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FRÉDÉRIC GROS ll -

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ESTADOS DE VIOLENCIA
Ensaio sobre o fim da guerra

EDITORA
IDEIAS&
LETRAS
REVISÃO:
DIRET OR EDJTORJAL:
Ana Lúcia
Marcelo C. Araújo
Eliana Barreto Ferreira
Leila Cristina Dinis Fernandes
EDITORES:
Avelino Grassi
DIAGRAMAÇÃO:
Márcio F. dos Anjos
Juliano de Sousa Cervelin
COORDENAÇÃO EDITORIAL:
CAPA:
Ana Lúcia de Castro Leite
Alfredo Castillo
TRADUÇÃO:
José Augusto da Silva

de la guerre
Título original: États de violence - Essai sur lafin
Éditions Gallimard, 2006
Fréderic Gros ©
Brasil,
Todos os direitos erri língua portuguesa, para o
reservados à Edito ra Ideias & Letras , 2017

2ª impressão

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cação (CIP)
Dados Internacionais de atalogação na Publi
(Câmara Brasileira do Lino SP, Brasi l)

Gros, F'rédéric
a/ Frédéric Gros; [tradução José
Estados de violência: ensaio sobre o im da guerr
& Letras, 2009.
Augusto da Silva]. -- Aparecida, SP: EdiLOra Ideias
essai sur la finde la guerre.
Título original: État.s de violence:
ISBN 978-85-769 8-051 -3

fia I. Título.
1. Guerra (Filosofia) 2. Violência política - Filoso

09-11216 CDD-172.42

Índice para catálogo sistemático:

1. Guerra: Ética 172.42


Liberté • Égalité • Fraternité
RÉPUBLIQUE FRANÇAISE

Cet ouvrage, publié dans le cadre de l' Année de la France au Brésil et du


Programme d'Aide à la Publication Carlos Drummond de Andrade, bénéficie du
soutien du Ministere français ,des Affaires Etrangeres et Européennes.
« França.Br 2009 » l'Année de la France au Brésil (21 avril- 15 novembre) est
organisée:
- en France, par le Commissariat général français, le Ministere des Affaires
Etrangeres et Européennes, le Ministere de la Culture et de la Communication et
Culturesfrance;
- au Brésil, par le Commissariat général brésilien, le Ministere de la Culture et
le Ministere des Relations Extérieures.

Este livro, publicado no âmbito do Ano da França no Brasil e do programa


de auxílio à publicação Carlos Drummond de Andrade, contou com o apoio do
Ministério francês das Relações Exteriores e Europeias.
"França.Br 2009" Ano da França no Brasil (21 de abril a 15 de novembro) é
organizado :
- na França, pelo Comissariado geral francês, pelo Ministério das Relações
Exteriores e Europeias, pelo Ministério da Cultura e da Comunicação e por Cul-
turesfrance;
- no Brasil, pelo Comissariado geral brasileiro, pelo Ministério da Cultura e
pelo Ministério das Relações Exteriores.
Introdução
O fim da guerra?

Eu 1magmo essa definição dada pelos historiadores de um tempo


futuro: por guerra, entende-se um fenômeno cultural determinado,
uma distribuição específica de violências, aparecida vários séculos antes
de Jesus Cristo entre o Tigre e o Eufrates, no momento da formação dos
primeiros grandes Estados, e morta mais ou menos no mesmo lugar no
início do século XXI. A guerra mudou a tal ponto de aspecto que é preciso
admitir que o que foi pensado sob seu nome durante séculos praticamente
desapareceu. Neste sentido, a guerra não existe mais.
Ser-me-ão objetados evidentemente os atentados terroristas de Nova
York, Madri, Londres, a situação "explosivà' no Cáucaso ou no Oriente
Médio, ou ainda alguns países da África ou da América do Sul, dilacerados
por intermináveis conflitos internos, o atual Iraque "liberado" e fortemente
desestabilizado etc. Contudo, eu jamais quis dizer, ao escrever "a guerra não
existe mais", que a humanidade enfim entrou na idade da paz perpétua.
Depois da queda do muro de Berlim, acreditou-se, escreveu-se que
começava o fim da História. Com a derrocada do comunismo, todas as
nações iriam se abrir ao liberalismo democrático; e suas relações doravante
seriam reguladas por um amável comércio, as doces leis do câmbio, e um
quadro jurídico reconhecido por todos. Foi outra coisa que se produziu: o
fim da guerra e a emergência dos estados de violência.
O fim da guerra não significa com efeito o fim das violências, mas
--- - -- -
--
sua redistribuição em configurações inéditas, cujos _grandes princípios
. . - - ------- -·-· ----
traçár~mos em fim de percurso. O fim da guerra não significa sobretudo a
-

--
pãi, porque não é possível pensar a paz fora do horizonte da guerra.
Estados de Violência
6

. A problematização dos estados de violência contemporâneos supõe


reconvocar, como para um duelo de honra, a "filosofia da guerra", para
envolver a identidade conceituai daquilo que lentamente desaparece.
Essa identidade da guerra, nós a procuramos através dos textos da tradição
filosófica. A questão sócio-histórica é a das causas e efeitos, dos atores e dos
meios da guerra: quem faz a guerra contra quem, por que, corno, com que
repercussões? A questão filosófica visa compreender o que, através do cao das
violências, pode-se pensar como guerra e segundo quais critérios.
Se distinguem então três dimensões que e pecificam a violência armada
como guerra:! _tica, _política e htdd.ica..A guerra é um conflito armado entre
grupos sustentado por uma ten ão érica, um objetivo político e um quadro
jurídico. Por detrás destas três categorias, o que é preciso pensar é: a troca
de morte como experiência crucial para pensar a ética; o Estado (ou toda
outra unidade política: a cidade ou o Império) pensado como aquilo cuja
consistência própria a guerra deve assegurar; enfim a busca armada da
justiça. A guerra é a troca de morte que dá consistência a uma unidade
política e é u~cemada por_uma reivin4icação de direito.
• ~ ~ orce u·ocad~ o(,E~ o sustentado, jusci a reivllldicada: 'há

. três grindes focos de experiência servindo de d1meiísõ~ estruturantes ao
-- -
' - ~--- ---_ .!.:_ ..--- ---
pensamenro da guerra e no côncavo destas três dimensões se manteve por

-
muito tempo sua identidade conceitua!.
-- --
Este nó se acha ilustrado pela velha definição proposta por Alberico
Gentilis em seu De jure belli (1597): "a guerra é um conflito armado,
público e justo (armorum pubticorum justa contentio est)" (livro I, cap. II,
Belli Definitio). Ela nos servirá de guia.
Contud o essa ética, essa política, essa justiça da guerra só foram
pretextos retumbantes para as ambições humanas e para sua cobiça? Cabe
aos moralistas responder. Persiste o fato de que essa organização, finalização,
concentração das violências armadas determina o que foi chamado,
reconhecido e constituído como guerra no Ocidente até o século XX.
Esse conjunto, contudo, desfaz-se sob nossos olhos hoje, quando
emergem esses "estados de violênciá' contemr orâneos, cuja definição é
uma tarefa urgente da Filosofia.
- ------ - _____ __ _. .... - ---~----·
Primeira Parte

FORÇAS MOR AIS


Introdução

"O vício fomenta as guerras.


A virtude nelas combate."
VAUVENARGUES
Reflexões e Máximas

A guerra é um conflito ARMADO, público e justo


(Alberico Gentilis, De jure belli).

Conflito armado antes de tudo. Uma guerra sem afrontamento


mortífero, sem perdas humanas, é sempre uma "guerra esquisita". Fazer a
guerra é antes de tudo, como se dizia na Idade Média, "pôr seu corpo em
aventura de morte". 1
O que se entende ordinariamente, culturalmente, por guerra é um
conflito violento, em que os que se batem ameaçam diretamente a vida
dos outros, expondo a sua própria. É preciso que haja dois para fazer a
guerra: dois que, num mesmo movimento, indissociavelmente, expõem
sua própria vida colocando em risco a do outro.
Partindo dessa primeira constatação muito evidente e muito simples
(mesmo se os novos estados de violência têm tendência a desfazê-la), creio
que a Filosofia abriu uma primeira face de reflexão muito ampla que consiste
nisto: resgatar dessa relação ativa com a morte - já que se trata na guerra de
deliberadamente arriscar a própria vida e atentar contra a vida do outro -
certo número de núcleos éticos muito fortes, elementos de uma moral. Isto
é, a guerra, antes de apresentar problemas de natureza política colocando

1
Cf. P. Contamine, La guerre au Moyen Âge, Paris, PUF, 1980.
10 Estados de Violência

em jogo, em cena, em questão a definição do Estado, antes de apresentar


problemas de natureza jurídica - o que é uma guerra justa: fundadora,
leal ou legítima - coloca já o problema ético do soldado: compreender
o que o faz manter-se diante da morte, que estruturação ética de si pode
permitir este desprezo soberano do instinto de sobreviver, como um
medo, uma covardia naturais podem assim ser rechaçados, ultrapassados,
esquecidos, na guerra, como movimentos espontâneos de piedade podem
ser abafados ou rejeitados. Será essa uma primeira dimensão de trabalho,
além das constatações etimológicas mil vezes repetidas (o termo grego, que
2
designa a excelência moral, areté, remete antes à coragem do guerreiro;
nossa noção de virtude provém do latim virtus, designando a força). A
moral remete secretamente - no nível de seu vocabulário - ao estrondo das
batalhas. Universalização ou espiritualização da ética do guerreiro na moral
universal.

Nossa nação dá à valentia o primeiro grau das virtudes, como mostra seu nome,
que vem de valor; e no nosso uso, quando dizemos um homem que vale muito ou um
homem de bem, no estilo de nossa corte ou de nossa nobreza, quer dizer exatamente
um homem valente, de um modo semelhante ao romano, pois a denominação geral
de virtude toma nos romanos a etimologia de força. 3

Trata-se de compreender a postura moral que permite essa relação


ativa com a morte. Se foi verdade que a morte, para uma grande parte da
Filosofia, é o que põe o homem na vertical de sua condição, ela continua
fascinada pela guerra, ao menos em sua dimensão existencial e ética. No
soldado que compromete sua vida está para a Filosofia o mistério da moral,
sendo a moral depois de tudo para ela (fora a exceção incômoda de Spinoza)
o que nos faz crer, pensar e dizer que a morte não é nada já que a vida não
é tudo.

2
Cf. sobre este ponto W. Jaeger, Paideia. La formation de l'homme grec, ed. cit. p. 29-41
(cap. "Noblesse et areté").
3
Montaigne, Les Essais.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 11

O que significa já a recusa de pensar a guerra e o que impele, incita,


convida a matar, como a simples e brusc; volta à selvageria animal, o
despertar em nós do animal, o desencadear da natureza na cultura (o que
Freud em todo caso defende. O que se chama "guerra" ~ã~ é _simp:esme~~
4

matar e morrer, estar pronto a morrer para matar um 1mm1go, e mat~


morrer a partir de uma postura moral.
O que supõe que se deixem aqui fora de jogo outras séries morais, às
quais é preciso contudo render justiça; primeiramente à crítica moralizante
que denuncia na guerra o fruto amargo das paixões más: ambição, cobiça,
vanglória, inveja, crueldade ... Os textos de Erasmo são tão eloquentes e
bastam. E depois ainda à ética dos valores que denuncia na guerra sua
perfeita negação, e para a qual não poderia haver moral senão da paz, da
concórdia e da amizade entre os homens. A Filosofia, além dessa condenação
das paixões belicosas e dessa fixação de uma moral pacífica por essência,
deixou-se também fascinar pela descrição das virtudes marciais para decidir
do destino da moral.
"y:, _ Eu destacarei cinco grandes construções, como tantos focos de sentidos
/
decisivos para a filosofia ética, cinco configurações morais inspiradas no
tumulto das batalhas.
"Superar": é a ética cavalheiresca, em que a guerra permite um
desenvolvimento incontornável da afirmação de si pelo combate com
inimigos escolhidos. A guerra, neste mito do combate particular entre
heróis, é pensada como desafio a si mesmo e aos outros, implicando um
código obrigatório de conduta e de honra.
"Suportar": o modelo hoplítico* dessa vez impõe uma outra repre-
sentação da coragem como resistência. Toda uma filosofia moral nela se
inspira para definir o domínio de si e a constância do sábio.

4
"Pourquoi la guerre?" (1933), trad. J. G. Delarbre & A.Rauzy, in Résu/tats, /dées, Problé-
mes li, Paris, PUF, 1985.
*Nt. De hoplita = soldado armado
12 Estados de Violência

"Obedecer": a "revolução militar" como racionalização da arte da


guerra permite a utopia de uma guerra perfeita, desenvolvendo-se
como um teorema matemático. Além de seus aspectos militares e
técnicos (massificação dos exércitos, desenvolvimento das armas de fogo,
predominância da infantaria, constituição de exércitos profissionais etc.),
essa revolução da idade moderna inspira uma nova ética do soldado;
obediência cega, incondicional e mecânica.
"Sacrificar-se": é um ideal aqui, atravessando todas as épocas, do
soldado grego de Salamina até o cabeludo de 1914. Se, na guerra, se morre
por uma causa que nos supera, então ela é a ilustração concreta do tema
filosófico; uma razão de viver é sempre ao mesmo tempo uma razão de
morrer.
"Acabar de vez com": a guerra "total" constitui aqui o conceito-chave.
Não se trata apenas de triunfar, mas de aniquilar. Dinâmica estranha das
violências, em que será jogada uma parte importante do destino dos dois
últimos séculos. A vitória aí é obtida por destruição absoluta, como um
desastre. Não se bate até a extenuação da guerra. Aí se acha envolvida essa
tensão ética que quer, exacerbando-se, pôr fim a qualquer tensão.
1
Superar

Começar-se-á por um mito: ao menos para o Ocidente, o mito da cavalaria


ou ainda o dos heróis homéricos (e por que não ainda os samurais no Oriente: o
bushidô japonês). Sempre se acha uma imaginação da boa guerra, a das origens. Antes
daquilo que se conhece, sempre terá havido outrora, nos tempos perdidos, a guerra
leal, respeitosa, um autêntico enfrentamento de duas forças. A guerra imemorial:
o duelo claro, franco, direto, espada na mão, face a face, com este desprew pelas
armas de arremesso como o arco ou a funda, que atingem à distância, armas de
covarde ou de efeminado (como o ambíguo Paris sobre as muralhas de Troia), e
mais tarde a condenação das armas de fogo, antes que se tornem decididamente
eficazes demais (o concílio de Latrão em 1139 proibiu o uso do arco e do trabuco
nas guerras entre cristãos). Que baste lembrar os anátemas de Ariosto em Orlando
furioso: desde a invenção "criminosa e bestial" da pólvora de canhão e das armas de
fogo, a "função das armas está sem honrà'. A primeira função vinda, dissimulada,
1
pode matar com um tiro de arcabuz ("Ó maldito, abominável instrumento") o
melhor dos capitães (como aconteceu com o cavaleiro Bayard). Ao passo que
o duelo heroico, como origem perdida da guerra, é somente contato, sem muita
astúcia nem inteligência perversa, sob a plena luz, com a força franca. Encontra-se
essa imaginação na epopeia de Homero que põe em cena os combates particulares
destes super-homens se insultando no campo de batalha e se celebrizando por seus
"golpes". Essa imaginação se encontra ainda no mito ocidental da cavalaria sublimado
pela literatura (os romances de Chrétien de Troyes), que opõem valentes nobres,
pesadamente equipados. E por toda parte a mesma imagem do combate particular,
de cavaleiros no corpo a corpo, a descoberto, arquejantes, esplêndidos, suspensos nos
lábios do poeta e o mesmo código aristocrático: ardor, sentido da honra, da palavra
dada e do "serviço", respeito do adversário, generosidade e lealdade.

1
Arioste, Roland furieux, cant. IX.
14 Estados de Violência

A narrativa da força

Para poder produzir uma estrela que dança é preciso em si mesmo ainda ter
algum caos. 2

Eu não apresentarei aqui o problema histórico dos heróis da Ilíada


ou dos cavaleiros da Idade Média: saber qual foi sua condição, sua
proveniência, que relações políticas exatas mantinham com os senhores
ou os reis, os membros do clero, conhecer seu modo real de combate, o
grau e a qualidade de sua implicação nas grandes batalhas, em relação aos
arqueiros, peões, escudeiros etc.
Essa realidade sociológica obscura e complexa, objeto de controvérsias
numerosas, permanece na origem de uma imaginação fértil, em que bebeu a
filosofia moral. Estes "heróis", estes "cavaleiros" se distinguiam do resto dos
homens. Seu desprezo pela morte os separava, colocando-os nas fronteiras
da humanidade "normal", por este contato com as forças obscuras. Uma tal
distinção toma a forma de códigos partilhados e singularmente exigentes,
códigos de conduta e de honra e se ilustra ainda por valores (desinteresse,
sentido da justiça, proteção do fraco,3 além do "valor" que eles deviam
encarnar essa valentia). Ao menos entre eles, queriam estar fortemente
ligados por juramentos e costumes.
É que o guerreiro deve forjar uma ética como condição de existência
e de seu próprio começo. O camponês adquire sua sabedoria da terra
(paciência e fatalidade). O político adquire experiência das fraquezas e das
paixões humanas, ele se esfrega nelas e as manipula. As regras de ambos
(camponês e político) lhes são impostas de fora, eles as aprendem como
regularidades de comportamento das estações e dos homens. O guerreiro,

2
F. Nietzsche, Ainsi parlait Zarathoustra, Prólogo, 5, ed. cit. p. 29.
3
Cf. sobre os deveres do cavaleiro Uustiça, proteção e assistência) e a significação moral
das peças de seu traje (escudo, loriga, capacete, lança, espada etc.), o discurso da dama
do Lago a Lancelote, in Lancelot du Lac, ed. cit. p. 399-409, bem como R. Lúlio, Livre de
f'ordre de chevalerie (ed. cit. p. 29-42).
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 15

contudo, no combate está condenado ao informe e ao caos, ao furor. É de


dentro dele mesmo que deverá aprender o limite.
Essa limitação da força é no fundo uma arte de dar forma à força,
para que ela se articule numa narrativa. A força como puro Buxo não
singulariza o herói a não ser destacando atos espetaculares e claros, formas
memoráveis. Essa dimensão se marca bem no apelo da morte, pois o que
de mais comum, de mais anônimo que morrer? O guerreiro faz da morte
justamente uma particularidade pura: ela deve se tornar sua morte. Como
dizia Bayard, repetindo Leônidas: "O morrer é comum a todos, mas o
morrer bem é particular às pessoas de honrà'. Trata-se de ter sucesso com J
sua morte, o que pode mesmo às vezes resgatar toda uma vida. 4 ,"'
------Tra; ;_se de pro~za e de glória. Ver ~ arrativa do combate de Aquiles
e de Heitor, o de Lancelote e de Meleagante. É uma lógica da ação e do
espetáculo, do lance maior. Sempre mais alto, sempre mais forte. A façanha
do cavaleiro é o que ele realiza, na medida em que seu gesto desde sempre
se ordena à norma de uma narrativa e se dirige à memória dos homens.

Eu não entendo morrer sem luta nem sem glória, nem sem algum ato heroico,
cuja narrativa chegue aos homens a vir.5

Trata-se, como se dizia, de esculpir sua força, e a ética na partida se


acha aí: dar forma à pura energia do vive~. /\. ética é es2ontaneamem ~-
aristocrática e cavalheiresca, pois há viver e viver. Viver deixando-se viver,
---- --
levar, arrebatar, conforme o que foi aprendido, recebido pas~ivamente
(educação e tradição); ou viver dando forma à sua existência. A ética ~Qé
- j>"

antes de tudo essa formação da vida como Buxo indiferenciado de forças] 'i
A epopeia neste sentido é a imaginação espontânea e primitiva da ética,
versão colorida dessa escultura da energia do viver.

4
Cf. sobre esse ponto, H. Germa-Roman, Ou "bel mourir" au "bien mourir", ed. cit. p. 121-
171, e de J. P. Vernant, "La belle mort d'Achille", in Mythe et politique, ed. cit.
5
1/iade, XXII, 304-305, trad . P. Mazon, ed . cit. p. 239.
16 Estados de Violência

O "ato heroico" é uma ética exigindo que se distinga "celebrizando-se".


HannahArendt sustentará que "a ação" an~iP.a ~e opõe ao "col!lporcamento,2

~
-
moderno. A ação é aquilo com que um indivíduo se celebriza, se ~st~~~J~,<:~
- .
em ó ria dos homens (uma matéria para narrativas). _O comporta!!lento
é anônimo, conformista e morno (um objeto das ciências human.a:,). O
g~erreiro- mítico só conhece as ações. Não para ser outr_o 04_difer nte,

l
mas memorável; porque alguém é exemplar fundamentalment~_-I2QL~
__ini~itáv,~l. Não se quis nunca assemelhar-se a não ser ao úmco, ao extremo
particular. Só se imita o inimitável. O que é comum não é o modelo,
sempre particular, mas a prete_nsão a assemelhar-se a ele. Daí a multidão de
caricaturas de simulacro , de cópias. Mas o universal é particu lar, único e
altivo . E de sua~ ti5 ele se desequilibra, porque precisamente ele desafia.
Como dirá Bérgson em Les deux sources de la morale et de la religi.on *, s6
há o desafio do herói para seduzir, obrigar. Porque a moral aqui não toca
a razão mas a vontade viva. Toma-se pouco moral por demon tração
(adotam-se antes conclusões do que decisões). A moral é quando é preciso
escolher. E se escolhe sentindo-se desafiado.
O guerreiro consente, então, em viver e em morrer segundo a forma
de uma narrativa, ganhando o_ .~ rei to de se fazer um n9me, uma fama.
Então essa guerra mítica, existindo apenas nas narrativas e pelas narrativas,
sempre situada nas brumas da origem, se dá a sonhar como justaposição
simultânea de duelos particulares, os heróis saltando de seu carro com
uma lança na mão, uma espada de lado, e provocando um irmão-inimigo,
procurando um rival à sua altura, sem luta corporal confusa nem opaca:
é a clareza distinta dos corpos, das palavras, dos golpes. Daí essa precisão
admirável em Homero. A guerra é tudo menos anônima, ao contrário, por
excelência, um lugar de distinção. Trata-se de ser o melhor, de brilhar. Não
forçosamente de vencer, pois mais que a sanção final conta a matéria para
narrativas daquilo que um herói realiza.

*Nt: As duas fontes da moral e da religião.


Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 17

A coragem como entusiasmo e exposição

Somente depois vem a coragem, mas a coragem antes de tudo só de ter


entusiasmo (é o thumos platônico: a energia e a força 6 ). A coragem como valor
no sentido exato de ser "valoroso". Chamemos isso com outras palavras: com
arrebatamento, audácia, temeridade. Bela energia sempre a consumir.
O entusiasmo exatamente. Uma vontade pura de poder: é o poder em mim
que exige sua realização, sua superação, sua multiplicação, sua elevação.
É como uma jubilação da força, o que Jünger, em seus terríveis textos,
designará como a retomada do elementar, a redescoberta das energias puras
e primitivas da vida, ele que pensará a guerra como experiência metafísica
da vida despida. No interior da guerra, lá, sob o homem policiado,
civilizado, artificial, se revela o animal, mas não o animal imundo: a força
pura, arcaica e originária, a energia transparente revelada. 7 Não é mais o
absoluto dos valores morais ou da humanidade transcendente, revelado
pela guerra, mas um absoluto escondido e retumbante da imanência única,
devoradora.

É bom sentir-se englobado nessa ética europeia pura e dura, que não cessa, para
além das fracas gritarias das massas, de se firmar em ideias sempre mais categóricas [.. .].
Quando caímos em cima de uma cerração de fogo e de fumaça, então nos fazemos
um só, somos duas partes de uma só força, fundidos num só e mesmo corpo. Num
só e mesmo corpo - eis uma metáfora bem singular. Quem a compreende diz um
grande sim a si mesmo, ao inimigo [... ]. Diante dessa onda enorme que corre sem parar
para o combate, todas as obras se aniquilam, todos os conceitos soam ocos quando se
manifesta a elementar, a colossal energia que sempre existiu e sempre existirá. 8

6
"A função focal do coração, thumos, isto é a energia conquistadora, não insaciável, mas
inesgotável. Riqueza e pobreza do thumos, cólera, contrário de medo, vai à frente", Michel
Alexandre, Lecture de Platon, Paris, Bordas/Mouton, 1968, p. 173.
7
E. Jünger, La guerre comme expérience intérieure, trad. F. Poncet, ed. cit. p. 38.
("O animal se apresenta, monstro misterioso ressurgido das profundezas da alma. Ele sai
devorando feixes de labaredas, irresistível embriaguez que embriaga as massas, divin-
dade reinando por cima dos exércitos"). Em sua Part maudite (Parte maldita), G. Bataille
compreenderá ainda a guerra como excesso condenável de energia, figura do excesso, do
desperdício, da liberalidade pura.
ª E. Jünger, op. cit. p. 89-90, 155 e 164.
18 Estados de Violência

Haverá sempre, nessa coragem como entusiasmo, a tentação aberta


do abismo: momento em que o excesso de forças se torna imoderado, se
desorienta e sossobra na vertigem. O entusiasmo se torna furor e o herói
demente: tragédia de Hércules. Os guerreiros tocam no desumano pelos
dois extremos: o animal e os deuses. A mesma dimensão que os abre ao
gesto heroico os convida ao ultraje degradante.

Eles devem se pôr num estado nervoso, muscular, mental que multiplica e amplia
seu poder, que os transfigura mas também os desfigura, os torna estranhos no grupo
que eles protegem; e sobretudo, consagrados à Força, eles são as triunfantes vítimas
da lógica interna da Força, que não se prova senão transpondo os limites, mesmo os
seus, mesmo os da sua razão de ser e que se assegura sendo não só forte diante deste ou
daquele adversário nessa ou naquela situação, mas Força em si, a mais forte. 9

Essa coragem como entusiasmo é um arrebatamento e os filósofos não


cessarão, a partir de Sócrates, de rejeitar essa forma de bravura ébria nas
margens da demência e da inconsciência. Eles dirão: ser corajoso é saber
o que é preciso fazer, quando é preciso fazer e como fazê-lo. Contudo, a
coragem do guerreiro aqui, ferozmente anti-intelectual, é a força que se
exalta, se alimenta com sua afirmação, se comove. A guerra fresca e alegre.

É coisa alegre a guerra [... ]. Ama-se tanto reciprocamente na guerra [... ]. Quando
se vê sua boa disputa e seu sangue combater bem, a lágrima vem ao olho [... ]. Nisso
vem uma deleitação cal que, quem não a experimentou, não é homem que saiba
dizer que bem é. Pensais que homem que faça isso tem medo da morte? Não; pois
ele tão reconfortado, é tão encantado que não sabe onde está. Verdadeiramente ele
não tem medo de nada. 10

Outra coisa ainda: a coragem é sobretudo expor-se ao sentido em que


não há verdadeira coragem senão exteriorizada, coragem que se mostra.
Expõe-se em público, sob a luz do julgamento dos outros. A guerra é

9 G. Dumézil, Heuret malheurdu guerrier, ed. cit. p. 97.


10 Jean de Bueil, Lejouvence/, ed. cit. t. 11, p. 21.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 19

pública sobretudo neste sentido: não no sentido em que ela opõe dois
Estados, dois "poderes estrangeiros" como se diz, mas porque seu elemento
natural é essa luz, este dia do olhar dos outros, essa visibilidade. Teatro
fundamental da guerra: cena ou tribunal. Escolhe-se para se bater uma
planície desobstruída, uma clareira como se lê em Chrétien de Troyes,
recusam-se as astúcias da sombra. Os cavaleiros são sempre vistos prontos
para se bater, procurando um espaço livre. Manter-se ereto sob essa luz: é
a ética cavalheiresca (a "retitude" é dada como primeira virtude do samurai
no bushidô 11 ). A coragem é coragem de expor sua condição mortal, sua
vulnerabilidade; de experimentar no duplo sentido de "ressentir" e de "pôr-se
à prova". Contudo, até que ponto estes dois sentidos não são idênticos,
pois é a mesma coisa para a vida: é "ressentida" na prova, no sofrimento.
Em todos os casos, não é depois e por uma relação a si mesmo que se
cultiva a coragem, mas nessa exposição e nesse afrontamento real.
A democracia grega clássica nesse sentido sobretudo, como quis
compreendê-la Arendt e Foucault, é pública e não se assemelha a nenhuma
outra: ser cidadão nesse sentido não era ser protegido, mas se expor.
Democracia dos iguais e dos rivais. Não se exerce a cidadania senão com
coragem. O terceiro pilar da democracia grega, dirá Foucault em suas
aulas no Colégio da França de 1983, depois da igualdade de palavra e
igualdade diante da lei, é a liberdade de linguagem (pan·esia), a coragem
~<1-~~u_ncj_<1ç~~-pública,_4a_~~I_!l_.1_4~.4~-e~~:':'~~ p~~l_ic3:,,_Eara dizer o que não

-é ----·
bom de ouvir, ao oposto da bajulação._ Daí a condenação platônica da
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democracia ateniense. Uma democracia em que a coragem é desqualificada
se torna uma demagogia, um regime dos sedutores e o sedutor não se expõe
jamais. Então, é o pior dos governos.
Só pode mostrar-se quem é corajoso e a única prova de coragem é
se mostrar corajoso, ao passo que ao contrário aquele que multiplica as
demonstrações de generosidade ou de sinceridade, logo se duvida dele.
A coragem é uma virtude exterior e portanto ela não mente. É uma

11
lnazô Nitobe, Buschidô. L'âme du Japon, trad. K. Yamanaka, ed. cit. p. 31-34.

20 Estados de Violência

exterioridade que é o contrário da aparência enganadora, definindo para a


coragem seu lugar de prova e de verdade. A coragem como intenção não
vale nada. Alguém demonstra sua coragem na e pela prova. Há aí uma
relação definitiva e essencial com a sanção do real. Por antecipação, não se
pode predizer quem será corajoso. É um encontro.

São as circunstâncias que mostram os homens. Quando a circunstância se


apresenta, pensa que Deus, como um professor de ginásio, te faz combater contra
um rude adversário. - Por quê?, diz ele. - Para que sejas o vencedor. 12

É o segundo fundamento da ética. Depois do preceito formal (dar forma


ao informe da pura e simples força de existir), há o preceito de realidade.
Ser corajoso é mostrar-se corajoso, dar provas de coragem. O discurso nada
é sem essa sanção dos fatos. Daí a problematização radical da ética: cuidado
de fazer corresponder seus atos e suas palavras, correspondência no sentido
musical, estético, harmonioso, exato e rigoroso. A coragem é a primeira das
virtudes porque não se pode dizer-se corajoso senão a partir do momento
em que se mostra. Os corajosos, em palavras, são conhecidos: são os mais
covardes no campo de batalha. Os bravos deixam os outros falar e se calam.
É no diálogo de Platão que traz seu nome, que Laquete faz, a propósito
da coragem, o elogio de Sócrates porque ele acha entre suas palavras e seus
atos uma correspondência harmônica.

Um tal homem é na minha opinião um músico completo, o que produz o mais


belo acorde, não numa lira, nem em outros instrumentos visando divertir, mas nos
fatos em sua própria vida, fazendo concordar suas palavras com seus atos. 13

As circunstâncias revelam os indivíduos. Elas mostram quem são,


como dizia Arendt, na e pela prova efetiva. 14 A realidade do mundo, de
seus conflitos, não designa este lugar em que as intenções puras são traídas,

12 Épictéte, Entretiens 1, 24, trad. É. Bréhier, ed. cit. p. 235-236.


13
Laches, 188d, trad. L.A. Dorion, ed. cit. p. 106.
14 La condition de /'homme moderne, trad. G. Fradier, et. cit., p. 235-236.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 21

em que a liberdade se quebra, lugar de recuperações e de compromissos.


A realidade é ara a ética do guerreiro o lugar de revelação e de verdade.
Desde que o inirnig? ~~~e s<:: fazem ~entir, _nã<), ~e _eo_1~ m~s _E1entir no
combate. Trata-se de ser o que nos é pedido. A ética do guerreiro não aceita
f ~ real do melhor modo um simples ponto de aplicação, no pior de
comprometimento e de traição, grandes princípios morais e intenções puras.
Uma última coisa sobre a coragem, sua face de enigma que fascina,
pode ser seu segredo. É a ideia de que na coragem alguém "se dá de
coração" (exceto pensar, como se lê em Homero, que a coragem é um dom
dos deuses, que a insuflam: "se tu és forte, é que um deus te deu a forçà',
Ilíada, cântico I, verso 178). A coragem é capacidade de convocar forças,
torná-las presentes, ativas, no momento mesmo em que, no terror úmido
da carnificina, a fonte de repente se esgota, se esquiva. Não é um excesso
a conter como para o domínio das paixões: é um "não bastante" de força a
multiplicar. É uma capacidade de se dar a si mesmo, de si mesmo, aquilo
de que se tem falta. "Tomar sobre si" é como dizer: beber em si a força e a
partir de si multiplicá-la. Fazer aposta consigo mesmo e ganhá-la.

Capaz de promessa

No coração da cavalaria, encontra-se uma ética da responsabilidade. No


sentido mais puro, o mais duro da responsabilidade, aquele que Nietzsche
expõe no início da segunda dissertação de sua Genealogia da moral. Pode-
se bem partir de novo da coragem, dessa jubilação generosa de forças, da
coragem de se expor, na prova real. Contudo, há também a coragem de
não esquecer. Os romances de cavalaria estão cheios de promessas feitas
às damas, aos príncipes e aos amigos, de palavras dadas, de juramentos
trocados. Ser responsável deve-se tomar aqui no sentido de: poder responder
por si no futuro. "Eu", diz Erec à rainha nas primeiras páginas do romance de
Chrétien de Troyes, "eu estarei de volta em três dias e vos terei vingado." 15

15
Chrétien de Troyes, Érec et Énide, in Romans de la tab/e ronde, trad . J. P. Foucher, ed. cit.
22 Estados de Violência

Tomar uma dianteira sobre o futuro, desafiar a essência contingente


do futuro, seus imprevistos, suas circunstâncias sempre imprevisíveis e
dizer: eu que falo hoje, em três dias, três meses, três anos, terei realizado tal
ação. Conjugar no futuro composto. Responder não só sobre o que se é, do
que se foi, mas do que será. A responsabilidade como fidelidade a si mesmo
projetada no futuro é o verdadeiro sinal da força. Não a responsabilidade
jurídico-mo ral que reconhece que se deve responder sobre aquilo de que
alguém foi o autor (respondo sobre o que fiz e respondo no presente para
incorrer na pena ou receber recompensa de meus atos passados), mas a
responsabilidade ética que revela no homem a capacidade que tem de
construir o tempo, segundo a curva da promessa: eu decido hoje o que
serei amanhã e construo com meus atos o desenho dessa curva que faz que
16
eu me reencontrarei, o que Nietzsche chama a "memória da vontade".
A ética guerreira é feita dessa responsabilidade: ela constrói a unidade de
um sujeito como projeto da força, colocada em aposta de si diante de um
outro. Eu tendo o arco de minha vontade para o futuro e dessa tensão
resulta o sujeito. Não o cogito cartesiano, substância perene enquanto Deus
o sustenta em seu ser, não o sujeito transcenden tal kantiano, unificação
a priori das representações. Não o sujeito da Filosofia, que manteria sua
unidade de uma síntese originária, sempre já ativa, sempre impensada
enquanto abertura do pensamento . A unidade do sujeito responsável é
aqui o fruto da vontade e da força claras. Eu sou o mesmo e o mesmo eu
continuarei a ser: é uma promessa de guerreiro.

Este homem libertado que ousa realmente prometer, este senhor da vontade
livre, este soberano, como não saberia qual é nisso sua superioridade sobre tudo o
que não ousa promer r, nem se comportar como fiador de si mesmo, que confiança,
17
que temor, que respeito ele inspira - estas três coisas, ele as "merece" .

16
La généa/ogie de la mora/e, "Deuxiéme traité", ed. cit., p. 60.
17
Jbid. p. 69-70 .
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 23

Servir

Quarta construção, e é igualmente essencial: servir. O cavaleiro é um


servidor: de um rei, de uma dama, de seu Deus ou de seu amigo (Lancelote
significa "aquele que serve"). É uma ética da excelência em que servir é a mais
alta forma de liberdade, alguma coisa como o contrário da submissão. Ver o
início de Cliges em que Alexandre faz um pedido a seu pai: "Eu vou pedir-vos
um presente que vos suplico que me concedais". E qual é? "Irei apresentar meu
serviço ao rei reinante na Bretanha." 18 A coisa mais preciosa que um pai possa
dar a seu filho não é a liberdade de fazer tudo, mas a possibilidade de servir. O
cavaleiro, procurando a façanha que o singulariza, não poderia realizá-la para
sua glória pessoal. É que há dois sentidos no "tu deves". O dever kantiano: ser
livre é não obedecer senão a si mesmo, segundo sua razão pura, ser autônomo.
O dever nietschiano: a verdadeira liberdade é ser posto no desafio pelo outro
ou por si, posto no desafio de obedecer, de cumprir. De um para um outro, é
preciso que haja a altura, que só um outro pode nos impor. Ou então, tudo se
reduz e a pessoa ser ela mesma se torna uma aventura tão pobre e vulgar como
o que nos é vendido como desenvolvimento pessoal e felicidade de ser nós
mesmos. É uma questão de dignidade. A dignidade enquanto repousa sobre o
sentimento profundo de que nós valemos mais que nós mesmos. Responder
ao apelo do que em nós é maior que nós mesmos, ultrapassa nossa história
pessoal, ou antes não: a domina governando-a do alto, a convoca. Responder
à convocação do que em nós exige e comanda. Há disso na dignidade, este
sentimento de que valemos mais que nós mesmos. Isso eleva, faz manter-se
ereto. Dizer-se que é um homem e este pensamento faz elevar-se, pondo-se em
ordem e às ordens; como um guerreiro pega sua arma e responde à convocação.
A ética do guerreiro está aí: não há outra liberdade senão a de responder ao que
em nós comanda. Ética da superação: o que eu sou (no duplo sentido de ser
e de seguir)* e merece que meu corpo "entre em aventura de morte". Porque

18
Chrétien de Troyes, C/igés ou La fausse morte, ed. cit., p. 96-97.
*Nt. em francês os verbos être = ser e suivre = seguir na primeira pessoa do presente do
indicativo têm a mesma grafia: suis é sou e sigo.
24 Estados de Violência

na falta de servir o outro, está-se reduzido à servidão de si mesmo e a pessoa


tornar-se ela mesma é uma aventura mesquinha.

Que vossa distinção seja obedecer! Que vosso próprio comando seja uma
obediência! Ao ouvido do bom guerreiro soa mais agradavelmente "tu deves" do
que "eu quero" . E tudo o que vos é caro, antes de tudo fazei-o do modo como vos é
comandado! 19

Contudo, resta ainda aqui uma distinção, que separa o "belo


morrer" do "bem morrer", a bela morte da boa morte, para compreender
em quê este serviço não é abnegação. Seja o que escreveu H. Germa-
Romann para contar como a nobreza francesa queria bem "morrer
para", mas com o brilho de uma morte que seja "gratuità', puro dom
espetacular de si: um belo morrer. E é preciso citar, então, a passagem
dessa bela morte a uma morte mais útil (o bem morrer), ao serviço
anônimo e completo de seu rei ou da fé (mais tarde do Estado) e como
a reivindicação de uma morte heroica pôde mesmo constituir um
foco de resistência da nobreza contra a Igreja e contra a monarquia.
Isto para fazer sentir nessa obediência cavalheiresca o que nela entra
de terrivelmente voluntário, encarnado, pessoal. Sobretudo em suas
origens, já que se tratava de servir um senhor, de lhe prestar fidelidade.
Contudo, a partir do momento em que foi preciso servir a Deus ou
seu rei, quando é uma obediência cheia de renúncia e de humildade,
a obediência propriamente guerreira se transforma: do dom gratuito,
brilhante, memorável, no sacrifício obscuro, da generosidade ou
magnanimida de (valor antigo da megalopsukhia = magnanimida de) à
renúncia e à abnegação.
Essa pressão da altura deixa-se ainda ver pela obsessão da honra,
como razão de ser do guerreiro. A honra é sua própria imagem ao olhar
do outro. É uma questão de imagem, mas imagem ainda não é falsa
aparência. A imagem de si, enquanto impõe o respeito, mantém à

19
Ainsi parlait Zarathoustra, cap. "De la guerre et des guerriers", ed. cit. p. 68.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 25

distância e distingue. A honra é a versão gloriosa da atual "autoestima ",


de tal modo considerada hoje que toda uma psicologia do reforço ético
aí penetra, adaptada às nossas democracias de opinião: no sentido em
que os outros deveriam nos ajudar a ter "boa opinião" de nós mesmos, a
fim de não nos desdizer, não nos desvalorizar, não perder nosso "capital
confiança". Contudo, a honra, ainda uma vez, leva mais alto que nós:
trata-se de estar exatamente à altura do que nos excede e nos supera
(reputação, família, história, casta, princípios). Na autoestima, trata-se
somente de se consolidar, de condensar-se. Não de se orgulhar. A honra
é dizer que de um para outro é preciso sempre ter altura, ou de estar à
20
altura da narrativa que seus atos constroem.

Meu rival, meu irmão

Para mim vós deveis ser aqueles cujo olhar sempre está à procura de um inimigo
- de vosso inimigo. [... ]. É preciso que sejais orgulhosos de vosso inimigo; então os
21
sucessos de vosso inimigo são também vossos sucessos!

A ética do guerreiro é uma ética do reconhecimento,


reconhecimento do outro. O combate supõe o reconhecimento antes
de uma igualdade. O outro aí se encontra elevado à dignidade de um
adversário. E ressente-se uma alegria profunda em encontrar rival à
sua medida, para aprofundar assim seu poder pondo-o à prova. É
uma espiral da excelência. Não se bate com não importa quem,
mas com os de sua raça, de sua casta, o que supõe comunidade de
valores. É preciso encontrar um adversário de sua qualidade e de
sua força, do contrário não há senão vitórias indignas; pois é meu
adversário que detém a verdade de meu poder. Impossível desprezá-lo:
ele me exalta como eu o exalto.

20
"Com que se mede a liberdade, nos indivíduos como nos povos? Com a resistência que é
preciso superar, com a pena que custa para guardar o "de cima", F. Nietzsche, em Crépus-
cu/e des ido/es, par. 38, ed. cit. p. 83 .
F. Nietzsche, Ainsi parlait Zarathoustra, cap. "De la guerre et des guerriers", ed . cit. p. 67-68.
21
26 Estados de Violência

Uma coisa totalmente diferente é a guerra. Eu sou belicoso por natureza. A


agressão faz parte de meus instintos. Saber ser inimigo, ser inimigo, isso supõe talvez
uma natureza forte [... ]. Essa cem necessidade de resistências a vencer, por conseguinte
ela procura a resistência: a paixão agressiva está ligada também necessariamente à
força como o sentimento de vingança e de rancor estão ligados à fraqueza. [... ] A força
do atacante se mede de algum modo pela oposição que ele precisa encontrar; todo
crescimento se trai pela procura de um adversário [... ]. Triunfar contra adversários
iguais ... Afrontar o inimigo de igual para igual - condição primeira de um duelo leal.
Onde o adversário é desprezado, não se pode fazer a guerra. 22

Daí vêm todas as imagens: a do marquês de Pescara, no relato de


Brantôme (Vidas dos grandes capitães franceses), comandante do exército
inimigo, que, quando vê Bayard cair morto, se precipita para lhe render
homenagem e faz estender para ele "um belo pavilhão para repousar: e
depois, tendo permanecido neste estado duas ou três horas, ele morreu" ;23
o marquês de Marignan que, durante o inverno de 1554-55, manda enviar
a Blaise de Monluc, doente em Sienne sitiada, ortolanos* e vinho grego
e essa última informação em seus Comentários: "Todas estas cortesias são
muito honestas e louváveis, mesmo para os grandes inimigos, se não há
nada de particular, como não havia nada entre nós. Ele servia a seu senhor
e eu ao meu; ele me atacava por sua honra e eu sustentava a minha; ele
queria adquirir reputação e eu também". 24
É uma ética de superação: eu devo a meu adversário me exaltar acima
de mim mesmo. Eu lhe devo minhas mais belas recordações de vitória,
minhas mais pungentes emoções de derrota. E ele do mesmo modo: nisto
ele é meu igual e reconhece em mim uma paixão comum de ataque e de
prova. Respeito por seu adversário. Nem com (amedrontados da existência
se reunindo para se manter em segurança), nem contra (ódio niilista do
ressentimento destrutivo), mas por. É o que Nietzsche chama de "amor
do inimigo" ("Meus irmãos na guerra! Eu vos amo profundamente, eu

22
Ecce homo, "Pourquoi je suis si sage", ed. cit. p. 108.
23
H. Germa-Roman, op. cit. p. 142.
*N .T. pequenos pássaros de carne saborosa.
24
Citado por A. Jouanna, "Tudo está perdido ... exceto a honra", in L'aventure dês
chevaliers,Les collections de l'Histoire, n. 16, 2002, p. 86.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 27

25
sou e fui dos vossos. E sou também vosso melhor inimigo", mas não no
sentido evangélico, forçosamente unilateral, pois se trata para Cristo de
amar quem vos odeia enquanto vos odeia, e seu ódio dá mais mérito e
contrassenso transcenden te a vosso amor (Evangelho segundo São Lucas
6, 27-34: "Amai vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam [... ] se
amais os que vos amam, que graça alcançais?").
Esse princípio de uma igualdade aristocrática deu em seus belos dias sua
profundidade à democracia grega. Ai só se é igual na rivalidade, no fundo de
reconhecimento agressivo, de luta de prestígio. Este privilégio, porém, tem
um preço: ele supõe escravos e vilões, pois essa igualdade entre pares repugna
à ideia de universal, de humanidad e como o anônimo, o homem a priori.
Reconhecer-se é se reconhecer entre, mas distinguindo-se de uma massa
confusa: separação homérica dos promakoi (combatentes) e dos kakoi (feios,
defeituosos), oposição do cavaleiro e da vil infantaria. Resta um fundo de
desprezo no interior dos melhores sentimentos da nobreza.
E sabe-se que se a democracia grega pôde constituir-se sobre essa base ética
de uma aristocracia estendida a todos os cidadãos livres, é porque ela tinha
relegado às suas margens os escravos, as mulheres, os estrangeiros e os bárbaros.
Para se sentir superior é preciso poder sentir sob si a massa inquieta dos inferiores.
A raridade tem este preço e a ética quase também, se não há ética a não ser da
26
distinção. De outro modo, é a moral das ciências sociais, diráArendt.
Se a guerra pode ser pensada como competição dos melhores, ela
acontece entre adversários antes que inimigos. E este combate tem algo do
esporte e do jogo.27 Entre combatente s, haverá então comunidad e: deuses
que se partilham e se veneram, regras que se respeitam, às vezes mesmo

25 Alnsi par/ait Zarathoustra, cap. "De la guerra et dês guerriers", ed. cít. p. 67 .
211
"Essa ígualdade moderna, fundada sobre o conformism0 inerente à sociedade e que
não é possível senão porque o comportamento substituiu a ação como modo primordial de
relações humanas, difere em todos os pontos de vista da igualdade antiga, notadamente
daquela das cidades gregas. Pertencer ao pequeno número dos Iguais (homo1) er-a poder
viver no meio de seus pares: mas o domínio público mesmo era animado por feroz espírito
de competição: devia-se constantemente distinguir-se de todos os outros, mostrar-se cons-
tantemente por atos, sucessos incomparáveis, o melhor de todos (aein aristein)", Hannah
Arendt, o.e. p. 80.
28 Estados de Violência

uma cultura, uma língua. É por isso que os gregos não opõem a guerra
à paz, mas há dois estilos irredutíveis de oposição: o ódio destrutivo e
tenebroso que não quer senão a morte do outro, a todo preço e por todos
os meios; no oposto, a rivalidade altiva e caminhando para o desafio, que
quer a vitória sobre o outro mas não contra ele, ligada às condições leais,
respeitando o adversário como a si mesmo, como uma imagem de si, seja
Hesíodo separando duas Lutas no início de Trabalhos e os Dias ("Não, não
é verdade que haja uma só espécie de Luta; mas na terra há duas ... "). 28

A provocação da desgraça

É uma ética enfim fundamentalmente da rivalidade, e partindo do


desafio. Neste sentido o filho espiritual do guerreiro altivo é o sábio estoico,
preparado pelos exercícios espirituais de Epícteto. Do mal, das decepções
e dos fracassos, dos lutos e dos acidentes, de tudo isto, é preciso virar o
sentido e fazer desafios à minha capacidade de afirmação. A sabedoria é feita
para receber a desgraça dessa maneira: como um treinamento, um exercício
a cuja altura devo me mostrar. Receber deste mesmo modo as injúrias, as
humilhações, como provas para minha capacidade de suportar. O que nos
vem do mundo como representações são ocasiões de combate e a vida é prova
perpétua: ''A título de prova, tu mesmo encontrarás a ocasião de enfrentar o
combate para saber se ainda és vencido por tuas representações". 29

27
"Toda luta, submetida a regras restritivas, oferece já, em razão dessa limitação, a carac-
terística formal de um jogo, uma sorte de jogo especialmente intenso, enérgico [ ... ]. A guer-
ra pode ser considerada como uma função de cultura já que ela acontece durante muito
tempo num círculo cujos membros se reconhecem mutuamente como iguais", J. Huizinga,
Homo Ludens (Homem Lúdico), ed. cit. p. 151.
28
"E não é somente Aristóteles, mas toda a Antiguidade que difere de nós em sua con-
cepção do ciúme e da inveja e partilha do pensamento de Hesíodo. Ele tinha julgado má a
primeira Eris (Nt. luta em grego), isto é a que leva os homens a se matarem mutuamente
odiosamente, mas, imediatamente, tinha exaltado como sendo boa uma outra Eris que, sob
as aparências de cobiça, de ciúme e de inveja, incita os homens a agir; ela não os atrai ao
combate até a morte, mas ao torneio", F. Nietzsche, "La joute chez Homére" (Nt. O torneio
em Homero), ed. cit. p. 195.
29
Epicteto, Entretiens, 111, 11, ed. cit. p. 986.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 29

Quando uma desgraça me acontece, não se trata apenas de dizer (lição


vulgar do estoicismo): isto não é nada, depois de tudo, alguma coisa de
mais grave poderia acontecer e ainda me resta isto e aquilo. Não se trata
de relativizar a desgraça.
O problema não é também sempre fazer dessa desgraça que me acontece
alguma coisa de indiferente (lição sábia do estoicismo) no sentido em que:
"isso não depende de mim", conforme a fórmula consagrada. Essa desgraça
que sobrevém e cai toca meu corpo, meus próximos, minhas riquezas, funções
que exerço... Perder um amigo ou um parente, cair doente, ser afastado de
seu lugar, ser arruinado, tudo isto não se torna uma desgraça senão por meu
julgamento e um julgamento falso por acréscimo. "Teu filho morreu." A isto
responder, dizia Epícteto, antes que com lamentações inúteis, deslocadas,
ilógicas: "Eu sabia que tinha gerado um mortal" ou "eu o devolvi". 30 Todas
estas coisas, riquezas, fama, saúde, vida dos próximos, não dependem de mim,
mas do curso geral do mundo. Não há desgraças que possam me acontecer,
somente acontecimentos que acontecem como devem acontecer.
Contudo, há ainda uma escada suplementar na ética do desafio (é a
lição superior do estoicismo). A ética do sábio-guerreiro vai mais longe que
a simples aplicação dessa regra de ouro (saber fazer a distinção entre o que
depende de mim e o que não depende: o que não depende de mim são
o corpo, minha vida como a dos outros, as fortunas e as carreiras; o que
depende de mim é minha relação constitutiva com as coisas, o julgamento
feito sobre elas). Porque não se trata somente de reduzir a nada a desgraça,
ou antes de reduzir o acontecimento àquilo que ele é: um acontecimento
que vem, a "desgraça" sendo um suplemento de alma perversa que eu lhe
imponho (quando se diz "é infeliz", em vez de: "isso acontece como isso
deve acontecer"). Contudo é preciso fazer do que acontece um bem para
mim: um bem enquanto fonte de fortalecimento. Um bem enquanto me
vejo atraído, elevado à tarefa de me mostrar à altura do acontecimento. Um

"Não digas jamais a propósito de uma coisa: 'Eu a perdi', mas 'Eu a devolvi'. Teu filho
30

morreu? Ele foi devolvido". Manuel, 11, trad. P. Hadot, ed . cit. p. 170.
30 Estados de Violência

bem enquanto sou provocado a responder a tantos males por uma resistência
altiva. Um bem enquanto sinal de eleição de Deus. Deus, senhor absoluto
das lutas, só encoraja por provas os que ele acha dignos. Os outros ele os
abandona às consolações mesquinhas da prosperidade e da felicidade.

Meu vizinho é mau; para ele mesmo! Mas para mim ele é bom; ele me exercita
na benevolência e na bondade. Meu pai é mau? Para ele; mas para mim ele é bom. É
a varinha de Hermes: "Toca no que quiseres e será ouro". Não? Pois bem! Apresenta-
-me o que queres e disso farei um bem: apresenta-me a doença, a morte, a indigência,
o insulto, a condenação aos suplícios. 31

Com essa ideia - não tão evidente - de que o que me fere sempre me
fortalece, é fazer pouco caso das vitórias à moda de Pirro. É pensar um
pouco depressa que ter combatido e mesmo - e sobretudo - ter vencido
permite encarar a próxima luta com serenidade e distância. Saber o que
custa às vezes também desespera. Há na vitória um gosto de amargor que
impede recomeçar. E depois de onde se tornar senhor do sentido que se
dá aos acontecimentos? Como mudar o sentido do "que me abate e me
desabá' em "que me provoca e me ergue?" Depois que porção de mim
operar essa reviravolta?
E ainda com essa maneira de procurar as raízes da ética no combate
individual, o afrontamento cavalheiresco, não se arrisca no fundo em
caucionar as guerras reais prometendo-se uma imagem colorida, épica,
uma imagem falsa? Assim à sombra do mito poderiam crescer as guerras
anônimas, carniceiras. A menos que este mito não seja também crítico.

Eu vejo força-soldados, possa eu ver força-guerreiros. 32

31
Epicteto, Entretiens, Ili, XX, 11-12, ed . cit. p. 998-999. Cf. também: "O que é filosofar?
Não é se preparar para os acontecimentos? [ ... ] É como se alguém cessasse de fazer
exercício ginástico porque recebeu socos. No exercício ginástico pode-se interromper para
não ser maltratado; mas se é abandonada a filosofia, para que serve? O que deve dizer o
filósofo a cada uma das violências que sofre? "É para essa prova que treinava, para essa
prova que me preparava". Deus te diz: "Mostra-me se combateste segundo as regras".
Epíctero, Entretiens, 111,X, 6-8, ed . cit. p. 982.
32
Ainsi parlait Zarathoustra, cap. "De la guerre et des guerriers", ed . cit. p. 67.
2
Suportar

O gênio grego inventou a falange: são formações compactas de homens tendo


lança e escudo numa dezena de fileiras, uma espada curta na cintura, cada um
protegendo por uma metade de escudo o flanco direito de seu vizinho e todos
marchando no mesmo passo, unidos como um só. É como um muro unido de
pontas que se desloca. Eles avançam em filas compactas, em boa ordem e coesão.
O princípio é claro: todo homem que cai na frente, no momento do choque, é
logo substituído por um outro de sua coluna atrás. Isto supõe um intercâmbio dos
combatentes. Está-se longe do duelo homérico, do combate entre heróis descendo
de seus carros, desafiando-se, insultando-se, chamando-se por seus nomes. Tudo isto
(a batalha preparada) supõe uma enorme solidariedade, efetivamente o que se chama
um "esprit de corps" . Corpo imenso e unido que é todos e ninguém em particular,
imagem viva e vibrante da cidade una e solidária. Como o duelo aristocrático (idade de
ouro, aurora luminosa da guerra) foi para muitos o lugar de gênese ou de expressão da
ética aristocrática, feita de respeito e de reconhecimento, de dignidade e de lealdade,
de poder e de honra, o combate em fileiras constituiu o ponto de especulação de
uma moral cidadã, moral da solidariedade e da igualdade, da coragem humilde e do
cuidado com o outro. A guerra como símbolo da igualdade democrática: aqui não se
trata de brincar de herói, de se deixar inspirar por um entusiasmo divino, sobretudo
de não singularizar, mas avançar com ordem e permanecer atento aos movimentos
de conjunto, fazer jogar a fundo as solidariedades (essa dialética do indivíduo e do
coletivo, do indivíduo que se nega como tal para permitir o pleno desenvolvimento
do todo, de retorno ele recebe força e consistência), guardar seu posto e sobretudo
"manter-se firme".

Essa segunda grande imaginação da guerra é ainda mais essencial


à filosofia; porque nela se desenham para a problematização ética da
guerra pontos incontornáveis de referência. Eu quero dizer que a postura
do sábio nela se enraíza com mais segurança ainda do que para a ética
cavalheiresca. A relação com a violência e com a morte aí se encontra
menos ambígua também (o furor cego permanecendo ao mesmo tempo
32 Estados de Violência

como excesso e a verdade da primeira coragem): nem fascinação, nem


ebriedade. Nada de vertigem possível: o movimento está apoiado em
seu princípio.
Muito se disse dela, muito se escreveu e narrou: a passagem de uma
figura da guerra como duelo dos heróis para a batalha em fileiras é notável.
Passagem, para a cultura antiga, do modelo homérico do combate entre
heróis tendo nome e lenda, grandes favoritos dos deuses, montados em
carros, percorrendo o campo de batalha para aí encontrar o afrontamento,
o mais nobre e o mais poderoso, para a batalha em fileiras dos soldados-
-cidadãos unidos na massa enorme do exército solidário, uno. 1
Essa passagem é a de dois estilos de enfrentamento armado, cuja
eficácia respectiva não se pode medir, mas também de dois focos éticos de
sentido. Não se trata mais, na batalha em fileiras, de se celebrizar por uma
façanha, de sair de sua fileira, de adquirir glória e renome mostrando-se
o mais forte e o mais enraivecido, pedindo o apoio de um deus para que
favoreça a façanha. Todo o sucesso da falange (para tomar o exemplo grego)
e a sorte da guerra dependem, ao contrário, dessa vez, da capacidade de
cada um em guardar seu lugar, manter sua fileira, fazer como os outros se
os outros fazem bem.
Seja Aristodemo, hoplita* espartano que na batalha de Plateias quis
mostrar muita coragem (tendo de apagar uma antiga suspeita de covardia:
ele era o único a voltar da batalha das Termópilas). Ele saiu da fileira para
realizar alguma promessa e foi censurado depois por ter, por suas façanhas
- embora certas-, quebrado a coesão e ameaçado a vida de seu companheiro
de armas mais próximo (Heródoto, Histórias IX, 71). Desaparecimento do
ato heroico que singulariza: somente um efeito de massa, um só corpo de
exército em que cada um deve se incorporar, se unir.

1 Cf. o artigo de M. Detienne "La phalange: problémes et controverses", in Problemes de la

guerre en Grece ancienne, ed . cit.


*N.T. soldado de infantaria armado
primeira Parte - FORÇAS MORAIS
33

Suportar

Era um espetáculo ao mesmo tempo majestoso e assustador vê-los avançar em


cadência ao som da flauta, sem deslocar as fileiras da falange, sem sentir perturbação
no coração e marchar para o perigo tranquilamente e alegremente seguindo a música. 2

No momento do assalto, da subida em linha, trata-se de "manter-se firme",


então o medo aperta a garganta quando se veem multiplicar os sinais de morte ao
longe, que se ouvem os gritos de ódio e que as flechas começam a chover. Trata-
se de "manter-se firme" também no momento do choque, quando as lanças
se quebram: ficar bem em seu posto, abaixar-se atrás de seu escudo e segurar,
impedir o refluxo das armas de fogo, concentrar a força. Guardar seu lugar
indicado em sua coluna e substituir imediatamente o que cair na frente. Em
mdo ficar inabalável, mas de uma imobilidade que é o contrário da passividade,
totalmente cheia de energia controlada e de intensidade. É assim que alguns
homens, se são disciplinados e treinados, constituem por sua união compacta
uma muralha móvel toda guarnecida de lanças diante da qual nenhum exército
pode-se manter3 - nem mesmo o dos Persas, composto de cavaleiros ligeiros e
de archeiros, horda excitada de carniceiros de quem Heródoto observava com
inteligência que o principal defeito é que eles tinham ao mesmo tempo (o que
é complementar) o gosto imoderado de matar e o pânico de morrer.

Se um homem está pronto para rechaçar os inimigos guardando sua fileira e sem
fugir, estejas seguro de que este homem é corajoso. 4

Nova definição da coragem então, que vem espontane amente à boca


dos Lacões, em forte ruptura com a primeira definição (a coragem como
entusiasmo, procura de glória, inspiração transcendente, capacidade de se
doar de coração à obra, a reduzir sua força de afirmação, ebriedade de poder).

2
Plutarco, Vies parai/eles, trad. A. M. Ozanam , "Lycurgue", 22-23.
3
"Ninguém pode resistir de frente à infantaria enquanto ela conserva a formação e o poder
de choque que lhe são próprios", Pollbio, Histoires, XVIII, 30, 11.
4
Platão, Laches, 190e, trad. L. A. Dorion, e·d. cít. p. 110.
Estados de Violência
34

A coragem essencial ao hoplita não é dessa ordem: ele é todo tenacidade,


firmeza, resistência. Eis quem leva em conta o ceticismo de Lacões no diálogo
platônico do mesmo nome. Mandam que ele assista a exercícios complicados
de manuseio das armas (hopomakhia), para saber se o mestre nessa arte
deve participar da educação das crianças. Um dos Lacões fica diante dessa
virtuosidade circunspecto, porque sabe bem que ser um bom hoplita não são
necessários nem uma grande arte nem um imenso treinamento, nenhum a
técnica particular, mas só uma força moral: saber suportar, ficar firme.
Somente isso: "suportar" (hupomenein), guardar seu "posto" (taxin),
mas é imenso. Como escreveu Santo Tomás em sua dissertação sobre
a coragem, há dois usos éticos da força: atacar (aggredere) e suportar
(sustinere). E há mais virtude no sustinere do que no aggredere.

upor ar é mais difícil que atacar por três razões: 1 Aquele que araca desempen ha,
parece, a fun ção do mais fo rce; aquele que supo rta é cnrão o mais fraco que re isre
ao mais force, o que é sempre mais difícil. 2 Para aquele que ataca o perigo parece
distanciado, ao passo que está presente para aquele que suporta o ataque, e para o
qual, por consegujnce, é mais difícil não ser abalado. 3 uportar não acontece sem
dilação do rempo; atacar, ao contrário, pode ser o efeito de um impulso repentino.
Ora, é mais penoso ficar muiro tempo inabalável do que se entregar de repente a
alglLma coisa difícil. Para suportar, é preciso que o corpo sofra, mas sobretudo que a
5
alma aja para se ligar ao bem com w11a fo(ça ral que 11ão ceda ao ofrimento frsico.

A superior idade da coragem como capacidade de suportar à coragem


como capacidade agressiva é que supõe um princípio de atividade superior:
o corpo padece e é a atividade da alma que faz suportar. Nessa postura do
hoplita anônimo , unido a seu compan heiro de armas, a cabeça baixa e
resolvido a suportar, nessa aliança de humilda de e de resistência, de energia
e de coesão, havia algo de fascinar filósofos e moralistas; de que tirar uma
inspiração essencial para a constituição de nossa ética.
Sócrates certame nte o primeiro que, nas batalhas de Délio, de Potideia,
tinha dado provas de coragem. Sócrates no moment o de seu processo,

5
Santo Tomás, Somme théologique, ed. cit. Question 123, art. 6.
. eira Parte - FORÇAS MORAIS 35
prirn

uando é impelido ob pena de morte a renunciar à Filosofia a este exame


q ennanence de si e dos outro , responde: eu fico fiel a meu posto. Como
: hoplita. mantém em sua fileira o lugar que lhe deu seu chefe e fica atento
para não se afastar. E nã~ é porque hoje o perigo espreita e ameaça que seria
preciso deixar o lugar. E ao contrário neste momento quando o inimigo
avança, que o risco é palpável, real, que é preciso permanecer em seu posto.

Eu então, Atenienses, procederia de um modo bem estranho se, quando meus


chefes, estes que elegestes para me comandar, seja em Potideia, em Anfípolis, ou
em Délio, me tivessem indicado um posto, eu teria ficado neste posto, como não
importa qual outro homem, correndo o risco de ser morto e que, ao contrário,
quando o deus me indicou como tarefa- como presumi e supus -viver filosofando,
isto é submetendo-me e os outros à prova, naquele momento, por medo da morte
ou de outra qualquer coisa, eu deixasse meu posto. 6

Isto é: eu sou o bom hoplita da Filosofia. 7 "Suportar" é uma postura


ética fundamental. Princípio de crescimento exterior: suportar não
somente contra o avanço do adversário, mas contra os golpes do destino,
as feridas do destino. Passar (como Sócrates seduz Lacões a fazer no
diálogo do mesmo nome) da definição estritamente guerreira da coragem,
como "repelir os inimigos guardando sua fileirà', para sua definição mais
ampla como "firmeza de alma". Uma coragem, portanto, como o fato de
"suportar" diante dos acidentes da existência, desgraças e fatalidades.

Eu queria, com efeito, me informar junto a ti não só sobre homens que são
corajosos na infantaria, mas também sobre os que o são na cavalaria e em toda forma
de corpo militar. E eu me interessava não só pelos que são corajosos na guerra,
mas também pelos que dão prova de coragem diante dos perigos do mar, e bem
entendido por todos os que são corajosos face às doenças, à pobreza, à política; eu
pensava não só nos que são corajosos diante das dores e dos temores, mas também
nos que se sobressaem na luta contra os desejos e os prazeres. 8

6
Apologie de Socrate, 28d-29a, trad . L.Brisson, ed. cit., p. 106-107.
7
Cf. a retomada do tema por Epícteto: "O posto, a fileira que me indicares, morrerei mil
vezes, como diz Sócrates, antes de abandoná-la", Entretiens,111, XXIV, 99. ed. cil. p. 1.031.
8
Laches, 191c-d, ed . cit. p. 112.
Estados de Violência
36

Uma coisa, contudo , é não se deixar desviar do caminho justo pelas


desgraças da vida, o que requer coragem; outra coisa é não se deixar desviar
pelas tentaçõe s ou pelas facilidades da existência, o que requer, dessa vez, a
tempera nça; será preciso voltar a ela. Para o moment o, a coragem consiste
em suportar os imprevistos e as desgraças do mundo, ruínas e fatalidades.
Se a virtude é que nos intima a responde r ao que se apresenta, pois
bem, aos deuses deve-se a piedade, aos homens deve-se a justiça. Ao que nos
é dado e à sua própria existência, com seus imprevistos, suas vicissitudes,
9
suas desgraças, dever-se-á à coragem.
É a atitude mesma do sábio estoico, essa coragem como capacidade
de suportar e manter-se firme, o que Sêneca chamará de constância. De
constantia sapientis: a constância do sábio. Manter seu lugar sempre. Aquele
que fica firme em seu posto, inabalável e sólido como a rocha, é o sábio.
Qualque r coisa de superior à simples impassibilidade à qual se reduz muito
frequentemente, para fazer-lhe perder sua força de provocação, o sábio estoico.
Diz-se dele, depressa demais, que é desligado, impassível, neutro como um
rochedo, cabeçudo , incapaz de emoção (é como se nada lhe acontecesse nem
o alcançasse) e ei-lo virado para o lado negativo. Constân cia, porém, não
é impassibilidade. Não é porque ele está em cima que o sábio não está em
10
parte alguma. "Ser invulnerável não é não ser atingido, é não ser ferido."
Ainda um pouco, e se tomaria o desprezo soberano das injúrias por covardia,
porque para nós viver é ser agitado, transtorn ado, vê-se na imobilidade do
sábio uma inércia quase mórbida . É preciso então recordar o enraizamento
guerreiro dessa ética. O sábio "suporta e repele os ataques do adversário" .11
Impávido, como o bom soldado. Suportar não é nada sentir: é sentir sem se
deixar levar, mantend o-se firme. Sentir, suportar e ficar firme. O sábio suporta
os golpes da Fortuna como o bom soldado suporta "os gritos do adversário
ou os dardos lançados de muito longe e as pedras que, sem vos ferir, crepitam

"O homem
9 Cf. A definição por Platão do homem racional como piedoso. justo e corajoso:
ou evita o que é de seu dever e é cheio de força para suportar seu dever
raciona l persegue
quando é preciso", Górgias, 507c. trad. M. Canto, ed . cit. p. 317 .
10 De constanfia , Ili , 3, trad. R. Waltz, ed. cit. p. 317.
11
lbid. IX, 5, p. 325.
1111 37
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS

ao redor de vosso capacete". 12 Não se deixar impressionar. A constância não


é uma igualdade mecânica e perfeita de humor, algo como uma indiferença
ao exterior. É completamente o contrário da indiferença: uma vigilância
armada. Diante das desgraças, trata-se, conforme a ética do guerreiro, de
enfrentar. A linha de divisão entre a ética estoica e a ética epicureia passa por
aí: as desgraças que se acumulam, as catástrofes que se amontoam, não se
trata de abstrair delas (exercícios espirituais do epicurismo: concentração da
memória numa sequência de felicidade passada que volta, por um poderoso
esforço mental, a substituir o instante presente), mas de enfrentar.
O sábio estoico não é impermeável às desgraças da existência: ele as
enfrenta e as suporta. Ele não é indiferente aos imprevistos e às fatalidades,
numa serenidade soberana, isolada, autística. Ele suporta suas mordidas.
Ele não as ignora. Da mesma maneira, o soldado não é insensível aos
gritos do inimigo. Simplesmente, eles não o impressionam: eles não fazem
senão mantê-lo vigilante. Aos golpes do destino o sábio sempre deve opor
o famoso verso de Ulisses (que Platão salva da censura no livro III de sua
República, em 390d) - Ulisses disfarçado de mendigo assistindo impotente
às exações dos pretendentes e contudo querendo saltar em cima deles - e
estas palavras soam na cultura grega como a maior declaração ética:

Fica firme, meu coração, já suportaste provas mais cruéis. 13

É nessa moral do cidadão-soldado que se constrói a consistência


ontológica do sujeito ético. Já a moral cavalheiresca fazia aparecer a gênese
prática da unidade do sujeito: a promessa. Eu sou como sujeito enquanto,
fiel a mim mesmo, à minha própria palavra, me sinto engajado por mim
mesmo a ser o que prometi ser. Artesão de minha própria unidade: eu me
projeto e me confirmo. Eu me construo me superando. "Serei tal como
tinha me prometido ser." O presente é uma ponte, uma corda esticada.

