maior canhão
de que dispunham esses fortes tinha um alcance de apenas
15 quilômetros; impossível, pois, para K ronstadt bom bar­
dear Petrogrado, situada a 30 quilômetros. Além disso, todas
essas peças terrestres são instaladas não para atirar contra a
terra, mas sobre um inimigo vindo do alto mar; somente algu-
n
66 H E N R IA R V O N

mas peças de artilharia são instaladas sobre torres blindadas


móveis.
Q uanto aos navios de linha, Petropavlosk e Sebastopol,
possuem cada um doze peças de calibre 305, teoricamente
capazes de atingir Petrogrado, porém elas são inúteis, porque
esses dois navios, presos lado a lado no gelo, encobrem um ao
outro. Talvez o Petropavlosk pudesse atirar por um único
lado, mas o alvo seria a cidade de K ronstadt.
Após a guerra civil, durante a qual a maioria dos m ari­
nheiros partiu para o fro n t, os efetivos da base naval encon-
travam-se m uito reduzidos. Restavam cerca de 13000 mari­
nheiros e soldados, aos quais se somavam 2000 homens recru­
tados entre a população civil. Mas são sobretudo os meios de
combate que fazem falta. O estoque de munições e granadas é
insuficiente; K ronstadt não pode fornecer a seus combatentes
vestimentas quentes ou sapatos de inverno, os víveres são
estritamente racionados desde o prim eiro dia dos combates e
esgotam-se rapidam ente.
Do lado com unista, o problem a m aior era sem dúvida o
moral das tropas, qüe estava baixo demais. Muitos fatores
contribuíam para isso. Antes de mais nada, tendo term inado
a guerra civil, os soldados do Exército Vermelho esperavam
impacientemente ser desmobilizados; a perspectiva de enga­
jarem-se em novos combates só podia desagradá-los princi­
palmente considerando aqueles contra os quais deveríam
lutar como com panheiros de armas que haviam sido “ o orgu­
lho e a glória” da Revolução e que agora defendiam as aspi­
rações do cam pesinato, ao qual pertenciam em grande parte.
Finalmente, originários muitas vezes de regiões onde o gelo
começava a derreter em meados de m arço, eles estavam assus­
tados com a idéia de avançar até uma data tardia sobre a
superfície gelada do G olfo da Finlândia para atacar Krons­
tadt. O sucesso final das operações militares deveu-se, aliás,
somente à intervenção dos kursanty, todos dedicados ao
regime, às tropas especiais da TCHEKA e às unidades de elite
constituídas pelos com unistas, que Tukhatchevski tinha feito
vir às pressas para entrar no combate conjunto do 1? Exército
com andado por ele.

8 de março: Após uma preparação de artilharia, nitida­


mente insuficiente, aliás, pois as granadas que caíram sobre
A REVOLTA DE KRONSTADT 67

as portas da cidade e próximo aos fortes não causaram qual­


quer estrago, o governo lança no dia seguinte seu primeiro
ataque contra os kronstadinos. O com ando com unista dispõe
de aproxim adam ente 8000 homens concentrados sobre a
costa norte do G olfo da Finlândia e 15000 homens sobre
a costa sul. Às 4 horas e 30 minutos, quando uma neblina
espessa estende-se sobre todo o G olfo, a primeira ofensiva é
lançada ao norte contra o forte de Totleben e contra a parte
leste da ilha de Kotlin, na direção das portas de Petrogrado.
Vestidos com blusas brancas longas, que os tornavam invi­
síveis sobre o gelo, os agressores conseguem aproximar-se dos
objetivos que lhes foram designados; mas quando os kronsta­
dinos percebem sua presença, são massacrados sobre o gelo
aberto e fundido pelos projéteis. O saldo do ataque é um
pungente revés. Os kronstadinos fazem 800 prisioneiros; os
soldados do Exército Vermelho, entre os quais um a unidade
de kursanty de Peterhof, deseiíam e voltam a unir-se a suas
fileiras.
No final da tarde, as tropas bolcheviques partem da
margem sul na direção de K ronstadt; surpreendidos por um
violento fogo de artilharia, eles erguem um a bandeira branca.
A creditando tratar-se de desertores, dois membros do Comitê
Revolucionário Provisório, Verchinin e Kupolov, vão ao seu
encontro a cavalo. Os bolcheviques aproveitam para capturar
Verchinin, enquanto Kupolov consegue escapar.
A data da ofensiva deveria sem dúvida coincidir com a
abertura do X Congresso do Partido Comunista. A verdade é
que Lenin acreditava poder anunciar na sessão inaugural que
“ a sublevação, por trás da qual perfilam-se os ombros fami­
liares dos generais da G uarda Branca, será liquidada em dias,
se não nas próximas horas” .
Q uanto aos kronstadinos, que pelo menos inconsciente­
mente jam ais haviam deixado de situar sua oposição no pró­
prio seio do movimento revolucionário, cujas excrescências
burocráticas e estatizantes era tudo que pretendiam com ba­
ter, e que, na verdade, não haviam considerado seriamente
a luta arm ada, exprimem sua indignação ante o assalto que
lhes é feito em um artigo assinado pelo Conselho Revolucio­
nário Provisório e publicado no Izvestia de Kronstadt de 8 de
- março:
68 HENRI ARVON

“ Que o mundo o saiba!


A todos... A todos... A todos...
O primeiro tiro de canhão acaba de ser dado. O ‘marechal de
campo’ Trotsky, tentando conseguir o sangue dos operários,
foi o primeiro a atirar sobre a Kronstadt revolucionária que se
levanta contra a autocracia dos comunistas para restabelecer
o verdadeiro poder dos Sovietes. Sem ter derramado urna
única gota de sangue nós nos libertamos, nós, soldados ver­
melhos, marinheiros e operários de Kronstadt, do jugo dos
comunistas. Conservamos as vidas dos comunistas que esta­
vam entre nós. Agora eles querem impor-nos novamente seu
poder pela ameaça dos canhões.
Não querendo derramamento de sangue, solicitamos que para
cá fossem enviados delegados sem partido do proletariado de
Petrogrado para que pudessem inteirar-se de que Kronstadt
combate pelo poder dos Sovietes. Mas os comunistas ocul­
taram nosso pedido dos operários de Petrogrado e abriram
fogo: resposta habitual do pretenso governo operário e cam­
ponês às exigências das massas trabalhadoras.
Que os operários do mundo inteiro saibam que nós, defen­
sores do poder dos Sovietes, exerceremos uma vigilância sobre
as conquistas da Revolução Social.
Nós venceremos ou pereceremos sob as ruínas de Kronstadt,
lutando pela justa causa das massas operárias.
Os trabalhadores do mundo inteiro serão nossos juizes. O
sangue dos inocentes recairá sobre a cabeça dos comunistas,
loucos furiosos embriagados pelo poder.
Viva o poder dos Sovietes” .

A firme decisão dos kronstadinos de resistir custe o que


custar ao assalto do Exército Vermelho, proclam ada nesse
artigo, traduz-se por diferentes medidas tom adas para assegu­
rar o arm am ento aos defensores assim como o abastecimento
da cidade; mas o rigor dessas medidas permite prever ao mes­
mo tem po um esgotam ento rápido de todas as reservas indis­
pensáveis à continuação das hostilidades. Senão vejamos: os
marinheiros só possuem alpargatas, K ronstadt não tem botas
de couro, que permitem lutar na neve e sobre o gelo. Assim, o
Comitê Revolucionário Provisório decide proceder a uma
troca de calçados: os cerca de trezentos comunistas presos
deveriam ceder suas botas em troca das alpargatas dos m ari­
nheiros. A população, por sua vez, deveria fornecer outros
quatrocentos pares de botas.
A REVOLTA DE KRONSTADT 69

As rações alimentares para o período de 8 a 14 de março


são reduzidas segundo as seguintes normas: em lugar de urna
ração de 225 gramas de pão e de uma caixa de conserva por
dia para cada pessoa, distribui-se à guarnição terrestre e marí­
tima 250 gramas de maçãs secas, meia caixa de conserva de
carne e 125 gramas de carne por dia. A população civil de
categoria A recebe 250 gramas de pão, meia caixa de conser­
va, 250 gramas de carne, a de categoria B 500 gramas de cen­
teio, meia caixa de conserva de carne, 125 gramas de carne e,
durante algum tem po, 250 gramas de açúcar e 250 gramas de
manteiga salgada. As crianças da categoria A recebem a cada
dia farinha, cevada ou 250 gramas de pão doce, meia caixa de
conserva de carne, e durante algum tempo, 250 gramas de
açúcar e um quarto de manteiga de mesa. As crianças das
categorias B e C recebem as mesmas rações e 250 gramas de
carne em lugar do leite em pó.
E ntretanto, essas distribuições só podem ser mantidas
nos primeiros dias; no final da segunda semana da subleva-
ção, os estoques de farinha e de pão esgotam-se em Kronstadt,
restam apenas algumas conservas.

De 9 a 15 de março: Em sua pressa de acabar com Krons­


tadt antes que o degelo colocasse a ilha de Kotlin ao abrigo
dos ataques terrestres, os comunistas haviam lançado seu
ataque com efetivos insuficientes e mal preparados psicologi­
camente para lutar contra aqueles que eles continuavam a
considerar como irmãos de armas. A derrota que havia con­
firmado essa precipitação irrefletida provocou durante oito
dias um a m udança de tática; o inimigo estava esgotado pelos
tiros de artilharia e pelos ataques de pequena envergadura.
Ainda que K ronstadt sofresse apenas estragos leves, e que os
ataques da infantaria fossem regularmente rechaçados, o
ataque contínuo às defesas de K ronstadt pela aviação e pelas
baterias situadas em todas as partes da ilha bem como as
emboscadas que tinham lugar durante o dia e á noite eram
terríveis para os habitantes, obrigados a viver em estado de
tensão perm anente e a passar longas noites de vigília nos dife­
rentes postos de defesa.
Indiscutivelmente, o tem po trabalha para os comunis­
tas. Os kronstadinos haviam acreditado poder contar com o
apoio ativo dos operários de Petrogrado, a cujas reivindica-
70 HENRI ARVON

ções eles haviam dado continuidade. O ra, Zinoviev soubera


manobrá-los de form a a neutralizá-los, ou melhor ainda, de
forma a dirigi-los contra “ Kronstadt, a B ranca” ; depois de
ter tom ado medidas destinadas a m elhorar o abastecimento e
aquecimento, ele havia aproveitado a trégua concedida pelo
Exército Vermelho para convocar em Petrogrado uma confe­
rência dos operários sem partido e cujo tema deveria ser a
luta contra a “ burocratização do Partido e do governo” .
Do ponto de vista militar, a desproporção entre os dois
campos opostos aum enta dia a dia. De to d a a Rússia são tra­
zidos reforços de artilharia e de aviação, bem como tropas
cuja origem étnica — trata-se de chineses, tártaros e bakchi-
res — constitui-se em garantia contra uma eventual frater-
nização com os habitantes de K ronstadt, todos originários da
Rússia européia. Além disso, a Academia do Estado-M aior
geral destaca alguns chefes militares peritos, como Fedko,
Uriski e Dybenko. Q uanto a este último, que havia perten­
cido à equipagem do Petropavkosk durante a Revolução de
O utubro e que tinha sido então um dos principais líderes, sem
dúvida tinha velhas contas a acertar com Petrichenko, que
servia na m arinha desde 1912; dirigindo-se em um folheto a
seus “ velhos cam aradas, os marinheiros de K ronstadt” , ele
ataca o “ kulak poldave” Petrichenko, traidor da Revolu­
ção. Dybenko, após o esmagamento da revolta, é nomeado
com andante da fortaleza de K ronstadt e encarregado dos
expurgos.
Mas é sobretudo o desenrolar do X Congresso do P arti­
do que faz pender a balança para o lado do governo sovié­
tico. Após o fracasso de 8 de março os dirigentes comunistas,
longe de dissimular sua gravidade, servem-se dela para tentar
conseguir a unidade do Partido. Em 9 de março, Kamenev
anuncia aos delegados que a situação militar em K ronstadt
terá desdobramentos inesperados e que não se colocará fim
à revolta tão cedo quanto era previsto. Em 10 de março,
Trotsky apresenta sobre o assunto de K ronstadt um relatório
muito pessimista para que a comunicação fosse feita a portas
fechadas. Tática coroada de sucesso, pois nessa mesma noite
trezentos delegados apresentam-se como voluntários para a
frente de batalha; entre eles conta-se um grande número de
delegados que pertenciam à Oposição Operária e ao Centra­
lismo Democrático, isto é, às facções que na luta que diri-
A REVOLTA DE KRONSTADT 71

giam contra a burocracia e o caráter monolítico do Partido


assumiam, ao menos parcialmente, o program a dos kronsta-
dinos.
Alguns delegados participam ativamente dos combates;
alguns pagam com suas vidas a fidelidade que haviam mani­
festado em relação ao Partido. A maioria deles assume o
papel de comissários políticos; eles se esforçam para levantar
o moral das tropas tentando fazê-las compreender o caráter
contra-revolucionário da sublevação de Kronstadt. O argu­
mento decisivo, capaz de reavivar o ardor combativo das
tropas comunistas é-lhes fornecido pelo X Congresso em
15 de de m arço, véspera da ofensiva geral; nesse dia, o
Congresso decide que as requisições, pesadas para o campe­
sinato russo, seriam daí em diante substituídas por um impos­
to em espécie. Essa é um a ótima notícia para os soldados, que
são em sua m aioria de origem camponesa; é o crédito da
Revolução, a apropriação das terras pelos camponeses, que
eles vão defender daí em diante contra os kronstadinos, que
haviam se ligado aos Guardas Brancos, segundo o que lhes
diziam.
Reduzidos a esperar por um assalto, que não têm dúvi­
das de que lhes será fatal, os kronstadinos pouco a pouco
perdem sua confiança. As munições começam a faltar; em
11 de março resistem a um ataque aéreo com fuzis e m etralha­
doras. Como os medicamentos estão esgotados, há muitas
mortes no hospital da cidade. Mas é principalmente a decla­
ração feita por Lenin ao X Congresso do Partido, lida no
Izvestia de Kronstadt, o que contribui para solapar o moral
dos kronstadinos.
Fato singular mas instrutivo, na medida em que escla­
rece o plano situado por detrás da sublevação, os marinheiros
de K ronstadt, considerando o partido com unista em sua tota­
lidade, fazem nítida distinção entre Lenin, de um lado, e
Zinoviev e Trotsky, de outro; eles continuam a respeitar
Lenin, cujos retratos jamais foram despregados das repar­
tições da fortaleza durante a sublevação, enquanto os de
Trotsky e de Zinoviev eram execrados. É nessa diferença de
apreciação em relação aos dirigentes comunistas que se deve­
ria procurar a verdadeira razão de uma sublevação ao mesmo
tempo apaixonada e hesitante, de uma revolta que se quer ao
mesmo tem po total e pacífica? C ontariam os marinheiros de
72 HENRI ARVON

Kronstadt, no fundo de seu coração, com a intervenção de


Lenin para reconduzir a revolução às suas origens liber­
tárias?
Os marinheiros de Kronstadt tinham razão em dissociar
Lenin de Trotsky e de Zinoviev. De uma maneira geral, Lenin
nunca havia deixado de m anifestar sua simpatia pelo campe­
sinato cruelmente sacrificado pelo comunismo de guerra. Seu
testamento datado de dezembro de 1922 m ostra que seu pen­
samento era inteiram ente m onopolizado pela dupla degene-
rescência com que via sua obra am eaçada, o poder absoluto
do partido e a burocracia. No X Congresso do Partido ele se
opõe às propostas de Trotsky, que consistem em tratar os
sindicatos como simples correias de transmissão a serviço
exclusivo do partido.
Zinoviev, em compensação, é para eles o autor diabólico
de todas as medidas repressivas que os golpeavam. É ele quem
ousa desbaratar pela força as greves de Petrogrado, e, cúmulo
da infâm ia, prende como reféns as famílias dos marinheiros
de Kronstadt domiciliadas em Petrogrado. Mas é sobretudo
Trotsky, inspirador do comunismo de guerra e defensor da
centralização, militarização e de um a disciplina de ferro leva­
da a limites extremos, isto é, o inspirador de tudo que eles
detestavam e que acusavam de alterar o ideal da revolução,
que eles atacam com particular furor, tratando-o de “ san­
grento m arechal” , de “ Gênio mau da Rússia” . A indulgência
que mostravam em relação a Lenin, ao passo que Zinoviev e
Trotsky passavam por traidores da revolução, repousava
também e sobretudo nas origens diversas desses três prota­
gonistas da Revolução. Lenin era grande-russo, originário do
Médio-Volga, filho autêntico da Rússia camponesa, enquanto
que a ascendência judia de Zinoviev e de Trotsky, revelada e
estigmatizada por inumeráveis folhetos dos Brancos, tornava-
os odiosos aos olhos dos m arinheiros, cuja maior parte pro­
vinha da Ucrânia, país completamente anti-semita. Trotsky
afirm a em sua autobiografia que “ a questão das minhas ori­
gens judias só adquiriu im portância quando começou a cam­
panha política articulada contra m im ” , porém, o ódio impie­
doso com que os marinheiros de K ronstadt o perseguem,
com parando de form a abusiva os comunistas aos judeus
quando eles mesmos acreditam permanecer fiéis ao ideal bol­
chevique de 1917, prova que suas origens com prom etiam sua
A REVOLTA DE KRONSTADT 73

posição de dirigente bem antes que ele tivesse se batido em


duelo com o georgiano Stalin.
Qual não deve ter sido o desapontam ento de Kronstadt
ao tom ar conhecimento de que na abertura do X Congresso
do Partido, Lenin, com quem eles haviam contado em silên­
cio para evitar o pior, acusou os marinheiros de usarem ardis
contra-revolucionários! Em 14 de m arço, o Izvestia de Krons­
tadt publica um a espécie de adeus a Lenin, em bora tingido de
uma aparente absolvição, pois a “ negação” de Lenin é atri­
buida à sua enfermidade.

Sob o título É preciso ser maria-vai-com-as-outras,


pode-se ler:
“ Poder-se-ia esperar que Lenin, no momento da luta dos
trabalhadores por seus direitos ultrajados, não fosse hipócrita
e dissesse a verdade. É que, em seu pensamento, os operá­
rios e camponeses separavam Lenin, de um lado, de Trotsky e
de Zinoviev, de outro. Ninguém acreditava em uma única
palavra de Zinoviev ou de Trotsky; mas quanto a Lenin, a
confiança nele ainda não estava perdida. Mas...
Em 8 de março, iniciou-se o X Congresso do Partido Comu­
nista Russo. Lenin repetiu todas as mentiras a respeito de
Kronstadt em revolta. Ele declarou que a palavra de ordem
do movimento era ‘a liberdade de comércio’. Ele acrescentou,
certamente, que o ‘movimento é pelos bolcheviques, mas
contra a ditadura dos bolcheviques’; mas ele não esqueceu de
introduzir ‘os generais brancos e os elementos anarquistas
pequeno-burgueses’. Dessa forma, pronunciando calúnias,
Lenin enredou a si próprio. Ele deixou escapar o reconheci­
mento de que a base do movimento é a luta pelo poder dos
sovietes, contra a ditadura do partido. Mas, perturbado, ele
acrescentou: ‘É uma contra-revolução de outro tipo. E lã^
extremamente perigosa, não importa quão insignificantes
possam parecer, à primeira vista, as correções que pensa tra­
zer à nossa política’.
E há com o que se preocupar. O golpe aplicado pela Kronstadt
revolucionária é duro. Os chefes do partido sentem que o fim
de sua autocracia está próximo. A grande preocupação de
Lenin transparece através de todos os seus discursos a res­
peito de Kronstadt. A palavra ‘perigo’ volta a todo momento.
Ele diz, por exemplo, textualmente: ‘É preciso acabar com
esse perigo pequeno-burguês, perigoso demais para nós, pois
em lugar de unir o proletariado, separa-o; precisamos do
máximo de unidade’. Sim, o chefe dos comunistas é obrigado
74 HENRI ARVON

a tremer e a apelar para ‘o máximo de unidade’. Pois a dita-


dura dos comunistas e o próprio partido acusam uma grave
fissura.
De maneira geral, era possível para Lenin dizer a verdade?
Recentemente, em uma contraditória reunião comunista
sobre os sindicatos, ele disse: ‘Tudo isso me aborrece extre­
mamente. Já estou farto disso até os olhos. índependente-
mente de minha doença, ficarei feliz em largar tudo e fugir
não importa para onde!’. Mas seus parceiros não o deixarão
fugir. Ele é prisioneiro deles. Ele deve caluniar como eles.
E, por outro lado, toda a política do partido é afetada pela
ação de Kronstadt. Pois Kronstadt exige, não ‘a liberdade de
comércio’, mas o verdadeiro poder dos Sovietes” .

