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A MEMÓRIA, A HISTÓRIA,
O ESQUECIMENTO
CDD 1\J.1
ISBN 978-8 5-268-0777-8 901
Printed in Brazil.
JCoi frito o depósito legal.
Direitos rc.,crv.1dos :\
Fditora da Uniump
Ru.1 Caio Grarn Pr.1do, 50 - Campus Unicamp
CEP 1:;08:;-892 - C.1mpinas - SP - Brasil
-lê.:1./I-'.ix: (19) l\ll---18/7-28
\\'\\'\\' .c<.i icor .1.1111 icam p.b r vcnda<.;G:_i'lcd itora.un ic11np.hr
Espaços da Memória
sta coleção reúne obras llue são referênciJ nos estudos da memóriJ. Visando di-
E vulgJr e aprofumfar esse campo de pesquisa, J coleção tem um carMer interdis-
ciplinar e circula entre a teoria literária, a história e o estudo das diferentes artes. Suas
obras abrem a perspecti\'a de uma visada singular sobre a cultura como um Lfoilogo e
um embate entre diversos discursos mnemônicos e registros da linguagem.
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Sumário
Aducrtê11cia
DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
1 Memória e Imaginação . 25
Nota de orientação .... ········· 25
L A herança grega . ········· 27
1. Platão: J representJção presente de uma coisJ ausente 27
2. Aristóteles: "A memória é do passado" ... ...... 3..J.
li. Esboço fenomenológico da memória .. ········· 40
III. A lembrança e a imagem .. 61
li
HISTÓRIA/ EPISTEMOLOGIA
Ili
J\ CONDIÇÃO HISTÓRICA
3 O Esq11cci111rnto. .-J.23
Nota de oricntaç3o ... .-J.23
I. O esquecimento e o apagamento dos rastros .. .... 428
II. O esquecimento e a persistência dos rastros .. ...... 436
III. O esquecimento de recordação: usos e abusos .. ..... 451
1. O esquecimento e a memória impedida. ........................... ...... 452
2. O esquecimento e a memória manipulada.... ..... 455
3. O esquecimento comandado: a anistia ............................................................. .459
EPÍLOGO
O PERDÃO DIFÍCIL
ÍNDICES
Índice temático . ...... 517
Índice dos nomes e dns obms citadas .. 523
f111 111c11uíri11 de Si111"11c /./.i(1r111
..\qul'il' qul' fui j,í 11,lu pudL' rn,1is n,lo tl'r ::--idu: dlH\1\·,11ltl', l'::--'.'.->t-.' fato mi::---
terio::-,o, profund,1n1L'lÜL' ()bscuro ck tl'r '->ido l' t) ::-,l'u \·i,ítico para a L'tl'r-
nidadl'.
\ 1 ,\IJl,111, l\,KII 1 \ Ili!
Nun1 lugar l'..,cn!hidt1 da bibliotl'ca do t1Hl:---tl'Íro l'rgul'-:-,l' magnífica í:.''--
cult111\1 b,1rrnc,1. l-: ,1 figur,1 dupl(1 da hi:-.tl'1ria. \J,1 frl'ntl', Crunu...,, 1.) dl'us
dl'rruba um,1 UH!ll\<.J1t1i.i dl' ondl' l':-.currl' uma chu,·(1 dl' tn1ro l' pr,1ta,
:-,in(1I dl' in--,t,1bilid,1dl'; ,1 rn,1o L':-,qul'rd,1 dckm () gl'..,tn du dL'll':-o, L'nqu,1nto
a dirL'it,1 l'>-.ibl' tl':-o in':-otrun1l'nto:-, d,1 hi...,tt1ri,1: P li, n\ u tintL'in1 l' () t'"tiln.
E
\'ida -
fissionais e outras, finalmente, que eu chamaria de públicas,
Preocupação ~wssoal: p,1ra nada dizer do olhar dirigido agora ,1 uma longa
Rljlcxio11 ,filitc - , trata-se aqui de uma \'l1lta a um,1 lacuna na problem,ítica
de Tc111po e N11rm/Íi'11 e em Si 111c~1110 co1110 11111 011/ro, em que a experiência temporal e a
operação narrati\'a se enfrentam diretamente, ao preço de um impasse sobre a me-
mória l', pior ainda, sobre o esquL'cirnento, essL'S nÍ\'l'is interrnedi,irios L'ntre tempo e
narrati\'a,
Consideração profissional: esta pesquisa refk-te uma con\'i\'t'ncia com trabalhos,
semin,írios e colóquios organizados por historiadores prniissionais confrontados com
os mesmos problemas relati\'OS aos \'Ínculos entre a rnemlíria e a história, Este li\'rn
prolonga, assim, um colóquio inintl'rrupto,
!'reocupação pública: perturba-me o inquietante espet,ículo que apresentam o ex-
cesso de memória aqui, o excesso de esquecimento acol,í, sem fol,ir da influência das
comemorações e dos erros de memória - e de esquecinwnto, A idéia de urna política
da justa memória é, sob essl' aspecto, um de meus temas CÍ\'icos confessos,
Esta obra comporta três pMtes nitidamente delimit,1das pelo tema e pelo méto-
do, A primeira, que enfoca a rnem(íria e os fonômenos rnnemCmicos, est,í sob a égide
da fl'nornenologic1, no sentido husserliano do termo, A segunda, dedicada à história,
procede de urna epistemologia das ciências históricas, A terceira, que culmina numa
nwditação sobre o esquecimento, enquadra-se numa hermenêutica da condiç,10 histó-
rica dos seres humanos que somos,
Cada urna dessas partes se desl'n\'Oi\'l' segundo um percurso orientado, que as-
sume, a cada \'l'Z, um ritmo terncirio, Assim, a fenomenologia da memória inicia de-
liberadanwnte por um,1 an,ílise \'Oltada para o objeto dL' rnem{iria, a il'mbrança que
temos diante do espírito; depois, ela atra\L'ssa o eslcígio da busca da il'mbrança, da
A "11 M(ÍRIA, A l!IST(lRIA, () LSQUECIMI.N l'(l
Outra obsen,açc'io: c,,oco e cito, muitas H'zes, autores que pertencem a épocas dife-
rentes, mas não faço uma história do problema. Con\'oco um autor ou outro de acordo
com a necessidade do argumento, sem atentar para a época. Este me parece ser o di-
reito de todo leitor diante do qual todos os li,-ros estão abertos ao mesmo tempo.
Finalmente, de,·o admitir que nào tenho uma regra fixa para o uso do "eu" e do
"nós", com exceção do "nós" de autoridade e majestMico 7 Digo de preferência "eu"
quando assumo um argumento e "nós" quando espero arrastar comigo meu leitor.
Que nal'egue, pois, nosso veleiro de tri''s mastros!
1'\L L RIUJ:L R
DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
tenomcnolog1,1 da memória aqui proposta estrutura-se em torno de duas
çôes e das palavras é instrutiva: os gregos tinham dois termos, 11111e111l' e 11111111rnesis,
Nota de orientação
o ,11/n11ctcr-sc à prin11i:i11 dil pcrg1111/17 "o quc 7 ", 17 fi,110111e1wlo.1;ia i/11 11u'n1ôrill ,'é-se
011 que l1'1110, dele 1111111 inur:,e111, que pode ,a q111N' ,,i,1111/ 011 1111diti,'11. S11i11do dll li11g1117gc111
con111n1, 11n111 !011g17 tmdiç110 filosôffr,1, q11c c,1n1/,i1111, de n1m1eim <11rprcc11de11/c, 11 i11tl11ê11cill do
e11Jpirisn10 de lín:.:1111 i11glc.<11 e o :,r1111dc mcio1111/icn10 de crii1ç110 rnrtesim111, fíi: da n1e111ôri111111111
pro,,f11cill da iJ1111gi1111ç110, q11c /Jâ 11111ito /tÍ cm lmt11d11 co111 s11sp,'iç1fo, conw i'en10, cn1 Mo11/111g11e
,, 1'11,rn/. /1i11dll e o c11so, de n117Jlt'im 17//11n1,'11/,' sig111firnlil'11, cn1 Spi11,01. Lc1110,, 1111 Propociç110
18 do Li;>ro li dil Étic,1, "[)111111t1u1':11 e d11 origen1 da 11/n111": "Se o corpo l11111urno /Íi'er sido 11f,'-
l11d11 111n11 ,,e.: por dois 011 nwi, ,·orl'<lº .<i11J11!t1111e11n1e11/c, ilSSiJIJ q11,' 111\/11111 in111gi1111r 11111is t11rdc
11111 d<ls dois, ele otimí !c111/,r1;, - .,· f17n1/,,'111 d,1s 011/ro.s". L so/J o signo d1117,;,;oci11ç110 de idr;ills que
está si/1111di1 c<,17 ,'spt'cie d,,, ,,,'fo-circuit,, 1'n/re 111e111ôria e in1t1gi1111ç110: se cssll, d1111, afÍ'cç,1es
esltlo /ig17,/17s por co11tigitid,1 i<', c,,on1r 1111111 -- ptir/a11/o, i11111g111111 - r' euornr 17 011/m, por/1111/0,
/c111/imr-se dela. ,1\,,1111, 11 :11c111ôri11, l't'd:i:id,1 ,í rc111c111(lmçi10, ''l"'m 1111 c.sfcim dil i11111gi11aç110.
Om, 17 in117gi11aç110, c,111s1dl'n1d11 c111 si n1e<111il, ,'.,/1í ,ituadil 1111 pllrle i11táior da r'.<rnla doo n1od(ls
de c,,11!1ec1111c11/n, 1111 c,,11diç110 dns llfÍ'CÇlJC< <11/,1//['/id11< /lo r,',,;i111,' d,' e11rndc11111c11fo da, coi.<11s
t'Y/1'1'/111' /][) corp,, llilll/17110, C/ll//[l s11/1/111/1r1 ,, ,'SI l'ii,, / ,,[' ,·111 ,1d,'17111Cllf() sefí1: ,e.,;1111do
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c"ritft-17 do illlt7Xlll17tJ7ri. 1/II'.' :,t' di>t1t' /JJ"t)l'(\Í1T ,1 //i/117 di~_..:.1iL-ii1ç1lt1 di1 tlllt?Slllili,'r"h, e d11 llil :ut 1l"l,7.
;\ MFMllRli\, i\ HIST(JRli\, OI SQUl·CIMI N f()
levando css/7 operação tão longe qu17nto possível. Sua idéia diretriz é a diferença, que podemos
c/111m11r de eidl'firn, entre dois objetivos, duas intencionalidades: 1111111, a da imaginação, voltada
para o fantástico, a Jicçiio, o irreal, o possível, o utópico; a outra, a da 111c111ôria, voltada para
a realidade anterior, a anterioridade que constitui a marrn temporal por excelência da "coisa
lembrada", do "lembrado" como tal.
J\s difirnldadrs dessa operação de dissociaçt"ío rr111011ta111 à or('{e111 grega da proh/e11uítica
(seção!). Por 11111 lado, a teoria platônica da cikon sublinha principalmente o fe11ôme110 de pre-
senç/7 de uma coisa ause11te, per,1117necendo implícita 17 rl'jert'11cia ao tempo passado. Essa pro-
ble1111ítica da eikon tem, por sua vez, sua pertinl'llcia e sua i11st1Í11cia próprias, o que a seqiil'ncil7
de 110ss17s investigaçües 17testará. Entretanto, ela pôde constituir obstárn/o ao rrco11hcci111ento da
especificidade da função propril7111e11te temporalizante da me111ôria. É pi7ra Aristóteles que te-
1110s de nos vo/t17r, pi7ra colher a confissão drssa rspccificidmtc. A famosa declaração que se/[, 110
11111g11ífico trecho dos Parva Naturalia "De /17 111é111oire rt de la ré111inisce11ce" - 'A 111e111ôril7
é 1mssado" - tornar-se-á 11oss17 estre/17 guia para a seqü[>nci/7 de 11oss17 exploraçíio.
A pi7rtc central deste estudo será dedirndi7 a um/7 tentativa de tipologil7 dos fenômenos
n111e111ônicos (seçíio II). Apesar de sua api7rrntc dispersíio, ela visl7, 111edim1tc 1111117 série de 17pro-
xi111açCirs, circunscrever a expcriê11ci17 princcps de disf1Íncil7 temporal, de profundidade do
tempo passado. Confesso que essa apologia do índice de difcre11ci17çíio da memória deveria ligar-
se a uma rcvisíio ;mralela ifa te,nática do i11111ginário, a exemplo da que Si7rtrr empreendeu e111
seus dois livros A imaginação e O imaginário, rcvisíio que tende a desalojar a imagem de seu
pretenso lug17r "dentro" di7 co11scih1cia. A crítica da imagem-quadro tornar-se-ia 17ssi111 1111117
peça do dossiê co111u111 à i111aginaçíio e à 1ne111ôria, dossiê aberto pelo tema p/17tô11ico da prescnç/7
do ausente.
Mas níio penso ser i111possíuc/ limitar-se II essa dupla operação de cspecificaçíio do imagi-
nário e da /e11ilm111ça. Oez>e lwucr, na experiência ,,iz,a da mcmôri/7, 11111 rastro irredutível que
explique a insist[>ncia lil7 confusi'ío comprovada pela expressiio image111-le111hm11ça. Parece, 111es-
1110, que a volta di7 le1nbm11ça pode Jazer-se so111e11te no ,nodo do tornar-se-i111agem. A revisão
paralela das fcno111eno/ogias da /e111bmnça e da i111age111 c11contmria seu li111ite 110 processo de
tra11sfor111ação da le111/Jm11ça c111 imagens (seçíio Ili).
A pem11111C11te 111ncaç11 de co11fusíio entre rc111c111omçíio e i11111ginação, que resulta desse tor-
1111r-se-i11111ge111 da /c111/im11ça, af,,11117 171n/Jiçiio dcfidclidadc 1111 qual sr resu111e a função veril11-
tiv11 di7 111e111ôria. E 110 C11tanto ..
E 110 e11t1111/o, 1111d11 t,·1110,, de 111cl/1or que 11 111e111,íri11 para garantir que 17/go ocorreu 1111tes
de Jor/11171"/IIUS s1111 !t·11J/,m11("11 . .--1 1mípri11 llistoriogmfia, d(•{111110-/o desde já, 11110 conseguirá
rcnwucr 11 t"o11,·ic,_·,1, 1• s,·u1;>ri' c"!'il i,·od11 e S1'lllprc re11(irn111d11, de 1)//e o rcfácn/1' últi11w da 111e-
111ôria rn11/1111111 ,,•;:du" ; ,1,.,, "·
1 d,111u1· 110,sa ,,i,"11ifirnr a prctcrid11dc do
passado.
[)\ ~l[\1()[([\ 1 [)\ 1(1\11\JIS(l'V[\
I. A herança grega
É importante notar, desde o início, que é no âmbito dos di,ílogos que tratam do
sofista, e por meio dessa personagem da própria sofística e da possibilidade propria-
mente ontológica do erro, que se encontra a noçiio de cik1111, quer sozinha, quer em
dupla com a de plll111/i1,11/II. É assim que a imagem, mas também a memória, por impli-
caçào, trazem, desde a origem, o cunho da suspeita, por causa do ambiente filosófico
de seu exame, Como, pergunta Sócrates, é possível existir o sofista, e com ele, o falar
falso, e finalmente o niio-ser implicado pelo n,10-verdadeiro 7 É dentro desse quadro
que os dois di,ílogos intitulados Tcctcto e O Sofista formulam o problema. Para compli-
car um pouco mais as coisas, a problemcitica da cikcJII é, além disso, associada, desde
o início, à impressão, à tupos, sob o signo da mctcffora do bloco de cera, sendo o erro
comparado a um apagamento dc1s marcas, das s,·111cii1, ou a um equínico semelhante
àquele de alguém que pusesse os pés na pl'gada errada. Vemos, assim, como o proble-
ma do esquecimento é colocado desde o início, e mesmo duplamente colocado, como
apagamento dos rastros e como falta de ajustamL'nto da imc1gem presente à impressão
deixada como que por um anel n,1 cer,1. É de se notar que, desde esses textos funda-
dores, a memória L' a imaginaçào partilham o mesmo destino. Essa situaçiio inicial do
probll'md torn,1 tanto mais memor,in·I a ,1firmaçZlo dl' ,\ristôtl'les, segundo a qual "a
ml'llll°iria é tempo".
\·a mos rl'll'r u frete/o dcsdl' lh:1id'. lsL1 nllls no Cl'rlll' dl' u m,1 d iscussc10 centrada na
po;-;sibilid,1dl' do julg,111wnto folso l' l'llCL'rr,1d,1 pl'la refut,1ç,1n da ll'SL' sl'gundo a qual
",1 Cil·nci,1 nada mais L' dl, que Sl'llSd\,1l1" ( l'íll--lK7bJ'. Sl'icr,itcs propl-lL' o seguintl' "ata-
Tl'\l1' t''->i,1L,l'll'l idll L' tr,1d11/Jd(, f1UI" \111__ lwl '\"1rL \ l\ir1....,, l"l,1111m,1r1(,n, lUl. "( ;1 '', ]titJ;. f \.Í...,k L1111-
l1L'll1 llll1,l lr.idul,ih) dl' .\usu--,lt' l)il'"· l\11 i-,, l l•-., fklll''--, 1.l'ttrl'", 1u211, l' llll1d ()lltrd, Lk' l'llli i,;;_()bin,
l\n1--., (;,1]lim,1rd. ull !}1bl1()tht·qut' dL' l,1 !1 IL'l,llk !LJ7(l
2 :,-,(1brL' tudo i-.,:---o, \l'r !)t1\ id f,1rrell r(rl'll, l 11- \L· 1 u1 1 111. f\1'111i!li-..(('i!,(',IU) \\n!m_,~ ()n f/1(' \1'.1 ','t' l)ILhl-
iriingt<111 l' lndi,111,í1•pl1:---. lndl,111,1 l!11i\t'r-.,1t\ Pn•...,...,, ]lJlJ()_ (Ju,11 t-'PLÚ' "L'r pL'rgu1it,1 ll ,H!hH, ,l \l'r-
d,hk d,1 lllL'nlt\ri,1, urn,1 \ l'/ que d~ l't11",l" r),1"",1lL1..., l'"Llt1 irr-e, tig,n L'illll'llk au...,t.·11lt.',._7 '\,ll1 t-',HL'lt'
qul' a lllL'nH)ric1 !Hh t't-h' L'lll L'Ut1t,llti l"ll!n l'Ll'.-- pcl,1 irn,i,~vm t'n'"L'nk lk "ua t-~rt.''-.L'lh_;,1 dL',.,,ªt-'drL'Lidc1'
A MFMORIA, A f!ISIÚRIA, (l fS(_)UECIMLN'lll
que": "Seja a questão: 'Suponhamos que viemos a saber alguma coisa; que, desse mes-
mo objeto, ainda tenhamos, ainda conservemos a lembrança: é possível que, naquele
momento, quando nos recordamos dele, não saibamos aquilo mesmo que estamos
recordando?' - embora pareça que estou iniciando um longo discurso, o que quero
perguntar é se, uma vez que aprendemos alguma coisa, não o sabemos quando dela
nos lembramos" (163d). Percebemos, de imediato, a forte ligação de toda a problemá-
tica com a erística. De fato, é preciso ter passado pela longa apologia de Protágoras
e seu livre discurso em favor do homem-medida antes de ver surgir uma solução, e
inicialmente, uma questão mais incisiva: "Pois, neste caso, acreditas que alguém te
concederia que, num sujeito qualquer, a lembrança presente daquilo que ele sentiu
seja, para ele, que já não a sente mais, uma impressão semelhante àquela que já sentiu
uma vez? De modo algum" (166b). Pergunta insidiosa, que arrasta toda a problemáti-
ca para aquilo que nos parecerá uma cilada, isto é, o recurso à categoria de similitude
para resolver o enigma da presença do ausente, enigma comum à imaginação e à me-
mória. Protágoras tentou confinar a aporia autêntica da lembrança, ou seja, da presença
do ausente, na erística do não-saber (presente) do saber (passado). É munido de uma
confiança nova no pensamento, comparado ao diálogo que a alma mantém consigo
mesma, que Sócrates elabora uma espécie de fenomenologia da confusão: tomar uma
coisa por outra. É para resolver esse paradoxo que ele propõe a metáfora do pedaço de
cera: "Pois bem, concede-me propor, em apoio ao que tenho a dizer, que nossas almas
contêm em si um bloco maleável de cera: maior em alguns, menor em outros, de uma
cera mais pura para uns, mais impura para outros, e bastante dura, mas mais úmida
para alguns, havendo aqueles para quem ela está no meio-termo". - Teeteto: "Con-
cedo". - Sócrates: "Pois então, digamos que se trata de um dom da mãe das Musas,
Memória: exatamente como quando, à guisa de assinatura, imprimimos a marca de
nossos anéis, quando pomos esse bloco de cera sob as sensações e os pensamentos,
imprimimos nele aquilo que queremos recordar, quer se trate de coisas que vimos,
ouvimos ou recebemos no espírito. E aquilo que foi impresso, nós o recordamos e o
sabemos, enquanto a sua imagem (cidMon) está ali, ao passo que aquilo que é apagado,
ou aquilo que não foi capaz de ser impresso, nós esquecemos (cpilch·st/111i), isto é, não o
sabemos" (191d). Observemos que a metáfora da cera conjuga as duas problemáticas, a
da memória e a do esquecimento. Segue uma sutil tipologia de todas as combinações
possíveis entre o momento do saber atual e o da aquisição da impressão; entre essas,
as duas seguintes (no 10 e no 11): "aquilo que sabL'mos e de que temos a sensação, en-
quanto conservamos sua lembrança (rk/z(JII tu 1111u·111cio11 or//1(1s: Dies traduz 'ter dela a
... lembrança fiel'), é impossível acreditar que sabemos somente; e o que sabemos e de
que temos a sensação, nas mesmas condições, acreditar que é umil coisa de que temos
l) que ~t.' p,1ss<1 con1 (1 rell1ç,lo d,1 presenç,1 con1 (1 ausl'ncia que os gregos cxplor,1ran1 por n1eio da
llll'Lífor,1 d,1 in1prL•ss.lo (l11po~)? SJo as implicclÇÔL'S do vínculo entrl' tipogr,1fia e iconogrc1fic1 que
o ,1utor explor(l na c·steira dos tr,1b,1lhos de J. Derrida sobre ,1 escrit,1. Sej,1 qu.:il for o destino dcss-1
n1eUfor,1 att.' cl t.'poccl Lt1s neurocj[,ncias, o pensamento este) condenc1do, pela aporia da preSL'nça
da ,1usência, cl pernl<11lL'C('r nos limites (011 t!tc i'l'I}~(').
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1
ô 29
;\ \11 \1\lRIA, ;\ lllST(lRIA, \l l:Sl)UITl\11:~ 10
pacidade, e dessa forma, a uma confusão? Não devem as impressões ser memorizadas
para entrar em uso, uma vez que dizem respeito a conhecimentos adquiridos? É assim
que o problema da memória é abordado indiretamente por aquilo que pode ser consi-
derado uma fenomenologia da confusão. O ajustamento defeituoso e a captura errada
são duas figuras da confusão. O "modelo do viveiro" é particularmente adequado à
nossa investigação na medida em que todo apreender é comparável a uma possessão
(lzcxis ou ktesis), e sobretudo a uma caçada, e em que toda procura de lembrança é tam-
bém uma caçada. Acompanhemos de novo Sócrates, quando, como verdadeiro sofista,
ele encarece a sutileza, misturando pombos selvagens com suas pombas, mas também
não-pombas com as pombas verdadeiras. A perturbação é assim lançada não somente
sobre o momento da captura, como também sobre o estado da possessão".
Por esses desdobramentos e redobramentos inesperados, a analogia do pombal (ou
o "modelo do viveiro") revela uma riqueza igual à da passada colocada por engano na
pegada errada. Ao ajustamento defeituoso, vem juntar-se a captura falaciosa, a confu-
são. Em contrapartida, perde-se de vista o destino da cik6n. É a ele que O Sofista nos
leva de volta.
A problemática da cik(Jll, desenvolvida em O Sofista vem exatamente em auxílio do
enigma da presença da ausência concentrada na notação do Tl'Ctcto 194a acima referida 7.
O que está em jogo é o estatuto do momento da rememoração, tratada como um reco-
nhecimento de impressão. A possibilidade da falsidade está inscrita nesse paradoxn8.
Selecionemos, em O Sofista" o texto-chave, no qual Platão distingue, na ordem
da imitação, a veracidade do engano (234c e scg). O âmbito da discussão lembra o do
Tcctcto: como a sofística e a sua arte da ilusão são possíveis? O Estrangeiro e o Teeteto
entram em acordo para dizer que o sofista - sempre ele - é principalmente um imi-
tador do ser e da verdade, alguém que fabrica "imitações" (111ime11111t11) e "homônimos"
(lzm1HJ/llllllil) dos seres (2346). Aqui, muda-se de metáfora. Passa-se da impressão na
cera ao retrato, metáfora, por sua vez, estendida das artes gráficas para as artes da lin-
guagem (cidõla !cgomcna, "das ficções faladas", traduz Dies, 234c), capazes de "fazer pa-
recerem verdadeiras" as coisas ditas. Estamos, portanto, no meio da técnica, da técnica
mimética, não estando separadas imitação e magia ("fazedores de prestígios", 2356 5). É
6 l)bservaren1os de pc1ss<1gen1 a alegoricl não explorada do arqueiro que errei seu alvo (194c1). É pre-
ciso lembr,1r que /u1111nrtancin ("enganzir-se" e, depois, "pecar") é "err,1r o alvo".
7 Deixan1os de lc1do o 'f(•cfcto no n1on1ento ('111 que a discussão, ah:• entílo centrada no julg<1111er1to
falso, se fech,1 sobrL' o proble1na estritl1n1ente epistên1ico da relaçZh) entre t·~sl's trl•s ten1as: Sclber,
pl'rcl'pçcio e julgaml'nto vcrd,1dl'irn (20k). Do ponto de \'Ísta l'Stritaml'lltl' l'pistê·mico, p,iss,1-Sl'
dos erros de identific<1{,/10 L' de dl'scriçilo no 7ccfcto a si mpll's t:rros dt: dcscriçZío en1 () S(:ti·:--ti1 (Myle'.->
Burnyeat, /11/rod11ctio111111 T/11'<'ti'lc, op. cil., p. 125).
8 ;\ esse fL'spcito, L'll diri,1, .10 contr.lrio de Krcll, qul' n:io h<l raz<lo para voltar contr.1 PlaUo .1 desco-
bl'rtc1 dt:sse paradoxo e de reconhecer nclt• unia a1ltecip<1ç<lo da ontologi.1 LL1 prc'.->cnça; o pc1rado:--..o
pcHl'CL'-lllL' constitutivo do cnigrncl da memória, t,1! corno nos acon1panhar<Í ao longo de todo L':--,lL'
livro. É lll<li:--, a própria n,lturcza do problcn1c1 que tr.iz i1 luJ: o pc1radoxo.
Y /e Sol'hislc, texto ,•stabckcido l' traduzido por Augustl' Dié•s, Paris, i.L·s lklk-s i.l'ttres, 1Y2'i. ,:· l'-""
traduçclo quL' c1dot,1mos aqui. Existl' tc11nbé-m unia tr,1duç,lo de Nestor-Luis Cordero, l"\iri..,, Flam-
marion, col. "CF'', lLJlJ:1.
nesse quadro imposto que Platão pratica seu método favorito de dh,isão: "Portanto, está
decidido: dividir, o mais depressa possível, a arte que fabrica as imagens (cidNopoiikc11
tck/111,'11)" (235b). De um lado, temos a tckl111t' cikastikt, ("arte de copiar", diz Dies): "ora,
copia-se da maneira mais fiel quando, para realizar a imitação, tomamos emprestadas
do modelo suas relações exatas de comprimento, largura e profundidade e, além disso,
cobrimos cada parte com as cores que lhe convêm" (235d,e). De outro lado, temos o
simulacro, a que Platão atribui o termo p/11mtas11111 (236b). Logo, cikl,11 é oposto a p/1i111/as-
111a, e a arte "eicástica", à arte "fantástica" (236c). O problema da memória desapareceu
quanto à sua especificidade, esmagado pela problemática dominante, isto é, a questão
de saber em que compartimento se pode alojar o sofista. O Estrangeiro confessa seu
embaraço. Com isto, é todo o problema da mimética que cai na aporia. Para sair dela, é
preciso remontar mais alto na hierarquia dos conceitos e supor o não-ser.
A idéia de "semelhança fiel" própria da eiGística ter,"Í, pelo menos, servido de esca-
la. Platão parece ter percebido o momento da entrada em impasse quando se interroga:
o que chamamos, então, "afinal, de imagem?" (cidl,lo11)? (239d.) Perdemo-nos na enu-
meração dos exemplos que parecem escapar da arte da di\·isão ordenada e, primeira-
mente, a da definição genérica: "Que definição daremos, pois, da imagem, estrangeiro,
se não a de chamá-la de um segundo objeto (11ctcro11) similar, copiado do verdadeiro?"
(2-tüa.) Mas o que quer dizer similar? E outro 7 E copiado 7 Eis-nos novamente em pleno
mar: "Assim, pois, aquilo a que chamamos de semelhança (ciko11a) é realmente um
irreal não-ser?" (2-t0b.) Para dizê-lo, seria preciso "reconhecer, a contragosto, que, de
algum modo, o não-ser existe" (2-tüc). A diferença, por assim dizer, fenomenológica
entre eicástica e fantástica é arrastada no turbilhão em que erística e dialética d i ficil-
mente se distinguem. Tudo isso porque a questão do ser do sofista aniquilou a discus-
são, e porque a luta contrci Parmênides - "a tese paterna" (2-12a) - abson·eu toda a
energia de pensamento. Vemos até os três termos, cid()/011, cikô11 e plumtasia reunidos sob
o nxábulo infamante do engano (ap111,,, 26llc), e um pouco adiante: "a arte que fabri-
ca imagens e simulacros (cid()/opoiik,,11 kai plumtastikc11)" (260d). Recomenda-se apenas
"examinar a fundo o que podem ser logos, do.rn e p/11m/asi11" (260e) do ponto de \·ista de
sua '"comunidade' com o n."ío-ser" (i/,id.).
mito do Fcdru, que narra a invenção da escrita. Trataremos disso a partir do Prelúdio à
nossa segunda parte. Será então traçada uma linha divisória entre as marcas "exterio-
res", as da escrita propriamente dita, as dos discursos escritos, e o componente gráfico
insepar,h·el do componente cicástico da imagem, cm razão da metáfora da impressão
da cera. O mito do Fcdro transportará o modelo tipogrMico, sobre o qual Da\'id Farrell
Krell estabelece sua interpretação do Tecle/o, da intimidade da alma à exterioridade
da escrita pública dos discursos. A origem dos rastros escritos só se tornar..í mais
misteriosa.
Diferente é a impressZío enquanto afecçZío que resulta do choque de um aconte-
cimento, que podemos qualificar como not,~\·el, marcante. Essa impressão é essencial-
mente sentida. É tacitamente pressuposta pela própria rnetMora da tupos no momento
da cunhagem do anel na cera, na medida cm que é a alma que recebe a impressão (Tcc-
tcto, 19-k). É explicitamente reivindicada no terceiro texto de PlatZío que comentamos
aqui. Esse texto está em Fi/c/10 38a-39c Trata-se novamente da opinião, ora falsa, ora
1
''.
\'erdadeira, desta \·ez em sua relação com o prazer e com a dor, candidatos ao primeiro
lugar no concurso entre bens rivais, aberto no início do diálogo. Sócrates propõe: "Não
é da memória e da sensação que se forma sempre cm nós a opinião cspontiínea e refle-
tida)" (38c.) Protarco aquiesce. Vem entZío o exemplo de alguém que quer "discernir"
(kri11ci11) o que, de longe, lhe parece um homem. O que acontece quando é a si mesmo
que ele foz as perguntas 7 Sócrates propôe: "Imagino que nossa alma se assemelha
a um lino" (38e). "Como?" pergunta Protarco. Segue-se a explicação: "A memória,
sugere Sócrates, no seu encontro com as sensações e com as reflcxôes (p11fizt'llll7ft1) que
esse encontro pro\·oca, parece-me então, se é que posso dizê-lo, escrever (gmplzci11)
discursos em nossas almas e, quando urna reflexão (palizt'lllil) inscreve coisas \'l'rda-
deiras, o resultado em nós são uma opinião verdadeira e discursos verdadeiros. Mas,
quando aquele escrc\·ente (gm1111110/c11,) que h,í em nós cscrc\·e coisas falsas, o resul-
tado é contrário à \'Crdadc" (39a)ll. Sócrates propõe então outra comparação, com a
pintura, variante do grafismo: "Admite também que um outro obreiro (dt·111io11rgo,)
nabalha, nesse momento, cm nossas almas" (39b). Qual? "Um pintor (:t1gmp/zos), que
\'L '11 depois do escrevente e desenha (gmplzci) na a Ima as imagens que correspondem
às palavras" (ibid.). Isso ocorre graças a urna separação operada entre, de um lado, as
opiniL-,es e os discursos que acompanha\·am a sensação e, de outro, "as imagens das
coisas assim pens,1das ou formuladas" (i/>id.). É essa a inscrição na alma à qual o Fcdro
ir,'i contrapor as marcas externas sobre as quais se estabelecem os discursos escritos.
A questão levantada por essa impressZío-afecção é, então, dupla. Por um lado, de
que maneira ela é preservada, corno persiste, seja ela rememorada ou nZío 7 Por outro
](] l'l,it,10, f'/,i/i'bc, tt>\lu L'Stabl'll'cido e tr,1duzido pur c\ugustl' Dii·s, Paris, LL'S lkllt>s l.l'ttr,•s, lLJ-ll.
11 Tc\·e o tradutor r,1;:<lo L'lll tr(1duzir p11t/u'nrnf11 por 'rt,flcx._lo", por c,1u::-.a da cornparal.;,lo, tcit<l n,1
Rcpúb/i(t1 51 ld, entre pl'nsanwnto di~cur::-.in) ou intuiç,l.o, L'nquanto c--.tado::-. dl' ._1lm,1, L' Jhtfflt'111,1f11'
Continu<1 st:'ndo e::-.sencia I ao argunlL'nto do f ilch1, que o gra fi~mo íntimo J ai ma seil1 d,1 ordem da
<lfL'Cç,lo. Cabcr,í a [\ristóteles tr,ltar d,1 lllllt'lltt' enqu,111to prcscnl~\7 na l1ln1d L' dei ll'rnbranç,1 LUJlll)
um )'ilf/10, (ci. ,1diantl' pp. 3-l-36).
A MF~l(lRI,\, A HISTORIA,() L~(lUECl'.vlPsHl
lado, que relação de significância ela mantém com respeito ao acontecimento marcante
(o que Platão chama de cidc1/011 e que ele não confunde com a cikon presente da marca
ausente, que cria um problema de conformidade com a marca inicial)? Uma fenome-
nologia dessa impressão-signo é possível no limite daquilo que Husserl chama de
disciplina hilética.
Terceiro emprego da marca: a impressão corporal, cerebral, cortical, que interessa
às neurociências. Para a fenomenologia da impressão-afecção, essas impressões cor-
porais são objeto de uma pressuposição relativa à causalidade externa, pressuposição
cujo estatuto é extremamente difícil de estabelecer. Nesse caso, falaremos de substrato,
para designar a conexão de um gênero particular entre as impressões que procedem
do mundo vivido e as impressões materiais no cérebro que são do domínio das neu-
rociências12. Não me adianto mais por enquanto, limitando-me a indicar a diferença
entre o três empregos da idéia indiscriminada de rastro: rastro escrito num suporte
material, impressão-afecção "na alma", impressão corporal, cerebral, cortical. Esta é, a
meu ver, a dificuldade incontornável ligada ao estatuto da "impressão nas almas" como
num pedaço de cera. Ora, hoje já não é possível eludir o problema das relações entre
impressão cerebral e impressão vivida, entre conservação-estocagem e perseverança
da afecção inicial. Espero mostrar que esse problema, herdado do velho debate ares-
peito das relações da alma e do corpo, debate audaciosamente assumido por Bergson
cm Matéri11 e Memória, pode ser colocado em outros termos que não aqueles que põem
em confronto materialismo e espiritualismo. Não estamos lidando com duas leituras
do corpo, da corporeidade - corpo-objeto diante de corpo vivido -, com o parale- l
É no plano de fundo erístico e dialético herdado de Platão que pode ser colocado
o tratado de Aristóteles Pcri 11mi'l11L'S k11i a11a11111cscôs, que chegou a nós com o títulc
latino De 111c///oria ct rcllli11isccntia numa coletânea de nove pequenos tratados que a
tradição denominou Parva Natum!ia 11 . Por que um título duplo? Para distinguir, não
a persistência da lembrança em relação à sua recordação, mas sua simples pn' ..;ença
no espírito (que chamarei, mais adiante, em meu esboço fenomenológico, de evocação
simples) em relação à recordação enquanto busca.
12 ;\ discussão il respeito do est,ituto do r<1stro cortic,1 I t''."'.>tlí na tercei r;:i p;irtl', no {1mbito d;:1 problt>n1,í-
tic,1 do esquecimento (adi,111ll', pp. 428-43~).
11 A traduç,l.o f1\1nceszi dos Pctits Tmih's d'IIf ...;foirt' 11at11rcllc e de nosso tratado De ln llh;1110irc l'f de /11
rh11i11iscc11cc t.' de RL'nl' f'vlugnier nat-. L'diçC)l'S LL'S BL'lles LL'ttrl's. Expresso ciqui, depois de t<1nta~ nu-
tras, ll 1ninh<1 dí\'ida quanto cl tr,1duçâo e ao con1entário t.'111 língua inglesei ofc•rl'cidos por Richard
Sor<1bji, com o título de 11.ri,loilc 011 tv:c111or11, Prm·idL'l1Cl', Rhode lsland, Brown University l'rcss,
1972. N<1 su~, seqüênci<1, 111rn11111l'~i:-; podPri~1 sl'r tradu;rid~1 por "record~1çiío" (reco!/ectio11); prt.'fcri
"rL'TT1l'llH)rôÇ,1o", dl' acordo com a tipologicl L·t1 len1brança qul' SUCL'dl', no prt.'sente trt1b~1lho, il clr-
'-]lll'Ologi,1 do problema.
A memória, nesse sentido particular, é caracterizada inicialmente como afecção
(patlws), o que a distingue precisamente da recordaçãn1'.
A primeira questão que se apresenta é a da "coisa" lembrada; é nessa ocasião que
é pronunciada a frase cha\"e que acompanha toda minha pesquisa: "A memória é do
passado" (449 b 15)''. É o contraste com o futuro da conjetura e da espera e com o
presente da sensação (ou percepção) que impõe esta caracterização primordial. E é
sob a autoridade da linguagem comum ("ninguém diria ... mas d ir-se-ia que ... ") que
é feita a distinção. Mais fortemente ainda: é "na alma" que se diz''' ter anteriormente
(protcro11) ouvido, sentido, pensado alguma coisa (449 b 23). Essa marca temporal, as-
sim promo\"ida a linguagem, depende do que chamaremos mais adiante de memória
declarativa. Ela é sublinhada insistentemente: tanto é verdade que nos lembramos
"sem os objetos" (449 b 19), quanto é preciso sublinhar que existe memória "quando o
tempo passa" (u 1/1c11 ti111c /111s l'iapscd) (449 b 26), ou, mais bre,·emente "com o tempo"'º.
Nesse aspecto, os seres humanos partilham a simples memória com certos animais,
mas nem todos dispõem da "sensação (percepção) (ais/Ji,,sis) do tempo" (b 29). Essa
sensação (percepção) consiste no fato de que a marca da anterioridade implica adis-
tinção entre o antes e o depois. Ora, "o antes e o depois existem no tempo (c11 khro1uji)"
(b 23) (a11d carlicr a11d /ater are i11 ti111c). O acordo aqui é completo com a análise do
tempo na Físirn, IV, 11, segundo a qual é percebendo o mm·imento que percebemos
o tempo; mas o tempo só é percebido como diferente do m(wimento quando nós o "de-
terminamos (110ri:0111c11)" (Física, 218 b 30)", isto é, quando podemos distinguir dois
instantes, um como anterior, o outro como posterior'".
Neste ponto, análise do tempo e análise da memória se sobrepõem. A segunda
questão refere-se à relação entre memória e imaginação. Seu \"Ínculo é assegurado
pela pertinência à mesma parte da alma, a alma sensível, segundo um modo de di,·i-
são já praticado por Platão'". Mas a dificuldade está cm outro lugar. A semelhança en-
1-1 AristÓtl~iet:. de~ign~1 essa L'\·ucaçclo ao n1e~n1u tl'n1po por uni ~ubstanti, o, llllll'llll', l' por uni , l'rbu,
11111e111011c11ci11 (-l-19 b -!). \1ugnil'r traduz: "c1 TTlL'n1úria L' a lembrançc1", e, um pouco adiante,: "fazer
ato de rne1nória"; Sorabji: "111c1110ry 1111d n'111c11!l1t'ri11g". () substanti,·l1 t1111111111t''>i~ ta1nbl·n1 sl'r,í c1con1-
panhado por un1 ,·erbo, 11111111ii11111c~ke ...::.tl111i. i\.1ugnier: "ren1ini'.:,cl'ncia" e "len1brança por ren1inis-
cl·nci,1"; Sorc1bji: "n_'((il/c(t1011, rcco!lcdi11g"
15 i\.IugniL·r: "A men1úric1 '.--l' ,iplica ao pa~óadu"; Surabji: "A1c111or_11 f-, (~(tl1c p11~t"; o grego diz: t(.)11 gc11c1-
111c11ou (o que acontL'cl'u, o que ,1dvl•io).
16 Sorabji: ''::.11y..::. i11 hi~ SL111/".
17 \Iugnier: "Toda il'n1br\ln1.;a L; acon1panhc1da pL'la noçJo do tL't11po"; Sorabji: "AI/ 111c111or_11 i11t.·t 1ÍL'c..::.
ti111e".
18 "Estar no ten1po t' St'r tlll'dido pelo tenlpll t'tll '.:,Í l' L'lll SUcl l'XÍ'.:-itl'ncia. 1 .. ] E, pcHcl o n10,·in1ento, o
fato de estcH no ten1po é o foto de t-.L'r mL'dido en1 '.:-iua existl·ncia" (221 a 5-7).
l Y "F'.:-i'.:,cl deterrninaçJo supôe que se considerL'tll estes tern1os [c1ntl'rior, posterior] d it--tinto~ un1 do ou-
tro, n1n1 un1 inten·alo diferente deles. De foto, quando distinguin1us, pela inteligência (11tl{':_...u111cn)
as L'xtrL'tnidades e o ntl'io, L' a alincl declara (cipt'i) que hcí dois instantes, de um lado, o anterior, dL'
outro, o postl'rior, cnt.l.o di;,emos (ph1111u·11) qut> h,í aí uni ten1pu" (21LJ a 25 L' seg.).
20 É preciso então d i7L'r que "as cois,1s quL' '.:-i,1u objetos de llll't11(1ria ~,lo toda'.:-, c1quL·las que dependem
da in1.Jginnçdo, e que l1s que não existcn1 '-il'lll L''.:,S.J faculdade u '.:-illo acidentaln1entt>" (";:l'l1crci1::;
A MFMORIA, A fllSTélRIA, O FSQL;l'CIMl:i\TO
tre as duas problemáticas dá uma nova força à velha aporia do modo de presença do
ausente: "Poderíamos indagar como (wc 111iglzt bc puzzlcd lzow), quando a afecção está
presente, mas a coisa está ausente, nós nos lembramos daquilo que não está presente"
(450 a 26-27, tradução modificada),
A essa aporia, Aristóteles responde com aquilo que lhe parece evidente (dc/011), isto
é, que a afecção produzida graças à sensação "na alma e na parte que a conduz" 21 seja
considerada uma espécie de pintura (zl1gmplzc11111), "da qual dizemos que é a memó-
ria" (ibid.), Eis aqui restabelecida, sob um novo vocábulo, que vai nos interessar mais
adiante, a problemática bem conhecida da cikc111 e, com ela, a da impressão (tupos),
ligada por sua vez à metáfora do carimbo e do sinete. Todavia, diferentemente do
1r'ctcto, que situava a impressão "nas almas" - com o risco de tratá-las como entida-
des impregnáveis-, Aristóteles associa o corpo à alma e elabora, sobre essa dupla
base, uma rcípida tipologia dos efeitos variados de impressões (451 b 1-11). Mas nosso
autor não esgotou essa metáfora. Surge uma nova aporia: se o caso é esse, pergunta,
de que nos lembramos então? Da afecção ou da coisa de que ela procede? Se é da
afecção, não é de uma coisa ausente que nos lembramos; se é da coisa, como, mesmo
percebendo a impressão, poderíamos lembrar-nos da coisa ausente que não esta-
mos percebendo? Em outras palavras: como podemos, ao perceber uma imagem,
lembrar-nos de alguma coisa distinta dela?
A solução a essa aporia reside na introdução da categoria de alteridade, herdada
da dialética platônica. A associação da noção de desenho, de inscrição, à noção de
impressão, diríamos hoje (gmpiz1' 22 ), aponta para a solução. De fato, cabe à noção de
inscrição comportar referi:'ncia ao outro; o outro que não a afecção enquanto taL A
ausência, como o outro da presença! Tomemos um exemplo, diz Aristóteles: a figura
pintada de um animal. Pode-se fazer uma dupla leitura desse quadro: considerá-lo
quer em si mesmo, como simples desenho pintado num suporte, quer como uma cikc111
("uma cópia", dizem nossos dois tradutores). É possível, porque a inscrição consiste
nas duas coisas ao mesmo tempo: é ela mesma e a representação de outra coisa (aliou
pl11111t11s11111); aqui, o vocabulário de Aristóteles é preciso: ele reserva o termo p/11111tas11111
à inscrição enquanto ela mesma, e o termo cikc111 para a referência a outra coisa que
não a inscrição2 1.
A solução é hábil, mas comporta suas próprias dificuldades: a metáfora da im-
pressão, de que a da inscrição pretende ser uma variante, recorre ao "movimento"
tflillgs tlrnt are 11ot gmspcd witlrout i11111gi11ntio11 are rc11,c111[JCrcd Íll z1irt11c tf 1m accidc11t11! nssociatio11",
450 a 22-25).
21 O quL'? A aln1a ou a sens,1ção? Mugnier: "que possui a sensação"; Sorabji: "1uhich co11tai11s thc sou!"
(450 a 25),
22 A expn.•ss3o algmpht'111t1, introduzida un1 pouco acima, contétn o radical graplú'.
23 A essl' voú1buLí.rio é prL'ciso 1.1crescentar o tern10 11111t.'n1011c11111a, que Sorabji traduz por rcnli11dcr,
L'spl·cie de lembr(1nça nide-1nén1oire (resun10) que {1bordaren1os na parte fenon1enológica deste es-
tudo (4'il-452), l'.irc1 o tl'rmo 11111~111011c1111rn, Mugnier tem a simples palavra "lembrança", no sentido
daquilo que foz pensar c•tn outr1.1 coisa.
(ki11,'sis), do qual resulta a impressão; esse movimento remete, por sua vez, a urna
causa exterior (alguém, alguma coisa cunhou a impressão), ao passo que a dupla lei-
tura da pintura, da inscrição, implica um desdobramento interno à imagem mental,
diríamos hoje urna intencionalidade dupla. Parece-me que essa nova dificuldade re-
sulta da concorrência entre os dois modelos, da impressão e da inscrição. O Tcctcto
ha,·ia preparado sua confrontação ao tratar a própria impressão corno uma marca
significante, uma ,,,111eio11; então, era na própria s,•111eio11 que \"inham fundir-se a cau-
salidade externa do cunho (ki11,•sis) e a significüncia interna da marca (s,·111eio11). A
secreta discordüncia entre os dois modelos ressurge no texto de Aristóteles quando
confrontamos a produção d,, afecção e a significação icónica que nossos dois tradu-
tores interpretam como cópia, portanto, como semelhança. Essa conjunção entre esti-
mulação (externa) e semelhança (interna) continuará sendo, para nós, o ponto crucial
de toda a problemática da memória.
O contraste entre os dois capítulos do tratado de Aristóteles - 11111,•111,, e a111m111,'-
sis -é mais e,·idente do que o fato de pertencerem a uma só e mesma problcmcHica.
A distinção entre 11111,,111,' e a111111111,'sis apóia-se cm duas características: de um lado,
a simples lembrança sobrevém à maneira de uma afecção, enquanto a recordação'"
consiste numa busca ati,·a. Por outro lado, a simples lembrança está sob o império
do agente da impressão, enquanto os mm·imentos e toda a seqüência de mudan-
ças que ,·amos relatar têm seu princípio em nós. Mas o elo entre os dois capítulos
é assegurado pelo papel desempenhado pela distância temporal: o ato de selem-
brar (11111,•1110nc11ci11) produz-se quando transcorreu um tempo (pri11 khro11istJ,,,1111i)
(-!51 a 30). E é esse intervalo de tempo, entre a impressão original e seu retorno, que
a recordação percorre. Nesse sentido, o tempo continua sendo a aposta comum à
memória-paixão e à recordação-ação. É ,-crdade que essa aposta perdeu-se um pouco
de ,·ista no detalhe da an,ílisc da recordação. A razfio disso é que a ênfase recai dora-
,·ante no "como?", no método da rccordaç.:'io eficaz.
Num sentido geral, "os atos de recordação se produzem quando uma mudança
(kin,,,i,) sobrevém ap(ís outra" (451 b 10)'". Ora, essa sucessão pode ocorrer conforme
a necessidade ou conforme o hábito; assim, é preservada certa margem de ,·ariação, de
que ,·oltaremos a falar mais adiante; dito isso, a prioridade concedida ao lado metódi-
co da busca (termo caro a todos os socráticos) explica a insistência na escolha de um
ponto de partida para o percurso da recordaçJo. Assim, a iniciati,·a da busca está na
dependência de um "poder buscar" que é nosso. O ponto de partida fica cm poder do
explorador do passado, mesmo que o encadeamento que se segue dependa da neces-
2-+ \lugnil'r consl'n·a "rl'rniniscl•ncia"; St,r(1bji pn,)p(-ll' "rccol!cctit)/1"; quanto cl n1in1, digo ''recorda-
11
ç,lo" ou "ren1l'n1oraç,l.o", nc1 pcrspecti\'a do esboço fl'nOl1ll'no!t)gico que ~cguc as du<1s l'\plicaçôes
de textos" de Platclo e de Aristóteles. A distin(,-,1o que Aristótelc~ faL entre 1H11L'11n' L' 11111111111L'..,f.., pa-
fL'CL'-l1ll' antecipiH a que é proposta por unia fl'nomcnologia d<1 n1L'l1lÚri<1, entrl' l'\·oct"iÇc1o ~in1plt.'S
e busc,1 ou c~forço de recordaç.:lo.
25 h1ugnier: "As ren1ini~ct.,ncias se produLL'Ill quando esse 1110\·irnt.'nto \"L'Ill n(ltur<1\n1cntl' apt)s
aquele mo,·in1ento"; Sor,1bji: "Act~ 1:f"n.'t"o!lcdio11 lwJ)JlCII Íh'Ctlll::-;L' ()/ll' c/11111s:c i::,; (:ft111aturc to ()((Ili' 1~ftcr
11110//icr" (-Fil b ]()).
A MJ:M(JRIA, A HIST(lRIA, ll l,SQLIFCl\1ENIO
2~ E::-,tou ,1ntl'cip;1ndo chJUÍ consider<lÇÔL'~ que L'I1l-untran1 '.'.->L'U lugar 11,1 krcl'ir,1 p,ntl' dc::-itl' trabalho,
na transiçllo crítica entre a l'pistemologi,1 do conhccin1cnto hi~tt'ffico L' a hL'flllL'nl utic1 de 11t1::-,::-,,1
1
condi\Zio histl'1rica.
i\ MF\lllRIA, A HISlllRIA, O FS()Ul:CIMLNI()
outras, as famosas páginas que Matéria e Mclllôria 2" dedica, no capítulo 2, à distinção
entre "as duas formas da memória". Como Santo Agostinho e os retóricos antigos,
Bergson se coloca na situação de recitação de uma lição decorada. Então, a memória-
hábito é a que usamos quando recitamos a lição sem evocar, uma a uma, as leituras su-
cessivas do período de aprendizagem. Nesse caso, a lição aprendida "faz parte de meu
presente do mesmo modo que meu hábito de andar ou escrever; ela é vivida, é "agida",
mais do que é representada" (Bergson, Matic\rc ct Mé111oirc, p. 227). Em compensação, a
lembrança de certa lição particular, de certa fase de memorização não apresenta "11c-
11/w111 dos caracteres do hábito" (op. cit., p. 226): "É como um acontecimento de minha
vida; sua essência é trazer uma data, e não poder, por conseguinte, repetir-se" (ibid.).
"A própria imagem, considerada cm si, era necessariamente, no início, aquilo que será
sempre" (i/Jid.). E ainda: "A lembrança espontânea é, de imediato, perfeita; o tempo
não poderá acrescentar coisa alguma à sua imagem sem deturpá-la; ela conservará,
para a memória, seu lugar e sua data" (op. cit., p. 229). Em suma: "A lembrança de
uma determinada leitura é uma representação, e somente uma representação" (op.
cit., p. 226); ao passo que a lição aprendida é, corno acabamos de dizer, "agida" mais
do que representada, é privilégio da lembrança-representação permitir-nos voltar a
subir "a encosta de nossa vida passada para nela buscar uma determinada imagem"
(op. cit., p. 227). À memória que repete, opõe-se a memória que imagina: "Para evo-
car o passado em forma de imagens, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é
preciso atribuir valor ao inútil, é preciso querer sonhar. Talvez o homem seja o único
ser capaz de um esforço desse tipo" (op. cit., p. 228).
Esse texto é de uma enorme riqueza. Em sua sobriedade cristalina, expõe o pro-
blema mais amplo da relação entre ação e representação, da qual o exercício de me-
morização é apenas um aspecto, corno mostraremos no próximo capítulo. Da mesma
forma, Bergson enfatiza o parentesco entre a lição decorada e "meu hábito de andar
ou de escrever". O que assim é valorizado é o conjunto a que pertence a recitação,
o das habilidades, que têm, todas, a característica comum de estar disponíveis, sem
exigir o esforço de aprender novamente, de reaprender; assim sendo, todas estão aptas
a ser mobilizadas em múltiplas oportunidades, abertas por sua vez a certa variabili-
dade. Ora, é a essas habilidades que, no amplo leque dos usos da palavra "memória",
aplicamos uma das acepções admitidas dessa palavra. O fenomenólogo poderá assim
distinguir "lembrar-se como ... " de "lembrar-se que ... " (expressão essa que irá pres-
tar-se a outras distinçües ulteriores). Esse vasto império abrange habilidades de níveis
muito diferentes. Primeiramente, encontramos as capacidades corporais e todas as
modalidades do "eu posso", que percorro em minha própria fenomenologia do "ho-
mem capaz": poder falar, poder intervir no curso das coisas, poder narrar, poder dei-
2'! Cf. l-ll'nri Bl'rgson, fvfolii'rc <'i Minl()frc. Essili s11r la rc/i1lio11 d11 COl')'S ,l /'cs)'ril (1896), in (_J:11,•rcs, in-
troduçZlo dl' H. Cnuhil'r, tL'Xtos ,1notados por A. l\obinet, ediçtlo do ccntL'llcÍrio, I\His, PUF, 196],
pp. 225-235. Um estudo sisk'lll<Ítico das rel,1çôcs entre psicologid L' !11L'tc1físic,1 neste trdb,1\ho t-.L'r,1
propo~to na terceir,1 partl', no âmbito de um(1 i1H'l'slig,1çJo dl•dic,1d,1 ,10 e~qul'cirnl'nto (cf. ,1di,11lll'
PP· -l-15--l-l?).
IJ \ \li \l()RI \ 1 IJ \ !<! \11'-;ISC( \J 1 \
xar atribuir-se uma ação reconhecendo ser seu ,,erdadeiro autor, Cabe acrescentar os
costumes sociais, os costumes morais, todos os /117/Jifus da\ id,1 em comum, uma parte
dos quais é praticada nos rituais sociais ligados aos fenômenos de comemoração, que,
mais adiante, oporemos aos fenômenos de rememoração, atribuídos unicamente :i
memória privada, Dessa forma, di\'ersas polaridades coincidem, Encontraremos ou-
tras igualmente significati\'as no ,ímbito da presente consideração, nas quais a ênfase
recai na aplicação do critério de distanciamento temporaL
O fato de se tratc1r, no plano fenomenológico, de uma polaridade, e não de uma
dicotomia, é atestado pelo papel eminente desempenhado por fenômenos situados
entre os dois pólos que Bergson opôe, de acordo com o espírito de seu método habi-
tual de divisão.
30 Nosso capítulo sobre o esquecimento (terceira partl', cap. 3) irá dl'ler-se longamente nesta ambi-
güid,1<k
31 Bergson, "Effort intL>llPctuel", L'É11crgic SJ'iril11cllc, in CE11urcs, op. cit., pp. 930-959.
da lembrança pertence a uma imensa família de fatos psíquicos: "Quando rememo-
ramos fatos passados, quando interpretamos fatos presentes, quando ouvimos um
discurso, quando acompanhamos o pensamento de outrem e quando nos escutamos
pensar a nós mesmos, enfim quando um sistema complexo de representações ocupa
nossa inteligência, sentimos que podemos tornar duas atitudes diferentes, uma de
tensão e a outra de relaxamento, que se distinguem principalmente pelo fato de que
o sentimento do esforço está presente numa e ausente na outra" (op. cit., p. 930). De
outro lado, a questão precisa é esta: "O jogo das rcprcsentaçôcs é o mesmo nos dois
casos? Os elementos intelectuais são da mesma espécie e mantêm entre si as mesmas
relações?" (op. cit., pp. 930-931). Como se \'ê, a questão não poderia deixar de interes-
sar as ciências cogniti\·as contemporâneas.
Se a questão da recordação encabeça o exame aplicado às di\'crsas espécies de
trabalho intelectual, é porque a gradação "do mais fácil, que é reprodução, ao mais
difícil, que é produção ou invenção" (op. cit., p. 932), é ali mais marcada. Além disso, o
ensaio pode apoiar-se na distinção operada cm Matéria e Mc111ôria entre "uma série de
'planos de consciência' diferentes, desde a 'lembrança pura', ainda não traduzida cm
imagens distintas, até essa mesma lembrança atualizada em sensaçôcs nascentes e
em movimentos iniciados" (i/Jid.). É cm semelhante travessia dos planos de consciên-
cia que consiste a cnJCação voluntária de uma lembrança. É então proposto um mo-
delo para separar a parte de automatismo, de recordação mecânica, e a de rcflexc'io,
de reconstituição inteligente, intimamente mescladas na experiência comum. Vale
lembrar que o exemplo escolhido é o da recordação de um texto decorado. É, pois, no
momento da aprendizagem que é feita a separação entre dois tipos de leitura; à leitu-
ra analítica, que pri\'ilegia a hierarquia entre idéia dominante e idéias subordinadas,
Bergson opôc seu famoso conceito de c,q11c111a di11â111ico: "Entendemos com isso que
essa representação contém menos as próprias imagens do que a indicação daquilo
que é preciso fazer para reconstituí-las" (op. cil., p. 937). O caso do jogador de xadrez,
capaz de conduzir de cabeça diversas partidas sem olhar os tabuleiros, é nesse as-
pecto exemplar : "o que está presente no espírito do jogador é uma com120,,ição de
forças, ou melhor, uma relação entre potências aliadas-hostis" (op. cit., p. 938). Cada
partida é assim memorizada como um todo segundo seu perfil próprio. Portanto, é
no método de aprendizagem que tem de ser buscada a cha\'c do fenômeno de recor-
dação, por exemplo, o da busca inquieta de um nome recalcitrante: "Urna impressão
de estranheza, mas não de estranheza indeterminada" (op. cit., p. 939). O esquema
dinâmico opera à moda de um guia "indicando uma certa dircçí'ío de csjórço" (op. cit.,
p. ➔ O). Neste exemplo, como em muitos outros, "a essência do esforço de memória
parece ser o fato de dcscm,oh,cr um esquema, se não simples, pelo menos concentrado
numa imagem com elementos distintos, ou mais ou menos independentes uns dos
outros" (ibid.). É esse o modo de tra\·essia dos planos de consciência, de "descida do
esquema para a imagem" (op. cit., p. 9 ➔ 1). Diremos então que o "esforço de recordação
consiste em converter uma representação esquemMica cujos elementos se interpe-
netram numa representação em imagens cujas partes se justapõem" (i/Jid.). É nesse
A MFM(JRL\, ,\ IIIST(JRIA, () FSC_lLFCIMF1' 10
No final deste estudo da recordação, gostaria de fazer uma breve menção da re-
lação entre o esforço de recordação e o esquecimento (antes de reexaminar devida-
mente, na terceira parte deste trabalho, problemas a respeito do esquecimento que
aqui encontramos dispersos).
É de fato o esforço de recordação que oferece a melhor ocasião de fazer "memó-
ria do esquecimento", para falar por antecipação como Santo Agostinho. A busca da
lembrança comprova uma das finalidades principais do ato de memória, a saber, lutar
contra o esquecimento, arrancar alguns fragmentos de lembrança à "rapacidade" do
tempo (Santo Agostinho dixit), ao "sepultamento" no esquecimento. Não é somente o
caráter penoso do esforço de memória que dá à relação sua coloração inquieta, mas o
temor de ter esquecido, de esquecer de novo, de esquecer amanhã de cumprir esta ou
aquela tarefa; porque amanhã será preciso não esquecer. .. de se lembrar. Aquilo que,
no próximo estudo, chamaremos de dever de memória consiste essencialmente em
dever de não esquecer. Assim, boa parte da busca do passado se encaixa na tarefa de
não esquecer. De maneira mais geral, a obsessão do esquecimento passado, presente,
vindouro, acrescenta à luz da memória feliz a sombra de uma memória infeliz. Para
a memória meditativa - a Ccdticlzt11is -, o esquecimento continua a ser, ao mesmo
tempo, um paradoxo e um enigma. Um paradoxo, tal como o expõe o Santo Agostinho
retórico: corno fi1/11r do esquecimento senão sob o signo da lembrança do esquecimento,
tal como o autorizam e caucionam o retorno e o reconhecimento da "coisa" esquecida?
Senão, não saberíamos que esquecemos. Um enigma, porque não sabemos, de saber
fenomenológico, se o esquecimento é apenas impedimento para evocar e para encon-
trar o "tempo perdido", ou se resulta do inelutável desgaste, "pelo" tempo, dos rastros
que cm nós deixaram, sob forma de afccções originárias, os acontecimentos superve-
nientes. !'ara resolver o enigma, seria necessário não só desimpedir e liberar o fundo
llA \11\llllsl.\ 1 IJ\ RI \11,1,ll ,CI \
Deve ser concedido um lugar à parte e eminente ã distinção introduzida por Hus-
serl, nas Lcço11, po11r 1111c plil;110111é110/ogic de /11 co11scic11cc i11ti111c du tc111ps ", entre retenção
ou lembrança prim,iria e reprodução ou lembrança secumLíria. Lê-se essa distinção
na segunda seção das Liçiles de 1905 ,o/ire 11 co11sciL•11ci11 í11ti11rn do tc111po, que formam a
primeira parte das Liçilcs completada pelos adendos e complementos do período 1905-
1910. Fiz questão de separar as anc'ilises que se referem cfeti\·amente ã face objetal da
memória, como confirma a tradução de Eri1111crzz11g por "lembrança", e de acrescentar
a elas, na continuação deste capítulo, as consideraçôes de Husserl a respeito da relação
entre lembrança e imagem. Ao destacar essa seção do contexto dom inantc das Liçiks,
prcserni-a da inflw:•ncia do idealismo subjeti\·ista enxertado na n•rtcnte reflcxi\·21 d,1
memória (cujo exame postergarei até o capítulo final de nossa fenomenologia da me-
mória). Confesso que essa libcr21ção opera cm oposição ã din,ímica de conjunto das
Liçiles de 1905, que, da primeira à terceira scç,10, as faz percorrer urna série de "degraus
de constituição" (Husserl, Liçilcs, §}-!),em que o cariÍtcr objetal da constituiç.io se apa-
ga progressivamente em benefício da autoconstituiç.io do fluxo da consciência; os "ob-
jetos temporais" - ou seja, as coisas que duram - aparecem então como "unidades
constituídas" (op. cit., § 37) na pura rcflexi\·Íliade da consciência íntima do tempo. Meu
argumento é aqui que a famosa cpoklzl', sobre a qual se abre o trabalho e de onde resulta
a cxclus.io do tempo objetinl - aquele tempo que a cosmologia, a psicologia e as ou-
tras ciências humanas consideram uma realidade formal, é certo, mas solid,iria com o
estatuto realista dos fenômenos que enquadra - não revela, no início, um fluxo puro,
mas urna experiência (Erfi1!zrzz11g) temporal que tem, na lembrança, sua face objetal; a
constituição de primeiro nível é de uma coisa que dura, por menor que seja essa objeti-
vidade, primeiramente sobre o modelo do som que continua a soar, depois, da melodia
que rememoramos posteriormente. Mas, a cada vez, "alguma coisa" dura. A cpokizl'
re\-ela, certamente, simples \·ivências, as '\·i\·ências do tempo" (op. cit., § 2, p. 15). Mas,
ness,1s vivências, são \·isados "d11l11 'objeti\"c1llll'nte temporais'"(§ 2). S.io denomin,1dos
"objetividade" (i/1id.), e comportam "\·erdades apriorí~tirns" qm· pertencem "aos mo-
mentos constitutinis da objetividade" (i/iid.). Se, desde o início da leitura, a refert'•ncia a
esse aspecto "objetal" parl'ce provisória, é porque se levanta uma questão radical, a da
"'origem' do tempo" (ibid.) que se quer subtrair ao reinado da psicologia sem, contudo,
recair na órbita do transcendentalismo kantiano. A questão proposta pela experiência
de um som que dura e de uma melodia que volta é a da espécie de persistência que faz
com que "o que foi percebido permaneça presente durante um lapso de tempo, mas
não sem se modificar" (op. cit., § 3, p. 19). A questão é: o que é permanecer para uma
coisa que dura? O que é a duração temporal? Esta pergunta não é diferente das feitas
por William James e Henri Bergson com vocábulos semelhantes: durar, permanecer,
persistir. De que modificação se trata? É urna espécie de associação (Brentano)? É uma
espécie de comparação recapitulativa a partir do último som (W. Stern)? Podemos des-
cartar essas soluções, mas não o problema, a saber, "a apreensão de objetos temporais
transcendentes que se estendem numa duração" (op. cit., § 7, p. 35). Chamemos "objetos
temporais" (Zcitobjcktcn) a esses objetos na base dos quais proporemos posteriormente
a questão da constituição do tempo, considerado então uma duração não diferenciada
por coisas que duram. Da percepção da duração de alguma coisa, a análise oscilará
então para o exame da duração da percepção enquanto tal. Então, o som, a melodia
não serão mais tematizados, mas somente sua duração não-objetivável. É aquém desse
deslocamento de ênfase que a notável distinção entre lembrança imediata ou retenção
e lembrança secund,fria (relembrança) ou reprodução adquire seu sentido.
A experiência descrita tem urna base, o presente, o presente do som que ressoa
agora: "quando o fazemos soar, eu o ouço como presente, mas enquanto continua a
soar, ele tem um presente sempre novo, e o presente a cada vez precedente se converte
num passado" (op. cit., § 7, p. 37). É essa modificação que constitui o tema da descrição.
Há um "cada vez" presente. A situação descrita não é, nesse aspecto, diferente da con-
siderada por Santo Agostinho no Livro XI das Confissôcs: a modificação é do presente.
Na verdade, Santo Agostinho ignora a exclusão de toda tese transcendente e a redu-
ção do som "a um simples dado hilético" (op. cit., § 8, p. 37). Mas a idéia de que alguma
coisa começa e cessa, começa e, depois de seu fim, "cai" no mais longínquo passado, é
comum. Propõe-se então a idéia de "retenção": "nessa recaída", cu o "retenho" ainda,
cu o tenho numa "retenção", e, enquanto ela se mantém, "ele tem sua ternporalização
própria, ele é o mesmo, sua duração é a mesma" (ibid.). Nesse estágio da análise, as
duas proposições se sobrepõem: o som é o mesmo, sua duração é a mesma. Depois,
a segunda absorverá a primeira. Passaremos, então, da fenomenologia da lembrança
à da consciência íntima do tempo. A transição é preparada pela observação de que
posso dirigir meu olhar para "a maneira pela qual [o som] 'é dado"' (op. cit., § 8, p. 38).
Então, os "modos" e sua continuidade, num "fluxo contínuo", passarão para o primei-
ro plano. Mas não será abolida a referência ao agora, que, no início da análise que aqui
fazemos, é a fase de um som, essa fase que se denomina "consciência do som em seu
início" (op. cit., § 8, p. 37): "o som é dado, isto é, tenho consciência dele corno presente"
(op. cit., § 8, p. 38). Num estágio posterior da análise, poderemos discernir na referên-
cia tenaz ao presente o reinado daquilo que Heidegger e os que ele influenciou denun-
ciam corno uma "metafísica da presença"' 4 . No estágio cm que aqui interrompemos a
análise, a referência ao presente coincide com a experiência cotidiana que temos das
coisas que começam, continuam e deixam de aparecer. Começar constitui uma expe-
riência irrecusá\'el. Sem ela, não compreenderíamos o que significa continuar, durar,
permanecer, cessar. E sempre um algo começa e cessa. Aliás, o presente não de\·e ser
identificado à presença~ em nenhum sentido metafísico que seja. A fenomenologia
da percepção não tem mesmo nenhum direito exclusivo sobre a descrição do presente.
O presente é também o do gozar e do sofrer, e, de maneira mais significativa para uma
im·estigação sobre o conhecimento histórico, presente de iniciati\'a. O que podemos
então criticar legitimamente em Husserl, nesse estágio inicial de sua análise, L' o fato
de ter ele fechado a fenomenologia do presente sobre a objeti\'idade percebida, em de-
trimento da objeti\'idade afetiva e pr,ítica. Nesses limites, sua tese é simplesmente a de
que a percepção não é instantânea e que a retenção não é uma forma de imaginaç,10,
mas consiste numa modificação da percepção. A percepção de alguma coisa dura. O
distanciamento "do instante presente atual" (op. cit., § 9, p. 39) ainda é um fenômeno
de percepção e não de imaginação. E é de um algo que dizemos que dura: "A 'cons-
ciência', o 'vivido', relaciona-se com seu objeto por intermédio de um aparecimento, no
qual reside precisamente 'o objeto em seu modo'" (op. cit., § 9, p. 41). A fenomenologia
da memória é inicialmente a da lembrança, se entendermos por isso "o objeto em seu
modo". O que chamamos presente, passado, são "caracteres de escoamento" (op. cit.,
§ 10, p. 41), fenômenos eminentemente imanentes (no sentido de uma transcendência
reduzida ao estatuto da hilética).
Se se pode discernir uma tensão na an,ilise, antes de a distinção entre retenç,fo e
relembrança entrar em cena, é entre a parada no presente atual e a indivisibilidade
em fragmentos do fenômeno de escoamento. Mas não se pode criticar em Husserl
essa tensão como uma inconseqüência resultante de uma complacência metafísica:
ela é constituti\'a do fenômeno descrito. De fato, pode-se passar sem parar, corno o
próprio tempo, de urna fase a outra da duração do mesmo objeto, ou parar numa
fase: o começo é pura e simplesmente a mais not,~vel dessas paradas, mas a cessa-
ção também é. Assim, começamos a fazer e paramos de fazer. O agir, cm particular,
tem seus nós e seus \·entres, suas rupturas e seus impulsos; o agir é vigoroso. E, na
sucessão mais uniforme da percepção, a distinção entre começar, continuar e cessar
é perfeitamente razoá\·el. É corno começo que o presente faz sentido e que a duração
traz modificação: "enquanto surge sempre um novo presente, o presente se torna um
passado e, assim, toda a continuidade de escoamento dos passados do ponto prece-
dente \·ai caindo' uniformemente na profundeza do passado" (op. cit., § 10, p. 43).
Quando se fala de "ponto-origem" (op. cit., § 11, p. 43), é no âmbito da relação corneçar-
continuar-cessar. A impressão é originária, num sentido não mct,1físico, no sentido
daquilo que simplesmente começa e faz que haja um antes e um depois. O presente
muda incessantemente, mas também surge incessantemente: aquilo que chamamos
de acontecer. A partir daí, todo o escoamento não passa de "retenção de retençôes"
(op. cit., § 11, p. 44). Mas a distinção começar/durar não deixa de significar, a tal ponto
que uma continuidade pode reunir-se em "um ponto da atualidade, que se oferece
;\ MFMlÍRIA, ;\ HISl(lR!i\, ll LS(.)UECIMENJO
da memória em sua fase declarativa: alguém diz "em seu coração" que viu, expe-
rimentou, aprendeu anteriormente; sob esse aspecto, nada deve ser negado sobre o
pertcncimento da memória à esfera de interioridade - ao ciclo da inwardncss, para
retomar o vocabulário de Charles Taylor em S011rccs of tlic Self' 7• Na da, salvo a so-
brecarga interpretativa do idealismo subjetivista que impede esse momento de re-
flexividade de entrar em relação dialética com o pólo de mundanidade. A meu ver, é
essa "pressuposição" que onera a fenomenologia husserliana do tempo, apesar de sua
vocação para constituir-se sem pressuposição e para escutar apenas o ensinamento
das "próprias coisas". Aí está um efeito contestável da epokhc que, sob a aparência da
objetivação, afeta a mundanidade. Deve-se acrescentar, é verdade, cm defesa de Hus-
serl, que a fenomenologia do Lebcnswelt, exposta no último grande livro de Husscrl,
suprime parcialmente o equívoco, restituindo àquilo que chamamos globalmente de
situação mundana seu direito de primordialidade, sem, contudo, romper com o idea-
lismo transcendental das obras do período médio, que culmina em Idccn I, mas já se
anuncia nas Liçl1cs para uma fc110111c110/ogia da consciência íntima do tempo.
As considerações que vêm a seguir devem muito à obra mestra de Edward Casey,
Rc111c111bcring "8 • O único ponto de divergência que me afasta dele concerne à interpre-
tação que deu aos fenômenos que descreveu admiravelmente: ele pensa dever sair
da região balizada pelo tema da intencionalidade e, nesse caso, da fenomenologia
husscrliana, sob a pressão da ontologia existencial inaugurada por Heidegger em Scin
1111d Zcit. Daí a oposição que rege sua descrição dos fenômenos mnemônicos entre
duas grandes massas situadas sob o título de "Kceping memory in Mind" e a segun-
da, intitulada "Pursuing memory beyond Mind". Mas o que significa Mi11d - termo
inglês tão difícil de traduzir? Não se refere essa palavra à interpretação idealista da
fenomenologia e de seu tema capital, a intencionalidade? Aliás, Casey leva em conta a
complementaridade entre esses dois grandes conjuntos pois intercala entre eles o que
denomina "nmcnwnic Modcs", a saber, "Rc111i11di11g, Rcminiscing, Rccognizing". Ademais,
ele não hesita em dar a sua grande obra o título A Plzc110111cnologica/ Study. Permitam-
me acrescentar uma palavra para mostrar minha profunda concordância com o em-
preendimento de Casey: aprecio mais do que tudo a orientação geral do trabalho, que
visa a subtrair ao esquecimento a própria memória (daí o título da introdução, "Re-
mcmbcring forgotten. The amncsia of anamnesis" - ao qual responde o da quarta
parte "Remembering re-mcmbcred"). Nesse aspecto, o livro é uma apologia daquilo
que chamo a memória "feliz", em oposição a descrições motivadas pela suspeita ou
pela excessiva preeminência concedida aos fenômenos de deficiência, e mesmo à pa-
tologia da memória.
37 Charles Taylor, Sourccs of ti"• Sei/; Harvard University Prcss, 1989; trnduçiío franCl'Sa de C. Melan-
çon, Lc, Sourccs du 11wi. La/é1n11ntio11 de /'idc11til<' 111odcmc, Paris, Éd. du Seuil, col. "La coukur dcs
id0cs", 1998.
38 Edward S. Casl'v, l./.rn1c111/'t'ri11g A l'/1c1w111l'//o/ogirn/ Studt/, Bloomington e Indianapolis, lndian,1
Unin•rsity l'rl'SS, 1987.
LJ.\ \11\t(lRL\ f IJ,\ RL\11\JISlFM J.\
Nada direi de muito novo a respeito do pólo reflexi\'(J do par aqui considerado,
na medida em que podemos reunir sob esse título fenômenos que já apareceram em
outros pares de opostos. Seria preciso remontar à polaridade memória própria/me-
mória coletiva de nosso próximo estudo. Por outro lado, é por esta última, sob o título
de "Commemoration", que Casey termina sua "busca" da memória "para além does-
pírito". Deveríamos depois agrupar, sob o título da reflexi\·idade, o termo da "direita"
de cada um dos pares precedentes: assim, na oposição entre hcibito e memória, o lado
hábito é o menos marcado no que se refere à reflexi,·idade: efetuamos urna habilida-
de sem o notar, sem prestar atenção, sem estar 111i11df11!. Basta que uma execução se
entra,·e para que sejamos chamados a tomar cuidado. Mi11d 1;01ir stcp 1Q1wnto ao par
enxação/recordação, a reflexividade está em seu auge no esforço de recordação; ela é
enfatizada pelo sentimento de penosidade ligado ao esforço; a e,·ocação simples pode,
nesse aspecto, ser considerada como neutra ou não marcada, na medida em que se diz
que a lembrança sobrevém como presença do ausente; pode-se dizer que ela é mar-
cada negativamente nos casos de evocação espontânea, in\"C1lunt,íria, bem conhecida
dos leitores da B11srn proustiana; e, mais ainda, nos casos de irrupção obsessi,·a,
que iremos considerar no próximo estudo; a evocação já não é simplesmente sentida
(patlws), mas sofrida. A "repetição", no sentido freudiano, é, então, o inverso da reme-
moração, que pode ser comparada, enquanto trabalho de lembrança, ao esforço de
recordação acima descrito.
Os três "modos mnemônicos" que Casey intercala entre a an,ilise intencional da
memória mantida cativa, segundo ele, "i11 Mi11d", e a busca da memória "bc1;011d Mi11d"
constituem realmente fenômenos transicionais entre o pólo de reflexividade e o pólo
de mundanidade da memória.
O que significa Rc111i11di11g? Não há um termo apropriado em francês, a não ser
um dos empregos da palavra "lembrar": isto me lembra aquilo, me faz pensar na-
quilo. Poderemos dizer memento, aidc-111(;/lzoirc, lembrete ou, com as neurociências,
índice de recordação 7 Trata-se de fato de indicadores que ,·isam a proteger contra o
esquecimento. Distribuem-se dos dois lados da linha divisória entre a interioridade
e a exterioridade; encontramo-los uma primeira \'ez na ,,ertente da recordação, quer
sob a forma fixa da associação mais ou menos mecânica da recordação de uma coisa
por uma outra que lhe foi associada na aprendizagem, quer como uma das etapas
"\"i,·as" do trabalho de recordação; encontramo-los uma segunda vez como pontos de
apoio exteriores para a recordação: fotos, cartões postais, agendas, recibos, lembretes
(o famoso nó no lenço 1). É dessa forma que esses sinais indicadores ad,·ertern contra o
esquecimento no futuro: ao lembrar aquilo que dever,í ser feito, eles previnem que se
esqueça de fazê-lo (dar comida ao gato!).
Quanto a Rc11ii11isci11g, trata-se de um fenômeno mais marcado pela ati,·idade do
que em Rc111i11di11g; consiste cm fazer re,·i,·er o passado e\"lKando-o entre v,irias pes-
soas, uma ajudando a outra a rememorar acontecin1entos ou saberes compartilhados,
a lembrança de uma sen·indo de rc111indcr para as lembranças da outra. Esse processo
memorial pode certamente ser interiorizado sob a forma da memória nwditati,·a, que
,\ MFMllRIA, ;\ IIISTllRIA, () LSQU!.CIMl·.N 10
o Ccdiiciltnis alemão traduz melhor, com o apoio do diário íntimo, das Memórias e
antimemórias, das autobiografias, em que o suporte da escrita confere materialidade
aos rastros conservados, reanimados e novamente enriquecidos por depósitos iné-
r
ditos. Assim, faz-se provisão de lembranças para os dias vindouros, para o tempo
dedicado às lembranças ... Mas a forma canônica do Rc111i11isci11g é a conversação sob o
regime da oralidade: "Escute, você se lembra de ... , quando ... você ... nós ... ?" O modo
do Rc111inisci11g se estende, então, no mesmo nível de discursividade que a evocação
simples em seu estágio declarativo.
Resta o terceiro modo mnemônico, que Casey denomina de transição: Rccognizi11g,
reconhecimento. O reconhecimento aparece primeiro como um complemento impor-
tante da recordação; poderíamos dizer que é sua sanção. Reconhecemos a lembrança
presente como sendo a mesma e a impressão primeira visada como sendo outra '9.
Assim, pelo fenômeno de reconhecimento, somos remetidos ao enigma da lembrança
enquanto presença do ausente anteriormente encontrado. E a "coisa" reconhecida é
duas vezes outra: como ausente (diferente da presença) e como anterior (diferente
do presente). E é como outra, emanando de um passado outro, que ela é reconhecida
como sendo a mesma. Essa alteridade complexa apresenta por sua vez graus que cor-
respondem aos graus de diferenciação e de distanciamento do passado em relação ao
presente. A alteridade é vizinha do grau zero no sentimento de familiaridade: nós nos
encontramos nela, nos sentimos à vontade, em casa (/1ci111/iclz) na fruição do passado
ressuscitado. Por outro lado, a alteridade está em seu auge no sentimento de estra-
nheza (a famosa U11/zci111/iclzkcit do ensaio de Freud, "inquietante estranheza"). Ela é
mantida em seu grau médio, quando o acontecimento rememorado é, como diz Casey,
trazido de volta "/Jack wlzcrc it was". No plano da fenomenologia da memória, esse grau
médio anuncia a operação crítica pela qual o conhecimento histórico restitui seu obje-
to ao reino do passado decorrido, fazendo dele o que Michel de Certeau denominava
o "ausente da história".
Mas o pequeno milagre do reconhecimento é de envolver em presença a alterida-
de do decorrido. É nisso que a lembrança é re-(a)presentação, no duplo sentido do
re-: para trás e de novo. Esse pequeno milagre é, ao mesmo tempo, uma grande cila-
da pMa a análise fenomenológica, na medida em que essa re-(a)presentação corre o
risco de encerrar de novo a reflexão na muralha invisível da representação, suposta-
mente encerrada em nossa cabeça, "i11 thc Mi11d".
Mas não é tudo. Resta o fato de que o passado reconhecido tende a se fazer valer
como passado percebido. Daí o estranho destino do reconhecimento, de poder ser
tratado no quadro da fenomenologia da memória e no da percepção. Não esquecemos
a famosa descrição, por Kant, da tripla síntese subjetiva: percorrer, ligar, reconhecer.
Assim, a recognição assegura a coesão do próprio percebido. É em termos similares
qut' Bergson fala do desdobramento do esquema dinãmico em imagens como de um
19 () reconhecirnl'nto SL't\1 objl'to dl' u111l1 lÜL'lll,'<l.o p{1rticull1r L'lll not-.t-.o l'~tudo do l'squl'cinwnto.
Cf. ,1tii.111tl', pp. 4~~--l'i 1.
IJ,\ ,\IFMllln\ 1 ll\ 1,1 \11.,ISlÍ,l l \
fato nesse nível primordial que se constitui o fenômeno dos "lugares de memória",
antes que eles se tornem urna referência para o conhecimento histórico. Esses lugares
de memória funcionam principalmente ii maneira dos rc111i11dcrs, dos indícios de re-
cordação, ao oferecerem alternadamente um apoio ii memória que folha, urna luta na
luta contra o esquecimento, até mesmo urna suplementação tácita da memória morta.
Os lugares "permanecem" como inscriçôes, monumentos, potencialmente como do-
cumentos•", enquanto as lembranças transmitidas unicamente pela voz voam, corno
voam as palavras. É também graças a esse parentesco entre as lembranças e os lugares
que a espécie de ars 111c1110ri11c que vamos cvoc<1r no início do próximo estudo pôde ser
estabelecida corno método dos loci.
Esse vínculo entre lembrança e lugar lev,111ta um difícil problema que se torna-
r,í maior na articulação da memória e da história, a qual também é geografia. Esse
problema é o do grau de originariedade do fenômeno de datação, que tem como para-
lelo o problema de localização. Datação e localização constituem, sob esse aspecto,
fenômenos solidários que comprovam o cio insepar,ível entre a problemMica do tem-
po e a do espaço. O problema é o seguinte: até que ponto uma fonomenologia da da-
tação e da localização pode se constituir sem recorrer ao conhecimento objetivo do
espaço geométrico - euclidiano e cartesiano, digamos-e ao conhecimento objetivo
do tempo cronológico, ele próprio articulado no movimento físico? É a questão levan-
tada por todas as tentativas de reconquista de um Lcbc11swclt anterior - conceitual-
mente, se não historicamente - ao mundo (re)construído pelas ciências naturais. O
próprio Bergson, tão atento cm relação iis ameaças de contaminação da experiência
pura da duração pelas categorias espaciais, não se absteve de caracterizar a memó-
ria-lembrança, comparada ii memória-hábito, pelo fenômeno de datação. Daquelas
leituras particulares, cuja evocação interrompe a recitação de uma lição, ele diz: "É
como um acontecimento de minha vida, ele tem por essência trazer uma data e, por
conseguinte, não poder repetir-se" (Bergson, Maticrc ct Méllloirc, p. 226); e um pouco
adiante, ao convidar a "imaginar duas memórias teoricamente independentes", ele
obsen-a: "a primeira registraria, cm form,1 de imagens-lembranças, todos os acon-
tecimentos de nossa vida di,íria, ii medida que eles se desenrolam; ela não deixaria
escapar nenhum detalhe; a cad,1 foto, a c,1da gL'sto, dcixari,1 o seu lugar e a sua data"
(op. cit., p. 227). A data, corno lugar no tempo, parece assim contribuir para a primeira
polarização dos fenômenos mnemônicos di\'ididos l'ntrc h,íbito e memória propri,1-
mente dita. Ela também(, constitutiva d,1 fase reflexiva ou, como dizem, dcclarativ<1
da recordação; esforço de memória<-, em grandl' parte, l'sforço de d<ltação: quando?
há quanto tempo? quanto durou 7 Husserl tampouco escapou :i pergunta, bem an-
tes do período da Kri,i,, desde ,is Leço11, ... N,10 posso dizn que um som começa,
dura, termina, sem dizer qu,1ntu tempo l'll' dur,1. 1\dcm,1is, dizer "B \'l'm depois dl'
!\.", é recon heccr um car(itl'r pri mord i,11 :1 sl!Cl'SSJO entre dois fenômenos distintos:
a consciência de sucessão é um d,1do origi n,í rio dl' consciC'ncia; é ,1 pcrcPpç<'ío L1l':-,s<1
!l\ \ll~llll\l\ 1 ll\ 1!1\11\.lc,(l\.ll\
sua apreens5o.
Voltando J llll'mLíria dos lugares, podl'mos, na esteir,1 dl' Case\·, tl'nt,ir recupl'rar o
sentido d,1 L'spacialidadt· sobre a concepç3o ,1bstrata do l'spaço geom{,trico. Ele rcser-
\·a, para csta, o ,·ocabul,írio do sítio e H'SL'n·a o do lugar (p/at"c) para a cspacialidade
,·i,·ida. O lugar, diz elc, não é indiforente J "coisa" que o ocupa, ou melhor, qul' o
preenche, da forma pl'la qual o lugar constitui, segundo Arist<iteles, ,1 forma esca, ada
de um n1lume determinado. São alguns desses lugares notcin·is que chamarnos Lk
memor,í,·eis. O ato de habit,ir, e\·ocado um pouco ,icima, constitui, a esse 1-pspeito, ,1
m,1is forte ligaç3o humana entre a datei L' o lug,ir. Os lugares habitados s3o, por cx-
Cl'iL'ncia, mcmor,í,-eis. Por estar a lembrança tão lig,1da a eles, a lllL'mlíria dL·cla1"clti1·a
se compraz cm L'\"OC,í-los L' dl'scre,·ê-los. Quanto a nossos deslocamentos, os lugares
sucessi,·amL'nte percorridos scrvcm de rc111i11das aos episódios quL' ,ií ocorrer,1111. S,10
eil's qul', 11 pnMcriori, nos parecem hospitaleiros ou n,10, numa pala,-ra, h,1bit,í1-eis.
Toda1'i,1, no início da segunda parte, na tr,1nsiç,10 da memória J história, surgir,í a
qul'st,10 dl' sabl'r se um tempo histórico, um l'Sp,iço geogrMico podem ser concebidos
sem o auxílio de categorias mistas que articulem o tempo ,·i,·ido e o espaço \·i,·ido
no tempo objeti,·o L' no L'spaço geométrico que a cpok/1,' submeteu a uma suspens,10
mL'tlídica em prol de uma Íl'nomenologia "pura".
Eis no,,amentl' IL'\ antada a qul'slc1L1, di1·ers,1s \"L'ZL'S L'IKontrada, do carcÍtl'r ultima-
ml'ntl' sustent,Ín'l da cpokft,, husserliana. Sl'ja qual for l'sse dl'stino ulterior d,1 nwmC,-
ria d,1s d,ltas L' dos lug,irL'S no plano do etl11hl'cinwnto hisk1ricL1, L' o l'io cntrL' memliri,1
corpora I L' nw1rníria dos lugML'S que lcgiti m,1, a título primordial, ,1 dessi mpl iL·a½,ll' du
L',p,1½·0 L' do tl'mpl' dL' sua forma objdi, ,ida. O corpo con-ctitui, dL'SSL' ponto dl', ista,
ll lug,ir primordi,11, o ,iqui L'lll rl'l,1ç,10 ao qu,1I todos os outnis lug,1t"l's s,lll Lí. '\,c-csc
,1-cpL'cto, a sinll'tria L'ntre espaci,1l idadl' L' tl'mporcilidade 0 compll'ta: "aqui" l' "agLH,1"
ocupam a mcsm,1 pL1si½·,10, ao l,ido de "eu", "tu", ''c,lc" L' "l'la", l'lltrL' os di:,iticl1, qm·
pontuam nossa linguagl'm. 1\qui e ,1gt1r,1 constituem, l'lll n·rdadc, lugarl's L' d,1lc1s ,iL,-
solutos. 'vias podcml>S m,11ltL'r por muito kmpl' l'ss,1 suspl'ns,lll dll tempo L' dLl L',pa\·l,
llbjl'li, ados 7 l\1ssL1 L'1·it,ir ligar llll'LI aqui ,lll l,í dclimit,1do fWlll ,·,Hpll dl' outrem sl'lll
rL'ClllTL'r ,1 um si;-;tL•m,1 dL' lug,HL'S lll'lllnis 7 .\ iL'lllllllL'llLllogici d,1 lllL'llll,ll'i,1 doe, lug,HL's
p,ll"l'CL' ser ,1p,1nh,1d,1, dl'Sdl' Ll início, lllllll llltl\ illlc11tl, di,1ll'tiCl1 intr,111sponin·l ,k ,il•s-
silllf>lic,1\·,1(1 do L'sf>,1u1 \ i, ido L'lll rL'LK,1,1 ,1<1 c,p,lÇll ).'.L'll!lldri,l> ,, dL' rl'ill1f>li,·,1t;,1li de
u!ll fº''lll uulrll ,,111 ll,dll fºnll'L'SS(l ,k reLKi,111,llllL'lltll do f>rc"ipril> Clllll ll allwill. l\,dl'ri,1-
rnt1, n111,idl'r,H-nl,, c,,rn,1, i/illhl'" dl' cilgl!L'lll dikrcntl' sern urn c,bnçl> topllgr,ífin1 7
f' ll ,1qui L' tl l,í pl1ckri,1m dcst,K,H-sL' lll> hl>ri/tlllil' d,· un1 ll1l!lldo t"\lllllll1l "l' ,1 L,llic-i.i
d,1, \ i/i11hc111ç,1, CllllCrl't,1;-; ll,lll esli\L'Ssl' pr,'s,1 ll,1 gr.idl' d,, Ulll gr,111dl' c.icL1str,1 L'lll
l]LIL' os lug,Hl'S s,1,1 rn,1is dll que sitil1, U, !lldi, lllL'lllllraH'is lug,1r,'s 11,10 F',ll'l'll'l·i.im
0
C,lf',l/L', de cxncl'r su,1 funç,10 de lllL'lllllrial "' ll,lll fl1',L'lll t.imbc",m ,ilills 11ol,í1 ,'is 1w
pllnto de inlL'rSL'Ç,lll cL1 p,1is,1gL'm L' d,1 geogr,ifi,1. L-:111 rl'sumll, Lls lugarl's dl' lllL'lll(Í1·ia
scnam os guardiões da memória pessoal e coletiva se não permanecessem "em seu
lugar", no duplo sentido do lugar e do sítio?
Adi ficu Idade que evocamos aqui torna-se particularmente embaraçosa quando, na
esteira de Cascy, colocamos a análise dos fenômenos mnemônicos ligados à comemo-
ração no final do percurso que se supõe afastar a memória de seu núcleo "mentalista".
Por certo, é perfeitamente legítimo recolocar a comemoração no quadro da polaridade
reflexividade/mundanidade 41 • Mas então o preço dessa inserção da comemoração no
quadro da mundanidade é particularmente alto: uma vez que enfatizamos a gestua-
lidade corporal e a espacialidade dos rituais que acompanham os ritmos temporais
de celebração, não podemos eludir a questão de saber cm que espaço e cm que tempo
se desenrolam essas figuras festivas da memória. O espaço público, cm cujo seio os
celebrantes são reunidos, o calendário das festas, que pontuam os tempos fortes das
liturgias eclesiásticas e das celebrações patrióticas poderiam exercer suas funções de
reunião comunit,íria (rc!igio é igual a rclignrc?) sem a articulação do espaço e do tem-
po fenomenológicos no espaço e no tempo cosmológicos? Mais particularmente, os
acontecimentos e os atos fundadores, geralmente situados num tempo afastado, não
estão Iigados ao tempo calendário, a ponto de este determinar, por vezes, o ponto zero
do sistema oficial de datação 42 ? Questão mais radical ainda: a espécie de pereniza-
ção, operada pela série das reefetuações rituais para além da morte um por um dos
co-cclebrantes, não faz de nossas comemorações o ato mais loucamente desesperado
para fazer frente ao esquecimento em sua mais sorrateira forma de apagamento dos
rastros, de devastação? Ora, esse esquecimento parece operar no ponto de articulação
do tempo e do movimento físico, naquele ponto em que, observa Aristóteles na Física,
IV, 12,221 a-b, o tempo '"consome' e 'desfaz"'. É com essa nota de hesitação que inter-
rompo, mais do que acabo, este esboço de uma fenomenologia da memória.
Com o título "A lembrança e a imagem", atingimos o ponto crítico de toda a feno-
nwnologia da memória. J,í nZio se trata de uma polaridade suscetín'l de ser abarcada
por um conceito genérico como o de memória, mesmo desdobrado entre a simples
presença da lembrança - a ll/111'/lll' dos gregos - e a recordaçZio, a rccollcctio11 - a
1111a11111t'sis dos gregos. A questão embaraçosa é a seguinte:('.• a lt•mbrança uma espécie
de imagem, e, em caso ,1íirmativo, qual 7 E se, por uma an;ílise eiddica apropri,llia, se
\·erificasse ser possín'l dar conta da diferença essencial entre imagem e lembrança,
como explicar seu entrelaçamento, e mesmo a confusão entre ambas, nZio só ao ní,·cl
da linguagem, mas no plano da experiência, i,·a: não falamos de lembrança-imagem,
e até da lembranç,1 como de uma imagem que fazemos do passado 7 O prnblem,1 nZio
é no\'o: a filosofia ocidental herdou-o dos gregos e de suas ,·ariações em torno do ter-
mo cikt111. .. Certamente, dissemos e repetimos que a imaginaçZio e a memória tinham
como traço comum a presença do ausente, e como traço diferencial, de um lado, a sus-
pensZio de toda posiçZío de realidade e a \·isão de um irre,11, do outro, a posição de um
real anterior. E, no entanto, nossas an,ílises mais difíceis ,·ão ser dedicadas a restabe-
lecer as linhas da transferência de uma prnblemiÍtica sobre a outra. Que necessidade
faz que, depois de ter separado a imaginação e a memória, seja preciso associó-las de
maneira diferente da que presidiu à sua dissociação? Em resumo: que necessidade
eidética manifesta a expressão lembrança-imagem, que não deixou de assombrar nos-
sa fenomenologia da memória e que ,·oltarcÍ com toda força no plano da epistemologia
da operação historiogrMica sob o título da representação historiadora do p,1ssado";7
É Husserl que, amos tomar como primeiro guia na im·estigaçào das diferenças ei-
déticas entre imagem e lembrança. É consider,ÍH•l a contribuição de Husserl para essa
discussão, embora suas an,ílises fragment,írias, que se estendem por mais de ,·inte e
cinco anos, não tenham resultado numa obra construída. Porém, di,·ersas delas foram
reunidas no ,·olume XXII! das H11sscrli111w sob o título de Vorstc//1mg, Bild, l'lumtasic
( 1898-1925) 11 , cujo, ocabu lei rio é imposto pelo estado da d iscuss,10, no final do século
XIX, em torno de pensadores tão importantes quanto Brentano. Ness,1s ancÍlises, de
uma paciência e de uma honestidade i ntelectua I desconcertantes, loU\'O pessoa Imente
,1 segunda contribuiçi\o principal da fononwnologia dcscriti,·,1 para a probk•m,ítica da
memória, ,10 lado das ,1n,íliscs dedicadas :i rdcnç,10 e :i relembrança nas duas prinwi-
ras scçôes das Liç11cs de llJO'i so/,rc 11 w11sci,;11, i11 í11ti11rn do tc111po. É just,1mente p,ir,1 ,1 cor-
relaçc'ío entre l'Ssas duas séries pc1ralPl,1s que desejo atrair a all'nção do leitor: ambas
têm a, ,,r com a \l'fknll' "objetal" dei Fri111u·rn11,,2, que podl', com r,1/i\o, Sl'r dl'signada
~wlo substanti\O "ll'mbr,rnça".
61
De foto, esses textos laboriosos exploram as diferenças específicas que distinguem,
por seus correlatos "objetais" (Ccgc11stii11dlichc11), uma variedade de atos de consciên-
cia caracterizados por sua intencionalidade específica. A dificuldade da descrição não
procede apenas do entrl'laçamento dt'SSl'S correlatos, mas também do congestiona-
mento da linguagem por usos anteriores, quer sejam altamente tradicionais, como o
emprego do termo Vorstcl/1111g, imperativa mas desastrosamente traduzido por "re-
presentação", quer sejam impostos ~wla discussão da época. Assim, a palavra Vors-
tcl/1111g, incontorn,ível a partir de K,1nt, agrupava todos os correlatos de atos sensíveis,
intuitivos, distintos do juízo: uma fenomenologia da razão, que Husserl não parou
de projetar, não podia prescindir dela. Mas a comparação com a percepção e com
todos os outros atos sensíveis intuitivos oferecia uma abordagem mais promissora.
É por ela que Husserl optou obstinadamente: ela impôs distinguir uma variedade
de "modos de aprt•sentação" de alguma cois,1, a percepção que constitui a "apresen-
tação pura e simpks", Ccgcmuiirtig1111g, todos os outros atos sendo classificados sob
a rubrica presentificação, Vergcgcmuiirtig1111g (sendo o termo traduzido também por
"re-(a)presentação", com o risco dl' confundir "re-(a)presentação" e "representação"
-Vorstcl/1111g).
O título do volume de Husscrl abrange o campo de uma fenomenologia das pre-
sentificaçôcs intuitivas. Vemos onde pode ocorrer a imbricação com a fenomenologia
da lembrança: t•sta é uma espécie de pn•sentificação intuitiva que tem a ver com o
tempo. Husscrl coloca muit,1s vezes seu programa sob a égide de uma "fenomenolo-
gia da percepção, do Bild, da l'lrn11t11sic, do tempo, da coisa (1Ji11g)", fenomenologia que
,linda estcí por fazer. O fato de a percq,ção e seu modo de apresentação serem tidos
como rder[•nci,1 não deve levar a suspt·it1r prL'm,itur,1mL'JÜL' de uma "metafísica da
presenç,i'' qualquer: trata-se da apresentação dl' ,1lgum,1 coisa com seu carMer distin-
ti\·o de intuitividade. l'or outro lado, todos os m,1nuscritos do \'l1luml' têm a ver com
os modos objet,1is, que ti'-m como quinhc'ío a inluiliviLfade, mc1s l]Ul' diforcm d,1 pn-
cepção pela não-aprescntaç,10 de seu objeto.(: o seu lr,1ço comum. As diferenças v[•m
depois. Quanto ,10 lug,ir da IL'mbranç,1 nesse IL'L]UL', ele perm,1nL'CL' determinado de
mtido incompleto, enquanto seu elo com a consci[·ncic1 do tempo não é L'stabckcido;
m,1s esse elo pode se d,ir no ní\·el das an,ílisL''> dc1 rl'tl'nçc'lo L' d,1 rq,rodução ljlll' per-
lll,llll'Cem 11,1 dinll'ns,10 objl't.1I. (: prl'ciso, l'nt:w, comp,ir,ir, como pedl' Hussl'rl, os
m,rnuscritos coligidos no tomo X, ";\ consciL~nci,1 íntima do kmpo", e os do tomo
XXIII d,1s l /11s,cr/i111rn. Nc·slL' último, o que· import,1 é o p,ircntcsco com as outr,1s mo-
d,ilidadcs de• pn'SL'lllificação. /\ apost,1 d,1 ,111,ílisc, Jlt'c,s,· csl,ígio, é c1 rl'laçfío l'lllrl'
lembrança L' imagL'lll, sendo que a noss,1 p,1l,1\ r,1 "imagem" ocup,1 o mL'smo terrl'no
l]lll' ,1 Vc1y_c:,;cm1•iiri(•~1111g de l lusserl. M,1s j,í 11,10 ,•r,l L'SSL' ,, caso com ,1 cik1J!f do;; gregos
e sueis qul'relas com a 11/1011ta,in 7 V,1mos c11n111tr,ir L'slcis com Hild ,. l'/11111/,r-;it•. Or,1. ,1
k·mbr,1nç,1 km a n·r com L'Ss,1s duas moLL1liLL1dL'S, como lembrc1c1,·numL·r,H;,1,117/\ ti-
tu lo preferido dL· 1-lussL·rl, ,1 l]LIL' se de\'l' ,KrL·s,-L·nLir c1 espl'ra (f ru•art 1111g), coloec1d,1 do
mesmo l,1do que ,l IL·mbr,111çc1, m,1s 110 l'XtrL·m,1 0~1oslo da pall'tc1 das prcsl'ntific,1,:(1l's
lemporc1is, como VL'mos lambt.'·m nos manusL-ritos sobre o IL'mpo.
Quando Husscrl fala de Bild, ele cst,í pensando nas presentificaçt"íes que descre-
n•m alguma coisa de maneira indireta: retratos, quadros, estMuas, fotografias, de.
Aristóteles ha\'ia dado início a essa fenomenologia ao obsen,,ir que um quadro, uma
pintura podiam ser lidos como imagem presente ou como imagem que designa uma
coisa irreal ou ausente"ª, A linguagem cotidi,ina, muito imprecisa, fala, nesse caso,
tanto de imagem como de representaçi\o; mas, por ve7es, ela se torna precisa, ao per-
guntar o que um quadro representa, do quL' ou de quem ele é a imagem, Poderíamos,
cnti\o traduzir Bild por "d,;pit'liou" (represent,1çi\o pictórica), tendo como modelo o ,cr-
bo "d,;pciudrc" (representar),
Quando fala de f'lumtasic, Husserl est,í pL'nsando nas fadas, nos anjos, nos diabos
das lendas: trata-se mesmo dL' ficçi\o (alguns textos di7em Fik/11111), J\licís, Husserl se
interessa por eles em rat'JO de seus \'Ínculos com a espontaneidade, que é uma caracte-
rística de crença (l,c/ict; diz ele muitas n>zes, segundo o uso da grande tradiçc10 de
língua inglesa),
A fenomenologia da lembrançzi est,í implicada nessas distinções e nL'ssas ramifica-
çiíes, Mas os exemplos propostos ni\o poderiam prescindir de uma análise essencial,
eidética, E as intermincÍYeis análises dL' Husscrl sc10 pro,·a da dificuldade em estabili-
zar significaçôes que nc10 param de a\'c1nçar umas sobre as outras.
Foi a distinçc10 L'ntre Bild e JJ/11111/asic que o perturbou desde o início (1898-1906) -
portanto, na época das Pesquisas lôgirns, no contexto de uma teoria do juízo e da no\'a
teoria das significaçt"íes que trouxe para o primeiro plano a questc10 da intuiti\'idade
ao título da Erfiih/1111g, do "preenchimento" das intcnçôes significantes, Mais tarde,
na época das Jdccu, é a modalidade de neutralidade própriil da l'lumlasic que p,1ssar,í
para o primeiro plano, diante do cir,íkr posicional da percepçc10, lnten,iriÍ também,
de certo modo indiretamente, a questc10 da imii\'iduação dL' um algo, operada pelas
\'ariedades de apresentilções, como se fosse a intuiti\'iLiilde que periodicamente nil-
tasse a pre\'alecer na escala do saber. Em outros momentos, é o afastamento extremo
da l'/11111/asic relati\'amente à apresentaç,10 em carne t' osso que o intriga. A f'h1111l,Nc
tl'nde então il ocupar todo o lugar do \Occ'íbulo inglês idca, oposto à i111prcs,io11 dos
L'mpirist,1s ingleses, J,í nc10 Sl' trata simplesmente de diabruras, mas também dl' ficções
pu<·ticas ou outrils. É a intuiti\'idade nc10 ,ipresentantl' que Lklimita o campo, Arriscar-
no-,-L'mos ,1 falar tra nqü i l,1 mL'ntl' de fantasia, dL' fa nt,ístico, como os gregos 7 (;\ grafia
fr,1ncTsa "phantaisie" ou "fdntaisic" pL'rm,1nL'Ct', L'ntc10, l'm aberto,) l'ar,1 ,1 fl'nomeno-
logi,1 da lembrança, o que importa<· qul' a not,1 temporal da rl'tl'nçc10 pode juntar-se
:1 t,1nL1si,1 erigida pro, isoriamente cm gL'Jll'ro comum ,1 todas as ni\o-apresent,1L/\L'S,
\Li, c'LlllSL'f\',l-Sl' o nKabuLírio da Vor,/c/11111,\, qu,1ndo SL' salil'nt,1 a intuiti,,idadt• co-
1rn1111 as ,1prl'SL'11taçC1L'S l' às prl'Sentific,Ktll'S no campo de uma lógic,1 fenomcnoltígica
,Lh nific.ic,-it•s, Enlc'io, é unic,1mcntt• n,i /1l11n1/,1,i,, qut• '>L' dt'\L'lll L'nXL'rtar ,is m,irecb
_.)_'; !\idt'llilh h·r nc1 tr,1dw<,1u dl' l ll'nrl IJt1'-'-(1rt rl'\ i..,Ll f'(ll. ( ,l·r,nd ( ,r,llll'l ,h / (\( 1/h --..111· /(1 ,1 11 l--,
P<lrtir dP (1ri,c,in,1l dl'-..'-L' tc,1t1, 1·( J\vrrwt l'ditllll L' prl'f,1c1t1u th k\.tl"'
,.:!1:11(· d11 !c1u11--.. ( [l)()~-JLJ28). :\
l-tirn~,JvnwnLirc.., da:-- Lt\(111:,:. dL~ llJ()7 c,1m 11 l1tul(1 /u,1 / 1/1d;/( 1/l,'l''/, 1/1 1,;·, ,f,--. 1u11t'rt'il /!'1!l 1t';,·u,--..!"(':'''..,
61
A ~ffMllRIA, A HISl(lRIA, () LSQULCIMFNTO
46 Um tc>xto das Husscr/i111111, VIII, Er,lc /'/,i/o,op!,ic (1923-1924), texto editado e introduzido por R.
Boeh1n, Haia, Nijhoff, 1959, conta a angústitl de Husscrl confrontado con1 d espantosa i1nbriú1-
ção dos fenôn1enos considerados: "J\parcnte1nente, i.1 lc1nbn.1nç(1 presentifica, de n1odo si1nplPs,
uni passado lc1nbrado, a esperl1, uni futuro esperado, a "n.'prescntação pictórica" (Ahbi!d11ng), uni
objt...'to representado, a fc1ntasia, uni "fictício" (Fiktw11); da n1esn1a fonna que a percepção se referL'
il um pl'rCl'bido. Mas na VL'rLiddL' n5o é assim" (ov cil., p. 130; trad. P. Rico.>ur). Não & a única \ºl'!'.
qup Husserl se clCusa de erro. Rayn1ond Kcissis, excelentt' conhecedor do corpus hussL·rliano nl1
sua ítltl'gra, indicci-rne as plíginclS deis H11-;:-;cr!ia1111, XXIV, f.i11!citu11g i11 dic Logik 1111d frkt·nllflli::;t!tco-
ric Vor/cs1111gc11 /1906~1907), ll'xlo L'dit,1do P introdu,cido por U. ML'IIL', Dordrecht, Boston, Lon-
dres, Nijhoff, 1984, dl'dicadc1s il "distinção entrl' conscil•ncicl de P/1t111fthic e le1nbr,1nça pri1nlíria"
(pp. 255-258) L' às "(1nc1logias" entre os dois tipos de presentificações. TrZ1ta-sc sen1pre de objeto~
ten1porais que in1plican1 umcl "extcns,lo ten1porl1l".
ll\ ~11~1(1RI \ 1 ll\ RI \11'\l'>lT.'\l 1 \
Sl 1/UJ\ X estabell'c<' um,1 rdaçàll l'ntrl' ld,·c11 /, § '.>6 l' sl'g. e HLIJ\ XXII/, n" 19, rdc•n•ntl' ~ opl'r,1ção
constituti\'<l dci fant<1sia L' à distinç<lo entre f<1ntasia e lcnll1rança cn1 tcrn1os de preenchimento. "A
intcncionalict1dc tL•ticainc•nte n<lo n1odifiú1da" dil lt._,n1br<1nç<1 in1pcdt· quillqucr confus.lo con1 a
fantasia:" correlato cksta e' "a pura possibilid,1de'" qu,llltll ~ rnlld,1lici.1de (HUJ\ XXII/, p. '.>59).
l l \ \li \lllRI \ 1 IJ\ 1,1 \11'.IS( [ '.( l \
:i2 Rt.'~t.'n·o p,1rc1 o capítulo 1 d,1 tcrceir(1 partl', nu jmbitn de uma di::-.cu:-.:--.,ln ::-.obre o esquecimento, d
qut.'::-.t/10 do pcipcl do L't1rp1.1 t.' do cl'rt.•bru, nu p()ntl1 dl' ,irticulaç,l.u l'ntrl' um{1 p<-.;icoli_)gia no :--.t.'ntidn
lato, L' um,1 n1t.'L1tí::-.ic1 cnnccbid,1 tund,1n1t.·ntalml'ntl' como "mcL1fr:-.iec1 d,1 mcitl'ria l' bc1::-.t.'cld,1 n,1
duraçJo" (F. \\'orm:-., Intn1d11dio11 17 ",i\ L1/1t'rc t'f ,\ lt'll/tiirc" de /-;t'IS~t 1 11, l\iri:--., PUF, col. "Ll':-- Crand:--
1.inL'o da philooeiphiL-°. \')')7)c
A i\1F~1(lRli\, ;\ IIIS"T(JRIA, (l FS()UFC1i\1FN10
p. 229). A distinção entre uma "memória que revê" e uma "memória que repete" (op.
cit., p. 234) era o fruto de um método de divisão que consiste, em primeiro lugar, em
distinguir "duas formas extremas da memória, cada uma encarada no estado puro"
(i/Jid.), depois, em reconstruir a lembrança-imagem como forma intermediária, como
"fenômeno misto que resulta de sua coalescência" (ibid.). E era no ato do reconheci-
mento que se operava essa fusão, marcada pelo sentimento de "déjà vu". Logo, é tam-
bém no trabalho da recordação que pode ser reapreendida, cm sua origem, a operação
de composição em imagens da "lembrança pura". Só se pode falar desta como de uma
passagem do virtual ao efetivo, ou ainda como da condensação de uma nebulosa ou
de uma materialização de um fenômeno etéreo. Outras metáforas se apresentam: mo-
vimento do fundo para a superfície, das trevas para a luz, da tensão para o relaxamen-
to, do alto para as camadas mais baixas da vida psíquica. É esse o "próprio movimento
da memória que trabalha" (op. cit., p. 276). Ele traz, de certo modo, a lembrança para
uma área de presença semelhante à da percepção. Mas - e é aqui que alcançamos o
outro lado da dificuldade - não é qualquer tipo de imaginação que é assim mobili-
zada. Ao inverso da função irrealizante que culmina na ficção exilada no que está fora
do texto da realidade inteira, é sua função visualizante, sua maneira de dar a ver, que
é exaltada aqui. Neste ponto, não podemos deixar de evocar o último componente do
11111//zos que, segundo a Poética de Aristóteles, estrutura a configuração da tragédia e
da epopéia, isto é, a opsis, sobre a qual se diz que consiste em "pôr debaixo dos olhos",
em mostrar, em deixar ver". É também o que ocorre com a composição em imagens da
"lembrança pura": "essencialmente virtual, o passado só pode ser apreendido por nós
como passado quando seguimos e adotamos o movimento pelo qual ele desabrocha
em imagens presentes, que emergem das trevas para a claridade" (op. cit., p. 278). A
força da análise de Bergson está em manter distintas e, ao mesmo tempo, ligadas as
duas extremidades do espectro percorrido. Numa extremidade: "l11111gi1111r não é /c111-
bmr-sc. Uma lembrança, à medida que se atualiza, provavelmente tende a viver numa
imagem; mas a recíproca não é verdadeira, e a imagem pura e simples só me levará
de volta ao passado se eu realmente tiver ido buscá-la no passado, seguindo assim o
progresso contínuo que a trouxe da obscuridade para a luz" (ibid.).
Quando seguimos até o fim essa rampa descendente que, da "lembrança pura",
conduz à lembrança-imagem - e, como veremos, bem além-, assistimos a uma in-
versão completa da função imagificante, que, também ela, desdobra seu espectro des-
de o pólo extremo, que seria a ficção, até o pólo oposto que seria a alucinação.
Era do pólo ficção da imaginação que eu estava tratando em Tc111po e N11rmtiv11
quando opunha a narrativa de ficção à narrativa histórica. É em relação ao outro pólo,
o pólo alucinação, que temos de nos situar agora. Do mesmo modo como Bergson
53 Aristóteles, l'o<'lirn, 1450 a 7-9, faz do "espct,ículo" (opsis) uma das partes constitutivas da nar-
rativa trélg:ica. Ele coloca a ordenação (ko::-.111ns) exterior e \'isível do poerna, da fabul,1, ao tido da
dicção (lcxis) que diz de sua legibilidade. Rctárirn, III, 10, 1410 b 33, diz, sobre a metáfora, qm' ela
"pôe sob os olhos". EncontrcHl'l1lOs essa 1nesn1il relação entre legibilidade e visibilidade no nível
da representação historiadora (segunda parte, c,1p. 3).
ll.\ ~IE\lllRI.\ 1 IJ.\ RI \11'\l½lT'\l l \
::;-i ]L',1n-l\1ul S,irtre, L'lllu1g11111in._', Paris, Callimard, FJ-1-ll; reediç.lo, col. 'Toliu L'Ss ..1is", 1986. É L'St,1 ülti-
n1,1 ediç<lo qul' ~L'r,í citad,1 ,1qui.
A ~11 ~1llRIA, 1\ IIISIORIA, () l"S(lLl:CIMI:'\ 1()
plano da memória coletiva e n3.o evocar a espécie de obsess3.o descritos pelos histo-
riadores do tempo presente quando estigmatizam aquele "passado que não passa"? A
obsessão é para a memória coletiva aquilo que a alucinação é para a memória privada,
uma modalidade patológica da incrustação do passado no seio do presente, cujo par é
a inocente memória-h,'íbito que, ela também, habita o presente, mas para "animá-lo",
diz Bergson, não para obsedá-lo, ou seja, atormentá-lo.
Dessa descrição, por Sartre, da reviravolta da função irrealizantc da imaginação em
função alucinante, result,1 um curioso paralelismo entre a fenomenologia da memória
e a da imaginação. É como se a forma que Bergson chama intcrmedi,íria ou mista da
lembrança, isto é, a lembrança-imagem, a meio caminho entre a "lembrança pura" e
a lembrança reinscrita na percepção, no estc'ígio em que o reconhecimento desabrocha
no sentimento do déjii vu, correspondesse a uma forma intermediária da imaginação,
a meio caminho entre a ficção e a alucinação, a saber, o componente "imagem" da lem-
brança-imagem. Portanto, é também como forma mista que é preciso falar da função
da imaginação, que consiste em "pôr debaixo dos olhos", função que podemos chamar
ostensiva: trata-se de uma imaginação que mostra, que expôe, que deixa ver.
Uma fenomenologia da memória não pode ignorar aquilo que acabamos de chamar
de cilada do imaginário, na medida em que essa composição cm imagens, que se apro-
xima da função alucinatória da imaginação, constitui uma espécie de fraqueza, de des-
crédito, de perda de confiabilidade para a memória. Não deixaremos de voltar a esse
assunto quando formos considerar certa maneira de escrever a história, ii moda de
Michelet, diremos, cm que a "ressurreição" do passado tende, também ela, a reves-
tir-st' de formas quase alucinatórias. A escrita da história partilha dessa forma das
aventuras da composição em imagens da lembrança sob a égide da função ostensiva
da imaginação.
Eu não queria concluir com essa perplexidade, mas com a resposta provisória que
se pode dar ii questão, que podemos dizer, de confiança e que a teoria da memória
transmite ii teoria da história. Essa questão é a da confiabilidade da memória e, nesse
sentido, de sua verdade. Essa questão estava formulada no pl,H10 de fundo de toda a
nossa investigação a respeito do traço diferencial que separa a memória da imagina-
ção. No final de nossa investigação, e a despeito das ciladas que o imaginário arma
para a memória, pode-se afirmar que uma busca específica de verdade está implica-
da na visão da "coisa" pass,1da, do que anteriormente visto, ouvido, experimentado,
aprendido. Essa busca de verdade especifica a memória como grandeza cogniti,·a.
Mais precisamente, é no momento do reconhecimento, cm que culmina o esforço da
recordação, que essa busca de verdade se declara enquanto tal. Então, sentimos e sa-
bemos que alguma coisa se passou, que alguma coisa teve lugar, a qual nos impli-
cou como agentes, como pacientes, como testemunhas. Chamemos de fidelidade essa
busca de verdade. Falaremos, doravante, da verdade-fidelidade da lembrança para
dizer essa busca, essa reivindicação, esse c/aím, que constitui a dimensão epistêmico-
veritativa do or//10s logos da memória. Serei a tarefa do estudo seguinte mostrar como
a dimensão epistêmica, vcrítatíua da memória se compôe com a dimensão pmg1111ítíca
ligada ii idéia de exercício da memória.
2
A Memória Exercitada: Uso e Abuso
Nota de orientação
A
11/,urdi1ge111 ctJgni/Íi'11, exposto no ct1pítulo prcccdc11/c, lltl/l <'\<,;0/1111 dcscriç110 dt1 111c-
11Hírio co11sidcmda do ponto de ,'Í.<117 "1,/ 1ieli1/". Dc,'e111t1s t1crcsce11/17r a c/17 u11117 o/,tJr-
di7gcrn pmg111iílirn. f,;,;17 !Wi'il co11sidcmç,1tJ se nrtirn/17 11/1 pri111cim da scgui11tct,1m111:
lc111lmn-sc é Ili/O StJ111c11/c aco/licr, rccc/,cr llll//7 i11lilgc111 do )'ilSSt1do, co11w tn1n/,t;111 [,u,câ-117,
'}i1:cr" 17/gu11111 coisil. O ,,,,,.[,o "/c111/1mr-sc"fii: p11r co111 o su[,s/1711/i,'o "lc11i/,mnç17"_ O que case
,,,,,.l,c, designo t; o_fí1l/l de 1/llL' 17 111e11Híriil ,; "cxcrcilildil". Om, 11 11/lç,1,1 de cxcrcícitJ, oplirndil 1í
111c111ôriil, 11110 ,; 111e11os 1711 tigil dtJ que a de ei kt1n, de rcprcscn taç110. / li II to tÍ de "/J/1sci1" I dt,'sisJ,
c/17 [,ri/l1i1 1wfin1111111c11/o dos cnnccitns sncnític,,s. l\/17 esteira de S,ícr,1/cs, Plillíio 11/10 IIcsi/17 t'III
dcsltJcilr seu discurso sol>rc 17 eikt1n pom n t'illl//)(' das "/h11irns i111illlli,,17s", e c111 distinguir
u11117 111i111aim }imta,1111ítirn", cngil11t,,;i1 por desti11n, e u11117 111i111airn "icô11ic11", cn11aidcr,1di1
"cnrrc/a" /orthosJ, ",,crídirn" /all'thinos!. f't1r suil ,,e:, Aristóteles, 11/l Cil)'Ílulo "A111mrn,,,i,"
de .<cu curto /miado cn111 título duplil, de,crc,'c i7 rcctJrdaç110 co1110 u11117 "[,usrn", e11qu1u1to t1
11lllt'l1lt'_fi1i rnmclcri:t1d11, 110 pri111eiro rnpítulo, co1110 "11fi'cç110" lpathosJ. Nossos dois 111es/rc.,
grcgtJs se 1u1tccipn111, assi111, 1w que será cl!imlildo csfórçtJ de 111c111ôrit1 por Bergson e tm/ii1/110 de
rc111c111t1mç110 por Freud, C0/11/l ut'l'e111os c111 /irc,'e.
()fí1l0 110/ií,,cl é que t1s duas 17/Jord17gc11,, Ct\1;!lili,'il e pmg111iílic,1, se rc1í11c111 1111 opa17ç110 dt1
nn,rdaçào; o rcco11l1cci111cnltJ, que coro// a IJ/1.<ct1 /,c111-succdida, dc.,ig11t1 ,1_/Ílcc cog11i/Íl'il dt1 nn1r-
daç110, 170 pnsso que o csti,rço e o tmlm//10 ,e i11,crc,'c111 110 nu11po prâtictJ. /,/est'l'i'ill'l'll!OS dom,'1711-
tc o /cn110 rememoração pt1n1 signifirnr csst1 supcrposiçiítJ Ili/ 111cs11111 ilpcmçiín dil ,1namn,'sis,
dt1111cdit11ç110, do rcctJrdilç110, di7s duas prnl 1lc111âtio1s: cognitim e pmg1111íliCll.
Esse desdolmm1e11/o c'1lirc di111e11s11t1 cog11ifii,,1 e di111e11st1/l pmg1111íliCll 17cc11/u11 o cspcc1fi'ci-
,iadc dil 111e111ória entre os _f1'11a111e110, que depc11dc111 da dnw111i1111ç11tJ psíquiCll. A esse rc,pciln,
o 17/0 de _fi1:er 111c111ôria ,'c111 inscrcucr-se 1117 lista dtJs poderes, dt1, Cilpacidndcs, que dcpc11dc111
da Clllcgoria do "cu ptJsso", pam re/0111/lr 11 cxprc.<<17/l rnm 17 fv1cr/cau-T'o11ty1. Mns parece 1/UL' o
Eu n1t'smo nlt' dl'diqul'i, cm ::,:,i 111c.-;1110 (()l//i 1 111/1 (111fr(l, ov t"it., ,.1 trai.ir nHlll) 1nanifr,sL1t.JlL':--. rnL.iltipla--.
da potl'ncia fundanlL'ntal dl' c1gir oper(1çt)l's tr,1dicion,1\Jnentt.' ,1tribuídc1:--. ,1 problcm/ttiL-,ls di:-.tin-
tcl'.">. ,,\ me:-,ma Yirada pragm,ítica l· dt1da L'lll Ccld,1 u1nc1 dcb grandl':-, ...;;l'Çl)l'S do trc1b,1lho: t'II / 1 (1'-.:-,(l
fa!clr, l'/1 JJ0:->:-,0 agir, t'/1 pti~..;tl (llH.') (011t,H, l'll po::-.SO impuL1r ll1Í11h,b clÇ\-)l':-, cl 111Ílll llll''.:-,1710 (OlllO :-ol'U
,·l'rdadeiro clutor. :-\gtird digo: me ll'tnbr,H "\;t''.:--':--l' '.-,l'lltido, a in, l'::-.tiga<-;,lo dos fl'n{HlH'no:-, 1nnt'-
A MLMORIA, A IIISlORIA, O J:S()ULCIMFNTO
ato de fazer 111c111ôria tem o apanágio de oferecer ao olhar da descrição 11111a sobreilllprcssão tão
completa do alvo cognitivo e da opemçiio prática 11u111 ato lÍnico, como é a rc111e111oração, herdei-
ra direta da anamnl'Sis aristotélirn e i11direta da anamncsis platô11irn.
Essa originalidade do fi'11Ô111c1zo lll/le111ônico é de c110m1r importância para toda a scqiiência
de nossas investigaç{ies. De fato, ela caracteriza também a operação historiográfirn r11quanto
prática trôrirn. O historiador c111prce11dc 'jazer história", como rnda u111 de 11ôs se dedica a
"fazer 111elllôria". O co11Ji·o11to entre 111e1nôria e história se dará, quanto ao esse11cial, 110 11í1 el1
A aposta última da inuestigaçiio que se segue é o destino do voto de fidelidade, que 1i1110s 1
1nônicos que aqui propon1os constitui u1n capítulo suplen1entc1r nun1d antropologia filosófic~1 do
ho1nen1 que llgc l' sofre, do homem capaz.
2 Frances A. Yates, T/1e Ar/ of Me11wn1, Londres, Pimlico, 1966; trad. franc. de D. Arasse, L'Arl de /11
111<'111oirc, P<1ris, Callimard, col. "Biblioth0que des histoires", 1975. A paginação citada aqui(, a da
ediçilo original. Edição brasikira, A orle da II1t'IIIÓri11, Editora da UNICA\11', 2007.
Il,\ \11'\lllRI \ 1 ll\ RI \11:\JISlf"M 1 \
Há uma modalidade do ato de fazer mcmlíria que se dá corno prMica por excelên-
cia, a saber, a memorização, que importa distinguir rigorosamente da rememoração.
Com a remcmoraç,1o, enfatiza-se o retorno à consciência despertada de um aconte-
cimento reconhecido corno tendo ocorrido antes do momento cm que esta declara tê-lo
sentido, percebido, sabido. A marca temporal do antes constitui, assim, o traço distin-
tin1 da recordação, sob a dupla forma da enJCação simples e do reconhecimento que
conclui o processo de recordação. A memorização, em contrapartida, consiste cm ma-
neiras de aprender que encerram saberes, habilidades, poder-fazer, de tal modo que
estes sejam fixados, que permaneçam disponíveis para urna efetuação, marcada do
ponto de vista fenomenológico por um sentimento de facilidade, de desembaraço, de
espontaneidade. Esse traço constitui o correspondente pragmático do reconhecimento
que conclui a recordação no plano epistemológico. Em termos negativos, trata-se de
uma economia de esforços, ficando o sujeito dispensado de aprender novamente para
efetuar urna tarefa adequada a circunstâncias definidas. O sentimento de facilidade
representa, então, a face positiva dessa efetuação bem-sucedida de uma lembrança,
que Bergson diria "agida" mais do que "representada". Desse ponto de vista, pode-se
considerar a memorização como uma forma da memória-hábito. Mas o processo de
memorização é especificado pelo caráter construído das maneiras de aprender \·isan-
do a uma efetuação f,kil, forma pri\·ilegiada da memória feliz.
Torna-se, então, legítimo o projeto de descrever as maneiras de aprender \·isando a
uma tal efetuação fácil do ponto de vista das técnicas de aquisição, e de tentar discer-
nir as falhas pelas quais o abuso pode se insinuar no uso. Seguiremos uma ordem de
complexidade crescente em que as oportunidades do mau uso aumentarão na medida
da ambição de domínio exercida sobre o processo inteiro de memorização. Porque é
mesmo nessa ambição de domínio que reside a possibilidade de res\·,llar do uso para
o abuso.
-t Georges Canguilhem, Lo Co1111aissn11cc de ln z ic, Paris, Vrin, 1965; reL·diç<lo, 1992. Sobre K. Cold-
1
7 Ct'rard Lcclcrc, Hi::,;fl1ire de /'1111forifr. 1.·11-,..,f\'ilt1fii111 dt'..; i;11011u>.c:. t"11/t11rd~ ct /11 gi'lli;O!ogic de lt1 (l'l'_l/illl(t',
h Henri Couhicr, / t' Tl11;!Ítn· t'f /Txí ...;fc11t'c, Pari..,, .-\ubiL'r, 1952.
A ML~J()RIA, A HIS IORIA, O LS()Uf:CIMl\:10
7 Frances A. Yates, Tl,c Ar/ of Mc11wn1, op. cit. Por sua vez, Harald Weinrich estiÍ em busca, em Lct/1c.
K1111s/ 111u/ Kritik dcs Vcrgcssc11s (Munique, C. H. Beck, 1997; tr,1duçào francesa de Diane Meur, Ut/1é.
Art ct critique de J'ouJ,/i, Paris, L1yard, 1999; a paginação citada aqui é (1 do original), de uma even-
tual nrs ohliziio11is que seria o si1nt-.'trico dessa "arte d<1 n1en1óri<1", historican1ente bcn1 ,1testad<1. Ele
dedic(1 a estzi zis primeir<l~ páginas de seu trabalho, tornando-se a n1c1norizaç5o, de preferênci<l Z1
renll'moraç<lo, o eixo de referl•ncia p<1r,1 u1na história liter,íria do esquecimento, cujos 1neandros
não s.i.o n1enores do qul' os do rio ,nítico, Letes, que deu no,ne a seu trabzilho. Voltaremos a esse
tl'n1a na terceira parte, cap. '.1.
ll 1 \11 \l(llll \ I ll \ Ili \11',ISl f , l I \
8 Cín_'ro legou aos n1edil'\"<1is \·,írios e~crito~ rl'tc)ricos i1nportantes: De omforc, lJc i1F. c11tio11t' (du qual
1
o Ad Hcrc1111i11111 l' con~idL't\1do <l segunda partL') e a~ [)i::,p11f11:-, t11st"11lm111::- (T11':>cu!111rnc di..;put11tlln1es)
qul' ha\'ian1 l'Xl'rcido uma influl'ncia deci~i\·,1 na conver~c'lo dl' Santo Agostinho. foi o primL'iro
.\ MI M(lRL\, ;\ IIIS'IÚllll\, ll IS(JL:I CIMI N lll
latino a fc1zcr LL1 n1en1óric1, no finl1l do De i11z,c11fio11c, uIna p(1rtc d<1 \'irtudc da pr11dc11fi11, no lado d;1
i11icllige11/it1 l' da prouidmlit1.
Y Na vl'rct1de, a ht'rilnça nu'dievl1l dl' Aristóteles conct•rnt'IÜL' il n1L'n1óric1 l' triplc1. Pri1neiro, o
substituto oferecido ll n1et,íforc1 L·t1 in1pn·ssclo do sinete na cera (prin1eiro capítulo do De llll'lllOrio
ct rc11zi11i~cc11ti11); depois, a zissociaç~o t.'ntrl' n1en1ória l' in1c1gin,1ç<lo, de que se di.t:, no De a11i11rn,
que "é in1possível pensar Sl'lll in1agcns"; enfirn, i1 inclus,lo d,1 mne1nok·cnic.1 entre os processos
da recordaçflo arr,1zoaLL1 da len1branç,1 no st.'gundo capítulo do LJc lll1'1110ri11 (escolh,1 de u1n pon-
to de partida, subida t.' de~cid(1 ao longo de séries associativas, etc.).
10 l'odl'rl'mos ler ,is bl'ias p,íginas dl'dicad,1s d Dantl' por Yatl's l'm Tl,c /\ri of' Mc111ory, op. cit., p. 10-+
l' sl'g., e por Weinrich cm Lct'1c, ov cit., p. 1-+2 l' seg. Sl'gundo cstl', ,1 topologia do além, ,i qual o
poet~1 chegc1, por sinill, depois de bebt..'r c1 úgua do t..'squecin1l'nto, foz de Dantt..' o Ccdiicht11i:--11u11111, o
ho,ne,n dci n1en1óricl (ibid, p. 145). Weinrich nJo conhece llcld(1 igual à Dh 1i11t1 Collll'liio cl não ser o flll
/lusrn do lc111po perdido, de Marcel Proust.
l l \ MI \1\lRI \ 1 l l \ 1,1 \11'.ISCf"'.l 1 \
risórios. Era mesmo preciso uma memória poética para transcender a oposição entre
memória natural e memCiria artificial, par,1 pulverizar a oposição entre uso e abuso 11 •
Não é o quL' acontecL'rcÍ no término da tcrcl'ira revira\·olta.
A terceira n,'\'ira\ olta, que afeta o destino da memóri,1 artificial, é marcada pela
união da mnemotécnica e do ,;cgrcdo licmzaico. Ciordano Bruno, para quem con\-cr-
gem todas as anc1lises de Frances Yatcs, é a figura emblt·m,ítica dessa rnl\'a L' qu,1Se
derradeira fase do incrí\·cl percurso da ar, 111c11wri11c. A arte em questão tornou-se arte
m,ígica, arte oculta. Preside a essa metamorfose a conccpçi\o, apresentada como uma
re\·elação, como a qucbr,1 de um segredo, de um sistema de correspondências entre os
astros e o mundo inierior. A arte consiste em colocar, sobre os círculos concêntricos de
uma "roda" - a "roda da memória"-, segundo o princípio de uma correspm1di'•ncia
termo a termo, a posição dos astros, a t,íbua das virtudes, a coletânea das imagens
L',pressi\·as da \'ida, as listas de conet·itos, a série das figuras humanas heróicas ou san-
tas, todas as imagens Mquetípicas concebí\·eis, enfim, tudo o que pode ser L'numerado,
posto em ordem de sistl'ma. O que é entZio confiado :i memória, é um poder di\·ino,
aquele que confere o domínio absoluto de uma arte combinatória entre a ordem dos
,1stros L' a terra. Trata-se ainda de "colocar" as imagens em lugares, mas esses lugares
sZio os astros e essas imagens, as "sombras" (o primeiro li\TO sobre a memória publica-
do por C. 13runo intitula-se De 11111/,ri, idrnr11111, 1582) cm que consistem os objetos e os
acontecimentos do mundo inferior. Essa \'CrdaLfrira "alquimia" da imaginaçZio, como
diz Frances Yc1tes (Tlzc /\ri of Mc111on;, p. 220), preside a um,1 mncmotécnica mágica que
coniere a quem a possui um poder sem limites. A desforra da reminiscência platônica
e principalmente neoplatónica sobre ,1 psicologia aristotélica da memória e da recorda-
ção é total, mas ao preço da transformaç,10 da especulação racional em mistagogia.
Sim, "grande é o poder da memória", segundo Santo Agostinho; mas o retórico cristão
não sabia a que excentricidade esse elogio da memória feli,, podia conduzir. E Cícero
podia chamar de "quase di\·inos" os feitos dt' uma memória exercitada; mas nem
ele podia prever a que excessos se prestaria a memória oculta de um homem do Renas-
cimento, aquele que Yates chama de "o mago da memória" (op. cit., p. 297).
Eu gostaria de enxar, para concluir L'ste r,ípido \'ÔO sobre a ar, 111c111ori,1c, as ques-
tôes que levanta Frances Yates ao termo de seu próprio percurso, antes de escre\·er a
espéciL' de pós-escrito que constitui seu último capítulo intitulado "The art of mcmorv
and the growth of scientific ml'thod" (op. cit., p. 154). Cito Yatcs: "H,"i uma pergunta :i
qual nc'ío posso dar resposta clara ou satisfatória: o que foi, ent,10, a memória oculta 7
A mudança que a conduz, da formaçZio de similitudcs corporais do mundo inteligí\·el,
ao esforço para Sl' apoderar do mundo inteligÍ\'l'I ao preço de fant,ísticos exercícios cfa
11 Fr,1ncL'S Yatc:-. conclui 11l"..;tt.'--. termo:-. :-.L'll c,1pítull) "\lcdiL·\·,1! n1t'llH1r~· and thc form,1lion of in1<1gc-
n "· "Do ponto dL' \·i-..ta dci prl':-,l'IÜL' ubr,1, quL' 0.)11et'rnt.' princip(1\n1l'J1tl' ,1 hisk,ria ulterior da arte,
t.' tunda1ncntal cnf.1ti/,H que ,1 artt.' d,l lllL'llll,)ria originou-:-.t.' 11<1 ldadl' \k,dia. Suc1:-. n1;'li:-, profundas
r,lÍLL':-. e:-.i<lo nun1 passado <1ltan1cntl' \ L'lll'I\Í\ L'l. F ao :-,ai r dl':-.:-.a:-. urigcns profundei:-. t.' n1istcrio::-.,1::-,
qut.' l'Ll '.'.->L' dl'rran1ou :-.L·culos ultl'riorc':->, ,narcada pt.•lo cunho dt. uni fpn·or religio:-.o L'::-.tr(1nh,1-
1
1ncntl' combin,1do com o cuid,1do lllllL'lllotl'cnico qul' lhl' foi l1plicc1do nc1 kL1dc· r'v1t.'dil1" (T/ic :'\ri tlf
imaginação - como aqueles a que Giordano Bruno dedicou sua vida - fez a psique
humana atingir um grau de desempenho criador superior àquele nunca atingido no
plano da imaginação? É esse o segredo do Renascimento, e a memória oculta represen-
ta esse segredo? Lego este problema a outros" (ibid.).
O que responder a Frances Yates? Não podemos contentar-nos em registrar o fato
de que a história das idéias não deu continuidade a essa cultura obstinada da memória
e que um novo capítulo foi aberto com a noção de método, com o Novu111 Orgnnon de
Francis Bacon e o Discurso sobre o 111étodo de Descartes. Afinal, a ars 111c11zoriac, com seu
culto da ordem, tanto no plano dos lugares quanto no das imagens, era, a seu modo,
um exercício metódico. É no cerne do empreendimento que é preciso buscar a razão de
seu eclipse. Francis Bacon vai direto ao ponto crítico quando denuncia a "ostentação
prodigiosa" que motiva profundamente a cultura da memória artificial. Desde o início,
é em termos de façanha, de prodígio, que essa arte é louvada. Uma espécie de embria-
guez - Kant falaria de Sc/1wiir111crci no sentido de entusiasmo e, ao mesmo tempo, de
intoxicação - insinuou-se no ponto de articulação entre memória natural e memória
artificial. Uma embriaguez que transformou em seu contrário a modéstia de um duro
tirocínio iniciado nos limites da memória natural, cujos poderes, isto é, ao mesmo tem-
po a amplitude e a exatidão, sempre foi legítimo procurar reforçar. Porque é mesmo
a noção de limite que está cm jogo aqui. Com G. Bruno, a transgressão dos limites é
levada ao seu auge. Mas quais limites? Fundamentalmente, é o limite que sugere a
relação da memória com o esquecimento 12• A ars 111c1110riac é uma recusa exagerada do
esquecimento e, aos poucos, das fraquezas inerentes tanto à preservação dos rastros
quanto à sua evocação. Correlativamente, a ars 111n11oriac ignora a pressão dos rastros.
Como foi sugerido uma primeira vez, por ocasião da discussão sobre a metáfora platô-
nica da tupos, da impressão, a noção fenomenológica de rastro, distinta da condição
material, corporal, cortical da impressão, se constrói na base do ser-afetado pelo aconte-
cimento do qual se torna, a posteriori, testemunho por narração. Para a memória artifi-
cial, tudo é ação, nada é paixão. Os lugares são soberanamente escolhidos, sua ordem
oculta a arbitrariedade da sua escolha; e as imagens não são menos manipuladas que
os lugares aos quais são destinadas. Duplo desafio, pois: do esquecimento e do ser-afe-
tado. A enfatuação final está latente nessa recusa inicial. Grande é, por certo, o poder
da memória, declara Santo Agostinho. Mas este não ignorou o esquecimento, como
observamos já nas primeiras páginas deste livro; ele avaliou, aterrorizado, suas amea-
ças e devastações. Ademais, dessa recusa do esquecimento e do ser-afetado resulta a
preeminência concedida à memorização à custa da recordação. A valorização das ima-
gens e dos lugares pela 11rs 111c1110riac tem como preço a negligência do acontecimento
12 Wt'inrich vê essa recusa do esquecimento e1n açJo jcí no episódio grego da façanha de rncn1ória
atribuída a Sin1ônides restituindo o lugar a cada n1orto do banquete fatal. Segundo Cícero, o poeta
teria proposto c1 Te1nístocles, banido dt• sua pátria, ensinar-lhe a prodigios<1 arte de "len1brar-se
de tudo" (11/ 011111ia 111c111i11issl'I). O grande> homl'm ll'ria respondido qul' preferia a arte de esquecer,
capaL de poupar-lhe> o sofrimpnto de se lembrar daquilo qul' não quer e de n5o poder esquecer o
que quer (Wcinrich, Lcthc, op. cit., p. 24). Será preciso voltar a esse assunto no momc>nto de tratar o
l'squecin1ento como un1a grandczc1 co111 direito próprio.
ll\ MI\HlRIA I ll\ Ili \11,ISCÍ'\ll-\
1:3 Edward Casey e,·oc1, no início da obr(1 que citan10:-. abundantt.'mL'IÜL' 11l) L'~tudo anterior, /\e111c111-
l1cring,O dclllO Ccll!ScHio c1 n1cn1óricl, no sentido preciso de rt.__'Jl1Cl11l)fclÇcl.O, pela crítica da pedagogia
pet1 I11L'J11Ória, conHl .Sl' () processo da n1en1ori/c1Ç2io se cstendp-.;~L' dL· forma indiscri111in<1dc1 ao
processo da n'n1en1or,1çZí.o, L'lll pro\'eito dl' unia cultura c..,1711c(id1\·11.
1-1 l\1ontaignt.', F.::,;-::;11Í:>, I, 26, citado por H. VVeinrich, que nJ.o deixc1 dL' L'nKllr, nl'S'.->L' contc\'.to, Sancho
I\1nçc1 e seu burro, CLlntrastando co1n o "engenhoso" c,n·alriro da trisk figura (\'Veinrich, 1 cthe,
''I'-, il., PP· 67-71 ).
1~ H. \Vl'inrich ~L' con1pra1: en1 cit,H este dito de I kh écio: "C) grande espírito rh1o ~upl'>e a grandL'
acre~CL'ntarl'i n1c~rno que ,1 l''\tl'nsJo L''\trcn1<1 do prin1l'iro l· cibsolutaml'nte e,du~i\·d LLl
llll'll1l,)ria;
sq;und,1" (WL·inrich, f/,fd., p. 78).
Ih Cit,1do por H. \\"l'inrich. ,/,id., p. 90.
A Ml·MllRIA, A lilSIÚRI,\, () LS()Lll·CIMFNHl
É a uma tipnlogi,1 dos 11sos e 11/111sos Lfa memória natural que o presente estudo será
de ,1gora em di,11ll,· d,·dic,1do. A \·i,i nessa direção foi trilhada por Nietzsche na 51'g1111-
da Co11si,lt'm11i,1 j11lrn1p,·,li,•11, cujo título e; eloqüente: D11 11/ilidadc e dos i11co11vcniC11tcs
da lúsliíri11 pur,1 ,1 ,•1du. ;\ rn,rneira de intl'rrog,ir in,1ugurc1Lfa por esse texto une numa
scmiologi.i c"rnpkx<1 o tr.il,1mc11to m0diL'O dos sintom,is l' o tratamento filológico dos
ll\ \11 \lllln \ 1 ll\ Ili \11\.ISl I \.l l \
tropos. A polêmica aqui lc\·,rntada cert,1mcnte diz respeito, primeiro, à história, mais
precisamente à filosofi,1 da história quanto ao lugar desta na cultura. Mas ela d,'í o tom
p<1r,1 um tratamento semelhante da memória, mais precis,1me11te cL1 memória coll'ti\'<l,
a qual, como repetirei no início do próximo estudo, constitui o solo de enraizamento
da historiogr,1fia. Como foi dito no início do presente estudo, é enquanto cxcrcid11 que
a memória ec1i sob esse ponto de \·ista.
Para e\·itar um uso maciço e indiscriminado da noção de abuso de memória, pro-
ponho a seguinte grade de leituras. Começarei por di\ isar uma abordagem franca-
mente patol(1gica que pôc cm jogo categorias clínicas e, e\·entualmente, terapêuticas,
emprestadas principalmente da psic,111,ílisL'. Tentarei restituir a essa patologia sua
magnitude e sua densidadL· ao \'incul,í-la a algumas das expniências humanas mais
fundamentais. A seguir, darei lugar a formas concertadas de manipulação ou de ins-
tnmlL'ntalização da memtíri,1, que dependem de uma crítica das idcologi,1s. É nesse
ní\·el mediano que as noçôes de abuso de nwm(1ria e, acrescentemos de imediato, de
abuso de esquecimento, são as rnilis pertinentes. Fin,1lmentl', gostaria de reser\'M p<1ra
um ponto de \'ista normati\·o, fr,111c1mL•11te l'tico-político, ,1 quL•stão do dc\·er de me-
mória; esse ponto de \·ista nonnati\·o de\ L' ser cuidadosamente distinguido do ponto
de\ ista anterior com o qual é muito freqüentemente confundido. Assim, esse percurso
Lk ní\cl cm ní\·el tornar-se-â um percurso de figura em figur,1 dos usos e ,ibusos da
memória, desde a nwmtíri,1 i111pcdid,1 até a memória o/,rig11d11, passando pel,1 nwmória
1111111ip11/11da.
É nesse nÍ\ cl L' dL'SSL' ponto de\ istc1 que se pode legitimanwntc falar cm nw1rn·1ri,1
.táid,1, e até nwsmo c11/Í'r111,1. Isso é atl'stado por c,prL'SSlll'S currentl's como traumatis-
mo, ferimL'tlto, cicatriZL'S, de. O cmpregu desses \·occibulos, ek•s mesmos patC·ticos,
nc"io deixa de colocar gr,l\'l'S difinrld,1dL•s. Até que ponto, indagarTmos priml'irn, cst,1-
mos autorizados ,1 aplicM à nwmLíri,1 colcti\·a catl'gori,1s turjc1das no dcb,ite ,1nalítico,
porLrnto, num nín•I intL'rpcssoal, lll,Hcado principalmente pela nwdi,it.)ío da tran,,-
fl'r.:•1Kia' Essa prinwira dificuldadl' SL'r,í ddi11ili\'dlllL'lltl' sUfll'rada apenas 1w fim dti
f•l'lÍ'\imo capítulu ..-\dmitiremos aqui, p1·t1\ istll'Í,llllL'lllL', ,1 \ ,ilt,r llf•l'r,it<irio do nmcL itt1 1
dl' lllL'lllÓri,1 n1kti\·,1; pt1r outro L1dt1, u Ll"l' que dcle ,-,l'r,1 rl'itu ,1 ,l'guir uintribuir,í
fltistcriornwntl' p,H,l ,l ll'gitillldli,111 dL·,-,,,· ,-onct•ilo Firohll'llldtictl. Outr,1 diri,-ukL1dl'
de\'l' c11co11tr,1r ,1qui ,-,·rtc1 rL'sl1luc,1t1: pPd,·-s,· i11cL1g,n c·m <]LIL' n1L'dicL1 um,1 p,1lPlogic1
cL1 mc•nHir·i,1, p11rLllltl1, ,, tr,1t,1mcntt1 ,Li 111t•mc'1ric1 ct,rnll 1:,1//1, 1, . ,,, m,nen· 11um<1 in1 ,.,_
tigaç,10 sohrl' ti L''\L'l'c·1,-i,, dc1 nwm,·1ric1. ,llhn· c1 t,·!,/111 nrnc·nllmil-,l .\ dificukL1de e'· 1111\ ,1.
,1 ,iuc· ,·,Lí L'lll j,igt' s,1,, ,1lll'r,1c:t-ll's i11di1 iduai, l' n1ldi1 ,1, dt'\ i,L1s ,lll usu. ,1 F'r,itic,1 cL1
lll l' lll l.l ri a.
l'ara llllS oril'lll,ll'lll(lS lll'SSd dtq,L1 d1f1,-ul,L1dl', f'l'llSL'i ',('/' c1pn1r1ri,1do rL'ClllTL'r cl
dtiis cns,1ios not,Í\ t•is L1l' Frl'ud L' nm1r1,ir,1-lt1,, ti Ljlll' ti ,1utL1r n,1u f•cll'L'CL' ter fL·itt1. O
primeiro, datado de 1914, é intitulado "Rememoração, repetição, perlaboração" 18 • No-
taremos logo que o título compreende somente verbos, o que indica o pertencimento
dos três processos ao jogo de forças psíquicas com as quais o psicanalista "trabalha".