12
lbid., XIX, 4, p. 334.
13
Homero, Odyssée, XX, 17-18.
38 Estados de Violência

O princípio de constância desempen hado pelo hoplita é outra coisa.


Trata-se menos de construir uma unidade do sujeito pelo arco vibrante
entre um presente e um futuro, do que insistir, de permanec er no lugar,
tornando consistente seu ser por essa persistência: o que me aflige, longe de
me usar e de me enfraquecer, me atualiza e me aprofunda no meu posto,
pelo esforço que faço para me unificar, me concentra r em mim mesmo.
A constânci a é consistência. Ela produz consistência, mantendo -se firme
contra o outro. Aprofundar-se no posto pelo ato de suportar.
Além disso, pode-se citar a coragem de defender o direito e a
justiça contra os comprom issos e as covardias. Não suportar contra (as
14

desgraças, os imprevist os, as doenças etc.: a coragem como persistênc ia),


mas pela (a justiça, a verdade, a fé etc.: a coragem como paciência ). O
que Santo Tomás chama de sentido individua l (particulare) da "guerra
justa". Suporta-s e até à morte por uma causa: "se um juiz ou mesmo um
simples particula r permanec e fiel à justiça, a despeito da espada prestes
a ferir ou de não importa qual ameaça de morte", são estas, como são
15
chamadas , nossas "guerras individua is" (particularia bella). A coragem
se desloca aqui da firmeza ética do sujeito para a consistên cia moral de
suas convicçõe s.
É assim que, em Santo Tomás, a coragem como virtude (fortitudo) é
sempre um pouco deslocada, mas de uma decentralização essencial, pois de
fato a coragem como firmeza de alma é menos uma virtude própria do que
aquilo que constitui para os outros uma condição concreta de existência,
de existência na duração do tempo e no conflito. Uma coisa é ser bom (ser
inspirado pela bondade) , ser justo (sentir a grandeza da justiça), ser sincero
(odiar a mentira), outra coisa manter sua bondade no desespero do mundo,

14
"Mas que acontece quando alguém pensa sofrer uma injustiça? Não é que nele seu
coração não se afasta , não se irrita e não se liga ao que lhe parece justo? E não é senão
enfrentando (hupomenon) a fome , o frio e todos os sofrimentos deste gênero, que ele os
suporta, os vence e não deixa seus nobres esforços até que tenha vencido ou que não te-
nha terminado seus dias?", Platão, Répubique, 440d-440 em trad, P.Pachet, ed. cit. p. 239 .
15 Somme lhéo/ogiqve, li , li, Question 123, art. 5, trad. J. D. Folghera, ed . cít. p. 26-27.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 39

persistir em afirmar a justiça no meio das iniquidades, manter firme um


discurso verdadeiro quando tudo ao redor conspira. Verdade ou justiça
da coragem não é como coragem da verdade ou da justiça. Então ela é
movimento interior para toda virtude, para fazê-la manter-se na existência,
mais que aplicação, regulação ou limitação de uma virtude por uma outra.
De sorte que a coragem constitui menos uma virtude à parte do que a
condição de existência das outras virtudes, a capacidade delas de se manter
no mundo. Santo Tomás faz da coragem logicamente "a condição de toda
virtude" (condítio cujuslibet virtutis). 16
Falar assim da coragem como firmeza de alma permite essa ponte ética
fácil entre o mundo antigo e o mundo cristão. Como se se pudesse ir
continuament e da persistência antiga (constância e firmeza) à paciência
cristã (perseverança e confiança em suas convicções); do hoplita morrendo
por sua pátria em Aristóteles ao mártir da fé em Santo Tomás. 17 Contudo,
não é da mesma maneira aqui e lá que a coragem é sustentada. Quero dizer
que a persistência do sábio antigo se sustenta por sua própria imagem, é
seu próprio fantasma estético que o faz manter-se.

O homem de uma verdadeira coragem, como vimos, enfrenta tudo o que pode
ser ou parecer temível para o coração do homem, porque é belo suportar o perigo e
porque seria uma vergonha não suportá-lo. 18

Por um círculo o sábio reflete sua própria imagem e acha nela de que
alimentar sua constância. Ele se sustenta com sua própria projeção ima-
ginária: é preciso manter-se porque é belo. Não que a causa seja bela, é
antes de bem que se trata aqui (bem público, geral ou moral), mas é belo
manter-se firme para uma boa causa. É nele mesmo como figura, que o
sábio encontra seu recurso para se manter.

16
lbid, 11 ,11 , Questlon 123, art. 2, ed. cit. p. 14. Hegel cita em seu Systeme de rétlque, "a
virtude em si, mas a virtude formal" (citado por R. Derathé, ln Hegel, Prlncipes de la philo-
sophie du droit, ed. cit. p. 327).
7
' ."O bem da pátria é o maior dos bens humanos, mas é inferior ao bem divino", Somme
lhéologique, 11,11 , Question 124, art. 5, ed. cit. p. 75.
1
ªf=t'hlque à Nicomaque, Livre-Ili , cap. IX, par. 14, ed. cit. p. 139.
40 Estados de Violência

Contudo, não há nada a esperar do outro, algures, além ou depois,


mas somente manter-se aqui. Eu quero dizer que a própria ideia que ha-
veria de esperar dessa coragem alguma coisa como uma recompensa, uma
gratificação num outro mundo e não naquele em que essa coragem se ma-
nifesta, essa ideia não só não aparece na cultura grega, mas creio mesmo
que tiraria o brilho de maneira indelével do ideal dessa coragem. A cora-
gem cristã como paciência, capacidade de manter suas convicções diante
da adversidade, é sempre ao mesmo tempo uma súplica a seu Deus (ou
um apelo) e por isso se torna fonte de alegria e prepara para a beatitude. O
que torna bela a coragem grega é de não ser sustentada por nenhum além.
Tanto mais bela quanto mais desesperada: ela é tanto mais corajosa para
engajar sua existência quanto mais convencida de que nada há fora dela,
tanto mais sublime em expor sua vida quanto mais nela se mantém. O que
tinge então essa coragem com uma indelével tristeza: renuncia-se à vida
pela cidade, já que essa renúncia é a que mais custa.

A morte e as feridas serão para o homem corajoso coisas penosas; e ele não se
exporá a elas a não ser forçado. Ele as afrontará porque é belo fazê-lo e seria um
vergonha não fazer. Contudo, quanto mais sua virtude for perfeita e consequente-
mente sua felicidade completa, mais também lastimará sua morte; é para tal homem
sobretudo que a vida tem todo o seu preço; e ele é privado dos bens mais preciosos,
19
sabendo tudo o que valem; está aí uma viva dor.

Ser senhor de si

Há ainda nessa coragem como firmeza, tenacidade, constância, per-


sistência, uma segunda dimensão ou que pode mesmo aparecer como
condição da primeira, quero dizer: o domínio de si, do qual já se viu
como Sócrates fazia facilmente derivar da coragem. Manter-se firme sob
os golpes que chovem, ficar firme sob a violência enorme do choque
frontal, guardar seu lugar quando a seu redor tudo treme, isto supõe

19 lbid. Livre Ili, cap . X, par. 4, ed . cit. p. 141 .


Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 41

manter-se firme e mesmo contra si próprio, não ceder nem ao pavor que
vos corta as pernas ou vos faria pular para trás, nem ceder ao furor ébrio
que vos faria precipitar sobre o inimigo para uma fusão mortal. Com-
pletamente ao contrário, é preciso manter a cabeça, conservar o caminho
reto em plena tempestade, como justo meio, dizia Aristóteles, entre a
audácia cega e o medo pânico (Ética a Nicômaco, 11 la); a coragem, reto-
mará Santo Tomás, é reprimir o medo e moderar a audácia. 20 Dominar
suas cóleras e seus medos. Isto é mais precisamente reduzir suas cóleras e
superar seus medos. E até, precisava Santo Tomás, "a força consiste mais
ainda em reprimir seus medos do que em moderar a audácia". 21 Por que
este desequilíbrio? Sempre a superioridade ética da coragem de suportar
sobre a coragem de atacar, pois "aquele que sustenta o choque não teme,
embora tenha um motivo de temer, mas quem ataca não tem nenhum
motivo de medo presente no espírito". 22
A superioridade moral daquele que se mantém firme é que ele sente
o medo e ao mesmo tempo o supera, ao passo que aquele que ataca não
faz senão afogá-lo num excesso de energia. Ser corajoso não é ignorar o
medo, não conhecê-lo, não ter medo jamais. Aristóteles denuncia quatro
grandes simulacros de coragem, 23 que são precisamente quatro maneiras
de não ter medo. Há primeiramente o homem de experiência, o que sabe
imediatamente quando há verdadeiramente perigo e quando o perigo é
inexistente, quando está longe e quando é iminente. Alguém não tem
medo, mas é porque sabe que em tal situação, em que contudo o perigo
ameaça, de fato o perigo é mínimo. Ele não tem medo porque sabe que
o perigo não é real ou tão real, não tão importante como lhe parece. Há
ainda o colérico que corre na frente dos perigos porque um furor o atrai:
ele não tem em vista a nobreza de uma causa a defender, mas se deixa
somente submergir pela embriaguês da raiva. Depois há o confiante. Ele

20
Somme théo/ogique, 11,11, Question 123, art. 3, ed. cit. p. 118.
21
lbid., 11,11, Question 123, art. 3, ed. cit. p. 29.
22
lbid., p. 27.
23
Éthique à Nicomaque, Livre Ili, 1116b-1117b.
42 Estados de Violência

dá demonstração de segurança, quase de arrogância; a ele até então tudo


sucedeu bem e pensa, o ingênuo, que essa boa e sorridente sorte ele a
deve a seu gênio pessoal. Nada lhe faz medo, mas isto não é coragem.
Simplesmente ele nunca conheceu o fracasso. O primeiro revés o desaba-
rá. Vem enfim o temerário: ele é corajoso, mas por falta de reflexão. Sua
audácia é como a do louco ou da criança, inconsciente. Diante deles, o
corajoso autêntico, tem medo: medo de perder sua vida e sente o perigo
persegui-lo. Ele teme perder a vida porque conhece todo o seu preço e vê
em torno dele o perigo. Este medo, porém, ele o enfrenta, o supera "pela
beleza do fato" (heneka tou kalou). Ser corajoso não é nunca ter medo.
É antes suportar afrontar o medo, seus medos; afrontá-los e mostrar-se
mais forte que eles e manter-se em respeito. No fundo o covarde tem so-
bretudo medo de ter medo, medo do medo, do combate que ele teria de
fazer contra ele. "Domínio de si" é antes de tudo dominar seus medos.
Ser alguém mais forte que ele mesmo, escrevia Platão, não pode ter
sentido a não ser que em nós alguma coisa comande outra coisa, afirme
sobre ela sua supremacia, triunfe dela. O hoplita mantém-se firme contra
o adversário porque antes mantém-se firme contra si mesmo. É então de si
mesmo que se deve triunfar primeiro.

A vít6ria sobre si mesmo é de todas as vitórias a primeira e a mais gloriosa, ao


passo que a derrota em que se sucumbe às suas próprias armas é o que há ao mesmo
tempo de mais vergonhoso e de mais covarde. E isso mostra bem que uma guerra se
24
trava em n6s contra n6s mesmos.

É isso que dá lugar ao princípio de extensão interior da coragem


hoplítica (das armas). Não se trata somente de imediatamente do-
minar suas cóleras e seus medos, a fim de poder enfrentar o inimigo,
mas de dominar o conjunto de suas fraquezas: paixões, desejos, afe-
tos (tudo o que em nós se enfurece e nos assalta) e de assegurar este
domínio. O domínio de si não é mais simplesmente condição para a

24
Les Lois, 1, 626e, trad, Des Places, ed. cit. p. 4.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 43

postura guerreira: ele se torna mais amplamente em Platão a condição


do governo dos outros (saber governar-se se alguém pretende gover-
nar os outros).
Em todo caso, que esse combate contra si não se torne nele mes-
mo e por ele mesmo um sinal de perfeição ética. Se os inimigos mais
temíveis são os inimigos internos, então o domínio de si vale todas as
dominações políticas. Seja a réplica de Diógenes a Alexandre, no famo-
so confronto entre o filósofo sujo e o imperador coberto de glória e de
luz. Alexandre, dizia Diógenes, "tu não és um verdadeiro rei; tu não és
um verdadeiro rei porque não triunfaste do inimigo mais temível"; "eu
esmaguei todos eles", responde Alexandre, "em toda a Grécia e em toda a
Macedônia"; "mas este inimigo és tu mesmo", responde Diógenes, "tu mes-
mo e teu desejo de vitórias e de glórias". 25 Daí finalmente a importância
do vocabulário militar até no pacifismo cristão mais intransigente. Um
pacifista resolvido como Erasmo aí sorve o que dizer com mais justiça
sobre a condição do cristão.
"Enquanto militamos neste posto do corpo, guerrear contra os vícios
com um ódio implacável e o extremo de nossas forças [... ] ó soldado cris-
tão, o dia em que tu foste iniciado nos mistérios do banho vivificante, tu te
alistaste no exército que o Cristo comanda [... ]. A que visava que fosse im-
primido em tua fronte o sinal-da-cruz se não é para que durante tua vida,
tu militasses sob seus estandartes? A que visava que se imprimisse em tua
fronte o sinal-da-cruz se não é para que tu empreendas uma luta perpétua
contra os vícios?" 26
Há então uma série de variações: o domínio de seus medos permitindo
manter-se firme diante do inimigo numa batalha de fileiras (virtude hoplí-
tica); o domínio de si correlativo ao domínio dos outros (série platônica; é
preciso governar-se a si mesmo antes e a fim de pretender governar os ou-
tros); o domínio de si como perfeição ética superior (série estoico-cínica);

25
Dion Chrysostome, IV Discours "Sur la royauté", in L.Paquet, Les cyniques, ed. cit. p. 202-225.
26
"Manuel du soldat chrétien" (1504), in Guerre et paix dans la pensée d'Érasme, ed. cit. p. 30.
44 Estados de Violência

enfim a série cristã em que este combate nos responsabiliza por todas as
disposições de guerra.
Momento de absorção da origem: o domínio de si volta-se contra a
guerra que havia fornecido sua matriz e se trata de fazer a guerra em si mes-
mo contra qualquer afeto belicoso: "só essa guerra gera a paz verdadeirà' .27

Proteger

O trabalho da filosofia moral tinha acabado por debilitar a imagem


do hoplita mantendo-se firme diante do inimigo numa ética da pura re-
lação consigo mesmo. O esquema da batalha em fileira suscita contudo
uma última dimensão ética, frequentada pelo cuidado do outro, pois o dis-
positivo era simples, eficaz e esplêndido, simbolicamente luminoso: com
seu grande escudo redondo sustentado por seu braço esquerdo e posto
no ombro, enquanto que com a mão direita segurava a lança, o hoplita
protegia o lado direito contra seu adversário e ele mesmo recebia de seu
companheiro de armas da esquerda a proteção de seu próprio flanco direi-
to, que de outro modo teria ficado a descoberto. Eis por que era preciso
conservar sua fileira e avançar em ordem. Era preciso guardar seu lugar,
manter seu posto porque a fuga ou a retirada significavam imediatamente
pôr em perigo o outro. E os que dessa maneira, unidos, avançavam juntos
em cadência, sentindo a espessura trêmula dos corpos, eram muitas vezes
irmãos, primos, pais e filhos, vizinhos próximos, familiares. E entre eles,
o general (strategos) visível a todos, na primeira fila. O general na frente,
cujo rosto não se queria perder de vista, o general que dava o exemplo e
se expunha primeiro; o que significa que se rivalizava então em coragem,
para não perder a estima diante de tantos rostos conhecidos. Lógica da
honra certamente ainda aqui: é-se corajoso para não perder seu prestígio e
seria vergonhoso fugir, desonroso recuar. Prefere-se sua imagem à sua vida,

27"A guerra é doce para os que não a fizeram" (1515), in Guerre et paix dans la pensée
d'Érasme, ed. cit. p. 135.
·rneira Parte - FORÇAS MORAIS 45
pri

porque o que nos sustenta não é somente o sangue que corre em nossas
veias, a vida que nos percorre, o que nos sustenta e nos anima é também a
nossa imagem no outro. Eis um primeiro cuidado do outro, mas é um cui-
dado negativo: cuidado do olhar do outro, quase alienação. Contudo mais
essencial é o cuidado de proteção, porque neste dispositivo abandonar o
terreno, deixar seu lugar, significava sem dúvida tentar salvar sua vida (com
0
risco da morte má, vergonhosa: uma flecha ou uma azagaia plantada no
dorso), mas sobretudo era ameaçar diretamente a vida de seu companheiro
da esquerda cujo flanco direito se acha então a descoberto. Daí a ideia,
estranha no fundo mas forte, imposta em todo caso pela imaginação dessa
batalha em fileira, de que se está prestes a morrer na guerra e a fazer morrer
por amor. Não por amor da pátria - malgrado o que querem bem dizer
as orações fúnebres de circunstância - mas por essa paixão de proteger seu
companheiro imediato. O que faz verdadeiramente manter-se firme a raiz
da coragem é o cuidado do outro. Há só uma paixão bastante poderosa
para enfrentar o medo: a solicitude.

Se pudesse haver um exército com amantes e seus amados, não poderia haver
para eles melhor organização do que a rejeição de tudo o que é feio e a emulação na
busca da honra. E se homens como estes combatessem lado a lado, por pouco nume-
rosos que fossem, eles poderiam vencer a humanidade inteira por assim dizer, pois
para um amante seria mais intolerável ser visto por seu amado num movimento de
deixar sua fileira ou de jogar fora suas armas do que pelo resto da tropa, ele preferiria
morrer muitas vezes antes que fazer isso. E quanto a abandonar seu amado no campo
de batalha ou não lhe prestar socorro quando está em perigo, ninguém é covarde
ao ponto em que Eros, ele mesmo, não chegue a lhe inspirar uma divina valentia a
ponto de torná-lo tão valente como quem o é por natureza. 28

A obsessão propriamente moderna da ordem fez perder essa verdade,


preservada por Platão, de que o que faz "manter-se firme" a raiz da cora-
gem é o cuidado imediato do outro, o cuidado do outro imediato: seu vizi-
nho de fileira que sua covardia poria a descoberto, oferecido aos dardos do

28
Platão, Le banquet, 178ª-179b, trad. L. Brisson, p. 97-98.
46 Estados de Violência

inimigo. Como obter essa coesão, como preservar essa união e essa ordem?
Amor da pátria, abnegação sacrificial? É precisamente bom para aceitar
heroicamente fazer-se matar, não para se manter juntos. Ordem e discipli-
na? Não existia preparação particular, nada que se assemelha aos exercícios
dos exércitos modernos, nada de aprendizado do automatismo cego. Não,
essa solidariedade viva, essa composição espontânea das forças, é a philia
(amor) que a provoca, a atrai e a alimenta. Nada então de mecânico, nada
que provenha da disciplina ou da opressão, da submissão a uma ordem; o
que faz ligação é o cuidado do outro, a urgência em protegê-lo. A obsessão
do cuidado do outro enquanto se revela mais insistente que a urgência para
preservar sua própria vida. Estranha lição ética da guerra.

Os hom ens, eu o sei hoje, não combatem por uma bandeira, um país, pelo ba-
talhão dos Marines ou pela glória ou por qualquer outra abstração. Eles combatem
um pelo outro.29

29
Citação de William Manchester em seu relato dos combates durante a guerra do pacifico
(Goodbye , Darkness, Nova York, 1979, citado por V. D. Hanson, op. cit. p. 161).
3
Obedecer

Ainda uma vez foi um sonho, uma forma ideal de guerra, uma imaginação con-
ceituai. Ela pode ser lida nas especulações dos teóricos militares do Antigo Regime,
dos grandes estrategistas do século XVIII, dos soldados filósofos das Luzes. É o sonho
de uma guerra perfeita, que se desenrola de maneira totalmente racional, conforme
um plano de batalha decidido de longe e de cima. Grandes movimentos, longas linhas
de soldados de infantaria se alongando, se posicionando em ordem, lançando har-
moniosamente salvas de anilharia regulares. O exército se dispersa e depois se reúne
segundo o gênio tático do general, se rearticula por manobras sábias. Os regimentos
de infantaria totalmente disciplinados dão a impressão de um enorme autômato per-
feitamente untado, forçando o sentido estético. "Nada era tão belo, tão lesto, tão
1
brilhante, tão bem ordenado como os dois exércitos." O exército se assemelha à
máquina em que os soldados seriam as engrenagens articuladas, as peças elementares.
Perfeição racional. Ele é um conjunto geométrico de pomos de força, uma combi-
nação proporcionada e racional de fogo e de choque. Um cérebro puro (o general)
combina as forças, calcula os impactos, centro nervoso deste monstro de fogo dócil.
Gigantesco jogo de xadrez em que os soldados seriam os peões passivos: "Ninguém
2
discute mas todo mundo executá'. O general não está mais na primeira fila com seus
homens, para lhes dar o exemplo. Ele é um puro espírito tático elaborando planos,
inteligência decisiva e preciosa que não é preciso expor ao fogo inimigo. Oposição
entre os soldados da infantaria das primeiras linhas, títeres atordoados e dóceis, recru-
tados na miséria do mundo e os oficiais discutindo na retaguarda. Os fermentos éticos
dessa "revolução militar" não são mais a honra e a coragem, mas o medo do superior
e a disposição automática. Tudo, nessa disciplina implacável, caminha para o terror
e não resta mais que se inebriar de disciplina, cair na hipnose da ordem automática,
mantida pelos rufares regulares do tambor e os sons estridentes das flautas .
*

1
Voltaire, Candide, cap. 3.
2
Frederico li, Testament politique.
48 Estados de Violência

Não se trata dessa vez mais de um mito (a cavalaria), nem de um mo-


delo (a falange de hoplitas), mas de uma utopia: a guerra perfeita, sábia e
racional. Ela foi trazida pelas Luzes, por grandes pensadores clássicos e su-
põe bem uma subjetivação ética, mas essa última, por razões evidentes que
se verão, em Filosofia será sobretudo denunciada e não exaltada. Contudo,
é um núcleo duro da ética: a obediência, aqui como obediência cega, auto-
mática, passiva. É preciso partir do que os historiadores puderam chamar,
não sem que essa designação provoque discussões e debates, de "revolução
militar no Ocidente". Quer-se por este termo compreender, descrever, de-
senhar o lento movimento que vem dos últimos combates de cavaleiros
(fim do século XV) até os exércitos antes nacionais depois mecanizados
do século XIX. A "revolução militar" designa abstratamente este espaço
entre o movimento que vai do torneio cavalheiresco à guerra técnica e
democrática. Mais precisamente, às vezes, a expressão recupera a formação
dos primeiros grandes exércitos modernos, estatais, permanentes a partir
do início do século XVII e remete a cerco número de mutações militares:
a massificação dos exércitos, o lugar preponderante tomado pela infantaria
à custa da cavalaria, o desenvolvimento da técnica das armas de fogo, um
novo modo de fortificação (o "traço italiano"), as mutações da arquitetura
naval (equipada com artilharia embarcada) etc.
A realidade militar do Ocidente, do século XV ao final do século
XVIII, não foi menos extraordinariament e dispersada, cambiante, diversa;
diversidade dos exércitos. Encontram-se exércitos de mercenários geridos
e comandados por empreiteiros de guerra (condottieri), vendendo-se ao
maior ofertante exércitos de profissionais recrutados, constituídos e pagos
por Estados forces, enfim às vezes até mesmo exércitos nacionais (como o
que constitui Gustavo II Adolfo, rei da Suécia, durante a guerra dos Trinta
Anos) ou somente um início de conscrição (as milícias reais sob Luiz XIV).
Diversidade também de formas de combate ao longo dos séculos: primei-
ro as formações cerradas de lanceiros suíços; depois os tercios espanhóis
conjugando, em grandes quadrados compactos os poderes do ferro e do
fogo; enfim a colocação a partir de Maurício de Nassau da "ordem fina"
(filas intermináveis, com algumas fileiras somente em profundidade, de
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 49

soldados de infantaria avançando em ordem e descarregando seus fuzis e


em cadência, com salvas regulares).
Em todo caso, além dessa profusão, a guerra da idade moderna é atra-
vessada por um processo contínuo de "racionalização", perfeitamente visí-
vel segundo três dimensões, o que será chamado aqui de intelectualização,
burocratização e disciplinarização da guerra.

Intelectualização (modelo italiano)

Além da profissionalização do soldado (constituição em numerosos


Estados europeus de um exército de "soldados de profissão" especializados,
afastado ao mesmo tempo do modelo cavalheiresco - o guerreiro pertence
a uma casta social distinta, uma aristocracia guerreira, especificada tanto
por uma capacidade técnica quanto por um código de conduta e por ri-
tuais de reconhecimento - e pelo modelo cidadão - alguém é soldado por-
que cidadão livre e reciprocamente, não em virtude de uma competência
adquirida), por "intelectualização" seria preciso entender este movimento
pelo qual a guerra é pensada sempre mais como fenômeno racional, obje-
to de saber e de ciência. A batalha não é mais então este momento sacral
dependente do julgamento dos deuses ou da história (como dizia Vegécio,
uma "jornada incerta que decide da sorte das nações" 3), ou essa ocasião
dada ao valor singular de brilhar com todo o seu brilho. A partir de uma
perspectiva nova, o segredo da vitória vai residir sempre mais numa ciência
que é preciso entender, numa técnica cujos princípios e regras é preciso
conservar no íntimo. Seja o exemplo clássico do "bom general". Embora
ele seja outra coisa e não um herói de ilustre memória, aureolado com a
narrativa de suas façanhas passadas ou um homem particularmente bem
nascido, de uma família renomada e de escola, o "bom general", cujo retrato
ideal certo número de tratados antigos tinha desenhado, é bem evidente-
mente uma figura de perfeição totalmente moral.

3
Les instítutions militaires, Livre Ili, chap. XI , ed. cit. p. 94 .
---- 50 Estados de Violência

A dignidade de general não deve ser um privilégio hereditário de família, como


o sacerdócio, nem o apanágio das riquezas, como o emprego de presidir aos espetá-
culos. Ela é devida às qualidades pessoais. Exige-se que um general seja continente,
, · [... ]4
· temperante, econom1co
so'b no,

Ora o "bom" strategos será sempre mais para a época moderna um ge-
neral instruído, brilhante, profissional, culto, letrado ... É o saber que se en-
contra requerido, mais que a honestidade, o nascimento ou a riqueza; saber
que toma de resto formas diversas e contraditórias. Para a tradição huma-
nista italiana, trata-se evidentemente da leitura dos Antigos. Da lembrança
aureolada de glória do poder de seus ancestrais, os italianos da Renascença,
abatidos pelas divisões internas e pelas invasões estrangeiras, politicamente
enfraquecidos, retiram a ideia de que os segredos que tinham permitido
tão vastas conquistas e uma supremacia total se perderam e que não se
trataria senão de reencontrá-los nos livros. Porque depois de tudo, aqui e
lá, ontem e hoje, em toda a parte e em todos os tempos, os princípios da
guerra são os mesmos. Durante um tempo ao menos (primeira metade do
século XVI), os progressos técnicos - desenvolvimento das armas de fogo
e de artilharia - pareceram a muitos constituir inovações secundárias, não
chamadas a transformar tão radicalmente a arte da guerra e que os Antigos
não teriam apresentado mais que um interesse anedótico, erudito, históri-
co, que eles teriam sido irredutivelmente ultrapassados. A única mudança
significativa aos olhos de muitos, nas transformações da guerra da época, é
a importância sempre maior - mas é um lento movimento que se desenha
desde o fim do século XIII - e para não dizer agora primordial, dos solda-
dos de infantaria. A experiência nova das batalhas mostrou que um "pelo-
tão" de piqueiros suíços - uma formação cerrada de soldados empunhando
lanças compridas - podia destruir de uma vez um ataque de cavalaria pe-
sada (como tinha acontecido com Carlos o Temerário em 1467). Ora essa
importância nova da infantaria - quando durante séculos, a infantaria não

4
Onosander, Stratêgikos (século primeiro depois de J.C.) citado por G. Chaliand, Antho/o-
gie, ed. cit. p.122.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 51

tinha jamais participado senão de maneira anexa, marginal e desprezível


das vitórias das guerras de cavaleiros (ver o desprezo de João de Bueil pe-
los infantes covardes e inúteis) - é muito evidentemente reconhecida na
organização militar dos Antigos romanos (para não remontar às falanges
gregas), que logo se tornam mais atuais e até em certos aspectos profetas
da modernidade. Desde então a Antiguidade não designa mais para os
chefes de exército um período ultrapassado aquilo com que reconstruir
o presente. Pela constituição do Império, os Romanos mostraram que ti-
nham descoberto estes princípios da guerra e basta sem dúvida relê-los para
redescobri-los. Acham-se essa admiração e esse programa na Arte da guerra
de Maquiavel, erigidos em sistema. Encontra-se a mesma admiração em
Justo Lipse que nos livros de sua Política sobre a guerra e o exército parti-
cipa da veneração por esses "verdadeiros mestres da arte da guerra" (ver seu
Quinto Livro consagrado à apresentação por Políbio da "rnilitia romana').
Para ir avante, é preciso mergulhar de novo na leitura dos Antigos e o bom
general deve ser alimentado de Vegécio e de Tito Lívio.
Essa proposição sem dúvida do general erudito e letrado não com-
porta uma adesão universal, certo anti-intelectualism o presente em mui-
tos superiores para quem nada substitui a experiência do "terreno", a
percepção intuitiva do valor dos homens e das ocasiões oferecidas (por
exemplo a frase tão repetida do general prussiano Verdy du Vernois: "De
que se trata?"). A oposição do guerreiro e do clérigo, da ação e da contem-
plação, da espada e da pena é forte. E contudo o que se torna "moderno"
é pensar a complementaridad e da cultura e das armas, que se apoia na
referência a César ou mesmo a Alexandre. A tentação de um recurso aos
Antigos para esclarecer as aporias do presente continuará obstinada. Para
ultrapassar o bloqueio tático das batalhas frontais em terreno descoberto
(na idade clássica, finas e intermináveis linhas de infantes se enfrentam
em centenas de metros e se disparam tiros, cada uma marchando len-
tamente e regularmente contra a outra - fuzilaria recíproca mortífera
para os dois campos e batalhas sem decisão), o cavaleiro de Folard quer
reintroduzir a coluna ofensiva depois da leitura de Políbio. Frederico II,
para reintroduzir os órgãos de decisão, encontra a "linha oblíqua" inspi-
.
52 Estados de Violência

5
rando-se em Epaminondas o Tebano nas batalhas de Leuctros e Matina.
Em 1587, Francisco de La Noue (Discurso político e militar) exprime a
necessidade de escolas, de "Academias" para educar, instruir, formar os
jovens nobres chamados a comandar exércitos. Ele pede que eles sejam
alimentados com leitura dos Antigos, exige mais ainda: uma verdadeira
formação científica. Eles deverão aprender estas ciências tão úteis ao sol-
dado: Aritmética, Geometria, Geografia, Arquitetura (isto é geralmente as
"matemáticas" como ciência das medidas e das quantidades) etc. A mas-
sificação dos exércitos supõe conhecimentos aritméticos, quando se trata
de dispor dezenas de milhares de infantes segundo as figuras escolhidas
(quadradas, retangulares ou linhas) , de os enfileirar respeitando boas dis-
tâncias. Os progressos técnicos das armas de fogo e de artilharia se reve-
lam determinantes. Então a batalha deve combinar o mais eficazmente
possível o embate e o fogo - o fogo para manter o respeito, enfraquecer à
distância, o embate para desbaratar o exército inimigo, conseguir a deci-
são. Para isso, é preciso proporcionar resultados, calcular ângulos de tiro,
medir trajetórias, antecipar movimentos, operar manobras ...
O comandante chefe não é mais, como para a falange hoplítica ou a
guerra de cavaleiros, o que dá na primeira fila o exemplo, mas armado de
um plano de batalha, dá ordens e calcula posições. E se a guerra é subme-
tida a leis e a regularidades, deve-se poder induzi-las da experiência das
batalhas. É preciso, segundo Montecuccoli (Memórias, redigidas nos anos
1670), inspirar-se em Galileu, em seu método experimental, para fundar
uma "ciência total" da guerra. O exército é pensado então como uma má-
quina imensa, um autômato desmesurado do qual o general é a alma ou
antes o cérebro. Essa máquina deve, para avançar em coesão e desenvolver
o máximo de força eficaz, ter sido ordenada segundo a ciência do arranjo
melhor possível de suas partes.

5
E, bem mais tarde, dir-se-á de Schlieffen, a propósito de seu plano de invasão da França
pela Bélgica, que ele tinha querido em 1914 reproduzir o movimento envolvente da batalha
de Cannes, golpe de gênio de Aníbal.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 53

Um exército é uma máquina móvel destinada a executar todos os movimentos


militares. Essa máquina, assim como as outras, é composta de diferentes partes e sua
perfeição depende da boa constituição de cada uma destas partes, tomadas separada-
mente e do bom arranjo entre elas. Seu objetivo comum deve ser reunir estas três pro-
priedades essenciais: a força, a agilidade e uma mobilidade universal. Se a combinação
de todas as partes produz este efeito desejado, pode-se dizer que a máquina é perfeita;
é preciso tomar cuidado de que uma destas propriedades não aumente à custa de uma
6
das outras duas, mas que ao contrário o conjunto apresente uma justa proporção.

E essa máquina, este nó de forças, essa combinação de embate e de


fogo, no encontro mecânico de um exército inimigo, articula-se num espa-
ço determinado, ocupa posições, desloca-se, segue trajetórias, deve recom-
por a ordem de seus elementos e se reorganizar conforme arranjos precisos.
Pela geometria, a batalha chega à transparência de sua própria verdade. No
prefácio de sua Arte da guerra, por princípios epor regras (publicada em 1749
por seu filho), o marquês de Puységur queria "mostrar que sem guerra, sem
tropas, sem exército e sem ser obrigado a sair de casa, só pelo estudo, com
um pouco de geometria e de geografia, pode-se aprender toda a teoria
da guerra de campanha". 7 Na mesma obra, ele explica que "a prática nos
exércitos é formada pelo estudo de uma teoria, fundada em princípios de
geometria, que consistem numa comparação de forças moventes que agem
uma contra a outrà'. 8 É preciso contudo dizer que a guerra clássica parece
depender nesse ponto de uma ciência e de uma técnica, mais que do valor
ou da fé dos guerreiros e é também que ela consiste mais frequentemente

6
H. Lloyd, De la composition des différentes armées, 1780, citado por G. Chaliand, Antho-
logie, ed. cit. p. 711 .
7
Art de la guerre par príncipes et par regles, Paris, C. A. Jombert, 1749, 1, p. 2.
ª lbid., li. p. 119. Essa geometrização da guerra permitirá ainda a emergência do conceito
em Lloyd de "linha de operações" - que se reencontrará a seguir em Jomini, herdeiro das
Luzes, quando pensará poder resolver o segredo das vitórias napoleónicas referindo-as a
princípios geométricos puramente racionais (cf. as linhas interiores)- ou em Bülov (tão cri-
ticado por Clausewitz ), que levará mais longe a geometrização dos conflitos em seu Esprit
du systeme de guerre moderne (1799).
9
Cf. a declaração de Vauban em sua Mémoire pour servir d'instructíon dans la conduite des
sieges e dans la défense des places, Leyde, J. & H. Veebeck, 1740, p. 4: "A guerra que se
faz pelos cercos expõe menos um Estado e assegura bem melhor as conquistas; também
é a que é hoje a mais praticada" (citado por B. Colson, L'art de la guerre ... ed. cit. p. 96).
54 Estados de Violência

em guerras de cerco. 9 Tratava-se então de defender uma cidade ou de sitiar


um lugar fortificado. Como tomar uma cidade? Cavando túneis, estabe-
lecendo cuidadosamen te, metodicament e cinturões de trincheiras que se
aproximam do muro de defesa. Como se entrincheirar eficazmente numa
fortaleza? Cercando-a com um muro de defesa sabiamente disposto, para
permitir ângulos de tiro cruzados. Todo Vauban* encontra-se aí: a guerra é
negócio de técnicos e de engenheiros. Daí as representações pictóricas do
general que se mostrará cada vez mais armado com o compasso, com régua
e mapas, mais do que com um volume de Vegécio ou de Frontin. O exér-
cito chega à sua compreensão a partir de uma física das forças mecânicas, a
batalha à sua verdade a partir de uma geometria das linhas e das posições.
A guerra, porém, como fenômeno total, deverá ainda englobar um grande
número de fatores: a cultura do inimigo, o objetivo político, a moral dos
homens, o ambiente internacional. E tudo isto brotará de uma ciência
superior, de um saber "sublime" (no sentido em que os teóricos da épo-
ca distinguiam o "detalhe" do "sublime" da guerra), de uma combinação
generalizada dos fatores físicos, morais, geográficos e culturais, políticos
e históricos. 10 Este cálculo transcendente, Joly de Maizeroy o chamará de
"dialético", no sentido platônico de uma ciência superior elevando-se até
aos princípios dos princípios ou o que ele chama ainda, redescobrindo o
velho termo bizantino, de "estratégià'. Definitivamen te, a ciência substitui
a moral: deve-se confiar no gênio, na capacidade de cálculo, na intuição do
general, mais do que em sua bravura própria para inspirar seus companhei-
ros de armas. Em Frontin, o termo "estratégia" designava ainda a grandeza
moral do strategos: "Todos os atos de um general caracterizados pela pre-
visão, a vantagem obtida, a grandeza de alma, a firmeza, são considerados

*Nt. Sébastien Le Prestre, senhor de Vauban, engenheiro militar, 1633-1707, publicou Projeto
de dizimo real- Petit Larousse.
10
"Fazer a guerra é refletir, combinar ideias, prever, raciocinar profundamente, empregar
meios: destes meios, uns são diretos, os outros indiretos; estes últimos são em tão grandes
números que encerram quase todos os conhecimentos humanos", Joly de Maizeroy, Théo-
rie de la guerre, 1777, citado in Dictionnaire de stratégie militaire, ed. cit. p. 385.
11
Les stratagémes, Livre 1, Préface, trad; P.Laederich, ed.cit. p. 49 .
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 55

como vindos da estratégia" .'1 No século clássico, o termo designa a ciência


abstrata do combate. 12 Ainda uma vez, esse processo de intelectualização
da guerra continua a se apresentar ao ceticismo de alguns, para quem é
atribuir valor demais a uma necessidade matemática que não se encontra
jamais no terreno, em que tudo depende sempre de condições particulares
e onde a parte determinante é dada à improvisação, ao efeito de surpresa,
em que a escolha decisiva depende, mais que de um cálculo abstrato, de um
gênio pessoal e sem regras, de uma sólida experiência ou de uma capacida-
de em perceber com um só golpe de vista o que é preciso fazer aqui, agora,
e somente aqui e agora. Persiste o fato de que essa racionalização da guerra
ou antes sua espiritualização no elemento do entendimento, sua intelec-
tualização, seu matematismo, tudo isso enfim levou ao tema de uma "arte
da guerrà' depois do qual ela deixaria de ser o desencadeamento brutal das
paixões grosseiras e animais para ser pensada como uma pura virtuosidade
do espírito: esporte requintado dos reis, orquestração sábia por sutis ofi-
ciais, jogo delicado de xadrez. De fato, ao longo de todo o século XVII,
depois das devastações sombrias da guerra dos Trinta Anos e das guerras de
Religião, as novas guerras ganharam em humanidade. As grandes ofensivas
mortíferas eram menos frequentes, decididamente muito custosas para os
dois lados. Preferiam-se longos cercos ritualizados ou intermináveis movi-
mentos de esquivas, pelos quais se recusa à batalha cansando o inimigo.

Contudo de que [o general] deve se ocupar é de observar a capacidade do inimi-


go, os movimentos que faz, aonde leva suas tropas; procurar causar-lhe inveja num
lugar, para obrigá-lo a dar um passo falso; desconcertá-lo [... ] Contudo eu não sou
pelas batalhas, sobretudo no começo de uma guerra: e estou persuadido de que um
general pode fazer guerra em toda a sua vida, sem se ver obrigado a isso [... ]. Pode-se
fazer a guerra, sem nada deixar ao acaso; e está aí o ponto mais alto da perfeição e da
habilidade de um general. 13

12
E o general Poirier falará bem mais tarde de "estratégia integral" para designar a lógica
de uma guerra que não se reduz à batalha mas se inscreve num quadro histórico-cultural
amplo, no sentido também em que a guerra serve sempre mais de grade de leitura para
toda lógica da ação (in La guerre totale, ed. cit. p. 119-131 ).
13
Maurice de Saxe, Mes rêveries, Livre li (Oes parties sublimes), cap. 15, ed. cit. p. 223.
56 Estados de Violência

Sobretudo não procurar sistematicamente o afrontamento: inútil e custoso.


A guerra se constrói por séries de cuidados, de bloqueios táticos, de manobras
dilatórias. Antes neutralizar, imobilizar, impedir e incomodar, provocar ou irri-
tar e nada de destruir, exterminar, aniquilar. 14 Daí a lenda, por saudade depois
da fi.íria das guerras napoleônicas, da "guerra em rendas"*: "Senhores ingleses,
atirai primeiro" (Maurício de Saxe na batalha de Fontenoy). Um belo golpe,
uma manobra elegante, é levar o adversário a reconhecer seu fracasso com o mí-
nimo de perdas. Um pouco como no jogo de xadrez em que o alvo não é fazer
o outro perder o mais possível de peças, mas imobilizar seus movimentos. A arte
da guerra a faz escapar das lógicas brutais do massacre; por sutis movimentos de
tropas, alcançam-se vitórias sem carnificina. Pôde-se mesmo definir a arte da
guerra na Enciclopédia como arte de "administrar as vidas humanas". O marquês
de Puységur dá a fórmula:

A perfeição a que se levou a arte de atacar hoje e de defender os lugares; o pequeno


número de pessoas que perdemos nos ataques, em comparação com o que se perdia outrora
e o pouco tempo que se emprega, são tantas provas convincentes de que se aperfeiçoasse do
mesmo modo a guerra de campanha, não aconteceriam tantos combates horríveis e muitas
vezes muito inúteis para o sucesso do que se tinha empreendido; que por conseguinte se
15
evitaria mandar matar mais homens do que destruição a feita pela falta de ciência.

É a grande lição das Luzes: uma guerra sábia é uma guerra racional,
humana e moderada.

Burocratização (modelo francês)

Entenderei por "burocratização" o movimento de envolvimento do


exército numa racionalidade estatal. Mais mesmo que envolvimento, é de
penetração que seria preciso falar: o exército é pensado hoje mais como uma

14
Não se está mais perto da L ·art de la guerre de Sun Tzu: "o grande capitão submete os
exércitos sem combate", cap.111. ed. cit. p. 59 .
*N.T. A guerra no século XVIII, Dictionnaire Le Petit Robert
15
Marquis de Puységur, L'art de la guerre, li, p. 135, citado por B. Colson, in L'art de la
guerre ... ed. cit. p. 151 .
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 57

administração. Com isso se põe o problema, mais geral, da relação entre a


guerra e o Estado, entre a instituição militar e a instituição estatal. Os histo-
riadores da "revolução militar" quiseram sublinhar uma notável coincidência
entre a emergência do Estado moderno e as mutações profundas que afetam
a maneira ocidental de conduzir as guerras. De fato, com o desenvolvimento
das armas de fogo e da artilharia, com a massificação dos exércitos, torna-se
sempre mais evidente que só um Estado pode dispor de recursos suficientes
para constituir e manter um exército de profissionais que é preciso formar,
instruir, disciplinar. E destes recursos o Estado não poderá dispor senão im-
pondo a seus administrados uma fiscalização durável e consequente, consti-
tuindo entre ele e seus governados uma relação administrativa obrigatória,
contínua, geral: o imposto. O Estado moderno, em seu ponto de origem, é
certa regularidade de imposto e uma continuidade do exército. No cruza-
mento dessa dupla relação financeira e militar, em sua permanência mesma,
funda-se a necessidade de um Estado centralizado. É um primeiro aspecto
das coisas. Para esses exércitos que englobam continuamente dezenas de mi-
lhares de homens, os problemas de administração se tornam absolutamente
cruciais. É preciso opor ao inimigo soldados bem nutridos, corretamente
vestidos, cavalos bem tratados, uma artilharia cuidada. A guerra, nessas con-
dições, ganha-se primeiramente nas cozinhas, nos estábulos e nas rouparias.
Os maiores homens de Estado como os estrategistas responsabilizam-se por
este ponto: os primeiros inimigos são a falta de pão ou de cobertores, for-
ragem ou abrigos, isto é "munições" no sentido em que se designa por esse
termo tudo o que a administração real fornece ao exército, armas e víveres.

A fome é mais cruel que o ferro e a penúria arruína mais exércitos do que as ba-
talhas: pode-se encontrar remédio para todos os outros acidentes ; mas não há para a
falta de víveres. Se eles não foram preparados a tempo, já há derrota sem combater. 16

16
Montecuccoli, Mémoires, Paris, d'Espilly, 1746, p. 62-63, citado por B. Colson, in L'art
de la guerre ... ed. cit. p. 108. Cf. também: "Encontram-se na história muito mais exércitos
reduzidos por falta de pão e de polícia(= administração) do que pelo esforço dos exércitos
inimigos", Richelieu, Testament politique (1689), ed. cit. p. 340-341 .
--- Estados de Violência
58

Conduzir batalhas supõe doravante urna logística formidável e sem falha.


O exército apresenta problemas de administração antes que de estratégia. Além
do general que decide os movimentos das tropas, um exército deve ser munido
mais perto de administradores, gestores, intendentes. 17 E essa introdução de uma
lógica administrativa no coração dos exércitos não se faz sentir só no nível da
manutenção. É necessária uma conta exata dos soldados aptos para saber de que
forças exatas um general dispõe; é necessária uma avaliação precisa da forragem
necessária para os cavalos, da quantidade de pão e de carne para os homens (de-
terminar urna "ração"); é preciso conhecer de maneira exata e exaustiva o número
de canhões e a quantidade de pólvora de que se dispõe; é preciso saber dividir o
espaço nacional em divisões territoriais às quais correspondem regimentos, ter
um conhecimento geográfico preciso de um espaço ocupado, com toda urna
ciência, dessa vez, de compartimentagem. Controle das pessoas, recenseamento
dos bens, compartimentagem dos setores: toda urna lógica administrativa está
em ação na condução de urna guerra moderna, lógica que o exército não inventa,
que ele importa, como o próprio Estado a tinha importado, 18 mas à qual ele im-
prime certa marca, um estilo determinado que em retorno informará o Estado.
Ainda mais, o exército acentua, apura, aprofunda a lógica administrativa: por
exemplo, as passagens em revista e o controle estrito dos recrutas (para evitar a
prática dos figurantes de soldados 19 realizam, além do simples recenseamento
das tropas, a prática das "descrições" de pessoas. É que os recenseamentos, re-

17
Os negócios de guerra , a partir de Luís XIV, dependem de um ministério especializado,
de um secretariado da Guerra, assumido por Michel le Tellíer depois por seu filho , o mar-
quês de Louvais. Este último escrevia em março de 1664: "não basta ter muitos homens,
é preciso que sejam bem formados, bem vestidos, bem armados" (citado in F. Gere, Dic-
tionnaire de la pensée stratégique, ed . cit. p. 165). Ele cria a ordem do quadro (sistema
de avanço que integra o critério da antiguidade), estabelece uma estrita disciplina e uma
uniformização das tropas, institui uma inspeção regular destas últimas, monta "armazéns"
de víveres e de munições abastecidos e controlados, na proximidade das fronteiras.
18
As paróquias, os hospitais, as universidades e as prisões sabem desde sempre manter
registros de suas populações, a burguesia comerciante aprendeu desde muito a fazer o
inventário de seus estoques, avaliar suas necessidades futuras e as cidades sabem como
estabelecer a setorização de seu espaço em caso de epidemia ou de catástrofe.
19
Indivíduos chamados soldados figurantes a quem um sargento pagava uma pequena
quantia de dinheiro, exatamente para figurarem como soldados no momento da revista ,
a fim de poder justificar o soldo inteiro de um soldado de infantaria, prática que introduzia
sempre uma diferença entre os efetivos "no papel" e os "em campo".
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 59

quisições, contagens são marcados na ordem militar com o cunho da necessi-


dade vital e da mgência. Não se □"ara de notar na véspera que falta pólvora para
os canhões e que os soldados não estarão corretamente alimentados. No todo,
a administração militar representa três intervenções decisivas, elas informarão
a administração civil em retorno. Primeiramente, um sentido determinado da
centralização: as decisões não se tomam senão no ponto mais alto da hierarquia
e distingue-se uma minoria restrita dos que decidem duma maioria extensa de
simples executantes. Em segundo lugar, certa ideia da hierarquia, o tema de uma
escala graduada, de uma tomada de consciência social de si como certo grau
ramado entre o inferior e o superior, cada escalão remetendo a competências
estritamente determinadas, a passagem de um grau a um outro operando-se de
maneira absoluta. Em terceiro lugar enfim, a imposição de uma uniformidade
completa. Porque é preciso que de um regimento a outro, as regras e a disciplina
sejam as mesmas, que todos tenham recebido uma mesma formação, passado
pelo mesmo treinamento, a fim de assegurar a harmonia no campo de batalha,
que as ordens possam ser, rapidamente e em todo o corpo do exército, trans-
mitidas e compreendidas, quaisquer que sejam os particularismos provinciais,
que os homens sejam identificáveis por seu uniforme, que as hierarquias estejam
integradas, que se estabeleçam costumes comuns. Este processo de uniformiza-
ção, tão essencial para o exército, estava amplamente em prioridade a respeito da
unidade e da identidade nacionais. Ele constitui a promessa formal. Estas três
dimensões surgem de imperativos absolutos e vitais de ordem no exército, sem
o que ele correria o risco de ser derrotado nos primeiros momentos do combate.
Contudo, elas darão, por efeito de retorno, à administração civil um estilo: certa
dureza no centralismo das decisões, um estrito respeito das relações hierárquicas,
uma homogeneidade forte da maneira de ser.20

20
Essa estilização militar da administração civil é plenamente visível e posta às claras na subs-
tituição de uma administração civil por uma administração militar (em caso de ocupação de
um território ou estado de urgência), seja por ocasião da ocupação pelos militares de uma
administração (países colonizados), seja por reprodução perfeita do modelo militar nas relações
civis (militarização do Estado denunciada por Mirabeau na Prússia de Frederico li, quando ele
escreveu em 1788: "A Prússia não é um Estado que possui um exército, mas um exército que
ocupa um Estado", citado por J.Cornette, "Naissance de l'armée moderne" (Nascimento do
exército moderno), in L'histoire, "Les hommes de la guerre", julho-agosto de 2002 , n. 267, p. 39.
60 Estados de Violência

Essa racionalização administrativa do exército finalmente funcio-


nou nos dois sentidos. Como processo de estatização do exército que
se torna uma instituição como qualquer outra, com suas carreiras, seu
"quadro de promoção", suas escolas de formação para os quadros, seu
sistema precursor de pensões de aposentadorias e de instituições sociais
de acolhida aos inválidos. E é preciso recordar o que essa introdução
de um espírito civil no exército pôde ter de regulador, de moderador.
A vida do soldado não se resume mais à batalha. Há um antes e um
depois, uma vida feita de exercícios, de treinamentos, mas também de
sociabilidade e de cultura: o momento em que o soldado se bate repre-
senta uma pequena parte de sua existência; mas também como processo
de militarização do Estado, como se vê na dureza de seu processo de-
cisório, mas também na exaltação de um espírito de sacrifício, de um
ideal de devotamento e de obediência de seus altos funcionários.

Disciplinarização (modelo prussiano)

Esses imensos exércitos, combinando em proporções sábias o em-


bate e o fogo, executando manobras hábeis próprias para dissuadir e
desencorajar o adversário antes mesmo de encetar o combate, exigem
da parte dos homens que os compõem uma disciplina perfeita. É a pa-
lavra-mestra repetida por todos, de Maquiavel a Frederico II passando
por Maurício de Saxe.

Os Antigos nos fornecem uma multidão de exemplos que atestam que com uma
boa disciplina fazem-se bons soldados em todo o país; ela supre os defeitos da natu-
reza e é mais forte que suas leis [... ]. A natureza faz poucos valentes: eles são devidos
mais frequentemente à educação e ao exercício. A disciplina vale mais para a guerra
do que a impetuosidade. 21

21
Maquiavel, L ·art de la guerre (1521 ), Livre I e VII, trad.T. Guiraudet, ed. cit. p. 76 e 250.
A penúltima máxima (é o caso para muitos) é inteiramente copiada de Vegécio (Livre 111,
cap. XXVI, "Maximes générales de la guerre", ed. cit. p. 121; estas últimas se encontrarão
repetidas sem referência por toda a idade clássica).
Parte - FORÇAS MORAIS 61
pri·rneira

Depois da criação das tropas, a disciplina é a primeira coisa que se apre-


senta. Ela é a alma de todo o gênero militar. Se ela não é estabelecida com
sabedoria e executada com uma firmeza inabalável, não se poderia contar em
ter tropas: os regimentos, os exércitos não são mais que uma vil populaça
armada, mais perigosa para o estado que os próprios inimigos [... ]. Não é
preciso crer que a disciplina, a subordinação e essa obediência servil aviltam
a coragem. Sempre se viu que, quanto mais a disciplina foi severa, mais se
22
executaram grandes coisas com as armas, nas quais ela estava estabelecida.
Essa "disciplinarização" estrutura a ética do soldado. Além dos planos
sábios de generais que organizam a batalha como um gigantesco plano,
além da gestão administrativa do exército que assegura sua manuten ção,
persiste a motivação moral, o problem a do que poderá sustenta r o soldado
confront ado com o fogo e com o embate adversários. A resposta aqui é
dara em sua enunciação e ambígua em seu conteúd o: a disciplina, pois a
referência antiga vem aí fazer exatame nte pano de fundo esconde ndo, sob
a solenidade da imprecação, uma doação ética nova. Ao ler Justo Lipse, em
seus livros da obra Política consagrados à guerra (5 e 6), ou O tratado da sa-
bedoria de Charrro n (III-3), o soldado deveria encontrar-se pela disciplina
mais próximo do sábio estoico: domínio de si e ordem moral.
Esse neoestoicismo de fachada mascara contudo a realidade de uma
disciplina como docilidade dos corpos e obediên cia automática. A distân-
cia da disciplina estoica para a invocada para ordenar os exércitos moder-
nos é a mesma que separa o sábio do "homem -máquin a", o filósofo consu-
mado do boneco articulado. Está aqui a referência ao exército romano, a
23
releitura de Vegécio ou de Flávio Josefo que organiza a confusão.
A referência romana nos estrategistas clássicos é a importân cia dada aos
exercícios, repetidos todos os dias e por todos, e o esforço para os aproximar

p. 154.
22
Mes rêves, Livre 1(Oes partias de détai~. cap. 8, "De la discipline militaire", ed. cit
É preciso dizer também que em Roma, sob o mesmo nome de milítía romana , passou-se
2.!l
e um
do exército republicano de cidadãos-camponeses unidos por uma sólida ambição
- ao
mesmo amor da terra - manejando indiferentemente como Calão o arado e a espada
de provincian os e de mercenári os, mais indiferente s
imenso exército imperial , composto
com o destino longinquo das fronteiras mas retidos por treinamentos rigorosos.
62 Estados de Violência

ao máximo do combate real a fim de que o soldado não se deixe impressionar


pela surpresa ou pelo medo, mas reaja ao perigo com o automatismo adquiri-
do durante as experiências, executando gestos cem vezes repetidos. 24
É também a ideia de coesão e de ordem: o gosto da cadência, da unifor-
midade nos gestos e nas posturas. A revolução militar em seus aspectos de
inovações técnicas (desenvolvimento e evolução das armas de fogo - arcabuz,
pistola, fuzil - exigindo uma técnica de carregamento e de tiro) havia feito
valer o poder de uma racionalidade que era bem outra coisa que um símbolo
da perfeição moral, sob as figuras da harmonia e da ordem. A necessidade
de automatismos incorporados por exercícios regulares e de uniformidade era
bem mais imperativa, com um grau de exatidão, de precisão, de coordenação
requeridas extraordinariamente mais elevado, quando era preciso que milhares
de dedos apoiassem simultaneamente sobre o gatilho, pousando um joelho no
chão, enquanto outros no mesmo momento carregavam de pólvora a cula-
tra de seus fuzis em cadência, para obter no final salvas eficazes, regulares. A
precisão e a coordenação mecânicas dos gestos de guerra que se exigiam iam
bem além da marcha ordenada de infantes se deslocando, respeitando seus
intervalos para oferecer ao inimigo um muro contínuo de escudos. São dois
estilos irredutíveis de racionalidade: a racionalidade do embate e a do fogo. A
racionalidade antiga do embate frontal e do corpo a corpo que lhe sucedia (a
espada constituindo como que o prolongamento do braço) ficava imediata-
mente sensível naquele que se batia. A disciplina consistia simplesmente em
sentir a coesão unida dos corpos marchando ao mesmo ritmo. 25 O exercício

24
"Seus exercícios não têm menos exigências que os combates reais: cada soldado treina
diariamente usando toda a sua energia, como se estivesse na guerra. Também suportam
o combate com a maior facilidade. Nenhuma desordem desvia sua formação habitual, ne-
nhum medo os paralisa, nenhuma fadiga os esgota; resulta uma certeza constante de vitó-
ria contra adversários que não estão nunca em seu nível. Não se enganaria quem dissesse
que suas manobras são combates sem efusão de sangue e seus combates manobras com
efusão de sangue", Flávio Josefa, La guerre des Juifs, cap. V, trad. P. Savinel, citado in G.
Chaliand, Anthologie, ed. cit. p. 119.
25
"A primeira atenção deve ser acostumar os novos soldados ao passo militar; pois nada
é mais importante, numa marcha ou numa ação, do que conservar a igualdade dos movi-
mentos entre os soldados: o que não se pode fazer senão exercitando-os continuamente a
marchar depressa e no mesmo passo", Vegécio, cap.lX, "Que é preciso exercitar os novos
soldados no passo militar", ed. cit.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 63

servia para tornar essa solidariedade familiar, para vencer o medo também por
uma impressão do já vivido. O entusiasmo, certo "vai por si" eram compreen-
26
didos e tinham sua parte no poder do embate.
Em contrapartida, a racionalidade do fogo imposta pela revolução
militar é uma racionalidade exterior, ela não é mais imposta só pela com-
posição de corpos, mas depende de cálculos físicos: cálculos de trajetórias
e de posições, de ângulos de tiros. Ela não é mais o efeito da conjugação
imanente dos braços e das pernas. Desde então, ao soldado não se pedem
senão vigilância cega e mínima dos automatismos e dos hábitos, a obediên-
cia irrefletida: que ele atire quando se lhe pedir, que opere uma manobra à
direita, à esquerda quando se lhe pedir, que se volte etc. Já que a havia sido
pensada como ciência, a batalha como objeto de cálculo físico, o exército
como máquina, então não se podia mais pedir ao soldado senão que fosse
a engrenagem passiva dessa gigantesca equação e que não consagrasse suas
faculdades morais senão à obediência cega, absoluta àquilo que lhe era
ordenado e cuja razão última não podia perceber. E talvez, nessa inércia
mesma, pudesse haver alguma coisa como uma ebriedade difusa, um sen-
timento de abandono a uma necessidade superior, invisível e longínqua, o
espírito influenciado pelos sons estridentes das flautas, a cadência hipnóti-
ca dos tambores, sem falar dos odores sufocantes de pólvora e das fumaças
espessas. Doce excitação da obediência: somente dobrar-se cegamente às
ordens, deixar o corpo executar docilmente movimentos automáticos re-
petidos centenas de vezes. A este soldado de profissão se lhe pedia menos
ser corajoso que dócil. De todas as maneiras, em caso de vitória, é a inteli-
gência do estrategista que se acha consagrada mais que o valor das tropas.
Obediência irrefletida e cega, tanto mais acessível a esses profissionais
dos campos de batalha e dos cercos do que as injunções das guerras de
então (querelas dinásticas, velhos negócios de herança, políticas de glória e

26
É precisamente esse poder ofensivo do choque que o cavaleiro de Folard quererá en-
contrar propondo a "coluna" contra a ordem rarefeita : uma coluna espessa e compacta
que tomaria depressa as salvas de artilharia regulares e iria desbaratar, destruir as linhas
adversárias.
64 Estados de Violência

de ameaça, equilíbrio instável dos poderes, busca de uma bela vitória para
os oficiais superiores) não concerniam jamais a não aos príncipes, tão dis-
tantes para eles quanto o plano geral de batalha do qual não viam nada. De
tudo isto, eles estavam afastados, como se dirá do operário e do produto
de seu trabalho.
O exército moderno, como o de Frederico II da Prússia, deverá então
dispor de regulamentações draconianas. A vida do soldado será feita de
adrestramentos, de exercícios incessantes e de punições. Se a coragem e a
honra tinham constituído os dois núcleos duros da ética antiga da guerra,
são substituídos pelo hábito e pelo medo do superior. Tudo aí funciona com
automatismo e com o terror. Nada há outra coisa que possa fazer avançar: só
a inércia dócil do corpo alquebrado pelos exercícios e o pânico da hierarquia
na base de regulamentos ferozes (as "pauladas" alemãs).

Faz-se o soldado virar à direita, à esquerda, levantar o bastão, apontar a arma,


atirar, aumentar o passo, lhe dão trinta bastonadas; no dia seguinte ele faz o exercício
um pouco m elhor e só recebe vinte bastonadas; um dia depois só lhe dão dez e é visto
por seus cam aradas como um prodígio. 27

E se há um sentimento impossível de ser achado nesses soldados é o do


impulso, o da fé, o do entusiasmo patriótico. O soldado está separado da
jogada militar e essa ausência excitará em breve a ironia mordente de um
Voltaire, mas também a saudade em um Rousseau dos sacrifícios heroicos
feitos pelos soldados à mãe adotiva, e as visões proféticas de um Guibert. 28
Todo um sentido da disciplina se acha fixado como condição ética da
revolução militar, decididamente bem afastado do estoicismo ostensivo.

27
Voltaire , Candide, cap. 2.
28
"Ele (o Estado futuro) terá uma milícia vigorosa, superior à de seus vizinhos , cidadãos
felizes interessados na defesa dessa prosperidade. É com salariados, com tropas consti-
tuídas como estão hoje todas as da Europa , que se irá atacar tais homens? Que diferença
os motivos e os preconceitos trarão na coragem dos dois partidos! Se enfim, malgrado sua
moderação, é ofendido em seus súditos, em seu território, em sua felicidade, o Estado fará
a guerra. Contudo, quando a fizer, será com todos os esforços de seu poder", Essai general
de tactique, ed . cit. p. 149.
..,,,eira Parte - FORÇAS MORAIS 65
Píl•"

Sob a mesma aparência de ordem e de coesão, entre o sábio senhor de


suas paixões e o soldado teleguiado, há a mesma diferença que entre uma
obrigação interior e uma pura conformidade exterior. O exército moder-
no inventa a obediência cega, mecânica, passiva. E quando Foucault, em
Surveíller et punir (Vigiar epunir, capítulo "Os corpos dóceis") descreve o
uso de um poder disciplinar tal que não exige mais somente sinais exterio-
res e visíveis de submissão (joelho no chão, olhar abaixado), mas modela
os comportamentos segundo gestos de humildade internos, atravessando
os corpos, ele sorve o essencial de seus exemplos nos manuais de forma-
ção dos exércitos. Objeto das disciplinas: por uma aplicação sustentada e
constante, analítica e profunda, obter um corpo obediente e útil. Técnica
das disciplinas: formar os gestos em seus detalhes, decompor o tempo em
instantes separados aos quais se faz corresponder uma operação precisa,
fixar uma medida determinada para os deslocamentos, para a marcha, para
os movimentos do corpo (levantar um braço, estender uma perna). Re-
sultado: um efeito de ordem e de harmonia prodigiosa e sobretudo uma
majoração enorme das forças nos campos de batalha.
O sentido da guerra não pertence decididamente mais àquele que a
faz. O soldado não está ligado aos objetivos da guerra a não ser de ma-
neira puramente exterior e constrangedora, um pouco como o súdito do
rei aos alvos do Estado monárquico (ele conhece as taxas e os impostos,
os castigos e as medidas de exceção). Recrutado nas ruas da miséria por
um sargento hábil, dissimulador ou conscrito, forçado e resignado ou
mercenário cínico, o soldado do Antigo Regime em sua maioria se bate
antes para não morrer de fome ou de enfado, em seguida por hábito e
porque depois de tudo é um ofício que aprendeu, com seus benefícios,
suas vantagens e suas obrigações. As deserções eram frequentes, consti-
tuíam o primeiro flagelo dos exércitos; para as prevenir, o regulamento
prescrevia que se matasse imediatamente qualquer soldado que demons-
trasse no campo de batalha sinal de fuga. No fundo o soldado podia bem
sentir-se ameaçado pela artilharia de frente do adversário, ele sabia que
seria abatido se tentasse um movimento de recuo. No campo de batalha,
não se encontrava nenhum voluntário.
66 Estados de Violência

Obrigação e submissão versus consentimento e docilidade

Nesse cadinho ético, um sentido da obediência se constitui, que na


falta de melhor termo se chamará "moderno" e que se distinguirá, por
facilidade e convenção, de um sentido "antigo" da obediência.
Aristóteles separava claramente a obrigação do homem livre da submissão
do escravo, como duas figuras opostas da obediência. A obediência do homem
livre é o puro avesso de sua capacidade de comandar. Obedecer para o cidadão
é conduzir um projeto comum, contribuir ativamente. Por sua obediência,
ele participa no sentido do que se realiza. Essa obediência não é exclusiva nas
tomadas de iniciativas no meio de um quadro comum determinado, de um
projeto federativo. Para obedecer bem, é preciso saber comandar bem.

Contudo, existe certo poder em virtude do qual se comandam pessoas do mes-


mo gênero que o do comandante, isto é livres. Aquilo que chamamos de o poder
político, o governante o aprende sendo ele mesmo governado, como se aprende a
cavalaria obedecendo na cavalaria, a comandar no exército obedecendo no exército,
do mesmo modo para uma brigada e para um batalhão; é por isso que se diz, e jus-
29
tamente, que não se comanda bem se não se obedeceu bem.

