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FALEAFA
A filosofia erLtre os árabes
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Editora Palas Athena
{
Título original: Falsaftt- a.filosofict entre os iirctbes
- u.rnL hercntçct esqueci(ld -
Copyright O Miguel Attie Filho, São Paulo, 2002
A885f
cDD-18r.07
2002
Surraário
Tabeladepronúncia.... 12
Agradecimentos . . 13
À guisa de apresentação . . 17
Introdução 2I
õ. N, lt/ar. nasc«'ntc
AArábiapré-islâmica ....... 103
O Profeta Muhammad 106
O Alcorão 110
A expansão muçulmana ll}
Os Omíadas 116
OsAbássidas.... ll7
Os primeiros intérpretes 123
O kalam 125
o']ldL*
4" llr*uo*o r r*llr*o aLúé maL Chir.*"""" l\ recepçáo
Uma herança do saber 131
Primeiras traduções 135
HunayneaCasadaSabedoria.... 138
De Aristóteles a Aristütãlis. . . 144
De Platão a Aflatün 150
De Plotino a Aflutin - o "mestre grego" 154
Outras presenças 160
5. A [*nt*/h u ,t lk,lãuif*
Al-Kindt, o anfitrião 165
Al-Fãrãbi, o inventor 195
Ibn Stnã, o sistematizador. . 226
Al-éazãll, o batedor 266
Ibn Ru§d, o reformador. . . . . 300
Traduçõesparaolatim. .....344
Arecepçãodosárabes-filósofos .....349
Maimônideseafalsafa ......354
Alberto e os medievais latinos 357
Bibliografia 365
1l,L*súra.ções
Patio dos leões, séc. XIV d.C. Alhambra, Granada '' ' 39
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A io*1r.r"ú,â,acia o[, osú*cn. on"* Íàlu*Í*
Tal julgamento não se pode aplicar ao lado oriental medieval, pois neste,
o que se viu, permite considerá-lo um dos períodos mais luminosos da
História: grandes avanços foram realizados em praticamente todas as
traduz por amizade, porém sua raiz original remete à noção de auten-
ticidade, sinceridade, veracidade e outros termos afins. E, taTvez,justa-
mente pelo fato de uma amizade não poder prescindir de todos esses
atributos é que, na língua árabe, o termo "amizade" provém daqueles
primeiros conceitos. Por fim, a rdéia de amor, no sentido da paixão e da
inclinação do desejo, encontra sua melhor tradução no termo 3 .:.. (i.íq).
Ibn Sinã, por exemplo, ao fazer uso desse termo não o restringe mera-
mente ao sentido material da atração carnal, mas procura espiritua-
lizá-lo no sentido metafísico do movimento da hierarquia dos seres em
direção à causa final. Nesse sentido, o termo 3 :, " ('Áq) guarcla tam-
bém uma certa proximidade com o conceito de eproç (eros) e, no vo-
cabulário filosófico é, pois, o que também mais se aproxima da idéia de
QrÀrcr (philia).
Em relação ao termo ooQrcr (sophia), há três termos na língua ára-
be que estão relacionados ao sentido de sabedoria, de ciência e de
conhecimento. São eles: il. ('ilm), ür.'- (ma'rfo) e Ã-S- (hikma).
Esses três termos possuem um uso freqüente na linguagem filosófica
entÍe os árabes. No primeiro caso -+ ('ilm) -, sua melhor coÍres-
pondência é o termo ciência. Com mais freqüência foi esse o termo uti-
lizado paratraduzir a noção grega de eTitoÍl'lptq @pisteme). No voca-
bulário da falsafa é com + ('ilm) que se expressa, por exemplo, a
noção de "ciência divina", "ciência da nattreza", "ciência da alma",
"ciência da lógica" etc. Nos dias de hoje, grande parte da denominação
das ciências modernas e suas variantes como, por exemplo, Biologia,
Sociologia, Economia e Ecologia, é antecedido pelo termo l- ('ilm).
Ar-cuNs rNrrnómos
3I
do bem"z. Mas, num outro sentido, há uma certa nuance nesse termo: ao
analisá-lo, Goichon aproxima-o do termo grego Yvootç (gnosis). Assim,
por exemplo, ao se predicar alguém com o adjetivo .-e1Jr, ('arífl,pode
se indicar o caráter do conhecimento do iniciado, do que tem acesso ao
saber esotérico, oculto.
Por fim, é mais propriamente com o teÍmo 4^S^ (hikma) que
conhecimento - Ã-ir,-
(ma'rfo) -. Porém, enquanto os dois primeiros
denotam um tipo de saber mais indicativo, o espectro mais amplo do
conceito 4-S- (fuikma) é o que mais se aplica no caso do vocabulário
filosófico para designar a extensão do conceito "sabedoria". Por essa
Íazáo, às vezes, {-(- (hikma) também foi usado como sinônimo do
próprio conceito de filosofia. Se os antigos gregos chamavam um homem
sábio de ooQoç (sophos),em árabe ele seria denominado (hakím).
é-
Vocábulos como "governador", "jtiz", "árbitÍo" e outros, também de-
rivam da mesma raiz, remetendo a um sentido mais abrangente do
conceito de sabedoria.
segundo suas terras e suas nações. Esses foram os clãs dos descendentes
A Rr-osorra. ENTRE os ÁRases - Fnmepa
36
4. Gênesis,X,3I,32.
5. Cf. LEWIS, B. Os árabes na História, pâ9. U,
AucuNs rNrnótros
37
países islâmicos. Isso quer dizer que "árabe" e "islâmico" não são
sinônimos, assim como "árabe" e "muçulmano" também não o são: há
muçulmanos que não são árabes e árabes que não são muçulmanos. Nesse
sentido, os árabes vêem a si mesmos como uma grande nação. Do mesmo
modo que os países da Europa vêem a si mesmo como uma unidade, os
árabes entendem ser uma nação nos limites daqueles que "falam a língua
árabe e são sensíveis à memória da glória árabe passada"6, possuindo
uma divisão apenas geográfica e política que teve, entre outras causas, o
próprio coloni alismo europeu.
Na língua ârabe, os temos Islam e "muçulmano"
lÍngua árabe, muçulmano" derivam de uma
mesma raiz: (salima). A idéia geral aplicada a esta raiz en-
71-
globa uma série de conceitos como "par", "saúde", "benevolência",
"integridade", "proteção", "resignação", "hospitalidade" e outros tantos
ligados a um ótimo sentimento. O termo (Islam), derivando dessa
7\-l
raiz, se traduz no sentido de confiança em Deus, resignação a Deus,
conformação a Deus ou submissão a Deus. A adjetivação desse termo
resultou em (islamiy) que se traduziu por "islâmico". Logo,
.e-)-l
aquele que aceita o princípio contido no termo
7\-l (Islam) é um J*
(muslim), termo que se traduz por "muçulmano". Apesar de não haver
uma regra rigorosa, o termo "islâmico" geralmente é usado no sentido
das idéias e dos ideais contidos no Isldm, ao passo que o termo "mu-
filosófico.7
parece inexato e estimo ser preferível (' '.) "filosofia muçulmana" que
a Idade Média já não mais cabia nos dias atuais. Mesmo reconhecendo
que o profeta Muhammad era árabe, que a língua da revelação foi o
árabe e que, ao menos na base do islamismo, o elemento árabe foi
preponderante, Corbin aludiu ao fato de que o termo "/àrabe" teria se
alterado profundamente, significando um conceito étnico, nacional e
político preciso, com o qual não coincidiriam totalmente o conceito
religioso Islam nem os limites do seu universo.
