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Paul Ricc:Eur

A MEMÓRIA, A HISTÓRIA,
O ESQUECIMENTO

jEC>I T O R A 1•1:11++:+>
FICHA CATALOGR Á FICA ELABORADA PEL O
S IST EI'vl A DE BIBLIOTECA S DA UN I CAM P
DIRETORIA DE TRATA MENTO DA I N FORMA Ç ÃO

Ricn:ur, Pa ul, 191 3


A mem ória, ;i h istória, o esquecimento / Paul Rictcur - tradtu;ão:
A hin Fr;inço is [l: r ai.]. - Cam pinas, SJ>: Editora da Unicamp, 20 07.

1. Mem ória (Filosofi a). 2. História - Filmofia. 1. Tírnlo.

CD il 15 3. 1
ISB N 9 7 8-85-268 -07 77-8 90 1

Índices para car;ílogo sistemático:

1. Memóri;1 (Filosofi;i) 15,. 1


2. História - Filosofia 901

Título original: J,,z 111é111oirc, l'histoire, l'ouhli


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Espaços da Memória

sta coleção reúne obras que são referência nos estudos da me mória. Visando di-
E \'ulgar e aprofundar esse campo de pesqui sa, a coleção tem um caróter interdis-
cipl ina r e circula entre a teoria lite rária, a hi stó ria e o estudo das diferentes artes. Suas
obras abrem a pcrspecti\'a de uma visada singular sobre a cultura como um di é1logo e
um e mbate entre diversos discu rsos mnem ónicos e registros da ling uagem.
Sumário

Aduertê11cia ........................................................................................................................................17

DA MEMÓRIA E DA R EM INI SCÊNC IA


/ . e J111ag111açao
lMel1lorta . - ..................................................................................................... ... 25

Nota d e orientação ..................................................... ........... .................................. ................... 25


I. A hera n ça g rega .... .. ....... ......... ... ..... ................................................................................ 27
1. Platão: a representação presente de uma coisa ausente ...................... .. ........ . 27
2. Ari stóte les: "A me mória é do passado" .... ........... ............................................ ...... 3-t
li. Esboço fe no m e nológ ico da m e m ó ria ................................ ........... ........................ 40
IIT. A lembrança e a im agem ................................................. ...................................... ... 61

2 J\ Memória Exercitada: Uso e Abuso ....... . .......... . .. .... ...... ....... .... 7 1
Notc1 d e orientação .... ....... ......................... _...... ... ...... .. 71
l. Os ,1busos d a nwm('iria artific i,1!: a s procz,1s d a m cmoriz,1ção ........ . .... 73
il. ()s ,ibu sos d,1 mcmóric1 naturnl: mem ó ria impcd icfa, memória
rn,rn ipu L1d ,1, 11w m ó ri é1 com,rndad,1 d e modo c1bus in) ................... 82
l. '.\1u •I J1,ltlilt'ig ict1-lL'r.ipê•ut ico: ,1 llll'ITHlri d Ílllf1t' did d ... 1-n
··,:',.-v! r'r.iti,·l,: .1!llt' ll1() f'Íc111l ,1 11 Íf•U 1,llLl . ..... ... ... . ~.~.)

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~ l 111 l \ 111 ,, ' l' : l : ;, ) 1· i :..:, i ' j .. ·; Lii.)

:i i ·,
l. A tradição do olhar interior .................... ...................................................................... 107
1. Santo Agostinho ............................................................................................................... 107
2. John Locke .......................................................................................................................... 113
3. Husserl ................. ............. .................. ................................................................................ 119
li. O olhar exterior: Mauricc Halbwach s ....... .......... ........... ........................................ 130
lll. Três s ujei tos de atribuição da lembrança : eu, os coletivos,
os próximos ........................................................... ........................................... .................... 134

11
HLSTÓRIA / EPISTEMOLOGIA

Prelúdio ..................................................................... ........................................................................ 151


A história: remédio ou veneno? ............................................................................ ........... 151

1 Fase Docim1e11tnl: a Me111ôria Arquivada .................................................................. 155


Nota d e orientação ................................................................................................................... 155
l. O espaço habitado .................... ............. ............................................................................... 156
LI. O tempo histór ico .............................. ............................. .......... .. ...................................... 162
III . O testemunho ..................................................................................................................... 170
IV. O arquivo .............................................................................................................................. 176
V. A prova documentc1l .... ............................. .............................................................. ......... . 188

2 Explicnção/Co111prcc11são ............................ ....................................................................... 193


Nota de orie nttição ............................................................................................................... 193
1. A promoção da história das mcntalid í:1dcs ........................................................... 198
II. Sobre a lg un s mestres de rigor: Mi chcl roucault,
M ichcl d e Certc,rn, Norbcrt Elia s .......................................................................... 210
Ili. Vtiriações de esca las ... .................. ............................... ........................................ ...... 220
IV. Da id é ic1 de m e ntc1 l id é1 de à de representação .. .................. ...... ....... .. .. ...... ..... 227
·1. Esc.1l,1 de L'fiGicic1 nu de col'rÇ,1() . ...... .... ... ....... ... . ...... ...... ..... ........... .. ..... .. . .. ... 230
2. Esc.1L1 dos gra us dl' lq..;itirnt1ç,1(1 ........ ..... ............. ....... ...... ........ .............. .... ... .. .... ....... 232
3. Esca l,1 dos ,1spcdos nü o-qu,rntil <1ti,·os dos ternr1os so c i ,1i s ....... ... .... .. ....... .. .... 235
\!.;\dialética dt1 n'pri.'S<'1lt,1 ç..10 ... ....... .. .. .. . ... .. ... .. .. .. . .... .. ........... . ..... . ... .. .. 238

3 A l\cpresc11tnçi'io Historindom .. 247

................ ,....................,..................................... 247


I. Represe ntaçã o e narr,1çZ\o ....................................................... ................................... 2SO
II. Reprcsentc1ção e re tórica .......... .................................. _........................... ......... 261
lll. A representação historiadora e os prcstígios dc1 im,1gc m ........................ 27-1-
I V. Representâ n c ia ............................ ...................................... ......... .......... .............................. 288

111
J\ CONDIÇÃO HISTÓRICA

Prelúdio .................................................................................................... ......................................... 303


O fordo da hi s tó ria e o não-his tóri co ......................... ........................... ..................... 303

1 A Filosofia Crítica da História ... .................................................................... ......... 309


Not,1 d e orientação ........ ............. ... ____ ........ .. ___ ......... ............................................ . 309
I . " O'1e" G1es· c11·c1
1 1 t e s·clt,er ", " "
,., prof
, , na
· 111s · t (,) ri·a " ..................................................... 311
11. "Nossa" modernidade ........ . ......... 320
III. O historiador e o juiz ........... _. ...................... ............ .... ................... ... . .. ........ 330
IV A inte rpre tação em hi s tória ........................................................................................ 3-1-7

2 História e Tcl/lpo __ .......... .............. __ . .......... ............. _....... .. . ............. ..... ...... 357
Nota de orientação .......................... .............................. ......... .. ........................ __ .......... 357
1. Temporalidade ................................................ ................................ ................ ............... .... 36-1-
1. O sc r-paré1-,1-rnortc ........ .. .. ... . __ ..... ..... . ............ ............ . ......... 364
2 . A morte cm hi s tória .......... ....... .......... .. 373
II. Historicid ade ............. .......... ..................... . . -- 380
1. ;\ trajetóri,1 do termo Cc::;c/iic/1tlid1k<'it ........ ................. ................ .. .......................... 381
2. H is toric idé1dc L' hi s toriogra fi a . ...... ....... .. ... ........ ......... . ......... .............. .. ...... . 388
111. Se r-"no"-te mpo ............................ ..................................... ........... ......... ................. . 39-1-
1. Nn ca minh o d o inautê nti c o _ ......... .. ... .. ..... ..... .... ........ .. ..... .. .... .... .. .... ............ ...... 39-1-
2. O se r-no-te mpo e é1 di,1lé ticc1 d a nwml1ria L' da hi s t()ri ,1 .. ...... .. ... ......... .......... 395
IV. A inquietante estran heza d a hi s tóric1 .......................... ....................................... 40-1-
1. Maurice Hc1lbwac h s: ,1 memóri a fraturada pel a hi s tl'ir i,1 .. ......... .... ............. . __ -1-04
2 . Yeru s h c1 lrni: " rn ,1 1-esta r n a hi sto ri og rafi a" ........ ........ . ............ ...... .... ..... .. ...... . . -1-08
3. Pierre Norn: insólitos lugares d e mctn t'ffi a ... .. . ...... .. . ... .. ......... ...... . . .. .... -1-12

3 O Esqucci111cnto .. .................... . ......... ...............................................-1-23


Nota de oricntaçõo ................... ........................................................... --123
I. O esquecimento e o apagamento dos rastros ......................................................... 428
II. O esquecimento e a persis tência dos rnstros ......................................................... 436
III. O esquecimento de recordação: usos e abusos ................................................. .451
1. O esquec imento e a memória impedida .................................................................... 452
2. O esq uecimento e a memória manipulada ........ ........................... ............................ 455
3. O esquecimento comandado: a a nistia .............................................................. 459

El' ÍLOC O
O PERDÃO DIFÍCIL

1. A equação do perdão ............... .......................................................................................... 467


l. Profundidade: a falta ............. ......................... ................................................... .......... 467
2. Altura: o perd5o ............................................................................................................... 472
I 1. A od isséia do espírito de perdão: a travessia das instituições ................. 476
1. A cu lpabilidade c riminal e o impresc ritíve l ......................................................... 477
2. A culpc1bilidadc política ... ................................................ ............................................. 481
3. A culpabilidade moral ................................................ .................................................. 482
lll. A odisséia do espírito de perdão: é1 escalzi da troG1 ...................................... 484
1. A economia do dom ...... .................................... .............. .............................. ................ 486
2. Dom e perdfio .... ..... ........................................................................ .................. ......... .. ..... 488
IV. O retorno sobre si ...................... ...................................... .................................................. 492
L O perdão e a promessa ...................... ............. .. ......................................... ..................... 492
2. Desligar o agente de seu ato ..................................................... ................. ........ ......... 497
V. Retorno sobre um itinerário: rccélpitu lação ......................................................... 501
1. A memória feliz .......... .. .. ............................................................... .. ............. .................... 502
2. Hi stória infeliz? ................ ......................................................... ...................................... 504
3. O perdão e o esquecimento ..... ..................................................................................... 507

ÍNDICES

Í11dice te111títico .............................................................................................................................. 517


Índice dos 110111es e dns obms citndns ................................................................................ 523
f. 111 111c11ui1í11 de Sí111011c l\ic"1ntr
;\qul'll' que ín i j,í n,in f'(Xil' mais n ,io tl'r sidL1: dur,1\·,111tt>, l'S::-e t.ltL1 mis-
tcriosll, pn1fund ,1 ml'llk obscuro dl' tl'r -;ido l·, L' SL'll \·icítin1 p,ir,1 c1 L'kr-
n iLfo dc.
\ l.,.\lll!\111{ j. \\.ls'.! 1 1 \Ili!
Num lug,ir l'SC()lh id(> d,1 biblioteca dl> llll>Stl'iru ngul'-Sl' rn,1 g nífic,1 l'S-
cu ltur,1 b.Hnic,1. ( ,1 tigur,1 dupl,1 da hi s tl'>ri ,1. \J,1 frentl', Crollll'-', (> L1l'llS
,,lado. É um ,111c i,l l> com ,1 frontl' c ing id,1 ; ,1 m ,111 L'squcrd,1 S<'g ur,1 um
inwnso li ,·n, dl> qu ,11 ,l d irl•il,1 ll'ntc1 ,1rr,1 nc,1r uma folh,1 . .-\lr,ís, l' L'lll

Lks,1p rumo, ,1 p n ·, pri.i hi stl·1ri,1. O ,, lh ,ll" t.'• sério L' persuu t,1 d11 r; urn f'L'
Lkrr ub,1 um,1 Cl1r nucúpi<1 dL' o nde l'SC1H rL' um,1 chu,·,1 d e ouro L' pr,1t,1,
si n ,11 dv inst,1bi lid ,1dl'; ,1 m ."io L'squerd ,1 dl' tl'm ,1 gL'Sto do d l'u", c n q u ,1 n to
,1 d irei t,l L' Xi bl' L'S inst ruml' n tos da hist(\ri,1: L' li, n>, L' tintL•in1 l' ,, l''-'t i lo.

\IL 1stl'irn de \Viblin gl'n , Llm.


Advertência

sta pesquisé-1 tem origem em d Í\'L'rséls preocupações, umas pessm1is, outras pro-

E fissionais e outras, finalme nte, que cu chamaria de públicas.


Preoc upêlçào pessoa l: pélríl nadc1 dizer do o lhar dirigido agorn él um a longa
,·ida - Rl'.flcxio11 fi?itc - , trat,1-se aqui de um a volta a um,1 lacuna na problemcitica
de Tc111po e NarmlÍi.'11 e em Si 111c~1110 c o 1110 11111 t i 11tro, em que a expe ri ê ncia tempora l e a
operação narrélti,·a se enfrentam diret,,mcnte, ,10 preço de um impasse sobre a m e-
mória e, pior aindtt, sob re o esquecimento, C SSL'S ní\'L·i s in terrnediúrios entre te mpo e
nc1 rratini.
Cons id eraçi'1o profissional: esta pesq uisa reflete uma corn·idinc i,1 com trabalhos,
semi nários e col<'iquios organ izados por h istor iadores profissionais confron tados com
os mesmos problemas relativos aos \'Ín culos e ntre a me mória e a história . Este lino
prolonga, assi m , um colóquio ininterrupto.
Prcocupaç5o pública: pertu rba -me o inquietante espet,ic ulo que apresentam o t'X-

cesso d e m e móri,1 aqui, o excesso de esquec ime nto acolci, sem folar da influênc ia das
comemorações e dos erros de mcmóri,, - e d e esq uecimento. A idéia de uma políticc1
da justa mcrnóri<1 é, sob esse aspecto, urn de m e us tem as cí,·icos confcssos.

Esta obra comporta três partes nitidamente delimitad,is pelo temo e pelo méto-
do. A primeira , que enfoca a mcml\ri,1 l' os fen ómenos m nem{)n icos, está sob ,1 égide
da feno m en o log ia, no sentido hu sserli ,rno do termo./\ segund ,1, dedicada il históricl,
procede de uma q.,istcmologia das ciências hi stóricas. A terceira, que c ulmina numa
m edi tação sobre o esquecimen to, e nq uadra-se numa hermenê u tica da condi çc'io hist<'i-
rica dos seres hum,rnos que somos.
Cada urnil dessas partes se dcscm·oh'e se g undo um percurso o rientado, que as-
sume, a cada vez, um ritmo ternti r io. Assim, ,l fe nomenologia da memória inici,1 de-
libe radamente por uma a míli sc ,·oltacfa parél o objeto dL' nwm(i rid, a lcmbranç,1 que
temos di nnte do espírito; d epoi s, ela atr,,H'ssa o estág io d .i bu sca do lembrn nç,1, da
A \11:M(lRIA, A l!IST( ll{ IA, (l LSQ UF.CI MEN TO

anamnésia, da recordação; passa-se, finalme nte, da memó ria d ada e exercida à m emó-
ria refletida, à m emória de s i mesmo.
O pe rcurso epistemológico abra nge as três fases d a o peração historiográfica; do
estágio do testemunho e dos arquivos, passa p e los usos do "porquê" nas figura s da
explicação e da compreensão, terminando no plano da escrita d a representação histo-
riadora do passado.
A hermenêutica da cond ição hi stórica também conhece três estágios; o primeiro
é o de um a filosofia crítica da hi stória, de um a herme nê utica crítica, atenta aos li-
mites d o conhecime nto his tórico, que certa lw bris do saber tran sgride de múltiplas
maneiras; o segundo é o de uma hermenêutica ontológicél que se dedica a explorar
as moda lidades d e te mporalízação que, juntas, constituem a condição existencia l do
con hecimento his tór ico; escavado sob os passos da m emória e d a história, abre-se
então o impé rio do esquecimento, império dividido contra si mesmo, entre a ameaça
do ap agam ento definitivo dos ras tros e a ga rantia de que os recursos da anamnésia
são postos e m rese rva.
Mas essas três partes nâo constituem três livros. Embora os três mastros sus ten-
tem velames entrelaçados, mas dis tintos, eles pertencem à m esma embarcaçâo, des-
tinada a um a só e única navegação. De fa to, uma problemá tica comum corre a través
da fenomenolog ia da memória, da epistemologia da his tó ria e da hermenêutica d a
condição his tórica: a da representação do passado. A pergunta é colocada em sua
rad ica lidade, desde a investigação da face obje ta l da memória: o que é fei to d o e nigma
de uma imagem, de uma ciktJn - para fa lar g rego com Platão e Aristóteles - , que
se mostra como presença de uma coisa ausente, marcada pe lo selo da an teriorid ad e?
Essa mesma perg unta atravessa a episte mo log ia do teste munho, depois, a das repre-
sentações sociais consideradas objeto privilegiado da explicação/compreensão, para
se desdobrar no pl a no da re presentação escritu rá ri a d os acontecimentos, conjunturas
e estrutu ras que pontuam o passado his tórico. O enigma inicia l da cikô11 não p,fra
de se reforça r d e capítulo e m capítulo. Tra nsfe rido da esfera da memória p ara a d a
história, ele alcança seu apogeu co1n a he rmenê utica da condição hi s tórica, em que
a representação do passado se descobre exposta às ameaças do esq uecimento, mas
tam bé m con fiad a à s ua gua rda .

Alg u mas obser va ções dirigidas ao le itor.


Neste livro, experime nto um a forma de apresentação que nunca utili zei: para
a li v ia r o tex to das con s idcraçôes did.iticas mais pesa d as - introdu ção d e um tema,
evocação dos vínculos com a arg ume n tação a nterior, an tecipação dos desen volvi-
m entos posteriores-, situe i, nos principa is pontos estratég icos do trabalho, notas
d e orientação que dirão ao le itor cm que ponto da minha investigação me encontro.
Espero que essa forma d e ncgociaçi'io com a paciência do le itor seja bem acolhida
por ele.
Outra obsen·açào: e,·oco e cito, muitéls ,·czes, élutorcs que pertencem a épocéls dife-
rentes, mas ncio faço uma história do problema. Convoco um autor ou outro de acordo
com a necessidade do argumento, sem éltcntar parn a época. Este m e pMece ser o di-
reito de todo leitor dia nte do qual todos os linos estão abe rtos ao mesmo tempo.
Finalmente, de\'l) éld mitir que ncio knhu urna regra fixa p,u él o uso do "eu " e do
"nós", com e xceção do "nós" de a utoridc1dc e majestiÍtico? Digo de preferência "eu"
quélndo Jssumo um Mgumento e "nós" quando espero arrastélf comigo meu leitor.
Que navegue, pois, nosso veleiro de trL'S m astros!

Terminado o trnbalho, seja-me permitido apresentar a express,10 de minha gr,1ti-


d,~o àqueles que, dentre os meus arnigos e pare ntes, acompanharam e, se ou so dizê -lo,
apro,·aram m eu e mpreendimento. Não ,·ou mencion,í-los aqui.
Excetuarei os nomes daqueles que me permitiram partilhar, além d e sua ,1m izade,
sua competê nc ia: François Dosse, que me aconselhou na exploração do ca nteiro do
historiador, Thércse Duflot que, graças à sua força de persuasão, se tornou minha
primeira leitora, atentél e, às vezes, impiedosd e, por fim, Emmanuel Mélcron, c1 que m
devo uma crítica p e rtinente da escrita e da organização das notas críticas deste tra-
billho. Mais uma palél,·ra para c1grc1decer ao diretor-presidente das Éditions du Seuil
e aos diretores da coleção "I.;ordre philosophique", mais uma ,·ez, pcl,1 sua paciência
e confia nça em mim.

1'. \LI. RIClH R


DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
A
fe nom-e nologia dc1 m e mó-ric1 aq ui proposta estrutura-se em torno de d ua s
perguntas : De que há le m br,rnça? De q11c111 é cl memó ria ?
Esscls duas pe rguntas são for mul t1 dc1s d e ntro do es pí rito dc1 fenomeno -
logia husserlian,1 . Pri,·ileg iou-sc, ness,1 hcran Çé1, a indagaç é'i o colocada sob o alfag io
bL'm conhecido seg undo o qu zd tod a CLmsc ie nc icl é co n sciê nc ia d e a lg uma coisa. Essa
aborda gem "objeta I" Je,·,rnta u m pwblt' m ,1 específico no pl ,1110 da memória . f\i ão seria
t' l,1 fundamL'ntalm e ntL' reflexiva, como nos inc lina a pen sa r c1 pn' ,·a lê ncia da forma
pronominal: lembrar-se de a lg uma coi s,1 é, de imedi a to, le m bra r-se d e s i? Ent rct,rn to,
insistimos c m coloc,1r a pe rg unta "o qu e? " a ntes da p c rg u nt1 "quem? ", a d esp eito da
tr,1diçc'io filosófica , c uj,1 tendt'.:• nc ia foi fo z n pn..•,·,1l ccer o l,1do egológico d,1 e xperiê nc ia
mnemóni ca. A prirn az i,1 conced ida por muito tem po à qu L'Stc'io "qu e m ?" te, ·e L) efei to
ncgati,·o de cond u zir ,1 c1r1,í. lisc dos fen ó menos m nemónicos a um impasse, uma , ·ez
que foi neet.' ss,frio 1t,, ·,1r cm conta ,1 noçJo de m e mória colcti,·é1. Se nos ap ressarmos a
dizer q ue o su jei tt) dc1 m e mória é o e u , n c1 primeira pessoa do s ingulc1r, a noção d L' m e-
mória coletiva podcr,í apen ,,s des em penhar o papel de conceito ,111t1lúg ico, o u até mes-
mo de corpo estr<1 nho na fonom e nologi c1 da nwm{nia. Se n é"Hl quisermos nos deixar
con finar num ,1 apori,1 inútil, scr,í precbo rn,rntcr e m suspe n so c1 qu cs tiio d a atr ib uiç,10
<1 a lg ué m - e, port<1nto, a todas a s pl'ssoc1s grc1m a tica is - do ato d e lem brar-se, e
com eçar pela pcrg unt,1 "o qu t_•?". Numa boc1 d outrina fenom e nológiec1, a questiio egoló-
g ica - i nd epcndentcmcnte do que ego pos sa sig nifica r - dcn' , ,ir depois d.1 qu estão
intencional, qu e é irn pnat iva mcn te a d a corrclc1çiio e nt re clto ("nol'Se") e o co r re lato
,·isado (" noema "). Nosso desa fio, 1wstc1 primeira parte dcdic,1da zi nwmt'1rit1, sem con-
side rar se u d estino no d L'co rrcr da dc1pc1 historiogréfi ec1 dc1 re lação com o pa ssc1do, é
poder lc\',H tã o lo nge q uanto possí,·cl u ma fenomeno logia dt1 lcm brnnça , m omento
objeta l d.:i m c rnó ri ,1.
O momento da p,1 ssagcn, da perg unt.1 "o qu e?" pc1r,1 a pcrguntc1 "quem ?" serií
a inda ret,irdado p o r um des dobrtrnwnto sig ni ficêl ti vo lfa primeirn ~wrg u n t.1 cntrt· um
lado propriamcnh:' cog rliti,·l) e um lado prc1grn ,ítico . Neste a spccto, a h is tó ri,1 das n o -
0
,\ \'l l·:,\H. ll<I ,\, i\ H IS J't°)R I A, ll FS(JU l 'C l \1F\:TO

çües e das palav ras é instrutiva: os g regos tinha m dois termos, 11111 c 11u· e n11n11111t' S ÍS1

para d esig nar, d e um lado, a le mbrança como aparecendo, passivamente no limite, a


ponto de ca racteri za r sua vind a ao espírito como a fecçào - pat/10s -, de outro lado, a
lembrança como objeto de uma busca geralmente de nominad a record ação, rccollcctio11.
A lembra nça, altern.idamente e ncontrada e bu scad a, situa-se, assim, no cru zamento
de urn a semântica com uma prag mática . Lembra r-se é ter uma lembra nça ou ir cm
buscc1 de u mc1 lembra nça. Nesse sentido, a p e rg unta "como?" fo rmulad a pela {l}/(l/1/ll('S Ís
tende a se desliga r da pe rgu n ta "o que?" méli s estrita mente formulad a pela 111111! 11/ L'.
Esse desd obrame nto da abo rdagem cognitiva e d a abordagem prag méltica te m uma
incid ência maior sobre a pre te nsão da me mór ia à fi delid ade e m relação ao passad o :
essa pre te n s5o d efin e o es tat uto veritati vo da me mória, que será preciso, depois, con-
frontar com o da hi s tória. Enquanto isso, a interferência d a pragmática da memória,
em virtude d a qu a l lembra r-se é fa zer alg uma coisa, exe rce um efeito d e confusão
sobre toda a problem ática veritativa (ou veridicti va): possi bilidades d e e ngano inse-
rem-se inelutavelmente nos rec ursos dos usos e a busos da memória a preendida e m
seu eixo prag m,Hico. A tipolog ia dos usos e abusos, que va mos propor no capítulo 2,
sobrepor-se-á à tipologia d os fenôme nos mne mônicos do cap ítulo 1.
Ao mesmo te mpo, a obordagem pragmática da anamnésia propicia rá a tra nsição
adequada da perg unta "o que?", tomad a no sentido estrito de um a investigação dos
recursos cognitivos d a le mb ra nça, para a pergunta "que m?", centrad a na apropr iação
da lembra nça por um s ujeito ca paz de se lembrar de si.
Se rá este o nosso ca minho: do "o que?" ao "que m?", passa ndo pelo "como?" - d a
le mbrança à memória refle tid a, passa ndo pela re miniscência.
1
Memória e bnaginação

Nota de orientação

o s11/n11ctcr-sc à pri11111:;:,i11 da pcr:.;untn "o q11c? ··, 17 _ti•110111cnoln:.;it1 da 111c111(írit1

A
t'L'-SC

co1~fi·o11tada, desde o início, co111 u11w tc11Úi el 11pon~1 q11(' a !ing 1111ge111 co11111111 nmcio1111:
1

11 presença, 1111 q1111/ p11r<'Cc co11s1stir 11 rcp rcscntaç110 ,f<i p11...;s,11fti, 11parc11tl7 sa 111i·s1110 11
de 1111111 i11lllgc111. Vi:c111os i11disti11/111ncnlc que 110s rcprcscnt11111o s 11111 t1UJ/l/cci111c11t<J p11ss11do,
011 t)lll' f1'11lo::. dele 1111/11 i11111gc111, que p<lde ser 1)ll11sc i 1isu11/ 011 ,111diti,,,1. Saindo da lillg11e1gc 111
(0111111n, 1111111 !011:,:11 tmdiç11ofilosófic:1, que (t i1n/ii1rn , de 1111111circ1 s11rprccndcn tc, 11 i11/l11ê11â11 do
c111piri::.1110 de lí11su11 inglcs11 e o .'~rt111dc mâon11/i.:;1110 de cri11ç110 rnrtcsi11111l,.fí1: d11111c111óri,1 111na
pro, 1í11ci11 da i11lllgi1111ç11,1, q11c /11í 11111itoj1i cm tmtad11 co111 susp<'içdo, co1110 z1c111os c111 Mo11t,11g11c
e JJa,rnl . Ai11d11 ,; o ct1so, de 11um,·im altc1111cntc significatirn , c111 Spi11ti:i1. !_c111os, 11/l Propo.:;içi'io
JS do Li, ro li da Étic1 , "D,11111t u1c: 11 e d11 onxc111d1117/111a ··: "Se o corpo /J1111111110 tiz,cr ::.ido 11fr-
1

t,1d11 111n11 t1t': por dois ou 11111i~ co1"/io_


.:; _
.:;f11111lt1111c111111·11te, t1s::.i1111/IIC 11 A/1n11 i11111gint1r 111/li;; tarde
111n dos dois, ele otimí k11i/ 1m ;- .,1· tt1111h;1u d11::. ou tros". É sob o sig110 d11 11ssocii1ç110 de id1;it1s que
l'SftÍ siflllld!I l'SS/1 t'S/1á·11' di' ( ,1 ;-Jo-CÍIC/li/1 1 t'il/1'(' II/CI //Ôrit1 t' illlt1,',;Íllt1Çi°ili: SC l'SSIIS tÍlltb t1frCÇllt'S
cs!l7o lig11das por co11 t i,~iiidadc, c, 1ornr 111110 -- pur/1111/0, i11111gi1111r - t; (', 1t1rnr 11 011/m, port,111to,
/c111/imr-sc dela. As.-;illl, 11 111c111liri11, rt'd11 :itl,1 à rcn1c·1n11r11çiio, iipcm 11 ,1 <'_..; fcim dn i111,1gi1111ç110.
Om, 11 i11111gi1111çiio, ú111sid1'r!1d11 c111 si 111cs11111 . c:,;t1í -;if11c7d111111 p11rtt' i11 táior dn t' ...;rn/i7 do.:; 111(1dos
de n111 i1ffi111c11to, 11,1 t°(;lltfiçcio drrs 11/i·cç(kS su/11l!t'tid,1s 110 n·:;i111c dt' c11mdc,11nc11fo d11s cois11s
i' Y/('1'1/{IS ti() CO/'f!O /iill // ti 1/( l, 1·011111 ::.u/1/i11/11/ 1 l ,'-:n,/ /o st';.,:11 /;; Í 1': . / <~, ' : '/11 ·,1dt'l1J1/Cll/(l SC_fÍ1: .:;cs 111/tÍO
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n d,1 por ,111tro /111ir1. t' r>'llt ' 1n1dn dt' t'd!!( l7Çiici, ,'!/! n1:1h1
dt1 1111'!111 '-'·i:r7(1?1 1 d,1, /1' 1.'/1'.' tr11di: Ír' !l:7Í:,;,
t,'1111111í n ·p11lilt:i1i1- ,'(fll-.-;e , 1 Discursu :,;,1b rc u mL;tndn dt' Dt':--L·11r/1 '.~ -- , 1u1dil , ·1· 11 c;; , ,u,.riii, 1 1

d,, 111n11círi11 co1110 J1111ç1iil 1'~/>1'c(tfrt1 d1 >1IC1'S~<' dr >p11-:.,11tlo.


