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Kussell

Os Problemas
da Filosofia

lo —
Bertrand Russell (1872-1970) foi um
dos grandes filósofos do século XX,
tendo-se contudo distinguido em ou­
tras áreas, como a história, a matemáti­
ca ou o activismo em favor de diversas
causas. Em 1950 foi galardoado com
o Prêmio Nobel da Literatura.
A produção filosófica de Russell abar­
cou vários campos, desde a filosofia
analítica (de que é geralmente consi­
derado um dos fundadores), à lógica,
passando pela filosofia da linguagem.
Aberta a todas as correntes do pensamento, integra autores modernos
e textos fundamentais que vão da filosofia da linguagem à herme­
nêutica e à epistemologia.
Os Problemas da Filosofia
TÍTULO ORIGINAL
The Problems of Philosophy, Second Edition

© Copyright Oxford University Press 1912, 1980

This translation of The Problems of Philosophy by Bertrand Russell is published by


arrangement ivith Oxford University Press

Esta tradução de The Problems of Philosophy de


Bertrand Russell ê publicada por acordo celebrado com, a Oxford University Press

TRADUÇÃO, INTRODUÇÃO E NOTAS


Desidério Murcho

© Introdução e notas: Desidério Murcho e Edições 70

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FBA

DEPÓSITO LEGAL 275229/08

PAGI NAÇÃO
Pentaedro, Lda.

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Abril de 2019

ISBN: 978-972-44-1452-2

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por EDIÇÕES 70

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à lei dos Direitos de Autor será passível de procedimento judicial.
Os Problemas da Filosofia
Introdução, tradução e notas: Desidério Murcho,
Universidade Federal de Ouro Preto
ÍNDICE

In tro d u ç ã o .......... ........... ........................... ..................................... v ii

P refácio ........................... ............................................................... 65


1. A p arên cia e re a lid a d e ..................... ..................... ................ 69
2. A existência d a m a té ria .......... ........................................ . 79
3. A n atu re za d a m a té ria ........ ................................................ . 89
4. Id e a lism o ................................................................... ............... 99
5. C o n h ecim en to p o r co n tacto e c o n h e c im e n to
p o r d e sc riç ã o .......................... ......................................... . 107
6. Sobre a in d u ção ........... . 119
7. O nosso c o n h e c im e n to d e p rin cíp io s g e ra is.............. 129
8. C om o o c o n h e cim en to a p rio ri é possível...................... 141
, 9. O m u n d o dos u n iv ersais.................................................. 151
10. O nosso c o n h e cim en to dos universais............................. 161
11. S obre o c o n h e c im e n to in tu itiv o .................... 171
12. V erdade e fa lsid a d e ........................ ................................... . 179
13. C o n h ecim en to , e rro e o p in ião p ro v á v e l......................... 191
14. Os lim ites d o c o n h e cim en to filosófico............................ 201
15. O valor d a filosofia.............. ...................... ........................ 213
N o ta bibliográfica ..................... ............................... ................... 221
ín d ice rem issiv o ............... .................. ......................... ................. 223
INTRODUÇÃO

Bertrand Russell (1872-1970) foi um dos filósofos, lógicos


e activistas mais influentes do século XX. Como filósofo, foi
o responsável, juntam ente com G. E. Moore (1873-1958),
pelo abandono do idealism o hegeliano nas ilhas b ri­
tânicas, in troduzindo a cham ada «filosofia analítica».
Como lógico, foi responsável, ju n ta m e n te com Alfred
North Whitehead (1861-1947) e Gottlob Frege (1848-1925),
por desenvolvimentos cruciais na lógica clássica, que tinha
estagnado durante vinte e cinco séculos, dando assim origem
indirectamente a todas as lógicas formais contemporâneas.
E, como activista, teve uma forte influência na vida política,
social e cultural do seu tempo, intervindo em inúmeras acções
cívicas e debates de idéias - o que lhe valeu a interdição de
dar aulas no City College de Nova Iorque e duas sentenças
de prisão, uma das quais aos 89 anos, mas também o prêmio
Nobel da Literatura em 1950.
• Russell publicou cerca de dois mil artigos e mais de setenta
livros, numa prosa geralmente clara e lúcida. Os Problemas da
Filosofia está entre os seus livros mais lidos, e desde que foi
publicado, em 1912, nunca deixou de ser reeditado. Trata-se
de uma lúcida introdução à filosofia, com quatro caracterís-
ficas importantes.
VIII OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Em primeiro lugar, Russell dá ao leitor a experiência do


que é fazer filosofia: enfrentar problemas, avançar teorias
ou teses, fundamentá-las cuidadosamente com argumentos
sólidos e imaginativos, esclarecer conceitos. Ao estudar esta
obra atentamente, aprende-se a filosofar. Russell não se colo­
ca num pedestal, restando ao leitor apenas a tarefa formalista
de interpretar o significado de um texto de sabor arcaico.
Nesta obra, o leitor é constantemente convidado a pensar
por si em alguns dos problemas centrais da filosofia.
Em segundo lugar, Russell mostra que no centro da ac-
tividade filosófica está a crítica: a filosofia, como se diz por
vezes de forma algo pomposa, é «o lugar crítico da razão».
Sem pedantismos, Russell avalia criticamente não apenas os
problemas da filosofia, mas também as idéias defendidas por
filósofos como George Berkeley (1685-1753), Immanuel Kant
(1724-1804) eG eorgW ilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).
Mostra assim que fazer filosofia não é meramente interpretar
e com preender os filósofos. Pelo contrário, é avaliar critica­
mente as suas idéias, e eventualmente procurar refutá-las, se
tivermos boas razões para pensar que são falsas.
: Em terceiro lugar, Russell não se limita a fazer um inventário
algo impessoal dos problemas, teorias e argumentos centrais
da filosofia. Em vez disso, apresenta e defende as suas próprias
idéias sobre diversos aspectos centrais da filosofia, de tal modo
que este livro pode ser lido de duas maneiras diferentes: como
uma introdução activa à filosofia, mas também como uma obra
de autor, relativamente sofisticada. Efectivamente, por detrás
da aparente simplicidade de muitos parágrafos e capítulos
desta obra estão idéias e argumentos sofisticados e substanciais
que são parte integrante do pensamento filosófico de Russell,
desenvolvido noutras obras e artigos de carácter avançado.
Finalmente, em quarto lugar, Russell fornece vários instru­
mentos conceptuais centrais para fazer filosofia. Isto significa
que o leitor pode discordar de todas as teses substanciais
INTRODUÇÃO IX

defendidas por Russell, mas mesmo assim muito ganhar com


o estudo atento deste livro.
Nas secções que se seguem, esclarecem-se algumas idéias
importantes defendidas por Russell ao longo desta obra.
O objectivo é fornecer instrumentos que permitam ao leitor
avaliar melhor por si as idéias de Russell. E preferível começar
por ler o livro do próprio Russell, e só então ler esta breve
introdução a alguns dos seus temas. Nos pontos onde alguns
esclarecimentos poderão ajudar o leitor a com preender
melhor o pensamento de Russell, foram inseridas notas que
remetem para secções específicas desta introdução.

A refutação do cepticismo
Russell começa Os Problemas da Filosofia com a seguinte
pergunta: «Haverá algum conhecimento no mundo que seja
tão certo que nenhum homem razoável possa dele duvidar?»
Ora, René Descartes (1596-1650) começa as suas Meditações
Sobre a Filosofia Primeira (1641) com a seguinte frase:
Notei, há alguns anos já, que, tendo recebido desde a
mais tenra idade tantas coisas falsas por verdadeiras, e sen­
do tão duvidoso tudo o que depois sobre elas fundei, tinha
de deitar abaixo tudo, inteiramente, por uma vez na minha
vida, e começar de novo, desde os primeiros fundamentos,
se quisesse estabelecer algo de seguro e duradoiro nas ciên­
cias,, (Almedina, 1992, p. 105)

Isto poderá fazer pensar que a posição de Russell é car-


tesiana no sentido de defender que temos de encontrar
refutações irrefutáveis do cepticismo. Contudo, esta não é
exactamente a sua posição. Vejamos porquê.
Considere-se o seguinte argumento:
E logicamente possível que nada exista na realidade.
Logo, a realidade não passa de uma ilusão.
X OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Claramente apresentado, o argumento é falacioso. Con­


tudo, parece constitutivo de muitos argumentos cépticos - e
de muitas tentativas de resposta ao cepticismo (J). O caso
mais conhecido é o de Descartes. A sua estratégia consiste
em procurar mostrar que a premissa do céptico é falsa: não
é logicamente possível que nada exista na realidade, pois o
eu que está a duvidar tem de ser uma realidade.
. Outra estratégia que se insere ainda na mesma tradição é
a de Ludwig Wittgenstein (1889-1951). Numa interpretação
comum, o famoso argumento contra a linguagem privada,
aludido nas Investigações Filosóficas (1953), tem por fim de­
monstrar que a premissa do céptico é incoerente porque
pressupõe uma impossibilidade lógica: a existência de uma
linguagem privada (2) .
. Contrariando a tradição cartesiana, Russell começa por
fazer a seguinte declaração:
Num certo sentido, tem de se admitir que nunca pode­
mos provar a existência de outras coisas além de nós mesmos
e das nossas experiências. Nenhum absurdo lógico resulta
da hipótese de que o mundo consiste em mim próprio e nos
:meus pensamentos e sentires e sensações, e que tudo o resto
é mera fantasia, (p. 84)

( 9 Em filosofia usa-se o termo «cepticismo» para referir a tese de


que nenhum conhecimento é possível - quer globalmente, quer num a
determ inada área. Assim, pode-se ser um céptico moral, por exemplo,
mas aceitar que é possível conhecer outro tipo de verdades que não
as morais. Os cientistas chamam «cepticismo» ao que em filosofia se
chama mais apropriadamente «pensamento crítico» - isto é, a atitude
de nada aceitar sem boas razões para isso. [As notas numeradas são
da autoria do tradutor; as de Bertrand Russell são identificadas por
um asterisco - N.E].
(2) Cf. M. S. Lourenço, Espontaneidade da Razão (INCM, 1986) e
Antônio Zilhão, Linguagem da Filosofia eFilosofia da Linguagem (Colibri,
1993).
INTRODUÇÃO XI

Assim, Russell não procura mostrar que a primeira pre­


missa do céptico é falsa - admite que a hipótese céptica não
é logicamente incongruente, ao contrário de Descartes e de
Wittgenstein (que escreve mais de quarenta anos depois da
publicação de Os Problemas da Filosofia) .
A refutação do cepticismo apresentada por Russell tem
dois passos cruciais. O primeiro ataca a plausibilidade da
hipótese céptica - mas não a sua possibilidade lógica. O se­
gundo ataca a validade do argumento céptico. Comecemos
pelo primeiro:
Não há impossibilidade lógica na suposição de que toda
a vida é um sonho, no qual nós próprios criamos todos os
objectos com que nos deparamos. Mas apesar de não ser
logicamente impossível, não há qualquer razão para supor
que é verdadeira; e é, de facto, uma hipótese muito menos
simples, encarada como um meio para dar conta dos factos
da nossa própria vida, do que a hipótese de senso comum
de que há realmente objectos independentes de nós, cuja
acção sobre nós causa as nossas sensações, (pp. 84-85)

Seguidamente, Russell ilustra o seu argum ento com o


exemplo do gato, cujo com portam ento se pode explicar
de modo mais simples admitindo que tem uma existência
independente de nós, e que além disso é um mamífero que
sente fome e se comporta de determinadas maneiras. Tanto
a ilustração como o argumento de Russell podem parecer
frágeis se não tivermos em conta um aspecto fundamental
que Russell não formula explicitamente.
Russell, como John Locke (1632-1704) antes dele, não
encara a hipótese céptica como digna de grande atenção,
° qtie pode parecer surpreendente. Isto acontece porque
nem Russell nem Locke têm uma concepção cartesiana da
refutação do céptico: não procuram uma refutação apodíctica
XII OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

do cepticismo, mas apenas mostrar que, comparativamente,


a hipótese céptica é pura e simplesmente implausível, ainda
que seja logicamente congruente.
Esta posição é particularmente importante porque é argu-
mentável que aceitar apenas provas irrefutáveis, na filosofia
ou seja no que for, é uma via rápida para o cepticismo. A
melhor maneira de resistir ao céptico não é procurar refutá-lo
decisivamente, mas apenas mostrar, como faz Russell, que
a sua posição é pura e simplesmente implausível, quando
comparada com as alternativas.
Contudo, esta estratégia poderá desiludir alguns leitores:
«Como assim», poderá alguém dizer, «então não podemos
sequer provar com certeza apodíctica que a realidade não
é uma ilusão?» Esta reacção é compreensível, mas denuncia
uma incompreensão de um dos aspectos mais importantes
em qualquer discussão do cepticismo. Vejamos porquê.
No final do primeiro capítulo, Russell recapitula o que
se pode já afirmar em função do raciocínio efectuado até
ao momento:
A nossa mesa familiar, que até agora não deu origem
senão aos mais insignificantes pensamentos em nós, tor­
nou-se um problema cheio de possibilidades surpreen­
dentes. O que sabemos dela é que não é o que parece.
Além deste resultado modesto, até agora, temos a mais
completa liberdade de conjectura. Leibniz diz-nos que é
uma comunidade de almas; Berkeley diz-nos que é uma
ideia na mente de Deus; a ciência sóbria, dificilmente me­
nos maravilhosa, diz-nos que é uma vasta colecção de car­
gas eléctricas em movimento violento, (p. 78)

Russell está ciente de que não são apenas os filósofos


que apresentam hipóteses extravagantes sobre a verdadeira
natureza das coisas. Tanto as ciências como a filosofia (e as
INTRODUÇÃO XIII

religiões, acrescente-se) apresentam perspectivas ou teorias


sobre a verdadeira natureza das coisas, que geralmente não
coincidem com a sua aparência.
Compreender este aspecto permite ver que as hipóteses
cépticas do «gênio maligno», de Descartes, ou do «cérebro
num a cuba», de Hilary Putnam (3) (n. 1926), segundo as
quais o m undo poderia ser totalm ente simulado, como
acontece no filme Matrix (1998), são bastante menos radi­
cais do que podem parecer à primeira vista. David Chalmers
(n. 1966) defende precisamente que estas hipóteses são bas­
tante menos radicais do que geralmente se pensa, e que o
que a ciência nos diz sobre a verdadeira natureza da matéria
é pelo menos tão bizarro quanto as hipóteses cépticas (4) .
Assim, o primeiro aspecto importante para compreender
correctamente o argumento de Russell é que a hipótese cép-
tica não apresenta uma perspectiva tão radicalmente céptica
quanto pode parecer à primeira vista. O segundo aspecto
importante do argumento de Russell contra o céptico é um
desenvolvimento do primeiro e depende de uma distinção
conceptual crucial:
Quando se pressupõe o mundo físico, é possível encon­
trar causas físicas para os dados dos sentidos nos sonhos:
uma porta a bater, por exemplo, pode fazer-nos sonhar com
uma batalha naval. Mas apesar de, neste caso, existir uma
causa física para os dados dos sentidos, não há um objecto
físico que corresponda aos dados dos sentidos do mesmo
modo que uma verdadeira batalha naval correspondería,
(p- 84)

. (3) Cf. Razão, Verdade e História (Dom Quixote, 1992).


(4) Cf. «The Matrix and Metaphysics», de Chalmers (whatisthematrix.
warnerbros.com). Um argum ento sem elhante é desenvolvido em
«Matrix, Cepticismo e o Valor da Realidade», no livrò Pensar Outra Vez,
de Desidério Murcho (Quasi, 2006).
XIV OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

A distinção entre causa e correspondência é fundamental


para compreender por que razão a perspectiva céptica não
é tão radical quanto parece. Uma perspectiva radicalmente
céptica diria o seguinte:
1) Nada corresponde aos nossos dados dos sentidos;
2) E nada os causa.

Mas esta perspectiva é tão dificilmente coerente que o


céptico não a adopta. A perspectiva céptica habitualmente
apresentada, nomeadamente pelo próprio Descartes, quando
dá voz ao céptico, é apenas 1, mas não 2 - segundo a hipótese
do gênio maligno, os nossos dados dos sentidos têm uma ori­
gem causai, nomeadamente o gênio maligno. Assim, e como
nota Chalmers explicitamente e Russell implicitamente, esta
hipótese céptica não é muito diferente do que nos diz a ci­
ência: uma mesa é afinal um campo de forças, basicamente
constituído por átomos e vazio, e este campo de forças é a
origem causai dos nossos dados dos sentidos, mas dificilmen­
te lhe «corresponde». Este é o problema do contraste entre
aquilo a que Wilfrid Sellars (1912-1989) chama a «imagem
manifesta» que temos do mundo, que se opõe à «imagem
científica». E este problema é muito mais sério, para Russell
ou Locke, do que as fantasias cépticas.
Em suma, dado que a hipótese céptica não é tão radical
como parece, não sendo muito diferente das hipóteses
científicas, deve ser avaliada em contraste com estas. E
quando fazemos isso, a hipótese céptica surge como pura
e simplesmente menos plausível, em grande parte porque
é com pletam ente arbitrária: é um a m era possibilidade
lógica, a favor da qual não há qualquer boa razão. Este é
o prim eiro passo da refutação de Russell do cepticismo.
Para compreender o segundo passo do argumento é preci­
so compreender primeiro o termo «crença», tal como é usado
INTRODUÇÃO XV

em filosofia. Há uma tendência para usar popularmente o


termo «crença» no sentido particular de «crença religiosa»
ou «fé», mas não é nesse sentido que se usa o termo em filo­
sofia. Por «crença» ou doxa entende-se em filosofia qualquer
representação que fazemos da realidade, seja mais ou menos
elaborada. Uma opinião, por exemplo, é uma crença mais
elaborada, que envolve alguma articulação, nomeadamente
linguística, por parte de quem tem a opinião. Não temos, por
exemplo, a opinião de que a neve é branca, mas podemos ter
a opinião de que um ministro da educação não é competente;
contudo, em ambos os casos se trata de crenças. Uma criança
de dois anos, por exemplo, dificilmente tem opiniões, dado
não ter ainda sofisticação cognitiva para tal; mas tem crenças
bastante fortes sobre vários aspectos do mundo. Assim, todas as
opiniões são crenças, mas nem todas as crenças são opiniões,
e toda a crença religiosa é obviamente uma crença, mas nem
todas as crenças são religiosas. Como Platão (427-347 a.C.)
argumentou no Teeteto, a crença é aparentemente uma con­
dição necessária do conhecimento, mas não suficiente: quem
sabe que a neve é branca crê que a neve é branca, mas uma
pessoa pode evidentemente crer que há vida extraterrestre
inteligente e não saber se há vida inteligente extraterrestre.
Podemos agora com preender o segundo passo do argu­
mento de Russell contra o cepticismo. Este passo é talvez mais
familiar, mas não é menos importante. E tem uma conexão
importante com o primeiro. O primeiro passo mostra que
o céptico recua no momento crucial, ao conceber a sua hi­
pótese radical, para evitar a pura incongruência arbitrária:
° céptico não pode limitar-se a dizer «Talvez tudo seja uma
ilusão» sem ao mesmo tempo dizer, para tornar esta hipótese
plausível, que algo causa em nós tal ilusão tão magicamente
articulada que é o mundo dos sentidos; mas acrescenta que o
que causa em nós a ilusão do m undo dos sentidos não corres­
ponde ao mundo dos sentidos. Deste modo, o céptico procura
XVI OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

não cair numa posição puramente arbitrária. Mas agora temos


de considerar se o céptico pode argum entar congruente­
mente contra todas as nossas crenças. Russell defende que
não, dado que qualquer argumento contra qualquer crença
tem de se apoiar noutra crença qualquer:
E claro que é possível que todas ou qualquer uma das nos­
sas crenças possa estar errada, e consequentemente todas
devem ser adoptadas com pelo menos um ligeiro elemento
de dúvida. Mas não podemos ter razão para rejeitar uma
crença excepto com base noutra crença qualquer, (p. 87)

O fundam ental do argumento de Russell seria retomado


mais tarde por Otto Neurath (1882-1945), que usou a me­
táfora do barco para ilustrar a ideia de que não podemos
rejeitar todas as crenças em bloco: podemos substituir todas
as tábuas de um navio que navega em alto-mar, mas não to­
das ao mesmo tempo. No que respeita às nossas crenças, não
há doca seca: podemos pô-las todas em causa, mas não ao
mesmo tempo - porque para pôr um a qualquer crença em
causa temos de nos apoiar noutra crença qualquer. A ilusão
do cepticismo radical é julgar que pode ter a última palavra,
como lhe chama Thomas Nagel (5) (n. 1937): o céptico ju l­
ga poder argum entar com base em nada que tudo é ilusório.
Em resposta a isto argumenta-se por vezes que o céptico
podería argum entar por redução ao absurdo, mostrando
apenas que cada uma das crenças que nós temos, mas não
ele, conduz a um absurdo. Mas isto é não com preender que
mesmo para argum entar por redução ao absurdo é neces­
sário começar por aceitar a crença de que os argumentos
por redução ao absurdo são válidos. Sem essa crença não
há qualquer razão para aceitar tal argumento.

(5) Cf. A Última Palavra (Gradiva, 1999).


INTRODUÇÃO XVII

Assim, Russell responde ao céptico mostrando duas coisas


cruciais. Primeiro, que a hipótese céptica é apenas uma entre
outras, tendo de ser comparada com as hipóteses rivais - em
vez de tentarmos refutá-la isoladamente e de modo apodíc-
tico, como Descartes. Segundo, que qualquer argumento
a favor da ideia de que todas as nossas crenças são falsas é
necessariamente incongruente, dado que, como todos os
argumentos, também esse argumento tem de partir de uma
crença qualquer.

Conhecimento privado
. Há um aspecto, contudo, em que Russell se inscreve cla­
ramente na tradição cartesiana. Ao considerar a justificação
última das nossas crenças, Russell nunca tem em mente a
actividade pública de justificação de crenças: concebe sempre
o agente cognitivo sozinho perante o mundo, sem ter em
consideração outros agentes cognitivos.
Assim, no capítulo 13 («Conhecimento, Erro e Opinião
Provável»), Russell analisa o que poderá haver de auto-eviden-
te quando um agente tem uma crença perceptiva quálquer.
Por exemplo, tome-se um facto qualquer sobre uma dada
árvore, e duas pessoas que formam uma crença, justificada,
sobre tal facto. Do ponto de vista de Russell, ao procurar o
.que há de auto-evidente nas suas crenças, cada uma dessas
pessoas irá acabar por evocar os seus dados dos sentidos (a sua
visão da árvore, nom eadam ente). Mas os dados dos sentidos,
argumenta Russell, são epistemicamente privados, no sentido
em que os dados dos sentidos de uma pessoa não são os dados
dos sentidos de outra, ainda que possam ser rigorosamente
semelhantes - dado que têm a mesma origem causai e dado
fitie as pessoas têm a mesma estrutura perceptiva e cognitiva.
Logo, com respeito à árvore, cada pessoa tem um facto auto-
-evidente diferente: os seus dados dos sentidos.
XVIII OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

A principal crítica que se pode fazer a esta concepção


do conhecimento defendida por Russell é que não parece
possível obter conhecimento privadamente. A ideia de um
agente cognitivo sozinho, a analisar cuidadosamente os seus
dados dos sentidos e os seus pensamentos para tentar des­
cobrir desse modo as justificações últimas de todas as suas
crenças, parece incompatível com a própria natureza social
do conhecimento: ajustificação de crenças só parece possível
quando cada agente faz a triangulação das suas crenças com
as crenças de outros agentes e com o mundo. Ou seja, parece
necessário pressupor uma actividade pública de justificação
de crenças para que possa existir genuína justificação e logo
genuíno conhecimento. O já aludido argumento contra a
linguagem privada de Wittgenstein é um ataque famoso a
esta perspectiva algo privada do conhecimento. Mas John
Stuart Mill (1806-1873), que era padrinho de Russell, já tinha
defendido que ajustificação última das nossas crenças é uma
actividade pública e não privada:
As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer
outra garantia sobre a qual assentar, senão um convite
permanente ao mundo inteiro para provar que carecem
de fundamento. (John Stuart Mill, Sobre a Liberdade, 1859,
Edições 70, 2006, p. 58)

O problema da indução
No capítulo 6 («Sobre a Indução»), Russell aborda o
problem a clássico da indução, cuja prim eira formulação
influente se deve a David H um e (1711-1776) (6) . Para
com preender adequadam ente o problem a da indução é

(6) Cf. Investigação sobre o Entendimento Humano, 1748 (Edições 70,


1989).
INTRODUÇÃO XIX

necessário com preender primeiro o que é um a dedução.


Uma dedução é um gênero de argum ento ou raciocínio
em que a validade garante a verdade da conclusão, dada a
verdade das premissas. Por outras palavras: se um argumento
ou raciocínio dedutivo for válido, é impossível ter premis­
sas verdadeiras e conclusão falsa. Eis um exemplo de um
argumento dedutivo, de um gênero que Russell usa como
ilustração no capítulo 7:
Premissa 1: Se Russell nasceu em Lisboa, nasceu em
Portugal.
Premissa 2: Russell nasceu em Lisboa.
Conclusão: Logo, Russell nasceu em Portugal.

É fácil ver que é impossível as premissas deste argumento


serem verdadeiras e a conclusão falsa. Isso acontece quando
um argumento dedutivo é válido. Contudo, como é também
fácil ver, a conclusão deste argumento é falsa. Isso acontece
porque a segunda premissa é falsa. Quando temos um argu­
mento dedutivo válido e com premissas verdadeiras, a que se
chama «argumento sólido», a conclusão é garantidamente
verdadeira.
O que há de especial nos argumentos dedutivos é que
sabemos distinguir com impressionante precisão científica
os válidos dos inválidos. Quem inventou o estudo cien­
tífico da validade dedutiva foi Aristóteles (384-322 a.C.)
e chama-se «lógica formal» à disciplina por ele fundada.
O aspecto crucial para distinguir os argumentos dedutivos
válidos dos inválidos é a forma lógica, e é por isso que se
chama «formal» à lógica formal. Por exemplo, Aristóteles
descobriu que qualquer argum ento com a seguinte forma
lógica é válido:
Alguns gregos são filósofos.
Logo, alguns filósofos são gregos.
XX OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Podemos exprimir a forma lógica do argumento deste


modo:
Alguns F são G.
Logo, alguns G são F.

Quaisquer que sejam os termos que usemos nos lugares de


F e G , o argumento que daí resultar será válido (por exem­
plo, «Algumas obras de arte são coisas belas; logo, algumas
coisas belas são obras de arte»). Quando todos os argumentos
que têm uma dada forma lógica são válidos, diz-se que essa
própria forma lógica é válida (apesar de, em rigor, nenhum a
forma lógica poder ser literalmente válida, mas apenas os
argumentos que exemplificam tais form as).
E comum caracterizar-se erradam ente a diferença entre
a dedução e a indução dizendo que nos primeiros se infere
uma conclusão particular de premissas gerais, dando-se o
inverso no caso da indução. Isto é falso. Como se pode ver
no exemplo acima, tanto a premissa como a conclusão são
particulares. E também no caso das induções podemos dar
exemplos de casos em que as premissas são particulares e a
conclusão particular.
Há várias propriedades que distinguem as deduções
das induções (7), mas para com preender o problem a da
indução duas delas são cruciais. A primeira é que a validade
dedutiva garante a verdade das conclusões, desde que as
premissas sejam verdadeiras; e a segunda é que grande
parte da validade dedutiva depende exclusivamente da for­
ma lógica, o que perm ite o seu estudo científico rigoroso.
A indução não tem qualquer destas duas propriedades.
Vejamos porquê.

(7) Cf. O Lugar da Lógica na Filosofia, de Desidério Murcho (Plátano,


2003).
INTRODUÇÃO XXI

Considere-se as seguintes induções:


Todos os corvos que observei até hoje são pretos.
Logo, todos os corvos são pretos.
Todos os corvos que observei até hoje viveram antes de
2100 .
Logo, todos os corvos vivem antes de 2100.

Intuitivamente, a primeira indução poderá ser aceitável


- ou, pelo menos, o princípio de uma indução aceitável. Mas
a segunda é, desde logo, totalmente inaceitável. Contudo,
têm ambas a mesma forma lógica. Além disso, mesmo a mais
válida das induções não garante a verdade da conclusão,
ainda que só tenha premissas verdadeiras: a conclusão pode
revelar-se falsa, em determinadas circunstâncias, ainda que
nem a validade da indução nem a verdade das premissas seja
posta em causa (8) .
Apesar de Hume não dominar a lógica formal, e ser por
isso incapaz de contrastar com precisão a dedução com a
indução, usava um princípio muito comum no seu tempo,
também usado por Gottfried Leibniz (1646-1716). A ideia
algo vaga era que a dedução dependia do «princípio de con-

(8) Alguns autores reservam o term o «validade» para a validade


dedutiva, de m odo que se torna um pleonasm o falar de validade
dedutiva, e um a contradição nos term os falar de validade indutiva.
A questão é m eram ente term inológica, se bem que possa esconder
uma incom preensão da indução. Tais autores usam então term os
como «força» para falar da validade indutiva. Por razões que não
importa esmiuçar, não será aqui usada tal term inologia (Russell
também não a usa). Uma terceira diferença im portante entre a
validade dedutiva e a indutiva, não referida, é que a prim eira é
discreta, ao passo que a segunda é contínua; ou seja, um a dedução
e valida ou inválida, sem graus, ao passo que um a indução pode
ser mais ou m enos válida.
XXII OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

tradição»: negar uma verdade dedutiva daria origem a uma


contradição lógica, o que não aconteceria no caso indutivo.
Algo ingenuamente, a ideia subjacente é a mesma: podemos
saber com certeza que quando uma dedução é válida e as suas
premissas são verdadeiras, a conclusão também é verdadeira,
mas a mesma certeza não é possível no caso da indução (9) .
O que está em causa é a justificação da nossa crença na
indução, e é assim que Russell entende o problema. O que
justifica tal crença? A tentação é responder que o passado
se assemelha ao futuro e que como no passado todas as
nossas m elhores induções funcionaram , continuarão a
funcionar no futuro. Mas esta justificação é circular, pois
pressupõe o que pretende justificar: nom eadam ente que o
passado se assemelha ao futuro. Pior: como refere Russell,
a referência ao passado e ao futuro é enganadora, pois
não é realmente isso que está em causa. Em muitos casos,
queremos fazer induções sobre acontecimentos do passado
(como na arqueologia), e não do futuro. O que está em
causa é saber como certas premissas podem justificar a
crença em certas conclusões quando tais premissas não
implicam dedutivamente essas conclusões. (Quando implicam,
temos todo um aparato científico muitíssimo preciso - a
lógica formal - que justifica, ainda que indirectam ente, a
nossa crença na dedução.)

(9) Em termos precisos, a única m aneira de dar sentido à ideia vaga


de Hume e Leibniz é a seguinte. Tome-se qualquer dedução válida;
transforme-se esta na sua expressão proposicional; a negação de tal
proposição será uma contradição lógica se, e só se, a dedução original
for válida. Contudo, não é possível dar sentido à ideia igualmente
vaga que estes filósofos tinham de que todas as validades dedutivas
resultavam, de algum modo, do princípio de contradição. Esta ideia
é pura e simplesmente falsa: não é possível fazer um sistema dedutivo
que modele um fragmento razoável da dedução válida usando apenas
a chamada «lei da não contradição».
INTRODUÇÃO XXIII

Outra resposta igualmente circular é declarar que a in­


dução se justifica porque a natureza é uniforme. Como o
próprio Hume viu, esta justificação nada justifica porque
pressupõe a uniformidade da natureza, que só podemos
aceitar se aceitarmos a validade do argumento «Até hoje a
natureza revelou-se uniforme; logo, será sempre uniforme».
Mas este argumento não é senão uma indução.
A «solução céptica» de Hume, como ele próprio lhe cha­
ma, é argumentavelmente incoerente. Consiste em declarar
que nenhum a conexão existe entre as premissas e a conclusão
de qualquer indução válida, havendo apenas em nós um hábi­
to natural que consiste em ter expectativas indutivas - depois
de ver que dois acontecimentos de um certo gênero se têm
sucedido até então, concluímos que sempre se sucederão.
Russell tem consciência de que esta expectativa indutiva
existe, mesmo em animais não humanos (p. 122), mas nada
procura retirar daqui de substancial. Hume, ao invés, não
se dá conta de que se não temos qualquer justificação para
aceitar induções, não temos igualmente qualquer justificação
para pensar que temos o hábito de fazer induções perante
repetições de acontecimentos - tudo o que podemos dizer
ê que tivemos esse hábito no passado (10).
A solução que Russell propõe para o problema da indu­
ção não consiste em tentar provar demonstrativamente que
as induções são válidas dedutivamente, como Hume sabe
também não ser possível; mas não cai no extremo oposto de
declarar que nada pode então justificar adequadamente a
indução. Limita-se a defender que o princípio da indução,
formulado em duas alíneas (p. 125), é um daqueles princípios
que não podem ser justificados recorrendo a outros princí-

(10) A incoerência da teoria do hábito de Hume é brevemente


defendida no livro Essencialismo Naturalizado: Aspectos da Metafísica da
Modalidade, de Desidério Murcho (Angelus Novus, 2002).
XXIV OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

pios, mas que são auto-evidentes. São aquilo a que Russell


chama «crenças intuitivas», a que hoje chamamos «crenças
primitivas» ou «não derivadas»: crenças cujajustificação não
depende de outras crenças.
A solução de Russell é antiempirista porque concebe a
crença na indução como outras crenças que obtemos por
meios não empíricos, como a crença nos universais ou nas
leis da lógica. E é anticartesiana porque as crenças intuitivas
podem e devem ser avaliadas criticamente, mas não podem
ser todas abandonadas ao mesmo tempo para serem depois
cuidadosamente reconstruídas a partir de coisa nenhuma.
Assim, a posição de Russell quanto ao problema da indu­
ção está intimamente articulada com a sua posição quanto ao
problema do cepticismo e com a sua concepção de filosofia.
Como veremos, Russell defende algo como um «equilíbrio
reflectido»: usamos umas crenças para avaliar outras, e pro­
curamos manter um sistema de crenças tão plausível quanto
possível, e sem contradições, mas sem almejar a certezas
apodícticas, como Descartes.

A natureza da filosofia
O papel que Russell reserva à filosofia compreende-se
claramente a partir da seguinte passagem:
A filosofia deve mostrar-nos a hierarquia das nossas
crenças instintivas, começando com as mais fortes, e apre­
sentando cada uma tão isolada e sem adições irrelevantes
quanto possível. Deve procurar mostrar que, na forma em
que finalmente se exprimem, as nossas crenças instintivas
não colidem, formando antes um sistema harmonioso.
Nunca pode haver razão para rejeitar uma crença instin­
tiva excepto a circunstância de colidir com outras; assim, se
descobrimos que se harmonizam, todo o sistema se torna
digno de aceitação, (p. 87)
INTRODUÇÃO XXV

A perspectiva aqui apresentada por Russell constitui um


dos traços distintivos da sua filosofia, e que, a par da filosofia
de G. E. Moore (1873-1958), caracterizou o espírito da filoso­
fia analítica britânica, por oposição ao idealismo hegeliano
então prevalecente. Este traço distintivo quase desapareceu
na sequência do positivismo lógico, que almejava à reconstru­
ção teórica sistemática do mundo, à semelhança do idealismo
hegeliano, sem atender ao que Russell chama aqui «cren­
ças instintivas». Só a partir da década de 70 do século XX,
nomeadamente depois de Saul Kripke (n. 1940), se retomou
na filosofia analítica o espírito original que esteve nas suas
origens (ll): a ideia de que não é possível partir de outras
coisas a não ser das nossas «crenças instintivas», como lhe
chamava Russell, ou intuições (12) , como hoje é mais comum
chamar-lhe. Compare-se a passagem acima de Russell com
esta famosa passagem de Kripke:
É claro que alguns filósofos pensam que ter conteúdo
intuitivo é um indício muito inclusivo a favor do que quer
que seja. Pessoalmente, penso que é um indício muito forte
a favor de algo. Na verdade não sei, num certo sentido, que
outro indício conclusivo se pode ter sobre algo, em última
análise. (Naming and Necessity, Blackwell, 1980, p. 42)

Não se trata de defender que se algo parece intuitivamente


verdadeiro, então é verdadeiro. Russell, como se pode ver
logo no primeiro capítulo deste livro, está longe de pensar tal
coisa, e não há razões para pensar que é essa a perspectiva de

(n ) Cf. Soames, Philosophical Analysis in the Twentieth Century


(Princeton University Press, 2005).
(12) Não confundir, contudo, com aquilo a que Russell chama
-crenças intuitivas», que não são necessariam ente o que hoje
chamamos «intuições», mas antes as crenças cuja justificação não se
haseia noutras crenças.
XXVI OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Kripke. Trata-se, antes, de ter uma compreensão mais sofis­


ticada da natureza última da justificação das nossas crenças.
Os traços gerais dessa compreensão são os seguintes.
Todas as nossas crenças são epistemicamente falíveis,
incluindo as crenças científicas mais sofisticadas. Devemos
por isso avaliá-las criticamente com todo o cuidado - e esse
é o papel fundam ental da filosofia, segundo Russell:
A filosofia é apenas a tentativa de responder a questões
últimas [...], não de modo descuidado e dogmático, como
fazemos na vida comum e até nas ciências, mas critica­
mente, depois de explorar tudo o que gera perplexidade
nessas perguntas, e depois de tomar consciência de toda
a vagueza e confusão que subjaz às nossas idéias comuns.
(P * 69)

Contudo, não há outra m aneira de avaliar criticamente


qualquer crença a não ser com base noutras crenças. Não
podemos fingir que temos um acesso privilegiado e infa­
lível à verdade, nem podemos fingir que há um domínio
privilegiado de acesso à verdade - seja ele a ciência ou a
religião. Para abandonar uma «crença instintiva» ou uma
intuição temos de ter boas razões para isso, e entre essas
razões não se conta o simples facto de ser possível articular
um a teoria. Isso não chega porque as teorias são baratas: é
possível fazer várias teorias, mas incompatíveis entre si. Se
perderm os de vista o tribunal da «crença instintiva» ou da
intuição, a teorização torna-se arbitrária. Para o dizer sem
rodeios: se não tivermos os pés bem assentes na terra, a
teorização enlouquece.
Torna-se agora claro até que ponto a concepção de
Russell da filosofia é anticartesiana. Russell não concebe a
filosofia como uma reconstrução total das nossas crenças
fundamentais, partindo de nada. O seu ponto de vista é
INTRODUÇÃO XXVII

mais semelhante ao «equilíbrio reflectido» de John Rawls


(1921-2002): estudamos cada crença cuidadosam ente, com
base nas outras, e vamos reajustando umas e outras com o
objectivo de chegar a um corpo articulado e harmonioso
de crenças.

Filosofia e ciência
Numa carta datada de 20 de Setembro de 1966, dirigida
ao seu editor da Oxford University Press, a propósito da
reedição desta obra, Russell escreveu:

31 A capa mais apropriada para este volume, na minha opi­


nião, seria uma imagem de um símio a cair de um precipício
exclamando «Oh, meu Deus! Quem me dera não ter lido
Einstein!»
ite ;
lão A esta humorística sugestão, infelizmente nunca seguida
ifa- ; por esse ou qualquer editor, acrescentou Russell um P.S.: «De
nio | modo algum deverá o símio parecer-se comigo.» Além de
)\x a : exibir o seu saudável humor, esta carta mostra a importância
rma ; que Russell dava à sua actualização científica: não concebia
íssas a filosofia como um a actividade cognitiva independente
cular i
das outras, nomeadamente da ciência, nem superior a elas.
as: é ■;. A passagem do seu livro que entretanto se provou estar cien­
tificamente errada é a seguinte:
5i.Se |
>u da : Luz, calor e som devem-se todos a movimentos ondula-
; sem ; tórios, que viajam do corpo que os emitem até à pessoa que
rra, a vê a luz ou sente o calor ou ouve o som. O que tem o movi­
mento ondulatório é ou o éter ou a «matéria bruta», mas em
ão de qualquer caso é o que o filósofo chamaria matéria, (p. 64)
:ebe a
renças . O éter é um a dás idéias científicas do século XIX que não
vista é resistiram à passagem do século. Em 1905, sete anos antes
XXVIII OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

da publicação de Os Problemas da Filosofia, Albert Einstein


(1879-1955) publicou o seu famoso artigo «Zur Elektro-
dynamik bewegter Kòrper»(13), no qual apresenta a teoria
da relatividade restrita, que pela prim eira vez pressupõe a
inexistência de éter. Nesse artigo, Einstein refere as experi­
ências de Michelson-Morley de 1887. Estas foram concebidas
para detectar variações na velocidade da luz, que resultariam
das diferenças de velocidade, relativamente ao éter, entre
o emissor e o receptor das ondas electromagnéticas. Con­
tudo, nunca se detectaram tais variações. Einstein constrói
então a sua teoria da relatividade, presum indo que não há
realm ente éter, no sentido de um meio em repouso e com
propriedades mecânicas através do qual as ondas electro­
magnéticas se propagam. Se Jules H enri Poincaré (1854-
-1912) não tivesse relutância em abandonar a existência do
éter, teria podido descobrir a teoria da relatividade antes
de Einstein.
Quando escreveu Os Problemas da Filosofia, Russell pensava
que o éter seria o candidato científico natural à matéria, mas
descobriu depois que isto era falso, tendo inclusivamente
publicado em 1925 o famoso ABC da Relatividade, que ainda
hoje é considerado uma lúcida introdução informal fidedigna
à teoria da relatividade de Einstein. Mas foi talvez um pouco
duro consigo mesmo na carta que escreveu ao seu editor,
pois o próprio Einstein declarava a existência do éter numa
comunicação feita na Universidade de Leida (Holanda) no
dia 5 de Maio de 1920:
S eg u n d o a teo ria geral d a relatividade, o espaço sem
é te r é im pensável; pois em tal espaço n ão só n ão have­
ría p ro p ag ação d a luz, m as tam bém n ão p o d e ría haver
p ad rõ es d e espaço e tem p o [...] Mas n ã o se p o d e p en sa r

(i3) Annalen der Physik, 17.


INTRODUÇÃO XXIX

que este éter é dotado da qualidade característica de um


meio ponderável [...] (The Collected Papers ofAlbert Einstein,
vol. 7, Princeton University Press, 2002)

A tentativa de Einstein de reabilitar a noção de éter não foi,


contudo, aceite pela generalidade dos cientistas, tendo per­
manecido no cemitério das idéias científicas mortas (14).
Em qualquer caso, a substância do ponto de vista filosófico
de Russell permanece: a matéria é seja o que for que a ciência
empírica descubra que subjaz aos fenômenos que captamos
pelos sentidos. Não se trata, pois, de declarar a priori, da ca­
deira reflexiva do filósofo, qual é a natureza última do m un­
do, mas antes de tentar articular uma teoria que satisfaça a
nossa melhor investigação, filosófica ou não, sobre a natureza
última das coisas; o filósofo não trabalha isoladamente nem
tem qualquer prerrogativa especial. Mas também a ciência
não tem qualquer prerrogativa especial.

Contacto
No capítulo 4 («Idealismo»), Russell introduz a famosa
distinção, desenvolvida no capítulo seguinte, entre conheci­
mento por contacto e conhecimento por descrição, que se
tornou entretanto canônica - com alguns ajustes.
O term o original usado por Russell para contacto é
acquaintance. Em português, dizemos que uma pessoa tem
muitos contactos no mesmo sentido em que se diz em inglês
que tem muitos acquaintances. Uma pessoa com a qual temos
contacto não é geralmente um a pessoa íntima - de uma

(14) Sobre as complexas relações de Einstein com o éter, leia-se o


artigo «Einstein’s Ether: F. Why did Einstein Come Bâck to the Ether?»,
de Galina Granek (Apeiron, 8, 2001).
XXX OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

pessoa íntima, em inglês, não se diria he is an acquaintance of


mine, que só se diria de alguém que conhecemos, mas não
intimamente.
Conhecer algo por contacto é estar em contacto cogniti­
vo directo com o que é conhecido. Em contraste, conhecer
algo por descrição é apenas saber que uma determ inada
afirmação sobre algo é verdadeira. Por exemplo, saber que
Paris é uma cidade francesa, sem nunca ter estado em Paris,
é conhecimento por descrição; mas saber que temos uma
dor de dentes ao sentir a dor é conhecimento por contacto.
Esta distinção é hoje canônica.
O que não é canônico é saber que coisas podem ser co­
nhecidas por contacto. Russell defende a tese de que não
conhecemos o mundo exterior por contacto, mas antes os
nossos próprios dados dos sentidos: conhecemos por con­
tacto que estamos a ter uma impressão de vermelho, ou de
um som, ou de uma rugosidade. Russell considera que esses
dados dos sentidos têm origem causai no mundo exterior, mas
defende que só temos contacto com os dados dos sentidos e
não com as coisas que os causam. Este é o aspecto que hoje
em dia muitos filósofos não aceitam, defendendo ao invés
que temos contacto perceptivo directo com uma árvore, por
exemplo, quando estamos a ver uma árvore.
Russell faz um paralelo com a língua francesa e a alemã,
línguas nas quais, como em português, o uso dos termos
equivalentes a «saber» se distingue gramaticalmente do uso
dos termos equivalentes a «conhecer». Dizemos que sabemos
que Paris é uma cidade (conhecimento por descrição), o que
contrasta com a afirmação de que conhecemos Paris (conhe­
cimento por contacto). Como nota Russell, esta distinção
linguística nem sempre coincide com a sua; por exemplo,
sabemos que estamos com frio, mas neste caso trata-se de
conhecimento por contacto e não de conhecimento por
INTRODUÇÃO XXXI

descrição. E apesar de dizermos que conhecemos Paris,


Russell defende que não a conhecemos por contacto - o que
conhecemos por contacto são os dados dos sentidos que têm
origem em Paris, mas não Paris em si.
Além do conhecimento por contacto de dados dos senti­
dos, Russell defende que temos também conhecimento por
contacto de universais: conhecemos a brancura, por exemplo,
por contacto, e não por descrição. E defende que é provável
que conheçamos também o eu por contacto - uma ideia a
favor da qual reconhece não haver razões conclusivas. Ao
defender tal coisa, Russell está a defender a existência de
um eu que tem todos os estados de consciência e dados dos
sentidos, não se confundido com nenhuns deles. Esta tese
de Russell opõe-se à conhecida teoria do feixe, famosamente
defendida por Hume. Segundo esta teoria, o eu é uma ilusão
- nada há senão feixes sucessivos de impressões. Russell apre­
senta alguns argumentos contra a teoria do feixe e a favor
da teoria do eu nu (p. 110), mas não se alonga sobre este
assunto, reconhecendo ser um problema espinhoso.
Russell distingue o conhecimento de verdades, por um
lado, do conhecimento de coisas, por outro. Hoje chama-se
conhecimento proposicional ou saber-que ao conhecimento
de verdades. O conhecimento de verdades é saber que algo
é verdade; saber que o Sol aquece, que Aristóteles era um
filósofo grego, etc. O conhecimento de coisas é conhecer
Paris, ou conhecer Einstein. Russell defende que estes dois
grupos de tipos de conhecimento se entrecruzam. Assim,
defende que há o seguinte:
1) Conhecimento de verdades por descrição: consiste em
saber que algo é verdade, sabendo-o por descrição e
• não por contacto. Por exemplo, podemos saber que é
•' verdade que Paris é a capital de França sem conhecer
Paris por contacto.
XXXII I OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

2) Conhecimento de verdades por contacto: consiste em


saber que algo é verdade, sabendo-o por contacto. Por
exemplo, podemos saber que afirmações como «Estou
a ter uma impressão de vermelho» ou «Dois objectos
idênticos a um terceiro são idênticos entre si» são
verdadeiras. A verdade destas afirmações é conhecida
por contacto, e não por descrição. Além das verdades
sobre dados imediatos dos sentidos e de verdades
básicas da lógica, Russell declara que também as ver­
dades da ética são conhecidas por contacto - mas mais
tarde mudou de idéias quanto a este caso.
3) Conhecimento de coisas por descrição: consiste em
conhecer uma coisa, e não uma verdade, por descri­
ção. Por exemplo, conhecemos Platão por descrição
porque sabemos várias verdades sobre Platão, mas não
o conhecemos por contacto.
4) Conhecimento de coisas por contacto: consiste em
conhecer uma coisa, e não uma verdade, por contac­
to. Por exemplo, todos conhecemos por contacto os
nossos próprios dados dos sentidos.

Russell defende ainda as seguintes teses:


a) Todo o conhecimento de coisas por descrição se fun­
damenta no conhecimento de verdades;
b) Todo o conhecimento, de coisas ou verdades, se fun­
damenta no conhecimento por contacto;
c) O conhecimento de coisas é mais simples do que
qualquer conhecimento de verdades, e logicamente
independente deste.