No outro extremo, numa posição preferencial pelo termo "filosofia
árabe" , destacou-se o argumento de T. Hussein que lembrava que a maior
parte dos textos foi escrita em árabe. Além disso, segundo ele, a ortodoxia
religiosa dos falasfo foi fortemente contestada e seria um paradoxo
qualificar de "muçulmana" ou "islâmica" uma filosofia que se chocou
frontalmente com certos dogmas da religião. No mesmo sentido encon-
trou-se o argumento de Schacht favorável ao termo "filosofia ârabe"
acompanhado pelo termo "ciência árabe", que era aceito sem muitas
restrições. Nesse caso levou-se em conta que a língua árabe foi o meio
de expressão essencial no desenvolvimento verificado tanto na filosofia
como na ciência. O próprio Anawati lembrava que a língua, não só do
Alcorão como do comércio e da cultura, foi o árabe, adotada por muitos
povos dominados pelo Islam. No entanto, apesar dos esforços, a con-
clusão de Anawati foi desalentadora:
significado mais focal e não pode ser considerada ou dita de toda for-
ma de manifestação do pensamento mas, ao contrário, é um caso
específico e particular. É dessa maneira que Badawi entende "filoso-
fia" quando escreve sua filosofia no Islam. Nessa obra não
HisÍória da
lFiI.*rfi* . lforn.gr*
Sendo que a falsafa foi, em sentido estrito, a manifestação do
pensamento filosófico no Islam, parece sensato procurar esboçar alguns
limites que a diferenciam de outras linhas de pensamento, também
surgidas após o estabelecimento do Alcorão.Pode se especular que dentre
as inúmeras posturas adotadas pelos homens diante de um texto sagrado,
três parecem emergir com grande força: a teológica, a mística e a filo-
sófica. No caso do Alcorão, não foi diferente. Se verificarmos com
atenção as inúmeras manifestações do pensamento no Islãm - adotando
A rtLosona ENTRE os ÁRABES - Famepr
48
14. Cf. CARRA DE VAUX. Les penseurs de I'lslam. Paris: Paul Geuthner, l92l,vol.
IV "A escolástica, a teologia e a mística. A música."
15. Cf . Grande dicioruirio ltrroussse cultural da língua portuguesa. São Paulo: Abril,
1999, pâ9. 865.
Ar-cuNs INrnótros
49
=
-<
A nrLosopre ENTRE os Ánasss - Famape
50
que discursa" ou "aquele que fala". Geralmente são citados pelo plural:
(mutakallimun). Logo após o estabelecimento do Alcorão,
"rJÍ-"
e mesmo antes das traduções das obras filosóficas gregas, o kalam jâ
era uma realidade no mundo islâmico. Uma de suas características foi
ter aplicado o raciocínio e a argumentação filosófica aos dogmas do
islamismo. Nesse sentido, a abordagem do kalam se aproximou bastante
do sentido que damos ao termo "teologia" tomando por base a experiência
do cristianismo. Ao se falar em teologia no Isldm, é aos mutakallimun -
e não aos falasrfa - que se encontram as referências. Desse modo, os
representantes do kalam, enquanto se basearam na revelação como ponto
de partida para a reflexão filosófica, podem ser considerados os mais
próximos dos pensadores cristãos dos primeiros séculos do cristianismo.
Por isso, náo é razoável estabelecer uma identidade enl.re afalsofa e o
filosofia medieval cristã. A falsafa não tem precedentes e não
caráter da
mais nobre que é Deus, que Ele seja exaltado, e das causas que vêm
depois dele. É também o conhecimento supremo das causas do todo. É
ciência divina.re
Não é por acaso que a "doutrina secreta", cuja existência tem sido
uma de suas características mais marcantes. Talvez, até pelo fato de ser
mais poesia que demonstração lógica, é que o sufismo é mística e a
falsafa é filosofia. É importante notar que o objetivo do sufismo, não
sendo a especulação racional e a demonstração pela lógica, é mais um
convite à experiência do êxtase na união com Deus.
Inúmeras passagens do texto sagrado dos muçulmanos lidas pelo
sufismo, no sentido da experiência mística colocam, por um lado, o sen-
tido exotérico do texto revelado no Alcorão, expresso pela 1ei exterior que
organiza e determina os direitos e deveres do muçulmano e, por outro
lado, o sentido esotéÍico, que mostra o caminho para o místico se unir à
realidade divina, cumprindo a realizaçáo última: "aniquilar-se nel 4".24
23. KIELCE, A. O sufismo. São Paulo: Martins Fontes, 1986, pág. 15.
24. Ib., pá9.9.
ALGI]Ns INTRÓIToS
57
por Ele. rí
Carta VII:
cussões atentas, onde a inveja não dite nem as perguntas nem as respostas,
25. éJ-I SHAH, S.I. Princípios gerais do sufismo. São Paulo: Artar, 1987, pág.25.
26. PLATÀO. Cartas.Lisboa: Estampa, 1989,pâg.71 .
LT** n oo^*ç* o]1. **ilr,"o
As poir-oinas ún,a,iluções
3. Ib., pâ9.32.
4. Ib., pá9.33.
"loe auscan o sABER arÉ se Ctttxe..." A nrcneçÀo
t37
5. Ib., pâg.34
"Ior suscen o SABER arÉ xe CurNe..." A ngcEpcÃo
139
6. Ib., pág.36.
A nlosople ENTRE os ÁRaues - Fenrrprr
140
Hunayn acrescenta ainda que esse era seu hábito para tudo o que
traduzia para seu mecenas Muharnmad Ibn Müsã, paÍa quem Hunayn
fez, também, uma tradução para o árabe da referida obra de Galeno. Os
interesses principais de Hunayn parece terem sido relacionados com a
tradução das obras médicas e estas, entende-se que traduziu pessoal-
mente. Deve-se-lhe a tradução de quase todos os escritos de Galeno e de
Hipócrates que continham grande parte de toda a tradição médica da
Antiguidade, e que, em sua maioria, está conservada em árabe até os
dias de hoje. Quanto às obras filosóficas de Galeno, Hunayn traduziu,
por exemplo, O tratado sobre a demonstração, Silogisnros hipotéticos, e
algumas paráfrases das obras de Platão como Ás leis, República, Tinteu
e Pannênides, dentre outras.
Além do trabalho de tradução, Hunayn compôs alguns tratados
próprios tais como A gramática grega, A verdade das crenças religiosas
e uma História universal. Diferentemente do que aconteceu no período
inicial das traduções, o trabalho de Hunayn não era um trabalho isolado,
mas ele foi auxiliado por uma equipe de tradutores igualmente com-
petentes que, sob sua orientação, também entrariam para a História. Os
7. Ib., pág.37.
::,t.'r'.,._.\
r.;,r,...r.1.: rI 1...r tr,.nrrl:,,!i...i
..r.).r,-.rr.d.it/..l
;'§!|i.i;ai:t j.i::r::r.
A prr-osona ENTRE os Ánengs - Felsem
142
três mais importantes foram seu filho lshãq Ibn Hunayn (m. 911 d.C.),
seu sobrinho Hubai§ e seu discípulo 'Isa Ibn Yahia.
Muitas obras de Aristóteles foram traduzidas por esse grupo sob a
melhores que muitos manuscritos que chegaram até nós, como pelo fato
de os tradutores se valerem de comentários de Alexandre de Afrodísias,
Simplício e Themistus - dentre ouÍos -, textos que, por vezes, se
perderam em grego e só foram conservados em traduções árabes. O
interesse pelas traduções das obras de Aristóteles sucedeu as traduções
de ordem prítticacomo, por exemplo, os textos médicos e astronômicos
realizados no primeiro período. Isso se deveu ao início do interesse pela
especulação filosófica, que se verificou durante o período Abássida, e
e matemáticas.
Pode-se entender que o movimento do corptts aristotélico, a partir
das traduções de seus textos para o ítrabe, teve três momentos distintos.
No primeiro momento, sua filosofia foi recepcionada; no segundo,
iniciaram-se algumas reações contra suas teses, principalmente por parte
dos teólogos islâmicos e, no terceiro momento, houve uma contra-reação
em defesa da filosofia aristotéIica, na tentativa de reforma da falsafa.
Na curva ascendente das traduções, da recepção e da internalizaçáo, a
'I»e euscnn o sABER erÉ N,r CHrNa..." A nrcsnçÀo
t47
9. Ib., pás.87.
A nlosorla ENI-RE os Áxnass - Falsar,q
150
Ménon.
As obras de Platão também são citadas por outros autores que delas
tinham conhecimento. No caso da República, por exemplo, sabe-se por
Ibn Ru§d que existiu uma tradução em árabe que ele mesmo parafraseou.
A paráfrase elaborada por Ibn Ru§d chegou até nós conservada, por
uma tradução em hebraico. "De todo modo, nenhuma tradução desses
diálogos nos chegou ainda. O número de passagens autênticas citadas
pelos diferentes autores é bastante incipiente; elas não cobririam sequer
uma dezena de páginas."11 Por outro lado, o número de obras apócrifas
atribuídas a Platão é imenso, ultrapassando em muito o número das obras
atribuídas a seu discípulo Aristóteles, e podem ser divididas em obras
políticas, morais, de magia e de química. Algumas delas são:
- inspirado na República e talvez com-
Os testamentos gregos
posto por Ahmad Ibn Yüsuf; Platônica - compilação de sentenças
políticas e morais; Epístola de Platão, o Divino -para refutar aqueles
que dizem que o homem desaparece depois de sua morte; Epístola de
de outrem.
daTeologia tomadas das três últimas Enéadas não são traduções literais
mas 'paráfrases', o que nos inclina a creÍ que o autor imediato daTeologia
é Porfírio, o discípulo de Plotino e editor das Enéadas".ts
16. Ib., pá9. 47 . Ahmad era um dos filhos do califa Al-Mu'tasim que reinou entre
833 e 842 d.C.