Uma vez consum ada a ruptura com Lenin, o tom do


Izvestia de Kronstadt endurece de maneira singular. No
número de 15 de março, sob um título que raivosamente
associa Lenin e Trotsky — Casa de comércio Lenin, Trotsky
e Cia. — a N EP é denunciada como um a declaração de com­
bate e como um aprofundam ento da escravidão operária e
camponesa, cuja responsabilidade desta vez é atribuída a
Lenin.

De 16 a 18 de março: O Comitê Revolucionário Provi­


sório havia fixado para 16 de março os funerais solenes das
vítimas de K ronstadt, até então consideravelmente pouco
numerosas. Após um a cerimônia religiosa na catedral dos
marinheiros, vinte e um caixões cobertos com panos verme­
lhos foram transportados para a vala comum fraternal que
havia sido cavada na Praça da Âncora. É durante esse sepul-
tam ento coletivo que a artilharia soviética começa uma ação
de destruição ininterrupta enquanto os aviões lançam bombas
sobre a cidade. Uma granada, atirada de Krasnaia G orka, cai
sobre a ponte do navio de linha Sebastopol; quatorze m ari­
nheiros são m ortos e trinta e seis feridos. Somente às 3 horas
da m adrugada é que os canhões comunistas silenciam.
A violência excepcional do fogo de artilharia era desti­
nada a preparar um a ofensiva geral. Os kronstadinos não
tinham muitas ilusões; após o fim do bom bardeio os atira­
dores dos fortes balearam o gelo à procura dos agrupam entos
de tropas soviéticas. É às 3 horas da m adrugada que estes se
põem em movimento, largamente espalhados e vestidos com
A REVOLTA DE KRONSTADT 75

blusas brancas com pridas, que os tornavam quase invisíveis


sobre o gelo; tendo partido da costa norte, das bases de Ses-
troretsk e Lisy Nos, eles procuravam antes de tudo tom ar os
fortes que estavam situados à frente de K ronstadt, os fortes
de Totleben e de Krasnoarnets de um lado, e as sete baterias
numeradas de outro, que se estendiam da ilha de Kotlin até a
costa de Carélia. Após duros combates, que se prolongam até
o meio da tarde, as sete baterias numeradas são ocupadas
pelos assaltadores; quanto aos fortes de Totleben e de Kras­
noarnets, para cuja tom ada o com ando soviético só havia
engajado duas com panhias, rendem-se no dia 18 apenas, o
primeiro à um a hora da m adurgada, o segundo pouco tempo
depois.
O grupo sul, tendo partido da base de Oranienbaum às
4 horas da m anhã, cerca de urna hora depois do grupo norte,
esforça-se por alcançar diretamente o porto militar de Krons­
tadt em três colunas separadas, enquanto uma quarta coluna
dirige-se para a porta de Petrogrado, a entrada mais vulne­
rável da fortaleza, que os m arinheiros, a despeito das reco­
mendações dos “ especialistas militares” , haviam negligen­
ciado no reforço da defesa. O ra, é exatamente pela porta de
Petrogrado que os assaltadores conseguem penetrar na cida­
de. Os com unistas presos pelos kronstadinos, que se encon­
travam encarcerados em uma prisão próxima à porta de Petro­
grado, são libertados e no mesmo instante passam a tom ar
parte dos com bates. Após os mortíferos combates de rua, os
grupos sul e norte juntam -se durante a noite. Somente os
combates esporádicos retardam a vitória definitiva dos assal­
tadores.
Na noite de 17 de março, onze membros do Cornil'ç,
Revolucionário Provisório, inclusive Petrichenko, atraves­
sam o gelo para chegar a Terijoki, na Finlândia; quanto aos
outros quatro, haviam sido feitos prisioneiros: Verchinin no
primeiro assalto de 8 de março: Valk, Pavlov e Perepelkin
durante a batalha. Os “ especialistas militares” , entre os quais
o general Kozlovski, têm o mesmo destino. É essa saída mas-
siva dos dirigentes, desculpável pelo fato de que estavam
todos prom etidos às execuções sumárias, mas apesar disso
pouco gloriosa para os homens que haviam proclam ado ven­
cer ou m orrer, que term ina por desencorajar definitivamente
os defensores. Como conseqüência disso, oito mil kronsta-
76 HENRI ARVON

dinos tom am o cam inho do exílio, mais da metade dos efeti­


vos engajados no combate.
Houve tam bém outro episódio pouco condizente com as
tradições da m arinha. Antes de escapar às escondidas, os
comandantes do Petropavlosk e do Sebastopol haviam orde­
nado a suas equipagens que fizessem um rom bo nos navios
para que fossem a pique. Ao tom ar conhecimento da deserção
do com ando os marinheiros recusam-se a executar as ordens,
prendendo os oficiais que haviam restado nos navios, e infor­
mam o com ando soviético que estavam prontos a render-se.
Na alvorada de 18 de março os kursanty tomam os dois navios
de onde havia partido a revolta. O Comitê de Defesa de Petro-
grado recebe ainda na noite de 17 de março uma mensagem
de vitória que parece justificar a posteriori sua intransigência
com relação a Kronstadt: “ Os ninhos de contra-revolucio-
nários do Petropavlosk e Sebastopol foram liquidados. O
poder está nas mãos dos partidários da autoridade soviética.
Toda a atividade militar cessou a bordo do Petropavlosk e do
Sebastopol. Foram tom adas medidas de urgência para pren­
der os oficiais que fugiram para a Finlândia” .
Assim, a história de K ronstadt term ina em 18 de março
de 1921; ela não durou mais que quinze dias, ricos, certamen­
te, em peripécias militares, mas desde o início com o peso da
derrota inevitável. A realidade de K ronstadt, que desaparece
sem deixar traços visíveis, menos que atribuir parcialm ente a
instauração da N EP, é im ediatamente substituída pelo mito
de K ronstadt, feito, por sua vez, de desgostos e esperanças,
de acusações apaixonadas e discursos não menos inflamados.
Kronstadt teve efeito principalmente sobre aqueles que, como
os marinheiros da fortaleza, haviam acreditado no poder
libertário do com unismo antes de se darem conta, muitas
vezes a contragosto, de que a escravidão é sua correlata.
Ainda que os anarquistas quase não tenham influído
sobre o desenvolvimento da revolta, contribuíram extrema­
mente para o nascimento do mito. Fugindo ou tendo sido
deportados dos Estados Unidos para a Rússia após a Revo­
lução de O utubro, e dispostos a colaborar com os bolchevi­
ques, nos quais acreditavam ter encontrado irmãos de armas,
eles logo perceberam que o bolchevismo situava-se no oposto
de suas opções libertárias. K ronstadt havia retom ado suas
dúvidas e contestações; sua derrota afastou-os para sempre
A REVOLTA DE KRONSTADT 77

do comunismo, mas justificou ao mesmo tem po seu combate


situado na continuidade das idéias de K ronstadt.
Em nenhum a outra parte a morte e ressurreição de
Kronstadt aparecem com transparência maior do que nesta
página sombria extraída da autobiografía de Emma Goldman,
Living m y L ife :

“ O canhoneio de Kronstadt continuou sem interrupção du­


rante dez dias e dez noites, e cessou subitamente na manhã de
17 de março. O silêncio que cobriu Petrogrado foi mais ter­
rível que os tiros incessantes da noite anterior. A agonia da
espera apossou-se de todos nós. Era impossível saber o que
havia acontecido e por que o bombardeio havia cessado brus­
camente. No final da tarde a tensão deu lugar a um horror
mudo. Kronstadt havia sido subjugada ... Dezenas de milha­
res de homens assassinados — a cidade mergulhada em san­
gue. O Neva tornou-se o túmulo de um grande número de
homens, kursanty e jovens comunistas, cuja artilharia pesada
tinha fendido o gelo. Os heróicos marinheiros e soldados
tinham defendido suas posições até o último sopro de vida.
Aqueles que não tiveram a chance de morrer combatendo
caíram nas mãos do inimigo para serem executados ou envia­
dos à lenta tortura das regiões geladas do norte da Rússia.
... Eu sentia os membros pesados como chumbo, uma fadiga
imensa em cada nervo. Sentada, inerte, eu olhava a noite.
Petrogrado estava coberta por uma negra mortalha, um cadá­
ver assustador!... As lâmpadas das ruas piscavam suas luzes
amarelas, como círios colocados à cabeça ou aos pés do morto.
No dia seguinte, 18 de março, ainda meio adormecida após a
falta de sono durante os 17 dias de angústia, fui despertada
pelo estrépito de muitos passos. Os comunistas passavam
marchando, as músicas imitavam as marchas militares e can­
tava-se a Internacional. Seus tons, outrora jubilosos aos meus
ouvidos, soavam agora como um canto fúnebre pela espe­
rança ardente da humanidade.
18 de março: aniversário da Comuna de Paris de 1871... esma­
gada dois meses depois por Thiers e Gallifet, os carniceiros de
30000 comuneiros! Imitados em Kronstadt, a 18 de março
de 1921” .

Resta fazer o balanço da sublevação em si mesma. As


perdas hum anas foram consideráveis sem no entanto alean-
78 HENRI ARVON

çar as cifras freqüentem ente elevadas em função do mito que


consiste em exaltar o espírito de sacrifício dos marinheiros de
K ronstadt e em denunciar a ferocidade excepcional da repres­
são. Certam ente os comunistas, obrigados a avançar a desco­
berto sobre o gelo enquanto os defensores da fortaleza esta­
vam bem entrincheirados, tinham a lamentar um núm ero de
vítimas m uito m aior que seus adversários. Fala-se em 25000
mortos e feridos do lado dos com unistas, cifra m anifesta­
mente excessiva, pois seus efetivos totais chegavam a 50000
homens, dos quais 35000 no grupo sul e 15000 no grupo nor­
te. Segundo as fontes oficiais, as perdas das comunistas che­
garam a 700 m ortos e 2500 feridos, cifra sem dúvida nitida­
mente inferior à realidade, pois os hospitais de Petrogrado
acolheram de 3 a 21 de março mais de 4000 feridos, sem con­
tar os 527 que não resistiram aos ferimentos. É sem dúvida a
estimativa feita pelo cônsul americano em Viborg a que mais
se aproxim a da verdade; ela é de 10000 m ortos e feridos.
No que concerne aos kronstadinos, as perdas sofridas
quase não foram contabilizadas; o Times de Londres, em seu
número de 31 dé março de 1921, fornece a cifra de 600 m or­
tos, mais de 1080 feridos e 2500 presos. A L uta Operária, de
inspiração trotskista, talvez injustam ente levantou-se em seu
número de 10 de setembro de 1937 contra a “ legenda que
pretende que K ronstadt foi um imenso massacre” . A verdade
é que nenhum m embro do Comitê Revolucionário Provisório
perdeu sua vida durante as hostilidades.
Os bolcheviques apressaram-se em apagar todos os ves­
tígios e até a própria lembrança da sublevação. Os marinhei­
ros do Báltico, cujo espírito revolucionário permanente não
se adaptava a um país entregue a partir de então às restrições
burocráticas cada vez mais sufocantes, foram dispersados;
foram enviados às unidades navais do Mar Negro, do Mar
Cáspio e à flotilha do Rio Amur. Quinze mil marinheiros, a
respeito dos quais não havia segurança, foram dispensados
da m arinha. O Petropavlosk e o Sebastopol, cujos nomes
poderíam evocar lembranças incômodas, foram rebatizados;
passaram a chamar-se M arat e C om una de Paris. A Praça da
Âncora, palco grandioso da democracia direta que os krons­
tadinos haviam conseguido m anter contra a ditadura do par­
tido, tornou-se a Praça da Revolução, nome que lembrava
apenas um entusiasmo revolucionário petrificado.
A REVOLTA DE KRONSTADT 79

Os kronstadinos aprisionados sofreram o tratam ento


que se costum ava infligir aos inimigos do regime. Encarce­
rados no primeiro momento em todas as prisões de re tro g ra ­
do, muitos foram fuzilados em pequenos grupos nos subter­
râneos da TCHEKA. Outros foram enviados aos campos de
concentração próximos ao M ar Branco. Como a repressão,
cuja única finalidade é o terror que inspira, não obedece a
qualquer regra precisa, é possível que outros marinheiros
tenham sido anistiados. Houve um único processo público,
aliás, mal preparado, pois, pretensamente destinado aos
chefes da revolta, não fez figurar ente os treze acusados qual­
quer membro do Comitê Revolucionário Provisório, embora
quatro deles estivessem nas mãos das autoridades soviéticas.

Qual foi, enfim, a sorte dos protagonistas do dram a de


Kronstadt? Sabe-se que Petrichenko ofereceu seus serviços ao
general Wrangel. Depois de ter permanecido na Finlândia até
a Segunda G uerra Mundial, ele foi expulso em 1945 para a
Rússia, onde m orreu pouco tempo depois em um campo. Os
chefes comunistas que tinham dirigido a repressão à subleva-
ção conheceram um destino igualmente trágico; o partido
cujo poder haviam defendido com tanto furor, tendo acom ­
panhado a inclinação do “ substitutism o” de maneira tal que
acabou por ser representado apenas por Stalin, volta-se con­
tra eles, cujo crime era agora querer dividir os privilégios com
o ditador divinizado, e destruiu-os impiedosamente. Depois
de ter sido exilado da União Soviética por Stalin em 1929,
Trotsky morre assassinado por um de seus agentes no México
em 1940. Zinoviev, presidente do Comitê de Defesa de Petro-
grado e que havia sido o inimigo implacável dos grevistas de
Petrogrado e dos marinheiros de K ronstadt que os apoiavam,
depois de ter contribuído para a evicção de Trotsky, é acusa­
do de alta traição e executado em 1936. Tukhatchevsky, que
havia dirigido a tom ada de Kronstadt, também é acusado de
traição por Stalin e fuzilado em 1937. Pavel Dybenko, antigo
marinheiro do Petropavlosk que havia se unido a T ukhat­
chevsky como com andante militar e que, após a vitória das
tropas com unistas, foi encarregado da depuração da forta­
leza de K ronstadt, também foi fuzilado. Kalinin foi um dos
raros dirigentes bolcheviques que teve morte natural; sua
insignificância, que lhe havia angariado a indulgência dos
80 HENRI ARVON

marinheiros de K ronstadt na reunião de 1? de março na Praça


da A ncora, valeu-lhe a honra de presidir o Presidium do Con­
selho supremo da URSS de 1937 até a sua m orte em 1946.
A ambigüidade
de Kronstadt
D u as teses aparentem ente inconciliáveis dom inam tiranica­
mente as primeiras análises feitas sobre o motim dos mari­
nheiros de K ronstadt contra o poder soviético em março de
1921. Alguns o denunciam como últim a tentativa contra-
revolucionária, levantada alguns meses apenas após o fim da
guerra civil e interrupção das intervenções estrangeiras; como
uma empresa subversiva tanto mais perigosa e condenável
por ser constituída de homens que Trotsky havia qualificado
de “ orgulho e glória da Revolução” pela participação emi­
nente que haviam tido na luta contra o governo de Kerensky
em julho de 1917 e que uma propaganda insidiosa havia com
seguido afastar de um ideal que eles haviam defendido com
heroísmo especial; por outro lado, outros o exaltam como
o último sobressalto de um a dem ocracia operária, estabele­
cida no prim eiro m om ento pela Revolução de O utubro sob a
form a de sovietes autônom os e abolida em seguida em benefí­
cio de um a burocracia tentacular e de um partido todo-pode-
roso.
À distância de mais de meio século, a ambigüidade inicial
de K ronstadt parece ainda acentuada. Se os arquivos sovié­
ticos ainda não revelaram seus segredos a respeito deste epi­
sódio particularm ente doloroso da Revolução de O utubro, os
diversos docum entos provenientes dos arquivos da emigração
russa e reunidos nas Universidades de Columbia e de Stanford
foram cuidadosam ente analisados pelo historiador Paul
82 HENRIARVON

Avrich. Graças a suas novas contribuições históricas, fre-


qüentemente de um interesse apaixonante, o quadro sumário
de K ronstadt, cujos partidários contentavam-se até em pince­
lar de preto e branco contrastantes, tom a uma singular pro­
fundidade hum ana, e é possível agora analisar Kronstadt
através de um prisma, cujas diferentes faces matizam -na da
form a que se deseja.
Esse renascimento de uma Kronstadt extirpada dos este­
reótipos e entregue à aparente incoerência da vida é favore­
cido por uma certa evolução da ideologia revolucionária.
Enquanto o marxismo-leninismo instaurado na União Sovié­
tica reinava, por assim dizer, sem restrições sobre grande par­
cela da intelligentsia ocidental, a contestação de Kronstadt
podia parecer um a nostalgia “ pequeno-burguesa” da liber­
dade individual, uma impossível volta para trás, para os sovie­
tes, considerados as primeiras balbuciações de uma revolução
socialista, alcançada em seguida pelo Partido, que se cons­
titui na vanguarda consciente do proletariado. Mas em nossos
dias, em que advertido pelas realidades enganosas que fez
surgir, o socialismo coloca sob suspeita suas tendências cen­
tralizadoras e burocráticas cada vez mais criticadas para fun­
dar suas esperanças sobre a espontaneidade criativa do povo,
os marinheiros de K ronstadt parecem abrir de par em par as
portas do futuro socialista. Como tantas outras sombras
encerradas pela ortodoxia com unista no império dos mortos,
ei-los que ressurgem, mártires e profetas de um a fé antiga e
nova.
K ronstadt, certamente, jamais caiu no esquecimento,
não deixou de pesar no cérebro dos vivos. É em particular o
espectro que ronda as noites do proscrito Trotsky e que este
procura em vão conjurar. Vítima, por sua vez, do caráter
monolítico de um partido que se acredita investido de uma
missão superior, ele é o alvo dos ataques dos simpatizantes de
Kronstadt, que o criticam pelo papel dirigente que assumiu
na repressão da revolta. Lem brança incôm oda que ele se
esforça por expulsar de seu espírito, relegando K ronstadt a
um passado longínquo; em um artigo na L u ta Operária belga
de 26 de fevereiro de 1938, ele finge surpreender-se com a
im portância conferida a um episódio da Revolução de O utu­
bro que rem onta a dezessete anos: “ A cam panha em torno de
K ronstadt” , ele escreve, ‘‘é conduzida em certos meios com
A REVOLTA DE KRONSTADT 83

uma energia sem tréguas. Poder-se-ia acreditar que essa rebe­


lião não se produziu há 17 anos mas ontem apenas” .
A lem brança de K ronstadt é tanto mais viva em 1938
que os processos de M oscou, onde o partido celebra com
Stalin suas bodas de sangue, dem onstram tragicamente a que
ponto a luta dos marinheiros de K ronstadt contra o despo­
tismo do partido havia sido justificada. No mesmo ano a
anarquista Em m a Goldm an, que de Petrogrado havia assis­
tido im potente à tragédia de K ronstadt, fez esta constatação
comovente: “ P ara dizer a verdade, as vozes sufocadas de
K ronstadt ganharam força em 17 anos. E é urna pena que o
silêncio dos m ortos fale às vezes m uito mais alto que a voz
dos vivos” .
A fascinação exercida por K ronstadt aum enta ainda
quando após a Segunda G uerra M undial a destalinização
provoca um brusco surgimento no seio da maioria das demo­
cracias populares desses conselhos operários cham ados sovie­
tes que os marinheiros de K ronstadt haviam desejado manter
e vivificar contra a glaciação de uma revolução que esquecera
que havia tirado daí sua força explosiva e sua autêntica razão
de ser.
H á portanto duas razões que concorrem em favor da
reabertura do processo orientado em K ronstadt: de um lado,
novas provas foram acrescentadas ao processo, por outro
lado, os critérios históricos que vigoravam no dia seguinte
à Revolução de O utubro não são mais os mesmos. Mas ouça­
mos antes de mais nada a prova de acusação levantada na
História Oficial do Partido Comunista/Bolchevique da U RSS:

“ ... o inimigo de classe não dormiu. Ele procurou explorar a


penosa situação econômica e o descontentamento dos campo­
neses. As rebeliões de kulaks, organizadas pelos guardas
brancos e socialistas-revolucionários, eclodiram na Sibéria,
Ucrânia, na província de Tambov (rebelião de Antonov).
Assistimos a um recrudescimento da atividade de todos os
elementos contra-revolucionários: mencheviques, socialistas-
revolucionários, anarquistas, guardas brancos, nacionalistas
burgueses. O inimigo recorreu a uma nova tática de luta con­
tra o poder dos Sovietes. Ele se camuflou servindo-se das
cores soviéticas; em lugar da velha palavra de ordem abortada
‘Abaixo os Sovietes!’, ele lançou uma palavra de ordem nova:
‘Pelos Sovietes, mas sem os comunistas!’.
84 HENRIARVON

A rebelião contra-revolucionária de Kronstadt foi um exem­


plo patente da nova tática do inimigo de classe. Ela teve início
oito dias antes do X Congresso do Partido, em março de
1921. À frente da rebelião encontravam-se os guardas brancos
ligados aos socialistas-revolucionários, aos mencheviques e
aos representantes dos Estados estrangeiros. O desejo dos
amotinados de restabelecer o poder e a propriedade dos capi­
talistas e dos grandes proprietários fundiários, eles procura­
ram dissimular no início sob uma insígnia ‘soviética’; eles
formularam a palavra de ordem ‘Os Sovietes sem os comu­
nistas’. A contra-revolução pretendia explorar o descontenta­
mento das massas pequeno-burguesas e, cobrindo-se com
uma palavra de ordem pseudo-soviética, derrubar o poder
dos Sovietes.
Duas circunstâncias facilitaram a rebelião de Kronstadt: a
composição, que havia piorado, das equipagens dos navios de
guerra e a fraqueza da organização bolchevique de Kronstadt.
Os velhos marinheiros que haviam tomado parte na Revo­
lução de Outubro partiram quase todos para a frente de bata­
lha, onde combateram heroicamente nas fileiras do Exército
Vermelho. Novos contingentes, não habituados ao fogo da
Revolução, vieram incorporar-se à frota. Esses contingentes
eram formados por uma massa ainda rude de camponeses,
que refletiam o descontentamento do campesinato com as
antecipações. Quanto à organização bolchevique de Kronstadt
nesse período, havia sido gravemente enfraquecida por uma
série de mobilizações para o front. Foi isso que permitiu aos
mencheviques, aos socialistas-revolucionários e aos guardas
brancos infiltrar-se em Kronstadt e dominar.
Os revoltosos estavam de posse de uma fortaleza de primeira
ordem, da frota, de uma imensa quantidade de armamentos e
de granadas. A contra-revolução internacional cantava
vitória. Mas era muito cedo para regozijar-se. A rebelião foi
prontamente esmagada pelas tropas soviéticas. O Partido
enviou contra os amotinados de Kronstadt seus melhores
filhos, os delegados do X Congresso, Vorochilov à frente. Os
soldados vermelhos marcharam sobre Kronstadt avançando
sobre a fina camada de gelo do Golfo. O gelo cedendo, muitos
se afogaram. Foi necessário tomar de assalto os fortes quase
inexpugnáveis de Kronstadt. A dedicação à Revolução, a
bravura e o desejo de sacrificar sua vida pelo poder dos Sovie­
tes foram superiores. A fortaleza de Kronstadt foi tomada de
assalto pelas tropas vermelhas. O motim foi liquidado” .
A REVOLTA DE KRONSTADT 85

Esse requisitorio, cujo rigor implacável é ditado sobre­


tudo pela vontade manifesta de justificar o governo soviético,
responsável pela repressão contra homens que a priori não
apareciam com o “ inimigos de classe” , contém antes de tudo
uma imprecisão histórica. A palavra de ordem dos insurrectos
não foi jam ais “ Pelos Sovietes, mas sem os com unistas!” ,
seu grito de reunião foi até o fim: “ Todo o poder aos Sovie­
tes, mas não aos partidos!” A esse respeito, é significativo
que em sua proclam ação da Terceira Revolução, isto é, da­
quela que se propunham prom over, os kronstadinos rejeita­
vam não apenas a ditadura do partido com unista com sua
TCHEKA e seu capitalismo de Estado, mas também a Cons­
tituinte com seu regime burguês, cuja convocação era a pala­
vra de ordem principal do partido socialista-revolucionário
de direita.
A tribuindo abusivamente aos insurrectos de Kronstadt
uma divisa efetivamente escolhida pelos camponeses revol­
tados da Sibéria e da Ucrânia, o texto reduz os acontecimen­
tos de K ronstadt às dimensões de uma simples jacquerie,
idêntica, quanto à inspiração contra-revolucionária e à falta
de qualquer intenção política e econômica precisas, a todas as
outras revoltas camponesas que haviam simultaneamente
eclodido por toda a Rússia. Na realidade, os kronstadinos
não se dirigiam contra o partido enquanto tal, mas contra sua
degenerescência, contra os deslizes que haviam conduzido o
bolchevismo inicial, portador de imensas esperanças para o
proletariado e para o cam pesinato, no sentido do comunismo
ditatorial e burocrático.
O texto peca por outra omissão. Tukhatechevsky não é
mencionado; ora, foi ele que como comandante do 7? Exército
elaborou os planos de ataque e dirigiu a tom ada de K ronstadt.
Mas no m om ento em que a História em questão é submetida
à aprovação do Comitê C entral do Partido C om unista da
URSS, isto é, em 1938, Tukhatchevsky, discípulo de Trotsky,
é apenas um traidor que Stalin teve motivos para m andar
fuzilar durante o expurgo do ano anterior. Q uanto a Voro­
chilov, se é verdade que fez parte dos delegados do X Con­
gresso do P artido Com unista que se apresentaram como
voluntários para participar das operações militares contra
Kronstadt, teve apenas um a participação menor do ponto de
vista militar. É por ser comissário do povo para a Defesa
T

86 H E N R IA R V O N

desde 1925 e ainda no posto no m om ento em que é redigida a


História do Partido, que se encontra enfeitado por plumas de
pavão.
Tom ado em seu conjunto, o texto im puta aos insurrec­
tos de K ronstadt uma tripla traição, cujos detalhes foram
largamente desenvolvidos em outras publicações soviéticas
consagradas a K ronstadt, em particular no livro bem docu­
mentado de A. S. Pukhov, que data do ano mesmo da insur­
reição.
A revolta é considerada como o resultado previsível de
indubitáveis intervenções estrangeiras. Seu plano havia sido
longamente elaborado em Paris pelos emigrados russos a ser­
viço da contra-espionagem francesa. Em K ronstadt os encar­
regados da execução do plano são os guardas brancos sob o
com ando de um antigo general czarista de nome Kozlovski.
A insurreição é coberta e sustentada pela rede de organizações
da Cruz Vermelha, mais precisamente da Cruz Vermelha
Internacional, da Cruz Vermelha Americana e sobretudo da
Cruz Vermelha Russa instalada na Finlândia. O objetivo
dessa operação, condenável de um triplo ponto de vista, é
reavivar esse vasto incêndio contra-revolucionário, cujos
focos o jovem Estado soviético tinha acabado de apagar, pelo
menos na Rússia européia.

Diante do caráter obsessivo dessas acusações tantas


vezes repetidas quando se tratava para o partido de desconsi­
derar seus adversários, diante dessa enfiada de argumentos
quase mágicos que constituem igualmente exorcismos, somos
tentados, à prim eira vista, a reduzir essas alegações a inven­
ções puras e simples, desprovidas de qualquer realidade histó­
rica e destinadas unicamente a justificar o injustificável.

O com portam ento dos insurrectos reforça essa tentação


inicial de tom ar por infundadas todas as acusações que lhes
são im putadas; eles procedem, com efeito, não como crimi­
nosos aplicados em cobrir com o m anto de Noé as causas
impuras de sua ação, mas como homens confiantes numa
ação que tiveram a coragem de empreender e na qual não há
o que reprovar. Assim, no Izvestia de Kronstadt, diário edita­
do pelos insurrectos durante o período crucial de 3 a 16 de
março de 1921 e que, acom panhando a Com una de Kronstadt
A REVOLTA DE KRONSTADT 87

durante sua breve existência, reflete-a fielmente, os kronsta-


dinos não hesitam em publicar eles mesmos as acusações lan­
çadas contra eles pelo governo soviético. Com o é pouco pro­
vável que agindo dessa form a eles desejassem glorificar-se
pelas acusações que lhes eram feitas — eles não cessaram aliás
de afirm ar que sua intenção era reerguer a bandeira da Revo­
lução tom bada nas mãos dos comunistas — é preciso admitir
que levando ao conhecimento dos kronstadinos as procla­
mações lançadas pelo governo soviético eles contavam am or­
tecer o eventual efeito explosivo, pois, reveladas no próprio
local, os kronstadinos estavam em posição de constatar o
caráter m entiroso da propaganda oficial.
O prim eiro núm ero do Izvestia de Kronstadt, datado de
3 de m arço de 1921, reproduz dois textos divulgados pelo
governo soviético, um por intermédio da rádio de Moscou e o
outro através de panfletos lançados sobre K ronstadt por um
avião governam ental. Aí já se encontram todos os elementos
que compõem a narrativa oferecida à indignação comunista
pela História do Partido; mas eles não estão ainda disseca­
dos, palpitam com a paixão de um a luta de vida ou morte,
cuja interpretação eles pretendem fazer, e nutrem-se dessa
perseguição perm anente das forças hostis dos comunistas,
freqüentemente, aliás, com razão, da qual terão dificuldade
em livrar-se até nossos dias.

“ Publicamos o seguinte radiograma lançado pela agência


Rosta de Moscou e interceptado pela estação de T. S. F. do
Petropavlosk:
“ À luta contra a conspiração dos guardas brancos!
O motim do ex-general Kozlovsky e do navio Petropavlosk
foi organizado pelos espiões da E n t e n t e , como esse foi gerado
por numerosos outros complôs anteriores. Isso é visto pela
leitura do jornal burguês francês L e M a t i n que, duas semanas
antes da revolta de Kozlovsky, publicou o seguinte telegrama
de Helsingfors: ‘De Petrogrado informam que em seguida à
rebelião de Kronstadt as autoridades militares bolcheviques
tomaram medidas para isolar Kronstadt e impedir que os sol­
dados e marinheiros de Kronstadt se aproximem de Petro­
grado.”
O abastecimento de Kronstadt está interditado até nova
ordem.
Está claro que a sublevação de Kronstadt foi dirigida por
88 HENRIARVON

Paris, que a contra-espionagem francesa está envolvida.


Sempre a mesma história. Os socialistas-revolucionários,
dirigidos por Paris, tramaram a rebelião contra o governo
soviético, e apenas os preparativos terminados, o verdadeiro
mestre — um general czarista — fez sua aparição. A história
de Koltchak, que tentou restabelecer o poder czarista com a
ajuda dos socialistas-revolucionários, repete-se mais uma vez.
Todos os inimigos dos trabalhadores, dos generais czaristas
aos socialistas-revolucionários, tentam especular sobre a
fome e o frio. Naturalmente, essa rebelião dos generais e dos
socialistas-revolucionários será imediatamente reprimida, e o
general Kozlovsky e seus acólitos sofrerão a sorte de Koltchak.
Mas está fora de dúvida que a rede de espionagem da Entente
não foi atirada somente sobre Kronstadt. Operários e solda­
dos vermelhos, destruam essa rede! Desmascarem os insinua­
dores e provocadores! É preciso ter sangue-frio, domínio de si
mesmos, da vigilância. Não se esqueçam de que o verdadeiro
meio de sair das dificuldades alimentares e outras, momen­
tâneas mas certamente penosas, é um trabalho intenso em boa
harmonia e não excessos insensatos que só podem aumentar a
miséria para grande alegria dos inimigos malditos dos traba­
lhadores.”
E um pouco mais adiante, o Izvestia de Kronstadt apre­
senta um texto inimigo similar:
‘‘Levamos ao conhecimento de todos o texto de uma procla­
mação lançada sobre Kronstadt de um avião comunista. Os
cidadãos só poderão sentir desprezo por essa calúnia provo­
cadora.
‘Aos de Kronstadt, enganados:
Agora vocês percebem aonde foram levados pelos patifes?
Eis onde vocês estão! Os ávidos arpões dos antigos generais
czaristas já aparecem atrás das costas dos socialistas-revolu­
cionários e dos mencheviques. Todos esses Petrichenko e
outros Tukin são manipulados como marionetes pelo general
czarista Kozlovsky, pelos capitães Borkser, Kostromitinoff,
Chirmanovsky e outros guardas brancos reconhecidos. Vocês
estão sendo enganados! Disseram a vocês que vocês lutam
pela democracia. Passaram-se apenas dois dias e vocês vêem
que na realidade lutam não pela democracia, mas pelos gene­
rais czaristas.’”
A aparente franqueza do Izvestia de Kronstadt chega
mesmo a adm itir que existe realmente um perigo de ver a
A REVOLTA DE KRONSTADT 89

revolta dos marinheiros servir aos sombrios propósitos da


contra-revolução. Assim, no número 4, de 6 de março, eles
lançam um alerta sob o título eloqüente:

“ Cavalheiros ou camaradas.
As mãos calejadas dos marinheiros e dos operários de Krons­
tadt arrancaram o leme das mãos dos comunistas e agora
estão com a barra.
O navio do poder soviético será conduzido de uma maneira
alerta e segura na direção de Petrogrado, de onde esse poder
das mãos calejadas deverá estender-se sobre a Rússia infeliz.
Mas, camaradas, estejam alertas!
Aumentem a vigilância dez vezes, pois a rota está semeada de
obstáculos. Um movimento imprudente do leme e o navio,
com sua carga tão preciosa para vocês — a da construção
social — pode encalhar num rochedo.
Camaradas, vigiem atentamente os acessos ao leme: os inimi­
gos já procuram aproximar-se dele. Uma só falha e eles arran­
carão o leme de vocês, e o navio soviético poderá afundar sob
o riso triunfal dos lacaios czaristas e dos criados da burguesia.
Camaradas, neste momento vocês se regozijam com a grande
e pacífica vitória sobre a ditadura dos comunistas. Ora, seus
inimigos também se regozijam.
As razões desse contentamento, entre vocês e entre eles, são
opostas.
Vocês são animados por um desejo ardente de estabelecer o
verdadeiro poder dos Sovietes, por uma nobre esperança de
ver o operário exercer um trabalho livre e o camponês gozar
do direito de dispor, em sua terra, dos produtos de seu traba­
lho. Eles sonham restabelecer o knut do czarismo e os privi­
légios dos generais.
Os interesses de vocês são diferentes. Eles não são seus com­
panheiros de rota.
Vocês precisam desembaraçar-se do poder dos comunistas
para lançar-se ao trabalho criador e à construção pacífica.
Eles querem destruir esse poder para que os operários e cam­
poneses tornem-se seus escravos.
Vocês procuram a liberdade. Eles querem acorrentar vocês à
maneira deles.
Sejam vigilantes! Não deixem os lobos sob pele de carneiro
aproximar-se do leme!” .

Texto instrutivo por várias razões. As apreensões aqui


manifestadas de ver aproveitado o movimento kronstadino
90 HENRIARVON

pela contra-revoluçào permitem entrever no pano de fundo


da revolta o movimento das forças reacionárias nas sombras.
Em 1925, Petrichenko, que foi o líder inconteste da revolta,
afirma, com efeito, que aquele artigo do Izvestia de Kronstadt
estava fundado em informações sérias segundo as quais os
guardas brancos procuravam utilizar a revolta em seu provei­
to. É em relação a esse perigo contra-revolucionário latente
que o enfrentam ento das forças inimigas é determ inado. O
esquema com unista, certamente, é abandonado; não há de
um lado o partido, consciência e vanguarda da classe operária
e, do outro, todos aqueles que se opõem à sua ditadura, qual­
quer que seja a classe a que pertençam. Mas os comunistas,
por pouco que queiram renunciar a seus desvios burocráticos
e estatizantes, que fazem deles os novos mestres, não fazem
menos parte, aos olhos dos kronstadinos, dos “ cam aradas” ,
do povo explorado, em luta contra aqueles que ainda não
renunciaram à esperança de explorá-los novamente, con­
tra os “ cavalheiros” de todas as índoles. Kronstadt aparece
através deste alerta como uma reação populista que se di­
rige contra os comunistas somente na medida em que estes
substituíram os “ cavalheiros” , e deixaram de ser os “ cam a­
radas” .
Visto que a própria K ronstadt confessa que os abutres
da contra-revolução planam sobre a revolta prontos a atacá-
la, parece difícil e, em todo caso, im prudente, rejeitar apriori
e em bloco a tese comunista. Um exame aprofundado das
peças do processo enriquecido pelas recentes pesquisas histó­
ricas dem onstram , aliás, que ela é menos gratuita do que
parecia à prim eira vista.
Ela é tanto mais exata que a imprensa francesa publica
uma série de reportagens sobre uma pretensa revolta de Krons­
tadt duas semanas antes que o acontecimento se produzisse
realmente. No Le M atin de 13 de fevereiro, um artigo intitu­
lado M oscou tom a medidas contra os rebeldes de Kronstadt
afirm a que um a sublevação na base naval de K ronstadt obri­
gou as autoridades bolcheviques a tom ar medidas preventivas
para evitar que o movimento chegasse a Petrogrado. No dia
seguinte, La M atin faz outras afirmações sobre a origem da
revolta e sua am plitude. A revolta, explica o jornal, é conse-
qüência da prisão em Moscou de uma delegação enviada
pelos marinheiros para exigir uma melhora em suas condições
A REVOLTA DE KRONSTADT 91

de vida. Tendo os rebeldes “ voltado seus fuzis contra Petro-


grado” , a revolta pode estender-se rapidamente.
O Echo de Paris de 14 de fevereiro aum enta as noticias
fornecidas por L e M atin afirm ando que os marinheiros pren­
deram o comissário chefe da frota e que eles tinham acabado
de enviar vários navios na direção de Petrogrado. Em 15 de
fevereiro, o Echo de Paris acrescenta que a revolta de Krons­
tadt encontrou vasta ressonância junto à guarnição de P etro­
grado, de form a que as autoridades viam-se obrigadas a pro­
ceder a prisões massivas.
Essas notícias são reproduzidas por vários jornais oci­
dentais. O N ew York Times de 14 de fevereiro tom a a frente
na onda de notícias sensacionalistas afirm ando que os insur­
rectos já são os donos de Petrogrado e que eles se organizam
para rechaçar o assalto das tropas enviadas por Trotsky, que
deviam colocá-los para fora da cidade.
Esses falsos rumores não constituem em si um aconteci­
mento excepcional; a imprensa os havia publicado diaria­
mente durante a Primeira Guerra M undial. O revés das inter­
venções estrangeiras contra o governo bolchevique era muito
recente para que os Aliados e em particular a França, o país
mais hostil ao novo regime bolchevique, o tivessem por defi­
nitivo. Menos de três meses após o fim da guerra civil, subsis­
tia no Ocidente a esperança de ver a situação voltar a seu
favor. As menores notícias desfavoráveis aos bolcheviques
eram recolhidas, aum entadas e propagadas sem que se ju l­
gasse necessário proceder a um exame prévio. Mas o que con­
fere às notícias sobre K ronstadt um ar particular de maqui­
nação maquiavélica e de tenebroso complô é a evidência de
que são menos falsas do que prem aturas; ruidosam ente anun­
ciada a revolta quinze dias depois, elas são confirm adas a
posteriori.
Os bolcheviques não são, aliás, os únicos a inverter a
relação de causa e efeito entre as notícias que precederam os
fatos sobre os quais falam e os fatos posteriores às inform a­
ções dadas. Assim, o Daily Herald, de Londres, jornal de
esquerda, afirm a em seu número datado de 7 de março de
1921, isto é, oito dias após o início da revolta, que os relatos
publicados pela imprensa burguesa, e consagrados aos acon­
tecimentos que iriam produzir-se pouco tempo depois, forne­
ciam a prova de que a revolta de K ronstadt devia-se a uma
92 HENRI ARVON

ação contra-revolucionária preparada há muito pelos exila­


dos brancos com a ajuda dos Aliados.
Q uanto às notícias propriam ente ditas, elas nascem efe­
tivamente nos diversos meios da emigração russa, em parti­
cular no meio dos socialistas-revolucionários, contra os quais
o terror bolchevique fora desencadeado entre março e abril
de 1918. Como de hábito, as falsas notícias tinham por ori­
gem os fatos reais; mas sendo próprio dos exilados tom ar
seus desejos por realidade, de simples manifestações de des­
contentam ento dos marinheiros do Báltico transformam-se
imediatamente em atos de revolta capazes de pôr abaixo o
regime com unista.
Curiosa dinâmica essa da inform ação, fatalmente desti­
nada a inflar os fatos e para a qual a imprensa da imigração
russa forneceu a propósito de Kronstadt um exemplo sur­
preendente. O ponto de partida é dado por uma notícia exata.
Em 2 de janeiro de 1921 o jornal da emigração russa Obchtele
Delo (Causa Comum) publicado em Paris, depois de ter cha­
mado atenção para a prisão em Moscou de uma delegação
dos marinheiros de Kronstadt que tinha ido apresentar suas
queixas, inform a que o com andante da frota do Báltico,
Raskolnikov, tinha prevenido o governo de que os marinhei­
ros de K ronstadt consideravam abrir fogo sobre Petrogrado
caso seus cam aradas não fossem soltos, mas que o governo, a
despeito dessa ameaça, não queria ceder. Um mês depois, em
10 de fevereiro, o Obchtele Delo volta à carga anunciando
desta vez a falsa notícia de uma sublevação dos marinheiros
de Kronstadt. U m a vez lançada a notícia, sem necessidade de
outras verificações, é repetida e am pliada pelos outros jornais
da emigração russa. Assim, o jornal Volia Rossié (Liberdade
Russa), publicado em Praga pelos socialistas-revolucionários,
cobre o lance de seu colega estendendo a revolta, que até
então estava lim itada aos marinheiros de K ronstadt, a toda a
frota russa do Báltico. Finalmente, a imprensa ocidental
coloca-se em movimento, muito feliz por transm itir a seus
leitores a reconfortante notícia do breve desm oronam ento do
poder bolchevique.