[ 1/17 L·o11/ mco1Tr'l!/ 1· rfr_.:;_~ll I mdiç11,1 de dt',,'i1/o r i:nç1111 dt1 !lli'll/<iri11. llilS 11u11st'11, ,ii' 111í/t1
( rític11 do i11wgin,1l_·111 1. c) II:' .~t' d1'i'I' / J/ 1>, ·r·d1'1 ,, 11 n111 di::;.,ol·i,1ç1io 1717 i111;1:~11111ç,10 e dn llit'Ui,iri,1,
A MJ:MÚRJA, A fll ST()RJA, O LSQUFCIMFNTO

lcva11do essa operação tão /011gc q111111to possível. Sua idéin diretriz é n difcre11ç11, que pode111os
c//(/111nr de cidética, entre dois objetivos, duns i11tc11cio11nlidades: IIIJ/(/, n dn in/(/ginnção, voltadn
pnm o fantástico, n ficçí'fo, o irrcnl, o possível, o utópico; n outra, a dn 111emôrin, voltada para
n rcnlidade anterior, a a11tcrioridnde q11c constitui a 111arca tc111poral por cxce/êncin dn "coisn
/e111/1radn", do "/c111/1rado" co1110 tnl.
J\s difirnldadcs dessa opcraçiio de dissociaçí'ío rcnrnntam à origelll grega dn prohle111âtica
(seção[). Por um lado, n teoria platônica dn cikon sublinha principalmente ofc11ô111c110 de pre-
sença de uma coisa nuscnte, pcm1anl'Cc1uio i111plícitn a rc:ferê11cia 110 tc111po passado. Essa pro-
/Jlc111ática da ei kõn tc111, por s11a vez, sua pertinência e sua i11stl111cia próprias, o que a scqiiência
de 11ossas investigações atestará. Entretanto, ela pôde co11stit11ir obstárnlo ao reco11heci111ento da
espec{ficidade da função propria111e11te temporaliza nte da 111c111ôrin. É para Aristóteles que te-
nrns de nos voltar, para colher a confissão dessa especificidade. Afa111osa declaração que se lê 110
111ag11ífico trecho dos Parva Naturalia "De la 111é11wirc et de ln ré111i11iscc11cc" - "A 111e111ôria
é passado" - tornar-se-á nossa estrela guia pam a seqüh1cia de nossa exploraçifo.
A parte central deste estudo será dedicada a 11ma te11tativa de tipologia dos fc nô111c11os
mne111ônicos (seção li). Apesar de sun npare11tc dispersão, ela visa, mediante uma série de npro-
xi,naçôes, circu11screver a experiê11cia princcps de distl111cia te111poral, de profundidade do
tempo pnssado. Co11Jcsso que essa apologia do índice de d{fcrcnciação da mcnuíria deveria lignr-
se a uma revisão paralela da tellláfica do imaginnrio, a cxen1plo da q11e Sartre empreendeu e111
seus dois livros A imaginação e O imaginário, re·uisão que tende a desalojar a imagem de seu
pretenso lugar "dentro" dn consciência. A crítica da i111agclll-q11adro tornar-se-ia assilll umn
peça do dossiê co11w111 à imaginação e r, 111e111ôria, dossiê aberto pelo tcllla platônico da presença
do ausente.
Mas não penso ser i111possízwl li111it11r-se 11 essa dupla operação de cspccifirnçiio do imagi-
nário e da le111/m111çn. Deve haver, na experiência viva da 111c111âria, 11111 rastro irredutível que
cxpliq11c a insistência da confusifo COlllprovadn pela cxprcssífo i111agem-lembmnça. Parece, 1111'S-
11w, que n volta da le111bra11ça pode Jazer-se so111e11tc 110 lllodo do tornar-sc-illlagem. A revisão
paralela das fenomenologias da lc111brança e da i11111gc111 e11co11traria seu limite 110 processo de
tra11sfor111ação da lc111lnn11çn l!J/1 imagens (seção 111).
A 1xn11n11c11te 11111caç11 de (()/ ~fusão entre rc111c11wraçiio e i11111gi11ação, que resulta desse tor-
1znr-se- i11u1gc111 do lc111/Jm11ç11, 11{l'/111111111l1içiio dcfide'!idadc 1u1 q1111/ se rcsu111l' a funçiio vcrit11-
liv11 da 111c111ôria. E no entanto ...
E 110 c11t1mto, 1111d11 !t·1110,..; d,· 111el/wr que o 111c11l!íria pom garantir que algo ocorreu antes
de _fi>rman11os ::. 1111 h·u1l 1m11r11 . ..~ pnípria l,istoriogn~fia, dig111110 -lo desde já, 11i10 conseguirá
n'1110<1cr 11 l'rJ// ,'Ít'i_"110. s1·u111r1· t·r il Í<'lltfo 1' ,..;c'111prc rl't1(irn111d11, de tJIIC o n:fi'rc11tc últi1110 do 111c-
111ória con!/111111 --,,·;:do o pt1.;..;,,. 1, · Íl!tÍC/11·11di'11/,·:u,·ntc do 1/lit' po.c;:-;11 sis,n{ficor 11 prcteridadc do
p11::;s11do.
I)_\ t\1 1 \ I\W I -\ I" ll.\ l{l- \1 1\JI~( 1\.( 1.\

I. A herança grega

O proble m a susc itado pel a con fusão e n t re m c mó ri c1 e imag inação é tão a ntigo
q u an to a filosofi ,1 ocidental. Sobre esse tema, a filosofia socriiticc1 nos legou d o is to-
poi ri,·a is e complen1<:,ntc1res, um p l,1tôni cu, o out ro aristo télico. O p rimeiro, cent rndo
no tema d a L'ikt111, fa la de representação presen te de um a coisa ausente; e le c1dYoga
imp licita me nte o e 11\'oh ·ime nto d a p roble m ática dc1 m emó ri a pe la d a imag inação.
O seg undo, centra d o no te ma d a represen tação de u ma co isa a nterio rm e nte perce-
bicfa, zid q uirida o u apre ndida, prccon izi1 c1 inclu são d a proble m át ica d a image m nc1
da lem bra nça. É com essa s versôcs d c1 a poria clci imaginação e d a memória que n os
con fron ta mos sem cessa r.

1. Platão: a representação presente d e uma coisa ausente

É impo r ta nte notar, desde o in ício, que é no Jmb ito d os di á logos q ue tratam do
sofi s ta, e por meio d essa personagem d ,, pró pri a sofís tica e d a possibi Iidad e propria-
m ente o nto lógica do e rro, que se e ncontra a noção d e cih>11, q uer sozinha, quer em
dupl a co m a de pfurntt1s11111. É ass im qu e a im agem , m élS ta mbé m a m e mória, p o r im p li-
cação, trazem, desd e a origem, o c u n ho da suspeita, po r causa d o a mbie nte filosófico
de seu exa me. Com o, perg unta Sócra tes, é possíve l ex istir o sofi s ta, e com ele, o falar
fa lso, e fi nalme nte o não-ser implicado pelo não-ve rdade iro? É den tro d esse qu ad ro
qu e os d o is diál ogos intitul ad os Tcctcto e O Sofista for mu la m o proble m a . Pa ra compli-
cc1r um po uco mais as coisas, a proble m ,ítica da cik(}lt é, a lém di sso, associadc1, d esde
o in ício, à irnpressfto, à tupos, sob o s ig no d a metáfo ra d o bloco de cera, sendo o e rro
com pa rado a um c1pagamcnto d<1s 1narcc1s, d c1s :>L'111ei11, o u a u m eq uí\'oco seme lha n te
àq uele d e alg u é m qu e pu sesse os p és na pega d a e rrada. Ve m os, ass im , como o p roble-
m ,1 d o esq u ecime nto é colocado desde o início, e n-1t.• smo d upla m e nte colocad o, corno
,1paga m e nto dos ra s tros e co mo falta de a ju s tamento d a imagem presente à imp ressão
d e ixad a como qu e por um anel na ce ra. É de se no tar que, d esd e esses textos funda-
dores, a memór ii, e a imt1gi n c1ção par ti lh,1m o mesmo dest ino. Essél si tu ação in icial do
problema to rn íl ta n to m c1is nH:'mor.í,·cl ,1 afir ma çcio de i\r istótl· les, segu nd o c1 q u a l "a
rn c rn(1r ia 6 te mpo".
\1,1mos reler u Tt 't' f t'to d esde !6:1d '. lst,rnws no cerne dl' um,1 di scussc'ío centrada na
pnss ibi licl.id e do julg,rnw nto fo lso L' L' nCL'rr,1 d,1 pl' l,1 rcf u t.1ç,iu da kse seg und o ,1 q u,11
'',1 cit:·n c i,1 na d ,1 rn ,1i~ l' do q ue SL'lls,1ç,"il1" {1=i ll'-IK7b) 2. Sl:,cr,ltcs prnp(-ll' o seguinte '\lt,1-

T,·,t,, ,:sl,1L, viL·,·id,, ,, tr,1clu1id, , p,1r \l i,lwl \...-ir,. \ . l\iri,-,, 1·1,1 111111 ,iri,,11 . c,11. " CJ"'', J<1<1:;_ l , is!L' t.1111 -

h -·rn u1 n ,1 lr.i du~,i,, ,k .\u.~ t1 '-' lt· Di L'S, l\1r i~-. I ,·, li,·1 1,·, 1.,• lll"<'-. 11121, _,. t11n,1 ,1u t r,1 , eh · l ,·1111 R,1 b i11,
l\iri :-, ( ;,1 11 j ])\,\rd . e·, 11. " J; ibl inthi·qt1l ' ,k l,1 l'k-i ,1d,• "' !'! :;() _
2 S11l, n: t ud!l is-;ll, \ "l' J" 1),l\ id 1" r rl'I I K rl' I1, l \/ \ /,-n;, ,n,. /,;.,·111i11i,.-.-;1, ,. .111./ l \ u i i1 1:~- ( )11 //1, · 1 ,.;_,.:,·. Ili,,,,_

rning lPll ,. Jndi,111 .í1, ,1l i,-, . l nd i,111 ,1 Uni,·,: r:-- it, l'rl'~:-. J<Jl/()_ (Ju ,11 f't>dl' ,,·r. JlL'rg unt.i l' .i u t,n . .1 \l'r-
d<1<"k d,1 n1 l'1111í ri ,1. u111,1, ,·1qt1L' ,1s l°l'i -,1, i '·1,,,1,L1s , ·,-,til\ , i rn_•, ,1g,1,·L·l 11w 111L' ,1us,·1ül'S 1 "\,1,1 f',l l't'l°<'
']til' ,1 m,·111,í r i,1 lll'" 1 , 1(.' ,· m (u rlt,l lP 1·\1111 ,·l.1:-- f1 l' l,1 i tn,1 ,~l'lll 11 r,·,c·11tl' d,· ,u ,1 f' rt'St' ll t,· ,1 d L'S,l f',H<'l° ÍLLl '
1
/\ MFM(lRI ,\, /\ HI ST( ll<l /1. , O FS(lUECIMLN 'IO

que": "Seja a questão: 'Suponhamos que viemos a saber alguma coisa; que, desse mes-
mo objeto, ainda tenhamos, ai nda conservemos a lembra nça: é possível que, naquele
momento, quando nos recordamos dele, não saibamos aquilo mesmo que estamos
recordando? ' - embora pareça que estou iniciando um longo discurso, o que quero
perguntar é se, uma vez que aprendemos alguma coisa, n ão o sabemos quando dela
nos lembramos" (163d). Percebemos, de imediato, a forte ligação de toda a problemá-
tica com a erística. De fato, é preciso ter passado pela longa apologia de Protágoras
e seu livre discurso em favor do home m-medida antes de ver surgir uma solução, e
inicialmente, uma questão mais incisiva: "Pois, neste caso, acreditas que alguém te
concede ria que, num sujei to qualquer, a lembrança presente daquilo que ele sentiu
seja, para ele, que já não a sente mais, uma impressão sem elhante àquela que já sentiu
uma vez? De modo a lgum" (166b) . Pergunta insidiosa, que arrasta toda a problemá ti-
ca para aquilo que nos parecerá uma cilada, isto é, o recurso à categoria de similitude
para resolver o enigma da presença do ausente, enigma comum à imaginação e à me-
mória. Protágoras tentou confinar a aporia autêntica da lembrança, ou seja, da presença
do ausente, na erística do não-saber (presente) do saber (passado). É munido de uma
confiança nova no pensamento, comparado ao diálogo que a alma mantém consigo
mesma, que Sócrates elabora uma espécie de fenomenologia da confusão: tomar uma
coisa por outra. É para resolver esse paradoxo que ele propõe a metáfora do pedaço de
cera : "Pois be m, concede-me propor, e m apoio ao que tenho a dizer, que nossas almas
contêm em si um bloco maleável de cera: maior em alguns, menor em outros, de uma
cera mais pura para uns, mais impura para outros, e bastante dura, mas mais úmida
para a lguns, havendo aqueles para quem ela está no m eio-termo". - Teeteto: "Con-
cedo". - Sócrates: "Pois então, digamos que se trata de um dom da mãe das Musas,
Memória: exatamente como quando, à guisa de assinatura, imprimimos a marca de
nossos anéis, quando pomos esse bloco de cerêl sob as sensações e os pensamentos,
imprimimos nele aquilo que queremos recordar, quer se trate de coisas que v imos,
ou vimos ou recebemos no espírito. E aquilo que foi impresso, nós o recordamos e o
sabemos, enquanto a sua imagem (cidô/011) está ali, ao passo que aqu ilo que é apagado,
ou aquilo que não foi capaz de ser impresso, nós esquecemos (cpi lclêstlini), isto é, não o
sabemos" (191d). Observemos que a metáfora da cera conjuga as duas problemáticas, a
da memória e a do esquecimento. Segue uma sutil tipologia de todas as combinações
possíveis entre o momento do saber atua l e o da aquisição da impressão; entre essa s,
as duas seguintes (no 10 e no 1 'J): "aquilo que sabemos e de que temos a sensação, en-
quanto conservamos s ua le rnbrança (cklz611 to llllll' ll1t'io11 orthôs : Dies tradu z 'ter d ela a
... le mbrança fiel'}, é impossível ac reditar que sabemos somente; e o que sabemos e de
que temos a sensação, nas mesmas cond ições, acredi tar que é umc1 coisa de que temos

O que se p,1ssa com a rl'l,1çi10 d,1 prl'sença com a a u s0ncia que os grl'gos explo r,1 ram por meio da
m et,ífora da impressi'o (/11pn~)? Siio ils im pl ic.1çôL'S do \'Ínculo e nt re tipogr,1fü1 l' iconogrnfi a que
o ilutor explora na esteira d os trabi!lhos de J. Derrida sobre a esc r ita. Seja qual for o destino dess,l
nwt.í fo ra até ,1 épocil das lll'll roci[•1icias, o pL·ns,1men tu est,í cnndcn,1do, pL'la aporia d a ~1rcsl'nça
da ausênc ia, a pL'rm.incccr nos limi tes (011 t!tc u1·r:,:,•}.
D ,\ r--11:1\1(1 111-\ 1 1)\ R l\11'-. ISCÍ: '-.l'I-\

somente a sensação" (192b-c). Tendo em , ·ista delimitar essa característica ,·critati,·a


da fidelidade, retomaremos, mais adiante, toda a discussão. Continuando a analogia
da impressão, Sócrates compara a opinião \'erdadeira a um encai xe exato e a opinião
falsa, a um defeito de ajustamento: "Então, quando uma sensação é associada a uma
das duas marcas (tiin S(' /llciâ 11), mas não à outra, e quando se foz coincidir a marca
apropriada à sensação ausente com a sensação presente, o pensa mento, ao seguir esse
cam inho, está totalmente enganado" (19-t.a)'. Não nos detere mos na tipologia das ceras,
tomada como guia d e um a tipologia das memórias boas ou ruins. Não omitiremos,
pelo prazer da leitura, a irônica evocação [194e-195aj dos "corações pilosos" (Ilíada II! )
e dos "corações úmidos". Reteremos a idéia dominante segundo a qual a opinião falsa
não reside "nem nas sensações relacionadas umas às outras, nem nos pensamentos,
mas na associação (s111111psis) de uma sensação a um pensamento" (195c-d). A referência
ao tempo que eventualme nte esperaríamos da expressão "conservar corretamente a
lembrança" não é pertinente no âmbito de uma teoria cpistêmica que tem por aposta
o estatuto da opinião falsa, portanto do julgamento, não da memória como tal. Sua
força est.:i cm englobar em toda a sua extensão, pelo viés de uma fenomenologia da
confusão, a aporia da presença da ausência\
É a mesma problemática abrangente, quanto ao impacto sobre uma teoria da ima-
ginação e da memória, que preside à troca de metáfora com a alegoria do pombal'.
De acordo com este novo modelo (o "modelo do viveiro" segundo Burnycat, tradução
Narcy), pede-se para admitir a identificação entre possuir um saber e utilin1-lo de
forma ativa, do mesmo modo que te r uma aH' nas mãos é diferente de tê-la na gaiola.
Passa-se, pois, da metMora aparentemente passiva da impressão deixada por um sine-
te, a uma metáfora em que se enfatiza a definição do conhecimento em termos de po-
der ou de capacidade. A pergunta epistêmica é esta: a distinção entre uma capacidade
e seu exercício torna concebível que se possa julgar que uma coisa que aprendemos e
da qual te mos o conhecimento (as an's que alguém possui) é algo que sabemos (a a,·e
que se prende na gaiola) (197b-c)? A pergunta diz respeito ao nosso propósito na
medida em que uma memori zação incxi1ta das regras lc,·a a um erro de contagem . À
primeira vista, estamos longe dos casos de erro de éljustamcnto, conforme o modelo
do bloco de cera. Entretanto, não seriam estes compa rá\·eis ao uso errôneo de uma ca-

1 1nd ico ,1qu i a tr,1d uç<'io a ltL'rn,itiva de K rL'I 1: ., \ 'Oit', ,cl!C11 J>l'l,·,·11t i,111 i, 1•rc,l'11l to 11/t' of ti,,· in111ri11/, /1 11/
1/tl/ tl1c othcr; ,l'i1e11 1i11 ,,t/1a ,1•ord., I //,e 111i11t! ll/'/'li,·, t/1,· i111pri11 t o( tlu· absent J'i' l'C1'/1fio11 to//,,· J'Cl't't'pliu11
t/111/ i, prL'SL'nt ; tlie 111111d i, d, ·n·i, 1l'd i11 c,•,·r11 , 11d1 i11,f1111c,•" (K íL'li , O( Al,·111,l/·_11. l\,·111111i,-;c,·11t'<' ,111,/ \Vril-
i11.1;, º1'· cit , p. 27).
-1 F.ncontra remos L'lll \h·lv~ Bu rnyea t, n,,.
1/i,,,·tl'I 11, , ,( l'lt1! 0 ( H<1 c kL·tt l'u b l. Co, 1l/l/0; tr,1d Lll;,11> fr,111-
CL's,1 dl' Micl1l'I N,nn·, /11trod11dio11 r111 Tlu;ac"/1· d,· /'/11 /,>11, l'ari s, l'LF, JlJL/8 ). um,i disc us<'lll CL' rrad,1,
n,1 tradiçiío d,1 íil\lS\1fi ,1 ,111,1lític;1 dL' língua ingll's,1, da .irgumL'nt,1ç,i11 L'~t rit,1nw11tl' L'pi s tê mic,1 ("os
111,1is i mpn rt,111tl'~ cn nlL'nt,í r ios do 'frdt'I, > L'St,1t1 tPdus L'll1 i ngh:•s", L'S(íl'\'L' P ,1utnr). SnhrL' n " ju l-
g,1 mL' ntl1 falso", ,1 sua possibi licl,1dl' L' ,1 s u ,1 L'n·ntu,1! rl' ÍL1t,1ç,1L>, ,·L'r tr,1duç,iu ír,111CL'S<1, pp. lJ:'\ -172;
snbrl' <> " b loco dc CL'r,1 ", p. J 2'i L' S\'g.; sPbrL' u ",·i,·l'i ro", p. 1-1-1 L' sl'g.
:, O modclo do blocti dL' n·r,1 fr,K,1ss,ir,1 qu,into ,10 c,1so da idl'ntiíi c,1ç,iL> L'rrllllL',1 dl' um nt'1ml'n> pt1r
su,1 soma dL' dois núnwro~; t,1is crn1s abstr.itl1s l'Sc,1p,1111 i1 L'xplic,1ç,i,1 por um L'ITll dl' aju~t,1 111L'l1tl,
l'llt rl' pL'l'CL'pt.;(iL's.
;\ \11 \1l,lf<IA, 1\ HIST()RIJ\, () FSl)UITl\11:\: IO

pacidade, e dessa forma, a uma confusão? Não devem as impressões ser memorizadas
para entrar em uso, uma vez que dizem respeito a conhecimentos adquiridos? É assim
que o problema da memória é abordado indiretamente por aquilo que pode ser consi-
derado uma fenomenologia da confusão, O ajustamento defeituoso e a captura errada
são duas figuras da confusão, O "modelo do viveiro" é particularmente adequado à
nossa investigação na medida em que todo apreender é comparável a uma possessão
(hcxis ou ktesis), e sobretudo a uma caçada, e em que toda procura de lembrança é tam-
bém uma caçada. Acompanhemos de novo Sócrates, quando, como verdadeiro sofista,
ele encarece a sutileza, misturando pombos selvagens com suas pombas, mas também
não-pombas com as pombas verdadeiras. A perturbação é assim lançada não somente
sobre o momento da captura, como também sobre o estado da possessãd'.
Por esses desdobramentos e redobramentos inesperados, a analogia do pombal (ou
o "modelo do viveiro") revela uma riqueza igual à da passada colocada por engano na
pegada errada. Ao ajustamento defeituoso, vem juntar-se a captura falaciosa, a confu-
são. Em contrapartida, perde-se de vista o destino da cik6n. É a ele que O Sofista nos
leva de volta.
A problemática da eihJ11, desenvolvida em O Sofista vem exatamente em auxílio do
enigma da presença da ausência concentrada na notação do Tcctcto 194a acima refcrida 7.
O que está em jogo é o estatuto do momento da rememoração, tratada como um reco-
nhecimento de impressão. A possibilidade da falsidade está inscrita nesse paradoxti.
Selecionemos, em O Sofista') o texto-chave, no qual Platão distingue, na ordem
da imitação, a veracidade do engano (234c e scg). O âmbito da discussão lembra o do
Tectcto: como a sofística e a sua arte da ilusão são possíveis? O Estrangeiro e o Teeteto
entram em acordo para dizer que o sofista - sempre ele - é principalmente um imi-
tador do ser e da verdade, alguém que fabrica ''imitações" (mi111t'11111ta) e "homônimos"
(110111i'inun1t1) dos seres (234b). Aqui, muda-se de metáfora. Passa-se da impressão na
cera ao retrato, metáfora, por sua vez, estendida das artes gráficas para as artes da lin-
guagem (cidõla lcgollle11a, "das ficções faladas", traduz Dies, 234c), capazes de "fazer pa-
recerem verdadeiras" as coisas ditas. Estamos, portanto, no meio da técnica, da técnica
mimética, não estando separadas imitação e magia ("fazedores de prestígios", 235b 5). É

6 Obscrvarcmns de p,,ssagem a alegoria não explorada do arqueiro que erra seu alvo (194,1). É pre-
ciso lembrar que !1t1111!lr/111ll'i11 ("enganar-se" e, depois, "pecar" ) é "errar o alvo".
7 Deixamos de lado o '/á/1'/0 no momentu cm que a discussão, até então centrada no ju lgamento
falso, se fecha sobre o proble ma estritanwntl' cpistêmico da rclaç,10 entre esses tri:•s temas: saber,
percepção e julg,111wnto verdadeiro (20k). Do ponto de vistil estritamente cpistt'·mico, passa-se
dos erros de idL·ntificaç,10 e de ckscrição no 'Tecle/o a si mplcs erros de dcscriçfü1 cm() S()fi"st11 (My lcs
Burnye;:it, /11trod11{"/Ío11 t111 T/1{ ;.:/Í'/c, ()p. cit., p, 125).
8 A esse n·spcito, cu d i ri,1, .io cont r,í rio de K reli, lJlll' nãu hj raz:'!o para voltar contra Platão a ,fosco-
bert;:i dl'sse parndoxo e de rt>conliect>r nl'it• uma antccipa çãn da ontologi,1 d,1 presen ça; o paradoxo
parece-me constitutivo do enigma da memória, tal como nos acomp,1nhar.í ,10 longo dl' todo l'Sk
livro, É 111<1is ,l prúpri,1 n,iturcza do prnblcm,1 qul' traz :i luz o p,1radoxo.
9 Lr' Sopliistc, texto cs tab,•lecido e tradu zido por Auguste Dit'.•s, l\1ris, Lcs Bclk·s Ll'llrL'S, 192Ci. ,:· l'S Sd
trnduçfü1 qm· adot,111rns aqui. Existe t,1mb0m uma tr,1duç,'io de Nl'stor-Luis Cordcro, P<1ris, Fl,1111 -
rnarion, rol. "CF', Jlll>3.
nesse quadro imposto que Platão pratica seu método favorito de âiz,is110: "Portanto, está
decidido: dividir, o rnélis depressa possível, a arte que fabricél as imagens (cidôlopoiikf 11
tckh11ii11)" (235b). De um lado, tem os a tekl111c' cikastikf ("ar te de copiar", diz Dies): "ora,
copia-se dél rnanei rn mai s fiel quando, pé1ra reali zar a imitação, tomamos e mprestadas
do mod elo suas relações exatas d e comprimento, largura e profundidade e, além disso,
cobrimos cada parte com as cores que lhe convêm" (235d,e). De outro lado, ternos o
simu lacro, a que Pl atão atribui o termo plzn11f1N1111 (236b). Logo, cihi11 é oposto a plu111 t11s-
11111, e a arte "e icástica ", à arte "fant ástica" (236c) . O proble ma da m e mó ria desapareceu
quanto à sua especificidade, esmagado pela problemá tica dominante, isto é, a questão
de saber em que compartimento se pode alojar o sofista . O Estrangeiro confessa seu
embaraço. Com isto, é todo o proble ma da mimética que ca i na aporia . Para sair d ela, é
preciso remontar m ais a lto na hie ra rqui a dos conceitos e s upor o n ão-ser.
A idéia de "semelhança fiel " própria da eicástica terá, pelo m enos, servido de esca-
la. Platão parece ter percebido o momento da entrada em impasse quando se interroga:
o que chamamos, então, "afinal, de imagem?" (cidiilo11)? (239d.) Pe rdemo-nos na enu-
meração dos exemplos que parecem esca par da a rte d a di\'isão ordenada e, primeira-
m ente, a d a definição genérica: "Que d efinição dare mos, pois, da imagem, estrangeiro,
se n ão a d e chamá-la d e um segundo objeto (11ctero11) s imilar, copiado do verdad eiro? "
(2-10a.) Mas o que quer dizer similar? E outro? E copiado? Eis-nos novamente em pleno
mar: "Assim, pois, aqui lo a que chélrnélmos de semelhança (ciko1111) é rea lmente um
irreal n ão-ser?" (2-10b.) Para dizê-lo, seria preciso "recon hecer, a contragosto, q ue, d e
algum modo, o não-ser ex iste" (240c). A diferença, por assim di zer, fenomenolúg ica
entre eicástica e fan tást ica é arrastada no turbilhão e m que erística e dialética d i ficil-
mcnte se distinguem. Tudo isso porque a questão do ser do sofista aniqu ilou a discu s-
são, e porque a luta cont ra Parmênides - "a tese paterna" (2-12a) - absorveu toda a
energ ia de pen sa m ento. Vemos até os três te rmos, cidôlo11, cikô11 e p/11111tasia reunidos sob
o \'Ocábulo infamante do engano (aprl tt', 260c), e um po uco adia n te: "a ar te que fa bri-
ca imagens e simulac ros (t'idôlopoiik1·11 k11i ph1111tastike11 )" (260d) . Recom end a-se ape n as
"examinar a fundo o qu e podem ser logos, do.m e pl11111t11si11" (260e) do ponto de \·ista de
sua '"comunidad e' com o nJo-ser" (ihid.).

Fc1çc:11nos um pri m ciro balanço aporéticn de nossa tra n .' ssia dos escritos plat[m icos
rcldti \·os ,1 nwmúri <1. Pode mos escalonar as dificuldades da seguinte maneira. A pri-
nwir.i di/ rL'Spl'ito j ,1u s<'.:·11eia (obsen·ad ,1 de pc:1ss,1ge m) de referênci a exp ressa à marca
di -;tin ti ,a cL1 111L'l11t\ri ,1, is tu 6, <l í:l ntcrioridade das "m<1rG1s", da s s1·111ci11, nas qu ,1 is Sl'
si g n ifil·,1111 ,1:-- ,11L'CÇt)l.'~ dt) C\lr~)O L' d ,1 ,1l m,1 :1s qu,1i s ,1 le mbrc1nç,1 l'StcÍ ligada . É \'erd,1dl'
qu l', rn u il t1" \"t ' / l' " , lh ll'111 r~os \'t•rbc:1 is dll p,1ss,1do sJo disti ntarncntl' en un ci,1dos; m ,1s
1w 11 '1 , 1 11 :. , : ,_· :' ;,_· \ . ';, \ ,.-J i-..l1 :ll.1 (.; d1,di t",1 cL1 ,1 t':-"L'S d C,iti CllS inco1llL''- t,í,·L· is. L: llL''-k f)Lmto
LJLIL' ,1 .111<1i í~-,- ,it- , \1·1-.. t11tv k~ ,1prL':--c•nL1 u111,1 rtlf)turn c bra .
.-\ "'\';..:,u,i,L, , i : (i, u!,Ld ...· d i/ rl''->f•l' ih 1 ,h ) tipo de rL' l,1L:,10 l] LI L' L·, isk L'ntrl' a ci/úi11 L' ,1
111 ,irt" ,1 ,~ri;Yi, ·1 : ,~ ,,,11,, , ,,.., t,1 ,'~hoç,1dP 11t1 ."1mbitt) d ,1 s ,irks d,• im it,1l.) io. l: \'L'rd ,1dL' qu L'
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1\ 1\1Uv1(WI /\, ;\ IIIST()Rlt\, () FSQLJFCIMFNHl
1.
élfirmé1da. E podemos conside rar essa distinção como o início de um reconhecimento
pleno da problemáticíl que está no centro des te estudo, ou seja, a dimensão veritati va d a
memória e, acrescentemos por a ntecipílção, da história. O utrossim, ao longo do debate
em torno da sofística, o estatuto epistemológico e ontológico atribuído à falsidade pres-
supõe a possibilidade de ,l rré.m car o discurso verdadeiro à ver tigem da falsidade e de
seu real não-ser. Assim, ficam preservadas as possibilidades de um ícone verdadeiro.
Mas, se o proble ma é reconhecido c m sua especificidade, ex iste a questão de saber se a
exigência de fidelidad e, de veracidade, contida na noção de arte eicástica, encontra um
quadro apropriado na noção de arte mimética. Dessa classificação, resulta que a relação
com as ma rcas sig nificantes só pode ser uma relação de similitude. Em Tempo e 1111rmtiv11,
explorei os recursos do conceito de 111i111csis ao qual tentei délr a mais a mpla extensão,
mesmo ao preço de uma ruptura crescente entre 11/Ílllt' SÍS e imitação-cópia . Contudo,
resta a questão de saber se J problem ,itica da si militude não constitui um obstáculo
dirimente ao reconhecimento dos traços específicos que distinguem a memória da ima-
g inação. Poderia a relação com o passado ser apenas uma variedade de mi111L's is? Essa
confusão não deixará de nos acompanhar. Se nossa dúvida tem fundamento, existe o
risco de a idéia de "semelhJ nça fie l", própria c.fa Mtc ciGística, ter fornecido m ais uma
máscara do que uma esca la na exploração d a dimensão veritJtiva da memória.
MJs a ind a n ão chegamos ao fundo do impasse. Vimos o Tcrtcto associar estreita-
me nh:' o exame da cikô11 à s uposição de um J marca comparável à impressão de um
sinete na cera. Le mbra mos os termos com os quais o Tccteto opera a ligação entre
cikt111 e tupos : "Suponha mos, para fundJm entar o arg ume nto, que ex is te cm nossas
almas uma cera impregn ável..." A s uposi ç5o, presum ida mente, deve permitir resolver
o enigma da confu são o u m a l-entendido, sem esquecer o da persistência das marcas,
o u, ainc.fa, o d e seu apagame nto no caso do esquecimento. Isso mostra clarnmente o
peso que ela carrega. Por sina l, Platão não hcs it<.1 cm colocar él hi pótese sob o sig no de
M ncmósi ne, mãe de todas as Musas, dando-lhe assim um tom de acentuada soleni-
dade. Assim, a suposta ligação entre cikc"n1 e impressão é tida como mai s primitiva do
q ue a rebção de semelhança com a qua l opera a Jrte mimé ti c<.1. O u, c m o utras pc1 la-
vras, há m imética ve ríd ica nu me ntirosa porque h,1, entre a cikii11 e J im pressão, uma
d ialética de acomodação, de harmo ni zação, de aj11'.>fnmrnto q ue pode ser bem suced ilfa
ou fracassM. Com a problemática da impressão e a da re lc1ção e ntre cikc111 e impressão,
a lc,111<;c1mos o ponto finJI d e todél anó li sc regressiva. Ora, c1 hi pótese - ou melhor, a
,icei tc1ção -- da impressão suscitou, no decorrer Lfa hi stúria das id{,iJs, um cortejo de
di fi c uldades que n5o de ixara m de pcs,H, não somente sobre a teoria da memória, m as
também sob re a da históri,1, com outro nome, o de "rc1stro". A h istória, segundo Marc
C31och, pretende ser uma c iê nc ia por rastros. F. possível, dl'sde jéi, di ssipa r ,1 lgumJs cbs
con fusê'>cs relati vas ,10 emprego dc1 pal ,1\' rél "r,1stro" na esteira do emprego d e " impres-
sJo". Aplicando o método p latônico dL' divis5o, H'come nd.ido -- e prclticado - pur
Platão em O Sofista, vou disting uir três empregos principais da p,1lav ra "ra s tro".
Por e nquanto, dei xa rei de lado os ra stros sobre os q uJi s tr,1ba lh a o histor i,1dor:
são r,1stros escritos e eventuél lmentc arqu ivé1dos. Sé'ío eles que Plcüão tl'rn cm vist,1 1w
.
1 mito do Fedro, que narra a inve nção da escrita. Tratare mos disso a partir do Prelúdio à
nossa segunda parte. Será então traçada uma linha divisór ia entre as marcas "exterio-
res", as da escrita propriamente dita, as dos di sc ursos escritos, e o componente grá fico
inse par,ivel do componente eicástico da imagem, em razão da m etáfora da impressão
da cera . O mito do Fcdro transportará o modelo tipogrMico, sobre o qual David Farrell
Krell estabelece sua interpre tação do Tcctcto, da inti1nidade da a lma à exterioridade
da escrita pública dos discursos. A origem dos rastros esc ritos só se tornará mais
misteriosa.
Diferente é a impressão enquanto afecçào que resulta do c hoque de um aconte-
cimento, que podemos qualificar corno not,1 \·el, marca nte. Essa impressão é essencial-
mente sentida. É tacitamente pressuposta pclc1 própria metáfora da tupos no momento
da cu nhagem do a nel na cera, na m edid a e m que é a ,1lma que recebe a impressão (Tcc-
tcto, 19-k). É explicitamente reivindicada no terceiro texto d e Platão que comentamos
aqui. Esse texto está em Filcbo 38a-39c 1' 1• Trata-se novamente da opinião, ora folsa , ora
\'erd adeira, desta \·ez em sua relação com o pr,1zer e com a dor, candidatos ao primeiro
lugar no concurso entre bens rivais, aberto no início do diálogo. Sóc rates propõe: "Não
é da memória e da sen sação que se forma sempre em nós a opinião espontânea e refle-
tida?" (38c.) Protarco aquiesce. Vem então o exemplo de alguém que quer "d iscernir"
(kri11L'i11) o que, de longe, lhe parece um homem. O que acontece quando é a si mesmo
que ele fa z as perguntas? Sócrates propô e: " Imagino que nossa alma se assemelha
a um livro" (38e). "Como?" pergunta Protarco. Segue-se a explicação: "A memória,
su gere Sóc rates, no seu encontro com as sensações e com a s reflexões (pntht·1nat11) que
esse encontro prü\'OG,, parece-me então, se é que posso dizê-lo, escrever (g rap/1cin)
discu rsos em nossas almas e, quando uma reflexão (p11t/, ('l/lrl) inscreve coisa s \·erda-
deiras, o res ultado em nós são uma opinião \'erdadeira e disc ursos verdadeiros. Mas,
quando aquele escre\·entc (gm11rn1ntcus) que h ,1 em nós escre\'e coisas fa lsas, o resul-
tado é contrário à \ ·erdadc" (39a) 11• Sócrates propõe então outrn compmação, com a
pintura, variante do grafismo: "Ad mite também que um o utro obreiro (dt·111io11rgos)
nabalha, nesse momento, cm nossas almas" (39b). Qual? " Um pintor (:c'igmp/,()s), que
\T'11 depois do escrevente e desenha (gmph ci) na alma as imagens que correspondem
às p a lavras" (íbid.). Isso ocorre graças a uma separação operada e ntre, de um lad o, as
opinil~1es e os discursos que acompanha\·érn1 a sensação e, de outro, "as ima gens das
coisas assim pen sarias ou formuladas" (i/iid.). É essa a inscrição n a a lma à qual o Fcdr()
irá contrapor as marcas ex ternas sobre as quai s se estabelecem os discursos esc ritos.
A questã o leva ntada por essa impressão-afecção é, então, dupb. Por um lado, d e
qu e maneira ela é preservada, como persiste, seja e la rememorada ou ni1o? Por outro