"lpe suscnn o sABER nrÉ Na CHtNe..." A necepÇÀo
l5z
Dado que já ficou claro que é verdade que a alma não é corpo,
que não morre nem se corrompe nem fenece, mas que é persistente,
perpétua, queremos investigar também a seu respeito como se
O*úoas n)nesemçes
ter encontrado algum eco entre alguns autores árabes, muitas polêmicas
contribuíram para o término dessa tendência.
Uma última palavra sobre o conjunto do saber antigo que constituiu
o material básico sobre o qual operaram osfalasifa deve consideraÍ que,
sepor um lado, os apócrifos pareciam comprometer o desenvolvimento
dessa nova etapa da filosofia, por outÍo, é bom lembrar que mesmo os
textos atribuídos corretamente aos seus autores foram lidos, quase
sempre, visando à construção de um novo sistema filosófico. Desse modo,
aatribuição dos apócrifos permitiu qte osfalasla estivessem diante de
um conjunto de doutrinas vistas sob um aspecto bastante original,
resultando em sistemas e abordagens que mesclaram de modo harmônico
teses que a nós poderiam parecer excludentes.
Al-Fãrãbi, considerando que o saber se havia iniciado nas teras da
i
Mesopotâmia, transladado aos egípcios, depois aos gregos e por fim aos
árabes, colocava-os como herdeiros legítimos e continuadores dessa
tradição. Isso também é verificado pelas palavras de Al-Kindi que,
entendendo que o papel do sábio é mais que tudo a busca pela verdade,
agradeceu aos seus antecessores e, como que tomando-lhes o bastão,
conclamou os sábios afazerem a filosofia "falar em árabe". Some-se a
isso o fato de que o momento efervescente de uma cultura nascente the
conferiu força para entender a si mesma como a "continuadora da
verdade", inclinando os sábios a considerarem o acolhimento das obras
antigas como um conjunto herdado. Assim, a leitura dos textos se fez
tencionando dar continuidade ao que fôra anteriormente conquistado.
Nesse quadro, o foco esteve mais sobre a "verdade" que sobre os autores
que a pronunciaram. Tais peculiaridades distinguiram afalsafa de todas
as tradições anteriores, assim como de tudo o que viria a ser realizado
posteriormente.
AI-K;^dlí,' *^lliúoião
tem necessidade de outro para subsistir. Implícito está que aquilo que
não necessita de outro para subsistir não tem causa e é, portanto, eterno.
Outro termo correlato é "cÍiar"i esse, que tem mais familiaridade com
a religião revelada que propriamente com a filosofia grega, é definido
por Al-Kindi como sendo o ato de fazer com que algo apareça a partir
do nada. Esse modo de entender as relações entre Deus e o mundo é
completada com o item "Questão sobre o Criador". Neste, Al-Kindi
inicia perguntando-se a respeito do modo como Deus está neste mundo.
Sua resposta é que o Criador está no mundo assim como a alma está
no corpo. Do mesmo modo como nenhuma parte do corpo pode subsis-
tir sem a intervenção da alma, assim também a ordem do mundo visí-
vel se realiza necessariamente pela mediação e direção do mundo
A rtts,cr,\ E os Ell,1s1l;á
169
5. Ib., pág.24.
6. Ib., pâ9.19, v. 56.
A. muurl E os ,qI,{T/FA
tz5
coisas, não é possível que alguém obtenha tudo que deseja, e muito me-
nos que esteja a salvo de perder as coisas que ama. Por essa tazáo, admi-
tamos que a estabilidade e a permanência faltam neste mundo e só são
encontradas no mundo do intelecto que, inclusive, podemos contemplar.
Desse modo, se não queremos perder nada do que amamos e nem
deixar de obter o que desejamos, devemos nos voltar ao mundo do
intelecto e fazer com que as coisas que amamos ou desejamos sejam
dele provenientes. Se isso fizermos, estaremos certos de que nada
deixaremos de conseguir e nada do que consigamos nos será levado,
visto que as coisas que alcançamos no intelecto permanecem firmes
e sem alterações, ao passo que aquilo que nos toca no mundo sensível
é passageiro para todos os homens e ninguém pode deter sua coÍrup-
ção, nem pÍeservar tais coisas paÍa sempre. No mundo, coisas que foram
suaves transformam-se em coisas ásperas, perturbadoras, depois de te-
rem sido tranqüilas, e se mostram em retrocesso depois de terem pareci-
do um avanço. Mas isso tudo nada mais é que a Natureza em sua pró-
pria nailtreza.
Ora, se quiséssemos que coisas que se corrompem não se coÍrom-
pam, que coisas que avançam e retrocedem apenas avancem e que aquilo
que não cessa de se transformar torne-se estável, estaríamos então
querendo danatureza o que não é próprio dela e "quem quer o que não
está na nattrezaquer o que não existe. Quem quer o que não existe está
necessitado das coisas que anseia e aquele que necessita das coisas pelas
quais anseia é um indigente".8 Aquele que deseja as coisas que são
passageiras pode ser considerado um homem infeliz, ao passo que aquele
cuja vontade se cumpre é um homem feliz. Aspirar à felicidade e nos
guardar de sermos desgraçados é possível se fazemos com que nossa
vontade e aquilo que desejamos estEam além daquilo que nos chega
pelo mundo sensível, mutante e instável e, também, se não nos en-
tristecemos com aquilo que nos escapa do mundo sensível. Conduzir-se
assim é ter as qualidades dos reis excelsos e não da gente rude e ávida
pelo que não permanece. Os reis não vão com avidez ao encontro daquilo
que lhes chega e tampouco saem para acompanhar aquilo que se vai
mas, ao contrário, gozamdaquilo que lhes chega de maneira desapegada,
assim como se desapegam daquilo que se vai.
Em todas as circunstâncias é mais sensato pensarrnos que "se não
existe o que queremos, devemos querer o que existe e não preferir a
persistência da ÍrisÍeza no lugar da persistência da alegria. A quem se
entristece com a perda das coisas que se perdem assim como com a
necessidade das coisas que se necessita, a este jamais desaparecerá a
tristezaporque, em todas as situações da vida, perderáobjetos amados e
se-lhe escapará aquilo que busca".eVisto que a alegria e a tristezanáo
podem coexistir no mesmo instante na alma, devemos fazer com que
nossas almas estejam satisfeitas em todas as circunstâncias, mediante
uma condução correta que proporcionamos a ela. O que é detestável e o
que é amável sensivelmente não o é por natLLÍeza, mas é algo que provém
do costume e do uso. Al-Kindi exemplifica isso lembrando que vemos
homens viciados em jogos de azar, beberrões e ladrões que, pelo hábito,
se alegram com suas atitudes reprováveis. Em nossa senda devemos
conduzir nossa alma aos costumes excelentes e acostumá-la a isso até
que forjemos um caráter que tome a vida agradável durante o tempo de
nossa existência.
Além disso, devemos levar em consideração que aquilo que nos
origina atnsteza ou é uma ação nossa, ou uma ação de outro. Ora, no
9. Idem.
A rrlosona ENTRE os Ánesgs - Frr-srra
t78
caso de sermos nós próprios o agente daquela ação que nos entristece,
desde que paremos de fazer tal ação, não mais nos entristeceremos. Se,
por outro lado, a ação provém de um outro, pode estar em nossas mãos
afastá-la, e é o que devemos fazer quando é esse o caso. Mas se, de outro
modo, não depende de nós afastar tal ação, não devemos nos entristecer
antecipadamente pois talvez, antes que aconteça aquilo que nos entristeça,
tal ação seja afastada por um motivo que não depende de nós e essa
hipotética tristeza jamais nos atingirá. De todo modo, não devemos nos
entristecer pois "quem entristece sua alma a maltrata e quem a maltrata
é um ignorante, injusto até não mais poder, porque causou um dano à
sua alma. Se houvesse feito isso com outro, seria ignorante e injusto,
mas ao fazê-Lo consigo mesmo o é ainda mais, e não deveríamos estar
contentes em serrnos os mais ignorantes, os mais grosseiros e os mais
inj ustos".ro
Porém, como não podemos nos manter totalmente isentos de es-
tarmos tristes e como faz parte da natureza tropeçarmos na tristeza,
devemos ao menos ter cuidado em reduzir o tempo em que ela dura em
nós. Um dos meios para isso é nos lembrarmos de nossas tristezas
passadas e de çomo elas se foram, ou então lembrarmos das tristezas e
consolações que vimos nos outros e isso, para nós, será um consolo.