Destas teses segue-se que todo o conhecimento depende


do conhecimento por contacto. Assim, Russell defende o
que hoje se chama uma teoria epistémica fundacionalista.
Vejamos o que é o fundacionalismo.
INTRODUÇÃO XXXIII

Fundacionalismo
Russell chama «conhecimento por contacto» ao conheci­
mento primitivo ou não inferencial. O conhecimento primi­
tivo é o conhecimento que não obtemos por via inferencial
de outros conhecimentos; o conhecimento inferencial é o
conhecimento que obtemos de outros conhecimentos por
meio de inferências. Uma inferência é um raciocínio.
Um problema epistemológico central é saber que tipos
de conhecimentos são primitivos ou não inferenciais, se é
que há tal coisa. Russell defende que o conhecimento por
contacto é o fundamento de todo o conhecimento. Mas não
é um filósofo empirista, nem racionalista, neste sentido: os
filósofos empiristas, como Hume ou Locke, tendem a consi­
derar que o único conhecimento primitivo genuíno ou subs­
tancial é o conhecimento empírico; ao passo que os filósofos
racionalistas, como Descartes, tendem a considerar que o
único conhecimento primitivo é o conhecimento racional
ou apriori. Contrastando com ambos, Russell defende que o
conhecimento tem duas fontes últimas: a razão e os sentidos,
nenhum dos quais é mais fundamental do que o outro. Esta
posição parece bastante mais plausível do que as alternativas.
Neste aspecto, Russell aproxima-se mais de Kant - mas não
aceita o tipo de idealismo transcendental que transforma o
tempo e o espaço em formas puras da sensibilidade, meras
projeçções dos agentes cognitivos.
Russell é aquilo a que hoje se chama um fundaciona-
lista epistémico. O fundacionalism o epistém ico é um a
teoria filosófica sobre a estrutura da justificação ou do
conhecimento. O fundacionalista defende que todo o co­
nhecimento depende de certos conhecimentos primitivos
que não dependem de outros conhecimentos. Chama-se
hoje «crenças básicas» a tais conhecimentos, mas Russell
chama-lhes «crenças intuitivas». Russell defende explicita­
mente o fundacionalismo epistémico no capítulo 11 («Sobre
XXXIV OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

o Conhecim ento Intuitivo»), mas pressupõe-no no capí­


tulo 5, quando apresenta em porm enor a diferença entre o
conhecimento por contacto e por descrição.
O fundacionalismo epistémico contrasta com o coeren-
tismo epistémico, teoria que sustenta que as nossas crenças
se justificam entre si, não havendo crenças absolutamente
fundamentais e que não tenham qualquer outra justificação:
a ideia é que ajustificação de cada crença é uma rede de ou­
tras crenças. Portanto, se partirmos de uma qualquer crença
nunca chegaremos a uma crença que justifica as outras mas
não é justificada por qualquer outra; o coerentista admite
que isto envolve uma circularidade, mas defende que esta
circularidade não é viciosa. Russell não considera sequer
esta hipótese teórica. Argumenta contra o coerentismo me­
tafísico no capítulo 12 («Verdade e Falsidade»), mas é um
erro confundir o coerentismo metafísico com o coerentismo
epistémico. O coerentismo metafísico é uma teoria sobre a
verdade em si, e não sobre ajustificação ou sobre a estrutu­
ra do conhecimento, como veremos na secção «Teoria da
verdade» (pág. lii).
O fundacionalismo de Russell, contudo, é moderado.
Como vimos, Russell não aceita a ideia cartesiana de procurar
reconstruir de modo apodíctico o edifício do conhecimento
em resposta ao céptico. Isto significa que Russell só aceita em
parte a ideia fundacionalista de que há crenças básicas - aceita
que há tais crenças e aceita que as outras se baseiam nestas,
mas não aceita que as crenças básicas sejam apodícticas nem
insusceptíveis de reforma, crítica ou rejeição.

Teoria das descrições


A noção de conhecimento por descrição de Russell está
intimamente articulada com a sua filosofia da linguagem, na
qual defende a famosa teoria das descrições. Esta teoria foi
INTRODUÇÃO XXXV

apresentada pela primeira vez no artigo «Sobre a Denotação»


(1905) , e foi encarada por muitos filósofos como o exemplo
paradigmático de análise filosófica. Mais im portante, con­
tudo, foi a intensa discussão que gerou alguns anos depois.
Peter Strawson (1919-2006) publicou em 1950 o famoso
artigo «Sobre Referir», no qual procura refutar a teoria das
descrições de Russell. Na filosofia analítica discute-se idéias
crítica e explicitamente, mesmo as que são encaradas como
paradigmas da análise filosófica, e essa é uma das suas marcas
distintivas, desde a sua fundação.
A teoria das descrições de Russell é uma teoria sobre a
l questão de saber qual é a forma lógica de expressões como
r «O mestre de Platão». Considere-se as frases «Sócrates bebeu
a cicuta» e «O mestre de Platão bebeu a cicuta». Ambas falam
n da mesma pessoa. E por isso natural supor que, porque no
Q primeiro caso ocorre um nome, «Sócrates», que tem por fun­
a ção denotar Sócrates, também no segundo caso a expressão
i" «o mestre de Platão» é denotativa, pois refere precisamente
a a mesma pessoa.
Contudo, Russell defendeu que «o mestre de Platão»
3. esconde uma expressão quantificada, como quando dize­
ar mos «alguns homens», não sendo por isso uma expressão
to denotativa, como um nome. Assim, ao passo que, na lógica
m de predicados hoje habitual, que Russell ajudou a fundar,
ita «Sócrates bebeu a cicuta» se formaliza como
as?
1) G a,

sendo ao nome «Sócrates» e Go predicado «bebeu a cicuta»,


Russell defende a seguinte formalização de «O mestre de
Platão bebeu a cicuta»:
2) 3x ( (F x a \ / y (Fy —» y = x ) ) a G x) .
stá
na ■Ou seja: há algo (3 x) que tem a propriedade de ser mestre
foi de Platão (F x ) e só uma coisa tem essa propriedade (se qual­
XXXVI OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

quer y tem a propriedade F, y é x), e essa coisa tem também


a propriedade de ter bebido a cicuta (Gx) . Como é evidente,
1 e 2 são expressões totalmente diferentes. Apesar de ainda
hoje subsistir muita discussão filosófica sobre a verdadeira
forma lógica das descrições definidas, este tipo de forma­
lização tornou-se canônico, ocorrendo em praticam ente
qualquer boa introdução à lógica clássica elementar.
A teoria de Russell perm ite resolver a seguinte perple­
xidade: é ou não verdade que a actual rainha portuguesa é
calva? Dado que não há qualquer rainha portuguesa actual-
mente, hesitamos em dizer que a afirmação é verdadeira
ou falsa. Pois se entenderm os a expressão «A actual rainha
portuguesa» como um nome, a sua negação teria de ser
verdadeira, caso a afirm ação de p artid a fosse falsa, e
vice-versa, pois seria como «Joana é calva» - se esta afirma­
ção for verdadeira, «Joana não é calva» é falsa, e vice-versa.
Ora, nenhum a das duas hipóteses parece plausível. Se
dissermos que é falso que a actual rainha portuguesa é calva,
seguir-se-ia que é verdade que não é calva, o que parece
inaceitável. Mas se dissermos que ê verdade que a actual
rainha portuguesa é calva, apesar de não haver qualquer
rainha, parece arbitrário afirmar tal coisa - afinal, não há
qualquer rainha, calva ou não.
A teoria das descrições permite explicar como pode ser
que tanto a afirmação como a negação de «A actual rainha
portuguesa é calva» é falsa. Segundo a teoria de Russell, esta
afirmação é de facto uma conjunção de três afirmações:
1) Há uma rainha portuguesa actual;
2) Só há uma;
3) Tal pessoa é calva.

Dado que se trata de uma conjunção, a afirmação é falsa


desde que uma das afirmações seja falsa. Dado que não há
qualquer rainha portuguesa actualmente, 1 é falsa, o que
INTRODUÇÃO XXXVII

11 torna toda a afirmação falsa; tanto é falsa quando afirmamos


■-'? que ela é calva como quando afirmamos que não é calva.
[a As descrições definidas, como «A actual rainha po rtu ­
a guesa», distinguem-se das descrições indefinidas, como «Uma
a- rainha portuguesa actual». Russell chama «descrição ambí­
te gua» (p. 112) ao que hoje é mais comummente conhecido por
«descrição indefinida». A ambiguidade a que Russell se refere
e- é o facto de uma expressão como «Um filósofo marcante»
é tanto designar, por exemplo, Aristóteles, como Kant. Não é
li­ claro que se trate de um caso de genuína ambiguidade, pois
ra a ambiguidade ocorre quando uma palavra ou expressão se
ia aplica ou refere diferentes objectos em virtude de tal palavra
er ou expressão ter diferentes significados. A palavra «banco»,
e por exemplo, é ambígua não apenas porque tanto refere
La­ instituições financeiras como bancos dejardim , mas porque
ja. o próprio significado da palavra muda consoante o contexto
Se de uso. Ora, uma descrição indefinida não parece m udar de
'a, significado, mas apenas aplicar-se a diferentes objectos; por
ce isso, não é claro que seja realmente ambígua.
tal As descrições definidas são sempre no singular («o tal e
.er tal») porque no plural («os tais e tais») não referiríam um
há sô particular, mas vários. «Os filósofos gregos nascidos em
Atenas» refere mais de uma pessoa e por isso não é uma
f>er descrição definida; é um a descrição geral. Já a expressão
ha «O filósofo grego nascido em Atenas» é um a descrição
sta definida - mas imprópria, porque há mais de um filósofo
que obedece à descrição.

Teoria dos nomes próprios


A epistemologia de Russell não está apenas cuidadosa­
ilsa mente articulada com a sua teoria das descrições. Está tam­
há bém cuidadosamente articulada com um uso peculiar que
[ue Russell faz da teoria das descrições para fornecer uma teoria
XXXVIII OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

dos nomes próprios. Chama-se «descritivista» à sua teoria


dos nomes próprios, precisamente porque reduz os nomes
próprios a descrições.
O problem a que qualquer teoria dos nomes próprios
procura resolver é muito simples: como podemos nós ser
bem-sucedidos ao falar de uma pessoa como Platão, não
tendo qualquer contacto com ele? Um nome próprio, como
«Platão», refere obviamente Platão. Mas como? O que está
em causa é saber como se dá o processo da referência. E um
pouco como perguntar por que razão caem os objectos; nós
já sabemos que caem, mas por que razão caem? Qual é o
processo que explica a queda dos objectos? De igual modo,
sabemos perfeitamente que o nome próprio «Platão» refere
Platão, mas trata-se de saber como conseguimos usar tal
nome para referir tal pessoa. Este é um problema central da
filosofia da linguagem.
A teoria dos nomes próprios de Russell reinou quase
indisputada até aos anos setenta do século XX. Ainda
hoje há filósofos, como John R. Searle (n. 1932), que a
defendem. Versões diferentes mas análogas da. teoria dos
nomes de Russell foram defendidas por W ittgenstein e
Frege. Russell defende que os nom es próprios, como
«Platão» ou «Lisboa», não são logicamente próprios. Ou
seja, não são genuinam ente nomes próprios. Isto porque
para serem nom es próprios teriam de designar o que
designam directam ente, sem interm ed iário s, digamos
assim; mas não podem designar dessa m aneira porque não
estamos em contacto, no sentido de Russell, com aquilo
que tais nomes designam.
Como vimos, Russell defende que só temos conhecimento
por contacto dos dados dos sentidos, alguns universais e
talvez o eu. Logo, só estas coisas podem ser referidas por
meio de nomes próprios, segundo Russell. Podemos dar
INTRODUÇÃO XXXIX

a nomes aos dados dos sentidos causados pela presença do


s Asdrúbal, mas não ao Asdrúbal em si, porque não estamos
realm ente em contacto com o Asdrúbal. Poucos filósofos
)$ aceitaram esta tese radicalm ente fenom enológica. Mas
ur mesmo que defendamos que quando conhecemos pesso­
1.0 almente o Asdrúbal, por exemplo, estamos realm ente em
1.0 contacto com o Asdrúbal, terem os sem pre o problem a
tá de saber como conseguimos referir coisas, por meio de
m nomes, com as quais nunca estivemos em contacto, como
.ós Platão. De modo que mesmo os filósofos que rejeitaram a
:o tese radicalm ente fenom enológica de Russell aceitaram a
lo, sua teoria dos nomes próprios. Ninguém tinha um a teoria
sre . m elhor para oferecer.
tal A teoria descritivista dos nomes caracteriza-se do seguinte
. da modo: tome-se um nome como «Platão». Este nome refere
Platão. Mas não pode referir directamente Platão, dado que
Lase nenhum de nós tem conhecimento por contacto de Platão
ada - temos meramente conhecimento por descrição. As descri­
le a ções que temos de Platão são coisas deste gênero: o filósofo
dos que escreveu a República, o mestre de Aristóteles, etc. Assim,
in e o nome «Platão» refere com sucesso Platão porque refere
)IB O ■ por via de uma ou mais descrições definidas associadas ao
. Ou nome. E a teoria das descrições diz-nos como as descrições
rque definidas referem o que referem.
que Evidentemente, nos exemplos dados, as duas descrições
unos de Platão incluem outros nomes próprios: «República» e
* não «Aristóteles». Contudo, podemos substituir tais nomes por
quilo outras descrições definidas.
Esta teoria é de uma extraordinária elegância. A teoria dos
aento nomes próprios articula-se intimamente com a teoria das des­
sais e crições definidas, articulando-se ambas com a epistemologia
is por de Russell. Este é o tipo de teorização filosófica muitíssimo
ds dar bem-sucedida e bem articulada que é rara em filosofia.
XL OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

■ Algo como a teoria descritivista dos nomes, num a das


suas múltiplas versões, parecia evidentem ente verdadeira,
e o culm inar da teorização filosófica de sucesso. Contudo,
Kripke (15) usou três tipos de argum entos que hoje muitos
filósofos consideram definitivos contra este gênero de teo­
rias: argumentos semânticos, modais e epistémicos. Vejamos
apenas os argum entos semânticos e modais.
O argumento semântico é o seguinte: se o nome «Platão»
fosse sem anticam ente equivalente à descrição definida
«O autor da República» a afirmação
1) Platão é Platão,

e a afirmação
2) O autor da República é Platão.

seriam semanticamente equivalentes. Mas é óbvio que não são


semanticamente equivalentes, dado que 1 é analítica e 2 não.
Logo, o nome «Platão» não é semanticamente equivalente à
descrição definida em causa.
Contudo, talvez possamos entender a teoria descritivista
dos nomes não como uma teoria semântica tout court, que
defenda que as descrições definidas dão o significado dos
nomes próprios, mas antes como uma teoria da referência
apenas: uma teoria que nos explica unicam ente como fun­
ciona a referência dos nomes próprios. E então que se levanta
o argumento modal.
O argumento modal é o seguinte: se a referência de «Pla­
tão» fosse dada pela referência da descrição «O autor da Repú­
blica», ambas as expressões teriam de ter a mesma referência
em qualquer contexto. Mas não têm a mesma referência em

(15) Cf. Naming and Necessity, op. cit.


INTRODUÇÃO XLI

qualquer contexto, dado que quando afirmamos que Platão


podería não ser o autor da República, «Platão» continua a
referir Platão, mas a descrição definida não refere já Platão,
mas sim outra pessoa qualquer que escreveu a República.
Logo, a referência do nome não é dada pela referência da
descrição.
Kripke oferece um esboço de uma teoria alternativa dos
nomes próprios, que se baseia na ideia de uma cadeia social
causai da referência: alguém nomeia directamente Platão,
por exemplo, e depois esse uso do nome vai-se propagando
entre interlocutores dessa língua, sendo depois traduzido,
etc., até chegar aos nossos usos do nome «Platão».
Russell defende que os únicos nomes genuinam ente
próprios são aqueles que denotam coisas com as quais temos
contacto, mas não explica detidamente por que razão só
podemos nom ear aquilo com o qual temos contacto. Russell
parece ter sido conduzido a esta perspectiva por não conside­
rar detidamente os aspectos sociais da referência, que Kripke
sublinhou. Aceitando que um nome é genuinamente próprio
quando não é introduzido por descrição, podemos mesmo
assim conceber que «Platão» seja um nome genuinamente
próprio apesar de não estarmos em contacto com Platão,
desde que no início da cadeia social da referência alguém
tenha estado em contacto com Platão. Contudo, esta teoria
de Kripke é incompatível com a tese radicalmente fenome-
nológica de Russell, segundo a qual só estamos em contacto
com os nossos próprios dados dos sentidos.

Racionalismo ou empirismo?
' . Costuma-se classificar os filósofos como empiristas ou
racionalistas, com respeito às suas posições sobre o proble­
ma da justificação última do conhecimento, a que por vezes
se chama também, algo enganadoram ente, o problema da
XLII OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

origem do conhecimento. Segundo esta classificação, filó­


sofos como Locke, Berkeley e Hume são encarados como
empiristas, ao passo que filósofos como Descartes e Leibniz
são encarados como racionalistas. Nas histórias da filosofia,
Kant surge por vezes como um filósofo que tentou superar
esta dicotomia, e é verdade que ele próprio se encarava assim,
mas a sua atenção aos aspectos empíricos do conhecimento é
de tal modo tênue que é mais informativo afirmar que Kant
era um filósofo racionalista. Eis como Russell caracteriza o
empirismo e o racionalismo:
Uma das grandes controvérsias históricas em filosofia é
a controvérsia entre as duas escolas respectivamente cha­
madas «empiristas» e «racionalistas». Os empiristas - cujos
melhores representantes são os filósofos britânicos Locke,
Berkeley e Hume - sustentavam que todo o nosso conheci­
mento é derivado da experiência; os racionalistas - que são
representados pelos filósofos continentais do século XVII,
especialmente Descartes e Leibniz - sustentavam que,
além do que conhecemos através da experiência, há certas
«idéias inatas» e «princípios inatos» que conhecemos inde­
pendentemente da experiência, (p. 132)

A caracterização do empirismo apresentada por Russell,


apesar de comum, não é inteiramente correcta. Hume, por
exemplo, aceitava que o nosso conhecimento da geometria
não derivava da experiência, mas sim do pensamento puro.
E mais correcto caracterizar os empiristas como aqueles
filósofos que consideram que todo o conhecimento substan­
cial do mundo extramental deriva da experiência. Hume, por
exemplo, diría que as «relações de idéias», como ele lhes
chamava, nada nos dizem de substancial sobre o mundo
extramental - dizem-nos apenas qual é a estrutura do nosso
pensamento.
INTRODUÇÃO XLIII

Também a caracterização do racionalismo apresentada por


Russell, apesar de comum, é ligeiramente enganadora. Um
empirista, como Hume, pode aceitar que há conhecimento
independente da experiência, nomeadamente conhecimento
sobre «relações de idéias». O que um filósofo empirista não
aceita é a tese racionalista de que tal conhecimento é substan­
cial e diz respeito ao mundo extramental, sendo algo sem o
qual o conhecimento do mundo extramental não é possível.
Russell defende que ajustificação última de todo o conhe­
cimento humano reside no contacto que temos com os nossos
dados dos sentidos, com os universais e com os princípios
da lógica - e talvez com o eu. Neste sentido, Russell não é
um filósofo empirista, pois defende não só que há conheci­
mento não empírico substancial que fundam enta o restante
conhecimento, como defende também a centralidade de tal
conhecimento. Chega mesmo a afirmar que «Todas as frases
completas têm de conter pelo menos uma palavra para um
universal, dado que todos os verbos têm um significado que
é universal.» (p. 112).
Russell defende duas teses racionalistas im portantes.
Primeiro, que as chamadas leis da lógica não são vacüidades
linguísticas nem leis empíricas do pensamento. Segundo,
que há universais (como a brancura) e relações (como a
semelhança), que podemos conhecer e que são indepen­
dentes do nosso conhecimento delas. Contudo, Russell não
é um filósofo racionalista, pois defende também que certos
conhecimentos obtidos pela experiência são igualmente
substanciais e os fundamentos do restante conhecimento.
. Vejamos cada uma destas teses separadamente.

A natureza da lógica
No capítulo 7 («O Nosso Conhecimento de Princípios
Gerais»), Russell dá um exemplo de um princípio geral:
XLIV OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

«Suponha-se que se sabe que se isto é verdadeiro, então


aquilo é verdadeiro. Suponha-se também que se sabe que isto ê
verdadeiro; então, segue-se que aquilo é verdadeiro.» (p. 95)

Ou seja, sendo P e Qsímbolos que representam afirmações:


Se P, então Q;
P;
Logo, Q.

Chama-se modusponens a esta forma argumentativa válida


e é uma das mais básicas e comuns. A seguinte dedução tem
esta forma lógica:
Se tudo está determinado, não podemos ter livre-arbítrio;
Tudo está determinado;
Logo, não podemos ter livre-arbítrio.

H istoricam ente, o modus ponens parece ter sido pela


primeira vez formulado pelos filósofos estóicos, na Grécia
antiga. Não se deve confundir com a falácia da afirmação
da consequente:
Se P, então Q;
Q;
Logo, P.

Esta forma argumentativa é falaciosa porque parece válida,


mas não o é. Por exemplo:
Se Sócrates está em Atenas, está na Grécia;
Sócrates está na Grécia;
Logo, está em Atenas.

O objectivo de Russell é defender que há princípios gerais


que «mostram que podemos ter conhecimento indubitável
INTRODUÇÃO XLV

que não deriva de modo algum dos objectos dos sentidos»


(p. 95) e para isso começa por dar um exemplo de uma
forma argumentativa válida: o modus ponens. Depois parece
afirmar que quando uma condicional é verdadeira («Se isto
é verdadeiro, aquilo é verdadeiro»), a sua antecedente (a
primeira parte até à vírgula) implica a sua consequente (a
segunda parte). Apesar de ser verdade que muitas vezes se
chama «implicação» à condicional, trata-se de dois conceitos
diferentes e geralmente reserva-se a noção de implicação
e de «seguir-se de» para argumentos válidos e não para as
condicionais, que são apenas afirmações (podendo ser ver­
dadeiras ou falsas, mas não válidas ou inválidas). A confusão,
contudo, é comum porque se pode transformar condicionais
em argumentos e vice-versa. Na verdade, quando Russell volta
a enunciar o modus ponens recorre à sua forma preposicional:
Se for verdade que se P, então Q e se for verdade que P, então
é verdade que Q.
Do modo como Russell se exprime nesta passagem, pare­
ce ter em mente um princípio geral que se aplica a todas as
formas argumentativas válidas:
^Por outras palavras, «qualquer coisa implicada por uma
proposição verdadeira é verdadeira», ou «seja o que for que se
segue de uma proposição verdadeira é verdadeiro», (p. 131)

Esta frase deve ser ignorada, pois formula incorrectamente


o modus ponens, dando a falsa impressão de que Russell está a
tentar formular um princípio de implicação que se aplique a
todas as formas argumentativas válidas. «O que se segue de
uma verdade é verdade» não pode ser um princípio dedutivo
geral, pois para o ser teria de justificar os outros princípios,
como o modus ponens, o que não acontece; tal afirmação é
. apenas a definição de «segue-se», que é o modo algo informal
como falamos da relação que existe entre as premissas e a
conclusão de qualquer dedução válida.
XLVI OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

■ Russell enuncia então as chamadas três leis do pensa­


mento, ou três leis lógicas fundamentais: a lei da identidade,
da contradição (ou da não contradição, como é mais comum
chamar-lhe hoje em dia) e do terceiro excluído. Persiste
ainda infelizm ente a ideia errada de que estas três leis
seriam fundamentais, ou pelo menos mais fundamentais
do que o modus ponens, por exemplo. Russell, como um
dos pais da lógica clássica, sabe perfeitam ente que isto é
falso; estes princípios não são mais fundamentais do que o
modus ponens.
Um princípio lógico pode ser fundamental em pelo menos
dois sentidos: no sentido de ser auto-evidente e no sentido de
ser necessário para desenvolver uma teoria lógica com base
neles. Russell defende, correctamente, que estes princípios
não são mais fundamentais que outros, no primeiro sentido.
Mas também não são fundamentais no segundo sentido,
pois a generalidade das teorias lógicas, incluindo a teoria
silogística de Aristóteles, não usa qualquer um deles. O prin­
cípio da contradição e do terceiro excluído são geralmente
teoremas nas teorias lógicas contemporâneas, e não axiomas
(e não podem ser regras de inferência, pois trata-se de ver­
dades lógicas e não de formas argumentativas). Além disso,
é impossível desenvolver uma lógica partindo unicamente
destes três princípios. Só o princípio da identidade tem de ser
usado na lógica de predicados que inclua a identidade, mas
unicamente com tal princípio é impossível desenvolver uma
lógica de predicados (e podemos desenvolver uma lógica de
predicados sem identidade). Em conclusão: estes princípios
não são fundamentais porque não são nem separadamente
necessários para desenvolver uma lógica, nem conjuntamente
suficientes.
' Até aqui, o pensamento de Russell sobre a natureza da
lógica é aceitável para qualquer positivista lógico. Contudo,
a sua perspectiva fortemente realista sobre a natureza da
INTRODUÇÃO XLVII

lógica, defendida no capítulo 8 («Como o Conhecimento


A Priori é Possível»), é inaceitável do ponto de vista do posi­
tivismo lógico:
A crença na lei da contradição é uma crença sobre coisas,
e não sobre pensamentos. Não é, por exemplo, a crença de
que se pensamos que uma certa árvore é uma faia, não pode­
mos ao mesmo tempo pensar que não é uma faia; é a crença
de que se a árvore ê uma faia, não pode ao mesmo tempo
não serxmrà faia. Assim, a lei da contradição é sobre coisas, e
não meramente sobre pensamentos (p. 148).

Este trecho mostra bem quão longe está o pensamento de


Russell do pensamento dos filósofos do positivismo lógico e
de Wittgenstein. Russell é um realista robusto, defendendo
que as verdades lógicas são verdades acerca do mundo, e não
verdades acerca do nosso pensamento. Este tipo de realismo
foi tomado como obviamente falso pela generalidade dos
filósofos até ao final do século XX, aproximadamente. Até
esta altura, imperava uma forma de idealismo linguístico
(dado que um idealismo mais explicitamente mentalista
não era aceitável por outras razões) que se materializava em
dois tipos de teorias: a teoria linguística da necessidade (as
verdades necessárias são artefactos da linguagem) e a teoria
linguística do a priori, que é uma versão da teoria mentalista
do a priori que Russell procura refutar. Conjuntamente, estas
teorias são parte integrante de um a posição fortem ente
idealista, cujo expoente mais explícito é o «a-realismo» de
Nelson Goodman (1906-1998).
Dado que os empiristas defendem que todo o conheci­
mento substancial e primário do mundo é necessariamente
obtido pelos sentidos, estão condenados a seguir uma de duas
vias: ou defendem que a lógica não fornece conhecimento
substancial sobre o m undo, ou que as leis da lógica são
conhecidas a posteriori.
x l v iii OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA í

A primeira via deu origem ao idealismo linguístico dos


positivistas lógicos. Russell não argumenta explicitamente
contra esta posição, pois só mais tarde foi formulada; mas a
sua crítica ao idealismo de Rant (p. 106) aplica-se-lhe perfei-
tamente: a linguagem é um acontecimento do mundo como
outro qualquer, e se o fundamento da lógica fosse a lingua­
gem isso significaria que poderiamos mudar tranquilamente
de lógica como mudamos de linguagem, de modo que dois
mais dois passaria a ser cinco se acaso o decidíssemos. Dado
que isto é absurdo, segue-se que a perspectiva do positivista
lógico é falsa.
A segunda via foi seguida por empiristas radicais como
John Stuart Mill; Russell argumenta contra esta perspectiva
nos capítulos 7 (p. 129) e 8 (p. 141), notando, nomeadamente,
que esta via depende do princípio da indução, mas que este
não pode justificar-se senão a priori - logo, esta perspectiva
baseia-se no a priori para demonstrar que a lógica não é a
priori, o que é incoerente.
Russell defende também que o conhecimento fornecido
pela lógica não é mera repetição do que está «contido nas
premissas»: há conhecimento novo na lógica. O argumento
de Russell (p. 138) é que de «O João está na praia» e
«A Maria está na praia» podemos concluir que duas pessoas
estão na praia, coisa que não sabíamos antes de fazer esta
dedução.
Os resultados sofisticados e importantes da lógica cons­
tituem outros tantos exemplos, não m encionados por
Russell, de conhecimentos novos fornecidos pela dedução.
Por exemplo, quando Russell publicou este livro, em 1912,
ainda ninguém sabia que qualquer sistema de lógica sufi­
cientemente expressivo para poder conter a aritmética é
incompleto - só em 1931 Gõdel demonstrou este resultado.
Presumivelmente, o que faz pensar, porventura erradamente,
INTRODUÇÃO XLIX

que a dedução nunca produz conhecimento novo é o facto


de se ter em mente exclusivamente casos de conhecimento
dedutivo trivial, muito simples, como a soma de dois com
dois. Mas mesmo estes casos simples enfrentam o contra-
-argumento de Russell.

Ser e existir
A concepção fortemente realista de lógica defendida por
Russell é o primeiro aspecto racionalista do seu pensamento,
como vimos. O segundo é a sua concepção dos universais,
que veremos agora.
Os filósofos empiristas tendem a defender posições no-
minalistas com respeito aos universais, uma vez mais por
razões epistémicas. Por «universal» entende-se algo como
a brancura, por exemplo. Intuitivamente, as coisas brancas
parecem ter algo em comum: a brancura, precisamente.
A brancura parece ter de ser algo que está «espalhado»
em vários particulares, pois cada objecto branco parece ter
a mesma brancura, sem que esta possa identificar-se com
qualquer dos objectos brancos. Todavia, tudo o que vemos
sempre que vemos um objecto branco é o objecto branco, e
não a brancura. Por esse motivo, os filósofos empiristas são
obrigados a defender que a brancura, enquanto universal,
não existe, já que não pode ser conhecida pela experiência.
Dado que Russell não aceita a perspectiva empirista de que
todo o conhecimento substancial do mundo extramental
ou extralinguístico tem de ser empírico, não tem qualquer
motivação epistemológica para negar a perspectiva de senso
comum de que há universais.
Assim, no capítulo 9 («O M undo dos U niversais»),
Russell distingue a existência do ser, no sentido em que os
particulares, como Platão e Lisboa, existem (têm localiza­
L OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

ção espácio-temporal) , ao passo que os universais, como a


brancura e a sabedoria, não existem (não têm localização
espácio-temporal) mas são (16).
Russell admite que não podemos provar estritamente que
há universais; mas defende duas idéias. Primeiro, que os ar­
gumentos nominalistas mais comuns contra os universais não
funcionam porque pressupõem os universais que se propõem
eliminar. Segundo, que podemos provar que há relações.
O argumento de Russell contra as explicações nominalistas
dos universais é o seguinte: o nominalista quer negar que
os objectos brancos têm a brancura em comum; dirá então
que nada há de comum entre os diferentes objectos brancos
- cada objecto branco é «branco à sua maneira», digamos
assim, sem que uma única propriedade, a brancura, se repita
em vários objectos. O nominalista dirá então que os diversos
objectos brancos são semelhantes, apenas, mas que nada têm
em comum. O problema, contudo, é que a semelhança é
como um universal - é uma relação. A relação de semelhança
repete-se em cada grupo de objectos semelhantes entre si,
tal como a brancura parece repetir-se em diversos objectos
brancos. Mas se mesmo o nominalista tem de admitir que
há relações, que são em tudo como os universais, então mais
vale aceitar a perspectiva intuitiva de que há universais. Este
argumento de Russell ainda hoje é objecto de discussão e

(16) Esta posição é algo pacífica para quem aceita os universais, mas
não se deve confundir com a teoria polêmica de que há particulares
que não existem, teoria à qual Russell se opõe e que foi defendida
por Alexius Meinong (1853-1920), o famoso aluno de Franz Brentano
(1838-1917). Hoje em dia chama-se a este debate o problem a dos
possibilia: saber se há particulares que não existem, como o filho que
Wittgenstein não teve mas aparentemente podería ter tido. Resultados
fundamentais da lógica modal, as chamadas «fórmulas de Barcan», de
Ruth Barcan Marcus (n, 1921), implicam que não há possibilia, dando
razão a Russell,
INTRODUÇÃO II

ia qualquer teoria nominalista tem de evitar cuidadosamente


ão postular relações, para não cair na incoerência detectada
por RusselL
tue O argumento de Russell a favor das relações baseia-se no
ar- seu realismo robusto. A tentação nominalista é dizer que
lão as relações, tal como os universais, são meras projecções
em linguísticas ou mentais. Mas no caso das relações tal teoria é
5. ainda menos plausível. Pensemos, por exemplo, numa pedra
stas e num buraco numa árvore, havendo aparentem ente a se­
que guinte relação entre eles: a pedra é m enor do que o buraco
itão da árvore. Esta relação, «ser menor», não parece de modo
icos algum uma projecção humana, pois a verdade é que com
iu o s ou sem pessoas no universo que conceptualizem a relação,
:pita a pedra cabe no buraco da árvore porque existe tal relação
TSOS entre a dimensão da pedra e do buraco.
.têm Em conclusão, tanto a concepção de lógica de Russell
iça é quanto a sua ontologia, que inclui universais e relações, é
ança fortemente racionalista e anti-empirista, fortemente realista
re si, e anti-idealista. Nestes aspectos, o contraste com as idéias
ectos centrais defendidas por positivistas lógicos como Carnap ou
r que Ayer não podia ser maior.
•mais
Este.
Factividade
>são e
Russell começa o capítulo 12 («Verdade e Falsidade») ca­
racterizando brevemente o que hoje chamamos a factividade
ás, mas
culares
do conhecimento, por oposição à não factividade da crença.
:endida Apesar de ser trivial que nem todo o nosso pensamento é
entano verdadeiro, todo o nosso conhecimento é trivialmente verda­
ma dos deiro, e é a isto que se chama o carácter factivo do conheci­
iho que mento. Podemos ter pensamentos ou crenças falsas, mas não
mltados
há «conhecimento falso»; há apenas falso conhecimento, no
:an», de
i, dando mesmo sentido em que há dentes falsos: não são realmente
dentes mas sim próteses dentárias.
UI OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Há uma grande diferença entre conhecer e pensar que se


conhece. Uma pessoa pode pensar que tem conhecimento
de que Sócrates não era grego, mas se Sócrates era grego,
então ela não pode realmente saber tal coisa, apenas pode
ter a crença (falsa) de que sabe. Assim, um céptico não é
uma pessoa que afirma o absurdo de que todo o nosso co­
nhecimento é falso, mas antes alguém que afirma que não
temos realmente conhecimento de coisa alguma, apesar de
acreditarmos falsamente que o temos.
O carácter factivo do conhecim ento provoca muitas
confusões desnecessárias, dizendo-se por vezes que no
tempo de Ptolomeu era verdade que a Terra estava imóvel,
ao passo que hoje é verdade que a Terra não está imóvel.
Isto é um a confusão. Acontece apenas que as pessoas, no
tempo de Ptolomeu, pensavam, falsamente, que a Terra
estava imóvel. E hoje, claro, podem os estar enganados
quando pensamos que a Terra não está imóvel. O que não
pode acontecer é a verdade coincidir sempre magicamente
com o que calhamos pensar que é verdade, pois não somos
omniscientes.

Teoria da verdade
No capítulo 12, Russell apresenta a sua teoria metafísica
da verdade, distinguindo-a cuidadosamente de uma teoria
epistemológica da verdade. A distinção é crucial e ainda
hoje provoca confusões. Uma teoria metafísica da verdade
tem por missão dizer-nos o que é a verdade e o que faz as
verdades serem verdadeiras. Uma teoria epistemológica da
verdade tem por missão dizer-nos como podemos distinguir as
verdades das falsidades (o que na antiguidade era conhecido
como «o problema do critério»), e como podemos conhecer
as verdades, se é que as podemos conhecer.
INTRODUÇÃO LI II

A confusão entre estes dois aspectos da investigação da


verdade é grave e pode estar na origem de algumas posições
relativistas, como defende Donald Davidson (1917-2003):
O relativismo quanto à verdade é talvez sempre um sin­
toma de infecção pelo vírus epistemológico; de qualquer
modo, isto parece ser verdade no caso de Quine, Nelson Goo­
dman e Putnam. («Epistemology and Truth», in Subjective,
Intersubjective, Objective, Oxford University Press, 2001, p. 177).

O argumento relativista é, em traços gerais, o seguinte:


como não há um processo garantido de descoberta de verda­
des, um critério de verdade infalível, que nos permita distin­
guir a verdade da falsidade, como estamos sempre sujeitos ao
erro e à ilusão, então a própria verdade é relativa a nós. Esta
posição tem a consequência absurda de transformar qualquer
crença em verdade: é verdade seja o que for em que alguém ou
algum grupo de pessoas acredita que é verdade, pois «verdade»
quer apenas dizer «o que as pessoas acreditam que é verdade».
Mas o argumento é falacioso porque do facto de não haver tal
processo não se segue que a verdade é relativa a nós, segue-se
apenas que as nossas crenças nem sempre acertam na verdade
e, mesmo quando acertam, não temos garantias infalíveis de
que acertaram. O que é apenas outra maneira de afirmar uma
trivialidade que o relativismo não parece poder acomodar: não
somos omniscientes nem cognitivamente perfeitos.
Ciente deste aspecto, Russell defende que qualquer teoria
metafísica da verdade tem de permitir a crença falsa:
A nossa teoria da verdade tem de ser tal que admita o seu
oposto, a falsidade. Muitos filósofos não satisfizeram ade­
quadamente esta condição: construíram teorias de acordo
com as quais todo o nosso pensamento teria de ser verda­
deiro, tendo depois a maior das dificuldades em encontrar
um lugar para a falsidade, (p. 180)
LIV OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

• O utra confusão importante resulta da trivialidade seguin­


te: a verdade e a falsidade, entendidas como propriedades
de afirmações, pensamentos ou crenças, não existiam antes
de haver agentes cognitivos que proferissem afirmações,
tivessem pensamentos ou crenças. A verdade e a falsidade
são, num certo sentido, «humanas» (para usar um antro-
pocentrismo com um ). Mas daqui nada se segue quanto ao
relativismo da verdade, pois o que é relevante para o relati-
vismo da verdade não é a existência das verdades depender
da existência de agentes cognitivos, mas antes o que as faz
ser verdadeiras depender de agentes cognitivos. Ora, o
que faz ser verdadeira a crença de que a água é H 20 , por
exemplo, é a água ser H 20 e não a existência de alguém
que tenha tal crença.
Russell defende que qualquer teoria da verdade tem de
obedecer a três requisitos prévios: permitir a existência de
crenças falsas; aceitar que sem agentes cognitivos que tenham
crenças verdadeiras ou falsas não há verdade nem falsidade;
e aceitar que, apesar do segundo requisito, o que faz uma
crença ser verdadeira, ou falsa, é a realidade extramental:
nada na qualidade interna da crença a faz ser verdadeira
ou falsa.
O terceiro requisito pode parecer incompatível com a
posição defendida por Russell no final do capítulo 11 quanto
à auto-evidência. Nesse capítulo, Russell defende que o grau
de auto-evidência tem uma certa correlação com a verdade,
no sentido de ser um indicador mais ou menos seguro da
verdade. A auto-evidência mais forte, como a que temos
quando estamos perante um dado dos sentidos, ou uma ver­
dade básica da lógica, é insusceptível de erro. Mas isto parece
querer dizer que afinal, contra o terceiro requisito acima,
há realmente algo na qualidade interna das crenças que as
torna verdadeiras - pois a auto-evidência é precisamente uma
qualidade interna das crenças.
INTRODUÇÃO LV

Para responder a esta dificuldade torna-se necessário dis­


tinguir cuidadosamente o que faz uma crença ser verdadeira,
ou falsa, dos sinais de que uma dada crença é verdadeira,
ou falsa. Assim, Russell defende que o que faz uma crença
ser verdadeira, ou falsa, não é qualquer qualidade interna
da própria crença, mas sim a realidade extramental; mas
defende igualmente que as crenças podem ter qualidades
internas, como a auto-evidência, que sejam sinais - mas não
causas - da sua verdade. Do mesmo modo, quando vemos
carros de bombeiros em circulação de emergência, temos um
sinal de que há fogo algures, mas os carros de bombeiros em
circulação de emergência não fazem o fogo.
. Russell defende uma sofisticada teoria da verdade como
correspondência, opondo-se ao coerentismo - com argumen­
tos a que qualquer coerentista tem de responder ainda hoje.
O que caracteriza a teoria da verdade como correspondência,
contudo, não é qualquer das trivialidades acima descritas,
nem a trivialidade seguinte:
A afirmação (ou crença ou pensamento) «A neve é
branca» é verdadeira se, e só se, a neve for branca.

Esta trivialidade semântica é um facto linguístico simples


que qualquer teoria da verdade tem de acomodar. O que
caracteriza a teoria da verdade como correspondência é a
ideia de que esta correspondência trivial entre a linguagem e
o mundo - correspondência que qualquer teoria da verdade
tem de acomodar - pode ser adequadamente expandida de
m°do a explicar exaustivamente o fenômeno da verdade.
E ê isso precisamente que faz Russell, propondo uma teoria
original que ainda hoje é alvo de intensas discussões.
A teoria da verdade de Russell tem duas peculiaridades,
entre outras. Em primeiro lugar, a teoria é esboçada em ter-
mos firmemente não linguísticos: não se trata de procurar
LVI OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

saber o que faz uma frase ser verdadeira, primariamente, mas


antes o que faz uma crença ser verdadeira. Evidentemente,
a crença de que a neve é branca exprime-se em português
através da frase «A neve é branca», mas é significativo que
Russell tenha escolhido dar atenção às crenças, directamente,
pois mostra até que ponto é enganadora a ideia de que houve
uma «viragem linguística» na filosofia do século XX.
Em segundo lugar, a teoria da verdade de Russell articula-
-se intimamente com a sua epistemologia. Um empirista não
pode aceitar a sua teoria da verdade porque esta pressupõe
que há universais e relações independentes dos agentes.
Para co m preender a teoria de Russell é necessário
com preender a noção de n-tuplo ordenado, que mais
não é do que um conjunto ordenado de um certo nú­
mero n de objectos. Em lógica usa-se os símbolos < >, de
modo que <1, 2, 3>, por exemplo, é diferente de <1, 3, 2>.
Isto contrasta com um mero conjunto de três objectos,
{1, 2, 3}, em que a ordem é irrelevante. O caso mais simples
de um n-tuplo ordenado é um par ordenado, quando temos
apenas dois objectos. Quando temos três objectos é um
triplo ordenado. Quando a ordem das relações é relevante
(como no exemplo de Russell, em que é diferente Cássio
amar Desdémona de Desdémona amar Cássio), diz-se que a
relação não é simétrica.
Exemplifiquemos agora a teoria de Russell, pensando num
exemplo: a crença que Kant tinha de que Sócrates era sábio.
Esta crença é uma relação entre Kant e Sócrates e a sabedoria
e a relação de exemplificação. Dizer que Sócrates exemplifica
a sabedoria é dizer que é sábio. A sabedoria é um universal,
Sócrates e Kant são particulares e a crença é uma relação,
tal como a exemplificação. A crença de Kant é verdadeira se,
e só se, o particular Sócrates exemplifica a propriedade de
ser sábio, mas a crença não tem por objecto esta relação de
exemplificação, ou seja, a sabedoria de Sócrates. Isto porque
I

INTRODUÇÃO j LVII

se for falso que Sócrates é sábio, o objecto da crença de Kant


teria de ser um «objecto falso», nomeadamente a inexistente
s sabedoria de Sócrates. A teoria de Russell evita este resultado,
pois o objecto da crença de Kant não é a relação de exem-
plificação entre Sócrates e a sabedoria, mas antes o próprio
e Sócrates e o universal sabedoria e a relação de exemplificação;
para que a crença seja falsa basta que este objecto complexo
i- não esteja unido pela relação de exemplificação. Se Sócrates
o não exemplificar a propriedade da sabedoria, há um desajuste
■e entre a relação de crença e a relação de exemplificação e é
por isso que a crença é falsa: a crença não corresponde ao
.o facto relevante.
is Assim, podemos representar esquematicamente a teoria
íl- de Russell do seguinte modo, usando o exemplo dado:
ie
<Kant, Crença, Sócrates, Exemplificação, Sabedoriax
>.
)S? ;
Este quíntuplo ordenado é uma crença verdadeira quando
es ;
Sócrates é sábio; e é falsa caso Sócrates não seja sábio. Esta
os ;•
teoria não tem de supor a existência de «factos falsos» dado
m ;
que a relação de exemplificação existe (ou subsiste,, para
ite j
usar a terminologia de Russell), mesmo que não ocorra en­
ÚO ;
tre Sócrates e a sabedoria. Assim, a crença de Kant de que
sa i
Sócrates era lisboeta, por exemplo, é falsa sem ser necessário
aceitar o «facto falso» de Sócrates ser lisboeta: tudo o que
im 1
temos de aceitar é a existência de Sócrates, que realmente
»ÍOe ^
existiu, e de Lisboa, que realmente existe, e a relação de
ria :
exemplificação, que também subsiste - acontece apenas que
ica
Sócrates não exemplifica a propriedade de ser lisboeta, mas
sal,
tanto a propriedade em si como a relação de exemplificação
ão,
subsistem.
, se,
Compare-se com a seguinte teoria da correspondência
de
alternativa:
i de
que <Kant, Crença, <Sócrates, Exemplificação, Sabedoriax
INTRODUÇÃO LIX

Conhecimento e justificação
Depois de definir a verdade, Russell procura definir o
conhecimento, no capítulo 13 («Conhecimento, Erro e Opi­
nião Provável»). Russell precisa de definir o conhecimento
como preâmbulo à sua tarefa de responder ao problema
epistemológico de saber como podemos nós conhecer seja
o que for, e como distinguimos nós o conhecimento da sua
mera aparência.
Segundo a definição clássica, o conhecimento é crença
verdadeirajustificada. Esta definição é discutida pela primei­
ra vez no Teeteto, de Platão, e tornou-se comum na filosofia
contemporânea. A ideia é que saber algo é o mesmo que ter
uma crença verdadeira e justificada nesse algo. Por exemplo,
saber que a neve é branca é o mesmo que o seguinte:
1) Ter a crença de que a neve é branca,
2) Haver justificação para tal crença, e
■3) A neve ser realmente branca.

Contudo, como o próprio Platão já havia argumentado,


estas três condições não parecem conjuntamente suficientes
para que algo seja conhecimento, ainda que sejam separa­
damente necessárias. Contemporaneamente, no artigo «E a
Crença Verdadeirajustificada Conhecimento?» (17) (1963),
Edmund Gettier (n. 1927) apresentou exemplos de crenças
verdadeiras justificadas que não são conhecimento. Os casos
apresentados por Gettier têm a mesma estrutura dos contra-
-exemplos apresentados por Russell no início do capítulo 13:
alguém infere uma verdade partindo de uma falsidade, caso
em que não se pode dizer que essa pessoa sabe aquilo que
inferiu. Por exemplo, imagine-se que o Asdrúbal acredita
que Mercúrio é o quarto planeta a contar do Sol. Ele pode

(l7) http://criticanarede.com /htm l/epi_gettier.htm l.