Duas coisas importantes: a afirmação de um princípio de reversibilida-


de comando/obed iência como grade de inteligibilidade do poder político;
ilustração deste princípio na arte militar. Para comandar bem, é preciso sa-
ber obedecer. Contudo, para obedecer bem, é preciso saber comandar. No
quiasma das duas proposições, sou sempre eu que decido. Aristóteles deixa
assim pensar numa obediência lúcida, pensada, voluntária que se chamará
"obrigação" - "obrigar-se" é um verbo reflexivo - e que se opõe à submissão
do escravo. Se um soldado-cidadão deve ser outra coisa que um escravo, é
que ele obedece de bom grado. Xenofonte, em sua Círopédia, afirma que é
preciso sempre preferir nos soldados "a obediência voluntária" (to hekontas
peithesthai). 30

29
Aristóteles, Politiques, 111, 4, 1277b, ed. cit. p. 46.
3
° Ciropédia , Livro 1, cap. 6, 21, ed. cit. p. 46 .
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 67

Obediência política, cidadã e livre, contra a submissão familiar, econô-


mica, como conformidade cega às ordens, execução de tarefas domésticas.
Neste sentido, um escravo não pode obedecer, só pode executar. O escravo
é aquele que executa sem ter de refletir, que obedece pela única razão de
que lhe foi mandado, mas que não sabe nada e não quer mesmo nada saber
do porquê, nem de entradas e saídas da situação. Duplo sistema de obe-
diências: a participação ativa e voluntária do cidadão que se obriga a uma
ação combinada por iguais, a submissão passiva do escravo que executa
uma ordem dada por um superior. 31
Pode-se construir a partir de referências modernas um sistema de obe-
diência diferente: docilidade e consentimento. A docilidade é a obediência
inscrita no corpo à força de exercícios e de treinamentos, de disciplina con-
tínua, de regulamentos minuciosos providos de sanções: modelo marcial
transformado pela revolução militar. A docilidade é diferente da submissão,
essa exige do corpo sinais apenas exteriores de obediência, provas e demons-
trações visíveis, "marcas": abaixar os olhos, inclinar a cabeça, prostrar-se,
ajoelhar-se etc. A docilidade supõe ao contrário uma incorporação profun-
da das atitudes. Não se impõe mais a seu corpo contrações forçadas de sub-
missão, mas ele se dobra segundo processos interiores, gestos pontuais que
respondem a ordens precisas. A submissão supõe compressão e resistência,
liberdade travada. A docilidade atrai uma boa vontade do corpo.
O consentimento é de origem mais jurídica que militar: submissão de
um sujeito livre, dotado de razão e de cálculo, capaz de pensar e de pesar seu
interesse, de contrair, de se comprometer. É o sujeito político pensado pela
filosofia clássica como fundamento da ordem civil. Ora, eu consinto funda-
mentalmente naquilo que um Outro me propõe, no que um Outro decidiu
para mim sem mim. Eu quero dizer que se encontra no consentimento o
tema de uma liberdade que se exprime de maneira mínima, no clarão de
uma renúncia. Abdicação voluntária de tudo ou de parte de meus direitos. É

31
Será encontrada em Arendt sob a forma da oposição entre o político (o público) com seu
sistema igualitário e familiar e o econômico (o privado) com suas hierarquias estritas e suas
necessidades servis.
68 Estados de Violência

por cálculo sem dúvida racional e sensato, que voluntariamen te eu sacrifico


minha vontade própria - a aceitação sendo mais proveitosa para mim do que
a recusa - mas resulta que consentindo, mesmo para meu maior proveito,
eu consinto naquilo que um Outro já decidiu para mim. Consentir é entrar
num sistema de compressões que me precede. O consentimento é irredutível
à obrigação. A liberdade aí não se exprime senão sob a forma pontual dosa-
crifício, pensado e razoável sem dúvida, mas indefinido. Consentir é ter con-
sentido sempre: eu não faço aparecer minha liberdade senão como suposição
de um ponto inicial em que ela desde sempre já brilhou para dizer "sim" ao
que não me aliena hoje. A obrigação ao contrário designa o exercício de uma
liberdade contínua e sempre suscetível de crítica e de revisão. E já consenti
sempre. Eu me obrigo continuamente .
O consentimento como a docilidade remetem a essa forma de obe-
diência sobre o fundamento de renúncia a toda possibilidade de coman-
do, como resultado de um adestramento contínuo do corpo ou de um cál-
culo racional pontual do espírito. Assunto moderno do político, objeto de
32
dominação: "Recebe comando quem não pode obedecer a si mesmo".
33
''A obrigação, ao contrário, não é senão o avesso do comando" e a submissão,
de seu lado, se suporta o comando, é como uma compressão social exterior. A
obediência "antiga'' como sistema da obrigação e da submissão se inscreve no ho-
rizonte do comando, da capacidade de cada um em comandar, da autonomia e
do governo de si. A obediência "moderna'', como sistema da docilidade e do con-
sentimento inscreve-se no horizonte da renúncia a si, da delegação indefinida ao
34
outro, do desprendimento fundador, da alienação voluntária de sua liberdade.

O sonho de uma sociedade perfeita, os historiadores das ideias o atribuem de


boa vontade aos filósofos e aos juristas do século XVIII; mas há também um sonho

32
Ainsi parlait Zarathoustra, Livre li, "Do domínio de si", ed. cit. p. 157.
33
Cf. ainda o conselho de Sólon relatado por Diógenes Laércio em suas Vies et doctrines
des phi/osophes illustres; "Comanda tendo antes aprendido a obedecer", 1, 58, trad. R.
Genaille.
34
Eco aqui da distinção de Foucault entre um modo de subjetivação antigo, como constituição
ativa de um eu forte e instaurando de "si para consigo" uma relação de domínio e um modo
de subjetivação cristão como renúncia a si sobre um fundo de obediência indefinida ao Outro.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 69

militar da sociedade; sua referência fundamental era não ao estado de natureza, mas
às engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina, não ao contrato
primitivo, mas às coerções permanentes, não aos direitos fundamentais, mas aos
treinamentos indefinidamente progressivos, não à vontade geral mas à docilidade
automática[ ... ]. O regime napoleônico não está longe e com ele essa forma de Esta-
do que lhe subsistirá e de que não é preciso esquecer que foi preparado por juristas
mas também por soldados, conselheiros de Estado e oficiais inferiores, homens de
lei e homens de campo. A referência romana de que é acompanhada essa formação
traz consigo este duplo indicador: os cidadãos e os legionários, a lei e a manobra.
Enquanto os juristas ou os filósofos procuravam no pacto um modelo primitivo para
a construção ou a reconstrução do corpo social, os militares e com eles os técnicos
da disciplina elaboravam os procedimentos para a coerção individual e coletiva dos
batalhões. 35

É preciso sobre esse ponto prolongar o texto de Foucault e não ver


como ele o faz aqui entre o sonho militar da disciplina e o sonho filosófico
do contrato simples justaposição (ou mesmo jogo de fundo ideológico),
mas articulação, complementaridade estritas. O Estado nascido da guerra
"modernà', este Estado como entidade administrativa centralizada e uni-
formizadora, cruzando uma racionalidade militar e jurídica, deixa esperar
este sujeito novo, síntese perfeita do sujeito de direito condescendente e
do bom soldado disciplinado, um sujeito afinal de conta que teria renun-
ciado a toda tentação de comandar um dia. Traçar, desenhar a partir daí
linhas genealógicas até o século XX pelo menos. O século XX, idade dos
extremos, 36 terá conhecido de fato uma exageração das duas formas da
obediência moderna: exageração do consentimento sob a forma do zelo,
exageração da docilidade sob a forma da resignação.
Na docilidade há renúncia já que não faço funcionar minha liberdade
a não ser para dobrar meu corpo aos aprendizados que o Outro me impõe.
Contudo, minha vontade permanece ativa para acompanhar este treina-
mento. Ela está presente, mas como participação em sua renúncia contí-
nua: eu me presto a atender o melhor possível às prescrições de um outro.

35
Michel Foucault, Survei/ler et punir, ed . cit. p . 171 .
36
E. J. Hobsbawn, L'âge des extremes. Histoire du court XXe siec/e,Paris, ed. cit. Complexe, 1994.
70 Estados de Viol ência

Na resignação, a falta da liberdade é mais completa ainda: meu corpo faz


o que me é ordenado, mas sem o suplemento da alma suposto pela boa
vontade do corpo. Estar resignado é propriamente abandonar, entregar seu
corpo à obediência. Minha única marca de liberdade é não querer mesmo
mais não querer.
O consentimento era no fundo a aceitação racional, relegada num
passado indefinido (já que eu vivo, é que já consenti sempre, dizia mais
ou menos Hobbes) de um sistema de compressões estranhas. Pelo zelo,
este devotamento adquirido abre-se para o futuro: eu já estou pronto para
obedecer a não importa que ordem superior. Eu não me contento em obe-
decer, mas em obedecer o melhor possível, antecipando mesmo à compres-
são, esgotando minha liberdade para dar cumprimento ao que um outro
me impõe.
Essas duas formas de uma obediência extrema se reencontram no cen-
tro ético dos dois grandes traumatismos do século XX, a Primeira Guerra
mundial e a "Solução final".
Alain recordará lucidamente que, nos trabalhos pesados das trinchei-
ras, seu aborrecimento mortal e sua fatigante angústia, havia momentos
em que o soldado não aguentava mais nem por amor da pátria, nem por
ódio do inimigo, mas por uma resignação massiva que o mantinha no
corpo.
É preciso compreender aqui como a disciplina, regulando os gestos, apa-
ga quase todos os sofrimentos do escravo e assim, de certa maneira, o liberta.
É porque é inevitável que as lembranças de guerra tragam com elas algo da
37
igualdade de alma e da verdadeira resignação tão raras na vida livre.
O que lhes permitiu manter-se tão longo tempo na lama e no sangue,
no horroroso alarido dos obuses cegos e estalos ofegantes das metralhado-
ras? Certamente o devotamento sacrificial, a heroica coragem e a urgência
em proteger os seus, cuja massa inquieta os soldados podiam sentir em seus

37
Mars ou la guerre jugée, ed .cit. p. 194.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 71

dorsos. Alain atribui uma parte também à obediência passiva. Outras vozes
consonantes afrontam este impensável, a de Luiz Mairet, caído no dia 16
de abril de 1917 em Craonne:

Sabem eles por que se batem? Pela Alsácia Lorena? [... ] Quem crê ainda que a
Europa está em fogo por este pedaço de terra? [... ] Pela pátria? Eles não a conhecem.
Tomai cem homens do povo, falai-lhes da pátria: a metade vos rirá de estupor e de
incompreensão. Então por que se bate? [... ] O soldado de 1916 não se bate pela Alsá-
cia, nem para arruinar a Alemanha, nem pela pátria. Ele se bate por honestidade, por
hábito e por força. Ele se bate porque não pode fazer outra coisa. De outro modo ele
se bate em seguida, porque, depois dos primeiros entusiasmos, depois do desânimo
38
do primeiro inverno veio ... a resignação.

E depois o zelo. A força do livro de Arendt sobre a "banalidade do


mal" está no retrato que ela faz de Eichmann, comandante-c hefe dessa
"logística'' terrível que permitirá enviar milhões de judeus para os campos
da morte. Contudo quando se acreditava, no processo que lhe foi feito
em 1961 em Jerusalém, que se devia julgar um monstro abominável, en-
contra-se um funcionário zeloso, consciencioso e meticuloso, marcando
mesmo seu interesse pela filosofia moral de Kant. Nós ficaríamos mais
tranquilizados se fosse Nietzsche que ele tivesse lido. Explorando as raízes
do mal absoluto, antes que ver abrir-se um abismo de perversidade moral,
encontra-se a síndrome da criança sábia executando com desvelo o que se
lhe pede que faça: "O desgosto, com Eichmann, é precisamente que havia
muitos que lhe eram semelhantes e que não eram nem perversos nem sá-
39
dicos, que eram e são ainda incrivelmente normais". Corno se estivesse
aí, nessa criança em nós que realiza do melhor modo o que se lhe pede que
faça, que aí residisse a monstruosidad e propriamente moderna, mais que
num sadismo demente. No requisitório imaginário que ela levanta contra
Eichmann, que se queria à altura do acontecimento , Arendt pontua: "O

38
Carnet d'un combattant, citado por A. Decasse , J. Meyer, G. Perreux in Vie et morl des
Français 1914-1918. Simp/e histoire de la grande guerre, Paris, Hachette, 1962, p. 97.
39
Eichmann à Jérusalem, ed. cit. p. 444.
72 Estados de Violência

político e o materno não são a mesma coisa: em política, obediência e


apoio formam uma só coisà'.40
Seria extraordinariamente injusto pretender reduzir ou esgotar o sentido
dessas duas grandes experiências históricas por essas patologias da obedi-
ência. A "resignação" não pode fazer esquecer o espírito de sacrifício, e a
coragem tenaz e o "zelo" não devem ocultar a ignomínia moral dos atores
do genocídio. Permanece o fato de que uma genealogia da modernidade está
traçada, denunciando uma forma de monstruosidade do sujeito moderno
nessa renúncia a todo espírito crítico e um abandono de si. Tudo o que faz
que um sujeito possa dizer: "Eu não sou culpado, já que apenas obedecià'.
A resignação passiva e o zelo cego constituem as patologias éticas desse
sujeito político moderno, constituído no cruzamento do consentimento
contratual e da docilidade disciplinar, filhos da revolução militar, sujeito
que consente livremente com o que outros decidiram para ele e que per-
petuamente dobra seu corpo, ao longo das instituições e dos exercícios, da
escola à fábrica, segundo os pontos do poder. Foucault e Arendt, contra a
guerra total e os sistemas totalitários, reinventaram um sujeito grego da de-
mocracia, que possa fazer sentir a diferença, despertar o sentido ateniense
de uma obediência ativa e voluntária, de uma obediência que compromete
a responsabilidade de quem se presta a obedecer.
Quais seriam agora as duas formas extremas então deste outro sistema
de obediência, que se construiu no horizonte do comando mais que da
renúncia? O declive extremo da submissão seria algo como o servilismo. O
servilismo é a exageração dissimulada da submissão pelo escravo: ele obe-
dece de tal modo ao senhor que este se torna totalmente dependente dele.
O servilismo testemunha o desejo de comandar do escravo, preparando
seu próximo reinado dentro da submissão e depois essa submissão terrivel-
mente insistente. ("É por caminhos oblíquos que escorrega o mais fraco no
lugar e até ao coração do mais poderoso - e voa o poder" .) 41 E a exageração

40
lbid., p. 448.
41
Ainsi parlait Zarathoustra, Livre li , "Do domínio de si", ed . cit. p. 158.
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS 73

da obrigação, como chamá-la de outro modo diferente da desobediência


civil? Se a obediência é uma obediência voluntária, na qual sou sempre
eu mesmo que obedeço, na qual antes de obedecer a um outro, é a mim
mesmo que obedeço, pois bem a desobediência civil será a manifestação
deste eu que comanda e que nunca deixou de comandar. De tal sorte que
essa desobediência não é a negação da obrigação do sujeito político, mas
revela ao contrário sua condição mais pura: a participação ativa do sujeito
no sentido do que ele realiza, sob o comando de um outro, seu igual.

Firma de Sócrates. A obediência é livre: ideia odiosa, ao mesmo tempo para


os que comandam - é nossa revanche - e sobretudo para os que obedecem, pois
eles quereriam crer que não o fazem senão constrangidos[... ]. O que tens a fazer é
procurar tu mesmo o que tens a fazer. Ninguém tem de te conduzir. Todo homem
tem seu chefe e deve agir segundo sua cabeça - e quando ele obedece a um chefe é
por sua própria iniciativa que ele o escolhe. Que cada um procure seu caminho. A
obediência é a vontade. Não há possibilidade de escapar da sua vontade. É o que
Kant chama de autonomia. 42

42
Michel Alexandre, Lecture de Platon, ed. cit. p. 38 .
4
Sacrificar-se

O que eu queria agora apresentar é no fundo menos uma forma de guerra deter-
minada do que um estilo erans-histórico de morte. A imagem ideal seria a seguinte,
clara, precisa e contudo sem história: vê-se o soldado caminhar para o ataque com
determinação e entusiasmo, gritando com fervor o nome do país que ele defende.
Deve-se imaginá-lo desabar logo morto, ceifado pela espada ou pelo fogo. Símbolo
colorido e puro do heroísmo patriótico, do sacrifício à nação. Nada de mais vibrante,
nada de mais exaltado. Nossa memória histórica está repleta disso. São os Atenienses
de Maratona, carregando a pé, ao passo de corrida, o exército de Dario, três vezes
mais numeroso recentemente desembarcado (primeira guerra médica (dos Medos))
ou os espartanos de Leônidas defendendo até o fim o desfiladeiro de Termópilas para
retardar o avanço do exército persa (segunda guerra médica). É o entusiasmo raivoso
do exército revolucionário, Bonaparte tomando uma bandeira e atraindo atrás dele
uma coluna de granadeiros sobre a ponte de Arcole. São enfim as grandes, as terríveis
ofensivas de Somme onde pelo amor da pátria homens iam oferecer seus corpos às
metralhadoras inimigas. Tantas representações, fixadas pelo sublime da morte sa-
crificial do guerreiro. E a filosofia se encontra bem nessa imaginação fundamental
da guerra. Ela aí penetra na engrenagem, em que se atesta o mistério da moral, da
afirmação de um ideal transcendente e do desprezo soberano pela vida imanente.
*

Depois do mito da cavalaria, do modelo da falange, da utopia da guer-


ra sábia, seria preciso evocar algo que seria antes um ideal, ideal trans-
-histórico porque não se trata aqui de designar, como fonte de constituição
ética, uma forma determinada de guerra (o combate singular no grande
dia dos heróis ou a batalha hoplítica em formação cerrada que exige que
se mantenha firme e que se permaneça solidário ou ainda a guerra cienti-
ficamente orquestrada por um estrategista), mas antes uma atitude, uma
postura ética, suposta ao longo de toda a história, em Salamina, Bouvines,
Valmy etc.
Quando a guerra é assunto de casta, esperam-se do guerreiro façanhas,
que ele se exalte e por isso cumpra a tradição de sua raça. Quando a guerra
76 Estados de Violência

é questão de formação, de profissão, de competência, exige-se do militar


profissionalismo, que ele saiba obedecer e responder exatamente às ordens.
Quando a guerra chega, chama a seu serviço a comunidade dos cidadãos,
pedir-se-á ao soldado o sentido do sacrifício. O guerreiro honra sua memó-
ria, o militar desempenha seu ofício. O soldado se sacrifica à sua pátria.
Igualmente dizer que se acha menção, em inumeráveis épocas, dessa
postura ética essencial para a sobrevivência das cidades e das nações. A his-
tória se repetindo, das orações fúnebres de Atenas aos discursos de come-
moração diante dos monumentos aos mortos de 1914, é a mesma trama:
morte gloriosa pela pátria, grandeza do sacrifício à cidade, devotamento à
causa suprema da Nação, abnegação cujo poder se mede no anonimato etc.
Heróis sem nome, soldados desconhecidos, tão numerosos são, de tal modo
suas famílias foram sem história, suas mortes também puderam ser neste
ponto sem façanhas particulares e como incluídos na massa, apagam-se
também diante do nome único, consistente, singular de sua pátria. Por trás
da monotonia das formas (pro patria mori), seria preciso contudo tentar
distinguir polaridades de discursos. Aí ainda se evocarão fatos de sentidos
abstratos, tirados de fragmentos de história: sacrificar-se pela liberdade da
pátria, pela integridade do reino, pela identidade da nação.

Três figuras do sacrifício

Inspirando-me no livro de N. Loraux, 1 para construir o modelo grego


(mais precisamente ateniense) deverei partir destes "clássicos" que foram
as orações fúnebres (textos de antologia retórica - dir-se-á quase de "bra-
vura"). Em Atenas tinha sido fixado o costume de pronunciar cada ano
no mês de outubro, no cemitério público, um discurso honrando os ci-
dadãos mortos pela causa da cidade. Tais discursos puderam ser relatados,
compostos ou reinventados. Dos mais famosos que sobraram (em Lísias,
Tucídides ou Platão), pode-se retirar certo número de temas obrigatórios.

1
L'invention d'Athenes, Paris, Mouton, 1981 .
·rneira Parte - FORÇAS MORAIS 77
pri

É antes de tudo o tema da "pátrià' como mãe de leite,2 solo natal


impossível de ser traído. A pátria é fonte de uma identidade que enraíza
seus filhos num particularismo territorial definitivo. 3 Daí a recordação fre-
quente do mito da autoctonia. Uma mãe terra, mas também uma mesma
história. Ao longo da oração, pode-se ler o traçado puro da história ate-
niense. Contudo, é uma história mítica, não hesitando em misturar refe-
rências legendárias (a vitória contra as Amazonas) com fatos averiguados
(vitória contra os Persas). É uma história ideológica que prefere Maratona
a Salamina, a fim de exaltar, através da figura do hoplita, o pequeno pro-
prietário de terra, ao passo que foi pelo império dos mares e pela força de
sua frota que Atenas pôde projetar seu poder. É enfim uma história heroica
que construiu uma continuidade luminosa entre as façanhas memoráveis
dos primeiros mortos e as destes mortos presentes. A defesa da liberdade é
regularmente evocada. É preciso dizer que Atenas dispõe de um regime de
exceção, de leis excelentes que asseguram uma igualdade perfeita da justiça
e da liberdade. Isto porque também é normal que ela afirme sua ascendên-
cia sobre o resto do mundo. E contudo, porque enfim é tão belo morrer
por ela. A história manterá em primeiro lugar essa representação: os Gregos
mortos pela liberdade, para se opor à ocupação, à opressão do tirano persa
e a que ponto só a defesa dessa liberdade política contra o despotismo asiá-
tico podia inspirar-lhes um tal entusiasmo.

Os Europeus são mais belicosos também pelo efeito das instituições; pois eles
não são, como os Asiáticos, governados por reis; e aos homens que estão sujeitos à
realeza falta necessariamente a coragem. Sua alma está escravizada e eles se preo-
cupam pouco em se expor aos perigos sem necessidade para aumentar o poder de
outrem. Os Europeus, porém, governados por suas próprias leis, sentindo os perigos
que correm, correm em seu próprio interesse e não pelo interesse de um outro, os

2
"Eles devem deliberar a respeito do país em que estão e defendê-lo contra qualquer ata-
que, como se fosse sua mãe e sua nutriz", Platão, La republique, ed. cit. 111, 414e, p. 195.
3
Rousseau, que em toda sua existência ficará sensível a este modelo, denuncia "estes
pretensos cosmopolitas que, justificando seu amor pela pátria por seu amor pelo gênero
humano, se gloriam de amar todo mundo, para ter o direito de não amar ninguém". Ao que
Voltaire retruca: "é triste que muitas vezes, para ser bom patriota, alguém seja o inimigo do
gênero humano" (Dictionnaire philosophique, art. "Patrie").
78 Estados de Violência

aceitam de boa vontade e se lançam com arrojo nos riscos, pois o prêmio da vitória
4
é para eles; é assim que as leis contribuem muito para criar a coragem .

À sombra das grandes monarquias europeias em que os soldados não


se batem senão para ter seu soldo, em que as conquistas muitas vezes não
significam nada mais para os povos do que uma mudança de senhor, Rous-
seau, encantado com a luz grega, evoca com uma nostálgica paixão o que
pode ser uma pátria autêntica.

Se os cidadãos tiram dela (a pátria) tudo o que pode dar valor à sua própria
existência - leis sábias, costumes simpl es, o necessário, a paz, a liberdade e a estima
dos outros povos - seu zelo se inflamará por uma tão terna mãe. Eles não conhecerão
verdadeira vida senão a que eles tirarão da pátria, nem verdadeira felicidade senão a
de empregá-la a seu serviço; e eles contarão no número de seus benefícios a honra de
derramar, se necessário, todo seu sangue para sua defesa. 5

Vê-se ainda nessas orações que os mortos na guerra servem para ce-
lebrar sobretudo a história de Atenas, para dar-lhe o rosto de um destino.
Trata-se em toda parte de "substituir o pranto pelo elogio" (N. Loraux):
celebrar a cidade mais que chorar irmãos. Por sua morte com efeito, cada
Ateniense faz viver o que é eterno: o puro nome de Atenas. Seu sacrifício
autentica a representação que a cidade se faz de si mesma: regime perfeito
e história heroica, dom dos deuses. Contudo, é também seu próprio ser
de cidadão que o sacrifício realiza. Por sua pura origem, sua filiação heroi-

4
Hipócrates, "Dos ares, das águas e dos lugares", in De J'art medical, trad . É, Littré, Paris,
LGF, 1994, p. 122. Cf. como exemplo de exaltação: "Nas batalhas tão célebres de Miltía-
des, de Leônidas, de Temístocles que aconteceram há dois mil anos e que ainda estão hoje
tão frescas na memória dos livros e dos homens.como se fosse anteontem , que acontece-
ram na Grécia para o bem dos Gregos e para o exemplo de todo o mundo, o que é, que se
pensa, que deu a tão pequeno número de pessoas, como eram os Gregos, não o poder,
mas a coragem de suportar a força de tantos navios de que o próprio mar estava cheio,
a coragem de destruir tantas nações, que eram em tão grande número que o esquadrão
dos Gregos não tivesse provido, como foi preciso de capitães, contra os exércitos dos ini-
migos? senão que parece que naqueles gloriosos dias não era tanto a batalha dos Gregos
contra os Persas como a vitória da liberdade sobre a dominação, da independência contra
a cobiça", É. de La Boétie, Discours de la servitude volontaire, ed.cit. p. 28.
5
Rousseau, "De la patrie" in Fragments po/itiques, in Ou contrat social, ed . cit. p. 358 .
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 79

ca, seu ascendente político sobre os outros, o cidadão merecia morrer por
Atenas. Essa realização tem sua origem num desaparecimento. Morrendo
por sua pátria, o cidadão anônimo se apaga por inscrição numa narrativa
imortal que o supera e o envolve. Ele não é imortalizado como tal, como
indivíduo. É a eternidade da narrativa que o envolve. No fundo, sua morte
estava desde seu nascimento inscrita nessa narrativa ideal e é como se ele
aí tomasse assento, ao passo que é ele que alimenta essa narrativa por seus
aros: no sentido de Marx, fetichismo do puro nome de Atenas.
O segundo modelo é "cristão" e supõe o episódio das cruzadas.
A cruzada é uma guerra agradável a Deus: ela é comandada por Ele ou
por seus representantes; o que quer dizer justificação transcendente dos
combates; a guerra não é apenas justa, mas santa. Ela não é só tolera-
da por Deus, mas querida, comandada por Ele. Daí o tema corolário de
uma transformação espiritual prometida a quem morre nestes combates
muito piedosos. Essa transformação não cessa de resto de se aprofundar:
passa-se do anúncio de uma remissão dos castigos temporais pelos pecados
cometidos a uma remissão destes pecados diante dos céus, até à promessa
de uma vida eterna e das delícias do paraíso. Uma vez fixado este quadro
conceituai, resta ainda confundir a terra santa infestada de infiéis e o reino
6
da França ameaçado pelos hereges: "Se morrerdes sereis santos mártires".
Toda a campanha dirigida por Filipe, o Belo, no início do século XIV gira
em torno destes temas: a França como nova terra santa, país caro a seu
Deus, e o povo da França é Seu eleito. No século XV, sob Carlos VII, uma
nova vaga de propaganda se desenvolve para chamar ao serviço da França,
fazendo-se por ela "mártires de Deus" (Cristina de Pisan, João Gerson ou
ainda Roberto Blondel: "Os que morrem por seu país são considerados
vivendo no paraíso"). Essa confusão do reino da França e da terra santa,
essa santificação do Estado supõe uma elaboração conceituai precisa: a do
"corpo místico". Como o demonstrou o artigo fundamental de Kantoro-

6
Promessa que o arcebispo Turpin faz na Chanson de Ro/and aos valorosos Francos pron-
tos a se bater contra os Sarracenos.
80 Estados de Violência

wicz, o corpo místico, que sob Carlos Magno remetia à Eucaristia, logo
designou a Igreja como comunidade de fé, pois, a partir das releituras por
Santo Tomás das Políticas de Aristóteles, uma comunidade política reu-
nificada, assim elevada à dignidade sagrada de um corpo santo que era
preciso amar: caritas patriae (está-se longe da oposição agostiniana entre a
pátria celeste e a terrestre). O amor da pátria como "corpo místico" supõe
que se comporte com alegria e fervor no socorro ao bem comum. E como
o Cristo era a cabeça do corpo místico da Igreja, o rei é a cabeça do corpo
místico político (conforme a elaboração do jurista João de Terra Roxa, no
século XV). Entrega-se ao socorro da "coroa" com fervor, alegria e carida-
de: ela é o ponto de união da comunidade. O que no modelo grego fazia
viver uma pátria era a liberdade. O que deve ser salvo para um reino é sua
integridade, de tal modo o corpo místico é pensado como agrupamento
solidário. Naquele tempo o sacrifício grego significava a inscrição do cida-
dão na narrativa luminosa e eterna da pátria livre, dessa vez "morrer por
sua pátrià' (pro patria mori) ganha em densidade mística. A morte do guer-
reiro é participação obscura no mistério do Cristo (Henrique de Gand no
século XIII compara a morte do guerreiro com a crucifixão do Cristo). Daí
ainda o "desejo de morte do rei", segundo a expressão de D. Crouzet, que
lançando-se no centro do combate atessa sua super-natureza por sua aber-
tura ao sacrifício.Vê-se, sob a mesma denominação de "morte pela pátrià',
o deslocamento operado: o mártir mais que o herói, o mistério mais que a
lenda, a transcendência sagrada mais que a cidade eterna, a integridade da
coroa mais que a liberdade da pátria.
Um terceiro modelo pode ser pensado: a identidade da Nação. Mui-
to amplamente contudo, o princípio nação se apresenta como a síntese
da pátria livre dos Gregos e do corpo místico cristão, como se vê em
Michelet. Contudo, é possível que uma última coisa ainda se decida em
torno da identidade espiritual do povo. É preciso partir do Estado e do
7
que Hegel chama de "o movimento ético da guerra". O Estado não é

7
Príncipes de la philosophie du droit, par. 324, trad. R. Derathé. ed. cit. p. 324 .
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 81

50 rnente uma máquina administrativa anônima ou um quadro formal ju-


rídico, não apenas uma ordem pública garantida ou uma caixa de fundos
públicos, não somente uma comunidade de interesses, uma delimitação
geográfica, um pedaço de terra encerrado entre fronteiras ou mesmo um
povo. O Estado é mais ainda e outra coisa: uma identidade histórica
corn sua memória, seus sonhos, seus mitos fundadores, sua cultura e suas
rnarcas, suas obras e seu "gênio" como se diz. Um "princípio espiritual",
dirá Renan.

Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas que, a bem di-
zer, não fazem senão uma, constituem essa alma, esse princípio espiritual. Uma
está no passado, a outra no presente. Uma é a posse em comum de um rico
legado de lembranças; a outra é o consentimento atual, o desejo de viver juntos,
a vontade de continuar a fazer valer a herança que se recebeu indivisa. [... ]No
passado, uma herança de glória e de desgostos a partilhar, no futuro um mesmo
programa a realizar; ter sofrido, alegrado, esperado juntos, eis o que vale mais
que alfândegas comuns e fronteiras conformes às ideias estratégicas; eis o que se
compreende malgrado as diversidades de raça e de língua. Eu dizia há pouco:
"ter sofrido juntos"; sim, o sofrimento em comum une mais que a alegria. No
que se refere a lembranças nacionais, os lutos valem mais que os triunfos, pois
eles impõem deveres, comandam o esforço em comum. 8

Como se vê, a prova decisiva dessa dimensão espiritual, em que


ela se fará sentir ao cidadão é evidentemente a guerra. Hegel constata
amargamente que em tempo de paz cada um se enrosca sobre seu
"quanto a si" e seus pequenos cálculos. O essencial se torna o con-
tingente: minha pequena tranquilidade passa na frente de qualquer
coisa. Eu não estou atormentado senão por minha pequena vantagem
conquistada às custas do vizinho e a ideia nacional desaparece. Indivi-
dualismo dos pequenos proprietários cuja conjugação indefinida aca-
ba por dissolver o ideal público. E a liberdade morre desde que não
se sabe mais morrer por ela. Felizmente, a guerra nos ensina de novo

8
Renan , Qu'est-ce qu·une nation? ed . cit.
82 Estados de Violência

a diferença entre o acessório e o essencial e a sentir "nosso senhor, a


morte" .9
10
Na guerra, proclama Hegel, "a vaidade das coisas é levada a sério".
"Ela nos pega, no sangue, com a urgência absoluta do sentido. A gente
se mostra pronto para perder tudo, riquezas e patrimônio , para salvar o
essencial reaparecido: a Nação. Depois de todas estas existências civis an-
cilosadas, este encolhimen to mísero dos lucros, a guerra funciona como
recordação vivificante do essencial, "exatamente como o movimento dos
ventos preserva as águas dos lagos do perigo da putrefação, onde as sub-
mergiria uma calmaria durável, como o faria para os povos uma paz durá-
vel e a fortiori uma paz perpétuà'. A Nação pode viver de novo e brilhar
11

como princípio puro depois dessa autonegação voluntária, pela guerra, dos
membros que a compõem. Dialética do todo e da parte. Para afirmar a
superioridade espiritual do todo, é necessária a negação concertada dos
partidos. O indivíduo particular se eleva por aí ao estatuto de membro
autêntico de uma nação.

Sacrificar-se pela individualidade do Estado constitui a relação substancial de


12
todos os seus membros com ele e, por conseguinte, um dever para todos.

Além de minha vida, enquanto homem, estou ligado a valores supe-


riores à minha vida como dado biológico, valores que lhe dão sentido, lhe
dão figura de existência. Contudo, essa transcendên cia dos valores não se
afirmará senão depois de minha capacidade em negar essa vida imanente

9
"Para não deixar os sistemas particulares se enraizar e se endurecer neste isolamento,
então para não deixar se desagregar o conjunto e se evaporar o espírito, o governo deve
de tempos em tempos sacudi-los em sua intimidade pela guerra; pela guerra ele deve al-
terar sua ordem que se torna habitual, violar seu direito à Independência , do mesmo modo
que aos individuas que, se submergindo nessa ordem, se desligam do todo e aspiram ao
"ser-para-si" Inviolável e à segurança da pessoa, o governo deve, neste trabalho Imposto,
fazer sentir seu senhor, a morte", Hegel , Phénoménologie de f'esprit, trad. J. Hyppolíte, t.
Ili, ed.cit. p. 23.
10
Prlncipes de la phi/osophie du droít, par. 324, trad . R. Derathé, ed. cit. p. 324.
11
Des manieres de traiter scientifiquemenl du droit naturel, trad.B. Bourgeois, ed. cit. p. 55.
12
Príncipes de la philophie du droit, par. 325, ed . cit. p. 326.
prirneira Parte - FORÇAS MORAIS 83

para poder afirmar estes valores. Eis toda a dialética do sacrifício: a parte
se nega como tal para afirmar o todo, o corpo se aniquila para fazer valer o
espírito, o orgânico se suprime para fazer existir o espiritual.
Essa dialética fascina a Filosofia porque essa vê aí estar de novo em jogo
suas condições de nascimento. Se o processo de Sócrates representa o lugar
de afirmação originária da Filosofia, é que um homem se manifestou mais
ligado a ela do que à própria vida. Entre um exílio silencioso, arranjado e
a morte, Sócrates não hesitou. A que serviria viver sem poder conduzir a
inquirição inquieta, o exame vigilante de si e dos outros, a que serviria viver
sem poder dialogar com outros sobre o sentido mesmo da vida? Mais forte
que a vida, há ainda o próprio sentido da vida. Com Sócrates se ilustra a ideia
de que as razões de viver são sempre ao mesmo tempo razões de morrer. O
que me faz viver é sempre ao mesmo tempo o porquê estou pronto a morrer
se me retiram esse porquê. No coração da Filosofia como obra racional de
vida, havia essa necessidade de que se morra por ela. Assim determina-se pela
Filosofia o absoluto (absoluto dos valores, da liberdade e da humanidade): na
capacidade de morrer pelo absoluto, porque se a vida é tudo, o absoluto é
mais ainda que este todo, um além do qual a morte consentida é o espelho
brilhante. A ideologia guerreira como o pensamento filosófico partilham a
mesma definição do homem: este animal pronto a morrer por valores.

Reversão do sacrifício

Isso dito, havia ao mesmo tempo ainda muito de bonomia e de ironia


em Sócrates para fazer dele um mártir da Filosofia. Ele não corria ao sa-
crifício como a uma tábua de salvação. Simplesmente sustentado por essa
ideia de que a injustiça é mais temível que a morte. Uma coisa é morrer
porque se prefere ainda morrer a sobreviver às suas razões de viver, outra
coisa é fazer viver por sua morte suas razões, sacrificar-lhes propriamente
sua existência, ou pior, a dos outros.
Mesmo Hegel, depois de tudo, não liga forçosamente a morte à afirmação
positiva de conteúdos de valores. Encontra-se aí também a enunciação de um
princípio de gratuidade, talvez próprio para reverter o princípio do sacrifício.
84 Estados de Violência

Esse absoluto como negativo, a pura liberdade, é em sua manifestação fenome-


nal a morte e é pela capacidade da morte que o sujeito se mostra livre e elevado acima
13
de toda compressão.

Ser livre, o que é com efeito senão não ser dependente de determina-
ções naturais, passivas, dadas, biológicas? Não ser dependente de deter-
minações é poder mostrar-se indiferente a elas, ignorá-las ou até negá-las.
Dizer que só o homem é livre é dizer, para Hegel, que só ele escapa da
necessidade natural, imanente da vida. E a manifestação dessa superiorida-
de a respeito das determinações naturais é a possibilidade de as desprezar,
mostrando-se capaz de afrontar a morte num combate. Em minha capaci-
dade de morrer, eu me afirmo como superior à vida simplesmente animal.
E como a afirmação dessa superioridade não pode valer senão para um
outro homem, afirmar sua humanidade é engajar-se numa luta até à mor-
te, com um outro por quem quero ser reconhecido. Na luta até à morte
para o reconhecimen to, a humanidade se revela como indiferente à vida
biológica. A luta até à morte produz o humano, porque por ela um simples
mamífero comprometido com a vida se revela livre, capaz de desprezar seu
instinto animal de sobrevivência. 14
Contudo, essa morte não é exatamente aqui um sacrifício "em nome
de"; é antes a afirmação plena e vazia da liberdade. Hegel certamente não
ficará aí; mas ele nos permite tomar uma oferta de morte que não está a
serviço de nada mais que da afirmação da liberdade. Essa afirmação plena
e vazia pode ser tomada antes de tudo como descoberta desconcertante,
inebriante. O que Teilhard de Chardin descreve como a experiência da
frente de batalha. Aí, na frente, onde nada mais paira senão a certeza vaga
de morrer, neste desprendimen to de todo cuidado, de toda agitação, o

13Oes maniéres de traiter scientifiquement du droit naturel, ed. cit. p. 53.


14"[As consciências] devem necessariamente assumir essa luta, pois devem elevar sua
certeza de ser para si mesmas a verdade, no outro e nelas mesmas. É somente pelo risco
da vida que se conserva a liberdade, que se prova que a essência da consciência de si não
é ser, não é o modo imediato no qual a consciência de si surge primeiro, não é sua imersão
na expansão da vida", La phénoménologie de l'esprit, 11, trad. J. Hyppolite, ed. cit. p. 159.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 85

homem "tem a evidência concreta de que não vive mais para si" - que está
libertado de si. Até o sentido de sua pessoa, de sua individualidade, de sua
história se tornou como uma bagagem que se deixou atrás, na retaguarda.

A experiência inolvidável da Frente, na minha opinião, é a de uma imensa liber-


dade[ ... ). À medida que a retaguarda desaparece num "longínquo" mais definitivo,
a túnica incômoda e devoradora das pequenas e grandes preocupações, de saúde, de
família, de sucesso, de futuro ... , escorrega completamente sozinha da alma, como
uma velha vestimenta. O coração muda completamente [... ]. Eu estava libertado e
15
aliviado, até de mim mesmo. Eu me sentia dotado de uma leveza inexplicável.

O espírito renunciou à preocupação do amanhã. O corpo se abandona


passivamente às ordens que lhe dão e a alma se separou finalmente. Única
morada, imensa, absoluta, a Vida.
O poder dessa experiência, dirá Patocka, é que no fundo ela desliga
absolutamente de toda preocupação utilitária. Do mesmo modo que na
Frente se esquece que se vive para seus filhos, para sua carreira, assim se
esquece que se morre por sua pátria. A experiência dessa liberdade total faz
tremer a dimensão propriamente utilitária do sacrifício e abre à denúncia
geral de toda formação de brigada, de toda requisição (tudo o que consti-
tui a "ótica do dià' em Patocka). A grande experiência da guerra, que no
fundo faz tremer todos os poderes não é o sentido de um morrer por, mas
a prova, neste afrontamento cotidiano da morte, de uma vertigem negativa
que acabou por fazer explodir toda a retórica sacrificial e uniu os que volta-
ram da Frente numa "solidariedade dos abalados". Um sentido se descobre
aí que se torna uma contra-política, marcada pela recusa de toda formação
de brigada, de toda requisição. O próprio do homem então não é que ele
possa se pôr a serviço de um valor, de uma pátria, de uma história, mas que
alguma coisa nele de autenticamente livre resiste a todo "pôr-se a serviço".
Daí, desde a abertura da experiência de guerra, a crítica da formação de
brigada, da requisição, de rendimento, da utilização-exploração dos "re-

15
Écrits du temps de guerre, ed. cit. p. 233-235.
86 Estados de Violência

cursos humanos" , crítica que assume o risco de morte. E aí brilharia para


Patocka o clarão puro do sacrifício, enfim "autêntico" ("um sacrifício para
nadà'), 16 como pura afirmação de uma finitude conforme à sua essência.
Este é o movimen to de dissidência pelo qual eu afirmo minha liberdade
como capacidade de ruptura, de negatividade, de recusa. Encontrar -se-á
um mesmo movimen to de pensamen to em Foucault, que opõe a "revol-
tà' à "revolução". A "revolução" supõe um sujeito que se põe a serviço da
história. Fica-se do lado de um sacrifício que teria por função fazer existir
o que não existe (ideais e ideias, uma promessa de futuro) e acarretaria
um tratament o das pessoas como fundos de rendimen to da história. A
"revolta", ao contrário, denuncia o que existe (sistemas de poder, regimes
políticos) e manifesta absolutam ente essa parte do sujeito que recusa estar
subjugado a isso, aqui e lá, como a outra coisa um outro dia, e resiste.

16
"A técnica segundo Husserl e segundo Heidegger'', in Liberté et sacrifice, trad. E. Abrams,
ed. cit. p. 275.
5
Acabar de vez com

Uma primeira determinação da guerra total é conceitua!. O conceito compreende


então duas dimensões contraditórias: seja a própria verdade da guerra, sua essência com-
pleta, seu conceito puro; seja este momento de excesso em que a guerra deixa de ser
a guerra para sossobrar numa outra coisa em que ela submerge: caos informe, desen-
cadeamento das forças. A guerra total é ao mesmo tempo a verdade da guerra e sua
negação. Este puro momento de destruição, de liberação incontrolada das violências em
que as partes adversas mergulham numa fusão mortal, dir-se-á que ele revela a verdade
da guerra, seja que ele constitui sua traição essencial. A exageração hiperbólica da vio-
lência mortífera exprime a verdade transparente, clara, sempre contida de outro modo
em formas hipócritas e ritualizadas ou o que se chama "guerrà' designa precisamente o
domínio humano, ritualizado deste caos, sua formação e não existe mais desde que é pura
violência? Há exageração no massacre indistinto das populações civis, no uso voraz de
todas as maneiras de matar - da granada à faca, da bomba nuclear às armas químicas - na
multiplicação indefinida de alvos e a amplitude dos recursos convocados; há em tudo isso
revelação ou negação da guerra? O conceito de "guerra total" apresenta essa hesitação.
O segundo uso da ideia de "guerra total" é normativo, histórico e serve de grade
de leitura para os conflitos antigos. A "guerra total" é então a guerra má. É a guerra
de uma modernidade decadente, que não conhece mais leis, nem respeita nada e
faz aparecer detrás dela uma idade de ouro dos conflitos regulados. Desde que os
historiadores querem marcar um corte, uma inflexão importante, a curva de uma
decadência ou de uma ruptura histórica, eles falam de "guerra total". Dir-se-á assim
da guerra do Peloponeso , anunciando a decadência do poder grego, que ela foi a
primeira guerra total, Atenienses e Espartanos se engajando numa luta fratricida,
esgotante, com escaladas de violência, quebrando os antigos limites (respeito dos
santuários etc.). Será dita a mesma coisa das guerras púnicas (defenda est Cartha-
go*), como ato inaugural da Roma imperial. Para o Ocidente moderno, alguns farão
aparecer, inspirando-se em páginas estupefatas de Guichardin sobre a furia ftancese,
como guerras totais as guerras da Itália, pela introdução da rapidez e da brutalidade,
em conflitos até então cautelosos e lentos. Outros preferirão ver a encarnação da
guerra total na guerra dos Trinta Anos, que põe a Alemanha de joelhos numa ava-
lanche alucinante de violências incitadas pelos poderes exteriores. Ou então, se irá

*N.T. Cartago deve ser destruída.


88 Estados de Violência

procurar a guerra cocal numa exterioridad e horrorosa: as invasões bárbara , as con-


quistas mong6i de Gengi Khan u de Tamerlan. Estes usos retrospectivos são for-
çosamente vagos e normativos: eles apenas designam e denunciam formas de guerras
parcicularrn enc atrozi:s, cruéis e destruidoras.
É preciso ancorar a ideia de guerra rn tal na história e discernir a terceira grande
rup tura na bisc6 ria da guerra no cidente depois da "revolução hoplítica" e a "revo-
lução militar": seja os grandes transtornos que marcaram a condução da guerra nos
séculos XIX e XX, no sulco cavado pela Revolução Francesa e pelas conquistas na-
poleônicas, até os conflitos de mesurados colocando m ação meios técnicos sempre
mais massivos e as guerrilhas de liben ação nacio nal ou de subversão revolucio nária.
Então uma tensão ética específica se desprenderá no seio da operação de guerra
total: o ódio da guerra no seio da guerra, que reduz a violência, em nome mesmo
de seu acabamento mitigado.O general Sherman, durante a guerra de Secessão, dará
prova de uma brutalidade inaudita e se defenderá recordando "a guerra é um inferno".
Se a guerra é um inferno, ela será sustentada por um esforço cujo paroxismo visa sua
própria supressão. ''Acabar de vez": com a guerra, com os inimigos, consigo mesmo.
*
A guerra total como guerra moderna, nascida das rupturas revolucio-
nárias, compreende três focos de sentido: a guerra total como guerra "a mais
não poder", que se dá como objetivo a destruição total do exército inimigo;
a guerra total como guerra absoluta que quer quebrar, no inimigo, na raiz,
sua vontade de combater; a guerra total enfim como guerra global mobili-
1
zando a totalidade das forças vivas de uma Nação.

A ofensiva "a mais não poder"

O modelo da guerra total como ofensiva "a mais não poder" inspira-se
diretamen te na experiência das guerras napoleônicas. Todos os historia-
dores estão de acordo neste ponto: Napoleão introduzi u na história dos
conflitos uma decisiva ruptura. As duas grandes teorias da guerra no século
XIX (De la guerre de Clausewitz e o Précis de l 'art de la guerre de Jomini) o

1
Nisto se pode sustentar que a primeira guerra total foi a Guerra de Secessão, que conju-
gava estes três caracteres: ofensa com paroxismo, como escolha estratégica dos confede-
rados: caráter de guerra civil, na qual nenhuma negociação nem terreno de compreensão
era possível (tudo ou nada); primeira guerra enfim industrial utilizando largamente as estra-
das de ferro e fuzis de longo alcance.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 89

atestam, cada uma se esforçando em abrir o segredo dessa fratura e assim


abrindo o futuro das guerras futuras (europeias para Clausewitz e america-
nas para Jomini). O enigma está em que essa fratura não se explica, como
para a primeira revolução militar, por avançadas tecnologias decisivas. 2 A
verdadeira ruptura tem a ver mais com uma nova "cultura da guerra'' para
retomar a expressão de Cardini, 3 no sulco das guerras revolucionárias.
O "recrutamento geral" de 1793 tinha feito de fato nascer novos exér-
citos, bem superiores em número, mas absolutamente incompetentes, en-
tusiastas mas sem experiência alguma. Como compreende Lázaro Carnot, 4
é preciso fazer dessa falta uma virtude: por uma ideologização reforçada
pelos conflitos (salvar de um invasor iníquo a Nação em perigo, libertar
os povos oprimidos e levar-lhes a boa notícia), virtude própria para insuflar
um entusiasmo e um ardor desconhecidos dos exércitos imperiais; pela
simplicidade do objetivo e do método: atacar, sempre atacar e perseguir
0 inimigo até o último. Quando se tratava durante todo o século prece-
dente, nos exércitos do Antigo Regime, de ocupar territórios, mostrar-se
em posições simbólicas, marcar sua superioridade, trocar sinais de forças,
operar manobras prudentes, dilatórias, complicadas, o objetivo fixado é
claro: aniquilar. A democratização da guerra tem este preço: a brutalidade
agressiva substitui a competência profissional. Napoleão levará essa heran-
ça revolucionária à sua perfeição, por seu absoluto bom senso militar.

A arte da guerra não pede manobras complicadas, as mais simples são preferí-
veis; é preciso sobretudo ter bom senso. Não se compreende, depois disso, como os
generais cometem faltas, é porque querem se exibir. 5

2
O sistema de Gribeauval dá à França uma artilharia mais manejável e eficaz, mas não é
mais que uma diferença de grau.
3
Cardini, La culture de la guerre, trad. A. Lévi, Paris, Gallimard, 1992.
4
"Systéme général des opérations militaires de la campagne prochaine" 1794 ), in Révolution et
mathématique, ed. J.P.Charnay, Paris, L'Herne, "Classiques de la stratégie", 2 v. 1984 e 1985.
5
Napoleão, citado in G. Chaliand, Anthologíe, ed . cit. p. 787. Cf. também: "A Guerra sendo
uma profissão de execução, todas as combinações complicadas devem ser afastadas . A
simplicidade é a primeira condição de todas as boas manobras", "Observação n. 5 a res-
peito do plano adotado em Paris para os exé rcitos dos Alpes e da ltália",citado in L.Poirier,
Les voix de la stratégie, Paris Fayard, 1985, p. 210.
90 Estados de Violência

Os princípios das guerras napoleônica s são de uma luminosa simpli-


cidade e propriamen te elementares: bater o mais possível (extremism o da
ofensiva); ser o mais forte no ponto preciso em que se ataca (superiorida de
das forças); exterminar o adversário, mesmo quando ele está no chão (con-
clusão da vitória).
A ofensiva extrema compreende as três regras de iniciativa, de deter-
minação e de brutalidade. A primeira é tomar a iniciativa do ataque, pois é
impor seu plano ao adversário e dispor de um tempo de avançar (princípio
6
maior de Jomini: "O primeiro meio é tomar a iniciativa dos movimentos".
Quando o outro emprega sua energia em resistir e em se defender, pode-se
já encarar a segunda fase do combate - traço (princípio estratégico de liber-
dade de ação). A defesa ocupa uma posição conservadora de retirada em boa
ordem das forças militares, ao passo que o ataque supõe novidade, improvi-
sação e criatividade.7 Ver a palavra cavaleiro de Folard: ''Agindo, encontram-
se expedientes que ficariam sempre desconhecidos, se não se tentasse nada
e nem se fizesse nadà'. 8 Em segundo lugar, o ataque não deve compreende r
nenhuma hesitação desde que foi lançado: "No começo de uma campanha
é preciso meditar bem se se deve avançar ou não; mas quando se efetuou a
9
ofensiva, é preciso sustentá-la até a última extremidade". É a regra de reso-
lução. Os remorsos são o pecado capital da ação. Uma vez tomada a decisão,
não tergiversar e assumi-la com o máximo de forças e de energia. Enfim, o

8 "Exposição dos principies gerais sobre os quais a arte da guerra repousa" (1816), in B.
Colson , La cullure stratéglque américa/na, L'influence de Jomini, Paris, Economica, 1993.
7 Sobre este ponto, é preciso perceber uma notável oposição com os tratados de estratégia

chinesa. Encontra-se às vezes a afirmação de um primado absoluto da posição defensi-


va , como verdadeira usurpadora da liberdade de ação. Porque quem escolhe um ataque
determinado se priva de um outro, e se límita escolhendo. E por este ataque, se expõe,
se põe a descoberto, revela seu plano e se trai. É porque é preciso sempre deixar vir o
adversário, para manter o mais tempo possível aberto o leque das possibilidades estraté-
gicas ("Empurrai-o para a ação para descobrir os princípios de seus movimentos; forçai-o
a mostrar seu dispositivo a fim de determinar se a posição é vantajosa ou não", Sun Tzu,
L ·art de la guerre, chap. VI , ed . cit. p. 68). Essa oposição Faz compreender que os princí-
pios estratégicos são mais reveladores de estilos culturais do que dependentes de uma
pura axiomática das forças.
6
Traité de la co/onne et de /'ordre profond (1730), citado in G. Chaliand, Antho/ogie, ed.
cit. p. 679.
9
Citado in G. Chaliand, Anthologie, ed. cit. p. 787.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 91

ataque deve ser brutal: "É como um combate de murros: quanto mais se dão,
maís valem". 10 A brutalidade é a força sem regras, sustentada só pelo movi-
mento de sua afirmação. Deve-se desprezar os sábios cálculos manobristas
para confiar só na compacidade dos golpes.'1 O segredo da vitória está aí:
"empregar os grandes meios", sem levar em conta custos em homens, em
material. Destruir, massacrar, bater, para que tudo acabe enfim.
Essa brutalidade na guerra é contudo menos primitiva do que se po-
deria pensar, pois não se trata de contar só com o físico , mas também
com o efeito moral. Porque faz impressão, a brutalidade forja reputações
e terroriza o inimigo de antemão. O que compreenderá o coronel Ardant
du Picq: 12 nunca é o embate físico, a superioridade puramente quantitativa
de um dos batalhões projetados que fazem dobrar o inimigo, mas o medo
sempre provoca a derrocada antecipada de um dos dois exércitos. Assim, o
embate nunca existe como tal, mas há antes pânico e deslocação para um
dos dois adversários. A brutalidade é a afirmação sem retenção da força,
sobretudo enquanto ela é própria para abater os espíritos. A brutalidade
é a força que quer fazer impressão, impressionar. O inimigo deve com-
preender, com certeza absoluta, que o outro irá até o fim de sua força: 13 ''A
qualidade essencial de um general é a firmeza de caráter e a resolução de
vencer a todo custo". 14
Pois quem despreza sua vida se torna senhor da dos outros. Quem é
bastante louco para arriscar a própria vida leva vantagem sobre quem é as-

10
lbid.
11
"O aparecimento de Bonaparte introduziu na Guerra um novo elemento de superioridade.
Opondo a força bruta à sábia arte militar e convencional de seu tempo, tendendo sempre
aos resultados extremos pelos meios mais simples, o Corso genial se tornou invencível
para os exércitos de seu tempo", F. von Bernhardi, La guerre d'aujourdhui, chap. 1, trad. M.
Etard , Paris, 1913, citado in G. Chaliand, Anthologie, ed. cit. p. 1.068. Foi a lógica adotada
pelos generais Grant e Sherman durante a Guerra de Secessão.
12
Études sur /e combat, ed.cil.publlcaçã o póstuma de 1880.
13
Cf. no mesmo sentido as declarações de Lenin: "Eis aqui algumas regras principais que
Marx deu dessa arte (a guerra): Jamais jogar com a insurreição e, quando se começa com
ela, estar bem compenetrado da ideia de que é preciso caminhar até o fim [... ]. A defensiva
é a morte da insurreição armada" . (Lettres de /oin 1917, citado por G. Chaliand, in Antho-
logie, ed. cit. p. 1.1 14. )
14
Napoleão, Maximes, citado por G. Chaliand, in Anthologie, ed. cit. p. 787.
92 Estados de Violência

saz sábio para apegar-se a ela. A vitória é menos garantida para quem quer
destruir tudo do outro do que para quem se mostra pronto a perder tudo
de si mesmo. Quando se quer verdadeiramen te ganhar, é preciso verda-
deiramente estar pronto para perder tudo. A chantagem tem seus limites.
Quanto mais se avança, mais o perigo se torna claro, mais o adversário se
aproxima e mais é preciso, se se quer vencê-lo, dar prova de que se assume
perder tudo. 15 Só nessa medida alguém é forte.
Depois do extremismo da ofensiva, o segundo segredo das vitórias na-
poleónicas está na simples superioridade das forças. Basta então ser o mais
forte no ponto preciso em que se ataca.

Com poucas exceções, é à tropa mais numerosa que a vitória está assegurada. A
arte da guerra consiste, então, em se encontrar em número superior no ponto em
que se quer combater. Vosso exército é menos numeroso que o do inimigo, não dei-
xeis ao inimigo o tempo de reunir suas forças; surpreendei-o em seus movimentos; e
vos apoiando com rapidez sobre os diversos pelotões que tiverdes tido a arte de isolar,
combinai vossas manobras de maneira a poder opor em todos os encontros vosso
16
exército inteiro a divisões de exército.

O recrutamento em massa, a conscrição nacional permitirão doravan-


te aos Estados dispor de exércitos enormes. A inteligência do movimento,
os imprevistos das batalhas não são nada diante da superioridade esmaga-
17
dora em homens e em meios e a segurança que a superioridade dá. Como
escrevia já Sun Tzu: o ataque frontal, direto e franco continua sendo a
melhor e a mais eficaz das táticas, com a condição de ser cinco vezes mais
numeroso. 18 Contudo, não é, como o compreenderá Jomini, pura tauto-
logia quantitativa (para ganhar, basta ser mais forte), pois tudo repousa

15
Ver ainda o discurso de Péricles durante a Primeira Guerra do Peloponeso: "Nós não
cederemos e não viveremos com medo pelos bens que possuímos" (Histoire de la guerre
du Péloponnese, Livre 1, cap. CXLI. Trad. J. de Romilly, ed. cit. p. 240).
16
Napoleão, citado por G. Chaliand, in Anthologie, ed. cit. p. 788.
17
Essa lição ficará gravada na cultura estratégica americana, implicando uma nova impor-
tância da logística e da preparação.
18
L'a,t de la guerre,cap . Ili, ed. cit. p. 60.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 93

19
no princípio de concentração das forças. É preciso ter uma percepção
analítica do exército adversário (daí a importância da informação) para dis-
tribuir suas forças de tal maneira que em cada ponto em que se ataca seja
0
mais forte. Empregar em grande escala estratégica o que estava dito no
mito dos Horácios: Horácio, tendo perdido seus dois irmãos, se encontra
sozinho diante de três Curiácios feridos em graus diversos e finge fugir. Ele
se deixa perseguir, depois volta a fim de combater cada um dos três irmãos
isoladamente e vencer um de cada vez. Essa distribuição supõe energia e
rapidez (Napoleão deve, como ele diz, suas vitórias à palmilha de seus sol-
dados) e a redução máxima de forças que ficariam à espera para combates
secundários possíveis e outras operações de apoio. Desde que uma vitória é
alcançada por uma secção, ela deverá juntar-se a uma outra para assegurar
20
sua superioridade contra uma outra fração do inimigo. Essa maneira de
combater supõe uma dispersão aparente das divisões, que se faz caminhar
em rotas paralelas, até organizar uma convergência súbita. É preciso poder
com efeito reagrupar as forças de maneira inesperada, de tal sorte que o
adversário se descubra mais fraco num ponto em que ele não esperava: "A
arte da guerra consiste em concentrar um esforço superior de uma massa
contra partes fracas". 2 1 Daí a prática de engodo e do segredo, para jamais
deixar o adversário adivinhar aonde levará o máximo de meu esforço; pois
o ponto fraco do adversário é decidido só por aquele que ataca. O segredo
da prioridade da ofensiva está aí: quem toma a iniciativa decide por onde o
adversário será mais fraco. Sou eu que decido as fraquezas de meu inimigo.

19
Chamado também princípio de economia em Foch: "O princípio da economia das forças
é, ao contrário, a arte de descarregar todos os seus recursos em certo momento sobre um
ponto, de aplicar todas as suas tropas e, para que a coisa seja possível, de fazê-las sempre
se comunícar entre si em vez de compartimentá-las e de submetê-las a uma destinação
fixa e invariável; depois, um resultado obtido, fazê-las de novo concentrar-se e agir contra
um novo alvo único", F. Foch, Des príncipes de la guerre, Paris, 1918.
20
Os exércitos napoleônicos não serão mais como os do Antigo Regime, pesadas e lentas
massas, acompanhadas por "armazéns" e todo um pequeno satélite de parentes, comercian-
tes etc. A intendência é reduzida ao mínimo e é pedido aos soldados "viver no país" . Daí ain-
da as marchas forçadas para atacar sempre mais cedo que o adversário pudesse desconfiar.
21
A.H.Jomini, "Exposição dos principias gerais sobre os quais a arte da guerra se baseia"
(1816) in B. Colson, o.e. p. 298.
94 Estados de Violência

O terceiro princípio quer a destruição total do exército adversário. É


preciso "perseguir" o inimigo. Não somente triunfar, marcar sua superio-
ridade, mas ainda abatê-lo, arruiná-lo: destruí-lo mesmo quando está de
joelhos, insistir em massacrá-lo quando está derrotado. A guerra é impla-
cável, sinônimo de destruição total.
A posteridade da cultura napoleónica da guerra será imensa. Certo
número de grandes proposições táticas dela derivam e que marcarão for-
temente a história contemporâ nea. Dela ficarão três proposições: a grande
ofensiva, a guerra de corpo a corpo e a guerra de deslocação.
A tática da "grande batalhà' retoma o tema de uma ofensiva maior em
que se lançará numa vez a totalidade de suas forças, com o máximo de ener-
gia. É para Clausewitz o "conceito puro da guerrà'. É sua definição da guer-
ra: "Este ato de violência destinado a constranger o adversário a executar
nossa vontade". 22 Três consequências decorrem logicamente: primeiramente,
se um adversário procura pela guerra a submissão do outro e reciprocamente,
é preciso empregar o máximo de meios de destruição; em segundo lugar, se
o outro pretende sempre me submeter, devo perseguir seu aniquilamento
máximo (a guerra não surge nem da intimidação nem da neutralização);
em terceiro lugar, devo solicitar para essa tarefa o máximo de vontade e de
energia. Daí um conceito puro de guerra como esforço mdximo da, vontade
que persegue um aniquilamento mdximo do adversdrio com o mdximo de meios
de destruições. Essa "escalada aos extremos" não é contudo para Clausewitz
mais que um ser de razão, uma pura consequência racional. Na realidade,
isso não acontece jamais. Isso não acontece jamais porque é fazer abstração
de três elementos próprios para quebrar o desvario lógico da destruição total
e recíproca. O tempo primeiramente: a guerra nunca é um instante puro, ela
supõe o deslocamento dos exércitos, seu posicionamento, durações, atrasos,
desequilíbrios que impedem o desdobramento intenso, repentino de uma
força explodindo no instante sacral de uma batalha única e devoradora. Em
segundo lugar, a política. É o famoso princípio - de que Raimundo Aron

22
De la guerre, trad. D. Naville, ed. cit. p. 51.
. ira Parte - FORÇAS MORAIS 95
pnrne

fará a chave de sua compreensão de Clausewitz - da subordinação do militar


olítico, o político constituindo um princípio de limitação do militar ("a
P
ªºuerra 23
não é nada mais que a procura da política de Estado por outros meios").
~s objetivos militares ficam subordinados a alvos políticos. Ora, estes últi-
rnos são forçosamente, ou melhor mais frequentemente, limitados: conquista
de um território, consolidação das fronteiras, marcação de uma superiorida-
de, represálias etc. Essa limitação do objetivo coage do exterior o militar a
não desenvolver uma lógica de espiral indefinida das violências, mesmo se ela
constitui seu movimento natural. Última dimensão: a polaridade ofensiva/
defensiva. Na guerra, há sempre o que ataca e o que se defende. Desequilí-
brio fundamental, Clausewitz defende a superioridade irredutível da postura
defensiva. A notar apesar de tudo que essa noção da guerra terá sido mal
compreendida pela posteridade, pois só as primeiras páginas sobre "a esca-
lada aos extremos" serão mantidas como verdade profunda da guerra, antes
que abstração impossível. Essa "cultura dausewitzanà' impregnando, por
vários decênios, os estados-maiores, os teóricos e os estrategistas, 24 imporá o
mito da ofensiva maior, decisiva como segredo da vitória. 25
O grande historiador da guerra Delbrück sustentava por sua conta que
Clausewitz tinha de fato hesitado entre o caminho da grande ofensiva que
poria abaixo o adversário de uma vez e o de seu enfraquecimento progres-
sivo por uma "defesa ativà' (von Leeb). Na guerra de corpo a corpo ou de

23
lbid., p. 42.
24
Exemplos: "Hoje, nosso método de guerra alemão se propõe como objetivo uma grande
batalha decisiva e imediata, inseparável, em nosso pensamento, de uma ofensiva abso-
luta" (Colmar von der Goltz, La nation armée, organisation militaire et méthode de guerre
modeme, trad.H. Monet, Paris, 1891 ); "Na guerra moderna, a estratégia e a tática visam a
destruição do adversário: a estratégia pela batalha; a tática pelo ataque decisivo" (F. Foch,
De la conduite de la guerre, Paris, 1904; "Só há uma forma de guerra, a saber, o ataque ao
inimigo [ ... ] a melhor estratégia é sempre a força" (J.F.C. Fuller, Les batail/es décisives du
monde occidental, Paris, Berger-Levrault, 3v. 1981-1983).
25
Cf. por exemplo as grandes ofensivas, inúteis e loucamente mortíferas, da Somme de
junho a novembro de 1916. O estado maior aliado tinha sonhado reintroduzir o movimento,
acabar de uma vez por todas com as guerras de trincheiras lançando uma ofensiva que
seria decisiva e empregando o mais possível de meios, resignando-se com o sacrifício de
centenas de milhares de homens. E esse foi, para nada, um gigantesco massacre (600.000
mortos de cada lado), regimentos inteiros de homens se chocando cada vez com uma bar-
ragem de fogo que os atingia de frente, vitimas da mística da ofensiva absoluta.
96 Estados de Violência

destruição, importa jogar com a duração. Não que se trate, como Fabius
Cunctator diante de Aníbal, na segunda guerra púnica, de temporizar e de
retardar de tal modo a batalha que o adversário acabe por perder o fôlego.
A guerra de corpo a corpo pratica ao contrário uma ofensiva constante,
regular, indefinidamente repetida. 26 Ela abate o adversário por um fogo
contínuo, incansável, em que se tenta obter pela repetição lancinante o que
não se poderia ganhar numa só vez contra o inimigo, apostando em sua
extinção lenta mais que em sua derrocada brutal ("Eu os roo", diziaJoffre).
A brutalidade dessa vez é lancinante, obstinada, teimosa.
Na guerra de deslocação (também chamada "aproximação indireta'' por
Liddell Hart que dela encontra ilustrações ao longo de toda a história), as
grandes vitórias ficam devidas a uma primazia da ofensiva, mas uma ofensiva
que não se apoia sobre a frente do exército adversário. Trata-se de procurar,
por manobras girantes, tirar o inimigo de suas bases, destruir suas linhas de
comunicação, a fim de que ele não se sinta mais sustentado e se desagregue
no local A ofensiva não é mais direta, no sentido em que não se trata de
derrubar uma frente, mas de atingir zonas de segurança do combatente e
destruir nele o sentimento de que ele pode sempre se retirar em boa ordem. A
agressividade ofensiva se liga a um sentimento de confiança: o inimigo na
frente que ameaça, o amigo atrás que apoia: ''A deslocação psicológica pro-
cede essencialmente do sentimento de ser pego na cilada. Ela também teve
por princípio um movimento nas linhas de retaguarda do inimigo [... ]. Ao
contrário, marchar direto sobre um adversário consolida seu equilíbrio físico
27
e psíquico e, consolidando-o, aumenta sua capacidade de resistência''.