P o rtanto, nada se opõe aparentem ente a que a singular


coincidência entre uma notícia que é falsa no m om ento em
que é dada e um acontecimento que a vem confirm ar a poste-
A REVOLTA DE KRONSTADT 93

riori seja considerado como efeito apenas do acaso. Entre­


tanto, nada se pode fazer para que não subsista uma dúvida
sobre a eventual relação de causa e efeito, tanto mais poden-
do apoiar-se em um docum ento m uito mais perturbador que
as noticias difundidas pela imprensa com antecedência sobre
os acontecimentos que narra; essa é urna das excepcionais
descobertas feitas pelo historiador Avrich, que foram acres­
centadas ao mistério de K ronstadt.
Nos arquivos do Centro Nacional, organismo criado
pelos socialistas-revolucionários em Paris e que manteve du­
rante toda a duração da sublevação contato perm anente com
o ministério francês dos Negócios Estrangeiros, encontra-se
um manuscrito não assinado, com a menção “ ultra-secreto”
e intitulado M em orando sobre a questão da organização de
uma sublevação em Kronstadt. Segundo Avrich, certos deta­
lhes desse texto permitem situar sua redação em janeiro ou
início de fevereiro de 1921 e atribuir a paternidade a um agente
do Centro Nacional em Viborg ou Helsingfors (Helsinki).
Esse docum ento reavivou o debate; pode-se, com efeito,
questionar se se trata da ocorrência de um plano minuciosa­
mente elaborado com vistas a uma ação futura ou resumo de
um complô desde então sabidamente tram ado. Questão tanto
mais incôm oda que o texto, longe de ser um simples esboço
de intervenção possível ou uma pura hipótese de experiência
contra-revolucionária, impressiona por sua abundância de
detalhes políticos e militares de extrema precisão. Aqui está
ele em toda a sua tenebrosa clareza:

“ As informações provenientes de Kronstadt permitem afir­


mar que, durante a próxima primavera, produzir-se-á uma
sublevação. Por pouco que sua preparação receba ajuda exte­
rior, pode-se ficar inteiramente assegurado do sucesso da
sublevação, para a qual as seguintes circunstâncias poderão
contribuir.
Neste mesmo momento todos os navios da frota do Báltico,
que conservaram sua importância militar, estão reunidos no
porto de Kronstadt. Nestas condições, os marinheiros consti­
tuem a principal força de Kronstadt, seja os marinheiros
embarcados ou os de terra, na fortaleza de Kronstadt. Todo o
poder está concentrado nas mãos de um pequeno número de
marinheiros comunistas (Soviete local, TCHEKA, tribunal
revolucionário, comissários e coletivos do Partido a bordo
94 HENRI ARVON

dos navios, etc.). O restante da guarnição e os trabalhadores


de Kronstadt quase não têm função. Ora, pode-se observar
entre os marinheiros numerosos e inequívocos sinais de des­
contentamento com relação à ordem existente. Os marinhei­
ros vão todos aderir aos insurrectos assim que um pequeno
grupo tenha conseguido, através de uma ação rápida e deter­
minada, apoderar-se do poder em Kronstadt. Tal grupo já
existe entre os marinheiros, capaz de empreender e de con­
duzir as ações mais enérgicas.
O governo soviético está bem informado sobre a atitude hostil
dos marinheiros. Essa é a razão pela qual controlou para que
os armazéns de Kronstadt jamais contivessem víveres supe­
riores ao necessário para uma semana, enquanto no passado
possuíam provisões para um mês. A desconfiança das autori­
dades em relação aos marinheiros é tão acentuada que um
regimento de infantaria do Exército Vermelho viu-se orde­
nado à vigilância das estradas que levam a Kronstadt pelo
gelo, que cerca atualmente o Golfo da Finlândia. Mas na
eventualidade de uma sublevação, esse regimento não está em
condições de opor-se seriamente aos marinheiros pois, se a
ação for organizada convenientemente, ele será tomado de
surpresa.
Tomando o controle da frota e das fortificações de Kronstadt,
estará assegurada a vantagem sobre o conjunto dos fortes que
não estão situados nas vizinhanças imediatas da ilha de Kotlin.
Sua artilharia tem um ângulo de tiro que não lhes permite
atingir Kronstadt, enquanto as baterias de Kronstadt podem
dirigir seu tiro contra os fortes (o forte Obrutchev, que entrou
em dissidência em maio de 1919, rendeu-se meia hora depois
que as baterias de Kronstadt abriram fogo contra ele).
A única resistência militar concebível tão logo rebentasse
a sublevação seriam as baterias de Krasnaia Gorka (forte
situado no continente, ao sul do Golfo da Finlândia). Mas a
artilharia de Krasnaia Gorka é absolutamente impotente ante
a dos fortes e navios de Kronstadt. Os navios de guerra de
Kronstadt contam pelo menos com 32 peças de calibre 300 e 8
de calibre 250 (sem contar os canhões de calibre inferior,
sobre cujo estado de funcionamento não há informações
seguras). Krasnaia Gorka possui apenas 8 peças de calibre 300
e 4 de calibre 200; o restante de sua artilharia é de calibre insu­
ficiente para poder ameaçar Kronstadt. Além disso, a totali­
dade das granadas destinadas à artilharia de Kronstadt, Kras­
naia Gorka e da frota do Báltico está armazenada nos depó­
sitos de Kronstadt e se encontrará portanto nas mãos dos
A REVOLTA DE KRONSTADT 95

rebeldes. É por isso que os bolcheviques não poderão contar


subjugar a sublevação utilizando a artilharia de Krasnaia
Gorka. Deve-se, pelo contrário, supor que em caso de duelo
entre a artilharia de Krasnaia Gorka e Kronstadt, esta segun­
da é que venceria (a sublevação de Krasnaia Gorka em maio
de 1919 (junho) foi reprimida por Kronstadt após um bom­
bardeio de quatro horas que bastou para arrasar as constru­
ções da região — os próprios bolcheviques haviam proibido
os tiros diretos contra as baterias de Krasnaia Gorka para
recuperá-las em estado de funcionamento).
Conforme as indicações acima vê-se que existem circunstân­
cias excepcionalmente favoráveis ao sucesso de uma suble­
vação em Kronstadt: 1) presença e coesão de um grupo de
organizadores enérgicos para a sublevação; 2) simultanea­
mente, tendência à rebelião entre os marinheiros; 3) restrição
do palco de operações, delimitado pela pequenez de Krons­
tadt, assegurando o sucesso total da sublevação; e 4) possibi­
lidade de preparar a sublevação em meio ao maior segredo,
graças ao isolamento de Kronstadt e à coesão e solidariedade
que são norma entre os marinheiros.
Se a rebelião tiver êxito, os bolcheviques, que não dispõem de
navios de guerra fora de Kronstadt ou da possibilidade de
concentrar artilharia suficiente sobre as costas para impedir
as baterias de Kronstadt (sobretudo se se recorda da ineficácia
das baterias de Krasnaia Gorka), não poderão render Krons­
tadt nem por bombardeio nem por desembarque de tropas.
Notar-se-á, aliás, que Kronstadt e a frota são equipadas com
tal quantidade de artilharia ligeira que estão em condições
de opor a qualquer invasão uma barreira de fogo realmente
intransponível. Para proceder a um desembarque seria pre­
ciso antes de tudo submeter essa artilharia, o que os bolche­
viques não poderão fazer porque ela dispõe do apoio das
peças pesadas que equipam igualmente a fortaleza e os navios.
As considerações acima mostram que a situação militar de
Kronstadt após a sublevação pode ser considerada como per-
feitamente segura e que a base estará em condições de mantê-
la pelo tempo que for necessário.
Entretanto, as condições de vida no interior da fortaleza após
a rebelião poderão revelar-se fatais para Kronstadt. As pro­
visões alimentares só permitirão que se mantenha durante
alguns dias após a sublevação. Se Kronstadt não for abas­
tecida imediatamente após a sublevação, em seguida, regu­
larmente, a fome inevitável a forçará a voltar para as mãos
dos bolcheviques. As organizações antibolcheviques russas
96 HENRIARVON

não são capazes de resolver esse problema de abastecimento


e, consequentemente, deverão solicitar a ajuda do governo
francês.
Para evitar qualquer demora quando chegar o momento,
¡mediatamente após a sublevação, de abastecer Kronstadt, é
necessário que as quantidades de víveres apropriadas sejam
embarcadas nos navios que se destinarão aos portos do Bál­
tico atendendo a ordem de chegar a Kronstadt.
Fora uma rendição de Kronstadt aos bolcheviques na even­
tualidade de uma escassez, resta temer que os rebeldes ren-
dam-se aos bolcheviques se o seu moral estiver baixo. Essa
eventualidade se produziría certamente se os marinheiros
insurrectos não estivessem assegurados pela simpatia e apoio
do exterior, em particular do exército russo do general Wran-
gel, mas também se eles se sentissem isolados do resto da
Rússia e sentissem que qualquer desenvolvimento da rebelião
seria impossível para a restituição do poder dos sovietes na
Rússia.
A esse respeito, é extremamente desejável que o mais rapida­
mente possível após a sublevação os navios franceses venham
ancorar em Kronstadt, símbolo da ajuda francesa. Ainda
mais desejável seria a chegada em Kronstadt de algumas uni­
dades do exército russo. Essas unidades deveríam, de prefe­
rência, ser escolhidas entre a frota russa do Mar Negro, atual­
mente em Bizerta, pois a chegada dos marinheiros do Mar
Negro em socorro dos marinheiros do Báltico levantaria entre
estes últimos um entusiasmo incomparável.
Lembrar-se-á igualmente o fato de que não se deve contar
com uma organização muito ordenada do comando de Krons­
tadt, sobretudo nos dias que se seguirão ¡mediatamente à
sublevação. A esse respeito, a chegada das unidades do exér­
cito ou da frota russa do general Wrangel teria efeitos extre­
mamente benéficos, porque toda a autoridade passaria auto­
maticamente para as mãos dos oficiais superiores coman­
dando essas unidades.
Além disso, se se supõe que as operações militares destinadas
a derrubar o poder soviético na Rússia partirão de Kronstadt,
é uma razão a mais para que as tropas russas do general Wran­
gel sejam enviadas. Com relação a isso, convém assinalar que
Kronstadt seria uma base invulnerável para o lançamento de
tais operações — na verdade, para sua simples ameaça. O
objetivo mais próximo de Kronstadt seria Petrogrado: ora, a
tomada dessa cidade sem defesa significaria que a metade da
batalha contra os bolcheviques já estaria ganha.
A REVOLTA DE KRONSTADT 97

Se, entretanto, o lançamento de uma campanha contra a


Rússia soviética a partir de Kronstadt não parecesse desejável
de imediato, por uma razão ou por outra, o simples fato de
que Kronstadt recebería o reforço das tropas russas antibol­
cheviques, agindo em combinação com o comando francês,
não deixaria de ter consequências consideráveis sobre o desen­
volvimento geral da situação militar e política da Europa, no
curso da próxima primavera.
Recordar-se-á, todavia, que se o sucesso inicial da sublevação
de Kronstadt fosse contraditado pela privação de abasteci­
mento e desmoralização dos marinheiros do Báltico e da
guarnição de Kronstadt, pela falta de apoio moral e militar, o
resultado seria um reforço e não enfraquecimento da autori­
dade soviética e o descrédito de seus adversários.
Em vista do que precede, as organizações antibolcheviques
russas deveríam abster-se de contribuir para o sucesso da
rebelião de Kronstadt se não receberem do governo francês
garantia plena de que ele está decidido a tomar as medidas
apropriadas e, em particular: 1) que ele se encarregue de for­
necer o apoio financeiro para a preparação da sublevação
que, para um resultado favorável, requer uma soma extrema­
mente reduzida, pouco mais de dois mil francos; 2) que ele se
comprometa com o financiamento de Kronstadt após a suble­
vação; 3) que ele adote providências para assegurar o abaste­
cimento de Kronstadt e garantir a chegada das primeiras entre­
gas imediatamente após a sublevação; e 4) que ele concorde
com a entrada, após a revolta, dos navios de guerra franceses
e das unidades do exército e da marinha das forças armadas
do general Wrangel.
Com relação a isso, não se deve esquecer que mesmo que o
comando francês e as organizações antibolcheviques não
participem de sua preparação ou direção, uma revolta se pro­
duzirá de qualquer maneira em Kronstadt durante a próxima
primavera, mas que após um breve período de sucesso ela
estará fadada ao fracasso. Um fracasso que certamente ele­
vará o prestígio da autoridade soviética e privará seus inimi­
gos de uma ocasião rara — na verdade, muito provavelmente,
única — de tomar Kronstadt e infligir aos bolcheviques um
golpe bastante duro, do qual talvez não se recuperem.
Se o governo francês firmar seu acordo de princípio às consi­
derações precedentes, será desejável que ele designe um res­
ponsável com o qual os representantes dos organizadores da
rebelião pudessem entrar em contato para passar os acordos
mais detalhados sobre o assunto e para comunicar-lhe em
98 HENRI ARVON

detalhes o plano da sublevação e das ações que se seguirão,


assim como informações mais precisas sobre os fundos reque­
ridos para a organização, e depois o financiamento futuro, da
sublevação” .

Esse longo relatório porm enorizado sobre a situação de


K ronstadt surpreende por mais de uma razão. Se, afinal, é
normal ver a emigração russa solicitar ajuda financeira e mili­
tar da França, país que continua a manter o exército derrota­
do de W rangel e que por isso mesmo o autor desse texto pro­
cura acentuar as chances excepcionais de uma sublevação em
Kronstadt, não se fica menos preocupado quando, a propó­
sito dos conspiradores que tom ariam nas mãos a revolta,
sabe-se que “ tal grupo já existe entre os m arinheiros, capaz
de em preender e dirigir as ações mais enérgicas” . A dúvida
arrisca pender para uma quase certeza quando, entre as “ cir­
cunstâncias excepcionalmente favoráveis ao sucesso de uma
sublevação em K ronstadt” , a prim eira citada é a “ presença e
coesão de um grupo de organizadores enérgicos para a suble­
vação” . C ertam ente, não se afirm a se esses futuros dirigentes
da revolta já entraram em contato com a emigração russa;
mas tudo o deixa supor, visto que o governo francês é solici­
tado a designar “ um responsável com o qual os representan­
tes dos organizadores da rebelião pudessem entrar em con­
ta to ” . Onde procurar esses conspiradores se não estão entre
aqueles que efetivamente dirigiram a sublevação? Ora, a
revolta foi com andada por um Comitê Revolucionário Provi­
sório constituído em 2 de março de 1921, e cuja relação de
membros aqui está:

1) Petrichenko, furriel-chefe do navio de linha Petro-


pavlosk;
2) Yakovenko, telefonista do distrito de Kronstadt;
3) Osossov, mecânico do navio de linha Sebastopol;
4) A rkhipov, suboficial mecânico;
5) Perepelkin, eletricista do navio de linha Sebastopol;
6) Patruchev, suboficial eletricista do Petropavlosk;
7) Kupolov, enfermeiro;
8) Verchinin, marinheiro do Sebastopol;
9) Tukin, operário de fábrica;
10) Rom anenko, vigia dos estaleiros navais;
A REVOLTA DE KRONSTADT 99

11) Orechin, diretor de escola;


12) Valk, operário de serraria;
13) Pavlov, operário nas escavações de minas marinhas;
14) Baikov, chefe dos transportes no serviço de cons­
trução da fortaleza;
15) Kilgast, timoneiro.