LX OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

então inferir que a primeira letra do quarto planeta a contar


do Sol é M. Esta última crença é verdadeira porque Marte
é o quarto planeta a contar do Sol; mas esta crença não é
conhecimento, dado que parte de uma crença falsa.
Assim, Russell antecipa parcialmente os contra-exemplos
de Gettier. Contudo, não presta atenção à condição dajustifica-
ção porque o seu objectivo é mostrar que a verdade não é uma
condição suficiente para que uma crença seja conhecimento.
Alguns parágrafos depois, Russell argumenta que é implau-
sível afirmar que uma pessoa só sabe realmente algo se inferiu
explicitamente o que sabe a partir de premissas conhecidas.
Por isso, torna a exigência de justificação inferencial menos
restritiva, antecipando o que hoje em dia são as posições
externalistas em epistemologia. Estas posições caracterizam-
-se por admitir que uma pessoa pode saber algo mesmo sem
conseguir justificar a sua crença nesse algo - desde que exista
realmente uma boa justificação para a sua crença. Por exem­
plo, uma criança sabe que há leite no frigorífico porque viu
o pai a pôr o leite no frigorífico, mas é incapaz de justificar
adequadamente a sua crença. O externalismo permite dizer
que a criança sabe que há leite no frigorífico porque há uma
boa justificação para a sua crença, ainda que ela própria não
saiba articulá-la. Ao externalismo opõe-se o internalismo,
que exige que a pessoa saiba justificar adequadamente a sua
crença para que esta seja conhecimento. Apesar de antecipar
o externalismo, Russell defende uma forma moderada de in­
ternalismo, pois defende que para ter uma crençajustificada,
uma pessoa tem de conseguir explicitar, depois de alguma
reflexão, a inferência lógica relevante (neste contexto, a infe­
rência lógica em causa é ajustificação apropriada da crença),
se for instada a justificar-se. Esta posição é moderadamente
internalista porque, não sendo instada a justificar-se, Russell
aceita que a crença da pessoa temjustificação mesmo que ela
não a tenha justificado.
INTRODUÇÃO LXI

ar Neste capítulo, Russell define «opinião provável» de


te tal m odo que não é possível ter um a opinião provável
é falsa, o que parece implausível. Uma pessoa pode ter «azar
epistémico»: estar num a situação em que os melhores dados
os à sua disposição apontam consistentemente para uma dada
:a- conclusão, que todavia é falsa. Por exemplo, ao investigar
na um crime, todas as pistas podem apontar para uma determi-
to. nada pessoa, e o investigador conclui racionalmente que foi
au- provavelmente ela que cometeu o crime. Nesta situação, é
riu natural afirmar que o investigador tem a opinião provável de
[as. [ que tal pessoa cometeu o crime - mas é falso que tal pessoa
ios ■ tenha cometido o crime. O mesmo acontece no desenvol-
ões vimento da ciência: muitas das teorias científicas que mais
im- tarde descobrimos que são falsas eram conclusões razoáveis
,em partindo dos dados então disponíveis aos cientistas. E natural
ista , afirmar que tais teorias eram opiniões prováveis, no sentido
em- de se basearem em bons raciocínios e nos melhores indícios
viu disponíveis na altura - mas eram falsas,
icar
1ZCr Agradecimentos
ima
não . Agradeço a Sérgio R. N. Miranda, da Universidade Federal
;mo, . de Ouro Preto, que se prontificou com entusiasmo a traduzir
i sua o prefácio alemão de Russell. A Kenneth Blackwell e Sheila
:ipar ' Turcon, dos Arquivos de Bertrand Russell da Biblioteca da
Le in- Universidade de McMaster (Canadá), agradeço o envio do
:ada, original alemão.
;uma . A Palmira F. Silva e sobretudo a Carlos Fiolhais agradeço
infe- a ajuda preciosíssima no esclarecimento da relação entre
nça), Einstein, o éter e a experiência de Michelson-Morley.
lente
ussell D esidério M u r c h o
le ela Janeiro de 2008
!i

L
OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA
I
PREFACIO

Nas páginas que se seguem restringi-me principalmente


àqueles problemas da filosofia relativamente aos quais penso
ser possível dizer algo de positivo e construtivo, dado que a
mera crítica negativa parecia inapropriada. Por esta razão, a
teoria do conhecimento ocupa mais espaço do que a meta­
física no presente volume, e alguns tópicos muito discutidos
pelos filósofos são abordados brevemente, quando o são.
Obtive ajuda importante de escritos originais de G. E.
Moore e j. M. Keynes: do primeiro, com respeito às relações
dos dados dos sentidos com os objectos físicos, e do último,
com respeito à probabilidade e à indução. Ganhei também
imenso com as críticas e sugestões do Professor Gilbert Murray.
1912

Nota à décima sétima impressão


. Com respeito a certas afirmações nas páginas 76, 97, 137
e 138, é de assinalar que este livro foi redigido no início de
1912, quando a China era ainda um Império, e o nome do
então anterior primeiro-ministro começava efectivamente
pela letra B.
1943
66 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Prefácio para a tradução alem ã (18)


Este livro foi escrito em 1911; mas desde então as minhas
opiniões sobre alguns dos temas aqui discutidos tiveram um
certo desenvolvimento. Este desenvolvimento decorreu em
grande parte da aplicação de um princípio do qual o meu
amigo Whitehead e eu fizemos uso já nos Principia Mathema-
tica (19). Nesta obra aduzimos razões a favor da opinião de
que certos objectos, como conjuntos e números, são apenas
construções simbólicas e lógicas. Isto é, os símbolos que re­
presentam tais objectos não têm significado em si, existindo
apenas uma prescrição para as suas aplicações: podemos de­
finir o que significa uma afirmação na qual aqueles símbolos
ocorrem, mas neste significado não está contido uma compo­
nente que corresponda a estes símbolos. Fomos então levados
a uma nova aplicação do princípio denominado «navalha de
Occam», segundo o qual não se deve aum entar o núm ero de
entidades sem necessidade. W hitehead convenceu-me que
a «matéria» é um conceito lógico fictício dispensável neste
sentido; isto é, um fragmento de matéria pode ser entendido
como um sistema de eventos ligados entre si em diferentes
partes do contínuo espaço-tempo. Há diferentes modos de
levar isso a cabo, entre os quais é até agora difícil fazer uma
escolha. Uma via foi seguida por Whitehead nos seus Principies

(18) Este prefácio foi escrito para a tradução alemã de Paul Hertz,
publicada em 1926. Se acaso houve um original inglês, perdeu-se.
Tradução do alemão de Sérgio R. N. Miranda.
(19) P ublicada e n tre 1910 e 1913, esta o b ra estabelece os
fundamentos da lógica hoje chamada clássica (lógica proposicional e
lógica de predicados), incluindo um tratamento inovador da teoria de
conjuntos e uma reconstrução puramente lógica da noção de número.
Sendo um a obra de elevado tecnicismo lógico, o seu interesse é no
entanto também filosófico.
PREFÁCIO 67

o f N a tu r a l K now ledge e no seu Concept o f N ature; outra foi


seguida por mim no meu livro O u r K now ledge o f the E x te rn a i
World. Em conform idade com estas exposições, deve-se
modificar o que foi dito sobre a m atéria nos capítulos 2
e 3, em bora não tanto quanto podería parecer.
O mesmo m étodo e o mesmo princípio levaram-me
a mais um a revisão. Ao explicar o conhecim ento em T he
Problems ofP h ilo so p h y, admiti a existência do sujeito e tratei
o contacto como um a relação entre o sujeito e o objecto.
Agora encaro tam bém o sujeito como um a construção
lógica. A consequência é que se deve abrir mão da dife­
rença entre sensações e dados dos sentidos; nesta questão,
concordo então com William James e a escola dos realistas
americanos. As mudanças que daí resultam para m inha
teoria do conhecim ento encontram-se no m eu A n a ly sis
o fM in d .
Q uando T h e P roblem s o f P h ilo so p h y foi escrito, a teoria
da relatividade geral ainda não era conhecida, e eu ainda
não havia considerado suficientem ente a im portância da
teoria da relatividade especial. Eu teria escolhido algumas
expressões diferentem ente, se tivesse então levado em
conta a teoria da relatividade. Mas os problem as tratados
neste livro são em sua m aioria totalm ente in d ep en d en ­
tes desta teoria e não são afectados por ela de m aneira
decisiva.
Se escrevesse o livro agora, estaria muito menos incli­
nado a encarar algumas afirmações éticas como a priori.
Teria podido dizer mais sobre a indução se pudesse ter
utilizado o Treatise on P robability, que posteriorm ente foi
publicado pelo Sr. Keynes.
• Não me pareceu possível acrescentar estas revisões no
texto, pois as opiniões m encionadas acim a dependem
inteiram ente do cálculo lógico e dificilmente podem ser
claram ente apresentadas. Além disso, poderão ser en-
68 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

tendidas mais facilmente como revisões das teorias aqui


apresentadas do que se forem explicadas por si. Portanto,
achei m elhor deixar o livro como o escrevi no ano de 1911,
somente com estas notas introdutórias sobre as investiga­
ções subsequentes, que indicam a sua imperfeição.
Novembro de 1924
Aparência e Realidade

Haverá algum conhecim ento no m undo que seja tão


certo que nenhum hom em razoável possa dele duvidar?
Esta pergunta, que à primeira vista pode não parecer difí­
cil, é na realidade uma das mais difíceis que se pode fazer.
Quando nos dermos conta dos obstáculos que se levantam
a uma resposta fácil e confiante, estaremos já bem lançados
no estudo da filosofia - pois a filosofia é apenas a tentativa
de responder a questões últimas deste gênero, não de modo
descuidado e dogmático, como fazemos na vida comum e
até nas ciências, mas criticamente, depois de explorar tudo
0 que gera perplexidade nessas perguntas, e depois de tomar
consciência de toda a vagueza e confusão que subjaz às nossas
idéias comuns.
Na vida quotidiana pressupomos como certas muitas coisas
cl.ne, num escrutínio mais atento, se revelam tão cheias de
aparentes contradições que só uma grande quantidade de
Pensamento nos permite saber em que podemos realmente
acreditar. Na procura da certeza, é natural começar pelas
bossas- experiências presentes e, num certo sentido, sem
duvida que delas será derivado conhecimento. Mas qualquer
70 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

afirmação sobre o que as nossas experiências imediatas nos


fazem saber está muito provavelmente errada. Parece-me
que estou agora sentado num a cadeira, a uma secretária de
uma certa forma, na qual vejo folhas de papel escritas ou im­
pressas. Mas ao virar a cabeça vejo para lá dajanela edifícios
e nuvens e o Sol. Acredito que o Sol está a cerca de cento e
cinquenta milhões de quilômetros de distância da Terra; que
é um globo quente muito maior que a Terra; que, devido à
rotação da Terra, nasce todas as manhãs e continuará no
futuro a fazê-lo por um período indeterminado de tempo.
Acredito que se qualquer outra pessoa norm al entrar na
minha sala, verá as mesmas cadeiras e secretárias e livros e
papéis que eu vejo, e que a secretária que vejo é a mesma que
a secretária cuja pressão sinto contra o meu braço. Tudo isto
parece tão evidente que nem parece valer a pena afirmá-lo,
excepto para responder a um homem que duvide que eu saiba
alguma coisa. Contudo, de tudo isto se pode razoavelmente
duvidar e tudo exige muita discussão cuidadosa antes de
podermos ter a certeza de que o afirmámos de uma forma
que seja inteiramente verdadeira.
Para tornar evidentes as nossas dificuldades, concentre­
mos a atenção na mesa. Para a visão, é oblonga, castanha e
brilhante, para o tacto, é lisa e fria e dura; quando lhe bato,
emite um som de madeira. Qualquer outra pessoa que veja e
sinta e oiça a mesa concordará com esta descrição, de modo
que poderá parecer que nenhum a dificuldade se irá levantar;
mas assim que tentamos ser mais precisos começam os pro­
blemas. Apesar de eu acreditar que a mesa é «realmente» toda
da mesma cor, as partes que reflectem a luz parecem muito
mais brilhantes que as outras, e algumas partes parecem
brancas por causa da luz reflectida. Sei que, se me deslocar,
as partes que reflectem a luz serão diferentes, de modo que a
distribuição manifesta de cores na mesa irá mudar. Segue-se
que se várias pessoas estão a olhar para a mesa no mesmo
APARÊNCIA E REALIDADE 71

momento, nenhum a vê exactamente a mesma distribuição


de cores, pois nenhum a pode vê-la exactamente do mesmo
ponto de vista, e qualquer mudança de ponto de vista provoca
alguma mudança no modo como a luz é reflectida.
Para a maior parte dos efeitos práticos, estas diferenças
não são importantes, mas para o pintor são de máxima im­
portância: o pintor tem de desaprender o hábito de pensar
que as coisas parecem ter a cor que o senso comum diz que
«realmente» têm, e tem de adquirir o hábito de ver as coisas
como parecem. Temosjá aqui o princípio de uma das distin­
ções que provocam mais problemas em filosofia - a distinção
entre «aparência» e «realidade», entre o que parece que as
coisas são e o que são. O pintor quer saber o que as coisas
parecem, o homem prático e o filósofo querem saber o que
são; mas o desejo do filósofo de saber isto é mais forte do que
o do homem prático, e é mais im portunado pelo conheci­
mento das dificuldades em responder à questão.
Regressemos à mesa. E evidente pelo que descobrimos
que não há qualquer cor que pareça proem inentem ente a
cor da mesa, ou mesmo de uma qualquer parte particular da
mesa - parece ter cores diferentes de diferentes pontos de
vista, e não há qualquer razão para considerar que algumas
são mais realm ente a sua cor do que outras. E sabemos que
mesmo de um dado ponto de vista a cor parecerá diferente à
luz artificial, ou a um daltônico, ou a um homem com óculos
azuis, sendo que às escuras não haverá qualquer cor, apesar
de ao tacto e ao ouvido a mesa se m anter inalterada. Esta
cor não é algo que seja inerente à mesa, sendo antes algo
que depende da mesa e do espectador e do modo como a
luz incide sobre a mesa. Quando, na vida comum, falamos
de a cor da mesa, queremos apenas falar do gênero de cor
que parecerá ter a um espectador norm al de um ponto de
vista comum em condições de luz habituais, Mas as outras
cores que a mesa parece ter noutras condições têm igual
72 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

direito de ser consideradas reais; e portanto, para evitar


favoritismo, somos obrigados a negar que, em si, a mesa
tenha uma cor particular qualquer.
■O mesmo se aplica à textura. A olho nu consegue-se ver
a textura mas, à parte isso, a mesa parece lisa e uniforme. Se
víssemos a mesa por um microscópio, veriamos rugosidade
e montes e vales, e todo o tipo de diferenças, imperceptíveis
a olho nu. Qual destas é a mesa «real»? Temos a tentação
natural de dizer que o que vemos pelo microscópio é mais
real, mas isso por sua vez mudaria com um microscópio ainda
mais poderoso. Mas se não podemos confiar no que vemos a
olho nu, por que razão devemos confiar no que vemos pelo
microscópio? Uma vez mais, pois, nos abandona a confiança
que tínhamos nos nossos sentidos.
A forma da mesa não é melhor. Todos temos o hábito de
fazer juízos sobre a forma «real» das coisas, e fazemos isto
tão irreflectidamente que acabamos por pensar que vemos
efectivamente as formas reais. Mas, de facto, como temos de
aprender se tentarmos desenhar, uma dada coisa parece ter
uma forma diferente de diferentes pontos de vista. Se a nossa
mesa é «realmente» rectangular, parecerá, de quase todos os
pontos de vista, como se tivesse dois ângulos agudos e dois
ângulos obtusos. Se os lados opostos forem paralelos, pare­
cerá que convergem num ponto afastado do espectador; se
forem de comprimento igual, o lado mais próximo parecerá
mais comprido. Não se repara normalmente em todas estas
coisas ao olhar para uma mesa, pois a experiência ensinou-
-nos a construir a forma «real» a partir da forma aparente, e
a forma «real» é o que nos interessa como homens práticos
Mas a forma «real» não é o que vemos; é algo que se infere do
que vemos. E o que vemos muda constantemente de forma à
medida que nos deslocamos na sala; de modo que tam bém
neste caso os sentidos não parecem dar-nos a verdade sobre
a mesa em si, mas apenas sobre a aparência da mesa.
APARÊNCIA E REALIDADE 73

itar Levantam-se dificuldades análogas quando consideramos


esa o sentido do tacto. E verdade que a mesa nos dá sempre uma
sensação de dureza, e sentimos que resiste à pressão. Mas a sen­
ver sação que obtemos depende da força com que pressionamos
. Se a mesa e também da parte do corpo com que a pressionamos;
ade assim, não se pode supor que as várias sensações que resul­
veis tam de diferentes pressões ou de diferentes partes do corpo
tção revelam directamente qualquer propriedade definida da mesa,
nais sendo no máximo sinais de uma propriedade que talvez cause
inda todas as sensações, mas que não é efectivamente manifesta em
los a qualquer delas. E o mesmo acontece ainda mais obviamente
pelo aos sons que se podem extrair batendo na mesa.
ança . Assim, torna-se evidente que a mesa real, se existe, não é
o mesmo de que temos experiência imediata pela visão ou
o de pelo tacto ou pela audição. A mesa real, se existe, não é de
; isto modo algum imediatamente conhecida por nós, tendo antes
ÍIB O S de ser uma inferência do que é imediatamente conhecido.
3S de Assim, levantam-se desde já duas questões muito difíceis;
:e ter nomeadamente:
rossa
1) Haverá de todo em todo uma mesa real?
ios os
2) Se sim, que tipo de objecto poderá ser?
: dois |
pare- 1
Ao considerar estas questões será vantajoso ter alguns ter­
or; se
mos simples cujo significado é definido e claro. Seja dado o
ecerá
nome «dados dos sentidos» às coisas que são imediatamente
. estas
conhecidas pela sensação: coisas como cores, sons, cheiros,
ánou-
dureza, rugosidade, e assim por diante. Daremos o nome
nte, e
«sensação» à experiência de estar imediatamente ciente (20)
iticos.
destas coisas. Assim, sempre que vemos uma cor, temos uma
íre do
•rmaà
sensação da cor, mas a cor em si é um dado dos sentidos e não
tinia sensação. A cor é aquilo do qual estamos imediatamente
nbéfli
sobre
(20) O termo original é aware.
74 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

cientes, e o próprio estar ciente é a sensação. É claro que para


sabermos seja o que for sobre a mesa tem de ser por meio dos
dados dos sentidos - cor castanha, forma oblonga, lisura, etc.
- que associamos à mesa; mas, pelas razões dadas, não pode­
mos dizer que a mesa ê os dados dos sentidos, nem mesmo
que os dados dos sentidos são directamente propriedades da
mesa. Assim, levanta-se um problema quanto à relação entre
os dados dos sentidos e a mesa real, supondo que há tal coisa.
A mesa real, se existe, chamaremos «objecto físico». Assim,
temos de considerar a relação entre os dados dos sentidos e
os objectos. A colecção de todos os objectos físicos chama-se
«matéria». Assim, as duas questões anteriores podem ser
reformuladas do seguinte modo:
1) Será que há matéria?
2) Se há, qual é a sua natureza?

O filósofo que primeiro deu destaque marcado às razões


para considerar que os objectos imediatos dos nossos sentidos
não existem independentem ente de nós foi o bispo Berkeley
(1685-1753). O seu Três Diálogos entre Hilas e Filonous, em
Oposição aos Cépticos e Ateus, dedica-se a provar que a matéria
é coisa que não existe de modo algum, e que o m undo não
é mais do que mentes e as suas idéias. Hilas acreditou até
essa altura na matéria, mas não está à altura de Filonous,
que o conduz implacavelmente a contradições e paradoxos,
tornando a sua própria negação da matéria, no final, como se
fosse quase senso comum. Os argumentos usados são muito
desiguais em valor: alguns são importantes e sólidos, outros
são confusos ou dúbios. Mas Berkeley tem o mérito de ter
mostrado que a existência da matéria pode ser negada sern
absurdo e que se há algumas coisas que existem indepen*
dentem ente de nós, não podem ser os objectos imediatos
das nossas sensações.
APARÊNCIA E REALIDADE 75

Há duas questões diferentes envolvidas quando pergun­


tamos se a matéria existe, e é importante que permaneçam
claras. Por «matéria» queremos habitualmente dizer algo que
se opõe a «mente», algo que pensamos que ocupa espaço e
que é radicalmente incapaz de qualquer tipo de pensamento
ou consciência. E principalmente neste sentido que Berkeley
nega a matéria; ou seja, não nega que os dados dos sentidos
que comummente tomamos como sinais da existência da
mesa são realmente sinais da existência de algo independente
de nós, mas nega que este algo seja não mental, nega que
não seja mente nem idéias concebidas num a mente. Admite
que tem de haver algo que continua a existir quando saímos
da sala ou fechamos os olhos, e que o que chamamos «ver
a mesa» nos dá realmente razão para acreditar em algo que
persiste mesmo quando não a estamos a ver. Mas pensa que
este algo não pode ter uma natureza radicalmente diferente
do que vemos, e não pode ser completamente independen­
te do ver, apesar de ter de ser independente do nosso ver.
Berkeley é assim levado a considerar que a mesa «real» é
uma ideia na mente de Deus. Tal ideia tem a perm anência
e independência de nós que se exige, sem ser - como a ma­
téria seria - algo relativamente incognoscível, no sentido de
poder apenas ser inferida, não podendo nós estar cientes
dela directa e imediatamente (21).

(21) Ficou famoso o pontapé num a pedra dado pelo Dr. Johnson
(1709-84), afirmando que assim refutava o idealismo de Berkeley
~~ o que m ostra que o famoso lexicógrafo e crítico inglês nada
compreendeu das idéias do filósofo. Como Russell sublinha neste
passo, o idealismo de Berkeley não é um a forma de solipsismo ou de
tdealismo subjectivista. Do ponto de vista de Berkeley, um a pedra, por
exemplo, não é um a m era fabulação mental de cada pessoa que a vê.
Ao invés, uma pedra tem uma existência independente de nós - apenas
nao tem materialidade porque é uma ideia na mente de Deus. Mas
e tâo objectiva e a sua percepção tão involuntária quanto o seria se
tivesse materialidade. Cf. capítulo 4.
76 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Depois de Berkeley, outros filósofos sustentaram também


que, apesar de a existência da mesa não depender de ser
vista por mim, depende de ser vista (ou apreendida de outro
modo na sensação) por a lg u m a mente - não necessariamente
a mente de Deus, mas mais frequentem ente a totalidade da
mente colectiva do universo. Sustentam isto principalmente
porque, como Berkeley, pensam que nada de real pode existir
- ou em qualquer caso nada que se saiba ser real - excepto
mentes e os seus pensamentos e sentires (22) . Podemos for­
mular o argumento com que sustentam a sua perspectiva
de certo modo como se segue: «Seja o que for que pode ser
pensado é uma ideia na mente da pessoa que a pensa; logo,
nada pode ser pensado excepto idéias em mentes; logo,
qualquer outra coisa é inconcebível, e o que é inconcebível
não pode existir».
Tal argumento, na minha opinião, é falacioso; e claro que
quem o avança não o apresenta tão concisamente nem tão
grosseiramente. Mas, seja ou não válido, o argumento tem
sido muitíssimo avançado numa ou noutra forma; e muitís­
simos filósofos, talvez a maioria, têm sustentado que nada de
real existe excepto mentes e as suas idéias. Chama-se «idea­
listas» a tais filósofos. Quando se trata de explicar a matéria
ou dizem, como Berkeley, que a matéria nada é senão uma
colecção de idéias, ou dizem, como Leibniz (1646-1716), que
o que parece matéria é na realidade uma colecção de mentes
mais ou menos rudimentares.
Mas estes filósofos, apesar de negarem a matéria como algo
que se opõe à mente, admitem contudo a matéria. Recorde-se
que fizemos duas perguntas; nomeadamente, 1) Haverá de
todo em todo uma mesa real? 2) Se sim, que tipo de objecto

(22) O term o original, feelings, é sempre traduzido por sentires,


pois não se trata de sentimentos, mas de seja o que for que se sente,
incluindo os dados dos sentidos.
I

APARÊNCIA E REALIDADE | 77

êm poderá ser? Ora, tanto Berkeley como Leibniz admitem


ser que existe uma mesa real, mas Berkeley afirma que é certas
itro idéias na mente de Deus, e Leibniz diz que é uma colônia
nte de almas. Assim, ambos respondem afirmativamente à nossa
i da primeira pergunta, divergindo apenas das perspectivas dos
mte mortais comuns na sua resposta à nossa segunda pergunta.
istir De facto, quase todos os filósofos parecem concordar que há
ipto uma mesa real: quase todos concordam que, por mais que os
for- nossos dados dos sentidos - cor, forma, lisura, etc. - possam
:tíva depender de nós, a sua ocorrência é contudo um sinal de algo
i ser que existe independentemente de nós, algo que difere, talvez,
ogo? completamente dos nossos dados dos sentidos, e que contudo
ogo, se deve considerar que causa tais dados dos sentidos sempre
aível que estamos numa relação adequada com a mesa real.
Ora, este aspecto sobre o qual os filósofos concordam - a
dque perspectiva de que tó u m a mesa real, seja qual for a sua natu­
i tão reza - é de importância vital, e valerá a pena considerar que
tem ■| razões há para aceitar esta perspectiva antes de avançarmos
uitís- para a questão seguinte quanto à natureza da mesa real.
iad e 5 O nosso próximo capítulo, consequentemente, ocupar-se-á
idea- das razões para supor que há de todo em todo uma mesa real.
itéria . Antes de avançarmos será bom considerar por momentos
uma o que descobrimos até agora. Tornou-se manifesto que, se
i?que tomamos qualquer objecto comum do tipo que é suposta-
.entes
. rnente conhecido pelos sentidos, o que os sentidos nos dizem
wnediatamente não é a verdade sobre o objecto tal como este
o algo e além de nós, mas apenas a verdade sobre certos dados dos
rde-se
sentidos que, tanto quanto podemos ver, dependem das re­
*rá de
lações entre nós e o objecto. Assim, o que vemos e sentimos
bjecto
directamente é apenas «aparência», que acreditamos ser um
S1-nal de uma «realidade» que está por detrás. Mas se a reali­
dade não é o que aparece, teremos algum meio de saber se
sentires,
i sente, ha alguma realidade de todo em todo? E em caso afirmativo,
teremos algum meio de descobrir como é ela?
78 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Estas perguntas são desconcertantes, e é difícil saber se


mesmo as hipóteses mais estranhas não poderão ser verda­
deiras. Assim, a nossa mesa familiar, que até agora não deu
origem senão aos mais insignificantes pensamentos em nós,
tornou-se um problema cheio de possibilidades surpreen­
dentes. O que sabemos dela é que não é o que parece. Além
deste resultado modesto, até agora, temos a mais completa
liberdade de conjectura. Leibniz diz-nos que é uma comuni­
dade de almas; Berkeley diz-nos que é uma ideia na mente
de Deus; a ciência sóbria, dificilmente menos maravilhosa,
diz-nos que é uma vasta colecção de cargas eléctricas em
movimento violento (23).
Entre estas possibilidades surpreendentes, a dúvida sugere
que talvez não haja qualquer mesa. A filosofia, se não pode
responder a tantas perguntas como gostaríamos, tem pelo
menos o poder de /az^rperguntas que aumentam o interesse
do mundo, e mostram a estranheza e a maravilha repousan­
do imediatamente sob a superfície mesmo nas coisas mais
comuns da vida quotidiana.

(23) Cf. Introdução, «A refutação do cepticismo», p. ix.


A Existência da Matéria

Neste capítulo temos de nos p erguntar se, em algum


sentido, há efectivam ente m atéria. Há um a mesa com
uma certa natureza intrínseca, e que continua a existir
quando não estou a olhar, ou é a mesa apenas um produto
da m inha im aginação, um a m esa onírica num sonho
m uito prolongado? Esta p e rg u n ta é da m aior im p o r­
tância. Pois se não puderm os ter a certeza da existência
in dependente de objectos, não podem os ter a certeza da
existência in d ep en d en te dos corpos das outras pessoas,
e consequentem ente ainda m enos das m entes das outras
pessoas, pois não temos razões para acreditar nas suas
mentes excepto as que derivam da observação dos seus
corpos. Assim, se não podem os ter a certeza da existên­
cia in d ep en d en te de objectos, ficaremos sozinhos num
deserto - pode ser que todo o m undo exterior nada seja
senão um sonho, e que só nós existamos. Isto é um a pos­
sibilidade desconfortável; mas apesar de não se p oder
estritam ente provar que é falsa, não há qualquer razão
para supor que é verdadeira. Neste capítulo temos de ver
por que razão isto é assim.
80 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Antes de nos entregarmos a matérias duvidosas, tentemos


encontrar um ponto mais ou menos fixo para começar. Apesar
de estarmos a duvidar da existência física da mesa, não esta-
mos a duvidar da existência dos dados dos sentidos que nos
fizeram pensar que havia uma mesa; não estamos a duvidar
que, quando olhamos, nos aparece uma certa cor e forma, e
que quando nela fazemos pressão todos temos experiência de
uma certa sensação de dureza. Tudo isto, que é psicológico,
não estamos a pôr em questão. De facto, ainda que tudo o
resto possa ser duvidoso, pelo menos algumas das nossas
experiências imediatas parecem absolutamente certas.
Descartes (1596-1650), o fundador da filosofia moderna,
inventou um método que pode ainda ser usado com proveito
- o método da dúvida sistemática. D eterm inou ele que em
nada acreditaria que não visse muito clara e distintamente
que é verdadeiro. Fosse o que fosse de que conseguisse
duvidar, duvidaria, até ver razão para não duvidar disso.
Ao aplicar este método, ficou gradualm ente convencido de
que a única existência de que podería estar deveras certo
era a sua própria. Imaginou um demóniò enganador, que
apresentava coisas irreais aos seus sentidos, num a fantas-
magoria perpétua; podería ser muito improvável que tal
demônio existisse, mas mesmo assim era possível, e conse­
quentem ente a dúvida sobre coisas percepcionadas pelos
sentidos era possível.
Mas a dúvida sobre a sua própria existência não era pos­
sível, pois se ele não existisse, nenhum demônio o podería
enganar. Se ele duvidava, tinha de existir; se tinha quaisquer
experiências, não importa quais, tinha de existir. Assim, a
sua própria existência era para ele uma certeza absoluta.
«Penso, logo existo», afirmou (Cogito, ergo sum); e com base
nesta certeza entregou-se ao trabalho de construir outra ve*',
o mundo do conhecimento que a sua dúvida tinha deixado
em ruínas. Ao inventar o método da dúvida, e ao mostrar que
A EXISTÊNCIA DA MATÉRIA 81

mos as coisas subjectivas são as mais certas, Descartes prestou um


esar grande serviço à filosofia, um serviço que faz Descartes ser
esta- ainda hoje útil para todos os estudantes da disciplina.
nos Mas é preciso algum cuidado ao usar o argumento de
idar Descartes. «Eu penso, logo eu existo» afirma algo mais do
na, e que o estritamente certo. Podería parecer que temos com­
ia de pleta certeza de sermos a mesma pessoa hoje que fomos
gico? ontem, e isto é sem dúvida verdade em algum sentido. Mas
do o o Eu (24) real é tão difícil de alcançar quanto a mesa real, e
ossas não parece ter aquela certeza absoluta e convincente que
pertence às experiências particulares. Quando olho para
írna, a minha mesa e vejo uma certa cor castanha, o que é assaz
•veito certo desde logo não é «Eu estou a ver uma cor castanha»,
e em mas antes «uma cor castanha está a ser vista». Isto envolve,
lente é claro, algo (ou alguém) que vê a cor castanha; mas não
;uisse envolve em si aquela pessoa mais ou menos perm anente a
disso, que chamamos «eu». No que respeita à certeza imediata,
do de podería o algo que vê a cor castanha ser assaz momentâneo, e
certo não o mesmo que o algo que tem um a experiência diferente
r, que no momento seguinte.
antas- . Assim, são os nossos pensamentos e sentires particulares
ue tal que têm certeza primitiva. E isto tanto se aplica aos sonhos
:onse- e alucinações como às percepções normais: quando sonha­
pelos mos ou vemos um fantasma, temos certamente as sensações
que pensamos que temos mas, por várias razões, sustenta-se
'a pos- que nenhum objecto físico corresponde a estas sensações.
nderia Assim, a certeza do nosso conhecimento das nossas próprias
isquer experiências não tem de se limitar seja como for para per-
;sim, a uiitir casos excepcionais. Aqui temos, portanto, uma base
soluta. sólida, que vale o que vale, para começar a nossa procura de
n base conhecimento.
tra vez
eixado
(24) Sempre que o termo «Eu» ocorre em maiúscula, traduz o inglês
rar que também em maiúscula.
82 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

O problema que temos de considerar é este: concedendo


que estamos certos dos nossos próprios dados dos sentidos,
temos alguma razão para os considerar sinais da existência
de algo mais, a que podemos chamar o objecto físico? Depois
de enumerarmos todos os dados dos sentidos que devemos
naturalmente considerar que têm uma conexão com a mesa,
dissemos tudo o que há a dizer sobre a mesa, ou há ainda
algo mais - algo que não é um dado dos sentidos, algo que
persiste quando saímos da sala? O senso comum responde
sem hesitação que há. O que pode ser comprado e vendido
e em purrado e que podemos cobrir com uma toalha, e as­
sim por diante, não pode ser uma mera colecção de dados
dos sentidos. Se a toalha esconder completamente a mesa,
não derivamos quaisquer dados dos sentidos da mesa e,
portanto, se a mesa fosse meramente dados dos sentidos,
teria deixado de existir, e a toalha ficaria suspensa no ar
vazio, ocupando, por milagre, o lugar em que a mesa estava
anteriorm ente. Isto parece perfeitam ente absurdo; mas
quem desejar tornar-se um filósofo tem de aprender a não
ter medo de absurdos.
Uma razão de peso pela qual sentimos que temos de
assegurar um objecto físico além dos dados dos sentidos é
querermos que seja o mesmo objecto para diferentes pessoas.
Quando dez pessoas se sentam à volta da mesa do jantar,
parece prepóstero sustentar que não estão a ver a mesma
toalha, as mesmas facas e garfos e colheres e copos. Mas os
dados dos sentidos são privados, pertencendo a cada pessoa
separadamente; o que é imediatamente presente à vista de
uma, não é imediatamente presente à vista de outra: todas
vêem coisas de pontos de vista ligeiram ente diferentes,
vendo-as portanto ligeiramente diferentes. Assim, para que
existam objectos públicos neutros, que possam em algum
sentido ser conhecidos por muitas pessoas diferentes, tem
de haver alguma coisa além dos dados dos sentidos privados
A EXISTÊNCIA DA MATÉRIA 83

ido e particulares que aparecem a várias pessoas. Que razão


los, temos então para acred itar que existem tais objectos
icia públicos neutros?
30ÍS A prim eira resposta que naturalm ente nos ocorre é que,
nos apesar de diferentes pessoas poderem ver a mesa de modo
esa, ligeiramente diferente, todas vê em coisas mais ou menos
nda similares quando olham para a mesa, e as variações no que
que vêem obedecem às leis da perspectiva e da reflexão da luz,
nde de modo que é fácil chegar a um objecto perm anente que
iido subjaza a todos os diferentes dados dos sentidos das pessoas.
e as- Comprei a m inha mesa ao antigo inquilino da m inha sala;
idos não poderia comprar os seus dados dos sentidos, que m orre­
lesa, ram quando se foi embora, mas poderia comprar e comprei
sa e, a expectativa confiante de ter dados dos sentidos mais ou
idos, menos similares. Assim, o facto de diferentes pessoas terem
lo ar dados dos sentidos similares, e de uma pessoa num dado lu­
stava gar em momentos diferentes ter dados dos sentidos similares,
mas é que nos faz supor que além dos dados dos sentidos há um
i não objecto público perm anente que subjaz ou causa os dados
dos sentidos de várias pessoas em vários momentos.
>s de Contudo, na m edida em que as considerações acima
ios é dependem da suposição de que há pessoas além de nós
;soas. mesmos, pressupõem o que está em causa. As outras pes­
intar, soas são-me representadas por certos dados dos sentidos,
esma como a sua visão ou o som das suas vozes, e se eu não tivesse
[as os razão para acreditar que há objectos físicos independentes
essoa dos meus dados dos sentidos, não deveria ter razão para
>ta de acreditar que as outras pessoas existem excepto enquanto
todas parte do meu sonho. Assim, quando tentamos mostrar que
mtes, tem. de haver objectos independentes dos nossos próprios
*a que dados dos sentidos, não podemos apelar ao testem unho de
llgUíB outras pessoas, dado que este testemunho consiste em si em
$, tem dados dos sentidos, e não revela as experiências de outras
ivados Pessoas a não ser que os nossos próprios dados dos sentidos
84 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

sejam sinais de coisas que existem independentem ente de


nós (25) . Temos consequentemente, se possível, de encon­
trar, nas nossas próprias experiências puram ente privadas,
características que mostrem, ou tendam a mostrar, que há
no mundo outras coisas além de nós mesmos e das nossas
experiências.
Num certo sentido, tem de se admitir que nunca podemos
provar a existência de outras coisas além de nós mesmos e
das nossas experiências. Nenhum absurdo lógico resulta da
hipótese de que o mundo consiste em mim próprio e nos
meus pensamentos e sentires e sensações, e que tudo o resto
é mera fantasia (26) . Em sonhos, parece estar presente um
mundo muito complicado, e contudo ao acordar descobrimos
que era uma ilusão; ou seja, descobrimos que os dados dos
sentidos não parecem ter correspondido aos objectos físicos
que deveriamos naturalmente inferir dos nossos dados dos
sentidos. (E verdade que, quando se pressupõe o mundo
físico, é possível encontrar causas físicas para os dados dos
sentidos nos sonhos: uma porta a bater, por exemplo, pode
fazer-nos sonhar com uma batalha naval. Mas apesar de, neste
caso, existir uma causa física para os dados dos sentidos, não
há um objecto físico que corresponda aos dados dos sentidos
do mesmo modo que uma verdadeira batalha naval corres­
pondería.) Não há impossibilidade lógica na suposição de que
toda avida é um sonho, no qual nós próprios criamos todos
os objectos com que nos deparamos. Mas apesar de não ser

(25) Russell argum enta neste passo que se não aceitam os 2


existência da matéria, não podemos certamente aceitá-la com base na
intersubjectividade. O mesmo se pode dizer da dúvida na objectividade:
se duvidamos da objectividade dos nossos juízos, não podemos
defender um a posição «intermédia», a intersubjectividade - pois sem
objectividade não há intersubj ectividade.
(26) Cf. Introdução, «A refutação do cepticismo», p. ix.
A EXISTÊNCIA DA MATÉRIA 85

logicamente impossível, não há qualquer razão para supor


que é verdadeira; e é, de facto, uma hipótese muito menos
simples, encarada como um meio para dar conta dos factos
da nossa própria vida, do que a hipótese de senso comum de
que há realmente objectos independentes de nós, cuja acção
sobre nós causa as nossas sensações (27) .
Vê-se facilmente como a simplicidade resulta de supor
que há realmente objectos físicos. Se o gato aparece num
momento numa parte da sala, e noutro momento noutra
parte, é natural supor que se deslocou de um lado para o
outro, passando por uma série de posições intermédias. Mas
se é apenas um conjunto de dados dos sentidos, nunca poderá
ter estado em qualquer lugar em que não o vi; assim, teremos
de supor que não existia de todo em todo enquanto eu não
estava a olhar, passando subitamente a existir num novo lugar.
Se o gato existe independentem ente de eu o ver, podemos
compreender com base na nossa própria experiência como
fica com fome entre as refeições; mas se não existe quando
não estou a vê-lo, parece estranho que o apetite aumente tão
depressa durante a não existência como aumenta durante a
existência. E se o gato consiste apenas em dados dos sentidos,
não pode ter fome, dado que nenhum a fome excepto a minha
pode ser um dado dos sentidos para mim. Assim, o compor­
tamento dos dados dos sentidos que representam o gato para
mim, apesar de parecer perfeitam ente natural quando é
encarado como uma expressão de fome, torna-se totalmente
inexplicável quando é encarado como meros movimentos e
mudanças de manchas de cor, que são tão incapazes de ter
fome como um triângulo é incapaz de jogar futebol.
Mas a dificuldade no caso do gato nada é, comparada com
a dificuldade no caso dos seres humanos. Quando os seres
humanos falam - isto é, quando ouvimos certos ruídos que

(27) Gf. Introdução, «A refutação do cepticismo», p. ix.


86 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

associamos a idéias, e simultaneamente vemos certos movi­


mentos dos lábios e expressões do rosto - é muito difícil supor
que o que ouvimos não é a expressão de um pensamento,
como sabemos que seria se emitíssemos os mesmos sons.
Claro que coisas semelhantes acontecem nos sonhos, em que
estamos enganados quanto à existência de outras pessoas.
Mas os sonhos são mais ou menos sugeridos pelo que cha­
mamos a vida acordada e podemos dar mais ou menos conta
deles com base em princípios científicos se pressupusermos
que há realmente um mundo físico. Assim, o princípio da
simplicidade impele-nos claramente a adoptar a perspectiva
natural, de que há realmente objectos além de nós mesmos
e dos nossos dados dos sentidos que têm uma existência que
não depende da nossa percepção deles.
Claro que não é por argumentação que originalmente
chegámos à nossa crença (28) num m undo externo inde­
pendente. Descobrimos esta crença pronta em nós mal co­
meçamos a reflectir: é o que podemos chamar uma crença
instintiva. Nunca seríamos levados a questionar esta crença
se não fosse o facto de, pelo menos no caso da visão, parecer
que se acredita instintivamente que o próprio dado dos senti­
dos é o objecto independente, ao passo que a argumentação
mostra que o objecto não pode ser idêntico ao dado dos sen­
tidos. Esta descoberta, contudo - que não é de modo algum
paradoxal no caso do sabor e do cheiro e do som, sendo-o
apenas ligeiramente no caso do tacto - não enfraquece a
nossa crença instintiva de que há objectos que correspondem
aos nossos dados dos sentidos. Dado que esta crença não
conduz a quaisquer dificuldades, mas pelo contrário tende a
simplificar e sistematizar a explicação das nossas experiências,
não parece haver boas razões para a rejeitar. Logo, podemos
admitir - ainda que com uma ligeira dúvida derivada dos

(28) Cf. Introdução, «A natureza da filosofia», p. xxiv.


A EXISTÊNCIA DA MATÉRIA 87

sonhos - que o mundo exterior existe realmente, e que a


sua existência não depende totalmente de continuarmos a
percepcioná-lo.
O argumento que conduziu a esta conclusão é sem dúvida
menos forte do que desejaríamos, mas é típico de muitos
argumentos filosóficos, e vale por isso a pena considerar bre­
vemente o seu carácter geral e a sua validade. Descobrimos
que todo o conhecimento tem de ser construído com base
nas nossas crenças instintivas, e se estas forem rejeitadas,
nada resta. Mas entre as nossas crenças instintivas algumas
são muito mais fortes do que outras, ao passo que muitas fica­
ram misturadas, por hábito e associação, com outras crenças,
que não são realmente instintivas, mas falsamente encaradas
como parte do que se acredita instintivamente.
A filosofia deve mostrar-nos a hierarquia das nossas crenças
instintivas, começando com as mais fortes, e apresentando
cada uma tão isolada e sem adições irrelevantes quanto
possível. Deve procurar m ostrar que, na form a em que
finalmente se exprimem, as nossas crenças instintivas não
colidem, formando antes um sistema harmonioso. Nunca
pode haver razão para rejeitar uma crença instintiva excepto
a circunstância de colidir com outras; assim, se descobrimos
que se harmonizam, todo o sistema se torna digno de acei­
tação (29).
E claro que é possível que todas ou qualquer um a das
nossas crenças possa estar errada, e consequentemente todas
devem ser adoptadas com pelo menos um ligeiro elemento de
dúvida. Mas não podemos ter razão para rejeitar uma crença
excepto com base noutra crença qualquer (30) . Assim, ao or­
ganizar as nossas crenças instintivas e as suas consequências,
ao considerar quais de entre elas são mais passíveis de serem

(29) Cf. Introdução, «A natureza da filosofia», p. xxiv.


(30) Cf. Introdução, «A refutação do cepticismo», p. ix.
88 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

modificadas ou abandonadas, se for necessário, podemos che­


gar, com base na aceitação de que os nossos únicos dados são
as crenças instintivas, a uma organização sistemática ordeira
do nosso conhecimento, na qual, apesar de a possibilidade de
erro se manter, a sua probabilidade fique diminuída pela
inter-relação das partes e pelo escrutínio crítico que precedeu
a aquiescência.
Pelo menos esta função a filosofia pode desem penhar.
A maior parte dos filósofos, correcta ou incorrectam ente,
pensa que a filosofia pode fazer muito mais do que isto
- que pode dar-nos conhecim ento de outro m odo não
alcançável, sobre o universo como um todo, e sobre a
natureza da realidade última. Seja isto possível ou não, a
função mais modesta de que falámos pode certam ente ser
desem penhada pela filosofia, e é certam ente suficiente,
para quem começou a duvidar da adequação do senso
comum, para justificar os trabalhos árduos e difíceis que
os problemas filosóficos envolvem.
3.

A Natureza da Matéria

No capítulo anterior concordámos, ainda que sem con­


seguirmos encontrar razões demonstrativas, que é racional
acreditar que os nossos dados dos sentidos - por exemplo,
os que consideramos estarem associados à minha mesa - são
na verdade sinais da existência de algo independente de
nós e das nossas percepções. Ou seja, além das sensações
de cor, dureza, ruído e assim por diante, que constituem a
aparência que a mesa tem para mim, pressuponho que há
qualquer outra coisa, da qual estas coisas são aparências.
A cor deixa de existir se fecho os olhos, a sensação de dureza
deixa de existir se levantar o meu braço da mesa, o som deixa
de existir se deixar de bater na mesa com os nós dos dedos.
Mas não acredito que quando todas estas coisas deixam de
existir a mesa deixa de existir. Pelo contrário, acredito que é
porque a mesa existe continuamente que todos estes dados
dos sentidos irão reaparecer quando abro os olhos, volto a
pousar o braço e começo outra vez a bater-lhe com os nós
dos dedos. A questão que temos de considerar neste capítulo
é esta: qual é a natureza desta mesa real, que persiste inde­
pendentem ente da minha percepção dela?
90 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

A esta questão a ciência física dá uma resposta, algo in­


completa, é verdade, e em parte ainda muito hipotética, mas
que todavia merece respeito, tanto quanto possível. A ciência
física, mais ou menos inconscientemente, foi dar à perspectiva
de que todos os fenômenos naturais devem ser reduzidos a
movimentos. Luz, calor e som devem-se todos a movimentos
ondulatórios, que viajam do corpo que os emite até à pessoa
que vê a luz ou sente o calor ou ouve o som. O que tem o
movimento ondulatório é ou o éter ou a «matéria bruta», mas
em qualquer caso é o que o filósofo chamaria matéria (31).
As únicas propriedades que a ciência lhes atribui são a posi­
ção no espaço, e o poder de movimento de acordo com as
leis do movimento. A ciência não nega que pode ter outras
propriedades; mas se as tem, essas propriedades não são úteis
para o homem de ciência, e não o ajudam de modo algum
a explicar os fenômenos.
Diz-se por vezes que «a luz ê uma forma de movimento
ondulatório», mas isto é enganador, pois a luz que vemos
imediatamente, que conhecemos directamente por meio dos
nossos sentidos, não é uma forma de movimento ondulatório,
mas algo bastante diferente - algo que todos conhecemos
se não formos cegos, apesar de não podermos descrevê-lo
de modo a transmitir o nosso conhecimento a um homem
que seja cego. Um movimento ondulatório, pelo contrário,
poder-se-ia descrever perfeitamente bem a um cego, dado
que este pode adquirir um conhecimento do espaço pelo
sentido do tacto; e pode ter experiência de um movimento
ondulatório num a viagem marítima quase tão bem como
nós. Mas isto, que um cego pode compreender, não é o que
queremos dizer com luz: com luz queremos dizer exactamente
o que o cego nunca poderá compreender, e que nunca lhe
poderemos descrever.

(31) Cf. Introdução, «Filosofia e ciência», p. xxvii et seq.