O ponto de partida da reflexão de Freud é a identificação do obstáculo principal
no qual o trabalho de interpretação (Oc11t1111gs11rbcit) esbarra no caminho da recorda-
ção das lembranças traumMicas. Esse obstáculo, atribuído às "resistências do recal-
que" (Vcrdrii11g1111gswidcrstii11dc), é designado pelo termo "compulsão de repetição"
(Wicdcrlzo/1u1gszw1111g); uma de suas características é uma tendência à passagem ao ato
(AgicrC11), que Freud diz "substituir a lembrança". O paciente "não reproduz [o fato
esquecido] em forma de lembrança, mas em forma de ação: ele o repete sem, obvia-
mente, saber que o repete" (Ccs11111111cltc Wcrkc, t. X, p. 129). Não estamos longe do
fenômeno de obsessão evocado acima. Deixemos de lado suas implicações quanto ao
esquecimento, pois a elas voltaremos no capítulo sobre o esquecimento, na terceira
parte. De resto, a ênfase recai na passagem ao ato e no lugar que ele ocupa à revelia do
paciente. O importante, para nós, é o vínculo entre compulsão de repetição e resistên-
cia, assim corno a substituição da lembrança por esse duplo fenômeno. Nisso consiste
o obstáculo à continuação da análise. Ora, além desse olhar clínico, Freud enuncia
duas propostas terapêuticas que serão para nós da maior importância no momento
de transpormos a anéÍlise clínica ao plano da memória coletiva, como nos conside-
ramos autorizados a fazer nesse estágio da discussão. A primeira diz respeito ao
analista, a segunda, ao analisando. Ao primeiro, aconselha-se muita paciência com
as repetições que ocorrem sob o manto da transferência. Desse modo, observa Freud, a
transferência cria um domínio intermediário entre a doença e a vida real; pode-se falar
deste como de uma "arena", na qual a compulsão é autorizada a se manifestar numa
liberdade quase total, pois o fundo patogênico do sujeito tem a oportunidade de
se manifestar abertamente. Contudo, pede-se também algo ao paciente: ao cessar
de gemer ou de esconder a si mesmo seu verdadeiro estado, ele precisa "encontrar a
coragem de fixar sua ,1tenção em suas manifestações mórbidas, de não mais considerar
sua doença como algo desprezível, mas olhá-la como um adversário digno de estima,
como uma parte de si mesmo cuja presença é muito motivada e na qual convirá colher
dados preciosos para sua vida ulterior" (op. cit., p. 132). Caso contrário, nada de "re-
conciliação" (Versiilu11111g) do enfermo com o recalcado (ibid.). Reservemos a palavra
reconciliação, que volt,irá ao primeiro plano em nossas reflexões ulteriores sobre
o perdão. Detenhamo-nos, por enquanto, nesse duplo m,mejo das resistências pelo
paciente e seu analista, ao qual Freud d,í o nome de D11rclz11r/Jcitc11 (op. cit., p. 136), de
worki11g tlzrouglz, como foi traduzido em inglês, de "perlaboration", corno foi traduzido
em francês, ou de "rema1wjanwnto", como eu preferiria dizer. A palavra importante,
aqui, é trabalho - ou, antes, "trabalhar" - que enfatiza nJo somente o car.íter dinfüni-
]LJ "lraucr und \ll'lanch()\ic" ( \LJ\5). in C,-"11111111'1/,- \V,-rkc, t_ X,"!'-, ,t_ A tr,1duç,1tl adotada aqui é·
a dl' 1- Lapl,rnclw ,. j_-lJ_ !'tlnt,1\is ,·rn
.\1<'1.ip,11c//,,fi,gic, l\1ri,, C,1\\imard. \9h8; fl'l'd., C()L "Fc,li<l
l'SS,lis", ]98h_
20 U que pode le\ ,H ,l rwgllgt-..'llCÍ<lr a in--.tru(J1u quL' bu':-,carno':-, <l rl'':-,PL'itu du pcirl'ntl't-.co l'ntrl' trc1bc1lhu
dL' len1brc1nça l' trabalhl) dl' luto SL' dl'YL' ,1u feito dL' o tl'rrno trdbc1lhu Sl'r aplic1do tanto ,l n1l'l<1nco\i,1
quciiito ,H) luto nu /1rnbitn do modl'lo "l'cont'HlliL-o" fortl'nlt.'nh' ~olicit,1du por i"rl'ud n,1 L pucc1 L'ill 1
qul' l'':-,Lrl'YL'll l'':-,SL' L'n.-:,ain. () tt.'tna do lut<1, ub.....,L-r,·a I'l'kr Homan':-, L'lll l lil' /1liilit_11 to A1011r11, Chic,1go,
Tht.' L'ni, l'r':-,Ít}" ut Chicago Prl'ss, ]l)8LJ, n,1u L; um tl'm,1 l'lltrl' outrli....., n,1 dl'scriç,lo L' na L'\.plic.1ç."10
p~icc1nc1líticc1'.:'--; l'k L''."->Lí lig,1du cl ~inton1<ítil-,l da hi'."->tcria L' ao L1rno':-,l) l'llllllCiddo: "C)....., p.....,in1p,lt,1.....,
':-,Ufrt.'Jn dl' n'n1ini:--cl·nci,1<' \leis Ci11.-(1 /1\·(\'~ . :.( ! n' 11 /h/(11111í/i..:.c, Frl'ud L"...,tclbl'il'cl' uni ,·ínculo L'ntrL'
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1
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L' ,l c,1p<icidc1dc dl' nc1 rr(1 r
,\ MI ~t(lRL\, ,\ IIISTll!!li\, ll FS(]l 1 J'Cl\trN 10
etc." Uma abertura é assim criada, j,í no início, para a direção que tomaremos a seguir.
E a primeira questão que o analista se coloca é a de saber por que, em certos doentes,
vemos surgir, "em seguida a circunstâncias idênticas, 110 lugar do luto, a melancolia"
(grifo nosso). A expressão "no lugar de ... " assinala de saída o parentesco, do ponto de
vista da estratégia da argumentação, entre os dois ensaios que estamos confrontando:
no lugar da lembrança, a passagem ao ato - no lugar do luto, a melancolia. Trata-se
portanto, de certo modo, da oposição entre luto e melancolia, da bifurcação, no nível
"econômico", entre investimentos afetivos diferentes e, nesse sentido, de uma bifur-
cação entre duas modalidades de trabalho. A primeira oposição que Freud nota é a
diminuição do "sentimento de si" (Sclbstgcfiihl) na melancolia, ao passo que "no luto
não há diminuição do sentimento de si". Daí a pergunta: qual é o trabalho fornecido
no luto? Resposta: "O teste da realidade revelou que o objeto amado deixou de existir,
passando a exigir que toda a /í/1ído renuncie ao vínculo que a liga àquele objeto. É ccm-
tra isso que se produz uma revolta compreensível". Segue uma descrição cuidadosa
dos "grandes custos de tempo e de energia de investimento" que essa obediência da
líbído às ordens da realidade requer. Por que esse custo elevado? Porque "a existência
do objeto perdido continua psíquicamente". Assim, é ao sobre-investimento das lem-
branças e das expectativas, pelas quais a Iíbido permanece ligada ao objeto perdido,
que se deve o preço tão alto a ser pago por essa liquidação:" A realização em detalhe
de cada uma das ordens ditadas pela realidade é o trabalho do luto".
Mas então, por que o luto não é a melancolia? E o que faz o luto pender para a
melancolia? O que faz do luto um fenômeno normal, embora doloroso, é que, "quan-
do o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido". É por esse
aspecto que o trabalho de luto pode ser comparado com o trabalho da lembrança. Se
o trabalho da melancolia ocupa neste ensaio uma posição estratégica paralela à que a
compulsão de repetição ocupa no anterior, pode-se sugerir que L' enquanto trabalho
da lembrança que o trabalho de luto se revela custosamente, mas também recipro-
camente, libertador. O trabalho de luto é o custo do trabalho da lembrança; mas o
trabalho da lembrança 0 o benefício do trabalho do luto.
Antes de extrair disso as conseqüências que temos em vista, vejamos quais ensina-
mentos complementares o trabalho da melancolia fornece no quadro anterior do traba-
lho de luto. Retomando nossa reflexão inici,11 a respeito da diminuição do lc/1gcfi'i/1I n,1
melancolia, 0 preciso dizer que, diferentemente do luto, no qual é o universo que pare-
CL' empobrecido e vazio, na melancolia 0 o próprio ego que está propriamente desol,1-
do: ele cai \'Ítima da própria cksvalorizaç5o, da pr(ipria acusação, da própria condena-
ção, do próprio rebaix,1mento. Entretanto, isso n5o 0 tudo, nem mesmo o essencial: 11,10
scrviri<1m as recriminaçües dirigidas a si mesmo pcira encobrir recriminciç(~les \'is,mdo
o objeto de amor 7 "Suas queixas, escn'n' ,llllfaciosamentt' Freud, são acusações (/Ílrc
K/11gc11 oí11d l\11klagc11)." Acusações que podem chegcir j m<1rtirizaç5o do objeto ,1madn,
perseguido no foro íntimo do luto. Freud enuncia ,l hipótt>se de que a acus,1ç5o, cio
enfraquecer o investimento objetal, facilita o retraimento no ego assim como ,1 trans-
formaç5o da discórdia com outrem cm laceraç5o de si. Não acompanhan•mos Freud
Ili ~li \l(lRI \ 1 Ili RI \11'\!Sll '\l 1 \
1111d Mf'!1111c/wly de Raymond Klibansky, Erwin Panofsky e Fritz Saxl2 1, a redução noso-
lógica da melancolia, iniciada por E. Kraepelin e reorientada por L. Binswanger, é
inaceitável. De fato, como deixar de evocar o lugar ocupado pela melancolia no antigo
sistema dos quatro humores da medicina grega, no qual o humor melancólico - o da
bílis negra (atm bílis) - convive com o humor sangüíneo, o humor colérico e o humor
fleumático? Aí está mais uma lista para memorizar, que se deve à rede de correspon-
dência com elementos cósmicos, divisões do tempo, idades da vida: "Melancolia, di-
zem textos medievais do século XII, imita a terra, cresce no outono, reina na maturi-
dade". Fisiologia, psicologia, cosmologia estão assim conjugadas, segundo o tríplice
princípio: busca de elementos primários comuns ao microcosmo e ao macrocosmo,
estabelecimento de uma expressão numérica para essas estruturas complexas e lei de
harmonia e de proporcionalidade entre os elementos. Reconhece-se aqui o espírito de
Pitágoras, seguido por Empédocles. O importante para a espécie de excurso que arris-
co além - ou, melhor, aquém - de Freud, é que o conceito de humor não parou de
oscilar entre a idéia de doença e a de caráter ou temperamento, o equilíbrio resultando
do grau de harmonia ou de desarmonia entre os humores. Ora, é justamente com a
melancolia que culmina a ambivalência, que se torna assim o ponto crítico do sistema
inteiro. Esse privilégio, por assim dizer, da melancolia, tornou-se mais preciso à me-
dida que a teoria dos quatro humores se transformou em teoria dos temperamentos, e
dos tipos mentais. Depressão e ansiedade (ou medo) tornam-se os sintomas marcantes
da melancolia. Melancolia, então, torna-se sinônimo de insanidade, de loucura. A jun-
ção entre a melancolia da teoria dos humores e a loucura dos heróis trágicos - Ajax,
Héracles, Belerofonte - , que Platão erigiu em filosofema, está completa desde o mais
famoso dos problemas atribuídos a Aristóteles, o problema XXX, I - "uma monogra-
fia sobre a bílis negra", dizem nossas fontes. "Por que razão, pergunta o autor do
Problema XXX, os homens mais eminentes em filosofia, em política, em poesia ou nas
artes são manifestamente melancólicos?" E o texto acrescenta os nomes de Empédo-
cles, Platão e Sócrates à lista dos espíritos perturbados. Como, então, deixar de evocar
a teoria das múltiplas figuras de 1111111í11 no próprio Platão e a comparação operada por
muitos diálogos entre exaltação, êxtase, embriaguez, e outros estados "divinos"? Ora,
todos esses estados são obra da bílis negra! Aqui, o normal e o patológico convivem,
o melancólico vendo-se enviado do médico ao pedagogo e vice-versa. O melancólico é
"excepcional". A teoria romântica do "gênio" está em germe nessa ambígua descrição
do "furor" (para retomar a tradução de Cícero do grego 1111111ía). Apenas os estóicos
resistem ao optarem decididamente pela leitura psiquiátrica av1111t la ll'ftrc.
São os pensadores do Renascimento que, além da transmissão medieval da heran-
ça contrastada recebida dos médicos e dos filósofos gregos da natureza, orientaram
21 S11l11rn mui Mc/1111clwl11, Nt'lson, 1964. É l'ssa cdiçJo qul' é ,1qui cit,1d,1, com traduçJo dl' P. RictL'Ur.
Uma lraduçiio fr,111cl's,1, de F. Dur,rnd-Bog,wrt l' L. Évrard, cst,í d isponívcl: S11l11mc t'I /11 Mt'/o11co/ic:
t't11des liisloriqucs d p!1ilosopl1iq11cs, 1rn/11rc, rcligio11. 111<'dcci11e e/ orl, l',iris, C,1llimard, 1989. AdotMc-
n1os aqui (1 paginação dl1 edição original.
IM MI ~1llRI \ é IJ\ RI \ll'JISl f '\l 1 \
22 O leitor n3.o dcix<u.í. dL' c::-t<1bclcccr un1 paraklo entre c1 ar:> llll'llturidt', e, ocad<1 c1rin1<1, L' a tl'oria da
lllL'lancolia. N<io L'r<1 "louco" o <1utor d<1s S( 111zl 1r11s dt1~ id1;i11s (De 1111zl 1 ri~ idc11r11lll), Ciordano l3runn?
27' Sat11r111111d Akl111!('111J.11,
1
[lJJ. nt., p. 125 e ~q.?;. O 1-")arak,Jo l'ntrc as du,1s tt.'n1,ítica~ não seri(1 ,1rbitr,íriu,
con10 o confirnlcl c1 rl'Íl'rl'nci<l <l Saturno, "o a~tro dLl n1eL111colia", na trc1diç,lo litercíria, pictL)rica L'
prn~'tica.
2--1- É ~1arcílio Fiei no, n1ais quL' ningul·n1, "quL'lll dL'll fon11c1 efcti\·a J n1cL1nC()!ia do hon1c1n de gl,nio
L' c1 rL'\'eiou <10 n.~~to da Lurl)pa - e1n particular aos gr<indL·~ inglcsL'S dos séculos X\'I e X\'11, no
claro-escuro do lll'Ot"'Llt1..)lli~n10 cri~tào l' dl' '.:"-L'U mi~ticisn10" (Klil•,1n~ky ct 11!., ,C:.11tur11 irnd .\lcla11-
cl10/_11, op. cit., p. 2~~). í\Jo estc1mos longe dos ,ltk>L1~ cntusi,1sL1'-> d,1111> llh'llltl/'Í11c, le\·ando L'nl cunt.1
c1~ conot,1çôes astrai~ de muitos pl'll~c1durc~ do Rena~cimcnto.
2~ É \"l'rLt1dl' que a figura Ct-..'lltfcll tem c1~c1S, 111<1'-, ft-..'L'h<ldc1~, l' que r11tt1 adi, crtl'rn: sugcstJo dl' . . . ubli-
Ill,1\c'io? Uma curn<l qul' cinge a cabeça l', ~obrl'tudo, o nÜml'ru Quatro- o "quadrado m,ígicu" da~
n1lltl'n1,ític(1~ mL~dicas - parl'Cl'I11 sl'n·ir dl' c111tídnto.
,\ ~1HvlllRI,\, i\ IIISIORIA, () FS(_)ULll~II N 10
invoca "Dame Merencolye" ou do rei René que celebra "Dame Tristesse", perfila-se a
acídia, já mencionada acima, na qual, além mesmo da sangüínea "luxúria", da colérica
"discórdia", os espiritualistas da Idade Média viam a pior das tentações, a saber, a
complacência para com a tristeza. A acídia é essa espécie de preguiça, de lassidão, de
desgosto aos quais o religioso que não reza nem trabalha corre o risco de sucumbir.
Não tocamos, aqui, no fundo moral da melancolia apenas aflorado por Freud sob ovo-
cábulo de Sclbstgcfiil!I? lsso em que a acídia se compraz não é essa tristeza da memória
meditativa, esse 11100d específico da finitude que se tornou consciente de si mesma?
Não é a tristeza sc111 musa parente da doença-de-morte de Kierkegaard, essa parenta
do desespero ou antes, segundo a sugestão de Gabriel Marcel, da inespcrança 2"? Ao
remontarmos assim até a acídia dos religiosos, não teremos dado ao trabalho de luto
o interlocutor digno dele? Objetar-se-á que o trabalho de luto não tem antecedentes
na literatura da melancolia. Nesse sentido, seria mesmo uma criação de Freud. Mas
o trabalho de luto também tem seus antecedentes nos antídotos que acompanharam
a melancolia nas tradiçôes médica, psicológica, moral, literária, espiritual. Entre esses
remédios, encontro a alegria, o humor, a esperança, a confiança e também ... o traba-
lho. Os autores de S11t11m 1111d Mc/1111c/wly não estão errados em buscar na poesia lírica
datada do fim da Idade Média e do Renascimento, em particular a inglesa, de Milton e
do Shakespeare dos Sonetos até Keats, o elogio de um humor contrastado e, por assim
dizer, dialético cm que Orl('{ht responde a Mc/ancholy sob os auspícios da beleza. Seria
preciso prosseguir até Baudelaire essa revisão das figuras poetizadas da melancolia,
para restituir-lhe sua profundidade enigmática que nenhuma nosologia esgota. É para
esse lado que nos empurra Jean Starobinski em Ln Mé/1111co!ic au 111iroir. Trois /cct11rcs de
B1111dc/11in.' 27 • O poema liminar "Au lecteur", em Lcs Flcurs du Mal, não chama o livro
do Tédio de "livro saturnino"? O olhar perdido da Melancolia reflete-se no espelho da
consciência reflexiva, cuja poesia modula os reflexos. Um caminho de memória é assim
aberto pelo "Spleen": "Sou a sinistra memória"; "Tenho mais lembranças do que se
tivesse mil anos ... ". Trata-se, de fato, de figuras do passado histórico que assombram
o famoso poemil "O Cisne", que abordaremos sob um ângulo diferente, no ponto cm
que a memorização da história coincide com a historização da niernória-'':
26 Encontn._,j pela primeir,1 \'l'Z essa problem,í.tica dl1 "tri.<-,lL'/<l sen1 c<1usl1" no fin1 do tomo Ide Fi!o..:.of/11
d11 z1011tadc .<-,ob o título LL1 "TrislL'/,l do tinito" (!.e Vo/011tllirc ct /' fnz 1tilo11filin', I\1 ri.<-,, Aubil'r, 1s1.r:;o, 1988,
p. 420 l' Sl'g.).
27 Je,111 SL1robinski, Lo tvfrfllncolic 1,11 111iroir. Trois frei 11rc~ t!c li/111dd11in·, Paris, Ju 11 i,Hd, col. "Col lL·gc dl'
Frc1nc,•", 1'!84.
E por que n5o t'\ ocaríamos i11 fi11c os últimos quartetos e as últimas sonatas de
Beethm·en e sua poderosa e\'ocaç5o de uma tristez,1 sublimada? Pronto, a pala,Ta foi
proferida: sublimaçJo. Essa peça que falt,1 na panóplia da 111c/11p,icologi11 de Freud teria
tah·ez fornecido a este último o segredo da in\·ers5o da complacência em rcL1çJo ,í
tristeza em tristeza sublimada~ em alegria'". Sim, o pesar l; essa tristeza que nJo fez
o trabalho do luto. Sim, a alegria é a recompensa da renúncia ao objeto perdido e a ga-
rantia da reconciliaç5o com seu objeto interiorizado. E, assim como o trabalho de luto
é o caminho obrigatório do trabalho de lembrança, a alegria também pode cmoM com
sua graça o trabalho de memória. No horinmtl' desse trabalho: uma mem(iria "feliz",
quando a imagem poética completa o trabalho de luto. Contudo, L'sse horizonte se
esconde atr,ís do trabalho da história cuja teoria ainda está por criar, além da fcnonw-
nologia da mcmcíria.
Isso posto, ,·oito à questJo deixada em suspenso qu,1nto a saber até que ponto
é legítimo transpor para o plano da memória colcti,·a e da história as categorias pa-
tológicas propostas por Freud nos dois ensaios que ,1C,1bamos de ler. Uma justificati,·a
pro,·isória pode ser encontrada nos dois lados: no de Freud, e no da fenomenologia da
memória ferid,1.
Do lado de Freud, ter-se-Jo notado as ,·c'irias alusões a situações que ultrapass,1m
de longe a cena psicanalítiec1, tanto para o trabalho de lembranç,1 como para o de luto.
Essa ampliaçJo é tanto mais esperada pelo fato de tod,1s as situaçlíes e\'ocadas na cura
psicanalítica terem a H'r com o outro, nJo somente aquele do "romanct' famili,1r", mas
o outro psicossoci,11 e, por assim dizer, o outro d,1 situaçJu histt'irica. DL' rl'sto, Freud
nJo se furtou a semelhantes extrapolações; l'lll Totc111 e /11/n1, t'm /\-loi,l;, l' o 1110110/cí,1110,
em O (uluro de 1111u1 ilu,110 uu cm O i\111/-c,l11r 11a ciuili:11ç110. F ,1té mesmo algum,1s de
su,1s psicaniÍlises pri,·adas, se a;,sim ousamos dizer, for,1m psican<1liscs i11 a/1,;e11ti11, a
mais famosa sendo a do doutor Schreber. E o que dizer do /\loi,l;, de Michc/1111gl'io e dL'
L/111t1 record11çt'io de iutií11ci11 de Lcon11rdo d11 Vi//l'f? Nenhum escrúpulo de\'e, pois, nus dl'-
lL'r deste lado. A transposiç,10 foi f,icilitada por certas rl'inkrprd,1çôes da psican,ílisL'
pní,imas da hcrmL'nL'lltica, como se,.,:, em alguns trabalhos antigos de f L1bL'rma,.;, nos
quais a psican,ílisL' 0 rl'lurmul,1LL1 cm IL'rmos dl' dl'ssimboliz,1ç,1u l' de rl'Ssimbolizaç,10,
L' nt>S quais a L'nf,1Sl' l'L'c,1i nt> papL'l d,b diston/)t'S siskmcitic,is d,1 cumuniec1ç<1t> nu
plano das ci0nci,1s snciais. A tíni,-,1 nbjL'ç,1,, qul' nc'ío foi rl'sp,mdid,1 nas intl'rprl't,1çt-'l'S
:?_q ll',l!l Stcirnbin-.,ki b,1li/,l d::--...,in1 L) C,l!llÍlÜHl l]lll', d,1 ,111lig.i ,ll·1di<1, ~'l,l...,'.'"',clndp pl'l.1 \ll'l.11Kl)li.i dl'
l )urL'C !L'\ d ,H) "/ 1it't'II dc B,H!dL'lr1irv, n l1uc1l, }1 l1r -..,u,1 \ L'/, rL'!lll'k :1 nH"ff\1.1ri,1 (_ t. ,l krt._-l'Ír,1 lcitur,1 dL'
/ ,1 \k/11//((1/it' 1111111n11ir· ''J L,,._, figun·~ }1Vnl hl'l'--. ·1 l' l \gnl''
.i\) F\t1c.111do .i "/itidit- i!lt'l1111u1/u 111 po-.f-1111'1Ílt'c'<ll' /l( 1t'1111" l' mi:--. gr,1ndL'" l'li-..,,1bL·t.1nn~, quL' c111uni..:i,1 ,1
"( )de nt J\..,1l'l,1nL \1tlh" dL' KL•,1h, U'-. ,1uttirl•-.., dl' S11t11r11 tllld ;\ k/111/L l1t 1lu rL'tr,1t,1m l'-..,:-,,1 11lL'L111t'l)l 1.1 l'-..,k-
Qualquer que seja a \"ai idade das interpretações patológicas dos excessos e Lfas de-
ficiências da memória coleti\·a, não gostaria de deixar que t1cupassem todo o terreno.
Um lugar distinto deYe ser criado, ao lado das modalidades mais ou menos passi\·as,
sofridas, padecidas, desses "abusos" ~ mesmo le\"ando em nHlta as correçües feitas
pelo próprio Freud nesse tratamento uni la tera I da passi\·id,ide ~, para abusos, no sen-
tido fork do termo, que resultam dl' urna manipulação concertada da memória e do
esquecimento por detentores de poder. F,ilarei, então, menos em memória forida do
que em memória instrumentalizada (a c,1tl'goria webL'riana de r,1eionalid,1de segundo
um fim~ Z,ucckmtio1111/itdl - oposta :ide racionalidade segundo um valor - \Vcrlra-
tio1111/itdl - tem seu lug,1r aqui, assim como aquela, impll'mentad,1 por Habermas, de
;\ ,IL~Hlll/,\, ;\ IIISIORIA, () LS(ll!l llMI NJ()
"raz5o estratégica" oposta à "raz5o comunicacional''), É nesse plano que se pode mais
legitimamente falar em abusos de memória, que s5o também abusos de esquecimento.
A especificidade dessa segunda abordagem situa-se no cruzamento entre a pro-
blemática da memória e a da identidade, tanto coletiva como pessoal.
Retomaremos mais detalhadamente, no próximo capítulo, esse problema de inter-
secç5o ao abordarmos a teoria de Lockc, na qual a memória é erigida cm critério de
identidade. O cerne do problema é a mobilização da memória a serviço da busca, da
demanda, da reivindicaç5o de identidade. Entre as derivações que dele resultam, co-
nhecemos alguns sintomas inquietantes: excesso de memória, em tal regi5o do mundo,
portanto, abuso de memória~ i11s11ficil•11ci11 de memória, em outra, portanto, abuso de
esquecimento. Pois bem, é na problemática da identidade que se deve agora buscar
a causa de fragilidade da memória assim manipulada. Essa fragilidade se acrescenta
àquela propriamente cognitiva que resulta da proximidade entre imaginação e memó-
ria, e nesta encontra seu incentivo e seu adjuvante.
O que faz a fragilidade da identidade 7 É o caráter puramente presumido, alegado,
pretenso da identidade. Esse c/11i111, como diriam os ingleses, esse J\11spruc'1, como di-
riam os alem5es, aloja-se nas respostas à pergunta "quem 7 ", "q11c111 sou eu?", respostas
cm "que?", da forma: eis o que somos, nós. Somos tais, assim e n5o de outro modo. A
fragilidade da identidade consiste na fragilidade dessas respostas em que, que preten-
dem dar a receita da identidade proclamada e reclamada. O problema é assim afastado
cm m,iis um grau, da fragilidade da memória à da identidade.
Como causa primeira da fr,1gilidade da identilfade é preciso mencionar sua rela-
ção difícil com o tempo; dificuldade prim,íria que, precisamente, justifica o recurso à
memória, enquanto componente temporal da identidade, juntamente com a avaliaç5o
do presente e a projeç5o do futuro. Ora, a rel,1ç5o com o tempo cria dificuldades em
razão do caráter ambíguo da noç5o do mesmo, implícita n,1 do idi:•ntico. De fato, o
que significa permanecer o mesmo através do tempo 7 Já enfrentei, no passado, esse
enigma, para o qual propus distinguir dois SL'ntidos do idêntico: o mesmo como idc111,
s11111c, glcich ~ o mesmo como ipsc, sei/; Sei/is/. ParL'CL'u-nw que a manutenção de si no
tempo repousa num jogo complexo entre mesmidade L' ipseidade, se nos permitirem
l'Sses barbarismos; os aspl'ctos práticos L' pMicos desse jogo ambíguo s5o mais temíveis
que os aspectos conceituais, L'pistêmicos. Direi que a tentaç5o identit,íria, a "desraz5o
ickntitárü1", como disse Jacques Le Goff, consiste no retraimento da identidade ipsc na
identidade idc111, ou, SL' preferirem, no deslocamento, na deriva, quL' conduz da flexibi-
lidadL', própria da manutenç5o de si na pro111css11, ,1 rigidez inflL'XÍn'l de um caráter, no
sentido quase tipogrMico do termo.
A segunda causa de fragilid,1de é o confronto com outrl'm, pcrcd1ido como uma
ameaça. É um fato que o outro, por ser outro, p,1ss,1 a SL'r pl'rcebido como um perigo
p,1ra a identidaciL• própri,1, tanto a do nós como ,1 do eu. CertamL'ntc isso podL' consti-
tuir uma surpresa: SL'r,í mesmo preciso que noss,1 idcntidadL' seja fr,ígil a ponto de n5o
conseguir suportar, n5o conseguir tolerar LJUL' outros tenham modos de levar sua vida,
de se compreender, de inscrevl'r sua própria identidade na trama do viver-juntos, di-
ll.\ \11 ~!()RI\ 1 IJ.\ RI \IIXl~CÍXl l \
ferentes dos nossos? Assim é. São mesmo c1s humilhações, os ataques reais ou imagin,-í-
rios à auto-estima, sob os golpes dc1 alteridade mal tolerada, que fazem ü relação que o
mesmo mantém com o outro mudar da acolhida à rejeição, à exclus,10.
A terceira causa de fragilidade é a herança da \·iolência fundadora. É fato não exis-
tir comunidade hist(irica alguma que não tenha nascido de uma relação, a qual se pode
chamar de original, com a guerra. O qlll· celebramos com o nome de acontecimentos
fundadores, são essencialmente c1tos \·iolentos legitimados posteriormente por um Es-
tado de direito prec,írio, legitimados, no limite, por sua própria antiguidade, por sua
\·etustez. Assim, os mesmos acontecimentos podem significar glória pc1ra uns e humi-
lhação para outros. À celebração, de um lado, corresponde a execração, do outro. É
c1ssim que se armazenam, nos arquinis da memória colctiYa, feridas reais e simbólicas.
Aqui, a terceira causa de fragilidade da identidade se funde na segunda. Resta mostrar
por que Yiés as formas de mau uso da mem(iria podem enxertc1r-se na reivindicação de
identidade cuja fragilidade própria acabamos de mostrar.
As manipulaçôes da memória, que serão n·ocadüs mais adiante, devem-se à inter-
\ enção de um fator inquietante e multiforme que se intercala entre a reivindicação de
identidade e as expressões públicas da memória. Tratü-se do fenômeno dü ideologia,
cujo mecanismo tentei demonstrar em outro lugc1r 11 . O processo ideológico 6 opaco por
dois motivos. Primeiro, permanece dissimulado; diferentemente da utopia, é inconfes-
s,íYel; mascara-se ao se transformar em denúncia contra os ad\·crs,-írios no Gimpo da
competição entre ideologias: é sempre o outro que atola na ideologia. Por outro lado,
esse processo é extremamente complexo. Propus distinguir três ní\·eis operatórios do
fenômeno ideológico, em função dos efeitos que exerce sobre a compreensão do mundo
humano da ação. Percorridos de c1lto a baixo, da superfície :i profundidade, esses efeitos
são sucessivamente de distorção da realidade, de legitimação do sistema de poder, de
integração do mundo comum por meio de sistemas simbólicos im,mentes :i ação. l\ío
nhcl mais profundo, aquele em que se situa Clifford Geertz, o fenômeno ideológico
parece mesmo constituir uma estrutura intransponível da ação, na medidc1 em que a
mediaçJo simbólica faz a diferença entre as motivc1çõPs da açJo humana e as estruturas
hereditárias dos comportamentos geneticamente programados. Um,1 correlação not,i-
\·el se estabelece nesse nh·cl fundamental entre síntese simbólica e sistemas semióticos,
alguns dos quais dependem francanwnk de uma rl'tórica dos tropos ''. Tomada 1wsse
nÍn'l dt' profundidade, a an<1lisc do fenômeno ideológico se inscreve na órbita de uma
"semiótiec1 da cultura". É mesmo enquanto fator Lk integração que a ideologia pode ser
tida como guardiã da identidade, na medida em quL' ela oferece uma rL'plica simbl1lica
~\ F Ricn_'ur, L'/tfr(ih1.,~ic d /'LJftipic, I'.iri--., l~ditil)n-.., du '-il'uíl, Lol "I ,1 Cuukur dl''.'.- idl'L''.'->", \l)LJ7 \linh,1
1n,L•-.;tig,1ç{ln n·fL'IT-'--t' a pl'll'-íddnrc~ Lll) ditlTl'llk,., qucinlt) \Ln,, .\lthu_...,'.'>L'r, r--..L1nnhL'in1, \L1\. \\'L'-
bl'r, l lc1bcrn1a-.., ( ~•ri ll1L'Í r() pcríl ldo), Cli fh lrd ( ,L'L'rt;.
t'LHaduxo, d hipl·rbtlil', U ritn10 L' todth ():--, lllltJ"(h l'il'llll']Ü{)o.., dt) qul' L-ham,1n10:-, Íllcldl'qllcld,lnll'llll'
dL' 'L, .... ti\n' turKÍtlll.cllll l 1 [l(l prujL'Çcln LLl .... cltitudl' . . ~"ll'O..,'.--,lldÍ:--. L'lll '."-ll<l f11riru pública, n,lu p1.1dl'llhh
,117,l] i:-,,ir ,l j n1purtcí llL'Í,l d,1::-, ,hSL'l\'t)l''.", idt'()k1gil ,1...," (" ldl'()lt l,~~ ,h t1 (ll !tu rcl] ...,~ :--.ll'm", ~)ubl Í(cldn li/
e ( ;l'l'rt;, f /11' /11/t'} ,1~1"t'/i1/Í(l// (l(Cu!tur('", '\,,l'\\ '\,11 k, n,10..,Jl 1111\)k-.., [lJ~~- f'· ::?_()l)).
A MI M(lRIA, A HISHlRIA, ll FSQLl:CIMI NTll
13 Geert/ cujos can1pos de estudo foran1 o Marrocos e l1 Indonésia, conft.,ssa de born grado:
1
"l~ por nll'Ío dcl construç3o das ideologias, d,is figur,1s esquen1,Hicas dc1 orden1 social, que o
homem se torn ..1, par,1 o 1nl'lhor e para o pior, uni c1nin1c1l político". "A funçJo dzi ideologic1,
prossegue ele, t'.· a de possibilit,1r urna política c1utônom,1 ,10 fornecer os conceitos qul' a fun-
dan1L'nt(11n l' lhe dJo st'ntido, as i1nagens pt•r~uasivas pt•ltis quc1is l'la poch_• ser judiciosanH'Jlte
aprl'l'ndida." (i/,id., p. 218)
3-+ I'. Rincur, L'fdiologic e/ f'Utopic, op. cil., pp. 2-+1-28-+.
ll.\ MI ~lllRI.\ 1 IJ\ ln \IINISCÍ N, 1.\
"chance" - de que ela ser,'í satisfeita. É nesse ponto crítico que os sistemas simbólicos
e suas expressões retóricas, também e\lxadas por C Geertz, se \'êem mobilizados.
Eles fornecem o conjunto de argumentos que eleva a ideologia à condição de mais-
valia agregada à crença na legitimidade do poder''.
Essa relação da ideologia com o processo de legitimação dos sistemas de autorida-
de parece-me constituir o eixo central em relação ao qual se distribuem, por um lado,
o fenômeno mais radical de integração comunitária por meio das mediações simbóli-
cas - até mesmo retóricas - da ação e, por outro lado, o fenômeno mais aparente e
mais focil de se deplorar e denunciar, a saber, o efeito de distorção sobre o qual Marx
focalizou suas melhores an,'ílises em A ideologia 11/c111ií'1•• As discutíveis metMoras da
imagem invertida ou do homem de cabeça para baixo são conhecidas. O mecanismo
da distorção, posto pnr sua \·ez em imagens, somente seria plausí\'d caso se articu-
lasse com o fenômeno de legitimação que coloco no centro do dispositivo ideológico
e caso afetasse em última instância as mediações simbólicas insuperáveis da ação. Na
falta desses intermedi,frios, presume-se que o detrator da ideologia seja capaz de dar
uma descrição verdadeira, não deformada e, portanto, isenta de toda interpretação
em termos de significado, \·alor, norma, da realidade humana fundamental, a saber,
a pmxis, a atividade transformadora. Esse realismo, até mesmo essa ontologia da pm-
xis 1- e mais precisamente do trabalho \'in1"', constituem ao mesmo tempo a força e a
fraqueza da teoria marxista da ideologia. De fato, se a pmxis não integra, a título pri-
miti\l1, uma camada ideológica, na primeira acepção da pala\Ta, não se vê o que, nessa
praxis, poderia ser moti\·o de distorção. Desligada desse contexto simbólico originúio,
a denúncia da ideologia se reduz a um panfleto contra a propaganda. Essa empreitada
purificadora não é \'ã, pode ter sua necessidade circunstancial se for desennih·ida na
perspectiva da reconstrução de um espaço público de discussão e não na de uma luta
impiedosa que teria por único horizonte a guerra civil 1".
1~ Ao arriscar a t''\pn·s~{1o n1c1is-,·<1lia, sugiro qul' a noç,lo n1arxista de n1,1is-\·a\i,1 centrada na prudu-
çã.o dl' \'l1lores na l'Conon1ia n1l'rcantil nllo pass(iri,1 ck' urna figur,1 particuL1r do fenôn1eno gl'ral de
n1ais-\',1li,1 \'inculado ao exercício do poder, o podl'r L'conôn1ico na torn1a c,1pitalista da econon1ia
lllL'rc,111til sendo ,1 \·ariante L'SpL'cificada pela di\·isllo do tr,1b,1lho L'ntrl' go\·L·rnantcs l' go\·t'rn,1do~.
ln I'. Rinl'L1r, L'ldiologic e/ /'Litopic, "I'- cit .. pp. 103-1-17.
·" A obr,1 Lic> l\1idwl 1 knn sobrL' a ontologia dL' t\lar, (i\111r.r, t. 1. L//ll' pi,i/o,op!Jic de /11 re,1/iti'. l'aris,
C,1\li1nard, 197b) continua ~l'tllio o tl'xto de rl'fen::•ncia p,1r,1 uma con1prL'L'J1~,lo profunda da ,inLllise
n1ar,ist,1 d,1 realidade hun1an,1. Eu ha\·ia escrito unia an,i.lisl' dl'sse belbsirno livro pouco depoi~
de sua publict1ç.lo, n'ton1,1da L'ITI Lcdurc~ 2, L11 L·t 111tn;I..' de..;, philo~op!ic~, Paris, Éditions du 5euil, col.
"La Couleur dl's idl·e~", 1992, rl'l'd. col. "l'oinb E~s.1is", 1999. l\:L'S'.'->a últin1a L·di~-,lo, pp. 26~-2LJ~.
38 _IL'an-Luc Pctit, D11 fmL'llil t'Ít'1711f 11u ~_11~fi'111c de.; 11dit)11~. L/11c di...;.c11::;::;itm de /\1arx, Paris, Édition~ du
SL'uil. 1980.
::N Fssa foi <1 contribuiç,lo de Haberma~ n,1 L'poec1 de Co111111i::s::s1111(c ct /11ft'n't (Paris, Callin1c1rd, col.
"Bibliothi·quc> de philllS<)phiL'", 1976; rL'l'd., col. "Tel", llJ7LJ); \'l'r P. Rinl·ur, /_'fd<'ologie d /'Lit,,pit',
op. cit., pp. 28:=i-11-1-. Ln1 interesst: pela L'n1c1ncipc1ç,lo, distinto do intt'ressl' pt:lo controle e pL'lcl
n1<'!nipull1çJo, ,Hb qu,1i~ corrc~ponderiam a~ cil'ncias l't11píricas, L' atl· ml'~mo do interesse pelei
con1unicaçclo, prt)prio d,1s cil'ncias historicci~ L' intL'rprL'tati\'as, t:'SLuia n ..1 baSL' d,1s cil'nci,b ~ociais
críticas tais con10 ,1 p~ican,ílise L' a crítica da:-- ideologia~.
A Ml~l(ll\l,\, A 111snm1A, O l~l]ULCIMFNIO
40 T,vl'l,111 Todorov, /e,-; A/,11,-; d,• /11 111<'11111irc, Paris, Arlé,1, 199:i
Ili \li \ltll\l \ 1 Ili RI \11,ISCÍ,ll \
nwmt1ria" (Os 11ln1sos d11 111c111ôri11, p. 13). "O que est,í em jogo na memória, acrescent,1
ele, é grande demais para ser abandonado ao entusiasmo ou à cóll'ra" (op. cil., p. l-1).
N,10 insistirei num outrn aspecto do prnblem,1, ,1 saber, a pretensJo dt• nossos con-
tempor,'\neos de se instalarem na postura d,1 vítima, no estatuto d,1 vítima: "Ter sido
\"Ítima dá o dirt•ito de se queixar, protestM, e reclamar" (op. cil., p. 56). Essa postura
gera um privilégio exorbitante, que pôe o resto do mundo em posiç,10 de de1·L•dor de
promissórias. Conse1Tarei, antes, de Todorm·, uma última reflexão que nos le, ar5 à
difícil questão do den·r de memória: "Conrn todo trabalho sobre o passado, o trabalho
do historiador jamais consistl• apenas em est,1bell'l'er fotos, mas também em escolher
alguns deles como sendo m,1is destacados e mais signific,1tin1s que outros para, em
seguida, relacion,í-los entre si; ora, esse tr,1balho de selcç,10 e de combinaçJo é ne-
cessariamente orientado pela busc,1 nJo da \"L'rLfade, mas do bem" (op. cil., p. 150).
Independentemente das minhas ressai\· ,1s p<1r,1 com a alternati,·a ,1qui sugerida entre a
,·erdade e o bem, teremos de adiar até ,1 discussão ulterior, sobre o de, er de memtíri,1,
i1reorientação de toda a falJ sobre os abusos da nwmória que dependem da busca da
justiça. Esse cuidado encadeia-se ao que foi dito acima em fanir de um conselho ex-
tremamente judicioso de Todorov, o de extrair das lembrançJs traumatizantes o ,·alor
exemplar que apenas uma in,·ersão d,1 memória em projeto pode tornar perti1wnte.
Enquanto o traumatismo remete ao pass,1do, o ,·alor exemplar orienta para o futuro.
Ora, o que o culto d,1 memória pela memória oblitera, ao objdi,·ar o futuro, é a questJo
do fim, do desafio mor,1I. Ora, i1 essa quest10, a pnípri,1 noçJo de uso, implícita n,1 de
abusu, nJo podia deixJr de remeter. Ela j,í nos fez ultrapassar o limiM do tL•rceiro nÍ\ el
de nossa investigilÇ<lO.
Ora, é nesse ponto de atrito que o dever de memória se revela particularmente car-
regado de ambigüidades. A injunção a se lembrar corre o risco de ser entendida como
um convite dirigido à memória para que provoque um curto-circuito no trabalho da
história. Por meu lado, estou tanto mais atento a esse perigo pelo fato de meu livro ser
uma apologia da memória como matriz de história, na medida em que ela continua
sendo a guardiã da problemática da relação representativa do presente com o passado.
Logo, é grande a tentação de transformar essa apologia numa reivindicação da memó-
ria contra a história. Chegada a hora, resistirei tanto à pretensão oposta, de reduzir a
memória a um simples objeto de história dentre seus "novos objetos", correndo o risco
de despojá-la de sua função matricial, quanto me recusarei a deixar-me arregimentar
pela argumentação inversa. É com essa disposição de espírito que escolhi colocar pela
primeira vez a questão do dever de memória na seção dos usos e abusos da memória,
mesmo que tenha de retomá-la mais demoradamente na seção sobre o esquecimento.
Dizer "você se lembrará", também significa dizer "você não esquecerá". Pode até ser
que o dever de memória constitua ao mesmo tempo o cúmulo do bom uso e o do abuso
no exercício da memória.
Espantemo-nos primeiro com o paradoxo gramatical que a injunção de se lembrar
constitui. Como é possível dizer "você se lembrará", ou seja, contará no futuro essa
memória que se apresenta como guardiã do passado? Mais grave ainda: como pode
ser permitido dizer "você deve lembrar-se", ou seja, deve contar a memória no modo
imperativo, quando cabe à lembrança poder surgir à maneira de uma evocação espon-
tânea, portanto, de um pnt/ws, como diz o De 111e111ori11 de Aristóteles? De que maneira
esse movimento prospectivo do espírito voltado para a lembrança como urna tarefa
a cumprir se articula com as duas disposições deixadas como que em suspenso, a do
trabalho de memória e a do trabalho de luto, consideradas alternadamente de modo
separado e cm dupla? De certa forma, ele prolonga seu caráter prospectivo. Mas o que
lhe acrescenta?
É certo que, no âmbito preciso da cura terapêutica, o dever de memória se formula
como uma tarefa: ele marca a vontade do analisando de contribuir doravante com a
empreitada conjunta da análise através das armadilhas da transferência. Essa vonta-
de reveste-se até mesmo da forma do imperativo, o de deixar os representantes do
inconsciente se dizerem e assim, tanto quanto possível, "dizer tudo". Nesse aspecto,
é preciso reler os conselhos que Freud dá ao analista e ao analisando em seu ensaio
"Rememoração, repetição, perlaboração" ➔ • Por seu lado, o trabalho de luto, na medida
1
em que exige tempo, projeta o artesão desse trabalho à frente de si mesmo: doravante,
ele continuará a cortar um por um os vínculos que o submetem ao império dos objetos
perdidos de seu amor e de seu ódio; quanto à reconciliação com a própria perda, ela
permanece para sempre uma tarefa inacabada; essa paciência consigo mesmo reveste-
se mesmo dos traços de uma virtude quando a opomos, como tentamos fazer, a esse
vício que consiste no consentimento à tristeza, à acídia dos mestres espirituais, essa
paixão dissimulada que arrasta a melancolia para baixo.
TercPiro elemento de resposta: dentre esses outros com quem estamos endivida-
dos, uma prioridade moral cabe às vítimas. Acima, Todorov advertia contra a pro-
pensão a se proclamar vítima e exigir incessantemente reparação. Ele estava certo. A
vítima em questão aqui é a vítima outra, outra que não nós.
Sendo esta a legitimação do dever de memória enquanto dever de justiça, como os
abusos se enxertam no bom uso? Eles próprios não podem passar de abusos no manejo
da idéia de justiça. É aqui que certa reivindicação de memórias passionais, de memó-
rias feridas, contra o alvo mais amplo e mais crítico da história, vem dar à proferição
do dever de memória um tom cominatório que encontra na exortação a comemorar
oportuna ou inoportunamente sua expressão mais manifesta.
Antecipando desenvolvimentos ulteriores que supõem um estado mais adiantado
da dialética da memória e da história, assinalo a existência de duas interpretações mui-
to distintas, embora compatíveis entre si, desse deslocamento do uso ao abuso.
Pode-se, de um lado, enfatizar o carMer regressivo do abuso que nos remete à pri-
meira fase de nosso percurso dos usos e abusos da memória sob o signo da memória
impedida. É a explicação que Henry Rousso propõe em Lc Sy11dro111c de Vichy 4'. Essa
explicação somente vale nos limites da história do tempo presente, portanto, para um
prazo relativamente curto. O autor tira o nwlhor proveito das categorias que depen-
dem de uma patologia da memória - traumatismo, recalque, retorno do recalcado,
obsessão, exorcismo. Nesse quadro nocional que somente se legitima por sua eficácia
heurística, o dever de memória funciona como tentativa de exorcismo numa situação
histórica marcada pela obsessão dos traumatismos sofridos pelos franceses nos anos
1940-1945. É na medida cm que a proclamação do dever de memória permanece cativa
do sintoma de obsessão que ele não pára de hesitar entre uso e abuso. O modo como o
dever de memória é proclamado pode parecer, sim, abuso de memória à maneira dos
abusos denunciados logo acima na seção sobre a memória manipulada. Não se trata
mais, obviamente, de manipulações no sentido delimitado pela relação ideológica do
discurso com o poder, mas, de modo mais sutil, no sentido de uma direção de cons-
ciência que, ela mesma, se proclama porta-voz da demanda de justiça das vítimas. É
essa captação da palavra muda das vítimas que faz o uso se transformar em abuso.
Não é de admirar se reencontramos, nesse nível entretanto superior da memória obri-
gada, os mesmos sinais de abuso que na seção precedente, principalmente na forma
do frenesi de comemoração. Trataremos de modo temático desse conceito de obsessão
num estágio mais adiantado desta obra, no capítulo sobre o esquecimento.
Uma explicação menos centrada no recitativo da história do tempo presente é pro-
posta por Pierre Nora no texto que encerra a terceira série dos Lugares de 111r111ôria - as
França - com o título: "A era das comemorações""". O artigo é dedicado à "obsessão
43 ~il'nry Rousso, Lc S1;11dro1111· de Vichy, de 19.J.J à 110s iours, l\iris, Éditions du Seuil, 1987: rel'd., 1990;
Vichy. L/11 !'"'"'' q11i 11c p11ssc p11s, l\iris, Fayard, 1994; Lo Ho11tisc d11 poss,', Paris, Tcxtud, 1998.
44 P. Nora (dir.), Lcs Lirn:c de 111<'111oirc (3 pMtl'S: l. La Républiqm'; li. Li Nation; III. Ll's Fr,rncl'),
Paris, Callimard, col. "Llibliothi.,quL' illt1strt'.'l' des histoircs", 1984-1986. Vl'r III, Ll's France, t. 3, "Dl'
i'Mchivl' à l'l'mbli.'rnc", p. 977 ,, sl'g.
◊ 102 ◊
ll\ \ll~llllll\ 1 Ili l!I \Jl\.hll \.l l \
comemorati\'a" e somente Sl' comprl'ende no di,ílogo l'Stabt·lecidu por seu autor com
o texto inaugural dos "lug,ires de memória". No momento oportuno, dedicirci um
L'studo a esse diálogo de Pierre Nora consigo mesmo"º. Se o menciono agora é pM,1
dele extrair a ad\'ertência contra um,1 recu~wraçiío de meu próprio trab,1lho em be-
nefício de um ,1taque da história em nome da memória. O próprio ,rntor se queix,1
de uma recuperaç:io Sl'melhante do tem,1 dos "lugares de memória" pela "bulimia
comemorativa de época" (Nora, Os lugares de 111c111ória Ili, p. 977): "Estranho destino o
desses 'lugares de nwmtíria': por seus procedimentos, st·us métodos e seus próprios
títulos, queriam ser uma história de tipo contracomemorati\'li, mas a comemoraçZ\o
os alcançou. [ ... ] ;\ ferramenta forjada para l'\ idenciar a dist:íncia crítica tornou-se o
instrumento por excelência da comemoraçZ\o" ... O nosso l' um momento histórico que,
portanto, é inteiramente caracterizado pela "obsessZ\o comemtirati\·a": maio de 1lJ68,
bicentenário da ReniluçZ\o Francesa, etc. A e>-plicaçZ\o proposta por Nora ainda nZ\o
nos diz respeito, apenas seu diagnóstico: "É a própria dinc'imica da comemoraçZ\o que
se im·erteu, o modelo memorial le\·ou a melhor sobre o modelo histórico e, com ele, um
uso completamente diferente do passado, impre\·isível e caprichuso" (op. cit., p. lJ88).
Qut' modelo histórico o modelo memorial substituiu? O modelo de celebraçôes con-
sagr,1efas :i soberania impessoal do Estado-naç:ío. O modelo mereceri,1 ser chamado de
histórico, porque a ,1utocompreens:ío dos fr,rnccsl'S idL•ntifica\·a-sc com a histtíria da
instauraçi\o do Estado-naç:ío. A ele substituem nwm(irias p,irticulares, fragmentadas,
locais e culturais"''. Que rei\·indicaçiío est,í \'inculada a ess,1 inn't°S<'io do histtirico em
comemorativo? lnteress,1-nos aqui o qut' diz respeito :i transiç:ío da fenonwnologi,1 da
memória à epistemologia d,1 história científica. Esta, nos di/ Pierre Nora, "tal como se
constituiu em instituiç:ío da naç:ío, consisti,1 11,1 retificaç:ío dessa tr,1diçi\o de memória,
no seu enriquecimento; mas, por mais 'crítica' que pretendesse ser, ela representa\·a
apenas seu aprofundamento. Sua meta última consistia mesmo numa identificaç:ío
por filiação. É 1wsse sentido que história e memória eram uma única e mesma coisa; a
história era uma memóri,1 \'erificada" (op. cit., p. 997). A im·ers,10 que t•st,í na origem
da obsess:ío comemor,1ti\'a consistiria n,1 recupl'raç:ío das tradiçt"1es defuntas, de fotias
de passado das quais estamos separados. Em suma," a coml'moraç:ío emancipou-se do
espaço que lhe é tradicionalmente atribuído, mas é a époc,1 toda que se tornou come-
mora ti\ a" (op. cit., p. 2lJ8).
Faço questi\o de dizer, ,10 cabo deste capítulo dedicado :i pr,ítica da nwmtíria, que
minha empreitad,1 ni\o dependt· desse "ímpeto de comemor,1ç,10 memorial" (op. cit.,
p. 1001 ). Se é \'erdade que o "momento-memóri,1" (op. cit., p. Hlll6) define uma époc,1,
a nossa, meu trabalho ambicion,1 t·sc,1par aos critérios de pertencimento a essa époc,1,
seja em sua fase fenomenológica, epistemológica ou hermenêutica. Com raz:ío ou n:ío.
Por isso ele n:ío se sente ameaçado, m,1s confortado, pel,1 conclus,10 de Pierre Nor,1,
--1-6 F :\Jortl prccis,1: e:-.:-,,1 "ml't.1morfose da COlllL'llHHa~-,1n" :-,l'rl,1, por --.ua \ L?, o l'kito dl' unta ml'ta-
nHnfose mais ,1n1pla, \1 de um,1 Fr,1nça qul' pa...,~ou, L'i1l nH_'nos dl' \ intl' c1no-.,, dL~ urnc1 con .._,cil ncic1
1
que anuncia um tempo cm que "a hora da comemoração estará definitivamente en-
cerrada" (op. cit., p. 1012). Pois não é com a "tirania da memória" (ibid.) que ele quis
contribuir. Esse abuso dos abusos é daqueles que ele denuncia com o mesmo vigor que
o faz resistir à substituição do trabalho de luto e do trabalho de memória pelo dever de
memória e limitar-se a colocar esses dois labores sob a égide da idéia de justiça.
A questão colocada pelo dever de memória excede assim os limites de uma sim-
ples fenomenologia da memória. Ela excede até os recursos de inteligibilidade de
urna epistemologia do conhecimento histórico. Finalmente, enquanto imperativo de
justiça, o dever de memória se inscreve numa problemática moral que a presente
obra apenas resvala. Uma segunda evocação parcial do dever de memória será pro-
posta no âmbito de uma meditação sobre o esquecimento, cm relação com um even-
tual direito ao esquecimento. Seremos então confrontados com a delicada articulação
entre o discurso da memória e do esquecimento e o da culpabilidade e do perdão.
Nessa suspensão interrompe-se nosso exame da memória exercida, de suas faça-
nhas, de seus usos e de seus abusos.
3
Memória Pessoal, Memória Coletiva
Nota de orientação
N 1nôria tende 11 do111i11ar 11 ce1111. Essa prccipit11çiio é e11comiada por u11111 inq11ietaçiio
prôpri11 de 1wsso rn111po de im'estigaçiio: i111porta ao historiador sahcr qual é seu co11-
tmpo11to, a 111e111ôri11 dos protagonistas da aç110 to11111dos u111 a 11111, 011 a d11s coleth,idades to11111-
das e111 co11ju11to 7 Apes11r dessa dupla lll};L'IIci11, resisti à te11tap10 de iniciar 111i11/ia im'estigaç110
co111 esse de/iate às ,'e:es i11cô111odo. Pensei que se cli111i11ari11 seu ,,c,1c110 _fí1:e11do-o retroceder
do pri111eiro lugar, onde a pedagogia do discurso aqui s11strnt11da ta111hé111 aco11sel/111ria 11umtt'-
lo, para o terceiro lugar, onde a coert'11cia do 111e11 proccdi111e11to requer que eu o rccond11:a. Se
11110 se sal1e o que sig11ifirn a prom da 111e111ôria 1111 presença ,,i,,a de 1111rn i111age111 das coisas
passadas, 11c111 o que sig11ifirn partir e111 l>l1srn de 1111111 le111lmmça perdida 011 ree11co11tmdl7,
co1110 se pode lcgiti11111111e11te indagar II q11e111 atribuir essa prorn e essl7 /i11srn 7 Assi111 adiadl7,
a disrnssiio te111 alg1111rn clumce de uersar sobre 1111w pcrg1111ta 111e1ws a/,rupta que II que ,,,
coloca geml111c11te 1117 _fi1rn117 de 11111 dilc11117 p17rafis1111tc: a 111c111ôril7 é pri1110rdial111c11/c pessoal
011 coletim? Essa pergunta é 17 seguinte: 11 q11e111élegíti111011trih11ir o pathos corrcspo11de11te à
rcccpçiio da le111lmmça e 17 praxis e111 que consiste a /111srn da lc111lmmça 7 A resposta à perg1111ta
colornda nesses tcr111os tc111 clumccs de escapar à alter1111ti1,a de 11111 "011 ... ou e111i10". Por que a
111e11uíria /iaz,eria de ser 11tril111íd11 apenas a 111i111, a ti, 11 ela 011 ele, ao si11g11117r dl7s trc's pessoas
gm11111tirnis suscetíz,eis quer de designar a si prôpril7s, quer de se dirigir rnd11 111na a u111 tu, quer
de 11armr os jí1tos e os gestos de 11111 terceiro 111111111 1117rmti1,11 e111 terceim pesso17 do si11g11lar? E
por que essa 11tril,11iç110 11110 sc(iiri11 diret11111e11te 17 nós, a ,,ôs, a eles 7 E11Il>om a disrnss110 a/ierta
pela altenrntim que o título deste rnpítulo rcs11111c 11iio se rcsoh'l7, ol>,'ÍllllieIIte, co111 esse incro
desloca111ento do pro/,/e11111, o espaço de atri/111iç110 pre,,ia111e11te al,erto à tot11/idade das pessoas
gmnwtirnis (e mcs1110 das 11110-pessoas: se, q11e111 quer que, rnda 11111) oferece ao 111e11os 11111 qua-
dro apropriado 11 111na co11frontaçiio entre teses que se tor11am111 co111e11,unh,eis.
Esta é a 111i111Ia primeira IIipôtcse de tml>al/w. A scg1111da é a seguinte: a altcrnati,,a da
qual partimos 1' o fruto relatirn111cntc tardio de 11111 duplo 1110,,i111e11to que to111011 s1111 _f<m11a e
seu i111p11/so 11111ito depois da clabomç110 das duas prol>le111âl irns 1111iiores da prom e da l>11srn
da le111/Jra11ç11, elal1omçiio rn/11 origem rc111011ta, co1110 ui11ws, IÍ 1'porn de Plaltlo e Aristôtelcs.
;\ ~11.lvl(JRIA, ;\ iilST(lRIA, O l'S(.)UlllMI NIO
Por u111 lado, te111os a r111crgh1ci11 de u11w pro/Jlr1111ítirn da s11bjetivid11dr de frição fr1111rn111e11tc
egolôgirn; por outro, a irrupção d11 sociologi11 110 rn111po d11s ciências soci11is e, co111 ela, de 11111
conceito inédito dr co11scú·11ci11 coletiva, Ora, 11e111 Platão, 11e111 Aristóteles, nem qu11lq11cr dos
A11tigos considerou como u111a questiio pd, 1i11 a de s11/Jer que111 se lc111bra. Eles i11d11g11111 o que
sig11ífirn ter ou /Jusrnr u111a lc111bra11ç11. A 11tri/J11ição 11 alguém suscetível dr dizer r11 ou 11ôs
pem11111cci11 i111plícit11 à conj11g11çiio dos uerbos de 111e111ôri11 e de csq11cci11wnto 11 pesso11s gm11111-
tirnis e 11 tempos verbais dijár11tes. Eles não se colornm111 essa pergunta porque se colocav11111
outro, a respeito da relação prâtirn entre o indivíduo e 11 cid11de. Eles 11 resolvi11111 bem 011 mal,
co1110 11tcst11 11 q11erel11 11bert11 por Aristóteles 110 /iz,ro II d11 Política contra 11 nfom111 da cidadr
proposta por Pl11tiio 1111 República 11-111. Ao 111e11os esse pro/Jle11111 estam ao alnigo de toda
alten111tiua ruinos11. Seja co111ofor, os i11diuíd11os ("cada 11111" - tis - "o lum1c111", pelo 111c11os
os lzo111e11s /iz,res definidos por su11 participação 110 gm,enzo da ciifade) rnlti-uava111, 1111 escala de
su11s relaçiics pri1111d11s, 11 virtude de 11111izade que tomaz,11 su11s trocas igu11is e r<'Cíprorns.
É a e111ergc·nci11 de u11111 pro/Jle111âtica da s11bjetiziidlllie e, de 111odo cad11 vez 111ais prc111e11tc,
de 1111111 proble1111ítica egolôgica, que suscitou tanto 11 pro/J/rn111tiz11ção da co11scú·11cia qu1111to o
1110vi111e11to de retmi111r11to dest11 sol1re si 111es11u1, 11té lJCimr 11111 solipsis1110 cspccul11tivo. U11111
escola do ol/111r interior, para reto11111r 11 cxpressiio inwardness de Clz11rlcs T11ylor', i11sta11ro11-se
assi111 progressiva1w'11te. Proporei t1fs de s1111s 11111ostms exe111plares. O prrço 11 pag11r por essa
mdicaliwçi'ío subjetiuista (, clemdo: a atribuiçiio a 11111 sujeito coletivo tomou-se quer i111pe11sâ-
vel, quer derivada, 011 até 111es1110 fmnrn111ente 111et11fôrica. Ora, 1una posição 1111tih;tica surgiu
co111 o 1111sci111c11to d11s ci?11ci11s lz1u11mws - d11 li11giiístirn ií psicologia, à sociologi11 r à históri11.
Ao 11dot11rc111co1110111odc/o cpistc111olôgico o tipo de objeti'uidade d11s ciénci11s da natureza, essas
cic·11ci11s inst1111mra111 111ode/os de inteligil1i/id11de para os q1111is os fenô111e11os sociais são rrnli-
d11des ind11bitâz,cis. Mais prccis11111en/c, ao indi, 1id11alis1110 111etodolôgico, 11 escola d11rklzci111iana
opi5c 11111 lzolis1110 111etodolôgico 110 íi111bito do q1111I virá se inscrever Mauricc H11lbwac/1s. Para a
sociologia, 1111 vimd11 do sérnlo XX, 11 conscÍl'11ci11 colctiua é, 11ssi111, 11111a dess11s rmlhfodes rnjo
estatuto 011tolôgico 11110 (, q11estio1111do. E111 co111prnsaç110, é a 111c111ôri11 indiI 1id1111I, cnq11a11to
i11stíinci11 pre/c11sa111rntc origi11âri11, que se toma proble11uítica; 11 fc110111cnologia nascente tem
11111ita dificuldade para w'io ser relcgmfa sob o rótulo 111ais 011 111enos infim11111te do psicologis1110
de que c/11 pretende dcfendrr-se; despoj11d11 de todo privilégio de crcdibilíifodc cientifica, a co11s-
cih1cia privada presta-se 11pe1111s à dcscriç110 e à explicação 11a via da intcrioriwç110, d11 qual a
f11111os11 introspecção, lt'io ridiculariwd11 por Aug11stc Co111te, seri11 o zíltimo estágio. N11 111c/11or
das hipóteses, ela se toma 11 cois11 a explicar, o explicandum, se111 privilégio de origin11ria/adc.
A própria palavra origi1111riedadc, por sinal, niio tc111 sentido 110 horizonte da objetiv11ção total
da rrnlid11dc lz1111w11a.
É ness11 situação alt11111ente pol?111irn, que opiie II u11w tradiçíio mztí,'{11 de reflexividade 1t111a
tmdiçiio 111ais recente de objetividlllfc, que 111r111ôri11 i11dh 1id1111/ e 111e111ôri11 coletiva süo postas
e111 posiçiio de riv11/idade. Contudo, elas não se opüe111 110 111es1110 pl11110, 111as cm universos de
discursos que se ton111m111111/zcios 11111110 outro.
Ch;irles Taylor, Lcs Sourccs du l)[OÍ, op, cit., ver p. 149 l' seg., "[;int0riorit0".
ll\ ~11\l()RI\ l ll\ 1,1\ll!'-JISlll'-.ll\
Assi111 sendo, 11 tarcti1 de 11111 filôsofó preocupado e111 co111pree11der co11w 11 historiografia
1. Santo Agostinho
tempo nos linos X e XI das Confissiks. De fato, essa dupla análise é insepar,'í,·el de
um contexto absolutamente singular. Primeiro, o gênero literário da confissào as-
socia fortemente, ao momento de penitência que prev,1leceu mais tarde no uso cor-
rente do termo, e mais ainda à confissão inicial da subordinaçào do eu à pala,·ra
criadora que desde sempre precedeu a pala,·ra privada, um momento propriamente
rdlexini que liga, de imediato, memória e presença a si na dor da aporia. Em Tc111po
e Narrntim /, cito, na esteira de Jean Cuitton, essa "confissào" magnífica: "Quanto a
mim pelo menos, Senhor, aflijo-me com isso e aflijo-me comigo mesmo. Tornei-me
para mim mesmo uma terra de dificuldade e de suor', sim, nào sào mais as ,ireas ce-
lestes que agora escrutamos, nem as distâncias astrais, mas o espírito. Sou eu quem
me lembro, eu o espírito" (Ego ,11111, q11i 111c11li11i, ego 1111i11111s) '. Nada de fenomenologia
da memória, portanto, fora de uma busca dolorosa de interioridade. Lembremos
algumas etapas dessa busca.
Primeiro, no lino X das Co11fiss11cs. Nele, o privilt'.'gio da interioridade certamente
n,10 é total, na medida em que a busca de Deus d,'í, imediatamente, uma dimensào de
altura, de ,·erticalidade, à meditaçào sobre a memória. Contudo, é 1111 memória que
Deus é primeiramente buscado. Altura e profundidade - sào a mesma coisa - esca-
,·am-se na interioridade".
É pela metáfora famosa dos '\·as tos pa 1,kios da memória" que esse lino ficou fa-
moso. Ela dá à interioridade o aspecto de uma espacialidade específica, a de um lugar
íntimo. Essa metMora central é reforçada por uma plêiade de figuras aparentadas: o
"depósito", o "armazém", onde são "depositadas", "postas cm reserva" as lembranças
cuja ,·,1riedade será enumerada - "todas essas coisas, a memória as recolhe, para e,·o-
c<Í-las de novo se necessário e lançá-las de ,·olta, em seus vastos abrigos, no segredo
de não sei quais inexplicáveis recônditos" (Confissôes, X, VIII, B). É sobre a mara,·ilha
da recordação que o exame se concentra': a recordação do meu jeito de tudo o que
2 Fssa exprl'sstw e, (1ssin1 trc1duzida pur jl'an Cuitton en1 Lc Tc/1/p::-- d f'Éfl'r11ift; c/1c: P!t 1ti/l d :--11i11t
A11g11sti11, Paris, \'rin, 1933, -+'' ed., llJ7L
J Saint Augustin, Co11_t(':>:>io11:-:, trl1duçJ.o frc1ncc~d, Paris, Dl'sck'l' dc 13rouwl'r, col. "Bibliothl·quL' au-
gustinienne", IY62, Linl' X, X\'!, 2~. Citado in P. Riccpur, T,'111ps t'I !,,'c·it. L !, L'/11trig11c t'I k I,hit
/11:-:toriquc, í\1rb, Éditions du Seuil, col. "L'ordre philosophique", 1LJ8.i; rel'd., col. "Poinb l::.s:.'.'--ai-..",
llJLJI, p. 2:l (dL'SS,1 última ,•diç,10).
-l "f\à.o duvidn, lllclS estou ccrto 11(1 n1inhc1 con'.'--cil'ncia ((crt11 u111...,L1e11t1a), Senhnr, dt: que te an10. [.. ]
rvleu Deus: luz, \'OL, pl'rfunlt.', alin1t.'1lto, ab1\1ço do honll'lll interior qul' hcí em n1in1" (X, X\'I, .S).
:=i "Quando t.'Stou nt.'sse palácio, con\·oco a~ len1brança~ pcHcl que ~L' apre~t.•11tt.'lll toda~ a~ qut.' dt.•~t.•jo.
r\lgu1nc1s ~urgt.'!11 na hora; algunlclS ~e fait.'111 buscar por b;1sL1nte ten1po L' con10 que arrancar dl'
l'Spécit..'S de dl.'f.ll)sitos n1ais secretos; c1lgun1as chegcllll L'lll bando~ que ~l' precipitcll1l; e, emborcl
sl'ja outrcl que pedimos L' procLtrcllllOS, elc1~ pulan1 na frente con10 que a dizer: 'Tc1l\"l'/ sejarnns
nús?' E a 111,lo de lllL'll COt'clÇJ.o as rech,1ça do ro':->tO de rninha lllt.'Jllt,)ria, <itl· que surjcl dcl escuridc'io c1
que desejo e qut.' a\·ance sob meus olho-.. ao -..,1ir de SL'U l'Sconderijo. C>utr,1~ kn1brança~ ~l' ct1li..lcarn
diantl' de 1nin1, ~l'lll dificuldcldt.', l.'fll filc1~ ben1 organizada~, ~q?;undo a urdenl dL· chclfllclda; a~
quL' surgen1 prirneirn dt.'sap,1rect.'lll di.1ntt.i das .;,eguintes l', an desaparecerem, fican1 en1 rl'Sl'f\·c1,
prontas para res~urgir quando eu c1ssin1 de-..ejar. Eis plenan1ente u que i..lCnrre quando conto algo
dL' nwmúri,1 (t"ll/11 oliq11id 11m-ro 111c111oritcr)" (i/,id., X, VIII, 12).
,\ MLM(lRL\, A HISIORIA, O 1·sQUH l~IFNTU
"evoco em minha memória" atesta que "é interiormente (i11tus) que realizo esses atos,
no pátio imenso do palácio de minha memória" (X, VIII, 14). É uma memória feliz
que Santo Agostinho celebra: "Ele é grande, esse poder da memória, excessivamente
grande, meu Deus! É um santuário vasto e sem limites! Quem tocou seu fundo? E
esse poder é o de meu espírito; ele se deve à minha natureza e eu mesmo não consigo
apreender tudo o que sou" (X, VIII, 15). De fato, a memória é duas vezes admirável.
Ela o é primeiro em razão de sua amplitude. Com efeito, as "coisas" recolhidas na
memória não se limitam às imagens das impressões sensíveis que a memória arranca
à dispersão para reuni-las, mas se estendem às noções intelectuais, que se podem
chamar de aprendidas e doravante sabidas. Imenso é o tesouro que dizem "conter" a
memória (a memória contém também "as razões e as leis inumeráveis dos números e
das medidas" - X, XI, 19). Às imagens sensíveis e às noções se acrescenta a lembrança
das paixões da alma: de fato é dado à memória lembrar-se sem alegria da alegria, sem
tristeza da tristeza. Segunda operação maravilhosa: ao se tratar das noções, não são
apenas as imagens das coisas que voltam ao espírito, mas os próprios inteligíveis. Nis-
so, a memória iguala-se ao cogito". Ademais, memória das "coisas" e memória de mim
mesmo coincidem: aí, encontro também a mim mesmo, lembro-me de mim, do que
fiz, quando e onde o fiz e da impressão que tive ao fazê-lo. Sim, grande é o poder da
memória, a ponto de "eu me lembrar até de ter me lembrado" (X, XIII, 20). Em suma,
"o espírito é também a própria memória" (X, XIV, 21).
Memória feliz, portanto? Claro. Entretanto, a ameaça do esquecimento não deixa
de assombrar esse elogio da memória e de seu poder: desde o começo do Livro X, fala-
se do homem interior como do lugar "onde brilha para minha alma o que o espaço
não apreende, onde ressoa o que o tempo rapace não toma (quod 11011 mpit tc111pus)"
(X, VI, 8). Um pouco mais adiante, evocando os "grandes espaços" e os "vastos palá-
cios da memória", Santo Agostinho fala da lembrança armazenada como de algo "que
ainda não foi tragado nem sepultado no esquecimento" (X, VIII, 12). Aqui, o depósito
está próximo da sepultura ("o esquecimento que sepulta nossas lembranças ... " - X,
XVI, 25). Certamente, o reconhecimento de uma coisa rememorada é percebido como
uma vitória sobre o esquecimento: "Se tivesse esquecido a realidade, cu não seria
capaz, obviamente, de reconhecer o que esse som é capaz de significar" (X, XVI, 24).
Logo, é preciso poder "nomear o esquecimento" (ibid.) para falar cm reconhecimento.
Com efeito, o que vem a ser um objeto perdido - a dracma da mulher da parábola
evangélica-, senão uma coisa que, de certo modo, se tinha guardado em memória?
Aqui, encontrar é reencontrar, e reencontrar é reconhecer, e reconhecer é aprovar,
logo, julgar que a coisa reencontrada é exatamente a mesma que a coisa buscada e,
portanto, posteriormente considerada como esquecida. De fato, se outra coisa que não
o objeto buscado nos volta à memória, somos capazes de dizer: "Não é isso". "É ver-
dade que este objeto estava perdido para os olhos; a memória o retinha" (X, XVIII, 27).
ó As noções, "0 pn~ciso re<1grup,i-las (co!ligc11da). Daí vcn1 o tern10 cogit11rc (pl'nsar), pois (ogo L' cogito
procl'dl'm do mesmo modo que ago l' 11gito,_f<1cio l'jt1clito" (Confi,s,,cs, Livro X, Xl, 18). Os verbos l'111
-ilo são freqücntcüivos, que 111,ucarn il rt...'petiç.Jo d,1 atividade rcpresentad;:i pt...•lo \'erbo sin1ples.
Serei que isso basta para nos tranqüiliz,u inteiramente? A bem da verdade, apenas o
reconhecimento atesta, na linguagem e posteriormente, que "ainda não esquecemos
completamente o que, ao menos, nos lembramos de ter esquecido" (X, XX, 28). En-
tretanto, não seria o esquecimento outra coisa que não aquilo de que nos lembramos
de ter esquecido, porque dele nos recordamos e o reconhecemos 7 É para conjurar a
ameaça de um esquecimento mais radical que Santo Agostinho, retórico, arrisca-se
a associar à lembrança da memória uma k>mbrança do esquecimento: "Mas aquilo
de que nos lembramos, é pela memória que o retemos; ora, sem nos lembrarmos do
esquecimento não poderíamos absolutamente, ao ouvir esse nome, reconhecer a reali-
dade que significa; se assim é, é a memória que retém o esquecimento" (X, XVI, 2-1).
Mas o que ocorre, no fundo, com o ,·erdadeiro esquecimento, a saber, a "privação de
memória" (i/iid.) 7 "Corno, então, est,í aqui para que eu dele me lembre, uma ,·cz que,
quando est,í aqui, n,fo consigo me lembrar?" (i/Jid.). Por um lado, é preciso dizer que
é a memória, no momento do reconhecimento do objeto esquecido, que testemunh,1
a existt'.·ncia do esquecimento; e, se é assim, "é a memória que retém o esquecimento"
(i/,id.). Por outro lado, como se poderia folar da presença do próprio esquecimento se
esquecêssemos n·rdadciramente? A armadilha est,í se fechando: "De fato, o que ,·ou
dizer quando estou certo de me lembrar do esquecimento 7 Vou dizer que não tenho
na memória aquilo de que me lcmbro 7 Ou n1u dizer que tenho o esquecimento na
memória para que cu não esqueça 7 Duplo e perfeito absurdo. E a terceira solução que
aqui se coloca? Como diria que é a imagem do esquecimento que minha memória
retém e não o próprio esquecimento, quando me lembro delc 7 Isso também, como o
diria 7 " (X, XVI, 25.) Aqui, a wlha erística ,·cm emb<1ralhar ,1 confissão. "E entretanto,
de qualquer modo que seja, ainda que esse modo seja incompreensível e incxplic,í,·el,
(, do próprio esquecimento que me lembro, tenho certeza disso, do esquecinwnto que
sepultJ nossas lembranças" (iliid.).
Superando esse enigma, a busG1 de Deus continua na memória, mais alto que a
memória, pela mcdiaç,10 da busca da ,·ida feliz: "Superarei até mesmo essa força em
mim que se denomina a memória; cu a superarei para tender até ti, doce luz" (X, XVII,
26). Mas essa superação, por sua ,·ez, não é desprovida de enigma: "Superarei também
a memória, para te encontrar onde 7 [ ... ]Se for fora de minha memória que te encontro,
é que estou sem memória de ti; e como cnt,10 k encontrarei se nào tenho memóri,1 de
ti 7 " (il>id.). Aqui se delineia um esquecimento mais fundamental ainda que a ruína de
todas as coisas visí,·cis pelo tempo, o esquecimento de Deus.
É sobre esse fundo de admiração pela memória, admiraç,10 tingida de inquietação
quanto à ame,1ça do esquecimento, que podemos reconsiderar as grandes declaraçôcs
do Li,·ro XI sobre o tempo. Entretanto, na medida em que a memória é o presente do
passado, o que é dito do tempo e de sua relação com a i ntcrioridadc pode faci Imente
ser estendido à memória.
Como eu notc1ra, cm Tc111po e Norra/Í,'il, é pela questão da mL'dida dos tempos que
Santo Agostinho entra na problem,ítica da interioridade. A questão inicial da medi-
da é logo atribuída ao lugc1r do espírito: "É em ti, meu espírito, que meço os tempos"
A MLMORIA, A HISH)RIA, () ES(lUFCIMENl()
(XI, XXVII, 36). Apenas do passado e do futuro dizemos que são longos ou curtos, quer
que o futuro se encurte, quer que o passado se alongue. Mais fundamentalmente, o
tempo é passagem, transição atestada pela reflexão meditante: "É no momento em que
passam que medimos os tempos, quando os medimos ou os percebemos" (XI, XVI,
21). E mais adiante: "Medimos os tempos quando eles passam" (XI, XXI, 27). Assim o
a11i11111s é considerado como o lugar onde estão as coisas futuras e as coisas passadas. É
no espaço interior da alma ou do espírito que se desenrola a dialética entre distensão e
i11tc11çíio que fornece o fio condutor da minha interpretação do Livro XI das Confiss()CS
em Tempo e Narrativa. A distc11tio que dissocia os três objetivos do presente - presente
do passado ou memória, presente do futuro ou expectativa, presente do presente ou
atenção - é distc11tio a1zi111i. Ela tem valor de dessemelhança de si a si7. Além disso, é da
maior importância sublinhar que a escolha do ponto de vista reflexivo está polemica-
mente ligada a uma rejeição da explicação aristotélica da origem do tempo a partir do
movimento cósmico. No que diz respeito à nossa polêmica acerca do caráter privado
ou público da memória, é notável que, para Santo Agostinho, não é principalmente ao
tempo público, ao tempo da comemoração, que a experiência autêntica e original do
tempo interior é oposta, mas ao tempo do mundo. Já me indaguei em Tempo e Narrativa
se o tempo histórico pode ser interpretado nos termos de uma antinomia dessas, ou
se ele não se constrói, antes, como terceiro tempo, no ponto de articulação do tempo
vivido, do tempo fenomenológico, por assim dizer, e do tempo cosmológico. Uma
questão mais radical surge aqui: a de saber se a inserção da memória individual nas
operações da memória coletiva não impõe uma conciliação semelhante entre tem-
po da alma e tempo do mundo. Por enquanto, basta-nos ter ancorado a questão do
"quem" na do 111zi11111s, sujeito autêntico do ego 111c111i11i.
Não gostaria de encerrar essas breves observações a respeito da fenomenologia
agostiniana do tempo sem antes evocar um problema que nos acompanhará até o
último capítulo desta obra: o de saber se a teoria do tríplice presente não confere à
experiência viva do presente uma preeminência tal que a alteridade do passado seja
por isso afetada e comprometida. E isso apesar mesmo da noção de distcntio. A ques-
tão é colocada mais diretamente pelo papel que desempenha a noção de passagem na
descrição da distentio aninii: "De que (1111dc) e por que (qua) e em que (q110) ele passa?"
(XI, XXI, 27.) "O trânsito (tmnsirc) do tempo, diz Santo Agostinho, consiste em ir do
(ex) futuro pelo (per) presente dentro (i11) do passado" (ibid.). Esqueçamos a espaciali-
dade inevitável da metMora do local de trânsito e concentremo-nos na diáspora dessa
passagem. Essa passagem - do futuro para o passado pelo presente - significa uma
irredutível diacronia ou uma sutil redução sincrônica, para retomar o vocabulário de
Levinas em A11trc111cnt q11'êtrc 011 au-dclà de /'cssencc? Essa questão antecipa, em plena
7 Mais precisan1l'nte, e 1nais perigosamente, a di:.-,tc11tio não é apenas da altna n1as dentro dn alt11a
(i/,id., 27). Logo, dentro de algo como um lug<1r de inscrição para as marcas, as ,ffigin deixad,1s
pelos acontecimentos passados, em sumc1, para in1agens.
◊ II2 ◊
DA \11.\!(ll{/\ 1 IJ\ Rf\1/\JIS(/-V 1..\
2. John Locke
8 TJ.mbén1 1nantt-. rcn1os en1 reserva a quest<lo do estatuto do passc1do enqu,1nto visado pL'la Illl'-
1
n1ória. Deve-se diLer do passc1do qw.' elt-: n,lo é n1ai'.-, ou quL' ele foi?() recurso repetido de Santo
Ago'.'.->tinho c1 L'xprL'ss('ll'~ da linguagl'nl corrl'ntl', L'lll particular ao~ ad\·L,rbios "n,l.o ... 1nais", "ainda
nZw", "h,í. quanto ten1po", "muito tcn1po", "ainda", "jcí", assin1 con10 o duplo tr,1tan1cnto do pas'.->c1do
con10 "~L•ndo e nc1o -;;endo", constilllL'nl tantas pedras ,1nguL1re.;, L'/11 rclaçZto a uma ontologi,1 que a
tese da inerênci,1 do tl'n1po cl alma nclo pcrrnitl' desdobrdr.
lJ John LPckL', Jdc11tih; ct LJ{(tl;rcucc. L'i11t'c11tit111 de !tl t"011.s:.cic11n', c1prc~Pnt.1do, traduzido L' Cl)l11L'11lc1du
o sujeito gramatical do cogito cartesiano não é um sc!J; mas um ego exemplar cujo gesto
o leitor é convidado a repetir. Em Descartes, não há "consciência" no sentido de sclf
Além disso, se o cogito comporta uma diversidade a título das múltiplas operaçües de
pensamento enumeradas na Si'g1111dn M!'ditnçiio, essa diversidade não é a dos lugares
e dos momentos pelos quais o sclf lockiano mantém sua identidade pessoal, é uma
diversidade de funções. O cogito não é uma pessoa definida por sua memória e sua
capacidade de prestar contas a si mesma. Ele surge na fulgurância do instante. Nunca
parar de pensar não implica lembrar-se de ter pensado. Somente a continuação da
criação lhe confere a duração. Ele não a possui com exclusividade.
Uma série de operaçües prévias de redução concorre para limpar o terreno. Enquan-
to a filosofia das Mcditnçâ!'s é uma filosofia da certeza, em que esta é uma vitória sobre
a dúvida, o tratado de Locke é uma vitória sobre a diversidade, sobre a diferença. Além
disso, enquanto nas Mcditnçiics 111ctafísicns a certeza de existência se inscreve numa
nova filosofia das substâncias, a pessoa, para Locke, é identificada unicamente pela
consciência que é o sc!J; com exclusão de uma metafísica da substância, a qual, embora
não seja radicalmente excluída, é metodicamente suspensa. Essa consciência é ainda
purificada por um outro lado, o da linguagem e das palavras; essa outra redução des-
nuda o mental, a Minit, versão inglesa do latim 111c11s. Significar sem as palavras - taci-
tamente, nesse sentido-, é próprio da Mind, capaz de refletir diretamente sobre "o que
ocorre em nós". Última depuração: não são idéias inatas que a consciência encontra
cm si mesma; o que ela percebe são as "opcrntions of 011r ow11 Minds", ora passivas, ao se
tratar das idéias de percepção, ora ativas, ao se tratar dos powers of file Mind, aos quais
o capítulo XX do livro II - "On Power", "Do poder" - é dedicado.
Isso posto, o que ocorre com a tríade identidade-consciência-si? Para nós, que nos
indagamos aqui sobre o caráter egológico de uma filosofia da consciência e da me-
mória, que não parece propor nenhuma transição praticável cm direção a qualquer
ser em comum, a qualquer situação dialogal ou comunitária, o primeiro traço notável
é a definição puramente reflexiva da identidade, que abre o tratado. É verdade que a
identidade é oposta à diversidade, à diferença, por um ato de comparação da Millli que
forma as idéias de identidade e de diferença. Diferentes são os lugares e os momentos
onde algo existe. Mas é justamente essa coisa e não outra que está nesses lugares e
momentos diferentes. A identidade é obviamente uma relação, mas a referência a
essa outra coisa é logo apagada: a coisa é "a mesma que ela mesma e não uma ou-
tra" (§ 1). Essa expressão surpreendente, "mesma que si mesma", coloca a equação
"idêntica igua I mesma que si". Nessa relação auto-referencia 1 se ordena de saída o
movimento de dobr,ir-se sobre si em que consiste a reflex5o. A identidade é a dobra
desse dobrar-se sobre si. A diferença só é nomeada p,1ra ser suspensa, reduzida. A
expressão "e n;_jo um,1 outra" é a marca dessa redução. Propondo-se a definir com
novos esforços o princípio de individuaçc'ío, "que t,rnto se buscou"(§ 3), Locke toma
como primeiro l'>-L'111plu um ,ítomo, "corpo pcrsistl'ntl' de um,1 supl'rfície invariável", l'
reitera sua fórmu l,1 da identidade a si: "Pois, sendo nesse instante, o que é e nada mais,
ele é o mesmo l' dl'\'l' assim pcrmanl'Cl'r enqu,1nto continu<1r su,1 existl'ncia: de fato,
p,1r,1 tod,1,•~~,i !11r,1,.,1,,_ cl,· ,,cr,í o mesmo L' 11,·nhurn outro".
ll \ ~11 \l(lRI \ 1 il.\ RI \ll'J!Sl I r--.l 1\
11 SobrL' ;1 variedade desses usos que a palavr~1 ingk'S<l :::.c~f pL'rn1itl', \'l'r o precioso gloss(írio que
ÉtiennL' Balib,ir incluiu L'lll su,1 tradução (i/,id., pp. 2-19-255).
IJA MI \IORI \ 1 ll\ Rl\11'\ISCÍ'\ll \
prestam contas também e talvez primeiro ao outro? E quem pune e recompensa? Que
instância nos Últimos Dias pronunciará o veredicto (scntcncc) sobre o qual Locke, to-
mando partido na querela teológica, declara que "será justificado pela consciência que
todas as pessoas terão então" (§ 26).
Essa dupla leitura não é a de Locke. O que reteve minha atenção em seu tratado
sobre a identidade, a consciência e o si, é a intransigência de uma filosofia sem con-
cessão que deve ser chamada de filosofia do "mesmo" 12 ,
Encontramos uma confirmação da unívocidade dessa filosofia do mesmo na com-
paração entre a conceitualidade e o vocabulário do Ensaio e os do Segundo tratado sobre
o governo". O leitor é logo transportado ao cerne do que Hannah Arendt gosta de
chamar de pluralidade humana, De saída, somos herdeiros de Adão, submetidos aos
governantes que hoje estão na terra, e nos indagamos a respeito da fonte de sua auto-
ridade: "Se não se quer dar motivo a que se pense que os governantes deste mundo
são apenas o produto da força e da violência e que os homens apenas vivem juntos
segundo as regras que vigoram entre os animais selvagens - em que o mais forte é
quem leva a melhor - e se não se quer, portanto, assim semear os germes de uma
discórdia eterna, de palavras, de tumultos, de sedições e de rebeliões[.,.], é preciso
encontrar necessariamente um outro modo de nascimento para o governo ... " (Sccond
11·aité du go1tvcmc111c11t, p. 4). Somos lançados i11 111cdia rcs. Quando já existem homens,
governantes, guerra e violência, ameaças de discórdia, uma questão se coloca, a da
origem do poder político. O estado de natureza evocado primeiro, assim como seu
privilégio de igualdade perfeita, não tem raízes na filosofia do si, embora as noções de
ação, possessão e pessoa estejam presentes desde o começo do texto. Ele parece não ter
vínculo visível com o fechamento sobre si da consciência segundo o Ensaio. É por um
salto não motivado que se passa da identidade pessoal ao estado de igualdade no qual
"todos os homens se encontram por natureza" (capítulo 2), Trata-se de fato de poder,
mas, de imediato, de um "poder sobre outrem", e até mesmo de um estranho poder,
uma vez que é o "de fazê-lo suportar, na medida cm que a calma razão e a consciência
o ditam, o que é proporcional à sua transgressão, isto é, apenas o que pode servir à
reparação e à repressão" (ibid.). De resto, o estado de guerra é evocado sem demora
(capítulo 3): ele supõe inimizade e destruição; é desse estado que, "segundo a lei fun-
damental de natureza, o homem deve ser preservado tanto quanto possível" (ibid,), O
homem, não o si. Como em Hobbes, o homem teme a morte violenta, esse mal que o
12 Nt'SSL' a-;pecto, n1inhl1 crític(1 cm Soi-111(~11,c co111111c 1111 Olllrc, op. cif., que censura 1.ockc por ter con-
fundido idc111 e ipsc, nZlo tt.•n1 d ml'nor influl•ncil1 sobre o conteúdo do Tr,1tl1do. A catl'goril1 de s11111c-
111'ss reina <lbt-.olut1: ll idcnticlc1de pesso<1l nflo propôc unia altcrnati,·(1 para <1 sn111c11css; ela(', u1n<1 dl'
suas varil·dades, ob,·i<lilll'lltL' a tnais significlltiva, n1as qul' perrn,11H.'Cl' contida 11<1 unidade forrn,1\
da idl'ia de identidlldl' ll si. ApL'lli.lt-. un1<1 ll'itura que busca Sl'US argun1entos em outros lug,ires
pode considt.•rl1r ,1 identi<.L1dc pl'Ssth1I corno un1,1 ,1ltl'rn,ltivc1 (1 lllL'srn idade. Fn1 Locke, o t-.i n,l.o l' u rn
ipsc que pode t-.L•r opo~to a um idc111, l' um s11111c - e até n1t.•smo uni scU~11111c- situ<1do no topo cL1
pir2in1ide da mt.'stnidade.
13 J ,ocke, Scco11d 'J'mifl' du gtJ/ll'cr11c111c11t (1689), traduç.lo fr<1ncl'S<1, introduç.lo L' notat-. de Jean F,1bien
3. Husserl
Husserl será para nós a terceir,1 testemunha da tradição do olhar interior. Ele \·em
depois de Locke, mas passou por Kant, os pós-kantianos, principalmente Fichte, de
quem ele, sob muitos aspectos, é bem próximo. É em relação a urna filosofia transcen-
dental da consciénci,1 que Husscrl procura situar-se por meio de um retorno crítico ao
Descartes do cogito. Entretanto, ele não se distingue deste último menos que Locke. É
enfim de Santo Agostinho, com freqüência enJCado favora\·elrnente, que ele mais se
aproxima, ao menos quanto à maneira de vincular as três problemáticas da interio-
ridade, da memória e do tempo. Minha abordagem de Husserl no presente contexto
difere sensivelmente da que propus em Tc111po e Narmtic,a, cm que a constituição do
tempo era a aposta principal. Na perspecti\·a de um confronto entre a fenomenologia
da memória indi\·idual e a sociologia da memória, a atenção foca-se na quinta Mcdi-
toçiio rnrlcsimrn, na qual o problema da passagem da egologia à intersubjeti\·idade é
abraçado. Entretanto, não quis ,1borcfar a dificuldade de frente. Pri\·ilegiei a \'i,1 pa-
ciente, digna do rigor desse eterno "iniciador" que foi Husserl, passando pela proble-
mática da memória. De fato, 0 no cerne dessa problemMica, tal corno tratada nas LÍÇ(JCS
para 1111/il fi·110111c110/ogiil dil co11sciê11cio í11IÍ111il do lcl1lpu, que se produz o mo\'Ímento de
im·ersão, graças ao qual o olhar interior se desloca da constituição da memória em
sua relação ainda objetal com um objeto que se estende no tempo, que dura, para a
constituição do fluxo temporal com exclusão de toda intenção objetal. Esse desloca-
mento do olhar pareceu-me tão fundamental, tão radical, que me arrisquei a tratar
a questão da memória cm dois capítulos diferentes. No primeiro capítulo, le\·ei em
consideraçiio o que depende propriamente de uma fenomenologia da lembrança, de
um lado do ponto de \·ista de sua rebç,1t1 com uma coisa que dura (o exemplo do som
que continua a ressoar e o da mclodi,1 qm· se re-(a)presenta de novo), de outro, do
ponto de \·ista de sua diferença cm rel,1çZ\u à imagem (Bild, Vorstcl/1111g, Phi111/i1sic). Pa-
rei a an,ili,,e da rl'tenç,10 l' da protcns,10 nu momento cm quL' a refen:•ncia a um objeto
1--+ L'rn único \'Íncuh) ~-ilau...,Í\l'! ptKil'ri{1 Sl'r hu . . 1...,ld() l' L'ncontL1do no L<1pítu]p sobrl' c1 propricd,1dl'
( LockL'r il 1id., Cap, \. ). :\ tl'rr.i, Lom o que l'Ll L'tKL'rr,1, L; LL1d,1 ,llh honlL'n..., por Deus para garantir sua
L''\Í:-,tl'nci,1 L' St'U bL'll1-L'...,LH, 111,b C,lbl'-lhl'..., ",1; 1.,·-_1,111·1,ne111-~c dc!t1" (ihd., p. 22). Sl'ria l'~~e conceito
dl' ,1propri,11.,;<'io do f 11--dt( 1 ? l\hil'ri,1 p,Hl'Cl'r quL' -.,i111, um,1 \'L'/ qul' cad,1 "homL'Jll 0 \l'ntrl'tanto] dono
dl' :--,ua pn,lpricl pt'...,...,0,1" (r/ d., ec1~•, IV, p. :2~). \J,7..., L' num,1 rl'lat,:,'io con1 outn):--, qul' poderiam Sl' apl):--,-
1
...,ar dl'l,1. !':, por u,HhL'guink, 11,1 lingu,lgl'rn d(1 liirl'ito Lllll' t>lt.' L.1L1 dl'ia l' L'lll n-.. L1çJo Clllll uni outro
1
\'t'rdt1dL'ini: "\!l'nhull1 \\Utn) ...,l'll,lt) l'il' ml':--llll) ~>t)'--.:--,UÍ um dirl'Ítl) '--.t)brl' l'la [,1 pn')pria pl':--,:--,oa]" (i/iid.,
c,1p, )\1, p. 27). Ak m d( 1 m,1 i...,, ,l proprÍL'd<ldl' nua '--.L' ,Krc:--,n'nt.1 o t r,il-i,1 lhn, ec1tl'goria a l hl'id ,10 Eu--.i1it 1:
1
"Pois, dado que l''--.'-L' trc1b-1lho L; indi:--cutÍ\L'lmL'lltl' ,7 proprÍL'LL7dl' d,1qul'!l' qul' trab,1lha, nl'nhun1
\fü\\\l \wm<.'.m ,\km ,klc· \'' ,,h- ll'r d í rc•ítl' ,l'brl' dc\ll J\,," qm· l'i,, ,•,t,1 1i~,1de1 · li/>id., c.1p, 1\', p. 27).
;\ \1L\1ÚR1i\, A HISIÚRIA, O FS(_)L'ICIMFNT<l
15 Minha pergunta não coincide con1 a colocada por críticos tão infonnados con10 R. Bernet: para
este último, a pergunta de confiança, se assin1 se pode dizer, é a dos vínculos que a Íl'no1nenologia
transcendental do ten1po, que culn1ina na instância do "presente vivo", n1anté1n con1 a "n1etafísica
dii presença" perseguida por Heidegger. Para essa leitura pós-heideggeriana, reforçad,1 pt_•\,..1 pers-
picLícia crítica de J. ÜL'rrida, a ausi:·ncia que congela a presença presun1ida do presente absoluto t'
infinitan1ente n1ais significiltiva que a ilUsência inscritc1 na relt1ção co1n essa outril ausência, a do
"estrangeiro" ern relação a 1ninhd esfera própria, à n1inh<1dt1de da ITIL'Inória pessoal.
16 i\s l.cçm1s po11r 1111c p'1é110111t;11ologic de la co11scic11cc i11ti111c du tcmps levantdran1 un1 problen1a con-
sidl'r,ívd dl' l'diç5o e, cm seguid,1, de traduç5o. Ao núcleo das "Leçons dl' 19()5 sur la consóence
intime du temps" foram acrl'scentados "<1dcndos e complementos" (lLJ0S-ILJI0). É esst' conjunto
que I kidl'gger publicou em 1928 no /11/Jrln1rl1fiir l'/Ji/osop/Jic 1111d plwnwmcnol1;ÇNJ;t h1rv/;111w. No-
,,os m,rnuscritos for,Hn reunidos no volume X cfas H11sscrlia11a sob o título lur ['/ ·· / '·
. ,., , ,· ,- .. , . , ' , , , . ,a11011//'1100~1cdc.,·
llllll u II Z, 111>, '"""/·"'"" (1893-1917), op, nl. ;\ tr,1duç,ío fr,rncesa citida de H, · !.) , '
°' , ,~ 1
por ( ,er,iru urane, retorna o ll'xlo de H11ss,·1/ia1111 X Um 1 outri j' -
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rnn ussort
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, i li' !l
1"'Lo ·· ' · ' ' et 1cc10 existe e J ,,
t<nwt (ov cit.), ' , , , ( m prl'lacio de
DA \11 MllRL\ 1 Ili Rl\ll"JSlT!\CI \
17 Cf. P. Riorur, Ti-111ps e/ lú'cit, t. Ili, Lc 'fr111p, mco11!<', P<1ris, (:d_ du St>uil, col. "L'ordrl' philosophi-
quc", \'!85; rced., col. "l'oints Essa is", 1991; ver n,,ssa última c'diç,ío pp. 82-1119.
na!, afasto do som[ ... ] o olh,1r de minha reflex.:ío" (§ 33) e considero somente a relaç.:ío
da retenção com o surgimento originário, cm suma, a inlwação contínua do próprio
fluxo. Mas ambas as intencionalidades permanecem enlaçadas uma à outra. Em outras
pala\·ras, apenas se pode ter acesso à constituição absoluta do fluxo correlati\·,rnwnte
(a pala\Ta foi usada acima) com a constituiç.:ío de algo que dura. Graças a essa corre-
laç.:ío entre duas intencionalidades, tem-se o direito de escre\·er: "N,10 somente o fluxo
da consciência imanente constituti\'a do tempo é, m,1s ainda, de modo tão not,í\·el e en-
tretanto cornpreensí\·el, ele é tal que um surgimento do fluxo cm pessoa de\'e necessa-
riamente ter lugc1r nele, de\·endo-se por conseguinte necessariamente poder apreender
o próprio fluxo cm seu escoamento" (§ 39). Um novo obst,kulo é rapidamente afasta-
do: é possível que ocorra num segundo fluxo o surgimento 1c'm pessoa do fluxo 7 Não:
uma regressão infinita n.:ío constitui ameaça; a constituiç.:ío do fluxo é extrema, porque
consiste numa autoconstituiç,10 na qual o constituinte e o constituído coincidem, na
medida em que a constituição dos conteúdos imanentes - a saber, a de experiências
\'i\·idas no sentido habitual - é "a obra do fluxo absoluto da rnnsciência" (§ -!O). Essa
obra, contudo, tem limites 7 A pergunta j,í se colocava a respeito do horizonte en,'ntual
das retenções de retenções. Ela se coloca de no\·o a respeito do fluxo: "Essas retenções
e protensões 'determinadas' têm um horizonte obscuro; ao se escoarem, passam por
fases indeterminadas, relativas ao curso passado e futuro do fluxo, graças às quais o
conteúdo atual se insere na unidade do fluxo"(§ -!O). A questão colocada a respeito do
horizonte permanece aberta. Nem a questão do nascimento nem a da morte cabem
aqui, ao menos fora do c,1rnpo de uma fenomenologia genética. Quanto à indubitabili-
dade da qual a retenção da coisa qm' dura se beneficia, ela se refere à autoconstituiç.:ío
que se beneficia da intuiti\·idade que Kant rL'cus,n·a às formas a priori da sensibilidade.
Tal é a dupla valência d,1 "impressão" em relação ã qual se ordenam as "reproduçiies"
que foram chamadas de "presentificaçôes"" na análise conjunta da fantasia e da lem-
brança. O presente é para a presentificaç,10 de algo (Husserl fala aqui em "consciência
impressionai") o que o indício temporal é para o conteúdo "objetal" da lembrança.
lnsepará\·el. A correlação se d,í assim: "Uma percepção é a consciência de um objeto.
Contudo, também é, enquanto consciência, urna impressão, algo de presente 'imanen-
te' "(§ -!2). Chama-Sl' esse nó, esse foco de aprescntaç.:ío "objetal" e de presente refle-
xi\'o, de "consciência origin,íria". Dessa consciência origin,iria, pode-se dizer o que
foi dito do fluxo absoluto, que n.:ío requer nenhum outro fluxo mais origin,1! que ele:
a consciência prim,íria "n,10 lL'm mais atrás dela consciência nJ qual ela scria objeto dl'
consciência" (i/Jid.). l\jesse sentido, da 6 migin,íria no sentido de prim,íria. Com rl'laç.:ío
a esse origin,írio, ,1 intencionalidade transn'rsal, pr(ipria da consciência de algo, pode
sl'r considerada como uma "objl'ti\·,1ç,10": "O tL'mpo imanentl' objl'ti\·a-se num tempo
dtis objetos constituídos nas ,1pariçôes im,1nentes, umc1 \·ez quL', na multiplicidade t'm
degradê dos conteúdos de sensação como unidadl' do tempo Íl'nomenohígico (L', por-
1H Tl1n1bt.'rn L'nnn1tra1r10._, n tl'rino C1·gc11tc11rf(\'kl'Ít, tradu/idn aqui por "prL''.--l't1(,·,1" (1 lth:-.L'rl, / (\t11z,.,,
t"!J1. t"it., p. 117), do ladn dl' Cegcm:1 drt1g1111g, tradu/ido por ",1pn':-,cnL1ç,1n", l'm just,1pu-.,iL>'w
1
.i f)r11-
modalidades de presentificação. Não se pode dizer, entretanto, que não seja percep-
tível nenhum indício de negativilfade em uma ou outra dessas an,1lises eidéticas. Já
foi dito que a IPmbrança secundária não é a lembrança primária e que esta não é a
percepção. O que acaba de ocorrer agora mesmo j,1 começou a afundar, a desaparecer.
Obviamente ele é retido; mas apenas é retido o que já está desaparecendo. Quanto
à relembrança, ela não tem mais nenhuma raiz na percepção; ela é francamente pas-
sada; ela não é mais; mas o que "mal acabou de passar" j,í é cessação; deixou de apare-
cer. Neste sentido, pode-se falar de ausência crescente ao longo da cadeia memorial.
A hipótese interpretativa é então a seguinte: a metacategoria que trabalha para a
anulação dessas diferenças é a de "modificação". Sua operação principal é a de fazer
da retenção o conceito chan' de toda a análise temporal à custa da relembrança. Em
termos de modificação, a retenção é uma percepção extensa, durável. Ela participa
"ainda" da luz da percepção; seu "não mais" é um "ainda". Enquanto uma fenomeno-
logia da lembrança como a de Aristóteles dava à busca do tempo passado um lugar
igual àquele concedido à presença na alma da afecção mnemônica, a fenomenologia
husserliana da lembrança dificilmente propõe um equivalente da illlilllllH'sis, da rea-
propriação do tempo perdido e, portanto, do reconhecimento enquanto atestado de
identidade na diferença. É ao império da metacategoria da modificação que se pode
atribuir a tendência geral da fenomenologia da lembrança a reabsorver uma lembran-
ça secundária na lembrança prim,iria, verdadeiro anexo temporal do presente; essa
reabsorção ocorre por meio da idéia de retenção de retenções, sob a qual se dissimula
a função mediadora da lembrança secund,íria. Ora, afinal, ela é a \'erdadeira lembran-
ça, se, como acredito, a experiência temporal fundamental é a da distância e a da pro-
fundidade temporal. Disso resulta que toda e qualquer dialética está excluída da
descrição e que todas as polaridades na base das quais construímos a fenomenologia
da lembrança (capítulo 1, § 2) se encontram de algum modo achatadas, amortecidas
sob o manto da idéia de modificação.
Quanto à segunda série de análises fenomenológicas, que diz respeito ao lugar
da lembrança na família das presentificações, ela oferece muito mais resistência à
empreitada de redução de alteridade: a série inteira Bild, Plumtasic, Eri1111cru11g si-
tua-se do lado da presentificação, portanto da não-presença, ou mais exatamente da
não-apresentação (insisto mais uma vez nessa nuança que preserva a an<'ilise das re-
(a)presentações de serem prematuramente aspiradas por uma teoria hegemônica do
presente, no sentido de agora). A esse respeito, a oposição entre atualidade e inatual i-
dade parece primitiva, irredutível. Pode-se, com Husserl, entrecruzar Bild, Plumtasic,
Eri1111cru11g de muitas maneiras: o jogo prossegue entre os membros da grande famí-
lia das presentificações ou re-(a)presentações. Desde sempre, h,í algo negatin) com
o "fant,istico", o "fictício" e o "rememorado". A fenomenologia husserliana oferece
todos os meios descritin1s para explic,1-lo, mas seu dinamismo ,1 kva a minimizar sua
própria descoberta, e até mesmo a anul,1-la.
Este é o caso, ao que parece, d,1 tc-rceira scçZío das Liç(,c., para 1111rn .f1'11011H'llologia
da co11scit;11cia í11ti111a do tc111po. Craç,1s ,10 rno\·imento de dc>slocamento da an,ilisc> "ob-
jetal" da lembrança para a análise reflexiva da memória, perde-se definitivamente
de vista a negatividade, reduzida à rcsipiscência. Um sinal não engana: a primazia
irrestrita da problemática da retenção que, pelo viés do redobramento, da iteração,
absorve cm seu proveito a da relembrança, a tal ponto que não se tratará mais senão
de retenção de retenções 20 • Mais grave ainda: é à retenção apenas que a problemática
da dupla intencionalidade transversal e longitudinal está vinculada. A problemá-
tica da unidade pode assim ser preservada no plano do fluxo, apesar da dependência
dessa problemMica em relação à constituição dos objetos temporais (um som, um som
uno). O fluxo se beneficia assim do privilégio da identidade a si mesmo. As diferen-
ças residuais refugiam-se então nas idéias de fases múltiplas e de "continuidade de
degradês" (§ 35). A idéia terminal de "continuidade de aparições" coroa assim a idéia
inicial de modificação.
Os pontos de resistência ao triunfo da presença devem ser buscados em várias
direções: primeiro no plano último da constituição, com a imperiosa correlação en-
tre a intencionalidade longitudinal do fluxo cm curso de constituição e a intencio-
nalidade transversal dos objetos temporais, pois a reflexão requer constantemente
o apoio da estrutura "objetal" da lembrança. Em seguida, se subirmos a ladeira das
Liç{Jcs, o desdobramento da lembrança prim,íria e da lembrança secundária resiste
à ditadura da retenção. Enfim, toda a admirável fenomenologia da família das pre-
sentificações - ficção, "representação pictórica", lembrança - atesta um desdobra-
mento fundamental entre re-(a)presentação e apresentação.
Ao termo deste vôo panorâmico, volto à minha sugestão anterior: não é a dene-
gação da negatividade interna à consciência de si uma parente secreta da denegação
do caráter primordial da relação com o alheio na constituição egológica da consciên-
cia de si? A questão permanece em Jberto 21 •
20 Não faltarn rc•ferl'ncias ,l re!l'mbrc1nça, n1as l'lll conl'X,lo con1 a n..>tcnçã.o; o parágrafo 39 falél, a
l'sse respeito, do que é "rt.'tidl1 no segundo grau na rctt.'nç<lo". Alé111 disso, ,1 noçJo de retcnç5o de
rl'lençôcs contrai-se na "de antl'ro-simultaneidade" 11,1 qual toda alteridadc Sl' anulii (§ :N). Em
con1pensaçfü1, 6 verd,1de qtH. ', co1n o retorno d<.1 oposiç,lo cntn' "in1pn.'ss<lo e rcproduç,lo" (§ ..J-2),
o cortt..' com a presenç,1 tende a Sl' i1npor novaniente. Mas cl .ifirn1açclo e a correlc1ç<lo entre os dois
fenlln1enos levatn c1 1nelhor sobre o reconhl'Cin1ento de suc1 diferença.
21 Os leitores fan1iliarizc1dos com a obra dt• Hussl'rl terZlo notado a proxi1nidc1de entre 111inhas ancÍ-
lisl's e as do PXCl'icntl' l' erudito intérprl'te de l lussl'rl, Rudolf llcrnl't, do qual se rc·coml'nd,1 ler o
"Ein lcitung" (Prefácio) ,1 Tcxtc :ur 1'/11i110111c110/ogil' dcs i1111crc111/cit/Jc,uusst.,ci11s 11/!93-1917), Husscr-
/i1111,1, t. X, Hambourg, FPlix Meincr, 1985, pp. XI-LXXVII; assim como "Die ungcgenwiirtige Ce-
gl'nwart, Anwesl'niwit und Abwesenhcit in Husserls An,1lysis dps Zeitbwusstscins" [O Pfl'Sl'nt,•
nllo presente, pn. '~l'llÇ<l l' c1usência llcl ancílise hus~crlianl1 LL1 con~ciência do tempo!, in Plzii110111c-
110/ogischc Forsc/11111gc11, l'd. por F.W. Orth, Fribourg, Municl1, Vc•rlag K<1rl Aher, 1'!83, pp. 16-57; e
"La présence du passl· dc1ns l'zinl1ly~c husserlil'lllll' cil' la conscil'nce du tcmps", H.e1 111c de 111a11pl!_11-
siquc e/ de 111omfr, vol. 19, n" 2, 1983, pp. 178-198. A tl'se de R. Bernet, segundo a qual o nJo-dito
do pensan1t.'tlto husserliano residiricl l'lll Sll<l fidelidcllie dcspL'rccbida pcira com a "n1etafísicl1 da
pn.'SL'n<;a" que Heidegger \'l• rL'inar sobre ll filosoficl ocidental l'lll nornc do e~quecirnento do ser, é
plausível~ <1pl'S<H da \'ioll·ncia c1sst11nidl1 dei intl'rpretaçclo; l'ntretl11lto, ela n.lo deveria fechar o
Cd111inho para un1<1 retificaçclo da fonon1enologia hu~~erliana sobre seu próprio c<1n1po dl1 análise
eidl'ticc1. Em particular, ela nJo exige um ,1bandono da referência dc1 cxperil~ncia te1npor<1l ao
presente. St.'nl a marcc1 do c1gor,1, corno poderíamos dizer que ;.1lgo con1cça ou aec1ba? Basta n,lo
IJ.\ \11.~llll,I \ 1 IJ\ RI \11'\l,ll '\l l \
É nessa perplexidade que abandonamos a leitura das Liç<1c,; para Ili/Ili j1'llO//lCl1U-
logi11 da consciJncia í11ti111a do lcil1po e nos \·oltamos para a problemMica que é a nossa
aqui: a da relação entre memória indi\'idual e memória coleti\·a 22 . De um salto, pas-
samos para a outra \ertente da fenomenologia, na interseção da teoria da consciência
transcendental e a da intersubjetividade. É o momento da quinta Meditaçiío rnr/c,;iana,
quando Husserl tenta passar do ego solit.írio a um outrem suscetível, por sua vez, de
se tornar um nósê'_
As Liçócs para lllill1_f1'11on1e110/ogia da co11,cii11ci11 í11lillla do lclllpo não permitiam an-
tecipar o caminho ao termo do qual a experiênciil temporal poderia tornar-se uma
experiência compartilhada. Naquele estágio, a fenomenologia ainda dividia com o
"psicologismo", que entretanto ela combatia enquanto objeti\·ação do campo psíquico,
a problemática de uma ciência da consciência solitária. Coloca-se, então, a questão de
saber se a extensão do idealismo transcendental à intersubjeti\·idade permite abrir
confundir o pre~L'Iltt..' \·j\·o con1 o instante pontual do tempo objeti,·o: a rL·duçt10 do ten1po ubieti-
,·u previne contra L'S~ll confusclo; sen1 presl'ntl', sen1 ante~, tH:'lll depois, nc1o existe di~tJncia ncITl
profundidcide te1nporal. É no próprio presente \·i,·o, co1no Santo Ago~tinho vislun1brara, que a
di:::.tc11tio 1111i11,i opt:.'ra. iv1ais do que le,·ar a dissol\'L'r os contrastes e a-:- tensôes intcrn,1:-, ao tt:.:'n1po, a
t'\'t_Kução de uni preSL'ntl' L'terno ser\'iria antes dL' contraste, l', assin1, dL' rt.-'\"L'lador para ,1 ruptura
de qul' fala K Bcrnl't ("L1 préscncc du p<1ssé ... ", art. cit., p. J7Y). Nu lirnik, <1 imcrséío pt>la qual
un1,1 fenon1enologia cL1 diferl'nça ocuparia o n1L'sn10 cc1n1po que a filo:-.ofia LLl presença idêntica
a :-.i :-.uscita suas prl1pria:-, dificuldade:-,. ()utra:-, inteq--1rl't,1ç()L'S ,1lén1 da:-, inspir,1dc1s por Heidegger
pt•rmanecl'JTI possí\·eis: nc'ln teria Husserl reanin1adu os pressupo:-,to:-. da filosofic'I fichtiana da
identidade, St.'tn que sej,1 llL'Ct'ssário \·incutir e<..,:-,L' \·eio de pl'I1s,1n1ento ao filo suposta1nentt_, ünico
d(1 n1etafísica da presenç,1? É possí\'el incL1gar-:-.L', con1 En1n1anuel Le\·ina:-,, L'n1 SL'll grande te'\to
Lc Tc111ps t'I /Autrc (Paris, PUF, 1Y83), SL' a dcnl'gaçZ\o prinwira nJo L' dl' orcfrm fundc1mcntaln1L'ntl'
L'tiL'i'I, t:' Sl' não é o dl'sconhecin1ento d,1 altt.'ridade origin,1ria de outrL'll1 que torn,1 cego ,1 toda:-, as
forn1as de alteridadc ton1adas un1a a unia. i\la:-. tarnbén1 SL' pode prL·:-.supor quL' n,lo l''\Í:-.tt.' un1a
única ru.1:ão par ..1 a:-, n11íltiplas forn1,b da CL'gueira para o negati\·o, n1c1s .1pL't1,1s un1c1 "sen1elh,1nçc1
de fan1ília", inace:-.:-.í\·t.'l a u1na unifiú1ç,lo sistcn1,ítica, a qthli p,u,1do,aln1cnte marcaria u triunfo
da ickntiLt1de cm nome 111L'Smo da difon,nç,1. Em T/1c //0,pit,1/it.11 l'rcsc11cc. l'ro/,/c11,s o/ Ot/1a11cs, ,,t
i11 //11,_,cr/'s i'lic11,,111c11,,/osy, Stockholm, Almq,·ist & Wicksl'II, 1YLJ8, O. 13irnbaum explora com su-
cc~so ot-. n•curso:-, dt.'ssa St'ITIL'lhc1nç(1 dL' f(.1n1íli(.1 L'ntrt.' toc1'1s a:-, figuras dc1 negatividc1de llcl obra de
Hust-.crl. A senlL'lhanl,'cl dl' fan1ília 111,1i~ noU.\-L'i, nes.<-,e ,1:-,pectu, -'"'L'ria, entc"1o, aquela entre duas
dL•negaçõcs: ,1 da .1u:-.l'ncia íntin1a ao tl'n1po L' (.1 d.i <lusênci,1 do l':--.trcingeiro c1 q.?;ologia - o l''.->-
tr,1ngt'iro, l'St-,cl figur,1 sen1 ,1 qual nenhun1,1 egolugia poderi,1 con1L'Çar. De R. Bt.'rlll't aind,1, sobre
t.':-.te ,1~sunto, \'t'r "L',1utn: du tetnpt-,", i11 En1111111111cl Lcr. 1 iJ111:-.. JJ0.:;iti1. 1fr ct Tr1111::-;cc11dt111( e, organi?ado
1
pur J.-L Marion, Paris. PUF, coL "ÉpiméthéL 2ll0ll, pp. 1-Ll-lhé\. Faltaria k,·ar em conL1 o 10l unw
1
",
XXII! d,1:-, Hu~~crli1llli1, Vor~fc/f1111s, Hifd, Pl1(111t11~ic, ()p. cit., ,l.'-,SÍlll COlllO c'I di:-.tinção entíl' ,1 kn1brc1n-
Ç,l con1u objeto intenciunal t' cl tTIL't11úria cnn1u apreens,lu do tl'n1pu; l' ,1pen,1s ,l esL1 ültin1,1 que ½l'
cin do tl'n1po per.intl' :-.ua in\'isibilidade, tal U)!lH) ,1 l'stt.:,tica tr ..111:-.Lt.'ndental segundo Kc1nt parece
imp()-L1.
21 Fdrnund I lu:-.~l'rl, C11rft':>imzi.:;(/1c !v1cdit11ti(111t'11 u11d !1i1n . . cr \'r11 tr11:;t', l'ditada-.; L' introdu/ida~ r,nr ~-
Stra...,...,l'r, l 1u~:-,l'rli,1n.1, t. I, Li I Iayl', Nijhnft, Jl)(l_i. F,i~tl' um,1 priml'1ra tr.1dw.;,ln L'ITI francl'~ dl' autu-
ri,1 dt.' (~. l'eitfl'r L' E. i L'\·inas (Paris, :\rn1,1nd CL)lin, JLnJ; Vrin, Jl)-!-7); un1,1 no\·ci tr,1duç.ll) f{)j publi-
c ..1dc1, aprL't-,l'11L1da l' ,.1notada por 1\1. de Laun(1:-, (Paris, FUF, Jl)l)l). Propu'.-> urn,1 anj\i~L' da:-. \ll'di-
tcl\'r)t.''"' carte:-,],.111.1:-, l'l1l ~l'll conjunto t.' d,l qu intt1 .\ l('iÍ1!17t,'l7(l C,Htl'--.i,1nc1 <..,t.'p,.iradclllll'lltl' L'Jll /\ f't;[-()1( dt' /i1
~l//('l/tl///(;)/(l/i1s:11', P,1ri~, \'rin, Jl)8(1_
;\ MIMORIA, ,\ HISTORIA, O IS()UITIMINTO
2.i Cf. I'. Rinnn, "L,1 cinquii_'ml' M<'dit11tio11 (llr/c'sic1111c", ibid., pp. !lJ7-225.
25 Fala-se l1ssim de· "apcret.>pç<lo" por <1n<1logi<1. Centcn<1s dt.' p,1ginclS fora1n dcdicadclS cl essa rara
clpercepçJo por anc1logi,1 nos manuscritos, que pcrnlcl!lt..'Cl'fcllll n1uito ten1po inéditos, dedicados ;i
intl'rsubjl'ti,·idadc l' public,1dos por lso Kcrn.
IJ.\ \11"\tllRI..\ 1 JJ\ Rl\11'-:ISC!,(l\
antes de fazer urna pergunta que considero corno pré,,ia: para alcançar a noção de
experiência comum, é preciso começM pela idL;ia do próprio, passar pela experiência
de outrem, para finalmente proceder a uma terceira operação, dita de comunitari-
zaçJo da experiência subjeti\'a? Esse encadeamento é \'erdadeiramente irre,,ersín,\7
Não seria o pressuposto especulatin1 do idealismo transcendental que impüe essa
irreYersibilidade, e não a limitaçJo própria da descrição fenomenológica? Mas uma
fenomenologia pura, isto é, sem pressuposto, é concebí\'el e factÍ\'el? Estou perplexo.
Não esqueço a distinção e, será preciso confessá-lo, o salto que Hegel se \'iu obrigado
a dar no momento de passar da teoria do espírito subjeti\'o à do espírito objetin1 na
E11ciclopl'dia, e jci no cerne da Fc110111rnologia do espírito, no limiar do capítulo "Geist"
(capítulo 6). H,1 um momento em que é preciso passar do eu ao 11ôs. Contudo, não é
esse momento original, à moda de um nm o ponto de partida?
26 Mauricc> IL1lbwachs, La Mt'111oirc col/cctiz•e, Paris, PUF, 1'!50 (public,1do por Jeannl' Alexandre, nas-
cida Halbw,1ch~); cita reinos a ediç<lo crítica estabelccidJ por Cl·rard Na.ml'f con1 a colabor,1ç.i.o de
Maria J,1isson, Paris, Albin Michcl, 19'!7.
27 Cf. Patrick H. Hutton, "Mauricc> H,dbwachs as historian of collective mc>mory", em Histor1111s 1111
Ar/ ofMc111ory, UniVL'rsity of Vermont, 1993, p. 73 e sc>g. O autor coloca I l,1lbwachs em um lugar ck
honra num,1 seqüi'·ncia que, além de Wordsworth e• Freud, inclui l'hilippc Arii_•s <' Michc>I Foucault.
Por sthl vez, Mary Douglas l' c1 c1utora de t11nc1 in1portc1nte introdução <l tretdução inglesa de La
M1'111oirc col/cc/iz,c ("lntroduction: Mamice 1-lalbwachs 11877-lY--ll l", i11 M. Halbwachs, Tlw Collec-
tive Memory, New York, Harper and Row, 1980), na qual l'ia compara a contribuição de Maurice
l lalbw,1chs àquela de Edward Evans-Pritchard. Seu próprio estudo, Hozu /11stit11tio11s T/1i11k (Syra-
cuse, Syrc1cuse University Press, 1986), encontr(1 opoio en1 M<1urice f--L.1lb\v<1chs par<1 Sl'U estudo da
"c1n1nésia estrutural" il qual voltare1nos no c.1pítulo sobn• o esquecimento. Por seu ll1do, n1uitos
historic1dores fr,1nceSl'S reconhecern l1l1 obra de Maurice H<1lbwc1chs <1lgo n1c1is qul' uni c1péndice J
sociologia de É1nile Durkhein1, a s<1ber, umc1 vL•rdc1deirc1 introduçJo do confronto l'ntre men1óric1
coleti\·a e históril1. J\ esse respeito, lin1itar-nos-en1os, nestl' capítulo, ao exc11ne do capítulo 2, "Me-
n1óriet individual e n1en1óric1 colctiv~1", de /,o M1;11wirc co!lcctiuc, op. cit., pp. 51-96. Reservan'n1os o
capítulo chcWl', intitulado "Memcíri,1 coldi,,a l' memória histcírica" (pp. 97-1--12), para urna discus-
são que son1ente encontrc1rli SL'll lugar no iln1bito d<1 filosofi,1 crítica da história. A distinç<lo entre
rnen1()ria coletiva e n1en1ório histórica n.•ceberü enUio un1 peso igual Zl único distinçJo que nos
i1nporta neste esUígio de nosso etrgunu.•nto, ;:iquell1 l'JÜfl' n1cn1ório individuc1l l' n1e1nóriet coletivd.
28 M. H,1lbwachs, Lcs C11drcs soci1111x d,• /11111,'111oirc, Paris, !\lcan, 1925; rPect, Albin Miclwl, 199--1.
IJ\ \11\lllRI\ 1 \l\ 1'1\11'.ISl(,ll\
escolhida, não é de admirar que o apelo ao testemunho dos outros constitua o tema
de abertura. É essencialmente no caminho da recordação e do reconhecimento, esses
dois fenômenos mnemônicos maiores de nossa tipologia da lembrança, que nos de-
paramos com a memória dos outros. Nesse contexto, o testemunho não é considerado
enquanto proferido por alguém p,1ra ser colhido por outro, mas enquanto recebido
por mim de outro a título de informação sobre o passado. A esse respeito, as pri-
meiras lembranças encontradas nesse caminho sJo as lembranç,1s compartilhadas, as
lembranças comuns (as que Casev agrupa sob a denominaçJo "Reminiscing"). Elas
nos permitem afirmar "que, na realidade, nunca estamos sozinhos"; assim, a tese do
solipsismo, ainda que na condiçJo de hipótese de pensamento, \'ê-se descartada de
saída. As mais notá\'eis dentre essas lembranças sJo aquelas de lugares visitados em
comum. Elas oferecem ,1 oportunidade pri\·ilegiada de se recolocar em pensamento
em tal ou tal grupo. Do papel do testemunho dos outros na recordação da lembrança
passa-se assim gradati\·amentc aos papéis d,1s lembranças que temos enquanto mem-
bros de um grupo; elas exigem de nós um deslocamento de ponto de vista do qual
somos eminentemente capazes. Ternos, assim, acesso a acontecimentos reconstruídos
para nós por outros que não nós. Portanto, é por seu lugar num conjunto que os outros
se definem. A sala de aula da escola é, nesse aspecto, um lugar pri\·ilcgiado de deslo-
camento de pontos de \'ista da memória. De modo geral, todo grupo atribui lug,ires.
É desses que se guarda ou se forma memória. J\s lembranças de \·iagern mencionadas
acima jcÍ eram fontes de deslocamento com"".
O ensaio entra na sua fase crítica ao atacar a tese que se pode chamar de psiclllogi-
zante, representada, na época, por Charles Blondel, segundo a qual a memória indi\'i-
dual seria urna condiçJo necessária e suficiente para a recordação e ll reconhecimento
da lembrança. No pano de fundo perfila-se a sombra de l3ergslln e, nas proximidades,
a Cllncorrência com os historiadores pela preeminência nll campo das ciências hu-
manas em plena expansão. Portanto, é no próprio campo do icnômeno mnemt1nico
central que a batalha se tra\'a. Argumento negativo: quando niio fazemos mais parte
do grupo na memória do qual tal lembrança se consen·a\·,1, nllssa própria mem(Hia
se eS\'ai por falta de apoills externos. Argumento positin1: "Lembramo-nos contanto
que nos coloquemos no ponto de \·ista de um ou vários grupos e nos recoloquemos
em uma ou \',írias correntes de pens,1mento" (A 111c111ôri11 01/cti,,11, p. 63) "'. Em outras
palavras, não nos lembramos sozinhos. Halbwachs ataca aqui frontalmente a tese sen-
sualista que vê na origem da lembrança uma intuição sensível, consen'ada tal qual
e recordada de modo idêntico. Ta I lembrança é, além de inencontr,ível, inconcebín'l.
As lembranças de infância constituem, nesse aspecto, uma excelente referência. Elas
ocorrem cm lugares socialmente marcados: o jardim, a c,1sa, o porJo, etc., todos luga-
res que Bachc1'1rd prczarA: "É no âmbito da fomília que a imagem se desloca, porque
2.LJ Lugo a oportunkL.1dl' de L'\"OCH o ,·ínculo qul' Halb\,·achs l'stü1elccl'u l'ntrl' lllL'-
,1di,1nte tl'rt.'n1r)~
t11l)ri,1 l' espaço. l
título dl' uni do~ capítulos dc Lo 1111;11/tJÍrl' 01/lt·dit'l': "A n1t.'tnúril1 culctiYa L' u
u
estava nele contida desde o começo e dele nunca saiu" (op. cit., p. 69). E ainda: "Para
a criança, o mundo nunca é vazio de seres humanos, de influências benfazejas ou
malignas" (op. cit., p. 73). Compreende-se, justamente por isso, que a noção de âmbito
social deixa de ser uma noção simplesmente objetiva, para se tornar uma dimensão
inerente ao trabalho de recordação. Nesse aspecto, as lembranças de adulto não dife-
rem das lembranças de infância. Elas nos fazem viajar de grupo em grupo, de âmbito
em âmbito, tanto espaciais como temporais. Reconhecer um amigo num retrato, é
recolocar-se nos meios em que o vimos. O que se revela inencontrável e inconcebível,
é a idéia de uma "seqüência interna" na qual interviria apenas uma "ligação interna,
ou subjetiva" qualquer (op. cit., pp. 82-83), para explicar a reaparição da lembrança;
em suma, é à coesão da lembrança, cara a Dilthey (que Halbwachs parece não ter co-
nhecido), que se deve renunciar e, portanto, à idéia segundo a qual "o que fundamen-
taria a coerência das lembranças, é a unidade interna da consciência" (op. cit., p. 83).
É certo que acreditávamos observar tal coisa em nós mesmos; "mas somos vítimas,
aqui, de uma ilusão bastante natural" (ibid.). Esta se explica pelo caráter que se tornou
insensível da influência do meio social. Teremos a oportunidade, no capítulo sobre o
esquecimento, de evocar essa amnésia da ação social. Halbwachs observa que somen-
te notamos as influências rivais quando elas se enfrentam em nós. Contudo, mesmo
então, a originalidade das impressões ou dos pensamentos que sentimos não se expli-
ca por nossa espontaneidade natura 1, mas "pelos encontros em nós de correntes que
têm uma realidade objetiva fora de nós".
O ponto alto do capítulo consiste, assim, na denúncia de uma atribuição ilusória
da lembrança a nós mesmos, quando pretendemos ser seus possuidores originários.
Mas Halbwachs não ultrapassaria aqui uma linha invisível, aquela que separa a
tese do "nunca nos lembramos sozinhos" da tese do "não somos um sujeito autêntico
de atribuição de lembranças"? O próprio ato de "se recolocar" num grupo e de se "des-
locar" de grupo em grupo, e mais geralmente, de adotar o "ponto de vista" do grupo,
não supõe uma espontaneidade capaz de dar seqüência a si mesma? Caso contrário, a
sociedade não teria atores sociais' Se, em última análise, a idéia da espontaneidade
1
•
de um sujeito individual de recordação pode ser denunciada como uma ilusão, é por-
que "nossas percepções do mundo exterior se sucedem segundo a mesma ordem de
sucessão dos fatos e fenômenos materiais. É a ordem da natureza que penetra então
em nosso espírito e regra o curso de seus estados. Como poderia ser de outro modo,
uma vez que nossas representações não passam de reflexos das coisas? "Um reflexo
não se explica por um reflexo anterior, mas pela coisa que ele reproduz no próprio
instante" (op. cit., p. 85). Assim, há apenas dois princípios de encadeamento: o dos
31 ()s historiadores que consultaren1os na segunda partl' sobre o te1na da constituição do vínculo
social restituirão aos atores sociais essil iniciativa, en1 situaçôes quer de justificativél quer de con-
testaç.Jo no curso da \'idc1 t..'111 "cidades" n1llltiplc1s. Mas Halbvvachs nfío leva en1 consideração a
objeç<lo por ele n1csmo suscit<1da, segundo a qual os 1novin1entos de se colocar, de se recolocar, de
se deslocar são n1ovin1entos cspont,lneos que sabemos e que poden10s fazer. Paradoxalmente, a
réplica que I lc1lbwachs opôe à teoria st..'nsualista da 1ne1nória rt:.'pousl1 nu1n acordo profundo con1
ela a rl'speito do estatuto d,.i i1nprcssão origináril1, da intuição sensível.
IJ\ ~li ~IURI-\ 1 IJ\ RI \11'\l,CÍ'\l 1 \
com outros meios" (op. cit., pp. 94-95). É o próprio uso que Halbwachs faz das noções
de lugar e de mudança de lugar que põe em xeque um uso quase kantiano da idéia de
quadro que se impõe de modo unilateral a cada consciência 12 •
32 O que finaln1entc enfraquece a posição de Maurice Halbwc1chs, é Sl'U recurso cl un1a teori,1 scnsua~
lista d,1 intuição ~cnsível. Essl' recurso Sl' tornc1r.í n1ais difícil depois da virada lingüística e, n1ais
c1inda, depois da virad(1 pragn1lítica efetuada pela episten1ologia da história. Contudo, l'ssa dupli1
guin(1da j,í pode ser dad(1 no plélnO da n1en1ória. Len1brar-se, dissen1os, é fazer algo: é dL•clarar que
se viu, fez, ,1dquiriu isso ou aquilo. E esse fazer n1c1nória inscreve-se nun1a rede de exploração
prátic(1 do n1undo, ck iniciativa corpor(1l e 1nent(1I qut..' foz de nós sujeitos atuantes. Portanto, é num
presentt..• rnais rico que o da intuição sensível que a lernbrança volta, nun1 presente de iniciativa.()
capítulo (interior, dedicado ao exercício da 1nen1ória, i:lutoriza u1n,1 releitura dos fenôn1enos 1nne-
mônicos de um ponto de vista pragn1,ítico, ,1ntcs que (1 própria operação histórica seja recolocada
no can1po de uma teoria da zição.
IJ.\ \11 \lllRI \ 1 IJ\ 1<1 \11'-J!Sl 1 '.l 1 \
33 H. L. Hart, "Thl' a~cription of respon~ibilit: ,1nd rights", /Jn)(t'cdi11g . . tiftflc .,.1ri::,;fotclin11 St1dl'f_11, rr --1-lJ,
l9--l8, pp. 171-19--l. () ~ubst<111ti\'o tb(ripfl(nl l' l) ,·erbo to a~cril 1t' for,1n1 con~truídos ,1 n1cio cdn1inhn
cntrL' "dt.'~crc,·cr" L' "pn-.'scrc,·cr" par..1 dt."..;ignar L'SPL'Cific<1111cntl' cl atribuiçJ.o de algu <l algut.;111.
3-+ P. Rinrur, Soi-11u'111e (t1111111c u11 irntrc, tip. cit., quarto estudo.
~:; P. F. Strawson, /11dit idunls, Lundon, i\1ethut...'n ,1nd Co, 1959; traduçclo franet'S<l, Lc-:,; i11,fr;:·id11-.., Paris,
1
Édition~ du St. t1il, 1971. L,c1n1ino a tc~c gcr.:1\ no primeiro l'~tudo de St1i-111t'111c n11111l!c 1111 t111frt', tlV
1
L'it., pp. 39-.'i-l-, no t1n1bito dl' un1a tl'oric1 geral da "rl'fL·rl'nci ..1 idcntific,1nk" (o que pL'rmitl' fl'Conhc-
CL'r qul' um indi, íduo n.lo l· outro?). Eu a aplico L' a prl'ciso no pL1no da tl'ori<l dc1 aç.lo no qu,1rto
e~tudo, "Ll's aporil's de l'ascription" (1l 1 id., p. 118 l' ~q:;.). É ess<1 llltima ..1njlisl' quL' rl'ton10 aqui
p ..ua aplic,)-la ..11.Y:"' fent.)n1eno'.:-i n1ncn1ônico~.
A MEMClRIA, A 111sn'w1A, O l'S(,)UECl~IENTO
36 Coloquei essa teoria da atribuiçJo ~ prova em minha discussão com jean-Pierre Changeux, Cc qui
11011sf11il pe11scr, Ln 1111/ure e/ /11 l'l'gle, Paris, Odile Jacob, 1998, PP- 141-150,
37 A concepç.lo aqui proposta da atribuição a si 1nesn10 dos atos de n1ernória encontra u1n reforço
precioso ncl análise do ato de linguagen1 qut..• consiste na autodesignaçilo da testen1unha, esta
atestando seu próprio envolvimento no ,ito de testemunhar (cf, a seguir, segunda parte, cap, l),
38 Essa pregnância da atribuição no caso da 1nt..•1nória explica o deslocamento em Husscrl do voca-
bulé1rio da intencionalidade que, de intencionalidade ad cxtrn, con10 n;:i percepção, se torna inten-
cion;:ilidc1de ad intra, intencionalidadl' longitudinal, própria do percurso da mc1nória no eixo da
te1npor;:ilidade. Essa intl'ncionalidade longitudinal é ;:i própria consciência íntin1a do te1npo.
llA ,11 \tllRL\ 1 ll\ lff\tl~ISCÍM I\
39 Cario Cin1burg, "Tr,Ke~. Racines d'un par,1dign1c indiciairl'", in ,\l_t/f//c:_-;, [11il1h•111t'S, Tm(e"..:.. ,\101plzn-
logic l'l lli~toirc, tr,1duç,1o fr<1ncesa, I\Hi~, F1,1111n1,1rion, col. "NouYL'lle Bibliothl'l]Ul' ~cientifique",
1989, pp. 1:l'J-I80 (ediçJo original: J\.lili. l:.,11/,/c111i,Spic, Turin, Einaudi. 1Y8b).
A Ml"MllRIA, ;\ HISl(lRIA, ll ES()UICl~ll'"Hl
Com base nesses pressupostos cm cadeia, que dizem respeito à noção de atribui-
ção a alguém dos fenômenos psíquicos cm geral e dos fenômenos mnemônicos em
particular, pode-se tentar uma comparação entre a tese fenomenológica e a tese so-
ciológica.
Uma fenomenologia da memória, menos sujeita ao que arrisco chamar de precon-
ceito idealista, pode extrair da concorrência que lhe faz a sociologia da memória uma
incitação a se desdobrar na direção de uma fenomenologia direta aplicada à realidade
social, no cerne da qual se inscreve a participação de sujeitos capazes de designar a si
mesmos como sendo, em diferentes graus de consciência refletida, os autores de seus
atos. Esses desenvolvimentos são encorajados pela existência de traços do exercício da
memória portadores da marca do outro. Em sua fase declarativa, a memória entra na
região da linguagem: a lembrança dita, pronunciada, já é uma espécie de discurso que
o sujeito trava consigo mesmo. Ora, o pronunciado desse discurso costuma ocorrer na
língua comum, a língua materna, da qual é preciso dizer que é a língua dos outros.
Ora, essa elevação da lembrança à palavra não se dá sem dificuldades. Cabe, aqui,
lembrar as experiências traumáticas evocadas acima sob a denominação de memória
impedida. A retirada dos obstáculos à rememoração, que fazem da memória um tra-
balho, pode ser ajudada pela intervenção de um terceiro, o psicanalista, entre outros.
Pode-se dizer deste que ele "autoriza" o paciente a se lembrar, segundo uma expres-
são de Marie Bal mary. Essa autorização, que Locke chamaria de forcnsic, articula-se
sobre o trabalho de memória do paciente - melhor dizendo, o analisando - que se
esforça por levar à linguagem sintomas, fantasias, sonhos, etc., para reconstruir uma
cadeia mnemônica compreensível e aceitável aos próprios olhos. Assim posta na via
da oralidade, a rememoração também é posta na via da nc1rr,1ti\·a, cuja estrutura pú-
blica é patente. É nessa linha de dcsenn1kimento que encontraremos, já no começo
da segunda parte, os procedimentos do testemunho proferido diante de um terceiro,
recebido por ele e eventualmente registrado num arquin1.
Esse ingresso da memória na esfera pública não é menos not,ível com os fenôme-
nos de identificação que encontramos sob uma denominação próxima à da memória
impedida, a saber, a memória manipulada: a comparação com outrem apareceu-nos,
então, como uma fonte maior de insegurança pessoal. Antes mesmo de levar em conta
os motivos de fragilidade ligados ao confronto com outrem, seria preciso dar a devida
atenção ao gesto que consiste em dar um nome àquele que ,·em ao mundo. Cada um
de nós tem um nome que não deu a si mesmo, que recebeu de outro: cm nossa cultu-
ra, um patronímico que me situa numa linha de filiaçc10, um nome que me distingue
na fratria. Essa palavra de outrem, depositada sobre urna vida inteira, ao preço das
dificuldades e dos conflitos que se conhecem, confere um apoio de linguagem, um
aspecto decididamente auto-referencial, a todas as operaçôes de apropriação pessoal
que gravitam em torno do núcleo mnemônico.
Porém, foi ao constituir-se diretamente em fenomenologia da realidade social que
a fenomenologia pôde penetrar no campo fechado da sociologia. Esses dcsenn1lvi-
rnentos encontraram um reforço na última grande obra de Husserl, La Crise dcs scic11-
ccs c11ropfr11111'S, onde se chama a atenção para os aspectos anteprcdicativos do "mundo
da vida", o qual não se identifica, de modo algum, com uma condição solit,íria, ainda
menos solipsista, mas se reveste de saída de uma forma comunitária. Essa ampliação
da fenomenologia à esfera social deu lugar a uma obra not,ívcl, a de Alfrcd Schutz"''.
Este não se detém nas etapas laboriosas da percepção de outrem à maneira da quinta
Meditação. Para ele, a experiência de outrem é um dado tão primitivo quanto a expe-
riência de si. Sua imediatidade é menos a de uma evidência cognitiva que a de urna
fé prática. Acreditamos na existência de outrem porque agimos com ele e sobre ele e
somos afetados por sua ação. É assim que a fenomenologia do mundo social penetra
sem dificuldades no regime do \'i,·er juntos, no qual os sujeitos ativos e passin1s são
de imediato membros de uma comunidade ou de uma coleti,·idade. Urna fenomeno-
logia do pertencirnento é convidada a dar a si mesma sua conceitualidade própria sem
se preocupar com uma derivação a partir de um pólo egológico. Essa fenomenologia
é facilmente emparelhá,·el com urna sociologia cornpreensi,·a corno a de Max Weber,
para a qual a "orientação para outrem" é uma estrutura primitiva da ação social"'. E,
numa etapa ulterior, com urna filosofia política corno a de Hannah Arendt, para quem
-10 Cf. A. Schutz, Der si1111/rn(te /\11f/,m1 der s,óall'll \\'d!. Vic1111c, Springn, 1932, 1'!60; traduç,10 inglesa,
Tlic Plu'110111c11l1los_11 t'.Ulzc St1L"ia/ World, fyanston, Northwestern Uni\·L'rsity Press, 1967. Vl'r tan1bén1,
do mesmo c1utor, Co!leded l'apcf>, 3 u1L, Li H,1n', Nijhoff, l'!h'.'-1'!66; L' n,c Strucf11rc o( //1,· /1/Í·-
\Vorld, Londn's, HeinL'rncinn, 197-1.
-tl rvL1x Weber, \Virtscl1t1(/ 1111d Ccsc/lsc/u1(/, Tübingl'n, Mohr; trc1duçJo fr,111cc's,1 org,rniz,1da por J. Cha-
\'Y L' E. de Dan1pierrL', Fol/1011Iic ct So(ldt;, Co11ccpt~ .fó11d1111tc11t1111r de /11 tlii;oric ~oci0Iosi1111t', Paris,
l'ltm, 1'!71; \'l'r § 1 c' 2.
A MFM(Wl,\, A IIISTOI/IA, ll IS()UFCl~ll NTO
42 Em 'fr111ps ct Rt'cit, 1. III, op. cit., pp. 198-211, abordo "a Sl'(]Üência cids gerações" no âmbito dos co-
nectorl's que garc1nten1 a transição entre o ten1po fenon1enológ:ico e o terceiro tempo da história,
entre tempo mortal e tempo público. A simples "substituição" das gerações é um fenômeno que
depende da biologia human;J. En1 corr1pensaç<lo, a sociologia co1npreensiva de Dilthey e Mann-
heim extrai os traços qualit.llivos do fenômeno ck "seqüência" (Fo!gc) do "vínculo geracional".
4J T/1c P/ie110111c110/ogy ol lhe Social World, op. cit., cap. 4, pp. 1J9-214.
44 Bc'rnard Lepetit (dir.), Lcs Forn1e, de f"cxpérience. Une a11tre llistoirc sociale, Paris, Albin Michel, col.
"L"Évolution de l'histoire", 1995.
!),\ \11 \tllRI.\ 1 ll\ l\f"\11,IS( f·\.l l \
Gostaria de terminar este capítulo e esta primeira parte com uma sugestão. Não
existe, entre os dois pólos da memória indi\·idual e da memória coleti\'a, um plano
intcrmedi,frio de referência no qual se operam concretamente as trocas entre a memó-
ria \'i\·a das pessoc1s indi\·iduais e a memória pública das comunidades às quais per-
tencemos? Esse plano é o da relaçào com os próximos, a quem temos o direito de
atribuir uma memória de um tipo distinto. Os próximos, essas pessoas que contam
para nós e para as quais contamos, estão situados numa faixa de variaçào das dis-
tc'rncias na relação entre o si e os outros. Variação de distância, mas também \'ariaçào
nas moda !idades ati\·c1s e passi\'as dos jogos de distanciamento e de aproximaçào que
fazem da proximidade uma relação dinâmica constantemente em mo\·imento: tor-
nar-se próximo, sentir-se próximo. Assim, a proximidc1de seria c1 réplica da amizade,
dessa piiilia, celebrada pelos Antigos, a meio caminho entre o indi\'Íduo solitário e o
cidadão definido pela sua contribuição à poli/eia, à \'ida e à açào da polis. Do mesmo
modo, os próximos estão c1 meio caminho entre o si e o se (apassi\·ador) para o qual
deri\'am as relações de contemporaneidade descritas por Alfred Schutz. Os próximos
são outros próximos, outrens pri\'ilegiados.
Em qual trajeto de atribuição da memória se situam os próximos? A ligação com
os próximos corta trans\'crsal e eletivamente tanto as relaçôes de filiação e de conju-
galidade quanto as rclaçôes sociais dispersas segundo as formas múltiplas de perten-
cimcnto'" ou as ordens respecti\·as de grandeza'~- Em que sentido eles contam para
mim, do ponto de \'ista da memória compartilhada? À contemporaneidade do "enn'-
lhecer junto", eles acrescentam uma nota especial referente aos dois "acontecimentos"
que limitam uma \·ida humana, o nascimento e a morte. O primeiro escapa à minha
memória, o segundo barra meus projetos. E ambos interessam à sociedade apenas cm
razào do estado ci\·il e do ponto de \·ista demográfico da substituição das geraçôes.
Contudo, ambos importaram ou \'ão importar para meus próximos. Alguns poderão
lamentar minha morte. Entretanto, antes, alguns puderam se alegrar com meu nasci-
.,s JacquL'S RL'n'l (dir.), /eu, d'frl,l'i/es. La 111i,n1,11111/11sc ,í /'npái,·11,e, Paris, FHESS-C,1llimard-Seuil,
!YlJf,
-1.6 k,1n-Mzuc Ferry, Lc_..; P11fs...;1111cc::,; de /'c_,pcric110'. f..-;:-:.11Í s11r /'idc11titt; ((111te111pl1rtú11c, t. II, J.c..-; (hdrc::-:. dt' /11
n'(0111111i:-, .... 1111(c, Paris, Éditions du Cerf, 1YlJl.
-+7 Luc Boltanski & Laurent Thl·vL·not, De /,1 j11:::;t1J1ct1tio11. Lc." {'ct111ornÍt'..; de /11 gmJ1dc11r, Paris, Callin1(1rd,
]l)l)l,
,\ \1J:\1(lRIA, t\ JIISTORJA, () FS(.)UJ:CJMF:\ J()
48 Hannah Arendt, Tl,c /-111111011 Co11ditio11, Chicago, The Univcrsity of Chicago Press, 1958; trad. franc.,
Co11ditio11 de /'11<1111111c 1110dcmc, prd,ício dc l'aul Ric,eur, Paris, Calmann-Lt>vy, 1961, 1983, p. 278.
II
HISTÓRIA / EPISTEMOLOGIA
---.
"Eis a apreSl'ntaç,lo dei pe~quisa [hi:-;toriL'] de Heródoto de Türio - pc1rc1
qul', por uni lado, o:-. acontecirnentos su:-,citados pelos ho1nen~ n,1.o sejc1111
c1pc1gc1dos pt:'lo tL'n1po, L' por outro, para qul' os grandes e adn1ir'1, L'is fei-
tos re,1lizcH.ios ~l'ja pelos grl'gos, SL'ja pelos bcÍrbaros, não pl'rcan1 seu rL'-
non1e - pesL7ui~a, L'lll particular, dcl c,1u~c1 pL'la qual fizeram a guerra uns
aos outros. Entrl' o~ PL'rs,1s, dizen1 os ~,ibios [logíoi] que forc1n1 os fenícios
A tórico. Vou mostrar aqui a situaçà.o dessa etapa de minha pesquisa e suas
principais articulações.
Por um lado, considero concluída a fenomenologia da memória, ressah-adas as
\·ariações culturais que o conhecimento histórico, integrado à memória illlii\'idual e
coletiva, pode induzir na compreensà.o de si mesmo no modo mnemônico. Serc'i preci-
so considerar, no momento oportuno, uma sutil combinaçà.o entre os traços que pode-
ríamos chamar trans-históricos da memória e suas expressões \'afiáveis ao longo da
história, Esse ser,i um dos temas da hermenêutica da condiçZio histórica (terceira parte,
capítulo 2). Será neo'ss,írio, antes disso, que a história tenha atingido a estatura ple-
na de sua autonomia enquanto ciência humana, segundo a intençà.o que orienta essa
parte intermedi,íria de meu trabalho, lmpor-se-,í L'ntà.o, no plano de uma reflexà.o de
segundo grau, a questà.o dos limites internos de um projeto filosófico o mais d,1s \·e.1es
mantido em silêncio, projeto esse que seric1 nà.o somente o dL' uma autonomia episte-
mológica da ciência histórica, mas também o de uma auto-suficiência de um saber de
si da própria história, segundo a expressà.o cara que presidiu ao nascimento e à apolo-
gia da escola histórica alemà.. É no quadro dessa reflcxà.o sobre os limites, Lfrpcndente
de uma filosofia crítica da história, que se pode levar a bom termo o confronto entre
Hl'rúdoto, Hi:-;f11irL'~, in L'Hi..;foirc d'HlHIICI'(' ,7 .-\11g11~tiJ1. eral1ci'~ dl':-; !1i:-f(l/"Ít'II..; e/ lcxtc-:; ~/Ir /'/11~/llÍrl',
tt-..'>..to~ reunido~ L' nHllL'lltados por François Hartog, tradu?ido~ por i\1ichel Cc1sev\·itz, l\iri~, 1\1. du
5l'uil, 1999, p ....r:;_ l len)dptu: o '\1<1i dei hi~tl-1ri,1" (Cícl'ro) ou o "pai LL1 fflt'ntir<1" (Plutc1rcn)?
,\ MUvl(lRIA, A HISl(ll,IA, O l"S(_)UFCIMléNHl
2 François !Jossc propõe cm su,1 obra /.'/-hsloire (P,iris, À. Colin, 2000) uma série de seis percursos
que baliza1n J histúri,1 da hi~tória. C) prin1eiro institui "o historiador, um mestre de \'l'rdade"
(pp. 8-29). A probk•m,ític,1 da \'l'rdadL' tem início menos cm Heródoto, o primeiro ilist,,r, que cm
Tucídicfrs L' seu "culto do vndadeiro" (p. 13). É substituída pelo nascinwnto l' a dcrrot,1 da cru-
dição. Atinge um ponto alto com ,1 t'scola ml'lodológica e C. Seignobos, antes que F. Braudel lhe
irnponha a forn1c1 estruturi.1\, quL' sercÍ questionada en1 no1ne da "crise do causalisn10" no final do
segundo percurso da obra lÍL' F. Dosse (cf. adianll', p. 195, n. -+).
3 Em um,1 prinll'ir,1 \"L'rsão p.ircial, aquel,1 d.i edição dirigida por Ll' Coff e Nora (Jacques Le Coff
e Pierre Nora [org.J, 1-úire d<' /"l,isloirc, l\iris, Callimard, mi. "Bibliothéquc des histoires", 1974),
Miclll'l de Certeau propunh,1 a cxprL•ss:io "oper,lÇJll histórica". Na VL'rs,10 completa de L'Écri/11re
de /"/Jistoire (l'<His, C,1llírn,ird, col. "llibliothi•que des hisloin-s'', 197_'i), ek adot.i definitivamente a
cxpn'ss.Jo "npL'r<l\<lo h i...;turiogr<lficc1".
