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Miguel Attie Filho

FALEAFA
A filosofia erLtre os árabes

- uma herança esquecida -

@
Editora Palas Athena

{
Título original: Falsaftt- a.filosofict entre os iirctbes
- u.rnL hercntçct esqueci(ld -
Copyright O Miguel Attie Filho, São Paulo, 2002

Coorclenação editorial: Enrilio Moufàrrige


Revisão cle provrs: Lucia Brzrnclão Seft Mouftrrrige
Therezinha Siqueira C:rmpos
Projeto gráíico: Maria do Carnto cle Oliveira
Mauricio Z^botÍo
Conrposição e impressão: Grírfica Palas Athena

F-oto da capa gentilmente cedicla por Lr,riz Henriqr-re Góes

Catalogação na fonte do Departamento NacioÍral do Livro

A885f

Attie Filho, MiÉtuel


Felsafa: a filosofia entre os árrbcs: urna hemnça esquccicla / N'ligrrcl
Attie Filho. - Sio Paulo : Palas Âthena, 2002.
)/O p:rgs. : I|J x zrcln.
ISIlN 85-72,í2-035-i

1. Filosofia írebc. I. Título.

cDD-18r.07

Direitos aclqtriridos para a língua portugues:r, pela


EDITORA PALAS ATHENA
Rua Serra de Paracaina, 240 - Carnbuci
07522-020 - São Paulo - SP - Bnsil
íone: (11) 3209.6288 - fax: (11) 3277.8137
www. palasathena.org
e-mail: editora@palasathena.org

2002
Surraário

Tabela de transliteração das letras árabes I 1

Tabeladepronúncia.... 12
Agradecimentos . . 13
À guisa de apresentação . . 17

Introdução 2I

lL " AJIg*^s rinúnóiiúos


A importância do estudo dafalsafa .. . 27
A origem e o significado do termo falsafa 29
AsprincipaiscaracterísticasdafalsaÍa .... 32
Árabes,islâmicosemuçulmanos... ........35
Filosofia árabe ou filosofia islâmica? . . 40
HistóriadoPensamentoeHistóriadaFilosofia... ... 45
FilosofiaeTeologia ...47
FilosofiaeMística ....53

2" {.-)r- úa,quiimho nI* -r-* lHiuúa"i* dl* lFillrurlÊii*


...
...e, afinal, ondeestamos? ....... 61
DivisõesnaHistória ...67
OsperíodosdaFilosofia ......73
Algunsditossobreafilosofiadosmedievais.... .... 77
Umpanoramareligiosodaépoca ..... Bz
Osaberealgunsdeseuscentros .....90
Achegadadosárabes ........97
A rrlosopra ENTRE os ÁRasrs - FaLseEA.

õ. N, lt/ar. nasc«'ntc
AArábiapré-islâmica ....... 103
O Profeta Muhammad 106
O Alcorão 110
A expansão muçulmana ll}
Os Omíadas 116
OsAbássidas.... ll7
Os primeiros intérpretes 123
O kalam 125

o']ldL*
4" llr*uo*o r r*llr*o aLúé maL Chir.*"""" l\ recepçáo
Uma herança do saber 131
Primeiras traduções 135
HunayneaCasadaSabedoria.... 138
De Aristóteles a Aristütãlis. . . 144
De Platão a Aflatün 150
De Plotino a Aflutin - o "mestre grego" 154
Outras presenças 160

5. A [*nt*/h u ,t lk,lãuif*
Al-Kindt, o anfitrião 165
Al-Fãrãbi, o inventor 195
Ibn Stnã, o sistematizador. . 226
Al-éazãll, o batedor 266
Ibn Ru§d, o reformador. . . . . 300

6. A. dl**. f*oeu àl* ,hllt*if*


O pouso das águias .. . 335
CaminhosparaoOriente ....337
CaminhosparaoOcidente ...342
INorcp

Traduçõesparaolatim. .....344
Arecepçãodosárabes-filósofos .....349
Maimônideseafalsafa ......354
Alberto e os medievais latinos 357

Àguisadeconclusão.... --- 361

Bibliografia 365

1l,L*súra.ções

Tábua de escrita cuneiforme


aproximadamente2.500a.C.Ugarit,Síria. ' """ 25

Patio dos leões, séc. XIV d.C. Alhambra, Granada '' ' 39

Manuscrito grego do diálogo Sofista de Platão


(Biblioteca Bodleiana) 59

Estátuas encontradas no sítio arqueológico de Ain Ghazal


aproximadamente7000a.C.,Amã,Jordânia'... " 66

Fragmento árabe do Hadil,empapiro. Egito, séc' XIIId.C. . . . .' . . 101

Mapa da expansão do islamismo no período medieval I15

Manuscrito da tradução bilingüe de Hunayn Ibn Ishãq dos


Aforismos de Galeno, copiados em siríaco na coluna da direita
e em árabena colunadaesquerda. Séc. IXd'C.. . . . . . . . . 129

Ilustração dos estudos científicos desenvolvidos


naCasadasabedoria .... ...... ' 14i
Manuscrito árabe do Grande comentário de Ibn Ru§d
aos Segundos analíticos redigido em escrita magrebina
por um copista anônimo do séc. XII d.C. 163

Ruínas da Mesquita de Mutawakkil, séc. IX d.C. Samarra, Iraque 180

Ilustração do sistemacosmológico deAl-Fãrãbi . . . . .... . 274

Capa de uma edição modema de um dos livros da Lógica da


obra Al-SiJ'a' de Ibn Sinã . . 236
A prr-osopre ENTRE os ÁneBes - Fer-sepa
l0

Illustração do Monte Hira e da gruta na qual Muhammad se


retiravapara meditar. Miniaturapersa, séc. XVm d.C. . . . . . . . . . ZB3
Escultura em márrnore branco de Averróis
na cidade de Córdoba, Espanha .. . 307
Frontispício da edição árabe-latina do Cânon da Medicina
de Ibn Sinã, Roma, 1593 d.C. . .. . 333
Gravura de Avicena, como o Príncipe dos filósofos,
Yeneza,1520 d.C. .. . .. . . 350

O Pensador, aproximadamente 3500 a.C. Mesopotâmia.......... 361


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Mesmo que não pretendêssemos contar a História da Filosofia


ocidental em algumas páginas, nras procurássemos apenas traçar uma
linha rnínima que ligasse as principais etapas da História da Filosofia,
seria natural que tivéssemos em mente que, de algum modo, o mais
atual pensamento do mais jovem filósofo do nosso planeta teria alguma
relação com o mais antigo pensamento do mais aniigo fiiósofo da História
da Humanidade, fosse essa uma relação de proximidade e concordância,
ou de afastarnento e divergência. Justamente por admitirmos que tal
relação é inerente às diversas manifestações filosóficas, que podemos
justificar por que damos a isso o nome de "História da Filosofia" e,

também, o porquê do interesse em pesquisá-la.


Ao estabelecer um diálogo com a filosofia é comum estarem
presentes em nossas reflexões filósofos como Aristóteles, Platão,
Heráclito, e grande parte dos filósofos da antiga Grécia. Além desses,
por vezes fazemos figurar pensadores do Ocidente rnedieval latino como
Agostinho, Rogério Bacon e Tomás de Aquino. A estes, não raro,
podemos acrescentar os nomes de alguns modernos como Hegel, Kant,
Nietzsche, Descartes e ouffos. Mesmo sabendo que tais peusadores
possuem extremas diferenças filosóficas entre si, não nos sentimos
cometendo nenhuma contradição em reuni-los, pois sabemos que todos
são tributár'ios dos argumentos darazáo - propósito da filosofia - para
superaÍ os desafios pafliculaÍes que se ihes apresentarant em cada época.
Se isso nos é natural, não devemos ter â menor hesitação em trazer às
nossas reflexões, por exemplo, os nomes de Al-Kindi, Ibn Sinã, A1-
Fãrâbi e lbn Ru§d que são os nomes mais representativos da falsafa,
tendo sido tambérn conhecidos a justo títuio como os "filósofos árabes
helenizados".
A rtlosone ENTRE os Áneees - Femere
28

Nascidos no período medieval em terras dominadas pelo Isldm,


entÍe os séculos VIII e XII d.C. i II e VI H., esses pensadores foram
denominados, em árabe, pelo termo falasifuI, isto é, "filósofos" em
virtude de sua arte, afalsafa, isto é, a "filosofia". Em suas obras justifica-
se tal denominação por haver traços profundos e marcantes de grande
parte da tradição da filosofia e da ciência antiga dos gregos. O fato de
tais pensadores estarem inseridos numa cultura mais distante da nossa,
talvez nos desse a falsa impressão de que o mundo árabe e o mundo
islâmico pouco teriam a acrescentar às nossas discussões histórico-
filosóficas, face à formação do pensamento ocidental. Porém, ao entrar
em contato com as obras dos/a lasifa verificamos que eles adotaram os
princípios da filosofia através das demonstrações lógicas, - princípios
estes estabelecidos sobretudo por Aristóteles - para superar os desafios
impostos pelas mais variadas questões que se apresentaram a eles. Assim,

é natural que figurem juntamente com os grandes nomes da História da


Filosofia. Curiosamente, em muitos aspectos, a sua importância se deu
mais em vista do impacto causado na História da Filosofia do Ocidente
que na do próprio Oriente. De todo modo, afalsafa é um dos elos mais
esclarecedores para a compreensão dos caminhos da filosofia no período
medieval, visto que se deu no mesmo período em que o Ocidente esteve
sob a denominação (às vezes injusta) de Idade das Trevas.
Uma das coisas que mais chama a atenção ao atento estudante de
filosofia é que, não raras vezes, os manuais de História da Filosofia - ao

tratarem do período medieval - passam de Agostinho (século IV d.C') a


Tomás de Aquino (século XIII d.C.), sem dar a devida atenção ao que
ocoffeu nesse ínterim, o que indiretamente acaba reforçando que, nesse
peíodo, o conhecimento científico e filosófico teriam ficado estagnados.

l. No singular, faylasuf (f1lósofo).


Alcurvs rNrnórros
29

Tal julgamento não se pode aplicar ao lado oriental medieval, pois neste,
o que se viu, permite considerá-lo um dos períodos mais luminosos da
História: grandes avanços foram realizados em praticamente todas as

áreas do conhecimento e. de modo particular, na filosofia.

A ooigonxa e o signiificaJ" Jo ter.lno /a]safa

A transcrição do teÍmo grego QúoooQtcx, Qthilosophia) para a língua


árabe resultou no te11no I ;, .,, I à (falsafa). Vale esclarecer que se, por um
lado, na língua grega, os morfemas QrÀtcr / ooQra @hilia / sophia) se
unem paÍa dar, entre outras, a idéia de "amor à sabedoria", por ouro
lado, em árabe - assim como nas transcrições que encontramos em ouras
línguas como, por exemplo, "philosophia" em latim; "philosophie" em
francês e alemão; "philosophy" em inglês etc. - a tdéia que liga os
conceitos de amor e de sabedoria se dá somente por uma analogia e um
retorno ao terÍno grego. Os vocábulos usados para significar "amor" e
"sabedoria", na língua ârabe, não possuem qualquer semelhança com os
radicais gregos decorendo, portanto, que no vocábulo I :.,,1à (falsaÍa)
não há qualquer idéia que provenha dos radicais próprios da língua árabe.
É uma pura Íanscrição da língua grega.
Mesmo não sendo o caso de nos aprofundar na discussão dos
significados dos termos gregos e nem fazer corresponder com rigidez os
termos gregos aos termos árabes, podemos aludir ao fato de que alguns
conceitos que se podem incluir no conceito de QtÀtcr (philia) são, por
exemplo, o de amor, de paixão, de amizade, de desejo e de inclinação da
alma. No caso do conceito de ooQru (sophia), podemos incluir nele os
de sabedoria, ciência e conhecimento.
Quanto a Qúrcr (philia), há três termos na língua árabe que podem
se aproximar de sua definição: ,, ^ (ltub), Ã-31
'
.
(çadaqa) e ó .i,. ('úq).
A t tt-osonl ENI'RE os ÁnnRrs - Flrsnm
30

Os dois primeiros, apesar de usados com freqüência na língua árabe,


não tiveram um uso muito coffente no vocabulário da falsafa. No caso
de ,,. ^ (hub), sua aplicação se dá mais propriamente ao amor no senti-
do da ternura, do carinho e do afeto, podendo ser traduzido como o
amor num sentido mais amplo. O segundo termo - i.3l ' . (sadaqa) - se

traduz por amizade, porém sua raiz original remete à noção de auten-
ticidade, sinceridade, veracidade e outros termos afins. E, taTvez,justa-
mente pelo fato de uma amizade não poder prescindir de todos esses
atributos é que, na língua árabe, o termo "amizade" provém daqueles
primeiros conceitos. Por fim, a rdéia de amor, no sentido da paixão e da
inclinação do desejo, encontra sua melhor tradução no termo 3 .:.. (i.íq).
Ibn Sinã, por exemplo, ao fazer uso desse termo não o restringe mera-
mente ao sentido material da atração carnal, mas procura espiritua-
lizá-lo no sentido metafísico do movimento da hierarquia dos seres em
direção à causa final. Nesse sentido, o termo 3 :, " ('Áq) guarcla tam-
bém uma certa proximidade com o conceito de eproç (eros) e, no vo-
cabulário filosófico é, pois, o que também mais se aproxima da idéia de
QrÀrcr (philia).
Em relação ao termo ooQrcr (sophia), há três termos na língua ára-
be que estão relacionados ao sentido de sabedoria, de ciência e de
conhecimento. São eles: il. ('ilm), ür.'- (ma'rfo) e Ã-S- (hikma).
Esses três termos possuem um uso freqüente na linguagem filosófica
entÍe os árabes. No primeiro caso -+ ('ilm) -, sua melhor coÍres-
pondência é o termo ciência. Com mais freqüência foi esse o termo uti-
lizado paratraduzir a noção grega de eTitoÍl'lptq @pisteme). No voca-
bulário da falsafa é com + ('ilm) que se expressa, por exemplo, a
noção de "ciência divina", "ciência da nattreza", "ciência da alma",
"ciência da lógica" etc. Nos dias de hoje, grande parte da denominação
das ciências modernas e suas variantes como, por exemplo, Biologia,
Sociologia, Economia e Ecologia, é antecedido pelo termo l- ('ilm).
Ar-cuNs rNrrnómos
3I

Quando se predica a alguém o adjetivo f U f 'ahm), o sentido mais


apropriado é o de que esse alguém é douto, erudito, diplomado. O mesmo
termo também é usado para designar o cientista.
No segundo caso, isto é. ii:'r- (ma'rifu\, este deriva daraiz do
verbo i-r- ( 'arafa) que significa conhecer. Assim, o termo a-ir,'-
(ma'rfo) pode ser traduzido por "conhecimento". É com esse termo,
por exemplo, que Ibn Sinã afirma que "o fim da filosofia especulativa é
o conhecimento da verdade, e o fim da filosofia práticaé o conhecimento

do bem"z. Mas, num outro sentido, há uma certa nuance nesse termo: ao
analisá-lo, Goichon aproxima-o do termo grego Yvootç (gnosis). Assim,
por exemplo, ao se predicar alguém com o adjetivo .-e1Jr, ('arífl,pode
se indicar o caráter do conhecimento do iniciado, do que tem acesso ao
saber esotérico, oculto.
Por fim, é mais propriamente com o teÍmo 4^S^ (hikma) que

encontramos a melhor aproximação da noção de sabedoria. Esse foi o


termo usado na tradução do grego oo$tcr (sophia). Em alguns casos,
esse termo também é usado com o sentido de ciência -+ ('ilm) - e

conhecimento - Ã-ir,-
(ma'rfo) -. Porém, enquanto os dois primeiros
denotam um tipo de saber mais indicativo, o espectro mais amplo do
conceito 4-S- (fuikma) é o que mais se aplica no caso do vocabulário
filosófico para designar a extensão do conceito "sabedoria". Por essa
Íazáo, às vezes, {-(- (hikma) também foi usado como sinônimo do
próprio conceito de filosofia. Se os antigos gregos chamavam um homem
sábio de ooQoç (sophos),em árabe ele seria denominado (hakím).
é-
Vocábulos como "governador", "jtiz", "árbitÍo" e outros, também de-
rivam da mesma raiz, remetendo a um sentido mais abrangente do
conceito de sabedoria.

2. Cf. GOICHON. Vocabulaire,pág. 19 e Lexique,pág.221.


A prlosone ENTRE os Áneses - Fnlsnre
32

Na medida em que, tanto nas línguas ocidentais modernas como na


língua ârabe, o temo "filosofia" foi uma impoflação de origem grega, é
natural que em todas elas tenha havido uma apropriação do vocábulo.
Nesse sentido é comum, por exemplo, tanto em árabe como em
-
português -, se dizer que um tal homem pensativo é um "filósofo" ou
que determinada pessoa possui uma "filosofia de vida". No entanto
pode haver sutis diferenças nessas mesmas afirmações, pois a intensi-
dade com que o Ocidente e o Oriente assimilaram algumas tradições da
filosofia da antiga Grécia não foi a mesma. Talvez, por isso, a falsafa
fôra, em muitos casos, mais estran geirapara os árabes do que a filosofia
o foi para os ocidentais.

As poi*cipais canacúenísúicas 'àu {*Iu*Í*

Preenchendo páginas e mais páginas em língua âtabe, os falasfa


desenvolveram suas teses entre os séculos VIII e XII d.C'lII e VI H.
Portanto, a principal característic a da falsafa é ser medieval. Tal condi-
çáo traz consigo uma grande bagagem de pré-conceitos a respeito
da

Idade Média e, conseqüentemente, da filosofia praticada nesse período.


Se a binômia tabuleta em que selê "razáo e fé" pôde guardar um olhar
esffeito em relação ao todo da filosofia medieval, mais ainda poderia sê-
lo em relação falsafa. A isso se acrescenta, não raramente, uma visão
à

distorcida dos povos semitas, de modo geral, e dos árabes, em particular.


Outra característic a da falsafa é ter sido uma novidade no cenário
da filosofia que, até então, já se havia construído e alicerçado ao longo
de, pelo menos, 1200 anos. Afinal, até o século VIII d.C., a filosofia
havia se desenvolvido principalmente entre os povos gregos, no interior
do império romano e entre a cristandade do Oriente e do Ocidente. A
novidade repousa no fato de que, nesse panorama de povos e culturas,
Ar-cuNs rNrRótros
33

também passou a figurar o povo âtabe. E, assim como o helenismo,


quando absorvido por outras culturas, teve que se adaptar às caracterís-
ticas locais, o mesmo aconteceu no caso dafalsafa. Os ingredientes da
filosofia e das ciências gregas também se adaptalam à cultura e à religião
dos árabes. Esse encontro resultou numa filosofia original e renovada
que não se confunde com particularidades filosóficas anteriores. Além
disso, a filosofia que havia sido até então um patrimônio praticamente
exclusivo da língua gÍega,latina e siríaca, chegou, pela primeiÍa vez, a
ser escrita em língua árabe. Nesse caso, não é difícil imaginar que os

termos e os conceitos filosóficos tiveram de seguir um novo itinerário


para serem adaptados ao novo idioma.
OutÍo ponto relevante é o fato de a filosofia se confrontar com uma
nova religião. O islamismo recebeu a filosofia pouco mais de 150 anos
após o seu nascimento. A filosofia, nascida entre os mitos gregos, trans-
portada juntamente com os deuses para o panteão de Roma, absorvida
pelos padres da igreja para cimentar os dogmas da cristandade, havia se
confrontado, até então, com outÍas formas de religião mas não ainda
com o islamismo. Foi afalsafa que se encalregou de fazer com que os
princípios filosóficos se depaÍassem, pela primeira Yez, com os dogmas
da religião islâmica, o que foi sem dúvida um novo desafio paÍa ambas.
A falsafa foi a responsável não só pela imersão do pensamento da
filosofia gregaentre os árabes mas também pela transmissão da filosofia
grega ao Ocidente. Na medida em que o paradigma grego foi um dos res-
ponsáveis pela consffução filosófica do Ocidente, não é difícil imaginar que
a falsafa ocupe um lugar histórico muito peculiar. Sobre o meridiano da
filosofia oriental e ocidental, a meio caminho da contemplação de dois
- ou mais - caminhos, afalsafa contribuiu sobremaneirapaÍa inúmeras
transformações da filosofia do Oriente e do Ocidente. É assim que, por
exemplo, muitas teses desenvolvidas no interior da falsafa possuem -
aos moldes das duas faces da alma propostas por Ibn Sinã - duas frontes
A pllosopla ENTRE. os Ánneps - Famrrre
34

distintas: uma voltada para o Oriente e a outra para o Ocidente. Como


bem assinalou Cara de Vaux, "esta escola se divide em dois ramos: o
oriental e o ocidental. A1-Kindi, Al-Fãrãbi, Avicena são nomes célebres
do primeiro ramo; lbn Bãja, Ibn Tufayi, Averóis, do segundo ramo."3
Se Voltaire tivesse conhecido, além dos infindáveis volumes escritos
pelos pensadores do Ocidente medieval, também os dos falasifa,
certamente teria continuado a exclamar que tudo deveria ser colocado
em dicionários. E isso não seria à-toa, pois uma das características co-
muns aos falasfa, que chama muito a atenção, é o número de suas
obras. Os títulos de Al-Kindi, citados por Badawi em sua Histoire de la
philosophie islamique, chega ao número de2lI; no caso de Al-Fãrãbi,
mais de 120 para Ibn Sinã, Anawati cataloga 216 obras; para Ibn Ru§d,
Badawi apresenta uma lista de 92 títulos. Algumas dessas obras não
chegaram até nós, muitas enconffam-se ainda em manuscritos arquivados
em bibliotecas, algumas foram editadas em árabe, as mais importantes
tiveram traduções para o latim durante a Idade Média e pouquíssimas
foram traduzidas para as línguas modernas.
Os temas abordados pelos falasfo cobritam grande parte dos
conhecimentos da época: lógica, física, matemática, metafísica, medicina,
astronomia, música, psicologia, éticaepolítica. Pelo fato de haver, dentre
essas obras, comentários sobre Aristóteles e, em menor número, sobre
outros autores, muitas vezes se quis reduzir o papel da falsafo a esses
comentários. Há muito, porém. as pesquisas a respeito dafalsafa jâ se
incumbiram de mostrar o quanto a denominação de "comentadores" era
restrita e imprecisa para designar o trabalho realizado por esses pen-
sadores. Se o comentário foi uma realidade entre osfalasífa, também o
foi o desenvolvimento de uma filosofia original, de grande envergadura,
por pafie de cada um deles.

3. Cf. VAUX, C. Les penseurs de I'Islam, págs. 1s.


AlcuNs rNrnónos
35

Ao*1lrou, islânaricos e mn nnçnnnrrr*^ru

Apesar de muitas vezes serem tomados um pelo outro, esses três


termos não são sinônimos. Certamente, podem ter mais de um sentido,
dependendo do modo como são empregados mas, geralmente, os
encontramos utilizados a partir de uma distinção básica: o termo "áÍabe"
geralmente é utilizado no sentido da língua, da cultura, da política ou da
etnia e não no sentido religioso; o termo "islâmico" guarda o caráter da
religião, mas também do Estado ou da cultura e não da etnia; o termo
"muçulmano", aplica-se às pessoas adeptas da religião islâmica, mas
que não são, necessariamente, árabes. De todo modo, passemos a verificar

com mais detalhes tais significados.


Dentre os inúmeros sentidos em que é usado, o termo "árabe" pode
ser entendido a partir de duas vertentes principais: o conceito "âÍabe"
utilizado em sua origem e o sentido atual que guarda em nossos dias.
Talvez a melhor maneira de abordar esse espinhoso assunto seja com-
preender um pouco da história dos povos chamados árabes e as transfor-
mações que esse teÍmo sofreu ao longo desse percurso. Os árabes fazem
parte dos povos semitas. A primeira notícia que se tem a respeito desses
povos, de modo geral e, dos árabes e da região da Arábia, em particular,
remonta ao Antigo Testamento. No capítulo 10 do Livro do Gênesis, o
povoamento da terra é apresentado pela descendência de Noé a partir de
seus três filhos: Sem, Cam e Jafé. Os árabes fazem parte do conjunto de
povos que se formaram a partir da descendência de Sem e, por essa
tazáo, foram chamados "semitas". O capítulo em questão termina do
seguinte modo:

Esses foram os filhos de Sem, segundo seus clãs e suas línguas,

segundo suas terras e suas nações. Esses foram os clãs dos descendentes
A Rr-osorra. ENTRE os ÁRases - Fnmepa
36

de Noé, segundo suas linhagens e segundo suas nações. Foi a partir


deles que os povos se dispersaram sobre a terra depois do dilúvio.a

O conjunto dos povos semitas localizou-se preferencialmente na


região da Mesopotâmia e originou as civilizações antigas que ocuparam
Babilônios, caldeus, fenícios, hebreus, sírios, assírios e ára-
essas teffas.
bes são, portanto, todos primos. Por volta de 850 a.C. jáera possível
encontrar em inscrições assírias e babilônicas termos equivalentes ao
vocábulo "âÍabe". A literatura grega clássica, através de Heródoto,
também menciona não só os árabes como também a região da Arábia'
Em princípio, o terrno "áÍabe" se aplicou mais precisamente aos beduínos
e à população nômade do deserto da Arábia, em oposição à população
sedentária das cidades. Restrito a esse sentido, "a forma mais pura de
ârabe é a dos beduínos, os quais preservaram com maior fidelidade que
quaisquer outros o modo de vida e a língua árabe originais".s
Em português, o termo "árabe" é derivado diretamente do original

?-!c ('arab) que é um coletivo: os árabes. No caso do adjetivo, que


para nós possui a mesma forma, no original sofre uma alteração para

s''lc, ('arabiy). As derivações a partir dessa raiz englobam todos os


termos afins como, por exemplo, "arabismo", "arábico" e"aÍabizat". O
termo "hebreu" §ltr." $briy) deriva de uma raiz semelhante que se
diferencia pela inversão da segunda com a terceira letra formando o
verbo ('abara) que significa atravessar, passar.
s.:-c-
A partir do século VII d.C. /1H., com o surgimento do Islam, a
aplicação do termo "áÍabe" começou a ganhar novas variantes. As
conquistas que se sucederam logo após a morte do profeta Muhammad

4. Gênesis,X,3I,32.
5. Cf. LEWIS, B. Os árabes na História, pâ9. U,
AucuNs rNrnótros
37

estenderam o império do norte da Índia ao sul da Espanha. Nesse primeiro


período o califado esteve em poder dos árabes e, mesmo com a rípida
expansão que se verificou, o termo "áÍabe" ainda se aplicava somente
aos que falavam a língua átrabe e descendiam de algumas tribos árabes.
No entanto, quando outros povos foram adotando a língua e a religião
dos árabes como, por exemplo, os sírios e os egípcios, o termo "árabe"
começou a migrar em direção a uma conotação mais próxima tanto do
conceito religioso como do línguístico, pois, tanto a 1íngua como a nova
religião haviam sido geradas no seio do povo árrabe.
Como bem assinalou Lewis, "a partir do século VIII d.C. /II H. o
califado foi se transformando gradualmente de um império árabe num
império islâmico". O califado Omíada, que durou pouco mais de 100
anos, desde o estabelecimento do Islam, esteve em poder dos árabes.
Em meados do século VIII d.C. /[I H., a hegemonia árabe sobre o império
começou a se perder. Os Abássidas, de origem persa, assumiram o cali-
fado e transferiram a capital de Damasco para Bagdá. Nessa época os
interesses do império já não eram mais exclusivamente árabes. Esse foi
um marco importante no distanciamento entre os conceitos "árabe" e
"islâmico". Não é difícil perceber que à medida que esse processo de
transformação dos povos convertidos encontrava mais acolhida no termo
"islâmico" do que no termo "áÍabe", as discussões entre os dois conceitos
se mantiveram acesas e chegaram até os dias atuais. Questões como
"medicina árabe" ou "medicina islâmica" e, no nosso caso, "filosofia
árabe" ou "filosofia islâmica" têm suas raízes nesse processo histórico
de desenvolvimento do islamismo desde apenínsula arâbicaaté os limites
de hoje.
Atualmente, o termo "áÍabe" é aplicado num sentido mais genérico,
designando não somente os árabes que habitam a Arábia mas também
os que habitam outros países tais como o Egito, Marrocos, Síria, Líbano
e lraque. Por outro lado os países árabes não designam a totalidade dos
A nLosopre ENTRE os Ánaees - F.rr-sepa
38

países islâmicos. Isso quer dizer que "árabe" e "islâmico" não são
sinônimos, assim como "árabe" e "muçulmano" também não o são: há
muçulmanos que não são árabes e árabes que não são muçulmanos. Nesse
sentido, os árabes vêem a si mesmos como uma grande nação. Do mesmo
modo que os países da Europa vêem a si mesmo como uma unidade, os
árabes entendem ser uma nação nos limites daqueles que "falam a língua
árabe e são sensíveis à memória da glória árabe passada"6, possuindo
uma divisão apenas geográfica e política que teve, entre outras causas, o
próprio coloni alismo europeu.
Na língua ârabe, os temos Islam e "muçulmano"
lÍngua árabe, muçulmano" derivam de uma
mesma raiz: (salima). A idéia geral aplicada a esta raiz en-
71-
globa uma série de conceitos como "par", "saúde", "benevolência",
"integridade", "proteção", "resignação", "hospitalidade" e outros tantos
ligados a um ótimo sentimento. O termo (Islam), derivando dessa
7\-l
raiz, se traduz no sentido de confiança em Deus, resignação a Deus,
conformação a Deus ou submissão a Deus. A adjetivação desse termo
resultou em (islamiy) que se traduziu por "islâmico". Logo,
.e-)-l
aquele que aceita o princípio contido no termo
7\-l (Islam) é um J*
(muslim), termo que se traduz por "muçulmano". Apesar de não haver
uma regra rigorosa, o termo "islâmico" geralmente é usado no sentido
das idéias e dos ideais contidos no Isldm, ao passo que o termo "mu-

çulmano" aplica-se com mais freqüência à pessoa, ao sujeito concreto


que pratica os ideais do Islam. Assim como do verbo ('alima) - l-
saber - se depreende aquele que pratica o saber, isto é, o
*- (mu'allim)
- professor -, do mesmo modo a prefixação "mu" indica em tl-
(muslim) a noção do sujeito concreto. Por isso é mais comum encon-
trarmos "filosofia islâmica" e "filósofo muçulmano" e não o contrário,

6. Cf. LEWIS,B. Os árabes na Históia,pág.21.


A nlosorra ENTRE os Ánesps - Falsepa
40

apesar de que, em casos como "mundo islâmico", pode se encontrar


também "mundo muçulmano". No entanto, o primeiro se mantém no
sentido dos ideais do Islam e o segundo denota o conjunto dos sujeitos
concretos.

lFinru.tÊiaL ána.lb e r* lÊillru rfi* i*nÂr*io* ?

Definir o termo mais apropriado para designar o conjunto de


manifestações da filosofia no período dafalsafa esbarrou na variedade e
na complexidade que lhe foram inerentes. Como seria possível reunir
sob um mesmo nome as obras medievais escritas não só em língua
ârabe, mas também em persa e em hebraico, não só por muçulmanos,
mas também por cristãos e por judeus? Na década de 50, por ocasião do
Congresso de Filosofia Medieval em Louvain, Georges Anawati, um
nome respeitável no estudo da falsafa, patrocinou uma enquete para
tentar fixar a denominação desse período da História da Filosofia. Se a
quase sinonímia entre o conceito "âtabe" e o conceito "muçulmano"
esteve quase sem restrições entre os medievais do Ocidente, a realidade
do século XX se incomodou com essa situação. O próprio Anawati
iniciou a enquete sabendo que sua primeira opção não era definitiva:

Empregamos a expressão "filosofia árabe" mas observamos


imediatamente o perigo do exclusivismo que ela pode apresentar.
Pensamos, em particular, nos nossos amigos iranianos, preocupados,
com justiça, em salvaguardar os direitos de seu inestimável patrimônio

filosófico.7

7. ANAWATI ,G. Études de philosophie rnusulmane,pág.23


Ar-cuNs rNrnólros
4t

A resposta do ministro iraniano 'Ali Asghar Hekmat confirmou a

negativa por pafie dos iranianos, nos seguintes temos:

No que concerne à denominação "filosofia árabe", este termo me

parece inexato e estimo ser preferível (' '.) "filosofia muçulmana" que

é, sem dúvida, mais apropriada e menos contestada'E

M. Achena, tÍadutor de uma obra escrita em persa por Ibn Sinãe,

fez uma dupla crítrca a esse impasse, dizendo:

Mesmo que nos resignássemos, por razões práticas ou outras, a

uma tal escolha, o título "filosofia árabe" e "filosofia muçulmana" seriam

assaz impróprios. Eles têm o inconveniente de dizer o que não devem

dizer e de não dizer aquilo que devem dizer.ro

As principais justificativas em defesa de uma ou de outra posição


foram publicadas por Anawati, ilustrando bem as dificuldades impostas
numa decisão de consenso. Na mesma época Henry Corbin preparou a
su.a fil o s ofia i sl âmi c a. A substituição do termo "muçulmano"
H i s t ó ria da
pelo termo "islâmico" ganhou terreno nos anos seguintes. O projeto de
Corbin pretendeu focalizar os autores islâmicos com ênfase na espiri-
tualidade persa. Mesmo que, em princípio, parecesse mais consistente,
o trabalho de Corbin deixou de fora autores cristãos e judeus que
escreveram em árabe e que estavam em estreita ligação com o pensa-
mento dos autores muçulmanos. Em defesa da denominação "filosofia
islâmica", Corbin entendeu que o uso do termo "filosofia írabe" desde

8. ANAWAII,G. Étuctes de philosophie musulmane,pá,g.23.


9. AVICENNE, Le livre de science. Traduction du texte perse Danesh Nama par
Mohammad Achena e Henri Massé. Paris: Les Belles Letres, 1986.
10. ANAWATI,G. Études de philosophie musulmane,pâg.24.
A prlosone ENTRE os Ánaecs - Fer-sa.re
42

a Idade Média já não mais cabia nos dias atuais. Mesmo reconhecendo
que o profeta Muhammad era árabe, que a língua da revelação foi o
árabe e que, ao menos na base do islamismo, o elemento árabe foi
preponderante, Corbin aludiu ao fato de que o termo "/àrabe" teria se
alterado profundamente, significando um conceito étnico, nacional e
político preciso, com o qual não coincidiriam totalmente o conceito
religioso Islam nem os limites do seu universo.
No outro extremo, numa posição preferencial pelo termo "filosofia
árabe" , destacou-se o argumento de T. Hussein que lembrava que a maior
parte dos textos foi escrita em árabe. Além disso, segundo ele, a ortodoxia
religiosa dos falasfo foi fortemente contestada e seria um paradoxo
qualificar de "muçulmana" ou "islâmica" uma filosofia que se chocou
frontalmente com certos dogmas da religião. No mesmo sentido encon-
trou-se o argumento de Schacht favorável ao termo "filosofia ârabe"
acompanhado pelo termo "ciência árabe", que era aceito sem muitas
restrições. Nesse caso levou-se em conta que a língua árabe foi o meio
de expressão essencial no desenvolvimento verificado tanto na filosofia
como na ciência. O próprio Anawati lembrava que a língua, não só do
Alcorão como do comércio e da cultura, foi o árabe, adotada por muitos
povos dominados pelo Islam. No entanto, apesar dos esforços, a con-
clusão de Anawati foi desalentadora:

Os que tiveram oportunidade de ler as respostas publicadas em


nossa enquete puderam se dar conta de que, teoricamente, o problema
colocado é insolúvel: não há um conceito adequado que abrace ao mesmo
tempo o ponto de vista lingüístico e o ponto de vista religioso. (...) Nós
mesmos, com M. Gardet, tentando encontrar uma expressão sintética,
"aberta" a todos os aspectos do problema, terminamos por chegar à

fórmula: "filosofia medieval em terras do Islam".tl

11. ANAWAII, G. Émdes de philosophie musulmane, pág. 85.


Alcuxs rxrnórros
43

Apesar de inovadora, a proposta não foi adotada com amplitude


pela comunidade intelectual. Na década de 70, Badawi oprou por lançar
sua obra conr a denorninação de História da filosofia no Islam, apro-
ximando-se da sugestão de Anawati, mas não a reproduzindo totalmente.
Nesse título, Badawi sublinhava bem a diferença entre o que se deveria
entender por "filosofia islâmica" - compreendida como uma série de
manifestações do pensamento, mesmo que não rigorosamente filosófico
- e o sentido de "filosofia no Islam" - entendida como a filosofia no
sentido mais restrito das bases da filosofia gÍega.
Na década de 80, Matid Fakhry - assim como Corbin, mas por
razões diferentes - denominou sua obra de Histórin dafilosofia islíunica.
Porém, o assunto não dava qualquer sinal de definição. No caso de Fakhry,
as dificuldades se inverteram obrigando-o, no início de sua obra, a fazer
um alerta ao leitor:

A filosofia islâmica é o produto de um processo intelectual com-


plexo no qual sírios, árabes, persas, turcos, berberes e outros tomaram
uma parte ativa. Porém, o elemento írabe é de tal modo preponderante
que ela poderia, com todo o direito, ser nomeada filosofia árabe.12

Apoiado no fato de que a língua que os autores escolheram para se

expressar foi o ár'abe e de que a força de coesão que pelmitiu o desen-


volvimento da filosofia e da ciência foi o árabe, Fakhry encerrou dizendo
que "sem o claro interesse dos árabes pelo saber antigo, quase nenhum
progresso intelectual teria sido feito ou rrantido"i3.
Certamente, mesmo que a enquete de Anawati tenha sido bem
intencionada para definir os termos, o seu resultado contemplou, antes

12. FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islantique, pág. 15.


13. Idem.
A t tt-osortn ENTRE os Áne.ees - Famere
44

de tudo, a aporia. Em todo o debate, observa-se que os critérios para


nomear um determinado pensador, um determinado movimento ou o
conjunto das manifestações do período medieval oriental, foram quatro:
o critério religioso, lingüístico, geográfico ou étnico. Todos, por sua

natureza, se mostraram excludentes ou insuficientes.


O próprio Corbin ao não aceitar, por exemplo, a redução dos
nascidos na Pérsia como inclusos no termo "árabe", também deve ter
imaginado não ser possível se reduzir todos os árabes ao termo "islâ-
mico". Apenas para que fique um exemplo, podemos citar o caso concÍeto
de Ibn Sinã que ilustra bem essa problemática. Nascido na região da
antiga Pérsia, de fé muçulmana, a maior parte de sua obra foi escrita em
ârabe. Com referência a Ibn Sinã, as três denominações podem, portanto,
ser enconffadas: filósofo persa, filósofo árabe e filósofo muçulmano.
Certamente sempre se encontrará algum argumento para justificá-la:
"filósofo peÍsa" de nascimento, "filósofo árabe" pela língua e "filósofo
muçulmano" pela religião. A opção por uma ou outra denominação varia
de acordo com a ênfase que os diversos autores entendem ser a mais
adequada em cada caso particular. Se fornecidas explicações que con-
trabalancem os outros critérios, isso não paÍece ofender o leitor. Dada
a complexidade da questão, a única coisa que se desvia do bom senso é
a tentativa de reduzir a denominação a um critério que prevaleça de
modo absoluto sobre os outros.
Uma outra opção que tem sido veiculada é o termo "filosofia em
árabe",privilegiando a língua em que foi escrita a maior parte dafalsafa.
Porém, essa opção também não consegue abarcar as obras escritas em
persa, em siríaco e em hebraico que, em alguns casos, foram funda-
mentais na história da falsafa.
A opção pelo termo "a filosofia entre os árabes" não pode pre-
tender ser definitiva. Mas, fazendo-se com que afalsafa figure "entÍe"
os árabes, indica-se, com essa prestadia preposição, ser possível manter
At-cuNs rNrnómos
45

a presença do elemento de coesão que historicamente acompanhou


praticamente todas as manifestações do Oriente medieval, sem excluir,
ao mesmo tempo, nenhum outro elemento que ao longo do desen-
volvimento histórico e filosófico ganhou mais destaque, quer tenha sido
ele a própria religião islâmica, quer tenha sido a região da antiga Pérsia
- atual Irã -, quer tenha sido uma outra língua que não o árabe, ou ainda
um outro fator. Dadas tais preliminares, entendo-as como uma auto-
rizaçáo para poder variar as denominações sem prejuízo de nenhuma e
nem do leitor.

lFlliuúóoi^ d[, P.^ua*omúc,, * ]Flli*úóri* dl* lFinr*rlÊi*

Entre os séculos VIII e XII d.C. /II e VI H., a filosofia começou a


falar em árabe. Nas terras dominadas peTo Islam, afalsafa foi a continua-
dora da filosofia antiga. Por essa razáo, em sentido estrito, é somente
com o termo falsafa que se pode referir à ocorrência da filosofia entre
os árabes. Houve muitas outras manifestações do pensamento no mundo
islâmico nesse mesmo período mas, pelo fato de seus princípios não
estarem sob a mesma égide das demonstrações - propósito da filoso-
fia -, torna-se incorreto designar todas elas pelo nome de "filosofia".
Na classificação das diversas manifestações do pensamento ocor-
ridas no Islam, afalsafa pode muito bem ser caracterizada como o perío-
do dos "filósofos helenizados". Essa denominação, aliás, encontra-se
na classificação de Corbin. No caso de Fakhry e de Hernan dez, o adjetivo
"helenizado" náo é usado para designaÍ esses pensadores, mantendo-se
somente o termo "filósofo". Badawi, poÍ sua vez, denomina os falasifa
de "filósofos puros". Em todos os casos parece certo que os autores
julgam que o leitor tenha em mente a diferença entre a falsafa e as
outras manifestações do pensamento no mundo islâmico. Em linhas
A nlosone ENTRE os Ánegp,s - Frrlsapa
46

gerais, a diferença entre pensamento e filosofia no mundo islâmico não


enconfta premissas diferentes das que se aplicam ao caso mais geral. A
primeira delas é a de que não se deve confundir pensamento com filosofia:
em sentido estrito, toda filosofia é uma manifestação do pensamento,
mas nem todo pensamento é filosofia. Vejamos alguns casos que ilustram
essa questão.
No primeiro deles, o temo "pensamento" pode ser usado num
sentido mais abrangente, referindo-se a várias manifestações como é

observado, por exemplo, no título História do pensamento no mundo


islâmico, de Miguel Cruz Hernandez; ou ainda na opção de Carra de
Vaux, com o título O.r pensadores do Islam. A opção pelo termo mais
genérico - "pensamento" - não cria maiores dificuldades para agrupar e
classificar os autores segundo suas tendências e características: "pen-
samento teológico", "pensamento espiritualista", "pensamento místico"
ou "pensamento filosófico".
Outro modo de encarar as diversas manifestações do pensamento
no mundo islâmico é entender que esse conjunto seria a própria "filosofia
islâmica". Esse título encontramos, por exemplo, nas obras de Fakhry e
de Corbin. Nesse caso os autores entendem o termo "filosofia" num
sentido amplo, assim como podemos dizer "filosofia hindu" ou "filosofia
cristã". Essa opção, contudo, cria naturalmente uma dificuldade para
distinguir o sentido estrito do termo "filosofia" segundo a tradição da
filosofia grega. É por essa razáo que Corbin optou em chamar os.falasifa
- como Al-Kindi, Al-Fãrãbi e lbn Sinã - de "filósofos helenizados"
para diferenciá-los de outros pensadores que, apesar de não poderem
ser classificados, num sentido estrito, como "filósofos" poderiam, ainda
assim, obter essa classificação segundo o significado mais amplo de
"filosofia" adotado por Corbin.
Outra opção é entender o termo "filosofia" no sentido mais estrito
de acordo com a tradição grega. Nesse caso, "filosofia" possui um
AlcuNs rNrnótros 47

significado mais focal e não pode ser considerada ou dita de toda for-
ma de manifestação do pensamento mas, ao contrário, é um caso
específico e particular. É dessa maneira que Badawi entende "filoso-
fia" quando escreve sua filosofia no Islam. Nessa obra não
HisÍória da

são analisadas todas as manifestações de pensamento dentro do isla-


mismo, mas apenas as que seguem os princípios da filosofia em sentido
estrito. Mesmo assim, Badawi divide sua obra em duas partes: àprimeira
concede o título de "filósofos teólogos" e à segunda, o de "filósofos
puros". Estes últimos são os falasifa, e é nesse sentido que o termo
"fiIósofo" é melhor aplicado.
Se por um lado, na classificação mais geral do termo "pensamento",
podemos englobar todos os que se manifestaram de algum modo sobre
as questões mais variadas a respeito do homem, do Universo, da socie-
dade, da religião e das ciências naturais, por outÍo lado, na classificação
mais restrita, o terrno "filosofia" cabe somente à falsafa e aos falasifa,
na medida em que seus representantes procuraram trilhar os caminhos
do pensamento segundo a tradição da filosofia herdada da Antiguidade,
notadamente pelas vias estabelecidas por Platão e por Aristóteles.

lFiI.*rfi* . lforn.gr*
Sendo que a falsafa foi, em sentido estrito, a manifestação do
pensamento filosófico no Islam, parece sensato procurar esboçar alguns
limites que a diferenciam de outras linhas de pensamento, também
surgidas após o estabelecimento do Alcorão.Pode se especular que dentre
as inúmeras posturas adotadas pelos homens diante de um texto sagrado,
três parecem emergir com grande força: a teológica, a mística e a filo-
sófica. No caso do Alcorão, não foi diferente. Se verificarmos com
atenção as inúmeras manifestações do pensamento no Islãm - adotando
A rtLosona ENTRE os ÁRABES - Famepr
48

qualquer uma das divisões propostas pelos diversos autores da história


do pensamento no mundo islâmico -, podemos agrupá-las segundo
uma postura teológica, mística e filosófica. Por sinal, uma divisão
semelhante (escolástica, teologia e mística) foi adotada por Carra de
Vaux em sua obrara. Nesse caso, a teologia deve ser entendida no sentido
moderno do termo que pauta seu desenvolvimento a partir da fé na
revelação; a mística, no sentido da experiência interior com Deus,
abandonando arazáo para fundir-se no divino; e a filosofia, como ciên-
cia independente que busca, a partir da razáo, o entendimento dos
fenômenos.
No Islam a teologia denominou-se
1)tS (kalam); a mística é o
i+g- (qurtya), isto é, o sufismo; e o entendimento pela demonstração
lógica é a L;,*Li (falsafa). Entre as três há muitas diferenças. Como
neste trabalho se pretende um olhar mais detido sobre a falsafa, náo
cabe, aqui, uma análise mais detida da teologia ou da mística pelo
aprofundamento dos princípios do sufismo ou do kalam. Mas algumas
indicações sumárias marcam alguns pontos fronteiriços enffe essas pos-
turas. Pelo fato de estarmos destacando aspectos dessemelhantes, talvez
sejarazoáxel observar que também existem pontos de contato, mas que
não serão tratados aqui.
Se abrirmos um dicionário da língua portuguesa, veremos que hoje
em dia o termo "teologia" é entendido como a "ciência da religião, do
estudo sobre Deus e das coisas divinas à luz da revelação".15 Assim, o
termo "teologia", em seu significado puramente religioso, é associado
aos dogmas dafé e da reflexão feita a partir dos dados revelados por

14. Cf. CARRA DE VAUX. Les penseurs de I'lslam. Paris: Paul Geuthner, l92l,vol.
IV "A escolástica, a teologia e a mística. A música."
15. Cf . Grande dicioruirio ltrroussse cultural da língua portuguesa. São Paulo: Abril,
1999, pâ9. 865.
Ar-cuNs INrnótros
49

Deus nas escrituras sagradas. Os primeiros pensadores do início do


cristianismo, por exemplo, usaÍam esse teÍmo num sentido amplo,
significando o estudo e a contemplação de Deus, sem fazer uma distinção
mais rigorosa entre filosofia e teologia. Foi somente após Tomás de
Aquino que se deu uma distinção mais precisa entre esses dois conceitos
que, paulatinamente, se desenvolveram até chegar ao moderno sentido
diviso como o conhecemos hoje em dia. No século XVII d.C. já se
distinguia a "teologia natuÍal" ou teodicéia da "teologia revelada". Na
primeira, a busca do conhecimento de Deus seria feita pelas vias da
razáo, somente com os limites da ordem da natureza, valendo-se apenas
da argumentação silogística e sem recoffer à autoridade das escrituras'
A ,,teologia fevelada", de outro modo, faria uso do princípio da fé na
palavra revelada, para conhecer a Deus. Tomás de Aquino faz referência
a isso dizendo que "a sagrada doutrina é ciência poÍque parte dos
princípios conhecidos através da luz de uma ciência superior, que é a
ciência de Deus e dos bem-aventurados".ró A famosa díade razáo e fé,
que se equilibrou durante o período medieval, permitiu maior proximi-
dade entre filosofia e teologia. No cristianismo, a filosofia, salva nos
mosteiros, vinculou-se solidamente aos padres da igreja. Neste caso,
talvez tenha parecido mais natural que filosofia e teologia estivessem
amalgamadas. A modernidade reahzou a separação desses domínios e
fez com que paÍecesse óbvio a qualquer estudante de hoje que filosofia
não é teologia. No .Is/am não houve um paralelismo a esse respeito.
Desde o início, o Islam viveu um quadro que distinguia a filosofia da
) teologia, isto é afalsofo do kalam.
O termo 7\S (kalam) significa discurso, linguagem ou palavra, e
.)
o partidário do kalam foi denominado (mutakallim), isto é, "aquele
J
#S;

16. AQUINO, T. Suma teológica, I.q.l a2.

=
-<
A nrLosopre ENTRE os Ánasss - Famape
50

que discursa" ou "aquele que fala". Geralmente são citados pelo plural:
(mutakallimun). Logo após o estabelecimento do Alcorão,
"rJÍ-"
e mesmo antes das traduções das obras filosóficas gregas, o kalam jâ
era uma realidade no mundo islâmico. Uma de suas características foi
ter aplicado o raciocínio e a argumentação filosófica aos dogmas do
islamismo. Nesse sentido, a abordagem do kalam se aproximou bastante
do sentido que damos ao termo "teologia" tomando por base a experiência
do cristianismo. Ao se falar em teologia no Isldm, é aos mutakallimun -
e não aos falasrfa - que se encontram as referências. Desse modo, os
representantes do kalam, enquanto se basearam na revelação como ponto
de partida para a reflexão filosófica, podem ser considerados os mais
próximos dos pensadores cristãos dos primeiros séculos do cristianismo.
Por isso, náo é razoável estabelecer uma identidade enl.re afalsofa e o
filosofia medieval cristã. A falsafa não tem precedentes e não
caráter da

se confunde com nenhum outro movimento, seja no Oriente e, menos


ainda, no Ocidente. Sua posição histórica é assaz peculiar e única. Ape-
sar de se desenvolver num ambiente religioso manteve-se continuadora
da filosofia antiga. A teologia ficou a cargo dos mutakallimún.
Mesmo assim, os mut akal limún buscaram argumentar I ogicamente
a partir dos dados da revelação. Guardadas as devidas particularidades,
assim como em nossos manuais de "história da filosofia" figuram os
padres da igreja cristã, os mutakallimünpodem ser incluídos na "história
da filosofia no Islam".Isso está bem colocado por Badawi ao dividir sua
obra em "filósofos puros" e "filósofos teólogos". Os primeiros são os
falasfo,pois prescindem dos dados da fé para argumentar, e os segundos

são os mutakallimun que se utilizam dos argumentos lógicos para justifi-


car o que é sabido pela revelaçáo. Diz Badawi: "quem diz filosofia diz
pensamento essencialmente racional. Assim, nos limitamos ao estudo dos
sistemas racionalistas, tanto em teologia especulativa como em filosofia
Ar-cuNs rNrnórros
5l

pura"17, ou seja, tanto no kalam como na falsafa. Um dos exemplos dessa


distinção é que as vias da razáo levaram, muitas vezes, Al-Fãrãbi, Ibn
Sinã e o próprio Ibn Ru§d a construírem sistemas que se confrontaram
com os dogmas da religião. Por essas razões é qte a falsafa não é teologia
islâmica e se mantém fiel à tradição da filosofia herdada dos antigos.
Vale lembrar, porém, que os próprios falasifa também usaram o
termo "teologia" mas não no sentido da religião e sim no mesmo sentido
filosófico usado por Aristóteles séculos antes. Sabe-se que o próplio
Aristóteles em sua Metafísica não usou o termo "metafísica" para de-
signar os estudos sobre a causa primeira, mas a denomrnou de OeoÀoyru
(theologia) "teologia" ou fipCIrn QúoooQr« (prote philosolia) "fiIosofia
primeira". Essa ciência deveria se ocupar do estudo do ser enquanto ser
e da substância eterna e separada, isto é, Deus, pois "a mais divina das
ciências é também a mais nobre; e esta, ela só, é de duas maneiras a
mais divina. Com efeito, a ciência que mais conviria a Deus possuir é

uma ciência divina, e também o é aquela que trata de coisas divinas".18


O termo "metafísica" teria sido, na verdade, o nome dado por Andrônico
de Rodes no século I a.C. quando organizava os livros de Aristóteles.
Como esses livros haviam sido colocados após os oito livros da Físicct,
chamou-se-lhes rcr lrcrcr rcr, Quorlo, (tá metá tá phisicá) que significa
"os que estão depois da física". Geralmente considera-se que o nome, a
princípio de caráter classificatório, acabou servindo adequadamente ao
estudo que se debruçava sobre as coisas que transcendem o mundo da
natuÍeza. Teria sido a partir dessa classificação de Rodes que os termos
"teologia", "filosofia primeira" e "metafísica" foram tomados pratica-
mente como sinônimos, o que ocoÍreu também entre os.falasifa.