A NATUREZA DA MATÉRIA 91

O ra este algo, que quem não é cego conhece, não se


encontra realmente, segundo a ciência, no m undo exterior:
é algo causado pela acção de certas ondas sobre os olhos
e nervos e cérebro da pessoa que vê a luz. Q uando se diz
que a luz são ondas, o que realm ente se quer dizer é que as
ondas são a causa física das nossas sensações de luz. Mas a
própria luz, a coisa de que têm experiência as pessoas que
vêem e as cegas não, a ciência não supõe que forme parte
do m undo independente de nós e dos nossos sentidos.
Comentários muito sem elhantes aplicar-se-iam a outros
tipos de sensações.
Não são apenas as cores e sons e assim por diante que
estão ausentes do mundo científico da matéria, mas também
o espaço tal como o recebemos através da visão ou do tacto.
E essencial para a ciência que a sua m atéria esteja num
espaço, mas o espaço em que está não pode ser exactamente
o espaço que vemos ou sentimos. Para começar, o espaço
tal como o vemos não é o mesmo que o espaço tal como
o recebemos pelo sentido do tacto; só pela experiência na
infância aprendem os como se toca nas coisas que vemos,
ou como ter uma perspectiva visual das coisas que sentimos
tocar-nos. Mas o espaço da ciência é neutro entre o tacto e
a visão; assim, não pode ser o espaço do tacto nem o espaço
da visão.
Uma vez mais, pessoas diferentes vêem o mesmo objecto
como se tivesse formas diferentes, segundo o seu ponto de
vista. Uma moeda circular, por exemplo, apesar de ajuizarmos
sempre que é circular, irá.parecer oval a não ser que estejamos
em linha recta à sua frente. Quando ajuizamos que écircular,
estamos a ajuizar que tem uma forma real que não é a sua
forma aparente, mas pertence-lhe intrinsecamente além da
sua aparência. Mas esta forma real, que é o que interessa à
ciência, tem de estar num espaço real, o que não é o mesmo
que o espaço aparente de qualquer pessoa. O espaço real é
92 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

público, o espaço aparente é pertença privada apenas de


quem percepciona. Nos espaços privados de pessoas dife­
rentes o mesmo objecto parece ter diferentes formas; assim,
o espaço real, no qual o objecto tem a sua forma real, tem
de ser diferente dos espaços privados. O espaço da ciência,
consequentemente, apesar de ter uma conexão com os espaços
que vemos e sentimos, não é idêntico a eles, e o modo da sua
conexão requer investigação.
Concordámos provisoriamente que os objectos físicos não
podem ser exactamente como os nossos dados dos sentidos,
mas podem ser encarados como causas das nossas sensações.
Estes objectos físicos estão no espaço da ciência, a que pode­
mos chamar espaço «físico». E importante notar que, para as
nossas sensações poderem ser causadas por objectos físicos,
tem de haver um espaço físico que contenha estes objectos e
os nossos órgãos dos sentidos e nervos e cérebro. Um objecto
dá-nos uma sensação de tacto quando estamos em contacto
com ele; ou seja, quando uma parte do nosso corpo ocupa
um lugar no espaço físico muito próximo do espaço ocupado
pelo objecto. Vemos um objecto (em traços gerais) quando
nenhum corpo opaco está entre o objecto e os nossos olhos
no espaço físico. De igual modo, só ouvimos ou cheiramos
ou saboreamos um objecto quando estamos suficientemente
perto dele, ou quando toca a língua, ou ocupa uma posição
adequada no espaço físico relativamente ao nosso corpo. Não
podemos sequer falar das diferentes sensações que obtemos
de um dado objecto sob condições diferentes a menos que
consideremos que o objecto e o nosso corpo estão ambos num
espaço físico, pois são principalmente as posições relativas
do objecto e do nosso corpo que determinam que sensações
derivaremos do objecto.
Ora, os nossos dados dos sentidos estão situados nos nossos
espaços privados, seja o espaço da visão ou o espaço do tacto
ou espaços mais vagos que outros sentidos possam dar-nos.
A NATUREZA DA MATÉRIA 93

Se, como a ciência e o senso comum pressupõem, há um


espaço público físico que tudo abrange e no qual estão os
objectos físicos, as posições relativas dos objectos físicos no
espaço físico têm de corresponder mais ou menos às posições
relativas dos dados dos sentidos nos nossos espaços privados.
Não há dificuldade em supor que é assim. Se num a estrada
vemos uma casa mais próxima de nós do que outra, os outros
sentidos vão atestar a perspectiva de que está mais próxima;
por exemplo, será alcançada primeiro se caminharmos ao
longo da estrada. Outras pessoas irão concordar que a casa
que parece mais próxima de nós está mais próxima; o mapa
apresentará a mesma perspectiva; e assim tudo aponta para
uma relação espacial entre as casas que corresponde à rela­
ção entre os dados dos sentidos que vemos quando olhamos
para as casas. Assim, podemos pressupor que há um espaço
físico no qual os objectos físicos têm relações espaciais que
correspondem às que os dados dos sentidos correspondentes
têm nos nossos espaços privados. E com este espaço físico
que a geom etria lida e que é pressuposto na física e na
astronomia.
Pressupondo que existe um espaço físico, e que correspon­
de então aos espaços privados, o que podemos saber sobre
ele? Podemos apenas saber o que se exige para assegurar a
correspondência. Ou seja, nada podemos saber de como é
em si, mas podemos saber o tipo de disposição dos objectos
físicos que resulta das suas relações espaciais. Podemos saber,
por exemplo, que a Terra e a Lua e o Sol estão dispostos
numa linha recta durante um eclipse, apesar de não po­
dermos saber o que é uma linha recta física em si do modo
como sabemos qual é o aspecto de uma linha recta no nosso
espaço visual. Assim, ficamos a saber muito mais sobre as re­
lações das distâncias no espaço físico do que sobre as próprias
distâncias; podemos saber que uma distância é maior do que
outra, ou que está ao longo da mesma linha recta que outra,
94 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

mas não podemos ter o contacto imediato com as distâncias


físicas que temos com as distâncias nos nossos espaços priva­
dos, ou com as cores ou sons ou outros dados dos sentidos.
Podemos saber todas essas coisas sobre o espaço físico que
um cego de nascença podería saber através de outras pessoas
sobre o espaço da visão; mas o tipo de coisas que um cego de
nascença nunca podería saber sobre o espaço da visão não
podemos igualmente saber sobre o espaço físico. Podemos
conhecer as propriedades das relações exigidas para preser­
var a correspondência com os dados dos sentidos, mas não
podemos conhecer a natureza dos termos entre os quais há
essas relações.
Com respeito ao tempo, o nosso sentir da duração ou do
lapso de tempo não é, notoriam ente, um guia de confiança
quanto ao tempo que decorreu pelo relógio. Os momentos
em que estamos aborrecidos ou a sentir dor passam len­
tamente, os momentos em que estamos agradavelmente
ocupados passam depressa, e momentos em que estamos
a dorm ir passam quase como se não existissem. Assim, na
m edida em que o tempo é constituído pela duração, há a
mesma necessidade de distinguir entre um tempo público
e um privado que no caso do espaço. Mas na medida em
que o tempo consiste num a ordem de antes e depois, não há
necessidade de fazer tal distinção; a ordem temporal que
os acontecimentos parecem ter é, tanto quanto podemos
ver, a mesma que a ordem temporal que têm realmente. Em
qualquer caso, nenhum a razão se pode dar para se supor
que as duas ordens não são a mesma. O mesmo acontece
habitualm ente quanto ao espaço: se um regim ento de
homens está a marchar ao longo de uma estrada, a forma
do regimento parecerá diferente de diferentes pontos de
vista, mas os homens parecerão dispostos na mesma ordem
de todos os pontos de vista. Por isso consideramos que a
A NATUREZA DA MATÉRIA 95

ordem é verdadeira (32) também no espaço físico, ao passo


que a forma só supostamente corresponde ao espaço físico
na medida em que for exigida para a preservação da ordem.
Ao dizer que a ordem temporal que os acontecimentos
parecem ter é a mesma que a ordem temporal que realmen­
te têm, é necessário precaver um possível mal-entendido.
E necessário não supor que os vários estados dos diferentes
objectos físicos têm a mesma ordem temporal que os dados
dos sentidos que constituem as percepções desses objectos.
Considerados como objectos físicos, o trovão e o relâmpago
são simultâneos; quer dizer, o relâmpago é simultâneo com o
distúrbio do ar no lugar em que o distúrbio começa, nomea­
damente, onde o relâmpago está. Mas o dado dos sentidos a
que chamamos ouvir o trovão não ocorre até o distúrbio do
ar ter viajado até onde estamos. De igual modo, a luz do Sol
demora cerca de oito minutos a alcançar-nos; assim, quando
vemos o Sol estamos a ver o Sol de há oito minutos. Na me­
dida em que os nossos dados dos sentidos fornecem indícios
quanto ao Sol físico, fornecem indícios quanto ao Sol de
há oito minutos; se o Sol físico tivesse deixado de existir há
menos de oito minutos, isso não faria qualquer diferença
relativamente aos dados dos sentidos a que chamamos «ver
o Sol». Isto fornece um a nova ilustração da necessidade de
distinguir os dados dos sentidos dos objectos físicos.

(32) Em rigor, a ordem não é «verdadeira» no espaço físico - é apenas


real, ocorre no espaço físico. Só as frases ou proposições ou pensamentos
podem ser verdadeiros ou falsos. As propriedades ou relações (como
a relação de ordem) podem ocorrer ou não, ser ou não instanciadas.
Contudo, há um a expressão linguística inglesa relativamente usada na
bibliografia especializada, apesar de infeliz, na qual se diz coisas como
«o predicado “é grego” é verdadeiro de Sócrates». Neste contexto, a
expressão «verdadeiro de» significa apenas «aplica-se» e é enganador
falar aqui de verdade. E neste sentido que Russell está a usar aqui a
expressão «a ordem é verdadeira no espaço físico».
96 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

O que descobrimos com respeito ao espaço é em grande


parte o mesmo que descobrimos com respeito à correspon­
dência entre os dados dos sentidos e as suas contrapartes
físicas. Se um objecto parece azul e outro vermelho, podemos
razoavelmente presumir que há uma diferença correspon­
dente entre os objectos físicos; se dois objectos parecem azuis,
podemos presumir que há uma correspondente similaridade.
Mas não podemos ter a esperança de ter contacto directa-
mente com a qualidade do objecto físico que o faz parecer
azul ou vermelho. A ciência diz-nos que esta qualidade é um
certo tipo de movimento de onda, e isto parece-nos familiar
porque pensamos em movimentos de onda no espaço que
vemos. Mas os movimentos de onda têm na verdade de estar
no espaço físico, com o qual não temos contacto directo;
assim, os movimentos de onda reais não têm aquela fami­
liaridade que poderiamos supor que têm. E o que acontece
com as cores é muitíssimo similar ao que acontece com
outros dados dos sentidos. Assim, descobrimos que apesar
de as relações dos objectos físicos terem todo o tipo de pro­
priedades cognoscíveis, derivadas das suas correspondências
com as relações entre os dados dos sentidos, os próprios
objectos físicos permanecem desconhecidos quanto à sua
natureza intrínseca, pelo menos na medida em que podem
ser descobertos por meio dos sentidos. Mantém-se em
aberto a questão de saber se há outro método para descobrir
a natureza intrínseca dos objectos físicos.
A hipótese que é mais natural adoptar inicialmente, pelo
menos no que respeita aos dados dos sentidos visuais, apesar
de não ser em última análise a mais defensável, seria que,
apesar de os objectos físicos não poderem, pelas razões que
temos vindo a considerar, ser exactamente como os dados dos
sentidos, podem contudo ser mais ou menos como eles.
Segundo esta perspectiva, os objectos físicos terão realmente,
por exemplo, cores, e nós poderiamos, por sorte, ver um
A NATUREZA DA MATÉRIA 97

objecto com a cor que realmente tem. A cor que um objecto


parece ter a qualquer momento dado será em geral muito
similar, apesar de não ser exactamente a mesma, de muitos
pontos de vista; poderiamos pois supor que a cor «real» é
uma espécie de cor média, interm édia entre os vários tons
que aparecem de diferentes pontos de vista.
Tal teoria talvez não possa ser definitivamente refutada,
mas pode-se mostrar que é infundada. Para começar, é óbvio
que a cor que vemos depende apenas da natureza das ondas
de luz que atingem o olho, e é consequentemente modificada
pelo meio interposto entre nós e o objecto, tal como pelo
modo como a luz é reflectida pelo objecto na direcção do
olho. O ar interposto altera as cores a menos que seja per-
feitamente transparente, e qualquer reflexo forte irá alterá-
-las completamente. Assim, a cor que vemos é um resultado
do raio tal como chega ao olho, e não simplesmente uma
propriedade do objecto no qual se origina o raio. Por isso,
também, desde que certas ondas cheguem ao olho, veremos
uma certa cor, quer o objecto de onde as ondas partem tenha
cor quer não. Assim, é perfeitamente gratuito supor que os
objectos físicos têm cores, e consequentemente não hájustifi-
cação para fazer tal suposição (33) . Argumentos exactamente
similares aplicar-se-ão a outros dados dos sentidos.

(33)' Este argumento parece particularmente fraco. Mesmo que as


ondas de luz reflectidas pelos objectos sejam inevitavelmente alteradas
pela luz circundante, daí não se segue que sejam radicalm ente
alteradas, nem se segue que não possamos criar condições laboratoriais
para descobrir a verdadeira cor dos objectos. O verdadeiro problema
da concepção ingênua de que os objectos têm cores é o facto de não
ter em consideração que a cor é na realidade o modo como captamos
diferentes ondas de luz. A questão importante não é saber se os objectos
têm cores mais ou menos parecidas às cores que percepcionamos, mas
antes se os objectos reflectem luz mais ou menos como parece que a
reflectem. E a resposta a esta última pergunta é afirmativa.
98 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

. Resta perguntar se há alguns argumentos filosóficos gerais


que nos permitam dizer que, se a matéria é real, tem de ter
tal e tal natureza. Como se explicou anteriormente, muitos
filósofos, talvez a maior parte, defenderam que o que for real
tem de ser mental num certo sentido, ou em qualquer caso
que aquilo de que podemos ter algum conhecimento tem de
ser mental num certo sentido. Chama-se «idealistas» a tais filó­
sofos. Os idealistas afirmam que o que aparece como matéria
é na realidade algo mental; seja, nomeadamente, mentes mais
ou menos rudimentares (como Leibniz defendia), seja idéias
nas mentes (como Berkeley mantinha) que, como diriamos
comummente, «percepcionam» a matéria. Assim, os idealistas
negam a existência da matéria como algo intrinsecamente di­
ferente da mente, apesar de não negarem que os nossos dados
dos sentidos são sinais de algo que existe independentemente
das nossas sensações privadas. No capítulo seguinte conside­
raremos brevemente as razões - na minha opinião falaciosas
- que os idealistas apresentam a favor da sua teoria.
Idealismo

. A palavra «idealismo» é usada por diferentes filósofos


em sentidos algo diferentes. Por esta palavra entenderem os
a doutrina de que o que existe, ou pelo menos o que pode­
mos saber que existe, tem de ser num certo sentido mental.
Esta doutrina, que é muito amplamente professada entre os
filósofos, tem várias formas, e é advogada com base em funda­
mentos diferentes. A doutrina é tão amplamente professada,
e tão interessante em si, que mesmo o exame mais sucinto
da filosofia tem de lhe dar algum tratamento.
Quem não está acostumado à especulação filosófica pode
sentir-se inclinado a rejeitar tal doutrina por ser obviamente
absurda. Não há dúvida de que o senso comum encara as
mesas e cadeiras e o Sol e a Lua e os objectos materiais em
geral como algo completamente diferente das mentes e dos
conteúdos das mentes, e como algo que tem um a existência
que poderá continuar se as mentes se extinguirem. Gonce-
. bemos a matéria como algo que existia muito antes de existi­
rem quaisquer mentes, e é difícil concebê-la como um mero
produto da actividade mental. Mas seja verdadeiro ou falso,
não se deve rejeitar o idealismo por ser obviamente absurdo.
100 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Como vimos, mesmo que os objectos físicos tenham


efectivamente uma existência independente, têm de diferir
muitíssimo dos dados dos sentidos, podendo apenas ter uma
correspondência com os dados dos sentidos, do mesmo gênero
de modo em que um catálogo tem uma correspondência
com as coisas catalogadas. Por isso o senso comum deixa-nos
completamente na ignorância quanto à verdadeira natureza
intrínseca dos objectos físicos, e se houvesse boa razão para
considerar que são mentais, não poderiamos legitimamente
rejeitar esta opinião unicamente porque nos parece estra­
nha. A verdade sobre os objectos físicos tem de ser estranha.
Pode ser inalcançável, mas se qualquer filósofo acredita que
a alcançou, o facto de ser estranho o que ele oferece como
a verdade não se deve considerar um fundamento para ob-
jectar à sua opinião.
Os fundamentos com base nos quais o idealismo é advo­
gado são geralmente derivados da teoria do conhecimento,
ou seja, de uma discussão das condições que as coisas têm
de satisfazer de modo a podermos conhecê-las. A primeira
tentativa séria de estabelecer o idealismo nessa base foi a do
bispo Berkeley. Ele provou primeiro, com argumentos em
grande parte válidos, que não se pode supor que os nossos
dados dos sentidos têm uma existência independente de nós,
tendo antes de estar, pelo menos em parte, «na» mente, no
sentido em que não continuariam a existir se não houvesse
ver ou ouvir ou tactear ou cheirar ou saborear. Até aqui a sua
posição era quase certamente válida, ainda que alguns dos seus
argumentos não o fossem. Mas ele argumentou depois que os
dados dos sentidos eram as únicas coisas de cuja existência as
nossas percepções nos poderíam assegurar, e que ser conhe­
cido é estar «numa» mente, e portanto ser mental. Por isso,
concluiu que nada pode jamais ser conhecido excepto o que
está em alguma mente, e que seja o que for que é conhecido
mas não está na minha mente tem de estar noutra mente.
IDEALISMO 101

Para compreender o seu argumento é necessário compre­


ender o seu uso da palavra «ideia». Ele dá o nome «ideia»
a seja o que for que é imediatamente conhecido, como são
conhecidos, por exemplo, os dados dos sentidos. Assim, uma
cor particular que vemos é uma ideia; tal como uma voz que
ouvimos, e assim por diante. Mas o termo não se restringe
inteiramente aos dados dos sentidos. Haverá também coisas
recordadas ou imaginadas, pois com tais coisas também
temos contacto directo no momento de recordar ou imaginar.
A todos os dados imediatos chama ele «idéias».
Berkeley passa então a considerar objectos comuns, como
uma árvore, por exemplo. Ele mostra que tudo o que conhe­
cemos imediatamente quando «percepcionamos» a árvore
consiste em idéias no seu sentido da palavra, e argum enta
que não há o mínimo fundam ento para supor que há algo
real no que respeita à árvore, excepto o que é percepcio-
nado. O seu ser, afirma, consiste em ser percepcionado: no
latim dos escolásticos, o seu «esse» é «percipi». Ele admite
sem reservas que a árvore tem de continuar a existir quando
fechamos os olhos ou quando nenhum ser hum ano está por
perto. Mas esta existência ininterrupta, afirma, devé-se ao
facto de Deus continuar a percepcioná-la; a árvore «real»,
que corresponde ao que chamámos o objecto físico, consiste
em idéias na mente de Deus, idéias mais ou menos como as
que temos quando vemos a árvore, mas diferindo no facto
de serem permanen tes na mente de Deus enquanto a árvore
continuar a existir. Todas as nossas percepções, segundo
ele, consistem num a participação parcial nas percepções
de Deus, e é por causa desta participação que pessoas
diferentes vêem mais ou menos a mesma árvore. Assim, à
parte as mentes e as suas idéias, nada há no m undo, nem
é possível que qualquer outra coisa possa alguma vez ser
conhecida, um a vez que o que é conhecido é necessaria­
mente uma ideia.
102 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

■ Há neste argumento um bom lote de falácias que foram


importantes na história da filosofia, e que faremos bem trazer
à luz. Em primeiro lugar, há uma confusão gerada pelo uso
da palavra «ideia». Pensamos num a ideia essencialmente
como algo na mente de alguém, e assim quando nos dizem
que uma árvore consiste inteiramente em idéias, é natural
supor que, se assim é, a árvore tem de estar inteiramente nas
mentes. Mas a noção de estar «na» mente é ambígua. Fala­
mos de ter uma pessoa em mente, querendo dizer não que
a pessoa está nas nossas mentes, mas que um pensamento
dela está nas nossas mentes. Quando um homem diz que uma
tarefa que lhe competia preparar se escapou da sua mente,
não quer sugerir que a tarefa esteve na sua mente, mas ape­
nas que um pensamento da tarefa estava anteriorm ente na
sua mente, deixando depois de o estar. E por isso, quando
Berkeley diz que a árvore tem de estar nas nossas mentes se
podemos conhecê-la, tudo o que na realidade tem direito a
dizer é que um pensamento da árvore tem de estar nas nos­
sas mentes. Argumentar que a própria árvore tem de estar
nas nossas mentes é como argumentar que uma pessoa que
temos em mente está, ela própria, nas nossas mentes. Esta
confusão pode parecer demasiado grosseira para que possa
realmente ter sido cometida por qualquer filósofo competen­
te, mas tornou-se possível por causa de várias circunstâncias
associadas. Para ver como foi possível, temos de entrar mais
profundamente na questão da natureza das idéias.
Antes de abordar a questão geral da natureza das idéias te­
mos de destrinçar duas questões inteiramente diferentes que
surgem com respeito aos dados dos sentidos e aos objectos
físicos. Vimos que, por várias razões de pormenor, Berkeley
tinha razão ao tratar os dados dos sentidos que constituem a
nòssa percepção da árvore como mais ou menos subjectivos,
no sentido em que dependem de nós tanto quanto dependem
da árvore, e não existiríam se a árvore não estivesse a ser per-
IDEALISMO 103

cepcionada. Mas este é um aspecto inteiramente diferente


do aspecto com base no qual Berkeley procura provar que o
que pode ser imediatamente conhecido tem de estar numa
mente. Para este fim, são inúteis argumentos de porm enor
sobre a dependência que os dados dos sentidos têm relativa­
mente a nós. E necessário provar, em geral, que por serem
conhecidas, se mostra que as coisas são mentais. Isto é o que
o próprio Berkeley pensa ter feito. E a esta questão, e não à
nossa questão anterior quanto à diferença entre dados dos
sentidos e o objecto físico, que temos agora de nos dedicar.
Tomando a palavra «ideia» no sentido de Berkeley, há duas
coisas muito diferentes a ter em consideração sempre que uma
ideia está perante a mente. Por um lado, há a coisa da qual
estamos cientes - a cor da minha mesa, digamos - e, por outro,
o próprio estar ciente, o acto mental de apreender a coisa. O
acto mental é indubitavelmente mental, mas há alguma razão
para supor que a coisa apreendida é em algum sentido mental?
Os nossos argumentos anteriores sobre a cor não provaram
que é mental; apenas provaram que a sua existência depende
da relação entre os nossos órgãos dos sentidos e o objecto
físico - no nosso caso, a mesa. Isto ê, provaram que uma certa
cor existirá, a uma certa luz, se um olho normal for colocado
num certo ponto relativamente à mesa. Não provaram que a
cor está na mente de quem percepciona.
A plausibilidade da perspectiva de Berkeley, de que a
cor tem obviamente de estar na mente, parece depender da
confusão entre a coisa apreendida e o acto de apreensão.
A qualquer destes se podería chamar «ideia»; provavelmente
a qualquer destes teria Berkeley chamado uma ideia. O acto
está sem dúvida na mente; por isso, quando estamos a pen­
sar no acto, aceitamos prontam ente a perspectiva de que as
idéias têm de estar na mente. Depois, esquecendo que isto só
é verdade quando as idéias são tomadas como actos de apre­
ensão, transferimos a proposição de que «as idéias estão na
104 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

mente» para as idéias no outro sentido, isto é, para as coisas


apreendidas pelos nossos actos de apreensão. Assim, por via
de um equívoco inconsciente, chegamos à conclusão de que
o que pode ser apreendido tem de estar nas nossas mentes.
Esta parece a verdadeira análise do argumento de Berkeley,
e a falácia em que assenta.
Esta questão da distinção entre o acto e o objecto da nossa
apreensão das coisas é vitalmente importante, pois todo o
nosso poder para adquirir conhecimento lhe está inextrinca-
velmente ligado. A faculdade de ter contacto com coisas além
de si é a característica principal de uma mente. Ter contacto
com objectos consiste essencialmente num a relação entre
a mente e outra coisa além da mente; é isto que constitui
o poder da mente para conhecer coisas. Se dizemos que as
coisas conhecidas têm de estar na mente, estamos ou a limitar
injustificadamente o poder de conhecer da mente ou a pro­
ferir uma mera tautologia. Proferimos uma mera tautologia
se por «na mente» queremos dizer o mesmo que «perante a
mente», isto é, se queremos dizer apenas ser apreendido pela
mente. Mas se queremos dizer isto, teremos de admitir que
o que, neste sentido, está na mente pode no entanto ser não
mental. Assim, quando tomamos consciência da natureza do
conhecimento, vê-se que o argumento de Berkeley está erra­
do tanto na substância como na forma, e que as suas razões
para supor que as «idéias» - isto é, os objectos apreendidos
- têm de ser mentais não têm qualquer validade. Por isso, as
suas razões a favor do idealismo podem ser rejeitadas. Resta
saber se há outras razões.
Diz-se muitas vezes, como se fosse um truísmo auto-evi-
dente, que não podemos saber que existe seja o que for que
não conheçamos. Infere-se que seja o que for que possa de
algum modo ser relevante para a nossa experiência tem de
ser pelo menos susceptível de ser conhecido por nós; assim,
segue-se que se a matéria fosse essencialmente algo com o
IDEALISMO 105

qual não pudéssemos entrar em contacto, a matéria seria algo


que não poderiamos saber que existe, e não podería ter para
nós qualquer importância. Sugere-se habitualmente também,
por razões que permanecem obscuras, que o que não pode
ter importância para nós não pode ser real e que portanto a
matéria, se não for composta de mentes ou de idéias mentais,
é impossível e uma quimera.
Entrar neste argumento integralmente nesta fase seria
impossível, pois levanta aspectos que exigem uma discussão
prelim inar considerável; mas pode-se assinalar desde já
algumas razões para rejeitar o argumento. Para começar
pelo fim: não há razão para que o que não tem para nós
qualquer importância prática não seja real. E verdade que,
caso se inclua a importância teórica, tudo o que é real tem
alguma importância para nós, dado que, como pessoas que
desejam conhecer a verdade sobre o universo, temos algum
interesse em tudo o que o universo contém. Mas se este tipo
de interesse for incluído, não é verdade que a matéria não
tenha importância para nós; tem-na, desde que exista, mesmo
que não possamos saber que existe. Podemos, obviamente,
suspeitar que pode existir, e perguntarmo-nos se existe; por
isso, tem uma conexão com o nosso desejo de conhecer, e
tem a importância de ou satisfazer ou frustrar este desejo.
Uma vez mais, não é de modo algum um truísmo, e é de
facto falso, que não podemos saber que existe seja o que for
que não sabemos. A palavra «saber» é usada aqui em dois
sentidos diferentes. 1) No seu primeiro uso é aplicável ao
tipo de conhecimento que se opõe ao erro, o sentido em
que o que sabemos é verdadeiro, o sentido que se aplica às
nossas crenças e convicções, isto é, ao que se chama juízos.
Neste sentido da palavra sabemos que algo é o caso. Pode-se
descrever este gênero de conhecimento como conhecimento
de verdades. 2) No segundo uso anterior da palavra «saber»,
a palavra aplica-se ao nosso conhecimento de coisas, a que
106 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

podemos chamar contacto. Este é o sentido em que conhece­


mos os dados dos sentidos. (A distinção envolvida é aproxi­
madamente a existente entre savoir e connaitre em francês,
ou entre wissen e kennen em alemão.) (34)
Assim, a afirmação que parecia um truísmo torna-se,
quando reformulada, o seguinte: «Nunca podemos ajuizar
que existe algo com o qual não temos contacto». Isto não é de
modo algum um truísmo, sendo pelo contrário uma falsidade
palpável. Não tenho a honra de ter contacto com o Imperador
da China, mas ajuizo em verdade que ele existe. Pode-se dizer,
claro, que o ajuizo porque outras pessoas têm contacto com
ele. Isto, contudo, seria uma réplica irrelevante dado que, se o
princípio fosse verdadeiro, eu não podería saber que qualquer
outra pessoa tem contacto com ele. Mas mais: não há razão para
que eu não saiba da existência de algo com o qual ninguém tem
contacto. Este aspecto é importante, e exige elucidação.
Se tenho contacto com um a coisa que existe, o meu
contacto dá-me o conhecimento de que existe. Mas não é
verdade que, pelo contrário, sempre que posso saber que
uma coisa de um certo gênero existe, eu ou alguém tem de
ter contacto com a coisa. O que acontece, em casos em que
tenho um juízo verdadeiro sem contacto, é que a coisa é por
mim conhecida por descrição, e, em virtude de um princípio
geral, a existência de uma coisa que responde a esta descrição
pode ser inferida da existência de algo com o qual tenho con­
tacto. Para compreender este aspecto completamente, será
bom lidar primeiro com a diferença entre conhecimento por
contacto e conhecimento por descrição, considerando depois
que conhecimento de princípios gerais, se é que há algum,
tem o mesmo tipo de certeza que o nosso conhecimento da
existência das nossas próprias experiências. Estes assuntos
serão tratados nos capítulos seguintes.

(34) Cf. Introdução, «Contacto», p. xxix.


5.

Conhecimento por contacto


e conhecimento por descrição

No capítulo anterior vimos que há dois gêneros de


conhecimento: conhecimento de coisas e conhecimento de
verdades. Neste capítulo ocupar-nos-emos exclusivamente
do conhecim ento de coisas, do qual por seu turno teremos
de distinguir dois tipos. O conhecim ento de coisas, quando
é do tipo a que chamamos conhecim ento por contacto, é
essencialmente mais simples do que qualquer conhecimento
de verdades, e é logicamente independente do conheci­
mento de verdades, mas seria precipitado pressupor que
os seres humanos alguma vez estão, de facto, em contacto
com coisas sem ao mesmo tempo saber alguma verdade
sobre elas. O conhecim ento de coisas por descrição, pelo
contrário, envolve sempre, como veremos no decorrer deste
capítulo, algum conhecim ento de verdades como sua fonte
e fundam ento. Mas primeiro que tudo temos de clarificar
o que queremos dizer por «contacto» e o que queremos
dizer por «descrição».
■Diremos que temos contacto com seja o que for do qual
estamos directamente cientes, sem ser por interm édio de
108 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

quaisquer processos de inferência ou qualquer conheci­


m ento de verdades. Assim, na presença da m inha mesa
tenho contacto com os dados dos sentidos que constituem a
aparência da m inha mesa - a sua cor, forma, dureza, lisura,
etc.; tudo isto são coisas das quais tenho consciência imediata
quando estou a ver e a tocar a minha mesa. Do tom particular
de cor que estou a ver muitas coisas se podem dizer - posso
dizer que é castanho, bastante escuro, e assim por diante.
Mas tais afirmações, apesar de me fazerem saber verdades
sobre a cor, não me fazem conhecer a cor em si m elhor do
que conhecia antes: no que respeita ao conhecimento da
cor em si, ao contrário do conhecimento de verdades sobre
ela, conheço a cor perfeita e com pletam ente quando a
vejo, e mais nenhum conhecimento de si própria é sequer
teoricam ente possível. Assim, os dados dos sentidos que
constituem a aparência da m inha mesa são coisas com as
quais tenho contacto, coisas imediatamente conhecidas por
mim exactamente como são.
O meu conhecimento da mesa enquanto objecto físico, pelo
contrário, não é conhecimento directo. Embora limitado, é ob­
tido por contacto com os dados dos sentidos que constituem a
aparência da mesa. Vimos que é possível, sem absurdo, duvidar
se há de todo em todo uma mesa, ao passo que não é possível
duvidar dos dados dos sentidos. O meu conhecimento da mesa
é do tipo a que iremos chamar «conhecimento por descrição».
A mesae «o objecto físico que causa tais e tais dados dos senti­
dos». Isto descreve a mesa por meio dos dados dos sentidos. Para
saber seja o que for da mesa, temos de conhecer verdades que
a liguem a coisas com as quais temos contacto: temos de saber
que «tais e tais dados dos sentidos são causados por um objec­
to físico». Não há qualquer estado mental no qual estejamos
directamente cientes da mesa; todo o nosso conhecimento da
mesa é na realidade conhecimento de verdades e, estritamente
falando, a própria coisa que a mesa é não é de modo algum
conhecida por nós. Conhecemos uma descrição, e sabemos
CONHECIMENTO POR CONTACTO... 109

LCCÍ- que há apenas um objecto ao qual a descrição se aplica, apesar


iesa de o próprio objecto não ser directamente conhecido por nós.
m a Em tal caso, dizemos que o nosso conhecimento do objecto é
ura, conhecimento por descrição.
iiata Todo o nosso conhecimento, tanto o conhecimento de
:ular coisas como o conhecimento de verdades, tem como funda­
osso mento o contacto. É por isso importante considerar que tipos
mte. de coisas há com as quais temos contacto.
ades Os dados dos sentidos, como vimos, estão entre as coisas
\r do com as quais temos contacto; de facto, fornecem o exemplo
;o da mais óbvio e flagrante de conhecimento por contacto. Mas
obre se fossem o único exemplo, o nosso conhecimento seria
do a muito mais restrito do que é. Saberiamos apenas o que está
:quer agora presente aos nossos sentidos: nada poderiamos saber
>que sobre o passado - nem mesmo que houve um passado - nem
>m as poderiamos saber quaisquer verdades sobre os nossos dados
is por dos sentidos, pois todo o conhecimento de verdades, como
iremos mostrar, exige contacto com coisas que têm um ca-
>,pelo - rácter essencialmente diferente dos dados dos sentidos, as
,éob- coisas a que por vezes se chama «idéias abstractas», mas a
uema que chamaremos «universais». Temos, consequentemente,
avidar ■ de considerar o contacto com outras coisas além dos dados
3ssível : dos sentidos para que possamos obter uma análise adequada
imesa do nosso conhecimento.
ição». A primeira extensão para lá dos dados dos sentidos a ser
ssenti- considerada é o contacto pela memória. E óbvio que nos lem­
■s. Para , bramos muitas vezes do que vimos ou ouvimos ou tivemos
.es que de outro modo presente aos nossos sentidos, e que em tais
s saber casos estamos mesmo assim imediatamente cientes do que
. objee nos lembramos, apesar do facto de aparecer como passado
ejamos e não como presente. Este conhecim ento imediato pela
mto da memória é a fonte de todo o nosso conhecimento sobre o
tmente passado: sem ele, não podería haver conhecimento do pas­
algum sado por inferência, dado que nunca saberiamos que houve
ibemos algo anterior para se inferir.
!

110 | OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

A extensão seguinte a ser considerada é o contacto por


introspecção. Não estamos apenas cientes de coisas, estamos
também muitas vezes cientes de estar cientes delas. Quando
vejo o Sol, estou muitas vezes ciente do facto de eu ver o Sol;
assim, «o eu ver o Sol» é um objecto com o qual estou em
contacto. Q uando desejo comida, posso estar ciente do
meu desejo por comida; assim, «o eu desejar comida» é um
objecto com o qual estou em contacto. De igual modo,
podemos estar cientes do nosso sentir prazer ou dor, e em
geral dos acontecimentos que ocorrem nas nossas mentes.
Este tipo de contacto, a que se pode chamar autoconsciência,
é a fonte de todo o nosso conhecimento das coisas mentais. E
óbvio que só o que ocorre nas nossas próprias mentes pode
ser assim conhecido imediatamente. O que ocorre nas mentes
de outros é conhecido por nós através da nossa percepção dos
seus corpos, isto é, através dos dados dos sentidos em nós que
estão associados aos seus corpos. Não fosse o contacto com
os conteúdos das nossas próprias mentes, seríamos incapazes
de imaginar as mentes dos outros, e logo nunca poderiamos
chegar ao conhecimento de que têm mentes. Parece natural
supor que a autoconsciência é uma das coisas que distingue
o homem dos animais: os animais, podemos supor, apesar de
terem contacto com os dados dos sentidos, nunca se tornam
cientes deste contacto. Não quero dizer que duvidem da sua
existência, mas antes que nunca adquirem consciência do
facto de que têm sensações e sentires nem, portanto, do facto
de que eles, os sujeitos das suas sensações e sentires, existem.
Falámos do contacto com os conteúdos das nossas mentes
como autoconsciência, mas não se trata, é claro, de consci­
ência do nosso eu: é consciência de pensamentos e sentires
particulares. Saber se temos também consciência dos nossos
eus nus, e não apenas de pensamentos e sentires particulares,
é uma questão muito difícil, sobre a qual seria precipitado
falar peremp to riamente. Quando tentamos olhar para nós
mesmos parece que encontramos sempre um pensamento ou
CONHECIMENTO POR CONTACTO... 111

sentir particular, e não o «eu» que tem o pensamento ou o


sentir. Contudo, há algumas razões para pensar que estamos
em contacto com o «eu», apesar de o contacto ser difícil de
desenredar de outras coisas. Para tornar claro que gênero
de razão há, consideremos por um momento o que o nosso
contacto com pensamentos particulares envolve realmente.
Quando estou em contacto com «o meu ver o Sol», parece
claro que estou em contacto com duas coisas diferentes que
se relacionam entre si. Por um lado, há o dado dos sentidos
que representa o Sol para mim, por outro há aquilo que
vê este dado dos sentidos. Todo o contacto, como o meu
contacto com o dado dos sentidos que representa o Sol, pa­
rece obviamente uma relação entre a pessoa contactada e o
objecto com o qual a pessoa contacta. Quando um caso de
contacto é tal que posso ter contacto com ele (como estou
em contacto com o meu contacto com o dado dos sentidos
que representa o Sol), é claro que a pessoa contactada sou
eu próprio. Assim, quando estou em contacto com o meu
ver o Sol, o facto completo com o qual estou em contacto é
«auto-contacto-com-o-dado-dos-sentidos».
Acresce que conhecemos a verdade «Estou em contacto
com este dado dos sentidos». E difícil ver como poderiamos
conhecer esta verdade, ou até compreender o que significa,
a não ser que tenhamos contacto com algo a que chamamos
«eu». Não parece necessário supor que temos contacto com
uma pessoa mais ou menos perm anente, a mesma hoje que
a de ontem, mas parece que temos de ter contacto com essa
coisa, seja qual for a sua natureza, que vê o Sol e tem contacto
com dados dos sentidos. Assim, num certo sentido, parece
que temos de ter contacto com os nossos eus enquanto algo
de distinto das nossas experiências particulares. Mas a ques­
tão é difícil e pode-se aduzir argumentos complicados de
qualquer dos lados. Por isso, apesar de o contacto connosco
próprios parecer provavelmente ocorrer, não é avisado afirmar
que ocorre indubitavelmente.
112 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Podemos portanto resumir como se segue o que se disse


com respeito ao contacto com coisas que existem. Temos con­
tacto na sensação com os dados dos sentidos externos, e na
introspecção com os dados do que se pode chamar o sentido
interno - pensamentos, sentires, desejos, etc.; temos contacto
na memória com coisas que foram dados dos sentidos exter­
nos ou do sentido interno. Além disso, é provável, apesar de
não ser certo, que temos contacto com o eu, enquanto aquilo
que está ciente de coisas ou tem desejos de coisas.
Complementarmente ao nosso contacto com coisas parti­
culares existentes, temos também contacto com o que iremos
chamar universais, ou seja, idéias gerais, como brancura, diversi­
dade, irmandade, e assim por diante. Todas as frases completas
têm de conter pelo menos uma palavra para um universal,
dado que todos os verbos têm um significado que é universal.
Regressaremos aos universais mais tarde, no capítulo 9; por
agora basta prevenirmo-nos contra a suposição de que aquilo
com o qual podemos ter contacto tem de ser algo particular
e existente. Estar ciente de universais chama-se conceber, e um
universal do qual estamos cientes chama-se um conceito.
Veremos que entre os objectos com os quais temos con­
tacto não se inclui objectos físicos (ao contrário dos dados
dos sentidos), nem as mentes de outras pessoas. Estas coisas
são conhecidas por nós pelo que chamo «conhecimento por
descrição», que temos agora de considerar.
Por uma «descrição» quero dizer qualquer expressão da
forma «um tal e tal» ou «o tal e tal». A uma expressão da
forma «um tal e tal» chamarei uma descrição «ambígua»; a
uma expressão da forma «o tal e tal» (no singular) chamarei
uma descrição «definida». Assim, «um homem» é uma des­
crição ambígua, e «o homem da máscara de ferro» é uma
descrição definida. Há vários problemas relacionados com
as descrições ambíguas, mas deixo-as de lado porque não
dizem respeito directamente ao que estamos a discutir, que
é a natureza do nosso conhecimento relativo a objectos em
CONHECIMENTO POR CONTACTO... 113

casos em que sabemos que há um objecto que responde a


uma descrição definida, apesar de não termos contacto com tal
objecto. Esta é uma questão que diz respeito exclusivamente a
descrições definidas (35) . Passarei por isso a falar simplesmente
de «descrições» quando quero dizer «descrições definidas».
Assim, uma descrição será qualquer expressão da forma «o
tal e tal» no singular.
Diremos que um objecto é «conhecido por descrição»
quando sabemos que é «o tal e tal», isto é, quando sabemos
que há um objecto, e não mais, que tem uma certa proprieda­
de; e em geral será subentendido que não temos conhecimen­
to do mesmo objecto por contacto. Sabemos que o homem da
máscara de ferro existiu, e conhecem-se muitas proposições
sobre ele; mas não sabemos quem ele era. Sabemos que o
candidato que tiver mais votos será eleito, e neste caso é muito
provável que tenhamos contacto (no único sentido em que
se pode ter contacto com outra pessoa) com o homem que é,
de facto, o candidato que terá mais votos; mas não sabemos
qual dos candidatos é ele, isto é, não conhecemos qualquer
proposição da forma «A é o candidato que terá mais votos»,
em que A é um dos candidatos referidos pelo nome. Dire­
mos que temos «mero conhecimento descritivo» do tal e tal
quando, apesar de sabermos que o tal e tal existe, e apesar de
podermos possivelmente ter contacto com o objecto que é, de
facto, o tal e tal, não conhecemos qualquer proposição «ac o
tal e tal», em que a é algo com o qual temos contacto.
Quando dizemos «o tal e tal existe», queremos dizer que
há apenas um objecto que é o tal e tal. A proposição «ac o tal
e tal» significa que a tem a propriedade tal e tal, e nada mais
a tem. «O Sr. A. é o candidato Unionista deste círculo eleito­
ral» significa «O Sr. A é um candidato Unionista deste círculo
eleitoral, e mais ninguém o é». «O candidato Unionista deste
círculo eleitoral existe» significa «alguém é um candidato

(35) Gf. Introdução, «Teoria das descrições», p. xxxrv.


114 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Unionista deste círculo eleitoral, e mais ninguém o é». Assim,


quando temos contacto com um objecto que é o tal e tal,
sabemos que o tal e tal existe; mas podemos saber que o tal e tal
existe quando não temos contacto com qualquer objecto que
saibamos ser o tal e tal, e mesmo quando não temos contacto
com qualquer objecto que, de facto, seja o tal e tal.
As palavras comuns, incluindo os nomes próprios, são habi­
tualmente na realidade descrições (%). Isto é, o pensamento na
mente de uma pessoa que usa um nome próprio correctamente
em geral só pode ser expresso explicitamente se substituirmos
o nome próprio por uma descrição. Além disso, a descrição
exigida para exprimir o pensamento irá variar para pessoas
diferentes, ou para a mesma pessoa em momentos diferentes.
A única coisa constante (desde que o nome seja correctamente
usado) é o objecto ao qual o nome se aplica. Mas desde que
isto permaneça constante, a descrição particular envolvida
não faz habitualmente diferença no que respeita à verdade ou
falsidade da proposição na qual o nome aparece.
Vejamos algumas ilustrações. Suponha-se uma afirmação
sobre Bismarck. Presumindo que temos realmente contac­
to directo connosco mesmos, o próprio Bismarck poderia
ter usado o seu nome directamente para designar a pessoa
particular com a qual ele tinha contacto. Neste caso, se ele
fizesse um juízo sobre si próprio, ele próprio poderia ser um
constituinte do juízo. Aqui, o nome próprio tem o uso directo
que sempre deseja ter, estando simplesmente em lugar de
um objecto, e não de uma descrição do objecto. Mas se uma
pessoa que conheceu Bismarck fez um juízo sobre ele, o caso
é diferente. Aquilo com o qual esta pessoa estava em contac­
to era certos dados dos sentidos que ligou (correctamente,
suponha-se) ao corpo de Bismarck. O seu corpo, enquanto
objecto físico, e ainda mais a sua mente, só eram conhecidos
como o corpo e a mente que tinham uma conexão com esses

(36) Cf. Introdução, «Teoria dos nomes próprios», p. x x x v ii .


CONHECIMENTO POR CONTACTO... 115

dados dos sentidos. Isto é, eram conhecidos por descrição.


E claro que ê em grande parte uma questão de acaso quais
as características da aparência de um homem que virão à
mente de um amigo quando este pensa sobre ele; assim, a
descrição efectivamente na mente do amigo é acidental. O
aspecto essencial é que ele sabe que as várias descrições se
aplicam todas à mesma entidade, apesar de não ter contacto
com a entidade em questão.
. Quando nós, que não conhecemos Bismarck, fazemos
um juízo sobre ele, a descrição nas nossas mentes será prova­
velmente uma massa mais ou menos vaga de conhecimento
histórico - muito mais, na maior parte dos casos, do que é
necessário para o identificar. Mas, para efeitos de ilustração,
presumamos que pensamos nele como «o primeiro Chanceler
do Império Alemão». Neste caso, todas as palavras são abstrac-
tas, excepto «Alemão». A palavra «Alemão» terá, uma vez mais,
diferentes significados para diferentes pessoas. Para algumas,
lembrará viagens na Alemanha, para outras a aparência da
Alemanha no mapa, e assim por diante. Mas para obtermos
uma descrição que sabemos ser aplicável, seremos obrigados,
em algum ponto, a introduzir uma referência a um particular
com o qual temos contacto. Tal referência está envolvida em
qualquer menção do passado, presente e futuro (em contraste
com datas definidas), ou do aqui e ali, ou do que outros nos
disseram. Assim, parece que, de um ou de outro modo, uma
descrição que sabemos ser aplicável a um particular tem de
envolver alguma referência a um particular com o qual temos
contacto, se o nosso conhecimento da coisa descrita não for
meramente o que se segue logicamente da descrição. Por exem­
plo, «o homem com maior longevidade» é uma descrição que
só envolve universais, que tem de se aplicar a algum homem,
mas não podemos fazer juízos sobre este homem que envolvam
conhecimento sobre ele para lá do que a descrição fornece.
Contudo, se dissermos «O primeiro Chanceler do Império
Alemão era um diplomata astuto», só podemos assegurar-nos
116 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

da verdade do nosso juízo em virtude de algo com o qual temos


contacto - habitualmente, um testemunho ouvido ou lido. A
parte a informação que transmitimos aos outros, à parte o facto
sobre o próprio Bismarck, que dá importância ao nosso juízo,
o pensamento que realmente temos contém o particular ou
particulares envolvidos, e a não ser isso é constituído inteira­
mente de conceitos.
Todos os nomes de lugares - Londres, Inglaterra, Europa,
a Terra, o Sistema Solar - envolvem, de igual modo, quando
usados, descrições que partem de um ou mais particulares
com os quais temos contacto. Suspeito que mesmo o Uni­
verso, tal como é considerado pela metafísica, envolve tal
conexão com particulares. A lógica, pelo contrário, onde nos
ocupamos não apenas com o que existe, mas com seja o que
for que podería ou pode existir ou ser, não envolve qualquer
referência a particulares propriamente ditos (37) .
Parecería que, quando fazemos um a afirmação sobre
algo conhecido apenas por descrição, temos muitas vezes a
intenção de afirmar algo não na forma que envolve a descrição
mas sobre a própria coisa descrita. Ou seja, quando dizemos
algo sobre Bismarck gostaríamos, se pudéssemos, de fazer o
juízo que só o próprio Bismarck pode fazer, nomeadamente,
o juízo do qual ele próprio é um constituinte. Nisto somos
necessariamente derrotados, dado que desconhecemos o pró­
prio Bismarck. Mas sabemos que há um objecto B, chamado
Bismarck, e que B foi um diplomata astuto. Podemos por
isso descrever a proposição que quereriamos afirmar, nomea­
damente, «B foi um diplomata astuto», em que B é o objecto

(37) Russell tem em mente o facto de na lógica se usar símbolos


como a, por exem plo, para qualquer nom e próprio. Assim, Fa
significa que o particular a tem a propriedade F. Uma afirmação como
«Sócrates é sábio» exibe precisamente a forma Fa, pelo que é um a das
suas instâncias, mas na lógica em si não se faz qualquer referência a
particulares propriamente ditos, como Sócrates.
CONHECIMENTO POR CONTACTO... 117

que foi Bismarck. Se estamos a descrever Bismarck como


«o primeiro Chanceler do Império Alemão», a proposição
que quereriamos afirmar pode ser descrita como «a propo­
sição que assere, com respeito ao próprio objecto que foi o
primeiro Chanceler do Império Alemão, que este objecto era
um diplomata astuto». O que nos permite comunicar apesar
das diferentes descrições que empregamos é que sabemos que
há uma proposição verdadeira que diz respeito ao próprio
Bismarck, e por mais que façamos variar a descrição (desde
que a descrição seja correcta), a proposição descrita é ainda
a mesma. Esta proposição, que é descrita e que se sabe ser
verdadeira, é o que nos interessa; mas não estamos em con­
tacto com a própria proposição, e não a conhecemos, apesar
de sabermos que é verdadeira.
Veremos que há vários estádios no afastamento do contacto
com particulares: há Bismarck relativamente às pessoas que
o conheciam; Bismarck relativamente a quem só o conhece
através da história; o homem da máscara de ferro; o homem
com maior longevidade. Estes estão progressivamente mais
afastados do contacto com particulares; o primeiro está tão
próximo quanto é possível com respeito a outra pessoa; no
segundo, pode-se ainda dizer que sabemos «quem era Bis­
marck»; no terceiro, não sabemos quem era o homem da
máscara de ferro; no quarto, finalmente, nada sabemos além
do que é logicamente dedutível da definição do homem. Há
■uma hierarquia análoga na região dos universais. Muitos uni­
versais, tal como muitos particulares, só são conhecidos por
nós por descrição. Mas aqui, como no caso dos particulares,
o conhecimento que diz respeito ao que é conhecido por
descrição é em última análise redutível ao conhecimento que
diz respeito ao que é conhecido por contacto.
■ O princípio fundamental na análise das proposições que
contêm descrições é este: Toda a proposição que podemos com­
preender tem de ser completamente composta de constituintes com os
quais estamos em contacto.
118 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Não tentaremos nesta fase responder a todas as objecções


que podem ser avançadas contra este princípio fundamental.
Para já, diremos apenas que, de um ou de outro modo, tem
de ser possível responder a tais objecções, pois dificilmente é
concebível que possamos fazer um juízo ou considerar uma
suposição sem conhecer o que estamos a ajuizar ou a supor.
Temos de atribuir algum significado às palavras que usamos,
para que possamos falar significativamente e não proferir
mero ruído; e o significado que atribuímos às nossas pala­
vras tem de ser algo com o qual estamos em contacto. Assim,
quando, por exemplo, fazemos uma afirmação sobre Júlio
César, é claro que o próprio Júlio César não está perante as
nossas mentes, dado que não estamos em contacto com ele.
Temos em mente uma descrição de Júlio César: «o homem que
foi assassinado nos Idos de Março», «o fundador do Império
Romano», ou, talvez, apenas «o homem cujo nome era Júlio
César». (Nesta última descrição, Júlio Césaré um ruído ou con­
figuração com o qual estamos em contacto.) Assim, a nossa
afirmação não significa exactamente o que parece significar,
mas significa algo que envolve, em vez de Júlio César, uma
descrição sua que é completamente composta de particulares
e universais com os quais estamos em contacto.
A importância principal do conhecimento por descrição
é que nos permite ir além dos limites da nossa experiência
privada. Apesar do facto de poderm os apenas conhecer
verdades que são completamente compostas de termos de
que tivemos experiência por contacto, podemos contudo ter
conhecimento por descrição de coisas de que nunca tivemos
experiência. Face ao âmbito muitíssimo restrito da nossa
experiência imediata, este resultado é vital e, enquanto não
for compreendido, muito do nosso conhecimento continuará
forçosamente misterioso e logo duvidoso.
6.