A composição do Comitê Revolucionário é publicada


no Izvestia de Kronstadt de 1? de março de 1921 sob o título
Nossos generais. Seu caráter plebeu salta aos olhos; aparente­
mente, é o melhor desmentido que se pode infligir às insinua­
ções dos comunistas segundo as quais encontravam-se entre
os membros do Comitê generais, oficiais guardas brancos e
um sacerdote russo. Entre os quinze dirigentes conta-se, com
efeito, nove m arinheiros, entre os quais alguns suboficiais;
cinco operários e um mestre-escola. A form ação do estado-
maior da revolta corresponde, sem dúvida, à escolha espon­
tânea de um movimento popular. Também não há dúvida de
que desde o início da revolta, antes mesmo que houvesse elei­
ções, Petrichenko, eleito em seguida presidente do Comitê
Revolucionário Provisório, aparece como o verdadeiro chefe,
na verdade, inspirador da revolta, e que ele parece orientar-se
por sua livre determinação. No panteão imaginário dos liber­
tários ele ocupa um lugar de preferência; ele m ora ao lado de
seu com patriota M akhno, sendo ambos confundidos numa
espécie de veneração que lhes é rendida por terem defendido
a liberdade e a espontaneidade revolucionária contra a opres­
são soviética.
O ra, dizer que Petrichenko está longe de ser um homem
firme nas suas opiniões é cometer um a profanação: sua vida
oferece zonas nebulosas bastante inquietantes. Talvez não
fosse necessário conceder im portância excessiva às afirm a­
ções biográficas feitas pelo Krasnaia Gazetta de 11 de março
de 1921. Se é verdade que seus cam aradas lhe haviam dado o
cognome de Petliura, talvez fosse unicamente devido a suas
origens ucranianas e não, como afirm a o jornal comunista,
porque por suas idéias ele se aproximava daquele chefe ucra­
niano que, tendo desejado estebelecer uma Ucrânia indepen­
dente e antibolchevique, havia sido batido pelo Exército Ver­
melho em 1920. Mas é por suas próprias declarações que
Petrichenko parece m anchar sua reputação de chefe revolu-
100 HENR1ARVON

cionário. Em uma entrevista que concede a um jornalista


americano após sua fuga para a Finlândia e publicada no
N ew York Times de 31 de março de 1921, ele conta que, du­
rante uma licença que passou em sua cidade ucraniana, de
abril a setembro de 1920, portanto alguns meses apenas antes
da eclosão da revolta, havia sido preso várias vezes, pois era
suspeito de intrigas contra-revolucionárias. Com justiça, diz
ele, pois confessa ao jornalista am ericano ter oferecido seus
serviços aos brancos, que entretanto desconfiavam dele por
causa de sua recente adesão ao partido bolchevique.
Mas há fatos mais graves. Essas declarações que revelam
em Petrichenko um oportunism o bastante cínico são cor­
roboradas por seu com portam ento na Finlândia. Refugiado
no campo do Forte Ini, ele declara com alguns de seus cam a­
radas, em um a carta que dirigem ao general Wrangel em 31
de maio de 1921, querer colaborar com suas tropas, refugia­
das então na Turquia. Depois de ter afirm ado que a guarni­
ção de K ronstadt era com posta por três quartos de ucranianos
que antes de se engajarem na m arinha haviam servido nas
tropas antibolcheviques do Sul, ele propõe preparar uma
nova cam panha contra os bolcheviques a fim de reconquistar
“ as conquistas da revolução de março de 1917” , isto é, resta­
belecer o poder do primeiro governo privisório e dos sovietes
dirigidos então pelos mencheviques e socialistas-revolucio-
nários. Esse pretenso retorno ao início da revolução, segundo
suas próprias palavras, é apenas um a cobertura para escon­
der a contra-revolução e a restauração do czarismo, que cons­
titui o verdadeiro objetivo da ação concebida. Entre os seis
pontos que ele propõe sejam adotados como plataform a da
colaboração entre o exército de Wrangel e os marinheiros de
Kronstadt refugiados na Finlândia figura, é verdade, em últi­
mo lugar a palavra de ordem que estes últimos haviam apre­
sentado quando da revolta: “ Todo o poder aos sovietes e não
aos partidos” . Mas os remetentes da carta sabem m uito bem
que sua antiga palavra de ordem é inaceitável para um gene­
ral czarista; por isso eles se empenham em afirm ar que essa
divisa herdada da Revolução é apenas uma “ m anobra polí­
tica conveniente” . Logo que o poder com unista for derruba­
do, eles consentem em abandoná-la provisoriamente, conven­
cidos de que somente uma ditadura militar poderá salvar o
país da anarquia.
A REVOLTA DE KRONSTADT 101

Essa colaboração antinatural entre os marinheiros de


Kronstadt e os guardas brancos do general Wrangel chegou
mesmo a conhecer um princípio de realização. Segundo um
relatório da polícia secreta soviética, Petrichenko, depois de
ter estabelecido contatos com os antibolcheviques de Petro-
grado, envia um grupo de marinheiros a fim de apoiá-los na
ocasião devida. Mas a organização de com bate de Petrogra-
do, que depende do Centro Nacional, é rapidam ente desco­
berta e seus membros, entre os quais os marinheiros que esta­
vam infiltrados em Petrogrado, são liquidados.
Os arquivos do Centro Nacional contêm outro docu­
mento confidencial assinado por Petrichenko e por Iakoven-
ko, igualmente de origem ucraniana e, durante a revolta,
vice-presidente do Comitê Revolucionário Provisório, que
autoriza um certo Vsevolod Nikolaievitch Skossyrev a repre­
sentar os marinheiros de K ronstadt refugiados na Finlândia
junto ao Com itê Nacional de Paris com vistas à “ coordena­
ção das atividades com as outras organizações operando sobre
uma plataform a de luta arm ada contra os com unistas” .
O segundo ponto de acusação repetido incansavelmente
pelo governo soviético é o conluio entre os marinheiros su-
perexcitados e indisciplinados, para os quais a revolta é um
fim em si mesma, e os guardas brancos sob o com ando de
um antigo general czarista de nome Kozlovski, que procu­
ram explorar essa revolta em benefício da contra-revolução.
Kozlovski é assim colocado ao lado dos outros generais bran­
cos, Kornilov, Krasnov, Miller, Iudenitch, Koltchak, Deni-
kin, W rangel, que tentam derrubar o novo regime, com essa
circunstância agravante de ter abusado da boa fé dos m ari­
nheiros, na verdade fanaticam ente ligados à Revolução de
O utubro e cuja sinceridade o governo soviético, mesmo apli­
cando contra eles medidas repressivas de extremo rigor, jamais
colocou em dúvida.
Alexandre Nikolaevitch Kozlovski, figura odiada da
propaganda com unista, havia sido promovido a major-gene-
ral de artilharia durante a Prim eira G uerra M undial. Após a
Revolução de O utubro ele fez parte dos 30000 oficiais do
antigo exército que, mesmo não tendo jam ais prom etido obe­
diência aos bolcheviques, haviam sido recrutados pelo Exér­
cito Vermelho a título de “ especialistas militares” . Em 1921
ele com anda a artilharia da fortaleza de K ronstadt. Depois da
102 HENRI ARVON

fuga do com andante da fortaleza, Kozlovski, por ser o oficial


mais antigo na patente mais alta, deveria sucedê-lo; entre­
tanto, ele recusa a sucessão, preferindo permanecer em seu
posto, onde é secundado por três outros oficiais imperiais,
Borkser, Kostrom itinov e Chirmanovski.
Parece, todavia, que Kozlovski não está unicamente
limitado a exercer seu com ando militar nos limites estritos
que pareciam querer impor-lhe. Assim, quando em 2 de
março, no curso de um a reunião eleitoral com vistas à consti­
tuição dos novos sovietes, o comissário bolchevique da forta­
leza protestou contra certas irregularidades cometidas na
escolha dos delegados, Kozlovski dirigiu-lhe esta frase car­
regada de subentendidos: “ P ara vocês é m uito tarde, de hoje
em diante farei o que há para fazer.”
Essas não foram palavras vãs. Assim que os marinheiros
tom aram K ronstadt, Kozlovski e os outros “ especialistas
miliates” propuseram algumas operações militares ditadas
sem dúvida pelas necessidades estratégicas da defesa da forta­
leza mas que lembram estranham ente os planos elaborados
pelo Com itê Nacional. P ara os oficiais, era sobremaneira
im portante passar à ofensiva desem barcando no continente a
fim de propagar a revolta entre as unidades militares que
estavam estacionadas e m archar sobre Petrogrado. Aos olhos
da emigração russa muito mais que para o governo bolche­
vique, o general Kozlovski aparece efetivamente como a alma
da revolta. É a ele que o general Wrangel dirige uma mensa­
gem de sim patia e lhe promete enviar como reforço seu Exér­
cito russo assim que possível.
Finalmente, no que concerne ao apoio dado aos insur­
rectos pela Cruz Vermelha, a imprensa ocidental fornece
numerosas informações a esse respeito. Assim, o Daily Herald
de 14 de março de 1921 publica o seguinte com unicado de seu
correspondente diplomático: “ Estou em condições de afir­
mar que o governo francês participa do com bate de K ronstadt
e que uma grande soma em dinheiro destinada aos rebeldes
foi enviada por seus cuidados a um certo professor em Viborg.
Os abastecim entos são igualmente encaminhados por inter­
médio e sob a cobertura da Cruz V erm elha.”
As dificuldades desse encam inham ento através de uma
Finlândia preocupada antes de tudo em preservar uma neu­
tralidade ainda precária retardaram a liberação dos víveres e
A REVOLTA DE KRONSTADT 103

medicamentos reunidos em grandes quantidades. Em 16 de


março, finalmente, quando o dram a de Kronstadt aproxi-
mava-se do fim, o barão Vilken, antigo oficial da marinha
imperial e que, nessa qualidade, havia com andado o navio de
linha Sebastopol, vem cum prir uma “ missão secreta’’ em
Kronstadt oferecendo ao Comitê Revolucionário o forneci­
mento de víveres e medicamentos que começavam a fazer
uma falta cruel. Mas já era tarde demais. Q uando, após p
consentimento do Comitê Revolucionário, os contrabandistas
finlandeses tentaram atravessar o gelo para chegar a Krons­
tadt com sua carga de abastecimento foram interceptados
pelos bolcheviques, que nesse meio tempo haviam retomadp
o controle da fortaleza de Kronstadt.

Sendo do conhecimento de todo m undo ser o barão


Vilken um agente branco, os bolcheviques exploraram esse
episódio da sublevação de K ronstadt para dar uma prova adi­
cional de seu caráter contra-revolucionário. Em um artigo de
1925, em que analisa as causas da insurreição de Kronstadt,
Petrichenko advoga, de form a extremamente desastrada,
aliás, não a necessidade dos kronstadinos, como último recur­
so, de aceitar não im porta que ajuda fosse de um guarda
branco, mas um a ingenuidade que é muito difícil de reco­
nhecer.

“ Mas” , escreve Petrichenko, “ os kronstadinos não se apres-


tavarn a atribuir a iniciativa a quem quer que fosse, tão vivos
que eram. Se os comunistas nos acusaram em seus jornais de
ter aceito a proposta da Cruz Vermelha russa na Finlândia
para nos ajudar com alimentos e medicamentos, de nosso
lado não vimos nada de mal.
Nós o fizemos segundo a vontade de todo o comitê e da assem­
bléia dos delegados. Consideramos que essa era uma orga­
nização puramente filantrópica propondo-nos uma ajuda
inofensiva e sem segundas intenções. Quando decidimos dei­
xar entrar em Kronstadt aquela delegação, nós a levamos ao
Estado-Maior da fortaleza com os olhos vendados. Na pri­
meira reunião declaramos que aceitávamos sua ajuda enquan­
to organização filantrópica, mas que estávamos isentos de
qualquer obrigação. Satisfizemos seu pedido para deixar um
representante em Kronstadt para fiscalizar a repartição dos
produtos principalmente entre as mulheres e crianças.
104 HENRIARVON

O capitão Vilken ficou em Kronstadt, preso em um quarto


sob vigilância para que não pudesse sair sem autorização.
Que perigo representava Vilken? Ele poderia unicamente
constatar o estado de espírito da guarnição e dos cidadãos,
seja como for isso não era algo com que pudesse fazer alguma
coisa.”

Se o exame dos diferentes arquivos da emigração permi­


tiu levantar parcialm ente o véu que encobria o reverso da
insurreição de K ronstadt e constatar até que ponto intrigas e
complôs, entusiasmo ingênuo e segundas intenções confun­
diam-se inextricavelmente, seria todavia errôneo tirar con­
clusões definitivas quanto ao verdadeiro caráter de Kronstadt.
A face oculta de Kronstadt, certamente, explica e justifica até
certo grau a violenta reação do governo soviético, cujos temo­
res não eram resultado de simples alucinações, mas é profun­
damente diferente da face visível de K ronstadt. As potencia­
lidades contra-revolucionárias da insurreição foram mais que
neutralizadas pela espontaneidade revolucionária dos mari­
nheiros de K ronstadt. A brusca manifestação de cólera e
indignação contra uma Revolução negando-se a si mesma é
que fez submergir todos os planos contra-revolucionários
sabidamente elaborados por aqueles que acreditavam poder
m anipular os marinheiros de Kronstadt.
Como acreditar, com efeito, que essa insurreição foi
levantada por um regente de orquestra clandestino, quando
ela explode em um m om ento extremamente desfavorável
para os kronstadinos e sem que os insurrectos tivessem tom a­
do anteriorm ente as precauções mais elementares quanto ao
abastecimento e às munições? O M em orando do Centro
Nacional previa a sublevação para a primavera seguinte, isto
é, para o fim do mês de março e início do mês de abril, época
em que o gelo se derrete no G olfo da Finlândia. Aquele teria
sido evidentemente o momento mais propício. Estando excluí­
do qualquer ataque da infantaria, a fortaleza de Kronstadt,
situada na ilha de Kotlin, se tornaria quase inexpugnável; os
víveres e reforços poderíam facilmente ser conduzidos pelos
navios ocidentais.
O ra, a insurreição tem início algumas semanas antes do
degelo. O isolamento de K ronstadt no meio do Golfo da Fin­
lândia, vantagem inestimável para os insurrectos, para os
A REVOLTA DE KRONSTADT 105

quais a posse da maior parte dos barcos da frota do Báltico


assegura o dominio do m ar, transform a-se em grande desvan­
tagem a partir do mom ento em que, estando a frota prisio­
neira do gelo, a ilha é apenas um a arm adilha que se fechará
sobre os marinheiros quando eles forem atacados simulta­
neamente ao norte e ao sul pelas tropas que poderão cercá-los
facilmente atravessando o gelo.
O caráter espontâneo da revolta é aliás ilustrado pelos
primeiros passos hesitantes e perfeitam ente contraditórios de
um movimento de massa que oscila entre a simples contes­
tação e a revolta brutal. No início, a única exigência verda­
deira dos marinheiros de K ronstadt é a eleição dos novos
sovietes pelo voto secreto; dessa form a eles esperam diminui
o poder dos comunistas sem ter de recorrer às armas.
Quando da reunião massiva dos marinheiros em 1? d
março na P raça da Âncora, que form ava o centro de Kronsr
tadt, reunião destinada a deliberar sobre a continuação a ser
dada à resolução contestatória votada na véspera pelos mari­
nheiros do Petropavlosk, a tribuna é ainda ocupada pelos
representantes do poder bolchevique, por P. D. Vassiliev,
presidente do Soviete de Kronstadt, por N. N. Kuzmin, comis­
sário junto à frota do Báltico, e sobretudo por Kalinin, presi­
dente da República dos Sovietes. Tendo vindo de Petrogrado,
este último havia sido recepcionado pela guarnição de Krons­
tadt com as honras devidas a suas funções e acom panhado
por uma guarda de honra. Ainda que no curso dessa reunião
se produza a ruptura entre os marinheiros e os dirigentes
comunistas — os 15000 m arinheiros, soldados e operários
votam a resolução do Petropavlosk enquanto apenas os três
dirigentes comunistas votam contra — ela ainda não parece
consumada. Os marinheiros permitem que Kalinin volte livre­
mente para Petrigrado, em bora ele tivesse podido servir-lhes
como refém. Kalinin, por sua vez, conserva sentimentos ami­
gáveis em relação aos m arinheiros; pelo menos é o que afirm a
a anarquista Em m a Goldm an, que, após sua expulsão dos
Estados Unidos em 1919, encontra-se instalada em Petro­
grado, onde acom panha com paixão a evolução da situação
em Kronstadt.
O enfrentam ento entre os kronstadinos e os represen­
tantes comunistas na reunião de 1? de março parece tão pouco
premeditado, que Víctor Serge, em suas M émoires d ’un Révo-
106 HENRI ARVON

lutionnaire, o atribui unicamente à atitude brutal e intransi­


gente tom ada pelos dirigentes comunistas em relação aos
m arinheiros. “ Em lugar de abrandar-lhes a cólera” , eleescre-
veu a propósito de Kalinin e de Kuzmin, que presidiam a reu­
nião, “ os dois responsáveis trataram -nos de brutos e traido­
res e am eaçaram -nos com represálias implacáveis se não reco­
brassem a razão .” Hipótese em si mesma inaceitável, pois a
revolta de K ronstadt é determ inada por problemas políticos e
econômicos que ultrapassam largamente os simples ressenti­
mentos pessoais, mas significativa no sentido em que era con­
cebível apenas na medida em que a situação parecia delicada
demais para que fosse possível adm itir um a evolução numa
ou noutra direção. Q uanto a intrigas contra-revolucionárias,
às quais K ronstadt era acusada de prestar-se, podia-se seria­
mente criticar os rebeldes de K ronstadt por m anter em suas
fileiras antigos oficiais czaristas, quando estes haviam sido
designados para a fortaleza bem antes do início da insurrei­
ção? Em todo caso, era preciso uma boa dose de inconsciên­
cia por parte dos comunistas para fazer isso, pois eles mesmos
encarregaram um antigo oficial czarista, Tukhatchevsky, de
liquidar a sublevação. No limite e do ponto de vista unica­
mente militar, K ronstadt foi o que estava em jogo na luta
entre dois com andantes czaristas, sendo um o antigo general
imperial Kozlovski, que servia a causa dos marinheiros, e o
outro o jovem e brilhante ex-oficial Tukhatchevsky, chefe do
Estado-M aior e discipulo de Trotsky, habituado a levar o
Exército Vermelho à vitória.
É antes a crítica contrária que conviría fazer aos m ari­
nheiros; eles conservam os oficiais czaristas mas quase não
executam suas ordens, perdendo assim as raras oportunidades
que lhes restavam de sair honrosam ente de sua louca aven­
tura. Kozlovski e os outros oficiais aconselham-nos a passar
¡mediatamente à ofensiva, a atacar as diferentes guarnições
do continente ao redor de K ronstadt e a m archar rapidam ente
sobre Petrogrado. Mas como tantos outros revoltosos da
história, cuja recusa a toda autoridade impedia autom atica­
mente toda a ação ofensiva de qualquer envergadura, os ma­
rinheiros de K ronstadt, condenando-se eles mesmos a uma
atitude defensiva, só poderíam chegar à derrota. Assim como
os com unardos, que não tinham podido se decidir a tom ar o
monte Valérien, assim como os anarquistas espanhóis, cujo
A REVOLTA DE KRONSTADT 107

papel militar durante a guerra civil havia sido extremamente


reduzido apesar da coragem exemplar que os estimulava, os
marinheiros de K ronstadt tinham horror a tom ar a menor
iniciativa militar. Refratários a toda disciplina, eles se fecham
em sua ilha-fortaleza e contentam-se em organizar sua defe­
sa. A inda assim eles mostram má vontade; quando os oficiais
chamam sua atenção para o ponto mais fraco das m uralhas, a
porta de Petrogrado, e ordenam-lhes reforçar a defesa, eles
encontram pretextos para não executar as ordens recebidas.
Cercados em um a fortaleza que dispõe de reservas extrema­
mente limitadas de víveres, munições e medicamentos, eles
aguardam o improvável arrependim ento do governo bolche­
vique.
Sua cegueira é tal que se privam de seus meios de defesa
mais eficazes. P ara colocar K ronstadt a salvo de um ataque
de infantaria e para livrar ao mesmo tempo os navios presos
no gelo, em particular o Petropavlosk e o Sebastopol que,
colocados lado a lado, atrapalhavam os tiros um do outro, os
oficiais haviam proposto ao Comitê Revolucionário Provi­
sório arrebentar o gelo com um tiro de artilharia. Ora, essa
proposta foi rejeitada sob o pretexto de que faltava munição
a K ronstadt e que, de qualquer modo, a operação seria inútil
pois o gelo voltaria a formar-se rapidamente.
Em suma, K ronstadt traz consigo os traços da esponta­
neidade, da improvisação, da negligência e da incoerência,
características próprias de todo movimento autenticamente
popular. A insurreição é sem dúvida o eco dos sofrimentos
suportados pelo povo russo desde o início da Prim eira Guerra
M undial e que, no início de 1921, haviam alcançado um grau
que os tornava insuportáveis.
Deve-se, entretanto, considerar a repressão de que foi
objeto por parte do governo bolchevique como a reação cega
e injustificável de dirigentes mais ansiosos em conservar um
poder do qual se apossaram traiçoeiramente do que remediar
os males que geraram? A intransigência que Lenin e Trotsky
m ostraram na ocasião merece plenamente a reprovação que
recebe tão amiúde?
Recordemos antes de tudo que o poder bolchevique aca­
bava de sair das terríveis experiências da guerra civil; simul­
taneamente com batidos de maneira selvagem pelas potências
ocidentais e pelos guardas brancos, os bolcheviques adqui-
108 HENRIARVON