17. BADAWI, A. Histoire de la philosophie islanüque, pâg.5.


18. ARISTÓTELES. Metofísica. Porto Alegre: Ed. Globo, pág.40,983a-5.
A nrlosona. ENTRE os Ánasns - Femep,q
52

Na língua árabe podemos encontrar tanto o termo "teologia" como o


termo "metafísica", ora simplesmente transliterado (como no caso de "filo-
sofia" para "falsafa"), o, como uma construção lingüística que coÍres-
ponde à idéia original grega. O primeiro é o caso, por exemplo, da tradu-

ção para o árabe do apócrifo chamado Teologia de Aristóteles. Essa obra,


de que nos ocuparemos mais adiante, foi traduzida por L*i3J9:l
,J",ÍltJ.t t .,, )l ('AIulugía 'Aristatalís) "Teologia de Aristóteles". No
segundo caso encontramos, por exemplo, em Ibn Sinã o termo árabe ,-çll
+ ('ilm ilahi) "ciência divina" em conformidade com a formação do
termo grego OeoÀoytu(theologia)"teologia", ou seja, Oeoç (teos) eÀoyog
(logos). Do mesmo modo ele a denomina .rJ3l ; ;..,1à (falsafa 'úla)
"filosofia primeira". Esses dois termos - "teologia" e "ciência divina" -
são usados, assim como por Aristóteles, como sinônimo de "metafísica",
que no árabe guarda exatamente o sentido original do grego xa$EÍaÍa
$uotlcr (támetátáphisicá) "os que estão depois da física" e se encontÍa
do seguinte modo: ;..{ÀJl .L,+ l^ (ma ba'd at-tabi 'a) "o que está
depois da física". No segundo livro da Metafísica,Ibn Sina assim se
refere a essa ciência:

Ela é chamada filosofia primeira porque é a ciência das primeiras

das coisas na existência (...) é igualmente a sabedoria que é a ciência


mais nobre concernente ao objeto de conhecimento mais excelente. Pois

ela é a melhor ciência, isto é, a certeza, em vista do objeto cognoscível

mais nobre que é Deus, que Ele seja exaltado, e das causas que vêm
depois dele. É também o conhecimento supremo das causas do todo. É

também o conhecimento de Deus e é por isso que ela é definida como a

ciência divina.re

19. AVICENNE . La métaphysique du Shifa' , pâg. 95.


At-cuNs rNTRórros
55

Fín."r,fi^ o N[íu,( íu-.*

Assim como os filósofos, também os místicos já existiam antes do


Islam.E, assim como o Islamnascente, por um lado. absorveu os métodos
e os objetivos da filosofia, por outro, também absorveu as práticas e o
subjetivismo damística. Seguindo o mesmo adágio de recepção, adapta-
ção e desenvolvimento, as inúmeras manifestações do pensamento no
interior do Islãm tiveram a contribuição de inúmeras doutrinas que ha-
viam se desenvolvido em outras culturas e em outras religiões que lhe
eram anteriores, No sufismo, contribuíram paraa sua formação algumas
correntes místicas do cristianismo, elementos do hinduísmo e do budis-
mo. Como bem assinala Chevalier, o sufismo "se desenvolveu em regiões
cristianizadas e helenizadas, possuindo também a inclinação para o
conhecimento, como certos filósofos, místicos e ascetas desses lugares.
No entanto, não de qualquerconhecimento, mas acima de tudo, do conhe-
cimento de Deus".2o
Os movimentos de ascese propostos pelo sufismo têm proximidade
com a doutrina do Uno plotiniano que já havia se desenvolvido séculos
antes com os gnósticos da Escola de Alexandria. Vale lembrar que o
termo "mística" já se encontra nas obras do chamado pseudo-Dionísio
do século V d.C. no sentido de mostrar a impossibilidade da alma humana
em conhecer a Deus por meio do intelecto. Tal impossibilidade mani-
festar-se-ia na denominação de Deus a partir da negação de atributos
(teologia negativa) como, por exemplo, Deus in-finito, in-efável, etc.
Paralelamente a essa impossibilidade, insistiu-se numa relação originária,
íntima e pessoal enffe o homem e Deus, em virtude da qual o homem
pode retornar a Deus e unir-se finalmente a Ele num ato supremo. Esse

20. CIIEVALIER,J.E/ sufismo. México: FondodeCulturaEconómica, 1998,pág.11.


A t tlosopta ENTRE os ÁnegEs - Femrrpa
54

seria o êxtase supremo, que o pseudo-Dionísio considerou a deificação


do homem. De modo geral, esse pareceu ser o esquema de muitas dou-
trinas místicas que, em certa medida, foi extraída pelo pseudo-Dionísio
dos textos neoplatônicos.
Além disso, ao penetrar na Pérsia o sufismo parece ter absorvido,
também, influências do zoroastrismo. Por essas razões, não é demais
dizer que as origens do sufismo se perdem e, ao mesmo tempo, se

encontram em tradições místicas anteriores ao Islam, De todo modo, no


século VIII d.C. /II H. a mística islâmica já havia absorvido esses ele-
mentos, a ponto de criar a sua própria face esotérica e os místicos
muçulmanos, nesse período, já eram designados pelo termo sufiy. A
partir do século XI d.C. /VI H., os preceitos do sufismo foram se insti-
tucionalizando e os níveis de conhecimento ascético foram organizados
segundo uma hierarquia de graus e ritos - aos moldes dos círculos
esotéricos - perdurando até os dias de hoje. E por essa razão que Robert
Graves afirma que o sufismo seria atualmente como "uma antiga
maçonaria espiritual (...) [em que] os sufis sentem-se à vontade em
todas as religiões e, exatamente como os 'pedreiros livres e aceitos',
abrem diante de si, em sua loja, qualquer livro sagrado - seja a Bíblia, o
Alcorão, ou aTorá - aceito pelo Estado temporal".2r
Uma das interpretações do significado do termo "sufi" é a de que ele
designaria o manto de 1ã grossa, bem simples, usado pelos primeiros
ascetas. Essa interpretação se origina da palavra árabe Qúfl que i*^
significa "7á" e na formação de seu respectivo adjetivo "de lã", ou seja,

çr"*r- G.Afiy).Porém, não há acordo a esse respeito. Outras interpre-


tações buscam, por exemplo, uma analogia do termo "sufi"com o termo
grego "sofos" fazendo-o se aproximar de "sabedoria", ou ainda, como

21. SHAH, I. Os sufis. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, pá9.7.


Ar-cr.rr'ts rNrnórros
55

uma derivação da palavra árabe ,l),-o (qafa') que significa"puÍeza".


Mesmo que não haja um consenso quanto à origem precisa do termo
"sufi", parece ser concórdia que essas qualidades são intrínsecas ao
sufismo: o desapego, a sabedoria e a pureza. Seguir adiante na definição
do que é o sufismo parece ser uma tarefa para desavisados que desco-
nhecem a própria doutrina sufi. Em seu prefácio, Idries Shah alerta:

Não é por acaso que a "doutrina secreta", cuja existência tem sido

suspeitada e procurada há tanto tempo, se revela tão esquiva ao pes-


quisador. (...) Não se chega ao sufismo, à "tradição secreta", tomando
por base suposições pertencentes a outro mundo, o mundo do intelecto.

Se sentirmos que só podemos procurar a verdade do fato extrafísico por


meio de certo modo de pensar, o meio racional e "científico", não pode
haver contato entre o sufi e o pesquisador supostamente objetivo.r2

Após tal alerta, para não se cair em contradição, deve-se câlar e


entender que o sufismo é uma prâtica que necessita, a partir de um certo
ponto, da presença de um mestre e, por essa razão, não seria razoável
avançil na linguagem para querer defini-la. No entanto, a recíproca
paÍece não valer, pois é curioso que o próprio Shah possua uma obra
vastíssima para divulgar o sufismo valendo-se darazáo, da objetividade
e da lógica da linguagem para isso. Mas, que não haja engano, pois essa
aparente contradição também parece agradar a alguns sufis. De todo
modo, estes são pontos que indicam o grande afastamento no trato da
lógica e da linguagem entre a mística do sufismo e a filosofia dafalsafa.
Mesmo quando encontramos algumas referências sufis a alguns dos
falasifa mais orientais como, por exemplo, Al-Fãrãbi e Ibn Sinã, estas,

22. SHAH,I. Os sufi.s,pág.23.


A rrlosona EN'I'RE os ÁnAees - Fama.ra
56

certamente, se referem a algum aspecto de sua conduta e não propria-


mente às suas obras filosóficas, pois nestas todo movimento da alma
humana é feito pelas vias do intelecto e passíveis de entendimento.
Não admitindo sua definição fora da própria vivência do místico,
fica bem certo que o sufismo não pretende ser uma especulação filosó-
fica ou teológica a respeito da divindade, nos moldes da falsafa ou do
kalam. O seu foco não é a demonstração mas, sim, a experiência. É
nesse sentido, isto é, por se encontrar melhor como uma experiência
interna com a divindade que se reflete no modo de viver e de se comportar
do homem sufi, que Ibn 'Abdallah Tustari disse: "o sufi é aquele que é
puro de tudo que perturba, que é cheio de meditação, que se retirou dos
homens para se consagÍar a Deus, e para quem o ouro e a argila são
equivalentes".23 Com essa bela frase, poderíamos preencher muitas
páginas de infindos adornos poéticos do mesmo quilate e, quase sempre,
encontraríamos a beleza e a poesia nas palavras sufis. Afinal, essa é

uma de suas características mais marcantes. Talvez, até pelo fato de ser
mais poesia que demonstração lógica, é que o sufismo é mística e a
falsafa é filosofia. É importante notar que o objetivo do sufismo, não
sendo a especulação racional e a demonstração pela lógica, é mais um
convite à experiência do êxtase na união com Deus.
Inúmeras passagens do texto sagrado dos muçulmanos lidas pelo
sufismo, no sentido da experiência mística colocam, por um lado, o sen-
tido exotérico do texto revelado no Alcorão, expresso pela 1ei exterior que
organiza e determina os direitos e deveres do muçulmano e, por outro
lado, o sentido esotéÍico, que mostra o caminho para o místico se unir à
realidade divina, cumprindo a realizaçáo última: "aniquilar-se nel 4".24

23. KIELCE, A. O sufismo. São Paulo: Martins Fontes, 1986, pág. 15.
24. Ib., pá9.9.
ALGI]Ns INTRÓIToS
57

Em busca do êxtase místico, da união com Deus, o homem necessita se

desvencilhar dos obstáculos que seus próprios limites humanos lhe


impõem. Ali Shah traduz isto do seguinte modo:

Nessa união, tão grande é a iniluência do Espírito Eterno que o


julgamento humano - aquilo que podemos descrever como a faculdade

lógica do homem, seu entendimento - é inteiramente apagado e destruído

por Ele. rí

A distância fica mais evidente quando se compara o método e o


objetivo da filosofia adotados pelafalsafa, com a passagem de Platão na

Carta VII:

Só quando esfregarmos uns nos outros, nomes, definições, per-

cepçÕes de vista e impressões dos sentidos, quando se discutir em dis-

cussões atentas, onde a inveja não dite nem as perguntas nem as respostas,

é que, sobre o objeto estudado, vem incidir a luz da sabedoria e da inte-

ligência com toda a intensidade que podem suportar as forças humanas.r6

Nessa medida, pode-se entender que os limites fronteiriços entre a

falsafa e o sufismo são praticamente os limites entre a filosofia e a mística.


Levadas ao extremo, as vias de acesso ao conhecimento propostas por
essas duas manifestações do pensamento têm mais diferenças que
sernelhanças. No entanto, isso não impede que, em determinados autores,
haja uma interpenetração das duas posturas. Afinal, parecem seÍ, os
homens, mais complexos que os conceitos.

25. éJ-I SHAH, S.I. Princípios gerais do sufismo. São Paulo: Artar, 1987, pág.25.
26. PLATÀO. Cartas.Lisboa: Estampa, 1989,pâg.71 .
LT** n oo^*ç* o]1. **ilr,"o

O nascimento do Islam no século VII d.C. lLH., fez com que os

árabes saíssem da península arábica e, sob o comando de Muhammad e


dos primeiros califas, estabelecessem um império que iria se consolidar,

posteriormente, desde o sul da Espanha até a Índia, passando por todo o


norte da África, pelo Oriente Médio e chegando às portas de Bizâncio.
"O fato tem conseqüências incalculáveis: pela primeira vez estes dois
conjuntos, do delta do Indo à Hispânia, são reunidos sob uma mesma
autoridade, fundidos num mesmo domínio econômico, prometidos a uma
mesma cultura."r O avanço dos árabes em busca não só do domínio das
terras e da administração, mas também do saber, impulsionados por sua
nova religião, pelas próprias palavras do Profeta e do Alcorão, fez com
que tivessem um contato proveitoso com culturas que possuíam uma
tradição filosófica e científica mais antiga e bem diversa daquela que
eles haviam produzido nos desertos da Arábia.
No novo cenário histórico que se desenhou, os árabes se colocaram
em contato mais íntimo com a Pérsia, o Egito, a Síria, a Índia, dentre
outros. Suas culturas forneceram diversos elementos para que grande
parte dos conhecimentos da época se constituísse num conjunto reela-
borado que foi, então, unificado pela língua ítrabe. Assim, os árabes se

beneficiararn pelo desenvolvimento anterior que se havia verificado,


por exemplo, nos centÍos de estudos de Gundishapur, de Edessa e de
Alexandria, dentre os principais. Além disso, nunca é demais lembrar
que por toda a extensão das terras conquistadas pelos árabes já havia
núcleos da cultura helênica desde os tempos do império de Alexandre.
Nestes, há muito tempo já se tinha contato com as obras e com o idioma

l. MIQUEL. O Islame,irz GIORDANI,píg.71.


A prr-osone ENTRE os ÁnrrsEs - Fllsenn
132

dos antigos gregos. Assim como a tomada de Alexandria pelos árabes


em 641d.C. - que já era o centro mais importante para a filosofia grega
e para a teologia desde oinício do primeiro milênio da era cristã - os
colocaria em contato com esses estudos, assim também o seria com o
domínio de alguns outros núcleos da cultura helênica espalhados pela
Síria e pela Pérsia, como os de Antioquia, Harran, Edessa e Nísibe.
Estes cultivavam a língua grega objetivando, entre outras coisas, ter
acesso aos principais textos teológicos vindos da própria Alexandria.
Se por um lado, a presença dos árabes proporcionou um novo
impulso tanto às ciências práticas como à própria filosofia, por outro, a
importância dos comentadores sírios de Aristóteles - e as traduções do
grego para o siríaco que antecederam apassagem da sabedoria dos gregos
aos árabes - foi fundamental, pois forneceu elementos filosóficos e
teológicos que, em seguida, foram desenvolvidos pelos árabes em sua
realidade religiosa nascente.
Apesar disso, deve-se levar em conta que muitas das traduções
siríacas foram realizadas visando uma tradução para a língua árabe' Se,
por um lado, isso indica que talvez não tenha havido propriamente uma
forte tradição siríaca da filosofia nesse período, por outro lado mostra
que a filosofia grega era estudada na língua original. Na tradição dos
comentadores sírios, "a tradução de textos teológicos se acompanhava
freqüentemente da tradução de obras de lógica. Isso era necessário para
examinar mais profundamante a significação dos conceitos teológicos
e os procedimentos dialéticos implicados nos debates cristológicos
da época".2 Um dos exemplos disso foi a presença de Severo Sebokt
(m.667 d.C.), que viveu no monastério monofisita de Qinasrin e escreveu
comentários sobre o Tratado da interpretação e sobre a Retórica de

2. FAKHRY, op. cit.,pâe.26.


"Iop ouscen o sABER nrÉ Na CHtNe..." A necrnçÃo
t33

Aristóteles e escreveu um tÍatado sobre os Silogismos dos primeiros


analíticos. Seu discípulo, Jacques de Edessa deixou como legado uma
versão siríaca dx Categorias.
É importante salientar que nessa rápida expansão que abarcou os
núcleos de saber da Antiguidade, a passagem da ciência e do satrer dos
antigos para os árabes teria sido mais difícil sem a colaboração que
obtiveram de tradutores, teólogos e linguistas que não eram nem mu-
çulmanos e nem árabes. A ajuda recebida dos cristãos nestorianos,
monofisistas e melquitas - principalmente na Síria e no Egito que os
recebeu praticamente como libertadores da opressão do poder central
de Bizâncio - se estendeu até a época das traduções dos textos gregos e

siríacos para alíngua árabe. Em sua quase totalidade, essas traduções


foram realizadas pelos sábios cristãos do Oriente como, por exemplo, o
trabalho dos sábios de Harran na Síria - que era centro dos adoradores

dos astros mescladas a influências helenísticas, gnósticas e herméticas,


e que forneceria os astrólogos pala a corte Abássida -, mas notadamente

por Hunayn Ibn Ishãq.


Também foi importante o papel dos mestres cristãos nestorianos
da tradição do saber grego-siríaco juntamente com outros que deixaram
a escola de Atenas quando esta foi fechada por Justiniano em 529 d.C. e

que se encontravam em Gundishapur. Esta, fundada em 555 d'C', já


possuía uma academia renomada, observatórios e escolas de medicina
muito antes de que Bagdá fosse fundada em 762 d.C. ou que a Casa da
Sabedoria - fundada em 830 d.C. - tivesse na figura de Hunayn o seu
diretor e o maior tradutor desse período. Além disso, Gundishapur
também forneceu aos califas médicos para a corte e contribuiu para a
fundação do primeiro hospital em Bagdá.
Num segundo momento, não foram somente as conquistas que
colocaram os árabes em contato com a herança de conhecimentos da
A prlosone ENTRE os Áneeps - Fer-sar,r
134

Antiguidade mas também a algumas missões enviadas pelos califas ou


por famílias de posses. A época de maior interesse por esse tipo de
expedições do saber se deu no período Abássida. Algumas missões eram
oficiais e tinham como objetivo principal procurar manuscritos gregos.
Uma das mais importantes foi enviada pelo próprio califa Al-Ma'mün
com o objetivo de ir a Bizâncioparatrazer manuscritos a serem traduzidos
na Casa da Sabedoria.
Outra missão que ficou muito conhecida foi organizada pelos irmãos
Sakir que levou, entre outros, flunayn Ibn Ishãq. Igualmente importante
foi a aquisição de obras científicas e filosóficas pelos membros de uma
rica família chamada Banü Müsã. Muitos representantes dessa família
foram grandes mecenas para as traduções, chegando mesmo arivalizar
com os califas ao enviar missões a Bizâncio e reunindo, por conta própria,
renomados tradutores do império para o trabalho final. Os temas eram
diversos e incluíam tratados de matemática, astronomia e física dentre
outros. Os próprios membros da família chegaram a compor certos
tratados que são atribuídos a um de seus membros chamado Muhammad
tais como o TraÍado sobre o áÍomo e um Tratarlo sobre a eternidade do
mundo.
Além dessas expedições, os próprios sábios como, por exemplo,
Qustã Ibn Lüqã, conseguiram muitos dos manuscritos que se pôde
traduzir. De todo modo, foi nesse cenário rico de influências que, em
pouco tempo, os árabes se viram detentores de grande parte da herança
filosófica e científica da Antiguidade que, paulatinamente, foi sendo
traduzida para a língua árabe.
"Ior suscnn o sABER ,trÉ Ne. CnrNa..." A necei,çÃo
t35

As poir-oinas ún,a,iluções

As primeiras fontes que forneceÍam o material para ser traduzido


provinham em grande parte da língua grega e do siríaco. Os primeiros
temas que foram traduzidos não foram propriamente filosóficos, mas
temas que tinham uma aplicação prática. Havia sido, em boa medida,
considerações de ordem prática que levaram, paulatinamente, à substi-
tuição do persa e do grcgo, como língua oficial no âmbito administrativo,
pela língua ârabe.
Pode-se aceitar como crível que os textos científicos e médicos
foram as prin-reiras obras traduzidas em árabe. Os textos de alquimia e
astrologia também aí se incluír'am. A justificativa para isso talvez se
encontre no perfil prático dos árabes, o que despertou um interesse mais
imediato de aplicação, deixando os aspectos mais abstratos do pensamen-
to grego para um momento posterior. No campo da medicina, uma das
primeiras traduções foi atribuída a um médico judeu (Mãsar§awayh).
Essa obra, um breviário médico síriaco denominado Kunna§ de autoria
do médico monofisita alexandrino Aaron, foi realizada por volta de
683 d.C. e tinha grande reputação entre os sírios.
O processo de tradução de obras científicas e filosóficas começou
a se intensificar durante o período Abássida sob os reinados de Harun
Al-Ra§ld e de Al-Mansür, que era versado na jurisprudência e amador
da filosofia e da astronomia, e tinha a seu serviço sábios, médicos e
astrólogos. Nesse período possivelmente foram traduzidos o Almagesto
de Ptolomeu e Os elentetúos de Euclides. Na mesma época foi traduzido,
também, um célebre tratado indiano de astronomia (Siddhãnta) por
Al- Fazãri (m. 806 d.C.), que juntamente com seu pai Ibrãhim construiu
o primeiro astrolábio no Isldm e são computados entre os primeiros
astrônomos islâmicos. Uma das razóes para a importância da tradução
de obras de astronomia e de astrologia pode estar ligada diretamente aos
A rrlosone. ENTRE os Ánasns - Famere
136

conselhos políticos dos sábios da corte a partir dos movimentos dos


astros. As convulsões políticas que culminaram com a quedas dos
Omíadas e a sucessão dos Abássidas haviam inclinado os califas a uma
valorizaçáo dos movimentos dos astros como determinantes na vida das
nações. Fakhry anota esse fato do seguinte modo:

Mesmo os califas mais esclarecidos desse período, como


Al-Ma'mun, não escaparam dessa dependência frente às estrelas.
Havia, não somente um astrólogo real contratado a seu serviço, mas
ele não tomava nenhuma decisão militar ou política importante sem,
primeiro, o consultar.3

Num primeiro momento parece que foram traduzidos muitos textos


apócrifos como, por exemplo, aforismos morais atribuídos a Sócrates,
Sólon, Hermes e Pitágoras. Um dos tradutores mais importantes que
viveu durante o califado Abássida foi Yahya Ibn Al-Bitriq que traduziu
para o ârabe, dentre outras, o Timeu de Platão -talvez não propriamente

a obra original mas uma paráfrase de Galeno. Igualmente traduziu uma


paráfrase do Tratado sobre a alma de Aristóteles - talvez numa versão
de Temisthius. Das obras aristotélicas atribui-se-lhe também dezenove
livros de zoologia, os Primeiros analítico^r e o apócrifo Segredo dos
seg re do s, que ele dizia ter "descoberto durante suas pesqui s as da P olít ic a

de Aristóteles sob a ordem do califa".a Até o reinado de Al-Mansür,


porém, ainda não havia à disposição dos califas um grupo tão competente
como o que veio em seguida sob o reinado de Al-Ma'mün, que fez um
esforço sistemático e determinado para adquirir e traduzir os principais
monumentos da ciência e da filosofia gregas.

3. Ib., pâ9.32.
4. Ib., pá9.33.
"loe auscan o sABER arÉ se Ctttxe..." A nrcneçÀo
t37

A época das traduções, podia-se verificar -


pelo relato de §alãh
Al-din Al-Safadi - que havia dois métodos de tradução existentes. O
primeiro método - inicialmente talvez usado por Ibn Al-Bitriq e Ibn
Nã'ima - consistia em identificar termo a termo o texto grego e depois
procurar os teÍmos correspondentes na língua árabe. Esse, porém, não
foi considerado um bom método, devido à inexistência de equivalência

de termos correspondentes - notadamente porque a língua árabe não


fôra esculpida, até então para isso - e mesmo porque a sintaxe peculiar
da língua árabe dificultava esse processo.
O segundo método de tradução, amplamente adotado por ser o mais
confiável, foi o de Hunayn Ibn Ishãq e de sua escola. Neste, a sentença
em grego era lida até ser compreendida perfeitamente para, depois, o
tradutor procuÍar o mesmo sentido na língua árabe, independente de
seguir a sentença termo a termo. Deve-se destacar que isso só era
realizado depois de se estabelecer previamente um bom texto grego
fixado por diferentes manuscritos disponíveis, fornecendo, inclusive, as

variantes mais importantes.


Opinando sobre a tradução, Al-Jãhi7 já refletia àquela época a
preocupação com o rigor ao mostrar, por exemplo, que o tradutor deveria
ter o mesmo nível intelectual do autor e ser versado nas duas línguas de
modo excelente e equivalente. No caso das traduções do próprio Hunayn,
estas necessitavam pouca revisão, pois ele era versado em medicina,
lógica, física e metafísica. Apontando questões que são problemas de
tradução até hoje, Al-Jahiz também se mostrava cônscio de que os textos
poéticos, teológicos e filosóficos impunham uma dificuldade maior que
os textos de matemática, astronomia e medicina.
A rrlosopm. ENI-RE os Áneees - FaLsere
t38

JH[*^*y^ e a Cars,n o[* S*[ro,.]lroii*

O marco decisivo do período de traduções ocorreu em 830 d.C. /


220H. quando o califa Abássida Al-Ma'mün fundou em Bagdá a "Casa
da Sabedoria", que continha um instituto de pesquisas, uma biblioteca,
um museu e um centro de traduções. Para reunir obras na biblioteca, o
califa enviava emissários a Bizâncio para pesquisar e adquirir obras de
"ciência antiga" ordenando, em seguida, que fossem traduzidas por um
grupo de especialistas. Nas palavras de Fakhry é possível identificar a
importância de Al-Ma'mün e seu amor pela filosofia:

Nenhum dos mecenas da ciência grega mencionados até o


presente pôde se igualar em zêlo, generosidade ou distinção
intelectual ao célebre califa Abássida Al-Ma'rnhn, cujo reinado
marcou um ponto decisivo no desenvolvimento do pensamento
filosófico e teológico no Islam. Ao esplendor do ofício de caliÍa,
Al-Ma'mün reunia a distinção rara de uma profunda paixão
intelectual.5

Conta-se que Al-Ma'mün tivera um sonho com o próprio Aristóteles


e que isso o teria inclinado a orientar seus esforços na aquisição e tradução
das obras gregas. Nesse sonho o mestre grego teria travado um diálogo
com o califa a respeito da natureza do bem, terminando com o conselho
do filósofo ao califa de se Iigar à confissão da unicidade.
Como o maior mecenas da filosofia e da ciência dessa movi-
mentada história do Islãm, Al-Ma'mün presidia reuniões de sábios com
debates filosóficos e teológicos. Este califa, apaixonado pelo saber,

5. Ib., pâg.34
"Ior suscen o SABER arÉ xe CurNe..." A ngcEpcÃo
139

chegou a compor alguns tratados referentes a questões teológicas sob


um perfil que o aproximava dos nlu'tazilitas, corno por exemplo As
luzes da profecia. Também escreveu uma série de aforisrnos e adágios.
Por seu espírito liberal, acabou popularizando os debates teológicos e

influenciou os teólogos a se valerem das cate-eorias da lógica da filosofia


grega aplicada aos dogmas muçulmanos, nos moldes dos rlr'tazilitas.
Tudo isto aumentou o interesse pela ciência e pela filosofia grega.
O nome mais importante durante o reinado de A1-Ma'mün foi o do
cristão nestoriano Hunayn Ibn Ishãq (809-873 d.C.l193-260 H.). Sob
sua condução foi traduzida para a língua árabe grande parte da filosofia
e da ciência dos antigos gÍegos. Assim lhe faz referência Fakhry: "o
personagem de primeira ordem na história da tradução da filosofia e da
ciência gregas é de longe Hunayn Ibn Ishaq, discípulo e colega de Ibn
Masawayh, que fundou a arte da tradução árabe sobre bases científicas".('
Parece ceÍto que o próprio Hunayn tenha dirigido a Casa da Sabedoria
por um breve período e esteve a serviço do califa. No entanto. a família
Banü Müsã parece ter subvencionado grande parte de seu trabalho.
O método rigoroso desenvolvido por Hunayn resultou em traduções
em que os exemplares gregos eram revistos incansavelmente até que se
chegasse às melhores formas de se adaptar termos que a língua árabe
muitas vezes não tinha para se expressar. Além disso, os textos traduzidos
para o árabe tarlbém eram comparados com as traduções em siríaco,
para que se obtivesse mais precisão. A atividade de Hunayn maÍcou
uma etapa decisiva na história da tradução, uma vez que a exatidão foi
um critério buscado com persistência. Textos que haviam sido traduzidos
anteriormente voltaram a ser traduzidos com exames minuciosos a pafiir
de vários manuscritos da mesma obra. O próprio Hunayn relata que em

6. Ib., pág.36.
A nlosople ENTRE os ÁRaues - Fenrrprr
140

suajuventude fizera uma tradução em siríaco de uma obra de Galeno e


que, 20 anos mais tarde, a corrigiu.

Tendo adquirido um certo número de cópias gregas dessa


obra, eu as confrontei cuidadosamente umas com as outras até
que tivesse uma boa cópia em meu poder, que confi.ontei, em se-
guida, com a versão siríaca e a corrigi. Depois eu a traduzi pela
segunda vez.7

Hunayn acrescenta ainda que esse era seu hábito para tudo o que
traduzia para seu mecenas Muharnmad Ibn Müsã, paÍa quem Hunayn
fez, também, uma tradução para o árabe da referida obra de Galeno. Os
interesses principais de Hunayn parece terem sido relacionados com a
tradução das obras médicas e estas, entende-se que traduziu pessoal-
mente. Deve-se-lhe a tradução de quase todos os escritos de Galeno e de
Hipócrates que continham grande parte de toda a tradição médica da
Antiguidade, e que, em sua maioria, está conservada em árabe até os
dias de hoje. Quanto às obras filosóficas de Galeno, Hunayn traduziu,
por exemplo, O tratado sobre a demonstração, Silogisnros hipotéticos, e
algumas paráfrases das obras de Platão como Ás leis, República, Tinteu
e Pannênides, dentre outras.
Além do trabalho de tradução, Hunayn compôs alguns tratados
próprios tais como A gramática grega, A verdade das crenças religiosas
e uma História universal. Diferentemente do que aconteceu no período
inicial das traduções, o trabalho de Hunayn não era um trabalho isolado,
mas ele foi auxiliado por uma equipe de tradutores igualmente com-
petentes que, sob sua orientação, também entrariam para a História. Os

7. Ib., pág.37.
::,t.'r'.,._.\
r.;,r,...r.1.: rI 1...r tr,.nrrl:,,!i...i
..r.).r,-.rr.d.it/..l

;'§!|i.i;ai:t j.i::r::r.
A prr-osona ENTRE os Ánengs - Felsem
142

três mais importantes foram seu filho lshãq Ibn Hunayn (m. 911 d.C.),
seu sobrinho Hubai§ e seu discípulo 'Isa Ibn Yahia.
Muitas obras de Aristóteles foram traduzidas por esse grupo sob a

orientação de Hunayn que os encaÍregou de traduzir praticamente todo


o cotpus aristotélico. A seu fiho Ishãq Ibn Hunayn atribui-se a tradução
para o árabe das Categorias, Da geração e da conupção, Física, partes
da Metafísica, além de alguns tratados de Platão como O sofista, das
quais muitas existem até hoje. Hubai§, o sobrinho de Hunayn, parece ter
se dedicado mais às traduções das obras médicas.
Ao lado de Hunayn e de seu grupo de tradutores também houve
outros nomes importantes, dos quais se destacam Ibn Na'ima, 'Abü
Matta, Qustã lbn Lüqã, 'Abü 'Ulmãn Al-Dima§qi c Tãbit Ibn Qurra.
Note-se que todos eles eram cristãos da seita nestoriana ou jacobita,
exceto o grande astrólogo e filósofo pagão Tãbit Ibn Qurra, que viveu
em Harran ao norte da Síria mas trabalhou aos serviços da família Banü
Müsã em Bagdá. Vale notar que, ao lado do trabalho de tradução, os
próprios tradutores arriscavam escrever suas obras. Apesar de, na maioria
das vezes, não possuírem muita originalidade e conterem geralmente
idéias recolhidas e sobreposias de modo pouco sistemáticc, esse fato é
bem característico desse período.
Qustã Ibn Lúqã, talvez de origem grega convertido ao cristianis-
mo, nasceu na cidade de Ba'albak (cidade no atual Líbano). Viveu em
Bagdá e depois na Armênia onde morreu por volta do ano 900 d.C.
Traduziu do grego para o árabe obras de filosofia, geometria, mecânica
e ciências naturais, dentre outras. Atribui-se a ele a tradução dos quatro
primeiros livros da Física de Aristóteles e o tratado Da geração e da
corrupção, assim como o pseudo-Plutarco Opiniões dos físicos. Além
das traduções, escreveu obras de filosofia, astronomia, medicina, física
e aritmética, tais como Propósitos dos filósofos, Sobre a dferença entre
alma e espírito, Tratado sobre o átomo e Exposição das doutrinas gregas.
"Ioe suscen o sAtsER arÉ Nn Cslue..." A nrceeçÃo
t43

Também escreveu üm Tratado histórico que é conseruado até os dias


de hoje.
'Abü 'UImãn Al-Dima§qi (m. 900 d.C.) também se destacou pela

transmissão das obras de Aristóteles para os árabes. Traduziu os Tópicos,


a Ética a Nicômaco e uma parte da Física, além de algumas obras
médicas, uma versão da Isagoge de Porfírio e três tratados de Alexandre
de Afrodísias: As cores, As substârtcias imateriois e O crescimento.
No século X d.C. 'Abü Mattã (m. 940 d.C.), um dos mais renomados
lógicos de seu tempo, e seu discípulo Yahyã Ibn 'Adiy (m. 974 d.C.)
foram importantes na tradução e comentários principalmente das obras
de lógica de Aristóteles. A 'Abü Mattã atribui-se comentários às
Categorias, TratarJos da intetpretação, Printeiros analíticos e Segundos
analíticos. Escreveu também um Comentário sobre a Isagoge de Porfírio
e um Tratndo sobre os silogismos condicionals. Seguindo os passos de
seu mestre, Yahyã Ibn 'Adiy, cristão jacobita, foi chamado de "O lógico"
e a ele se atribui as traduções daPoética, Refutações sofísticas, partes
da Física e talvez a Metafísica de Aristóteles. Também escreveu suas
próprias obras como A irupossibilidade da existêncict do infinito, A
natureza do possível e O todo e as partes.
Tãbit Ibn Qurra (m. 90i d.C.) viveu em HaÍran, norte da Síria e

depois se estabeleceu em Bagdá e esteve Iigado aos serviços da célebre


família Banü Müsã. Diferentemente da maioria dos destaques desse
período, Tãbit Ibn Qurra era pagão e foi conhecido como um renomado
filósofo e astrólogo. Além de inúmeras traduções do grego e do siríaco,
principalmente em matemática e filosofia, também escreveu um
comentário sobre a Física de Aristóteles e tratados sobre A natureza dcts
estrelas e suas influências, Princípios da música, e Princípios da ética
dentre outros títulos. Traduziu para o árabe uma versão do Almagesto
de Ptolomeu e também dos Elementos de Euclides, com melhoramentos
fundamentais em vista das versões anteriores.
A prlosone EI-TRE os ÁResEs - Falsnpe
144

Igualmente valioso foi o trabalho de Ibn Al-Lrammãr (m. 1017 d.C.),


também conhecido como Al-Hassan lbn Suwãr. Suas traduções foram
feitas, em sua maioria, do siríaco para o árabe e compreendem alguns
tratados de lógica de Aristóteles e Os meteorológlcos. Escreveu obras
médicas e alguns tratados filosóficos. Um dos trabalhos mais inte-
ressantes denomina-se O acordo das opiniões dos filósofos e dos cris-
tãos no qual procura, obviamente, harmonizar arazáo filosófica com a
fé religiosa. Nesse rol de tradutores, destaca-se também Ibn Nã'ima
Al-flimsi (m. 835 d.C.), que traduziu partes da Física de Aristóteles e
teve fundamental importância na formação do pensamento filosófico
árabo-islâmico por ter traduzido a obra apócrifa Teologia de Aristóteles
que era, na verdade uma paráfrase das Enéadas de Plotino e que foi fun-
damental para todo o desenvolvimento dafalsafa.

D" A"isúóúonas a AnisúflnúÃlis

O eixo principal sobre o qual orbitaram os principais temas dafalsaJct


iniciou-se com a introdução dos temas trazidos por Aristóteles. Sua
imagem no mundo muçulmano medieval é a do "fi1ósofo" por excelência,
em relação ao qual todo pensamento se define: tanto o filosófico puro
como o científico e mesmo o religioso. Não obstante o rigor com que
foram feitas as traduções dos textos do mestre grego, a questão dos
apócrifos, isto é, os textos atribuídos equivocadamente a Aristóteles,
frzeramcom que, na verdade, Aristütãlis não fosse o mesmo Aristóteles
que conhecemos hoje. Essa diferença deveu-se, em grande parte, à
Teologict de Aristóteles. Os extratos parafraseados de autor desconheci-
do baseado nas Enéadas de Plotino trouxeram uma doutrina que o pró-
prio Aristóteles não enunciou em nenhuma de suas obras. O Aristóteles
átrabe - Aristütãlis - é, na verdade, um Aristóteles neoplatonizado. Essa
"IoE suscan o sABER erÉ Na. CurNa..." A nrcerçÃo
t4s

característica fez com que houvesse uma singular e preciosa conversão


das doutrinas de Aristóteles e de Plotino - conseqüentemente algumas
de Platão - que pareceriam, à primeira vista, incompatíveis entre si.
Curiosamente, o que poderia parecer um equívoco histórico da entrada
dos elementos neoplatônicos sob o nome de Aristóteles, acabou se
conformando num dos pilares centrais da construção do sistema de A1-
Fãrãbi e de lbn Sinã.
Pareceria ingênuo pensar que as idéias contidas na Teologia de
Aristóteles só foram aceitas pelos árabes porque estavam sob a deno-
minação do Estagirita. Isso pode levar a um erro de perspectiva. O mais
sensato é entender que os elementos neoplatônicos só penetraram no
sistema de Al-Fãrãbi e de Ibn Sinã pelo próprio conteúdo das teses ali
apresentadas, as quais, em muitos casos, foram ferramentas utilíssimas
para harmonizar e justificar posições. Além do que, paradizer o mínimo,
a filosofia de Plotino pela sua própria força seria suficiente para explicar
a adoção de tais teses. Em reforço a essa perspectiva vale lembrar que o pró-
prio Ibn Sinã, ao comentar aTeologia de Aristóteles, colocou em dúvida
que a autoria fosse mesmo de Aristóteles, mas nem por isso deixou de
adotar as idéias ali contidas. De todo modo, vale lembrar que parece
não haver dúvida que os árabes conheceram as grandes idéias e os gran-
des sistemas dos filósofos gregos em suas teses fundamentais, mas a atri-
buição nominal a cadaum ficou comprometida, não por causa das tradu-
ções dos textos, que foram rigorosas, mas poÍ causa dos apócrifos que
transformaram a fisionomia original de Aristóteles, de Platão e de Plotino.
A esse respeito é pertinente se entender que a recepção da filosofia
dos antigos foi, para os primeiros pensadores muçulmanos, um conjunto
de sabedoria antiga sob diversos nomes. Pode-se pensar que, a certa
altura, o valor intrínseco de cada documento e de cada texto fosse critério
suficiente para ser ou não incorporado . Para Ibn Sinã, por exemplo,
nenhum autor foi tido como uma autoridade absoluta. Ele próprio
A rtlosonn ENTRE os Ánaees - Felsepe,
146

discordou e criticou Aristóteles. De todo modo, apesar dos elementos


neoplatônicos, Aristóteles foi o nome sob o qual figurou grande parte
das obras e dos comentários feitos pelos falasifu. Ressalte-se ainda que
o pensamento de Aristóteles influenciou também poetas, filólogos,
gramáticos e juristas árabes.
As obras de Aristóteles foram traduzidas integralmente: direta-
mente do grego ou por intermédio do siríaco. Todas essas traduções
árabes chegaram até nós. Por sua fidelidade, em alguns casos, chegaram
mesmo a ser mais exatas do que as traduções modernas. Isso se explicou
tanto pelo fato de que muitos manuscritos gregos eram mais antigos e

melhores que muitos manuscritos que chegaram até nós, como pelo fato
de os tradutores se valerem de comentários de Alexandre de Afrodísias,
Simplício e Themistus - dentre ouÍos -, textos que, por vezes, se
perderam em grego e só foram conservados em traduções árabes. O
interesse pelas traduções das obras de Aristóteles sucedeu as traduções
de ordem prítticacomo, por exemplo, os textos médicos e astronômicos
realizados no primeiro período. Isso se deveu ao início do interesse pela
especulação filosófica, que se verificou durante o período Abássida, e

que, ao menos em parte, pode ser atribuída a uma pura curiosidade


científica, a um amor desinteressado pela ciência, elevando o valor da
empreitada do califa Al-Ma'mün, em relação à de seus predecessores
que tiveram maior interesse pelas ciências práticas: medicina, astronomia

e matemáticas.
Pode-se entender que o movimento do corptts aristotélico, a partir
das traduções de seus textos para o ítrabe, teve três momentos distintos.
No primeiro momento, sua filosofia foi recepcionada; no segundo,
iniciaram-se algumas reações contra suas teses, principalmente por parte
dos teólogos islâmicos e, no terceiro momento, houve uma contra-reação
em defesa da filosofia aristotéIica, na tentativa de reforma da falsafa.
Na curva ascendente das traduções, da recepção e da internalizaçáo, a
'I»e euscnn o sABER erÉ N,r CHrNa..." A nrcsnçÀo
t47

i filosofia de Al-Kindi, os sistemas de Al-Fãrãbi e de Ibn Sinã, foram os


maiores representantes. A reação dos teólogos coincidiu com uma certa
paralizaçáo da influência do pensamento grego e teve na controversa
figura de Al-Gazãli um bom exemplo disso. O momento crítico foi
realizado por Ibn Ru§d na tentativa de restabelecer as bases propriamente
aristotélicas confrontando-as com os elernentos neoplatônicos.
O primeiro período, considerado como a recepção propriamente
dita de Aristóteles, foi realizado pelos próprios tradutores que acabaram
escrevendo uma série de comentários às obras do mestre grego. O termo
dessa primeira etapa da recepção de Aristóteles teve como símbolo a
presença de A1-Kindi, o primeiro filósofo árabe e muçulmano que enrou
em contato com as idéias de Aristóteles. Apesar de Al-Kindi não se ter
aprofundado nas temáticas aristotélicas e, muitas vezes, transpalecer
uma certa superficialidade ern suas abordagens em vista da maior
plofundidade encontrada no Estagirita, seu mérito foi, entre outros, ter
preparado o terreno para Aristóteles. Mantendo-se próximo aos tradu-
tores, Al-Kindi, além de influenciar o califa Al-Mu'tasim para que
houvesse prosseguimento nas traduções, encorajou-os e contribuiu na
revisão e na correção do texto árabe, criando e adaptando termos que
eram inexistentes para a nova língua da filosofia.
O segundo momento foi marcado pelo pensamento de Al-Fãrãbi e

de Ibn Sínã em que houve um aprofundamento significativo no entendi-


mento das próprias teorias aristotélicas e uma fusão mais elaborada com
os elementos do neoplatonismo. Al-Fãrãbi escreveu uma série de
comentários às obras de Aristóteles seguindo a tradição dos comentaristas
gregos que o precederam. Infelizmente a maioria desses comentários se
perdeu. No entanto, nesse período, Aristóteles já estava inteiramente
integrado no cenário da filosofia entre os árabes. "Com a obra de Al-Fârãbi
e o trabalho desses tradutores-comentadores, a obra inteira de Aristóteles

se encontra integralmente traduzida e parcialmente comentada ou


A rtlosorre ENTRE os Áneses - Fanare
148

anotada, ao final do IV século da Hégira (X d.C.). A autoridade de


Aristóteles está, assim, solidamente estabelecida."sNo entanto, o pensa-
mento de Al-Farabi ficou mais conhecido por seu lado neoplatonizante
que propriamente aristotélico. Suas idéias o fizeram tentar uma apro-
ximação, ou antes, uma harmonizaçáo de Platão com Aristóteles. A
Teologia de Aristóteles foi uma das pontes que tornou isso possível.
Encerrando o segundo período há a figura marcante de Ibn Sinã,
foco de irradiação de toda filosofia muçulmana posterior. Em seu caso
destacou-se o traço pessoal de uma extrema versatilidade em várias áreas
do conhecimento, uma gama variada de temas e as múltiplas formas
como os tratou. Essa característica ímpar fez com que os pensadores
que o sucederam e os analistas atuais valorizassem ora um ora outro
aspecto de sua obra, sob leituras, muitas vezes, redutoras do conjunto da
obra. Isso também se vê no aristotelismo em Ibn Sinã. Pelo fato de ele,
nessa miríade de temas e estilos, ter escrito alguns textos em linguagem
simbólica que ficaram conhecidos como os "tratados místicos", alguns
autores entenderam que a base de sua filosofia teria um sentido mais
místico ou esotédco, embora representem o mínimo de sua obra. Na
maioria de seus escritos Ibn Sinã perrnaneceu inteiramente aristotélico,
exceto nos vôos místicos dos últimos capítulos do kitab al-'i§arat
wal-tanbíhat e em algums páginas isoladas de seus pequenos tratados,
nos quais ele se deixa levar por inspirações esotéricas. Esse aspecto foi
exageradamente acentuado pelos místicos persas posteriores, como Mulla
Sadra e Ibn Baqir. Contudo, o criterioso exame lógico que acom-
panha sua obra pode ser entendido, em última análise, como a base de
seu pensamento que, apesar da presença do neoplatonismo, possui uma
maffiz aristotélica na condução e desenvolvimento das teses ali contidas.