26
O aparecimento do fuzil de cano raiado (com um alcance de mais de quinhentos metros)
parecia consagrar, antes da chegada dos tanques e da aviação militar, a superioridade de uma
tática de abatimento ofensivo contínuo caminhando de par com um oportunismo de posição .
27
B. Liddell Hart, Stratégie, trad. L. Poirier, ed . cit. p. 399. Esse movimento de intervenção
ativa e destrutiva sobre as retaguardas de um exército inimigo continua aqui confinado ao
campo de batalha. Giulio Douhet foi, contudo, um dos primeiros (La martrise de /'air, 1921)
a compreender a inflexão estratégica que podia representar o uso de aviões de comba-
te, permitindo bombardear cidades, armazéns, fábricas , estoques. Ele inventa com este
propósito o conceito de "guerra integral". A guerra integral é a procura da destruição, não
mais simplesmente do exército, mas do que o faz viver e o sustenta: recursos econômi-
cos, populações compostas pelas famílias que ficaram na retaguarda, centros energéticos,
primeira Parte - FORÇAS MORAIS
97

O que quer que seja a guerra total neste primeiro sentido de ofensiva
ao excesso e suas variações, é preciso lembrar que Bonaparte não inventou
nern a primazia do ataque, nem o princípio de concentração das forças 28 e
os grandes conquistadores não o esperaram para praticar o massacre total
e a destruição completa. 29 Contudo, em cada ponto Napoleão introduziu
certa radicalização: intensidade da ofensiva apoiada pela artilharia; rapidez
de deslocamento para redistribuir forças massivas de agressão (tomando
para seus exércitos rotas diferentes mas convergentes e pedindo-lhe s que
vivessem no país para reduzir a logística); extremismo da vitória equivalen-
do para o inimigo à destruição completa de seu exército, contra os costu-
mes antenores.
Essa radicalização supõe uma cultura da brutalidade como elemento
ético determinan te. A brutalidade é a força que não conhece outra medida
senão ir até o fim de si mesma, uma violência necessariamente em exces-
so: sua única medida é seu esgotamento. Ela não é mais regulada por um
objetivo. A resistência adversária não é mais compreend ida como resistên-
cia positiva que é preciso equilibrar, depois superar aumentand o a pressão
de seu poder, mas um obstáculo negativo a fazer explodir sob o embate.
Trata-se de bater, bater forte até não poder mais. Nenhuma revista caute-
losa, nada de ameaças longínquas, nenhum efeito de ostentação, nada que
seja feito para impressionar à distância. A brutalidade não economiza na

estoques de munições etc. Os alvos da ofensiva armada se multiplicam então de maneira


indefinida. Torna-se alvo militar tudo aquilo cuja destruição pode diminuir o moral e o fisico
do inimigo. A ação de devastação se realiza fora do campo clássico de batalha e ameaça
a totalidade de um território.
28
Já excelentemente definido por Sun Tzu em sua Art de la guerra, cap.VI : "Eu concentro
minhas forças, o Inimigo dispersa seus homens; eu formo um corpo único, ele é fracionado
em dez lugares; atacando com de.z contra um me acho sempre em superioridade numéri-
ca", ed. cit. p. 67.
~ No Antigo Testamento - Deuteronôm io 20,13 - é aconselhado depois de um cerco matar
lodos os homens e reduzir à escravidão mulheres e crianças, o que farão os Atenienses
em 416 (''Eles mataram todos os Melianos que prenderam em Idade da portar armas e
a
reduziram escravidão as mulheres e as crianças", Hístoire de la guerra du Péloponnese,
Livre V, cap. CXVI , 4, ed. clt. p. 483). Cf. também o prestigio da batalha de Canas, em que o
aniquilamento do exército romano estava incluldo na manobra de Anlbal : trata-se de deixar
Voluntariamente o exército inimigo penetrar em seu meio, depois insurgir contra os Inimigos
com uma ala direita reforçada a fim de os esmagar.
Estados de Violência
98

quant itativ a dá à
quant idade . Lógica de despesa, porqu e a super iorida de
até à saciedade.
agressividade sua segurança. A bruta lidad e conso me força

O inimigo absoluto

ewitz susten-
Depo is da ofensiva ao excesso, o inimigo absoluto. Claus
ha à ascensão aos
tava que o caráter limita do dos objetivos políticos se opun
a. 30 Não se iria
extremos. O objetivo político dá ao alvo milita r sua medid
o de território.
arriscar todos os recursos de um país para ganha r um pedaç
rá total para um
É preciso comp reend er a contrario que a guerra se torna
cionárias ou de li-
objetivo absoluto, como é o caso para as guerras revolu
poder ocupa dor
bertação nacional. Que se trate com efeito de expulsar um
nos dois casos não
ou de instalar à frente do Estad o forças revolucionárias,
vida, para a morte .
há com o inimi go nenh uma negociação possível. Para a
Vencer ou morrer. Tudo ou nada.

o nem justiça nem


O soldado mercenário moder no não espera de seu inimig
domesticada e limitada
favor. Ele se afastou da hostilidade convencional da guerra
te que é a hostilidade real,
para se transp ortar para o plano de uma hostilidade diferen 31
à exterminação.
cuja escalada, de terrorismo em contraterrorismo, vai até

r a posição
Num conflito clássico, a vitória milita r só serve para ocupa
sário a um tra-
mais favorável à mesa de negociações, para obrigar o adver
procu ra um acordo
tado de paz desfavorável. A guerrilha ao contr ário não
político a esperar
com o inimigo: este deve desaparecer. Se o objetivo
32

nal, conqu ista sem


é absoluto (afirmação plena de uma ident idade nacio
meios empregados
partil ha do poder, instauração de um novo regime), os
ão de guerrilha
serão ao inverso uma série de ataques menores. A situaç

, fornecerá a medida do alvo a ser


30
"Assim o objetivo político , como móvel inicial da guerra
atingid o pela ação militar" , Clause witz, o.e. p. 59.
3
' C.Schm itt, Théorie du partisa n,
trad . M. L. Steinhauser, ed. cil. p. 213.
32 "Os golpes dados no advers ário visam destru i- lo, senão não teriam
sentido ", Mao Ze-
ionnair e en China, in G. Chalia nd , Stra-
dong, Proble mes stratég iques de ta guerre révolut
tégies de la guérílla , ed. cil. p. 500.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 99

supõe de fato uma dissimetria esmagadora de saída: as forças militares con-


vencionais estão absolutamente inteiras do lado do ocupante ou do regime
instalado e não poderia ser questão de as afrontar diretamente. O termo
"guerrilhà', no início das operações de suplemento, designava pequenos
combates secundários, movimentos de apoio à margem da grande guerra.
Essa "pequena guerra", desenvolvendo táticas de pequenos ataques e de
escaramuças, progressivamente ganhou em autonomia para se tornar uma
forma com todos direitos contra forças ocupantes ou "dominantes" que
não era conveniente combater diretamente.

O alvo principal deste gênero de guerra é obter a destruição insensível do ini-


migo e como a gota d' água depois de muito tempo acaba furando a pedra, é preciso
cer paciência e perseverança, seguir sempre o mesmo sistema; o inimigo sofrerá mais
com o tempo do que se perdesse batalhas em fileiras; é preciso evitar cuidadosamente
os confrontos de massa contra massa nas planícies. 33

O primeiro princípio da guerrilha tem a ver, então, com a ação de


evitar a ofensiva frontal. Não se provocará uma grande batalha no curso da
qual cada um agruparia suas forças em vista de um afrontamento decisivo.
Preferir-se-á um assalto repentino às frações isoladas do exército que serão
o alvo de ataques pontuais (emboscadas, murros), mas ataques suficiente-
mente repetidos, de maneira a provocar em todo o corpo militar inimigo
uma inquietação vaga, uma angústia difusa. Será preciso, então, infligir ao
inimigo tratamentos atrozes, próprios para gelar o coração de seus compa-
nheiros de armas: compensar por uma intensidade de crueldade o desequi-
líbrio quantitativo. 34 Essas pequenas ações esgotam o inimigo que só pode
opor-lhes uma agitação vaga.
Sabotagem nos centros de comunicações, nos depósitos de munições,
nas reservas de energia, nos caminhos de transportes. Aí ainda, é preciso

33
Le Míére de Corvey, Des partisans et des co1ps irrêgufíers, Paris, 1823.
34
Cf. as crueldades da guerrilha espanhola contra as forças de ocupação napoleônicas (e
reciprocamente) Ilustradas por Goya, em seus desenhos.
Estados de Violência
100

se sentir
incom odar, impedi r, atrasar, enervar. As forças "regulares" devem
logo.
perpet uamen te atacadas, mas por um inimig o invisível que se esvai
o se
O que supõe a cumpl icidad e da popula ção civil: o revolucionári
(Mao).
quiva e se dissimula, ele deve sentir-se "como um peixe na água"
ta e
Contra um ocupan te estrangeiro, a conver gência de interesses é imedia
, porque
a cumpl icidad e natura l. A repressão se torna terrível, cega, injusta
brutal,
o inimig o é todo mundo e nã é ningué m e não há nada de mais
lhe
incontr olável do que uma força se irritan do por sentis seu alvo sempre
a,
escapar. Se a guerra contra um inimig o claro pode perma necer hLiman
ão
como o face a face leal, a luta contra a guerril ha leva as forças de ocupaç
bater
a uma selvageria em que entra agasta mento e a raiva de não se poder
como é preciso. 35
s
Todos esses ataques dispersos, bruscos, voláteis contra frações isolada
têm por
do poder inimig o, essas sabotagens, essa infiltração na popula ção
seu de-
objetiv o exatam ent desencorajar o inimigo: chegar à exrinç,fo de
da
sejo de comba ter. Neste sentido , a guerril ha é uma guerra total, associa
a uma econom ia de meios. Ela se liga à inspiração da antiqu íssima
Arte da
guerra de Sun Tzu que aconselhava reservar o ataque frontal contra o ini-
falso ·
migo para o mome nto em que ele seria esvaziado de sua corage m por
inter-
alertas e enervá-lo contin uamem e até este ponto. É preciso para isso
r uma
vir em cima: cortar os recursos, interfe rir nas comun icaçõe s, suscita
o, mas a
inquie tação difusa ... Não se visa, então, o corpo armad o do inimig
te,
raiz de sua vontad e, seu sistem a nervoso, atorme ntando -o contin uamen
oo
incans avelme nte - encont rando- se lá onde ele não nos espera, evitand
afront ament o que nos propõe etc.

poder ocupante diante de


35
Ver as "justificações" de Schmitt das exações passiveis de um
mais a disciplin a de um exército regular é estrita,
atos de resistência irregulares: ''.Quanto
ela é escrupu losa em sua distinçã o entre militares e civis não considerando
tanto mais
e mais ela se tornará sombria e irritável se,
como um inimigo senão o adversário fardado
uma populaç ão civil que não traja o uniforme participa , ela também , do
no outro campo,
fuziland o, tomando reféns, destruindo as
combate. Os militares reagirão por represálias,
o estas medidas por legitima defesa diante de manobr as pérfidas e
localidades e manterã
traja o uniforme , evitando mesmo no
dissimuladas. Quanto mais se respeita o inimigo que
to tomá-lo por um criminos o, tanto mais implacá vel será o
centro do combate mais sangren
p. 240-241 .
tratamento infligido ao combatente irregular", C. Schmitt, o.e.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 101

Agressivo, provocai-o; arrogante, excitai sua arrogância. Disposto,


cansai-o; unido, semeai a discórdia. Atacai lá onde ele não vos espera; surgi
· · 36
sempre d e 1mprov1so.
Schimitt distinguia dois estilos de mercenário: 37 o mercenário "telúrico",
que defende seu solo natal contra uma força de ocupação estrangeira e o mer-
cenário "ideólogo" que instaura entre seus próprios concidadãos uma linha
de separação entre os justos e os injustos, os bons e os maus, os piedosos e os
infiéis, os burgueses e os proletários ... A guerra ideológica remete às guerras
civis, ao conflito fratricida: os inimigos aí estão mais próximos pelo sangue,
pela terra e contudo o que os separa é absoluto, pois em matéria de moral (o
bem ou o mal), de história (a chegada do homem autêntico ou a estagnação
da humanidade em sua pré-história), de religião (Deus ou os ídolos), não se
poderia transigir. A guerra ideológica supõe o que Schmitt chama de "hostili-
dade absolutà', 38 pois ao inimigo de classe ou da história ou de Deus, deve-se
a extinção. Daí este caráter radical, cruel das guerras subversivas, tanto mais
atrozes que opõem familiares, vizinhos, os sujeitos de uma mesma nação.
O extremismo da violência das guerras de subversão revolucionária
remete a três fatores éticos, além da simples política de terror, que se en-
contra nas guerras de conquista. Nenhum compromisso aqui é possível.
A entrada no processo para cada um comporta um caráter irreversível que
favorece a escalada aos extremos. É um salto qualitativo: não se pode estar
mais ou menos implicado na luta, não há graus de cumplicidade. A rigidez
da antinomia moral se reproduz como a do aliado e do inimigo. Não ser
pró é ser contra, e não ser contra é ser pró. O caráter absoluto e moral do
objetivo de guerra torna a neutralidade ou a moderação impossíveis. O
neutro é um traidor e o moderado um cúmplice.
De outra parte a proximidade obriga à atrocidade. As guerras civis são
terríveis, porque não há nada como uma antiga familiaridade para dar ao
ódio sua profundidade. Aí a pessoa se acha constrangida a incriminar o outro

36
L'a,t de la guerre, trad . J . Lévi, ed. cit. cap. 1, p. 54.
37
Théorie du partisan, ed . cit. p. 234-235.
38
lbid., p. 258.
102
Estados de Violência

pela sua própria crueldade. Desde que se trata de escolher no interior de sua
própria comunid ade quais serão seus aliados ou seus inimigos definitivos, a
pessoa não torna suportável para si mesma essa hostilidade impossível a não
ser transformando-a em ódio. É só a este preço que não se é inumano a seus
próprios olhos: satanizando o inimigo, lançando-o para fora de uma frontei-
39
ra, a que separa o Bem do Mal. Imagem do "inimigo absoluto". É por meu
próprio ódio que não perdoo ao inimigo. É por isso que o destruirei com o
último excesso: ele é culpado de meu ódio a seu respeito, responsável de ter
acendido em meu coração este fogo que me queima e o destrói.
Enfim, a proximi dade das guerras civis exacerba uma estrutura pa-
ranoica. Como é preciso desconfiar de todo mundo, cada um vive num
estado de insegurança constante, de vigilância perpetua mente despertada,
multipli cando os acessos de pânico. A proximi dade das guerras civis exa-
cerba a lógica de antecipação presente no seio de todo combate. Antecip ar
o golpe do adversário, desenvolver uma força superior à que se lhe supõe,
o lanço maior é negócio de cálculo e exige um inimigo tomado a certa dis-
tância. Contudo , quando ele está virtual e absoluta mente próximo e pode
cercar-me a cada instante, a antecipação funciona no primeiro movimento.
Todo mundo em toda parte é um inimigo potencial de todos. É como uma
dilaceração indefinida, em que as populações civis seriam pegas em tenaz:
intimada s por cada um dos partidos a escolher, submetidas dos dois lados
à intimida ção, ao terror e à propaganda.
Na guerra civil, cada um sustenta seu próprio ódio pela imaginação
de um ódio suposto do outro a seu respeito: eu te odeio porque tu me
odeias e reciprocamente. Quando duas imaginações se misturam , se pro-
duz a realidade do ódio. O ódio se torna real, justificado de ser partilhado.
Ele é alimenta do pelo medo, que lhe dá uma dimensão de urgência vital.
Eu te massacro porque tu queres massacrar-me: ''A guerra nasce de uma
aparência enganosa de guerrà'. Quando um tem medo do outro, a amea-
40

39 lbid.

0
Erasmo, "A guerra é doce para os que não a fizeram" (1515).
Primeira Parte - FORÇAS MORAIS
103

ça torna-se real. E basta um só morto para desencadear a espiral. Como a


brutalid ade era um esvaziamento da força até o abatim ento comple to do
inimigo, o ódio só se satisfaz com seu extermínio.

A mobilização total

A guerra total, em seu sentido historic amente mais preciso, é antes de


rudo a mobilização de todas as forças vivas de uma nação no conflito que
a opõe a uma outra. Com a Revolução Francesa, a guerra se torna "um ne-
gócio da nação todà'. 41 Ela não opõe mais dois exércitos, mas dois povos.
Ela não vê mais se afronta r dois Príncipes, mas duas Nações. Ela não chega
mais à destruição de um exército, mas ao esmaga mento de um povo; o que
significa "recrut amento geral" (serviço nacional) e participação de todos os
civis nesse esforço; o que significa também que as guerras se tornam para
os Estados negócio de vida ou de morte. A Nação mobiliza o conjun to de
suas forças contra uma outra num imenso sobressalto de vida. 42
Essa primeir a apresentação deixa crer que a profund eza da imobiliza-
ção provém de uma urgência simples mente vital, existencial. 43 É ignorar

•1 Clausewltz, o.e. Livre VIII, cap. Il i, ed. cit. p. 688.


•2 Cf. as teses de von der Goltz ("a guerra se tornou o negócio das nações",
La nation ar-
mée, organisation milita/re et mêthode s de guerra moderna , trad. H.
Monet, Paris, 1891 ,ci -
lado in Chalíand , Anthologie, ed. cit. p. 1004) retomada s por von Bernhard
i em La guerra
d'aujourd'hui, trad. M. Etard. Paris, ed. Chapeio!, 1913.
43 Ludendo
rff escreveu nos anos trinta um livro sombrio precisam ente Intitulado
A guerra
torai no qual, em eco à Minha luta de Hitler, ele dramatiz a ao extremo
o jogo moderno das
guerras: elas encarnam a luta vital dos povos. Elas constituem um instrume
nto ao mesmo
tempo de conseNa ção e de afirmação: pela guerra, uma nação defende
sua integrida de,
mas dá prova também de vitalidade, desenvo lvendo-s e numa prova
de força que será a
pedra de toque de sua vontade de poder. Uma raça sadia é uma raça
guerreira. Essa con -
cepção das novas guerras é indissociável, em Ludendorff, de uma polftica
de guerra como
preparação em vista da prova decisiva: "Como a guerra exige a mais
alta tensão, a pollllca
deve já em tempos de paz se preparar para sustentar essa luta vital".
A guerra é coisa mui-
to séria (um povo nela joga seu destino) para se deixar surpreen der
por ela. Toda grande
POiltica é uma polftlca na ótica da guerra ("a polltica deve seNir à guerra",
A guerra total,
ed . cit. p. 14). Essa mobílização constant e do conjunto das forças vivas
(cf. o que já dizia
von der Goltz: "É absoluta mente natural que as grandes nações civilizada
s dos tempos
modernos aperfeiçoem cada vez mais sua organiza ção militar em vista
de pôr em atuação,
no momento de necessidade, a totalidade de suas forças", La nation
arméa, in Chaliand ,
Anthologia, ed. cit. p. 1.003) supõe uma co_esão sem falha do povo, que
será assegurada
Estados de Violência
104

que vida é pruden te e sábia, e que ela gosta das reservas. As guerras mo-
dernas terão acarretado requisições esgotantes, extenuantes, mobilizações
suicidas. Há aí uma lógica de jogada extrema que supera a simples tensão
vital e cuja força é preciso encontr ar alhures: a técnica, a máquin a como
processo de consum o indefinido. A guerra modern a é guerra de consumo:
ela consom e cadáveres, consom e recursos, devora as vidas por séries. Jün-
ger, em A mobilização total (1930), já tinha deslocado o acento: mais que a
afirmação vital, é o desencadeamento da Força que a guerra exacerba. Ela
procede menos de um ajuntam ento vital das nações sustent ando sua inte-
gridade do que da vertigem anônim a da técnica arrastando os dois belige-
rantes em sua espiral. Toda técnica é técnica de exploração. Toda coisa nela
se define como disponível, gratuito-obrigatório*: objeto de manipulação,
de transformação, de utilização. O homem da época técnica é um bata-
lhador, relançando por sua atividade a posição generalizada do ser. Toda
coisa, todo indivíd uo é mobilizado, não num objetivo de conservação, mas
para aliment ar o ciclo indefinido de consumo. Produz ir para gastar, gastar
para produzir. Produç ão de massa, uniform e, anônim a. A guerra total é
técnica, não no sentido em que ela utiliza meios técnicos, mas em que ela
é meio da Técnica. Ela entra de novo no processo anônim o de consum o
das forças. Todos os recursos materiais, todas as atividades dos homens ...
"Não há mais uma só atividade, fosse a de uma máquin a de costura, que
não seja uma produç ão destinada, ao menos indireta mente, à econom ia de
guerra" .44 A guerra total não conta mais com soldados que se bateriam pela
vitória, mas com trabalhadores que alimen tam "um processo sangrento de
consumo". Como há um consum o de massa, a guerra total é destruição
de massa, em que os homens não são mais que um "material humano " na

ção de tudo que se


pela censura, pela propaganda e pelo controle das opiniões (erradica
cultura de uma religião autenticamente
assemelha a derrotismo, pessimismo, ceticismo) , a
seu gênio próprio e a planificaç ão de uma economi a orientada para
germânica que exalta
medida das forças tisicas, eco•
o esforço de guerra: "Na guerra lotai, o exército estará na
povo. A força anímica é o que dâ ao exército e ao povo a coesão
nômicas e anímicas do
p. 5).
indispensável para a luta pela vida e pela conservação da raça" (ibid.,
44 La mobi/isation totale, ed. cit.

*Nt. é a corveia medieva l= trabalho penoso, gratuito e obrigatório).


primeira Parte - FORÇAS MORAIS 105

fornalha de uma máquina que não quer senão girar. 45 Uma só humanidade
na guerra a serviço do consumo das forças. A guerra está a serviço da força
desumana, no sentido em que o antagonismo a limita. 46
Essência do século XX. É por essa "prestação de serviço" indefinida
que se caracteriza ainda, para Hannah Arendt, além da guerra total, o
rotalitarismo. A tirania ou o despotismo era o reino criminoso de uma
vontade humana arbitrária, não levando em conta nenhuma lei. O to-
talitarismo ao contrário submete tudo a leis: a lei da Natureza para o
nazismo, exigindo a exterminação ou a sujeição dos povos inferiores para
assegurar o desenvolvimento das raças puras; a lei da História para o
comunismo, exigindo a eliminação dos traidores ou dos covardes que
recuariam diante da marcha inexorável do progresso. Mobilizar, pôr em
movimento os homens para processos anônimos alimentando-se de sua
própria lógica, é a essência do terror. 47
É preciso ainda compreender de que iniciativa o homem alimenta este
sistema que o esmaga. Por detrás das guerras totais, do totalitarismo e tam-
bém do fenômeno do genocídio ou das guerras coloniais exterminadoras,
pode-se sempre denunciar a lógica delirantte da técnica, do produtivismo,
do consumo das forças. Contudo, o que é que sustenta em cada homem
essa lógica, quando ele organiza os massacres, quando planifica a morte em

45
Cf. a caracterização em von der Goltz da guerra moderna pela "consumação ao máximo
feita da matéria humana" (La nation armée, citada in Chaliand, Anthologie, ed. cit., p. 1.016).
46
Cf. Patocka: "(A guerra) representa a vitória definitiva da concepção do ser nascida no
século XVII com a emergência da ciência mecânica da natureza e a eliminação de todas as
"convenções" que faziam obstáculo a essa liberação da força: uma "trans-valorização" de
todos os valores sob o signo da força. Por que a transformação energética do mundo não
pode se fazer senão via guerra? Porque a guerra, a oposição levada a seu paroxismo, é o
meio mais eficaz de liberar rapidamente as forças acumuladas", in "As guerras do século
XX e o século e o século XX enquanto guerra" (Essais hérétiques, ed.cit., p. 135).
47
"O terror é a realização da lei do movimento: seu alvo principal é fazer que a força da
Natureza ou da História possa envolver o gênero humano inteiro em seu desencadea-
mento, sem que nenhuma força de ação humana espontânea venha pôr obstáculo. Como
tal, o terror procura "estabilizar" os homens em vista de liberar as forças da Natureza e da
História", Le systéme totalitaire, ed. cit. p. 21 O. Cf. ainda: "O objetivo prático do movimento
é enquadrar tantas pessoas quanto possível em sua organização e pô-las e mantê-las em
movimento; quanto ao objetivo político que constituiria o fim do movimento, não existiria
simplesmente", ibid. p., 50.
106 Estados de Violência

massa? Um pensamento seguro de seus poderes, um sistema inabalável de


certezas, o que Arendt chama: a ideologia.
A ideologia é um pensamento total: ela explica tudo de antemão, ela
nada tem a aprender porque já sabe demais. Ela precede o real. O real no
fundo nunca é o que deve confirmá-la. O fundo ético da ideologia é a
certeza massiva de ter razão contra, contra os outros, contra a realidade e
até contra ela mesma. Aquele que diz "eu sempre tenho razão" faz a guerra,
porque forçará o real a assemelhar-se a seu discurso. A guerra tornou-se
total por ser sustentada por um sistema de certezas. Alain declarava que o
homem é perigoso sobretudo pelo que ele pensa. Seus instintos são limi-
tados, suas ambições supõem mediações, suas paixões se gastam. Só seu
pensamento é total.

Só há guerras de religião; não há senão pensamentos de religião; todo ho-


mem pensa catolicamente, o que quer dizer universalmente; e persegue se não
pode converter. Ao que remedia a cultura, que torna a diversidade adorável; mas
a cultura é rara. 48

Neste sentido talvez a Filosofia, como pensamento dando-se por tarefa


fazer tremer as certezas mais que fundamentá-la s, denuncia a guerra. "Se
podes mostrar-me que estou errado, tu serás um amigo", dizia Sócrates a
seu interlocutor em Górgi,as. A ideologia diz: "se devo mostrar-te que tenho
razão, é que tu serás meu inimigo".
Brutalidade da ofensiva ao extremo, ódio do inimigo absoluto, dog-
matismo cego. Essas três raízes éticas da g_!le:_rr~ total se desdobram em
dimensões sem dúvida irredutíveis. A brutalidade é um excesso de forças
físicas. O ódio é uma raiva existencial de destruir. A ideologia é um sistema
intelectual de certezas.
E contudo, em toda parte, uma mesma tensão ética: acabar de vez
com. A brutalidade uer e r de vez com a resi tê eia do adversário ue

48
Propósito de 22 de julho de 1922, in Propos, li, Paris, Gallimard, Bibliothéque de la
Pléiade, p. 497.
primeira Parte - FORÇAS MORAIS 107

eh!_s{';_rgi; _gimq_~ çg_rpg .!JID-. d_e.§,__a_fio_clg_ qY:e C:Omo um obstáculo jnsuportável.


Quebrar toda resistência para enfim não _ter_ maisq_ue _se bater. A bruta-
lidade vai até o fim de seu esforço, porque não procura senão se esgotar
de fadiga. O ódio de seu lado quer acabar de vez e absolutamente com o
inimigo: ele quer sua morte completa, para não ter mais que odiá-lo. O
inimigo mais radical é aquele que se quer destruir porque vos obriga a este
ódio que vos torna mais dificilmente suportável a vós mesmo. O ódio radi-
cal é ódio do ódio: é ele mesmo que se quer extinguir com o último suspiro
de sua vítima. A ideologia enfim pretende explicar o real, refletir sobre o
real. Contudo, ela o põe a seu serviço. A realidade é o que serve para provar
o dogma: "eu bem vos tinha dito". A realidade é um plano de aplicação,
em que não existem mais nem os homens nem sua vida, mas somente a
equação a realizar. Ela não é o que há para compreender, mas o que deve
verificar a demonstração. A ideologia é verdadeira e a realidade não tem
mais que se manter bem. Acabar de vez com a realidade do real: o que nele
poderia resistir à teoria. Torná-lo transparente ao dogma. Programas de
genocídio, programas colonialistas de exploração-exterminação, estratégias
de guerra total: todos estes discursos se mantêm, eles estão cheios de razões
e os que os adotam estão cheios de certezas frias. Esses imensos massacres
são fórmulas sem ódio, em que a morte é antes de tudo uma conclusão
cientificamente demonstrada: "é preciso exterminá-los", é uma fatalidade
matemática. A ideologia exatamente acaba com o real.
Acabar de vez com. Alguma parte entre a pulsão e a máquina de mor-
te. Aí, contudo, nada de suicida, masoquista ou macabro. Somente essa
estranha tensão de morte que quer mal ao inimigo porque a despertou.
''A guerra é um inferno", dizia o general Sherman. A guerra é um inferno,
mas se for preciso fazê-la, então levá-la a seu paroxismo para dela sair mais
depressa possível: que a revelação de seu rosto seja contemporânea de sua
extenuação. A guerra total é a mesma que quer mal ao inimigo de tal modo
que ele nos obriga a fazer-lhe a guerra e que sobre ele os golpes redobrem
com uma raiva inaudita. Tensão ética que se exacerba, se exagera para en-
fim não mais se sentir. Guerra de overdose.
Segunda Parte

LANCES POLÍTICOS
Introdução
"A guerra é negócio de importância vital
para o Estado; a província da vida e da morte;
o caminho que leva à sobrevivência
ou ao aniquilamento."
SuNTzu
A arte da guerra

A guerra é um conflito armado, PÚBLICO e justo (Alberico Gentilis, De jure belfi).

Pensar a política ou antes o Estado (ou a cidade ou o Império) à luz


da guerra obriga a Filosofia a desenvolver conceitos dinâmicos e frágeis. O
vocabulário da lei, do contrato, da vontade geral cede diante do vocabulá-
rio da autoridade, do poder, da força. O Estado se acha problematizado de
outro modo. O Estado sobretudo, pois é preciso dizer que a filosofia políti-
ca clássica pensa a guerra a partir do Estado, a guerra como essa relação de
violências regulada entre dois Estados: ''A guerra não é então uma relação
de homem a homem, mas uma relação de Estado a Estado. 1 "Contudo se o
Estado constitui o transcendental da guerra, reciprocamente a guerra será
largamente pensada como o que faz existir os Estados. Ela é condição do
político, desde que este é pensado a partir da fragilidade de sua imanência
histórica. O Estado é tomado no horizonte da guerra, desde que é tomado,
não mais como essência pura, forma deduzida, racionalidade ideal, mas
unidade imanente constituída em e por um campo de forças.
A filosofia clássica retomou essa imanência dinâmica segundo três di-
mensões.

1
J.J. Rousseau, Du contrat social, Livre 1, cap. IV.
112 Estados de Violência

Primeiro em sua radicalidade: questões de ordem natural, da corrente


da vida, do puro fluxo de existência, estas ondas de fundo em tudo que
constituem o Estado e o sustentam em seu esforço de existência (conatus).
Quais leis naturais, qual energia vital entram na guerra? O Estado ao qual
se põe assim a questão da radicalidade de sua imanência viva será designa-
do como poder.
A seguir, em sua finitude: o Estado como construção social deve ser
mantido, cada soberania é considerada no meio de uma pluralidade de ou-
tras. A guerra participa da arte de manter uma realidade histórica toda de
instituição. O Estado, cuja imanência instituída é tomada como finitude,
é um poder.
Enfim, em seu crescimento: para o Estado problemas de sua repu-
tação, de sua representação, da imagem que deve defender em relação a
outros Estados. O Estado, enquanto aumenta sua imanência unificada
por uma representação projetada, por uma imagem a defender, é pensado
como força pública, no sentido de uma visibilidade apoiada.
Imanência radical (o poder vital), acabada (o poder instituído), au-
mentada (a força pública): a guerra impõe à Filosofia pensar o Estado em
sua consistência, mais que em sua essência.
6
Afirmar seu Poder

"Duas cidades são naturalmente inimigas: os homens,


com efeito, no estado de natureza são inimigos."
SPINOZA, Tratado político

Dizer do Estado que ele é um poder, é pensá-lo a partir da radicalidade


de sua imanência. Encontram-se três maneiras de refletir sobre essa ima-
nência radical: existência, vida, natureza.
Partir do mais sutil: o que faz simplesmente existir uma comunidade
política. Carlos Schmitt, teórico maior do direito, ideólogo inquietante do
nazismo e antissemita notório, deu um famoso critério do político: a distin-
ção amigo/inimigo. Ele queria dizer que é preciso pensar, aquém do Estado
como instituição, regime determinado de distribuição dos poderes, poder
público que tem autoridade, num elemento de pura existência política.
Seja, para as comunidades, diferentes regimes de agrupamento. Pode-se
agrupar-se para negociações e mudanças regradas: comunidade econômica.
Pode-se reunir-se em torno de crenças e de dogmas: comunidade religiosa.
Pode-se encontrar-se em torno de valores e de regras de comportamento:
comunidade moral. Pode-se até agrupar-se a propósito de gostos e de co-
res: comunidade estética. Dessa vez haverá comunidade política desde que
for compreendida, no princípio do agrupamento, a possibilidade de exigir
em seu nome o sacrifício de seus membros, se um outro (inimigo) viesse a
pôr em perigo sua consistência.
A comunidade política para Schmitt não é uma entre outras, com
outros centros de interesses, outras finalidades, outras regras de viver jun-
tos. Ela é essa comunidade que se constitui pela afirmação do princípio
da defesa ativa de si mesma até a prova última: a morte. Trata-se de dizer:
nós que estamos juntos, antes que estar juntos para fazer isto ou aquilo,
existimos juntos. A profundidade, a autenticidade dessa existência, só há
114 Estados de Violência

o "sério" da morte que possa garanti-las. O limiar absoluto da política é


então o horizonte da guerra, o político designando a intensidade extrema
da relação com o outro. O inimigo não é nem rival nem o concorrente
nem o adversário: ele é constituído como aquele que ameaça diretamente o
existir-juntos de uma comunidade. Do mesmo modo o amigo não é aquele
que seria benevolente, cúmplice, mas quem se mostra pronto para pôr sua
vida em jogo por mim.
No mesmo tempo em que ameaça, o m1migo dá ao existir-juntos
sua profundidade. Schmitt aqui não diz: um mundo sem guerra seria um
mundo privado de sentido. Ele diz antes: num mundo privado da perspec-
tiva da guerra, as pessoas não estarão jamais juntas. Triunfo da técnica, da
economia, do universalismo abstrato: neste mundo, não haverá mais que o
humano, uma massa indiferenciada, séries de homens, mas não comunida-
des.1 O que a guerra defende não são nem valores nem ideias, ainda menos
interesses, mas essa pura existência.

O fato de causar a morre a outros homens que estão no campo inimigo, nada
disso tem valor normativo, trata-se, ao contrário, de valores puramente existenciais,
inseridos na realidade de uma situação de luta efetiva contra um inimigo real, e que
não tem nada a ver com alguns ideais, programas ou abstrações normativas. Não
há finalidade racional, nem norma, por mais justa que seja, nem programa, por tão
exemplar que seja, nem legitimidade nem legalidade que possam justificar o fato de
que seres humanos se matem uns aos outros em seu nome; pois, se na origem deste
aniquilamento físico de vidas humanas não há a necessidade virai de manter sua
própria forma de existência diante de uma negação também tão vital dessa forma,
2
nada mais poderia justificar este aniquilamento.

1
Há todavia dificuldade em compreender como, se o inimigo é o que constitui para um Es-
tado "a negação de sua própria forma de existência" (La notion de politique, ed. cit. p. 65),
então neste grau de radicalidade, a guerra política seria menos aniquiladora que uma guerra
em nome da humanidade, o que Schmitt aliás sustenta. A construção jurídica, em Le nomos
de la ferre, do "inimigo justo" (justus hostis), menos existencial e portanto menos absoluta, se
revelará sobre este ponto menos convincente. Pois como impedir que essa guerra existencial
não seja uma guerra total, como se vê em Ludendorff: "Por sua própria essência, a guerra
total não pode ser feita senão se a existência de todo o povo está ameaçada e se foi decidido
assumir a responsabilidade de fazê-la" (La guerre fota/e, ed. cit. p. 9)?
2
La notion de polifique, ed.cit. p. 90.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 115

O que faz que eu esteja pronto a morrer e a matar não faz parte de
nenhum programa, não defende nenhuma utopia. Isso toca a própria base
da existência. A guerra é decisão pura. Contudo, essa base da existência, o
que é? Identidade cultural, vitalidade do povo, destino histórico? As decla-
rações de Schmitt hesitam aqui entre vitalismo e providencialismo. 3
Se é o Estado em sua imanência radical que é preciso defender, o conteú-
do vital se impõe mais ao pensamento. Passar da existência à vida, é passar
da mística à biologia. O Estado não é mais um corpo místico (coesão provi-
dencial), mas um ser vivo (solidariedade orgânica). Serão tomadas então as
marcas conceituais do vital no instinto agressivo, a violência predadora. A
vida é um combate. Deve-se até superar o darwinismo: mais ainda que luta
para sua conservação, a vida é vontade de dominar, de deixar marcas. Sentir
sua força é sentir a superioridade de sua força contra um outro.
Viver é essencialmente despojar, ferir, dominar o que é estranho e mais
fraco, oprimi-lo, impor-lhe duramente sua própria forma, englobá-lo e
ao menos, ou melhor, explorá-lo, - mas por que empregar sempre estas
palavras que exprimiram desde sempre uma intenção de caluniar? Todo
corpo [... ] deverá ser uma vontade de poder encarnado, ele quererá crescer,
estender-se, abarcar, dominar, não por moralidade ou imoralidade, mas
porque ele vive e porque a vida é desejo de poder. 4
A vida é desejo de poder: uma superação pela luta. Contudo, dominar
é sempre ao mesmo tempo dar forma. O vitalismo nietzschiano mantém
sua consistência de multiplicar os ecos entre estética e política: toda domi-
nação autêntica é criação; e toda interpretação um ato de domínio. Então,
a grande política é formação do futuro. Nesse nível, as paixões nacionalis-

3
Há um ponto obscuro em que a definição política do inimigo se torna mística: o inimigo,
antes ameaçando uma integridade existencial, se define logo como inimigo providencial ,
aquele que me foi enviado para decidir minha identidade. Cf. a observação de H. Méier,
Carl Schmitt, Leo Strauss et la notion de politique, trad. F. Manent, Paris, Julliard, p. 96-100.
4
Par-de/à bien et mal, trad. C. Heim, Neuviéme Partie, par. 259, ed. cit. p. 182. Cf. ainda:
"Onde se encontra vida, somente ai se encontra também querer, não querer-viver contudo,
mas - é o que ensino - vontade de poder!" (Ainsi parlait Zarathoustra, Livre li, "Do domínio
de si", ed. cit. p. 159).
116 Estados de Violência

tas, as ambições dinásticas, os imperialismos cobiçosos não estão em alta. E


a guerra deve continuar sendo uma mensagem ética mais que uma propa-
ganda política (ver a retomada por Nietzsche da afirmação de Cristo: "Eu
vim trazer a guerra"). 5
Outras lições de vitalismo foram menos parcimoniosas, como nas po-
líticas nacionalistas expansionistas e brutais. A guerra é exaltada, então,
como instrumento de afirmação, de crescimento, de desenvolvimento dos
povos fortes, da vitalidade dos Estados. A metáfora orgânica serve de ins-
trumento de exaltação da violência. Certo número de doutrinários (Paulo
de Lagarde, Ernesto Hasse, Frederico von Bernhardi), no ponto de junção
dos séculos XIX e XX, popularizaram estes temas: a guerra como regenera-
ção dos povos; 6 a necessidade, para um povo são e forte, de conquistar pela
guerra um "espaço vital" (Ratzel) à medida de seu poder; a guerra como
meio de seleção e de eliminação dos mais fracos; a luta terrível das raças
dominantes entre si para assegurar sua supremacia; a exploração "natural"
dos povos inferiores etc. 7 Estas teses deixam hoje um gosto amargo na
boca: passagem de uma filosofia da vida criadora de formas a uma ideolo-
gia vitalista racista e violenta. Faz-se a guerra entrar de novo na vida, a fim
de justificar políticas coloniais atrozes ou sonhos desmedidos de império.
A vida, contudo, supera-se na Natureza. A Natureza, em sua ordem
calma e seus grandes equilíbrios, supera a vida como tensão belicosa. Lição
simples de Spinoza: é a composição dos poderes que lhes permite ganhar em
perfeição. Há mais necessidade natural na solidariedade do que no conflito.

5 "Trago a guerra", escreveu Nietzsche (Oeuvres phi/osophiques completes, tome XIV, de-

zembro 1888-janeiro 1889, trad. J . C. Hémery, Paris, Gallimard, 1977, p. 377) .


6 O que Nietzsche defende também em Humain trop humain, tome li, "O viajante e sua

sombra", par. 187, p. 259: "Poder-se-á aconselhar a guerra como remédio para povos
cujas forças se esgotam lastimosamente, a supor que queiram verdadeiramente eontinuar
a viver; pois há também um tratamento de choque para o enfraquecimento dos povos".
7
Em seu livro s0bre Les doctrines darwiniennes et la guerra de 14 (Paris, Economica,
2001 ), T. lindermann mostrou bem como essa ideologia vitalista deformou a percepção
das relações internacionais (terror do cerco, perigo dos povos eslavos etc.) e constitui um
elemento forte de explicação do desencadeamento da Primeira Guerra Mundial. Estas te-
ses não terminaram com ela. A humilhação da derrota e a duração do tratado de paz antes
reavivam a chama: elas se encontrarão intactas em Hitler (Minha luta , 1925) e no livro já
mencionado de Ludendorff, La guerre fota/e .
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 117

Até que ponto a "vida'' supostamente agressiva e violenta não terá sido pen-
sada como uma anti-Natura? A vida como uma Natureza em delírio.
Voltar a Spinoza, é passar, que se nos perdoe essa fórmula fácil, do
desejo de poder ao poder do desejo. Isto é, a Natureza, como sistema de
necessidades, feixe de finalidades, ordem de razões: organização. Para a
filosofia política clássica o que é propriamente natural, o que faz de todo
vivente um poder, é a paixão que o vincula à sua própria existência, no
duplo sentido sempre de um cuidado com sua conservação, mas também
de uma tendência à afirmação plena de seu poder de viver. Cada homem
assim, naturalmente, "tende sempre a conservar seu ser na medida do es-
forço que lhe é próprio". 8
Essa pura tensão a perseverar faz de cada ser um poder. E este poder é
um direito ("direito natural") já que seu esforço, segundo Spinoza, é sus-
tentado por Deus, absoluta liberdade que goza de um direito perfeito sobre
todas as coisas, produtividade infinita. Todo ser vive por Deus, não sob seu
império ou sua dependência, mas pelo poder continuamente outorgado.
Deus não está aqui como justificação, garantia do desejo (como se fosse
preciso dizer: é Deus que deseja em mim quando eu desejo, o que lhe dá
crédito), mas Ele sustenta a realidade do desejo. Deus não justifica nada
jamais, segundo Spinoza, mas em cada instante realiza tudo.
Ligar-se à sua conservação, procurar seu bem-estar, cultivar seu poder
de afirmação, fazer durar seu desejo, estes movimentos de poder são de
direito natural. Por aí, conclui Spinoza, os homens "são, pelo fato de sua
própria natureza, inimigos uns dos outros" .9
E desejar-se-ia manter aí a lição do realismo político, este pretenso
pessimismo antropológico. O que nos ensinariam os clássicos: o homem é
naturalmente hostil ao homem. Cada homem para o outro seria um inimi-
go natural. O homem é este animal que quer a guerra. A guerra é a mina de
realidade insuperável das relações inter-humanas. Ainda em sociedade, este

8
Traité de rautorité politique, 11, 8, ed. cit. p. 86.
9
lbid., li, 14, ed. cit. p. 89.
,-

118 Estados de Violência

animal belicoso fica impedido de agir livremente e se contém. Contudo,


basta ver o que acontece entre Estados, em que reina definitivamente "o
estado de natureza": puras relações de força, ações cínicas de dominação,
intermináveis violências. Como se a mina natural do homem e do Estado
fosse fixar sua essência agressiva. Pobreza da escola realista que crê com-
preender uma lucidez desesperada dos clássicos para dar lustro a manobras
más. Contudo, em nenhum clássico a natureza é "essencialmente belicosà'
ou os homens "fundamentalmente maus", como se fosse tocar aí o fundo
do ser. É descontar a maldade geral para justificar a sua própria, desesperar
do cinismo universal para escusar o seu.
Certamente, diz Spinoza, os homens são inimigos uns dos outros e
devem aprender a desconfiar uns dos outros. Contudo, por isso ninguém
esgota a profundidade da natureza. Cada homem é para o outro um ini-
migo do mesmo modo que estritamente não é seu amigo. E a amizade é
rara, como a verdadeira natureza, pois do inimigo ao amigo, não é natureza
ou cultura, é uma natureza pobre, difícil, frustrada, contra uma natureza
realizada e mais perfeita. Que ideia é essa?
Todo homem é um poder (e portanto tem um direito) limitado. Duas
configurações são possíveis entre poderes: concorrência ou composição.
Num estado de concorrência, trata-se de ser mais poderoso que um outro.
Um domina o outro porquanto o mantém sob sua dependência, seja por
um impedimento direto, seja indiretamente pela esperança de benefícios
ou por medo de represálias. Dos dois lados há compressão: compressão da
submissão (um pode dominar por um excesso de forças) ou compressão
da imaginação (um poder se impõe, por uma cadeia de representações).
As configurações formadas aí são precárias, frágeis, mutantes, instáveis.
Um homem não pode constranger um outro se não aceitar o risco de ser
constrangido por sua vez. No estado de dispersão e de isolamento, o poder
de um homem é nulo.
Se os homens agora fazem sociedade, unem seus esforços, compõem
suas forças, conjugam seus poderes sob a direção de um direito comum,
então ganham em poder e em perfeição. O que não significa uma renúncia
ao direito natural ou sua transferência, mas sua consolidação, sua ampliação.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 119

Se dois indivíduos, estando de acordo, unem suas forças, o poder e por conse-
guinte o direito, que todos dois desfrutam juntos ativamente no seio da natureza,
ultrapassam o poder e o direito de cada um tomado isoladamente [... ], pois quanto
mais os indivíduos que se põem de acordo são numerosos, tanto mais o direito que
usufruem juntos é considerável.'º

É preciso agora considerar essa passagem da concorrência à compo-


sição, como passagem do estado de natureza ao estado de sociedade? Su-
mariamente sim, a opor em abstrato um homem selvagem cercado pelos
animais, pelas doenças e hostilidades congêneres e um cidadão vivendo
tranquilamente de seu trabalho, numa cidade próspera. Contudo, o esta-
do de sociedade não é dado para sempre, como o estado de natureza não
seria definitivamente ultrapassado, separados os dois pela cesura mítica e
irreversível de um contrato. Aí ainda, nós estamos em sociedade porquanto
rechaçamos o estado de natureza. Não é um pacto que nos instala aí. É
como dizer de outro modo que a amizade depende de declarações escritas,
quando ela vive por ser alimentada por testemunhos e atos. Da mesma
maneira, a sociedade como composição dos poderes se constrói a cada
instante, se reforça por seu próprio exercício: solidariedade viva. É preciso
sustentar a necessidade de "tornar-se" sempre mais em sociedade. Aprofun-
dar a necessidade da concórdia para ganhar em poder.
A composição dos poderes entre Estados depende de um outro jogo.
Os Estados entre si contudo são como homens isolados: poderes que per-
severam em seu ser. Uma diferença essencial, porém, separa a solidão dos
homens da independência dos Estados. Um homem sozinho é um ho-
mem morto: seu direito é nulo e seu poder isolado não vale nada para sua
conservação. Ele procurará a sociedade: seus sentimentos como sua razão
o impulsionam. Um Estado, organizando uma primeira composição dos
poderes, é senhor de sua salvação. Ele se tornou um poder diante de ou-
tros, mas nenhuma necessidade se faz sentir então de se pôr sob um direito
comum para sobreviver. É utopia ou imaginação.

10
lbid., li, 13 e 15, ed. cit. p. 89 e 90.
120 Estados de Violência

Aí intervém a alternativa da paz e da guerra, diferente da passagem ne-


cessária da hostilidade primitiva para a concórdia civil, exigida pela razão,
recomendada pelas paixões. É como um segundo estado de natureza, di-
ferente do primeiro. Fora destes casos limites das guerras de estrita defesa,
o jogo da guerra e da paz depende mais das compressões da imaginação
do que de uma necessidade natural: 11 a saber, se me imagino bastante po-
deroso para impor minha vontade a um outro ou bastante fraco para não
resistir ao jugo imperial de uma paz má que me oprime e não constitui
jamais senão a imitação pálida da tranquilidade interior. Guerra ou paz? É
negócio de cálculo ou de arranjo, entre os poderes, de grau de independên-
cia desejado.
Pois o que toma forma de paz entre Estados não tem a mesma rea-
lidade ou grau de perfeição que a tranquilidade civil. A concórdia inter-
na é composição dos poderes sob um direito comum. Ela se alimenta de
seu próprio exercício e não depende de nenhum contrato, segregando sua
própria solidariedade viva. A paz externa entre Estados toma a forma de
um tratado imposto por um vencedor, de um pacto defensivo, de uma
aliança solene etc. É um arranjo de poderes que aceitam limitar sua in-
dependência, segundo uma configuração dada. Entre Estados não há paz
senão decretada, negociada, imposta, contratada. E essa paz tem a mesma

11
Sob a condição de pensar como Kant que seria possível considerar a paz como inscrita
nos fins da Natureza e a guerra como o que conduz a eles. Na primeira adjunção ("Da
garantia da paz perpétua") ao Projeto de paz perpétua, encontra-se a ideia de que a guer-
ra introduz na história dos homens princípios próprios para produzir a paz. Princípio de
dispersão, primeiro, a guerra obriga os homens a se dispersar sobre toda a face da terra.
Principio de defesa mútua, em seguida: a guerra obriga os homens a consliluir unidades
polí1icas estáveis, enquanto poderes aptos para se defenderem uns dos outros.Princípio de
reciprocidade: no interior dos Estados, o antagonísmo natural das paixões é favorável à for-
mação de Repúblicas (regras de comportamento comuns permitem às inclinações egoístas
encontrar seu débito na neutralização mútua). Princípio de separação: a diversidade das
culturas e a pluralidade dos Estados, se são fonte de conflitos, evitam ao mesmo tempo
a formação de uma monarquia universal que seria contrária a uma paz autêntica. No final
das contas, a lógica de guerra acaba por produzir na maior parte da superfície do globo
uma pluralidade de Estados republicanos prósperos. Basta, então, um rápido cálculo para
encontrar a paz proveitosa para todos. Neste sentido, é como se a paz fosse a filha longln-
qua, "natural", da guerra e por essa paradoxal linhagem mais solidamente estabelecida do
que se tivesse dependido somente da boa vontade dos homens.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 121

força que a guerra: é negócio de julgar se algum Estado está bastante forte
para decidir tudo sozinho ou se depende de um outro para assegurar sua
segurança.
Do mesmo modo que a tranquilidad e interna não é a paz externa, a
hostilidade primitiva do estado de natureza não é a guerra. A hostilidade
primitiva entre homens dispersados é insuportável para a n atureza já que
nenhum poder pode aí se desenvolver, ocasionand o então ÍJresiscivelmen-
te a organização dos Estados. A guerra entre Estados depende mais dos
interesses variáveis dos poderes, no jogo extravagante das ambições, das
reviravoltas das situações históricas. A necessidade natural se desfaz e a
compressão das imaginações aumenta. As cidades aí muitas vezes arriscam
menos sua sobrevivência do que seu grau de independên cia. O realismo de
Spinoza está aí: ele não desespera da "natureza humana", mas faz a cons-
tatação de que se a guerra fica no horizonte das relações entre Estados, é
que a Natureza, como poder de composição, aí se faz sentir menos, a inde-
pendência sustentando a ilusão de tirar benefícios. É como o egoísmo dos
ricos: desde que esteja sem dificuldades, um homem logo crê que não há
nenhum proveito a tirar da solidariedade.
De Schmitt a Spinoza, passando por Nietzsche, a mesma lição: a guer-
ra alimenta a imanência das unidades políticas, em graus diversos: ela é
destino que fixa o simples existir das nações, sintoma da vitalidade dos
povos, compressão da imaginação dos poderes independen tes.
7
Manter um Poder
"Eu manterei."
GUILHERME, o TACITURNO

Segundo grande núcleo de reflexão: finitude da imanência. A unidade


política então é por excelência o que há para ser mantido. Não no sentido
de conservar (um vivo ameaçado), mas de preservar (uma união social ins-
tituída pela vontade dos homens). E sempre a guerra será construída como
aquilo que dá consistência ao Estado.

Princípio de exterioridade

Maquiavel não cessou de dizer ao Príncipe: na arte da guerra está o alfa


e o ômega de teu poder.

Um príncipe não deve, então, ter outro objetivo nem outro pensamento e não
deve nada escolher como arte, a não ser a guerra; pois é a única arte que convém
a quem comanda; e ela tem uma tal virtude que não só mantém os que nasceram
1
príncipes, mas muitas vezes elevou a essa classe homens de condição inferior.

A arte da guerra deve ser tomada aqui no sentido amplo de técnica


estratégica. A política é relação de força. Ela é uma técnica para manobrar
no meio das ambições, para triunfar sobre os que querem vosso lugar e
poupar os que só querem ficar tranquilos. Ela é negócio de estratégia, não
de moral: trata-se de comandar e não de querer. Ou antes: desde que um
político fala de moral, faz moral, fala de fazer moral, ele faz política.

1
O príncipe, cap. XIV, ed. cit. p. 131. Cf. também: "Os exércitos bem compostos são o
apoio mais sólido de todos os Estados e sem eles não pode haver nem leis sábias, nem
nenhum estabelecimento útil" (Discours sur la premiére décade de Tite-Live, Livro Ili, cap.
XXXI, ed. cit. p. 153).
----- 124 Estados de Violência

Como escreveu Maquiavel, a guerra "mantém" os Príncipes. Ela faz 0


Estado manter-se, ela o sustenta em seu ser: "Que um príncipe aja, então,
de modo a vencer e manter seu estado (mantenere lo stato)". 2 Nunca se
perguntar "por que o Estado faz a guerra?" É como se perguntar por que 0
vivo se alimenta e respira, por que os pássaros voam. A guerra é o elemento
do Estado, como a água para os tubarões.
Austeridade e disciplina militar são os meios seguros de preservar
uma simples República, ordenada à sua essência. "Às doçuras e à ameni-
dade do clima", é preciso responder pelo "rigor de uma disciplina severa". 3
Essa guerra ainda, higiene de vida dos povos livres e sadios, é nostálgica,
lembranças da Roma republicana, conquistadora (daí a preferência ma-
quiavélica dada às milícias populares, animadas pela defesa da pátria, e não
a exércitos de mercenários ávidos de ganho).
Mais comumente, a guerra deve estar ligada às paixões fundamen-
tais do desejo e da ambição:

Todas as vezes em que os homens são privados de se bater por necessidade, eles
se batem por ambição. Essa paixão é tão poderosa que não os abandona jamais,
em qualquer classe a que sejam elevados. Eis a razão: a natureza nos criou com a
faculdade de desejar tudo e com a impotência de tudo obter; de sorte que o desejo
achando-se sempre superior aos nossos meios, dele resultam desgosto por aquilo que
se possui e aborrecimento consigo mesmo. Daí nasce a vontade de mudar. Uns de-
sejam adquirir, outros temem perder o que adquiriram; a pessoa se confunde; vai-se
às armas e da guerra vem a ruína de um país e a exaltação de um outro. 4

Contudo o que se chama de "guerra", o enraizá-la assim numa antro-


pologia do desejo e do movimento, recupera então o conjunto das relações
políticas e sociais como relações de força. Há guerra perpétua primeira-
mente entre o Príncipe e seus ministros (ver o famoso capítulo sobre as
conspirações: "todas elas têm por atores os grandes do Estado, ou homens

2
O príncipe, cap. XVIII, ed. cit. p. 153.
3
Discours ... Livro 1, cap. 1, ed. cit. p. 36.
4
lbid., Livro 1, cap. XXXVII, ed. cit. p.107.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 125

amigos do príncipe" 5); em seguida entre os grandes que se dilaceram - to-


dos atentos à menor fraqueza do outro porque aspiram às mesmas funções;
enfim entre os próprios Príncipes - invejosos de suas riquezas respectivas e
temerosos da ambição que os devora.
Mais raramente entre o Príncipe e seu povo, se ele sabe compreend er
que nele o povo encontrará seu apoio mais sólido: "Os tiranos que têm o
povo por amigo e os grandes por inimigos têm uma autoridade bem mais
6
solidamente assentada do que os que são apoiados só pelos grandes".
Contudo, de onde provém este estado? Resposta banal: o gosto imo-
derado do poder, o desejo de dominar, a ambição desenfreada ... "É que os
homens são maus". Fácil de entender se os filósofos fossem o que se espera
deles: dogmáticos. "Todos os homens são maus" para Maquiavel. "Todos
os homens são bons" para Rousseau. E as divisões intelectuais: Maquiavel,
cínico ou lúcido? Rousseau, otimista ou idealista? Contudo, nada disso;
porque dizer: "todos os homens são maus" é moral demais ainda. Não basta
revirar o sentido de um enunciado moral para sair da moral. Apenas se
faz revirá-lo. Pernas para o ar, é ainda a moral. Maquiavel pensa ao lado
da moral, não contra ela. Ao lado, e é sua grande probidade. A política é
negócio de estratégia.
O problema do homem de poder não é de ser moral ou imoral, é de
guardar seu lugar, de ficar no poder, de manter-se. E ele não se manterá
jamais melhor se não ganhar o apoio da multidão. Maquiavel jamais afir-
mou que um grande político devia ser forçosamente imoral, que segundo
seu grau de imoralidade se poderia mesmo medir sua grandeza. As falsas
virgens, guardiãs dos templos invisíveis, fazem rir quando denunciam o
horror do Príncipe: como se os tiranos verdadeiram ente tivessem esperado
que se lhes desse a ler este opúsculo para descobrir que o poder se con-
quista e se conserva pela astúcia, pela ignomínia e pelo perjúrio. Como se
Maquiavel desse receitas ao tirano, ao passo que francament e, isso não vai
muito longe. E muitos verdadeiros tiranos devem achar O Príncipe cândi-

5
lbid., Livro 1, cap.VI, ed. cit. p. 257.
8
lbid., Livro 1, cap. XL, ed . cit. p. 117.
126 Estados de Violência

do e um pouco fraco, não muito imaginativo. Como se disse: se Maquiavel


tivesse sido maquiavélico, ele jamais teria escrito O Príncipe.
"Os homens são maus (tristi)'',7 é uma hipótese obrigatória de traba-
lho para um homem de poder, quando pensa nos outros; mas quais ou-
tros? Não forçosamente o povo, não forçosamente todos os homens, mas
os únicos "outros" que valham: os ministros, os grandes, os Príncipes, os
poderosos. A maldade é uma boa hipótese de trabalho, porque a bondade
supõe que se possa sacrificar um pouco de seu interesse pessoal pelo outro,
que se possa suportar sem rancor que nossa confiança seja traída, que se
possa ver sem inveja o sucesso do vizinho e até sentir-se feliz com isso.
Contudo, salva exceção, é inconcebível. E não se faz política com exceções.
A hipótese inversa é mais comum, sobretudo entre os grandes; a procura
sem vergonha de seu próprio interesse, embora custe ao outro, a inveja que
me torna insuportável a felicidade de meu vizinho etc. A tal ponto mais
plausível, e isso caminha.
Não é aliás que os homens sejam efetivamente inimigos, mas é a ima-
ginação de que o outro o seja que o torna inimigo. Porque a se imaginar o
único honesto num ambiente de crápulas, passa-se a seus próprios olhos
por um imbecil. O homem neste ponto é um ser moral. Eu quero dizer:
sua moral é não querer passar por mais imbecil que um outro. Problema de
respeito próprio. O mais cruel na maldade é que ela acaba por ridicularizar
seu contrário e passar por inteligência.
No fundo, o homem não é mau por maldade fundamental, intrínseca,
inata, mas ele se torna mau por imaginação e interesse. Ao mesmo tempo
se diz: é estatisticamente provável que o outro me seja hostil; em resumo,
do mesmo ser eu mesmo hostil antes que ele seja revelado hostil às minhas
custas. Negócio de prudência e de "sabedorià'. Contudo, é terrivelmente
comunicativa e produtiva essa imaginação da maldade geral. O que a es-
tatística realiza é tê-la imaginado real. A maldade geral é imaginar o que a
faz existir, quem faz dela uma realidade. A realidade da guerra é produto

7
Cf. O príncipe, cap. XVII e XVIII; Discours ... Livro 1, cap. Ili.
Segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 127

da imaginação do inimigo. E alguém se torna velhaco para responde r à ve-


lhacaria imagina da do outro. Eis como o que era uma hipótese de trabalho
se torna uma realidade do mundo.
Felizmente, esse inferno ético se concentr a em zonas delimitadas, os
lugares do poder. Quan to mais se desce para a multidão , menos as ambi-
ções se fazem senti r e mais a bonomia do outro se coma uma evidência
plausível. Para Maquiavel há duas grandes categorias. ão os bons e os
maus, não. Moral demais. H á os ' grandes" e o "povo", os am biciosos e os
resignad os, os po suido res e os ganha-m iséri a, os arrogant es e os humildes,
grandes familias e filhos de ninguém. H á os que querem apaixonadam en-
8

te o poder, que querem dominar , reinar, falar forte e sentir-se os senhores .


E dep ois os outros, que querem sobretud o que os deixem um pouco tran-
quilos. "Eles e nós" ou "nós e eles" isso depende . É com isso que se faz
polícica porque eles cêm necessidade, apesar de tudo, de um pouco uns
dos outros. Eles devem , na falta d se legitimar, ao menos deixar existir um
e outros - e até mais: relações complexas de dependê ncia e de serviço, de
exploração e de sobrevivência.
De onde vêm as discórdias e as disputas que dilaceram as sociedades?
Da loucura de adquirir dos possuidores. O pobre que fica em sua fome tem
ainda a ilusão de que mais alguns bens poderiam satisfazê-lo, ao passo que
o possuido r é pego na espiral, uma corrida sem fim às riquezas e às honras.
9
Ele tem tanto medo de perder que quer mais ainda.
É com os grandes e o povo que se faz política, é entre estes dois que
o Príncipe deve encontra r seu lugar. A verdadeira diferença é que entre os
"grandes", os lugares são contado s e é preciso ter energia, habilida de, "força
e astúcia", para aceder aos melhores. Luta e competi ção, cálculo dos meios.
É entre si, entre homens de poder, entre ambiciosos e pretende ntes que se

Cf. Discours ... Livro 1, cap. IV e O príncipe, cap. IX.


8

que
"Parece que elas [as maiores perturbações] são muitas vezes provocadas por aquele
9

moviment os tão animados quanto o desejo de


Possui, porque o medo de perder produz
O homem não crê assegurar -se o que já tem senão adquirindo de novo; e aliás
adquirir.
abusar",
estas novas aquisições são outros tantos meios de força e de poder para deles
Discours ... Livro 1, cap. V, ed. cit. p. 48.

hr,,
128 Estados de Violência

é "maquiavélico". A multidão é bem outra coisa, pois se os grandes querern


dominar o mais possível e são insaciáveis (recompensar um é sempre ferir
o outro), o povo quer apenas não ser explorado.

Não se pode satisfazer os grandes com honestidade e sem injustiça para com outros,
mas pode-se muito bem com o povo: de fato, o fim que o povo persegue é mais honesto
que o dos grandes, pois estes querem esmagar e aquele não quer ser esmagado. 10

Vontade a máxima de um lado, a mínima do outro: "O povo deseja não


ser comandado nem esmagado pelos grandes e os grandes desejam coman-
dar e esmagar (comandare et opprimere) o povo". 11 O que há de tranquili-
zador com o povo, conclui Maquiavel, é que gosta essencialmente de ficar
tranquilo. Ele vos será grato por não tê-lo explorado, quando poderíeis ex-
plorar. Ele só tem vontades negativas: não ser muito oprimido. Eis porque é
a ele que é preciso deixar a guarda da liberdade, pois há mais de verdadeiro
desejo de liberdade na resistência à opressão do que na raiva de dominar. 12
De resto, a gratidão do escravo, seu verdadeiro reconhecimento, ja-
mais é pela bondade do senhor (é sua imaginação de senhor que lhe faz
acreditar), mas pelo que o senhor teria podido ser tão mais cruel e brutal.
É então fácil contentar o povo: não o oprimindo demais. Exatamente o
bastante para fazer sentir que poderia mais: "Os homens, quando lhes faz
bem aquele que acreditavam que lhes faria mal, são ainda mais gratos a seu
benfeitor" .13 Outra coisa: pode-se ainda contentar mais o povo pedindo
que nos preste serviço, porque é honrá-lo fazê-lo sentir uma dependência
a seu respeito. 14 Liga-se mais o povo pelos serviços pedidos do que pelos

10
O príncipe ... cap. IX, ed. cit. p. 101.
11
Jbíd.
12
"Está-se obrigado a convir que há no primeiro, um grande desejo de dominar e no se-
gundo, um desejo somente de não sê-lo; por conseguinte mais vontade de viver livre. O
povo anteposto à guarda da liberdade, menos em estado de usurpá-la do que os grandes,
deve ter necessariamente mais cuidado e não podendo dela se apoderar, deve se limitar a
impedir que outros dela se apoderem", Díscours ... Livro 1, cap.V, ed .cit. p. 46.
13 O príncipe,
cap. IX, ed. cit. p. 103.
14
"É da natureza dos homens sentir-se obrigados pelos benefícios que distribuem, como
pelos que recebem", ibíd., cap. X, ed. cit. p. 109.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 129

serviços prestados. Estes últimos com efeito não podem senão reavivar a
defasagem cruel entre o que se lhe outorga efetivamente e o que lhe deveria
ser outorgado.
É assim que o povo é fácil de ser contentado, mas difícil de ser en-
ganado. Justamente porque ele ignora a arte das astúcias. Ele está muito
habituado a pagar à vista, para ficar livre. É porque os meios importam
pouco para Maquiavel, pois o popular se liga mais ao resultado claro; "O
popular é tomado pelo que aparece e pelo efeito da coisa (el vulgo va preso
con quello che pare e con lo evento delta cosa". 15 Se o povo não se deixa facil-
mente enganar, 16 não se deve por isso esquecer que ele se deixa facilmente
impressionar e fica sensível às aparências, 17 como os grandes lhe ensinaram.
Daí o conselho de Maquiavel: jamais desprezar o povo, aprender a
manejá-lo, compreender que ele é o poder em última instância e que não
se ganha nada em provocá-lo demais, aprender a ter que descer até provar
desse último escalão. No fundo, só há o povo com quem se possa contar
verdadeiramente. O Príncipe deverá apoiar seu poder sobre este fundamen-
to. Mais seguro, mais sólido, mais durável. Ao passo que deverá desconfiar
constantement e de seus semelhantes. Nem que fosse por pragmatismo, é
preciso ser sempre um pouco republicano. 18
Entre o Príncipe e o povo, a paz é então possível. A guerra perpétua
terá lugar entre o Príncipe e seus ministros, entre o Príncipe e outros
Príncipes.

Desses o príncipe deve precaver-se e temê-los como se fossem inimigos declara-


dos, pois sempre na adversidade, eles ajudarão para sua ruína. 19

15
lbid,, cap.XVIII , ed. clt. p.153.
16
Discours .. . Livro 1, cap. LVIII ("Mas quanto à prudência e à estabilidade , sustento que um
povo é mais prudente, mais constante e melhor íuiz do que um príncipe. Não é sem razão
que se diz que a voz do povo é a voz de Deus", ed. cit. p. 145), e cap. LIX ("Eu creio ler
provado que o povo sendo menos sujeito a se enganar do que um príncipe, pode-se confiar
com mais segurança no povo do que no principe", ed . cit. p. 149).
11
lbid., Livro 1, cap. UII.
'ª "Também a melhor fortaleza que seja a de não ser odiado pelo povo·•, O príncipe, cap.
XX, ed. cit. p. 179.
9
' lbid. , cap.lX, ed. cil. p. 103.

+,
Estados de Violência
130

-
Para além das paixões correntes (ambição, cupidez etc.), mais profun
tão
damen te, o que faz a fragilidade do poder do Príncipe e que o torna
É a.
sensível aos golpes, é que o poder é sempre o que se tomou de um outro.
a.
única descoberta do Príncipe, mas é uma descoberta pela metade, como
re,
criança que descob re que o rei estava nu no conto. Mais não se descob
ousa-se dizer: o poder sempre foi tomad o de um outro. Aquele que hoje 0
na.
detém tomou o lugar de um outro ontem e um terceiro espera sua hora
é nin-
sombra. Todos usurpadores. Todos, e é nesse ponto mesmo que não
existir
guém, pois falar de usurpação poderi a deixar crer ainda que poderi a
em algum a parte um preten dente legítim o ao poder.
Contu do, não é preciso confun dir: os lugares, as funções, os postos
s, mas
são legítimos e sagrad os ("são não os tículos que honram os homen
dade
os homen s que honram os títulos"); pois depois de tudo, há necessi
20

É pre-
de Príncipes, de ministros, de intend entes e de grandes secretários.
gentes.
ciso que haja coman dantes e subcom andant es, dirigentes e subdiri
em
Dirigidos, sempre haverá bastante. Não gue se reclame em massa, mas
poder
massa se resolve. Uma filosofia partilh ada aí serve de consolação: o
é feito
jamais tornou alguém feliz. Nem infeliz aliás. Contu do, o poder não
para fazer feliz ou infeliz, mas para fazer poderoso.
Para dirigir, ao contrá rio, os lugares são limitados; e aí há pretendentes
-
demais. Quem será Príncipe ou ministro, intend ente ou o grande secretá
, nem
rio? Nesse nível, nenhu ma legitimidade: nem diplom a, nem família
, mas
tradição, nem talento, nem competência. Tudo isso ajuda sem dúvida
táticas.
o essencial se joga alhures: os cálculos e as ciladas, as manob ras
dentes
Nada jamais teve valor em si para aceder ao poder: todos os preten
que foram bem sucedidos o foram porque seus estratagema foram
os me-
idade
lhores. E eles o sabem entre si, mesmo se querem justificar a legitim
. Que
histórica da autorid ade sagrada ou da compe tência em bem comum
o
paixão cada um põe para afirmar que representa melho r que um outro
interesse de todos!

20 Discours ..., Livro, cap. XXXVIII, ed. cit. p. 334.


segunda Parte - LANCES POLÍTICOS
131

Isso cria apesar de tudo um elo entre eles: estas frases. O que os liga
são estas palavras, nas quais ninguém acredita, ocas, mas que se partilham
não obstante e que permitem que se fale entre grandes, entre os grandes e
0
povo, entre o Príncipe e os grandes; que seguindo umas às outras não se
tornem realidade. A retórica do "bem público" é exatamente a delicadeza
política. Contudo, a delicadeza é de grande poder e muito legítima. Como
"bom dia'', "boa tarde", o "interesse geral" é uma abertura vazia, formal,
que permite às vezes ir mais longe.
Os grandes "sempre em movimento " sabem entre si que nada os desig-
na mais particularm ente para esse posto a não ser o primeiro a chegar, que
de resto seria sempre bastante sábio e capacitado para esses cargos que não
exigem nada mais, depois de tudo, do que tomar uma decisão. Eu não digo
uma boa ou uma má decisão, porque o próprio destas decisões políticas,
estratégicas, é de ser boas ou más pelo seu resultado.