A última palavra desta nota geral de orientação será dedicada ao termo historio-
grafia. Até uma época recente, ele designava preferivelmente a investigação episte-
mológica tal como nós aqui a conduzimos segundo seu ritmo ternário. Como Certeau,
emprego-o para designar a própria operação em que consiste o conhecimento histórico
apreendido em ação. Essa escolha de vocabulário tem uma vantagem importante que
não aparece se se reserva essa denominação para a fase de escrita da operação, como
o sugere a própria composição da palavra: historiografia, ou escrita da história. Para
preservar a amplitude de uso do termo historiográfico, não chamo a terceira fase de
escrita da história, mas de fase literária ou escriturária, quando se trata do modo de ex-
pressão, fase representativa, quando se trata da exposição, do mostrar, da exibição da
intenção historiadora considerada na unidade de suas fases, a saber, a representação
presente das coisas ausentes do passado. A escrita, com efeito, é o patamar de lingua-
gem que o conhecimento histórico sempre já transpôs, ao se distanciar da memória
para viver a tripla aventura do arquivamento, da explicação e da representação. A
história é, do começo ao fim, escrita. A esse respeito, os arquivos constituem a primeira
escrita com a qual a história é confrontada, antes de consumar-se ela própria em escrita
no modo literário da escrituralidade. A explicação/compreensão encontra-se assim
enquadrada por duas escritas, uma escrita anterior e uma escrita posterior. Ela recolhe
a energia da primeira e antecipa a energia da segunda.
Mas é sobretudo a chegada à escritura do conhecimento historiador que mana
da escrita prévia dos arquivos que suscita a questão de confiança à qual não se pode
dar uma resposta a partir do interior da epistemologia do conhecimento histórico, a
questão de saber qual é afinal a relação entre história e memória. É a questão de con-
fiança que uma filosofia crítica da história tem por tarefa, se não resolver, ao menos
articular e analisar. Mas ela é levantada enquanto originária pela entrada em escrita
do conhecimento historiador. Ela paira como o não-dito do empreendimento inteiro.
Para nós que sabemos o que virá a seguir, de que a terceira parte desta obra tratará,
esse não-dito equivale a pôr em suspenso, a colocar em reserva, à maneira de uma
cpokhr metodológica.
É para significar essa colocação em reserva, do modo mais decididamente interro-
gativo, dubitativo, que escolhi como Prelúdio uma espécie de paródia do mito platô-
nico Fcdro, dedicado à invenção da escrita. Com efeito, na medida em que o dom da
escrita é considerado pelo mito como o antídoto da memória, e portanto, como uma
espécie de desafio oposto pela pretensão de verdade da história à promessa de confia-
bilidade da própria memória, ele pode ser considerado como o paradigma de todos os
sonhos de substituição da memória pela história, como o que encontraremos no início
da terceira parte. Assim, é para sublinhar a gravidade de uma escolha cultural sem
volta, a da escrita da história, que eu me diverti à minha maneira, que foi primeiro a
de Platão, cm reinterpretar, se não cm reescrever, o mito do Fcdro de Platão, que conta
a história da escrita. A questão de saber se o phar11111ko11 da história-escrita é remédio
ou veneno, para retomar uma das proposições do mito do Fcdro, não cessará de acom-
panhar em surdina a investigação epistemológica, antes de explodir cm plena luz no
plano reflexivo da filosofia crítica da história.
HISIURI \ / I J'IS!J \!UI ll(.L\
Por que recorrer ao mito, mesmo à margem do texto principal de uma análise
epistemológica altamente racional? Para fazer frente à aporia na qual se perde toda
im·estigação trat,1ndo do nascimento, dos primórdios, do princípio do conhecimento
histórico. Essa in\'cstigação perfeitamente legítima e à qual de,·ernos trabalhos con-
sider,freis' repousa, na medida cm que é ela própria históricil, sobre uma espécie de
contradiç<'ío perforrnati\·a, a saber que essa escrita dos primórdios pressupôe a si mes-
ma corno estando j,i dada para pensar-se cm estado nascente. É preciso então dis-
tinguir a origem do início. Pode-se procurar datar um início em um tempo histórico
escandido pela cronologia. Esse início é tah-ez impossível de ser encontrado, corno o
sugerem as antinomias articuladas por Kant na dialética da Críticn da Raziio Pum. Pode-
se certamente marcar algo corno um início para o tratamento crítico dos testemunhos,
mas não se trata de um início do modo de pensar histórico, se por isso se entende urna
ternporalização da experiência comum segundo um modo irrcdutÍ\·el à experiência da
memória, mesmo colcti,·a. Essa anterioridade indeterminável é il da inscrição, que, sob
urna ou outra forma, acompanhou desde sempre a oralidade, corno o demonstrou ma-
gistralmente Jacques Derrida em Cm11111to!ogi11" Os homens espaçaram seus signos, ao
mesmo tempo~ se isso tem algum sentido~ cm que os encadearam ao longo da con-
tinuidade temporal do fluxo verbal. É por isso que é impossível encontrar o início da
escrituralidade historiadora. O caráter circular da determinação de um início histórico
para o conhecimento histórico com·ida a separar, no cerne do conceito anfibológico de
nascimento, início e origem. O início consiste em uma constelação de acontecimentos
datados, colocados por um historiador à frente de um processo histórico que seria a
história da história. É em direção a esse início ou esses inícios que o historiador do nas-
cimento da história remonta por meio de um movimento retrospectivo que se produz
no meio já constituído do conhecimento histórico. A origem é outra coisa: ela designa
o surgimento do ato de distanciamento que torna possÍ\·el o empreendimento corno
um todo e, portanto, também seu início no tempo. Esse surgimento é sempre atual e,
portanto, está sempre dado. A história não p,ira de nascer do distanciamento cm que
'i François Ch,ítckt, L,1 .\J,1iss1111(c de /"/1istoirc, l\iris, Éd. de Minuit. ILJh2; rl'l'd .. Éd. du SL'uil. cnl.
"Points Ess(1is", 1YY6. \'er A. Mon1igliano, 5t11dic::,; i11 Jfi:-.toriogra1)/i_11, Londres, 19(,9 (l'nl particular:
"'Thl' pi,Kl' of Hl'rndotus in tlw historv of histmiography"', pp. 127-1-+2). Fr,rnçois ll<1rtog, l'm !_e
:\liniir d'H1'rodotc. [s::.ai ~11r /11 rcpn'sc11ft1fion de l'iwtrc (Pciris, Callin1ard, col. "Bibliothl'Lllll' dl'S his-
toire-.,", 1480, 110\"cl t:diçcl.o, 1991), aponta no\ ocabuLí.rio do "pn,fcí.cio" dl' Hl'ródoto cl ~ua pl'squiscl
a marca d,1 suhstituiç,10 dn ,ll'Lio pelo /1ist,,, (pp. 111-\'lll, 275-285). Ondl' Hnnwrn invoc,1 sua rc>L1ç,10
pri\·ilegiada con1 a~ ~lu~as ("Cantcl-llll', l,) ~hhcl, o holllL'lll indu~trio~o .. ", ( )dís~hil, 1, 1), 1-Ien)doto
SL' idl'ntificcl na tl'rCl'ira pes~Ocl, <l si l' ~l'U lugar: "Hl'ródoto dl' Türio l'\.Pl-K' aqui suas pe~quisas";
Tucídides, LiL'pois deit.', dir(i quL' "p()s por L'~crito" cl ncurativcl da gul'rra entrL' o-.; peloponl''.:-ianos e
11
os atl'nÍL'llt-.L'S. É a~~in1 qul' o renollll' (k/cn..::) dos grl'got-. t' dos bcÍrbcHO'.'.--, unia \"L'/ L'Xposto", dL'poi'.:-
"inscrito", Sl'fCÍ. lllll,l "possl'~~,l.o (kfr'Jllll) para ~l'lllprt'" Ncl.O ~l'ri(l todc1\·ia po~SÍ\"t'l falclr de um cortl'
franco l' definiti\"o entre o acdo t' o historiador, uu, como t-.L' direi n1ai~ adi,1ntl', l'ntrl' cl or,1lidade
l' a escritcl. A lutcl contr,l o l''.'.--quecin1ento l' ,l cultura do elogio, l'lll f,lCL' dcl \"io![,nci(l dcl hi~tl')rÍcl,
contr,1 um fundo de tragl'dicl, mobili1an1 toda-., ,is L'llL'rgiclS da dicç,lo. Quanto elo rnn1pimL'llÍl) cnrn
u mito, enquanto ,1conteciml'nto do pcn~c1n1L•rltu, l~ aindci L'm tL>rmo~ dl' ,nito qul' l'il' podl' t,1Lir dL'
'.:-i 111l"Slll0, <l lllcllll'ira do na'.'.--cimento d,1 L''.'.--CriL1.
h Jacques Dl'rriLLl, f)t' lu gn111111rnfp/0_1,,;ic, Pari~, f-d. ck \1inuit, col. "CritiquL'", 19h7.
,\ MF~l(lRI,\, A IIIS'J(lRIA, O LS()UICIMl"NIO
consiste o recurso à exterioridade do rastro arquivai. É por isso que reencontramos sua
marca nas inumeráveis modalidades de grafismo e inscrição que precedem os come-
ços do conhecimento histórico e do ofício de historiador. A origem, portanto, não é o
início. E a noção de nascimento dissimula sob sua anfibologia a diferença entre as duas
categorias de início e de origem.
É essa aporia do nascimento que justifica o uso platônico do mito: o início é histó-
rico, a origem é mítica. Trata-se aí certamente da reutilização de uma forma de discur-
so apropriada a todas as histórias de inícios que pressupõem a si mesmos, tais como
a criação do mundo, o nascimento de uma instituição ou a vocação de um profeta.
Reutilizado pelo filósofo, o mito se dá como mito, a título de iniciação e de suplemento
à dialética.
Prelúdio
C tória. Que o mito da origem da escrita possa, ao sabor da reescrita, soar como
um mito da origem da história, essa extensão é, se posso dizer, autorizada
pelo próprio mito, na medida em que seu tema é o destino da memória, mesmo que a
ironia seja nele dirigida, em primeiro grau, contra os "discursos escritos" de oradores
como Lísias. Além disso, há outras in\'cnçôes miríficas: aritmética, geometria, mas
também o gamão e os jogos de dados, que o mito compara à im·enção da escrita. E não
se ,·olta Platão contra sua própria escrita, ele que escre\'eu e publicou seus diálogos'
Ora, é à memória \'Crdadeira, à memória autêntica, que a im·enção da escrita e de
todas as drogas aparentadas é oposta como uma ameaça. De que maneira, então, o
debate entre a memória e a história não constituiria o assunto do mito?
Para dizê-lo rapidamente, o que me fascinou, na esteira de Jacques Derrida', é a
ambigüidadc insuperá\'el que está associada ao pliar,11ako11 que o deus oferece ao rei.
Pergunta: da escrita da história, também, não se deveria perguntar se ela é remédio
ou veneno? Essa questão, tanto quanto a anfibologia da noção de nascimento aplicada
à história, não mais nos deixará; ela ressurgir,í cm um outro Prelúdio, colocada à fren-
te da terceira parte: a Segunda Co11sidcmçiio /11/e111pcslil'l1 de Nietzsche.
Entremos no mito: "Aqui está, ó rei, diz Thcuth, o saber que proporcionará aos
egípcios mais s,1ber, mais ciência e mais memória (lllllt'III011ikMerous); da ciência (so-
pliias) e da memória (11111,'lllt'S) o remédio (plum11ako11) foi encontrado"ê (27-+c) 1 São os
gm11111ull11 que passam para o primeiro plano das drogas oferecidas por aquele que
Thcuth chama o "pai dos caracteres da escrita", o "pai dos gm11111wta". Ora, n,'io é a
historiografia, de certa forma, a herdeira da ars 111e111nrú1c, essa mem(1ria artificial que
cnK,i,·arnos mais acima sob o título da rnernorizaç.10 erigida cm façanha? E não é de
!· nn impubo de '.->L'll n1agnífico L'nsaiu dl'dicad() ~1 "/ a pli11r11111t 1c dt' /l/11!( 1I/" in La Di~~L'11n111ltÍt 1n,
l'ari,. Éd. du St>uil. c-lll. "rL•l Que\", \LJ72, pp. h'i-\'17.
.\d.l)tll ,1 lr't1duç,1u dL' l uc Bri'.->'.-,Oll: Pl;1ton, /)/1(,ifn', l\1ri...,, J'L1n1111,ir1un, '--ui. "CI:", ILJ8LJ, F)l)7.
A M F~lllRI A, A 11 IST(lR IA, tl FSQU FCI ~1 LNTtl
3 Sobre ,1 continuid,1dp Pntre a historiogrnfia l' a 11rs 111c111ori11c, cf. Patrick H Hutton, 1/istory as 1111 lirt
ofMc1110n1, ºV cit.
4 () contexto e a coer[,ncia de idéias sugL'fl'111 que cu (1qui n1t: afaste de Luc Brisson, que tradu/
lwpo11111csi:, por "n:.'n1en1oração"; prefiro traduzir essa palavra por "rnen1orização", ou "len1brete".
Em T/Jt','/i'/c, 142 e 2-143 a 5, M. Narcy traduz: "coloco por escrito [... 1a9uilo de qm' devo rne lern-
brl1r", con1 un1c1 nota intl..·rl'SS<ltllL' (op. cit., p. J06): "hupo11111cn1t1ta: liter(1ln1ente, suporte dc1 n1e1nó-
ria". I ,l'on Robin traduz con10 "noteis".
5 Recordo, llL'Stl' n1<.)Inento, n1inha hipótese l1 respeito lL1 polissen1ic1 do rastro: o rastro enqu,11lto
i1nprcssão n1,1tcrial, o rastro con10 impress.lo afctivl1 e o rastro con10 in1prcss?lo documental. E, c1
significar, sempre a mesma" (ihid.). Ora, onde o aspecto rcpetitin1 é mais ostentado, de
modo não problemático, do que nos escritos memorizados, decorados? O caso torna-
se ainda mais opressivo: escrito de uma vez por todas, o discurso está à procura de
um interlocutor qualquer - não se sabe a quem ele se dirige. É esse também o caso da
narrati\'a histórica escrita e publicada: ela é lançada ao \·ento; dirige-se, como afirma
Gadamer da Sclmftlicilkcil - da escrituralidade -, a quem quer que saiba ler. Vício
paralelo: questionada, ela não pode por si só "nem se defender, nem se sah·ar sozi-
nha" (275e). É exatamente o caso do livro de história, como de todo livro: ele rompeu
as amarras com seu enunciador; aquilo que cu jcí chamei de autonomia semântica do
texto é aqui apresentado como urna situação de desamparo; o socorro de que essa
autonomia o priva só pode vir do trabalho interminável de contextualização e recon-
textualização em que consiste a leitura.
Mas então, que garantias oferece o outro discurso - "irmão do precedente e de
nascimento legítimo" (276a)-, o da verdadeira memória 7 "Aquele que, transmitindo
um saber, se escreve na alma do homem que aprende, aquele que é capaz de defender-
se sozinho, aquele que sabe diante de quem se deve falar e diante de quem é preciso
calar." (ihid.). Esse discurso que defende a si mesmo diante de quem é preciso, é o
discurso da verdadeira memória, da memória feliz, segura de ser "do tempo" e de
poder ser compartilhada. Todavia, a oposição à escrita não é total. Os dois modos de
discurso continuam aparentados como irmãos, a despeito de sua diferença de legi-
timidade; e, sobretudo, ambos são escrituras, inscrições. Mas é na alma que o \'erda-
deiro discurso está inscrito''. É esse parentesco profundo que permite dizer que "o
discurso escrito é de certa forma uma imagem (cidô/011)" (276a), daquilo que na me-
mória viva é "vivo", "dotado de uma alma", rico de "seiva" (276a). A metMora da vida
introduzida mais acima, com a pintura dos seres vivos, pode então ser deslocada até
as terras do culti\·ador avisado que sabe semear, fazer crescer e colher. Para a \·erda-
deira memória, a inscrição é semeadura, suas pala\·ras \'Crdadeiras são "sementes"
(,pcmw/11). Estamos, assim, autorizados a falar de escrita '\·i\'a", no caso dessa escrita
da alma e "desses jardins de caracteres escritos" (276d). Ta I é, a despeito do parentesco
entre logoi, a distância que separa a memória viva e o depósito morto. Essa resen·a de
escrita no próprio seio da memória \'i\'a permite encarar a escrita como um risco a ser
enfrentado: "Mas cada vez que ele [o 'Jgricultor'] cscren'r, ser,í acumulando um te-
souro de rememorações para si mesmo, 'se algum dia atingir a esquecidiça \·elhice', e
para quem quer que siga a mesma pista, que ele se deleitará em \'er brotar essas tenras
culturas" (276d). O esquecimento é urna segunda vez nomeado; ele era mais acima
induzido pelo pretenso dom da escrita; é agora sofrido como um malefício da idade.
Mas ele não prescinde de suas promessas de divertimento. Não é então a luta contra
o esquecimento que presen·a o parentesco entre "o irmão abusini e o irmão legítimo"?
E, perante o esquecimento, o jogo? Jogo bem-\·indo para esses \'elhinhos que Nietl'sche
h Pu~so justificlir e~~L' nn\·o recurso~ in~criç.lo ~en1 apeldr /1 n-..'ir1ini~cl'11eia propril1n1entl' pLüt'1nica,
com a id(,j,1 de ra~tru psíquico, de per~l'\·crarH.,-,.1 da imprt..'<-.;...,<l,o prin1cir,1, d,_1 clÍl'CÇ,ll), do p11tlu 1::-, L'tl1
que consiste o rt..'encontru con1 o ,1conteci nlt..'1"'\to.
A ,11:MÚRIA, A IIISl(lRIA, O IS(_)UFCIMLNIO
atacará na Scgu11d11 Co11sidcmçíio !11tc111pcstim. Mas como é sério o jogo que anima os
discursos que têm por objeto a justiça e por método a dialética! Jogo no qual se expe-
rimenta prazer, mas no qual igualmente se é tão feliz quanto pode sê-lo um homem:
o justo, com efeito, aí se vê coroado de beleza (277a)!
A transição pelo esquecimento e pelo jogo é tão essencial que o düilogo consegue
elevar-se a outro nível, o da dialética, no qual a oposição entre memória viva e depósi-
to morto se torna secundária. Saímos da violência do mito, provocador até o exagero, e
adentramos a filosofia (278a). Os discursos, é claro, são "escritos na alma", mas levam
socorro aos escritos que avalizam essa memória que não passa de uma memória-mu-
leta (11upo11111esis).
O caso de Lísias, alvo de Sócrates desde o início do diálogo, pode servir de pedra
de toque: a censura que dirige contra ele não é que ele escreva seus discursos, mas
que estes pequem contra a arte; e a arte que lhe falta, é a das definiçôes, das divisões,
da organização de discursos tão matizados como uma alma multicor. Enquanto não
se conhecer "a verdade sobre cada uma das questões das quais se fala e sobre as quais
se escreve" (277b), não se terá o domínio do "gênero oratório" (to logõ11 gcnos) (277c)
considerado cm toda sua amplitude, que engloba os escritos de caráter político. O as-
sunto é, então, não somente epistemológico, na medida cm que o verdadeiro está em
causa, mas ético e estético, na medida em que a questão é chegar a um entendimento
sobre "as condições em que é belo ou feio (vergonhoso, aisk/1ro11) tanto pronunciar
como escrever discursos" (277d). Por que então não teria o escrito a "grande solidez" e
a "grande clareza" (ibid.) que o mito há pouco reservava à boa memória? Não é o caso
das leis? A censura não cabe então ao escrito enquanto tal, mas à relação do discurso
com o justo e o injusto, com o mal e o bem. É cm relação a esse critério que os discur-
sos que "se escrevem na alma" prevalecem sobre todos os outros e que a estes resta
apenas dizer adeus (278a) ...
Esse adeus, também é dirigido ao p/111r111ako11 do mito? É isso que não se diz. Não
sabemos se o discurso filosófico é capaz de conjurar a ambigüidade de um remédio do
qual nunca se sabe se é um benefício ou um veneno.
Qual seria o equivalente dessa situação indecisa para nossa tentativa de transpo-
sição do mito do Fcdro para o plano das relaçôes entre memória viva e história escrita?
À espécie de reabilitação prudente da escrita e de esboço de reagrupamento familiar
entre o irmão bastardo e o irmão legítimo no final do Fcdro corresponderia, de nosso
lado, um estágio no qual viriam a coincidir perfeitamente, de um lado, uma memória
instruída, iluminada pela historiografia, de outro, uma história erudita habilitada a
reavivar a memória em declínio e assim, segundo o desejo de Collingwood, de "rea-
tualizar", de "re-efetuar" o passado. Mas não está esse desejo condenado a perma-
necer insatisfeito? Para que se realizasse, seria preciso exorcizar a suspeita de que a
história continua a ser um dano para a memória, como o pil11rnwko11 do mito, do qual
niío se sabe afinal se é remédio ou \'CnL'no, ou ,rn1bos. Daremos v,frias vezes a palavra
a essa irredutível dúvida.
1
Fase Documental:
a Memória Arquivada
Nota de orientação
O
pri111ciro capitulo desta seg1111d11 p11rte é dedicado à _fÍN' dorn111e11tal d11 opemçiío
historiográfic11, e111 (1111çi10 d11 di,'isiio tripartite d11s t11rcfi1s proposta i1Cilllt1. Nilo se
esquecerá que co111 o tem1ofi1se 1u10 se lc;111 e111 z,isti1 estágit1s cro110/ogica111c11tc dis-
ti11tos d11 e111preiti1di1, 11/ils IIÍi'eis de progm11ll1 que so111e11tc o o/h11r dist1111ci11do do episte111ólogo
disti11g11c. Essa _(t1se, co11sidemda iso/11di1111e11tc, 11prcse11t11-sc e/11 111cs11111 co1110 11111 percurso de
se11tidos cujas cli1pas se prest1111111 1111111 muílise discreta. O tcrminus a quo ai11d11 é 11 111c111ória
aprec11did11 c111 seu estágio dec/11ra/Íi'o. O tcrminus ad quem tc111 por 110111c i1 propa dorn-
111e11t11/. E11tre os dois extre11ws se dcsdolm1 11111 i11terrnlo b11st1111te ,'asto que será csrn11dido da
seg11i11tc 1111111cira. Oiscernin•111os i11icia/111e11te o dcs/iga111c11to d11 l1ist1íri11 e111 re/11çiio à 111e111(íri(1
110 p/1111ofim1111/ do espaço e do te111po. Prornmrc111os aquilo que pode ser, 17111111/0 11 opemçiio
historiogrâfirn, o cq11i,,ale11te das fór11111s a priori d(I experiL•11ci11 t(lis co1110 11s detern1i11(1 1111w
Estdica tra11sce11dc11t11/ de estilo kmztimw: o que ,'1'111 11 ser 11111 tc111pt1 hi.,tôrico e 11111 c.,p11ço
geográfico, /cmndo-se e111 co11ta sua i11dissociâ,•c/ 11rtirnlaçíio 7 !5cçiio I, "O espaço /u1/>it(ldo", t'
corrigir i' criticnr 11 111e111ôri11, e assim de co1111)('ns11r suas fraquezas 110 plano tanto cog11itiuo
quanto prag111ático. A idéia co111 que nos confrontare!llos 110 início da terceira parte, segundo 11
q1111/ 11 111c111ôria poderia ser despojada de sua f1111çiio de 11111triz da história pam tomar-se 1111111
de suas províncias, u111 de seus objetos de estudo, e11co11tm com crrtcza 1111 co11fi1111ç11 do histo-
riador que "e11fre11t11 o traballw duro", do historiador nos arquivos, s1111 garantia mais seguro. É
/10111 que 11ssi111 seja, 110 111c1ws para dcs11r11111r os ncgacio11ist11s dos grandes cri111es, que devem
encontrar sua derrota nos arquivos. As mz{ies para duvidar se farão fortes o suficiente nos está-
gios seguintes da operação historiogrâfirn para niio co1111'111orar II vitória sobre o arbitrário que
faz 11 glória do trabalho nos arquiuos.
Será preciso, contudo, níio csqw'crr que tudo tc111 início niio nos arquivos, mas com o tcste-
111u11ho, e que, apesar da carência principiai de confiabilidade do testcmunlw, mio ternos nada
111e//Jor que o testemunho, c111 IÍÍti11111 a11â/isc, para asse:,;urar-nos de que algo 11co11teci'll, a que
alguém atesta ter assistido pesso11/111e11tc, e que o pri11cip11!, se não às vezes o único recurso, além
de outros tipos de doc11111cntaçiio, continua a ser o confronto entre testc11111nhos.
t::::::=I
I. O espaço habitado
O impulso dado à presente investigação pela retomada do mito do Fcdro nos leva
a organizar a reflexão em torno da noção de inscrição, cuja amplitude excede a da es-
crita cm seu sentido preciso de fixação das expressões orais do discurso num suporte
material. A idéia dominante é a de marcas exteriores adotadas como apoios e escalas
para o trabalho da memória. A fim de preservar a amplitude da noção de inscrição,
serão consideradas inicialmente as condições formais da inscrição, a saber, as muta-
ções que afetam a espacialidade e a temporalidade próprias da memória viva, tanto
coletiva como privada. Se a historiografia é inicialmente memória arquivada e se to-
das as operações cognitivas ulteriores recolhidas pela epistemologia do conhecimento
histórico procedem desse primeiro gesto de arquivamento, a mutação historiadora do
espaço e do tempo pode ser tida como a condição formal de possibilidade do gesto de
arquivamento.
Pode-se reconhecer aqui uma situação paralela àquela que se encontra na origem
da Estética transcc11de11ta/ kantiana, associando o destino do espaço ao do tempo: ao
passar da memória à historiografia, mudam de signo conjuntamente o espaço no qual
se deslocam os protagonistas de uma história narrada e o tempo no qual os aconte-
cimentos narrados se desenrolam. A declaração explícita da testemunha, cujo perfil
será abordado mais adiante, é bem expressiva: "Eu estava lá". O imperfeito gramatical
marca o tempo, ao passo que o advérbio marca o espaço. É em conjunto que o aqui e o
lá do espaço vivido da percepção e da ação e o antes do tempo vivido da memória se
reencontram enquadrados em um sistema de lugares e datas do qual é eliminada are-
ferência ao aqui e ao agora absoluto da experiência viva. O fato de essa dupla mutação
poder ser correlacionada com a posição da escrita relativamente à oralidade é confir-
IIISHlRI \ / ll'loH\HlLlll,IA
Quanto ao ato de construir, considerado como uma operação distinta, ele faz
preYalecer um tipo de inteligibilidade de mesmo níYcl que aquele que caracteriza
a configuraç,10 do tempo pela composiç,10 do enredo'. Entre o tempo "narrado" e o
espaço "construído", as analogias e as interferências abundam. Nem um nem outro
se reduzem a frações do tempo uni\·ersal e do espaço dos geômetras. Mas eles tam-
pouco lhes opõem uma alternati\·a franca. O ato de configuração inten·ém de uma e
outra parte no ponto de ruptura e de sutura dos dois ní\'cis de apreensão: o espaço
construído é também espaço geométrico, mensuráYel e calcul,í\·el; sua qualificação
como lugar de \'ida superpõe-se e se entremeia a suas propriedades geométricas, da
mesma forma como o tempo narrado tece em conjunto o tempo cósmico e o tempo
fenomenológico. Seja ele espaço de fixação no qual permanecer, ou espaço de circu-
lação a percorrer, o espaço construído consiste cm um sistema de sítios para as inte-
rações mais importantes da vida. Narrati\·a e construção operam um mesmo tipo
de inscrição, uma na duração, a outra na dureza do material. Cada nm·o edifício
inscreve-se no espaço urbano como uma narrativa em um meio de intertextualidade.
A narratividade impregna mais diretamente ainda o ato arquitetural na medida em
que este se determina em relação com uma tradição estabelecida e se arrisca a fazer
com que se alternem renovação e repetiçzio. É na escala do urbanismo que melhor
se percebe o trabalho do tempo no espaço. Urna cidade confronta no mesmo espaço
épocas diferentes, oferecendo ao olhar uma história sedimentada dos gostos e das
formas culturais. A cidade se dá ao mesmo tempo a ver e a ler. O tempo narrado e o
espaço habitado estão nela mais estreitamente associados do que no edifício isolado.
A cidade também suscita paixões mais complexas que a casa, na medida em que
oferece um espaço de deslocamento, de aproxirnaçzio e de distanciamento. É possí-
\'el ali sentir-se extr,wiado, errante, perdido, enquanto que seus espaços públicos,
suas praças, justamente denominadas, con\'idam às comemorações e às reunit"íes
ritualizadas.
É nesse ponto que as reflexões finais de E. Casey readquirem Yigur". A atraçzio da na-
tureza selvagem sai fortalecida da oposição entre o construído e o nzio-construídn, entre
i En1 "Architecture L't narrati,·ité", C11h1'1\<.;llt' de !11 /\1o~tm "/de/ltitil L' D(((ercH:c", TriennaiL' dl' i\1ilan,
199-1-, eu h.:iYia knt.1du tran~por p<n,1 o plano ,1rquikh1r,1\ a-.; c,1kgorias lig,1d,1~ J. tripla 111i11u•~j..;
expostilS em Tc111po t' .\1arr11ti1. a, t. 1, op. cít .. prefigur,1çclo, configurc1çã.o, rl'figuraç.lo. Eu ,1ponL1,·l1 no
1
,lto de habitar a prl'figurll<.,',lo do ato ,1rquitetural, na nH:_'dida eITl que a necessidade dt' (1brigo L' de
circul,1ç~o de~L•nha l) e:,-,.paçu interior da J1H)r,1dia e os intL'n·alo".-> dc1do~ ,1 PL'rcorrer Por sua ,·t'Z, o
ato de construir St' dei con10 o t'qui,·ak,nte l':-.pocial Ltl configurat.,-Jn narr,1ti\·a por con1posiç,l.o do
L'tnedo; da narrc1ti\·,1 ao edifício, é ,1 Jllt''.->111,l intl'nç,lo de coL'rL'ncia inll'rna que ,1nin1c1 a inteligl'nci,1
do n,1rrador L' do construtor. Enfin1, o h,1bitar, rt:.'sult,1ntL' do cun--.truir, era tido pelo L"qui\·alcnte da
"rcfigurc1<;Jo'' quL', na ordem ct1 n,1rr,1ti\·a, produ?-Sl' n,_1 leitura: o n1urador, corno o leitor, acolhe
() u1n'.->truir con1 ':->Ua'.-, L'\.pcdati\'<l..., L' t,1Inbl 111 --.u,1~ rl''.-,istL'ncia:-- l' ...,lld'.-, contl'St,1çõl's. Fu concluí,1 u
1
Mas, para dar ao tempo da história um contraponto espacial digno de uma ciência
humana, é preciso elevar-se um grau acima na escala da racionalização do lugar. É
preciso proceder do espaço construído da arquitetura à terra habitada da geografia.
Que a geografia constitui, na ordem das ciências humanas, o correspondente exato
da história, ainda é dizer pouco. Na França, a geografia começou por antecipar certas
conversões metodológicas da história que nos ocuparão ulteriormente'. Vida[ de La
Blache foi, com efeito, o primeiro, antes de Martonne, a reagir contra o positivismo da
história historicizante e a valorizar as noçôes de "meio", "modo de vida", "cotidiani-
dade". Sua ciência é uma geografia no sentido de que seu objeto é, antes de tudo, "lu-
gares", "paisagens", "efeitos visíveis, na superfície terrestre, dos diversos fenômenos
naturais e humanos" (F. Dosse, L'Histoirc cn 111icttcs, p. 24). O lado geométrico da expe-
riência do espaço é visualizado pela cartografia, cuja marca reencontraremos quando
tratarmos dos jogos de escalas". O lado humano é marcado pelos conceitos de origem
biológica, célula, tecido, organismo.
nu1nentos se dt•stacilnl contra un1 fundo de dL'n1arc:1ção. () sítio e o edifício levclin adiante sua
co1npetiçJo. Essa abordage1n asseg-ur,1 aos jctrdins e- aos espaços cultivados unia justa apreciação
que a ;ltençJo exclusiv,1 dirig-icL1 elos c(1stelos e aos edifícios n1cnos prestigiosos tende d ocultar.
E,n compens.:lçilo, ela n{ío faz jus .:lOS problemas t..'Specíficos colocados pelô Jrte de construir en1
sua c1borcii.1gen1 don1inada n1dis pclc1 oposiç<lo entre local e espaço do que por seu entrelaçan1ento,
que eu interpreto, de ,ninha parte, co1n base no n1odelo do entreL:1ça1nento do ternpo có:-,mico e do
ten1po fenomenológictl.
S To1110 l'tnprestadas as ohsen·,1çôes seguintl's a François Dosse en1 L'J-fistoirc c11 111icttcs. Dcs "J\1111a-
lcs"" ,í /11 111l/11•c//c ili,toirl', Paris, La Découvertl', 1987; reed., l'ockl't, col. Agora, 1997. Ll'ia-Sl' ,1 nov,1
l'diçfü, ,, o prd.ício iné·dito, 1997. Sobrl' ,l influênci,1 da gl'ografia, ci. pp. 23-24, 72-77, 128-138 nessa
última ediç~o.
6 Cf. ,1d i,1 ntl', pp. 220-227.
IIISíORL\ / Fl'ISll \lllLOCI,\
O que pode ter influenciado a história dos Amrn/c,, é, por um lado, a ênfase dada
às permanências, representadas pelas estruturas están'is das paisagens, por outro
lado, a preferência pela descrição expressa no florescimento das monografias regio-
nais. Esse apego ao território, principalmente <l paisagem rural, e o gosto pelas perma-
nências encontrarão na escola dos Am111/c, mais que um eco, com a promoção de uma
\·erdadeira geopolítica na qual se casam a estabilidade das paisagens e a quase-imobi-
lidade da longa duraçZio. O espaço, gostar,-í de dizer Braudel, torna mais lenta a dur,1-
ção. Esses espaços são alternativamente os das regiões e os dos mares e oceanos: "Eu
amei apaixonadamente o Mediterrâneo", declara Braudel em sua grande obra, da qual
o Mediterrâneo é ao mesmo tempo o sítio e o herói. Como L. Feb\Te escreveu a F. Brau-
del: "Entre esses dois protagonistas, Philippe e o mar Interior, a disputa é desigual"
(citado em L'Histoirc c11 11zicttcs, p. 129). Com respeito ã questão que desencadeou as
obsen·ações precedentes, a do desligamento do espaço dos geógrafos e dos historia-
dores em relação ao espaço da experiência viva, ancorada por sua vez na extensão do
corpo e de seu ambiente, não se deve valorizar exclusi\'c1mente a ruptura. En1eamos
mais acima o esquema de uma alternância de rupturas, de suturas e de retomadas em
um nível superior das determinações que dependem do plano existencial. A geogra-
fia não é a geometria, na medida em que a terr,1 circundada de oceanos é uma terra
habitada. É por isso que os geógrafos da escola de Vidal de La Biache falam dela corno
de um meio. Ora, o meio, aprendemos com Canguilhem, é o pcílo de um debate - de
uma A11sci11a11dcrsct:1111g - do qual o ser \·ini constitui noutro pólo~. A esse respeito,
o possibilismo de Vidal de La Biache antecipa-se ã dialética de um Von Uexküll e de
um Kurt Goldstein. E, se na geo-história de Braudel o meio e o espaço são considera-
dos termos equi,·alentes, o meio permanece um meio de \'ida e de civilização: "Um,,
civilização é em sua base um espaço trabalhado pelo homem e pela história", lê-se em
La !'vfrditcrra11éc ct /e Monde 111éditcrm11fr11 à /'époq11c de Philippe II'; e ainda: "Uma ci\·ili-
zação, o que é senão o estabelecimento antigo de certa humanidade em certo espaço?"
(Citado em L'Histoirc c11 111icttcs, p. 1J1.) É esse misto de clima e de cultura que faz a
geo-história, a qual por sua vez determina os outros níveis de ci\·ilização, segundo
modalidades de encadeamento que seriio discutidas no próximo capítulo. O olhar
da geopolítica pode ser considerado como "mais espacial que temporal" (L'Hi,toirc
c11 111icttcs, p. 132); mas isso com relaçJo ao nível institucional e dos acontecimentos,
que é aquele das camadas empilhadas sobre o solo geogrMico e por sua vez sujeitas a
estruturas de natureza temporal. Eu ha\'ia observado, em minha tentati\'a de renar-
rati\·izar o grande lino de Braudel e lê-lo como a gr,mde trama de O Mcditcrnínco .. .,
que sua primeira parte, da qual o espaço supostamente constitui o tema, é um espaço
pm·oado. O próprio Mediterrâneo é o mar Interior, um mar entre as terras habitadas
7 C. CanguilhL'l11, "Le Yi\ ,1nt et son n1ilipu", in /.11 Co111117is~f71ll t' de la l'Ú', t 1p. cit., pp. 12.9-1=1-t.
S FL'rnand 13raudel, /_,, i\l,'dítcrm11<'c l'I /e i\1011dc 111t'dit,·r1w1ic11 ,í /','11,1,111,· de l'ililippc li, ,\rm,rnd Clllin,
19-1-9. Duas rL·,·i~l-WS in1portantl'~ Íl)rc1111 n.'ali/adas c1tL' a quarta cdiç,lo de 1979.
,\ ~11·.~1(JRIA, ;\ IIJS'lllRIA, ll FS(.)CLCIMI N lll
9 Pl'rn1ito-n1l' cit,1r rninh,1s obscn·açôt..'S LÍl' cnUío sobre a prin1eira pznte de Lo Méditcrrr111l'l' .. : "()
ho1nc1n ali está presente cn1 tocL1 parte t:.' con1 t..'le u,n fervilhar de ~1co1ltt..'cin1cntos sinton1áticos: a
n1ontanha figura aí con10 ref llgio e con10 abrigo p,u,1 hon1cns livrt..'S. Quanto à.s pl,1nícics costeiras,
elas n.io s5o t'\'OC,H.ias se111 c1 colonizaç<lo, o tri1bc1lho de drenagen1, o n1elhoran1cnto das terras,
a dissen1inziç5o li<ls populaçôl's, os ckslocan1entos de toda espécie: transun1;.l:ncit1, nomzidis1no,
in\'as.1.o. Eis agora os n1c1res, seus lihHdis l' suas ilh<1s: é aind<1 na escalcl dos hon1ens e de sua na-
vegaç<lo que eles figurc1r11 nessa hl'o-história. Eles estão ali para sere111 descobertos, explorados,
singrados. É in1possível, mt..'t-.n10 no prin1ciro nível, falar deles sen1 evocar as relações de do1nina-
ç.io econôrnico-políticc1s (VeneLa, Cêno\'a, etc.). ()s gr<1ndes conflitos t..'ntre os i1npérios espanhol
e turco lançan1 sua son1bra sobre tlS paisagens m,1rítin1as e, co111 stws rt..'laçôes de força, indicc1n1
j,í os ,1contecin1entos. É <1ssin1 qul' o segundo nível é não sornente in1plicado, n1as antecipado pelo
prin1eiro: c1 geo-história n1uda-se rc1pidan1ente em geo-política" (P. Rinl'ur, Tc111p~ ct RJcit, t. I, op.
cit., pp. 367-368).
10 Fl'rn,rnd Braudel, Ciuilis11tio11 11111tiricl/c, [0J110J11ic e/ C11pit11/isJ11c, XV-XVIII' siécle, '.l vol., Paris, Ar-
rnand Colin, 1979.
11 Podt..,ríamos prosSl'guir nt..'ssc1 odisséia do espaço .:1Iternadc1111ente vivido, construído, pl'rcorrido,
habitado, con1 un1c1 011tologi11 do "lugar", do 1nesn10 nível que a ontologia da "historicidade" que
Sl'fÚ consideradn 11;.1 terccirL1 parte dl'Sta obrcl. Cf. a colet5nea df.' ensaios dt> Pascc1l An1phoux et
ai., Lc Srns d11 fie 11, Paris, Ousi,1, 1996 - e A. 13erque e l'. Nys (dir.), Logiq11c d11 lic11 e/ a:11Prc /111J11ni11c,
f'Mis, Ousia, 1997.
IIIS!lll\l\ / 1 l'ISIJ"\Hll Ul,I,\
12 Ver l'. Ricn_'ur, fr111p, e/ 1','<'ÍI, t. Ili, "I'- cit., pp. l'/0-ILJH (a pagin,1çào citad,1 (,ada rc'c'diç:io dl' 1991)
A ML~1(JRIA, A IIISTllRIA, O L~()UECIMFNTO
preendemos, ainda, Vico e Turgot? A "luta da cronosofia do progresso" (op. cit,, p. 58)
contra o espectro das filosofias da regressão certamente não abandonou nossos hori-
zontes: a argumentação favorável ou contr,1ria à modernidade que abordaremos mais
15 Vc>r sobre esse ,issunto: l\1ul Veyne, l,'/11ve11/11ire des différe11ces, leço11 il11111g11m/e du Colit'ge de Fm11cc,
Paris, Éd, du Sl'Uil, 1976, Pierre Nora, "Lc rl'tour de l'(,vénement", in Jacques Lc Coff e PiNrc Nora
(orgs,), Foirc de /'llistoire, t, 1, No11uc1111x l'mb/1'111cs, ov cil,
16 CL terceira parte, cap. L" 'Nossa' modc>rnidaLk", pp, 320-32'-J,
tarde continua a lançar mão dessa panóplia de argumentos. Não admitimos de bom
grado o estatuto cronosófico da idéia, ainda familiar aos historiadores profissionais,
de tempo linear cumulati\'o e irre\'ersí,-el. A cronosofia do tempo cíclico na ,·irada
do século XX bastaria para lembr,í-lo. Por outro lado, os ciclos, caros aos economist,1s
desde o a\'anço da história dos preços e das flutuações econômicas, com E. Labrnusse
entre outros, apontam o caminho para uma síntese entre tl'mpo cíclico e tempo linear.
Mesmo o empilhamento das durações, :i maneira de Braudel, e a tentati\·a a ele acres-
centada de articular em tríade estrutura, conjuntura e acontecimento dissimulam mal
o resíduo cronosófico que se esconde por tr,ís de uma fachada científica. Nesse sen-
tido, a libertação de toda cronosofia, em fa\'lir de um certo agnosticismo met(Kiico a
respeito da direção do tempo, não estcÍ concluída. Possi,·elmente não é desejci,·el que
o seja, se a história den' continuar interessante, isto é, continuc1r a falar <l esperança, :i
nostalgia, à angústi,F.
O conceito de épocas (op. cit., c,1pítulo 3) é tal\'ez o mais perturbador, na medida
em que parece superpor-se à cronologia para recortá-la em grandes períodos. Assim
continuamos, no Ocidente, a di\'idir o ensino da história e até da pesquisa entre Anti-
güidade, Idade Média, Tempos Modernos, mundo contemporc'meo. Recordamos opa-
pel que Benveniste atribui ao ponto zero no c,ílculo do tempo histórico. O nascimento
de Cristo para o Ocidente cristão, a Hégira para o islã. Mas as periodizações têm uma
história mais rica que remonta ao sonho de Daniel relatado na Bíblia hebraica, depois
à teoria das quatro monc1rquias segundo Santo Agostinho; reencontramos em segui-
da as sucessi,·as querelas de Antigos e Modernos, tr,l\'adas em torno de pl'riodizaçôes
ri,·ais. A compc1ração com as idades da ,·ida também te,·e St'US adeptos, acompanhada
da dú\'ida a respeito da réplica hist(irica do envelhecimento biológico: conheceria a
história urna velhice sem morte? Para dizt'r a \'erdade, o conceito de períodos não é
adequado a uma história distinta daquela d,1s concepções cíclicas ou lineares, esta-
cion,üias ou regressivas. A Filosofia da Histôrio de Hegel oferece a esse respeito uma
síntese impressionante das múltiplas ordenaçiies do tempo histórico. E após Hegel, e
a despeito da promessa de "renunciar a Hegel", coloca-se de no,·o a questão de saber
se todo resíduo cronosófico desapareceu do uso de termos como "patamares" (stagc,)
adotados em história econômica, no plano no qual se cruzam ciclos e Sl·gmentos li-
neares. O que est,1 em jogo é nada menos que a possibilidade de uma história sem
direção nem continuidade. É aqui que, segundo Pomian, o tema da estrutura adquire
o mesmo rele\·o do tema do período''.
17 Pomian arri::-.ca-St_' a afinnar quL' a cuncL·pçll.o dl' uni tl'n1po linl'ar, cumullüi\·o L' irn_,\.L'r~1,·L l L; 0
parcic1ln1L'JÜl' ,·cri ficada por trl·s fL·nC1n1t'no::-. princip<lÍS: o crl'::-,cirncntn dL•n1ogr<íficu, o dcl l'llL'rgia
disponín.'i, o do nún1cn1 dl' inforn1aç(w~ ,nn1a.1L'n<1das 11<1 n1en1úria coll'ti,·a (L'Ordrl' du tc111p..,,
''V t'ÍI., pp. 92-LJY).
l.S (_) tl'xto <..iL'cisi,·o a l'SSl' rL'~peito L' o dL' Cl{n,dt' LL;,·i-Strc1u::-.::-, L'l11 f<ll(t' d Hi::,;toirc, UNFSCO, ll):i:2;
fl't.'d. Paris, Callin1ard, col. ''Fo\io/Es::-,ai::-,", ILJ87. Pon1ian cita dele unia pa~sagen1 altl11ncntl' signifi-
cati\',1: "() dl''.:-,t..'n,·okinH:_'t1to dos conhl'cin1L'ntos prl'-histl)rico~ l' LuquL'oh)gicos tl'nde a c..;ft'ndcr 1/(l
cspt1ço formas de ci,·ilizaç,1o que l'rdn1os le, ,1do~ a im,1ginar con1u cst"alon11dt1s 1/0 tc111po. ls~o ~igni-
fica du,1s coi~cb: priml'iro, que o 'progrl''.:->'.:->n' (~L' t..1\ termo l' aind,1 cnn,·L'l1it..'J1tl' para de~ignar 11111,1
A 'v!EMllRJA, A HISlÚRIA, O FSQULCIMENHJ
Mas pode-se fazer história sem periodização? Deixemos claro: não somente en-
sinar a história, mas produzi-la? Seria necessário, segundo o desejo de Claude Lévi-
Strauss, "desdobrar no espaço formas de civilização que éramos levados a imaginar
escalonadas no tempo". Consegui-lo, não seria retirar da história todo horizonte de
expectativa, segundo o conceito freqüentemente evocado nesta obra e que devemos
a Koselleck? Mesmo para Lévi-Strauss, a história não poderia isolar-se na idéia de
um espaço de extensão sem horizonte de expectativa, pois "é somente de tempos em
tempos que a história é cumulativa, ou seja, que os resultados se somam para formar
uma combinação favorável".
A marca das grandes cronosofias do passado é menos fácil de discernir em se
tratando das "estruturas", nas quais Pomian enxerga a quarta articulação da ordem
do tempo. Mostrarei seu papel como fase da operação historiográfica, na qual a noção
dc estrutura entra em composições variáveis juntamente com as noções dc conjun-
tura c de acontecimento. Mas é bom recordar seu nascimento junto com o fim das
grandes especulações sobre o movimento da história global. Foram certamente as
ciências humanas e sociais que lhe deram uma dimensão operatória. Mas a marca de
sua origem especulativa se reconhece ainda no "desdobramento dc cada uma [dessas
ciências], com algumas raras exceções, cm teoria e história" (op. cit., p. 165). A au-
tonomia do teórico com relação ao experimental teria sido conquistada inicialmente
na biologia, em conjunção com a lingüística e a antropologia. As estruturas são esses
novos objetos, esses objetos de teoria, dotados de uma realidade ou de uma existência
demonstrável, da mesma maneira que se demonstra a existência de um objeto mate-
mático. No campo das ciências humanas, é à lingüística saussuriana que devemos o
desdobramento entre teoria e história e "a entrada simultânea da teoria e do objeto-
estrutura no campo das ciências humanas e sociais" (op. cit., p. 168). A teoria deve
conhecer apenas entidades intemporais, deixando à história a questão dos começos,
dos desenvolvimentos, das árvores genealógicas. O objeto-estrutura é aqui a língua,
distinta da fala. Discutiremos o bastante os efeitos felizes e infelizes da transposição
desse campo lingüístico no uso historiográfico desse modelo lingüístico e daqueles
que vieram em seguida a Saussure: em particular as noções de diacronia e sincro-
nia, que perdem seu vínculo fenomenológico para ocorrer num sistema estrutural.
A conciliação entre o sistemático, inimigo do arbitrário, e o histórico, escandido por
realidadl• n1t1ito diferente daquela d qu~1l o haví(1rnos inicialn1pnte aplicado) não é ne1n necessário,
nem contínuo; ele se cti por saltos, por pulos ou, con10 diricun os biólogos, por mutaÇÕl'S. Esses
~altos e pulos n5o consistern en1 ir sen1pre n1ais longe na mpsn1a direção; ell'S são acon1panhados
de mudanças de orientação, uIn pouco ,J n1aneira do cavalo no xadrez, que te111 sernprc à sua dis-
posição v,írios n1ovin1cntos, n1as nunca na n1esma direção. A hu111anid,1de en1 progresso não se
parece nl'lll uni pouco co,n u111 pcrsonag:e1n que sobe urna escada, acrescentando com cada u1n
de seus n1ovimentos um novo degrau ilquele cuja conquista já realizou; ela evoca, ,1ntes, o jogador
cujc1 sorte se encontra distribuída entre vários dados l' que, a cada lance, os vê espalhar-se sobre o
pano, produzindo igual númL'ro de resultados diferentes. O que g,rnhamos em um deles, estamos
sen1prc expostos a perder no outro, e é son1ente de te1npos e111 ten1pos que a história é cun1ulativa,
ou seja, que os result,1dos se so111an1 para fonnar umd con1binaçâo favorável" (apud L'Ordrc du
11'111ps, op. cit., p. 149).
111'-,l\lRI\ / 11'1,11\J()l()CL\
acontecimentos discretos, torna-se por sua Yez objeto de especulação, como se ,·ê em
R. Jakobson (ver L'ordrc du ternps, p. 17.i). A história como ciência está indiretamente
implicada na reintegração da ciência lingüística no espaço teórico, bem como na recu-
peração nesse mesmo espaço dos estudos da linguagem literária e, em particular, poé-
tica. Mas foi também a pretensão de dissoln,'r a história em uma combinatória lógica
ou algébrica, em nome da correlação entre processo e sistema, que a teoria da história
te,·e de enfrentar no último terço do século XX, como se o estruturalismo hom·esse
deposto no rosto da historiografia um pérfido beijo de morte'". Nosso próprio recurso
a modelos oriundos da teoria da ação inscreYer-se-á nessa re,·olta contra a hegemonia
dos modelos estruturalistas, não sem reter algo do império que estes exerceram sobre
a teoria da história; assim também conceitos de transição tão importantes quanto os
de competência e desempenho, recebidos de Noam Chomsky, e remodelados para
caberem na relação entre as noçôes de agente, de potência de agir (a 11gl'11c11 de Charles
Taylor) e de estruturas de ação como coerçôes, normas, instituiçôes. Serão igua Imente
redescobertas e reabilitadas filosofias di1 linguagem pré-estruturalisti1s, como a de
Von Humboldt, que atribui ao dini1mismo espiritual da humanidade e à sua ati,·idade
de produção o poder de engendrar mudanças graduais de configuração: "Para o espí-
rito, proclamm·a Von Humboldt, ser, é agir". A história era reconhecida nessa dimen-
são geradora. Mas os historiadores profissionais, que gostariam de se interessar por
Von Humboldt, não poderiam ignorar a dimensão altamente teórica de argumentos
como o que Pomian se compraz em enJCar: "Assumida em sua realidade essencial, a
língua é uma instância, continuamente e a cada instante, em processo de transição
antecipatória. [... ] Em si mesma, a língua não é uma obra acabada (crgo11), mas uma
ati,·idade que se est,í fazendo (c11crgci11). Por isso, sua ,·erdadeira definição só pode ser
genética""'. (apud L'Ordrc du tcmps, p. 209).
Essa longa digressão dedicada ao passado especula tini e a !ta mente teórico de nos-
sa noção de tempo histórico tinha somente um objetiYo, recordar aos historiadores
algumas coisas:
19 :\),lo posso deixar de a:--.sinalar o l'sforço consider<Í\'l'l de Pom ic1n, e1n conjunto com. Rt..'né Thom, pat'<l
rL'soh·t..'r o probkn1c1 coloec1do por l'S~c1 an1l'aç,1 dt_• d issoluç3.o do histúrico no sisten1,ítico, ao preço da
con~truçã.o dt..' unia "teoria geral da n1orfogl'ncse qul' seja unia tl'ori,1 t..•struturalist1" (Pomian, il 1id.,
p. IY7). Sobre Rem; Thom, \L'r Pomian, il•id., pp. l'!b-202.
2ll l'omi,rn, "L'histoire dL'S structurL's", in J. LL' C,,ff, R. Chartier, J. RL'\l'l (urg.), La N,111,'cllc l li,t,,i-
r,·, Paris, Retz CEPL, 1Y78, pp. 528-55:l; e,istl' um,1 reediçJo p,1rcial, Bruxelas, Fd. Compll',es,
1988. (_) ziutor L'nfatiza a o:-.cilaçàu d,1 substcÍnci,1 ,1 rPlaçél.o no plano d(.1 ontologia. Di.-...-..o resulta a
dL·finiçJo da noç3.o dl' t..'strutura proposta t..'ill I '()nfrc du tc111p~: "Conjunto dt..' rt..'laçClcs racion,1i:-.
e interdepl'ndente:-. cuj,1 realidade t, dl'ITH)nstrc1da L' cuja de~criçJo l' dada por uma teoria (que
constitul'nl, l'l1l outrc1.;, p,1lc1\·r,1s, uni objeto dl'monstr,Í\'l'l) L' que L~ rL <1li/,1do por uni objL·to \ isí-
1
III. O testemunho
O testemunho nos leva, de um salto, das condições formais ao conteúdo das "coisas
do passado" (pmctcrita), das condições de possibilidade ao processo efetivo da opera-
ção historiográfica. Com o testemunho inaugura-se um processo epistemológico que
parte da memória declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e termina na
prova documental.
Num primeiro momento, deter-nos-emos no testemunho enquanto tal, mantendo
em suspenso o instante da inscrição que é o da memória arquivada. Por que essa
demora? Por diversas razões. Para começar, o testemunho tem várias utilidades: o
arquivamento em vista da consulta por historiadores é somente uma delas, para além
da prática do testemunho na vida cotidiana e paralelamente a seu uso judicial sancio-
nado pela sentença de um tribunal. Além disso, no próprio interior da esfera histórica
o testemunho não encerra sua trajetória com a constituição dos arquivos, ele ressurge
no fim do percurso epistemológico no nível da representação do passado por nar-
rativas, artifícios retóricos, colocação em imagens. Mais que isso, sob certas formas
contemporâneas de depoimento suscitadas pelas atrocidades em massa do século XX,
ele resiste não somente à explicação e à representação, mas até à colocação em reserva
nos arquivos, a ponto de manter-se deliberadamente à margem da historiografia e
de despertar dúvidas sobre sua intenção veritativa. Isso quer dizer que este capítulo
seguirá apenas um dos destinos do testemunho, selado por seu arquivamento e san-
cionado pela prova documental. Daí o interesse e a importância de uma tentativa de
análise essencial do testemunho enquanto tal, respeitando seu potencial de empregos
múltiplos. No momento de tomarmos algo a um ou outro desses usos, esforçar-nos-
HISIORI\ / ll'hH\Hll ()(;[.\
emos por isolar os traços suscetíYeis de serem compartilhados pela pluralidade dos
empregos".
É na prática cotidiana do testemunho que é mais fcícil discernir o núcleo comum
ao uso jurídico e ao uso histórico do testemunho. Esse emprego coloca-nos de imedia-
to diante da questão crucial: até que ponto o testemunho é confi,íYel? Essa questão põe
diretamente na balança a confiança e a suspeita. É então trazendo à luz as condições
em que é fomentada a suspeição que temos a oportunidade de abordar o núcleo de
sentido do testemunho. De fato, a suspeita se desdobra ao longo de uma cadeia de
operações que têm início no nível da percepção de uma cena \"i\·ida, continua no da
retenção da lembrança, para se concentrar na fase declarati\·a e narrativa da reconsti-
tuição dos traços do acontecimento. A desconfiança dos obserYadorcs revestiu-se de
uma forma científica no âmbito da psicologia judiciária enquanto disciplina experi-
mental. Uma das pro\·as básicas consiste na tarefa imposta a uma coorte de indivíduos
de produzir uma reconstituição verbal da mesma cena filmada. O teste supostamente
permite medir a confiabilidade do espírito humano no que diz respeito às operaçôes
propostas, seja no momento da percepção, seja na fase de retenção, seja, enfim, no
momento da reconstituição verbal. O artifício desse teste sobre o qual importa cha-
mar a atenção está em que o experimentador é quem define as condições da prova e
\·a lida o estatuto de realidade do fato a ser atestado: esse estatuto é considerado como
adquirido na própria montagem do experimento. São então os desvios em relação a
essa realidade comprm·ada pelo experimentador que são leYados em consideração e
medidos. O modelo implícito nessa pressuposição é a confiabilidade indiscutÍ\·e] do
olho da cá.mera. Certamente, os resultados dos experimentos não devem ser despre-
zados: dizem respeito à presença flagrante de distorções entre a realidade conhecida
por outros meios e os depoimentos dos sujeitos de laboratório. Para nós, a questão não
é submeter à crítica as conclusões da im·estigação a respeito da desqualificação do
testemunho em geral, mas de questionar, por um lado, aquilo que Dulong denomina
o "paradigma do registro", a saber, a cc'ímera, e por outro lado a idéia do "obscn·ador
isento", preconceito ao qual estão submetidos os sujeitos do experimento.
Essa crítica do "modelo regulador" da psicologia judici<Íria nos reconduz à prMi-
ca cotidiana do testemunho na com·ersação comum. Essa abordagem cstcÍ cm pro-
funda concordfmcia com a tl'oria da ação que será mobilizada nas fases explicatiYa
e representati\·a da operação historiogrMica, e com a primazia que ser,í atribuída à
21 Registro ,1qui n1inha díYida para con1 ,1 obra ck Rl'llillld Dulong, Lc Tl;111oi11 oculairc. Lcs (011ditio11s
so(/11/cs de /'attcst11t1011 Jlt'l"S01111cllc, Paris, El IESS, 1998. Ela lllt' pennitiu n1elhorc1r unia \·ersclo ank-
rior da pre~L'llte anz\li~e, a dL'spcito de certa di~cord2ínci,1 com ~ua tl'~e final de unia antino1ni,1
global cntrL' o "te~tl'n1unho histórico" e a hi~toriografic1, tl'Sl' resultante de 11111 cnfoqt1L' quase que
L'\.Clusi\'O no testen1unho dos t'x-con1batt-..•ntes l' ~obretudo dos '.:->obn•,·i,·e11tes da Shoah. De tato,
silo esses testen1unhos quL' rt.'sistt...'lll
. cl e,plicc1çJ.o e il reprl'SL'ntaçclo historiográfica. E L' prin1eiro
ao pn\prio arqui,·an1ento que eles re~i~tcm. () problen1,1 colocado L' ent,1.o o da significaçZin dL'SSl'~
tcsten1unhos no lin1ih', no can1inho de u1na dpt'raç,l.o historiogrjfica que reencontra ~cus lin1ites
a cada fose e atl' n1L·~n10 en1 su,1 1nais L'\Ígentl' retlex,l.o (cf. abai,o, tercL•ira p<.Htl', cap. 1). !\,las ,1
obra de Dulong aprL'SL'ntou antL•riorn1L•ntc un1a descriç.lo essencial do testenn1nho qup não l'\clui
o ,1rquiYan1ento, en1borcl ele n.lo elcibore ,1 re~pccti\·,1 teoria.
A MFM(JRIA, A HIST(ll/lA, O FS()UFCIMENTO
-t. A possibilidade de suspeitar cria por sua vez um espaço de controvérsia no qual
\·,irios testemunhos e \·árias testemunhas se \·éern confrontados. Sob certas condições
gerais de comunicaçJo, esse espaço pode ser chamado espaço público; é nesse contex-
to que uma crítica do testemunho se enxerta cm sua prática. A testemunha de alguma
forma antecipa essas circunstâncias acrescentando uma terceira cláusula a sua decla-
raçJo: "Eu esta\·a l,i", diz ela; "Acreditem em mim", acrescenta, e: "Se não acreditam
cm mim, perguntem a outra pessoa", profere ela, às \'ezes com urna ponta de desafio.
2-l É. l3en,·enbte obscn·a en1 Lc Voct1h11!11in..' de" in..,fituho11s i11do-c11rOJh'C1111c_.:; (Paris, f~d. de i\finuit,
19hY) que no direito n.H11,1no c1 palc1\'rc1 tc::-:.tis, deri\'adc1 de tertiu~, designa a~ pesso,1s tl'rceiras en-
carregadas de c1ssistir cl uni contr,lto oral L' h,1bilitadc1s a autcntic,1r essa tr,1nsação (apud Dulnng,
l.c T1;111oi11 nc11!11Ír!', ov (if., p. -l-3).
A MEMORIA, A HISTORIA, O l"S(.)UFCIMFNTU
25 Sobrl' a distinção entrl' ipsl'idaLfr e 111l'SmiLfodl', cf. Soi-111t'111c co111111c 1111 ,mtrc, op. cit., pp. 167-180 (da
rl'ediçiio dl' 1996). Sobre a promessa, leia-se Henrik Von Wright, "On promises", in Plli/o,opliirnl
l'apcrs /, 1983, pp. 83-99: "g:,1rantir" que tal coisa ocorreu, certificá-lo, equivale ,'1 unia "proinessa a
respeito do ~x1ssi1do".
2ó Registro aqui o con1pleto acordo con1 Renaud Dulong quando trc1ta do testen1t1nho ocular co1no
de tuna "instituição n,1tural" (Dulong, Lc Tt;1110ill ocu/airc, op. cit., pp. 41-69). O autor nota c1 proxi-
midade de suas an.ilises com a da sociologia fenomenológica dl' Alfred Schutz em Tlic 1'/ic110111c-
110/ogy of tlic Social World, op. cit., l' com a teori,1 do espaço público de Hannah Arendt.
27 É o uso que Von Wright fez do termo "instituiçéío" em "On promises". Esse uso est,i próximo Lfas
noções de jogos de linguc1gen1 e de "formas ck vida" e,n Wittgenstein.
IIISIORI.\ / 11'1-,JI \llllllCIA
posiç<lo de un1 gl'nl'ro dl' \"ida con1p<1rtilhado contra o fundo de un1 único n1undo dl' pt.•rccpç,lo.
N,1 ml'dida l'tn que os acontecin1entos ate::-.LH.io~ pelos quais Sl' intt>n•ssarn os historiadort.'~ <'lo
acontl'cin1ento::-, tido::-, con10 in1port1ntt.•s, significati\'OS, ell's tran::-,bord<1n1 da esfera pt.'rcepti\ ,1 t.'
adentr<1111 ,1 das opinit)l's; o st•nso con1un1 pre::-,un1ido l' um n1undll dô,ico p,1rticularmentl' fr,ígil
qut.' d,í lug,1r a discord.l.ncias que s(lo de~c1cordo::-., di~putas, que dllo lugar a contrt)\·l'rsias. É sob
essa condição qut.' St.' coloca ,1 qut.•st3.o da plausibilidade dos c1rgun1t.'1ltos adiantados pt.'los prota-
gonist,1s. Abre-se as::-,in1 csp,1ço ;J lógic,1 ,irgun1t.•1lt,lti\'a do histori<1dor t.' do jui/. M,b (1 dificuldadt'
A \1FM(lRIA, A HIST(JRIA, O ESQUECl\1ENH)
IV. O arquivo
de l'Scutc1 dos tcstenn1nhos dos sobrevi\'entes de can1pos de cxtern1ínio constitui talvez o n1ais
inquietante questiona,nento d(1 tranqüilizadorzi coesão do pretenso nn1ndo con1um do sentido.
Trata-se de teste1nunhos "extr(1ordin6rios", no sentido e1n que excedt:'111 a capacidzidc de con1preen-
são "ordinária", co1nparável ao que Pollner acaba de chan1ar 1111111(Ít111c rcaso11. A esse respeito, as
reflexões desanimador,1s de Primo Levi en1 Si c'cst w1 !10111111c. S01ruc11irs (cd. orig., Turin1, Einaudi,
1947; trad. franc. de Martinl' Schruoffeneger, l'aris, Julliard, 1987; rec>d., 1994), e mais ainda c'm
Les N1111fmg<'s e/ !es Resrnpt's (ed. orig., Turim, Einaudi, 1986; trad. franc. de André Maugé, Paris,
Callimard, 1989), nos dão o que pensar.
30 Esse 111on1cnto do arqui,·an1ento do teste1nunho é mc1rcado na história da historiografia pelo apa-
rL'cimento da figura do /,is/(,r, sob os traços de Heródoto, de Tucídidl'S e dos outros historiadores
grt'gos, e depois latinos. Evoquei n1ais acin1a (Nota de orientação, p. 14Y, n. 5), na esteira de Fran-
çois Hartog, a linh(1 de ruptur,1 entre o aedo ou o rapsodo e o /JistiJr. O mesn10 autor precisa, dentro
dessa pcrspectivn, a relação entre o hist()r e ,1 testemunha. Antes dele, É. Bcnveniste havia insistido
na continuidade entre o juiz que resolve os conflitos e a tl'sten1unha ocular: "Para nós, o juiz não
é a teste1nunha; essa variaçJo de sentido atrapalha a anólise da passagem. M.1s é ex'-ltan1e11te por-
que o histôr é a testen1unha ocular, o único que rt.'solve . o debate, que pudemos .1tribuir ao histôr
o sentido de 'aquL'lc que rl'solve por meio de um julgamento sem apelação sobre uma questão de
boa fé'" (Lc Vornb11!11ire dcs i11sli/11/io11s i11do-e11rop<'e1111es, op. cit., t. li, citado por F. Hartog, Lc Miroir
d"/ /,'rodo/e, op. cit., p. IX). Sem dúvida, seria preciso distinguir aqui aquele que dá o testemunho e
aquele que o recebe, essa teste1nunha que se tornou juiz. Nessa linh(1, I-t1rtog aprofunda a separa-
çilo entre o lzistar e a testen1unha ocular intercalando entre a simples \'isão e a "exposiçdo" da in-
vestigação unia cadeizi de "n1arcas de enunciaç5o": cu vi, escutei, digo, L'scrc\'o (ibid., p. 298). Esse
jogo da enunciação ocorre assim entre o olho e o ouvido (ibid., p. 274), entre dizl'r e escrever (ibid.,
pp. 270-316), tudo isso na ausência de san,;ão por um mestn, cfa Vl'rdade (ibid., p. XIII). A l'scritura
constitui nesse sentido d n1arca decisiva: sobre et1 SL' enxcrtan1 todas as estratégias narrativas de
onde provérn "a capacidade d;:i narrativa de fozer crer" (ibid., p. 302). Rctornare1nos a essa tese por
ocasião da discussão do conceito de representação historiadora (cf. adiante, pp. 302-369).
31 l'. Rico_'ur, D11 /ex/e iÍ /'11ctio11: essais dºiJcr111i'11c11/iq11e 2, Paris, Éd. du Seuil, col. "Esprit", 1986.
A esses traços de escrituralidade que possui em comum com a narrativa, o teste-
munho acrescenta traços específicos ligados à estrutura de troca entre aquele que o dá
e aquele que o recebe: em virtude do caráter reiterável que lhe confere o estatuto da
instituição, o testemunho pode ser tomado por escrito, prestado. O depoimento é por
sua vez a condição de possibilidade de instituiçôes específicas dedicadas à coleta, à
conservação, à classificação de uma massa documental tendo em vista a consulta por
pessoas habilitadas. O arquivo apresenta-se assim como um lugar físico que abriga o
destino dessa espécie de rastro que cuidadosamente distinguimos do rastro cerebral
e do rastro afetivo, a saber, o rastro documental. Mas o arquini não é apenas um lugar
físico, espacial, é também um lugar social. É sob este segundo ângulo que Michel de
Certeau trata dele no primeiro dos três painéis sobre o que, antes de mim, ele deno-
minou operação historiográfica ' 2 . Relacionar um produto a um lugar constitui, diz
ele, a primeira tarefa de uma epistemologia do conhecimento histórico: "Considerar
a história como uma operação, será tentar, de um modo necessariamente limitado,
compreendê-la como a relação entre um lugar (uma conscriçào, um meio, uma profis-
são), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma lite-
ratura)" (L'Écriturc de /'lzistoirc, p. 64). Essa idéia de lugar social de produção comporta
um objetivo crítico dirigido contra o positi\"ismo, crítica que Ccrteau compartilha com
R. Aron na época em que este escrevia /11trod11ctio11 à la p!lilosoplzic de /'lzistoirc: c,;sai s11r
/e,; li111itcs de /'obiectii,ilL; lzistoriq11c (1938). Mas, diferentemente deste último, que subli-
nha "a dissolução do sujeito", Certeau enfatiza menos a subjeti\·idade dos autores, as
decisôes pessoais do que o nfío-dito do estatuto social da história enquanto institui-
ção do saber. Desse modo, ele se distingue também de Max Weber que, em Lc 517,'17111
e/ /e I'olitiq111', "isenta\·a", afirma ele, o poder dos eruditos das restriçôes da sociedade
política. De encontro a esse recalcamento da relação com a sociedade que engendra
o não-dito do "lugar" de onde o historiador fala, Certeau denuncia, à maneira de
J. Habermas, na época em que este defendia uma "repolitização" das ciências huma-
nas, a apropriação da linguagem por um sujeito plural que supostamente "exprime"
o discurso da história: "Nisto se confirmam a prioridade do discurso histórico sobre
cada obra historiogrMica particular, e a relaçfío desse discurso com uma instituição
social" ("Productions du lieu", in L'Écrit11rc de /'lzi~toirc, pp. 71-72).
Nfío basta, contudo, recolocar os historiadores na sociedade para dar conta do
processo que constitui um objeto distinto para a epistemologia, a saber, nos termos
do próprio Certeau, o processo que conduz "da reunião dos documentos à redaçfío do
]2 "() gl'~to qul' redu/ a:-, idl'ia:-, a lug,nc:-, t_', [ . . j urn gl':-,to dc historiador. Compreendl'r, par,.1 clc, 0
a11,1lis,1r em tern10::-. de produçôl':-, loc,1\i;:,Í\t-..'i::-. o n1,.1tcrial quL' c,1da n1L'todo inicii1lmentl' c-..tabc-
lt.'CL'LI con1 ba:-,e en1 '.->L'll~ pn'1prios critt'rio:-, dl' pL'rtinl•ncia" ("L'opl'ration hi~toriogr,1phiquL'", in
L'[criturc de /'liisflJÍn..', l)/1- l·1t., p. 6]; uma partl' dl'ssc e:-.tudo ha\-~,1 ~ido publicad,1 em J. I L' Coff L' P.
~or,1 ldir.l, /"11in· de f'l,i,t,,ire, "J'. <"il., t. I, pp . ."\--li, s()b ,, título "L"of•t'rc1ti"n historiquc").
i\ MLM(lRL\, i\ HIST(lRIA, ll J'S(._)UITIMl:NTll
livro" (op. cit., p. 75). A arquitetura em múltiplos níveis dessas unidades sociais que
constituem os arquivos reclama uma análise do ato de inserção em arquivo, de arqui-
vamento, suscetível de ser localizado numa cadeia de operações veritativas, tendo por
termo provisório o estabelecimento da prova documental''. Antes da explicação, no
sentido preciso do estabelecimento das respostas em "porque" às perguntas em "por
quê?", há o estabelecimento das fontes, o qual, como diz Ccrteau com propriedade,
consiste em "redistribuir o espaço" que os colecionadores de "raridades", para falar
como Foucault, já haviam quadriculado. Certeau chama de "lugar" "o que permite e
o que proíbe" (op. cit., p. 78) essa ou aquela espécie de discurso em que se enquadram
as operações propriamente cognitivas.
Esse gesto de separar, de reunir, de coletar é o objeto de uma disciplina distinta,
a arquivística, à qual a epistemologia da operação histórica deve a descrição dos tra-
ços por meio dos quais o arquivo promove a ruptura com o ouvir-dizer do testemu-
nho oral. Naturalmente, se os escritos constituem a porção principal dos depósitos de
arquivos, e se entre os escritos os testemunhos das pessoas do passado constituem
o primeiro núcleo, todos os tipos de rastros possuem a vocação de ser arquivados.
Nesse sentido, a noção de arquivo restitui ao gesto de escrever toda a amplitude que
lhe confere o mito do Fcdro. Pela mesma razão, toda defesa do arquivo permanecerá
em suspenso, na medida em que não sabemos, e talvez não saibamos jamais, se a
passagem do testemunho oral ao testemunho escrito, ao documento de arquivo, é,
quanto a sua utilidade ou seus inconvenientes para a memória viva, remédio ou ve-
neno - phann11ko11 ...
Proponho recolocar no quadro dessa dialética entre memória e história as notações
que eu dedicava à noção de arquivo em Tempo e 1111rrativa 1". Aqui a ênfase será dada
aos traços por meio dos quais o arquivo promove a ruptura com o ouvir-dizer dotes-
temunho oral. Assume o primeiro plano a iniciativa de uma pessoa física ou jurídica
que visa a preservar os rastros de sua própria atividade; essa iniciativa inaugura o ato
de fazer história. Vem em seguida a organização mais ou menos sistemática do fundo
assim posto de lado. Ela consiste cm medidas físicas de preservação e em operações
lógicas de classificação dependentes quando necess,frio de uma técnica elevada ao ní-
vel arquivístico. Ambos os procedimentos são postos a serviço do terceiro momento, o
da consulta do fundo dentro dos limites das regras que lhe autorizam o acesso".
Se considerarmos, com todas as ressah·as que faremos mais adiante, que o es-
sencial de um fundo de arquivos consiste em textos, e se desejarmos realmente nos
atermos àqueles, dentre esses textos, que são testemunhos deixados pelos contem-
porâneos que ti\·eram acesso ao fundo, a mudança de estatuto do testemunho falado
ao de arquivo constitui a primeira mutação historiadora da memória viva submetida
a nosso exame. Pode-se então dizer desses testemunhos escritos o que diz o Fcdro
dos "discursos escritos": "Outra coisa: quando de uma \'ez por todas foi escrito, cada
discurso vai rolar de um lado para outro e passar indiferentemente por aqueles que
o compreendem, como por aqueles que não se interessam por ele; ademais, ele não
sabe quem são aqueles a quem deve ou não se dirigir. Se, por outro lado, se eleva-
rem a seu respeito vozes discordantes e se ele for injustamente injuriado, ele precisa
sempre do socorro de seu pai, pois é incapaz de defender-se ou de salvar-se sozinho"
(275d,e). Em certo sentido, é exatamente assim: como toda escrita, um documento de
arquivo está aberto a quem quer que saiba ler; ele não tem, portanto, um destinatário
designado, diferentemente do testemunho oral, dirigido a um interlocutor preciso;
além disso, o documento que dorme nos arquivos é não somente mudo, mas órfão;
os testemunhos que encerra desligaram-se dos autores que os "puseram no mundo";
estão submetidos aos cuidados de quem tem competência para interrogá-los e assim
defendê-los, prestar-lhes socorro e assistência. Na cultura histórica que é a nossa, o ar-
quivo adquiriu autoridade sobre quem o consulta; pode-se falar, como diremos mais
adiante, cm revolução documental. Em uma fase hoje considerada ultrapassada dos
estudos históricos, o trabalho nos arquinis tinha a reputação de embasar a objeti,·i-
dadc do conhecimento historiador, assim abrigado da subjeti,·idade do historiador.
Para uma concepção menos passiva da consulta dos arquivos, a mudança de signo,
que faz do texto órfão um texto dotado de autoridade, estci ligada ao acoplamento do
testemunho com uma heurística da pro\'a, Esse acoplamento é comum ao testemunho
perante o tribunal e ao testemunho recolhido pelo historiador profissional. Pede-se
ao testemunho que dê prova, É então o testemunho que presta socorro e assistên-
cia ao orador ou ao histori,1dor que o im·oca. No que concerne mais especificamente
à história, a ele\'ação do testemunho à condição de pr,)\'a documental marcar,'í esse
tempo forte da irn·crsão na relação de assistência que o escrito exerce em relação a
essa "memória de apoio", Pssa '111/)(l/llllr'lllr', memória artificial por excelência, à qual
o mito consentia apenas um segundo lugar. Independentemente das peripécias da
história documental - positivismo ou não - o frenesi documental apoderou-se da
época. Evocaremos, em uma fase mais ,1,·ançc1da do presente discurso (terceira parte,
capítulo 2), o pan1r de Yerushalmi confrontado com a maré arquivai, e a exclamação
de Pierre Nora: "Arqui,·em, arqui\em, sempre sobr<1r,1 ,ilgo'" Assim reerguido de sua
indignidadP e votado à insolência, tornou-se o pham,ak,m do documento arqui,·ado
mais ,·c1wno que remédio 7
dl' Sl'U suporte n1atl'rial, produ.tido::-. ou rL'cebido..., por toda pc::-.so,1 físicil ou jurídica L' por todo
~l•n·iço ou l'ngZ'lo público ou privado no l'\rrcício dl' ::-.u(1 ati,·id,1de" (cirt. cit., p. 91).
A MFM(lRli\, A IIIS!(lRli\, () FSQUfCl~lENTO
36 Marc IJloch, J\polosic po11r /'/1istoirc 011 Méticr d'l,islorim, prdcicio de Jacques Le Coff, l\1ris, M,isson,
Armand Colin, 1993-1997 ()·' cd., Paris, Armand Colin, 1974, prd,ício de Ccorges Duby). A redaçJo
dei obrzi, con1posta 11.íl solidzio, longe d(1s bibliotecas, foi interron1pida pela prisflo do gr(1ndL' histo-
ri;_1dor, conduzido a seu destino.
HISlllRI.\ / 1 l'ISír\101 OU.~
37 Proporl'i tnais adi,1ntl' n'fon~·ar (1 distinçZtu entre as dul1s e::-.pécit'~ dL' kstl'n1unhu, L':icrito:i t-.' ndo-
escritos, con1parando ll :il'gund~1 da noç,l.o de indício l' dL' conhL'Cin1L'11to indicicí.rio propo:,ta por
Cario Cinzburg.
18 "() bon1 historiador, por sua \'L'/., part'Ct' o ogro da ll·nda. C>ndc Lnej,1 carnl' hum,1na, ek ...,abl' Lllll'
:iL' L'ncontra :,ua cc1ça" (B\och, 11po!ogie po11r !)zi:-;ftiirc, (lP, (Ít., p. ~!) .
.19 Sl'r,) preci~(.) c,·ocar, alt.'111 disso, a fragi lidadL' física dos doeu n1cntns dL' ,1rquivos, ils caLbtrofL,s na-
tu r,1is L' as c,lt,btrofes histúric,1s, os pcquL'no::-, L' grandes dl'::-,astre::-. Ltl hun1l1niLt1de? Retornarcn10--.
<l isso qucindo chegar o n1on1ento, ao falarn10::-. do esqut.'ciml'nto çon10 l1pag,1mL'tlto dl1s.;, r,1stro::-.,
particul1.irn1cnte o::-, docun1ent,1is (cf. tl'rcL•ira p<irte, pp. -1-2H--1-1=i).
;\ Ml\1(lRli\, ;\ IIIS'l(H<li\, O l:~(_lUl:Ci~1ENfO
com os rastros, a um método que Marc Bloch tacha de "positivismo", o de seus mes-
tres Seignobos e Langlois, cuja preguiça mental ele ridicularizaw.
O segundo painel sobre o qual prossegue o exame das relações da história com
os testemunhos escritos e não-escritos é o da "crítica". Esse termo especifica a história
como ciência. É claro que a contestação e o confronto existem entre os homens fora
dos procedimentos jurídicos e dos da crítica histórica. Mas só a submissão a prova dos
testemunhos escritos, junto com a dos outros rastros que são os vestígios, tem dado
lugar a uma crítica cm um sentido digno desse nome. De fato, foi na esfera histórica
que a própria palavra crítica apareceu com o sentido de corroboração dos dizeres de
outrem, antes de assumir a função transcendental que lhe atribuirá Kant no plano
da exploração dos limites da faculdade de conhecer. A crítica histórica abriu para si
um caminho difícil entre a credulidade espontânea e o ceticismo de princípio dos
pirrônicos. E além do simples bom senso. Podemos fazer remontar a Lorenzo Valia, A
doação de Co11sta11ti110, o nascimento da crítica histórica s 1. Sua idade de ouro é ilustrada
40 Tl'rá Charles Seignobos realmente dito: "É muito ütil propor questôes a si mesmo, mas muito pe-
rigoso respondê-las"? Marc Bloch, que duvida dessas palavras t'n1bora as cite, resolve acrescentar:
"Não se trilta aqui certa111entc da fala de uni fanfarrão. Porém, se uns físicos não tivessem sido tão
intrépidos, em que pt' estaria a física?" (Bloch, Apologic pour /'histoire, ov cit., p. 45.)
41 Lorenzo Valia, La Oo1111tio11 de Co11sta11ti11 (Sur la "Do1111tio11 de Co11sta11ti11", tÍ /ui fausse111rnt atlribuéc e/
111<'11so11g<'rr, cirm 1440), trad. franc. de Jean-Baptiste Ciard, Paris, Lcs Bl'lles Lettrcs, 1993, prefácio
de Cario Cinzburg. Esse texto fundador da crítica histórica coloca um problema de leitura e de
interpretação na medida em que faz "coexistir na 1nesn1a obra retórica e filo]ogia, di.:ílogo fictício
e discussão minuciosa das pro\'as documl'nt<1is" (Cinzburg, op. cit., p. XV). É preciso remontar ,1
/?.ctôrica de Aristôtcles p<1ra encontrar um modelo retórico para o qual as provas (ta tek111fri11) (1354a)
dcpendcn1 da racionalidade própria da retórica, cm torno das noçôes de "persuasivo" e de "pro-
vável". É claro que Aristótek's tinha e1n vistcl a forma judiciária da retóriG1, encarregada, entre as
"açôes humanas" (to pmt/011/11) (1357a), das açôcs passadas (1358b), ao contr,írio da retórica delibe-
rativa, a mais nobre, encarregada das ações futurc1s, e da retórica cpidêitica que rege o louvor e a
censura das ações presentes. Esse n1odelo foi transmitido aos eruditos do Rcnascin1cnto italiano
por Quintiliano, bem conhecido dl' Valia, na /11stit11tio omtoria, cujo Li\'ro V contém um amplo
desen\'olvimento a rl'spcito das provas, entre as quais se encontram os documentos (111/,11/ae), tais
como os testan1entos l' papéis oficiais. "() Decreto de Co11stn11tino observa Ginzburg, podia 1nuito
1
bem entrar nl'SS,l última categoria" (Cinzburg, op. cit., p. XVI). Reposicionada contra esse pano
de fundo, a mistura dos gêneros na escrit,1 de Valia é menos surprel'ndente. Ela é feita cm duas
partes. NJ. pri1ncira, V,1lh1 sustcnt;i que a doc1ç<lo de boa parte das possessües imperiais que Cons-
ti.1ntino teria feito cl0 pdpa Silvestre não é absolutamente plc1usível; essa pente retórica organiza-se
cm torno do diálogo fictício entre Constantino e o papa Silvestre. Na segunda, Valia argumenta,
con1 base en1 n1uitc1s provas lógicas, estilísticas e do tipo "antiquário", para den1onstrar que o
documento sobre o qual se fundament.1 a doaçiio (o pretenso Decreto de Co11st1111ti110) é falso.
Partindo da confissão de que ' c1 distância entre o Valia polemista e retórico e o Vai la inicic1dor d;i
crítica histórica moderna pan'Cl' impossível dl' cobrir" (Cinzburg, op. cit., p. XI), Cinzburg pok-
1niza contra conte1nporâneos seus que, 11.:1 esteira de Nietzsche, recorretn à rctóricci corno a unia
1náquina de guerril cétic;.1 contra o pretenso positivisn10 h.'nciz dos historil1dores. Para Pfl'l'ncher
esse abismo e reencontrar un1 uso ,1propric1do à historiografia da noção de prova, Ginzburg pro-
pôe remontar c.1quell' mon1ento precioso e1n que, no prolonga1ncnto de Aristóteles e de Quintilia-
no, retórica t' provei nJo estilo dissociadas. J\. retóricc1 ten1 de seu lado c.l racion;ilidade que lht..' l·
própria; quanto à prova L'TTl histórid, corno o demonstra o itnportante artigo de Cinzburg sobre o
"paradig1na indiciário" que discuto n1ais ddiantc, elc1 não obedect..' principalinente ;io n1odclo ga-
lilec1no do qual procede a ver~ão positiva ou n1etodológicl1 da provei docu1nental. Por isso a dívida
HIS!llRI.\ / 1 !'!SI 1 \llll ()CL\
por três grandes nomes: o jesuíta Papebroeck, da congregaçJo dos bollandistas, fun-
dador da hagiografia científica, dom Mabillon, o beneditino de Saint-Maur, fundador
da diplomática, Richard Simon, o oratoriano que marca os conwços da exegese bíblica
crítica. A esses três nomes é preciso acrescentar o de Spinoza e seu Tratado frolôgico-
político e o de Bayle, o duvidador de múltiplos alvos. Será preciso, além disso, enxar
Descartes 7 Não, se sublinharmos o aspecto matemático do Maodo, sim, se compa-
rarmos a dúvida dos historiadores à dúvida metodológica cartesiana" 2 • A "luta com
o documento", como diz Marc Bloch com propriedade, est,í fundada. Sua estratégia
principal consiste em examinar as fontes a fim de distinguir o verdadeiro do falso, e,
para tanto, em "fazer falar" testemunhas das quais se sabe que podem enganar-se ou
mentir, não para confundi-las, mas "para compreendê-las" (op. cit., p. 94).
A essa crítica de\·emos uma cartografia ou uma tipologia dos "maus testemunhos"
(i/iid.), cujos resultados poderíamos comparar com os do Tmtado das proms judiciais de
J.Bcntham, que Marc Bloch pode ter conhecido, mas cm relação ao qual a crítica his-
toriadora, sob todos os aspectos, está bem na dianteira"'.
do::-. hi::-,toriadrnT::-. para com LorL•n;:o \'allc1 L· grandl': dele procl'de a crudiç,1.o beneditina da con-
grq:;l1çc1o de Sciint-\1aur, L' a in\'L'nç.lo por J. \L1bil\on d,1 diplom,üica (cf. Blandinl' Bl1rrct-Kricgel,
f.'J /i::;toirl' i1 /'áge d1i::;.-.:.it111c, Paris, PUf, 1988). E--...,,1 busccl d,1 \'L'r,Kid,1de docun1L'I1tal é reencontrada
n,1::-, rcgr,1s ml'tudok)gicas de crítica intl'rna L' l'\.krna das fontes no ::-.l'cLilo XX com cl escoL1 meto-
dolt1giccl de \hH1od, Lc1nglois, Seignobo::-., L,n i::-.--.L', Fustl'l dL· Coulangt-.•s.
-L2 l lcn í(1n10'.-> cn11,1do L\)111 lJL'SCclrtl's un1,1 ~""')rinwira \TZ por oc,1si,lo do declínio l' dil n1orte da ar~
11/t'liltJrirll' ,lpl)::-. Cil)rd,HH) Bruno: cf. ~1cin-1,1, prin1l'ira parte, cap. 2, pp. Sl-82.
-l3 l·di,>lu original l'In fr,1nçl':-. dl' Étil'nlll' Dun1ont, I\Hi'.'i, Bo<:-,sangl'; trad. ingl., Londrl':->, Bc1ld\\·in,
!S2~. A fl''.'i}ll'itu dc~:-,l' trdUdo ck J. Bl'nth,1111. l"011':->liltl'-':-,l' R. Dulong (Ll' T1;111oi11 O(llft1irc, (lv ót.,
l'l'· \l'J-1~2) l' Cathl'rÍnl' AlllLHd, 1111//,,,lc\~ie /11,1,,i,111,· e/ tritique de /'11tilil11ri,111e, t. 1, H,·11//1,1111 l'I ,e,
/ll't'l ur--.:cur..-; r 1-; 11-!::: )~ 1, k'do:-, ~ck·cion,1d()..., e ,lf"I t'"cntado':-> por C,1lhL'ri ill' .-\ud,ird, Paris, PUF, ]999.
i\ MI:M(JRIA, A HIST(JRJ;\, O ES()UECIMJ:\:10
4..t. "Aqui, a investigação histórica, con10 tantas outras disciplinas do l'spírito, cru;:a t'tn seu can1inho
a estrada r0gia da tcori,1 d,1s prob,1bilidadl's" (Bloch, Apologic pour /'/1istoirc, ov cil., p. 1 l'i).
--15 Cario Cinzburg, "Traces. Racines d'un paradigml' indiciaire", in M_11t!1cs, E111b/i•111cs, Tmccs. Morp!,o-
losic et hisloirc, op. cil., pp. 139-180.
46 A compar,1ç<lo exige do c.1utor un1c1 L'rudição e un1c1 sutileza sen1 iguais: para uni artigo de umas
quarenta pcíginas, un1 ~1parc1to crítico de cento e trinta entradas.
IIISIORI.\ / Fl'l~TI \llll OC.I.\
-+7 Es::-.a ülti1n .1 caractl'rbtica aparl'nL1 ,1 inkligL'ncia indici'-íri,1, r/tpida L' ::-.util, J IIIL'ti:-- du'.:-, gn.'gl):-- ,1n(1-
li::-,,1d,1 en1 1\1. IJl,til'llllL' L' _1.-P Vl'rn .1nt, L1..':-s FZ.11-..1..'::- de /'i/ltcll(~c11u': l!1 111t'ti..:. de~ Cn.'t"S, P,1ris, l·L1111ma-
rion, 1974; 2a c>d., mi. "Ch,imps", 1971-s; ,·' L'd., llJíN
A \11 \lllRIA, A I/ISl(l/{11\, ll /Sl]l;FCIMJ N /'O
animal passou por ali e deixou seu rastro. É um indício. Mas, por extensão, o indício
pode ser considerado uma escrita na medida cm que a analogia da impressão adere
originariamente à evocação da marca da letra, para não falar da analogia, também ela
primitiva, entre cik1J11, grafia e pintura, evocada no início de nossa fenomenologia da
memória•". Além disso, a própria escrita é uma determinada grafia e, nesse aspecto,
uma espécie de indício; por outro lado, a grafologia trata da escrita, seu ductus, seu
trato, segundo o modo indiciário. Inversamente, nesse jogo de analogias, o indício
merece ser chamado testemunho não-escrito, à maneira de Marc Bloch. Mas essas
trocas entre indícios e testemunhos não devem impedir que se preserve sua diferença
de uso. Tudo considerado, o beneficiário da operação seria o conceito de documento,
soma dos indícios e dos testemunhos, cuja amplitude final alcança a amplitude inicial
do rastro•".
Resta o caso limite de certos testemunhos fundamentalmente orais, ainda que es-
critos na dor, cujo arquivamento é questionado, a ponto de suscitar uma verdadeira
crise do testemunho. Trata-se essencialmente dos testemunhos dos que se salvaram
dos campos de extermínio da Shoah, chamada de Holocausto no meio anglo-saxô-
nico. Haviam sido precedidos pelos dos sobreviventes da Primeira Guerra mundial,
mas somente eles levantaram os problemas de que falaremos. Renaud Dulong co-
locou-os no ponto crítico de sua obra Lc Té111oi11 ornlairc: "Témoigncr de l'intérieur
d'une vie témoignante", tal é o título sob o qual ele coloca uma obra como a de Primo
Levi, Lcs Naufmgés ct /cs Rcscnpés"'. Por que esse tipo de testemunho parece constituir
uma exceção dentro do processo historiográfico? Porque ele coloca um problema de
acolhimento ao qual o arquivamento não responde e parece até inapropriado, provi-
soriamente incongruente. Trata-se de experiências extremas, propriamente extraordi-
nárias - que abrem para si um difícil caminho ao encontro de capacidades limitadas,
ordinárias de recepção, de ouvintes educados para uma compreensão compartilhada.
Essa compreensão foi erigida sobre as bases de um senso da semelhança humana no
plano das situações, dos sentimentos, dos pensamentos, das ações. Ora, a experiên-
cia a ser transmitida é a de uma inumanidade sem comparação com a experiência
do homem ordinário. É nesse sentido que se trata de experiências extremas. Assim é
antecipado um problema que só encontrará sua plena expressão no fim do percurso
~l É o título da obra nrga11izad(1 por S .1ul Fril'dlandl'r, Prol 1 i115-: file Lirnit..-: t'.f Ri'prc~c11t11f1tn1. .\·i1:i-.111
and tJu., ''f'i1111/ So!11tio11", C,1n1bridgt..', !\1as:-,., L' Londres, I-lan·<nd Uni\ l'f'--ity Prcss, JC-)lJ2; rt.'l'd. 199h
(cf. adiante, cap. ~1-
:12 PrinH) Le,·i en,1ca a e--.-..e rL'SPL'ito ''a '-1ngú:-,tic1, in'.:->crita L'lll c,H.ia uni de nt):-,, dc1 'b,1lbürdia', do uni-
u.'rso dl'SL'rto t' ,·a;:io, L'~n1ag'-1do :-.ob o L'Spírito dl' Deus, ff1a..;, do qual o L''.:->pírito do homL'Tll l''.->U.
aU'.-,L'Jlte: ou ainda n,1o nc'l~cido, ou jci C\.tinbJ" {Lc-:. _\:1111(mg1;..; d fr..., I\e::.t'llf't;::::, pp. 81-84 dc1 rl'L'diçJp dl'
llJY-l; ,1pud R. Dulung, L,· Tt'111lli11 ot"11lt1m·, ''/'·ti/, ,1. 'l:i).
S3 R. AntelnlL', L'f.-,pt\·c Jrnrnai11c, Paris, Callin1ard, 1LJ~7.
~-l 1. A1nt'ry, l'ar-dclà ft, Lri111c ct !e clzáti111e11I. L~~ili Jl(l/1! ~ltrllll)/lfcr f'iu ... 11r111011t11blc, Pari~, Ack~ Sud,
Jl)LJ~.
56 Para u1na lcitur.:i nltlÍS justa de C. Langlois, C. V. Seignobos, L'/11froductio11 t1llX étudcs !tistoriqucs,
Paris, Haclwttt', 1898, cf. Antoine l'rost, "Seignobos revisit0", Vingtiéme Siécle, revue d'histoire,
no 43, jul.-set. 1994, pp.1()0-118.
'i7 Antoine Prost, Dou:c Lcço11s sur /'l,istoirc, Paris, Éd. du Spuil, col. "Points Histoire", !99ó. Paul La-
con1be, Oc /'/Jistoirc co11slífrn'c co11n11c -:;cicHcc, Paris, 1 [c1chl tte, 1994.
1
HISIORI\ / 1 l'[,fl \!(li (l(;[.\
cimento histórico. Essa irrupção da pergunta permite lançar um último olhar à no-
ção de documento elaborada mais acima a partir da noção de testemunho. Preso no
feixe das perguntas, o documento não p,íra de se distanciar do testemunho. Nada,
enquanto tal, é documento, mesmo que todo resíduo do passado seja potencialmente
rastro. Para o historiador, o documento não está simplesmente dado, como a idéia de
rastro deixado poderia sugerir. Ele é procurado e encontrado. Bem mais que isso, ele é
circunscrito, e nesse sentido constituído, instituído documento, pelo questionamento.
Para um historiador, tudo pode tornar-se documento, ob\·iamente, os cacos das es-
cavações arqueológicas e outros vestígios, mas, de modo mais mMcante, as informa-
ções tão diversas quanto tabelas e cun·as de preços, registros paroquiais, testamen-
tos, bancos de dados estatísticos, etc. Torna-se assim documento tudo o que pode ser
interrogado por um historiador com a idéia de nele encontrar uma informação sobre
o passado. Dentre os documentos, muitos, doravante, não s,10 mais testemunhos. As
séries de itens homogêneos de que falaremos no próximo capítulo não são mais se-
quer classificáveis corno o que Marc Bloch chamava de testemunhas a contragosto. A
mesma caracterizaçiio do documento pela interrogação que aí se aplica vale para urna
categoria de testemunhos não-escritos, os testemunhos orais gravados, dos quais a
micro-história e a história do tempo presente fazem um grande consumo. Seu papel é
considerável no conflito entre a memória dos sobreviventes e a história já escrita. Ora,
esses testemunhos orais só se constituem em documentos depois de gravados; eles
deixam então a esfera oral para entrar na da escrita, distanciando-se, assim, do papel
do testemunho na com·ersação comum. Pode-se dizer então que a memória está ar-
quivada, documentada. Seu objeto deixou de ser uma lembrança, no sentido próprio
da palavra, ou seja, algo retido numa relação de continuidade e de apropriação com
respeito a um presente de consciência.
Segunda pergunta: o que, nesse estágio da operação historiográfica, pode ser con-
siderado corno provado 7 A resposta é clara: um fato, fatos, suscetí\·eis de serem afirma-
dos em proposições singulares, discretas, que geralmente mencionam datas, lugares,
nomes próprios, \·erbos de ação ou de estado (estatinis). Aqui, urna confusão espreita:
a confusão entre fatos incontestes e acontecimentos sobrevindos. Uma epistemologia
\·igilante nos ad\·erte aqui contra a ilusão de crer que aquilo a que chamamos fato
coincide com aquilo que realmente se passou, ou até mesmo com a memória \'Í\·ida
que dele têm as testemunhas oculares, como se os fatos dormissem nos documentos
até que os historiadores dali os extraíssem. Essa ilusão, contra a qual luta\·a Henri
Marrou em De la com111issa11cc historiq11c"', sustentou durante muito tempo a com·icçc'io
de que o fato hist{,rico não é fundamentalmente diferente do fato empírico nas ciên-
cias experimentais da natureza. Ser,í tão necesscírio resistir, quando tratarmos mais
adiante da explicaçiio e da representação, ã tentaçiio de dissoh-er o fato histórico na
narração l' esta numa composição litercíria indistinguín·I da ficção, quanto é preciso
:=;s l lcnri-ln..''nL;l, rvLirrou, [)e ln (0111111i-;..,,1,1l-t' /iz:.,tt 1 rii/llC, Paris, Éd. du Seuil, lY~--1-; reed., col. "I\1inh",
llJ/~.
i\ \11 \t(lRli\, ;\ HIST(li,li\, ll J:S(.)L !Cl~HN 10
recusar a confusão inicial entre fato histórico e acontecimento real rememorado. O fato
não é o acontecimento, ele próprio devolvido à vida de uma consciência testemunha,
mas o conteúdo de um enunciado que visa a representá-lo. Nesse sentido, deveríamos
sempre escrever: o fato de que isto ou aquilo aconteceu. Assim compreendido, pode-
se dizer do fato que ele é construído pelo procedimento que o extrai de uma série de
documentos dos quais se pode dizer que, em troca, o estabelecem. Essa reciprocidade
entre a construção (pelo procedimento documental complexo) e o estabelecimento do
fato (com base no documento) exprime o estatuto epistemológico específico do fato
histórico. É esse caráter proposicional do fato histórico (no sentido de fato de que) que
rege a modalidade de verdade ou de falsidade ligada ao fato. Nesse nível, os termos
verdadeiro/falso podem ser tomados de maneira legítima no sentido popperiano do
refut,ível e do verificável. É verdadeiro ou é falso que em Auschwitz foram utilizadas
câmaras de g,ís para matar tantos judeus, poloneses, ciganos. É nesse nível que se
decide a refutação do negacionismo. Por isso era importante delimitar corretamente
esse nível. Com efeito, essa qualificação veritativa da "prova documental" não será en-
contrada nos níveis da explicação e da representação, nos quais o sentido popperiano
de verdade se tornará cada vez mais difícil de aplicar.
Haverá aqui objeções ao uso que os historiadores fazem da noção de acontecimen-
to, quer para exilá-la nas margens em razão de sua brevidade e de sua fugacidade, e
ainda mais de seu vínculo privilegiado com o nível político da vida social, quer para
saudar seu retorno. Seja ele tratado como suspeito ou como hóspede bem-vindo após
uma longa ausência, é na condição de referente último que o acontecimento pode fi-
gurar no discurso histórico. A pergunta à qual ele responde é esta: do que estamos fa-
lando quando dizemos que algo aconteceu? Não somente não recuso esse estatuto de
referente, como também advogo incansavelmente por ele ao longo de toda esta obra.
E é para preservar esse estatuto de contraparte do discurso histórico que distingo o
fato enquanto "a coisa dita", o "que" do discurso histórico, do acontecimento enquanto
"a coisa de que se fala", o "a propósito de que" é o discurso histórico. A esse respeito,
a asserção de um fato histórico marca a distância entre o dito (a coisa dita) e a visão
referencial que, segundo a expressão de Benveniste, reverte o discurso ao mundo. O
mundo, em história, é a vida dos homens do passado tal como ela foi. É disso que se
trata. E a primeira coisa que se diz disso, é que aconteceu. Tal como o dizemos? Eis
toda a questão. E ela nos acompanhará até o final do estágio da representação, onde
encontrará, se não sua resolução, ao menos sua formulação exata sob a rubrica da re-
presentância'". Até lá é preciso deixar indeterminada a questão da relação verdadeira
entre fato e acontecimento, e tolerar certa indiscriminação no emprego de um termo
pelo outro por parte dos melhores historiadores"".
cm quc o presente é vivido "como carrl'gado de um sentido já 'histórico'" (Nor,1, ilrt. cit., p. 210).
IIISlllR[\ / 11'1,l l\llll OCI-\
É esse peso do presente ~obre o "fa7er histL)ria" qul' pern1itl' din-..'r que "a ,1tu.1licL.1Lie, essa circu-
lação generali7ada da perCl'pção hist()rica, cu\n1ina nun1 fenôn1cno no\·o: o acontecimento" (,irt.
cit, p. 211). Seu ,urgimento pode att.' nwsmo Sl'r dat,1do: último tl'rço do século XIX. Trata-sl' do
"ad,Tnto r,ípido dessl' presente histórico" (iliid.). O que st' repro,·,i nos "positi\'istas" 0 u tl'rem
fl'ito do passado 1norto, deslig(.1do do prt_'~L'nh:' ,·i\·o, o c<1n1po fechado do conheciml'nto histt)rico.
C) fato dL· o tt>rn10 "aconteci,nL'nto" n.:lo dL'signar ,1 cois,1 acontecida é confirn1ado pt:>lo sin1pks
fato de SL' falar LLl "produção do ,1contt'cin1cnto" (,1rt. cit., p. 212) l' d,1s "n1L•L1n1orfose~ do c1con-
tecin1ento" (,1rt. cit., p. 216); trllta-sc do pequeno noticiúrio abocanhado pela n1ídia. Ao falar de
acontL•cirnentos capit,1is con10 a mortl' de l\lc10 T:..;t.'•-Tung, Nor,1 c~crL'U?: "l) fato de krcn1 ocorrido
o~ torn,1 ,1penas histl')rico~. Para lllll' hl1ja uni ,1contt:...•cin1ento, é preciso que sej<1 conhecido" (,irt.
cit., p. 212). A histl)ril1 L'ntjo concnrrl' con1 os lllL'ius dl' con1unicaç5.o, o cinen1,1, a litL'ratur(1 popular
L' todos os vetorl's da con1unicl1ç.l.o. 1\qui, algo do tl'stl'rnunho direto rl'torna com o gritn: l'll l'::-,Ln·a
lil. "A 111odernidadL' '.:-,L'L-n-.'t,1 o ,1contccin1L'llh..1, difl'rl'nten1t.'1°"lte dl1~ SlKÍt.'L·ic1de'.:-i tradicinnai:-, que ti-
nhan1, antes, tendl,ncia c1 r,lrl'Ícl/l'-io", pronuncia No1"c1 (art. cit., p. 220). Fn1111L'U \'Oc.1bul,írio, SL'ria
acontl'cin1ento o que !\Jorl1 ch,11n,1 dl' histl')rico, o tl'r ocorrido. E l'll colucaria do \,ido do fato aquilo
qul' ele chan1a aconteciml'nto t.' que Sl'U, ínculo íntin10 com "sud signific,1ç,lo intt.'ll'ctual" torn<1
"prt)xin10 dl' unia prin1eir,1 fornlll de el,1borc1t.Jln histúric<1" (:\Jord, art. cit., p. 216). "C) acontl'cinlL'Il-
to, L'>..cl,1ma t.'ll', é o 111,H,l\'ilhoso Ltlt-- sociedade:-- dL'n1ocr(ítica:-i" (art. cit., p. 217). /\o n1L'::-,1no tL'lllpo
'-iL' dl'nunci,1 ''o paradoxo do acontL·cimL'nto" (,irt. cit., p. 222): cun1 ::-,L'U :-,urgi1nento, a profunde.la
oculta do n.lo-,1contL'ci1nent ..1l \'l'nl ,l tona."() acnntccin1ento tt.'111 ,1 \ irtudt.' de atar L'lll fei'\t.':-> sig-
nificaçl)t.'<-. L'::-,pl1r::-,l1:-," \art. cit., p. 22'.7). "Cabl' ,10 hi::-,turi,1dur dc--.dtc1-lu::-, para ,·oltar d<1 L'\·idl nci,l do
1
acuntl'cimt:nto .lll L'\ idL nci,1n1t.'nÍl) do :-,Í::-,lL'lll,l. !'ui-:, <1 unicid(1dc, pcH,1 turn,ir-::-,l' intl'ligÍ\ el, postulc1
1
'.:-,L't11prL' a l'>..i'.:-:>tt,nci,1 de un1l1 -,L•ril' que <l no\·idade fa;1 surgir" (1{ 11d.). ~- l'ÍS u acontecimento - "n
acuntt.'cin1L'ntu contt'mporllnL'o" - l'ntregul' a contragostn J::-, di,11L,tica::-, fun1cnt,1da:-, pL'ln:-- ini111i-
go~ do ,Kontcciirientu, o::-, ad\·ogados dc1 L'--.trutur,1.
hl L 13L'Il\"L'nistl', /Jn 1fJ/i.'111c--: de li11g11istiq11c gcn,;n1!c, l\iri:-., Callimard, LOL' Di()gt>ne", ILJbh.
,\ ~IFM(ÍRI,\, ;\ HISIORI,\, O IS()L1 1 CIMFN 10
facho de luz e sombra projetado sobre toda essa empreitada pelo mito do Fcdro que
fala da invenção da escrita. Se a continuidade da passagem da memória à história
é garantida pelas noções de rastro e de testemunho, a descontinuidade ligada aos
efeitos de distanciamento que acabamos de instaurar culmina em uma situação de
crise geral no interior da qual vem situar-se a crise específica ligada ao testemunho
intempestivo dos que se salvaram dos campos de extermínio. Essa crise geral em-
presta à questão do p'1ar111ako11 que assombra este estudo uma coloração precisa. O
que a crítica histórica questiona, quanto à prova documental, é o caráter fiduciário
do testemunho espontâneo, ou seja, o movimento natural de depositar sua confian-
ça na palavra ouvida, na palavra de um outro. Abre-se, desse modo, uma verdadeira
crise. Uma crise da crença, que nos autoriza a considerar o conhecimento histórico
como uma escola da suspeita. Não é apenas a credulidade que é aqui colocada no
pelourinho, mas a confiabilidade em primeiro lugar do testemunho. Crise do teste-
munho: é a maneira rude que a história documental encontra para contribuir para
a cura da memória, e passar para o trabalho de rememoração e o trabalho de luto.
Mas será possível duvidar de tudo? Não é na medida cm que confiamos num certo
testemunho que podemos duvidar de outro? Uma crise geral do testemunho seria
suportável ou mesmo pensável? Pode a história romper todas as suas amarras com
a memória declarativa? O historiador responderia provavelmente que a história,
em sua totalidade, reforça o testemunho espontâneo pela crítica do testemunho,
ou seja, o confronto entre testemunhos discordantes, com o objetivo de estabelecer
uma narrativa provável, plausível. Certamente, mas permanece a pergunta: a prova
documental é mais remédio que veneno para as falhas constitutivas do testemunho?
Caberá à explicação e à representação trazer algum alívio a essa confusão, por meio
de um exercício medido da contestação e de um reforço da atestação" 2 •
62 Existen1 historiadorl's que soubl'ra1n l'ncontrcH nos arquivos un1 eco tLis vozes extintas, corno
Arktte Farge em Lc Col11 de /'arc/1iz,c, Paris, Éd, du S,•tiil, 1989, Diferentemente do arquivo judici,1I
que ".ipresenta uni n1undo fragn1entado", () arquivo dos historiadores ouve o eco "dessas queixas
derrisórias zi respeito de ;_1contt•cin1entos dL'rrisôrios, cn1 que uns discuh.•1n por unia fcrrzin1c•nta
roubzida e outros pela .:ígu<1 suja derran1c1da em suas roupas. Sinais de uma desordem n1ínin1a que
deixou I"c1stros, visto que deran1 lug(ir a fl'l<itúrios l' interrogatórios, PSSl'~ fatos du intin1idadt:.•, cn1
que '--lll,lSl' n<1d,1 L' dito, l'n1bora tantzis coiStl~ transpírcn1, sJo lugares dt:.' ill\'l'Stig.1çJo e pesquisa"
(p. 97). Esses rustros sJo, no SL'lltido fortt:.• dtlS palavras, "faL1s captadzis" (ibid.). Ocorre entJo quL' o
historit1dor n<lo é aqut:..'ll' que faz f<1lar os homens de outrora, n1as aqueil' que os deixa falar. EntJo,
o docunll'nto rcn1ctt.' ,10 rastro, e o ri.lstro ,10 <1contl'cin1cnto.
2
Explicação/Compreensão
Nota de orientação
/
quanto 11 cxphrnçiio/co111prce11siio que li auttJIIOIIIUI da história rclatic'l1111e11tc ,í IIICIIIO/'Ía
E se afimw 11u11s fortc111c11te 110 pll1110 cp1stc111tJlog1co. A bc111 da ,,crd11dc, essa 1w,,11 fase
da opel'l1çiio lzistoriogrdfirn já cstarn i111brirnda 11a precedente, 11ll 111edid11 e111 que 1u'ío luí
dorn111c11to sc111 pergunta, 11c111 pcrgu11ta sC1n proicto de explicaçiio. É c,n relllÇt'ítJ 11 cxplirnçiio
que tJ dorn111e11ttJ co11stitui proc'll. Entretanto, aquilo que li cxplirnçiio/co111prcc11s,'ío acrescc11t11
de ,w,,o rnz relllçt'ío ao tratl1111e11to dorn111e11tal dofi1to histórico di: respeito 110s 111odos de c11rn-
del1111c11to e11trefÍltos doC11111c11t11dos. Explirnr é, c111 gemi, responder ti pcrgu11ta "por que" por
111cio de Ulllll mriedlldc de uti/i:11çiies do co11ector "porque"'. Nesse aspecttJ, será t,'ío 11cccssiírio
deixar a/Jcrto o leque dessas utili:llçiics qua11to ,_; 11cccssârio 111a11ter a opcl'l1ç110 lzistoritJgrâfirn
1117 ,,f:i11lurnç11 dos proccdi111e11ttJs co1nu11s a todas as discipli1111s cic11tífi'rns, camcteri:11d11s pelo
reC11rso, sol, fornws dic,crsas, 11 processos de 11wdeli:11çi10 sulJ/11ctidtJs ao teste d11 ucnFrnçr'ío. É
assi111 que 111odelo e pro,'17 doC11111cntal et111zi11/z,1111 lado 11 l11dtJ. A 1nodeli:11ç,10 é li olm1 do i111/l-
gi1uírio científico, co11w c11fi1ti:llra CtJli11gu'ood, seguido por Max Wcl1cr e Rlly11w11d Aron, ao
tratar dll i111putaç,10 musal si11gulr11·ê. Esse i11111ginârio arrast11 o espírito p111'l1 lo11ge da estáa da
re1nc1110/'/1Çiio prirnda e p1íl1lirn, pllm tJ reino dos possíz,eis. Se o espírito dcue, todauia, pem11111e-
cer 1w dtJ111í11io da história sc111 dcsli:ar pam o daficç,'ío, esse i111aginârio dcuc dolm1r-se a u11u1
disciplina específica, 11 saber, u111 recorte 11propriado de seus o[iietos de refá1'11cia.
Esse recorte 1; regido por dois princípios li111itadores. Segundo o pri111ciro, os 11wdclos expli-
catfc,os z,igentes 1117 prâtirn lzistori11dol'l1 tê111 co1110 rnrnctcrístirn co11111111 reportar-se à realidllde
/111//illllil c11q1u111to _tí1to stJcial. Nesse aspecto, a l1istôrit1 social 11t'ío é u111 setor entre outros,
111as o po11to de uista t1 partir do qu11l a história esco/lze seu tcrrc110, o das ciê11cias stJciais. Ao
priuilcgi11r, junto co111 certa escola de lzistôri11 co11te111porâ11ca, co1110 ofinc1110s lllllis 11dia11tc, as
111odalid11dcs prrítirns da co11stituiçiio do ,,í11rn/o social e as pro/1lc1111ítirns dt' identidade II elas
ui11cu/11das, di11zi1111irc11ws a distância que se lzm,fn cavado, dum11/c 11 pri111cira 111ctadc do sérnlo
XX, entre a lzistcíria e nfi'1w111c110logia da ,1ç,10, 11111s 1111011 a/Jolirc11ws. A, i11tcmçOc., l111111t11111,, e
c111 gl.'ral as 111od11/id11dl.'s do intermlo, do inter-esse co1110 gosta de dizer H. Arl.'ndt, quc surgl.'111
l.'ntre os 11gcntcs e os p11cil.'11tcs do agir h1111111110, sô si.' prest11111 aos proccssos de 111odcliwção
)11.'los quais II história se i11scrl.'ue entre as cÚ'11ci11s sociais ao preço de 1111111 objetiuação 111ctodolô-
girn l.'quiualente a 11111 corte cpiste111olôgico c111 rclaçi'ío à 111c11uíria e à narrativa co111u111. A esse
respeito, história e fi'110111enologi11 da açi'ío fl'111 interesse e111 pernu111ecer distintas para maior
bemfício de seu diálogo.
O segundo princípio li111it11dor diz respl.'ito 110 recorte da história 110 ca111po das citncias
sociais. É pela i111portância qul.' 11 história atribui à 11111d1111ç11 e às diferenças 011 separaçôl.'s qul.'
11fet11111 as m11da11ç11s que ela se distingue das outras cih1ci11s sociais e, pri11cipal111e11te, da so-
ciologi11. Esse traço disti11ti1'0 é co11111111 11 todos os comparti111e11tos d11 história: rrnlidade eco-
n11111irn,_fi'11ômenos sociais 110 Sl.'lltido li11Iit11dor do termo, prâtirns e represl.'11t11çi'ies. Esse traço
co111111n define deform11 limitadora o refi're11tc do disrnrso histórico 110 seio do nfi're11te co111u111
11 todas as ci?11ci11s sociais. Ora, 11111da11ç11s e diferenças 011 dcsco111p11ssos 11as 1nud1111ças co111-
port11111 u11111 co110t11çi10 te111poml 1111mifcsta. Por isso scfalarâ de lo11g11 duração, de curto prazo,
de acontcci111e11to quase pontual. O disrnrso da história podcri11 l.'ntào se co111pamr 11ov11111e11tr
à ft'110111e11ologi11 da 111e111óri11. Cert11111e11tc. Todauia, o uornbulário do historiador que constrói
suas hiemrqui11s de dumçiies, como 110 tempo de Labrousse e Braudel, ou que as dispers11, co1110
tc111os ft'ito desdl.' entiío, 1u10 é o do jl.'110111e11ôlogo qul.' se refere à expcrú•11ci11 11im da duração,
co111ofoi o rnso 11a priml.'im p11rte desta obra. Essas duraçiies s110 construídas. Ml.'s1110 q111111do
a história se esforça por emlmrallmr sua orde111 de prioridade, L' se111prc em termos de dumç{'ícs
111últiplas, e, cue11t1111/n1entc, e111 rmçi'ío co11tm a rigidl.'z dl.' arquiteturas de dumçiies be111 empi-
llli1l111s de11111is, que o historiador 11wd11/a o 11iuil10 temporal. E111bora a 111e111ôri11 cxperi111entc 11
profundidade mriáuel do tempo e ordene suas lemlmmças 111n11s e111 rclaç110 às outras, esboçando
dessa 11m11eim algo como 1//1111 hierarquia entre as le111bm11ças, ainda assi111 ela 11110 ftm11a es-
po11t1111eamente II idéia de duraç{'íes 111lÍltiplas. Esta continua sendo ap1111ágio do que Halbwachs
deno111ina "111e111ôria histórirn", co11ccito 110 qual rctom11rc1110s no 11101nc11to oportuno. A 111ani-
p11laç110 dessa pluralidade de duraçiies pelo historiador é co11u11u1mil1 por u111a correlação l.'ntre
trêsfatorrs: 1111at11rew espccífirn da 1111!l1m1ça considerada -eco11ô11Iica, i11stit11cion11I, polítirn,
cultural 011 outra -, a esrnla 1111 qual esta é apreendida, descrita I.' explirnda e, fi1111l111e11tc, o
rit1110 temporal apropriado II essa csrnla. Por isso, o priuilégio que Labrousse, e Bmudel e, de-
pois deles, os historiadores da escola dos Annales co11cedera111 aos fe11ômc11os cco11ô111icos 011
geográficos teue por corolário a escol/117 da esrn/a 1n11croeco11ô11Iirn e II d11 longa d1m1ç110 e111 tcr-
111os de rit1110 tc111poral. Essa corrclaç110 é o tmço epistc11wlógico mais 111arca11tc do tratamento
pela história da di111ensi'ío te111poml da açi'ío social. Esse traço fiJi ainda 11111is refi,rçado por 11111a
correlaçáo s11ple111rnt11r entre II natureza específirn dofi.'nÔ111eno social to11111do co1110 referente e
o tipo de dorn111e11to priuilegi11do. O que 11 longa duração l.'stmtum 110 plano te111poml si'ío, por
prioridade, séries de f11tos rcpctíul.'is, mais que aco11tcci111cntos singulares suscetíveis de serem
re111e1norados de 11111neira distintiva; nessas condiçiies, eles esti'ío sujcitm; à quantificação r ao
tratamento 111ate11uítico. Com II liistôria serial e 11 história q111111tit11tiu11 1, dista11ci111110-11os tanto
3 Pierre Ch,rnnu, 1listoirc qua11/italiuc. 1/istoirc sáic//c, Paris, i\rm,l!ld Colin, col. "C,1hiers des i\nna-
ks", 1978.
IIISl(lRI \ / 11'1,1 l\llll lll,IA
q1111nto possí1 1e/ dil duraçiio segundo Bergson 011 B11c/1c/11rd. btimws e1n u111 tcn1po construído,
_feito de duraçôcs cstrutumdils e qu11ntifirnd11s. É 11ind11 c1n considcraç,io II esslls 11ud11cios11s ope-
raçiJes de cstrutumçiio, que 11wrc11mn1 os n1e11dos do sérnlo XX, que 11lzistôri1111111i,; recente das
práticas e das represe11t11,-()eS e/11/lorou 11111 trat11n1e11to n111is qu11/it11ti, 0 d11s duraçr1cs e, 11ssilll,
1
dos usos do "porq11e ... " que seruc de enil>re11gen1 p11m 11s respostas dadas à perg1111t11 "por i)llt;7"_
É 11q11i que se de, 1e insistir 1u1 mried11de dos tipos de cxplirnçi1o en1 liistári11". A esse respeito,
pode-se di:::er colll j11stiç11 que 11110 existe e1n /1istôri11 11111 modo prh ilegi11do de explicaçao". Essa
1
t; 11/lla rnmctcrístic11 que 11 lzistôri11 di, ide conz 11 teori11 da 11ç11o, ,w llledida en1 que o rcfáente
1
penzíltilllo do disrnrso 1,istôrico siio intemçr1es s11scetíucis de engendrar 11/gulll uínrnlo soci11!.
Por conseguinte, 1u1o t; surpreendente que 11 liistári11 exi/Ja todo o leq11e de !llodos de explicaçi1o
suscetíueis de tom11r intcligíueis as interaçt1es /111nu111as. De 11111 lado, as sáies dcfiitos repetí-
ueis d11 lzistária q1u111tit11tim prcst11!ll-se IÍ análise musal e ao cstal1e/ecin1ento de rcg11/arid11dcs
que 11/raen1 11 idéi11 de musa, no sentido de cficir'11ci11, en1 direçi1o 11 de lcgolidlldc, scg11ndo o
modelo da relaçifo "se .. entiio ... ". De outro, os con1port1m1entos dos ogentes soci11is, rcspo11-
dcndo à press11o das 110nn1b sociais por di,•crs11s nw11obms de negocioçi1o, de j11sti(irnçiio 011 de
denlÍncia, p1n11n1 o iiú;i11 de rn11s11 para o /11do do idéi11 de explic11ç11o por m:r1es''. M11s esses si1o
casos lilllitcs. A grande nu1ss11 dos tra/1111/ws /Iistóricos descm,olue-se n11nu1 regiiio intern1ediâria
onde se altcn1111n e se n1n1/Ji1u1111, dcft1rnu1 às , e:es aleotôria, 11101fo_,; de exp!irnçifo dísp11res. É
1
pam dar cont11 dessa rnriedadc da explirnçiio /iistrírirn que inti/11/ci est11 scçi1o "Explirnçiio/
colllprccns110". Nesse aspecto, pode!llos co11siderar s11pemd11 a q11erc/11 suscit11d11 110 infrio do
sérnlo XX e,n tomo do_,; tcrn1os, tidos con10 1111togtÍnicos, explirnçi1o e co1nprce11s11o. 1VI11x \Ve-
l>er nwstmm-se 111uilo paspirnz 110 e/oboraçifo dos co11ccitos diretores de sua tcori11 social oo
co!lll1in11r, desde o início, explirnçi1o e co111pree11s11o 0 • Mais rccente111e11/e, H. uo11 \1\/riglzt, e111
Explanation and Undcrstanding, co11strni11 pam a lzistôri11 11111 11wdelo 111isto de nplicaçiio
q11cfí1: se 11/tem11re111 seg!lle11tos rn11s11is ( ,w sentido de regu/11ridade legal! e teleológicos (no seu-
--1- Frarn.,;ois Do'.:--Sl', en1 L'Híst(iire, op. cit., Ll)]oca u --.egundo pL·rcur:-,u dl' ~ua tra,·L's::-,.id d,1 hi::--kiric1 ::-,ub o
..;,igno da "in1putl1çll.o causal" (pp . .lll-6-l). f s--,a no, <l prohlen1,1tica OHllL'Ç,l con1 Políbio L' .'->lia "busc,1
dl' caus,1\id,1dL,". EL1 pass,1 por J. Bodin, in,·L•11tor d,1 "ordL•n1 d,1 prob,1bilid,1de". Ela atra,e..,._...,a a
L'plKd das LuZL'~ L' <l lcant,-<l uni ,ipicL' 01111 F Br.1udL'I e .:1 L'-'"'Cl)l,1 dt):-, .A111111lcs, ,1ntl's de sl'r d,1d,1, Cl)tll
,1 considL'raçJ.o da narrati\·,1, a '\·irada intl'rprL't,1ti,·,1" qul' condu?ir,í ,1n linlicH da krn_'ÍL.1 problt.'-
miltic.i, ,1 da n,irrati, ,1.
7 Paul Vt:ynl', C()///1//t'llt (111 i;L rit /'/ú~toin·, I\1ri~, Éd. du Sl'uil, 1971 . .-\ntuinl' Prot-.l, Dt111:c L'i,,-(11z-, ~111
f'fli::-toirc, op. ât.
h Fn1 ·fr111po e ll/1/T11ti-i:·11, l'U ha\"ic1 con~,1,~radn o l'~~l'nci,1\ de 111inha~ ,1n<llisl'<:, ,1 l'SSl' confronto entre
e,plicaçJn c1u~,11 e L'\.plicaçJo por ral'.l-)L'S. Cf. P RiLll'llr, Fc111p~ d Rt;ât, t. I, op. cit., prin1l'ira ~"l(Htc,
ccip. 2, p. 217 L' sq:;.
tido de 111otiuaçiics s11scctí1 1eis de serem racion11/izad11s)8. A esse respeito, 11 correlação evocada
u111 pouco mais aci111a entre o tipo dcfato social considerado determinante, a escala de descrição
e de leitura e o ritmo temporal pode proporcionar um bo111 guia 1111 exploração dos 111odclos dife-
renciados de explicação quanto à sua relação co11111 comprel'11são. Talvez o leitor fique surpreso
110 não ver surgir nesse contexto 11 noção de interpretação. Níio figuram ela ao lado da noção de
compreensão, 1111 grande época da querela Vcrstehen-crklaren? A interpretação não é co11si-
derad11 por Diltl1e111111111 forma especial de compreensão ligada à escrita e c111 geral ao fenômeno
da inscriçí'io? Longe de recusar a importância da noção de interpretação, proponho dar-file 11111
campo de aplirnção 11111ito 11111is vasto do que lhe atribuía Diltlzey; cm minha opinião, existe in-
terpretaçi1o nos lrt~s níveis do discurso histórico: o docu111e11tal, o da explirnçí'io/comprcensão e o
da rcpresentaçí'io literária do passado. Nesse sentido, 11 interpretaçí'io é 111n traço da investigação
da verdade !'Ili /iistôria que perpassa os /rés níueis: 11 interprctaçí'io é u111 componente da própria
i11te11çí'io de verdade de todas as operaçiies historiográficas. Trataremos disso 1111 terceira parte
desta obra.
Última instrução léxica e semântica à e11tmd11 deste capítulo; mais que com o siléncio so-
bre o tema da interpretaçíio 110 fimbito dessa pesquisa sobre a explicaçí'to/co111pree11são, o leitor
poderá espantar-se com o silêncio 11 respeito da dimensão narrativa do discurso histórico. Adiei
propositadamente seu ex11111e transferindo-o ao fi111bito da terceira operação historiográfica, a
representação literária do passado, à qual se atribuirá u11111 i111portfi11ci11 igual à das duas outras
opemç6es. Isso 111ostm que níio estou renegando nenhum dos resultados da discussíio conduzida
ao longo dos tn1s volu111es de Tempo e narrativa. Mas, ao reclassificar a narratividade da
forma como faremos, quero pôr fi111 a li/li mal-entendido suscitado pelos defensores da escola
narratiuista e 11ss11111ido por seus detratores, mal-entendido segundo o qual o ato config11m11teY
que caracteriza 11 co111posiçiio em trama constituiria enquanto tal 1111111 alternativa à explicaçíio
pri11cipal111e11te causal. A justa causa de um Louis O. Mink, que continuo respeitando, parece-
me co111pro111etida pela imposição dessa deploráucl altcmativa. Parece-me que a função cogniti-
va da narratividade scrâ, 1wfim das contas, mais bem reconhecida se estiver ligada à fase repre-
sentativa do passado do discurso histórico. Compreender como o ato que configura a composição
da tra111a se articula segundo os modos de cxplicaçiio/co111preensiio 11 serviço da representação
do passado será então 11111 proble11111. Na 111edid11 e111 que 11 reprcsentaçíio 11110 é uma cópia, uma
mim1'sis passim, a n11rratiuid11dc 1u"to sofrerá qualquer diminutio capitis por ser associada ao
11101ne11to prupri11111cnte literário da operaçíio historiográfica.
Este capítulo t; co11stl'llído sobre 1111u1 hipótese de traba/110 partirnlar. l'ropo11/w s11lJ/11etcr
o tipo de i11tcligiliilidade próprio da explirnçdo/co111pree11siio 11 pnn'a de 1111u1 classe de o/iietos
da operaçiio lzistoriográfirn, 11 saber, as represe11taçiies. O capítulo piie, 11ssi111, lado a lado 11111
111l'lodo e 11111 objeto. A /'/7:110 disso t' 11 seguinte: 11 1wçiio de represe11taçiio e sua rim polissc111i11
11traz,cssa111 esta obm de 11111 illdo 11 outro. Ela.foi alçada ao pri111eiro plano das perplexidades da
f1'110111e110/ogia da 111e111ôria desde 11 pro/1le1111ítirn grega da eikôn; e l'ia rcssurginí 110 prôxi1110
capítulo 110 contexto da própria opemç110 hist()riognífirn, so/i atíl/'11111 da represe11t11ç110 da escrita
d() pass11do (a escrita da história 110 se11tid() li111itado do ter,11()). Desse 111odo, a 11oç11() de rcprc-
_se11 t11çaofi'g11mní duns ,•c:es 1111 parte episte1110/iígirn do liuro: 1111 co11diç,10 de oliiet() pric•ilegiado
da e.,plirnç110/co111pree11s110, e 1w co11text() da opemçào histori()gnífirn. L/111 co11.fi·o11to será pro-
posto, 11ofi1111l do capítulo, entre os dois usos que nele s11ofeit()s d11 1wç110 de rcpresC11taç11().
No capítulo que co111eç1111q11i, 11 represe11taç110-()/ijeto dese11111t'11/111, ,1ssi111, o papel de rcfáe11-
tc priz,ilegiado, a() l11do do ec()11Ô111ico, d() social, do político; esse rcfáe11te t' recortado /1() rn111po
111111s 11111plo da 1111uta11ç11 social, co11sider,1d11 co1110 o ol1jcto totnl do discurso /zistôrico. Ess,1 t' 11
partcfi1111l do rnpítulo.
Antes de 11lrn11ç11r esse estágio da disrnssào, as seguintes etapns scriio percorridns.
Na pri111cim scç110, propiic-,;e 11111 rápido ex11111c do.s 1110111e11tos .sig11ifirntiuos da historiogm-
_fiafm11ccs11 110s dois pri111eiros terços do sérn/o XX, até o período cha11111do de crise pelos oliser-
,•11dorcs, historiadores 011 11110. Nesse quadro cro11olôgico, estl'llt11mdo esse11cial111rnte pela gnrn-
de m•e11t11m da escolafrn11ces11 dos Annales e do11zi11ado pelo gm11de z•11lto de Fcnu111d Bm11del,
desem•olz,ere111os 110 111es11w te111po as questiies de 111étodo e a pro11wç11() do olijcto aqui pricile-
gi11do, p11m o q1111l, d11m11te 11111ito te111po, se resen•ou o tem10 "111e11t11/id11des", i11trod11:.:ido n11
sociol()gi11 por L11cie11 Lfry-Bmhl co111 o 1l'n110 "111e11talidmtc pri111iti,•11" !seç110 I, "J\ pr()IIIOÇâO
da lzisttÍl'ia das 111e11t11lidadcs"J.
Co11d11zire11ws essa pesquisa dupla alt; o po11 /() t'III que à crise do 111l'lodo zicio se 11crescc11t11r
1111111 crise da hisltíria das 111e11t11lid11des, 11 qual 11110 luruia cessado de ser uíti11111 de s1111 orige111
disrntÍi•el 1111 sociologia da "111c11talidade pri111itiz,a".
l11tc1-ru1111h'l'l'IIWS essa dupla pesquisa pam dar 11 p11lm•m 11 três a11tores - Fo11nllllt, Cer-
tea11, Elias - que apresento cu1110 os "111estrcs de rigor" rnjo socorr() solicito p11m rnracteri:ar
de 1111rneim 1101'1111 história das 111c11talid11des co1110 1111111 1101'11 n/,ord11gc111 dof1'11ci111e11() total e 110
111es11w tempo co1110 11111 11m•o objeto da historiografia. Co111 ess11s 11unwgmfias, lu1/iit1111re11ws o
leitor a associar 11 11oç110 de 111e11/11lid11des iÍ de represcntaçiics, pam prepamr o 1110111e11to e111 que
esta 1ílti111a s11bstit11iní dcfi'11itiua111e11te a pri111cim, graças n s11t1 co11j1111çiio co111 as 11oçiies de
aç110 e de agentes de açiies (seÇ110 II, "So/Jrc alguns 111cstrcs de rig()r: Mic/1c/ Fo11co11lt. Miclzel
de Certca11, Norliert Elias").
Essa s11bstit11iç110 será preparada por 11111 longo interlúdio dcdirndo à 11oç1fo de esn1l,1: se
111fo z•c1110s as 111es11111s coisas e111 111icro-histtíri11, essa mricdade de história ilustmda pelas mi-
crostorie italianas 110s pem1itc ,,ariar 11 a/1()rdagem d11s 111e11/alid11dcs e d11s represe11taçties e111
f1111ç110 dos "jogos de csrnla": a 11111cro-histôri11 está /iio atenta ao peso das restriçc'ies estr11t11mis
exercid11s sobre a lo11g11 d11mç110, q11,rnto o estâ 11 111icro-hi.,tôria iÍ i11iciatiu11 e ii cap11cid11de de
11egoci11ç110 dos agentes históricos e111 sit11açt1,'s de i11certc:.:11.
f'11ssarc111os, assim, da idt'ia de 111c11talid11des 1i de represe11tnçües 1111 esteira da 11oç110 de rn-
riaçcies de esrnlas e 110 â111/,ito de 1111111 110,•11 a/Jordage111 glolJ11l da história das sociedades, nq11el11
proposta por Bcmard Lepctit cm Les Formes de l'expérience. Nesta obra, 11 hzfasc remi 1111s
prátirns sociais e nas rcpresentaçiies integradas II essas práticas, e as rcprcsentaçôcs aparecem
co1110 o co111po11e11te si111bâ/ico 1111 cstruturaç/10 do vínculo social e das identidades que csff' pôe
e111 jogo. Deter-nos-emos particu/amzcnte 1w conexiio entre II operatividade das reprcsentaçiies
e os difcrc11tcs tipos de csrnlas aplicáveis aos fcnô111enos sociais: csrnla de lficácia e de coerção,
esrnla de grandcw na esti111a pzíblirn, escala das duraçt1es rnrnixadas (scçíio Ili, "Variaçôcs de
escalas").
E11cermre111os com u11111 nota crítirn 1111 qual tiraremos partido da polissemia do termo "re-
presentaçiio" para justificar o dcsdo/Jm111cnto da reprrscntação-ohjcto e da representação-ope-
ração, do capítulo srguintc. O grande vulto de Louis Marin se perfilará pela primeira vez nas
zílti111as páginas deste capítulo em que as aventuras da explirnçiio/co1nprec11siio não teriio cessa-
do de ser cscandidas pela aventura da história das mentalidades transfor111ada em história das
rcprescntaçDcs (seçiío IV, "Da idéia de mentalidade à dr representação").
t::::::=/
I. A promoção da história
das mentalidades
Na imensa literatura que trata da explicação em história, escolhi aquilo que diz
respeito à emergência e em seguida à consolidação e à renovação do que foi chamado
sucessivamente, ou de forma alternativa, história cultural, história das mentalidades,
e finalmente, história das representações. Explicarei mais adiante por que, após refle-
tir, adotei esta última denominação. Nesta seção, proponho comentar a escolha dessa
trajetória, na impossibilidade de justificá-la imediatamente. A noção de mentalidade
representa, com efeito, uma noção particularmente vulnerável à crítica, em razão de
sua falta de clareza e de precisão ou, se formos caridosos, de sua sobredeterminação.
As razões pelas quais ela se impôs aos historiadores são por isso tanto mais dignas de
interesse.
No que me diz respeito, essas razões são as seguintes.
Mantendo-me inicialmente o mais próximo possível do ofício de historiador, o que
me interessou foi a promoção progressiva de um desses novos "objetos" aos quais a
história mais recente atribui grande importância, a ponto de se tornar o que chamo
mais acima de objeto pertinente, em outras palavras, objeto de referência próxima para
todo o discurso que a ele se refere. Ora, essa promoção não ocorre sem uma redistri-
buição dos valores de importância'", dos graus de pertinência, que afetam a posição
dos fenômenos econômicos, sociais, políticos, na escala de importância e, finalmente,
na escala adotada pelo olhar histórico em termos de macro- ou micro-história. Esse
10 iustifico essa expressão na quarta seção do capítulo I da terceiril parte (pp. 347-356) dedicado~
relaçJo entre verdade e interpretação en1 história.
111~1()1!1 \ / 1 f'fsl 1 \1()1 UCI \
11 A primei rei adn:.'rtl'nciêl ha\·ic1 sido dadl1 t..'111 l'-J()l por F. Sin1iand cn1 Sl'll Lin1oso artiµp "\ll,thode
hi.'->torique et .'->Cienn_' '.'.-iociale", l\cu11c lÍl' ~_1111t/11._·,~t' hi":-.torll1w', 1Y03, n.>to1nado nos Annall'.'->, llJhO; o ah·o
l'ra a obrc1 de Seignobos: La iV11.'tliodc !ii~toriquc 11ppliqw;c 1111-r ~(Íi'll(t'" '>t1ci11/c~ (1901). A hi.'->tl,)ri(1 his-
torizl1nte, objeto de todos os sl1rcasn10.'->, ITIL'rt.'cia, cintes, t-.L'r chc1n1ad(1 dL' l'scola n1ctódica, .'-,l'gundo
o desL'ͺ de CabriL'l \fonod, fundador da Rct.'llt' lii:::;torÍl/lll', con1 a qual o.<-, r\nnales con1petL>n1. U1n
julgan1ento n1ais L'qu.ínime, con10 foi dito n1ais l1ci1na, pode ser lido L'111 Antoine Prost, "Seignobos
re,·isité", .irt. cit. (n·r ,icima, p. 188, n. 5h).
12 L. Fl'lwrl', Co111/,t7/s /''''" /'11isloirc, l\uis, Arrn,rnd Colin, llJ53.
13 A. l3urguit,,T, "Histoirl' d'unL' hi.'->toire: la J1dÍ.<-,Sl1ncL' eles A111111/c~"; _I. Re\·el: "HistoirL' L't -.cience
sociale, les paradignll'S dl'S /11111/l/cs". A11111l!c.s, no 11, 197'!, "Les A11111l!c,, IY29-197LJ", p. U-l-l l' Sl'g.
1-l L. Felwre, L/11 dcsti11. i\1. L11//,cr, Paris, 1928; Cl'l'd., PUF, llJb8; !.e l'ro/,/i'111cdc /'i11cro11a11c,·il11 X\'/ sicdc:
la rcligio11 de i,llh·lllis, l'aris, Albin Miclwl, ILJ-\2.
l~ Cf. adiante, segunLt1 parte, cap.1.
A MFM(lRIA, A HISIORIA, () l:S(JUFCl\11 '\ lll
Ora, Marc Bloch, em Lcs Rois tlu111111aturgcs (1924) e depois em La Société Jéodalc
(1939, 1940, 1948, 1967, 1968), havia encontrado um problema comparável: como o
rumor, a falsa notícia da capacidade dos reis de curar os escrofulosos pôde propa-
gar-se e se impor, se não com a ajuda de uma devoção quase religiosa com respeito à
realeza? É preciso supor, evitando todo desvio anacrônico, a força de uma estrutura
mental específica, a "mentalidade feudal". Ao contrário da história das idéias, desar-
raigada do solo social, a história deve dar lugar a um tratamento deliberadamente
histórico das "maneiras de sentir e de pensar". Importam as práticas coletivas, simbó-
licas, as representaçües mentais, despercebidas, dos diversos grupos sociais, a ponto
de Febvre poder alarmar-se com o desaparecimento do indivíduo na abordagem do
problema por Marc Bloch.
Entre sociedade e indivíduo, o jogo daquilo que Norbert Elias chama civilização não
é avaliado com a mesma medida pelos dois fundadores da escola. A marca de Durkheim
é mais profunda em Bloch, a atenção às aspiraçües à individualidade das pessoas do
Renascimento, em Febvre"'. Mas o que os une é, de um lado, a certeza de que os fatos
de civilização se destacam contra um fundo de história social, de outro, a atenção às
relações de interdependência entre esferas de atividade de uma sociedade, atenção
que dispensa de encerrar-se no impasse das relaçôes entre infra- e superestrutura à
maneira marxista. E acima de tudo, é a confiança no poder federativo da história em
relação às ciências sociais vizinhas: sociologia, etnologia, psicologia, estudos literá-
rios, lingüística. "O homem médio segundo os A111111/cs", como o denomina François
Dosse 17, esse homem social, não é o homem eterno, mas uma figura historicamente
datada do antropocentrismo, do humanismo herdado das Luzes, aquele mesmo que
M. Foucault fustigará. Mas, independentemente das objeções que se possam opor
a essa visão do mundo, que depende da interpretação inseparável da verdade em
história 1s, podemos legitimamente indagar-nos, nessa etapa de nosso discurso, o que
são as articulações internas dessas estruturas mentais em curso de evolução, e, sobre-
tudo como a pressão social que elas exercem sobre os agentes sociais é recebida ou
sofrida. O determinismo sociologizante ou psicologizante dos A111111/cs na época de
sua dominação só será efetivamente questionado quando a história, ao voltar-se
sobre si mesma, tiver problematizado a dialética entre os níveis superior e inferior
das sociedades na questão do exercício do poder.
Após a Primeira Guerra mundial, a escola dos A1111a/cs (e sua revista, daí em diante
denominada Éco110111ics, sociétés, ciuilis11tio11s) é famosa por sua preferência pela econo-
mia como referente privilegiado. Essa pertinência primeira condiz com a ferramenta
da quantificação aplicada a fatos repetíveis, a séries, tratadas estatisticamente, com a
cumplicidade do computador. O humanismo da primeira geração dos A111111/rs parece
O 202 O
HISIORI \ / Ll'ISII \1()1 OCI,\
]'! Cl,wde LL'\'i-Strauss, "Histoirl' et ethnllillgiL'", P.e,•11,' de 111da)'l111siq11e l'I d,, 111,,mlc, 1Y-t9, retomadll
en1 /\11tlzropologic str11ctun!lc, Paris, P\on, 197.3, a qucn1 Fcrn,1nd Braudel responde l'lll "1 listoirc
l't sciencc sociale. La longue dur6e", A111rn/e-;, 10 dl·c. 1958, pp. 72~-7:::;1, retonllldo l'lll Éo·its sur
/'/Jistoire, Paris, Flammarion, 1969, p, 70.
20 Ex pus em dl'talhl' ,1 L'pistemulogia util i?,1da PL'ia llbr,1 ch,n·l' dl' Braudl'I, L,1 Mt'dit,,,,,,m1t'e l't Ít' ,\!onde
1n,'dítcrmn,'cn ti !'t'J'O')llC de l'/Jilip)'t' li, op. t'lt., ,•m fr1111's e/ Rhít, t. 1, ,,p. ,·it,, pp, 182-llJll. DL•diquei-nw,
naquela oportunidade, a u1n<1 rcconstn1~\lo, que eu hoje ch,1n1aria narrativi~ta, da obra, nl1 qual
me agrad<1 con~ider<ir o próprio ML•ditL'rr,l.nt.'n con10 o quclSt.'-pcr~onagcn1 ck uni grande enredo
gcopol ítico.
A MJ:M(lRIA, A HISIÚRIA, U FS(_)UJ:Cl~ll:\TO
22 Robert Mc1ndrou, l11tn1d11dio11 à lo Frt111(l' 111ndcr11c. Es~ai de p~_tt(l!ologic Jii-::;toriquc (ILJhl), rt't'd., l\1ris,
t\lbin Michel, ]CJY8. Llc la culturc popul,,ir,· ,·11 Fn111cc 1111, XVII· e/ X\'111 <ii'dcs. La Hi/,/iolili'qu,· /1/c11c
de Troycs (196--1-), rt'L'LL, Pt1ri~, l111<1go, 19YY. A111gi~trat::- ct Sorcit'r:- c11 Fn111t't' 1111 XVII' _..;it\'/c. Ll11e 111111!_1;,.;;L'
de ps11dwlosic l1i,t,iriq11c, Paris, Éd. du Sl uil, 1989. 1
pensamento" (M11tlzc et Pc11séc c/1cz /cs Grccs, p. 5). Vinte anos depois, o autor reconhece
seu parentesco com a análise estrutural, aplicada a outros mitos ou conjuntos míticos
gregos por vários estudiosos, dentre eles Marcel Détiennc com quem ele publica Les
Ruscs de /'i11tcl!igc11ce: la 111ctis dcs Grccs (Flammarion, 1974). A obra publicada em con-
junto com Pierre Vidal-Naquet, Mytlzc et Tragédic en Grécc a11cic1111c (Maspero, 1972),
traz incontestavelmente a mesma marca. É notável que Jean-Pierre Vcrnant não rompa
com o humanismo da primeira geração dos A1111a/cs. O que lhe importa, em última
análise, é a jornada sinuosa que conduz do mito à razão. Como em Myt'1c ct Tragédic,
trata-se de mostrar "como se desenham, através da tragédia antiga do século V, os pri-
meiros esboços, ainda hesitantes, do homem-agente, mestre de seus atos e responsável
por eles, detentor de uma vontade" (Myt/1c ct Pc11séc c/1cz lcs Grccs, p. 7). O autor insiste:
"Do mito à razão: tais eram os dois pólos entre os quais, em uma visão panorâmica, pa-
recia ter-se decidido, na conclusão deste livro, o destino do pensamento grego" (i/Jid.),
sem que a especificidade, e até mesmo a estranheza dessa forma de mentalidade seja
ignorada, como o mostra a investigação sobre "os avatares dessa forma particular,
tipicamente grega, de inteligência retorcida, feita de estratagemas, de astúcia, de es-
perteza, de logro e de expedientes de toda espécie", a mctis dos gregos, a qual "não
depende inteiramente do mito, nem completamente da razão" (ibid.).
Contudo, a vertente principal da história das mentalidades, no interior da escola
dos A1111a!cs, devia recair cm uma defesa mais incerta de seu direito de existir já a partir
da segunda geração, a de Labrousse e Braudel, e ainda mais na época dita da "nova
história"; de um lado, apresenta-se o espetáculo de uma perda de referencial, que le-
vou a se falar de história estilhaçada, e até mesmo de história em migalhas, de outro
lado, graças até mesmo a essa dispersão, o de uma certa calmaria; é assim que a histó-
ria das mentalidades aparece, com tudo que lhe é devido, entre os "novos objetos" da
"nova história", no tomo III da obra coletiva patrocinada por Jacques Le Goff e Pierre
Nora, Fairc de /''1istoirc. Ao lado dos "novos problemas" (primeira parte) e das "novas
abordagens" (segunda parte), a história das mentalidades emancipa-se no momento
em que o projeto de história total se esfuma. Da antiga tutela da história econômica,
alguns conservaram um entusiasmo pela longa duração e pelo estudo quantitativo,
ao preço da aniquilação da figura do homem do humanismo que ainda era celebrada
por Bloch e Febvre. Em particular, a história do clima proporciona suas medidas e
suas estratégias a essa "história sem os homens" 2 '. Esse apego tenaz à história serial
faz ressurgir, cm contraste, a indefinição conceituai da noção de mentalidade entre os
que aceitam a patronagcm dessa história especial. Nesse aspecto, a apresentação por
Jacques Le Coff desse "novo objeto" 2" que seriam "as mentalidades" é mais desenco-
rajadora para o espírito de rigor que os precedentes balanços-inventários de Duby e
Mandrou. O fortalecimento do topos, anunciador de seu eventual desaparecimento, é
27 ]l',111 Uclunw,,u, 1" l'c·11r <'li Occidl'III, l'c1ri,, Fa\·Md, IY78; reed., cnl. "Pluricl", 197LJ. Miclwl \'o\·C'llc,
JJll'fr l1aroq11c d Dàliri~ti1111is11tio11 n1 Prnl'l'llet' 1111 XVIII' ::>Ú'dc. I e..; attitudc-.:. dcl 1111t la 11/ort d'uprcs lcs
1
28 1/i,toirc dc ln,,;,, prÍ,'<'<' (dir. ,k !'. J\rié, ,, C. Uub\·). l'.ni,, f'd. du Seuil, 1987, rl'<'d. IY'!lJ, col.
"Points".
29 Philippe Aril'~, 1.·110111111c dct 11111t la 111ort, I\iri..;,, Éd. du Seuil, 1977. Ll'iarn-sc L1n1bL'n1 os li,-rns nu1ito
belos de J\lain Cmbin, l'ntrl' outros: Lc i\!i,1,111c ct /,1 /0111111ill,·. L'o,fomt ct /'i111nxi11nin· ,ocinl, X\'//1-
XIX ,ii'dc, l'Mis, FlammMion, 1982.
A MJ:'vl(lRIA, A IIIST(JRJA, ll E~QUJCl\!F'\Tll
30 Ceoffrey E. R. Lloyd, 1Jc111ystifi1i11g Mc11/11/itics, Cimbridge University l'ress, 1990; trad. franc. de
F. Regnot, Pour Cll fi11ir twcc Ics 111cntalités, Pcuis, La Découvcrte/Poche, col. "Sciences hutnaines et
socia ks", 1996.
Jl "A distinção c;:ipib1I que se dP\'l' observar escrupulosc1n1t..'ntc é aquela que a antropologia social
e~tabelcce entre as cah_•gorias de ator e de observador. Mostro que h,í u1nc1 questão crucial nc.1 c1va-
liação do que é aparenten1ente enigmático ou nitida1nente paradoxal, que é justa1ncnte mostrar se
existem conceitos ex1,lícitos de categorias lingüísticas ou outras" (Lloyd, ibid., p. 21).
.i.?: k.:1n-Pierre Vcrnant, L·..:. Origines de lo pc11 ... L\' y:rcL"illlc, Pari::-,, PLF, llJh2; rl'l'd., 1990, col. "Quadrigl'".
1-\1_11tltc ct Pc11.Si't' dzc: h'.s Cn't"S, t. 1, op. (it. !\1. Détienrw e J.-P. Vl'rnc1nt, I t'..; !<.uses de /'i11tc!!i,~c1kc: !11
/1/L'ÍÍ'> dcs Crcc..;, l)Jl- cit. P. Vidal-Nl1quL't, "La r,1ison grccqul' L't Ili cité", 1n Lc C'11h.sc1ir 11ni'r Fnnnt'.., dt'
pc11--.t'c l't_f(n11H'S ,fr .-:.tJ(Ídc dt111-..; !e 11101,dc ,\'lú·, l\1ri::-., l\1aspl'fO, 19b7, l 9S1, 1lJlJ l.