8. BADAWI. L<t transmission, op. cit., pág. 81.


"I»p suscan o sABER erÉ Na CurNe..." A necEeçÃo
149

O terceiro período seguiu-se à sistematização de Ibn Sinã, refere-


se ao Ocidente muçulmano e se deu na Espanha primeiramente por Ibn
Bãjja, que analisou e parafraseou algumas obras de Aristóteles e, por
isso, teve o mérito de ser o precursor dos estudos filosóficos na Espanha
muçulmana. No entanto, o ponto alto do aristotelismo árabe se encontra
na figura de Ibn Ru§d que foi o comentador por excelência da obra de
Aristóteles tendo recebido, por justiça, o título na Idade Média latina de
"O Comentador". O trabalho de Ibn Ru§d objetivou resgatar o pensa-
mento do que ele considerava ser o mais puramente aristotélico, procuran-
do afastar as influências de outra ordem que existiram em seus anteces-
sores. Para isso comentou, parafraseou ou resumiu a quase totalidade
das obras de Aristóteles servindo-se de várias traduções em árabe -
corrigindo-as - e dos comentários consagrados de Alexandre de Afro-
dísia, Temisthus, Filoponos, dentre outros. Ibn Ru§d, ao mesmo tempo
que era admirador fervoroso do Primeiro Mestre, foi um crítico bastante
sensato e lúcido. O ápice, portanto, do aristotelismo entre os árabes foi
marcado pela atenção e cuidado que a obra de Aristóteles recebeu de
Ibn Ru§d. "A partir de então esses dois nomes * Aristóteles e Ibn
Ru§d - estarão inseparavelmente ligados. Nenhum outro filósofo teve
essa grande chance de ter tido um comentador de suas obras tão fervo-
roso, inteligente e perseverante. Mesmo sua monumental obra original:
Tahafut al-tahafut, a refutação do livro de Al-Gazãli contra os filóso-
fos, é uma defesa vitoriosa da filosofia de Aristóteles."e
Alguns títulos das obras que foram traduzidas, de autoria do pró-
prio Aristóteles ou obras apócrifas aele atribuídas - seguidas pelos nome
dos principais tradutores - são os seguintes:

9. Ib., pás.87.
A nlosorla ENI-RE os Áxnass - Falsar,q
150

As categorlas, flunayn Ibn Ishaq; Printeiros anctlíticos, Tu!ãri;


Segundos anctlíticos,Ibn Yünis; Tópico.s, 'Abü 'U!mãn Al-Dirna§qi;
Refutações sofísticas, Yal1yã lbn 'Adiy; Retórica; Poética, ibn Yunis;
Física, Hunayn lbn Ishaq; De Caelo; Geração e Corrupçtio, Hunayn Ibn
Ishaq; Meteorológicos, Yahya Ibn Al-Bitriq; De arima, Hunayn Ibn
Ishaq; De sensu et sensato', Sobre os animais, Yahyã Ibn Al-Bitriq;
Metafísica; Ética a Nicômaco,Ishaq Ibn Hunayn.
Alguns títulos dos textos apócrifos sáo: Tratado sobre a economia,
As questões, O bem puro, Das causas das propriedades dos elementos,
De plantis, Teologia de Aristóteles, Secretum secretorum, Sobre a.jusÍiça,
O livro das pedras, O litro do espelho, Isti.machus (ntctgia e talismãs), O
tesouro, Epístola sobre a magia, O livro de Hermes, Definição das
naÍurezas, Epístola de Aristóteles a Alexandre sobre a Política, Trataclo
de Aristóteles sobre a Economia, Sentenças e múximas atrihuídas ct

Aristóteles, As virtudes da alma.

lD" Pn*úÃo ar Afn,aúú*,

O nome de Platão é praticamente sinônimo de filosofia e seria


estranho se falsafa nada devesse às idéias do mestre de Aristóteles.
a

Essa presença, praticamente obrigatória quando se diz filosofia, é cerÍa-


mente verificada ao entraÍmos em contato com muitas teses dos./a lasifa.
No entanto, curiosamente, isto se deve muito mais à influência dos textos
platônicos e neoplatônicos que propriamente a uma exegese direta dos
textos de Platão pelos filósofos árabes, do mesmo modo como foi feito
em relação a Aristóteles. Por alguma razáo, os escritos de Platão não
chamaram tanto a atenção dos filósofos, o que acametou uma grande
diferença entre o interesse direto pelas suas obras em comparação
com as obras do Estagirita. Badawi se refere a esse fato, dizendo que
"Ioe nuscen o sABER arÉ Na CHti.-a..." 4 necteçÃo
l5r

"contrariamente ao destino das obras de Aristóteles, o destino das obras


de Platão no mundo árabefoi medíocre (!). Com ceÍteza, conhecia-se
bem sua vida, seu papel na história da filosofia grega, até mesmo
estendendo-se longamente sobre detalhes de sua vida (...), mas o que é
realmente estranho é que nenhuma de suas obras autênticas nos tenha
chegado em uma tradução áÍabe".r0 Afinal, à primeira vista, o pensa-
mento de Platão pareceria ter maior afinidade com os orientais que os
tratados de Aristóteles.
As razões que levaram a isso permanecem no campo da especulação.
Uma das hipóteses é a de que o estilo de diálogo adotado por Platão não
teria encontrado eco entre os árabes, apesar - e talvez por isso mesmo -
de a cultura árabe possuir um perfil semelhante através de um sem número
de histórias, contos e lendas. OutÍa hipótese é a de que teria havido
poucas traduções das obras de Platão em comparação às de Aristóteles,
o que parece não se confirmar visto que inicialmente os diálogos de
Platão começaram a ser traduzidos - inclusive alguns deles pelo próprio
Hunayn - mas depois pararam bruscamente. As razões apontadas para
isso seriam as de que os diálogos não teriam tido tanta aceitação junto
aos leitores e estudiosos e, por isso, a necessidade de continuar a tradução
das outras obras de Platão não se fazia sentir. A terceira hipótese cenra-
se no que poderia parecer um tom pouco científico existente em algumas
obras de Platão através de seus mitos, seu método dialético e algumas
explicações físicas pueris. Esse espírito encontrado em algumas obras
de Platão teria constrastado com o espírito mais rigoroso encontrado
nas obras dos grandes astrônomos, médicos e matemáticos como
Ptolomeu, Galeno e Euclides. O mesmo espírito - que se poderia designar
na época como mais "científico" -, dominou também, mais propriamente,

t0. Ib., pág.35.


A nlosorrn ENTRE os Áneess - Felsere.
ts2

o pensamento de Aristóteles com seu método rigoroso, seu conhecimento

seguro e apoiado nos fatos reais e nas observações devidamente contro-


ladas. Em algumas dessas hipóteses, talvez esteja o real motivo que
levou as obras originais de Platão a terem menos aceitação entre os
iárabes. Ao mesmo tempo, foram inúmeros os textos apócrifos traduzidos

sob o seu nome.


Os títulos das obras do próprio Platão encontram-se principalmen-
te documentados nas listas fornecidas pelos biógrafos Ibn Al-Nadim e

Al-Qifti, enffe as quais destacamos República, Leis, Cármide, Alcebíades


I e II (sobre o Belo), Eutidemo, Góryias, Hípias, Íon, Protágoras, Eutífron,
Críton, Fédon, Teeteto, Crátilo, Sofista, Timeu, Parmênides, Fedro e

Ménon.
As obras de Platão também são citadas por outros autores que delas
tinham conhecimento. No caso da República, por exemplo, sabe-se por
Ibn Ru§d que existiu uma tradução em árabe que ele mesmo parafraseou.
A paráfrase elaborada por Ibn Ru§d chegou até nós conservada, por
uma tradução em hebraico. "De todo modo, nenhuma tradução desses
diálogos nos chegou ainda. O número de passagens autênticas citadas
pelos diferentes autores é bastante incipiente; elas não cobririam sequer
uma dezena de páginas."11 Por outro lado, o número de obras apócrifas
atribuídas a Platão é imenso, ultrapassando em muito o número das obras
atribuídas a seu discípulo Aristóteles, e podem ser divididas em obras
políticas, morais, de magia e de química. Algumas delas são:
- inspirado na República e talvez com-
Os testamentos gregos
posto por Ahmad Ibn Yüsuf; Platônica - compilação de sentenças
políticas e morais; Epístola de Platão, o Divino -para refutar aqueles
que dizem que o homem desaparece depois de sua morte; Epístola de

tI. Ib., pâg.37 .


"Iog suscan o sABER erÉ Na CHrrva..." A nrcerçÃo
153

Platão - o Divino, a Timeu - o Sábio; Reprovação da alma - atribuído


apenas em um manuscrito a Platão e nos outros, a Hermes; Sentenças
morais; Sentenças morais dos filósofos conhecidos por sua sabedoria
e por sua ciência; Testantento de Platão para a educação dos jo-
vens', Palatras de Platão; Testamento de Platão a Aristóteles: Liber
Quartus - um curioso livro de Alquimia, talvez escrito por um judeu,
que menciona nomes e personagens puramente imaginários, em forma
de aforismos - "se as coisas são de uma mesma espécie, elas podem ser
reconduzidas a uma só coisa"r2; Tratado dos princípios e dos meios de
controle em Alquimia; Receitas para compor ungüentos mágicos; O
livro das sete idéias e seus nústérios; Tabela sobre os elementos; Diálogos
de Platão - coleção de sentenças morais que começa com o seguinte
pensamento:

Platão, o filósofo, diz: aquele que busca a sabedoria pelo


caminho adequado a atinge. A maior parte dos que a buscam
cometem um erro buscando-a por um outro caminho, de modo
que eles não podem atingi-la e, assim, a negam, o que os leva à
ignorância. Pois aquele que ignora a imagem da sabedoria ignora a

si mesmo, e aquele que ignora a si mesmo será ainda mais ignorante

de outrem.

O "Platão Árabe", editado em 1974 por Badawi com uma sele-


ção dos apócrifos a ele atribuídos, foi intitulado Aflatún fi al-Islam
(Platon en pays d'Islam) publicado numa segunda edição em Beirute
em 1980.'3

12. Ib., pâg.43.


13. Ib., pás.45.
A rtlosorre ENTRE os ÁneeEs - F.rmnpr
154

D" Plrúirno a Af"n.r(í^ - o o'rro.e*úoo goog."

Pode se dizer que a falsafa esteve apoiada em duas colunas de


sustentação, uma aristotélica e outra plotiniana. Entretanto, a influência
de Plotino não se fez de forma direta como se deu com Aristóteles mas,
curiosamente, suas idéias foram veiculadas sob a autoria de outros
filósofos, o que tornou estranho o destino de Plotino no mundo árabe.
Como vimos, a chamada Teologia de Aristóteles foi o maior exemplo
disto. Algumas partes da obra de Plotino, quando traduzidas, apareceram
na maioria das vezes sob o nome de Alexandre de Afrodísias, Aristóteles
ou sob o qualificativo de ,iL_rill e-Jt / Al-§ay! Al-yünãni, isto é,
"o mestre grego".
Além de sua vida e de sua personalidade terem ficado sem refe-
rências claras, também não se conheceu dele nenhum livro. Resumiu-se
de suas Enéadas - com paráfrases e alterações na ordem - as três últimas:
IV-V-VI, resultando no apócrifo Teologia de Aristóteles. A importância
das teses plotinianas da emanação contidas naTeologia - que foram a
pedra angular da cosmologia de Al-Fãrãbi e de Ibn Sina - contrastou
enorrnemente com o fato de Plotino sequer ter sido conhecido pelo seu
verdadeiro nome. Raramente aparece em algumas listas de filósofos
gÍegos, de modo fortuito como, por exemplo, na lista fornecida pelo
biógrafo lbn Al-Nadim, em que o máximo que se encontra é o nome de
/ Flutinus, mas sem nenhuma indicação auxiliar que o ligasse
"-+J.y'1
verdadeiramente às suas teses.
Em meio a essa obscura situação, ainda assim, sua influência no
mundo muçulmano foi, em alguns casos, mais abrangente que a de
Aristóteles pois se estendeu às tendências esotéricas e gnósticas que
se espalharam pelo mundo islâmico. Badawi refere-se a isso desta-
cando que a filosofia de Plotino "se infiltrou na consciência dos pen-
sadores muçulmanos de uma maneira mais profunda que a doutrina
"Ios suscen o sABER ATÉ NA CHINA..." A neceeçÂo
t55

aristotélica".ia No ano de 1955, todos os textos de Plotino traduzidos


para o árabe foram editados por Badawi sob o título de Plotinus apud
árabes, Cairo, contendo: a chamada Teologia de Aristóteles editada
segundo nove manuscritos; uma Epístola sobre a ciência divina (atribuída
a Al-Fãrãbi); alguns fragmentos e um resumo-paráfrase daTeologia de
Aristóteles feito por Yüsuf Al-Ba§dãdi.
A questão da autenticidade da Teologia, mesmo tendo sido posta
em dúvida pelos pensadores árabes como Al-Rãzi e Ibn Sinã foi tão
decisiva quanto a Metafísica de Aristóteles e de grande serventia
enquanto procurou harmonizar a filosofia com o dogma e a filosofia
com ela mesma. A Teologia, nesse caso, pareceu um verdadeiro dom.
Al-§irãzi, de maneira explícita, atribuiu a Teologia a Platão e não a
Aristóteles, notando que o espírito dessa obra se alinhava mais com os
platônicos. De todo modo, na Teologia, a doutrina da emanação, que
serviu de base para quase todo o pensamento filosófico larabe, é intei-
ramente exposta e discutida.
Acredita-se que, originalmente, a Teologict tenha sido escrita na
língua grega e chegou até nós conservada em árabe segundo duas
redações distintas. Em relação às Enéa"das de Plotino, aTeologia aparece
como uma seleção de passagens extraídas da primeira, parafraseadas e
organizadas em outra ordem. Quanto à sua autoria, não se chegou até
agora a uma resposta conclusiva. A abertura do texto indica ter sido
uma paráfrase feita por Porfírio, discípulo de Plotino. Em sua introdução,
Rubio refere-se ao fato do seguinte modo: "Vimos antes que as passagens

daTeologia tomadas das três últimas Enéadas não são traduções literais
mas 'paráfrases', o que nos inclina a creÍ que o autor imediato daTeologia
é Porfírio, o discípulo de Plotino e editor das Enéadas".ts

t4. Ib., pág.47.


I5. PSEIIDO-ARISTOTELE S. Teo lo gia, o p. c it., pá,g. 22.
A ptt-osople ENTRE os Ánesss - Flr-slpr
t56

Quanto ao fato de ter sido erroneamente atribuída a Aristóteles,


pode-se especular que essa obra estivesse catalogada juntamente com
outros manuscritos de obras de Aristóteles e foi tomada como uma delas.
Outra hipótese é a de que, pelo fato de Plotino ter sido conhecido entre
os árabes como "o mestre grego", e devido ao grande prestígio de
Aristóteles junto aos árabes, é possível que alguém, diante de uma obra
atribuída ao "mestre grego" - Plotino - tenha pensado tratar-se de
Aristóteles e tenha substituído definitivamente um nome pelo outro. Não
se descarta o fato de que essa atribuição tenha sido feita no momento
mesmo da tradução, resultando que desde o princípio Aristóteles apareça
entre os filósofos árabes com rosto platônico. Chegou-se mesmo a supor
qr;e aTeologia seria uma das últimas obras escritas pelo Estagirita e que
o perfil platônico que lá se encontrava reffataria uma volta de Aristóteles
ao platonismo, no final de sua vida.
A abertura daTeologia se apresenta do seguinte modo:

Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso! Glória a Deus,


Senhor dos Mundos e Bençãos a Múhammad e a sua Família!
Tratado Primeiro
Do livro de Aristóteles, o Filósofo, chamado em grego Teologia, que é
a doutrina sobre a Divindade; paráfrase de Porfírio de Tiro, traduzido para o
árabe por 'Abd Allã Ibn Nã'ima de Emesa e corigido por 'Abü Yüsuf
Ya'qüb Ibn Ishãq al-Kindi! Deus tenha misericórdia dele!, para Ahmad Ibn
Al-Mu'tasim bil-Lãh. 1ó

No Prólogo, o autor daTeologiaexplicita qual o seu objetivo, com


as seguintes palavras:

16. Ib., pá9. 47 . Ahmad era um dos filhos do califa Al-Mu'tasim que reinou entre
833 e 842 d.C.
"lpe suscnn o sABER nrÉ Na CHtNe..." A necepÇÀo
l5z

Assim, nosso objetivo neste livro é a doutrina primeira a res-


peito da Divindade, a explicação a seu respeito, que Ela é a causa
primeira, que a eternidade e o tempo estão submetidos a Ela, que
Ela é a causa das causas, instauradora delas segundo um modo par-
ticular de instauração, que a potência iluminativa deriva Dela sobre
a Inteligência e Dela por meio da Inteligência sobre a Alma universal
das esferas, da Inteligência por meio da Alma sobre a Natureza e da

Alma por meio da Natureza sobre as coisas geráveis e corruptíveis,

que esta ação vem da Inteligência sem movimento e que o movimento

de todas as coisas vem dela e por seu canal - ou causa - e que as

coisas se movem até ela mediante um modo de desejo ou nostal-


gia. Em seguida mencionaremos o mundo inteligível, descreveremos
seu esplendor, nobreza e beleza, recordaremos as formas divinas,
belas, excelentes, esplendorosas, que existem nele, e que dele vem o

ornamento de todas as coisas e sua beleza e que todas as coi-


sas sensíveis se assemelham àquelas formas, mas as coisas sensíveis
(...) não pemitem narrar sua verdadeira maneira de ser.17

No Tratado Primeiro, o autor da Teologia se refere diretamente à


imortalidade da alma:

Dado que já ficou claro que é verdade que a alma não é corpo,
que não morre nem se corrompe nem fenece, mas que é persistente,
perpétua, queremos investigar também a seu respeito como se

separou do mundo inteligível, desceu a este mundo sensível, corporal,

e chegou a estar nesse corpo grosseiro, que está submetido à geração


e à corrupção.r8

l7 . Ib., pág. 51 e segs. Cf. também FAKHRY, pâg. 44.


18. Ib., pág. 65.
A prlosorta E^NTRE os Áneses - FeLsepn
158

Essas poucas palavras já prenunciam todo o desenvolvimento da

teoria platônica das idéias, da teoria do Uno e da processão das hipós-


tases de Plotino que perpassam toda a Teologia. No desenvolvimento
de suas doutrinas, o autor invoca a autoridade de Heráclito, Empédocles,
Pitágoras e Platão, atribuindo a este último a descrição do cotpo como
sendo uma cela, na qual a alma estaria temporariamente aprisionada.
O autor afirma, ainda, que Platão teve o mérito de introduzir a distin-
ção entre as entidades sensíveis e inteligíveis e de imputar às últimas o
carátq de permanência e de imutabilidade, e às primeiras o de fluxo
perpétuo. No Tratado I são estudadas detidamente as relações da alma
com o inteligível.
Nos Tratados II e III examina-se a alma em três questões principais:
que no mundo inteligível a alma possui o conhecimento de todas as

coisas de modo permanente, imutável e perfeito, e não tem nenhuma


necessidade do tipo de conhecimento adquirido no mundo sensível.
Afirma-se a alma como una e indivisível, sendo que sua divisibilidade
lhe é atribuída por acidente. Devido à união com o corpo, ela se divide
em potência animal, apetitiva, irascível e cognitiva, segundo a parte do
corpo na qual reside. O autor critica, ainda, a teoria da alma como
harmonia do corpo, assim como a teoria dos materialistas e corporalis-
tas. Para o autor da Teologia, a alma é a causa dessa harmonia, uma
substância distinta do corpo e independente deste, cumprindo nele o
papel de guardiã e de governante. Estuda-se, também, a concepção da
alma como enteléquia do corpo, fazendo-se uma distinção entre a

enteléquia passiva - em que a fotma natural está ligada indissoluvelmente

ao composto - e a enteléquia ativa, ou seja, o princípio ou a causa da


atualidade própria do corpo. Esse último seria o caso da alma.
Ao longo dos dez Tratados, o autor desenvolve uma série de temas
dos quais destacamos os seguintes: as recordações da alma, suas relações
"Ios nuscan o sABER erÉ Ne. CIrtNa..." A necreçÃo
159

com o corpo e como opera por meio de suas diversas faculdades;


explicação da substancialidade da alma com a conseguinte refutação
dos corporalistas; a contemplação do mundo inteligível; a descida da
alma ao mundo sensível; as perfeições da obra do Criador; doutrina a
respeito das estrelas e suas influências no mundo inferior; sobre a nobreza
da alma e seu retorno ao mundo superior; a emanação dos seres apartir
do Uno e como a Alma entra na matéria e na Natureza, o lugar da alma
entre o mundo sensível e inteligível; a respeito do ato e da potência;
sobre a imortalidade da dma racional; como do uno procede a multi-
plicidade; o retorno da alma à sua origem.
Juntamente com a Teologia, boa parte das teses neoplatônicas
circularam por uma obra atribuída ao neoplatônico Proclus sob o nome
de Liber de Causis. Este se compunha de 32 proposições que expunham
de modo mais sucinto que a Teologia a teoria da processão das hipósta-
ses. Não se sabe bem em que data essa obra foi traduzida para a língua
árabe, mas é certo que no século X d.C. / V H. já circulava entre os
filósofos. Estas duas obras - A Teologict e o Liber de Causis - foram as
duas vias mais intensas pelas quais o neoplatonismo penetrou no mundo
fuabe para formar afalsafa. Nessas duas obras de perfil neoplatônico
encontram-se a transcendência absoluta do Princípio Primeiro ou Deus,
a processão ou emanação das coisas a partir d'Ele, o papel do Intelecto
como instrumento de Deus na criação e fonte de iluminação e conhe-
cimento para o espírito humano, e a posição da alma como ligação entre
o mundo inteligível e o mundo sensível.
A ptt-osone ENTRE os Ánaees - Farc..rpe
t60

O*úoas n)nesemçes

Outros autores traduzidos paÍa a língua árabe foram Alexandre


de Afrodísia, Temistius, João Filoponos, Porfírio, Amônios filho de
Hérmias, Nicolaus, Olimpiodoro de Alexandria, Jâmblico, Galeno,
Simplicius, Sir-ianus e Plutarco dentre outros. Destaque-se, também, os
tratados estóicos que tiveram papel importante para osfalasifa. Ao lado
da influência grega, é inegável a influência indiana e persa, parti-
cularmente em relação à medicina, astronomia e à política, por meio de
contatos que já se davam desde o século VIII d.C. /II H. Uma das pri-
meiras obras traduzidas para a língua árabe foi o Siddhanta- um tratado
astronômico indiano que cumpriu um papel importante no desenvol-
vimento da astronomia islâmica. A literatura indiana também parece ter
tido boa recepção entre os árabes. No século VIII d.C. já circulava uma
obra denominada Crenças religiosas dos inclianos, além de outras obras
de natureza moral e religiosa. Quanto à influência da filosofia indiana
propriamente dita, paÍece que não houve um aporte tão significativo.
"Se nos voltarmos aos elementos mais filosóficos do pensamento indiano
que teriam influenciado os árabes, somos imediatamente surpreendidos
por sua raridade, ou insignificância, quando os comparamos à rica
corrente de idéias que vieram da Grécia."''
Do mesmo modo a influência de algumas correntes de pensamento
persas antes do Islãm, sobre o pensamento filosófico entre os árabes foi
igualmente restrita e consistiu principalmente num certo número de obras
de tradições morais ou aforísticas. No domínio especulativo, a influência
persa se deu quase exclusivamente a partir do dualismo dos maniqueus
aplicado a questões religiosas e filosóficas. Apesar de o maniqueísmo

t9. FAKHRY, op. cit, pág.55.


"Ioe suscen o sABER erÉ xe CHtNa...." A neceeçÃo
I6l

ter encontrado algum eco entre alguns autores árabes, muitas polêmicas
contribuíram para o término dessa tendência.
Uma última palavra sobre o conjunto do saber antigo que constituiu
o material básico sobre o qual operaram osfalasifa deve consideraÍ que,
sepor um lado, os apócrifos pareciam comprometer o desenvolvimento
dessa nova etapa da filosofia, por outÍo, é bom lembrar que mesmo os
textos atribuídos corretamente aos seus autores foram lidos, quase
sempre, visando à construção de um novo sistema filosófico. Desse modo,
aatribuição dos apócrifos permitiu qte osfalasla estivessem diante de
um conjunto de doutrinas vistas sob um aspecto bastante original,
resultando em sistemas e abordagens que mesclaram de modo harmônico
teses que a nós poderiam parecer excludentes.
Al-Fãrãbi, considerando que o saber se havia iniciado nas teras da
i
Mesopotâmia, transladado aos egípcios, depois aos gregos e por fim aos
árabes, colocava-os como herdeiros legítimos e continuadores dessa
tradição. Isso também é verificado pelas palavras de Al-Kindi que,
entendendo que o papel do sábio é mais que tudo a busca pela verdade,
agradeceu aos seus antecessores e, como que tomando-lhes o bastão,
conclamou os sábios afazerem a filosofia "falar em árabe". Some-se a
isso o fato de que o momento efervescente de uma cultura nascente the
conferiu força para entender a si mesma como a "continuadora da
verdade", inclinando os sábios a considerarem o acolhimento das obras
antigas como um conjunto herdado. Assim, a leitura dos textos se fez
tencionando dar continuidade ao que fôra anteriormente conquistado.
Nesse quadro, o foco esteve mais sobre a "verdade" que sobre os autores
que a pronunciaram. Tais peculiaridades distinguiram afalsafa de todas
as tradições anteriores, assim como de tudo o que viria a ser realizado
posteriormente.
AI-K;^dlí,' *^lliúoião

Al-Kindi (796-873 d.C. /185-260H.),


O primeiro filósofo árabe foi
nascido na cidade de Küfa - próxima a Bagdá -, onde seu pai foi
governador. De família aristocrática árabe da tribo de Kinda, Al-Kindi
esteve sob a proteção dos califas Al-Ma'mün e Al-Mu'tasim, tendo sido
preceptor de Ahmad, filho deste último. Completou sua formação em
Bagdá após ter tido sua primeira educação numa cidade próxima, Basra.
Contemporâneo do célebre Hunayn, foi o primeiro filósofo verdadeira-
mente de origem ârabe e que se expressou nessa língua sendo, por isso,
chamado de o "filósofo dos árabes".
Al-Kindi diferiu dos tradutores cristãos em dois aspectos principais:
sua religião e seu desconhecimento da língua siríaca e da língua grega.
Mesmo não tendo conhecido outra língua além do árabe, Al-Kindi esteve
envolvido com as traduções procurando retocá-las, na medida em que
seguiu corrigindo e adaptando o vocabulário árabe às obras traduzidas,
como foi o caso, por exemplo, daTeologia de Aristóteles.Destacou-se
na matemática e na lógica, disciplinas que o guiaram em sua busca da
verdade pela filosofia. Os princípios metodológicos de çlxezae esque-
maticidade aos quais se propôs revelam uma clara consciência de que
sem as matemáticas e sem a lógica não seria possível atingir a ciência.
"Ainda que fosse somente por essa consciência metodológica, haveria
que situar Al-Kindi junto aos grande filósofos muçulmanos."r Os títulos
de suas obras2, chegam a241, nelas se destacando temas sobre filosofia
geral, lógica, música, astrologia, geometria, astronomia, medicina e
psicologia. Al-Kindi teve numerosos alunos e um círculo que deu
continuidade aos seus estudos.

l. GUERRERO,R. Obras filosóficas de Al-Kindi, op. cit., pá,9.41.


2. BADAWI, op. cit., págs.387-393.
A nlosonl ENTRE os ÁRlsls - F,q.lsepa
r66

Não obstante ter sido acusado, algumas vezes, de pouca contribuição


original, há uma concordância geral de que Al-Kindi teve o mérito de
introduzir Aristóteles no ambiente intelectual do Islam, pregando uma
exegese filosófica d o Alcorão. Essa posição, semelhante à dos partidários
da aplicação do procedimento racional ao texto revelado, aproximou
Al-Kindi dos mu'tazilitas. É possível situá-lo na passagem da Teologia
paraaFilosofia, em posição de preencher o espaço que se verificava en-
tre arazáo e o dogma, guiado pelo sentimento de um acordo fundamental
entre a busca da filosofia e a revelação profética. No amplo horizonte da
busca do saber, Al-Kindi incitou a busca da verdade onde ela estivesse,

mesmo nos sábios de outras nações e de outras línguas, adaptando-a a


seu tempo e expressando-a em árabe. Entendia que a verdade deveria
ser acolhida qual fosse sua fonte, pois nada deveria ser mais caro ao
pesquisador da verdade que a verdade em si mesma. Apresentou, tam-
bém, uma visão de crescimento histórico do saber, reconhecendo o papel
cumulativo do trabalho das gerações subseqüentes.
Em sua Epístola sobre afilosofiaprimeira. Al-Kindi procurou aliar
a filosofia aos princípios do Islam, não vendo na noção filosófica de
Deus, Uno, Verdadeiro e Criador nenhuma contradição com os princípios
do Alcorão.Desse modo, defendeu a tese da criação do mundo ex nihilo,
isto é, a partir do nada. Em sua doutrina não se encontÍa um sistema
cosmológico das processões'plotinianas tão sistematizado como em Al-
Fãrãbi e Ibn Sinã, do Uno ao mundo sublunar. Para Al-Kindi, tais
processões enconffam-se inevitavelmente sob a dependência do ato
divino, livre. Além disso, afirmou a ressurreição dos corpos, a possibili-

3. De modo geral, os termos processão, emanação e irradiação ligam-se à tradição


neoplatônica, e as nuances de interpretação variam conforme o uso particular de
cada autor. No entanto, podem ser entendidos a partir da relação do desdobramento
de níveis subsequentes de realidades a partir de um centro único.
A ptutra E os MLÃstFA
167

dade de milagres, a validade da revelação profética, a criação e a destrui-

ção do mundo por Deus. Para


justificar suas teses, defendeu a finitude
do tempo e do movimento como uma prova do começo do mundo no
tempo. Tal começo seria uma constatação da existência de um Deus
criador. Deus e mundo configurados em dual realidade permitiram a
distinção entre entidades materiais e imateriais correspondentes à dupla
divisão da filosofia: a física, sendo a ciência do móvel ou dos objetos
criados por Deus, e a metafísica, sendo a ciência do imóvel ou das coisas
divinas. Nessa configuração, em muitas de suas obras, transpareceu o
sistema platônico entendido segundo a divisão mais radical entre o mundo
sensível e o mundo inteligível.
A Idade Média ocidental pouco conheceu de sua obra. uma delas
foi o De Intellectu,curta epístola em que Al-Kindi, ao discorrer sobre o
tema segundo Platão e Aristóteles, distinguiu quatro níveis do intelecto.
Essa distinção foi importante para a seqüência dafalsafa, pois Al-Kindi
já assinalava o intelecto sempre em ato como uma inteligência distinta
da alma. Desde o início o pensamento árabe apontou, sob a influência
de Alexandre de Afrodísia, que havia apenas uma inteligência agente
separada para todos os homens e que cada indivíduo teria apenas como
seu um intelecto em potencial.
No alvorecer da filosofia entre os árabes, Al-Kindi procurou,
estabelecer a significação dos termos filosóficos como é o caso da obra
intitulada Epístola das definições'. um curto glossário de conceitos
filosóficos no qual encontramos 104 termos explicados por Al-Kindi de
modo bastante breve. Apesar de não ser um glossário completo, indicou
a preocupação inicial de se familiarizar com os termos que ingres-
savam no universo filosófico dos árabes. Deve-se levar em conta que,
no período inicial dafalsafa, muitos termos filosóficos que provinham
da filosofia grega eram estranhos ao mundo árabe e estavam sendo
adaptados para o novo idioma e ainda precisavam ser fixados em seu
A nlosopre ENTRE os ÁnesEs - Felsere
t68

significado mais técnico. Se, por um lado, Al-Kindi foi um entusiasta


da filosofia, por outro foi também um homem religioso. Mais que isso,
foi o anfitrião de uma religião nascente que se defrontava com um modo
de pensar estrangeiro. Sua tendência foi a de harmonizar as duas ma-
nifestações: a filosofia e a religião. A intenção de concordar essas duas
realidades, muitas vezes, comprometeu o significado que ele imprimiu
aos termos filosóficos, tendo em vista o sentido original da língua gÍega.
Não se pode atestar com certeza em que medida a Epístola das defini-
ções foi realmente escrita pelo próprio Al-Kindi. Talvez tenha sido uma
compilação ou uma tradução do grego que circulava na época. Pode
tratar-se, ainda, de uma adoção de definições por parte de Al-Kindi
para formular um novo glossário. De todo modo, ela nos dá uma idéia
sobre os primeiros movimentos da recepção do pensamento grego no
mundo árabe.
O primeiro termo que se encontra na Epístola das definições é a
"causa primeira", definida como a criadora e a agente, aquela que
aperfeiçoa o todo sendo imóvel. O termo "eterno" complementa ardéia
de "causa primeira" e é definido como aquilo que não foi não-ser e não

tem necessidade de outro para subsistir. Implícito está que aquilo que
não necessita de outro para subsistir não tem causa e é, portanto, eterno.
Outro termo correlato é "cÍiar"i esse, que tem mais familiaridade com
a religião revelada que propriamente com a filosofia grega, é definido
por Al-Kindi como sendo o ato de fazer com que algo apareça a partir
do nada. Esse modo de entender as relações entre Deus e o mundo é
completada com o item "Questão sobre o Criador". Neste, Al-Kindi
inicia perguntando-se a respeito do modo como Deus está neste mundo.
Sua resposta é que o Criador está no mundo assim como a alma está
no corpo. Do mesmo modo como nenhuma parte do corpo pode subsis-
tir sem a intervenção da alma, assim também a ordem do mundo visí-
vel se realiza necessariamente pela mediação e direção do mundo
A rtts,cr,\ E os Ell,1s1l;á
169

invisível. E, do mesmo modo como a alma pode ser conhecida pelos


efeitos que ela produz no corpo, assim também o mundo invisível pode
ser conhecido por meio da organização e dos efeitos que dele procedern
em relação ao mundo visível. Em suas linhas mestras, o sistema de Al-
Kindi se ampara nessas primeiras definições para estabelecer, por um
lado, o mundo não-eterno e, por outro, Deus-eterno como o seu Criador.
Deus é, portanto, aquele que não tem causa e, por isso, é eterno. O mundo,
por sua vez, é causado e é uma criação Sua. Deus, transcendendo a Sua
criação, é entendido segundo o dogma da trilogia da revelação das escri-
turas sagradas judaico-cristã-islâmica.
Aparecem, também, alguns termos filosóficos mais próprios às
doutrinas aristotélicas como, por exemplo, os conceitos de "maiéria",
"forma", "ato", "potência" e "substância", Quanto a este último -
"substância" - define-se como aquilo que subsiste por si mesmo ou,
dito de outro modo, aquilo que sustenta os acidentes sem alterar a sua
própria essência; enfim, aquilo que recebe atributos e não se atribui a
nada, assim como pode ser entendido, como aquilo que não é suscetível
nem da geração e nem da corrupção.
Alguns outros conceitos das categorias estabelecidas por Aristóteles
também estão presentes tais como a "quantidade", a "qualidade" e a
"Íelaçáo" . O "lugar" é entendido como o limite de um corpo ou, então,
o encontro de dois horizontes sendo um, o que envolve e, o outro, o que
é envolvido. Outros termos que pertencem ao estudo da Física são o
"calor", o "frio", o "seco" e o "úmido", definidos de modo bastante
sucinto. Com mais extensão encontramos a teoria das quatro causas
indicada no verbete "as causas naturais". Al-Kindi segue as quatro causâs
conhecidas no sistema aristotélico: a "causa material" que é aquilo do
que algo é; a "causa foÍmal" que é aquilo pelo que uma coisa é o que é;
a "causa eficiente" como sendo o princípio do movimento de algo e, por
fim, a "causa final" como sendo arazáo pela qual o agente faz o que faz.
A RI-osona ENTRE os ÁnasEs - Femana
lz0

Uma tríade importante de termos -"necessário", "possível" e "impos-


sível" -, que será bem desenvolvida por Al-Fãrãbi e por Ibn Sinã em
suas respectivas metafísicas encontram-se definidas de modo sucinto
na Epístola: "necessário" é o que está sempre em ato; "possível" é aquilo
que uma vez está em potência e outra yez estâ em ato; e o "impossível"
é aquilo que nunca está nem em ato e nem em potência.
Encontram-se, também, outros termos referentes ao estudo da alma.
O próprio termo "alma" apresenta-se segundo três explicações: a
perfeição de um corpo natural, dotado de órgãos que é suscetível à vida;
a perfeição primeira de um corpo natural que tem a vida em potência;
ou uma substância intelectual que se move por si mesma sendo um
número harmônico. Como se pode verificar, as duas primeiras definições
praticamente reproduzem a idéia de alma segundo a doutrina aristotélica,
enquanto a terceira definição se aproxima da inspiração pitagórica. Outros
termos referentes à alma humana são apresentados: o "intelecto", ot-
tendido como uma substância simples capaz de apreender as coisas em
sua realidade e a "sensação", definida como uma faculdade da alma que
apreende as coisas sensíveis, ou melhor, a forma das coisas dotadas de
matéria em sua própria materialidade. Nesse caso a faculdade da sen-
sibilidade só pode operar em contato direto com um determinado objeto:
o olho só é capaz de ver se estiver diante de algo, assim como o ouvido
só é capaz de ouvir mediante um ruído de algo. Num grau mais abstrato,
Al-Kindi seguindo Aristóteles define a "imaginação" como sendo a
"fantasia", faculdade própria da alma que apreende e mantém presentes
as formas sensíveis na ausência da matéria, ou seja, depois que as coisas
sensíveisjá não estejam mais presentes aos sentidos externos.
Ainda no âmbito da alma humana encontramos a definição da
"vontade" como sendo uma faculdade pela qual tendemos a uma coisa e
não a outra. A"ira" é definida como a efervescência do sangue do coração
e o "ressentimento" é entendido como a permanência da ira por um
A r.lrs.,rre E os ,{LãsIFA
tzt

tempo indeterminado. O "riso", por outro lado, é visto como um ato


natural da alma, sendo entendido como o equilíbrio do sangue do coração
pela felicidade e expansão da alma até o surgimento do gozo. Outro
item que se refere à alma é a exposição sobre as "virtudes humanas",
cuja elaboração contém elementos platônicos, aristotélicos e estóicos.
Essas virtudes são descritas como disposições humanas naturais dignas
de elogio. Al-Kindr as divide em três: sabedoria, fortaleza e temperança.
A sabedoria é uma virtude própria da faculdade racional, sendo o
conhecimento das coisas universais em sua realidade. mas não apenas
isso: é, também, saber usar essas realidades. A fortaleza é descrita como
a virtude da faculdade de vencer desprezando mesmo a morte quando é
preciso fazet o que deve ser feito ou aiastar o que deve ser afastado. A
temperança consiste no cuidado com o corpo e sua conservação com
constante observância. Cada uma das três virtudes possui dois extremos
senCo que a perda do equilíbrio é um vício, um por excesso e outro por
falta. Por exemplo, no caso da fortaleza, o seu excesso seria a violência,
e sua falta seria a covardia. O conjunto equilibrado das virtudes resulta
na eqüidade da alma. O equilíbrio natural das virtudes da alma pode ser
obtido pela filosofia e pelo hábito, pois a verdadeira virtude humana
está naquilo em que acostumamos a nossa alma.
O verbete "amor" é definido como a causa da reunião das coisas.
Essa "reunião" é definida como aquilo que é causado de modo natural
pelo amor. O "amado", por sua vez, é aquilo que é buscado pela alma.
No que diz respeito a "paixão", Al-Kindi define o termo como sendo
"excesso de amor". Tais definições lembram conceitos desenvolvidos
por Empédocles - filósofo pré-socrático - que ao explicar o movimento
do cosmo entendeu haver duas forças responsáveis por isso: uma força
de reunião e uma força de separação. As duas, atuando sobre os quatÍo
elementos do cosmo - ar, terra, fogo e água - ora compondo-os e ora
descompondo-os, criaria o movimento do cosmo.
A nlosorIl ENTRE os ÁRABES - Famnre
172

Outro conjunto de termos que se encontra na Epístolarefere-se aos


elementos da linguagem e do discurso filosófico tais como "verdade",
"mentira" e "incerteza". A "verdade" é entendida como o discurso que
afirma o que é e nega o que não é; a "mentira", contrariamente, é definida
como um discurso que afirma o que não é e nega o que é; e a"incerteza"
seria o estado em que algo se mantém na alma entre sua afirmação e sua
negação, sem que haja uma inclinação conclusiva a nenhum dos dois
lados. Jáa"certeza" é apermanência da compreensão com a estabilidade
do juízo pela demonstração. Acresce-se, ainda, o termo "absurdo", en-
tendido como sendo a reunião de duas coisas contraditórias em uma
certa coisa ao mesmo tempo e o termo "dúvida", que é definido pela
ação de deter-se no limite dos dois extremos da opinião, em atitude de
suspeição diante dela. Com relação ao "parecer", este é colocado por
Al-Kindi como sendo um tipo de juízo que se emite apartir da aparência
e de explicações sem provas nem demonsffação de uma coisa, e não pro-
priamente de sua realidade. Por fim, há o termo "opinião", que se ma-
nifesta ao se escrever ou ao se falar, e é entendido como uma certa esta-
bilidade do parecer na alma mas que pode desapaÍeceÍ. Contraria-
mente, o "conhecimento" é uma opinião que não desaparece. Todos esses
exemplos podem até mesmo parecer pueris diante do desenvolvimento
dado por alguns filósofos gregos - notadamente por Platão e Aristóteles.
Enffetanto, esse início tateante num labirinto de novos termos, novas pro-
postas e de suas intrínsecas relações, foi se complexificando na medida em
que afalsafafoi se desenvolvendo e introjetando os conceitos da filosofia
gÍega, incorporando-os à realidade do mundo islâmico. Encontra-se nos

falasifa posteriores - notadamente Al-Fãrãbi, Ibn Sinã e Ibn Ru§d - maior


completude e profundidade. Mas, voltemos a mais algumas definições.
"Filosofia" é um dos termos mais explicados na Epístola. Al-Kindi
enumera cinco proposições distintas a esse respeito. Primeiramente, o
termo "filosofia" é explicado segundo a etimologia original da palavra
A. rtu,q,re E os FALÃsrÍA
173

grega, entendida como o "amor à sabedoria". Em segundo lugar, Al-


Kindi evoca aqueles que a chamaram de "aarte das artes" ou "a sabedoria
das sabedorias". Segundo ele, em sua essência, a filosofia pode ser
entendida como uma ação que se assemelha à ação do Deus Altíssimo,
visto que isso é possível ao homem que busca se aperfeiçoar em suas
virtudes. Ora, mas como deve o homem aperfeiçoar as virtudes de sua
alma? A terceira explicação indica que isso pode ser conseguido se a fi-
losofia for entendida como uma preocupação pela morte, segundo o que
dizem alguns. Nesse caso, não se refere à morte natural - na qual a alma

deixa o corpo -, mas à morte das paixões. Essa mortificação é um dos


caminhos para se chegar à virtude, em que se busca alcançar o pÍazer
que se encontra no mundo das essências intelectuais em oposição ao
mundo dos prazeres sensíveis. Essa direção da alma pode ser conseguida
pelo hábito que o homem desenvolve em sua conduta, visto que a alma
tem a predisposição para atuar em dois níveis distintos: o sensível e o
intelectual. Quando a alma está ocupada com os prazeres sensíveis, aban-
dona, em conseqüência, o uso do intelecto e não alcança sua verda-
deira perfeição.
Outra definição do termo "filosofia", inclinada a uma inspiração
socrática, entende-a como o conhecimento que o homem tem de si
mesmo. Al-Kindi sublinha que essa expressão é de grande profundidade
e possui uma finalidade nobre, exemplificando esse caso do seguinte
modo: "visto que as coisas são corpos e não-corpos; que os corpos são
substâncias ou acidentes; que o homem é corpo, alma e acidentes; e que
a alma é substância e não corpo, então, se o homem conhece a si mesmo,
conhece o corpo com seus acidentes, o acidente primeiro e a substância
que não é corpo. Ora, se ele conhece tudo isso, então conhece tudo. Por
essarazão os filósofos chamaram o homem de microcosmo".4 Al-Kindi

4. GUERRERO, op. cit., pág.21.


A prlosoRa ENTRE os Ánenrs - Femem
174

parece preferir entender a filosofia como o conhecimento das colsas


eternas e universais, de seu ser, de sua essência e de suas causas na
medida do possível ao homem. Quanto à posição que o homem ocupa
em sua condição de possibilidade, os últimos três itens da Epístola -
definidos de modo sintético - fornecem uma boa imagem da posição
intermediária do homem no cosmo. Vejamos as definições:

- a humanidade: a vida, a razáo e a morte;

- o angélico: a vida e arazáo;

- a animalidade: a vida e a morte.s

E, para encerrar essa seleção de termos da Epístola das definições,


fiquemos com esta interessante definição da palavra "amigo": "um
homem que és tú mesmo e, no entanto, é distinto de ti".6
Em inúmeras passagens de sua obra, Al-Kindi mostrou-se um
entusiasta da busca pelo saber por meio de palavras que soam como um
constante convite a nos pôr em contato com a filosofia, como uma das
vias pelas quais o nosso espírito pode atingir a perfeição. Num tom
otimista em relação ao verdadeiro conhecimento, Al-Kindi deixa trans-
parecer certo desdém em relação às vicissitudes da vida, ao mesmo tempo
l

em que evoca o saber que vem do alto como um consolo em vista da


nossa miséria existencial finita. Poderíamos nos perguntar como seria
possível nos entusiasmar com uma vida que nos mostra a morte como
fim. Como poderia haver alegria, se tudo perdemos? Como seria possível
nos conduzir pelo caminho reto se nossa conduta aparentemente não
altera em nada o nosso destino? Algumas dessas reflexões são feitas por
Al-Kindi em sua Epístola sobre a ética ou A arte da consolação.