Lembremo-nos de que muito daquilo que desejamos também outros o
desejaram sem conseguir obter, assim como muito do que perdemos
outros, também, perderam e quantos deles podemos ver hoje que não se
entristecem mais com seus infortúnios mas, ao contrário, podem viver
com alegria. Não nos entristeçamos, pois. Aqueles que perderaln um
filho ou quo não o têm encontram muitas outras pessoas em situação
semelhante. Em todos os casos há os que estão tristes e os que não estão
o "cínico"r4-em que alguém teria perguntado a ele: "Por que não estás
triste?" ao que teria respondido o filósofo: "Porque não possuo nada
cuja perda possa me entristecer".ls Al-Kindi também observa que o
homem, à exceção das outras criaturas, apesar de possuir discernimento,
quer possuir muitas coisas das quais não tem necessidade nem para a
sua subsistência, nem para o bem estar de sua vida. Por essa razão, diz-
se que aquele que se ocupa em aumentar as coisas que lhe são externas
mancha seu viver com a vida passageira, são muitas suas enfermidades
e não desaparecem suas dores.
Em seguida, Al-Kindi expõe uma metáfora da vida como sendo
uma travessia de barco que todos fazemos. Essa metáfora, de inspiração
estóicar6, aparece nas palavras deAl-Kindi a partir da afirmação de que
a vida se assemelha àque1e barco que reuniu muitas pessoas para
atravessarem o mar, a fim de se instalarem numa terra distante. Durante
a viagem, o capitão do barco levou todos a um porto seguro para solu-
cionarem alguns problemas e, em seguida, continuarem a viagem. Nessa
parada ocorreu que alguns passageiros desceram do barco, resolveram
aqueles assuntos necessários e voltaram ao barco sem que tivessem
desviado sua atenção com nada além da resolução daqueles assuntos.
Esses passageiros ao voltarem ao barco que estava vazio escolheram os
melhores lugares para seguir viagem. Ocorreu que ouros passageiros,
ao descerem à terra, detiveram-se a contemplar os prados, as flores, as
árvores, os pássaros e as pedras. Ao voltarem estavam um pouco atrasados
e ocuparam lugares mais apertados no barco, visto que os outÍos haviam
a sair dali. Ora, isso certamente lhe custaria muito, mesmo que fosse
para o aperfeiçoamento de seu ser. Suponhamos que esse mesmo alimento
fosse transportado para os testículos e, convertido em sêmen, fosse levado
ao útero. Isso talvez o pusesse triste. Muito mais triste, porém, seria
para ele se tivesse que voltar aos lugares anteriores e aos estados ante-
riores. O mesmo aconteceria quando esse sêmen, já desenvolvido, che-
gasse a este nosso mundo: inicialmente se entristeceria, mas depois não
quereria trocaÍ isso que vive pelo seu retorno ao útero. Do mesmo modo,
estando neste mundo, vive a angústia de ter de abandoná-lo. Se apenas
nos voltarmos às coisas deste mundo e nos apegarmos em demasia às
coisas dos sentidos, entenderemos que a morte é um mal. Participar das
possessões sensíveis deste mundo não é um mal. Um mal é nos enrai-
zarrnos nelas e nos entristecermos, se elas se tornarem aflições que
introduzimos em nossa alma. Devemos ter em conta que, muitas vezes,
ao não possuírmos os bens exteriores que os reis possuem, também náo
possuímos aquilo que acompanha tais posses tais como a cólera e a
reunido nas épocas passadas - era após en - até esta nossa época,
la de onde quer que venha, ainda que seja de povos e de raças distintas
e distantes de nós, pois não existe nada mais caro do que a verdade
por si, não cessa jamais, não se transforma em um ser mais perfeito e
simples e não possui nem rnaÍérta nem forma, Ele é o não causado, é
23. Idem.
24. Idem.
25. Ib., pág. 135.
A nr-osona ENTRE os ÁnasEs - Falsnrn
190
26, Idem.
27. O nome "Pitágoras" aparece de modo confuso no manuscrito. Cf. GUERRERO,
op.cir.. pág. 136, n.6.
28. GUERRERO, op. cit., pâg. 137.
A T,TLSITs F, oS rsLÃsIFA
r9t
possuem todas o mesmo destino pois a ascensão das almas a esse lugar
depende de sua puÍeza. Em etapas sucessivas de ascensão purificadora,
algumas almas chegam até a esfera da Lua, depois se elevam até a esfera
de Mercúrio e assim seguem sucessivamente elevando-se às esferas dos
astros superiores, perrnanecendo em cada uma dessas esferas por algum
tempo. Quando as almas estão totalmente despreendidas de suas ligações
com o mundo damatérta e do sensível, quando não possuem mais as
imagens e as coisas próprias aos sentidos, então essas almas se elevam
finalmente ao mundo do intelecto. atravessam todas as esferas e per-
manecem no lugar mais nobre onde nada se oculta e onde a luz do Criador
manifesta as coisas que são verdadeiras. "Todas as coisas lhes são claras
Altíssimo e a Seu estado, quando separado do corpo. Diga aos que choram
- diz ele - que devem chorar e aumentar seu pranto por quem descuida
de sua alma e se excede entregando-se aos prazeres vis, baixos, depre-
ciáveis e falsos, que os fazemadquirir o mal e os inclinam a assemelhar-
se às bestas; por quem deixa de meditar sobre a nobreza da alma e a
quem deixa de se dedicar a "pudficaÍ sua alma na medida do possível.
A purificação verdadeira é a da alma. não a do corpo. (...) Oh! homem
ignorante! Não sabes que tua permanência neste mundo é como um
relâmpago e que logo chegarás ao mundo verdadeiro e permanecerás
por Al-Kindi não é fiel a nenhuma das teses dos filósofos gregos em sua
totalidade. Trata-se de uma sobreposição de alguns elementos aristo-
télicos. Assim lemos: "E posto que o essencial do que disse Platão a
esse respeito é o mesmo que manifestou seu discípulo Aristóteles, então,
33. A tradução deste último termo é discutível e pode ser encontrada também como
"manifesto", "emergente", ou "segundo" . Cf. FAKHRY, op. cit. pág. ll0 e
GUERRERO, op.cit. pág. 150.
34. Ib., pág. 150.
35. Ib., pág.151.
A nlosorra ENTRE, os ÁneeEs - Fe.r-sapa
194
com que esta forma inteligível e a alma se tornem uma só coisa. Al-
Kindi parece entender desde o início que o intelecto agente está separado
do homem e assim, separado, será um dos pilares que inspirou os sistemas
posteriores na questão da transcendência do intelecto agente. Na medida
em que a alma é atlahzadapor essas formas que lhe chegam do intelecto
agente, a aquisição é nomeada intelecto adquirido. Adquiridas, as formas
podem ser evocadas quando a alma quiser delas dispor, e esse é o intelecto
em hábito. Pode-se entender que o intelecto demonstrativo fosse pro-
priamente o exercício do intelecto em hábito.
Muitas outras contribuições trouxe A1-Kindi ao universo filosófico
dos árabes. Mesmo que, em muitos casos, tenha realizado um trabalho
mais de compilação de reunião de idéias consagradas, deve-se lembrar
que esse papel foi o que o momento histórico do Islam permitia que
fosse realizado por não terem tido, os árabes, uma tradição filosófica até
então. Se recepcionar foi a missão de Al-Kindi, ele a realizou em to-
da sua plenitude, incitando os homens de seu tempo a buscar a sabedoria, i
i
ou seja, a filosofar.
I
l
A nu,qn E os /.ár,{s/81
I95
l\n:lFa"an i, . imvenúon
3. Ib., pág.575.
A RLosorra ENTRE os Ánases - Fals.rra
198
4. Ib., págs.485-496.
5. GILSON. A filosofia na ldade Média, op. cit., pág. 427 .
A reu,q,re E os ElL,1s1B
t99
18. ".-;l^
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J-
AL-FARABI, U-àt.;Jl iriJ-.lt Jút ot-,t -t:( (Kitab 'ara' 'ahl al-madina al-
Jãdila) op. cit.,pâ9.47. Cf. também Traité,op. cit.,pá,g.50.