31 .,\o falar da distinçJn L'ntrl' o literal L' o n1etafr')ricu nl1 L·poca cl,1 Cn'ci,1 cllí::-.~ica, o l1utor ob:-.cn·(1: "É
preciso ver aí ao IllL'::-.1110 tl'tnpo uni l'iL·ITwntt1 t' o produto dl' un1<1 \·intlcnta p0Jl,1nic,1 na qual a:-. in-
\"L'Stigaç()l's dl' estilo no\ o lutll\'<Hn pc1rl1 distinguir-se dl' SlWS ri,·l1is, n1 .1s nJo L'xcllbi, amL'lltl' d .1s
prL'tL'ndl'11te~ tradicion .1i~ ~ sabt..'dori .1" (Lln~d, /\111r c11fi11ir 11l C( ll'~ 111e11t11/itcs, op. l"if., p. hl). i\L1is
1
adi,11ltL', ao f..1lar sobrl' u ,·ínculo L'ntrl' o dl'~t·n,·oh·in1l'nlo d.(1 tilu~ofici t' d(1 cil,ncia grl'gc1, dL' uni
l .1do, t...' c1 ,·id,1 políticc1, do outrn, O (1utur ',t' ind..ig,1 Sl' l'SScl hipl'ltl'~L' podt..' "apro:-..in,ar-nos do~ traço~
distinti,·os do~ l'~tilo--. dL' in,·L'stigaç<lu L'iabnrl1dos n(1 Cr6cia (1ntiga" (1/iid., p. 65). Sobn.' ci t..'\.prt..'s-.,,lu
recorrente "c~ti lus dl' i n,·L,-.;tigaçJu", "L'~ti lu~ de pL'ns,1n1L'nto'', cf. pp. hh, 208, 211, 212, 21 7, 21-:-, 218.
,\ :Vll~IÚl<ii\, i\ HISTORIA, ll 1:-,(.lLJJ:Cl,vll:~IO
3.f Michl'l Fouc,1ult, L'llrc/J,'ologic d11 sm•oir, l\iris, C;illim,ird, col. "Bibliothi_•quc dcs scicnccs humai-
ncs", 1969.
llloHWI.\ / l"l'l',fl \10! 0\.1\
.i~ "t. l1quele:-, que l'~tarian1 tl'ntados a n-.'nsur,H <l arqut'nlogizi a an,ílisl' pri\·ilq..:;iad(1 do dL'~contínuo,
a todos t'½:-,l'~ ,1gor,íft.1bo--. d,1 história e do tl'rnpo, a tod<.)S que confundl'nl ruptura co1n irraciona-
lid,1dl', rcspondt.'rl'i: 'J\,]o u~o qut' dl'IL' fazetn, sJo \ ocl·s que de~\·alorizatn o contínuo. Trat<lm-no
con10 um clcn1cnto-:-,upnrtc ao qual todo o n_•-.to deYL' ser rel,KiLrnado; fazern dek- a lei prin1t•ir,1,
a ki d,1 gr,1\·idadL· e:-,:-,cncial dc toct1 prcí.til-,l di:-.cursiL1; \'OCl·s go~tariarn que analiscísse1no~ toda
mod ificaçi:lo no c ..1rnpo dess,1 inércia, con10 anal i:-.amos todo moYimento no ec1n1po gra,·itacional.
\Li<:- ,ucl'~ só lhe confL'fL'nl cs.-,;e t..'Statuto neutrali;:andu-o, L' repelindo-o att..' o limite extprior du
kn1po, run10 a Ul1lcl pc1ssiYidcHil' original. 1\ arqueulogicl propt)t_'-Sf' in,·ertL'r e.-,;sa dispo~iç,lo, ou
antL'S (poi~ n.lo ~t:.' tratei dl' dar clO dt.'scontínuu o p,ipcl conct..'dido ak l'Ilt.lo J. continuidade) fa/L'r
A Ml'\H1RIA, A HISIORIA, O f'S(.)UL( 1\11::\Tll
Não quero deixar a companhia de Foucault sem antes evocar, mais uma vez, a
figura de Michel de Certeau, na medida cm que ela oferece uma espécie de contra-
ponto à arqueologia do saber 17 . Também existe, no plano da explicação/compreensão,
o contínuo e o descontínuo jogarem um contra o outro: n1ostrar que o contínuo se forma nas
1nes1nas condições e segundo as 1ncsn1as regras que a dispersão; e que se insere - exatamente
co1no as diferenças, as invenções, as novid<.1des ou os desvios- no ca1npo da prática discursiva"'
(Foucault, ibid., pp. 227-228).
36 Considere-se o exernplo dc1 1nedicina clássicc1, tratado na Histoirc de la clinique e evocado nova-
n1entc en1 L'J\rc!1L'ologic du s11voir. O que seria u1n trata1nento ,irqueológico de sua relzição com as
práticas n1édicas e não-1nédicas, políticas, entre outras? Vê-se o que l· recusado: fenômeno de
express<lo, de n:flexo, de sin1bolizaçZío, relação causal retrans1nitida pela consciência dos sujeitos
fola11tc•s. MiJs qual a relação positiva con1 as pr,üicas não-discursivas? Foucault limita-se a atribuir
à luqueologia a tluefo de mostrzir como e e1n que condiç<lo (1 "prlítica polítici1" faz parte das "con-
diçüe~ de t..'1neq:?;['nci,1, de inserção e de funcion,11nento" (op. cit., p. 213), do discurso 111(,dico, por
cxen1plo. Mas sem supor que detennine seu sentido e su,1 forn1l1.
37 A figur,1 dt> Michd dl' Cnteau já "retornou" duas vczl's (cf. p. 1-16 l' p. 177). Ela retorna d l'm cacfa
novl1 etapa de nosso próprio percurso.
IIISlllRI.\ / 11'1'>11 \l()L()(.I.\
for a reserva que se possa fazer à redução da memória e da história apenas à celebração
da ausência, não se pode mais opor, à maneira intransigente de Foucault, as descon-
tinuidades ostentadas pelo discurso histórico à continuidade presumida do discurso
da memória. É talvez aí que Ccrteau começa a marcar seu próprio distanciamento em
relação a Foucault. No breve e incisivo ensaio intitulado "Lc noir solei! du langage: Mi-
chel Foucault" (op. cit., pp. 115-132), Certeau parte em busca de sua própria diferença.
Ele expõe um após o outro e desordenadamente seu deslumbramento, sua resistência,
seu assentimento em um segundo nível, suas ressalvas derradeiras. É verdade que ele
se refere menos à arqueologia do saber do que à trilogia de obras concluída com Lcs
Mots ct /cs Clzoscs. O jogo alternado da ordem, própria da "base epistemológica" de
cada cpistê111c, e da ruptura surgida entre as cpistc111c sucessivas, é bem acolhido, mas
deixa Ccrteau insaciado: que "negro sol" se dissimula por detrás dessa mesma alter-
nância? Não seria a morte, contudo nomeada pelo próprio Foucault? Mas este acaba
entrincheirando-se por trás da "narrativa" dessas alternâncias entre a coerência e o
acontecimento. É, contudo, nas partes inferiores da narrativa que a razão é verdadeira-
mente "questionada por sua história" (op. cit., p. 125). Então, a arqueologia não escapa
ao "equívoco" resultante desse não-dito. É na esteira dessa suspeita que Certeau toma
suas distâncias: "quem é ele, para saber o que ninguém sabe? (op. cit., p. 161). Na obra
de Foucault, "quem fala e de onde"?" (ibid.). A pergunta surge de maio de 68. E uma
flecha mais afiada é disparada: "falar da morte, que funda toda linguagem, não é ain-
da afrontar, é talvez evitar a morte que atinge esse próprio discurso" (op. cit., p. 132).
Temo que aqui Ccrteau se desencaminhe, sem estar seguro de que escape melhor que
Foucault à questão colocada no próprio âmago de seu trabalho pela relação do discur-
so histórico com a morte. Um leitor que tivesse aberto sob o mesmo olhar L'Arclzéologic
du savoir e L'Écriturc de /'lzistoirc procuraria de um outro lado o verdadeiro desvio entre
Foucault e Certeau, a saber, do lado da idéia de produção, e mais explicitamente de
produção do lugar. A arqueologia do saber, diríamos à maneira de Certeau, não diz o
lugar de sua própria produção. Certeau distancia-se de Foucault saindo da neutrali-
dade absoluta de um discurso sobre o discurso e começando a articular esse discurso
sobre as outras práticas significantes, o que é a tarefa própria de uma história das
representações. Ao fazer isso, Ccrteau adia a dificuldade criada pela questão do lugar
de produção até esse momento inaugural em que o gesto de fazer história apresenta
um desvio em relação às práticas por meio das quais os humanos fazem a história.
Será esse o momento da verdade em história, em que cruzaremos uma última vez com
Certeau. A verdadeira razão do desvio entre Michel de Certcau e Foucault deveria ser
buscada no enraizamento da investigação do primeiro numa antropologia filosófica
na qual a referência à psicologia é fundamental e fundadora. Não foi o acaso de uma
compilação que fez com que ficassem lado a lado em L'Écriturc de /'histoirc o grande
artigo sobre "A operação historiográfica", que destilo ao longo de minha obra, e os
dois artigos colocados sob o título comum de "Escritas freudianas": trata-se mesmo de
psicanálise e de escrita, mais exatamente da escrita da psicanálise cm sua relação com
a da história dos historiadores. O primeiro desses ensaios, "O que Freud faz da histó-
111,1u1n \ / ll'JSJL\llll.llCI.\
ria", foi publicado nos A111,a/cs (1970). Trata-se de saber o que, como analista, Freud
faz da história. Ora, não é quando nos esforçamos por "plantar nas regiões obscuras
da história" (L'Écriturc de /'i,istoirc, p. 292) "conceitos" reputados freudianos, tais como
o nome do pai, complexo de Édipo, transferência, enfim, quando nos sen·imos da
psicanálise, que aprendemos com ela, mas quando refazemos, diante de um caso tão
singular como um pacto de possessão firmado com o diabo, o trabalho do analista que
da "lenda" (dada a ler) faz uma "história"••'. Tratando-se aqui de Freud, a conclusão
é que este instrui, não quando faz algo da história contada pelos outros, a começar
pelos historiadores, mas quando, à sua maneira, faz história. Não somente uma parte
importante do trabalho de Ccrteau resulta desse interdimbio entre diversas maneiras
de fazer história, mas é esse intercâmbio que justifica o recurso à psicanálise numa
epistemologia do conhecimento histórico. O segundo ensaio é dedicado a "L'écriture
de Moisc ct /e Mo11ot/1éis111c", subtítulo acrescentado ao título principal "La fiction de
l'histoire". O que Freud nos dá a entender nesse texto controverso não é uma \·erdade
etnológica, segundo os cânones dessa disciplina, mas a relação entre sua "construção",
que ele denomina um "romance", uma "ficçZio teórica", e a fábula, ou seja, a "lenda"
produzida numa tradição; escrita, portanto, comparável nesse ponto àquela dos his-
toriadores e que surge de modo incom·eniente no território da história. Um romance
histórico vem tomar lugar ao lado das escritas historiadoras. A indecisão do gênero
literário entre história e ficção, que reencontraremos no próximo capítulo, aumenta a
dificuldade, e a bem da verdade, a constitui. Importa-nos, por enquanto, saber em re-
lação a que espécie de escrita assim produzida a espécie da escrita historiadora é con-
\·idada a se situar. É a busca desse "lugar" do discurso histórico em meio às maneiras
de fazer história que justifica que a psican,füse seja levada cm consideração por uma
epistemologia que, de interna ao discurso histórico, se faz externa a ele, levando-se em
consideração outras maneiras de fazer história. É o próprio território da história e seu
modo de explicação/ compreensão que são assim ampliados. Essa abertura meticulo-
samente dominada depende ainda do rigor de Ccrteau.
-Hl / ,1 /1(1.-,-.,c.;c.;;011 de Lt)11du11 (l\1ris, Cl1llinllird, cnl. "Arcl1i,·cs", 1980) ú)\ocuia 11111 problema co1npc1r,1-
' e! qu,1nto ,l cPn1poc.;içJn dt:.' unia hi~kH·i,1, c1kn1 d,1 contribuiç.:i.o da obra ,10 que ~l'ria a micro-hi-.,-
tPri,1 frc1ncc~,1 (\t) pnntn dl' Yi~tc1 d,l l'scolha de escala.
/\ MHdllRIA, A HISIORI/\, O IS(Jl'FCIMl·.NTO
Elias não permaneceria indefesa num confronto com a leitura que vamos praticar ao
sairmos da zona de confusão e de indefinição semântica que acabamos de atravessar.
Tomo por guia a segunda parte de La Dy11a111iq11c de /'Occidc11t, intitulada "Esquisse
d'une théorie de la civilisation" ("Esboço de uma teoria da civilização") 41 • Aquilo que
N. Elias denomina o "processo civilizatório" diz diretamente respeito a nossas preo-
cupações relativas ao estabelecimento de uma história das representações. Trata-se de
um processo em curso que, como já o sublinha o título do prefácio de Roger Chartier
para La Société de cour42 , situa-se no ponto de articulação entre uma formação social
notável, o poder central, o Estado, apreendido em sua fase monárquica de Ancien Ré-
gime, e as modificações da sensibilidade e do comportamento humano que chamamos
civilização, ou antes, processo civilizatório. Em relação à futura micro-história que se
instala francamente no nível dos agentes sociais, a sociologia de Norbert Elias consiste
em uma macro-história comparável à dos A1111a/cs. E isso sob dois aspectos: de um
lado, o processo civilizatório está correlacionado com fenômenos de grande amplitude
no âmbito da organização da sociedade em Estado, tais como a monopolização da for-
'
i
ça e dos impostos e outras contribuições; de outro lado, esse processo é descrito como
um sistema de coerções progressivamente interiorizadas até o ponto de se tornarem
um fenômeno de autocoerção permanente que Elias denomina lwbitus. É realmente o
si que é a aposta da civilização, que se civiliza, sob a restrição institucional. O percurso
descendente de uma análise realizada de alto a baixo na escala social revela-se particu-
larmente eficaz no caso da sociedade de corte, na qual os modelos sociais se difundem
a partir de um núcleo central, a corte, nas camadas coordenadas e subordinadas da
sociedade. Pensa-se então muito naturalmente na relação entre estrutura e conjuntura
cm Ernest Labrousse ou nas hierarquias de escalas de durações cm Braudel. Na rea-
lidade, as coisas são mais complicadas, e a categoria de l,abit11s vai recolher todos os
traços que distinguem um fenômeno dinâmico de ordem histórica de um fenômeno
mecânico de ordem física. É notável que Elias não fale de determinismo - ainda que
fale de coerção-, mas de interdependência entre as modificações que afetam a orga-
nização política e as que afetam a sensibilidade e os comportamentos humanos.
A esse respeito, os conceitos chaves de Elias devem ser cuidadosamente respei-
tados cm sua especificidade rigorosamente desenhada: "formação" ou "configura-
ção", para designar o contorno dos fenômenos de organização social, por exemplo,
a sociedade de corte; "equilíbrio das tensões", para designar as molas da dinâmica
social, por exemplo, a curialização dos guerreiros que preside à sociedade de corte
41 La Uy1rn11Jiq11e de /'Occide11I constitui o tomo li dl' Obcr drn l'ro2ess der Zii•ilis11lio11 (l' l'd., 1939; 2·'
l'd., 1969), sob o título, tr,1d. franc. lÍL' Pierrl' Kamnitzer, Paris, Calmann-Lévy, 1975. Norbert Elias
integra nele os resultados 1nais in1portantes de sua obra La Société de cnur, que teve u1n destino
singular: tenninada l'lll 1933 pelo autor, então assistente de Karl Mc1nnhcin1 na uni\'ersidade de
Frankfurt, foi publicado somentl' em 1969, com um prólogo intitul,1do "SociologiL' l't histoire".
42 Norbert Elias, Dic /úifisc/1<• Ccscllsclrnft, Nl'uwil'd l' lkrlim, 1IL-rrnann Luchterh,rnd VL'rl,1g, 1969;
tr,1d. franc. dl' l'il'rrl' Karnnitzl'r L' )L',rnnL' Éton'-, La Socic'I<' de co11r, Paris, Calmann-Lévy, 1974; rl'l'd.,
Paris, Fbn11n(1rion, col. "Chan1ps", 1985; prefocio de Roger Chartier: "For111(ltion sociall' et écono-
rniL' psychiqul': la société dl' cour dans k> procés dl' civilis,1tion" (p. 1-XXVIII).
IIIS1(lRL\ / 1 l'l~TF\lllLOCI\
4.3 A respeito da rel,1ç(1.o entre hlstóri,1 e sociologil'l, o prólogo de 196Y n,l.o l' conclusiYo na n1t.'did,1 en1
que o objl'to de sua crític,1 L· unia hiskffia cl. ffL.lt1t...'Ír,1 eh~ R,1nkc, ou scj,1, urna história que pri\ ill'gia
o indi\·íduo, ,l ,·untade dos que deciden1, os de~ejos racionais do~ honlL'i1S de poder. ivla~ o car,íter
histórico das forn1aç0e.<-:, soci.1is, como a cork, afasta toda idt...•ntificaç,lo con1 supostos in,·ari,111tt_'~
subtraídos <l n111dança. O conceito de n1udança socilli coloca Eli,1s apesar de tudo do lado dos
historiadon.•s. () prcf/1cio de R. Chartier 0 bem claro ,1 csst..' rt...'.<-:,peito.
-1--+ "Na realidôde, o result,1do dos procec.;~us ci,·i\i1c1tl)rios indi,·iduais apena.<-, r;.uan1ente, nas dua:-,
L'\.tre1nidades da cun·a dl' dispcrsJ.o, é cornplctan1Pntc positi, o ou complt.'tan1t.'11tL' negati,·l) . .·\
n1,1iori.1 dos 'ci,·ili~ado< n1<1ntl•n1-SL' nun1<1 linh{1 ml'dian,1, entrl' e:-,:-,t.'S dois extrt.•n1os. Traço...,
fa,·uràvl'is e desLn·or<Í\'eis do ponto de ,·ista :-,ocial, tendl•ncia:-. ~ati:-,Í.ltúri,b e in:-,{lti:-,f..1tt1ria:-i do
ponto de ,·ista pessoal L'nco11tr<1rn-sL' L' ~l' n1i~tur,11n L'll1 propor½-CH. 'S
. ,·ari/1,·eis" (La U_111u1111ii111t' de
l'Occidc11t, op. cit., pp. 201-202)
i\ \11:\l(JR!i\, A IIISTllRli\, O FSQUFCIMLN 1()
45 A racjonalização constituiria um bon1 tenno de referência para unia discussão que confrontasse
a ênfase dada à incerteza pela tnicro-histúria e a ênfasl' dada por Elias à racionalizt1ç.Jo con10
rl'gul,ição pulsional.
46 Trata-se, antes, d<.H.1uilo que o ale1n.Jo chan1a de Sclw111t111gst, pudor n1esclado de angústiL1, do qut:>
daquilo que u,na outra tradição, a de Sin1n1el ou de Max Scheler, opÔl' de prcfr·rl'ncü1 à culpabi-
lid,llk.
47 Concordo aqui co111 Roger Ch<.irtier, e1n seu prcf,ício a Ln socll'ü; de cour: "Ao caracterizar cada for-
n1<1ç,lo ou configuraç<lo social a partir d,:1 rede cspecífic1 di1s interdependências que nelas lig,1111
os indivíduo'.'.-> uns L1os outros, Eli<1s este) en1 condiçôes de co111preendL•r eI11 sua dinán1ica e recipro-
HIS!llRL\ / ll'ISII\IUUlCIA
num belo texto no qual, após ter sublinhado o caráter não racional - no sentido men-
cionado mais acima - da formação dos hábitos, ele obser\'a: "Mas isso não exclui para
nós a possibilidade de fazer dessa 'ci\'ilizaçào' alguma coisa mais 'razoável', mais bem
adaptada a nossas necessidades e a nossos fins. Pois é precisamente por intermédio do
processo civilizatório que o jogo cego dos mecanismos de interdependência amplia a
margem das possibilidades de intervenções conscientes na rede das interdependências
e no habitus psíquico. Essas intervenções são possibilitadas por nosso conhecimento das
leis imanentes que as regem" (op. cil., p. 185)"'.
cidade as relaçôcs n1antidas pelos diforcntes grupos e, dess,1 forn1a, t'\'itar as repn_'Sl'ntaçôes sim-
plistas, unívocas, congeladas, da dominaç,10 social ou d,1 difusi\o cultural" (prl'fiício, p. XXV).
-1-8 A contribuição de Norbert Elias p.:ira unia história das mentalidades e das representaçôes t...'ncon-
tra um prolonga1nento parcial no plano sociológico no tr~1bt1lho de Pierre Bourdieu. Ao reto1nar ,1
noç5o de lrnbitu~ que, segundo ele, "dá conta do fato de que os agentes sociais nJo ~5o partícula~
de n1atéria pn:.'dl'tern1inadas por causas externas, nen1 pequenas n1ônadas guiaLtls exclusi\·an1L'n-
tL' por ra?ôes internas, e executando un1a L'spécie de prog:ran1d de ação pt..•rfcitan1ente r<Kional"
(P. Bourdieu [com Loic J.-0. Wacquant], R<'po11scs, Paris, Éd. du Scuil, col. ''Libre c>xanwn", llJlJ2,
p. 110), l'. BourdiL'U Sl' recoloca no interior da dialética estabell'cida pm !\:. Elias da construç,1" d,,
~elf e da COL'rção institucional.
Ele fL'toma e con1pll'ta o trajeto da coerçJo social à autocoerção dc~L'nhado por Norbert Elia~,
conferindo um alcance ampliado ao conct..•ito de ltahitu~: "Estrutura L'struturante que org(1niLa
as pr,íticas e a percepção das práticas, o hal1if11s é tan1bl·1n estrutura L''.",truturada: o princípio de
di\·isões e1n classes lógicas que organiza a percepção do mundo social l·, por sua vez, o produto
da incorpor'-1çã.o da di\·isfü) cn1 classes sociais'' (Pierre Bourdieu, La Dí~tí11cU011, critíq11c soóalL'
,i
du iugc111c11I, Paris, Éd. de Minuit, 1979, p. 191). Assim, hn/,itus permitl', pnr um lado, articular
representações e condutas, e, por outro, compor essas repn•sentaç(-)l'S e condutas con1 aquilo que
Bourdieu cha1na "a estrutura do espaço social", o qual permite aprl'L'nder "o conjunto dos pontos
a partir dos quais os agentes con1uns (dentre eles o sociólogo ou o pn)prio lt..•itor L'm suas condutas
habituais) dirigem seus olh<1res ao mundo social" (ibid., p. l8LJ).
O lzabitus foz surgir nos indi\'íduos um "sisten1a de classificaç.lo" que "opera continuc1mente a
transfiguração das necessidades em estratégias, das restriçôes em preferências, e L'ngendra, fora
de qualquer deternlinação n1eeclnica, o conjunto das 'escolhas' constituti\'as dos estilos de z ída 1
classificados e classificantes que retiran1 seu sentido, isto é, Sl'U \'alor, de sua posição nun1 sisten1a
de oposições e de correlaçôl's" (Bourdieu, i/Jid., p. 195). Assim, o ,·aiYém da "l'strutura do espaço
soci,;-11" (e dos "campos" que, segundo Bourdieu, o escande1n) às representaçôes e condutas dos
agentes é apreendido e1n sua etHnplexidade. Cada "ca1npo" te1n sua lúgica própria, a qu,1\ impôe
"retraduçües" à "estrutura estruturante (modus opcra11di)" que gera "produtos e~truturados (opus
opcra/11I11)" que são as obras ou condutas de um agente (ibid., p. IY2).
Ao estudar o gosto, Bourdieu estabelece assi1n <l correspondl~ncia entre camada social l' can1ada
psíquica esboçada por Elias e e\'Ocada acima: "As diferentes mant..'Íf,l'.", [... J dt:' entabular relações
com as realidades L' cl'.", ficçôes, de crer nas ficçÜt'S ou re,1lidades que e\(1~ si1nulan1 estdo [.. ] es-
treita1nente inserid(b nos sisten1(1s de disposiçôL'S (Jrnl,itus) cardckrí-.;ticos das diferentes cL1s~t..•~
e fraçôes de classe. O gosto classifica l' classifica aqul'lL' que cl,1ssific1. ." (1/,id., p. VI). Ele mostr,1
assin1 de que 1nodo explic,1r d'.", representaçôl's requer a ,1prL'ensclo dt..'SSa correspondência, esse no-
\·elo de "sisten1as de dispo-.;ições", e in1plicc1 por conseguinte con1prel'ndt..•r as rl'iaçc)es do~ agentes
com a "t..•strutura do espaço social" en1 '.",l'U aspecto histórico: "O olho l~ 11111 produto dei hisb.1ria
reproduzido pela educaç,10" (ihid., p. Ili), cscrc·,·e Bourdil'u l'm seu L'studo sobre o gosto.
Assin1, a noção de lrnhítu~ tal como foi estudada pern1ite c1prel'nder "a~ leis gL•rai'.", que reprodULL'n1
as leis de produção, o IIJ()dlls "pcm11di" ("V cit., p. IY:l, n. -1) e restabl'il'Cc' "a unidadl' da pr.ítica" ao
não ÍdLer justiça apenas <l(b "produtos, ao opu:::. upcmtum" (ibid.). (_), alor hL'urístico quanto à fase
explicação/con1preensão do l111bitus e do uso n1etodológico qul' dt...•IP faz Pierrl' l3ourdieu fic(1 dssin1
justificado.
A MLMl1RIA, A lll~TllRIA, O FS(JLJJ:CIMC\Tll
Diz•ersidade. U111a cidade, 11111 campo, de longe s,fo 11111a cidade e 11111 rn111po;
mas, à 111edidn que nos nproxilllamos, ::,ão ca::.as, árvores, tcllrns, folhas, pla11tos,
Jor111igas, pernas dcfor111igas, ali' o infinito. Tudo isso se engloba sob o 1w111e de
c11111po.
PASCAL, Pensamentos.
Nas análises precedentes, uma questão não foi colocada, a da escala, mais exata-
mente, a da escolha da escala adotada pelo olhar historiador. Certamente, os mode-
los heurísticos propostos e aplicados por Labrousse e Braudel e uma grande parte da
escola dos A1111ales dependem claramente de uma abordagem macro-histórica, esten-
dida gradualmente da base econômica e geográfica da história até a camada social e
institucional e aos fenômenos ditos do "terceiro tipo", dos quais procedem as formas
mais estáveis das mentalidades predominantes. Mas essa óptica macro-histórica não
era escolhida deliberadamente, portanto, preferida a uma outra, tida como alternativa.
A seqüência "estrutura, conjuntura, acontecimento" em Labrousse, a hierarquia das
durações em Braudel repousavam implicitamente num jogo de escalas; mas, como o
mostra a composição tripartite de La Méditerranéc ... de Braudel, que continua sendo o
modelo do gênero, a preferência dada à leitura de cima para baixo da hierarquia das
durações não era como tal tematizada, a ponto de podermos conceber uma mudança
de escala e considerar a própria escolha de escala como um poder discricionário do
historiador, com todas as liberdades e as restrições resultantes dessa escolha. O acesso
a essa mobilidade do olhar historiador constitui uma importante conquista da história
do último terço do século XX. Jacques Revel não teve medo de adotar o termo "jogos
de escalas" 49 para saudar o exercício dessa liberdade metodológica que atribuiremos,
no momento oportuno, à parte de interpretação implicada na investigação da verdade
em história"'.
Depende desse jogo de escalas a postura micro-histórica adotada por alguns his-
toriadores italianos 51 . Ao reterem como escala de observação um vilarejo, um grupo
de famílias, um indivíduo apanhado no tecido social, os adeptos da microstoria não so-
mente impuseram a pertinência do nível micro-histórico no qual operam, mas trouxe-
ram para o plano da discussão o próprio princípio da variação de escalas 52 . Não é, por-
® 220 ®
l!ISl(ll\l.\ / Ll'IS!I \!(li llCI,\
tanto, a defesa e ilustração da 111icrostoria enquanto tal que \'amos agora empreender,
mas o exame da própria noção de variação de escalas, a fim de apreciar a contribuição
dessa problemática original para a história das mentalidades ou das representações,
que vimos, primeiro, ameaçada, pelo lado de dentro, de atolamento (seção I), e depois
intimidada, pelo lado de fora, por exigências de rigor que sua prática, de rnnceitos
Yagos, torna incapaz de satisfazer (seção II),
A idéia chave ligada à idéia de variação de escalas é que não são os mesmos enca-
deamentos que são YisíYeis quando mudamos de escala, mas conexões que passaram
despercebidas na escala macro-histórica, Esse é o sentido do magnífico aforismo que
lemos nos Pcnsa111c11/os de Pascal e que Louis Marin, cujo nome aparecerá mais adiante
em nosso próprio discurso, gosta de citar"',
A noção de escala é um empréstimo da cartografia, da arquitetura e da óptica 04 • Em
cartografia, existe um referente externo, o território que o mapa representa; além disso,
as distãncias medidas pelos mapas de escalas diferentes são comensuráveis segundo
relações hornotéticas, o que permite falar da redução de um terreno pela colocação em
urna determinada escala. Todavia, obsen·amos de uma escala para outra uma mu-
dança do nível de informação em função do nível de organização. Pensemos na rede
rodoviária: em grande escala, vemos grandes eixos de circulação, em escala menor, a
distribuição do lzahitat. De um mapa a outro, o espaço é contínuo, o território é o mes-
mo, assim a mudança discreta de escala mostra um mesmo terreno; é esse o aspecto
positivo de urna simples mudança de proporção: não há lugar para a oposição entre
escalas. Sua contrapartida é certa perda de detalhes, de complexidade, e, portanto, de
informação, na passagem a urna escala maior. Esse traço duplo - proporcionalidade
das dimensões e heterogeneidade na informação - não pode deixar de afetar a geo-
grafia, que deve tanto à cartografiaª\ Urna geomorfologia discordante aparece com a
mudança de escala no interior da própria geopolítica, corno o confirmaria em detalhe
a releitura da primeira parte de La !vfrditcrm11éc.,. de Braudel. O termo "Méditerranée"
situa o objeto de estudo no nível daquilo que Pascal denomina campo: tudo aquilo é
englobado, diríamos ao término da leitura, sob o nome de Méditcrranéc!
O papel da idéia de escala em arquitetura e em urbanismo não é indiferente a
nosso assunto; colocam-se relações de proporção comparáveis às da cartografia, bem
como o balanço entre ganho e perda de informação de acordo com a escala escolhida.
Mas, diferentemente da relação entre o mapa e o território, o plano do arquiteto ou do
urbanista tem por referente um edifício, uma cidade ainda por construir; além disso,
o edifício e a cidade mantêm relações variáveis com contextos escalonados entre a na-
tureza, a paisagem, a rede de comunicação, as partes da cidade já edificadas, etc. Essas
características próprias da noção de escala em arquitetura e urbanismo dizem respeito
ao historiador, na medida em que a operação historiográfica é, num certo sentido, uma
operação arquitetônica"'. O discurso histórico deve ser construído em forma de obra;
cada obra se insere num ambiente já edificado; as releituras do passado são outras tan-
tas reconstruções, às vezes ao preço de custosas demolições: construir, desconstruir,
reconstruir são gestos familiares para o historiador.
É por meio desses dois empréstimos que a referência à metáfora óptica se torna
operatória na história. As condutas ligadas à acomodação do olhar não são notadas,
na medida em que a natureza, ou até mesmo a beleza, do espetáculo revelado fazem
esquecer os procedimentos de ajuste de que o aparelho óptico se encarrega, ao preço
de manipulações aprendidas. A história, do mesmo modo, funciona alternadamente,
como uma lupa, e até como um microscópio ou um telescópio.
O que a noção de escala comporta de próprio no uso que dela fazem os historia-
dores, é a ausência de comensurabilidade das dimensões. Ao mudar de escala, não
vemos as mesmas coisas maiores ou menores, cm caracteres grandes ou pequenos,
como disse Platão na I~cpública sobre a relação entre a alma e a cidade. Vemos coisas
diferentes. Não se pode mais falar de redução de escala. São encadeamentos diferentes
cm configuração e cm causalidade. O balanço entre vantagens e perda de informa-
ção aplica-se a operações de modelização que envolvem formas diferentes do imagi-
nário heurístico. Nesse aspecto, o que se pode censurar à macro-história, na medida
em que não percebeu sua dependência em relação a uma escolha de escala, é que ela
adota inconscientemente um modelo mais cartográfico que especificamente históri-
co, de óptica macroscópica. Pôde-se assim observar em Braudel alguma hesitação na
manipulação da hierarquia das durações: por um lado, presume-se uma relação de
encaixamento entre durações linearmente homogêneas, graças à inclusão de todas as
durações em um único tempo calcndárico, ele próprio indexado pela ordem estelar, e
isso a despeito de uma desconfiança indiscutível com relação aos abusos de cronolo-
gia cometidos pela história de acontecimentos; por outro lado, observa-se um simples
empilhamento das durações superpostas, sem vínculo dialético entre elas. A história
das mentalidades incontestavelmente sofreu dessa carência metodológica relativa à
56 A noção nictzschiana de história 1nonun1ental que evocaremos no Prelúdio à tl'rceira parte o con-
firmará, rnas também o lugar, v,lrias vezes evocado em nosso discurso sobre a história, da noção
de n1onun1cnto conjugada à de documento.
57 Surpreendcn10-nos, n,1 lciturl1 dos tl'>-.to~ dt.' n1etodologia dl1 n1icro-históril1, ao ver o grande an-
tropólogo Clifford CL'L'rL-: .'->L'r acusado por Cio,·anni Levi L' outro:-, dl' descren_'r o que l'll' con:-,i-
dera como crença.'-, con1partilh,Jdas no nÍYL'l dL' cultur,1:-, dl' Cl'rta cH11plitudL· gl'ogrlifica L'l11 tl'rn1os
de n1odelos in1postos a receptores subn1isso--. ("I pl'ricoli dl'l Ceertzisn1u", Q11adcr11i ..,fori(I, apud
J. Re1·el jdir.J, /c111 ,frd1dll',, op. cit., p. 2b, n. 22, L' p. :n, n. 27). Em compensação, um autor l'scan-
din<1,·o, Fredrik l3arth, apúi,l-Sl' em Clifford Cl'L'ft/ p,H,1 di.1\ogcH COlll ().'-, cigL'llil't-. SOCÍc1ÍS l'lll sua3
pesqui.'-,._1s ck c ..1111po sobrL' a identidade l'tnica (Etli11i( Croup-.-, 1111d f301111di1rzc.;;, LondrL'S, Ceorges Al-
len, llJ6l/). Vl'r também Sclcdcd [,;,;a,1, o/1 rcdcrit·k IJ11r//1, t. 1, l'n>t"l',;,; ,111d Jom1111 Soci11/ Lili, LondrL'S.
Routledge and Kegan Paul, 1981. Uni c1rtigo dl' apre:-,L'ntc1ç<lo l' dl'dic,hio a L'll' e1n [t'IIX d't\-/J1,f!1'•-.:
Paul J\ndn::, Ro:-,ent,11, "Construire ll' 'n1(1ero' pcH ll' 'n1icro'· FrL•drik Barth et L1 111icn1.;;fori11'', (1/ 1. L 1t.,
pp. 1-ll-1:iY.
~8 Cario Cinzburg, Lc 1n>111,1gc e/ ll', Ver,. L'1111i,-,,,., ,/'1111 111c1111icr d11 X\ 1 <Íi',·ll', tr,id. franc., P<1ri,. \u-
bin-FL1mmarion, col. "Hi,toirl'", ll/811.
A MLM(lRIA, A HISTllRIA, ll LSQüLCIMF:\TO
59 "Identificar a 'cultura produzida pelas classes populares' co1n a 'cultura imposta /1s massas po-
pulares', decifrar a fisionomia da culturél popular apenas por n1eio das 1ncíxi1nas, dos preceitos e
dos contos fabulosos é urna c1nprcitada absurd;:i. () atalho apontado por Mandrou para contornar
as dificuldades ligadas à reconstituição de uma cultura oral nos devolve ao ponto de partida"
(Ginzburg, Lc Fro11ingc ct /cs Vcrs, op. cil., p. 10). O recurso de Ceneviéve Bolleme à literatura de
divulgação incorre nas 1ncsmas objcçôcs. En1 co1npensação, Bakhtin escapa a essa crítica no cdso
de seu livro fundamental sobrl' as relações de R,1belais com a cultura popular de sua época, qm'
se concentra no carn.:1vzil e nos tl'n1as czirnavalescos da cultura popular. Resta que os protagonis-
tas fola1n muito através das palavras de Rabelais. A análise do "carnaval de Romans" feita por
E1n1Tlanucl Le Roy-Ladurie, l'n1bon1 reconstituída com base numa crônica hostil, cai nas graças
de Cinfburg. Etn con1pensaç5.o, a insistêncü1 de Foucault nas exclusôes, nas intt..•rdições por n1eio
das quais se constituiu noss(1 cultur,1 ,1n1t•,1ç,1 deixar a cultura popular existir so1nentc por nll'io
do "gesto que a suprin1e", con10 na Hí~tôría da loucura. Se él loucurc.1 ~on1ente se exprin1e na única
linguagen1 disponível, ,1 da r,1z<lo que a t•xclui, os protagonistas est<lo fadados ao silêncio.
111,TURI \ / 11'1,l 1 \tlll (lCL\
Lucien Febvre ao falar dos "homens do século XVI". O grc1nde historiador francês terá
resistido, contudo, aos preconceitos insepar,i\·eis do infeliz legado do conceito socio-
lógico de "mentalidade coletiva". Menocchio, de sua parte, não pode situar-se nessa
linha de ignorância, pois \·eio após a iiwenção da imprensa e da Reforma, a quem deYe
o fato de ter sido um leitor e um argumentador"".
O outro livro que reteve minha atenção é o de Giovanni Levi, Lc Pouuoir /111 uillagc.
Hiotoirc d'1111 cxorciolc dil/15 /e Pié111011t d11 XVI' oihlc"', precedido de "L'histoire au ras
du sol", de Jacques Re\·el. Estamos aí no terreno trabalhado por Norbert Elias. Mas na
parte baixa da escala: no vilarejo. Não é nem o grande número, nem o indi\"iduo. Não
são tampouco indicadores quantificados - preços ou rendas, níveis de riqueza e dis-
tribuição de profissões-, nomeados mais do que enumerados. Nem as regularidades
de uma história pesada, imóvel, das normas e dos costumes comuns. A aparição e a
articulação dos fenômenos considerados são fruto da mudança de escala. Em Yez de
agregados acompanhados durante um longo tempo, é um fen·ilhar de inter-relações
que se prestam à decifração. Nem por isso se deve esperar uma ressurreição da \ºi\·ên-
cia dos agentes sociais, como se a história deixasse de ser história e se juntasse à fe-
nomenologia da memória coletiva. O respeito por essa sutil fronteira importa a nosso
assunto, que jamais desmente a implícita profissão do corte epistemológico que separa
a história da própria memória colcti\·a. São sempre interações que são recolhidas e
reconstruídas" 2 • A pala na importante - reconstrução - é pronunciada; mais adiante,
ela relançará a história das mentalidades, denominada com mais propriedade de his-
tória das representações, para além do exemplo bem delimitado da 111icrostoria. Porém,
antes de proceder a essa extrapolação mais ou menos bem controlada, é preciso ter
conduzido até seu ponto crítico uma história ligada à escolha da escala micro-históri-
ca. J,í dissemos, numa escala menor, ínfima, \·emos coisas que não \·emos numa escala
superior. Mas é preciso dizer que aquilo que não vemos e não devemos esperar \·er, é
a \'i\·ência dos protagonistas. O que \·emos continua sendo o social em interação: em
interação fina, mas j,í micro-estruturada. Direi ainda, mas com alguma hesitação, que
a tentativa de reconstrução de Giovanni Le\·i satisfaz apenas parcialmente o famoso
"paradigma do índice" enunciado por Cario Ginzburg em seu célebre artigo "Traces.
óO O cuidadoso preflício de Cario Cinzburg cnccrra-~c con1 un1 ato de audaciosl1 prospecti,·l1: J\.1e-
nocchio nos prt.'Ct:.'dc nesse can1inho que \\',,\ter Benj,11nin traçl1 en1 :-,uas "Teses sobre a hi~k)ri,1",
onde se IL·: "Nad,1 do que se ,·erificou estlí perdido para d históricl [ ... ] n1as son1e11te a hu1nanidadc
ren1idc1 ten1 direito il totalidade de seu pa~~ado". "RL•n1id<1, ou -;t:jl1, libcrtl1da", (1crcsccntD Cin;:-
burg, que ate~ta aí ~ua~ prúpri,is con, icçôL'S.
61 Título original: Cio, ,1nni Le,·i, L'crcdittl i111111i1tcrialc. Ct1rricm di 1111 c~ort"i::-,fa //d Pic1110/ltc de/ ::-.l'it"c11ft1,
Turim, Ein,1udi, 1LJ8:=;_ A cdiçJo francc~a citc1eL1 aqui é: I.c Po1r1. oir 1111 l'1//11gc. Hi~toirc d'11u l..'.\"l,r(i~tc
1
d1111s /e l'Íl'/11(11/I d11 XVI sii-dc, Paris, C,1llimMd, col. "llibliothi_,quc cks histoircs", 1989 (prefcicio de
Jacques Ren'I).
62 "TL•ntei, portanto, estudar uni fragnlL'llto 111inü~culo do Pien1ontt.' do ~éculo XVI, utili/ando uma
técnica intcnsi,·a de fL'Construç,lo dos acontt:cin1L'tltos biogr,íficos de todos os h,1biti.1ntes dn ,·ill1-
rejo de Santena quL' dei\.aram algurn ra~tro docunlL'ntal" (citado por J. Rc,·el [org.l, Prl'Lkio a C.
Lc, i, op. cit., p. XIII)
;\ t\lFM(lRIA, ;\ IIISTORIA, () IS(_)Ul:CIMFNHl
Racines d'un paradigme indiciaire"" 1 . A microanálisc praticada aqui não está próxima
do faro nem do detetive, nem do especialista cm falsificação de pinturas, nem de qual-
quer espécie de semiótica psicomédica. A mesma operação de reconstrução do real que
distancia do vivido também distancia do indiciário, para se aproximar de operações
mais clássicas de recorte, de articulação, de confronto de testemunhos, que permitem
falar de "história experimental". Ora, do que trata a experiência? Do exercício dopo-
der na escala micro-histórica do vilarejo. O que se vê nessa escala são as estratégias
familiares e individuais, confrontadas com realidades econômicas, com relações hie-
rárquicas, num jogo de trocas entre o centro e a periferia, cm resumo, interações que
têm por lugar um vilarejo. Com esse conceito de estratégia, é trazida à luz uma figura
notável da racionalidade, cuja fecundidade avaliaremos mais adiante em termos de
incerteza, oposta termo a termo à fixidez, à permanência, à segurança - cm suma, à
certeza - vinculadas ao funcionamento das normas sociais de grande escala, a esses
quase-invariantes da história das mentalidades no longo prazo. Será uma questão le-
gítima saber se as condutas postas sob o signo da estratégia têm por finalidade secreta
ou confessa reduzir a incerteza ou simplesmente compor com ela"'. O "grande jogo
social e político que é o verdadeiro assunto do livro" (Revel, prefácio, in Lc Pouvoir
1111 vi/!11gc, p. XXV), é, se o desejarmos, o mesmo que aquele reconstruído por Norbert
Elias cm La Dy1111111iquc de /'Occidc11t, mas no sentido em que, conforme o dito de Pascal,
"tudo isso se engloba sob o nome de campo". Podemos dizer por isso que os detalhes
que, por assim dizer, desenvolveram o campo reconduzem, conforme algumas regras
assinaláveis, a recompor o invólucro?
É toda a questão da passagem da micro-história à macro-história'''. Se pudemos
censurar a macro-história por proceder sem uma regra reconhecida da longa dura-
63 C<1rlo Cin,cburg, "Traces. Racincs d'un p,n,1digmc indicia ire", in Myt'1cs, [111/,/i'11//'S, Traces. Morp/10-
logi,· e/ '1istoirc, "!'· cit.
6.J- Rcvel cita: "Esszi sociedade, con10 todas as outras sociedades, é co1npostt1 de indivíduos cons-
cientes da nma de imprevisibilid,1Lfr no interior da qual devL' tentar organizar-se todo compor-
tan1cnto; e a incerh_•za njo pro\ l•1n son1ent1._• dc1 dificuldade de prever o futuro, n1as tan1bl·1n d~1
1
conscil·ncia pcrn1anente de dispor de inforn1ações lin1itadas sobre as forças quL' ,1tua1n no 1neio
soci(1l no qual St.' dt.'VL' agir. N<lo L· unia sociL·d(1de paralis,1d(1 pt.•t1 inst.•gur.1nça, hostil a todo risco,
pdt-.siva, agarr<1da aos valores imóvt.'is da (1utoproteç<lo. Melhorilr a previsibilid;:idt.• pcira aun1entar
,1 seguranç,1 0 um podl'roso modelo de inovaçfü, técnic,1, política, social" (J. Revel [org.], Prd,\cio
a C. Levi, op. cit., pp. XXII!, XXIV).
65 Essa quL'St5o da rl'laç<lo e d<1 pertinl•nci;.1 recíproccl dei n1icro-histúria l' da 1nacro-história colocc1
o proble1n(1 epistt.•n1ológico fundan1ental en1 ci0ncias hun1anc1s cb agregação dos dados. Podt:>-St.'
passar da escala "n1icro" à escal;.1 "macro" e transpor as conclusfws de unia <l outra indiferente-
mente?
P;.1rt.'Ct.' qul' (1 L'SScl questão a econornia t.' <l sociologia respondem negativan1t.•nte.
Assi1n, as pesquis,1s dl' F. M(1linvaud en1 econo111i;.1 concluen1 por uni "110 bridge", tuna ausêncid de
pc1ssagL't11 - n1,1te1nática -do campo 1nicroeconôn1ico (que repousa na ;.111,ílise do comporta1nen-
to de uni indivíduo sob certas hipóteses) para o can1po n1(1croeconôn1ico (que analisa con1porta-
mentos de grupos, de conjunto).
A agregação dos dados e1n ciênciéls sociais gera eft.•itos perversos ou e1nergentes que in1peden1
a transposição do individual ,10 coletivo. Condorcet 1nostrara assitn que, a p,1rtir de preferências
individuais rcicionais, não se podi<l concluir pelo estabeleci1nento de unia prefert'ncia coletiva
HISIURI\ / 1 l'ISII \1(11 llCI,\
racion,1! (ou St'ja, que rt_':-,peite a tran:-,iti,·idddl' d(1:-, l'Scolhas). l\. Boudon, em f}Tl't~ piTl'LT:-. L't Orifn'
e,
~0L'ii1l, definL' cs:-,e L'feito de agrq:;ação con10 "un1 L'Íl'ito que nJ.o L'x..plicitan1entt. ' bu'.-,cado pt'lo:-,
agrntl's de un1 ~istl'n1(1 e que result(1 de sul1 :-,itu ..1ç(lo de interdt.'PL'ndt,nci(1". Por isso, as conc\u:-,Cll'S
,·'-ílidils para un1 indi,·Íliuo n'-lo poden1 :-,er estcndicL1s a un1 conjunto de indi\'íduos.
Assin1, esse L'sc\arecimL'IÜO Lt1s cil.'ncil1s :-,ociai:-, part.'Ll'ria incitar-nos a concluir qul' n1icn)-hi'.-,k)-
ria L' 1nacro-hbt()ria possuem pertint,nci<1s di:-,tinta:-, l' quL' (1 p<1'.-,'.->c1gl'll1 de uma ll outra continua
sendo um problen1(1 epistl'n1olúgicu nod'-1! nclo rt.'soh·idu.
6h Rc\'el parece du\'idar disso: "Lid'-1 rente ao ch(lo, a hi'.-,tória de um lugar L; pnl,·avclml'ntc difcrL'Jltl'
d,1 dl' todos os outros." (j. Rc'H'I [mg.l, Frl'Licio ,1 C. Ll'\'i, "I'- <"li., p. XXX).
A MIIMÚl<IA, A lliSTÚRIA, O LS(.)Ul'CIMFNJ'(l
67 CJp. cil.
68 lkrnard Lepetit, "HistoirP des pratiquL's, pratique de l'histoire", ibid., pp. 12-16.
69 lkrnard Lq1etit, i/Jid., p. 13.
lll~l(lRI\ / 11'"11 \J()Lll(;I,\
70 \lotar-sc-,i a abL'rturo progrl'ssi\'a. dns rl'-"'puns,Í\'L'i:-; do_-., A1111a!c..; parc"l ,1 leitur,1 de dois artigos críti-
rns da rl'\'Ísta: "Histuire et scil'l1Cl' sociak>. Un tournant critiqueY, .·\1111t1/cs ESC, 1Y88, pp. 291-293. F
sobrl'ludo "Tl'ntons l"expériencl'", /11111,1/,·, LSC, IY8Y, pp. 1317-1:l23.
71 Reitern ,1qui n1inha dÍ\ ida para con1 ,1 _-.,ociologia de· Clifford Ccl'rtz, c1 quen1 de\'o o conceito de
aç.Jo si1nbolican1t'nte n1L'diada (cf. Du tcxtc t7 /'11dio11, op. cit., l' lifroh\~ic d Lltopic, op. cit.). É por esse
n1otivo que a pre\'ençã.o dos 1nicro-histori,1dores dos (]uadcr11i contr,1 Ceertz pareceu-n1e uni pou-
co injusta (d. acima p. 223, n. 57).
72 "rv1ais do qul' unia escala, é ,1 VlHiaç,'io dL' l'Scalas que parece ,1qui fundan1ent(1 I" (J. Re\·L'\, pret.í-
cio, in Lc Pou1•oi1· til/ 1•1!lt1gc, op. cil., pp. XXX/XXXIII).
A MEM(lRIA, A H!SH)I<IA, O LSQUFCl~ffNTll
própria idéia de mudança social que norteou toda a nossa investigação sobre a ex-
plicação/ compreensão praticada em história. Nas três linhas de exame, teremos em
mente a frase de Pascal que leva a afirmar que, cm cada escala, vêem-se coisas que
não são vistas em outra escala e que cada visão está no seu direito. No término desse
triplo percurso poderá ser abordada de frente a estrutura dialética que leva a preferir
a idéia de representação à de mentalidade.
73 Paul André Rosental: "Construire le 'm,icro' parle 'micro': Fredrik Llarth d la 111icro,tori11", i11
J. Revel (dir.), jc11x d'frl,cl/c,, op. cit., pp. 141-160.
lll',JllRI\ / 11'1"11\Hll()(,1·\
7-t "De fato, cl noçt10 dl' 'norma fundan1L'nt(1\' rl'~pondl' e1n lJurkhcin1 a un1{1 trip\<1 rn:_'Cl'Ssidadl'. Sua
natun?a L' t,11 qul' l'ia permite que a socicd._1dc se m<1ntcnh'-1 unida, :-.cn1 princípio~ dl' urdena-
n1cnto externo~ ,1 c\,;1, L' ~L'lll que cadl1 ~itu'-1ç'-lo pc1rticuL1r a Liça úlir na anomid ou prcci:-,L' da
reelaborac,,\'io dL' solidaried'-1dc rL'\·ista, ,1 partir do início. Ela con:-,ti tu i unia hipótt:sl' ad /u 1t- ou unia
proposiçJo t,1uto!t')gica que ,·c1lc o quL' \ ale o dl's,·io cxplicati,·o que pt'nnite sua l'spccificaçc'1o dc-
t.1\hada" (B. Lcpetit, "HistuirL' d,•s pratiques. l'ratiqul' ,k \'histoire", i11 B. Lcpdit [dir.], L·, F,m11c,
de /'np<'ric11l'c, op. l'il., pp. 17-18).
7~ Voltan.•tnos a is~o no capítulo dedic,1do c10 l'squcciml'nto.
76 _lacqul'~ Rl'\'l'I, "L'institution ct il' social", in B. Lepetit (dir.), Lc:-; F(1r1111'..; de /'c.1.Jh>ric11t'l', tiV t"Íf.,
pp. ó3-85; Sin1on(1 Cerutti, "NornlL'S et pr(itique~, ou dl' la légitin1itt::, de lcur oppo~ition", i/iid.,
pp. 127-l'il.
77 Uma rl'Íl'fl.~'ncia in1portantl', a cssci ordL•n1 dl' idt-..'i(1, t' constituída pL·lu li, rode Luc Boltcin~ki sobre
os ext..'cuti\'os, e'\l'mplo not,h·t-..•1 dt..' un1a in~tituiçc""io d,1t1da surprl'L'ndida L'Ill f,1se dt-..• instauraç.lo: Lc:-;
Cadrc::.. L11_fên11111tio/l d'1111 gn111pc :::.ociol, Paris, t•d. de ~dinuit, 1982.
A \11,MllRIA, A IIISlllRIA, O ESQUECIMI.N 10
78 Para o exame das condutas dl' denúncia, cf. Luc 13oltanski, L'lllllour et /11 Justice co111111e co111p<'te11-
ces. Trois essa is de sociologie de /'11ctio11, Paris, Métai llé, 1990, primeira p,1rte, "Ce dont lcs gens sont
capablcs".
79 Lrnrent Thévcnot, "L'action qui convient ", i11 Patrick Pharo d Louis Quéré (dir.), Les Fon11cs
d'11clio11, Paris, EHESS, mi. "R,1isons pratiques", 1990, pp. 39-69.
HISTORI\ / Ll'ISll\101llCL\
80 Luc Bolttinski & LaurL'nt Th[,venot, De !t1 i11:-tijid1tio11: lcs i;et11101111cs de la gn111dc11r, op. lif. Fi.1 un1a
rL'senha dess,1 obr,1 em Lc J//stc, Paris, lsprit, col. "Ess;iis", l'!'!'i, pp. 121-1.+2, em outro contexto,
o de "a pluralidade das instância~ de justiçl1", que leva ,1 con1pc1rc1r a obra considerada com a de
Mich,iel W,1lzer, Sphcrcs o//11sticc. /11 Dcti11sc ,,f l'l11mli.s1111111d lcq//11/itu, 'JL'\\' York, Basic Bu,)ks, 1982;
trad. fr. dL· Pascal EngL·l, Sphi-rcs de i11stic,·: 1111c dl'f,•11sc d11 pl11mlis111c e/ d,· /'c'g11/itc', Paris, Éd. du SL·uil,
1997. Con1parada co1n a de Wal;.,er, ,1 apo:-.ta dl' Boltanski-Thl·n.'not n,lo t_'., o problen1a da do1nina-
çJo de un1a l'Sfera de ,içJo sobre a outr,1, portanto, da eqüidade, n1a..;, o da rL'soluçJu do:-. conflitos,
port,1nto, dos con1pron1issos p,1ra o bL'lll con1u1n.
81 Utna con1p,iraçclo podL' ser feit,1 aqui con1 a persi:-.tl•nte idéia dl' pluralidade hun1ana quL' (itra,-c:-.-
sa toda a obra de Hannah Arendt.
82 ()sautore~ distinguem L'ntre "cidadL•s" l' "nntndos"· fl'St:>n·,1111 o prin1eiro tern10 aos segn1entos do
espaço social recort,1dos por c;:ida sisten1,1 discreto de justificaçclo, utilizando co1no n1odelo o ,lto
de habitar; o segundo tt.'nno lembra q1H.' o elo constituti\'o ck cada cid,1de se \'L'rific,1 n,1s pro\'c1s
A MFMOI\IA, A IIISTllRIA, () FS(_)UFCIMLNHJ
Abrem-se assim dois debates, que interessam diretamente a nosso propósito - que
é o da fecundidade do tema dos jogos de escalas para uma história das representações.
A primeira diz respeito ao caráter finito do processo regressivo que, de justificações
elementares em justificações segundas, leva a uma justificação última em determinada
esfera; o recorte entre cidades ou mundos é estritamente correlativo da coerência dos
regimes de ação assim justificados. O problema, mais uma vez, não é de ordem taxo-
rnímica, mas sim de hierarquia na avaliação; como no sistema de Aristóteles, é preciso
admitir a necessidade de parar em algum ponto; a enumeração das cidades - cidade
inspirada, cidade doméstica, cidade mercante, cidade da opinião, cidade cívica, cidade
industrial - é baseada em semelhante postulado da justificação terminal finita. Essa
dificuldade atrai outra: quais discursos dão fé da justificação última apropriada a de-
terminada cidade? Como se reconhece a argumentação última própria de determinada
cidade ou de determinado mundo? Aqui, os autores adotam uma estratégia original,
porém onerosa: para identificar as argumentações em curso nos debates corriqueiros,
estes são colocados sob a égide de discursos mais articulados, mais fortes, em que o
processo de justificação é levado ao auge de reflexividade. Assim, convocam-se obras
de filósofos, teólogos, políticos, escritores, chamadas para reforçar manuais destinados
a executivos de empresas e responsáveis sindicais. Assim, Adam Smith, Santo Agosti-
nho, Rousseau, Hobbes, Saint-Simon, Bossuet fornecem os discursos fundadores dos
discursos efetivamente proferidos nos litígios comuns. A questão passa a ser a da re-
lação de conveniência entre discursos fundadores e discursos justificados. Pode ser
motivo de satisfação a reintrodução da filosofia no cerne das ciências sociais a título
de tradição argumentativa, o que constitui, ao mesmo tempo, para ela uma justificação
indireta e, para o sociólogo ou o economista que são nossos dois autores, o reconheci-
mento do seu pertencimento a uma história do sentido. Mas também pode ser motivo
de questionamento sobre a verdadeira natureza do elo existente entre os textos lidos
por nossos sociólogos e os discursos praticados pelos agentes sociais, na medida em
que os grandes textos fundadores não foram destinados a tal uso e em que, por outro
lado, são geralmente desconhecidos pelos agentes sociais ou por seus representantes
no plano do debate público. A objeção que se poderia extrair daí contra todo o em-
preendimento dos nossos autores não fica sem resposta, na medida cm que o próprio
espaço social dá lugar a outro tipo de escala, a das leituras escalonadas entre os textos
arquetípicos e os discursos mais fracos. Tanto os primeiros quanto os segundos foram,
enquanto escritos, dados a ler a uma multiplicidade de leitores que formam cadeia;
afinal de contas, o moleiro do Friuli do século XVI italiano fizera provisão de argumen-
tos para suas negociações argutas ao sabor de suas leituras aleatórias. Sim, a leitura
também tem suas escalas, que se mesclam com as escalas de escrita; nesse sentido,
os grandes textos que servem para explicitar e decifrar os textos de menor porte dos
negociadores comuns ficam, por sua vez, a meio caminho entre aqueles escritos pelos
historiadores quando juntam os textos arquetípicos aos discursos implícitos proferidos
qualificantes que se apóian1 cm dispositivos, objetos, coisas, que dão ensejo êl un1a sociologiti
apropriada a seu duplo aspecto 111aterial l' social.
HISTORI,\ / Ll'ISl 1 \HlLOCL\
nas cidades em questão, e aqueles que os agentes sociais escrevem às vezes sobre si
mesmos. Tal cadeia de escritas e leituras garante a continuidade entre a idéia de repre-
sentação como objeto de história e a de representação como ferramenta de história''.
Na primeira acepção, a idéia de representação continua dependendo da problemática
da explicação/compreensão; na segunda, passa a estar ligada à da escrita da história.
8.3 Ln1c1 sociologia da JL,itura \'iria aqui reforçar nosso ,ugumcnto. \'L'r Rogl'r Ch,irticr, A11 lnnd de la
_/Íl/ai,c. L'l,i,toirc entre urtitud,· e/ i11q11i,'/11dc, Paris, Albin Michel, 1998.
8-t U1n,1 tipologia des~e~ 1nodos de disponibilid,ldl' con1binaria faciln1t>nk con1 nossas anotaçt-)L'S
rdc1tiva~ ,1os uso~ e abusos d,1 men1óri,1, dt'f-1l'ndendo de eL1 estar in1ped ida, rnanipulc1da ou co-
n1andada. (Cf. acin1a, prin1eira p,1rtL·, c,1p. 2.)
/\ lvll'M(lRIA, /\ HISf(JRI/\, (l l'SQUECIMF.NTO
85 As observações que sq:;uem foram suscitadas pela leitura dos artigos de André Burguiérc, "Le
changement social", e de Bernard Lepetit, "Le présent de l'histoire", ili B. Lepetit, Lcs Fon11cs di'
/"cxpt'ric11cc, op. cit., respectivamente p. 253 e seg. e p. 273 e scg.
IIISl(lRI \ / J l'ISI 1 \101 OCL\
81, Cf. o cfrbate a esse respeito por J. Re,el no final da sua "Pré•sentation" da obra de Cim·,rnni !.e'\ i.
Lc JJ011z oir 11u 1. illasc, np. cit.
1 1
87 O que Giovanni LL·,·i con\·idc1 a ler, t..'111 Santena, t..' a "n1odulaçZ10 local da grande história" (Ren!I,
ibid., pp. XXI-XXll). l'ode-Sl' di7l'r. Pnt,10, que a ;wrsonagem central du lino seja ,1 incerte7a 7 (ihd.,
p. XXIII). Re\·el njo dei\.a de redialetizar essa ec1tcgoria ao e:-,cren_'r: "lia é a figura n1aior cltr<1,·és
da qual os homens dt..' Santena aprt..'t:.'IH.iem SL'll ten1po. Eles den:.'111 con1por con1 ela e, na n1edida
do po~sín.'1, redu;:i-la" (iliid.). () próprio C. Le,·i abre a quL·stilo: "N,lo l• unia sociedade paralisada
pela insegurança, hostil cl quc1lquer risco, paS'.">Í\"cl, arrc1igcH.ia clO'."> \'cllores in1ó,·eis da autoprote-
ção. t\..lt•lhorar ,l pn'Yisibilidadl' para clllll1l'l1tar a segurança l· uni 1nodl'lo poderoso de ino\·açcl.o
técnica, psicológica l' social" (ibid. p. XXI\'). Con10 ~L' pôdt..' ob~en·ar, o clutor n,lo deixou dl' ligar
rl'duç,lo de incertl'h1 e segurança. A lt,gica da idl'ia de estratégia o in1plica, n,1 n1edida em que
con\·ida a c,ílculos en1 tennos dl' lucros e pL'rdas. É fikil in1aginar tt-.'r rl'fut,1do tnna \·is,1.o unila-
teral do podt>r exercido de cin1a para baixo: de fato, nJo é um sin1ples co1ltrcÍrio d,1 lei tendencial
de concentração do podl'r que o dccifr,1111e1lto n1inucioso das l'~tr,ltl·gias indi\·iduais L' Lin1iliai~
dl' uma cidadezinha perdida pôL' en1 L'\'idl;ncia; o poder "inhlterial", o inipalp,~\·el cc1pital que uni
1nodesto podestadl' local tir,1 do equilíbrio entrl' protagonistas sú Sl' L'ntendl' Zl luL de 111na lógica
estratégica visando a reduzir a incerteLél.
A MEM(JRIA, A HIST()RIA, O 1:SQUECIMENTO
que possa se beneficiar uma história das representações. A busca de equilíbrio pode
até ser atribuída a uma categoria temporal precisa, como propõe B. Lepetit, a saber, o
presente dos agentes sociais"s. Por presente da história, devemos entender algo bem
diferente do tempo curto das hierarquias de durações encaixadas, mas um estado de
equilíbrio: "Os estragos da defecção, ou ainda da desconfiança e da imitação generali-
zada, estão contidos nele pela existência de convenções que delimitam de antemão o
campo dos possíveis, garantem nesse quadro a diversidade de opiniões e de compor-
tamentos, permitem sua coordenação" (B. Lepetit, Lcs Formes de /' cxpériencc, p. 277).
Podemos dizê-lo: "O ajuste entre a vontade individual e a norma coletiva, entre a in-
tenção do projeto e as características da situação do momento, operam-se num pre-
sente" (op. cit., p. 279)8". Certamente, nem todo o histórico se deixa limitar às situações
de conflito ou de denúncia. Tampouco se deixa reduzir às situações de restauração da
confiança pela criação de novas regras, pelo estabelecimento de novos usos ou pela re-
novação de costumes antigos. Essas situações só ilustram a apropriação bem-sucedida
do passado. A inadaptação contrária ao ato que convém também depende do presente
da história, no sentido de presente dos agentes da história. Apropriação e recusa de
pertinência estão aí para atestar que o presente da história comporta igualmente uma
estrutura dialética. Não era inútil enfatizar que uma investigação sobre as escalas de
durações só termina quando se passa a levar em conta o presente histórico90 •
V. A dialética da representação
88 Bernard Lepetit, "Le présent de l'histoirp", in Lcs Fon11cs de frxp<'ric11cc, op. cit., pp. 27:\-298. Bol-
tanski e Thévcnot recorrian1 à mesnla constl•lação de ntodalidades te1nporôis reunidas em torno
do tema da adequaçJo à situação presente (citado por B. Lepetit, il,id., p. 274).
89 () autor ren1ete a L. Thévenot, "L'action qui convient", in Lcs For111cs d'actio11, op. cit.
90 As anotações de lkrnard Lepetit sobre "Le présent de l'histoire" correspondem à minha noção do
presente como iniciativa "prática" mais do que como presença "tL•órica" (011 tcxtc à /'nctio11, op. cit.).
Por sua vez, a categoria dt: iniciativa ren1ete a uma dialética tnais abrangente, tal con10 aquela
pela qual Kosl'lleck rnracteriza a temporalização da história em Lc F11t11r pnssé. Nesse quadro rnn-
ceitual tnais ampll\ o presente enquanto iniciativ,1 deve então ser entPndido con10 ~1 ponte entre
horizonte de expectativa e espaço de experil•ncia. Deixo para a tercL•ira partt:.• deste li\'ro o ex{1.Inl'
dl't,1lhado das categorias de Koselleck.
HIS!llRI \ / l l'JSI 1 \llll Ol,I,\
"en'.'.->,1io de intcligt·ncia da , ida polític .1 fr'-1ncL'sc1" (L1'~ nroifc:_-; c11 Fra11L'c, op. cit., p. Y). NL'n1 .1
t..'nun1eraç,lo, nL'nl a definiç.Jo dessas figura'.'.-> qt1L' ritman1 o tL>n1po d,1 hi~k)ria política da Franç,1
contl'n1por/ínea '.'.->élo dados in1edi;ltos da ob~en aç.Jo; ainda que sua idL'tltificação seja sugl'rida
pela prática t'feti, a, l'la dL'pcndc de "propo~iÇl-K'~", dl' "axion1a'.'.->", que o an,1list,1 constn')i: "Tod,1
realidade social apresent,1-sc ao olh,1r con10 un1 conjunto indi'.'.->tinto L' ,1I11orfo; 0 ,1 111L'ntL' qul' tra-
ça nek' linhas de sep,1raçJo L' agrupa o infinito dos ~L'fl'S L' das po~iÇ()L'~ L'Ill algum,1s categorias"
(i{ 1 id., p. 18). Ln1 co111pensaç.Jo, RL·nl· Rén1ond julgt1 que essa con~tn1ç.Jo da lllL'ntt:.' satisfaz d ,·t..·-
rificaç,lo pcld "realidade", quL' el,1 tcn1 u111 \ ,1lor l'xplic,1ti,·o L' prcditi,·o igual ao L·t1 astronon1ia,
a realidade con~i...,tindo n,1s L''.'.->tirnati,·a-.; en1 cur~o das ,lÇÔL'S políticas. Nesse sentido, podt..'-~e
dizc>r qul' "" distinçJo l' bc'rn rl'.il" (i/>id., p. ?.LJ): "( ... ) l'In polític,1, mais ainda qul' ern qualqul'r
outro domínio, o quL' l· tido con10 \'t:.'rdadeiro torna-se re,1l nlL'lltL' \Trdadeiro e p,1ss,1 a ter tanto
pL'so qu,11ito ,1quilo quL' na n rdaLkiro inicialnwnte" (i/,id.). A principal prl'ssuposiç,'ío é a ck
1
un1,1 autonon1ia das idL·ias polític,1s con1p,1tí,·l'l co111 ,1 varit1bilidadl' tl'1n,itic,1 do~ critérios de
pl'rtencin1ento (libt'rdade, naçJo, sober,1ni,1). Contra o fundo dL•~taca-sc o "sisten1a de proposi-
çlil''.-i ligc1LL1s" (ifiid., p. 11) cujo agrup,11nento g . 1r..1rltL' a COL's,l.o gcr,.11: n'i,1ti\·idadc entre ,1~ dti..b
dL'norninaçlws; ,1spL'Cto l''.'.->trutur,11, t..' n1ai'.'.-> precisan1t.'ntt:.' topológico, da bipolaridade l' do:-, seus
dl'sdobr,1n1L'llto:-, '.'.->in1ilares; n'no,·açã.o conjuntural dos critL~rios de distribuiç<lo L' n1oduL1ç,lo
por uni 111ais L' uni lllL'llos, excluindo-'.'.->L' o'.'.-> e'\trcn1os; Sl'nsibilidade cl~ circunst,l.ncia~, dcsdl' o
acontl'cin1ento da distribuiç.Jo espaci,1! d,1 As~l'n1biL·ia Constituintt.' de 1789. Não ten1os aqui
no,·an1t'nte a nos~..1 trí,ide "estrutura, conjuntura, acontecimento'' aplicada els repre~entaçôe~? A
prin1a1:ia dada cl t.'strutura bin,iria ("()s partido'.'.-> giran1 en1 torno dL' uni eixo fixo con10 o:-. dan-
çarinos ..1braçado~ que dcscn'\'t'll1 as figuras de un1 b,11C• SL'm SL' dc~unir") basei,1-se nun1a l'Spt'-
cuL1ç,l.o ousada sobre a prefL·rl·ncia dad,1 conjuntan1c1ltt.' pela intL'ligl•ncia L' pela ..1çã.o política ,10
bin,1risn10: eixo horizont,11 de uni lado, diit'n1as pr,iticos do outro. O .1utor pode lcgiti1nan1l'ntl'
aproximar ,•ss,1s ,·spéciL'S dl' "<1rquc'tipos" (i/>id, p, 3Y) do idl',11-tipn dl' Max Wl'bl'r. Fntrl'tanto,
tal prin1azia dada ,l l'strutura qu<1nto ao bin,uisn10 direita-esquerda na Franç,1 encontra lin1ites.
Prin1cir,1ml'ntl', o dc:-.loc,1n1L'llto glob ..1I d,1 L':-,qucrd,1 p,1ra ,1 direita, que garc111tc a din.Jn1ica dos
sistL'lll,1s, continua a part:.'Ct..'r ''n1istl'rio~o", "t'str,1nho", l'ntreguc aos "par,1do>-os" (i!iid., p. 1~), t,l.o
forte é a vakffiz,1ç.Jo nt.'g,1ti,·t1 da denon1in,1ç.Jo direita. Pan'et..', entrl'tanto, que "a L'1ltr,1da no jogo
J\ MEMlÍRIJ\, J\ IIISTÓRIJ\, O ES(_)l!I CIMENTO
Nesse tríplice eixo, a noção de representação desenvolve por sua vez uma polis-
semia distinta que pode vir a ameaçar sua pertinência semântica. De fato, é possível
levá-la a assumir ora uma função taxonómica: ela guardaria o inventário das práticas
sociais que regem os laços de pertencimento a lugares, territórios, fragmentos do es-
paço social, comunidades de filiação; ora uma função reguladora: seria a medida de
apreciação, de avaliação dos esquemas e valores socialmente compartilhados, ao mes-
mo tempo em que traçaria as linhas de fratura que consagram a fragilidade das múl-
tiplas obrigações dos agentes sociais. A idéia de representação corre então o risco de
significar demais: ela designaria os múltiplos trajetos do trabalho de reconhecimento
de cada um cm relação a cada um e de cada um em relação a todos, aproximando-se
então da noção de "visões do mundo" que, afinal de contas, figura entre os anteceden-
tes da idéia de mentalidade'n_
Sob a ameaça dessa hemorragia do sentido pareceu-me oportuno aproximar a
noção de representação, enquanto objeto do discurso historiador, dos dois outros usos
da mesma palavra no contexto do presente trabalho. No próximo capítulo, seremos
confrontados com a noção de representação enquanto fase terminal da própria ope-
ração historiográfica; tratar-se-á não somente da escrita da história, como se costu-
ma dizer - a história é escrita de uma ponta à outra, dos arquivos aos livros de
história-, mas do acesso da explicação/ compreensão à letra, à literatura, ao livro
dado a ler a um público interessado. Se esta fase - que, como já dissemos, não consti-
tui uma etapa numa sucessão de operações, mas sim um momento que só a apresenta-
ção didática coloca no final do percurso - merece o nome de representação, é porque,
nesse momento da expressão literária, o discurso historiador declara sua ambição, sua
reivindicação, sua pretensão, a de representar cm verdade o passado. Detalharemos
mais adiante os componentes dessa ambição veritativa. O historiador encontra-se as-
sim confrontado com o que parece primeiramente uma lamentável ambigüidade do
termo "representação" que, conforme os contextos, designa, enquanto herdeira rebel-
de da idéia de mentalidade, a representação-objeto do discurso historiador, e, enquanto
fase da operação historiográfica, a representação-operação.
Sob esse aspecto, a história da leitura dá à história das representações o eco de sua
recepção. Como mostrou amplamente Roger Charticr em seus trabalhos sobre a histó-
ria da leitura e dos leitores, as modalidades da operação pública e privada de leitura
têm efeitos de sentido na própria compreensão dos textos; assim, os novos modos de
transmissão dos textos na era da sua "representação eletrônica" - revolução da téc-
nica de reprodução e renilução do suporte do texto - induzem urna revolução das
práticas da leitura e, através dela, das próprias práticas da escrita (Roger Chartier,
Lccturc5 et Lectcurs d1111s /11 Francc de /'A11cic11 Rigi111e, Paris, Éd. du Seuil, 1987; Roger
Chartier (dir.), Hi5/oire de la /ccturc. U11 bilmz de rcc/zcrclzes, IMEC Éditions et Éd. de la
Maison des sciences de l'hornrne, 1995). Fecha-se assim o círculo das representações.
Ocorre-nos então urna hipótese: enquanto fazedor da história, ao levá-la ao ní\·el
do discurso erudito, não estaria o historiador imitando, de forma criadora, o gesto in-
terpretativo pelo qual aqueles e aquelas que fazem a história tentam compreender-se a
si mesmos e ao seu mundo? A hipótese é particularmente plausível em uma concepção
pragmática da historiografia que cuida de não separar as representações das práticas
pelas quais os agentes sociais instauram o vínculo social, dotando-o de identidades
múltiplas. Existiria de fato urna relação mimética entre a representação-operação, en-
quanto momento do fazer história e a representação-objeto, enquanto momento de
registrar a história.
Adernais, os historiadores, pouco acostumados a pôr o discurso histórico no pro-
longamento crítico da memória tanto pessoal quanto coleti\'a, não são propensos a
aproximar os dois usos do termo "representação" que acabamos de citar de um uso
mais primitivo, a não ser na ordem do reconhecimento temático, pelo menos no da
constituição da relação com o tempo, a saber, o ato de fazer memória: ele também tem
sua ambição, sua rei\'indicaç5o, sua pretensão: a de representar o passado co111 fideli-
dade. Ora, a fenomenologia da memória, já na época de Platão e Aristóteles, propôs
uma chave de interpretação do fenômeno mnemônico, a saber, o poder da memória de
tornar presente uma coisa ausente ocorrida anteriormente. Presença, ausência, ante-
rioridade, representaç5o formam assim a primeiríssima cadeia conceituai do discurso
da memória. Assim, a ambição de fidelidade da memória antecederia a ambição de
verdade da história, cuja teoria distinta ainda estaria por fazer.
Tal chave hermenêutica pode abrir o segredo da representação-objeto, antes de
penetrar o da representação-operação?''"
Foi o que alguns historiadores tentaram, sem sair do âmbito da história das repre-
sentações. Para eles, o importante é atualizar os recursos de reflexividade dos agen-
tes sociais em suas tcntati\·as para compreenderem a si mesmos e ao seu mundo. É
o procedimento recomendado e praticado por Clifford Geertz em T/1c !11tcrprctatio11
Y-! Par,1 con1plicar uni pouco m,ús as cnis(1s, ~l'ria prL'ci-.;n invocar a dinlL'l1:-o,lo política da idt.'ia de
rPpresent<1çil<Y seus con1ponentl's n1ais importantes dl'ix,11n-se ,1pro,i1nar (icl fL'presL·ntaçJo n1L'-
n1orial L' historiogr,ífica pa~~ando pelas idéi(l'.-. dl' delegaçilo, substituiçdo l' dL' figuraç<lo \"Í~Í\'t:::'!
que \'L'remos mais adiante. Na \'t.•rdc1de, c~sa dinlL'l7s,'ío política n,l.o c~t,í ausentL' da~ representa-
ções-objetos con~idcr,1da~ pelo~ historiadores.,\ dupla funç,1o ta\Olll,Hl1ic,1 L' si1nbúlica da idl,i,1 de
n-.•presentaçãn L'nKada acin1,1 acrL'Set.'I1tan1-sc "a'.:-, formas institucionali/adas L' objc·ti,·ad,h graças
:1s qu,1is 'rl'prcsentzintt.'::-.' (inst,1nci,1s cok ti,·c1s ou indi,·íduos singulart.'::-.) n1,1rc,1n1 de fonna ,·isí,·t.,J
1
t.' PL'rpPtthld,1 ,1 cxistl·ncia do grupo, da con1unidadt.' ou da cl.1.~sc" (Rt1~cr Charticr, "LL· mnndt.•
com me repré·sc>ntation'". in .·111 /1ord de /n/Íl/11i,,·. <'V cit., f7. 78).
/\ MFM(lRI/\, /\ 111sr(JRJ/\, O FSQUFCIMJ:NTO
97 .,\111111/cs, 1991, pp. 1219-123-l. Pode-SL' notar qut> o artigo de Cinzburg L'St,í situado neste número
dos A1111nfcs na ~L'SS,)n "Pratique de lc1 représentation".
98 Ginzburg lembra aqui sua dí,·ida pMa com Gombrich l' seu grande· lino Ar/ mui ll/11sio11, l'rincc-
ton-Bollinger St>ries XXXV.s, l'rinceton-13ollinger l'aperbacks, l'' t'd., 1%0; 2'' ed., 1%1; :l' l'd., 1%9;
trad. fr. de C. Durand, LArt ct /'///11sit111. f'q1c/10/ogic de /17 rcpr<'sc11/atio11 pictumlc, l'aris, G,1llimard,
1979; sem esquecer Mcditations 011 17 Ho/,/,_11 Hors,· t111d ()t/1cr bst7_11s 011 t!,c Thcon/ of /ir/, Londres,
l'haidon, -l'' ed., 199-l.
A lvtr\H)RIA, A HIST(lRli\, O FSQLJTIMI:NTll
nante e detém sua investigação sobre a Eucaristia no primeiro terço do século XIII.
Entretanto, ele acaba por lançar in fine uma tênue ponte entre a exegese da efígie do rei
e a da presença real do Cristo no sacramento'"'.
Nesse ponto, Louis Marin toma o bastão""'. Ele é o exegeta insubstituível do que
considera como o modelo teológico da Eucaristia numa teoria do signo no seio de
uma sociedade cristã. Port-Royal foi o local de eleição para a construção de uma se-
miótica em que lógica da enunciação ("isto é o meu corpo") e metafísica da presença
real trocam suas valências 1111 • Mas a contribuição de Louis Marin ao vasto problema
da imagem é tão considerável que resolvi evocá-la de forma mais completa no pró-
ximo capítulo, na medida em que ela lança sobre o uso da representação no discurso
historiográfico uma luz mais viva do que a autocompreensão que os agentes sociais
extraem de sua própria prática da representação.
Podemos observar nos trabalhos que antecedem o último grande livro de Louis
Marin, Des pouvoirs de l'image 1112 , uma hesitação entre os dois usos de uma teoria geral
da representação. A definição dupla da representação proposta por ele caberia tanto
numa teoria da representação-objeto quanto numa teoria da representação-operação.
Tal definição lembra a de Furetiere: de um lado, "presentificação do ausente ou do
morto" e, do outro, "auto-apresentação instituindo o sujeito de olhar no afeto e no
sentido" (Des pouvoirs de /'image, p. 18). Essa proposta convém de forma equivalente à
expressão literária da historiografia, de que falaremos mais adiante, e aos fenômenos
sociais que antigamente eram abrangidos sob o título de uma história das mentalida-
des. Podemos dizer primeiramente que o historiador procura representar-se o passado
da mesma forma como os agentes sociais se representam o vínculo social e sua contri-
buição a esse vínculo, tornando-se assim implicitamente leitores do seu ser e do seu
agir em sociedade, e nesse sentido, historiadores do seu tempo presente. Todavia, o
que prevalece em Dcs pouvoirs de/' imagc é a eficácia social da imagem: "A imagem é ao
mesmo tempo o instrumento da força, o meio da potência e sua constituição enquanto
poder" (ibid.). Ao ligar a problemática do poder à da imagem, como já propunha a
análise do Portrait du roi 1111, o autor faz a teoria da representação oscilar nitidamente
para o lado da análise da sua eficácia social. Estamos numa região visitada também
por Norbert Elias, a das lutas simbólicas em que a crença na força dos signos substituiu
99 "É a presença real, concreta, corpórea de Cristo nos sacramentos que teria permitido, entre o fim do
século Xlll e o início do século XIV, a cristalização desse objeto extraordinário do qual parti, este
símbolo concreto da abstração do Estado: a efígie do rei que se chamava represc11/aç110" (Ginzburg,
"Représentation: le mot, l'idfr, la chose", art. cit., p. 1230).
100 Compartilho com R. Chartier a confissão da dívida contraída pela epistemologia da história para
com toda a obra de Louis Marin (cf. "Pouvoirs et limites de la représentation. Marin, le discours
et l'image", in Au bord de lnfnlnise, op. cit., pp. 173-190).
101 "É assim, comenta Louis Marin, que o corpo teológico é a própria função semiótica e que, p,ira
Port-Royal em 1683, há adequação perfeita entre o dogma católico Lfa presença real e a teoria se-
miótica da representação significante" (citado porChartier,, p. 177).
102 Louis Marin, Dcs pouz,oirs de /'i11111gc, Paris, Éd. du Seuil, col. 'Tordre philosophique", 1993.
IOJ Louis Marin, Lc Por/mil du roi, Paris, Éd. de Minuit, col. "Le sens commun", 1981.
HIST(JRf.\ / l l'l'ill\Hll()l:IA
a manifestação externa da força num combate de morte. Pascal pode novamente ser
enxado, não mais ennilto na aura da semiótica da Eucaristia e da presença real, mas
na esteira de uma denúncia do "aparelho" dos poderosos. Nesse aspecto, o esboço de
teoria da imaginação nos f'cnsa,11c11to;; jcí era o de uma teoria da dominação simbólica.
É aqui que uma teoria da recepção das mensagens escritas, com seus episódios de
leitura rebelde e sub,·ersiva, permitiria que a teoria da violência simbólica destacada
em De, pouvoirs de /'i111agc viesse juntar-se às im'Cstigações propostas há pouco, sobre a
variedade das respostas dos agentes sociais ii pressão das injunções projetadas na sua
direção pelas diversas instâncias de autoridade. Nesse aspecto, o tipo de esquecimento
ligado ii substituição da força bruta pela força das imagens metonímicamente associa-
das ao exercício desta última não constituía um corolário implacável deste "poder da
imagem"? O último lino de Louis Marin abre outro caminho, onde o primeiro plano é
ocupado pela concorrência entre o texto e a imagem. A teoria da representação pende
nO\·amente para o lado da expressão liter,fria da operação historiográfica.
Mais do que concluir, gostaria de interromper esta seção expressando uma perple-
xidade: uma história das representações pode por si só atingir um grau aceitá,·el de
inteligibilidade sem antecipar abertamente o estudo da representação enquanto fase
da operação historiogrMica? Pudemos observar a perplexidade de C. Ginzburg, pre-
so entre uma definição geral da representação e a heterogeneidade dos exemplos em
que se ilustra a competição entre a evocação da ausência e a exibição da presença. Tal
confissão talvez seja o que convém melhor a um tratamento da representação-objeto,
se for verdade, como supomos aqui, que é na reflexão cfeti,·a do historiador sobre o
momento da representação incluído na operação historiográfica que ganha expressão
explícita a compreensão que os agentes sociais adquirem deles próprios e do "mundo
como representação".
3
A Representação Historiadora
Nota de orientação
C Aplicar-llzc o título de escrita da l,istória 011 lzistoriogmfia é 11111 equívoco. Uma tese
co11sta11te deste liPro (' que a lzistôria é 1111li1 escrita, de 11111a ponta a outra: dos arquiuos
aos ln/os de lzistoriadorcs, escritos, puli/icados, dados a ler. O selo da escrita é, assi111, tra11sfái-
do da pri1111'ira à terceim_fí1se, de u11111 pri111eim i11scriçiio a 1111w lÍ//illlll. Os doc11111e11/os ti11/w111
seu leitor, o lzistoriador "de 1111111gas arregaçadas". O liI'ro de i,istôria tem seus leitores, pote11-
ci11l111e11te qucl/l quer que saiba ler, 1w z,crdade, o público esclarecido. Caindo 11ssi111 110 espaço
público, o livro de l,fslôria, coroa111e11/o do ''.fí1:::.er lzistôria", rcco11d11:::. o seu autor ao ccme do
"fa:cr li i,istôria". Arrancado do 1/llllllio da açiio pelo ilrquiuo, o i,istoriador reinsere-se 11cll' ao
i11scrcucr Sl'll texto 110 11111,uio de seus leitores; por Sllil vez, o /iz,ro de lzistôria faz-se dorn111e11/o,
aberto à série das reinscriçiiô que s11lm1ete111 o conlzcci111ento lzistôrico li 11111 processo co11lí11110
de reuisiio.
Para destacar a dcpe11dls11cia dessa ji1se da opcraçiio lzistôrica do suporte 11wteri11/ e111 que se
i11scn'ue o livro, podc111os_tálar co111 Mic/zel de Certeau de represcntaçiio escrit1míria '. Ou ainda,
para //1/Jrcar a adjunçiio de signos de litcmricdade ilOS critérios de ciL'!llificidadc, podc111osfalar
de represenlaçiio liteníria; de fato,(' graças II essa i11scriçiio tcr111inal que a IIistôria 1111111ifesta
scu pcrtc11cilllento /lo ca111po da litcmtum. Til/ ol>edils11ci11 cs/11p11 dcfÍllo i111plícit11 já 110 p/11110
dorn111c11/i1/; ela se toma 11ll111ifcsta ao se tornilr texto da lzistôrill. Por/1111/o, niio podc111os esque-
cer que niio se tmlil de u111 111oui111cnto de reI'im,,o/ta pelo qual ao a11S1.'io de rigor cpiste1110lôgico
s11l>stit11ir-se-ia 11111 ,ics,,fo esleti:an/e: as /n1s fÍN'S dil operaçiio 1,istôrirn, co1110 já sabei/los, 11110
co11slit11em t'stâgios ,uccssiI'oS, 11111s sim 11íueis intrincados /los quais somcn/1' a prcornp11çiio
didática confere 1111u1 apa1fncia de sucessiio cro11olôgirn.
Uma últi11111 p11!11vra a respeito do vocabulário e d11s cscollws semânticas que o regem. T11/vez
indaguem por que não clz111110 de interpretação esse terceiro nível, como p11rcce lcgítimofazé-lo.
A representação do passado não consiste 111111111 intcrprct11ção dos f11tos asseverados? Sem dú-
vida. M11s, p11radoxo 11p11rc11tc, não se f11z jus à idéi11 de interpret11çíio 110 11ssociá-la somente ao
nível reprcse11t11tivo d11 operaçíio lzistôrica. Mostrarei 110 capítulo seguinte dedicado à vcrd11de
cm lzistôri11 que o conceito de i11terprct11ção tem 11 111es11111 11bra11gé11ci11 de aplicação que o de
verdade; ele desig1111 muito prccis11me11te uma dimcnsiio notável da vis11da verit11tiva da lzistôri11.
Nesse sentido, há interpretação em todos os níveis da opcraçiío historiográfica, por exemplo, 110
nível document11/ com 11 seleção d11s fontes, no nível cxplicativo-c01nprcc11sivo com a cscollza
entre modos explicativos concorrentes e, de forma m11is espetacular, com as variaçôcs de escalas.
O que não impedirá de f11/ar, 110 mo111e11to oportuno, d11 reprrsentação como interpretação.
Quanto à escolha do substantirn "reprcsenfllção", c/11 se justifica de várias maneiras. Pri-
meiramente, porque marca a continuidade de wna mesma pro/Jlemática d11 fase explicativa ii J11sc
escriturária ou literária. No capítulo anterior, 11borda1110s 11 noção de represl'/lt11ção cnqu11nto
objeto priz1i/egi11do da explicação/compreensão, no plano da formação dos vínculos sociais e das
identidades que neles estão cm jogo; e presumimos que a forma como os agentes sociais se
entendem está afimufa com a forma como os lzistori11dorcs se representam essa conexão entre 11
representação-objeto e a ação social; sugerimos até que a dialética entre a remissão à ausência e a
visibilidade d11 presença, já perceptível na representação-objeto, deixa-se decifrar claramente 1w
rcpresentaçíio-operação. De forma mais radical, a mesma cscollza tcm1i11olôgica deixa aparecer
um cio profundo, não mais entre duas fases d11 operação histórica, mas no plano d11s relaçôcs
entre a história e 11 mcnzôri11. Foi em termos de representação que a fc110111enologi11 da memôri11
descreveu o fenômeno mnemônico depois de Platão e Aristóteles, na medida cm que a lembrança
se dá co1110 uma imagem do que foi antes visto, ouvido, experimentado, aprendido, adquirido;
e é c111 termos de representação que pode ser fonnulado o alvo da memória e11qu1111to é dita do
passado. É esta 111es111a prohle111ática do ícone do passado, colocada no início de 11oss11 inuesti-
gação, que volta com força 110 tér111i110 de nosso percurso. À representação 11111c111ô11ica segue-se
no nosso discurso a representação histórica. Esta é a razão profunda da cscolllll do termo "re-
presentação" para denominar a última fase de nosso percurso epistc1110/ôgico. Ora, essa corre-
lação Ji111d11mcntal inzpiic ao ex11111e 1111111 modificação temzinolôgica decisiva: a represe11t11çiio
literária ou escriturári11 deverá dei:rnr-se soletrar c111 ú/ti11111 instância como rcpresentâ11cia, 11
variação ter111i110/ôgica proposta enf11tiza11do não só o caráter atiuo da operaçiio histórica, mas
também a visada intencional que f11z da histôri11 a lzerdcim erndita da ml'111ôria e de sua aporia
fundadora. Assim, será fortemente enfatizado o Jato de que 11 representação 110 plano histôrico
11ão se limita 11 conferir 1111111 roupagem verbal a wn disrnrso cuja coerência estaria co111pleta
1111tcs de sua entrada 1111 literatura, 11111s que co11stit11i propriamente 1111111 operação que tem o
privilégio de trazer ii luz a visada referencial do disrnrso lzistôrico.
Tal será o alvo deste capítulo. Mas este sô será alca11ç11do nos últi111os desenvoh>imcntos.
Antes, aplicare111os os recursos específicos da representação. Co11siderare111os pri111cir11111c11te 11s
jtmnas n111Tativas da representação (seção I, "Representação e narração"P. Já explica111os aci111a
2 Frzinçois Dosse coloc,1 o terceiro percurso de sua obra L'Hisloirc, 017- cit., sob o signo da "nc1rrativ<1"
(pp. 65-9:l). De> Tito Lívio e Tácito, a via narrativa passa por Froissart l' Commynes l' <ltinge Sl'll
IIISfllRI\ / 11'1:-,ll\l(ll(ll;I,\
por que parece ter sido adiada 111111álise da contribuiçiio d11 11armti, 11 p11m 11 Jrm11açiío do di,;rnr-
1
so lzistôrico. Q11ise11uts tirar a disrnssiio do i111pa,;,;e 110 q1111l 11 leu11m111 os p11rtidários e os rufrer-
sârio,; d11 lzistôria-1w1T11tiI'll: para uns, que clza11111rc111os de 11a1Ta/Íi ist11s, 11 configumçilo 1111rmti-
1
1'11 é u111 111odo nplirntiuo 11ltern11tiuo que se opiie 11 explicaçilo rnus11l; para outros, 11
/1istiíri11-proble11w substituiu a lzistôri11-1ll11T11tiu11. M11s para uns e outros 1111rrnr equiI'lllc a cx-
plirnr. Ao repor a 1u11T11ti,•id11de 110 terceiro esMgio d11 opemçiío 1wrmtirn, 1u1011pe1llls 11 li,•m1110.,
de u11111 solicitaç1lo i11apropri11da, co1110 ta111/,é111 li/iera111os 11 poil'11cii1 represe11t11tim nela con-
tida'. Niio nos dctere11ws 11a equaçiio represe11t11ç1lo-1111rmç110. Scní reseruado para um de/iate
específico o aspecto m11is precisamente retórico da co111posiçiio da 11armti, 1a (seçiio II, "Repre-
,;e11taç110 e retórica"): papel selctiuo d11s_figum,; de estilo e de /h'11s11111e11to 1111 esco/lw d11s i11tri-
g11,; - 111obiliz11çiio de argumentos prm 1âuei,; na tra111a da narmti,•a -, preocupaç110 do escri-
tor de co11ue11cer pcrsu11di11do: esses siio os recursos do 1110111e11to retórico da composiç110 da
11111,,-atiua, É a essas solicitaçt'ícs do 1111rmdor por meios retóricos que respondem as posturas es-
pecíficas do leitor 11a recepçrlo do texto'. L/111 passo decisiuo será dado cm direçrlo à proble11uítica
projetada 110 _fim do rnpítu/o com a qucstiio d11s rc/11çiics do discurso lzistôrico com a ficçiio /se-
çiio III, "A represe11taç110 lzistoriadora e os prestígio,; da i111agc111 "). O confronto entre 11armtirn
/1istôrica e 11armtiua dcficç110 é brnz co11/zccido 110 que diz respeito às frmnas literárias, Menos
wnlzccida é a abrangt'ncia do que Louis MarinJigura tutelar dessas páginas, clzama de "podrres
da imagem", os quais dcscn/u1111 os contornos de u111 i111e11so império que é o do outro que 11ilo o
real, Co1110 este 1111se11tc do te111po prl'sente que é o pass11do decorrido 11/io seria tocado pel11 asa
deste anjo da 1111sê11cia' Mas 11 difirnldade de distinguir lemlnw1ç11 e i11111gc111 já 11/io cm o tor-
111cnto d11 ft'110111c1wlogi11 da 111e111ôria 7 Co111 rss11 pro/Jle11uítica específica da composiç1lo e111
i111age11s d11s coisas ditas do p11ssado progride 1111w disti11çiio 11té c11t110 1u10 11otad11 que afr'ta o
tmballzo da rcprese11taçao, 11 s11l,cr, o acrésci1110 de 1111u1 preornpaç110 de ,•isibilidadc à /111srn de
1111w legibilidade própria da 11arraç110. A coen'11cii1 1111rmtiua confáe legibilidade; 11 c11ce1111çiio
do passado evorndo dá a uer. É todo o jogo, e11trn isto u11w pri111eim ue::: 11 propósito d11 rcpre-
1
apogeu con1 J. f\1ichl'il't, antes de bifurcar l'ntrc as \·,irias "\·olta~" J narrclti\'a L' ser incorporada ll
operação historiogr,Hica intt'gr<1l por h-1. de Ccrtl'au.
,.., O presente estudo n1arcl1 urn aL1nço en1 rl'laçJ.o a Tcntp~ ct Rt'l'it, L'ff\. que não SL' L1zia cl di~tinçJu
entre representaçllo-e,plicaçZío e narraçc'iu, de un1 lado porque o probk n1a d<l rl'lação dirl't,1 entre
1
-l Neste ponto tcln1bl'n1, o prL'sentc estudo distinguL'-Sl' de Tc111ps ct Rl\"it, t.'111 quL' os rt.~curso.'-, da rL'-
tlnica nJ.o er(.1111 diferenciados dos da n(.1rratiYidade. ll presente e.'-,forço pcH,1 SL'pcHar O.'-, (.bPL'Ctus
retóricos dos ci.'->pl'ctO.'-, proprian1t.'lltL' St-..'n1iútiO).'-, da n(1rrdti,,_1 L'ncontr,H,Í no debate d . 1.-., tl'.'->L'." de
Haydcn Whitl' uma oportunidadt.' pri\·ilegiadd de testar llO.'-,~,b hipt1tl'SL'.'-, de leitura.
analítico z,isando a distinguir as 111zíltipl11s facetas da idéia de representação histórica em seus
aspectos escriturários e literários; serão assim expostos e desenvolvidos os z,ários recursos da
representaçiio. De outro lado, trata-se de antecipar a cada passo o objetivo últi1110 deste capí-
tulo, que é discernir a capacidade do discurso histórico de representar o passado, capacidade
que c/u111w111os de represe11tância (seçiio IV, "A represe11tâ11cia"). Este título designa a própria
i11te11cio11alidade do conhecimento histórico que se enxerta na do co11!,eci111c11to 11111e111ô11ico na
medida e111 que a 111e111ôria é do passado. Ora, as análises detalhadas dedicadas à rclaçiio entre
representaçiio e 11arrap10, entre rcprese11taçí10 e retórica, entre representação e ficçiio não bali-
za111 apenas uma progress110 no reco,zhccimento da visada intencional do saber histórico, 111as
ta111bé11111111a progrcss110 ,w resisfl;ncia a esse reconhecimento. Assim, a representação enquanto
11arraçt10 mio se volta inge11ua,11ente pam as coisas ocorridas; a forma narrativa enquanto tal
interpiie sua complexidade e sua opacidade próprias 110 que gosto de chamar de pulsão referen-
cial da narrativa histórica; 11 estrutura narrativa tcruie a _fl'char-se e111 círculo e excluir co1110
exterior ao texto, como pressuposto extralingiiístico ilegítimo, o 1110111e11to referencial da narra-
ç,10. A 111es111a suspeita de ní'ío-perti11éncia referencial da represcntaçiio recebe uma forma nova
sob o signo da tropologia e da retórica. As próprias figuras não se interpiiem, também elas,
entre o discurso e o que se prcsul/lc acontecer? Não capta111 a energia discursiva nas armadilhas
dos 111ea11dros do discurso e do pensamento? E será que a suspeita não é levada ao cúmulo pelo
parentesco entre representaç,10 e ficçi'ío? É justamente nesse estágio que ressurge a aporia da
qual a 111e111ôria nos pareceu prisioneira, ,w medida cm que a lembrança se dá como um tipo de
i111age111, de ícone. Como manter a diferença dc princípio entre a i111age111 do ausente como irreal
e a imagem do ausente co1110 anterior? O i11tri11ca111c11to da reprcsentaçí'ío histórica e da ficçí'ío
literária repete, no fim do percurso, aquela 111es111a aporia que parecera ator111cnt11r a fc110111e110-
logi11 da 111el/lôria.
Logo, 1' sob o signo de u111a dramatiwçüo progressiva que se desenvolverá a dinâmica deste
capítulo. A contestação não deixará de duplicar a atestação do propósito intencional da história;
tal atestação trará o selo indelével de u111 protesto contra a suspeita, expressa por um difícil: "E
110 entanto ... ".
I. Representação e narração
~ François Furet, "De l'histoire-récit 21 l'hi .... toire-probll'rne", Dlt\'.:/111', n" 89, 1975, rctrnnado L'I11
a história política ocupara o proscênio com seu culto ao que B. Croce chamava de fatos
"individualmente determinados". Ranke e Michelet permanecem os mestres iniguala-
dos desse estilo de história, em que o acontecimento é considerado singular e não re-
petível. É essa conjunção entre a primazia da história política e o preconceito favorável
ao acontecimento único, não repetível, que a escola dos Annalcs ataca de frente. A esse
caráter de singularidade não repetível, F. Braudel devia acrescentar a brevidade que
lhe permitia opor "longa duração" a "história dos acontecimentos"; é essa fugacidade
do acontecimento que, segundo ele, caracteriza a ação individual, principalmente a
dos tomadores de decisões políticas, da qual se pretendera que é ela que faz os acon-
tecimentos ocorrerem. Em última análise, as duas características de singularidade e
de brevidade do acontecimento são solidárias da pressuposição maior da história dita
acontecimental, a saber, que o indivíduo é o portador último da mudança histórica.
Quanto à história-narrativa, é tida como mero sinônimo da história acontecimental.
Dessa forma, o estatuto narrativo da história não é debatido em separado. Quanto à
rejeição da primazia do acontecimento, no sentido pontual, ela é a conseqüência direta
do deslocamento do eixo principal da investigação histórica da história política para
a história social. De fato, é na história política, militar, diplomática, eclesiástica que,
supostamente, os indivíduos - chefes de Estado, chefes de guerra, ministros, prela-
dos - fazem a história. Também é aí que reina o acontecimento assimilável a uma
explosão. A denúncia da história de batalhas e da história acontecimental constitui
assim o avesso polêmico de uma defesa de uma história do fenômeno humano total,
com, no entanto, uma forte ênfase em suas condições econômicas e sociais. Foi nesse
contexto crítico que nasceu o conceito de longa duração oposto ao de acontecimento,
entendido no sentido de duração breve, que abordamos acima. A intuição dominante,
já dissemos, é a de uma oposição viva no cerne da realidade social entre o instante e
"o tempo que demora a passar". Comparando o axioma ao paradoxo, Braudel chega
a dizer: "A ciência social tem quase horror ao acontecimento". Esse ataque frontal
à seqüência "acontecimento, narrativa, primazia do político" recebeu um reforço de
peso da introdução maciça em história dos procedimentos quantitativos emprestados
da economia e aplicados à história demográfica, social, cultural e até espiritual. Com
esse desenvolvimento, uma pressuposição maior relativa à natureza do acontecimento
histórico é questionada, a saber, que a título único o acontecimento não se repete. Com
efeito, a história quantitativa é, fundamentalmente, uma "história serial"".
Se, segundo os defensores dos Annalcs, a narrativa constitui obstáculo à histó-
ria-problema enquanto coletânea de acontecimentos pontuais e forma tradicional
tí Den1os no capítulo anterior unia descrição sucinta do fortalecimento da noção de estrutura, en-
tendida pelos historiadores no duplo sentido, estático-de arquitetura relacional de um determi-
nado conjunto - e dinân1ico - de estabilidade duradoura, em detrimento da idéi,1 de aconteci-
mento pontu,1! - , enquanto o tern10 de conjuntura tende a designar o ten1po 1nédio em relação ;.10
tempo longo da estrutura (Tc111ps e/ Rhit, t. !, op. cit.). Foi assim que o acontecimento foi relegado
(l terceir,1 posição, depois da estrutura e da conjuntur(1; o acontecitnento é então definido "con10
descontinuidade constatada em um modl'io" (cf. K. l'omian, L'Ordrc d11 tm1ps, op. cit.).
11 lo 1(lRI \ / 1 !'!,;Ti \!UI Ol,I .\
9 L,1wrL'll.Ct..' Stone, "RL'tour ,1u n.::,cit, n.::,flc'\.ions sur une Yit.. illL' histoirl'", Lc [)t'l,at,
1
11'' ---L 1980,
pp. l 16-1-l2.
10 /\ f\1cticn liga e,pn':--.san1entl' a cat,HSL' <l ªl-'fL'l'n...,Jo dl'S'.-.<1 cut.. rl'ncia pL'lo e:--.pL'Ct<1dor. A "purifi-
1
ca,/w" das pc1i,õt..':-, de terror L' piedl1dc l•, llL'::-.<:->l' :--.cntido, o L'frito da con1prct..•n~.l.o intelectual dei
intrig,1 (7i1111is e/ /\c'cit, t. !, op. dt., pp. hn-lll~l.
11 Ft..'rtl'nceril1 tci n-1bl'm a unia teoria gt'r<1l da intriga <l ccitq~oria do rcconhccin1cnto - 111111x11ori~i~ - ,
que dc:-,igna u n1on1t..'I1to narrativo qut..• pcrn1ite ll. concord/incia 1._·0111pcnsar ,l discordclnci<1 :-,uscitc1-
d,1 pl'll1 :-iurprt..'~"1 do <KtH1tl'cin1t..'nto no pn')prio ,~unago dL1 intriga.
A \11:rvHlRIA, A HISTÚRIA, O IS()ULCIMLNT(l
12 Foi em relação à extensão par,1 a história das ccltl'gorias ilustradas pela narrativa tradicional e a
narrativa de ficç.lo qut>, l'n1 Tc111p~ ct J.?.écit, c1crescenki a cli:1usul;:i restritiva "quase" às noções de
intriga, de acontecimento e de personagen1. Eu falava cnt.Jo cm derivação segunda da história
cm relação à narração tradicional e de ficç,lo. Hoje, eu tiraria a clé1usula "quase" e consideraria as
categorias ndrrativas em qut:>stão con10 operadores de pleno direito no plano historiográfico, na
medida en1 qul' o elo prt._'sun1ido nessa obra entre a história e o can1po prático onde se desenrolct
a ação soci,1I autoriza a c1plicc.1r din•tan1ente ,10 don1ínio da história a catL•goria aristotélic;.1 dos
''cltuc1ntcs". () problc•n1a colocl1do deixa dl' ser então o de tona transposição, de tnna extensão i.l
partir de outros usos n1cnos eruditos do narrativo, l' passa a ser o da articulação entre coerl·ncia
narrativa t:' concxid,1de l'Xplic<itiva.
13 Deixo de lado o exan1e dt> um co1nponente de intriga qul' Aristóteles considera corno n1arginal,
embora o inclu.i no perítnctro das "partes" do muthos, d,1 fc1bula, da intriga, a s<1bcr, o cspet<1culo
(opsis) (roé/irn, 57 l' 62 i1 15). Ml·smo que não contribua com o sentido, este último não pode ser
excluído do ca1npo da <1nálise. Designl1 o lado de visibilidade que se ;_1cn_-scentl1 ao lado de legibi-
lidade da intriga. É un1l1 questão de saber at{• que ponto, para a fonna escriturári<1, é i1nportc1nte
encenar, 1nostrar. Aqui, a seduçilo pelo ag:rl1dável son1;_1-se à persuasão pelo provável. Abordare-
n1os o assunto ao trc1tarn1os do componl'llÍl' n•tórico da repn:sentilçilo, l' mais pcuticularn1l'llíl'
l1~socil1ndo-o aos "prestígios dl1 i1nagl'n1".
HISllll,I.\ / 11'1:-,ll\l(llll(,I\
17 "En1 rl'alidade, o carclkr procpssu,1\ da históricl n1odern,1 st') podl' ~l'f aprL'L'ndido por n1cio da l'\.plici-
/'11t11r p1b>1', tip. (it., p. llH).
t1ç,l.o do.<-. ,1eontl'cin1L'Iltos pt:.'l,1s estrutura.'-,, l' inYL'rsan1entc'' (Ko.'->L·lleck, Lt'
Koselil'ck, (, n.>rd,1dt', protesta contr,1 o ,1IT1.cí.lgan1a do ,1contecin1ento L' da L'Strutura. (Js l'.'-,tflÜO.'-> tt._•n1-
por,1is nunca .'->L' fundL'lll totalincnk'; a .'->UCL'SsJu d,í. lugar à .'-,urprl'.'-,a do ,Konh_•cin1ento inesperado./\
rcl,1çJo cogniti,·a dos dois conCL'ito...,, que l· un1,1 relaç,.lo dl' distancian1L'nto, n,.lo L' abolid ..1 ~x,Jo tipo de
11l'gociaçZto qul' c1 narrati,·a in-:..taur,.1 entrl' ek'-:... Concl'itu,.1lid,.1dl' t-..' ~ingul'-iridc1dl' pl'rn1,1nt-..'CL'n1 hl'tt-..'H)-
gl'nt-..' ..lS un1a L'rn relaçJ.o il outr,.1.
;\ MFMllRli\, ;\ HIST(ll\li\, O ES(lUECIMENHl
Dizer algo sobre algo me parecia constituir a virtude do discurso e, por extensão, a
do texto enquanto encadeamento de frases". O problema da referencialidade própria
do discurso histórico parece-me colocar-se de forma distinta, na medida em que uma
tendência ao fechamento, incrente ao ato de composição da intriga, opôc-se à pulsão
extralingüística, extratcxtual, referencial enfim, pela qual a representação se faz re-
presentância14. Mas, antes de fazer ouvir a atestação/protesto que constitui a alma do
que chamo de representância do passado 2'', é preciso ter aprofundado o exame dos
outros componentes da fase literária da operação historiográfica. Estes acrescentam
sua própria denegação de pulsão referencial do discurso histórico àquela oriunda da
configuração narrativa enquanto tal2'.
22 Roland Barthes, "lntroduction ~1 l',1nalyse ~tructurale des n.'.·cib", Cn1n1111111ic11tio/l:-., n'· 8, 1986, Lc~
Nit ca11x de ~c11.-; d11 l'L;l'it, tl'xto reton1ad1..) em Pndiquc du n;cit, Pari~, Ed. du Seuil, 1977. Len1os aí
1
o ~L'guintL': «A nl1rraçào é uma grande fr(l~l', con10 qualquer fra~e constltati\·,1 é, de CL'rta funna, o
esboço de unia pequena narraç<lo"; "a hun1ologia aqui sugerida nc1u ten1 apenas ,·l1lor heurbtico:
irnplic(1 unia identidade entre a lingu,1gem L' a liter,ltura" (np. ât., p. 12).
n r. Rico:.'Uf, Tclll/" l'I t,t'cit, t.11, L11 Configum/1<)}/ d1111, /e r<'cit dcfidio11, l'aris, Éd. du Sl'Uil, mi. '"L'ordrl'
philosophique ", 198-1, rl'l'd., col. "Points Essc1is", llJLJl, cap. 2, '"Ll'S contr,1intes sémiotiqul'S de la
narrativitt.'". A::-. p,ígin,1.;, citad~1s rL'ml'ten1 <l ret_'diçJo.
1\ MLM(lRIA, A HISHlRIA, O ISQUlCIMLNTO
com aquela, mais assustadora, que a história do século XX devia desencadear. Uma
ameaça orientada contra a pretensão referencial da história estava, no entanto, contida
na escolha do modelo saussuriano no plano da semiótica geral; já evocamos as con-
seqüências para o tratamento do discurso histórico da exclusão do referente exigido
pela constituição binária do signo: significante-significado. Para que o estruturalismo
atingisse a história, foi preciso que a preocupação que se pode qualificar de científica
dos seus defensores se somasse a uma preocupação de teor mais polêmico e ideológico
dirigida contra o humanismo presumido de todas as práticas representativas. A histó-
ria-narrativa está então no mesmo banco dos réus que o romance realista herdado do
século XIX europeu. A suspeita mistura-se então à curiosidade, sendo a história-nar-
rativa particularmente acusada de produzir um sujeito adaptado ao sistema de poder
que lhe dá a ilusão do domínio sobre si mesmo, sobre a natureza e sobre a história 24 •
O "discurso da história" para Roland Barthes constitui o alvo privilegiado desse tipo
de crítica desconfiada. Apoiando-se na exclusão do referente no campo lingüístico, o
autor critica a história-narrativa por instalar a ilusão referencial no cerne da historio-
grafia. A ilusão consiste no fato de que o referente supostamente externo, fundador, a
saber, o tempo das n'S gcstac, é hipostasiado em detrimento do significado, a saber, o
sentido que o historiador atribui aos fatos que relata. Produz-se então um curto-circui-
to entre o referente e o significante, e "o discurso encarregado apenas de expressar o
real acredita poder prescindir do termo fundamental das estruturas imaginárias, que
é o significado". Essa fusão do referente e do significado em benefício do referente en-
gendra o efeito de real em virtude do qual o referente, sub-repticiamente transformado
cm significado vergonhoso, é revestido dos privilégios do "aconteceu". A história pas-
sa assim a ilusão de encontrar o real que ela representa. Na verdade, seu discurso não
é mais que "um discurso performativo adulterado, no qual o constatativo, o descritivo
(aparente), na verdade é apenas o significante do ato de fala como ato de autoridade".
No final do artigo, R. Barthes pode aplaudir o declínio da história narrativa e a as-
censão da história estrutural; aos seus olhos, mais do que uma mudança de escola, aí
está uma verdadeira transformação ideológica: "a narração histórica morre porque o
signo da história é doravante menos o real que o inteligível". Faltava precisar o meca-
nismo dessa evicção do significado, rechaçado pelo referente presumido. É o que faz
o segundo ensaio, intitulado precisamente "O efeito de real". Procura-se a chave do
enigma do lado do papel exercido pelas anotações no romance realista e na história
do mesmo período, a saber, os detalhes "supérfluos" que em nada contribuem para a
estrutura da narrativa, para sua seta de orientação; são "campos insignificantes" em
relação ao sentido imposto ao curso da narrativa. É preciso partir dessa insignificância
para dar conta do efeito de real. Antes do romance realista, as anotações contribuíam
24 R. Bartlws, "Le discours de l"histoire", /11j,,r1111/lio11s sur /cs scic1,ccs sociillcs, 1967, pp. 153-166, re-
torn,1do in Lc 1Jmissc111c11/ de li/ /1111g11c, Paris, Ed. du Seuil, 1984. "L'effet de récl", Co111111111zimtio11s,
1968, retornado in Lc 1Jmissc111t•,1/ de lil filll.'{//C, op. cil., pp. 153-174. Evocar-se-á também m•ste ponto
a crític(1 dirigida pelos teóricos do Nouucau R.0111,111 (etn particular, Ricardou e1n Lc Nouucau R.0111011)
contra a "ilusão referencial" no roIn(1110:.' realista.
2~ É prl'ciso un1 debate dL' natureza n1,1it-, técnica a rl'spt.>ito du p,lpt-..'l LLb "anutaçl-)L's" na forn1,1ç,l.o
do "L,fcito de real". QuL' elas constituen1 u,n bom critério para car,1ctcri/,1r CL•rto~ ron1anct-..'S cnn10
rezdista_.., é indubit.Í\.L'l. i'vlas St.'r,í que funcion,1111 d,1 111csn1a forn1a n,1 n,ur,1çJ.o histl)ric .1? r\t10 sa-
be,nos ,10 certn. Eu ~ugeriria at--t-.ociá-t1s il din1en~.Jo t,1nto dL', i~ibilid,1dL' quanto de il>gibilidadL'
das estrutur,1s litcré1ri,1s do discurso hi~túrico ..1-\0 dar a \'L'f tan1bén1 Jc,·,1111 ,1 crer. !\la~, n1e~n10
então, ,is (1notaç0e~ n.Jo podl'111 t--L'r SL'p,nada~ das "not<1s" qul', rdl'gada~ i'lOs rocL1pé~, º"' quais o
romancl' fl'<1listl1 ou nl1turalbt<1 displ'nsa, dL'signl1n1 <1~ fontl's docunil'ntais ll<lS quais '-,L' b,1~l'i<1n1
os enunciados pontul1i~ n'l<iti\'OS a Lito~ isoll1d1..b. As "notcb" <lo, <1...,~in1, ll L'xprl'ssJ.o litl'r<í.ri,1 da
n-.'forl~nci<1 d1..Kun1t.'nt,1\ de prin1eiro grau do discur~o histórico.
2h H,1yden Whitt.', 1\lt'tt1l1ístor_L/. Tlic Hi..;f( 1 J"iL"al I11rngi1111litHI i11 XIX Cc11tw·,11 Europc, l3,1ltin1orl' L' Lun~
dres, Tlw John, l lopkins Unin'rsit\' l'rl'"s. 1LJ7:l; Tropits o/ [)i,u1ur,<'. l3altirnorl' l' Londres. Tlw
Johns Hopkins UniH'rsih· Press, 1978; Tl1t· C,,11tc11/ oft/1<' ro,.,,,, llJ87. Sobrl' css,1s obr,1s, cf. T,·111p, d
I,frit, t. 1, op. cit,, pp, 286-301; t. Ili, ,,p, til., pp, 273-282. Cf. ,1inda R. Ch.irtier, "Figures rhétoriqul'S
t't rq1résl'ntation historiqul'", Au /iord de /,1 tiil,11,c, ''V til., pp. 11l8-12~.
A MrM(lRIA, A IIISCl(rnlA, ll ES(.)Ll[Cl\1U,TO
pertencem a uma única e mesma classe, a das "ficções verbais". Todos os problemas
ligados à dimensão referencial do discurso histórico serão abordados a partir dessa
nova classificação. A segunda amarra rege a distinção entre historiografia profissional
e filosofia da história, pelo menos a parte da filosofia da história que assume a forma
de grandes narrativas em escala mundial. Ficam assim colocados no mesmo âmbito
Michelet, Ranke, Tocqueville, Burckhardt, Hegel, Marx, Nietzsche, Croce. A proble-
mática comum a todos eles é dar à imaginação histórica a forma de discurso, de um
modo que leve em conta a retórica e, mais precisamente, a retórica dos tropos. Tal
forma verbal da imaginação histórica é a composição da trama, o c111plotn1c11t.
Em Mctalriston1, a abrangência do olhar do autor manifesta-se no fato de que a ope-
ração de composição da intriga é retomada por uma seqüência ordenada de tipologias
que dão ao empreendimento o feitio de uma taxonomia bem articulada. Mas nunca
se deve perder de vista que tal taxonomia opera no nível das estruturas profundas
da imaginação. A oposição entre estrutura profunda e estrutura manifesta não é ig-
norada nem pelos semioticistas, nem pelos psicanalistas. Na situação específica das
ficções verbais, ela permite hierarquizar as tipologias em vez de espalhá-las e justapô-
las. Assim, as quatro tipologias que vamos citar e as composições resultantes de sua
associação devem ser tidas como as matrizes de combinações possíveis no plano da
imaginação histórica efetiva.
A execução desse programa é metódica. A principal tipologia, a que coloca H.
White na esteira de Vico, a tipologia das intrigas, coroa uma hierarquia de três tipolo-
gias. A primeira depende da percepção estética: é a dimensão story da intriga. De forma
semelhante à de Louis O. Mink, a organização da história relatada vai além da simples
cronologia que ainda prevalece nas crônicas, acrescentando à "linha" - story-li11c -,
ao fio da história, uma organização em termos de motivos que podem ser chamados de
inaugurais, transitórios ou terminais. O importante é que, como para os defensores do
narrativismo exposto acima, a story tem "um efeito explicativo" em virtude unicamen-
te de seu dispositivo estrutural. A retórica entra aqui pela primeira vez em competição
com a epistemologia do conhecimento histórico. A gravidade do conflito é aumentada
por duas considerações: quanto à forma, como insiste a última obra de H. White, de-
veremos dizer que a composição da intriga tende a fazer prevalecer os contornos da
história sobre as significações distintas dos acontecimentos narrados, na medida em
que a ênfase incide na identificação da classe de configuração na qual se inscreve tal
intriga. Quanto ao que presumivelmente antecede a construção da forma, o retórico
não encontra nada anterior aos esboços de narrativização, senão um fundo inorganiza-
do - um 1111proccsscd lzistorical rccord. A questão está aberta ao debate do estatuto dos
dados factuais em relação à primeiríssima construção da forma da história narrada.
A segunda tipologia refere-se mais aos aspectos cognitivos da narrativa. Mas, à
maneira dos retóricos, a noção de argumento é considerada mais em sua capacidade
persuasiva do que na demonstrativa propriamente dita 27 . Que exista uma forma de
27 Un1c1 teoria retóric,1 da argumentação não é a1hf..'ia ao debate contemporâneo. Cf. Wayne C. Booth,
IV1ctoric of Fictio11, ChiCilgo, The University of Chicago Press, 1961. Mais perto das relaçües entre
argumentar própria do discurso narrati\'o e histórico, e que esta se preste a uma tipo-
logia própria, constitui uma idéia original, quaisquer que sejam os empréstimos feitos
a outros campos além da história da distinção entre argumentos formalistas, organi-
cistas, mecanicistas e contextualistas 2 '.
A terceira tipologia, a das implicações ideológicas, depende, antes, dos modos de
engajamentos morais e políticos, portanto, da inserção na prMica presente. Nesse sen-
tido, está ligada ao que Bernard Lepetit chama de presente da história. Enxaremos
mais adiante o problema le\·antado por essa tipologia, por ocasião do e1woh·imento
dos protagonistas em certos acontecimentos que não poderiam ser separados de sua
carga moral.
Ocorre então a composição da intriga, considerada por H. White como o modo ex-
plicativo por excelência; foi de Northrop Frye, em A A1111/0111ia da Crítica, que H. White
tomou emprestada sua tipologia de quatro termos - romanesco, trágico, cômico, satí-
rico-, aproximando-se assim da retórica de Vico.
Se fosse necessArio caracterizar com um termo próprio o empreendimento de
H. White, seria preciso falar, como o próprio autor, em teoria do estilo. Cada combi-
nação entre elementos que pertencem a uma ou outra tipologia define o estilo de uma
obra, que poderá ser caracterizado pela categoria dominante 2''.
Não se trata de negar a importância da obra pioneira de H. White. Podemos até
lamentar, com R. Chartier, o "encontro perdido" entre Havden White, Paul Vevne e
Michel Foucault, seus contemporâneos nos anos 70. A idéia de estrutura profunda da
imaginação de\'e sua indiscutível fecundidade ao elo que estabelece entre criati\·idade
e codificação. Esse estruturalismo din,1mico é perfeitamente plausÍ\'el. Separados do
imaginário, os paradigmas não passariam de classes inertes de uma taxonomia mais
ou menos refinada. Os paradigmas são matrizes destinadas a gerar estruturas mani-
festas em número ilimitado. A esse respeito, a crítica segundo a qual H. White não
teria escolhido entre determinismo e line escolha parece-me fácil de ser refutada: cabe
precisamente a matrizes formais abrir um espaço limitado de escolha. Pode-se falar
nesse sentido de uma produção regrada, noção que lembra o conceito kantiano de
esquematismo, esse "método de produzir imagens". Resulta daí que as objeções al-
ternadas, de rigidez taxonômica ou de errância no espaço das \·ariações imaginati\'as,
deixam de lado a originalidade do projeto, quaisquer que sejam as hesitações e as fra-
retúric,1 e lúgica. Stephl·n E. Toulmin, T/1,· Lhe,,,( J\rg11111l'III, Cambridgl', C1mbridgL' Lni,·ersil\·
Press, 1958; tr,1d. fr., Lc, L/,agc, de /'arg11111c11t,1tio11, P<1ris, l'UF, llJLJl.
28 Afin,1! de contas, a idl,ia n,1o l' estranha <l rodil'l7 de /\ristl)tek'~, na n1cdida L'lll que uni coeficiente
de probc1bilií.ic1de t>st/i ligado ,l crnnposiçt10 da intrig,1. De rc:-.to, a metáfora depl'lldL' t,1nto da rl'-
tórica, cnqthlnto teoria dos discursos pro\·,h·L·is, qu,111to d,1 poética, l'nqu,1ntu teoria da produçJo
dos discurso~.
29 É com a noção dL· L'Stilo SL·gundo C.C. Gr,1nger ([ssai d'1111c plzih)'>1111l1ic d11 sf_ttfc, Pari:-., :\rn1and
Colin, 1968) qul' seria preciso cornparar o concl'ito do nlt..'smo non1e :-,cgundo H. Whitc, con1 un1a
diforença: nc:-,te últin10 o estilo não L· a prodw;,1o concert,1da de u1na rc:-.posta singul,ir ,1propriada
a un1a situação igualn1p11te singuL:ir, n1a:-, a L'\.pre~sã.u no pL1no n1anife<:,to da':, coerçôe~ que regem
as estruturas profunda~ dl1 in1agina\c1P.
A 1'11"M(JRIA, A IIIST(lRIA, () ESQUl:Cl\1EN10
quezas da execução. A idéia de que o autor foi tomado pelo pânico diante do ilimitado
de uma possível desordem parece-me não só inadequada como injusta, dado o caráter
de processo de intenção que ela assume 111 • A expressão um pouco dramática de bcdrock
of ordcr (rocha ou sustentáculo de ordem) não poderia desviar a atenção da pertinência
do problema colocado pela idéia de uma codificação que funciona ao mesmo tempo
como um constrangimento e como um espaço de invenção. Abre-se, assim, espaço
para a exploração das mcdiaçôes propostas pela prática estilística ao longo da história
das tradições literárias. Tal conexão entre formalismo e historicidade ainda está por
ser feita: cabe a um sistema de regras, ao mesmo tempo encontradas e inventadas,
apresentar traços originais de tradicionalidade que transcendem a alternativa. O mes-
mo acontece com o chamado estilo. Em compensação, lamento o impasse no qual se
fechou H. White ao tratar das operações de composição da intriga como modos expli-
cativos, tidos, na melhor das hipóteses, como indiferentes para os procedimentos cien-
tíficos do saber histórico, na pior, como substituíveis por esses últimos. Existe aí um
verdadeiro rntcgory 111ist11kc que gera uma suspeita legítima quanto à capacidade dessa
teoria retórica de traçar um limite nítido entre narrativa histórica e narrativa de ficção.
Na mesma medida em que é legítimo tratar as estruturas profundas do imaginário
como matrizes comuns à criação de intrigas romanescas e à de intrigas historiadoras,
como atesta seu entrecruzamcnto na história dos gêneros no século XIX, torna-se ur-
gente especificar o momento referencial que distingue a história da ficção. Ora, essa
discriminação não pode ser feita sem sair do âmbito das formas literárias. De nada
adianta então esboçar uma saída desesperada recorrendo simplesmente ao bom senso
e aos enunciados mais tradicionais a respeito da verdade cm história. É preciso arti-
cular pacientemente os modos da representação com os da explicação/ compreensão
30 Hans Kellnl'r, L1111g1111gc 1111d Historirnl I,c1ircsc11/11tio11. Cctting //,e Story Crookcd, Madison, Tlw Uni-
\'l'rsity of Wisconsin Pre,s, 1989. O alvo de ataque é duplo: é por um lado a crl'nça de que fora
existe t11na históriil que pede par,1 ser contada, por outro lado, a pretl'ns{1o de que essa histúria
possa ser "dit.1 de fonna direta" (straight) por utn historiador honesto ou industrioso usando o
método certo (rishf). Apenas a segunda crítica atinge 11. White. l laveria algo volunt..írio, repres-
si\'O por fi1n - como tarnbén1 se lê en1 M. Foucault -, na in1posição d,1 orden1. A defesa oposta
da descontinuidadL• con1eça j,l na consideração do documento, cercado do prestígio dos arquivos.
Os destroços do passc1do estão espalhados, n1as tan1bérn os testen1unhos sobre esse passado~ a
disciplina docun1ental son1c1 seus próprios efeitos de destruição seleti\'a a todas as n1odalidades
de perda de inforn1ação que n1utibn1 a pretensa "evidência docu1nental". Assim, ,l retórica não
se so1na il documL•ntação, cercando-a desde a fonte. Pedir-se-ia então da narração que atenuasse
a angústia suscitada pelas lacunas da evidência docun1ental. Mas a narr<.1çdo provoca por sua vez
novas .:insicdades, ligadas a outras descontinuidades. Aqui intervé1n o debate co1n zi tropologia
introduzida por H. Whitl'. A leitura trnpológica, diz-se, torn,1-se por sua Vl'Z perturbador,1 - por-
tanto, fonte de novzi ansiedade - se não se reconstrói u1n no\'o sistc1na na base dos quatro tropos
de White. O pretenso "/,cdrock of ordcr" também dl've ser considerado como um jogo alegórico cm
qul' a ironia é reconhecida ao n1es1no te1npo con10 tropo 1nestrl' dentro do sisten1a e ponto de vista
sobre o sisll'ma. 11. Whitl' torna-se suspeito de ter recuado frente ao que ele próprio chama, com
um misto de simp,ltia e .. de ansiedade, no fim de Trop;c, of Oiscoursc, de "//,e absurdist 111,1111rnf".
<._) crítico não nos diz con10 seria preciso escrever a história, ne1n con10 a profissão de historiador
negocia con1 t11na dúvida que nfio seria ''hiperbólic<1'', 1nas vcrdadeira1nente n1ch)dicl1; lin1ita-se tl
nos dizer con10 não se pode escrl'ver a históric1.
HISIORI \ / l l'l~íl \llllllCIA
31 Saul Friedlandl'r (dir.), l'ro/,i11s ti,,· LinJits ,,( R,·prcs,·11t11tion, "1'· l'il.
32 Dois de Sl'U~ artigos cn1 Tl1c Co11tc11t (:f tl1c Fon11, op. cit., ''The ,·aluL' of narrativity in thL· represl'n~
tation of re(1lit~" e "The politics of historical interpretation", SL'rian1 o l1l\'o das críticc1s ,·indas do
c.-1111po dos historiadores profissionai~, hhnnigliano, Cinzburg, Spiegel, Jacoby.
11 :\s PL'Ç(ls princip,1is dessl1 controv0r~ia furan1 publicadc1~ sob o título Historikcr:-trcit, tvlunich,
Piper, 1987; trad. fr. ~ob o título Dcz 1111t /'/li-...flJÍ/·c. Lc..; docw11c11ts de !11 Cl111trm. cr~c s11r la ~i11s11larifr de
1 1
/'cxll'n11i11ntio11 dcs /111(, pnr /e n'gi111c 110:i, Paris, Ed. du Cni, 1988, O iarnoso título de Ernst Noltl',
"Un passl' qui nL', eut pils p,1sser", teria, no resto do 111undo ocidental, o de~tino quL' se sabL'. Hen-
ry Rousso acabiHÍa por apliccí-lo il n1emúric1 franCl'Scl du fL'ginll' dl' \'ichy sob o título rnodificado
L/11 pnssl> qui 11c passe /ltb.
A MIM(lRIA, A HIS!'(lRIA, O FSQUECIMLNTO
34 "Thc cx/cn11i1111/io11, of //1c /czl's of Europc as lhe lllosl cxtrclllc CIN' of 11111,;,; crillli1111/itics 11111st c/111//c11gc
thcorclicia11s of hislorirnl rc/11tiz,is111 to f11cc thc coro//arics of positio11s othcnuisc too msih1 dca/1 with 011
111111/Jstmct lcl'C!" (l'robi11g lhe Li111its of Rcprcsc11/11tio11, op. cil., p. 2). É bem verdade que Friedlander
reconhece com os críticos que não é possível son1ar numa super-história o ponto de vista dos
executantes, das vítin1as e dos espectadores que assistin.1n1 aos aconteci1nentos em posições dife-
rentes. A dificuldade, então, nilo seria uma invenção do pós-1nodernisn10; este teria servido como
re\'l'ic1dor quanto ,1 un1 inL•xtriGível dilema suscitado pela "própria 'solução final"'.
IIIS](lRI\ / l 1'1,11 \l\ll llCI·\
3.'.) Por qul' nào o gênL'rt) cón1icD, praticado t.'nl ton1 dl' ~t1tir,1, con10 L'lll A1inh: S11rz h. 11/'~ 1i111' de Art
1 1
Spiegeln1an? T,1111puuco h,1 argu111ento deci~i\·o L'\.traído da hi~t()ria dos gl•neros literj.rio~ pcH,l
julgar a tent,lti\'a dl' rL'prL'SL'ntação tr.:lgic,1 nos dois ensaios de A. HillgrubL'r en1 Ztl'cicrlci LJ11tcr-
ga11g: díc 7cr~â1lag1111g de:::. Dcut-.clTc11 H. cicl1c..;; 11nd da~ L11dc de:-- F.11n1piii~d1c11 /11dc11t11111s, l3crlin, Siedil'r
Vl'rlag, 1986 (trad. ingl., T11,,, Kíll[/, o{ R11i11. t/1c Sliattcri11g o{ til e Ccn11,lll l,cid1 ,111d tl1c F11ropc,111 /Cil'rl/).
:\Jada inlpl'de que :--L' heroicizen1 os car,lL'ÍL'fL'S exigido~ pl'lo n1odo trcigico. Outro colabor,1dnr cun1
o \·olun1e de Friedlander, Pt-.'ter AndL'r~on, L'\.plora ot-. rL'cursos de uni gênero liter,üio prÓ\.ÍllH) da
t"ol!11tio d;.1 antiga fL'tÓrica pr,iticada pL•lo n1esn10 Hillgruber, o procedin1ento que consistt:' en1 colo-
cir du,1s narr.1çCws unia clO lado da outra, ,1 do assassin,ito dos judeus e a d.d expulsão do~ c1len1JL'S
do..., antigos terriknio~ do Lt>ste: ju~L1posiçilo, sugerl'-Sl', não ,·,1Ie con1paração. Mas é po-..sí,·L'i
l'Yitclr de~culp,1r lllll,l por trclnSÍL'rl•ncicl da carga er11ocionc1l de lllllJ. J. outra?
A MEM(JRIA, A IIISTORIA, O ES(lUl'UMENTO
36 A grandl' obra de' F. Auerbach é intitulada Mi111csis: 011rgcs/cl/tc Wirk/icilkcit i11 der 11/Jc11d/h11disc/1c11
Lilcmtur, Bcrnl', FranckL', 1946; trad. fr. de Cornl'lius Heim, Millll'SÍs: /11 rcprésc11t11tio11 d,· /11 r,'11/iti'
d1111s /11 litti'mlurc occide11/n/c, Paris, C,1llimard, 1968. E\'oco-a em Te11111s ct Récil, t. li, op. cit., p. 157,
n. 2. No primeiro capítulo, o t1utor insiste na profundidade, na riqueza co1110 pano de fundo das
personagens bíblicas, con10 Abraão, o apóstolo P<.1ulo, diferente,nente das personag:pns ho1néricas
Sl'm dcnsid,1de. Auerbach \'t' nessa profundidade um indício de realidade'.
:37 Cinzburg pensa atingir o argun1ento de White ao trnzer à tona suas raízes suspl'it;.1s no n•lativis-
1no e no idealismo dos pL'nsadores italianos Benedetto Croce e Gentile. Ele segue seu rastro até en1
Tlic Co11/c11I of file Form de 1987.
lllcHll<I\ / 11'1:-,I\\Hl\ll(,\.\
.18 Foi assin1 111esn10 que Fril'dlander rl'Cl'beu o L'n~aio cJL, Ccirlo Cin/burg: "En1bor<1 (1 críticl1 das
po-.;içücs de VVhitl' j .. ] optl' por unia <1bordagc1n epistcn10\ógica, a deft__'sd apc1ixon,1da dt.' Carlu
Cin1:burg da objetiYidade l' da VL'rcL1dc histl')rica ba~eia-se tanto nun1,1 posiç<lo profundc1n1L'n-
tl' l'tic,1 quanto cm c,üegorias ,1nalític.1:-." {Fricdlander [dir.], JJroliiJlg t!1c Limits 1:f' R.eprc~c11tatu 111,
,,,,, ,it,, p. 8),
Jl) Enl lllll dos L'llS,lio:-. fl'Ut1idos por Sl1ul Fril'dbndcr, e. R. Bnn\ ning expõe seu trc1bc1lho :-.obrL' lh
arquin)s de uni baL1lh.."io da políci,1 de fL'SL'n·a ,1\cm,l l'ln opL'raç,l.o nun1a cidc1dL'7inha polonesa:
"Cern1<1n n1e1nory, judici(1l intt.•rrog(üion and historical rl'con~truction: writing- pL'rpt.'trator his-
tor\' from postwar kstimonv" (iliid., pp. 22-~6).
A MLM(lRIA, A IIISIÓRIA, O ESQUFUMFN 10
tar: "Wlzat does coming to tcmzs witlz (A11far/Jeit1111g) tlw past 111ca11?""º Pode ser de algum
socorro recorrer de forma prudente a categorias psicanalíticas tais como trauma, re-
petição, trabalho de memória, entendido como worki11g tlzro11glz, e, acima de tudo, à
de transferência aplicada não a pessoas, mas sim a situações nas quais os agentes da
história foram diversamente "investidos". Por outro lado, arriscamo-nos a fazê-lo ao
falar dos usos e abusos da memória e singularmente dos embaraços da memória im-
pedida"'. É numa situação comparável que o trabalho da história é confrontado com
os acontecimentos no limite. É preciso retomar como ponto de partida, aqui, a diver-
sidade das situações das testemunhas convocadas, tal como foi evocada acima: não se
trata apenas de pontos de vista diferentes, mas de investimentos heterogêneos. É a via
explorada por Dominick La Capra em sua contribuição a Probi11g t/zc !i111its ... : antigos
nazistas, jovens judeus ou alemães, etc., estão envolvidos em situações transferenciais
diferentes. A questão então é saber se um critério de aceitabilidade poderia ser extraí-
do da maneirn como determinada tentativa de tratamento histórico de acontecimentos
supremamente traumáticos é suscetível de acompanhar e de facilitar o processo de
working tlzro11glz" 2 • Nesse sentido, o critério é mais terapêutico do que epistemológico.
Seu manejo é difícil, na medida em que o historiador está, por sua vez, numa relação
transferencial indireta com o traumatismo através dos testemunhos que privilegia. O
historiador também tem um problema de identificação no momento de escolher seu
·uis-à-vis. Tal redobramento da relação transferencial confirma a posição híbrida do his-
toriador confrontado com o Holocausto: ele fala na terceira pessoa enquanto cientista
profissional e na primeira pessoa enquanto intelectual crítico; mas não se pode fixar
40 Citc1do por Dominick La Capra, "Represl'nting tlw Holocaust: reflections on the histori,rns' Lfrba-
tl'" (ibid., pp. I08-127).
41 Cf. acim,1, pp. 83-86.
42 "How ,'1011/d OllC Hcgociatc lmllsjcrrnlit1/ rc/atiolls lo //,e objcc/ of study'", pergunta La C,1pra (Frie-
dbnder [dir.], op. cit., p. 110). Est,, aplica sem demora seu critério aos termos dl' um dos debates
n1Jis agudos da controvérsi~1 dos historiadores 1.1k·n1cles: il questão era Si.lbcr se o Holocausto (foi
o termo escolhido pelo autor, que justificc1 cuidadosamente a escolha: op. cit., p. 357, n. 4) deve ser
tratado, enquanto fcnCHneno histórico, con10 llnico ou con1pari.1vel. Este não é nosso proble1na
aqui; ,nas é interessante notc1r ;:i forma con10 La Capra aplica seu critério que se pode cha1nar de
tcrapt'utico. Hcí uni sentido, diz elf', en1 que o aconteci,nento deve ser tomado con10 único, tanto
pet1 tnagnitude de seus efeitos devastadores quanto por sua origc1n no con1porta1nento de uni
Estado crirninoso; há u1n sentido en1 que é cornparcívcl, na n1cdida f'tn que unicidade está ligada
,) diferença e diferença, ,l cornparaç<lo, e e1n que con1parar pertence a entender. Mas é a forn1a
co1no o argun1ento da unicidade e o da co1npc1rabilidc1de são 1nanejados que in1portc1: zi questão
é s,1ber a cadl1 vez, por exen1plo, se a con1paração contribui, ao nivelar as situaçôes, à denegação,
ou ent.Jo, ao contn.írio, se a proclan1ação vt..•en1ente da unicidade inco1npc1rcível do acontecimento
não leva, nl1 via da sacralização e da n1onurnentalização, cl unia fixação do traumatismo que seria
preciso assi1nilc1r, co1n Freud, à repetiç.Jo, a qual, co1no já vi1nos, constitui a principal resistência
ao worki11g tllroug/1 e leva ao atolan1ento no acting out. Pode-se dizer o n1es1no da escolha de escalas
evocada acin1c1, segundo se 1nergulhe n,1 vid,1 cotidiana do povo ,1le1não ou se St..' tente desvendar
o segredo da decisão na cúpula. A questâ.o deixa então de ser a da prin1azia da unicidade ou da
co1nparabilidade, ou até da Cl't1tralidade oposta à 1narginalidade, passando a ser ,1 de sabcr de que
fonna tal abordagen1 contribui para urna boa negociação das "relações transferenciais co1n o ob-
jeto do estudo". ()ra, os in1passes do z11orki11g througll não são menores de u1n lado que do outro.
HISHlRI \ / l l'ISH\l(llOCI\
-U Jürgen Hl1berma'.-->, [í11e .-\rt Sdmdc11::-;11! 1t1'iL"kl1111g, Francfurt, 1987, p. lh.~. () /lrtigo pode SL'r lido cm
frl1ncl's in Vcl'1111t /'111::-tnirc, sob o título: "Une n1c1nil'rc de liquidl'r il''.--> don1rn,lf!;t.''.-i. LL'S tendances
apologétiques dans \'historiographie contL't11poraine c1llen1ande" (op. (it., pp. -+7-61).
-+..t- Nada l' dito aqui da influl'ncia benéfica '.-->obrL' a rnen1úri,1 colctiYa que se pode espcr,1r d,1 <1prc-
St'nL1çZ10 L' da publicaçZll) do'.-, gr,111LiL·s procL''.-iSO'.-i cri minai'.-, da '.-icgunda metade do século XX. Ela
/1 MI.MtlRl/1, ;\ ll!STÚRl/1, ll J'S()Lil:CIML'clO
sup<lt-.> c.1 qu;_1lificaç<lo penal dos cri1nes de n1assil, logo, urna junção entre julgan1cnto 1norc.1I e julga~
mento legal. A possibilicfade ciP tal qualificação está inscrita no próprio acontecimento enquanto
crime do terceiro, isto l·, de~se Estado que deve segurança e proteção a quen1 quer que resida en1
seu território de jurisdiç<lo. Esse aspecto de "historici;:açào" dos ,1contL•cirnentos traun1,íticos não
diz respeito apl'nas à sua figuraç5o, mas à sua qualificaçJo legal. (Cf. Mark Osiel, Mass Atroci/1/,
Col/cctiuc Mc111on; ,md t/11• Lmu, New Brunswick [USA], New Jersey (USA), Transaction Publ., 1997.)
Voltarcn1os a esse ponto quando da discuss<lo sobre as reL.1ções entre o historiador e o juiz. Mas
pod('111os dl'sdc j~í obsprvar que essa qualificaçJo legal dl's1nentc a tese segundo a qual o aconteci-
1nento Auscll\vitz seria indizí,·t..•I sob todos os aspectos. É possível e é ncCE'SSéírio falar dele.
IIISllll,1 \ / 1 i'JSJ 1 \\()Jl)(;J,\
-+S É na bclSe de Ulllà "relaçcl.O dL' contrciponto" entrL' a ficçfío L' O n1undo histórico que, f'lll Tc111v~ cf
Rt;cit 1/l, trato d.L' "o e11trL'(Tuzc11nento da histúria e dei ficçJ.o" (cap. 5), após tL·r considerado sepa-
1\1dan1c11te, de uni lado, "a ficç,l.o e ,is Yaria~-ôl's in1.1gin.1ti\'as sobre o te1npu" (cap. 2) e, de outro,
"a rL'c1lidade do passado histórico" (cap. 1). A opç.:lo do li\·n_) era entã.o t'Xclminar diretan1ente ll
relaçZio entre a narrati\·a e o tetnpo sen1 considl'rar ,1 n1en1ória, l'ra "a neutrali?aç,l.o do tempo
hish)rico" que n1e St..'rvia con10 tt·ina de introduçZlo p,ira o grande jogo das variações in1aginativa~
produzidas pelõ ficção sobre o loc,1! da folha L'ntrc ten1po ,·i\·ido e ten1po do n1undo; a alforric1
da n,irrativ,1 de ficçZlo quanto J.s impo~ições dn ten1po cakndcírico era assin1 considerada un1 fato
de cultura docun1entado pela história litercíria desdC' a q.-1opéia e a tragédi,1 grega atL, o romance
n1oderno e contemporcineo. A pc1lavra ''pacto" foi pronunciada unia \·cz (Temps ct R('cit, t. II, op. cit.,
p. 168), cm referência ,1 obra de Philippe Lcjl'UI1L'. /e l'act,· <111tobiogml'liiq11c, Paris, Ed. du Scuil, l'-J7'i.
--16 O n1undo do texto: "e:-.te n1undo no qual p(Xil'rí,11nos morar e desdobrar nossas potenci,1lidades
111c1is pessoais" (7,•11111s ct Rt'cit. t. Ili, op. cit., p. l-+9). Esse tt:m,1 é introdu7iLio cm Tc11111s ct Rt'ât l sob
o título da tríplicl' 11ii111c-:.i~, a refiguraç<lo constituindo o terceiro estágio no n1ovi1nento da figura,
após a configuraç,lo, e, n1,1is aci1na, a prefigurc1ç,lo du tl'mpo (Fc111p..; l'f Rt\_"if, t. 1, op. cit., Afr11IL':,i:, lll,
pp. 109-129). A tl'oria dos efeitos cruz,1dos dei narrati,·a dl' ficçã.o t.' da narrativa hisk,rica constitui
'-1 peça-n1c~tra dos dispositivos de refigur.1ç,ll) do tl'n1po en1 Tc111p~ ct Rl\-it III, cap. :=;. A ünic,1 ques-
tã.o l1utori?,1da, dl'~dt.' que se acl'itl' con10 Cl'rta c1 diferença entre gl nl'ros liter,írios j,í constituídn...,,
1
é ,l do "entrl'cn1z,1111entl) da hish)ric1 l' d,1 ficç.io" no plano dl' rL'figurcl\'clu l'fl'ti\·,1 do tl'n1po ,·i\·ido,
~L't11 consider . ir a n1ediaçZio d'-1 n1e1n()ric1. Es~l' l'ntrecruL,1!1ll'!lto con~istc no fato dl' que "c1 história
e a ficç,lo só concrL'tÍ/an1 c ..1dc1 un1a ~ua rL•~pt.-cti\·l1 intl'nciunc1lid,1dt.• quando rl'corren1 ~1 intl'ncio-
nalidadc da outra" (op. (Íf., p. 26'.l). De uni lado, podl'-~l' fa\,u l'lll hi~toriza~;.lo dc1 ficçclo na medid,1
l'lll qut' ,1 sut-pL'ns .lo con1plact..'nte d,1 ~u-.;pl'it.,-,.lo bc1sl'ic1-_<.,l' nun1,1 lll'Utr,1\iz,1çã.o dos tr.1ços "rL'c1lis-
tc1s" não só das narr,1ti,·as histórica~ n1ai~ l'iabor,1dc1s, 111,1s t,1n1bL~m da~ n,urati,·a.s dl' ,·id,1 n1c1i'.:-i
L'spunUinl'as, zissim como dl' toda~ a:-; n,1rr,lti\·,b lig,1das c10 que Sl' pode charn,u dL' narrati,·as dt.'
cot1\'l'rs,1çt'lo. Já o rl'pl'timos com l lc1nn ..1h :\rt.'ndt, ,1 narrati,·,1 diL o "que111" da ação; t:, ,1 ,1ç<lo con10
n1odl'lo dl' cfl'ti\·id,1dl' qt1l' le\·,1 ,1 n,1n"c1ti,·c1 pard '.:-,llc1 l'Sfr'ra própria; nesse sentido, narrar o que quer
qul' sej,1 l· narrá-lo nn110 '.'-l' tivesSL' Jcontt.>cido. O "crnno SL' t.'fcti,·,1n1L'tltL' ocorrido" faz parte do senti-
;\ MFM(lRJA, A HIST(lJ<JA, O FS(Jl'ITIMFÍ'CTCl
do que atribuímos a toda narrativa; nesse nível, o sentido in1anente é inseparável de uma referência
externa, asseverada, negada ou suspensa; essa aderêncic1 da referência ad extra ao sentido até na
ficção parece implicada pelo caráter posicional da asserção do passado na linguagem comum; algo
que foi é afirmado ou negado; resulta daí que a narrativa de ficção mantém esse traço posicional na
forn1a do quase. Quase-passados são os quase-acontecimentos e as quase-personagens das intrigas
fictícias. Além disso, é graças a essa simulação de existência que a ficção pode explorar os aspec-
tos da temporalidade vivida que a narrativa realista não atinge. As variações i1naginativas sobre
o tempo que explorava Te111ps et Récit Ili extraem sua força de exploração, de descoberta, de revela-
ção, das estruturas profundas da experiência temporal; daí resulta o carMer de verossimilhança qm'
Aristóteles associava às fábulas épicas ou trágicas. É graças a essa relação de verossi1nilhança
que a narrativa de ficção está habilitada a detectar, na forma das variações imaginativas, as poten-
cialid,1des não efetuadas do passado histúrico. Por outro lado, produz-se um efeito de "ficcionaliza-
çào da história", atribuível à interferência do imaginário nesse aspecto: a construção dos aparelhos
de medida do tempo (do g11ô111,,11 ao calendário e ao relógio) e de todos os instrumentos de datação
do te1npo histórico - u1n produto da imaginação científica; quanto a esses rastros que são os do-
cuml'ntos de arquivo, eles só se tornan1 legíveis a partir de hipóteses interpretativas produzidas
pl'lo que Collingwood chan1ava de imaginação histórica. Esbarráva1nos, então, nutn fenômeno ao
qual a presente an(.ílise vai voltar e que vai n1uito além das mediações in1agithhias que acabamos
de enumerar: a saber, o poder de "descrever" ligado à função propriamente representativa da in1a-
gin(.1ção histúrica.
47 R. Koselleck, "Représentation, (•v(,nenwnt l't structure", in Lc F11t11r passé, op. cit., p. DJ. Entre os
problemas da representação (Darstcl/1111g), o autor distingue l'lltn• narr.ir (crzii/J/c11) l' descrever
(hcscltrc;/n'11), a estrutura ficando do lado da dcscriçJo l' o aconteciml'nto, do lado da netrrati\'a.
Cf. acima, pp. 235-238.
HISTOR!\ / l l'IST,\llll lll;J.\
-!8 Louis Marin, ()1'11citi de /11 pci11/11rl'. bs11i., .sur /,1 l'l'/'r<'sl'11/11/ío11 du Q1111ttn,cl'l1t,,, l'aris, Usher, llJ8'J,
pp 251-266.