riram uma psicologia de acuados, obrigados a estar conti­


nuamente à espreita para não ser destruídos. Mas acima de
tudo, não im porta qual o ponto de vista, K ronstadt não é um
abscesso que se form ou em alguma parte da Rússia e que há
segurança de poder supurá-lo mais cedo ou mais tarde. F orta­
leza encarregada da defesa m arítim a de Petrogrado, Krons­
tadt torna-se por esse mesmo m otivo, a partir do momento
em que as fortificações caem nas mãos inimigas, uma arm a
apontada não para uma cidade qualquer mas para Petrogra­
do, centro e coração da Revolução de O utubro. Além disso,
o tem po pressionava; era preciso pôr fim à revolta antes que
o degelo tornasse impossível qualquer ataque de infantaria.
E ntretanto, os dirigentes bolcheviques, a despeito da
urgência que havia em apagar um incêndio que arriscava pro-
pagar-se, tem porizaram ; durante a prim eira semana da rebe­
lião ainda esperavam chegar a um acordo pacífico para o
conflito. Em 5 de março, é verdade, eles enviam aos kronsta-
dinos um ultim ato exigindo sua rendição im ediata e sem con­
dições. Mas no dia seguinte, dando talvez continuidade a
uma intervenção de quatro anarquistas, Em m a Goldm an,
Alexandre Berkman, Perkus e Petrovsky, que se encontravam
então em Petrogrado, os membros do Soviete de Petrogrado
solicitam por telegrama ao Comitê Revolucionário Provisório
autorização para que uma delegação com posta por membros
do Partido e de pessoas sem partido vá a K ronstadt a fim de
que estes últimos possam colocá-los a par da situação. Esta
última tentativa, cujo caráter conciliador é evidente, é recha­
çada pelos kronstadinos.
A relativa moderação dos bolcheviques em relação aos
marinheiros de K ronstadt, pelo menos no início da revolta,
explica-se pelo fato de que estes apareciam a eles, em razão
sem dúvida de seu brilhante passado revolucionário, como
irmãos, iludidos, certamente, por uma propaganda inimiga,
mas que era possível reconduzir ao bom cam inho, e não como
traidores que era preciso liquidar rapidamente.
Numerosas declarações de dirigentes bolcheviques a
propósito dos marinheiros de K ronstadt mostram quão gran­
de era seu em baraço. Pouco tempo depois do fim da rebelião
de K ronstadt, Trotsky, que se não havia dirigido pessoal­
mente as operações contra K ronstadt, havia dado seu aval ao
ultim ato apresentado aos insurrectos, insiste sobre o prazo
A REVOLTA DE KRONSTADT 109

que havia sido generosamente concedido: “ Esperamos tanto


tempo quanto foi possível” , ele afirm a. “ Mas nós precisá-
vamos enfrentar o perigo do degelo e fomos obrigados a lan­
çar o ataq u e.” Em seu Stalin, ele fala a esse respeito de urna
“ necessidade trágica” : “ Bastará dizer que o que o governo
soviético fez contra sua vontade em K ronstadt foi um a neces­
sidade trágica; evidentemente o governo revolucionário não
podia dar de presente aos marinheiros insurrectos a fortaleza
que protegia Petrogrado simplesmente porque alguns anar­
quistas e socialistas-revolucionários suspeitos patrocinavam
um punhado de camponeses reacionários e de soldados em
rebelião” .
No terceiro congresso da Internacional Com unista que
se realiza em ju nho de 1921, Bukarin, depois de ter denun­
ciado a exemplo de Lenin o caráter “ pequeno-burguês” da
insurreição de K ronstadt, isto é, sua tendência a abraçar as
queixas de um campesinato cansado da intervenção política
em seus assuntos, acaba, contudo, por falar em termos calo­
rosos, prevendo a consternação certa, do doloroso episódio
de K ronstadt. “ Quem disse que K ronstadt era branca” , ele
exclama. “ N ão. Por nossas concepções, pela tarefa que é a
nossa, fomos obrigados a reprim ir a revolta de nossos irmãos
induzidos em erro. Não podem os considerar os marinheiros
de K ronstadt como nossos inimigos, nós os amamos como
irmãos verdadeiros, nossa carne e nosso sangue.”

Julgando cada um dos dois partidos, não aplicando-lhes


respectivamente os critérios do adversário, mas em função de
seus próprios princípios, somos levados a adm itir que a esco­
lha tom ada por eles corresponde a um a lógica interna e por
assim dizer inelutável. Os m arinheiros, “ força e orgulho” da
Revolução, tencionavam defender os ideais pelos quais se
haviam batido com uma coragem excepcional, desde que
estes foram submetidos a um desvio burocrático e centraliza­
dor. O governo soviético, por sua vez, vitorioso contra a
contra-revolução em razão mesmo da centralização realizada
graças a um a disciplina estrita im posta pelo Partido, não
podia restaurar o poder descentralizado dos sovietes sem
colocar em perigo o jovem Estado ainda m uito frágil.
Desta form a, K ronstadt apresenta, por assim dizer, os
traços característicos da tragédia clássica. N ão há apenas
110 HENRIARVON

fatalidade na obra, mas de form a com pleta os protagonistas


que se enfrentam em nome de princípios opostos. Eles são
culpados, certamente; os marinheiros, de terem entrado, por
pouco que fosse e por ignorância, sem dúvida, no jogo da
contra-revolução, e o governo soviético, de ter esmagado
im piedosamente os homens que haviam estado a seu lado e
que, antes de tudo, só reclamavam um retorno aos ideais
traídos. Mas essa culpabilidade respectiva decorre de urna
fatalidade histórica inelutável.

Nas M ém oires d ’un Révolutionnaire, Victor Serge mos­


tra bem até que ponto K ronstadt colocou e coloca ainda um
caso de consciência. P ara ele não há dúvida de que Kronstadt
tinha razão de se insurgir contra o P artido, que se afastava
cada vez mais do povo. Ele estava convencido, entretanto, de
que o desaparecim ento do Partido teria trazido consigo
necessariamente o caos, e como conseqüéncia, o retorno dos
emigrados e a instauração de urna nova ditadura, que em vez
de lutar contra a burguesia se voltaria contra o proletariado.
A Terceira Revolução
O mito de K ronstadt cristalizou-se em torno da palavra de
ordem da “ Terceira Revolução” , desafio soberbamente lan­
çado aos assaltadores comunistas no Izvestia de Kronstadt de
8 de março de 1921:

“ É aqui, em Kronstadt, que foi lançada a pedra fundamental


da Terceira Revolução, que quebrará as últimas amarras do
trabalhador e lhe abrirá a nova e larga estrada da edificação
socialista.
Essa nova revolução despertará as massas trabalhadoras do
Oriente e do Ocidente. Pois ela mostrará o exemplo de uma
nova construção socialista em oposição à ‘construção’ comu­
nista, mecânica e governamental. As massas trabalhadoras
além de nossas fronteiras serão convencidas pelos fatos de
que tudo que foi fabricado entre nós até o presente, em nome
dos operários e dos camponeses, não era o socialismo” .

O term o Terceira Revolução, suscitando a curiosidade


pelas perspectivas inesperadas que abre simultaneamente
sobre o passado e o futuro, corresponde em si a uma simples
gradação cronológica. Para os marinheiros de Kronstadt, a
primeira revolução é sem dúvida a de fevereiro de 1917, a
segunda é aquela de outubro de 1917, a terceira começa com
a sublevação de K ronstadt em março de 1921 e deve term inar,
num prazo mais ou menos longo, com a instauração de um
socialismo autêntico. Trata-se, portanto, de um avanço em
112 HENRI ARVON

direção ao socialismo em três etapas, a prim eira consistindo


em abolir o autoritarism o czarista, a segunda em levantar a
hipoteca do parlam entarism o burguês, a terceira, enfim, em
acabar com a ditadura com unista qualificada pelos insur­
rectos de “ com issariocracia” .
Seria, entretanto, injusto não ver nesse conceito de
“ Terceira R evolução” um a aplicação possível da dialética
marxista, cuja tríade feita de oposições e superação seria
im posta ao próprio fenômeno revolucionário. H á nesse termo
e na maneira com que é apresentado pelo Izvestia de Krons-
tadt tal carga de esperança messiânica e de am or fraternal que
não podería ser reduzido às dimensões puram ente concei­
tuais; ele com porta, com efeito, algumas conotações mais ou
menos precisas, perceptíveis aos ouvidos russos, que reconhe­
cem aí os temas escondidos em seu inconsciente nacional.
A noção de “ Terceira Revolução” recorda antes de
tudo aquela da “ terceira R om a” surgida na Moscovia do
século XVI; M oscou pretende daí em diante a sucessão de
Roma e de Bizâncio. Essa afirm ação de uma hegemonia na­
cional e religiosa que pertence legitimamente à Rússia encon­
tra-se em seguida ligada à convicção de que a Rússia está
incumbida de um papel regenerador no que diz respeito ao
m undo ocidental. Essa pretensão apóia-se sobretudo na origi­
nalidade da com una eslava. Praticando um comunismo agrá­
rio cujo mérito principal é m anter entre eles a solidariedade e
igualdade, os camponeses russos, diferentemente do Ociden­
te, doente de individualismo e desvarios egoístas que carrega
consigo, parecem representar com um vigor excepcional a
capacidade criadora e revolucionária própria do povo.
Na mesma categoria de idéias a memória russa guarda,
carregadas com todas as suas esperanças de salvação e de
libertação, as imagens apaixonantes dos célebres hetm ãs,3
chefes das jacqueries dos séculos XVII e XVIII, Stenka Razin
e Pugatchev. O escritor e revolucionário Herzen (1812-1870)
é o primeiro a opor a missão salvadora da classe camponesa
russa a um a em ancipação que, segundo Marx e Engels, deve­
ria ser executada pelo proletariado e que no caso particular
da Rússia, país atrasado e agrícola, exigiría antes, segundo
eles, um a revolução burguesa; ele está convencido de que,

3 Hetmã: líder rebelde caucasiano. [NT)


A REVOLTA DE KRONSTADT 113

graças a seu socialismo agrário, não terão necessidade de


passar pela dolorosa etapa burguesa.
É Michel Bakunin quem insuflará esse messianismo
russo meio religioso meio político com um a paixão revolu­
cionária excepcional. Indignado por ver os eslavos unirem-se
à reação para com bater os revolucionários alemães e húnga­
ros em 1848, ele lança em novem bro de 1848 seu A pelo aos
Eslavos, para lembrá-los de sua verdadeira missão que não é
com bater mas propagar a Revolução na Europa:

“ É a democracia russa” , ele afirma depois de ter evocado as


revoltas camponesas que tenham acabado de acontecer na
Rússia, ‘‘que, com suas línguas de fogo, engolirá todo o Impé­
rio (russo) e iluminará com um incêndio sangrento toda a
Europa. Das profundezas desse oceano flamejante irão levan-
tar-se os milagres da Revolução. A Rússia é o fim da Revo­
lução, aí ela se mostrará em toda a sua força e encontrará
sua conclusão. A mesma firmeza e perseverança que permi­
tiram ao povo russo manter, em meio a tantas tempestades
que devastavam o mundo eslavo, sua independência exterior,
o ajudarão agora a tornar-se senhor da Revolução, a con­
quistar e a guardar para todo o sempre sua liberdade interior.
E em Moscou que será rompida a escravidão dos povos subju­
gados pelo cetro russo e de todos os povos eslavos; aí também
toda a escravidão européia será enterrada em meio a todos os
seus escombros. Do oceano de sangue e de fogo surgirá em
Moscou, bem alto no céu, a estrela da revolução para tornar-
se o guia da humanidade libertada.”

Bakunin pensa, bem entendido, em uma revolução cam­


ponesa e não proletária. Preso em um a fortaleza saxã após
sua louca fuga de Dresden, ele escreve, com efeito, em 1849,
ao seu defensor O tto: “ A revolução camponesa na Rússia
desferirá um golpe mortal sobre o governo, ela destruirá o
Estado atual. Essa revolução é inelutável, nada a pode impe­
dir; cedo ou tarde ela eclodirá; quanto mais tarde, mais ter­
rível e destrutiva ela se revelará” .
A defesa de Bakunin da espontaneidade revolucionária
antecipa a oposição dos kronstadinos à ‘‘construção com u­
nista, mecânica e governam ental” , a ponto de provocar nele
a mesma hostilidade em relação ao comunismo, cujas excres-
cências estatizantes e burocráticas permanecem, contudo,
114 HENRI ARVON

ainda potenciais em sua época. Desde 1866 Bakunin prevê


que “ o Estado despótico” colocado pelo comunismo de Esta­
do fará nascer “ uma classe exploradora e privilegiada: a
burocracia” . É ele quem pela primeira vez, em uma carta a
Herzen e O garef datada de 19 de julho de 1866, faz a respeito
desse fenôm eno, denunciado pelos kronstadinos mais de
meio século depois, quando o comunismo de Estado tinha
efetivamente engendrado “ o Estado despótico” , um diagnós­
tico tanto lúcido quanto preciso: “ O democratismo oficial e a
burocracia verm elha’ ... (é o) embuste mais vil e mais terrível
que engendrou nosso século” .
Os populistas dos anos 1870-1880 continuam a apostar
no cam pesinato russo, que eles esperam arrancar de seu tor­
por com repetidos atos terroristas. Em conform idade com
sua palavra de ordem “ terra e liberdade” , eles preconizam,
da mesma form a que farão os kronstadinos, a entrega da
terra aos camponeses e seu agrupam ento em um a federação
de comunas autônom as, garantindo assim a liberdade polí­
tica e econômica com um a organização de baixo para cima.
As aspirações populistas são retom adas pelo partido
socialista revolucionário. Hostil às nacionalizações exigidas
pelos marxistas, os socialistas revolucionários propõem a
socialização das terras e das indústrias, isto é, a adm inistra­
ção direta pelas comunas rurais e sindicatos operários. Sabe-
se que os socialistas-revolucionários de esquerda, depois de
terem sido associados ao poder pelos bolcheviques em 1917,
foram expulsos em 1918. Não há dúvida de que a “ Terceira
Revolução” dos kronstadinos retom a em grande parte seu
program a político e econômico. P ara convencer-se, basta
consultar o artigo que os socialistas-revolucionários de esquer­
da publicam em ju nho de 1921 em seu jornal Znamia, para
recordar as grandes linhas de sua ação política: “ O objetivo
essencial do partido socialista-revolucionário de esquerda
reside na constituição dos sovietes, na restauração do verda­
deiro poder soviético ... Vamos trabalhar para que seja resta­
belecida a cada dia e a cada hora a Constituição violada da
República Soviética adotada em 10 de junho de 1918 no V
Congresso Pan-russo dos Sovietes ... O campesinato, espinha
dorsal da população trabalhadora russa, deve receber um
lugar digno da República Soviética, deve receber o direito de
dispor de seu destino” .
A REVOLTA DE KRONSTADT 115

Parece mesmo possível estreitar ainda mais a origem


ideológica da “ Terceira Revolução” . A resolução dos m ari­
nheiros de K ronstadt, que constitui a plataform a da subleva-
ção, não fala ainda da “ Terceira Revolução” ; ela se atém às
exigências concretas e exatas que na essência reclamam as
exigências form uladas pelos grevistas de Petrogrado. É o
Izvestia de K ronstadt que em seu número de 8 de março dá
uma pincelada em suas características distintivas, num mo­
mento em que, após a defecção do proletariado de Petro­
grado e início das hostilidades, a revolta procura legitimar-se
por um a finalidade que lhe é própria. É assim que o destino
da Revolução de O utubro em seu conjunto encontra-se sub­
metido a um a crítica profunda. Diante da am plitude política
e hum ana dessas reflexões sobre a Revolução de O utubro e
seu resfriam ento revolucionário, que em nada lembra o peso
das fórmulas marxistas rituais, é-se levado a perguntar quem
foi o autor, com uma curiosidade tanto mais viva porque
todos os artigos do Izvestia de Kronstadt são rigorosamente
anônimos.
O ra, os historiadores soviéticos que se ocuparam de
K ronstadt, em particular Slepkov cujo estudo sobre a insur­
reição foi lançado em Moscou em 1928, afirm am que o reda-
tor-chefe do Izvestia, Lam anov, era maximalista, isto é, per­
tencia à extrema esquerda do partido revolucionário. É essen­
cialmente por essa razão, segundo eles, que o Izvestia de
Kronstadt desenvolveu uma ideologia completamente hostil
ao comunismo. Afirmação sem dúvida de acordo com a reali­
dade, pois Paul Avrich, em uma nota de sua Tragédie de
Kronstadt 1921, confirm a que “ se nenhum a prova permite
afirm ar que Lam anov efetivamente tom ou parte da revolta
de 1921, é certeza que durante a revolução de 1917 ele foi
muito ativo com o agitador maximalista” .
A hipótese segundo a qual a “ Terceira Revolução” foi
esboçada, senão pelo próprio Lam anov, pelo menos em con­
formidade com suas próprias idéias políticas, apóia-se na
perfeita concordância entre a “ Terceira Revolução” e o pro­
grama dos maximalistas. Do ponto de vista econômico, estes
últimos exigem que a palavra de ordem da Revolução “ A
terra aos camponeses, a fábrica aos operários” seja realizada
integralmente; por um lado, eles se insurgem contra as requi­
sições que prejudicam a propriedade dos camponeses, e con-
116 HENRIARVON

tra as propriedades do Estado que constituem uma simples


transferência da terra das mãos dos latifundiários para as do
Estado; por outro lado, eles rejeitam a nacionalização das
fábricas e a direção da produção industrial por uma burocra­
cia centralizada. Finalmente, eles se opõem intransigente­
mente à restauração da Assembléia Constituinte reclamada
pelos mencheviques e preconizam o estabelecimento de uma
“ república soviética dos trabalhadores” constituída pelos
sovietes livremente eleitos, im pulsionada não por cima, mas
pela base.
É sem dúvida o retorno ás aspirações essencialmente
populares, levadas em conta pelos socialistas-revolucionários
e sob uma form a mais radical ainda pelos maximalistas, o que
marca a “ Terceira Revolução” proclam ada por K ronstadt e
cunhada por um a experiência autêntica. No Izvestia de Krons­
tadt não se trata mais da questão de um proletariado cham a­
do a substituir a burguesia, esquema marxista rígido, aliás,
inadequado à realidade russa, mas da eterna luta entre os
oprimidos e os opressores, entre o povo e o poder. É um socia­
lismo prim itivo, certam ente, não “ científico” mas impreg­
nado de calor hum ano e de generosidade revolucionária.
Lendo certos artigos do Izvestia de Kronstadt pensa-se em
outros escritos pré-marxistas, onde ressoa a cólera do povo
oprimido e onde se difunde seu ardor de refazer um m undo
mais justo e fraternal, como por exemplo o Messager de Hesse
(1834), através do qual o revolucionário alemão Georg Büch-
ner dirige-se aos camponeses cruelmente explorados de seu
país.
Acontece que no caso preciso de K ronstadt e da Rússia
de 1921 os opressores são os comissários políticos e o poder
explorador é o partido com unista tornado todo-poderoso. É
por isso que a “ Terceira Revolução” , que no fundo exprime
a eterna aspiração do povo à liberdade e à justiça, aparece no
artigo intitulado O suposto socialismo e publicado no último
número do Izvestia de Kronstadt, de 16 de março, sob o aspec­
to particular de um a luta contra a “ com issariocracia” .