19. AI-FARABI.Traité, op. cit., pág. 51.
20. AL-FARABI. Al-madina al-fi/ila em BADAWI, op. cit., pâg. 537.
A rtlosorte E§'TRE os ÁRegEs - Fels.qp,r
206
por uma Íazáo que O precederia e, nesse caso, Ele não seria mais o
Primeiro. Do mesmo modo, a existência que procede d'Ele não lhe
acrescenta nenhuma perfeição porque Ele é o ser mais perfeito e, se
assim não fosse, Ele também não seria o Primeiro. Nada há, portanto,
que O preceda em sua emanação: nem um ser, nem tmarazTao para ser,
nem uma essência anterior, nenhuma causa, nada enfim, pois "todas
essas considerações são impossíveis no Primeiro, porque isso seria uma
afronta à Sua primazia e à Sua eternidade".2a Tudo emana do Ser Pri-
meiro pela mesma e única substância que é a Sua, porque Ele não
opera como nós, que temos as coisas separadas para produzirmos
algo como, por exemplo, nossa razáo, de um lado e a arte da escrita,
de outro. No Ser Primeiro, o conhecimento de si mesmo e a emanação
dos seres é um só e mesmo ato e tudo procede de "uma só essência e
uma só substância, ao mesmo tempo que constitui seu ser, e de onde
deriva todo outro ser".25
A emanação segue uma hierarquia que se inicia pelo ser mais
próximo e mais perfeito em relação ao Ser Primeiro, e segue em escala
descendente aÍé o ser menos perfeito. Tudo isso provém do Ser Primeiro
e Sua substância perrnanece a mesma sem sofrer qualquer alteração.
Seguem-se assim os seres, cada um segundo sua perfeição, começando
pelo mais perfeito, depois aquele que é um pouco menos perfeito, em
seguida os seres que são menos perfeitos se sucedem até o ser em que,
abaixo dele, não pode haver nenhuma existência. "Então os seres se de-
têm na existência."26 Vale notar que a emanação proposta por Al-Fãrãbi
se dá no interior do Ser Primeiro e não como algo que se produz fora
dele. "A substância do Primeiro perrnanece sempre a mesma quando os
seÍes emanam de um modo hierarquizado, cada um segundo o seu grau'
Uns com os outros, os seres se unem, se aliam e se ordenam de modo
que a multiplicidade se torna, assim, uma só coisa."27 Vejamos como
Al-Fãrãbi descreve esse processo.
"Do Primeiro procede o ser do segundo, que também é uma subs-
tância absolutamente incorpórea e não está em uma matéria. Ele intelige
sua essência e intelige o Primeiro e isso que ele intelige de sua essência
náo é outra coisa senão sua essência. Enquanto ele intelige algo do
Primeiro resulta necessariamente dele o ser de um terceiro. Enquanto
ele é constituído substancialmente em sua essência própria, resulta
necessariamente dele o ser do primeiro céu. Do mesmo modo, o ser do
terceiro não está em uma matéria (...)"" e, assim por diante, Al-Fãrãbi
continua sua descrição cosmológica que alia o princípio de emanação
plotiniano ao sistema geocêntrico de Ptolomeu. O processo repete segui-
damente o esquema precedente: cada nova inteligência conhece sua
própriaessência2s econhece algo do Primeiro resultando, em cada etapa,
uma nova inteligência, uma esfera correspondente a cada um dos planetas
e uma alma que move essa esfera. Tal processo, seguindo em fases
sucessivas, emana ou "cria" dez inteligências sucessivas que corres-
pondem às seguintes esferas dos planetas com suas respectivas almas
que as movem:
sendo matéria para elas e para o conjunto dos corpos subcelestes, pois
todos os corpos subcelestes são feitos dos quatro elementos. A base de
todos esses seres é a matéria-prima que se substantifica pela forma e se
eleva pouco a pouco até a forma que os torna seres em ato. No caso dos
seres celestes, estes se classificam começando pelo mais eminente e
Além disso é preciso que ele tenha um bom equilíbrio corporal para
poder realizar com sucesso as tarefas particulares. Esse chefe, assim,
não é dominado por nenhum outro e por nada que não seja a verdade.
"Ele é o 'imã' e o primeiro mestre da cidade ideal. Ele é o mestre da
nação ideal e de todo território habitável sobre a ÍeÍÍa."44
Depois dessa descrição do dirigente da cidade, Al-Fãrãbi enumera
doze condições necessárias para que tal homem seja recoúecido. Aponta,
também, quais os caminhos alternativos que se deve tomar quando isso
não acontecer, o que, por sinal, é o mais freqüente. Assim diz Al-Fãrãbi:
"mas um tal lugar só pode ser ocupado por aquele que possuir doze
qualidades inatas"45:
i. possuir os órgãos e as faculdades compatíveis com os atos que
deve realizar;
2. possuir uma boa compreensão de seu interlocutor;
3. ter ótima memória;
4. ser perspicaz;
5. ser eloqüente e um bom orador;
6. amar a instrução e o aperfeiçoamento de seus conhecimentos
constantemente;
7. não ter neúuma avidez por bebida, por comida ou por prazeres camais;
8. amar a verdade e o verdadeiro e odiar a mentira e os mentirosos;
9. ser generoso e de alma nobre, distante das baixezas;
1 0. desprezar o ouro e a pÍata e que todos os bens da terra sej am pouca
coisa para ele;
11. amar naturalmente a justiça e os justos e odiar a injustiça e a tirania;
12. ter uma vontade firme, ser decidido e audacioso para empreen-
der sem medo o que julga dever cumprir.
regular a partir das leis e das tradições estabelecidas pelo primeiro chefe
e por aqueles que o sucederão no comando da cidade. Nesse caso, aquele
que vier a suceder ao primeiro chefe deve possuir as seguintes seis
qualidades:
1. ser um sábio;
2. ser um conhecedor das leis, da cultura e dos costumes estabelecidos
pelos primeiros mestres da cidade;
3. ser sutil e perspicaz e seguir o exemplo dos que o antecederam na
dedução de leis necessárias que fossem inexistentes até aquele
momento;
4. possuir excelente capacidade de reflexão, de dedução e visão de
futuro;
5. ser ótimo orador;
6. ter saúde corporal equilibrada compatível com suas funções,
inclusive pararealizar operações de guerra.
Bem, mas se mesmo assim ainda não for possível encontrar tal
homem que reúna essas condições, "mas que se encontre dois, um
possuindo a sabedoria e o outro as demais condições, então, os dois
serão os chefes da cidade".aT Se ainda assim isso não for possível, pode
haver o caso em que tais qualidades encontrem-se repartidas em um
grupo de indivíduos: que um possua a sabedoria e cada um dos outros
possua uma das outras condições. Se isso ocoÍrer e os indivíduos esti-
verem de acordo entre si, então, todos serão considerados eminentes
chefes da cidade. (!)
A preeminência, porém, é pata a sabedoria, pois se esta não tomar
parte no governo da cidade, mesmo que as outras condições permaneçam,
a cidade perrnanecerá sem chefe e aquele que exercerá as funções de
chefe não será um verdadeiro chefe. Essa cidade, se não conseguir
encontrar um sábio que se associe ao goveÍno, estará destinada à ruína,
fato que não tardará. Al-Fãrãbi enumeÍa e descreve algumas cidades
que se distanciam do paradigma da cidade ideal. Nesses desvios, os
habitantes sequer desconfiam qual é o objetivo maior da vida humana e
o maior bem que o homem possui, isto é, a felicidade. Por essa razão
tais cidades se caracterizampela busca de outros bens que não levam
seus habitantes à felicidade, buscando riquezas e fortuna; honrarias e
vaidade; cidades que valorizam as disputas com outras; cidades que
falseiam a felicidade.
Sendo a felicidade o paradigma da cidade, somente o é por ser,
antes, o paradigma da própria vida do homem. A visão de um mundo
futuro que guia Al-Fãrãbi nessa obra encontra no destino da alma humana
uma de suas raízes. Os homens que compõem as gerações que passam,
organizados em suas cidades, não devem perder de vista o destino último
ao qual se dirige o homem. Quando uma geração passa - diz Al-Fãrãbi
- os corpos dos indivíduos se destroem mas as almas, liberadas da ma-
téria, permanecem e se encontram com outras almas segundo o mesmo
I1l
^ Sã^ã, o sisúe,raaúirraclc,r
Aproximadamente após trinta anos da morte de Al-Fãrãbi, nasceu
'Abü 'Ali Al-Hussayn Ibn 'Abd Allah Ibn Al-Hasan Ibn 'Ali Ibn Sinã
no ano de 980 d.C.1370 H. próximo a Bukhara, na região do Kurassanr.