5. Ib., pág.24.
6. Ib., pâ9.19, v. 56.
A. muurl E os ,qI,{T/FA
tz5

Entremeada de temas estóicos e neoplatônicos, A afie da conso-


laçfui foi escrita num estilo garboso. É digno de nota o fato de Al-Kindi
ter escrito uma epístola a respeito da questão ética, visto que dificilmente
esse tema é assim encontrado em autores islâmicos. Arazáo se deve, em
parte, ao fato de que o Alcorão é ao mesmo tempo um livro religioso e
ético, pois designa o modo de conduta do crente sendo reforçado pelas
narrativas da tradição atribuídas a Muhammad. Frise-se que esse con-
junto formou o paradigma ético acabado desde o início do Islam. Nessa
epístola, Al-Kindi recolhe uma série de idéias provenientes dos gregos
e as mescla com temas religiosos. No entanto, não procura. como lhe é
costumeiro, harmonizar essas idéias. Os assuntos tratados são sobre-
postos de tal modo que podem indicar que essa epístola talvez te-
nha sido uma coletânea de fontes gregas que Al-Kindi elaborou à sua
maneira.

Que Deus te proteja, caro irmão, de todo tropeço' te guarde de


todo o mal e te dê êxito através dos caminhos que levam à sua

satisfação e à sua abundante recompensa!7

Assim é iniciada A arte da consofuição, cujo objetivo é fornecer


algumas indicações para combateÍ a trlsteza e manter a altivez da alma
em toda a sua virtude. Segundo Al-Kindi, devemos entender que a tristeza
é uma dor da alma que tem causas que podem ser conhecidas e entendidas.

Tanto seu conhecimento como seu entendimento podem ser reduzidos


às causas provenientes ou pela perda de coisas que se ama, ou pela
impossibilidade de se conseguir as coisas que se anseia. Ora, desde que
estamos à mercê de um mundo onde reina a geração e a coÍrupção das

1. Ib., pág. 156.


A rrlosome ENTRE os Ánegss - Flr-srpl
tz6

coisas, não é possível que alguém obtenha tudo que deseja, e muito me-
nos que esteja a salvo de perder as coisas que ama. Por essa tazáo, admi-
tamos que a estabilidade e a permanência faltam neste mundo e só são
encontradas no mundo do intelecto que, inclusive, podemos contemplar.
Desse modo, se não queremos perder nada do que amamos e nem
deixar de obter o que desejamos, devemos nos voltar ao mundo do
intelecto e fazer com que as coisas que amamos ou desejamos sejam
dele provenientes. Se isso fizermos, estaremos certos de que nada
deixaremos de conseguir e nada do que consigamos nos será levado,
visto que as coisas que alcançamos no intelecto permanecem firmes
e sem alterações, ao passo que aquilo que nos toca no mundo sensível
é passageiro para todos os homens e ninguém pode deter sua coÍrup-
ção, nem pÍeservar tais coisas paÍa sempre. No mundo, coisas que foram
suaves transformam-se em coisas ásperas, perturbadoras, depois de te-
rem sido tranqüilas, e se mostram em retrocesso depois de terem pareci-
do um avanço. Mas isso tudo nada mais é que a Natureza em sua pró-
pria nailtreza.
Ora, se quiséssemos que coisas que se corrompem não se coÍrom-
pam, que coisas que avançam e retrocedem apenas avancem e que aquilo
que não cessa de se transformar torne-se estável, estaríamos então
querendo danatureza o que não é próprio dela e "quem quer o que não
está na nattrezaquer o que não existe. Quem quer o que não existe está
necessitado das coisas que anseia e aquele que necessita das coisas pelas
quais anseia é um indigente".8 Aquele que deseja as coisas que são
passageiras pode ser considerado um homem infeliz, ao passo que aquele
cuja vontade se cumpre é um homem feliz. Aspirar à felicidade e nos
guardar de sermos desgraçados é possível se fazemos com que nossa

8. Ib., pâg. 157.


A rar-sena E os FÁL,Is/FÁ
177

vontade e aquilo que desejamos estEam além daquilo que nos chega
pelo mundo sensível, mutante e instável e, também, se não nos en-
tristecemos com aquilo que nos escapa do mundo sensível. Conduzir-se
assim é ter as qualidades dos reis excelsos e não da gente rude e ávida
pelo que não permanece. Os reis não vão com avidez ao encontro daquilo
que lhes chega e tampouco saem para acompanhar aquilo que se vai
mas, ao contrário, gozamdaquilo que lhes chega de maneira desapegada,
assim como se desapegam daquilo que se vai.
Em todas as circunstâncias é mais sensato pensarrnos que "se não
existe o que queremos, devemos querer o que existe e não preferir a
persistência da ÍrisÍeza no lugar da persistência da alegria. A quem se
entristece com a perda das coisas que se perdem assim como com a
necessidade das coisas que se necessita, a este jamais desaparecerá a
tristezaporque, em todas as situações da vida, perderáobjetos amados e
se-lhe escapará aquilo que busca".eVisto que a alegria e a tristezanáo
podem coexistir no mesmo instante na alma, devemos fazer com que
nossas almas estejam satisfeitas em todas as circunstâncias, mediante
uma condução correta que proporcionamos a ela. O que é detestável e o
que é amável sensivelmente não o é por natLLÍeza, mas é algo que provém
do costume e do uso. Al-Kindi exemplifica isso lembrando que vemos
homens viciados em jogos de azar, beberrões e ladrões que, pelo hábito,
se alegram com suas atitudes reprováveis. Em nossa senda devemos
conduzir nossa alma aos costumes excelentes e acostumá-la a isso até
que forjemos um caráter que tome a vida agradável durante o tempo de
nossa existência.
Além disso, devemos levar em consideração que aquilo que nos
origina atnsteza ou é uma ação nossa, ou uma ação de outro. Ora, no

9. Idem.
A rrlosona ENTRE os Ánesgs - Frr-srra
t78

caso de sermos nós próprios o agente daquela ação que nos entristece,
desde que paremos de fazer tal ação, não mais nos entristeceremos. Se,
por outro lado, a ação provém de um outro, pode estar em nossas mãos
afastá-la, e é o que devemos fazer quando é esse o caso. Mas se, de outro
modo, não depende de nós afastar tal ação, não devemos nos entristecer
antecipadamente pois talvez, antes que aconteça aquilo que nos entristeça,
tal ação seja afastada por um motivo que não depende de nós e essa
hipotética tristeza jamais nos atingirá. De todo modo, não devemos nos
entristecer pois "quem entristece sua alma a maltrata e quem a maltrata
é um ignorante, injusto até não mais poder, porque causou um dano à
sua alma. Se houvesse feito isso com outro, seria ignorante e injusto,
mas ao fazê-Lo consigo mesmo o é ainda mais, e não deveríamos estar
contentes em serrnos os mais ignorantes, os mais grosseiros e os mais
inj ustos".ro
Porém, como não podemos nos manter totalmente isentos de es-
tarmos tristes e como faz parte da natureza tropeçarmos na tristeza,
devemos ao menos ter cuidado em reduzir o tempo em que ela dura em
nós. Um dos meios para isso é nos lembrarmos de nossas tristezas
passadas e de çomo elas se foram, ou então lembrarmos das tristezas e
consolações que vimos nos outros e isso, para nós, será um consolo.
Lembremo-nos de que muito daquilo que desejamos também outros o
desejaram sem conseguir obter, assim como muito do que perdemos
outros, também, perderam e quantos deles podemos ver hoje que não se
entristecem mais com seus infortúnios mas, ao contrário, podem viver
com alegria. Não nos entristeçamos, pois. Aqueles que perderaln um
filho ou quo não o têm encontram muitas outras pessoas em situação
semelhante. Em todos os casos há os que estão tristes e os que não estão

10. Ib., pág. 160


\ ITTSAT'E E OS FALÃSIFA
t79

mais tristes. O mesmo se dá com a riqueza e tudo o mais que toca o


mundo sensível. "Conseqüentemente, a tristeza é algo que depende ape-
nas da vontade humana, não é necessária por nat:ureza, já que encon-
tramos, por exemplo, um homem de quem foi tirada uma posse e está
triste, enquanto muitos que não têm essa posse não estão tristes. Portanto,
essa tristeza sobre si mesmo só se deve a um ato voluntário com relação
àquilo que foi tirado ou que não se pôde conseguir."rr
Al-Kindi alerta para o fato de que se não queremos que nos aflijam
as desgraças, o que queremos é, em última análise, não existir, pois essa
é a condição dos seres gerados e coÍruptíveis. Se queremos algo distinto
do que é anattxeza estamos querendo o impossível. Ao Criador pertence o
que possuímos e, por isso, Ele pode retirar o que nos deu a qualquer
momento, às vezes, até mesmo, pelas mãos de nossos inimigos. Quando
alguém recebe um empréstimo e pensa que aquilo é seu não está sendo
agradecido, pois o mínimo que deve fazer é devolver o que foi emprestado
quando isso for pedido de volta. Por isso, aquele que está triste por ter de
devolver o que lhe foi emprestado está sendo pouco agradecido. Se somos
sabedores disso, então, deveríamos considerar motivo de vergonha quan-
do nos apoiamos em desculpas infantis dizendo: "estamos tlistes porque
aquele que nos emprestou algo recuperou seu empréstimo pelas mãos
de nossos inimigos".rr Voltando-nos para nós mesmos. ainda que deseje-
mos que nada nos seja retirado ou que não alcancemos o que queremos,
podemos dizer: "ainda que nos arrebate o menor e o menos valioso, fica-
nos o mais excelente e abundante enquanto perrnaneçam nossas almas".r-l
Para reforçar a idéia do desapego em relação às coisas que não
permanecem, A1-Kindi refere-se a uma passagem - atribuída a Sócrates,

t1. Ib., pág. 162.


12. Ib., pâg. 163.
t3. Ib., pás. 164.
A rutSar,q E oS FALÃSIFe
t8t

o "cínico"r4-em que alguém teria perguntado a ele: "Por que não estás
triste?" ao que teria respondido o filósofo: "Porque não possuo nada
cuja perda possa me entristecer".ls Al-Kindi também observa que o
homem, à exceção das outras criaturas, apesar de possuir discernimento,
quer possuir muitas coisas das quais não tem necessidade nem para a
sua subsistência, nem para o bem estar de sua vida. Por essa razão, diz-
se que aquele que se ocupa em aumentar as coisas que lhe são externas
mancha seu viver com a vida passageira, são muitas suas enfermidades
e não desaparecem suas dores.
Em seguida, Al-Kindi expõe uma metáfora da vida como sendo
uma travessia de barco que todos fazemos. Essa metáfora, de inspiração
estóicar6, aparece nas palavras deAl-Kindi a partir da afirmação de que
a vida se assemelha àque1e barco que reuniu muitas pessoas para
atravessarem o mar, a fim de se instalarem numa terra distante. Durante
a viagem, o capitão do barco levou todos a um porto seguro para solu-
cionarem alguns problemas e, em seguida, continuarem a viagem. Nessa
parada ocorreu que alguns passageiros desceram do barco, resolveram
aqueles assuntos necessários e voltaram ao barco sem que tivessem
desviado sua atenção com nada além da resolução daqueles assuntos.
Esses passageiros ao voltarem ao barco que estava vazio escolheram os
melhores lugares para seguir viagem. Ocorreu que ouros passageiros,
ao descerem à terra, detiveram-se a contemplar os prados, as flores, as
árvores, os pássaros e as pedras. Ao voltarem estavam um pouco atrasados
e ocuparam lugares mais apertados no barco, visto que os outÍos haviam

14. Muitos doxógrafos árabes atribuiram muitas passagens de Diógenes, o "cínico",


erroneamente a Sócrates.
15. GUERRERO, op. cit, pâg. 164.
16. Ib., pá9. 154, explicando que esse tema aparece em autores da Antiguidade, mas
que Al-Kindi deve ter se inspirado em Epicteto.
A prI-osopr,c ENTRE os ÁnesEs - Fersnre
t82

se antecipado. Houve, ainda, o caso de outros passageiros que foram


além da contemplação das coisas que havia naquele lugar e passaram a
recolherpedras, conchas, flores e outras coisas quejulgaram dever levar
consigo na viagem de volta a sua pátria. Estes, além de ocupar lugares
mais apertados e desconfortáveis, tiveram de se apinhar com as coisas
desnecessárias que traziam consigo, Pior que isso, tinham ainda que
cuidar dessas coisas a maior parte do tempo, ficando tristes quando
algumas delas se perdiam.
O caso mais extremo foi, porém, o dos passageiros que se embre-
nharam nas matas que havia naquele lugar, esquecendo-se completamente
do barco e da pátria a que se dirigiam. Na mata cerrada coreram grandes
perigos, fosse pelos ataques de animais, de armadilhas na floresta ou
das doenças que podiam contrair. Quando chegou a hora de continuarem
a viagem, o capitão chamou a todos paÍa a partida do barco: alguns
ainda foram capazes de escutá-lo e entraram no barco, mas traziam muitas
moléstias e ferimentos, terminando por ficarem nos lugares mais incô-
modos do barco, amontoados uns sobre os outros em péssimas condições;
para aqueles outros que se embrenharam profundamente nos bosques, a
voz do capitão sequer foi ouvida e o barco partiu sem eles. Alguns foram
moilos pelas feras, outros pelas doenças tendo permanecido separados
de sua pátria e, por isso, causaram muita tristeza para aqueles que
seguiram viagem. Aos que estavam no barco caregados com o peso das
coisas que recolheram, ocoÍTeu que não tardou para que as conchas
começassem a exalar um odor fétido, as flores murchassem e as pedras
perdessem seu colorido, e eles foram obrigados a jogar tudo ao mar
para se livrarem do estorvo daquilo que lhes tirava a liberdade. No fim,
ficaram de mãos vazias. Muitos desses adquiriram doenças, devido aos
odores daquelas coisas, mas, mesmo assim, debilitados, seguiram viagem.
Outros acabaram morendo como muitos daqueles que haviam se embre-
nhado nos bosques. Dentre os que somente se demoraram a contemplar
A r,crl,,ar,4 E os FALÃyrFA
r83

as coisas daquela terra ocoffeu que não conseguiram os lugares mais


amplos e cômodos do barco mas seguiram sua viagem com tranqüilidade.
Quanto aos que voltaram ao barco Sem Se entreter com nada das coisas
que chegavam aos seus sentidos, exceto com aquilo que seus olhos con-
templaram, ao sair do barco ocuparam os lugares mais amplos e confor-
táveis e chegaram comodamente à sua páttia.
Essa narrativa, mostrando várias maneiras pelas quais o homem
poderia transpor sua viagem, constituiu-Se num "exemplo de nossa
passagem por este mundo em direção acl mundo verdadeiro".rT Se real-
mente houvesse um motivo para nos entristecermos este deveria ser o
da separação de nosso verdadeiro lugar e de nossa verdadeira pátria,
onde não há carências nem desgraças, nem perdas nem coisas inal-
cançáveis. Al-Kindi procura mostrar que na senda da vida, mesmo que
pensássemos que a morte seria um mal tão grande capaz de nos
entristecer, isto não é uma verdade. A primeira premissa é de que não
devemos detestar o que não é um mal, mas apenas o que é um mal. E
enganam-se os que pensam que a morte é, em si, um mal, pois o que é
um mal, na morte, é apenas o medo da morte.rs A morte, em si mesma,
nada mais é que a perfeição e o acabamento da nossa natuÍeza. sendo a
definição de homem: ser vivo, racional e mortal, se não houvesse a morte
não haveria homem, poÍque se não é mortal, não é homem' Seria um
absurdo que aquilo que somos fosse um mal, pelo contrário, o mal é
somente quererrnos ser o que não somos. Por isso a morte não é um ma1.
E se o que muitos pensam ser o maior dos males não o é, menos ainda
será um mal aquilo que está aquém da morte. O homem não deve entender

a morte como um fim mas como uma transformação própria da natureza.

t7. Ib., pág. 168.


18. Ihn Stnã escreveu uma espístolâ que tratâ do tema da cura do medo da morte.
A prlosorra ENTRE os ÁRasEs - Fe.Lsepn
184

Um exemplo usado por Al-Kindi consiste no seguinte: imaginemos


que o alimento fosse dotado derazãoe, estando no fígado, fosse obrigado

a sair dali. Ora, isso certamente lhe custaria muito, mesmo que fosse
para o aperfeiçoamento de seu ser. Suponhamos que esse mesmo alimento
fosse transportado para os testículos e, convertido em sêmen, fosse levado
ao útero. Isso talvez o pusesse triste. Muito mais triste, porém, seria
para ele se tivesse que voltar aos lugares anteriores e aos estados ante-
riores. O mesmo aconteceria quando esse sêmen, já desenvolvido, che-
gasse a este nosso mundo: inicialmente se entristeceria, mas depois não
quereria trocaÍ isso que vive pelo seu retorno ao útero. Do mesmo modo,
estando neste mundo, vive a angústia de ter de abandoná-lo. Se apenas
nos voltarmos às coisas deste mundo e nos apegarmos em demasia às
coisas dos sentidos, entenderemos que a morte é um mal. Participar das
possessões sensíveis deste mundo não é um mal. Um mal é nos enrai-
zarrnos nelas e nos entristecermos, se elas se tornarem aflições que
introduzimos em nossa alma. Devemos ter em conta que, muitas vezes,
ao não possuírmos os bens exteriores que os reis possuem, também náo
possuímos aquilo que acompanha tais posses tais como a cólera e a

concupiscência, que são fontes de males e dores da alma. Afinal, pior


que a enfermidade do corpo é a enfermidade da alma.
Desse modo, Al-Kindi encerraA arte da consolação desejando que
esses conselhos sejam um exemplo firme a seguir para que nos salvemos

dos males da tristeza e possamos chegar à pátria mais excelente, à morada


da permanência e ao lugar dos piedosos:

Que Deus te conceda a felicidade perfeita em tuas duas


moradas, te favoreça sobremaneira em ambas, te coloque entre os
bem guiados, os que gozamdos frutos darazío e te afaste da infâmia

e da baixeza da ignorância! Que Deus te dê com suficiência um


A I,IIJIrA E OS FALÃSIFA
185

grande lote deste e do outro mundo com que possas chegar a um


descanso perfeito e a uma vida excelente.re

Se nessa exposição não vemos aparecer com evidência os conceitos

religiosos, como substrato da reflexão sobre a éticae o modo de conduta


do homem ao longo de sua vida, já em sua metafísica os elementos reli-
giosos são contemplados pela argumentação filosófica. O resultado disso
é que Al-Kindi procura atingir seu objetivo maior de concordar sua crença

religiosa com a filosofia. Em sua epístola Sobre a filosofia primeira,


inicialmente Al-Kindi fazumlongo louvor à filosofia de um modo geral,
e à filosofia primeira em particular, pois esta se ocupa do estudo da
causa primeira que é Deus. Assim, entende Al-Kindi que o filósofo mais
nobre e perfeito deva ser o homem versado nesse tema que é, em suma,
o mais nobre conhecimento. Na abertura dessa obra Al-Kindi mostra
gratidão aos que o precederam em outras línguas, colocando-se como
um elemento de ininterrupta continuação da busca pela verdade.

Grande deve ser, pois, nosso agradecimento àqueles que


trouxeram um pouco da verdade, tanto mais àqueles que nos
trouxeram muito da verdade, visto que nos fizeram participantes
dos frutos de seus pensamentos e nos facilitaram o caminho para as
verdadeiras questões obscuras, ao mesmo tempo em que nos
beneficiaram com as premissas que nivelaram, para nós, o caminho
da verdade. Se não houvessem já existido tais princípios verdadeiros,

com os quais nos educamos para as conclusões de nossos problemas


desconhecidos, eles não se reuniriam para nós, nem mesmo com
uma intensa investigação durante toda a nossa vida. Isso só foi

19. GIiERRERO, op. cit., pág. 17 L.


A rrlosone ENTRE os ÁnesEs - Fe.mere
t86

reunido nas épocas passadas - era após en - até esta nossa época,

com uma investtgação intensa, com assídua e infatigável tenacidade


(...) Não nos devemos avergonhar por achar bela a verdade e adquiri-

la de onde quer que venha, ainda que seja de povos e de raças distintas

e distantes de nós, pois não existe nada mais caro do que a verdade

para quem busca a verdade. Não há que se menosprezar a verdade,


nem há que se humilhar aquele que dela fala e nem quem a traz
consigo. Nada se tonlou desprezível pela verdade; ao contrário, pela
verdade tudo se enobrece.20

Com esse espírito de continuidade da busca pelo saber, aliado à


tentativa de harmonizar dogma e argumentação, o conhecimento
metafísico ganha importância nas teses de Al-Kindi. Avançando no tema,
nosso autor entende que, enquanto a metafísica é o estudo do conheci-
mento das causas, deve estudar as quatro causas enumeradas por
Aristóteles: material, formal, eficiente e final. Mas, ainda que inspi-
rado na teoria das quatro causas do Estagirita, Al-Kindi não as segue à
risca, adaptando-as para atingir seus próprios objetivos. O mundo não
é eterno mas criado e a eternidade é um conceito predicado apenas a
Deus, Uno, Verdadeiro, Eterno, Princípio Primeiro de todas as coisas. Deus

é entendido como aquele de quem não se pode conceber como tendo


uma causa de seu ser distinta de si mesmo. O Ser Etemo é imutável e

indestrutível, visto que não possui em si mesmo nenhuma contrarieda-


de própria do mundo da geração e da corrupção. Na medida em que é

por si, não cessa jamais, não se transforma em um ser mais perfeito e

nem em um ser menos perfeito; estabilizado na mais permanente


excelência, jamais se altera.

20. Ib., pág. 47 e segs.


A i.ersane E os Eql-..li.s/FÁ
t8z

Esse Ser Eterno náo é um corpo, pois se o fosse sua pluralida-


de deveria se constituir num infinito em ato. Procedendo pela redu-
ção ao absurdo, Al-Kindi procura demonstrar que a proposição de
que um corpo poderia ser eternamente infinito é insustentável. Do
mesmo modo. procuÍa mosrrar que o tempo não pode ser infinito. Sua
insistência quanto à finitude do Universo, do tempo e do movirnenro
leva a considerar que essas realidades foram. portanto, criadas por
Deus a partir do nada. Pelo mesmo motivo admite-se a possibilidade
da destruição do mundo pela ordem de Deus. Por essa razáo, Al-Kindi
entende ser necessário proceder a demonstrações da impossibilidade
de séries infinitas em ato e, a partir da demonstração da impossibili-
dade, nem o tempo nem o movimenio poderem ser infinitos, Al-Kindi
entende que isso consiste nulna prova efetiva do começo do mundo
em um determinado instante. Ora, se isso é certo, certo também é que,
demonstrada a obra, forçosamente esteja demonstlada a existência
de um autor.
Tendo um começo, entende-se que necessariamente o mundo
deve ter sido engendrado e, como o que é engendrado só pode sê-lo
por um gerador, logo, este mundo foi criado do nada, por Deus. En-
quanto autor e criador do mundo, o principal atributo de Deus é sua
unicidade, que é referendada insistentemente pelas palavras do Alcortio
em toda sua extensão. Nele não existe a pluralidade da composição: é

simples e não possui nem rnaÍérta nem forma, Ele é o não causado, é

causa de si mesmo e causa de todas as causas. Ora, "enquanto é causa de


todas as coisas, o Ser primeiro deve ser superior a todo o resto e não ter
analogia com nada do que é criado".2rAssim, a cosmovisão de Al-Kindr
estabelece, por um lado, o mundo com seus atributos: criado, finito,

21. FAKHRY, op. cit, pág. l0l.


A rrlosone ENTRE os ÁRasEs - FeLsena
t88

múltiplo e não eterno e, de outro lado, Deus: Criador, Infinito, Uno e

Eterno. Al-Kindi reconhece uma gradação de causas que procede desde


Deus em ordem decrescente até chegar ao mundo sublunar, isto é, abaixo
da esfera da Lua. A esfera das estrelas fixas, assim como o Sol e a Lua,
são fatores causais para que haja vida no mundo sublunar pois, apesar
de Deus ser a causa eficiente remota, sem a causalidade eficiente próxima,
a potência não passaria ao ato neste mundo sublunar.
Quanto ao estudo sobre a alma, os escritos de Al-Kindi permitem
dizer que sua matriz é um platonismo acrescido de algumas teses

aristotélicas. Entendendo que ambas as teorias devem coincidir, ele pro-


cura harmonizâ-las. Em sua Epístola sobre o sonho e avisão, Al-Kindi,
apesar de usar algumas categorias aristotélicas, deixa Íansparecer sua
visão platônica estabelecendo hierarquicamente a apreensão das formas
pelos sentidos e o papel da imaginação e da concentração.
No Dlscarso sobre a alma, Al-Kindi acolhe uma visão estritamente
platônica, ao afirmar a existência de dois mundos, o inteligível e o sensí-
vel. Não obstante algumas passagens do texto serem enigmáticas, Al-
Kindi afirma a alma humana como proveniente do mundo divino superior
e incorpóreo. Assemelhando-se aele, a alma deve procurar o seu retorno
na medida em que se desata dos grilhões do corpo sensível em direção
ao mundo inteligível, sua verdadeira morada. O Discurso sobre a alma
inicia-se com a afirmação de que a obra é um resumo sobre o tema a
partir "do livro de Aristóteles, de Platão e do restante dos filósofos"22'
Porém, pelo desenvolvimento do texto, é possível verificar que Al-Kindi
não se baseou no De anima de Aristóteles mas talvez nas primeiras obras
do Estagirita, de traços platônicos mais marcantes como, por exemplo,
o Eudemo, obra mais característica do período platônico de Aristóteles.

22. GUERRERO, op. cit.,pâg.134.


A. mutre E os FALÃ\IFA
t89

A abertura do Discurso sobre a alma se dá com as seguintes palavras:

"Que Deus te guie retamente para alcançar a verdade e te ajude a obter


suas coisas inacessíveis! Que Deus Altíssimo te faça feliz por obedecê-
10".23Em seguida, Al-Kindi resume as principais idéias sobre a alma.
Para ele, a alma é uma substância simples detentora de nobreza e
perfeição, da mais alta dignidade. "Sua substância procede do Criador
do mesmo modo que a luz do sol procede do Sol."2a Sua substância,
sendo divina e espiritual, indica a sua nobreza em oposição às paixões e
à ira que sobrevêm ao corpo segundo os impulsos da faculdade irascível.
Quando a alma, que procede do Criador, se separa do corpo, conhece
tudo o que há no Universo, nada se-lhe oculta. Isso, segundo ele' teria
sido o que Platão quis dizer ao mencionar os antigos e virtuosos filósofos
que, depois de se liberarem das coisas sensíveis no mundo terreno, pela
especulação e investigação revelou-se o conhecimento do que estava
oculto aos homens, descobrindo, assim, os mistérios da criação.
Seguindo por essa viaplatônica, Al-Kindi entende que a alma atinge

seu objetivo de assemelhar-se ao Criador enquanto não se entrega aos


prazeres sensíveis de modo integral, pois o virtuoso é aquele em quem
prevalece a faculdade intelectual da alma, pois esta se aproxima das
qualidades do Criador tais como a sabedoria, o poder, a justiça, o bem,
o belo e a verdade. Ao homem é possível assim conduzir-se, dentro de
sua capacidade, pois ainda que limitado pode participar dessas virtudes,
já que a faculdade intelectual de sua alma possui "um poder semelhante
ao Seu poder".25 Categoricamente, diz Al-Kindi: "segundo a opinião de
Platão e da maioria dos filósofos, a alma é eterna depois da morte sendo

23. Idem.
24. Idem.
25. Ib., pág. 135.
A nr-osona ENTRE os ÁnasEs - Falsnrn
190

sua substância igual à do Criador".26 Separada do corpo, pode conhecer


as coisas tal qual as conhece o Criador, mas num grau menoÍ já que
recebe a luz Dele. Quando nossas almas estiverem separadas e adapta-
das ao mundo da eternidade, verão pela luz do Criarlor tudo manifesto.
Citando Pitágoras27, Al-Kindi entende que a alma, mesmo estando uni-
da ao corpo, pode abandonar as paixões e livrar-se das impurezas,
voltando-se ao estudo cuidadoso do conhecimento verdadeiro das coisas.
Assim, elareaTiza um polimento em si mesma, permitindo que a luz do
Criador manifeste nela as formas de todas as coisas, como um espelho
polido manifesta as imagens das coisas sensíveis. O limite da pureza
que uma determinada alma pode atingir fatá com que ela espelhe de
maneira mais perfeita as fotmas do mundo superior porque, nesse caso,
o Criador derama sobre ela Sua luz e Sua piedade. Nesse estado, a alma
goza de um pÍazer eterno, incomparavelmente superior a todos os
prazeres sensíveis, pois estes não são tão nobres quanto os prazeres
espirituais. "O desgraçado, o cego e o ignorante são os que se contentam
com os prazeres dos sentidos, fazendo deles seu objetivo e seu fim
último."28
Segundo Al-Kindi, é preciso saber que estamos nesta vida como se

estivéssemos passando por uma ponte, numa passagem em que a morada


estável que esperamos é o mundo superior e nobre. Nesse lugar nossas
almas estariam, depois da morte, próximas ao Criador, a quem veríamos
com uma visão intelectual e não sensível. Esse lugar, a morada das almas

intelectivas, é o mundo da divindade, onde está a luz do Criador, atrás


das esferas por onde se movem os astros. As almas separadas não

26, Idem.
27. O nome "Pitágoras" aparece de modo confuso no manuscrito. Cf. GUERRERO,
op.cir.. pág. 136, n.6.
28. GUERRERO, op. cit., pâg. 137.
A T,TLSITs F, oS rsLÃsIFA
r9t

possuem todas o mesmo destino pois a ascensão das almas a esse lugar
depende de sua puÍeza. Em etapas sucessivas de ascensão purificadora,
algumas almas chegam até a esfera da Lua, depois se elevam até a esfera
de Mercúrio e assim seguem sucessivamente elevando-se às esferas dos
astros superiores, perrnanecendo em cada uma dessas esferas por algum
tempo. Quando as almas estão totalmente despreendidas de suas ligações
com o mundo damatérta e do sensível, quando não possuem mais as
imagens e as coisas próprias aos sentidos, então essas almas se elevam
finalmente ao mundo do intelecto. atravessam todas as esferas e per-
manecem no lugar mais nobre onde nada se oculta e onde a luz do Criador
manifesta as coisas que são verdadeiras. "Todas as coisas lhes são claras

e evidentes, e o Criador thes confia assuntos do governo do mundo, cuja


ação e tarefa lhes proporcionará pÍazer. Pela minha vida! Platão descre-
veu, resumiu e reuniu nessas poucas palavras, muitas idéias!"2e
A ascensão da alma só é conseguida pelo seu aperfeiçoamento a
partir do isolamento de suas impurezas. Al-Kindi nota ser estranho que
o homem descuide de sua alma e a afaste de seu Criador, pois a nobreza
é o estado que lhe pefience e o que a faz assemelhar-se ao poder de Deus

Altíssimo e a Seu estado, quando separado do corpo. Diga aos que choram

- diz ele - que devem chorar e aumentar seu pranto por quem descuida
de sua alma e se excede entregando-se aos prazeres vis, baixos, depre-
ciáveis e falsos, que os fazemadquirir o mal e os inclinam a assemelhar-
se às bestas; por quem deixa de meditar sobre a nobreza da alma e a
quem deixa de se dedicar a "pudficaÍ sua alma na medida do possível.
A purificação verdadeira é a da alma. não a do corpo. (...) Oh! homem
ignorante! Não sabes que tua permanência neste mundo é como um
relâmpago e que logo chegarás ao mundo verdadeiro e permanecerás

29. Ib., pág. 137.


A rrlosoprr. ENTRE os Ána.ses - Frr-s,qpn
t92

nele eternamente?"30 Após essa exortação, Al-Kindi finaliza o Discurso


sobre aalma sinalizando de modo abrupto que resumira o que os filósofos
haviam dito: "a alma é uma substância simples. Compreenda o que te
escrevi sobre isso. Sê feliz por isso. Que Deus Altíssimo te faça feliz no
teu mundo terreno e em tua vida futura!"3r
Dos escritos sobre temas referentes à alma humana destaca-se
também o estudo Sobre o intelecto, que inaugurou uma série de outros
tratados e estudos a esse respeito pelos sucessores de Al-Kindi. A base
dessa obra é a tradição iniciada por Aristóteles em seu De Anima. Náo
é demais salientar que a questão do intelecto, na falsafa, foi uma das
vigas mais importantes na construção da cosmologia e da episte-
mologia. Em linhas modestas, esse pequeno tratado de Al-Kindi foi
traduzido no Ocidente medieval no século XII d.C., e esteve presente na
recepção de Aristóteles pelo Ocidente. O estudo Sobre o intelecto pro-
põe uma divisão do intelecto que embora não se apresente de maneira
muito detalhada, já indica o modo pelo qual esse tema foi compreendido
pelosfalasfa. Deve-se ter em conta que em todo o desenvolvimento das
teses de Al-Kindi, a concordância que ele pretendeu entre as teses pla-
l

tônicas e as aristotélicas são orquestradas pela presença do neoplatonis-


mo, que operou uma aproximação entre ambas. l
i
Do mesmo modo como a Epístola sobre a alma, o estudo Sobre o
intelecto foi escrito com o objetivo de informar, resumidamente, o que
disseram os antigos gregos a respeito do intelecto. Al-Kindi considera
que "os mais dignos de elogios denffe eles são Aristóteles e seu mestre,
o sábio Platão".32O início do tratado já mostra que o resumo proposto

30. Ib., pág. 138.


3t. Ib., pág.139.
32. Ib., pág. 150.
A rersept E os E{L,4.s1/rA
193

por Al-Kindi não é fiel a nenhuma das teses dos filósofos gregos em sua
totalidade. Trata-se de uma sobreposição de alguns elementos aristo-
télicos. Assim lemos: "E posto que o essencial do que disse Platão a
esse respeito é o mesmo que manifestou seu discípulo Aristóteles, então,

a modo de informação, diremos sobre isso o que se segue".


Seguindo o que acredita ser a tese de Aristóteles em concordância
i

com Platão, Al-Kindi classifica o intelecto em quaÍo classes: o intelecto


sempÍe em ato, o intelecto em potência, o intelecto que passa da potência
ao ato e o intelecto que se chama demonstrativo33. Em outras palavras,
trata-se de: o intelecto agente, o intelecto passivo, o intelecto em hábito
e o intelecto manifesto. A apreensão das fotmas pode se dar segundo os
sentidos ou segundo o intelecto. Quando a alma apreende as formas
inteligíveis, ela se identifica com essas formas, que estavam potencial-
mente nela, e o intelecto passa da potência ao ato' "Quando está na
alma, ela [a forma inteligível] e a alma são uma só coisa (...) da mesma
maneira que a faculdade que sente tampouco é algo distinto da alma
como os membros no corpo, mas ela é aalmae aalmaé a que sente'"34As
formas inteligíveis cumprem o papel de causa eficiente nesse pÍocesso,
sendo em si mesmas idênticas ao intelecto ativo. "Assim, tudo o que
está em potência só passa ao ato por outro, que é algo em ato' Assim, a
alma é inteligente em potência e é a que se converte em inteligente em
ato pelo intelecto primeiro, ao entrar em contato com ele."35
As formas em ato no intelecto agente não são uma mesma coisa
com a alma, mas a forma inteligível quando apreendida pela alma faz

33. A tradução deste último termo é discutível e pode ser encontrada também como
"manifesto", "emergente", ou "segundo" . Cf. FAKHRY, op. cit. pág. ll0 e
GUERRERO, op.cit. pág. 150.
34. Ib., pág. 150.
35. Ib., pág.151.
A nlosorra ENTRE, os ÁneeEs - Fe.r-sapa
194

com que esta forma inteligível e a alma se tornem uma só coisa. Al-
Kindi parece entender desde o início que o intelecto agente está separado
do homem e assim, separado, será um dos pilares que inspirou os sistemas
posteriores na questão da transcendência do intelecto agente. Na medida
em que a alma é atlahzadapor essas formas que lhe chegam do intelecto
agente, a aquisição é nomeada intelecto adquirido. Adquiridas, as formas
podem ser evocadas quando a alma quiser delas dispor, e esse é o intelecto
em hábito. Pode-se entender que o intelecto demonstrativo fosse pro-
priamente o exercício do intelecto em hábito.
Muitas outras contribuições trouxe A1-Kindi ao universo filosófico
dos árabes. Mesmo que, em muitos casos, tenha realizado um trabalho
mais de compilação de reunião de idéias consagradas, deve-se lembrar
que esse papel foi o que o momento histórico do Islam permitia que
fosse realizado por não terem tido, os árabes, uma tradição filosófica até
então. Se recepcionar foi a missão de Al-Kindi, ele a realizou em to-
da sua plenitude, incitando os homens de seu tempo a buscar a sabedoria, i

i
ou seja, a filosofar.
I

l
A nu,qn E os /.ár,{s/81
I95

l\n:lFa"an i, . imvenúon

Por volta de um ano antes da morte de Al-Kindi, nasceu 'Abh Nasr


Muhammad Ibn Muhammad Ibn Tarjãn Ibn tJzalag Al-Fãrabi (872-
950 d.C.1259-339 H.) próximo à cidade de Fãrãb naTransoxiana, região
da Ásia Central, atual Uzbequistão. Os detalhes de sua vida são pouco
conhecidos. Parece que seu pai era um oficial do exército, de origem
turca ou, talvez, persa. Tudo indica que sua língua materna tenha sido o
turco e não o persa, o que leva a crer que ele, provavelmente, descendia
dos primeiros. Sabe-se também que, ainda jovem, transferiu-se para
Bagdá onde passou a maior parte de sua vida. Nessa cidade Al-Fãrãbi
teria aprendido a língua árabe, tendo como primeiro preceptor o cristão
nestoriano Ibn Haylãn. Depois, Al-Fãrãbi estudou lógica, gramiútca,
filosofia, música, matemática e todas as ciências da época. Quanto às
línguas, além do árabe, do persa e do turco, parece que conhecia outras
ftalvez não as 70 (!) que a lenda lhe atribuiul. De todo modo, Al-Fãrãbi
encarnou a figura do grande sábio. "Esse grande filósofo era um espírito
profundamente religioso e místico. Vivia na maior simplicidade e trajava
a vestimenta dos sufis."r Apesar de ter escrito sobre temas políticos,
tudo indica que não ocupou cargos administrativos. Músico admirável,
esteve no Cairo e em Alepo sob a proteção do príncipe Sayf Al-Dawlah,
um incentivador das artes e das letras daqueie tempo. Nos últimos anos
de sua vida encontramo.s Al-Fãrãbi em Damasco, na Sír'ia, tendo por
ofício ser guardião de um jardim. "Ao mesmo tempo ele prosseguia nos
seus estudos defilosofia. Foi bastante pobre, lendo à noite sob a luz de
sua lamparina de guardião."2 Em Damasco esteve em convívio com

l. CORBIN. Hístoire de la philosophie islarnique, op. cit., pâg.226.


2. BADAWI. Histoire de la philosopltie en Islam, op. cit., pág. 480.
A prr-osorr,q. ENTRE os Ánesss - Famere
t96

outros homens de letras e lá permaneceu até sua morte, quando tinha


por volta de 80 anos.
Uma anedota muito conhecida assim contou a fama de Al-Farabt
como poliglota e excelente músico: quando nosso filósofo foi apresentado
ao príncipe Sayf Al-Dawlah, este se admirou pelo fato de um homem
vestido com roupas tão pobres e modos tão curiosos ser capaz de
compreender as ordens que ele - o príncipe - dava aos seus escravos
numa língua que ninguém era capaz de compreender.
- Conheces bem essa língua? perguntou-lhe o príncipe.
- Sim, conheço bem não só esta mas outras setenta línguas!
Admirado, o príncipe permitiu que Al-Fãrãbi se sentasse entre os
sábios presentes e, então, nosso filósofo passou a conversar com eles
sobre todas as ciências.
- Quer beber algo? perguntou o príncipe.
- Não, respondeu Al-Farabi.
- Quer, então, comer algo? novamente perguntou o príncipe.

- Não, respondeu Al-Fãrãbi.


- Quer ouvir uma boa música?
- Sim. Concordou o filósofo.
O príncipe mandou, então, chamar os músicos da corte, todos muito
hábeis em seus instrumentos. A cada apresentação, como era esperado,
todos se admiravam de suas habilidades, mas ao final de cada uma delas
Al-Fãrãbi constrangia todos ao fazer tm sinal de reprovação com a
cabeça, dizendo:
- Você tocou muito mal!
Curioso e indignado, Sayf Al-Dawlah perguntou a Al-Fãrãbi se
ele, por acaso, conhecia alguma cois a da afie da música. O nosso filósofo,
então, tirou de um saco que trazia consigo um instrumento de cordas e
começou a tocar. Todos se admiraram e se alegraram com a música que
ele tocava. Mas Al-Fãrãbi subitamente parou de tocar, esperou que todos
A reuera E OS FALÃSIFA
t9z

se recompusessem e começou uma nova música: todos se puseram a


chorar compulsivamente. Novamente, Al-FãrãbÍ interrompeu a música
e, assim que os ouvintes se recompuseram, ele iniciou ouffa: dessa vez,
todos caíram num sono profundo, até mesmo os guardas e o porteiro do
palácio. Al-Fãrãbi, então, nos seus trajes humildes, silenciosamente
levantou-se e foi embora...
Al-Fãrãbipromoveu um salto nafalsafa. Foi o principal responsável
pelas teorias mais originais e criativas enffe os árabes. Além disso foi
um lógico eminente conhecido por uma série de comentários à obra de
Aristóteles. Em seu Tratado sobre o intelecto propôs uma epistemologia
segundo uma divisão do intelecto, que influenciou não só afalsafa mas
também foi uma das obras mais conhecidas no Ocidente medieval latino.
Ao lado de seu perfil lógico, não deixou de permear uma grande espiri-
tualidade em suas teses. Com Al-Fãrãbi, a.fnlsafa amadureceu numa
"visão de mundo em que o real e o divino se conjugam, na qual o peri-
patetismo e o neoplatonismo se encontram e na qual o sistema edificado
pelarazáo encontra seu coroamento numa visão mística".3
Além da profundidade de suas teses, vale observar que ele conheceu
em detalhe o nascimento da filosofia na Grécia, sua evoluçáo e a

transmissão desses conhecimentos através de outros centros de estudos.