](] l'l ,1Uio, /!h i/i"/,c, tt'\ lll L'Sl,1 belec ido e trnduzido pur .'\ ug ustc Dit•s, PMis, 1.L·s Lklles I.L'ttrt'S, JLJ.fl.
11 Ten • o tradutor r,1 1:,10 L'rn trMfu z ir pr1t!1L· 111at,1 por · r,:ilcxão", por c,n1s,1 d a co mpa r,1ç,io. fcit,1 n,1
/~cplÍNirn 511 d, e ntre pensa mcn to d isc u r-;i\'O ou i ntu iç;'io, L"nqu,1 nt,1 c-;t,1dus de a I m ,1, L' patli ,•111,1 /,11
Con tinuil sendo L''isenci,1] illl M g uml'nto do f-'i/chcJ, que o g r,ifi s mo í ntimo j alm,1 se ja d,1 o rd pm d,1
afecç,10. C abcr,í ,1 r\ri ,; tú tele~ trnt,H d ,1 11111,; 1111· e nqu a nto pre,;cnç,1 n ,1 a lm,1 L' d ,1 lc mbra nç,1 CllnW
um 11,1 //1,>~ (d. ,idiantl' pp. 1-l-36).
/\ MFM( lRI ,\, /\ HI ST( lRIA , () LS(.2UE(Tv1F l\i TO

lado, gue relação de significância ela mantém com respeito ao acontecimento marcante
(o que Platão chama de cidõ/011 e que ele não confunde com a cikõn presente da marca
c1usente, que cria um problema de conformidade com a marca inicial)? Uma fenome-
nologia dessa impressão-signo é possível no limite daquilo que Husserl chama de
disciplina hilética.
Terceiro emprego da marca: a impressão corporal, cerebral, cortical, que interessa
às neurociências. Para a fenomenologia da imprcssão-afecção, essas impressões cor-
porais são objeto de uma pressuposição relativa à causalidade externa, pressuposição
cujo estatuto é extremamente difícil de estabelecer. Nesse caso, falaremos de substrato,
para designar a conexão de um gênero particular entre as impressões que procedem
do mundo vivido e as impressões materiais no cérebro que são do domínio das neu-
rociências12. Não me adianto mais por enquanto, limitando-me a indicar a diferença
entre o três empregos da idéia indiscriminada de rastro: rastro escrito num suporte
material, impressão-afecção "na alma", impressão corporal, cerebral, cortical. Esta é, a
meu ver, a dificuldade incontornável ligada ao estatuto da "impressão nas almas" como
num pedaço de cera. Ora, hoje já não é possível eludir o problema das relações entre
impressão cerebral e impressão vivida, entre conservação-estocagem e perseverança
da afecção inicial. Espero mostrar que esse problema, herdado do velho debate a res-
peito das relações da alma e do corpo, debate audaciosamente assumido por Bergson
cm Matéria e Memória, pode ser colocado em outros termos que não aqueles que põem
em confronto materialismo e espiritualismo. Não estamos lidando com duas leituras
do corpo, da corporeidade - corpo-objeto diante de corpo vivido-, com o parale-
lismo se deslocando do plano ontológico para o plano lingüístico ou semântico? I·'

2. Aristóteles: "A memória é do passado"

É no plano de fundo erístico e dialético herdado de Platão que pode ser colocado
o tratado de Aristóteles Pcri 11111 e llll'S k11i a11a11111l' St'iis, que chegou a nós com o títuk,
latino De 111c11wria ct rc111i11isce11tia numa coletânea de nove pequenos tratados qu<' a
tradição denominou Parva Natura/ia 11 . Por que um título duplo? Para distinguir, não
a persistência da lembrança em relação à sua recordação, mas sua simples pn' ,.;ença
no espírito (que chamarei, mais adiante, em meu esboço fenomenológico, de evocação
simples) em relação à recordação enqu anto busca.

12 ;\ di scu ssão a rl'speito do estatuto do rastro corti n1l C''.,t,í na tl'rceir;i p.1rtl', no i\mbito d a probJt,mó-
tirn do es quec imento (adi,rnll', pp. 428-43S).
n A trnduç,io franCL' Sil dos Pctit~ Tm iti·~ d'i,i,.:to irc 1111 /11 rclle e (k nosso tr.itado De /11 1111•11111i rc ct de /11
n•11ii11iscc11Cl' é de René Mug n il' r n,1s ed içiies LL'S Bel les Ll'ttres. Express o aqui, depoi s de tantas PU -
tras, a minhil dív idil qu,1nto à trndução e ao comentá rio em língu a inglesil oÍl'recidos po r RichMd
Sornbji , com o título de /\ r i~ totlc 011 lv'.c111ory, Prov idence, Rhmk ls land , 13row n University l'rcss,
·1972. N;i s u.1 s eqüênc iil, 1111111111 /(' Sis pod e ri.1 ser t radu zid ,1 p o r " record ilçii o" (r,•co/lcct io11 ); p refer i
"re ml'mornçi\o", de acordo com a tipolog ia d a le mbra nça que S U Cl'lfr, no presentl' trnb.il ho, ,i c1r-
queolog ia do p ro blem ,1 .

. ,.
Dt\ Ml:M(lRI ·\ F IJ \ lü \ 11\J I SC i\;CI \

A memória, nesse sentido particular, é caracte ri zada inici,1lmen te como afecçào


(p11t/10s), o que a dist ingue precisamente da recordaçãn1 4 .
A primeira questão que se apresenta é a da "coisa" lemb rada; é nessa ocasião que
é pronunc iada a fr ase cha,·e que acompan ha tod a minha p esquisa: "A memória é do
passado" (449 b 15) 1ª. É o contraste com o futuro da conje tura e d a espera e com o
p resente da sensação (ou percepção) que impõe esta carac te ri 1.ação primordi a l. E é
sob a autoridade d a linguagem comum ("nin g uém diria ... mas dir-se-i a que ... ") que
é feita a dis tinção. Mais fortemente ainda: é ''na a lma" que se diz''· te r anteriormente
(protcro11) ouvido, sentido, p en sado alg um a coi sa (449 b 23) . Essa marca tempo ra l, as-
sim promovida a linguage m, de pende d o que cha maremos m ais ad ia nte d e memória
declarati va . Ela é s ublinhad a insistentemente: ta nto é \"erdadc que nos lembramos
"sem os objetos" (-!-19 b 19), quanto é preciso sublinhar que ex iste me mória "quando o
tempo passa" (,ulie11 ti111c !111s t!lnpscd) (-1-19 b 26), ou, ma is bre,·ernente "com o tem po" 1~.
Nesse aspecto, os seres huma nos partilham a simples memória com certos an imais,
mas nem todos dispõem da "sensaç,fo (percepção) (a istli t' SÍ-;) do tem po" (b 29). Essa
sensação (percepção) consiste no fato de que a marca d a anterior id ade implica a dis-
tinção entre o antes e o depo is . Ora, "o ,H"ltes e o de pois existem no tempo (cn k/1ro11 ôi)"
(b 23) (1111d carlicr nnd /11tcr are i11 ti111c). O acordo a qui é completo com a aná li se do
tempo na Físirn , IV, 11, segundo a qua l é percebendo o mo,·imento que percebemos
o tempo; mas o te mpo só é percebido como diferente do mm ·imento quando nós o "de-
termina mos (110ri:0111C11)" (Física, 218 b 30) 1' , isto é, quando podemos disting u ir dois
instantes, um como ante rio r, o outro como posterior 1" .
Nes te ponto, análise do te mpo e aná lise da memória se sobrep õem. A segunda
questão re fere-se à relação entre memória e imaginação. Seu dncu lo é assegurado
pe la pertinência à m esm a pa rte da alm a, a alma sens ível, segundo um modo de di,·i-
s,fo já praticado por Platão211 • Mas a dificuldade está cm ou tro luga r. A semelhança e n-

1-! Aris tóteles desig n;, t'SS il L'Yllcação ao m es m ll te mpo po r u m s u bstanti, Ll, 11111t·111t;, e por um ,·L·rbo,
111 11t;1110111' 11ci11 (-l-!9 b -!). Mugnier tradu z: ",1 m emória e .i lem brança", e, um pouco adiante,: "fa zer
,1to de memória "; Sorabj i: " 111c111or_11 1111d n-111c111/1cri11g ··. O substantin1 t1 11,111111t· ~i~ també·m SL"r,í acom-
panh ado por um , ·e rbu, 1rn1111Ji11111 c~ke~tli 1li. M ugniL·r: "remi n iscenci,1" e " lembrança pu r re mi n is-
cenc iil"; Sorilbji : " n •( 11/lcct1011 . rccollcdi11:,(.
15 l\lug n iL•r: "A memúri,1 SL' ,1plic,1 c10 pc1ss,1do"; So r,1 bj i: " M c111or_11 i., ,,ftl, ,· p11st "; o grego d iz: /()li :,:c11,i-
111c11011 (o que acon teCL'U, o qu e ild \'eio ).

16 Sorab ji: "s11ys i11 liis s ,111 r.

17 Vlug n il'r: " Tmfa lemb r<1nç<1 é acom pan had ,1 pL'i,1 noç.iLl do tL'lllp()"; Snr,1b1i: "A I/ 111c111on1 i11 ,•11h·c~
t i 111c".
18 " Es tar no tL'mpo é ser nwdi do pelo tempo e m si L' l'm s ua l'X is tenci,1. 1. .. 1 E, par,1 o mo, irn cnto, o
fato de est,1r no tl'm~10 é o fato de ser rnl'd ido em su a L'XisWnci,1 " (221 ,1 :i-7).
19 " F.s ~a dl'IL'r m inação s u pôL' que se C()nsiderem L's tes te rmllS [,in ter ior, p(1steril1r] disti n tos um do o u-
tro, com um intcn·a lo difere nte d eles. ÜL' fato, quand o d isti ng uimos, pel,1 inte ligência (II O<;s,1111c 11 )
as extremidades l' n meio, e a a lm,1 decl ,na (cip,;i) que h,í do is in s tantes, de um 1.ado, o ante rillr, dt•
o u tro, o posterio r, L' nli'io di zemos (p'111111,·11 ) que h,í aí um tempL1" (219 a 25 e St'g.) .
20 É prL'c iso e ntão diZL'r que "a s coi sils que s,io objetos de memória s,ill todas ,1qucl<1s que dependem
da imaginação, e que ,1s que não existem ~em L'ssa f,1eu Idade Ll s.io ,icidcnta l mentt> " ( " i1 ·/1c r cils
/1. tvl FM(lRI A, A HI STÚ RI A, O FSQL; FC I M EN TO

tre as duas problem áticas dá uma nova força à velha aporia do modo de presença do
ausente: "Poderíamos indagar como (wc 111igl1t bc p11zzled l,ow), quando a afecção está
prese nte, mas a coisa está ausente, nós nos lembramos daquilo que n ão está presente"
(450 a 26-27, tradução modificada).
A essa aporia, Aristóteles responde com aquilo que Ihe parece e vidente (dN011), isto
é, que a afecção produ zida graças à sensação "na alma e na parte que a conduz" 2 1 seja
conside rada uma espécie de pintura (zôgrnpliema), "da qual di zemos que é a m emó-
ria" (ibid.). Eis aqui restabelecida, sob um novo vocábulo, que vai nos interessar mai s
adiante, a problemática bem conhecida da cikô11 e, com ela, a da impressão (t11pos),
ligada por sua vez à metáfora do carimbo e do sinete. Todavia, diferentemente do
Tectcto, que situava a impressão "nas almas" - com o risco de tratá-las como entida-
des impregnáveis - , Aristóteles associa o corpo à a lma e elabora, sobre essa dupla
base, urna rápida tipologia dos e feitos va riados de impressões (451 b 1-11). Mas nosso
autor não esgotou essa metáfora. Surge uma nova aporia: se o caso é esse, pergunta,
de que nos lembramos então? Da afecção ou da coisa de que ela procede? Se é d a
afecção, não é de uma coisa ausente que nos lembramos; se é da coisa, como, mesmo
percebe ndo a impressão, poderíamos lembrar-nos da coisa au sente que não esta-
mos perceb endo? Em outras p a lav ras : como pode mos, ao pe rceber uma image m,
le mbra r-nos de a lgumc1 coi sa distinta dela?
A solução a essa aporia reside na introdução da categoria de a lte ridade, herdada
da dia lé tica platôni ca. A associação da noção de desenho, de inscrição, à noção d e
impressão, diríamos hoje (graplte 22) , aponta p a ra a solução. De fato, cabe à noção de
inscrição comportar referência ao outro; o outro que não a afecção enquanto tal. A
ausência, como o outro da presença ! Tomemos um exemplo, di z Aristóteles: a fig ura
pintada de um animal. Pode-se fa zer uma dupla le itura desse quadro : considerá-lo
quer em si mesmo, como simples d esenho pintado num s uporte, quer como uma cik611
("uma cópia", di zem nossos dois tradutores). É p ossível, porque a inscrição consiste
nas du as coisas ao mesmo tempo: é ela mesma e a representação d e o utra coisa (n/1011
plt1111t11s111t1); aqui, o vocabulário d e Aristóteles é preciso: ele reserva o termo ph1111tas11111
à insc rição enquanto ela mesma, e o termo cikôn para a referência a outra coisa que
n ão a i nscri çã<>21.
A solução é héÍ bil, mas comporta s uas próprias dificuldades: a metáfora d a im-
pressão, de que a da inscrição pre te nde ser uma Vélfiante, recorre ao "movime nto"

tlri11gs t/111/ ari' 110/ gmspcd w illro11 / i11111gi1111tie111 are rc1 11c111/1crt'd i 11 v i r t11 c of 1111 11ccidt'11tal 11ssoci11tie111",
450 a 22-25).
21 O que? A ai mil o u a Sl'nsaçào? Mug nie r : "q ue poss ui a sen sação"; Sorabji: "whicl, co11t11i11s l he so11/"
(450 a 25).
22 /\ ex pressão zc1g mplll;11111, introdu z id a u m pouco ac i m c1, conté m o rndi ca l gmph<'.
23 A L'SSe vocabul ,í rio l' p rec iso c1crescenta r o termo 111111•111011c1111111, que Sora bji t rndu z p o r rc111 i11der,
espécie de lembrn nçil ni dl'-mémoi re (rcsu mo) que a bordil re mos n n pilrtc fc nome nológicil deste es-
tudo (451-452). Pi.Hé1 o termo 11111L'/11011c11111a, Mug nie r tem il s imples pal<1vrn " lem brnnçn", no sentido
d <1 quilo que fo z p en sar em outra coisil.
U :\ Mf~1lll, I \ I' 1) -\ RI \11:--.:1 s ci'VI-\

(ki11ésis), do qual resulta a impressão; esse mov imento remete, por s ua \'ez, a uma
causa exterior (algué m/ alguma coisa cunhou é1 impressão), a o passo que a dupl a lei-
tura da pintura, da inscrição, implica um desdobramento interno à imagem mental,
diríamos hoje um a intencionalidade dupl a . Parece-me que essa nova dificukfade re -
sulta da concorrência entre os dois modelos, d a i mpress,'ío e da inscrição. O Tcctcto
ha\'ia preparado sua confrontação ao tratar a própria impressão como uma marca
significante, uma si·111eio11; então, era n a própria SL' llll' Ío11 que \·inham fundir-se a cau-
salidade externa do cunho (ki1u•sis) e a signifióncia interna da marca (St'111ci011). A
secreta discordância entre os dois mod e los ress u rge no texto de Aristóteles quando
confrontamos a prod ução da afecção e a s ignificação icónica que nossos dois tradu-
tores interpretam como cópia, portanto, como semelhança. Essa conjunção entre esti-
mulação (externa) e semelhança (interna) continuará sendo, para nós, o ponto crucial
de toda a problemática da memória.
O contraste ent re os dois ca pítulos do tratado de Aristóteles - e a11,11111u•- 11111 ('1/ll'

sis - é mais e\'id e nte do que o fato d e p ertencere m a uir1 a só e mesma problemM ica.
A distinção entre /IIIIL'llll! e n1u111111L'SÍ::- é1póic1-se e m dua s características: de um lado,
a simples lembrança sobrevém à m aneira de uma afecção, e nquanto a recordação2"
consiste numa bu sca ativa. Por outro lado, a simples lembrança está sob o impé rio
do agente da impressão, enqu a nto os mo\'ime ntos e toda a seqü ê nci a de mudan-
ças que vamos reléltar têm seu princípio em nós. Mas o elo entre os dois capítulos
6 assegurado pelo papel desempenha do pela distância temporal: o ato de se lcm-
brctr (1111u•111onc11ci11) produ z-se quand o tra nscorre u um tempo (pri n khro11istl1t•1111i )
(-151 a 30). E é esse intervalo de tempo, entre a impressão original e seu retorno, que
a recordação percorre. Nesse sentido, o tl•mpo continua sendo él aposté1 comum à
memóri a-paixão e~ recordação-ação. É ,-crdade que essa aposta perdeu-se um pouco
de \'ista no detal h e da aná lise dél record ação. A ra z ão disso é que a ê nfa se recai dora-
\·a nte no "como?", no método da recordação eficaz.
Num sentido gera l, "os atos de recordação se produ zem q ua ndo uma muda nça
(kint' Si~) sobrevém ctpós outra" (451 b 10)~'. Ora, essa sucessão pode ocorrer conform e
a necessidade ou conforrne o h ábito; assim, é prese rvada certa margem de variação, de
que \'Oltare mos a falctr mais adiante; dito isso, a prioridade concedida ao lado metódi-
co da busca (termo caro a todos os socráticos ) explica a insistência n a escol ha de um
ponto d e partida para o percurso da recordação. Assim, a iniciativa da busca está na
dependência de um "poder buscar" que é nosso. O ponto de partida fica em poder do
explorado r do passado, mesmo que o e ncad eamento que se seg ue dependa da neces-

2-l- \ -1ug n it' r consl'n·,1 "rL'tn i 11 iSCl'nci,i''; Sora bji prPpC1c " rccollcctit> 11 "; q ua ntll a mim, di go "n•cord ,1 -
çi'10" ou "remc m oraç,10", na perspecti,·,1 d n esboçll fe nomcnnl1íg ico q ue ~l'gut· as duas "e x p i icaçües
d e texh1s " de l'l ,1t iio e de Aris tótl'IL•s. ,A. di s t inç,1n q ue Ar istóll'les foz e ntre 1111n'11 n' L' a11,1 11111l',i., pc1-
recc-nw a ntec ipnr ,1 que é propost,1 por uma fenornL'nologia d a nll'múri ,1, l'ntrt' l'\·oc.iç,i n simples
e bu sca ou esforço de record.ição.
25 Mug nier: 'As remin isct:,ncias se produ zl'm quand o esse 111 m ·imc1ü(1 \'L'm naturalme nte ap ós
;iquclc mo,· imt'nto "; Sl1rc1bji: "!\e i s c,f rcúitlcct 11111 /111pp <'l1 /1cc111 h ,' 011c d1 a11:,:c i~ cif 11 110111rc to o.-.-11 r ,zftcr
1111ot/1cr" (451 b 10).
A MEM()RIA, A HIST()RI A, O ESQUFCl\1ENH)

sidade ou do hábito. Além disso, durante o trajeto, diversos caminhos permanecem


abertos a partir do mesmo ponto inicial. A metáfora da caminhada é então induzida
pela da mudança. Eis por que a busca pode se perder em falsas pi stas e a sorte pode
conservar o seu papel. Mas a questão do tempo permanece à vista no decorrer des-
ses exercícios de memória metódica: "O ponto mais importante é conhecer o tempo"
(452 b 7). Esse conhecimento diz respeito à medida dos intervalos percorridos, medi-
da precisa ou indeterminada; nos dois casos, a estimativa do mais e do menos é parte
integrante desse conhecimento. Ora, essa estimativa depende do poder de distinguir
e comparar grandezas, quer se trate de distâncias ou de dimensões maiores ou me-
nores. Essa estimativa chega até a incluir a noção de proporção. Essa afirmação de
Aristóteles confirma a tese segundo a qual a noção de distância temporal é inerente à
essência da memória e assegura a distinção de princípio entre memória e imaginação.
Ademais, o papel desempenhado pela estimativa dos lapsos de tempo enfatiza o lado
racional da recordação: a "busca" constitui "uma espécie de raciocínio (sullogis111os)"
(453 a 13-14). O que não impede que o corpo esteja implicado no lado de afecção que a
caça à imagem (pha11tas111n) também apresenta (453 a 16).
Assim, ao contrário de uma leitura redutora, engendra-se uma pluralidade de tra-
dições de interpretação. Em primeiro lugar, a da ars me111oriac, que consiste, como dire-
mos no capítulo 2, numa forma de exercício da memória, em que a operação de memo-
rização prevalece sobre a rememoração de acontecimentos singulares do passado. Em
segundo lugar, vem o associacionismo dos Modernos, o qual, como sublinha o comen-
tário de Sorabji, encontra bases sólidas no texto d e Aristóteles. Mas o texto dá margem
a uma terceira concepção, que coloca sua ênfase no dinamismo, na invenção dos enca-
deamentos, como o fará Bergson em sua análise do "esforço de rememoração".
Ao término da leitura e da interpretação do De memoria et rc111i11iscenti11 de Aristóte-
les, é permitido tentar apreciar a contribuição desse tratado para uma fenomenologia
da memória.
A contribuição m aior consiste na distinção entre 11111ê111ê e ana11111L·sis. Nós a encon-
traremos mais adiante com outro vocabulário, o da evocação simples e do esforço de
recordação. Ao traçar, então, uma linha entre a simples presença da lembrança e o
ato de recordação, Aristóteles preservou para sempre um espaço d e discussão digno
da aporia fundame ntal trazida à luz pelo Teeteto, a da presença do au sente. O ba-
lanço de sua contribuição para esta discussão apresenta contrastes. De um lado, ele
aguçou a ponta do e nigma ao faz er da referência ao tempo a nota distintiva da lem-
brança no campo da imaginação. Com a lembrança, o ausente traz a marca temporal
do a nterior. Em contrapartida, ao assumir, por sua vez, como quadro de discussão
a ca tegoria da eikôn, ligada à da tupos, ele se arrisca a manter a aporia num impasse.
O impasse é m esmo duplo. De uma parte, durante toda a nossa investigação, uma
questão delicada será a de saber se, entre a imagem-lembrança e a impressão origi -
nal, a relação é d e semelhança, até mesmo de cópia. Platão abordara a dificuld ade ao
tomar como alvo o e ngano inerente a esse gê nero d e relação, e havia te ntado, em O
Sofista, distinguir duas artes miméticas, a arte fantasmática, enganadora por natu-
DA Ml:\'l t°)R i_.\ 1· LJ.\ Rl \ 11'\J ISCi: i\. C I.\

reza, e a arte eicástica, suscetível d e ve racidade. Ari stóteles parece ig norar os ri scos
de erro ou de ilusão ligados a um a concepção da cikii11 centrada na semelhança. Ao
manter-se afastado das desgraças da imaginação e da memó ria, ele quis, tal \'eZ,
pôr esses fenôm enos a salvo das q u erelas fomentadas pela sofística, à qual resen ·a
sua ré plica e seus ataques no âmbito da Mct1~físicn, principalme nte por ocasi ão do
proble ma da identidade consigo m esma da 011 s í11. M as, por não te r levado em conta
os graus de confiabilidade da memória, ele e xc luiu da discu ssão a noção d e sem e-
lhança icôn ica. Outro impasse : ao con s id e rar inconteste o e lo entre cikô11 e t11pos, e le
acrescenta as dific ul da d es próprias da noção d e impressão às d a imagem-cópi a. De
fato, o que é feito d a re lação entre a ca usa exterior - o "mm·imento" - que gera a
impressão e a afecção inicial visada por sua lembrança e dentro d e la? É verdade que
Aristóteles imprimiu um grande én-a nço à disc ussão ao introdu z ir a catego ria de
alteridade no próprio cerne da re lação entre a cikii11, reinterpretada como ins crição, e
a afecção inicial. Com isso, ele começou a fazer oscilar o conceito, por outro lado n ão
contestado, de semelhança, Mas os p aradoxos dél impressão não deixarão de ress ur-
gir mais tarde, p r inc ipa lmente com a questão d as ca usas materia is da perse\'erança
d a lembrança, anterior à s ua record ação,
Quanto à n11n1111u·sis, Aristóteles deu, sob esse vocá bulo, a primeira descrição ar-
razoada d o fenómeno mnemônico da recordação, o qual enfrenta a simples evocação
de uma le mbrança qu e vem ao espírito, A riqueza e a sutileza de sua d e scrição colo-
cam-no em primeiro lugélf na diversidade das escolas de pensa mento em busca de
um mod elo de interpre tação para os modos de encadeamento d e pendentes d a "ne-
cessidade" ou do " h ábito". O associacionismo dos empiristéls ing leses é apenas uma
dessas escolas.
Mas o que ainda causa espanto é o fato de Aristóteles ter conservado, pa ra d es-
crever a recordação ta l como e la fun c io na nas condições ordinárias da v ida, uma das
palanas-chave da fil osofi a de Platão, desde o M('JI0 /1 e ao longo d os o u tros gra ndes
di á logos, aq uela mesma de 111rn11111i•sis. Como e xplicar essa fidelidade às palanas? Re-
, ·erência d ev ida ao mestre? Invocação d e uma autoridade própria para cobrir um a
análise que, no entanto, naturaliza a gra ndiosa visão de um saber esq uec ido no na sc i-
mento e recordado pelo est udo? Pior: tra iç,io di sfarçada de fidelidade? Podemos per-
d er-nos cm conjetu ras. Mas ne nhuma das que acab a mos de C\'lKM sa i do p la no d,1
psicologia do autor. Ora, cada um a extra i s u a plau sibilidade de uma ligaç.io tem é1tiCc1
presumida, que subsistiria e ntre a 11111111111t·sis dL' Pla tiio e c1 de Aristóteles. A ligação
temát ica é dupl,1: primeiramente, no plano a poré ti co, é ,1 hcrnnça d a cíhi11 e da t11po.~,
\·indas do Tcctcto e do Sofisto. Pla tão considerav,1 q u e cssc1s cate gor iéls podiam délr
co nt,1 dél possibi lid ade dt1 sofístic;1 e d ,1 p ró pria cxistbicia d o sofista, portanto, cm
p osiç.io de contraponto rdativamcnte à teor ic1 d é1 reminiscência que som en te con si-
dcrti\·a a memúriél bem sucedida do jm·em escr,wo do Mc11011; com A ri stótelPs, cikii11 e
t11pos são as únicas c cltcgoria s dis p onh·cis p,1rn explica r o fun cion,rnwnto d él m emória
cotid ia n a; elas jü n3.o d esig n ,11n apc n,1s um ,1 apor ia, m as ,1 dire ção n ,1 q uc1I estíl dt:.•,,eria
ser resol\'ida. Mas entre Platão e Aristóteles pe rmanece um \'Íncu lo m ais forte do que
A MUv1() RIA, A I II ST()RI A , O FSQUECIMLNTO

o d a aporia em vias de resolução. Esse vínculo é o da fidelid ad e socrática no emprego


d e dois termos emblemáticos: "aprender" e "procurar". Primeiro, é preciso ter "apren-
r
dido", depois, penosamente "procurar". Por causa de Sócrates, Aristóteles não pôde,
nem quis "esquecer" a a11a11111esis de Platão.