-tY No prúprio Aristóteles, uni elo n1ab secreto SL' establ'il'ce entrL' o pndcr da rnetáfora dL' pl)r sob os
olhos e o projeto de persu,1sZi.o que l'lnin1a cl rL~tl')[ica, a t--abcr, o poder da nwtcí.fora d.L· "~ignificar a~
coisas em ato" (III, 11, 1..111 b 2-t-2.S). C>ra, quando o discurso L" 111c1is apto a significar as coisa~ en1
ato? A resposta est,l na rodica, ciênci,1 da produçJ.o dos discurso~: t:' quando o 11111tflos, a f/1bul,1,
a intrig<1, consegut..' produ1:ir unia 111i111t'sis, un1,1 imit1çzio, un1,1 rq,rL'se11tc1ç,lo
. dos "per~onagens
con10 atuantes e en1 atu" (Podica, 14--1-8 a 21). Un1,1 ponte l' ilssin1 lançada entn.' a ,·isibilid,1de no
discurso e a energia nas coi~as hu1nana~, entre (.1 n1eU.fora \·i\'ll e ,1 existt'nci . 1. ,·i\'ll. - A. L''\pres~,lo
"pôr sob os olhos" farLl uni sucesso consider,1, el, da retórica de Fontanier (.lté a St.'tn iótica de J\,ircL',
cf. La !v1Napliorc 7.'Í\.'C, cap. 5, § 2, "Le n1on1L'nt iconique de la n1étc1phorc", L' § h, "lcônc et imagc"
A MEM(lRIA, A IIISl(lRIA, () l:Sl_llllCIMl:N"ICl
Proponho tomar aqui como guia os trabalhos que Louis Marin dedicou aos prestí-
gios da imagem, tais como os vê lucidamente fomentados por bons escritores do sécu-
lo XVII para a glória do poder monárquico e de sua figura encarnada, o rei. Durante
minha leitura do Pnrtraít du roí5" deixarei em suspenso a questão de saber se persiste
alguma instrução, referente às relações entre justificação do poder e prestígios da ima-
gem, para os cidadãos de uma democracia que acredita ter rompido com o elogio do
rei, além do que se tornou para eles uma espécie de caso um tanto exótico.
Louis Marin enfatiza de pronto a força, o poder da imagem que substitui uma coisa
presente em outro lugar. É a dimensão transitiva da imagem que é assim enfatizada
no que se pode chamar de uma "teoria dos efeitos" que encontra em Pascal ecos fortís-
simos. "O efeito-poder da representação é a própria representação" (Lc Portraít du roí,
p. 11 ). Tal efeito-poder encontra seu campo privilegiado de exercício na esfera políti-
ca, na medida em que nela o poder é animado pelo desejo de absoluto. É a marca do
absoluto depositada no poder que deixa, por assim dizer, o imaginário transtornado,
levando-o para o lado do fantástico: à falta de infinito efetivo e substituindo-se a ele,
"o absoluto imaginário do monarca". O rei só é verdadeiramente rei, isto é, monar-
ca, nas imagens que lhe conferem uma presença considerada real. Aqui, Louis Marin
lança uma hipótese sedutora segundo a qual "o imaginário e o simbólico político do
monarca absoluto" teriam reencontrado "o motivo eucarístico" cujo papel central fora
mostrado no trabalho anterior do autor sobre a Logíquc de Port-Royal. O enunciado
"este é o meu corpo" não governaria apenas toda a semiótica da proposição atributiva
no plano lógico, como também o discurso do poder no plano político 51 .
A frase "o Estado sou eu" seria o equivalente político da frase de consagração da
hóstia' 2• Só sabemos que essa "transposição" política é da ordem do "engodo", na
linha da "fantástica" evocada por Platão em O Sofista, na base de um discurso externo,
irônico e crítico, que Louis Marin vê formulado nos famosos Pc11s11111c11tns em que Pas-
cal desmonta impiedosamente o jogo velado das trocas entre o discurso da força e o
discurso da justiça. São, assim, instaurados e praticados três níveis de discurso: aquele
implícito na representação que opera no cerne da prática social, aquele explícito da
representação articulada pelo louvor do poder, aquele que revela o poder como repre-
sentação e a representação como poder. Terá o terceiro discurso, que dá uma dimensão
~l ()s lógicos eh.· Port-Royl1\ fornpceran1 un1 in~trun1ento analítico para distinguir a narrati\·a do
ícone ao t..'xan1inar L'lll L'Art de pcnscr (li, IV) o enuncil1do "l) rl'trclto de Cé~ar, é Céslu", e ao ext..'111-
plificar por n10pa~ l' rctr,1tos ,1 definição do signo con10 rt-.'prt..'St:.'ntl1çJo fundarru~ntando o direito
dl' dar ao signo o notnl' d,1 coisa significada (I, IV) (Lc JJorlrait d11 ro1, op. t"it., p. 16) .
.'i-t "'LL' r0cit du rni ou comn1l'nt frrire l'histnirL,. .. i/,id., pp. -19-107.
"L'hostil' rn\·ak: L1 múiailk historiqul'"', i/,id., pp. 1-17-108.
1\ lvlFlvl(lRIA, A fllSTÚRII\, O FSQl;ICllvlLNTO
:ih ;\ exprcssJo "pôr sob os olhos", que Vl'm dirdamente da Rctôrirn de Aristótl'il's, é aplicada por
Fontanit•r à hipotipose, que, observa L. Marin, leva ao c1uge o estilo de narraç<lo ao c1nul,í.-lo nc1
ficção de uma presença "sob os olhos" (ibid., p. 148).
IIISTllRL\ / 11'1:-,Il\IllLllCI,\
~7 E:>...ct'to Pascal, que e,·oc1rc·n1os n1ais adiante, o Crandl' Século n,l.o p(HL'Cl' ter levado a autocrí-
tica alén1 de fr<ígeis distinçôes l'ntn' o t'logio e a bajulaçclo: será que o t>logio Sl' diferencia da
bajulação <'lpcnas pela n1odcraç'1.o, pela resen·<1, peL.1 pn'teriç,l.o ("lou,·,1i o Rei cn1 toda parte,
mas por ,1ssim di?er SL'ffl louvor"), le\·ando-:-,e en1 conta J autori?ação dada pela instituição
·dt:>sijstic,1 ou polític,1? l) b,1jul<1dor dl'\T ainda ser uni p.irasit,1, con10 sugl'fL' <l n1,í,in1<1 dl'
a Fontc1ine na Líbula O Cort'(l e 11 Ropo..:;11? SL'ria preciso reler o fan1<bO tl'xto da Fc1101111'11t1ft1sio
c::;pirito de Hegel ~obre a b,1julc1ção, con1n fl'COllll'J1dc1 L. rvlénin, "Les t,1ctiqucs du ren,1rd" (Lt'
·trait du roí, op. cit., pp. 117-129); acrcsccntari,1 de bon1 grado ,1qui ,l':-> p,igin,1s quL' Norbl'rt Fl ici~
Jica ao cortesão cn1 La Socidt; de co11r.
i\ MUvt()RL\, i\ ll[S'l(lRli\, () J:o(.)UITIMFNlO
2. "O poder é o imagimírio da força quando ela se enuncia como discurso de justi-
ça" (op. cit., p. 23).
58 Essll relação critica de segundo grau entre o sin1ples relatório dos procedin1entos do elogio
crítica pascal ia na dzi in1;iginaçc1o é aprt'Sl'lltíldíl na introdução l10 Portruit du roi crnno cl reve 1
de u111 "contramodclo" (op. cit., p. 8) em rel1.1ç<lo <l teoria da linguage1n dos Senhores de Port- 1
<l qual o l1utor dedicara unia obrei c1nterior intitulada Lo Critique du discours. Étudcs sur la"
de Port-F:.oyol" ct les "JJc11sà's" de P11sc11l, op. cit. Dl' foto, caractcrizou-sf' corno desvio o uso
do n1odelo teológico da Eucaristia, no qu;_1l Louis Marin vê convl'rgir a semit'1tica da prop
c1 tcologi(1 do szicra1np11to.
\IISH1RI-\ / IJ'ISll \lllUlCI.\
tra\·a na relação circular entre substituir e ser considerado como ... É o círculo do fazer
acreditar. Aqui, o imagin,írio não designa mais a simples \·isibilidadc do ícone que
coloca sob os olhos os acontecimentos e as personagens da narração, mas também urna
potência discursi\·a.
Não se trata de empreender aqui uma exegese dos fragmentos que sugerem seriar
as três palavras mestras "força", "justiça", "imaginação", corno se fosse autorizado
um único percurso: ora são comentadas separadamente, ora em pares, nunca as três
juntas. É, portanto, urna interpretação, aliéÍs altamente plausÍ\·el, que Louis Marin pro-
põe nas páginas magníficas que constituem a "abertura" da obra com o título "O rei
ou a força justificada. Cornent;írios pascalianos". A reunião e a seriação de declarações
tiradas dos Fmg111c11to;; são abertamente orientadas pela preocupação de desmantelar
os estratagemas da imaginação do poder. "É preciso ter um pensamento por tréÍs e
julgar tudo por aí, falando, entretanto, como o poni" (La fuma, fragmento 91 ). Apenas
o par força/justiça é estabelecido pelo texto, podendo-se colocar como sedimento a
famosa asserção: "Sendo impossível impor a obediência à justiça, foi imposta como
justa a obediência à força. Sendo impossh·el fortalecer a justiça, justificou-se a força,
a fim de que o justo e o forte ficassem juntos e reinasse a paz, que é o bem soberano"
(fragmento 81 ). A justificação da força pode ser tida como a proposição pi\'Ô de toda
uma montagem em que são revelados sucessi\·amentc os títulos do justo a ser seguido
e os da força a ser obedecida, depois a irwersão das aparentes simetrias da força e da
justiça:" A justiça sem força é contradita, pois sempre há mal\·ados: a força sem a justi-
ça é acusada". Deixa-se cm suspenso a questão de saber o que seria sua reconciliação:
"Portanto, é preciso colocar juntas ... " Só importa para nosso propósito o discurso de
autojustificação da força. Nesse ponto crítico é lícito inserir o não menos famoso frag-
mento sobre a imaginação'". Que, falando de "essa amante de erro e de falsidade",
de "essa soberba potência inimiga da razão" (fragmento 81), Pascal tivesse explicita-
mente em vista os efeitos de poder político, continua discutí\·el: o discurso de filosofia
antropológica é colocado sob a égide de conceitos de maior alcance, tais como miséria
e vaidade. Todavia, tomados em conjunto, os fragmentos 44, 87, 828 autorizam, entre
\'árias leituras possín,·is, o tratamento do imaginário corno operador do processo de
justificação da força: de fato, a própria imaginação é urna potência - "soberba potên-
cia"; "ela leva a acreditar, a duvidar, a negar a razão"; "ela dispensa a reputação, que
confere respeito e \'Cneração às pessoas, às obras, às leis, aos grandes". Outros efeitos:
"a afeição ou o ódio mudam a face da justiça"; l' ainda: "a imaginação dispõe de tudo;
faz a beleza, a justiça e a felicidade que é o todo do mundo". Qual outra potência além
da imaginação podnia re\'estir de prestígio juízes, médicos, pregadores 7 O mais cio-
:ilJ Ao con1L·nL1r o trl'cho irl)nico do frl1gn1pnto lS~: "Quanto n1ai~ bra1,-os, m,1is força. Ser Cl)rajo--.o L·
n1ostrar sua força", Loui:-. l\1arin introdu/ a inkre:-,santL' noçiio de "n1l1is-\·alia", n1uis L'\.cltaml'ntl'
de 1nais-\·alia significante, qul' eu tan1bl,n1 tl':-,tara l'lll L'/dóilogit' et f'Llfr_)pic, cn1 conk'\to \ i;:inho,
a saber, ll teoria dei don1in,1ç ..lo de l\1ax \-Vebcr e -.;ua tipologicl da:-, crenÇclS legiti111ador'-1:-,. Eu coir1-
p,1rara o que era dito cnLlo da crença corno "e>-..cedente" próprio da idéia de n1ais-,·alia na ordem
sin1bólica.
i\ MF\t(JRIA, A HISTllRIA, O t:SQUFCIMf'NTO
qüente de todos os Fmgmcntos, a meu ver, é aquele, entre os papéis não classificados
na Série XXXI, que confronta numa pungente síntese as "cordas de necessidade" e as
"cordas de imaginação": "As cordas que ligam o respeito de uns para com os outros
são geralmente cordas de necessidade; pois é preciso que haja diferentes graus, já que
todos os homens querem dominar e nem todos o podem, mas alguns sim. [ ... ] E é aí
que a imaginação começa a desempenhar seu papel. Até então, foi a força pura que o
fez. Aqui, é a força que se limita pela imaginação a um único partido, na França o dos
fidalgos, na Suíça o dos plebeus, etc. Ora, essas cordas que ligam, portanto, o respeito
a este e aquele em particular são cordas de imaginação" (fragmento 828). Neste ponto,
o discurso pascaliano é verdadeiramente o discurso de acusação da força sem justiça;
atinge verdadeiramente a "tirania" no poder dos grandes; mas se atinge a vaidade do
poder, é porque visa além do políticow_
60 Por isso não se deve separar o discurso da imaginação daquele do costume, netn ta1npouco da-
qul'le da loucura - o "respeito e o terror" (fragmento 25) fazendo a ponte entre o discurso da
"fr<'lqtu:za" e o discurso da "força justificada". De forma que o próprio ten1a da imaginação não
esgota todos os seus dei tos de força e seus efeitos de sentido no político. A idéia de lei também
se 1n.:intén1 n<..'ssa articulação: "A lei t! lei e nada 1nais. O costun1e faz toda a eqüidade pela única
ra,dío de que é recebido, estl' é o fundamento místico de sua autoridade" (fragmento 108).
lllSlllRI\ / f'l'l'dl~llll()CI,\
ser rei a não ser um rei despossuído" (fragmento 117). Ora, a figura do rei despossuído
não é apenas passageira: em geral, o homem pode ser visto como um rei despossuí-
do. Ora, é esse rei despossuído que, numa surpreendente fábula destinada ao jo\·em
príncipe, Pascal \·ê "jogado pela tempestade numa ilha desconhecida, cujos habitantes
tinham dificuldade para encontrar o rei que estava perdido". Eis que esse homem,
que por acaso se parece com o rei perdido, é "confundido com ele, reconhecido nessa
qualidade por todo o povo". E o que ele fez? "Aceitou todo o respeito que lhe quise-
ram dar e deixou que o tratassem como rei"'' 1• Portanto, o que faz o rei é um "efeito de
retrato", um "efeito de representação". E é por sua vez a imagem, dedicada ao prín-
cipe, desse "náufrago rei", convertido no "usurpador legítimo", que dá sua força de
instrução à epístola. Nessa imagem, juntam-se o político e o antropológico. Ao mesmo
tempo, desvenda-se o segredo das representações em simulação que sustentam essas
grandezas carnais às quais pertencem o rei e todos aqueles que são chamados ou se
chamam de grandes.
Se a grandeza pode assim pertencer aos dois registros do antropológico (o "ho-
mem") e do político (o "rei"), é porque encerra em seu princípio (em sua verdade
conhecida, como todos os princípios, "não apenas pela razão como também pelo co-
ração", fragmento 110) uma regra de dispersão e de hierarquia. É conhecido o famoso
fragmento sobre as "ordens de grandeza": grandezas de carne, grandezas de espírito,
grandezas de caridade (fragmento 308). Cada grandeza tem seu grau de visibilidade,
seu lustro, seu brilho; os reis juntam-se aos ricos e aos capitães entre as "grandezas
. "h,.,
carnais -.
Dessas considerações surge a questão com a qual encerro nossa investigação so-
bre os prestígios da imagem emaranhados com a representação historiadora. O que
sobrou do tema da grandeza na narração do poder após o apagamento da figura do
rei absoluto? Ora, questionar-se sobre a possível perenidade d.o tema do poder é ao
mesmo tempo questionar-se sobre a persistência da retórica do louvor que é seu corre-
lato literário, com seu séqüito d.e imagens prestigiosas. Teria a grandeza abandonado
o campo político? E devem e podem os historiadores renunciar ao discurso de elogio
e às suas pompas?
À primeira pergunta, respondo com duas observações que deixo numa ordem
dispersa, tamanha é a minha preocupação em não tratar como se o dominasse um
problema de filosofia política que, além do mais, ultrapassa a competência de uma
epistemologia da operação histórica. Todavia, a questão não pode ser evitada na me-
dida em que o Estado-nação permanece o pólo organizador dos referentes comuns do
h1 Sl'gundo uni dos Di.-,cours sur la co11ditio11 dcs grirnd .. .; de Pascal, uni grande é uni propril'tário dt'
bL•ns, "uni rico cujo ter dctl'rn1ina o sl'r" (Lc rnrtmit du roí, op. cit., p. 2.65).
62 Louis Marin ficou Llo fascinado por L'~Sll "in1c1gcn1" do nlíufragu rl'i que l1 usou p,1r,1 concluir Lc
l\ntmit du roi, L'I11 posiç.'ío simétrica en1 reL1ç,1u aos ''Fr,1gml'nts de:-. f\'1i:::.écs sur l,1 forcL' l't lc1 jus-
tice" qul' fa7e1n :i 11h_'rt11m da obr,1. All'n1 disso, o c1utor \·oltou c1u tl'1na em Dcs /}(Jllt. oir~ de !'111111sc,
1
t'JJ. cit., glos<l~ VI, "Le portr(1it du roi naufragl'", pp. 186-195.
;\ MEM(lRIA, ;\ ll!Sl(lRJ,\, () l~(.)Ul:CIMFNIU
6'.l Luc Boltanski e Laurent Thévenot, De /11 j11,;tifirntio11: /e,; c'co11,,,11ics de /11 grn11dc11r, op. cit.; cf. minha
,rn,ílise desta obra, acima, pp. 2'.l2-2'.l3.
HISlllRI \ / 1 l'l'->11 \llll ()(;I,\
sustentar as críticas no meio das desa\·enças. O que é not,1\'el não é apenas que a idéia
de grandeza faça sua reentrada na sociologia da ação e, portanto, também na história
das representações, mas que ,·olte sob a forma do plur,11. Existem economias da gran-
deza. São ditas grandezas as formas legítimas do bem comum em situações típicas de
desavenças a partir do momento em que são legitimadas por argumentações típicas.
Pouco importa aqui de que forma são selecionadas as argumentações, na base de que
texto canônico da filosofia política: sua irredutível pluralidade torna a grandeza dife-
rente dependendo de se as provas de qualificação acontecem na cidade inspirada, na
cidade doméstica, na cidade da opinião, na cidade cívica ou na cidade industrial. Para
nosso propósito, o importante é que a grandeza seja levada em conta pela filosofia
prática e nas ciências humanas associada ã idéia de justificação como um dos regi-
mes de apreensão do bem comum no âmago do ser-com-os-outros. Trata-se ainda
de fato de "formas políticas da grandeza" (Lc flor/mil d11 roi, p. 107 e seg.), mas numa
acepção tão ampla do termo "política" que o prestígio do rei em seu retrato se encontra
totalmente exorcizado pela substituição da figura do rei pela das pessoas e de suas
pretensões à justiça. A ,·olta do tema da grandeza fica ainda mais surpreendente.
Essa dupla resistência do tema da grandeza à eliminação numa filosofia política
centrada ora no Estado, ora na importância dada a ela por uma sociologia da ação jus-
tificada autoriza a fazer a pergunta que \·em coroar nossa investigação sobre os prestí-
gios da imagem no elogio da grandeza. Se o tema da grandeza é inexpugnável, será o
caso também da retórica do elogio, que, na época da monarquia absoluta, estendeu-se
sem pudor a ponto de ultrapassar a linha tênue que diferencia o elogio da bajulação 1
A essa pergunta indiscreta não poderia escapar a escrita da história marcada pelos
"grandes" nomes de Ranke e Michelet. É ,·erdade que é para não julgar, portanto, um-
siderar grandes ou não, as ações do passado que Ranke declara limitar-se aos aconte-
cimentos "tais como ocorreram de fato". Tal princípio, no qual estamos inclinados a ler
uma pretensão de fidelidade, foi sobretudo a expressão de uma reserva, de um recuo
para fora da região das preferências subjetivas e de uma renúncia ao elogio seletin1.
Mas o elogio não se refugia na confissão que se lê em Nac!,/as,;: "Cada época estc'í sob
(1111/cr) Deus e seu valor não depende do que a antecede, mas de sua própria existência,
em seu próprio sei(.[ ... ] Todas as gerações da humanidade são igualmente justificadas
aos olhos de Deus: é assim que a história de\'e Yer as coisas 1 """ J\s idéias de época e
de geração são mais difusas do que as de individualidades históricas, mas constituem
unidades de sentido às quais se dedica o apreço do historiador, a justificação aos olhos
de Deus vindo apor o selo da teologia na discrição do elogio.
O caso de Michelet é ainda mais surpreendente: poucos historiadores deram asas
com tanta liberdade e júbilo ã admiração pelas grandes figuras daqueles que fi/er,1111 a
França. A própria França nunca mereceu tanto ser chamada pelo nome próprio como
h-l I RankL•, L//1cr d1c Ep,1d1c11 der 11c11crc11 l;,•,,l,id11t', c•d. M. Hl'rrfcld, p. ~(l. Citado por U•on.ird Kric-
gl'r, "/ /11.' A1ct111i11g o( Hhtnr.11, Thc Uni\.L'rsit~ uf Chicago Pres:->, Chicago ,.1nd Londnn, 1977, p. h. F1r1
f- ngli.c:./1 Hi:-..tory, R,1nke quis "ap<1gar seu pn)priu :-,el f [ .. 1 dL'Í\clr quL' a:-:. coi:-i,1s folern L' que ,.1pcHl'Çdl1l
,1-.; pt.Kiero:-.'-V:·, (11ug/1t_11) força:-. que surgiran1 ,10 ]()ngo dos :-,l•cult1:-," (1l 111f., p. =i).
A 1\IFVIORIA, A IIIST(lRJA, O rSQUlcCIMI.NTO
IV. Representância
Este último parágrafo quer ser ao mesmo tempo a recapitulação do caminho per-
corrido no capítulo "Representação historiadora" e a abertura de uma questão que ul-
trapassa os recursos da epistemologia da historiografia e se mantém no limiar de uma
ontologia da existência em história; a esta reservo o vocábulo de condição histórica.
65 Jules Michcld escreve em Histoirc de Fn111cc, prefácio de 1869: "Naqueles dias memoráveis, fez-se
u111a grande luz e vislumbrei a França. {... J Fui o pri,neiro J vê-la como unia alma e co1no u1na
pessoa ..
fín frrnand Braudt'i foz eco ,1 Miclwlet j,1 na primeira página de L'Jdrntité de /11 Fm11cc (Paris, Flamma-
rion, 1990, reed., 2000): "Digo isso de uma vez por todas: amo a França com a mesma paixão, exi-
gente e complicada, que Jules Michelel. Sem distinguir entre suas virtudes e seus defeitos, entre
o que prefiro e o que aceito 1nais dificiln1entl'. Mas tal paixfüJ interferircí pouco nas páginas desta
obrl1. Mant0-la-ei cuidcH.iosiJ.n1cnte à distância, pode ser que e]a use de artimanha comigo, que me
surprc•enda, por isso vou vigi,\-l,1 de perto" (p. 9). Pierre NorJ não fica atrás de Michc!ct e Braudel
e1n Les Licux de n1t;1110irc, principl1ln1ente ncl terceira série Lcs Fmncc. Rebatendo a acusação de na-
cionzilisn10, coloca sob o quasl'-non1e próprio da "francidadl'" o único organisn10 que constitue1n
juntas em forma de trindade l.1ica A R.cpúblirn, A N11ç110, As Fm11ç11, e acrescenta, fingindo questio-
nar: "J(i rl'pararclm que todl1s clS griJ.ndc•s histórias dJ françil, de Étienne Pwsquier no século XVI a
Michell't, de Michclet iJ. La\'isse l' cl Braudel, co1nc'çan1 ou t1cabarn con1 tuna declaração de a1nor <1
Fr(1nça, un1t1 profiss<lo de fé? An1or, fc\ sllo p<1lavras que l'vitei con1 cuidado, para substituí-las por
<H]UL'las exigid~1s pela época e pL'io ponto de vista etnológico" ("La nation sans nationalisn1e", in
Espaces Tc111ps, Lcs Cahicrs, n" .'i9-60-61, 1995, p. nY).
HISfORI \ / l l'ISTl\llll (lCI,\
67 R. Chartier, "L'histoirL' entrl' rl'cit et connaiss<1nce", in J\u /,ord de f17J/1!oi..;c, op. cit., p. 93.
significação completa cm seu sentido, como pôde afirmar Husserl no início das Pesqui-
sas Lógicas, agora então que já nos acostumamos a considerar pensamento e linguagem
como inseparáveis, estamos prontos para ouvir dcclaraçües diametralmente opostas a
essa desconexão da linguagem, a saber que, no caso da escrita literária da história, a
narratividade acrescenta seus modos de inteligibilidade aos da explicação/compreen-
são; por sua vez, as figuras de estilo revelaram-se figuras de pensamento suscetíveis
de acrescentar uma dimensão própria de exibição à legibilidade própria das narrati-
vas. Resumindo, todo o movimento que deslocava a explicação/compreensão para a
representação literária, e todo o movimento interno à representação que deslocava a
legibilidade para a visibilidade, ambos os movimentos, ao que tudo indica, querem
permanecer a serviço da energia transitiva da representação historiadora. Sim, a repre-
sentação historiadora enquanto tal deveria dar testemunho de que o pacto com o leitor
pode ser cumprido pelo historiador.
E no entanto ...
E no entanto, vimos crescer, no mesmo ritmo que a pulsão realista, a resistência
que a forma literária opôe à exteriorização no extratextual. As formas narrativas, ao
dar à narrativa um fecho interno à intriga, tendem a produzir um efeito de enclausu-
ramento, que não é menor quando o narrador, contrariando a expectativa do leitor, faz
tudo para decepcionar este último por alguns estratagemas de não-enclausuramento.
Assim é que o próprio ato de narrar chega a cindir-se desse "real" assim posto entre
parênteses. Um efeito da mesma ordem procede, como já vimos, do jogo das figuras
de estilo, a ponto de tornar vaga a fronteira entre ficção e realidade, de tal modo essas
figuras se revelam comuns a tudo o que se dá como fábula discursiva. O paradoxo
atinge seu apogeu com as estratégias que visam a pôr sob os olhos. Na própria medida
em que mantêm a verossimilhança, elas são suscetíveis de dar razão à crítica dirigida
por Roland Barthes contra o "efeito de real". A esse respeito, tratando-se da micro-
história, é possível primeiramente apreciar o efeito de credibilidade por proximidade
produzido por narrativas de fato "próximas das pessoas", e, após reflexão, achar sur-
preendente o efeito de exotismo suscitado por descriçôes que se tornam estranhas, ou
até alheias exatamente por sua precisão. O leitor encontra-se na situação de Fabrice na
batalha de Waterloo, incapaz até de formar a idéia de batalha, mais ainda de dar-lhe o
nome com o qual esta será celebrada por aqueles que hão de querer recolocar o "deta-
lhe" num quadro cuja visibilidade turva o olhar até a cegueira. Segundo a expressão
de J. Revel, "lida de muito perto, a imagem não é fácil de ser decifrada no tapete""'.
Há outra forma de pôr sob os olhos cujo efeito é afastar e, no limite, exilar. A escrita
68 Jacques Rl'vel, "Micrnhistoire et construction du social", in jc11x ,Nc/Jc//cs, op. cil., p. 15 l' seg.:
"Con1 os rnicro-historic1dorcs [ .. !, c1 busc;:i de un1cl forn1a nJ.o depende fundan1cntziln1entc de unia
e~colhc1 estl•tica (embora esta não ('steja ausente). Ela me parece, antes, de orden1 heurística; e isso
duplamL•ntc. Ela convidei o leitor c1 participar d,1 construção de uni objeto dl' pesquisa; associzi-n ;_l
elaboração cil> uma interpretação" (ov cit., pp. 32-33). O paraklo com o romance depois de Proust,
Musil ou Joyce convida <l t11na refll'X<lo quL' ultr<1pc1ssc1 o tin1bito fixado pelo ron1ilnce realist1 do
~l'culo XIX:"/\ relaçfio entre t11nc1 fonna de cxposiçfü) l' uni crnltl't'ilio ck' conhecimentos tornou-
SL' objeto de uma interrog,1ç,10 explícita" (ibid., p. 34). F o autor evoca o deito de estranh,rnwnto
\ll',J()J{I \ / 11'1',I l"\llll l)(;JA
em grande escala, a que retrata períodos históricos, cria um efeito que pode ser cha-
mado ainda de Yisual, a saber, o de uma \·isão sinóptica. A amplidão do olhar é então
definida por seu alcance, como se diz de um telescópio. Uma problemática im·ersa da
anterior é assim suscitada pela história considerada em seus traços mais gerais. Amea-
ça surgir um no\'O tipo de fechamento, o das grandes narrati\'as, que tendem a um-
fluir com as sagas e as lendas fundadoras. Uma lógica de um gênero no\·o instala-se
silenciosamente, a qual F. R. Ankersmit tentou fechar sobre ela mesma"'): a de 11armtio,;
suscetíveis de cobrir \'astos períodos de história. O uso do nome próprio -Rc\'oluçào
Francesa, "solução final", etc. - é um dos signos distintin)s da lógica circular, em
\'irtudc da qual o nome próprio funciona como sujeito lógico para toda a série dos
atributos que o desen\'Ol\'em em termos de acontecimentos, estruturas, personagens,
instituições. Essas 11armtio,;, como diz Ankersmit, tendem à auto-refcrcncialidade, j,í
que o sentido do nome próprio ni'ío é dado fora dessa série de atributos. Resulta daí,
por um lado, a incomensurabilidade entre si das 11armtios que presumidamente tratam
do mesmo tema e, por outro lado, a transferência para os autores singulares dessas
grandes 11armtios da controvérsia aberta entre histórias ri\·ais. Não se fala da história
da Revolução Francesa segundo Michelct, segundo Mathiez, segundo Furef' O debate
epistemológico fica assim desviado para o campo do que chamaremos no próximo
capítulo de interpretação, num sentido limitado cm que a ênfase recai no engajamento
da subjetividade do historiador: de fato, só h,í um Michelet, um Furet frente à única
Re\'oluçào Francesa'''.
Coincidem assim de forma inesperada a suspeita de fechamento aplicada às pe-
quenas narrati\'as e aquela aplicada às narrativas de maior alcance. Num caso, a sus-
peita ergue uma barreira invisível entre o par significante/significado e o referente; no
segundo, cava um abismo lógico entre o real presumido e o ciclo formado pelo tema
quase personificado e a seqüência de acontecimentos que o qualificam. É assim que as
modalidades literárias que supostamente de\·eriam com·encer o leitor da realidade,
L'ffl relc1ç,1o clO n1ode\o interprL'tati,·o dn discur~o dorninantl': f<1briCL' L'lll WatL'rlou "~L) pcrcebL' a
cksordern" (i/,íd., p. JS).
h9 F R. Ankersrnit, \',1rmti,,,. Logic· il Sc111,ll1IÍ< :\11,1/(1,i, o/ /1,c Hi,torÍ1711', /_1711g1117gc, ov cit.
70 E1ço un1a an,íli~l' 1nais <1prufund,1dl1 de ,V11JT11th:_ c l (\<,;ic: 11 5('1111111tú· .'\1111/_11:--i,; tf thc l--/i~flH'i1m '...: L1111-
1
71 Tal é a tl'Sl' que rl'ivindica R. ChMticr no fim de sua discussão da obra de Hayden White; este,
con10 nos le1nbran1os, considera con10 intransponível unia abordagem se1niológica que questio-
na a segurança dos teste,nunhos prestados dos ;JContecin1entos e autoriza assi1n a "negligenciar
(p11ss ovcr) a quest3o da honestidade do texto, de sua objetividade" (The Co11/e11I of lhe For111, op. cil.,
p. 192, citado in Au bord de la ji1/aise, "1'· cil., p. 123). R. Chartier rl'plica: "Fazer a história da histó-
ria ndo é entender co1no, en1 cad(1 configuração histórica dada, os historiadores lançan1 mão de
tt'cnicas de pesquisa e procediinentos críticos que, justamente, dão a seus discursos, de fonna
desigual, essa 'honestidadeº e essa 'objetividade'?" (ibid., p. 123). Em outro trecho, R. Chartier
declari.1: "Considerar, clCl'rtadatnl'nte, qul' a escrita da história pertence à classe das narrativas não
equivale a considerar como ilusória sua intenção de verdade, de uma verdade entendida como
represl'ntação adequad,1 daquilo que foiº' ("Philosophie et histoire: un dialogue", in F. I3edarida,
LºHisloire e/ /e Méticr d l1istorirn c11 Fm11cc, 1945-1995, op. cit., p. 163).
0
como o efeito-signo de sua causa. Ocorreu-me dizer que não temos nada melhor do
que a memória para certificar a realidade de nossas lembranças. Dizemos agora: não
temos nada melhor do que o testemunho e a crítica do testemunho para dar crédito à
representação historiadora do passado.
Até agora, pouco pronunciei a pala1Ta "\'erdade", nem mesmo arrisquei uma afir-
mação rdativa à 1·erdade em história, embora tenha prometido no início desta obra
comparar a verdade presumida da representação histórica do passado à fidelidade
presumida da representação mnemônica.
O que a palavra "1·erdade" acrescentaria à palmTa "represent,"incia" 7 Uma asser-
ção arriscada que le1·a o discurso da história não somente a uma relação com a nwmó-
ria, como tentaremos no capítulo seguinte, mas a uma relação com as outras ciências,
ciências humanas e ciências da natureza. A pretensão à 1·erdade da história passa a
fazer sentido relati1·amente à pretensão à 1·erdade dessas outras ciências. Propôem-se
então critérios de qualificação dessa pretens.'ío. E é, evidentemente, o próprio passado
que é o objetivo referencial dessa pretensão. É possível definir esse objetivo referencial
em termos diferentes dos da correspondência, da adequação 7 Chamar de "real" o que
corresponderia ao momento de asserção da representação 7 Não é o que parece, sob
pena de desistir da própria questão da verdade. A representação tem uma contra-
parte, um Ccgc11z'ilicr, segundo uma expressão que retomei de K. Heussic4 cm Tempo e
Narmtiua. Eu também me arriscava a folar em "lugar-tenência" para precisar o modo
de \'crdade próprio da represcntância, a ponto de considerar como sinônimas essas
duas expressôesc;_ Mas é mais fácil ver quais acepçôes da noção de correspondência
ficam excluídas do que 1·er o que especificaria essa noção em relação aos usos do termo
"correspondência" em outras regiôes do saber. Fica manifestamente excluída acha-
mada picturc tlzcon;, que reduziria a correspondência a uma imitação-cópia. Convém
dizer que nunca se acaba totalmente com esse fantasma, na medida em que a idéia de
semelhança parece difícil de expulsar totalmente: Platão não conduziu toda a discus-
são sobre a cik(J/1 para o caminho de uma distinção interna à arte mimética, quando
distingue entre duas miméticas, uma mimética propriamente icónica e uma mimética
fantasmática? Mas para que a mimética cubra também o fantcistico, é preciso que ela se
distinga da repetição do mesmo cm forma de cópia; a imitação deve incorporar uma
heterologia mínima se ela tem de cobrir tão vastas regiões. De qualquer forma, uma
narrativa não se parece com o acontecimento que ela narra: isso já foi suficientemente
dito pelos narrati1'istas mais convincentes. O uso aristotélico da 111i111L'Sis na Podirn já
preenchia essa heterologia mínima. Na esteira de Aristóteles, apliquei-me no passado
a modular os recursos miméticos do discurso narratin1 à bitola da tríplice 111i11It'SÍs:
prefiguração, configuração, refiguração. É com esta última que é maior a distância
entre 1JIÍlllL'SÍs e imitação-cópia. Resta o enigma da adequação própria da 111i11zt·sis rcfi-
7-l K. Heussi, Vic K1·isis de, Historis11111s, Tübingen, Mohr, 1912, cf. Tc1111" L'I /,t'cit, t. Ili,º/'· cit., p. 2'i3.
/S Apolava-1ne na diferença entre Vcrtrct1111s e \lt)r::,;fcl/1111g do voc,1bulário alemão, traduzindo Vn-tre-
t1111g por "lug,n-tenc'ncia" (fr111ps ct Rhit, t. Ili, "I'- cit., p. 2.'i:l).
A ~ffM(lRli\, i\ ll!Sll1Rli\, Cl FSQUl'CIMl':\TO
76 Essa ilrticubção conceituai apoill\'a-st..' numa dialética transposta d;.1quela dos "grandes gêneros"
dos últimos diálogos platúnicos. Eu privilegiava a tríade "Mesmo, Outro, Análogo". Sob o signo
do Mesmo, colocava a idéia de reencenação (rcrn11c/111c11/) do passado segundo Collingwood. Sob
o signo do ()utro, a dpologia da diferença e da ausl•ncia, onde cu encontrava Pt.lll l Veync e o seu
lwuc11ft1irc de::, difj(;rc11ccs e Michel de Certeau e sucl insistência no passado c01no "ausente da histó-
ria". Sob o signo do J\n,ílogo, colocava a abordagem tropológica dl' Hayden White. Aproxin1ava
então a anlíli~c do "tal como" da fórn1ul,1 de Ranke "tal con10 efr•tivan1cnte advindo" da análise
do "con10" no capítulo fin.il de La Ml'taphorc -uiuc, onde juntav.i o "ver-co1no" do plano scrntíntico
ao "ser-con10" do plano ontológico. Tornava-se assin1 possível falar da "redescrição n1ctafórica"
do p,issado pl'la histúria.
Hl,l()RI\ / ll'ISII\IUl()CI.\
11 :\pl1s relcitura, a noçt10 1nais probil·n1,ítica dL' toda a scgund,1 p,ntl' l' cl'rLlfflL'lltL' cl de rcprc:-,l'nt.l.n-
cia, j,í. tl'stada u n1c1 pri n1eira n:'Z cn1 Tc1up~ ct l\t;r"it. Sl'r,í L'ia apL'l1l!S o nonlL' deu m problcn1,1 tomado
con10 soluç,1o ou, pior, uni L'xpedicntl'? Fn1 todo cl1~u, clc1 n3.o t.' o fruto de unia in1pro,·i~,1çtin. Tt.'111
un1,1 longa hi~t(1ri,1 le'\ic,11 l' scn1,)ntic,1 ante--. da historiografia:
,1) El,1 te111 con10 longínquo ,incestral a noç3.o ron1ana de rcpmt'::,;t'11t,1tll1, para dizer a sup!C.'nci,1 lq?;al
L'\L'rcid,1 por "rcprcsenL1ntes" ,·isí,·ci~ dl' Uffla clutoridadc "rt.•prt.'se1lt,1da". C) ~uplentt...', L':-.:-.c ~ubs-
tituto, L'XL'fCl' seu-.. dircito~, ml1s dependc dl1 pessoa reprL'~l'nL1da. Ao contc1to co1n a n)nCL'pç,l.o
cri:-.Uí da Encarnaç.'1o, ,1 noç<lo <1dquiriu um,1 dL'nsidadc 110\·,1, ,1 de un1,1 prl':->L'nç .1 rt-.'prc:-.l'ntc1da do
di\·ino, que encuntr,1 na liturgi ..1 L' no tl'atro sacro :-.u<l esfera dt> t'\.pres:-..lo.
b) A pala\'f,l passa do latin1 cl/1ssico ao alcm,l.i..) por intern1l,dio do ternH) Vcrtrct1111g, dupla L'\'-1-
ta dt' rcpmc:-c11t11tlt1. (():-. tradutores franct':-oL':-> de h;ritt; ct A1l'f//odc dL' 1 I.-C. C.:H.ic1n1L'r, Pari:-., Ld.
du Seuil, 199b, tr,1duzem \'crtrc/1111g, rcpn1c,m/11tio, por "rq,rL'SL'ntaç3u-,uplê·ncia" !p. 1-lhj. Sni,1
po:-.~Í\'L'l di/t'r tambl,111 "repre'.'.'Jt..'ntaçll.o \ iciri,1". Con10 tan1bl'rn st:ria po:-.~Í\"L'I const..'n·ar o lc1ti1n
rcpmc~c11tatio.) No contL'\.to ct1 hern1enl·utic'-1 c1plicada :i~ obr,l'.'.'J de ,Htl', a Vcrtrctu11g acab,1 de ernan-
cipar-sl' cL1 lutl'l ..1 da \'or:-fclll111S, no St'ntido de reprt..'st..•11tc1ç,l.o :-.ubjeti\·a, de ..1pc1rl'ncia (ou JT\clhor,
dL' <1p<1rição) L'm L' par,1 o espírito, con10 é o caso L'Ill Kant t..' na tr,1dição da filosofi,1 trl1nscl'nden-
tal. Aqui, o "fenôn1eno" pL'rn1c1nece oposto ,l "cois .1 t..'111 si'' que não l1parl'ce. Cacic11ner dei seu
pkno desen\"oh·in1ento il ick•i,1 de Vcrtrct1111g ,10 restituir-lhe su,1 "\·<1ll'ncia ontológica" (p. LN).
:\ palavra reencontra então c1 prob1t..,n1lítica m,1i:-. ,1n1pl ..1 da D11r:-tc!/1111:,::, tradu/,ida t..'Ill francl. '.'.'J por
1
"rL'prt.?Sl'ntation" no St..'ntido de exposiçllo, l'Xibiç,lo, n1ostra dL' uni sl'r subjacentt'. A t.'-..~l' tcn1,1 t'
dcdic(1da ..1 herint.•nl·utic,1 gadan1eri,1na dl1 obr,1 de ,Htc. l) p,1r Dar:-tc!l1111g/Vcrtrctu11s n1igra a:-.sim
do jugo litllrgico para o jogo t..'stético L'lll torno do concL'ito-núcit'O de Hild, "in1agen1-qu<1dro". Ncn1
por is~o <1s du,1~ noçôt'S sJ.o estctiz,Hi,1s, pelo nlL'lllh no sentido rt•:-.trito de um recolhin1t.'1lto n'-1
Lrlclllzi~, (1 expl'ril nci'-1 '\·i\·id,1". Bt'lll ao contrário, l' todo o can1po L'Stético que, sob zi 0gidL' do Ri/d,
1
recobre sua dignidade ontológic<l, L' o quL' e~tlí en1 jogo l' "o st..'r \·crd,1dt..'iro da obra de artt," (p. K7
e seg.). EÍL'ti\·an1t..'tltt.', -..cgundo Cadarncr, o Ri/d é Ill<lÍ~ do que unia "cúpia" (/\hhí!d), e' o delegado 21
rl'prl'sent.iç3o dL' um "mmklo" (Llr-h/d) tnmadn no sentido mais ampln d,1 llltalid,1dl' do, mudns
dt..' ser no n1undo, sob forma dt..' tonalidades afeti\·a:-., de pt..'rsonagen:-. fictícias ou rl'ai'.'.'J, de açl)L'S t'
intrigas, etc.() in1portante nesse "pnKL'SSO ontológico" (Cc-,1._'/1c!ic11) L' que a dependl_,ncia da in1a-
gcn1 en1 rclaç,l.o a seu n1odelo é con1pens(H.ia pelo "acrl'scin10 (L.11z1'11c/i:,) de ~L•r" que a imagl'1n
confere de \'OlL1 ao 1nodelo: "l' unican1entl' 21 in1l1gL'n1, insiste Cadan1er, que u 1nodelo dt..'\.L' o Íclto
de se torn ..1r in1agen1, L'tnbor,1 a in1agen1 n,1.o pcisse da 1nani festaçcll) do modt:.'io" (p. 1-1-7).
c) É ~obre es:-.t.' p,1110 de fundo qut' l' preci:-.o :-.itu,H <l tentati\·c1 de tran:-.posiçJ.o da "reprl'~enta(;c°io-
supWncia" da esfer,1 t'stética <l d<1 historiogr,1fi,1, t..' con1 el,1 de todl1 a problt'n1cÍtiec1 d,1 D!l}·.:.te!l1111s-
Vcrtrct1111s. () con1pl)IlL'tlte in1,1gl·tico dl1 lcn1br,1nç(1 constitui uni pas:-.o nt..'ssa dirl'çZlo. É \·erdadl'
que, segundo Cadan1L'f, t..'StP pertence, pnr outro l,llio, ,l probll'n1,íticl1 do signo l' d,1 ~igniticaçll.o
(p. 158): a ll'n1br,1nça designa o passado; n1as a dc~ign,1çãu pa:-.sa pela figur<1ção. Já n,l.o L'ra L'ssa a
pressupo~iç.l.o \·eiculc1da pell1 cik611 grl'g,1? E n.1.n fal,1n1os, con1 Berg~on, dL' len1brança-in1agem?
\JJ.o conferin1os cl n,irrl1çcl.o t..' ZI sua con1po:-.iç,lo t..'lll in1agt'll'.'.'J o poder dL' acrescentcu (1 \·i-..ibilidadt..'
cl iL'gibilidadl' d,1 intriga? Fic<1 entl.o pos~Í\ el estender il kn1brc1nça-in1agem ,1 probiL·1T1,ítica da
representaçZlo-supil'ncia t..' credit,1r-lhL' a idéi,1 de "acrt..'scin10 dL' ser" antes conccdid,1 (1 obra dL'
,Htl'; co111 a len1bran\-c1 ta1nbt..'n1, "o representc1do chcga ,10 seu ser n1L'~n10: elt.' sofrL' un1 acrl·:-.cin10
de ser" (p. 1~8). C) que é ,1ssin1 (1un1entado pela reprL'SL'nt ..1ção figurc1da, (, o próprio pertl'ncitnento
do acontl'cin1ento ,10 p,1ss(1do.
d) Rt-'sta ,1 percorrer o resto do trajeto: da len1brl1nça :1 rL'pre~entaç,lo histnriador(1. A tL'SL' c1qui t..'
que seu pL'rtencin1ento J litl'r,ltur ..1, port,111to, <10 can1po da escrit<1, n.lo coloc(1 nenhun1 limite J ex-
ten~.lo da problt..•n1jtica da repn'se11taç,l.o-supil'ncia. D ..1 Spr11d1licl1keit ,J 5cl1r~f"tíic/1kcit, a L'~truturd
ontológica d<1 D11r:,fellw1s; continua Ícl/t'ndo \·all'r seu direito. Toda a hern1enêutica tL'\.tual l' a:-.':--im
colocada sob o tl'nla do acn:'·scin10 de :->L'r aplicado il obra de ,1rk. A L'S:-.l' respt..'ito, t· preciso renun-
ciar J idéia ~edutora, nun1 prin1eiro n101nento, dL' un1a re~tituiç,lo pt'la e>-..t.'gcse do pen:-.<1mt nto 1
uriginal, idl'i ..1 quL', segundo Cada1nl'r, cuntinuari<l a SL'r . 1 prcssupo':--içJ.o t,ícita de SchleiL'rn1achl'r
A MEM(JRIA, A HIS10RIA, O FSQULCIMENTO
(p. 172). Hegel, em compl'nsação, est.í plenamente consciente da impotência de qualquer restaura-
ção. Basta evocar o famoso trecho da Fc110111c11ologi11 do Espírito (trad. fr. Hyppolite, li, 261) sobre o
declínio da vida antiga e de sua "religião da arte": "As obras das Musas[ ... ] são hojl' o que elas são
pcira nós: belos frutos caídos da árvore, que u1n destino favorável nos ofereceu, assitn co1no un1a
1noça c1presenta esses frutos; nâo há n1ais a vida efetiva de sua presença ... ". Nenhuma restauração
con1pensará essa perda: ao recolocar as obras cn1 seu contexto histórico, instaura-se con1 elas utna
relação não de vida mas de simples representação (Vorstcllu11g). Outra é a tarefa verdadeira da
mente pensante: que o espírito seja representado (dargcstc//t) de um modo superior. A Eri1111c-
rung - interiorização - começa a cun1prir esta tarefa. "Aqui, conclui Gadamcr, Hegel ro1npe o
quadro no qual Sl' coloc,wa o problema da compreensão em Schleiermacher" (Vérité ct Métlwdc,
op. cit., p. 173).
e) Essa é a longa história da representação-suplência que percebo por trás d,1 noção de represen-
tfincia etn história que advogo. Por que, apesar dessa brilhante ascendência, a idéia de reprcsenta-
ção-sup1ência, de rcpresentância, pennanccc probk.. n1<Hica? U1na prin1eira razão desse tnal-estar
está ligada ao fato de que ela se perfila no ponto de articulação da epistemologia e da ontologia.
()ra, as antecipações de tnna ontologiJ da condiçJo histórica, tal C()Ino será conduzida na terceira
parte, poden1 ser denunciadas como intrus<les da "metafísica" no campo das ciências humanas
por profissionais d,1 história preocupados em banir qualquer suspeita de volta à "filosofia da his-
tória". Quanto a 1ni1n, assun10 o risco pensando que a recusa de levar em conta, no momento opor-
tuno, problemas lig(1dos à hcrn1enêutica da condição histórica condena a deixar sem elucidação o
1
estiltuto do que se enuncia legitimamente con10 u1n ' realisn10 crítico'' professado na fronteira dil
episte1nologia do conheci1nento histórico. Além das querelas de n1étodo, un1a razão ,nais profun-
da está ligada à própria natureza do problen1a colocado da representação do passado em história.
Por que a noção de repn•sentação parece opaca, a não ser porque o fenômeno do reconhecimento
que distingue de qualquer outra a relaçJo da memória co,n o passado não ten1 paralelo no plano
d,1 história? Tal irredutível diferença corre o risco de ser ignorada quando da extensão da repre-
sentc1ção-suplência da obra de arte il lembrança e à escrita da história. Ora, esse distanciamento
continuar(,l crt.·scendo con1 nossas rcflexÔl'S posteriores sobre as rclaçôes entre me1nória e história.
O enigma passado é finalmente o de um conhecimento sem reconhecimento. Com isso dl've-se,
t.'ntretanto, afirn1ar que a representação historiadora pern1anece pura e simplesmente e1n faltt1
l'In relação ao que, no epílogo do Epílogo, considerarei con10 o pequeno n1ilagre da n1e1nória?
Isso seria esquecer a vertente positiva da representaçilo-suplência, a saber, o acréscimo de ser que
da confere àquilo 1nesn10 que é por ela representado. É n1esmo, a 1neu ver, cotn a representação
historic1dor..1 que esse aurnento de significt1ção cheg,1 ao seu cúrnulo, precisa1ncnte por falta de in-
tuitividade. Ora, esse acréscitno de sentido é o fruto da totalidade das operações historiográficas.
Deve assi1n ser creditado à di1nensão crítica da história. A idéia de representância é então a ma-
neir(1 tnl'nos ruin1 de ho1nenagear u1n proccdin1ento reconstrutivo, o único disponível a serviço
da verdade en1 história.
III
A CONDIÇÃO HISTÓRICA
exame da operação historiográfica no plano epistemológico terminou; foi
º
conduzido através dos três momentos do arquivo, da explicação/compreen-
são e da representação histórica. Abre-se uma reflexão de segundo grau so-
bre as condições de possibilidade desse discurso. Ela se destina a ocupar o lugar da
filosofia especulativa da história no duplo sentido de história do mundo e de história
da razão. Todas as considerações dependentes dessa reflexão são colocadas sob o tí-
tulo da hermenêutica, no sentido mais geral de exame dos modos de compreensão
implicados nos saberes com vocação objeti\·a. O que é entender no modo histórico 7 Tal
é a pergunta mais abrangente que abre esse novo ciclo de análises.
Ela suscita dois tipos de investigações, que se dividem em duas vertentes, uma
\'ertente crítica e uma vertente ontológica.
Na vertente crítica, a reflexão consiste numa imposição de limites a qualquer pre-
tensão totalizante ligada ao saber histórico; ela elege como ah·o algumas modalidades
da '111/!ris especulativa que leva o discurso da história sobre si mesma a erigir-se em
discurso da História em si que conhece a si mesma; nessa mesma medida, esse exame
crítico corresponde à validação das operações objeti\·antes (referentes à epistemologia)
que presidem a escrita da história (capítulo 1 ).
Na vertente ontológica, a hermenêutica dá-se como tarefa a exploração das pressu-
posições que podem ser ditas existenciais tanto do saber historiográfico efetivo quanto
do discurso crítico anterior. São existenciais no sentido de que estruturam a forma
própria de existir, de ser no mundo, desse ser que somos individualmente. Dizem
respeito, em primeiro lugar, à condição histórica intransponí,·el desse ser. Para ca-
racterizar tal condição histórica, poder-se-ia empregar, a título emblemMico, o termo
de historicidade. Se, no entanto, não o proponho, é em razão dos equívocos resultan-
tes de sua história relativamente longa, que me esforçarei por esclarecer. Uma razão
mais fundamental le,·a-me a preferir a expressão "condição histórica". Por condição
entendo duas coisas: de um lado, uma situaç<'ío na qual cada um se encontra cada vez
implicado, Pascal diria "fechado"; de outro, uma condicionalidade, no sentido de con-
A MEM()RJA, A HIST(lRIA, ll l:SQUECIMI-.NTO
vel enJCar os grandes crimes do século XX; mas não foi o historiador quem assim os
classificou: a reprovaçc'\o que recai sobre eles e que faz com que sejam considerados
corno inaceitáveis - que lítotes! - é pronunciada pelo cidad5o, que o historiador,
é \'erdade, nunca deixa de seL Mas a dificuldade consiste precisamente em exercer
o julgamento histórico num espírito de imparcialidade sob o signo da condenação
moraL Quanto à investigação sobre a condição histórica, ela também se a\'ÍZinha do
fenômeno da culpa, portanto, do perdão; mas impõe-se como limite não ultrapassar
esse limiar ao formar a idéi,1 de estar cm dívida, no sentido de dependência de uma
herança transmitida, fazendo-se abstração de qualquer acusação,
Outro moti\'O: se, por um lado, a culpa acrescenta seu peso ao do ser em dí\'ida,
por outro, o perdão propôe-se como o horizonte escatológico de toda a problemMica
da memória, da história e do esquecimento, Tal heterogeneidade de origem não im-
pede que o perdão imprima a marca de seus signos sobre todas as instâncias do pas-
sado: é nesse sentido que ele se oferece como seu horizonte comum de cumprimento,
Mas essa aproximação do cskliato11 não garante nenhum lzapv11 c11d para todo o nosso
empreendimento: por isso só trataremos do perdão difícil (Epílogo),
---
Prelúdio
Te>..to est(1beiL·cido por Ciorgio Colli t: ivlazzinn l\1ontinari, trad. fr. de Fierrc Pusch, Paris, C,_1lli-
n1ard, 1990. No entanto, se tal traduç.l.o foi adotada <1qui P<lr<1 o te,to citado, preferi usar nn título
"intl'n1pesti\'cl" a "incltual".
A MEMORIA, A IIISl'(JRIA, O ES()ULCIML:NIO
Duas observações antes de entrar no cerne da interpretação: por um lado, não po-
deremos perder de vista que o abuso contra o qual Platão protestava era o do discurso
escrito, desdobrado em toda a extensão da retórica. No ensaio de Nietzsche, é a cultura
histórica dos Modernos que ocupa um lugar comparável ao da retórica dos Antigos
instalada na escrita. Os dois contextos são, é verdade, consideravelmente diferentes, a
tal ponto que não seria razoável sobrepor termo a termo a 111za11111t'sis vilipendiada pelos
gr11111111a/a e a força plástica da vida que o ensaio nictzschiano quer livrar dos malefícios
da cultura histórica. Minha interpretação comporta, portanto, os limites usuais de uma
leitura analógica. Por outro lado, o alvo de Nietzsche não é o método histórico-crítico,
a historiografia propriamente dita, mas a cultura histórica. E cm termos de utilidade e
inconvenientes, essa cultura é confrontada com a vida, não com a memória. Segundo
motivo, portanto, para não confundir analogia e equivalência.
A pergunta que suscita o humor intempestivo de Nietzsche é simples: como so-
breviver a uma cultura histórica triunfante? O ensaio não traz resposta unívoca. Mas
Platão tampouco dizia no Fcdro o que seria a a11a11111t'sis ao sair da crise da retórica es-
crita, embora dissesse o que devia ser a dialética argumentativa. A defesa do anistórico
e do supra-histórico está neste ponto na mesma situação programática que a dialética
celebrada no fim do Fcdro. A força principal do texto nos dois casos é a da denúncia;
em Nietzsche, o tom de denúncia anuncia-se já no título: a consideração é declarada
U11zcitge111iissc - intempestiva, inatual, à medida do U11/zislorisc/1cs e do Supralzisloris-
c/1cs evocados para salvar a cultura alemã da doença histórica 2 • Além disso, o tema do
"dano" está lançado já no prefácio 1. Também é inatual a medicação que se pede, desde
o princípio, à filologia clássica'.
Deixo de lado para discussão posterior o comentário suscitado pela comparação
provocadora proposta no início do ensaio entre o esquecimento do bovídeo que vive
"de forma não histórica" (Segunda consideração i11lc111pcsliva, p. 95) e a "força de esque-
cer" (op. cil., p. 96) exigida por qualquer ação, a própria força que pcrmitir,1 ao homem
da memória e da história "curar suas feridas, reparar suas perdas, reconstituir em
suas próprias bases as formas rompidas" (op. cit., p. 97). Preferiria insistir aqui no elo
mantido ao longo do ensaio entre cultura histórica e modernidade. Ora, este elo, insis-
tentemente destacado pelo ensaio de Kosclleck comentado acima, é tão forte que faz
da consideração inatual uma defesa ao mesmo tempo anti-historicista e antimoderna.
A Segunda co11sidcração é tão categoricamente anti-historicista e antimoderna no plano
2 "ln.1tual, tal consideraç.lo o é aindl1 porque procuro entender corr10 uni mal, um dano, uma ca-
rência, cilgo de que a época se glorifica com raz5o, d saber, sua cultura histórica, pois penso até
que todos estamos sofrendo lfr febre historiadora e que deveríamos pelo menos percebê-lo" (ibid.,
p. 94).
3 Dever-se-ia estabelecer un1 florilégio do vocabulário n1édico, adequado à temátic;.1 da vida: satu-
rc1ção, repugnância, enjôo, rt'pulsc.1, degenerescência, carga opressiva, fardo, ferida, perd<1, ruptu-
rc1, n1orte. Do outro lado, curei, salvação, re1nédio ..
~ "Minha profissão de filólogo cl,íssico di-me o direito de dizê-lo: pois não sei qual sentido a filo-
logia clássica poderia ter hoje, a não ser o de exercer u1na influência in,ltual, isto é, agir contra o
ll'mpo, portanto, sobre o tempo, l', tom.ira, em provl'ito de um tempo futuro" (ibid., p. 94).
,\ Cll'\lll( \ll HISTllRIC\
, A L''.:..SL' pn)pl,t:,ito, urn,1 ob.-..L'f\.<lÇ<ln subrl' a t1\1duç?10: nZio se de\ L' tr<1duzir do~ LJ11!ti::.tori::-d1e~ por
"nJo-historicidadL'" (iliid., p. 99), sob pl'na de l'ntrar nu1nc1 problcn1jtic1 bern dift__'rL'nte, prl'cisa-
1nenlL' c1 da Gc:-:.d1id1tlid1kcit quL' pnn t.'111 de un1 hori/()tlte filosl')fico totc1ln1entl' distinto e Cl)nstitui
uma tl'ntati\·a n1uito diterente p,11"<1 sair da cri::-,c do hi~torici.'-,n10. \'oltc1ren1os a t.'ste ponto n1c1i::-,
tMdl'.
;\ Ml,M(JRIA, ;\ IIISl(lRli\, O FS(_lUH'IM[N l(l
que o excesso se enxerta: ele consiste no abuso das analogias que fazem com que "tre-
chos inteiros do passado sejam esquecidos, desprezados, e corram num fluxo cinzento
e uniforme de onde apenas alguns fatos aumentados emergem como ilhotas isoladas"
(op. cit,, p. 107). É quando ela se torna prejudicial ao passado. Mas também prejudica
o presente: a admiração sem limites pelos grandes e poderosos do passado torna-se o
disfarce sob o qual se dissimula o ódio pelos grandes e poderosos do presente.
A ambigüidade da história tradicionalista não é menor; conservar e venerar costu-
mes e tradições é útil para a vida: sem raízes, não há flores nem frutos; mas, uma vez
mais, o próprio passado sofre, todas as coisas passadas acabam cobertas por um véu
uniforme de venerabilidade, e "o que é novo e está nascendo acaba sendo rejeitado e
atacado". Essa história só sabe conservar, não engendrar.
Quanto à história crítica, ela não se identifica com a ilusão historicista. Constitui
apenas um momento, o do julgamento, na medida em que "todo passado merece ser
condenado" (op, cit., p. 113); nesse sentido, a história crítica designa o momento do
esquecimento merecido. Aqui, o perigo para a vida coincide com sua utilidade.
Portanto, existe de fato uma necessidade de história, seja ela monumental, tradi-
cionalista ou crítica. A ambigüidade residual, que comparo à do plzar111akon do Fcdro,
resulta do que a história comporta de não-excesso em cada um dos três níveis consi-
derados, em suma, da utilidade incontestável da história para a vida, em termos de
imitação da grandeza, de veneração pelas tradições passadas, de exercício crítico do
julgamento. Para dizer a verdade, Nietzsche não pesou realmente nesse texto a utili-
dade e os inconvenientes, na medida em que o excesso se declara no próprio cerne do
histórico. O próprio ponto de equilíbrio permanece problemático: "Na medida em que
serve a vida, sugere Nietzsche, a história serve a uma força não-histórica: portanto,
nunca poderá nem deverá tornar-se, nessa posição subordinada, uma ciência pura,
como a matemática, por exemplo. Quanto a saber até que ponto a vida precisa dos
serviços da história, é uma das perguntas e das preocupações mais sérias relativas à
saúde de um indivíduo, de um povo, de uma civilização. Pois história demais abala a
vida e a faz degenerar, e tal degenerescência também acaba pondo em perigo a própria
história" (op, cit., p. 103). Mas será que o balanço pedido no título pode ser estabeleci-
do? Tal é a pergunta que continua em aberto no fim do ensaio.
O ataque à modernidade, privado das nuanças anteriores, é introduzido pela idéia
de uma interposição entre a história e a vida de um "astro magnífico e resplandecen-
te", a saber," a vontade de fazer da história uma ciência" (op. cit., p. 115). Essa vontade
caracteriza o "homem moderno" (íbid.), E consiste numa violência cometida contra a
memória, equivalente a uma inundação, a uma invasão, O sintoma primeiro da doen-
ça é "a notável oposição - desconhecida dos povos antigos-entre uma interioridade
à qual não corresponde nenhuma exterioridade e uma exterioridade à qual não corres-
ponde nenhuma interioridade" (op, cit., p. 116), Não estamos longe da estigmatização
pelo Fcdro das "marcas externas" que alienam a memória. Mas a crítica adota um tom
moderno na medida cm que a própria distinção entre as categorias do interior e do
exterior é uma conquista moderna, dos alemães cm primeiro lugar: "não somos o fa-
moso povo da profundidade interior"? (op. cil., p. 119.) E entretanto já nos tornamos
"enciclopédias i.lmbulantes"; em ci.lda uma delas deveria ser impressa a dedicatória:
"manual de cultura interior para b,írbarns exteriores" (op. cit., p. 117).
O ataque em regra, ao continuar, faz explodir os diques entre os quais Nietzsche
projeta canalizá-lo (os cinco pontos de \'ista do início do par,ígrafo 5!): extirpação dos
instintos, dissimulação atrás de máscaras, conversas de anciiies grisalhos (o frdro tam-
bém não resen·a,·a aos anciãos o sabor dos gm111111nta?), "neutralidade dos eunucos,
redobramento sem fim da crítica pela crítica, perda da sede de justiça"" em proYeito
de uma bene,·olência indiferente para com a "objetiYidade"~, esmorecimento pregui-
çoso diante da "marcha das coisas", refúgio na "melancólica indiferença"'. Retumbam
então ao mesmo tempo a declaração maior do ensaio ("É somente da mais alta força
do presente que ,·ocês têm o direito de interpretar o passado" [op. cit., p. 13-!l) e a
profecia última ("Somente aquele que constrói o futuro detém o direito de julgar o
passado" [ibid. ]). Insinua-se a idéia de "justiça histórica" cujo julgamento é "sempre
destrutiYo" (up. cit., p. 136). É o ónus a ser pago para que renasça o instinto de cons-
trução que deveria arrancar a celebração da arte e até a denição religiosa do puro
conhecimento científico (op. cit., pp. 136-137). Arrisca-se então, sem proteção, o elogio
da ilusão, diametralmente oposto à realização por ele mesmo do conceito segundo a
grandiosa filosofia hegeliana da história". O próprio Platão, o da Rcpúblirn, III, -!0-!b e
seg., mobilizou-se em prol da "vasta mentira necessária" (op. cit., p. 16-!), às expensas
da pretensa verdade necessária. A contradição é assim levada ao âmago da idéia de
modernidade: os no,·os tempos que ela im·oG1 estão colocados pela cultura histórica
sob o signo da ,·elhice.
Ao término desse ataque desmedido, é bastante difícil dizer o que é o não-histórico e
o supra-histórico. Um terna, entretanto, sern' de elo entre esses conceitos limites e o dis-
curso em defesa da ,·ida: o terna da ju,·entude. Ele ecoa no final do ensaio, assim como o
fará o da natalidade no fim de J\ Co11diçiio do /10111c111 111odcmo de Hannah Arendt. A excla-
mação - "Pensando aqui na ju,·entude, grito: 'terra' terra!' " (op. cit., p. 161) - pode
h "É son1entt:.' na n1cdida t.'m que o hnn1en1 ,1111antl' da vl~rdadc nutre tl1nü1L•1n a vontade i11condi-
cio11l1l dL· ser justo, que h<í algo grandl' lll'Ssa '-.l'de dl' VL'rdadl' qul' L'tn tnda parte é glorificada dt'
forma Uo incon,ider,1da" (i/,id., p. 128).
7 "E-,sL'~ hi::-.toriadorL'~ ingl•nuos cha1nan1 de 'objeti\·idcldL'' o fato dl' ml'dir opi11i(1es e ato~ pc1ssado<-;
pl'las opiniões con1un~ do mo1ncnto pre::-.L'nte, L'T17 que encontran1 o c21nonc de toda \·erdtide; seu
trabl1lho (' acon1od,1r o pa:-.s,1do J tri\·ic1\idade dtul1l" (il1id., p. L~O). F 1n,1is adiante: "l, c'l.ssin1 que
o hon1L•n1 estL·nde :-.u,1 tel,1 snbre o pa::-.::-.<1do L' ::-,L' torna n1e~tre dek'; t5 c1~~in1 que Sl' mc'l.nife::-.ta seu
instinto ,1rtístico - mas n,l.o ::-.L'll instinto dL' \ erd,1dl' L' de justiÇ<l. ,,\ objetividade e o espírito de
ju:-.tiça silo dua::-. coi:-.,b tl)taln1ente difercntt'::-." (i/iid., p. l]l).
K () gritu de gt1L'rr,1: "Ui\·isZio do tr,1bl1lho! Form,ir filei1\1s!" n<l:o t...'ncontra L'CO n,1 confiss{l:o desiludi-
d,1 de Pil'ffL' ~ora: " . \rqui\l'lll, arqui\'l'lll, scrnprc :-.obrl1rá tllguma Cl)i:-,a"?
lJ r\ict.?schc nJ.o re::-.btl' ao L"'\<lgL'ro dl' fingir que I IL'gcl tL'nha identificado o "proces~o uniYersal"
coir1 su,1 prúpria L'\.Ístl'ncil1 bcrlinen:-.L' (IÍ 1 1d., p. l-1:7); reduzindo-Sl' tudo u quL' viria depois a un1,1
"t'tJd17 n1usical do rnndl) da históri<1 uni\·t__•rsal, ou tnziis L'xatan1ente, a un1l1 rcpl'tiç<lo supérflua"
(i[1id.). É \erdc1dl', conct'dl' Nictn-.che, que Hq:;l'l ''n,lo dis~c isso" (il 1 id.); n1c1s Pie in1plantou no~
t-.'spíritns o n1nti\·o par(1 acrL'ditlí-lo.
A MEMl~RIA, A HIST(JRIA, O ES(JUFCIMI NTO
10 A esse> respeito, Colli l' Montinari restituem uma versão anterior da página: "A cíi'ncia considera
an1bos con10 venenos; mas é somente um defeito da ciência que foz com que só veja neles venenos
e não re1nédios. Falta à cil'ncia um ramo, u,n tipo de terapêutica superior que cstuchuia os efeitos
da ciência sobre a vida e fixcuia a dose dl• ciência que permite a saúde de um povo ou de uma
ci\'ilização. Prescrição: as forças não-históricclS ensinam o esquecin1cnto, localizam, cri,1m uni
clirna, um horizonte; as forças supra-históricas tornan1 n1ais indiferente às seduções da história,
acalmam l' desviam a atençJo. Natureza, filosofia, arte, compaixão" (i/,id., pp. 113-114).
1
A Filosofia Crítica da História
Nota de orientação
/
pela filosofi11 crítica d11 lzistôri11 que i11ici11111os o pcrrnrso her111e11L•11tico. Seria 11111 erro
E 11creditar que, porfi1lt11 de 1111w filosofi'a d11 história de tipo cspernlatiuo, lzá lugar apc1w5
p11m 11111a episte1110/ogi11 da opcmçt'ío lzistoriográfica. Sobra 11111 esp11ço de sentido para os
co11ccitos 111cta-lzistôricos que depc11de111 de 1111111 crítica filosófica ap11rrntada àq11ela excrcid11 por
K1111I 1111 Crítica do juízo, e que 111crcceri11 o 110111c de "crítica do juí:o histórico". Considero-a
como o primriro m1110 d11 lzen11e11é11tica, 110 sentido de que ela se indaga 11 respeito d11 1111/urc-
:11 do co111prernder que 11/nnicss11 os /rés 1110111mtos da opcraçt'ío lzistoriográfica. Essa pri111eira
hcr111l'lll'lllica 11bord11 a rcflcxi'ío de segundo grau por sua ucrtenle crítica, 110 duplo sentido de
dc,;lcgiti111açi'ío das pretens{ies do saber de si da história 11 erigir-se e111 saber absol11to, e de ll'gi-
ti111açiio do saber lzistôrico de uocaçi'ío objctii'll.
A episte1110/ogi11 de nossa segunda parte co111eço11 a apelar para ess11 espécie de rcflexi'ío,
pri11cipal111ente quando exa11Ii11011 modelos cro11olôgicos elaborados pela disciplina. E11treta11-
to, _(i1ltaua 11111a claboraçi'ío distinta das condiçiies de possibilidade de categorias temporais dig-
nas de sl'rcm e111111ciadas nos tcr1110s do te111po d11 lzistôri11. O uoca/Julário da 1110delizaçiio - os
f11111osos "111odclos tc111pomis" da história dos Annales- ni'ío cs/11i'i1 à 11lt11ra dcss11 e111preitada
crítica. É a Rcinhard Koscl/eck quedem II idc11tificaçi'ío da distâ11ci11 entre os modelos que
11/1111111 1111 opemçi'ío historiográfica e 11s categori11s temporais da lzistôria. A "história dos con-
ceitos" -a Begriffsgeschichte - , à q1111l 11111a p11rte i111portanll.' de sua obra é dedicada, refe-
re-se às rntegorias que regem o trata111e11l0 lzistôrico do te111po, à "historiz11çíio" ge11erali:11d11
dos saberes relatiuos II todo o ca1npo prático. O capítulo scg11i11tc 111ostmrâ que esse cx11111e, por
sua uc::, 11po11/11 1111 dircçíio de 1u1111 lzer111enfotica 011tolôgica da co11diç11u lzistôrica, na 111edid11
e111 que cssa lzistori:açiio dcprndc de 1111111 experiência 110 sentido forte d11 palavra, de 1111111 "ex-
pcrÍl'llcia da l!istôria", seg1111do o título de 1111111 das coleW11c11s de ensaios de Kosel/cck. O pre-
sente capí/1110 se 1111111/erâ nos li111ites de 1111w crítica da prctensi'ío do sa/Jer de si da '1istôri1111 se
erigir c111 saber absoluto, e111 rcflexíio total.
As d1111s signifi'caçiies 111estms da crítirn scriio olternad11111entc exploradas. As duas pri-
111ciras seçiics priz,i/egi11n10 a extre111id11de 11cg11lil'll da crítirn; as duas últi11111s considemnfo 11s
dialéticas extcm11 e i11lem11 ao s11bcr de si da /1istôri11 q11i' 11/cs/11111 de 1111111cim positiua 111111toli-
111it11ç110 11ss11111úfa desse s11/,er.
A \11:~l(ll{JA, A HISI{JRIA, O FS(_)UECIMFNTO
Co111cçarc11ws por avaliar a ambição 111ais alta que a filosofia ro111íi11tica e pôs-romântica ale-
mã atribuiu ao saber de si da história. Conduzirei essa investigação 11ortmdo pelo grande artigo
de Kosellcck, "História" - Geschichte - , dedicado à constituição da história como singular
coletivo enfeixando o conjunto das histórias especiais. A semântica dos conceitos históricos
srrvirá de detector cm relação ao sonho de a11to-suficih1cia expresso na fómwla "a própria his-
tória" (Geschichte selbcr) reivindicada pelos autores envolvidos. Esse sonho será levado até o
ponto em que volta contra si 111cs1110 a arma do "todo história" (seção[).
Essa crítica aplicada à ambição mais extrema e mais declarada do saber de si da história será
c111 seguida aplicada a 1111111 pretcnsiio em apadncia dia111etra/111c11te oposta ií prrcedrnte, aquela
de considerar a época presente não somente como diferente, mas como preferível a qualquer
outra. Essa autoce/ebração, junto com a 111ttodesignação, é característica da apologia da 1110-
demidade. Em minha opinú1o, a expressão "nossa" modem idade leva a 1111w aporia se111el/1a11te
àquela contida na expressão "11 própria história". É primeiro a "rrcorrência histórica" da defesa
da modemidade, do Renascimento e das Luzes até nossos dias, que semeia a confusão. Mas
é mais visivelmente a concorrência entre várias d1fi'sas que misturam valorização e cronolo-
gia, como, por exemplo, a de Condorcet e 11 de Baudelaire, que dcsrstabiliza mais ccrtmnentc a
preferência por si mesma assumida por uma época. Coloca-se então a questão de saber se uma
argumentação em puros termos de valor pode eludir o equívoco de um discurso que invoca ao
IIU'Smo tempo o universal e sua situação no presente histórico. Outra questão que se coloca é a
de saber se o discurso do pôs-moderno escapa à contradição interna. Seja como for, a singulari-
dade histórica que pensa a si mesma suscita w11a aporia simétrica à da totalidade histórica que
se sabe absolutamente (seção li).
A hermenêutica crítica não esgota seus recursos 1111 de111Íncia das formas abertas ou dissi-
muladas da pretensão do saber de si da história ií reflexão total. Ela está atenta às tcnsiies, às
dialéticas, graças às quais esse sabrr avalia de 111odo positivo sua limitação.
A polaridade entre o julgamento judicial e o julgamento histórico é uma dessas dialéticas
notáveis, ao mesmo tempo em que continua a ser uma limitação externa à qual está submetida
a história: o desejo de imparcialidade comum iís duas modalidades de julgamento é submetido,
c111 seu exercício efetivo, a coerções opostas. A i111possibi/idadc de ocupar sozinho a posição do
terceiro já se evidencia na comparação entre os dois percursos da tomada de decisão, processo,
de wn lado, arquivo, do outro; detcr111inado uso do testemunho e da prova aqui e ali; detcrnzi-
nada finalidade da sentença terminal dos dois lados. A ênfase principal recai 1111 concentração
do julgamento judicial sobre a rcspo11sabilid11dc i11diuid11al oposta ií expansão do julgamento
histórico aos contextos mais abertos da açiio coletiva. Essas considerações sobre os dois ofícios,
de historiador e de juiz, servem de introdução à provação proposta pelo caso dos grandes crimes
do século XX, submetidos altcnzad11111e11tc ií justiça penal dos grandes processos e ao julg11111c11-
to dos historiadores. U111a das apostas teôrirns da comparação diz respeito ao estatuto atribuído
à singularidade ao 111cs1110 tempo 1110ml e histôrirn dos cri111cs do século. No plano prático, o
exercício público de 11111 e outro julga111r11to é a oportunidade de ressaltar o papel terapfotico e
pedagógico do "dissensus cívico" suscitado pelas controvérsias que animam o espaço pIÍblico
de discussão nos pontos de intcrfcrhzcia da história no campo da 111c111ória coletiva. Assim, o
próprio cidadiio é um terceiro entre o juiz r o historiador (seção III).
A ((l'\lll(, \(l Hl'.i!URIC,\
U11111 últi//111 po/11ridade enfi1tiza 11 li111itaçi/o interna à qu11! o s11/1er de si d11 lzistôria está
suln11ctido. Ela 11i/o se situ11 111ais entre a histcíri11 e seu outro, co1110 L; o caso do julga111rnto
j11dicial; c/11 está no próprio â11111go da opemçi/o lzistoriográfirn 11afrm1111 da corrclaçiio entre o
projeto de ucrdad<' e o co1111)[lllente i11tcrpret11tiuo da própria operaçiio historiográfica. Tmt11-
se de 111uito 111ais do q11e o e11gaja111ento sul,jctiuo do historiador 1111 fonnaçíio d11 o/,jetil,idadc
lzistôrica: trata-se do jogo de opçilcs q11c /,a/i:a tod11s as fases d11 opemçi/o, do arquiuo à reprc-
se11taçi/o historiadora. Assi111, a intcrprct11çiio 111ostm ter a 111es111a a111p!it11dc que o projeto de
,,adadc. fasa co11sideraçi/o justifirn seu lug11r 110 fi111 do percurso rcf/cxiz,o reali:ado neste
capítulo (scçiio IV).
Em fr711po e 11,irmli,·11, t. III, "I'· cit., pp. 37'i-3LJI, introduLo as an,ílist's de R. Koselleck logo dt>pois
do confronto com a filosofia hegdianc1 da hi~tl)ria ("Renunciar a Ht'g:l'l", pp. J-lY-17-l) e tento colo-
c,í-las sob ll égide dt.' un1,1 hl'rn1c·nl·utica da conscil•ncia histúrica, cuja categoria tnL•stra l· a de st:>r
afl'ttld,1 pelo p<1ssado, que deYo ,1 Han~ C. C,1dan1er. Koselleck encontra-~e ,1ssin1 intercalado L'ntre
Hegel, a quen1 renuncio, L' Cadan1er, a quen1 fflL' cilio. () que falta, t-.'ntJ.o, ,1 essa perspecti,·açã.o, é
o reconhL'Cinu_•nto d,1 din1t:.•nsJo tran~cendenL1l dc1s catl'goria~ metc1-hbtúric,1s. Es~e fl'Conheci-
1nento somente ~L' tornou possÍ\'el apt)s un-1a rl'construç.Jo p,1cientl' da opern.çél.o historiogr,ífica
libt.•rada dos limites de unia inquietaç.lo narratolúgic,1 domin,111te. É en1 relaç,1o aos 111odc/1J:> da
oper,1ç.lo historiogrLlfica que ,l~ catcgorÍtb c\.an1 in .1das por R. Ko~cllcck dt>fine1n seu estatuto n1ct,1-
h i~túrico. Nl'1n por is~o renego ,.1 abord,1gcn1 hcrmcnl-utica dl' Tc111po e 1111rmti7.. 111 lll: o prúprio R.
Kosc>lll'ck pMticip,1, junto com H<1rald w,,inrich L' KMI Hl'inL Stierle, do grupo dl' pesquisa que
public,1 o Poctik 11ud l l1T111cnc11tik. F no \·olun1e V dpss .1 coleç,lo, sob o título de Cc_..;c/licl1tc, ércig11is
11nd Fr:iil!l1111g [Hi~tl,)ria, Acontt:.'cin1l'nto, \!arr,üi\·a], que foran1 publicados doi~ dos artigos reto-
1n,1dos l'lll (1 f11t11n1 Jl17SSi7do: "Hi~kffia, hi~h'1ria:-. L' c~truturas tcn1porai,._, fonn .1is" L' "RL'prL'Sl'lltaç,lo,
,Konll'cin1L'nto L' l'~trutura".
A ~ffMCJRIA, A HIST(lRIA, O l'SQUECIMFNTO
teúdos da história, um sistema confiável de datação basta; quanto aos ritmos temporais
dos conjuntos que o discurso histórico delimita, eles se destacam contra o fundo de um
"tempo da história" que pontua, pura e simplesmente, a história.
Koselleck tem bons motivos para caracterizar essas categorias como meta-históri-
cas. Essa avaliação de seu estatuto é confirmada pela homologia de constituição entre
as categorias do tempo histórico em Koselleck e as do tempo interior nas Co11fissôcs
de Santo Agostinho. O paralelismo entre o par horizonte de expectativa e espaço de
experiência e o par presente do futuro e presente do passado é marcante. Os dois pares
dependem do mesmo nível de discurso. Ademais, eles se prestam um socorro mútuo:
as estruturas do tempo histórico não se limitam a dar às do tempo mnemônico uma
amplitude mais vasta, mas abrem um espaço crítico no qual a história pode exercer
sua função corretiva em relação à memória; em troca, a dialética agostiniana do tríplice
presente reabre o passado da história sobre um presente de iniciativa e um futuro de
antecipação dos quais, quando chegar o momento, será preciso reencontrar a marca
no cerne da empreitada historiadora. Resta que Koselleck está habilitado a dizer que
"nem Santo Agostinho nem Heidegger fizeram sua interrogação incidir sobre o tempo
da história" (op. cit., p. 328) - o que não é tão verdadeiro no caso de Gadamer, como
afirmo em Tempo e narrativa lll. A contribuição das análises de Koselleck consiste no
tratamento dessas categorias como condições do discernimento das mudanças que
afetam o próprio tempo histórico e, principalmente, dos traços diferenciais da visão
que os Modernos têm da mudança histórica 2• A própria modernidade - voltaremos
a isso mais adiante - é um fenômeno histórico global, na medida em que apreen-
de os Tempos modernos como tempos novos; ora, essa apreensão somente se deixa
refletir em termos de afastamento crescente das expectativas em relação a todas as
experiências feitas até hoje. Não era o que acontecia com as expectativas escatológicas
da cristandade histórica que, em razão de seu estatuto ultramundano, não podiam
ser coordenadas com a experiência comum dentro de um único processo histórico. A
abertura do horizonte de expectativa designado pelo termo "progresso" é a condição
prévia da concepção dos Tempos modernos como novos, o que constitui a definição
tautológica da modernidade, pelo menos em alemão. A esse respeito, pode-se falar de
"temporalização da experiência da história" enquanto processo de aperfeiçoamento
constante e crescente. Múltiplas experiências podem ser enumeradas tanto na ordem
da expectativa quanto na da experiência rememorada; progressos desiguais se deixam
inclusive distinguir; mas uma novidade global aprofunda a distância entre o campo
de experiência e o horizonte de expectativa'. As noções de aceleração e de caráter dis-
2 O título Of11l11ro passado pode ser entendido no sentido de iuturo ta I como ele nJo é mais, de futu-
ro acnbado, característico da época cm qul' foi pensada a história enquanto tal.
3 En1bora Kant não tenha escrito a crítica do juízo histórico que teria constituído a terceira parte da
Crítica do juízo, ele deixou seu esboço en1 O co11flito das faculdades. Assin1, le1nos na segunda seção,
§ 5: "Na espécie hurnan;J, há de sobrevir alguma experiência que, enquanto aconteci,nento, indiqup
nessa espécie u1nc1 disposição e urna aptidão zi ser cziusa do progresso run10 ao melhor e, uma vez
que este deve ser o .:üo de u1n ser dotzido de liberdade, a ser seu artcs11o; pode-se afirn1dr que un1
acontl'Citnento é o efeito de uma detern1inada CdUSd qthlndo se produzetn as circunstcl11cias que
ponível da história pertencem ao mesmo ciclo. A aceleração é o indício infalí\·el de
que a distância só se mantém modificando-se permanentemente; a aceleração é uma
metacategoria dos ritmos temporais que vincula a melhora ao encurtamento dos in-
tervalos; ela d,í à noção de velocidade um toque histórico; ela permite a contrario falar
de atraso, de adiantamento, de estagnação, de regressão. Quanto ao carMer disponível
da história, ao seu caráter factível, ele designa uma capacidade que é ao mesmo tempo
a dos agentes da história e a dos historiadores que dispôem da história ao escrevê-la".
Que alguém faça a história é uma fórmula moderna impensável antes do fim do século
XVIII e que foi de algum modo ratificada pela Revolução Francesa e Napoleão. O ní\·el
meta-histórico do conceito se evidencia no fato de ter podido sobreviver à crença no
progresso, como atesta, fora da esfera alemã', o orgulhoso lema emprestado de Michel
de Certeau sob o qual Jacques Le Goff e Pierre Nora reuniram os historiadores france-
ses nos anos 70''. Se a noção de exeqüibilidade da história é tão tenaz, é provavelmente
porque ambiciona alinhar nossa relação dupla com a história - fazer a história e fazer
história - com a competência constituti\·a do campo prático daquilo que chamo, com
um termo abrangente, de "homem capaz".
Nada enfatiza melhor o caráter unilateral do conceito de exeqüibilidade da história
do que seu vínculo estreito com a metacategoria por excelência que constitui o próprio
conceito de história como singular coletivo. É a categoria mestra sob cuja condição o
tempo da história pode ser pensado. Existe tempo da história na medida em que há
uma história una. É a tese mestra de Koselleck, num artigo seminal publicado no Léxico
'1i,tôrico da /í11g1111 político-,ocial na Alc111t111'111 com o título simples de "Geschichte"º. Nes-
se aspecto, seria uma ilusão acreditar que o repúdio clamoroso da filosofia hegeliana
da história e, num grau menor, a eliminação altiva das especulações arriscadas de
cobbora1n p,1ra isso". Essa "história profética do gênero ht1nh1no" apóia-se nos sinais que a histó-
ria efetiva en1itc da de~tinaçào cos1nopolítica do gênero hun1ano. Para Kant, a RcYolução Franet_•~a
foi uni desses sinais, do qual diz: "Tal fpn,)n1eno dL1 história da hun1ani<..iade não ~L' esquece n1ais"
(Cl Ctllljlito das/Íl(U/d,1d,·,, 2' seção,§ 7).
-l- Koselleck dedica un1(1 ,111,ilisc separada a L'~~a noção de disponibilidade (O.fi1t11ro passado, l)V ât.,
p. 233 l' Sl'g.)
~ Cita-se con1 freqüêncil1 l1 fórniula de Trcitschkc que Kosl'lll'ck rt:lcita: "Se ll história fosse un1(1 cit'n-
ci<1 ex,1td, dl'\Tríaino~ L'star c1n condiçJ.o de des,·endar o futuro do~ Estados. Não podL·mo~ faLL·-
lo, pois, por toda parte, a ciência histórica esbarrl1 no 111istério da personalidadl'. São indi,·íduos,
hon1ens que fazl'm a hi'."!tória, honll'ns con10 Lutero, Frederico n Cr(1nde e Bisn1arck. Essa gr(1ndl' l'
herôica verdc1de sercÍ. senipre just;.1; n1as o fato de L'SSl'S honll'll~ parcccrl'nl Sl'f os homen:-, CL'rto~ no
n1onll'Ilto certo pern1anecerá para todo o :-,ernpre uni 1nistério para nós sin1pll's n1ortai~. O tL n1po 1
fonnl1 o gênio, 111<1s n<1o o crici" (citado por Kosl'lll'ck, íbid., p. 2-l-~).
6 :'\lo texto de apn:.'sent<1çJ.o d(1 obr<1 coleti, a F11irc de! 'liistoirc, a no,·idade da en1preit<1da L· enfati-
z,1da: "Obra coleti,·a e di\·ersa, este li\·ro pretende entrcL1nto ilu'."!tr,1r L' promover un1 no\·o tipo
de história" A no,·id,1dL', ~ob as trl·s fúrrnulas "Problen1as no\-l)S", "ConCL'itos no\·os", "()bjeto~
novos", replicl1 ao t:sfacelan1ento do can1po histórico na lllL'~n1,1 l'poca. :'\leste sl'ntido, ela L':->t<í. L'lll
sintonia con1 a unific.1ç<1o do conceito de hi:-.tl)ria, que sercí. tratadl1 n1l1is adiantl'.
7 Artigo "Ceschichte", in Ccscf,ic//tli(l1c Cr1111(il 1cs:rUfc, Stuttgart, Kktt-Cotta, 1LJ7S. A traduçllo tran-
Cl'Sa dessl' texto, por t\lichel Werner, t.' colocada no início dl1 coletclnL'a dt> <Htigo~ l.'f-:xpt;ric11t"c de
/'lii,toirc, cp. cit.
A \ff\HJRI,\, A IIISl(lRIA, () ESC,UFCl~ffNTO
8 ~: o título dado ~ colet.ínl'a dL' cirtigos ao qual pertencl' "O concl'ito dL' história": R. Koselk,ck,
L'Expáic11cc de /'l,istoirc, op. cit.
.\ l(l'dll( \\l I\\S]\l\/lC \
Y "A distinção dt.' uni tl'n1po hi~tt'Jrico por n,ltllrt'/ª no conceito de hi~k)ria coincide com a L'\pcril'n-
cia dos TC'mpos modl'rnos" (ibid., p. 21 ).
10 "E~~L' nn1ndo de e,pt.'ril'ncia tt.•n1 un1c1 prctensJ.o in1anentl' cl ,·t.•rt.t1dc" (iliid., p. 22). E 111,.1i~ adiantl':
"Para di.1,l•-lo de n1odo e\.ager,.1do, a hi~klria (Ce::-âliclltc) t_', un1,.1 L":-,pécit.' de categoria trc1n~n'nden-
t.1l que v is,.1 21 condiç,1o de po~sibilidade das hi~t()rias" (ihid., p. 27). Droysen podt.•rj di/t.'r delc1 que
"l'la n1esma é seu pn)prio ~n1hcr" (citado ihd.).
A ~H.M(lRIA, A HIST(lRIA, O FS(lUFCl~IFNTO
A menor infração à idéia de história una e de humanidade una deve ser atribuída
às resistências di,,ersas daquilo que se pode chamar, num sentido amplo, com Hannah
Arendt, de p/11mlid11dc lrn111111111, Esta trabalha do interior o próprio conceito de história
como coletivo singular. São sempre histórias especiais que a história uni,,ersal ou a
história do mundo pretende englobar. Ora, essas histórias especiais se dizem segundo
critérios múltiplos: quer se trate de distribuição geogrMica, de periodização do curso
da história, de distinções temáticas (história política e diplomática, história econômica
e social, história das culturas e das mentalidades), Essas di,,ersas figuras da pluralida-
de humana não se deixam reduzir a um efeito de especialização profissional do ofício
de historiador. Elas se de,·em a um fato primeiro, a fragmentação e até mesmo a dis-
persão do fenômeno humano. Existe uma humanidade, mas povos (muitos filósofos
do século XIX falam assim do "espírito dos povos"), isto é, línguas, costumes, culturas,
religiões e, no nível propriamente político, nações enquadradas por Estados. A refe-
rência à nação foi mesmo tão forte que os representantes da grande escola histórica
alemã não cessaram de escrever a história do ponto de vista da nação alemã, O mesmo
se deu na França, com Michelet em particular. O paradoxo é enorme: a história é pro-
clamada mundial por historiadores patriotas. Saber se uma história pode ser cscri/11 de
um ponto de vista cosmopolítico passa então a ser um ponto de discussão,
Essa resistência das histórias especiais à globalização não é a mais ameaçadora:
pode-se ainda vinculá-la quer a limitações de competência inerentes ao ofício de histo-
riador, uma vez que o método histórico-crítico exige uma especialização cada vez mais
afinada da pesquisa, quer a um traço da condição de historiador que faz do homem
historiador um cientista e um cidadão ao mesmo tempo, um cientista que faz história
ao escrevê-la, um cidadão que faz a história em relação com os outros atores da cena
pública, Mesmo assim, surge certa arnbigüidade quanto ao estatuto epistemológico
da idéia de história mundial ou universal. Trata-se de uma idéia reguladora no sentido
kantiano, que exige, no plano teórico, a unificação dos saberes múltiplos, e que propõe,
no plano prático e político, uma tarefa que pode ser chamada de cosmopolita, no intui-
to de estabelecer a paz entre os Estados-nações e de difundir mundialmente ideais da
democracia? 11 Ou se trata de uma idéia dctcr111í111111tc, constitutiva, à maneira da IdJí11
hegeliana na qual o racional e o real coincidem? Segundo a primeira acepção, a história
dcuc se tornar universal, mundial; de acordo com a segunda, ela I' mundial, universal,
enquanto devir em marcha de sua própria produção. Nos dois casos, a resistência da
pluralidade humana constitui um paradoxo e, no limite, um escândalo, O conceito de
coletivo singular seria realmente honrado apenas se se conseguisse renovar o princípio
leibniziano de razão suficiente, pelo qual a diversidade, a ,·ariedade, a complexidade
dos fenômenos constituem os componentes bem-vindos da idéia do todo. Essa inter-
pretação mediana entre idéia reguladora e idéia constituti,,a não me parece fora do
alcance de urna concepção propriamente dialética da história.
11 Nus próprios lin1itl'~ de:-.:-.a fornnililç()o prudente, a id(,ja de hi~túria mundial concebida con10 uiria
cil'nci(l din'tri7 parL'Cl' tJo incl'rt(l aos olho:-. dl' K(1nt quL' l'k' (Krl'ditcl qul' l'lcl clind(1 n(lo tenha -.;ido
escrit<1 L' que ainda n<l.o encontrou seu Kl'piL'r ou ~cu Newton.
A idóa de história universal ou mundial parece-me posta mais drasticamente à
prova no próprio plano da tc111poralizaçiio da marcha da história. A modernidade faz
surgir traços inéditos de diacronia que dão uma fisionomia nova à velha tripartição
agostiniana entre passado, presente e futuro, e mais que tudo, à idéia a ela associada
de uma "distensão da alma". Em O futuro passado, Koselleck já enfatizara os efeitos do
topos do progresso sobre a representação do tempo da história. Mas a idéia de progres-
so não se limita a sugerir a de uma superioridade a priori do futuro - ou mais exata-
mente das coisas por vir - sobre as coisas passadas. A idéia de novidade vinculada à de
modernidade (modernidade, cm alemão, se diz "tempo novo" - 11cuc11 Zcitcn e, a se-
guir, Ncuzcit) implica no mínimo uma depreciação dos tempos anteriores tachados de
obsolescência, no máximo uma denegação que equivale a uma ruptura. Já evocamos o
efeito de ruptura atribuído à Revolução Francesa pela i11tclligc11tsia européia do século
XIX. As luzes da razão já haviam feito os tempos medievais parecerem tenebrosos; na
sua esteira, a impulsão rcvolucion,fria faz os tempos passados parecerem mortos. O
paradoxo é temível quanto à idéia de história mundial, universal: a unidade da história
pode ser engendrada por aquilo mesmo que a rompe?'" Para superar o paradoxo, seria
preciso que a força de integração liberada pela energia da novidade fosse superior à
força de ruptura que emana do acontecimento considerado corno fundador de tempos
novos. O desenrolar da história mais recente está longe de satisfazer esse desejo. O
crescimento do multiculturalismo é, nesse aspecto, fonte de grande perplexidade.
Esse fenômeno de depreciação do passado apresenta vários corolários notáveis.
Notaremos primeiro o aumento do sentimento de distanciamento que, na escala de
uma série de várias gerações, tende a obliterar o sentimento da dívida dos contempo-
râneos para com os antecessores, para retomar o vocabulário de Alfred Schutz; pior
ainda, os próprios contemporâneos pertencentes a v,frias gerações que vivem ao mes-
mo tempo sofrem a provação de uma não-contemporaneidade do contemporâneo.
Notaremos, em seguida, o sentimento de aceleração da história que Koselleck inter-
preta como um efeito da dissociação do vínculo entre expectativa e experiência, uma
vez que um maior número de fenômenos percebidos como mudanças significativas
ocorrem no mesmo lapso de tempo.
Essas alterações profundas da unidade da história no plano de sua temporaliza-
ção equivalem a urna vitória da distcntio a11i111i segundo Santo Agostinho que põe em
perigo a unidade de intcntio do processo histórico. Entretanto, no plano da memória,
havia um recurso: essa forma de repetição que consistia no reconhecimento do passa-
do rememorado no interior do presente. Que equivalente desse reconhecimento a his-
tória ofereceria se fosse condenada pela novidade dos tempos vindouros a reconstruir
um passado morto, sem nos deixar a esperança de reconhecê-lo como nosso? Vemos
14 Kosclleck cita u1na carta de Ruge a M,Hx datada de 1843: "N,1.o poden1os continulu nosso passado
.i não ser rompendo nitid,1mente com ele" (/\ cxpcrit11cia da hi,tória, op. cit., p. 85). Em A ideologia
aíe111tl, Marx acredit1 que o <.1dvento do con1unis1no ~omente transformará il história vigente e1n
história n1undial ao preço da desqualificação de toda a hish)ria anterior, reduzida ao estágio de
pré-história.
,\ l l l ' . l l l l \() IIIS!lll,ll 1
despontar, aqui, um tema que só tomará forma no fim do capítulo seguinte, o da "in-
quietante estranheza" da história.
A depreciação do passado não bastaria par,1 minar de dentro a afirmação da história
corno totalidade auto-suficiente se um efeito mais devastador não ti\'Cssc se acrescido
a ela, a saber, a lzistori:açiio de toda a experiênci,1 humana. A \'alorização do futuro teria
permanecido urna fonte de certeza se não ti\·esse sido acompanhada pela relati\·izaçào
de conteúdos de crença considerados imut,Í\Tis. Tah'cz esses dois efeitos sejam poten-
cialmente antagonistas, na medida em que o segundo - a rclati\'ização - contribui
para minar o primeiro - a historização, até então acoplada a urna expectati\'a garanti-
da por si mesma. É nesse ponto que a história do conceito de história desemboca numa
arnbigüidade que a crise do historismo lc\·ará ao primeiro plano, mas que é como que
um efeito pen·erso do que Koselleck chama de historização do tempo.
O efeito de\'astador foi particularmente \'iSÍ\'el cm relação à versão teológica do
topos do progresso, a saber, a idóa de Hcilsgcschichtc - "história da salvação" - que
depende da escatologia cristã. A bem da H'rdadt>, o topos do progresso se beneficiara
primeiro de um impulso vindo da teologia por meio do esquema da "promc>ssa" e do
"cumprimento", o qual constituíra a matriz original da Hcilsgcsclziclttc no ,'imago da
escola de Gi:ittingen, desde o século XVIIL Ora, esse esquema continuou a alirnc>ntar a
teologia da história até mc>ados do século XX. O efeito bumerangue do terna da relati-
\'idade histórica sobre a Hcilsgcsclziclzte foi gra\'e. Se a própria Re\·elação é progressi\'a,
a recíproca se impôe: a \'inda do Reino de Deus é por sua \'CZ um desen\'C1h·imento
histórico e a escatologia cristã se dissoh·c num processo. A própria idéia de sah·ação
eterna perde seu referente imutável. É assim que o conceito de Hcilsgcsclzichtc, primei-
ro proposto como urna alternativa da historização, mesmo com o risco de funcionar
como um duplo teológico do conceito profano de progresso, im·erteu-se em fator de
historização integral.
De fato, todos os campos da experiência foram gradualmente afetados pt>la relati-
Yidade histórica, como atesta o triunfo das idéias de ponto de vista e de perspectiYa.
Tantos obser\'adores, tantos pontos de \'ista. Pode-se, certamente, atribuir a essa idéia
urna origem leibniziana, mas ao preço do abandono da referência forte a uma integral
dos pontos de \'ista. A idéia dt> uma pluralidade de pontos de \·ista, uma \'ez pri\·ada
de toda \'ista panor,1rnica, propôe-se como a idéia antidogmática por excelência. Mas
coloca-se então a questão de saber se a tese que afirma a rc>lati\·idade de toda asserção
não destrói a si mesma por auto-referência. Enunciada na forma radical que o ceticis-
mo lhe confere - "toda afirmação, toda estimativa é relatiYa às condiçôes históricas de
sua enunciação"-, c>la corrL' o risco de cair sob a acusação de "contradição performati-
\'a" dirigida por Karl Otto Apel aos defensores do ceticismo frente à noção ético-jurídi-
ca de \'alidade'ª. Cabe indagar SL' a idéia de \'t>rdadc, mas também a do bom e do justo,
podem ser radicalmente historicizadas sem desaparecer. A relati\'idadc que' resulta
F~ A contradição é pL'rforn1ati,·,1 pois nclo ::-.L' rL'ft..'rl' ao contl'tído ::-,cm(1ntico da cl~Sl'fÇ<lo, n1a:-. ..1l1 ato
qul' a t'nuncl/1 l' que :-.e considera, L'nquc1nto t,11, con10 \'l'rd,1dl'iro, con1u n,l.o relati\'o.
1\ Ml:M(JRIA, A HISTÚRIA, () IS(.)L;ITIMEN J()
A filosofia crítica aplicada à história tem como tarefa principal, como dissemos,
refletir sobre os limites que um saber sobre si da história que se quer absoluto ten-
taria transgredir. O tratamento da história como singular coletivo erigido cm sujeito
de si mesmo - a História - é a expressão mais manifesta dessa pretensão. Mas essa
provação não é a única. Uma segunda forma mais dissimulada da mesma pretensão
lhe é simetricamente oposta: ela consiste em elevar ao absoluto o presente histórico
erigido em observatório e até mesmo em tribunal de todas as formações, em particular
culturais, que o precederam. Essa pretensão dissimula-se sob os traços sedutores de
um conceito à primeira vista isento de toda veleidade de transgressão dos limites: o
ln Segundo Koselkck, desde meados do século XVIII, J. M. Chladenius teria vislumbrado o dei-
to dl•v,istador da idéia de ponto de vista (L'Ex11<'ric11cc de /'l,istoirc, op. cit., p. 75). Koselleck nota:
"Chl;idenius instaura um quadro teórico que não foi ultrapassado hoje em dia" (ibid., p. 76). Mas é
F. Schlegel, em Obcr dic 11c11t'l'C Ccsc/1ic/,/c. Vor/cs1111gc11 (1810-1811), quem teria formulado com toda
lucidez, contra Hegel "a aporia que surgiu entre o fato de visar a verdadl' l' a constatação de sua
relativi<fode histórica" (p. 79 e n. 279). Mais grave ainda, l'lc teria vislumbrado no cerne do próprio
projeto hegeliano unia contradição mortal entrl' a an1biçJo de abarcar "a totalidade dos pontos
de ,·ista" (expressão lida no próprio 1kgcl l'm La Fl.11iso11 d1111s / 'l,istoirc) e a defesa pelo filósofo da
liberd,1de, da razJ.o, do direito. Entre a tot1liz;_1ç<lo L' o posiciona1nL•nto, entre a razclo especulativa
e o juízo n1ilitante, insinuar-se-ia un1d sutil contradição.
conceito de modernidade. A impossÍ\·el rei\·indicação ligada a esse conceito apenas
é desvendada quando se lhe restitui sua formulação inteira e exata, e quando se diz
e se escreve "nossa" modernidade. Não se trata de nada menos do que da "idéia que
nosso tempo se faz de si mesmo em sua diferença, cm sua 'mwidade' em relação ao
passado" 1~. "Nosso", "nosso" te1npo, "no5sa" época, "nosso" presente, são tantas as
expressões que equivalem à idéia de modernidade. A pergunta é esta: como "nosso"
tempo poderia pensar a si mesmo absolutamente? J\ pergunta é rigorosamente simé-
trica à que nos ocupou um pouco acima: tratava-se então do todo da História, enquan-
to singular coletivo, que tentava se colocar absolutamente cm sujeito de si mesmo:
"a própria história". Desalojada dessa posição insustentável, a pretensão à reflexão
absoluta se volta sobre o exato oposto desse coletivo singular, a saber, o momento his-
tórico singular, o agora da história presente. Ora, essa pretensão está hoje muito \"i\"cl,
embora aquela da qual ela é a contrapartida esteja geralmente abandonada. A rei\·indi-
cação que ela \"einila é, provavelmente, tão inclut,ível quanto, apesar da crítica, a tenaz
referência à História total, sob os\ ociÍbulos história do mundo, ou história uni\·ersal,
em cujo pano de fundo se recortariam ,is áreas históricas balizadas pelos historiadores.
Um agnosticismo rigoroso para com a idl'ia de modernidade talvez seja impratic,í\·el.
Com efeito, como não tentar dizer cm que tempo estamos \ i\·endo? Dizer sua dife-
rença e sua novidade em relação a qualquer outro? O único ganho esperado da crítica
seria então a confissão do estatuto contro\·erso, polêmico, não conclusivo de todas as
discussões sobre o "\·erdadeiro" sentido de "nossa" modernidade.
Extrairei meu primeiro argumento contra a pretensão de "nossa" modernidade a
constituir exceção a essa recorrência e a se pensar absolutamente 1' do que H. R. Jauss
chama de "as recorrências históricas" da palavra. Essa "recorrência histórica" é ates-
tada por um discurso que se inscre\·e perfeitamente numa teoria da representação,
atinente, como foi mostrado na segunda parte desta obra, à operação historiográfica.
Com a diferença consider,ível de que não se tr,1ta de uma representação entre outras,
mas da representação que essa operação se d,í de si mesma, uma vez que as duas
figuras da representação-objeto e da representação-operação coincidem. Essa auto-re-
presentação afirma dar testemunho da época inteira na qual seu próprio discurso se
inscreve. Ora, \'árias épocas caracterizaram-se como modernas. O paradoxo ligado ,10
próprio tema "no,;,;11 época" procede dessa repetição.
17 H. R. Jauss, "L,1 '\lndcrnitl'' dans !<1 tr,1ditinn littl•r,1ire et la cnnscit'llCL' d'aujourd'hui", in Pour 1111c
c,th<'tiquc de /111úcpt10J1, tr,1d. franc. d,, C. l\laillc1rd, Paris, Gallim,1rd, FJ78, pp. 158-209.
18 A prúpri,1 palzl\T,l 1nndcrnidadt•, nota H. R. Jau~~ no início dl' St.'ll cn~,1io, '\1presenta [ .. ] L'.'->SL'
paradoxo dL' dL'STTlL'ntir corn toda CL'rtL'?a, a todn n1on1ento, por sua rL'Corrf'ncia históric,1, a preten-
.-.,,l.o que elc1 ,1firn1a" (il 1 id., p. 1:18). Unia rel,üi,·id,1de con1paréí.,·l'l <lqut.'la que h,1via surpreendido ,l
pretens<lo da ''pn'lpri,1 hish'lria" ,1 se rL'íll'tir absolutan1l'ntl' ,ltingir,í. a.'-,~in1 l'Til chl'io ,1 prctcns,l.o
dt:.> "nossa" 111odL'rnidade ,l SL' distinguir ,1bsolutan1l'nte de tod,1s as 111odcrnidadc's do pa.'-,~,1do. A-.,
inL'lut,í.vt..'i.'-> contro,·l'r~ias qut' ,1fl'tc1n1 o discur.-.,o sobre ,11nodt:rnid,1dL' ser.lo brL'\'L'n1ente L'\ ocada~
,1penas ,1 título dL' sinton1,1 con1pkrnl'nL.ir da incapacidadl' da con~cil•ncia dt..' atualidade dL' Sl'
rl'fll'ti r tota ImentL'.
i\ \11'\10RIA, i\ IIJST(lRL\, O FS()LIJ'Cl\11 "J()
çôes do seguinte modo. Primeiro, ele propôe, num plano ainda formal, a distinção
entre o antes e o depois, implícita nas noções conexas de simultaneidade e sucessão.
Sobre ela se cd ifica a oposição entre passado e presente que rege a seqüência das dis-
tinçôes que o historiador recolhe no nível da "consciência social histórica" (Histoirc ct
ML'IIIOirc, p. JJ). A distinção decisiva, que conduz ao limiar da idéia de modernidade,
é constituída pela oposição "antiquado" (antigo) z,crsus "moderno" 211 • Essa oposição,
diz ele, "desenvolveu-se num contexto ambíguo e complexo" (op. cit., p. 59). De fato,
o termo "moderno" mudou várias vezes de parceiro (antiquado, mas também antigo,
tradicional), ao mesmo tempo cm que ligava sua sorte a sinônimos diferentes (recen-
te, novo). Além disso, cada um dos termos do par não deixou de ser acompanhado
de conotações laudatórias, pejorativas ou neutras. Neutro foi o primeiro emprego de
"moderno" no baixo latim (o advérbio 11wdo significava recentemente), e de "antiqua-
do" (no sentido do que pertence ao passado). Menos neutros foram os usos ulteriores,
quando "antiquado" passou a designar o mundo greco-romano antes do triunfo do
cristianismo, mundo desde então designado pela palavra "Antigüidade" 21 • A neutrali-
dade não vigorar,1 mais quando ao termo "moderno" se acrescentar o epíteto "novo",
termo laudatório por excelência, a partir do século XVI, quando seu único oposto não
seri.Í mais o antiquado, mas o medieval, segundo uma divisão da história em três épo-
cas, antiga, medieval e moderna (11c11crc em alemão). A ambigüidadc aumenta quando
a Antigüidade passa, de cronologicamente ultrapassada, a exemplar, a título do gran-
de Renascimento do século XVF.
Foi então que a narrativa histórica cruzou as avaliações pejorativas ou laudatórias
que se sobrepuseram à enumeração dos períodos no estilo das cronosofias estudadas
por Pomian (reino, idade, era, período, e até mesmo século, como nas expressões o
lLJ Jacqul's Lc Coff, I-/isloir,- ,-/ M<'llloirl', Pilris, C,11li111ard, JLJLJ6. O autor (pp. 33-58) interroga suces-
si\'an1cnte os psicólogos (Piagt.'t, Fr<1isst..'), os lingüistas (Weinrich, Bt..'nvenistt..'), os üntropólogos
(1.é,·i-Strauss, Hobsbawm), os historiadores da históri,1 (Chfltckt, Dupront, Bloch).
20 I/Jid., pp .. 59-10:l.
21 a E. R. Curtius ,1 grande invcstigaç;'jo erudit,1 Lo Liitá11l11rc ,'11rop<'c1111l' e/ /e Mot/<'11 Âgc Iati11,
Ül'\'l'-Sl'
fü·rn,', 1948; trad. fr,rnc. de jean Br0joux, 2 vol., l'aris, Pockct, col. "Agor,1", 1986. j,1uss enfatiza ,1
originalidade dü conceitualict1dc n1edit..'Vcll, ao contr<írio dt..' Curtius, que apenas viu nela a rept..'ti-
ç,10 d,, um mocklo \'indo da própri,1 Antigüicic1de ("Li Modernité", art. cit., p. 15LJ). Em particular,
o recurso .l: tipologia constitui uni ,nodo de cncadeamcnto originül. A idéia de "transbordc1111c11to
tipológico" part..'Cl' n1csn10 ser ô chcl\'l' da ftln1osa iln1bigüidüde contida no elogio cuja paternidüde
/l'an de Salisbury atribui ,1 Bernard de Chartres: "Somos aniks nos ombros de giganté's." O que é
mais honroso, ,1 solidez dt..' uni gigantt..' ou <l vista pcrspicc1z de uni an.lo?
22 Sobre a época do Rcnascin1l'nto, cf. Jauss, l'our 111Ic cs/l1<'tiq11c de /11 n'ccptio11, op. cit., pp. 170-175.
Grande Século, o século de Luís XIV, o século das Luzes). O historiador é testemunha
dessa sobrecarga de sentido que faz da superioridade de "nossa época" um lema de
combate. Esse patamar é ultrapassado quando a idéia de nm·iciade recebe corno con-
tr,írio a de tradição, a qual, de simples transmissão de herança, tornou-se sin(mimo
de resistência às idéias e aos costumes novos. As coisas se complicam com o conceito
cíclico de Renascimento, pois o elogio se dirigia a um passado reencontrado - a An-
tigüidade greco-romana pagã - para além do efeito de ruptura engendrado pelo ad-
,·ento da novidade. É nessa encruzilhada do linear e do cíclico que se decidiu o destino
do conceito de imitação, ele mesmo herdado da 111i111,'sis dos gregos: imitar é repetir, no
sentido de copiar, ou repetir, no sentido de trazer de volta à ,·ida? A famosa querela
dos Antigos e dos Modernos, no século XVII francês e inglês, gira cm torno dessas
,·alorizações opostas da pretensa exemplaridade dos modelos antigosº'. A linearidade
le,·a definitivamente a melhor com a idéia de progresso, que merece o qualitatin1 de
topos na medida em que nesse "lugar-comum" firma-se a aliança do moderno e do
novo diante da vetustez da tradição.
A seqüência "moderno", "no,·idade", "progresso" funciona à moda de um sintag-
ma nos dois textos cultos relati,·amente aos quais se orientarcí a seqüência de nossa
discussão: as R.éf7cxio11s s11r /'IIistoire des progn's de /'esprit l1111111Ji11 de Turgot (17-!9) e o
Esq11issc d'11n t11/1/ea11 dcs progn's de /'esprit l111111ain de Condorcet (179-t ). História ou qua-
dro, é o balanço de uma aquisição da consciência ocidental, que se coloca corno guia
da humanidade inteira. O elogio do moderno foz coincidir, no plano meta-histórico,
a reflexão que se presume total da história sobre si mesma e a do momento histórico
pri,·ilcgiado. O importante é que a projeção do futuro é daí cm diante solidária da re-
trospecção sobre os tempos passados. Dora,·ante, o século pode ser visto com os olhos
do porvir. É nesse sentido que o futuro das gerações das quais nossa própria moder-
nidade se distingue aparece corno um futuro ultrapassado, segundo o belo título de
Kosellcck Dic ,,crga11gC11c Z11k1111_ft, que e,·oc,1 o futuro tal como não é mais, entenda-se
tal como ele não é mais o nosso. Mas a história da idéia de modernidade continua além
das Luzes européias, e as hesitaçôes do nJCabulário se acumulam. A substituição ck
"antigo" por "antiquado" j,í havia marcado o afastamento histórico entre os Tempos
Modernos e a Antigüidade. A de "moderno" por "romi\ntico" foi acompanhada pela
substituição simétrica de "antigo" por "clássico", no sentido de indelén"l, de exem-
plar, e até mesmo de perfeito. Com o romantismo, o Moderno redescobre p<1ra si um
duplo passado "gótico" e "antiquado", ao passo que a superioridade de nosso tempo
se encontra matizada pela idéia, cara a Montesquieu, de que cada época e cada naç3o
tem seu gênio. O mais surpreendente nessa história tah·cz seja o destino das pal,1'"ras
23 Sobrl' a qul'rt.'la do::-, Antigos t.' dos \lodl'rrnJs, cf. Jl1uss, ifiid., pp. 177-180. ;\ "querl'la", noL1 J,1uss,
nos pennite d,ltar P con1eço do sl'culo d(1::-, LuJ:t.'~ ncl França (t1p. (lt., p. 17~). (o que, por ~inal, Didl'-
rot e d'/\kn1bert proclan1arJo con1 praLt.'r na F11(tfdOJh'iiil'), (1 ,1posta ...,endo ,1 pn.'ten::-,a L''\L'n1plari-
(,_L1dt.• dos n1ndl'itb antigos.
;\ ,tl'MÚRJ,\, ;\ IIIST(JRIA, UI S()ULCIMFNJ()
24 Jauss, l'o11r 1111c c,t/1étiq11c de la r<'ccptio11, op. cit., pp. 187-197 (pp. 206-212?), cita o Oictio1111nirc de
/'Acadé111ic de 1798: ro,nântico "diz-se geralint'nte dos lugc1res, das paisagt..•ns, qu<:.' le1nbran1 à irna-
ginaçJo descriçõl-'s, poen1as e ron1ances". Evoca1nos acin1a, co1n E. Casey, o papel da p;:iisagt•n1
na consciência que to1nan1os do espaço hzibitado. Do lado zilcmão, foi Herder e, na sua esteira, o
ron1antis1no alen1Jo que elevaran1 o gótico il posição da verdade poética.
25 Com Stl•ndhal, notc1 Jauss, "o ron1l1ntis1no, não é n1ais a zitração pelo que transcende o presente,
c.1 oposição polcH entre c1 fl'i.1liLt1de cotidiana e os longínquos do passado; é a atualidade, a beleza
dt..• hojt..', que, ao se tornar a de onten1, perderlí inevitavelmente seu atrativo vivo e srnnente poderá
clpresentar doravante utn interesse histórico": o ron1antit-.n10 é "a arte de apresentar aos po\'OS as
obras literürias que, no estc1do atual de seus hábitos e de suas crenças, são suscetíveis de lhes dar o
tnaior pra;:er possível.() classicisn10, pelo contrcírio, lhes apresenta a literatura que dava o 1naior
prazer possível a seus tataravôs" (citado i/,id., p. 1%).
26 Vincent Descombes, "Unl' question dl' chronologic'", i11 Jacques Poul,1in, l'c11scr a11 pn',c11/, l'aris,
L'Harm,lltan, 1998, pp. 43-79.
ensaio] que esses mesmos temas do moderno e do presente s,10, para os filósofos, uma
oportunidade de se \'Oltarcm para seu passado. O que é designado como moderno
parece estar atrás de nós" ("Une qucstion de chronologic ", in Pc11scr au pn;sc11I, p. -t3).
E não falamos mais disso como simples obsen·ador, como simples cronista das repre-
sentações passadas. Falamos enquanto herdeiros. De fato, é a herança das Luzes que
está cm jogo, para nós que dela falamos hoje. O tom da contnwérsia é logo instaurado:
"O pressuposto, então, é que ha\·eria apenas uma herança das Luzes" (op. cit., p. -t-t).
Pressuposto por quem? Eles não são designados nomeadamente, os que, pela boca do
autor do ensaio, nos interpelam na segunda pessoa: "Não podeis di\·idir esta herança"
(i/Jid.). A reflexão abandonou o tom da retrospecção; ela se fez combatente. Ao mesmo
tempo, ela se tornou mais local: "Para nós, as Luzes francesas são insepar,Í\·eis da Re-
\·olução Francesa e de suas conseqüências históricas. Nossa reflexão sobre a filosofia
das Luzes não pode mais ser exatamente a mesma que a dos que têm corno referên-
cia a Revolução americana ou daqueles para quem as Luzes são urna Aujkliiru11g sem
tradução política tão direta" (op. cit., pp. -t-t--t5). Por isso nem mesmo sabemos corno
traduzir cm francês o inglês 1110dcmil!1, usado, por exemplo, por Leo Strauss quando
atribui a Jean-Jacques Rousseau "/hcfir,t crisis of 111odcmity" e joga ao mesmo tempo
com a cronologia e com a apologia que opõe rcacion,írio ,1 radical. A bem da yerdadc,
a modernidade que não é mais a nossa inscreve-se numa cronologia que deixou de
ser neutra, indiferente ao que ela ordena: "Ora, não é urna cronologia indiferente que
os filósofos [os dos últimos vinte anos] retêm, mas uma cronologia na qual a data dos
pensamentos e dos fatos corresponde a seu significado, não ao calendário" (op. cit.,
p. -±8). Ora, essa cronologia qualificada, essa "cronologia filosófica" (op. cit., p. 50),
é, por sua vez, objeto de contestação, pois os pensadores das Luzes creditaram suas
pretensões à superioridade de urna filosofia da história, digna das cronosofias dopas-
sado estudadas por Pomian. Foi o caso das "épocas" do quadro de Condorcet enxado
acima no tom da historiografia objetiYa. Elas correspondem ao conceito aqui proposto
de cronologia filosófica: a época moderna nelas não designa apenas a época presente,
mas também a época do triunfo da raz!'io. A periodização é filosófica. Pode-se ainda
chamá-la de cronologia? De fato, a modernidade é ao mesmo tempo autm·alorizado-
ra e auto-referencial. Ela caracteriza a si mesma como época superior ao se designar
como presente e, por isso, única. Do mesmo modo, nota Descornbes, outros usos do
termo "modernidade" permanecem estranhos a Condorcet como, por exemplo, o que
le\'aria em conta a distãncia entre a abstração e a prática, com seu cortejo de tradições
e preconceitos e, mais ainda, um uso do termo que ressaltaria a relatividade histórica
dos modelos propostos aos homens e \'Cria em conseqüência, nas obras-primas da
Antigüidade, não fracassos mas as obras-primas de uma outra época 27 • A relati\·idade
saudada pelo historiador teria se tornado imediatamente a modernidade de hoje? Seja
como for, o moderno, segundo Condorcet, não seria mais o nosso.
27 "Condorcct nt10 acredita dl' modo ,1lgurn qut:.' haja estágios de uni dL'~L'll\'Ol\'i1nt:.'nto do e~pírito ou
t-.'squemas dl' referência incom.ensurcÍ\'l'is. Tod,1 idéi,1 de relati\"idade lhe é L'str,1nha" (il 1id., p. hl ).
A Ml~t(lRIA, A HISl(lRIA, ll FS(.)L!l'll~!J:Nlll
E por quê? Porque houve Baudelaire, aquele que inseriu a palavra "modernida-
de" na língua francesa com uma outra entonação que a da palavra "moderno", pois
esta última permanece marcada por uma concepção normativa da razão abstrata. Ela
designa, agora, "uma consciência histórica de si". "Não há a modernidade, há nossa
modernidade" (op. cit., p. 62). Na raiz de uma pura indicação temporal que estatui
sobre a diferença de posição no tempo do moderno e do antiquado, está o gesto de
extrair do presente o que é digno de ser retido e de se tornar antigüidade, ou seja, a
vitalidade, a individualidade, a variedade do mundo - a "beleza da vida", segundo
a expressão que podemos ler em Lc pcintrc de la vic 111odcmc. É nos costumes, mais exa-
tamente nesse novo espaço social constituído pela rua e pelo salão, que o pintor vai
haurir suas figuras. Essa referência aos costumes, que faz eco a Montesquieu através
de Stendhal, e mais ainda, talvez, a Herder, para quem todas as culturas se colocam
com direito igual, permite essa confissão ao crítico: "Todos os séculos e todos os povos
tiveram sua beleza, temos inevitavelmente a nossa" (citado por V. Descombes, op. cit.,
p. 68). E ainda: "Existem tantas belezas quantas são as maneiras habituais de buscar
a felicidade" (op. cit., p. 69). Pode-se falar em "moral do século" (ibid.) num sentido
não cronológico do termo, segundo, insiste Descombes, uma cronologia extraída do
conteúdo daquilo que ela ordena segundo o antigo e o moderno. Um tempo, uma
época, quer dizer "um modo de compreender a moral, o amor, a religião, etc." (op. cit.,
p. 72). Vê-se bem que certo cosmopolitismo pode resultar disso, na medida em que
todos os usos têm uma legitimidade e mesmo uma coerência própria que articula "as
razões dos usos" (op. cit., p. 73), as quais são tão diversas quanto as línguas. Mas o que
significa a referência de Baudelaire a uma "transcendência inefável" (op. cit., p. 74),
que se lê no ensaio sobre a Exposiçi'io universal de 1855 que trata do cosmopolitismo? Ao
empreender "a comparação das nações e de seus produtos respectivos", o crítico reco-
nhece "sua igual utilidade em relação com AQUELE que é indefinível" (citado ibid.). A
diversidade pode ser celebrada sem o recurso a um presente indefinível?
Ao cabo deste percurso, vê-se por que a modernidade de Baudelaire já não é mais o
moderno das Luzes 2". Mas ainda é nossa modernidade? Ou esta última também man-
teve distância em relação àquela modernidade?
28 C) ensaio de V. Ül'Scon1bes não \'ai all'n1 dl'Ssa conclus~o: "Tentei sustentar isso: <1 noçflo de 1no-
dL•rnidade exprime, por parte de um l'Scritor francês, um consentimento (dificilmente concedido)
em srnncnte poder rcpresentlu parte da hu1nanid<.1de. Falar de nossa n1odernidade é aceitar não
l'lll\HncH i1nediatc1n1c11te, c,n nossc.1 língua, l'lll nossas instituiçôes, cn1 nossas obr~1s prirnas, as
aspirações n1,1is l'kvc1das do gênl'ro hun1c1no" (ibid., p. 77). Ler-se-,i do nu.•s1no autor, a fin1 de
prosseguir essa refll'x.lo, l'/1ilosopl1ic par gros tclllps, Paris, Éditions de Minuit, 1989.
\ ( tl'.IJll \(l lllsJllllll \
2LJ Charles Taylor,/<' 111,ilai,c ,/e la 111,,dcmit,', Pcirí,, Éd. du CL'ri, 1'!'!-+.
A MI \!l()J{IA, A IIIST(lRIA, O FSQUFCIMI NHl
tecnológica, refere-se às ameaças para nossa liberdade que provêm do reino da razão
instrumental. O terceiro diz respeito ao despotismo "brando", segundo a expressão
de Tocqueville, imposto pelo Estado moderno a cidadãos postos sob tutela. O exame
desses três mal-estares confronta os detratores e os defensores da modernidade. Mas
a posição no presente dos protagonistas do confronto perdeu toda pertinência. Assim,
o primeiro mal-estar, o único examinado em mais detalhes, suscita uma discussão so-
bre "a força moral do ideal da autenticidade" (op. cit., p. 25). O interesse da posição
de Taylor é que ela somente tenta escapar à alternativa da detestação e da apologia, e
até mesmo à tentação da solução de compromisso, por "um esforço de movimento de
volta às fontes graças ao qual esse ideal poderia nos auxiliar a endireitar nossas con-
dutas" (op. cit., p. 31 ). Ora, o exame das "fontes da autenticidade" (op. cit., p. 33 e seg.)
não pára de oscilar entre considerações históricas e anistóricas. Afirma-se de saída que
"a ética da autenticidade, relativamente recente, pertence à cultura moderna" (op. cit.,
p. 33). Nesse sentido, ela é datada: ela tem sua "fonte" no romantismo; "fonte", aqui,
quer dizer "origem" no sentido histórico; mas a palavra também quer dizer "funda-
mento"; além do mais, a ênfase se desloca progressivamente da questão das origens
para um "horizonte de indagações essenciais" (op. cit., p. 48), tal como a "necessidade
de reconhecimento" (op. cit., p. 51). Essa discussão prolongada do ideal individualista
de realização de si serve de modelo para as duas outras discussões. Seja como for, nada
é dito sobre a posição no presente dos protagonistas da discussão. Se esse não-dito ti-
vesse de ser remediado, seria por meio de uma elucidação da relação entre o universal
e o presente. De um lado, um universal ético-político é presumido pela defesa e ilus-
tração de certos temas atribuídos à modernidade. De outro, o advogado que sustenta
esse discurso se reconhece no cerne de mudanças sociais consideráveis. Se o presente
histórico pode pretender pensar a si mesmo, apenas pode ser como ponto nodal do
universal e do histórico. É nessa direção que deveria orientar-se uma discussão arra-
zoada a respeito dos benefícios e dos malefícios da "modernidade".
Um quarto estágio da discussão sobre a modernidade é alcançado com o surgi-
mento do termo "pós-moderno", freqüentemente usado pelos autores de língua ingle-
sa como sinônimo de modernista. Ele implica, a título negativo, a recusa de todo signi-
ficado aceitável do moderno e da modernidade. Na medida em que o emprego ainda
recente do conceito de modernidade comporta um grau de legitimação não apenas de
sua diferença, mas de sua preferência por si mesmo, a recusa de toda tese normativa
subtrai inelutavelmente as posições que invocam o pós-modernismo de toda justifica-
tiva plausível e provável.
Essa situação é lucidamente assumida e analisada por Jean-François Lyotard em
La co11ditio11 post/1/odcmc 1": "Nossa hipótese de trabalho é que o saber muda de estatuto
ao mesmo tempo que as sociedades na idade pós-industrial e as culturas na idade
pós-moderna" (p. 11). Mas qual é o estatuto do discurso no qual se enuncia essa hi-
pótese? O pós-industrial tem seus pontos de referência sociológicos e se presta a uma
.31 "A grande narrati\·a pl'rdeu toda crl'dibilidadL', indq..1L'ndente1nente do n1odo dL' configuraç<lu que
lhe for ,itribuído: narr(lti\·a especulati\·a, narratiYll d,1 L't11ancipaç(l.o" (iliid., p. h3).
"l2 Jürgen I l,1bermas, "La moLkrnité, un proj<'t inach,·vc'" (discurso proforido qu;indo da entrl'ga do
pn:•mio Adorno da cidadl' dL' Frankfurt, em 11 de setembro de 19fill), trad. ir,rnc. de Gé•r.ird R,rnl<'l,
Critique, de outubro dl' 1981, pp. 950-'!h7. O autor dl'nuncia a tl'ndéncia estl'ti,canll' dus discursos
pós-n1odernos L' o perigo de consen·anti'.">nlo L' de oportunisn10 ligado ao abandono da~ grarH.iL'~
cc1usas da política liberal.
7,3 "(_} consenso t-.' ~onlL'IÜL' un1c1 etapa das di~cussúe~, n,1o seu fin1" (L11 CL111ditio11 po'::>f111odL'r11c, (lp. t'Íf.,
p. !Oh).
3-+ O lino m,1is significatin1 dl' Lvot.ird, de fato, é·/.,' dilffr,,11d, Paris, Éd. ele> Minuit, 1983. Ap<is um
exórdio SL'm concpssão ("DiferentL'llll'tltl' de uni litígio, Ul1lcl di-:-putcl SL'ria un1 ca~o de confli-
to entre duas parte~ [pelo n1enos], que nJ.o poderia ser decididc1 eqüitati\'an1ente, por L1lta de
u1na regra de julganlL'nto ,1pliccÍ\·el il~ dua~ argun1L•ntaçôes" !p. LJ]), un1a gr,1nde transiç,lo pela
"obrigação"(pp. 159-1R6) no gosto lé\·ina~si,1110 ("c1 causalidadL' por liberdadt...' dá ~in,1i~, jan1ais
efeitos constaU.,·eb, ncn1 c,1dci(1s de Pft:>itus" [p. 1861), a obra tt'rn1ina num percurso dt> figura~
narrativas colocadas sob o título do último capítulo, "O signo lic> históri,1" (pp. 218-260). O fim
enig1ná.tico do li, ro não lev(1 dL' volt,1 da disputa ao litígio? E o litígio não L· o rcgin1e do discur-
A i\ll'MÚRIA, A IIIST(JRIA, OI SQUICIMINH>
so aqui sustentado sobre a anc.ílise dos gêneros de discursos? O autor levanta para si n1t'sn1u a
objeç(lo. "Ao declar,1r que hú litígio, você j(í julgou a pcutir de u,n ponto de vista 'univers.11', o dti
análise dos gl'ncros de discursos. O intL'resse posto cn1 jogo nt.'sse tipo de ponto de \'ista não é o
cfos narr.itivas. Voc0 tamb(·m as pst,í prejudicando ... " (i/,id., p. 227).
Mais adi.inte, 11<1 seção sobn.• o juiz e o historizidor, advogo un1 uso ter.1pl·utico e pedagógico do
1hssc11:.-,11s, próxin10 do que Lyotard cha1na de litígio. Tzin1bén1 encontr~ircn1os no Epílogo sobre o
perdão difícil os conceitos ap(1rentados de inextric,ível e de irrepar,Í\'l'l.
'.,'i Thomils Nagel, Égalill' e/ /Jartialit<' (1991), trad. franc. de Claire Beauvil!Md, l'ilris, PUF, 199-l.
(fgalilL; ct Partialité, p. 9). Pode-se chamar de impessoal esse ponto de vista que é uma
espécie de não-ponto de \'ista. Ele é indi\'isamente epistêmico e moral. Pode-se falar,
a seu respeito, de \"irtude intelectual. O aspecto epistêmico se deve ao desdobramento
interno ao ponto de \·ista, o aspecto moral à afirmação implícita de igualdade de \'alor
e de dignidade dos pontos de vista, contanto que o outro ponto de vista seja o ponto
de \·ista do outro: "No primeiro estágio, a intenção fundamental que ressalta sob o
ponto de vista impessoal é a seguinte: 'toda vida conta, e nenhuma é mais importante
que outra"' (op. cit., p. 10). E ainda: "Den,'rÍamos viver de fato como se esti\'éssemos
sob a direção de um espectador indulgente e imparcial deste mundo no qual não pas-
samos de um entre alguns bilhões" (op. cit., p. 14). O resto da obra de Thomas Nagel
é dedicado à contribuição da idéia de imparcialidade para uma teoria da justiça, por
meio da idéia de igualdade. Nós a retomaremos pesando os méritos respectinis da
imparcialidade innJCada, alternadamente, pelo juiz e pelo historiador. Ambos com-
partilham a mesma deontologia profissional resumida pelo famoso adágio 11cc studio,
11cc im - nem favor, nem cólera. Nem complacência, nem espírito de vingança.
Como e até que ponto o historiador e o juiz cumprem essa regra de imparcialidade
inscrita em suas deontologias profissionais respectivas 7 E ajudados por que forças so-
ciais e políticas, tanto quanto pessoais ou corporati\'as? Essas perguntas inscre\'em-se
no prolongamento daquelas dirigidas à pretensão da História a se colocar fora de todo
ponto de \'ista, e às da época presente a julgar todas as formas passadas de moder-
nidade. A comparação entre o papel do historiador e o do juiz constitui, em muitos
aspectos, um /orn, c/assirn,. Eu gostaria, entretanto, de acrescentar ao balanço das con-
siderações, sobre as quais um vasto acordo pode ser obsen·ado entre porta-vozes reco-
nhecidos das duas disciplinas, uma apresentação mais contro\·ertida das reflexões sus-
citadas no fim do século XX pelo surgimento, na história, de dramas de uma \"iolência,
de urna crueldade e de uma injustiça extremas. Ora, esses acontecimentos suscitaram,
no campo de exercício dos dois ofícios considerados, um importante mal-estar, que,
por sua vez, deixou, ao ní\'cl da opinião pública, rastros documentados suscetí\·eis de
enriquecer e de reno\'ar uma discussão que tenderia a encerrar um consl'nso estim,h·el
entre especialistas.
Em se tratando das coerções mais gerais e mais estéÍ\'eis que pesam sobre os ofícios
respectivos do juiz e do historiador - pelo menos na ,írea geopolítica do Ocidente e
nas épocas que os historiadores denominam "moderna" e "contemporânea", acres-
centando-lhes "a história do tempo presente"-, o ponto de partida da comparação
é obrigatório: ele consiste na diferença estrutural que separa o processo dirigido no
recinto do tribunal e a crítica historiogrMica iniciada no âmbito dos arquivos. Nas duas
situações, a mesma estrutura de linguagem é engajada, a do testemunho examinada
acima, desde seu arraigarnento na memória declarati\'a em ;,ua fase oral até sua inscri-
ção no âmago da massa documental presen·ada e codificada no âmbito institucional
do arquivo, no qual uma instituição guarda o rastro de sua atividade passada para con-
sulta ulterior. Durante esse exame, le\·,m10s em conta a bifurcação das vias seguidas
pelo testemunho quando passa de seu uso na conversa comum para seu uso histórico
A MJ'M(lRIA, A HIST(lRIA, O LSQULCIMI.NTO
1fi Cario Ginzburg, Lc /ugc e/ /'Historic11, tradução francesa por uma equipe de tradutores e posfacio do
autor, Paris, Verdier, 1997 (título original: II giudicc e lo storico, Torino, Einaudi, 1991).
37 Cario Ginzburg, ibid., p. 24. As circunstâncias desse ensaio não são indiferentes a nosso propósito.
() grande historiador desenvoln:' uni ;:irgun1entcirio cerrado cm prol de u1n amigo condenado a
un1,1 pesada pena de prisão por fatos de terrorisn10 que remontan1 a dezoito anos, por ocasião
do outono quente de 19€,9. A condenação se fundamentava, no essencial, n,1s confissões de outro
acusado "arrependido".() paradoxo do ensaio é que é o historiador quen1 se esforça por refutar o
juiz, üpeswr do crédito de princípio concedido a a1nbos no n1anejo da provw.
38 Cf. ,ici ma, pp. 185- 186 e p. 22fi.
39 Dl'pois de ter citado a "Leçon d'ouverture de Lucien Febvre au College de France" em apoio a suas
observações sobre o papel da hipótese, Ginzburg evoca favoraveln1ente a obrc1 exe,nplar de Marc
B1och, Lcs !\ois tlrnu11rnturgcs, que revelou o 1necanisn10 de crença segundo o qual reis teri<.1111 sido
agraciados co111 o poder de curar escrofulosos pela in1posiçJo das 1nãos. Reencontran1os aqui o
Ginzburg fa1nili,ir dos processos por bruxaria, no dt'correr dos quais pudera1n ser vistos inquisi-
don's condencH os acusados de bruxaria.
·\ Ul\lJICi-\0 HISíORIC·\
n5o se comporta com muita freqüência como o advogado de uma causa, como os his-
toriadores franceses da Revoluç5o Francesa, que advoga\·am, alternadamente, antes
da época dos A111111/cs, a fan)f ou contra Danton, a fanir ou contra os Girondinos ou
os Jacobinos? Mas, acima de todo, a insistência quase exclusi\'a de Cinzburg na prova,
cujo manejo ele considera comum aos juízes e aos historiadores, deve ser \·inculada à
luta que o autor tra\-a contra a dúvida instilada na profiss5o historiadora por autores
corno Hayden White, sempre à espreita da feitura retórica do discurso historiador:
"Para mim, insiste Cinzburg, como para muitos outros, as noçôes de prcwa e de ver-
dade s5o, pelo contrário, parte integrante do ofício de historiador.[ .. ,] A a11c'ílise das
representaçôes n5o pode ignorar o princípio de realidade" (Lc j11gc e/ /'liistoricn, p. 23).
"O ofício de ambos [historiadores e juízes] fundamenta-se na possibilidade de prm·ar,
em funç5o de regras determinadas, que X fez Y; X podendo designar indiscriminada-
mente o protagonista, e\·entualmente anônimo, de um acontecimento histórico ou o
sujeito implicado num procedimento penal; e Y uma aç5o qualquer" (i/Jid.).
Contudo, a tese segundo a qual a situaç5o do processo apresentaria de ,'Íi'o as fon-
tes do julgamento comum ao historiador e ao juiz tem seus limites no próprio plano
em que estabelece seus argumentos: no plano propriamente inquisitório da busca.
As hipóteses mais fantásticas que presidiam o processo por bruxaria n5o permane-
ceram irrefutáveis por muito tempo, antes que a Congregação Romana do Santo Ofí-
cio passasse a exigir pro\-as, "confirmaçôes objetivas" dos juízes? E certos processos
modernos por traiç5o, complô, terrorismo n5o participam do espírito perverso que
costumava prevalecer nos processos inquisitoriais? Mas sobretudo nossas reflexôes
anteriores sobre as complexidades da representação historiadora podem alertar contra
um recurso abrupto demais ao "princípio de realidade".
Portanto, importa retomar o exame do modelo do processo em seu início e le\·,1-lo
além da fase da investigação preliminar - da instrução se for o caso-, fazê-lo atra-
\·essar a fase do debate em que o processo consiste realmente, e le\"c1-lo até sua conclu-
são, o pronunciamento da sentença.
Lembremos que o processo se apóia numa rede de relações que articulam diver-
samente a situação tipo do processo - situação que opôe interesses, direitos, bens
simbólicos contestados. A esse respeito, os processos por traição, subversão, complô
e terrorismo não são exemplares na medida em que pôern diretamente em jogo a
segurança, como condição primária do \'iver juntos_ A contestaçc'io da distribuição de
bens privativos é mais instrutiva para nossa discussão presente: de fato, as infraçôes,
os delitos, e até mesmo os crimes, confrontam pretensôes comparáveis, comensu-
r,h-eis - o que, de no\-o, não ser,í mais o caso com os grandes processos criminais
enicados mais adiante. A infração, então, é uma espécie de interação, ob\·iamente
\'iolenta, mas na qual uma pluralidade de atores está implicada.
O processo começa por encenar os fatos incriminados para representá-los fora de
sua pura efetividade e dar visibilidade à infração cometida em relação a regras de
direito que todos, supostamente, de\-ern conhecer, por um autor singular, em detri-
mento de uma dtima habilitada a pedir que sua queixa seja instruída e que seu dano
A MLM(lRIA, A IIIST(JRJA, O f"SQUFCIMENlll
presumido seja reparado ou compensado~"- Assim, os fatos passados somente são re-
presentados sob a qualificação dclituosa escolhida antes do processo propriamente
dito. Eles são representados no presente sob o horizonte do efeito social futuro da
sentença que decidirá o caso. A relação com o tempo é aqui particularmente notável: a
representação no presente consiste numa encenação, numa teatralização, que suscitou
alternadamente os sarcasmos de um Pascal e de um Moliere, e um discurso comedido
de legitimação consciente de sua operatividade no segundo grau; essa presença viva
das cenas reencenadas no único plano do discurso está vinculada à visibilidade cujo
jogo mostramos cm relação com a dizibilidade no plano da representação literária do
passado~'- Ela é apenas solenizada pelo rito social regulado pelo processo criminal
para dar ao julgamento judicial uma estrutura e uma estatura públicas. De fato, trata-
se de nada menos do que ripostar ao desgaste pelo tempo de todo tipo de rastros, ma-
teriais, afetivos, sociais, deixados pela falta. Garapon evoca a reflexão de Jean Améry
que fala, a esse respeito, de "processo de inversão moral do tempo", entenda-se desse
tempo quase biológico que será diretamente evocado no capítulo do esquecimento. O
filósofo-juiz também cita a expressão de Emmanuel Lcvinas, que fala de "co-prescnça
diante de um terceiro de justiça". Além da qualificação moral adicional, e em relação
direta com ela, a representação dos fatos também é representação entre partes adversas,
acareação dos protagonistas, comparecimento de todos, ao que se pode opor a solidão
do leitor de arquivos cujo mutismo só um historiador pode romper. Assim, o processo
põe em cena um tempo reconstituído do passado no qual são visados fatos que, por
sua vez, já constituíam provações de memória: além dos danos físicos infligidos a en-
tidades definidas por sua história própria, as rupturas de contrato, as contestações a
respeito de atribuição de bens, de posições de poder e de autoridade, e todos os outros
delitos e crimes constituem outras tantas feridas de memória que demandam um tra-
balho de memória inseparável de um trabalho de luto visando a uma reapropriação
por todas as partes do delito e do crime, apesar de sua estranheza essencial. Da cena
traumática à cena simbólica, poderíamos dizer. É sobre esse fundo que se deverá res-
situar, mais adiante, os grandes processos criminais da segunda metade do século XX
e seu percurso pelos próprios caminhos não familiares do dissc11s11s.
A cena do processo sendo esta, os traços pelos quais este se presta a uma com-
paração com a investigação historiográfica são de duas ordens. Os primeiros dizem
respeito à fase deliberativa, os segundos à fase conclusiva do julgamento. Em sua fase
deliberativa, o processo consiste essencialmente numa cerimônia de linguagem que
põe em jogo uma pluralidade de protagonistas; ele se apóia numa confrontação de
argumentos cm que as partes opostas têm um acesso igual à palavra; pelo próprio
modo como ocorre, essa controvérsia organizada quer ser um modelo de discussão
em que as paixões que alimentaram o conflito são transferidas para dentro da arena da
40 ;\s obscrvaçôes qLH:..' SP seguen1 dl'\'en1 ,nuito a Antoine C~:iré:lpon, "La justice et l'inversion n1orale
du ten1ps", in Pourquoi se souvc1Iir?, Paris, Crasset, ºAc<1dén1ie universelk• dl'~ culturcs'', Forun1
intc>rnational Mémoire l't Histoire, 1999.
41 Cf. acima, spgunda partl', cap. 3, l' em p.irticular pp. 274-288.
\ U l , IJll \l l 111, 1 l lRI( ·\
linguagem. Essa cadeia de discursos crul'.ados articula, uns com os outros, momentos
de argumentação, com seus silogismos prMicos, e momentos de interpretação que se
referem ao mesmo tempo à coerência da seqüência narrati\·a dos fotos incriminados
e à conformidade da regra de direito destin,1d,1 a qualificar penalmente os fatos"'. No
ponto de convergência dessas duas linhas de interpretação cai a sentença, a bem cha-
mada "decisão"; nesse ponto, o aspecto puniti\·o da pena enquanto sanção não pode-
ria eclipsar a função suprema da sentença que é a de afirmar o direito numa situação
determinada; é por isso que a função de retribuição da sentença dc\·e ser considerada
corno subordinada a sua função restauradora tanto da ordem pública quanto da digni-
dade das vítimas a quem justiça é feita.
Resta que, por seu carMcr definitin1, a sentença marca a diferença mais e\·idcntc
entre a abordagem jurídica e a abordagem historingrMica dos mesmos fatos: a coisa
julgada pode ser contestada pela opinião pública, mas não julgada novamente; 11011 /,i~
idc111; quanto ã re\·isão, é "uma arma de um tiro só" (A. Garapon). /\ contrario, a lenti-
dão para julgar ou terminar um processo acrescentaria um nm·o mal àquele suscitado
pelo delito ou crime. F não julgar deixaria a última palavra a esse mal e acrescenta-
ria desconhecimento e abandono aos danos infligidos ã dtirna. Então, é além do jul-
gamento que começa, para o condenado, uma nutra era temporal, um outro horizonte
de expectativa sobre o qual se abrem as opçôes que são consideradas mais adiante sob
as rubricas do esquecimento e do perdão. E é assim porque a sentença, que terminou
a seqüi'-ncia do julgamento com os efeitos benéficos que mencionamos quanto à lei, ã
ordem pública e ao amor-próprio das dtirnas, deixa, do lado do condenado, sobretudo
na condição de detento, uma memória não apaziguada, não purgada, l' entrega à sorte
um paciente oferecido a novas \·iolências potenciais.
O que acontece, então, com o confronto entre a tarefa do jui,r e a do historiador 7 As
condiçôes do profcrimento da sentença no recinto do tribunal abriram, corno acaba-
mos de \'er, uma brecha na frente comum defendida pelo historiador perante o erro e
a injustiça. O jui, de\ e julgar~ é sua função. Ele deve concluir. Ele deve decidir. Ele
deve reinstaurar urna justa distância entre o culpado e a \'itima, segundo uma topolo-
gia imperiosamente bin,íria. Tudo isso, o historiador não faz, não pode, não quer fazer;
se tenta, com o risco de erigir-se sozinho cm tribunill da história, é ao preço da confis-
são da precariedade de um julgamento cuj,1 parci,1lidade e até mesmo a militc'mcia ele
reconhece. Mas então, seu julgamento audacioso é submetido à crítica da corporaçc'10
historiadora e à do público esclarecido, sua obra oferecida a um processo ilimitildo
de re\·isôes que faz da escrita da história urna perpétua reescrita. Essa abertura para
a reescrita marca a diferença entre um julgamento histórico provisório e um julga-
mento judicial dcfiniti\'Cl. A brecha assim aberta na frente uniforme dos ca\'aleiros da
imparcialidade não p,íra de ampliar-se na retaguarda da fase terminal do julgamento.
O julgamento penal, regido pelo princípio da culpabilidade indi\·idual, somente co-
nhece, por natureza, acusados portadores de um nome próprio, por sinal con\·idados
a declinar sua identidade na abertura do processo.
-l-2 I\nil Ricn.'ur, "I . 'cictl' dl' jugl'r" L' "lntl'rpr0L1tiun l'l/ou '-1rgun1L•nL1tion", in Lc ;11stc, op. (it.
,\ MFMÚRIA, A HIST(lRIA, ll FSQUFLIMEN 10
E são ações pontuais ou, pelo menos, as contribuições distintas e identificáveis dos
protagonistas envolvidos numa ação coletiva - e isso, mesmo no caso de delitos co-
metidos "em associação"-, que são submetidas ao exame dos juízes, tanto no plano
narrativo quanto no plano normativo; a conformidade que o julgamento estabelece
entre a verdade presumida da seqüência narrativa e a imputabilidade que recai sobre
o acusado - esse fit no qual explicação e interpretação se conjugam no limiar do pro-
ferimento da sentença - opera apenas nos limites traçados pela seleção prévia dos
protagonistas e dos fatos incriminados. Quanto à operação de encenação pela qual
começamos por caracterizar a sessão pública do processo, com o comparecimento de
todos os protagonistas, ela dá visibilidade até a essa delimitação das ações e dos perso-
nagens. Por princípio, a cena jurídica é limitada. Obviamente, o tribunal não se proíbe
de ampliar sua investigação em torno da ação incriminada, no espaço e no tempo e
além da biografia dos acusados. Entre as circunstâncias da ação, vão figurar as influên-
cias, as pressões, as coerções e, em segundo plano, as grandes desordens de sociedade
cuja ação delituosa tende a tornar-se um sintoma entre outros. Afinal, foi um juiz quem
escreveu o livro intitulado EmpNré dans dcs lzistoircs (Enredado l.'111 lzistôrias). Tudo ocorre
como se a instrução fosse reaberta pelo processo público que, supostamente, devia
encerrá-la. Mas, por bem ou por mal, o efeito de desculpação de uma complacência
excessiva, concedida às circunstâncias e a seus círculos concêntricos indefinidamen-
te abertos será finalmente conjurado pela recordação oportuna da regra do processo,
que é a de julgar tal ser humano e tais atos imputáveis a este último, mesmo quando
o julgamento deva levar cm conta circunstâncias atenuantes, cujo peso relativo será
eventualmente aceito pelo juiz na aplicação das penas, se é que elas têm algum peso.
O círculo potencialmente ilimitado da explicação se encerra implacavelmente sobre o
julgamento, que, in fine, pode apenas ser uma condenação ou uma absolvição. Faz-se
sentir então o caráter incisivo da palavra de justiça.
Esses círculos, que o juiz encerra depois de tê-los aberto cautelosamente, são rea-
bertos pelo historiador. O círculo das ações cujos autores individuais são considerados
como responsáveis apenas pode inserir-se no campo da história dos acontecimentos,
o qual, como vimos, se deixa tratar como um nível entre outros no empilhamento das
durações e das causalidades. O fato incriminado se deixa então alinhar, enquanto acon-
tecimento entre outros, nas conjunturas e nas estruturas com as quais forma uma seqüên-
cia. E mesmo se, depois da grande época dos A111za/cs, a historiografia se mostra muito
mais atenta às intervenções dos agentes históricos, e se ela concede às representações
um lugar de honra em relação com as ações individuais e coletivas das quais procede o
vínculo social, as representações então metodicamente recolocadas em suas escalas de
eficiência só interessam ao historiador a título de fenômenos coletivos. O mesmo ocorre
inclusive no plano da micro-história, ao qual a dita investigação de personalidade dos
tribunais poderia ser legitimamente comparada. Apenas a marca deixada sobre a menor
das sociedades pelas intervenções individuais se reveste de uma significação histórica.
Assim, a discordância entre o julgamento histórico e o julgamento judicial, eviden-
te na fase terminal, amplia-se depois deste ponto último; ela afeta todas as fases da
operação judicial e da operação historiográfica, a tal ponto que podemos nos indagar
se é com os mesmos ouvidos que o juiz e o historiador ouvem o testemunho, essa es-
trutura inicial comum aos dois papéis.