AI-Fârãbi esteve imbuído do espírito da história da filosofia. Num
pequeno tratado, ainda conservado, ele traçou um itinerário da história
da filosofia desde seu nascimento na Grécia, passando pelos mestres
que sucederam Platão e Aristóteles, apontando a transmissão do
conhecimento através de Roma e Alexandria, comentando a posição do
cristianismo ante a filosofia; sublinhando a transmissão dos saberes para
Antioquia na Síria; reconhecendo o papel dos cristãos na transmissão

3. Ib., pág.575.
A RLosorra ENTRE os Ánases - Fals.rra
198

da filosofia aos árabes e, finalmente, citando os principais pensadores


que o antecederam num passado próximo. Essa postura de visão univer-
sal e impregnada de história da filosofia explicou, em parte, por que
Al-Fãrãbi entendia ser ele, também, um continuador da herança dos sa-
Al-Kindi afalsa.fa se iniciou, com Al-Fãrãbi
beres de sua época. Se com
ela ganhou contoÍnos mais definidos, e a ele se devem os principais
pilares que a sustentaram dali em diante. O chamado Magister secundus
- sendo Aristóteles, o Magister prirnus -, num período em que a assi-
milação da filosofia jâ era uma realidade no mundo árabe medieval,
encontrou um momento mais favorável para desenvolver suas teses com
maior profundidade, criatividade e originalidade.
Sua obra é bastante vasta e passa em revista toda a gama das ciências

então conhecidas. Badawia apresenta mais de 120 títulos: 2-5 tratados de


lógica, 18 comentários à obra de Aristóteles, 12 títulos a respeito da
filosofia de Platão e de Aristóteles, l5 títulos de metafísic a, 6 de ética e
política, 7 sobre música, e outros sobre assuntos diversos. A ele se deve
a primeira teorização da música árabe, especialmen te no Kiíab al-musíqí
al-kabír, no qual desenvolve suas teses a partir das fontes dos pitagóricos,
de Platão e de Aristóteles.
Bastante característica em suas teses foi a tentativa constante de
harmonizar as principais correntes de pensamento que chegaram até
ele. Uma de suas obras denomina-se O livro da concordância entre as
idéias dos dois sábios: Platão - o divirto - e Aristóteles. Em seu
comentário a respeito dessa obra, Gilson sublinha que "apenas esse título
mostra bastante bem quão inexato é sustentar que a filosofia árabe não
fez mais que prolongar a de Aristóteles".5 Nessa obra - única do gênero
naquele tempo - Al-Fãrãbi transcÍeveu passagens dos dois autores que

4. Ib., págs.485-496.
5. GILSON. A filosofia na ldade Média, op. cit., pág. 427 .
A reu,q,re E os ElL,1s1B
t99

seriam, aparentemente, contraditórias e procurou explicá-las mos-


trando sua concordância. Os trechos principais são extraídos de textos
como o Fédon, Político, República, Timeu e a Cafta VII, de Platão; da
Metafísica, Primeiros e segundos Analíticos, De Anima, Ética a Nicômaco
e a Teologia de Aristóteles. Na variedade dos temas apresentados,
destacam-se os que são concernentes à lógica, teoria do conhecimento,
metafísica e filosofia prâtrca. Sem dúvida, um dos pontos altos do tratado
foi a tentativa de harmonizaçáo entre a teoria das idéias de Platão com
A obra que serviu de guia para essa hannonização
as teses de Aristóteles.
foi a própria Teologia de Aristóteles pois Al-Fãrãbi, ao mesmo tempo
que interpretou Platão segundo a doutrina neoplatônica, tomou por
aristotélicas o mesmo neoplatonismo presente na Teologla, fato que
possibilitou uma leitura de aproximação entre os dois filósofos gregos'
Além da concordância no âmbito da própria filosofia, Al-Fãrãbi
buscou harmonizar a filosofia com a religião profética do Islam. Não obs-
tante, sua doutrina chocou-se em muitos aspectos com os dogmas reli-
giosos. Na doutrina de Al-Fãrãbi, a presença do neoplatonismo na me-
tafísica aristotélica assumiu um caráter de uma verdadeira teoria cosmo-
\ógtca da emanação resultando num sistema metafísico de grande
complexidade, que se opôs à doutrina criacionista de Al-Kindi. O harmô-
nico sistema pÍoposto por A1-Fãrãbi buscou interligar as diversas áreas
do conhecimento e se desenvolveu visando uma unidade que pudesse
responder em uníssono às questões do homem e do mundo. Disso resultou,
por exemplo, que os temas éticos e políticos se desenvolvessem como
um prolongamento explícito da metafísica. É por essa razão que em uma
de suas obras denominada Livro das opiniões dos habitantes da cidade
idealo, Al-Fãrãbi não iniciou pelas questões ético-políticas ou pelas

6. ÃIÀLiJl i:iJl JtÀl olJl -uS (Kitab'ara"ahlal-madínaal-fidila). Acompanhamos


Badawi que opta por traduzir o termo "fiadila" por "ideal" e não por "virtuosa",
A prlosone ENTRE os Ánasgs - Frl-srpn
200

relações do homem com o Estado, mas pela exposição do Ser Primeiro

- que guarda semelhanças com o Uno de Plotino -, explicando seus


atributos e o modo pelo qual a partir d'Ele derivou a aparente multi-
plicidade das coisas existentes no mundo. Numa formulação bastante
original, de um ponto de vista islâmico heterodoxo, a metafísica da
criação fez com que a unidade absoluta do Ser Primeiro emanasse de si
a multiplicidade dos seres mantendo-se, ainda assim, dentro dos limites
da própria unidade e respeitando o axioma segundo o qual "do uno só
procede o uÍlo" (Ex uno nonfit nisi unum), aliando as esferas planetárias
paÍa compoÍ uma cosmologia que também foi utilizada, posteriormente,
por Ibn Sinã.
Dessa esruura hierárquica da qual procedem todos os entes, nosso
filósofo extraiu suas teses éticas e políticas em perfeita harmonia com l

todo o sistema. Al-Fãrãbi foi o primeiro a tratar com detimento o tema


político no IsldmT , marcado pela leitura da República de Platão e pela
ausência da tradução da Política de Aristóteles. Em linhas gerais, sua
filosofia política acompanhou a solução platônica do rei-filósofo apre-
sentada na República, mas adaptou-a paÍa ser uma solução ao proble-
ma, particularmente islâmico, das qualidades que o califa, como guia
político e espiritual do Islãm, deveria possuir. Ao se procurar uma
aproximação com o momento histórico-político em que Al-Fãrãbi vivia,
é possível notar amplamente que a cidade ideal, apesar da notável
inspiração platônica, se ajusta às aspirações filosóficas de um pensador
imerso na religião islâmica. O sábio-profeta, guia da cidade perfeita,
deve ter atingido o grau supremo da felicidade humana que consiste em

entendendo-se que "al-madina al-fi{ila" exprime a excelência, o mais alto grau, ou


seja, o que é ideal, não estando limitado ao conceito de virtude. Cf. BADAWI, op.
cit.,pág.558 n.3.
7. Ao menos mais 6 obras, segundo Hernandez.
A rluere E os Etz-4T11.á
201

se unir à inteligência agente sendo, assim, tocado pela revelação profética


e por toda a inspiração. Tal identificação só foi possível porque, nesse
caso, o arcanjo Gabriel foi identificado com a inteligência agente: o
anjo do conhecimento e o anjo da revelação se harmonizam, perfeita-
mente, numa filosofia profética. Corbin comentando esse aspecto da
"política" de Al-Fãrãbi diz: "inversamente ao sábio de Platão, que deve
descer da contemplação dos inteligíveis para se ocupar das questões
públicas, o sábio de Al-FãrãbI deve se unir aos seres espirituais; sua
função principal élevar o cidadão em direção a esse objetivo, porque
dessa união depende a felicidade absoluta. (...) O 'príncipe', ao qual
Al-Fãrãbi confere todas as virtudes humanas e filosóficas, é um Platão
revestido do manto do profeta Mul.rammad".8
A presença das teses de Al-Fárãbi foi abrangente e em várias
direções, tendo marcado profundamente muitos pensadores que o
sucederam não somente no Oriente, como também no Ocidente medie-
val. Inspirado na observação lógica de Aristóteles de que a noção de
que uma coisa é não implica forçosamente que ela exista, Al-Fãrãbi
estabeleceu no campo da metafísica um importante marco da história
da filosofia, ressaltando a distinção entre a noção de essência e de existên-
cia. Uma vez que os seres naturais são contingentes, não sendo essen-
cialmente ligados à existência, podem possuí-la ou perdê-la. Segundo
essa abordagem, a existência não é algo que se incluiria necessariamente
na essência; seria, pois, um acidente desta. Os seres existentes devem,
então, ter passado a existir segundo alguma causa que tenha, por essên-
cia, sua própria existência e, por isso mesmo, não há como deixar de
existir, em outras palavras: Deus. No ser necessário por si, a existência
acompanharia sua essência, enquanto no ser possível a existência se

8. CORBIN. Histoire de la philosophie islantique, op. cit., pâg. 231 .


A nlosorrl ENTRE os ÁnAess - Flr-slpl
202

agregaÍia a sua essência pelo ato criador, tratando-se de algo possível


por si e necessário por outro. Enquanto os seres são de duas classes -
possíveis e necessários - ainda que sejam possíveis, se os supusermos
como não existentes, não se segue daí nenhum absurdo e chegam a ser
necessários por outro. Desse modo, a existência de algo não seria um
carárter constitutivo, mas apenas um acidente. Para se incluir a essência
sob a existência foi preciso aguardar as críticas de Ibn Ru§d. Há inú-
meras outras teses que fizeram de Al-Fãrãbi um dos elos na cadeia de
transmissão do saber que ele, assim como Al-Kindi, também pregou.
Atesta Gilson: "Impressionante pelo vigor de seu pensamento e pela
força de expressão, a obra de Al-Fãrãbi merece ser estudada por si
mgsma".9
l

No livro das opiniões dos habitantes da cidade ideal,to Al-Fãrãbi


seguiu um trajeto que estabelece as causas do Ser Primeiro, o surgimento l

e a multiplicidade dos seres, as características dos corpos celestes, as

categorias aristotélicas de matéria e forma, a alma humana e suas


potências, as qualidades do chefe da cidade e, por fim, as características
da cidade ideal e de seus habitantes.
"O Ser Primeiro é a Causa Primeira da existência de todos os

seres."r1 Com esta frase de abertura, Al-Farabi inicia sua trajetória. O

9. GILSON. A filosofia na Idade Média, op. cit., pá9. 430.


10. Em linhas gerais, para um acompanhamento do desenvolvimento do texto, damos
areferência da tradução francesa cotejada com passagens de Badawi e citamos em
árabe somente algumas passagens que envolvem termos que implicam alguns
esclarecimentos.
11."1 ol< .:lr*:3-Jl :',L- Jr+! J3Yl ,,.,..t1 *. J:Yl r-++dl" Cf.ALFARABI,
ÀUl-i.ll ir:dl JtÀl ol;l -l:< (Kitab 'arã' 'ahl al-madlna al-fidila), Beirute,
1996, pâg.37. Cf . AI-FARABI, Traité des opinions des habitants de la cité idéale.
Paris: J.Vrin, 1990, pág.43 e BADAWI , op.cit,, pág.535. Não nos cabe, aqui,
adentrar nas dificuldades que o termo rr-., (wujúS adquire ao longo do texto
árabe, assim também como os seus termos derivados, para expressarem, na língua
A mtseru, E os FALÃ;:FA
203

Ser Primeiro é puro, sem qualquer tipo de imperfeição. Sua existência é


a melhor e a mais antiga de todas. Estando no mais alto grau de perfeição
e no mais alto grau de acabamento. nada pode alterar sua substância,
pois a mudança proveniente da oposição e da contrariedade só se encon-
tram abaixo da esfera da Lua.12 O Ser Primeiro é eterno, sua existência
é permanente por sua substância e por sua essência e, em sua eternidade,
não necessita de nada mais que sua própria substância para prolongar
sua existência. O Ser Primeiro está isento de toda matéria, de todo subs-
trato e, do mesmo modo, isento de forma, pois se o Ser Primeiro tivesse
uma forma teria matéria e seria, portanto, constituído de duas partes e a
sua existência teria uma causa porque cada uma das suas partes seria a
causa da existência do seu composto mas, como o Ser Primeiro é a Causa
Primeira, neste caso, a composição de forma e matéria não pode ocoÍrer.
O Primeiro também não possui propósito nem objetivo determinado para
ser, porque se assim fosse sua existência seria determinada por algum
fim e este fim seria uma causa anterior à sua existência e, neste caso, o
Primeiro não seria a Causa Primeira.
Ao Ser Primeiro nada pode ser associado e seu modo de ser é único
e difere de todos os outros seres engendrados. Ele é o único que é uno
em si mesmo e possui o seu próprio ser. Da mesma maneira que ao Ser
Primeiro nada se associa, também nada pode a ele se opor pois se a EIe
houvesse uma oposição, tal existência oposta seria tão existente quanto
a Sua e uma das duas deveria ser desffuída, porquanto assirn operam os
opostos. Para que houvesse a anulação de um dos dois opostos, seria
necessário um substrato comum, "um lugar comum que os recebesse

árabe, a noção de ser, existência, ente, existente e demais termos relacionados,


indicando para tal ISKANDAR, Avicena, op. cit_, págs. Z27-245.
12. O mundo sublunar, o mundo em que vivemos.
A nlosoRa ENTRE os Ánaees - Famara
204

quando se encontrassem, a fim de permitir o encontro onde eles se

destruiriam um ao outro".13 Ora, esse lugar deveria ser um substrato, um


sujeito de inerência ou um gênero, isto é, algo que não fosse os dois mas
que lhes permitisse relação e esse algo seria, então, anteriormente
existente a cada um deles. Por isso não é possível considerar que haja
um ser no mesmo grau que o Ser Primeiro, pois os opostos estariam no
mesmo grau de existência. O Primeiro é, assim, único por sua existência:
"Eleéúnico sob esse aspecto."ra Além disso, o Ser Primeiro é indivisível
em sua substância e não é suscetível de definição. A existência do Pri-
meiro é distinta da existência dos ouffos seres pela sua unicidade, pois
sua essênciaé ele próprio. "Sua unidade é sua própria essência."15
Na medida em que o Ser Primeiro não tem matéria e, de modo
algum pode estar associado à maténa, Ele é essencialmente inteligência
em ato pois o que impede a forma de ser inteligência e de inteligir'u
"-
ato é amatéria na qual a coisa existe. Ora, desde que a coisa exista
sem o subsídio da matéria, ela é, em sua substância, inteligência em ato.
Este é o caso do Primeiro. "Ele é inteligência em ato".r7 Ele é também

13. AI-FARABI. Traité, op. cit., pág. 47 e segs.


14. "i+Jl oira,- *13r.'rl .x-i"
Cf. AL-FARABI, ilÀLtll ir:Jl JÉl olrl -l:( (Kitãb 'ara' 'ahl 'al-madlna
al-Jàdila) op. cit. pág. 43. Cf. também AI-FARABI, Traité, op. cit., pá'9. 48.
15. BADAWI, op. cit.,pág.537.
16. A inteligência, por sua própria essência, é inteligente e, em seu movimento de
apreensão das realidades que lhe são próprias, apreende, em primeiro lugar, a si
mesma. Logo, é por si mesmo inteligida. Inteligir, neste caso, significa o movimento
que é próprio da inteligência, e pelo qual ela opera e apreende.
17. AL-FARABI,emBADAWI, op.cit.,pá'g.537. ".1,;.]L $r ,il r-gi"Cf '

AL-FARABI, il-ÀLi.ll ojirJl &l ,l-l -tr'S (Kiúb


'ard' 'ahl 'al-madTna
al-Jàdila), op. cit.,pág.46. O termo ârabepara intelecto e inteligência é o mesmo:
l;. ftqt).Traduzimos por "inteligência" quando este termo se refere às dez
inteligências separadas da matéria, e por "intelecto" somente quando se refere ao
homem.
A rI,1SI,I,I E OS FALÃSIFA
205

inteligível por sua substância porque, sendo inteligência, para conhecer


Ele não tem necessidade de uma essência diferente da sua e, nesse caso,
sua própria substância lhe basta para conhecer e para ser conhecido.
Sendo inteligência, necessariamente Ele intelige Sua essência, sendo
que a essência pela qual Ele intelige é a mesma que é inteligida. Desse
modo, a um só e mesmo tempo, "Ele é inteligência, Ele é inteligível e
Ele é inteligente, e tudo isso é uma única essência e uma única substância
indivisível".r8
Assim sendo, o Ser Primeiro tem ciência perfeita de si mesmo e
como "a ciência, por excelência é a ciência permanente que não desa-
parece - e essa é a ciência que o Primeiro tem de sua essência -"re logo,
ao Ser Primeiro também chamamos "sábio", pois a sabedoria consis-
te em que a inteligência conheça as coisas mais excelentes do modo
mais excelente. Ora, na medida em que o Ser Primeiro intelige sua essên-
cia e a conhece, ele conhece a melhor das coisas e, por isso, possui a
ciência mais excelente da mais excelente das coisas. Por isso é, a um só
tempo, sábio e sabedoria.
O Ser Primeiro também é verdadeiro. "O verdadeiro acompanha o
ser e a verdade acompanha o ser, porque a verdade de uma coisa é ser
aquilo que ela propriamente é".20 Assim, o Ser Primeiro é, também,
verdadeiro e verdade. O Ser Primeiro também é vivo e vida em sua
essência indivisível. Afinal, se dizemos de nós mesmos que somos vivos
enquanto apreendemos as coisas pelas sensações e pelo nosso intelecto,
tanto mais pode-se dizer do Ser Primeiro pois Ele apreende o mais

18. ".-;l^
I
,a .r-l r 'ÂJ+J Ã.r-13 tl,r t+-lS .. .$Lc iul3 J3-3r a-13 .|3c a.Là"
J-

AL-FARABI, U-àt.;Jl iriJ-.lt Jút ot-,t -t:( (Kitab 'ara' 'ahl al-madina al-
Jãdila) op. cit.,pâ9.47. Cf. também Traité,op. cit.,pá,g.50.
19. AI-FARABI.Traité, op. cit., pág. 51.
20. AL-FARABI. Al-madina al-fi/ila em BADAWI, op. cit., pâg. 537.
A rtlosorte E§'TRE os ÁRegEs - Fels.qp,r
206

eminente inteligível do modo mais eminente, pela mais eminente


inteligência que é Ele próprio e, por isso, é uma inteligêricia viva e é a
própria "vida". Além disso, o Ser Primeiro é grande, majestoso e glorioso
em sua essência indivisível do modo mais excelente, e isso é a sua própria
substância assim como sua beleza, seu ornato e seu esplendor são,
também, os maiores.
Quanto a nós, pelo fato de estarmos ligados à matéria, temos
dificuldade de imaginar o Seu ser e de inteligi-Lo. Isso é análogo ao que
ocoffe com a luz que, quanto mais intensa, mais torra visíveis as cores
mas, por outro lado, quanto mais forte estiver na direção dos nossos
olhos, mais dificulta nossa visão. Isso não acontece pelo fato de que a
luz se esconda ou diminua, mas por sua própria natureza. Aluz, em sua
perfeição como luz. ofusca e embaça nossa vista. Por isso, a nossa
dificuldade em inteligir e apreender o Ser Primeiro deve-se à insu-
ficiência de nossas faculdades intelectuais e imaginativas. Devenros levar
em conta que estamos distanciados do Ser Primeiro pois, enquanto Ele
é uma substância imaterial que é puramente inteligência, forçosamente
nós, que estamos envolvidos pela matéria, temos as nossas substâncias
distantes da Sua substância. Mas, à medida que nossas substâncias se

voltam paÍaainteligibilidade do Ser Primeiro, mais a nossa imaginação


d'Ele se torna precisa, perfeita e verdadeira. Assim, quanto mais nos
despojamos das ligações com a matéria, mais perfeita se torna a inteli-
gibilidade d'Ele e a imagem d'Ele em nós.
Em todo o seu esplendor, majestade e beleza que conhece de si
mesmo, o Ser Primeiro experimenta, por essa razão, o maior e o ntais
profundo pÍezer. Conheçemos todas essas qualidades somente poÍ
analogia e por uma apreensão ínfima quando experimentamos, por
exemplo, a apreensão da beleza e do prazer. Mas nossa experiência é
muito pequena perto do esplendor do Ser Primeiro. Aliás, como poderia
haver uma relação de igualdade entre o que é uma parte ínfima e o que
A. r,querl E oS FALÃSIFA
207

é sem limite no tempo ou fora do tempo? Entre o que é tão imperfeito e


o que ó a extrema perfeição? Ora, aquele que tem pÍazer por si mesmo
se alegra, se ama e se torna apaixonado de si mesmo. Assim, o Primeiro
se ama, se queÍ e se maravilha de si de uma maneira correspondente à
sua grandeza, do modo mais excelente. No Ser Primeiro, o ato e o objeto
de Seu amor são o mesmo, o ato de seu maravilhamento é o próprio
objeto de sua admiração e o ato e o objeto de seu pÍazer convergern.
Nele coincidem o amor, o amante e o amado. "Ele é o primeiro amado,
o primeiro amoroso."2'
Por tudo isso que Ele é, e por tudo que Ele envolve em seu esplendor
o Ser Primeiro transborda, jorra, emana e faz22 proceder de si todos os
seres. "O Primeiro é aquele de quem tudo vem a ser."23 Desde que o
Primeiro tem a existência que lhe é própria, segue-se necessariamente
que, a partir dele, procedem todos os seres cada um segundo o seu ser,
cuja existência não depende da vontade do homem ou de sua escolha.
Alguns nos são conhecidos pelos sentidos e outros, pela demonstração.
A existência dos seres a partir do Primeiro se faz por emanação
de Seu ser à medida que Ele dá o ser às outras coisas de modo que toda
existência emana necessariamente de Sua existência. Mas, observa
Al-Fãrãbi, essa existência que vem do Primeiro não é a causa ou o fim
de Sua existência no sentido de que Ele tivesse por fim dar existência a

um outro porque, se assim fosse, a Sua existência estaria determinada

2 1. AI-FARABI. Traité, op.cit., pág. 56.


22. Os termos mais freqüentes usados por Al-Fãrãbi para designar esse movimento
são: .;J / fayd ,3 - i udür ,-+.-l / inbajasa. Cf. BADAWI , op.cit., págs. 540-
543.
23. " t+s a:. ojJl l- JoYlt"
Cf. AL-FARABI, a,I;LiJt ir+r-ll JiÀt ot,rt -t:< (Kitab 'ara' 'ahl 'al-madina al-
Jd/ila) op. cit.,pág.55. Badawi entende como "O Primeiro é aquele de quem
procede o ser". Cf. pág. 538.
A nlosopra ENTRE os ÁResps - FeLsape
208

por uma Íazáo que O precederia e, nesse caso, Ele não seria mais o
Primeiro. Do mesmo modo, a existência que procede d'Ele não lhe
acrescenta nenhuma perfeição porque Ele é o ser mais perfeito e, se
assim não fosse, Ele também não seria o Primeiro. Nada há, portanto,
que O preceda em sua emanação: nem um ser, nem tmarazTao para ser,
nem uma essência anterior, nenhuma causa, nada enfim, pois "todas
essas considerações são impossíveis no Primeiro, porque isso seria uma
afronta à Sua primazia e à Sua eternidade".2a Tudo emana do Ser Pri-
meiro pela mesma e única substância que é a Sua, porque Ele não
opera como nós, que temos as coisas separadas para produzirmos
algo como, por exemplo, nossa razáo, de um lado e a arte da escrita,
de outro. No Ser Primeiro, o conhecimento de si mesmo e a emanação
dos seres é um só e mesmo ato e tudo procede de "uma só essência e
uma só substância, ao mesmo tempo que constitui seu ser, e de onde
deriva todo outro ser".25
A emanação segue uma hierarquia que se inicia pelo ser mais
próximo e mais perfeito em relação ao Ser Primeiro, e segue em escala
descendente aÍé o ser menos perfeito. Tudo isso provém do Ser Primeiro
e Sua substância perrnanece a mesma sem sofrer qualquer alteração.
Seguem-se assim os seres, cada um segundo sua perfeição, começando
pelo mais perfeito, depois aquele que é um pouco menos perfeito, em
seguida os seres que são menos perfeitos se sucedem até o ser em que,

24. AI-FARABI. Traité, op. cit.,pâg.57.


25. AL-FARABI. Al-madína al-fiQila em BADAWI, op. cit., pâg. 539. Em seu
comentário, Hernandez observa que "deste modo tudo quanto existe se produz
necessariamente a partir do único ser necessário, dotado da liberdade absoluta, não
condicionada por nada, que atua como vontade pura; mas, como é ao mesmo tempo
a mais alta inteligência, sua vontade é também a bondade pura. Portanto, sendo
Deus o bem absoluto, tudo quanto procede de Deus é bom; e como Deus é beleza
pura, é belo". Cf. TIERNANDEZ, op. cit., pâ9. 194.
A FALSAFA E OS FÁL,4S1TA
209

abaixo dele, não pode haver nenhuma existência. "Então os seres se de-
têm na existência."26 Vale notar que a emanação proposta por Al-Fãrãbi
se dá no interior do Ser Primeiro e não como algo que se produz fora
dele. "A substância do Primeiro perrnanece sempre a mesma quando os
seÍes emanam de um modo hierarquizado, cada um segundo o seu grau'
Uns com os outros, os seres se unem, se aliam e se ordenam de modo
que a multiplicidade se torna, assim, uma só coisa."27 Vejamos como
Al-Fãrãbi descreve esse processo.
"Do Primeiro procede o ser do segundo, que também é uma subs-
tância absolutamente incorpórea e não está em uma matéria. Ele intelige
sua essência e intelige o Primeiro e isso que ele intelige de sua essência
náo é outra coisa senão sua essência. Enquanto ele intelige algo do
Primeiro resulta necessariamente dele o ser de um terceiro. Enquanto
ele é constituído substancialmente em sua essência própria, resulta
necessariamente dele o ser do primeiro céu. Do mesmo modo, o ser do
terceiro não está em uma matéria (...)"" e, assim por diante, Al-Fãrãbi
continua sua descrição cosmológica que alia o princípio de emanação
plotiniano ao sistema geocêntrico de Ptolomeu. O processo repete segui-
damente o esquema precedente: cada nova inteligência conhece sua
própriaessência2s econhece algo do Primeiro resultando, em cada etapa,
uma nova inteligência, uma esfera correspondente a cada um dos planetas

26. AI-FARABI. Traité, op. cit., pág. 59.


27. Ib., pá.g.59.
28. Ib., pá9.61.
29. "Cada um dos dez primeiros seres intelige sua essência e intelige o Primeiro."
Cf. AL-FARABI. Traité, op. cit. pâ9. 67. Como o Primeiro é superior ao segun-
do, quando este - o segundo - intelige o Primeiro obtém uma felicidade maior que
quando intelige a si mesmo. O mesmo se dá com o prazeÍ e com o mara-
vilhamento que experimenta, pois a perfeição, abeleza e o esplendor do primeiro
são insuperáveis.
A rrosopre ENTRE os ÁRasEs - Felsepn
210

e uma alma que move essa esfera. Tal processo, seguindo em fases
sucessivas, emana ou "cria" dez inteligências sucessivas que corres-
pondem às seguintes esferas dos planetas com suas respectivas almas
que as movem:

segunda inteligência: primeiro céu;


terceira inteligência: esfera das estrelas fixas;
quarta inteligência: esfera de Saturno;
quinta inteligência: esfera de Júpiter;
sexta inteligência: esfera de Marte;
sétima inteligência: esfera do Sol;
oitava inteligência: esfera de Vênus;
nona inteligência: esfera de Mercúrio;
décima inteligência: esfera da Lua;
décima primeira: mundo sublunar.

A emanação segue ritmada até a décima inteligência e é descrita


como uma superposição incorpórea de cada uma delas em seqüência
necessária, compondo um sistema de esferas desde o Ser Primeiro até a
esfera da Lua, tendo a Terra como centro. "As coisas separadas [as
inteligências] que se seguem ao Primeiro são em número de dez. Os
corpos celestes em seu conjunto são em número de nove sendo que o
total resulta em dezenove."30 A mudança e a interrupção desse processo
se dá com o surgimento da matéria e a explosão de almas humanas que
se segue à esfera da Lua, gerando uma descontinuidade no modo pelo
qual se dá o processo de emanaçáo da décima inteligência. O ser do
décimo também é uma inteligência que não está associada à matéria e,
do mesmo modo que as outÍas inteligências, intelige sua essência e

30. AL-FARABI. Traité, op.cit., pá9. 66.


A reuere E os t'ÁL.4vr{
ztt

intelige o Primeiro e, enquanto é constituída substancialmente em sua


essência própria, resulta necessariamente no ser da esfera da Lua e,
enquanto intelige algo do Primeiro, disso resulta necessariamente o ser
de um décimo-primeiro sendo que este também é uma inteligência
incorpórea que intelige sua essência e intelige o Primeiro, "mas neste
ponto - diz Al-Fãrãbi - se encerra a espécie de ser que, para existir
desse modo, não tem necessidade de matéria e de substrato' Esses são
os seres separados que são substancialmente inteligências e inteligíveis
e na esfera da Lua se encerra o ser dos coryos celestes os quais, por sua
natüÍeza, se movem circularmente".3l
Nessa formulação bastante original, a metafísica da criaçáo faz a
unidade absoluta do Primeiro emanar de si a multiplicidade dos seres
mantendo-se, ainda assim, dentro dos limites de sua própria unidade. A
emanação das inteligências cósmicas com suas respectivas almas e
esferas, iniciando-se por um princípio metafísico do Ser Primeiro, termina
por ser coerente com o plano físico, encontrando ressonância no sistema
geocêntrico de Ptolomeu, enquanto as esferas das inteligências cósmicas
possuem correspondência com as órbitas planetárias. Abaixo da esfera
da Lua está o mundo em que vivemos - o mundo sublunar - onde a
matéria emanada por essa última inteligência engendra os seres ligados
à matéria e, portanto, sujeitos à geração e à corrupção. Mas, por que é
possível para Al-Fãrãbi afirmar que a décima inteligência emana a
matéria e intelectos individualizados e não mais emana outra inteligência
cósmica separada da matéria? Uma das respostas pode ser: ora, porque
isto é o observável.(!)
Os seres existentes abaixo da esfera da Lua se distinguem dos colpos
celestes, pois estes últimos possuíram, desde o início, uma eminente

31. Ib., pág. 62.


A prr-osonl ENTRE os Ánnsss - Flr-snrn
212

perfeição em suas substâncias isentas de matéria, enquanto os sublunares,


emanados a partir da décima primeira inteligência, formaram-se a partir
da composição de matéria e forma. Emanada a matéria-prima como o
substrato mais distante do Ser Primeiro, a partir desse ponto, o processo
se inverte: os seres se constituem a pafiir dos seres de maior imperfeição
de modo ascendente até os seres de maior perfeição.
Assim, cada um dos seres constituídos a partir da décima inteli-
gência localizadana esfera da Lua compõe-se de duas coisas: "uma é do
mesmo grau que a madeira da cama e a outra como o aspecto dacama" .32

A primeira é amatériae a segunda é a forma. Todos os seres sublunares


são a partir dessas duas coisas: a matéria com o fim de dar uma cons-
tituição forma. Por esse motivo, toda e qualquer espécie se torna subs-
à

tância em ato somente quando sua forma é realizadaporque, enquanto a


matéria dessa espécie existe sem sua forma, esta espécie só existe em
potência, do mesmo modo que "enquanto a madeira que servirápara a
cama não estiver na forma da cama, é apenas uma cama em potência. A
cama é em ato quando sua forma se realiza em sua matéria" .33

Em linhas gerais, o arco dos seres sublunares tem em sua base os


quatro elementos que compõem todos os corpos naturais: o fogo, o aÍ, a
água e a teÍra, assim como os que se lhes pertencem como o vapor, a
chama e outros do mesmo gênero. A matéria dessas formas é comum

sendo matéria para elas e para o conjunto dos corpos subcelestes, pois
todos os corpos subcelestes são feitos dos quatro elementos. A base de
todos esses seres é a matéria-prima que se substantifica pela forma e se

eleva pouco a pouco até a forma que os torna seres em ato. No caso dos
seres celestes, estes se classificam começando pelo mais eminente e

32. Ib., pág.64.


33. Idem.
A M6,qr,q E OS FALÃSIFA
213

depois os menos peÍfeitos, e assim sucessivamente, resultando no Ser


Primeiro como o mais eminente. A Ele seguiram-se as outras inteligências
destituídas de matéria sendo que, dentre os seres celestes, o melhor é o
primeiro céu.
A classificação dos seres sublunares, ao contrário, começa pelos
menos perfeitos, depois aqueles que são mais e mais perfeitos até o
mais perfeito, que não possui nada acima dele. O ser mais deficitário é
a própria matéria-prima, que é comum a todos; acima dela vêm os quaro
elementos e, a esses, seguem-se os minerais tal como as pedras e os
outros corpos do mesmo gênero; em seguida aparecem os vegetais, os
animais não racionais e por fim o homem, ao qual, no mundo sublunar,
"nada é superior".sa Nesse sentido, podemos considerar que a partir da
décima inteligência o processo de emanaçáo atinge o seu limite e se

inverte, tendo a matéria-prima como o limite inferior mais extremo.


Aquilo que dela releva já seria um movimento de Íetorno, do qual o
homem seria uma das etapas. Aliás, no mundo sublunar dos compostos
de matéria e forma, o homem seria o limite conhecido do retorno. O
homem é o ser mais próximo da inteligência separada e pura da esfera
da Lua, que também é, por conseguinte, a mais próxima dele.
A partir da matéria-prima, que é comum a todos os seres subluna-
res, e do surgimento dos quatro elementos, bem como daquilo que é do
mesmo gênero e que a eles se assemelham - como, por exemplo, no
caso do ar são os vapores, as nuvens, os ventos, e tudo o que se produz
na atmosfera e, de modo análogo ocoffe com a terra, com a âgua e com
o fogo -, produz nos elementos e naqueles de mesmo gênero forças
se
pelas quais eles se movem por si mesmos. Em seguida, os corpos celestes
agem sobre eles fazendo com que uns ajam sobre os outros. "Da totalidade

34. Ib., pág.66,


A MISETI E OS FALÃSIFA
2ts

dessas ações resultam numerosos modos de misturas e de combinaÇões":s

e disso resulta a existência do conjunto de corpos do mundo sublunar.


Deve-se levar em conta que todas essas ações misturadoras de proce-
dências diversas resultam em novas misturas, de níveis de complexidade
cada vez maior, que as distanciam cada vez mais dos elementos e da
matéria-prima. Os minerais resultam da mistura mais próxima dos
elementos. Por sua vez, os vegetais resultam de uma mistura mais com-
plexa e, conseqüentemente, mais distanciada dos elementos, estando
portanto os vegetais num grau mais elevado que os minerais. Acima
dessa mistura encontra-se uma outra que resulta no animal não racional
que é, por sua vez, uma mistura ainda mais complexa que a dos vegetais.
E é o homem que resulta da última e mais complexa mistura, Em todos
esses seres, cada um segundo sua espécie, se produzem certas faculdades
que lhes são próprias como, por exemplo, a faculdade da nutrição, do
movimento e da sensação.
No homem, a primeira faculdade constituída - nos diz Al-FãrãbI -
é a faculdade pela qual ele se nutre: a faculdade nutritiva. Em seguida selhe
constituem os sentidos externos: o tato, pelo qual percebe o frio e o calor
e, depois, os outros sentidos, isto é, o paladar, o olfato, a audição e a visão,
que são as faculdades pelas quais o homem sente os sabores, os odores, os
sons e as cores respectivamente. Segue-se a essas a faculdade do apetite,
que aproxima ou afasta o homem daquilo que ele deseja ou não deseja.
Em seguida, Al-Fãrãbi classifica a faculdade imaginativa que conserva
na alma as formas das coisas quando essas desapareceram dos sentidos,
sendo a responsável por combinar as imagens umas com as outras e, por
fim, o intelecto, que é a faculdade pela qual o homem pode inteligir os
inteligíveis, "distinguir entre o bonito e o feio, realízar as artes e as

35. Ib., píg.75


A rrlosona ENTRE os Ánnurs - Famare

ciências".36 Al-Fãrábi apresenta três níveis de apreensão do conhecimen-


to: "pela faculdade racional, pela faculdade imaginativa e também pela
sensitiva"37. Note-se que Al-Fârãbi não indica nenhuma diferença nas
faculdades sensitiva, imaginativa ou racional entre o homem e a mulher.
Todas essas faculdades, com exceção do intelecto que não está
impresso na matéria, possuem um determinado órgão que exerce
primeiramente a função dessa faculdade e outros órgãos auxiliares que
a ajudam na execução dos seus objetivos. Assim, por exemplo, a facul-
dade nutritiva possui seu órgão principal - a boca - que é ajudada por
outras faculdades auxiliares espalhadas por outros órgãos como o fígado
e o estômago. Do mesmo modo, todas as outras faculdades descritas,
exceto o intelecto, possuem seus órgãos próprios, porém o princípio de
todas as faculdades tem como sede um só órgão: o coração38.
O coração é o órgáo principal que não pode ser dominado por
nenhum outro órgão do corpo. O cérebro também é um órgão diretor,
mas sua direção não é primeira, porque, apesar de o cérebro comandar
outros órgãos e ser servido por eles, o cérebro serve ao coração e é
dirigido pelas intenções deste. O coração "é como o dono da casa do
homem"3e; ele serve ao homem e é servido pelos outros membros da
casa. O cérebro, vindo depois do coração, atua como se fosse um delegado
do primeiro, substituindo-o naquilo que este não pode realizar, poupando-
o de parte do serviço. Depois do cérebro vem o fígado, depois o baço e
os órgãos genitais, os últimos a entrarem em atividade. Não é semrazáo

36. Ib., pág. 81.


37. Ib., pág.83.
38. Al-FárãbÍ localiza a faculdade imaginativa também no coração.
39. ",11;Yl .)l.r ,,.^l LE- éLllr"
Cf. AL-FARABI, ;-t"ÀL;.ll i:r"-.ll J,Âl ot2t ?t:s (Kifib 'ara' 'ahl al-madtna
al-fiQila) op. cir., pá9.93.
A TIUIPE E OS FALÃSIFA
217

que o centro das operações reside no órgão do coração como o órgão


chefe de toda a complexa estrutura do organismo humano. É a partir da
analogia com as funções do corpo e mais precisamente com o
-
reconhecimento do coração como o órgão principal - que Al-Fãrãbi
estrutura suas idéias a respeito da cidade ideal.
Quanto ao intelecto, que é a faculdade pela qual o homem possui o
entendimento das coisas, Al-Farabi o considera como uma certa
disposição preparada para receber as impressões dos inteligíveis. Pata
que o intelecto passe da potência ao ato, isto é, para que o homem
compreenda e intelija, há a necessidade de algo que já esteja em ato e
que seja responsável por esta passagem. Nesse caso, é preciso um
intelecto que esteja sempre em ato. Esse agente que opera a passagem
do intelecto em potência para o intelecto em ato só pode ser uma certa
essência, cuja substância é uma inteligência em ato separada damatéria,
que opera no intelecto humano, de modo semelhante à ação da luz do
sol em relação à nossa visão. É pela luz do sol que a visão se torna visão
em ato, estando antes disso apenas em potência. O mesmo - diz
Al-Fãrãbi -, ocorre com a potência intelectiva no homem e, por isso,
"chamou-se inteligência agente. Seu grau é o décimo, no grupo das
inteligências separadas que estão abaixo da Causa Primeira".a0 Pelo
aperfeiçoamento constante do homem por meio do entendimento cres-
cente que ele tem pelo seu intelecto, esse homem é naturalmente levado
à meditação e à reflexão. Mas, sendo o homem o grau mais complexo
da composição de matéria e forma do mundo sublunar, e constituído
pofianto das faculdades mais complexas, a título de quê e com qual
finalidade operariam todas as faculdades humanas? A resposta de A1-
Fãrãbi é: a busca da felicidade.

40. AI-FARABI. Trairé, op. cit., pâg. 92.


A nlosorra ENTRE os Áneees - Femepa
218

"Além da felicidade não há nada maior que o ser humano possa


obter."4r As belas e boas ações, mais do que seÍem um bem em si mes-
mas, o são na medida em que conduzem à felicidade. A esse movi-
mento crescente de aperfeiçoamento da alma humana corresponde
um grau de felicidade que o acompanha, e é esta a finalidade maior pela
qual todas as faculdades do homem operam servindo umas às outras. O
limite máximo da felicidade a que pode chegar o homem é, entáo, aquele
estado no qual a sua alma humana chega à sua extrema perfeição
existencial, de modo que não haja mais necessidade de matéria para
subsistir e, desse modo, ela se assemelha e se encontra unida às inte-
ligências separadas.
Asociedade exerÇe um papel importante na busca de cada ser
humano em direção à felicidade. o modo de organização da cidade pode
ajudar ou não nesse caminho. Segundo Al-Fãrãbi, deve-se partir do
modelo ideal como o mais alto paradigma a indicar o melhor caminho,
mas também sel capaz de adaptar quando não for possível que se encontre
as condições adequadas para o modelo ideal.
Primeiramente deve se levar em conta que é da nattreza do homem
necessitar de muitas coisas para subsistir. Ele tem, por exemplo, neces-
sidade de um conjunto de pessoas que faça cada uma das coisas da qual
necessita. Cada uma dessas pessoas também se encontra na mesma
situação, preenchendo um ao outlo o que é necessário para a subsistência
mútua. É impossível ao ser humano obter a eminência de sua perfeição
sem o concurso de vários indivíduos, pois é somente pelo trabalho
conjunto, que reúne tudo o que cada um tem de necessidade, que isso se
torna possível. Por essa razão os indivíduos multiplicam-se, estabelecem-
se na parte habitável da terra e estabelecem as suas assembléias.

41. Ib., pá9.94.


A I,ItsIpe E oS FALÃSIFA
219

Para Al-Fãrãbi, a organizaçáo da cidade ideal deve assemelhar-se


ao corpo humano em sua totalidade, cujos órgãos se ajudam mutuamente
para realizar o acabamento da vida do organismo e conservá-lo. Do
mesmo modo que ocoÍre com o corpo, vários e diferentes são os órgãos,
mas um só é o órgão chefe: o coração. No corpo humano é a partir dele
que os outros órgãos são hierarquizados. Cada um, por sua fiat:uÍeza,
tem uma potência para realizar suas ações próprias em conformidade
com o seu propósito. Assim é a cidade. Suas partes são múltiplas,
diferentes entre si e hierarquizadas segundo suas disposições próprias,
devendo haver um ser humano que é o chefe. Assim como no corpo
humano o coração é o principal órgão e, por nattJreza, o mais completo
e o mais são, "do mesmo modo o chefe da cidade é o mais completo de
todas as pafies da cidade".a2 Abaixo dele, deve haver homens que ele
dirige e estes, por sua vez, dirigem outros homens. Estabelece-se, assim,
uma hierarquia descendente para que todos atuem voluntariamente na
cidade em conformidade com a direção do chefe. Por outro lado, do
mesmo modo como é o coração que socoÍre todo e qualquer órgão que
venha a ser prejudicado, também o chefe da cidade ideal deve coffer em
socoÍro de qualquer parte da cidade que se deteriore.
Mas a questão principal é: quem deve ser o chefe? A resposta de
Al-Fãrãbi inclina-se novamente para as aptidões naturais e procede
segundo as qualidades máximas próprias dos profetas. "O chefe da cidade
não pode ser qualquer ser humano, pois a direção supõe duas condições:
uma delas é que ele seja preparado por naturezaepoÍ aptidão, e a segunda
é que ele tenha uma disposição e um hábito voluntário."43 Sua faculdade
imaginativa deve atingir o extremo acabamento, podendo receber no

42. Ib., pág.105.


43. Ib., pág.106.
A rrlosonn ENTRE os Ánepes - Famara
220

estado de vigília ou no sono, por parte da inteligência agente, os próprios


acontecimentos ou, então, os símbolos desses acontecimentos. Seu
intelecto deve ser Íeceptivo aos inteligíveis a fim de que ele possua um
perfeito entendimento das coisas de modo que nada se-lhe oculte. Em
outras palavras, o chefe deve ser aquele que possua um contato mais
próximo com a inteligência agente.
Se essas aptidões se encontrarem em um só homem - a excelência
nos dois aspectos de sua faculdade racional (teórica e prática) e de sua
faculdade imaginativa -, esse homem estará no grau daqueles a quem
são dadas as revelações: Deus - Grande e Majestoso - lhe revelará por
intermédio da inteligência agente, porque aquilo que emana de Deus
sobre a inteligência agente emana desta sobre o intelecto desse homem
e, depois, sobre sua faculdade imaginativa. Pelo que emana das inte-
ligências separadas para o seu intelecto, este homem se torna um sábio
e um filósofo e, em razáo do que emana sobre sua imaginação, ele se
torna um profeta, anunciador daquilo que virá e conhecedor dos aconte-
cimentos particulares atuais.
Esse ser humano está na mais alta escala da humanidade pois nele
estârealizado o mais perfeito acabamento danatureza humana, o ponto
mais elevado a que podem chegar as faculdades humanas. Isso implica
que este homem é o que atingiu o mais alto grau da felicidade que se

pode almejar porque sua alma está unida constantemente à inteligência


agente. Ora, sendo ele conhecedor dos caminhos e dos atos pelos quais
o homem se eleva na busca da felicidade, e sendo esse o objetivo maior,
por natureza, de todo ser humano, é necessário que ele seja o condutor
da cidade ideal indicando os caminhos para que cada um de seus
habitantes se dirijam efetivamente ao alvo mais alto da vida humana.
Para cumprir seu destino ele deve possuir a capacidade verbal para
descrever com eloqüência as metáforas provenientes de sua imaginação
e, deste modo, ser capaz de guiar os outros em direção à felicidade.
A muI,m E OS FALÃSIFA
22t

Além disso é preciso que ele tenha um bom equilíbrio corporal para
poder realizar com sucesso as tarefas particulares. Esse chefe, assim,
não é dominado por nenhum outro e por nada que não seja a verdade.
"Ele é o 'imã' e o primeiro mestre da cidade ideal. Ele é o mestre da
nação ideal e de todo território habitável sobre a ÍeÍÍa."44
Depois dessa descrição do dirigente da cidade, Al-Fãrãbi enumera
doze condições necessárias para que tal homem seja recoúecido. Aponta,
também, quais os caminhos alternativos que se deve tomar quando isso
não acontecer, o que, por sinal, é o mais freqüente. Assim diz Al-Fãrãbi:
"mas um tal lugar só pode ser ocupado por aquele que possuir doze
qualidades inatas"45:
i. possuir os órgãos e as faculdades compatíveis com os atos que
deve realizar;
2. possuir uma boa compreensão de seu interlocutor;
3. ter ótima memória;
4. ser perspicaz;
5. ser eloqüente e um bom orador;
6. amar a instrução e o aperfeiçoamento de seus conhecimentos
constantemente;
7. não ter neúuma avidez por bebida, por comida ou por prazeres camais;
8. amar a verdade e o verdadeiro e odiar a mentira e os mentirosos;
9. ser generoso e de alma nobre, distante das baixezas;
1 0. desprezar o ouro e a pÍata e que todos os bens da terra sej am pouca
coisa para ele;
11. amar naturalmente a justiça e os justos e odiar a injustiça e a tirania;
12. ter uma vontade firme, ser decidido e audacioso para empreen-
der sem medo o que julga dever cumprir.

44. Ib., pág. 109.


45.Idem.
A prr-osopla ENTRE os ÁnesEs - Femara
222

A partir do estabelecimento dessas doze qualidades, Al-Fãrãbi


reconhece que todas elas reunidas num mesmo indivíduo é coisa difícil
mas não impossível pois, de tempos em tempos, tais homens surgem.
No entanto, como é rara essa situação, Al-Fãrãbi entende que "se po-
de encontrar na cidade ideal um homem de idade adulta que possua as

seis primeiras condições ou cinco dentre as doze - sem incluir as


qualidades da imaginação - então, esse homem pode ser considerado o
chefe".a6
Porém se mesmo assim não existir tal homem, a cidade deve se

regular a partir das leis e das tradições estabelecidas pelo primeiro chefe
e por aqueles que o sucederão no comando da cidade. Nesse caso, aquele
que vier a suceder ao primeiro chefe deve possuir as seguintes seis
qualidades:
1. ser um sábio;
2. ser um conhecedor das leis, da cultura e dos costumes estabelecidos
pelos primeiros mestres da cidade;
3. ser sutil e perspicaz e seguir o exemplo dos que o antecederam na
dedução de leis necessárias que fossem inexistentes até aquele
momento;
4. possuir excelente capacidade de reflexão, de dedução e visão de
futuro;
5. ser ótimo orador;
6. ter saúde corporal equilibrada compatível com suas funções,
inclusive pararealizar operações de guerra.
Bem, mas se mesmo assim ainda não for possível encontrar tal
homem que reúna essas condições, "mas que se encontre dois, um
possuindo a sabedoria e o outro as demais condições, então, os dois

46. Ib.. pág. ll0.


A rtutpt E os FALÃIIFA
223

serão os chefes da cidade".aT Se ainda assim isso não for possível, pode
haver o caso em que tais qualidades encontrem-se repartidas em um
grupo de indivíduos: que um possua a sabedoria e cada um dos outros
possua uma das outras condições. Se isso ocoÍrer e os indivíduos esti-
verem de acordo entre si, então, todos serão considerados eminentes
chefes da cidade. (!)
A preeminência, porém, é pata a sabedoria, pois se esta não tomar
parte no governo da cidade, mesmo que as outras condições permaneçam,
a cidade perrnanecerá sem chefe e aquele que exercerá as funções de
chefe não será um verdadeiro chefe. Essa cidade, se não conseguir
encontrar um sábio que se associe ao goveÍno, estará destinada à ruína,
fato que não tardará. Al-Fãrãbi enumeÍa e descreve algumas cidades
que se distanciam do paradigma da cidade ideal. Nesses desvios, os
habitantes sequer desconfiam qual é o objetivo maior da vida humana e
o maior bem que o homem possui, isto é, a felicidade. Por essa razão
tais cidades se caracterizampela busca de outros bens que não levam
seus habitantes à felicidade, buscando riquezas e fortuna; honrarias e
vaidade; cidades que valorizam as disputas com outras; cidades que
falseiam a felicidade.
Sendo a felicidade o paradigma da cidade, somente o é por ser,
antes, o paradigma da própria vida do homem. A visão de um mundo
futuro que guia Al-Fãrãbi nessa obra encontra no destino da alma humana
uma de suas raízes. Os homens que compõem as gerações que passam,
organizados em suas cidades, não devem perder de vista o destino último
ao qual se dirige o homem. Quando uma geração passa - diz Al-Fãrãbi
- os corpos dos indivíduos se destroem mas as almas, liberadas da ma-
téria, permanecem e se encontram com outras almas segundo o mesmo

47. Ib., pág. 111.


A nlosoRa ENTRE os ÁneeEs - Felsapa
224

grau de felicidade em que ambas estejam, pois as almas se reúnem com


suas semelhantes seja em espécie, em profundidade intelectual ou ainda
em qualidade, segundo suas semelhanças. Como as almas não são corpos,
o encontÍo entre elas não é da mesma natureza do encontro entre os
corpos. A reunião das almas não ocupa espaço. Nesse encontro, aumenta
o ptazü de cada uma delas a cada vez que outra se-lhes reúne. O aumento
do prazer vivido pelas almas ao se reencontrarem é semelhante ao
aumento da capacidade da arte de escrever, para o escritor que perseveÍa
muito tempo na sua arte, poÍque, ao mesmo tempo em que nele todas as
suas capacidades e ações convergem, aumentando o pÍazeÍ, também a
sua escrita se intensifica e se aperfeiçoa em força e em elegância. No
fim, a potência e o prazer em
caso das almas, como elas se sucedem sem
cada uma aumenta de um modo indefinido e infindável, e tal é o caso
das almas a cada geração que passa.
Não é sem motivo, portanto, que os habitantes da cidade ideal devem
conhecer, antes de tudo, as questões fundamentais às quais o homem
está ligado, em uma palavra: devem filosofar. Al-Fãrãbi indica algumas
coisas comuns que todos deveriam saber: o conhecimento da Causa Pri-
meira e de suas qualidades; o conhecimento das inteligências separadas
da matéria e suas respectivas descrições até a inteligência agente e suas
respectivas ações e, por fim, as substâncias dos corpos celestes. Depois
disso é necessário conhecer as disposições dos corpos naturais segundo
a geraçáo e a corrupção que, apesaÍ disso, não indicam que eles venham
à existência sem precisão, perfeição, justiça e sabedoria. Em seguida é
preciso conhecer anai)rezado homem e as faculdades de sua alma, como
age sobre elas a inteligência agente iluminando o homem em sua busca
do entendimento. Depois disso, conhecer o que é arevelação e a sucessão
dos mestres e dos chefes da cidade. Conhecer também no que consiste a

cidade ideal e discerni-la das cidades perversas. Saber também que a


felicidade é a direção que nossa alma seguirá nesta e na outra vida.
A rttsept E os FALÃy:FA
22s

O engendramento dos seres por meio da combinação dos quatro


elementos tendo partido das combinações mais simples, e seguido por
combinações que se complexificaram engendrando os minerais, as
plantas, os animais, emergiu na combinação final, o homem, que ocupa
o cume dessa espiral ascendente. Todos estão submetidos à causa suprema

que é Deus, o Ser Primeiro. A finalidade do homem é unir-se, pelo


intelecto e pelo amor, à inteligência agente separada que é a fonte de
todo o conhecimento inteligível para o mundo em que vivemos. Ao
localizar a inteligência agente separada na esfera da Lua, Al-Fãrãbi
permite um entrelaçamento de suas epistemologia, cosmologia e metafí-
sica, apontando a felicidade como alvo final por meio da união do
intelecto humano com a inteligência agente, meta última de todo ser
humano. Os reflexos de tais concepções igualmente se entrelaçam com
o campo ético-político, mas o que poderia ser chamado de "política" em
Al-Farabi tem muito pouco do que se entenderia como um programa
político. O próprio autor não foi alguém que se interessou pelos negócios
públicos e a sua política pregada para a cidade terrestre, inseparável da
cosmologia, se apresenta mais como uma justificaçáo amplamente
argumentada da felicidade como o objetivo primeiro e último da vida
humana. Assim, a cidade terrestre não tem um fim em si mesmo que
não o de ser um caminho para a felicidade suprema. Nesse sentido
universal, a cidade ideal se estende por toda atenahabitada pelos homens.
A t tLosorre EN'fnE os Ánesus - Famere
226

I1l
^ Sã^ã, o sisúe,raaúirraclc,r
Aproximadamente após trinta anos da morte de Al-Fãrãbi, nasceu
'Abü 'Ali Al-Hussayn Ibn 'Abd Allah Ibn Al-Hasan Ibn 'Ali Ibn Sinã
no ano de 980 d.C.1370 H. próximo a Bukhara, na região do Kurassanr.
Ibn Sina ficou conhecido no Ocidente como Avicena.Talvez mais que
nenhum outro, esse filósofo teve o perfil do homem universal medieval
versado em todos os saberes. Com Ibn Sinã chega-se não só ao apogeu
dafalsafa, como também a um dos zênites da história da humanidade.
Seu nome, ultrapassando os limites da própria falsafa, foi colocado ao
lado dos maiores nomes da História. Três aspectos levaram a esse quadro:
o primeiro foi por Ibn sina ter recolhido grande parte das ciências e da
filosofia de sua época; o segundo, por ter sistematizado e reelaborado
esse conjunto, resultando numa abordagem própria e renovadora; e o
terceiro diz respeito à sua presença marcante nos destinos da filosofia e

das ciências posteriores.