II. Esboço fenomenológico da memória

Que me seja permitido iniciar o esboço a seguir po r du as observações.


A primeira visa a alertar contra a tendência de muitos autores em abordar a me-
mória a partir de s uas deficiências, até mesmo de suas disfunções, tendência cujo
lugar de legitimidade designaremos mais adiante 2' ' . A meu ver, importa abordar a
d escrição dos fenômenos mnemônicos do ponto de vista das capacidades das quais
eles constituem a efetuação "bcm-sucedida"27. Para tanto, apresentarei, da maneira
menos erudita possível, os fcnômenos que, no discurso comum, o discurso da vida
cotidiana, são atribuídos à memória. Em última análise, o que justifica essa prefe-
rência pela memória "certa" é a convicção de não termos outro recurso a respeito d a
referência ao passado, senão a própria memória, convicção que a continuação d este
estudo se empenhará em s ustentar. Uma ambição, uma pretensão está vinculada à
memória : a de ser fiel ao passado; desse ponto de v ista, as d eficiências procedentes do
esquecimento, e que evocaremos longamente no momento oportuno, não devem ser
tratadas de imediato como forma s patológicas, como disfunções, mas como o avesso
de sombra da região iluminada da memória, que nos liga ao que se passou antes que
o tra nsformássemos em memória. Se podemos acusar a memória de se mostrar pouco
confiável, é precisamente porque ela é o nosso único recurso para significar o cará-
ter passado daquilo d e que declara mos nos lembrar. Ninguém pensaria em dirig ir
semel hante censura à imag inação, na medida em que esta tem como paradigma o
irreal, o fictício, o possível e outros traços qu e podemos chamar de n ão posicionais.
A ambição veritativa da memória tem títulos que merecem ser reconhecidos antes de
considerarmos as d eficiências patológicas e as fraquezas não patológicas da memória,
a lg umas das quais serão evocadas a partir da próx ima seção do presente estudo, antes
mesmo de lidarmos com as d as deficiências que situa remos no próximo estudo, na
rubrica dos abusos da memória. Para falar sem rodeios, não temos nada melhor que a
memória para significa r que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarásse-
mos nos lembrar dela. Os falsos testemunhos, dos quais falaremos na segunda parte,
só podem ser des mascarados por uma instância crítica cujo único recurso é opor aos

26 C f. terceira parte, ca p. }.
27 Neste sentid o, meu empreend ime nto si tuil-SL' n;i m esma linha q ue minha ex plnr;içiio d;is Cil pil-
CiLfodes ou poderes b,ísicos - poder folar, agir, nilrrilr, mante r-se f'l'spo ns.-ível p o r St' u s ,itos - ,
poderes q ue s ituo na ru b rica do homem ca paz L'm Soi - 11H11111' co11 1111e 1111 t111trc, Pari s, Éditi o ns du
Seuil, col. 'Tordre ph ilosophiqm•", ·t 990; reediçiio, col. 'Toints Ess,1 is", ·19%.
D i\ \ 11' \ f ()l, 1·\ 1 I J.\ RI \ 11 :-S ISCÍ-' '.:C I ·\

tes tem unhos tachados de suspeitos outros testemunhos reputados mais confi,1,·e is.
Ora, como será então d emonstrado, o testemunho constitui él estrutura fundamental
d e transição entre a nwmória e a hi stória.
Segunda obsen·açéio. Em oposição à polissemia, que, à primeira vista, parece
aprop riada para desencorajar qualquer tentati\·a, mesmo modesta, de ordenação do
campo semântico designado pelo tern10 memória, é possíH~I c::; /1oç11r uma fenomeno-
logia fragmentada, mas não radicalmente dispersa, cujo último fio condutor contin ua
sendo a relação com o tempo. Mas esse fio só poderei ser seguro com mão firme se con-
seg uirmos mostrar que a relação com o tempo dos modos mnemónicos múltiplos, que
a descrição encontr,1, é, e la própria, suscetí,·e l de uma tipo logia relativamente ordena-
d a, que não seja esgotada, por exemplo, pelo caso da lembrança d e um acontecimento
único ocorrido no passado. Es tc1 segunda c1posta de nosso empreendimento põe em
jogo a coerência mínima da asserção que tomamos cmprestélda de Aristóteles desde o
início deste estudo, segundo a quc1I a memória "é cio passado". Mas ser do passado se
di z de múltiplas mane iras (conforme o famoso dito da !v1ct1~fí:',ic11 de Aristóteles: "o ser
se diz de múltiplas maneiras").
A primeira expresséio do caráter fragmentado dessél fenomenologia de\'e-sc ao
próprio caráter objetal da m emória: le mbramo-nos de alg uma coisa. Neste sentido,
seria preciso distinguir, na linguagem, a memória como , ·isada e a le mbra nça como
coisa \'isada. Dizemos a memória e as lembranças. Fala ndo ele maneirn radical, es ta-
mos tratando aqui de uma fenomenologia dc1 lembrança. O g rego e o latim usam, pa ra
isso, formas do particípio (<;;c110111c11011, pmctcrit11). É neste sentido que folo das "coisas"
passadas. Uma \'CZ que, na memc'iria-lembrança, o passado é distinto do presente, fica
fo cultado à reflexão distinguir, no seio do ato de memória, a questão do "o que? " da do
"como?" e da do "quem?", de acordo com o ritmo de nossos três capítulos fenomeno-
lógicos. Em terminologia hu sserli ana, e ssa distinção se d ,í e ntre a noese, que é a reme-
m oração e o noema, que é a lembrança .
Um primeiro traço ca rac teriza o regime ela lembrança : a multiplic idade e os g raus
\·ariá\'eis de dis tinção das lembranças. A memória est,~ no si ng ular, como capacidade
e como efe tuação, as lembranças estão no plural : temos 1111111::; lembranças (já houn>
quem dissesse maldosame nte que os velhos têm mais le mbra nças do que os joH'ns,
ma s menos memória! ). E\'ocaremos, m,1is adiante, a brilhante descrição que Santo
Agos tinho foz da s lcmbrançc1s que se " precipitam" no limiar da memória; elas se
apresentam isol;1daff1cntc, ou em cac hos, de acordo com relações n m1plexas atine ntes
aos temas ou às circuns tâ nc ias, ou em seqüêncic1s mais o u me nos fovo r,í,·eis à com-
posição de uma narrnti\·a. Sob esse aspecto, ,1s lembranç,1s podem ser tratadas como
fo rmas di scretas com margen s m,1is ou menos preci sa s, que Sl' cl estaG1m con t ra ,1qui lu
que poderíamos ch a mar d e um fundo memorial, com o quzil pl1dl'mos nos cll'll'itar l' l11
est,1dos ele de\·a1wio , ·,1go.
M,1 s o traço mai s import.rnll' l' o seg uinte: ck diz n.'s~w itu ,10 pri\'ilég io C()ncedidn
espontanea men te aos acontl'c imcntns, d L•ntrl' tod as <1 s "cois,1s" de que nos kmbr,1mos.
Na an,ílise que, m,lis di ,rntc, tomc1rcmos em~1restada zi Be rgson, .i "cnis,1" 1L,mbr,1d,1 l'
/1. MEM()l{I/\, /1 HISTÚRIA, O ESQL:FCIMf-'NTO

simplesmente identificada a um acontecimento singular, que não se repete, como, por


exemplo, dada leitura do texto memorizado. É sempre esse o caso? Por certo, como
diremos para terminar, a lembrança-acontecimento tem algo de paradigmático, na
medida em que é o equivalente fenomenal do acontecimento físico. O acontecimento
é aquilo que simplesmente ocorre. Ele tem lugar. Passa e se passa. Advém, sobrevém.
É ele a aposta da terceira a11tino111ia cos111olô;,:irn da dialética kantiana: ou resulta de algo
anterior conforme a causalidade necessária ou procede da liberdade, conforme a cau-
salidade espontânea. No plano fenomenológico, no qual nos situamos aqui, dizemos
que nos lembramos daquilo que fi zemos, experimentamos ou aprendemos em deter-
minada circunstância particular. Mas abre-se um leque de casos típicos entre os dois
extremos das singularidades dos acontecimentos e das generalidades, as quais pode-
mos denominar "estados de coisas". São também próximas do acontecimento único
as aparições discretas (dado pôr-do-sol numa tarde especial de verão), os semblantes
singulares de nossos parentes e amigos, as palavras ouvidas segundo seu modo de
enunciação a cada vez nova, os encontros ma is ou menos memoráveis (que dividire-
mos mais adiante de acordo com outros critérios de variação). Ora, coisas e pessoas
não aparecem somente, elas reaparecem como sendo as mesmas; e é de acordo com
essa mesmidade de reaparecimento que nos lembramos delas. É da mesma forma
que nos lembramos dos nomes, endereços e números de telefone de nossos parentes
e amigos. Os encontros memoráveis prestam-se a ser rememorados, menos de acor-
do com sua singularidade não repetível do que conforme sua semelhança típica, até
mesmo conforme seu caráter emblemático: urna imagem composta dos despertares
matinais na casa de Combray assombra as primeiras páginas da Busca .. . proustiana.
A seguir, vem o caso das "coisas" aprendidas e, conseqüentemente, adquiridas. As-
sim, dizemos que ainda nos lembramos do quadro das declinações e das conjugações
gregas e latinas, dos verbos irregulares ingleses ou alemães. Não tê-lo esquecido é ser
capaz de recitá-lo sem ter de reaprendê-lo. É assim gue esses exemplos se agrupam
no outro pólo, o dos "estados de coisas" que, na tradição platónica e na neoplatónica
à qual Santo Agostinho também pertence, constituem os exemplos paradigmáticos
da Reminiscência. O texto canónico dessa tradição continua sendo o Mcnon de Platão
e o famoso episódio da re-descoberta, pelo jovem escravo, de algumas propriedades
geométricas notáveis. Neste nível, lembrar-se e saber coincidem inteiramente. Mas
os estados de coisas não consistem somente em generalidades abstratas, em noções;
submetidos ao crivo da crítica, como diremos mais adiante, os acontecimentos de que
trata a história documentária assumem a forma proposicional que lhes confere o es-
tatuto de fato. Trata-se então do "fato de que ... " as coisas tenham se passado assim
e não de outra maneira. Esses fatos podem ser chamados de adquiridos, até mesmo,
segundo o desejo de Tucídides, elevados à posição de "posse vitalícia". Assim, os pró-
prios acontecimentos tenderão, sob o regime do conhecimento histórico, a alcançar os
"estados de coisas".
S . . .J d J " . .J . " •
~ en d o essa a d 1vers1ua e uas coisas passauas, por que traços essas coisas -
li li

esses practcrita - se fazem reconhecer como sendo "do passado"? Uma nova série de
I M MD1(lRL\ F !).\ RI \ ll ~ I SCÍNC I ;\

modos de dispersão ca racteriza aquele "sendo do passado" comum de nossas lem-


branças. Para guiar nosso percu rso do campo polissêm ico da lembrança, proponho
uma série de pares oposiciona is cuja ordenação constituiria a lgo como urna tipologia
ordenad a. Esta obedece a um princípio de ordem suscetÍ\'Cl de uma justificação dis-
tinta d e sua utilização, como é o caso dos idcal-typcs de Max Weber. Se procuro termos
de comparação, penso primeiro na analogia segundo Aris tóteles, a meio caminho en-
tre a simples homonírnia, remetida à dispe rsão do sentido, e a polissemia, estruturada
por um núcleo sêrn ico qu e seria identificado por urna verd adeira redução sem iótica.
Penso também na "semelha nça d e fam ília" reivindicada por Wittgenstein . A razão da
rela tiva indeterminação do esta tuto epistemológico d a cla ssificação proposta aparece
na imbricação entre a ex pe riência pré-verba l - que cha mo de ex periência viva, que
tradu z o Erlclmis da fe nomenologia husserliana - e o trabalho de linguagem que
põe inelutavelmentc a fenome nolog ia no ca minho da interpretação e, portanto, da
hermenê utica. Ora, os conceitos "de trabalho" que armam a interpretação e regem a
orga nização dos conceitos "te má ticos" que vão ser propostos aq ui escapam ao d omí-
nio do sentido ao qual corresponderia um a refl exão tota l. Os fenómenos d e memória,
tão próximos do que somos, opõem, mais que outros, a m a is obstinada resis tência à
/111/Jri::. da reflexão tota1 2s .

O primeiro par de oposições é constituído pela dupla hábito e 111<!111ô ri11 . É ilustra-
do, em nossa cultura filosófica contemporânea, pela famosa distinção proposta por
Bergson e ntre a memória-hábito e a memória-lembrança. Deixaremos provisoriamen-
te de lado as razões por que Bergson apresenta essa oposição como uma dicotomia.
Preferiremos seguir os con selhos da experiência menos carregada de pressuposições
metafísicas pa ra a qua l hábito e memória constituem os dois pólos de urna série contí-
nua d e fenômenos rnnemôn icos. O que faz a unidade desse esp ectro é a comunidade
da relação com o tempo. Nos dois casos extremos, pressupôe-se uma experiência an-
teriormente adq uirida; mas num caso, o do h ábito, essa aqu isição está incorporada à
,· i\'ência presente, n ão marcada, não dec larada como passad o; no outro caso, faz-se re-
fe rência à anterioridade, como tal, da aq u isição a ntiga . Nos dois casos, por conseg u in-
te, continua sendo verdade que a memór ia "é do passado", m as conforme dois modos,
um não marcado, outro sim, da referência ao lugar no tempo da ex pe riência inicial.
Se coloco o par hábito / memória no início de nosso esboço fenomenológ ico, é por-
que ele cons titui a primeira o portunidade de aplicar ao problema da memória aquilo
que chamei, desde a introdução, de conquista da dist,1ncia tempora l, conqui sta situa-
d a sob o critério que podemos qua lifica r de gradiente de dista nciamento. A operação
descritiva con siste então em classifica r as experiê ncias relati\·as à profundidade tern-
p oré1l, desde aquela s e m que, de alg um nwdo, o passado ade re ao presente, até aquelas
cm que o passado é reconhecido e m s ua preteridadc pa ssada. En)quemos, após tantas

28 Estou .i ntecip,1ndu ,iqui ctinsidl'rnçiks qup l'IKontram seu lug,1r 11,1 IL'rcl'ir,1 p,utl' dl's tl' trab,1lh n,
nc1 tra n s iç,io crític,1 cntrl' a L'pist<.·m(1lt>g i,1 dll cllnhl'ciml'nto hi~tt'iricn l' ,1 lwrnwnL'Utic,1 dl' nt1~s,1
condi s;,io histt'iri c.1.
1\ MF\t()Rli\, ,\ HI S IÚRIA, O FS() U l :CIMt: N H)

outras, as famosas páginas que Matéria e Mc111ôri11 2'' dedica, no capitulo 2, à distinção
entre "as duas formas da memória". Como Santo Agostinho e os retóricos antigos,
Bergson se coloca na situação de recitação de uma lição decorada. Então, a memória-
hábito é a que usamos quando recitamos a lição sem evocar, uma a uma, as leituras su-
cessivas do período de aprendizagem. Nesse caso, a lição aprendida "faz parte de meu
presente do mesmo modo que meu hábito de andar ou escrever; ela é vivida, é "agida",
mais do que é representada" (Bergson, Matic"rc ct Mémoirc, p. 227). Em compensação, a
lembrança de certa lição particular, d e certa fase de memorização não apresenta "11c-
11/J11111 dos caracte res do hábito" (op. cit., p. 226): "É como um acontecimento d e minha

vida; sua essência é trazer uma data, e não poder, por conseguinte, repetir-se" (ibid.).
"A própria imagem, considerada cm si, era necessariamente, no início, aquilo que será
sempre" (i/1id.). E ainda : "A lembrança espontânea é, de imediato, perfeita; o tempo
não poderá acrescentar coisa alguma à sua imagem sem deturpá-la; ela conservará,
para a memória, seu lugar e sua data" (op. cit., p. 229). Em suma: "A lembrança de
uma determinada leitura é urna representação, e somente uma representação" (op.
cit., p. 226); ao passo que a lição aprendida é, corno acabamos de dizer, "agida" mais
do que representada, é privilégio da lembrança-representação p e rmitir-nos voltar a
subir "a encosta de nossa vida passada para nela buscar uma determinada imagem"
(op. cit., p. 227). À memória que repete, opõe-se a memória que imagina: "Para evo-
car o passado e m forma de imagens, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é
preciso atribuir valor ao inútil, é preciso querer sonhar. Talvez o homem seja o único
ser capaz de um esforço desse tipo" (op. cit., p. 228).
Esse texto é de uma enorme riqueza. Em sua sobriedade cristalina, expõe o pro-
blema mais amplo da relação entre ação e representação, da qual o exercício de me-
morização é apenas um aspecto, como mostraremos no próximo capítulo. Da mesma
forma, Bergson enfatiza o parentesco entre a lição decorad a e "meu h ábito de anda r
ou de escrever". O que assim é valorizado é o conjunto a que pertence a recitação,
o das habilidades, que tê m, todas, a ca racterística comum d e estar disponíveis, sem
exigir o esforço de uprender novamente, de reaprender; assim sendo, todas es tão aptas
a ser mobilizadas e m múltiplas oportunidades, abertas por sua vez a certa variabili-
dade. Ora, é a essas habilidades que, no amplo leque dos usos da palavra "memória",
aplicamos uma das ace pções admitidas d essa palavra. O fenomenólogo poderá assim
distinguir "le mbrar-se como ... " de "lembra r-se que .. ." (expressão essa que irá pres-
tar-se a outras distinçôes ulteriores). Esse vasto império abrange habilidades de n íve is
muito dife rentes. Primeiramente, encontramos as capacidades corporais e todas as
modalidades do "cu posso", que pe rcorro em minha própria fenome nologia do "ho-
mem capaz": pode r fa lar, poder intervir no curso da s coisas, pode r nar ra r, p oder d ei-

29 Cf. Henri Bergson, M11/1l"rc e/ M1; 111oirc. E~soi ;;11r la rc/11tio11 d11 co1ps ti /'c;;prit ( IH96), in CEu,•rc~, in-
trodu ~·Jo de H. Cnuhit•r, textos anota dos por A. lúibinet, ediç<'i o do ccntl'n ,ír-i o, l'aris, l'UF, 1961,
pp. 225-235. Um estudo sisll'm.ítico das rL'l ,1c/ Jes entre psicolog i,1 L' ml'lafísi ca nes ll' tr,1b,ilho será
pror10s to na tl'rccit-.1 p,irk, no úmbito de u1ll<1 investiga çJo d c dic,1LL1 ao csqut•cinwnto (d . ,1di,rntt.•
pp. 445-447 ).
1),\ r-- lF\l (lR I \ 1 ll.\ RI \ 11 '.\ ISC Í' ,t.1 ·\

xar é1tribuir-se uma açJo reconhecendo ser seu verdé1deiro autor. Cabe acrescentar os
costumes soc iai s, os costumes moré1is, todos os ha/Jit11~ dé1 , ·id,1 em comu m, uma parte
d os quais é prc1ticada nos rituais soc ic1is ligados aos fenómenos de comemoração, que,
mc1is adiante, oporemos aos fenómenos de rememoração, atribuídos unic.:1mente à
memória privada. Dessa forma, di,·ersas polaridades coinc ld e m . Encont raremos ou-
tras igualmente significativas no timbito da presente consideração, nas quais a ênfase
reca i na é1plicação do critério de distanciamento temporal.
O fato de se trntar, no plé1no fenomeno lógico, de uma polaridade, e não de u ma
d icotom ié1, é atestado pelo pé1pel emi nen te desempenhé1do por fenómenos s it uados
entre os dois pólos que Bergson opôe, de acordo com o espíri to de seu método h,1bi-
tué1l de divisão.

A segunda dupl é1 de opostos é constituída pelo par Ct'Oc11ç,10/ l1i1~rn .


Entendamos por cnxaçJo o é1pé1recimcn tu atual de um ,1 lembrança. É a esta que
Aristó teles destina,·a o te rmo 111/H' lllc' , designando por a1u11111JL' ~i~ o que chamaremos,
mais adiante, de busG1 o u recordação. E ele caracteri za,·é1 a 11111t'IIIL; como pnt/Jo~, como
,:Üecção: ocorre que nos lembramos di sto ou dé1quilo, nesta ou naque lé1 ocasião; então,
temos uma le mbrança. Portanto, é em oposição J b usca que a e\·ocação é umd ,1fec-
ção. Enquanto tal, em outr,1s pala\'ra s, descons iderando suc1 pos ição po lar, a enKaçf10
tra z a carga do enigmé1 que movimentou as im'estigé1çôes de Platão e de Aristóteles,
ou seja, a presença agor,1 do ausente é1nteriormente percebido, experime ntado, ,1pren-
dido. Esse en igma den' ser provisoriamente di ssociado d ,1 questão le\·antada pela
perse\'Crança da afecç,'io primordial, persc\ crança ilu strnd a pela fomosi'l metá fora da
im pressão do sinete e, conseqücntemente, da questão de saber se a fidelidade d,1 lem-
brança consiste numa seme lh a nça da cikr1 11 com a im pressão p rimeira. As neurociL'n-
cias encarregaram-se desse problema sob o títul o dos rastros mnésicos. Ele não dc\·e
monopolizar a nossa atenç,10: fenome no logicamente falando, nada sabemos do su bs-
trnto corporé11 e, m a is precisamente, corticé11 dc1 e, ·océ1ção, nem temos esclarecimentos
sobre o regime epistemológico da correlação en tre a formaç<10, a consen ·ação e a ati-
\·ação desses rastros rnnésicos e os fenómenos que caem sob o olhar fenomenológico.
Esse proble ma, que depende da categori a da causalidade material, deve ser deixado
entre parênteses o maior tempo possí\·e l. Rcscn·o-me ,1 tarefo de enfrentá-lo na tercei-
rn parte deste trabalho. Em contrapartid,1, o que deve ser é1lçado ao primeiro plano, na
esteira de Aristóteles, é a me nção da a nteriorid ade da "coisa" lembrada em relaç,'io à
sua e,·ocação presente. Nessa me nção consiste a dimenst"10 cogniti\·a da memória, seu
c,:ir,Hcr de saber. É em ,·irtude desse traço que a memória pode ser considerada confü1-
,·e l o u não, e que d eficiêncié1s proprianwnte c ogniti\'as den~rn ser levada s cm conta,
se1n que nos apressemos em submeti:'-ias a um modelo patológico, com o nome desté1
ou cfaque la forma d e amnésia.
Voltemo-nos pé1r<1 o outro pólo do par l'\'OG1ção/ busca . É ele que a d enominação
grega da 1111111111/t' SÍS designêlva. Plat.'io c1 m it ifict1ra liga ndo-a a um saber pré-natal do
qual estaríamos afastados por um esquecimento ligado zi inauguração da , ·i(fa da alm ,1
i\ \11:MÓRIA, A HISTÚRIA, O l'SQUFCIMENTO

num corpo, em outra parte qualificado de túmulo (sõma-sema), esquecimento, de certo


modo natal, que faria da busca um reaprender do esquecimento. Aristóteles, no se-
gundo capítulo do tratado acima analisado, naturalizou, de certo modo, a ananmesis,
comparando-a àquilo que, na experiência cotidiana, chamamos de recordação. Junto
com todos os socráticos, designo a recordação com o termo emblemático de busca
(zetL'Sis). A ruptura com a murnmesis platônica não é, porém, completa, na medida em
que o a11a de a111111111csis significa volta, retomada, recobramento do que anteriormente
foi visto, experimentado ou aprendido, portanto, de alguma forma, significa repeti-
ção. Assim, o esquecimento é designado obliquamente como aquilo contra o que é di-
rigido o esforço de recordação. É a contracorrente do rio Uthc que a anamnésia opera.
Buscamos aquilo que tememos ter esquecido, provisoriamente ou para sempre, com
base na experiência ordinária da recordação, sem que possamos decidir entre duas hi-
póteses a respeito da origem do esquecimento: trata-se de um apagamento definitivo
dos rastros do que foi aprendido anteriormente, ou de um impedimento provisório,
este mesmo eventualmente superável, oposto à sua reanimação? Essa incerteza quan-
to à natureza profunda do esquecimento dá à busca o seu colorido inquieto1 º. Quem
busca não encontra necessariamente. O esforço de recordação pode ter sucesso ou
fracassar. A recordação bem-sucedida é uma das figuras daquilo a que chamaremos
de memória "feliz".
Quanto ao mecanismo da recordação, evocamos, no âmbito do comentário do
tratado de Aristóteles, o leque dos processos empregados, desde a associação qua-
se mecânica até o labor de reconstrução, que Aristóteles aproxima do sullogisnws, do
raciocínio.
Eu gostaria de dar aqui, aos textos antigos, um eco moderno. Mais uma vez, é a
Bergson que recorrerei, reservando, para um exame mais completo, a teoria funda-
mental de Matéria e Memória, que enquadra os empréstimos pontuais que faço aqui,
das análises direcionadas de Bergson. Estou pensando no ensaio intitulado "Esforço
intelectual" em A energia espiritual ' 1, detendo-me principalmente nas páginas dedica-
das ao "esforço de memória".
A distinção principal está entre a "recordação laboriosa" e a "recordação instan-
tânea" (Bergson, L'É11crgic spirit11cllc, pp. 932-938), podendo a recordação instantânea
ser considerada como o grau zero da busca e a recordação laboriosa, como sua forma
expressa. O interesse primordial do ensaio de Bergson reside na luta dirigida contra a
redução, operada pelo associacionismo, de todas as modalidades de busca à mais me-
cânica dentre elas. A distinção entre as duas formas de recordação se encaixa numa
investigação mais ampla, colocada sob uma única questão: "Qual é a característica
intelectual do esforço intelectual?" (op. cit., p. 931). Daí o titulo do ensaio. A amplitude
e a precisão da questão merecem ser realçadas uma a uma . De um lado, a recordação

30 Nosso capítulo sobre o esquecimento (terceira partl', cap. 3) irá dl'tl'r-se longamente nesta ambi-
güidade.
31 Bergson, "Effort intellectuel", L' Éncrgic spirifll('l/c, in CEuurcs, op. cit., pp. 930-959.
da lembrança pe rtence a uma ime nsa família de fatos psíquicos: "Quando re me mo-
ramos fatos passados, quando interpre tamos fatos presentes, quando ouv imos um
discurso, quando acompanhamos o pensame nto de outrem e quando nos escutamos
pe nsar a nós mesmos, en fim qua ndo um sistema complexo de representações ocupa
nossa inteligência, sentimos que podemos tornar dua s atitudes difere ntes, um a de
tensão e a outra de rela xa me nto, que se distinguem principalmente pelo fato de que
o sentimento do esforço está presente numa e ausente na out ra" (op. cif., p. 930). De
outro lado, a questão precisa é esta: "O jogo das representaçôcs é o mesmo nos dois
casos? Os elementos intelectuais são d a mesma espécie e mantêm entre si as mesm as
relações?" (op. cit., pp. 930-931). Como se \'ê, a questão não pode ria deixa r d e interes-
sar as ciências cogniti\·as contemporâ neas.
Se a questão d a recordação encabeça o exame aplicado às dive rsa s espécies de
trabalho intelectual, é porque a gradação "do mai s fácil, que é reprodução, ao mais
difícil, que é produção ou invenção" (op. cit ., p. 932), é ali mais ma rcada. A lém disso, o
ensaio pode apoiar-se na dis tinção ope rada cm Matéria e M clllôria entre "uma série de
'pl a nos de con sciência' diferentes, d esde a 'lembrança pura', ainda não traduz id a cm
imagens dis tintíls, até essa mesma lembrançc1 atualizílda e m sensações nascentes e
em movimentos iniciados" (ibid. ). É em semelhante tra\'essia dos pl a nos de consc iên-
cia que consiste a e\'ocação voluntária de um a lembrança. É então proposto um mo-
delo para separa r a parte d e automatismo, d e recordação mecâ nica, e a de reflex<'io,
de reconstituição inteligente, intim amente mesclada s na ex periência comum. Vale
lembrar que o exemplo escolhido é o da recordação de um texto decorado. É, poi s, no
momento da aprendizagem que é feita a separação entre dois tipos de leitura; à leitu-
ra analítica, que privilegia a hiera rqu ia entre idéia dominante e idéias subordinadas,
Bergson opôe seu famoso conceito de csq11c111a di11f11uico: "Ente ndemos com isso que
essa representação contém menos as própria s imagens do que a indicação daquilo
que é preciso fazer para reconstituí-las" (op. cit., p. 937). O caso do jogador d e xadrez,
ec:1paz de condu zir de cabeçíl diversas partidas sem ol har os tílbuleiros, é nesse as-
pecto exemplar : "o que está presente no espírito do jogador é uma com12osição d e
forças, ou melhor, uma relação entre potê ncias aliadas-hos tis" (op. cit. , p. 938). Cad a
par tida é assim memorizada como um todo segundo seu perfil próprio. Portanto, é
no método de a prend izagem que tem de ser buscada a cha\'e d o fenôme no de recor-
dação, por exemplo, o da bu sca inquieta de um nome recalcitran tc: "Uma impressão
de estranheza, mas não de estranheza inde te rminad a" (op. cit ., p. 939). O esque ma
dinâmico opera à moda de um guia "indica ndo uma certa direçi'ío de c5jl1rço" (op. cit.,
p. -1:0) . Neste exemplo, como e m muitos outros, "a essência d o esforço de memória
parece ser o fato de dcscm'ohx r um esquema, se não simples, p elo menos concent rado
numa imagem com elementos di s tintos, o u mais ou me nos inde pe nde ntes uns dos
outros" (ib id.). É esse o modo de tra\'essia dos planos de consciê ncia, d e "descid a do
esquema p a ra a imagem" (op. cit., p. 941 ). Di remos e ntão que o "esforço de recordação
consiste em converter uma re presentação esquemclt ica cujos elementos se interpe-
netram num a representação e m imagen s c ujas partes se jus tapõe m" (ibid.). É nesse

., 47 ,z,
,\ MFM ( >RIJ\, A IIIST()RI A, O FSQCFC IMFJ\; Tl)

aspecto que o esforço de recordação constitui um caso de esforço intelectual e se


aparenta com o esforço de intelecção examinado no capítulo 2 de Matáia e Mc111ória:
"Quer se trate de seguir uma demonstração, de ler um livro, de ouv ir um discurso"
(op. cit., p. 942), "o sentimento do esforço de intelecção se produz no trajeto do es-
quema à imagem" (op. cit., p. 946). Resta examinar o que faz do trabalho de memória,
de intelecção ou de invenção um esforço, a saber, cl dificuldade que tem por signo um
incómodo experimentado ou o encontro de um obstáculo, enfim, o aspccto propria-
mente temporal de diminuição de ritmo e de atraso. Combinações antigas resistem
ao remanejamento exigido, tanto do esquema dinâmico como das próprias imagens
nas quais o esquema procura se inscrever. É o hábito que resiste à invenção: " Nessa
hesitação toda especial d eve encontrar-se a característica de esforço intelectual" (op.
cit., p. 954). E "concebe-se que essa indecisão da inteligência se prolongue numa i11-
q11ict11dc do corpo" (op. cit., p. 949). O próprio caráter penoso tem, pois, a sua marca
temporal sentida afetivamente. Existe pat/10s na zctêsis, "afecção" na "busca". Assim
se entrecruzam a dimensão intelectual e a dimensão afetiva do esforço de recorda-
ção, como em qualquer outra forma de esforço inte lectual.