Sobre a indução

Em quase todas as discussões anteriores ocupámo-nos


da tentativa de esclarecer as coisas com respeito aos nossos
dados quanto ao conhecimento da existência. Que coisas
há no universo cuja existência é conhecida por nós devido
a termos contacto com elas? Até agora, a nossa resposta foi
que temos contacto com os nossos dados dos sentidos e,
provavelmente, connosco próprios. Isso sabemos que existe.
E sabe-se que existiram no passado os dados dos sentidos do
passado que são lembrados. Este conhecimento fornece os
nossos dados.
Mas para que possamos fazer inferências a partir destes
dados - para que saibamos da existência da matéria, de outras
pessoas, do passado anterior ao começo da nossa memória
individual, ou do futuro - temos de conhecer princípios
gerais de algum tipo por meio dos quais se possam fazer
tais inferências. Temos de saber que a existência de um gê­
nero qualquer de coisa A é um sinal da existência de outro
gênero qualquer de coisa B, seja ao mesmo tempo de A seja
antes ou depois, como, por exemplo, o trovão é um sinal da
existência anterior do relâmpago. Se não soubéssemos isto,
120 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

nunca poderiamos alargar o nosso conhecimento para lá


da esfera da nossa experiência privada; e esta esfera, como
vimos, é excessivamente limitada. A questão que temos agora
de considerar é a de saber se tal extensão é possível e, se o
for, como é engendrada.
Tomemos como ilustração um assunto sobre o qual ne­
nhum de nós, de facto, sente a mínima dúvida. Estamos todos
convencidos de que o Sol irá nascer amanhã (38). Porquê?
Será esta crença um mero resultado cego da experiência
anterior, ou poder-se-á justificar como uma crença razoável?
Não é fácil encontrar um teste que permita ajuizar se uma
crença deste tipo é razoável ou não, mas podemos pelo menos
estabelecer que gênero de crenças gerais seriam suficientes,
se fossem verdadeiras, para justificar o juízo de que o Sol irá
nascer amanhã, e os muitos outros juízos similares nos quais
as nossas acções se baseiam.
E óbvio que se nos perguntarem porque acreditamos
que o Sol irá nascer amanhã, responderemos, naturalmente:
«Porque sempre nasceu todos os dias». Temos uma crença
firme de que irá nascer no futuro porque nasceu no passado.
Se nos desafiarem a dizer por que acreditamos que continuará
a nascer como até agora, podemos apelar às leis do movimen­
to: a Terra, diremos, é um corpo em rotação livre, e a rotação
de tais corpos não pára a não ser que algo interfira a partir
do exterior, e nada há para interferir com a Terra a partir do
exterior entre agora e amanhã. Claro que se pode duvidar se
há realmente a certeza de que nada há que possa interferir
a partir do exterior, mas esta não é a dúvida interessante.
A dúvida interessante é se as leis do movimento continuarão

(38) Russell usa precisam ente o m esm o exem plo de H um e


(Investigação sobre o Entendimento Humano, op. cit, séc. IV, § 21). Cf
Introdução, «O problema da indução», p. xviii.
SOBRE A INDUÇÃO 121

•a lá a operar até amanhã. Se se levantar esta dúvida, ficamos na


)H10 mesma posição em que estávamos quando a dúvida sobre o
>'ora nascimento do Sol foi levantada.
se o A única razão para acreditar que as leis do movimento
permanecerão em operação é que operaram até agora, tanto
. ne- quanto o nosso conhecimento do passado nos permite ajuizar.
)dos E verdade que temos um maior corpo de indícios do passado
|uê? a favor das leis do movimento do que a favor do nascimento
ncia do Sol, pois o nascimento do Sol é apenas um caso particular
ivel? de cumprimento das leis do movimento, havendo inúmeros
uma outros casos particulares. Mas a verdadeira questão é esta:
mos Há algum núm ero de casos de uma lei cumprida no passado
ites, que constitua indício de que será cumprida no futuro? Se
A irá não, torna-se claro que não temos qualquer fundam ento
[uais para esperar que o Sol nasça amanhã, ou para esperar que
o pão que iremos comer na nossa próxima refeição não nos
mos irá envenenar, ou para qualquer das outras expectativas
uite: quase não conscientes que controlam as nossas vidas diárias.
snça Observe-se que todas estas expectativas são apenas prováveis;
ado. por isso, não temos de procurar uma prova de que têm de ser
uará cumpridas, mas apenas uma razão a favor da perspectiva de
nen- que é plausível que sejam cumpridas.
ação Ora, ao lidar com esta questão temos, para começar,
artir de fazer uma distinção importante, sem a qual cairiamos
ir do rapidam ente em confusões irremediáveis. A experiência
ar se mostrou-nos que, até agora, a repetição frequente de uma
ferir sucessão uniforme ou coexistência tem sido um a causa da
inte. nossa expectativa de que a mesma sucessão ou coexistência
arão ocorrerá na próxima ocasião. A comida que tem um a certa
aparência geralmente tem um certo sabor, e é um choque
brutal para as nossas expectativas quando descobrimos que
lume
). Cf. uma aparência familiar está associada a um sabor invulgar.
As coisas que vemos ficam associadas, por hábito, a certas
122 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

sensações tácteis que esperamos encontrar se lhes tocarmos;


um dos horrores de um fantasma (em muitas histórias de fan­
tasmas) é que não nos dá qualquer sensação de tacto. Pessoas
iletradas que vão ao estrangeiro pela primeira vez ficam tão
surpreendidas que nem acreditam quando descobrem que
a sua língua nativa não é compreendida.
E este tipo de associação não se limita aos homens; nos
animais é também muito forte. Um cavalo que foi muitas
vezes conduzido por determ inada estrada resiste à tentativa
de ser conduzido num a direcção diferente. Os animais
domésticos ficam à espera de comida quando vêem a pessoa
que habitualm ente as alimenta. Sabemos que estas expec­
tativas de uniform idade algo grosseiras estão sujeitas ao
engano. O homem que alimentou a galinha todos os dias ao
longo da sua vida finalmente torce-lhe o pescoço, mostrando
que teriam sido úteis à galinha perspectivas mais aprimoradas
quanto à uniformidade da natureza.
Mas apesar do carácter enganador de tais expectativas, elas
existem. O mero facto de que algo aconteceu um certo núme­
ro de vezes é causa da expectativa de animais e homens de que
irá acontecer outra vez. Assim, os nossos instintos certamente
que causam em nós a crença de que o Sol irá nascer amanhã,
mas podemos não estar em melhor posição do que a galinha
cujo pescoço é inesperadamente torcido. Temos portanto de
distinguir o facto de as uniformidades do passado causarem
expectativas quanto ao futuro, da questão de saber se há algum
fundamento razoável para dar peso a tais expectativas depois
de a questão da sua validade ter sido levantada.
O problema que temos de discutir é o de saber se há algu­
ma razão para acreditar no que se chama «a uniformidade da
natureza». A crença na uniformidade da natureza é a crença
de que tudo o que aconteceu ou acontecerá é uma instância
de uma lei geral relativamente à qual não há qualquer cep-
ção. As expectativas grosseiras que considerámos até agora
SOBRE A INDUÇÃO 123

estão todas sujeitas a excepções, e portanto são susceptíveis de


desapontar quem as tiver. Mas a ciência habitualmente pres­
supõe, pelo menos como hipótese de trabalho, que as regras
gerais que têm excepções podem ser substituídas por regras
gerais que não têm excepções. «Corpos sem sustentação no
ar caem» é uma regra geral relativamente à qual os balões
e aviões são excepções. Mas as leis do movimento e a lei da
gravitação, que dão conta do facto de que a maior parte dos
objectos cai, dão também conta do facto de que os balões e
os aviões podem elevar-se; assim, as leis do movimento e a lei
da gravitação não estão sujeitas a estas excepções.
A crença de que o Sol irá nascer amanhã poderia ser falsifi­
cada se a Terra contactasse subitamente com um corpo grande
que destruísse a sua rotação; mas as leis do movimento e a lei
da gravitação não seriam infringidas por tal acontecimento.
A tarefa da ciência é encontrar uniformidades, como as leis
do movimento e a lei da gravitação, relativamente às quais,
tanto quanto a nossa experiência nos permite ver, não há
excepções. Nesta procura, a ciência foi extraordinariamente
bem-sucedida, e pode-se conceder que tais uniformidades se
mantiveram até agora. Isto leva-nos de volta à nossa questão:
temos alguma razão, presumindo que sempre se verificaram
no passado, para supor que se verificarão no futuro?
Argumentou-se que temos razão para saber que o futuro
será semelhante ao passado porque o que foi o futuro se tem
tornado constantemente o passado, e sempre se descobriu
que era semelhante ao passado, de modo que na realidade
temos experiência do futuro, nomeadamente de momentos
que foram antes futuro, a que podemos chamar futuros do
passado. Mas tal argumento é na realidade uma petição de
princípio. Temos experiência de futuros do passado, mas não
de futuros do futuro, e a questão é esta: serão os futuros do
futuro semelhantes aos futuros do passado? A esta questão
não se responde com um argumento que parta apenas dos
124 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

futuros do passado. Logo, temos ainda de procurar um prin- |


cípio qualquer que nos permita saber que o futuro seguirá
as mesmas leis que o passado. j
A referência ao futuro nesta questão não é essencial. Surge ;
a mesma questão quando aplicamos as leis que funcionam :
na nossa experiência a coisas do passado das quais não temos ;
experiência - como, por exemplo, na geologia, ou em teorias
sobre a origem do Sistema Solar. A questão que temos real­
mente de perguntar é esta: «Quando se descobre que duas
coisas estão frequentemente associadas, e nenhum a instância j
se conhece em que uma ocorra sem a outra, a ocorrência de j
uma das duas, numa instância nova, dá alguma boa base para i
contar com a outra?» Da nossa resposta a esta questão tem 1
de depender a validade da totalidade das nossas expectativas
quanto ao futuro, a totalidade dos resultados obtidos por ;
indução e de facto praticamente todas as crenças nas quais
se baseia a nossa vida quotidiana. j
Tem de se conceder, para começar, que o facto de se en­
contrar duas coisas frequentemente juntas e nunca separadas
não é suficiente, só por si, para provar demonstrativamente
que as encontraremos juntas no próximo caso que examinar- ;
mos. O máximo que podemos almejar é que quanto mais fre- j
quentem ente as coisas se encontrarem juntas, mais provável
se torna que se encontrarão juntas noutro momento, e que, j
se se encontrarem juntas suficientes vezes, a probabilidade j
será quase uma certeza. Nunca pode chegar realmente à cer- !
teza porque sabemos que, apesar de repetições frequentes, j
há por vezes uma falha no fim, como no caso da galinha a
que se torce o pescoço. Assim, tudo o que devemos procurar
é a probabilidade.
Poder-se-ia insistir, contra a perspectiva que estamos a
advogar, que sabemos que todos os fenômenos naturais es­
tão sujeitos ao domínio da lei, e que por vezes, com base na
observação, podemos ver que só uma lei pode possivelmente
SOBRE A INDUÇÃO 125

ajustar-se aos factos do caso. Ora bem, há duas respostas a esta


perspectiva. A primeira é que mesmo que alguma lei que não
tenha excepções se aplique ao nosso caso, nunca podemos,
na prática, ter a certeza de que descobrimos essa lei e não
uma que tem excepções. A segunda é que o próprio domínio
da lei parece apenas provável, e que a nossa crença de que
irá verificar-se no futuro, ou em casos não examinados do
passado, se baseia, ela mesma, no mesmíssimo princípio que
estamos a examinar.
Pode-se chamar ao princípio que estamos a examinar prin­
cípio da indução e as suas duas partes podem ser formuladas
como se segue:
a) Quando se descobriu que uma coisa de um certo gê­
nero A está associada a uma coisa de outro gênero B,
e nunca se a viu dissociada de uma coisa do gênero B,
quanto maior for o núm ero de casos em que A e B
estão associados, maior a probabilidade de estarem
associados num caso novo no qual uma delas se saiba
estar presente;
b) Nas mesmas circunstâncias, um número suficiente de
casos de associação tornará a probabilidade de uma
nova associação quase uma certeza, e fará que se apro­
xime da certeza sem limite.

Tal como está formulado, o princípio aplica-se apenas à


verificação da nossa expectativa num a única instância nova.
Mas queremos também saber que há uma probabilidade a
favor da lei geral de que as coisas do gênero A estão sempre
associadas a coisas do gênero B, desde que um núm ero sufi­
ciente de casos de associação sejam conhecidos, e nenhuns
casos de inexistência de associação sejam conhecidos. A proba­
bilidade da lei geral é obviamente m enor do que a probabili­
dade do caso particular, dado que se a lei geral for verdadeira,
126 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

o caso particular tem também de ser verdadeiro, ao passo j


que o caso particular pode ser verdadeiro sem que a lei
geral seja verdadeira. Todavia, a probabilidade da lei geral
aumenta com as repetições, tal como a probabilidade do caso ;
particular. Podemos portanto repetir como se segue as duas j
partes do nosso princípio com respeito à lei geral: !
a) Quanto maior for o núm ero de casos nos quais se desco- j
briu que uma coisa do gênero A está em associação com j
uma coisa do gênero B, mais provável é que A esteja j
sempre associado a B (se não se conhecem quaisquer !
casos de inexistência de associação);
b) Nas mesmas circunstâncias, um núm ero suficiente de
casos da associação de A com B tornará quase certo
que A está sempre associado a B, e fará esta lei geral
aproximar-se ilimitadamente da certeza.
ii
Note-se que a probabilidade é sempre relativa a certos
dados. No nosso caso, os dados são m eram ente os casos
conhecidos de coexistência entre A e B. Pode haver outros
dados, que poderíam ser considerados, que alterariam grave­
mente a probabilidade. Por exemplo, um homem que viu
muitíssimos cisnes brancos poderá argumentar, usando o j
nosso princípio, que com base nos dados era provável que
todos os cisnes fossem brancos, e isto pode ser um argumento
perfeitam ente sólido. O argum ento não é refutado pelo
facto de alguns cisnes serem pretos porque uma coisa pode !
muito bem acontecer apesar de alguns dados a tornarem
improvável. No caso dos cisnes, um homem pode saber que
a cor é uma característica muito variável em muitas espécies
de animais e que, portanto, uma indução quanto à cor está
especialmente sujeita a erro. Mas este conhecimento seria
úm dado novo, não provando de modo algum que a proba­
bilidade relativamente aos nossos dados anteriores foi errada-
SOBRE A INDUÇÃO 127

mente calculada. Logo, o facto de as coisas muitas vezes não


corresponderem às nossas expectativas não ê indício de que
as nossas expectativas não serão provavelmente correspondidas
num dado caso ou numa dada classe de casos. Assim, o nosso
princípio indutivo não é em qualquer caso susceptível de ser
refutado por um apelo à experiência.
O princípio indutivo, contudo, é igualmente insuscep-
tível de ser provado apelando à experiência. A experiência
podería concebivelmente confirmar o princípio indutivo no
que respeita aos casos que já foram examinados; mas com
respeito a casos não examinados só o princípio indutivo
pode justificar qualquer inferência do que foi examinado
para o que não foi examinado. Todos os argumentos que,
com base na experiência, argumentam quanto ao futuro ou
quanto às partes do passado de que não tivemos experiência,
pressupõem o princípio indutivo; por isso, nunca podemos
usar a experiência para provar o princípio indutivo sem
fazer uma petição de princípio. Assim, temos ou de aceitar
o princípio indutivo com base na sua evidência intrínseca,
ou de renunciar a toda a justificação das nossas expectativas
; sobre o futuro. Se o princípio não é sólido, não temos razão
i para esperar que o Sol nasça amanhã, para esperar que o
i pão seja mais nutritivo do que uma pedra, ou para esperar
que se nos deitarmos do telhado abaixo iremos cair. Quando
. vemos o que parece o nosso melhor amigo a aproximar-se,
não teremos razão para supor que o seu corpo não está habi-
| tado pela mente do nosso pior inimigo ou de um estranho,
f Toda a nossa conduta se baseia em associações que funcio­
naram no passado, e que portanto consideramos plausível
que funcionem no futuro; e a validade desta plausibilidade
■depende do princípio indutivo.
Os princípios gerais da ciência, como a crença no primado
da lei, e a crença de que todo o acontecimento tem de ter
uma causa, dependem tão integralmente do princípio in-
128 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

dutivo quanto as crenças da vida quotidiana. Acreditamos {


em tais princípios gerais porque a humanidade descobriu j
inúmeros exemplos da sua verdade e nenhuns exemplos da j
sua falsidade. Mas isto não fornece um indício da sua verdade
no futuro, a não ser que se pressuponha o princípio indutivo.
Assim, todo o conhecimento que, com base na experiên- |
cia, nos diz algo sobre aquilo de que não temos experiência,
se baseia numa crença que a experiência não pode confirmar
nem refutar mas que, no entanto, pelo menos nas suas |
aplicações mais concretas, parece estar tão firmemente im- J
plantada em nós quanto muitos dos factos da experiência.
A existência e justificação de tais crenças - pois o princípio
indutivo, como veremos, não é o único exemplo - levanta
alguns dos problemas da filosofia mais difíceis e mais discu­
tidos. Consideraremos brevemente, no próximo capítulo, o
que se pode dizer para dar conta de tal conhecimento, e qual
é o seu âmbito e o seu grau de certeza.
tamos
:obriu
Aos da
:rdade
lutivo.
>eriên-
ência,
firmar
.s suas 7.
i.te im-
ência.
ncípio
O nosso conhecimento
evanta de princípios gerais
discu-
tulo, o
Vimos no capítulo anterior que o princípio da indução,
e qual
apesar de ser necessário para a validade de todos os argu­
mentos baseados na experiência, não é em si susceptível de
ser provado pela experiência, e contudo todas as pessoas
acreditam nele sem qualquer hesitação, pelo menos em
todas as suas aplicações concretas. O princípio da indução
não é o único que tem estas características. Há muitos outros
princípios que não podem ser provados nem refutados pela
experiência, mas que são usados em argumentos que partem
das nossas experiências.
Alguns destes princípios são ainda mais evidentes do que
o princípio da indução, e conhecemo-los com o mesmo grau
de certeza com que conhecemos a existência dos dados dos
sentidos. Constituem o meio de traçar inferências a partir
do que é dado na sensação; e para que seja verdadeiro o
que inferimos é tão necessário que os nossos princípios
de inferência sejam verdadeiros como é necessário que os
nossos dados sejam verdadeiros. Os princípios de inferência
tendem a ser ignorados por serem óbvios - aceitamos o pres-
130 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

suposto envolvido sem nos darmos conta de que é um pres­


suposto. Mas é muito importante darmo-nos conta do uso de
princípios de inferência, para podermos chegar a uma teoria
do conhecim ento correcta; pois o nosso conhecim ento
de tais princípios levanta questões interessantes e difíceis.
Em todo o nosso conhecim ento de princípios gerais o
que efectivamente acontece é que prim eiro de tudo damo-
-nos conta de uma aplicação particular do princípio, e de­
pois damo-nos conta de que a particularidade é irrelevante, j
e que há uma generalidade que pode com igual verdade ser
afirmada. Isto é evidentemente bem conhecido em matérias
como o ensino da aritmética: aprende-se primeiro que «dois
e dois são quatro» no caso de um par particular de pares, e
depois noutro caso particular, e assim por diante, até que
por fim se torna possível ver que é uma verdade de qualquer
par de pares. O mesmo acontece com os princípios lógicos. j
Suponha-se que dois homens estão a discutir qual é o dia do
mês. Um deles diz: «Pelo menos admitirás que se ontem foi
dia 15, hoje tem de ser dia 16». «Sim», diz o outro, «admito-o».
«E sabes», continua o primeiro, «que ontem foi dia 15 porque
jantaste com Jones, e a tua agenda irá dizer-te que isso foi
dia 15». «Sim», diz o segundo; «logo, hoje ê dia 16».
Ora, este argum ento não é difícil de seguir; e caso se
conceda que as suas premissas são de facto verdadeiras,
ninguém negará que a conclusão tem também de ser ver­
dadeira. Mas para ser verdadeira depende de uma instância
de um princípio lógico geral. O princípio lógico é como
se segue: «Suponha-se que se sabe que se isto é verdadeiro,
então aquilo é verdadeiro. Suponha-se também que se sabe
que isto ê verdadeiro; então, segue-se que aquilo é verda- j
deiro.» Quando acontece que se isto é verdadeiro, aquilo é j
verdadeiro, diremos que isto «implica» aquilo, e que aquilo
«se segue» de isto. Assim, o nosso princípio afirma que se
isto implica aquilo, e se isto é verdadeiro, então aquilo é
O NOSSO CONHECIMENTO DE PRINCÍPIOS GERAIS 131

i pres- verdadeiro. Por outras palavras, «qualquer coisa implicada


uso de por uma proposição verdadeira é verdadeira», ou «seja o
teoria que for que se segue de uma proposição verdadeira é ver­
aiento dadeiro» (39).
fíceis. Este princípio - ou pelo menos os seus casos concretos
Mais o -estárealm ente envolvido em todas as demonstrações. Sem­
damo- pre que uma coisa que acreditamos é usada para provar outra
, e de- coisa, que consequentemente acreditamos, este princípio
vante, é relevante. Se alguém perguntar «Por que devo aceitar os
ide ser resultados dos argumentos válidos baseados em premissas
atérias verdadeiras?», só podemos responder apelando para o nosso
í «dois princípio. De facto, é impossível duvidar da verdade do prin­
ares, e cípio, e é tão óbvio que à primeira vista parece quase trivial.
té que | Tais princípios, contudo, não são triviais para o filósofo, pois
mlquer mostram que podemos ter conhecimento indubitável que não
>gicos. I deriva de modo algum dos objectos dos sentidos.
dia do ; O princípio acima é apenas um de um certo núm ero de
em foi princípios lógicos auto-evidentes. Pelo menos alguns destes
iito-o». princípios têm de ser concedidos antes de qualquer argu­
íorque ^ mento ou demonstração ser possível. Depois de se conceder
sso foi alguns deles, pode-se provar outros, ainda que estes outros,
desde que sejam simples, sejam tão óbvios quanto os princí­
aso se : pios dados como garantidos. Por nenhum a razão verdadei­
ieiras, ramente boa, três destes princípios foram seleccionados pela
er ver- tradição sob o nome de «Leis do Pensamento».
itância São os seguintes:
como
1) A lei da identidade: «O que é, é».
ideiro, ;
;e sabe ; 2) A lei da contradição: «Nada pode conjuntamente ser e
verda- não ser».
3) A lei do terceiro excluído: «Tudo tem de ou ser ou não
juilo é
aquilo . ser».
que se
juilo é (39) Cf. Introdução, «A natureza da lógica», p. xliii.
132 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Estas três leis são amostras de princípios lógicos auto-evi- j


dentes, mas não são realmente mais fundamentais ou mais j
auto-evidentes do que muitos outros princípios análogos: por
exemplo, o que considerámos agora mesmo, que afirma que
o que se segue de uma premissa verdadeira é verdadeiro.
O nome «leis do pensamento» é também enganador, pois
o que é importante não é o facto de pensarmos de acordo
com estas leis, mas o facto de as coisas se comportarem de
acordo com elas; por outras palavras, o facto de que quando
pensamos de acordo com elas pensamos com verdade. Mas
esta é uma grande questão à qual temos de regressar mais
tarde (40).
Além dos princípios lógicos que nos permitem provar,
partindo de uma dada premissa, que algo é certamente verda­
deiro, há outros princípios lógicos que nos permitem provar, \
partindo de uma dada premissa, que há uma probabilidade j
maior ou menor de algo ser verdadeiro. Um exemplo de tais I
princípios - talvez o exemplo mais im p o rta n te -é o princípio j
indutivo, que considerámos no capítulo anterior. !
Uma das grandes controvérsias históricas em filosofia é a
controvérsia entre as duas escolas respectivamente chamadas ;
«empiristas» e «racionalistas». Os empiristas - cujos melhores
representantes são os filósofos britânicos Locke, Berkeley
e Hume - sustentavam que todo o nosso conhecimento é j
derivado da experiência; os racionalistas - que são represem j
tados pelos filósofos continentais do século XVII, especial- !
mente Descartes e Leibniz - sustentavam que, além do que ;
conhecemos através da experiência, há certas «idéias inatas»
e «princípios inatos» que conhecemos independentem ente
da experiência (41). Tornou-se agora possível decidir com !

(40) Cf. Introdução, «A natureza da lógica», p. xliií, e Capítulo. 8, j


p. 129.
(41) Cf. Introdução, «Racionalismo ou empirismo», p. xli.
O NOSSO CONHECIMENTO DE PRINCÍPIOS GERAIS | 133

to-evi- ; alguma confiança quanto à verdade ou falsidade destas escolas


i mais I opostas. Tem de se admitir, pelas razõesjá enunciadas, que os
>s: por princípios lógicos são conhecidos por nós, e não podem eles
iaque próprios ser provados pela experiência, dado que toda a prova
deiro. j os pressupõe. Logo, a este respeito, que era o aspecto mais
r, pois : importante da controvérsia, os racionalistas tinham razão.
cordo ! Por outro lado, mesmo aquela parte do nosso conhecimen­
em de : to que é logicamente independente da experiência (no sentido
liando em que a experiência não pode prová-la) é no entanto susci­
e. Mas ! tada e causada pela experiência. E aquando das experiências
r mais . particulares que nos tornamos cientes das leis gerais que as
suas conexões exemplificam. Seria certamente absurdo supor
Drovar, que há princípios inatos no sentido de os bebês nascerem com
verda- um conhecimento de tudo o que os homens sabem e que
provar, não pode ser deduzido da nossa experiência. Por esta razão,
ilidade. a palavra «inato» não seria hoje usada para descrever o nosso
de tais conhecimento dos princípios lógicos. A expressão «apriori» ê
incípio menos objectável, e é mais usual nos autores modernos. Assim,
apesar de admitirmos que todo o conhecimento é suscitado e
afia e a causado pela experiência, sustentaremos contudo que algum
amadas conhecimento é apriori, no sentido em que a experiência que
elhores nos faz pensar nele não é suficiente para o provar, dirigindo
erkeley apenas a nossa atenção de modo a vermos a sua verdade sem
lento é precisar de qualquer prova da experiência.
presen- Há outro aspecto de grande importância, no qual os empi-
special- ristas tinham razão contra os racionalistas. Não se pode saber
do que da existência de seja o que for excepto com a ajuda da expe­
. inatas» riência. Quer dizer, se queremos provar que existe algo do
emente qual não temos experiência directa, temos de ter entre as
íir com nossas premissas a existência de uma ou mais coisas da qual
temos experiência directa. A nossa crença de que o Impera­
dor da China existe, por exemplo, repousa no testemunho,
pítulo. 8,
e o testemunho consiste, em última análise, em dados dos
sentidos que vimos ou ouvimos quando lemos ou quando nos
;
134 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

falam. Os racionalistas pensavam que, partindo de conside- í


rações gerais quanto ao que tem de ser, poderíam deduzir a
existência disto ou daquilo no próprio mundo. Nesta crença
parece que se enganaram. Todo o conhecimento que pode­
mos adquirir a priori com respeito à existência parece ser hipo­
tético: diz-nos que 5^uma coisa existe, outra tem de existir, ou,
mais em geral, que se uma proposição é verdadeira, outra tem
de ser verdadeira. Isto é exemplificado pelos princípios com
que jã lidámos, tal como «se isto é verdadeiro, e isto implica
aquilo, então aquilo é verdadeiro», ou «se se descobriu que j
isto e aquilo se encontram repetidamente conectados, estarão
provavelmente conectados na próxima instância em que se
descobrir um deles». Assim, o âmbito e poder dos princípios
a priori são estritamente limitados. Todo o conhecimento de
que algo existe tem de depender em parte da experiência.
Quando algo é conhecido imediatamente, a sua existência
é conhecida unicamente pela experiência; quando se prova j
que algo existe, sem ser conhecido imediatamente, tanto a
experiência como os princípios a priori têm de ser exigidos na !
prova. Chama-se empírico ao conhecimento quando repousa
completa ou parcialmente na experiência. Assim, todo o
conhecimento que assere existência é empírico, e o único
conhecimento a priori que diz respeito à existência é hipoté­
tico, facultando conexões entre coisas que existem ou podem
existir, mas não facultando a própria existência (42).
O conhecimento a priori não é todo do tipo lógico que í
considerámos até agora. Talvez o exemplo mais importante
de conhecimento a priori não lógico seja o conhecimento
quanto ao valor ético. Não estou a falar de juízos quanto ao

(42) Um contra-exempio a esta perspectiva em pirista que Russell


aceita é o cogito cartesiano: a proposição expressa pela afirmação
«Eu existo» parece conhecível a priori, apesar de não ser hipotética
e de asserir evidentem ente existência.

j
O NOSSO CONHECIMENTO DE PRINCÍPIOS GERAIS 135

que é útil ou quanto ao que é virtuoso, pois taisjuízos exigem


premissas empíricas; estou a falar de juízos quanto à deseja-
bilidade intrínseca das coisas. Se algo é útil, tem de ser útil
porque garante alguma finalidade; e a finalidade, se formos
suficientemente longe, tem de ser valiosa por si, e não apenas
porque é útil para outra finalidade qualquer. Assim, todos os
juízos quanto ao que é útil dependem de juízos quanto ao
que tem valor por si.
Ajuizamos, por exemplo, que a felicidade é mais desejável
do que a miséria, o conhecimento do que a ignorância, a boa
vontade do que o ódio, e assim por diante. Taisjuízos têm de
ser, pelo menos em parte, imediatos e apriori. Como os nossos
juízos a priori anteriores, podem ser suscitados pela experiên­
cia, e na verdade têm de o ser; pois não parece possível ajuizar
se algo é intrinsecamente valioso a não ser que tenhamos tido
experiência de algo do mesmo tipo. Mas é razoavelmente
óbvio que não podem ser provados pela experiência; pois o
facto de uma coisa existir ou não existir não pode provar quer
que é bom que exista quer que é mau. A exploração deste
■assunto pertence à ética, onde a impossibilidade de deduzir
o dever ser do ser tem de ser estabelecida. Com respeito à
nossa discussão, é apenas importante ver que o conhecimento
quanto ao que é intrinsecamente de valor é apriori no mesmo
sentido em que a lógica é apriori, nomeadamente, no sentido
em que a verdade de tal conhecimento não pode ser provada
nem refutada pela experiência (43) .

(43) Ao contrário do que Russell afirma, é defensável que podemos


confirmar empiricamente verdades conhecíveis apriori: podemos saber
a priori o resultado de multiplicar 388 com 288, fazendo o respectivo
cálculo, mas também o podemos saber recorrendo a um a calculadora.
Este é o contra-exemplo apresentado por Rripke em Naming and Necessity
(op„ cit.). Russell, contudo, argumentaria que está em causa o conheci­
mento primitivo de verdades aritméticas, e que esse só é possível apriori.
136 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Toda a matemática pura é a priori, como a lógica. Isto foi


vigorosamente negado pelos filósofos empíricos, que defen­
diam que a experiência tanto era a fonte do nosso conhe­
cimento da aritmética como o era do nosso conhecimento
da geografia. Sustentavam que pela experiência repetida
de ver duas coisas e duas outras coisas, e por descobrir que
conjuntam ente faziam quatro coisas, nós éramos levados
por indução à conclusão de que duas coisas e duas outras
coisas fariam sempre quatro coisas conjuntamente. Contudo,
se isto fosse a fonte do nosso conhecimento de que dois e
dois são quatro, deveriamos proceder de modo diferente,
ao convencermo-nos da sua verdade, e não do modo como
realm ente procedemos. De facto, é necessário um certo
número de casos para nos fazer pensar no dois abstracta-
mente, em vez de pensarmos em duas moedas ou dois livros
ou duas pessoas, ou dois de qualquer outro tipo especifi­
cado. Mas assim que somos capazes de remover dos nossos
pensam entos a particularidade irrelevante, passamos a
ser capazes de ver o princípio geral de que dois e dois são
quatro; qualquer caso é visto como típico, e o exame de
outros casos torna-se desnecessário (*).
O mesmo é exemplificado na geometria. Se queremos
provar uma propriedade de todos os triângulos, desenha­
mos um triângulo qualquer e raciocinamos sobre ele; mas
podemos evitar fazer uso de qualquer propriedade que não
partilhe com todos os outros triângulos e, assim, do nosso
caso particular, obtemos um resultado geral. Na realidade,
não sentimos aumentar com novas instâncias a nossa certeza
de que dois mais dois são quatro porque, mal vemos a ver­
dade desta proposição, a nossa certeza torna-se tão grande
que não pode crescer. Além disso, sentimos que há uma

(*) Cf. A. N. W hitehead, Introduction to Mathematics (Home


University Library).
O NOSSO CONHECIMENTO DE PRINCÍPIOS GERAIS 137

to foi : certa qualidade de necessidade na proposição «dois e dois são


.efen- : quatro», que está ausente até mesmo das melhores generali­
3X1 h o zações empíricas atestadas. Tais generalizações permanecem
lenio sempre meros factos: sentimos que podería haver um mundo
►etida i no qual fossem falsas, ainda que no mundo actual aconteça
r que i que são verdadeiras (44) . Em qualquer m undo possível, pelo
vados j contrário, sentimos que dois e dois seriam quatro: isto não
>utras | é um mero facto, mas uma necessidade à qual tudo o que é
.tudo, i actual e possível tem de se conformar.
iois e A questão pode tornar-se mais clara considerando uma
rente, j generalização genuinam ente empírica, como «Todos os
como homens são mortais». E claro que acreditamos nesta pro­
certo ; posição, em primeiro lugar, porque não há qualquer caso
racta- j conhecido de homens que vivam além de uma certa idade
livros | e, em segundo lugar, porque parece haver fundamentos
)ecifi- fisiológicos para pensar que um organismo como o corpo
LOSSOS de um homem tem de se gastar mais cedo ou mais tarde.
nos a Negligenciando o segundo fundam ento, e considerando
•is são meramente a nossa experiência da mortalidade dos homens,
ne de é óbvio que não devemos contentar-nos com um exemplo
muito claramente compreendido de um homem a morrer,
remos ao passo que, no caso de «dois e dois são quatro», um caso ê
enha-' suficiente, se for cuidadosamente tido em consideração, para
*; mas nos persuadir que o mesmo tem de acontecer em qualquer
te não outro caso. Além disso, podemos ser forçados a admitir,
nosso depois de pensar melhor, que pode haver alguma dúvida,
idade, por mais ligeira que seja, quanto à questão de saber se todos
erteza °s homens são mortais. Isto pode tornar-se claro tentando
a ver-
rande
i uma (44) Russell não considera neste passo que nem todos os factos
empíricos são intuitivamente tomados como contingentes. Que a água
è H2G é um facto empírico, mas não parece intuitivamente menos
'Home necessário do que a soma de dois com dois ser quatro. Só a partir de
hiipke, contudo, se deu atenção a estas intuições modais.
138 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

imaginar dois mundos diferentes, num dos quais há homens


que não são mortais, ao passo que no outro dois e dois fazem j
cinco. Quando Swift nos convida a considerar a linhagem dos j
Struldbrugs que nunca morrem, conseguimos aquiescer na
imaginação. Mas um mundo em que dois e dois fazem cinco
parece estar noutro nível muito diferente. Sentimos que tal
mundo, caso existisse, abalaria toda a estrutura do nosso I
conhecimento e reduzir-nos-ia à mais completa dúvida.
O facto é que em juízos matemáticos simples como «dois
e dois são quatro», e também em muitos juízos da lógica,
podemos conhecer a proposição geral sem a inferir das ins­
tâncias, apesar de uma instância ser habitualmente necessária
para que se torne claro para nós próprios o que a proposição
geral quer dizer. E por isso que há real utilidade no processo
de dedução, que vai do geral para o geral, ou do geral para o !
particular, tal como no processo de indução, que vai do par- I
ticular para o particular, ou do particular para o geral (45) . j
Há um velho debate entre filósofos sobre a questão de saber ;
se a dedução alguma vez fornece conhecimento novo. Pode- :
mos agora ver que fornece, pelo menos em certos casos. Se j
já sabemos que dois e dois são sempre quatro, e se sabemos :
que Brown e Jones são dois, assim como Robinson e Smith, j
podemos deduzir que Brown ejones e Robinson e Smith são j
quatro. Isto é conhecimento novo, que não está contido nas
nossas premissas, porque a proposição geral «dois e dois são
quatro» nunca nos disse que há pessoas como Brown ejones ;
e Robinson e Smith, e as premissas particulares não nos dizem j
que há quatro deles, ao passo que a proposição particular
deduzida diz-nos efectivamente estas duas coisas (46) .

(45) Note-se que na dedução também se «vai» do particular para o >


particular: de «Alguns homens são artistas» podemos concluir «Alguns !
artistas são homens». |
(46) Cf. Introdução, «A natureza da lógica», p. xliii. |
O NOSSO CONHECIMENTO DE PRINCÍPIOS GERAIS 139

tens Mas o novo que há no conhecimento é muito menos certo


mm ! se tomarmos a instância habitual de dedução que é sempre
dos | dada em livros sobre lógica, nom eadam ente, «Todos os
r na homens são mortais; Sócrates é um homem; logo, Sócrates
.11CO : é mortal». Neste caso, o que realmente sabemos para lá de
e tal | dúvida razoável é que certos homens, A, B, C, foram mortais
OSSO I dado que, de facto, morreram. Se Sócrates for um destes
homens, é uma tolice ir pelo caminho mais longo que passa
dois por «todos os homens são mortais» para chegar à conclusão
?ica, de que provavelmente Sócrates é mortal. Se Sócrates não é
i ins- ’j um dos homens nos quais a nossa indução se baseia, será
sária mesmo assim melhor argum entar directam ente partindo
;içào dos nossos A, B, C, para chegar a Sócrates, do que dar a volta
:esso pela proposição geral «todos os homens são mortais». Pois
ira o a probabilidade de Sócrates ser mortal é maior, com base
par- nos nossos dados, do que a probabilidade de que todos os
(43). homens são mortais. (Isto é óbvio porque se todos os homens
•aber são mortais, Sócrates também o é; mas se Sócrates é mortal,
bde- não se segue que todos os homens são mortais.) Por isso,
»s. Se chegaremos à conclusão de que Sócrates é mortal com maior
írnos aproximação à certeza se o fizermos o nosso argumento ser
nith, puramente indutivo do que se dermos a volta por «todos os
h são homens são mortais» usando depois a dedução (47) .
o nas Isto ilustra a diferença entre proposições gerais conhecidas
is são apriori, como «dois e dois são quatro», e generalizações em­
ones píricas como «todos os homens são mortais». Com respeito
izem a primeira, a dedução é o tipo certo de argumento, ao passo
cular

(47) Este é um aspecto muito importante da relação entre a dedução


e a indução. Porque a dedução válida, contrariamente à indução válida
iara o °u forte, garante a verdade da conclusão se partirmos de premissas
dguns verdadeiras, é um a tentação pensar que é preferível usar sempre que
possível deduções em vez de induções. Russell mostra claramente que
hto é falso.
140 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

que, com respeito à segunda, a indução é sempre teorica­


mente preferível, e garante uma confiança maior na verdade
da nossa conclusão, pois qualquer generalização empírica é
mais incerta do que as suas instâncias.
Já vimos que há proposições conhecidas apriori, e que en­
tre elas estão as proposições da lógica e da matemática pura,
tal como as proposições fundamentais da ética. A questão que
tem de nos ocupar de seguida é esta: como é possível haver
tal conhecimento? E, mais em particular, como pode haver
conhecimento de proposições gerais nos casos em que não
examinámos todas as instâncias, e na verdade nunca podemos
examiná-las todas, porque o seu núm ero é infinito? Estas
questões, que foram pela primeira vez postas em destaque
pelo filósofo alemão Kant (1724-1804), são muito difíceis e
historicamente muito importantes.
8.

Como o conhecimento a priori


é possível

. Immanuel Kant é geralmente considerado o maior dos


filósofos modernos. Apesar de ter vivido durante a Guerra
dos Sete Anos e durante a Revolução Francesa, nunca inter­
rompeu as suas aulas de filosofia em Kônigsberg, na Prússia
Oriental. A sua contribuição mais original foi a invenção do
que chamou a filosofia «crítica» que, dando como adquiri­
do que há conhecimento de vários tipos, pergunta como
tal conhecimento vem a ser possível e deduz, da resposta à
sua investigação, muitos resultados metafísicos (48) quanto
à natureza do mundo. Pode-se muito bem duvidar que es­
tes resultados fossem válidos. Mas Kant merece sem dúvida
crédito por duas coisas: primeiro, por ter visto que temos
conhecimento a priori que não é puramente «analítico», isto
é, tal que o oposto seja autocontraditório; e, segundo, por
■ter tornado evidente a importância filosófica da teoria do
' conhecimento.

(48) Ver nota 63, p. 199.


142 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

' Antes de Kant pensava-se geralm ente que qualquer


conhecimento que fosse a priori teria de ser «analítico». O
que esta palavra quer dizer será mais bem ilustrado através
de exemplos. Se eu digo «Um homem careca é um homem»,
«Uma figura plana é uma figura», «Um mau poeta é um
poeta», faço um juízo puramente analítico: o sujeito de que
se fala é dado como tendo pelo menos duas propriedades,
das quais uma delas é escolhida para ser asserida a seu res­
peito. Proposições como as anteriores são triviais, e nunca
seriam enunciadas na vida real excepto por um orador que
prepara as coisas para um momento de sofistica. Chamam-se
«analíticas» porque o predicado é obtido por mera análise do
sujeito (49) . Antes de Kant pensava-se que todos os juízos dos
quais podemos estar certos a priori eram deste tipo: que em
todos havia um predicado que era apenas parte do sujeito do
qual era afirmado. Se isto fosse assim, ficaríamos envolvidos
num a contradição clara se tentássemos negar fosse o que
fosse que pudesse ser conhecido a priori. «Um homem calvo
não é calvo» afirmaria e negaria a calvície do mesmo homem,
e contradizer-se-ia portanto a si mesma. Assim,, de acordo
com os filósofos anteriores a Kant, a lei da contradição, que
afirma que nada pode ao mesmo tempo ter e não ter uma
certa propriedade, era suficiente para estabelecer a verdade
de todo o conhecimento a priori.

(49) Esta caracterização de juízo ou frase analítica não é hoje


aceitável, pois não dá conta da analiticidade de afirmações que não
tenham um a estrutura sujeito-predicado, como «Quando chove,
chove». Uma caracterização mais aceitável é que um a frase-é analítica
quando o conhecimento do significado das suas palavras é suficiente
para saber se é verdadeira ou falsa. Note-se contudo, que Russell está
a explicar em parte as idéias de Kant, que entendia a analiticidade
do modo como Russell a expõe (entendimento que tem origem em
Leibniz).
COMO O CONHECIMENTO A P R IO R I É POSSÍVEL 143

uer j Hume (1711-1776), que precedeu Kant, aceitando a


.O | perspectiva habitual quanto ao que faz o conhecimento ser
ivés a priori, descobriu que a conexão era realmente sintética,
m », em muitos casos que previamente se julgara ser analítica, e
um nomeadamente no caso da causa e efeito. Antes de Hume, os
que racionalistas tinham pelo menos suposto que o efeito podería
des, ser logicamente deduzido da causa, desde que tivéssemos co­
res- nhecimento suficiente. Hume argumentou - correctamente,
nca como hoje geralmente se admitiría - que isto não se pode
que fazer. Por isso, inferiu a proposição muito mais duvidosa de
n-se que nada podería ser conhecido a priori sobre a conexão
e do entre causa e efeito. Kant, que se tinha formado na tradição
dos racionalista, ficou muito perturbado pelo cepticismo de
Hume, e procurou encontrar uma resposta para ele. Viu
: em
que não apenas a conexão de causa e efeito, mas todas as
• |

o do
proposições da aritmética e da geometria, são «sintéticas»,
idos
isto é, não analíticas: em todas estas proposições, nenhum a
que
análise do sujeito irá revelar o predicado. O seu exemplo re­
alvo
corrente era a proposição 7 + 5 = 12. Kant fez notar, bastante
lem, |
acertadamente, que 7 e 5 têm de ser postos juntos para dar
)rdo
12: a ideia de 12 não está contida nelas, nem mesmo ná ideia
que
de as adicionar. Assim, foi conduzido à conclusão de que
uma :
toda a matemática pura, apesar de ser a priori, é sintética; e
,Iade
osta conclusão levantou um novo problema para o qual ele
tentou encontrar a solução (50) .
A questão que Kant colocou no princípio da sua filosofia,
hoje nomeadamente, «Como é a matemática pura possível?» é
s não unia questão interessante e difícil, à qual toda a filosofia que
hove,
dítica
:iente (50) Hoje não se considera geralmente que a matemática pura é
1.1está sintética, porque se abandonou a noção de analiticidade baseada na
idade análise do que está «contido» no quê. Considera-se que é analítica
nri em P°fque o conhecimento do significado dos termos qüe ocorrem numa
proposição da matemática é suficiente para saber se é verdadeira ou falsa.