Ibn Sina ficou conhecido no Ocidente como Avicena.Talvez mais que
nenhum outro, esse filósofo teve o perfil do homem universal medieval
versado em todos os saberes. Com Ibn Sinã chega-se não só ao apogeu
dafalsafa, como também a um dos zênites da história da humanidade.
Seu nome, ultrapassando os limites da própria falsafa, foi colocado ao
lado dos maiores nomes da História. Três aspectos levaram a esse quadro:
o primeiro foi por Ibn sina ter recolhido grande parte das ciências e da
filosofia de sua época; o segundo, por ter sistematizado e reelaborado
esse conjunto, resultando numa abordagem própria e renovadora; e o
terceiro diz respeito à sua presença marcante nos destinos da filosofia e
5. ldem.
A rrlosorre ENTRE os Áneees - Femere
230
6. Ib., pág.598.
A rttsert E os táLls/FÁ
231
Tlês anos mais tarde Ibn Sinã começou a escrever seus primeiros
tratados atendendo a pedidos dos que o cercavam. Os temas desses
primeiros escritos eram variados e se compunham de resumos expli-
cativos a respeito das ciências em geral, comentários a alguns livros de
filosofia e alguns escritos sobre moral. Porém, nessa mesma época houve
um acontecimento que alterou os rumos de sua vida: Ibn Sinã perdeu
seu pai e seguiu, então, em pequenas viagens através de cidades próxi-
mas se estabelecendo, ao final desse período, na cidade de Jurjãn, onde
conheceu A1-Jüzjãni, seu discípulo e biógrafo.7
Em Jur-jãn, um amante das ciências e da filosofia, chamado Al-Sirázi,
adquiriu para Ibn Sinã uma casa ao lado da sua e iá o mestre passou a
compor outras obras. Desse período destacam-se alguns escritos sobre
lógica, um resumo do Almagesro e o início de sua grande enciclopédia
médica, o Cânon dn nrcdicina. Antes de se fixar de modo mais penna-
nente em Hamadan, Ibn Sina passou. ainda, de Jurjãn a uma outra cidade
próxima chamada Al-Ray, onde ficou a serviço de uma senhora e de seu
filho Majd Al-Dawlah que, acometido por uma profunda melancolia,
foi curado de modo prodigioso por Ibn Sinã.
Em seguida, Ibn Sinã se transferiu para Hamadan e ocupou o cargo
de vizir junto ao príncipe Sams Al-Dawlah. Nesse período, Al-Jüzjãni
lhe pediu que compusesse alguns comentários sobre as obras de
Aristóteles, mas ibn Sinã se recusou e preferiu escrever unra obra pró-
pria de grande envergadura, expondo de modo sistemático os principais
conhecimentos científicos e filosóficos de seu tempo, aliados às suas
idéias e experiências pessoais. Essa composição é sua obra Al-Siía', A
atra, dividida em quatro partes: Lógica, Matemática, Física e Metafísica.
7. Até
este ponto, todas as inforrnações foram fornecidas pelo próprio Ibn Sinã. O que
vem a seguir foi relatado por Al-Jüzjãni.
A RLosoprl ENTRE os Ánleps - Felsrpr
232
8. GOHLMAN, W. E. The life of lbn Sina. New York: Srare University of New york
Press, 1974, págs. 55, 56.
A m6,l,r,c E os FALIITIFÁ
233
não em árabe. Al-Jüzjani relata que "o mestre era forte em todas as suas
faculdades, sendo a sexual a mais vigorosa e dominante de suas facul-
dades concupiscíveis, e ele aexercia freqüentemente".e
Durante uma viagem em companhia do príncipe, Ibn Sina foi
acometido por fortes cólicas que o obrigaÍam a voltar para Isfahan para
tentar um autotratamento. Numa nova viagem com o príncipe, Ibn Sinã
sofreu novamente fortes dores que o obrigaram a voltar definitivamente
a Isfahan. Al-Jüzjãni nos relata que, depois de tentar um novo auto
tratamento, o mestre acabou por se render dizendo "o governador que
governa o meu corpo já é incapaz de govemar e agora o tratamento não
beneficia mais"lo. Ibn Sina ainda permaneceu doente por mais alguns
dias mas não teve mais forças para resistir e acabou falecendo. Tinha
então 58 anos de idade. Sua tumba se encontra em Hamadan.
Numa vida bastante agitada, vivida plenamente, dado à bebida, ao
amor e à música, ele não poupou suas forças e alcançou uma envergadura
filosófica e científica de grande excelência. A extensão de sua obra e a
longevidade de sua influência, tanto na história do pensamento do Oriente
como do Ocidente, leva qualquer menção de poucas páginas ao inteiro
fracasso. No entanto, apenas a título de ilustração, podemos fomecer
algumas indicações.
Na arte médica, Ibn Sina figurou entre os maiores médicos da
história da medicina, pertencendo à tradição herdada dos gregos por
meio dos ilrabes, pela qual foram difundidas muitas teorias de Hipócrates
e de Galeno. Sua obra Al-Qanún al-tib I O Cânon da medicina, uma
fi
síntese dos conhecimentos médicos de sua época e de suas próprias
experiências, foi adotada nas universidades européias até o século XVI
d.C. - portanto, por mais de quinhentos anos após sua morte - como
texto de base para o ensino médico.
Na área da filosofia suas principais fontes foram as obras de
Aristóteles e as teses de Ai-Farabi. Deste herdou principalmente a
doutrina cosmológica com a vasta descrição metafísica e sistemática do
mundo, a hierarquia das inteligências e a emanação das esferas do Ser
Necessário até o mundo sublunar, ligando o pensamento plotiniano da
emanação à doutrina aristotélica do intelecto.A excelência simultânea
nas duas áreas do conhecimento, isto é, medicina e filosofia, é um guia
importante quando se quer compreender as relações que Ibn Sinã
estabeleceu entre as teorias médicas e as filosóficas.
Devido à extensão de sua obra, geralmente os estudos a esse respeito
ora privilegiam seu aspecto médico e científico, ora seu aspecto lógico
e filosófico, ora seu aspecto poético e simbólico e ora seu aspecto
religioso. No entanto, Ibn Sinã possui uma integração de todos esses
elementos não só em sua obra, regida de modo harmônico, mas também
em sua própria vida, temperada de plurais facetas. Seu sistema e suas
grandes teses são repetidamente expostas em várias obras e variam em
extensão, desenvolvimento e posição, mas não parecem apresentar alte-
rações radicais ao longo de sua vida.
Sua obra é bastante extensa. Na autobiografia de Ibn Sinã, Al-Jlrzjãni
cita 45 títulos, mas depois da morte do mestre a lista foi crescendo até
11. ANAWATI , op. cit.,pá5s.407-440. Alguns títulos talvez possam se referir a uma
mesma obra. Cf. GUERRERO , Avicena, op. ci., pág. 2l
A nli.r,cr E os FÁL-,is/Ã4
235
1) Geometria 3) Música
2) Aritmética 4) Astronomia
Além desses dois livros tenho outro (...) é o meu iivro sobre a
filosofia orietúel. Por ourro lado, este outro livro tAl-Sifcl'l é mais
detalhado e está mais de acordo com os companheiros peripaté-
A r.q.LSÀ.rA. E os FALÃS|FA
que a alma confere à matéria permite, pois, que ela seja definida como
uma forma em relação àquela determinada matéria que ela toma por
receptáculo, passando a constituir suas próprias faculdades, pelas quais
opera e dirige o ser vivo para cumprir os atos referentes à vida.
Mesmo que por vezes haja referência ao termo "alma" no sentido
do conjunto das faculdades que ela forma no corpo - tais como
as ações de crescimento, geração e nutrição, movimento, sensibili-
dade e intelecção - sua melhor denominação é ser uma "perfeição".