Ibn Sina esteve presente de modo decisivo tanto nos caminhos do
pensamento islâmico como nos caminhos do pensamento dos medievais
do Ocidente latino os quais, por sua vez, fizeram ecoar muitas teses
avicenianas até o interior da Modernidade. Por essa razáo, o seu lugar
na história da filosofia éímpar. Para que ocupasse esse lugar de destaque, l

bastaria apontar o papel de sistematizaçáo e de confluência que ele operou i

em sua obra a partir de toda tradição anterior das ciências, da medicina


e da filosofia. Mas, na medida em que reuniu a essa tradição anterior
uma série de novos elementos vindos de suas próprias reflexões, de suas
experiências e de sua prática médica, a sua importância foi muito além
dessa síntese de grande envergadura dos conhecimentos dos que o

1. Região da antiga Pérsia, atual Uzbequistão


A arslnt E os FÁ1.,4.s/81
227

antecederam. lbn Sinã tornou-se um novo ponto de partida e uma nova


referência de grande parte de toda a tradição que lhe foi posterior, tanto
no Oriente como no Ocidente. Nesse sentido, sua obra é o que poderíamos
chamar de um "calrefour", um ponto de encontro onde, por urn lado,
muito do que havia sido desenr,oll'ido antes tendeu a encontrar urn lugar
seguro e, por outro, o lugar de onde muito do que veio a se criar depois
dele teve suas obras como ponto de partida.
Gênio precoce que aliava unr esforço sem limites para aprender
tudo o que lhe caía às mãos. Ibn Sinã foi um autodidata na maior parte
de sua vida e abarcou os principais conhecimentos de sua época. Ao
mesmo tempo, fornoll-se um dos mais notár'eis médicos de que se teye
notíciâ e ocupou car-qos administrativos junto aos soberanos de seu tempo
sem deixar de escrever, sirnultaneamente, muitas páginas por dia. Seria
um engano imaginar que nosso filósofo, em seu mergulho no conlre-
cimento e no estudo, fosse uma figura recolhida que passou a vida em
taciturnas práticas ascéticas. Ao contrário, a vida de Ibn Sina foi um
brinde à própria vida: mulheres, vinho e música foram ingÍedientes que
o acompanharam por todo o tempo. Uma vida vivida intensamente em
uma completa agitação, em meio aos afazeres junto aos príncipes. à
medicina e à composição de suas obras. Como disse Guerrero, "desse
poeta, músico, filósofo, médico, matemático e, inclusive gramático, que
foi 'Abü 'Ali Ibn Sinã, se poderia espeÍar tudo: desde sofrer perseguição
e ser encarcerado. até ser chegado ao vinho por seÍ este um poderoso
reconstituinte das forças corpóreas e intelectuais".r Muitos escritos e
histórias fabulosas foram atribuídas ao sábio Ibn Sina mas, por sorte,
boa parte de sua vida nos é conhecida - e repetidamente citada - devido
a uma curta autobiografia que foi posteriormente completada pelo seu

2. GUERRERO. Avicena, op. cit., pá.g.21.


A rrlosorta ENTRE os Ánasps - Famere
228

discípulo mais fiel chamado Al-Jüzjãni. vejamos alguns dos principais


acontecimentos que nos são conhecidos mas, antes disso, tenhamos em
mente uma breve cronologia de sua vida, segundo uma divisão de seis
principais períodos que permitem reconstruir, em parte, seu trajeto e as
datas de suas principais composições. A divisão é a seguinte:

I" Período: estada em Bukhara


II" Período: viagens
III' Período: estada em Jurjãn
IV" Período: estada em Al-Ray
V" Período: estada em Hamadan
VI' Período: estada em Isfahan

Seu pai era originário de Balkh mas, antes mesmo do nascimento


de Ibn Sinã, já havia se transportado para a cidade de Kharmaithan, na
província de Bukhara, onde se casou e passou a ocupar alguns cargos
administrativos na região. Foi nessa cidade que nasceu lbn Sinã e, depois,
seu irmão. Aos dez anos já sabia o Alcorão de cor "de modo que era
objeto de imensa admiração".3 Ainda jovem, foi iniciado nos estudos de
filosofi a, jurisprudência, lógica, matemática, geomeffia e física sob a orien-
tação de um mesÍe local chamado Al-Natili. Ibn Sinãrelata que estudou
por si mesmo os Elementos de Euclides eo Almagesro de Ptolomeu e que
era capaz de resolver todas as questões referentes a estas ciências sem
que Al-Natili o pudesse mais acompanhar. Então, Ibn Sinã passou a se

aprofundar no conhecimento da física e da metafísica e assim - nos diz


- "as portas da ciência começaram a se abrir para mim".a Enquanto

3. IBN SINA. Auroáiografia. Tradução de BADAWI, op. cit., pág. 596.


4. BADAWI, op. cir.,pá9.597.
A nqrset.e E os FALÃ;rFA
229

isso, decidiu também aprender a arte da medicina, pois não a considerou


muito difícil e passou a ler todos os livros referentes a essa arte que lhe
chegavam às mãos. Em pouco tempo, os médicos da região vieram
aprender medicina com o jovem Ibn Sina que tinha, nessa época, apenas
dezesseis anos.
Durante aproximadamente um ano e meio dedicou-se incan-
savelmente, dia e noite, ao estudo da lógica e das outras partes da filoso-
fia. De sua própria pena sabemos que pela construção de silogis-
mos, nosso filósofo conseguia avançar no conhecimento procurando
respostas a todo o tipo de questão que se-lhe apresentava. Além disso,
sua autobiografia também testemunha sua piedade: "todas as vezes
que um problema me embaraçava, e que eu não podia encontrar o
termo médio de um silogismo, me retirava à mesquita, orando, e invo-
cava o Criador de Tudo até que ele me revelasse a solução daquele fato
difícil e obscuro".5 Em outras vezes, enquanto estudava até tarde da
noite, Ibn SÍnã confessa que acabava caindo em sono profundo, mas
continuava de tal modo envolvido com as questões que estava estu-
dando que muitas soluções lhe chegavam pelos sonhos. Com tal per-
sistência, aliada à excelente memória e inteligência, Ibn Sinã tornou-se
mestre incontestável em lógica, física e matemática, antes mesmo dos
vinte anos.
Seu contato com a metafísica também é freqüentemente citado pelo
modo curioso como se desenrolou. Ele próprio naÍra que, nessa épo-
ca, lhe chegou às mãos o livro da Metafísica de Aristóteles, sobre o qual
imediatamente se debruçou em leituras mas estas se mostravam in-
frutíferas: "eu reli o livro da Metafísica por quarenta vezes de modo que
o aprendi de cor. Porém não podia compreender o que havia em seu

5. ldem.
A rrlosorre ENTRE os Áneees - Femere
230

interior e nem o intuito de seu autor".6 Ocorreu porém que, no dia


seguinte, estando num mercado de livros, um vendedor the ofereceu
insistentemente um livro de Al-Fãrãbi intitulado Do propósito do livro
da metafísica. lbn Sinã acabou comprando-o por uma ninharia e o levou
para casa decidido a conhecer o seu conteúdo. Rapidamente leu o livro
do velho Al-Fãrãbr e teve imediatamente a perfeita compreensão dos
objetivos de Aristóteles. Em sinal de agradecimento ao Deus Altíssimo,
Ibn Sinã saiu às ruas para distribuir esmolas aos pobres. Essa curiosa
passagem fez pensar que as dificuldades a que se referiu Ibn Srna
poderiam ser devido ao próprio vocabulário filosófico na metafísica,
que consistiu num obstáculo a ser supeÍado pela língua árabe que teve
que adequar e, até mesmo, inventar tetmos que ainda não existiam, para
poder expressar os novos conceitos provindos da filosofia grega. Muitos
dos novos termos e das adaptações da língua âtabe, Al-Fãrãbi havia
explicado em algumas de suas obras como nessa que foi citada por
Ibn Sinã.
Ainda durante o primeiro período, o príncipe de Bukhara, Nuh Ibn
Mansúr, foi acometido de uma doença que embaraçou os médicos que o
acompanhavam. Por não poderem curá-lo, lbn Sina, já renomado nessa
época, juntou-se a eles e ajudou na cura de Mansür passando, dali em
diante, a prestar seus serviços ao príncipe. Não tardou muito para que
Ibn Sinã passasse também a frequentar a imensa biblioteca de Nuh Ibn
Mansür, que abrigava várias salas, cada uma acolhendo um determinado
assunto. Lá, Ibn Sinã relata que leu o catálogo dos livros dos antigos
referentes à filosofia e às ciências gregas e passou a estudar todas as

obras que lhe interessaram, amadurecendo sobremaneira seus conhe-


cimentos. Nessa época, Ibn Sinã contava somente dezoito anos.

6. Ib., pág.598.
A rttsert E os táLls/FÁ
231

Tlês anos mais tarde Ibn Sinã começou a escrever seus primeiros
tratados atendendo a pedidos dos que o cercavam. Os temas desses
primeiros escritos eram variados e se compunham de resumos expli-
cativos a respeito das ciências em geral, comentários a alguns livros de
filosofia e alguns escritos sobre moral. Porém, nessa mesma época houve
um acontecimento que alterou os rumos de sua vida: Ibn Sinã perdeu
seu pai e seguiu, então, em pequenas viagens através de cidades próxi-
mas se estabelecendo, ao final desse período, na cidade de Jurjãn, onde
conheceu A1-Jüzjãni, seu discípulo e biógrafo.7
Em Jur-jãn, um amante das ciências e da filosofia, chamado Al-Sirázi,
adquiriu para Ibn Sinã uma casa ao lado da sua e iá o mestre passou a
compor outras obras. Desse período destacam-se alguns escritos sobre
lógica, um resumo do Almagesro e o início de sua grande enciclopédia
médica, o Cânon dn nrcdicina. Antes de se fixar de modo mais penna-
nente em Hamadan, Ibn Sina passou. ainda, de Jurjãn a uma outra cidade
próxima chamada Al-Ray, onde ficou a serviço de uma senhora e de seu
filho Majd Al-Dawlah que, acometido por uma profunda melancolia,
foi curado de modo prodigioso por Ibn Sinã.
Em seguida, Ibn Sinã se transferiu para Hamadan e ocupou o cargo
de vizir junto ao príncipe Sams Al-Dawlah. Nesse período, Al-Jüzjãni
lhe pediu que compusesse alguns comentários sobre as obras de
Aristóteles, mas ibn Sinã se recusou e preferiu escrever unra obra pró-
pria de grande envergadura, expondo de modo sistemático os principais
conhecimentos científicos e filosóficos de seu tempo, aliados às suas
idéias e experiências pessoais. Essa composição é sua obra Al-Siía', A
atra, dividida em quatro partes: Lógica, Matemática, Física e Metafísica.

7. Até
este ponto, todas as inforrnações foram fornecidas pelo próprio Ibn Sinã. O que
vem a seguir foi relatado por Al-Jüzjãni.
A RLosoprl ENTRE os Ánleps - Felsrpr
232

Nessa época Ibn Sina acumulava as funções de vizir ao mesmo tempo


em que escrevia aproximadamente cinqüenta páginas por dia sem con-
sultar nenhum livro, conforme nos relata Al-Jüzjãni:

Ele havia escrito o primeiro livro do Cânon, e todas as noites


seus discípulos se reuniam em sua casa. Alternávamos na leitura:

enquanto eu lia a ,ll-Sifa', algum outro lia o Cânon. Quando


terminávamos, diferentes classes de cantores se faziam presentes e

a sessão de bebidas com seus utensílios era preparada e dela


participávamos. A instrução tinha lugar à noite, devido à escassez
de tempo livre durante o dia por causa do serviço do mestre ao
príncipe.8

Com a morte de Sams Al-Dawlah, seu filho Tãj Al-Mulk assumiu


o poder em Hamadan. Nessa época Ibn Sina escreveu ao príncipe de
Isfahan, '41ã' Al-Dawlah, com o intuito de prestar-lhe serviços mas,
quando Tãj Al-Mulk soube dessa correspondência, mandou prender (!)
Ibn Sinã, que acabou permanecendo no cárcere por aproximadamente
quatro meses. Mesmo na prisão, Ibn Sina compôs o tratado Hayy lbn
Yaqzan escrito em linguagem simbólica. Libertado da prisão, Ibn Sinã
seguiu para Isfahan sendo bem recebido pelo príncipe 'A1ã' Al-Dawlah,
com quem havia se correspondido anteriormente. Na nova corte, Ibn
Sinã tornou-se um sábio respeitado, afirmando-se como um mestre
incontestável em todas as ciências. Nesse período, ele terminou sua obra
maior At-SiJã'. compôs aAl-Najat,A salvação,e também o Danei Nama,
O livro das ciência,s - uma das poucas obras que escreveu em persa e

8. GOHLMAN, W. E. The life of lbn Sina. New York: Srare University of New york
Press, 1974, págs. 55, 56.
A m6,l,r,c E os FALIITIFÁ
233

não em árabe. Al-Jüzjani relata que "o mestre era forte em todas as suas
faculdades, sendo a sexual a mais vigorosa e dominante de suas facul-
dades concupiscíveis, e ele aexercia freqüentemente".e
Durante uma viagem em companhia do príncipe, Ibn Sina foi
acometido por fortes cólicas que o obrigaÍam a voltar para Isfahan para
tentar um autotratamento. Numa nova viagem com o príncipe, Ibn Sinã
sofreu novamente fortes dores que o obrigaram a voltar definitivamente
a Isfahan. Al-Jüzjãni nos relata que, depois de tentar um novo auto
tratamento, o mestre acabou por se render dizendo "o governador que
governa o meu corpo já é incapaz de govemar e agora o tratamento não
beneficia mais"lo. Ibn Sina ainda permaneceu doente por mais alguns
dias mas não teve mais forças para resistir e acabou falecendo. Tinha
então 58 anos de idade. Sua tumba se encontra em Hamadan.
Numa vida bastante agitada, vivida plenamente, dado à bebida, ao
amor e à música, ele não poupou suas forças e alcançou uma envergadura
filosófica e científica de grande excelência. A extensão de sua obra e a
longevidade de sua influência, tanto na história do pensamento do Oriente
como do Ocidente, leva qualquer menção de poucas páginas ao inteiro
fracasso. No entanto, apenas a título de ilustração, podemos fomecer
algumas indicações.
Na arte médica, Ibn Sina figurou entre os maiores médicos da
história da medicina, pertencendo à tradição herdada dos gregos por
meio dos ilrabes, pela qual foram difundidas muitas teorias de Hipócrates
e de Galeno. Sua obra Al-Qanún al-tib I O Cânon da medicina, uma
fi
síntese dos conhecimentos médicos de sua época e de suas próprias
experiências, foi adotada nas universidades européias até o século XVI

9. Ib., pá9.82 e segs.


r0. Ib., pág.89.
A nLosopre ENTRE os Ánnsns - Flr-slm
234

d.C. - portanto, por mais de quinhentos anos após sua morte - como
texto de base para o ensino médico.
Na área da filosofia suas principais fontes foram as obras de
Aristóteles e as teses de Ai-Farabi. Deste herdou principalmente a
doutrina cosmológica com a vasta descrição metafísica e sistemática do
mundo, a hierarquia das inteligências e a emanação das esferas do Ser
Necessário até o mundo sublunar, ligando o pensamento plotiniano da
emanação à doutrina aristotélica do intelecto.A excelência simultânea
nas duas áreas do conhecimento, isto é, medicina e filosofia, é um guia
importante quando se quer compreender as relações que Ibn Sinã
estabeleceu entre as teorias médicas e as filosóficas.
Devido à extensão de sua obra, geralmente os estudos a esse respeito
ora privilegiam seu aspecto médico e científico, ora seu aspecto lógico
e filosófico, ora seu aspecto poético e simbólico e ora seu aspecto
religioso. No entanto, Ibn Sinã possui uma integração de todos esses
elementos não só em sua obra, regida de modo harmônico, mas também
em sua própria vida, temperada de plurais facetas. Seu sistema e suas
grandes teses são repetidamente expostas em várias obras e variam em
extensão, desenvolvimento e posição, mas não parecem apresentar alte-
rações radicais ao longo de sua vida.
Sua obra é bastante extensa. Na autobiografia de Ibn Sinã, Al-Jlrzjãni
cita 45 títulos, mas depois da morte do mestre a lista foi crescendo até

chegar a 276 títulos no catálogo de Anawatirr. Nessa última classifi-


cação figura uma grande gama de assuntos tais como filosofia geral em
24 títrios; física em 26 títulos; 33 sobre psicologia; 43 títulos de medici-
na; lógica em 22 títulos; 15 sobre matemática, música e astronomia;

11. ANAWATI , op. cit.,pá5s.407-440. Alguns títulos talvez possam se referir a uma
mesma obra. Cf. GUERRERO , Avicena, op. ci., pág. 2l
A nli.r,cr E os FÁL-,is/Ã4
235

32 sobre metafísica; 32 tratados alegóricos; 11 títulos sobre moral,


economia e política; 6 títulos sobre a exegese do Alcorão; 22 cartas
pessoais e 3 títulos sobre lingüística.
Dentre todas elas, a Ál-Sifa', escrita em árabe, é a mais completa
obra de lbn Srnã. Segundo a divisão de sua vida nos seis grandes períodos
citados anteriormente, essa obra estaria situada nos dois últimos períodos,
isto é, nas suas estadas em Hamadan e posteriormente em Isfahan. "A
obra, iniciada em Hamadan, foi terminada 10 anos depois ent Isfahan,
quando Ibn Sinã tinha 50 anos."l2 Portanto, esta seria uma das obras da
sua maturidade. De carâter enciclopédi co, a Al-Sifa' apresenta-se como
um conjunto ordenado que agrupa grande parte das ciências conhecidas
em seu tempo, e não se assemelha em nada a um comentário aos antigos.
mas é uma nova síntese, na qual Ibn Sinã introduz suas próprias pesquisas
e hipóteses pessoais. A envergadura dessa obra, com tal soma de assuntos
filosóficos, permitiu que Madkur afirmasse que "não encontramos
nenhum livro de filosofia que se assemelhe a ela"r3. Em determiriado
período da história poucos livros exerceram uma influência tão grande
quanto a .l.t-SiJa', um marco da história da ciência e da filosofia em
que há um certo afunilamento, uma reunião, na qual tudo o que fôra
produzido nesse âmbito tende a repousar como síntese dentro de seus
limites e, por outro lado, muito do que veio a ser realizado depois parte,
também, dessa síntese então realizada. "Nessa obra-prima de Avicena
aparece o duplo aspecto da personalidade do autor: influência recebida
e reação pessoal; sirnples assimilação e contribuição original."r+ No

12. MADKLIR, I.B."Al-Shifa-OUniversoemumlivro."RevistaOcorreiodaUnesco.


Rio de Janeiro: ano 8, n"i2, 1980, pág.22.
13. Idem.
14. Ib., pág. 28.
A reu,qre E os FALÃyrFA
237

prólogo, o filósofo declara a intenção de reunir os conhecimentos


essenciais da filosofia e das ciências da época:

Nosso objetivo neste livro - esperamos que nos seja concedi-

do tempo suficiente para terminá-lo e que a ajuda de Deus nos


acompanhe para compô-lo - é registrar nele a quintessência dos
fundamentos que verificamos nas ciências filosóficas atribuídas aos
antigos, fundadas na especulação ordenada e comprovada, e os
fundamentos descobertos pelas inteligências que se ajudam entre si
para perceber a verdade. (...) Procurei registrar nele uma grande
parte da arte [da filosofia]. (...) Esforcei-me em ser muito breve e
me esquivar absolutamente das repetições' (.'.) Nos livros dos antigos

não se encontra nada que não tenhamos levado em conta e não


tenhamos incorporado neste nosso livro. Se não se encontrar no
lugar em que usualmente os estabelecemos, será encontrado em outro
que me pareceu mais conveniente.15

Ibn Sinã, mantendo um perfil aristotélico, divide as ciências em


teóricas e práticas. A ciência teórica se subdivide em três níveis - superior,
A superior é a filosofia primeira, ciência divina ou
média e inferior.
metafísica. A média é o saber matemático: aritmética, geometria,
A terceira é a física ou ciência da
astronomia, ótica e música teórica.
natureza. A ciência prática compreende a ética e a política. Al-Sifa'
encontramos essa divisão a partir das quatro partes: Lógica, Física,
Matemática e Metafísica.

15. Al Shifa, Lógica 1, Introdução, ed. árabe, págs. 9, l0 in GUERRERO, R. R.


Avicena. Madrid: Ediciones del Orto. 1994, págs. 53, 54. Há também uma tradução
deste trecho in MADKUR,I.B."AI-Shifa - O Universo em um livro." Revista O
correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, n" 12, 1980, pá.g.22.
A nLosorre ENTRE os ÁnaBrs - Fal-s.qr.c
238

A Lógica está disposta em nove livros:

1) Isagoge 4) Prirneiros analíticos 7) Sofística


2) Categorias 5) Segundos analíticos 8) Retórica
3) Perihermeneas 6) Dialética 9) Poética

A Física se dispõe em oito livros:

1) A Física propriamente dita 5) Os meteoros


2)Océueomundo 6) A alma
3) A geração e a corrupção 7) As plantas
4) As ações e as paixões 8) Os animais

A Matemática é disposta em quatro livros:

1) Geometria 3) Música
2) Aritmética 4) Astronomia

Finalmente a Metafísica, que se apresenta em dez livros.


Uma das discussões que dividiu - e ainda divide (!) - estudiosos de
Ibn Sinâ refere-se a uma possível doutrina esotérica e mística de nosso
filósofo, que se oporia ao conteúdo da,ll-Sifa ' e de outras obras escritas
no estilo dos peripatéticos. A quantidade e a diversidade dos temas que
expõe em seus livros, os escritos em linguagem simbólica e algumas de
suas próprias afirmações contribuíram para isso e, como há obras tanto
no estilo peripatético como no estilo sirnbólico, impor-se-iam, assim.
muitas dificuldades para se expor seu verdadeiro pensamento. No próprio
prólogo da Al-Srfa 'Ibn Sinã declarou:

Além desses dois livros tenho outro (...) é o meu iivro sobre a
filosofia orietúel. Por ourro lado, este outro livro tAl-Sifcl'l é mais
detalhado e está mais de acordo com os companheiros peripaté-
A r.q.LSÀ.rA. E os FALÃS|FA

ticos. Quem quiser a verdade sem rodeios deverá se dirigir àquele


outro livro lFilosofia oriental l; quem quiser a verdade de maneira
que se produza uma certa satisfação aos companheiros (...) não
necessita do outro livro. Então que se dirija a este 1Al-Sifa' 16.

Essa declaração suscitou uma série de problemas. O primeiro de-


les é que o título da obra poderia ser lido tanto como "filosofia orientatl"
como "filosofia iluminativa". Não é demais lembrar que na língua árabe
as vogais breves não são expressas por meio de letras do alfabeto, mas
por meio de sinais diacríticos que geralmente não são anotados na escrita.
No caso em questão, a grafia ú)-.* (.rnirq) pode ser vocalizada de duas

formas distintas: (mairiq) que significa "oriente" ou (muiriq) que


significa "iluminado"17. A segunda leitura poderia indicar um caráter
místico em suas doutrinas. O segundo problema é que a obra a que Ibn
Sinã se refere, isto é, a Filosofia oriental foi, em sua maior parte, per-
dida. Só chegou até nós uma pequena paÍte da lógica.
No entanto, os fragmentos que chegaram da chamada Filosofia
oriental, intitulados Lógica dos orientais não confitmaram uma doutrina
esotérica. A Filosofia oriental é um tratado completo de filosofia em
três partes: Lógica, Física e Metafísica que segue o mesmo plano das
obras anteriores não se tratando, pois, nem de mística e nem de filosofia

16. GUERRERO,R.R. Avicena. Madrid: Ediciones del Orto, 1994,pág.55. Para um


aprofundamento da discussão do caráter destas duas obras, que dividiu boa parte
dos estudiosos, remetemos a GOICHON, A.M. La philosophie d'Avicenne et sott
inJluence en Europe médievale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient. Paris, 1940,
págs. 1-53; CORBIN, H. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Gallimard,
1986, Cap. V item 4 - Avicenne et le avicennisme -, págs. 238-241 ; e BADAWI,
A. H istoíre de la philosophie en Islam. Paris: J.Vrin, 191 2, pígs. 609, 6 10.
t7 Badawi refere-se ao "magistral artigo de Nallino"que demonstra definitivamente
que o título deve ser lido como filosofia "oriental"e não "iluminativa".
A t tt-osoRrr ENTRE os Ána.nes - Fa.lsa.ra
240

esotérica. Uma leitura dos fragmentos mostra, também, que não há


sentido em supor que houvesse nesse tratado uma "filosofia oriental"
original de Ibn Sinã, que fôra perdida e que se oporia a todo o
desenvolvimento da filosofia peripatética encontrada em suas outras
obras. No prólogo da At-Sifa', talvez o que esteja indicado seja apenas
uma distinção quanto ao modo com que apresenta sua doutrina: ou ao
modo comum dos peripatéticos ou de um modo pessoal, sem a preo-
cupação com o método anterior.
Por outro lado, os defensores da tese de uma doutrina esotérica em
Ibn Sinã entenderam, ainda, que esta não deveria ser procurada espe-
cificamente na obra denominada Filosofia oriental, mas que a sua
"filosofia oriental" estaria dispersa ao longo dos escritos em linguagem
simbólica. No entanto, Badawi lembra que o próprio Ibn Sinã, quando
se refere à "filosofia oriental" está sempre se referindo a um livro, e
quando divide os filósofos em orientais e ocidentais entende que os
primeiros são os peripatéticos de Bagdá e os segundos os comentadores
gregos de Aristóteles e nada além disso.
Como bem observou Guerrero, deve-se levar em conta que o pen-
samento de Ibn Sinã se assentou sobre dois pilares: um proveniente da
Grécia e outro da tradição da antiga Pérsia. "O dinamismo interno de
seu pensamento, o esforço que o levou a construir seu sistema, foi o

resultado de uma constante e contínua preocupação por um conhecimento


intelectual, intuitivo e experimental ao mesmo tempo."r8 Permitindo-se
usar uma dupla linguagem, seus escritos visariam atingir leitores de
culturas e de entendimento diferenciados. Tal perfil eclético explicaria
os textos que escapam à linguagem filosófica e que poderiam, erronea-
mente, levar a crer tratar-se de doutrina esotérica. Conhecendo-se sua

18. GUERRERO, op. cit.,pá9.23.


A rtutru E os FALÃyIFA
241

exposição lógica e filosófica, verifica-se que "ainda que lidos em chave


mística e simbólica, como relatos visionários, tais textos apenas expõem
sua doutrina em outro estilo literário".re
Os textos escritos em linguagem simbólica parecem se diferenciar
apenas no tipo de linguagem, configurando-se em belas metáforas que,
por sua vez, podem ser reconduzidas às demonstrações lógicas que
se encontram nas obras de carâter científico e filosófico. Essa possibili-

dade dificultou, portanto, que a abordagem de um carâter puramente


místico em Ibn Sinã fizesse sentido. Dupla linguagem não significa
dupla doutrina. Mesmo quando ele se refere a um tipo de ascese, esta só
pode ser entendida a rigor como uma ascese da parte mais nobre da
alma: o intelecto. Nesse sentido, o máximo que se poderia conceder se-
ria entendê-la como uma razáo mística ou uma mística racional.2o
"Avicena não foi um místico, nem um esotérico que escreveu em lingua-
gem cifradapara iniciados. Só se preocupou pelas mesmas questões
que ocuparam os demais filósofos."2r
As primeiras traduções, de partes de sua obra, foram feitas para o
latim entre os séculos XII e XIII d.C. lVI e VII H. notadamente na
Espanha, que teve na cidade de Toledo um importante centro. Essas
traduções representaram muito pouco do total de sua obra, o que fez o
Ocidente medieval latino conhecer apenas uma pequena parte da
Al-Siía'. Não obstante algumas dificuldades de identificação dos
tradutores e até mesmo da qualidade das primeiras traduções de sua
obra, estas foram suficientes para despertar o espírito dos ocidentais
medievais para novas considerações de toda ordem, tornando-as

t9. Ib., pá9.23.


20. BADAWI , op. cit., pâg. 662.
21. Ib., pá,g.24.
A rrlosoRa ENTRE os Ána.ens - Femarr
242

referência, praticamente presente em todas as formulações medievais


posteriores. Ibn Sinã, ao mesmo tempo, trouxe a ciência dos antigos de
maneira reformulada e mais completa por meio de suas próprias con-
tribuições. Sua filosofia, conhecida principalmente pela Metafísica, os
tratados Do céu, Dos animais, Sobre a geração e a corrupção, Da alma,
além de fragmentos da lógica e das ciências naturais (Físicct), foi um
grupo de escritos que, nas palavras de Goichon, se comportou como o
"primeiro conjunto de doutrinas verdadeiramente constituído que
chegava ao Ocidente"22. No .r*;Jl :t:S / Kitab al-Nafs, o Livro da
alma, (Livro VI da parte da Física daAl-StJã'), nosso filósofo desenvolve
sua doutrina que, iniciada pelos princípios aristotélicos na afirmação,
da alma como uma forma do corpo, tetmina por se aproximar de certa
inspiração neoplatônica de perfil espiritualista. Ao longo desse tratado,
Ibn Sinã classificou e estudou as faculdades anímicas e, a partir dessas
relações, procurou explicar inúmeras afecções da alma como, por
exemplo, a melancoli a, atrisÍeza, a alegria, araiva enre outras , temáúica
estudada hoje em dia pela psicologia moderna. Em razáo desse amplo
desenvolvimento, algumas vezes encontramos referências a Ibn Sinã
quanto à sua "psicologia" e particularmente a esse tratado, que ficou
conhecido como "A psicologia de Avicena" . O Livro da alma foi im-
pofiante na história do pensamento, não só por seu conteúdo mas também
porque apresentava, pela primeira vez, uma síntese do De anima de
Aristóteles, tendo causado grande impacto sobre a teologia cristã
medieval. Muitos nomes da escolástica universitária cristã, tais como
Alberto Magno, Rogério Bacon, Tomás de Aquino e Duns Scot, procuram
referências nas obras de Ibn Sinã, citam-no freqüentemente e, em muitos
casos, apoiam-se nele.

22. GOICIJON. La philosophie d'Avicenne, op. cit., pág.90.


A t ,t t,sl,rl E os rÁa,4T1FÁ
243

À guisa de resumo e, sem entrar em detalhes em cada um dos temas


que compõe sua filosofia, pode-se dizer que as contribuições de Ibn
Sinã estenderam-se praticamente a todos os Íamos da filosofia desde a
lógica até a metafísica. Em linhas gerais, Ibn Sinã se amparou em muitas
das teses estabelecidas por Al-Fãrãbi. Este foi o caso de sua visão
cosmológica, que seguiu o ritmo das emanações das dez inteligências a
partir da distinção entre o ser necessário por si e o ser necessário por
outÍo. A lógica ocupou um lugar central no desenvolvimento de seu
pensamento. A esta dedicou quase a metade de sua obra Al-Sifa'. Na
metafísica, considerou o ser como ser o objeto próprio dessa ciência e
elaborou sua doutrin a apartit do estabelecimento da distinção entre ser
necessário por si, ser possível por si e necessário por outro. Nela
se encontram quatro vias que indicariam a existência de Deus. Nesse
aspecto a metafísica de Ibn Sinã adquiriu um sentido do que posterior-
mente denominou-se "onto-teo-lógico". Também a ele se deveu um
aprofundamento significativo na distinção entre essência e existência,
e na preeminência da primeira noção. Na doutrina dos universais distin-
guiu três modos: sua existência nas coisas particulares, no intelecto e
em si mesma, a que chamou de natureza comum. Além disso, Ibn Sinã
criticou e refutou a doutrina das idéias segundo os platônicos.
Todos esses - e muitos outros temas - formaram um conjunto
harmônico e vigoroso em suas obras. Limitemo-nos a algumas palavras
a respeito de um dos pontos altos de seu pensamento referente à sua
psicologia, ou seja, seu estudo sobre a alma. De modo bastante original,
sua doutrina a esse respeito não se confunde com nenhuma outrapraticada
por seus predecessores, fossem árabes ou gregos. Suas idéias a respeito
da alma no Kitab al-Nafs / O livro da alma, não obstante ser consÍuída
a partir dos elementos aristotélicos e neoplatônicos, apresentaÍam traços
originais que a destacaram sobremaneira de outras teorias do mesmo
período, procurando manter-se em perfeita harmonia com a cosmologia
A prr-osoRl ENTRE os Ána.sgs - Fe.lsepe.
244

herdada de Al-Fãrãbi e com suas experiências médicas que se apresentam


como sustentáculos empíricos às suas teses.
A constatação da existência da alma é a primeira coisa de que
se ocupa lbn Sinã, indicando que sua existência pode ser comprovada
pela observação dos corpos, que não são apenas sólidos, mas que são
organismos que possuem sensibilidade, movimento, crescimento, nutri-
ção e outras atividades que fazem daquele corpo um ser vivo e não um
sólido sem vida. Na medida em que há corpos que não são dotados
dessas características anímicas, forçosamente o colpo como tal não pode
ser o princípio de tais movimentos, restando então que devam existir
princípios, além da própria corporeidade, que sejam os responsáveis
por tais movimentos. É justamente a isso, que é o princípio do qual
procedem essas ações espontâneas, que chamamos alma.
Sendo assim, tendo em vista que é certo que a alma faz parte
do composto do ser vivo, Ibn Sinã aplica as categoÍias aristotélicas de
ato e potênciaparu definir como ela participa dessa constituição. Se a
alma fosse uma potência como a matéria corpórea, deveria haver algum
ato que realizasse o acabamento daquele determinado corpo nesta ou
naquela espécie. Ora, como é a própria alma que realiza esse acabamento
namatéria, ela é, portanto, o ato que faz com que determinada matéria
seja um vegetal, um animal ou um homem. A atualizaçáo e o acabamento

que a alma confere à matéria permite, pois, que ela seja definida como
uma forma em relação àquela determinada matéria que ela toma por
receptáculo, passando a constituir suas próprias faculdades, pelas quais
opera e dirige o ser vivo para cumprir os atos referentes à vida.
Mesmo que por vezes haja referência ao termo "alma" no sentido
do conjunto das faculdades que ela forma no corpo - tais como
as ações de crescimento, geração e nutrição, movimento, sensibili-
dade e intelecção - sua melhor denominação é ser uma "perfeição".
E mesmo quando há referência ao termo "alma" no sentido de que
A m,tsIT,q E oS FALÃSIFA
245

ela é uma forma


- relativamente à matéria que ela tomou por receptáculo,
sendo que desse modo o composto matéria e forma se torna uma
23
substância vegetal ou animal -, ainda assim é preferível para Ibn Sinã
que chamemos a alma de "perfeição". O temo "perfeição" denota que a
aTma realiza na matéria o acabamento do gênero pela atualização da
espécie através dos seres pafiiculaÍes. Assim, quando se diz "perfeição",
estão incluídas as duas idéias, isto é, "forma" e "faculdade".
Porém, não obstante o fato de chamá-la de perfeição ser o mais
apropriado, ainda é preciso ressaltar que o sentido de "perfeição" pode
ser entendido em dois níveis: no primeiro refere-se ao acabamento reali-
zado namatériae, no segundo, refere-se ao exercício das próprias facul-
dades. Portanto, a alma, em vista da atualização da espécie, é uma per-
feição primeira; tratando-se do exercício, das paixões e ações vindas da
espécie dessa coisa, é uma perfeição segunda. Ora, como a perfeição se-
gunda não pode existir sem a primeira, pode-se afirmar, finalmente, que
o que mais caracteúza a alma - visto ser a definição mais geral que
abarca todas as outras - é ser perfeição primeira: "A alma que encontra-
mos é, então, perfeição primeira de um corpo natural, provido de órgãos,
que pode realizar os atos da vidt' .za Essa definição aproxima-se bastante
da definição dada por Aristóteles no De anima em que afirma a alma
como a forma de um corpo natural tendo a vida em potência, e também
como enteléquia primeira de um corpo natural organizado.z5
Porém, amatéria que a alma toma por receptáculo não é um estado
qualquer da matéria, mas somente quando esta se apresenta segundo
uma determinada rnistura dos elementos danailnezaadequada para que

23. Trata-se do ouvoÀov de Aristóteles. Cf. Bakós n. 2.


24. IBN SINA. Kitab al-NaJi. Trad. J. Bakós. Praga: Académie Tchecoslovaque des
Sciences, 1956, pág. 10.
25. ARISTÓTELES. De anima It 412 a 420 e il 412b5 .
A pu-osonrr ENTRE os ÁnasEs - Fllsar,r
246

a alma nela se manifeste. Isso não deve ser tomado no sentido de que
essa mistura resultasse num corpo que fosse a causa da alma, mas é a
própria alma que, a paftir de tal mistura, passa a formar o corpo com
seus órgãos e suas faculdades para executar os atos da vida. Nessa medida,

não é o corpo com seu equipamento que é simplesmente forjado por si


mesmo e entregue à alma sem que esta intervenha em sua constituição,
pois a alma não organiza algo que lhe fôra dado com uma certa orga-
nizaçáo precedente.A alma vem ao ser simultaneamente com a mistura
adequada dos elementos. A alma vem ao ser juntamente com a mistura
que lhe é adequada e passa a fotmar o organismo corporal, que só é o
que é graças à alma e, se ele é equipado para servir de instrumento no
exercício das atividades da vida, ele também o deve à alma. Por isso,
pode-se dizer que a alma constitui o seu próprio sujeito de inerência em
ato e, por essa razão, é a perfeição de um sujeito que é constituído por
ela. Do contrário, deveria ter havido uma outra perfeição primeira que o
tivesse atualizado, o que não pode ser, pois isso foirealizado justamente
por ela. Se assim não fosse, a alma sobreviria a um sujeito já formado e
ela só poderia ser uma propriedade acidental.
A alma para lbn Sinã não é, portanto, um acidente do corpo mas é

uma substância que vem à existência juntamente com a matéria que the
é adequada. Uma boa imagem disso, usada por Ibn Sinã, é o conceito da
alma como artesã, pois ela, ao tealizar na mistura que ela tomou por
receptáculo a confecção de todos os seus elementos vitais, é a artesã da
espécie, atualizando o gênero naquela matéria específica, tornando-a
animada: "Logo, a alma é então a perfeição de um sujeito de inerência,
e esse sujeito subsiste pela perfeição. A alma é, além disso a que aper-
feiçoa a espécie, e7aé a artesã desta".2ó

26. IBN SINA. KllAà al-Nafs. Trad. Bakós, op. cft.,pág.23


A reu.a.ra E os FALÃi1FA
247

Assim, Ibn Sinã procuía ultrapassar a definição da ahna como


forma do corpo, faculdade ou perfeição, e a define como uma substância
que se manifesta segundo faculdade, forma e perfeição: "A alma é uma
perfeição como substância e não inete" .27 Desse modo, a aima, emergindo
no ser juntamente com o corpo, não morre com a morte deste porque,
sendo uma substância simples e imaterial, não está sujeita à corrupção
como o corpo. Em outras palavras, a alma não precede o corpo mas,
desde que vem à existência juntamente com ele, jamais cessa, mesmo
quando do desaparecimento deste. Do mesmo modo que não foi gerada
pelo corpo, não perece quando este se corrompe. Ibn Sina crê poder
demonstrar a subsfancialidade da alma também pelo que se passa com o
ser vivo quando de sua morte: se a alma se sepaÍa do corpo na hora da
morte, este não permanece mais da mesma espécie, revestindo-se de
uma outra forma; ora, se a alma não interviesse na organizaçáo do corpo,
não haveria razáo para que essa estrutura se perdesse depois da morte;
não tendo sido produzida pela alma, ela poderia se manter mesmo ao se
separar dela, mas isto não ocorre justamente porque "amatéria animada
só é o que é por uma mistura própria e por uma disposição própria, sen-
do que amatéúa só resta existente em ato nessa mistura própria, enquanto
a alma permanece nela, pois é a alma que a coloca nessa mistura".28
A divisão proposta por Ibn Sinã quanto à alma e suas faculdades
acompanha Aristóteles na clássica divisão segundo as espécies vegetal,
animal e humana. Em sentido absoluto, as faculdades da alma podem
ser estabelecidas segundo as três espécies, havendo também o caso de
ser possível utilizar-se os termos por analogia. No primeiro caso está a
alma vegetal, definida como perfeição primeira de um corpo natural

27. f rl: r-a++l L( .J L.5 rl I,r*-i:l Li Cf. RAHMAN : I,3,32.Ern BAKOS : I, 3, 23,
"-.1:
"Donc I'ame est perfection comme substance, non comme acciilent."
28. IBN SINÃ. Kitab al-Na,fs. Trad. Bakós, op. cit.,p6,g.Z0.
A rtlosopla EnurRE os ÁneeEs - Frr-srpn
248

munido de órgãos, enquanto nasce, cresce e se nutre, referindo-se,


portanto, somente ao próprio vegetal. No segundo caso encontra-se a
alma animal, definida como perfeição primeira de um colpo natural
munido de órgãos, enquanto apreende as coisas particulares e se move
voluntariamente, referindo-se, portanto, somente ao animal em sentido
próprio. O terceiro caso é o da alma humana, definida como perfeição
primeira de um corpo natural munido de órgãos, enquanto se lhe atribui
a execução dos atos que se fazem por escolha refletida e por invenção
efetuada com discernimento, e também enquanto apreende as coisas
universais. Em sentido analógico pode-se fazer referência às funções
vegetativas da alma do animal, e às funções vegetativas e animativas da
alma do homem. Segundo essa divisão, verifiquemos a classificação das
faculdades da alma.
A alma vegetal possui três faculdades: a nutritiva, a do crescimento
e a da geração. A primeira delas é responsável pela assimilação de corpos
distintos daquele no qual ela está, transformando-os em algo semelhante
ao seu próprio corpo. A segunda faculdade, isto é, a do crescimento,
aproveitando a transformação efetuada pela nutritiva,faz o corpo crescer
proporcionalmente em altura, largura e profundidade. A terceira e última
faculdade da alma vegetal é a responsável pela geração, e age tomando
uma parte potencialmente semelhante ao corpo no qual ela está, propor-
cionando através de umamistura adequada, um outro corpo semelhante,
em ato, ao seu.
No caso da alma animal, Ibn Sina estabelece uma ramificação básica
em duas faculdades: a motora e a perceptiva. A faculdade motora é enten-

dida segundo duas categorias: a pura excitação ao movimento pelo desejo


e pelo apetite e o movimento efetivo realizado pelo corpo. A faculda-
de do desejo como pura excitação opera segundo duas direções básicas,
isto é, de aproximação em direção ao que foi desejado como útil ou
necessário e, neste caso, chama-se faculdade concupiscível ou, então,
A TIUATA E OS MLÃS|FA
249

de desejo de afastamento e fuga em direção contrária ao que foi


considerado prejudicial e, nesse caso, chama-se faculdade irascível. Essas
duas faculdades motoras, como pura excitação, têm apenas a função de
estimar o que se thes apresenta, funcionando por atração e repulsa,
excitando os músculos e os tendões para que efetivamente ajam segundo
o conjunto anatômico apropriado e terminem poÍ concrettzar o que foi
desejado. No caso da aproximação, provinda da excitação da faculdade
concupiscível, pode haver, por exemplo, contração de músculos, puxa-
mento de tendões e de ligamentos dos membros na direção do princípio
ou do objetivo em questão. No caso de afastamento, provindo da facul-
dade irascível, os músculos podem se relaxar e os nervos se esticar em
comprimento, colocando os tendões e os ligamentos em oposição à

direção do princípio em questão.