No final deste estudo da recordação, gostaria de fa zer uma breve menção da re-
lação en tre o esforço de recordação e o esquecimento (antes de reexam inar devida-
mente, na terceira parte deste traba Iho, problemas a respeito do esquecimento que
aq ui encontramos dispersos).
É de fato o esforço de recordação que oferece a melhor ocasião d e fazer "memó-
ria do esquecimento", para falar por antecipação como Santo Agostinho. A busca da
lembrança comprova uma das finalidades principais do ato de memória, a saber, lutar
contra o esquecimento, arranca r alguns fragmentos de lembrança à "rapacidade" do
tempo (Santo Agostinho dixit), ao "sepultamento" no esquecimento. Não é somente o
caráter penoso do esforço de memóri a que dá à relação sua coloração inquie ta, mas o
temor de ter esquecido, de esquecer de novo, de esquecer amanhã de cumprir esta ou
aquela tarefa; porque am;:inhã será preciso não esquecer ... de se lembrar. Aquilo que,
no próximo estudo, chamaremos de dever de memória consiste essen cialmente em
dever de não esquecer. Assim, boa parte da busca do passado se enca ixa na tarefa de
não esquecer. De maneira mais geral, a obsessão do esquecimento passado, presente,
v indouro, acrescenta à luz da memória feliz a sombra de uma memória infeliz. Para
a memória med itativa - a Ccdiichtnis - , o esquecimento continua a ser, ao mesmo
tempo, um paradoxo e um enigma. Um paradoxo, tal como o expüe o Santo Agostinho
retórico: como falar do esquecimento senão sob o signo da lembrança do esquecimento,
tal como o autorizam e caucionam o retorno e o reconhecimento da "coisa" esquecida?
Senão, não saberíamos que esquecemos. Um enigma, porque não sabe mos, de saber
fenomenológico, se o esquecimento é apenas impedimento para evocar e para encon-
trar o "tempo perdido", ou se resulta do inelutávcl desgaste, "pelo" tempo, dos ra stros
que cm nós dei xa rarn, sob forma de c1fccções originárias, os acontecimentos supcrve-
nientt•s. Para resolver o enigma, seria necessário não só desimpedir e liberar o fundo
1) ,\ \ IF \ ll ll< J.\ I: 1) -\ r, I .\ 11 '\ ISCI '\CI\

d e esquecimento absoluto sobre o qual se destaca m as lembra nças "preserTadas d o


esquecimento", mas também articular aquele não-sabe r relati\'O ao fundo d e esq ueci-
mento absoluto ao saber exterior - particularme nte o das ncu roc iências e das ciências
cog niti vas - concernente aos rastros mnésicos. Não deixa remos de evoca r, no d ev ido
momento, essa difícil correlação e ntre saber fenomenológico e saber científico ~2.

Deve ser concedido um lugar à parte e emi nente à dist inção introdu zida por Hus-
serl, nds Lcço11.~ pour une p/1(;110111('1,o!ogic de /11 co11 scic11cc i11ti111c du tc111ps'\ entre re tenç3o
ou le mbra nça prim,iria e reprodução ou le rn bra nça secund á ri a. Lê-se essél distinção
na segu nda seção das Liçiics d e 1905 so/irc a co11scit11ci11 í11 ti111c1 do tc111po, que formam a
primeira parte d as Liçiics comple tada pelos ad cndos e complementos do período 1905-
1910. Fiz questão de separar as aná lises que se refcrern efcti,·amen te à face objetal da
memória, como confirma a tradução de Eri111t('/'l/11g por " lembrança", e de acrescentar
a elas, na continuação deste capítulo, as considerc1ções d e Husserl a respeito da relélção
entre lembrnnça e im age m. Ao destacar essa seçé'\o do contexto dominante das Liç(1cs,
prcsern)-a da influt'ncia do idea lism o subjeti,·ista en xe rtado na verte nte reflexi,·a da
memória (c ujo exame postergarei até o ca pítulo final de nossa fenomenologia da m e-
m ória). Con fesso que essa liberação o pe ra cm oposição à din,1mica d e conjunto das
LiçlkS d e 1905, que, da primeira à tcrceirn seção, as faz percorrer uma séri e de "degraus
de constituição" (Husserl, Liç{ics, § ] -!), ern que o caráter obje t,1! da constituição se apa-
ga progressivamen te em benefício da au toconstituição do fluxo da consciência; os "ob-
jetos temporais" - ou seja, as coisas que durnm - aparecem e ntão como "un idades
constitu ídas" (op. cit., § 37) na pura refl ex iv idade d a consc iênci,1 íntima do tempo. Me u
a rgu m ento é aqui que a fa m osa cpokii(', sobre a qual se abre o trabalho e de onde resu lta
a exclu são do tempo objetivo - aquele tempo que a cosmologia, a psicolog ia e as ou-
tras ciências huma n as consideram uma rea lidade formal , é certo, mas solidária com o
estatuto rea lista d os fenómenos que enquad ra - não re\'ela, n o início, um flu xo puro,
mas uma experiê ncia (E1ji1/m111g) temporal que tem, na lembrélnça, sua face objeta l; a
constituição de primeiro nível é de uma coisa que dura, por n,en or que seja cssél objeti-
\'idade, primeirélmentc sobre o modelo do som que conti nua a soa r, depois, d ,1 melod ia
que rememoramos posteriormente. Mas, a G,da vez, "a lguma coisa" dum. A cpok/1i•
revela, certa me nte, simples v ivências, as ",· i\·ê ncias do tem po" (op. cit., § 2, p. 15). Mas,
nessas v ivênc ias, são \ 'isados "datn 'objeti\·a m ente tempora is' "(§ 2). São d enomin ados
"objetividade" (ibid.), e comporta m ",·e rd,1des 11priorístirns" q ue perten cem "aos mo-
mentos C(mstituti,,os da objeti v idade" (i/lid.). Se, desd e o início dc1 leitura, a referL'tK ia él
esse asp ecto "objet,1 1" parece prov isó ri a, é porque se le\'anta uma questão ra d ica l, a da
"'origem ' do te m po" (ihid.) que se quer s ubtra ir ao re inado da psicologia sem, contud o,
reca ir na órbita d() transce ndentalismo kant iélno. A questão proposta pe la exper iência

12 Ci. ,1d i,in lL', tcrn)i r ,1 p.irtc, cap . 3 s\\brc o l'S,jUL'CÍ nwnto, pp. -l2S-.f'.\::;_
33 HusSt..'rl, / cço11,; /'0111 Ili/(' ,,,,(.l/1)///(;l/()/ti_o,;it· de /11 (111/:, (ÍC IIU' i11li111t' t/11 f1' /IIJ !:,, trnduç,10 fr<llK l 'S,l dL·
11 . D u ssmt, r,1ris, l'L' F. cnl. " ~:pimdhfr '', 1%-1.

•l> 49 4:•
A MEM(JRIA, A HISTÚl{IA, O ESQUEC IM EN TO

de um som que dura e de uma melodia que volta é a d a espécie de persistência que faz
com que "o que foi percebido permaneça presente durante um lapso d e tempo, mas
não sem se modifica r" (op. cit., § 3, p. 19). A questão é: o que é permanecer para uma
coisa que dura? O que é a duração temporal? Esta pergunta não é difere nte das feitas
por William James e Henri Bergson com vocábulos semelha ntes: durar, permanecer,
persistir. De que modificação se trata? É uma espécie de associação (Brentano)? É uma
espécie de comparação recapitulativa a partir do último som (W. Stern)? Podemos d es-
cartar essas soluções, mas não o problema, a saber, "a apreensão de objetos temporais
transce ndentes que se estendem numa duração" (op. cit., § 7, p. 35). Cham emos "obje tos
temporais" (Zcitobjckten) a esses objetos na base d os quais proporemos posteriormente
a questão da constituição do te mpo, considerado então uma duração não diferenciada
por coisas que duram. Da percepção da duração de alguma coisa, a análise oscilará
então para o exame da duração da p ercepção enquanto tal. Então, o som, a m elodia
não serão mais te matizados, m as somente sua duração não-objetivável. É aquém desse
deslocamento d e ênfase que a notável distinção entre lembrança imediata ou rete nção
e lembrança secund á ria (relembrança) ou reprodução adquire seu sentido.
A ex pe riência descrita te m uma base, o presente, o presente do som que ressoa
agora: "qu ando o fazemos soar, eu o ouço como presente, mas enquanto continua a
soar, ele tem um presente sempre novo, e o presente a cada vez precedente se converte
num passado" (op. cit., § 7, p. 37). É essa m odificação que constitui o tema da descrição.
Há um "cada vez" presente. A situação descrita não é, nesse aspec to, diferente d a con-
siderada por Santo Agostinho no Liv ro XI das Confissàcs: a modificação é do presente.
Na verdade, Santo Agostinho ig nora a exclusão d e toda tese transcende nte e a redu-
ção do som "a um simples dado hilético" (op. cit., § 8, p. 37). Mas a idéia de que alguma
coisa começa e cessa, começa e, depois de seu fim, "ca i" no mais long ínquo p assado, é
comum . Propõe-se e ntão a idéia d e "rete nção": "nessa recaída", cu o "rete nho" ainda,
eu o te nho numa "retenção", e, enquanto ela se mantém, "ele tem sua temporalização
própria, ele é o m esmo, su a duração é a mesm a" (ibid.). Nesse estágio da análise, as
duas proposições se sobrepõem: o som é o mes mo, sua duração é a mesma. Depois,
a segunda absorve rá a primeira. Passaremos, então, da fenomenologia da lembra nça
à da con sciência íntima do te mpo. A transição é preparada pela observação d e que
posso diri gir me u olhar para "a maneira pela qua l [o som] 'é dado"' (op. cit., § 8, p. 38).
Então, os "modos" e sua continuidade, num "fluxo contínuo", passarão pa ra o primei-
ro plano. Mas não será abolida a referência ao agora, que, no início da a n álise que aqui
fazemos, é a fase de um som, essa fase que se d enomina "consciência do som em seu
início" (op. cit., § 8, p. 37): "o som é d ado, isto é, tenho consciência dele como presente"
(op. cit., § 8, p. 38). Num estágio posterior da análise, poderemos discernir na referên-
cia tenaz ao presente o reinado daquilo que Heidegger e os que ele influen ciou denun-
ciam como urna "metafísica d a presença"·14 . No estágio em que aqui interrompemos a

34 No rnpítulo 3, evoc.:iremos ilS irnportilntes a ná lises q ue R. Bernet dedica à fenomenologi a do tem-


po em H usserl.
D,\ M F\1()1<1,\ F D. \ IU:M I N I SCÉ '\ CI.·\

análise, a referência ,10 presente coincide com a experiência cotidia na que ternos das
coisas que começam, continuam e deixam de aparecer. Começar constitui uma expe-
riência irrecusável. Sem ela, não compree nderíamos o que significa continua r, durar,
p ermanecer, cessar. E sempre um algo começa e cessa. Aliás, o presente não dc\'e ser
ide ntificado à presença - c m nen hum sentido metafísico que seja. A fenomenologia
da percepção não te m mesmo ne nhum direito exclusi vo sobre a descrição do presente.
O presente é também o do gozar e do sofre r, e, de maneira mais significativa para uma
im·estigação sobre o conheci mento histórico, presente de iniciativa. O que podemos
então criticar legitimamente em Hu sscrl, nesse est,igio in icia l de sua análise, é o fato
d e ter ele fechado a fenomenologia do presente sobre a obje tiv id ad e percebida, cm de-
trimento da obje tividade afe tiva e p ní tica . Nesses limites, sua tese é simplesme nte a de
que a percepção não é instantânea e que a rete nção não é uir1a forma d e imaginaç,10,
mas consi ste numa mod ificação da percepção. A p e rcepção de alguma coisa dura. O
d istanciamento "do instante presente atual" (op. cit., § 9, p. 39) ainda é um fe nómeno
d e p e rcepção e não de imaginação. E é d e um algo que dizemos que dura: "A 'cons-
ciênci a', o 'v ivido', relaciona-se com se u objeto por intermédio de um aparecimento, no
qual reside precisame nte 'o objeto cm seu modo"' (op. cit., § 9, p. -H ). A fenome nologia
d a memória é inici a lmente a da lembra nça, se ente ndermos por isso "o obje to em seu
modo". O que chamamos presente, passado, são "caracteres de escoame nto" (op. cit.,
§ 10, p. 41), fen ômenos e minentemente im anentes (no sentido de uma tra nscendê nci a
redu zida ao estatuto da hilé tica).
Se se pode discernir uma ten são na a n,í lise, a ntes de a distinção entre retenç,'io e
relembrança entrar e m cena, é entre a pa rada no presente atual e a indivisibilidade
em fragmentos do fcnômeno de escoamento. Mas não se pode criticar cm Hu sscrl
essa tensão como uma inconseq üência resu ltante de uma complacência metafísica:
ela é constitutiva d o fe nómeno descrito. De fato, pode-se passar sem parar, como o
próprio tempo, de um a fase a outra da duração do mesmo objeto, ou parar numa
fa se: o começo é pura e simplesmente a mais not,ível dessas paradas, mas a cessa-
ção ta mbém é. Assim, começamos a fa zer e paramos de faze r. O agir, cm pa rticular,
te m seus nós e seus \·entres, suas rupturas e seu s impulsos; o agir é vigoroso. E, na
sucessão mais uniforme da percepção, a distinção entre começar, continuar e cessar
é perfe itamente razoável. É como começo que o presente faz sentido e que a duração
traz mod ificação: "enquanto surge sempre um novo presente, o presente se tor nc1 um
passado e, assim, toda a continuidade de escoa me nto dos passados d o ponto prece-
de nte 'vai ca indo' uniformemente na profundeza do passado" (op. cit., § 10, p . .:13).
Q uando se fa la de "ponto-origem" (op. cit., § 11 , p. 43), é no â mbito da relação começar-
continu a r-cessar. A impressão é orig inária, num sentido não metafísico, n o sentido
daquilo que simples mente começa e fa z que haja um an tes e um d epoi s. O presente
muda incessanteme nte, mas também surge incessa ntemente: aquilo que chamamos
de acontecer. A partir d aí, todo o escoamento não p assa de "retenção d e re tenções"
(op. cit., § 11, p. 4-1). Mas a di stinção começa r/ durar não dei xa de significa r, a tal ponto
q ue uma continuidade pode reunir-se em "um ponto d a atualidade, que se oferece
,\ MFM( lRI A, A HISH1R I :\, () LS(!U ECIMENTO

em degrndês retencionais" (ibid.), o que Husscrl gosta de comparar a uma caud a d e


cometa. Falamos, então, de duração "passada" (op. cit., § 11, p. 45). Esse ponto terminal
é analis ado m esmo e m continuidade de retençües; ma s, enquanto terminal, e le se d ei
numa "apreensão de agora" (ihid.), núcleo da ca ud a d e cometa~~-
0 que acontece, e ntão, com o termo eventual do enfraquecimento que seria odes-
vanecimento? Husserl, que o evoca (op. cit., § 11), fal a de imperce ptibilidade, suge-
rindo assim o caráte r limitado do campo temporal como d o campo de visibilidade. A
observação vale também p ara o diagrama do§ 10: "não foi prev is to ne nhum fim d a
re ten ção" (nota de Husserl), o que, segundo alguns autores, dari a lugar tanto à confis-
são d e um esquecimento ine lutável quanto a le var em consideração uma persistê ncia
inconsc iente do passado.
Em resumo, chamar de originário o ins tante do passado próprio para a re tenção, é
nega r que esta seja un1a figuração p or imagem. É essa distinção que reexaminare mos
com base e m textos inéditos e p ertencentes a outro ciclo d e análises apoiadas na opo-
sição posiciona l/não posicional. Nas Liçiies de 1905 prevalece a oposiçã o impressio-
nal / re tenciona l. Essa distinção é sufic iente para di stinguir o agora da consciênc ia do
"que acabou d e passa r" que dá uma exte nsão temporal à percep ção. Todav ia, já est,i
estabelecida uma oposição ao imaginário: na verdade, e la já estava estabelecida desde
a crítica de Brenta no na primeira seção. Quanto à distinção entre impressão/retenção,
sobre a qua l nos concentramos aqui, ela procede, segundo Hu sserl, d e uma necessi-
dade eid é ti ca. Não se trata d e um dado de fac to: "professa mos que é necessá rio n priori
qu e a re tenção seja precedida de uma perce p ção e, porta nto, de uma impressão origi-
n á ria correspondente" (op. cit., § 13, p. 48). Em outras palavras, para um a lgo que dura,
continuar pressupüe com eça r. Podem-se opor reservas " be rgsonianas" à equivalê ncia
entre o agora e o ponto, mas não à dis tinção com eça r/co ntinu a r. Essa distinção é con s-
titutiva da fenomenolog ia da lembrança - daquela lembrança de que se diz: "o dado
do pa ssado, é a lembrança" (op. cit., § 13, p. 50). E esse dado eng loba necessariamente
um mo mento de negati v idade: a rete nção não é a impressão; a continuidade n ão é o
começo; neste sentido, ela consiste num "não-agora": "passad o e agorn se excluem"
(ihid.). Durar é, de certo modo, superar essa exclusão. Durar, é permanecer o m esmo.
É o que significa a palavra "modificação".
É cm relação a essa exclusão - a esse não-agora primordial - do p assado, con-
tudo re tid o, que se propõe um a polaridade de um novo gênero no pró prio inte rior
do não-agora da lembra nça: a pola rid a de lembrança prim,fria/lernbrança secundá ria,
retenção/ reprodução.
A re p rodu ção s upõe que a lem brança primária de um objeto tempo ra l como a m e-
lodia "desapareceu" e voltou . A retenção a ind a estava presa à percepção do momento.
;\ le mbrança sec und ár ia n ão é absolu tamente apresentação; é re-(a)prcsentação; é a
m esma melodia, m as "quase ou v ida" (op. cit., § 14, p. 50). A m e lodia há pouco ouvid a

35 A esse n .' speito, o diagrama quL' acompanha a descrição do fe nômcno de cSCOill11L'nto, no pa r,'ígra-
fo 11, não dcvl' eng,1ni1r: trata-se de umil trnns cri çno cs pilcia l s ugerid a pel a cquiva18nc ia ent re o
presente l' o ponto.
DA \11\l(lRI -\ 1. ! )\ JU:\11:\ISl"i-' \:l"I.\

"cm p essoa" é agora rememornda, re-(a)presentada. A própria rememoração poderá,


por sua vez, ser retida na forma do que acabou de ser rememorado, representado, re-
produ z ido. É a essa modalidade da le mbrança secundária que se podem a plica r as
distinçôes propostas c1demais entre e\'lKação espontânea e e, ·ocaçào laboriosa, b em
como entre graus de clareza. O essencial é que o objeto tempora l reproduzido não
tenha mais, por assim dizer, pé na percepção. Ele se desprend e u . É realmente passa-
do. E, contudo, ele se e ncadeia, faz seqüência com o presente e s ua cauda de cometa.
O que está e ntre os dois é o que denominamos lc1pso d e tempo. Na époec1 das Liçiic~
de 1905 e dos Co111plc111c11to::; do p e ríodo 1905-1910, a reprodução está classificada en-
tre os modos de imaginação (op. cit., Suplemento II, pp. 132-136). Res tará di stin gu ir a
im aginação colocante da imaginação irrealizante, sendo a ausência o único elo e ntre
a mbas, ausência de q ue Platão p ercebera a importante bifurcação e ntre fantástico e
icón ico, em termos de arte mimética. Falando aqui de "re -dado" da duração, Husscrl
enxa implicitamente o carciter tético diferen c ial da relembrança ;,.. Que a reprodu ção
seja também a imaginação, é a verdade limita da de Brentano (op. cit., § 19): em termos
negati\·os, reprodu z ir é n ão d ar em pessoa. Ser mais urn a , t'Z dado, não é ser apenas
dado. A di ferença não é mais cont ínua, mas descontínua. Surge e ntão, de forma temí-
\"CI , a questão de sa ber e m que condições a "re produção" é re produção do passado. É
da resposta a essa questão que depende a di feren ça e ntre im ,1ginação e lembrança. É,
pois, a dimensão posicional da rel e mbrança que faz él diferença: "a lembra nça, ao con-
trário, coloca o que é reproduzido e lhe Licí, ao colocá-lo, uma s ituação perante o ,1gora
atual e a esfera do campo temporal originário ao qu a l pertence a própri a lem brança"
(op. cit., § 23). Aqui, Husscrl re mete ao Suplemento Ili: "As intençôes de e ncadea men-
to da lembrança e da percepção. Os modos da consciência do tempo." A esse c u sto,
pode-se di zer do agora reproduzido que "recobre" um agora passado. Essa "seg und a
inte ncionalidade" corresponde ao qu e, cm Be rgson e outros, se chama reconhecimen-
to - conclusão de um,1 busca feliz.
É nesse ponto que um a minuciosa a11éilisc dedicada à distinção e ntre Eri1111cn111g
e Vorstc/!1111g e reunida no volume XXIJJ das H11sscrli111111 encadeia-se na da segu nda
seção das Liç<ks p11m 1111117_fc110111c1w!ogi11 da co11::;âL~11ci11 í11tilllo do te111po. Fala rei sobre isso
na última seção d cstL' capítulo, no âmbi to do confronto entre lembrança e imagem.
Gosta ria de term inar este perc urso d as pobridades pela consideração de um p,H
de termos o postos embora complementares, c uja importâ ncia se revelará pl e n amente
no momento dél trnnsição da memória à história.
Falarei da polaridade e ntre rcffrxi1 id11dc 1
l' 11n111,ia11id11dc. Não nos lernbr,11110s so-
m e ntL' de nós, , ·cndo, exper imenta ndo, a~1rl'ndendo, m,1s das situaç(ies do mundo, n éls
qu ,1is , ·imos, e xpcrirnc nt,1mos, c1prendemos. T,1is situaç()CS implicam o próprio corpo
l' o cor po dos outros, o esp,1ço onde se , ·i\"l' U, enfim, o hori/ontl' do mundo e dos
mundos, sob o qual alguma coisa aconteceu. Ent re reflcxi,·idade L' mundanid,1dL', hi'i
m esmo um a polarid,1dl' n ,1 medida t'm que ,1 rdlexi\' idc1de l' um rc1s tro irrec u s,í,cl

~h .-\ p.il,1,r,1 / '/11111/,1,111,1 l 'i1<.'0J1 t r,1 -sc 11 ,1 p . 11:'i (1 l u-;~v rl , <'/'- .-it .) ,
A MFMÚRI A , A H I ST()l{ I A, O F.SQUECJML N TO

d a memória em sua fase declarativa: alguém di z "em seu coração" que viu, expe-
rimentou, aprendeu anteriormente; sob esse aspecto, nada deve ser negado sobre o
pertencimento da memória à esfera de interioridade - ao ciclo d a inwnrdness, para
retomar o vocabulário de Charles Taylor em So11rces of the Self17• Na da, salvo a so-
breca rga interpretati va do idealismo subjetivista que impede esse momento d e re-
flexivid ad e de entrar em relação dialética com o pólo de munda nidade. A meu ver, é
essa "pressuposição" que one ra a fenomenologia husserliana d o tempo, apesar d e sua
vocação p ara constituir-se sem pressuposição e para escutar apenas o ensinamento
da s "próprias coisas". Aí está um efeito contestável d a epoklze que, sob a aparência d a
objetivação, afeta a mundanidade. Deve-se acrescentar, é verdade, em defesa de Hus-
serl, que a fenomenologia do Lebenswelt, exposta no último grande livro d e Husscrl,
suprime p arcialmente o equívoco, restituindo àquilo que cha mamos globalmente de
situação mundana seu direito de primordialidade, sem, contudo, romper com o idea-
lismo transcendental d as obras do período médio, que culmina em ldcen I, mas já se
anuncia nas Liç{ícs para uma fenomcnologia da consciência íntima do tempo.
As considerações que vêm a seguir devem muito à obra mestra de Edward Casey,
Remc111bering :;8 • O único ponto de divergência que me afasta dele concerne à interpre-
tação que d eu aos fenôrnenos que descreveu admiravelmente: ele pensa d ever sair
da região balizada pelo tema da intencionalidade e, nesse caso, da fenomenologia
husserliana, sob a pressão d a ontologia existencial inaug urad a por Heidegger em Sein
w1d Zcit. Daí a oposição que rege sua descrição dos fenômenos mnemónicos entre
duas grandes massas situadas sob o título d e "Keeping memory in Mind " e a segun-
d a, intitulada "Purs uing memory beyond Mind". Mas o que significa Mind - termo
inglês tão difícil de traduzir? Não se refere essa palavra à interpretação idealista d a
fenomenologia e de seu tem a capital, a intencionalidade? Aliás, Casey leva em conta a
complementaridade entre esses dois g randes conjuntos pois intercala entre eles o que
denomina "mnenwnic Modes", a saber, "Reminding, Reminiscing, Rccognizing". Ademais,
ele não hesita em dar a sua grande obra o título A Phe11omcnological Study. Permitam-
me acrescentar uma palavra para mostrar minha profunda concordância com o em-
preendimento de Casey: aprecio mais do que tudo a orientação geral do trabalho, que
visa a subtrair ao esquecimento a própria memória (daí o título da introdução, "Re-
rnembering forgotten. Th e a mnesia of anarnnesis" - ao qual responde o da quarta
parte "Remembering re-membered"). Nesse aspecto, o li vro é uma apolog ia daquilo
que chamo a memória "feliz", em oposição a descrições motivadas pela suspeita ou
pe la excessiva preeminência con cedida aos fenómenos d e deficiência, e mesmo à pa-
tologia da memória.

37 C hílrles Taylor, Sourcc, of t/1e Sei/; Harva rd Un iversity Press, 1989; tradução franc('sa de C. Melan-
çon, Lcs Sourccs du //IOÍ. Ln .fi1rlllnfio11 de /'ido1tit,; 111odcrn c, Pari s, Éd . du Seui l, col. " La cou leur des
id(•es", 1998.
38 Ed ward S. Casl'y, l<c111c111 /wri115;. /\ l 'ii1·110111c110/ogirnl St11dy, Blooming ton e lndi a napolis, lnd ia n,1
Un iversi ty l'ress, 1987.
Di\ \ff'Vl ()RI:\ t I>.- \ R L\11'-JI SCFI\CI.-\

Nada direi de muito novo a respeito do pólo reflexi,·o do par aqui considerado,
na med ida cm que podemos reunir sob esse título fenômenos que já apareceram em
outros pares de opostos. Seria preciso remonta r à polaridade memória própria / me-
mória coletiva d e nosso próx imo estudo. Por outro lado, é por esta última, sob o título
de "Commcrnoration", que Casey termina sua "busca" d a memória "para alé m d oes-
pírito". Deveríamos d epoi s agrupar, sob o título da reflc xi\·id ade, o termo da "direi ta"
de cada um dos pares precedentes: assim, na oposição entre há bito e me móri a, o lado
hábito é o menos marcado no que se refere à reflexividade: efetuamos uma habilida-
de sem o notar, sem prestar atenção, sem estar 111illl1{11!. Basta que uma execução se
entra\'e para que sejamos chamados a tomar cuidado. Mi11d your sfl'p! Quanto ao par
e\'ocação / recordação, a reflexividade está cm seu auge no esforço de recordação; ela é
enfatizada pelo sentimento de penosidad e ligado ao esforço; a e\·ocação simples pode,
nesse aspecto, ser considerada como neutra ou não marcada, na medida e m que se diz
que a lembrança sobre\·ém como presença do ausente; pode-se di zer que ela é mar-
cada negativame nte nos casos de e\'ocação espontâ nea, involuntária, be m conhecida
dos leitores da B11srn ... proustiana; e, mais ainda, nos casos de irrupção obsessi\·a,
que ire mos considera r no próximo estudo; a evocação já não é simplesmente sent ida
(pntlzos), mas sofrida. A "repetição", no sentido freudiano, é, então, o inverso da reme-
moração, que pode ser comparada, enquanto trabalho de lembrança, ao esforço de
recordação acima descrito.
Os três "modos mnemónicos" que Casey intercala entre a análise intencional da
memória mantida cati,·a, segundo ele, "i11 Mi11d ", e a busca da memória "beyo11d Mi11d"
constituem realmente fenómenos transicionais entre o pólo de reflex ividade e o pólo
de munda nidade da memória.
O que significa Rc111i11di11g? Não há um te rmo apropriado em francês, a não ser
um dos empregos da palav ra "lembrar": isto me lembra aquilo, me fa z pensar na-
quilo. Poderemos di zer memento, aide-1111.;nwirc, lembre te ou, com as n eu roc iências,
índice de recordação? Trata-se de fato de indicadores que visa m a proteger contra o
esquecimento. Distribuem-se dos dois lt1dos da linha divisória entre a interio ridade
e a exterioridade; cncontramo-1.os uma primeira vez na ve rtente d,1 recordação, quer
sob a forma fixé1 da associação mais ou menos mecânica da recordação de uma coisa
por urna outra que lhe foi associada na aprendizagem, quer como uma das ctc1pas
'\ ·i\'as" do trnbalho de recordélção; encontramo-los uma segunda vez como pontos de
apoio exteriores para a reco rd ação: fo tos, car tões posta is, c1gcndas, recibos, lembre tes
(o famoso nó no lenço!) . É dessa forma que esses sinais indicadores ,1dvertem cont ra o
esquec imento no futuro : ao lembrar aq u ilo qu e deverá se r fe ito, eles previnem que se
esqueça de fazê-lo (dar comida éW gato!).
Quanto a Rc111i11isci11g, trata-se de um fenómeno mais ma rcado pela ati\·idad c do
que cm Rc111í11di11g; consiste cm fazer re,·iver o passado c,·oca ndo-o entre várias p es-
soas, uma ajudando a outra c1 re memorar acontecimentos ou saberes compartilh,1dos,
a lembrança de uma sen ·indo de rc111í11dcr para as lembra nças da outra. Esse processo
memoric1l pode certamente ser interiorizado sob a fo rma da me mória medi tc1tiva, que
;\ Ml'ivt()RI A, /\ III STÚRIA, O ISQUI T IMENlU

o Ccdiiclitnís alemão tradu z melhor, com o apoio do diário íntimo, das Memórias e
antimemórias, das autobiografias, e m que o suporte da escrita confere materialidade
aos rastros conservados, reanimados e novamente enriquecidos por depósitos iné-
r
ditos. Assim, faz-se provisão de lembranças para os dias vindouros, para o tempo
dedicado às lembranças ... Mas a forma canónica do Rcmillisci11g é a conversação sob o
regime da oralidade: "Escute, você se lembra de ... , quando ... você ... nós ... ?" O modo
do Rc111inisci11g se estende, então, no mesmo nível de di scursividade que a evocação
simples e m seu estágio declarativo.
Resta o terceiro modo mnemónico, que Casey denomina de tra nsição: Rccognizing,
reconhecimento. O reconhecimento aparece primeiro como um complemento impor-
tante da recordação; poderíamos dizer que é sua sanção. Reconhecemos a lembrança
presente como sendo a mes ma e a impressão primeira visada como sendo outra~'1.
Assim, pelo fenómeno de reconhecimento, somos remetidos ao enigma da lembrança
enquanto presença do a usente anteriormente encontrado. E a "coisa" reconhecida é
duas vezes outra: como ausente (diferente da presença) e como anterior (diferente
do presente). E é como outra, e manando de um passado outro, que ela é reconhecida
corno sendo a m esma. Essa altcridade complexa apresenta por sua vez graus que cor-
respondem aos graus de diferenciação e de distanciamento do passado em relação ao
presente. A alteridade é vizinha do g rau zero no sentimento de familiaridade: nós nos
encontramos nela, nos sentimos à vontade, e m casa (/1ci111lic'1) na frui ção do pa ssado
ressuscitado. Por outro lado, a alte ridade está em seu auge no sentimento de estra-
nheza (a famosa Unlzci111/icl1kcit do ensaio de Freud, ºinguietante estranheza"). Ela é
mantida e m seu grau médio, quando o acontecimento reme morado é, como di z Casey,
tra zido de volta "/mck wlzcrc it was". No plano da fenomenologia da memória, esse g rau
méd io anuncia a operação crítica pela gual o conhecimento histórico restitui seu obje-
to ao reino do p assado decorrido, fazendo dele o que Michel de Certeau denominava
o "ausente da história".
Mas o pequeno milagre do reconhecimento é de envolver cm presença a alterida-
de do d ecorrido. É ni sso que a le mbrança é re-(a)prcsentação, no duplo sentido do
re- : para trás e de novo. Esse pequeno milagre é, ao mesmo tempo, uma grande cila-
da para a aná lise fenomenol ógica, na medida e m que essa re-(a)presentação corre o
risco de e ncerrar de novo a reflex 5o na muralha invisível da representação, s uposta-
mente encerrada c m nossa cabeça, " i11 t /Jc Mind ".
Mas não é tudo. Resta o fato de que o passado reconhecido tende a se fazer valer
corno p assado percebido. Daí o estra nho destino do recon hecimento, d e p oder ser
tratado no quadro da fenomenologia da memória e no da percepção. Não esquecemos
a famosél descrição, por Kélnt, dél tripla síntese subjetiva : percorrer, ligar, recon hecer.
Assim, a recog nição assegura a coesão do próprio p e rcebido. É em te rmos s imilares
que Bergson falc1 do desdobrame nto do esquema dinârr1ico e m imélgens como de um

~lJ O reconheci mentn sl'r,1 objl't\l dl' uma ,1tençüo pa rticu l.ir l'lll nosso estudo do L'squl'c inwnto.
Cf. ,Hiiantl', PP· -n ~-4~1.
!.li\ MFM(lRI,·\ F 1)\ Rl\1 1,\: ISCÍ\.ll .\

re torno à percepção. Voltaremos ao tema na terceira seção deste capítulo ao tratarmos


da composição cm imagens da lembrança.