O que há a desejar é que no momento em que o fato o acusa, o resultado possa


escusá-lo; se o resultado é bom ele está perdoado.2 1

O que faz a bondade de uma decisão é seu efeito. E quem pode conhe-
cer de antemão o efeito de uma decisão, quem pode prevê-la com conhe-
cimento certo? Ninguém. Pode-se imaginar, não se pode prever. Então até
que ponto os grandes estão mais bem colocados que um outro para tomar
decisões? Contudo, o próprio de uma decisão é que é preciso tomá-la e
que é necessário que haja alguém para tomá-la. Qualificado para tomar
decisões, na medida da solenidade da tarefa, pois elas têm um efeito muito
extenso e público. As decisões são graves e é preciso saber exibir-se na me-
dida. Este posto de chefe é então realmente legítimo e sagrado, mas aquele
que o ocupa não se autorizou senão por sua paixão e seus cálculos, fora os
casos, excepcionais e raros, de probidade.
A guerra entre principados, entre Estados, entre poderes é uma fata-
lidade da mesma espécie, pois os Príncipes entre si são irmãos de paixão.

210 •.
pnnc,pe, cap. IX, ed. cit. p. 58.
Estados de Violência
132

O inimigo? Mas é um irmão, eu o conheço como a mim, animado pelas


mesmas paixões, desejoso de novas conquistas, ambicioso, atento a desco-
brir em mim o menor sinal de fraqueza para me pisar. Ébrio de glória, de
renome. Em Maquiavel, só há rivais. Ou então são guerras de pura com-
22
pressão, as mais ferozes.
O Príncipe não se mantém no posto como se diz, no sentido em que
ele se agita e agita por toda parte a ameaça da guerra, porque sua função,
ele não a tem de nenhum a autorida de transcen dente, ele a tomou de um
outro e todos ao redor sabem disso. Não há necessidade de que seja este
ou um outro que esteja neste lugar (de resto a maior parte dos homens não
23
poderiam jamais ser bons, trabalhadores e honestos ou mesmo corajosos,
senão por necessidade). E eles se veem bem no lugar do outro para esten-
der seu reinado. Os Príncipes entre si são como os ministros entre si. Num
caso, isso causa as intrigas de sucessão, noutro provoca a guerra. A guerra,
é preciso então sempre se mostrar preparados para ela. É em política o que
se chama respeito. O respeito é negócio de distância: manter distância ou
ser mantido à distância respeitável. De resto, os poderosos só conhece m o
que os mantém em respeito. Eles não são detidos a não ser pela ameaça:
24
"Sempre, se há boas armas, haverá bons amigos".
Se zombais da guerra, é ela que zombará de vós, e de que maneira
ainda: ''A primeira razão que te faz perdê-lo (o estatuto de príncipe), é des-
cuidar dessa arte (militar) e a razão que te faz adquiri-la é ser perito nessa
arte" .25 Maquiavel não é um "vai à guerrà' exaltado, sistemático, teimoso.
Contudo , houve a experiência e a história de seu tempo: a Itália berço da

ou pela
22 "A segunda espécie de guerra acontece, quando um povo Inteiro coagido pela fome
·guerra , abandona suas terras, suas mulheres, seus filhos e va i procurar novas terras e uma
mas para
nova morada, não para aí dominar como aqueles de quem falamos mais acima,
. Essa
possui-la individualmente, depois de ter vencido e ter expulsado os antigos habitantes
de guerra é a mais terrível e a mais cruel", Oiscours ... Livro li, cap. VIII, ed . cit. p. 175.
espécie
23 Cf. o admirâvel capitulo XII do Discours em que é aconselha do ao general, para obter a
a invencível
melhor coragem de suas tropas, "ocupar-se em colocar os combaten tes sob
lei da necessidade" (ed. cit. p. 283).
24 O príncipe, cap. XIX, ed. cit. p. 55.

25 lbid., cap. XIV, ed. cit.p. 131.


segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 133

Renascença, rainha das artes, atravessada por grandes exércitos da Europa,


teatro das ambições imperiais, presa das cobiças políticas, derrubada como
urn castelo de cartas, devastada por falta de preparação, ausência de coesão
e disputas internas.
Preferis a guerra ou a paz? Pergunta imbecil. Não há que escolher entre
a guerra e a paz, mas saber somente se se quer ganhá-la ou perdê-la e saber
até que ponto se está preparado para perder ou ganhar. A guerra está aí
incontornável, força maior, necessidade. Não se opõe a ela, pois opor-se à
guerra não é se retirar e ficar fora, permanecer-lhe indiferente. Opor-se à
guerra é perdê-la, é aceitar tê-la perdido. O verdadeiro problema da guerra
como da violência é que não se pode escolher entre ela e seu contrário: é
ela que escolhe. Um dos grandes conselhos de Maquiavel será de jamais
esperar evitar uma guerra que se prepara ou ganhar tempo contra ela: "Não
se impede a guerra, adia-se para a vantagem de outrem". 26 A paz é funda-
mentalmente quando a guerra nos deixa em paz.
Não se trata de gostar da guerra por um homem de poder, mas de
levá-la a sério. Levar a sério: ela tem sua organização, suas necessidades,
sua lógica. Fundamentalm ente, ela não se improvisa. Então, com certeza,
a moral evangélica, os grandes princípios, o pacifismo incondicional, os
grandes discursos têm um belo jogo. Tudo isso, porém, não é sério. No
fundo, talvez a moral não seja séria, tão fácil em seus princípios, tão espon-
tânea à força de ser incondicional, absoluta, eterna. Jamais mentir, jamais
enganar, jamais odiar. Sempre leal, fiel, sincero ... É fácil, sobretudo fácil
para dizer, para proclamar: não há que se embaraçar em circunstâncias e o
discurso se lança sozinho, sem obstáculos.
Contudo, a guerra é conforme as coisas correm. Contra quem, com
que, com qual objetivo, seguindo quais estratégias, com quais aliados, para
quais lances? Nada de circunstancial, de movente, de imponderável. É
preciso ter forças, táticas, recursos, escolhas: exército de mercenários ou
milícias populares, guerra de cerco ou guerra de movimento, cavalaria, in-

2
ª lbid., cap. Ili, ed. cit. p. 57. (Cf. também o conjunto do capítulo X do Discours ... Livro 111).
134 Estados de Violência

fantaria ou artilharia? Em que ordem? A guerra tem uma história, modelos


antigos, formas atuais com suas contrações e suas evoluções. Ela é negócio
de decisões. Quanto, quando e como? E nestas decisões, há questão de vida
e de morte, de manuten ção de um poder. Há guerra, porque sempre é pre-
ciso se manter, em virtude do que Foucault descobre em Maquiavel como
princípi o de "exterioridade" .27 O Príncipe se mantém no poder porque
dele ao poder o elo é sintético. Ele sempre tomou o poder de um outro e
deve defendê-lo contra os que querem dele se apossar por sua vez.

Princípio de unidade

A guerra permite ao Príncipe manter-se no poder contra pretendentes


externos. Ela é ainda o que mantém a unidade do Estado contra os riscos
de dilaceramentos internos.

Ainda há um outro ponto bem considerável, para mostrar que é preciso manter
a disciplina militar e fazer a guerra, é que sempre houve e sempre haverá aproveirado-
res, assassinos, malandros, vagabundos, sediciosos, ladrões em toda Rep(1blica, que
sujam a simplicidade dos bons súditos e não há leis, nem magistrados, que possam
ter a razão de tudo isso [... ]. Não há, então, meio de limpar as Repúblicas de tal
imundície, a não ser mandando esses elementos para a guerra, que é como um remé-
dio purgativo e muito necessário para expulsar os humores corrompidos do corpo
universal da República. A guerra ao inimigo é um meio para manter as pessoas em
amizade. Há outras considerações particu lares além destas; isto é, que o mais belo
meio de conservar um Estado e preservá-lo de rebeliões, sedições e guerras civis, e
de manter as pessoas em boa amizade, é ter um inimigo, que se possa enfrentar. Isso
pode-se ver pelo exemplo de todas as Repúblicas e até dos Romanos , que nunca en-
conu-aram mais belo antídoto para as guerras civis, nem remédio mais certo do que
28
colocar os súditos diante dos inimigos.

A guerra para Bodin, sobretud o quando se trata de Repúblicas, no


exterior, é feita para prevenir, contrariar, impedir os riscos de explosão in-

por M.
27
Sécurité, territoire et population, curso no Colégio da França de 1978 estabelecido
Senellart, Paris, Gallimard-Le Seuil-Hau tes Études, 2004, p. 95.
26
Jean Bodin, Les six livres de la Republique, Livro V, cap. V, ed. cit.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 135

terna. Contudo, em todo este desenvolvimento, é preciso distinguir duas


ideias. Primeira ideia: a guerra participa da unidade social no sentido em
que purifica a cidade dos elementos agitadores e marginais. Os vagabun-
dos, os violentos, os miseráveis e os crápulas, toda uma massa perigosa en-
contram aí em que canalizar suas paixões más. Eles nada fazem em tempo
de paz senão andar em busca de perpetrar maus atos. A guerra será para
eles uma ocupação encontrada, mas ela se dirige também à ociosidade am-
biciosa dos grandes. Os filhos de grandes famílias em tempo de paz não
encontram outra coisa a fazer a não ser dilapidar sua fortuna ou se pro-
vocar mutuamente por futilidades, causando em toda parte um clima de
excitação. As mais belas energias lamentavelmente servem para despedaçar
as cidades. Com a guerra, enfim nobres causas, enfim com que esgotar seu
ardor, em que buscar uma glória útil.
Contudo, durante este tempo, enquanto os aristocratas rivalizam em
glória vã e os filhos de ninguém caminham ao estrondo dos canhões, todos
procurando e encontrando a morte nas orlas do Estados, nas fronteiras,
trabalhadores honestos realizam sua tarefa, produzindo, acumulando. Pri-
meira conclusão: a guerra purificando o Estado de seus elementos pertur-
badores assegura uma coesão maior. O Estado pela guerra se desembaraça
dos fermentos da desordem. A guerra externa se torna fator de paz interna.
Fazer a guerra nos contornos do Estado permite assegurar a ordem e a se-
gurança de todos no interior.
Contudo, há mais ainda. Eu quero dizer que a guerra sem dúvida
pode ser tida como prevenção da desunião e da desordem, mas também
inteiramente como produtora da união de seus cidadãos. É que há em toda
guerra alguma coisa como um efeito de agrupamento, efeito de união, que
se torna a motivação secreta dos conflitos. A guerra reduz as margens de
manobra, anula os matizes, constrange aos dilemas, às alternativas: a pes-
soa é pró ou contra, intimada a escolher seu campo. O inimigo antes de
ser um inimigo público é um inimigo comum. Comum a todos, faz um
traço de união que nos reúne. O inimigo fundamentalmente é aquele que
nos permite esquecer nossas diferenças. Todos unidos contra o infame e o
bárbaro. Até que ponto sempre "ser amigo" não significa "ter os mesmos

t::,
136 Estados de Violência

inimigos"? Um Estado dividido e que sente lhe escapar o controle do Todo,


enfraquecer sua unidade, terá interesse em suscitar um inimigo de fora
para reagrupar as fileiras do exército, suspender as disputas internas.
Haveria aí um paralelo a ser feito com a psicopatologia e mais preci-
samente com o que a psiquiatria chama de "paranoia". A paranoia consiste
em inventar inimigos; mas inventar inimigos, por quê? Quando um indi-
víduo é ameaçado de desmoronar-se, de se fragmentar, sob o impulso de
pulsões contraditórias, de tensões que o esquartejam, seu único recurso
seria ir procurar uma força aquém da etapa psicológica regulando sua re-
lação com os outros em sua diversidade complicada (os parentes, os próxi-
mos, os concorrentes, os estrangeiros etc.). Despertar assim, no nível mais
biológico e fundamen tal, o mecanismo prioritário de defesa, por onde o
vivente se defende contra inimigos mortais. Aquilo que se supõe que de-
fende a unidade viva do eu deve também se mostrar apto para produzi-la.
Pela ativação exagerada dessa força, o efeito procurado é o de uma unidade
reencontr ada do eu exposta a uma multidão de inimigos que o compri-
mem, mas que comprimi ndo-o o provocam, o fazem surgir todo armado.
Inventar inimigos para si por medo de desaparecer.
Só há duas coisas, dizia Maquiavel, que possam guardar a República
(um povo livre e igual) da corrupção e da decadência: a pobreza e a guer-
ra,29 porque os tempos de paz e de ociosidade são para as Repúblicas épocas
de frustração, de decadência e de pretensões anárquicas. Honram-s e os
ricos e os poderosos mais que os virtuosos.
Num Estado em que os homens se sentem iguais e livres, como de
fato, manter a coesão? Como fazer sentir a união das pessoas quando não
se tem o recurso da obediência comum, forçada, a unificação do jugo? A
liberdade, a igualdade dispersam desde que não sejam mais equilibradas

29
"Refletindo sobre os meios de remediar este mal, eu creio achar dois. O primeiro seria en-
treter os cidadãos num estado de pobreza tal que eles não pudessem com rlquezas e priva-
dos de virtude corromper os outros e ser eles mesmos corrompidos. O segundo consistiria
em dlrigir de tal modo suas vistas do lado da guerra, que se estivesse sempre em condição
de fazer a guerra", Discours ... Uvro Ili, cap. XVI, ed. cit. p. 292. Cf. também : "As leis mais
úteis num Estado são as que mantêm os cidadãos pobres" (ibid., cap. XXV, p. 307).
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 137

pelo efeito de união que a adversidade permite. Então: solidariedade na


austeridade e agrupamento sagrado contra o inimigo. A paz e a prospe-
ridade são o perigo das democracias, o fermento de sua corrupção. Inevi-
tavelmente, elas trazem a multiplicação das desigualdades e o triunfo do
individualismo. Porque numa República próspera, cada um se sente igual
ao outro e se vê por toda parte inferior. Ser rico não quer mais dizer nada:
alguém é apenas mais ou menos rico. Numa democracia rica, os cidadãos
sentem a desigualdade econômica como a desaprovação de sua igualdade
política. Há mais equilíbrio na pobreza: ela se partilha melhor que a ri-
queza. A uma República rica será necessário, então, um inimigo claro e
massivo. Para que ela se sinta existir e não se desmorone na disputa dos
desejos contrários, das invejas discriminatórias, deve permanecer a força
do inimigo público. Suscitar uma guerra para definir um inimigo comum
que una e permita fazer passar para o segundo plano as desigualdades, num
reagrupamento forte de ameaça e de ódio.
A guerra nas Repúblicas florescentes teria, então, essa função positiva
de fazer esquecer as desigualdades múltiplas, dispersas, que põem em risco,
de outro modo, de minar a coesão. Contudo, há sem dúvida mais para
fazer esquecer pela guerra do que estas desigualdades múltiplas.

O cúmulo da infâmia é que há príncipes que, sentindo sua autoridade enfraque-


cer por consequência de uma paz demasiadamente longa e da união de seus súditos,
se entendem em segredo, de modo diabólico, com os outros príncipes que, quando
o pretexto é encontrado , provocam a guerra, a fim de tudo dividir pela discórdia dos
que viviam estreitamente unidos e de despojar o infeliz povo, graças a essa autorida-
de sem freio que a guerra dá. 30

Não se trata mais aqui de dizer que a guerra provoca a união sagrada
contra o inimigo. O teorema de Erasmo sobre o segredo dos Príncipes pa-
rece mesmo ir totalmente ao contrário já que ele diz: é quando a união das
pessoas é muito forte que os Príncipes provocam guerras. Eles vão mesmo

30
Erasmo, La complainte de la paix (1517), ed . cit.
138 Estados de Violência

até se entender em segredo entre si para se declarar a guerra. Contudo, a


oposição entre as duas teses é mais aparente que real. No enunciado de
Erasmo, compreende-se logo que a falta ordinária da paz é uma baixa dos
reflexos de submissão. A guerra, então, ensina de novo a obediência. Alérn
disso, porém, a guerra permite também fazer esquecer a divisão funda-
mental das sociedades. Não se trata mais de apagar, como em Maquiavel,
as desigualdades gritantes, irritantes, múltiplas das Repúblicas e de voltar
contra o exterior um espírito de disputas e de competição. Trata-se de fa-
31

zer esquecer essa divisão fundamen tal que divide toda a sociedade em duas:
divisão entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos, adminis-
32
tradores e administrados, capitalistas e explorados; pois a paz torna essa
divisão mais sensível, a questiona de novo, faz duvidar de sua utilidade.
As pessoas "estreitamente unidas" descobrem que no fundo elas poderiam
entender-se sem os Príncipes. Ora a guerra permite não esquecer como tal
essa divisão, mas esquecer seu caráter arbitrário, ilegítimo. Em vez de fazer
passar essa divisão ao segundo plano, a guerra a justifica como condição da
unidade, como a única coisa que permite salvá-la do perigo. A guerra reúne
em torno dessa divisão, como os soldados, na urgência vital, são reunidos
em torno de seu chefe. O que mantém a guerra é, então, um princípio de
obediênci a ao Estado.

Princípio de obediência

O direito natural em Hobbes é uma liberdade absoluta que me permi-


te usar todos os meios, sem limite nem restrição, para assegurar a conser-

31
''Se o país, ao contrário, está acostumado à guerra e dilacerado pelas facções, só essa
Instituição pode reconduzi-lo à tranquilidade, Em tais regiões, armas e chefes não serviam
senão para lutas internas em vez de servir contra o inimigo de fora: nossa instituição voltará
estas armas contra o estrangeiro e afastará os chefes da guerra civil", L'art de la guerre,
Livro 1, cap. XI, ed. cit.
32 Cf. para recordar, a tese absolutame nte contrária a essa de P. Clastres, em Archéo/ogie

de la viofence, para quem , a função da guerra incessante das sociedades primitivas seria
precisamente evitar a formação de uma instância de poder separada.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 139

vação de meu ser. 33 Quando este direito é o direito de cada um (hipótese


do estado de natureza), isso causa a guerra de todos contra todos. A de-
monstração é famosa. Se este direito de natureza é pensado, por hipótese,
corno direito de cada um sobre todas as coisas, isso põe com efeito entre
os homens uma igualdade fundamental. As diferenças corporais não são
jamais tão importantes que possam assegurar a alguém uma segurança ab-
soluta ("o mais fraco tem bastante força para matar o mais forte")34; quanto
às aptidões intelectuais, cada um se acha sempre bastante sábio, já que ele
julga por sua própria inteligência.
Cada um "se achà': não é a igualdade em si das aptidões que conta,
rnas uma igualdade para si. O que provoca a guerra é sentir-se o igual per-
feito com todos os outros. Ter o direito é sentir sua capacidade e cada um
pretende tê-la tão bem como um outro. O estado de natureza é a universa-
lidade dos pretendentes.
Destas pretensões partilhadas por todos, nascem as "três causas prin-
cipais de conflito": a rivalidade, a desconfiança e a altivez. 35 Rivalidade,
no sentido de competição: cada um pode sentir-se depois de tudo o pro-
prietário natural de qualquer coisa e não hesita em fazer uso da violência
contra um outro que quisesse também se apoderar dela. Desconfiança: não
importa quem poderia me atacar e cada um se vê obrigado a prevenir a
agressão, a se proteger batendo primeiro. Altivez: essa superioridade de que
cada um se gaba só mantém sua realidade se for reconhecida pelos outros,
o que significa que se irá atacar "pela reputação" 36 os que dela duvidam por
atos de hostilidade que quererão ser exemplares junto com outros.
Nessa hipótese do direito natural de cada um, estas hostilidades são
justificadas pela "preservação de sua própria natureza, dito de outro modo

33
"O DIREITO DE NATUREZA, que os escritores polftlcos chamam comumente de jus
natura/e, é a liberdade que cada um tem de usar seu próprio poder, como quiser para a
preservação de sua própria natureza, dito de outro modo de sua própria vida, e, por conse-
guinte, de fazer, segundo seu julgamento e sua razão próprios, tudo o que ele achar ser o
melhor meio adaptado a este fim", Hobbes, Léviathan, cap. XIV, ed. cit. p. 228.
: lbid. , cap. XIII, p. 220.
5
lbid., p. 224.
:m lbid.
140 Estados de Violência

de sua própria vida". E ao mesmo tempo Hobbes não cessa de mostrar


que elas excedem essa finalidade entendida como pura conservação. O que
caracteriza o estado de natureza é a fragilidade do sentimento de meu pró-
prio poder. Eu faço sempre mais que sobreviver a mim mesmo: devo rne
assegurar também a mim mesmo por minhas capacidades, manter duráveis
minhas prerrogativas, ostentar perpetuame nte para os outros minha supe-
rioridade. A consciência de meu próprio poder e de minha vida deve ser
partilhada e contínua. O sentimento que tenho de minha existência jamais
é compreend ido na simples imanência de uma relação a mim mesmo. Para
mantê-lo (em duração, para os outros e para mim mesmo), ele deve se
desenvolver na exterioridade dos sinais. O estado de guerra é exatamente
quando se deve sempre fornecer aos outros as provas tangíveis de que se
está vivo. Há sempre no estado de natureza este ponto de reversão em que
o apego às manifestações de meu poder ultrapassa o cuidado de minha in-
tegridade vital. Quando a competição vira inveja: eu não vou me apoderar
de uma coisa porque sinto um direito sobre ela, mas porque um outro a
deseja também. Quando a desconfiança se torna confiança agressiva de si
mesmo: eu não vou agredir o outro para prevenir seu ataque, mas, como
diz Hobbes, para "contempla r meu próprio poder em ação". Quando a
altivez se transforma em vaidade: a imagem de minha superioridade conta
mais então do que minha própria segurança.
Esse estado de natureza, em que cada um julga ter um direito sobre to-
das as coisas, produziria, se ele tivesse lugar, disputas sem fim, uma insegu-
rança permanente , uma discórdia indefinida. Correr-se-ia continuame nte
o risco de morte. O estado de natureza é um estado contraditór io, porque
a pessoa se esgota em provar que está viva. Daí a construção de uma paz
civil, a instituição de um direito unívoco do Outro, a constituição de um
léxico público e dogmático da justiça, da hierarquia dos poderes etc. Este
estado de paz interna não significa exatamente que os indivíduos renun-
ciem totalmente às paixões belicosas: competição, orgulho etc. Simples-
mente, o Estado soberano introduz um regime estabilizado dos sinais de
reconhecim ento que fixa o tempo de duração dos benefícios, dá definições
públicas do que é permitido ou proibido, designa os que é preciso honrar,
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 141

estabelece níveis diferenciados de igualdade etc. Não há paz interna senão


sobre a base de desencorajamento das pretensões igualitárias. 37 Abandonar
seu direito natural sobre todas as coisas é renunciar a pretender do mesmo
rnodo que um outro e aceitar obedecer a um só. Nós vivemos em socie-
dades civis marcadas pela obediência. Nós consentimos com as opressões
que os dirigentes nos impõem. Nós obedecemos às leis do Soberano. É
preciso partir da realidade deste estado social, como submissão partilhada.
A ordem reina, e a concórdia, sob condição de obediência unilateral a um
direito imposto por um Outro. Mas por que obedecer assim a um Tercei-
ro, que aparece, livre de toda obrigação, exceto da de garantir a segurança
geral? O que é que pode tornar evidente o artifício dessa estrutura?
A resposta é: se nós devemos viver em sociedade é que o estado de na-
tureza não é vivível. A realidade do estado social faz surgir, como sua origem
recalcada, a ficção de um estado de natureza caótica e violenta. O que nós já
descrevemos: estado de guerra de todos contra todos, na base de pretensões
gerais. Então, salvo a arriscar-se no caos, é preciso que um só decida por to-
dos os outros. Ficção dessa vez do contrato em que cada um renuncia a seu
direito natural e reconhece uma fonte exterior de direito universal e positivo.
A instituição do Estado depende de um: "nós não queremos morrer".
"Nós não queremos morrer" não é um enunciado arcaico perdido, que se
reencontraria na origem secreta da sociedade, uma pedra enterrada no
jardim da autoridade suprema. Quando um Estado invade um outro, es-
creve Hobbes, para os vencidos, do próprio fato de que sobreviveram, isso
significa consentimento. Não há que passar contrato: os dominados, se
ainda estão vivos, são a prova de sua submissão. 38 Quando um pai exerce

37
E se o que Tocqueville chama "a igualdade das condições" nas democracias modernas
consagra este sentimento fundamental de poder pretender como os outros toda coisa, isso
significaria retorno ao estado de natureza.
38
Cf. Hobbes, Léviathan, cap. XX, sobre "O Estado de aquisição", "aquele em que o poder
soberano é adquirido pela força[ ...] quando os homens[... ], por medo da morte ou das ar-
mas, autorizam todas as ações deste homem ou dessa assembleia, que tem suas vidas e
sua liberdade em seu poder", que Hobbes distingue da "soberania de instituição" em que
"os homens que escolhem seu soberano o fazem por medo uns dos outros, não daquele
que eles instituem" (ed. cit. p. 322),
142 Estados de Violência

sua dominação, a mesma coisa: a vontade de viver do filho significa tam-


bém consentime nto com o poder do pai. Sempre já se consentiu com as
39

opressões do Estado, já que aí se vive.


Daí tira-se a função inédita das guerras, dessa vez como conflito arma-
do entre Estados. Hobbes afirma: entre Estados é o estado de natureza que
funciona, então um estado de guerra. Cada potência conservou seu direito
de natureza: a liberdade de tudo fazer para preservar sua existência e sua
integridade. 40 A efetividade deste estado de guerra entre grandes potências
estatais é exatamente esclarecedora.

Contudo se jamais tivesse havido época em que os indivíduos particulares se


achassem uns aos outros em estado de guerra, não resta dúvida de que em todo
rcmpo os reis e as pessoas detentoras da autoridade suprema, em razão de sua in-
dependência, se invejam permanentem ente e se põem no estado e na atitude dos
gladiadores, aponta ndo suas armas um contra o outro e se espionando um ao outro,
com suas forcale:1..as, seus exércitos, seus canhões colocados nas fronteiras de seus
reinos. Contudo, já que por esres meios protegem as empresas de seus súcUcos, essa
41
situação não gera a miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos parricuhires.

Os Estados estão entre si em estado perpétuo de guerra. Isto não signi-


42
fica contudo batalhas efetivas, combates mortíferos incessantes. Política
da ameaça: entre Estados, a paz não se mantém senão pela chantagem
permanente da guerra. O estado de guerra aqui é quando se é obrigado
perpetuame nte a fazer medo a outro para mantê-lo em respeito. Somente

39
lbid.
40
"Todo soberano tem o mesmo direito para procurar a segurança para seu povo que um
indivíduo qualquer pode ter para buscar sua própria segurança", ibid., cap. XXX, p. 518.
• lbid., cap. XIII , p. 227.
1

42 "Com efeito, a guerra não consiste somente na batalha ou no ato de combater, mas neste

espaço de tempo durante o qual a vontade de desfazer-se da guerra por um combate é


suficientemente conhecida; e então, a noção de tempo deve ser levada em conta na natu-
reza da guerra, como é o caso na natureza do tempo em que o combate se faz. Pois, do
mesmo modo que a natureza do mau tempo não consiste num ou dois aguaceiros, mas
numa tendêncía ao mal tempo, que se mostra em vários dias, igualmente no que concerne
à natureza da guerra, ela não consiste numa batalha efetiva, mas na disposição reconhe-
cida para o combate, durante todo o tempo em que não há segurança do contrário. Todo
outro tempo é a paz", ibid., cap. XIII, p. 224-225.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 143

este estado não ocasiona a miséria, porque é nas suas fronteiras que o Esta-
do mantém a atividade militar, instalando um espaço de segurança interna,
em que a indústria, as artes e as ciências se desenvolvem.
"Mesmo se jamaís tivesse existido algum tempo em que os particulares não
estivessem em estado de guerra uns contra os outros... " O estado de guerra é
fazer medo. Contudo, fazer medo a quem precisamente? Ao inimigo que
me observa sem dúvida, pronto a me destruir desde que eu abaixe a vigi-
lância; mas também às pessoas. Quero dizer que se efetivamente o medo
é componente, 43 é preciso dar-lhe garantias. Só a realidade de um estado
de guerra entre Estados faz tornar-se sensível a ficção pura do estado de
natureza. O estado de guerra entre Estados na materialidade física de sua
presença contínua (fortalezas, guarnições e canhões nas fronteiras) projeta
sobre a clareira da paz civil a sombra de uma guerra primitiva, permitindo
a fundação continuada da autoridade suprema, fazendo-nos entender sem-
pre porque temos motivo para obedecer.

Princípio de equilíbrio

A guerra dá consistência ao Estado, na finitude de sua imanência (frá-


gil construção social). Ela mantém no poder um Príncipe que não lhe
está consagrado desde toda a eternidade (Maquiavel), ela mantém uma
unidade social precária (Bodin), ela mantém uma relação de obediência ao
Soberano autenticando a ficção do ideal de natureza (Hobbes).
Contudo, é ainda aí que não se deve tomar as coisas senão segundo a
perspectiva de um Estado. O que há ainda a manter é o equilíbrio. O tra-
tado de Westfália (1648), pelo qual se encerra a guerra dos Trinta Anos,
consagra ao mesmo tempo o fim de um sonho: a constituição de uma
monarquia universal, de um Santo Império romano, de uma república
cristã unida. No fundo depois de Carlos Magno, as guerras podiam ser

:; Cf. Fo~cault "a soberania se for~a sempre por baixo, pela vontade dos que têm medo",
1faut
dedendre la société ". N.t. "E preciso defender a sociedade", ed . cit. p. 85.
144 Estados de Violência

pensadas pelos grandes que as conduziam como a tentativa de reconsti-


tuição de uma unidade imperial que teria reunido todos os povos cris-
tãos. A assinatura do tratado de Westfália desencoraja este sonho impe-
rial, ao mesmo tempo em que põe fim à competênc ia universal da Igreja.
A guerra vai, então, mudar de sentido, depois dessa tomada em conta de
uma pluralidade irredutível de Estados soberanos. A união pacífica dos
povos da Europa não será mais procurada pela dominação vertical de um
só sobre todos os outros, mas a partir de um equilíbrio horizontal, em
que os pesos se estabilizam: "A segurança dos príncipes e das repúblicas
44
se coloca num contrapeso igual de poder de uns e de outros". Essa ideia
de um equilíbrio necessário para assegurar a paz tinha sido antecipada
45
por Guichardin a propósito dos pequenos Estados da Itália. Ela será em
breve alargada para a Europa inteira. A segurança de uma coexistência
dos Estados europeus não será, então, mais garantida pelo diktat (algo
imposto) do mais poderoso, mas por um efeito de compensaç ão mútua
dos poderes.
Todos esses temas da "balançà', do "equilíbrio", do "contrapeso" não
são novos e Hume neles encontra as primeiras expressões em A guerra do
Peloponeso de Tucídides, quando ele quer mostrar como Esparta, por uma
46
política das alianças, contraria as ambições atenienses. Contudo, estes
temas tomam nos séculos XVII e XVIII uma importânci a nova, quando a
situação geopolítica da Europa se torna inteligível através deles.
Foucault descreveu, em seus cursos no Colégio da França de 1978, o
aparecimen to e o desenvolvimento no século clássico da "razão de Estado"
como domínio de necessidade racional e imanente, independen te dos dog-
mas religiosos ou das convicções morais, domínio inteirament e constituí-

44
J. Bodin, Livro V de sua République, cap . VI, ed. cit.
45 "E consciente de que, para a república florentina e para ele mesmo, seria muito perigoso
que um dos mais poderosos aumentasse ainda seu poder, ele (Lourenço de Médici) se
empregava com todas as suas forças em manter as coisas da Itália tão bem equilibradas
que a balança não pendesse nem de um lado nem do outro". F. Guichardin , Histoire d 'ftalie,
trad. J. L. Fournet & J.C. Zancarini, Paris, Robert Laffont, coll. "Bouqins", 1996, p. 5.
46
"Sobre a balança do poder", ed . cit. p. 504-505.
nda Parte - LANCES POLÍTICOS 145
5eg U

do de interesses47 terrestres, aberto enfim a uma técnica de governo pelo


ual O Estado se assegura e se reforça a partir de uma legitimidade com
~nalidade própria. Essa "arte de governar à razão de Estado" atribui-se na
época de Richelieu dois imperativos maiores: de uma parte, pela polícia,
assegurar a manutenção e o desenvolvimento das capacidades internas de
um Estado, de seus recursos e de suas forças; de outra parte, manter pelo
sistema diplomático-militar uma relação de forças determinada, na qual
um Estado encontra seu lugar no meio dos outros.
O que até aí tinha sido pensado como vigilância, desconfiança ou ha-
bilidade e astúcia nos contratos ou ainda como fidelidade a alianças de
sangue ou união sagrada em torno de uma fé religiosa, se torna um cálculo
puramente racional, uma técnica própria para controlar uma ordem de
necessidades quase físicas. A teoria do equilíbrio europeu se constrói com
efeito em torno de axiomas formais: tornar impossível a constituição de
um Estado que seria muito mais forte que todos os outros e poderia, desde
então, aspirar à monarquia universal; constituir um clube restrito de Es-
tados claramente mais fortes que os outros, cujo poder seria pouco mais
ou menos igual; assegurar-se que a cada instante os Estados mais fracos
possam por uma coalizão se tornar também tão fortes quanto um vizinho
dominador etc. 48
O equilíbrio europeu visa idealmente a paz, a segurança e a liberdade
das nações: trata-se de prevenir a dominação absoluta de um só sobre todos
e de defender os Estados do apetite de poder de seus vizinhos. As guerras se
tornam essencialmente políticas. Elas não são nem justas nem santas: o pro-
blema não é mais combater uma heresia, castigar infiéis ou ainda obter repa-
ração por uma injustiça cometida por um Estado. Será preciso aceitar que a
França faça aliança com os protestantes para fazer contrapeso à Espanha etc.

47
Cf. as declarações famosas de P. de Béthune: "Razão de Estado não é outra coisa senão
razão de Interesse" e do duque de Rohan: "os Príncipes comandam os povos e o interesse
~ornanda os Principes" (citado por É.Thuau , Raison d'État et pensée à /'époque de Riche-
eu, ed . cit. p. 312).
•~E
fil ssa formalização das relações internacionais encontrará sua expressão mais pura na
1
osofia dinâmica de Leibniz.
146 Estados de Violência

Por ideal que seja, este sistema do equilíbrio europeu só encontro u,


mais frequent emente, o ceticismo dos filósofos e a condena ção dos juristas.
Hume, por exemplo, constata que a famosa balança atrai políticas teme-
rárias, em que não se põe mais em guerra porque não se está diretame nte
ameaçado, mas para sustenta r outros Estados opondo- se à formação de
maiores. Contudo , custa caro sustenta r conflitos para os outros ("é com
49
nossas despesas que eles se gabam de continua r a guerrà' )e à força de
considerações sobre o equilíbrio geral, acaba-se por não se preocup ar mais
consigo mesmo. De seu lado, os senhores do direito dos povos não ces-
sarão, como se verá, de recusar ao equilíbrio europeu o estatuto de justa
causa das guerras.
Historic amente, este famoso "equilíbrio" permane ce ainda muito flu-
tuante para não ser convocado a não ser quando serve aos interesses das po-
tências. Os diplomatas franceses se apodera m do tema diante da grandeza
esmagadora da Espanha, mas o desdenh am logo, malgrado as advertências
dos Venezianos, quando, sob o reinado de Luís XIV, a França se torna
potência dominan te. Os julgame ntos dos Príncipes estão ainda cheios seja
de mercantilismo (o que me fortifica enfraquece o outro), seja dessa preo-
cupação com glória que atormen tava Luis, o Grande, para poder verdadei-
ramente se abrir a estas considerações gerais. Eles preferem estender seu
domínio mais que cuidar de que ninguém em torno deles cresça demais.
Ou melhor, eles acham sempre que deveriam ser mais fortes, porque, por
um movime nto natural, quando ganham em poder, são mais inquieta ntes
e que, mais ameaçadores, se sentem mais ameaçados. A famosa "balança
não é nada mais então do que um pretexto indefini damente invocado para
entrar em guerra, mais que um conceito regulador, pois continua neste
sistema um ponto não resolvido: é saber quem deve "manter a balança do
50
mundo entre suas mãos" e se tornar "o árbitro de todos".

49
"Sobre a balança do poder", ed. cit. p. 512.
50
Nessa frase, extraída de Memórias anônimas de política estrangeira (citado por
É. Thuau,
de Richelieu, ed.cit. p. 310), é evidentem ente
Raison d'État et pensée politique à f'époque
ao rei da França que essa função é destinada.
8
Mostrar e sentir sua força
"Por querer aparecer muito poderoso,
vós arruinais vosso poder e enquanto estais fora
do objeto do temor e do ódio de vossos vizinhos,
vos esgotais dentro pelos esforços necessários
para sustentar uma tal guerra."
FÉNÉLON, As aventuras de Telêmaco

Fichte acreditara sistematizar Maquiavel dando da necessidade da


guerra uma versão mecânica, aritmética, cheia de uma falsa evidência:

Quem não cresce decresce quando os outros crescem. É muito possível que um
particular diga: "eu estou satisfeito e não quero mais nadà'. [... ] Um Estado que fi-
casse sem cessar nessa prática de uma humilde moderação, deveria ou bem ser muito
favorecido por sua situação ou bem ser uma presa pouco atraente, para não perder
bem depressa até aquilo com que se contentava humildemente e para que as pala-
vras: "eu não quero mais nadà' não indiquem ter tido na realidade essa significação:
"eu não quero mais nada e nem quero mesmo existir" . 1

É a versão mercantilista da força: o que enfraquece meu vizinho me


reforça, o que me reforça o enfraquece. É preciso devorar ou ser devorado,
crescer ou ser diminuído. Eis descoberto, acredita-se, o coração vibrante da
lógica imperial, da política de conquistas: enriquecer-se empobrecendo os
outros. Jogo de vasos comunicantes. A guerra dará ao Estado uma consis-
tência material, ganhada contra os outros: fortuna, bens, riquezas, recur-
sos ... Retomar aqui a lição de Tucídides para mostrar que a guerra assegura
essencialmente a consistência imaginária dos Estados. Ela é demonstração
de força, defesa de sua imagem pública, projeção de aparências.

1
Fichte, Sur Machiavel écrivain, Introdução.
148 Estados de Violência

A má consciência da força

Eu quero dar para ler curtos extratos do longo discurso que represen-
tantes de Atenas opõem aos Lacedemônios, quando estes exigem contas da
gestão de seu império e da brutalidade de que os Atenienses dão prova para
impor seu sistema de alianças. 2

Tanto mais que este império mesmo , nós não o devemos à violência: simples-
mente vós não quisestes continuar a lura contra o resto das forças bárbaras e os
aliados, então, vieram nos procurar, a nós, para nos pedir espontaneamente para
nos colocarmos à sua frente. Depois, nada senão agir, nós primeiramente fomos
obrigados a levar o império ao ponto em que está: principalmente por temor, depois
3
também pela honra e mais tarde por interesse.

Há inicialmente este pnme1ro enunciado em corno das causas, das


motivações, das raízes de um imperialismo ateniense sempre mais inten-
sivo e extensivo, essa passagem insensível de uma hegemonia protetora
a uma implacável dominação. Temor, honra e interesse. É preciso tomar
estes termos na ordem.
É, antes de tudo, uma simples prudência ou temor que pede que se
acentue sua pressão sobre seus súditos: é preciso sempre fazer-lhes sentir
que uma força superior os coage, tanto que, do exercício do poder, não é
preciso jamais esperar outra coisa que não seja o rancor e o ódio do lado
dos que se acham como seu alvo. 4 Aquele que outrora se acolheu como
salvador passa logo, por um movimento natural, por um déspota: uma vez
a paz de volta, logo só se sentem os desgostos da tutela.
Em segundo lugar, se foi preciso sempre submeter mais cidades, é que

2
A ocasião é, cerca de 430, o cerco de Potideia, colônia que se tinha retirado da Confe-
deração marítima por causa de uma pressão fiscal muito pesada, o que tinha provocado a
cólera de Atenas e o envio de tropas.
3
Tucídides, Histoire de la guerre du Péloponnése, Livro 1, cap. LXXV, 2-4 , ed. cit. p. 208-209.
4
Cf. no livro Ili, do discurso de Cleon lembrando que não se deve jamais esquecer que toda
submissão, mesmo acompanhada de favores, alimenta o ódio e o desprezo do submetido
e que é sempre de mal grado que se obedece ("vós esqueceis que o poder constitui entre
vossas mãos uma tirania que se exerce sobre povos que, eles, fazem intrigas e suportam
este poder de mal grado" (Livro 111, cap. XXXVII, ed. cit. p.321) .
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 149

a afirmação de uma superioridade jamais acontece sem glória. Ora a glória


é ambição de glória e quer se confirmar sempre por novos sinais de poder.
É preciso defender sua imagem e todo movimento de arresto passa por um
sinal de fadiga.
Enfim, em última posição: o interesse. Em último, porque ele só pode
ser secundário. O proveito constitui exatamente uma base, em nenhum
caso a motivação principal da extensão dos impérios. Recompensa suple-
mentar, compensação. Contudo, ele não é procurado por si mesmo. O que
joga na política imperial é antes a imagem da força. Proveito simbólico,
interesses midiáticos. A só procurar o ganho, com efeito, o cálculo é logo
feito e desanima. A guerra é um jogo arriscado que deixa sempre muito lu-
gar ao acaso e ao imponderável. Este imprevisto reconduz os combatentes
à igualdade. 5

Merecem-se louvores, quando, seguindo inteiramente a natureza humana que


vos faz dominar sobre o outro, alguém se mostrou mais justo do que admitia o poder
de que se dispunha. E em todo caso, nós cremos que, se outro tomasse nosso lugar,
ver-se-ia admiravelmente em que somos medidos. - Contudo, por uma consequên-
cia pouco legítima, essa moderação nos valeu, em definitivo, o descrédito mais que
o louvor [... ]. Eles estão habituados a viver conosco em pé de igualdade e se alguma
vez, contrariamente ao que entendem, são reduzidos à inferioridade, pelo efeito de
decisões ou de meios de ação ligados ao império, em vez de serem agradecidos pelo
que não lhes tira o principal, eles suportam mais dificilmente essa diferença do que
se, desde o princípio, tivéssemos posto a lei de lado e procurado abertamente nossas
vantagens: nesse caso, eles mesmos não teriam protestado e nem negado que o mais
fraco deve ceder ao que o vence. 6

A alternativa, para um poder político não está nunca entre deixar livre
ou submeter à sua dominação, ou ainda entre proteger ou subjugar. Isso é
pensar em termos de moral. É preciso, quando um Estado é poderoso, usar
de sua superioridade para respeitar, até garantir a liberdade do outro, ou

5
"O imponderável do futuro comanda muitas vezes, e se nada é mais enganador, nada
também se mostra mais útil: pois, iguais no medo, usamos mais prudência mutuamente
para nos atacar" (discurso de Hermócrates, livro IV, cap. LXII, p. 391 ).
6
lbíd., livro 1, cap. LXV, 2-3 e LXXVII, 3-4, ed. cit. p. 209-210 .

.
150 Estados de Violência

ao contrário para esmagar o mais fraco? É um debate moral, pois se entre


poderes o mais forte não submete o mais fraco, isto será por interesse. Se
seu interesse é submeter, ele fará. Em política internacional, toda proteção
se paga com uma submissão. A alternativa se torna: submeter ou esmagar?
Dominar ou massacrar? Se a responsabilidade moral consiste efetivamente
para o forte em proteger o fraco mais do que submetê-lo, a responsabilida-
de política é dominar antes que aniquilar.
Os Atenienses dizem: nós nos tornamos os mais poderosos e os mais
fortes e essa força nós usamos responsavelmente; dominamos e não aniqui-
lamos. E se hoje, vós Lacedemônios, no lugar que ocupais, criticais nosso
império, não façais como se descobrísseis de repente que ele é injusto,
iníquo e que é escândalo se o mais forte oprime o mas fraco. Se, invocan-
do hoje a justiça e o direito, contestais nossa dominação sobre o mundo
grego, é porque nele não encontrais mais vosso interesse e começais a vos
imaginar à altura de vos medir conosco e de unir ao vosso redor forças
correspondentes à vossa altura.
Em moral, a má consciência é crer-se sempre muito negligente e
culpado, estar convencido sempre de não ter feito bastante para o ou-
tro, de não ter obedecido bastante à Lei. É a própria perfeição de meu
ser moral que me impõe estes escrúpulos. Tenho tanto mais má cons-
ciência quanto mais sou moral, porque meu grau de moralidade faz
variar minhas exigências. A má consciência moral é sentir que nunca se
é bastante moral.
Em política, a má consciência da força é saber que jamais se oprime o
bastante, mas que está aí sua grandeza. A ética política da força não é pre-
servar a liberdade das nações, mas submeter sem reduzir. Preferir a injusti-
ça à violência. Nós éramos, dizem os Atenienses, superiores em força e fize-
mos tudo o que essa superiorida de autorizava. Porque queríamos defender
uma imagem diante da história, sem arrasar, submetemo s sem aniquilar e
deixamos assim aos povos submetidos a liberdade de nos criticar. É assim
que a injustiça é sempre mais dificilmente suportada do que a violência. A
injustiça suscita protestos, pois, fazendo sentir a desigualdade, ela provoca
o despeito de ser inferior. Na base de reivindicações, ela preserva a igualda-
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 151

de como um sonho longínquo. A pura violência, constrangendo, propaga


0 pesadelo da destruição e cada um não sente mais senão o alívio de estar
ainda vivo.

A demonstração de força

O segundo grande texto de Tucídides é um diálogo famoso entre os ha-


bitantes de Melos, antigos colonos de Esparta que "tinham ficado tranquila-
mente neutros" 7, e os representantes de Atenas exigindo que Melos se colo-
casse ao lado do Poder. Os generais atenienses cercam a ilha com seus navios e
colocam os sitiados diante da alternativa de um combate perdido de antemão
ou de uma submissão em regra. Tomou-se o costume de citar este diálogo pela
extraordinária e brutal franqueza de que os Atenienses dão prova:

Uma lei de natureza faz que sempre se alguém é o mais forte, ele comanda: não
fomos nós que criamos este princípio ou que fomos os primeiros a aplicar o que ele
enunciava: ele existia antes de nós e existirá para sempre depois de nós e é apenas
nossa vez de aplicá-lo, sabendo que também vós ou outros, postos à frente do mesmo
poder que nós, faríeis do mesmo modo. 8

Contudo, o interesse do diálogo pode ser encontrado alhures, pois


depois de tudo, porque uma cidade tão poderosa como Atenas não suporta
que uma pequena ilha como Melos, sem mesmo falar de resistência, fique
simplesmente fora reivindicando sua neutralidade? Atenas se apresenta
totalmente armada diante de Melos e intima seus habitantes: ou aceitais
submeter-vos entrando em nossa liga, ou nós vos esmagamos. Nós não so-
mos inimigos retrucam os Melianos, nós quereríamos somente ficar fora de
vossas disputas. Nós não queremos vos desobedecer mais do que obedecer,
nem mais nos submeter do que nos revoltar. Somente ficar à parte. Ao que
os Atenienses respondem que é impossível.

7
lbid., livro V, cap. XXXIV, 2, ed. cit. p. 476.
8
lbid., livro V, cap. CV, 2, ed. cit. p. 480.
152 Estados de Violência

Os Melianos: "Por conseguinte, que fiquemos tranquilos, sendo vossos amigos


em vez de vossos inimigos, e sem haver aliança de nenhum dos dois lados, vós não
aceitaríeis?" O s Atenienses: "Não, pois vossa hostilidade nos faz menos mal que v05 _
sa amizade: essa faria parecer aos olhos dos povos do império uma prova de fraqueza,
9
vosso ódio uma prova de poder".

Os Melianos oferecem sua amizade, partilhada: amigos de Atenas e de


Esparta tudo junto. Essa amizade com nossos inimigos nos faz mal, retru-
cam os Atenienses. Ela nos faz aparecer laxistas, tolerantes. Vosso ódio seria
preferível, pois só os poderosos são detestados.
O raciocínio de Atenas: não submeter uma ilha vizinha que pretende ser
neutra, ao passo que podemos fazê-lo é contradizer- nos a nós mesmos aos
olhos dos outros. O que estamos em poder de fazer, o que podemos domi-
nar e abater, devemos fazê-lo porque precisament e nós o podemos. Estranha
injunção. É o inverso do imperativo moral de Kant: "Tu podes porque tu
deves". Dessa vez temos: "Tu deves porque tu podes". É o imperativo polí-
tico. Tudo o que tu podes fazer, tudo o que está em teu poder, tudo o que
podes adquirir pela força, tu deves tomá-lo pela força. Contudo, sobre o que
exatamente incide este "dever"? Sobre a imagem da força. Aos Melianos que
lhes dizem: mas enfim por que não vos contentar com nossa neutralidade ,
por que essa brutalidade em querer nos coagir, ao passo que nós não somos
mesmo vossos inimigos, os Atenienses respondem: mas enfim se ficais livres,
enquanto nós já submetemo s outros ou pedimos a outros que escolhessem,
se dirá em toda parte: "É por fraqueza que eles se retiram, é um sinal de fadi-
ga, de declínio". Eles os deixam livres para escolher, por prostração, falta de
ânimo. E essa suspeita crescerá como uma onda.
A imagem que a força dá de si mesma em suas demonstraç ões exterio-
res, tudo está aí: não há Estado forte sem demonstraç ão pública, sem que
a força se ilustre e se exiba. A força mantém seu poder de energia interna
certamente, mas também de um efeito sobre os outros: é preciso que ela
. .
1mpress10ne.

9
lbid., livro V, cap. XCIV-XCV. p. 478.
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 153

A força pública de um poder é indissociável da imagem que ela mos-


tra. Ela deve sem cessar corresponder a essa imagem. Contudo, como se
constrói essa imagem? É o medo ou o ódio no olhar do outro. O que faz
a força da força é fazer medo e mantê-lo. O que mantém é uma imagem,
um renome, uma reputação. Mas a reputação se mantém, se confirma, se
alimenta. É preciso estar sem cessar à sua altura. Daí a necessidade da prova
perpétua, da ameaça de guerra, da guerra das ameaças.
Aqui, está uma representação fundamental da força: ser forte é sem-
pre ao mesmo tempo mostrar-se como tal. A força deve ser precedida,
anunciada, figurada por sua imagem. E aí ainda se mantém sua verdadeira
fraqueza, se entende com isso o que constitui para uma coisa seu ponto
de derrocada possível. O ponto de derrocada da força é essa relação com a
imagem. Porque a imagem quer sempre exibir-se mais: eu mostro que sou
mais forte que tu; e fico incomodado, mostrando-o, em aumentar minhas
forças reais. Eu corro sempre atrás de minha imagem: eu me mostro um
pouco mais forte, um pouco mais sábio, um pouco mais rápido do que
não sou realmente. A imagem está sempre na frente do ser. Sempre este
desnível fatigante, essa diferença que é preciso reduzir e que faz viver clau-
dicando. E nessa corrida, há uma inquietação sem dúvida. A inquietação
da força que se tranquiliza, mas se tranquiliza fragilizando-se, ou antes se
descobre frágil por ter necessidade de se tranquilizar.
Aqui, deve-se notar um verdadeiro contraste com uma tradição
oriental, sem dúvida de origem taoista, bem representada por certas
sentenças de A arte da guerra, de Sun Tzu. A lição do mestre de guerra
é sempre mostrar a aparência da fraqueza: "capaz, passai por incapaz;
preparado para o combate, não o deixeis ver". 10 Imagem não é apa-
rência. A imagem faz ver um duplo vantajoso e mascara um hiato. A
aparência esconde seu contrário. O que dá seja: eu estou sempre um

'º L 'art de la guerre, cap. 1, ed . cit. p. 54. Cf. em Tao Te King, o sistema completo de oposi-
ções, cap. XLI : "O homem de uma virtude superior é como um vale. O homem de um mérito
imenso parece ferido de incapacidade, O homem de uma virtude sólida parece desprovido
de atividade. O homem simples e verdadeiro parece degradado" (trad. Stanislas Julien) .
154 Estados de Violência

pouco menos forte do que a imagem que eu dou a ver; seja: eu sou mais
forte do que eu deixo ver. Compreende-se logo o ganho estratégico da
aparência: a surpresa. Se a tática da imagem de força é de jogar com a
impressão, contendo a agressão por demonstrações públicas, a tática da
aparência de fraqueza se mantém na surpresa: deixando vir o ataque,
ela o revira por um transbordamento inesperado e brusco. Além deste
topos sobre técnica da surpresa, 11 dir-se-á ainda que nessa construção
oriental da guerra, a energia deve permanecer atrás de sua imagem e
ficar em retenção para conhecer o movimento de seu desdobramento.
A necessidade e a força deste movimento são ilustradas pela metáfora
da água: a água penetra e se intromete em toda parte, abafa as formas
abraçando-as perfeitamente, é sua humildade radical que é soberana-
mente perigosa, contrariamente ao fogo que destrói, devora e devasta.
Sun Tzu contra Heráclito.
A força que se retém na aparência se impõe. A força que se adianta em
sua imagem se esgota.

Como se sentir forte

O que o Estado tenta manter na guerra é uma imagem sempre an-


tecipada sobre seu ser. Aumento da imanência que dá à unidade política
sua consistência imaginária. Essa consistência imaginária é todo o estado
social.
Para Rousseau por exemplo, não poderia haver guerra entre indiví-
duos, ainda menos no estado de natureza. Entre indivíduos no estado
de natureza não se encontram a não ser furtivos combates, homicídios
pontuais. 12 É necessária uma constância para fazer a guerra, difícil de ser
encontrada no estado de natureza. Os homens aí são muito dispersos, in-
consequentes e volúveis. A guerra começa com o estado social, desde que

11
"A guerra repousa sobre a mentira", L'art de la guerre, cap. 1, ed.cit. p. 54.
12
"Que o estado de guerra nasce do ideal social", ed.cit. p. 602 .
segunda Parte - LANCES POLÍTICOS 155

se veem "os homens unidos por uma concórdia artificial se reunir para se
dego 1ar mutuamente" . 13
Reversão aqui de Hobbes: passar do estado de dispersão natural ao
estado de união social é passar da paz (à revelia) para a guerra. Contudo,
essa passagem é um mistério: por que os homens, quando conhecem a se-
gurança do grupo, a possibilidade de trocas regradas, se fazem guerra? São
os Estados que se fazem guerra, a ela atraindo os homens. Então por que os
Estados fazem guerra entre si? No estado social, a guerra é para os Estados
0
que a inveja é para os homens: a fatalidade do espírito de comparação.
Um corpo natural (um organismo vivo) "tem uma baliza de força e de
grandeza fixada pela natureza e que não se poderia ultrapas ar. De qualquer
14
sentido que ele se vê, ele encontra todas as suas faculdades limitadas" .
Tudo neste corpo é demarcado e limitado: sua duração de vida, a capaci-
dade de suas necessidades, a extensão de seus poderes. Se é olhada agora
"a constituição política dos corpos", 15 vê-se que o Estado "ao contrário
sendo um corpo artificial não tem nenhuma medida determinadà'. 16 Mais
extenso, mais rico, mais poderoso ... Quem fixará a medida? Ela pertence
só à Natureza e o Estado não é natural. Que é preciso dizer então? Que as
guerras provêm da falta de medida das paixões (louca cupidez, ambição
sem limites, sonhos de glória infinita)? Isso vai mais longe ainda.
Rousseau, contra a opinião filosófica dominante, considera que os Es-
tados entre si estão numa relação social e daí vem precisamente que eles se
façam guerra. O estado social é este estado no qual cada um não vive senão
de se comparar com o outro. Neste estado, não se é rico senão na proporção
da pobreza dos outros. Ser rico, ser feliz, não é nada: trata-se de aí ser mais
rico e mais feliz que um outro. É por aí somente que em sociedade se chega
a sentir sua fortuna e sua felicidade; o que impede nunca atingir a verdadeira
riqueza, que é possuir o que nos convém e a verdadeira felicidade, como pura

13
lbid., p. 603.
14
lbid., p.604.
15
lbid.
16 lbid., p. 605 .
156 Estados de Violência

qualidade de existência. A desgraça definitiva do estado social é que tudo aí é


relativo. Nada existe aí senão por comparação com os outros. O estado social
é um estado profundo de desigualdade, menos contudo no sentido simples-
mente social em que existiriam diferenças de condição, mas no sentido de
que não posso definir-me senão numa relação de mais ou de menos. Ser, ern
sociedade, é comparar-se. Do mesmo modo para os Estados.

Assim a grandeza do corpo político sendo puramente relativa, ele é forçado a


se comparar sem cessar para se conhecer; ele depende de tudo o que o rodeia e deve
justificar a legitimidade histórica, pois em vão ele se manteria sem nada ganhar nem
perder; ele se torna pequeno ou grande, fraco ou forte, conforme seu vizinho cresce
ou diminui e se fortalece ou se enfraquece. 17

Sentir-se rico e feliz (já não se trata mais do ser), será para o homem
em sociedade achar-se mais rico e mais feliz que um outro. Da mesma
maneira para um Estado, quando quiser se sentir forte. Será que ele sabe
somente se é fraco ou forte? É só na guerra, provando sua superioridade
sobre um outro, que ele perceberá que é forte. Dizia-se a todo momento:
trata-se para o Estado não somente de ser forte, mas ainda de demons-
trá-lo sempre: o sentimento de sua força deverá ser acompanhado de sua
demonstração pública. Contudo Rousseau previne: o sentimento de sua
força não é senão o de ser "mais forte". O Estado não pode se sentir senão
dominando um outro. A sensibilidade do Estado é a este preço.
Seja o exemplo de um Estado extenso, desmedido, abrangendo povos
e culturas diversos, pronto a explodir sob seu próprio peso. Como poderá
sentir-se de outro modo senão na guerra?

Que se considere como na agregação do corpo político, a força pública que é


inferior à soma das forças particulares, quanto há, por assim dizer, de atrito no fun-
cionamento de toda a máquina e se achará que toda proporção guardada o homem
mais débil tem mais força para sua própria conservação do que o Estado mais forte
tem para a sua conservação. É preciso, então, para que este Estado subsista que a

17
lbid.
segunda Parte - LANCES POlÍTICOS 157

vivacidade de suas paixões supra a de seus movimentos e que sua vontade se anime
18
do m esmo modo que seu poder se alarga.

Um Estado imenso tem uma "sensibilidade públicà' quase nula. Ele


estala por todas as partes e no fundo é como um mosaico de povos reu-
nidos por um jugo comum, mas sem nenhum sentimento de pertença. É
pela guerra somente que poderá sentir-se existindo. Todo corpo artificial
é levado, para se sentir, a gesticular. Grande lição, aqui, de Rousseau: se
há guerra entre soberanos não é devido a um estado de anarquia que os
submeteria todos à lei de arame* da Natureza (o forte domina o fraco),
mas por este espírito de comparação próprio ao estado social que mata
0 ser simples das coisas. Se ainda é possível,
para além das máscaras e das
hipocrisias sociais, para um corpo natural reencontrar a simplicidad e de
existir (felicidade pura dos passeios, das festas etc.), este corpo gigantesco,
sem proporção nem medida, todo artificial que é o Estado será levado a
procurar sentir-se nas paixões tristes da glória militar.
Inversão grotesca aqui - e verdade dialética - da gravidade perturba-
dora de Schmitt: o Estado pela guerra pode bem se sentir existindo, mas
não como hierático destino, antes para cumprir sua função na aflitiva e
insuperável comédia social que exige que sempre, para ser quem é, se com-
pare com o outro.

18
lbid., p. 606.
*N.T. segundo o dicionário Le Petit Robert, "lei de arame" é o nome dado por Lassalle à lei
que reduz, em regime capitalista, o salário do operário ao mínimo vital.
Terceira Parte

QUADR O JURÍDICO
Introdução
"O que não se conhece [... ],éa natureza,
essencialmente jurídica da guerra."
PROUDHON, A guerra e a paz

A guerra é um conflito armado, público e JUSTO (Alberico Gentilis, De jure belli).

É preciso contornar uma opinião difundida: a da oposição irredutível


da guerra e do direito. Guerra e direito seriam contrários. O direito é o que
torna a guerra impossível, ele é que essencialmente pacifica. Regulamen ta-
ção pelo direito antes que conflito armado. É a negociação contra a luta, o
diálogo de preferência às armas, a razão diante da violência. Contudo, falar
de evidência contemporâ nea não é totalmente justo. Ao passo que é bem
um topos da filosofia essa alternativa do logos (palavra) e da força. Sempre o
famoso capítulo do Contrato Social de Rousseau quando descreve a oposi-
ção categórica entre obedecer (a si) e se submeter (ao outro).

A força é um poder físico: eu não vejo que moralidade possa resultar de seus efei-
tos. C eder à força é um ato de necessidade, não de vontade [.. .]. Força não faz direito. 1

Obrigação não é coação. Daí se tira geralmente o tema da irreduti-


bilidade da relação de direito à relação de forças e certamente (o que era
o objeto da demonstração) a absurdidade do direito do mais forte. Uma
coisa é impor sua força, outra coisa afirmar o direito. E a guerra, enquanto
pura relação de forças, ignora o direito. Este é diálogo, razão universal, paz
e ordem. A guerra, caos das forças desencadeadas, seria a pura violência.
Esse dualismo, essa grande alternativa exclusiva da força e do direito,
supõe, apesar de tudo, baixar a noção de guerra à de uma violência infor-

1
Rousseau , Du contrat social, Livro 1, cap. Ili.
Estado s de Violência
162

mina do de energia,
me, de forças destrutivas. A força como quantum deter
de facticidade bruta . Guer ra = violência.
construção de
E do outro lado baixa-se a noção de direito à de uma
articulação ra-
sentid o por essência reconciliadora e pacificadora, de uma
uila das coisas ,
cional e justa das liberdades. O direito seria a ordem tranq
Direi to = paz.
seu comércio pacífico, a organização fluida das existências.
te idealista,
Daí a oposição entre uma filosofia da guerra, forçosamen
a Maquiavel. E
e uma filosofia da guerra, forçosamente cínica. Kant contr
o ao idealismo,
no fundo o cinismo não está aí senão para servir de cauçã
o idealismo é a
no sentid o exato em que ele o ajuda a viver, ao passo que
mutu amen te.
aparência preferida do cínico. Fantasmas que se ajuda m
sível porque a
Entre a guerra e o direito, a escolha é impossível. Impos
um em detrimento
escolha já está feita. A própria posição dos termos impõe
entre a palavra e
do outro. Que significa escolher entre Sócrates e Calícrates,
preferir o discurso
a violência? Isso nunca quis dizer preferir a guerra à paz,
romissos. Opor
à violência. O que se preferem são sempre arranjos, comp
mento. Então a
como irredutíveis o direito e a guerra é bloquear o pensa
te paz boa.
guerra é forçosamente violência má e o direito forçosamen

ões clássicas da guerra


Deve-se reconhecer para começ ar que as grandes definiç
mantê m o direito como essencial em sua definição.
soberanos que não
Guerra: desavença, disput a entre os Estados ou príncip es
senão pela força, pela via das
pode termin ar senão pela justiça e que não se esvazia
armas. 2
força. 3
A guerra é esse estado no qual se persegue seu direito pela
desencadear as hosti-
No estado de natureza dos Estados, o direito à guerra (de
meio de suas própri as forças
lidades) é a manei ra Lícita para um Estado defend er por
4
seu direito contra um outro Estado.
grupos hostis condu zir
A guerra é a condiç ão legal que permit e a dois ou mais
5
um conflito por forças armadas.

roí de guerre, ed. cit.


2
Oictionnaire de Trévoux, citado por J. Cornette, Le
p. 124.
3
É. de Vattel, Le droit des gens, Livro Ili , cap. 1, ed. cit.
trad. J. e O. Masso n. ed. cit. p. 619.
• Kant, Ooctrine du droit, 11,$56,
5 Wright , Study of Wa,; Chicag o, 1943 (citado por G. Boutho ul, Traité de polémo/ogie,
Quincy
Paris, Payot, 1951, p. 36).
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 163

Se se entende pela guerra alguma coisa de unívoco, se ela não se confim-


de com não importa qual afrontamento sangrento, se não é mais o número,
a quantidade de indivíduos armados que faz que se passe de uma rixa a facas
puxadas entre indivíduos a uma guerra que opõe forças armadas enormes,
então se poderia dizer que a dimensão jurídica faz a diferença. A guerra é essa
relação de forças, esse afrontamento violento sem dúvida e mortífero, mas
em que é do princípio ao fim questão de direito. A guerra não é assimilável
puramente a uma relação de forças, a um desencadeamento de violências.
Ou antes, ela é força e violência, mas atravessadas pelo direito.
Para ver como se liga a guerra com o direito, partir-se-á de uma expo-
sição simples de três formas de guerra, três tipos ideais.
A primeira forma seria a guerra fundadora. Ela opõe duas forças, dois
partidos, dois povos ou dois sistemas de valores, cada um esperando da
guerra uma consagração, esperando que por sua ação ela os desempate. A
guerra é puro embate físico, donde o direito sai porque um suplemento
de forças será dado para afirmar o direito de uma das duas partes sobre ou
contra a outra. Mito da grande batalha decisiva em que todos os dados são
lançados de uma vez. E o direito se diz, se manifesta, se torna visível por
ou antes como este suplemento de forças que permite a vitória. A vitória é
julgamento superior, divino. Ela instala a paz e o direito como supremacia
consagrada.
A segunda forma é a guerra leal. O combate então respeita certo nú-
mero de regras em seu desenvolvimento: regras de declaração e de encerra-
mento dramatizando a separação dos períodos de paz e de guerra; regras de
discriminação: não se pode matar qualquer um (proteção das populações
civis ou mesmo dos inimigos desarmados e feridos), não importa quando
(respeito das tréguas) nem importa como (limitação das armas). A guerra
aqui se deixa ser pensada quase como esporte ou jogo regrado.
A terceira forma é a guerra legítima. A guerra não tem sentido senão
como resposta a uma injustiça que entende corrigir. Ela se decide a partir
de um fim determinado (reparação da justiça) e orienta suas forças para
alcançar este fim. Trata-se de combater para, em nome de ... Entende-se
restabelecer os valores, restaurar a justiça, a igualdade, o bem.
164 Estados de Violência

Essas três formas de guerra, eu as escolhi porque lhes correspondem.


três dimensões do direito. A ideia de direito se desenvolve com efeito em.
três grandes direções.
O direito é antes de tudo, fundame ntal ou arcaicamente, primeira ou
primitiv amente, reconhecido, imediata mente pensado como capacidade
de ação ou, antes: poder de afirmação. Ter o direito é poder, é ver-se re-
conhecid o (por si ou pelos outros, pela natureza ou pela sociedade) uma
liberdade, um poder de ação, uma ação sobre ... Não se trata aqui de san-
tificar a lei do mais forte, somente de reconhecer que o direito é pensável
como o acompan hamento espiritual da força, que dele se desprende, algo
como sua aura. Eu tenho o direito já que posso, tenho o direito do mesmo
modo que posso ("uma lei de natureza faz que sempre que alguém é o mais
forte, ele comand à' 6), na medida de meu poder ("o direito de cada um se
7
estende tão longe quanto se estende seu poder determin ado" ). Poder é ter
o direito. O direito é a expressão de um poder afirmativo, de uma capaci-
dade (jus ut facultas - direito como faculdade - teria dito Suárez). Rousseau,
contudo , dizia: o que vem fazer a justiça se tudo na força é só necessidade?
Contudo , é baixar depressa demais a força sobre o fato bruto. No mundo
humano , político-histórico, a afirmação de uma força traz em si a de uma
legitimidade possível. A força como força humana traz consigo mesma
8
uma pretensão: "Cada faculdade, poder, força, traz seu direito consigo". O
direito é o rastro de luz da força - que sem dúvida logo se degrada em falso
brilho dos hábitos de cerimôn ia-, seu esplendor. Todo direito reconhecido
entre iguais é cristalização, provisória e precária, de uma relação de forças.
Em segundo lugar, o direito deve ser pensado como regra: regula-
ção e regularidade. Regra formal, processos, rito: há direito desde que,
no caos informe das ações, das gesticulações humana s, se introduz am
normas fixas, coações incontor náveis, estrutura ções duráveis, partilhas
entre o permitid o e o proibido , interdito s estritos. O direito (jus ut lex =

6
Tucídides, La guerre du Pé/oponnése, Livro V, cap. CV, 2, ed.cit. p. 480.
PUF, 1999.
7
Spinoza, Traité théo/ogique-po/itique, Livro XVI, trad. J. Lagrée e P. F. Moreau,
8
J. Proudhon, La guerre et la paix, t.l, ed. cit. p. 142.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO
165

direito como lei, segundo Suárez), é a lei positiva, a norma publicada, a


regra do jogo.
Em terceiro lugar, o direito deve ainda permanecer todo nutrido, ex-
tenso, animado pelo valor de justiça. Ele é posição moral de valor: justiça,
solidariedade, proteção do fraco, reconciliação e verdade. Michelet pode
escrever: "Eu defino a Revolução como o acontecimento da Lei, a ressur-
reição do Direito, reação da Justiçà' .9 O direito é inspirado pelo valor de
justiça. O direito que triunfa é a vitória da justiça. O direito é igualdade,
dignidade universal dos homens.
Poder de afirmação, regra formal, valor transcendente da justiça. Gro-
tius não diz outra coisa no início de seu grande tratado, quando dá ao direito
estas três significações: o direito como justiça, como aptidão e como lei. 10
Como se mantêm juntas essas três determinações, se elas se mantêm? Ou
não haveria aí senão justaposição de três centros de sentidos irredutíveis?
Uma filosofia do direito coerente, sem dúvida, não deveria se dar
como projeto privilegiar uma das determinações em detrimento das outras
- como se fosse preciso escolher entre Nietzsche, Kelsen ou Platão-, mas
construir a dedução dessas três formas puras. Vê-se bem de resto como
elas se encadeiam: origem viva do direito na força afirmativa; composição
das forças num sistema de coexistência atual; orientação para um mundo
solidário, respeitoso e rico de sentido.
Três determinações, então, do direito ou três maneiras de compreen-
der a liberdade humana: poder afirmativo, sistema de regras ordenando as
interações, posição de valores. E três formas de guerra lhe correspondem: a
guerra fundadora, a guerra leal e a guerra legítima. Três formas de guerras
justas, no sentido em que "justo" significa que o direito aí se manifesta,
aí se produz, aí se ilustra, aí se realiza. A guerra seria mesmo justa por
definição ou então não é a guerra, mas colisões, incursões, escaramuças,
afrontamentos informes, socos.