O segundo grupo de faculdades da alma animal refere-se à percep-
ção e é dividido por Ibn Sinã em duas categorias: os sentidos externos e
os sentidos internos. Os sentidos externos são os cinco tradicionalmente
conhecidos: a visão - localizada no nervoze ótico que é a faculdade
responsável pela percepção das formas impressas no humor cristalino
que provém das imagens dos corpos coloridos; a audição - faculdade
estabelecida nos nervos dispersos na superfície do canal auditivo, que
percebe uma forma qualquer que chegue à rede nervosa através da
agitação do ar chegando ao canal auditivo, onde as ondas desse movi-
mento relativo ao nervo se tocam e, então, escuta-se, o olfato - faculdade
estabelecida nas duas protuberâncias da pafie anterior do cérebro, que
tem por função perceber os odores que se encontÍam misturados ao ar; o
paladar - faculdade estabelecida no nervo estendido sobre o corpo da

29. Note-se que todas as localizações nervosas das faculdades não se encontraÍn en.r
Aristóteles, visto que ele não tinha conhecimento algum da existência dos nervos.
(Cf. Bakós n. 183).
A rrlosone ENTRE os Ánnses - FeI-s,q.re
250

língua, que percebe os gostos dissolvicios dos corpos quando estão


contíguos à língua e, por firn, o sentido do tato, que é uma faculdade
estabelecida nos nervos da pele e da carne de todo o co{po, tendo por
função perceber tudo que toca o corpo.
No caso dos sentidos internos, vale destacar o amplo desenvol-
vimento que Ibn Sina dedica a este grupo de faculdades que está a meio
caminho enre a sensação e a intelecção. Essas faculdades - em número
de cinco - são as responsáveis por reahzar um processo de abstração,
que é mais perfeito que o dos sentidos externos mas ainda imperfeito
em vistas daquele realizado pelo intelecto. Primeiran-lente, deve-se ter
em mente uma distinção fundamental para se entender o funcionamento
dos sentidos internos. Essa distinção se refere ao que Ibn Sina charnou
de apreensão das formas e apreensão das idéias3o: "Quanto às faculdades
que percebem interiormente, algumas são faculdades que percebem as
formas das coisas sensíveis, e outÍas percebem as idéias das coisas
sensíveis".3t A diferença entre esses dois modos de percepção é que a
percepção da forma é realizada em conjunto com um dos sentidos
externos, enquanto a percepção da idéia, diferentemente, é realizada de
modo imediato pelo sentido interno. O exemplo clássico usado por Ibn
Sina foi repetido incansavelmente pelos pensadores do Ocidente latino
medieval e consiste no seguinte: a ovelha percebe a "forma" do lobo,
isto é, sua configuração, seu aspecto e sua cor; comcerteza o sentido
interno da ovelha também percebe essa forma do lobo, mas, primei-
ramente, ela é percebida somente pelo seu sentido externo. Por outro
lado, a "idéia" é a coisa que a alma percebe do sensível sem que o sentido
extemo a tenha percebido anteriotmente. Por exemplo: a ovelha percebe
no lobo a idéia de inimigo ou a idéia que torna necessário o medo e a fuga

30. .;- lma'nae;_r3 I súra


31. IBN SINÃ. Krraà al-Nafs. Trad. Bakós, op. cir., pág. 30.
A r,qLst r,q E os FÁL,1T1rl
2st

para longe dele sem que o sentido externo perceba isso de modo nenhum;
logo, isso que o sentido externo capta primeiramente e depois o sentido
interno percebe chama-se propriamente de forma; e isso que a faculdade
interna percebe à exclusão dos sentidos externos chama-se idéia.
Os sentidos internos ou faculdades perceptivas intemas são em nú-
mero de cinco: o sentido comum, a formativa, a imaginativa, a estimativa
e a memória.32 Um dos exemplos que Ibn Sina se utiliza para mostrar a
necessidade de haver uma instância interna distinta dos sentidos exter-
nos consiste na percepção de uma gota de chuva que cai. Ora, uma gota
que cai é percebida naturalmente por nós como se descrevesse uma
linha reta mas, neste caso, os sentidos externos não nos podem fornecer
a percepção de uma linha reta pois eles percebem apenas o que é dado
num determinado instante. Quando o sentido exteÍno apreende a gota
de chuva a cada instante, segundo a posição que ela ocupa, não pode
apreender a continuidade entre uma posição e as posições anteriores.
Para que tal percepção ocorra, isto é, para poder apreendê-la como uma
linha reta, é necessário a conseruação das posições anteriores no momen-
to da apreensão da posição atual, o que requer necessariamente a inter-
venção dos sentidos internos.
Os cinco sentidos internos são localizados por Ibn Sinã nas câmaras
cerebrais e possuem funções distintas, O primeiro deles é o sentido comum,
que está localizado no primeiro ventrículo do cérebro e funciona como
um receptáculo geral para as formas que chegam indistintamente através
dos cinco sentidos extelnos. Seu papel, dentre outros, é o de receber as
formas provindas da realidade externa para dentro do cérebro. Em seguida

32. Ibn Sínã usa mais de um nome para definir cada um dos sentidos internos. Cf'
ATTIE, Os sentidos, op. cit., anexo. Note-se que, apesar de Ibn Siná utilizar os
mesmos nomes que se encontram em outros autores, notadamente em Aristóteles,
as funções não são as mesmas.
A plr-osona ENTRE os Ánesss - Fa.mlpn
252

está a faculdade formativa, que também se localiza na extremidade do


ventrículo anterior do cérebro e opera em conjunto com o sentido comum,
enquanto tem por função conservar o que este recebeu dos cinco sentidos
particulares. Tais formas permanecem no cérebro após o distanciamento
das coisas sensíveis. Assim, se estabelece a continuidade entre a realidade
externa e a realidade interna: num primeiro estágio, os sentidos externos
apreendem os sensíveis particulares - isto é, a visão apreende a cor; a
audição o som, etc. - num segundo estágio essas formas são recebidas
no cérebro pelo sentido comum; depois, são estabilizadas pela faculda-
de formativa, que as mantém fixadas no interior do primeiro ventrículo
cerebral. Em sua natureza, o sentido comum possui uma certa malea-
bilidade para receber as formas e atua como a água, que é capaz de
receber um determinado traçado mas náo é capaz de conservá-lo. Por
isso, a conservação é feita num segundo estágio de recepção.
Ora, como é da nossa nail)reza compor formas qrre estão estabili-
zadas com outras, é preciso que haja uma faculdade que realize essa
função. Essa é, pois, a faculdade imaginativa, que está estabelecida no
ventrículo médio do cérebro perto do lóbulo médio do cerebelo, entre
ambos os hemisférios, tendo por função unir e separar à vontade as formas
que estão estabilizadas na faculdade formativa. Assim, somos capazes
de compor novas formas que necessariamente não existem na realidade
externa. Desse modo se estabelece, além da continuidade das formas da
realidade exterior para a interior, também a criação de novas formas
interiores por meio da composição da faculdade imaginativa. No caso
do homem, em vista da conjugação que essa faculdade pode ter com a
razáo, ela é denominada cogitativa e é a responsável pela união e sepa-
ração das formas que possibilitam a cogitação.
Mas, como Ibn Sinã havia alertado, há percepções que não são
propriamente "formas" das coisas mas são "idéias" das coisas - como
no caso da ovelha, que percebe o perigo que o lobo significa. Para isso é
necessário uma outra instância que perceba essas idéias não sensíveis
A r,cu,aqA E os FALÃyrFA
253

presentes nas coisas sensíveis particulares. Essa é a faculdade estimativa,


que se localiza na extÍemidade do ventrículo médio do cérebro. Por
último, funcionando como um depósito pala as idéias apreendidas pela
estimativa, encontramos a memória, que se localiza no ventrículo
posterior do cérebro. Sua relação com a faculdade estimativa é do mesmo
tipo da relação da faculdade formativa com o sentido comum, pois a
memória e a formativa são depósitos, isto é, faculdades de conservação,
enquanto a estimativa e o sentido comum são faculdades de recepção,
sendo que a imaginativa é reponsável pela composição das formas. No
caso das idéias que estão na memória, estas também podem ser com-
binadas. Entretanto isso não é feito pela imaginativa pois esta não tem
acesso às idéias, mas somente às formas. A composição das idéias é
realizadapela própria estimativa, que tem acesso ao depósito das idéias
e atua como se fosse a própria imaginativa para operar as funções de
união e separação das idéias. No animal, a estimativa opera como se
fosse uma inteligência animal. De todo modo, a ailiculação e a dinâmica
dos sentidos internos a partir desse estabelecimento primário de suas
funções ganha dimensões bastante complexas na medida em que umas
Se combinam com outras e, assim, Ibn Sinã crê poder explicar o funcio-

namento de inúmeras afecções da alma como, por exempl o, a tristeza' a


ira e outras do mesmo tipo.
No caso da alma humana, Ibn Sinã utiliza-se de uma alegoria para
indicar que é possível ao homem constatar a existência de sua própria alma.
Essa via de indicação ficou conhecida como a alegoria do "homem sus-
penso no espaço".33 Nela, Ibn Sinã propôs que concebessemos um homem
que houvesse sido criado de uma só vez em toda a sua perfeição. No
entanto, embora criado perfeito, este homem teria sua vista velada e

33. Esta alegoria também é ref'erida "cogito" de Ibn Sinã, no qual o homem, sem a
intermediação do corpo, se percebe existente e pensante.
A rrloson,r ENrRE os ÁneeEs - Fer-sera
254

estaria totalmente privado de seus sentidos, de modo que nada pudesse


sentir. Ele estaria caindo de cima abaixo num vácuo absoluto, de maneira
que sequer o aÍ o poderia tocar. Além disso, os seus membros estariam
separados e não poderiam se encontrar. Ora, nessas circunstâncias em
que nenhuma realidade extelxa lhe fosse percebida, pergunta-se Ibn Sina:
seria possível que tal homem afirmasse sua existência, apesar de não
poder afirmar a existência de nenhum de seus membros, nem suas entra-
nhas, nem seu cérebro e seu coração, e nenhuma das realidades exterio-
res? A resposta dada por Ibn Sina é positiva pois, mesmo destituído da
apreensão de sua realidade corporal e das realidades exteriores a ele, ainda
assim tal homem, de modo imediato, serra capaz de afirmar-se como
existente justamente pela existência da alma nele. Para Ibn Sinã isso se
apresenta como uma evidência e, ta1 evidência de si mesmo, alcançada
de modo imediato, dispensa nosso filósofo de uma argumen-
intuitivo e
tação exaustiva porque, por si só, ela é suficiente para que todo e qualquer
homem possa constatar a existência de sua própria alma. Vejamos como
Ibn Sina termina esta alegoria, chamando a atenção para tal evidência:

Sendo assim, a essência cuja


.rL d ir -L: L-or:,+,r *il êl ol.rJl ;.rG
existência foi constatada pos-
Jl\, ,Jl ú1,À!l e À--.,+ J*. a:,'., 3-a l-4:l
sui uma propriedade uma vez
*L- q:+ ;l ,Jl "lor- Àl {^-::Jl llli , .-.,:, que ele [esse homem] é dis-
o-l , *
Jl ,- ,l- *ll ,*L t:, r, ,r*i:Jl 'r.i,+3 tinto de seu corpo e de seus
membros, que não eram
a:. )l-.llj ._rll ...,1,1 4l qi:* at i.2L
constatados. Desse modo,
. ola ç J.- .',1
LJ v -L:- -
C aquele que alirma possui um
meio para o afirmar. em vir-
tude da existência da alma,
como algo distinto do corpo,
ou melhor, não-corpo. Assim,
esse homem conhece isso e
o percebe, e se ele disso se
esqueceu, seria necessário
adverti-lo.3a
A mueru, E os FÁa,l.s/FÁ
255

Uma das melhores imagens da alma humana que nos fornece Ibn
Sinã é a de que ela possui duas faces: "A nossa alma possui duas faces:
uma face voltada para o corpo (...) e uma face voltada para os princípios
supremos".35 Seguindo essas duas direções, Ibn SInã distingue as
faculdades da alma humana em "faculdade que age e faculdade que
conhece, sendo que cada uma das duas faculdades chama-se intelecto
por homonímia ou equivocidade".3ó Assim, temos duas faculdades: o
intelecto prático e o intelecto teórico. Sendo uma substância simples e
una, mas que se relaciona com duas realidades distintas - uma que está
acima e outra abaixo dela -, a alma humana possui estas duas faculdades
que tornam possível a conexão entre ela e cada um dos dois lados. Pelo
lado inferior "nascem os hábitos morais" e do lado superior "nascem as
ciências".37 Acompanhando essa imagem, vejamos como Ibn Sinã nos
informa do papel da filosofia:

A filosofia tem como Íim informar acerca das verdades de todas


as coisas, na medida do possível, ao homem. As coisas er.istentes,

34. IBN SINÃ. Kitab al-Nafs. Edição do texto árabe por RAHMAN, F. Avicenna's De
Anima, Being the Psycological part of Kitab Al-Shifa. London: Oxford University
Press, 1960.
RAHMAN: I,l,16 /BAKOS: I,1,13. A sentença final "or ^. L::: at 6u--="
significa literalmente "seria necessário bater nele com uma bengala (l)".
35. IJLJI .erLJ! Jl n+.r.r . . . ó+ll Jl o+.r , cc<+., Lr- 6Líl Cf. RAHMAN:
I,5, 47 IBN SINÃ, Krlrró al-Nafs, trad. Bakós, op. cit., "-ÀiX
pág. 33.
36. I, 5,3 1. Também podem ser chamadas de faculdade prática e faculdade especulativa,
ou ainda, intelecto prático e intelecto teórico. Em Aristóteles são o intelecto teórico
e o intelecto prático. O fim do intelecto prático é a açáo, dirigida ao bem prático e
o contingente, enquanto o fim do intelecto teórico é o necessário, isto é, o verdadeiro
eo falso. O verdadeiro sendo absoluto e o bem, relativo. (Cf. Bakós n. 210). Note-
se, ainda, que sendo faculdades da alma humana, não há uma localização física.
Deve-se ter em mente que Ibn Sinã acompanha em linhas gerais a divisão
estabelecida por Al-Fãrãbi mas não totalmente.
37. IBN SINÃ. Kitab al-Nafs. Tra<l. Bakós, op. cit.,pá,g.33.
A rtlosona ENTRE os Ánases - Frlsere
256

por sua vez, ou existem sem depender de nossa vontade ou, então,
existem por nossa vontade e atividade. Ao conhecimento das coisas
que pertencem à primeira divisão chama-se filosofia teórica; ao
conhecimento das coisas que pertencem à segunda divisão chama-
fim da filosofia teórica é aperfeiçoar a alma
se filosotia prática. O
pelo conhecer; o fim da filosofia prática é aperfeiçoar a alma, não
pelo simples conhecer, mas por conhecer o que deve ser feito e
fazê-lo. Assim, o fim da filosofia teórica é a aquisição de uma opi-
nião que não é prática, ao passo que o frm da filosofia prática é

conhecer uma opinião que é prática.

Na direção e comando do corpo está o intelecto prático, que dirige


o homem nos seus atos paÍticulares tais como as ações morais e polÍticas,
a criação das artes e outras ações realizadas em sociedade. Na outra di-
reção, o intelecto teórico busca a aquisição do conhecimento e das ver-
dades supremas. Se, por um lado, o intelecto prático deve se guiar pelo
intelecto teórico, por outro, ele deve dirigir todas as outras faculdades
da alma e não se deixar dirigir por elas pois, se isso acontecer, coÍre-se
o risco de se criar hábitos morais vis por uma inversão na hierarquia das
faculdades. Assim, o intelecto prático governa o corpo mas não o faz de
modo totalmente independente do intelecto teórico pois este, em conexão
com o lado superior e sob os infl uxos da inteligência agente (JL I ll,JiJl ),
recebe e adquire constantemente o efeito disso que está acima dele, para
que a ação humana se guie pela verdade, em vista do bem.
Focalizando as primeiras definições a respeito do intelecto teórico
-no Kitab al-Nafs -, Ibn Sinã o define como " uma faculdade que tem a
função de receber a impressão das formas universais abstraídas da
matéria".38 O intelecto teórico possui diversas relações com essas formas

38. RAHMAN I,5,48.


A T,qtspe D OS FALÃSIFA
257

na medida em que passa da potência ao ato. Segundo esses dois extremos

- potência e ato -, Ibn Sina estabelece uma gradação no interior do


intelecto humano para representar os diferentes níveis em que se dá a
apreensão dos inteligíveis, desde o seu grau mais comum - encontrado
em todos os homens -, até o seu mais alto grau - o limite do entendimento
humano encontrado em alguns poucos homens. Os graus são os se-
-,
guintes: intelecto material, intelecto em hábito, intelecto em ato, intelecto
adquirido e, por fim, intelecto sagrado. Inicialmente, lbn Sinã distingue
níveis de potencialidade para, em seguida, relacioná-los com os distintos
graus do intelecto.
A potência no seu sentido mais radical deve ser entendida como
uma aptidão total e absoluta, da qual não é possível que algo resulte em
ato como, por exemplo, a potência de escrever que há numa criança de
pouca idade. Num segundo sentido já nuançado, a potência pode ser
entendida de maneira mais desenvolvida como, por exemplo, quando a
cnança já se inicia nas letras e já conhece
tinteiro. Num tercei-
a pena e o

ro sentido, a potência pode ser entendida como uma aquisição já completa


que pode ser usada a qualquer instante sem que haja a necessidade de
uma nova aquisição, bastando que se decida a agir ou não como, por
exemplo, a potência do escriba perfeito na aÍte, quando se decide ou não
a escrever. Tais níveis de potência, Ibn Sinã denomina: potência material,
potência possível e perfeição da potência. Esses três níveis de potencia-
lidade, assim estabelecidos, indicam os graus com que o intelecto
apreende os inteligíveis distinguindo-se, inicialmente, três níveis na
intelecção, como se fossem três intelectos ou três faculdades intelectivas,
ou ainda graus diferenciados de apreensão por parte do intelecto teórico.
No primeiro caso, "o intelecto se encontra frente aos inteligíveis
em um estado de potencialidade absoluta".3e Esse é o intelecto material

39. GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ed. del Orto, 1994, pág.46.


A nlosone ENTRE os ÁnesEs - Felsepl
2s8

(;Y-x-all .F.ll) e seu nome se deve iustamente pela semelhança


que guarda com a matériaprima que não possui por si uma forma, mas
é sujeito de inerência para toda forma. Na medida em que esse nível do
intelecto ainda nada recebeu da perfeição que existe em relação a ele,
mantém-se em potência absoluta, é individualizado e peÍtence a cada
um dos membros da espécie humana. No segundo grau, ocoÍre que no
intelecto material já estão presentes os primeiros inteligíveis, isto é, os
primeiros princípios como, por exemplo, que o todo é maior que a parte,
que duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si, dos quais e
pelos quais se chega aos inteligíveis segundos. Esse segundo grau se
chama intelecto em hábito (ASJJL ,Jú-ll), e pode-se dizer em ato em
relação ao primeiro. No terceiro caso, a relação se dá conforme o que se

chamou de perfeição da potência, sendo que os inteligíveis segundos


estão em ato como se estivessem afmazenados e. quando quiser. o inte-
lecto considera novamente essas fotmas. Esse grau se denomina intelecto
em ato (JJL Jf-ã.ll). Em sentido restrito esses são os três graus do
intelecto teórico e, de certo modo, talvez bastasse, no estabelecimento
dos meios pelos quais se dá o processo de apreensão dos inteligíveis
abstraídos da matéria, esse itinerário ritmado através dos três graus do
intelecto humano assim definidos: material, em hábito, em ato. Entre-
tanto, Ibn Sinã apresenta mais dois graus que devem ser entendidos em
sua relação com a inteligência agente. São eles: o intelecto adquirido
(rl :,: .., ^Jl JÉ-rJl) e o intelecto sagrado (,-ri.rill Jtr ll).
Antes de mais nada, deve-se ter em mente que, no processo de pas-
sagem da potência ao ato, é preciso que haja um intelecto sempre em ato
que opere essa passagem. Ibn Sinã, seguindo Al-Farabi, também en-
tende que esse intelecto sempre em ato, que opela a passagem da potência
ao ato no intelecto humano, é uma das inteligências separadas - mais
pÍecisâmente a décima inteligência pura e separada da matéria - que
ilumina o intelecto humano para que este consiga a abstração destituída

de todo laço material. Vejamos uma das passagens a esse respeito:


A rarsei'e E os FALÃgrFA
259

Às vezes a relação é uma relação do que está em ato absoluto.


Isso consiste em que a forma inteligível está presente no intelecto
enquanto este o considera em ato; então ele conhece em ato e sabe
que o conhece em ato. O que veio então ao ato nele se chama
intelecto adquirido; e ele só se chama intelecto adquirido porque
nos será claro em breve que o intelecto em potência só passa ao ato
por causa de uma inteligêncra que está sempre em ato, e quando o
intelecto em potência se une por um certo modo de junção a esta
inteligência que está em ato, uma espécie das formas que são
adquiridas do exterior se imprime nele. Esses são ainda os graus
das faculdades que se chamam intelectos especulativos e, no intelecto
adquirido está completado o gênero animal e a espécie humana que
pertence a ele; e aí a inteligência humana já está assimilada aos

princípios primeiros de toda existência.a0

Assim, o intelecto adquirido pode ser entendido, num primeiro


sentido, do seguinte modo: "Toda vez que quiser, ele pode se conectar
à inteligência agente por um modo de conexão na qual é concebido nele
esse inteligível, sem que este inteligível esteja presente em seu espírito
e seia sempre concebido em ato em seu intelecto, não como este
inteligível era antes da instrução".4r Ou seja, atualizado um inteligível,
a alma, como se soubesse a via pela qual pode acessá-lo novamente na
inteligência agente, o faz. Isso não significa que a alma o deva conhecer
novamente mas sim que o pode acessar novamente, pois tal inteligível
em ato já fôra adquirido. Assim sendo, o que fôra atualizado e fôra
denominado, a princípio, de intelecto em ato, só o é em relação ao
primeiro aprendizado, mas não o é em vistas do uso deste inteligível.

40. IBN STNÃ. Kitab al-Nafs. Trad. Bakós, op. cir.,pág.1,5,34


41. Ib.. v. 6.24'.7 .
A rtr-osona. ENTRE os Áneees - Fe.lsapa
260

Sendo assim, o que se chamou de intelecto em ato tornar-se-ia intelecto


em potência, em vista da atualização que faz do uso do inteligível sempre
em ato que está na inteligência agente. É por isso que nos diz Ibn Sinã:
"Este modo de intelecto está em ato por uma atualização, mas ele é a
potência que vem ao ato na alma para que a alma conheça por si o que
quer conhecer, pois, quando a alma quer, ela é conectada - à inteligência
agente - e nela desborda a forma inteligível; e essa forma é, na verdade,

o intelecto adquirido, enquanto que essa potência é o intelecto em ato


em nós enquanto ele tem a conhecer. Quanto ao intelecto adquirido, ele
é o intelecto em ato enquanto é uma perfeição".42
O intelecto adquirido pode ser entendido no sentido de que o conhe-
cimento consiste na atualização provocada por uma forma inteligível
vinda do exterior, e dele deve se entender o próprio inteligível, atuado e
infundido pela inteligência agente.a3 Assim, a diferença que se estabelece
entre o intelecto em ato em nós e o intelecto adquirido é que este último
é aperfeiçáo da conexão entre o intelecto em ato e a inteligência agente.
Assim, "enquanto o intelecto em ato é uma faculdade, o intelecto
adquirido é uma perfeição".aa Esta perfeição significa que a atualizaçáo
dos inteligíveis no homem é, de um certo modo, sempre potência, pois só
pode ser assegurada pelo desbordar constante daltzda inteligência agen-
te no intelecto do homem, para que este seja capaz de atingir a abstração
última e perfeita dos inteligíveis sem nenhuma ligação com a matéria.
Não é demais lembrar que Ibn Sinã estabelece quatro graus de
abstração: pelos sentidos externos, pela faculdade formativa, pela

42. (b.,Y,6,247,248.
43. GARDET,L. La pensée religieuse d'Avicenne. Paris: Vrin, 1951' pág. l15: "Para
Ibn Sinã, ao contrário de Al-Fãrãbi, (...) o intelecto adquirido não é o intelecto
humano como potência atualizada, mas é recebido poÍ este último".
44. GOICHON, A.M. Introduction a Avicenne - son építre des déftuitions. Paris:
Desclée, 1933, pág. 46.
A l';trsare E os ElL,4s1E1
26t

estimativa e pelo intelecto. No último caso, o homem não tem condições


de realizar isoladamente o processo de abstração absoluta a não ser pelo
desbordar daluz da inteligência agente, que está Iocalizada na esfera da
Lua. O grau do intelecto adquirido sublinha a dependência da esfera
sublunar à esfera lunar ao mesmo tempo que liga o homem ao cosmo -
que tem a inteligência como princípio - de modo inequívoco, através
de sua mais alta faculdade: o intelecto. De certo modo, a condição de
atualizaçáo dos inteligíveis na alma do homem já estava garantida no
estabelecimento do último nível de seu intelecto - o intelecto em ato -,
mas o intelecto adquirido sublinha a intervenção inexorável da ilumi-
nação da inteligência a,eente nesse processo de apreensão. Por isso, a

cadavez que o inteligível, já conhecido, ressurge na alma, ocoÍre essa


conexão da forma sempre em ato da inteligência agente com o intelecto
humano. Numa metáfora poderíamos dizer que estaríamos diante da
própria visão do toque de luz da forma inteligível sempre em ato da
inteligência agente com o intelecto humano que, tocado, passa ao ato e
então conhece tal inteligível. Como disse Gardet, "é o intelecto humano
que totalmente iluminado pela inteligência agente, separada, torna-se
espelho perfeito das formas inteligíveis".a5 Com certezanão se trata de
uma volta ao conhecido no sentido da reminiscência mas, com mais
propriedade, trata-se de um retorno ao princípio conhecido.
Nesse sentido, pode-se entender que o intelecto adquirido, em
última análise, é comum a todos os homens pela própria realizaçáo da
intelecção. No entanto, ao se afirmar que "é comum a todos os homens",
com isto não se afirma que o grau em que ele se dá seja o mesmo para
todos os homens. Por exemplo: nos homens comuns, o aprendizado é
um meio para a apreensão dos inteligíveis e, portanto, para a atualizaçáo

45. GARDET, op. cit. pág. 115.


A rrlosona ENTRn os ÁRABES - Feuere
262

do intelecto. Ibn Sinã observa que no exercício do aprendizado há dis-


tintos graus de aptidão entre os alunos: uns são mais rápidos na apreensão
do conhecimento, enquanto outros são mais lentos. Essa aptidão -
chamada por Ibn Sinã de "intuição intelectual" (.r'^ I hads)a6 - não
sendo observada de modo equânime em todos os homens, é passível de
ser classificada segundo sua variação, podendo ser mais ou menos ativa.
Desse modo, admitindo-se que a variação dos graus da aptidão para
a recepção dos inteligíveis tem sua causa na variação da intensidade da
intuição intelectual, não é difícil perceber que Ibn Sinã não encontra
nenhum obstáculo para afirmar que tal aptidão, levada a um grau extremo,
torna o homem que apossui um homem com qualidades bastante distin-
tas das qualidades do homem comum. Dessa maneira, abre-se a possibili-
dade de haver uma conexão entre o intelecto humano e a inteligência
agente, sem que o aprendizado ou outlo meio utilizado pelo homem comum
seja o meio com que tal homem se conecte com as formas inteligíveis.
Resume Ibn Sinã:

Essa aptidão aumenta, às vezes, num certo homem de modo


que, para se conectar à inteligência agente, ele não tem necessidade
de muitas coisas, nem de educação, nem de ensinamento; ao contrá-

rio, ele é forte na aptidão. É por essa razáo que a segunda aptidão
vem ao ato nele, melhor, como se ele conhecesse toda coisa por si

46. GOICHON, A.M. Lexique de la Langue philosophique d'lbn Slna. Paris: Desclée,
1938, págs. 65,66; o termo u-'- hads é definido como "intuição intelectual", em
oposição à "intuição sensível". A hads é entendida como um tipo de lampejo de
compreensão que se produz no espírito, em que se descobre subitamente uma
verdade até então não percebida. Este caráter repentino da hads não exclui um
certo tipo de movimento para atingir o termo médio quando o problema é colocado
ou para se atingir o termo maior quando o termo médio é obtido. No entanto, não
se trata do movimento progressivo mais próprio da cogitação, que caberia melhor
âo termo ; §i lfikra (idéia - reflexão), que é um movimenro deliberado de busca.
A rn.stre E os FAL,4.s/FÁ
263

mesmo. Esse é o mais alto dos graus desta aptidão. E essa dispo-
sição da inteligência material deve ser chamada inteligência sagrada,
mas essa disposição é do gênelo da inteügência hábito, salvo que a
inteligência sagrada é muito elevada. Ela não é disso que todos os
homens possuem em comum.aT

Assim, o intelecto sagrado se apresenta não como um intelecto no


mesmo sentido da tríplice classificação inicial - material, em hábito e
em ato - mas como um grau extremo de conexão, aliás, o mais alto grau
possível no processo de apreensão pelo homem das formas inteligíveis
presentes na inteligência agente. Neste sentido também o intelecto
sagrado se dá segundo as mesmas condições do intelecto adquirido, sendo
apenas de maior alcance. Em certo sentido, os dois se aproximam bastante
e Goichona8, ao analisar a hierarquia das faculdades apresentadas por
Ibn Sinã, chegou mesmo a identificá-los como sinônimos.
No intelecto sagrado deve-se ter em conta que seu modo de
apreensão difere do aprendizado convencional porque é atualizado de
modo imediato, isto é, sem ensinamento ou paulatino aperfeiçoamento
do entendimento. Por outro lado, a apreensão pelo intelecto sagrado
continua mediada pela intuição intelectual e pelo silogismo. A referência
a esse tipo de conhecimento imediato deve ser entendido no sentido de
que ele se dá sem a mediação da instrução convencional de transmissão
dos termos da proposição por meio de um mestre ou de um aprendizado
comum, mas o processo perrnanece mediato enquanto se realiza, neces-

47. RAHMAN V,6,248.


48. GOICHON, op. cit.,pá,g.45: "A hierarquia das forças compreende 26 graus, desde
a mais alta fonna da inteligência até as qualidades dos corpos simples. O inrelecto
adquirido ou intelecto sagrado é servido por todas as outras; abaixo dela vem o
intelecto etrl ato, servido pelo intelecto em hábito, servido, ele mesmo, pelo intelecto
em potência; (...) em homens raros, enfim, cuja preparação chega à perfeição, o
intelecto adquirido merece ser chamado sagrado".
A rrlosopr;r ENTRE os ÁRABES - Flmlpl
264

sariamente, através dos elementos do silogismo por meio da intuição


intelectual. Nesse processo, a inteligência agente pode tanto infundir o
termo médio que movimenta o silogismo permitindo a conclusão, como
infundir a própria conclusão. Numa primeira afirmação, Ibn Sinã faz
uma distinção entre dois modos de apreensão das formas inteligíveis ao
dizer que o termo médio pode vir de dois modos à alma: pela intuição
intelectual por si mesma o meio termo - ou
- em que a alma descobre
pelo ensinamento. Ora, não são também os princípios do ensinamento
intuições intelectuais descobertas pelos mestres dessas intuições inte-
lectuais? Portanto, todo conhecimento só pode se dar por meio da intuição
intelectual, seja ela mais lenta ou mais rápida, seja ela já conhecida por
alguns ou não.
No que tange ao Kitab Al-Nafs parece bastante clara a distância de
um sistema de iluminação mística em Ibn Sinã, a não ser que o
entendamos como uma espécie de iluminação racional que opera por
silogismos. Nessa medida, todo conhecimento das formas inteligíveis,
inclusive o do intelecto sagrado, é intuição intelectual por meio do silo-
gismo. Em suma, podemos entender o intelecto sagrado como um largo
espectro do intelecto adquirido mas, pela sua intensidade que não se
encontra no homem comum, Ibn Sina o nomeia intelecto sagrado. Não
se ftata de haver modificação da qualidade entre os dois mas de in-
tensidade. Não sendo comum a todos os homens, o intelecto sagrado é
característico apenas dos que possuem raras qualidades na alma. Estas,
por sua vez, são refletidas em sua conduta. Os atos desse homem são
guiados por essa régia conexão, e sua faculdade prática, recebendo esses
influxos, é dirigida por tais princípios e não o guiam as faculdades hierar-
quicamente mais baixas da alma, como por exemplo, os sentidos externos,
os sentidos internos, as faculdades motoras, os desejos e as faculdades
vegetais. O contato desse homem de alma nobre com a inteligência agente
é mais intenso e mais constante, sem que com isso transgrida qualquer
premissa do entendimento natural da faculdade teórica da alma racional.
A rez-ser,r E os FAal-s/nl
26s

Na medida em que todo entendimento somente é possível pela cadeia


do silogismo, Ibn Sinã, ao salvaguardar tais princípios e não pedindo
jamais que os abandonemos para entendermos os fatos surpreendentes
realizados por alguns homens, fundamenta logicamente a possibilidade
de haver tal caso:

É possível que haja um indivíduo com


; ,r^:r ôrSi ôl lfl ,jS-i-i a alma fortificada por uma grande
,G ll ;, :... ,*.ir-Jl +_!- .rUl pureza e pela estreita junção com os

;! i+13,11 .e'rl, ^ ll- Jr :Yl ;J-i'J princípios intelectuais, até que se


inflame de uma intuição intelectual,
LC YJ+ .r:-l , [-.r- ,-E:-:+ ;l
quero dizer, apto Para receber [os
'§i JS rá, Jt*ill Jr,ll Cr- princípios do entendimentol da in-
J"Jl çr" él JJ"JI !-r i^-r-',r teligência agente para todas as coisas,
e que nele se imprimam as formas que
dr- L.ii L!3 t*i.r L-! JLill
estão na inteligência agente, seja de
:,:-n+ gl- L',1t3 Y L.l ..'iJl AaiJ uma só vez, ou quase de uma só vez,
(...).rt'!l .r3r^11 ,+ J---t'+ não de uma maneira imitativa, mas sim
seguindo uma ordenação que inclui os
,L-Í ,l Ã:él ;* -:-. l.ua3 termos médios (...) e isso é um tiPo
o.r-a ,r*f 6t .rJ3Í13 , ;Jêl crj,i de profecia, ou melhor, a mais alta das
.a
-L.i .rrg , i.-.r" ÂJr ;JJll faculdades da profecia. Esta facul-
.i...:-.Y, .9Jrll,:'-,lJ- dade é a mais digna de ser chamada
faculdade sagrada, e ela é o mais alto
grau das faculdades humanas.ae

49. RAHMAN, V 6, 250. A reÍ'erência final de que isto é "um modo" de profecia nos
leva a perguntar quais seriam, então, os outros. A título de indicação deveríamos
nos remeter aos capítulos precedentes do Kitab al-Nafs em que encontratnos mais
dois modos de profecias ligados a duas outras faculdades da alma: a faculdade
imaginativa e a taculdade motora. O modo de profecia associado à faculdade motora
permite, por exemplo, que o homem fortificado nesta faculdade interfita na matéria
e na ordem da natureza. Quanto à profecia ligada à faculdade imaginativa,
destacamos que, sem ela, os profetas não poderiam, por exemplo, criar alegorias
que mostram de uma maneira simbólica as verdades intelectuais que podem lhe
chegar pelo intelecto sagrado. Os três modos de profecia não são excludentes e
podem atuar em conjunto num mesmo homem, inserindo-se em três níveis: o
sensível, o imaginativo e o intelectual.
A nlosorra ENTRE os Ánases - Femera
500

In * R*Àd,, o*fr*n**d[ro
Quando Ibn Ru§d nasceu, três séculos já se haviam passado des-
de que Al-Kindi recepcionara a filosofia entÍe os árabes. Passando em
revista todo o desenvolvimento das teses de seus predecessores, sob
uma leitura rigorosa das obras de Aristóteles, Ibn Ru§d tinha em mente
recobrar a doutrina autêntica do pensador $ego. Afinal, por volta do século
XI d.C. / V H., Ibn Sinã - o mais oriental dosfalasifa - era uma referência
obrigatória da filosofia grega na parte oriental do mundo muçulmano,
inserindo nas teses de Aristóteles um caráter neoplatônico. A tarefa de
reconduzir o pensamento ao rigor da filosofia aristotélica, Ibn Ru§d
exerceu do ponto mais ocidental do mundo muçulmano: a Espanha.
Não é demais lembrar que, até aquela data, aespeculação filosófica
se desenvolvera sobremaneira a partir da ascensão da dinastia Abássida

- com capital em Bagdá - que impusera uma dura queda à dinastia


Omíada - com capital em Damasco. Porém, à época dessa inversão de

poder no mundo islâmico, os árabes já haviam tomado o sul da Espanha,


região que passou a contar com muitos governadores sírios, que 1á se es-
tabeleceram e contribuíram para a arabizaçáo de diversas províncias
da região ibérica. Antes da queda dos Omíadas, a região de Al-Andaluz
era dirigida por governadores dependentes de Damasco. Quando a di-
nastia Omíada foi derrotada pelos Abássidas, notadamente os sírios na
Espanha "puderam oferecer um refúgio ao jovem 'Abd Al-Rahmãn, salvo
do massacre de 750 d.C. Com o apoio dos sírios, 'Abd Al-Rahmãn
conseguiu impor-se aos chefes locais e, em julho de 756 d.C', foi
proclamado emir em Córdoba".r 'Abd Al-Rahmãn reinou até 788 d.C.,
ano de sua morte, e durante seu reinado usou tanto o título de emir

L MANTRAN. op. cit., pá9. 155 e segs


A ptt^stpt E os FAL,ff1El
301

quanto o de rei, mas não ainda o de califa, mantendo as aparências de


reconhecimento ao califado de Bagdá. Porém, na prática, a Espanha
muçulmana funcionava como uma região independente. À medida que
os califas do Oriente passavam a enfrentar mais dificuldades, mais a
independência do emirado ibérico Omíada se anunciava. Mesmo asssim,
o emirado estabelecido durou até 929 d.C., quando 'Abd Al-Rahmãn
Ill (912-961 d.C.) proclamou-se califa, instaurando o califado Omíada
na Espanha.
Nesse período, sob o domínio dos Omíadas, Al-Andaluz conheceu
seu apogeu, e sob suas luzes se fez daEspanha o maior centro intelectual
e artístico do Ocidente. Mesmo com toda a instabilidade política, no
campo religioso ali conviveriam muçulmanos, cristãos e judeus durante
séculos, num clima de certa tolerância. Nessa época já se notava uma
atmosfera de grandezapolítica, econômica e intelectual, na qual a filosofia
não podia estar ausente. Esse ressurgimento do califado Omíada durou
aproximadamente cem anos quando, em 1031 d.C., o último califa,
Hisham III, foi deposto. "Por volta de 1031 d.C., o califado Omíada
desapareceu de maneira inglória."2 Em seu lugar, a região se dividiu em
pequenos Estados independentes denominados de reinos de taifas. No
séc XI d.C. /V H., do norte da Afrrca, a dinastia dos Almorávidas, de

origem berbere, ocupou o cenário da Espanha. No séc XII d.C. /VI H.,
um novo grupo de tribos berberes constituiu-se no núcleo da dinastia
dos Almôadas. Nessa época, Al-Andaluz jánão era umaprimaziaítrabe,
mas turca pelo leste e berbere pelo oeste. "IJma grande revolução se
operou no Magreb durante a juventude de Ibn Ru§d: os Almôadas der-
rubaram a dinastia dos Almorávidas e se apossaram sucessivamente do
noroeste da África e da Espanha muçulmana."3

2. Ib., pág. 173.


MUNK. Mélanges de philosophie, op. cit., pâg.420.
A t tlosorte EN-TRE os ÁneeEs - Fam,rre
302

Foi nesse cenário que, com Ibn Bãja (Avempace), Ibn Tufayl e,

finalmente, com Ibn Ru§d, a/a/safainaugtrou um novo perfil geográfico,


não mais exclusivamente centrado em Bagdá ou em Hamadan, mas,
também, na Europa - mais precisamente na Espanha. Apesar de ter
havido um intenso intercâmbio entre as partes orientais e ocidentais do
mundo islâmico, isso não significou que não houve rivalidade enre os
dois cantos do império. Al-Andaluz, sempre que pôde, rivalizou com os
Abássidas, tanto política como culturalmente. Fatores políticos e culturais
não deixaram de estar presentes na postura adotada por Ibn Ru§d frente
aos seus antecessores do extremo oriente do império. Mas, antes dele, a
Espanha muçulmana já deixara gravados dois nomes de importância:
Ibn Bãja e Ibn Tufayl.
O primeiro, nascido em Saragoza, esteve em Sevilha e Granada e
moÍreu em Fez, em 1138 d.C. Deixou alguns tratados que introduzitam
oS aspectos mais próprios da filosofia no mundo árabe-espanhol. Ibn
Bãja preparou o terreno para a exposição islâmica da doutrina aristotélica,
que chegaria ao apogeu com Ibn Ru§d. Ibn Tufayl, por sua vez, estudou
medicina e filosofia em Córdoba e esteve sob a proteção do califa 'Abü
ya.qüb Yüsuf - mecenas generoso das ciências e da filosofia. Foi médico
da corte e tinha muito prestígio junto a 'Abú Ya'qüb, tendo-lhe aplesen-
tado o próprio Ibn Ru§d. Além de escritos sobre medicina, astronomia e
filosofia, Ibn Tufayl deixou para a posteridade a obta Hayy lbn Yaqziin,
título homônimo de uma obra de Ibn Sinã que também, em linguagem
simbólica, descrevia a viagem da alma em seu retorno ao mundo
inteligível. É co-um encontraÍmos essa obra de lbn Tufayl indicada
como uma das possíveis fontes originárias do romance Robinson Crusoé

4. FAKHRY. Histoire de la philosophie islamique, op. cit.' pág. 291.


A re6,qr,q E os FÁL.ÀS/E{
303

- 171.9 - deDaniel Defoea. De todo modo, o apogeu da filosofia verificado


em Al-Andaluz se deu com Ibn Ru§d. Vejamos alguns dados sobre
sua vida.
'Abü Al-Walid Muhammad Ibn Ahmad Ibn Ru§d (1126-1198 d.C. /
520-595 H.), conhecido no Ocidente como Averróis, nasceu em Córdoba.
O mais ocidental dosfalasifa descendeu de uma longa linhagem de sábios
e juristas eminentes. Seu avô fôra o mais ilustre juiz de seu tempo, por
toda Al-Andaluz sob o domínio dos Almorávidas, e um dos personagens
políticos mais importantes. O pai de Ibn Ru§d também ocupou o cargo
de juiz e, igualmente, foi uma figura ilustre. Ibn Ru§d seguiu a mesma

trajetória dos seus antepassados, tendo se formado, inicialmente, nos


estudos tradicionais a respeito do direito islâmico. Em seguida estudou
medicina, astronomia, teologia, matemática e as outlas ciências que
compunham a base do conhecimento da época e, naturalmente, filoso-
fia. Chegou-se a dizer que Ibn Bãja teria sido seu preceptor, mas essa
hipótese foi descartada, pois quando Ibn Bãja faleceu Ibn Ru§d era ape-
nas um jovem de doze anos. Ibn
Jufayl é indicado, geralmente, como
um de seus amigos próximos e um de seus mestres, mas parece que
Ibn Ru§d não o conhecera muito antes de 1169 d.C., quando este o apre-
sentou ao emir 'Abü Ya'qüb Yüsuf, que tinha grande interesse pela
filosofia e pela ciência. O próprio Ibn Ru§d comentou a passagem
da seguinte maneira:

Quando entrei na casa do emirt dos crentes, encontrei-o a sós


com Ibn Tufayl. Este começou a tecer elogios a mim, a exaltar minha

nobreza e a tradição de minha família e reuniu a isso. por sua

5. O termo ,n\ / 'amír significa principe.


A nrlosone ENTRE os Áne.ses - Fer-sane
304

bondade, elogios que eu estava longe de merecer. Após ter pergun-


tado o meu nome, o de meu pai e de minha família, o emir assim
abriu a conversação: qual a opinião dos filósofos a respeito do céu?
É uma substância eterna ou teve um começo?!6

Ibn Ru§d, tomado de surpresa e por um certo temor por desconhecer


Ibn Jufayl havia
as verdadeiras intenções do emir, e por não saber o que

dito ao soberano a esse respeito, procurou desconversar e inventar um


pretexto qualquer para se esquivar de assunto tão espinhoso. Enquanto
procurava uma saída, o soberano, compreendendo a situação embaraçosa
em que se encontrava Ibn Ru§d, voltou-se a Ibn Tufayl e começou a
discorrer sobre a questão da eternidade do mundo, reportando-se à
filosofia de Aristóteles, de Platão e de outros filósofos a esse respeito.
Expunha com igual mestria, a argumentação dos teólogos muçulmanos
contÍa os filósofos. Ibn Ru§d, surpreso pela vasta erudição e pela
excelente memória do emir em relação à filosofia, pôde ficar mais à
vontade e expor também os seus conhecimentos a respeito deste que
seria um dos temas importantes de sua filosofia. Na verdade, o soberano
e Ibn Tufayl já haviam combinado toda a cena e queriam apenas colocar
o filósofo à prova. Ao se rettÍaÍ,Ibn Ru§d recebeu alguns presentes do
emir e partiu.
Numa outra passagem Ibn Ru§d conta como foi que se aplicou aos
comentários à obra de Aristóteles: um dia, Ibn Jufayl o chamou e lhe
relatou que escutara o emir se lamentar pela obscuridade das obras de
Aristóteles e de seus tradutores, dizendo que adoraria encontrar um
homem que pudesse comentar esses livros e explicá-los de modo mais
claro, para torná-los mais acessíveis aos homens. Ibn Tufayl, já com

6. BADAWI. Histoire de la philosophie en Islam, op. cit., pág.738.


A mtsmt E os E{t/s1a
30s

idade avançada, insistiu que Ibn Ru§d tomasse para si esse trabalho,
já que possuía grande aplicação nos estudos, clareza, lucidez e inteli-
gência suficientes para tão importante tarefa. Pela sua própria pena
sabe-se que de 1169 a 1180 d.C. aproximadamente, Ibn Ru§d já es-
crevera o Comentário sobre o tratado dos animais, Comentário mé-
dio sobre a Física, Comentário sobre os meteorológicos, Comentdrio
médio sobre a retórica, Comentário sobre a metafísica - dentre outros
referentes a Aristóteles - e uma paráfrase do Almagesro de Ptolomeu.
Em 1182 d.C. o emir Yüsuf chamou Ibn Ru§d ao Marrocos e o
nomeou seu primeiro médico no lugar de Ibn Tufayl, conferindo-lhe
também o cargo de "Qadi al-qudah" - juiz dos juízes - de Córdoba,
cargo que fôra ocupado por seu pai e também por seu avô. Nessa ópoca,
Ibn Ru§d tinha cerca de 56 anos. Logo em seguida, em 1184 d.C., o

soberado veio a falecer e subiu ao poder seu filho Al-Mansür. De imediato


nada mudou em relação à condição do nosso filósofo, que foi mantido em
suas funções e continuou sob a proteção do novo emir. Ao passar dos anos,
Ibn Ru§d, ao mesmo tempo que se dedicava aos afazeres políticos,
compunha seus trabalhos filosóficos. Suas posições na interpretação do
Alcorão jácriavam, naquela época, certas tensões com os doutores da lei.
Desde que Al-Mansúr subira ao trono, Ibn Ru§d viveria mais 14
anos, e entre eles se estabeleceu uma grande amizade: passavam horas
discutindo sobre filosofia, quando se ouvia Ibn Ru§d chegando mesmo
a dizer ao emir: tasma' ya afrt - escuta meu irmão... Até 1195 d.C.,
quando Al-Mansür se pÍeparava paÍa lutar contra Afonso VIII de Castela
na batalha dos Alarcos, ainda se testemunhava o grande prestígio de Ibn
Ru§djunto ao soberano. Mas, logo em seguida, as pressões dos adversá-

rios do filósofo aumentaram levando-o à desgraça. Ele mesmo narra


como, ao entrar numa mesquita de Córdoba com seu filho 'Abd Allãh
para a prece, viu a turba se dirigir contra eles e expulsá-los do templo.
Seus discípulos abandonaram suas aulas temendo mesmo invocar sua
A rrlosorre EN-rRE os Ánasls - Femenq
306

autoridade. Recebendo injúrias e ataques dos teólogos radicais e da


própria população, até mesmo Al-Mansür se viu obrigado a retirar-lhe a
proteção antes confiada. "Ele foi acusado, assim como vários outros
sábios da Espanha, de preconizar a filosofia e as ciências da Antiguidade
em detrimento da religião muçulmana."7
As verdadeiras razões que desbancaram Ibn Ru§d de sua posição
ainda são tema de controvérsia. "Todos os historiadores muçulmanos se

perderam em conjecturas para explicar as causas dessa desgraça."8 Seus


adversários acusaram-no de heresia, procurando em seus escritos passa-
gens que pudessem indicar que ele se afastava dos preceito s do Alcorão.
Sua atividade como qadltambémgerou inimizades e os que discordavam
de seus métodos na aplicação da lei islâmica passaram a persegui-lo.
Numa assembléia de juristas, reunida por Al-Mansür para analisar as
posições de Ibn Ru§d em relação à ortodoxia muçulmana, nosso filósofo
foi condenado como um extraviado do bom caminho da religião.
Parece que a perseguição a Ibn Ru§d deveu-se, em grande parte, a
questões internas de interpretação da lei muçulmana, mais que propria-
mente à sua dedicação à filosofia. Não é demais sublinhar que Al-Mansüre
foi bem instruído e eÍa um grande admirador de Aristóteles para ceder a

uma campanha contra a filosofia mas, pressionado pelas circunstâncias,


acabou ordenando que os livros de Ibn Ru§d fossem queimados (!).
Al-Mansür ordenou reprimir os que estivessem convencidos a estudar a
filosofia grega, e confiscar e jogar ao "fogo todos os livros de lógica e
de filosofia que se pudesse encontrar nas livrarias e nos particulares".l0

7. MUNK. Mélanges de philosophie, op. cir., pág. 425.


8. BADAWI. Histoire de la philosophie en Islam, op. cit., pá'g.741.
9. Conhecido como "o emir dos crentes e o sultão das duas margens (a Africa do Norte
eaAl-Andaluz)". Cf. BADAWI , Histoire de la philosophie en Islam, op. cit.,pág.742'
10. MUNK. Mélanges de philosopltie, op. cit., pâg. 427.
A prlosorre ENTRE os Ánnegs - Femara
308

Como se tal não bastasse, talvez para acalmar os ânimos, Al-Mansür


ordenou ainda que Ibn Ru§d fosse exilado em Lucena, pequena ci-
dade ao sul de Córdoba, juntamente com outros estudantes de filo-
sofia e ciências, ao mesmo tempo em que proibia o estudo sobre esses
assuntos. O exílio durou pouco tempo pois os notáveis de Sevilha
pleitearam a favor de Ibn Ru§d. Quando Al-Mansür retornou ao
Marrocos, perdoou-o e chamou-o para voltar aos seus serviços. Assim,
Ibn Ru§d seguiu para Marrocos mas, pouco tempo depois, veio a falecer
aproximadamente em 1198 d.C. com a idade de 72 anos, sem voltar a
ver a Espanha. Seus restos mortais, no entanto, foram transferidos para
Córdoba três meses depois, onde foi enterrado no túmulo de sua família
no cemitério de Ibn 'Abbãs.
A produção de Ibn RuSd foi volumosa. Badawi apresenta uma lista
de 92 títulos, que pode ser dividida em seis grandes grupos temáticos:
filosofia, teologia, direito, astronomia, gramática e medicina.rr Em
filosofia destacam-se 32 comentários, em sua maior parte referentes à
obra de Aristóteles, a\ém de 29 títulos originais. Nove obras sobre
teologia e jurisprudência, 3 sobre astronomia e 2 sobre gramática. Em
medicina, listam-se 8 comentários - principalmente sobre Galeno - e9

obras originais. "Ibn Ru§d foi, incontestavelmente, um dos homens mais


sábios no mundo muçulmano e um dos mais profundos comentadores
das obras de Aristóteles. Ele possuía todas as ciências acessíveis então
aos árabes, efoi um dos escritores mais fecundos."r2
Como médico, ficou conhecido principalmente por sua obra
Kulliyyat al-Tib / Princípios gerais de medicina, um tratado de tera-
pia geral que foi publicado em latim sob o título de Colliget. Seus

11. BADAWI. Histoire de la philosophie en Islam, pâgs.743-761. Cf. também a


lista de I{ERNANDEZ, op. cit., pâ1s.236-239.
t2. MUNK. Mélanges de philosophie, op. cit., pâ9.429.
A ret.ser,q E os FÀLás1rA
509

conhecimentos astronômicos podem ser verificados num Íesumo do


Almagesto, que ainda existe numa versão hebraica. Escreveu obras
originais de filosofia, das quais se destaca o Tahafut al-tahaíut / A
autodestruição da autodestruição como resposta ao Tahafut al-falasifa /
A autodestruição dos fitósofos, de Al-Gazali. Nesta obra, Ibn Ru§d saiu
em defesa da falsafa em vista dos ataques dos teólogos, princi-
palmente de At-Gazali, mas também criticou Al-Fãrãbi e Ibn Sinã
por terem se desviado do aristotelismo.l3 No Façl al-maqal /9 tratado
*
decisivo entre a religião e a.filosofia, Ibn Ru§d pÍocurou demonstrar
o acordo essencial entre a filosofia rigorosamente compreendida e a es-
Incans ável dgte\§gr .daflalsaÍg e da
critura corretamente interpretada. -----:
-
escritura, procurou mostrar que-a lei religi-o:T1,9 filosofia
T_:pu1ha l
nem vice-versa.
Com relação aos falasfo orientais Al-Fârãbi e Ibn Sina, Ibn
Ru§d surpreende pela meticulosidade com que comentaJ!j%!*_{"
Aristóteles. No Ocidente, ajusto título, foi chamado de "O Comentador"
por excelência. Na Idade Média - e mesmo na Renascença - repetiu-se
o rifão: "anaürÍeza interpretada por Aristóteles e Aristóteles interpre-
?.t ,
Ibn Ru§d não conhecia a língua gsgl_r93_1sgy" {r1Ti tl:
comentários se fizeram diretamente a partir das traduções árabes da obra
de Aristóteles. Não parece ter havido, portanto, uma correção das tradu-

ções do grego ou do siríaco para o árabe pelo próprio Ibn Ru§d. Ele co-
men tou. pr ati c amente a
l_"llld4" t:_ :[g j:
j1:,_9:l_:P.:J1::1" :
Política) e, em alguns casos, chegou a compor dois ou três comentários
sobre a mesma obra como, por exemplo, no caso da Física. Os textos

13. Chama a atenção o fato de Ibn Ru§d não ter comentado a Teologia de Aristóteles
e de, ao mesmo tempo, reclamar o aristotelismo puro.
14. BADAWI. Histoire de la philosophie en Islam, op. cit., pá,9.743.
A rrlosorre ENlttE os Án.rees - F,rm,rrx
310

referentes ao_s comentários foram classificados em "grandes", "médios"


"rrqyrry.:"
"
Nos grandes comentários, Ibn Ru§d geralmente_apresenta um
sÍaf 9j9§Ig g-li 1_ 9A r 9 s y! utgo ! p.g_b le1 ?s?i rã g' ô J,
?*I
"qga ": " "
históricos e doutrinais que ali estão implicados, desenvolvendo o própiio
corpo do comentário. Incluem-se nessa categoria, por exemplo, os
.ã*""Tãrior u*urtifitirr. aos Segrmdos Anrilíticos, à Física e ao De
Anima de Aristótel"r. _9"
gggqqlg1q_-"dio segue o mesmo modelo
t r".t rqglgl qryl1 _T,:l g_::.1_": yo. Ne s te, Ib n Ru § d g era men te
I

começa peio termo qál (disse) e resume o restante do parágrafo reunindo


a ele explicações, o que, por vezes, torna mais difícil saber o que é de
Aristóteles e o que é propriamente de ibn Ru§d. Nessa categoria estão
presentes, por exemplo, os comentários à Retóricct, às Categoricts, à
Poética, às Refutctções Sofísticas, à Éica a Nicôntaco de Aristóteles -
entre outros e à Isagoge de Porfírio. Quanto ao pequeno comentário
-
ou paráfrase, este geralmente se caracterizou como um retyAg p_1.11É
sico ao texto de Aristóteles, no qual Ibn Ru§d inclui também suas próprias
reflexões e opiniões de outros filósofos. Neste, Ibn Ru§d não segue
ta um itinerário PróPrio, asse-

melhando-se ao método utilizado por Ibn Siná em algumas de suas obras.