Terminada a tra,,essia dos "modos mnemónicos", que a tipologia de Cascy pôe


a meio ca minho e ntre os fenómenos que a fenomenologia da intencionalidade (so-
brecarregada, no meu entender, pelo idea lismo subjetivista) supostamente situa 111
Mi11d, e o que ela \'ai buscar bcyo1Id Milld, defronta mo-nos com uma série de fenóme-
nos mnemónicos que implicam o corpo, o espaço, o horizonte do mundo ou de um
mundo.
A meu ver, tais fenómenos não nos afastam da esfera da intencionalidade, mas
re\'elam sua dimensão não reflexiva. Lembro-me de te r gozado e sofrido cm minha
carne, neste ou naquele período de minh a v ida passad<1; lembro-me de ter, por muito
tempo, morado naquela casa daquela cidade, de ter viajado para aquela parte do mun-
do, e é daqui que e u C\'OCO todos esses lás onde eu csta, ·a. Lembro-me da extensão
daquela paisagem marinha que me dava o sentimento da ime nsidão do mundo. E,
quando da visita àquele s ítio arqueológico, cu evocavé1 o mundo cultural desapare-
cido ao qué1l aquelas ruínas remetiam tristemente. Como a testemunha numé1 irwesti-
gação policial, posso di zer sobre tais luga res que "eu esta,·a lá ".
Começando pela m emória corporal, é preciso dizer que ela se deixa red istribuir ao
longo do primeiro eixo de oposições: do corpo habitual ao corpo dos acontecimentos,
se podemos dizê-lo. A presente polaridade re fl exivid ade / mundanid ade recobre pM-
cia lmcnte a prime ira de totfas. A memória corporal pode ser "agida" como todas as
outras modalidades de hábito, como a de dirigir um carro que estcí cm meu poder. Ela
,·aria segundo todas as \'ariantes do sentimento de familiaridade ou de estranheza.
Mé1S as provações, as doenças, as feridas, os traumatismos do passado Je, ,am a me-
mória corpora l a se concentrar em incidentes precisos que recorrem principalmente
à memória secu ndária, à relembrança, e convidam a relat,:í-los. Sob esse aspecto, as
lembranças feli zes, mais especia lmente eróticas, não deixam de mencionar seu lugar
s ingular no passado d ecorrido, sem que seja esquecida a promessa de repetição que
elas encerravam. Assim, a memória corporal é povoada de lemb ranças afetadas por
diferentes graus de dista nciamento temporal: a própria extensão do lapso de tempo
decorrido pode ser percebida, sentida, n a forma da saud,,de, dé1 nostalgia . O momento
do despertar, tão magnificamente descrito por Proust no início da Busrn ... , é pé1 rticu-
larmente propício ao retorno das coisa s e dos seres ao luga r que a ,·igíl ia lhes atribuíra
no espaço e no tempo. O momento da recordc1ção é então o do rccon hecimento. Esse
momento, por s ua ,·ez, pode percorrer todos os gra us da rememoração té.Í.cita à memó-
ri a declarativé1, ma is umc1 vez pronta par<1 a narração.
A transição da memória corpora l para a nwmória dos lugares é assegurada por
atos tão importantes como orientar-se, deslocar-se, e, aci m a de tudo, habitar. É na
superfície habitá,·cl da terra que nos lembra m os de ter ,·iajc1do e ,·isitado loca is me-
mori=Í\'eis. Assim, as "coisas" lembradas s,1o intrinsecamente associadas,, lug<1res. E
não é por acaso que dizemos, sobre um,, cois,1 que aconteceu, que ela te,,e lugar. É de
/\ \ffvl()RI/\, /\ HI ST(lR l 1\, () FS()UI .CIMFNHl

fato nesse nível primordial que se constitui o fenôrneno dos "lugares de memória",
antes que eles se tornem umél referência para o conhecimento histórico. Esses lugares
de memória fun cionam principalmente à maneira dos rc111i11dcrs, dos indícios de re-
cordação, ao oferecerem alternadamente um apoio à memória que falha, uma luta na
luta contra o esquecimento, até mesmo uma suplementação tácita da m emória morta.
Os lugares "permanecem" como inscrições, monumentos, potencialmente como do-
cu mentos~º, enquanto as lembranças transrn itidas unicamente pela voz voam, como
voam as palavras. É també m graças a esse parentesco entre as le mbranças e os lugares
que a espécie de nr::; 111c1110ri11c que vamos evocar no início do próximo estudo pôde ser
estabelecida corno método dos /oci.
Esse vínculo entre lembrança e lugar levanta um difícil problema que se torna-
rá maior na articulc1ção da memória e da história, a qual também é geografia. Esse
problema é o do grau de originariedadc do fenómeno de datação, que te m como para-
lelo o problema de loca li zação. Datação e localização constituem, sob esse aspecto,
fenómenos solid,hios que comprovam o cio inscpar,ívcl e ntre a problemMica do tem-
po e a do espaço. O problema é o seguinte: até que ponto uma fenomenologia da da-
tação e d a localii'.ação pode se constituir sem recorrer ao conhecimento objetivo do
espaço geométrico - euclidiano e cartesiano, digamos - e ao conhecimento objetivo
do te mpo cronológico, ele próprio articulado no movimento físico? É a questão levan-
tc1da por todas as tentativas de reconquista de um Lcbenswclt c111terior - conceitual-
mcnte, se não his toricamente - ao mundo (re)construído pelas ciências naturais. O
prôprio Bergson, tão atento cm relação às ameaça s de contaminação da experiência
pura da duração pelas cc1 tegorias espaciais, n ão se absteve de ca racte rizar a memó-
ria-lembrança, comparada à memória-hcíbito, pelo fenómeno de d ataçi'lo. Daquelas
leituras particulares, cuja evocação interrompe a recitação de uma lição, ele diz: "É
como um acontec imento de minha vida, ele tem por essência trazer uma datc1 e, por
conseguinte, não poder re pe tir-se" (Bergson, Mnth'>rc ct Ménwirc, p. 226); e um pouco
ad iante, ao convidar a "imaginar duc1s memórias teorica mente indepe ndentes", ele
observa: "a primeira registraria, em forma d e imagens -lembranças, todos os acon-
tecimentos de nossa vida diória, à medid a que eles SL' desenrolam; ela não deixaria
escapar nenhum detalhe; a cadc1 fato, ,1 cada gesto, deixari,1 o seu lugar e a sua data"
(op. cit., p. 227). A data, corno lugar no tempo, parece assim contribuir p éHa a p rimeira
polarização dos fenómenos mne mónicos di v ididos entre hábito e memória propria-
mente dita. Ela também é constitutiva da fose rcflexiv c1 ou, como di zem, dccla r,1tiva
da recordação; esforço de mernó ric1 é, cm g ra nde par ll', L'sforço dL· d ,1t,1çZ'io: quc1ndn?
h á quanto tempo? quanto du rou? Hu sserl tampouco ese,1 po u à perg unta, bem an -
tes do período d a Krisis, desde ,1s Lt\OIIS ... Niio posso dizn que um som comcç,1,
dura, termina, sem di zer quc111lt1 tl'mpo L'lc dur<1. /\dl'm,1is, di zt• r "B \'l'm depois dL·
!\", é reconhecer um canítcr pri mord i,11 il SLICl'Ss,'i o l'ntrL' doi s tL'nÔrncnos di s tintos:
a consciência d e s ucessão L' um d,H.io origi n,í rio dl' consciC•nr i,1; t.'.• ,1 ~w rccpçc'io dl'ss,1

-tO Sobre ,l rl'bçfü1 Pnl rl' docunwnlu l' 111011unwnlo, n ·r ,1 :--l'gund,1 p;i r tt·, l ,l f'. 1. p. IXh.
l l .-\ \ li IWlR I.\ 1 J}\ RF\ 11,IS( Í.,Cl \

sucessão. Não estJnws di stérn tes de A ristó teles , p zi ra q uem ,1 dist inção do a ntes e d o
depo is é o di scri minante do tempo cm rclziçc'ío ao mc)\'im e n to. A consc iê ncia ínt im,1
d o tem po, enqu,111tn origin á ri zi, já tem , seg undo HusSL'rl , seus ,1 priori que rt'gu l.1111 ,1
s u c1 c1prcensão.
Voltando J memória dos lug,ircs, podemos, na esteir,1 de Cc1scy, te ntíH rccupt'rar o
sentido dtl cspacic1liLfade so bre a concc pçZlo ,1bstratc1 do t'Spaço geOJru.'.• trico. Ek rcscr-
, ·,1, para esta, o , ·occibul,írio do sítio e resen·,1 o do lu gM (pl11t"c) par,1 c1 espacialid ,idt'
, ·i\'ida. O lugar, di z e le, n ão é indifere nte J "coisa " que o ocup,1, o u mclhm, que o
p reenc he, da forma pela qual o lu gar constitui , segundo Aristótt>les, a forma esG1,·c1Lfa
d t' u m \'olume detcrmin,1dn. SJo al g un s de sses lugzi rcs n ot,h ·e is qut' c ham,1m os Lk
m e moréí,·e is. O zi to d e h ,1bit,1r, evocado um pouco zicimc1, cons t itui , ,1 esse respeito, a
m,1is forte li gação hum ,,n,1 e ntre a d c1tc1 L' o lugar. O s lu gzires hc1bita dos são, por ex-
cci<:' nci a, memor,Í n 'is. Por es tilr c1 lembrança t.:\o ligad,1 c1 eles, c1 memór ia dccl,1r<1ti,·,1
se compraz cm c,·cKci- los e d esc re vê- los. Quanto a nossos d es lo c,1mc11tos, os lugc1rcs
sucessi,·an,ente percorridos se r ve m d e rt'111i11dl'l's aos L'pisódios que ,1í ocorreram. SZ\o
eles que, a posteriori, nos parece1T1 hospit,1leiros ou n c'io, num ,1 pa l,n-rc1, h ab itéÍ\"l'is.
Toda,·i,1, no iníc io d c1 seg und a p ,1 r te, na tr<1nsiçc'ín da m emó ri c1 J história, surgir,í c1
qu cs t,1L) de saber se um temp o hi s tó rico, um L'Sp,1ço geogrMin) pode m ser concebid os
SL'n1 o c1u xí li o de c<1kgori ,1s mi s tJ s q ue c1rtic ulcm o te mpo , ·i, ·ido e o es p c1ço , ·i, ·ido
no tempo objctin) e no e s p<1 ço geométri co q u e a epukhi' s ubmeteu ,1 um<1 s u s p ens.'io
metúdi ca e m prol d e um ,1 fl'nom e no log i,1 "pttr,,".
Eis no,·,1mente lc,·c1 ntc1da ,1 ques t,io, di,·ersils \"L'Zl'S e n contr,1d,1, do ca r,íkr ultim c1-
ml'ntl' sustent,ÍH' I d,1 cptikht; hu sserli c1 n c1. 5 l'jcl qu,11 for l'SSe dL'Stino u lterior d,1 nwm ó-
ri,1 da s d,1t,1s e dos lugML'S no pl a no do conhL•cinwnto hi ski ri ni, L' o l'lo entre merrn'iri,1
co rpor,1 1 t' 1T1emór ic1 dos lug cll'CS qul' lt' gitim,1 , ,1 título primordia l, ,1 llL' Ssimplk,H;,1 L1 d n
L'Sp,H;o L' do tl'mpL1 de s uc1 form ,1 objl.'ti, ,1d,1 . O curpo co n s ti t ui , desse ponto dl', istc1,
tl lu g c1r p rimordi,1l, u ,hJUi L'll1 rl' l,11.;,io ,10 qu,11 todos os nu tni s lu g <1res s,iu l,í. '\t'SSl'
,1spL'cto, ,1 s inw t r i,1 t'n t re l'Sp c1cial id ,1de L' tl'm~")or.ilitfodL' é compll'tc1: "aq ui " t' "c1go r,1"
oc u p,Hn ,1 mes m ,1 plls iç,10, ,10 l,1tfo de "L'u ", ''tu ", "e le " L' ''t•l,1 ", e nt rL' os dt.", iticos qu e'
po n tua m noss a li ngu ,1gl'm. 1\ q ui L' ,1gpr,1 con s t itu em, L' m n'rd,1de, luga rl'S L' d,lt,1s ,1b-
Sl.llu to s. M,1s podL'lllllS m,1ntl'r por muito kmpll ess,1 suspL'ns,io dn tempo L' tfo L'Sp,1 ço
nb jdi, c1dos? (\ lSS\.) l.'\ itM lig.ir lll l' U ,1qui ,10 l,í delirni t,1d Ll pL'l\l 1.·11rpo de outrL'lll SL'lll
rL'ClllTL' r ,1 um s1stl'm,1 llL' lu g,1rL'S nl'uln)s., .- \ ll·n o rn L'nolog i,1 d.i nwmLíri,1 dos lu g,HL' s
p,1 n •ce se r ,ip,rn h,1d,1 , dl' sdl' u i 11 kio, num m11, i rrn.' nh) d i,1k,ti cP i 11 tr,rnspon í,cl dL' ,frs-
s i m pi ic,1L/ 1u do t'sp ,1L:P, i, ido L'm rl' l,1<,l ,) ,1L1 l'..;~, ,1ç,) )-',L'lllllL', tri ,:,i L' dl' rL·im~")l il·,h:,iL1 d l'
um PL'lo ,n1 lru , ' 111 tPdl i prun'SSll d e l"L' I.K i1)11,rnw11t< 1 d o p n 'l p r ill (tHn tl ,1llll' ill. l\ 1dl' r í,1-
lll l' s ct1 11 :-,idl'r,H- n l1s (,1mo, i/ inh L1s d L' .i lg uL;lll di fvrl'ntc SL'lll urn cs bPçc1 to p tigrcifiu i.,
F ll ,1 q t1i L' ,1 l,í pPL1L' ri ,1m dL'S t,K,H-Sl' llll ht iri /Oll ll' dl' um rnu11 d(1 C\lllllllll "L' c1 L,11k ic1
d,1s , ·i/ i11 h,111ç,1s CLlllCrd,1s 11,1(1 c s l in' Ssl' prl's,1 11 c1 g r,1dv dL' u rn g r,111dl' c,1 d ,1s t l"\ ) L'lll
Lj LI L' os lu g ,ll'L'S s,'i ti m ,1 is dll Lj ll l' si[ips"> Us rn,1i s lllL'lllLlrc1\L'is lu g ,HL'S 11,10 p ,Ht'tl' ri .im
C,lpcl / L'S Lll' l'XL'rCl'r Sll,l fUll Ç,10 L1L' lllL' llllll"icl l S,' 11 /10 fthSL'111 t,1111bc•rn sÍli os 110l,Í\t'I S lll\
pnntLl de intcrSl'Ç,lt) d,1 p,1i s,1ge m L.' d,1 )-',l't)gr,ifi ,1. Em l'l'SU11lll, LlS lu gcircs dc 11lL'lll,'i ri .i
1\ MFM()Rl1\, i\ HIST(WIA, O FSQL'FCIMFr\H)

seriam os guardiões da memória pessoal e coletiva se não permanecessem "em seu


lugar", no duplo sentido do lugar e do sítio?
Adi ficu Idade que evoca mos aqui torna-se particularmente embaraçosa quando, na
esteira de Casey, colocamos a análise dos fenómenos mnemónicos ligados à comemo-
ração no final do percurso que se supõe afastar a memória de seu núcleo "mentalista".
Por certo, é perfeitamente legítimo recolocar a comemoração no quadro da polaridade
reflexividade/mundanidade41 • Mas então o preço dessa inserção da comemoração no
quadro da mundanidade é particularmente alto: uma vez que enfatizamos a gestua-
lidade corporal e a espacialidade dos rituais que acompanham os ritmos temporais
de celebração, não podemos eludir a questão de saber em que espaço e cm que tempo
se desenrolam essas figuras festivas da memúria. O espaço público, em cujo seio os
celebrantes são reunidos, o calendário das festas, que pontuam os tempos fortes das
liturgias eclesi,bticas e das celebrações patrióticas poderiam exercer suas funções de
reunião comunit,íria (rcligio é igual a rcl('\nrc?) sem a articulação do espaço e do tem-
po fenomenológicos no espaço e no tempo cosmológicos? Mais particularmente, os
acontecimentos e os atos fundadores, geralmente situados num tempo afastado, não
estão Iigados ao tempo ca tend,'í rio, a ponto de este determinar, por vezes, o ponto zero
do sistema oficial de datação 42? Questão mais radical ainda: a espécie de pereniza-
ção, operada pela série das reefetuações rituais para além da morte um por um dos
co-cclebrantes, não faz de nossas comemorações o ato mais loucamente desesperado
para fazer frente ao esquecimento cm sua mais sorrateira forma de apagamento dos
rastros, de devastação? Ora, esse esquecimento parece opera r no ponto de articulação
do tempo e do movimento físico, naquele ponto em que, observa Aristóteles na Físicn,
IV, 12,221 a-b, o tempo "'consome' e 'desfaz"'. É com essa nota de hesitação que inter-
rompo, mais do que acabo, este esboço de urna fenome nologia da memória.

41 l'odl·mos situar t,1 mbém o ;:ito de conwmoraçfüi no par memória-hábito / nwmória-lemb r;:inç,1 . A
nwdi,1çi'io de textos (narrativ,1s fundadoras, m;:inuais litúrgicos) o~wra, nesse aspecto, i'l maneira
dos n•111i11dcrs evocados um pouco acima; nãu há efetuação ritual sem a evocaç,10 de um mito que
orienta a lembrança para o que é digno de ser comemorndo. As comemoraçôes são, a ssi111 , espécies
dl' cvocaçt)es, no sentido de reatuali zação, L'vcntos fund,1dores apoiados pelo "chamado" a lem-
brar-se que soleniz,1 ,1 cerimtinia - n1rncmor,ir, observa C:<1sey, é soleni zar tomando ser i,1 rnen te
() passado e celebrando-o em cerirn{mias apropriadas (CasL'Y, Rc111c111b1·ri11g, op. l°if., p. 223). Uma
abordagt•m mais crític1 do que descritiva do fonônwno público dn comL·moraç.'ío Sl' l"<Í proposh1
na terceira parte, no .'\mbito dl' uma filosofi.1 crítica da hishír ia . SeriÍ preciso prinll'irn at rill'l'SS,H a
cs pessu ra da cpiskmologia do con lwci nwnto h i stúrico. Uma pri nH.'Í ra nwnçi'ío d,1s ci !adas I igadas
,10 elogio das comL'lllOt"<lÇÜl'S ser,í propost,1 no capítulo seguinte, pp. 98-104.
42 l'or certo, ni'ío SL' dcvclll I imitar os atos de comt•moi-.1,-,1(1 üs CL·k·br,içl'íl's religiosas e patriótic,1s;
as louv,1ç{ies l' as pompas fúncbrl"S tc1mbém siio cclt•b rnç1'ícs; cu diria qu l' elas se descnvol \'eram
no tempo dos p<1rentcs l' amigos, a mc ill caminho e ntre a memória priv,1da e ,1 mcmúria soc i,11 ;
mas cssl' tempo dos p,ircntl's l' amigos L' o cspa,·o que cst.'í lig.ido a ele - ccmitc.'·rio, monumento
aos mortos - , rccorta -st' contra o fu11do do espc1çt1 pt"ililico l' do tempo social. Todas a s VL'ZL'S que
0
pro11tmc i,1111 os ou l'SCrc•1•L•mos a frast•: l'l11 nwmúri ,1 de . .. ", i11scrcvcmos o nome ,faquclcs que
tr,lZl'mos :i llll'mt'iri,1 no grnnde I i v ro da co- lcm br,1nça, qu e SL' inscrl'Vl', por s ua vez, nu klll f'º
111,1 ior.
l.l:\ \ IF\l () RI ·\ 11) \ lff\1 1\:ISCf\:C I:\

III. A lembrança e a imagem

Com o título "A lcmbréH1Çíl e ,1 im agem ", atingin1os o ponto crítico de toda a fcno-
nwnologia da memória. J,i não se trata de uma polaridade suscetí,·el de ser abarcada
por um conceito genérico como o de memória, mesmo d esdobrado entre a simples
presença da lembrança - ,1 111/ll'llll' dos gregos - e a recordação, a rccollcction - a
a11a11111t·sis dos gregos. A questão embaraçosa é a seguinte: é a lem brnnça uma espécie
de imagem, e, em caso afirmativo, qual? E se, por uma an,ilise c id ética ,1pro pric1da, se
,·e rificasse ser possí, ·cl dar conta da diferença essencial e ntre imagem e lembra nça,
como explicc1r seu entrelaçamento, e mesmo a confusão entre <1rnbas, não só ao nÍn' I
da linguagem, mas n o plano da experiência ,·iva: não falamos de le mbrança-imagem,
e até da lembrança como de urn a imagem que fazemos do passado? O problema não
é no,·o: a filosofia ocidental herdou-o dos gregos e de suas ,·ariações em torno do ter-
mo cik6 11 ... Certamente, dissemos e repetimos qu e a imaginação e a memória tinham
como traço comum a presença do ausente, e como trnço dife re ncial, de um lado, a sus-
pensão de toda posição de rea lidade e a , ·isc10 de um irrea l, do ou tro, é1 posição d e um
real anterior. E, no entanto, noss21s 21nálises mais difíceis ,·é'io se r dedicadas c1 restabe-
lece r as linhas da tran s ferência d e um a problemática sobre a o utra. Que necessidade
f,1z que, depois de ter sepc1rado a imagin,1çi10 e a memória, se ja p reciso associá-las de
m<1neir21 diferente da que presidiu à s ua dissociação ? Em resu mo: que necessidade
eidética manifesta a express5o le mbrança-im,1gem, que não d e ixou de assombrar nos -
sa fenomenologia da memóric1 e qu e ,·oltar<i com toda força no plano da ep istemologi a
da operação historiográficz1 sob o título da representação hi storiadora do passado.j '?
É Husserl que, amos tomar como primeiro guia n,1 im·estigação das diferenças ci-
déticas e ntre imagem e lembrança . É considercin•I a contribuiç3o de Husserl para ess,1
discus sc"10, em bora sua s análises fragm e nt,íri as, que se este nde m por mai s de , ·inte e
cinco anos, não tcnhc1m res ultado numa obra co nstruída . Porém , di,·ersas del as forc1m
rt' unidds no volume XX IIl das H11sscrlia11a so b o título d e Vors tdf1111g, Bild, JJ/1,mtns ic
(1 89S-1 925J'1, cujo HK,1bulário é imposto pelo estado da discussão, no final do sécu lo
XIX, em torno de pens,1dores tão importantes quanto Brent,1110. essas análises, de
uma paciência e de um,1 honestidade intelectual desconcntantcs, lou,·o pessoalmente
a segunda contribuição principal da fenomenologia descriti,·,1 para ,1 problcm,í.ticc1 da
memória, ,10 lado das ,111,i li ses dcd icadas à rdençc'io e à relt•mbrnnça n,1s duas primei-
ras SL'Ç<"'lt•s das Liçiic_, Ôl' 1905 so /ircn w11scú;11(i11 ínti nrn do tc//Ipo. É justcrn1cntc pMa c1 cur-
rel,1 ç,'í o entre essas du,1s sé ries par21lel,1s qut' dest•jo atrnir a ,1tcnçiio do leito r: ,1mb,1s
tê m c1 ,cr com a ,crtente "objetc1 l" d ,1 Fri1111 crn11s que podl', com r,1/J o, se r dcsign,1da
pelo s ubs tanti \'O " 1L,rnbr,1nçc1".

-1-1 /f11 ,,,·r/io1111, XX III (dl'Jl() t,, d () /Ili / \ \,\ ///1 , \ ,, ,,1.-!/11 11.,;. liild, l '/i,111/,1,it' r /ScJ8- / tJ~ _, J, tc'd,, L'L1Ít,1d,, L'

in tniduzidu ~1ur Edu<1rd \1,,rb,Kh, l)() rdrL·,h t, 1;().., l\lt1 , l .llndrl',, '.\ijht> t t, !LJKtl.
,\ \11 M(ll!I.-\, ,\ IIIST(lRI ,\, () FS<JUl :Cl\11 ' \; !()

De foto, esses textos laboriosos exploram as d ifcrenças específicas que distinguem,


por seus correlatos "objetais" (Ccgc11stii11dlic/1c11), uma variedade de atos de consciên-
cia caracterizados por sua intencionalidade específicél. A dificukfade da descrição não
procede apenas do entrelaçamento dt>sses correlatos, mas também do congestiona-
mento da linguagem por usos anteriores, quer sejam altamente tradicionais, como o
emprego do termo Vorstcll1111g, imperativa m,1s desélstrosamente traduzido por "re-
presentaçZio", quer sejam impostos pela discussZio da época. Assim, a palavra Vors-
tcl/1111g, incontorn,ivel a partir de K,ll1t, agrupava todos os correlatos de atos sensíveis,
intuitivos, distintos do juízo: uma fenomenologia da razão, que Husserl não parou
de projetar, não podi,1 prescindir dela. Mas a comparação com a percepção e com
todos os outros atos sensíveis intuitivos oferecia uma abordagem mais promissora.
É por ela que Husserl optou obstinadamente: ela impôs distinguir urna variedade
de "modos de apresentaç.'io" de alguma coisa, a percepçZio que constitui a "apresen-
taçJo pura e simples", Ccgc11wiirtig1111g, todos os outros atos sendo classificados sob
a rubrica presentificação, Vcrgc:,;cmulirt(1;1111g (sendo o termo traduzido também por
"re-(a)presentaç.'io", com o risco de confundir "re-(a)presentação" e "representaçJo"
-Vorstc/11111g).
O título do volume de Husscrl abrange o campo de uma fenomenologia das pre-
sentificaçõcs intuitivas. Vemos onde pode ocorrer a imbricação com a fenomenologia
da lembrança: esta é um,1 L'spécie de presentificaçZio intuitiva que tem a ver com o
tempo. Husscrl coloca muitc1s vezes seu programa sob c1 égide de urna "fenomenolo-
gia <..fa percepçZio, do Biltf, da Pha11ta~ie, do tempo, da coisa (Uing) ", fenomenolog i,1 que
,linda estcí por fazer. O foto de ,l percepção l' seu modo de apresentação serem tidos
corno rdert'ncia n3o deve lev,H d suspeitar prernatu r,1 mentL' de uma " meta física da
presenç,1" qualquer: tr,1t,1-se cb ,1presentaçi'lo de ,1lgurn,1 coisa corn seu c;1rc1ter distin-
tivo de intuitividade. l'or outro lado, todos os 111,rnuscritos do volume tc'm a ver com
os modos objet.1is, que tê-m corno quinh i'í o d inluiliviLfade, rn,is qm• diferem d,1 pn-
cepç.'io pela não-apresentaçóo de seu objetn. i': o seu lrnço cornum. As d ifcrenç,1s vêm
depois. Quanto ,10 lug,ir da lembr.1nç,1 nesse kquc, ele pl'rm,1nL'CL' determinado d e
mpdo incompleto, enqu,1nto seu L'lo com ,1 cnnsci(·nci<1 do tempo não é estabckcido;
mas esse elo pode se dar no nível dds an,íliscs lLl rl'tençZio e d ,1 n•produçi'lo que pt.'r-
m,1necem nc1 dimens.'ío objet.11. L: preciso, ent;w, comp,irM, corno pede Husscrl, os
m,rnuscritos coligidos no tomo X, " J\ consci{•nci,1 íntima do tc>rnpo", e os do tomo
XXIII d,1s l l11~5a/ii11111. NL·stc último, o quL' irnport,1 t'.· o p,H('lltl'sco com as outrns 1110-
d,1lidadcs de prcs('ntific,1ç.'io. /\ ,1postc1 d,1 ,111,ílisc, rwssl' l'Sl,ígi<\ é il rpJaç.'io cntrc
lembr,1nç,1 L' im,lgl·rn , scndo que il noss,1 p,1h1, r,1 " irnagt•m" ocup,1 o nwsmo ter rl'no
que cl Vi'lxcsc1rn•iiil is1111s de Husscrl. M,lS j,í ll,10 l'l',l l'SSl' O C,lS() (0111 ,l cikii11 dos gregos
(' suas qul'rcl,1s com ,1 p/1011 lt1~il7? V.1mos t'l1l<1ntr,ir l'slc1s com Bild t' /J/1 r111/17-;1,·. Or,1 , t1
lcmbr.1nça tl'm a \'t'r com l'Ss,1s du,1s mocLilid,1tks, comn ll'rnbrc1 ,1 t·numl·r,1c;:i<.1 nP ti-
tulo preferido ck Husscrl, ,1 lJUL' Sl' dL' \'<..' ,Krl'SL-vnlc1r <1 cspcr,1 (f.:1,m1/1111g) , coloG1d,1 do
ml'srno !.ido quL' ,1 lc•nü1r.1nç.i , m,1s no cxtrl'rno oposto da p ,lll't<1 das prcsl'nti fie,1<.:()l'"
ll'rnpornis, como vcmns l,1mbém nos m,1nuscritos sobre o tempo.
!>.\ t\ !l'. !\1\.lln \ 1 l l \ lü\11 '\ I SlT .' \ll.\