E mesmo quando há referência ao termo "alma" no sentido de que
A m,tsIT,q E oS FALÃSIFA
245
a alma nela se manifeste. Isso não deve ser tomado no sentido de que
essa mistura resultasse num corpo que fosse a causa da alma, mas é a
própria alma que, a paftir de tal mistura, passa a formar o corpo com
seus órgãos e suas faculdades para executar os atos da vida. Nessa medida,
uma substância que vem à existência juntamente com a matéria que the
é adequada. Uma boa imagem disso, usada por Ibn Sinã, é o conceito da
alma como artesã, pois ela, ao tealizar na mistura que ela tomou por
receptáculo a confecção de todos os seus elementos vitais, é a artesã da
espécie, atualizando o gênero naquela matéria específica, tornando-a
animada: "Logo, a alma é então a perfeição de um sujeito de inerência,
e esse sujeito subsiste pela perfeição. A alma é, além disso a que aper-
feiçoa a espécie, e7aé a artesã desta".2ó
27. f rl: r-a++l L( .J L.5 rl I,r*-i:l Li Cf. RAHMAN : I,3,32.Ern BAKOS : I, 3, 23,
"-.1:
"Donc I'ame est perfection comme substance, non comme acciilent."
28. IBN SINÃ. Kitab al-Na,fs. Trad. Bakós, op. cit.,p6,g.Z0.
A rtlosopla EnurRE os ÁneeEs - Frr-srpn
248
29. Note-se que todas as localizações nervosas das faculdades não se encontraÍn en.r
Aristóteles, visto que ele não tinha conhecimento algum da existência dos nervos.
(Cf. Bakós n. 183).
A rrlosone ENTRE os Ánnses - FeI-s,q.re
250
para longe dele sem que o sentido externo perceba isso de modo nenhum;
logo, isso que o sentido externo capta primeiramente e depois o sentido
interno percebe chama-se propriamente de forma; e isso que a faculdade
interna percebe à exclusão dos sentidos externos chama-se idéia.
Os sentidos internos ou faculdades perceptivas intemas são em nú-
mero de cinco: o sentido comum, a formativa, a imaginativa, a estimativa
e a memória.32 Um dos exemplos que Ibn Sina se utiliza para mostrar a
necessidade de haver uma instância interna distinta dos sentidos exter-
nos consiste na percepção de uma gota de chuva que cai. Ora, uma gota
que cai é percebida naturalmente por nós como se descrevesse uma
linha reta mas, neste caso, os sentidos externos não nos podem fornecer
a percepção de uma linha reta pois eles percebem apenas o que é dado
num determinado instante. Quando o sentido exteÍno apreende a gota
de chuva a cada instante, segundo a posição que ela ocupa, não pode
apreender a continuidade entre uma posição e as posições anteriores.
Para que tal percepção ocorra, isto é, para poder apreendê-la como uma
linha reta, é necessário a conseruação das posições anteriores no momen-
to da apreensão da posição atual, o que requer necessariamente a inter-
venção dos sentidos internos.
Os cinco sentidos internos são localizados por Ibn Sinã nas câmaras
cerebrais e possuem funções distintas, O primeiro deles é o sentido comum,
que está localizado no primeiro ventrículo do cérebro e funciona como
um receptáculo geral para as formas que chegam indistintamente através
dos cinco sentidos extelnos. Seu papel, dentre outros, é o de receber as
formas provindas da realidade externa para dentro do cérebro. Em seguida
32. Ibn Sínã usa mais de um nome para definir cada um dos sentidos internos. Cf'
ATTIE, Os sentidos, op. cit., anexo. Note-se que, apesar de Ibn Siná utilizar os
mesmos nomes que se encontram em outros autores, notadamente em Aristóteles,
as funções não são as mesmas.
A plr-osona ENTRE os Ánesss - Fa.mlpn
252
33. Esta alegoria também é ref'erida "cogito" de Ibn Sinã, no qual o homem, sem a
intermediação do corpo, se percebe existente e pensante.
A rrloson,r ENrRE os ÁneeEs - Fer-sera
254
Uma das melhores imagens da alma humana que nos fornece Ibn
Sinã é a de que ela possui duas faces: "A nossa alma possui duas faces:
uma face voltada para o corpo (...) e uma face voltada para os princípios
supremos".35 Seguindo essas duas direções, Ibn SInã distingue as
faculdades da alma humana em "faculdade que age e faculdade que
conhece, sendo que cada uma das duas faculdades chama-se intelecto
por homonímia ou equivocidade".3ó Assim, temos duas faculdades: o
intelecto prático e o intelecto teórico. Sendo uma substância simples e
una, mas que se relaciona com duas realidades distintas - uma que está
acima e outra abaixo dela -, a alma humana possui estas duas faculdades
que tornam possível a conexão entre ela e cada um dos dois lados. Pelo
lado inferior "nascem os hábitos morais" e do lado superior "nascem as
ciências".37 Acompanhando essa imagem, vejamos como Ibn Sinã nos
informa do papel da filosofia:
34. IBN SINÃ. Kitab al-Nafs. Edição do texto árabe por RAHMAN, F. Avicenna's De
Anima, Being the Psycological part of Kitab Al-Shifa. London: Oxford University
Press, 1960.
RAHMAN: I,l,16 /BAKOS: I,1,13. A sentença final "or ^. L::: at 6u--="
significa literalmente "seria necessário bater nele com uma bengala (l)".
35. IJLJI .erLJ! Jl n+.r.r . . . ó+ll Jl o+.r , cc<+., Lr- 6Líl Cf. RAHMAN:
I,5, 47 IBN SINÃ, Krlrró al-Nafs, trad. Bakós, op. cit., "-ÀiX
pág. 33.
36. I, 5,3 1. Também podem ser chamadas de faculdade prática e faculdade especulativa,
ou ainda, intelecto prático e intelecto teórico. Em Aristóteles são o intelecto teórico
e o intelecto prático. O fim do intelecto prático é a açáo, dirigida ao bem prático e
o contingente, enquanto o fim do intelecto teórico é o necessário, isto é, o verdadeiro
eo falso. O verdadeiro sendo absoluto e o bem, relativo. (Cf. Bakós n. 210). Note-
se, ainda, que sendo faculdades da alma humana, não há uma localização física.
Deve-se ter em mente que Ibn Sinã acompanha em linhas gerais a divisão
estabelecida por Al-Fãrãbi mas não totalmente.
37. IBN SINÃ. Kitab al-Nafs. Tra<l. Bakós, op. cit.,pá,g.33.
A rtlosona ENTRE os Ánases - Frlsere
256
por sua vez, ou existem sem depender de nossa vontade ou, então,
existem por nossa vontade e atividade. Ao conhecimento das coisas
que pertencem à primeira divisão chama-se filosofia teórica; ao
conhecimento das coisas que pertencem à segunda divisão chama-
fim da filosofia teórica é aperfeiçoar a alma
se filosotia prática. O
pelo conhecer; o fim da filosofia prática é aperfeiçoar a alma, não
pelo simples conhecer, mas por conhecer o que deve ser feito e
fazê-lo. Assim, o fim da filosofia teórica é a aquisição de uma opi-
nião que não é prática, ao passo que o frm da filosofia prática é
42. (b.,Y,6,247,248.
43. GARDET,L. La pensée religieuse d'Avicenne. Paris: Vrin, 1951' pág. l15: "Para
Ibn Sinã, ao contrário de Al-Fãrãbi, (...) o intelecto adquirido não é o intelecto
humano como potência atualizada, mas é recebido poÍ este último".
44. GOICHON, A.M. Introduction a Avicenne - son építre des déftuitions. Paris:
Desclée, 1933, pág. 46.
A l';trsare E os ElL,4s1E1
26t
rio, ele é forte na aptidão. É por essa razáo que a segunda aptidão
vem ao ato nele, melhor, como se ele conhecesse toda coisa por si
46. GOICHON, A.M. Lexique de la Langue philosophique d'lbn Slna. Paris: Desclée,
1938, págs. 65,66; o termo u-'- hads é definido como "intuição intelectual", em
oposição à "intuição sensível". A hads é entendida como um tipo de lampejo de
compreensão que se produz no espírito, em que se descobre subitamente uma
verdade até então não percebida. Este caráter repentino da hads não exclui um
certo tipo de movimento para atingir o termo médio quando o problema é colocado
ou para se atingir o termo maior quando o termo médio é obtido. No entanto, não
se trata do movimento progressivo mais próprio da cogitação, que caberia melhor
âo termo ; §i lfikra (idéia - reflexão), que é um movimenro deliberado de busca.