O confronto entre os dois ofícios, de juiz e de historiador, correria o risco de se
perder no tédio de um debate acadêmico se não se fizessem ouvir as vozes dos que ti-
\·eram de julgar, a títulos diversos, crimes cometidos em vários lugares do mundo por
regimes totalitários ou autoritários, em meados do século XX. Essas vozes pertencem
ao período de transição em que ocorreu a reconstrução ou a construção de regimes
democráticos constitucionais. São as nizes cruzadas de juízes e de historiadores cujos
julgamentos são parte integrante dessa instauração. Evocarei, por um lado, o papel
desempenhado pelos grandes processos criminais organizados desde o fim da Segun-
da Guerra Mundial em escala de vários continentes, mas de modo singular na Europa
na esteira da Shoah - e por outro, a controvérsia entre historiadores alemães que
trataram como historiadores responsá\·eis os mesmos acontecimentos vinculados a
essa catástrofe. Eis, de um lado, tribunais e juízes que penetram uolc11s 110/rns no ter-
ritório do historiador antes que seus \'Credictos se marquem no corpo da história que
se faz - e do outro, historiadores que tentam exercer seu ofício sob a ameaça de uma
condenação moral, jurídica, política, proveniente da mesma instãncia judicatória que
o veredicto dos tribunais penais, veredicto que, por sua \·ez, eles correm o risco de
reforçar, atenuar, deslocar, e até mesmo subverter por não poder ignorá-lo.
Uma situação surdamente conflituosa entre a abordagem judicial e a abordagem
histórica dos mesmos acontecimentos exige ser, quando não desatada, pelo menos
explicitada.
Para ilustrar a primeira \·crtente do debate, escolhi a obra de Mark Osicl, Mass
Atrocity, Collectiuc Mc111on11111d tlzc Lmu"'. O autor, que se vangloria de aproximar duas
famílias de espírito que se ignoram, pelo menos nos Estados-Unidos - a dos sociólo-
gos e a dos homens de lei (/aw11crs) -, propôe-se a apreciar a influência exercida sobre
a memória coletiva dos povos envolvidos cm diligências judiciais e sentenças proferi-
das pelos tribunais nos grandes processos criminais da segunda metade do século XX
em Nurcmberg, em Tóquio, na Argentina, na França. O objeto temático da ir1Yestiga-
ção - a dos tribunais primeiro, a do sociólogo-jurista em seguida - é designado pelo
termo de "atrocidade em massa" (ou "massacre administratini"), termo aparentemen-
te neutro, cm comparação com a presunção de unicidade da Shoah (denominada Ho-
locausto pelos autores anglo-saxónicos), mas termo cuja precisão basta para delimitar
os crimes de Estado cometidos por regimes tão diferentes quanto o dos nazistas, dos
militaristas japoneses, dos generais argentinos, dos colaboradores franceses na épo-
ca de Vichy. A linha geral da obra é a seguinte: ao contdrio de Durkheim, que \'ê
na condenação rnúnimc da criminalidade comum um meio direto - mecânico - de
reforço do co11sc11s11s social, Osiel enfoca o disscn,11, suscitado pela sessão pública dos
processos e a função educativa exercida por esse dissc11s11s mesmo no plano da opi-
A Ml:~tORIA, A HISl'(JRIA, ll l:S(JUl'Cl~ll"N lll
nião pública e da memória coletiva que ao mesmo tempo se exprime e se forma nesse
plano, A confiança depositada nos benefícios esperados dessa cultura da controvérsia
vincula-se ao credo moral e político do autor quanto às condições da instauração de
uma sociedade liberal - no sentido político que os autores anglo-saxónicos atribuem
ao termo "liberal": é liberal (de modo quase tautológico) uma sociedade que extrai
sua legitimidade militante da deliberação pública, do caráter aberto dos debates e dos
antagonismos residuais que estes deixam atrás de si. Além disso, na medida em que a
memória coletiva é o alvo visado por esse rude aprendizado pelo qual uma sociedade
constrói sua solidariedade, ocorre que a obra oferece a oportunidade de uma reflexão
sobre a própria memória"".
Fiel a seu tema - a educação cívica da memória coletiva pelo disscnsus -, o au-
tor constrói seu livro sobre a seqüência das objeções dirigidas contra a pretensão dos
tribunais a pronunciar uma palavra justa e verdadeira, e nessa condição exemplar,
apesar do caráter extraordinário tanto dos fatos incriminados quanto da própria ma-
nutenção dos processos. Dos "seis obstáculos" considerados, apenas me deterei nos
que dizem diretamente respeito às relações entre a abordagem judicial e a aborda-
gem historiográfica"'. Esta última é mobilizada duas vezes: primeiro, no decorrer dos
processos, a título de argumentação nas mãos da acusação e da defesa, segundo, no
trajeto que, da corte de justiça, leva à praça pública. Na verdade, esses dois momentos
não passam de um, na medida em que, como dissemos, o processo dá visibilidade aos
acontecimentos que ele reencena num palco acessível ao público. Em compensação, é
o próprio processo que penetra assim nas cabeças e nos lares por meio da discussão
pública e neles transplanta seu próprio disscnsus. Ao abordar o problema pelo lado dos
"obstáculos" levantados contra a pretensão dos juízes de escrever uma história justa, o
autor há de majorar ao extremo as objeções extraídas da especificidade da abordagem
historiográfica, inevitavelmente abalada pela argumentação jurídica. As discordâncias
evocadas acima de modo abstrato demais são assim maliciosamente amplificadas e,
agora, ilustradas pelas peripécias concretas dos processos tomados um por um. Todas
as tensões entre as duas abordagens resultam do fato de que a incriminação jurídica se
apóia no princípio da culpabilidade individual: disso resulta a concentração da aten-
ção dos juízes num pequeno número de atores da história, os do topo do Estado, e no
raio de ação que eles podem exercer sobre o curso das coisas. O historiador não pode
admitir essa limitação do olhar; ele estenderá sua investigação a um número maior
de atores, aos executantes de segundo plano, aos b11st11ndl'rs, essas testemunhas mais
ou menos passivas constituídas pelas populações mudas e cúmplices. Ele recolocará
as decisões pontuais dos dirigentes e suas intervenções no âmbito de encadeamentos
mais vastos, mais complexos. Ali onde o processo criminal quer apenas conhecer pro-
44 O capítulo 2, "Solidc1rity thrnugh civil dissl'nsus", é um l'xcelente resumo Lfas teses (il1id,, pp. 36-5.'i),
Rcssültaremos cl audaciosa expressZío "poéticc1 da narratividade lq.~~11" (il,úi., p. J), que cobre ~1 en1-
preit1da inteira.
45 Capítulo 4, "Losing perspl'ctive, distorting history" (i/,id,, pp, 79-141); cap, 8, "Making public mc-
mory, publicity" (ibid,, pp, 240-292),
tagonistas indi\'iduais, a investigação histórica não deixa de religar os personagens a
multidôes, correntes e forças anônimas, É not,'ível que os adnigados dos acusados dos
grandes processos tenham sistematicamente deturpado, em benefício de seus clientes,
essa ampliação do campo de investigação, tanto do lado dos encadeamentos entre
acontecimentos, quanto do lado do embaralhamento das iniciati\'as e das inter\'ençôes
indi\'iduais.
Segundo contraste: os processos criminais são atos de justiça política que visam a
estabelecer uma versão fixa dos fatos incriminados por meio do caráter definitini da
sentença, Obviamente, os juízes sabem que o importante não é punir, mas proferir
uma palavra de justiça. Mas essa pala\'ra encerra o debate, "detém" a contro\·érsia.
Essa coerção se deve à finalidade curta do processo criminal: julgar agora e definitiva-
mente. É a esse preço que a sentença dos processos criminais pode pretender educar a
opinião pública por meio da perturbação de consciência que ela começa por suscitar.
Le\',mdo o argumento até o fim, o contestat,'írio denunciará o perigo vinculado à idéia
de uma versão oficial, e até mesmo de uma história oficial dos acontecimentos. É aqui
que pesa a acusação de "distorção". Ela pode espantar \'indo de discutidores incapaLes
de opor uma versão verídica à versão pretensamente corrompida sem se contradize-
r,'m. Apenas pode ser considerado como distorção o projeto de propor, ou até mesmo
de impor, uma narrativa verídica para apoiar a condenação dos acusados. Segundo
esse argumento, toda memória, por ser seletiva, já é distorção; apenas se pode opor,
então, a uma versão parcial, outra versão igualmente fr.ígil. Mas h.í um aspecto sob
o qual, paradoxalmente, o processo confirma, por seu próprio procedimento mais do
que por sua conclusão, o ceticismo presumido dos historiadores atingidos pela crítica
dos "retóricos", mais ou menos próximos de Hayden White"''. Ao distribuir a pala\'fa
de modo igual entre advogados das duas partes, e ao possibilitar, com essa regra de
procedimento, que as narrativas e as argumentações ad\·ersas se façam om·ir, a ins-
té'íncia judicial não encoraja a prática de um julgamento historicamente "equilibrado",
prestes a resvalar para o lado da equivalência moral e, no limite, para o lado da des-
culpação? Essa estratégia os advogados dos criminosos também souberam empregar a
título da famosa interjeição: tu q11oq11c!
O tratamento, por Osiel, desse tipo de objeção é interessante. Todo seu esforço \·isa
a incluí-lo na sua visão "liberal" da discussão pública na categoria do dissc11s11s edu-
cati\'o. Mas, para ter êxito, ele deve pri\'ar a objeção de seu \·eneno cético. Para tanto,
ele precisa afirmar, primeiro, que o próprio exercício da controvérsia, da qual o adn,-
gado de criminosos confirmados mais desleal, mais desprm ido de escrúpulos tenta se
apro\·eitar, constitui uma pro\'a pela ação da supL'rioridade ética dos valores liberais
sob a égide dos quais os processos ocorrem. Nesse sentido, o processo constitui um
testemunho dessa superioridade da qual um dos benefici,'írios é a liberdade de palana
do advogado dos criminosos. Mas ele precisa também afirmar que todas as narrati\'as
não se valem, que é possível pronunciar, pelo menos a título provisório, uma \'ersão
;\ MUvl(JRI;\, A fllSTÚRIA, O FS(_)ULCIMEN!O
mais plausível, mais provável, que a defesa dos acusados não consegue desacreditar.
Em outras palavras, é possível dar crédito a uma narrativa, independentemente do
fato de esse relato ter um alcance educativo em relação aos valores de uma sociedade
democrática em período de transição.
Reencontro aqui minha própria defesa de uma articulação mais meticulosa das três
fases da operação historiográfica, entre prova documental, explicação/compreensão
e representação historiadora. O fato de o tribunal encenar a ação reconstruída não
justifica que retenha apenas a fase "representativa" da operação historiográfica, tão
fortemente marcada pelos tropos e figuras dos quais a retórica se aproveita. Mas então,
é preciso confessar que no momento de ampliar o campo dos protagonistas e das ações
narradas e de multiplicar os níveis de análise, o juiz passa a palavra ao historiador. A
sabedoria consiste em dizer que o juiz não deve brincar de historiador; ele deve julgar
nos limites de sua competência - limites que são imperiosos; ele deve julgar em sua
alma e consciência. Nesse sentido, Osicl pode arriscar a expressão "narrativa liberal",
e mesmo "memória liberal" (op. cit., p. 238). Mas os historiadores tampouco têm con-
dição de escrever a única história que englobaria a dos executantes, a das vítimas e a
das testemunhas. Isso não quer dizer que eles não podem buscar um consensus parcial
sobre histórias parciais cujos limites, ao contrário dos juízes, eles têm a possibilidade~
o dever de transgredir indefinidamente. Que cada um faça sua parte!
Se evoco aqui a "controvérsia dos historiadores" (Historikerstreit) dos anos 1986 e
seguintes na Alemanha 47 , não é para cobrir a totalidade dos fatos relativos a essa que-
rela; outros aspectos serão abordados a propósito do esquecimento e do perdão. Numa
reflexão sobre as relações entre juiz e historiador, a pergunta é exatamente simétrica
e inversa daquela colocada pelo livro de M. Osiel: em que medida, perguntávamos,
uma argumentação historiográfica pode legitimamente contribuir para a formulação
de uma sentença penal que puna os grandes criminosos do século XX e assim alimen-
tar um dissc11s11s com vocação educativa? A pergunta inversa é esta: cm que medida
um debate pode ser travado entre historiadores profissionais sob a vigilância de um
julgamento de condenação já proferido, não apenas no plano da opinião pública inter-
nacional e nacional, mas no plano judicial e penal? Dá-se margem, no plano historio-
gráfico, a um disscnsus que não seja percebido como desculpação? Esse vínculo entre
explicação e desculpação - para não falar de aprovação - foi pouco estudado em si
mesmo, embora seja constantemente subjacente à controvérsia, pois a suspeita de uns
engendra a autojustificação dos outros, num jogo entre acusação e desculpação, como
se existissem situações nas quais historiadores poderiam ser eles mesmos acusados
enquanto historiadores.
47 Dcrn11I /'histoirc, op. cit. É a segunda vez que abordo os problemas historiogr.íficos vinculados ,\
Shoah (Holocaust em ingWs); a primeira foi no âmbito da epistc1no1ogia aplicada ao proble,na da
representaç.Jo histórica; a quest<lo era ;:idos li1nitcs impostos à representação tanto no que diz fl'S-
peito Zi exposição dos (1contccimentos pela linguagen1 ou outro n1eio, quanto en1 n.'lação .JO alc.Jnce
"n_,alist.J" da representação. Os mes1nos fatos são aqui colocados sob os don1ínios cruzados do jul-
ga,nento axiológico e do julgamento historiográfico.
Não é apenas a relação do historiador com o juiz que se \'C assim invertida, com
o historiador trabalhando sob o olhar do poYo juiz que já proferiu a condenação. É a
relação com uma tradição historiográfica que, ao eliminar o elogio e, de modo geral, a
apologética, também se esforçou por eliminar a repreensão.
Depois de nos indagarmos se o elogio sobrevivera à destituição da figura do rei,
puséramos de lado a questão de saber se a censura tinha uma sorte compará,·el. Tam-
bém tínhamos enJCado a dificuldade que existe para representar o horror absoluto nos
confins desses limites da representação que Saul Friedlander explora frente ao que cha-
ma de "o inaceit,h·el"''. Ora, é esse problema preciso que ressurge, agora, no âmbito
da filosofia crítica da história. É possÍ\·el um tratamento historiográfico do inaceit,1,·el?
A dificuldade maior se deve à gravidade excepcional dos crimes. Independentemente
de sua unicidade e de sua comparabilidade cm termos historiogrMicos - e este será,
no fim, o cerne do debate - , existem uma singularidade e uma incomparabilidade
éticas que se devem à magnitude do crime, ao fato de ele ter sido cometido pelo pró-
prio Estado contra uma parte discriminada da população à qual ele devia proteção e
segurança, ao fato de ele ter sido executado por uma administração sem alma, tolerado
sem objeções marcantes pelas elites dirigentes, sofrido sem resistcncia importante por
uma população inteira. O extremo desumano corresponde assim ao que Jean Nabert
designa\'a com o termo de injustificá\'el, no sentido de ação que excede as normas ne-
gatiYas. Falei, em outro lugar, do horrí,·el como contrário do admirável e do sublime, e
do qual Kant diz que excede em quantidade e em intensidade os limites do imaginário.
É a excepcionalidade do mal que é assim designada. É nessas condições "impossÍ\·eis"
que se colocou, para os historiadores alemães, a tarefa que Christian Meier resume
nestas palavras: "condenar e compreender"~". Em outras pal,1\'ras: compreender sem
desculpar, sem tornar-se cúmplice da fuga e da denegação. Ora, compreender é fazer
usos outros que não o moral das categorias de unicidade e de comparabilidade. De que
modo esses outros usos podem contribuir para a reapropriação pelo povo daquilo que
ele reprova absolutamente? E, por outro lado, como acolher o extraordinário com os
meios ordinários da compreensão histórica?
Isolo propositadamente a contribuição de E. Noite a esse debate, na medida em
que a sua foi a mais controvertida. Esse especialista do período nazista parte de uma
constatação: "O Terceiro Reich acabou há trinta e cinco anos, mas ainda está bem ,·i\'l1"
(Dcrn11I /'lzistoirc, p. 9). E ele acrescenta sem ambigüidade: "Se a lembrança do Terceiro
Reich ainda está muito vin1 hoje, é - deixando de lado certos casos marginais - com
uma conotação completamente negati,·a, e isso por bons motin1s" (op. cit., p. 8). Logo,
o discurso de Noite não quer ser o de um negacionista e, certamente, não é este o caso.
A condenação moral sustentada pelos sobre,·iventes é assumida: "Um julgamento ne-
ga tini é simplesmente uma necessidade , ital" (ibid.). O que passa então a inquietar
Noite é a ameaça, para a pesquisa, de uma narr,ltiva elc,·ada à condição de ideologia
fundadora, o negativo que se torna lenda e mito. Então, é preciso submeter a história
do Terceiro Reich a uma revisão que não seja uma simples inversão do julgamento
fundamentalmente negativo: "No essencial, a imagem negativa do Terceiro Reich não
requer revisão alguma e não poderia ser objeto de nenhuma revisão" (op. cit., p. 11). A
revisão proposta incide essencialmente sobre o que Osiel chamava de quadro (frmnc)
da narrativa. Onde iniciá-la? perguntava ele. Até onde estendê-la? Onde terminá-la?
E Noite não hesita em remontar ao início da revolução industrial para evocar i11 fine a
declaração de Chai'm Weizmann incitando os judeus do mundo inteiro a lutar ao lado
da Inglaterra, em setembro de 1939. É, portanto, uma ampliação da perspectiva - e
ao mesmo tempo um terrível atalho - que a postura de revisão exige. O que ela deixa
aparecer no intervalo é uma multidão de antecedentes exterminacionistas, o mais pró-
ximo sendo o longo episódio do bolchevismo. "A recusa de ressituar nesse contexto o
extermínio dos judeus perpetrado sob Hitler talvez se deva a motivos muito estimá-
veis, mas ela falsifica a história" (op. cit., p. 21 ). O deslocamento decisivo no discurso
do próprio Noite ocorre na passagem da comparação à causalidade: "O que se chama
de extermínio dos judeus perpetrado sob o Terceiro Reich foi uma reação, uma cópia
deformada e não uma inovação nem um original" (ibid.). Três procedimentos são as-
sim acrescentados: ampliação temporal do contexto, comparação com fatos semelhan-
tes contemporâneos ou anteriores, relação de causalidade de original a cópia. Juntas,
essas propostas significam "revisão de perspectiva" (op. cit., p. 23). Daí a pergunta: por
que esse passado não quer passar, desaparecer? Por que ele se torna até mesmo cada
vez mais vivo, vivaz e ativo, não, certamente, como um modelo, mas como algo repul-
sivo? Porque se subtraiu esse passado a todo debate crítico estreitando o campo para
concentrar-se na "solução final":" As regras mais simples que valem para o passado de
quaisquer países parecem aqui abolidas" (op. cit., p. 31 ). São essas regras que exigem,
como se disse, que se amplie o contexto, que se compare, que se busquem os vínculos
de causalidade. Elas permitem concluir que o assassinato por razão de Estado, come-
tido pelos bolcheviques, pôde constituir "o precedente lógico e factual" (op. cit., p. 34)
do assassinato por motivo de raça dos nazistas, o que faz do arquipélago do Gulag um
acontecimento "mais original" que Auschwitz.
Esse uso maciço da comparação acaba com a singularidade ou com a unicidade,
a comparação, sozinha, possibilitando identificar as diferenças - "a única exceção
[sendo] a técnica usada nas câmaras de gás" (op. cit., p. 33). Noite espera que o deba-
te crítico, sendo assim ampliado, talvez permita "fazer passar" esse passado, como
qualquer outro, e se apropriar dele. O que não quer passar, no fim das contas, não é o
crime nazista, mas sua origem não dita, o crime "asiático", do qual Hitler e os nazistas
se consideravam como as vítimas potenciais ou reais.
No que diz respeito à comparação entre o juiz e o historiador, seu uso por Noite
coloca o historiador nos antípodas do juiz que trata de maneira singular casos parti-
culares"'· Numa outra frente, Noite abre uma crise entre o julgamento histórico e o
,
argumentação como a de Habermas que comportasse uma reflexão sobre a unicidade
da Shoah, não apenas na ordem do julgamento moral e político, mas no plano espe-
cificamente historiográfico. Na falta dessa discussão, a "compreensão distanciante"
, dos defensores de uma revisão apenas pode ser atacada no plano de suas conotações
morais, a mais tenaz das quais seria o serviço do tradicional Estado-nação, essa "for-
ma cmwencional de identidade nacional" (op. cit., p. 58) - à qual Habermas opõe seu
"patriotismo constitucional" que situa a fidelidade às regras de um Estado de direito
acima do pertencimento a um po\'o. Compreende-se, então, por que a vergonha de
Auschwitz deve ser protegida de toda suspeita de apologia, se é \'erdade que "um
compromisso ancorado nas convicções fa\'oráveis ao princípio constitucional uni\·er-
salista, infelizmente, apenas pôde se forjar na nação cultural dos alemães após - e
atr,1\'és de - Auschwitz" (op. cit., p. 58). Nesse ponto, a defesa de Habermas converge
para a de M. Osiel em prol de uma memória "liberal", de uma narrativa "liberal",
de uma discussão "liberal". Mas então seria preciso enfrentar, como faz esse autor,
os argumentos opostos extraídos da prática historiográfica, se se quiser dar o direito
de acoplar a singularidade assumida de Auschwitz à uni\'ersalidade \'Oluntarista do
patriotismo constitucional.
dl•ntt..'S no passado alen1J.o: a ausênci~1 de ano)rc1gen1 da n1en1l)ria na~ certezas que, desde a épocc1
prt:'-hitlcriana, criou "um país scn1 hi~k)ria" ()ra, nJo é tudo po::,,::,,í\·L'i nun1 país Sl'In hi::,,tória? Nclo
.'-,()IllL'l1tl' cl barb;íril' fl'(l'IÜl' TTla.'-, tc11nbé1n tl fl'tict'llCÍtl cltual l'lll buscar '\1 história perdidc1" (il,id.,
p. 27). Daí cl tarefa il qual os historiadon_':-, l'.'->tc'lo convidados: ::,,a ir da ob.'-,e.'-,.'-,,lo restaurando a con-
tinuicic1dc. Por -"'L'U lado, o autor de lt1 cicrlc1 LJ11tcrs1111s_ [Dupla aniquilação 1, A. Hillgruber, jus-
1
tapôe o:-, sofrin1entos dos aiL•n1<les dtl parte orit•tltal d~, Alt'n1c1nha, qu(1ndo do des111oronan1L'nto
cL1 frentt• russ<1, aos do,._, judeus quc1ndo de seu cxtl'rrr1ínio, sen1 explicitar a "intcr(,ç(lo sombri(1"
dl'.'-,SclS duas série:-, de acontt_•cin1e1lto:-,, a "dl'struiç(lo do l\eich alen1(lo" L' o "fim do judabn10 euro-
peu''.() autor cria a:-,sin1 um su:-,pense qut.' dei,<1 a porta aberta para uni julgc11nento definiti\·o qul'
o historiador tltlO ten1 obrigação de forn1ular.
=11 Jürgen Habern1a:-,, "UnL' n1c1nil'rL' de liquidt'r \e.'-, don11nag:es. Lt•s tt'ndances apologétiques dans
l'hi,toriographie cnntcmp"raine ,11lemande" (Ll,','1111/ /'lli,t,,irc, ,,p. t"il., p. -+/ L' ,eg.).
A MEMllRIA, A HIS1(lRIA, O l:S(JUl,CIMl·NIO
Falar como historiador "da singularidade dos crimes nazistas" exige que se tenha
previamente submetido à análise a idéia de singularidade - ou, como se diz também,
de unicidade - como o exige uma filosofia crítica da história.
Tese 1
A singularidade histórica não é a singularidade moral que identificamos acima
ao extremo desumano; essa singularidade pelo excesso quanto ao mal, que Nabert
chama de o injustificável e Friedlander, de o inaceitável, não pode, obviamente, ser
separada de traços históricos identificáveis; mas ela depende do julgamento moral
por assim dizer deturpado. É preciso, então, fazer todo um percurso no plano his-
toriográfico para implementar um conceito de singularidade ligado ao julgamento
histórico.
Tese 2
A respeito da singularidade histórica, num sentido primeiro e banalmente co-
mum, todo acontecimento que, simplesmente, advém no plano da história que se
faz, e toda seqüência narrativa não repetível no tempo e no espaço, toda série causal
contingente no sentido de Cournot são singulares; um vínculo possível com a sin-
gularidade moral resulta da imputação da ação a agentes individualizados e a toda
quase-pessoa e a todo quase-acontecimento, identificados por um nome próprio' 2 .
Essa primeira abordagem do conceito de singularidade no plano do julgamento
histórico diz respeito, de modo eletivo, ao debate histórico acerca da Shoah, o qual
opõe a escola intencionalista, para a qual importam mais os atos da equipe dirigente,
em particular a tomada de decisão quanto à "solução final", à escola funcionalista,
mais atenta ao jogo das instituições, às forças anônimas, aos comportamentos de uma
população. O que está em jogo nesse debate é a atribuição da responsabilidade do
crime a um leque de sujeitos: alguém, um grupo, um povo". A afinidade é certamente
maior entre a atenção dada pelos defensores da primeira escola aos atos imputáveis a
agentes individuais e a abordagem criminal dos tribunais; a tensão é mais viva entre,
de um lado, o julgamento moral e jurídico e, do outro, a explicação funcional, mais
conforme às tendências gerais da história contemporânea. Por isso mesmo, ela está
mais exposta às interpretações desculpantes. Vimos historiadores relacionarem a idéia
52 De fato, é difícil un1a ncHrativa ser totalmente privada de toda apreciação moral dos personagens
e de suas ações. Na sua Poético, Aristóteles fala dos caracteres trcí.gicos co1110 sendo "n1elhorcs do
que nós" e dos caracteres cômicos con10 sendo "iguais a nós" ou "piores que nós''. É verdade que
ele bane o desumano de seu campo poético. Isso leva Osiel a dizer que, entre todos os gêneros
literários, ne1n mesmo a tragédia é apropriada à legal 11arrafivc, mas apenas o morn!ity plny (Ma~s
alrociht, collcclil'c 111c1110n1 and //te lmu, op. cil., p. 28:'l e scg;.).
53 Ren1eto .Js ,ninhas teses sobre ,1 atribuiçJo da n1e1nória a uni kque de sujeitos (ver primeira parte,
cap. J). Encontrarei 1nais adiante un1 problema c01nparável, concernente J atribuição mültipla dn
n1orte e do morrer.
,\ l l>,IJI( .\() 111,lllRll ,\
Tese 3
Num segundo sentido, singularidade significa incomparabilidade, o que também
é um significado de unicidade. Passa-se do primeiro sentido ao segundo pelo uso da
comparação entre acontecimentos e açôes pertencentes à mesma série, à mesma con-
tinuidade histórica, à mesma tradição identificante; a excepcionalidade evocada h,1
pouco se deve a esse sentido transicionaL A incomparabilidade presumida constitui
uma categoria distinta quando dois conjuntos históricos heterogêneos são confronta-
dos: esse já era o caso nas atrocidades em massa e nos extermínios do passado, entre
os quais está o Terror na França, mas principalmente no desenrolar parcialmente Clm-
tcmporâneo do regime bolchevique e do regime nazista. Antes de se pronunciar sobre
a causalidade de um sobre o outro, é preciso entender-se sobre as semelhanças e as
5-t Hann.ih 1\rL·ndt, T/1c Origi11, o('lótt11ilt1ri,111, '\iL'\\' York, Harcnurt, llr,KL' & Wurld, 1LJ51, 1LJ58. 1%/i,
llJ68; trad. frl1nc., Le::-- origine~ du tot11/it11ri~111t', 3 ,·nl., Paris, Éd. du SL'ui!, coll. "Point:-.": t. 1, S11r
A Ml·MllRIA, ;\ IIISl(lRIA, (l FS()LJl'CIMFNJ'(l
pela noção de atrocidades cm massa (M. Osiel) ou, como prefiro dizer com Antoine
Carapon, de crime do terceiro, entendendo por terceiro o Estado, definido por sua
obrigação primeira de garantir a segurança de quem quer que resida no território deli-
mitado pelas regras institucionais que legitimam e obrigam esse Estado. É então possí-
vel, nesse quadro, estabelecer a lista das semelhanças e das diferenças entre sistemas.
Por outro lado, a idéia de incomparabilidade apenas tem significado próprio a título
de grau zero da semelhança, portanto, no âmbito de um procedimento de comparação.
As questôes controvertidas são então múltiplas: até que ponto um gênero classifica-
tório constitui uma estrutura comum? E que relação existe entre a estrutura presumida
e os procedimentos efetivos de extermínio? Que liberdade existiu entre a estratégia
programada no topo e todos os escalôes de execução? Tudo isso é discutível. Mas,
mesmo supondo que a tese da incomparabilidade aplicada à Shoah seja plausível no
plano historiográfico, o erro seria confundir a excepcionalidade absoluta no plano mo-
ral com a incomparabilidade relativa no plano historiográfico. Essa confusão costuma
afetar a tese do pcrtcncimento dos dois sistemas, bolchevique e hitleriano, ao mesmo
gênero - totalitário, no caso-, até mesmo a asserção de uma influência mimética e
causal de um crime sobre o outro. Essa mesma confusão afeta com muita freqüência a
alegação da singularidade absoluta dos crimes nazistas. Inversamente, não vemos em
que o pcrtencimento ao mesmo gênero, totalitário, no caso - e até mesmo a influência
mimética e causal de um crime sobre o outro - teria uma virtude desculpante para os
herdeiros da dívida de um crime particular. O segundo uso do conceito de singularida-
de - o incompanivel - não apaga o primeiro - o não repetível: o gênero comum não
impede a diferença específica, na medida cm que é ela que importa para o julgamento
moral de cada crime tomado individualmente. A esse respeito, defenderia de bom
grado uma singularidade propriamente moral, no sentido de uma incomparabilidade
absoluta das irrupçôes do horror, como se as figuras do mal tivessem, em razão da
simetria entre o admirável e o abominável, uma singularidade moral absoluta. Não
há escala do desumano, porque o desumano cstci fora de escala, por estar fora das
próprias normas negativas.
Não há, então, nenhum vínculo atribuível entre o uso moral das idéias de unicidade
e de incomparabilidade e seu uso historiográfico? Vislumbro um, que seria a idéia de
exemplaridade do singular. Esta não depende nem da avaliação moral enquanto tal,
nem da categorização historiográfica, nem da sua superposição de ambas, que seria
um retorno à ambigüidade, à confusão. Essa idéia forma-se no trajeto da recepção até
o plano da memória histórica. A última questão, de fato, é a de saber o que cidadãos
responsáveis fazem com uma querela entre historiadores e, além desta, do debate en-
tre juízes e historiadores. Aqui reencontramos a idéia de díssrnsus educativo de Mark
Osiel. A esse respeito, é significativo que as peças do Hístoríkcrstrcít tenham sido im-
pressas num jornal de grande tiragem. A disputa dos historiadores, levada à praça
/'1111tisi'11Iitisi11c, trad. fr,rnc. dl' Midwli,w Pouteau, 1YY8; t. li, L'/111J'i'ri11/is111c, trc1d. franc. de Martinc
Lciris, 1YY8; t. Ili, Lc syst,'111c /o/11/it11irc, trad. franc. de Jcan-Loup Bourgt't, 19Y5.
pública, já era uma fase do disscnsus gerador de democracia. A idéia de singularidade
exemplar só pode ser formada por uma opinião pública esclarecida que transforma
o julgamento retrospectin) sobre o crime em juramento de e,·itar seu retorno. Assim
ressituada na categoria da promessa, a meditação sobre o mal pode ser arrancada da
deploração infinita e da melancolia desarmante e, mais fundamentalmente ainda, do
círculo infernal da inculpação e da desculpação.
A última limitação interna a que se submete a reflexão da história sobre seu pró-
prio projeto de verdade relaciona-se com a noção de interpretação, cujo conceito ser,í
especificado mais adiante. Pode-se estranhar a evocação tardia do tema da interpreta-
ção em nosso próprio discurso: não poderia ter aparecido no lugar da representação,
ou seja, no âmbito da epistemologia da operação historiográfica? Fizemos, neste caso,
outra escolha semântica que, pareceu-nos, faz mais justiça à amplidão do conceito de
interpretação: de fato, longe de constituir, como a representação, uma fase - embo-
ra não cronológica - da operação historiográfica, a interpretação depende, antes, da
reflexão segunda sobre o curso total dessa operação; ela reúne todas as fases, enfati-
zando assim, simultaneamente, a impossibilidade da reflexão total do conhecimento
histórico sobre si mesmo e a validade do projeto de verdade da história nos limites de
seu espaço de validação.
A amplitude do conceito de interpretação não está ainda totalmente reconhecida
numa versão que considero corno uma forma fraca da reflexão sobre si mesma e co-
mumcnte apresentada sob o título "subjeti,·idade l'l'l'SIIS objeti,·idade na história"".
55 foi sob esse clngulo que encontrei, pela prin1cira ,·cz, esse probh. n1a L'I11 meus artigo~ do~ ano~
1
50 (,1prc'sl'ntados em Hi,toirc e/ Viril<', P<1rís, Éd. du Sc·uíl, coll. "[sprit", 19'i'i). N,, preLicio dc1 pri-
;\ Ml,M(JRIA, A HIS!ÚRIA, O FS(.)lJCIMFNlll
Não que falte justificativa para essa abordagem; ela continua vulnerável à acusação de
psicologismo ou de sociologismo, por não situar o trabalho da interpretação no pró-
prio cerne de cada um dos procedimentos da historiografia. Na verdade, o que se põe
em evidência, sob a denominação canônica de "subjetividade versus objetividade", é,
por um lado, o envolvimento pessoal do historiador no processo de conhecimento e,
por outro lado, seu envolvimento social e, mais especificamente, institucional. O duplo
envolvimento do historiador constitui um simples corolário da dimensão de inter-
subjetividade do conhecimento histórico enquanto domínio do conhecimento de ou-
trem; mais exatamente, os homens do passado acumulam a dupla alteridade do alheio
e do ser passado, ao que Dilthey acrescenta a alteridade suplementar que a mediação
pela inscrição constitui, ao especificar a interpretação entre as modalidades da com-
preensão: alteridade do alheio, alteridade das coisas passadas, alteridade da inscrição
se conjugam para fixar o conhecimento histórico no âmbito das ciências do espírito. O
argumento diltheyano que é também, em parte, o de Max Weber e o de Karl Jaspers,
encontrou eco junto a historiadores profissionais como Raymond Aron e Henri-lrénée
Marrou.
A tese principal de doutorado de Raymond Aron, intitulada Introduction à la phi-
/osophic de /'histoirc, tinha, como subtítulo, "Essai sur les limites de l'objectivité histo-
rique""'. Ela foi recebida, muitas vezes, com suspeita, em razão de algumas de suas
fórmulas provocadoras. Assim, a primeira seção dedicada às noções de compreensão
e de significação conclui-se pela "dissolução do objeto" (lntroduction ... , p. 120). A ex-
pressão recobre uma consideração moderada: "Não existe uma realidade histórica,
já pronta antes da ciência, que conviria simplesmente reproduzir com fidelidade. A
realidade histórica, por ser humana, é ambígua e inesgotável". Da mesma forma que
o envolvimento pessoal, social e institucional do historiador, na compreensão, é enfa-
tizado, "o esforço necessário de desprendimento rumo à objetividade" (ibid.) é levado
em consideração: "Essa dialética do desprendimento e da apropriação tende a consa-
grar bem menos a incerteza da interpretação do que a liberdade do espírito (da qual o
historiador participa como criador), e revela o fim autêntico da ciência histórica. Esta,
como toda reflexão, é, por assim dizer, tanto prática como teórica" (op. cit., p. 121). Na
conclusão da segunda seção, ao voltar aos "limites da compreensão" (op. cit., p. 153),
rneira ediç.lo (1955), trata-se da "verdade limitada da história dos historiadores" (p. 10); mas era
na ~wrspectiv;i de urna" história filosófica da filosofia" que, naquela época, era o objeto de meus
ensinan1entos. A polaridade entrt._' a crítica do conhecimento histórico e un1 sentido escatológi-
co da unidade indefinidamente adiada do verdadeiro garantia a din,ín1ica dessa coletânea de
ensaios, que fazia alternar a "preocupação epistemol(1gica" e a "preocupação l·tico-cultural". A
in1plicação eril então n1etc1-histórica, a saber, "a coragcn1 de fa?er histórü1 dzi filosofia sem filosofia
da história" (ibid., p. 11). Na wr<fade, apenas o primeiro ensaio (1952), "Objectivité et subjectivité
l'n histoirp" (ibid., pp. 25-48), rpspondia ao título ambicioso da primeira parte do livro: "Vérité
dans lil connz-iissi1nce de l'histoirc"
56 Rayrnond Aron, /11trod11ctio11 IÍ la plzilosoplzie de /'/1istoire, l'iiris, Callirnard, 1938. A tese cornpkrncn-
t;ir Sl' intitulava La plli/osopllie critique de /'llistoire. Fssni s11r 1111e tlzéoric alle11111iidc de /'/,istoirc, P,iris,
Vrin, 1938. l)pvo t,1rnbérn a Rayrnond Aron a expressão "filosofia crítica da histúria". Pode-se ler
un1~1 no\'i1 t...'dição revistc1 L' anot.:1da por Sylvie ML•sun\ Paris, Gallin1ard, 1Y8ó.
,\ lO"slJll l(l lllsl(lRll ,\
Raymond Aron se esforça por ultrapassar a acepção do termo "compreensão" tal qual
acredita encontrá-la em Jaspers e Weber. Ele busca um equilíbrio entre duas outras
significaçôes, contrárias l' complementares, da mesma expressão. De um lado, a com-
preensão implica "uma objetivação dos fatos psíquicos"; ora, "que sacrifícios com-
porta esta objetivação 7 " (ibid.). De outro lado, a compreensão "sempre compromete
o intérprete. Este nunca é comparável a um físico, continua a ser homem e sábio ao
mesmo tempo. Ele não quer se tornar um sábio puro, \·isto que a compreensão, além
do saber, visa à apropriação do passado" (op. cit., p. 15-1). A ênfase recai, então, so-
bre a "objetivação imperfeita", ligada às condiçôes concretas da "comunicação das
consciências" (il1id.). A última seção, intitulada "Histoire et vérité", acarreta a reflexão
sobre os limites do relativismo histórico em direção a uma ontologia do ser histórico,
que conduziria, além do quadro traçado, a uma concepção filosófica da existência. Na
,·erdade, os limites da objetividade são aqueles de um discurso científico em relação
a uma consideração filosófica: "L'hommc est historiquc", última parte da obra, não
pára de martelar tal afirmação. Não é indiferente, para a seqüência das nossas consi-
deraçôes, que a última ênfase seja dada à desfatalização da necessidade histórica em
nome da liberdade sempre em projeto: "A história é livre porque não é escrita ante-
cipadamente, nem determinada como uma natureza ou uma fatalidade, imprevisível
como o homem para si mesmo" (op. cit., p. 323). Em última instância, é o homem da
decisão, o cidadão - e1wolvido ou espectador descomprometido - que pronuncia,
em caráter retrospectivo, a conclusão de um livro dedicado aos limites da objeti,·idade
histórica: "A existência humana é dialética, ou seja, dramática, visto que ela age num
mundo incoerente, compromete-se apesar da duração, busca uma verdade que lhe
foge, com a única garantia de uma ciência fragmentária para uma reflexão formal"
(op.cit., p. 350).
A obra paralela de Henri-Irénée Marrou, De la co111111iss1111cl' historiquc'º, constituía,
logo após a tese de Raymond Arem, a única tentativa de reflexão sobre a história ar-
riscada por um historiador profissional antes de Le Rov Ladurie, em Lcs pm;s1111s 1ÍI'
L1111gucdoc, e de Paul Veyne em Co111111c11/ 011 écrit /'histoirc (1972) e, evidentemente,
antes de Michcl de Certeau (pelo menos nas primeiras edições). Definido como "o
conhecimento do passado humano" (De /11 co111111Íss1111cc lzistoriqul', p. 29), mais preci-
samente "conhecimento cientificamente elaborado do passado" (i/Jid.), o conhecimento
histórico implica a correlação entre subjcti,·idade e objeti,·idade, na medida cm que
relaciona, por iniciati,·a do historiador, o passado dos homens de outrora e o presente
dos homens de hoje. A intervenção do historiador não é parasitária, mas nmstituti,·a
do modo do conhecimento histórico. Propósito eminentemente antipositivista, cujo
alvo é Seignobos, com sua fórmula quiç,í arbitrariamente isolada: "A história é apenas
a ordenação dos documentos" (op. cit., p. 56). O historiador, protesta Marrou, é, em
primeiro lugar, aquele que questiona os documentos. Sua arte nasce como hermenêu-
-:--1 Up. t'Íl. () li,·ro, publicadu ern llJ50, foi precedido por cerc,1 dt.• dez artigo~, cuja listei ~l' t.'nc011trL1 na--.
PP 23-2-1.
·\ ~11M(lRI!\, A HISTORIA,() FS(_lUFll\lF\;f()
58 No c1pêndice redigido en1 1975, Mzirrou saúda con1 consideração a obra de Certcau L'écriturc de
/'/1isloirc l' se confronta, pelo bdo da escola cética, com ,is d<'sconfianças de Rol,rnd Barthcs expres-
sas no tema do "efeito do real".
59 "A subjetividc1d1._• do historii1dor, como toda subjetividade científica, representa a vitória de unia
boa subjetividade sobre uma má subjetividade" (Hisloirc e/ Wrilt', op. cil., p. 1h). "A profissão de
historiador faz a históriiJ l' o historiador" (ihid., p. 37). Eu enfatizc1va entilo, sucessivan1entc, o
julgamento de ímportéÍncia, o pertt:ncimento do historiador à n1esma história, à n1esma humani~
dade que os ho1nens do passado, a transferl~ncú1 para u1nc1 outrl1 subjetividade adotada con10 urnJ.
L'spécic de pPrspectiva.
óO Notre ,ih/e. 7978-7988, por René Rémond (em colaboração com J. F. Sirinclli), último volume da
Hi~toirc de Fmncc, organiz<.1c.t1 por Jean Favier, Paris, Fi:ty;.ird, 1988.
uma faixa de duração em sua significação última; ao desmentido da primeira \·er-
são pelos contemporâneos pode acrescentar-se o dos acontecimentos futuros. Na falta
dessa perspecti\·a, a principal dificuldade da história de um tempo demasiadamente
próximo é a "de estabelecer uma hierarquia de importc'\ncia e de avaliar homens e
acontecimentos" (ov cit., p. 11 ). Ora, a noção de importância é aquela sobre a qual se
recruzam, afirmamos, a interpretação e a objetividade. A dificuldade referente il for-
mação do julgamento é o corolúrio daquela que afpta a perspectivação. Na n'rdade,
o historiador poded inscrever, em benefício de sua defesa, um resultado im·olunt,í-
rio de sua empreitada: ele poderá "amainar os julgamentos mais severos, matizar as
avaliaçôes mais admirati\·as" (op. cit., p. 12). Não se poder,í, então, censurar-lhe essa
"redução dos descompassos" (i/Jid.) 7
As dificuldades com as quais se confronta o historiador do passado recente re,ffi-
,·am as interrogações anteriores concernentes ao trabalho de memória e, mais ainda,
ao trabalho de luto. Tudo acontece como se uma história próxima demais impedisse a
memória-relembrança de se despregar da memória-retenção e, simplesmente, o pas-
sado de se separar do presente, o decorrido não exercendo mais a função de mediação
do "não ... mais" em relação ao "ter sido". Numa outra linguagem, que será a nossa
mais adiante, a dificuldade, aqui, é a de erigir sepultura e túmulo em favor dos mortos
de ontcm" 1
•
hl 1-knry Rou'.->'.-,O .1cn''.->centa confirn1/1ç(lo l' co111pleml'nto 21 ,.111'1\isl' de R. RL·rnond L'm La Jf1111ti:::L' d11
pth"l\ op. l'it., cap. 2, "Pour lllll' histoirl' du tl'n1ps prést.'nt", pp. -l-9-LJJ. N,.1 esteiril de [\.1arc Bloch,
t'le lcn1brc1 que a diak'tica entre o pas'.->ado e o prl''.-,l'lltl' L· con'.-,tituti, a da profiss<lo do hi'.->toriador,
n1,.1s qul' '\1 ,1n,í.lisc do prl''.-,l'llte pennitl', t.'111 ~entido in,·L'f'.->O, con1preender o p,_1ss;ldo" (il 1id., p. =1-t).
\'LHc Bloch n,lo arriscoU-'.-,L' ..1 l'SCrt'U_'r L D1:fl7dc ...:;ob o efeito do acontecin1ento? Con1 a
hi-..tóric1 do ten1po prL'Sente retornam fortail'cidos o político L' o ,1contecin1ento. ;\ ohjl'çZío da falta
de recuo i'ld,·ogando por uni pra/o de rigl)r '.-,l'ria apen,l'.->, na n1aiuria das \'l'Zl'S, um álibi idl'Olú~
gico L1ri<ín.~l ~egundu o qul' l'St<í en1 jogu; () dl''-><1tiu merl'cL'ria :->l'r enfn.,,1t(1eio l'll1 bl'nefício dl'
um di,ílogo l'ntrl' \ i\·o~, t-. ntn, contl'n1pnr}rnl'os,
1
t-.' de uma interrogaçJ.o que tratei precisan1L'1lte da
frontl'ir<1 indetl'nninada que SL'p,11\l o p<1..,~<1dn do prL'Sl'ntl' l', <ifinal, o drquiuJ do testt...'munhn. F
ne~~11 frontl'ira que ~e decide, finalmenk, ,1 rL'm,1nl•ncia do p<1~::-,lldo na~ reprt-.'Sl'tltaçÜL'~ cokti, <is;
t.' llL'l<1 tc1mbl•n1 qul' l''->"<l ob::-,l'ss<lu dl L' ...,t'r tra/id<1 ~1 !tu l' L'\urci/ada.
1
\
,\ ME~l(lRIA, i\ HISl(lRli\, O ES(_)UI Cl\11 N l'll
o quem dos atos de interpretação. É esse complexo operatório que pode constituir a
correlação entre vertente subjetiva e vertente objetiva do conhecimento histórico.
Essa correlação pode ser detectada em cada um dos estágios da operação historio-
gráfica que temos percorrido. De fato, a interpretação opera desde o estágio da consul-
ta aos arquivos, e até mesmo bem antes, desde o estágio de sua constituição. Uma esco-
lha presidiu o estabelecimento desses arquivos: como Collingwood gostava de dizer,
"Euerything in thc world is potcntinl cvidcnccfor n11y s11bjcct whntcucr" (citado por Marrou,
De la co1111aissn11cc historiq11c, p. 289). Por mais liberal que seja a operação de reunião e
de preservação dos rastros de sua própria atividade que uma instituição decida preser-
var, ela é inelutavelmente seletiva; nem todos os rastros se transformam em arquivos;
um arquivo exaustivo é impensável, e nem todos os testemunhos fazem arquivos" 2• Se
agora passamos do estágio da instituição para o da consulta por determinado historia-
dor, novas dificuldades de interpretação se apresentam: por mais limitados que sejam
os arquivos cm termos de número de entradas, eles constituem, à primeira vista, um
mundo ilimitado, ou até mesmo um verdadeiro caos. Um novo fator de seleção entra
em cena com o jogo das questões que guia a consulta dos arquivos. A esse respeito,
Paul Vcyne falou do "prolongamento do questionário"; o questionário tampouco é in-
finito, e a regra de seleção das perguntas não é transparente para o espírito. Por que se
interessar mais pela história grega do que pela história medieval? A pergunta continua
em grande parte sem resposta clara e sem réplica. Quanto à crítica dos testemunhos
que constituem o núcleo duro da fase documental, ela depende certamente da lógica
do provável evocada há pouco; mas uma crise de credibilidade não pode ser totalmen-
te evitada no que diz respeito à confiabilidade dos testemunhos discordantes; como
dosar a confiança e a desconfiança cm relação à palavra de outrem, cujo rastro está no
documento? O trabalho de esclarecimento e de argumentação implicado na crítica do
testemunho não se faz sem correr os riscos próprios de uma disciplina definida por
Cario Ginzburg como o "paradigma indiciário". Nesse sentido, a noção de prova do-
cumental deve ser invocada com moderação; cm comparação com os estágios ulterio-
res da operação historiográfica, e em consideração às permissões e exigências de uma
lógica probabilista, a prova documental é aquilo que, em história, se aproxima mais do
critério popperiano de verificação e refutação. Sob a égide de um amplo acordo entre
especialistas, pode-se dizer que uma interpretação factual foi verificada no sentido de
que não foi refutada no estado presente da documentação acessível. A esse respeito,
é importante preservar a relativa autonomia do estágio documental no plano da dis-
cussão suscitada pelas teses negacionistas concernentes à Shoah. Os fatos alegados não
são, evidentemente, fatos brutos, e muito menos o dublê dos próprios acontecimentos;
eles continuam a ser de natureza proposicional: o fato de que ... É precisamente nessa
condição que eles são suscetíveis de serem patenteados.
A discussão sobre a prova documental conduz assim, naturalmente, à questão da
relação entre interpretação e explicação/compreensão. É nesse nível que a dicotomia
63 \la>. \Veber, LL'o1u111lit' ct ~ot'll'flí, op. (it., §§ 1-?i. H. HH7 \Vri~ht, fyp/a11atio11 1111d U11dcr~f1mdi11s, Lon-
drl's, RoutlL~dgc and Keg,111 Paul, 1971. O autor dt'fl'nde unl 1nodelo misto qul' une seg1npnto~ cau-
s,1i~ e segn1ento~ tl'leolúgicos implicados, conjunt.1mt..'IÜl', pela intt.•nt..'nç,l.o de agentes hun1anos
tantl) no pillno social quanto físico.
,\ \1L~1(1RIA, ,\ HISTORI,\, OI S(_)ul·c1MJ:N IU
64 Jacqul'S Rancil·re, /,e::, Noms de /'llistoire. [%ai de podiquc du sauoir, Paris, Éd. du St'uil, col. "La Li-
brairie du XX' sié•cll'", 1992.
65 No qtH..' 1ne diz respeito, dcnon1inei "prn.::•tica ct1 n,1rrativa" (1 rt.'plica do s1.1ber narrativo Js aporias
d,1 tl'mporali<fode. Cf. fr1111's d Rc'cil, L Ili, op. cit., segunda parte.
66 Arll'lte F<1rges, Lc Coúi de /"orchiN, ov cil.
\ lll,!Jll \ll IIIS!UR!l \
pergunta se impõe: serei isso narrati\'a ou ciência? Ou algum discurso inst,h·el entre as
duas? Ranciere \'é o discurso histórico enredado entre a inadequação da narra ti\ a e da
ciência e a extinção dessa inadequação, entre uma exigência e sua impossibilidade"-.
O modo de \'erdade do saber histórico consiste nesse jogo entre essa indeterminação
e sua supressão'''.
Para orientar positi,·amente o proct•dimento, Ranciere recorreu ao conceito de pac-
to, que me ocorreu também testar; ele propôe não um duplo, mas um triplo contrato:
científico, que implica a ordem oculta das leis e das estruturas; narrativo, que d,í legi-
bilidade a essa ordem; político, que Yincula a invisibilidade da ordem e a legibilidade
da narrati\'a "às coerçôes contraditórias da idade das massas" (op. cil,, p, 2-l)"",
Rancicre escolheu, como pedra de toque de sua poética, a operação da linguagem
pela qual Braudel, no final de La !v1Mitcrm1u;c.,,, ele,·a a narrati\'a dos acontecimentos
da morte de Filipe II à categoria de emblema da morte da figura real em seu retra-
to de majestade. Toda a problemática da representação histórica encontra-se assim
mobilizada, mas também a de seu lugar na grande obra dirigida contra o primado
dos acontecimentos. Este se encontra, assim, simultaneamente destituído e restituído,
sob pena de \'era empreitada histórica dissoh·ida na científicidade positi,·a. Ranciêre
completa minha própria an<Ílise da estrutura narrati,·a dissimulada do conjunto da
obra com um exame do uso gramatical dos tempos verbais, ã luz da distinção recebida
de Bem·eniste entre o tempo da narrati,·a que faz sua própria narração e o tempo do
discurso no qual o locutor se implica. A distinção tah·ez não seja tão operatória quanto
se desejaria no caso do texto braudeliano. A conjunção entre il função régia e o nome
próprio do rei morto comprova, em compensação, o encontro entre poética e política;
a deslegitimação dos reis no plano de fundo da morte desse rei anuncia, na ,·erdade,
a ,1scensão simultânea da política republicana e do discurso histórico da legitim,1ção,
aberta ou tácita, desse regime ao mesmo tempo político e poéticoº''.
O exame das formas que assume a articulação entre o saber histórico e o par das
figuras e das pala,-ras continua além da reflexão sobre o rei morto e a deslegitimação
dos reis. A história sempre fez falar não somente os mortos, mas todos os protagonistas
silenciosos. Nesse sentido, ela ratifica "o excesso das palanas" (op. cit., p. 53) em \"ista
da apropriação da palavra do outro; por isso, a contro,·érsia é inesgot,ívcl entre as lc>i-
67 "F:-.sl' l'Studo procedt.' do qul' decidi dern_1n1incH pul,tiCcl do ~clbl'r: l'Studo do conjunto do:-, pnKl'di-
nu•1ltos liter,írio:-, pelo:-. qu,li:-, uni di:-,cur:-.o ~t.' ...:;ubtrai 2't literatura, :-.l' ,1tribui um l':-.t,1tuto dL' cit,ncia
L' o significcl" (!.e-::; 11t111h de /'l1i-;toirc, op. L it., p. 21). r\ pal,n·ra ":-.,1ber" l'nLlti/a ll atnplitude potl'ncial
da operl1çJo rt.•flt.'\.Í\ ll.
h8 (_) indecidh·el de qul' falcHL'i no finl1l do capítulo 2 e1ltn· n1en1t'1ric1 L' hi:-.tl·1ric1 e, }'<lrt.'IÜL' dl'..,...,a indl'-
tern1inc1ç,lo pol·ticcl do "princípio dc indi:-,cl'rnibilidcHil'" (i/ 1id., p. 3~).
69 Encontrei obliquan1t'ntl' L'SScl tcrcl'irc1 di,nL'llS,ll\ :-,l'ja por oca::-,illo do rl'trc1to do rl'i L' do di~cur::-.o
de elogio da grandl'Lcl hl'gund,1 p,HtL', cap. 1, pp. 119-1~8), ::-.L'j<l por tiC,l'.--Í,lo dos grandL''.-- criml''.-- do
sL'c1ilo XX, quL' fi1.:L'r<1m surgir, no proscl'nio, a figur,1 do cidad,lo co,nu um tercciro, cntrl' o jui;: L'
o historiddor.
70 O discurso sobre o "rl'i morto" L'nseja u1r1a outrl1 probll'm,ític1, ,1 :->clber, ,l tnorte l'l1l hi::-.tl'1ric1; no
pn'1,i1T10 c,1pítuil), \·olt,irci J contribuiçZlll de Rancit.,n· p ..ir ..1 t.'::-.se debc1tc.
A Ml:MORIA, A lllolORIA, O FS(lUICIMFN 10
71 () revisionisn10, c1n geral, resu1ne-st..' cl un1t1 sin1ples fónnub: "não aconteceu nada daquilo que foi
dito" (Lcs I1011,s de /'histoirc, op. cil., p. 78). Toda a nossa problemática da representância é aqui posta
à prova.
2
História e Tempo
Nota de orientação
º
do, por w11 lado, 11u11111 i111posiçiio de li111ites 11 tod11 pretensao tot11/izadora e, por outro
/mio, 111111111 exploraçiio dos títulos de Z'lllidade de u11111 l!istoriografi11 consciente de
su11s /i111it11çiies. E111 sua _tómw ncgatiZ'll, 11 crítirn foi sucessiumnente dirigida contra o e11u11-
ci11dofra11co d11 hubris do s11/Jcr absoluto d11 "própria Histôri11", e contra 11sfor11111s disfínçad11s,
e gera/111ente 11110 rcco11/zccid11s, da 111es11111 hubris; e111 sua _tim1111 positiu11, ela leuou e111 consi-
dcraçao algu111as d11s 11111is fernndas oposiçties intemas do s11ber de si d11 lzistôria, co1110 o par
_fonn11do pelo jui: e o lzistori11dor 011, ainda, a te11s110 entre i11tcrpretaç110 e olijctiuid11dc 110 plano
da lzistôria científica.
O capítulo que se segue marca a pass11ge111 da l!er111e1lL;utica crítirn para u11w lzen11e1usutirn
ontológica, dirigida à condiçiio histórica e1u7ua11to 111odo de ser inc.YCcdíuel'. O ter1110 "'1en11e-
1usutica" contilllw II ser considerado 11u111 sentido de teoria da i11terpretaç110, tal co111ofiii dcter-
111i11ado 1111 ú/ti11111 scçiio do capítulo anterior. Quanto ao uerlio s11/J:;t1111tiZ'lldo "ser", ao qual o
termo "/zcm1e1usutirn" foi 11ssoci11do, pen111111cce 11/Jerto 11 111110 plumlid11dc de 11cepç6cs, co1110 sc
lê 1111 _{i11110s11 dcc/amçiio de Aristóteles 1111 Metafísica, E, 2: "O ser se diz de 1111íltipl11s 11u111ei-
ms". E111 outro lug11r, usei esta ca11ç110 aristotélica co1110 argumento para explorar os recursos
da i11tapret11ç110 que pri,,flegi11, entre as di,,crs11s acepçiics, a do ser co1110 ato e co1110 poténcia
110 p/11110 de u11111 1111tropologi11 filosófica:(> dessa _tim1111 que proponl!o, 110 decorrer do presente
capítulo, considerar o "podcr{iJZer 111e111ôri11" co1110 11111 dos poderes -11ssi111 como o poderfa/11r,
o poder 11gir, o poder co11t11r, o poder ser i111p11táuel aos próprios atos na condiçiio de seu ,'cr-
d11deiro 1111tor. N11d11 11111is será dito solire o ser e11q111111to ser. Em co11l/)['llSaç110, considemr-sc-â
co1110 legíti111a tod11 te11tatiua de camcteri:11r o 111odo do ser que so111os, 11 cad11 vc:, c111 oposiçao 110
111odo de ser de outros sendo que 1u10 nós, i11depc11de11tc111c11te, e111 últi11111 i11stâ11ci11, da rel11ç110
desse ser co111 o ser. Ao 11dot11r css11111m1eira de a/1ordar o pro/Jle11111, situo-me volens nolens 1111,
François Do~se situa o quarto percurso de seu livro l.'lfistoirc, op. (lt., sob o signo das "rupturas
do tempo" (pp. 9f>-U6). O autor conduL o kitor de Aristútl'les e de Santo Agostinho, passando por
Husserl e Heidegger, até os grande~ questionanu:-ntos sin1boliz~1dos pelo~ non1es de\\'. BL'njanlin,
F. Nict,csclw, N. Elias e, em última inst~nci,1, t\.1. Foucault.
,\ MLM(JRIA, A IIIST(lRIA, () LS(JUl-:Cl\!F\il(l
vizi11'1a11ç11s de Heidegger, cuj11 leitura escolhi limitar 11 Ser e Tempo, u111 dos grandes liuros
do século XX 2 . Se 11ceito afôrmula dec/11ratiz1a co111 a qu11I se inicia este liuro: "Hoje, 11 questiío
do ser caiu 110 esquecimento, muito embora nosso tempo considere um progresso reafir11111r 11
'metaffsica'", é exatamente, como Ji1i pedido, 11 fim de inscrez,er 111i11'111 "pesquis11" 1111 srqiirncia
d11 de l'latíio e de Aristóteles, como co111ccei 11 fazer desde 11s primeiras pági1111s d11 presente obra.
Essa obediência 11 objurg11ção liminar de Ser e Tempo, que convid11 a "um11 repetição d11 ques-
tão do sentido do ser" (p. 3), não impedirá que este capítulo seja tratado como 11111 deb11te com
Heideggl'l', o que dará a esta discussiío 11111 tom b11st1111te diferente daquele, de c11111plicidadc 11111is
que de co11fro11taçiio, que prevalecerá 110 capítulo seguinte, sobre o esq11ccime11to, na discussi'ío
de Matéria e Memória, de Henri Bergson.
Eis algumas consideraçiies que me 11u111têm 1111 proximidade das 1111álises de Ser e Tempo e,
110 111es1110 tempo, 111e lez,11111 progressivamente 11 controvérsia com elas.
l'ri111eira111e11te, citarei 11 te11t11ti1m de distinguir o modo de ser que somos 11 cada vez, de ou-
tros modos de ser, pelll 111a11eim diferente de ser no 111wuio, e 11 caracterizaçi'ío glolml desse modo
de ser pela preornp11çiio considerada e111 suas detcn11i11açiJes teôrirns, prátirns e afetivas. Adoto
essa rnractcrizaçiio essenci11I com t1111to mais prazer porque, de cert11 maneira, a pressupus, ao
dar co1110 refi're11tc próximo d11 historiografia o 11gir soci11I exercido nas situaçiies de incerteza,
sob a li111itaçi'ío da produçâo do vínrnlo social e d11s identidades e111 questi'ío. A esse respeito, é
legítimo aceitar como conceito ontológico de nfcn1ncia última o Dasein heidcggeriano, carac-
tcriwdo de maneira difcrrncial pela preornpação, co11sidem11do-se os modos de ser d11s simples
cois11s lÍlldas (Heidegger diz vorhanden, "ii miio") e 111a11ejáz1eis (zuhanden, "ao alrn11ce da
11u10"). A metáfora da 111âo sugere l/111 tipo de oposiçi'ío pressuposta por Kant q1w11do proc/a111a
'ji11s e111 si" as pessoas, estes seres que m10 dev!'111 ser tmtados ape1111s co1110 111eios, porque eles
s110 e11q11a11to tais 'fins e111 si". A camctcrizaç110 111oral t; rml111e11te elevmfa, por essa Jiír111u-
l11, à categoria 011tolôgica. Pode111os cha11111r de existenciários 11s rntegorias que, ii 11w11cira d11
Analítirn do Dasein, prccisa111 o 111odo de ser subj11ce11tc ao 111odo de aprce11s110 correspondente:
exisfl'ncia, rcsoluç110, conscÚ'11ci11, si, ser-com ... Neste rnso, segue-se apenas a oricntaçi'ío de
Aristóteles e111 Ética a Nicômaco, segundo a qual o método é determinado 11 rnda vez pcl11
natureza do sujeito de estudo. Os existenciârios s110 esses modos de descriç110. Eles silo assi111
cha11111dos porque de/i11,itm11 a existê11ci11, 110 sentido forte da palavra, como 111m1eim de surgir
110s cenários do 111wuio. l'ressupiic-se que é possível f11lar de 1111111eira universal do scr-!10111e111
c111 sitz111çiifs rnlturais variáveis, como é o caso, por exe111plo, quando, lendo Tácito, Shakesprnrc
ou Dostoih 1ski, dizemos que neles nos rec11contr11111os. Supiic-se, além disso, que é possível
distinguir o existe11ciârio, como regi111e 11propriado a essa espécie de 1111ivcrsalid11de que Kant
teria comparado, 1111 Crítica do Juízo, ii cm11u11irn/Jilid11de do julga111c11to de gosto, entretanto
despr01 1ido de objetividade cog11itiv11, do existencial co1110 disposiç110 de recepçi'ío, pessoal ou
2 Martin l leidl'ggl'r, Sci11 1111d 1/cit. A obra foi publicada em 1927 no /al,r/111c/1fiir PiJíi110111c110/ogic 1111d
piJii110111c110/ogisc!1c Forsc/111115; dl' E. Husserl, t. Vlll, L' simultaneamcnte em volume separado. Estou
ml' referindo ao tpxto franci:·s da non,1 edição (1960), traduzido por E. Martineau, Êtrc e/ Tclllps,
Paris, Authl'ntica, 1985. A paginação aqui reproduzida é ;.1 da versJo alern<l, indicüdc1 na ,nargern
da tradução de Martincau.
,\ ((l,IJll \(l lll"l(ll<ll \
co111111litáril7, nil orde111 teôrirn, prátirn ou ilfl'lirn. Í\s uc:cs, é difícil 11117n/er ess/1 distinç,fo, co1110
/IS co11sideraçc1es_fí'i/17s 111/lis i7dii7nlc sobre a 111orll' e o ser-pi1m-i1-11wrte co111prornriio.
PC'/"111ito-111e_ti1:C'l" lilllil pri111eira res.silh'il nesse 11íuc! 111uito gemi de co11sidemç1fo. O disrnr-
so l1cidcggerir1110 di7 preornpi7Çi70 1u10 111c pi7rccc deixilr lugilr 17 esse cxistc11ciârio /110 pi7r/ú·uli7r
da rnme, do corpo 1111i111ado, do corpo 111eu, 1171 co1110 Husserl ti11/w COllll'Çl7do i1 e!a/icmí-lo e111
seus ú!ti111os /m/,171/ios llil !i11'1a di7 qui11/17 Meditação cartesiana; ele llll' pi7rece i111plici1do 1117
111cdi/17ç110 so/Jre 17 111ortc, so/Jre o 1117sci111e11/o e sohre esse e11/re111cio do i11terualo ('11/re 11/lsci-
111e11/o e 111orte so/ire o quill Heidegger constrói Sl/17 idc\11 da lzistoricidi7de. Om, ess/1 rntcgoriil dil
carne i111p!irn certil ultmpilssage111 do i1/iis11w lôgico rnrndo pelil !1en11e11fotica do Dasein, e11tre
os cxistenciârios que gm,,ita111 c111 tomo do 1uíc/co dil preocupaç,10, e as categorias nils quais se
ilrtirnl11111 os 111odos de ser das coisils co111pleti1111c11te dadas e 111a11ejâ,'eis. A rnpilcidade da A11il-
lítirn do Dasein para rcco11'1ecer e supemr essa dificuldade 17illdi7 esfiÍ por de111011stmr.
Segunda co11sideraç1fo: adoto a idéill co11dutora de Ser e Tempo, de /lcordo co111 a qual a
te111pora!idade co11stitui 1u10 so111cnte lilllil c/lmcterística pri11cipi1I do ser que so111os, 111/ls t17111-
/,é111 aquell7 que, 11uiis que qul71quer outra, assinillil a reli1ç1fo desse ser co111 o ser enqui111to ser.
Trnlw tanto lllilis riofo de i7dotar ess/1 iL/i;iil, porque considero, por outro li7do, 17 /lcepç,10 do ser
co11w ilto e co1110 potc>ncia co11w a 11wis si11toni:i1di1 co111 lilll/1 antropologiafilosôfirn do lw111e111
rnpil:. Alé111 disso, ser e potc~ncia tc;111 c!am111e11te /1 ,'er co111 o te111po, COlllO II Lógica de Hegel,
iÍ qual Heidegger rc111c'te e111 seu exórdio, deixa cli7ro. Nesse sentido, o te111po figura co11w u11u1
111et17rn/cgoriil de 111es11l0 nh,e/ que 17 preornpaç110 e111 Ser e Tempo: 17 preornpaçiio e; te111poml,
e o te111po e; te111po di7 prcocupaçiío. Reccmlzecer esse estatuto 11110 i111pcde de considerar co1110
essencial111e11te i7poréticos 111uitos disrnrsos tidos co11w exrn1plarcs 1w '1istôril7 do pro/ile11w '. É,
de resto, o qucfi1: Heidegge'I" e111 sua crítirn da rntegoria ",,11lg17r" do te111po. Nâo entrarei de
111odo i1lgu111 11ess17 querelil, a respeito da qual sou /1ast1711tc rcscr,,ado, e conce11trar-111e-ei 1u1111
lÍnico pro/Jle111a, /110 limitado quanto outros herdados di7 tmdiçànfi/o.scífi·ca, i1 s/1/,a, 17 capi7cidi7de
de 11111/1 011tologill di1 trn1pora/úfade de tomilr pos,;íuel, 110 sentido existenciârio da possi/1ilidade,
/1 represe11taç110 do passado pel/1 história e, 17qu1;111 dcstil, pela 111e111(íriil. bsil 11u111eim de colocnr
o prob!e111/1 (; deli111it11di1 pelils considemçi,es que seg11e111.
Terceira considernç,fo: Heidegger propc1c u111/1 illliÍlisc di1 te111pomlid11de que /lrlirnlil as /ris
instâncias te111pomis dofuturo, do pi1ssi1do e do presente. Co1110 e111 Santo Agosti11'10 e, ao seu
111odo, e111 Kose!leck, o pi1ssi1do - a qualidilde passada do pi1ssi1do, a preteridilde - so111e11te se
co111pree11de e111 ,11/1 cu11stituiçí'ío disti11t17 /lcoplada à q11alidadcfi1tura do _futuro e' 1í q1117fidade
presente do presente. Esse posicio1w111e11to é 17/Jsol11ti1111c11te dccisi,,o e111 _fiice de u11u1 press11po-
siç110 i1i11di1 1ufo exp!iciti7di1 e111 toda 11oss17 e111preitad11. De fi1to, ,; 1wtâuel que 17 _fÍ'110111e11ologi17
da 111e11uíriil e /1 episte111ologiil da lzistóriil esteja111 /1asrndas, se111 o sohen'lll, 11u11w pseudo-e,,i-
dc;11cii1, segundo /1 quill II preteridilde se' co111pree11dcria por si só, abtraçi10 }L'itil do _fitturo,
111111u1 iltitude de pum retrospccçi10. E11tc11de-sc que i1 111e111óriil te111 por o/,jc'lo, 1u10 prcfácnciill,
> :\ esse fL'Spl'ito, nZlo tl'nho nada a 1nodific.ir, ma:-, snml'nte ,1 ,Kfl'SCL'ntar ,l discu::-.scl.o que prPpnnho
L'm Tc111p'> ct f\áit III: e::-.::-.a discuss<lo L'::-.td\·a delirnitad,1 por un1,1 qul':-.tc'lo, que n,lo L' n1ai::-. a minh,1
,1qui: a da relaç,lo entre un1,1 fonon1enologia do ten1po ,·i,·ido L' um,1 cosn1ologia do te1npo fí-..ico;
entJo coloc,1da sob a l'gide dL' umc1 "pol·tica d,1 narrati, a", consideradd c,1p,1/ de
a hi'.->h.)ri,1 e~t,n a
tornar produti,·a ,1 "aporl'tica do tt. 'n1po" que inicialn1ente p,ir(1\i::-.,1 o pL•n::-.a1nento.
i\ t,,ll'MORIA, A IIISIORIA, O 1:SQUITIMl·NTO
11111s exc/usiv11111e11te, o p11ss11do. A fôr111ul11 de Aristóteles que gosto de repetir, "A 111e111ôri11 é
do p11ss11do", 11ão te111 11ecessid11de de ez,ornr o futuro para d11r Sl'lltido I' uigor 11 s1111 11fir111ação:
o presente, é verdade, está i111pficado 110 p11mdoxo do 11use11te, p11mdoxo co11111111, co1110 SI' viu,
à i11111gi1111çi'io do irre11l e à 111e111ôria do mzterior. Mas o futuro é, de certa for11111, posto entre
p11rh1teses 1111fom111l11çi'io desse p11ss11do. E o próprio presl'lltc 11ão é te11111tizado co1110 t11l 1111 pers-
pectim do 1111taior. Não é isso, 11fi1111l, que 11co11tcce q111111do procum111os u11111 lc111bm11ça, quando
110s dedicamos ao tmballzo da 111e111óri11, 011 11il' 111es1110 110 culto d11 le111br1111ç11? Assim, Hussl'rl
dese11z,ofve cxte11sm11e11te 1111111 tcori11 d11 rete11çiio e d11 rele111bm11ç11, e tmt11 de modo 11pe11as
su1111írio da prote11são, co1110 se se tratasse de w1111 si111etria obrig11tôri11. A cu/tum lill 1111'111óri11,
co1110 ars mcmoriac, constrói-se sobre tal abstração do futuro. M11s é 17 lzistôri11, sobretudo, que
esse eclipse do futuro diz respeito 111etodologirnme11te. Por isso, o que seremos leuados a dizer
111ais 11dia11te da inclusão da futuridade 1111 apree11siio do passado histórico est11rá tot11l111e11te e111
oposição à orie11t11çi'io cÍl1m111e11te retrospectiv11 do co11hcci111e11to histórico. Objetar-se-á a ess11
redução da lzistôri1117 retrospecção, que o lzistoriador, co1110 cid11dão I' ator da história que se faz,
inclui, e111 sua 111otiuação de artesão da lzistória, su11 própria reÍllção co111 o futuro da cidade. É
11erd11de, e d11re111os razão, 110 1110111e11to oportuno, ao fzistoriador". Rest11 que ele não inclui essa
reÍllçi'io co111 o objeto de seu estudo 110 te11111 que recort11 110 p11ss11do decorrido; observou-se, 11
esse respeito, que 11 i11uestigaçiio do passado histórico i111pfirn 11pe11as tn~s posiç{ies temporais:
11 do 11co11tcci111e11to-aluo, 11 dos 11co11tl'Ci111rntos i11tercalados entre este e 11 posição temporal do
histori11dor, e enfim, o 11w111rnto d11 escrita d11 lzistôri11: trés d11t11s, port1111to, d11s qzwis dzws 110
p11ss11do e 1111111 110 presente. Qumzto à dcji11içiio d11 lzistôri11 propost11 por M11rc 8/och, a saber,
"11 cih1cia dos lw111e11s 110 tempo", cÍll 1u10 deve mascarar esse !i111ite i11temo do ponto de vista
rctruspectiuo da história: os lzo111e11s 110 tempo são, 1111 verdade, os lzo111e11s de outrora, qul' ui-
ucm1111111tes que o lzistoriador cscreuesse sobre eles. Há, portm1to, 1111111 ll'gitimidade provisôri11
e111 questionar o referente da 111e111óri11 e da lzistóri11 sob a condição d11 11/Jstmç,10 do futuro. A
questão será, e11tilo, s11ber se 11111a solução para o c11ig11111 d11 prl'teridade pode ser encontrada 110s
li111ites dessa 11bstração.
A essa 11bstração niio te11111tizada 110 duplo plmw cm que opera - o plano da f1'110111e110/ogia
d11 111c111ôri11 e o rfil episte1110/ogi11 iill lzistôri11 -, 11 lzcr111e11ê11tirn do ser !zistôrico opüe a pcrs-
pectiv11010 da preteridmte, e111 relação à f11turid11de do presente e 17 presença do presente. Nesse
p/11110, a constituiçiio temporal do ser que so111os se mostra 11111is f1111da1111'11t11/ que a rejéré11ci11
simples d11 111e111ória e ifil história 110 p11ss11do enquanto tal. E111 outras paÍllvras, a temporalidlllie
constitui a prcco11dição existe11ciâria da refcré11ci11 d11 me111ôri11 e d11 história ao passmio.
Ora, 11 abord11ge111 lzeideggeri1111a é t1111to 11111is prm,ocadom porque, diferentemente da de
Smzto Agosti11/zo, a énfase pri11cip11/ rerni sobre o futuro, e não sobre o presente. Le111brm110-11os
d11s decÍllraçi'ies estro11dos11s do autor das Confissões: existem trés presentes, o presente do passa-
do, qul' é 11 111e11uíri11, o presente do futuro, que é 11 expcctatiim, o presente do presente, que é 11 in-
tuição (011 11 11tl'11çâo). Este triplo presente é o princípio orga11iZ11dor ,ill te111poralidade; 11ell' se
dccÍllra a dl'iscé11cia í11ti111a de110111i11ad11 por Smzto Agostinho de distcntio animi, que faz do
.i Fr,1nçois Dosse rest..>rva para o quinto percurso de L'Histoire, op. cit., él te1nível questão da crise do
leios. "De la Providence ,1u progrcs de la Raison" (pp. 137-168), o percurso hesita entre a Fortuna, a
gl'Sta divina, cl razzio na história, o matt>rialisn10 histórico, parél se perder na crise do historicismo.
,\ CO,lll~ .\ll HISfllRll.\
te111po lu11u11110 a réplica deficiente da eternidade diui1u1, esse eterno presente. Sob o regi111e da
preornpaçiio, e/li Heidegger, é a "antccipaçiio" que se torna o pólo de refáts11cia de toda a /lll{Ílise
d11 te/llporalidadc, co111 s1111 co11otaçiio hcrôica de "rcsol11çiio ,mtecipadora". É 1111111 boa hipótese de
tmbalho considerar a relaçiío co111 ofiit11ro co/llo aquela que i11d11:, segundo u111 //lodo IÍ11ico de
i111plicaçiío, a seqih·11cia d11s outras detemli1111çiies le/llpomis da experiL·11cii1 histôrirn. De s11íd11, 11
preteridade, isol11d11 pel11 operaçiio historiogriífirn, é posta nnfase di11létirn co//1 afút11rid11dc que
11 011/ologia pmnw,•e 110 lugar de destaque. Pode-se, todauia, resistir à suges/1fo de que a orie11/11-
çi/o p11m o jitt11ro seria l/l{1ÍSji111d111ue11tal, 011, C0///0 dirc/llos depois, ///llis 1111tê11tirn e ///llis origi-
111íri11 do que a orie11taçi10 pam o passado e 11q11c/11 para o prese11/e, e111 m:iio da de11sid11de 011/olô-
gica do ser-p11m-11-111ortc que 111ostmre/llos estar estreit11111rnte ligado à di/llcllsiio do (11/11ro;
si111ctric11111e11/e, pode-se resistir 11 te11dfocia 11 red11:ir II relaçi/o co111 o presente à preornpaçiio
11/11refi1d11: 11 surpresa, o sofí·i111e11/o e o go:o, e /11111bé111 a i11ici11tiu11, silo gmnde:as uotá,•eis do
presente que 1111111 teoria d11 açi/o e, por i/llplirnçiio, u11u1 teoria da /zist1íria deue/ll !euar e111 conta.
Quarta co11sidemçiio: a/é/li da IIOZ'll 1111111eim de ordenar 11 tripartiçiio da experÍL'11cia le/llpo-
m!, Heidegger prop{ie u11111 hiemrq11i:açiio origina/ dos //lodos de /e/llpomliwçiío que ,•11i 11/Jrir
perspecliZ'lls i11édit11s 110 co11_fÍ'lJ11l0 entre a filosofia e a episle/llologia da história. E/li Ser e Tem-
po, lnss títulos si/o d11dos aos graus dessa /ziemrq11i11 i11tcm11: a te111pomlicillde propriill11e11/e
dita, eu diria II te111pom!idade f11nda/llenta!, i11trod11:id11 pela orie11l11çi/o para o futuro, e que
,•en·111os especificada pelo ser-pam-11-1110rtc; 11 historicidade, i11twdu:ida pela considemçiio do
inten•a/o que se "estende" - 011 se estica - e11/re 1111sci111e11l0 e 111ortc e onde preu11/ece, de cer/11
1111111eim, a rtjátsncia ao passado que a história e, 1111/es dela, 11111e111ôri11 priui!egia/ll; a i11tmte111-
pom!id11de - 011 scr-no-te111po -e111 que prcdo/llina a preoc11paçiio que nos torna depc11de11/es,
110 presente, das coisas presentes e 1111111eiâPeis "/1111/0" das quais cxisti/llos no 11111rnio. Co/llo se
,'l', certa corrclaçi/o se es/11/Je!ece entre os /n's 11íPeis de lc/llpom/i:11ç1fo e a preZ'llhs11cia altenwda
das /r(>s instâncias do futuro, do p11ssado e do presente.
E111 uirtude dcss11 corre!açiio, pode-se espemr que o confronto entre a 011/0/ogia do ser histó-
rico e a epistc1110/ogia d11 historiogmfia se conce11/re 110 segundo nh•e/, co1110 sugere o feri/lo Ges-
chichtlichkcit, a este atribuído: a p11fm,m é constrnída co111 /,11sc 110 subs/1111/iuo Geschichte,
"história", atmués do adictiuo gcschichtlich, histórico. (No 1110111ento opor/11110, disC11lirei a
tmd11çiio dessas palaums-clwue.) Om, que o confronto anunciado possa, contudo, se estabelecer
desde o nível da te111pomlid11de f11nd1111le11ta!, é o que afinn11rei dentro de instantes. M11s 11ntes
de tudo, quero 11/1rir 11 disC11ssiio que pcr/1/earâ todos os níucis de 111uílise. E/11 /mia da n11/11rc:11
do //lodo de derimçiio que prl'sidc a tr1111siç110 de 11111 nfr,e! ao outro. Heidegger camcteri:11 esse
111odo de dcriI,açiio pelo gm11 de 1111/enticidadc e de origi1wricdade que ell' , 1t1 decrescer de 1m1
níuel ao 011/ro, à /1/cdida que nos aproxi11w11ws da csfem de 11/mçiio d11 conccpç1fo "u11lg11r"
do tc111po. Ora, o que se c/11111111, aqui, de 11utn1ticilfadc llifo te1n critáio de inte!igi/Jilid11de: o
11u/11ntico fala de si e se .(11: reco11hccl'/' co1110 /11/ por aquele que 11 ele se dedica. É 11111 tem10
auto-refác11cia! no disC11rso de Ser e Tempo. 51111 i//lprecis110 se iguala apenas 11q11e/11 que
af1'/11 outros ter/1/0S do uornb11/ário hcidcggcri11no: 11 rcso/11çiio, ter/1/o si11g11!11nnente associa-
do 11 "antecipaç1fo", e que niío CO//lpor/11 nc11/nm111 dctenninaç,fo, ncnlumu1 /1/ilrrn prefáe11cia!
co11ccme11/c 11 11111 projeto qualquer de rea!i:aç110; 11 co11sciL•11cii1 co/1/o c/11111wdo de si a si, se///
indicaçiio rc/11/i,•11110 /,c111 011 ao 11111/, ao pcr/1/itido 011 ao proibido, à obrig11çiio 011 à proi/,içiio. De
A ML'vlÓRIA, A HISTORIA, O J'S(JLJICIMLNIO
po11t11 a po11t11, o llto filosófico, transido de i111gzísti11, procede do 11i1d11 e se dispcrs11 11/ls trevlls. A
11utrnticidi1de sofre desse p11re11tcsco co111 aquilo que Merle1111-Po11ty ch1111w de "ser selvagem";
por isso o discurso que e/11 engendra é co11st1111te//le11te 11111caç11do de sunu11bir 110 que Adorno
de111111ci11 co/1/o "jargiio da l111te11ticid11de". O 11cop/11111e11to do l1utê11tico co111 o originário poderia
salvá-lo desse perigo, se lltrilndsse111os à origin11ried11de outra funçiio 11/é//l d11q11ela de redobrar
l1 ll!egaçiio de 11utenticid11de. Seri11 o caso, pi1rcce-111e, se entendêssemos COI/lo condiçiio histôrirn,
segundo o que 11 expressiio sugere, 11111/l condiçiio existenciári11 de possibililillde de tocill l1 seqiil'll-
ci11 dos disrnrsos sobre o histórico em gemi, 1111 viiill cotidi111111, 1111 ficçiio e e111 histôri11. Serill
/lssi/11 existe11ci11ria//le11te justificado o duplo e111prego d11 1mlavra "histórill": co1110 co11j1111to
dos aco11teci111c11tos (dos fllfos) drcorridos, presentes e futuros, e co1110 co11j1111to dos disrnrsos
sobre rsses 11co11teci111e11tos (esses f11tos) ,w teste1111111ho, 1111 11i1rmtiV11, 1111 explicaçiio e, fi1117l-
//le11te, 1111 reprcsentllçiio Jiistorilldom do passlllto. Fazemos l1 histôri11 cf11ze1110s histôri11 porque
so111os históricos. Este "porque" é o d11 co11dicio1111Iidlllie existrnciárill. Ora, é sobre ess11 11oç110
de condici01111/úillde existe11ciári11 que calh' regular 1111117 ordc111 de deriv11çiio que 11110 se reduza
11 1111117 penill progressiva de densidade 011tolôgica, 11117s que sej11 11111rrnd11 por u11111 deten11i1111ç110
crescente do lado do contraponto episte/1/olôgico.
Essa proposiç110 re/11tiV11110 //lodo de derivaç110 de 11111 nível de te111poralid11de 11 outro co1111rn-
d11 o estilo d11 confrontaçiio, aq11i proposta, entre a 011tologi11 da co11diçiio histórica e a cpistc-
1110/ogia do co11heci111e11to histórico I', 11través deste, com a fe110//le110/ogia da /1/e//lôria. A ordc/11
seguida será aq11ela sobre 11 q11al estâ co11stnd1il1 11 teoria da temporalidade e111 Ser e Tempo:
temporaliiillde, Jiistoricidade, i11tratc//lporalid11de. Mas rnda scç110 co111port11râ d11as vertentes, a
da 111111lítica do tempo e 11 da réplica Jiistoriogrâfica.
Abrir o debate r11trefilosofi11 e história, desde o nível da le//lpomlid11de prof1111d11, pode pare-
cer inesperado. S11be-se q11c Heidegger 11iio somente pôs a ênfase principal 110 futuro, de encontro
à orient11ç110 retrospcctiVII da histôri11 e lÍll 111e111ôria, 111as colocou 11 f11t11rid11de sob o signo do
ser-p11ra-11-111ortc, s11lm1etrndo, 11ssi111, o te/1/po indefinido da 1111t11rcz11 e lÍll história à dum lei
da fi11it11de 111ort11l. Minha tese é 11 seguinte: o historiador niio fico11 sem 11oz por causa dessa
111a11cim radical de entrar 1117 prohle111ática inteira da te111pomlid11de. P11ra Heidegger, 11 morte
afeta o si-111es1110 c111 s1111 solidiio i11tra11efcrívcl e i11co1111111icâ11cl: ass11111ir esse destino é i1por o
selo da autenticidade 1111 totalidade da experiéncia, 11ssi111 colocada à so111hra da morte; 11 rcsoluçiio
n11 "1111tecip11ç110" é 11 figura revestida pl'ia prrornpaçiio confro11t11d11 110 final dos polil'rcs 11111is
próprios do Dasein. Como o historiador teria u11u1 palavra 11 dizer 11 partir desse nível c111 que 11
1111te11ticilfadc e a originaricdade coi11cide111? Tomar-se-ia ele o advogado do "morre-se" onde se
co11s11111e a retórica do in11uth1tico? Contudo, é esse ca111i11ho que se oferece para ser explorado.
Sugiro Jrnmilde111e11te 11111a leitura 11ltcrn11tiz)(1 do sentido da 111ort11/id11de, 1111 qual a refen'11ci11110
corpo próprio impi'ie o desvio pela biologia e o retomo 11 si por 11ma paciente apropriaçiio de 11111
saber tot11l111r11tc exterior da morte co11111111. Essa leitura sem prctrns110 abriria o e11111in/10 para
uma atribuiçiio múltipla do morrer: para si, para os próximos, para os outros. Entre todos esses
outros, os mortos do passado, abraçados pelo olhar retrospectivo da histôri11. Não seria entiio o
privilégio da história oferecer 11 esses ausentes da história 11 piedade de 11111 gesto de sepultura? A
equaçiio entre escrita e sep11/t11m seria proposta, assim, como 11 réplica do disrnrso do historiador
110 do filósofo (seçiio !).
É e111 tomo do te11111 da Geschichtlichkeit que o debate e11tre 011tologi11 e /Jistoriogmfia se
estreita. A 11tili=i1çi'io, por Heidegger, do próprio tem10 /Jistoricidadc i11sc1-cuc-sc n1111111 /Jistôria
se111â11tica i111111gumd11 por Hcgel e rc/0111ad11 por Diltlzcy e seu correspondrntc, o conde Yorck.
Heidegger e11/m 110 debate graças à crítica do conceito dilt/Je111mo de "conexão de uida", cujil
_fí1/t11 de filllda1ne11to 011tolôgico de111111cii1. Ele 11w1"C11 sua difiTe11ça ao colornr o _fi·11ô111e110 da
"exte11si/o" entre 11asci111c11/o e 11/orte sol, a égide dil cxpcrifocia 111ais a11h;11tica do ser-pilm-a-
11/orte. Dil /Jistoriografia de seu te111po, ele i1pe11/ls reh•111 a i11dig1;11cii1 011/olôgirn dos conceitos
diretiuos ilpromdos pelo 11eok1111tis1110. A disc11ssiío assi111 illierlil ofácce a oportunidade de pôr
à prom o sentido atrilnddo por Heidegger IÍ deril'ilç110 de u111 11h•c/ li outro da te111pora/i:açiío.
Proponho co111pe11silr li i1bordage111 e111 ter111os de déficit ontológico, ln'lll1do c111 co11sidemç110 os
rernrsos de possibili:açiío existe11ciári11 do procedi111e11/o lzistoriogrâfico que, e111 111i11/w opi11ii10,
alguns le/1/as .ftntes da análise heideggeria11i1 conh;111: a distii1ç110, 110 próprio nh•el da relaç110
co111 o passado, entre o passado decorrido, s11/1/raído a 110sso i111páio, e o passado enquanto tendo
sido, e q11e adere, nessa condiç110, a nossa existê11cii1 de preornpação; a idt;ia de tn111s111iss1fo ge-
mcio11al q11c dá à dh•idll u111i1 colomç110 ao 111es1110 te111po rnmal e institucio11al; e a "rcpetiç110",
te111a kicrkcgaardill110 por exceh;ncia, graças ao quill li história aparl'Ce 1u10 apenas co1110 ez•oca-
ç110 dos 111ortos, 111as co1110 e11ce11aç110 dos ui,•os de outrora (seçifo II).
É 110 nível da i11tmte111poralidi1de - do ser-110-/1'111po - que li 011tologia do Dascin e11co11-
tra 11 /Jistôria, não ///ais apenas e111 se11 gesto i11i111g11ml e e111 s1ui,; press11posiç{ies episft•111irns,
11111s 1u1 efetiuidade de seu tm/111/110. Esse 111odo é o 111e110s 1111th1tico, porque s11a rcfen'11cii1 às
111cdidi1S do te111po o co/orn Jlil esfera de 11/mçiío d11q11ilo q11c Heidegger considera co1110 a concep-
ção "u11lg11r" do tc111po, q11e ele reco11/Jece e111 todas as filosofias do te111po de Aristóteles a Hegel,
co11cepç110 segundo a qual o le//lpo é redu:ido li 11111/1 seqiil'ncia q11alq11er de 1110111e11/os discretos.
Entretanto, esse 111odo 11110 é dcsprouido de origi11ariedade, a ponto de Heidegger dec/aní-lo "co-
origi11ário" dos prccede11/es, porque "co11/ar co111 o te111po" se co111prernde illlles de toda e q11al-
q11er 111edida, e desrn,•oh'l' 11111 fl'ixe rntegori11l notáue/ que estrutura a rc/aç110 dc preornpaç110
que 110s liga às coisas co111 as quais nos ornpa111os atim111e11te. Essas rntegorias - datahilidade,
rnráta p1íhlico, esrn11s110 dos rit111os de uida - per111itc111 encetar u111 debate original co111 a
prâtirn lzistoriadom. Essa apreensão positim do tm/1/1/11() do lzistoriador 111e pen11itc{i1:er u11w
relei/um do conjunto das muílises anteriores, 110 ponto e111 que lzistôria e 111e111ôriil se recru:a111.
I'arcceu-111e que II ontologia do ser-lzistôrico que alm1ça a condição te111poml 110 seu triplo aspec-
to -_fítluro, passado, presente - es/lÍ lzabilitada li ilrbitrar prete11siies rh•ais à hege111onia, 110
espaçofi•c/1ado da retrospecção. De 11111 lado, a história gostaria de rcdu:ir a 111e111ôria ao estatuto
de objeto entre outros, e111 seu campo de pesquisa; de outro, a 111e111ôria co/etiua opiJC seus recur-
sos de co111e111oraç110 à e111preitada de 11e11/m/i:açiio dils sig11ificaçiies ,•ic•idas sob o o/lzar distan-
ciado do historiador. So/1 as co11diçiies de retrospecçiics comuns à história e à 111e111ôria, a quere-
la de prioridade é i11dccidii•el. É a essa própria i11decidil1i/idade que sc_fi1: justiça 111111u1 ontologia
respo11sáuel pclo seu co11tmpo11lo epistê11úco. Ao reco/ornr a rclaçiío do presente da historia co111
o passado, que outrora _fi1i, 111as não é 111ais, 11a retaguarda da grande dialética que urde a a11/c-
cipaç110 resoluta do futuro, a repetição do passado que tc111 sido, e a preornpaçifo da i11iciatii•a e
da aç110 sensata, a 011/0/ogia da co11diçiio /Jislôrirn iustifica o rnrâtcr i11dccidíue/ da relaçi/o entre
a /Jistôria e a 111c111ôria, n•orndo desde o PrellÍdio da segunda parte, consagrado ao 111ito da i11-
,,e11ç110 da escrita no Fedro de Platilo (scç110 III!.
A MFM(lRIA, A IIIST(lRIA, O FS()Ul'Cl\111 N 10
I. Temporalidade
1. O ser-para-a-morte
5 P. Ricceur, Tcm)'S ct Récit, t. 1, op, cit., pp. 86-92, primeira parte, cap. 2, § 3, "A discordância incluída".
Dava-se ênfase, naquela época, à relação difícil - talvez, não encontrável - entre o te1npo da
~1ltna e o te1npo cósmico; o tempo calendárico era proposto con10 um operador da transição de
un1 ao outro. Abre-se aqui utn outro debate, na fronteira da ontologia da condição histórica e da
epistemologia do conhecimento histórico.
6 E ainda: "Se me permitirem folar assim, vejo (Pidco) três tempos; sim, confesso (jatcorq11c), hó três
tempos".
,\ ( ll'\Illl \ll HISTllRIC,\
7 Unia rc11:,1o prt"ipria do cristianisn10 platonizante para pri\·ilegiar o presente se de\'e J. n_,fL'rt'ncia
do presente \'i\·ido na eternidade, concebido co1no uni 111111c '>fl1ll", ou seja, uni eterno pre:-.ente.
rv1<1s esse presentl' L'tl'rno n<lo contribui tanto pl1ra a constituiç,1.o do pre:-,L•nte d<.1 aln1a, quanto lhe
SL'n·e de contraponto e de contraste: nosso presente sofre por n,1o ~l'r o eterno pn:_'St.'nte; por isso
l'il' rl'quer ,1 dialétic,1 d,1s duc1s outra~ instZincia~.
timo conceito é colocado em posição secundária, mas o acesso ao nível mais radical é,
por sua vez, interminavelmente adiado no texto de S!'r e Tempo. Previamente, deve-se
atribuir seu sentido pleno ao lugar filosófico no qual a questão se coloca. Esse lugar
filosófico é o D11sei11, nome dado a "este sendo que nós mesmos somos a cada vez" (Ser
e Tempo, p. 7). Trata-se do homem? Não, se por homem designarmos um sendo indife-
rente a seu ser; sim, se este sai de sua indiferença e se compreende como esse ser para
o qual o ser está em jogo (op. cit., p. 143). É por isso que, como F. Dastur, decidi não
traduzir o termo D11sci11 111 • Essa maneira de entrar na problemática é da maior impor-
tância para nós que levantamos a questão desse referente do conhecimento histórico:
esse referente último era, na linha de Bernard Lepetit, o agir em comum no mundo
social. As escalas temporais consideradas e percorridas pelos historiadores eram re-
gradas por esse referente último. Ora, o agir é destituído dessa posição, assim como o
homem considerado no sentido empírico de agente e paciente desse agir; assim com-
preendido, o homem e seu agir pertencem à categoria de Vorlw11de11sci11, que significa
a pura e simples presença de fato da coisa. A ontologia fundamental propõe uma re-
gressão aquém dessa presença de fato, na condição de fazer da questão do sentido do
ser - que, diz a primeira frase de Ser e Tempo, hoje caiu no esquecimento - a questão
derradeira. Essa ruptura inaugural, paga pela intradutibilidade da palavra Dasci11, não
exclui o exercício de uma função de condicionalidade a respeito do que as ciências
humanas chamam de agir humano, agir social, na medida em que a metacategoria da
preocupação ocupa uma posição axial na fenomenologia hermenêutica, cujo referente
derradeiro é o Dnscin 11 • É preciso esperar o capítulo 6 da primeira seção intitulada "A
análise fundamental preparatória do D11sci11" para ter acesso à tematização da preocu-
pação como ser do Dasein. É notável que seja mais por uma afecção do que por uma
instância teórica ou prática que a preocupação se faça compreender, ou seja, a afecção
fundamental da angústia, invocada, aqui, em virtude não de seu caráter emocional,
mas de seu poder de abertura em relação ao ser próprio do Dasci11 confrontado con-
sigo mesmo. É fundamental que essa abertura seja abertura para a totalidade do que
somos, mais precisamente, para o "todo estrutural" desse ser confrontado com seu ser.
Essa questão da totalidade nos acompanhará em toda a seqüência dessas reflexões. A
possibilidade da fuga diante de si mesmo é, aqui, contemporânea da capacidade de
abertura inerente à angústia. Pode-se considerar o parágrafo 41 - "O ser do Dascin
como preocupação" - como a célula matricial dessa análise fundamental prepara-
tória. É mesmo do "todo estrutural do Dasci11" que se trata aqui (op. cit., p. 191). Já se
desenha o tema do ser adiante de si, que anuncia o privilégio do futuro na constituição
da temporalidade originária. Dessa estrutura da preocupação, a psicologia comum,
que é também a dos historiadores e a dos juízes, apreende apenas sua sombra levada
para a cotidianidade, sob as espécies da preocupação (por si mesmo) e da solicitude
10 f'rançoise Dastur, / /cidcggcr e/ /11 Q11cstio11 d11 lc111ps, Paris, PUF, 1990.
11 En1 Tc111po e 11arratiut1 Ili, dedico longas análises aos estudos preparatórios concernentes, de uni
lado, à fenon1enologia hern1enêutic~1 (op. cit., pp. 92-95), do outro, c1 posição élXia I da preocup,1çZ10
na ontologia do Dasci11 (op. cil., pp. 95-102).
,\ (ll'.IJll ·\(l IIISl(JRll \
12 Sobrl' ,1 inh.'rprctaç(l.o do Da~ciu como prL'ocupc1çJ.o (por \'olt(1 do§ -tl ), cf. F. D,1stur, l frideggL'r ct 111
1flll'~tio11 du tc111p::::., (1J1. cit., pp. 42-'.lS, e Jean Crcisch, 0//to/ogic ct ft'111pora!ift;_ E~qui~~c d'11J1c i11tcrprétatit1J1
i11ft'gmlc de 'Sci11 und 7cit'", Paris, PUF, col. "Épi ml'thL,e", 1YY--1-, p. 236 t.' seg. : "En1bor<1 pudl·~Sl'lllUS tt.'r
c1 in1prL'SStlO dl' que, con1 a pn.'ocup<lÇ,lo, a (1nalisl' t.'xish..'ncicí.ril1 ha,·ia chegado a uni porto ~t:guro,
nllo é bt•n1 a~si1n. A prL'OCtq..1,1ç<lo é n1uito n1ai-.; uni ponto de partida do que uni ponto de cht'gad<1.
Assin1, anuncic1-~L' a nt•cessidl1de [... ] de uma segunda gr,1ndl' na\·t'gaçJ.o que ocupe a ~cgunda partl'
de Sei11 11//d Z1'if: <l anlíli~l' d<1.s rc\<1Çl-)l'S entrl' Dnsi'Í11 e te1nporalidadl' que a preocupaçJ.o pt..:-rn1itl'
l'ntrl'\'l'r" (op. cit., p. ::?.-li). É a ''c1ntl'cip,1ç<io dl' ~i" l}lll' tl'lll, (1qui, u \ alor de um l'Íl'ito dl' anüncio.
;\ MUvl(lRIA, ;\ IIIST(lRIA, O FS(.)UITIMl·N 10
clara sobre os dois termos da correlação inaugural tal como formulada no título do
primeiro capítulo: "O ser-todo-possível do Dasci11 e o ser-para-a-morte" (op. cit., p. 235).
É a estrutura da preocupação que impõe, pela própria abertura, a problemática da to-
talidade, e lhe confere a modalidade da potencialidade, do poder-ser, como diz, em
resumo, a expressão C1111zsci11kii1111c11 (poder-ser-todo, ser-todo possível): por todo é
preciso entender não sistema fechado, mas integralidade, e, nesse sentido, abertura. E
abertura dando sempre lugar à ocorrência do "excedente" (ou do "sursis" -A11sst1111d,
§ 48), logo, ao inacabamento. Este termo inacabamcnto é importante na medida em
que o "para" de o ser-para-a-morte parece implicar alguma destinação para o acaba-
mento. Não há um entrechoque entre abertura e fechamento, integralidade não satu-
rável e fim em forma de encerramento? A tensão quase insuport,1vel que aflora na
linguagem à maneira de um oxímoro - o cumprimento do não cumprido - não é
estranhamente atenuada pela promoção do ser-para-a-morte que, no texto heideg-
geriarn), parece ocultar o tema prévio do poder-ser-todo? Para restituir todo seu vigor
a essa última expressão, não é preciso deixar ao poder-ser sua abertura não se apres-
sando em acrescentar: um todo? Essa adjunção aparentemente anódina encerra a pos-
sibilidade de todos os deslizamentos sucessivos: ser-todo, excedente como sursis, ser-
para-o-fim, ser-para-a-morte; além dos deslizamentos, as redefiniçôes às avessas: o
"para" de o ser-para-a-morte propõe um sentido da possibilidade - "ser para uma
possibilidade" - que se projeta como uma possibilidade fechada na possibilidade
aberta do poder-ser. A antecipação da preocupação se encontra afetada por sua refor-
mulação em "antecipação na possibilidade" (op. cit., p. 261).
Eis que a morte se torna "a mais própria possibilidade do Dasci11" (op. cit., p. 263),
a mais própria, absoluta, inexcedível, certa de uma espécie não epistemológica de cer-
teza, angustiante de tanta indeterminação. Sob esse aspecto, a passagem pela idéia de
fim, com sua polissemia bastante conhecida, vale ser enfatizada: fim que espera o D11-
scÍ11, que o espreita, que o precede, fim incessantemente sempre iminente 11. Não escon-
do minha perplexidade ao final da rclcitura desse capítulo nodal: os recursos de aber-
tura do ser possível não foram obturados pela insistência na temática da morte? A
tensão entre abertura e fechamento não é atenuada pelo reinado que exerce i11 fine o
ser-para-a-morte, tratado como ser para um possível? A angústia que põe seu selo so-
bre a ameaça sempre iminente do morrer não mascara a alegria do entusiasmo do vi-
ver? A esse respeito, o silêncio de Ser e Tempo sobre o fenômeno do nascimento - pelo
menos nesse estágio inaugural - é impressionante. Como Jean Greisch (Ontologic ct
tcmpomlité, p. 283), apraz-me evocar o tema da "natalidade" (Ccbiirtigkcit) que, segun-
do Hannah Arendt cm Co11díçiio do homem 1110da110, subentende as categorias da vita
actim: trabalho, obra, ação. Seu júbilo não deveria ser oposto ao que parece uma obses-
são da metafísica pelo problema da morte, tal como é abordado no frdon de Platão
13 Jean Cfl'isch atribui u1n lugar de honra à "definição recapitulativ;:i do possível ser-pcua-a-1norte
aut[,ntico": "~1 ,1ntecipaç<lo". Pode-se ler a n1ais vigtHOS,l defesa de u1na atitude diante da rnor-
k Sl'lnl'ihantl' àquela articulada no Scin 1111d 7cil em F. Dastur, La Mor/. E,;sai s11r /11 fi11it11dc, Paris,
H,ltil'f, 1994.
(64 a 4, 6), elogiando a "preocupação do morrer" (111c!ctl' tou t/11111ato11)7 Se é n'rdade
que a banalização do morrer, no que diz respeito ao "se" (apassivador), equi\'alc à es-
quiva, a obsessão angustiada não equiYale à obturação das resen'as de abertura do ser
possível? Não seria então necessário explorar os recursos da experiência do poder-ser
aquém de sua captura pelo ser-para-a-morte? Não é preciso então ouvir Spinoza: "O
homem livre não pensa em nada menos que na morte e sua sabedoria é uma meditação
não da morte, mas da Yida" (Élirn, IV Parte, Proposição 67)7 O júbilo fomentado pelo
desejo - que assumo - de permanecer \'ivo até,,, e não pela morte, não faz sobres-
sair, pelo contraste, o lado existencial, parcial e inelutavelmente fragmentário da reso-
lução heideggeriana diante do morrer?
Com base nessa perplexidade, proponho explorar duas pistas que, cada uma a seu
modo, preparam um diálogo, talvez inesperado, entre o filósofo e o historiador a res-
peito da morte,
Primeiramente, é à idéia da morte como possibilidade íntima do mais apropriado
poder-ser que eu gostaria de opor uma leitura alternativa do poder morrer, À espécie
de curto-circuito que Heidegger opera entre o poder-ser e a mortalidade, cu subs-
tituiria o longo desvio que segue, De fato, parece-me que falta um tema na análise
heideggeriana da preocupação: o da relação com o próprio corpo, com a carne, graças
à qual o poder-ser reveste a forma do desejo, no sentido mais amplo do termo que in-
clui o co11atus, segundo Spinoza, a apetição, segundo Leibniz, a libido, segundo Freud,
o desejo de ser e o esforço para existir, segundo Jean Nabert Como a morte Yem se
inscrever nessa relação com a carne 7 Começa aqui o longo desvio, Aprendo a morte
como o destino inclulch'el do corpo-objeto; aprendo-a pela biologia confirmada pela
experiência cotidiana; a biologia me diz que a mortalidade constitui a outra meta-
de de um par, do qual a reprodução sexuada constitui uma metade, Considerar-sc-,'í
esse saber como indigno da ontologia em razão de sua factualidade, de seu caráter
empírico? Relegá-lo-emos ao império da Vorlza11dc11'1cit ou da Z11/11111dc11/1cit, entre as
coisas à mão ou ao alcance da mão? A carne confunde essa separação dos modos de
ser, Esta somente prc\·aleceria se esse saber objetivo e objeti\'arüe da morte não fosse
interiorizado, apropriado, impresso na carne desse ser Yivo, desse ser de desejo que
somos, Uma vez quL' esse momento de distanciamento é sobrepujado pelo momento
de apropriação, a morte torna-se suscetÍ\'el de se inscrcn'r na compreensão de si como
morte própria, como condição mortaL Mas a que preço' A biologia ensina apenas
um "é preciso" geral, genérico: porque somos essa espécie de seres vivos, precisamos
morrer, existe, para nós, o "morrer", Mas, mesmo interiorizado, apropriado, esse sa-
ber continua heterogêneo ao desejo de \'i\'er, ao querer \'i\'er, essa figura carnal da
preocupação, do "poder ser um todo", É somente ao final de um longo trabalho sobre
si que a necessidade totalmente factual de morrer pode se com,erter, certamenk', não
em poder-morrer, mas em aceitaç.10 do ter que morrer, Trata-se, nesse caso, de uma
"antecipação" de um gênero único, fruto da sabedoria, Em último caso, numa certa
perspectiva, amar a morte como uma irmã, da mesma maneira que o pol'crcllo de As-
,\ MIM(lRIA, A IIIST<lRIA, o l"S(_)Ul:Cl\11:, ro
sis, continua sendo um dom que depende de uma economia inacessível, até mesmo a
uma experiência existencial tão singular quanto o estoicismo aparente de um Heideg-
ger, a economia que, no Novo Testamento, é denominada agapc. Se persistirmos em
distinguir o existenciário originário da variedade dos posicionamentos existenciais,
decorrentes de tradições culturais ou de experiências pessoais distintas, o descompas-
so subsiste nesse nível originário entre o querer viver e o ter que morrer; este último
faz da morte uma interrupção, ao mesmo tempo inelutável e aleatória, do poder-ser
mais originário'". Acabar com esse descompasso pela aceitação continua a ser uma
tarefa à qual todos nós estamos submetidos, e que enfrentamos com mais ou menos
sucesso". Porém, mesmo aceita, a morte continua assustadora, angustiante, em razão
de seu caráter radicalmente heterogêneo a nosso desejo, e do custo que representa sua
acolhida. Talvez não tenhamos mesmo alcançado nessa primeira pista - o caminho
da exterioridade e da factualidade - a morada da inimizade de onde a morte procede,
e que só será reconhecida se seguirmos a segunda pista.
O desvio proposto por essa segunda pista não é mais nem o da exterioridade, nem
o da factualidade, mas o da pluralidade. Que significa a morte quanto à nossa maneira
de ser entre os outros humanos - quanto ao inter-esse que Heidegger declina no voca-
bulário do Mitscin? Neste último, é surpreendente que a morte de outrem seja conside-
rada uma experiência inadequada à procura de radicalismo inscrita na angústia expli-
citada, no plano do discurso, pelo conceito de ser-para-a-morte. Que a inautenticidade
espreita a prova da morte do outro, é indubitável: a confissão secreta de que a morte,
que levou nosso próximo mais querido, de fato nos poupou, abre o caminho para uma
estratégia de evitamento, a qual, esperamos, também nos poupará o momento de ver-
dade do face a face com nossa própria morte. Porém, a relação de si consigo mesmo
tampouco está livre de astúcias igualmente dissimuladas. O que é mais importante
sondar são os recursos de veracidade contidos na experiência da perda do ser amado,
recolocados na perspectiva do difícil trabalho de apropriação do saber sobre a morte.
No caminho que passa pela morte do outro - outra figura do desvio-, aprendemos
sucessivamente duas coisas: a perda e o luto. Quanto à perda, a separação como rup-
tura da comunicação - o morto, aquele que não mais responde - constitui uma ver-
dadeira amputação do si mesmo, na medida em que a relação com o desaparecido faz
parte integrante da identidade própria. A perda do outro é, de certa forma, perda de si
14 Co,n esse propósito, podc1n-se PVOC<H as contundentes obsen'<lÇÜe~ de Sirnont' Wcil sobre odes-
tino e a infelicidade. É scn1pre a despeito de urn destino contrcírio que é preciso viver e an1ar.
Simone Weil, CE111'rcs, Paris, Callimard, col. "Quarto", 1989, "Malheur l't joie", pp. 681-784.
15 Relci,1-se, em benefício dessa sabedori,1, o capítulo XX do Li\'ro Idos f.11s11ios de Mont,iigne: "Que
filosofar, é aprender a 111orrcr". Co1no un1 inin1igo que não se pode evitu, "aprendzimos a supor-
t~í-lo sen1 recu<.1r e a cornbatê-lo. E para con1eçar a suprin1ir-lhe a n1aior vl1ntagen1 que ele tl'1n
sobre nós, ton1eInos uIna direçJo totaln1ente contrária J habitual. Suprin1an1os sua estranhez;i,
pratiquen1os e <1costume1no-nos coIn ele. Nã.o tenha1nos nada tão constantemente na cabeçl1 corno
a n1orte. J\ cada instante, representemo-la l'm nossa irn;:iginaçã.o e em todos os aspt'ctos". E <lind,1:
"Quc1n l1prendeu a n1orrt.'r, desaprendeu a servir. () saber 111orrer nos libera de toda sujL•içzio e
opressJo" (/.cs Essais, ed. dl' Pinrc Vilky, P<1ris, Quadrigl', PUF, 1992).
,\ l l l ' . l l l l \tl 11/o/URIC,\
mesmo e constitui, assim, uma etapa no caminho da" antecipação". A etapa seguinte é
a do luto, evocada várias \·ezes neste lino. No final do mo\·imento de interiorização
do objeto de amor perdido para sempre, delineia-se a reconciliação com a perda, no
que consiste, precisamente, o trabalho do luto. Não podemos antecipar, no horizonte
do luto do outro, o luto que coroaria a perda antecipada de nossa própria \·ida 7 Nesse
caminho da interioriLação redobrada, a antecipação do luto que nossos próximos terão
de fazer, em relação ao nosso próprio desaparecimento, pode nos ajudar a aceitar nos-
sa morte futura como uma perda com a qual procuramos nos reconciliar antecipa-
damente.
É preciso dar mais um passo e recolher uma mensagem de autenticidade da morte
de todos esses outros que não nos são próximos? É chegado o momento de desem·ol-
\·er, mais uma vez, a tríade do si, dos próximos e dos outros, como se tentou por oca-
sião do problema de atribuição da memória'". Espero que esse novo desdobramento
nos abra a problemMica da morte em história que é, aqui, o nosso alvo. Vai-se muito
depressa, em minha opinião, quando se atribui ao "se" (apassivador) a soma das rela-
ções autênticas. Embora a idéia de justiça, evocada por ocasião do pretenso dever de
memória, se refira à posição do terceiro nas relações inter-humanas, a morte de todos
esses outros encerra um ensinamento que nem a relação de si para si, nem a relação
com os próximos poderiam dar. A perda e o luto revestem, no nível considerado banal
do "se" (apassi\·ador), formas inéditas que contribuem para nossa mais íntima apren-
dizagem da morte. De fato, existe uma forma de morte que só se encontra em estado
puro, por assim dizer, na esfera da existência pública: a morte violenta, o assassinato.
Não se poderia fazer economia desse nm·o desvio, que jcí é um desvio pela história,
mas também desvio pelo político. O medo da morte violenta, como se sabe, é conside-
rado por Hobbes como uma passagem obrigatória em direção ao contrato celebrado
entre todos os membros de uma comunidade histórica a favor de um soberano não
contratante. Ora, a morte violenta não poderia ser apressadamente incluída entre as
coisas dadas e manejá\·eis. Ela significa alguma coisa essencial concernente à morte
em geral e, em última instância, à nossa morte. A morte dos próximos, sobre a qual
preferimos meditar, é, na verdade, a morte "suave", ainda que o horror da agonia a
desfigure. Mesmo assim, ela equivale à libertação, ao apaziguamento, como o rosto do
defunto permite \'er, segundo o desejo secreto dos sobreviventes. A morte violenta não
se deixa domar tão facilmente. O suicídio também, enquanto assassinato de si mesmo,
quando nos afeta, repete essa dura lição. Que lição? Que, talvez, toda morte seja uma
espécie de assassinato. É a intuição explorada por E. Levinas em algumas páginas con-
tundentes de Totalill' e/ l11fi11i 1~. O que o assassinato - ele\·ado à categoria de paradig-
ma fundador pelo assassinato cometido por Caim contra seu irmão Abel - revela, e
que a simples desaparição, a partida, a cessação de existir da morte dos próximos não
diz, é a marca do nada, pelo viés do aniquilamento visado. Só a "paixão do assassi-
nato" declara essa marca 1". Levinas vai direto à resposta ética que essa paixão suscita:
a impossibilidade moral de aniquilar inscreve-se, doravante, em todos os rostos. A
interdição do assassinato replica a uma possibilidade assustadora e se inscreve nessa
própria possibilidade. Mas, além dessa grande lição que inaugura a entrada na ética,
o assassinato, que é fundamentalmente morte infligida a outrem, reflete-se na relação
de mim mesmo com minha própria morte. O sentimento de iminência, que precede
todo saber sobre a morte, se dá a compreender como iminência de uma ameaça vinda
de um ponto desconhecido do futuro. Ulti111a latet, repete E. Levinas: "Na morte, estou
exposto à violência absoluta, ao assassinato na noite" (Tota/ité ct Infini, p. 210). Uma
inquietante malevolência do Outro aproxima-se de mim - contra mim: "como se o
assassinato, em vez de ser uma das oportunidades de morrer, não se separasse da es-
sência da morte, como se a aproximação da morte permanecesse como uma das possi-
bilidades da relação com Outrem" (op. cit., p. 211). Silencioso sobre o eventual pós-
morte ("nada ou recomeço? Não sei" [ibid.]), E. Levinas é claro e enfático sobre o antes
da morte, que só pode ser um ser-contra-a-morte, e não um ser-para-a-morte. A vida?
Um projeto em sursis sob o horizonte de uma "pura ameaça e que vem de uma abso-
luta alteridade" (ibid.). Medo, não do nada, mas da violência e, nesse sentido, "medo
de Outrem" (op. cit., p. 212)1''. Ao ser-para-a-morte heideggeriano, Levinas opõe um
apesar-da-morte, um contra-a-morte que abre um espaço frágil de manifestação para
a "bondade liberada da gravitação egoísta" (op. cit., p. 213) 2n.
Além do ensinamento ético - e também político 21 - que Levinas retira dessa me-
ditação sobre a violência da morte, gostaria de evocar uma das figuras de que pode
revestir-se o luto que convém à perda, à qual "a paixão do assassinato" dá sua incisivi-
dade. Essa figura nos leva a caminho de nossa próxima reflexão sobre a morte na his-
tória. O que poderia ser, de fato, uma visão apaziguada, digna, da ameaça significada
pela morte violenta? Não seria a banalidade assumida do "morre-se"? Essa banalidade
não pode recuperar sua força de atestação ontológica? Seria esse o caso, se pudéssemos
contemplar a ameaça de interrupção de nosso desejo como uma igualização eqüitati-
va: como todo mundo, antes de mim e depois de mim, tenho de morrer. Com a morte,
acaba-se o tempo dos privilégios. Não é a mensagem que transmite a sóbria narrativa
18 "A identificação da morte com o nada convém à morte do Outro no assassinato" (ihid., p. 209).
19 "Esse nada é um intervalo alé·m do qual jaz uma vontade hostil" (ihid., p. 212). "Expostos a uma
vontade estrangeira" (ibid.), nós o somos.
20 "O Dl'sejo no qu,11 se dissolve a vontade a1neaçada n5o defende n1ais os podt'res de u1na vontade,
n1CTs teIn seu centro fora dela n1csrnd, con10 a bondade cujo sentido d n1orte nJo pock• retirar" (ibid.,
p. 213).
21 Leviní:.lS gosta de concluir essas páginas so1nbrias evocando "a outra oportunidade que a vontade
c.1pt,1 no tt'mpo que lhe dPixa Sl'U SL'r-contra-a-1nurte: a fundação das instituições l'TT1 que a vonta-
de, através d<1 n1orte, g,1rante uni inundo sensato, n1as in1pet--sonl" (i[,id.). ()s dizen's sobre ,1 justiça
L'nl Autrc111c11t q11'{'trc ou 1111-dclà de /'cssc11cc, La HayL', Nijhoff, 1974, confercn1 certa densidüde ,1 esse
l'Sboço f<ipido de uma polític,1 da bondade à sombr,1 d,1 morte.
da morte dos Patriarcas nessa Tora, cara a E. Levinas: "ele se deitou com seus pais",
"ele se reuniu aos seus"''?
2. A morte em história
O historiador está condenado a ficar sem voz diante do discurso solitMio do filó-
sofo?
A tese desta seção é que, apesar dos propósitos explícitos de Heidegger e, sobre-
tudo, apesar do radicalismo do tema da temporalidade fundamental e de seu distan-
ciamento de toda temática historiográfica, um diálogo entre o filósofo e o historiador é
possível no próprio nÍ\ el instituído por Heidegger, o do ser-para-a-morte.
Além do desdobramento desse tema, indicado pelas leituras alternativas sugeridas
de imediato, o texto de Ser e Tempo propõe outras aberturas em direção a um espaço
comum de confronto.
Primeira abertura: o grande capítulo sobre o ser-para-a-morte é seguido de urna
meditação dedicada ao terna do Gc,uissc11 (termo traduzido, aproximativamente, por
"consciência moral"). Ora, esse conceito é imediatamente associado, em Heidegger,
ao de atestação (Bc:c11g1111g). A atestação é o modo veritatin) sob o qual o conceito de
poder-ser-um-todo e o de ser-para-a-morte se fazem compreender. A esse respeito,
pode-se falar de atestação no futuro, de atestação da própria futuridade da preocu-
pação em sua capacidade de "antecipação". Mas, na verdade, a atestação tem como
contraponto integral a condição histórica desdobrada em seus três êxtases temporais.
Aliás, é possível manter o testemunho, tal corno o encontramos na presente obra'',
sob suas formas retrospectivas, na vida cotidiana, no tribunal ou em história, corno
correlato, no passado, da atestação que trata do poder-ser apreendido sob a figura da
antecipação. O papel de possibilitação, atribuído à rnetacategoria da condição histó-
rica, tem a oportunidade de se exercer com a correlação entre atestação no futuro e
atestação no passado. Ao que é preciso juntar a atestação no presente sustentado pelo
posso, modo verbal de todos os verbos de ação e de paixão que, em Si mesmo como um
outro, descrevem o homem capaz: capaz de palavra, ação, narrativa, imputação; essa
certeza no presente enquadra a atestação no futuro e o testemunho no passado. A força
do texto de Heidegger é permitir à atestação se expandir do futuro da antecipação para
o passado da retrospecção.
Segunda abertura: a ontologia do poder-ser /poder-morrer não deixa a preterida-
de numa relação de exterioridade ou de polaridade adversati\·a, como é ainda o caso
dos conceitos de horizonte de expecta ti\ a e de espaço de experi[,ncia em Koselleck e
22 Ct'nL'Sis 35,29; -1-9,33. f\lontciigne n<lo ignorou L':--.sa sabedoria. /\.nterinrn1L'!Ül', ouvin10-lo falar d.i
mortl' con10 do inimigo con1 o qu<1l de\ L'n1us no:-- aco~tun1ar É preci:-.o OU\ i-lu fl1J:L'r-lhe justiça: "A
igualdade é a prinu.•ira peça d,l eqüidade. Quen1 pode :-.e quei:-....ir de :-.cr crnnprcendido, onde todos
s,10 rnmprl'l'ndidos 7 " (f11<,1Íth, Lino 1, cap. XX.)
2~ Cf. segunda parll', cap. L pp. 170~175.
A MEMORIA, 1\ HIST{)RJA, O ES(.?lJElTv1ENH)
em nossas próprias análises; por sinal, Koselleck não deixou, como se observou mais
acima, de enfatizar seu caráter singular, como uma estrutura de fato da "experiência
da história". Cabe à "antecipação", segundo Ser e Tempo, implicar a preteridade. Mas
em que sentido do termo? Toma-se aqui uma decisão cujas conseqüências indiretas
para a história são imensas: não é como decorrido e fora de alcance de nossa vontade
de domínio que o passado é, ulteriormente, visado como "tendo sido". A esse respeito,
a decisão, de aparência simplesmente semântica, de preferir Gcwcscnhcit - qualidade
de ter sido - a Vcrg1111gl'11hcit - o passado decorrido, desaparecido - para exprimir
a preteridade, está em afinidade com o movimento que reconduz a filosofia crítica
da história à ontologia da condição histórica. Temos antecipado inúmeras vezes essa
prioridade do "ter sido" sobre o passado como decorrido, nos seguintes termos: o
"não ... mais" do passado não poderia, dizíamos, obscurecer a perspectiva historiado-
ra que dirige o olhar para viventes que existiram, antes de se tornarem os "ausentes
da história". Ora, é da maior importância que essa re-qualificação do passado seja
introduzida pela primeira vez no âmbito da análise da temporalidade fundamental, a
da preocupação (Ser l' Tl'mpo, § 65), antes de se levar em consideração o tema da his-
toricidade e o problema específico da história. O elo entre futuridade e preteridade é
garantido por um conceito ponte, o de estar em dívida. A resolução antecipadora só
pode ser um assumir a dívida que marca nossa dependência do passado em termos
de herança 24. Ora, a noção de dívida (Schuld em alemão) foi despojada anteriormen-
te, no capítulo do Gewissm, de seu aguilhão de inculpação, de culpabilidade, o que
pode parecer prejudicial no caso de um julgamento histórico sobre crimes notórios,
como aqueles evocados mais acima por ocasião, entre outras, da controvérsia dos
historiadores alemães. Heidegger teria desmoralizado excessivamente o conceito de
dívida? Penso que a idéia de falta deve retomar seu lugar num estágio bem preciso
do julgamento histórico, quando a compreensão historiadora se confronta com erros
comprovados; a noção de dano cometido contra outrem preserva, então, a dimensão
propriamente ética da dívida, sua dimensão culpável. Falaremos bastante sobre isso
no capítulo do perdão. Mas antes, é bom dispor de um conceito moralmente neutro
de dívida, que não expresse mais do que o conceito de herança transmitida e a ser
assumida, o que não exclui um inventário crítico.
Esse conceito de dívida-herança vem se colocar sob o de representância proposto,
no âmbito da epistemologia do conhecimento histórico, como guardião da pretensão
o 374 o
\ Ul'.llll \ll IIISTORll ,\
25 "Os cnncl'itos dl' "pm, ir", "passado" L' "prc'SL'ntl'" n,iscnam, prinwiranwntL', na cnmprt'L'ns,10
inauti:·ntic,1 do lL'mpn" (i/•id,, p, ,126,)
A ~11:'vl(JRIA, A HIST(lRIA, () l"S(_)UECIMFNTll
nível é tomada a decisão de opor "tendo sido" - mais autêntico - a passado "decor-
rido" - menos autêntico. O debate entre o filósofo e o historiador tem tudo a ganhar
com o restabelecimento da dialética de presença e de ausência, inerente a qualquer
representação, mnemônica ou historiadora, do passado. A própria visada do passado
como tendo sido sai fortalecida desse debate, desde que tendo sido signifique ter sido
presente, vivo, vivaz.
É nesse plano de fundo dialético que o historiador estabelece sua contribuição es-
pecífica à meditação sobre a morte.
De fato, de que modo poderíamos negligenciar o simples fato de que, na história,
só se lida com os mortos de outrora? A história do tempo presente é, parcialmente,
uma exceção, na medida em que convoca vivos. Mas é na condição de testemunhas
que sobreviveram a acontecimentos, que estão resvalando na ausência decorrida, e,
muitas vezes, na condição de testemunhas inaudíveis por parecerem extremamente
inaceitáveis, segundo os parâmetros da compreensão habitual dos contemporâneos,
os acontecimentos extraordinários que elas testemunham. Por isso, parecem mais "de-
corridos" do que todo o passado abolido. Às vezes, essas testemunhas morrem por
causa dessa incompreensão. Objetar-se-á a essa ênfase da morte em história que ela
só é pertinente numa história de acontecimentos, para a qual contam as decisões e
também as paixões de algumas personalidades marcantes; acrescentar-se-á que a jun-
ção entre acontecimento e estrutura leva a um apagamento, no anonimato, do traço
de mortalidade posto sobre os indivíduos considerados um a um. Mas, em primeiro
lugar, mesmo na perspectiva de uma história na qual a estrutura prevaleceria sobre o
acontecimento, a narrativa histórica faz ressurgir os traços de mortalidade no nível de
entidades tratadas como quase-personagens: a morte do Mediterrâneo como heróico-
letivo da história política do século XVI confere à morte propriamente dita uma gran-
deza proporcional à da quase-personagem. Além disso, a morte anônima de todos
esses homens que apenas passam pelo palco da história pergunta silenciosamente ao
pensamento meditante qual o sentido exato desse anonimato. É a questão do "morre-
se", à qual tratamos, anteriormente, de restituir sua densidade ontológica, sob o duplo
signo da crueldade da morte violenta e da eqüidade da morte que iguala os destinos.
É justamente dessa morte que a história trata.
Mas de que maneira e em que termos?
Há duas maneiras de responder a essa pergunta. A primeira é caracterizando a
relação com a morte como uma das representações-objetos, cujo inventário a nova
história se comprouve em fazer. Existe, efetivamente, uma história da morte - no Oci-
dente ou alhures - que constitui uma das mais notáveis conquistas no campo da his-
tória das mentalidades e das representações. Mas se esse "objeto novo" pode parecer
indigno de reter a atenção do filósofo, não acontece o mesmo com a morte, por estar
implicada no próprio ato de fazer história. A morte se mistura, então, com a represen-
tação enquanto operação historiográfica. A morte assinala, de certa forma, o ausente
na história. O ausente no discurso historiográfico. À primeira vista, a representação do
passado como reino dos mortos parece condenar a história a só oferecer à leitura um
.\ lll'.llll \() IIISllWll.\
26 "Michel Fouc.iult", in L'11/1sc11/ de /'fiistoire, op. (//., pp. 12:i-112. Esse pens,rnwnto do extni,,r orient,1-
ria toda a procura do sentido para essa "região onde espreita a n1orte" (a t'xpressã.o é de Foucault
ern Lcs nwts t't /e.;, choscs, p. 395). Mas " ... falar da n1orte que funda toda linguagerr1, ainda n.l.o é en-
frentar, é tah·p7 e\·itar a ,norte que (ltingL' o próprio discur~o" ((}P, L'it., p. 112). Cf. acin1c1, ~egundc1
pMte, ccipítulo 2, pp. 210-219.
27 Vale• L'nfotiLar o papel exercido na teoria geral da histl)ria pell1 históril1 especil1l dos n1ísticos nl1
obra dt..' Certt..•au. Surin estj no centro dessa história das espiritualidades apreendida~ em sua
linguc1gem (La F,1/,/e 11111,tiqne, XVI·, XVII ,i.'de, l',iris, Gallimard, 1982). :\l(·m de Surin, a "filoso-
fia dos santos" de Henri Brcn1ond cha1nnu a atençllo de Certeau, que lhe dedica, en1 L/\.l 1::--ent de
l'histoirc, un1a re~enha sub~tancial datada de 1966. (1ra, essa. "filosofia dos santos" gra\·ita en1 tor-
no de sentin1entos noturnos, tc1is con10 a "desolação", o "desespero", o '\·azio" ("Henri l3ren1ond,
historiador Lfr um sil[•ncio", in L'Absrnl de /'/ii,toire, "1'· cit., pp. 73-1ll8). O not,ín•l (• quL', pMa Cer-
teau, o passado seja, no dbcurso histórico, o que Deus l' no discurso 111ístico: clusente. (1 decorrido
é o ausente qu,1se "n1ístico" do discurso histórico. Certeilu diF "bso ocorreu t..' nZio t..•,iste n1ais".
Essa equl1çJo estlí no cerne do ensaio "I {istoire et 1nystiqut..'", publicado pela prin1t..•ira \'t'7 t..'nl
lLJ72, na Rcz'w' d'lú~t11in' de la spírit1111!1ft' (e~~e ensaio l; contt.'n1porcí.nL'O da redaçiio de "L'opt.;ration
hi~toriquL' publicado L'l11 h1irc de /'//isfl)irc, l1p. l"Íf., t. !). E~tcÍ dito claran1entl' no final do pL'rcurso,
11
,
ao abordar dS rell1çües entrl' o hit-.tórico t..' o n1ístico, qul' "l, a hipótL'~l' que forn1ou pauL1tin ..11nL'IÜL'
um itiner,\rio de histfaia no c,1mpo da litl'ratura L'spiritual do século X\'11" (L'Ah,rnl de /'/11,t,>ire,
"1'· cit., p. 167).
A MI M(ll{I,\, i\ IIISTORIA, O l:S(JLJl,lf~li'N 10
esgotar seu efeito no ato que "torna presente na linguagem o ato social de existir hoje
e lhe fornece um ponto de referência cultural" (op. cit., p. 159). Somente a autoposição
do presente social parece compensar o ato que remete o passado à sua ausência. Então,
a ausência não é mais um estado, mas o resultado de um trabalho da história, verda-
deira máquina de produzir separação, de suscitar heterologia, esse logos do outro. A
imagem do cemitério garantido ao morto surge então, naturalmente, sob a pena. Ela é
primeiramente a imagem forte da ausência definitiva dos falecidos, a réplica à denega-
ção da morte que chega até a se dissimular na ficção da verossimilhança.
Nesse momento de suspensão, o discurso de Michelet parece o da "alucinação (o
retorno, a 'ressurreição') literária do morto" (op. cit., p. 179). Resta que os rastros são
mudos, e que o único "falar ainda" é a narrativa da história: "Ela pode falar do sentido
tornado possível da ausência, quando não há mais nenhum lugar além do discurso"
(op. cit., p. 170). O tema do cemitério só faz valorizar ainda mais o da ausência: "A es-
crita historiadora dá lugar à falta, e a esconde; ela cria essas narrativas do passado que
são equivalentes aos cemitérios nas cidades; ela exorciza e reconhece uma presença da
morte no meio dos vivos" (op. cit., p. 103).
A reviravolta ocorre no próprio cerne do tema do cemitério, sob o signo da equação
entre escrita e sepultura. Esse vínculo forte manifesta-se em algumas páginas magní-
ficas de L'Écriturc de /'liistoirc 2'. Primeiramente, é em termos de lugar que se falou da
sepultura. Esse lugar no discurso tem como contraparte o lugar do leitor ao qual se
dirige a escrita da história. A passagem da sepultura-lugar para a sepultura-gesto é ga-
rantida pelo que Certeau denomina "a inversão literária dos procedimentos inerentes
à pesquisa" (L'Écriturc de /'liistoire, p. 118). Esse gesto, segundo ele, tem dois aspectos.
De um lado, a escrita, à maneira de um rito de sepultamento, "exorciza o morto intro-
duzindo-o no discurso"; mas a galeria de quadros faz isso com excelência; assim, pare-
ce confirmada a fantasia da dança macabra: "a cena apresentada aos olhos do leitor é a
de uma população - personagens, mentalidades ou preços" (op. cit., p. 117). De outro
lado, a escrita exerce uma "função simbolizadora" que "permite que uma sociedade se
situe, ao atribuir-se um passado na linguagem" (op. cit., p. 118). Uma relação dinâmica
é assim instituída entre os dois lugares, o do morto e o do leitor"</. A sepultura-lugar
torna-se sepultura-ato: "Onde a pesquisa realizava uma crítica dos possíveis presen-
tes, a escrita constrói uma sepultura para o morto. [... ] assim, pode-se dizer que ela
faz mortos para que haja vivos" (op. cit., p. 119). Essa "conversão escriturária" (i/Jid.)
leva mais adiante que a simples narratividade; ela exerce um papel performativo: "A
linguagem permite a uma prática situar-se em relação ao seu outro, o passado" (ibid.);
não é simplesmente a mera narratividade que é assim ultrapassada, mas, com ela, a
função do álibi, de ilusão realista, que puxa o "fazer a história" para o lado do "contar
28 "O lugar do morto e o lugar do k'itor", in /,'Écriturc de /'ili,;toirc, op. cit., pp. 117-120.
24 '"Marcar' um passado L, dcH um lugcu ,10~ n1ortos, n1as tambén1 redistribuir o espaço dos possí-
veis, dctcrn1inar negcltivanH..'lltl' o que deve -::.erfeito e, por conseguinte, utilizar a narratividade
que L'nterr{1 os Inortos coIno 111eio de fix<lr un1 lug<u para os ,·ivo~" (ibid., p. 119).
,\ C(l\.!Jll, \ll ll!SlllR!l \
3ll Rancic'H' cit,1 o bl'lo kxto do Journal dl' \liclwld, l'ditado por Pi,·rr,, \'ialanl'ix: "É prl'ciso ou, ir ,is
pala\'ras quL' nunca forl1n1 ditllS. [.. J EnLl.o, son1entt.', os n1ortos :-,e rl'signarJ.o ao sepulcro" {apud
J. RanciCre, Lc:-, l\Jom:-, de /'Jzi:-,toirc, op. cit., p. 128).
;\ MLM(lRIA, A HISHlRIA, () J'SQUECIMENTO
II. Historicidade
31 Deve-se também a Hegel, p,ira o melhor t' o pior, o gosto pelos termos abstratos terminados l'll1
-l,cit e -kcit. A esse respeito, o ll'rmo Ccsc'1ic!,t/ic/1kcit não destoa do leque dos ,1djctivos substantiv,1-
a esse hábil despregamento: Gesclzic/1/c - "história" - é, afinal de contas, a única pa-
lavra disponÍYel, apesar das tentatiYas de opor Gesclziclzte a Historie, e a despeito das
ambigüidades que cabe precisamente ao filósofo esclarecer. Heidegger concorda, ele
que, no início do parágrafo 73, anuncia que "nosso próximo objetiYo é encontrar o
ponto de partida para a questão ordinária da essência da história (Gcsc/1ic/ztc), ou seja,
para a construção existenciária da Gcsc/1iclztliclzkeit" (Ser e Tc111po, p. 378). São exata-
mente a pala na e a noção de história que são questionadas sob a forma do conceito de
Gcsclzic/1tlic/1kcit: a condição de ser histórico. Por isso, pareceu-me preferí\·el assumir,
na tradução em francês, as mesmas ambigüidades da língua alemã; com isso, a origi-
nalidade de Heidegger sai ainda mais fortalecida 12 .
Com o intuito de compreender melhor a ruptura que marca o emprego, por Heideg-
ger, do termo Gcsc/1iclztliclzkcit, pode ser útil retraçar breyemente a trajetória de seus
usos a partir de Hegel, que aclimatou o termo ao terreno da filosofia, até a correspon-
dência entre Dilthey e o conde Yorck (1877-1897). Heidegger interYém nesse último
estágio 11 •
A palaYra é uma criação do século XIX. Hegel imprimiu-lhe sua significação fi-
losófica 14. O termo surgiu, pela primeira \·ez, com toda sua força de significação, em
Liç{ícs sobre a história da filosofia: trata-se da Grécia antiga, "em nome da qual o homem
culto da Europa (e em particular, nós, os alemães) se sente em casa (11ci111atlic/1 i11 sci11cr
Heimat)". Mas é a própria maneira como os gregos habitaram suas cosmologias, suas
mitologias, sua história dos deuses e dos homens que deu aos próprios gregos "esse
caráter de [iyre e bela Gcsclzic/1tlic/1kcit". O nome de Mnemósine é associado a essa "se-
mente da liberdade pensante": da mesma maneira que os gregos se sentiram "em casa
dos, eles próprios originados de substantin1s simples (Lcl•c11digkcit, /1111crlicl,kcit, Otti11/111rkcit, sem
esquecer o surpreendente Stci11igkcit, que designa a pedridade da pedra 1). L. Renthe-Fink lista-os
resumidamente em Ccschid1tlicl,kcit. /1,r tcn11i11ologischcr 1111d bcgrifflichcr l/rspru11g hei Hcgl'i. Hm1111,
Vilthc111111d Yorck, Gtittingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1%-t, pp. 31)-31
32 i\.1antenho a tradução de Cc~(/liclttlid1kcit por "hi~tori,1lidade" apenas nas citaçôes das tr,1duÇÕl'~ e
dos comenUrius nos qu(1is foi foita L'~~a L'scolha.
33 Devo essa bre,·L' historia sobre os empregos do tL·rn10 Ccschichtlid1kcit a Leonhard ,·on Rentlw-Fink,
in Ccsc!iic!ltlid1kcit . ., op. l"it. Incluo tan1bén1 a grandl' n1onografia dl' Cerhard l3auer, "Cc-..,cliiclitli-
d1kcit" Wcgc 1111d lrril'Cgc ci11c, Rcgriff,, VValkr de Cruyll'r, 1%1.
1-1 Uni err1prego concorrl'ntl', que não foi abolido, dl'signa a factualidadl' dl' um acontecin1ento nar-
rado, crn particular o carátl'r não lcgendcí.rin deis narr<ltivas l'\·angélicclS. A~sin1, os exegetas fa lc1n1,
ainda hoje, da historicidadl' dl.' Jesus, sobretudo depois da quL·rcla iniciada por Dt1Yid Strauss, t'
do dest..'t1\·oh·in1cnto da Ccsdlichfr der Lc[Jc11-/c-:,u-Forsd11111s, di,·ulgada por Albert Sdn\·L it1:cr no
1
início do século XX. É lll'S~l' ~cntido de L1ctuc1lidadc \Trídica do-.:. acontl'cin1L'ntos que o tt.'nno
"historicid,1dL'" aptlrl'CL' cn1 1872, 11,1 condiç,1o de ncologisn10, no J)1d1l)l/1Zllirc dl' Littrl•. F,entual-
n1entc ocorrerá tc"nnbl·m ,1 oposiçZ10 de uni Cri~to gcsd1idlllid1 an ksus !11":>tori(/1!
,\ \1 UvlUR IA, A II IS !'(JRI A, () FS(Jll FC 1\11:N 1()
na própria casa", a filosofia pode usufruir, depois deles, do mesmo espírito de "fami-
liaridade (Hci11111tlic/1kcit) existente" (citado por Renthe-Fink, Gcscl,ic/1tlichkcit, p. 21).
Hegel emprega a palavra num segundo contexto, o do "momento imenso no cris-
tianismo", com "o saber que Cristo se tornou um homem verdadeiro" (segunda edição
das Liçôcs ... de Michelet). Devemos aos Padres da Igreja o desenvolvimento da "verda-
deira idéia do espírito sob a forma determinada da historicidade ao mesmo tempo"
(citado por Renthe-Fink, op. cit., p. 21).
É notável que seja sob o duplo signo da Grécia e do cristianismo que o termo histo-
ricidade tenha entrado no léxico filosófico. Com o primeiro emprego~ e passando por
Mnemósine ~, não se está longe do elogio que é feito na Fc110111c110/ogi11 do espírito da
religiosidade estética que marca a interioridade (Eri1111crung) mnemônica ~ a Eri1111c-
n111g dos gregos. Quanto ao segundo emprego, uma transição análoga, pela memória,
faz parte da mais antiga tradição do cristianismo e de sua instituição ("Fazei isso em
minha memória'')1'. Resta, contudo, que Hegel não empregou o termo historicidade
fora dessas duas referências a dois momentos cruciais da história do espírito"'. Na
verdade, é o termo Gcschic/1tc ~ repetido pelo termo Ccsc/Iic/1tlic/1kcit ~ que, desde
Herder, Goethe e os românticos alemães, carrega a marca de profundidade e de gravi-
dade que assumirá o termo historicidade. Só a exemplaridade desses dois momentos
fundadores da história do espírito permite, retrospectivamente, creditar ao emprego
hegeliano do termo historicidade a mesma capacidade de fundação. Afinal de contas,
a história significativa, para Hegel, é a do espírito. E o problema que ele transmite a
seus intérpretes e a seus sucessores é o da tensão entre verdade e história. Como pode,
pergunta o filósofo, o espírito ter uma história? Pelo caráter epocal da questão, a his-
tória filosófica já fez secessão em relação à história dos historiadores. A factualidade
perdeu todo interesse filosófico; foi reduzida a mera narrativa.
A obra imensa, difusa, inacabada de Dilthey constitui o elo decisivo na história dos
empregos do termo Gcschiclztlichkcit. Mas ele só se presta a ocorrências raras compa-
radas com o emprego maciço de Lcbc11digkcit, "sentido da vida". É a correspondência
com Yorck que o levará ao primeiro plano. Em compensação, o termo Ccschichtc é oni-
presente. Ele está no âmago do projeto de fundação das ciências do espírito em pé de
igualdade com as ciências da natureza"· O espírito é histórico de ponta a ponta.
A grande problemática da !11/roduçiio às cÍl~11cias do cspírito1H, cuja primeira parte, a
única totalmente acabada, foi publicada em 1883, é a defesa da autonomia, da total
:lei Daniel Marguerat e ]l'an Zumstpin, L11 M1'11wire et /e Te111ps. Md,mges olferts tÍ l'ierre Bo111iard, Ceni.'ve,
Labor et Fides, Le monde de la 13iblc no 23, ,ivril 1991.
3h Não é de surpreender que Schlt,_,iennacher se tenh.i erigido crnno 1nediador entre esses dois "n10-
n1entos" exe1nplares.
:17 O adjetivo gcscliiclitlicli é antagônico .:io termo liistoric/1 desdl' o enunciado do programa de uma
"crítica da razão históric{1" (/ristorisch). Sur /'d11dc de /'ltiMoirc dcs scic11ccs luu1taincs, socialcs ct poli-
tiques (1875), trad. fr,rnc. de Sylvie Mesure i11 Dilthey, CEuz,rcs, t. /, Critique de la raiso11 liistorique.
/11troductio11 a11X scie11ces de /'esprit, I'.1ris, Éd. du Cerf, 1992, pp. 43-142.
38 Traduzido e apresentado por Sylvie Mesure', ibid., pp. 145-361.
\ l (l'\[)ll, Íll l[[S[llRll \
sctc11/1117110s"" (1903). Não é por acaso que, no decorrer da correspondência com Yorck,
19 En1 relação an tern10 "cit,ncias do e~pírito", LJilthey concorda que ele n<lo dispôe de urna denon1i-
naçclo zidcqu,llic1; na falta de cois,1 111clhor, adota o tt.'rn10 introduzido L'I1l alen1ão para traduLir
(18-+9) .i exprl'Ssi'io nwrt1I s(ic11C<'S na Lôgict1 de John Stuart Mill (18-+3),
-+il Dilthev, L'Édificatio11 d11 n1011dc liisloriq11c d1111o lcs scic11ccs tf,, /'cs11nt, traduzido l' ,ipresl'ntado por
S,frie Mesure, i11 Dilthe,,, Cf11,'rcs, t, Ili, Paris, Éd. du CPrf, IY88,
-+l Nun1c1 "Ad\·ertl•ncia do tradutor", Syh·iL' t\.k•surl' observa: "11ts11111111c11l1tu1s:, verdadL'ira cru;: de
qu,1lquer traduçc"w de Dilthey, é tradu7ido na n1,1iori(1 das \"L'/L''.:-, por "conjunto", n1as a palcl\·ra
significa algun1a'.:-, u.'?l'S tan1bl'tn "estrutura", "'.:->i'.:-,ten1c1", "coen:•ncia" ou "contexto". Hcd,'ufu11gs:11-
11
::;,1111111c1ll11rng, "conjunto signific1ti\'0 dl'::-.igna urn conjunto '.:->ignificantc, ao n1esn10 ten1po, cun10
,
totalidadl' e em Sl'Us l'knwntos" (L'Édi{i(11ti,,11 , ,, ,,p. (i/,, pp. 27-28). Fm sua tradução de Ser e frn1po,
E. l\llntineau tradlu L'h·n:::.:11so1/l111t'l!l11111g por "eJl(.::.ldL'<ll1ll'nto da \·ida" (op. cit., p. 173). Podt>-'.:-,l'
di/L'r tan1bén1 "cone,<lo da \'ilic1", p(Ha rl''.:-,L'n·ar ao pL1no da nl1rrati\·c1 a noção de "coert•ncia nar-
rati\',1"
-12 lm Ontologic cf Tc111pumlifr, Jean Creisch n .'lllt'tl'
. (1 dul1s passagL·n::-. ::-,ign ificati\·a~ de L' FdUú-at 1t111.
"Todas L'Ssas catl'gurias da \·ida L' da históri-1 -..<lo forn1l1s de enunciados qul' / .. ] rcccbt•n1 unia l1pli-
caçào univt:.'r~,ll no don1ínio dc1~ cil•ncia::-, do L'::-,pírito. C)s enunciado'.:-- pnn l•n1 da própri(1 \·i\ l ncia" 1
Assim 0 que foi compreendido o teor histcírico desses conjuntos. A obra de Hegel e de SchleiPr-
1nacher consiste e1n penetrar na. sisternaticidade abstrata desses conjuntos, tomando consciência
de sua historicidade. A eles se aplicará o n1étodo con1parativo, e serão analisados sob o ângulo
de seu desenvolvimento histúrico. E <1ue grupo de homens l'Stava aqui trabalhando"' (/bid., p. 33.)
O breve discurso termin;.1, contudo, con1 uma nota inquieta: "A visão histórica do mundo liberou
o espírito hun1ano dos últimos grilhões que as ciências da natureza t' a filosofia ainda não ron1-
peran1, 1nas onde estão os meios que permitctn supcr,1r a anarquia das convicções que an1eaç(1
se propc1gar? Trabalhei toda n1inha vida par;i resolv<..'r probk•tnas rcÍ<..'rentes Jquele que acabo de
l'\'Oc,1r. Vejo o objetivo desse esforço. Sl' ficar no meio do can1inho, espero que n1eus jovens con1-
p,1nheiros de estrada, n1eus discípulos, sigatn ,lté o fitn" (ibid., p. 16).
-Fi /\ correspondência l'ntre Dilthpy l' Yorck pode Sl'r lida i11 Wilhem Dilthl'y, l'ililosopllÍc 1111d Ccis-
/,•s11•issc11sclrnji, Lhtchrl'ilw, t. 1, 1923, partl' 1.
,\ C(l'.llll \ll HISf\lRllA
-fh O part1grafo 72, que inaugur,1vc1 o conjunto das ant1lisl'~ intitulad,1s con10 ,1 historicidadp-hi~to-
ri,1lidade, conlL'Çll pell1 t:xpress,l.o de um "gr,1nde cscrüpulo": "(_J todo do D11sci11 dl'i,ou-SL' dl' bto
;\ \;ln,t(lRIA, ;\ 111,IORI;\, ll t:S(.)UITIMI NTll
entre os dois, o intervalo que Heidegger denomina "extensão" (Ausdc/1111u1g, op. cit.,
p. 373). E ele confessa que esse entremeio, no qual o D11sci11 continua a se manter, "pas-
sou despercebido na análise do ser-todo" (ibid.). Cabe notar que, apesar de ter intitu-
lado o capítulo com o termo "historicidade", Heidegger não tenha iniciado com ele
a confrontação com Dilthey, mas com o tema da "conexão da vida", cujo contexto
sistcmMico foi reconstruído acima. E é cm algumas linhas que ele se despede do con-
ceito diltheyano: por um lado, ele se dissolveria numa seqüência de vivências que
se desenvolve "no tempo", o que o remete ao estágio seguinte de derivação, o da in-
tra temporalidade; e por outro lado, o que é mais grave, o "preconceito ontológico"
que guia a caracterização do encadeamento em questão localiza-o, sem reserva, "em
cada agora", na região ontológica do "ser-à-mão" e colocando-o desse modo sob a
dominação do conceito vulgar do tempo que puxa para baixo a dialética descendente
da temporalidade. É impossível, proclama Heidegger, conduzir sobre essa base defi-
ciente "uma análise ontológica autêntica da ex-tensão do Dasci11 entre nascimento e
morte" (op. cit., p. 374). Tem-se, então, a tese segundo a qual somente o pensamento do
ser-para-a-morte é suscetível de dar um suporte ontológico à idéia de intervalo (que
Dilthey nunca considerou), sob a condição complementar que o nascimento seja, por
sua vez, interpretado como o outro "fim", simétrico do fim por excelência; pode-se
então dizer que o D11sci11 existe "nativamente" como se diz que existe "mortalmente".
Ora, o que é o intervalo, senão a preocupação? "Enquanto preocupação, o Dasci11 é o
entremeio" (op. cit., p. 374).
Em nenhum lugar, talvez, se faz sentir com mais veemência a ausência de uma
reflexão sobre a natureza humana que permita designar a natalidade como condição
de jâ estar lá, e não apenas como acontecimento do nascimento, falsamente simétrico
àquele, ainda não decorrido, da morte.