Q u él ndo Husse rl fol,1 de Hild, ele est,í pe nsc1ndo n c1s presen ti fi caçôes que desc re-
\'l~m a lg uma coisa de maneirc1 indireta : retratos, quadros, estát u ,1s, fotogra fias, d e.
A ri stó teles ha\' iél d éldo in ício él essêl fen o menolugi êl ao o bsc n ·M q ue um quadro, umc1
pintura podiam se r lidos com o im age m presente ou co mo im age m que designa Uffl cl

coisa irreal ou ausente~' . A lingu,1gem cotidiana, muito irnprecisa, fala, nesse caso,
tanto de imagem co mo de re prcsentaç5o; mas, por vezes, e la se torna precisa, ao p e r-
gu ntc1r o que um quc1dro rep rese nta, do que ou d e quem e le é ,1 imagem. l'oderíamos,
e n t5o traduzir Bild p or "dt;p ídío11 " (represe nt,1ção pic t(nicél), tend o co mo modelo o\ cr-
bo "dt'Jh'Í11drc" (represen tM).
Q uando folél de /J/11111/as íc, Husserl est,í pen sa ndo néls fodél s, n os a nj os, n os diabos
das lend as: trata-se mes mo de fi cçã o (éllguns textos dize m Fík/11 111). /\ liás, Husserl se
inte ressa por eles em razão d e se u s \·íncu los co m ,1 cspont<1rwid ,1de, que é umél caracte -
rís tica de crençél (/iclh:t: diz e le muitas n'zes, segundo o u so d,1 gra nde tradi ção de
líng uél inglesa).
A fenomenologia da le 1nbra nçél est,1 implic ada nessas di stinçôes e nesséls rnmifica-
çC1es. Mas os exemplos propostos n5o poderiam presc indir de uma análise essencial,
e id é ti ca. E as intermirnh·eis análises dt• Husserl são pro\·a tfa difi culdade t•m estc1bili-
zar s ign ificaç<)CS qu e n ão p ara m de ,wançar um ,1s sobre as outras.
Foi él distinção en tre l3íld e JJ/11111t11síc que o perturbou d esd e o iníc io (1898-1 906) -
porté111to, na é poca da s JJcsq11 ísns lôgims, no con tex to de urr1c1 teor ia do juízo e d a 110\·,1
teor ia das s ig nific1ç<)es qu e trou xe p é1 r,1 o primeiro plano ,1 q uestão da intuiti\·id ade
ao título da Eifii'1!1111g, do "preenc hime nto" das intençôt•s s ig ni fican tes. Mai s ta rde,
na época das JdcC/1 , é ,1 mod a lidade de neutrc1lidade próp ri él da Plu111t11sic que passarei
pcll'a o primeiro plano, diante do cc1rMer posiciona l da percepção. lntervirzí tamb6m ,
de certo modo indiretamen te, a questão d,1 indi v iduação d e um a lgo, ope rada pelas
var iedad es de apresentél ções, como se fosse c1 intuiti\·itfade que periodicamente wil-
tasse él pre valecer na e sca la do sabe r. Em outros mom entos, é o afastamento ex tremo
da Plumtnsíc rel élti\'élmente à a prcsent,,ção em cêl rn e t' osso q u e o intriga. A rt11111tc1sic
tende então él ocupar to d o o lu ga r d o \'OCcíbu lo ing lês idca, opos to à i111prcssio11 dos
l'mpiri s t,1 s ingleses. j éÍ n ão Sl' tra t, si mpl es mente de dia bruras, mas ta m bém d e fi cções
pot'ticas o u outréls. É a irltuiti\·ida de n ilo ,1 presentantt' quL' dl'limita o campo. A rri sca r-
nns-L·mos c1 falar tran qüil a m e nte dt• fontasi a, de font ,í s ti co, como os g reg o s?(;\ g rafi a
fr,11KesL1 "phantai s it'" ou "fon ta is ic" PL' rm,1nece, 1:.· 11tã o, c m aberto.) l'c1rn a fl'nomcno-
lngi,1 da le n,brc1n ça , o que importa l' qul' c1 not,1 tcmpor,,I d,1 rl'tl'nção pode juntar-se
i1 t,111t,1si,1 e ri g id a prm iso riame nte t'm gt:·1wn) comum ,1 tod,1s c1s nào-apresentdÇÔl'S.
\ J.1.., (lll1SL' l'\',1-sc o \ ·o cabul cirio d <1 Vor',/c// 1u1;\, quc1ndo Sl' sa li t> nt,1 a intuiti, idc1dl' co-
111un 1 :1s ,1p rese ntaçôcs L' ilS p rese ntifi c,11,/it>s n o c,1111po de u 111<1 lógic,1 fenornenok1gic,1
,Li-. ..,j~:ni fi ( ,HJws_ En t.'io, é u n ic,1nw11k n c1 /J/1,n1/;1', i1· q uL' SL' L1 L'H·rn L' t1 Xl'rt,1r ,1s m,lf'c,1 s

..)'; l\ ,d,·111<1-. h-r 11 .1 t r,1du1.)ll de I knri Du -. ... 1.>rt r1.·\ i,t.1 l'"r C,· r,Hd ( ;r,11w l ,1'- / ., \<'lh ,11r l,r, ,•!h. r,·;; ,·i'
,11 / 1111<' .tu t,·11111, 1ILJl):,- IL/28). ,\ p,1rti r d,, (lri_c;in ,1 1 dl' ''-l' 11.•, t,1. 1( Hl'ri1l't ,·dit,, u ,· prl'1,1,-i, 1 u , 1.., k, t ,h
,·t 'lllf'il' l11l'11LH1 ',.; da ~ /.1\<lll:' (k l lJ()'i ,,1111 (l liluJ, 1 /il! !'/1 ,';;1, 111 ;, ·11,1/,1:,ii' ,/, •, l !il/1'/'<'II /,·i!h·;,·11, , /,,·i;;,
, i ...,'l'.- l'íl::-) /1 11·, --,·1-/ i,rn,1 .\, H,1m bo urg. \ k i1wr. !ll,S ,.
/\ MEMÚRI /\ , 1\ HI Sl()RJ/\, O LSQ U ECIME N TO

temporais da retenção e da reprodução? Sim, quando se enfatiza a não-apresentação.


Não, quando se enfatiza, no caso da lembrança secundária, a reprodução: então, im-
põe-se o parentesco com o Bild que, para além dos exemplos evocados acima, abrange
todo o campo do "representado" (das Abgcl1i/dctc), ou seja, de uma presentificação in-
direta apoiada numa coisa, ela própria apresentada. E, quando se enfatiza a "crença
de ser ligada à lembrança" (Sei11sglm1bc nn dns Eri1111crtc), a oposição entre lembrança
e fantasia é completa: falta a esta o "como se" presente do passado reproduzido. Em
contrapartida, o parentesco com o "representado" parece mais direto, como ao reco-
nhecermos um ente querido numa foto. O " lembrado" apóia-se então no "representa-
do". É com esse jogo de afinidades e de repulsões que Husserl lutará continuamente 4'',
restando como único ponto fixo o tema das presentificações intuitivas, com exceção
de seu próprio entrelaçamento com as modalidades conceituais da representação em
geral, tema que abrange apresentações e não-apresentaçües, portanto, a totalidade das
"apreensões" objetivantes, deixando fora apenas as vivências práticas e afetivas, pre-
s umidamente, é verdade, construídas sobre estas.
O ca mpo não pá ra,assim, ora de ampliar-se a todas asAuffassungc11 (apreensões), ora
de estreitar-se às inumeráveis ramificações das presentificações ou re-(a) presentações.
1mpõe-se, então, o jogo entre o lembrado, o fictício (Fikt11111) e o representado (Abgebil-
dctc), contra o fundo da oposição global à percepção, cujo objeto se apresenta a si
mesmo (Sclbstgcgcnwiirtigc) de forma direta; o representado prevalece sobre o fingido
por seu caráter indireto, pois uma imagem (Bi/d) física oferece suporte. O corte passa,
então, entre a imagem (Bild) e a coisa (Sacl1c, no sentido de res, pmgmatn), a coisa em
questão, não a coisa no espaço (Oi11g).
Ora, se a lembrança é uma imagem nesse sentido, e la comporta urna dimensão
posicional que a aproxima, desse ponto de vista, da percepção. Em outra linguagem,
que eu adoto, falaremos do tendo-sido do passado lembrado, ültimo referente da lem-
brança em ato. Passaré1, então, para o primeiro plano, do ponto de v ista fenomenológi-
co, a divisão entre o irreal e o real (seja ele presente, passado ou futuro). Enquanto a
imaginação pode jogar com entid ades fictícias, quando ela não representa o real, mas
se exila dele, a lembrança coloca as co isas do passado; enquanto o representado tem
ai nd a um pé na apresentação enq uanto apresentação indireta, a ficção e o fin g ido si-
tuam-se radicalmente fora de apresentação. Mas, em rnzão da diversidade dos pontos

46 Um texto das H11~scr/im111, VIII, Er, tc Plii/osopl,ic (1923-1924), texto editado e introduzido por R.
IJol'hm, Haia, Nijhoff, 1959, conta a angústia de Husserl confrontado com a espantosa imbrica-
ção dos fonúmenos considerados : "Aparentemente, a lembrnnçn prest!ntifica, de modo s im p ll'S,
um p assado lembrado, a l's pna, um futuro esperado, a " representação pi ctórica" (A/J/Jild11 11g), um
objt.'to re pre sentado, a fonti1sia , um "fictício" (Fikfwll); da mes ma form a que a percepção se refe rL'
a um percebido. Mas n a verdade niio é a s sim " (ov cit., p. 130; t rnd. P. Ri cceur). N ão é a única \'l' /,
que Husserl se acusa d e erro. Ray mond Kns sis, e xcelentl' conhecedor do corpus husserliano na
s ua íntegra , ind icn-ml' as p.:íg in,1s das H 11sst"rlio1111, XX I V, f i11/l'it 1111s i11 die Lc1g ik 1111d f rk,•1111t11isf /l('o-
ric Vo r/cs1111ge11 (1 906- 1907), texto editado e in troduzido por U. Melle, Dordrecht, Boston, Lo n-
dres, Nij hoff, 1984, dl'dicadas ,1 "di stinção entre consciênciil de Ph1111/11sic e le mbrança pri1mí ri a"
(pp. 255-258) e ,'is "analogias" entre os doi s tipos de prL'sentificações. Trata-se sempre dl' objetos
temporais que impliec1m um,1 °L'Xtens,io temporal".
D 1\ 1\11:~l () RI·\ 1 1) \ Rl:\11:\I SCÍ: '.\l l .\

de \·ista sob os quais os fen ômenos são descritos e da amplitude \·;_ui,1vel reconhec ida
a essas espécies fenon1enológicas, "con sci[•ncia de Bild" e "consciência de Ph1111tasic"
podem, alternadamente, distinguir-se em pé de igualdade pc1ra opor-se urna à ou-
tra ou se incluir reciprocamente num se ntido o u no outro, segundo o lugM que lhes
é reconhecido no campo das prescntificações intuitiv,1s: todo o lugar ou parte dele.
(Ocorre a Husserl rcsen·c1r o s ubstantÍ\'O /Jl1i71lft1s11u1 para esses supor tes da operação
de "representação pictórica ", arras ta ndo a própria /Jlrnn!t1 sic pc1ra o campo de "repre-
sentação pictórica" do Bi/d 4 ~.)
É essa problemática abrange nte Lfa prescntificação que será aba lada na terce ira
seção das Liç(ics pam 11111t1fc110111c110/ogi11 da co11scú•11cin í11ti11111 do tl'JJ1po. A oposição entre
apresentação e presentificaçào continua, porém, a operar no interior do campo obje-
tal dos correlatos da consciê ncia intencional, bem corno a distinção entre lembrança
primária e lembrança secundária, enquc1nto variedades temporais da presentificação,
do "tornar presente" o que não ocorre corno presente no sentido de apresentar. Essas
mesmas análises consideradas a partir da lembrança, e não ITtais do Bild ou da /J/1<111-
ta sic, aumentam a complexidade das coisas. EnquJnto pa ssada, a coisa lembrada seria
uma pura Phm1t11sic 4 ', mas, enquanto dada de no\'o, ela impõe ,1 lembrança como uma
modificação s11i gcncris ,1 plicada à percepção.\"; sob esse segundo aspecto, a P/11711/osic
poria em "suspenso" (1111(~c/rn/,rnc) a lembrança' º, a quJ I seria, po r ca u sa disso, mai s
simples que o fictício. Teríamos, a ssim , a seqüênc i,1: percepção, lembra nça, ficção. Um
limiar d e inatua lidadc é trans posto entre lcmbrançc1 e ficção. A fenomenologia dc1
lembrança deve, então, liberar-se da tutela da fantasia , do fantástico, marcado pelo
se lo da inatu;_1lidade, da neutralidade. Ora, c,·oc1r a neutralidade, como se foz em
Jdccn /, § 111, para situar o fantástico cm relação ao lembrado, é fa ze r intervir a crença:
à certeza comum à série percepçã o, lembrançc1, espera, opõe-se um modo de incerte-
za como a "adm issão" (!\11f11t1/u11c), o "pressentime nto" (A/1111111g); essas modalidades
pertencem ao mesmo cic lo que os "posicionamentos" (Stcll1111g11t1/111111ngcn), gênero co-
mum a todas as modalidades do inatual, do neutro.
A linha de sepélração cor re ass im ao longo da fratura entre apresen tação e pre-
scntificação. A lembrança é urna modificaçi'io específicél d a apresentação, ao menos
enquanto lembrança primária ou retenção, como confirrnclm as primeiras seçôes das
conferências de 1905. Aqui, H11sscrli11110 XX l/1 e H11%crfi17n11 X estão d e acordo, a ênfase
primord ial recai sobre o modo operatório (o u de prestação) (Voll: 11g), que distingue
él reprodução da produção, a inatual idade da atualidade, a não-posição da posição.
Toda possibilidade de confundir a lembrn nça com uma imagem. no sent ido ligado ao
te rmo Bild é dora,·antc excluída. Tudo se decidiu na cena do correl,1to "objetal " das
\' Í\'ências interrogadas.

-17 HUA XX III. Beil,1ge XI II, llJ'. âl., p. 168 e sl'g


-18 HUI \ XXIII, n•· -1, p. 218 l' sq.;. (,mo de 1908).
-19 //L/AXX/ll, n"6,p. 2-lll' Sl'g.
:'ill HLIA XX III, p. 2-15.
/1 MI M()Rl 1\, 1\ IIIST(lRl1\, ll I S(JL!l'Cllvll'.NHl

ldcc11 /, a despeito do aspecto idealista assumido pela filosofia da consciência, não


falarc'l outra linguagem concernente ao "como do preenchimento" das modalidades
intuitivas postas sob o signo da presentificação" O critério de posicionalidade não
1

deixar,1 de se reforçar nos textos posteriores a ldern /: a lembrança pertence ao "mun-


do da experiência" frente aos "mundos d,, fantasia", da irrealidade. O primeiro é um
mundo comum (néio se diz ainda em virtude de qual mediação intersubjetiva), os
segundos são totalmente "livres", seu horizonte é perfeitamente "indeterminado".
Portanto, cm princípio, não podemos confundi-los nem mistur,í-los, sejam quais fo-
rem as relações complexas entre Fikt11111 e possibilidade, e mesmo a irredutibilidade
de um é10 outro. Uma fenomenologia atenta às diferenças eidéticas jamais acaba com
élS distinções ...

Se fosse preciso qualificar a diferença de abordagem entre os exercícios das H11s-


scrlia11a X (que, por sua vez, fazem par com os da primeira seção das Liçi'ics de 1905
solnc a conscih1cia í11tillla do tc111po) e os exercícios relativos à seqüência P/11111tasic, Bild,
Erinncrung, poderíamos dizer que o último volume enfatiza as diferenças entre os
membros da família das prcsentificações, portanto, das modificações que afetam as
ê!presentações do correlato "objetal", ao passo que as Liçiics de 1905 sublinham as mo-
dalidades temporais próprias a essa espécie de presentificação que são as lembranças.
Desse ponto de vista, é extraordin,írio que, nas análises da H11ssali1111a XXI!/, a noção-
chave de apresentação (Ccgcmuiirtig1111g) continue distinta da do presente temporal,
assim corno o tema do agora (jctzt) continua ausente sem prejuízo da análise objetal
da lembrança. Não devemos concluir que não se pode separar o presente, o agora -
noção sobre a qual se organiza a série dos indicadores de temporê!lidadc - , da idéia
de apresentação sobre êl qual se discernem as variedades de presentificação? E, se essa
hipótese de leitura é v;ílida, não é, então, o parentesco entre lembrança e imagem, no
seio da grande família das presentificações, que autoriza rctrospectivamcntc o gesto
de separação pelo qual detive, no momento objetal, n movimento que arrasta o livro
todo das Liçiics de 1905 para a autoconstitução do fluxo de consciência? A transição se
fará sobre o retorno sobre si mesmo, da intencionalidade 11d extra - transve rsal, como
diremos -, ainda em ação na fenomenologia da lembrança, à intencionalidade ad
i11lm, longitudinal, que prevalece na autoconstitução do fluxo. Reataremos o fio assim
rompido no terceiro capítulo da fenomenologia da memóriêl.
Ao final destêl viagem em companhia de Husserl, no labirinto dos entrelaçamen-
tos que dificultam a peregrinação, h,í que confessar que foi coberta apenêls êl metade
do caminho para dar conta da confusão que onera a comparação entre a imagem e a
lembrança. Como explicar que a lembrança retorne cm forma de imagem e que a imêl-
ginação, assim mobili zada, chegue a revestir-se c.fas formas que escapa m à função do
irreal? É esse duplo imbróglio que importa agora desenredar.

.' il !ILIA X L'St,1bell'Cc uma rl.'laçZH1 entrl' ldt·c11 /, § 36 seg. l' HUI\ XXIII, n" 19, referente à opera çiio
L'

constitutiva da fantasia e ú distinçiio entre fantasia L' lembrança cm termos de preenchimento. "A
inll'ncionalidadl' !eticamente n,'\o modificada " d,1 ll'rnhrança impcdl' qualquer confusiio com a
fontasi,1: o corrcl ,110 L-kst.1 l' "a pum possibilid,1de" quantu ií modalidade (HUA XX III, p. 359).
ll.\ i\11:\lllRI .\ 1 1) \ l<l'\ 11 '\ ISCI \. C l. \

Adoto como hipótcSL' de trabalho a cuncepçiio bergsoni,111,1 dc1 p,1ss,1gem d,1 " lem-
brança pura" à lembranç,1-im,1gcm. f,110 de hipótese de trc1bc1lhn, não para dei xar de
me solidarizar com essa bela análise, mas par,1 marcar, dL·sde o início, minha preo-
cupaçZio em separar, tanto quanto possÍH'I , no texto de i\111tái11 e lvlcnl(íria, ,1 d esc riç,in
psicológica da tese met,1 física (no sentido forte e nobre da p,1 ia\Ta) concernente ao
papel conferido ao corpo e ao cérebro l' que, conscqüentemente, afirma a imater iali-
dade da memória. Essa suspensé'io da tese metafísica equi\ ale a dissociar, na lw r,1nça
recebida dos gregos, a noçi'io da cih111 da da l11pos, da impress,io, que lhe foi associc1da
desde o início. De fato, ,1mbas pertencem ao ponto de , ·ista fl:'nomenol()gico, com dois
regimes distintos: c1 cik611 contém em si mesma o outro da afccção original, enqu<1r1to a
t1111os pôe cm jogo a causalidade externa da incitação (ki11 r·sis) que dá origem ao cu nho
do sinete na cerd. Toda a problem,ítica moderna dos " rastros mn é sicos" é, de f,ito, a
herdeira dessa antiga coalizão entre ciU111 e t11pos. A metcifísica de i\fotéria e Mcnuíria se
propôe precisamente a recompor, de maneira si s temMicc1, a relação entre a ação, cuj(l
centro é o cérebro, e c1 representação pura que basta a si mesma eir1 \'irtudl' d a persis-
tência do direito dei lembrança das impres sôes primordia is. É essa rclaçfío presumida
que deixo entre parêntesl'S na análise a seguir' 2 .
A distinçJo que Bergson estabelt•ce l'ntrl' "lembrança pura " e lembrança-im,\?;Clll
constitui a radicali z ação cfa tese das duas mt•mórias, pela qual inauguramos o es boço
fenomenológico precedente. Portrinto, é ela que se encontra , por su ,1 \ "l'Z, radi c,1lizada
pela tese metafísica sobre ,1 qual esttí construída M11tài11 e Akn{(íria. É nessa sit u açcio
intermediária, qu,rnto à estr,üégia global da obr,1, qul' manterL'mos a descriçã o d ,1
passagem da "lembrança pum " à lcmbrança-i magem.
Admitamos, parc1 pôr em movimento c1 c1n,ilisc, que t'xist,1 algo como um,1 " lt•m-
brança pura" qu e ainda não esti'í posta e m imagens. Diremos, um pouco mai s adiante,
de que maneira é possín'I folar dela e como é iIT1portante poder fol<lr dela de m ,1neira
con\·incente. Partamos do ponto extremo atin g ido pela teoria das duc1s mem(iricls.
"Para e,·oec1r o passado sob forma de imagens, é preciso poder ,1 bstrair-Sl' da ,iç,'lo
presente, é preciso atribuir valor ao inútil, é prec iso poder sonhar. T,1 lvez o homem
Sl' ͪ o único ser cap,1z de um esforço desse tipo. ;\demais, o passado, ao qual assim re -
montamos, é lábil, sempre a ponto de nos escap,ir, como Sl' ,1qucl,1 n1emôri,1 rL'grt•ssi\·,1
fosse contrariada pela outrn memória, m,1is natural, cujo mo\ imcnto para a frL·ntl' nos
lc\a a agir e a \'Í\·er" (Bergson, M11tii'rc l'f M énwirc, p. 228). r\cssc cstéigio d,1 anci li se,
para folar da "lembrança pura " dispomos somente do exemplo da lição de co ra d a . E
é por urna es p é cie d e passage m ao limite que esc re ve mos, na esteira de Be rgso n: "A
lembrança esponU\nea é, de imediato, perfeita; o tempo nada poder,í acrescentar à s ua
image m s e m d e turp ,í-la ; e la consL'f\",lrcÍ, para ,1 memória, se u lugar e sua d ,1t,1" (op. cit.,

'i2 Rcsl' n ·o para o c,1pítulu:, d ,1 terceira p,irtl', 11n :ímbito de uma discus:-;,i n sobre u L'Sl]LIL'Cinll'nlu, ,1
qucst,"ín do p,1~wl do cnrp\> L' do c(•rL·brn. no po11l(> dl' ,irt irub ç,10 l'lltrt• um ,1 psicolllgi ,1 11< ) scnt idn
l,1to, L' uma ml't,1tísi(,1 (<_lll(l' bida tundanwnt,1lmL'IltL' como " mct,itísic,1 d,i m,1tL; ri,1 L' b,l:-,L',1Lt1 11 ,1

dur,1ç,10 " (F. VVorm s. /11f r<ld11 d io11 ti " Alt1t1i·rc l'f 1\ 1"111,lirc" dt' /i,·1ss ,n1 . l\iri s. l'UF, col. " I_L'S C r,1nds
1 Í\fl' :-, da philoSLl phiL·", jl)l}7).
i\ M FM(ll{ 1J\, ,\ 11 IST(JRI ,\, () FS(,)U I C1 t\H:NTO

p. 229). A distinção entre uma "memória que revê" e uma "memória que repete" (op.
cít., p. 234) era o fruto de um método de divisão que consiste, em primeiro lugar, em
distinguir "duas formas extremas da memória, cada uma encarada no estado puro"
(í/Jíd.), depois, em reconstruir a lembrança-imagem como forma intermediária, corno
"fenómeno misto que resulta de sua coalescência" (íbíd.) . E era no ato do reconheci-
mento que se operava essa fusão, marcada pelo sentimento de "déjà vu". Logo, é tam-
bém no trabalho da recordação que pode ser reapreendida, cm sua origem, a operação
de composição cm imagens da "lembrança pura". Só se pode falar desta como de urna
passagem do virtual ao efetivo, ou ainda como da condensação de uma nebulosa ou
de uma materialização de um fenómeno e téreo. Outras metáforas se apresentam: mo-
vimento do fundo para a superfície, das trevas para a luz, da tensão para o relaxamen-
to, do alto para as camadas mais baixas da vida psíquica. É esse o "próprio movimento
da memória que trabalha" (op. cít., p. 276). Ele traz, de certo modo, a lembrança para
uma área de presença semelhante à da percepção. Mas - e é aqui que alcançamos o
outro lado da dificuldade - não é qualquer tipo de imaginação que é assim mobili-
zada. Ao inverso da função irrcalizante que culmina na ficção exilada no que está fora
do texto da realidade inteira, é sua função visualizante, sua maneira de dar a ver, que
é exaltada aqui. Neste ponto, não podemos deixar de evocar o último componente do
m11thos que, segundo a Pol'tíca de Aristóteles, estrutura a configuração da tragédia e
da epopéia, isto é, a opsis, sobre a qual se diz que consiste em "pôr debaixo dos olhos",
em mostrar, em deixar vers'. É também o que ocorre com a composição em imagens da
"lembrança pura": "essencialmente virtual, o passado só pode ser apreendido por nós
corno passado quando seguimos e adotamos o movimento pelo qual ele desabrocha
em imagens presentes, que emergem das trevas para a claridade" (op. cit., p. 278). A
força da análise de Bergson está e m manter distintas e, ao mesmo tempo, ligadas as
duas extremidades do espectro percorrido. Numa extremidade: "I1t1ngi1111r não é le111-
bmr-sc. Urna lembrança, à medida que se atualiza, provavelmente tende a viver numa
imagem; mas a recíproca nfio é verdadeira, e a imagem pura e simples só me levará
de volta ao passado se eu realmente tiver ido buscá-la no passado, seguindo assim o
progresso contínuo que a trouxe da obscuridade para a lu z" (ibid.).
Quando seguimos até o fim essa rampa descendente que, da "lembrança pura",
conduz à lembrança-imagem - e, como veremos, bem além-, assistimos a urna in-
versão completa da função irnagificante, que, também ela, desdobra seu espectro des-
de o pólo extre mo, que seria a ficção, até o pólo oposto que seria a alucinação.
Era do pólo ficção da imag inação que cu estava tratando em Tc:mpo e Narrativa
quando opunha a narrativa de ficção à narrativa histórica . É e m relação ao outro pólo,
o pólo alucinação, que ternos de nos situar agora. Do mesmo modo como Bergson

53 Aristóteles, l'oNica, 1450 a 7-9, foz do "espL't,ículo" (opsís ) uma das partes constitutivas da nar-
rativa trágica . Ele coloca a ordenação (kos111os) exterior e visível do poema, da fábula , ao ],ido da
dicção (/cxis) que diz de sua leg ibilidade. l~l'lárirn, Ili, 10, 1410 b 33, diz, sobre a met.ífora, que e la
"p[ie sob os olhos". Encontraremos essa mesma relação entre legibilidade e visibilidade no níve l
da rcprcsL'ntação histuriadorn (segunda parte, cap. 3) .

•, 68 .z>
J.)\ MF\hlRJ.\ 1 [)\ RI\W\ISCl':\l J.\

dramatizou o problema da memória com seu método de cii\'isào e de passagem aos


extremos, importa dramatizar a temMica da imaginação, ordenando-a relati\·amcnte
,1os dois pólos da ficç,10 e da alucinação. Ao nos dirigirmos p,ua o pólo alucin,1tório,
trazemos à luz o que constitui, par,1 a memória, a ci/11d11 do i11rngi11drio, De foto, é essd
memória assombrada que é o alvo comum d,1s críticas dos racionalistas da memória,
Para dar conta dessa ci !ada, pensei que seria apropriado corn'OGH, junto a Berg-
son, outra testemunha, Jean-Paul Sartre cm O !11111gi111irio' 1• Esse' lino admirável indica
o caminho dessa \·irada da problemática da memória, embora não seja esse o seu
propósito. Digo li\TO admirável. De fato, ele começa por uma defesa de urna fenome-
nologia do irreal, retomando, pela outra vertente, o empreendimento de separação da
imaginação e da memória, que tentanws acima. Como est,i n:'ementernente afirmado
na conclusão, a despeito da deriva que ressaltaremos: "a tese' da consciência imagifi-
cante é radicalmente diferente da tese de uma consciência realizante, Vale dizer que o
tipo de existência do objeto em imagem, cnqua nto está c111 i111t1gc111, difere, em natureza,
do tipo de existência do objeto apreendido como real. [... ] Esse nada essencia Ido obje-
to em imagem basta para diferenciá-lo dos objetos da percepção" (Sartre, L'I11lllgi11t1irc,
p. 3-16). Ora, a lembrança estú do lado da percepção, quanto à tese de realidade: "existe
[.,.] uma diferença essencial entre a tese da lembrança e a da imagem. Se me recordo
de um acontecimento de minha vida passada, não o estou imaginando, eu me lcl/1 -
/iro dele, isto é, não o coloco como dndo-t111sc11tc, mzis como dado-presente no passado"
(op. cit., p. 348). É exatamente a interpretação proposta no início deste estudo. Mas
eis agora a revira\·olta. Ela se produz no terreno do imagincÍrio. Resulta daquilo q ue
podemos chamar de a sedução alucinatória do imagin,írio. É a essa sedução que é
dedicada a quarta parte de O /111i1gimirio sob o título de "A \·ida irnaginúria'': "O ato
de imaginação[ ... ] é um ato mágico. É um encantamento destinado a fazer aparecer o
objeto em que estamos pensando, a coisa que desejamos, de modo a podermos tomar
posse dela" (op. cit ., p. 239). Esse encantamento equi\'ale a uma anulação da ausência
e da distância. "É uma maneira de c11cc111n a satisfação ... " (op. cit., p. 241). O "não estar
ali" (op. cit., pp. 2-12-2-13) do objeto imaginado é recoberto pela quase-presença indu-
zida pela operação m,ígica. A irrealidade se encontra conjurada por essa espécie de
"dança diante do irreal" (op. cit., p. 275). Na \erdade, essa anulação estc1va latente no
"pôr debaixo dos olhos", em que consiste a composição em imagens, a encenação da
lembrança-imagem. Nesse texto, Sartre não considerou o in,pacto sobre a teoria da
memória. Mas ele prepara sua comprecnsi'\o pela descrição que foz do que não tarda
em tornar-se uma "patologia da imaginação" (op, cit., p. 285 e seg.). Esta é centrada na
alucinação e em sua marca distintiva, a obsessão, ou seja, "aquela espécie de vertigem
suscitada em particular pela fuga diante de uma proibição ...", Todo esforço para "não
pensar mais naquilo" transforma-se espontaneamente cm "pensamento obscssi\'o".
Come\ diante desse fenómeno de fascinação pelo objeto proibido, não dar um Sêllto no