L
144 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

não seja puramente céptica tem de encontrar uma resposta. I


A resposta dos empiristas puros, que o nosso conhecimento j
matemático é derivado por indução de casos específicos, já j
vimos que é inadequada por duas razões: primeiro, porque j
a validade do próprio princípio indutivo não pode ser pro- :
vada por indução; segundo, porque as proposições gerais j
da matemática, como «dois e dois fazem sempre quatro», j
podem obviamente ser conhecidas com certeza tendo em
consideração uma única instância, e nada ganham com a
enumeração de outros casos em que se tenha visto que são
verdadeiras. Assim, o nosso conhecimento das proposições
gerais da matemática (e o mesmo se aplica à lógica) tem de
ser explicado de outro modo que não o nosso conhecimento
(meramente provável) de generalizações empíricas como
«todos os homens são mortais».
O problema tem origem no facto de tal conhecimento ser ;
geral, ao passo que toda a experiência é particular. Parece es- j
tranho que tenhamos aparentemente capacidade para conhe- ;
cer algumas verdades previamente sobre coisas particulares
das quais ainda não tivemos experiência; mas não se pode j
duvidar facilmente que a lógica e a aritmética se aplicam a
tais coisas. Não sabemos quem serão os habitantes de Londres
daqui a cem anos; mas sabemos que quaisquer dois deles e
quaisquer outros dois deles farão quatro deles. Este poder apa­
rente para antecipar factos sobre coisas das quais não temos
experiência é certamente surpreendente. A solução de Kant
do problema, apesar de não ser na minha opinião válida, é
interessante. Contudo, é muito difícil e é compreendida de ■
diferentes modos por diferentes filósofos. Consequentemente :
só podemos esboçá-la levemente, e mesmo isso será viste j
como enganador por muitos intérpretes do sistema de Kant. ;
O que Kant sustentou foi que em toda a nossa experiência ;
há dois elementos a distinguir, um devido ao objecto (isto
é, devido ao que chamámos «objecto físico»), e o outro de-
GOMO O CONHECIMENTO A P R IO R IÉ POSSÍVEL 145

losta. vido à nossa própria natureza. Vimos, ao discutir a matéria


Lento | e os dados dos sentidos, que o objecto físico é diferente dos
os, já | dados dos sentidos associados, e que os dados dos sentidos
irque devem ser encarados como o resultado de uma interacção
*pro­ entre o objecto físico e nós mesmos. Até aqui, estamos de
ferais | acordo com Kant. Mas o que distingue Kant é o modo como
ttro», j divide as partes de nós próprios e do objecto físico respec­
o em | tivamente. Kant considera que o material bruto dado na
om a sensação - a cor, dureza, etc. - se deve ao objecto, e que o
e são ; que nós fornecemos ê o arranjo no espaço e no tempo, e
dções | todas as relações entre dados dos sentidos que resultam da
m de j comparação ou de se considerar que um é a causa do outro
lento j ou de qualquer outro aspecto. A sua razão principal a favor
:omo desta perspectiva é que parecemos ter conhecimento apriori
quanto ao espaço e tempo e causalidade e comparação, mas
to ser . não quanto ao efectivo material bruto da sensação. Podemos
ce es- i ter a certeza, diz, que seja o que for de que tenhamos alguma
oiihe- vez experiência tem de exibir as características delas afirma­
liares • das no nosso conhecimento apriori, pois estas características
pode devem-se à nossa própria natureza, e consequentemente nada
:am a pode alguma vez entrar na nossa experiência sem adquirir
iidres estas características.
eles e Kant considera que o objecto físico, a que chama a «coisa
t apa- em si»(*), é essencialmente incognoscível; o que pode ser co­
:emos ■ nhecido é o objecto tal como o temos na experiência, a que
: Kant ; Kant chama o «fenômeno». O fenômeno, sendo um produto
ida, é conjunto de nós e da coisa em si, tem garantidamente aquelas
da de características que se devem a nós, e consequentemente con-
lente,
, visto
kant. 0 A «coisa em si» de Kant é idêntica em definição ao objecto físico,
iência n°tneadamente, é a causa das sensações. Nas propriedades deduzidas
da definição não é idêntica, dado que Kant sustentava (apesar de
> (isto
dguma inconsistência com respeito à causa) que sabemos que
ro de­ Nenhumas das categorias são aplicáveis à «coisa em si».
146 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

forma-se garantidamente ao nosso conhecimento apriori. Por


isso, não se pode supor que este conhecimento, apesar de se
aplicar a toda a experiência efectiva e possível, se aplica fora
da experiência. Assim, apesar da existência de conhecimento
a priori, nada podemos saber sobre a coisa em si ou sobre o
que não é objecto da experiência efectiva ou possível. Deste
modo, Kant tenta reconciliar e harmonizar as alegações dos
racionalistas com os argumentos dos empiristas.
A parte razões menores com base nas quais a filosofia de
Kant pode ser criticada, há uma objecção principal que pare­
ce fatal para qualquer tentativa de lidar com o problema do
conhecimento apriori pelo seu método. Aquilo de que temos
de dar conta é a nossa certeza de que os factos têm sempre
de se conformar à lógica e à aritmética. Dizer que a lógica
e a aritmética são contribuições nossas não dá conta disto.
A nossa natureza é tanto um facto do mundo efectivamente
existente quanto qualquer outra coisa, e não pode haver
certeza de que perm anecerá constante. Podería acontecer,
se Kant tiver razão, que amanhã a nossa natureza mudasse
de modo a fazer dois e dois passar a ser cinco. Parece que
esta possibilidade nunca lhe ocorreu, e contudo é uma pos­
sibilidade que destrói completamente a certeza e a univer-
salidade que Kant ansiosamente vindica para as proposições
aritméticas. E verdade que esta possibilidade, formalmente,
é inconsistente com a perspectiva de Kant de que o próprio
tempo é uma forma imposta pelo sujeito aos fenômenos, j
de modo que o nosso Eu real não está no tempo e não tem
amanhã. Mas Kant terá mesmo assim de supor que a ordem
temporal dos fenômenos é determinada por características
do que está por detrás dos fenômenos, e isto é suficiente para
a substância do nosso argumento.
Além do mais, a reflexão parece tornar claro que, se ha
alguma verdade nas nossas crenças aritméticas, estas têm de se
aplicar às coisas por igual quer pensemos nelas quer não. Dois
COMO O CONHECIMENTO A P R IO R IÉ POSSÍVEL 147

Por 1 objectos físicos e dois outros objectos físicos têm de fazer qua­
ie se | tro objectos físicos, ainda que não possamos ter experiência
fora dos objectos físicos. Asseverar isto está certamente incluído no
ento âmbito do que queremos dizer quando afirmamos que dois
3re o e dois são quatro. A sua verdade é tão indubitável quanto a
)este verdade da asserção de que dois fenômenos mais dois outros
s dos fenômenos fazem quatro fenômenos. Assim, a solução de
Kant limita indevidamente o âmbito das proposições apriori,
ia de além de falhar a tentativa de explicar a sua certeza.
pare- A parte as doutrinas especiais advogadas por Kant, é muito
ia do comum, entre filósofos, considerar o a priori como mental
emos num certo sentido, como algo que diz respeito ao modo como
mpre temos de pensar e não a qualquer facto do mundo exterior.
ógica ^ Vimos no capítulo anterior os três princípios comummente
disto. ; chamados «leis do pensamento». A perspectiva que conduziu à
nente | sua designação é natural, mas há fortes razões para pensar que
haver | é errada. Tomemos como ilustração a lei da contradição. Esta
tecer, ; lei é comummente formulada na forma «Nada pode conjun­
idasse tamente ser e não ser», que pretende expressar o facto de que
e que nada pode ao mesmo tempo ter e não ter uma dada qualidade.
a pos- Assim, por exemplo, se uma árvore é uma faia não pode não
niver- ser também uma faia; se a minha secretária é rectangular não
sições pode não ser também rectangular, e assim por diante.
rente, Ora, o que torna natural chamar a este princípio um a lei
róprio do pensamento é que é pelo pensamento e não pela observa­
lenos, ção externa que nos persuadimos da sua verdade necessária.
to tem Quando vimos que uma árvore é uma faia, não precisamos de
>rdeiB °lhar outra vez para determ inar se também não é um a faia;
isticas 0 pensamento só por si faz-nos saber que isto é impossível.
;e para Mas a conclusão de que a lei da contradição é um a lei do
pensamento é contudo errônea. O que acreditamos, quando
, se há acreditamos na lei da contradição, não é que a m ente seja
n de se feita de tal modo que tem de acreditar na lei da contradi­
o. Dois ção. Esta crença é um resultado subsequente da reflexão
148 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

psicológica, que pressupõe a crença na lei da contradição.


A crença na lei da contradição é uma crença sobre coisas, e
não sobre pensamentos. Não é, por exemplo, a crença de que
se pensamos que uma certa árvore é uma faia, não podemos
ao mesmo tempo pensar que não é uma faia; é a crença de
que se a árvore ê uma faia, não pode ao mesmo tempo não
ser uma faia. Assim, a lei da contradição é sobre coisas, e não
meramente sobre pensamentos; e apesar de a crença na lei
da contradição ser um pensamento, a própria lei da contra­
dição não é um pensamento, mas antes um facto que diz
respeito às coisas no mundo. Se o que acreditamos quando
acreditamos na lei da contradição não fosse verdadeiro das
coisas no mundo, o facto de sermos compelidos a pensar que
é verdadeiro não impediría a lei da contradição de ser falsa;
e isto mostra que não é uma lei do pensamento.
Um argumento semelhante aplica-se a qualquer outro
juízo a priori. Quando ajuizamos que dois e dois são quatro,
não estamos a fazer um juízo sobre os nossos pensamentos,
mas sobre todos os pares actuais ou possíveis. O facto de as
nossas mentes serem constituídas de modo a crer que dois
e dois são quatro, apesar de ser verdade, não é de modo
algum o que afirmamos quando afirmamos que dois e dois
são quatro. E nenhum facto sobre a constituição das nossas
mentes podería tornar verdadeiro que dois e dois são quatro.
Assim, o nosso conhecimento a priori, se não é errôneo,
não é meramente conhecimento sobre a constituição das
nossas mentes, sendo antes aplicável a seja o que for que o
mundo possa conter, tanto ao que é mental como ao que é
não mental (51).
Parece que o facto é que todo o nosso conhecimento apriori
diz respeito a entidades que, propriam ente falando, não
existem, seja no mundo mental seja no físico. Estas entidades

(51) Cf. Introdução, «A natureza da lógica», p. xliii.


COMO O CONHECIMENTO A P R IO R IÊ POSSÍVEL 149

lição, são as que podem ser nomeadas por partes do discurso que
sas, e não são substantivos; são entidades como qualidades e rela­
e que ções. Suponha-se, por exemplo, que estou no meu quarto.
emos Eu existo e o meu quarto existe; mas será que «no» existe?
ça de Contudo, a palavra «no» tem obviamente um significado;
:>não denota uma relação que obtém entre mim e o meu quarto.
e não Esta relação é algo, apesar de não poderm os dizer que
na lei existe no mesmo sentido em que eu e o meu quarto existimos.
rntra- Arelação «no» é algo acerca do qual podemos pensar e que
te diz podemos com preender pois, se não pudéssemos compreen­
ando dê-la, não poderiamos com preender a frase «Estou no meu
o das quarto». Muitos filósofos, seguindo Kant, sustentaram que as
ir que relações são o trabalho da mente, que as coisas em si não têm
falsa; relações, sendo antes a mente que as reúne num acto mental,
produzindo assim as relações que julga que têm.
outro Esta perspectiva, contudo, parece vulnerável a objecções
latro, semelhantes às que avançámos antes contra Kant. Parece
mtos, claro que não é o pensamento que produz a verdade da pro­
de as posição «Estou no meu quarto». Pode ser verdade que uma
e dois cadela está no meu quarto, ainda que nem eu nem a cadela
modo nem qualquer outra pessoa esteja ciente desta verdadé; pois
e dois esta verdade diz respeito apenas à cadela e ao quarto, e não
rossas depende de qualquer outra coisa. Assim, as relações, como
uatro. veremos m elhor no próximo capítulo, têm de ser colocadas
óneo, num m undo que não é mental nem físico. Este m undo é de
lo das grande importância para a filosofia, e em particular para os
que o problemas do conhecimento a priori. No próximo capítulo
que é iremos desenvolver a sua natureza e a sua relevância para as
questões com que temos vindo a lidar.
a p rio fi
>, não
dades

L
9.

O mundo dos universais

.No fim do capítulo anterior vimos que entidades como


as relações parecem ter um ser que é de algum modo dife­
rente do ser dos objectos físicos, e também diferente do ser
das mentes e do ser dos dados dos sentidos. No presente
capítulo temos de considerar qual é a natureza deste tipo
de ser, e também que objectos há que têm este tipo de ser.
Começaremos pela última questão.
O problema de que nos ocupamos agora é muito antigo,
pois foi Platão que o trouxe para a filosofia. A «teoria das
ídeias» de Platão é uma tentativa de resolver este mesmo
problema, e na minha opinião é uma das mais bem-sucedidas
tentativas feitas até hoje. A teoria advogada no que se segue
é em grande parte a de Platão, unicamente com as modifi­
cações que o tempo mostrou serem necessárias.
Q modo como o problema surgiu para Platão foi mais ou
nierios como se segue. Consideremos, digamos, uma noção
corno a justiça. Se nos perguntarmos o que é a justiça, é na-
■tural passar a considerar este, aquele e aqueloutro actojusto,
' tona o fito de descobrir o que têm em comum. Todos têm,
num certo sentido, de participar num a natureza comum,
152 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

que se encontrará em tudo o que for justo e em nada mais.


Esta natureza comum, em virtude da qual são todos justos,
será a justiça em si, a pura essência cuja mistura com factos
da vida comum produz a multiplicidade de actosjustos. Algo
de semelhante se passa com qualquer palavra que possa ser
aplicável a factos comuns, como «brancura», por exemplo.
À palavra será aplicável a várias coisas particulares porque
todas participam numa natureza comum ou essência. Esta
essência pura é o que Platão chama uma «ideia» ou «forma».
(E preciso não pensar que as «idéias», no seu sentido, exis­
tem nas mentes, apesar de poderem ser apreendidas pelas
mentes.) A «ideia» justiça não é idêntica a coisa alguma que
seja justa: é algo diferente das coisas particulares, da qual
as coisas particulares participam. Não sendo particular, ela
própria não pode existir no m undo dos sentidos. Além dis­
so, não é efêmera ou mutável como as coisas dos sentidos: é
eternam ente ela própria, imutável e indestrutível.
Assim, Platão é conduzido a um m undo supra-sensível,
mais real do que o mundo dos sentidos, o mundo imutável das
idéias, a única coisa que dá ao mundo dos sentidos o pálido
reflexo da realidade que eventualmente tem. O verdadeiro
mundo real, para Platão, é o mundo das idéias; pois seja o
que for que tentemos dizer sobre as coisas no mundo dos
sentidos, só podemos dizer que participam em tais e tais idéias
que, consequentemente, constituem todo o seu carácter. Por
isso, é fácil avançar para um misticismo. Podemos ter a espe-
rança de, numa iluminação mística, urras idéias como vemos
os objectos dos sentidos; e podemos imaginar que as idéias
existem no Céu. Estes desenvolvimentos místicos são muito
naturais, mas a base da teoria está na lógica, e é enquanto
baseada na lógica que temos de a considerar.
A palavra «ideia» adquiriu, no decurso do tempo, muitas
associações que são deveras enganadoras quando se aplicam
às «idéias» de Platão. Usaremos consequentemente a palavra
O MUNDO DOS UNIVERSAIS 153

«universal» em vez da palavra «ideia» para descrever o que


Platão tinha em mente. A essência do tipo de entidade que
Platão tinha em mente é que se opõe às coisas particulares
que são dadas na sensação. Chamamos ao que é dado na
sensação, ou é da mesma natureza que as coisas dadas na
sensação, particulares; por oposição a isto, um universal será
qualquer coisa que possa ser partilhado por muitos particula­
res e tem aquelas características que, como vimos, distinguem
a justiça e a brancura dos actos justos e das coisas brancas.
Quando examinamos palavras comuns descobrimos que,
genericamente falando, os nomes próprios indicam particula­
res, ao passo que outros substantivos, adjectivos, preposições e
verbos indicam universais. Os pronomes indicam particulares,
mas são ambíguos: só pelo contexto ou pelas circunstâncias
sabemos que particulares indicam. A palavra «agora» indica
um particular, nomeadamente o momento presente; mas,
como os pronomes, indica um particular ambíguo, pois o
presente está sempre a mudar.
Veremos que não se pode construir qualquer frase sem
pelo menos uma palavra que denote um universal. O mais
próximo disso seria uma afirmação como «Gosto disto». Mas
mesmo aqui a palavra «gosto» denota um universal, pois posso
gostar de outras coisas e outras pessoas podem gostar de coisas.
Assim, todas as verdades envolvem universais, e todo o conhe­
cimento de verdades envolve contacto com universais.
Dado que quase todas as palavras que se encontram no
dicionário indicam universais, é estranho que, à excepção
dos estudantes de filosofia, quase ninguém se dê alguma
vez conta de haver entidades como os universais. Não nos
detemos naturalmente sobre as palavras de uma frase que
mão indicam particulares; e se formos obrigados a deter-nos
numa palavra que indica um universal, pensamos natural­
mente que indica um dos particulares que estão sob o uni­
versal. Quando, por exemplo, ouvimos a frase «A cabeça de
154 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Carlos I foi cortada», podemos muito naturalmente pensar


em Carlos I, na cabeça de Carlos I e na operação de cortar a
sua cabeça, que são todos particulares; mas não nos detemos
naturalmente no que se quer dizer com a palavra «cabeça»
ou a palavra «cortar», que é um universal. Sentimos que tais
palavras são incompletas e insubstanciais; parecem exigir um
contexto antes de se poder fazer alguma coisa com elas. Por
isso conseguimos evitar reparar nos universais enquanto tais, i
até o estudo da filosofia nos obrigar a dar-lhes atenção.
Mesmo entre filósofos, podemos dizer, em traços gerais,
que só os universais que são nomeados por adjectivos ou subs- ;
tantivos têm sido bem ou frequentem ente reconhecidos, ao
passo que os universais nomeados por verbos e preposições i
têm sido geralmente ignorados. Esta omissão tem tido um ;
efeito muitíssimo grande na filosofia; dificilmente é um exa- j
gero dizer que determinou em grande medida a maior parte •
da metafísica, desde Espinosa. O modo como isto ocorreu foi, I
em síntese, o seguinte: falando em termos gerais, os adjectivos
e nomes comuns exprimem qualidades ou propriedades de
coisas isoladas, ao passo que as preposições e verbos tendem
a exprimir relações entre duas ou mais coisas. Assim, a negli­
gência das preposições e verbos conduziu à crença de que
toda a proposição pode ser encarada como a atribuição de
uma propriedade a uma só coisa, e não como a expressão de
uma relação entre duas ou mais coisas. Por isso, pensou-se !
que, no fim de contas, não poderia haver tais entidades, as
relações entre coisas. Por isso, ou só pode haver uma coisa
no universo, ou, se há muitas coisas, não podem interagir ;
de modo algum, dado que qualquer interacção seria uma j
relação e as relações são impossíveis. j
A primeira destas perspectivas, advogada por Espinosa e j
defendida hoje em dia por Bradley e muitos outros filósofos, j
chama-se monismo; à segunda, advogada por Leibniz mas não }
O MUNDO DOS UNIVERSAIS 155

íiisar muito comum hoje em dia, chama-se monadismo, porque se


ta r a chama mónada a cada uma das coisas isoladas. Estas duas
imos filosofias opostas, sendo interessantes, resultam, na minha
>eça» opinião, de se dar uma atenção indevida a um gênero de uni­
e tais versais, nomeadamente o gênero representado por adjectivos
rum e substantivos e não por verbos e preposições.
Por De facto, se alguém estiver ansioso para negar completa­
>tais, mente que há coisas como universais, devemos notar que não
podemos provar estritamente que há coisas como qualidades,
srais, isto é, os universais representados por adjectivos e substanti­
subs- vos, ao passo que podemos provar que têm de existir relações,
>s, ao isto é, o gênero de universais geralmente representados por
ições verbos e preposições. Tomemos como ilustração o universal
3 um brancura. Se acreditarmos que tal universal existe, diremos
i exa- que as coisas são brancas porque têm a qualidade da brancu­
parte ra. Esta perspectiva, contudo, foi energicamente negada por
u foi, Berkeley e Hume, que foram seguidos neste aspecto pelos
ctivos empiristas posteriores. A forma que a sua negação assumiu
es de foi negar que há coisas como «idéias abstractas». Quando
ídem queremos pensar na brancura, afirmaram, formamos uma
aegli- imagem de uma coisa branca particular, e raciocinamos com
* que respeito a este particular, tendo o cuidado de nada deduzir
ão de a seu respeito que não possamos ver que é igualmente ver­
ão de dadeiro de qualquer outra coisa branca. Como explicação
ou-se dos nossos processos mentais propriamente ditos, isto é sem
es, as dúvida em grande parte verdadeiro. Na geometria, por exem­
coisa plo, quando queremos provar algo sobre todos os triângulos,
iragit desenhamos um triângulo particular e raciocinamos sobre
. uma ele, tendo o cuidado de não usar qualquer característica que
não partilhe com outros triângulos. O principiante, para
iosa e evitar o erro, descobre muitas vezes que é útil desenhar vá-
sofos, dos triângulos, tão diferentes entre si quanto possível, para
is não garantir que o seu raciocínio é igualmente aplicável a todos.
156 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Mas levanta-se uma dificuldade mal nos perguntamos como


sabemos que uma coisa é branca ou um triângulo. Para evitar
os universais brancura e triangularidade, escolhemos uma man­
cha particular de branco e um triângulo particular, e dizemos
que uma coisa é branca ou um triângulo se tem o gênero
correcto de semelhança com o particular que escolhemos.
Mas então a semelhança requerida terá de ser um universal.
Dado que há muitas coisas brancas, a semelhança tem de
existir entre muitos pares de coisas brancas particulares; e
isto é a característica de um universal. Será inútil dizer que
há uma semelhança diferente para cada par, pois nesse caso
teremos de dizer que tais semelhanças são semelhantes entre
si, e assim seremos por fim forçados a admitir a semelhança
como um universal. A relação de semelhança, portanto, tem
de ser um verdadeiro universal. E uma vez forçados a admitir
este universal, descobrimos que já não vale a pena inventar
teorias difíceis e implausíveis para evitar admitir universais
como a brancura e a triangularidade.
. Berkeley e Hume não viram esta refutação da sua rejeição :
das «idéias abstractas» porque, como os seus adversários, só
pensavam em qualidades, ignorando completamente as relações
enquanto universais. Temos portanto aqui outro aspecto em
que os racionalistas parecem ter tido razão contra os empiris-
tas, apesar de, por negligenciarem ou recusarem as relações,
as deduções feitas pelos racionalistas eram, se tanto, mais
susceptíveis de estar erradas que as dos empiristas.
Tendo agora visto que tem de haver entidades como os
universais, o próximo aspecto a ser provado é que o seu ser
não é meramente mental. Com isto queremos dizer que seja
qual for o ser que lhes pertence este é independente de ser
pensado ou de qualquer outro modo apreendido pelas men­
tes. Já aflorámos este assunto no fim do capítulo anterior, mas
temos de considerar agora mais aturadamente que gênero
de ser pertence aos universais.
156 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

Mas levanta-se uma dificuldade mal nos perguntamos como |


sabemos que uma coisa é branca ou um triângulo. Para evitar |
os universais brancura e triangularidade, escolhemos uma man- j
cha particular de branco e um triângulo particular, e dizemos j
que uma coisa é branca ou um triângulo se tem o gênero ]
correcto de semelhança com o particular que escolhemos.
Mas então a semelhança requerida terá de ser um universal.
Dado que há muitas coisas brancas, a semelhança tem de j
existir entre muitos pares de coisas brancas particulares; e
isto é a característica de um universal. Será inútil dizer que
há uma semelhança diferente para cada par, pois nesse caso í
teremos de dizer que tais semelhanças são semelhantes entre j
si, e assim seremos por fim forçados a admitir a semelhança j
como um universal. A relação de semelhança, portanto, tem j
de ser um verdadeiro universal. E uma vez forçados a admitir
este universal, descobrimos que já não vale a pena inventar
teorias difíceis e implausíveis para evitar admitir universais j
como a brancura e a triangularidade. j
Berkeley e Hume não viram esta refutação da sua rejeição
das «idéias abstractas» porque, como os seus adversários, só
pensavam em qualidades, ignorando completamente as relações
enquanto universais. Temos portanto aqui outro aspecto em
que os racionalistas parecem ter tido razão contra os empiris-
tas, apesar de, por negligenciarem ou recusarem as relações,
as deduções feitas pelos racionalistas eram, se tanto, mais
susceptíveis de estar erradas que as dos empiristas.
Tendo agora visto que tem de haver entidades como os
universais, o próximo aspecto a ser provado é que o seu ser j.
não é meramente mental. Com isto queremos dizer que seja j
qual for o ser que lhes pertence este é independente de ser
pensado ou de qualquer outro modo apreendido pelas men­
tes. Já aflorámos este assunto no fim do capítulo anterior, mas
temos de considerar agora mais aturadamente que gênero j
de ser pertence aos universais. j
O MUNDO DOS UNIVERSAIS 157

omo Considere-se uma proposição como «Edimburgo está a


vitar norte de Londres». Aqui temos uma relação entre dois luga­
nan- res, e parece claro que a relação subsiste independentemente
nnos de a conhecermos. Quando ficamos a saber que Edimburgo
iiero fica a norte de Londres, ficamos a saber algo que tem apenas
mos. a ver com Edimburgo e Londres: não causamos a verdade da
*rsal. proposição ao ficar a conhecê-la; pelo contrário, limitamo-nos
n de a apreender um facto que já existia antes de o conhecermos.
'es; e Aparte da superfície da Terra na qual está Edimburgo estaria a
: que norte da parte em que Londres está mesmo que não houvesse
' caso seres humanos para saber sobre norte e sul, e mesmo que
entre não houvesse quaisquer mentes no universo. Isto é negado, é
Lança claro, por muitos filósofos, seja pelas razões de Berkeley seja
i, tem pelas de Kant . Mas já considerámos estas razões e decidimos
Imitir que são inadequadas. Podemos consequentemente admitir
entar agora que é verdade que nada de mental se pressupõe no
ersais facto de Edimburgo estar a norte de Londres. Mas este facto
envolve a relação «norte de», que é um universal; e seria im­
jeição possível que nada de mental estivesse envolvido na totalidade
os, só do facto se a relação «norte de», que é uma parte constituinte
elações do facto, envolvesse realmente algo mental. Assim, temos de
to em admitir que a relação, assim como os termos que relaciona,
ipiris- não depende do pensamento, pertencendo antes ao mundo
ações, independente que o pensamento apreende mas não cria.
, mais Esta conclusão, contudo, enfrenta a dificuldade de a
relação «norte de» não parecer existir no mesmo sentido
mo os em que Edimburgo e Londres existem. Se perguntarmos
eu ser «Onde e quando existe esta relação?», a resposta tem de ser
te seja «Em nenhures e em tempo algum». Não há qualquer lugar
de ser ou tempo no qual possamos encontrar a relação «norteMe».
s mear Não existe em Edimburgo nem em Londres, pois relaciona
>r, mas as duas e é neutra quanto a qualquer delas. Nem podemos
;énero dizer que existe em qualquer momento particular do tempo.
Ora, tudo o que pode ser apreendido pelos sentidos ou por
158 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

introspecção existe num mom ento particular do tempo.


Logo, a relação «norte de» é radicalmente diferente de tais
coisas. Não está no espaço nem no tempo, não é material
nem mental; contudo, é algo.
E em grande parte o tipo muito peculiar de ser que per­
tence aos universais que levou muitas pessoas a supor que
são na verdade mentais. Podemos pensar num universal, e o
nosso pensamento existe então num sentido perfeitamente
corrente, como qualquer outro acto mental. Suponhamos,
por exemplo, que estamos a pensar na brancura. Então,
num certo sentido pode-se dizer que a brancura está «na nossa
mente». Temos aqui a mesma ambiguidade que vimos ao
discutir Berkeley no capítulo 4. Em rigor, não é a brancura
que está na nossa mente, mas o acto de pensar na brancura.
A ambiguidade relacionada da palavra «ideia», que vimos ao
mesmo tempo, causa também confusão aqui. Num sentido
desta palavra, nomeadamente o sentido em que denota o
objecto de um acto de pensamento, a brancura é uma «ideia».
Logo, se não nos precavemos contra a ambiguidade, podemos
vir a pensar que a brancura é uma «ideia» no outro sentido,
isto é, um acto do pensamento; e assim acabaremos por
pensar que a brancura é mental. Mas ao pensar desse modo
privamo-la da sua qualidade essencial de universalidade. O
acto mental de um homem é necessariamente uma coisa
diferente do de outro homem; o acto mental de um homem
num momento é necessariamente uma coisa diferente do
acto mental do mesmo homem noutro momento. Logo, se a
brancura fosse o pensamento e não o seu objecto, nenhuns
dois homens diferentes poderíam pensar nela, e nenhum
homem podería pensar nela duas vezes. Aquilo que muitos '
pensamentos diferentes de brancura têm em comum é o seu j
objecto, e este objecto é diferente de todos os pensamentos.
Assim, os universais não são pensamentos, apesar de serem
objectos de pensamentos quando são conhecidos.
O MUNDO DOS UNIVERSAIS 159

mpo. Veremos que é conveniente falar apenas da existência de


u tais coisas quando estão no tempo, quer dizer, quando podemos
/terial apontar para um momento do tempo em que existem (não
excluindo a possibilidade de existirem em todos os momentos
e per- do tem po). Assim, os pensamentos e os sentires, as mentes e
r que os objectos físicos existem. Mas os universais não existem neste
al, e o sentido; diremos que subsistem ou têm ser, sendo que «ser» se
nente opõe a «existência» por ser atemporal. O m undo dos univer­
amos, sais, consequentemente, pode também ser descrito como o
Lntão, mundo do ser. O mundo do ser é imutável, rígido, exacto,
nossa encantador para o matemático, o lógico, o edificador de
i o s ao sistemas metafísicos e quem gosta mais da perfeição do que
tncura da vida. O m undo da existência é fugaz, vago, sem fronteiras
ncura. bem definidas, sem qualquer plano ou disposição clara, mas
nos ao contém todos os pensamentos e sentires, todos os dados dos
entido sentidos e todos os objectos físicos, tudo o que pode fazer
nota o ou o bem ou o mal, tudo o que faz qualquer diferença para
idéia», o valor da vida e do mundo. Em função dos nossos tempera­
demos mentos, preferiremos a contemplação de um ou de outro.
sntido, 0 que não preferirmos parecer-nos-á provavelmente uma
os por pálida sombra do que preferimos, dificilmente merecendo
: modo ser encarado como real em qualquer sentido do termo. Mas
ade. O a verdade é que ambos têm o mesmo direito à nossa atenção
a coisa imparcial, ambos são reais, e ambos são importantes para o
Lomern- metafísico. Na verdade, mal distinguimos os dois mundos,
nte do' torna-se necessário considerar as suas relações.
go, se a Mas primeiro temos de examinar o nosso conhecimento
mhuns áos universais. Esta consideração irá ocupar-nos no próxi-
enhuin 1Tlo capítulo, no qual veremos que resolve o problema do
muitos conhecimento a priori, que começou por nos conduzir à
é o seu consideração dos universais.
nentos.
í serem
10.

O nosso conhecimento dos universais

. Com respeito ao conhecimento de um homem num dado


momento do tempo, podemos dividir os universais, como os
particulares, entre os que são conhecidos por contacto, os
que são apenas conhecidos por descrição e os que não são
conhecidos nem por contacto nem por descrição.
Consideremos primeiro o conhecimento de universais
por contacto. É óbvio, para começar, que temos contacto
com universais como branco, vermelho, preto, doce, amargo,
ruidoso, duro, etc.; isto é, com qualidades que são exempli­
ficadas nos dados dos sentidos. Quando vemos um a m ancha
branca, temos contacto, em primeira instância, com a mancha
particular; mas ao ver muitas manchas brancas aprendemos
facilmente a abstrair a brancura que todas têm em comum,
e ao aprender a fazer isto estamos a aprender a ter contacto
c°ma brancura. Um processo semelhante faz-nos ter contacto
c°m qualquer outro universal do mesmo gênero. Aos uni-
vorsais deste gênero pode-se chamar «qualidades sensíveis».
Podem ser apreendidos com menos esforço de abstracção
fi° que quaisquer outros, e parecem menos afastados dos
Particulares do que outros universais.
162 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

■ Chegamos de seguida às relações. As relações mais fáceis


de apreender são as que se verificam entre diferentes partes
de um único dado dos sentidos complexo. Por exemplo, posso
ver de relance a totalidade da página em que escrevo; assim,
a totalidade da página está incluída num dado dos sentidos.
Mas vejo que algumas partes da página estão à esquerda de
outras, e algumas partes estão acima de outras. O processo
de abstracção neste caso parece dar-se de algum modo como
se segue: vejo em sucessão vários dados dos sentidos em que
uma parte está à esquerda de outra; vejo, como no caso de
diferentes manchas brancas, que todos estes dados dos sen­
tidos têm algo em comum, e por abstracção descubro que o
que têm em comum é uma certa relação entre as suas partes,
nomeadamente a relação a que chamo «estar à esquerda de».
Deste modo, passo a ter contacto com o universal relação.
De igual modo, torno-me ciente da relação temporal de
antes e depois. Suponhamos que oiço os sinos a dar horas:
quando a última badalada dos sinos soa, retenho todo o toque
perante a minha mente, e posso perceber que as badaladas
anteriores vieram antes das seguintes. Também na memória
percebo que o que estou a recordar veio antes do tempo
presente. De qualquer destas fontes posso abstrair o universal
relação de antes e depois, tal como abstraí o universal relação
«estar à esquerda de». Assim, as relações temporais, como as
espaciais, estão entre aquelas com as quais temos contacto.
Outra relação com a qual passamos a ter contacto em gran­
de parte do mesmo modo é a semelhança. Se vejo simultanea­
mente dois tons de verde, posso ver que são semelhantes entre
si; se vir também um tom de vermelho ao mesmo tempo, posso
ver que os dois verdes têm maior semelhança entre si do que
qualquer deles tem com o vermelho. Deste modo, passo a ter
contacto com o universal semelhança ou similaridade.
Entre universais, assim como entre particulares, há relações
das quais podemos estar imediatamente cientes. Acabámos de
ver que podemos perceber que a semelhança entre dois tons
I

O NOSSO CONHECIMENTO DOS UNIVERSAIS | 163

láceis de verde é maior que a semelhança entre um tom de verme­


iart.es lho e um tom de verde. Neste caso, estamos a lidar com uma
posso relação, nomeadamente «maior que», entre duas relações.
tssim, 0 nosso conhecimento de tais relações, apesar de exigir mais
tidos, poder de abstracção do que se exige para perceber as quali­
da de dades dos dados dos sentidos, parece igualmente imediato, e
►cesso (pelo menos em alguns casos) igualmente indubitável. Assim,
como tanto há conhecimento imediato com respeito aos universais
n que como há com respeito aos dados dos sentidos.
lso de Regressando agora ao problema do conhecimento apriori,
>s sen- que deixámos por resolver quando começámos a considerar
que o os universais, encontramo-nos em posição de lidar com o
>artes, problema de uma maneira muito mais satisfatória do que era
a de», anteriormente possível. Regressemos à proposição «dois e dois
ão. . são quatro». E razoavelmente óbvio, tendo em conta o que se
ral de disse, que esta proposição afirma uma relação entre o univer­
horas: sal «dois» e o universal «quatro». Isto sugere uma proposição
toque que procuraremos agora estabelecer: nomeadamente, Todo o
aladas conhecimento a priori lida exclusivamente com as relações de univer­
:mória sais. Esta proposição é de grande importância, e é um grande
tempo passo em frente na direcção da solução das nossas dificuldades
iversal anteriores com respeito ao conhecimento a priori.
elação ■ O único caso (52) em que poderia parecer, à primeira vista,
>mo as que a nossa proposição é contrária à verdade, é o caso em
acto. que uma proposição a priori afirma que todos os particulares
u gran-
Itanea'
:s entre O"2) Outro caso que Russell não considera é o conhecimento do
►, posso n°sso próprio eu. Este é um conhecimento aparentemente apriori mas
do que de um particular. Apesar de no capítulo 5 Russell ter levantado dúvidas
so a ter s°bre se temos conhecimento por contacto do eu, não estabeleceu
clUe não temos conhecimento a priori do eu. E argumentável que o
elações e°nhecimento da continuidade de um mesmo eu ao longo do tempo
e oposteriori, mas é menos plausível que o conhecimento de que há um
mos de
eu uum dado momento seja a posteriori. Assim, trata-se de uma possível
ais tons °bjecção à teoria de Russell que ele não considera.
164 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

de uma classe pertencem a outra classe qualquer, ou (o que 112,


acaba por ser o mesmo) que todos os particulares que têm Ai
uma dada propriedade têm também uma outra. Neste caso, aqi
poderia parecer que estamos a lidar com particulares que
têm a propriedade e não com a propriedade. A proposição vai
«dois e dois são quatro» é realmente um caso que vem a ■qu
propósito, pois isto pode ser afirmado na forma «quaisquer cai
dois e quaisquer outros dois são quatro», ou «qualquer co- ass
lecção formada de dois dois é uma colecção de quatro». Se rei
pudermos mostrar que frases como estas lidam na realidade po
apenas com universais, pode-se dar a nossa proposição como de
provada. da
Uma maneira de descobrir aquilo com que uma proposi­ co
ção lida é perguntarmo-nos que palavras temos de compre­ an
ender - por outras palavras, com que objectos temos de ter vei
contacto - para ver o que a proposição significa. Mal vemos foi
o que a proposição significa, mesmo que não saibamos ainda dc
se é verdadeira ou falsa, é evidente que temos de ter contacto du
com seja o que for com o qual a proposição realmente lida. mi
Aplicando este teste, parece que muitas proposições que Rc
poderíam dizer respeito a particulares dizem realmente res­ eí
peito apenas a universais. No caso especial de «dois e dois se
são quatro», mesmo quando a interpretamos como «qualquer qr
colecção formada por dois dois é uma colecção de quatro», é e
claro que podemos compreenderá proposição, isto é, podemos iií

ver o que afirma, mal sabemos o que significa «colecção» e a. í.i


«dois» e «quatro». E perfeitamente desnecessário conhecer po
todos os pares no mundo: se fosse necessário, é óbvio que qo
nunca poderiamos compreender a proposição, dado que os se
pares são em número infinito e portanto não podem ser to­
dos conhecidos por nós. Assim, apesar de a nossa afirmação
geral implicar afirmações sobre pares particulares, assim qu?
sabemos que tais pares concretos existem, não afirma nem implica
em si, contudo, que tais pares concretos existem, e assi#1 C(;
O NOSSO CONHECIMENTO DOS UNIVERSAIS 165

>que ] não faz qualquer afirmação sobre qualquer par particular.


: têm , Aafirmação é sobre «par», o universal, e não sobre este ou
caso, j aquele par.
s que 1 Assim, a afirmação «dois e dois são quatro» lida exclusi­
sição vamente com universais e portanto pode ser conhecida por
em a qualquer pessoa que tenha contacto com os universais em
squer causa e possa perceber a relação entre eles que a afirmação
* r CO- assere. Tem de ser tomado como um facto, descoberto ao
>». Se reflectir sobre o nosso conhecimento, que temos o poder de
idade por vezes perceber tais relações entre universais, e portanto
como de por vezes conhecer proposições gerais a priori como as
da aritmética e da lógica. O que parecia misterioso, quando
3pO SÍ- considerámos previamente tal conhecimento, foi parecer que
rnpre- antecipa e controla a experiência. Contudo, podemos agora
de ter ver que isto foi um erro. Nenhum facto respeitante a seja o que
/emos for susceptível de disso termos experiência pode ser conheci­
ainda do independentemente da experiência. Sabemos a priori que
atacto j duas coisas e duas outras coisas juntas fazem quatro coisas,
e lida. mas não sabemos a priori que se Brown e Jones são dois, e
ís que Robinson e Smith são dois, então Brown e Jones e Robinson
te res- e Smith são quatro. A razão é que esta proposição não pode
e dois ser compreendida de todo em todo a não ser que saibamos
alquer que tais pessoas, Brown e Jones e Robinson e Smith, existem,
tro»,é e isto só podemos saber por experiência. Logo, apesar de a
demos Rossa proposição geral ser a priori, todas as suas aplicações
ção» e a particulares propriamente ditos envolvem a experiência e
ihecet Portanto contêm um elemento empírico. Deste modo, vê-se
io que que o que parecia misterioso no nosso conhecimento a priori
que os Se baseava num erro.
ser to- Este aspecto ficará mais claro se contrastarmos o nosso
maçã° Jlllzo a priori genuíno com uma generalização empírica, como
sim (flí I "Ridos os homens são mortais». Aqui, como anteriormente,
mpÜca j Podemos compreender o que a proposição significa assim que
; assitf j Empreendemos os universais envolvidos, nomeadamente
166 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

homem e mortal. É obviamente desnecessário ter um contacto


individual com todo o gênero humano para compreender
o que a nossa proposição significa. Assim, a diferença entre
uma proposição a priori geral e uma generalização empírica
não está no significado da proposição: está na natureza dos
indícios a seu favor. No caso empírico, os indícios consistem
nos casos específicos. Acreditamos que todos os homens são
mortais porque sabemos que há inúmeros casos de homens
que m orrem e nenhuns de homens que vivam além de uma
certa idade. Não acreditamos nisso por vermos uma conexão
entre o universal homem e o universal mortal E verdade que
se a fisiologia puder provar, pressupondo as leis gerais que
regem os organismos vivos, que nenhum organismo vivo pode
durar para sempre, isso estabelece uma conexão entre homem
e mortalidade que nos permitiría asserir a nossa proposição
sem apelar aos indícios especiais de homens a morrer. Mas isto
quer apenas dizer que a nossa generalização foi subsumida
sob uma generalização mais vasta, a favor da qual os indícios
são ainda do mesmo tipo, apesar de em maior número. O
progresso da ciência está constantemente a produzir estas
subsunções, dando portanto às generalizações científicas uma
base indutiva constantemente mais vasta. Mas apesar de isto
dar um maior grau de certeza, não dá um tipo diferente: o
fundamento último continua a ser indutivo, isto é, derivado
de casos, e não uma conexão a priori de universais como temos
em lógica e aritmética.
Há dois aspectos opostos a observar com respeito às
proposições gerais a priori. O primeiro é que, se muitos
casos específicos são conhecidos, pode-se chegar primeiro :
por indução à nossa proposição geral, e a conexão entre
universais pode só subsequentemente ser percebida. Por
exemplo, é sabido que se desenharmos perpendiculares
aos lados de um triângulo partindo dos ângulos opostos, as
três perpendiculares encontram-se num ponto. Seria perfeé
O NOSSO CONHECIMENTO DOS UNIVERSAIS 167

a c to tamente possível ser primeiro conduzido a esta proposição


id e r desenhando efectivamente perpendiculares em muitos casos,
ntre descobrindo que se encontram sempre num ponto; esta ex­
írica periência podería conduzir-nos a procurar e a encontrar a
. dos demonstração geral. Tais casos são comuns na experiência
stem de todo o matemático.
s são O outro aspecto é mais interessante, e de maior im portân­
nens cia filosófica. E que podemos por vezes conhecer uma pro­
uma posição geral em casos em que não conhecemos uma única
exão instância sua. Tome-se um caso como o seguinte: sabemos
: que que quaisquer dois números podem ser multiplicados um
»que pelo outro, dando um terceiro a que se chama o seu produ­
pode to. Sabemos que todos os pares de inteiros cujo produto é
omem menor que 100 foram efectivamente multiplicados entre si,
sição e o valor do produto foi registado na tabuada de multiplicar.
IS i s t o Mas sabemos também que o núm ero de inteiros é infinito,
rxiida e que só um número finito de pares de inteiros foi alguma
tícios vez pensado por seres humanos, ou alguma vez o será. Logo,
r o . 0 segue-se que há pares de inteiros que nunca foram e nunca
estas serão pensados por seres humanos, e que todos lidam com
5uma inteiros cujo produto é maior que 100. Logo, chegamos à
e isto proposição: «Todos os produtos de dois inteiros, que nunca
ite: o foram e nunca serão pensados por qualquer ser humano,
ivado sao maiores que 100». Aqui está uma proposição geral cuja
:emos verdade é inegável e da qual, contudo, pela própria natureza
do caso, nunca poderemos apresentar um caso; porque quais-
ito às qner dois números em que possamos pensar estão excluídos
xuitos Pelos termos da proposição.
meiro • Esta possibilidade, de conhecim ento de proposições
entre §erais das quais nenhum caso se pode dar, é muitas vezes
l Por Uegada porque não se vê que o conhecimento de tais pro­
a la r e s posições exige apenas um conhecimento das relações de
to s , as lUllversais, e não exige qualquer conhecim ento de casos
> e r f e í' d°s universais em questão. Contudo, o conhecimento de tais
168 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

proposições gerais é perfeitamente vital para grande parte


do que geralmente se admite que é conhecido. Por exem­
plo, vimos, nos primeiros capítulos, que o conhecimento
de objectos físicos, ao contrário dos dados dos sentidos, só
se obtém por uma inferência, e que não são coisas com as
quais tenhamos contacto. Logo, nunca podemos conhecer
qualquer proposição da forma «isto é um objecto físico», em
que «isto» é algo imediatamente conhecido. Segue-se que
todo o nosso conhecimento que diz respeito a objectos físicos
é tal que nenhum caso concreto pode ser dado. Podemos
dar exemplos dos dados dos sentidos associados, mas não
podemos dar exemplos dos próprios objectos físicos. Logo,
o nosso conhecimento relativo a objectos físicos depende
inteiram ente desta possibilidade de conhecim ento geral
em que nenhum caso pode ser dado. E o mesmo se aplica
ao nosso conhecimento das mentes das outras pessoas, ou
de qualquer outra classe de coisas das quais nenhum caso é
conhecido por nós por contacto.
Podemos agora fazer um levantamento das fontes do nosso
conhecimento, tal como surgiram no decurso da nossa aná­
lise. Temos primeiro de distinguir entre o conhecimento de
coisas e o conhecimento de verdades. Em cada caso há dois
tipos, um imediato e um derivado. O nosso conhecimento
imediato de coisas, a que chamámos contacto, consiste em
dois gêneros, consoante as coisas conhecidas são particulares
ou universais. Entre os particulares, temos contacto com os
dados dos sentidos e (provavelmente) connosco mesmos.
Entre os universais, parece não haver qualquer princípio pelo
qual possamos distinguir os que podem ser conhecidos por
contacto, mas é claro que entre os que podem ser conhecidos
desse modo estão as qualidades sensíveis, relações de espaço
e tempo, semelhança e certos universais lógicos abstractos.
O nosso conhecimento derivado de coisas, a que chamámos
conhecimento por descrição, envolve sempre conjuntamente
O N O S S O C O N H E C IM E N T O D O S UNIVERSAIS 169

contacto com algo e conhecimento de verdades. Ao nosso


conhecimento'imediato de verdades pode-se chamar conhe­
cimento intuitivo, e às verdades assim conhecidas pode-se
chamar verdades auto-evidentes. Entre tais verdades inclui-se
as que se limitam a afirmar o que é dado nos sentidos, e
também certos princípios lógicos e aritméticos abstractos, e
(apesar de com menos certeza) algumas proposições éticas.
0 nosso conhecimento derivado de verdades consiste em tudo
o que podemos deduzir de verdades auto-evidentes pelo uso
de princípios auto-evidentes de dedução.
Se a perspectiva apresentada está correcta, todo o nosso
conhecimento depende do nosso conhecimento intuitivo.
Torna-se portanto importante considerar a natureza e âmbito
do conhecimento intuitivo, em grande parte do mesmo modo
que, anteriormente, considerámos a natureza e âmbito do co­
nhecimento por contacto. Mas o conhecimento de verdades
levanta um problema adicional que não se levanta a respeito
do conhecimento de coisas, nom eadam ente o problem a
do erro. Algumas das nossas crenças revelam-se errôneas,
e portanto torna-se necessário considerar como podemos
distinguir o conhecimento do erro, se é que podemos. Este
problema não se levanta com respeito ao conhecimento por
contacto pois, seja qual for o objecto de contacto, mesmo
nos sonhos e alucinações, não há erro envolvido desde que
não vamos além do objecto imediato: o erro só pode surgir
quando consideramos o objecto imediato, isto é, o dado
dos sentidos, como a marca de um objecto físico. Assim,
°s problemas ligados ao conhecim ento de verdades são
mais difíceis do que os ligados ao conhecimento de coisas.
Quanto ao primeiro dos problemas ligado ao conhecimento
de verdades, examinaremos a natureza e âmbito dos nossos
juízos intuitivos.
!

í
11.

Sobre o conhecimento intuitivo

.Há uma impressão comum de que tudo aquilo em que


acreditamos tem de ser susceptível de prova, ou pelo menos
ser susceptível de se mostrar que é muitíssimo provável. Mui­
tas pessoas sentem que uma crença a favor da qual nenhum a
razão pode ser dada é uma crença ir razoável. Duma maneira
geral, esta perspectiva é justa. Quase todas as nossas crenças
comuns são inferidas ou susceptíveis de ser inferidas de ou­
tras crenças que podem ser encaradas como o que fornece a
razão para elas. Em regra, a razão foi esquecida, ou até nunca
esteve conscientemente presente nas nossas mentes. Poucos
[le nós alguma vez nos perguntámos, por exemplo, que razão
hã para supor que a comida que vamos agora mesmo comer
aa° será veneno. Contudo sentimos, quando somos desafia-
^0s>que se podería encontrar uma razão perfeitamente boa,
ainda que não a tenhamos à mão no momento. E para esta
Crença temos habitualmente justificação.
• Mas imaginemos um Sócrates insistente que, perante
qualquer razão que lhe demos, continua a exigir uma razão
Pira a razão. Mais cedo ou mais tarde, e provavelmente antes
('ie decorrido muito tempo, teremos de ser conduzidos a um
172 OS PRO BLEM A S DA FIL O S O FIA

ponto em que não podemos encontrar qualquer razão adicio­


nal, e onde se torna quase certo que nenhum a razão adicio­
nal é sequer teoricamente susceptível de ser descoberta (53).
Começando com as crenças comuns da vida quotidiana, pode­
mos ser reconduzidos de aspecto em aspecto, até chegarmos
a um princípio geral, ou um caso de um princípio geral, que
parece luminosamente evidente, e não é em si susceptível de
ser deduzido de algo mais evidente. Na maior parte das ques­
tões da vida quotidiana, tais como se é plausível que a nossa
comida seja nutritiva e não venenosa, seremos reconduzidos
ao princípio indutivo, que discutimos no capítulo 6. Mas para
lá disso não parece haver mais regressão. O próprio princí­
pio é constantemente usado no nosso raciocínio, por vezes
conscientemente, por vezes inconscientemente; mas não há
raciocínio que, começando de um princípio auto-evidente
mais simples, nos conduza ao princípio da indução como sua
conclusão. E o mesmo acontece no que respeita a outros prin­
cípios lógicos. A sua verdade é evidente para nós, e empre­
gamo-los ao construir demonstrações; mas eles próprios, ou
pelo menos alguns deles, são insusceptíveis de demonstração.
A auto-evidência, contudo, não se limita àqueles princí­
pios gerais insusceptíveis de prova. Uma vez admitido um
certo número de princípios lógicos, os outros podem ser
deduzidos deles; mas as proposições deduzidas são muitas
vezes tão auto-evidentes quanto as que foram admitidas sem
prova. Além do mais, toda a aritmética pode ser deduzida dos
princípios gerais da lógica; contudo, as proposições simples
da aritmética, como «dois e dois são quatro», são tão auto-
-evidentes quanto os princípios da lógica.