A rn.stre E os FAL,4.s/FÁ
263
mesmo. Esse é o mais alto dos graus desta aptidão. E essa dispo-
sição da inteligência material deve ser chamada inteligência sagrada,
mas essa disposição é do gênelo da inteügência hábito, salvo que a
inteligência sagrada é muito elevada. Ela não é disso que todos os
homens possuem em comum.aT
49. RAHMAN, V 6, 250. A reÍ'erência final de que isto é "um modo" de profecia nos
leva a perguntar quais seriam, então, os outros. A título de indicação deveríamos
nos remeter aos capítulos precedentes do Kitab al-Nafs em que encontratnos mais
dois modos de profecias ligados a duas outras faculdades da alma: a faculdade
imaginativa e a taculdade motora. O modo de profecia associado à faculdade motora
permite, por exemplo, que o homem fortificado nesta faculdade interfita na matéria
e na ordem da natureza. Quanto à profecia ligada à faculdade imaginativa,
destacamos que, sem ela, os profetas não poderiam, por exemplo, criar alegorias
que mostram de uma maneira simbólica as verdades intelectuais que podem lhe
chegar pelo intelecto sagrado. Os três modos de profecia não são excludentes e
podem atuar em conjunto num mesmo homem, inserindo-se em três níveis: o
sensível, o imaginativo e o intelectual.
A nlosorra ENTRE os Ánases - Femera
500
In * R*Àd,, o*fr*n**d[ro
Quando Ibn Ru§d nasceu, três séculos já se haviam passado des-
de que Al-Kindi recepcionara a filosofia entÍe os árabes. Passando em
revista todo o desenvolvimento das teses de seus predecessores, sob
uma leitura rigorosa das obras de Aristóteles, Ibn Ru§d tinha em mente
recobrar a doutrina autêntica do pensador $ego. Afinal, por volta do século
XI d.C. / V H., Ibn Sinã - o mais oriental dosfalasifa - era uma referência
obrigatória da filosofia grega na parte oriental do mundo muçulmano,
inserindo nas teses de Aristóteles um caráter neoplatônico. A tarefa de
reconduzir o pensamento ao rigor da filosofia aristotélica, Ibn Ru§d
exerceu do ponto mais ocidental do mundo muçulmano: a Espanha.
Não é demais lembrar que, até aquela data, aespeculação filosófica
se desenvolvera sobremaneira a partir da ascensão da dinastia Abássida
origem berbere, ocupou o cenário da Espanha. No séc XII d.C. /VI H.,
um novo grupo de tribos berberes constituiu-se no núcleo da dinastia
dos Almôadas. Nessa época, Al-Andaluz jánão era umaprimaziaítrabe,
mas turca pelo leste e berbere pelo oeste. "IJma grande revolução se
operou no Magreb durante a juventude de Ibn Ru§d: os Almôadas der-
rubaram a dinastia dos Almorávidas e se apossaram sucessivamente do
noroeste da África e da Espanha muçulmana."3
Foi nesse cenário que, com Ibn Bãja (Avempace), Ibn Tufayl e,
idade avançada, insistiu que Ibn Ru§d tomasse para si esse trabalho,
já que possuía grande aplicação nos estudos, clareza, lucidez e inteli-
gência suficientes para tão importante tarefa. Pela sua própria pena
sabe-se que de 1169 a 1180 d.C. aproximadamente, Ibn Ru§d já es-
crevera o Comentário sobre o tratado dos animais, Comentário mé-
dio sobre a Física, Comentário sobre os meteorológicos, Comentdrio
médio sobre a retórica, Comentário sobre a metafísica - dentre outros
referentes a Aristóteles - e uma paráfrase do Almagesro de Ptolomeu.
Em 1182 d.C. o emir Yüsuf chamou Ibn Ru§d ao Marrocos e o
nomeou seu primeiro médico no lugar de Ibn Tufayl, conferindo-lhe
também o cargo de "Qadi al-qudah" - juiz dos juízes - de Córdoba,
cargo que fôra ocupado por seu pai e também por seu avô. Nessa ópoca,
Ibn Ru§d tinha cerca de 56 anos. Logo em seguida, em 1184 d.C., o
ções do grego ou do siríaco para o árabe pelo próprio Ibn Ru§d. Ele co-
men tou. pr ati c amente a
l_"llld4" t:_ :[g j:
j1:,_9:l_:P.:J1::1" :
Política) e, em alguns casos, chegou a compor dois ou três comentários
sobre a mesma obra como, por exemplo, no caso da Física. Os textos
13. Chama a atenção o fato de Ibn Ru§d não ter comentado a Teologia de Aristóteles
e de, ao mesmo tempo, reclamar o aristotelismo puro.
14. BADAWI. Histoire de la philosophie en Islam, op. cit., pá,9.743.
A rrlosorre ENlttE os Án.rees - F,rm,rrx
310
metafísica. Digo que ele as fundou porque todas as obras que Íbram
escritas antes dele sobre tais ciências sequer vale a pena que se diga
algo sobre elas, sendo eclipsadas pelos seus próprios escritos. Digo
que ele as terminou porque nenhum daqueles que se seguiram a ele
até o nosso tempo, isto é, durante aproximadamente mil e quinhentos
anos, nada puderam reunir aos seus escritos e nem mesmo encontrar
17 . Ib., pá9.762.
A n,uepn, F- OS FALÃS\FA
3t3
presente na visão de Ibn Ru§d é uma questão que não encontra con-
formidade entre os pesquisadores quando se procura focalizar uma ou
outra área de seu pensamento. Muito da depuração dos elementos
neoplatônicos em relação à teoria aristotélica pode ter um elemento
importante e esclarecedor, na ausência de um comentário ou um tra-
tamento que integrasse a chamada Teologia de Aristóteles no sistema
aristotélico. Ibn Ru§d parece ter percebido que o sistema baseado no
princípio de que do um só procede o um não poderia ter sido inspirado
;tig;s,-mal em
"*
Porfírio de Tyr, o autor dalsagoge. "Observe-se que em nenhum lugar
Ibn Ru§d atribuiu a famosa Teologia a Aristóteles. Ele esteve firmemente
convencido de que esse livro jamais poderia ser dapena do Estagirita."r8
Em largqe-spectro, Ibn Ru§d pôd"9itd"g_.i.:"- *dt :IS
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teoria das idéias. Do mesmo modo,-to4qa leoria da em113Sfo,Qle lomou
a pedra angular da cosmologia e da metafísica a" !U:§1lle de A1-
a' $,_construção
119_ar11oté1i9
de um universo que desborda de modo múltiplo a partir do Uno conteria,
segundo ele, diversos eÍros lógicos. '1 -
22. AVERROES. Tahafut cir. ern GUERRERO, op. cit., pág. 52.
A rtlosoRa ENTRE os Áneess - Fllslpl
3t6
tido que esperar para criar no tempo, tal espera estaria condicionada
't.o-'
r por algo extrínseco e Deus estaria determinado em suas ações, o que é
27. Alcordo,Xl,7.
28. AVERROES. Traité décisif op. cit., pág.3O.
29. Alcorão, XIV 48.
30. ALcorão,XLI,11.
31. CARRA DE VAUX. Les penseurs de l'lslam, op. cit., pág. 70 e segs.
A rtLosonre ENTRE os Áneees - Fer-s.,rre
318
32. I{ERNAN'DEZ. Historia del pensamiento en el ntuttdo islamico, op. cit., pág.
241, n.44 comenta a ausência de um motor.
11. ALcorõo,XXL22.
A alrsarA D OS FALÃSIFA
toma a forma mais perfeita quando ela se faz pela forma mais perfeita
do silogismo que se chama demonstraçáo" .M Ibn Ru§d aludiu ao fato de
que alguém poderia objetar que esse modo de especulação a respeito do
silogismo racional fosse uma inovação ou mesmo uma heresia, visto
que não existia nos primeiros tempos do Islam. Mas, já que o silogismo
jurídico usado na lei islâmica também foi posterior às primeiras interpre-
tações do Alcorão e não foi considerado uma heresia, a mesma permissão
deveria ser dada ao uso do silogismo racional.
Além disso, como a Lei divina incitaria ao conhecimento, pela
demonstração, do Deus Altíssimo e dos entes dos quais Ele é o Autor,
seria preferível e mesmo necessário que aquele que assim quisesse
proceder conhecesse, previamente, as diversas espécies de demonstração
e suas condições, ou seja, seria preciso que se conhecesse no que
seja produzida pela demonstração e, sendo assim, eia não pode vir sem
a ciência da interpretação: pois Deus, GranCe e Poderoso, fez saber que
para essas passagens do Alcorão há uma interpretação que é a verdade,
e a demonstração não possui outro objeto que a verdade.
Não é demais lembrar que, quanto à interpretação que deve ser
dada às passagens do texto revelado, no caso dos muçulmanos isto