“ Ao fazer a Revolução de Outubro, os marinheiros, os solda­


dos vermelhos, os operários e os camponeses derramaram seu
sangue pelo poder dos Sovietes, pela edificação de uma Repú­
blica dos trabalhadores. O partido comunista anotou com
A REVOLTA DE KRONSTADT 117

exatidão as aspirações das massas. Tendo inscrito em sua


bandeira slogans atraentes que entusiasmavam os trabalha­
dores, ele arrastou-os na luta e prometeu-lhes conduzi-los
para o bom reino do socialismo que apenas os bolcheviques
saberíam construir.
Naturalmente, uma alegria infinita tomou conta dos operá­
rios e camponeses. ‘Enfim, a escravidão sob o jugo dos gran­
des proprietários e dos capitalistas entrará para o domínio das
lendas’, pensaram eles. Parecia que havia chegado o tempo
do livre trabalho nos campos, fábricas e manufaturas. Pare­
cia que o poder iria passar às mãos dos trabalhadores.
Através de uma propaganda hábil, os inexperientes do povo
trabalhador foram atirados nas fileiras do partido, onde
foram submetidos a uma disciplina rigorosa. Em seguida,
sentindo-se fortes, os comunistas, progressivamente, elimi­
naram do poder os socialistas das outras tendências, após
o que expulsaram de numerosos postos do Estado os operá­
rios e camponeses, continuando a governar em seu nome.
Os comunistas substituíram assim o poder que haviam usur­
pado pela tutela dos comissários com toda a arbitrariedade
do poder pessoal. Contra toda a razão, e contrariamente à
vontade dos trabalhadores, começaram então a construir
obstinadamente um socialismo estatizante, com escravos,
em vez de fundar uma sociedade baseada sobre o trabalho
livre.
Estando a indústria totalmente desorganizada, apesar do
‘controle operário’, os bolcheviques realizaram a ‘nacionali­
zação das fábricas e manufaturas’. De escravo do capitalista,
o operário foi transformado em escravo das empresas de
Estado. Em breve isso não era mais suficiente. Projetou-se a
aplicação do sistema Taylor. Toda a massa dos trabalhadores
foi declarada inimiga do povo e destinada aos kulaks. Bastan­
te empreendedores, os comunistas aspiram estão a arruinar os
camponeses e a instaurar as explorações soviéticas, isto é, as
propriedades do novo explorador agrário: o Estado. Isso foi
tudo o que os camponeses obtiveram do socialismo bolche­
vique, em lugar do trabalho livre sobre a terra libertada que
tinham esperado. Em troca do pão e do gado, quase que intei­
ramente requisitados, obteve-se as razias dos tchekistas e os
fuzilamentos em massa. Bom sistema de trocas para um Esta­
do dos trabalhadores: chumbo e baionetas no lugar de pão!
A vida do cidadão tornou-se monótona e banal até a morte,
regulada segundo as prescrições das autoridades. Em vez de
uma vida animada pelo trabalho livre e pela livre evolução
dos indivíduos, surgiu uma escravidão inaudita, inacreditá-
118 HENR1 ARVON

vel. Todo pensamento independente, toda crítica justa sobre


os atos dos governantes criminosos tornou-se um crime puni­
do com a prisão e seguido pela morte. A pena de morte, essa
vergonha da humanidade, desabrochou na ‘pátria socialista’.
Tal é o bom reinado do socialismo para onde a ditadura do
partido comunista nos conduziu.
Obtivemos o socialismo de Estado com os Sovietes de funcio­
nários que votam docilmente o que a autoridade e seus comis­
sários infalíveis lhes ditam. A palavra de ordem ‘aquele que
não trabalha não come’ foi modificada sob esse bom regime
‘dos Sovietes’: ‘Tudo para os comissários’. E quanto aos
operários, camponeses e trabalhadores intelectuais, bem, eles
só têm de realizar seu trabalho no ambiente de uma prisão.
Isso tornou-se insuportável. A Kronstadt revolucionária que­
brou as correntes e arrebentou as grades da prisão; luta pela
verdadeira República Soviética dos trabalhadores, onde o
próprio produtor será o senhor dos produtos de seu trabalho
e disporá deles como quiser.”

A noção de “ Terceira Revolução” nascida em Kronstadt


carrega sem dúvida as marcas de certas “ constantes nacio­
nais” . São Stenka Razin e Pugatchev que além dos séculos
estendem uma m ão fraternal a Petrichenko, são os cam po­
neses dos séculos XVII e XVIII, revoltados contra os boiar-
dos4 e o poder central, que encorajam os m arinheiros de
Kronstadt, seus longínquos descendentes, a insurgir-se contra
os comissários e os burocratas. Mas K ronstadt não se situa
apenas em um contexto nacional; sua revolta atinge a univer­
salidade na m edida em que ilustra mais um a vez o trágico des­
tino de C aliban, que é obrigado a obedecer a um a autoridade
superior, Ariel, e que não obstante está em rebelião contra
ela.
A inserção em uma outra categoria revolucionária é
sugerida por um a curiosa coincidência cronológica revelada
aliás por Em m a Goldm an: o 18 de m arço, último dia da C o­
m una de K ronstadt, foi também com cinqüenta anos de ante­
cedência o prim eiro dia da Com una de Paris. O que a C om u­
na de Paris foi para a Com una de K ronstadt, grão enterrado
ou lançado ao vento que se põem a germinar quando lhes são
dadas as condições, a Com una de K ronstadt o será para as

4 Boiardo: titulo conferido aos senhores de uma classe privilegiada da antiga


aristocracia russa. (/V71
A REVOLTA DE KRONSTADT 119

diferentes democracias populares que por razões idênticas


form ularão as mesmas exigências contra o mesmo Partido
comunista. Os conselhos operários que surgem, defendem a
exemplos dos kronstadinos os interesses próprios aos traba­
lhadores contra a burocracia centralizada, instalada pelo Par­
tido Com unista que designa pela força da autoridade os dire­
tores de em presa e os dirigentes econômicos. A revolução
húngara de 1956 proclam a em primeiro lugar que a “ fábrica
pertence aos operários” . O movimento revolucionário que se
produz no mesmo ano na Polônia esforça-se por libertar os
sindicatos da dom inação da burocracia para que possam ser
novamente os pórta-vozes das reivindicações próprias aos
trabalhadores. A revolta de 1968 na Tchecoslováquia aspira a
restituir aos trabalhadores os direitos de intervenção e de con­
trole tom ados indevidamente por um a adm inistração inva­
sora e um partido orgulhoso.
Todas essas explosões devidas às múltiplas sujeições
impostas pelos regimes socialistas inspiram-se menos no
esquema tradicional da Revolução de O utubro que na dolo­
rosa experiência de K ronstadt, que aliás refazem com o mes­
mo insucesso. Em vez de situar-se no início da transform ação
revolucionária da sociedade, como foi o caso da Revolução
de O utubro, que foi acom panhada do surgimento espontâ­
neo dos sovietes; as sublevações das democracias populares,
da mesma form a que a insurreição de K ronstadt surgida qua­
tro anos após a instauração de um regime socialista, dirigem-
se em nome dos sovietes contra um Estado socialista que é
estreitamente controlado pelo partido e que fechou o proleta­
riado no pelourinho de uma burocracia centralizada.
Confrontada com todas as revoltas similares, a de Krons­
tadt coloca antes de tudo, independentemente de seu contexto
histórico e ideológico, o problem a da Revolução em si. Teori­
camente, todo o processo revolucionário deveria ser a pas­
sagem da ordem antiga, ultrapassada ou repressora, para a
liberdade; ora, é sem dúvida o paradoxo mais singular das
revoluções instaurar finalmente um poder tanto mais tirânico
que o poder caçado por elas foi repressivo. O fanatism o ini­
cial, indispensável para o sucesso da revolução, transform a-
se mais ou menos rapidam ente em um limitado burocratism o
necessário para a reconstrução de um a ordem que foi violen­
tamente transform ada. É a fase de consolidação que Max
120 HENRI ARVON

Weber cham ou de “ transform ação do carisma em prática


cotidiana’’. O povo, que acreditava libertar-se com essa revo­
lução, m anifesta seu desacordo com esse confisco da revo­
lução pelos novos dirigentes privilegiados; insurge-se contra
uma evolução fatal qualificada por Robert Michels de “ lei de
bronze da form ação de um a oligarquia” .
O trágico destino dos marinheiros de K ronstadt foi dita­
do pela dinâm ica própria de toda revolução. Eles o com parti­
lharam com os diggers da Revolução Inglesa, com os sans-
culottes da Revolução Francesa e com os guerilleros da Revo­
lução Mexicana. Bertrand de Jouvenel sem dúvida teve razão
ao afirm ar que todas as revoluções são feitas, em última aná­
lise, não pelo homem mas pelo Poder.
H á, certam ente, outra maneira de considerar e de julgar
K ronstadt, menos pessimista e sem dúvida mais capaz de dar
conta da im portância que ela não deixou de ter em nossa épo­
ca, que acredita aí discernir a origem de uma nova tradição, a
do “ conselhism o” . P or suas particularidades históricas,
K ronstadt questiona, com efeito, toda concepção de socia­
lismo. De acordo com a maneira com que o fenômeno buro­
crático contra o qual Kronstadt se insurge é considerado,
como uma simples degenerescência do marxismo-leninismo
ou como sua inevitável involução, pode-se situar no interior
do sistema cujos males se procura sanar ou libertar-se de um
sistema que traz consigo a servidão da mesma form a que a
nuvem densa traz a tempestade. K ronstadt adota sucessiva­
mente as duas atitudes; está claro que com a “ Terceira Revo­
lução” indica seu adeus ao marxismo-leninismo que na reso­
lução do Petropavlosk ainda não havia sido rejeitado.
A tese da degenerescência é sustentada por Trotsky quan­
do ele passa para a oposição. Da mesma form a que os mari­
nheiros de K ronstadt, ele denuncia violentamente o controle
da casta dos dirigentes sobre o aparelho de Estado e sobre
todos os privilégios; acusa-os de terem ficado com a parte do
leão na repartição do rendim ento social e de ter praticamente
restabelecido as condições de um a verdadeira exploração.
Mas é em virtude da noção de luta de classes, eixo de toda
reflexão marxista, que Trotsky acredita poder atribuir a esse
fenômeno, que aproxim a a nova sociedade soviética da antiga
burguesia exploradora, um caráter provisório. P ara Trotsky,
a burocracia soviética não deveria ser considerada como uma
A REVOLTA DE KRONSTADT 121

classe verdadeira. Apesar de ter sido colocada acima dos


outros grupos da sociedade soviética, apesar de constituir
uma “ cam ada privilegiada e dom inante” , ela é, contudo,
fundam entalm ente diferente daquela outra burocracia de que
fala Marx no 18 Brumário e e m A Guerra Civil na França, no
sentido de que sua dominação não tem base social. Como a
burocracia soviética não detém a propriedade dos meios de
produção e não pode legar seus bens ou seus privilégios, trata-
se de um fenômeno exclusivamente político e não social.
Assim, a URSS permanece para Trotsky um Estado ope­
rário a despeito de seus desvios burocráticos. Como sua base,
que segundo os dogmas marxistas é constituída pelas relações
de produção, é socialista, o m odo de divisão burguês que
reina entre um a ínfima minoria não conseguirá manter-se por
muito tempo, tendendo a desaparecer todas as discordâncias
entre a infra-estrutura e as superestruturas. Trotsky está
convencido de que a URSS acabará por tom ar o caminho
do socialismo integral, a menos que penda para o capita­
lismo.
O “ conselhismo” substitui progressivamente a tese da
degenerescência pela da involução; acaba por professar um
“ anti-bolchevismo proletário” . O melhor teórico desses con­
selhos operários autônom os, cujo estabelecimento é o obje­
tivo essencial da “ Terceira Revolução” e que constituem
modelos organizacionais fundam entalm ente diferentes do
marxismo-leninismo, é sem dúvida A ntón Pannekoek, mem­
bro dirigente da ultra-esquerda germ ano-holandesa após a
Primeira G uerra M undial. Seu mérito excepcional reside no
fato de ter percebido im ediatamente que a fam osa degene­
rescência da revolução, considerada pelos outros teóricos do
marxismo com o um acidente devido à guerra civil, é na reali­
dade um produto próprio da doutrina marxista-leninista. No
folheto intitulado Révolution M ondiale et Tactique Commu-
niste que ele redige por ocasião do II Congresso da III Inter­
nacional, portanto antes da eclosão da revolta de Kronstadt,
ele alerta contra os desvios estatizantes e burocráticos que o
marxismo experimenta em sua variante russa. Ele é sem dúvi­
da o primeiro a provar que o comunismo russo só poderia ser
um antim odelo do verdadeiro socialismo. Ele observa, com
efeito, que na falta de uma Revolução M undial, o atraso da
Rússia torna inevitável a instauração de uma burocracia nas
122 HENRI ARVON

empresas e à frente do Estado. A III Internacional deveria


assim, segundo ele, recusar qualquer “ direção” de Moscou.
Em seguida, A ntón Pannekoek term ina por cortar o
cordão umbilical que ainda liga seu “ conselhismo” ao m ar­
xismo tradicional. Convencido de que a produção m oderna
segrega a auto-organização da produção pelos trabalhadores,
elabora uma doutrina autogestionária coerente e detalhada
em seu livro publicado em M elbourne em 1950 e intitulado
W orkers’ Councils (Os conselhos operários), dando assim ao
socialismo um novo conteúdo. O pondo um Marx autogestio-
nário, autor de A Guerra Civil na França, onde faz o balanço
teórico da experiência da Com una de Paris, a um M arx auto­
ritário, autor do M anifesto do Partido Comunista, cuja dou­
trina historicamente ultrapassada continua a com andar, toda­
via, a ação revolucionária dos leninistas e trotskistas, ele sus­
tenta que somente a autogestão realizada pelos Conselhos
Operários corresponde a um socialismo vivo e autêntico.

“ O sistema social que está em questão aqui” , escreveu Antón


Pannekoek, “ poderia ser chamado pelo nome de comunismo
se esse nome não fosse utilizado na propaganda mundial do
‘Partido Comunista’ para designar seu sistema de socialismo
de Estado sob uma ditadura do partido, com efeito (...) meus
Conselhos Operários são a forma de autogoverno que substi­
tuirá, no futuro, as formas de governo do mundo antigo.”

Os Conselhos Operários têm para A ntón Pannekoek a


vantagem inestimável de proteger o socialismo de toda a escle-
rose organizacional. Surgidos espontaneam ente, eles estão
em melhor posição para assegurar a continuidade socialista
no movimento perpetuam ente mutável da história. Os C on­
selhos Operários, com efeito, não são um a form a qualquer
“ de organização fixa, elaborada em definitivo e na qual res­
tará apenas aperfeiçoar os detalhes, trata-se de um princípio,
o princípio da autogestão operária das empresas e da produ­
ção (...) Conselhos O perários, isso quer dizer luta de classe
(onde a fraternidade tem sua parte), a ação revolucionária
contra o poder de E stado” .
Em resumo, os Conselhos Operários realizam, segundo
Pannekoek, a auto-em ancipação dos trabalhadores clara­
mente form ulada no preâm bulo dos estatutos da Primeira
A REVOLTA DE KRONSTADT 123

Internacional inspirados por indicação da delegação francesa


im pregnada não pelo pensamento de Marx, que ela ignora,
mas pelas idéias proudhonianas. Quando Pannekoek escreve:
“ O pensam ento fundam ental do sistema dos Conselhos resu-
me-se nisto: os produtores devem ser eles mesmos os senhores
dos meios de produção. Se seus espíritos se convencerem,
serão eles mesmos necessariamente que farão isso” , ele se
define como K ronstadt, que resume ao mesmo tem po a aspi­
ração fundam ental, num a categoria que, se pode ser traçada
paralelam ente à do marxismo, está longe de se confundir com
ela.
É essa convergência quase total entre a “ Terceira Revo­
lução” anunciada por K ronstadt e o movimento conselhista
que permite ilum inar a exposição lírica dessa “ Terceira Revo­
lução” , feita pelos kronstadinos, com a reflexão teórica dos
“ conselhistas” . Isso é possível sobretudo com a ajuda de um
texto que deveria servir de plataform a para a ação conselhis­
ta, as Thèses surle Bolchevisme redigidas por Helm ut Wagner
e publicadas em 1934 no International Council Correspon-
dence (vol. I, n? 3).
É conhecida a estreita relação que existe entre a oposição
operária e as teses apresentadas por ela ao X Congresso do
Partido Com unista e a resolução dos marinheiros de Krons­
tadt.
O program a conselhista apresentado sob a form a de
teses fixa a origem do conselhismo em 1920, data em que se
desenvolve no seio do Partido a “ oposição operária” . “ As
divergências de opinião sobre a form a e a composição dos
sovietes russos, afirm a a tese 40, conduziram desde 1920 à
form ação, no P artido, de uma corrente com unista autêntica,
ainda que falível no seu conjunto. A ‘oposição operária’
apoiava-se sobre a vontade de conduzir bem a democracia
soviética no interesse da classe operária... seu program a per­
manece o ponto de partida histórico de um movimento inde­
pendente proletário-com unista contra o regime bolchevique.”
A semelhança entre o czarismo e a ditadura do parti­
do com unista fez parte dos argumentos apresentados pelos
kronstadinos para justificar sua revolta. Assim, no artigo do
Izvestia de K ronstadt de 8 de março, esses dois regimes opres­
sores foram objeto de uma com paração que tende aliás em
favor do czarismo. “ O poder da m onarquia policialesca
124 HENR1ARVON

passa às mãos dos usurpadores — os comunistas — que, em


vez de permitir a liberdade ao povo, reserva-lhe o temor dos
cárceres da TCH EK A , cujos horrores ultrapassam em m uito
os métodos da gendarm ería czarista.”
As Thèses sur le Bolchevisme tom am o mesmo caminho
traçando um paralelo entre dois regimes que parecem, con­
tudo, diam etralm ente opostos; mas, ultrapassando o nível
dos efeitos idênticos, provocados pelo caráter absolutista
dos dois regimes, onde se colocam os kronstadinos, as teses
procuram através de uma análise sociológica chegar à causa
comum. É dessa form a que descobrem um a similaridade per­
feita entre a estratificação social das duas formas de governo
sucessivas. Em ambos os casos, a relação de força apresenta-
se sob a form a de um triângulo de classe, uma classe que dis­
põe do poder de Estado estabelecendo sua ditadura sobre as
outras duas classes que dele não participam.

“ ... o partido da i n t e l lig e n ts ia jacobina” , constata a tese 40,


‘‘tomou o poder apoiando-se nos dois movimentos sociais
que tinham levantado a insurreição de massa, o dos proletá­
rios e o dos camponeses. Para substituir o governo triangular
enfraquecido (czarismo, nobreza e burguesia), ele criou o
triângulo bolchevismo, campesinato, classe operária. E da
mesma forma que o aparelho estatal do czarismo reinava de
maneira autônoma sobre as duas classes possuidoras, o novo
aparelho estaval bolchevique começou por se tornar inde­
pendente das duas classes que o haviam levado ao poder. A
Rússia saiu das condições do absolutismo czarista para cair
naquelas do absolutismo bolchevique.”