Não obstante esses limites iniciais, a noção de extensão, ou melhor dizendo, de
alongamento, é rica em harmônicos suscetíveis de alimentar o debate com o historia-
dor. Três noções são propostas: a de motilidade, que expressa a mutabilidade quali-
tativa e dinâmica da existência; a de permanência, que dá um toque temporal à idéia
da manutenção do si (uma ani'ilise anterior havia reconhecido nela a determinação do
"quem" do Dasci11); enfim, a de "proveniência", que reinterpreta de maneira existenciá-
ria o antiqüíssimo termo Gcsclzclzc11, enfatizando o aspecto de operação temporalizado-
ra incrente à idéia de extensão. Assim, encontra-se ocupado o lugar deixado vazio, no
plano ontológico, pelo conceito diltheyano de conexão da vida. "A questão do 'enca-
deamento' do D11sci11 é o problema ontológico de seu provir. A liberação da estrutura
de proveniência e de suas condições temporal-existenciárias de possibilidade significa
a obtenção de uma compreensão ontológica da historialidade" (op. cit., p. 375).
levar, do ponto dl' vista do seu ser-todo autl•ntico, à prl•-ziquisiçi.lo da anillisc existcnciária? Sen1
düvidél, l' possível que o questionc1n1ento ,1nterior fl'ic1tivo à totalid,1de do Oosci11 possuc1 sua ver-
dadt.'iri.l univocidade ontológica; e n(l.o l' Inenos possÍ\'l'I, por outro lado, que a própriél quest.Jo
tenha enco1ltrc1do, no que concl'rne ao ser-par,1-o-fi1n, a respostzi que el,1 recl,1n1ava. Só que, entre-
tanto, a n1orte é apenas o fi1n do lJa:.,:;ci11, ou, para dizer forn1aln1ente, p)a l' apen,1s uIn dos dois fins
que circunscrevem a totalid,1de do D11sci11" (Ser e fr111po, op. cil., pp. 372-373).
\ (()'\[J[l \() [[[S[l)[\[( ,\
Ao mesmo tempo responde a Dilthev, "[ ... ] est,í decidido o lugar ocupado pelo
problema da história" (op. cit., p. 375). É not,ível que Heidegger não se rnnfronte, de
modo nenhum, com o ofício do historiador, mas com o que ele chama de "modo cien-
tífico-teórico do problema da 'história'" (i/Jid.). Trata-se, essencialmente, de tentativas
ligadas à tradição neokantiana de pensar a história, seja a partir do lugar que seu
método lhe confere na arquitetura dos saberes, ú maneira de Simmel e de Rickert,
nominalmente designados (il,id.), seja diretamente a partir de seu objeto, o fato histó-
rico. O que Heidegger considera como o fenC1meno fundamental da história, a saber, a
historicidade da existência, encontra-se irremed i,n-elmente e\·acuado pelos defensores
de um neokantismo dominante: "Como a história, pergunta Heidegger, pode se tornar
objeto possível de história?" A resposta a essa pergunta somente pode ser depreen-
dida "a partir do modo de ser do historia I e de seu enraizamento na temporalidade"
(il,id.). Heidegger pouco ,n·ança na direção que adotaremos mais adiante. A noção de
deri,·ação, tomada no sentido de grau descendente de autenticidade, suscita apenas
um recurso do menos autêntico para o mais autêntico. Quanto à possibilitação dosa-
ber histórico, limita-se a afirmar que a história-ciência se mll\'e entre as modalidades
objetivadas do modo de ser do "histórico". É possível, assim, ler às avessas uma cadeia
de relaçôes de dependência: o objeto da história - o histórico - a historicidade - seu
enrai.1amento na temporalidade. É essencialmente esse processo regressin1 que Hei-
degger opõe a qualquer tentativa de pensar a objetividade do fato histórico no âmbito
de uma teoria do conhecimento.
Para começar esse mm·imento de retorno do inautêntico ao autêntico, Heidegger
não hesita em partir das pesquisas desenn1h·idas sob o signo "dos conceitos nilgares
da história" (op. cit., p. 376). O importante, depois desse ponto de partida, é "a expo-
sição do problema ontológico da historialidade" (ilJid. ). Esta não pode ser nada mais
além do "desvendamento do que j,í se encontra velado na temporalização da tem-
poralidade" (i/Jid. ). Heidegger repete: "A interpretaç.:\o existenci,-íria da história como
ciência visa unicamente à atribuição de sua proveniência ontológica a partir da histo-
rialidade do D11,ci11" (i/,id.). Melhor dizendo: "Este sendo não é 'temporal' porque 'est,í
na história', mas, pelo contrário,[ ... ] só existe e só pode existir historialmente, porque
é temporal no fundo de seu ser" (i/1id.).
Deve-se, contudo, confessar que não nos aproximamos ,·erdadeiramente do que é
chamado, na presente obra, de o trabalho da história e que Heidegger atribui ao "011-
,ci11 factício" (i/Jid.); a consideraç,10 da operaç,10 historiogrMica é remetida ao est,igio
seguinte da operação de derivação, a intratemporalidade. De fato, como fazer história
sem calendário nem relógio'º? Isso é concordar que o destino da história efeti,·a não se
decide no nível da historicidade, mas no d,1 intratemporalidade. No da historicidade,
a discussão só atinge a reflexão de segundo grau sobre a epistemologia tal como a
atribuímos, no capítulo precedente, a uma filosofia crítica da história. A antecipação
-17 \'isa-~l' cun1 i~~o o qul' ch,11110 l't11 Tc111po t' 1111Fn1fil 111 Ili o terceiro-tl'n1po hi~tórico, tL'rnpo dl) ra:-.tro,
da~ geraçôL'S l' dD~ grandes concctore:-. l'ntre tL'n1po o)srnico e tempo fenon1L'nológico.
A ~11:MOl,IA, A HISlORI,\, O FSQUECIMFNTO
2. Historicidade e historiografia
48 Jean Greisch enfatizc1 a essL' respeito "a 1nistura de n1odéstia e de pretensão contida nessa deter-
n1inaçilo da tarefa". E ele acrescenta: ,,É suficiente para faLer justiça a essas disciplinas [as ciências
do hon1e1nl, ou não é preciso considerar a possibilidade de u,na deterrni nação 1nais positiva da re-
bção entre' a ontologia da historialidade e uma epistemologia das cii:'ncias históricas?" (011/0/ogic
e/ tc1111'omlit,', op. cit., pp. '.l57-358.) É a proposição que dl'Senvolvo nas p,íginas seguintes, na linha
de 1ninhas observaçôes de Tempo e 1,arratizia Ili, nas quais eu falava ck um "enriquecin1ento" do
origin,írio pelo derivado, ou de uma "derivação im>Vildora" de um ao outro (op. cit., pp. 108-109).
o D11sl'i11 traz consigo os rastros de sua pron:'niência sob a forma da díYida e da heran-
ça: "Inequivocamente, o Dascin nunca pode ser passado, não porque seja imperccÍ\'el,
mas porque nunca pode, essencialmente, estar-à-mão, mas, se ele é, ele existe" (ov ciL,
p, 380), Um diálogo com o historiador pode ser tra\'ado neste ponto: a contribuição
do filósofo reside, aqui, na crítica dirigida a um tratamento do passado em termos de
instrumento, de utensílio, O limite dessa crítica resulta da ruptura instituída entre os
modos de ser do existente e da coisa dada e manej,Í\'el, ruptura que a operação histo-
riogrMica repete na base do ato mnemônico, Contudo, conduzimos a epistemologia
da operação historiogrMica até o enigma da representância do passado tendo-sido,
através da ausência do passado decorrido, Por trás do enigma da representância, de-
lineia-se o da representação icónica do passado no ato de memória, Ora, Heidegger
não deu lugar à memória nem a seu flor,10, o ato de reconhecimento, ao qual Bergson
soube conceder toda a atenção que ele merece, como scr,'í amplamente mostrado no
capítulo seguinte, Mas pode-se sugerir que a dialética de presença e de ausência, for-
mulada desde a problemática grega da cikt,11, seja confrontada com a análise hcidcg-
gcriana do vestígio, Heidegger não remeteu muito depressa o car,Her de ausência do
passado acabado à indisponibilidade do manipul,1vel 1 Com isso, não eludiu todas as
dificuldades ligadas à representação do que não é mais, mas que foi uma vez? Em \'CZ
disso, Heidegger oferece, é bem verdade, a idéia forte da subordinação de todo o histó-
rico intramundano ao histórico primordial que somos enquanto seres de preocupação,
Ele chega mesmo a esboçar, em torno da "historialidade" do Dascin, "historialidade"
primeira, uma "historialidade" segunda, a "da história do mundo": "o instrumento e
a obra, livros, por exemplo, têm seus destinos", monumentos e instituições têm sua
história, Mas a natureza também é historial, Decerto, não exatamente quando falamos
de "história natural", mas ela é, sim, historial corno paisagem, como domínio de ins-
talação e de exploração, como campo de batalha ou como lugar de culto, Este sendo
intramundano é como tal historial, e sua história não representa um quadro "exterior"
que acompanharia pura e simplesmente a história "interior" da "alma", Chamamos
esse sendo de "mundo-historial" (op, cit,, pp, 388-389),
Mas a disjunção dos modos de ser - o do existenci,frio, de um lado, e o do manc-
já\'el, do outro - impede de lcYar o moYimento da deriYação até o ponto em que seria
reconhecida a total \'alidade do fenômeno do rastro, A problem<ltica da representân-
cia, no plano histórico, e já a da rcpresentaçZio icónica no plano mnemônico, parecem-
me suscetíveis de sobrepor essa descontinuidade ontológica, A noçZio de vestígio, am-
pliada à do rastro, poderia então dar ª"º a urna discussão que leyaria cm conta a
dimensZio veritati\'a do ato mnemônico e do ato historiogrMico, Por falta dessa con-
frontaçZio, Heidegger só compensa a rcinserç,10 obstinada da dependência da histo-
ricidade acerca da temporalidade fundamental""pcla enJCação de traços resultantes da
--1-9 "Por isso, a interpret1ç,l.o da historialidade do nw,ci11 JTYl'i,1 ser no fundo apen<lS un1,1 l'1'Ü1oraçclo
fft,1is concrl'ta da ten1poralidade" (.Ser e TcnzptJ. op. cit., p . .382). E n1c1is adiante: "() sl'r autt•ntico
para a morte, isto é, a finitudt..' d,1 ten1por,1\idadL', l· o fundan1ento retirado da histori,1lid(1dL' do
011,cí11" (í/,íd., p, JH6).
i\ MFMllRli\, A HISl(lRIA, O LS(ll;FCIMLNT(l
50 Tm1po e 1111rmlim, t. 111, op. cit., p. l ló e seg. J. Creisch, Ontologic e/ Tempomiilt', op. cit., pp. 3ó9-37-l.
51 l'ierre LL'gendre, L'/11csti11111/1/c Objct de /11 /m11s111Íssio11. Essai s11r 1c príncipe g<'11i'11/ogiq11c c11 Occidc11I,
J\iris, foyard, 1985.
,\ l ll,IJI( Í(l l\l~l(ll/1( \
~2 Collingwood, Tl,c ldm ,,( 1/i,tory, obra p(,,;tuma publicada por T ~1. Knox l'tn ILJ-lb (CIMl'ncfon
Press, ()xford Uni,·ersity Press, 19:"16), con1 bclSt-..' l1cl'.-- confert'ncia..;, escritl1s en1 l)xford en1 191h, após
,l nomeaç~o de Collingwood para a c,1tcdra de filosofi,1 e ml'tafí~ica, L' p,nci,1lmcnk re,·i::-.ta::-, pelo
autor ,1té ILJ-lll
A MFM(JRIA, A IIIST(lRIA, O ES{JUl:Cl'<1t:NHl
:u J. Cn•isch (011tolosic ct Tcntpomlifl', op. L"it., p. 17-1) relaciona, oportun(1n1L'nte, o que Hcidl'ggl'r dl'-
non1ina ,1qui "histúria d<1 transn1is~ão" con1 o que Cadanwr chan1a dL' "históri(1 d(1 al>l.o" (i\'ir-
k11ngsgcsc!liâ1tc): "É uni fato, con1ent(1 C(1dan1er, que nJo se ligc1 c1penas ao fen61ncno hi~kffico ou
à obra transn1itida, 1na:--:. tambérn, nun1(1 ternjtica segunda, il sua açc""10 na históri;1 que, afinal de
contas, comporta també·m a hist(,ria d,1 pesquisa" (V<'ril<' e/ l\k//,odc, <'V ât., p. 322). Esse p.ir,ígrafo
in1portante dl' \'l;rité ct A1ahodc nJo dL'\'L' Sl'r SL'P<H<1do do qul' o prt:.'et:.'dt.', t.' qut:> tratl1 da significaçJo
hern1cn(,utica "ct"-1 disLíncil1 histórica" (il 1 id., p. 312 t.' seg.): esta n<lo dc\·e ser con1prL'endida como
u1n espaço \·azio, 111na separc1ção, n1as con10 uni L'spaço produti\ o dl' cotnprl'ensJo, con10 uni
entren1eio que o círculo hl'nlll'lli'utico foch<1, círculo forn1ado, conjuntamente, pela interprctaçclo
L' ~lhl contraplirk. A disUincia temporal a~:,im cornprL'L'ndida l· a CllndiçJll da "história da l1çJo".
A MFM(lRIA, A HISl(lRIA, O LS(JuLCIMLVIO
III. Ser-"no"-tempo
1. No caminho do inautêntico
54 En1 Si 111cs11w cowo u111 outro, op. cít., enfatizo a riqueza de sentido da n1etáfora da "conta", que
l'ncontran1os cn1 vc1rias línguas, como base da idéia de i111putabilidade (accou11tability en1 ingll's,
Fl.cch11c11gsfiihigkcit l'm a km.lo).
* 394 *
·\ Cll'\llll.\(l fll',l()RllA
Último toque da análise existenciária: um tempo pode ser considerado oportuno, ou-
tro, inoportuno; tempo para fazer ou não fazer;;_ A "significatividade" seria a expres-
são recapitulativa mais apropriada dessa cadeia de determinações do ser no tempo.
Contudo, esta não deixa de gravitar em torno do agora: dizer "agora" (op. cit., p. -!16)
resume, ainda que tacitamente, o discurso da preocupação.
A força dessa análise é não se deixar fechar em oposições de escola, tais quais o
subjetivo e o objetin). Afirma-se que o tempo do mundo é "mais objetivo que todo
objeto possível" e "mais subjetivo que todo sujeito possível" (np. cit., p. -!19).
Fala-se apenas uma vez da história, nas linhas introdutórias do capítulo sobre a
intra temporalidade de Ser<' Tempo. Para Heidegger, o que importa é a vulnerabilidade
desse modo temporal ao efeito de ni,·elamento exercido sobre ele pelo conceito ndgar
do tempo. Em conseqüência, todo o esforço se concentra na preservação dos \'Ínculos
desse modo temporal com a historicidade e, além dessa, com a temporalidade funda-
mental do ser-para-J-morte. Proponho-me, contudo, a continuar, ainda nesse nÍ\·el, o
diálogo entre o filósofo e o historiador. Num sentido, de fato, o que autoriza Heidegger
a folar, desde o início, da "incompletude da análise temporal precedente do D11sci11"
(op. cit., p. 404) é a preocupação de restituir, claramente, seu direito à "explicitação
'ôntico-temporal' factícia da história" (i/iid.). O adjetin1 "factício", para o qual prefiro
a tradução francesa "factual", visa, aqui, explicitamente, a prMica efetiva da história,
:,:-, J. Creisch L'nKa o~ \"L'r~os do (Jolit'll'f bíblico: "H,í uni n10111c1lto para tudo e u1n ten1po para todo
propósito dl'b,ú\.o do céu. Ten1po de nasCL'r, e ten1po dt...' 1norrer; tL'n1po de plantar, L' tt:.-n1po p,na
arrancar c1 planta ... " (Eclesi,1stL'S 3,1-8). Crl'isch ,1brc sobre esse assunto un1,1 discuss,1.o (011tologic
,·t fr11111omlit<', op. cit., pp. 3Y-l--Hl2) que não pode cfrixar o historiador indiferente: a express3o de
tc•n1po con1un1 ou tl'n1po público abre unia l'Scolhcl entrc· dua:-, interpret<lÇÔt:.'S, a pri1neira enfati-
7ando a alteridadL' do outro, con10 en1 Le\·inas en1 Lc Tc111ps ct !A11trc L', a segunda, sobre o \·ínculo
con1 a extL'rioridiH.ie espacial, por ocasi,lo dos "lug,ues" que denl)J11inan1os ao 1nL'sn10 ten1po que
a~ dat,1s? t preciso e:-,colher entre ess,1s du,,~ ll'iturcis? lJ que di'.-,:-,en1os 1nais acin1a, de' acordo com
E. Casey, sobre ,1 ,·ertentl' "rnundana" da len1br'tlll\',l (prin1eira parte, capítulo 1) defende o segun-
do ~entido; o que di'.-,'.-iL'n1os, por outro lado, sobrL' ,1 atribuiç.Jo tripla da n1en1úria, a '.-ii n1t:.'sn10, aos
prúxin1os e aos di:-,tantes (prin1eir,1 parte, Cdpítulo ]), defende o prin1l'iro Sl'ntido, L'Jn prol de un1a
rL'distribuiçJo do tl'mpo no leque cotnpleto das inst,l.nci,1s dl' c1tribuiçclo: o pn)prio, os pn')xin1os,
os distantes.
56 François Do:-,:-,e tt...'n.' a feliz idt'ia dp tt'rn1inc1r c1 grandl' in\'l'~tigaç<lo de sua obra L'fli:..toirc, op. (Ít.,
con1 o diúlogo L'ntre a históric1 e ,1 menH)ria ("LnL' histoire sociall' dl' la n1l'n1oire", pp. l6Y-1Y.3). ()
:-.l'X.to percur:-.o proposto pl'io autor tL'Tll ~eu ponto de partida no "nJn1anCL' nacional" (p. h1lJ c ~eg.),
atingl' o ópice con1 BPrgson e "a distinçc'lo entrL' duas n1en1órias", penetra con1 I t1lbwachs na L'ra
da "dissociaç(lo história/n1en1ória", p,ira de:-.L'n1bocar nas forn1a~ \·(1riadas de problen1ati?,JÇJ0
mútua das dua:-, grandes inst(íncias de retruspecçJo. A últin1a pc1L1,Ta L· L'nt,lo pronunciada pl'i,1
inst,ínci,1 do futuro: do hori;,ontL· de L'XPL'ctati,·<1 procede o con,·ite p<ir,1 "n,,·isitar as ,;:unas de
sornbra", p,1ra :-,ub:-,tituir a "rcpetiç.lo f,1stidiosa" f.1L'i,1 "criciti,·idadl'", cnfin1, parél rl'colocar, con1
Kosclleck, n1c1nlHia e história sob a égidl' do "futuro do passadn''.
A MFM(lRIA, A IIISTÓRIA, O t:SQUITl\,IFNTO
na medida em que, como as ciências da natureza, ela faz intervir o "fator tempo".
Aqui, questiona-se, exatamente, a profissão do historiador. Uma nova reflexão sobre
essa profissão mereceria ser empreendida sob a égide da análise existenciária dessa
qualidade temporal retomada no momento de hesitação, no qual o ato de "contar com
o tempo" ainda não foi incluído no "cálculo".
A referência de base à preocupação pode servir de ponto de partida para esse úl-
timo colóquio com o historiador. De acordo com a orientação geral da historiografia
que privilegiamos, o referente último do discurso da história é a ação social cm sua
capacidade de produzir vínculo social e identidades. São assim levados ao primeiro
plano agentes capazes de iniciativa, de orientação, em situações de incerteza, em répli-
ca a restrições, normas, instituições. A atenção dada aos fenômenos de escala reforçou
esse primado conferido ao agir em comum, no duplo plano dos comportamentos e das
representações. É-nos, assim, permitido acrescentar à observação anterior, que diz res-
peito, sucessivamente, à morte na história e à historicidade na história, a referência a
humanos preocupados com o seu agir em comum. O historiador não tem apenas como
contraponto mortos, para os quais ele constrói um túmulo escriturário; ele não se dedi-
ca apenas a ressuscitar viventes de outrora, que não existem mais, mas que existiram;
ele se dedica a re-apresentar ações e paixões. Quanto a mim, associo, explicitamente,
a tese favorável à idéia de que o referente último da representação historiadora é o
vivente antigo, atrás do ausente de hoje na história, à mudança de paradigma que, na
"guinada crítica" dos A111111/cs dos anos 80, promoveu o que se pôde chamar de "pa-
radoxo do ator"" 7 • A história visa não apenas ao vivente de outrora, na retaguarda do
morto de hoje, mas ao ator da história decorrida, desde que se decida "levar a sério os
próprios atores". A esse respeito, as noções de competência e de ajuste expressam bem
o equivalente historiográfico da preocupação heidcggeriana.
Essa consideração geral me servirá de exórdio para uma penúltima releitura do
movimento de conjunto da presente obra, não mais apenas no ponto em que se recru-
zaram a idéia de representância e a de repetição no final da seção precedente, mas, de
modo mais amplo, no ponto de sutura entre uma fenomenologia da memória e uma
epistemologia da história. Em Heidegger, não encontramos palavra alguma sobre a
memória, mas, sim, alguns traços penetrantes sobre o esquecimcnto 5 K, ao qual faremos
justiça no próximo capítulo. Ora, as perplexidades mais tenazes, concernentes ao tra-
57 Cf. Christian Delacroix, "La falaise et le rivage. Histoire du 'tournant critique"', in Espaces Te111ps,
Les Cahiers, n" 59-óll-fíl, 1995, pp. 59-61, 86-111. Sob o signo da C.C. (guinada crítica), o autor refaz
o percurso que fizemos nos primeiros parágrnfos do capítulo "Explicc1ção/compreensão". Seu
can1inho passa por muitos autores, com os quais eu também cruzei: Bernard Lepetit, os historia-
dores da 111icrostori11, a sociologia das cidades de Boltanski-Thévenot, etc. O número dos A111rn/es de
noven1bro-dt_'zen1bro de 1990 sobre dS "n1obilid<.1des" já confirn1<.1va essa exaltação do paradig1na
da açJo e do ator, reivindicando que se "levassem a sério as representações e as ll'g:iti n1ações te()-
ricas e práticas que os atores constroem" (op. cit., p. 1273; citado por C. Dcl;icroix, art. cit., p. 103).
58 Cf. Scr c Te111po, op. cit., pp. 44, 219,292,339,341,342, 345,347,354,369,391,407,409,410,424, 425
(111dex 211 Heidegger, Sei11 1111d l.cit, Tübingen, Niemeyer, 1961). No próximo capítulo retomarei al-
g:tnnas das observações 111ais itnportantes de Ser e Tc111po sobre o esquecimento.
lamento "factício" do tempo pelo historiador, dizem respeito à articulação do saber
histórico sobre o trabalho de memória no presente da história'". Gostaria de mostrar
que, na atitude por princípio rdrospecti\·a comum à memória e à história, a prioridade
entre essas duas perspectivas do passado é indecidível. A ontologia do ser histórico
que abraça a condição temporal em sua tripartição - passado, presente, futuro - est,1
habilitada a legitimar esse carMer indecidí\'el, sob a condição da abstração do presente
e do futuro. Proponho proceder a uma repetição dessa situação de indecidibilidade,
com o objetivo de autenticá-la como legítima e justificada nos limites em que ela é
reconhecida.
Estabelecerei um paralelo entre dois desenvolvimentos cruzados e concorrentes.
De um lado, temos a pretensão de dissoh·er o campo da memória no da história gra-
ças ao desenvol\'imento de uma história da memória, considerada como um de seus
objetos privilegiados; do outro, temos a resistência da memória a tal absorção graças
à sua capacidade de se historicizar sob uma diversidade de figuras culturais. Uma
passagem no limite, i1wersa da precedente, designa-se sob a forma de uma re\·olta
da memória coleti\·a contra o que surge como uma tentati\'a de dominação sobre seu
culto da lembrança.
'iY l3ernMd Lepl'tit, "Lt> pré•sent de l'histoire", in Lc-, lom1cs de f'npéric11c"c, ''/'- cit., p. 273. "É n,1 tr,111s-
forn1'"1ção do \'aior do presente que encontra1nos (1 origen1 da n1udanç,1 de situaçJ.o do p,1ssado"
(i/,id., p. 2YO).
60 O c,1pítulo "hlt.'n1oire" é un1 dos deL artigo~ publicados suct.'ssi, ,11np11tt.' na Encyd(1pedi,1 [inoudi,
Torino, Einaudi, JYHb, L'd. franc. p,ircial, Paris, Callimard, 1Y88.
i\ \11:M(lRli\, i\ IIIST(lRIA, O IS(JUl·.CIMENlO
61 Le Goff bzili.1:a a trc1nsição da "n1e1nória t..'m fichas", para falar como Leroy-Gourhdn, para a "me-
canografia" e para a "memória eletrônica" (1-/istoirc ct M<'1110irc, op. cit., pp. 164-165). Assim, consti-
tuem-se g:ig:Z1ntescos arquivos bibliográficos, en1 n.•l(1ç.lo aos quais Ycrushal1ni e Nora assinalarJo,
un1 pouco 1nais adiante, suas preocupações.
62 Krzysztof Pomi,in, 1<.cz,11c de 111daphysiq11c ct de 111omlc, n" 1, 1998, pp. 63-110.
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de modo ainda mais dramMico, da imprensa, l', depois, da difusão mercantil das obras
impressas. Os momentos marcantes dessa passagem da história durante o século XX
são bastante conhecidos: fase dos J\11110/c,, papel crescente de uma cronologia que não
de\·e mais nada à rememoração, introdução no discurso de ml\'as exigências retóricas,
adoção de uma narrati\·a contínua, apelo à i1wisibilidade de moti\·ações suscetíYeis
de serem racionalizadas, ao invés dos recursos à providência, ao destino, à sorte, ao
acaso. ;\ credibilidade argumentada dos documentos escritos rompe, doravante, com
o estatuto fiduciário de uma memória autorizada de cima para baixo. Assim, pode ser
neutralizada a oposição aparentemente dirimente entre a singularidade dos aconteci-
mentos ou das obras, ,1\',lllÇada pela hermenêutica, e a repetição de itens, segundo a
história seriaL Nos dois casos, a história trata "do que não foi objeto de uma apreensão
pelos contempor:ineos" (art cit, p. 102). Ambos recorrem a "\·ias extramemoriais",
Diferem apenas os objetos: de um lado, obras liter,írias e artísticas, de outro, entidades
cont,íveis, corno se \'ê em economia, cm demografia ou em sociologia. De todas essas
ma1wiras, a noção de fonte se liberta totalmente da noção de testemunho, no sentido
intencional do termo. ;\ essa variedade de documentos, acrescenta-se a noção de \'estí-
gio emprestada da estratigrafia geológica; a ampliação sofrida pelas noções familiares
de fonte, documento e rastro, mostra-se, assim, simultaneamente, temporal, espacial
e temMica, sendo que esse último qualificatini le\'a em conta a diferenciação entre
história política, econômica, social, culturaL Assim, constrói-se um passado, do qual
ninguém pôde se lembrar. É para essa história, solid,íria de um "ponto de \·ista line de
todo egocentrismo", que a história deixou de ser "parte da memória", e que a memória
se tornou "parte da história".
A defesa de K. Pornian de uma história libertada do jugo da memória, \·isto que
esta é identificada com urna dessas figuras culturais historicamente datadas, não deixa
de ter força, urna n·z aceito o caráter unilateral da abordagem do autor: "As relações
entre a memória e a história serão abordadas aqui numa perspectiva histórica" (art
cit, p. 60). Ao mesmo tempo, são ignorados os recursos potenciais da memória que
permitiriam empregar esse termo num sentido menos determinado culturalmente.
Parece-me que esse desconhecimento resulta da postulaçào inicial de um parentesco
de princípio entre memória e percepção, parentesco afiançado, aparentemente, pelo
fenômeno do testemunho ocular. Presume-se que a testemunha tenha visto. Mas a
problcrnMica da presença do ausente na representação do passado, assim como o ca-
r<lter eminentemente fiduciário do testemunho ainda que ocular (cu estava presente,
acredite ou não) sào, ,1ssirn, perdidos de \'ista desde o começo. Tratando-se do caráter
coletini da memória, perdeu-se também de \'ista a consciência fundamental de per-
tencer ,1 um grupo capaz de se designar na primeira pessoa do plural e de moldar sua
identidade ao preço das ilusões e das Yiolências que se conhece. Mais do que tudo,
paira sobre o ensaio urna desconfiança visceral cm relaçào a essa memória medieval,
pela qual J, Lc Coff manifestou tanta simpatia.
Todavia, o ensaio não segue essa tendência sem corrigir, com uma série de to-
ques sucessivos, seu carcÍtcr unilateraL Várias obscn·açôes ad\·ogam a idéia, não de
/\ MFMllRI/\, A HIST(JRI/\, O ESQUI'( IMLNTO
Escutemos agora a defesa inversa. É permitido conceber uma história que se servi-
ria tanto das variações imaginativas, dependentes de uma história cultural da memó-
ria e do esquecimento, como de reveladores a respeito de potencialidades mnemônicas
dissimuladas pelo cotidiano. A esse respeito, poder-se-ia falar de "historização da me-
mória", mas seu benefício deveria ser posto na conta da memória.
Escolhi como exemplo dessa historização da memória o exame proposto por Ri-
chard Terdiman, crítico literário de língua inglesa, do que ele denomina "crise da me-
mória", a qual ele vê surgir no ponto mais sensível da literatura do "longo século
XIX""'. Uma correlação é proposta entre uma consciência de época, caracterizada por
63 Richard Terdiman, l'rc,c11t 1111d P11,t. Modcr11it1; 1111d tl!c Mc111on; Crisi,, lthaca e Londres, Cornell
University Press, 1993. !\. obra é dedicad,1 ao "funcionan1ento da n1e1nórit1 na cultura". A inves-
,\ lll'\IJl(,.\O HIS1llRI( A
Baudelaire com o termo modernidade, e essa "crise da memória". Essa correlação aco-
pla um conceito oriundo da periodização da história (o "longo século XIX") e figuras
determinadas da operação mnemônica (as figuras de crise). É nesse acoplamento que
consiste a historização da memória. Longe de ratificar a tese, anteriormente critica-
da, da subordinação da memória à história, da qual teria se tornado o objeto, esse
fenômeno reforça a tese oposta, segundo a qual a memória se encontra re\·elada a si
mesma, em sua profundidade, pelo movimento da história. Além disso, em \·ez de a
crise da memória poder ser considerada como uma simples dissolução da relação en-
tre passado e presente, as obras que lhe conferem uma expressão escrita lhe atribuem,
ao mesmo tempo, uma inteligibilidade notável ligada à própria delimitação dessas
configurações culturais. Seria essa a dádi\·a da modernidade à fenomenologia - a
hermenêutica lançando a passarela de uma semiótica das representações do passado
entre fenômeno histórico e fenômeno mnemônico. Assim, o enigma da representação
do passado no presente se encontraria, simultaneamente, aprofundado e elucidado, na
medida de sua determinação cultural.
Ao escolher comentar a Co11fissíio de 11111_fil/10 do sérn/o, de Musset, e o poema "O Cis-
ne", extraído dos "Quadros parisienses" das Flores do Mal de Baudelaire, Richard Ter-
diman estabeleceu, como contraparte, um espaço textual apropriado à correlação entre
crise histórica e crise mnemônica. A passagem de uma crise para a outra foi possí,·el
porque, por um lado, o que se chama de reniluções do século XIX são, indivisamente,
acontecimentos efetivamente ocorridos e relatórios desses acontecimentos, em suma,
narrativas transmitidas, e, por outro lado, porque a literatura constitui um laboratório
verbal, retórico e poético, de uma inacreditável força de elucidação, de discriminação
e até mesmo de teorização. O histórico contado e o mnemônico experimentado se re-
cruzam na linguagem.
Portanto, são configuraçôes culturais particulares do fenômeno mnemônico que a
história dos Tempos Modernos dá a conhecer. E são figuras de crise. Paradoxal é que
essas figuras, que parecem privilegiar a dissolução do dnculo em virtude do qual o
passado persiste no presente, sejam figuras inteligíveis em razão das possibilidades
de conceitualização abertas pela poética da crise. É possível relacionar as múltiplas
variantes desse discurso da crise com o tema maciçamente prevalente da perda. A esse
respeito, o discurso da modernidade contrasta, numa tipologia sumariamente binária,
com o discurso da reminiscência integral que pudemos ler na Fc110111c110/ogia do espírito
de Hegel, e que a calma goethiana repercutira vibrantemente. Ao contrário, diz-se: o
desespero do que desaparece, a impotência para acumular a lembrança e arqui,·ar a
memória, o excesso de presença de um passado que não pcfra de assombrar o presente
e, paradoxalmente, a falta de presença de um passado para sempre irrenigável, a fuga
desnorteada do passado e o congelamento do presente, a incapacidade de esquecer
e a incapacidade de se lembrar do acontecimento a urna boa distância. Em resumo,
Essa dialética aberta oferece uma réplica razoável à questão irônica, colocada no
Prelúdio da segunda parte, de saber se o plzarmako11 da invenção da história, sobre o
modelo da invenção da escrita, é veneno ou remédio. A questão inicial, falsamente
ingênua, encontra-se, doravante, "repetida" no molde da phronesis, da consciência
avisada.
É para a instrução dessa consciência avisada que vão contribuir os testemunhos de
três historiadores que inscreveram essa dialética na parte mais sensível da profissão
de historiador.
66 O título do capítulo 3 é: "Memória coletiva l' memória histórica". As citaçõPS remetl'm à bem-vin-
da reedição <fr 1997 dl' La Minwirc co//ctiz,c, op. cit.
morta. A marca negativa depositada nos fatos evocados consiste em que a criança nào
pôde testemunhá-los. É o reinado do om·ir-dizer e da leitura didática. O sentimento
de exterioridade se encontra reforçado pelo enquadramento calendárico dos aconte-
cimentos ensinados: aprende-se, nessa idade, a ler o calendário, como se aprendeu a
ver as horas"'. A insistência nesse conceito de exterioridade tem, seguramente, um tom
polêmico, mas ela diz respeito a uma perplexidade que nos é familiar desde o Fcâro
de Platào. A continuaçào do capítulo é dedicada à reabsorçào progressiva do descom-
passo entre a história ensinada e a memória \'ivida, descompasso esse reconstruído na
situaçào da posterioridade. "É posteriormente, entào, que podemos ligar as diversas
fases de nossa vida aos acontecimentos nacionais" (op. cit., p. 101). No início, porém,
certa ,·iolência vinda do exterior é exercida sobre a memória"'. A descoberta do que se
chamará de memória histórica consiste numa verdadeira aculturaçào à exterioridade"".
Essa aculturaçào é a de uma familiarizaçào progressiva com o nào familiar, com a in-
quietante estranheza do passado histórico.
Essa familiarizaçào consiste num percurso iniciático, através dos círculos concêntri-
cos constituídos pelo núcleo familiar, pelas camaradagens, amizades, relações sociais
dos pais e, mais do que tudo, pela descoberta do passado histórico por intermédio da
memória dos ancestrais. O vínculo transgeracional constitui, a esse respeito, a espinha
dorsal do capítulo "Memória coleti\·a e memória histórica": através da memória ances-
tral transita o "rumor confuso que é como o movimento da história" (op. cit., p. 111).
Na medida em que os mais velhos da família perdem o interesse nos acontecimentos
contemporâneos, eles interessam as gerações seguintes no que foi o cenário de suas
próprias infâncias.
Gostaria de me deter, mais uma vez 7", no fenômeno da memória transgeracional
que estrutura profundamente o capítulo de Maurice Halbwachs. É ele que assegura a
transiçào entre a história aprendida e a memória viva. Em Tempo e 11arratim, evoquei
esse fenômeno sob o título de "A seqüência das gerações" e o incluí entre os procedi-
mentos da inserçào do tempo vivido na vastidào do tempo cósmico 71 • Na verdade, nào
se trata ainda de um procedimento da historiografia como sào o tempo calendárico e
os arquivos. Trata-se de uma experiência forte, que contribui para ampliar o círculo
67 Essas di\'isões "se impõem de fora a todas as memórias indi, iduais precisanwnte porque elas n,10
tc'm origem em nenhuma delas" (A 111,·111ôrit1 coll'liu,1, op. cit., p. 101 ). O mesmo \'ale para "as datas
n1arcadas no n1ostrador d(.1 históri(1" (ibid.).
h8 "C)s acontecimentos l' as datc.ls que constituen1 ,1 própria substância da \'ida en1 grupo Sl) poden1
ser, para o indi\·íduo, sinais exteriores, aos quais eles sú se reportan1 ~oba condição que ~aírt:.'nl de
si" (il>id, p. 102).
hY A prirnL•ira \'l'Z en1 quL' cl palti\Ta <1part-.'CL' no texto, fala-SL' con1 prudl·ncia ''de unia outra 111L'nH1ria
que se denon1inaria de hi~h)rica, na qual só estarian1 incluído~ cKontecin1L'I1tos ndcionai~ que n,l.o
pudemos conhecl'r l'ntZlo" (i/,id., p. lO'i).
70 Encontran1os a quesUlo do \'Ínculo geracional en1 ligaç,l.o con1 o conCL'ito kiL•rkegaardiano, retu-
n1,1do por Heidegger, dL' "repetiç<lo". NL·~sa oportunidade, L'\.t..K,1n1os con1 P. Lq::~endre o aspecto
institucion,11 cL1 fili,1ç,lo.
7..I- "1 lei un1c1 soluç.l.o de continuidadL' L't1tn-_' l1 socil'dadc que ll· t..•ssa história l' os grupo~ te<.:.tl'n1u-
nhas ou atorl's do-:; acontt'cin1t..•ntos de outrnr,1 que nt..'la stlo narrtidn,._," (;-\ 1nc11uíri11 t·oft'fii:'11, (1V L'it.,
p 131)
;\ MLMORIA, ;\ HISIORIA, O l:SQULCIMFNTO
Hl'ródoto pode ter sido o pai da história; o sentido na história foi inven-
ção dos judeus.
t
ZAKHOR, I'. 24.
75 Cf. acin1a as observações sobre a in1parcialidadc, desejo con1un1 ao historiador e ao juiz (terceira
parte, capítulo 1, pp. 330-337).
76 A própria expressão 1nen1ória histórica é post,1 cn1 dúvidé1 vcíri,1s veze~ (A 111c1nória colctiv,1,
op. cit, pp. 105, 113, 118, 140).
77 Yerushalmi, ?.ak/10r. Jcwisl, '1islon1011d /nuis/1 111cmon1, University of Washington Press, 1982; trad.
franc. de Éric Vigne, 7ak/10r. Histoirc j11i1•e e/ 111t'1110ire juiue, PMis, La !Jécouverll', 1984.
métodos e das interpretações dos historiadores" (Zaklwr, p. Sf'. ;\ singularidade da
experiência judaica é a indiferença secular de uma cultura eminentemente carregada
de história pelo tratamento historiográfico da mesma. Essa singularidade me parece
reveladora das resistências que toda memória pode opor a tal tratamento. Num sen-
tido, ela desnuda, de uma maneira geral, a crise que a história como historiografia
suscita no próprio centro da memória; que a memória pessoal ou coletiva se refira, por
definição, a um passado mantido \'in1 graças à transmissão de geração em geração, aí
está a fonte de uma resistência da memória a seu tratamento historiográfico. Aí se en-
contra a ameaça de desenraizamento; Halbwachs não disse: "A história começa onde
pára a tradição?" Ora, h,-í \"árias formas de a tradição parar, segundo a maneira como
o distanciamento historiador afeta a memória, quer a consolide, corrija, desloque, con-
teste, interrompa, destrua. O quadro dos efeitos de distanciamento é complexo. E é
aqui que as especificidades culturais se afirmam, e que a singularidade dos judeus é
para todos a mais instrutiva'". O ponto crítico consiste no fato de que a memória decla-
rativa, a memória que se enuncia, fazendo-se narrativa, carrega-se de interpretações
imanentes à narrati\·a. É possível falar, a esse respeito, de sentido da história, o qual
pode se encontrar veiculado por gêneros literários alheios à preocupação de explicar
os acontecimentos históricos. Então, é no seio da experiência verbal, discursiva, literá-
ria, que o distanciamento historiador opera. Aqui também, o caso da memória judaica
é, ao mesmo tempo, singular e exemplar. De fato, não se de\·eria crer que a memória,
enquanto alheia à historiografia, se reduzisse à tradição oral. Não é bem assim "entre
um povo tão alfabetizado quanto os judeus e a tal ponto dedicado à leitura" (op. cit.,
1 p. 14); o exemplo que dá a cultura judaica, grosso modo, atl' à Idade das Luzes, é o de
uma memória impregnada de sentido, mas não de sentido historiográfico. O apelo a
lembrar-se - o famoso Zak/10r -, martelado muitas e muitas n.'zes pela Bíblia'", é-nos
bastante conhecido, como foi dito mais acima' 1; mas a injunção que visa à transmissão
das narrativas e das leis se dirige aqui, atra,·és dos próximos, ao povo inteiro, interpe-
lado sob o nome coleti, o de Israel; a barreira entre o próximo e o longínquo foi aboli-
da; todos os chamados são próximos. "Ouve, ó Israel", diz o Clzcnw. Essa injunção faz
com que, "mesmo quando não requisitada, a memória continue a ser sempre aL1uilo
do qual tudo depende" (op. cit., p. 21 ). Que essa injunção não designe de modo algum
71-1 Na n1inha opinic'ío, c1 l'Scolh<l sen1llntica dl' nosso autor 1nerL'CL' ser L'Stl'ndid<i J disciplina dos his-
toriadort'S l'lll todo co11te,to culturdl. Ela :-.ignifica que a L'Scrita l' cl leitura constitueni, con10 foi
n10:-,trc1do 1nais acin1a, condiçt)es consub:-,tanciais cLi opcr<içJ.o hi:-.toriadora.
79 "E.._,s<l obra tcn1 con10 ten1a l':-.sencial o que, por niuito tpn1po, nlt' parL'Ct.'U :-.er un1 pcirc1dnxo L' que
tentei con1prt>endL'r: pnquanto o judaísrnP, atr(1yl•s dos tl'n1po:-., :"!L'n1prL' foi rnuito in1pregnado do
:-.ignificado da história, por que ;:i historiografi(i descn1penhou (1pena:-,, na melhor das hipótese:-.,
un1 p<1pel ancilcir entrL' os judL·us, L', quast...' :-.en1pre, nJo dL'SL'n1penhou papL'l algum? \Ja:-. pn)\·a-
çC•es L'xperintL'ntadas pelos judeu:-., cl n1L'n1ória do passado foi :-,L•n1pre e:-.sencial, n1as pl)f que os
hi:-.toriadon's nunc(i toram seus prinieiros depl):-.iU.rios?" (Z11khtJr, tlp. l·it., p. 12..)
80 Deutcronúmiu h,lll-12; 8,11-18.
81 Cf. acima ,1 di:-.cu...,--..lo quL' tr,1t1 do pn::-,umido dc,·L'f dl' lllL'111Úri,1 (primeirc1 p<lrll', capítulo 2.,
pp. <J9-104).
,\ MI MOR!,\, i\ HISHll{IA, O J:S(.)UICIMI NHl
82 "() encontro essencial do homen1 e do divino deixou bruscan1ente - por cissiln diLer - o fL'ino da
n;:lturcza pcua se inscrever no plano da história, doravante pensada em termos do desafio lançado
por Deus e da resposta dada pelo homem" (~ak/l()r, op. cit., p. 24).
83 ;\ esst..• respeito, é preciso 1nostrar-se reconhecido a Yerushalnli por n<lo superesbn1c1r il oposiçJo
entre ten1po cíclico e te1npo linl',H: enqu,111to o ten1po da história é linear, o retorno das estaçües,
ritos e festas é cíclico. Sobre esse assunto, ler-Sl'-cÍ A. Mo1nigliano, "Time and ancient historiogra-
phy", in A11cic11/ a11d 111()dcm /-foton1, Middletown, Connecticut, 1977, pp. 179-214. Yerushalmi ob-
serva con1 razão qul' "as pl'rcepçõl's do tcn1po e as concepçlll's da história não engloban1 J mes1na
coisa" (1/,akhor, op. cit., pp. 122-12:1).
84 ";\ dificuldade que existe cm explicar L'Sse apML'nle pMadoxo vem de urna pobreza de linguagem
qw. ' no~ obriga, porfnlta de coi:::.a ml'lhor, a utili,1,cu a palavra 'história' para dcsignc1r tanto o passado
do qual tratan1 os historiadores, como o passado da tradição judaica" (ihid., p. 42). Ressaltar-sl'-,Í a
dL•claraç.'ío: porfalta de coisa 111c//l()r.
85 C)bsprv(Hl'n1os, l'ITI particular, as narrativas l'lTl forn1a dl' credo, con10 o Dcuteronôrnio 26/i-9, L'lll
torno do qu,1I o grandt.' l'Xl'geta Von R,1d articulava, na 6poca, a "teologic1 das tradiçôt>s do antigo
Israel": Th<'ologic dcs Altc11 7is/11111c11/s, Munich, Chr. Kaiser Vcrlag, 1960.
86 S(1gradas: isto l', post,1s ,1 parte do discurso rcsti.1nte l', portanto, do olhar crítico.
A CU'\Di\.\ll lll~l()RIC,\
87 É o título dL' um artig,, de H. White· "Tlw Burdcn of l listorv", in /-/i,/,11·_11 m1d F/1,•,1n1 , 11Yb6L
''/'· cit., pp. 111-13-l, citado por Ycrush.ilmi, Z,1k/1or, ,,,,. cil., p. 1-l.+.
88 ",.\ empreitadzi ac,1bou por se auton1antl>r, d bu~Ccl tornou-se Lí.u~tica [ .. \ ,1 sornbr,1 de FunL'"' que
nad,1 esquecl' paira sobrl' todos nós" (if,iJ, pp. 1JS-1 !Y).
i\ MI ~1C)RJ;\, ,\ IIISIORIA, OI S(lUFCl~11 NIO
a) Logo de saída, o artigo de 1984 anuncia, ao mesmo tempo, uma ruptura, uma
perda e a emergência de um fenômeno novo. A ruptura se dá entre memória e história.
A perda é a do que se denominou "história-memória". O fenômeno novo é o estágio de
uma "memória captada pela história". O tom é o de um historiador que se posiciona
em relação ao tempo no qual articula esse triplo anúncio. Este não trata de um acon-
tecimento, mas de uma situação. E é com base nessa situação que se deve falar, pela
primeira vez, de lugares de memória. Retomemos cada um desses pontos, começando
pelo último e colocando, provisoriamente, entre parênteses as alusões dispersas ao
tema dos lugares de memória.
O julgamento do historiador assemelha-se ao do filósofo Karl Jaspers quando esta-
tui sobre "a situação espiritual de nosso tempo". Essa situação é abordada sob o ponto
de vista do historiador, à maneira de uma conjuntura da qual é importante decifrar os
89 "O historiador, escrpve E. Rosenstock-1-Jupssy, é o médico da memória. Sua virtude é cuidar das
feridas, verd<1deir<1s feridas. Assim como o n1édico deve agir indepcndcntetnl'nte das teorias 1né-
dica~, porque seu pl1ciente est<í chwnte, assin1 tambén1 de\·c agir o historiador, in1pulsionado pcL1
n1oral, para restaurar a mc1nória de u111a naçílo, ou a da hu1nanida.dc" (Out of l\i't 10/utio11 1 Ne\'\.'
York, 1%4, p. 6%; citado por Yl'rush,1lmi, L'.aklwr, op. cil., p. 110).
91) Pil'rre Nora (dir.), Lcs Licux de 111i'11wirc, !, "Li République", op. cit., 1984, pp. XVII-XLII.
sintomas com uma docilidade que justifique a firmeza do posicionamento. A memória,
da qual se fala no começo, não é a capacidade geral investigada pela fenomenologia,
mas uma configuração cultural da mesma ordem que aquela à qual se referiu, mais
acima, um Terdiman; e a história não é a operação objcti,·a abordada pela epistemolo-
gia, mas a reflexão de segundo grau para a qual, muitas \'ezes, se reserva, na França,
o termo "historiografia", no sentido de história da história. Por isso seu lugar está
exatamente no final de um capítulo dedicado à condição histórica, mas apreendido
nos limites do presente histórico.
Primeiro tema, portanto: a ruptura entre memória e história. Para uma "memória
integrada", o passado aderia, de modo contínuo, ao presente; era a "memória ver-
dadeira". A nossa, "que é apenas história, rastro e triagem" (Lcs Licux de IIH'111oirc /,
p. XVlll), perdeu "a adequação da história e da memória" (i/,id.). "Uma vez que h,í
rastro, mediação, não se está mais na memória \·erdadeira, mas na história" (op. cit.,
p. XIX)"'. A memória é um fenômeno sempre atual, um dnculo \'ivido no presente
eterno, e "a história, uma representação do passado" (ibid. ). "A memória é absoluta,
e a história só conhece o relativo" (i/,id.). "A história é delimitação do passado \·i,·i-
do" (op. cit., p. XX)"".
Segundo tema: a perda da história-memória. "Só se fala tanto de memória por-
que ela não existe mais" (op. cit., p. XVII). Despregamento, término, acabamento,
passado definitivamente morto: tantas palanas que falam do desaparecimento. Os
sinais: o fim dos camponeses; o fim das sociedades-memória (Igreja, escola, família,
Estado); o fim das ideologias-memórias que ligam o futuro projetado ao passado
relembrado - e, em compensação, a aparição de uma "história da história" (op. cit.,
p. XX), de uma "consciência historiogrMica". Ela "traduz a subversão interna de
uma história-memória por uma história crítica" (op. cit., p. XXI), na qual "a história
começa a fazer sua própria história" (i/1id. ). Na França, particularmente, "a historio-
grafia é iconoclasta e irreverente" (ibid.). É o efeito da "desidentificação com a memó-
ria" (ibid.). Um tema anexo se torna preciso e se ampliar,í num artigo ulterior de
Nora: a perda da referência à nação, ao Estado-nação. Trata,·a-se de uma simbiose,
característica do espírito da Terceira República (demarcada no plano profissional
pelo nascimento da Rcu11c ilistoriquc, em 1876), que implica uma definição da memó-
ria perdida como si mesma, já aberta, além de sua intimidade e de sua continuidade
interna, para o ser em comum do Estado-nação. Daí a estranha noção de história-
memória em torno da qual gravita a primeira parte do artigo, intitulada "O fim da
história-memória" (op. cit., pp. XVII-XXV). A memória perdida não era uma memó-
ria individual, nem uma simples memória coletiva, mas já era uma memória instruí-
da no modo da sacralidade: "história sagrada porque naçfü1 santa. É pela naç,10 que
91 Aqui, unia nota ':->Obre ,1 lllL'lllt')ri,.1 jud .1ica, quL' "e\.cluía uir1a pn.'tKup,1ç,1o com a histúri,-1'' (il 1id.,
p. XIX), f,1/ eco ,1 Yl'ru,halmi.
92 É '-1 Halbvvc1Ch':-> quL' se aludl', pela opl1':->ÍÇ,ll1 t>ntrl' ,1 n1en1()ria dL' grupn, "n1L'J11Úric1s múltipla'.'.-> l'
desmu ltiplic,.1d<1s, coil'ti\·as, plu1\1i~ L' ind Í\ iduci I izadas", L' ,1 h istóri,1 quL' "pt...'rtcncL' a todo':-> t...' ,1 nin-
guém, o que lhL' d,í unia\ oc1ç,l.o p,Ha o uni,·L'rs:.al" (ihid., p. XIX).
nossa memória se manteve no sagrado" (op. cit., p. XXII)'n. "A nação-memória terá
sido a última encarnação da história-memória" (op. cit., p. XXlll). A história-memó-
ria abrangia, assim, por intermédio da nação, o mesmo espaço de sentido que a
memória.
Terceiro tema: da ruptura entre história e memória, da perda assumida da história-
memória, emerge uma nova figura, a da "memória apreendida pela história" (op. cit.,
p. XXV). Três traços dessa nova figura são desenhados. Em primeiro lugar, o reinado
do arquivo. Essa nova memória é uma memória "arquivística" (op. cit., p. XXVI), uma
"memória de papel", diria Leibniz. Reconhecemos nessa "obsessão do arquivo" (ibid.)
a grande mutação exagerada pelo mito de Fcdro, que trata da invenção da escrita. Vitó-
ria do escriturário no próprio cerne do memorial. Superstição e respeito pelo rastro: "O
sagrado investiu-se no rastro, que é sua negação" (op. cit., p. XXVII). O sentimento da
perda, como no mito platônico, torna-se a contrapartida dessa institucionalização da
memória. "Produzir arquivo é o imperativo da época" (op. cit., p. XXVlll). É um pouco
em tom de imprecação que Nora exclama: "Arquivai, arquivai, sempre restará algo 1"
(ibid.). O arquivo "não é mais o saldo mais ou menos intencional de uma memória vivi-
da, mas a secreção voluntária e organizada de uma memória perdida". "Terrorismo da
memória historizada" (ibid.). É exatamente o tom do Fcdro de Platão, mas também o de
Halbwachs, reencontrado, tal é a insistência com que é enfatizado o caráter coercitivo
dessa memória vinda do exterior. É notável que, a essa materialização da memória,
esteja vinculado o elogio do patrimônio (1980: o Ano do Patrimônio), cujos efeitos
corrosivos em relação à idéia de lugares de memória como contemporânea da memó-
ria apreendida pela história, e não em rebelião em relação à história, serão mostrados
pelos ensaios subseqüentes de Nora. Ele enfatiza, contudo, sua dilatação "até as fron-
teiras do incerto" (op. cit., p. XVII): de "propriedade transmitida pelos ancestrais [de]
patrimônio cultural de um país" -em resumo, "de uma concepção bastante restritiva
dos monumentos históricos, passou-se, muito abruptamente, com a convenção dos sí-
tios, para uma concepção que, teoricamente, poderia não deixar escapar nada" (op. cit.,
p. XXVlll). O leitor de Nora podia, desde 1984, ouvir a ameaça de uma redução in-
versa, dos lugares de memória cm sítios topográficos dedicados às comemorações.
Segundo traço, segundo sintoma: Nora vê no movimento de "conversão definitiva da
memória em psicologia individual" (op. cit., p. XXXIX) o preço a ser pago pela meta-
morfose histórica da memória. Segundo ele, isso não seria uma sobrevivência direta
da "memória verdadeira", mas um produto cultural de compensação pela historização
da memória. Deveríamos a essa conversão Bergson, Freud e Proust. Mais que tudo,
a ela deveríamos o famoso dever de memória que se impõe inicialmente a cada um:
"Quando a memória não está mais cm todos os lugares, ela não estaria em nenhum
lugar se uma consciência individual, numa decisão solit,fria, não decidisse dela se en-
93 Est.:1 consideração sobre a história-n1en1ória distingue Nora de Ht:1lbwachs, que traçava un1 corte
pn•ciso entre n1en1ória coletiva e 1ne1nória histórica.
\ Ul'.IJ!l, \ll l[[S[(l[/ll ,\
carregar novamente" (np. cil., p, XXX)" 4 , Último sinal, último sintoma da metamorfose
da memória apreendida pela história: após a memória-arquin) e a ml'mÓria-de\·er,
a memória-distância, '\la \'erdade, era o primeiro tema, o da rupturJ entre história e
memória; agora ele é retomado sob o signo da descontinuidade: passamos "de um
passado de focil acesso a um passado \'i\·enciado como uma fratura" (op. cit., p, XXXI),
Tah·ez haja, nesse tema, um eco do Foucault da Arqueologia do s11/1cr, militando contra a
ideologia da continuidade memorial. Nora fala do "culto da continuidade" (i/,id,).
É com base nessa nO\'a situação que surge a noção de lugares de memória. Enten-
de-se que não se trata aqui, unicamente, nem mesmo principalmente, de lugares topo-
gráficos, mas de marcJs exteriores, como em Fcdro de Platão, nas quais as condutas so-
ciais podem buscar Jpoio para suas transações cotidianas. Assim, os primeiros lugares
citados no torno I são o calendário republicano, representação externa do tempo social,
a bandeira, emblema nacional oferecido a todos. Tantos objetos simbólicos de memó-
ria, como a Bandeira Tricolor, os Arquinis, as bibliotecas, os dicionários, os museus,
assim corno as comemorações, as festas, o Panteão ou o Arco do Triunfo, o dicion,írio
Larousse e o Muro dos Federados. Tantos objetos simbólicos de memória oferecidos
corno instrumentos de base do trabalho histórico. Os lugares de memória são, eu di-
ria, inscrições, no sentido amplo atribuído a esse termo em nossas meditações sobre
a escrita e o espaço''ª. Essa abertura da noção deve ser enfatizada desde o início, pois
é seu achatamento nas localidades territoriais, graças à metamorfose patrimonial da
identidade nacional, que tornará possível essa captura do tema pelo espírito de come-
moração que ser,í deplorado pelo artigo de 1992. No início, a noção, em virtude de sua
erwergadura, não est,í a serviço da memória, mas da história: "Hj lugares de memória
porque não há mais meios de memória", é a franca declaração que saúda a entrada em
cena da noção (op. cit., p. XVII). Certamente, é em lugares que "se cristaliza e se refugia
a memória" (i/Jid,), mas trata-se de uma "memória dilacerada", cujo dilaceramento não
é, na \'erdade, tão completo que a referência à memória possa ser apagada. Nela, o sen-
timento da continuidade é simplesmente "residual". "Os lugares de memória são, pri-
meiramente, restos" (op. cit., p. XX])"''. Dessa arnbigi.iidade inicial \'irão os desli:;,1111en-
lJ--1- Segunda rl'fert'ncia ,1 mt'nH)ria jud,1ica "Para n1n1prl'l'nder c1 força l' o apelo ch.'s~a atribuiç,l.o,
ta h l-'/ fot-.::-.t• preci::-.o ,·oltar-::-.e para a llll'l1ll,lria judaica, que conhece hoje, entrt• tantos judeu::-. desju-
daiL,1dos, un1a recente re,1ti,·ação. Poi~, lll'SScl tradição quL' n,lo tL'l11 outra histúriZl SL'n,lo '.-.lia pró-
pria n1cmúria, ::-.l'r judeu L' lcmbr,ir-:-,c de ::-.l'-io, ma--. L''->S,l it..'n1branç(.1 irrL'Cus(h·el, un1,1 ,.L'/ inkriori-
.1ada, u intirna, pouco ,1 pouco, ,1 sl'-lo tutaln1l'nk. \1L'n1úria dl' qul', en1 últin1c1 instt1ncia: n1en1l')ria
da rncn1ória. :-\ p-..icologiz,1çil.o da n1en1<)ria deu a tudos o :-,l'ntimL'ntu dl' que ::-.ua fL'dençJo dl'pl'n-
di,.1, finalnlL'Iltl', d,.1 quitaç,.lo dl' un1,.1 d1\ id,1 impo:-.:-.í,·d" (Lc-:. Lil'lt:\ di' 111i'111oirc, 1, "Lc1 Républiqul'",
''/'· ,it., pp. XXX-XX\l).
lJ=l Ct. ,1cin1a, :-.egunda partl', c,1pítulo 1.
lJ(, l noLÍ\'L'i l]LIL' c1 idl'i(1 dc co1nemor,.1ç,.lo, rl'pL'tid(1mc1ltL' in, oc1da, fiqut.' c1prisionadc1 na no--.tal-
gia d,1 histl')ria-men1l)ri,1. Ft1 ainLt1 n,lo foi dl'nunci,1dc1 como rl·plicc1 LL1 ll1L'mt'1ria cHl impl'rio
da hisk1ria: "Sl'nl ,·igiLínci,1 COJlll'llllH,lti\ a, cl hi--.tl)ria ()'.-, \ cHrl'ria r,1pidaml'lltl' lo'.-> lug,HL':-, dl'
rnemóric1I" (il1id., p. :\XI\'). l dc1 :-,ua funç,lo dc rl'túgio qul' a llH:'lllÓric1 con1en1orati,·a rt.'ton1,irél
tl aL1que cL1 hi'.->tl)ria n,1CÍl)n,1l. A fr,lSL' n,1 qu,11 n·,·l'rberc1 o últimll artigo sobre a l'rd da COlllL'lllO-
rc1ç,lo Tlll'rl'Cl' :-,L'r citc1d'-1: "l)l':-,li/(lmL'J1to dti 11ll'mori,1I p<1r,1 o hi--.tl·1rico, dl' um mundo nndl' h,1,·i'-1
A \1l:~t(lRIA, A IIIST(JRIA, O ESQU[C\Ml:Nro
tos ulteriores da noção. O lugar extrai sua função da ruptura e da perda citadas: "Se
ainda habitássemos nossa memória, não precisaríamos consagrar-lhe lugares" (op. cit.,
p. XIX)9 7 . Contudo, o caráter residual da memória, sob o signo da história crítica, leva
a dizer que "uma sociedade que seria vivida integralmente sob o signo da história não
conheceria, afinal de contas, assim como uma sociedade tradicional, lugares nos quais
ancorar sua memória", (op. cit., p. XX). De fato, os lugares continuam a ser lugares de
memória, e não de história. O momento dos lugares de história é aquele "no qual ainda
palpita algo de uma vida simbólica" (op. cit., p. XXV).
Resta-nos falar dos lugares de memória sob o novo regime da memória apreen-
dida pela história. "Os lugares de memória, uma outra história", é anunciado com
um tom firme na terceira seção do artigo de 1984 (op. cit., pp. XXXlV-XLII). O ensaio
termina, com efeito, com uma nota conciliatória. Concede-se aos lugares de memória
uma eficácia notável, a de engendrar "uma outra história". Eles extraem esse poder
do pertencimento aos dois reinos da memória e da história. Por um lado, "é preciso
que haja vontade de memória. [ ... ] Basta que falte essa intenção de memória para que
os lugares de memória sejam lugares de história". Mas não se diz se essa memória é
a memória perdida da história-memória, cuja perda foi inicialmente deplorada, ou a
memória refugiada nos arcanos da psicologia individual e sua solicitação de dever.
Por outro lado, é preciso que a história se proponha a ser uma memória esclarecida,
corrigida. Mas tampouco foi dito no que se transforma o projeto de dessacralização da
história.
Esse poder de fazer interagir esses dois fatores, a ponto de chegarem a sua "so-
bredeterminação recíproca", repousa na estrutura complexa dos lugares de memória
que acumulam os três sentidos da palavra: material, simbólico e funcional. O primeiro
fixa os lugares de memória em realidades que consideraríamos inteiramente dadas e
manejáveis; o segundo é obra de imaginação e garante a cristalização das lembranças
e sua transmissão; o terceiro leva ao ritual que, no entanto, a história tende a destituir,
como se vê com os acontecimentos fundadores ou com os acontecimentos espetácu-
los, e com os lugares refúgios e outros santuários. Nessa ocasião, Nora evoca a noção
de geração, à qual um artigo ulterior será dedicado, e que supostamente acumula as
três significações. O tom torna-se quase lírico para falar dessa espiral do coletivo e do
individual, do prosaico e do sagrado, do imutável e do mutável - e dessas "faixas
de Moebius enroladas sobre si mesmas", nas quais se encerra "o máximo de sentido
no mínimo de sinais" (op. cit., p. XXXV). A pretexto do patrimônio, evocado com in-
dulgência, o malefício da patrimonialização ainda não é percebido em sua tendência
a reduzir o lugar de memória ao sítio topográfico e a entregar o culto da memória aos
abusos da comemoração.
,:1ncL·strais par(1 u1n n1undo da relaç.lo contingente ao que nos foz, passagen1 dt> 111na história
totê1nica para unia história crític{1: é o n1on1ento dos lugc1res de 111emória. NJo mil is se Cl'lebra <7
naç~o, pon:•m se estud,1m suas celebr,1çõcs" (i/,id., p. XXV).
97 ()uve-se <1qui uni eco das críticas desenvolvidas por Pl,itão contrc1 o "aidc-111é111oirc", a l1uponllll'::.i~
(cf. primcir,1 parte, capítulo 1).
.\ Ul'\JJI( \(l IIIS lllRI( .\
98 "Afinal, ocorrL'll, con1 cl ger<lÇZI<.), unia ~ub\·l'rsZio interna an(ílogci ,l. quL' pudemos dt.''.:-Crt.'\.L'r L'Jll
relação ao acontecimento n1odL'rno t..' n1idiati1:ado" (Lc.;; Lil'IIX de 111t;111oirt', 1, ov t'it., p. 9-1-I). () (1utor
rt_'tnete aqui <l '.',l'U clrtigo "A ,·oltt1 do acontecin1ento'' (en1 hlire dt' /'lli::-.tuire, op. (it.).
A MFM(lRIA, A Hl~J(lRJA, () J'S(.)CEllMJ'1'70
99 Falei sobre isso em tern1os positivos, na prin1eirt1 parte desta obra, nci co1npanhlé1 de E. Casl'Y;
cf. acima, pp. 54-56 e p. 157.
100 Assl1n, o tricenten,írio da Revogação do Edito de Nantes teria alimentado 1nais o imaginário pro-
testante que o in1,1gini.Írio nacionc1l dedicado a u1na rcconciliaç,l.o e a un1 esquecimento das ofcn~
sas impostas pelo soberano (Ll's Lic11x de 111t'1110irc, Ili, op. cit., p. 991).
\ Ul'dlll .\() IIIST()Rll \
turo. "É à emergência desse presente historiLado que se den· a emergência correlati\·a
da 'identidade'". Um uso memorial substituiu o antigo uso puramente administrati\'O
ou policial:" A França como 'pessoa' chama\·a sua história. A França como identidade
só prepara seu futuro na decifração de sua memória" (op. cil., p. !OH)). Amargura.
Então, a noção de lugares de mern(iria foi, no final das contas, mal escolhida J
Uma sombra passa sobre o termo e por sua "aliança aparentemente contraditória de
duas palavras, urna delas dando idéia de afastamento e a outra, de aproximação" (op.
cit., p. 1011). O historiador não quer, tod,ffia, se perder no pesar e na nostalgia. Ele
prefere a réplica alti\·a: "Ao autorizar a junção de objetos de naturezas tão diferentes,
[a expressão lugares de memória] permite, na explosão, a recomposição do nacional
explodido. É o que justifica, talvez, a ambição desses três \'lilumes em múltiplas n1-
Les e dos quatro que os precederam: constituir, na cadeia praticamente contínua das
histórias da França, um momento do olhar dos franceses sobre a França" (i/Jid.).
Assim, ao escre\·er, e ao fazer urna representação cscriturc'iria da subversão da
"nação histórica" pela "memória nacional", o historiador-cidadão resiste. Não sem
lançar um desafio à sua época: falando no futuro anterior, ele e\'0G1 o momento em
que "urna outra maneira do ser-juntos será implantada", e em que "a necessidade
de exumar as referências e explorar os lugares terá desaparecido" (op. ci/., p. 1(]12).
Então - anúncio in\'erso daquele pelo qual, faz alguns anos, a introdução de Lic11x
de 111é111oirc se iniciou-, "a era da comemoração será deíiniti\'amente encerrada. A
tirania da memória só terci durado algum tempo, mas era o nosso tempo" (i/iid.).
Direi, contudo, que até lá pre\'alece a "inquietante estranheza" da história, justa-
mente quando ela pretende compreender as razões de sua contestação pela memória
comemorativa.
3
O Esquecimento
Nota de orientação
O
csq11cci111rnto e ºteni110 desig1111111, sep11mdl7 e conj1111t11i11c11tc, o lwri:011/c de toda 11
nossn pesq111s11. :-.eparad11111c11/c, 11a 111ed1da e111 que cada 11111 deles depende de 11111i1
pro/Jle111iílic11 disli11ta: 110 rnso do esq11ccilllc11to, 17 d11 111e111ôril7 e dnt,delidadc ao p17s-
Sl7do; 110 do perd110, a da rnlp11/Jilid11de e da reco11ci/i17çí'ío co111 o p11ss11do. Co11j1111/1m1e11te, 1w
111cdid11 e111 que seus rcspectiuos iti11erârios se rccrn:,m1 1111111 l11g11r que 1u10 1' u111 l11g11r, e que o
tem/O /iori:011te desig1117 lllllis corre/1m1e11te. Hori:011te de 1111111 111e111ôria apa:ig11adl7, e ali' 111es-
1110 de 11111 esq11cci111c11totl'ii:.
N11//l sentido, a pro/Jlenuítirn do esq11eci111e11to 1; 11 lllllis ,•asta, 1111 11Iedid11 c111 que o 11p11:i-
g1um1e11to dn 111e111âri11, e111 que co11sisle o penft'ío, p11rcce co11stit11ir a últi11I11 L'i11p11 de 11111 per-
rnrso do esq11cci111e11/o, que c11lllli1111 11essa ars obli\·ionis que Hamld Weinricli' desejaria ,•cr
co11stit11ída p11mlelai11e11/e à ars memoriae ex11111i1111d11 e cell'lm1d11 por Fra11ces Yates. Foi c111
co11siderap1011 esse se11tido que deâdi i11c/11ir, 110 título d11 prese11tc ol>m, o csq11eci11u•11to, e111 pi'
de ig1111ld11dc co111 a 111c111ôri11 e 17 liistôria. Ocfí1to, o esq11eci111c11to co11ti11111111 ser a i11q11iet1111te
11111e11ça t)IIC se deli11ei11 110 plano dcfi//ldo dofÍ'l/Oll/el/Ologi11 da 111e111ôria C dn epistell/ologia da
liístôria. So/J esse aspecto, ele 1' o tcrlllo el/ll>lenuítico da co11dip10 liistôrirn toi1111d11 colllo tel1111 de
11ossa terceira p11rte, o l'llll>le11111 d11 z•11l11era/,ilid11dc dcssn co11diç110. N11111 outro se11tido, o pro-
1>/ema da 111c111ôrí11 é o 11wis unsto, 1'Ísto que a n•e11t1111I ars obli\·ionis se projeta colllo 11111 duplo
da ars memoriae, 1111wfig11ra da 111c111ôriafl'ii:. Ora, de certa 11I1111eim, 11 idéia de 111rn1,íriatl'ii:
ti11/i1111/,crto o c1m1i11/w p11m toda 11 11uss11 c111preitad11, co11t1111to 1111e tmtásselllos de 1u10 deix11r 11
p11tologi11d11111e111ôria lcz•11r 11111e/lwr so/Jrc afÍ'110111enologi17 da 111e111ôri11 co11111111 considerada L'lll
su11s _ti1scs de c11111prilllc11to l>clll sucedido; L' ,•crdade que 1u10 sal>í1m1os, entt10, qual seria o preço
11 pag11r por 11tri/Juir sentido pleno à id1'i11 de 111c111(íri11 .fL'li:, 11 s17/,er, 11 trm•cssia da dialétirn d11
/iistôril7 e da 111c111ôri11 e, para concluir, 17 dupla pn,,•a do csq11ccilllC11to e do perd110.
É 11cssc jogo de lwri:011tl's, 110 111cslllo ,e11tido e111 que pudclllOS fi1l11r de 1ogo de csrnlas. que
nossa i11ziestigaç110 ten11i1111râ. No sentido d11do por C11dmner e que 11ssu1110, lwri:011te 1u10 quer
di:cr sollle11tc Jús110 dos liori:011tcs, 11111s t11111/Ji'111 fúg11 de lwri:011tcs, i1111m/J11111c11to. Tal co11-
fissão não(; inesperada 1111/11 e111prce11di111ento que é 11prcse11t11do, desde o início, sob o signo da
crítica impiedosa dirigida contra a hubris da rcjlexiio total.
Pode-se falar lo11g11H1e11te so/ne o esq11eci111e11to sem evocar ainda a pro/Jlenuítica do perdão.
É o q11ef11reH10s neste capítulo. De início e maciçamente, é como dano à conftabilidade da 111cH1ô-
ria que o esquecimento é sentido. Dano, fraqueza, lacuna. Sob esse aspecto, a própria 111e111ôri11
se define, pelo 111e11os nw11a primeira instãncia, como luta contra o rsqucci111ento. Heródoto a111-
bicio1111 preservar do rsquccill1e11to a glória dos gregos e dos bárbaros. E nosso famoso dever de
111e111ôri11 rnw1ci11-se como 11111a exortnção a 1u10 esquecer. Porém, ao 111es/110 tempo, e 110 mesmo
1110vi111cnto espo11tâ11eo, 11{t1st11111os o espectro de u11za 111e111ôri11 qw.' 1111d11 esqueceria. Conside-
m1110-l11 até 111cs1110 11wnstruosa. Temos prcse11te 110 espírito a fábula de Luis Borges sobre o ho-
111e111 que nada esquecia, retratado por Funes e\ memorioso 2• Haveria, portanto, u111a medida
110 uso da 111c111ôri11 /111111111111, 11111 "1111d11 demasiado", segundo 1111111 fórmula da sabedoria 1111tig11 7
O esqucci111e11to não seria, port1111to, sob todos os aspectos, o i11i111igo da 111e111ôria, e 11 111emôria
deverin negociar co111 o csqucci111e11to pnra ac/111r, iís ergas, 11 medida exata de seu equilíbrio com
ele7 E essa justa 111e111ôri11 teria 11lgw1u1 coisn e111 co111u111co11111 re11zí11ci11 à reflexão total 7 U11111
111e111ôri11 se111 esq11eci111cnto serin o zílti111of1111tas11111, 11 zílti11111 representação dessn reflexão totnl
que co111b11tr111os obstinad11111e11te e111 todos os registros da izl'r111e11l'ldica da condição histôrirn?
É preciso ter e111 111e11te esse prcssmti111c11to ~ essa Ahnung ~ durante tod11 a travessia
dos desfiladeiros que cscondc111 a linha do lzorizo11tc.
Não é exagero falar aqui de desfiladeiros 11 scre111 transpostos. Q11e111 resolve 11v11li11r os 11111-
hfícios evide11tes e os bcll(fícios prrs1t111idos do esqueci111ento co11fro11ta-se, e111 primeiro lugar,
com unw polisse111i11 opressivn da p11l11vra "esqueci111e11to", rnja 11b1t11dânci11 é 11tcst11d11 11a lústô-
ria literári11 tal como Hnrald Wei11riclz 11 escreveu. Para nos livrar da oprf'ssão que a lingu11gc111
11cresce11ta, pela sua profw,ão, ií i11co11stâ11ci11 nostálgica inerente ao tc11111 do esquecimento, pro-
ponlzo u11111 grade de leitura b11scad11 1111 idéia de grau de prof1t11did11dc do esquecimento. P11m
esclnrccer essa distinção, eu a colocarei 1'111 relaçào com a que presidiu, nntcriornzcntc, ií descri-
ç110 dos fc11ô111e110s 11111e111ô1zicos considerados sob sc11 ãngu/o "objetal" (segundo o uso s11bst1111-
tivo do termo "le111bm11ça"), a distinção entre 11/Jordagc111 cog11itic>a e 11bord11ge111 pragmátirn;
sob a primeira, 11 111c111ôri11 foi apreendida de acordo com sua 11111l1ição de representar fic/111c11te o
passado, c11qu1111to a segunda Ylj'cre-se ao lado operatório da 111c111ôria, srn exercício, o q11al é 11
ocasi110 da ars mcmoriae, 11111s t11111/Jé111 de usos e 11b11sos que te11tm11os rcpertoriar, seg11ndo
11111a esrnla própria. O csqucci111e11to convida 11 1111111 releitum das duns problemátirns e de sua
nrtirnlação graçns a 11111 princípio novo de discri111i1111ção, o dos níveis de profu11did11de e de
1111111ifcst11ç110. De fato, o csqueci111ento propl1e 111na nova signifirnção dada à idéia de prof1111di-
dadr que 11 fe110111enologi11 da 111c111ôri11 tende 11 identificar co111 a distância, com o af11st11111c11to,
segundo u11u1 Jôm111l11 horizontal da profu11did11dc; o csqucci111e11to propl1e, 110 plano existencial,
u111a espécie de pcrspcctiuação que a metáfora da profundidade vertirnl tcn/11 exprimir.
2 J. 1.. Borg'-'s, 'Tunes qui n'oubli,1it pas", in Fiction,, PMis, Callimard, 1957.
Oete11do-111e 11111 instante 110 plano da profi111didade, propo11'10 pôr c111 correlaçiio II pro-
/1le1111ítirn rcl11tim 11 esse 11íi'el co11111 11/,ordage111 cog11itim da 111e111ória espontânc11. Ocfi1to, o
q11e o esq11l'Ci111e11to dcspert11 nessa encm:illwd11 é 11 própri11 11pori11 q11c estâ t//1 fó11te do rnrâtcr
pro/1/e1111ítico d11 reprcsc11t11çiío do p11ssado, a s11/Jer, a f11/t11 de co11fi11/1i/id11de da 111e111óri11: o es-
q11cci1ne11to é o desafio por e.rcc/1'ncia oposto à 11111/,ição de co11fia/1ifid11de da 111c111óri11. Ora, a
confial1ilidade da le111lm111ça procede do e11ig11111 co11stituti1•0 de toda 11 proble1111ítica d11111e111ôria,
11 s11/1cr, a dialétirn de prese11ç11 e de ausência 110 â11111go da representaçiio do p11ssado, ao q11c se
11crcsce11ta o se11ti111e11to de distâ11ci11 próprio à !e111/1ra11ç11, difáe11/c111e11te d111111s1'11ci11 si111ples
di1 i11111ge111, quer est11 sin•11 pam descrC1•er ou sinllllar. A prohle1111ítica do csq11cci111mto,.f1)}'}/111-
!11da e111 seu níuel de 11111ior profu11did11de, inten•é111 110 ponto 11111is crítico dessa prob!e111âtirn
de prese11ç11, de aus,'nci11 e de distâ11ci11, no pólo oposto 11 esse pequrno 11Iil11gre de 1ne111ôriaf1•li:
constituído pelo reco11Jzcci111e11to atu11l da !e111/1m11ç11 p11ss11da.
É nesse ponto uítico que é propost1111 gm11de bifi1rcaçiio que ,•11i co111a1ui11r as duas pri111ei-
ms p11r/cs deste estudo~ 11 saber, 11 pol11rid11de entre du11s gmndes .figums do esqucci111cnto
profimdo, que de110111ino esqucci111ento por 11p11gi1111ento dos rastros, e esqucci111rnto de resen•11,
e.rpressiio que, dentro e111 pouco, tentarei justific11r. A ess11 grande /,ifi1rrnçíio síio dedirnd11s 11
pri111eira e 11 segu11d11 p11rtes deste capítulo. Co1110 11 de110111i11açiio d11 pri111eimfigum do csque-
ci111e11to profundo per111ite nnnpreender, é 11 pro/,/e111átirn do mstro q11e co11w11iia a do esqucci-
111e11to nesse níue! radical. Essa irmpçiio é total111ente preuisÍl'l'l. Desde o início dest11 o/,m,
_fímws co11fro11t11dos co111 a proposiçíio do Teeteto de Platíio de 1111ir o destino da eikt,n 110 d11
tupos, da i111prcssiio, bascado 1111111111odelo di1111111D1 dei.rad11 por 11111 anel /Ili cem. É esse ,•ínrn-
lo alegado entre i111agc111 e i111prcss110 que o esqueci111ento obr(<2,1111 exp!omr 11111is profund11111e11/e
do que fi:e111os 11/t; 11gom. Ocfi1to, toda 11oss11 pro/Jle1111ítica do rastro, d11 A11tigiiidade 110s nossos
dias, é herdeira dcss1111oçiio 11ntiga de i111prcssiio, 11 q1111l, longe de reso/i•cr o e11ig11111 da presença
da 1111sé11cia que agrarn 11 prohle111átirn d11 rcpresm/11çiio do p11ss11do, 11crescrnta-l/1c seu e11ig11111
próprio. Qual?
Desde o co111enllÍrio dos textos de Pl11il10 e de Aristóteles, .filllda111e11tados 1111 111etáfóra d11
i111pressiio 1111 cem, propus distinguir tn·s esp,;cies de mstros: o mstro escrito, que se tomou, 110
plano d11 opcraçiio /iistoriogrâfica, mstro dorn111e11/11/; o rastro psíquico, que é preferí,•el clumwr
de i111pressíio, 110 sentido de afi·cçíio, deix11d11 e111 nós por 1111111co11tcci111c11to 1w1rrnntc ou, co1110
se di:, c/iocante; enfim, o mstro cerebral, cortic11l, tmt11do pelas 11eurocú·11ci11s. Aqui, deixarei
de l11do o destino do rastro docz1111rnt11l, que 1á _frii discutido 1111 seg1111d11 parte, 11iio se111 le111/•mr
que, co1110 todo rastro 11111teri11! ~ e, 11 esse respeito, o rastro cortical está do 111es11w l11do que o
mstro dorn111ent11l ~, ele pode ser altcmdo _fisica111e11tc, 11p11gado, destmído; _fíii, mtrc 011/ms
fi1111/id11des, para conjurar essa 11111e11ç11 de apag11111e11to que se instituiu o 11rq11iz•o. Resta a justa-
posiçiio das duas outras esphics de rastros: mstn, psíquico, rastro cortical. Tod1111 problc1111ítica
do esqucci111ento profundo se decide 11ess11 artirn!aç(io.
A dificuldade é, e111 pri111eiro lugar, u11111 difirn!d11de de 11bord11ge111. É por ca11ii11/ws mdi-
rn/111cnte /ietcrogéneos que tc1110s acesso a u111 ou 110 outro. Sô co11'1ece111os o rastro cere/,ral,
cortical, extenw111e11tc, pelo con/ieci111ento científico, se111 que 11 este corresponda 1111//l pro,•11
sentida, uiuid11, co1110 110 caso dcss11 parte da se11sibilid11de orgâ11im que nos ji1:: di::.cr que ,•e11ws
"co111" nossos olhos e que segum111os "co111" noss11s 111110s. Niío di:e11ws, d11 111csi1111 11111ncim, que
A MFMllRIA, A Hl~lllRIA, () i"o(JUl:CIMJ:N ru
pensrmws "co111" nosso cérebro. Aprendemos que esse cérebro-objeto é nosso cérebro, situado
nessa cnixa cra11ia1111 que é nossa cnbcça, co111 sua jiic/111da de rosto, nossa rnbcçn, e111blema da
liege111011ia que pretendemos exercer sobre nossos 111e111bros. Complexa é essa aproprinçiio de
"nosso" cérebro~ e dos rastros que o co11/Jeci111e11to objetivo nele desl'/lhn. A primeira seção
deste cnpítulo será dedicndn às discussc'ies sobre 11 11oç110 de rastro 11111ésico". Dela resulta odes-
tino da primeira forma de esq11eci111e11to profundo, o esquecimento por 11paga11u:11to dos rastros.
O acesso nos prcsu111idos rastros psíquicos é tot11l111c11tr diverso. Ele é 111uito 11111is dissi11111l11do.
Sô se fala deles retrospectiv11111e11tc, com base c111 experiências precisas que tê111 como modelo o
rcconheci111e11to das i11111ge11s do passado; essas experiências faze111 pensar, u!tcrior111e11te, que
muitas lembranças, talvez as 11111is preciosas entre as le111bm11ças de i11fânci11, não foram chji11i-
tiva111entc apagadas, mas ape1111s tomadas i1111cessíveis, indisponíucis, o que 110s leva a dizer que
esquecemos 111e1ws do que acredita111os 011 do que tc111e111os.
A difirnldade relacionadn à problc111áticn dos dois rastros, porém, 11110 é 11pe11as de acesso nos
fenômenos c111 questão. Ela diz respeito à própria sig11iftcnçiio que pode ser dada às duns acepçües
do mstro, 1111111 ex/ema, a outra, í11ti111a. A primeira seção, dedicnda ao 111a11ejo co11ceit1111l da
idéia de rastro mnésico 110 âmbito das neurociências, está articulada e111 três 11w111entos. 1) Per-
guntar-se-á, previamente, q1111l é 11 posição de princípio do filósofo que sou pcm11tc os cic11tístas
q11cfala111, de 111odo geral, de rastros 11111ésicos 011 11110 111111'sícos? 2) De modo mais específico: o
que são rastros 11111ésicos? A esse respeito, que e11si11a111ento 111útuo se dão o fe110111e11ôlogo e o
neurologista? É nesse estágio do questio1111111e11to que a interrogação mais i111port11nte será con-
duzida ao seu mais alto grau de proble11111ticid11de. 3) Que lugar, fi1111l111e11te, 11 qucstiio do csque-
ci111c11to oc11p11rá 110 quadro das disfu11çiies da 111e111ôri11 7 O esquecimento é real111entc 1111111 dis-
função? É com esse terceiro seg111e11to da investigação que o esqueci111e11to por 11p11g11111cnto de
rastros será delimitado 111ais de perto. Mas o princípio da solução proposta estará contido ,w
prí111eiro 1110111ento, co111 as id1;ias de causa sine qua non, de substrato, de correlação entre or-
g1111iz11çiio cfunção. A oríc11tação geral será a de u111 di'svio epistemológico entre o disrnrso sobre
o 11e11ro1111l e o disrnrso sobre o psíquico. Esse desuio será protegido co11tm toda e qualquer ex-
trapolação espiritualista 011 reducionis1110 111aterialista, 111cdiante 11111a abstenção sem fa/1111, 110
plano ontológico, na querela clássica sobre a questiio dita d11 união da 11111111 e do corpo.
É graças 11 essa suspensão que levarei o mais longe possível, na segunda seção, 11 pressu-
posição sobre a qual se estabelece o recurso a 1111111 noção distinta de rastro psíquico, seja qual
for seu condicio1111111c11to 11euro1111l. A cxpcriência-c/wve, como acnba11ws de dizer, é 11 do rcco-
11/icci111c11to. Falo dele como de 11111 pequeno milagre. De fato, é 110 1110111rnto do rcco11/ieci111ento
que se considera a imagem presente co1110 fiel à afecção primeira, ao choque do aco11tecime11to.
Onde as 11curociênci11s fal11111 si111ples111cnte de rrntivação dos rastros, o fe110111cnôlogo, deixan-
do-se instruir pela experih1cia viva, falará de w1111 pi'rsistfocia da impressão originária. É esse
disrnrso que tentarei elevar a seu 11111is alto grau de i11cn11dcscê11cía, explorando, na esteim de
Bcrgson, e111 Matéria e Memória, a pressuposíçiio inteiramente retrospectiva de w11 11asci-
111ento da lembrança desde o exato momento da i111pressiio, de 1111111 "revivcscfocia d11s imagens"
3 Adoto o vocabulário das neurociências, que falam de rastro 1nnésico. Resl'í\'O o tenno 1nncn1ôni-
co par<-1 o conjunto dos fenôn1enos ligados a un1a fcno1nenologia da rnemóricl.
,\ Ul\.lll~.\ll Hl~IORIC,\
4 J.-P. Changeux e I'. Ricceur, Cc qui 11011,fait pc11scr. La 11aturc ct la r<'glc, op. cil.
5 Jél no início, declcirei o seguinte: "Minha tese inicial é que os discursos dos dois lados dcrivan1 de
duas perspectivas heterogêneas, isto é, não redutíveis u1na à outra e não deriváveis u1n,1 da outra.
Nun1 discurso, trata-se de neurônios, de conexões neuronais, de sistc1na neuronal; no outro, fala-
me apoiava, então, na idéia de que todo saber, por definição limitado, relaciona-se ao
que é, para ele, o referente último, reconhecido como tal pela comunidade científica da
mesma disciplina, esse referente não sendo último senão nesse campo e definindo-se
ao mesmo tempo em que ele. Não se de\·e, portanto, transformar um dualismo de refe-
rentes num dualismo de substâncias. Essa proibição diz respeito tanto ao filósofo como
ao cientista: para o primeiro, o termo "mental" não se iguala ao termo "imaterial",
muito pelo contr,frio. O mental vi\'ido implica o corporal, mas num sentido da pala na
"corpo" irredutÍ\·el ao corpo objeti\'O tal como é conhecido nas ciências da natureza.
Ao corpo-objeto opôe-se semanticamente o corpo vi\·ido, o corpo próprio, meu corpo
(de onde falo), teu corpo (a ti, a quem me dirijo), seu corpo (dele ou dela, de quem con-
to a história). Há apenas um corpo meu, enquanto todos os corpos-objetos estão diante
de mim. Um problema que continua mal resolvido pelo fenomenólogo hermenêutico
é o de explicar a "objeti\·ação", como ele diz, pela qual o corpo próprio é apreendido
como "corpo-objeto"'·. De fato, o trajeto entre o corpo próprio e o corpo-objeto é longo.
É preciso fazer o desvio através da idéia de uma natureza comum e, para isso, passar
pela idéia de uma intersubjetividade fundadora de um saber comum, e remontar até a
atribuição de estados mentais compará\'eis e concordantes entre uma pluralidade de
sujeitos encarnados. Em última instância, só essa pluralidade estc'í habilitada a dizer
"meu" cérebro como um dos cérebros, outro entre todos os outros. Posso então dizer
que o outro tem, como cu, um cérebro. É no fim desse longo circuito que existe "o" cé-
rebro, objeto das neurociências. Estas têm como indiscutÍ\·cl o processo de objeti\'açào
que continua a ser para a fenomenologia hermenêutica um problema considerá\·el, em
muitos aspectos mal resoh,ido. Em que sentido, de fato, o corpo próprio e o corpo-ob-
jeto são o mesmo corpo?C O problema é difícil, na medida em que não se \'ê, à primeira
vista, passagem alguma de uma ordem de discurso para a outra: ou falo de neurônios,
etc, e me atenho a certa linguagem, ou falo de pensamentos, açôes, sentimentos, e os
ligo a meu corpo, com o qual tenho uma relação de posse, de pertencimento. Podemos
agradecer a Descartes por ter le\'ado o problema do dualismo epistemológico a seu
ponto crítico, além das facilidades e das confusôes do hilemorfismo medie\·al, até ao
limiar da noção do "homem", como esse ser que não está em seu corpo como o co-
<.,L' de conhecin1cnto:-., açC)L'S, sentin1entos, i:-.to l', de atos ou estado:-, caracteriLado:-, por intl'nçõcs,
n1oti\'c1çôes, \·,1Iores. Con1bdterei, port,1nto, o que chan1an..•i, dor,n·ante, de c1111c"llgan1a sen1ântico, l'
que \'ejo resun1ido na fórmula dign,1 de uni O\.Ín1oro: "(_) cl·rebro ppn:-,a" (op. cit., p. 25).
h \.lo que diz respeito il noçLlo de referente últin10, o problen1a foi encontrado vcirias \Tzes nesta
obra; assin1, oo tratar da oper<1ção historioµ;rcífica, ad1niti que o rcfert'nte último era a açJo L'Ill
comun1 no trajeto da forn1açclo do ,·ínculo ~ocial L' das identidades aferentes. De n1anL•ira mais
precisei, <H_iotc·i, no plano da represenLiçào litcrj_ria historiadora, o conceito de pacto dL' leitura
entrL' o L'scritor L' seu público, pelo qual Selo dl'liniitl1das as L'xpectati\·lis, por l'Xc1nplo, de ficçclo
uu de realidade, tratando-se de un1l1 história contada. Uni pacto de nicsn1a nc1tUrt..'za se L'stabeJL,cc
tacita1ncnte t:.'ntre o~ cientist(is l' o público escl,1recido.
7 Eni La Nnturc ct !a !\l.'s,fr, apresento esse problcn1a con10 o dt.' uni terCL'iru discurso: scril1 uni discur-
so absoluto, outra \"L'rs,lo do discurso da refle,clo aqui conil1atido? ()u outro discurso, quL'r L'SJ-1l'-
culati,,o à nianeira de Spino;-a ou dos p(1~-kanti,1nos, quer francaniL'nte niítico, liberto a niúltipl,1s
tra nsposiÇÕL'S?
A Ml"MORIA, A HIST(JRIA, lJ IS()UICl\1F'.';Hl
mandante em seu navios. Ora, o cérebro é, sob esse aspecto, notável: enquanto tenho
com alguns órgãos - sensoriais, motores - uma relação dupla que me permite tanto
considerar os olhos e as mãos como partes da natureza objetiva, quanto dizer que vejo
com meus olhos, seguro com minhas mãos, não posso dizer, da mesma maneira, de
acordo com o mesmo sentido de pertencimento, que penso com meu cérebro. Não sei
se é contingente que o cérebro seja insensível, mas o fato é que não sinto nem movo
meu cérebro como um órgão meu; nesse aspecto, ele é totalmente objetivo. Só me apro-
prio dele enquanto alojado em minha caixa craniana, portanto, nessa cabeça que honro
e protejo como lugar de poder, de hegemonia, na postura vertical, essa maneira de se
apresentar e de se manter diante do resto do mundo. O cientista se permite, talvez,
dizer que o homem pensa com seu cérebro; para o filósofo, não há paralelo entre as
duas frases: "eu seguro com minhas mãos", "eu compreendo com meu cérebro". Para
ele, o cientista se concede uma permissão em seu pacto de discurso que faz com que
a preposição "com" designe outra coisa que não o elo vivido de pertencimento e de
posse referente ao corpo próprio, ou seja, à relação entre organização e função, de que
falaremos um pouco.
Colocando-se na fronteira entre o epistemológico e o ontológico, o filósofo se aterá
de bom grado à fórmula de Platão em Fédon: Sócrates, ao ser interrogado sobre as
causas que fazem com que ele não fuja, mas permaneça sentado à espera da morte que
lhe é infligida pela cidade, dá duas respostas: ele permanece nessa posição porque os
membros de seu corpo ali o retêm; o corpo é então a causa sem a qual - a causa silzc
qua IJ(J/1; mas a causa verdadeira que faz com ele permaneça ali é a obediência às leis da
cidade. Retomando a fórmula, direi que o cérebro só é causa no plano da condiciona-
lidade expressa pela idéia de causa sinc qua 11011. Pode-se então falar como Aristóteles,
no âmbito de sua teoria das formas de causalidade, de causa material, ou, como prefiro
dizer, de substrato.
O cientista ainda respeita os limites desse discurso causal quando se restringe a
falar da "contribuição" de tal área cortical, do "papel", da "implicação", e mesmo da
"responsabilidade" de tal montagem neuronal, ou ainda quando declara que o cérebro
está "envolvido" no aparecimento de tais fenômenos psíquicos. Porém o biólogo exige
mais, e isso independentemente da opção filosófica compartilhada de bom grado pela
comunidade científica, para a qual o dualismo alma-corpo é anátema e o monismo
materialista uma pressuposição evidente na condição de artigo do pacto que rege a
comunidade científica. O homem das neurociências reivindica, em seu próprio campo,
um uso menos negativo da causalidade que reina entre a estrutura ou a organização e
a função. Essa relação passa por cima de certa heterogeneidade - a organização não
é a função - e, nessa condição, equivale a correlação. E esta exprime mais do que a
causa sinc qua mm: a esta, ela acrescenta uma condicionalidade positiva que autoriza
8 F. A,couvi, "La formation de l'individu comme sujet corporl'I à partir de Descartes" i11 C. Cazzani-
ga e C. Zarka (dir.), L'i11divid11011c/ pc11sicro 1110dcmo, sccoli 16-18; trad. franc., L'/11divid11 dons lo pc11si'e
1110dcmc, XVl/'-XV/1/' sii'clc, t. 1, Pisa, ETS, lstituto italiano di cultura (Fr.), Università degli Studi
(Pisa), 1995.
,\ l l l , l l l l \(l HhlURI( \
in fine a afirmação de que o cérebro é ess,1 organização que faz com que eu pense ou,
em resumo, que me faz pensar. Le\·ando sua \·,mtagem mais além, o biólogo buscará
argumentos na correlação entre a estrutura e a função e tr,msfcrirá para a organiza-
ção cerebral entidades que dependem, por outro lado, do discurso do mental, como
representaçôes e imagens, entidades que têm \'isivelmente uma ligação com a função.
Aqui, o filósofo hesitarei e suspeitará de um am,ílgama semc'mtico que, segundo ele,
infringe as permissôes ligadas à idéia de correlação. Mas o biólogo se pre\·alece da
no\·a ambigüidade relacionada com a noção de função: progressivamente, todo o não-
cortical é função. A tendência hegemónica própria a toda ciência exerce-se, então, em
relação às ciências próximas, quer abaixo do nÍH'l da organização cortical molar, no
plano da química biológica, implicada particularmente no tratamento dos permuta-
dores sin,ipticos, quer, de maneira mais problemática para o filósofo, acima do nÍ\'el
propriamente cortical, na ordem das ciências cogniti\'as (falamos de ciências neuro-
cogniti\·as), da psicologia do comportamento, da etologia, da psicologia social, mesmo
que, para tanto, tenha de transpor alegremente o passo entre rastro cortical e rastro
cultural. Aqui, o filósofo obrigar-sc-,í, de modo natural, a moderar sua vigilância sc-
mfü1tica com uma tolerância em relação a transgressões admitidas, como por estipula-
ção, pela comunidade científica em questc'io. É assim que o neurologista se autoriza a
pôr as imagens no cérebro, a despeito das ressal\'as nutridas pelo rigorismo semântico
do filósofo. A transgressão parece menos flagrante a este último quando as ciências
neuronais se avizinham da fenomenologia da ação, com base na idéia de que o cérebro
é um sistema projeti\'li, uma vez que as idéias anexas de antecipação, de exploração
dependem de um no\·o domínio misto como se, na dimensão prática, a fronteira entre
os dois discursos, científico e fcnomenol<igico, fosse mais porosa do que na dimensão
teórica. No plano da ação, a correlação entre neurologia e fenomenologia equi\ ale a
correspondência".
b) Com a questão mais específica dos rastros mnésicos, estreitamos nosso domínio
e nos aproximamos da morada da amnésia e do esquecimento. Ao mesmo tempo,
aproximamo-nos do cerne do debate, ou seja, da relação entre a significação fenome-
nológica da imagem-lembrança e a materialidade do rastro.
A primeira \'ista, a fenomenologia tem pouco a esperar do ensino da clínica prolon-
gada pela obser\'ação anatomofisiológica aplicada ao cérebro. V,írias \'ezes, arrisquei-
me a dizer que o conhecimento do que se passa no cérebro só contribui diretamente
para a autocomprecnsão nos casos de disfunçôes, cm razão de o comportamento ser
lJ ,\. lkrtho,,, Lc Se11s d11111011,•c111<·11t, Paris, Cldiil- Jacob, llJlJI. A. Cl.irk, llt'i11g t/iere: !'11tti11g Bmi11, Bod11
1111d lVorld togct/Jcr11s,11ill, h-1IT, 1997. J. Ct..'(lnl'rod, Cog11itÍl'C Ncun1-:-(H'11c·t, (:f Action, l3lackwl'll, 1997.
j.-L. Petit, "[ntruduction )>;én0rale", in J.-L. Pl'lit (ed.), Us Nc11nNÍt'l1<'<'' l'I /11 l'lii/osopliie de /'11cti,111,
preLicio dl' Alain Lh_,rthoL, Paris, Vrin, l9lJ7, pp. 1-.37. Quanto ,l 1nin1, intt:'rt.'ssei-nH.' por tclÍ'.:-> dl'-
Sl'll\·okin1L'I1tos llcl ml'dida L'lll qut..' minha ,1bordagem do ft.,n(-)lllt..'no suci,11 ,·isado pela opcraç.Jo
hi-::.toriogr,ífica coordenou rl'prt_'sent;lç,lo l' ,1t;<lo. Encontramos, ao n1L'sn10 tempo, un1a test..' cara a
C. Canguilhen1, referl'ntL' ~l idL'ia de 1neio. Este nZlu l· o rnundo jzí prunto, tal co,no ~1 t..'xpcrit'nci.i u
conhece, mas esst..' meio an1bicntt' que os Yinv-, cunfiguran1 con1 sua ati,·idadc pxploradora. Cf. f_11
Ct 11rnoi-:;-:;a11cc de la 1..'ic, op, L"it.
A MF\1lll,IA, A HIST(JRJA, ll J,SQUFCIME\1"10
por elas afetado, nem que seja apenas sob a forma do recurso aos tratamentos, e, de um
modo geral, em razão dos reajustes das condutas a um ambiente "reduzido", segundo
urna expressão de Kurt Goldstein retornada por Georges Canguilhern. Porém, mesmo
então, quando ocorre urna doença, que implica diretamente o cérebro, o reajuste de to-
das as condutas à "situação catastrófica" exige de tal forma a atenção dos familiares do
doente - sem falar da perturbação deste último - que esse transtorno das condutas
impede que os saberes sobre o cérebro sejam levados em conta. As neurociências, so-
mos tentados a dizer, não contribuem, diretamente, em nada para a conduta da vida.
É por isso que podemos desenvolver um discurso ético e político sobre a memória - e
empreender atividades científicas especializadas em várias ciências humanas - sem
mesmo mencionar o cérebro. A própria epistemologia do conhecimento histórico não
teve nem ocasião, nem obrigação de recorrer às ciências neuronais; seu referente úl-
timo, a ação social, não o exigia. Nem por isso reivindicaria para a fenomenologia da
memória um direito qualquer de ignorância quanto às ciências neuronais.
As neurociências focadas na memória podem instruir, urna primeira vez, a con-
duta da vida no nível desse saber refletido em que consiste urna hermenêutica da vida.
Além da utilidade direta, há a curiosidade pelas coisas da natureza, entre as quais o
cérebro é, provavelmente, a mais maravilhosa produção. Ora, essa curiosidade - a
mesma, em suma, que aquela que motiva a epistemologia da história - é urna das
disposições que articula nossa relação com o mundo. A dependência causal em que
estamos em relação ao funcionamento cerebral, dependência cujo conhecimento deve-
mos à curiosidade, não deixa de nos ensinar, ainda que na ausência de um sofrimento
qualquer causado por uma disfunção. Esse ensinamento contribui para nos alertar
contra a pretensiosa lrnbris que gostaria de nos fazer passar por donos e proprietcí-
rios da natureza. É todo nosso ser-no-mundo que se abala. Se há um ponto no qual a
fenomenologia da memória se encontra em ressonância com esse ensinamento geral
das neurociências, é no nível de nossas reflexões sobre a mundanidade da lembrança
na esteira da obra de Casey, Rc111r111bcri11g1". Podemos, porém, ampliar essa brecha no
muro do desconhecimento mútuo.
É notável que os trabalhos diretamente dedicados à memória e a suas distorções 11
destinem tantos esforços ao que P. Buser 12 denomina uma taxinomia da memória, ou
melhor, das memórias: quantas memórias, pergunta-se, precisamos contar? É o se-
gundo grande ensinamento recebido da clínica. Nesse nível, impõe-se uma confron-
tação direta com a fenomenologia da memória proposta mais acima. A esse respeito,
as discordâncias, mais superficiais do que parecem à primeira vista, não deveriam
surpreender. Elas se devem essencialmente às diferenças no plano do questionamento
e dos métodos de abordagem. Nossa tipologia, com seus pares de opostos, era essen-
cialmente motivada pela questão do tempo, da distância e da profundidade temporal;
além disso, ela era orientada por urna conceitualidade tradicional (o que vimos em
pela relação da representação com o tempo e, no cerne dessa relação, pela dialética
de presença, ausência e dist5ncia que é a marca do fenômeno mnemônico. Apenas o
discurso sobre o mental o explica. Então, a tarefa dc1s neurociências é dizer não o que
me faz pensar, ou seja, essa dialética que dá tanto o que pensar, mas o que faz com que
eu pense, ou seja, a estrutura neuronal sem a qual eu não pensaria. Já é alguma coisa,
mas não é tudo.
Não encerramos a questão da inscrição. Como foi dito, a noção de rastro não se re-
duz nem ao rastro documentário, nem ao rastro cortical; ambos consistem em marcas
"exteriores", embora em sentidos diferentes: o da instituição social para o arquivo,
o da organização biológica para o cérebro; resta o terceiro tipo de inscrição, o mais
problemático, embora o mais significativo para a seqüência de nossa investigação; ele
consiste na persistência das impressões primeiras enquanto passividades: um acon-
tecimento nos marcou, tocou, afetou e a marca afetiva permanece em nosso espírito.
É notável que essa tese seja da ordem do pressuposto. Diremos por que dentro de
um instante. Mas antes desenvolvamos os múltiplos pressupostos aqui implicados.
De um lado, e este é o pressuposto fundamental, admito que, a título originário, o
próprio das afecções é sobreviver, persistir, permanecer, durar, conservando a mar-
ca da ausência e da distância, cujo princípio buscamos em vão no plano dos rastros
corticais; neste sentido, essas inscrições-afecções conteriam o segredo do enigma do
rastro mnemônico: seriam o depositário da significação mais dissimulada, embora
mais originária, do verbo "permanecer", sinônimo de "durar". Esse primeiro pres-
suposto situa toda a análise que se segue nas proximidades de Bergson em Matéria
e Memória 11.
Por outro lado, essa significação ser-nos-ia geralmente mascarada em razão dos
obstáculos à recordação que tentaremos inventariar na terceira seção deste capítulo.
Sob esse aspecto, certas experiências privilegiadas cuja figura chave evocaremos logo
a seguir constituem, apesar desses obstáculos, o início de uma verificação existencial
desse segundo pressuposto.
Terceiro pressuposto: não há a menor contradição entre a afirmação a respeito da
capacidade das inscrições-afecções de permanecer e durar e o saber a respeito dos
rastros corticais; o acesso a esses dois tipos de rastros inscreve-se em modos de pensa-
mento heterogêneos: existencial de um lado, objetivo do outro.
Quarto pressuposto: a sobrevivência das imagens, reconhecida em sua especifi-
cidade graças aos dois últimos pressupostos, merece ser considerada como uma forma
fundamental de esquecimento profundo, que chamo de esquecimento de reserva.
O primeiro pressuposto será o objeto da discussão principal. O segundo será exa-
minado na terceira seção deste capítulo. O quarto surgirá na conclusão da presente
seção.
O terceiro pode ser discutido desde agora na medida em que questiona direta-
mente a diferença entre os dois tipos de rastros aqui confrontados: o rastro cortical e
o rastro psíquico. É preciso afirmar com convicção que nada é subtraído dos ensina-
mentos mais bem estabelecidos das neurociências por essa exploração do rastro afe-
tivo: déficits mais ou menos graves continuam a ameaçar nossa memória e fazem
com que o esquecimento por apagamento dos rastros corticais continue a ser a figura
13 Hl'nri Bergson, Motii'·rc ct Mi111oirc. bsoi sur /11 rc/otio11 du corps IÍ /"csprit ( 1896), op. cif.
cotidiana dessa insidiosa ameaça; além disso, a base cortical de nossa existência cor-
poral não cessa de constituir a causa si11c q1111 no11 de nossa ati\'idade mental no silên-
cio dos órgãos; finalmente, a correlação entre organização e função tampouco deixa
de entreter, sem que o saibamos, a base contínua de nossa existência corporal. Por-
tanto, não é de encontro a essa estrutura básica que a hipótese de trabalho aqui pro-
posta desenvol\'l' seus meios de pro\'as, Trata-se de dois saberes heterogêneos sobre
o esquecimento: um saber exterior e um saber íntimo, Cada qual comporta suas ra-
zões de confiança e seus motivos de suspeita. Por um lado, confio na máquina corpo-
ral no exercício da memória feliz; mas desconfio de seus recursos mal controlados de
nocividade, de inquietação e de sofrimento. Por outro lado, confio na capacidade
originária de durar e permanecer das inscrições-afccções, capacidade sem a qual cu
não teria acesso algum à compreensão parcial do que significa presença da ausência,
anterioridade, distância e profundidade temporal; mas também desconfio dos entra-
\'es impostos ao trabalho da memória, os quais, por sua \'ez, se converteram em opor-
tunidade de usos e abusos para o esquecimento. É assim que chegamos a confundir
impedimentos potencialmente re\'ersíveis com um apagamento incontornável. Essa
confusão não é menos prejudicial no plano epistemológico do que no plano existen-
cial. À hesitação entre a ameaça de um esquecimento definitivo e a obsessão de uma
memória proibida acrescenta-se a incapacidade teórica de reconhecer a especificida-
de do rastro psíquico e a irredutibilidade dos problemas ligados à impressão-afec-
ção. Esse estado de confusão tanto epistemológico quanto existencial nos obriga a
voltar ao primeiro pressuposto, que os dois seguintes apenas reforçam.
Quais experiências podem ser consideradas como confirmações da hipótese da so-
brevivência das impressões-afecções além de sua aparição 7 Neste ponto, a experiência
pri11ccps é a do reconhecimento, esse pequeno milagre da memória feliz. Uma imagem
me acode ao espírito; e digo em meu coração: é ele sim, é ela sim. Reconheço-o, reco-
nheço-a. Esse reconhecimento pode assumir diferentes formas. Ele já se produz no de-
correr da percepção: um ser esteve presente uma vez; ausentou-se; voltou. Aparecer,
desaparecer, reaparecer. Nesse caso, o reconhecimento ajusta - ajunta - o reaparecer
ao aparecer por meio do desaparecer. Essa pequena felicidade da percepção deu ense-
jo a muitas descrições clássicas. Pensa-se em Platão e,,ocando os malogros da confusão
e as chances do reconhecimento obtido no Tecle/o e no Filebo. Pensa-se na peripécia do
reconhecimento, na anag11c>risis ~ na tragédia grega: Édipo reconhece cm sua própria
pessoa o maléfico iniciador dos males da cidade. Pensa-se em Kant reconstruindo a
objetividade do fenômeno na base da tríplice síntese subjcti\'a, a recognição (Rckogni-
tio11) \'indo coroar a simples apreensão na intuição e na reprodução das representações
na imaginação. Pensa-se também cm Husserl, que iguala a percepção do objeto espa-
cial à combinatória de seus perfis ou esboços. Por sua \'CZ, a recognição kantiana terá
uma descendência conceituai na A11erkc11111111g, o reconhecimento hegeliano, esse ato
ético no qual culmina a problem<itica da intcrsubjeti\'idade na articulação do espírito
subjetivo e do espírito objcti,,o. De muitos modos, conhecer é reconhecer. O reconhe-
cimento também pode apoiar-se num suportP material, numa apresentação figurada,
A MFMllRIA, A IIISl(lRIA, () FSQLFCIMFrs: ro
retrato, foto, pois a representação induz a identificação com a coisa retratada em sua
ausência: a esse entrelaçamento eram dedicadas as intermináveis análises de Husserl,
que ligavam Plzantasic, Bild e Eri1111cru11g.
Finalmente, há o reconhecimento propriamente mnemônico, geralmente chamado
de reconhecimento, fora do contexto de percepção e sem suporte de representação
necessário; ele consiste na exata superposição da imagem presente à mente e do rastro
psíquico, também chamado de imagem, deixado pela impressão primeira. Ele realiza o
"ajuste", evocado pelo Tcctcto, entre o colocar do pé e a impressão antiga. Esse pequeno
milagre de múltiplas facetas propõe a solução em ato do enigma primeiro, constituído
pela representação presente de uma coisa passada. A esse respeito, o reconhecimento
é o ato mnemônico por excelência. Sem essa resolução efetiva, o enigma continuaria a
ser uma aporia pura e simples. É para esse ato que converge o feixe de presunções de
confiabilidade ou de não-confiabilidade apontado para a lembrança. Talvez tenhamos
colocado o pé na impressão errada, ou apanhado o pombo errado no pombal. Talvez
tenhamos sido vítimas de um falso reconhecimento, como quem, de longe, confunde
uma árvore com uma personagem conhecida. Entretanto, quem poderia abalar, com
suas suspeitas dirigidas de fora, a certeza ligada à felicidade de tal reconhecimento
que consideramos, em nosso coração, como indubitável? Quem pode afirmar nun-
ca ter confiado em tais reencontros da memória? Os acontecimentos norteadores, os
acontecimentos fundadores de uma existência solitária ou compartilhada não depen-
dem dessa confiança primeira? E não continuamos a medir nossas confusões e nossas
decepçôes em função dos sinais oriundos de um reconhecimento inabalável?
Como acabamos de dizer, o enigma da presença da ausência está resolvido na
efetividade do ato mnemônico e na certeza que coroa essa efetividade. Mas ele não
se tornaria mais impenetrável no plano especulativo? De fato, voltemos ao termo de
nosso primeiro pressuposto: estimamos que a impressão-afecção permanece. E por
permanecer, ela possibilita o reconhecimento. Mas como sabemos disso? O enigma
especulativo subsiste no próprio cerne de sua resolução efetiva. De fato, o pressu-
posto é inteiramente retrospectivo. Ele é proferido a posteriori. Talvez seja mesmo
este o modelo do a posteriori. Na narrativa ulterior, ele apenas se enuncia no futuro
composto do subjuntivo: se tiver sido verdade que reconheci este ser amado como
tendo permanecido o mesmo apesar de uma longa ausência, uma ausência definitiva.
"Tardei a reconhecer-te, ó verdade!" exclama dolorosamente Santo Agostinho. Tar-
dei a reconhecer-te é a confissão emblemática de todo reconhecimento. Sobre o pres-
suposto retrospectivo, construo um raciocínio: foi preciso que algo permanecesse da
primeira impressão para que dela me lembre agora. Se uma lembrança volta, é porque
eu a perdera; mas se, apesar disso, eu a reencontro e reconheço, é que sua imagem
sobrevivera.
Este é, resumido in 1111cc, o raciocínio de Bergson em Matéria e Memória. Bergson, a
meu ver, continua a ser o filósofo que mais se aproximou do entendimento do vínculo
estreito que existe entre o que chama de "sobrevivência das imagens" e o fenômeno
chave do reconhecimento. Detenhamo-nos, para verificá-lo, nos capítulos 2 e 3 de Ma-
;\ Ul,!Jll \ll lll'>llWll.\
léria e Mc111ôria, que constituem o cerne psicológico da obra inteira. O primeiro intitu-
la-se: "Do reconhecimento das imagens. A memória e o cérebro". E o segundo: "Da
sobrevivência das imagens. A memória e o espírito". Reconhecimento e sobre\·i\·ência
são como que os dois pilares centrais da obra.
Para compreender a centralidade dessas duas noções, remontemos o curso de nos-
sa i,westigação até o ponto em que, pela primeira vez, nos deparamos separadamente
com a problemática do reconhecimento e a da sobrevivência das imagens. Encontra-
mos pela primeira \TZ a questão do reconhecimento no âmbito de nossa fenomenologia
da memória quando da distinção das duas memórias: a memória-hábito, que é sim-
plesmente agida e sem reconhecimento explícito, e a memória-rememoração, que não
prescinde de reconhecimento declarado. Contudo, naquele estágio, isso continua,·a a
ser uma polaridade entre outras. Quanto ã questão da sobre\·ivência, nós a encontra-
mos pela primeira ,·ez, já com Bergson, quando tratamos da distinção entre a lembran-
ça e a imagem; postulamos, então, a existência da lembrança "pura" como um estado
\ irtual da representação do passado, anterior ã sua vinda em imagem sob a forma
mista da lembrança-imagem. Foi a "realização da lembrança" que reteve então nossa
atençJo, sem que a postulação da lembrança "pura" tivesse sido esclarecida, permane-
cendo como que presen·ada da curiosidade pelas aspas. Tínhamos deixado a lem-
brança "pura" na condição do virtual. É nesse ponto crítico que se deve retomar a lei-
tura, para levcí-la a atribuir a essa lembrança "pura", além da virtualidade, a
inconsciência e uma existência compará\·el ã que atribuímos às coisas exteriores quan-
do não as percebemos. São essas audaciosas equaçfies que nos autorizarão mais tarde
a erigir, por nossa \·ez, esse estatuto de sobre\·ivência das imagens num segundo para-
digma de esquecimento, concorrente daquele do apagamento dos rastros (nosso quar-
to pressuposto).
Para compreender esse encadeamento conceituai, é preciso remontar mais acima
em Matéria e Memória, até a tese inaugural da obra toda, a saber, que o corpo não passa
de um órgão de ação, e não de representação, e que o CL;rebro é o centro organizador
desse sistema que age. Essa tese exclui de saída que se procure no cérebro a raz,10 da
conservação das lembranças. A idéia de que o cérebro se lembre de ter sido impressio-
nado é considerada como incompreensÍ\·el em si mesma, o que não exclui que o cére-
bro tenha um papel a desempenhar na memória. Mas este é de outra ordem que a da
representação. Enquanto órgão de ação, ele exerce seus efeitos sobre o próprio trajeto
da lembrança "pura" ã imagem e, portanto, sobre o trajeto da recordação. A discussão
com as neurociências da época se dc\·e inteiramente a essa atribuição ao cérebro do
campo da ação apenas, isto é, do mo\'imento físico: na impossibilidade de esperM do
cérebro que ele encerre a solução da consen·ação do passado em termos de represen-
tação, deve-se buscar outra direção e atribuir ã impressão o poder de sobre\'i\·er, per-
manecer, durar, e fa/er desse poder não um nplirn11d11111 - como na tese neuronal-,
mas um princípio auto-suficiente de explicaçJo. Para Bergson, a dicotomia entre ação
e representação L' a razão última da dicotomia entre cérebro e memória. Essa dupla di-
cotomia estzí de acordo com o método de divisJo aplic,do com rigor ao longo de toda
A MLM(JRIA, A HIST(lRIA, O FS(.)UEll\1F:S:TO
a obra, que consiste numa passagem aos extremos antes de reconstituir os fenômenos
ambíguos e confusos da experiência cotidiana como mistos cujo entendimento é diferi-
do. O reconhecimento é o modelo desses mistos reconstruídos, e o entrelaçamento das
duas memórias, o exemplo do misto mais fácil de se decompor e recompor. Por falta
dessa chave de leitura, não soubemos discernir na famosa distinção entre "as duas
formas de memória" (Matirrc ct Mémoirc, p. 225 e segs.) duas modalidades de reconhe-
cimento, a primeira se fazendo pela ação, a segunda por um trabalho do espírito "que
iria buscar no passado as representações mais capazes de se inscreverem na situação
atual, para dirigi-las rumo ao presente" (op. cit., p. 224).
Uma questão estava posta por antecipação, a de saber "como se conservam essas
representações e quais relações elas mantêm com os fenômenos motores. Essa questão
será aprofundada apenas em nosso próximo capítulo, quando tivermos tratado do
inconsciente e mostrado em que consiste, no fundo, a distinção entre o passado e o
presente" (op. cit., p. 224). É notável que essa dificuldade só possa ser colocada a partir
do fenômeno do reconhecimento, no qual ela se encontra resolvida em ato. Enquanto
isso, a psicologia é habilitada a declarar "que o passado parece mesmo armazenar-se,
como havíamos previsto, sob essas duas formas extremas, de um lado os mecanismos
motores que o usam, do outro as imagens-lembranças pessoais que desenham todos
os acontecimentos do passado, com seu contorno, sua cor e seu lugar no tempo" (op.
cit., p. 234). Pode-se assim notar que essas duas formas extremas de "fidelidade a con-
servar" (ibid.) que são "a memória que revê" e "a memória que repete" (ibid.) operam
ora em sinergia, ora em oposição. Alertou-se, entretanto, contra o privilégio conferido
pelo senso comum aos fenômenos mistos e, em razão da regra de divisão'', deu-se
prioridade às formas extremas, afastando-se assim "a estranha hipótese de lembran-
ças armazenadas no cérebro que se tornariam conscientes por um verdadeiro mila-
gre, e me levariam de volta ao passado por um processo misterioso" (op. cit., p. 235).
Reencontro aqui meu argumento segundo o qual o rastro material está inteiramente
presente e deveria ser dotado de uma dimensão semiótica para significar que ele é do
passado. No vocabulário de Bergson, o rastro cortical deve ser recolocado no centro
dessa totalidade de imagens que chamamos de mundo (é o tema do difícil e enigmá-
14 Em seu ensaio Lc Bcrgso11is111C, Paris, PUF, 1966, cap. l, "L'intuition comme méthode", Cilles De-
leuze observa que o recurso à intuição não significa, para Bergson, licença dada ao inefo\'el: "A
intuição não é u111 sentin1e11to, nen1 urna aspiração, uma sin1patia confusa, n1as uni n1étodo ela-
borado e até um dos métodos, nota Delcuze, mais l'labor,1dos da filosofia" (p. 1). O método de
divis3o, parente do de Platão no Fi/cbo, é, sob esse aspecto, um ponto imporWnte desse método:
não o Uno contra o Múltiplo, postos em sua generalidade, mas dois tipos de multiplicid,1de (ibid.,
p. 31). Um modelo de multiplicidade é proposto no método de divisão que desenha um espectro a
percorrer, extre1nos a identificar e urn misto a reconstruir. Vale notar, tan1bém co111 De1euzc, que
as alternâncias de dualismo e de monismo que balizam Matáia e Mc111ôri11 dependem do tipo de
multiplicidack considerada a cada vez P do tipo de misto reconstruído. A notaç3o é importante,
na n1edidzi em que a identificação dos falsos probletnils constitui n1ais unia dzis rnáxin1as c:uas
(1 Bergson e que pode ser considerada um corol,í.rio dessa distinção dos tipos de 1nultiplicidade;
ora, o proble1nc1 da união da aln1a e do corpo surge e1n 1nuitos aspL•ctos con10 um desses fl1lsos
problen1as; colocar corretatncntc os problc1nas continua ,1 ser cl pritnt:..'ira tarefa do filósofo.
,\ Ul'\Lll(, Í(l IIISl(lRll,\
tico capítulo 1) e tratado "como uma entre essas imagens, a última, a que obtemos a
todo momento ao praticar um corte instantcíneo no de\·ir em geral. Nesse corte, nosso
corpo ocupa o centro" (op, cit,, p. 223)''.
Nesse estágio da análise, apenas uma separação exata das duas memórias prepara
o caminho para a tese da independência da memória-representação. Nada foi dito, ain-
da, sobre as condições dessa independência. Pelo menos, pode-se afirmar que "o ato
concreto pelo qual reapreendemos o passado no presente é o reconhecimento" (op, cit,,
p. 235). Cabe ao capítulo 3 encarregar-se da questão deixada em suspenso, "a de saber
como se conservam as representações e quais relações mantêm com os mecanismos
motores" (op. cit., p. 22-1).
Abramos o capítulo 3: em quarenta p,cíginas (op. cit,, pp. 276-316) de uma densidade
extrema, Bergson d,cí a chave daquilo que chama de "a sobre\·i\·ência das imagens" (op,
cit., p. 276).
Havíamos apenas iniciado sua análise acompanhando as fases da operação pela
qual a lembrança "pura" sai de seu estado \'irtual e passa ao estado atual; somente o
tornar-se-imagem da lembrança reti,·era nossa atenção. A questão levantada agora é
mais radical: apesar de sua tendência a imitar a percepção ao se realizar, nota Bergson,
nossa lembrança "permanece ligada ao passado por suas raízes profundas, e se, uma
,·ez realizada, ela não sofresse os efeitos de sua virtualidade original, se não fosse, ao
mesmo tempo apenas um estado presente, algo que contrasta com o presente, nunca a
reconheceríamos como uma lembrança" (op, cit., p. 277). Tudo está dito num tom mui-
to elegante: contrastar com o presente, reconhecer como uma lembrança. É o enigma,
inteiramente reafirmado, da presença da ausência e da distância, tal como enunciado
desde o começo da presente obra!'"
A solução da sobrevivência é radical. Ela consiste numa cadeia de proposiçôes
dessimplicadas do fenômeno do reconhecimento. Reconhecer uma lembrança é reen-
contrá-la. Reencontrá-la é presumi-la principialmente disponí,·el, se não acessí,·el.
Disponível, como à espera de recordação, mas não ao alcance da mão, como as a,·es do
pombal de Platão que é possível possuir, mas não agarrar. Cabe assim à experiência do
reconhecimento remeter a um estado de latência da lembrança da impressão primeira
] 'i Um p()uco mais tarde>, Bl'rgson obsen·arci qul', para consl'f\ ar imagens, sc>ri,1 preciso que o cére-
bro ti\'esse o poder de cunsen·ar a si lllL'~n1u. "Adrnitl1111os por uni instl1ntt.' que o passado sobn•,·i-
,·a a si n1esn10 no estado de len1brança lnn1a/enada no cérL•bro; enUio, para consen·ln a lembrança,
ser,l preciso que o cérL'bro consen l' pelo rnenos ll si llll'smo. ['vla~ t''.:->"l' cL'n'bro, L'nquanto irnl1gem
estendida no L'~paço, ocup,1 apenas o n1on1entl) pre~ente; elL' con~titui, con1 todo o rl'~to do uni-
\"L'rso material, um corte incess,1ntL'l1lL'Ilte n-.'nO\ ado do de,·ir uni,·er'.:->al. Logo, tereis de ~upor que
l'S~L' uni,·erso perecl' L' renasce, por un1 ,·erdadeiro milc1gre, e111 todos lb mon1entos da duraç(1o,
ou tereis dl' transn1itir-lhl' a continuidade dL' e\.istl•ncia que recu~ais J conscil'ncia, e fazer de
seu passado un1a realidade quL' t-.obre,·i\"e a si 111L'sn1a e se prok)nga L'nl seu presL'I1lL': portanto,
n(1o tereis ganho coi~l, l1lgun1a ao (irn1(1J:L'I1tH ,·oss(1s len1brança...:; na m,ltéri/1 L', pelo contrjrio, ,.lb
\"L'reis obrigados a L'Skndl'r il totalidadL' do~ e~tados do mundo 111<1terial L'S'.:->a '.:->ObrL'\·in}ncia indt..'-
pendente L' integral do pll'.:->~'H1do que n•cusastl''.:-> aos estados psicolúgico~" (A111túT1' d A11;m(1irc, tip.
lÍI., p. 290).
1€1 Cf. ,icim,1, p. 27.
/1 MI M(lRl/1, ;\ IIISJ'llRIA, ll IS(.!Ul.( 1~'11:N 10
17 Bergson se aproxin1a, aqui, das regiõl'S do inconsciente freqüentc1das por Freud. Ao folc1r dos
êlnéis de expc1nstío que se ligan1 num<1 cadeia, Bergson nota: "Sob essa fonna condensada, nos-
sa vida psicológica ,interior 1._•xiste até 1nais, para nós, do que o n1undo externo, do qual nunc<l
pcrcl'bt?mos 1nais do que un1,1 pc1rtc ínfi1na, ao passo que, pelo contrário, usan1os a totalidade de
nossa experil'ncia vivida. É \'l'rd<1de que a possuínlos assitn ,lpl'nzis abreviadamente, e que nossas
antigas pl'rCl'pçôes, consideradas con10 individualidades distintas, nos dão a i1npressão quer de
terem desaparecido totaln1ente, quer dL' son1entl' reapareceren1 ao bel-prazer de sua fantasi.J. Mas
essa aparência de dl'Struiç.lo con1pkta ou de ressurreição caprichosa se deve sin1plcsmentl' ao fato
de a consciência atual clceit,H a c,1d,1 instante o útil e rejcit,H 1non1L'ntc1nl'clmentl' o supérfluo" (ihid.,
p. 287). Quanto à retlç<lo cntn.' o inconsciente bergsoniano e o inconsciente freudiano, é unia per-
gunt,1 que tocaren1os apL'll<1s na tl'rceira st•ç.?io ckstc capítulo. Nott•n1os, contudo, qul' Bergson não
ignorou o problema, con10 n1ostrc1 uni texto de La Pc11~líl' ct /e Mo1rut1J1f, que Delet1Zl' cit,1: "Até nossa
idéia de um,1 consen'ação intL'gr,11 do passado encontrou cada vez rnais sua verificação empírica
no vasto conjunto de experif,ncias instituído pelos discípulos dl' FrL'ud" (La l'c11s<'c ct /e Mo11rn11/,
in 0:11,,rcs. op. cit., p. 1116).
(op. cit., p. 288). Essa tese permanece na ordem do pressuposto e da retrospecção. Não
percebemos a sobre\'i\·ência, nós a pressupomos e nela acreditZ1mos 1
'. E é o reconhe-
cimento que nos autoriza a acreditar: aquilo que uma vez \·imos, ouvimos, sentimos,
aprendemos não est,í definiti\·arnente perdido, mas sobre\'i\'e, pois podemos recor-
dá-lo e reconhecê-lo. Ele sobrevive. Mas onde 7 Essa pergunta constitui urnil cilada,
mas clil talvez seja inevitá\·el, na medida em que é difícil não designar em termos de
continente o lugar psíquico "de onde", como se diz, a lembrança \'olta. O próprio Berg-
son não afirma que vamos buscar a lembrança onde ela est,í, no passado 7 Mas toda
sua empreitada consiste em substituir a pergunta "onde?" pela pergunta "corno 7 ": "só
restituirei [à lembrança] seu caráter de lembrança reportando-me à operação pela qual
a evoquei, virtual, do fundo de seu passado" (op. cil., p. 282). Tah·ez aí esteja a verdade
profunda da a11a11111t",;is grega: buscar, é esperar reencontrar. E reencontrar é reconhecer
o que uma vez - anteriormente - se aprendeu. As poderosas imagens do "lugar"
nas Cmzfis,;{ic,; de Santo Agostinho, comparando a memória a "\ as tos palácios", a "de-
pósitos" onde as lembranças são armazenadas, nos encantam literalmente. E a ,rntiga
associação entre cikü11 e tupos forma-se de novo, insidiosamente. Para resistir a essa
sedução, é preciso incessantemente formar de novo a cadeia conceituai: sobrevi\'ência
igual latência igual impotência igual inconsciência igual existência. O vínculo da ca-
deia é a convicção de que o devir não significa fundamentalmente passagem, mas, sob
o signo da memória, duração. Um devir que dura, nisto consiste a intuição mestra de
Mathia e Mc111ôri11.
Mas formar de no\·o essa cadeiZI conceituai e Plevar-se a essa intuição mestra é
sernprP saltar para fora do círculo desenhado em torno de nós pela atenção à \·ida. É
transportar-nos para esse outro lugar da ação que o sonho é: "Um ser humano que
sonhasse sua existência ao inv6s de \'i\·ê-la também manteria prnvavelmentP sob seu
olhar, a todo momento, a multidão infinita dos detalhes de sua história passada" (op.
cit., p. 295). Um salto é de fato necess,írio para remontar à fonte da lembrança "pura",
na medida em que outra vertente da Zln,ílise a leva a seguir o movimento descendente
da lembrança "pura" rumo à imagem na qual aquela se realiza. Conhece-se o esquP-
ma chamado de cone in\'ertido (op. cit., pp. 292-294) pelo qual Bergson \'Ísualizou de
algum modo para seus leitores (corno fez Husserl nas Liç{ic;; de 1905) esse processo
de realização. A base do cone figuril a totalidade das lembranças acumuladas na me-
mória. O \'értice figura o contato pontual com o plano da ação, nesse ponto Pstreito
constituído pelo corpo que age; PSse centro é, a Sl'U modo, um lugar de memória, mas
essa memória quase instantânea nada milis é que a rnernória-h<Íbito; não passa de um
ponto móvel, aquele do prcsentP que, incessantemente, p,1ssa, ao contrário da "\·erda-
18 Se fossL' preciso rl'~un1ir /\111tcrí11 c /v1t'111lír111 nun1,1 frase, seri,1 prl'ci~o di/l'r qut.' a k'fftbrança "con-
sen·a-SL' a si ml'S!Ylcl". Es-.;c1 declara<,'<lo ~l' ll· l'lll Lt1 Pc11;:.;t;1, l't li' Aln11t 1111t (( 1p. (Íf., p. 131~): "Pl'rccbe-
1
1110~ que ,1 expL'ril•ncil1 intL'fllcl en1 l'stadu puro, elo nus d,1r unia '~ub~t/1nci,1' cuja L'~sf:,ncic1 l• dimir
L', conseqücntt:nlL'IÜL', prolong:,1r inccssanh'ffH:.'tÜL' no presentl' uni pas<.:;,1do inde~trutí\'t_'l, no~ kria
dispensado e ;:ité n1t:-~n10 proibido de bu~car onde a lL1rnbr~1nça é con~l'n·ada. Ela ~l' conSl'r\'cl a si
nu.!~Tilcl ... " (cit<1do por Dl'leuze, Li' lkrg;:.;011i".:.111i', op. of, p. --1-9).
A MLM(11/IA, A H!SlORIA, O FS()l;1c1~n:rs;10
deira memória" (op. cit., p. 293) representada pela vasta base do cone. Esse esquema
busca ilustrar ao mesmo tempo a heterogeneidade das memórias e a maneira como
elas se prestam um apoio mútuo. O esquema se enriquece se quisermos aplicar-lhe
a figuração do capítulo anterior, onde a massa das lembranças era representada por
círculos concêntricos capazes de se diluírem indefinidamente segundo os graus de
profundidade crescentes ou de se concentrarem numa lembrança precisa, "segundo o
grau de tensão que nosso espírito adota, segundo a altura em que ele se situa" (op. cit.,
p. 251 ); assim, é a multiplicidade não numérica das lembranças que vem se incorporar
no esquema simplificado do cone. Esse esquema não pode ser negligenciado, sobre-
tudo porque marca o ponto culminante do método bergsoniano de divisão; "a relação
do passado com o presente" (op. cit., p. 291 e segs.) ilustrada pelo esquema desig-
na i11 fine a reconstrução de uma experiência híbrida, mista: "pratirnme11tc, pcrc('bemos
apenas o passado, o presente 'puro' sendo o inapreensível progresso do passado roendo
o porvir" (op. cit., p. 291 ). Toda a sutileza do método bergsoniano está aqui em ação: o
movimento reflexivo de subida isola a lembrança "pura" no momento do pensamento
sonhador. Poder-se-ia falar, aqui, de memória meditante, em um dos sentidos do ale-
mão Ccdiiclztnis, distinto de Eri1111crung e aparentado com Denkcn e A11dc11kc11; de fato,
há mais do que sonho na evocação da latência daquilo que permanece do passado:
algo como uma especulação (Bergson fala, às vezes, "de uma memória inteiramente
contemplativa" [op. cit., p. 2961), no sentido de um pensamento no limite, pensamento
que especula sobre as inevitáveis aspas que delimitam a palavra lembrança "pura". De
fato, essa especulação procede na contra-encosta do esforço de recordação. Na verda-
de, ela não progride, ela regride, recua, remonta. Entretanto, é no próprio movimento
da recordação e, portanto, na progressão da "lembrança pura" rumo à lembrança-
imagem, que a reflexão se esforça por desfazer o que o reconhecimento faz, a saber,
reapreender o passado no presente, a ausência na presença. Bergson descreve essa
operação de modo admirável; ao falar da passagem da lembrança do estado virtual ao
estado atual, ele observa: "Mas nossa lembrança ainda continua no estado virtual; sim-
plesmente dispomo-nos a recebê-la adotando a atitude apropriada. Aos poucos, surge
como que uma nebulosidade que se condensa; de virtual, ela passa ao estado atual; e,
à medida que seus contornos se desenham e que sua superfície se colore, ela tende a
imitar a percepção. Mas permanece ligada ao passado por suas raízes profundas, e se,
uma vez realizada, não sofresse os efeitos de sua virtualidade original, se não fosse, ao
mesmo tempo em que é um estado presente, algo que se destaca do passado, nune,1
a reconheceríamos como uma lembrança" (op. cit., p. 277). Reconhecer a lembrança
"como uma lembrança", eis todo o enigma resumido. Mas para trazê-lo à luz do dia, é
preciso sonhar, obviamente, mas também pensar. Então começamos a especular sobre
o que significa a metáfora da profundidade, e o que significa estado virtual 1''.
19 Deleuze enfatiza esse traço do processo regressivo requerido pela rn,1rcha rurno ao virtudl: "Ins-
tala-sl' de saída no passado, pula-se no passado con10 nurn clen1ento próprio. Assim con10 nclo
percebt..'n1os as cois,1s t:'tn nós mL·sn1os, n1as onde elas estão, apenas apreendemos o passado onde
ele esti:1, neJt., n1csn10, e n,lo cn1 nós, ern nosso presente. Portanto, h,í um 'passado en1 geral' que nJ.o
Algumas obsen·ações críticas impõem-se antes que consideremos o quarto e últi-
mo pressuposto dessa segunda viagem ao país do esquecimento, a saber, o direito de
considerar a "sobre,·i,·ência das imagens" como uma figura do esquecimento, digna
de ser oposta ao esquecimento por apagamento dos rastros.
Minhas obserYações enfocam dois pontos: primeiro, é legítimo isolar a tese que o
próprio Bergson chama de psicológica da tese metafísica que dá seu título completo
a Matéria e Memória? De fato, os dois capítulos centrais que tomamos como guias szio
enquadrados por um capítulo inicial e um capítulo terminal que, juntos, desenham o
envelope metafísico da psicologia. É com uma tese metafísica que o livro começa: a de
considerar o conjunto da realidade como um mundo de "imagens" num sentido da
pala na que excede toda psicologia; nzio se trata de nada menos que de decidir entre o
realismo e o idealismo em teoria do conhecimento; essas imagens, que não são mais
imagens de nada, são, diz Bergson, um pouco menos consistentes que aquilo que o
realismo considera como independente de toda consciência e um pouco mais do que
aquilo que o idealismo, pelo menos o de Berkeley - já visado por Kant sob o título de
"A refutação do idealismo" na Crítica da Ra:iio pura-, considera como simples con-
teúdo evanescente de percepção. Ora, o corpo e o cérebro são considerados como es-
pécies de irrupção prc'itica nesse universo neutro de imagens; nessa condição, eles são
ao mesmo tempo imagens e o centro prc'itico desse mundo de imagens. O desmantela-
mento daquilo que se chama de matéria j,'i começou, na medida cm que o materialismo
constitui o cúmulo do realismo. Mas o capítulo 1 não vai mais longe. É preciso então
pular até o fim do capítulo 4 para formular a tese metafísica integral que, segundo a
expressão de Frédéric Worrns 211, não consiste em nada menos que "uma metafísica da
matéria fundada na duração" (111trod11ctio11 à 'Matii'rc ct Mé1110irc· de Bergson, p. 187 e
seg.). Ora, é na base de tal metafísica que é proposta uma releitura do problema clássi-
co da união da alma ao corpo (como Bergson prefere dizer, Mat1Ú'l' ct Mé111oirc, p. 317),
releitura que, por um lado, consiste na eliminação de um falso problema e, pelo outro,
elabora um dualismo inclassificável entre as figuras históricas do dualismo. Aliás, fa-
ses de monismo e de dualismo alternam-se segundo o tipo de multiplicidades a di,·idir
e de mistos a reconstruir. Assim, descobre-se com surpresa que a oposição entre dura-
ção e matéria não é definitiva, se for ,·crdadeiro que se pode formar a idéia de urna
multiplicidade de ritmos mais ou menos tensos de durações. Esse monismo difcren-
é u passado particular dcssl• ou daqut.'lt.' prt-__'~L'Ilb:•, 111,1s que l' como qul' uni clem.l'nto ontolúgico,
uni p,1ssado L'terno e de todos os tcn1po~, condiç<lo par,1 ,1 'p;1ss<1gt.'n1' de todo presente particul,H.
É o passado cn1 gt.'rc1l que possibilita todo~ us passados. Rl'colocan10-no~ prin1Piro, diz Bt:'rgson,
no passado en1 geral: o que L'll' de~cre\-L' assin1, é o -;alto para de11tr(1 da 011tl1foxi11" (iliid., pp. :11-~2.).
~ess,1 oportunidadt.•, Delt-.>u;:e ad\'L'rtL· con10, antes dele, requeria Hyppolite ("Ou beq::;'.'.--oni~n1t.'
21 l'e:xistcntiahsn1e", A1crcurc de Frtrn(c, jul. 1LJ-fLJ; L' ";\spects di\t.'r~ de la n,t::,moirL' chL'/ Bergson",
H,Cl'W' i11ter11ntio1111!c d(' plnln..-..op!Iic, out. llJ-llJ), contra un1l1 intt''l'rL't<1çZlo p~icologizantl' do tl'\.to
bL'rg~oniano. l\.1l1s, pl1r.1 Berg~on, a rl'fl'n::•nci.i l1 psicologi,1 continua a ser unia refcn::'nci,1 nobn• L'
prL'Sl'rYa a distinçZlo entre psicolugia L' lllL'tatbica, :1 qu,1\ ,·o!Lnl'mo...:; m,1i~ ,1diante.
20 Frl,d_l,ric \\.,,orn1~, !11tn1d11dio11 ú "/\i111tii.'rc l'I 1\ L;111l 1ir1·" de Ik1s-..()11, (lV l-it.
ciado das durações não tem mais nada em comum com nenhum dos dualismos elabo-
rados desde a época dos cartesianos e dos pós-cartesianos 21 •
Mas essa não é a última palavra da obra. As últimas páginas de Matéria e Mc111ôria
são dedicadas à formulação de três polaridades clássicas: extenso/inextenso, qualida-
de/ quantidade, liberdade/necessidade. Portanto, é preciso ler Matéria e Mc111ôria do
primeiro ao último capítulo e este até as últimas páginas. Admito isto.
Resta que a psicologia estabelecida sobre o par reconhecimento/sobrevivência não
apenas é perfeitamente delimitada no decorrer da obra, mas pode ser considerada
uma chave distinta da metafísica que a circunscreve. De fato, tudo começa pela tese de
que "nosso corpo é um instrumento de ação e somente de ação" (op. cit., p. 356). Assim
começam as páginas intituladas "Resumo e conclusão" (op. cit., pp. 356-378). Neste
sentido, a oposição ação/representação constitui uma primeira tese explicitamente
psicológica e apenas implicitamente metafísica em razão de suas conseqüências para
a idéia de matéria. Passa-se daí à tese da sobrevivência por si das imagens do passa-
do, por meio de um corolário da primeira tese, a saber, que a consciência do presente
consiste essencialmente na atenção à vida; ora, isso é o oposto da tese segundo a qual
a lembrança "pura" é marcada pela impotência e pela inconsciência e, nesse sentido,
existe por si. Uma antítese psicológica preside assim a toda a empreitada, e o par que
dá seu título aos dois capítulos centrais - o reconhecimento das imagens e a sobrevi-
vência das imagens - constrói-se sobre essa antítese.
Portanto, é em relação a essa psicologia que tento situar-me, deixando de lado a
teoria generalizada das imagens do capítulo 1 e o uso hiperbólico que é feito da noção
de duração no final do capítulo 4 em nome de uma hierarquia de ritmos de tensões
e de contrações da duração. Por meu lado - e esta será a segunda série de minhas
observações - , tento reinterpretar a oposição princeps entre o cérebro instrumento
de ação e a representação auto-suficiente em termos compatíveis com a distinção que
faço entre rastros rnnésicos, enquanto substrato material, e rastros psíquicos, enquanto
dimensão pré-representativa da experiência viva. Dizer que o cérebro é instrumento
de ação e de ação apenas, significa, a meu ver, caracterizar cm bloco a abordagem
neuronal, a qual apenas dá acesso à observação de fenômenos que são ações no sentido
puramente objetivo do termo; de fato, as neurociências conhecem apenas organizações
e funcionamentos correlativos, logo, ações físicas, e os rastros que dizem respeito a
essas estruturas não designam a si próprios corno rastros no sentido semiológico de
efeitos-signos de sua causa. Essa transposição da tese inaugural de Bergson a respeito
do cérebro como simples instrumento de ação não impede de restituir à ação, no sen-
tido vivido da palavra, sua parte na estruturação da experiência viva, em conjunto e
não em antítese com a representação. Ora, essa restituição encontra uma resistência
certa por parte de Bergson. A ação, segundo ele, é muito mais que o movimento físico,
esse corte instantãneo no devir do mundo - é uma atitude de vida; é a própria cons-
21 Dek'uze dedica um capítulo ,i questiío: "Une ou plusieurs durél's 7" (/,e llcrgso11is111c, op. cit., p. 71
l' seg.).
ciência enquanto atuante. E é por um salto que se deve romper o círculo mágico da
atenção à vida para entregar-se à lembrança numa espécie de estado de sonho. Sob
esse aspecto, a literatura mais que a experiência cotidiana está do lado de Bergson: li-
teratura da melancolia, da nostalgia, do spleen, sem falar da Busrn do tempo perdido que,
mais que nenhuma obra, se erige como o monumento literário simétrico a !v1ntl;ria e
Mc111ória. Mas pode-se desassociar tc''io radicalmente a ação e a representação 7 A ten-
dência geral da presente obra é considerar o par ação e representação como a matriz
dupla do vínculo social e das identidades que o instituem. Esse dissentimento seria,
portanto, a marca de uma ruptura com Bergson 7 Não o creio. É preciso ,·oltar uo mé-
todo bergsoniano de di,·isão que con, ida a se levar aos extremos de um espectro de
fenômenos antes de reconstruir como um misto a experiência cotidiana cuja complexi-
dade e confusão constituem obstáculo,\ descrição. Então, posso dizer que reencontro
Bergson no caminho dessa reconstrução: de fato, a experiência pri11ceps do reconheci-
mento, que form,1 o par com a da sobre,·i,·ência das imagens, propõe-se corno uma
dessas experiências ,·ivas no caminho da recordação das lembranças; é nessa experiên-
cia ,·iva que a sinergia entre ação e representação se atesta. O momento da lembrança
"pura", alcançado por um salto para fora da esfera prática, era apenas virtual, e o mo-
mento do reconhecimento efetivo marca a reinserção da lembrança na massa da ação
,·i,·a. O fato de, no momento do salto, a lernbranç,1 "se destacar" do presente, segundo
a expressão feliz de Bergson, esse mm·imento de retirada, de hesitação, de questio-
namento faz parte da dialética concreta da representação e da ação. Os interlocutores
do Filc/10 de Platão não param de se indagar: quem é? É um homem ou uma árvore 7 O
lugar da confusão é designado por essa epokiil', essa suspensão, decidida pela proposi-
ção declarativa: é ele, sim' É ela, sirn 1
Resulta dessas observações que o reconhecimento pode ser colocado numa outra
escala que a dos graus de proximidade da representação em relação à prática. Pode-se
também abordar a representação em termos de modo de" apresentação", à maneira de
Husserl, e opor à apresentação percepti,·a a t,íbua das re-(a)presentações, ou melhor,
das presentificações, como na tríade husserliana P/11111tasic, Bild, Eri1111cru11g; uma Clm-
cepção alternativo da representação abre-se então para a reflexão.
Se essas obser\'ações críticas nos afastam de certo uso indiscriminado do conceito
de ação, aplicado tanto ao cérebro enquanto objeto científico quanto à prMica da ,·ida,
elas reforçam, a meu ,·er, a tese maior da sobrL'\·i,·ência por si das imagens do passado.
Essa tese prescinde da oposição entre ação ,·i,·ida e representação para ser entendi-
da. Basta-lhe a afirmação dupla: primeiro, que um rastro cortical não sobre\'Í\·e a si
mesmo no sentido de saber-se enquanto rastro de ... - do acontecimento que se foi,
passado; em seguida, que uma experiência \·i,·a, para existir enquanto tal, h,í de ser,
desde o começo, sobre,·i,·ência de si nwsma, e nesse sentido rastro psíquico. Mlllérill e
Mc111ôria inteiro deixa-se ent3.o resumir do seguinte modo no ,·ocabulório da inscriç3.o
que a polissemia da noção de rastro dese1l\'oh'e: a inscrição, no sentido psíquico do
termo, nada mais é que a sobre,·i\·ência por si da imagem mnemônica conternpor3.nea
da experiência origin<Íria.
;\ ~ffM(lRli\, ;\ ll!ST(lRIA, O J:SQL;J CIMFNIO
23 E~se par.:1doxo t:, tanto n1ais surprL'l'ndl'nh.' porque destoc1 da ~l'qÜL'ncia d,1s ocorrências do termo
"esquecin1ento" em .Ser e 1i·111po; con1 un1{1 llnic(1 L'Xccç,lo, L'i,b dL'notam ,1 inautenticidade na prcÍ.ti-
;\ MI M(>RIA, A IIISl(JRIA, ll FS(lUFUMFNHl
saber, que é o esquecimento que torna possível a memória:" Assim como a expectativa
só é possível na base de um esperar por, também a lembrança (Erin11cm11g) só é possí-
vel na base de um esquecer, e não o contrário; pois é no modo do esquecimento que o
ser-sido 'abre' primariamente o horizonte no qual, ao se engajar nele, o Oascin perdido
na 'exterioridade' daquilo com que se preocupa pode se relembrar" (Êtrc ct Tc111ps,
p. 339; trad. franc. de Martineau, p. 238). Esse paradoxo aparente é esclarecido, se se
levar em conta uma decisão terminológica importante, evocada no capítulo anterior;
enquanto Heidegger guarda para o futuro e para o presente o vocabulário corrente, ele
rompe com o uso de denominar o passado de Vcrga11gc11/zcit e decide designá-lo pelo
pretérito perfeito do verbo ser: gcwcsrn, Ccwcsrnlzcit (Martineau traduz: "ser-sido").
Essa escolha é capital e resolve uma ambigüidade, ou antes, uma duplicidade grama-
tical: de fato, dizemos do passado que ele não é mais, mas que ele foi. Com a primeira
denominação, enfatizamos seu desaparecimento, sua ausência. Mas ausência a quê?