(53) Este argumento fundacionalista de Russell não é convincente,


pois as nossas crenças podem justificar-se em rede, sem que um a ou
um grupo delas seja absolutamente fundacional. Cf. Introdução,
«Fundacionalismo», p. xxxm.
SO BRE O C O N H E C IM E N T O IN T U IT IV O 173

iido­ Parece também, apesar de isto ser mais disputável, que há


ido- alguns princípios éticos auto-e videntes, como «temos o dever
o . de procurar o que é bom».
►ode** Deve-se observar que, em todos os casos de princípios
'H1QS I gerais, os casos particulares, que lidam com coisas familiares,
, que são mais evidentes do que o princípio geral. Por exemplo, a
el de lei da contradição afirma que nada pode conjuntamente ter
}ues- 1 uma certa propriedade e não a ter. Isto é evidente mal o com­
lossa | preendemos, mas não é tão evidente quanto que uma rosa
ridos I particular que vemos não pode ser conjuntamente vermelha
para e não vermelha. (E claro que é possível que partes da rosa
rincí- sejam vermelhas e outras partes não vermelhas, ou que a rosa
rezes seja de um tom de cor-de-rosa que dificilmente sabemos se
t o há havemos de chamar vermelho ou não; mas no primeiro caso é
lente ' j claro que a rosa como um todo não é vermelha, ao passo que
o sua | no segundo a resposta fica teoricamente determ inada mal
prin- | tenhamos decidido uma definição precisa de «vermelho».)
a p r e - J Habitualmente é através de casos concretos que passamos
► s, ou I a ser capazes de ver o princípio geral. Só quem tem prática
ação. } cm lidar com abstracções pode prontam ente apreender um
rincí- j princípio geral sem a ajuda de exemplos.
o uru | Além dos princípios gerais, o outro tipo de verdades auto-
n ser j -evidentes são as que derivam imediatamente da sensação.
antas j Chamaremos a tais verdades «verdades de percepção», e aos
5 sem jnízos que os exprimem chamaremos «juízos de percepção».
.a dos Has aqui é preciso ter um certo cuidado ao chegar à natureza
nples Precisa das verdades que são auto-evidentes. Os próprios
■auto- cHdos dos sentidos não são verdadeiros nem falsos. Uma
determinada mancha de cor que vejo, por exemplo, existe
^Pcnas: não é o tipo de coisa que seja verdadeira ou falsa.
Cverdade que existe tal mancha, é verdade que tem uma
cenU-
naa o11 i Certa forma e grau de brilho, é verdade que está rodeada de
tuçã°' . °utras cores. Mas a própria mancha, como tudo o resto no
1Tlundo dos sentidos, é de um tipo radicalmente diferente
174 OS PROBLEM AS DA FIL O S O FIA

das coisas que são verdadeiras ou falsas, e portanto não se


pode apropriadamente dizer que é verdadeira. Assim, sejam
quais forem as verdades auto-evidentes que podemos obter
pelos nossos sentidos, têm de ser diferentes dos dados dos
sentidos dos quais foram obtidas.
Parece haver dois tipos de verdades auto-evidentes da
percepção, apesar talvez de, em última análise, os dois tipos
se poderem fundir. Primeiro, há o tipo que simplesmente
assere a existência do dado dos sentidos, sem que de qualquer
modo o analise. Vemos uma mancha de vermelho e ajuizamos
«há tal e tal mancha de vermelho» ou, mais estritamente, «há
isso»; isto é um tipo de juízo intuitivo de percepção. O outro
tipo surge quando o objecto dos sentidos é complexo e o
submetemos a um grau de análise. Se, por exemplo, vemos
uma mancha redonda de vermelho, podemos ajuizar «aquela
mancha de vermelho é redonda». Isto é uma vez mais um juí­
zo de percepção, mas difere do nosso tipo anterior. Neste tipo
temos um único dado dos sentidos que tem conjuntamente
cor e forma: a cor é vermelho e a forma é redondo. O nosso
juízo analisa o dado em cor e forma, e depois recombina-os
afirmando que a cor vermelha tem a forma redonda. Outro
exemplo deste tipo de juízo é «isto está à direita daquilo»,
em que «isto» e «aquilo» são vistos simultaneamente. Neste
tipo de juízo, o dado dos sentidos contém constituintes que
têm uma relação entre eles, e o juízo assere que estes cons­
tituintes têm essa relação.
Outra classe de juízos intuitivos, análogos aos dos sentidos
e contudo bastante diferentes, são os juízos de memória. Há
algum perigo de confusão quanto à natureza da memória,
devido ao facto de a memória de um objecto tender a ser
acompanhada por uma imagem do objecto, e contudo a
imagem não pode ser o que constitui a memória. Isto vê-se §
facilmente dando-nos meramente conta de que a imagem está
no presente, ao passo que o que é recordado se sabe estar
SO BRE O C O N H E C IM E N T O IN T U IT IV O 175

o se no passado. Além do mais, somos certamente capazes em


jam alguma medida de comparar a nossa imagem com o objecto
bter recordado, de modo que muitas vezes sabemos, dentro de
dos limites algo latos, até que ponto a nossa imagem é fidedigna;
mas isto seria impossível a não ser que o objecto, ao contrário
s da da imagem, esteja de algum modo perante a mente. Assim,
ipos a essência da memória não é constituída pela imagem, mas
ente por ter imediatamente perante a mente um objecto que se
quer ; reconhece que é do passado. Se a memória não fosse assim,
imos : não saberiamos que alguma vez houve realmente um passado,
, «há nem seríamos capazes de com preender a palavra «passado»,
nutro j tal como um homem cego de nascimento não pode compre­
>e o ! ender a palavra «luz». Assim, tem de haver juízos intuitivos
smos j de memória, e é deles que, em última análise, todo o nosso
juela 1 conhecimento do passado depende.
njuí- j O caso da memória, contudo, levanta uma dificuldade,
2 tipo j pois é notoriamente falaciosa, e por isso põe em dúvida a
lente j fidedignidade dosjuízos intuitivos em geral. Esta dificuldade
io s s o 1 não é ligeira. Mas reduzamos primeiro o seu âmbito tanto
na-os quanto possível. Em termos gerais, a memória é fidedigna
)utro proporcionalmente à vivacidade da experiência e à sua proxi­
uilo», midade no tempo. Se a casa do lado foi atingida por um raio
Neste há meio minuto, a minha memória do que vi e ouvi será tão
ts que fidedigna que seria disparatado duvidar que houve realmente
conse­ um relâmpago. E o mesmo se aplica a experiências menos
vividas, desde que sejam recentes. Tenho a certeza absoluta
ntidos de que há meio minuto estava sentado na mesma cadeira em
ia. Há que estou agora sentado. Recuando no dia, descubro coisas
nória, de que estou perfeitamente certo, outras de que estou quase
: a ser eerto, outras de que posso ficar certo pelo pensamento e
údo a evocando circunstâncias associadas, e algumas de que não
3 vê-se estou de modo algum certo. Tenho a certeza que comi o
m está Pequeno-almoço esta manhã, mas se eu fosse tão indiferente
s estai a° pequeno-almoço como um filósofo deve ser, teria dúvidas.
176 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

Quanto à conversa do pequeno-almoço, consigo lembrar-me


de alguma parte facilmente, de outra parte com esforço, de
alguma só com grande elemento de dúvida, e de alguma
não me lembro de todo em todo. Assim, há uma gradação
contínua no grau de auto-evidência do que me lembro, e
uma gradação correspondente na fidedignidade da minha
memória.
Assim, a primeira resposta à dificuldade da memória fa­
laciosa é dizer que a memória tem graus de auto-evidência,
e que estes correspondem aos graus da sua fidedignidade,
chegando a um limite de auto-evidência perfeita e fidedigni­
dade perfeita na nossa memória de acontecimentos recentes
e vividos.
Parecería, contudo, que há casos de crença muito firme
numa memória totalmente falsa. E provável que, nestes casos,
o que é realmente recordado, no sentido de estar imediata­
mente perante a mente, é outra coisa que não aquilo em que
falsamente se acredita, apesar de ser algo que geralmente lhe
está associado. Diz-se que Jorge IV acabou por acreditar que
esteve na batalha de Waterloo porque disse tantas vezes que
o esteve. Neste caso, o que era imediatamente recordado era
a sua repetida asserção; a existir, a crença no que Jorge IV
estava a asserir seria produzida por associação com a asser­
ção recordada, e não seria portanto um caso genuíno de
memória. Parece que todos os casos de memória falaciosa
podem provavelmente ser tratados deste modo, isto é, pode-se
mostrar que não são de modo algum casos de memória
estritamente falando.
Um aspecto importante sobre a auto-evidência torna-se
claro com o caso da memória, a saber, que a auto-evidência
tem graus: não é uma qualidade que está simplesmente pre­
sente ou ausente, mas antes uma qualidade que pode estar
mais ou menos presente, em gradações que vão da certeza
absoluta até um apagamento quase total. As verdades da per­
SO BRE O C O N H E C IM E N T O IN T U IT IV O 177

cepção e alguns dos princípios da lógica têm o maior grau


de auto-evidência; as verdades de memória imediata têm
um grau quase igualmente alto. O princípio indutivo tem
menos auto-evidência do que alguns dos outros princípios
da lógica, como «o que se segue de uma premissa verdadeira
tem de ser verdadeiro» (54) . A auto-evidência das memórias
diminui à medida que se tornam mais remotas e esvaídas; as
verdades da lógica e da matemática têm (em termos gerais)
menos auto-evidência à medida que se tornam mais compli­
cadas. Juízos de valor ético ou estético intrínseco tendem a
ter alguma auto-evidência, mas não muita.
Os graus de auto-evidência são importantes na teoria do
conhecimento pois se as proposições podem (como parece
plausível) ter algum grau de auto-evidência sem que sejam
verdadeiras, não será necessário abandonar toda a conexão
entre auto-evidência e verdade, mas apenas dizer que, nos
casos em que há conflito, deve-se m anter a proposição mais
auto-evidente e rejeitar a menos auto-evidente.
Parece, contudo, muitíssimo provável que em «auto-evi­
dência» estejam combinadas duas noções diferentes, como
se explicou acima; que uma delas, que corresponde ao grau
mais elevado de auto-evidência, é realmente uma garantia
infalível de verdade, ao passo que a outra, que corresponde
a todos os outros graus, não oferece uma garantia infalível,
mas apenas uma presunção maior ou menor. Isto, contudo,
é apenas uma sugestão, que neste momento não podemos
desenvolver mais. Depois de termos lidado com a natureza
da verdade, regressaremos ao tema da auto-evidência, em
conexão com a distinção entre conhecimento e erro.

(54) Gf. Introdução, «A natureza da lógica», p. xliii.


f

I
±
12.

Verdade e falsidade

O nosso conhecimento de verdades, ao contrário do nosso


conhecimento de coisas, tem um oposto, nomeadamente o
erro. No que respeita às coisas, podemos conhecê-las ou não,
mas não há um estado mental positivo que se possa descrever
como conhecimento errôneo de coisas, desde que, em qual­
quer caso, nos confinemos ao conhecimento por contacto.
Seja o que for com o qual estamos em contacto tem de ser
algo; podemos retirar inferências erradas do nosso contacto,
mas o contacto em si não pode ser enganador. Assim, não
há dualismo com respeito ao contacto. Mas com respeito ao
conhecimento de verdades, há um dualismo. Tanto podemos
acreditar no que é falso como no que é verdadeiro. Sabemos
que em muitíssimos assuntos pessoas diferentes têm opiniões
diferentes e incompatíveis: logo, algumas crenças têm de ser
errôneas (55) . Uma vez que as crenças errôneas são muitas
vezes mantidas com tanta força como as verdadeiras, torna-
-se uma questão difícil saber como se hão-de distinguir das
crenças verdadeiras. Como haveremos de saber, num dado

(55) Cf. Introdução, «Factividade», p. l i.


180 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

caso, que a nossa crença não é errônea? Esta é uma questão


da maior das dificuldades, para a qual nenhum a resposta
completamente satisfatória é possível. Há, contudo, uma
questão preliminar que é bastante menos difícil, e que é
esta: o que queremos dizer com verdade e falsidade? (56) E esta
questão preliminar que será considerada neste capítulo.
Neste capítulo não estamos a perguntar como podemos
saber se uma crença é verdadeira ou falsa: estamos a per­
guntar o que quer dizer a questão de saber se uma crença é
verdadeira ou falsa. Desejavelmente, uma resposta clara a esta
questão pode ajudar-nos a obter uma resposta à questão de
saber que crenças são verdadeiras, mas por agora pergunta­
mos apenas «O que é a verdade?» e «O que é a falsidade?»,
e não «Que crenças são verdadeiras?» e «Que crenças são
falsas?». E muito importante manter estas questões diferentes
inteiramente separadas, dado que qualquer confusão entre
elas irá seguramente produzir uma resposta que não é real­
mente aplicável a qualquer delas (57) .
Há três aspectos a observar na tentativa de descobrir a
natureza da verdade, três requisitos que qualquer teoria tem
de cumprir.
1) A nossa teoria daverdade tem de ser tal que admita o seu
oposto, a falsidade. Muitos filósofos não satisfizeram
adequadamente esta condição: construíram teorias de
acordo com as quais todo o nosso pensamento teria de
ser verdadeiro, tendo depois a maior das dificuldades
em encontrar um lugar para a falsidade. A este respeito,
a nossa teoria da crença tem de ser diferente da nossa
teoria do contacto, dado que no caso do contacto não
foi necessário dar conta de qualquer oposto. "

(56) Ou seja, o que está em causa é saber qual é o significado de


«verdade» e «falsidade». No original, what we fnean.
(57) Cf. Introdução, «Teoria da verdade», p. ui.
VERDA DE E FALSIDADE 181

2) Parece razoavelmente evidente que se não existissem


crenças não poderia haver falsidade, nem verdade, no
sentido em que a verdade é correlativa à falsidade. Se
imaginarmos um m undo de mera matéria, não havería
lugar para a falsidade nesse m undo e, apesar de conter
o que se pode chamar «factos», não conteria quaiquer
verdades, no sentido em que as verdades são coisas
do mesmo tipo das falsidades. De facto, a verdade e
a falsidade são propriedades de crenças e afirmações:
logo, um mundo de mera matéria, dado que não iria
conter crenças ou afirmações, não iria conter também
verdade ou falsidade.
. 3) Mas, como se fosse contra o que acabámos de dizer,
deve-se observar que a verdade ou falsidade de uma
. crença depende sempre de algo que está fora da pró­
pria crença. Se eu acredito que Carlos I m orreu no
cadafalso, acredito num a verdade, não por causa de
qualquer qualidade intrínseca da minha crença, que
possa ser descoberta examinando apenas a crença,
mas por causa de um acontecimento histórico que se
deu há dois séculos e meio. Se eu acredito que Carlos I
m orreu na cama, acredito falsamente: nenhum grau
de vivacidade da minha crença, ou cuidado na forma­
ção da crença, impede que seja falsa, uma vez mais por
causa do que aconteceu há muito tempo, e não por
causa de qualquer propriedade intrínseca da minha
crença. Logo, apesar de a verdade e a falsidade serem
propriedades das crenças, são propriedades que de­
pendem das relações das crenças com outras coisas, e
não de qualquer qualidade interna das crenças. *

O terceiro dos requisitos anteriores conduz-nos a adoptar


a perspectiva - que tem sido em geral a mais comum entre
OS filósofos - de que a verdade consiste em alguma forma
182 OS PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

de correspondência entre crença e facto. Contudo, não é


de modo algum uma questão fácil descobrir uma forma de
correspondência contra a qual não existam objecções irre­
futáveis. Em parte por causa disso - e em parte por sentirem
que, se a verdade consiste numa correspondência do pensa­
mento com algo fora do pensamento, o pensamento nunca
pode saber quando a verdade foi alcançada - muitos filósofos
foram levados a tentar encontrar uma definição de verdade
que não consista numa relação com algo completamente fora
da crença. A tentativa mais importante de definição deste
gênero é a teoria de que a verdade consiste em coerência. Diz-
-se que a marca da falsidade é não ter coesão no corpo das
nossas crenças, e que a essência de uma verdade é fazer parte
do sistema perfeitamente acabado que é A Verdade.
Há, contudo, uma grande dificuldade nesta perspectiva,
ou antes duas grandes dificuldades. A primeira é que não
há razão para supor que só é possível um corpo coerente
de crenças. Pode ser que, com imaginação suficiente, um
romancista possa inventar um passado para o mundo que se
ajuste perfeitamente ao que sabemos, e que no entanto seja
bastante diferente do passado real. Em matérias mais especí­
ficas, é certo que há muitas vezes duas ou mais hipóteses que
dão conta de todos os factos conhecidos sobre um dado tema,
e apesar de, em tais casos, os homens de ciência procurarem
descobrir factos que excluam todas as hipóteses menos uma,
não há razão para que consigam sempre fazê-lo.
Em filosofia, além disso, não parece incomum que duas
hipóteses rivais consigam dar conta de todos os factos. Assim,
por exemplo, é possível que a vida seja um longo sonho, e
que o mundo exterior tenha apenas o grau de realidade que
os objectos dos sonhos têm; mas apesar de tal perspectiva
não parecer inconsistente com factos conhecidos, não há
razão para preferi-la em detrimento da perspectiva de senso
comum, segundo a qual as outras pessoas e coisas existem
VERDA DE E FALSIDADE 183

realmente. Assim, a coerência, como definição de verdade, é


mal sucedida porque não há qualquer prova de que só possa
haver um sistema coerente.
A outra objecção a esta definição de verdade é que presu­
me que o significado de «coerência» é conhecido, quando,
de facto, «coerência» pressupõe a verdade das leis da lógica.
Duas proposições são coerentes quando ambas podem ser
verdadeiras, e são incoerentes quando pelo menos uma tem
de ser falsa. Ora, para saber se duas proposições podem ser
ambas verdadeiras, temos de conhecer verdades como a
lei da contradição. Por exemplo, as duas proposições «esta
árvore é uma faia» e «esta árvore não é uma faia» não são
coerentes por causa da lei da contradição. Mas se a própria
lei da contradição fosse sujeita ao teste da coerência, desco­
bririamos que, se escolhéssemos supor que é falsa, já nada
seria incoerente com qualquer outra coisa. Assim, as leis da
lógica fornecem o esqueleto ou quadro de referência no
seio do qual o teste da coerência se aplica, não podendo elas
próprias ser estabelecidas por este teste.
Pelas duas razões acima, não se pode aceitar que a coerên­
cia dê o significado da verdade, apesar de ser muitas vezes um
dos mais importantes testes de verdade, depois de uma certa
quantidade de verdade se ter tornado conhecida.
Logo, somos reconduzidos à correspondência com factos
como constituindo a natureza da verdade. Resta definir preci­
samente o que se quer dizer com «facto», e qual é a natureza
da correspondência que tem de subsistir entre crença e facto,
para que a crença possa ser verdadeira.
■De acordo com os nossos três requisitos, temos de procurar
urna teoria da verdade que 1) permita que a verdade tenha
Urn oposto, nomeadamente a falsidade, 2) faça da verdade
nma propriedade de crenças, mas 3) seja uma propriedade
que dependa completamente da relação das crenças com as
c°isas exteriores.
184 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

■ A necessidade de permitir a falsidade torna impossível


encarar a crença como uma relação da mente com um só
objecto, que se podería dizer ser aquilo em que se acredita.
Se a crença fosse encarada desse modo, iríamos descobrir
que, como o contacto, não admitiría a oposição entre ver­
dade e falsidade, tendo ao invés de ser sempre verdadeira.
Isto pode tornar-se mais claro através de exemplos. Otelo
acredita falsamente que Desdémona ama Cássio. Não pode­
mos dizer que esta crença consiste num a relação com um
só objecto, «o amor de Desdémona por Cássio», pois se tal
objecto existisse, a crença seria verdadeira. De facto, não há
tal objecto, e portanto Otelo não pode ter qualquer relação
com tal objecto. Logo, a sua crença não pode consistir numa
relação com este objecto.
Poder-se-ia dizer que esta crença é uma relação com um
objecto diferente, nomeadamente, «que Desdémona ama
Cássio»; mas é quase igualmente difícil supor que tal objecto
existe, quando Desdémona não ama Cássio, como foi supor
que há «o amor de Desdémona por Cássio». Logo, será me­
lhor procurar uma teoria da crença que não a faça consistir
num a relação da mente com um só objecto.
E comum conceber as relações como se sempre se verifi­
cassem entre dois termos, mas de facto não é sempre assim.
Algumas relações exigem três termos, algumas quatro, e
assim por diante. Tome-se, por exemplo, a relação «entre».
Enquanto só entrarem dois termos, a relação «entre» é im­
possível: três termos é o mais pequeno núm ero que a torna
possível. Iorque está entre Londres e Edimburgo; mas se
Londres e Edimburgo fossem os únicos lugares do mundo,
nada podería haver entre um lugar e o outro. De igual modo,
ciúme exige três pessoas: não pode haver tal relação que não
envolva pelo menos três pessoas. Uma proposição como «A
deseja que B promova o casamento de C com D» envolve uma
relação de quatro termos; quer dizer, A e B e C e D entram
VERDADE E FALSIDADE 185

todos, e a relação envolvida não pode ser expressa de outro


modo senão numa forma que envolva os quatro. Poder-se-iam
multiplicar casos sem fim, mas já se disse o suficiente para
mostrar que há relações que exigem mais de dois termos
para poderem ocorrer.
A relação envolvida em julgar ou acreditar tem de ser toma­
da, para que a falsidade seja devidamente permitida, como
uma relação entre vários termos, e não entre dois. Quando
Otelo acredita que Desdémona ama Cássio, ele não pode ter
perante a sua mente um só objecto, «o amor de Desdémo­
na por Cássio», ou «que Desdémona ama Cássio», pois isso
exigiria que existissem falsidades objectivas, que subsistiríam
independentemente de quaisquer mentes; e isto, apesar de
não ser logicamente refutável, é uma teoria a evitar se for
possível. Assim, é mais fácil dar conta da falsidade se tomar­
mos o juízo como uma relação em que a mente e os vários
objectos em causa ocorrem todos individualmente; quer di­
zer, Desdémona e amar e Cássio têm de ser todos termos na
relação que subsiste quando Otelo acredita que Desdémona
ama Cássio. Logo, esta é uma relação de quatro termos, dado
que também Otelo é um dos termos da relação. Quando di­
zemos que é uma relação de quatro termos, não queremos
dizer que Otelo tem uma certa relação com Desdémona, e
tem a mesma relação com amar e também com Cássio. Isto
pode ser verdade no que respeita a outras relações que não
o acreditar; mas acreditar não ê, claramente, uma relação
que Otelo tenha com cada um dos três termos em causa,
ntas com todos eles conjuntamente: há apenas um exemplo
da relação de acreditar, mas este exemplo entrelaça quatro
termos. Assim, a ocorrência efectiva, no momento em que
Otelo está a dar abrigo à sua crença, é que a relação chamada
. «acreditar» está a entrelaçar num todo complexo os quatro
termos Otelo, Desdémona, amar e Cássio. Aquilo a que se
chama crença ou juízo nada é senão esta relação de acreditar
186 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

ou ajuizar, que relaciona a mente com várias coisas além de


si própria. Um acto de crença ou juízo é a ocorrência entre
certos termos num momento particular do tempo, da relação
de acreditar ou ajuizar.
Estamos agora em posição de com preender o que dis­
tingue um juízo verdadeiro de um falso. Para isso, iremos
adoptar certas definições. Em todo o acto de juízo há uma
mente que ajuiza, e há termos com respeito aos quais ela
ajuiza. Iremos chamar à mente o sujeito no juízo, e aos res­
tantes termos os objectos. Assim, quando Otelo ajuiza que
Desdémona ama Cássio, Otelo é o sujeito, ao passo que os
objectos são Desdémona e amar e Cássio. Ao sujeito e aos
objectos, conjuntamente, chama-se os constituintes do juízo.
Observar-se-á que a relação de ajuizar tem aquilo a que se
chama um «sentido» ou «direcção». Podemos dizer, metafo­
ricamente, que põe os seus objectos num a certa ordem, que
podemos indicar por meio da ordem das palavras na frase.
(Numa língua flexiva, o mesmo será indicado por flexões,
por exemplo, pela diferença entre nominativo e acusativo.)
O juízo de Otelo de que Cássio ama Desdémona difere do
seu juízo de que Desdémona ama Cássio, apesar do facto
de ter os mesmos constituintes, porque a relação de ajuizar
coloca os constituintes num a ordem diferente nos dois ca­
sos. De igual modo, se Cássio ajuiza que Desdémona ama
Otelo, os constituintes do juízo são ainda os mesmos, mas
a sua ordem é diferente. Esta propriedade de ter um «sem
tido» ou «direcção» é algo que a relação de ajuizar partilha
com todas as outras relações. O «sentido» das relações é a
fonte última de ordem e série e de um grande núm ero de
conceitos matemáticos; mas não precisamos de nos deter
mais neste aspecto.
Dissemos que a relação chamada «ajuizar» ou «acredi
tar» entrelaça num todo complexo o sujeito e os objectos.
A este respeito, ajuizar é exactamente como qualquer outra
VERDADE E FALSIDADE 187

relação. Sempre que uma relação se verifica entre dois ou


mais termos, une os termos num todo complexo. Se Otelo
ama Desdémona, há um todo complexo que é «o amor de
Otelo por Desdémona». Os próprios termos unidos pela
relação podem ser complexos, ou podem ser simples, mas
o todo que resulta de serem unidos tem de ser complexo.
Sempre que há uma relação que relaciona certos termos, há
um objecto complexo formado pela união desses termos;
e pelo contrário, sempre que há um objecto complexo, há
uma relação que relaciona os seus constituintes. Quando
um ac to de acreditar ocorre, há um complexo, no qual
«acreditar» é a relação unificadora, e o sujeito e os objectos
são dispostos num a certa ordem pelo «sentido» da relação
de acreditar. Entre os objectos, como vimos ao considerar
«Otelo acredita que Desdémona ama Cássio», um deles tem
de ser uma relação - neste caso, a relação «amar». Mas esta
relação, tal como ocorre no acto de acreditar, não é a relação
que cria a unidade do todo complexo que consiste no sujeito
e nos objectos. A relação «amar», tal como ocorre no acto
de acreditar, é um dos objectos - é um tijolo na estrutura, e
não o cimento. O cimento é a relação «acreditar». Quando
a crença é verdadeira, há outra unidade complexa, na qual a
relação que era um dos objectos da crença relaciona os outros
objectos. Assim, por exemplo, se Otelo acredita em verdade
que Desdémona ama Cássio, então há uma unidade com­
plexa, «o amor de Desdémona por Cássio», que é composto
exclusivamente pelos objectos da crença, na mesma ordem que
toham na crença, com a relação que era um dos objectos
ocorrendo agora como o cimento que liga os outros objectos
da crença. Por outro lado, quando uma crença é falsa, n ã a h á
tal unidade complexa composta unicamente pelos objectos
da crença. Se Otelo acredita falsamente que Desdémona ama
Cássio, então não há uma unidade complexa como «o amor
de Desdémona por Cássio».
188 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

■ Assim, uma crença é verdadeira quando corresponde a um


dado complexo associado, e falsa quando não corresponde.
Admitindo, para efeitos de precisão, que os objectos da
crença são dois termos e um a relação, sendo os termos
postos num a certa ordem pelo «sentido» da crença, então se
os dois termos nessa ordem estão unidos pela relação num
complexo, a crença é verdadeira; se não, é falsa. Isto constitui
a definição de verdade e falsidade que procurávamos. Ajuizar
ou acreditar é uma certa unidade complexa da qual a mente
é uma constituinte; se os restantes constituintes, tomados na
ordem que têm na crença, formarem uma unidade complexa,
então a crença é verdadeira; se não, é falsa (58) .
Assim, apesar de a verdade e a falsidade serem proprieda­
des de crenças, são contudo, num certo sentido, proprieda­
des extrínsecas, pois a condição de verdade de uma crença
é algo que não envolve crenças nem (em geral) qualquer
mente, mas apenas os objectos da crença. Uma mente que
acredita, acredita em verdade quando há um complexo
correspondente que não envolve a mente, mas apenas os seus
objectos. Esta correspondência assegura a verdade, e a sua
ausência implica a falsidade. Logo, damos simultaneamente
conta dos dois factos de que as crenças a) dependem para
a sua existência das mentes, b) não dependem das mentes
para a sua verdade.
Podemos exprimir a nossa teoria de outra maneira, como
se segue: se considerarmos uma crença como «Otelo acredita
que Desdémona ama Cássio», chamaremos a Desdémona e
Cássio os termos objecto, e a amar a relação objecto. Se há uma
unidade complexa «o amor de Desdémona por Cássio», con­
sistindo nos termos objecto relacionados pela relação objecto
na mesma ordem que têm na crença, então a esta unidade

(58) Cf. Introdução, «Teoria da verdade», p . l ii.


VERDADE E FALSIDADE 189

complexa chama-se ofacto correspondente à crença. Assim, uma


crença é verdadeira quando há um facto correspondente, e
é falsa quando não há qualquer facto correspondente.
Vê-se assim que as mentes não criam a verdade ou a falsi­
dade. Criam crenças, mas uma vez criadas as crenças a mente
não pode torná-las verdadeiras ou falsas, excepto no caso
especial em que dizem respeito a coisas futuras que estão sob
o domínio da pessoa que acredita, como apanhar comboios.
O que faz uma crença ser verdadeira é um facto, e este facto
(excepto em casos excepcionais) não envolve de modo algum
a mente da pessoa que tem a crença.
Tendo agora decidido o que queremos dizer com verdade e
falsidade, temos seguidamente de considerar que maneiras
há de saber se esta ou aquela crença é verdadeira ou falsa.
Esta consideração irá ocupar o próximo capítulo.
I
13.

Conhecimento, erro e opinião provável

A questão do que queremos dizer com verdade e falsidade,


que considerámos no capítulo anterior, tem muito menos
interesse do que a questão de como podemos saber o que é
verdadeiro e o que é falso. Esta questão irá ocupar-nos neste
capítulo. Não pode haver dúvida de que algumas das nossas
crenças são errôneas; assim, somos levados a inquirir que
certeza podemos alguma vez ter de que tal e tal crença não
é errônea. Por outras palavras, podemos alguma vez saber
realmente alguma coisa, ou acontece apenas que por vezes,
por sorte, acreditamos no que é verdadeiro? Antes de enfren­
tar esta questão temos de decidir, contudo, o que queremos
dizer com «conhecer», e esta questão não é tão fácil como
se podería supor.
Á primeira vista, poderiamos imaginar que o conhecimen­
to podería ser definido como «crença verdadeira». Quando
0 que acreditamos é verdadeiro, poder-se-ia supor que atin­
gimos um conhecimento do que acreditamos. Mas isto não
estaria de acordo com o modo como a palavra é comummente
•Usada. Tomando um exemplo muito trivial: se um homem
acredita que o último nome do anterior primeiro-ministro
192 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

começa com um B, acredita no que é verdadeiro, uma vez que


o anterior primeiro-ministro era Sir Henry Campbell Banner-
man. Mas se acredita que o Sr. Balfour foi o anterior primei­
ro-ministro, acreditará mesmo assim que o último nome do
anterior primeiro-ministro começava com um B, e contudo
esta crença, apesar de verdadeira, não seria encarada como
constituindo conhecimento. Se um jornal, por uma antecipa­
ção inteligente, anuncia o resultado de uma batalha antes de
se ter recebido qualquer telegrama com o resultado, pode,
por sorte, anunciar o que depois se verifica ser o resultado
correcto, e pode produzir crença em alguns dos seus leitores
menos experientes. Mas apesar da verdade da sua crença, não
se pode dizer que tais leitores têm conhecimento. Assim, é
claro que uma crença verdadeira não é conhecimento quando
é deduzida de uma crença falsa (59) .
De modo análogo, não se pode chamar conhecimento a
uma crença verdadeira quando é deduzida por um processo
falacioso de raciocínio, ainda que as premissas das quais é
deduzida sejam verdadeiras. Se eu sei que todos os Gregos são
homens e que Sócrates era um homem, e infiro que Sócrates
era grego, não se pode dizer que sei que Sócrates era grego
porque, apesar de as minhas premissas e a minha conclusão
serem verdadeiras, a conclusão não se segue das premissas.
Deveremos então dizer que nada é conhecimento excepto
o que é validamente deduzido de premissas verdadeiras? Não
podemos obviamente dizer isto. Tal definição é ao mesmo
tempo demasiado lata e demasiado restrita. Em primeiro
lugar, é demasiado lata porque não é suficiente que as nossas
premissas sejam verdadeiras, têm também de ser conhecidas.
O homem que acredita que o Sr. Balfour foi o anterior pri­
meiro-ministro pode fazer depois deduções válidas partindo

(59) Cf. Introdução, «Conhecimento e justificação», p . l ix .


C O N H E C IM E N T O , E R R O E O P IN IÃ O PROVÁVEL 193

da premissa verdadeira de que o nome do anterior primeiro-


-ministro começava com um B, mas não se pode dizer que
conhece as conclusões alcançadas por meio destas deduções.
Assim, teremos de corrigir a nossa definição, dizendo que o
conhecimento é o que é validamente deduzido de premissas
conhecidas. Contudo, esta é uma definição circular: pressupõe
que já sabemos o que quer dizer «premissas conhecidas».
Na melhor das hipóteses, por isso, pode definir um gênero
de conhecimento, o gênero a que chamamos derivado, que
contrasta com o conhecimento intuitivo. Podemos dizer: «O
conhecimento derivado é o que é validamente deduzido de
premissas conhecidas intuitivamente». Nesta afirmação não
há qualquer defeito formal, mas deixa ainda para procurar
a definição de conhecimento intuitivo.
Deixando de lado, por um momento, a questão do conhe­
cimento intuitivo, consideremos a definição sugerida acima
de conhecimento derivado. A principal objecção a isto é que
limita indevidamente o conhecimento. Acontece constante­
mente as pessoas darem abrigo a uma crença verdadeira, que
cresceu nelas por causa de um fragmento de conhecimento
intuitivo do qual pode ser validamente inferido, mas do qual
não foi, de facto, inferido por qualquer processo lógico.
Tome-se, por exemplo, as crenças produzidas pela leitura.
Se os jornais anunciam a morte do Rei, temos uma justifica­
ção razoavelmente boa para acreditar que o Rei está morto,
dado que isto é o gênero de comunicado que não seria feito
se fosse falso. E temos uma justificação bastante forte para
acreditar que o jornal assere que o Rei está morto. Mas aqui
o conhecimento intuitivo com base no qual a nossa crença se
baseia é conhecimento da existência de dados dos sentidos
derivados de olhar para a folha impressa que dá as notícias.
Este conhecimento dificilmente chega à consciência, excepto
numa pessoa que não pode ler com facilidade. Uma criança
pode ter consciência das formas das letras, passando gradual
194 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

e penosamente para uma compreensão do seu significado.


Mas qualquer pessoa acostumada a ler passa logo para o que
as letras querem dizer, e não tem consciência, excepto depois
de reflectir, que derivou este conhecimento dos dados dos
sentidos chamados «ver as letras impressas». Assim, apesar de
ser possível uma inferência válida das letras para o seu signi­
ficado, e apesar de poder ser executada pelo leitor, não é de
facto executada, dado que não executa realmente qualquer
operação a que se possa chamar inferência lógica. Contudo,
seria absurdo dizer que o leitor não sabe que ojornal anuncia
a morte do Rei.
Logo, temos de admitir como conhecimento derivado
seja o que for que resulta de conhecimento intuitivo, ainda
que por mera associação, desde que exista realmente uma
conexão lógica válida, e desde que a pessoa em questão possa
tornar-se ciente desta conexão por reflexão. Há de facto mui­
tas maneiras, além da inferência lógica, pela qual passamos
de uma crença a outra: a passagem da folha impressa para o
seu significado ilustra estas maneiras. A estas maneiras pode-
-se chamar «inferência psicológica». Admitiremos, então, tais
inferências psicológicas como meios de obter conhecimento
derivado, desde que exista uma inferência lógica susceptível
de ser descoberta que seja paralela à inferência psicológica.
Isto torna a nossa definição de conhecimento derivado menos
precisa do que poderiamos desejar, uma vez que «susceptível
de ser descoberta» é uma expressão vaga: não nos diz quanta
reflexão pode ser necessária para fazer a descoberta (60) . Mas,
de facto, «conhecimento» não é uma concepção precisa:
mistura-se com «opinião provável», como veremos melhor
no decurso deste capítulo. Logo, não se deve procurar uma
definição muito precisa, dado que qualquer definição desse
gênero terá de ser mais ou menos enganadora.

(60) Cf. Introdução, «Conhecimento e justificação», p. l ix .


C O N H E C IM E N T O , E R R O E O P IN IÃ O PROVÁVEL 195

A principal dificuldade com respeito ao conhecimento,


contudo, não surge com respeito ao conhecimento derivado,
mas com respeito ao conhecimento intuitivo. Sempre que
lidamos com conhecimento derivado podemos recorrer ao
teste do conhecimento intuitivo. Mas com respeito às cren­
ças intuitivas não é de modo algum fácil descobrir qualquer
critério pelo qual se possa distinguir algumas como verda­
deiras e outras como errôneas. Nesta questão dificilmente é
possível alcançar qualquer resultado muito preciso: todo o
nosso conhecimento de verdades está infectado com algum
grau de dúvida, e uma teoria que ignorasse este facto estaria
claramente errada. Algo se pode fazer, contudo, para mitigar
as dificuldades da questão.
Para começar, a nossa teoria da verdade fornece a possibi­
lidade de distinguir certas verdades como auto-evidentes num
sentido que assegura a infalibilidade. Afirmámos que, quando
uma crença é verdadeira, há um facto correspondente, no
qual os diversos objectos da crença formam um só complexo.
Diz-se que a crença constitui conhecimento deste facto desde
que obedeça às condições complementares algo vagas que
temos vindo a considerar neste capítulo. Mas com respeito a
qualquer facto, além do conhecimento constituído pela cren­
ça, podemos também ter o tipo de conhecimento constituído
pela percepção (tomando esta palavra no seu sentido mais lato
possível). Por exemplo, se o leitor sabe a hora do pôr-do-sol,
pode a essa hora conhecer o facto de que o Sol se está a pôr:
isto é conhecimento do facto por meio do conhecimento de
verdades; mas também pode, se o tempo estiver bom, olhar
Para oeste e ver realmente o pôr-do-sol: saberá então o mesmo
facto por meio de conhecimento de coisas.
■Assim, com respeito a qualquer facto complexo, há teori­
camente duas maneiras segundo as quais pode ser conhecido:
f )■por meio de um juízo, no qual se ajuiza que as suas diversas
Partes estão relacionadas como de facto estão relacionadas;
196 O S PRO BLEM A S DA FIL O S O F IA

2) por meio do contacto com o próprio facto complexo a que


pode (num sentido amplo) chamar-se percepção, apesar de
não se confinar de modo algum aos objectos dos sentidos.
Ora, observar-se-á que o segundo modo de conhecer um facto
complexo, o modo do contacto, só é possível quando existe
realmente tal facto, ao passo que o primeiro modo, como todo
o juízo, é susceptível de erro. O segundo modo dá-nos o todo
complexo, e portanto só é possível quando as suas partes têm
realmente aquela relação que as faz combinar para formar tal
complexo. O primeiro modo, pelo contrário, dá-nos as partes
e a relação separadamente, e exige apenas a realidade das
partes e a relação: a relação pode não relacionar essas partes
desse modo (61), e contudo o juízo pode ocorrer.
Recorde-se que no fim do capítulo 11 sugerimos que
poderia haver dois tipos de auto-evidência* uma dando uma
garantia absoluta de verdade, e a outra apenas uma garantia
parcial. Podemos agora distinguir estes dois tipos.
Podemos dizer que uma verdade é auto-evidente, no
primeiro sentido, que é o mais absoluto, quando temos con­
tacto com o facto que corresponde à verdade. Quando Otelo
acredita que Desdémona ama Cássio, o facto correspondente,
se esta crença fosse verdadeira, seria «o amor de Desdémona
por Cássio». Isto seria um facto com o qual mais ninguém
poderia ter contacto excepto Desdémona; logo, no sentido
de auto-evidência que estamos a considerar, a verdade que
Desdémona ama Cássio (se fosse uma verdade) só poderia
ser auto-evidente para Desdémona. Todos os factos mentais, e
todos os factos que dizem respeito a dados dos sentidos, têm
esta mesma privacidade: há apenas uma pessoa relativamente
à qual tais factos podem ser auto-evidentes no nosscrsentido,
dado que só há uma pessoa que pode ter contacto com as
coisas mentais ou com os dados dos sentidos em causa. Assim,

(61) Cf. Introdução, «Teoria da verdade», p. ui.


C O N H E C IM E N T O , ER R O E O P IN IÃ O PROVÁVEL | 197

nenhum facto sobre qualquer coisa particular existente pode


ser auto-evidente para mais de uma pessoa (62) . Por outro
lado, os factos sobre universais não têm esta privacidade.
Muitas mentes podem ter contacto com os mesmos univer­
sais; logo, uma relação entre universais pode ser conhecida
por contacto por muitas pessoas diferentes. Em todos os
casos em que conhecemos por contacto um facto complexo
consistindo em certos termos numa certa relação, dizemos
que a verdade de que tais termos se relacionam desse modo
tem o primeiro tipo de auto-evidência, o absoluto, e nestes
casos o juízo de que os termos se relacionam desse modo tem
de ser verdadeiro. Assim, este tipo de auto-evidência é uma
garantia absoluta de verdade.
Mas apesar de este tipo de auto-evidência ser uma garan­
tia absoluta de verdade, não nos permite estar absolutamente
certos, no caso de qualquer juízo dado, de que o juízo em
questão é verdadeiro. Suponhamos que começamos por per-
cepcionar o Sol a brilhar, o que é um facto complexo, e depois
fazemos o juízo «o Sol está a brilhar». Ao passar da percepção
ao juízo, é necessário analisar o facto complexo dado: temos
de separar «o Sol» e «brilhar» como constituintes do facto.
Neste processo, é possível cometer um erro; logo, mesmo
quando um facto tem o primeiro tipo de auto-evidência, o
absoluto, umjuízo que se acredita corresponder ao facto não
é absolutamente infalível, porque pode não corresponder re­
almente ao facto. Mas se corresponder (no sentido explicado
no capítulo anterior), então tem de ser verdadeiro.
O segundo tipo de auto-evidência será aquele que perten­
ce ajuízos em primeiro lugar, e não é derivado da percepção
directa de um facto como um único todo complexo. Este
segundo tipo de auto-evidência terá graus, do mais elevado
até uma mera inclinação a favor da crença. Tome-se, por

(62) Gf. Introdução, «Conhecimento privado», p. x v ii.


198 O S PRO BLEM A S DA FIL O S O F IA

exemplo, o caso de um cavalo que se afasta de nós a trote


ao longo de uma estrada calcetada. A princípio, a nossa
certeza de que estamos a ouvir os cascos é completa; gradu­
almente, se ouvirmos atentamente, chega um momento em
que pensamos que talvez tenha sido a imaginação ou o cego
do andar superior ou as batidas do nosso próprio coração;
finalmente, ficamos com dúvidas sobre se houve realmente
qualquer barulho; depois pensamos que já nada ouvimos, e
finalmente sabemos que já nada ouvimos. Neste processo,
há uma gradação contínua de auto-evidência, do grau mais
elevado para o menos elevado, não nos próprios dados dos
sentidos, mas nos juízos neles baseados.
Ou, uma vez mais, suponha que estamos a comparar dois
tons de cor, um azul e um verde. Podemos estar perfeitamente
certos de que são tons diferentes de cor; mas se a cor verde
se alterar gradualmente de modo a ser mais e mais como a
azul, tornando-se primeiro um azul-verde, depois um azul
esverdeado, depois azul, haverá um momento em que temos
dúvidas se conseguimos ver qualquer diferença. O mesmo
acontece ao afinar um instrumento musical, ou em qualquer
outro caso em que há uma gradação contínua. Assim, a auto-
-evidência deste tipo é uma questão de grau; e parece claro
que os graus mais elevados merecem maior confiança do que
os graus mais baixos.
No conhecimento derivado, as nossas premissas últimas
têm de ter algum grau de auto-evidência, tal como a sua
conexão com as conclusões delas deduzidas. Tome-se, por
exemplo, um raciocínio em geometria. Não basta que os
axiomas de que partimos sejam auto-evidentes: é também
necessário que, em cada passo do raciocínio, a conexão en­
tre premissa e conclusão seja auto-evidente. No raciocínio
difícil, esta conexão tem muitas vezes apenas um grau muito
pequeno de auto-evidência; logo, os erros de raciocínio não
são improváveis quando é grande a dificuldade.
C O N H E C IM E N T O , ER R O E O P IN IÃ O PROVÁVEL 199

Do que se disse é evidente que, quer no que respeita ao


conhecimento intuitivo quer no que respeita ao conhecimen­
to derivado, se admitimos que o conhecimento intuitivo é
fidedigno proporcionalmente ao grau da sua auto-evidência,
haverá uma gradação de fidedignidade, da existência de da­
dos dos sentidos dignos de nota e das verdades mais simples
da lógica e da aritmética, que podem ser tomados como
bastante certos, aosjuízos que parecem apenas ligeiramente
mais prováveis do que os seus opostos. Ao que acreditamos
firmemente, se for verdade, chama-se conhecimento, desde que
seja intuitivo ou inferido (lógica ou psicologicamente) de
conhecimento intuitivo do qual se segue logicamente. Ao que
acreditamos firmemente, se não é verdadeiro, chama-se erro.
Ao que acreditamos firmemente, se não é conhecimento nem
erro, e também ao que acreditamos hesitantemente porque
é algo que não tem o mais alto grau de auto-evidência, nem
deriva disso, pode chamar-se opinião provável (63). Assim, a
maior parte do que comummente passa por conhecimento
é opinião mais ou menos provável.
Com respeito â opinião provável, podemos derivar uma
grande ajuda da coerência, que rejeitámos como definição
de verdade, mas que podemos muitas vezes usar como um
critério. Um corpo de opiniões individualmente prováveis, se
forem mutuamente coerentes, torna-se mais provável do que
qualquer uma delas seria individualmente. E deste modo que
muitas hipóteses científicas adquirem a sua probabilidade:
ajustam-se num sistema coerente de opiniões prováveis, e
assim tornam-se mais prováveis do que seriam isoladamente.
O mesmo se aplica às hipóteses filosóficas gerais. Muitas
vezes num único caso tais hipóteses podem parecer muitís­
simo duvidosas, apesar de se tornarem quase certas quando

(63) Cf. Introdução, «Conhecimento e justificação», p. lix .