9
Histoire de la Révolution française (184 7), Paris, Robert Laffont, "Bouquins", 1979, p. 51 .
10
Le droit de la guerre et de la paix, Livro 1, cap. 1, 3-9, ed. cit. p. 34-38 .

it
166 Estados de Violência

Contud o, essa maneir a de ligar a guerra ao direito, de fazer da guerra


um momen to jurídico , que sentido lhe dar? Eu vejo dois, incompatíveis,
irredutíveis. O primeir o seria a justificação externa da guerra, como forma
elemen tar de cupidez, de sede de riquezas ou afirmação cega de poder, ape-
tite desmed ido de dominação. E o direito no fundo seria revestimento ex-
terior dos atos da força ou antes sua sanção, e seria preciso louvar nele sua
capacidade em produz ir a ordem, na falta da justiça: "E não podend o fazer
que o que é justo fosse forte se fez que o que é forte fosse justo" (Pascal). O
direito introdu ziria assim na violência da guerra a hipocrisia toda formal,
seja dos pretextos falaciosos (guerras justificadas por razões inventadas para
a ocasião), seja a hipocrisia do respeito de regras, como se pudesse entrar
cortesia no que Voltaire chamav a de "a arte de se destruir".
Assim é, para ir depressa, a posição moralista ou antes moralisante.
Contud o, pode-se tentar também pensar essa relação da guerra com o di-
reito como interna . Então a guerra aparece como formação da violência,
como a tentativ a também , no fundo dos conflitos incessantes, de afronta-
mentos intermináveis, de pela guerra tornar a paz possível e imaginável.
Como se fosse preciso, no fundo de violências perpétuas, produzir, pela
guerra, a exceção da paz.
9
A guerra fundadora de direito

A força e a justiça

Nessa ideia de guerra "fundadora de direito" há muito a distinguir,


rodo um imaginário arcaico a cercar de conceitos. É preciso voltar ao
escândalo: a força faz direito. Ideia monstruosa que é preciso domes-
ticar ao máximo para poder admitir, até certo ponto, que a vitória é
justa porque é vitoriosa. Dizer que a força faz direito é o objeto de
uma contestação maior pela Filosofia, que encontrou em Rousseau 1 um
momento de expressão insuperável. Para traçar seus contornos, alguns
caminhos podem ser tomados. Como se disse, é preciso antes de tudo
entender por força outra coisa e não violência, vontade de dominação,
poder cego. Como o declara Proudhon, em A guerra e a paz, a força é
antes de tudo uma afirmação. Tudo o que, como capacidade humana,
se afirma abre um direito no próprio sulco dessa afirmação, porque a
humanidade deve realizar-se em todo o seu poder. E a justiça é essa rea-
lização, mas certamente se trata de compreender por força uma energia
criadora, portadora de valores.

A matéria é uma força, tão bem como o espírito, a ciência, o gênio, a virtu-
de, as paixões, do mesmo modo que os capitais e as máquinas são forças. Nós
chamamos de potência uma nação organizada politicamente; poder, a força polí-
tica, coletiva, dessa nação. De todas as forças, a maior, tanto na ordem espiritual
e moral quanto na ordem material, é a associação, que se pode definir como a
encarnação da justiça.

1
. Cap. li do livro Ido Contrato social.
Estados de Violência
168

vamos,
Aqui nos aparece, em toda a sua evidência, o que nós antes só suspeitá
o primeir o em data, 0
a saber: que o direito da força, tão aviltado, é não somente
de direitos.
mais reconhe cido outrora, mas a origem e o fundam ento de toda espécie
dizer, mais que ramifica ções ou transfor mações
Os outros direitos não são, a bem
r por si mesma à justiça, seria
daquele. De sorte que, bem longe de a força repugna 2
mais exato dizer que a justiça não é ela mesma senão a dignidade da farça.

-
O que Nietzsche encont ra em A genealogia da moral não é tão diferen
a força
te, embor a tomad o de um outro ponto, quand o Nietzsche escreve:
é generosa. A fraqueza é mesqu inha, cheia de ressentimento. Ela
se odeia
ser
muito a si mesma para poder amar. Ela tem muito despeito para poder
ao
justa. Ela é de ponta a ponta espírito de vingança e maldade. A força,
a
contrário, é magnâ nima. Só ela é capaz do olhar em equilíbrio que define
eira
justiça. Só ela pode ditar o direito e pode dele decidir porque a verdad
segu-
força não é violência, desencadeamento cego das paixões, mas calma
ou o
rança. Para poder ditar o direito, não se pode conhecer nem o medo
receio, nem o ressentimento ou a raiva.

como a
Do ponto de vista histórico o direito aparece precisamente no mundo
3
luta contra os sentime ntos reativos.

A força não é mais contrá ria ao direito, desde que seja pensada como
mas
poder de afirmação, energia de realização. Não apenas não contrária,
valer
o direito se inscreve em seu sulco como traço luminoso. O direito faz
um
no seio da existência a qualidade afirmativa da força. Eu faço sempre
como
pouco mais que existir: eu afirmo ao mesmo tempo essa existência
dia
minha (conatus - esforço - de Spinoza). Senão, como poder algum
deri-
pensar o direito de existir como o primei ro do qual todos os outros
a
vam? Como no coração do direito de propri edade há a disposição própri
uma
de seu corpo segund o Locke, no coração íntimo de cada existência há
afirmação de fazer valer e de reconhecer que é seu direito de existir.

nós quem sublinhamos .


2
J.Proudhon, La guerre et la paix, t. 1, ed .cit. p. 140-141 . Fomos
e, La généalo gie de la mora/e, Deuxiém e Traité, par. 11, trad. 1. Hildebrand e
3
F. Nietzsch
J. Gratien, ed . cit. p. 82 .
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 169

O Estado de direito e a guerra

É preciso agora pensar mais para frente, mais longe também talvez,
4
substituir a força pela guerra e o direito pelo Estado. Entre a guerra e o
Estado, pode-se estabelecer uma relação interior de proveniência, de atua-
lidade ou ainda de futuro. Problema da guerra na origem mítica do Estado,
na atualidade presente das relações de dominação política e no futuro de
suas formas. Nestas três dimensões temporais, pode-se pensar que a guerra
sustentou, sustenta e sustentará o direito.
A guerra fundadora de um direito estatal é, então, a ideia antes de tudo
de que todo sistema de direito repousa na origem sobre um golpe de força.
Todo Estado de direito começou em e por violência. Pudenda origo (ori-
gem vergonhosa). No começo forçosamente esquecido, e até ocultado, re-
calcado, negado, o Estado é uma tomada de poder e o direito à legitimação
de uma relação de forças inicial, forçosamente desigual, desequilibrada. O
direito requer a violência, como momento de sua fundação.

A fundação de direito é uma fundação de poder e, nessa medida, um ato de manifes-


tação imediata de violência. A definição das fronteiras, objeto da "paz" no fim de todas as
5
guerras da época mítica, é o fenômeno originário de toda violência fundadora de direito.

''Ato de manifestação imediatà': a violência não é pensada por Benja-


min como meio para satisfazer ou perseguir um direito de natureza (como

4
Contudo até que ponto justamente guerra e força se confundem, até que ponto a guerra ,
ou certas guerras, não consagraria precisamente a derrota da força (é a chave da posição
pacifista de Proudhon no final: a forma das guerras modernas é contrária à expressão afir-
mativa das energias humanas)?
5
W. Benjamin, "Critique de la violence", trad . M. de Gandillac, ed. cit. t. 1, p. 236. Cf. a se-
quência da citação: "Lá onde se definem fronteiras, o adversário não é pura e simplesmente
aniquilado; digamos mais: lá mesmo onde o vencedor dispõe da vitória mais arrasadora,
reconhecem-se direitos ao adversário. Mais precisamente, reconhecem-se, num modo de
demonização ambíguo, direitos "iguais"; para os dois contratantes, é a mesma linha que não
é permitido atravessar. Assim aparece, numa terrível primitividade, a ambiguidade mítica das
leis que não se tem o direito de "transgredir", as que Anatole France evoca de modo satírico
quando diz: "Elas proíbem igualmente aos pobres e aos ricos deitar debaixo das pontes" .
Estados de Violência
170

se fosse preciso combat er para preservar sua vida), nem como instrum ento
para manter pela força um quadro legal determ inado (as operações de po-
lícia). A violência não vem sustent ar um poder ou um direito, de fora. Ela
é antes, na imediação sonhad a da origem, ato puro de poder. Ela segue 0
movim ento próprio de sua afirmação. É uma violência "mítica", recuada
à origem do Estado. Na origem, o poder afirma-se, instaurando-se, faz-se
sentir, sem dúvida pisando no direito dos que serão seus governados, e se
6
impõe a todos, vencedores e vencidos.
O direito é sempre o direito que um povo, um clã, na origem tomou de
um outro, primeiro ocupando suas terras, queimando suas aldeias, massacran-
do suas crianças. Todo direito estatal na origem é um direito de conquista.
Direito fundamentalmente dissimétrico, acabando por organizar relações de
dominação mais que de reciprocidade, consagrando privilégios, santificando
hierarquias. O direito nascido da guerra é um direito sobre. sobre terras conquis-
tadas ou sobre um povo subjugado. Pode-se recordar ainda a insistência de Carl
Schmitt em compreender o nomos (lei) numa dimensão terrena ("o direito é
terreno e se refere à terra"). 7 Se o direito se refere à terra, é tão certamente porque ·
ela manifesta um princípio de retribuição (um ganho proporcional ao mérito
do suor), porque ela ilustra um princípio de divisão e de ordem (os limites da
propriedade, os sulcos regulares em sua superfície). Contud o, é também, sobre-
tudo, porque aquém mesmo dessa terra medida, dividida, limitada, trabalhada,
é preciso supor uma "tomada de terras" como "título jurídico original".ª

ade e
No começo da história de todo povo tornado sedentári o, de toda comunid
consti-
de todo império acha-se, então, sob uma forma ou outra, o aconteci mento
também para o começo de toda época his-
tutivo de uma tomada de terras. Isso vale
não somente do ponto
tórica. A tomada de terras precede a ordem que daí decorre

senão as condições
0
A paz é, então, sempre a do vencedor, e o direito não recupera jamais
vencedo r impõe ao vencido. Daí o tema em Benjamin de uma terceira violência
que um
como pura afirmaçã o fazendo ruptura
(depois da instrumental e a mítica): violência "divina",
como em Serei , que faz da greve geral sindical um ato gratuito.u ma vio-
e sinal, um pouco
ção, e contudo não niilista. somente
lência que não seria enfeudada a nenhuma reivindica
a afirmação de seu poder enorme.
7
C. Schmitt, Le nomos de la terre, trad. L. Deroche-Gurcel, ed. cit. p. 48.
6 lbid., p. 51.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 171

de vista lógico, mas também histórico. Ela contém a ordem inicial que se desenvolve
9
no espaço, a origem de toda ordem concreta ulterior e de todo direito ulterior.

É sempre a ideia de começo absoluto, de acontecimento radicalmente


inicial, abertura da história. Se o direito é outra coisa senão um sistema
abstrato e dedutivo de normas, o produto do cérebro dos juristas, se ele é
vivo, concreto, histórico, ele se enraíza sempre numa primeira vitória. E
supõe a guerra como pura origem.
Na mesma ordem de ideias, Foucault escudou, durante todo um ano
de curso no Colégio da França (1976), estas grandes narrativas histórico-
-míticas opondo-se às teorias jurídico-filosóficas do contrato, narrativas
que contam como, na França e na Inglaterra, o Estado nascera da vitória
de uma raça sobre uma outra, da conquista de um povo por um outro.

A guerra presidiu ao nascimento dos Estados; o direito, a paz, as leis nasceram


no sangue e na lama das batalhas [... ]. A lei nasce das batalhas reais, das vitórias,
dos massacres, das conquistas que têm sua data e seu herói de horror; a lei nasce das
cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos inocentes que
10
agonizam no dia que se levanta.

Nas narrativas de Boulainvilliers (Memória sobre a nobreza do reino da


França, 1719), aprende-se assim como a atual aristocracia francesa é de
fato de origem germânica e outrora fez valer, à força da espada, sua supe-
rioridade sobre o povo galo-germânico - de onde provém o terceiro estado.
Essas conquistas antigas estabelecem as prerrogativas atuais da nobreza, e
o rei faria bem se lembrar. Nas análises de historiadores ingleses (Coke ou
Selden), a narrativa se faz ao contrário do lado dos vencidos e mostra como
o povo saxão sempre esteve exposto aos antigos conquistadores norman-
dos, contra os quais deve fazer valer hoje seus direitos fundamentais.
O Estado de direito não é, então, como para os filósofos do contrato,
construído como instituição de paz, por consentimento unânime. Ele é

9
lbid., p. 53.
10
M. Foucault, "li faut défendre la société" (curso de 21 de janeiro de 1976), ed. cit. p. 43.
172 Estados de Violência

pensado, narrado como o teatro de uma luta contínua. A paz civil garanti-
da pelo direito se acha atravessada por uma guerra subterrânea: ela não é a
expressão de um bem público, mas compreen de linhas de forças. É sempre
o direito de um povo contra um outro. O antigo perdedor jamais capitu-
lou e prepara sua desforra. Em oposição às teorias filosóficas do contrato,
essas narrativas fazem ver a concórdia civil como uma cortina de fumaça, a
universalidade da lei como um engodo e o bem comum como uma menti-
ra. No fundo, o direito não é mais que a expressão de uma relação de forças
precária e transformável. E a política é bem a guerra continuad a por outros
11
meios: inversão do preceito de Clausewitz.
O que interessa a Foucault, nessas narrativas lendárias de um afron-
tamento ancestral e permanen te dos povos ou das raças no interior de um
Estado, é o tipo de análise que elas propõem. Contra um discurso filosófico
que teria por tarefa basear em razão a unidade da Nação, a universalidade
da Lei, a indivisibilidade da vontade geral, a igualdade dos cidadãos, e com
isso nos ensinar por que obedecer e aceitar o Estado como expressão do
bem público e fonte da paz, Foucault valoriza um discurso histórico-crítico
que desenha linhas de fratura, descreve o movimen to das lutas e faz ver o
12
sistema de direito como a vista em corte de uma situação de guerra.

lbid., p. 41 .
·1·1
12 0 direito organizand o a ordem intraestatal é então semelhante aos países interestatais
inscritos nos tratados: seja o relatório de uma capitulação , seja um frágil e precário compro-
misso - o tempo para as partes refazerem suas forças -, seja ainda uma cumplicidade de
ocasião, para formar uma força maior contra um terceiro. É um direito que depende de um
estado das forças. Cf. Spinoza: "Este tratado [de paz ou de confederação] subsiste tanto
tempo quanto a causa que determinou seu estabelecimento , isto é, o medo de um mal ou
a esperança de um proveito subsiste; se essa causa deixa de agir sobre uma ou outra das
duas Cidades, ela conserva o direito que lhe pertence, e o elo que unia as cidades uma
à outra é rompido por si mesmo. Cada Cidade tem , então, o direito absoluto de romper
o tratado quando ela quiser, e não se pode dizer que ela age por astúcia e com perfídia,
porque rompe seu compromisso logo que não tem mais razão de temer ou de esperar: a
primeira que for livre do medo se tornará independente e, em consequência, seguirá a opi-
nião que melhor lhe parecer", Traité politique, Ili , 14, ed. eit. p. 31 . Gf. também Nietzsche,
La généalogie de la mora/e, segundo tratado: "Do ponto de vista biológico mais elevado.
o direito não pode ser senão um estado de exceção, uma restrição parcial da vontade de
vida propriamente dita , a qual visa o poder e não pode senão se subordinar ao alvo geral
dessa vontade de vida , como um de seus meios particulares , a saber, como meio de criar
unidades de poder maiores" (ed . cit. p. 83).
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 173

O terceiro painel enfim é profético e glorioso. É a ideia de que da


última luta, da última guerra surgirá de maneira definitiva o direito
universal e autêntico. O direito acaba por triunfar sempre porque é o
direito. A justiça acaba por vencer porque ela é a justiça. Princípio do
messianismo da história que dará lugar às grandes escatologias comu-
nistas da grande noite. Eis, num texto espantoso, profético, visionário
por uma metade, mas cuja outra metade foi desmentida pela História,
0 que Engels predizia para a Europa em 1888 como última guerra, a
mais sombria e atroz, e contudo dessa noite sem fim deveria ter surgido
a aurora de uma humanidade reconquistada:

Não há mais para a Alemanha prussiana outra guerra possível a não ser
uma guerra mundial, e uma guerra mundial de uma amplidão e de uma violên-
cia jamais imaginadas até aqui. Oito a dez milhões de soldados se degolarão.
[... ] Um só resultado absolutamente certo: o esgotamento geral e o estabeleci-
mento das condições da vitória final da classe operária. [... ] Quando tiverdes
desencadeado forças que não puderdes mais dominar, e qualquer que seja o
curso dos acontecimentos, o fim da tragédia verá vossa ruína e a vitória do
proletariado [... ] será inevitável. 13

O que como direito e justiça se impõe finalmente, como fruto das


guerras, dos conflitos e das lutas, é a justiça verdadeira. O verdadeiro direi-
to triunfa finalmente, parindo a mais terrível das guerras.
No côncavo mascarado da origem, no coração vibrante da atualidade
política e no horizonte escatológico e glorioso de um Estado como siste-
ma de direito, a guerra sempre presente. Duas narrativas e uma revelação:
narrativa mantida em segredo ou a descoberto do primeiro golpe de força;
narrativa exaltada e profética da grande noite a chegar; véu levantado de
cima da guerra civil interminável, desenhando, sob a aparência da ordem e
da paz públicas, linhas de fratura.

13
Citado por J. Lefebvre em sua edição de Projet de paix perpétuel/e de Kant (ed. cit. p. 168).
174 Estados de Violência

Uma imagem e três princípios

Uma imagem se impõe para pensar a relação do direito e da guer-


ra: o tribunal. 14 A intimidade de seu elo se deixa ler na apresentação do
processo. A guerra pode bem produzir o direito, já que ela é um processo
que desempata e resolve. E o direito de seu lado é afrontamen to das par-
tes, autorizando vitórias ou derrotas. A metáfora é reversível, tomada nu 111
solo arcaico. Aí, a imagem da guerra como ordália, julgamento de Deus,
compara-se com a imagem do processo como relação de forças. O que 0
processo retém da guerra é o sentido da divisão pura, decisiva entre u111
vencedor e um vencido. O que a guerra retém do processo é a ideia de
regulamentação definitiva, irreversível e fechada.

[A batalha] com um só golpe põe tudo em jogo. Negócio de velhos, de seniores,


de soberanos, negócio sério e que não agrada sem alguma serenidade, é, no meio
de uma audiência, uma ordália, como funciona diante dos tribunais de então, uma
prova, o último recurso ao julgamento de Deus. Sua função é forçar o céu a se
declarar, a manifestar seus desígnios, a mostrar de uma vez por todas e de maneira
brilhante, incontestável, de que lado se situa o bom direito. [... ] A batalha, eu repito,
é operação de justiça. Entre cristãos, ela jamais toma a forma de uma operação de
exterminação. Do mesmo modo que numa audiência não se procura destruir. É um
15
debate, que uma sentença vem encerrar.

Essa apresentação fundamenta l da guerra como processo, tribunal, jul-


gamento de Deus supõe três grandes princípios: um princípio de concen-
tração, um princípio de decisão, um princípio de partilha.
Princípio de concentração primeiramente. Acabar com os tumultos, as
incursões-relâmpago e outras expedições punitivas, que todos tendem à re-
petição monótona. Uma vez por todas, organizar um só afrontamento que

14
"No curso dessa dialética se produz o Espirita universal, Espírito do mundo, Espírito ilimita-
do que exerce seu direito- e este direito é o direito supremo - sobre estes esp1ritos finitos [id
est (isto é) os Estados] na história mundial, que é também o tribunal mundial",Hegel,Principes
de la philosophie du droit, par. 340, trad. R. Derathé, ed. cit. p. 333.
15
G. Duby, Le dimanche de Bouvines, ed. cit. p. 191 e 220.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 175

tomará o nome de "guerrà'. Entre Estados, entre comunidades, entre grupos,


entre famílias mesmo, encontram-se disputas imemoriais de direito, preten-
sões contraditórias afundando-se na noite das memórias, mas dando lugar a
esses acertos de conta sempre renovados, a essas disputas incessantes: golpes
de força e de sangue, socos, emboscadas violentas e súbitas. A guerra, diante
dessas agressões indefinidas, propõe a forma pura, o ideal de um momento
solene. Convergência do tempo, acontecimento puro. Deve-se pensar como
relação entre a violência e a guerra o que Clausewitz constrói como relação
entre a guerra no conjunto de seu desenvolvimento e a batalha principal. 16
A guerra é a decisão de acabar de vez com os afrontamentos menores,
mil vezes repetidos, as meias vitórias e as meias derrotas, a lógica das vingan-
ças perpétuas. A guerra põe fim a essas violências difusas e dispersadas orga-
nizando, na sacralidade de um momento único, uma batalha maior. Entre
dois povos, entre dois clãs, decidir-se-á do direito de uma vez por todas. Há
guerra quando se reúnem definitivamente as forças, concentradas para uma
batalha solene, singular, única. Depois disso, a dominação e a paz.
Princípio de decisão. É preciso supor, para as necessidades da estru-
tura e do mito, duas forças, dois exércitos equilibrados. O estratagema
é incerto. E é aí que se recorre aos deuses para que eles outorguem este
suplemento de força que dá autoridade. A guerra é instância de fundação
do direito, mas não (somente) num sentido cínico ou laico, consistindo
em dizer que todo direito socialmente reconhecido é um antigo golpe de
força. Como o sonho premonitório de Constantino, em consequência do
qual ele faz gravar nos escudos de seus soldados as duas primeiras letras de
KHRISTOS* (XPD2TOL). Diante desse ato de fidelidade, Deus lhe dá a

16
"A batalha principal deve, então, ser considerada como uma guerra concentrada, como
o centro de gravidade de toda guerra e de toda campanha. Como os raios do sol se unem
na fornalha do espelho côncavo numa imagem perfeita e aí produzem o máximo de incan-
descência, as energias e as contingências da guerra se unem na batalha principal para
produzir um efeito supremo e concentrado", C.von Clausewitz, De la guerre, trad. D.Naville,
ed. cit. p. 279-280.
"N.T. Não foram estas as duas letras e sim X e P, que correspondem às letras CHR, em
francês Christ = Cristo, grafia eliminada em português, antes se escrevia Christo, christão,
Por exemplo; X em grego se tornou CH e P é o nosso R).
176 Estados de Violência

17
vitória. Como ainda Clóvis, na narrativa de Gregório de Tours, caindo de
repente de joelhos no campo de batalha, humilde e suplicante ("se tu rne
dás a vitória ... "). E o combate se vira à sua vantagem: batalha decisiva, erni-
nentemen te solene, eminente mente singular. Clausewitz dizia "da batalha
principal": "nós nos encontram os colocados diante do próprio destino"_ is
A guerra é um puro acontecimento que decide do direito e constitui-se sua
fonte, que decide porque nesse combate é pedida a ajuda dos deuses e que
eles façam a balança pender. O direito permanec e um tempo suspenso
dos lábios da batalha, boca dos deuses. O que os deuses dão é exatamente
um suplemen to de forças. Eles aumentam a força de uma parte: augere =
aumentar , em latim (que dá auctoritas = autoridade). A autoridad e é este
suplemen to de força que se desprende, esse suplemen to enquanto é dado e
que legitima a superioridade. Vitória como fonte e manifestação do direi-
to. A guerra é instrumen to de sua revelação. Não é justificar o direito do
mais forte. É considerar que a maior força é dada ao direito mais legítimo:
"Faz-se a guerra para obter dos deuses uma decisão de valor sagrado, pela
prova da vitória ou da derrotà'. Trata-se exatamen te de desempat ar duas
19

pretensões, de dar simultane amente razão, preponde rância e vitória a uma


das duas partes. No fim do combate, haverá, com um corte nítido como o
dia e a noite, um ganhador e um perdedor, um vencedor e um vencido, na
clareza absoluta da partilha.
Princípio de partilha. Concentr a-se toda a violência esparsa dos
combates menores e nunca resolvidos num só conflito para decidir do
direito, estabelecê -lo na memória dos povos. O próprio da guerra é que
ela desempat a entre um vencedor e um vencido, de uma maneira visí-
vel, espetacular. Há guerra só para introduzi r na história dos homens
este sentido do término, do limite, da partilha clara, que é de tal modo
essencial ao direito. Julgar em grego é krinein. Krinein é também parti-
lhar, no sentido de operar uma divisão, de separar. A guerra é um pro-

17
Histoire des Francs, li, 30.
18
lbid., p. 74.
19 J. Huizinga, Homo /udens, trad. C. Seresia, ed. cit. p. 153.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 177

cesso. De um conflito de pretensões deve sair uma determinação uní-


voca e durável. Quero dizer que nessa forma pura a essência da guerra
não se situa no nível do conflito armado, mortal, sangrento (tudo isso
está presente nas expedições brutais, nos ataques devastadores) , mas na
suspensão mítica do tempo regulada para fazer deste aconteciment o,
deste embate um momento de fundação em que se decide duravelmen-
te, visivelmente e de maneira unívoca o direito. Porque o próprio da
guerra é desempatar entre um vencedor e um vencido. A guerra é esse
conflito que aceita tomar a forma de um julgamento. O que é esperado
da guerra e que não permite a tática das escaramuças repetidas, é uma
decisão que dividiria de uma vez a história das comunidades e de seus
conflitos seculares, introduziria, no tempo monótono dos socos pon-
tuais e incessantes, uma irredutível cesura. O que se espera da guerra
e que não é possível esperar das operações agressivas repetidas é exata-
mente uma decisão.
20
Neste sentido o discurso estratégico ou histórico fala de "batalha de-
cisiva": a que introduz o irreversível, um desequilíbrio insuperável para
uma das duas partes. Como para um processo: há um antes e um depois,
e a impossibilidade de voltar atrás. Há disso na justiça, na constituição de
seu sentido, verdadeiramente forte e importante: aí se pronunciam senten-
ças que têm como sentido - mesmo se tecnicamente é possível ao menos
uma vez "apelar" - introduzir o definitivo, o irreversível, operar um corte
entre um antes e um depois. A ideia de guerra decisiva se baseia num mes-
mo estilo de constituição temporal: há essa suspensão terrível do tempo em
que as forças tremem, eretas em sua oposição vertical, e depois a balança
pende de um lado e está tudo exatamente terminado. Quero dizer que o
pensamento estratégico considera como "batalha decisivà' a que põe fim à
guerra, a que lhe dá um término, uma conclusão que é ao mesmo tempo
introdução no mundo da paz.

°
2
Cf. os livros exemplares, sobre este ponto, de J.F. Fuller, Les batail/es décisives de
f'histoire (1958), Paris, Berger-Levrault, 1980, 3 v.
10
A guerra legítima

Para abordar o segundo grande domínio de sentido da "guerra justa"


como guerra desta vez legítima, guerra de justa causa, guerra que sustenta
o direito e cumpre a justiça, interrogar-se-á a doutrina constituída pelos te-
ólogos e canonistas católicos durante mais de doze séculos, de Santo Agos-
tinho a Francisco Suárez, de Santo Tomás a Francisco de Vitória. Segundo
uma versão corrente, essa doutrina - que exige títulos a apresentar para
justificar o desencadeamento de uma guerra jus ad bellum* - teria sido logo
ultrapassada pelo "direito dos povos", que, de Grotius a Vattel, não teria
mais considerado senão os meios de regular a guerra, de enquadrar juridi-
camente o desencadear de violências entre nações por convenções aceitas
de parte a parte, sem que se tenha de afixar causas justificantes - a entrada
em guerra sendo decididamente considerada como este poder discricioná-
rio maior do Estado soberano moderno. Além disso, esse direito dos povos
Constituiria uma das fontes do direito internacional humanitário contem-
porâneo, como foi elaborado das Convenções de Haia às de Genebra.
Então, ultrapassado o velho edifício conceitua! da guerra de justa cau-
sa? E, contudo, do regulamento humilhante da Primeira Guerra Mundial
(apoiando-se no Tratado de Versailles sobre os crimes da Alemanha, cul-
pada de ter desencadeado a guerra por motivos inaceitáveis) até a segunda
guerra do Iraque (justificada à opinião pública mundial por uma série de
causas mais ou menos bem estabelecidas: presença de armas de destruição
maciça no território iraquiano, cumplicidade presumida entre o regime de
Saddan Hussein e organizações terroristas), ter-se-á assistido ao despertar
da guerra justa.

*N.T. direito para guerra, literalmente.


180 Estados de Violência

O escândalo absoluto da guerra

No fundo da doutrina da guerra de justa causa, há este primeiro enun-


ciado: a guerra é um escândalo. A guerra é desastrosa e má, ligando-se ao
mal por todos os seus lados, enraizando-se na perversidade, na cupidez,
na crueldade dos homens. Ela é, entre os homens, a volta do que, neles, se
acha de inumano, animal e selvagem.
Consciência aguda do caráter intolerável da guerra, percepção firmada de
sua monstruosidade: a guerra de justa causa supõe a luz do escândalo. Assirn
serão necessárias condições excepcionais para justificar uma guerra, que aliás é
tida como horror. A doutrina da guerra justa quer ser radicalmente restritiva.
Ela, em sua ambição de partida, é menos um sistema de caução indefinido
dos conflitos, para Estados em falta de respeitabilidade externa, do que uma
instância muito dura de seleção e partilha. É porque a guerra é decididamente
um mal que ela deve provar, demonstrar, estabelecer sua legitimidade, a justi-
ça de sua causa. Ressoam ainda as palavras de Cristo em São Mateus.

Eu vos digo, não resistais ao mau (ego dico vobis non resistere maio). Se alguém te
bate na face direita, apresenta-lhe a esquerda (Mt 5,39).
Amai vossos inimigos (5,44).
Todos os que pegam a espada, pela espada perecerão(omnes enim qui acceperint
g!adium gládio peribunt) (26,52).

É outra coisa que afirmar a superioridade da paz sobre a guerra: de ante-


mão, toda agressividade é desqualificada, toda resistência ativa desacreditada.
Nunca responder à violência pela violência. O verdadeiro cristão deve, na fé
destes artigos, interditar-se de antemão toda participação na guerra? Só per-
sonalidades distantes e isoladas irão até esse ponto, tendo por inconciliáveis
a condição de cristão e a de soldado: Tertuliano sustentava que, desarmando
1
Pedro, o Cristo tinha desarmado todos os cristãos; Orígenes considerava
incompatíveis a condição militar e a de cristão ("nós não pegamos mais a es-

1
Cf. De idolatria, 19, e De carona militis, 11.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 181

pada contra alguém, nós não a pegamos mais para fazer a guerrà' ;2 Lactâncio
lembrava a interdição feita aos cristãos de matar alguém3 •••
Bastante depressa contudo, no sulco traçado por Santo Agostinho, que-
rerá demonstrar-se que as sublimes palavras do Cristo só visam a disposição
interior do coração, constituindo uma exortação à paciência, à tolerância e à
doçura (o que Santo Tomás chama uma ''praeparatio animi"* II-II q. 40, a.
1), deixando livre de ação o corpo exterior. 4
Quanto ao amor do inimigo, ele não concerne senão ao inimigo pessoal:
5
0 inimicus e não o hostis. É um apelo a se reconciliar com seus próximos

e não uma declaração pacífica incondicional. E se é proibido a Pedro sacar


da espada, a violência jamais pode partir de uma iniciativa privada. Uma
coisa é sacar a espada (accipere), outra coisa é servir-se dela sob o comando
de um outro. A palavra do Cristo era chamada à ordem circunstanciada
e não um preceito absoluto. A violência é proibida quando é tomada por
vontade pessoal. Não se deve jamais tomar a espada, mas somente dela se
servir por comissão de. uma autoridade superior. 6
Os preceitos evangélicos não têm, então, segundo as maiores auto-
ridades morais da Igreja, este sentido de um pacifismo incondicional e
absoluto que se sonharia às vezes lhe dar. Como explicar de outra maneira
que São João Batista tenha simplesmente exortado o soldado a "se conten-
tar com seu soldo", sem incitá-lo a depor suas armas? 7 E, de outro modo,

2
Contra Celsum, citado por P. Batiffol, "Les premiers chrétiens et la guerre", in L 'Ég/ise et
!e droit de guerre, ed. cit. p. 26.
3
"Neque militare justo licebiL. " (nem guerrear será lícito ao justo) citado por P, Batiffol, ibid,
* N.T. preparação da alma.
4
"Os preceitos de Jesus Cristo olham antes a disposição do coração do que aquilo que se
faz por fora e tendem a nos fazer conservar dentro a paciência e a caridade, fazendo fora
o que parecerá o mais útil para aqueles a quem devemos desejar o bem", Santo Agosti-
nho, carta 138 a Marcelino, passagem retomada por Graciano em sua Causa XXII/, trad.
Vanderpol, o.e. p. 293.
5
Cf. o que recorda C. Schmitt in La notion de politique, trad. M. L. Steinhauser, ed. cit. p. 67.
6
"Aquele que, pela autoridade do príncipe ou do juiz, se é uma pessoa privada ou se é uma
pessoa pública, por zelo da justiça, e como pela autoridade de Deus, usa a espada, ele não
a toma por ele mesmo, mas se serve da espada que um outro lhe confiou (non ipse accipit
gladium, sed ab alio sibi commisso utitur), Santo Tomás, Suma Teológica, 11-11, q. 40, art. 1,
trad. V. Vergriete O.P., ed . cit. p, 121. (N .T. os textos latinos dessa nota e da seguinte têm
tradução antecipada nas citações.)
182 Estados de Violência

se toda guerra fosse proibida, como se poderia dar prova dessa caridade
que justamente manda levar socorro aos fracos quando são atacados? Bá
sempre santificação da força desde que ela combata a injustiça. A tal ponto
que recusar este uso e deixar o inocente em perigo é cometer a injustiça. s
A doutrina da guerra justa guarda, contudo, dessa recusa primeira
da violência alguma coisa: um espírito de caridade que deverá reinar até
nos combates. O que não significa que se deva combater indolentement e.
Contudo, a resolução firme substitui a raiva sedenta de sangue. Essas guer-
ras se fazem sem ódio, mas com o que Santo Agostinho denomina uma
"severidade caridosà' (benigna asperitas); pois no fundo é para o bem dos
culpados que eles são combatidos e punidos por caridade, para permitir-
lhes participar também dos benefícios da justiça. 9
Vê-se com isso que se a guerra jamais é permitida, sê-lo-á sob a impe-
riosa urgência da necessidade. O cristão faz a guerra coagido e forçado e
para o bem de seu inimigo. Até o fim ele se obriga a isso, como o diz Vitória
em sua conclusão: (sed coactum invitum venire oportet ad necessitatem belli) é
10
forçado e contra a vontade que é preciso vir à necessidade da guerra. A
condenação pelos Padres cristãos das guerras antigas está neste ponto: os
pagãos no fundo faziam a guerra por decisão livre, porque eles a desejavam,

7
Como se lê em São Lucas 3,14.
ª "Quem não afasta de seu próximo uma injustiça, quando tem capacidade de afastá-la, é
tão culpado quanto aquele que comete a injustiça (qui enim non repeflit a sócio injuriam,
si potest, tam est in vitio,quam ille qui facit), Santo Ambrósio, De officiis, 1, 36, 178, trad.
Regou!, o.e. p. 40.
9
"Contudo isso não impede que se deva impor contra a vontade dos maus muitas coisas
por urna severidade caridosa, que considera o que lhes é útil mais do que lhes é agradável
(agenda sunt autem mu/ta,etlam cum invitis benigna quadam asperitate p/ectendis, quorum
potius utilitati consulendum est quam voluntati). Pois, com alguma severidade que um pai
castiga seu filho, ele não se despoja nunca da afeição paterna; que o filho faça, então, o
que não quer, e que se queixe, ele, contra sua vontade, será curado pela dor. É por isso
que, se estes preceitos de Jesus Crtsto fossem observados na terra na República cristã, a
própria guerra não se faria sem benevolência (ipsa bel/a sine benevolentia non gerentur),
mas somente para proporcionar mais facilmente aos vencidos a participação da piedade
e da justiça. Pois é utilmente vencido, aquele a quem se tira a liberdade de cometer a ini-
quidade, porque não há nada mais deplorável do que a felicidade dos pecadores (nam cui
/icentia iniquitalis er/pitur, ufiliter vincitur. Ouoniam nihil est infelícius felicitate peccantium),
por essa felicldade do pecador a impunidade alimenta-se e a má vontade, este inimigo
interior, fortifica-se", Santo Agostinho, Carta 138 a Marcelino, trad. Vanderpol, o.e. p. 294.
°
1 F. de Vitória, Leçons sur /e droit de guerre, 60, 154, trad. M. Barbier, ed. cit. p. 155.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 183

quase que por gosto. Pagãos sedentos de dominação e de poder, sedentos


de riquezas e de saques, sedentos de falsa glória, sedentos de vingança de-
testável. Eles entrançavam louros para seus vencedores e exaltavam como
ninguém as falsas virtudes viris e marciais. Eles faziam a guerra para se
enriquecer, para conquistar, para se exaltar. Eles queriam fazer a guerra e
não estavam constrangidos.

Esse foi o erro dos pagãos crer que os direitos dos Estados se baseavam na força
das armas e que se podia empreender guerras unicamente para adquirir um nome ou
· li
nquezas.

Eis fixada a diferença definitiva entre as guerras cristãs e as pagãs: os


primeiros fazem a guerra por necessidade e os outros por vontade. O ver-
dadeiro sábio só faz a guerra constrangido. 12
Esse horror da violência é causa de duas condições que serão impos-
tas à guerra justa. É primeiramente que ela seja o último recurso: uma
guerra não pode ser empreendida a não ser que nenhuma outra saída seja
previsível ou depois de ter em vão tentado outros modos de regulação e
experimentado recusas obstinadas: "É preciso, antes de recorrer à guerra,
constatar a obstinação do ofensor e sua recusa de dar satisfação". 13
A segunda condição é que se respeite o princípio de proporcionalida-
de: não se empreenderão guerras senão para faltas pesadas e graves. "Na
guerra tudo é grave e atroz, homicídios, incêndios, devastações: não é en-
tão permitido punir pela guerra os que são apenas autores de injúrias leves:
pois segundo a grandeza do delito deve ser a grandeza do castigo". 14 Alguns
autores, como Cajetano (contestado neste ponto por Suárez), irão até mais

11
F. Suárez, De bel/o (in De caritate, XIII) , 4, trad. Vanderpol, o.e. p.377 . Cf. também Santo
Agostinho (in Contra Faustum, 22:-74, trad. Vanderpol, o. e. p. 86): "O que se critica na guer-
ra?; [ ...] O desejo de prejudicar, a crueldade da vingança.os arroubos de uma animosidade
implacável, o furor da revolta, a paixão de dominar e outras coisas semelhantes, eis o que
se censura com razão nas guerras".
12
Santo Agostinho, A cidade de Deus, XIX ("é a injustiça do partido adversário que obriga
com efeito o sábio a fazer uma guerra justa", trad . L. Jerphgnon , ed . cit. p. 861 ).
13
- F. Suárez, De bel/o, 4, ed. cit. p. 381 .
14
F. de Vitória, Leçons sur /e droit de guerre, 14, 40, trad. Vanderpol, o.e. p. 61 .

.,
184 Estados de Violência

longe exigindo, para a entrada em guerra justa, a certeza moral da vitória, i s


pois é de outro modo condenar à miséria e à morte.
Uma vez fixado esse conceito de necessidade, exigido pelo pacifismo
evangélico, a questão se torna: mas o que pode causar a guerra necessária?
A resposta está em duas palavras, levemente deslocadas, complementar es
mas distintas, envolvendo-se em movimentos ambíguos: a justiça e a paz.

A necessidade de uma justa causa

É por necessidade que os cristãos podem obrigar-se a fazer a guerra ou jus-


tificar os que a fazem e somente quando não há outros meios. Não outro meio
para restaurar o direito e restabelecer a justiça, não outro meio para punir os mal-
feitores e socorrer os inocentes, não outro meio para assegurar a ordem e a paz.
É preciso reter dessa posição ainda uma vez seu aspecto restritivo,
como o mostra a construção do início do livro de Vitória, sobre a "justa
causa". Quais podem ser as razões de uma guerra justa? Primeiramente : "a
diferença de religião não é uma justa causa de guerra". Em segundo lugar:
"o engrandecime nto do Império não é uma justa causa de guerrà'. Em
terceiro lugar: "a glória pessoal ou todo outro interesse do príncipe não é
uma justa causa de guerra". E enfim: "única, uma injustiça pode constituir
uma justa causa de guerra (unica et sola causa justa inferendi bellum, injuria
illatai". 16
17
Há múltiplas más razões de desencadear guerras. Uma só, contudo,
é legítima: "essa causa justa e suficiente é uma grave violação do direito,
realizada, e não podendo ser vingada ou reparada de uma outra maneira

15
"Deste principio Caetano concluiu que, para que a guerra fosse justa, seria necessârio
que o prlncipe se reconhecesse um tal poder que fosse moralmente certo de sua vitória.
[ ... ] Essa condição não me parece absolutamente neeessária , primeiramente porque. falan-
do humanamente, isso é quase impossível; depois porque muitas vezes importa ao bem
comum do Estado não esperar que se tenha uma certeza completa" (Suárez.De bel/o, 4,
ed. cit. p. 384).
16
F. de Vitoria, o.e. p. 120-123. (N.T. Uma única causa justa de fazer guerra, a afronta feita .)
17
Como a denunciada por Christine de Pisan em seu Livre de faits d'armes et de Chevalerie:
"Para conquistar terras e senhorios estranhos sem ter outro título senão de conquistador".
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 185

(causa haec justa et sujficiens, est gravis injuria illata, quae alia ratione vindi-
cari aut reparari nequit*) ' . 18
Eis-nos colocados no limiar das grandes definições da guerra justa,
uma vez rejeitados os motivos iníquos dos pagãos: ambição vã e insaciável
cupidez. Compreende-s e já neste ponto que o Império romano em seu
antigo brilho, desmedidamen te aumentado à força de triunfos, só podia
encontrar o ceticismo, senão o desprezo de Santo Agostinho: não houve se-
não "vitórias mortais" .19 Quando se veem todas estas conquistas, estas vitó-
rias, é preciso de verdade extasiar-se e admirar o gênio? Como denominar
isso de outro modo senão um imenso latrocínio? ( "Quid aliud quam grande
latrocinium nominandum est?" IV-6). O esplendor romano se transforma
numa operação gigantesca e bem-sucedida de rapina.
São duas das mais antigas definições da guerra justa, sempre repetidas,
às vezes aumentadas, completadas.

São ditas justas as guerras que punem injustiças (justa bel/a solent definiri quae
ulciscuntur injurias); assim deve ser combatido um povo ou um Estado que tivesse
negligenciado punir um delito cometido pelos seus membros ou restituir o que foi
injustamente roubado. 20
Justa é a guerra que, em virtude de um edito, é feita para recuperar bens ou para
expulsar seus inimigos (justum bel/um est quod ex praedicto geritur de rebus repetitis
aut propulsandorum hostium causa). 21

Essas formulações primitivas são ainda vagas. Nelas se encontram três


elementos: a defesa (propulsare = expulsar), a recuperação (repetere res =
recuperar as coisas), a punição (ulcísci injurias= vingar as injúrias). Estas
três dimensões serão em breve retomadas, recortadas, até à sistematização

*N.T. essa causa justa e suficiente é uma grave afronta feita.que por outra razão não pode
ser vingada ou reparada .
18
F. Suárez, De bel/o, 4, ed. cit. p. 378.
19
A cidade de Deus.XV, 4.
'° Santo Agostinho, Quaest. in Heptateuchum, IV, 1O.
Santo Isidoro de Sevilha, Étymo/ogíes, XVIII, 1, retomado por Graciano em sua Causa
21

XXII! (trad. Regout, o.e. p. 63). (N.T. é justa a guerra que se faz para recuperar coisas ou
expulsar os inimigos.)
186 Estados de Violência

22
de Grotius: defensio, recuperatio, punitio. A afirmação agressiva da justiça,
diante de uma violação de direito, toma os três aspectos da defesa, da inde-
nização e da punição.
A guerra defensiva não causa nenhum problema de princípio, bem ao
contrário. Ela é conforme o direito natural mais elementar. Por toda parte
é permitido repelir a força pela força (segundo o velho adágio sempre repe-
tido das Decretais: 23 vim vi repellere). Isso vale mesmo para os indivíduos:
a defesa enérgica de sua integridade ou ainda a tentativa de recuperar pela
força um bem que nos foi roubado, tudo isso é lícito e justo de direito na-
tural, contanto que essa defesa seja contemporâne a da injustiça cometida
(in continenti) e se mantenha na estrita defensiva, sem aproveitar dessa
24
autorização de violência para se vingar. É como se as doutrinas da guerra
justa insistissem neste capítulo. 25
O segundo foco de sentido da justa causa é a recuperatio: repetere res.
Por exemplo, restabelecer um direito de circulação ou de comércio con-
testado por um vizinho, recuperar um território perdido que outrora nos
pertencera, recuperar sua honra achincalhada etc. É digno de nota que a
guerra é compreendida no limite aqui como puro instrumento externo:
serve-se da força para restabelecer um direito, mas ela é apenas puro meio.
Os sofrimentos e os males não constituem mais que um acompanhame nto

22
"A maior parte dos autores designam às guerras três causas legítimas: a defesa, a recu-
peração do que nos pertence e a punição" (Le droit de la guerre et de la paix, Livro li, cap.
1,11, 2, trad. Pradier-Fodéré, ed. cit. p. 164).
23
1,V.T. XII, c. 18, par. Vim vi.
24
É preciso repelir a força que nos agride cum moderamine incu/patae tutelae: guardando
o cuidado de uma defesa irrepreensível (Décrétales).
25
Dois pontos podem ser, contudo, precisados . É antes de tudo que a legítima defesa não
vale quando é uma guerra justa que se vos opõe. De outro modo, seria preciso supor uma
guerra justa dos dois lados (causa legítima contra legítima defesa), o que é uma aberração.
Contudo, não é de defesa que é preciso falar para os recalcitrantes, mas de obstinação
no erro. É como um condenado que resistiria a seu juiz e à sua sentença: ele não pode
invocar uma justa resistência ao mal que se lhe inflige. De outra parte, se a legítima defesa
imediata, contemporânea da agressão, é permitida e, mesmo se é recomendada ao Esta-
do e ao indivíduo como essencial, a própria defesa dessa vez afastada do ataque (como
a operação de recuperar um bem depois de certa demora) não é permitida, a não ser à
autoridade pública. O indivíduo com efeito deverá recorrer aos tribunais, para fazer valer
seu direito achincalhado.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 187

do uso da força, dos corolários infelizes mas obrigados. Uma vez a vitória
obtida, basta recuperar seus bens e compensar-se de sua pena ("pode-se
apoderar-se dos bens dos inimigos até que se igualem despesas da guerra e
26
prejuízos injustamente causados por eles"). A procura da guerra visa um
dano objetivo que é preciso reparar, mais que uma falta subjetiva que seria
preciso castigar. Este estilo de guerra é acompanhado de imperativos de
prudência e de moderação, a violência devendo ser contida numa função
puramente instrumental e não tendo nenhum valor intrínseco. É como
uma operação de polícia, cujos objetivos são previamente definidos e que
não dá direitos gerais sobre os bens e as pessoas do adversário, mas objeti-
vos forçosamente limitados. A guerra, então, nunca é senão o exercício de
uma justiça comutativa.
Contudo, essa guerra-recuperatio, atendo-se só a reparar um prejuízo
objetivo e atenta a não ultrapassar a medida, não constitui evidentemente
senão um caso limite. Como a guerra cava uma esteira infeliz de destrui-
ções e de sofrimentos, a justiça comutativa é rapidamente acompanhada
por uma justiça vindicativa, permitindo não deixar tantas violências sus-
pensas no céu do sentido. Tanto mais que a um agravo se fará inevitavel-
mente corresponder uma falta, já que o agravo se enraíza numa disposição
subjetiva.
Esse uso da força para recuperar seu direito é devido, nós nos lembra-
mos, à ausência de um tribunal supremo onde regular o litígio, de uma ter-
ceira instância diante da qual apresentar sua demanda. Contudo, essa falta
acarreta uma substituição: a guerra substitui um regulamento judiciário.
Contudo, não se trata para o Estado de se vingar cegamente, na ausência
de autoridade superior, mas de se constituir como juiz, equitativo, embora
juiz e parte, encarregando-se ao mesmo tempo da instrução, da sentença
e da aplicação da pena. Persiste com efeito a questão difícil do momen-
to dessa substituição: ou se dirá que o Estado se assegura por operações
militares uma vitória que dá lugar depois, por neutralização do culpado

26
F. de Vitória, o.e. p. 143.
188 Estados de Violência

recalcitrante, a um estatuto judiciário (punição do culpado e compensação


dos gastos feitos) e a guerra então permanece de fora do processo (simples
instrumento que permite a regulamentação judiciária); ou, e essa versão
será a mais frequentement e mantida, a guerra, na própria trama de seu
desenvolvimento, assegura a execução judiciária: agredindo, ela pune. 27
Quando os doutrinários da guerra justa dizem que "só um Estado
pode declarar a guerra", isso significa antes de tudo, como já se viu, que um
indivíduo não pode fomentar uma guerra: para se vingar de uma injustiça
que lhe teria sido feita, ele deve recorrer à solução pacífica dos tribunais.
Contudo, a ausência de facto do tribunal superior entre Estados obriga 0
próprio Príncipe a fazer justiça. 28
Contudo, se se fica numa relação entre soberanos, então a guerra nun-
ca é mais que a forma que toma a justiça punitiva do Estado quando ela
se exerce contra outros Estados. Os delinquentes do interior, ele os prende
e condena. Os delinquentes externos, ele lhes faz guerra. A guerra é uma
execução do direito (executio jurisdictionis - execução de jurisdição) e o
Príncipe que conduz os exércitos se comporta como juiz (judex).

A dimensão punitiva das guerras justas

O sentido da pena ligada à guerra justa nunca é totalmente fixado, e é


preciso reconhecer que ele hesita sempre entre dois polos - reproduzindo bas-
tante bem os da paz e da justiça ou ainda necessidades inerentes à segurança

2
v "O poder de declarar a guerra é uma espécie de poder de jurisdição, cujo exercício pertence à
justiça vindicativa, justiça totalmente indispensável no Estado para a repressão dos malfeitores;
ora, como o príncipe soberano pode punir seus próprios súditos, quando fazem mal aos outros,
assim também ele pode vingar-se de um outro prlncipe ou de um outro Estado, que lhe está
sujeito em razão da falta que ele cometeu: essa vindita não pode ser pedida a um outro juiz,
porque 0 prlncipe de que falamos não tem superior temporal; se então 0 outro príncipe não está
disposto a dar satisfação, ele pode ser coagido pela guerra", F. Suárez, 2, o.e., p. 368.
23
Sob a condição de considerar como o Hostiensis (em seu De treuga et pace,in Summa
aurea, cf. Regout, o.e. p. 72-73) que existe uma autoridade superior capaz de arbitrar as
desavenças da comunidade cristã - o papa - e então todas as guerras que fazem afrontar-
se príncipes cristãos são injustas, exceto as decretadas pela instância pontiflcia e assumi-
das por um de seus subordinados. Elas se assemelham mais.então, a execuções de uma
sentença da Autoridade.
rerceira Parte - QUADRO JURÍDICO 189

e necessidades sagradas da expansão. Nos dois casos, é o Estado que pune.


Encontra-se aqui a ambiguidade de toda pena: defesa dos interesses políticos
írnanentes (a injustiça como fator de desordens e perturbações) ou satisfação
das exigências morais superiores (a injustiça como transgressão dos interditos).
O primeiro nível seria o da conservação da paz. O suplemento de
sofrimentos que pode ser imposto em, por e depois da guerra liga-se às exi-
gências de segurança . f que não ba ta reparar uma injustiça, mas também
prevenir sua repetição. Vitória o diz bem: além d retomar seu bem e de se
indenizar do gastos feitos na guerra, o príncipe pode até ir mai longe à
1

29
rnedida que for necessário para obter dos inimigos a paz e a segurançà'.
Aparecimento aqui de um nível punitivo específico, no sentido em que a
função da pena manteria na defesa social a neutralização dos perigos. Além
da indenização, o suplemento de bens tirado do inimigo e em compensa-
30
ção dos sofrimentos infligidos constitui uma garantia para o futuro. O
sentido da pena incluída na guerra se refere à proteção de todos. É o mes-
mo sentido contra os delinquentes de dentro e os inimigos de fora: defesa
31
absoluta do interesse público. Punir é proteger a sociedade.
Contudo, por um segundo nível, toca-se na função expiatória dos
sofrimentos da guerra. Dever-se-á mesmo distinguir um princípio de ex-
piação particular e um princípio de expiação geral, pois, depois de tudo,
o que é preciso supor no fundamen to do dano objetivo causado, da in-
justiça manifesta cometida (injuria ítlata), é a culpabilidade do fautor:
culpa. "É exigido que os que são atacados mereçam o ataque em razão

29
F. de Vitória, 18.4, o.e. p. 124.
30
"Depois da vitória e da recuperação dos bens, dos inimigos podem ser exigidos reféns,
navios, armas e outras coisas que são honesta e lealmente necessárias para manter os
inimigos no dever e afastar todo perigo de sua parte", F. de Vitória, 18, 50, o.e. p. 125.
31
"Não é da competência de uma pessoa privada empreender uma guerra, pois ela pode
fazer valer seu direito no tribunal de seu superior( ...]. Já que o cuidado do Estado (curam
reipublicae) foi confiado aos príncipes, é a eles que cabe velar pelo bem público (rem pu-
blicam) da cidade, do reino ou da província submetidos à sua autoridade. Do mesmo modo
que eles o defendem com razão pela espada contra os perturbadores de dentro (interiores
perturbatores) quando punem os malfeitores, (... ] assim também lhe cabe defender o bem
Público pela espada da guerra contra os inimigos de fora (exterioribus hostibus)", Santo
Tomás, o.e. p. 118-119.
190 Estados de Violência

de alguma falta (propter aliquam culpam = por causa de alguma culpa) ,32
"Então o sentido dos sofrimentos que se infligem na guerra volta, neste
deslocamento, da injúria para a culpa. Os males da guerra não são mais
a consequência obrigada, mas não procurada, por ela mesma (uma sequ-
ência obrigada, "um prejuízo colateral") do uso da força necessária, para
restaurar um direito, recuperar seu bem, punir um delinquente de fora;
não é mais um sinal forte que se dá para garantir o futuro. Os sofrimen-
tos da guerra dessa vez visam deliberadamente a ferir, a fazer mal.

Quem faz uma guerra justa age como juiz que pune (quia habens justum be!Lum
gerit persona criminaliterprocedentis*). E que ele aja nessa qualidade vem do fato de que
uma guerra justa é um ato de justiça vindicativa (praelium justum est actus vindicativae
justitiae**)que é propriamente a virtude de um príncipe ou de um juiz. De fato a vindi-
ta não é negócio de uma pessoa privada pois está escrito ''A mim a vingança''. E que ele
intervenha como punidor (vero criminaliterpmcedentis), isto o mostra: ele vai matar e
reduzir à escravidão pessoas e danificar bens. [... ] Além disso quem conduz uma guerra
justa não é simplesmente parte dela, mas se torna juiz de seus inimigos (judex hostium
suorum) pela própria causa que torna a guerra necessária, em virtude de sua qualidade
de "Estado perfeito". Porque a título de Estado perfeito ele pode com sua própria au-
toridade usar a espada contra os perturbadores de dentro e de fora. [...] E se quem faz
uma guerra justa não fosse o superior de seus inimigos, todas as guerras - exceto a de-
fensiva - seriam injustas, pois não há dominação entre iguais (par in parem non habeat
imperium**"') [... ]. Quando a guerra é desencadeada é aquele que conduz a guerra justa
que é dono da causa (dominus causae) [... ]. O inimigo tem que se haver consigo mesmo
se é posto numa situação em que a justiça vindicativa pode ser exercida contra ele por
estrangeiros [.. .]. Doravante não lhe cabe mais satisfazer doando-se (satisfacere), mas
satisfazer expiando (satispati = sofrer bastante****), seguindo o julgamento de quem
33
conduz contra ele a guerra justa.

32
Santo Tomás, o.e. p. 119. Cf. também F. de Vitoria "a guerra ofensiva tem por objetivo
punir uma injustiça e castigar os inimigos. Ora, não pode haver punições onde não houve
falta nem injustiça (bel/um offensivum est ad vincicendam injuriam et animadvertendum in
hostes, ut dictum est, sed vindicta esse non potest, ubi non praecessit culpa et injuria)", 13,
37, o.e. p. 122. (N.T. texto latino antecipadamente traduzido .)
* N.T. aquele que faz guerra justa age como alguém que procede criminalmente.
** N.T. combate justo é ato de justiça vindicativa .
*** N.T. o igual não tenha autoridade sobre o igual.
****N.T. satis = bastante em latim, facere = fazer-satisfazer-fazer bastante , pati é infinito de
patior = sofrer, satispati = sofrer bastante.
33
Caetano, Summula Cejetani s.v. Bel/um , trad. Regou!, o.e. p. 127.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 191

Então muito certamente neste ponto da exposição, está-se mais per-


to do risco que Schmitt denuncia para toda guerra que se pretende justa e
punitiva, quando ele afirma: quem pretende conduzir uma guerra justa des-
qualifica moralmente seu adversário; ele constrói entre si e seu inimigo uma
dissimetria definitiva; ele se escora numa superioridade moral fulminante e
considera o inimigo numa inferioridade irredutível. É verdadeiramente os
bons contra os maus: "Os bons se são bons verdadeiramente não combatem
contra os bons: os que se batem são os maus com os maus ou os maus com
os bons". 34 A ausência de igualdade entre os dois vale como desequilíbrio
dos direitos. O inimigo não tem mais o direito senão de ser maltratado. E
Schmitt previne: a guerra de aniquilamento não está longe. A guerra de justa
causa supõe a discriminação, que leva ao aniquilamento. Não há mais limites
35
para a negação do inimigo desde que é reduzido ao estado de criminoso.
É muitas vezes dessa maneira que as coisas se apresentam. Os horrores
da guerra, a perfídia das matanças são sempre como que atenuados pela
ideia de que depois de tudo os culpados é que são maltratados: "Por si,
nada impede que, numa guerra justa, se possa, sem verdadeiramente violar
36
a justiça, matar os prisioneiros e os que se renderam, se são culpados."
Porque essa culpabilidade concerne não só aos príncipes ou a outros su-
periores que fomentam as guerras, mas ainda a todos as pessoas que delas
participam como soldados. Sem falar das populações civis, dos "inocen-
37
tes" (non nocentes), pegos na rede dessa culpabilidade maciça. Na falta de

34
Santo Agostinho, em Cidade de Deus, citado por Vanderpol sem referências precisas, p. 28.
"Ajustiça da guerra, quando é atribuída à justa causa, comporta sempre ao estado latente
35

uma ponta de discriminação do adversário injusto e então de eliminação da guerra como


instituição jurídica. A guerra se torna, então , bem depressa uma simples ação penal, ela toma
um caráter punitivo, todas as graves dubia (dúvidas) da doutrina dojustum bel/um Uusta guer-
ra) são logo esquecidas; o inimigo se torna simples criminoso, e o resto, a saber, a privação
dos direitos do adversário e o saque de seus bens, isto é, a destruição do conceito de inimigo
que formalmente pressupõe sempre um justus hostis (inimigo justo), segue praticamente
sozinho", Carl Schmitt, Le nomos de la ferre, trad. L. Deroche-Gurcel, ed. cit. p. 148.
36
F. de Vitória, 49, 136, o.e. p. 148.
37
"Não se está obrigado a distinguir se uma parte dos cidadãos são de injustos inimigos e
outros inocentes; pois todo o Estado é presumido inimigo e tido como tal , e é por isso que
0
Estado inteiro é condenado e devastado",Caeta no,Summu/a, V Bel/um.
192 Estados de Violência

massacrar as populações civis, poder-se-á com justiça espoliar seus bens ou


reduzi-las à escravidão. 38
A doutrina da guerra de justa causa supõe, então, a essencial desi-
gualdade dos adversários: de um lado a justiça e do outro a iniquidade; de
um lado um jugo severo mas bom, do outro um delinquente obstinado
no erro. Seria falso, porém, dizer que a dimensão punitiva da guerra justa
leva a executar o aniquilamento completo do adversário, por causa de sua
inferioridade moral. Primeiramente porque o sentido da guerra-recuperatio
continua a procurar a dimensão punitiva, inspirando os temas com urna
medida a não ser ultrapassada, com uma proporção a ser respeitada, corn
direitos finalmente restritos sobre o inimigo. 39
Esse respeito da medida é ainda exigido pela própria criminalização
do inimigo. Punir jamais significou simplesmente aniquilar. A relação
punitiva com o inimigo, certamente dissimétrica, é vista como elo jurídi-
co, portanto regrado, estruturado, positivo. A guerra considerada como
execução de direito penal recebe dessa forma jurídica a exigência essen-
cial de uma medida. 40
A guerra de justa causa confere, então, ao m1migo que se ataca
o estatuto de sujeito: ter cometido uma falta o faz automaticamente

38 "Se isso é necessário para obter uma plena satisfação, pode-se tirar aos inocentes
seus bens e sua liberdade. A razão é que eles fazem, eles também, parte deste Estado
culpado: por causa do crime de um conjunto, pune-se cada uma de suas partes, embora
elas não tenham todas tomado parte no crime", F. Suárez, 7, o.e. p. 403. Essa culpabili-
dade coletiva explica ainda que o princípio de represálias, não ferindo diretamente os au-
tores do crime mas os colaterais , apareça muitas vezes numa clara evidência e que não
se incomode demais com os efeitos sobre a população civil de um cerco ou de um assalto
particularmente mortíferos: "Por acaso, às vezes é permitido matar inocentes, mesmo
voluntariamente, por exemplo, quando se ataca justamente uma cidadela ou uma cidade
[... ]. Se fosse de outro modo, não se poderia fazer a guerra aos próprios culpados", F. de
Vitória, 37, 109, o.e. p. 140.
39
"Não se deve apoderar de tudo o que a força e o poder das armas permitem ocupar
e conquistar. [ ... ] Não se deve guardar senão o que a justiça pede para compensar
os prejuízos e as despesas da guerra e para punir a injustiça, continuando equitativa
e humana, pois a pena deve ser proporcionada à falta", F. de Vitória , 56 , 145, o.e. p.
152.
40 "Na guerra, é preciso manter a equidade como num julgamento justo: um culpado não

pode ser punido com qualquer pena , nem privado de todos os seus bens, sem medida, mas
somente na proporção de seu crime", F. Suárez, 7, o.e. p. 401 .
íerceira Parte - QUADRO JURÍDICO
193

passar sob a jurisdição do reparador de danos do qual doravante ele


depende. O soberano, por suas atribuições essenciais, tem direito de
exercer sobre seus próprios súditos a justiça vindicativa, e esses direitos
se exercerão contra o inimigo que se torna, desde que um Príncipe lhe
faz guerra, seu súdito. 41
A condição de súdito (subdito) quer dizer que o inimigo é decretado
submetido ao julgamento e apto a receber um tratamento adaptado à sua
falta. Contudo, essa designação abrange ao m esmo tempo um movimento
de integração numa comunidade: o inimigo se torna punível e então su-
jeito de direito do Estado beligerante. O príncipe que conduz uma guerra
justa se constitui certamente como juiz, mas não como acusador. 42 Man-
ter-se nessa função de juiz deve tirar-lhe todo ódio vingativo contra seu
inimigo. Pode-se, então, dificilmente considerar que a dimensão punitiva
das guerras justas conduz a uma criminalização do inimigo no sentido em
que este seria lançado fora do direito, privado de direito, exceto a conside-
rar - é sobre este argumento que repousa a tese de Schmitt a propósito das
guerras de justa causa modernas - o direito penal como operação higiênica
de extermínio dos agentes socialmente nocivos. Inferioridade insuperável,
de fato, não corresponde a alteridade completa: é o caso das guerras santas
ou das expedições coloniais (que não são justas) contra os hereges, os infiéis
ou os indígenas que representa o risco de uma guerra de aniquilamento .
Contudo, a guerra justa não é nem uma guerra santa43 nem uma operação
de espoliação.

41
"A guerra de que falamos é especialmente a guerra agressiva; e, na maior parte do tempo,
ela é empreendida contra homens que não são os sujeitos da falta. É, então, indispensável que
tenham cometido uma falta , em razão da qual se tornam sujeitos", F. Suárez, 4, o.e. p. 378.
42
"Não é, então , na qualidade de acusador, mas de juiz, que ele pronunciará uma senten-
ça", F. de Vitória , 60, 156, o.e. p. 156.
◄J As con vicções religiosas não podem , é preciso recordar, constituir motivos de guer-
ra Justa: "[Existem, para os prl ncipes cristãos, justos títulos de guerra diferentes dos
que indica a razão natural?] Um primeiro título invocado é só a infidelidade, isto é, a
recusa de adm itir a verdadeira reli gi ão . Co ntudo, este titulo nã o tem valor algum [ ... ] .
Um seg undo titulo é que é preciso vi ngar a Deus d as injúrias que são feitas pelos
crimes contra natureza e por idolatri a. AI está ainda uma opinião fa lsa", F. Suárez, 5,
o.e. p. 384 .
Estados de Violência
194

É preciso supor certo reconhe cimento jurídico do inimigo no quadro


da guerra de justa causa, mas na base de desigualdade insuperável. É com
efeito a igualda de dos beligerantes (fundam ental para Schmit t, que nela vê
a garantia de uma guerra limitad a e mais humana ) que parece intolerável.
Isso significaria uma guerra "justa dos dois lados", então o massacre de
inocentes. É sempre o escândalo da guerra que está como pano de fundo:
a autorização de matar é tão grande, a legitimação do crime é tão abomi-
nável que elas exigem absolut amente culpado s declarados como objetivos.
E contud o essa igualda de se acha in fine no nível - absolut amente
geral desta vez - em que a punição se articula sobre uma teologi a dope-
cado origina l. E é a ideia, tantas vezes formul ada por Santo Agostin ho,
de que se o fundo de sofrime nto inevitável nas guerras serve de castigo
aos culpado s, serve também de provaçã o para os homen s justos. A Pro-
vidênci a divina está atenta, "costum a corrigir pelas guerras os costum es
deprava dos dos human os e castigá-los, e também provar pelos mesmo s
flagelos a vida dos justos e dos povos merece dores, embora atingid os
44
em sua existência mortal eles passam para uma vida melhor " . Morrer
na guerra, quando se é justo, é ter sido designa do pela Providê ncia para
ganhar, como por um atalho, mundo s melhor es. Ser atingid o pelos males
da guerra, quando se é honesto e probo, revela-se útil para o aprendi zado
da virtude de paciência.

Mesmo a guerra causada pela cupidez humana não pode prejudica r em nada,
não só a Deus incorruptível, mas nem mesmo seus santos. Ao contrário, constata-
lhes
se que ela lhes é útil para exercer sua paciência, para humilha r sua alma, para
45
ensinar a suportar a disciplina paternal de Deus.

Essa justificação pela resistência ao sofrimento é ainda próxim a dos ensi-


nament os do estoicismo, como no De providentia de Séneca: somos exercita-
dos pelos sofrimentos mais do que pelas riquezas, o que torna os sofrimentos

A cidade de Deus, 1-1, trad. L. Jerphagnon, ed. cit. p. 5.