As Thèses sur le Bolchevisme inserem assim a “ Terceira


Revolução” , que instintivamente opõe a Com una ao Estado,
na tradição anarquista que rem onta a Bakunin. Por um lado,
Bakunin desconfía do intelectual M arx e de sua corte de inte­
lectuais; ele avalia que a intelligentsia que se aproveita da
ciência só pode estabelecer uma ditadura, urna vez dispondo
do poder. Servidores de uma ciência triunfante, os intelectuais
considerarão os homens que lhes são obedientes “ como a
matéria do desenvolvimento intelectual e social” e os redu­
zirão á simples historia. Eles os tratarão como coelhos dos
quais se arranca a pele sob o pretexto de que essa vivissecção
perm itirá encontrar o caminho de seu futuro, em breve, para
A REVOLTA DE KRONSTADT 125

Bakunin, “ esse será o reino da inteligência científica, o mais


aristocrático, o mais despótico, o mais arrogante e o mais
desdenhoso de todos os regimes” . P o r outro lado, se essa
intelligentsia permanece ligada à noção de Estado é porque,
segundo Bakunin, tem os olhosefixos noa jacobinos, que ela
considera serem os representantes mais puros da Revolução
Francesa, ainda que tenham sido seus coveiros pondo fim à
democracia direta de 1793: “ Examinem a consciência deles” ,
escreveu Bakunin a esse respeito, “ e encontrarão o jacobino,
acuado em algum canto obscuro e bem m oderado, é verdade,
mas não inteiram ente m orto” .
Q uanto a Bakunin, prefere inspirar-se na Com una, que
em vez de remeter a supressão do Estado a uma data inde­
term inada, realiza-a imediatamente. “ Sou um partidário da
Com una de Paris, que por ter sido massacrada com sangue
pelos algozes da reação m onárquica e clerical tornou-se ainda
mais viva, mais poderosa na imaginação e no coração do
proletariado da Europa; sou seu partidário sobretudo porque
ela foi um a negação audaciosa, bastante determ inada, do
E stado.”
O julgam ento feito por Bakunin a respeito do marxis­
mo, considerado como a ideologia de uma intelligentsia deci­
dida a exercer sua ditadura sobre o proletariado, desemboca
sobre as exigências de um a “ Terceira Revolução” form ulada
pelos kronstadinos. A experiência viva de K ronstadt, por sua
vez, conduz à análise da evolução política e social da URSS
tentada por Luciano Pellicani em seu livro publicado em
1973, 1 revoluzionari di professione. O autor constata que “ o
Estado construído pelos bolcheviques deve ser considerado
durante seus primeiros anos de existência como uma tirania
ideocrática, isto é, como um ‘regime de ilegitimidade perm a­
nente’, onde um a elite de intelectuais governa autocratica-
mente em nome de uma doutrina sagrada e reivindica uma
jurisdição total sobre a vida hum ana individual e coletiva
com vistas à sua regeneração. Mas essa “ tirania ideocrática’
tende inexoravelmente para uma ‘teocracia tecnoburocrá-
tica’; Lenin teme essa evolução e exclama com am argura no
fim de sua vida: ‘Nós nos tornam os uma utopia burocrática’ ” .

“ A burocratização integral da vida coletiva” , constata Pelli­


cani, “torna-se a consequência inevitável da construção de
126 HENRI ARVON

uma nova sociedade segundo um único plano obrigatório e


um único centro de decisão. Todas as diretivas devem ser
formuladas no alto e executadas pontualmente pelo aparelho.
O partido, a polícia, o exército, os sindicatos devem executar
e fazer com que sejam executadas as ordens vindas do centro
a fim de evitar a reconstrução da anarquia capitalista. Assim,
no mesmo instante em que ‘o Estado se encarrega de plani­
ficar a totalidade da vida econômica’, ele se transforma em
uma grande máquina tecnoburocrática subtraída a toda for­
ma de controle e sobreposta à sociedade civil como um gigan­
tesco ‘aparelho ortopédico’, segundo a imagem de que se
serviu Ortega.”

As Thèses sur le Bolchevisme retom am enfim o argu­


mento essencial em favor de uma ‘‘Terceira Revolução” e
insistem sobre a incompatibilidade intrínseca entre os sovie­
tes livres e os bolcheviques. Nesse sentido, a experiência de
Kronstadt parece decisiva; ela constitui, com efeito, o rede­
moinho a partir do qual nenhum a dúvida era mais possível
sobre a decisão inabalável dos bolcheviques de erigir e de
manter sua ditadura, mesmo que fosse abandonando o pró­
prio socialismo como o fizeram através da NEP.

“ A partir do momento em que os bolcheviques consideraram


os sovietes como órgãos de insurreição e não mais como órgãos
de governo autônomos da classe operária” , afirma a tese 33,
“ tornou-se cada vez mais evidente que para eles os sovietes
eram apenas um instrumento que permitira a seu partido
apossar-se do poder. Isso foi demonstrado na prática, não
somente por sua organização do Estado soviético após a con­
quista do poder, mas também no caso particular da repressão
sangrenta da insurreição de Kronstadt. Ao final dessa insur­
reição, as reivindicações de caráter capitalista feitas pelos
camponeses deveriam ser satisfeitas pela NEP, enquanto as
reivindicações democráticas do proletariado foram abafadas
com o sangue.”

A partir daí impõem-se um a conclusão: pelo fato de


K ronstadt ter colocado em primeiro lugar os sovietes autô­
nomos, cuja organização resulta da espontaneidade criativa
do povo, os marinheiros demarcaram-se nitidam ente da tra­
dição bolchevique; sua revolta ultrapassou os limites de uma
simples “ oposição operária” e desembocou na rejeição total
A REVOLTA DE KRONSTADT 127

do sistema bolchevique. A necessidade de um a “ Terceira


Revolução” resultava do caráter intrínsecamente opressivo
do bolchevismo. A última das Théses sur le Bolchevisme, que
sublinha o fosso que separa a prática bolchevique de urna
atividade auténticam ente revolucionária, fornece assim a
justificação mais pertinente e mais fundada da revolta de
Kronstadt.

“ O bolchevismo” , afirma a última tese, “ é não apenas inca­


paz de dirigir a política revolucionária do proletariado inter­
nacional, mas também é para ela um dos mais intransponíveis
e um dos mais perigosos obstáculos. A luta contra a ideologia
bolchevique, contra a prática bolchevique, e por isso mesmo
contra todos os grupos que procuram consolidar novamente
essa ideologia e essa prática no seio do proletariado, é uma
das primeiras tarefas da luta por uma reorientação revolu­
cionária da classe operária. Uma política proletária só pode se
desenvolver no interior da classe operária, com os métodos e
formas de organização que lhe são próprios.”

Ligada cada vez mais ao conselhismo, do qual constitui


a ilustração mais eloqüente no que concerne a sua atitude
em relação ao bolchevismo, a revolta de K ronstadt parti­
cipa estreitamente de sua atualidade mais ou menos ampla.
Quando o conselhismo, enquanto modo politico e social orga­
nizacional, é adotado pelo movimento antiautoritário que
atravessa os anos 60, Kronstadt é imediatamente trazida à
frente da cena. É o caso sobretudo da Alemanha, onde os
estudantes de esquerda reunidos na SDS (Federação dos Estu­
dantes Socialistas Alemães) misturam num a condenação
comum o capitalismo, em que a guerra do Vietnã revela cruel­
mente o neocolonialismo explorador, e o estalinismo, cujas
revelações feitas no XX Congresso do Partido Comunista
sobre os crimes de Stalin dem onstraram a degenerescência
burocrática. Os antiautoritários que rejeitam o establishment,
isto é, todas as estruturas do Estado burguês, em particular
seu regime parlam entar, e a disciplina cega do partido comu­
nista, reconhecem-se na luta que a “ Terceira Revolução”
empenha nos dois fronts, recusando simultaneamente “ a
Constituinte com seu regime burguês e a ditadura do partido
comunista com sua TCHEKA e seu capitalismo de E stado” .
“ A Oposição extra-parlam entar” praticada então pelos
128 HENRIARVON

antiautoritários é situada nessa perspectiva por Dutschke,


quando ele declara em um artigo publicado pela revista Spie-
gel em 1967: “ Q uando dizemos extraparlam entar, isso quer
dizer que nosso objetivo é um sistema de democracia direta,
isto é, um sistema de democracia dos conselhos que permita
aos homens votarem diretamente a favor ou contra seus repre­
sentantes provisórios segundo um a consciência crítica ao con­
trário de qualquer form a de dominação. Então a dominação
do homem pelo homem será reduzida o máximo possível” .
A interpretação de K ronstadt feita pelos antiautoritários
alemães choca-se, todavia, com o fato de que estes últimos
pretendem conduzir sua ação revolucionária no interior do
marxismo, previamente desembaraçado, é verdade, de suas
excrescências burocráticas e centralizadoras. É por isso que
Kronstadt parece a eles menos m ostrar o caminho sobre o
qual convém engajar-se do que tornar manifesto o problema
quase insolúvel da passagem da fé revolucionária à instau­
ração do regime socialista.
É esse em baraço que H. M. Enzensberger sublinha em
seu artigo publicado em 1967 no Kursbuch e intitulado Krons­
tadt 1921 e a Terceira R evolução: “ A ação dos kronstadinos
exprime pela prim eira vez na história a contradição entre os
interesses da Revolução vitoriosa e os interesses do partido-
Estado com unista. Essa contradição não foi resolvida desde
então; é por isso que esse problema, com que se defrontaram
os insurrectos de um lado e Lenin e Trotsky de outro, é um
problem a do fu tu ro ” .
A solução que os antiautoritários alemães acreditam ter
encontrado é m ostrada com ostentação num imenso estan­
darte que dom ina o palanque quando do congresso organi­
zado em Berlin em maio de 1971 para celebrar o cinqüentená-
rio da revolta de K ronstadt; três nomes se sucedem e a im por­
tância que se deseja atribuir-lhes em relação a K ronstadt é
expressa por simples sinais de pontuação. Lenin é questio­
nado e desqualificado por um ponto de interrogação; Marx,
dotado de um único ponto de exclamação, se participa do
carisma de K ronstadt encontra-se, contudo, desvalorizado
em relação a Bakunin, que tem direito a três pontos de excla­
mação (Lenin? Marx! Bakunin!!!).
O marxismo uma vez desembaraçado do leninismo, ao
qual parece ligado indevidamente, os antiautoritários esfor­
A REVOLTA DE KRONSTADT 129

çam-se por orientar o pensamento de Marx, situado a meio


caminho da consciência que, representada pelo Partido, exer­
ce sua ação de cima para baixo, e da espontaneidade que,
representada pelas massas, impulsiona a revolução de baixo
para cima, na direção do anarquism o de Bakunin, cujas exi­
gências autogerenciais e federalistas correspondem aos obje­
tivos perseguidos pela “ Terceira Revolução” .
Até agora essa foi a reencarnação mais recente do ideal
dos insurrectos de Kronstadt; outras surgirão, sem dúvida, na
medida mesmo em que o marxismo, que entre os antiautori­
tários alemães ainda é associado à experiência de Kronstadt,
acabará por aparecer como o M oloch, reclamando sacrifícios
hum anos em nome do Estado e do Partido, e que os kronsta-
dinos tentaram em vão derrubar. O term o “ Terceira Revolu­
ção” , carregado por uma dinâmica tanto mais eficaz e móvel
por não ser em botada por qualquer conteúdo fixo, tende
necessariamente a uma concepção nova do processo revolu­
cionário. O posta simultaneamente à revolução burguesa e à
revolução proletária, a “ Terceira Revolução” não pode con­
tentar-se com um a obra simplesmente reform adora, com
uma luta contra os desvios que desfiguram a revolução que a
precede; é preciso ir além da liberdade política, apanágio da
revolução burguesa, e da liberdade social, objetivo da revo­
lução proletária, para uma liberdade completamente nova,
cujas dimensões se confundem com a imensa extensão de
todas as aspirações humanas. É por ter “ lançado a pedra fun­
dam ental” que K ronstadt pertence menos a um passado que
reduz a revolta a um episódio, em suma, secundário do difícil
nascimento da União Soviética, que a um futuro comum da
humanidade.
I

Cronologia*
os anos 1917-1921
1917

9-27fev. (22 fev.-12 mar.) Greves insurrecionais. Nascimento dos Sovietes


de Petrogrado e de Moscou, dirigidos pelos mencheviques e socia­
listas revolucionários.
3 de março (16 de março) Abdicação do czar. Primeiro governo provisório.
3 de abril (16 de abril) Retorno de Lenin.
24 de abril (7 de maio) VII Conferência bolchevique. Lenin faz com que
sejam adotadas as “ Teses de Abril” .
3 de junho (16 de junho). Primeiro Congresso Pan-russo dos Sovietes.
18 de junho (1? de julho) Início da ofensiva dos exércitos russos, que se
traduz por um fracasso.
3 de julho (16 de julho) Manifestação com a participação do Partido bol­
chevique reclamando o “ poder aos sovietes” . Repressão sangrenta.
7 de julho (20 de julho) Mandado de prisão contra Lenin.
26 de julho-3 de agosto (8-16 de agosto) VI Congresso do Partido bolche­
vique: preparação da insurreição armada.
25 de agosto (7 de setembro) Tentativa contra-revolucionária do general
Kornilov.
31 de agosto (13 de setembro) O Soviete de Petrogrado passa para os bol­
cheviques.
5 de setembro (18 de setembro) O Soviete de Moscou junta-se aos bolche­
viques.
7 de outubro (20 out.) Chegada ilegal de Lenin em Petrogrado.
10 de outubro (23 out.) O Comitê Central do Partido adota a resolução de
Lenin sobre a insurreição.

* A data entre parênteses corresponde ao calendário ocidental, 13 dias à


frente. A outra data corresponde ao calendário antigo, que é mantido na
Rússia até 1918.
A REVOLTA DE KRONSTADT 131

outubro Criação de um Comitê Militar Revolucionário junto ao Soviete


de Petrogrado, que se transforma no estado-maior da insurreição.
24 de outubro (6 nov.) Início da insurreição de outubro.
25 de outubro (7 nov.) Abertura do II Congresso Pan-russo dos Sovietes.
26 de outubro (8 nov.) Derrubada do governo Kerensky. Formação de um
governo puramente bolchevique. Decretos sobre a paz e a terra.
2 de novembro (15 nov.) Declaração dos “ direitos dos povos da Rússia”
(seu livre desenvolvimento e sua completa igualdade de direitos são
reconhecidos pela lei).
12 de novembro (25 nov.) Eleições para a Constituinte.
17 de novembro (30 nov.) Onze comissários bolcheviques opostos à dita­
dura de um só partido afastam-se do governo.
novembro (Quatro socialistas-revolucionários de esquerda entram para o
governo.
3 de dezembro (16 dez.) Abertura das conversações de paz com a Alemanha.

1918

6 de janeiro Dissolução da Constituinte.


23 de fevereiro Nascimento do Exército Vermelho. Assinatura do Tratado
de Brest-Litovsk com a Alemanha.
6 de março Abertura do VII Congresso do Partido: o partido bolchevique
passa a chamar-se partido comunista.
abril Os partidos antibolcheviques são expulsos dos sovietes.
maio Início da guerra civil. Nacionalização de todas as fábricas.
junho Confisco das colheitas — instauração do comunismo integral, cha­
mado “ comunismo de guerra” .
11 de junho Decreto instituindo os comitês dos camponeses pobres.
4 de julho Abertura do V Congresso Pan-russo dos Sovietes.
6 de julho Os socialistas-revolucionários de esquerda revoltam-se e são
esmagados pelos bolcheviques. Desaparecimento dos sovietes livres.
10 de julho Adoção pelo V Congresso dos Sovietes da Constituição da
República Soviética Federativa Russa.

1919

2 de março Primeiro Congresso da Internacional Comunista.


18 de março VII Congresso do Partido Comunista: “ a oposição militar”
contra a disciplina de ferro que Trotsky impõe ao Exército Vermelho.
abril-dezembro Bloqueio exterior e guerra civil em todas as frentes.

1920

fim de março IX Congresso do Partido Comunista: o “ centralismo demo­


crático” pronuncia-se contra a direção única e pelo “ colegiado” .
abril Retomada da guerra civil. Guerra Polônia-Rússia.
132 HENRIARVON

julho Segundo Congresso da Internacional Comunista.


agosto Derrota do Exército Vermelho diante de Varsóvia.
12 de outubro Armistício com a Polônia.
novembro Os bolcheviques põem fim aos sovietes livres da Ucrânia.
dezembro Fim das guerras civis e estrangeiras. VIII Congresso Pan-russo
dos Sovietes.

1921

24 de fevereiro As greves eclodem em Petrogrado.


28 de fevereiro Adoção de uma resolução de quinze pontos pelos mari­
nheiros do Petropavlosk.
I? de março Reunião dos marinheiros de Kronstadt na Praça da Âncora
com a presença de Kalinin.
2 de março Conferência destinada a preparar a eleição de um novo Soviete
de Kronstadt. Constituição de um Comitê Revolucionário Provi­
sório.
3 de março Publicação até 16 de março do Izvestia de Kronstadt.
7 de março Primeiro assalto militar contra Kronstadt.
8 de março Abertura do X Congresso do Partido Comunista em Moscou.
15 de março Votação da NEP pelo X Congresso do Partido Comunista.
17 de março Novo assalto militar contra Kronstadt.
18 de março Tomada de Kronstadt pelo Exército Vermelho.
Bibliografía______________
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der russischen Arbeiter und Bauern. Die Kommune von Kronstadt.”
(As ações revolucionárias dos trabalhadores e camponeses russos. A
Comuna de Kronstadt.) Berlim, 1974 (notas da conferencia organi­
zada em Berlim em março de 1971 pelo cinqüentenário da revolta de
Kronstadt).
Paul Avrich, La Tragédie de Kronstadt 1921 (A tragedia de Kronstadt
1921), Éditions du Seuil, 1975. Obra de referência que oferece uma
bibliografia exaustiva.
Alexander Berkman, The Kronstadt Rebellion (A rebelião de Kronstadt),
Berlim, 1922.
Antón Ciliga, “ L’Insurrection de Kronstadt et la Destinée de la Révolution
Russe” (“ A insurreição de Kronstadt e o destino da revolução rus­
sa” ) ds. Révolution Prolétarienne, n? 278, 1938.
H. M. Enzensberger, “ Kronstadt 1921 oderdie Dritte Révolution” (“ Krons­
tadt 1921 ou a Terceira Revolução” ), ds. Kursbuch, n? 9, junho
1967.
Emma Goldman, Living my Life (Vivendo minha vida), Nova Iorque,
1934. Trad. franc. Epopée d ’une Anarchiste (Epopéia de uma anar­
quista), Hachette, 1979.
Alexandra Kollontai, The Workers’ Opposition in Rússia (A oposição dos
trabalhadores na Rússia), Chicago, 1921. (Em francês in Socialisme
et Barbarie, n? 35, jan.-mar. 1964.)
Arthur Lehning, “ Anarchisme et Marxisme dans la Révolution Russe”
(Anarquismo e marxismo na revolução russa), Spartacus, n? 41(B),
jun.-jul. 1971.
Ida Mett, La Commune de Kronstadt, Crépuscule Sanglant des Soviets
(A Comuna de Kronstadt, crepúsculo sangrento dos sovietes) Paris,
Cahiers Spartacus, 1948 (1.a ed. 1938).
134 HENRI ARVON

Rocker/Archinov/Valevsky/Yartchuk/Makhno (trad. e prefácio Skirda),


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Víctor Serge, Mémoires d ’un Révolutionnaire (Memórias de um revolucio­
nário) Éditions du Seuil, 1951. “ Once more Kronstadt” (Mais uma
vez Kronstadt), The New International, jul. 1938, pp. 211-212.
“ Reply to Trotsky” (Resposta a Trotsky), The New International,
fev. 1939, pp. 53-54.
Alexandre Skirda, Kronstadt 1921, Prolétariat contre Bolchevisme (Krons­
tadt 1921, proletariado contra bolchevismo), Paris, La Tête de Feuil-
les, 1972.
L. D. Trotsky, La Révolution Trahie (A revolução traída), Paris, Minuit,
1973.
Volin (V. M. Echenbaum), La Révolution Inconnue (1917-1921) (A revo­
lução desconhecida (1917-1921)), Paris, 1948.

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Filosofia e Comportamento
B e n t o P r a d o J r . ( o r g .)
Uma antologia de textos de filósofos e psicólo­
gos que buscam, através de um estudo com parati­
vo do behaviorismo radical e da filosofia da m en­
te, alcançar uma melhor compreensão da psicolo­
gia contemporânea. Um exame crítico do estudo
experimental do comportamento humano.

Discurso da Servidão Voluntária (ELgvtk FiLwfia)


E tie n n e L a B o é tie
Edição bilingüe, que contém artigos de Pierre
Clastres, Claude Lefort e Marilena Chauí. O n ú ­
cleo deste escrito filosófico do séc. XVI está na
questão de, a partir de um certo momento históri­
co, os homens desejarem voluntariamente a servi­
dão. Renunciando à liberdade, o homem perde
sua hum anidade, e passa a desejar a perpetuação
dessa renúncia.

Sobre o Governo da Polônia (EL^ub FiLwfia)


J ea n -J a cq u es R o u ssea u
Um texto clássico do séc. XVIII, mais atual que
nunca. Edição bilingue, com tradução de Luiz
Roberto Salinas Fortes. Comentários de Bento Pra­
do Jr. e do tradutor. Coordenação de Marilena
Chauí.

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