200 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

consideramos a ordem e coerência que introduzem numa


massa de opinião provável. Isto aplica-se, em particular, a
matérias como a distinção entre sonhos e a vida acordada.
Se os nossos sonhos, noite após noite, fossem tão coerentes
entre si como os nossos dias, dificilmente saberiamos se ha­
veriamos de acreditar nos sonhos ou na vida acordada. Dado
que as coisas são como são, o teste da coerência condena os
sonhos e confirma a vida acordada. Mas este teste, apesar de
aumentar a probabilidade quando é bem-sucedido, nunca
dá certeza absoluta, a não ser que já haja certeza num certo
ponto do sistema coerente. Assim, a mera organização da
opinião provável nunca a transformará, por si mesma, em
conhecimento indubitável.
Os limites do conhecimento filosófico

Em tudo o que dissemos até aqui com respeito à filosofia,


mal tocámos em muitas matérias que ocupam muito espaço
nos escritos da maior parte dos filósofos. A maior parte dos
filósofos - ou, pelo menos, muitíssimos - professa conseguir
provar, através de raciocínio a priori metafísico (64), coisas
como os dogmas fundamentais da religião, a racionalidade
essencial do universo, o carácter ilusório da matéria, a irrea­
lidade de todo o mal, e assim por diante. Não há dúvida que
a esperança de encontrar razões para acreditar em teses
como estas foi a principal inspiração de muitos estudantes

(64) Ao longo deste capítulo, Russell usa o termò «metafísico» com


um sentido que rem onta pelo menos a Kant e que foi muito popular
entre os autores do positivismo lógico e em W ittgenstein. Neste
sentido algo distorcido da palavra, «metafísico» significa «sem ter em
consideração dados empíricos» (logo, a expressão «raciocínio a priori
metafísico», de Russell, é um pleonasm o). Em contextos filosóficos, é
hoje em dia raro usar-se o termo neste sentido, sendo antes usado no
seu sentido próprio: uma investigação filosófica é metafísica quando
é sobre a natureza das coisas e não sobre o nosso conhecimento delas
(o que seria uma investigação epistemológica).
202 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

incessantes de filosofia. Esta esperança, penso, é vã. Parece


que o conhecim ento sobre o universo como um todo não
será obtido pela metafísica, e que as provas propostas de que
tais e tais coisas têm de existir, em virtude das leis da lógica,
e tais e tais outras não podem existir, são insusceptíveis de
sobreviver a um escrutínio crítico. Neste capítulo, conside­
raremos brevemente o tipo de maneira pela qual se tenta
fazer tal raciocínio, com vista a descobrir se podemos ter a
esperança de poder ser válido.
O grande representante, nos tempos modernos, do tipo
de perspectiva que queremos examinar foi Hegel (1770-
-1831). A filosofia de Hegel é muito difícil, e os comentadores
diferem quanto à sua verdadeira interpretação. Segundo
a interpretação que irei adoptar, que é a de muitos dos
comentadores, se não da maior parte, e tem o mérito de
fornecer um tipo de filosofia interessante e importante, a
sua tese principal é que tudo o que não seja o Todo é obvia­
mente fragmentário, e obviamente incapaz de existir sem o
complemento fornecido pelo resto do mundo. Tal como o
anatomista, com base num único osso, vê que tipo de ani­
mal o todo terá de ter sido, também o metafísico, segundo
Hegel, vê, com base em qualquer pedaço da realidade, o
que a totalidade da realidade tem de ser - pelo menos em
traços gerais. Todo o pedaço aparentemente independente
de realidade tem, digamos, elos que o prendem ao pedaço
seguinte; o pedaço seguinte, por sua vez, tem novos elos, e
assim por diante, até se reconstruir todo o universo. Esta
incompletude essencial parece, segundo Hegel, igual no
mundo do pensamento e no mundo das coisas. No mundo
do pensamento, se tomarmos qualquer ideia abstracta ou
incompleta, descobrimos, ao examiná-la, que se esquecermos
a sua incompletude, nos envolvemos em contradições; estas
contradições transformam a ideia em questão na sua oposta,
ou antítese; e para escapar temos de encontrar uma ideia
O S LIM ITES D O C O N H E C IM E N T O F IL O S O F IC O 203

I nova, menos incompleta, que seja a síntese da nossa ideia


original com á sua antítese. Descobriremos, contudo, que
i esta nova ideia, apesar de menos incompleta do que a ideia
de partida, não é ainda totalmente completa, passando para
a sua antítese, com a qual tem de ser combinada num a nova
síntese. Deste modo, Hegel avança até alcançar a «Ideia Abso­
luta» que, segundo ele, não tem incompletude, nem oposto,
nem necessidade de ser mais desenvolvida. A Ideia Absoluta,
consequentemente, é adequada para descrever a Realidade
Absoluta; mas as idéias inferiores descrevem apenas a reali­
dade tal como parece a uma perspectiva parcial, e não como
. é para quem inspeccione simultaneamente o Todo. Assim,
Hegel chega à conclusão de que a Realidade Absoluta forma
um único sistema harmonioso, sem estar no espaço nem no
tempo, sem ter mal em qualquer grau, totalmente racional
e totalmente espiritual. Pode-se provar logicamente - pensa
Hegel - que qualquer aparência em contrário, no mundo
que conhecemos, se deve inteiramente à nossa perspectiva
fragmentária e segmentária do universo. Se víssemos a tota-
. lidade do universo, como podemos supor que Deus o vê, o
espaço e o tempo e a matéria e o mal e todos os esforços e
lutas desapareceríam, e veriamos em vez disso uma perfeita
e imutável unidade espiritual eterna.
Nesta concepção há inegavelmente algo de sublime, algo
■ ao qual poderiamos desejar dar assentimento. Contudo,
quando se examinam cuidadosamente os argumentos a seu
favor, parecem envolver muita confusão e muitos pressupos­
tos injustificáveis. O preceito fundamental com base no qual
. se constrói o sistema é que o que é incompleto não pode
ser auto-subsistente, precisando do suporte de outras coisas
antes de poder existir. Mantém-se que o que tem relações
com coisas fora de si tem de conter alguma referência a
■essas coisas externas na sua própria natureza, não podendo,
consequentemente, ser o que é se essas coisas exteriores
204 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

não existissem. A natureza de um homem, por exemplo, é


constituída pelas suas memórias e pelo resto do seu conheci­
mento, pelos seus amores e ódios, e assim por diante; assim,
não fosse pelos objectos que ama ou odeia, não podería ser
o que é. Ele é essencialmente e obviamente um fragmento:
tomado como a soma total da realidade, ele seria obviamente
autocontraditório.
Todo este ponto de vista, contudo, depende da noção
de «natureza» de uma coisa, que parece significar «todas as
verdades sobre a coisa». E evidente que uma verdade que
conecta uma coisa com outra não podería subsistir se a outra
coisa não subsistisse. Mas uma verdade sobre uma coisa não
faz parte da própria coisa, apesar de ter de, segundo o uso
acima, ser parte da «natureza» da coisa. Se por «natureza»
de uma coisa queremos dizer todas as verdades sobre a coisa,
então é claro que não podemos conhecer a «natureza» de
uma coisa a não ser que conheçamos todas as relações da
coisa com todas as outras coisas do universo. Mas se a palavra
«natureza» for usada neste sentido, teremos de manter que
a coisa pode ser conhecida quando a sua «natureza» não é
conhecida, ou, em qualquer caso, quando não é completa­
mente conhecida. Há uma confusão, quando este uso da
palavra «natureza» é usado, entre conhecimento de coisas
e conhecimento de verdades. Podemos ter conhecimento
de uma coisa por contacto, ainda que conheçamos muito
poucas proposições sobre ela - teoricamente, não precisa­
mos de conhecer quaisquer proposições sobre ela. Assim,
o contacto com uma coisa não envolve o conhecimento da
sua «natureza» no sentido acima. E apesar de o contacto
com uma coisa estar envolvido no nosso conhecimento de
qualquer proposição sobre uma coisa, o conhecimento da
sua «natureza», no sentido acima, não está envolvido. Logo,
1) o contacto com uma coisa não envolve logicamente um
conhecimento das suas relações, e 2) um conhecimento de
O S L IM ITES D O C O N H E C IM E N T O F IL O S Ó F IC O 205

algumas das suas relações não envolve um conhecimento


de todas as suas relações nem um conhecimento da sua «na­
tureza» no sentido acima. Posso ter contacto, por exemplo,
com a minha dor de dentes, e este conhecimento pode ser
tão completo quanto o conhecimento por contacto o pode
ser, sem saber tudo o que o dentista (que não tem contacto
com ela) pode dizer-me sobre a sua causa, sem portanto
conhecer a sua «natureza» no sentido acima. Assim, o facto de
uma coisa ter relações não prova que as suas relações sejam
logicamente necessárias. Ou seja, do mero facto de que é a
coisa que é não podemos deduzir que tem de ter as várias
relações que de facto tem. Isto só parece seguir-se porque já
o sabemos.
Segue-se que não podemos provar que o universo como
um todo forma um sistema único harmonioso como Hegel
pensa. E se não podemos provar isto, também não podemos
provar a irrealidade do espaço e do tempo e da matéria e do
mal, pois isto é deduzido por Hegel do carácter fragmentá­
rio e relacionai destas coisas. Assim, resta-nos a investigação
segmentária do mundo, e somos incapazes de conhecer os
caracteres daquelas partes do universo que estão apartadas
da nossa experiência. Este resultado, ainda que seja um desa­
pontamento para aqueles cujas esperanças foram alimentadas
pelos sistemas dos filósofos, está em harmonia com a têmpera
indutiva e científica do nosso tempo, e é confirmado por todo
o exame do conhecimento humano que ocupou os nossos
capítulos anteriores.
A maior parte das grandes tentativas ambiciosas dos
metafísicos consistia em tentar provar que tais e tais caracte­
rísticas aparentes do m undo actual eram autocontraditórias,
não podendo consequentemente ser reais. A tendência do
pensamento moderno, contudo, vai toda cada vez mais na
direcção de m ostrar que as supostas contradições eram
ilusórias, e que pouco se pode provar a priori com base em
206 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

considerações sobre o que tem de ser. Uma boa ilustração disto


é dada pelo espaço e tempo. O espaço e o tempo parecem
de extensão infinita, e infinitamente divisíveis. Se viajarmos
em linha recta em qualquer direcção, é difícil acreditar que
acabaremos por chegar a um ponto último, além do qual
nada há, nem sequer espaço vazio. De igual modo, se na
imaginação viajamos para trás ou para a frente no tempo,
é difícil acreditar que chegaremos um tempo primeiro ou
último, sem que além dele exista sequer tempo vazio. Assim,
o espaço e o tempo parecem ter extensão infinita.
Uma vez mais, se tomarmos quaisquer dois pontos numa
linha, parece evidente que tem de haver outros pontos
entre eles, por mais pequena que a distância possa ser: toda a
distância pode ser dividida em metades, e as metades podem
ser outra vez divididas em metade, e assim por diante ad infi-
nitum. De igual modo, no tempo, por mais pequeno que seja
o tempo decorrido entre dois momentos, parece evidente
que haverá outros momentos entre eles. Assim, o espaço e
o tempo parecem infinitamente divisíveis. Mas contra estes
factos aparentes - extensão infinita e divisibilidade infinita
- os filósofos avançaram argumentos que pretendiam mostrar
que não podería haver colecções infinitas de coisas, e que
por isso o número de pontos no espaço, ou de instantes no
tempo, tem de ser finito. Assim, emergia uma contradição
entre a natureza aparente do espaço e do tempo e a suposta
impossibilidade de colecções infinitas.
Kant, que pela primeira vez deu ênfase a esta contradi­
ção, deduziu a impossibilidade do espaço e do tempo, que
declarou serem meramente subjectivos; e desde a sua época
muitíssimos filósofos acreditaram que o espaço e o tem po são
mera aparência, e não aspectos característicos do m undo tal
como realmente é. Hoje, contudo, devido aos trabalhos dos
matemáticos, sendo de notar Georg Cantor, descobriu-se que
a impossibilidade de colecções infinitas era um erro. Estas
O S LIM IT ES D O C O N H E C IM E N T O F IL O S Ó F IC O 2 07

não são de facto autocontraditórias, mas tão-só contraditórias


com certos preconceitos mentais deveras obstinados. Logo, as
razões para encarar o espaço e o tempo como irreais torna­
ram-se inoperativas, e uma das grandes fontes das construções
metafísicas está esgotada.
Os matemáticos, contudo, não se limitaram a mostrar
que o espaço, tal como comummente se supõe que é, é
possível; m ostraram tam bém que muitas outras formas
de espaço são igualmente possíveis, tanto quanto a lógica
pode mostrar. Sabe-se hoje que alguns dos axiomas de
Euclides, que ao senso comum parecem necessários, e que
os filósofos anteriorm ente supunham serem necessários,
derivam a sua aparência de necessidade da nossa m era
familiaridade com o próprio espaço, e não de qualquer
fundamento lógico a priori. Ao imaginar m undos em que
estes axiomas são falsos, os matemáticos têm usado a lógica
para enfraquecer os preconceitos do senso comum, e para
mostrar a possibilidade de espaços diferentes daquele em
que vivemos - uns mais, outros menos. E alguns destes
espaços diferem tão pouco do espaço euclidiano, quan­
do estão em causa distâncias que podemos medir, que é
impossível descobrir pela observação se o nosso espaço
propriamente dito é estritamente Euclidiano ou um destes
outros tipos. Assim, a posição está completamente invertida.
A nteriorm ente, parecia que a experiência deixava apenas
um tipo de espaço para a lógica, e a lógica mostrava que
este tipo era impossível. Agora, a lógica apresenta como
possíveis muitos tipos de espaço além do da experiência,
e a experiência só parcialm ente decide entre eles. Assim,
ao passo que o nosso conhecim ento do que é dim inuiu
relativamente ao que anteriorm ente se supunha ser, o nosso
conhecim ento do que pode ser aum entou enorm em ente.
Em vez de estarmos fechados entre paredes estreitas, em
que todos os recantos e fendas podiam ser explorados,
208 OS PRO BLEM A S DA FIL O S O F IA

encontram o-nos num m undo aberto de possibilidades


livres, em que muito perm anece desconhecido porque há
muito para conhecer.
O que aconteceu no caso do espaço e do tempo aconteceu
também, em parte, noutras direcções. A tentativa de legislar
sobre o universo por meio de princípios a priori sucumbiu;
a lógica, em vez de ser, como anteriormente, o obstáculo às
possibilidades, tornou-se a grande libertadora da imaginação,
apresentando inúmeras alternativas que estão fechadas ao
senso comum irreflectido, e deixando à experiência a tarefa de
decidir, quando a decisão é possível, entre os muitos mundos
que a lógica nos oferece para escolher. Assim, o conhecimento
do que existe passa a ter como limite o que podemos aprender
pela experiência-e não aquilo de que podemos ter experiên­
cia efectiva, pois, como vimos, sabe-se muito por descrição
sobre coisas das quais não temos experiência directa. Mas em
todos os casos de conhecimento por descrição precisamos de
alguma conexão de universais, permitindo-nos, de tal e tal
dado, inferir que um objecto de um certo gênero é implicado
pelo nosso dado. Assim, com respeito a objectos físicos, por
exemplo, o princípio de que os dados dos sentidos são sinais
de objectos físicos é ele próprio uma conexão de universais;
e é apenas em virtude deste princípio que a experiência nos
permite adquirir conhecimento que diz respeito a objectos
físicos. O mesmo se aplica à lei da causalidade ou, para descer
ao menos geral, a princípios como a lei da gravitação.
Princípios como a lei da gravitação são provados, ou antes
apresentados como altamente prováveis, por uma combina­
ção da experiência com um princípio totalmente a priori,
como o princípio da indução. Assim, o nosso conhecimento
intuitivo, que é a fonte de todo o nosso restante conhecimen­
to de verdades, é de dois gêneros: conhecimento empírico
puro, que nos diz da existência e de algumas das propriedades
de coisas particulares com as quais temos contacto, e conheci-
O S L IM IT ES D O C O N H E C IM E N T O F IL O S O F IC O 209

mento apriori puro, que nos dá conexões entre universais, e


nos permite fazer inferências a partir dos factos particulares
dados no conhecimento empírico. O nosso conhecimento
derivado depende sempre de algum conhecimento a priori
puro e habitualmente também depende de algum conheci­
mento empírico puro.
Se o que se disse acima é verdade, o conhecimento filosó­
fico não difere essencialmente do conhecimento científico;
não há qualquer fonte especial de sabedoria que esteja aberta
à filosofia e não à ciência, e os resultados obtidos pela filoso­
fia não são radicalmente diferentes dos obtidos pela ciência.
A característica essencial da filosofia, que a torna um estudo
diferente da ciência, é a crítica. A filosofia examina critica­
mente os princípios usados na ciência e na vida quotidiana;
procura inconsistências que possam existir nestes princípios,
e só os aceita quando, em resultado de um inquérito crítico,
não surgiu qualquer razão para os rejeitar. Se, como muitos
filósofos acreditaram, os princípios que subjazem às ciências
pudessem, depois de libertados do porm enor irrelevante,
dar-nos conhecimento sobre o universo como um todo, tal
conhecimento teria o mesmo direito à nossa crença que
tem o conhecimento científico; mas o nosso inquérito não
revelou qualquer conhecimento desse gênero, e consequen­
temente, com respeito às doutrinas especiais dos metafísicos
mais arrojados, teve sobretudo um resultado negativo. Mas
com respeito ao que seria comummente aceite como co­
nhecimento, o nosso resultado é principalmente positivo:
.raramente encontramos razão para rejeitar tal conhecimento
. em resultado da nossa crítica, e não vimos qualquer razão
para supor que o homem é incapaz do tipo de conhecimento
que geralmente se acredita que tem.
Contudo, quando falamos da filosofia como uma crítica
do conhecimento, é necessário impor uma certa limitação.
Se adoptamos a atitude do céptico completo, colocando-nos
210 OS PRO BLEM A S DA FIL O S O F IA

completamente fora de todo o conhecimento, e pedindo,


desta posição exterior, para sermos obrigados a regressar
ao interior do círculo do conhecimento, estamos a exigir o
impossível, e o nosso cepticismo nunca poderá ser refutado.
Pois toda a refutação tem de começar com algum pedaço
de conhecimento que os contendores partilham; nenhum
argumento pode começar da dúvida nua. Logo, para que
algum resultado se alcance, a crítica do conhecimento que
a filosofia usa não pode ser deste tipo destrutivo. Contra
este cepticismo absoluto nenhum argumento lógico se pode
avançar. .Mas não é difícil ver que o cepticismo deste tipo não
é razoável. A «dúvida metódica» de Descartes, que inaugura
a filosofia moderna, não é deste tipo, sendo antes o tipo
de crítica que estamos a dizer que é a essência da filosofia.
A sua «dúvida metódica» consistia em duvidar de tudo o
que parecesse duvidoso; em parar, perante cada pedaço
de aparente conhecim ento, para perguntar a si próprio
se, depois de reflectir, poderia estar certo de que o sabia
realmente. Este é o tipo de crítica que constitui a filosofia.
Algum conhecimento, como o conhecimento da existência
dos nossos dados dos sentidos, parece deveras iridubitável,
por mais que reflictamos calma e meticulosamente sobre
ele. Com respeito a tal conhecimento, a crítica filosófica
não exige que nos abstenhamos da crença. Mas há crenças
- como, por exemplo, a crença de que os objectos físicos
se assemelham exactamente aos nossos dados dos sentidos
- que têm abrigo em nós até começarmos a reflectir, mas
descobre-se que se evaporam quando são submetidas a um
inquérito aturado. Tais crenças a filosofia irá convidar-nos
a rejeitar, a não ser que se encontre um a nova linha de
argumentação que as sustente. Mas rejeitar as crenças que
não parecem abertas a quaisquer objecções, por mais cui­
dadosamente que as examinemos, não é razoável, e não é o
que a filosofia advoga.
OS LIM ITES D O C O N H E C IM E N T O F IL O S Ó F IC O 211

A crítica que se tem em vista, num a palavra, não é a que,


sem razão, aposta em rejeitar, mas a que considera os méritos
de cada pedaço de conhecimento aparente, retendo o que
continua a parecer conhecimento uma vez term inada esta
consideração. Tem de se admitir que permanece algum risco
de erro, uma vez que os seres humanos são falíveis. A filosofia
pode afirmar justamente que diminui o risco de erro, e que
em alguns casos torna o risco tão pequeno que na prática é
negligenciável. Fazer mais que isto não é possível num m un­
do em que os erros têm de ocorrer; e mais que isto nenhum
defensor prudente da filosofia afirmará ter conseguido.
!

I
15.

O valor da filosofia

Tendo agora chegado ao fim da nossa breve e incompleta


revista dos problemas da filosofia, é boa ideia considerar,
em conclusão, qual é o valor da filosofia e por que deve ser
estudada. E tanto mais necessário considerar esta questão
quanto muitos homens, sob a influência da ciência ou da
vida prática, têm tendência para duvidar se a filosofia é algo
melhor do que inocentes mas inúteis frivolidades, distinções
capciosas e controvérsias sobre matérias acerca das quais o
conhecimento é impossível.
Esta perspectiva da filosofia parece resultar em parte de
uma concepção errada dos fins da vida, e em parte de uma
concepção errada do tipo de bens que a filosofia procura
atingir. A ciência física, por meio de invenções, é útil a
inúmeras pessoas que a ignoram completamente; assim, o
estudo da ciência física é recomendável não apenas, ou pri­
mariamente, por causa do efeito que tem no estudante, mas
antes por causa do efeito que tem na humanidade em geral.
Contudo, a utilidade não pertence à filosofia. Se o estudo da
filosofia tem realmente algum valor para alguém além dos
estudantes de filosofia, tem de ser apenas indirectam ente,
214 O S PRO BLEM A S DA FIL O S O F IA

através dos seus efeitos nas vidas daqueles que a estudam.


E nestes efeitos, consequentemente, e não noutro lado, que
o valor da filosofia tem de ser primeiro procurado.
Mas além disso, para que não falhemos na nossa diligência
para determinar o valor da filosofia, temos primeiro de liber­
tar as nossas mentes dos preconceitos do que erradamente
se chama homens «práticos». O homem «prático», tal como
esta palavra se usa frequentemente, é aquele que reconhece
apenas bens materiais, que vê que os homens têm de ter ali­
mento para o corpo, mas não presta atenção à necessidade de
fornecer alimento para a mente. Se todos os homens tivessem
uma boa situação financeira, se a pobreza e a doença tivessem
sido reduzidas ao seu ponto mais baixo possível, faltaria ainda
fazer muito para produzir uma sociedade valiosa; e, mesmo
no mundo que temos, os bens da mente são pelo menos
tão importantes quanto os bens do corpo. E exclusivamente
entre os bens da mente que o valor da filosofia se encontra;
e só quem não é indiferente a estes bens pode ser persua­
dido de que o estudo da filosofia não é uma perda de tempo.
A filosofia, como todos os outros estudos, visa primaria­
mente o conhecimento. O conhecimento que visa é o tipo
de conhecimento que dá unidade e sistema ao corpo das
ciências, e o tipo que resulta de um exame crítico dos fun­
damentos das nossas convicções, preconceitos e crenças. Mas
não se pode defender que a filosofia tem tido um enorme
sucesso nas suas tentativas de fornecer respostas definitivas
para as suas questões. Se perguntarmos a um matemático,
a um mineralogista, a um historiador ou a qualquer outro
homem instruído que corpo definitivo de verdades foram
estabelecidas pela sua ciência, a sua resposta irá durar tanto
tempo quanto estivermos dispostos a ouvir. Mas se fizermos
a mesma pergunta a um filósofo, ele irá ter de confessar, se
for cândido, que o seu estudo não alcançou resultados po­
sitivos como os que foram alcançados pelas outras ciências.
O V A LO R DA F IL O S O F IA 215

É verdade que isto se explica em parte pelo facto de que,


mal o conhecimento definitivo sobre qualquer assunto se
torna possível, tal assunto deixa de se chamar filosofia, e
torna-se uma ciência independente. O estudo dos céus, que
agora pertence à astronomia, já esteve todo incluído na
filosofia; a grande obra de Newton chamava-se «os princípios
matemáticos da filosofia natural». De igual modo, o estudo
da mente humana, que era parte da filosofia, foi agora sepa­
rado da filosofia e tornou-se a ciência da psicologia. Assim,
em grande parte, a incerteza da filosofia é mais aparência
do que realidade: aquelas questões que são já susceptíveis
de respostas definitivas são colocadas nas ciências, ao passo
que só permanecem para formar o resíduo a que se chama
filosofia aquelas a que, actualmente, nenhum a resposta de­
finitiva se pode dar.
Contudo, isto é apenas uma parte da verdade com res­
peito à incerteza da filosofia. Há muitas questões - e entre
elas as que são do mais profundo interesse para a nossa vida
espiritual - que, tanto quanto podemos ver, têm de conti­
nuar insolúveis pelo intelecto humano a menos que os seus
poderes passem a ser de uma ordem deveras diferente do
que são agora. Tem o universo alguma unidade ou plano
ou propósito, ou é uma confluência fortuita de átomos?
E a consciência uma parte perm anente do universo, dando
a esperança de um crescimento sem fim em sabedoria, ou
é um acidente transitório num pequeno planeta no qual a
vida terá de acabar por se tornar impossível? São o bem e o
mal importantes para o universo ou apenas para o homem?
Tais questões são levantadas pela filosofia, e respondidas de
modos diversos por filósofos diversos. Mas parece que, sejam
as respostas susceptíveis de ser descobertas de outro modo
ou não, nenhum as das respostas sugeridas pela filosofia
são demonstrativamente verdadeiras. Contudo, por mais
pequena que seja a esperança de descobrir uma resposta,
216 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

faz parte da actividade filosófica continuar a considerar tais


questões, para nos tornar cientes da sua importância, para
examinar todas as suas abordagens e para manter vivo aquele
interesse especulativo no universo que é susceptível de ser
liquidado se nos confinarmos ao conhecimento que pode
ser definitivamente estabelecido.
E verdade que muitos filósofos sustentaram que a filoso­
fia poderia estabelecer a verdade de certas respostas a tais
questões fundamentais. Supuseram que o que é da maior
importância nas crenças religiosas poderia provar-se ser ver­
dadeiro por estrita demonstração. Para ajuizar tais tentativas,
é necessário inspeccionar o conhecimento humano, e formar
uma opinião quanto aos seus métodos e limitações. Em tais
matérias seria im prudente pronunciarmo-nos dogmatica­
mente; mas se as investigações dos nossos capítulos anteriores
não nos extraviaram, seremos obrigados a renunciar à espe­
rança de encontrar provas filosóficas das crenças religiosas.
Não podemos, consequentemente, incluir como parte do
valor da filosofia qualquer conjunto definitivo de respostas
a tais questões. Logo, uma vez mais, o valor da filosofia não
pode depender de qualquer suposto corpo de conhecimento,
susceptível de ser definitivamente estabelecido, a adquirir
por quem a estuda.
Devemos procurar o valor da filosofia, de facto, em
grande medida na sua própria incerteza. O hom em sem
rudim entos de filosofia passa pela vida preso a preconceitos
derivados do senso comum, a crenças costumeiras da sua
época ou da sua nação, e a convicções que cresceram na sua
m ente sem a cooperação ou o consentim ento da sua razão
deliberativa. Para tal hom em o m undo tende a tornar-se
definitivo, finito, óbvio; os objectos comuns não levantam
questões, e as possibilidades incomuns são rejeitadas com
desdém. Pelo contrário, mal começamos a filosofar, des­
cobrimos, como vimos nos nossos capítulos de abertura,
O VALOR DA F IL O S O F IA 2 17

que mesmo as coisas mais quotidianas levam a problemas


aos quais só se podem dar respostas muito incompletas.
A filosofia, apesar de não poder dizer-nos com certeza qual
é a resposta verdadeira às dúvidas que levanta, é capaz de
sugerir muitas possibilidades que alargam os nossos pensa­
mentos e os libertam da tirania do costume. Assim, apesar
de diminuir a nossa sensação de certeza quanto ao que as
coisas são, aumenta em muito o nosso conhecimento quanto
ao que podem ser; remove o dogmatismo algo arrogante
de quem nunca viajou pela região da dúvida libertadora,
e mantém vivo o nosso sentido de admiração ao mostrar
coisas comuns a uma luz incomum.
A parte a sua utilidade ao mostrar possibilidades insuspei­
tas, a filosofia tem valor - talvez o seu principal valor - por
via da grandeza dos objectos que contempla, e da libertação
de objectivos limitados e pessoais que resulta desta contem­
plação. A vida do homem instintivo está fechada no círculo
dos seus interesses privados: a família e os amigos podem ser
incluídos, mas o mundo exterior não é tido em consideração
excepto na medida em que possa ajudar ou prejudicar o que
pertence ao círculo dos desejos instintivos. Em tal vida há
algo de febril e limitado, em comparação com a qual a vida
filosófica é calma e livre. O mundo privado dos interesses
instintivos é pequeno, localizando-se no seio de um mundo
grande e poderoso que, mais cedo ou mais tarde, terá de
deixar o nosso mundo privado em ruínas. A menos que pos­
samos alargar de tal modo os nossos interesses que incluam
todo o mundo exterior, somos como uma guarnição numa
fortaleza sitiada, sabendo que o inimigo impede a fuga e
que a rendição é inevitável. Em tal vida não há paz, mas
antes um conflito constante entre a insistência do desejo e
a impotência da vontade. Temos de escapar desta prisão e
deste conflito, de um modo ou de outro, para a nossa vida
ser grandiosa e livre.
218 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

■Uma maneira de escapar é pela contemplação filosófica.


A contemplação filosófica, na sua perspectiva mais ampla, não
divide o universo em dois campos hostis ~ amigos e inimigos,
vantajoso e hostil, bom e mau - vê o todo imparcialmente.
A contemplação filosófica, quando não tem misturas, não
tem como objectivo provar que o resto do universo é favo­
rável ao homem. Toda a aquisição de conhecimento é um
alargamento do Eu, mas este alargamento alcança-se melhor
quando não é directamente procurado. Obtém-se quando
só o desejo de conhecer é operativo, por um estudo que
não deseja previamente que os seus objectos tenham este
ou aquele carácter, antes adaptando o Eu aos caracteres que
encontra nos seus objectos. Este alargamento do Eu não se
obtém quando, aceitando o Eu tal como é, tentamos mostrar
que o mundo é tão similar a este Eu que o seu conhecimento
é possível sem admitir o que parece alienígena. O desejo de
provar isto é uma forma de auto-afirmação e, como toda a
auto-afirmação, é um obstáculo ao desejado crescimento do
Eu, crescimento de que o Eu sabe ser capaz. A auto-afirma­
ção, tanto na especulação filosófica como noutras áreas, vê o
mundo como um meio para os seus próprios fins; assim, dá
menos importância ao mundo do que ao Eu, e o Eu estabe­
lece limites à grandeza dos seus bens. Na contemplação, pelo
contrário, começamos pelo não-Eu e, através da sua grandeza,
os limites do Eu alargam-se; através do infinito do universo,
a mente que o contempla consegue partilhar o infinito.
Por esta razão, a grandeza de alma não é fomentada pelas
filosofias que assimilam o universo ao Homem. O conheci­
mento é uma forma de união do Eu com o não-Eu; como toda
a união, é prejudicada pela dominação, e consequentemente
por qualquer tentativa para forçar o universo a conformar-se
ao que encontramos em nós. Há uma tendência filosófica
muito comum favorável à perspectiva que nos diz que o Ho­
mem é a medida de todas as coisas, que a verdade é feita pelo
O V A LO R DA F IL O S O F IA 219

homem, que o espaço e o tempo e o mundo dos universais são


propriedades da m ente e que, se há algo que não seja criado
pela mente, é incognoscível e sem importância para nós. Esta
perspectiva, se as nossas discussões prévias foram correctas,
não é verdadeira; mas além de não ser verdadeira, tem o efeito
de roubar à contemplação filosófica tudo o que lhe dá valor,
dado que agrilhoa a contemplação ao Eu. Aquilo a que chama
conhecimento não é uma união com o não-Eu, mas um con­
junto de preconceitos, hábitos e desejos que constituem um
véu impenetrável entre nós e o m undo que está para além.
O homem que tem prazer em tal teoria do conhecimento
é como o homem que nunca deixa o círculo doméstico por
ter medo que a sua palavra possa não ser lei.
A verdadeira contem plação filosófica, pelo contrário,
. encontra a sua satisfação em todo o alargamento do não-Eu,
em tudo o que aum enta os objectos contemplados, e desse
modo o sujeito que contempla. Na contemplação, tudo o
que é pessoal ou privado, tudo o que depende do hábito, do
interesse próprio, ou do desejo, distorce o objecto e assim
compromete a união que o intelecto procura. Erguendo
desse modo uma barreira entre sujeito e objecto, essas coisas
pessoais e privadas tornam-se uma prisão para o intelecto.
O intelecto livre irá ver como Deus podería ver, sem um aqui
e agora, sem esperanças e receios, sem as peias das crenças
costumeiras e dos preconceitos tradicionais, calmamente,
desapaixonadamente, no desejo único e exclusivo de co­
nhecim ento - conhecimento tão impessoal, tão puramente
contemplativo, quanto é possível ao homem alcançar. Logo,
também o intelecto livre irá valorizar mais o conhecimento
abstracto e universal, no qual os acidentes da história privada
não entram, do que o conhecimento dos sentidos, depen­
dente, como tal conhecimento tem de estar, de um ponto
de vista exclusivo e pessoal e de um corpo cujos órgãos dos
sentidos distorcem tanto quanto revelam.
220 O S PRO BLEM A S DA F IL O S O F IA

■ A mente que se acostumou à liberdade e imparcialidade


da contemplação filosófica irá preservar qualquer coisa dessa
liberdade e imparcialidade no mundo da acção e da emoção.
Irá ver os seus propósitos e objectivos como partes do todo,
com a ausência de obstinação que resulta de os ver como
fragmentos infinitesimais num mundo no qual nada do resto
é afectado por qualquer dos feitos de um homem. A imparcia­
lidade que, em contemplação, é o desejo sem misturas pela
verdade, é a mesmíssima qualidade mental que, em acção,
é a justiça, e na emoção é aquele amor universal que pode
ser dado a todos, e não apenas aos que se julga serem úteis
ou admiráveis. Assim, a contemplação alarga não apenas os
objectos dos nossos pensamentos, mas também os objectos
das nossas acções e afecções: faz-nos cidadãos do universo,
e não apenas de uma cidade murada em guerra com tudo o
resto. A verdadeira liberdade do homem, e a sua libertação
da servidão de esperanças e receios limitados, consiste nesta
cidadania do universo.
Assim, para recapitular a nossa discussão do valor da fi­
losofia: a filosofia é de estudar não por causa de quaisquer
respostas definitivas às suas questões, dado que nenhumas
respostas definitivas podem, em regra, ser conhecidas como
verdadeiras, mas antes por causa das próprias questões;
porque estas questões alargam a nossa concepção do que é
possível, enriquecem a nossa imaginação intelectual e dimi­
nuem a confiança dogmática que fecham a mente contra a
especulação; mas acima de tudo porque, através da grandeza
do universo que a filosofia contempla, a mente também se
torna grandiosa, e torna-se capaz dessa união com o universo
que constitui o seu bem maior.
NOTA BIBLIOGRÁFICA

O estudante que deseja adquirir um conhecimento ele­


mentar de filosofia verá que é mais fácil e mais proveitoso
ler algumas das obras dos grandes filósofos do que tentar
derivar uma perspectiva abrangente a partir de manuais. As
seguintes são especialmente recomendadas:

Platão: A República, especialmente os Livros VI e VIL


Descartes: Meditações.
Espinosa: Ética.
Leibniz: A Monadologia.
Berkeley: Três Diálogos entre Hilas eFilonous.
Hume: Investigação sobre o Entendimento Humano.
Kant: Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura.
índice remissivo

Acto m ental, 103, 149, 158 Cantor, Georg, 206


Alucinações, ver sonhos Causalidade, 145, 208
Analítico, 141, 142 China, im perador da, 65, 106,
Aparência, xiii, lix, 69, 71, 72, 133
77, 89, 91, 108, 115, 121, Classes, 127, 164, 168, 174
203, 206, 207, 215 Coerência, 182, 183, 199, 200
A priori, xxix, xxxm, xlvtii, 67, Cogito, ergo sum. Ver Descartes.
133436, 139449, 159, 163, «Coisa em si», 145, 146
165,166,201,205,207, 208, Conceito, 66, 112
209; m ental, xlvii C onhecim ento, p o r contacto
A ritm ética, xlviii, 130, 135, e p o r descrição, xxix, xxx-
136, 143, 144, 165, 166, -xxxiv, xxxix, Lvni, 106-118,
172,199 133, 161, 168, 169, 179,
Associação, 87, 122, 125, 126, 205, 208; definição, xvm,
176,194 xxxiv, 67,133-149,191, 218,
Autoconsciência, 110 219; d e riv a d o , 168, 169,
Auto-evidente, xvii, xxiv, 104, 132, 193-195, 198, 199, 209;
131, 1 3 2 ,1 6 9 ,1 72474,177, indubitável, ix, xv, xliv, 69,
195498; graus de, 176, 177; 81,131,200; intuitivo, xxxiv,
dois tipos de, 174 169, 171478, 193-195, 199,
Berkeley, George (bispo), viu, 208; do futuro, xxn, 70,119-
xn, xLii, 74-78, 98 -125,127,128; de princípios
Bismarck, p rin cíp e O tto von, gerais, 129-140; de coisas e
414417 verdades, xxxi, 105,107-110,
Bradley, Francis H erbert, 154 115, 153, 168, 169, 179,
224 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

■ 195, 204; do universo, 88, 73-77, 80-86, 89, 92, 94-98,


105, 202, 203, 209, 215; 100-103, 106, 108-112, 114,
apenas de coisas m entais, 115,119,129,133,145,151,
110; filo só fico , 201-212; 161-163, 168, 169, 173, 174,
teoria do, 65, 67, 100, 130, 193,194,196,198,208,210;
141,177, 219 certeza dos, xiv, xv, 72, 77,
C onstituintes, lviii, 117, 174, 80, 82-98,100-103,105,108,
186-188, 197 110,129, 131
Construções lógicas, 67 D e d u ção , xix-xxn, xliv -x l ix ,
C ontacto, xxix, xxx, xxxn-xiv, 138, 139, 169
XXXVIII, XXXIX, XLI, XLII, LVIII, Descartes, René, ix-xii , xiv, xvii,
67, 92, 94, 96, 101, 104-119, xxiv, xxxii, xlii, 80, 81, 132,
153, 161, 162,164-166, 168, 210
169,179,180,196,197, 204, Descrição, xxxvn, xl , xli, 106
205, 208; com o eu, xxxi, Divisibilidade infinita, 206
111,112, 163 Duração, 94
Contradição, xxiv, 69, 74, 142, Dúvida, xvi, 78, 80, 81, 86, 87,
102, 205, 206; lei da, xxn, 121,138,139,175,176,195,
xlvi, xlvii, 131,142,147,148, 198,210,217
173, 183
Cores, 70, 71, 73, 91, 94, 96, Empiristas, xxxm , xli-xliii, xlvií-
97, 173 -xLix, lvi, 132,133,144,146,
C orrespondência entre crença 155, 156
e facto, 182, 183, 188 Erro, xvii, liii , liv , 88, 105, 126,
C orrespondência entre dados 155,169,177,179,191,196-
d o s s e n tid o s e o b je c to s -199, 206,211
físicos, 94, 96, 100 Espaço, xxviii, xxxm , 65, 66, 75,
Crença, xrv-xvn, xxn, xxiv, xxvi, 91-96, 145, 158, 168, 203,
xxvii, xxxiv, xlvii, li-lx , 86, 205-208, 219; euclidiano e
87, 120, 122, 125, 127, 128, não-euclidiano, 207; físico,
134,147,148,154,171,176, 93, 95, 96
180-197,209,210; instintiva, Espinosa, Bento de, 154, 221
XXVI Eu, x, xxxi, xxxvm, XLiii, 81,110-
Critério, lii , liii , 195, 199 -112, 146, 149, 163^ 218-219
Existência, xxxi, xlix , lviii, 67,
D ados dos sen tid o s, x iii -x iv , 75, 79-87, 89, 98-101, 103,
XVII, XVIII, XXX-XXXII,XXXVIIÍ, 106, 10, 146, 159; conheci­
XXXIX, XLI, XLIII, LIV, 65, 67, m ento da, 119,129,133,134
ÍNDICE REMISSIVO 225

Experiência, viu, x, xxvm, x l ii , Idealistas, 76, 98


x l x iii , x l ix , l x i , 69,70,72,73, Ideia absoluta, 203
80,81,83-86,90,91,104,106, Idéias, vii-ix, xxvi, xxvn, xxix,
111,118,120,121,123,124, XXXII, XXXV, XLII, XLIII, L, LI,
127-2129,132-137,144-147, 69, 74-77, 86, 98, 101-105,
165,167,175,205,207,208; 109,112,132,142,151,152,
a la rg a d a p o r d esc riçõ es, 155, 156, 203; abstractas,
118; im ediata, 73, 80, 118 109, 155, 156; inatas, x l i i ,
132; platônicas, 151, 152
Factos, lv ii , 85, 125, 128, 137, Idéias inatas e princípios, ver
144,146, 152,181-183, 196, idéias
197, 206, 209 Identidade, lei da, xlvi, 131
Falsidade, xxxiv, l i -l iv , l ix , 106, Indução, xvm, xx-xxiv, 65, 67,
114,128,133,179-189, 191; 119-127, 136, 138-140, 144,
definição de, l i , l iii , l iv , 180- 166; princípio da, xlviii, 119-
-189, 191-200 -127,129,172, 208
Fenôm eno, 145 Inferência, lógica e psicológica,
Filosofia, v alo r da, 213-220; xxxm, xlvi, lx , 73, 108, 109,
incerteza da, 215, 216 1 2 7 ,1 2 9 ,1 3 0 ,1 6 8 ,1 9 4
Filosofia crítica, viu, 141, 209- Infinito, 206
-211 Introspecção, 110, 112, 158
Formas, xx, xxm, x lv , x lv i , 72,
9 1 ,9 2 ,9 9 ,1 9 3 ,2 0 7 K ant, Im m an u e l, vm, .xxxm,
XXXVII, XLII, XLVIII, LVI-LVTII,
G eneralização em pírica, 137, 140-147, 149, 157, 206, 221
140, 165, 166
G eom etria, x l ii , 93, 136, 143, L eibniz, G o ttfried W ilhelm ,
155,198 XII, xxi, x l ii , 76-78, 98, 132,
154, 221
Hegel, Georg Wilhelm Leis do m ovim ento, 90, 120,
Friedrich, vm, 202, 203, 205 121,123
H um e, David, xvm, x x i - x x i i i , Leis gerais, 122, 125, 126, 133,
XXXI, x x x ii , x l ii , x l iii , 120, 166
132, 143, 155, 156 Locke, Jo h n , xi, xiv, xxxm, x l ii ,
132
I d e a l i s m o , xxix, x x x i i , Lógica, v ii , ix -x i , x iv , x ix -x x i i ,
x l v i i i ; d e fin iç ã o , 99-105; XXIV, XXXII, XXXV, XXXVI,
fundam entos, 100 XXXVIII, XXXIX, XLI, XLII, x l iv ,
226 OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA

XLVI-XLIX, LI, LII, LIV, LVI, LX, Objectos físicos, xm, 65, 74, 81-
66, 67, 84, 107, 116, 133, -85, 92, 93, 95-97, 100-103,
135, 136, 138-140, 144, 146, 108, 112, 114, 144, 145,
152,165,166,172,177,183, 147, 151, 159, 168, 169,
194,199, 202, 207, 208 208, 210
Luz, xxvii, xxviii, 70, 71, 83, 90, O pinião provável, xvii, lix, lxi,
91, 97, 102, 103, 175, 217 191-200

M atem á tica , 136, 140, 143, Particular, xx, xxxvii, xlix, lvi,
144, 177 71, 72, 81, 83, 101, 108,
Matéria, xxxvii,-xxix, 66, 67,76, 110-112, 114-118, 121, 125,
99, 104, 105, 181, 201, 203, 126,130,133,136,138,140,
205; ex istência da, 74-76, 144, 149, 152-158, 161-166,
79-88,99,119 ; natureza da, 168, 173, 186, 197, 200,
xiii, 72, 89-98,104,105 208, 209
M em ória, 109, 112, 119, 162, «P ensam ento, leis do», xlvi,
174-177, 204 131, 132, 147, 148
M ente, 75-78, 98-105,114, 115, P ercep ção , 86, 89, 102, 110,
118,127,147,149,153,162, 173,174,195-197
168, 175, 176,184-186, 188, Platão, xv, xxxii, xxxv, xxxvm-
189, 214-216, 218-220; a -xu, xlix, lviii, lix, 151-153
única realidade, {ver também Princípios gerais, xliii, xliv, 106,
idealistas); o que está na, 119, 127-140,172,173
100,103, 104 Probabilidade, 65, 88, 124-126,
M ónada, 155 139, 199, 200
M onadismo, 155 Proposições, constituintes das,
M onismo, 154 117

Natureza de um a coisa, 204,205 Q ualidades, lv, 149, 154-156,


Navalha de Occam, 66 161, 163,168
N ecessidade, xlvii, 137, 184,
207 R acionalistas, xxxm, xli-xliii,
N om es p ró p rio s , xxxvii - x l i , xlix , li, 132-134, 143, 146,
144, 153 156
Núm eros, 66, 167 Realidade, ix, x, xii, xv, liv, lv,
69-78,88, 98,102, 108,114,
Objecto de apreensão, 103,104; 123,152,164,182,196,202-
de juízo, 134, 135, 174,186 -204, 215
índice remissivo 227

Relações, x l ii , x l i i i , l , l i , l iv , 151-170,197, 208, 209,219;


65, 77, 93, 94, 96, 145, 149, c o n h e c im e n to d e , x x x v iii ,
151,154-156, 159, 162, 163, x l iii , 153, 159, 161-170
165,167,168,181, 184-186,
203-205; múltiplas, lv i , 162; Verbos, xliii, 112, 153-155
sentido das, x l ii , 163, 186, V erdade, xix -xxii, xxvi, xxxi,
204,205 XXXII, XXXIV, XXXVI, XLIV-XLVII,
72, 73, 77, 78,100,
li -lv i , l x ,
Semelhança, x l iii , l , 156, 162, 103, 105-109, 111, 114, 116,
163, 168 128, 130, 132-136, 142, 144,
Sensação, 73, 74, 76, 80, 89, 147-149, 153, 157, 163, 168,
92, 112, 122, 129, 145, 153, 169, 172-174, 177, 179-190,
173,217 195-197, 204, 209, 214, 218,
Ser, x l ix , 131, 134, 151, 158, 2 2 0 ; d e fin iç ã o , l i i -l v i , l i x ,
159 177, 179-190, 199
Solipsismo, 75
Sonhos, xi, x iii , 79, 81, 83, 84,
86, 87, 169, 182, 200
Sujeito, 67, 110, 142, 143, 146,
186,187,219

Tacto, 70, 71, 73, 86, 90-92,


122
T em po, x x v iii , xxxm, 66, 70,
94, 145, 146, 151, 157, 159,
161,162,168,175, 203,205-
-208, 219
T eoria da relatividade, xxvm,
67
Terceiro excluído, x lv i , 131
Três Diálogos entre Hilas eFilonous,
em Oposição aos Cépticos e aos
Ateus, 74, 221

U n ifo rm id a d e d a n a tu re z a ,
XXIII, 122
Universais, xxiv, xxxi, x l iii , x lix -
-l i , 109, 112, 115, 117, 118,
I

j
B IB L IO T E C A DE F IL O S O F IA C O N T E M PO R Â N E A

1. Mente, Cérebro e Ciência, John Searle


2. Teoria da Interpretação, Paul Ricoeur
3. Técnica e Ciência como Ideologia, Jürgen Habermas
4. Anotações Sobre as Cores, Ludwig Wittgenstein
5. Totalidade e Infinito, Emmanuel Levinas
6. Aí Aventuras da Diferença, Gianni Vattimo
7. Etica e Infinito, Emmanuel Levinas
8. O Discurso de Acção, Paul Ricoeur
9. AEssência do Fundamento, Martin Heidegger
10. A Tensão Essencial, Thomas S. Kuhn
11. Fichas (Zettel), Ludwig Wittgenstein
12. A Origem da Arte, Martin Heidegger
13. Da Certeza, Ludwig Wittgenstein
14. A Mão e o Espírito, Jean Brun
15. Adeus à Razão, Paul Feyerabend
16. Transcendência e Inteligibilidade, Emmanuel Levinas
18. Ideologia e Utopia, Paul Ricoeur
19. O Livro Azul, Ludwig Wittgenstein
20. O Livro Castanho, Ludwig Wittgenstein
21. O Que é uma Coisa, Martin Heidegger
22. Cultura e Valor, Ludwig Wittgenstein
23. A Voz e o Fenômeno, Jacques Derrida
24. O Conhecimento e o Problema Corpo-mente, Karl R. Popper
25. A Crítica e a Convicção, Paul Ricoeur
26. História da Ciência e Suas Reconstruções Racionais, Imre Lakatos
27. O Mito do Contexto, Karl R. Popper
28. Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação, Imre Lakatos
29. O Fim da Idade Moderna, Romano Guardini
30. A Vida é Aprendizagem, Karl R. Popper
31. Elogio da Teoria, Hans-Georg Gadamer
32. Racionalidade e Comunicação, Jürgen Habermas
33. Palestras, Maurice Merleau-Ponty
34. Cadernos, 1914-1916, Ludwig Wittgenstein
35. AFilosofia no Século XX, Remo Bodei
36. Os Problemas da Filosofia, Bertrand Russell
BIBLIOTECA DE FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA 36

D esde a sua publicação original, em 1912, esta obra nunca deixou de


ser re ed itad a nos países de língua inglesa, e apresenta-se agora em
nova tradução portuguesa. Trata-se de u m a estim ulante introdução
à filosofia, escrita p o r um dos mais influentes filósofos do século x x .
D e e n tre os problem as abordados destaca-se a refutação do cep-
ticism o, a origem do conhecim ento, a existência de universais e a
justificação da indução.
C o n tu d o , e sta o b ra não é ap en as u m a in tro d u ç ã o à filosofia; é
tam b ém u m a ap resen tação e defesa d e algum as das teorias q u e
caracterizam a filosofia de Russell: a sua famosa teoria das descrições
definidas, a epistem ologia do contacto, a teoria descritivista dos n o ­
m es próprios, a teoria realista dos universais, das relações e das leis
da lógica, e a teoria da verdade com o correspondência, e n tre outras.

ISBN 978-972-44-1452-2

9 789724 414522

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