44
Augustin et la
45
Santo Agostinho, Contra Faustum, Xll-75, citado por P. Monceaux, "Saint
guerre", in L'Église et /e droit de guerre, ed . cit. p. 60.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO
195

neste sentido mais úteis e proveitosos. 46 Contudo, no providencialismo cris-


tão, pela guerra, é sobretudo lembrada a condição de pecador. Não poderia
haver guerra justa dos dois lados, pois não se poderia imaginar dois inocentes
querendo cada um com justiça a morte do outro. Contudo, o que se deve
supor - num nível que ultrapassa a inscrição judiciária para chegar ao mis-
tério do mal - são dois culpados. A guerra, quando atinge aquele que tem
justa causa, dirige-se sempre a ele neste nível no qual, porque ele partilha da
condição simplesmente humana, é essencialmente culpado.
Esse duplo sistema de culpabilidade (jurídica e metafísica), muito presente
em Santo Agostinho, é de grande importância. Ele é sem dúvida teoricamente
difícil, pois implica para as guerras um providencialismo que finalmente as
justifica todas do ponto de vista de Deus, mesmo as mais iníquas, e ameaça por
isso todo o edifício (de saída trata-se de desempatar as boas das más guerras).
Todas as guerras sob esse aspecto são justas do ponto de vista vertical de Deus:
fazei chover o fogo, devastai, espoliai e massacrai, há sempre em alguma parte
um culpado a ser castigado, um pouco de pecado original a purificar.
Contudo, este sistema tem a vantagem de evitar dois escândalos: pri-
meiro o das guerras injustas e vitoriosas, pois no fundo o que a vitória con-
sagra é menos a justiça de uma das partes que a punição geral do pecado:
"Toda vitória, mesmo quando cabe por sorte aos maus humilha os vencidos
em virtude de um julgamento divino: ela corrige os pecados ou os pune
(vel emendam peccata vel puniens)" .47 O segundo escândalo atenuado é o de
uma boa-fé possível do inimigo, defendendo o que ele crê objetivamente sem
razão (de uma supraobjetividade), mas sinceramente em sua intimidade ser
seu direito. O sistema de dupla culpabilidade permite neste caso articular
o discurso seguinte: mesmo que não seja culpado no sentido em que sua
boa-fé seria total, a guerra que o atinge é justa, porque ela atinge uma cul-
pabilidade metafísica fixada pela doutrina do pecado. Então, apesar disso é

46
"O deus endurece, prova, persegue os que ele estima e que ama", La providence, IV, 7,
lrad. R. Waltz, in Entretiens, ed. cit. p. 301 .
47
A cidade de Deus, XIX-15, trad. L. Jerphagnon, o.e. p. 59.
196 Estados de Violência

culpado. Finalmente a boa-fé subjetiva é, no aprofunda mento e nível sub-


jetivo, superada e afogada por uma culpabilidade metafísica. E é do mesmo
modo para as populações civis que podem se encontrar como presa infeliz
do ferro e do fogo: a Providência vela por elas também, transform ando sua
inocência imediata numa culpabilidade metafísica.
Deve-se, contudo, fazer aqui uma distinção histórica para mostrar que 0
argumento de uma culpabilidade radical e última para todos - própria para re-
solver o doloroso problema do fracasso das guerras justas (elas continuam sempre
boas para nos fazer conhecer nossa condição de pecador) e o problema dos so-
frimentos suportados pelas populações civis (elas são todas um pouco culpáveis)
-desfaz-se na doutrina tardia da guerra justa e dá lugar a distinções mais sutis.
Seja por exemplo a distinção que se pode tirar das teses de Vitória (logo
seguido por Suárez) entre responsabilidade e culpabilidade. Vitória reco-
nhece que um inimigo pode ser de perfeita boa vontade, acreditando ser
legítimo proprietário de tal território ou detentor legal de tal direito, e então
não culpado. A boa-fé subjetiva significa de fato não culpabilidade, ao passo
que essa última designa um movimen to íntimo e voluntário. Vitória afirma
que a boa vontade do inimigo poderia ser absolutamente reconhecida e
considerada inabalável (o que Vitória chama de "ignorância invencível")
sem que se impeça armar uma guerra contra ele. Neste caso atingir-se-á um
responsável, mas não um culpado, o que obriga a pensar numa guerra obje-
48
tivamente justa de um lado só, mas subjetivamente justa dos dois lados.
Esse trabalho de distinção entre o objetivo e o subjetivo terá efeitos
também sobre "a intenção reta" como condição da guerra justa. Santo To-
más achava que a intenção reta - ao mesmo tempo o fim último que se
propõe à sua ação e o estado de espírito com o qual é realizada - era neste
49
ponto uma condição da guerra cuja ausência seria desqualificadora.

48
"Em caso de ignorância verossímil do fato ou do direito, a guerra pode ser justa em si mes-
ma do lado em que se acha a verdadeira justiça. Ela pode ser justa do outro lado, isto é, ser
escusada pela boa-fé. De fato, a ignorância invencível escusa totalmente", o.e. 32, 96, p. 136.
49
"Acontece de fato que, mesmo que a autoridade daquele que começa a guerra seja legíti-
ma e a causa justa, não obstante a guerra tenha se tornado ilícita pelo fato de uma intenção
má (propter parvam intentionem bel/um reddatur illicitum)", Santo Tomás, o.e. p. 120.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO
197

Nesse ponto, o beligerante deve estar convencido somente da justiça de


sua causa, toda outra consideração sendo excluída (trata-se de evitar as justas
causas como simples pretextos). Contudo, logo, como se admitira um ini-
migo de boa-fé, admite-se que a retidão da intenção não é exigida senão para
assegurar a salvação de uma alma pura. Contudo, basta a justiça exterior da
causa para incluir a da guerra. O resto é problema de consciência, como se
vê em Silvestre (ou Caetano), e não macula a justiça da guerra. 50
Essas distinções entre culpabilidade objetiva e subjetiva, culpabilidade pes-
soal e coletiva, são ambíguas em seus efeitos. De uma parte, há a impressão
de que as condições da guerra justa se formalizam: a justiça exterior da causa
basta, sem que se tenha de interrogar sobre a boa-fé de uns e a intenção reta
dos outros. Daí uma multiplicação indefinida dos culpados: não só malfeitores
endurecidos, mas também príncipes de boa-fé; não só os condutores de guerra,
mas também os soldados sob suas ordens, e finalmente todas as populações civis
do Estado são objetivamente culpadas. Contudo, essa extensão da culpabilidade
leva também a uma perda de sua intensidade: culpados em grande número, mas
um pouco menos culpados. Daí certa moderação no uso da violência: "Que se
reduza, quanto possível, ao mínimo a calamidade e a desgraça do Estado culpa-
do [... ], pois é de boa-fé que os súditos combatem para seus príncipes". 51
Pode-se a esse respeito lembrar que o princípio de moderação per-
manece essencial no quadro da guerra justa e contradiz absolutamente a
procura do aniquilamento do inimigo. Lembra-se de que o amor da paz - é
procurada em toda parte e sempre - e o horror da guerra - está-se obrigado
a ela como a um mal necessário - deviam fazer-se sentir até no desenrolar
dos combates: "Sede, então, pacíficos até na guerra (esto ergo bel/ando paci-
ficus)" (Santo Agostinho, carta 189 a Bonifácio). Todo o trabalho em torno
da intenção reta (intentio recta) como condição da guerra justa girava em
torno dessa moderação necessária no emprego da força justiceira. A inten-

50
"É preciso compreender que essa terceira condição é requerida para evitar uma falta (ad
vitandam culpam), mas que ela não impede conservar o que se tomou na guerra; pois a má
intenção não influi na justiça ou na injustiça, das quais depende o direito de reter ou a obri-
gação de restituir o que se tomou", Caetano, Summa, Vº Bel/um, trad. Vanderpol, o.e. p. 87.
51
F. de Vitória, o.e. 60, 156, p. 156.
198 Estados de Violência

ção reta é todo um estado de espírito: a ausência de ódio, de raiva furiosa


ou de cupidez, ou de espírito de vingança.

A procura de uma boa paz

É preciso sem cessar recordar a inspiração primeira da doutrina da guer-


ra justa: ela se sustenta de um ódio feroz das guerras e pretende reduzi-las
o necessário para o restabelecimento da justiça e a instauração da paz. Em
nome da justiça e da paz.
Nas primeiras formulações, essas duas noções são sempre tomadas
juntas e são naturalm ente complem entares: pois no fundo a justiça como
princípio de harmonia é penhor de paz, e a injustiça, fator de pertur-
bações e de desordens. Contudo, quanto mais se avança no desenvol-
vimento da doutrina tanto mais os dois temas tomam sua autonomi a.
Encontra- se a ideia de que a causa da guerra é uma injustiça já cometida
(injuria illata) e que seu objetivo é a segurança de uma paz durável.
Suárez demonstr a que a guerra abre direito à reparação e punição da
injustiça, mas ainda "pode-se legitimam ente exigir tudo o que parece
necessário para conservar a paz no futuro e também para assegurá-la; pois
52
aí está o alvo principal da guerra, estabelecer a paz no futuro" . No tra-
tado de Vitória, como no de Suárez, a procura da paz e da ordem pública
vem ultrapassar a dimensão punitiva da guerra, para justificar destruições
mais intensas, tratament os mais duros. Ao passo que o sistema defesa-
reparação -punição impunha uma proporção no tratament o infligido ao
inimigo, a obsessão da paz e da segurança é própria para fazer explodir
toda consideração de media. 53

52 lbid., 6, p. 399.
53"O objetivo da guerra é a paz e a segurança. Tudo o que é necessário para obter a paz e
a segurança é, então, permitido a quem empreende uma guerra justa. Além disso, a tran-
quilidade e a paz fazem parte dos bens da humanidade. É por isso que, sem a segurança,
até os maiores bens não podem dar uma felicidade estável. Se os inimigos perturbam e
destroem a tranquilidade do Estado, então é permitido defender-se por meios apropriados",
F. de Vitória, 18, 4 7, o.e. p. 124.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 199

Três promessas de paz ultrapassam a exigência de moderação inerente


à guerra de justa causa: uma paz garantida para o futuro, uma paz mundial,
urna paz melhor.
Primeiramente, a obsessão da paz apresenta as violências infligidas na
profundeza indefinida do futuro. A repa.ração-punição da injusriça cometida
tinha sua medida própria: a grandeza conswnada do prejuízo. Em contra-
partida, para assegurar a paz no futuro, é grande a incerteza para determinar
a quantidade de destruições ou de males que é preciso infligir ao inimigo.
É O problema do juiz penal: deve ele punir o delinquente não levando em
conta senão as faltas cometidas ou exagerar sua condenação em razão de sua
"periculosidade" e de suas virtualidades criminais? De outra parte, o Estado,
apoiando-se na legítima defesa, pode decidir-se pela guerra para prevenir um
ataque que ele julga certo, antes que tenha acontecido efi civamente e como
se ele se defendesse (o que se denomina hoje a guerra de "pré-aqui ição"). É
como se fosse preso um criminoso em previsão de seu crime.
Em segundo lugar, ao passo que a injustiça cometida é sempre local e
circunstanciada, e não atinge senão um príncipe ou uma comunidad e polí-
tica, e os benefícios da paz são universais, a paz é um bem verdadeiramente
comum. Segundo um princípio, presente em Vitória, mas que encontrará
uma formulação decisiva em Grotius, a injustiça, onde ocorra, ameaça a
54

paz do mundo e força todo Estado a intervir para fazê-la cessar, mesmo que
ele não seja vítima dessa injustiça. É em nome da autoridade do mundo
inteiro (auctoritas orbis, escreve Vitória) 55 que ele, então, intervém. Sem

54
"É preciso também saber que os reis e os que têm um poder igual ao dos reis têm o
direito de infligir penas, não somente pelas injúrias cometidas contra eles ou seus súditos,
mas ainda pelas que não os atingem particularmente e que violam ao excesso o direito de
natureza ou dos povos a respeito de quem quer que seja. Pois a liberdade de prover por
castigos aos interesses da sociedade humana, que, no começo, como dissemos, pertencia
aos particulares, ficou parada, depois do estabelecimento dos Estados e das Jurisdições,
Mo propriamente porque estas comandam os outros, mas porque não obedecem a nin-
guém" (Le droit de la guerre et de la paix, Livro li, cap. XX, 1, ed. cit. p. 490). E mais tarde
em Kant: "uma violação de direitos cometida num lugar é ressentida por toda parte'', ln
Projet de la paíx perpét1.1elle, décima segunda seção, artigo terceiro, trad. anônima revista
por H. Wismann, ed. cit. p. 353.
•o.e. 19,52, p. 125.
200 Estados de Violência

56
dúvida esse direito de intervençã o continua muito discutido. Persiste 0
fato de que ele se inscreve logicamen te numa temática da preservação da
paz como bem comum que interessa ao conjunto dos homens.
Contudo, o essencial está em outro lugar, na distinção entre duas for-
57
mas de paz: pax perversa e pax ordinata, dizia Santo Agostinho .
A verdadeir a paz, para não falar da paz sublime de Deus, é segundo a
expressão de Agostinho "a tranquilid ade da ordem (tranquillitas ordinis)"
ou ao menos a "concordia ordinata", em que cada coisa está em seu lugar,
como deve, conforme o plano divino da criação. A paz não é exatamen te
o contrário da guerra, um tempo sem guerras nem conflitos. É um julga-
mento de valor, uma norma, um ideal. Há pazes detestáveis, pazes que não
são bastante pacíficas: pazes más, como os pagãos podem conhecer, pazes
em que o vício prospera e adorações sacrílegas se multiplica m.

Os bandidos vivem em paz entre si e os lobos se reúnem cada vez que sentem
o cheiro do sangue [... ] não acrediteis, então, que a paz seja boa em toda parte e
sempre. Ela é às vezes má e mais dura do que não importa qual guerra [... ]; manter
a paz entre os homens que combatem a lei divina é desviar-se e afastar-se muito da
58
verdadeira paz.

A guerra é o meio de produzir uma paz mais conforme com a Criação.


Pode-se fazer a guerra para ter uma paz ainda melhor, a de uma nova ordem
mundial. Há um ponto de oscilação possível na doutrina da guerra justa, em
que o amor da paz verdadeira é superior ao ódio da guerra. Então o escândalo
da guerra se desfaz diante de um outro: que a paz de hoje não seja uma boa paz.
E este apelo a uma paz melhor pode indefinidamente justificar novas guerras.

511Suárez, por exemplo, opõe-se a Isso fortemente: "Aquele que violou um direito não está
submetido a não Importa quem, mas somente àquele que ele ofendeu . Por conseguinte,
os que dizem que os soberanos têm o poder de punir todas as Injustiças da terra estão no
erro mais completo•, o.e. 4, p. 379.
57
Cf. Santo Tomás: "Os que fazem guerras justas se propõem a paz. E, em seguida, eles
não se opõem à paz, senão à paz má que o Senhor "não veio trazer à terra " (o.e. p. 122),
e F. Suárez: "A guerra não é contrária à boa paz, mas à paz má: ela é antes um meio de
chegar a uma paz verdadeira e assegurada" (o.e. 1, p. 365).
58 Santo Isidoro de Pelúsio (Epist. Livro IV, 36), citado por Vanderpol, o.e. p. 89.
11
A guerra leal

A soberania do Estado

Não é verdade dizer muito depressa, à maneira de Schmitt em seu No-


mos da terra, que a guerra leal se opõe absolutamente à guerra de justa causa,
é lhe irredutível e que os pensadores do direito dos povos, da guerra "em
formà' - coloquemos de Grotius a Vattel - ignoram deliberadamente e até
pensam contra a doutrina teológica da guerra justa. De Grotius a Vattel,
passando por Burlamaqui e Wolff, encontram-se logo de saída a mesma de-
saprovação da guerra, a mesma condenação de seus funestos frutos e de suas
paixões selvagens, o mesmo apelo à sua diminuição, à sua humanização.
Os teólogos da guerra justa como os mestres do direito dos povos
partilham de saída, como uma grande parte da cultura ocidental, a mesma
definição geral da guerra: a procura de seu direito pela força. E logo em todos
a argumentação restritiva: já que um indivíduo pode sustentar seu direito
de outro modo que não pela força (pleiteando sua causa diante de um
tribunal), a guerra privada é ilegítima (exceto, o caso de defesa imediata).
Já não é mais como guerra, então, a procura pela força de seu direito por
um Estado soberano contra um outro. Só um Estado pode fazer a guerra.
Depois de ter esgotado as vias de demandas de reparação, de ter lançado
ultimatos, ameaçado por retorsões e represálias, para reparar uma injustiça
que um outro Estado - ou um de seus cidadãos - faz a ele, um Estado só
poderia infelizmente encontrar a guerra.
Até aqui, entre a doutrina escolástica e o direito dos povos, nenhuma
diferença. De início o direito dos povos apresenta também a necessidade
de uma justa causa para provocar a guerra. É falso dizer que ele ignora ar-
rogantemente este ponto para se concentrar exclusivamente nas regras do
combate. Em todos os tratados de direito dos povos, um grande primeiro
202 Estados de Violência

capítulo é consagrado às justas causas, sempre com o mesmo procedimen-


to: primeiramente , só a reparação de uma injúria pode justificar a guerra
1
(distinção entre as causas "justificantes" e "persuasivas"); em segundo lu-
gar, a justa causa deve ser acompanhada de "motivos honestos e louváveis"2
(o que reativa num novo vocabulário a condição antiga da intentio recta).
Pode-se notar, contudo, da doutrina teológica à do direito dos povos,
sob estruturas aparentes, como que uma série de deslocações. Os escritos
teológicos eram fortemente impregnados de moralismo e de psicologismo:
as causas injustas eram procuradas do lado das paixões más (ou "pagãs") e
dos vícios arraigados, como a cobiça insaciável e a ambição vã, a agressivi-
dade e o desejo de dominar. A intentio recta de seu lado devia ser pensada
como puro movimento de caridade, desejo autêntico de paz.
O direito dos povos mergulha ao contrário em considerações de pura
política exterior. As causas ilegítimas de guerra são tomadas neste registro:
como a famosa balança europeia que incita a atacar um vizinho cujo cres-
cimento em poder se teme,3 ou só pela "utilidade" do Estado. O problema
aí se põe em saber que grau de opressão deve ser atingido para socorrer um
povo submetido a um déspota e se é legítimo, em nome de uma preten-
sa superioridade, fazer uma guerra de dominação contra povos selvagens.
Quanto aos "motivos honestos e louváveis", devendo "coincidir" com a
justa causa, eles "são tomados do bem do Estado, da salvação e do comum
benefício dos cidadãos". 4
Duas inflexões claras são dadas que traem uma nova distribuição de
cartas do baralho. Primeiramente , a causa justa ultrapassa francamente a
injuria illata (como injustiça jd perpetrada, dano outrora cometido) para
se abrir mais largamente às ameaças do futuro. 5 Passa-se de uma moral da

1
C. Wolff, Príncipes du droit naturel, por J. H. S. Formey, cap. 3, p. 298.
2
E. De Vattel, o.e. 111, Ili, 29, p. 144.
3
C. Wolff, o.e. cap . VII, 5, p. 299.
• E. De Valtel, Le droit des gens, Ili, 111, 30, ed. cit. p. 144.
5
Cf. por exemplo em Vattel: ''o fundamento ou a causa de toda guerra justa é a injúria, ou já
feita , ou da qual alguém se vé ameaçado" (ibid. Ili, 111, 26, p. 142), "o alvo ou o fim legítimo
de toda guerra é vingar ou prevenir a injúria" (ibid., Ili, Ili, 28, p. 143).
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 203

falta cometida a uma política da prevenção dos perigos. Ao lado da defensio


e da recuperatio, a securitas, como terceira justa causa de guerra, substitui
sempre mais uma punitio que, logo expressa, entra em dissonância com o
dogma partilhado, assumido, reivindicado da soberania absoluta dos Esta-
dos. De outra parte, a possibilidade das causas duvidosas é dessa vez abso-
lutamente mantida, como se uma causa enfim pudesse ser duvidosa em si,
6
sem que nenhum exame insistente possa triunfar.
A longa história dos povos da Europa, invasões maciças e conquistas
parciais, casamentos complexos entre príncipes e heranças confusas, tudo
se encarregou de misturar as cartas do baralho. A tal ponto que se tornou
de fato impossível estabelecer a legitimidade das pretensões proclamadas
pelos Príncipes, de seus títulos pretendidos de dominação. Os pontos de
litígio se tornam terrivelmente obscuros, as disputas dinásticas definitiva-
mente complicadas. As causas de guerra enfim não têm mais a transparên-
cia moral de outrora. É que elas não são mais proclamadas por um príncipe
virtuoso, mas por um Estado soberano. Mais grave ainda que a dificuldade,
afinal de contas real, para desembaraçar as causas duvidosas se forma o
princípio de soberania do Estado, constituindo-o único juiz da causa que
ele sustenta.
O Estado soberano é o ponto do qual é preciso partir para construir o
direito dos povos. É ele que provoca todas essas modificações, até o ponto
de inversão da doutrina de justa causa. Contudo, de Grotius a Wolff, de
Pufendorf a Vattel, para nada dizer da retomada reflexiva por C.,Schmitt
do direito dos povos, as teses não são sem dúvida similares nem as estru-
turas aplicáveis. Contudo, todas gravitam em torno de certo esquema de

6
Ao passo que depois de tudo, em Suárez, havia sempre possibilidade de chegar ao fim da
confusão das causas duvidosas por um estudo mais aprofundado ou pelo recurso a peritos,
e em Vitoria, nos casos de "ignorância invencível", a causa era duvidosa por si, mas não
em si. Cf. a colocação de Vasquez: "Ninguém até hoje ousou sustentar que a guerra possa
ser justa dos dois lados ao mesmo tempo, se não é por acaso, por causa da ignorância
invencível de uma das partes, quando uma ignora com ignorância invencível uma coisa
que a outra conhece: mas não se chamará nunca de ignorância invencível a divergência
de duas opiniões prováveis" (Com. in sec. Part. Summae sei Thomae, Ois. LXIV, cap. 3,
trad . Vanderpol, o.e. p. 49).
204 Estados de Violência

guerra justa que impõe a situação jurídico-política criada por uma plurali-
dade de Estados soberanos reconhecendo-se como tais.
Por comodidade, falar-se-á de duas grandes representações dessa guer-
ra "em formà', cada uma explorando um caráter do Estado soberano: "a
guerra solene e públicà' (Grotius e Pufendorf) e "a guerra justa dos dois
lados" (Wolff e Vattel).

''A guerra solene e pública''

7
"Guerra solene e públicà': a expressão aparece em Burlamaqui. Ela
será retomada, explorada a seguir. Então, a atenção se concentra na capa-
cidade do Estado em pôr em cena, em ritualizar, em exteriorizar espetacu-
larmente suas decisões. Neste caso, a capacidade de guerra é antes de tudo
a capacidade em declará-la. A guerra justa é essa guerra que um Estado
declara publicamente e segundo as formas. É primeiramente o fascínio
pelo modelo arcaico romano, descrito por Tito Lívio num texto famo-
so. 8 Sonho de uma legalidade absolutamente formal, de uma abertura de
direitos a partir do respeito só exterior do ritual sagrado. A transposição

7
Príncipes du droit politique, Quarta parte, cap. V, ed. cit. p. 83. Grotius fala de guerra justa
ou solene segundo o direito dos povos (Le droit de la guerre et de la paix, Livro Ili, cap. Ili,
1-1, ed. cit. p. 62), cf. também Pufendorf (Ou droit de la nature et des gens, trad. J. Bar-
beyrac, Livro VIII, cap. VI, par. 9, ed. cit. p. 452-453).
8
"Contudo, como Numa tinha regulado os princípios religiosos da paz, ele quis [Anco]
instituir os da guerra; fazer a guerra não bastava, ainda faltava declará-la ritualmente. Ele
tomou emprestada da antiga Nação dos Equicolas a regra que seguiam ainda os feciais
(N.T. Antigos sacerdotes que faziam parte de um colégio de vinte que faziam respeitar as
leis, especialmente as de guerra; cf. Dicionário de Caldas Aulete) para apresentar uma
reclamação. Chegando ás frontelras do pais ao qual se dirige uma reclamação, o envia-
'do cobre sua cabeça com o filum (é um véu de lã) e diz: "Escuta, Júpiter; e que o Direito
Sagrado (Fas) me escute também. Eu, eu sou o representante oficial do povo romano;
venho encarregado de uma missão justa e santa; que se tenha fé em minhas palavras".
Ele expõe, então, seus pedidos. Depois toma Júpiter como testemunha: "Se eu falho no
que é justo e santo reclamando que me entreguem, a mim, estes homens e estes objetos
como propriedade do povo romano, não permitas que reencontre jamais minha pátria". Ele
repete essa fórmula atravessando a fronteira; ele a repete ao primeiro homem que encon-
tra; ele a repete entrando na cidade; ele a repete entrando no fórum , com algumas ligeiras
modificações na invocação e na fórmula do Juramento. Se não lhe concedem o que ele
reclama , ele declara a guerra com um prazo de trinta e três dias (é o prazo consagrado)",
Histoire de Rome, Livro 1, XXXII, ed. cit. p. 53-54.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 205

moderna seria que no fundo, a partir do momento em que um Estado faz


ao outro uma declaração "em boa e devida forma", a guerra é justa, num
sentido sem dúvida muito restrito, mas que não só não ofende, mas respei-
ta a soberania do Estado.

A guerra que chamo aqui de solene é mais ordinariamente chamada guerra justa,
no mesmo sentido em que se diz de um testamento justo, de justas núpcias, para
opô-los aos codicilos e à união dos escravos. Isso não quer dizer que não seja per-
mitido a quem o quiser fazer codicilos e a um escravo viver unido a uma mulher;
mas essa denominação lhes vem de que o testamento e as núpcias solenes têm certos
9
efeitos particulares em virtude do direito civil.

Justas núpcias: as que acontecem seguindo meticulosamente o ritual pres-


crito, conformando-se às regras, união publicada por uma autoridade reconhe-
cida e por isso tendo efeitos de direito em termos de responsabilidade, partilha
dos bens e dos deveres, filiação, herança etc. Justa guerra: declarada, publicada,
promulgada segundo as formas ou os rituais, de maneira absolutamente públi-
10
ca e espetacular, e abrindo direitos sobre o inimigo, em caso de vitória.

9 H. Grotius, Le droit de la guerre et de la paix, trad. P. Pradier-Fodéré, Livro 1, cap. Ili, IV, p. 93.
10 Os antigos doutrinários da guerra de justa causa tinham às vezes reconhecido este sen-
tido e posto, entre outras, essa condição formal de justiça, como Santo Isidoro de Sevilha
em suas Etimologias: "Justa é a guerra que, em virtude de um edito, é feita para recuperar
bens ou para expulsar inimigos (justum bel/um est quod ex praedicto geritur de rebus re-
petitls eu/ propulsandorum hostíum causa)" (Santo Isidoro de Sevilha, Étymologies, XVIII,
1, retomado por Graciano em sua Causa XXII/, trad . Regoul, o.e. p. 63 . Havia ai ainda a
lembrança do texto de Cícero que apresentava como distintas - vel = ou - a guerra reivin-
dicatória de um direito ou ritualmente proclamada: "Uma guerra só é justa se é feita após
ter reivindicado seu direito ou se é anunciada antes ou declarada", Traité des devoirs, 1, XI,
36, trad. É. Bréhier, revista por P. M. Schuhl, ed. cit. p. 508). Essa condição formal jamais
foi posta antes, menos ainda privilegiada na construção teológica da guerra justa. Suárez
contenta-se de menoioná-la, com uma grande circunspeção: "Sobre este ponto as leis civis
são sentidas pela maneira injusta com que se fazia então a guerra. Pois os romanos acre-
ditavam ser justas de parte a parte (justa esse ex utraque parte) as guerras que faziam aos
Inimigos da República; de fato, eles queriam combater contra eles em condições tais que o
vencedor, como em virtude de um pacto tácito (quasi ex tacito pacto), tornasse-se senhor
dos bens do vencido" (De Bello,7 , trad . Vanderpol, ecl .cft. p. 402). É que a condição formal
da guerra Implica a Ideia Inaceitável de uma guerra que não supõe a injustiça do agredido.
A justiça dependeria antes do cumprimento de formalidades de uso. Ajusta causa , depen-
dendo na sua versão mais radical (Santo Tomás), de uma Intenção moral interior, só pode
ficar estranha a esse formalismo exterior.
206 Estados de Violência

O direito dos povos se deixa evidenteme nte fascinar por este mode-
lo, que não só prescreve, mas no fundo exalta o princípio de soberania.
Porque ele consagra a igualdade perfeita entre Estados e, pela necessi-
dade deste ritual, propõe uma guerra baseada no reconhecim ento e na
igualdade. Declarando solenement e a guerra a um outro, o Estado lhe
rende homenagem , e a declaração toma a forma destas saudações que
cavaleiros, de mesmo valor e unidos por um comum respeito, dirigem-se
antes de lançar suas cavalarias um contra o outro, a lança bem segura. Há
algo do código aristocrático nessa proclamação. O Estado aparece ainda
como eminentem ente público: ele põe em cena aos olhos de todos, na
publicidade de uma declaração, a gravidade do momento, a importânci a
de suas decisões capitais para todos.
A guerra em suma é a prerrogativa positiva do Estado. Porque depois
de tudo na doutrina de justa causa, o Estado fazia a guerra essencialmente à
revelia: é porque não existia nenhum tribunal superior, em caso de injustiça
caracterizada, que o Estado se achava forçado à guerra. O modelo da guerra
"pública e solene" dá dessa vez ao Estado um direito à guerra verdadeiramen-
te positivo. Ela está à sua inteira discrição, basta ao Soberano respeitar as for-
mas de declaração. O que implica um risco de banalização certa, no sentido
de que a guerra não é mais um escândalo: ela não tem mais que se justificar
diante do tribunal da consciência universal, mas apenas no de se proclamar
segundo as formas exteriores das práticas reconhecidas.
Esse modelo consagra enfim a substância jurídica dos Estados. Porque
essa declaração deve ser tida como convenção, pacto, contrato que as duas
partes fazem entre si. 11 Convenção estranha de verdade. A simples decla-
ração, solene e pública, autoriza de fato por convenção recíproca o uso de
todas as violências possíveis contra o inimigo. Ela abre direitos para matar
e para raptar. Como que ao abrigo dessa declaração, tudo, em matéria de
destruição e de massacres, é, de comum acordo, permitido a cada um dos

11
Ela pode, contudo também, às vezes, ser compreendida como último recurso totalmente
solene à reparação e ultimato, por exemplo em Vattel, o.e. Ili, IV, 51, p. 153-154.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 207

protagonistas. Essa licença para se destruir mutuamente é dada como ab-


solutamente recíproca. Pufendorf encontra aqui formulações decisivas.

Só porque alguém se declara nosso inimigo, ele nos autoriza a agir contra ele por
atos de hostilidade levados ao infinito [... ]. As guerras declaradas segundo as formas
incluem uma espécie de convenção, que se reduz a isto: Fazei contra mim o que
puderdes; eu farei contra vós de meu lado tudo o que me será possível. 12

Antes de pensar o direito na guerra, os mestres do direito dos povos


(Grotius, Pufendorf, Burlamaqui) instituem o direito da guerra como a
autorização geral e abstrata de todas as violências. Cada Estado soberano
é em seguida juiz de empurrar como entender o cursor das violências, se-
gundo suas próprias necessidades ou segundo a maneira com que se com-
portará o inimigo. O direito não intervém antes como o que vem regular,
diminuir, moderar as violências: ele é sua abertura legal, na totalidade de
suas modalidades.
Não é preciso crer, por isso, que Grotius, Pufendorf e Burlamaqui
fiquem nessa permissão indefinida de matar e de saquear. Limitações são
exigidas. Contudo, elas não virão do direito. E como poderiam essas li-
mitações vir do direito já que é ele precisamente quem as autoriza por um
pacto de agressão recíproca? Elas se imporão segundo uma dimensão que
lhes é estranha: os sentimentos de humanidade, os movimentos puros do
coração (piedade e mansidão), a caridade cristã ou a antiga grandeza de
alma (magnanimidade). Ou a limitação, segundo o grande movimento
de cerco do inimigo, no terceiro livro do Direito da guerra e da paz de
Grotius. Do quarto ao nono capítulo, encontra-se a exposição completa,
sem disfarce e sólida do que é permitido e justo fazer na guerra, segun-
do o direito de guerra, desde que ela tenha sido declarada dentro das
formas. Tudo se encontra aí: matar os soldados desarmados, dizimar as
populações civis, apoderar-se de seus bens, saquear e devastar, queimar e

12
Le droit de la nature et des gens, Livro VII, cap. VI, par. 7, ed. cit. p. 459.
208 Estados de Violência

destruir, reduzir à escravidão, maltrat ar os prisioneiros, saquear os luga-


res sagrados ... 13
Todos esses horrores, essas exações são justos segund o o direito de
guerra. Justos no sentido de que um princíp io de impuni dade exterior
indefectivelmente se insere aí. Eles não depend em de nenhum tribunal
terrestre. Não se poderia castigar esses atos de hostilidade, pois são autori-
zados de fora pela declaração pública e solene.
Contudo, no capítulo dez, Grotius de repente parece querer contradizer-se.

É preciso que eu volte atrás e que eu retire dos que fazem a guerra quase todas
pois,
as coisas que pode parecer que lhes concedi e que, contudo, n ão lhes concedi;
a explicaçã o dessa parte do direito dos povos,
quando, pela primeira vez, abordei
as, porque
declarei que havia várias coisas que se diziam ser de direito ou permitid
as apoia com sua
se fazem impunem ente, ou até também porque a justiça coativa
no direito
autoridad e; coisas, porém, que ou saem da regra da justiça, que se coloca
d as outras virtudes; ou ao menos são postas de lado
estritame nte dito, ou no preceito
digno de aprovaçã o entre as pessoas
por um procedim ento mais escrupul oso e mais
14
de bem .

Então até ao capítulo dezesseis, num movim ento de retratação, Gro-


tius volta a estes conjunt os: mulheres e crianças, bens e riquezas, prisionei-
ros e escravos, mas limitan do cada vez as violências. Não há mais questão
senão de moderação, de clemência, de doçura, de humani dade, de perdão
e de comiseração. Triunfo aqui do sistema das "atenuações" e surpresa dessa
reviravolta.
Permanece adquirido que o direito de guerra, em sua dimensão bilateral,
recíproca, justifica fundamentalmente, sem certamente incitar a elas, todas

que o massacre
13
"Compreende-se até onde se estende essa permissão, pelo fato de
e de mulheres também acontece u com impunida de e que foi incluído neste
de crianças
ao abrigo dessa permissã o" Le droit de
direito da guerra [ ... ]. Os cativos não estão mesmo
paix, Livro Ili, cap. IV, 9 e 1O, ed. cit. p. 628-629) . "Segund o o direito dos
la guerre et de la
uma causa legítima, mas ainda todo
povos, não somente o que faz a guerra em virtude de
torna-se, sem limites, nem medida, proprietã río das coisas
indivíduo numa guerra solene,
foi a mesma para o
que tomou do inimigo [ ... ]. Ora, seguindo o direito dos povos, a regra
homem e para a coisa" (ibid., cap. VI, 2-1, p. 645).
14
lbid., cap. X, 1-1, p. 695.
ferceira Parte - QUADRO JURÍDICO 209

as exações. É a justiça externa das guerras: todas as violências são permitidas


corno que por contrato implícito, no sentido simplesmente em que ficarão
impunes, já que o estado de guerra as autoriza. A própria ideia de um crime
de guerra constitui neste quadro um contrassenso. No interior deste primei-
ro grande círculo, Grotius traça um segundo, o da "justiça internà'. Trata-se,
então, de delimitar, no interior do direito, o círculo de meus deveres. Limi-
tação das violências pela própria força que se mantém e pela injunção trans-
cendente de um direito superior e coagente (respeito do homem, proteção
das vítimas etc.). Grotius tem essa fórmula marcante: "Mesmo no caso em
que os crimes são tais que possam parecer dignos da morre, será um dever
15
de comiseração de renunciar a um pouco de seu direito rigoroso". Dialética
dos direitos e dos deveres. As restrições de um direito ilimitado de guerra são
0 resultado de uma autolimitação da força que se impõe. A justiça exterior
do
direito é superada pela justiça interior da moral. É, então, de fora do direito
que vêm forçosamente as limitações. Há tanto mais grandeza e mérito em se
proibir matar inocentes, violentar mulheres, matar prisioneiros desarmados,
saquear, pilhar, queimar, que estas "atenuações" provêm de uma obrigação li-
vre, de uma recomendação interior, de uma ética da força, e jamais de regras
exteriores seguidas de sanções.
De tudo isso, deve-se reter ao menos que é difícil fazer derivar desse
primeiro direito dos povos, nem que fosse de maneira longínqua, o di-
reito internacional humanitário, o espírito de Genebra, a criação de um
Tribunal penal internacional etc. O massacre de inocentes, a exposição
a perigo de populações civis, os tratamentos degradantes de prisioneiros
até à morte não são objeto de nenhuma interdição definitiva ou absoluta
de tipo jurídico, mas somente de apelos morais à moderação. Nenhuma
destas atrocidades é evidentemente recomendada, mas sua possibilidade
permanece sempre reservada em nome do direito absoluto do Estado
soberano de julgar sobre os meios próprios e necessários para ganho de
causa.

15
fbid., cap. XI, 17, ed. cit. p. 721 (grifada por nós).
210 Estados de Violência

Aqui e lá, são os mesmos argumentos que voltam: nunca é fácil fazer
a distinção entre soldados e civis, porque civis podem estar em estado de
resistência e assegurar o bom desempenho das tropas. A presença de civis
no meio de soldados não poderia constituir um obstáculo ao ataque, pois
bastaria, para impedir a vitória do adversário, servir-se deles como escu-
do. De outra parte, o efeito terrificante de massacres ou de saques contra
inocentes pode servir para desencorajar o inimigo e prevenir matanças
mais amplas etc. Em tudo, as regras de condução da guerra, dependen-
do então sempre das circunstâncias, não poderiam ser o objeto de leis
coagentes para os Estados. Então as condutas de moderação, devem-se
honrar os Estados que as praticam, serão precisamente porque não lhes
estão sujeitos como a uma injunção exterior, mas porque se obrigam por
uma recomendação interior. Essas "atenuações", para retomar o termo de
Grotius, não poderiam constituir leis dominantes. Porque seria pôr essas
regras acima dos Estados e não entre eles. Para ir depressa, dir-se-á que
o direito dos povos toma como princípio radical a soberania do Estado.
As "leis de Humanidade" (Pufendorf) 16 vêm apenas moderar o rigor de
direitos abertos pela guerra sobre a vida, o corpo e os bens dos inimigos.
Quando o direito internacional humanitário colocar seu centro de gravi-
dade na dignidade e na integridade das pessoas, na proteção das vítimas,
ele poderá exigir que o Estado se submeta a essa lei superior e coagente
de Humanidade.
E, contudo, fica nessas guerras "solenes e públicas" alguma coisa ares-
peitar absolutamente, nos mesmos termos do contrato de guerra: é tudo o
que se refere precisamente à forma jurídica que serve de quadro para o de-
sencadeamento das violências. No direito dos povos, ao passo que o massacre
de populações civis desarmadas, o tratamento dos prisioneiros são objetos de
considerações circunstanciadas, existe uma categoria de atos absolutamente
proibidos: a ruptura das promessas, a traição dos compromissos, a violação
dos acordos, o desprezo da palavra dada. Daí a distinção altamente simbólica

16
S. Pufendorff, o. e. Livro VIII, cap. VI, 7, p. 260.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 211

e recorrente no conjunto dos tratados entre a "astúcià' e a "perfídià', entre 0


"estratagemà' e a "infâmià', entre a "mentirà' e a "traição".
Pode-se bem usar astúcias, mas nunca trair compromissos passados
entre as duas partes. 17 O que deve ser absolutamente garantido no interior
da guerra não são, então, os direitos do homem, mas os direitos do pró-
prio direito: o respeito de sua força. As tréguas devem ser observadas, 18 os
emissários e outros embaixadores absolutamente protegidos, os acordos
sobre direitos de passagem respeitados etc. Essa suscetibilidade pode sur-
preender: pois que vale uma palavra traída junto de um inocente morto? 19
Se a guerra começa pelo direito, o direito formal, ela termina por ele
também. À declaração de guerra responde o tratado de paz. O inocente
morto aprofunda o horror geral da guerra, mas a palavra traída comprome-
te definitivamente a esperança de paz. Como diz ainda Vattel, "o juramen-
to deve ser sagrado entre inimigos'',2° ou Kant numa fórmula perfeita: "É
preciso que reste, mesmo na guerra, uma sorte de confiança nos princípios
do inimigo, senão não se poderia jamais concluir a paz" .21 Preservar a pos-
sibilidade da paz no interior da guerra22 é então manter intacto, durante a
guerra, o princípio de convenção entre inimigos. A "guerra pública e sole-
ne" autoriza contra o inimigo todas as violências, deixando simplesmente
aberto o campo das obrigações morais; mas ela proíbe estritamente todo
golpe contra a própria forma do direito, porque ela constitui o princípio de
abertura, mas também, e sobretudo, de encerramento da guerra.

17
"Certamente, não é preciso pensar que, porque já dissemos acima que, na opinião de um
grande número, é permitido ou isento de falta mentir ao inimigo.isso possa por uma razão
igual aplicar-se também à palavra dada", Grotius, Le droit de la guerre et de la paix, Livro
Ili, cap. XIX, 1-3, o.e. p. 773.
18
S. Pufendorff faz sobre este ponto preciso das tréguas uma exceção, mas com argumen-
tos pouco convincentes, (o.e. cap. VII).
19
Cf. por exemplo: "É bem evidente que o terror e a força aberta são o caráter próprio da
guerra, como também a via mais comum de que se serve, mas não é menos permitido
empregar a astúcia e o artifício contra um inimigo, contanto que se faça sem perfídia e sem
faltar ao que se prometeu" (J. J. Burlamaqui, o.e. cap. V, ed. cit. p. 81 ).
20
O.e. Ili, X, 174, p. 255.
21
Primeira seção, cap. 6, de Projet de paix perpétuel/e, trad. anônima revista por Wismann,
ed. cit. p. 337.
22
É a fórmula de Hegel em Príncipes de la phi/osophie du drot, par. 338, ed. cit. p. 332.
212 Estados de Violência

''A guerra justa dos dois lados"

A segunda representação fundamental da guerra em forma é "a guerra


justa dos dois lados", segundo a expressão de Vattel e de Wolff O primei-
ro modelo se construía pela redução do sentido da justiça: conformidade
exterior a um ritual de declaração valendo como abertura de direitos. O
segundo se construirá ao contrário, por reciprocação da justiça.
Seja, segundo Wolff e Vattel, o direito dos povos necessário, ditado pela lei
natural, racional e divina. 23 É preciso partir desse direito eterno, imutável. De
acordo com ele, a autorização de empreender uma guerra contra um Estado
não é concedida senão para reparar uma injustiça, e uma vez que se esgotaram
os recursos, ponderou-se se os males acarretados não serão superiores aos que se
quer vingar. Segundo esse direito dos povos, natural e necessário, racional e imu-
tável, um princípio de moderação se liga à guerra justa: a força empregada para
recuperar seu direito deverá ficar proporcional à causa defendida24 e só empregar
meios estritamente necessários para obtenção do que é devido. 25 O direito eter-
no da Natureza impõe ainda a essa guerra justa uma moderação, limitações na
violência, um respeito da "lei de humanidade", da qual se pode dar exemplos:

As mulheres, as crianças, os velhos doentes, os doentes, estão no número dos


inimigos [... ]. Contudo, são inimigos que não opõem nenhuma resistência; e por
conseguinte não se tem o direito de maltratá-los em sua pessoa, de usar de violência
contra eles, muito menos tirar-lhes a vida. 26 Desde que vosso inimigo está desarma-
do e rendido, não tendes mais nenhum direito sobre sua vida. 27

23
São "as disposições dessa lei sagrada que a natureza ou seu autor divino impõe às Na-
ções", Vattel, o.e. 111, 188, p. 271.
24
"Uma guerra é justa quando se propõe obter aquilo a que se tem um verdadeiro direito.
As diferentes operações de uma guerra justa são lícitas, enquanto têm uma proporção
conveniente com o alvo ao qual se quer chegar", C. Wolff, Príncipes du droit naturel, por
J. H. S. Formey, cap. VIII, 2, p. 308.
25
"O fim legítimo não dá um verdadeiro direito senão aos meios necessários para obter
esse fim", E. Vattel, o.e. Ili, VIII, 137, p. 215.
26
lbid., Ili, VIII, 145, p. 224.
27
lbid., III,VIII, 149, p. 227. Cf. também: "Não se está no direito de garantir seus prisioneiros,
e para este efeito de prendê-los, de atá-los, se não há motivo de temer que se revoltem ou
que fujam: mas nada autoriza tratá-los duramente" (ibid., Ili, VIII, 168, p. 228). "Por qualquer
motivo que se devaste um país, devem-se poupar os edifícios que fazem a honra da huma-
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 213

No primeiro modelo (da guerra solene), começava-se por justificar


rodos os atos de hostilidade, uma vez realizados os ritos de declarações,
para definir em seguida obrigações morais. As exações ao contrário aqui
começam por ser interditadas e proscritas, em nome de um direito dos po-
vos eterno, ditado pela Natureza e por Deus. E se estabelecem em seguida
os casos de força maior. 28 Wolff e Vattel não procedem pela limitação no
interior de uma licença geral (redesenhando o círculo de uma moral da
caridade no círculo do direito de guerra), mas afirmam, em nome de um
direito racionalmente deduzido e eterno, regras de humanidade, que eles
aceitam, a seguir, modular em casos precisos. Não é a liberdade indefinida
de matar que se modera por disposições morais, são princípios gerais de
moderação cujo caráter sistemático necessário se modula.
O direito natural e racional não suporta senão as guerras justas, às
quais se ligam regras estritas de moderação. O Estado soberano é, contu-
do, o único autorizado a produzir sua definição da justiça e não suporta
nenhuma instância superior. 29 Se o Estado é soberania absoluta, fonte do
direito, livre e perfeito, isso torna impossível praticamente que se desempa-
te um beligerante justo de um injusto. Qual juiz superior à soberania dos
Estados poderia fazê-lo? Que Nação se arrogará a pretensão de julgar uma
outra? 3° Como poderia haver então uma guerra justa entre Estados sobe-
ranos, se não é no sentido em que se dizia há pouco de um justo formal?
Isso não torna a guerra justa recomendada pelo direito eterno da Natureza
praticamente impossível?

nidade e que não contribuem a tornar o inimigo mais poderoso, os templos, os túmulos, as
construções públicas, todas as obras respeitáveis por sua beleza" (/bid., Ili, VIII, 168, p. 250).
2
ª Vattel, por exemplo, começa por dizer que não é preciso nunca atentar contra a vida
das populações civis. Contudo, em caso de resistência ativa, é então permitido matar. Do
mesmo modo, é proibido matar prisioneiros, exceto como medida de represálias contra
um inimigo particularmente cruel: "Como um príncipe ou seu General está no direito de
sacrificar a vida de seus inimigos à sua segurança e à de seu povo, parece que, se ele tem
demanda com um inimigo inumano, que se entrega muitas vezes a semelhantes excessos,
ele pode recusar a vida a alguns prisioneiros que capturar" (ibid., 111, VIII, 142, p. 219-220).
29
/bid., Ili, VIII, 188, p. 271.
30
"Gens nu/la judieis partes sibi arrogare potest'' (N.T. Nenhum povo pode arrogar-se as
funções de juiz) C. Wolff, Jus gentium, (Direito dos povos) cap. VII,$ 888, ed . cit. p. 716 .
214 Estados de Violência

Sob a condição de construir a ficção 31 jurídica de uma guerra justa dos


dois lados, não se trata então de abandonar a ideia de guerra de justa causa,
mas da reciprocidade: de considerar por convenção que cada um dos dois
Estados conduz uma guerra justa. Ou antes: de considerar por convenção
que ao vencedor se reconhecerão os efeitos próprios da guerra de justa cau-
sa reconhecidos pelo direito eterno da Natureza. A soberania dos Estados
acha-se naturalmente respeitada e passa-se do sentido propriamente moral
da justiça (antinomia do justo e do injusto) a seu sentido propriamente
jurídico (reconhecimento, reciprocidade, igualdade). Essa ficção de uma
guerra "justa dos dois lados" obriga os dois Estados a respeitar os princípios
de moderação atinente a toda guerra de justa causa.

Não se vê que uma Nação, sob pretexto de que a justiça está de seu lado,
queixe-se das hostilidades de seu inimigo, se elas permanecem nos termos prescri-
tos pelas leis comuns da guerra. Nós tratamos, nos capítulos precedentes, do que é
permitido numa guerra justa. É isso precisamente, e nada mais, que o direito voluntá-
32
rio autoriza igualmente nas duas partes.

A "guerra justa dos dois lados", ficção que permite este movimento
de reciprocidade das atenuações inerentes à doutrina de guerra de justa
33
causa, distingue-se, então, fortemente da "guerra pública e solene". Ela
faz passar do direito eterno da Natureza que não reconhece senão as exi-
gências da Justiça a um direito voluntário que leva em conta a realidade
histórica da pluralidade de Estados soberanos, e distinto ainda do direito
34
positivo convencional e do direito positivo costumeiro. Esse direito vo-
luntário não remete com efeito só à positividade empírica de tratados de

31
"Fictiones non inutilíter admittuntur in omni scientiarum" (N.T. Ficções não são admitidas
inutilmente em todas as ciências), C. Wolff, Jus gentium, Prolegomena, $ 21, ed. cit. p. 15.
32
E. de Vattel, o.e. 111,XII, 191, p. 274-275 (nós sublinhamos),
33
Isso se vê bem em Wolff que, logo após ter exposto o principio (par. 895 do Jus gentium),
rejeita expressamente os excessos de violência , admitidos por Grotius em nome do "direito
de guerra", do lado de costumes pervertidos das nações beligerantes.
34 Cf. para estas distinções, a introdução de M. Thomann à edição do Jus géntium (ed. cit.

p. xxxiii-xxxiv), bem como a apresentação de Wolff por L. Olive em Les fondateurs du droit
internationnal, ed. cll. p. 458-462 e a de Vattel por A. Mallarmé na mesma obra (p. 504-509).
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 215

redução das violências que poderia ratificar uma pequena elite de Nações
bem estabelecidas. Do direito natural, o direito voluntário conserva a
seriedade do universal e do racional.
Essa ficção obriga as Nações a partilhar regras de moderação das vio-
lências e permite ainda que a vitória de um dos dois beligerantes tenha
efeitos de direito incontestáveis, como se sua causa tivesse sido justa. De
outro modo, cada Nação, vendo dificuldade na porta de sua justiça, teria
logo considerado toda guerra que lhe é feita como injusta e a derrota
como uma injúria. Matar os inimigos, apoderar-se de seus bens, conquis-
tar territórios, dominar povos, todas estas violências não são autorizadas
nem pela justiça intrínseca de uma causa (indefinível entre Estados sobe-
ranos), nem por um simples ritual de declaração pública. Elas são, para
Vattel e Wolff, dependentes dessa ficção de uma guerra justa dos dois
lados: ficção voluntária, convencional, jurídica e imanente, impedindo
que se compare a guerra a um duelo ou a um julgamento de Deus. Não
é a verdade da justa causa que se exprime na vitória, mas apenas sua
aparência externa, o respeito real dessa aparência que permite só relações
regradas entre Estados soberanos. Essa ficção da guerra igualmente justa
dos dois lados serve ainda para consolidar a paz. Ela assegura de fato
ao vencedor direitos exteriores e reais sobre seu vencido, em termos de
possessões territoriais, de dominações etc., como se sua causa tivesse sido
justa, o como se reconhecido de parte a parte transformando os Estados
em bons jogadores e leais adversários. 35

35
"A guerra em forma, quanto a seus efeitos, deve ser vista como justa de parte a parte.
Isso é absolutamente necessário, como acabamos de mostrar, se se quer pôr alguma or-
dem, alguma regra, num meio tão violento que a guerra produz e deixar uma porta sempre
aberta para o retorno da paz. É mesmo impraticável agir de outro modo de Nação para
Nação, já que elas não reconhecem juiz. Assim os direitos fundados no estado de guerra, a
legitimidade de seus efeitos, a validade das aquisições feitas pelas armas, não dependem,
exteriormente e entre os homens, da justiça da causa, mas da legitimidade dos meios em
si mesmos; isto é, de tudo o que é requerido para constituir uma guerra em forma. Se o
inimigo observa todas as regras da guerra em forma, nós não estamos no direito de nos
queixar dele como de um infrator do direito dos povos: ele tem as mesmas pretensões
que nós ao bom direito; e todo nosso recurso está na vitória ou numa acomodação", E. de
Vattel, o. c. Ili, XII, 190, p. 274.
216 Estados de Violência

'Justus hostis"

Recordemos aqui a tese de Schmitt em O nomos da terra: toda guerra


que quer e proclama ser justa (no sentido de uma justa causa) considera
seu inimigo como inferior e o desqualifica logo. Ela opõe a justiça à iniqui-
dade, o bem ao mal, um Estado a um "Estado sacripantà'. Ela se apresenta
como de essência punitiva: faz-se um culpado expiar pelos sofrimentos da
guerra ou então se elimina um agente nocivo.
Essa moralização da guerra compreenderia um risco: abrir o caminho
para o aniquilamento completo do inimigo. Porque ele representa o mal, é
preciso aniquilá-lo. Porque ele é injusto, é preciso eliminá-lo. O inimigo no
quadro de uma guerra de justa causa é incriminado. É como criminoso que
é preciso persegui-lo e abatê-lo. No ponto de vista da guerra, é quase uma
operação de limpeza. É neste sentido que se apresentaria segundo Schmitt a
36
volta à época contemporâne a do conceito de guerra justa. A guerra de justa
causa traria a operação de exterminação do inimigo, verme social. Desde que
haja discriminação do inimigo, desenha-se uma guerra de aniquilamento.
Além disso, tratar-se-ia mesmo de procurar um inimigo na medida do horror
dos meios modernos de extermínio: as capacidades de destruição das guerras
técnicas teriam suscitado a figura do inimigo criminoso para justificar sua
utilização monstruosa. A teologia, a ideologia e a técnica, tudo concorre para
dar uma imagem do inimigo como o que é preciso suprimir.
O jus publicum Europeum, do Tratado de Westfália até à Primeira
Guerra Mundial, ao contrário, tinha arrumado solidamente a figura do
"justus hostis': do inimigo justo. Este inimigo é distinto, à moda romana,
do criminoso, do pirata e do bandido. Ele é instituído por uma relação
jurídica, então recíproca. O inimigo é reconhecido como um igual e de-
tentor de direitos. Os Estados em guerra são pessoas morais afrontando-se
em guerras regradas segundo essa igualdade perfeita.

36 Cf. os artigos 227 e 231 do Tratado de Versailles. sobre a responsabilidade da Alemanha,


citados em Le nomos de la ferre, ed.cit. p. 257-367.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 217

A guerra torna-se desde então uma guerra em forma, e isso unicamente porque
se torna uma guerra entre Estados europeus como tais, claramente delimitados
quanto à sua superfície, um conflito entre unidades espaciais representadas como
personae publicae (pessoas públicas) que formam a família europeia no solo euro-
peu comum e que estão por isso em condição de se reconhecer mutuamente como
justi hostes (inimigos justos). A guerra pode tornar-se assim algo de análogo a um
duelo. [... ] As duas partes se reconhecem como Estados. Por isso mesmo se torna
possível distinguir entre o inimigo e o criminoso. A noção de inimigo se torna
suscetível de tomar uma outra forma jurídica. O inimigo deixa de ser alguma
coisa "que é preciso aniquilar". A liud est hostis, aliud rebetlis (um coisa é o inimigo,
outra coisa o rebelde). Por isso mesmo um tratado de paz com o vencido se torna
possível. 37

A "jurisdização" do inimigo impede toda guerra de aniquilamento,


que sua ideologização ou sua moralização encorajam. A argumentação é
forte de verdade, mesmo que a leitura mais literal do direito dos povos
não a reforce absolutamente. Permanece este princípio de não confusão
entre o inimigo e a pessoa: é por convenção expressa que sou decretado o
inimigo de um outro, isso não se refere nem à minha pessoa nem à dele. A
relação de hostis (inimigo público) como relação de direito é exemplo do
38
ódio cruel que dilacera os inimicí (inimigos particulares). Não poderia
haver ódio entre inimigos públicos, mas uma hostilidade convencional e
racional.3 9 Wolff irá mesmo até a sustentar que o inimigo público institu-
ído por uma declaração de guerra não se torna evidentemente menos um
homem, e que, então, não somente não é permitido odiá-lo, mas que é

37
O.e. trad .L. Deroche-Gurcel, p. 143.
38
Cf. sobre este ponto C. Wolff, Jus gentium, cap. VI, par. 722, ed. cit. p. 586 ("differunt
ab hostibus ínímici. lnimicus enim est, qui adio prosequítur alterum, consequenter cujus
animus dispositus est ad voluptatem perpícíendam ex alterius ínfelicitate": a relação do
inimicus é então marcada pelo ódio e pelo prazer de ver o outro sofrer).
39
"O inimigo particular é uma pessoa que procura nosso mal, que nele encontra prazer; o
inimigo público forma pretensões contra nós ou se recusa às nossas e sustenta seus direitos,
verdadeiros ou pretensos, pela força das armas. O primeiro nunca é inocente; ele alimenta
em seu coração a animosidade e o ódio", Vattel, o.e. 111, V, 69, p. 173. Cf. ainda o enunciado
fundamental de Rousseau: "A guerra não é então nenhuma relação de homem a homem,
mas uma relação de Estado a Estado, na qual os indivíduos não são inimigos senão aciden-
talmente, não como homens nem mesmo como cidadãos, mas como soldados; não como
membros da pátria, mas como seus defensores" (Ou contrat social, Livro 1, cap. IV).
218 Estados de Violência

preciso ainda manter para com ele, no momento em que se combate, todos
40
os sentimentos de amor e de caridade.
Aí estaria, nessa determinação de um inimigo público, de um 'Justus
hostis", o segredo dessa "humanização" e "racionalização" da guerra entre
Estados europeus; Schmitt afirma que a humanização e racionalização im-
pediram todo conflito total ("durante duzentos anos, não houve guerra de
aniquilamento no solo europeu" 41). As guerras, contudo, não eram raras,
mas continuavam circunscritas e civilizadas (saudade um pouco retrospec-
tiva e fácil da suposta "guerra de rendas" do tempo das Luzes: "Senhores
ingleses, atirai primeiro"), tudo se baseando na definição jurídica do ini-
migo. Não se tratava então de tornar impossíveis as guerras nem mesmo
de estigmatizá-las (como na noção de "guerra de agressão" que equivale à
condenação), mas de pô-las em forma. Porque querer abolir a guerra, aca-
bar com ela para sempre, é querer preparar a última, agitar o fantasma de
uma exterminação total e definitiva de todos os fautores de guerra, o que
implica conflitos indefinidos e atrozes. 42
É preciso reconhecer uma verdadeira grandeza nessa construção do
'Justus hostis". É como uma imensa homenagem rendida ao direito como
estrutura de reciprocidade e de igualdade. A essa apresentação do inimigo
justo por Schmitt poder-se-iam, contudo, opor duas inquietações. De uma
parte, não é certo que este estatuto de inimigo protege concretamente as
populações de Estados em guerra, limitando os conflitos a escaramuças
regradas entre soldados trocando saudações antes dos tiros, em campos de
batalha circunscritos, e tomando cuidado para jamais atingir as populações
civis. Estas relações de reconhecimen to e de respeito, de igualdade e de
ausência de ódio, no fundo, remetem essencialmente aos Estados como

40
"O dever do amor dos inimigos não é destruído pela estado de guerra; e todos os sen-
timentos de humanidade e todos os atos de caridade, que os homens se devem uns aos
outros, subsistem em toda sua força no meio das guerras as mais violentas", C. Wolff,
Príncipes du droit naturel, por J. H. S. Formey, cap. VII, 27, p. 307 (cf. in Jus gentium, os
parágrafos correspondentes: 743 e 744 do capítulo VI, ed. cit. p. 601-602).
41
C. Schmitt, Le nomos de la ferre, o.e. p. 152.
42
Cf. La notion de pofitique, ed . cit. p. 75 .
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 219

puras personalidades morais, às relações diplomáticas, aos rituais de de-


licadeza entre poderosos, a essas formas cons-agradas nos tratados de paz,
mas que não comprometem a ninguém. De fato, a abstração jurídica, se
permite instituir uma separação entre a pessoa e o inimigo, implica ainda
a extensão automática da qualificação de inimigo a toda a população, em
nome da unidade moral do Estado. Enquanto que na guerra de justa causa
se punha perpetuament e o problema do grau de implicação dos súditos, já
43
que havia uma escolha moral a fazer pró ou contra a causa de guerra, tudo
é simplificado pela abstração jurídica:

A qualidade de inimigos ocorre entre as nações como entre seus chefes; cada
indivíduo de ambos os sexos e de qualquer idade está incluído e os bens quaisquer
44
que sejam são também bens do inimigo.

Não se encontra, jamais verdadeiramente, no direito clássico dos po-


vos, uma separação entre combatentes e não combatentes, soldados e ci-
vis, que seja definitiva, absoluta e decisiva, como a oposição evocada entre
inimigos e criminosos. O que não significa, contudo, uma incitação ao
massacre. De uma parte, porém, a participação ativa dessas populações
civis na mobilização da guerra pode justificar que sejam atacadas sem sair
da justiça, guardando todavia a mesma humanidade que se usa para matar
soldados regulares. O inimigo, com efeito, como qualificação jurídica geral

43
Essa necessidade de engajamento moral para cada soldado era uma necessidade no
quadro da guerra de justa causa. É com essa condição somente que se podia ter a cons-
ciência de matar/punir um culpado. Somente este princípio de responsabilidade entrava
em dissonância com o de obediência: podia-se dizer ao soldado que aceitasse bater-se
somente depois de ter interrogado a justiça da causa e de outra parte que se mostrasse
submisso às autoridades como a Deus mesmo? Daí as propostas evasivas de Santo Agos-
tinho: "Um homem justo, se por acaso lhe acontece fazer a guerra sob as ordens de um rei
mesmo sacrílego, pode , sem faltar à justiça, combater se, transgredindo a paz para manter
a ordem, ele está certo de que o que lhe é ordenado não é contrário à lei de Deus, ou ao
menos se ele não está certo de que isto lhe seja contrário (quod sibi jubetur, vel non esse
contra Dei praeceptum, certum est, vel utrum sit, certum non est)", Contra Faustum, Xll-75,
trad. Vanderpol, o.e. p. 132. (N .T. é o texto anterior no original latino.)
44
C. Wolff, Príncipes du droit naturel, por J . H. S. Formey, cap. VII, 23, p. 305. Cf. também :
"Todos os súditos de uma (nação) são inimigos de todos os súditos da outra", E. de Vattel.
o.e. Ili, V, 70, p. 174.
220 Estados de Violência

engloba todo indivíduo do Estado e não só o soldado fardado. 45 A verda-


deira linha de divisão não passa, então, entre o militar e o civil, mas entre
o que luta e o que se abstém de lutar. 46
O segundo ponto concerne à relação que Schmitt constrói entre a
dimensão punitiva das guerras justas e o aniquilamento projetado do ini-
migo. Kant, em seu Direito dos povos, havia colocado lado a lado guerra
punitiva e guerra de extermínio:

Nenhuma guerra entre Estados independentes pode ser uma guerra punitiva (bellum
punitivum). De fato, não pode haver punição senão na relação entre um superior (im-
perantis) e um subordinado (subditum), relação que não é a dos Estados entre eles. E a
guerra não poderia tampouco ser uma guerra de extermínio (bellum intemecinum). 47

Contudo, Schmitt faz dessa justaposição uma consequência lógica: é


quando a guerra pretende ser punitiva que ela leva à guerra de aniquila-
mento. O que se pode compreender assim: vencer um Estado inimigo
é simplesmente assegurar a própria superioridade no combate, atacar até
que o adversário reconheça sua derrota. O punir, ao contrário, é, além da
vitória militar, procurar sua humilhação completa, procurar seu esmaga-
mento total como castigo expiatório. Para Schmitt, a guerra punitiva supõe

45
Assim, a violência, dependendo da resistência efetiva do súdito do Estado inimigo mais
que de sua condição, sempre se recusará a matar um soldado desarmado, mas não hesi-
tará, se ele recusa submeter-se, em abater um civil armado.
46
É preciso recordar ainda, a propósito de massacres inúteis ou de verdadeiros massacres,
que o direito voluntário dos povos mantém que eles ficam exteriormente impunes, mesmo
se são absolutamente condenáveis pelo tribunal da consciência. "Os que numa guerra pú-
blica e solene levaram o massacre e os saques além do que a lei natural permite não pas-
sam, de ordinário no mundo, por assassinos ou por ladrões, e não são punidos como tais.
É estabelecido entre as Nações que é preciso deixar isso à consciência dos que fazem a
guerra" (J. J. Burlamaqui, Príncipes du droit politique, quarta parte, cap. V, 14, ed. cit. p. 83),
e Vattel: "Assim, desde que é certo e bem reconhecido que tal meio, tal ato de hostilidade,
é necessário em sua generalidade para vencer a resistência do inimigo e atingir o objetivo
de uma guerra legítima, este meio, tomado assim em geral, passa por legítimo e honesto
na guerra, segundo o direito dos povos, embora aquele que o emprega sem necessidade,
quando meios mais suaves podiam lhe bastar, não seja inocente diante de Deus e em sua
consciência", o.e. Ili, VIII, 137, p. 215-216.
47
Ooctrine du droit, li, par. 57, trad. J . e O. Masson, ed . cit. p. 620.
ira Parte - QUADRO JURÍDICO 221
rerc e

a iri rim inação do adversário. O inimigo justo se compreende a partir de


""ª relação jurídica upondo reciprocidade e reconhecimento. A incrimi-
llH•
nação ao contrário, leva a wna desqualificação moral que nos faz sair do
direito e entrar na moral exigindo o aniquilamento perfeito do vício, ou
na teologia apelando para a exterminação total do mal, ou na criminologia
moderna perseguindo a erradicação dos agentes sociais nocivos. A guerra
enquanto punitiva é de aniquilamento total. Não se trata de afrontar leal-
rnente um inimigo, mas de eliminar definitivamente um criminoso.

Se a guerra se torna de um lado uma ação punitiva no sentido do direito criminal


moderno, o adversário do outro lado não pode mais ser um justus hostis. Não é mais
uma guerra que se faz contra ele, do mesmo modo que se faz a guerra a um pirata que
é um inimigo num sentido totalmente diferente do adversário na guerra no sencido
do
direito europeu dos povos. A guerra é abolida, mas apenas porque os inimigos não se
48
reconhecem mais mutuamen te como iguais no plano moral e jurídico.

Há aí uma série de equações: punição = incriminação = discrimina-


ção = recusa de igualdade e de reciproc idade = privação de direito = ani-
quilamenco. Contudo , pode-se aceitar tão depressa que punir valha como
ruptw-a da relação jurídica? A punição vi a forçosamente o aniquila mento
do condenado? Isso só tem solidez a partir do moment o em que se consi-
dera o penal reduzido a uma política de higiene social. Até que ponto se
pode sustentar que um criminoso esteja fora da lei e seja tratado como tal
quando dela ele tira sua definição, até que ponto o criminoso é assimilável
ao "piratà' ou ao "selvagem" (figuras da exterioridade absoluta contra as
quais um desencadear de violência é autorizado)? É certo que a concepção
punitiva da guerra supõe uma desigualdade moral. Contudo , há verdadei-
ramente bastante desigualdade nessa desqualificação moral para provocar
irresistivelmente um aniquilamento? Talvez, com a condição de entender
por isso sobretudo um aniquilamento simbólico: a humilhação para um
Estado soberano de ser tratado como um delinquente.

48
C. Schmitt, o.e. p. 125.
222 Estados de Violência

Tratado de paz contra capitulação

Há duas maneiras em Schmitt de situar o direito clássico dos povos:


antes das tecnologias modernas de destruição total, depois das crueldades
inauditas das guerras de religião.
O poder de destruição das tecnologias atuais é tal que, para poder
manter-se diante da consciência de quem as usa, ele supõe um inimigo
na medida do horror que elas desencadeiam. Daí o recurso ao modelo da
guerra justa, supondo uma definição teológico-moral do inimigo como
"o que há para suprimir". A atrocidade dos meios de destruição provoca
a do inimigo contra o qual eles são empregados, para escusar aquele que
deles se serve.
As guerras de religião é a atrocidade dessa vez dos massacres e das
carnificinas. A proximidade mesma dos indivíduos e sua familiaridade
exageram a crueldade. É o ódio pessoal que aqui domina, mais que 0

niilismo técnico. Uma religião contra uma outra, é uma verdade contra
uma outra, uma crença contra uma outra. Nenhuma negociação possí-
vel: à negação total da outra corresponde minha própria afirmação.

A guerra civil tem alguma coisa de particularmente atroz. Ela é uma guerra
fratricida, porque é levada ao interior de uma unidade política comum, que inclui
também o inimigo, e ao interior da mesma ordem jurídica; e porque as duas partes
em luta afirmam absolutamente e negam absolutamente e ao mesmo tempo essa
unidade comum. Ambas põem o inimigo em seu erro, de maneira absoluta e em
todos os casos. 49

Niilismo técnico ou atrocidades das guerras civis é sempre querer ani-


quilar o inimigo. Ora, o que a Europa inventou durante três séculos se-
gundo Schmitt foi a guerra entre soberanos como distribuição humana
e racional de violência. O inimigo aí se acha definido pelo direito como

49
C. Schmitt, Ex captivitate salus (N.T. Do cativeiro a salvação), trad. A. Doremus, Paris,
2003, p. 152.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 223

50
adversário igual, leal, que se afronta segundo regras comuns. Neste sen-
tido, a construção jurídica do conceito de inimigo seria um progresso. O
Estado contém um anel de violências na periferia de suas fronteiras, nos
afrontam entos regrados, em que se tratará de vitórias e não de capitulações.
A capitulação é o contrári o do tratado de paz. Para Schmitt no fundo, o
Tratado de Versailles não era um tratado de paz, precisamente como a
51
fórmula que havia sido dada pelo direito dos povos. Numa confront ação
entre inimigos justos, a vitória não serve para acabar com seu adversário,
mas simplesmente para poder impor-lh e suas condições de paz. O tratado
até o fim conserva o aspecto de uma negociação entre iguais mais do que
de uma capitulação sem condições. No fundo, a guerra não é mais que a
busca de vantagem.
Segundo aspecto: o tratado de paz comporta sempre, segundo o direito
dos povos, uma cláusula de anistia. Os Estados se comprometem a não formar
nenhum ressentimento, a esquecer os prejuíws respectivos, a apagar a lem-
brança dos motivos beligerantes ou das hostilidades cruéis. Por essa cláusula, a
primeira do tratado, os Estados instituem uma paz sem rancor, recusando-se a
disputar sem fim sobre a justa causa de uns ou a má-fé de outros.