À nossa pretensão de agir sobre ele, de mantê-lo "à mão" (Z11/za11dc11). Com a segunda
denominação, enfatizamos sua plena anterioridade com relação a todo acontecimento
datado, lembrado ou esquecido. Anterioridade que não se limita a subtraí-lo a nosso
império, como l; o caso do passado-ultrapassado (Vcrgr111gc11'1cit), mas anterioridade
que preserva. Ninguém pode fazer com que o que não é mais não tenha sido. É ao
passado como tendo sido que se vincula esse esquecimento que, como diz Heidegger,
condiciona a lembrança. Compreende-se o paradoxo aparente se por esquecimento se
C<l da preocupaç.:ío. () esqueci1nento não est<í primordialn1ente rcla.cionr1do con1 a llll'n1óric1; con10
csquecin1l't1to do ser, é constituti\'O da condição inc.1ut(•ntica: é o "escondin1ento" no sentido grego
do la11//11111ci11, ao qu,11 HeiLil-ggpr opôl' o "nJo escondinll'nto" da alt'lhcia que traduzimos por "ver-
dadL•" (Êtrc e/ Tcn1p,, op. cit., p. 219). Num sentido próximo, o capítulo "Cewissen" (consciência)
aborda o "esquecimento da cunscil•nci,1", con10 esqui\'cl da ,1dnlcação vinda da profundidade do
podl'r-ser prúprio. Ainda('., na linh,1 dcl inciutl'nticidade que o esqueci,nt'nto, conte1nporcí.nco
da repl'tiç<lo, Sl' n.•velc1 con10 "dcsengc1jan1cnto fechado cl si perante o 'sido' ,nais próprio"
(ibid., p. 339). Mas nota-Sl' que "tal esqul'cimento não é nada, nl'm ml'smo é a falta d,1 Icmbrança,
mas um modo ecstcítico próprio, 'positivo' do ser chave" (ibid.). Pode-se então falar de um "poder
do l'squecin1ento" (ihid., p. 3-t5) e1narl1nhado .J pn'ncupl1ção cotidiana. Cabe ao império do presen-
te n,1 curiosidadl' esquecer o antes (ibid., p. 347). Para quem Sl' perde no mundo d,1s ferramentas, o
l'squecin1ento do si n1t.•sn10 l' nl'Cess,í.rio (ibid., p. :15-t). Podl'-St.' então folar, na forn1a de oxín1oro, de
"psquecirnento atento" (ibid., p. 369). O esquecimento, neste sentido, é car,icterístico do "sp" (apas-
sivador), "cego às possibilidades", "incapaz de repetir o sendo-sido" (ibid., p. 391). EmbMaçado no
presente da preocupação, o esquecin1ento signific.:i unia te1nporalidade "scn1 expectativa" (ibid.,
p. 407), irresoluta, segundo o modo de um "presentificar in-atl'nto-c>squecediço" (ibid., p. 410). O
atola1nento dc1 ten1poralidade na concepção vulgar do ten1po supostamente "infinito" é pontuíldo
pela "representação esquc•cpdiça de si" (ibid., p. 424). Dizer "o tpmpo passa", significil l'squecer
os instanll's que deslizam (ibid., p. 42:i). É sobre o fundo dessa litania da inautenticidade qul' se
destaca a únic,1 cilus.lo, em Ser e Tempo, <l. n:laçã.o do esquccin1ento con1 <1 len1brança: "Assim como
cl expect,itiva só é possível na base de u1n espl'rc1r por, tan1bt:'n1 a le1nbr;.1nça apen;.1s l· possível na
base de u1n esquecer, l' não o contr,írio; pois t.' no modo do esquccin1ento que o 'ser-sido' 'abre'
pri1n,1rian1ente o horizonte onde, ao nele se engaj<H, o Vasci11 perdido na 'exterioridade' daquilo
com qul' 5l' preocupa pode se rl'iembrar" (ibid., p. 339). Náo Sl' sabe se a de1wgação do esquecimen-
to acc1rreta t.'111 seu Vcrjil!lc11 o trabalho dL' n1en1óri,1, ou se cl graça do rcconheciinento do pass,1do
poderia l'levar o esquccin1ento de st1c1 expiraçZío-decc1dência e <1lçá-lo à condição do esquecimento
de reserva.
entende o imemorial recurso e niio a inexor,Í\'el destruição, Confirmando essa hipótese
de leitura, pode-se remontar algumas linhas acima, até a passagem em que Heidegger
pôe o esquecimento em relc1ção com a repetição (Wicdcrlzo/1//lg) no sentido da reto-
mada, que consiste em "assumir o sendo que o Da~ci11 já L;" (il 1id,), Assim, ocorre um
acoplamento entre "antecipar" e "retornar", como em Koselleck entre horizonte de
expectati\'a e espaço de experiência, mas no níYel que Heidegger consideraria como
deri\'ado da consciência histórica, É em torno do "jú", marco temporal comum ao ser
lançado, à dívida, à derrelição, que se organiza a cadeia das expressões aparentadas:
tendo sido, esquecimento, o poder mais priiprio, repetição, retomada, Em resumo, o
esquecimento reveste-se de uma significaçiio positiva na medida Pm que o tendo-sido
preYalece sobrP o não mais ser na significaçiio vinculada à idéia do passado, O tendo-
sido faz do esquecimento o recurso imemorial oferecido ao trabalho da lembrança,
Finalmente, a ambigüidade primeira do esquecimento destruidor e do esqueci-
mento fundador permanece fundamentalmente indecidÍ\'eL Niio há, para Yistas hu-
manas, ponto de vista superior de onde se \'islumbraria a fonte comum ao destruir e ao
construir, Niio hc1, para nós, balanço possíYel dessa grande dr,rn1aturgia do ser,
Uma das razões para acreditar que o esquecimento por apagamento dos rastros
corticais não esgota o problema do esquecimento é que muitos esquecimentos se de-
vem ao impedimento de ter acesso aos tesouros enterrados da memória. O reconheci-
mento freqüentemente inopinado de uma imagem do passado tem assim constituído,
até agora, a experiência princcps do retorno de um passado esquecido. É por motivos
didáticos ligados à distinção entre memória e reminiscência que temos mantido essa
experiência nos limites da repentinidade, abstração feita do trabalho de recordação
que pôde precedê-la. Ora, é no caminho da recordação que se encontram os obstáculos
para o retorno da imagem. Do instantâneo do retorno e da captura, remontamos ao
gradual da busca e da caça.
É neste estágio de nossa investigação que recolhemos pela segunda vez, de modo
sistemático, os ensinamentos da psicanálise mais aptos a ultrapassarem o confinamen-
to do colóquio analítico. Depois de ter relido os dois textos examinados para apoiar
o tema da memória impedida, ampliaremos a brecha em direção a fenômenos mais
especificamente atribuíveis à problemática do esquecimento e, sobretudo, de grande
alcance no plano de uma memória coletiva por outro lado carregada de história.
A memória impedida evocada em "Rememoração, repetição, perlaboração" e em
"Luto e melancolia" é uma memória csquecidiça. Lembramos da reflexão de Freud
no início do primeiro texto: o paciente repete ao invés de se lembrar. Ao invés de:
a repetição vale esquecimento. E o próprio esquecimento é chamado de trabalho na
medida em que é a obra da compulsão de repetição, a qual impede a conscientização
do acontecimento traumático. A primeira lição da psicanálise é, aqui, que o trauma
permanece mesmo quando inJccssÍ\Tl, indisponível. No seu lugar surgem fenômenos
de substituição, sintomas, que mascarJm o retorno do recalcado de modos di\'Crsos,
oferecidos à decifração operada cm comum pelo analisando e o analista, A segunda
lição é que, em circunstâncias particulares, porções inteiras do passado reputadas es-
quecidas e perdidas podem voltaL Assim, ,1 psican,ílise é, para u filósufo, o aliado mais
confiável a fan1r da tese do inesquccíveL Uma das cmwicções mais firmes de Freud
foi mesmo que o passado \'ivenciado é indestrutívcL Essa co1wicção é insepar,ívcl da
tese do inconsciente declarado zcit/os, subtraído ao tempo, entenda-se ao tempo da
consciência com seu antes e seu depois, suas succssi'íes e suas coincidências, Sob esse
aspecto, impõe-se uma comparação entre Bergson e Freud, os dois advogados do ines-
quecíveL Não \'ejo incompatibilidade alguma entre suas duas noções de inconsciente,
O de Bergson cobre a totalidade do passado, que a consciência atual centrada na ação
fecha atr,ís dela, O de Freud parece mais limitado, se assim se ousa dizer, na medida
em que cobre apenas a região das lembranças cujo acesso é proibido, censuradas pela
barreir,1 do recalque; além disso, a teori,1 do recalque, \'inculada à da compulsão de re-
petição, parece confinar a descoberta na região do patológico, Em compensação, Freud
corrige Bergson num ponto essencial que, à primeira vista, parece tornar a psican,ílise
incompatível com o bergsonismo: enquanto o inconsciente bergsoniano é definido por
sua impotência, o inconsciente freudiano deve a seu \'Ínculo com a pulsão n caráter
energético que encorajou a leitura "econômica" da doutrina, Tudo o que Bergson pare-
ce situar do lado da atenção à vida parece reportado ao dinamismo pulsional da li/iido
inconsciente, Não penso que se de\'a parar nessa discordância aparentemente gritante,
Da parte de Bergson, a última palavra não é dit,1 com a equação impotência-inconsciên-
cia-existência, A lembrança pura só é impotente em relaçZio a uma consciência preo-
cupada com a utilidade prática, A impotência atribuída ao inconsciente mnemônico
apenas é assim por antífrase: ela é sancionada pelo salto para fora do círculo mágico da
preocupação a curto prazo e pela retirada na região da consciência sonhadora, Além
disso, a tese do re\'ivescimento das imagens do passado pareceu-nos compatíYel com
o fato de levar em conta o par ação/representação que deix,1 fora do campo da expe-
riência viva apenas aquele tipo de ação acessíYel ao olhar objetin1 das neurociências,
a saber, o funcionamento neuronal sem o qual não pensaríamos, Do lado psicanalíti-
co, o corte que caracteriza o inconsciente por recalque em relação ao inconsciente da
lembrança pura não constitui, em relação ao inconsciente bergsoniano, um abismo in-
transponíveL Não é igualmente uma suspens,10 da preocupação imediata que o acesso
ao colóquio analítico e sua regra de "tudo dizer" requer 7 Iniciar uma psican,ílise não
é um modo de deixar o sonho se dizer 7 Mas sobretudo, o que acabamos de chamar
de segunda lição da psicanálise, a saber, a crença na indestrutibilidade do passado
vi\'enciado, não prescinde de uma terceira liçZio que se lê melhor no segundo ensaio
enKado em nosso capítulo sobre a memória impedida: a perlaboração ern que consiste
o trabalho de rememoração não se dá sem o trabalho de luto pelo qual nos desprende-
mos dos objetos perdidos do amor e do ódio, Essa integração da perda à experiência
da rememoração tem um significado ctmsiderável para todas as transposições metafó-
A MI M(JRIA, A HIST(JRJA, O 1·;,(_)UICJMLNHl
ricas dos ensinamentos da psicaniilise fora de sua esfera de operação. O que está amea-
çando aqui e não se deixa dizer na mesma conceitualidade que a pulsão de repetição,
pelo menos numa primeira aproximação, é a atração da melancolia cujas ramificações
exploramos muito além da esfera propriamente patológica onde Freud a confinou. É
assim que se compõem, no quadro clínico das neuroses ditas de transferência, as figu-
ras substituídas do sintoma e as medidas de autodepreciação da melancolia, o excesso
do retorno do recalcado e o vazio do sentimento de si perdido. Não é mais possível
pensar cm termos de pulsão sem também pensar cm termos de objeto perdido.
Essas instruções da psicanálise que acabam de ser evocadas dariam acesso aos abu-
sos encontrados assim que se sai do âmbito do colóquio analítico delimitado pela com-
petência e pela deontologia profissional, e que se afasta do discurso clínico? Sim, pro-
vavelmente, pois é fato que a psican,~lisc, bem ou mal, gerou um tipo de vulgata que
a elevou à condição de fenômeno cultural ao mesmo tempo subversivo e estruturante;
mas outro fato é que Freud foi o primeiro a sempre arrancar sua descoberta do sigilo
do segredo médico, não somente ao publicar suas pesquisas teóricas como também ao
multiplicar suas excursões fora da esfera do patológico. Nesse aspecto, Psicopatologia
da vida cotidiana constitui uma baliza preciosa na estrada que, do colóquio analítico,
leva à cena pública da sociedade.
Ora, é principalmente de esquecimento que Psicopatologia da vida cotidiana trata,
essa esfera de atividade tão próxima do espaço público. E a colheita é abundante: pri-
meiro, ao reatar os fios, aparentemente cortados, do presente com um passado que se
poderia acreditar abolido para sempre, a obra enriquece, a seu modo, a defesa feita
pela Tra11mdcutu11g da indestrutibilidade do passado; em seguida, ao discernir inten-
ções tornadas inconscientes pelos mecanismos devidos ao recalque, ela introduz in-
teligibilidade onde se invoca alternadamente o acaso ou o automatismo; enfim, ela
esboça, no seu desenrolar, linhas de transposição da esfera privada à esfera pública.
O caso do esquecimento dos nomes próprios que marca o início da coletânea ilus-
tra maravilhosamente o primeiro desígnio: procura-se um nome conhecido, outro vem
cm seu lugar; a am'ílisc revela uma sutil substituição motivada por desejos incons-
cientes. O exemplo das lembranças encobridoras, interpostas entre nossas impressões
infantis e as narrativas que delas fazemos com toda confiança, acrescenta à simples
substituição no esquecimento dos nomes uma verdadeira produção de falsas lembran-
ças que nos desnorteiam sem que o percebamos; o esquecimento de impressões e de
acontecimentos vivenciados (isto é, de coisas que sabemos ou que sabíamos) e o esque-
cimento de projetos, que equivale à omissão, à negligência seletiva, revelam um lado
ardiloso do inconsciente colocado em postura defensiva. Os casos de esquecimento
de projetos - omissão de fazer - revelam, além disso, os recursos estratégicos do
desejo em suas relações com outrem: a consciência moral buscará neles seu arsenal
dP desculpas para sua estratégia de desculpação. A linguagem contribui com isso por
seus lapsos; a prática gestual pelas confusões, desajeitamentos e outros atos falhos (a
chave do escritório inserida na porta errada). É essa mesma habilidade, aninhada em
intenções inconscientes, que se deixa reconhecer numa outra vertente da vida cotidia-
na, que é a dos po\'llS: esquecimentos, lembranças encobridoras, cltos falhos assumem,
na escala da memória coleti\·a, proporçôes gigantescas, que apenas a história, e mais
precisamente, a história da memória é capaz de trazer à luL
que se falou cm outro lugar, pode ser classificada como esquecimento passivo, na me-
dida em que pode aparecer como um déficit do trabalho de memória. Mas, enquanto
estratégia de evitação, de esquiva, de fuga, trata-se de uma forma ambígua, ativa tanto
quanto passiva, de esquecimento. Enquanto ativo, esse esquecimento acarreta o mes-
mo tipo de responsabilidade que a imputada aos atos de negligência, de omissão, de
imprudência, de imprevidência, em todas as situações de não-agir, nas quais, poste-
riormente, uma consciência esclarecida e honesta reconhece que se devia e se podia
saber ou pelo menos buscar saber, que se devia e se podia intervir. Reencontra-se as-
sim, no caminho da reconquista pelos agentes sociais do domínio de sua capacidade
de fazer narrativa, todos os obstáculos ligados ao desabamento das formas de socorro
que a memória de cada um pode encontrar na dos outros enquanto capazes de autori-
zar, de ajudar a fazer narrativa de modo ao mesmo tempo inteligível, aceitável e res-
ponsável. Mas a responsabilidade da cegueira recai sobre cada um. Aqui o lema das
Luzes: sapcr!' aud!' 1 Saia da menoridade! pode ser reescrito como: ousa fazer narrativa
por ti mesmo.
É nesse nível de manifestação do esquecimento, a meio caminho entre transtornos
atinentes a uma psicopatologia da vida cotidiana e transtornos atribuíveis a uma so-
ciologia da ideologia, que a historiografia pode tentar dar uma eficácia operatória a
categorias emprestadas dessas duas disciplinas. A história do tempo presente é, nesse
sentido, um âmbito propício a essa provação, na medida em que ela própria está numa
outra fronteira, aquela onde esbarram uma na outra a palavra das testemunhas ainda
vivas e a escrita cm que já se recolhem os rastros documentários dos acontecimentos
considerados. Como foi dito uma primeira vez por antecipaçãn24, o período da história
de França que se segue às violências do período 1940-1945 e, sobretudo, à ambigüida-
de política do regime de Vichy, se presta de modo eletivo a uma transposição histori-
zante de certos conceitos psicanalíticos, eles mesmos caídos no domínio público, como
traumatismo, recalque, retorno do recalcado, denegação, etc. Henry Rousso 2' assumiu
o risco epistemológico - e, às vezes, político - de construir uma grade de leitura dos
comportamentos públicos e privados de 1940-1944 até nossos dias na base do conceito
de obsessão: a "obsessão do passado". Esse conceito é parente daquele de repetição
que já encontramos, precisamente como oposto ao de perlaboração, de trabalho de
memória 2". O autor pode assim considerar sua própria contribuição à história da "sín-
24 Cf. acima, primeir.i parte, capítulo 2 sobre o dever de memória, pp. 99-104.
25 Henry Rousso, Lc Sy11dro111e de Vic/111 de 1944 à 110s jours, op. cit.; Vic/1tf, 1111 possé qui 11c posse po,, op. cit.;
La l lantisc du paSSi;, op. cil. É de se notar que a expressão "u,n passado que não pass.:i", sinônima de
obsessão, é reencontradJ na controvérsia dos historiadores c1lcn1ães. Nesse sentido, a t:vocação aqui
dos trabalhos de Henry Rousso deve ser acrescentada à dos trabJlhos de seus colegas alemães: a
difen'nça das situações de trabalho entre historiadores franceses e historiadores alemães constitui-
rill, por si só, um ten1a para historic1don_•s. Os trabalhos concebidos nas margens opostas do Reno
coincidem num outro ponto sensível: a relação pntre o juiz e o historiador (Henry Rousso: "Que!
tribunal pour l'histoire ?", in Lo !u111tise d11 po,;s,', op. cit., pp. 85-138). Cf. acima, "O historiador e o
juiz", pp. 338-347.
26 Cf. acima, primeira parte, capítulo 2, ";\ memória impedid,1".
,\ CO,lll( \(l l!ISHlRl(A
27 Cf. tt'rccir,1 parte, c,1pitulo 2, § 1. Sobrl' a históri,1 da memúria, d. li. Roussn, Lc S1111dnm1c de \'idn1, op.
cit., p. ln. C) \·ínculo e, feito con1 a noçJo dl' "luglHes de 1nen1úria" dl' PierrL' Nora.
28 Cf. ,1ci1n,1 "() historic1dor e o jui,1;": os n1e~n10,._, tipos de peças L'Stclo as~in1 c1nexados ao dossiê d,1s
guerrcls franco-frann.'sas e ao do'.-i gr,1ndL'S processos crin1inais: filn1e~ (LL' Clu1gri/l ct lo Pit Íl;), peç,1s
de teatro, etc.
29 " . os en1préstin1os feitos i1 psic,1nálisl' tl.'nl aqui apen,1s \',1lor de lllL'tcífura~, nJo de explicaçJo" (!.e
S1n1dro111c de Vid1_11, º/'· cit., p. lY).
i\ MLMÚRIA, i\ HIST(lRJA, () LS(.)UFCIMFNHl
seu caráter positivo ou negativo" (op. cit., p. 29); lembrança encobridora, que permite
ao grande libertador dizer que "Vichy sempre foi, e ainda é, nulo e inexistente". Logo,
Vichy será posto entre parênteses, ocultando-se assim a especificidade da ocupação
nazista. O retorno das vítimas do universo concentracionário torna-se assim o aconte-
cimento mais rapidamente recalcado. As comemorações ratificam a lembrança incom-
pleta e seu fundo de esquecimento.
Na fase do recalque, o "exorcismo gaulliano" (op. cit., p. 89) quase consegue ocul-
tar, mas não pode impedir, quando da guerra da Argélia, o que o historiador caracte-
riza finamente como o "rejogo da falha" (op. cit., p. 93) - "O jogo e o rejogo das seqüe-
las" (op. cit., p. 117). Tudo está presente: a herança, a nostalgia, o fantasma (Maurras)
e novamente as celebrações (o vigésimo aniversário da Libertação, Jean Moulin no
Panthéon).
As páginas da obra intitulada "Le miroir brisé" (op. cit., p. 118 e seg.) são as mais
ricas no plano do jogo das representações: "o impiedoso Desgosto (Clwgri11) .. .", diz-se
nelas (op. cit., p. 121 ). O passado recalcado explode na tela, clamando seu "lembra-
te" pela boca de testemunhas postas em cena através de seus não-ditos e !apsus; uma
dimensão tinha sido esquecida: o anti-semitismo de Estado de tradição francesa. A
desmistificação do resistencialismo passa por um rude afrontamento entre memórias,
afrontamento digno do disscnsus de que se falou na esteira de Mark Osiel. A exorta-
ção ao esquecimento, junto com a graça presidencial outorgada ao miliciano Touvier,
cm nome da paz social, leva ao primeiro plano uma questão cujas ramificações no
ponto cm que se cruzam a memória, o esquecimento e o perdão desenvolveremos no
momento oportuno. Aqui, o historiador deixa ouvir a voz do cidadão: "Como fazer
aceitar o emprego da guerra franco-francesa, num momento em que as consciências
se despertam, cm que O Desgosto levanta a tampa, em que o debate se desencadeia
de novo? Pode-se calar num gesto só, furtivo ou simbólico, os questionamentos e as
dúvidas das novas gerações? Podem-se ignorar as angústias dos antigos resistentes
ou deportados que lutam contra a amnésia?" (op. cit., pp. 147-148). A pergunta é tanto
mais premente porque "o esquecimento que ela preconiza não se acompanha de ne-
nhuma outra leitura satisfatória da história, diferentemente da palavra gaulliana" (op.
cit., p. 148)11'. Disso resulta que a graça anistiante ganhou valor de amnésia.
Sob o título "L'obsession" - que caracteriza um período, o nosso ainda, e que dá
sua perspectiva ao livro-, um fenômeno como o renascimento de uma memória ju-
daica confere um conteúdo concreto à idéia de que quem fixa o olhar num aspecto do
passado - a Ocupação - se torna cego a outro - o extermínio dos judeus. A obsessão
é seletiva e as narrativas dominantes ratificam uma obliteração de parte do campo do
olhar; mais uma vez, a representação fílmica desempenha seu papel (Holocaustc, Nuit
ct Brouil!ard revisitado); mais uma vez, o penal cruza o narrativo: o processo Barbie,
antes dos casos Legay, Bousquet e Paplm, projeta para o proscênio uma desgraça e
uma responsabilidade que o fascínio exercido pela colaboração havia impedido de
11 PierrL' Vid,1!-Naquet, lt', /ui/",;. ln /\1c'111,1ir<' ct /e l'r,',c11/, Paris, ;-.,Jaspern, 1981. Abin Finkil'lkraut,
L'Az.'c11ir d'1111c 11ég11tio11. Ra7cxi011 sur la q11cstin11 du gt;11ocidc, Paris, [d. du Seuil, lY82.
32 Kant, "Lc droit de gr,Kil'r", in La J\1étt1pl1.11si1111t' de--. 11ur1trs 1 I, Dndri11e d11 drt1it, lntroduç?io L' tradução
de A. PhilonL•nko, I\1ris, Vrin, 1971, :-,egunda partL', "Le droit public", rt.'n1arques gl'nf'rale~, E, "Du
A MFMlll\lA, A IIISTllRIA, O fS()UFCIMJ".'sTO
droit de punir et dl' gracier'': "() direito de c1grilciiu o critninoso, quer abrandando sua pena, quer
pcrd(hlndo-c:1 con1pletc1mente, é, entre todos os direitos do sobcrl1no, ornais delicado, pois, ao mes-
1no ten1po en1 que dá n1ais brilho ,1 suc1 grandeza, é a oportunidc1de de con1eter a maior injustiça".
E Kant acrescenta: "Portanto, é apenas a respeito de un1 crime que afct.i a ele n1esn10 que ele pode
us.í-lo" (p. 220).
33 Nicok Loraux lhe dl'dica um livro inteiro: La Cité diz•iséc. L'ou/J!i da11s /11 11u'111oirc d"Atl,,,11cs, Paris,
Payot, 1997. O percurso do livro é significativo: partl' da evocação do vínculo profundo entre a
"sediç,10" (s/11sis) l' a descendência mítica dos "Enfants de la Nuit" sob a figura de Éris, a Discórdia
("Fris: forma arcaica da reflexão grega sobre o político" [p. 119j). A an,'llise (.1trc1vt:ss.1 as cam.idas
do verbo poético en1 direç<lo à prosa do político, assunlida l' proclamc1da. () livro tern1in.1 nas
"políticas da reconciliação" (p. 195 e seg.) e tenta avaliar o preço pago em krmos de denegação do
fundo recalcado de Discórdia. Por 111otivos de estratégi.i pessoc1l, seguirei a ordem invers.i, do de-
creto de anistia e do jura1nento dt: nJo-men1óric1 rumo ao fundo invencível da Cólera e da AfliçZ10
"in-l'sqm·cidiça", Sl'gundo ,1 forte' expressão da autora (p. 165).
A l ll'.IJI(_ \ll lll'iJ(lRIC \
:14 Thierry Wangfleteten, "L'idéal de> concorde et d'unanimité. Un rêve brisé de la Rcnaiss,rnce", in
Histoirc c11ropi'c1111c de /11 to/i'm11cc du XVI' 1111 XX· sihlc, Paris, Le Livre de Poclw, Librairie générale
française, 1998.
35 Stépha,w Gacon, "L'oubli institutionnel", in Oublicr nos crimes. L'1111111ésic 1111tio1111/c: 1111c spécificité
fm11çaisc', l'aris, Autrement, 1994, pp. 98-111. A exposiçJo dos motivos do projeto de lei sobre a
extinção de certas açôcs pl'nais quando do caso Drcyfus cont(>m a seguinte dcclaraçJo: "Pl'dimos
que o P.:irlamento acrcscentt..' o esqueci1nt_•11to à clcn1êncizi e vote disposiçôcs k•gais que, st:.'In ck'ixar
de preservar os interesses dos terceiros, coloque1n as paixôes na in1potência dl' Íd/.l'r reviver o
m,1is doloroso conflito" (p. 100).
EPÍLOGO
o PERDÃO D I F Í C I L
pcrdiio coloca 1111117 q11cstiío pri11cipi11l111c11tc distinta daquela que, desde 11 Adue1N11ci11
O deste Ji,,ro, 111otiuo11 toda 11oss11 c111preit11d11, 11 da represe11taçiio do passado, 110 plano
da 111e111ôri11 e da lzistôria e co111 o risco do esq11eci111c,1to. A questão ora colornda n:(t'l'L'-se
1111111 e11ig111a outro que o da rcpresentaçiio presente de 1111111 coisa 11use11te 11117rrnda pelo selo do 1111te-
rior. Ele é duplo: é, por 11111 Indo, o e11ig111t1 de 11111afált11 que p11mlist1ria o poder de agir desse "/10-
111e111 rnpa::" que so111os; e é, e111 réplica, o d11 c<1ent1111/ susprnsiio dessa incapacidade existencit1!,
que o termo perdão designa. fase duplo enig111a atrm 1essa de , 1i1;s o da reprcse11taçíio do passt1do,
pois os 1/citos da _{11/ta e os do perdão recnt:11111 todas as opemçiies constitutivas da 111e111ôria e
da lzistôria e i111pri111e111 110 esq11eci111e11to 1111111 11111rca partirnlar. M11s, e111born 11 falta co11stit1111
a oportunidade do perdão, 1' 11 110111eaç1io do penÍlio que dá o to111 ao Ep(logo inteiro. Esse to111 é
o de 1111111 escatologia d11 rcpresc11t11ção do passndo. O perdão, se te11111/gu111 sentido e se existe,
n111stit11i o lzori2011te co11111111 da 111e111ôri11, da história e do esq11eci111e11to. Se111prc e111 segundo
11/11110, o l!orizo11/e foge 110 do111í11io. Ele toma o perdi/o difícil: 11e111 fiícil, 11c111 i111possíue/ 1• Ele
i111pri111c o selo do inarnl111111e11to 1111 c111preitad11 inteim. Ele 1' tiio di(ícil de se dar e de se rccel,cr
quanto de se conceituar. A trajetória do perdiio te111 sua orige111 11a desproporç110 que existe entre
os dois pólos da falta e do perdi/o. F11/arei, ao longo deste ensaio, de 1111117 diferença de altitude, de
1111111 disparidade ucrtical, entre a profu11didade da _ti1/t11e1111/t11rn do perdíio. Essa po/11ridade 1;
constitutim da cq1wç1io do pcrd110: e111/1aixo 11 co11fissiio da falta, 110 alto o /1Í110 ao pcrdiio. Aqui,
f11nç11-sc 111110 de dois atos de discursos; o pri111eiro leua 11 li11g1111ge111 1111w expcrih1ci11 d11 111es11111
orde111 que a solidiio. o (racasso, o co111/111tc, esses "dados da experÍl'11cia" (J. N11/1crtJ - css11s
"sit 1111çi11's /i111ites" / Karl J11spers) - 110s q1111is se enxcr/11 o /h'l!sa111c11to rc_t)cxivo. O lugar d11
11c11s11ç110 1110ml é 11ssi111 posto a descoberto - a i111p11t11bi/id11de, esse lugar n11 que o age11te se
/ig11 nsu11 aç,10 e 11d11úte s1111 rcspo11s11l1i/idadc por ela. O scg1111do é da alç11d11 da gm11de poesia
s11piencial que, 1111111 111cs11w 11/e11to, ce/clm1 o 11111or e a 11/cgri11. Há l> p,,,.d110, diz 11 , 1i:. A tc11si'ío
1
e11/rc 11 co11fissiio e o /1i110 será /ernda aos arredores de u111 ponto de rnpt11m, pois 11 i111possilii-
lidade do perd,10 rcplirn ao caráter i111perdoâ, el do 11111I 111ora/. Assi111 seráf11m111/ada a ,·q1111ç110
1
O título de~te l'pílogo nll' foi sugerido pl'l{1 l'"\.celcnte ubr,1 de DonlL'nicn _len·ulino, L'A111( 1 rc d1(tit"ilc,
Rum,1, Edizioni Studiurn, ILJ95.
A MEM(lRIA, A HISTÚRIA, ll FS(JCLCIMI NIO
A trajetória do perdão assi111 i111pelida se reveste, então, da figura de u111a odisséia destinada
a reconduzir gradativamente o prrdão das regiiies mais afastadas da ipseidade (o jurídico, o
político e a moralidade social) até o lugar de sua i111possibilidade presumida, 11 saber, a i111pu-
tabilidadc. Essa odisséia atravessa 1111w série de i11stituiçilcs suscitadas pela 11c11saçiio pública.
Estas, por sua vez, surgem escalonadas cm várias rnmadas segundo o grau de interiorização da
culpabilidade proferida pela regra social: é no nível do judiciário que se coloca 11 temfr,el q11estíio
da imprescritibilidade dos crimes, a qual pode ser considerada como a pri111eira pnwação maior
da problemrítirn prrítirn do perdão. O pcrrnrso continuará do plano da culpabilidade criminal
ao da rnlpabilidade política e moral, incrente ao estatuto de cidadania compartilhada. J\ questi'ío
colocada é então a do lugar do perdão na margem de instituiçíics encarregadas da puniçi'ío. Se
a justiça é mesmo para ser feita, sob pena de que a impunidade dos culpados seja consagrada, o
perdão so111e11te pode se refugiar em gestos incapazes de se transfor111are111 e111 i11stituiç11cs. Esses
gestos que constituiriam o incógnito do perdão desig1111111 o lugar inelutrível da consideração
devida a todo homem, singularmente ao rnlpado (seção li).
Na segunda etapa de nossa odisséia, constata-se unw relação 11otrívcl que, por um te111po,
pi'ic a demanda de perdão e a outorga do perdão nu111 plano de igualdade e de reciprocidade, co1110
se, entre os dois atos de discursos, existisse 11111a verdadeira relação de troca. A exploração dessa
pista é encorajada pelo parentesco em muitas línguas entre perdi'ío e dom. Nesse sentido, a cor-
relação entre o do111 e o contradom e111 certas for111as arcaicas da troca tende a reforçar a hipótese
segundo a qual demanda c ojáta de perdíio se equilibrariam numa rc/ação horizontal. P11recc11-
111e que, antes de ser corrigida, essa sugestão nzerccc ser levada até o extremo, até o ponto cm
quc mesmo o amor pelos i11i111igos pode aparecer co1110 o restabclcci111cnto da troca num nível
m'io comercial. O problc111a passa então II ser o de reconquistar, do cerne da relaçiío lwriz011tal de
trorn, a assimetria de uma relação vertical incrente à cquaçiio inicial do perdi'ío (scçí'ío III).
É então ao cerne d11 ipscidadc que se deve reportar II lfetuação dcssa trorn desigual. Uma
última tentativa de esc!areci111e11to que, mais uma vcz, repousa numa correlação horizontal, se
propíie com a dupla do perdão e d11 promessa. Para se ligar pela promessa, o sujeito da açíio de-
veria também poder desligar-se pelo perdi'ío. A estrutura temporal da ação, 11wis l'rcci:;a11irntc, a
irreversibilidade e 11 imprevisibilidade do tempo, exigiria a réplica de um duplo domínio exercido
sobre a condução da aç110. Minha tese, aqui, é que existe u11111 assimetria significativa entre o
podcr perdoar e o poder prometer, como o comprova a impossibilidade de authzticas i11stituiçi'fcs
políticas do perdão. Assim, 110 centro da ipseidade e no foco da imputabilidade, revela-se o para-
doxo do perdão aguçado pela dialética do arrependimento ,w grande tradição abraâ111irn. Trata-
se nada menos que do poder do espírito de perd110 de desligar o agente de seu 11to (scçi'ío JV).
Resta te11t11r uma recapit11laç110 de todo o percurso cfct1111do cm A Memória, a História,
o Esquecimento, à luz do espírito de perdão. O que cstá em jogo (, a projeção de um tipo de
escatologia da memória e, w1 sua esteira, da história e do esquecimento. Formulada no 111odo
optativo, essa esrntologia estrutura-se 11 partir e cm tomo do desejo de 11111a memória feliz e
ap11:::ig11ad11, da qual algo se tra11s111itc 1111 prática da história e até o â111ago das insuperáveis
incertezas que do111inam nossas rclaç6es co111 o esqucci111c11to (scçiío V).
() l'll<ll\ll IJll 1( 11
I. A equação do perdão
1. Profundidade: a falta
2 jl'an N,1bcrt. Flt'111cn/, po11r 1111c c'tlliq11c, Paris, PUF, JLJ.n, livrn 1, "Les dtmnú•s de la réfll·,ion". cap. 1,
"L'cxpéric·nce de la fautl'", pp. 13-18. "():-, ~L't1tin1entos c1lin1cnL1111 cl reflc,<1o, sflo Sli<l n1akria: faZL'lll
com que a rvflexl1o, L'lll bor,1 livre, ;.1pclíL'l,'..l con1u um n1on1cntn n,1 hi~tl')ril1 do desejo constituti\ u de
nosso ser" (p . .\) .
., Karl Jaspers, i'/11!t1'ophic. Ori,·11/11/ion d1111, /,· 111<l/1dc. Éd11irc111c11I d,· /',·ristcwc. fv1<'111pl111s1q11c. trad.
franc. dl' ]t:anne HL'rsch, Paris-Berlin-l leidclbL·rg-New York- róqu io. Springcr-Verlag, 1986; edi-
t;t°>t's origin,lis: lkrlin-Heidcllwrg. SpringL'r-\'L•rL1g. llJ:l2, llJ.\8, 1956, 197:l; lino li, Éc/,1irc111,·11t de
!'cxistc11cc, llle di,·i~ion, ''L'L•xistcno.' en tant qu'inconditionnalité L'Il situation. Con~cienct' et ac-
tion. La culp,1bilité". pp . .\55--Vi8.
i\ \ffM(lRJA, i\ ///SlÚRIA, O FSQUl'Cl\1/NTO
constitui uma dimensão integrante do que chamo de homem capaz. É na região da im-
putabilidade que a falta, a culpabilidade, deve ser buscada. Essa região é a da articula-
ção entre o ato e o agente, entre o "quê" dos atos e o "quem" da potência de agir- da
agr11cy. E é essa articulação que, na experiência da falta, é de algum modo afetada,
ferida por uma afecção penosa.
Essa articulação não nos é desconhecida: nós a exploramos na primeira parte desta
obra ao passarmos de uma análise objetal da memória-lembrança para uma análise re-
flexiva da memória de si mesmo. Já se tratava de um 11cxus entre o "quê" das lembran-
ças e o "quem" da memória. Nessa ocasião pusemos à prova o conceito de atribuição
da memória-lembrança a um sujeito de inerência e propusemos redistribuir a atribui-
ção sobre o tríplice eixo do próprio, do próximo e do longínquo. Reencontraremos no
terceiro momento deste epílogo a oportunidade de aplicar ao perdão essa tripartição
da atribuição. No estágio inicial da presente investigação, a radicalidade da experiên-
cia da falta impõe que nos mantenhamos nos limites de uma atribuição a si mesmo da
falta, nem que tenhamos de esboçar, já nesse nível, as condições de uma colocação em
comum de uma culpabilidade fundamental. A forma específica que toma a auto-atri-
buição da falta é a da confissão, esse ato de linguagem pelo qual um sujeito toma sobre
si, assume a acusação. Esse ato tem certamente a ver com a rememoração na medida
em que dentro desta já se atesta um poder de vinculação criador de história. Mas a
rememoração é principialmente inocente. E é nessa condição que a descrevemos. Ou
antes, como antigamente, em Filosofia da vontade, construída sobre a hipótese da rpokhe
da culpabilidade-!, é na indeterminação eidética de uma descrição metodicamente ig-
norante da distinção entre inocência e culpabilidade que a fenomenologia da memória
foi conduzida de parte em parte. A cpoklze é agora suspensa e, em relação a essa indis-
tinção concertada, a falta depende dos parcrga, dos "pontos secundários" da fenome-
nologia da memória. Com isso o enigma da falta se torna maior ainda: permanece a
questão de saber em que medida a falta tratada no vocabulário de Nabert como um
"dado da reflexão" constitui, num outro vocabulário, o de Jaspers, uma situação limite
da mesma natureza e da mesma ordem que o sofrimento, o fracasso, a morte, a solidão.
Seja como for, a confissão ultrapassa o abismo cavado por um escrúpulo tão metódico
quanto a dúvida hiperbólica cartesiana entre a inocência e a culpabilidade.
Por sua vez, a confissão ultrapassa um abismo outro que aquele que separa a cul-
pabilidade empírica da inocência que pode ser chamada de metódica, a saber, o abis-
mo entre o ato e seu agente. É esse abismo que vai, a partir de agora, nos interessar
exclusivamente. Obviamente, é legítimo traçar uma linha entre a ação e seu agente. É o
que fazemos ao condenarmos moral, jurídica ou politicamente uma ação. Por seu lado
"objetal", a falta consiste na transgressão de uma regra qualquer, de um dever, que
envolve conseqüências apreensíveis, a saber, fundamentalmente, um dano causado a
outrem. É um agir mau e, nessa condição, condenável em termos de apreciação nega-
-l l'lzilosoplzic de ln z,0/011I<', t. 1, Lc Vo/011l11irc cl /'/11uo/011t11irc, op. ât., Introdução gl'ral, "L'abstraction d,,
b fautl'", pp. 23-31.
ll 1'1 Rll\ll IJIFICII
:; K,111t, Ls::;11i po11r i11trnd11irc c11 pliilosopliic !e l-l111(cpt dt' gn111dc11r lll'g11fÍl'l', in CL11( 1
rc~ /lllih1soplziq11c-,,
l'aris, Callirnard, col. "Bibliothi_,qul' dl' la l'lé>i,1dl'", t. 1. pp. 277~280.
;\ ML~l(lRIA, ;\ IIISTORIA, () ISQUECIMENTO
6 J. Nabcrt, Essai sur /e 11wl, l'ari,, l'UF, col. "Épiméthée", 1955; reed., Aubier, 1970.
(l 1'1 RIJ \( l llll 1(11
\'em sem que eu possa designar as normas \'ioladas; não se trata mais de um simples
contrário que cu ainda compreenderia em oposição ao válido; são males que se inscrc-
\'em numa contradição mais radical que a do válido e do nãO-\',ílido e suscitam uma
dPmanda dP justificação qup ll cumprimento do devpr não satisfaria mais. Apenas sP
pode sugerir esse excesso do não-v,ílido atravessando o válido passando pelo limite;
"são, diz Jean Nabert, males, são dilaceramentos do ser interior, conflitos, sofrimentos
sem apaziguamento concebível". Então os males são desgraças inqualifiGíveis para
aqueles que os suportamº. As narrativas dos sobreviventes da Shoah, tão difíceis de
se entender simplesmente, apontaram para essa direção no decorrer de nosso próprio
texto: Saul Friedlandcr falou, nesse sentido, de "o inaceitc'í\'Pl", o que é uma lítotcs.
Tomado do lado do agente a quem esses atos são imputá\·eis, o excesso próprio do
injustificável constitui outro tipo de ilimitação que não a da rnusalidade insondá\·el
ca\'ada por tr,ís dos atos na intimidade do sujeito: é uma ilimitação simétrica àquela
do dano feito a outrem, cuja possibilidade é inscrita nesse dano por excelência, a saber,
o assassinato, a morte não sofrida mas infligida ao outro, em suma "esse mal que o
homem faz ao homem"'. Com efeito, além da vontade de fazer sofrer e de eliminar,
ergue-se a vontade de humilhar, de entregar o outro à derrelição do abandono, do
autodesprezo. O injustific,ível exagera a experiência da falta, na medida cm que à Clm-
fissão do além do não-\'álido da parte das ações se acrpscPnta a da cumplicidade do
querer da parte do agente. Alcançamos aqui um impedimento íntimo, uma impotência
radical de coincidir com qualquer modelo de dignidade, e ao mesmo tempo um frenesi
de engajamento na ação, do qual o ódio mal d,í a medida, e que foz explodir a própria
idéia de afecção do sujeito por suas próprias ações. Mesmo a noção proposta por Na-
bert de "causalidade impura" parece inadequada. Dificilmente a idéia de decadência
irremediável é mais cabível. Assim, é o extremo do mal infligido a outrem, na ruptura
do vínculo humano, que se torna o indício desse outro extremo, o da maldade ínti-
ma do criminoso. É nesse ponto que se anunciam noções como o irreparável do lado
dos efeitos, o imprescritível do lado da justiça penal, o imperdoá\'el do lado do juízo
moral. É com essas noçôes que se confrontará o último momento deste epílogo. Que
extremo da justificação ainda perma1wce acessível então?"
Último benefício'" de urna ligação entre a idéia de falta e a de mal: a conjunção
com'ilfa a ir até os confins do grande imaginMio cultural que alimentou o pensamento
com t>xpressões míticas. Nenhum tema, fora o amor e a morte, suscitou tantas cons-
truções simbólicas quanto n mal. O que continua a ser filosoficamente instrutin) é o
tratamento narra tini da questão da origem na qual o pensamento puramente especu-
latin1 se perde até o fracasso. Com a narrati\·a, corno se n; no mito adi'tmico da Tora
t.\ \1yrian1 Rl'\'l1ult d'AllunnL'~, Cc que /''1011n11c t;l/t 11 l'lurn1111c. [s::,11/ s11r Íi' 1111il pti!ítii111c, Pari~, FL1.n1n1c1-
ri()n, SL'uil, col. "Ch,1mps", 1995.
Y "E,i~tl' ,1lgu abSl)lutc1n1.entt.' injustific,í,l'l? !\l'S~<l pt...'rgunta agn1p,1n1-se tndds cis PL'rguntclS L' nada
'-.L' dissl' se ela pL'rn1ancce q,1n respn~ta" (J. '.\Jabl'rt, Ess1ú s11r li' 11111!, op. cit., p. 142).
1() Paul Ricn_'llf, em C()labur,.1çllu con1 /\ndrt~' LaCncque, Pc11scr /11 Rili!c, l\ui~, Éd. du SL'llil, 199R.
i\ MJ"M(lRIA, A HIST(JRJA, O I SQUICIMJ:NTCl
2. Altura: o perdão
Se fosse preciso proferir uma única palavra no fim dessa descida às profundezas da
experiência da falta, com ressalva de toda escapadela no imaginário mítico, seria a de
imperdoável. A palavra não se aplica apenas aos crimes que, em razão da imensidão
da desgraça que assola as vítimas, cabem na denominação do injustificável segundo
Nabert. Ela não se aplica tampouco apenas aos atores que, nomeadamente, perpetra-
ram esses crimes. Ela se aplica também ao vínculo mais íntimo que une o agente à
ação, o culpado ao crime. De fato, independentemente da contingência pré-empírica
do acontecimento fundador da tradição do mal, a ação humana é para sempre entre-
gue à experiência da falta. Mesmo que a culpabilidade não seja originária, ela é para
sempre radical. É essa aderência da culpabilidade à condição humana que, ao que
parece, a torna não só imperdoável de fato, mas imperdoável de direito ... Arrancar a
culpabilidade da existência seria, ao que parece, destruir essa última completamente.
11 P. Ricceur, Le Mal. L/11 d,'fi à la p/Jilosop/Jic ct à la tiJ<'ologic, Cl•nebra, Labor et Fides, 1986.
Essa conseqüência foi deduzida com um rigor implac,Í\'el por Nicohú Hartmann
em sua Ética, Se o perdão fosse possÍYel, diz ele, ele constituiria um mal moral, pois
deixaria a liberdade humana à disposição de Deus e ofenderia o orgulho humano:
"Não se pode, para ninguém, suprimir o ser-culpado da ação má, porque ele é inse-
parc'í,,el do culpado" 12 , Voltamos ao ponto de partida da análise precedente, a saber,
ao conceito de imputabilidade, essa aptidão para nos responsabilizarmos por nossas
açôes, na condição de seu autor verdadeiro, A experiência da falta adere tanto à im pu-
tabilidade que ela é seu órgão e seu re,,elador, Obviamente, concede Hartmann, pode-
se mitigar a mordida da falta, seu ferrão, até nas relações entre comunidades, mas não
a própria culpabilidade: "Existe mesmo, no plano moral, uma vitória sobre o mal[,,,]
mas não um aniquilamento da falta", Pode-se dar testemunho da compreensão pelo
criminoso, não absolvê-lo, Por essência, a falta é imperdoá,el não somente de fato,
mas de direito,
Como Klaus M, Kodalle, tomarei essas declarações de Nicola'i Hartmann como a
aLhertência dirigida a todo discurso sobre o perdão por uma ética filosófica que se
pretende imunizada contra toda infiltração teológica, O vínculo entre a falta e o sclf
entre a culpabilidade e a ipseidade parece indissolúveL
A proclamação resumida nessas simples palavras: "H,1 o perdão" ressoa como um
desafio inverso,
A expressão "h,í" quer proteger o que Lévinas denomina,,a a ileidade dentro de
toda proclamação do mesmo género, A ileidade, aqui, é a da altura de onde o perdão é
anunciado, sem que essa altura deva ser atribuída rapidamente demais a alguém que
seria seu sujeito absoluto, A origem, pnwavelmente, nada mais é que uma pessoa, no
sentido em que ela é fonte de personalização, Mas o princípio, lembra Stanislas Breton,
nada é do que procede dele, O "há" da n1z do perdão o diz a seu modo, Por isso, fala-
1 rei dessa voz como de uma voz de cima, Ela é de cima, como a confissão da falta pro-
cedia da profundidade insondável da ipseidade, É uma voz silenciosa, mas não muda,
Silenciosa, pois não é um clamor como o dos furiosos, não muda, pois não pri,,ada de
palavra, Um discurso apropriado lhe é de fato dedicado, o do hino, Discurso do elogio
e da celebração, Ele diz: há, cs gibt, tilcrc is,,, o perdão - o artigo "o" designando a
ileidade, Pois o hino não precisa dizer quem perdoa e a quem, Há o perdão como h,-í
a alegria, corno há a sabedoria, a loucura, o amor, O amor, precisamente, O perdão é
da mesma família,
Como não evocar o hino ao amor proclamado por São Paulo na Primeira Epís-
tola aos Coríntios 7 Mas cuidado: o que o hino denomina não é alguém, pelo menos
num primeiro mo,,imento de pensamento, mas um "dom espiritual" - um "caris-
ma" - concedido pelo Espírito Santo: "No que diz respeito aos dons espirituais,
irmãos, não quero ,,é-los na ignorância", Assim se anuncia o hino (1 CoL 12,1 ), E o
111/níito propriamente dito encarece:" Aspirai aos dons espirituais, E vos mostrarei
12 Citado por Klc1us J\1. Kodc1lle, Vcr:ciln111g 1111(1! \\'c11dc:citc11? [confcn::•nci.is inaugur,1is pruferid ..b na
Lni,·er,idack Friedrich-Schiller de lena, 2 jun. IYY-lj, Erlangen e' lena, Palme Fnke, JLJLJ-l.
i\ MFMÓRIA, i\ HISTllRIA, O ESQUECIMENHl
uma via que ultrapassa a todas" (12,31). Segue-se a famosa litania dos "Ainda que
eu ... " (ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, ainda que eu tivesse
o dom de profecia, ainda que eu tivesse a plenitude da fé, ainda que eu distribuísse
meus bens e entregasse meu corpo às chamas ... ) e a litania dos "Se eu não tiver. .. " (se
eu não tiver a caridade, não sou. Não passo de um vão sonhador, não sou nada, nada
adianta). Esse ataque retórico do tema pela denúncia de um defeito, de uma falta, na
articulação do ter e do ser, exprime em termos negativos a via da eminência. A via do
que ultrapassa todos os outros dons espirituais. O apóstolo pode então desenvolver
o discurso da efusão, no tempo verbal do indicativo presente: a caridade é isto ... é
aquilo ... ela é o que ela faz. "Ela não leva o mal em conta; ela não se alegra da injustiça,
mas põe sua alegria na verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta."
Portanto, se ela não leva o mal em conta, é porque ela desce ao lugar da acusação, da
imputabilidade, que faz as contas do si mesmo. Se ela se enuncia no presente, é por-
que seu tempo é o da permanência, da duração mais abrangente, menos distendida,
dir-se-ia em linguagem bergsoniana. Ela "nunca passa", "ela permanece". E ela per-
manece mais excelentemente que as outras grandezas: "Em suma, a fé, a esperança e
a caridade permanecem todas as três, mas a maior entre elas, é a caridade". A maior:
porque ela é a própria Altura. Ora, se a caridade desculpa tudo, esse tudo compreende
o imperdoável. Senão, ela mesma seria aniquilada. Nesse sentido, Jacques Derrida,
que eu reencontro aqui, está certo: o perdão dirige-se ao imperdoável ou não é. Ele
é incondicional, ele é sem exceção e sem restrição. Ele não pressupõe um pedido de
perdão: "Não se pode ou não se deveria perdoar, apenas há perdão, se houver, onde
há algo imperdoável" 11 • Todo o resto da problemática parte daí, do que Pascal chama
de "desproporção", num vocabulário marcado pela geometria cósmica e a álgebra que
opõe dois infinitos extremos. Essa desproporção entre a profundidade da falta e a al-
tura do perdão será nosso tormento até o fim deste ensaio. Ora, essa exigência infinita,
que emana de um imperativo incondicional, é de fato mascarada por dois tipos de
fatores que se devem à inscrição de fato do imperativo numa história.
Primeiro, o mandamento de perdoar nos é transmitido por uma cultura determi-
nada cuja amplidão não consegue dissimular a limitação. Derrida nota que a lingua-
gem que se tenta ajustar ao imperativo pertence "a uma herança religiosa, digamos
abraâmica, para nela reunir o judaísmo, os cristianismos e os islamismos". Ora, essa
tradição, complexa e diferenciada, e até mesmo conflituosa, é ao mesmo tempo singu-
lar e em via de universalização. Ela é singular, pois é produzida pela "memória abraâ-
mica das religiões do Livro e numa interpretação judaica, mas sobretudo cristã do
próximo e do semelhante" (ibid.). Sob esse aspecto, ninguém ignora que o hino à cari-
dade de São Paulo é inseparável do querigma de Jesus Cristo, de sua inscrição numa
proclamação trinitária e de uma tipologia dos "dons" no seio da comunidade eclesial
primitiva. A entronização, entretanto, é universal, ou pelo menos em via de universa-
lização, o que de fato equivale, nota Derrida, a uma "cristianização que não precisa
13 Jacques Derrida, "Le siêcle d le pardon", Lc Monde des dc'bnts, dez. 1999.
◊ 474 ◊
() ITRIJ.\() DIFÍCIi
mais da Igreja cristã" (ibid.), como se vê no cenário japonês e quando de certas expres-
sões do fenômeno de "mundialatinização" do discurso cristão. Essa simples observa-
ção levanta o problema considerável das relações entre o fundamental e o histórico
para toda mensagem ética com pretensão universal, inclusi\·e o discurso dos direitos
humanos. Nesse sentido, pode-se falar de universal pretendido, submetido à discus-
são de uma opinião pública em via de formação cm escala mundial. Por falta de tal
ratificação, podemos nos preocupar com a banalização do teste de universalização em
pro\·eito da confusão entre universalização na ordem moral, internacionalização de
ordem política e globalização de ordem cultural. Dessa banalização, nada se teria a
dizer, a não ser apelar para uma vigilância semântica maior na discussão pública, se
não interviesse um segundo fator que Jacques Derrida chama de "encenação". Ele
pensa cm "todas as cenas de arrependimento, de confissão, de perdão ou de descul-
pas que se multiplicam na cena geopolítica desde a última guerra, e de modo acelera-
do faz alguns anos". Ora, é graças a essas encenações que a linguagem abraâmica do
perdão se difunde de modo não crítico. O que ocorre com o "espaço teatral" no qual
se interpreta "a grande cena de arrependimento"? O que ocorre com essa "teatralida-
de"? Parece-me que se pode suspeitar, neste caso, de um fenômeno de abuso compa-
rável àqueles muitas vezes denunciados nesta obra, quer se trate do presumido dever
de memória ou da era da comemoração: "Mas o simulacro, o ritual automático, a hi-
pocrisia, o cálculo ou a macaquice desempenharam muitas vezes seu papel, e vêm
parasitar essa cerimônia da culpabilidade". Na realidade, trata-se de um mesmo e
único complexo de abuso. Mas abuso de quê? Se se diz, ainda com Derrida, que há
"uma urgência universal da memória" e que "é preciso voltar-se para o passado", a
questão de uma inscrição dessa necessidade moral na história coloca-se inelutavel-
mente. Derrida o admite quando pede, com toda a razão, que esse ato de memória, de
auto-acusação, de "arrependimento", de comparecimento, seja levado "ao mesmo
tempo além da instância política e do Estado-nação". A questão grave, então, é a de
saber se uma margem de além do jurídico e do político se deixa identificar no cerne
de um e outro regime, cm suma, se o simulacro pode macaquear gestos autênticos, e
até mesmo instituições legítimas. O fato de a noção de crime contra a humanidade
permanecer, a esse respeito, "no horizonte de toda a geopolítica do perdão", é pro\·a-
\'elmentc a última provação desse vasto questionamento. De minha parte, reformula-
rei o problema nestes termos: se há o perdão, pelo menos no nível do hino - do hino
abraâmico, se assim se quiser-, existe perdão para nós? Ou então é preciso dizer,
com Derrida: "Cada \'CZ que o perdão está a serviço de uma finalidade, seja ela nobre
e espiritual (remição ou redenção, reconciliação, salvação), cada \·ez que ele tende a
restabelecer uma normalidade (social, nacional, política, psicológicâ) por um trabalho
do luto, por âlgumi.l terapii.l ou ecologia da memórii.l, então o 'perdão' não é puro -
nem seu conceito. O perdão não é, não deveria ser nem normal, nem normati\'O, nem
normalizante. Ele deveria permanecer excepcional e extraordinário, à prova do im-
possível: como se interrompesse o fluxo comum da temporalidade histórica". É essa
"prova do impossível" que é preciso enfrentar agora.
A \11:M(JRIA, A HISIClRIA, () LS(.)UlCIMLN lll
14 Karl Jaspers, Oic Scl,11/dfmgc (1946), Munique, R. Piper, 1979; trad. franc. de Jeanne Hersch, L11 C11/-
pa/,iliti' 11/lc1111111dc, prd,ício de Pierre Vidal-Naquet, Paris, Éd. de Minuit, col. "Argurnents", 1990.
15 Cf. ,icirn,1, ll'rCl'ira parll', cap. 1, Sl'Ç<lo Ili, "O historiador e o juiz".
() l'I Ril\() Ili! ÍCII
eles que é proibido, o que a palavra "extinção" significa quando aplicada às dívidas e
ao direito de ação penal. Como o tempo sozinho poderia - o que já é um modo de
dizer - operar a prescrição sem um consentimento tácito para com a inação da socie-
dade? Sua justificação é puramente utilitária. É de utilidade pública pôr um termo aos
processos eventuais suscitados pela aquisição das coisas, pela cobrança das dívidas e
pela ação pública dirigida contra os contraventores da regra social. A prescrição aqui-
sitiva vem consolidar propriedades; a prescrição liberatória protege de um endivi-
damento indefinido. A prescrição da ação pública penal reforça o caráter conclusivo,
"definitivo", das sentenças penais em geral, que, supostamente, põem um termo ao
estado de incerteza jurídica que dá lugar a processos. Para terminar os processos é
preciso não reabri-los ou simplesmente nem abri-los. O conceito de extinção - extin-
ção da dívida em direito civil, extinção do direito de processar em direito criminal - é,
sob esse aspecto, significativo. Ele abarca ao mesmo tempo um fenômeno de passivi-
dade, de inércia, de negligência, de inação social e um gesto social arbitrário que auto-
riza a considerar a instituição da prescrição como uma criação do direito positivo. O
papel de regulação social aqui exercido é heterogêneo ao perdão. A prescrição tem
um papel de preservação da ordem social que se inscreve num tempo longo. Mesmo
que o perdão tenha um papel social importante, como será mostrado mais adiante
junto com a promessa, ele tem uma natureza e uma origem inscritas na função social,
mesmo a mais marcada pela preocupação com a paz comum.
É sobre esse pano de fundo que se deve recolocar a legislação que pronuncia a
imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e, entre eles, dos crimes de geno-
cídio18. A imprescritibilidade significa que não cabe invocar o princípio de prescrição.
18 Os crimes contra a humanidade foram definidos pelas Cartas dos tribunais militares internacio-
nais de Nuremberg e em seguida de Tóquio de 8 de agosto de 1945 e 12 de janeiro de 1946. Esses
textos distinguem: os atos inumanos cometidos contra toda população civil antes de e durante
a guerra, entre os quais o assassinato, o extermínio, a redução à escravidão e a deportação; as
perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos. As Nações Unidas precisaram a noção
pela Convenção sobre o genocídio de 10 de dezembro de 1948. A Convenção de 26 de novembro
de 1968 sobre a imprescritibilidade e a resolução de 13 de dezembro de 1973 que pregavam uma
cooperação internacional para a perseguição dos criminosos colocaram o selo do direito inter-
nacional sobre a noção. Paralelamente, a noção de crime contra a humanidade foi incluída no
Direito interno francês pela lei de 26 de dezembro de 1964, que "constata" a imprescritibilidade
dos crimes contra a humanidade e do genocídio por referência à resolução das Nações Unidas de
1946: esses crimes são declarados "imprescritíveis por sua natureza". A jurisprudência, expressa
por uma série de decisões da Corte de cassação suscitadas pelos processos impetrados em nome
dessa acusação (casos Touvier e Barbie), levou a considerar como crlmcs imprescritíveis "os atos
desumanos e as perseguições que, cm nome de um Estado que pratica uma política de hegemonia
ideológica, foran1 cometidos de modo sistemático, não somente contra pessoas cm razão de seu
pertencimento a uma coletividade racial ou religiosa, como também contra os adversários dessa
política, independentemente da forma de sua oposição". Um primeiro elemento comum concerne
à existência de um plano concertado. Segundo elemento comum, as vítimas são pessoas e nunca
bens, diferentemente dos crimes de guerra. A definição do crime contra a humanidade está do-
ravante fixada pelos artigos 211-1 e seguintes do novo Código Penal de 1994. O genocídio é nele
definido como um crime contra a humanidade que tende à destruição de um grupo, que pratica
atentado voluntário à vida, à integridade física ou psíquica, ou que submete os membros do grupo
discriminado "a condições de existência de natureza a acarretar a destruição total ou parcial do
ll l'Ll,\J,\() \J\F\( li
Ela suspende um princípio que consiste, por sua vez, cm criar obst,ículo ao exercício
da ação pública. Ao suprimir os prazos de açiio processual, o princípio de imprescri-
tibilidade autoriza a processar indefinidamente os autores desses crimes imensos. Nes-
se sentido, ele restitui ao direito sua força de persistir apesar dos obstáculos opostos ao
desdobramento dos efeitos do direito. A justificação dessa suspensão de uma regra ela
mesma suspensiva apela para vários argumentos. É fundamentalmente a gravidade
extrema dos crimes que justifica a perseguição dos criminosos sem limite no tempo.
Diante do argumento falacioso do desgaste da vindita pública pelo deito mecânico
do tempo, a presunção é que a reprovação dos crimes considerados não conhece li-
mite no tempo. A esse argumento acrescenta-se a consideração da perversidade de
planos concertados, visada pela definição restritiva do crime contra a humanidade no
direito interno francês. Essa circunstância justifica um zelo particular em perseguir os
criminosos, cm razão da impossibilidade de julgar rapidamente, pois os culpados são
peritos em se subtrair à justiça pela fuga, ou pela camuflagem de identidade. Diante
da provação desses ardis, são necessárias prtwas que resistam ao desgaste do tempo
e uma fala que tampouco deve conhecer prazo de prescrição. Isso posto, o que acon-
tece com as relações entre o imprescritível e o imperdoável? A meu ver, seria um erro
confundir as duas noções: os crimes contra a humanidade e o crime de genocídio só
podem ser considerados (inadequadamente) imperdoáveis porque a questão não se
coloca. Foi sugerido acima: é preciso que justiça seja feita. Não se poderia substituir a
justiça pela graça. Perdoar significaria ratificar a impunidade, o que seria uma grande
injustiça cometida à custa da lei e, mais ainda, das vítimas. A confusão, contudo, pôde
ser encorajada pelo fato de a enormidade dos crimes romper com o princípio de pro-
porção que rege as relações entre e escala dos delitos ou dos crimes e a dos castigos.
Não há castigo apropriado para um crime desproporcional. Nesse sentido, tais crimes
constituem um imperdoável de fato'y· Além disso, a confusão pôde ser encorajada
grupo, inclusive aborto, esterilizaç<lo, separação dos adultos l'I11 e:-.tado de procriar, transferên-
cias forçadas de filhos". Todos esses atos crin1inosos consagram (1 ruptura da igualdade entre
os homens afirmada pelos artigos prin1eiro e terceiro da Declar,1ção Internacion<1I dos Direitos
Hun1anos.
lY É assi1n, ncredito, que se podem con1preender as \'ariações de Vladirnir Jank(,Iévitch sobrl' esse
assunto. Num primeiro pnsaio, publicado L'm 195ó (Paris, Éd. du Seuil, 1986) com o título
L'lmprcscriptib!c, contemporâneo das pofl,mica~ n'\<1tivas J. prescrição dos crin1es hitlerianos, ele
argun1entara, segundo confessou, contra o PL'rdão. Mas era rec1ln1ente e~sa cl questã.o? Por outro
lado, esse ens.Jio era, pelo tom, uma i1nprec1çJl) rnais que uma defe~a, onde a parte contr{íria
não tinha a palavra. Ele esta\·a certo num ponto: "Todos os critérios jurídicot-. geraln1ente aplic,i-
\·eis aos crimes de direito con10 em mat(,ria dt...' prescrição são aqui postos em xeque" (op. t"it., p. 21):
crin1e "intt.•rnacional", crime contra "a essl'nci{1 hun1ana", crin1e contra "o direito de existir", tan-
tos crimes desn1esur<1dos; "esquecer esses crin1es gigantescos contra. a hun1anidade seria un1 no\ o
crin1e contra o gênero humano". É, isso que L'U chamo de in1perdo,1\·pl dl' f{1to. () estudo dl' 1967
sobre Le l'ardon (Paris, J\ubier) trilha outra pista, na qual o ternpo do perdcl.o ('., identificado com o
tl'mpo do c>squl'ciml'nto. É então do dc>sgastl' do tempo que> Sl' trata ("I:usurl'", op. cil., p. 30). Sq:;ue
unia terceira abordagem, em 1971, corno título intL•rrogati\·o Pt1rdnn11cr? (Éd. du Pa\'illon, reto-
mado in L'imprl'scriptiblc>, op. cit.). Nele SL' !(> a famosa L'Xcl,1maç,10: "O perdão' Mas ek's já nos
pl•dirc1n1 pt>rdão?" (op. cit., p. 50.) "Apenas o dest1mparo l' a derreliç<lo do culpado daria1n uni sen-
A ,ll~lllRIA, A IIISHlRIA, () LS(JL;lll~ffNIO
pelo conceito vizinho de expiação. Fala-se de bom grado de crime inexpiável. Mas o
que seria a expiação, senão uma absolvição obtida pelo próprio castigo, este tendo de
algum modo esgotado a taça de maldade? Nesse sentido, a expiação teria por efeito a
extinção dos processos, como o exige a prescrição. Então, chamar de inexpiáveis dados
crimes significa declará-los imperdoáveis. Mas essa problemática é inapropriada ao
direito criminal.
Isso quer dizer que o espírito de perdão não pode dar nenhum sinal de si mes-
mo no plano da culpabilidade criminal? Não acredito. Pôde-se notar que esse tipo
de culpabilidade continuou sendo medida em função das infrações a leis unívocas.
São os crimes que são declarados imprescritíveis. Mas são os indivíduos que são cas-
tigados. Contanto que culpado signifique punível, a culpabilidade remonta dos atos
a seus autores. Ora, algo se deve ao culpado. Pode-se chamar isso de consideração,
esse contrário do desprezo. Só se compreende o alcance dessa disposição de espíri-
to se se abandonar a região especial dos crimes extremos para retornar aos crimes
de direito comum. Seus autores têm direito à consideração porque continuam sendo
homens como seus juízes; nessa condição, são presumidos inocentes até sua conde-
nação; além disso, eles são chamados a comparecer com suas vítimas no âmbito da
mesma encenação do processo; eles também são autorizados a ser ouvidos e a se de-
fender. Finalmente, eles sofrem a pena que, mesmo reduzida à multa e à privação de
liberdade, continua a ser um sofrimento somado ao sofrimento, sobretudo no caso
das penas longas. Mas a consideração não está limitada ao âmbito do processo, nem,
tampouco, ao da execução da pena. Ela é fadada a irrigar a totalidade das operações
implicadas no tratamento da criminalidade. Ela concerne obviamente às operações de
polícia. Mas, de modo mais significativo, a consideração concerne ao espírito no qual
os problemas criminais deveriam ser abordados. Se for verdade que a função do pro-
cesso é a de substituir a violência pelo discurso, o assassinato pela discussão, é fato que
nem todo o mundo tem o mesmo acesso às armas da discussão. Existem excluídos da
palavra que, arrastados perante os tribunais, em particular no caso de julgamento de
flagrante delito, podem sentir o comparecimento como uma expressão suplementar
do que experimentam diariamente como violência institucional. Então, é o julgamento
proferido de fora pela moral sobre o direito que justifica o adágio: sumn111111 jus, s11111ma
injuria. Esse julgamento proferido pela moral sobre a justiça prolonga-se em julgamen-
to proferido de dentro do espaço judiciário, na forma de injunções dirigidas à justiça,
que dela exigem que seja sempre mais justa, isto é, ao mesmo tempo mais universal
e mais singular, mais preocupada com as condições concretas da igualdade perante a
lei e mais atenta à identidade narrativa dos acusados. É tudo isso que a consideração
das pessoas implica.
tido e unia razão de ser ao perdão" (ihid.). Estamos aqui nun1a outra problemática, na qual, de fato,
certa reciprociLfade seria restabelecida pelo ,lto de pedir perdão. Jankélévitch l'SliÍ mesmo a par d,1
contr'-1dição aparente: "Existe entre o absoluto da lei de· amor e o '"1bsoluto da liberdade malvada
uni rasgo que não pode ser intcirl1n1enh..> descosido. Nilo busc,1Inos reconciliar a irracionalidade
do n1al con1 a onipotência do an1or. () perdclo é forte co,no o mal, mas o n1al é forte como o perdão"
(Ad\'l'rt[,nci,1, PP· 14-15).
ll l'IRllÍ(l 11111( 11
2. A culpabilidade política
Cabe distinguir, com Karl Jaspers, a culpabilidade política dos cidadãos, assim
como dos homens políticos, da responsabilidade criminal que pode ser julgada pelos
tribunais e, portanto, dos procedimentos penais que regem o curso dos processos.
Ela resulta do pcrtencimento de fato dos cidadãos ao corpo político em nome do qual
os crimes foram cometidos. Nesse sentido, ela pode ser dita coletiva, com a condição
de não ser criminalizada: a noção de poni criminoso de\·e ser expressamente rejeita-
da. Mas esse tipo de culpabilidade engaja os membros da comunidade política inde-
pendentemente de seus atos individuais ou de seu grau de aquiescência à política do
Estado. Quem usufruiu os benefícios da ordem pública de\·e, de certo modo, respon-
der pelos males criados pelo Estado do qual faz parte. Diante de quem se exerce esse
tipo de responsabilidade (Haft1111g)? Em 19-!7, Karl Jaspers respondia: diante do ven-
cedor - "Ele arriscou a \"ida e o desfecho lhe foi fayoráYcl" (La Culpabilité al/c11w11dc,
p. 56). Hoje cm dia, diríamos: diante das autoridades representati\"as dos interesses
e dos direitos das \"Ítimas e diante das no, as autoridades de um Estado democrático.
Mas trata-se sempre de uma relação de poder, de dominação, nem que seja a da
maioria sobre a minoria. Quanto aos efeitos, eles se distribuem entre as sançéíes pu-
niti,·as, proferidas por cortes de justiça em nome de uma política de depuração, e as
obrigaçéíes de reparação a longo prazo, assumidas pelo Estado oriundo da no\·a rela-
ção de forças. Mas, mais importante que a punição - e mesmo que a reparação -
continua a ser a palavra de justiça que estabelece publicamente as responsabilidades
de cada um dos protagonistas e designa os lugares respectinis do agressor e da dti-
ma numa relação de justa distância.
Os limites dessa culpabilidade são certos: relaçéíes de forças permanecem engaja-
das; sob esse aspecto, é preciso eYitar erigir a história da força em tribunal mundial.
Mas, nesses limites, conflitos que interessam a problemMica do perdão têm seu lugar.
Ainda nos encontramos sob o regime da culpabilidade, da inculpação, na medida em
que permanecemos no campo da rcpro,·ação e da condenação. Podem, então, surgir
estratégias de dcsculpação que criam obst,ículo ao progresso do espírito de perdão cm
direção ao si (sc/f) culpado. A defesa sempre tem argumentos: podem-se opor fatos
aos fatos; apelar para os direitos das gentes contra os direitos nacionais; denunciar os
desígnios interessados dos juízes, ou até mesmo acusei-los de terem contribuído pMa
o flagelo (tu q11oq11c!); ou ainda tentar afogar as peripécias locais na vasta história dos
acontecimentos do mundo. Cabe então à opinião l'Sclarecida sempre trazer de \"olta o
exame de ccmsciC:•ncia do grande palco ao pequeno palco do Estado em que foi alirnen-
A MFMORIA, A HIST(JRIA, O FSQUFCIMFNTO
tado. A esse respeito, uma forma honrosa de desculpação deve ser denunciada, aquela
invocada pelo cidadão que se considera como não envolvido na vida da cidade:" A éti-
ca política, lembra Karl Jaspers, fundamenta-se no princípio de uma vida do Estado da
qual todos participam, por sua consciência, seu saber, suas opiniões e suas vontades"
(op. cit., p. 49). Em contrapartida, a consideração devida ao réu toma, no plano político,
a forma da moderação no exercício do poder, da autolimitação no uso da violência, e
atlç mesmo da clemência para com os vencidos: parccrc victis 1 A clemência, a magnani-
midade, essa sombra do perdão ...
3. A culpabilidade moral
20 Kodalle, que não é suspPito de complacência em relação à desculpação barata, não se mostra me-
nos severo contra o "hipermoralismo arrogante" (op. cil., p. 36) que lhl' serve de contraponto.
Confrontado con1 a mesn1a questão, Max Weber, depois da Primeira Cuerra Mundial, denunciava,
entre Sl'US concidadãos, os vencidos que se flagelavam e se entregavam à caça ao culpado: "Scrii1
melhor eles adotarem u1na atitude viril e digna dizendo ao inimigo: 'Nós perden10s a guerra e
vocês a ganharam. Esqueçamos o passado e discutamos agora conseqüências que se devem tirar
da situação novd !... ! considerando a rcsponsabilidadl' diantl' do futuro qul' pesa em primeiro
lugar sobrp o vencedor"'(Le S11v1111/ fl lc Politiqu~, Paris, l'lon, 1959; reed., 10/18, col. "Bibliothéques",
1996, p. 201). Karl Jaspers, vinte e cinco anos mais tarde, pede muito mais contrição por parte de
seus compatriotas.
() l'I Rll.\ll lJIIICII
21 Cf. P. Cifford, "Socrates in Amsterdam: thL' uses of irony in 'La chutL,- ", Edimburgo, Tl,c Modem
L,111g11agc Rn•icil', 7:l/3. 1'!78, pp. 4'!'!-512.
/1 MI ~lllRIA, A IIISTllRIA, O ES(JUl'CIMl:NTll
narrativas de vida que são as da outra parte; cabe aqui repetir o adágio: "aprender a
narrar de outro modo". É no âmbito dessa cultura da consideração aplicada às relações
de política externa que passam a fazer sentido gestos incapazes de se transformar em
instituição, como a genuflexão do chanceler Brandt em Varsóvia. Seu caráter excepcio-
nal importa. É graças a uma alquimia secreta que conseguem agir sobre as instituições,
ao suscitarem uma "disposição à consideração", segundo a expressão de Kodalle. Ora,
ocorre que esses gestos são também pedidos de perdão. Nessa condição, eles compro-
vam seu pcrtencimcnto a dois regimes de pensamento, o da inculpação, que é também
o do imperdoável, e o da troca entre uma demanda e uma oferta, cm que o imper-
doável começa a se esfarelar. É em direção a esse novo regime que se deve ir agora.
22 Olivier Abl'I, 'Tabll·s du pardon. G0ogr.iphie dcs dill'mmes l't parcours bibliographique", in L,· I'ar-
doll. Hriser la dctfl' e/ /'011/Jli, l\iris, Autrenwnt, séril' "Moraks", 1992, pp. 208-236.
ll l'I RIJ\(1 lJll'll li
como uma série de interrogações: "Pode-se perdoar àquele que n!io confessa sua fal-
ta7" "É preciso que quem enuncia o perdão tenha sido o ofendido?" "Pode-se perdoar
a si mesmo?" 21 Mesmo que tal autor decida num sentido e não no outro - e como o
filósofo não faria isso se, pelo menos, sua tarefa não se limita a registrar os dilemas 7 -,
sempre resta um lugar para a objeção.
Diante do primeiro dilema, parece-me que esperar a confissão do culpado é res-
peitar seu orgulho - assegurar-lhe essa consideração de que se faLwa acima. O se-
gundo dilema é mais perturbador: o círculo das dtimas não p,-íra de crescer, em ra-
zão de relações de filiação, da existência de \ ínculos comunitários, da proximidade
cultural, e isso até um limite que cabe à sabedoria política determinar, nem que seja
para se precaver contra os excessos da tendência contemporânea à vitimização. É mais
a contrapartida da pergunta colocada que é embaraçosa: apenas o ofensor primeiro
está habilitado a pedir perdão? As cenas públicas de penitência e de contrição enJCa-
das acima suscitam, além da suspeita de banalização e de teatralização, uma questão
de legitimidade: com que direito um homem político em funçiio, ou o líder atual de
uma comunidade religiosa podem pedir perdão a vítimas de quem, de resto, eles não
são o agressor pessoal e as quais, por sua \TZ, não sofreram pessoalmente o dano em
questão? Surge uma questão de representatividade no tempo e no espaço ao longo da
linha de continuidade de uma tradição ininterrupta. O par,1doxo é que instituições
não têm consciência moral e são seus representantes que, ao falarem em seu nome,
lhes conferem algo como um nome próprio e, com ele, uma culpabilidade histórica.
Certos membros das comunidades envohidas podem contudo n,10 se sentir engajados
pessoalmente por uma solidariedade cultural que detém uma força que não a da soli-
daried,1de política da qual resulta a responsabilidade coleti\ a en)cada mais acima'".
Quanto ao terceiro dilema, ele só receber,í. uma resposta completa na última etapa
de nossa odisséia. A hipótese de um perdão exercido de si para si mesmo é duplamen-
te problemática; de um lado, a dualidade dos papéis de agressor e de dtima resiste
a uma inteira interiorização: somente outro pode perdoar, a vítima; de outro lado, e
essa ressalva é decisiva, a diferença de altura entre o perdão e a confissão da falta não
é mais reconhecida numa relação cuja estrutura vertical é projetada numa correlação
horizontal.
É esse desconhecimento que, em minha opinião, onera a identificação apressada
do perdão com uma troca definida apenas pela reciprocidade.
1. A economia do dom
25 Em A111our e/ Justice (ediç5o bilíngüc, Tübingcn, Mohr, 1990), eu opusera a lógica de superabun-
dância, própria do que eu denonúnava de economia do dom, à lógica de equivalência, própria da
pconomia da justiça, com suas pesagens e suas balanças, até na aplicação das penas. Cf. também
Luc 13oltanski, L'A111our e/ la Justice co111111c co111pétc11ccs, op. cit.
26 Marcpl Mauss, Essai sur /e don. formes e/ miso11 de /'éclu111gc dans lcs sociétés arclrniqucs, in Année so-
ciologiquc, 1923-1924, t. I; artigo retomado i11 Marcel Mauss, Sociologic e/ A11/hropologic, Paris, PUF,
1950; W ed., col. "Quadrige", 1990. Essa obra de Mauss é contempor,inea da de C. Malinowski no
mesmo c;impo l' d;i de M. O;ivy sobre a fé jurada (1922).
(l l'I Rll\() IJIFI( li
com que o donatário a retribua?" (op. cit., p. 1-l8.) O enigma reside no vínculo entre três
obrigações: a de dar, a de receber, a de retribuir. É a energia desse \'Ínculo que, segun-
do os porta-vozes dessas populaçôes' 7, subjaz à obrigação do dom em troca; a obriga-
ção de devolver procede da coisa recebida, a qual não é inerte: "nas coisas trocadas
no potlatclz há uma \'irtude que força os dons a circularem, a serem dados e retribuí-
dos" (op. cit., p. 21-lf'. O fundo contra o qual se destacaram a escola comercial e sua
27 É ess,1 fala que CL.1ude Lé,·i-Strln,~s questiona n,1 sua L1n1o~c1 "lntroduction :1 l'o-__>uvn' de i\1arcel
i\1auss" (in Sociologíc ct A11tliroJ'ologic, op. cit.): ,is noçôes recL•bida~ das populaçCH.'S t:>studadas "n,l.o
s,1.o noçt)t.•s científiczls. Elas n<lo csclan..>Cl'Il1 os fenônll'nos qut:> nos propusernos a c·xplicar, n1as
deles participam" (op. cit., p. -t5). As noçiil'S de tipo 1111111a rcprest>ntam o cxct>dente de signific,1ç.ío,
o signific(1nte flutuante, do qual o hon1en-1 di~pôl' l'lll sc•u esforço para con1preendcr o inundo. Para
~air da sin1ples repetiçclo, da tautologia, a cil'ncil1 só poderia \·er nela~ a prt)pria forn1a da relaçJo
de troca nun1a de suas intl'rpretaçC-H:_'s pn.'."·-científicas. No~so probk n1a, aqui, é con1plctarnetltl'
1
noção de interesse individual, cujo triunfo é celebrado pela Fah/c dcs ahcil/cs de Man-
deville (op. cit., p. 271), deve permanecer como um fundamento ao qual voltar: aqui,
"chegamos à pedra angular" (op. cit., p. 264). "Dá tanto quanto tomas, tudo estará
muito bem", diz um belo provérbio maori (op. cit., p. 265).
2. Dom e perdão
2_l) Arriscar-n1t.>-t-.'i a dizer que n.'encnntrn algo dcl hipl'rbole l'\'angl'lica cltl' na utopicl política dei "pa/
perpl·tu,1", segundo K,1nt: utopia que confore a todo hon1em o dirL·ito de ser rccL·bido L'lll p,1b
estrangeiro "nnno uni hóspede e nJo coniu un1 inin1igo", pois ,1 huspit,1lid,1de uni\·ers,1\ constitui,
na \'erdc1de, o paralelo, na polític'-1, do an1or L'\·ang[,Jico aos inin1igo-;.
30 Petl'r Kemp, /_"/rrc111p/11ç11/,/c, Paris, Corti, JLJLJ;".
A Ml:MC1RIA, A HISTÚRIA, O FSQUFCIMl"NTO
África do Sul, Nelson Mandela, e valentemente presidida pelo bispo Desmond Tutu.
A missão dessa comissão, que deliberou de janeiro de 1996 a julho de 1998 e entregou
seu relatório em cinco grandes volumes em outubro de 1998, era a de "coletar os tes-
temunhos, consolar os ofendidos, indenizar as vítimas e anistiar quem confessasse ter
cometido crimes políticos"".
"Compreender e não vingar", tal era o propósito, em contraste com a lógica puni-
tiva dos grandes processos criminais de Nuremberg e Tóquio 12 • Nem a anistia, nem a
imunidade coletiva. Nesse sentido, é mesmo sob a égide do modelo da troca que essa
experiência alternativa de depuração de um passado violento merece ser evocada.
Certamente, ainda é cedo demais para avaliar os efeitos dessa empreitada de justi-
ça dita reparadora sobre as populações. Mas a reflexão foi levada suficientemente lon-
ge pelos protagonistas e muitas testemunhas diretas para que um balanço provisório
pudesse ser estabelecido a respeito dos obstáculos encontrados e dos limites inerentes
a uma operação que não visava o perdão, mas a reconciliação em sua dimensão ex-
plicitamente política, tal como K. Jaspers a delimitou com o nome de culpabilidade
política.
Do lado das vítimas, o benefício é inegável em termos indivisamente terapêuticos,
morais e políticos. Famílias que lutaram durante anos para saber puderam dizer sua
dor, exalar seu ódio perante os ofensores e diante de testemunhas. À custa de longas
sessões, puderam narrar as sevícias e nomear os criminosos. Nesse sentido, as audiên-
cias permitiram verdadeiramente um exercício público do trabalho de memória e de
luto, guiado por um procedimento contraditório apropriado. Ao oferecer um espaço
público à queixa e à narrativa dos sofrimentos, a comissão certamente suscitou uma
katharsis compartilhada. Além do mais, o importante é que, além dos indivíduos con-
vocados, profissionais oriundos dos meios de negócios, da imprensa, da sociedade
civil, das Igrejas tenham sido convidados a sondar suas memórias.
Sendo assim, talvez seja esperar demais dessa experiência sem precedente per-
guntar até que ponto os protagonistas conseguiram avançar no caminho do perdão
31 Sophie Pons, Apart/Jeid. L'aveu e/ /e pardo11, Paris, Bayard, 2000, p. 13. A comissão, composta por
vinte e nove pessoas, oriundas de grupos religiosos, políticos e cívicos, era composta por três co-
mitês: o con1itê de violação dos direitos hun1anos, cuja missão era estabelecer a natureza, a causa
e a amplidiío dos abusos cometidos entre 1960 e 1994, e que era dotado de poderes ampliados de
investigação e de citação para comparecer; o comitl· de reparação e de indenização, cuja missão
l'ra identificar as vítin1as e estudar suas queixas cm vista de indenizações, de ajuda material e de
apoio psicológico; o comitê de anistia, encarregado de examinar os pedidos de perdão, sob a con-
dição de confissües C(Hnpletas que comprovassen1 a motivc1çJo política dos atos incri1ninados.
32 "A maior inovação dos sul-africanos se deveu a u111 princípio, o de uma anistia individual e con-
dicional, inversa das anistias gerais outorgadas na América Latina sob a pressão dos militares.
NJo se tratava de apagar, mas de revelar, não de encobrir os crimes, n1as pelo contrário, de desco-
bri-los. C)s antigos criminosos tiveram de participar da reescrita da históric1 nacional para serem
perdoados: a imunidade se merece, ela implica o reconhecimento público de seus crimes e a acei-
tação das novas regras democráticas. [... ] Desde a noite dos tempos, diz-se que todo crime merece
castigo. foi nos confins do continente africano, pela iniciativa de um antigo prisioneiro político e
sob a direção de un1 home111 de Igreja, que um país explorou unia nova via, a do perdão aos que
reconhecem suas ofens<1s" (S. Pons, op. cil., pp. 17-18).
() l'!RLJ.\(l IJlrICII
33 Ao peso político dos não-ditos, é prl·ciso acre~centar os ensinan1ento~ do desprezo, a obses~,1o dos
medos ancl'Strab, as justificaçôl'S idt..'oh\µ;icc1~, ou ,1tL· n1t..•sn10 teológicas, da injustiça, os argumt...'n-
tos geopolíticos que dat,un da gtH..'rra fric1 e todo o aparato das n1oti\·açôe~ que dizen1 respeito à
identidade pessoal e colL·ti\·a. Tudo is~o fonna un1,1 enorme n1assa para se leYantar.
A MFMÚRIA, A IIIST(lRJA, () rsQULl'IMFN lll
como mostra a rejeição por muitos do relatório da comissão. Não é prova de deses-
perança o fato de reconhecer os limites não circunstanciais, mas por assim dizeres-
truturais, de uma empreitada de reconciliação que não somente requer muito tempo,
mas um trabalho sobre si em que não é excessivo discernir algo como um i11cog11ito do
perdão sob a figura de um exercício público de reconciliação política.
A experiência dolorosa da comissão "Verdade e Reconciliação" nos traz de volta,
graças às próprias perplexidades que ela suscitou em seus protagonistas e em suas
testemunhas, ao ponto onde interrompemos a discussão das relaçôes entre perdão,
troca e dom. Como sugere o título dado a essa seção do Epílogo, essa discussão, prova-
velmente, não passava de uma escala na trajetória tensa entre a formulação da equação
do perdão e sua resolução no plano da ipseidade mais secreta. Mas essa escala era ne-
cessária para fazer surgir a dimensão de alteridade de um ato que, fundamentalmente,
é urna relação. Ligamos esse caráter relacional ao face a face que confronta dois atos
de discurso, o da confissão e o da absolvição: "Eu te peço perdão. - Eu te perdôo".
Esses dois atos de discurso fazem o que dizem: o dano é efetivamente confessado, ele é
efetivamente perdoado. A questão, então, é a de compreender como isso ocorre, tendo
cm conta os termos da equação do perdão, a saber, a incomensurabilidade aparente
entre a incondicionalidade do perdão e a condicionalidade do pedido de perdão. Esse
abismo não seria de certo modo ultrapassado por meio de um tipo de troca que pre-
serva a polaridade dos extremos? Propôe-se, então, o modelo do dom e sua dialética
de contradom. A desproporção entre a palavra de perdão e a da confissão retorna na
forma de uma única pergunta: que força torna capaz de pedir, de dar, de receber a
palavra de perdão?
É agora ao cerne da ipseidade que se deve transportar o exame. Mas a que poder,
a que coragem pode-se apelar para simplesmente pedir perdão?
1. O perdão e a promessa
3~ Ln1 pc1s~o 11l'S~c1 dirl'Çdo foi ll<Kio por Jc1nkék',·itch em L'Irrlt cr~iblc ct la .\/o:_-;fo!gic, Pari:-,, Flan1n1a-
1
rion, 1974. C) autor opôl' fortt'llll'lltl' o irrL'\·oglh·el ao irre,·crsÍ\·el (cap. -+). O irreversh·el exprime
que o ho1nen1 nJo podt' n)ltar ao seu pas.'-,ctdo, nen1 o passado ,·o\t,H con10 pl1ssado; o irrc\"oglí, l'l
significa que o "ter sido" - principaln1L'ntc o "ter fl'ito" - nJ.o pode ser aniquilado: o que foi foito
nclo pode ser de:-,feito. Duas in1possibilidadt:.'s inn.'rsas. A nostalgia, que era o pri1neiro sentin1ento
l'\.plorado pelo ,1utor, pende para o lado do irren:.'rsível. É o pe_c..ar do nuncl1 n1ais, que gostaric1 de
n:ter, rL'Viver. C) ren1orso é outra coisa: L'll' gostaria de apag<1r, "de_c..,·i, cr" (op. cit., p. 219). O rt:.'mor-
:-,o op()L' :,cu car..l.ter espl'Cific,1n1ente ético Zl h)nalidadc l'Stctizante L' intcn:-,an1cnte pt1tica do pesar.
Nen1 por isso l· n1Pno:-, pungL'lltL'. Se "o csquecin1ento n,1o niili;:a o irrt.'\·ogj\·cl" (op. cit., p. 213), se
L'Sh:' é o inapl1g,h·el, nJo :-,e de\·l' contar con1 a ero:-,,1.o temporal para re\·l).b?;,H o p<ist-.ado, ma:-, con1
o ,1to que desliga. Fnt,l.o, é preciso n1anter ern rL'Sl'n a a idéia dL' que "a n-.'\·ogaç,l.o dL'Íx,1 ,1t1\ÍS de
si 11111 resíduo irn.'dutí\cl" (tip. cit., p. 237). Ser,í cl plirte inclut,hcl do luto. Aqui nos apro,in1an1L)S
do in1perdoà\"el e, con1 ele, do irrcpar,ín.'l, \·L•:-,tígio:-, últimos do "ter ~ido" L' do "ter con1L'tido" 1111-
pc>ssÍn'i 1111do11c, nHl1ll diz Sh,1h'speML' L'rn ,\L1d,ctl,, impossíw·l "infeitu" (,ip. cit., p. 2.11). É no final
desSL' capítulo que Jankl'lt.~,·itch pronuncia a frase n-:produzid,1 na porta de sua rc_c..idl,ncia L' na
epígrafe dl'ste li\"ro: "Aquele que foi j,í n,l.o pode mai~ n,l.o ter sido: dora\·ante, esse fato 111isterio-..n
L' profLtnL-t1mente ob:-,cun) de ter sido l' seu\ i.ítico p,Hil a ett:rnidadt-.," (l'Jl- (if., p. 27:1).
Jh A estrita polluidadt-.' entre os esque1nas do lig._1n1L'ilto L' do dt.'sligan1entL) ~uscitou un1a intl'rcs-
'.-,ante explor,1ç.Jo dl' Sl'llS rL•cursos de articulaçcl.o en1 lllffOS can1pos: François (..l:-,t, em 1.c Tc11111..; d11
droit, Paris, ()dile Jacob, 1999, desen\·oln~ sobre a ten1poralid,1dl' do direito "unia 1nedid,_1 em qu,1-
tro ten1pos": ligar o p,1:-,~ado (n1crnúri,1), deslig._u o pas-;ado (perdJo), !iglu o futuro (pron1e:-,'.-,,J),
A MEM(1RIA, A ll!STÚRIA, O FSQUECIMl:NTO
dl'sligar o futuro (qul'stionarnento). O tempo de que fala o direito "é o presl'nle, pois é no presente
que se joga a medida l'rn quatro tempos do direito" (op. cit., p. 333).
37 Lê-se em Mateus 18,35: "É assim que também meu Pai celeste vos tratará, se cada um de vós não
perdoar de coração a seu irmão". ()u ainda: "Se perdoardes aos homens suas ofensas, também
vosso Pai celeste vos perdoará; mas se não perdoardes aos homens, vosso Pai tan1pouco perdoará
vossas ofensas" (Mateus, 6, 14-15). Lucas 17,3: "Se teu irmão pecar, repreende-o e, se ele se arrepen-
der, perdoa-lhe. E se sete vezes por dia ele pecar contra til' sete vezes vier ter contigo dizendo-te:
'Arrependo-me', tu lhe perdoar,ís".
38 Nesse ponto, Hannah i\rendt tem um momento de hesitação: "É, portanto, muito significativo,
é um ell'mento estrutural da esfera dos negócios humanos, que os homens sejam incapazes de
perdoar o que não podem punir, e que sejam incapazes de punir o que Sl' revela imperdoável. É ,1
marca verdadeira das ofensils que, desde K;1nt, são chamadas de "radicalmente más" e das quais
sabemos tão pouco, mesmo nós que fomos expostos a uma de suas raras explosões em público.
Tudo o que sabemos é que não poden1os nem punir nem perdoar essas ofensas e que, conseqüen-
temente, elas transcendem a esfera dos negócios humanos e o potencial poder humano, ambos
os quais elas destroem radica !mente em toda parte em que surgem. Então, quando o próprio ato
nos destitui de todo poder, na verdade podemos apenas repetir com Jesus: 'Sl'ria melhor para l'll'
ver-se passar na garganta urna pedra de moinho e ser jogado no rnar ... "'(op. cit., p. 271).
◊ 494 *
ll l'IRllAll llll lCII
3'! Friedrich Niet/sche, La Ct'11t'alogie de la nwr,1/c, tl'xto estabelecido por C. Colli l' M. Montinari,
tr,1d. franc. de lsabelil' Hidenbrand e Je,111 Cratil'll, Paris, Callimard, col. "Folio", 1'!87. O começo
da segunda di~sertaçJo de La Cé11éalogic de la mora/e é estrondoso: "Criar um animal que possa
pron1etcr, não é l'Ssa tarefa paradoxal qul' a nature?a se propús, cn1 se tratando do humano;
nJo é esse o problen1a \ erdadt:.>iro do ho1nen1? Mas o f.Jto de esse probll'ma ser resoh·ido nufflcl
a1npla medida, eis o que n.Jo deixará de espantar ,1quele que sabe bern que força a isso se opüe:
a forç(1 do csquecirnento". E con10 ele é n..'soh·ido? Pela pron1l'ssa feita contra o esquecin1f•nto.
Cha, o esquecin1ento, por su(1 vez, n,lo é considerado uma sin1ples inércia, TThlS "unia faculdade
dL· inibiç3.o ati\·a e unia faculdade positi\·a t...'Ill toda a forçd do terrno". A promessa figura entcl.o
na gt...'ne,1logia con10 unia conquista de segundo grau; ela é conquistada sobre o l'squecin1ento,
ele 1nesn10 conquistado sobre a (1git~1ção da \·ida: "eis a utilidade do psqueci,nento, ativo, conH)
eu disse, espécie de porteiro, guardião da ordern psíquica, da tranqüilidade, da etiquet;:i". É de
L'ncontro a esse esqueci1nento que a ml'tnória trabalha, n<lo qualquer men1úria, não a n1en1ôria
gu.:udii.1 do passado, a remcn1oraç3.o do acontecin1ento decorrido, do pass,1do terminado, n1as
e~sa memória que confl·re t10 hon1en1 o poder de cun1prir suas promessas, de se manter; n1en1ó-
ria de ipscidade, dirían1os, n1emóri,1 que, ao reguL:ir o futuro sobre o con1pronlis~o do passado,
torna o hon1e1n "pre\'isível, regular, nt...'Cl'S~,frio" - t. .' assin1 capaL de "rpsponder por ~i n1esn10
con10 por vir". É sobre essl' fundo glorioso que se desencadpia e~~e outro "caso lúgubre": a díYi-
da, o l'rro, a culpabilidadl'. Sobre tudo isso, il'r a ,1dmir,\vl'I obra dl· Cilil's Deil'UZl', Nict:sc/1e e/ la
/'/,i/osopl,ie, I'.iris, PlJF, col. "Quadrigl'", 1962, 1998.
-Hl Cf. acima, terceira partl', cap. :1, pp. -162--163.
-H k,111 Uelumeau, Lí1,•eu l'I /e l'ardo11. Les di/li",·ult<'s de /17 nmJÍ'ssim,. X/1/-XV///' sii'clc, Paris, Fa\'ard,
196-t 1992: "Nenhuma outrl1 Igreja cristd lll'TTl nenhun1l1 outra religião concederatn tanta in1por-
tZ1nci,1 quanto o catolicisn10 à confiss<lo detalhadil c repetida dos pecados. Pern1anecemos marca-
dos por esse ince~santt...~ con\·ite e por es~,1 forn1id,ÍVl'I contribuiç,1.o ao autoconhecimento" (p. 5).
Resta sl1ber se a outorga do perdão à cu~ta de tal confissão foi ,nais fonte de segur<1nça do que de
111edo e de culpabilizaçJ.o, corno se indaga o autor na linha de S('US trabalhos sobre La Pcur c11 lkci-
dmt (1978) et Le l'hhi e/ /17 l'e11r. L17 rnlpa/,i/is17/io11 e11 Occide11/ (1'!83): "Fazer o pl'cador confessar-sl'
para recebL•r do padre o pl'rdJo divino e ir en1bora tranqüilizado: tal foi a an1bição da Igreja cató-
lica, sobretudo a partir do mon1ento e,n que tornou a confissão privada obrig:zitória a elida c1no L',
além disso, exigiu dos fiéis a confissão detalhada dl' todos os seus pecados 'mortais'" (p. Y). Outra
qucstdo t' esclarecer os pressupostos de utn sbten1a que confia o "poder dl1s chaves" a cil•rigos,
apartados da comunidade dos fiéis, no tríplice papel de "m(·dico", "juiz" l' "pc1i" (p. 27).
* 495 *
/\ \1EM(lRI/\, /\ IIIST(lRI/\, O ESQL'l:CIMI :\ J()
42 Figura do Anticristo- e carcereiro do Cristo, esse vencedor das três tentações satZinicc1s segun-
do os Evangelhos, 1nc1s o grc1nde vencido da história-, o Crandc Inquisidor oferece às 1nulti-
dôcs a paz d,1 conscü-:•ncia, cl re1nissão de todos os pecados e1n troca da sub1nissão: "Está\'a1nos
certot-. ao agir assim, diga-1ne? N,lo era an1'1r a hun1anidade con1preender sua fraquen1, ali\'iar
seu fardo com amor, tolerar da sua fraca natureza até o pecado, contanto que fosse co1n nossa
perrnissão? Portanto, por que vir entravar noss,1 obra? [ .. ] Torn,1re1nos todos os hon1ens felizes,
as revoltas l' os 1nassacres inseparáveis de tua liberdade cessarão. [ .. ] Dire1nos a eles que todo
pecado Sl'rá rt•mido, se for con1etido com nossJ pt'rn1issão; é por a111or qut_' permitiren1os qu12
pequem e tomaren1os a pena sobre nós. Eles nos a111.:1rão co1no benfeitores que assu1ne1n seus
pecados diante de Deus. Eles ndo terão nenhun1 segredo para conosco" ("La légendc du Crand
lnquisiteur", in Lcs Frács Kam111nz01,, trad. franc., Paris, Callimard, 1952, 1973, t. l, pp. 358~361).
ll l'I RD\ll llll lCII
para morrer, mas para iml\'ar"? (op. cit., p. 277.) Nesse sentido, "a ação parece um
milagre" (ibid.)".
A evocação do milagre da ação, na origem do milagre do perdão, questiona seria-
mente toda a análise da faculdade de perdoar. Como se articula a dominação sobre o
tempo e o milagre da natalidade? É exatamente essa pergunta que dá um ml\'o impul-
so a toda a empreitada e convida a le\·ar a odisséia do espírito de perdão até o foco
da ipseidade. Em minha opinião, o que falta à interpretação política do perdão, que
garantia a simetria deste com a promessa no mesmo nível que a troca, é uma reflexão
sobre o próprio ato de desligar, proposto como condição do de ligar"". Parece-me que
Hannah Arendt ficou no limiar do enigma ao situar o gesto na interseção do ato e de
suas conseqüências, e não do agente e do ato. Obviamente, o perdão tem esse efeito
de dissociar a dívida de sua carga de culpabilidade e, de algum modo, desnudar o fe-
nômeno de dí\'ida, enquanto dependência de uma herança recebida. Mas ele faz mais.
Pelo menos, deveria fazer muito mais: desligar o agente de seu ato.
Entendamos bem o que está em jogo. Toda nossa irwestigação sobre o perdão par-
tiu da análise da confissão pela qual o culpado toma sua falta sobre si, interiorizando
assim uma acusação que visa dor,wante ao autor por trás do ato: o que os códigos
desaprovam, são infrações à lei ~ mas o que os tribunais punem são pessoas. Essa
constatação nos le\'Cm à tese de Nicolai Hartmann que afirma a inseparabilidade do
ato e do agente. Dessa declaração, erigida cm provocação, concluímos que a ipseidade
culpada tem um caráter imperdoá\·el de direito. Foi então em réplica a esse imperdo,í-
vcl de direito que estabelecemos a exigência do perdão impossí\·el. E todas as nossas
anc-ílises ulteriores consistiram numa exploração do intervalo aberto entre a falta im-
perdo,ível e o perdão impossível. Os gestos excepcionais de perdão, os preceitos a
respeito da consideração devida àquele a ser julgado e todos esses comportamentos
-+3 t'
"Na realidade, a l1çJ.o cl ünic<1 faculdade n1ilagrosa, taun1aturga: jL'su~ de Nazaré, cujas ,·isões
penetrantes sobrL' c~sa faculdl1de evoca1n, PL'la originalid(1de t:.' pela no,·idadc, as de Sócrates so-
bre <is possibilidades do pensanlt:.'nto, Jesus s,1bia pro,·<1veln1ente ben1 disso quZlndo con1para,·a
o poder de perdoar con1 o poder 1nai~ geral de realizar 111ilagrt'S, colocando an1bos no n1t'-..mn
plano e ao iJlcance do ho1nen1. () n1ilagre que salYcl o mundo, a e~fera dos neµ/icios hu1nano~, da
ruína norn1al, 'natural', é finalnll'nte o fato da nl1talidl1dl', no qual SL' l'nraíza ontologicl1111p1ltt' a
L1etdcL1de de agir.! .. ] É es-.;a espl'rança e e:-,:-,cl fL, no mundo que, prn,·lnt.•ln1L'nte, encontraran1 ~ua
t'\prcss<lo n1ais sucinta, rnais gloriosa, na pequena frase dos E,·angl'lho~ qul' anunciln·a sua 'boa
no,·a'· 'unia criança nasceu para nt')s"' (tip. cit., pp. 277-278).
--1--l :\ articulaçclo por Hannah Arendt da duplc1 fnrn1ada pL·lo perdão t.' pel<1 pronll'SScl l'Jll full\cl.o de
:-,ua rL•laç,lo con1 o ten1po não é a únicl1 pos:-,Í\'t-'l. :\ dutora de Co11ditio11 dl' /'/z(lnu,u_, nwdt'rnc escolheu
os ten1as da irre,·er:-,ibilidack t' dei in1prt'\·i~ibilidade, Jankélé,·itch tb da irrL'\·ersibilidade t' da
irrt•,·ogabilidade. Oli,·ier Abt.>l, nos tr<1balho:-, inl,ditos qul' pude consultlir, refere-st.' il seqüL,ncia
ten1poral constituída pt'las capacidades dt' conit•çar, de l'ntrar na troca, na qual inclui ll pronlt'ssa,
qut:> é a de se tnanter na troca, sob d égide da idéia de justiça, t.' dt• sair da troca, que L' o perdJo.
[ntrl' os dois pólo~, diz ele, estende-se o intt'n·alo da l'tic<l.
A MFM(JRIA, A HISTÓRIA, O ESQUECIMENTO
◊ 499 ◊
A MLM(lRIA, A HISHlRIA, ll J'S()UH 1.'-"1FNTO
fundo de bondade do homem. Esse "móvel para o bem", declara Kant, "nunca pude-
mos perdê-lo, e se tivesse sido possível, nunca poderíamos readquiri-lo" (A Religião ... ,
p. 69). Essa convicção encontra apoio numa releitura filosófica dos velhos mitos que
abordam a origem meta- ou trans-histórica do mal. A esse respeito, evocamos mais
acima o mito adâmico no qual a queda é narrada como um acontecimento primordial
que inaugura um tempo pós-inocência. A forma da narrativa está assim preservando
a contingência radical de um estatuto histórico tornado irremediável mas de forma
alguma fatal quanto a seu advento. Essa defasagem em relação ao estatuto criatura!
conserva a possibilidade de outra história inaugurada a cada vez pelo ato de arrepen-
dimento e pontuada por todas as irrupções de bondade e de inocência no decorrer dos
tempos. É a essa possibilidade existenciária-existencial posta sob a guarda da narra-
tiva de origem que faz eco a disposição para o bem sobre a qual se constrói a filosofia
kantiana de A Religião nos li111ites da simples razão. Deveriam então passar a servir esse
imenso projeto de restauração, de um lado, os símbolos que - como o do servidor que
sofre e de sua expressão crística - alimentam o imaginário religioso judaico e cristão;
e de outro lado, as instituições metapolíticas - tais como, na cristandade, as formas
visíveis da Igreja colocadas, em relação a esse depósito imaginário, na dupla posição de
discípulo e guardião. É a esses símbolos e instituições que é dedicada a seqüência de A
Religião ... , que Kant desenvolve, é verdade, num tom cada vez mais veemente para com
as formas históricas revestidas por esse religioso básico que, hoje em dia, diríamos ser o
das religiões do Livro.
É no plano de fundo dessa leitura filosófica do religioso ocidental que se destaca o
enigma do perdão no espaço de sentido dessas religiões. Ao tratar da inscrição does-
pírito de perdão nas operações da vontade, Kant se limita aqui a evocar a "cooperação
sobrenatural" suscetível de acompanhar e completar "a acolhida do móvel moral nas
máximas da vontade". Esse nó é tanto o desligamento do perdão quanto a ligação da
promessa 4 7 •
O que acontece, então, com a inteligibilidade de que essa conjunção é suscetível?
Quaisquer que sejam as soluções tentadas no decorrer das querelas teológicas sobre
o tema da liberdade e da graça, das quais Kant se dissocia na terceira parte de A Reli-
gião ... , não parece que o vocabulário do incondicional e do condicional, herdado das
antinomias da dialética da Razão pura, convenha à problemática do perdão e do ar-
rependimento. À disjunção, ao dilema, parece ser preciso opor o paradoxo. É preciso
47 "Suponde que, para tornar-se botn ou n1elhor, unia cooperação sobrenatural também seja neces-
Stíria, que ela consista sin1plcsmente na redução dos obstáculos ou que seja 1ncsmo ajuda positiva,
ainda assim o hon1en1 deve antes se tornar digno de recebê-la e de aceitar essa assistência (o que
não é pouco), isto é, acolher em sua máxima o crescimento positivo de força pelo qual apL'nas se
torna possível que o bem lhe seja imputado e que ele mesmo seja reconhecido como homL'm de
bem" (Kant, La Rcl('{io11 ... , p. 67). Uma filosofia da religião nos limites da simples radio proíbe-se
de escolher entre essas duas interpretações que beira1n o engaja1nento t:>xistencial pessoal, guiado
por u1na ou a outra tradição de leitura e interprctaç.lo no âmbito das religiões do Livro. A última
pall1vra ct1 "()bservi.lção geral" visa a exortar cada uni a en1prcgar sua disposição original par'-1 o
bcn1 <l fi1n de estar em estado de ter esperança de "que o que nZío esti.í em seu poder será co1nple-
tado por uma colaboração do alto" (op. cit., p. 76).
(l ITRIJ\(l llll llll
U111a Z'l'Z re'Co11d11:ida a trajetória do pcrdiio a seu lugar de orige111 e o si (self) rcco11/zccido
e111 sua capacidade 1110ml f1mda111e11t11I, 11 i111p11tabilid11de, 11 questão é saber que olhar 11oss11s
rcf)cxiies sobre o 11to de perdoar 110s per111ite111 l1111ç11r sobre 11 totalidade do rn111in/10 percorrido
nesse li,,ro. O que é feito da 111e111ôri11, da história e do esq11eci111e11to, torndos pelo espírito de
penMo 7 A resposta 11 essa perg1111t11 últi11111 co11stit11i, por 11ssi111 di:cr, o epílogo do Epílogo.
O discurso que com'l'lll a essa rernpit11l11çiio 11110 é 11111is o de 1111111 _f1•110111e11ologi11, 11c111 de
1111w epistc111ologi11, 11e111111es1110 de 1111111 lzem1e11é11tirn, é o da exploraç110 do lwri.::onte de rc11li:a-
ç110 da rndeia das opemçiies co11stitutirns desse msto 111e111ori11I do te111po que i11c/11i 17 111e111ôril7,
17 lzistôri11 e o esq11cci111e11to. A csse respeito, 11rrisco-111e 17 falar de esrntologia p11m s11bli11/zar a
di111c11s110 de antccip11ç110 e de projeçào desse lwri:011te zílti1110. O 111odo gm11117tirnl 11111is apro-
priado, aqui, é o optati,,o do desejo, a 111eio rn11Ii11/10 entre o indicatÍi'o da descriçào e o impem-
ti,'o da prcscriçiio.
Na c'erd11de, sô ide11ti~·q11ci t111·di11111entc esse ,'ÍllClllo pres11111ido c11tre o espírito de perdão
e o lzori:011/c de rmli:ação de toda nossa e111preit11d11. Tmt11-se 111111li{csta111e11tc de 11111 efeito
de releitum. O presse11ti111e11to desse uí11c11lo tcril7 me g11i11do desde o co111eço? T11lz>e:. Sc{lir
o caso, aplicarei 11 ele a disti11çào, proposta 110 i11ício de Si mesmo como um outro, e11tre o
rnrso s11l>tcrr!i11eo dl7 111otiuaç110 e o dcsem,o/i,i111e11to control11do d11 11rg11111c11tação7 Ou 11ind11,
11 distinçào que dez,o, acredito, a E11ge11 Fink, entre conceitos operatórios, nunrn intcgml111cntc
exposto, diante do espírito, e conceitos tc111âticos, erigidos e111 olijetos pcrti11e11tcs de s11/Jcr? Eu
-1-8 "Para u1n honll'l11 n1au por ndture1:a, cl possibilidcH.il' de se tornar bom por ~i n1esn10 é algo que
excede todas as no:-,:-,a:-, idéias: de fato, con10 un1,1 ..ln'OrL' mcÍ poderia Cclrregdr bons frutos? Entre-
tanto, con10, segundo a confis:-,cl.n feita ,1cimc1, un1a ,ín·ore boci n,1 origen1 (segundo sua dispo:-,iç,l.o)
produziu rnaus frutos t.' a quedcl do ben1 no n1al (:-,e se considerar quL' o n1al pn.n·én1 d,1 liberdadL')
n,l.o l' rnais inteligh·el que a ele\·,1ç.Jo do n1al ao betn, a possibilidade deste últin10 caso n.lo pl)de
SL'f contest,1dc1. Pois, ape:-,ar dt_'ssa qut:da, o n1andarnt.'tlto dt.' "qut.' tc1no:-, por obrigaç,l.o tornar-nos
1nelhor" ecoa en1 nossa aln1a con1 1nuita força: L' prccbo, por conSL'guintc, que o poss<1n10~, n1L'~-
n10 St' aquilo qul' poden10~ L1?cr fossL' L'n1 si in-;uficÍL'ntl' L' <1ssin1 nn-.; t<.ffn<Í.SSL'n1os ~in1plesn1etltL'
~u~cetí\·eis de ren'ber um au\ílio vindo do alto L' insond(h·L'l para n,.')~" {l)p. cit., pp. h7-h8).
A MEMÚRIA, A HISTÚRIA, O ES(.)Ul:C!MFNTO
não saberia dizer. O que sei, cm compensação, é que o que está em jogo cm toda a investigação
merece o belo nome de felicidade.
1. A memória feliz
cio dos órgãos, até que disfunções imponham que se levem em conta, no plano dos
comportamentos \·ividos e da conduta da vida, saberes que têm o cérebro por objeto.
É o mesmo pressuposto da clareza a si mesmo do fenômeno do reconhecimento
que, em seguida, armou a lâmina que decide entre duas ausências, a do anterior e a do
irreal, e assim cindiu por princípio a memória da imaginação, apesar das inquietantes
incursões da alucinação no campo mnemônico. Acredito poder geralmente distinguir
uma lembrança de uma ficção, embora seja como imagem que a lembrança volte. Ob-
viamente, desejaria ser sempre capaz de fazer essa discriminação.
Ainda é o mesmo gesto de confiança que acompanhou a exploração dos usos e
abusos que balizam a reconquista da lembrança nos trajetos da recordação. Memória
impedida, memória manipulada, memória comandada, tantas figuras da lembrança
difícil, embora não impossível. O preço a ser pago foi a conjunção entre trabalho de
memória e trabalho de luto. Mas acredito que, em certas circunstâncias favoráveis, tais
como a autorização dada por outro de se lembrar, ou antes, a ajuda trazida por outrem
na partilha da lembrança, pode-se dizer que a recordação teve êxito e que o luto foi
retido no declive fatal rumo à melancolia, essa complacência para com a tristeza. Se
assim fosse, a memória feliz se transformaria em memória apaziguada.
Enfim, é no reconhecimento de si mesmo que culmina, no modo do desejo, o
momento reflexivo da memória. Ora, tivemos o cuidado de não nos deixar fascinar
pela aparência de imediatidade, de certeza, de segurança de que esse momento refle-
xivo se reveste facilmente. Ele também é um voto, uma pretensão, uma reivindicação.
Sob esse aspecto, o esboço de uma teoria da atribuição, sob a tríplice figura da atribui-
ção da memória a si, aos próximos e aos outros longínquos, merece ser retomado sob
a perspectiva da dialética do ligar e do desligar proposta pela problemMica do perdão.
Em compensação, ao se estender assim à esfera da memória, essa dialética acaba de se
deslocar à esfera específica da culpabilidade para adquirir a envergadura de uma dia-
lética da reconciliação. Recolocada à luz da dialética do desligar-ligar, verifica-se que a
atribuição a si do conjunto das lembranças que constituem a identidade frágil de uma
vida singular resulta da mediação incessante entre um momento de distanciamento e
um momento de apropriação. Preciso poder considerar à distância o palco em que as
lembranças do passado são convidadas a comparecer para sentir-me autorizado a con-
siderar sua seqüência inteira como minha, como minha possessão. Ao mesmo tempo,
a tese da tríplice atribuição dos fenômenos mnemônicos a si, aos outros próximos e aos
outros longínquos, convida a abrir a dialética do desligar-ligar a outro que não eu mes-
mo. O que foi dado acima como a aprovação dirigida à maneira de ser e de agir dos
que considero como meus próximos-e a aprovação vale como critério de proximida-
de - consiste também num desligamento-ligação: de um lado, a consideração dirigida
à dignidade de outro - e que mereceu acima ser considerada como um i11cog11ito do
perd.10 nas situações marcadas pela acusação pública - constitui o momento de des-
ligamento da aprovação, ao passo que a simpatia constitui seu momento de ligação.
Caber,i ao conhecimento histórico prosseguir essa dialética do desligar-ligar no plano
da atribuição da memória a todos os outros que não cu e meus próximos.
A \1LM(lRIA, A HISTORIA, O J'SQUFCIMl''.10
2. História infeliz?
50 Walter Benj.imin, "Theses sur la philosophie de l'histoire" (1940), in ScliriJICII, 1%5, ll/11111i11atio11c11,
1961, Angelus Novus, 1966, Frankfurt, Suhrbmp Verlag; trad. franc. de M. de> Candillac i11 Wa]tpr
Bt•njamin, CE11urc, li. l'oésic e/ lú'uo/11tio11, Paris, Denoel, 1971, pp. 277-288. Outra tradução existe em
Walter Benjamin, Écritsfm11çais, Paris, Callimard, 1991, com o título "Sur !e conccpt d'histoire"
(1940), pp. 333-356. Cito d primeira das traduçôes mencionadas. Sobre as "Theses ... ", ler: Stfphanc
Mosi_•s, L'/\11gc de /'histoirc. l~osc112wcig, Rc11ja111i11, Scholc111, Paris, Éd. du Scuil, 1992, pp. 173-181; jean-
nL•-Marie Cagnebin, Histoirc ct N11rmtio11 c/1c: Walter llc11j11111i11, Paris. L'Harmattan, 1994, "Histoire
l't césure", pp. 143-173.
51 Na verdade, l'ssc seri,1 o Celso Sl' o futuro pudesse salvcir do esquecin1ento a história dos vencidos:
tudo seria 1.-:nfin1 "recordado". Nesse ponto futuro, revoluçilo l' redençZio coincidirian1.
() l'I RIJ.\() Ili I ICI 1
em dia contestada do progresso, a história que os homens fazem e que se abate sobre
a história que os historiadores escre\·em 1 Mas então não é mais desses últimos que
depende o sentido presumido da história, mas do cidadão que dá uma seqüência aos
acontecimentos do passado, Permanece, para o historiador de profissão, aquém desse
horizonte de fuga, a inquietante estranheza da história, a interminável competição
entre o voto de fidelidade da memória e a busca da verdade em história.
Falaremos, então, de história infcliz 1 Não sei. Mas não direi: infeliz história. De
fato, há um pri\·ilégio que não pode ser recusado à história, não apenas o de estender
a memória coletiva além de toda lembrança efetiva, mas o de corrigir, criticar, e até
mesmo desmentir a memória de uma comunidade determinada, quando ela se retrai
e se fecha sobre seus sofrimentos próprios a ponto de se tornar cega e surda aos so-
frimentos das outras comunidades. É no caminho da crítica histórica que a memória
encontra o sentido da justiça. O que seria urna memória feliz que não fosse também
uma memória eqüitati,·a?
3. O perdão e o esquecimento
Confessaremos i11fi11c algo como o \'llto de um esquecimento feliz? Vou dizer algu-
mas de minhas reticências quanto a um ill1pp11 c11d atribuído à nossa empreitada toda.
Minhas hesitações começam no plano das manifestações de superfície do esque-
cimento e se estendem à sua constituição profunda, no plano onde se confundem o
esquecimento de apagamento e o esquecimento de resen·a.
As artimanhas do esquecimento ainda são fáceis de desmascarar no plano cm que
as instituições do esquecimento, das quais a anistia constitui o paradigma, dão força
aos abusos do esquecimento que contrabalançam os abusos da memória. O caso da
anistia de Atenas, que nos ocupou no capítulo final sobre o esquecimento é, nesse
aspecto, exemplar. Viu-se sobre que estratégia de denegaçJo da violência fundadora
se estabelece então a paz cívica. O decreto, reconhecido pelo juramento, exigindo que
"os males não sejam lembrados", nJo pretende nada menos do que ocultar a realidade
da stasis, da guerra intestina, a cidade apro,·ando apenas a guerra no exterior. O corpo
político, em seu ser profundo, é declarado alheio ao conflito. A pergunta é então colo-
cada: é possível fazer urna política sensata sem algo como urna censura da memória?
A prosa política começa onde termina a ,·ingança, sob pena de a história permanecer
enclausurada na mortal alternância entre u ódio eterno e a rnemóriJ esquecidiça. Um,1
sociedade não pode estar indefinidamente encolerizada contra si mesma, Então, ,1pe-
nas a poesia presen a a força do n,10-esquecimcnto refugiado na afliçJo que É;,quilo
declara "insaci,Í\'el de males" (Eu11u;11idcs, \'. 976), A poesia sabe ainda que o político re-
pousa no esquecimento do não-esquecimento, "esse oxímoru nunca formuL1do", di-
zia Nicole Loraux (Ln Cit,; di,,iséc, p. 161 ). O juramento s<1 pode e\'Oc,í-lo e articul,í-lo
no modo da negação da negação, que decreta o não-lugar dessa infelicidade da qual
Electra proclama ser ela mesma "infelicidade que não esquece" (Elcctm, \'\'. 12-t6-
I2-l7). Essa é a aposta espiritual da anistia: fazer calar u não-esquecimento da nw-
A MLMl1RIA, A HIST(lRIA, ll ES(_)Ul:Cl\11:NIO
mória. Eis por que o político grego precisa do religioso para sustentar a vontade de
esquecimento do inesquecível, na forma das imprecações no horizonte do perjúrio.
Na falta do religioso e do poético, viu-se que a ambição da retórica da glória, na épo-
ca dos reis, evocada junto com a idéia de grandeza, era a de impor outra memória no
lugar da de Éris, a Discórdia. O juramento, esse rito de palavra - horkos conspiran-
do com /ct/u, - talvez tenha desaparecido da prosa democrática e republicana, mas
não o elogio da cidade por ela mesma, com seus eufemismos, suas cerimônias, seus
rituais cívicos, suas comemorações. Aqui, o filósofo evitará condenar as sucessivas
anistias das quais a República Francesa, em particular, faz muito uso, mas sublinhará
seu caráter simplesmente utilitário, terapêutico. E ele escutará a voz da inesquecidiça
memória, excluída do campo do poder pela csquecidiça memória ligada à refundação
prosaica do político. A esse preço, a fina divisória que separa a anistia da amnésia
pode ser preservada. Que a cidade continue a ser "a cidade dividida", é um saber que
se inscreve na sabedoria prática e em seu exercício político, para o qual concorre o uso
roborativo do dissc11s11s, eco da inesquecidiça memória da discórdia.
O mal-estar quanto à justa atitude que se deve adotar perante os usos e abusos do
esquecimento, principalmente na prática institucional, é finalmente o sintoma de uma
incerteza tenaz que afeta a relação do esquecimento com o perdão no plano de sua es-
trutura profunda. A pergunta volta insistentemente: se é possível falar em memória fe-
liz, existe algo como um esquecimento feliz? Em minha opinião, uma última indecisão
acomete o que poderia se apresentar como uma escatologia do esquecimento. Tínha-
mos antecipado essa crise no fim do capítulo sobre o esquecimento, ao pôr na balança
o esquecimento por apagamento de rastros e o esquecimento de reserva. É exatamente
dessa balança que se trata de novo na perspectiva de uma memória feliz.
Por que não se pode falar em esquecimento feliz, do mesmo modo como se pôde
falar cm memória feliz?
Uma primeira razão é que nossa relação com o esquecimento não é marcada por
acontecimentos de pensamento comparáveis ao reconhecimento, o qual nos agradou
chamar de pequeno milagre da memória - uma lembrança é evocada, ela sobrevém,
ela volta, reconhecemos num instante a coisa, o acontecimento, a pessoa e exclama-
mos: "É ela! É ele 1" A vinda de uma lembrança é um acontecimento. O esquecimento
não é um acontecimento, algo que ocorre ou que se faz ocorrer. Obviamente pode-se
perceber que se esqueceu, e nota-se isso num dado momento. Mas o que se reconhece
então é o estado de esquecimento no qual se estava. Esse estado pode obviamente ser
chamado de uma "força", como declara Nietzsche no início da segunda dissertação
de La gé11é11/ogic de la 111omlc. Não é, diz ele, "uma simples z>is i11crti11c" (Cé11é11/ogic .. .,
p. 271), é muito mais "uma faculdade de inibição ativa, uma faculdade positiva em
toda a força do termo" (i/1id.). Mas como somos avisados desse poder que faz does-
quecimento "o porteiro, o guardião da ordem psíquica, da tranqüilidade, da etiqueta"
(i/Jid.)? Sabemos disso pela graça da memória, essa faculdade contrária "com a ajuda
da qual, cm determinados casos, o esquecimento l' suspenso - a saber, nos casos cm
que se trata de prometer" (op. cit., p. 252). Nesses casos determinados, pode-se falar
U l'I Rll\U IJ\\\C\!
não apenas de faculdade, mas de vontade de nZlo esquecer, '\,ontade que persiste em
querer o que quis uma vez, de uma memória da vontade propriamente dita" (i/Jid,),
É ligando-se que se desliga do que era uma força, mas não ainda uma vontade, Ob-
jetar-se-á que as estratégias de esquecimento, de que se falou logo acima, consistem
em intervenções mais ou menos ativas que se podem denunciar como modos respon-
siiveis de omissão, de negligência, de cegueira, Mas, se uma culpabilidade moral pode
ser ligada aos comportamentos dependentes da classe do não-agir, como queria Karl
Jaspers em Sc/zzddfragc, é porque se trata de uma multidão de atos pontuais de não-agir
cujas ocasiões precisas podem ser posteriormente rememoradas,
Um segundo moti\'O para afastar a idéia de uma simetria entre memória e esque-
cimento em termos de êxito ou de realização é que, em relação ao perdão, o esqueci-
mento tem seus dilemas próprios, Esses se devem ao fato de que, enquanto a memória
lida com acontecimentos até nas trocas que dão lugar a retribuição, reparação, absol-
\'ição, o esquecimento desenvolve situações duradouras e que, nesse sentido, podem
ser chamadas de históricas, pois são constitutivas do trágico da ação, Assim, o esque-
cimento impede a ação de continuar, quer por confusões de papéis impossÍ\'eis de
desemaranhar, quer por conflitos insuperá\'eis nos quais a disputa é insolúvel, intrans-
ponível, quer ainda por danos irrepariiveis que costumam remontar a épocas recua-
das, Se o perdão tem algum papel nessas situaçôes de um trágico crescente"', só pode
tratar-se de um tipo de trabalho não pontual a respeito da maneira de esperar e de
acolher situações típicas: o inextricá\'el, o irreconciliável, o irrepar,1veL Essa aceitação
tiicita lida menos com a memória do que com o luto enquanto disposição duradoura,
De fato, as três figuras aqui evocadas são figuras da perda; admitir que há perda para
sempre seria a máxima de sabedoria digna de ser considerada como o i11cog11ito do
perdão no trágico da ação, A busca paciente da solução de compromisso seria a moeda
de troco, mas também a acolhida do di~sc11s1is na ética da discussi"m, Deve-se chegar
a dizer "esquecer a dí\'ida", essa figura da perda? Sim, proYaYelmente, na medida
em que a dívida confina na falta e enclausura na repetição, Não, enquanto ela signi-
fica reconhecimento de herança. Um sutil trabalho de desligamento e ligação de\ e ser
reali;:ado no próprio cerne da dívida: por um lado, desligamento da falta, por outro,
ligação de um de, edor para sempre insoh,ente, A dívida sem a falta, A dívida post,, a
nu, Onde SL' reencontra a dívida para com os mortos e a história como sepultura,
A razão mais irredutÍ\'el da assimetria entrl' u esquecimento e ,1 memóri,1 cm rela-
ção ao perdão reside no carclter indl'cidín·l da polclridade que pôe o império subterd-
neo do esquecimento em conflito consigo nwsmo: a pol,1rid,1dt· entre o esquecimento
por apagamento e o esquecimento de rt•sen a, É sobrt' a confiss,10 dessc1 ,rn1bigi.iidade
irredutível quP se pude apor ,l marca mais preciosa e mais Sl'Crl'ta do perdãu, Admitir
que "não h,i, par,, a Yista humc1nc1, ponto de \'ista superior dl' l1ndl' se c1,,istc1ri,1 a fonte
7~ O. :\bl'I, "CL' qul' lL' p,ndnn ,·il'nt t.1irl' dc1n...., \'hi-.,tuirl'", f:.-,prif, \l)lf\ n 7, l.1' Poid~ ift' /i1 lilt'111t 111·t'.
\.'ntir-St.'-/1 ,l ~"'ll"l)\.ÍJrlid(ldl' dc:-...:.,1 prubkn1c'ltica Cl)Jll ,1 de l lq.'sl 1'1,l re1/tl/l/t'll()/()sf11 d1 1 1'-..pn1tt1, l'rn
quL' o PL'rdjl) rL'pnu--,a nu1T1,1 rL'nÚnl·i,1 rl'l"ÍF1r1.1c,1 do:-. pdrtido:--, num,1 rL·núnci(1 de cada urn d :--u,1
pc1rcic1lid,1dc·.
;\ MIMOl<IA, ;\ 111srú1<1A, () LS(JIJl'CIMLNTll
5,'l Harald Wl'inrich, Lct/Jc, K1111sl 1111d Kritik dcs Vcrgcssms, "!'- cit_
,'i4 Cf_ aci111,1, priml'ira parte, c<1p, 2, § 1, pp. 73-82.
nos dois para esquecer, isto é, para gerir o tempo" (op. cit., p. 84). Mas se "nada é mais
difícil de conseguir do que um retorno" (op. cit., p. 84), como se sabe desde a Odisst;ia,
e talvez, também, uma suspensão e um recomeço, de\·er-se-ia buscar esquecer, com
o risco de somente reencontrar uma memória interminá\·el, como o narrador de E111
/,usca do tc111po perdido? Não é preciso, de algum modo, que o esquecimento, enganando
sua própria vigilância, esqueça a si mesmo 7
Uma terceira pista se oferece a explorar: a de um esquecimento que não seria mais
nem estratégia, nem trabalho, um esquecimento ocioso. Ele seria um duplo da memó-
ria, não a título de rememoração do ad\·indo, nem de memorização das habilidades,
nem, tampouco, de comemoração de acontecimentos fundadores de nossa identida-
de, mas de disposição preocupada instalada na duração. De fato, embora a memória
seja uma capacidade, o poder de fazer-memória, ela ('- mais fundamentalmente urna
figura da preocupação, essa estrutura antropológica básica da condição histórica. Na
memória-preocupação, ficamos junto do passado, permanecemos preocupados com
ele. Não haveria, então, uma forma suprema de esquecimento, enquanto disposição
e maneira de ser no mundo, que seria a despreocupação ou, melhor dizendo, a não-
preocupação? Das preocupações, da preocupação, não se falaria mais, corno no final,
dizem, de uma psicanálise que Freud qualificaria de "termi11<ível" ... Mas para não
recair nas armadilhas da anistia-amnésia, essa ars o/Jfi,,io11is não poderia constituir um
reino distinto da memória, por complacência com o desgaste do tempo. Ela somente
pode caber no optati\·o da memória feliz. Apenas acrescentaria urna nota graciosa ao
trabalho de memória e ao trabalho de luto. Pois não seria mais trabalho algum.
Corno deixar de enJCar ~ em eco à apóstrofe de André Breton sobre a alegria da
lembrança e em contraponto à evocação por Walter Benjamin do anjo da história com
as asas dobradas~ Kierkegaard e seu elogio do esquecimento como liberação da preo-
cupação7
De fato, é mesmo aos "preocupados" que se dirigia a exortação do E\·,rngelista
a "considerar os lírios dos campos e as aves do céu""'': "Se o preocupado, obsen·a
Kierkegaard, prestar urna atenção real aos lírios e às aYes, se neles e na Yida deles
se esquecer, aprenderá, com esses mestres, por si mesmo, imperceptivelmente, algo
de si mesmo" (Di,cour, édifi1111/s .. . , p. 157). O que ele aprender,'í com os lírios é que
"eles não trabalham". Deve-se então compreender que até o trabalho de memória e
o trabalho de luto de\·ern ser esquecidos 7 E corno também "n;io fiam", sua simples
existência sendo suas \·estimentas, dc\·e-se compreender que "o homem também, sem
trabalhar nem fiar, sem nenhum mérito próprio, está, pelo simples fato de ser homem,
mais magnificamente vestido que Salornc°lll na sua glória" 7 Quanto aos p,'íssaros, "não
semeiam, nem ceifam, nem recolhem em celeiros". Mas, se "o pombo, é o homem",
corno este conseguir,\ não mais "bancar o a\·isado", "romper com a inquietação das
comparações", para "contentar-se com sua condição de horncrn" 7
'.16 Súrcn Kierkq?;(1ard, "CL' que nou:-, apprl'nncnt ll'~ !is de:-, ch(1mp:-, l't !e--. oist:.'au, du cicl", in DÍ':'(t"1 11r-..
idifin11ts ,í di,,,T, p,,i11t, de i'liC (18"17), tr,1d. fr,rnc dL' l'.-11. Tissl',lll L' lé.-t\1. J,icqm>t-TisSL',lll, l\irís, [d.
Lk L'Or.rntl', ]lJh(,.
A MI M(lRIA, A HISJ'(JRIA, O l,S(lUECIMFNTll
Paul Rinnir
Í N D I e E s
Índice temático
AÇÃO (11ge11cy): 169, 193-194, 199,244,468,469, - Ver t11111h·111 '.\lemória obrigada cm l\1EMÚ-
498. RIA.
ACONTECIMENTO: 25, :n, 34, 41-42, 44, 33- COMPREENSÃO: ,'er EXPLICAÇÃO/COl\1-
38, 69, 72, 80, 141, ló3-164, 163-168, 171-173, PREENSÃO.
181, 184, 190-191, 194, 201, 203, 205, 214, 220, CONFISSÃO: 332, 465, 468, 469, 473, 475. 485,
239, 243, 251-231, 254-2:i9, 267-273, 280, 281, 486, 489, 491-492, 497, 509-510.
292,293,315,318,333,336,342,350, 376, 379, - Ver t11111/,é111 CULl'AfllLIDADE.
386, 388, 392, 393, 401, 412-413, 425,426,436,
CCWrISS(Jf:5: 170-176, 491.
447, 449, 450, 452, 457, 472, 473, 500, 502, 508.
CONJUNTURA: 137, 141, 167, 168,191,203,203,
- Ver t11111hé111 CONJUl\:TURA; ESTRUTU-
216,220,235,239,258,292,336,412,459,505.
RA.
ACUSAÇÃO: ,,er CULl'AfllLIDADE.
- Ver t,w1/1é111 ACO'.\ITECIMENTO; ESTRC-
TURA.
AFECÇÃO (pat!w,): 24, 34, 35, 45, 48, 55, 71, 83,
100, 1()5, 135, 199. CONSCif:NCIA DE SI 124, 126, 140.
A\1NÉS1A: c>cr ESQUECIMENTO. - Ver t11111/>é111 REFLEXÃO.
ANISTIA: ucr Dever de esquecimento em ES- 1\ MEMÚRIA. A l lIST()RIA, O ESQUECI-
QUECIMENTO. MENTO
- Ver /11111/,,•111 Amnésia Pm ESQUECI- CONSIDERAÇÃO: 479, 480, 481, 482, 483, 484,
MENTO. 485, 489, 497, SOl, 503.
APROVAÇÃO: ucr ATRltlUIÇÃO. CRIME: 301,310, 333-335, 336,337,341, 342-347,
ARQUEOLOGIA DO SABER: 210, 212-214, 236, 374, 460, 4ó2, 466, 475, 471,-477, 478-481, 490,
415. 491, 505.
ARQUIVO: 139, 154, 155, 1:i6, 170, 176-187, 210, - Ver t11111h'111 CL'LPJ\13I LIDADE.
212, 247, 299, 300, :no, 311, 331, 350, 3c;2, 354, CU LI'Al31LI DADE
414,415,419,425,436, 510. -criminal: 466, 478-481, 482,483,498.
- Ver t11111/,i111 DOCU\.!ENTO. - Imputabilidade: 117,135,138, 142,193,199,
ATRIBUIÇÃO 200, 344, 357, 373, 393, 402-403, 4tJ5-46H, 471,
- da lembrança: 134-142, 503-4. (Ver /11111/,<'111 473, 474, 501.
\lerrníria pcssoal/coll'ti,a l'm MEMÓRIA.) - Inculpaç,'io: 335-336, 340,347,476,481, 4H3.
- da morte: 369-370, 373. - ml'taiísica: 69-47ll, 476.
- da responsabilidade: 344. (Ver /11111/,,·111 '-,1,·- - moral: 476, 482-4H3, 509.
mória pessoal/colcti,·a cm MEMÓRIA) - política: 466,476, 481-482, 490-491.
COMEMORAÇÃO: 45, 60, 73, 78, 98, 102-104, - Ver t11111h'111 CONFISSÃO; CRI\.1E; DES-
112, 121, 136, l'i7, 159,363,403,412, 414-416, CUl.l'AÇÃO; DESCULPA; FALTA; 11\:0-
419-421,458,47~ :ill
/\ Ml:M(lRI/\, /\ HISI(lRI/\, O JS(.)UECIMFNTll
CÊNCIA; MAL; PENA; PROCESSO; PUNI- ESQUECIMENTO: 27, 28, 32, 40, 45, 46, 48, 49,
ÇÃO; VÍTIMA. 52, 54, 55, 57-58, 60, 76, 77, 80, 81, 82-84, 93,
94, 98, lO0, 102, 104, 106, 110-111, 115, 117, 132,
01\SEIN: 358, 359, 362, 363, 366-368, 386-388, 152, 153-154, 231, 235, 237, 245, 257, 300-301,
389, 391, 395, 450, 451. 304, 306, 308, 334, 335, 340, 350, 358, 366, 375,
- Ver t11111bé111 SER. 396-398, 400, 423-462, 465, 466, 477, 482, 493-
495, 501, 507-512.
DESCULPA: 454,474,475,491.
- Amnésia: 45-46, 132,431,435,458,459,460,
- Ver /11111bé111 CULPABILIDADE.
462,508.
DESCULI'AÇÃO: 336, 339-340, 343, 345, 347,
-Ars o/,/ivio11is: 82,423,435,510,511.
454, 476, 482, 483.
- de recordação: 451-462.
- Ver t11111hé111 CULPABIULJADE.
- de rl'serva: 300-425, 427, 436-450, 507, 508-
DISSENSUS: 175, 187, 310, 334, 337-340, 346,
509.
347,457,458,462,470,476,508,509.
- Dever de-, anistia: 459-462, 477, 490-492,
DÍVIDA: 101, 301, 318-319, 346, 363, 374-376,
495, 507, 508.
385,389,451, 488, 497, 509.
- Ver la111bé111 MEMÓRIA; PERDÃO.
- Heranç,1: lOI, 301, 374-376, 389,390,497,509.
- feliz: 300,423, 508-510.
DOCUMENTO: 170-175, 178, 179, 183, 185-190,
- por apagamento dos r,1stros: 428-435.
193, 194, 201, 207, 247, 292, 352, 399.
ESTRUTURA: 141, 161, 164-170, 173-175, 177,
- Documento-monumento: 58, 186, 354.
191, 202-206, 211, 216, 218, 220, 229, 235-236,
- Ver /11111/Jé111 LUCAR DE MEM(JRIA.
237-239, 242, 253, 254, 257-259, 261-262, 263,
- Fase documental: 146-147, 155-192, 250-251, 264,265,266,291,292,312,331,334,345, 346,
256, 352. (Ver t11111bé111 Operaçiio historiográ- 355, 374, 375, 376, 386, 390, 394, 416, 430-431,
fica em HISTORIOCRAFIA.) 433, 435, 437, 446, 448-449, 459, 466, 467, 482,
DOM 483, 486, 492, 493, 505, 508, 511.
- Economia do-, l' troca: 486-488. - Ver t11111bé111 CONJUNTURA; ACONTECI-
- e perdão: 466, 488-492. MENTO.
DURAÇÃO: wr TEMPO. EXISTENCIÁRIO: 54, 299, 300, 358, 359, 360,
362, 364, 367, 370, 375, 380-381, 386, 387, 390-
EIO(JLON: ver !MACEM. 391, 395, 396, 467.
EIKÔN: 26, 27-34, 36, 38, 39, 45, 53, 61, 67, 71, 124, - Categorias existenciárias: 299, 320, 363,
136, 186, 197, 199, 242, 274-275, 280-281, 293, 394.
294, 389, 425, 443. EXPERIÊNCIA
- Arte eic,ística e mimética: 31-32, 38-39, 71, - da história: 309, 312,314,315,316,320, 373-
293. 374.
ÉPOCA ucr Cronosofia cm TEMPO. - temporal: 125, 127-129, 361.
ERRO: 27-30, 39, 137, 183-184, 211,283,332,335. - Ver ta111bé111 Espaço de experiência e111 ES-
ESCALAS: PAÇO.
- de tempo: 235-236, 258, 366, 505. EXPLICAÇÃO/COMPREENSÃO: 147, 148, 165,
193-248, 250-251, 255, 266, 273, 289-290, 299,
- Variações de: 197, 198, 203, 220-228, 229,
340, 352, 354.
232, 235, 238.
- Ver ta111bé111 Operação historiográfica em
ESCATOLOCIJ\: 501-512.
1-!ISTORIOCRAFIA.
- Horizonte; 53, 57, 59, 66, 91, 97, 123, 128, 168,
281, 301, 308, 311-312, 315, 328, 334, 335, 367,
370, 371,372, 373, 375, 392, 423, 424, 448, 450, FALTA: 374,393,465, 467-473, 474,476, 484-485,
451,465,475,501,504,508,510,512. 497,509.
- Ver /11111bé111 CULPABILIDADE.
ESCRITURA (DA HISTÓRIA): ver DISCURSO
HISTÓRICO. FIDELIDADE DA MEMÓRIA: 24, 26, 29, 32, 40,
ESPAÇO 45, 70, 72, 101, 146, 166, 200, 241, 293, 300, 423,
440, 502, 504-507.
-de experiência: 311-315, 373,392,451.
- Ver ta111bé111 VERDADE.
- habitado: 155, 156-162.
CERAÇÃO: 75, l-tl-1+2, 287, :\18-319, 323, W\ - \ler t11111[,1'n1 Epislt'rnologia da hist,iria c111
390, -Hl6, -Hl9, -ll6--ll9, -l'i8. HISTÓRIA E DISCLRSO HISTÓRICO.
G!<.1\I'H: ,,,,,- INSCRlÇAO.
ICÓNICO: Nr E/K(l,\J.
HARITL/S: -l5, 17-l, 216-218, 231, 236, 257, -l:13, IDENTIDADE:
-l-l8. - coleti,·,1: 92.
HERMENÊUTICA - pessoal: 92, 113-119, -155.
- crític,1 do conlwcirnento histórico: 309-J::;6_ 11\lACEM
- ontológica: 357--103 - fidôlon: 28, 30, 31, 3-l, 1'i3.
HIST()RIA - l' lug:(1res, or..:: /1/('IIWrioe: t 1{T Ml'rnori/(1ç,lo
- "a própria Histôri;i" (dic Gcsc/1ichtc ,c/1,cri: C111 MEM()RJA.
311-320. - lrnagern-ficç,10: 27, 31, 38, 65, 199.
- das mcnt;ilidadcs: ,,cr Represcntaç3o-ob- - Imagem-lembrança: 2h, 38-39, 6l-b3, -128,
jcto c'rn REPRESENTAÇÃO. -131
- Epistemologia da: 99, lll3, 1-13-293, 360-362, - Prestígios da:t. er Rt.'prescnt,1ç,1o historia-
1
227, 228, 229, 236, 238, 2-ll, 2-t-l, 2-17-296, 303, JUSTIFICAÇÃO
30-l. - e injustific,Í\ e!: 3-ll, 3-l-l, -l7ll--l71, -177.
- Operação historiogrMica: ,'cr DOCü M EN-
TO; EXPLICAÇAO/ COMPREENSAO; Rc•- LEMBRANÇA
prescntação historiadora c111 REPRESENTA- - l1nagen1: l't'/' In1agen1.-lembrança l'III ll'vlA-
ÇAO. GEM.
A MJM(lRIA, A IIISl(lRIA, () ES(JULCl~HNTO
LUTO: 85-87, 90-93, 100-101, 370-372, 377, 402, MODERNIDADE: 166, 304, 306-307, 310, 312,
419,457,462,475,490,491,503,506,509. 314-315, 318, 320-329, 331,343,401.
- Trabalho de: 85-87, 90-93, 100-101, 104, 192, - "Nossa modernidade": 320-329.
334, 35 I, 453, 457, 503, 506, 511. - Pós-moderno: 268,329,310, 328-329.
MORTE
MAL - em história: 214,245,371, 373-380, 396,404,
- moral: 465, 470-472. 506.
- radical: 500. - Sepultura: 243, 351, 362, 377-378, 380, 388,
- Ver /1n11bh11 CULPABILIDADE. 391,506,509.
MASSACRE ADMINISTRATIVO: 186,337.
MELANCOLIA: 85-90, 100, 158, 345, 347, 402, NARRAÇÃO (E HISTÓRIA): 172,189,201, 248-
447, 452, 454, 503. 260, 262, 283, 355, 407, 455.
- Ver /17111/,,'111 LUTO.
- Coerência narrativa: 249, 255-256.
- Ver ta111b<'1n Representação historiadora c111
MEMÓRIA (11111i111,'): 24, 37, 38, 45, 61, 71,294.
REPRESENTAÇÃO.
- arquivada: ucr DOCUMENTO.
NATALIDADE: 307,368,386,390,497.
- impedida: 72, 83-93, 102, 138-139, 271-272,
452-455.
OBJETIVl[)AIJE: 49, 51, 106, 124, 179, 307, 311,
- feliz: 79, 110, 111, 153-154, 402,423,435,437,
347-356, 358, 387.
466, 503, 504, 507, 508, 510-511.
- Ver l1m1b,'111 VERDADE; INTERPRETA-
- manipulada: 72, 82, 83, 93-99, 102, 139, 175,
ÇÃO.
452, 455, 503.
OLHAR
- Memorizaç."ío, 11idc-11u'111oirc (1111po11111iisis):
38, 56, 58, 66-82, 151-152, 154, 164, 174, 360, - interior/exterior: ,•cr Memória pessoal/co-
377,423, 424-425, 435,511. letiva c111 MEMÓRIA.
- obrigada, dever de: 83, 99-104, 452,459.
- Ver /11111bé111 Dever de esquecimento c111 ES- PASSADO; z•cr TEMPO.
QUECIMENTO. !'ENA: 335, 459-461, 466.
- pessoal/coletiva: 55, 60, 70, 83-85, 91-95, 99, - Ver tn111b,'lll CULPABILIDADE.
105-142, 157, 164, 187, 199, 271, 310, 337, 338, PERDÃO
363, 365, 397-400, 403, 404, 406-409, 411, 413, - Imperdoável: 465, 471-479, 484,497.
417, 451, 452, 455, 457, 459, 482, 483, 505. - Irreversibilidade: 466,477,493,496.
- Ver /1111!11<'111 Atribuição da lembrança n11 - Penitência, arrependimento: 466, 475, 485,
ATRIBUIÇÃO. 491-492, 495, 498, 500.
- Fenomenologi,1 da -, fenômenos mnemô- - Ver lmnbi'm CULPABILIDADE; DOM; ES-
nicos: 23-26, 40-60, 66, 70, 91, 99, 103, 104, 106, QUECIMENTO.
107, 119, 127-128, 130-131, 134, 135-141, 145, PI-/ARMJ\KON: 148, 151-152, 154, 178-179, 192,
172, 186, 193-194, 197,225, 241, 248,249,250, 303, 306, 404, 505.
l'LLRALIDADE HU\1ANA: 118, 317, 470, 4Y3, REPRESENTAÇÃO
4%. - Representá ncia: 190-191, 248, 230, 257, 259-
l'RESCRlÇÃO: 460, 477-48(1 260, 275, 288, 293-294, 374-375, 389, 3%, 5U5.
- Ver ta111/)('111 lMPRESCRlTÍVEL. - Representaçi\o-objeto: 196-245, 248, 277,
PRESENÇA DO AL;SEI\:TE: ,•cr Imagem-lem- 321.
brança e111 IMAGE;-..1. - Rcpresentaç<l.o-npcraç'1o ou reprl'sentciçZlo
PROCESSO: "ª
Historiador t> juiz c111 HlS- historiadora: 247-295.
TORlADOR(ES). - \/cr ta111h'111 Operaç,10 historiogr.ifica c111
- Ver tw11/1<'111 CULPABlLIDADE. HISTORIOGRAFIA.
PROMESSA: 174,289,319,347,466,478, 492-497, REPRESENTÍ\I\:CIA ,•cr REl'RESEN1AÇ.ÃCJ.
5()()-5()1. RETÓRICA: ,'<T Discurso histórico em HlSTÓ-
- lmprevisibilidade: 466,494. RICA.
- Ver tw11/1<'111 PERDAO. - \/cr tn111h'111 Imagens L' lugares c111 1.\L.\-
RASTRO RICO.
- Impressão (S,'IIICÍll/1): 27-34, 36-3Y, 45, 77, 80, - Ser-para-a-morte: 359, 361-363, 364-373,
186, 425, 434, 438. 380,386, 394-39\ 4%.
- m,Herial (11117,,s): 27, 32-3, 36, 38-39, n7, 80, - Ver ta111h'111 MORTE.
425,443. SI: ,'<T REFLEXÃO; Conscil'ncia de si e Identi-
- Ver ta111/Ji'111 INDÍCIO. dade pessoal ,·111 IDENTIDADE.
- mnésico, cortical: 34, 45, 73, 425, 428, 430-
431, 434,436,440,447. TEMPO
- psíquico, impress,10-afecç:ío: 34, 42\ 428, - Cronosofia: 164-167, 170,325,365.
437-438. - Duraç<'io: 25, 50-53, 58, 114, 121-122, 124,
RECONI--IEClMEI\:TO: 2h, 30, 32, 48, 53, 5n, btl, 133, 159, lbl, 163, 194, 197, 203, 206, 223, 230,
70-71, T\, 87, 110-111, 124-125, 131, 135, 138, 235-236, 239, 252, 258, 314, 349, 351, 419, 427,
19Y, 233-234, 240-241, 243,250,300,311, 3\t,, 443, 445-446, 474, 505, 511.
328, 331,367,389,402, 4lll, 424,426,433, 437-
- l list<iria e-: 357-421.
Hl, 443-444, 446-448, 450,452,469,488,499,
302, 504-506, 50tl-5ll9. - lmpre,·isibilidadL': ,,er PROMESSA.
- Ver ta111h'111 ME'\IC)R\A; Esquccinwnto de - lrrL'\'L'rsibilidadc: ,•cr PERDÃO.
reserva e111 ESQLEC\MENTO. - Presente, passado, futuro: 27-29, 34-36, 4(1-
RHLEXÃO: 31, 33, 41, 43, 47, 56, 82, 84, 86, 93, 41, 43-45, 47-48, 5ll-51, 56-57, 63-70, 74, S2-83,
99, 112, 114-115, 120, 123-124, 126, 145-146, 92, 94, 96, ]()0-102, 104, 108, 11]-112, 115, 119,
156, 2()3, 218, 242, 245, 256, 267, 274, 284, 290, 121, 123-125, 133, 148, 156, 164, 166, 18ll, 187,
299, 308-311, 315, 320, 323, 325, 327, 330, 334, 189, 2()8, 238, 241-244, 249, 265, 305-307, 310,
:n8, 340, 343, 347-348, 34Y, 351, 354-355, 372, 312, 315-316, 318, 320-322, 324-326, 328, 331,
386-387, 424, 442, 444, 447, 452, 467, 4h9, 490, 334, 349-353, 357, 359-365, 367, 373, 375-378,
497, 510. 380, 391-394, 397-398, 4()1-403, 413, 419-421,
REMEMORAÇÃO:,,,,, \1EMllR1A. 427-428, 434, 438, 440-444, 446, 450. 454, 456,
REPETIÇÃO: 55, 57, 75, 84-87, 92, 272, 293, 318, 459, 474, 494, 5ll6, 5 lO.
321, 363, 390-393, 3%, 399, 403, 449, 451-454, - Temporalizaç,10: 50, 77, 149, 237, 239, 315,
45h, 509. 318, 320, 361, 363, 3h7, 380, 387, 394.
;\ MLMÚRIA, A HJS'J(lRJA, () FSQLJFCIMC['.; 10
RAWLS (J.) 195 116, 196, 1% n8, 203 1120, 2-!9 n3--l, 252 n6,
- Tl1t'oric de /11 i11sticc, :no. 253, 253 n7, 255 n 10, 2561112, 260 1120, 261, 261
RÉ'v10ND (R.) n23, 263 1126, 270 n36, 275 1145--!6, 289, 293,
293 n7-l-75, 29-l, 295 n77, 311,311 nl, 315), 316
- Lcs Droilcs c11 Fra11cc, 239,239 n91.
n12, 35-l 1195, 359 n3, 36-l 115,366 nl !, 388 n-!8,
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