Nessa categoria encontram-se paráfrases da Físicct, Metafísica, Poética
de Aristóteles, e da República de Platão. Na paráfrase da República de
Platão, Ibn Ru§d se refere à ausência de uma tradução da Política de
Aristóteles, que não havia, até aquele momento, chegado em A1-Andaluz
e, por isso, - nos diz - comenta a República. Alude também ao fato de
ter havido uma tradução árabe da Política no Oriente, conforme o relato
de Al-Fãrãbi. No entanto, não se sabe até o momento em que obra A1-
Fãrãbi teria feito tal referência e sequer houve alguma passagem de Al-
Fãrãbi que fizesse concluir que realmente a tradução da Política de
Aristóteles existiu em árabe.
A mts,qre E os FÀLi.ç/FA
5lr

No fim do comentário médio à Física ele diz:

Isso que escl'evernos sobre esses temas, só o fizemos para


fornecer a interpretação no sentido dos peripatéticos, a fim de faci-
litar a compreensão aos que desejam conhecer essas coisas. Nosso

objetivo Íbi o mesmo que o de 'Abü Hámid [Al-Gazáli] em seu

livro Maqâsid, poir,_9,


em sua origem, não se sabe reconhecer os erros que lhes são
atribuídos, nem distinguir disso o que é verdadeiro.15

É comum encontramos passagens em que Ibn Ru§d mostra alta


consideração e deferência pelo mestre grego. Em sua opinião, a doutri-
na do Estagirita era a soberana verdade e, assirri, considerou-a como
o limite da especulação humana. As alusões de lbn Ru§d a Aristóteles
não mediram palavras para colocar o mestre grego no mais alto grau
da inteligência humana: "Dirigimos louvores sem fim àquele que pre-
destinou esse homem [Aristóteles] à perfeição e que o colocou no mais
alto grau de excelência humana. onde nenhum homem em nenhum sé-
culo pôde chegar. É a ele que Deus aludiu quando disse: "Tal superio-
ridade Deus concede a quem Ele quer".16 Em outra passagem - no
prefácio de seu comentário à Física -, a admiração por Aristóteles é
igualmente insigne:

O autor desse livro é Aristóteles, filho de Nicômaco, o mais


sábio dos gregos, que fundou e concluiu a lógica, a física e a

metafísica. Digo que ele as fundou porque todas as obras que Íbram

I5. MUNK. Mélanges de phílosophie, op. cit., pág. 442.


16. BADAWI. Hisroire de la philosophie en Islam, op. ci., pág.763.,,Ta1 é a graça de
Deus que a concede a quem Lhe apraz porque Deus é agraciante por excelência.,,
Cf . Alcordo, LVII, 21.
A nlosonra. ENTRE os ÁnasEs - Fa.lsnpa
3t2

escritas antes dele sobre tais ciências sequer vale a pena que se diga
algo sobre elas, sendo eclipsadas pelos seus próprios escritos. Digo
que ele as terminou porque nenhum daqueles que se seguiram a ele
até o nosso tempo, isto é, durante aproximadamente mil e quinhentos
anos, nada puderam reunir aos seus escritos e nem mesmo encontrar

algum emo de alguma importância. Ora, que tudo isso se encontre


reunido em um só homem, é coisa estranha e miraculosa
:a§3:
antes, g:"
i:ilr p1l"i1"s_iid:
1=:, :::9:::_*_dl'lg:9:
humano e, eis o porquê dos antigos o chamarem divino.tl

E segundo essa admiração profunda e sincera - mais que as

hipérboles do elogio oriental - qu"


considerava ser o pensamento autêntico de Aristóteles. Nesse caso, não
se trataria propriamente de modificar a filosofia do mestre grego nem
de introduzir inovações, mas de procurar compreendê-la de modo rigo-
roso e sistemático.
Porém, não obstantg o rigor e a meticulosidade de Ibn Ru§d o19_t?3
afastado de algumas teses de Al-Fãrãbi e de Ibn Sinã, ainda assim, o
desenvolvimento de sua filosofia não foi totalmente ao encontro das
concepções propriamente aristotélicas. Havia na filosofia de Aristóteles
uma grande qu@uros sobre os quais os antigos
comentadores não chegaram a um acordo ou calaram sobre a questão;
enquanto procurava extrair o que supunha-ser a verdade-ir1 onlnilo d1
Aristóteles, Ibn Ru§d chegou algumas vezes a estabelecer doutrinas que
+ eram as suas pÍopnas.
g_n3on]atolismo.
Mas saber com extremaprecisão em que medida o neoplatonismo esteve

17 . Ib., pá9.762.
A n,uepn, F- OS FALÃS\FA
3t3

presente na visão de Ibn Ru§d é uma questão que não encontra con-
formidade entre os pesquisadores quando se procura focalizar uma ou
outra área de seu pensamento. Muito da depuração dos elementos
neoplatônicos em relação à teoria aristotélica pode ter um elemento
importante e esclarecedor, na ausência de um comentário ou um tra-
tamento que integrasse a chamada Teologia de Aristóteles no sistema
aristotélico. Ibn Ru§d parece ter percebido que o sistema baseado no
princípio de que do um só procede o um não poderia ter sido inspirado
;tig;s,-mal em
"*
Porfírio de Tyr, o autor dalsagoge. "Observe-se que em nenhum lugar
Ibn Ru§d atribuiu a famosa Teologia a Aristóteles. Ele esteve firmemente
convencido de que esse livro jamais poderia ser dapena do Estagirita."r8
Em largqe-spectro, Ibn Ru§d pôd"9itd"g_.i.:"- *dt :IS

lj*"t:
d
o-L13o:9-9o-

T""t{gp.".".q* d:_tlryit"-dt "tigiyt disse".Ie


Se é demais nivelar de modo equivalente a presença do neopiãonismo
por toda afalsafa e afirmar com Munk que "o caráter geral da doutrina
de Ibn Ru§d é o mesmo que aquele que verificamos nos outros filósofos
árabes"2o, ainda assim é possível entender que, mesmo que tenha sido
em menor grau, Ibn Ru§d também viu as doutrinas de Aristóteles pelo
prisma dos comentadores neoplatônicos e forneceu modificações
significativas no sistema peripatético. Na defesa de Aristóteles, na dura
crítica aos comentadores que o antecederam, é possível enconffar ele-
mentos originais de sua filosofia no Tahafttt al-tahaftrt que, pela força de
sua argumentação e pela riqueza de idéias, constitui-se numa obra mestra.

18. Ib., pág.814.


19. GILSON. Afilosofia na ldade Média, op, cit.,pá9.445.
20. MUNK. Mélanges de philosophie, op.cir., pág.443.
J

A ptt-osot rrr ENTRE os ÁResEs - Fllsare


314

O Tah1fut al-tahafut, obra escrita provavelmente em 1180 d.C.,


refletiu um pensamento mais maduro do nosso filósofo, apresentando
as linhas principais de suas convicções. Por um lado Ibn Ru§d desen-
volveu uma reÍutaç ão si stemátic a da condenação ao 7ol @ p*ffdffi
e, por outro lado, sustentou que Ibn Sinã e Ai-Fãrãbi, preocupados com

" ,rrtfr-q
qq -;;;ilili;;;-;; s*,d* ãii"'ánç". ànii"
ííúôã frespeito da
tntgçkry1gLlg
teoria das idéias. Do mesmo modo,-to4qa leoria da em113Sfo,Qle lomou
a pedra angular da cosmologia e da metafísica a" !U:§1lle de A1-
a' $,_construção
119_ar11oté1i9
de um universo que desborda de modo múltiplo a partir do Uno conteria,
segundo ele, diversos eÍros lógicos. '1 -

,.rt.t ,.",agicosh; f.ldq essa mistura Ineoplatonismo e

aristotelismo]. Ele sabia que restaurar o aristotelismo autêntico era excluir


da filosofia o que nela melhor se harmonizava com a religião."21
Algumas das críticas de Ibn Ru§d ao desvio da interpretação do
que ele julgou ser correto na doutrina de Aristóteles - referidas mais
propriamente a Ibn Sina - foram, por exemplo: a inclusão da prova da
existência do Primeiro Motor na Metafísica e não na Física, como fizera
Aristóteles; a confusão entre o um trancendental com o um numérico; a
consideração da existência como um acidente da essência; a influência
das formas separadas sobre as coisas engendradas; a afirmação que do
um só pode proceder o um e a referente críttca à teoria da emanação;
falta de fundamentação entre a distinção de possível e necessário; e a
afirmação de que os corpos celestes possueln faculdade imaginativa.
Nas críticas a Al-GazálL lbn Ru§d entendeu que a argumentação
do primeiro não se encontlava numa linguagem rigorosamente filosófica,

21. GILSON. A filosofia na Idade Média, op. cit., pâg. 444.


A rnts-tr,t E os FÁ4.-$/,91
315

pois os raciocínios dos quais ele se utilizou eram prováveis, dtaléticos e

retóricos, mas não demonstrativos. Por exemplo, Al-Gazah teria se

enganado em condenar os filósofos peripatéticos acusando-os de ter dito


que Deus não conheceria os particulares. Ora. A1-Õ azallnã.o entendera
que o termo "conhecer", neste caso, só é usado por homonímia: o modo
pelo qual Deus conhece não é o mesmo pelo qual nós conhecemos; o
nosso "couhecer" se faz e se niodifica; o de Deus é eterno. Como o ver-
dadeiro discurso do filósofo só pode ser o demonstrativo. as Íeprova-
ções de Ibn Ru§cl estenderam-se também aos filósofos muçulmanos que
se serviram, muitas vezes, de argumentos dialéticos e prováveis. "Os
discursos demonstrativos estão nos livros dos antigos que escreveram
acerca dessa ciência, particularmente nos livros do Filósofo Primeiro,
não no que afirmaram a esse respeito Ibn Sinã e outros que pertencem
ao Islam.")z

Quanto à questão da criação ou da emanação, Ibn Ru§d criticou


ambas as posições: a de Ibn Sinã a de Al-Farabi quanto à emanação, por
um lado, e a doutrina de Al-Gazãli de uma criação a partir do nada, por
ouro. Em sua explicação, tanto os fi1ósofos quanto os teólogos aceitaram
que havia, nessa questão, basicamente três modos de ser: dois extremos
e um intermediário. Um dos extremos, entendido como sendo formado
de matéria, foi causado e o tempo precedeu sua existência como, por
exemplo, a água, a terra. o fogo, o ar, as plantas e os animais. Todos
esses são "produzidos". No outro extremo estaria um ser que não é

causado e que o tempo não o precedeu, sendo portanto, eterno. Este é


Deus - Bendito e Altíssimo -, que deu existência a todas as coisas e as
conserva. O ser intermediário seria o mundo em seu conjunto. Os teólogos
afirmam que o mundo teve um começo, e portanto seu passado é finito,

22. AVERROES. Tahafut cir. ern GUERRERO, op. cit., pág. 52.
A rtlosoRa ENTRE os Áneess - Fllslpl
3t6

ao passo que alguns filósofos o afirmam infinito. "As duas partes


divergem somente quanto ao tempo passado e à existência passada: os
teólogos os vêem como finitos, e esta também é a doutrina de Platão e
seus seguidores, ao passo que Aristóteles e sua escola os vêem como
infinitos, assim como o futuro."23
Ibn Ru§d defendeu a tese da eternidade do mundo sem ver nisso
qualquer discordância com a Revelação. A tese comumente defendida
p;il;"ó_-*Iog;.*, *,"" "" .dãe-Ãi-cazali, de que o mundo teria
sido criado por Deus a partir do nada. Isso significava que a idade do
mundo seria limitada no tempo o que, por sua vez, indicava que um
tempo infinito passado deveria ser visto como impossível. Ibn Ru§d
refuta, no Tahafut, um a um os argumentos de Al-Õazãli. Partindo do
conceito do caráter todo-poderoso de Deus, '!q
vontade 4ivina tivesse q

tido que esperar para criar no tempo, tal espera estaria condicionada
't.o-'
r por algo extrínseco e Deus estaria determinado em suas ações, o que é

i*àmo *n."itá àe divindade. Deus quis desde


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Baseado na própria Revelação para defender sua posição,jfiImol
que "os teólogos (muÍakallimu--r),. Çuando
L -_
falam sobre o mundo não
seguem o sentido literal da lei: interpretam-na. Na Lei não se diz que
Deus teria existido com o puro nada, em nenhum texto se encontra isto".25
Ao contrário, há várias passagens no Alcorão que sugerem que "sua
forma [do mundo] é produzida realmente, e a própria existência e o
tempo perduram em relação aos dois extremos, isto é, ininterrupta-
mente".26 Desse modo, as próprias palavras: "Ele, que criou os céus e a

23. AVERROES. Traité dé c i s if, op. c it., pág. 29.


24. I{ERNANDEZ. Historia del pensamiento en el mundo islamico, op. cit.,pág.201.
25. AVERROES. Traité décisif, op. cir., pá,g. 31.
26. Ib., op. cit., pág.30. Cf. trad. GUERRERO,pá.g.91.
A T\UITI E OS FALÃS|FA
317

terra em seis dias, e seu trono estava sobre a âgtJs"'z' implicariam, em


sentido literal, que antes da existência do mundo existia outro ser: "o
trono e a água, e um tempo antes desse tempo".28 Do mesmo modo,
Suas palavras "o dia em que ateffa seja substituída por outra terra e os
céus por outros céus"2e implicariam também, em sentido literal, que
haveria uma segunda existência depois dessa. Ou ainda, quando diz:
"dirigiu-Se aos céus quando estes ainda eram fumaça"3o, significaria
que os céus teriam sido criados a paftiÍ de algo. Para Ibn Ru§d, desde
que uma série temporal passada infinita é possível, aidéia propriamen-
-..-___
te de criaçãõããíe ser corretamente compreendida, ou seja, sem a exi-
gência de que um tempo vazio tenha precedido a realizaçáo atual do
mundo. "O mundo pode ser eterno e Deus ser seu Autor; basta admitir
que em nenhum momento o mundo exista por si mesmo sem que Deus
o sustente e o faça existir. Mas Deus pode fazê-lo existir desde toda a
eternidade."3r
A cosmovisão de Ibn Ru§d é a de um universo fechado, esférico,
formado por uma série de esferas concêntricas cujo centro é a Terra, em
torno da qual giram as órbitas celestes. Para explicar o movimento dos
céus, acompanhando os estudos astronômicos de seu tempo Ibn Ru§d
seguiu a opinião mais corrente e estabeleceu 45 motores: 38 corres-
ponderiam às esferas das estrelas fixas e dos planetas e sete aos
movimentos diurnos de cada uma das esferas móveis. Os 38 esta-
riam assim repartidos: 5 para cada um dos planetas superiores (Saturno,

27. Alcordo,Xl,7.
28. AVERROES. Traité décisif op. cit., pág.3O.
29. Alcorão, XIV 48.
30. ALcorão,XLI,11.
31. CARRA DE VAUX. Les penseurs de l'lslam, op. cit., pág. 70 e segs.
A rtLosonre ENTRE os Áneees - Fer-s.,rre
318

Júpiter e Marte), 5 para a Lua, 8 para Mercúrio, 7 para Vênus, um para


o Sol e um para as estrelas fixas.3l
À medida que os motores se hierarquizam, devem chegar a um
primeiro motor separado. que é o princípio primeiro e últinio ao qual
todos tendem. É o Primeiro Motor Imóvel, a Prin-reira Inteligência
separada, cuja unidade asseguÍa a do Universo e. por conseguinte, seu
próprio ser. Mas, não obstante sua posição naturalista, Ibn Ru§d afirmou
que o Primeiro Motor Imóvel e eterno é Deus. As intrínsecas relações
de Deus e do mundo podem ser ilustradas por essa passagem corânica:
"Se no Universo houvesse deuses além de Deus, os dois mundos (céu e
tema) cessariam de exjstir".33 Deus é a causa da existência da inteligência
motriz da esfera dos fixos, à qual se seguem as outras esferas tendo, no
centro do Universo, os quatro elementos.
Desde Al-Fârãbi, a tese da inteligência das esferas intetpostas entre
o mundo sublunar e o Primeiro Motor - segundo a emanação que ligava,
unificava e comunicava todas as paÍtes do Universo até o rnundo sublunar

- já estava estabelecida e cobria o abismo que separava a energia pura.


Deus, da matéria primeira. Em boa parte, Ibn Ru§d admitiu essa hipótese
e concebeu o céu como un1 ser que não nasce e nem moffe e cuja matéria
própria é superior à das coisas sublunares, comunicando a estas o
movimento que lhe vem da causa primeira e do desejo que o atrai em
direção ao Primeiro Motor. As órbitas celestes seriam movidas pela
atração que a Inteligência suprema exerce sobre elas, ou seja, o
movimento seria determinado pela sua causa final. Assim, numa nova
perspectiva, lbn Ru§d rejeitou que haveria uma caLlsa prirneira criadora
a partir do nada, como queriam os teólogos do Islatn, ao mesmo tempo

32. I{ERNAN'DEZ. Historia del pensamiento en el ntuttdo islamico, op. cit., pág.
241, n.44 comenta a ausência de um motor.
11. ALcorõo,XXL22.
A alrsarA D OS FALÃSIFA

em que afastou a idéia de pura emanação, como queriam Al-Farábi e


Ibn Sinã, mas apontou para uma simultaneidade de Deus e mundo num
eterno começo.
Outra questão importante desenvolvida por lbn Ru§d - e não menos

espinhosa - referiu-se ao intelecto. Os temas envolvidos nessa discussão


ligam-se, principalmente, à questão da transcendência ou da imanência
da inteligência humana. No processo de intelecção três perguntas podem
surgir com mais força: o homem pensa por si mesmo; o pensamento no
homem se dá pelo resultado do contato entre ele e uma inteligência que
está fora dele; ou é aprópriainteligência, externa ao homem, que pensa
nele? Seguindo Aristóteles, Ibn Ru§d entendeu, assim como os seus
antecessores peripatéticos, que, para inteligir, o intelecto humano deve
passar da potência ao ato e é preciso, para isso, que haja um intelecto
sempre em ato - intelecto agente - que realize esse processo. Desde
Al-Fãrãbi, o intelecto agente fôra estabelecido como uma inteligência
cósmica na esfera da Lua sendo que, entÍetanto, ao homem ainda estava
reservado um núcleo intelectivo que lhe era próprio e individual, que
assegurava o seu contato com as formas permanentes da inteligência
agente resultando, conseqüentemente, na própria intelecção, isto é, no
entendimento das coisas por parte do homem. Esse núcleo intelectivo no
homem, inclusive, sobreviveria de modo individualizado após a morte do
corpo, como uma consciência individual, tanto para Al-Fãrãbi como
para Ibn Sinã, a contemplar as formas pemanentes da inteligência agente.
A direção tomada por lbn Ru§d permitiu colocar em questão esse
núcleo próprio ao homem, trazendo à discussão a possibilidade de se
entender o processo de intelecção como um processo da própria inteli-
gência agente que, momentaneamente, se daria de modo particularizado
no homem. O contato da inteligência agente com nossa alma, sendo
como uma luz que iluminaria os inteligíveis para nós, poderia ser inter-
pretado como uma operação da própria inteligência agente particularizada
A pllosonn ENTRE os ÁRapps - Fanare
320

num deterrninado indivíduo. Em última anáIise, não seria o homem


a pensar mas seria sempre a própria inteligência a pensar, nele. Nes-
te caso, o que sobreviveria após a morte? Seguindo os ditames da ra-
záo, seria a própria inteligência agente a única propriamente substan-
cial e separada da matéria. A sobrevivência da humanidade só poderia
ser entendida como a sobrevivência da espécie e não como a sobrevi-
vência individual.
No Comentário médio sobre a alma, Ibn Ru§d - atribuindo tal
interpretação a Alexandre de Afrodísia - falou diretamente sobre essa
questão aludindo que é preciso que essa faculdade de intelecção que
recebe a impressão das coisas inteligíveis seja inteiramente impás-
sível e esteja absolutamente livre de toda mistura com a matéria. Com
efeito, visto que essa faculdade que se chama intelecto material pensa
todas as coisas, é necessário que não seja misturada de modo algum ao
sujeito no qual ela se encontra - como ocolTe com as outras faculdades
que estão ligadas à matéria. Sua natureza só pode ser de uma simples
disposição: "Quero dizer que o intelecto em potência é uma simples
disposição e não algo no qual se encontra a disposição".34
Uma passagem do Alcorão foi usada por Ibn Ru§d para ilustrar
essa idéia, quando Moisés pediu a Deus que se mostrasse: "Nunca poderás

Me ver mas olha em direção do monte e, se ele permanecer em seu


lugar, então Me verás. E quando a Majestade de Deus resplandeceu sobre
o monte, este se reduziu a pó, e Moisés tombou desmaiado".35 Por
analogia, o intelecto material no homem não teria, inicialmente, a
possibilidade de perceber a inteligência agente. Para tal, deveria se tornal
intelecto em ato - então, "tú Me verás". Mas, na verdade, nessa união

34. Tradução de MUNK, op. cit,pág.445.


35. Alcorão, VII, 143.
A rtser,q. E os FALÃçrFA
321

seria apenas a inteligência agente que se perceberia particularizada


momentaneamente em uma alma humana. A intelecção humana não
seria, portanto, a garantia da sobrevivência individual, sendo possível
que a união marcasse, em última análise, o esfacelamento do intelecto
passivo, assim como ocoÍTeu com a montanha. Como bem assinalou
Corbin, isso se colocaria muito distante do avicenismo, "no qual a
garantia inalienável da individualidade espiritual está precisamente na
consciência de si que é atingida pela união com a inteligência agente"36.
Mas se a Revelação afirma a vida eterna, suas penas e recompensas,

como conciliá-la com essa conclusão da razão? A primeira coisa a saber


é se realmente essa seria a melhor interpretação da teoria do intelecto
em Ibn Ru§d. Mesmo que a resposta fosse afirmativa, valeria transpor a
discussão para as relações entre a razáo e a fé, e lembrar com Mehren
que Ibn Ru§d declarou, também, que há questões que devem ser colocadas
em espera para serem bem entendidas "aguardando que um dia se
encontrem a explicação racional e que, até o momento, rejeitar a expo-
sição alcorânica ou dela duvidar seria um ato sacrílego e blasfematório"37
pois a filosofia se apóia ao mesmo tempo sobre a razão e sobre a revelação

divina. Valeria também se observar a continuação da surata citada: "... e


quando [Moisés] voltou a si, disse: Glorificado sejas! Volto a ti contrito
e sou o primeiro dos crentes".
Em outras passagens, como na Paráfrase à Metafísica, Ibn Ru§d
parece estar de acordo com Ibn Sinã quanto à conexão do homem com o
mundo das inteligências separadas e sua junção final com a inte-
ligência agente, na esfera da Lua. Assim, o destino do homem seria uma
certa beatitude intelectual em que estaria sublinhado mais o carâter da

36. CORBIN. Histoire de la philosophie islamique, op. cit, pá9. 343.


37. MEHREN. cit. :nBADAWI, op. cit., pá,g. 13.
322 _ A rtlosonn ENT'RE os Áneers - Fllsere

ciência que o da contemplação, como o elo que liga o homem ao céu e a


Deus e o faz participar, até um certo ponto, da ciência superior, princípio
da ordem universal. "É somente pela ciência e não por uma contentplação
vazia que podemos chegar a apreender o ser."-r8

Se no chamado "averroísmo" a tese da unidade do intelecto com a


conseqüente negação da imortalidade da alma individual esteve presente,
é preciso levar em conta que entre Ibn Ru§d e Averróis pode haver muita
distância. Afirmar categoricamente que essa teria sido a interpre-
tação mais acertada de sua doutrina não é algo que possa ser assegurado
com tanta cerÍeza. "É verdade que Ibn Ru§d professou que há um intelecto
apenas comum a todos os homens? Renan foi o primeiro a se elevar
contra essa atribuição a Ibn Ru§d."3e
Outro tema que ocupou um lugar central em sua obra foi a relação
entre religião e filosofia. O fundamento dessa discussão estava na crença
da verdade em todas as suas manifestações. Incansável defensor dafalsaJa
e do dogrna, Ibn Ru§d procurou mostrar que a lei religiosa não se opunha
à filosofia e que a filosofia não se opunha ao dogma. Para ele, filosofia
e revelação não teriam mais que um único e mesmo fim - conhecer a
verdade e atuar conforme ela. A concepção da filosofia como ciência
demonstrativa apresentar-se-ia como o saber racional e conceitual frente
ao carâter simbólico e alegórico próprio da religião.
No Fasl al-maqal / Tratado decisivo sobre o acordo da religião e

dafilosofia. Ibn Ru§d iniciou afirmando que tencionava examinar, do


ponto de vista da especulação religiosa, se o estudo da falsafa e das
ciências lógicas deveria ser permitido ou não pela lei religiosa; se deveria

38. MUNK. Mélanges de phiLosophie, op. cit., pá.g. 444.


39. BADAWI. Histoire de lo philosophie en Islam, op. cit., pá9. E49. Para aplofundar
essa questão, verificar as posições de Aristóteles, Tomás, Siger de Brabant apre-
sentadas pol Badawi, págs. 840-856. Assim como a pópria polêmica entre os alra-
listas, inclusive Renan.
A reuer,q E OS FALÃSIFA
323

ser recomendada, seja a título meritório ou a título obrigatório. O filó-


sofo entende: visto qtre afalsaÍa não é nada além do que a especula-
pelo conhecimento da
çáo sobre o Universo; que se conhece o Artífice
arte que dele procede; que quanto mais perfeito é o conhecimento de
sua obra mais perfeito o conhecimento de seu Autor; e que se a lei
religiosa convida e incita à instrução a respeito das coisas do Universo,
é evidente que, face a lei religiosa, o estudo da filosofia deveria ser
obrigatório ou meritório.
A própria Lei divina contida no Alcorão convidaria, segundo ele,
ao estudo e ao aprimoramento racional como "aparece claramente em
mais de um verso do Livro de Deus - O Bendito' o Altíssimo!"ao Por
exemplo, lê-se na surata 59 :"Tirai ensinamento disso, oh! vós que sois
dotados de visão!"ar Ou então: "Não tens refletido sobre o reino dos
céus e da tera e sobre todas as coisas que Deus criou?"42; ou, ainda:
"(...) aqueles que refletem sobre a criação dos céus e da terra (..')"".
Esses seriam alguns dentre inúmeros veÍsos que mostrariam ser obri-
gatório o emprego da argumentação racional ou, ao menos, racional e
religiosa ao mesmo tempo, exortando à reflexão sobre o Universo.
Sendo assim, como a própria Lei divina indicaria a aplicação da
reflexão sobre o universo pela especulação racional; como a reflexão
consiste unicamente em tornar conhecido o que se desconhece; e como
isso se fazpelo silogismo, haveria a obrigação de se aplicar o silogismo
racional na especulação a respeito do Universo. Nessa medida, "é evi-
dente que ta1 modo de especulação, à qual a lei divina convida e incita,

40. AVERROES (IBN ROCHD). Traité décisif - L'Accord de la religion et de la


philosophie, trad. Léon Gauthier. Paris: éd. Sidbad, 1988, pág. 12.
41. Alcorão,LIX,2. AVERROES. Traité décisif, op. cir.,pá9.12. Cf. GUERRERO,
pá9.16.
42. AVERROES. TroiÍé décisif , op. cit., pág. 12. Alcorão, VII, 185.
43. Ib., op. cit., pág. 12.
A nlosone ENrRE os Ánnees - Felsepe,
324

toma a forma mais perfeita quando ela se faz pela forma mais perfeita
do silogismo que se chama demonstraçáo" .M Ibn Ru§d aludiu ao fato de
que alguém poderia objetar que esse modo de especulação a respeito do
silogismo racional fosse uma inovação ou mesmo uma heresia, visto
que não existia nos primeiros tempos do Islam. Mas, já que o silogismo
jurídico usado na lei islâmica também foi posterior às primeiras interpre-
tações do Alcorão e não foi considerado uma heresia, a mesma permissão
deveria ser dada ao uso do silogismo racional.
Além disso, como a Lei divina incitaria ao conhecimento, pela
demonstração, do Deus Altíssimo e dos entes dos quais Ele é o Autor,
seria preferível e mesmo necessário que aquele que assim quisesse
proceder conhecesse, previamente, as diversas espécies de demonstração
e suas condições, ou seja, seria preciso que se conhecesse no que

especificamente o silogismo demonstrativo difere do silogismo dialético,


do silogismo oratório e do silogismo sofístico. Seria obrigatório que
antes de abordar a especulação se tratasse, primeiramente, das coisas
que se referem à especulação, do mesmo modo que antes de se fazer um
certo trabalho seus insffumentos devessem ser conhecidos.
Assim dever-se-ia, - visto que é difícil e mesmo impossível que
um homem, por si só, pudesse descobrir tudo o que fosse necessário
nessa matéria - aproveitar os estudos sobre esse tema feitos no passado,
tenham sido eles elaborados pelos muçulmanos ou não. "Entendo como
não sendo nossos correligionários os antigos que especularam sobre essas
questões antes do aparecimento do islamismo."45 Desse modo, como os
silogismos racionais foram estudados pelos antigos, Ibn Ru§d exortou a
que se estudasse sobre isso nos livros dos antigos com o intuito de

44. Ib., op. cit., pág. 13.


45. Ib., op. cit., pág. 15.
A mtsere E os FALÃyrFA
325

verificar o que eles disseram. O que for certo e conforme à verdade


deveria ser aceito com alegria e reconhecimento; o que não for conforme
à verdade deveria simplesmente ser assinalado como algo a ser rejeitado.
Ibn Ru§d entendeu que o estudo dos livros dos antigos deveria ser
fundamental, visto que a intenção que comporta é justamente a mesma
que a Lei Divina incita a conhecer. "E quem proíbe o estudo a qualquel
um que esteja apto a fazê-lo, isto é, a qualquer um que possua estas duas
qualidades reunidas em primeiro lugar a inteligência inata e em se-
-
gundo a retidão legal e a virtude moral - está fechando a porta pela qual
a Lei Divina chama as pessoas ao conhecimento de Deus, isto é, a porta
da especulação que conduz ao Seu conhecimento, ao verdadeiro conhe-
cimento. Isto seria o cúmulo da ignorância e do distanciamento de Deus
Altíssimo" .a6 Drzer que a filosofia poderia resultar num mal não seria
suficiente para mostraÍ que os que estejam preparados dela possam obter
ganhos, pois o mal que resultasse acidentalmente dessa ciência ou arte,
poderia igualmente resultar de todas as outras ciências ou aÍtes.
Em seguida, Ibn Ru§d propôs que o acesso ao saber, não obstante
dever ser assegurado para todos, deveria respeitar as características e os
limites de cada um conforme as três classes que identificou entre os
homens segundo sua suscetibilidade quanto à aceitação da verdade "pois
as características dos homens se escalonam do ponto de vista do
assentimento"aT: alguns dão assentimento à demonstração; outros aos
argumento dialéticos e outros aos argumentos oratórios. Essa divisão
tríplice é ilustrada pelos três tipos de homem que existem diante da letra
da escritura: a pdmeira - grande massa da população - é a dos que não
possuem o menor grau de abstração interpretativa, deixando-se levar

46. Ib., trad. GUERRERO, pág.81


47 . Ib., op. cit., pá,g.20.
A ulosorra ENTRE os ÁneeEs - Falsepa
326

apenas pela retórica; a segunda é constituída pelos homens dialéticos,


que trabalham com as hipóteses mas não chegam a uma conclusão sobre
as questões; a terceira é a dos homens de julgamento correto, isto é,
aptos na arte da filosofia.
Visto que a Lei Divina faz apelo aos homens segundo esses três
graus, ela deve ser capaz de obter o assentimento geral de todos os homens
a não ser - obviamente - daqueles que não a aceitam. Assim, encontram-
se três ordens de abordagens: "no topo a filosofia, que confere a ciência
e a verdade absolutas; abaixo a teologia, domínio da interpretação
dialética e do verossímil; no pé da escala, a religião e afé, que devem
ser cuidadosamente deixadas àqueles a quem são necessárias. Justapõem-

se e hierarquizam-se três graus de intelecção de uma só e mesma


Verdade".as É isso que estaria expresso na frase do Altíssimo: "Chama-
os ao caminho do teu Senhor com sabedoria e exortações benevolentes.
Discute com eies do modo mais convenients".ae
Ibn Ru§d não viu como a especulação fundada sobre a demonstração

poderia conduzir, de aigum modo, à contradição dos ensinamentos dados


pela Lei Divina "pois certamente a verdade não poderia ser contrária à
verdade mas ela se acorda consigo mesma e testemunha em seu próprio
favor".50 É necessário que a crença, pela qual Deus caracteriza os sábios,

seja produzida pela demonstração e, sendo assim, eia não pode vir sem
a ciência da interpretação: pois Deus, GranCe e Poderoso, fez saber que
para essas passagens do Alcorão há uma interpretação que é a verdade,
e a demonstração não possui outro objeto que a verdade.
Não é demais lembrar que, quanto à interpretação que deve ser
dada às passagens do texto revelado, no caso dos muçulmanos isto

48. GILSON. A filosofia medieval, op. cit., pág.443.


49. Alcorõo XVI, 125.
50. AVERROES. Trairé décisif, op. cit., pâg.20.
A rez-s.{nc E os FÁaislFÁ
327

implica não somente na compreensão dos caminhos da espiritualidade,


mas na própria legislação que estabelece as regras de conduta da
comunidade. Sobre isso, diz Ibn Ru§d, quando houver desacordo entre o
sentido literal do texto revelado e a conclusão demonstrativa a partir do
silogismo, um acordo deve ser buscado procurando-se utllizar um sentido
figurado no texto. Quancio o texto apresentar expressões que, tomadas
no sentido literal se contradizem, deve-se buscar um conhecimento mais
profundo, conciliando-as pela intelpretação.
Isso deve ser verificado a partir de uma outra distinção tradicional
utilizada por lbn Ru§d. O texto revelado possui dois sentidos básicos:
um sentido literal ou externo (zahir) e um sentido oculto ou interior
(batin). Dito de outro modo: um sentido exotérico e um sentido esotérico.
"O exotérico são as figuras empregadas como símbolos das coisas signi-
ficadas; e o esotérico são as coisas significadas, que só se revelam aos
homens da demonsffaÇão."st O caráter exotérico seriam, assim, as figuras
empregadas como símboios dos inteligíveis.
A partir dessa distinçáo, é preciso ter em conta que o sentido oculto
não deveria ser conhecido por quem não pertencer ao círculo dos homens
de ciência e quem não for capaz de compreendê-lo. Foi para chamar a
atenção sobre isso e para que se refletisse a respeito dos limites de
entendimento de cada um que 'Ali Ibn Abi Talibs2 teria dito: "Fale aos
homens daquilo que conhecem. Quereis, acaso, que Deus e Seu enviado
sejam acusados de mentirosos?"53 Segundo Ibn Ru§d, o conhecimento
da existência de Deus, da missão dos profetas e da vida futura seria
acessível a todos, mas para que isso fosse atingido seria preciso respeitar
as três vias de acesso a esse conhecimento: a via oratória, a dialética ou

51. Ib., op. cft.. pág.34.


52. O quarto califa, primo e genro do Prof'eta.
53. AVERROES. Traité décisif, op. cit., pâ9.24.
A pll-osopll ENTRE os Ánlsps - Frrsrm
328

a demonstrativa. "Porque se é um homem de demonstração, uma via the

é oferecida para conduzi-lo à aquiescência pela demonstração; se é um


homem de dialética, pela dialética; e se é um homem de exortação, pelas
exortações"5a, visto que o objetivo da Lei divina não é outro que o de
ensinff a verdadeira ciência e a verdadeiraprâtrca. A verdadeira ciência
seria o conhecimento de Deus e de todas as coisas tais como são, e a
verdade prática consistiria nas boas ações do homem fossem elas
externas, como os atos corporais, fossem elas internas como a paciência
e a gratidão.
Ora, se o texto sagrado possui dois níveis de compreensão - o sentido

literal e o oculto -, se o primeiro sentido é aquele apreendido pela massa,


e o segundo sentido só é atingido pelos aptos ao filosofar, que encontÍam

o verdadeiro sentido da passagem em questão, logo, a segunda classe, a


dos dialéticos, não seria necessária nem no primeiro nem no terceiro
caso. Essa classe Ibn Ru§d identifica com as correntes de teólogos que
crêem compreendeÍ, mas por estarem cegamente presos ao dogma, não
apreendem o sentido correto que só é apreendido pela ciência demons-
trativa e, por isso, segundo ele, teriam semeado o gerrne da discórdia no
Islam. Divididas em duas classes, os ignorantes e os sábios, os que estão
a meio caminho nada mais fariam que confundir as coisas, pois reve-
lam parte da compreensão esotérica e divulgam conclusões da ciência.
Por essa Íazáo, segundo ele, nem os teólogos, nem os literatos, e nem
mesmo os partidários do método esotérico são capazes de formular as
interpretações justas que a fé verdadeira exige. Sómente os filósofos
são capazes disso.
Assim, os dois níveis de linguagem do texto sagrado - exotérico e
esotérico - devem atingir o assentimento segundo os três graus de
A, retst rl. E os FALÃçrFA
329

argumentação - demonstrativa, dialética e oratória - e, por isso, a Lei


divina, para ser acessível a todos os homens, conteria os três tipos de
argumentação.Visto que a Lei divina tem como primeiro objetivo atingir
o maior número de pessoas sem negligenciar, ao mesmo tempo, sua

atenção aos espíritos de elite, os métodos que aparecem na lei religiosa


seriam métodos de concepção e de assentimento comuns ao maior
número de pessoas, isto é, símbolos e alegorias. Quando for o caso de
haver interpretação, esta só poderá atingir a verdade pela demonstração
por meio do silogismo. "São esses unicamente os métodos que se
encontram no Livro Sagrado. Pois quando o examinamos, encontramos
os três métodos: o método que existe para todos os homens, os métodos
comuns para o ensinamneto do maior número e o método reservado."55
Expor determinadas coisas, notadamente interpretações demons-
trativas que estão distantes do conhecimento comum, a quem não está
apto, leva ao erro tanto aquele que expõe quanto aquele a quem é ex-
posto. Quando se retira o sentido exterior deve-se ser capaz de instalar,
em seu lugar, o sentido da interpretação, porque, fazer ruir o sentido
exterior num espírito que está apto apenas a conceber o sentido exterior,
é conduzi-lo ao eÍro. Este erro é apontado por Ibn Ru§d nas obras dos
teólogos justamente porque "as interpretações não devem ser expostas
ao vulgar nem nos livros oratórios nem nos dialéticos, quero dizer, nos
livros onde as argumentações são desses dois gêneros como o fez 'Abü
$ãmid [Al-Õazãli]".56
Refletir corretamente sobre a revelação segundo os métodos da

filosofia não conduziria, portanto, à negação da revelação. Quando a


conclusão do silogismo demonstrativo se acorda com a revelação não

55. Ib., op. cit., pá9. 49.


56. Ib., op. cit., pág.44.
A nr-osonl ENTRE os Áne,nps - F,rm,qFe
330

há problemas, mas quando não se encontÍam em concordância trata-se


apenas de um desacordo apaÍente, devido ao sentido literal e ao sentido
oculto. Nesse caso o filósofo deve recorrer à hermenêutica segundo os
princípios da demonstração. Desse modo, harmonizam-se duas abor-
dagens de uma só e mesma verdade, desde que corretamente com-
preendidas: a filosofia e a religião, já que ambas têm a mesma finalidade
paÍa o homem: atingir a felicidade. Se a filosofia cumpre o papel de
mestra de felicidade somente para uma parte dos homens suscetíveis à
demonstração, as religiões têm em vista o ensinamento de todos os
homens sem exceção.
Assim elaboradas, -razáo e fé - se intetpenetram
as duas dimensões

no pensamento de Ibn Ru§d. Afirmar sem leservas que ele professou


um racionalismo sem limites, ou um puro fideísmo,fazparecer distante
as suas intenções em contemplar essas duas realidades' As palavras de
Renan sintetizam um pouco desse aspecto: "Ibn Ru§d filosofa livre-
mente, sem buscar se chocar com a teologia, mas também sem se in-
comodar em evitar o choque".sT Segundo suas próprias palavras, "os que
admitem que pode existir uma religião fundada somente sobre a razão
devem reconhecer que ela é inferior às religiões tiradas ao mesmo tempo
darazáo e da revelaÇão".ss se por um lado, Ibn Ru§d reconhece isso,
não deixa, por outro, de tirar as conclusões racionais até as últimas conse-
qüências, ao mesmo tempo em que "admite que há verdades que ultra-
passam arazáo, que tudo não se reduz ao inteligível, que a revelação en-
sina verdades que arazáonão pode atingir; que arazáo humana é incapaz
de aprofundar e de discutir certas questões resolvidas pela revelação".5e

57. RENAN, apudBADAWL HisÍoire de la philosophie en Islam, pág. 788.


58. A\ERROES, Tahafut apud BADAWI. Histoire de la phílosophie en Islam, pág. 785.
59. Ib., pág.786.
A retsert E os ,{L,1sial
55t

Isso não significaria, por outro lado, um acomodar-se na revelação, mas


que a busca pela <iemonstração deve ir ao encontÍo da própria revelação
que sublinha: "oS enviamos com as evidências e os livros. E a ti revelamos
a mensagem para que esclareças os humanos, conforme o que foi reve-
lado, a fim de que meditem".60
Os dois mocios de apresentar a verdade - revelação e demonstração

- não seriam contraditórios. O chamado "avettoísmo latino" teda com-


preendido mal essa posição, atribuindo a Ibn Ru§d a tese de que haveria
duas verdades distintas: uma filosófica e outÍa religiosa. Equivo-
cadamente acabou-se atribuindo a Ibn Ru§d uma condenação de todas
as religiões, quando o ataque se restringia mais a algumas correntes teo-
lógicas do Islam.lVlas as injustiças parecem ter feito parte integrante de
sr"ia história pessoal e também da interpretação de suas teses. Como bem

lembra De Libera: "nenhum filósofo terá sido menos compreendido nem


mais caluniado que Ibn Ru§d. Entre os pensadores da terra do Islam
nenhum terá tido mais influência sobre a cultura universal".61
O destino das obras de Ibn Ru§d foi curioso. A maioria dos originais
árabes foram perdidos e foi sobretudo por traduções hebraicas e latinas
que nos são conhecidos. Chegar até nós já foi suficientemente formidável,
pois suas obras ardiam nas chamas por ordem de Al-Mansür, enquanto
o filósofo ainda era vivo. Mesmo que grande parte dos originais de Ibn
Ru§d tenha sido destruída ainda em Córdoba, algumas cópias foram
salvas e seguiram-se a estas as traduções hebraicas. Em Al-Andaluz,
havia muitos cristãos e judeus e sabe-se que, antes do fim do século XII
d.C. /VI H. suas obras eram lidas em árabe pelos judeus que inauguraram
essa fase inicial de tradução para o hebraico. A "fase judaica foi a primeira
na migração de Ibn Ru§d em direção ao Ocidente .Emrazáo dos estreitos

60. ALcorõo XYI, 44.


61. DE LIBERA. A filosofia medievaL, op. cit, pâg. 164.
A prr-osoRn ENTRE os Áneues - Femapa
332

laços culturais entre judeus e cristãos, e do conhecimento corrente do


hebraico na europa ocidental (...), a tradução latina das obras árabes,
freqüentemente intermediadas pelo hebraico, tornou-se extremamente
desenvolvida no começo do século XII d.C. no qual já se encontram
traduzidos, por exemplo, 15 comentários".62 Munk frisa a importância
dessa transmissão afirmando que "a obstinação com a qual os Almôadas
perseguiram a filosofia e os filósofos não permitiu que cópias árabes
dos escritos de Ibn Ru§d se multiplicassem e elas foram a todo momento
63.
extÍemamente faras"
Curioso também foi o destino de sua filosofia: Ibn Ru§d não teve
praticamente discípulos ou Sucessores no mundo islâmico e sequer
grandes críticos.(!) A influência de seu trabalho se deu mais na filosofia
judaica e cristã do que propriamente no mundo árabe muçulmano. "No
mundo árabe foi esquecido de imediato."ó4 Do lado ocidental ele
enconrou, por exemplo, a companhia do judeu Maimônides e - nas
disputas dos cristãos - Siger de Brabant, Alberto Magno e Tomás
de Aquino.
Ao mesmo tempo em que acreditou firmemente em Deus e em Seu
Profeta Mullammad, Ibn Ru§d apontou rumos na filosofia e na ciência
pelos quais os homens deveriam continuar em busca do saber. No Oci-
dente, muitas de suas idéias chegaram com vigor, anunciadoras de novos
caminhos.

62. FAKHRY, Histoire de la philosophie islamique, op. cit., pág. 301.


63. MUNK. Mélanges de philosophie, op. cit.,pá9. 439.
64. GUERRERO. Averroes, op. cit., pá9. 47.

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