Não se decidem a própria causa da guerra, nem as controvérsias que os diversos


atos de hostilidade poderiam excitar; nem uma nem outra das partes é condenada
como injusra; não há ninguém que queira admi ti-lo [... ]. A anistia é um esqueci-
mento perfeito do passado· e como a pa·z; é destinada a anular todos os assuntos de
52
discórdia, isco d vc ser ai o primeiro artigo do rrarado.

que cir-
50 "Uma ordem jurldica internacional que se baseia na liquidação da guerra civil e
transforma ndo-a em duelo entre Estados europeus legitimou- se, com
cunscreve a guerra
belige-
efeito, como o reinado de uma razão relativa. A igualdade dos soberanos faz deles
aniquila-
rantes que gozam de direitos iguais e mantém à parte os métodos da guerra de
mento", C. Schmitt, Le nomos de la ferre, ed. cit. p. 143.
dúvida
51
Por trás de toda a obsessão de Schmitt com "guerras de aniquilamento", há sem
o temor apocallptic o da supressão de um Estado do que a Indignação histórica
menos
(cf. sua
diante das condições desonrosas de paz que foram Impostas à Alemanha em 1918
ilização unilateral no desencad eamento da guerra , as exigências exorbitant es
responsab
das reparações, as demandas em justiça promovida s contra Guilherme li etc.).
éa
E. de Vattel, Le droitdes gens, ed . cit. IV, li , 18 e 20, p. 360-361 . Cf. ainda: "A anistia
112
de drolt
abolição e o esquecimento de ludo o que se passou na guerra" (C . Wolff, Principes
nature/, por J. H. S. Formey, cap. XIX, 8, ed. cit. p. 324).
224 Estados de Violência

Tudo isso pode parecer suprema hipocrisia. 53 Contudo, isso serve para
pensar ao menos que não poderia haver estado intermedi ário entre a guerra
e a paz: são dois estados opostos, separados, justapostos, complementares
O ganho prático do direito dos povos está nisto: a facilidade da guerra que
aí se manifesta (é a prerrogativa de um Estado que não tem contas a prestar
a ninguém e decide sozinho da justiça de suas causas) acha-se compensada
pela simplicidade da paz, reconhecida como estado jurídico, escandida,
eminente mente capaz de ser instituída. A paz não é uma promessa de fu_
turo, ela não é um ideal que exige sacrifícios, nem um estado perfeito que
supõe uma nova ordem mundial. Ela é a configuração da relação jurídica
do Estado com um outro quando ele não faz a guerra. Daí ainda a pos-
sibilidade de neutralida de de um terceiro Estado: quando dois Estados se
fazem guerra, é escansão jurídica, e um terceiro não é obrigado a se declarar
a favor de um ou de outro. Não se irá, como para as guerras de justa causa,
denunciar quem fica de fora como cúmplice do Estado criminoso.
De ponta a ponta, então, a guerra "solene e públicà' ou "justa dos dois
lados", o ''justus hostis" como o "tratado de paz", são igualmen te homena-
gens prestadas ao formalismo jurídico. Mesmo que a guerra em forma não
se faça contra a guerra de justa causa, ela acaba lhe escapando. O respeito
pelo outro, a igualdade perfeita entre soberanos, o reconheci mento de sua
liberdade recíproca não podem manter da ideia de justiça senão as regras
formais e nunca a separação moral do justo e do injusto. Fórmulas de
delicadeza, trocas de bons procedim entos, regras de lealdade: eis o que
partilham, e só por isso, prestando homenag em ao outro, prestam-se ho-
menagem a s1 mesmos.
É preciso dizer que a guerra estritamen te leal, indiferente aos conteú-
dos de justiça, é guerra mais humana? Jamais esquecer, contudo, que essas
regras tão delicadamente observadas sempre mais consideraram o proto-
colo ou outros compromissos pontuais concluídos entre nobres generais,
oficiais distintos fantasiando seus afrontame ntos, como torneios sublimes,

53
Quando se lê por exemplo que "todo tratado de paz é por si mesmo perpétuo e, por falar
assim, eterno por sua natureza" (J. J. Burlamaqui, o.e. cap. X, 6, p. 194).
ira Parte - QUADRO JURÍDICO 225
fer (e

fazendo precisamente esquecer o sofrimento dos povos. O escândalo da


guerra se dissolve na delicadeza hipócrita dos soberanos. Voltaire não dei-
xará de ironizar: "O direito da paz eu já o conhecia bastante, é manter sua
palavra e deixaJ todo os horn en gozarem dos di reito da natureza; ma ,
quanto ao direito da guerra, eu não ei o que é. ódigo de homi d di me
parece wna estranha imaginação. Esp ero que nos dê logo a jurisprudência
dos ladrõ Le estrada" .~4

54
Voltaire, citado por M. Bélissa, Fraternité universel/e et interêt national, ed . cit. p. 75 .
Conclusão

Estados de violência

"É a distinção da guerra e da paz,


como a do interior e do exterior,
do público e do privado,
do Estado e da sociedade,
do político e do econômico,
do nacional e do internacional,
do transnacional e do supranacional,
que perdem uma grande parte de seu sentido."
P. HASSNER, Guerras e sociedades

A guerra "pública e justà', caos de forças submetido às estruturas da


ética, do político e do jurídico, sob nossos olhos se desfaz. Estados de vio-
lência inéditos se desenham cujas linhas de força restam para descobrir,
descrever, conceituar. Depois de Platão, Hobbes, Hegel, Nietzsche, a vio-
lência coletiva e armada não tem mais a mesma face.
A guerra, na longa história dos homens, terá tido seus atores e suas ce-
nas, seus heróis e seus espaços, seus personagens e seus teatros. Diversidade
incrível das fardas, dos costumes, enfeites, armaduras, equipament os. Mul-
tiplicidade dos terrenos: barro espesso ou poeira asfixiante, brejos viscosos,
desfiladeiros rochosos, prados gordurentos ou planícies sombrias, colinas
acidentadas, montanhas dentadas, muros grossos das cidades fortificadas,
portões e fossos profundos. Sem mesmo falar das táticas de combate, da
evolução técnica das armas. Mas o que malgrado tudo ficaria e basearia a
distinção entre guerras maiores e menores, grandes e pequenas, verdadei-
ras e degradadas, era essa forma pura de dois exércitos engajando forças
representando entidades políticas identificáveis, afrontando- se em batalhas
decisivas, terrestres ou marítimas, que os colocavam em contato com seu
228 Estados de Violência

princípio de encerramento: vitória ou derrota. É ainda possível essa for-


ma pura de guerra, depois que as grandes e principais potências dispõern
da arma absoluta (o fogo nuclear), depois ainda que um só possui urna
superioridade arrasadora das forças clássicas de destruição, tecnologias de
reconhecimento, técnicas de fundição de precisão, depois enfim que as
democracias desenvolveram uma cultura da negociação, da arbitragem ern
que o recurso à força nua é dado como inadequado, selvagem, contrapro-
ducente? Imagina-se que no futuro ainda grandes potências mobilizem 0

conjunto de suas forças vivas para se medirem?


Na trama visível, dilacerada das grandes violências contemporâneas,
reconhecem-se apenas a paisagem cultural da guerra, as nervuras de sua
representação dominante. Não se veem mais, e tanto melhor, colunas de
soldados em centenas de milhares chegando ao futuro campo de batalha,
dispondo-se em ordem para a batalha decisiva. Não se espera mais com um
entusiasmo ansioso a sanção das armas: duração da batalha, data da vitória
ou da derrota. Em seu lugar surgem estes temporões da pura rasgadura do
ato terrorista no espaço público de grandes centros urbanos, do cálculo
matemático de uma trajetória de míssil por ocasião dos conflitos high-tech
ou do marasmo indefinido das guerras civis em Estados arrasados. O per-
sonagem da guerra, segundo o dispositivo convencional, é antes de tudo o
soldado fardado, apto e autorizado a portar e utilizar armas, pertencente a
um regimento. Ele obedecia a um oficial superior, que em companhia de
seus pares definia uma tática, um alvo militar, um plano de batalha, em
conformidade com um objetivo fixado do alto por um dirigente político.
Os estados de violência fazem aparecer uma multiplicidade de figuras no-
vas: o terrorista, o chefe de facções, o mercenário, o soldado profissional,
o engenheiro de informática, o responsável da segurança etc. Não exército
disciplinado, mas redes dispersas, concorrentes, profissionais da violência.
Mudanças ainda no nível do teatro dos conflitos. Para a guerra: uma planí-
cie, espaços largos, às vezes colinas ou rios, em todo caso campanhas (para
não levar em conta aqui guerras de cerco). E depois vem o espetáculo de-
solador após a batalha: os inimigos como que abraçados na morte, corpos
juncando o solo, fardas rasgadas, manchas de sangue. Um grande silêncio
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 229

depois de tantos gritos e de vaias. O novo teatro é hoje a cidade. Não a


cidade fortificada, por trás da qual se entrincheira, mas a cidade viva de
transeuntes. A dos espaços públicos: mercados, garagens, terraços de café,
metrôs ... A das ruas que francos atiradores isolados transformam em teatro
de feira para divertimentos atrozes. Em lugar das grandes colunas de sol-
dados que avançam com passo cadenciado e cruzam com civis em êxodo
para o interior das terras, ver-se-ão, atravancando as estradas, hordas de
refugiados carregando pequenas bagagens, fugindo do caos para campos
de reagrupamento além das fronteiras. Em lugar do campo de batalha de-
solado em que os inimigos se misturavam na morte como para uma última
comunhão, encontram-se carneiras de civis massacrados às pressas.
Tempos e espaços, personagens e cadáveres. Aqui se trata apenas do
regime de imagens da violência armada que se acha transformado. A apos-
ta filos6fica seria dizer que acontece outra coisa, e não a guerra, que se
poderia chamar provisoriamente de "estados de violência", porque eles se
oporiam ao que os clássicos tinham definido como "estado de guerra'' e
também como "estado de natureza''. Conceito por provisão, que se susten-
ta pela ficção filos6fica de um fim da guerra, o estado de violência conhece
princípios específicos de estruturação: princípios de estouro estratégico,
de dispersão geográfica, de perpetuação indefinida, de incriminação, que
todos se opõem ao estado de guerra.
A guerra era pública e centralizada. Ela se organizava segundo estrutu-
ras hierarquizadas e piramidais de comando. Os estados atuais de violên-
cia parecem relativamente anárquicos e privatizados. Age-se por pequenos
grupos que podem ser atomizados e aproveitar uma situação de enfraque-
cimento estatal para roubar recursos ou bem por redes ultrassecretas inter-
nacionais, como os grupinhos terroristas, sem que haja verdadeiramente
um comando central cujas senhas se esperariam, ou ainda se age por rea-
grupamentos étnicos, religiosos, descartando as identidades cidadãs públi-
cas. Estouro estratégico.
A guerra funcionava por concentração geográfica da violência armada.
Ela definia campos de batalha onde se reuniam as tropas para um afron-
tamento maior. Ela fazia muitas vezes uma separação entre um circuito de
230 Estados de Violência

fogo (as fronteiras ameaçadas) e um interior mais preservado. Hoje, a mor-


te violenta pode sobrevir em toda parte e particularm ente no centro das
grandes capitais. Ela é intensidade pontual, sem lugar próprio previsível.
O estado de violência é global, pois ele organiza o embate de duas séries
locais. O terrorismo, por exemplo, não são mais dois Estados que estão em
guerra, é a capacidade para um grupinho formado em montanhas recuadas
de massacrar na outra extremidad e do mundo pessoas que vão ao armazém
da esquina. Dispersão espacial.
A guerra funcionava segundo uma temporalida de fortemente esque-
matizada: a declaração de guerra, a mobilização dos exércitos, seu avanço
progressivo, o dia da grande batalha etc. Ela era feita para obter uma deci-
são que pudesse reconduzir a paz. A guerra trazia a exigência de sua conclu-
são: seu término era sua finalidade. Os períodos de paz alternavam com os
períodos de guerra, de maneira relativamente exclusiva. Os conflitos atuais
abrem, ao contrário, o tempo indefinido dos estados intermediários. O
dos conflitos endêmicos nos Estados arruinados. O marasmo é de proveito
para seus atores, permitindo a impunidade das exações e outros saques. O
dos estados de alerta permanente s em que a paz pública é atravessada por
uma ameaça permanente de terror. Perpetuação indefinida.
A guerra em sua forma clássica opunha soldados armados matando-se
mutuament e segundo códigos. Hoje, são civis essencialmente que mor-
rem, vítimas dos atos terroristas, dos mísseis teleguiados, das tropas sulcan-
do regiões devastadas. Criminalização.
A tentação crítica seria aqui multiplicar as análises negativas e ver nes-
ses estados de violência uma volta a um estado de natureza caótica das for-
ças, em tantos pontos de derrocada das antigas figuras. Compreend er o es-
tado de violência como estado de natureza é considerar os novos conflitos
unicamente em termos de barbarização, privatização e desregulamentação.
Barbarização. Lado ético, as novas violências seriam resolutamente sel-
vagens: elas condenaria m os que a elas se entregam ao caos de instintos
primitivos que se imaginavam extintos, ao menos entre povos civilizados.
Diante das populações civis espoliadas por facções em armas, das mulheres
violentadas, das casas saqueadas, denunciam- se a granel a crueldade, a co-
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 231

biça, o vil prazer. Quando a violência toma antes o aspecto gelado de um


atentado minuciosamente preparado, atroz na compreensão de sua per-
feição técnica, é sempre niilismo da vontade. Denuncia-se o ato bárbaro
contra a civilização.
Privatização. Sob o aspecto político, os conflitos atuais em zonas sem
soberania eficaz são tidos fundamentalmente como anárquicos: nenhum
projeto político os suportaria, nenhuma promessa de nova ordem os sus-
tentaria. Pura lógica de depredação. Não há mais exércitos, mas grupos
de interesse: facções armadas, redes de terroristas, grupos paramilitares,
máfias. A guerra regrada se precipita numa volta aos ciclos infernais das
vinganças e das espoliações. Dir-se-á então que essas novas violências nas-
cem da derrocada dos Estados. Conhecia-se o Estado ator autorizado para
guerras e também aquele que as fomenta. A perda do Estado faria aparecer,
em lugar das guerras clássicas, conflitos informes mil vezes mais cruéis.
Desregulamentação. Fim da guerra justa, como se pretende. Ela se
acha ultrapassada pelo alto e por baixo: por uma transcendência absoluta
ou por uma imanência radical. Guerra santa ou guerra vital. Os impe-
rativos da vida e do sagrado quebram todo enquadramento jurídico das
guerras em nome de uma lei absoluta: urgência vital das depredações ou
exigências sagradas do fanatismo.
Outrora, na guerra batia-se com bravura, sob um comando e uma
bandeira, por motivos considerados justos. O estado de violência seria
fundamentalmente bárbaro, anárquico, criminoso. Inversão da ética do
guerreiro pela liberação descontrolada das pulsões selvagens. Derrocada
do quadro político pela proliferação dos lances infranacionais que se refor-
çam: lances de identidade e de regiões, comerciais e mafiosos. Implosão das
normas jurídicas pela invocação de absolutos.
Diante da inquietante extravagância desses conflitos dificilmente iden-
tificáveis ou codificáveis nos quadros da análise estratégica clássica, ouve-se
mesmo: o pior estaria para vir. É preciso dizer que a polemologia (estudo
da guerra) não reconhece mais seus filhos: nem seus chefes responsáveis,
nem seus soldados dóceis, nem seus heróis esplêndidos, nem seus mortos
no campo de honra. Chega-se mesmo às vezes a se queixar. Neste ponto
232 Estados de Violência

contudo, a nostalgia é dificilmente suportável. Sobretudo para lastimar


guerras que às vezes nem mesmo foram vividas pessoalmente. Estas boas
velhas guerras, com bons velhos inimigos, fomentadas por Estados, alegan-
do "razões", deve-se recordar que foram também o instrumento das mais
baixas ambições, das mais loucas pretensões, dos mais sórdidos cálculos?
Que elas acarretaram sem falhar o sacrifício de milhões de homens que
não pediam senão para viver, que elas esgotaram precocemente civilizações
desenvolvidas, conduziram culturas prestigiosas ao suicídio?
Resta, além de um pensamento nostálgico, compreender o que causa
os estados atuais de violência. Então antes que falar de "nova guerrà', de
, e "guerra sem a guerra"d
"guerra se lvagem"d m , e "guer-
, e "guerra sem fi"d
ra assimétricà', de "guerra civil generalizadà', de "guerra ruivà', é preciso
elucidar, em lugar do jogo antigo da guerra e da paz, as estruturações destes
estados de violência. As análises que seguem não têm, contudo, nada de
fixo. Elas constituem uma problematização dos conflitos dos últimos de-
cênios, tentando compreendê-los como uma lógica positiva de estados de
violência a construir, antes que como desestruturação das guerras clássicas
e abismo aberto de um caos sem idade. Como a filosofia clássica tinha con-
ceituado o estado de guerra e de natureza, seria preciso esboçar a análise
filosófica dos estados de violência, como distribuição contemporânea das
forças de destruição.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 233

Desmoralização?

"Mesmo para tua mãe, uma bala!


Mesmo para teu pai, uma bala!
Teu fuzil, é teu brinquedo!
Teu fuzil, é tua mulher!" 1

Desmoralização da guerra, desaparecimento da ética do guerreiro, vol-


ta do selvagem na cultura, do primitivo na civilização, ressurgimento das
pulsões arcaicas de morte ... A propósito de intermináveis conflitos inter-
nos, dilacerando fantasmáticos Estados, não se acaba de recitar as ladai-
nhas e as queixas sobre estes "selvagens" que não sabem mesmo se bater
corretamente e fazem desaparecer a antiga honra do guerreiro sob os saques
e os estupros, as devastações e as incursões. Evocam-se com pavor estas
quadrilhas de veteranos drogados ou saturados de álcool, estes adolescentes
terríveis transbordando libido odiosa, estes meninos-soldados adestrados
na crueldade, estes carrascos espumando ... Os terroristas parecem eles mes-
mos surgir da noite sem idade das violências bárbaras.
Percebe-se mesmo às vezes sob as indignações desanimadas de intelectuais
ou de analistas denunciando o niilismo um pouco de racismo e muito de et-
nocentrismo ao ler assim nossa história e a dos outros: escandalizando-nos com
suas guerras "sujas", selvagens, degeneradas, como se pudéssemos nós Europeus,
Ocidentais, gloriar-nos de conflitos limpos, civilizados, educados, reivindicar
altivamente a nobreza de nossas brutalidades. Maneira também às vezes pós-
-colonial de achar que depois de tudo as antigas dominações eram injustas,
mas estruturantes, ou melhor ainda que é inútil trazer aqui e ali uma ajuda que
será desviada por atores políticos necessariamente corrompidos.
Continua sendo verdade que, aos exércitos nacionais e ordenados, hie-
rárquicos e disciplinados, tendem efetivamente a se substituir, nas zonas

1
Canto de guerra dos jovens recrutas da SPLA (Sudanese People's Liberation Army -
Exército de Libertação do Povo Sudanês) no Sudão do Sul (citado por J. F. Bayard, Ellis,
Hibou, o.e. p. 23).
234 Estados de Violência

turbulen tas, à medida das violências contemp orâneas, uma sequência in-
definida de milícias paramilitares, de facções ou de bandos armados com
comand os confusos, com alianças precárias, com interesses contraditórios.
Contudo , não se pode ficar com um sentime nto de perda, de desagregação,
de ausência. Seria preciso compree nder o que nos conflitos contemp orâne-
os se configura de novo, e simplesm ente não desaba.
Nos estados de violência, a lógica da relação com a morte se transfor-
ma. Há três exemplos contemp orâneos: o ato terrorista fazendo surgir a
morte no coração do espaço público; a devassidão destruid ora de bandos
armados causand o estragos em países desestruturados; os lançame ntos te-
leguiados de mísseis balísticos "inteligentes", indo atingir alvos precisos
como "incisões cirúrgicas". O escândalo do terrorism o, sob a forma ao
menos do kamikaze transfor mando seu corpo em arma de destruição, é
que um homem que fundame ntalmen te quer morrer fere, atinge pessoas
que fundame ntalmen te não querem morrer. Instrume ntalização unilateral
e tirânica de minha própria morte: minha morte serve para matar os ou-
tros, os que não querem morrer. Desvio da forma sacrificial: eu não dou
minha vida, mas eu a reduzo. A morte, então, não é mais essa hesitação
que oscila entre dois inimigos e os ergue à vertical de sua coragem, ela não
é mais essa ameaça que eles partilham e que os reúne numa comunid ade
dura de violência. O terrorista escolhe para os outros. Profund a dissime-
tria não deixando lugar a nenhum a ética do reconhec imento. Quanto aos
bandos armados chocand o-se em afrontam entos sem fim e dispersados, é
em torno deles sobretud o que eles semeiam a morte. Eles se afrontam em
escaramuças esporádicas e sangrentas, em batalhas de rua sem decisão, em
ataques bruscos seguidos logo de retirada, em golpes de força permitin -
do o controle de uma nova zona ... Contudo , as violências mais graves e
as mais contínua s atingem as populações civis, tomadas como reféns: pi-
lhadas, expulsas, exploradas, massacradas. O aperfeiç oamento tecnológico
enfim exige doravante, nas guerras high-tech, mais competê ncia científica
do que força marcial. A tecnização da guerra tem tido essa consequência
formidável: pode-se provocar a morte de centenas de milhares de inimigos
a partir de uma poltrona , diante de uma tela de computa dor, em todo caso
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 235

sem arriscar um só instante sua própria existência. A presença física do


adversário, ao alcance de arma, não é mais tão necessária para destruí-lo.
Tiros de mísseis ou bombardeamentos aéreos maciços: o que se requer é
uma competência, um saber, um profissionalismo científicos. Destruir é
antes de tudo calcular a posição de um alvo, traçar as coordenadas de uma
rrajetória, comandar a morte à distância, "teleguiar". Então se torna pos-
sível prometer uma guerra "zero morte", ao menos para um dos dois beli-
gerantes. Os novos conflitos, em sua versão hipertécnica, marginalizam ou
até eliminam completamente essa igualdade mínima diante da morte que
constituía a identidade do que, entre as violências e os massacres, empresas
temerárias e as razias, se distinguia como "guerra".
Esses três exemplos valorizam um desaparecimento da troca regrada
de morte nos estados de violência. Ao contrário da guerra, a morte não se
troca mais. Ela distribui-se, semeia-se, calcula-se. Essa fórmula da troca,
da exposição recíproca tinha permitido só à experiência da guerra fornecer
uma matriz para a moral. O fim da troca hoje acarreta, não o retorno do
arcaico, mas antes uma reestruturação da relação com a morte, de sua
acolhida. Ela se torna outra coisa: um risco profissional, uma equação ma-
temática, uma condição de ser, uma apoteose midiática.
Duas figuras contemporâneas, relativamente próximas, ilustram a re-
lação com a morte como risco profissional. De uma parte, o mercenário,
pertencente a uma companhia privada de segurança ou trabalhando por
sua conta, que oferece seus serviços a homens políticos que querem asse-
gurar uma cobertura pessoal segura ou dispor de polícias especiais, ou às
empresas industriais que querem proteger suas instalações em zonas de
risco, ou ainda a facções armadas que desejam empregar um homem certo
para enquadrar recrutas inexperientes. De outra parte, o soldado profis-
sional que pertence a um grande exército moderno, estando "engajado" e
participando nas que se chamam "intervenções" ou "missões". Um e outro,
fundamentalmente, não estão aí para morrer, apenas para matar, mas para
trabalhar: proteger lugares ou populações, assegurar a guarda próxima de
personalidades, efetuar um murro preciso (retomar uma construção, uma
236 Estados de Violência

rua, um setor), compart imentar uma cidade, controla r uma zona, levar
assistência a uma populaçã o ... Missões pontuais , limitadas, estritam ente
definidas, para as quais se faz um apelo à sua competê ncia, ao seu profissio-
nalismo, ao seu senso das responsabilidades, à sua confiança. Está-se longe
aqui dos aprendizes matador es compen sando sua inexperiência pela raiva,
pelo barulho e pela embriaguez. Aqueles não matam por matar, mas traba-
lham, cumprem sua missão sem ódio. Certame nte, o mercená rio privado
e o soldado profissional não partilham exatame nte as mesmas expectativas
nem o mesmo ethos. O mercená rio privado valoriza uma experiência prá-
tica mais que uma pura competê ncia técnica. Ele já participo u em outros
conflitos, às vezes em regiões próximas, e no fundo é sobretud o isso que
ele sabe fazer: bater-se, comand ar um esquadrão, ficar à espreita sem tre-
mer, tomar decisões no meio do sibilar das balas e das explosões. Pondo-se
a serviço de uma grande companh ia, ele garante um bom salário, pois
evidente mente seu ofício está sujeito a riscos, e sobretud o ele escapa da
miséria e do desemprego. Este engajam ento fica estritam ente econômi co e
ele atravessa com indiferen ça os lances de poder confuso dos conflitos dos
quais participa. O soldado profissional recebeu uma formação, conhece u
treiname ntos, aprende u as regras do combate e da disciplina. Contudo , é
talvez hoje mais um código de deontolo gia que o estrutura do que um au-
têntico código de honra. Ele não concebe mais sua morte como apoteose e
realização de um destino. Como todo salariado, ele goza de direitos sociais
e sindicais, de planos de aposenta doria e de reciclagem, de seguro de vida,
de assistências médicas e psicológicas. É um funcioná rio cuidados o de suas
prerrogativas, sabendo fazer a separação de suas obrigações estritas. O que
o mercená rio privado e o soldado profissional partilha m é bem essa proxi-
midade da morte como risco racional. Ela não é nunca mais que um am-
biente profissional específico, um risco estatistic amente mensurável. Tudo
os opõe ao imaginár io cavalheiresco, pois o risco não é a aventura. É um
perigo razoável. Objeto de cálculo frio mais que epopeia apaixona nte, ele
é imprevisibilidade estatística a dominar mais que narrativa a conquistar.
A morte para eles não é destino. Nela não se mede mais o cume luminos o
de existência deles, mas antes uma margem especifica de incerteza letal que
rerceira Parte - QUADRO JURÍDICO 237

define sua profissão. Ao cavaleiro era pedido que se exaltasse na memória


dos homens e que se fizesse um nome. Exige-se antes dos mercenários uma
discrição no limite do anonimato. Ao juramento de fidelidade que fazia
do cavaleiro um "servidor" sucederam os contratos assinados, de duração
limitada, providos de suas cláusulas.
Os progressos tecnológicos realizados estes últimos decênios, cons-
tituindo o que se pôde chamar uma "revolução", foram prodigiosos: no
domínio da informação militar (reconhecimento das "inscrições" (identi-
ficações) do movimento de todo ser: soldado, carruagem, avião etc.; tudo

0 que se desloca se torna imediatamente reconhecível), informação do co-


mando eletrônico das armas de destruição maciça (mísseis "inteligentes",
cuja trajetória é assistida e que vão atingir mais de perto seu alvo), e da
velocidade enfim de transmissão dos dados como de lançamento das forças
de tiro. A tal ponto que a arte tradicional da guerra se achou ultrapassada.
A possibilidade absoluta existe de atingir uma coluna de carruagens, de
destruir uma reserva de armas, de aniquilar concentrações de soldados,
com uma precisão matemática, ficando sentado numa poltrona, por um
toque de teclado. Alguma coisa estranhamente plana e gelada se mostra,
onde o inimigo não tem mais rosto: um sinalzinho vago na tela. Para fazê-
lo desaparecer, não são necessárias força ou coragem, mas uma pura com-
petência científica.
Depois do mercenário e do engenheiro, participando dessa remode-
lação da relação com a morte, encontra-se o novo recruta de uma dessas
milícias sulcando seu país, semeando o caos e o terror: pilhando e saquean-
do magras riquezas familiares, violentando mulheres, reduzindo-as às ve-
zes a uma domesticidade servil, massacrando os homens suspeitos de ser
"infiltrados" ou os forçando a se alistar nestas fileiras, controlando zonas
de riquezas (diamantes, metais ou madeiras preciosos, plantações de dro-
gas etc.), a fim de assegurar um tráfico permitindo-lhes se reabastecer de
armas, veículos etc. Este horror, contudo, não é exatamente o dos geno-
cídios, com suas milícias treinadas para o massacre. Estes últimos supõem
em seu horror muita planificação, organização e um senso de guerra ide-
238 Estados de Violência

ológica total que terá pertencido ao século XX. No interior dos Estados
estourados, destruídos, do século XXI, os grandes desníveis perderam sua
pertinência. A oposição entre progressistas e reacionários, revolucionários e
conservadores, comunistas e liberais, esvaziou-se parcialmen te de seu senti-
do, quando afrontamen tos que veem opor-se não "etnias" (é nossa maneira
de ler a volta da natureza), mas grupos de interesse, redes de clientelas,
linhagens. É que se trata, para tal ou tal senhor da guerra, de "tomar o po-
der" ou de fazer parte da clientela de uma facção política, mas mais ainda
de aproveitar dos dividendos do poder (tomadas de lucros cumulativos)
do que de fazer triunfar o interesse geral. Contudo, quanto aos recrutas
dessas milícias ulrraviolentas, como compreend er a selvageria atroz de suas
exações?
E, contudo, para muitos, entrar num bando armado não é desvario da
violência arcaica, mas integração social. Viver de violências não é volta da
natureza, mas traumatism o cultural. Tornar-se um "cão de guerrà', juntar-
se à "matilha", é também sobreviver quando se perdeu tudo, refazer uma
família quando a sua não existe mais, reatar laços, mesmo atrozes. Porque
dessas violências, primeiro se vive. Cobra-se dos civis, vive-se de rapinas,
enriquece-se com saques. De fato, passa-se mais tempo a espoliar do que
a combater, e o fuzil serve tanto para intimidar, para semear o terror, para
obter o que se quer pela força, quanto para afrontar um inimigo. Há mui-
tos combates, reais, assassinos, mas finalmente sobretudo raros: reposicio-
namentos táticos, socos pontuais. E depois, há as solidariedades de bando,
as camaradagens viris em que se tem seu lugar reconhecido. Partilham-se
despojos e ainda lembranças. Nestas histórias de indivíduos, mais que nii-
lismo de existências informes, veem-se processos perturbador es de sociali-
zação pela violência.
De fato, esses garotos alucinados, esses adolescentes inebriando-se com
massacres, não usam de violência, eles são a violência. Ela é sua substância,
sua nova identidade. Descarregar uma cartucheira sobre inocentes tremen-
do, mutilar corpos bramindo, isso se aprende. É preciso ter feito explodir
as barreiras naturais da compaixão e do pesar. Assim, para ser aceito num
bando, é preciso ter sido acostumado às armas e iniciado. Estas iniciações
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 239

são ferozes. Ai a pessoa se torna objeto de brutalidades inauditas, repetidas,


é forçada a participar dos massacres. E os iniciadores-torcionários de repente
vos sorriem, vos reconfortam, vos felicitam. E a pessoa se maravilha de ter
conseguido, ter sofrido o que sofreu sem morrer, ter podido se chafurdar
no sangue dos outros, esmagar cabeças, abrir ventres, fazer explodir corpos
e de que o céu continua a brilhar com o mesmo azul acima de vossas cabe-
ças, é quase uma revelação, uma grande libertação que vos separa do resto
dos homens, mas que se paga com uma perturbação definitiva do sujeito,
despojado e como que flutuando na irrealidade ébria do crime. Isso se torna
quase um jogo de matar: este barulho das armas, estes gritos, é como uma
fessa frenética, uma imensa exibição. E, em breve, um atroz costume. Inicia-
dos na violência, eles não podem sentir-se existindo a não ser no pavor dos
outros. Eles têm necessidade do pesadelo dos outros para não ter que se des-
pertar deles mesmos. A morte se lhes tornou uma condição de ser. Ela não é
mais promessa de um valor mais alto do que a vida que dava ao soldado sua
postura heroica. Ela já está realizada, em si, ela é o que separa definitivamen-
te o sujeito de si mesmo, o trato estruturante do qual ele não escapa senão
o redistribuindo. O torcionário, o cão de guerra não se sentem viver senão
na morte dos outros. A ética heroica do soldado era sacrificar sua vida num
ato forçosamente único. Aí, ao contrário, depois do corte iniciador, trata-se
de fazer jorrar continuamente a morte dos outros para se sentir sobreviver.
Última maneira de configurar de novo, nos estados contemporâneos
de violência, a relação com a morte, saindo da lógica da troca, é o ato
terrorista. Ele é princípio, como se diz, de "midiatização" da morte. Cer-
tamente desde muito se tem insistido no aspecto ao mesmo tempo espe-
tacular e atroz destes atos. Encenação do horror, que visa alertar como se
diz "a opinião pública mundial": uma pura astúcia, uma "propaganda pela
ação". Faz-se conhecer, reconhecer sua causa, o horror provocado sendo tal
que será imediatamente retransmitido pelos meios de comunicação. Fala-
se disso tanto mais que é atrozmente injusto.
Esses jogos turvos em torno da capacidade "publicitárià' do terrorismo
permanecem ligados a uma lógica midiática. O terrorista, neste ponto,
240 Estados de Violência

pode deixar-se governar pela morte como imagem que lhe faz encontra r
seus públicos: público fanático de seu adoradores, que passam os vídeos de
suas últimas declarações e de seus adeus, público também de cidadãos tran-
sidos de medo, quando a morte violenta surge no coração de seu cotidiano.
Se o combate individual se inscrevia na ficção de uma narrativa, se a guerra
total exigia para ser conduzi da em toda a sua extensão a abstração de uma
ideologia, a que correspondia o genocídio em massa, o terrorismo convoca
para sua intensidade, pontual mas absoluta, o brilho de uma imagem que
conjuga num único ato a destruição dos outros e seu próprio renascimento
fantasmático num além glorioso.
Quando a guerra fazia da morte o termo regrado de uma troca, pro-
jetando o sujeito na vertical de sua existência segundo modalidades éticas
diferenciadas (honra, coragem, obediência, sacrifício etc.), o estado de vio-
lência a constrói como polaridade ativa de destruição do outro, segundo
parâmetros específicos: o cálculo racional, a raiva ébria, a glória de uma
imagem ... Há menos perda - sem benefício - da substância ética do que
nova configuração da relação com a morte, mas dessa vez como destruição
unilateral do outro permitin do, de volta, ao sujeito se definir: bom profis-
sional, bom cão de guerra, bom terrorista.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 241

Despolitização?

''A noção estruturalmente pertinente que vem


substituir a da guerra enquanto 'procura da política
por outros meios' não é mais tanto a dissuasão
- como durante a guerra fria -,
mas antes a intervenção."
P. HASSNER, O terror e o Império

As novas guerras teriam perdido todo o sentido político. Deplora-se


a mercantilização e etnicização dos conflitos. O que significaria que tudo
doravante é negócio de gordos soldos ou disputa de pessoas. Negócios de
gordos soldos: os estados de violências ultracontemporâneas implicariam
sistematicamente máfias, grupos paramilitares ávidos de ganho, sacripan-
tas ávidos de rapinas. Tráficos de produtos ilícitos, controle de monopólios
ou simplesmente saques: a glória antiga das guerras se estenderia uma atroz
extorsão. Lógica das depredações. E depois, o que se entende por "conflito
de identidade" são lutas até a morte entre identidades subnacionais: as
etnias, as comunidades religiosas, tudo se sustentando pela negação do ou-
tro. O Estado em desagregação, envoltório vazio, somente uma burocracia
surda e cega, não é provedor de filiações: a pessoa não é mais conhecida
como "cidadão" ou "nacional", não é mais ligada por uma comunidade
cívica, abstrata e leiga. Lugar para o caos dos ódios: fossos no interior de
uma mesma Nação se cavam entre antigos vizinhos se descobrindo como
inimigos hereditários. Lógica dos massacres.
Massacres e depredação: seria o fruto das novas violências, que faz ter
saudade das antigas guerras, em que "cidadãos" se matavam por causas
"nacionais". Nobreza dos lances de então (mas se impediam verdadeira-
mente por isso as rapinas ou as guerras de conquista e ainda grandes ódios
nacionais seriam forçosamente menos ferozes que os étnicos?). Por uma
reviravolta, o mercado e a cultura que tinham sido essencialmente pacífi-
cos tornam-se tremendamente beligerantes por seu poder de despolitização
dos conflitos: encerramento bárbaro dos conflitos por motivos culturais
mesquinhos; restringimento dos lances em torno de puros benefícios mer-
242 Estados de Violência

cantis. Tudo o que despolitiza tiraria da guerra sua substância. Os novos


lances aparecem, por contraste, niilistas. O estado de violência reinterpre-
tado como estado de natureza se reduz então só ao reino sem distinção
entre a cupidez e o ódio.
Contudo, não está aí, ainda uma vez, senão análise negativa. Só se
deplora a ausência da substância, e não se pergunta: o que é que mantém
os atuais estados de violência? A guerra na dimensão política considerada
pela filosofia clássica era estritamente: o que dá a uma unidade política sua
consistência. Um Estado, um Império, uma cidade se estabilizavam na e
pela guerra: ela unifica uma comunidad e, projeta uma imagem, afirma
um poder. Dois sistemas de estruturações podiam ser descritos: imperial
(ordem romana) ou estatal (ordem westfaliana).
O Império havia instituído a tranquilidade. É uma ordem calma, ex-
tensa, em que as leis como as hierarquias são reconhecidas, os usos e as
crenças respeitados, as aculturações seguras. Uma concórdia pacífica reina,
numa prosperidade geral. O Império tem bordas: espaços de puro perigo.
O exterior, além da civilização, constitui uma zona de turbulências: para as
guerras de conquista permitindo domesticações novas, integrando sempre
mais espaços considerados anômicos; para as guerras de rechaço contínuo,
pelo qual os poderes desestabilizadores do caos são mantidos na exteriori-
dade. O Império é unicidade tranquila, em expansão.
O Estado moderno supunha ao contrário uma condição de plurali-
dade. Há só um Império, há sempre Estados. É porque ele não conhece
bordas, mas fronteiras. A fronteira é clara e definida, ao passo que as bor-
das são vagas, forçosamen te ambíguas. A fronteira encarna o princípio
estatal das separações: entre o interior e o exterior, entre o civil e o mili-
tar, entre a segurança e o estado de guerra. A segurança é a ordem interna
e pública, assegurada pelo reinado de uma lei unívoca, garantida por
um Soberano, mantida pela polícia. O coração está seguro, habilidoso,
calmo. O estado de guerra é, na periferia, nas fronteiras, a possibilidade
constante e decidida do conflito armado com um outro Estado. O estado
de guerra é uma condição geral de existência da pluralidade dos Estados,
e tanto a paz como o conflito constituem as duas modalidade s: paz arma-
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 243

da ou conflito armado. A paz é um estado de guerra calmo, estabilizado.


O conflito é a concreção pontual das ameaças, a efetividade brutal de
uma latência contínua.
Hoje, não há mais guerra nem paz. O sistema clássico dos Estados já
havia sido malvisto pela lógica inaudita dos dois blocos durante a guerra
fria: pela primeira vez dois Impérios fortemente opostos que não podiam
fazer-se guerra; pela primeira vez, a recusa de utilizar armas porque muito
destruidoras. A força nuclear impedia a guerra, mas fazia da paz um pe-
sadelo contínuo. Depois da "queda do muro", uma nova distribuição de
violências aconteceu, que se considerou segundo dois termos: intervenção
e segurança, pelo que se anuncia o irreversível declínio da guerra e da paz.
Nem um único Império com suas bordas tumultuosas, nem uma plura-
lidade de Estados com suas fronteiras em alerta, mas um mundo global
atravessado por estados de violência, regrados por um sistema de segurança
e por intervenções.
As grandes potências não fazem mais guerra: elas intervêm antes, aqui
e lá. Durante muito tempo, a intervenção havia sido o que era preciso
absolutamente denunciar, impedir. Ela constituía um escândalo: pura
ingerência, insulto ao princípio de soberania das nações, universalmente
reconhecido. A intervenção era o mal político. Pode-se recordar a defini-
ção clássica que dela dava Oppenheim (Internacional Law, vol. I, London,
1905): "interferência ditatorial ou coercitiva de uma parte exterior ou de
partes exteriores na esfera legal de um Estado soberano, ou mais geral-
mente de uma comunidade política independente" . Aquele que intervém
para pôr fim a um conflito, restabelecer uma ordem ameaçada, comete um
ato grave. O intervencionis mo era considerado grave e chocante. Ele não
acontecia senão em segredo, por lógicas oficiosas de ajuda e de proteção.
Intervir era imiscuir-se escandalosamente naquilo que não nos diz respeito,
como se alguém pudesse fazer-se de árbitro da história, quando era preciso
esperar sabiamente a sanção das armas entre potências menores. Interdizia-
se intervir, mas não se constrangia por apoiar.
Hoje, a evidência mudou: ao contrário, só se quer intervir. Fazer a
guerra é que seria um escândalo. Intervir no Iraque ou em outros países
244 Estados de Violência

não é fazer-lhe guerra. A "intervenção" não é de resto um termo estrita e


propriamente militar. Quem "intervém"? Primeiramente técnicos: quando
um aparelho não funciona mais, uma máquina descarrila, se lhes pede que
intervenham. Eles são chamados para descobrir as causas do não funcio-
namento, para encontrar soluções, consertar e repor em funcionamento.
Exige-se deles eficácia e competência. A intervenção é o fato também dos
agentes da ordem pública: os policiais por excelência intervêm. Não se
dirá que eles vão afrontar delinquentes, fazer-lhes guerra, mas lhes é pe-
dido que intervenham: impor a ordem pela força pública, neutralizar os
fautores de perturbação, prender os criminosos. A intervenção ainda é me-
dical: cirúrgica, psiquiátrica ... Trata-se de cuidar, operar, empregar meios,
fazer tudo para restabelecer a saúde de um paciente. Na mesma ordem
de ideias, sem dúvida, fala-se ainda de intervenção humanitária: socor-
rer refugiados em abandono, ajudar populações na extrema necessidade.
Globalmente, a intervenção se define primeiramente por um princípio de
atividade. Ela não surge da negociação, da discussão ou da deliberação:
ela é decididamente ativa e implica atuação, responsabilizar-se, empregar
meios ... A intervenção supõe em seguida a prioridade de uma ordem. A
intervenção não é nem criadora, nem instituidora: ela conserta falhas de
funcionamento, restabelece coesões, restaura desequilíbrios, redefine har-
monias. A guerra como agressão armada era forçosamente ineficiente: ela
instaurava rupturas na história. É pela guerra, com vitórias e derrotas, que
se definiam as escansões, os cortes. A intervenção, ao contrário, restabelece
continuidades. A intervenção não conhece nem vitória, nem derrota, mas
apenas graus de eficácia e de sucesso. E depois a guerra opunha inimigos
iguais, reconhecendo sua situação de adversários. O interventor, ao contrá-
rio, não é do mesmo nível dos que ele combate. Há uma ordem das coisas,
uma harmonia possível e depois fautores de perturbação, fatores de caos.
O interventor se põe a serviço dessa ordem para neutralizar os perturba-
dores. Ele é agente da ordem mundial. Não há mais inimigos individuais
se enfrentando, mas agentes do universal contra fatores localizados de per-
turbação. A intervenção supõe a ficção de uma comunidade de valores e de
uma ordem boa para todos.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 245

Como o conflito armado, na configuração clássica, não era senão 0


traço de intensidade extrema de um estado de guerra, a intervenção não
é dessa vez senão a ponta armada de um dispositivo geral de segurança. A
intervenção tem por função aumentar o estado de segurança geral do mun-
do. Do mesmo modo que a intervenção, a segurança não é um conceito ex-
clusivamente militar. Ela designa um estado determinado, mas também os
meios próprios para produzi-lo ou para mantê-lo. A segurança no primeiro
sentido é um estado de proteção e de confiança: ausência de perigos. Sen-
tir-se em segurança é saber-se premunido contra certo número de perigos,
seja que se dispõe de meios de defesa próprios para desencorajar eventuais
ataques, seja que efetivamente os perigos estejam suficientemente distantes
para deixar de ser inquietantes. Num segundo sentido, a segurança designa
o conjunto dos meios de proteção eficaz das pessoas, os dispositivos de
ameaças ativas que permitem afastar de maneira contínua as potenciais
perturbações. A segurança protege indivíduos, populações, isto é, no fun-
do pessoas tomadas em sua qualidade de vivos. Se a guerra defendia uma
Pátria, um Povo, uma Ideologia, a segurança não protege senão indivíduos
vivos. Além disso, a segurança pode ainda concernir ao ambiente como en-
voltório desses vivos (segurança ambiental). O domínio próprio de objetos
que a segurança regula, controla, protege continuamente são os indivíduos
vivos. Alimentação, sexualidade, meio ambiente, mas também agressões,
violências, ataques: a segurança protege o indivíduo vivo, na trama de sua
existência cotidiana, contra as agressões que ameaçam sua integridade. O
atentado terrorista, o ataque blindado, a arma química são uma parte des-
ses perigos atentatórios ao vivente, mas pertencem finalmente à mesma sé-
rie que as doenças e as epidemias. A guerra antiga, ao contrário, não punha
defronte senão inimigos mortais. A segurança como regulação dos estados
de violência supõe levar em conta uma trama única comportando todos os
riscos incorridos pelo vivente, do vírus ao atentado terrorista. Michel Fou-
cault dizia em seus cursos no Colégio da França de 1978: toda segurança é
uma biopolítica.
Um sistema de segurança visa eliminar ou reduzir os riscos de agressão
contra um indivíduo vivo. Contudo, o risco não é totalmente o perigo
246 Estados de Violência

ou a ameaça. A pátria em perigo sugere uma lógica de mobilização. Todo


um povo se põe de pé contra um invasor que tenta fazê-lo desaparecer ern
sua identidade cultural, em sua integridade espiritual. O perigo é urgente,
pontual, solicitando as forças vivas de toda a comunidade. Ele exige urn
sobressalto libertador, uma imensa sacudida, arrancando-nos do perigo do
invasor. No centro da ameaça reina dessa vez uma lógica de dissuasão. Ato-
res racionais (Potências, Impérios, Blocos) se enfrentam, dosando o que
custa a cada um ter medo, financiando em intermináveis dividendos o pe-
sadelo de uma destruição recíproca. A ameaça se mede por um cálculo frio,
quase uma ameaça ao mundo. Ao inverso do tempo descontínuo do perigo
ou daquele presente na ameaça, levar em conta o risco supõe uma vigilân-
cia contínua dos sistemas e dos homens, um estado de alerta indefinida. A
paz era paz dos povos e das nações: um estado de aliança e de amizade entre
Estados, decidido do alto, sancionado por tratados, por convenções, assi-
nados e datados. Ela se instaurava, proclamava-se e depois deixava os ho-
mens existir, até o próximo rompimento. A segurança designa um processo
ininterrupto de proteção para os indivíduos, mais que a ausência de hos-
tilidades declaradas entre povos. Enfim, afasta-se um perigo e equilibra-se
uma ameaça, mas, ao contrário, só se podem diminuir os riscos. O risco ja-
mais é totalmente redutível. Ele é horizonte insuperável do vivente, que se
faz, contudo, recuar por técnicas. A segurança ganha de resto em perfeição
quando um sistema geral de proteção é substituído por uma vigilância in-
dividual. Princípio de articulação da proteção sobre a precaução. O sistema
geral de fiscalização deve ser substituído por um estado de vigília em cada
indivíduo, uma tensão permanente: que cada um tome suas precauções.
Quando a defesa do país era confiada aos soldados postados nas fronteiras,
dependia de cada indivíduo contribuir para a segurança de todos por um
estado de alerta permanente. O que a guerra tinha de intensidade mortal
no afrontamento pontual da batalha acha-se diluído numa vigília menor,
mas contínua: investigação de comportamentos suspeitos, atenção às ir-
regularidades, localização de não funcionamentos a priori insignificantes
etc. O risco está em toda parte: no terraço de um café, numa garagem, na
esquina das ruas, no corredor do metrô. A segurança como sistema envol-
Terceira Parte - QUADRO JURIDICO 247

vendo proteção se reproduz em cada um de nós como ethos de precaução.


A obediência introduzia o sujeito político no Estado. A vigilância integra o
indivíduo vivo num sistema de segurança. A guerra exigia a submissão de
rodos. Os estados de violência recomendam a vigilância de cada um.
O mais evidente nessa confusão da economia de violência pode ser de-
signado como princípio de continuidade. O antigo sistema ainda uma vez
não opunha tanto a guerra à paz, mas a segurança (ordem pública interna)
ao estado de guerra (guerra ou paz externas contra os outros Estados). Uma
série de distinções resultava: entre o civil e o militar, o criminoso e o inimigo,
os problemas internos e as relações estrangeiras, a polícia e a diplomacia. A
violência delinquente e a violência das guerras, como seu tratamento, eram
irredutíveis, para nem mesmo falar das agressões de micróbios ou de vírus.
Essas oposições fortes não eram compreensíveis a não ser considerando que
os Estados se compunham de sujeitos políticos ("cidadãos").
A delinquência, o terrorismo ou as doenças surgem ao contrário da mes-
ma racionalidade do risco. As antigas distinções se encontram misturadas e
se instala um continuum único de preocupações e de cuidados. A polícia e
o exército, a diplomacia e as operações privadas de segurança, mas ainda a
medicina e as instituições humanitárias, os serviços de saúde pública e os
laboratórios privados concorrem todos para um mesmo esforço de segurança
do indivíduo (a intervenção militar não é mais então totalmente irredutível
ao humanitário: são missões a serviço da comunidade dos viventes).
Desde então, a segurança esforça-se em vão para se enfeitar com a
retórica dos direitos do homem, ela lhes é profundamente estranha, pois
ela visa um pedestal vital: o indivíduo vivo em lugar do sujeito de direito.
Tomado em sua dimensão de vivente, o indivíduo tem menos direitos ou
deveres do que pontos de vulnerabilidade a superar e capacidades de de-
senvolvimento a melhorar. Uma só comunidade de viventes integrados:
continuum da segurança, do policial ao militar, continuum das ameaças, do
risco alimentar ao risco terrorista, continuum da violência da catástrofe na-
tural à guerra civil, continuum da intervenção, da agressão armada contra
um Estado sacripanta ao socorro humanitário, continuum das vítimas, do
refugiado desvairado à criança maltratada. Ora, essas continuidades di-
248 Estados de Violência

nâmicas são perpetuamente nutridas: integradas pelo fluxo das imagens,


sustentadas pela circulação generalizada dos produtos e dos homens, subli-
nhadas pela piedade loquaz dos espectadores, realizadas pela comum união
das vítimas.
O mundo global parece largamente dominado hoje por uma lógica
dos fluxos: fluxos de mercadorias, fluxos de populações, fluxos de informa-
ções e de imagens. O que se chama "globalização" ou "mundialização" é a
predominância dessa lógica de escoamento dos fluxos transnacionais sobre
os antigos movimentos, concorrendo, pelo ajuntamento de povos, pelo
estoque de riquezas, pela capitalização dos conhecimentos, para a constru-
ção de unidades políticas fortes. População, mercadorias, imagens: todos
esses fluxos doravante estão a serviço de sua circulação mútua, reforçada. A
dialética da intervenção e da segurança assegura a fluidez dos circuitos de
escoamento. Mudanças no Poder: ele era outrora assegurado pelo Estado
que capitalizava um território extenso, riquezas naturais, uma população
numerosa. Hoje é a capacidade de circulação em rede que faz o poder. A
guerra dava outrora consistência (material e imaginária: solidez das fron-
teiras e fama de glória) ao Estado, como unidade política que devia ocupar
seu lugar entre outros. Ela criava e estabilizava ilhas de força. Hoje, a segu-
rança como regulação contínua dos estados de violência assegura a fluidez
dos escoamentos, o Estado não constituindo senão um polo de segurança
entre outros. A intervenção restabelece fluxos interrompidos, inverte mo-
vimentos, reconfigura redes. A ultrapassagem das fronteiras provocava a
guerra. É a interrupção de um fluxo (ou a instauração de um novo) que
decide da intervenção. Novas identidades se criam nestes movimentos, ig-
norando a cidadania.
O Império tinha bordas e o Estado fronteiras. O sistema de seguran-
ça tem margens. Os processos de integração asseguram o funcionamento
conjunto dinâmico dos fluxos de populações, de riquezas, de informações
etc., mas deixam existir, exceto o não integrado. É este não integrado que
concentra estados de violência extremos, mantidos nas margens. Violên-
cias das máfias para o controle dos mercados ilícitos ou saques descarados
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 249

dos miseráveis por bandos de veteranos. O sistema de segurança cria essas


margens, em que o caos respira. O conflito armado é o que se deixa aos
pobres, quando se torna custoso demais mesmo explorá-los. Que eles se
matem nos porões do mundo, dilacerando-se por causa das migalhas do
grande banquete, ou que disputem os mercados ilícitos, contanto que os
grandes circuitos de troca não sejam perturbados e que possam aproveitar
os movimentos de fluxos inconfessáveis. O sistema de segurança se acha,
então, duplamente cercado: por intervenções que constituem a ponta fina
ativa que permite redistribuir redes; por zonas sombrias em que os que se
acham rejeitados encontram com que se devorar mutuamente. As guerras,
num dispositivo clássico, permitiam "refazer a unidade", ocultando as di-
visões de classes, reforçar as autoridades estatutárias, maximizar o poder do
Estado. A segurança traça uma linha de divisão transversal às nações, entre
um sistema assegurando a circulação dos fluxos lícitos e pedestal vital dos
indivíduos integrados, e de outra parte, zonas sombrias em que os "deixa-
dos por contà' se desintegram lentamente.
Os estados de violência não se opõem às guerras como um estado
de natureza caótica com conflitos politicamente estruturados. Eles se or-
ganizam antes segundo linhas indiferentes às antigas divisões. Também o
sistema de segurança não é o do estado de violência, como se podiam antes
opor a guerra e a paz: ele constitui um princípio de regulação interna e
contínuo.
250
Estados de Violência

A imagem contra o direito?

"A guerra na televisão significa o fim


da dicotom ia entre o civil e o militar."
McLUHA N, Guerra e paz na aldeia planetdria

O trabalho do direito passa mal na imagem. Já melhor nas narrativas.


A guerra, vimos, outrora era largamente considerada como fenômen o ju-
rídico. A midiatização da violência altera essa dimensão. A inscrição do
direito na guerra tinha significado primeira mente a estruturação tempora l
da violência: a guerra era considerada como abertura da história, a partir
de um agrupam ento decisivo de violências, ou como escansão clara (de-
claração de guerra e assinatura de um tratado de paz). E depois o direito
impunh a uma série de distinções categóricas: os bons diante dos maus, os
justiceiros contra os malfeitores (guerra de justa causa), o indivídu o irre-
dutível à sua função militar, o criminos o distinto do inimigo (guerra em
forma). A inscrição dos estados de violência contemp orâneos na imagem
(midiatização dos conflitos e dos atentados) e o jogo de disposições que re-
sultam deles alteram a relação da violência no tempo e misturam as antigas
oposições.
A narrativa épica descrevia a guerra em seu desenvolvimento. Nela
deviam estar presentes a lenta ascensão das tropas, o começo confuso da
batalha e depois o instante trágico da decisão: a derrota ou a vitória. Curva
estendida do tempo. Os estados de violência contemp orâneos mostram
duas modalidades irredutíveis: o instante exato e a duração morosa.
O terrorismo valoriza uma pura rasgadura do tempo. O atentado ter-
rorista é extremo no sentido de que o absoluto do horror é logo atingido.
Certame nte, é necessária uma preparação minuciosa, uma logística pacien-
te. Mas quando a bomba explode, quando o avião se arrebenta, quando o
sabre atinge a cabeça, tudo está aí, de uma só vez. A cada vez, o ato mata
tudo o que pode matar. Nem moderaç ão nem exagero, é uma intensidade
clara de violência. Um café que se costuma frequentar, uma sala de estação
bem conhecida, um mercado, uma linha de metrô; e ainda, por que nessa
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO 251

hora, neste minuto, a explosão mortífera? O ato terrorista é um puro ar-


rombamento, que provoca um estupor. E depois a angústia: por que isso
recomeçaria aqui e lá, em tal dia ou em outro dia? O ato terrorista faz no
espaço definido e no tempo regrado dos homens brechas instantâneas, im-
previsíveis. E quando se trata dessa vez de pegar reféns, o terrorismo para o
tempo no desvario da expectativa insustentável.
Tempo sombrio das guerras civis, das rupturas de facções nos países
desestruturados. Então, sempre se está no ano zero. As imagens se chocam
com violência. O que se viu ontem, alhures, assemelha-se ao que se vê
hoje e lá: sempre a justaposição dos mesmos refugiados desvairados que
fogem ao longo das estradas e os mesmos grupos de soldados armados até
os dentes; sempre as mesmas ruínas, as mesmas estradas intransitáveis; os
mesmos comboios humanitários, as mesmas vadiações. Qual data? Sempre
estas imagens já vistas. Ano zero interminavelmente: o tempo parou. O de-
sastre é monótono. Os estados de violência são confusos: nem guerra, nem
paz, nem vitória decisiva e nem derrota final possíveis, mas um marasmo
contínuo, com mudanças de funções.
No quadro de uma guerra justa, matar não é um crime. O inimigo de
resto não tem rosto particular: pego no cesto de vime de uma culpabilidade
geral (guerra de justa causa) ou encerrado numa categoria jurídica abstrata
(guerra em forma). Distinguem-se no máximo perdas, pesadas ou leves,
aceitáveis ou excessivas. Quando os meios de comunicação se apoderam
dos estados de violência, não há mais perdas, mas somente vítimas. O que
vê dos conflitos nas informações televisionadas? Fragmentos de histórias
todas particulares e trágicas: uma velha desvairada, a confusão de crianças,
um homem de olhar sombrio, rostos em lágrimas. Todos os lances, todas
as reivindicações, as justificações de uns e de outros se apagam diante do
espetáculo da desgraça. O sofrimento atinge indivíduos. São-nos mostra-
dos rostos, contam-nos histórias de famílias em luto, recolhem-se teste-
munhos de vizinhos. Princípio de individualização das guerras: instala-se a
evidência perturbadora de que nenhuma situação, nenhuma causa poderia
jamais justificar a dor destas existências arruinadas. O conflito em imagem
Estados de Violência
252

se torna injustificável desde que se filmem as vítimas. Tão injustificável


como um cataclismo. Como a guerra é mostrada, nada a distingue de uma
catástrofe natural. São os mesmos olhos da desgraça. Tremor de terra, ci-
clones, guerra civil: é o mesmo espetáculo da desgraça que se mostra. Os
mesmos movimentos humanitários vêm em socorro dos desastres, quer se-
jam o resultado de guerras ou de fenômenos naturais. Impossível distinguir
sofrimentos, sair da fascinação das lágrimas, para discriminar a justiça das
causas, para discutir regras do jogo de morte, para acusar a fatalidade. O
estado de violência se torna intolerável de ser visto ao vivo na imagem: por
que ele atingiu precisamente os que choram diante de nós? Sem narrativa,
sem comuni dade, um conflito não é mais que um homicídio.
O que os pintores, nos grandes quadros de guerra, gostavam antiga-
mente de representar eram os soldados agonizando. Fixar este momen to
da simples passagem: um corpo de cavaleiro emborcado que pende do
cavalo, o braço ainda estendido, mas o olhar já vazio, o soldado de infan-
taria jaz por terra, a mão posta na ferida e os olhos absortos em nada... A
televisão, mesmo se tivesse os meios, repugna filmar este momen to. Nela
não se vê morrer diretamente. Ela mostra essencialmente sobreviventes,
que sobreviveram ao drama para nascer para a nossa compaixão. Grande
igualdade dos sobreviventes: quem quererá desempatá-los? Não há nem
bons nem maus. Aquele que sobrevive diante de nós por ali é inocente.
As vítimas supõem assassinos. Todos os criminosos, desde que portem
2
armas e ousem servir-se delas. Não há mais que assassinos e vítimas. A
guerra tinha separado os criminosos de direito comum e os inimigos públi-

mas a que ponto


2
Até no caso de atentados suicidas, uma questão surge: o ato é ignóbil,
rado para chegar a estas extremid ades e se matar assim? Depois
é preciso estar desespe
identificação, a
da primeira identificação das vftlmas civis, pode realizar-se uma segunda
Leitura aber-
do autor, a partir de uma leitura falsificada do sacrifício em termos de suicídio.
- porque me acho
rante, tanto as duas lógicas são distintas, quase opostas: eu me sacrifico
me sinto indigno de
digno de morrer (a morte me exalta como mártir). eu me suicido porque
que se apoiam no
viver (a morte me leva como resto). Contudo, para nossos modernistas
não senso irrevogáv el da morte, o mesmo declive
escândalo absoluto do sofrimento e no
a se comover com as vitimas inocente s e a traçar em torno do terrorista um
de afetos leva
halo sombrio de desespero.
Terceira Parte - QUADRO JURÍDICO
253

cos, eles mesmos irredutíveis à sua pessoa singular: desde que um soldado
perdesse suas armas, escrevia Rousseau, ele se tornava de novo um homem
como eu. Aquele que causa medo hoje não tem armas nem fardas. Ele toma
os transportes como eu, comigo, o avião, o metrô, o ônibus. Nada me se-
para dele e quem o identificará melhor que eu, quem poderia tornar-se
sua vítima? É pedido a cada um que faça um filme.
O estado de violência configura-se assim segundo uma lógica da
imagem de sofrimento, que introduz outros princípios que não são os da
guerra justa, confundindo todas as distinções jurídicas: princípios da in-
dividualização da desgraça, do sofrimento injustificável e da compaixão
igualizante.
O estado de violência, como o conceito que lhe é dado aqui por provi-
são, acaba por tomar um teor conceitua! irredutível ao que a Filosofia havia
podido pensar como guerra "pública e justà'.
A guerra tinha sido considerada como formação da violência, supon-
do, desde a troca combinada de morte e a favor do sujeito que nela se
engaja, uma tensão ética: gosto da honra, tenacidade, sentido do sacrifício,
automatismos incorporados à força de exercícios, raiva de acabar com ela ...
O estado de violência contemporâneo transforma essa relação com a mor-
te, impondo sempre mais a lógica de uma destruição unilateral e abstrata
de civis despojados.
A guerra havia sido também construída como violência militar bri-
lhante e visível, fazendo viver, existir, conservar-se e crescer ou manter aos
olhos dos outros estas "unidades políticas" que foram a cidade, o império,
o Estado. Ao mesmo tempo em que ela lhes dava consistência, a guerra re-
velava a precariedade das comunidades históricas. Os estados de violência
contemporâneos, enquadrados, regulados por dispositivos de segurança,
valorizam sobretudo a fragilidade do indivíduo, deixando-nos de presente
uma nova definição da violência como sentimento de minha vulnerabilida-
de de vivente, acompanhada da ideia de uma causa externa. Unívocidade,
então, da violência: violência das doenças como dos atos terroristas, das
catástrofes naturais como das coações autoritárias, dos conflitos civis como
dos crimes de direito comum.
Estados de Violência
254

ncia usten-
A guerra, enfim, havia sido conscituída como es a violê
rada por uma reivindicação d direito. ura do começo testemunhado
a criação do mund o
na aurora da história pelas mitologias que narravam
a considerar a divisão
como vitória de wn deus sobre oun·o, dando assim
ideal, na especulação
feita pela guerra como abertura da história; como
ação das injúria e
moral dos teólogos de uma "guerra justa", fazendo repar
as de uma guerra leal,
puni ndo o culpados; enfim codificação pelos jurist
s, suas separações de-
com suas regras e seus ricos, suas escansões impecávei
criminoso ou o inimi-
ci ivas, suas convenções claras (a guerra ou a paz, o
o civil). Os estados de
go, a paixão belicosa ou o ódio, o oldado armado ou
da desgraça despido),
violência, na forma de sua midiatiz.ação (e petáculo
a miséria das vítimas
valorizam o escândalo do sofrimento individual e
atordoa a imeligência
com imagens cuja presença, instantânea e brifüance,
justificação.
analítica e desencoraja de antemão toda iniciativa de
arece len-
A guerra como ''confüro armado, público e justo" desap
idades e suas con-
tameme, com suas mentiras e suas fidalguias, uas atroc
por proce sos de se-
solações. O furu.ro dos estados de vioPncia, regulados
e de nós, exigindo
gurança prom etend o dimi nuir seus riscos, abre-se diant
te novas esperanças.
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Índice Geral

Introdução: O fim da guerra? ................... ..... ..... ...... ....... ..... ................... 5

Primeira Parte: Forças morais .................................................................. ?


Introdução ........ ........................................... ............... ..... ....... .. .... .. .... ..9
1. Superar .................................................................... ..... ................... 13
A narrativa da força ........................................................................ 14
A coragem como entusiasmo e exposição .................... .. .................. 17
Capaz de promessa ....................................... .. ................................ 21
Servir. ............. ... .... ... ... ...... .... ....... .. ...... .......................................... 23
Meu rival, meu irmão .. ........ .... ........................ .......... ..... .. .. .. .. ........25
A provocação da desgraça .................... .......... .. ..................... ..... ..... 28

2. Suportar ................................................... ............. ... ................... .... 31


Suportar ............ .... .. ....... ........ ..... .... ........ ........... .... ........ .. .. ... ......... 33
Ser senhor de si ........ .. ... .............. ................. ...... .... ... ............. ........ 40
Proteger ............................. .. ... ..... ............ .... ................... .... .. .......... 44

3. Obedecer .......... .... ...... .. ... ..... .... ......... .. .. .............. ...... ... .... ............... 47
Intelectualização (modelo italiano) ................................................. 49
Burocratização (modelo francês) ..................................................... 56
Disciplinarização (modelo prussiano) ................................. ............ 60
Obrigação e submissão versus consentimento e docilidade .............. 66

4. Sacrificar-se .......................... ...... .... ....... ...... .. ........ ..... .. ............... .... 75
Três figuras do sacrifício ............................... ..... ................ ...... ... .... 7 6
Reversão do sacrifício ................. ..... ............................. ... ............... 83
5. Acabar de vez com .......................................................................... 87
A orens1va
e · · nao
" a mais ~ po der " ..... .... ......... ...... ... ....................... .88

O inimigo absoluto .................... ........................ ....... .. ..... ........ 98


A mobilização total ................................................................. 103

Segunda Parte: Lances políticos ........................................................... 109


Introdução .............................................................. .......................... 111

6. Afirmar seu poder ............ .. .......................................................... . 113

7. Manter um poder ................................................................ ......... 123


Princípio de exterioridade ....................................................... 123
Princípio de unidade ............................................................... 134
Princípio de obediência .................... .... ....... ........................... 138
Princípio de equilíbrio .............. ............. .... ...... ... ....... ............. 143

8. Mostrar e sentir sua força ............................................................. 147


A má consciência da força ...................... ............................................ 148
A demonstração de força ... ......... .. ........................... ........................... 151
Como se sentir forte ........................................................................... 154

Terceira Parte: Quadro jurídico ........................................................... 159


Introdução ..................................................... ..... ... ...... .......... .. ......... 161
9. A guerra fundadora de direito .... ....... ........ .... ............. ................. 167
A força e a justiça .................................. .................................. 167
O Estado de direito e a guerra ................................................ 169
Uma imagem e três princípios ................. ........ ............. .......... 174

10. A guerra legítima ....................................................... .. ............... 179


O escândalo absoluto da guerra .............................................. 180
A necessidade de uma justa causa ............................................ 184
A dimensão punitiva das guerras justas ................................... 188
A procura de uma boa paz .......... ................ ............................ 198
11. A guerra leal ......................... .... ...... .... .... ... ... .. .. .... ...... ........ ......... 201
A soberania do Estado ....................... ....... ....... .... ... .... ............ 201
"A guerra solene e públicà' ..................... ... ........... ............... .... 204
''A guerra justa dos dois lados" ................. .... .... ...... ............ ..... 212
''justus hostis" ........................................................ ....... ........... 216
Tratado de paz contra capitulação ......... ............... .... .. ... ... ....... 222

Conclusão ..... .. ... ............. ................................... ..... .......................... 227


Estados de violência .................................. ... ......................... .... .... ...... 227
Desmoralização? ......................... ...... ... ...... ........ ........ ....... ...... ... ... ...... 233
Despolitização? .... .......... .............................................................. ....... 241
A imagem contra o direito? ................................................... .............. 250

Bibliografia ................... ..... .. ................................. ........ ... ............ ... ... 255

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