:;.i jL'an-l'.1ul Sartre, L J111,1g111111re, Paris, C,1JlimMd , 19--Hl; rel'diçi'ío, col. " I oliu 1.•ss,1is", 1986. É L'St,1 t'i l t i--
m,1 cdi çi'ío l]lll' sl'r,í cit,1d,1 <1qui .
i\ MI .M (l RI J\, i\ III ST(lRl i\, O FS(lll:C I MU\ l(l

plano da memória coletiva e não evocar a espécie de obsessão descritos pelos histo-
riadores do tempo presente quando estigmatizam aquele "passado que não passa"? A
obsessão é para a memória coletiva aquilo que a alucinação é parn a memória privada,
uma modalidade patológica da incrustação do passado no seio do presente, cujo par é
a inocente men1ória-hábito que, ela também, habita o presente, mas para "animá-lo",
diz Bergson, não para obsecfa-lo, ou seja, atormentá-lo.
Dessa descrição, por Sartre, da rev iravolta da função irrealizante da imaginação em
função ,1lucinante, resulta um curioso paralelismo entre a fenomenologia da memória
e a da imaginação. É como se a forma que Bergson chama intermedié1 ria ou mista da
lembrança, isto é, él lembrança-imagem, a meio caminho entre a " lembrança pura" e
a lembrança reinscrita na percepção, no estágio em que o recon hecimento desabrocha
no sentimento do déjà vu, correspondesse a uma forma intermediária da imaginação,
a meio caminho entre a ficção e a alucinação, a saber, o componente "imagem" da lem-
brança-imagem. Portanto, é também como forma mista que é preciso folar da função
da imaginação, que consiste em "pôr debaixo dos olhos", função que podemos chamar
ostensiva: trata-se de uma imaginação que mostra, que expõe, que deixa ver.
Uma fenomenologia da memória n5o pode ignorar aqui lo que acabamos de chamar
de cilada do imaginário, na medida cm que essa composição em imagens, que se apro-
xima da função alucinatória da imaginação, constitui um a espécie de fraqueza, de des-
crédi to, de perda de confiabilidade para a memória. ão d eixaremos de voltar a esse
assunto quando formos considerar certa maneira de escrever a história, à moda d e
Michelet, diremos, cm que a "ressurreição" do passado tende, também ela, a reves-
tir-se de formas quase alucinatórias. /\ escrita da história partilha dessa forma das
aventuras da composição em imagens da lembrança sob a égide da função ostensiva
da imaginação.
Eu não queria concluir com essa perplexidade, mas com a resposta provisória que
se pode dar à questão, que podemos dizer, de confiança e que a teoria da memória
trans mite à teoria da his tória. Essa questão é a da confiabilidade da memória e, nesse
sentido, de sua verdade. Essa questão estava formulada no plano de fundo de toda a
nossa inves tigação a respeito do traço diferencial que separa a memória da imagina-
ção. No final de nossa investigação, e a despeito das ciladas que o imaginário arma
para a memória, pode-se afirmar que uma busca específica de verdade está implica-
da na visão da "coisa" passada, do q11c anteriormente visto, ouvido, experimentado,
aprendido. Essa busca d e verdade especifica a memória como grandeza cognitiva.
Mais precisamente, é no momento do reconhecimento, cm que culmina o esforço da
recordação, que essa busca de verdade se declara enquanto tal. Então, sentimos e sa-
bemos que alguma coisa se passou, que algum a coisa teve lugar, a qual nos impli-
cou como agentes, corno pacientes, como testemunhas. Chamemos de fidelidade essa
bu sca de verdade. Falaremos, doravante, da verdade-fidelidade da lembrança para
dizer essa busca, essa reivindicação, esse clní111, que constitui a dimensão epistêmico-
veritativa do orthos logos da memória. Seri:Í a tarefa do estudo seguinte mostrar como
a dime nsão e pi stêmica, vcrit11tív11 da memória se compõe com a dimensão prag111áticn
ligada à idéia de exercício da memória.
2
A Me1nória Exercitada: Uso e Abuso

Nota de orientação

A
11/1ord11gcn1 cog111f1t'll, cxpo.,ta 110 c11pít11/ci prcccdc11te, 11110 1'::.gott1 11 dcscriçiio d,1 111e-
111ána co11:,1demda do ponto de , 11::. /11 "11l 11Ctt1!". Oe, 1c111r1_, dr n·sCt·11t11r 11 e/11 1111111 ahor-
dagc111pmguuít1c,1. Ess11 11m 1a co11 sidcmç,10 se 11rtic11/a 1111 pru11cim da -;eg11111tc fiJJ 111a:
h'n1/1mr-sc é 11110 so111c11tc acol/1cr , rccc/1cr 1111u1 i11lllge111 do p11Ss11do , úl/110 ta111/,(;111 /i11s(â -/11,
)á:cr" 11/gl{J1111 coisa. O , cr/10 " /e111/1mr- se" _fi1: p11r con1 o s11hst11nth •o " lr·n1hmJ1ç11'' . O que esse
1

, 'rT/10 dcsign11 r; o _fi1to de ,111e II n1rn1ciri11 t; " exacit111ia " . Om, 11 11tiç,10 de cxcrcfcw , 1111/in1d11 t1
111e111ôri11, 11r10 r; 111e11os aII tig a do que 11 de ci kt"i n , de represcH taç/io. f li II to 11 etc " /n1sc11" ( zi'ti·sisJ,
c/11hri/111111ofirn111111enf(1 dos conceitos ;;ocnítin>s. N11 esteiro de Stiuatcs , P/11tt10 ndt i lit':'>lfll e111
dc-./ocar seu discurso so/ire 11 eikc}n pam o t'1n11po dns " fc'c11ims i111it11th 1as", e c111 disting ui r
1111111 11ti111dica ''.fím!as 11uític11 " , c11g11nos11 por destino, e un111 111i111dic11 " icô11ic11 '' , consiâcr,1d11
"correta" <orthos), "1. nfdirn" (ali·thinos!. Prir s11,1 , c:, Aristótl'ic-., 110 c11pít11/o " J\1111n111r'sis"
1 1

de -.c11 curto tratado co111 título duplo, dcsc-rc,'e II rccordnçi'io co111{i 1111111 '' /1usrn", cnqu11 nto 11
mnr'mr'fclÍ c11raclt'ri:11d11, no pri111ciro ct1pít11/o, ct11no " 11fé·cç110" rp,lthosJ. Nossos do is 111csfrcs
sregos :,;e nnfccip17111, 11ssi111 , 110 que será clia11w1ft1 e~f,nço de 111t·111ôrit1 por Bergson e tm/1111/1t i de
U'IIICII/Ort1ç110 por Freud, co1110 , 1cre111os c111 ÍJn','l'.
O_ti1to 11ott1uc! é que 11s d11t1s 11bord11ge11s, r'(\1;11 ith 1a e pmg1111itict1 , ., e rc1í11c111 1111 opcmçdo d11
rt'(ordaçdo; o rcco11/,cci111ento, t]IIC coroa 11 l111sc11 /Jc111-s11cedida, dcc;ig1111 11_fácc cog11ilirn dt1 rc(o r-
daçi'ío, 110 passo que o esféirço e o tra/](1//,o se i11scrc, c111 110 m111po prático. l\.csc rrnrc111os dom, 111/-
1 1

tc o tcn110 rcmcmoruçiio p11m sig11ifirn r css11 supcrposiçi'io 1u1 111cs111t1 opcmç,io d11 ,111amnt·sis,
dn 111edit17ç110, da rccordt1 ç1h1, d11s duas pro/ 1/c111tífic11s: cognitirn e pmx111átic11 .
Esse dcsdo lmm1e11 to cn t rc d i111cns1i(1 cri_i.: n it im e d i111cns110 pmg111tít ic11 11ce11 t /111 11 cspccitici-
dt1dc dt1 111c111círi11 entre os h'11 rí111c110 ..; que depe11dc111 do deno11Ji1111çtio psíq11ic11. A esse respeito,
o t1to de _{t1:cr 111c111órir1 1•c111 i11scn·ucr-sc 11t1 lista dos poderes, d11:,; copnâdadcs, que dcpe11de111
da categoria do " c11 posst i ", pam rcto111t1r ti c.i:11rc_ 11 1 • Mos parece que o
.::.s110 rnm a A1crlcau-ront _

Eu mes mo nw ckdiqul'i , L' m SI 111cs 1110 ,-,1111,i 11 111 ,n1 / n 1• º/ '· t'it., ,1 lr,ll,ir u1111,1 m ,111ifr•sL1,JlL's mL'il t ip l,h
d.1 poti:•11eia fu11d,1mL' l1l,1 I dl' ,1gi r opl'r,1ç,-1L·~ t r,1dicio11,1 lnwntc .1 tr ib uíd,1 s ,1 pniblc m átic,1~ d i~tin-
t,1 ~. ,\ llll'smc1 , ·ir,1d,1 pr,1g m,ític,1 L' d ,1d,1 L'lll c 1d,1 um ,1 d ,1~ g r,1ndcs SL'</ll'~ do tr.ib,1lh <1: ,·11 17,,,;,11
t<1l,1r, c11 posso agir, <' li p1>,,t1 {me) contar, l' ll posso imputil r minh,1s ,H/l l'S ,1 mim ml's mo como ~L'll
\'l'rdild l'iro ,1utnr. :l. g 1>r,1 di go: me lc mbr,H. '\l''-'-L' sentido, ,1 irncstig,1<,·,io dos tL·n t) mL'llll" mm· -
A ML\ifÚRI A, /1 IIISH>RIA, O ES()Ul -:C IMF NTO

ato de fa zer 111e111órin te111 o apanágio de c?fcreccr ao olhar da descrição l/1//a sobrci111pressão tão
co111plda do af-uo cog11itivo e da operação prâticn 11u111 ato IÍ11ico, como é a r1:111cmomção, herdei-
ra dirctt7 da anamnt•sis aristotélica e indireta da anamnesis platô11ica.
Essa originalidade do fi'11Ô111 c110 11111c111ô11ico é de c11on11c i111portli11cia para toda a scqiiência
de 11ossas invcstigaçôcs. De fato, ela caracteriza ta111bé111 a operação historiogrâfirn c11qw111to
prrítica teôrirn. O historiador e111prec11dc "fazer história", co1110 cnda 11111 de nôs se dedica a
"fazer 111c111ória". O conji-onto entre 1He111ória e históri(I se dt7rfÍ, q111111to (10 essencial, 110 nível
dessas duas opcraçéics i11divisa111c11te cognitivas e prátirns.
A t7posta últi11w d(I i1111estig11ção que se segue é o destino do z1oto de fidelidade, que vi1Hos
ligado ao ah.10 da 111c11Tôria enquanto guardii'i da prof1111dczn do te111po e da distância temporal.
De que 111a11eirn, q11a11to a essa (lpos tt7, as vicissitudes da 111e1Hória cxcrcitaifa são suscetíucis
de i11te1fcrir na m11biçiío vcritati'ua da me111óri11? Respo11dat11os 11u111a palavra: o exercício t1(1
11ze111ôria é o seu uso; ora, o 11so co111port1111 possibilidade do ab11so. E11tre 11so e abuso insinua-se
o espectro da "miJ11éticn" i11correta. É pelo viés do ah11so que o alvo veritatiuo dn 111e111ôria está
111aciça111e11te 11111c11ç11do.
As prígi11as que vc~11111 seguir visa111 a esboçar 11111a tipologia, em gm11dcs !iniras, desses abu-
sos da 111c111ôria. Eles siio, 11 cada vez, corrc/11cio11ados com 11111 aspccto da 11u'111ôri11 exercitada.
Porc111os de parte as procws da ars mcmoriae, esta arte celebrada por Frn11ccs Yates 2; os
excessos que ela ocasio11ou são os de 11111n 111c111ôria artificial que explora 111ctodirnn1c11te os re-
cursos d11 operação de 11u'1110riznção que queremos distinguir c11idndosa111e11te, a partir do p/11110
da 111c111ôrit7 11at11ral, da n.'111e111ornção, 110 sentido li111it11do de evocação de fatos si11gulares, de
aco11tcci111e11tos. É aos a/1//sos da 111rn1ôria 1rnt11ral que será depois dedicnda 11111nior seçiío deste
capítulo; irc111os distribuí-los e111 tn~s planos: 110 plano patolôgico-ternJ.1l1utico serão evidencia-
dos os distlÍrbios de u11w 111c111ôria i111pedida; 110 plano propriamente prático, os da 111e111ôria
111anip11/nda; 110 plano Nico-político, os de 1111111 111c111ôria ab11sim111e11te convocnda, quando co-
111c111oraçiio rillla co111 rrn1c111omçiio. Essas 11l1Íltiplas forma s do abuso salic11t11m a v11/11ernbili-
dade fu11da111e11tal da 111c111ôria, que resulta da relação e11tre a a11sência da coisa le111hrnda e sua
presença 11a forma da reprcsc11t11çiio. A alta pro/Jlc11wticidi1de dessa relação rcprescnt11tim co111
o passado é csse11ci11/n1c11tc cvidc11ci11d11 por todos os alJ/l sos da 111c111ôria.

mônicos que aqui pmp omos con stitui um capít ulo suplementar numc1 a ntropolog ia fi losófica d o
homem que .ige e sofre, do homem capa z .
2 Fra nces A. Yatl's, T/1c Art of' Mc111ori1, Londres, Pimlico, 1966; trnd . fr,rnc. de D. Arasse, L'Arf de /11
1111'111oirc, Paris, Ca llimard , co l. " Bibliothcque des histoires", 1975. A paginaçi'io citad a aqui {, a da
ediçiin o r iginal. Ed içiio brasileira, A ortc do Jllt'IIIÔri a, Editora da UN ICi\ ~11', 2007.
D,\ \ff\1ClRI \ 1 Il \ Rl: \ IJ N JSC Í:t\C 1.\

I. Os abusos da memória artificial:


as proezas da memorização

Há uma modalidade do ato de fazer memória que se d,i como 1--··mítica por excelên-
cia, a saber, a memorização, que importa distinguir rigorosamente da re memoração.
Com a rcmemoraç,1o, enfatiza-se o retorno à consciência despertada de um aconte-
cimento reconhecido corno tendo ocorrido antes do momento em que esta declara tê-lo
sentido, percebido, sabido. A marca temporal do antes constitui, assim, o traço distin-
tiw1 da recordação, sob a dupla forma da evornção simples e do reconhecime nto qu e
conclui o processo de recordação. A memorização, em contrapartida, consiste em ma-
neiras de aprender que encerram saberes, habilidades, poder-fazer, de tal modo que
estes sejam fixados, que permaneçam disponíveis para uma efetuação, marcada do
ponto d e vista fenomenol(Jgico por um sentimento de facilidade, de desembaraço, d e
espontaneidade. Esse traço constitui o correspondente pragmático do reconhecime nto
que conclui a recordação no plano epistemológico. Em termos negativos, trata-se de
um a economia de esforços, ficando o sujeito dispensado de aprender novamente para
efetuar urna tarefa adequada a circunstâncias definidas. O sentimento de facilidad e
representa, então, a face positiva dessa efetuação bem-sucedida de uma lembrança,
que Bergson diria "agida" mais do que "representada ". Desse ponto de vista, pode-se
considerar a memorização como uma forma da memória-h,í.bito. Mas o processo d e
men10rização é especificado pelo caráter construído das maneiras de aprender \'Ísan-
do a uma efetuação facil , forma privilegiada d<l memória feliz.
Torna-se, então, legítimo o projeto de descrcn,'r as maneiras de aprender \·isando a
uma tal efetuação fácil do ponto de \'ista das técnicas de aquisição, e de tentar discer-
nir as folhas pelas quais o abuso pode se insinuar no uso. Seguiremos uma ordem de
complexidade crescente em que as oportunidades do mau uso aumentarão na medida
da ambição de domínio exercida sobre o processo inteiro de memorização. Porque 6
mesmo nessa ambição de domínio que reside a possibilidade de resvalar do uso para
o abuso.

No grau mais bai xo, \'amos encontrar as técnicas dependentes do que se chama
t1prc11di:agc111 cm psicologia experimental. É para delimitar cuidadosamente o ca m po
da aprendizagem que falo cm termos ge rais e abrangentes de "maneiras de apren-
der" . A aprendizagem, habitualmente associada à memória nas obras especializadas,
procede de uma biologia da memó ria ' . De foto, a aprendizage m cons iste na aq uisição,
por um ser vi\·o, de comportamentos nm,os que não faze m parte do repertó rio dos
poder-fazer ou habilidades he rdados, ge ne ti camente programados, ou d epe nd entes
da epigênese cortical. Para nossa pesquisa , o importante é que o domínio da aquisição
p ertence ao ex perimentador que conduz a ma nipulação. É ele que d e te rmina a tarefa,
/\ MJ\,1(>RI/\, /\ lllSIÚRI/\ , O FS(l UIT ll\1FNTO

define os critérios de sucesso, organiza punições e recompensas e, assim, "condiciona"


a aprendizagem. Essa situação constitui a forma mais oposta à da ars 111c111ori11c que
mostraremos no final deste percurso e que será o fruto de uma disciplina, de uma
"ascese" - a nskt,sis dos socrcHicos, que significa "exercício" - , da qual o aprendiz
será o próprio mestre. Ao falarmos de manipulação, não estamos denunciando um
abuso; queremos apenas caracterizar o tipo de domínio que preside à experimentação.
Unicamente a manipulação em meio humano, tal corno evocaremos adiante na sua
relação com a ideologia, merecerei ser marcada com um estigma de infâmia. Entretan-
to, podemos, já nesse nível, e sem sair do plano psicobiológico em que são montadas
essas experimentações, submeter a urna crítica apropriada a condição de domínio da
manipulação dos seres submetidos a essas provações. Na época do behaviorismo,
considerava-se que estas davam uma base experimental de verificação a "modelos"
dependentes de hipóteses do tipo Estímulo-Resposta (ER). A crítica de autores como
Kurt Goldstein, aos quais Merleau-Ponty faz eco em Jl estrutura do co111port111//c11to e
Canguilhem em O co11/1ccil/lc11to dn ,iida\ refere-se essencialmente ao caráter artificial
das situações em que um animal, até mesmo um sujeito humano, é posto sob o ccm-
trole do experimentador, diferentemente das relações espontâneas do ser vivo com o
seu ambiente, tais como as que a ciência etológica apreende em ambiente aberto. Ora,
as condições da experimentação não são neutras quanto ao significado dos comporta-
mentos observados. Elas contribuem para mascarar os recursos de exploração, de an-
tecipação, de negociação do ser vivo, pelos quais este entra em debate com um U111wcf t
que lhe pertence com exclusividade e que ele contribui para construir.
Essa discussão nos interessa na medida em que as maneiras de aprender que agora
vamos considerar podem, por sua vez, oscilar entre a manipulação, ou seja, o domínio
exercido pelo mestre, e a disciplina que se espera do discípulo.
De fato, é da dialética do mestre e do discípulo que depe nde m os exercícios d e me-
morização inscritos num programa de educação, de paidcia. O modelo clássico é bem
conhecido: consiste na rccit11ç110 da lição decorada. Santo Agostinho retórico se compraz
em derivar sua análise do triplo presente - presente do passado ou memória, presen-
te do futuro ou expectativa, presente do presente ou intuição - de um exame do ato
de recitar um poema ou um versículo bíblico. Recitar de me1nória, como se diz, sem
hesitação e sem erro, constitui uma pequena façanha que prefigura outras maiores,
como mostraremos mais adiante. Ora, antes de nos exaltarmos contra os abusos do "de
cor", precisamos ter le mbrado as ra zões de ser de seu bom uso. No âmbito do ensino,
que é apenas urna parte da p11idci11 como veremos, a recitação constituiu, por muito
1

tempo, o modo privilegiado de transmissão, controlado pelos educadores, de textos


considerados, se não fundadores da cultura ensinada, pelo menos d e prestígio, no
sentido de textos que têm autoridade. Porque, afinal de contas, é mesmo de autoridade
que se trata em ültima instância, mais precisamente de autoridade enunciativa, para

4 Ceorges Canguilhem, La Coi1Haiss1111n· dl' la vic, Paris, Vrin, 1965; rccdiçiio, 1992. Sobre K. Cold-
stcin, ver o capítulo "Lc vivant ct son milicu " (pp. 143-147) .
l)t\ \11 \l(ll<.I\ 1 !l.\ IU\IINISCIVI. \

distingui-la da autoridade institucional". Nesse sentido, tocan,os aqui num conceito


político, na acepção mais fund,1rnental, atinente à instauração do vínculo social. Não
se concebe i1bsolutamcnte uma sociedade que não faça cruN1r, no vínculo horizontal
do ,·i,·er juntos, o \'Ínculo vertical da autoridade dos Antigos, segundo um \'elho adá-
gio e\'ocado por Hannah Arendt: "Potcstns /11 pop11fo, t111ctoritt1s /11 sc1111tu". A quest,10,
eminentementl' política, é de saber quem é o "senado", quem sào os "Antigos", e de
onde procede sua autoridade. A educação se estende aquém desse problema e corno
que ao abrigo de seu questionamento cm termos de legitimidade. De fato, indepen-
dentemente desse enigma da autoridade - cerne daquilo que Rousseau chamava o
"labirinto do político" - , toda sociedade tem o encargo da transmissão, atran5s das
geraçôes, daquilo que ela considera su,1s conquistas culturais. Aprender é, para cada
geraçào, fazer a economia, como sugerimos acima , do esforço exaustivo de reap ren-
der tudo a cada \·ez. Foi assim que, nas comunidades cristàs, aprendemos, por muito
tempo, a recitar o catecismo. Mas foi assim que foram ensinadas as regras da escrita
correta - ah! o ditado! - , mais as da gramática e da aritmética. E ainda é do mesmo
modo que aprendemos os rudimentos de uma língua morta ou de uma língua estran-
geira - ah[ as declinaçôes e as conjugações gregas e latinas! Ainda crianças, aprende-
mos parlendas e estribilhos; depois, fríbulas e poemas; nesse aspecto, não fornos longe
demais na guerra contn1 o "decorado"? Feliz quem ainda pode, como Jorge Sernprun,
murmurar no ou\·ido de um moribundo - Maurice Halbwachs, que pena! - os \'er-
sos de Baudelaire: "(.) morte, velho capitfto, é tempo, le\'antcmos a c'incora ... nossos
corações, que tu conheces, estão cheios de raios ... " Mas o ''decorado" não é apanágio
unicamente da escola de outrora. Muitos profissionais - médicos, juristas, cientistas,
engenheiros, docentes, etc. - recorreram, durante sua \·ida, a uma copiosa me mori-
zação de habilidades apoiados em repertórios, listas de itens, protocolos, ma ntidos
disponíveis para uma atualização oportuna. Todos, supostamente, dispé\em de uma
memória exercitada.
E isso nfto é tudo, nem o uso pedagógico, nem o uso profissional da memorização
esgotam o tesouro das m,1neiras dl' aprender sancionadas por uma recitação sem erros
e Sl'm hesitação. Cabe e\'(JCar aqui todas aquelas artes que Henri Couhier coloca sob o
título genérico de artes em dois tempos- dança, teatro, música" - , em que a execução
é distinta da escritura da obra confiada a um libreto, a uma partitura , a urna inscrição de
algum tipo. Essas artes exigem, de seus praticantes, um penoso treinamento da memó-
ria, com base numa repetição obstinada e paciente, até obter urna execução ao mesmo
tempo fiel e inm·adora, em que o esforço prévio se faz esquecer sob a aparência de uma
improvisação feliz. Como não admirar aqueles dançarinos, aqueles atores, aqueles mú-
sicos que gra\·ararn, por \'ezes, fabulosos rcpertórios que eles "executam" para nosso
deleite? Sào verdadeiros atletas dc1 memória . Talvez sejam eles as únirns testemunhas

:, Ct;r.ird Lcclcrc. H1 ..; /pirt' de /'1111/orit,;_ 1.·,i.;,i,,; u,1/i, 1 11 d,·.; 1;11om,•, ,·11/t 11 r,·I~ i'I /11 _.;:/111•0/os_ic d,· ia c nivi1 11( i',
l'<His, PUF, çp]." SociologiL' d 'aujourd ' hui ". ]lJ,'>6.
li Henri Gouhicr, / ,. n,,:,11n· d n:.\'Í,/i'l l ( i', l'<Hi'-', ,\ubiL'I", lY52.
/\ Mt:M ()({ I J\, A HIST()l{I/\, O I:S(..)U FCIMI:\:10

indiscutíveis de um uso sem abuso, a obediência às injunções da obra inspirando-lhes a


humildade capaz de temperar o legítimo orgulho da façanhc1 realizada.
Gosto de evocar, no terceiro estágio de nosso percurso atra vés das maneiras de
aprender, a longa tradição que elevou a memorização à posição d e uma ars 111c1110riac,
digna do nome de arte, de técnica. Frances A. Yates dedicou-lhe, sob o título de Tlic
Art of Mc1110ry, um trabalho que se tornou um clássico na matéria 7• O nome latino não
é consensual: trata-se, de início, dos processos rnnemotécnicos recomendados e pra-
ticados pelos retóricos latinos: o autor desconhecido do Ad Hcrc1111iI1111 (identificado
erroneamente com Cícero pela tradição medieval), o próprio Cícero - denominado
regularmente Tullius - , Quintiliano. Porém, o mito fundador não é romano, mas gre-
go. Refere-se a um famoso episódio que se passou por volta d o ano 500 antes de nossa
era, no término fatal de urna festa oferecida por um rico mecenas em homenagem a um
rcnomado atleta. O poeta Simônides de Qucos, por outro lado evocado com simpatia
por Platão, foi convidado a pronunciar o elogio de um atleta vitorioso. Oportunamen-
te chamado para fora da sala do banquete para encontrar os semideuses benévolos
Castor e Pólux, escapa à ca tástrofe que soterrou atleta e convidados sob os escombros
do recinto do elogio. Esse destino ditoso bastou para o mito grego, cm que o poeta se
revela abençoado pelos d euses. Mas os latinos conhecem uma continuação que con-
vém à sua cultura da eloqüência. O poeta teria sido capaz d e d esignar, de memória, o
lugar ocupado por cada con viva, e, assim, no dizer de Weinrich, " identificar os mor-
tos segundo sua localização no espaço ". Uma fabulosa vitória sobre o esquecimento
- essa catástrofe simbolizada pela morte súbita - é significada pela façanha. Mas é ao
preço de um duro tirocínio que anexa a arte da memória à retórica. Essa arte consiste,
quanto ao essencial, cm associar i111agc11s a lugares (topoi, /oci) organizados em sistemas
rigorosos, como numa casa, numa praça pública, num cenário arquitetural. Os precei-
tos dessa arte são de duas espécies: uns regem a seleção dos lugares, os outros a das
imagens mentais das coisas d e que queremos nos lembrar e que a arte atribui a luga-
res escolhidos. As imagens assim armazenadas são consideradas fáceis de evocar no
momento oportuno, a ordem dos luga res preservando a ordem das coisas. Do tratado
Ad Herc1111i!l111 - uma vez que os tratados gregos anteriores se perderam - destaca-se
a definição lapidar que será repetida de era em era: "A m emó ria artificial (artificiosa)
consiste em lugares e em imagens". Quanto às "coisas" figuradas pelas imagens e pe-
los lugares, trata-se de objetos, de personagens, de acontecimentos, d e fatos relativos a
uma causa a defender. O importante é que essas idéias estejam vinculadas a imagens
e que esses tempos sejam armazenados em lugares. Reencontramos aqui a velha me-

7 Frances A. Yiltes, Thc A r/ o( Mi' /11ory, op. cit. Por s uil vez, Hilrald Weinrich está e m b u sca, em Lcthc.
K1111st 111uf Kritikdcs Vergcssc 11s (Munique, C. H . I3t_•c k, 1997; trilduçi\o francesa d e Diane Meur, Utf1ts.
Ar! e/ crit ique de J'o1t/1/i, Paris, F11 y11rd, 1999; a pag inação cit11d11 aqui é a do origi n a 1), d e u ma even-
tua J ars obliPionis que st•ri il o s imt'•tr ico d essa "arte dil memóri il", historica m e nte bem atestada. Ele
dedica a estil a s primc irils p.íginas de seu trabalho, tornando-se a memori z11çi'io, d e preferência i'l
rememoração, o eixo de refe r(~nc ia p11ra uma hi stúria liteníria d o esquecimento, c ujos meandros
niio siio menores do que os d o rio mítico, Le tes, que deu nome il se u trabalho. Voltilremos a esse
tem,1 nn terceira parte, cap. 3.
, ) \ vt n 1( , R 1.·\ 1 1i \ ,~ , , 11 :,..: 1se f·, u .\

tMora da inscrição, com os lugares desempenhando o papel da tabuinha de cera, e as


in,agens, o Lfas letr.1s inscritas sobre elas. E, por detr,ís dessa rnetMora , ressurge a que
é propriamente fundadoré1 , oriunda d o Tcctcto, da cera, do sinete L' da impressão. Mas a
nm·idade consiste no fato de não serem mais o corpo- e\·entualmcn te o cérebro - ou
a alma unida ao corpo o suporte dessa impressão, mas a imaginélção considerélda uma
potência espiritual. A mnemotécnica que,, ela se aplica lom·a a imaginação, da qual a
memória se torna o anexo. Ao n1esmo tempo, a espacializaç,10 obli tera a tempor,1liza-
ção. Não a espacialidade do corpo próprio e d o mundo que o cerca , mas a do espírito.
A noção de lugar expulsou a marca do anterior que, desde o De 111c11wrin ct rc111i11is-
cc11ti11 de Aristóteles, especifica a memt'Jria. A lembrança não consiste mais em enKar
o passado, mas em efetuar saberes aprendidos, arrurnados num espaço mental. Ern
termos bergsonianos, passamos para o lado da me mória-hábito. Mc1s essa memória-
h,-íbito é uma mem ó ria exercitada, culti\·ada, educada, esculpida, diriam alguns textos.
São \'erdadeiras proezas que agraciam a memória fab ulosa d e ,·erdadeiros atletas da
memorização. Cícero quc1lifica tais performances de "q uase divinas".
A tradição que procede dessa " institu ição oratória", para u sar o título do tr,1tc1do
d e Quintiliano, é tão rica que nossa discussão contemporânea sobre os lugares de me-
mória - lugares bem reais, inscritos na geografia - pode ser considerada a herdeir.1
tardia da arte da m emória artificial dos gregos e dos latinos, para os quais os lugares
eram os sítios de uma escrita mental. Se, por trás do Ad HtTC1111i11111, a tradição d e,,e ter
sido longa e \'ariada, remontando não só ao Tcctcto e ao seu apólogo do sinete na cera,
mas tc1mbém ao Fcdro e à sua famosa condenação de uma memória entregue c1 "mar-
rns" exteriores, quão mais não terá s ido ela d e "Tullius" a Giordano Bruno, cm quem
Frances Yates vê culminar a 11rs 111c111oriae! Quanto ca minho percorrido de um termo
ao outro e quantas re\'ir,woltas! Pt'io menos três dentre e les pontuaram essa estran h,1
epopéia da m emória memorizante.
Em primeiro lugar, vem a reinscri ção, por Santo Agostinho, da retórica dos latinos
numa interpretação decididamente platónica de um a memória mais ligada ao funda -
mental do que c1os acon tecimentos. Enxamos, já no início deste trabalho, o De 111c111ori11
do Livro X das Co11fissiics: além do famoso exórdio sobre os "palckios " e os "armc1-
zéns" da memória , nele encontra1nos o apó logo do sinete na cera, retomado pelo tema
das "efígies ". Ademai s, o ato de recitar é tido como suporte da análise da recordação.
Mas g uard aremos principalmente a exclamaçfio: "Crande é o pode r da mernó ric1 !" É
mesmo o poder exercido no ato de fazer memória que é o objetivo de toda a tradição
da 11r;:; 111c111ori11c. Mas Santo Agostinho teme també m o esquecimento, que ser<í clara-
men te esquec ido no apogeu da ars 111c111orit1c.
Com a segunda re,·iravolta, a ar~ 111c111or ioc passa por uma mo ra lização completa
por parte dos escolásticos medievais; e isto, na base de urna s urpreenden te conjun-
ção entre a retórica j<í moralizada de Cícero - "Tu llius"' e a psicologia aristotélica do

8 C ícno legou ,lOS nw d ie\'ili s vj rios esc ritll~ rl'tóri<.'OS i mpllrt,i ntt's: De orotore, De i m •c11/ io11,· (dtl qual
o /\ d Hcrc1111i11111 é cun s ider,1do i1 seg unda partL') e as l)i:,;p11/ ,1~ /11 ;;( 11 /111111;; (T11;;( 11/111111c di.,p11/,1l it111 ,•;;)
qut· haviam L'XL'r c ido um,1 intlut:•nc ia dl'c isi\·,1 11,1 conversi'i,, de Santo /\gost inho. Ílli n prinwiru
/\ Ml'M (l RI ;\ , A III S'l (l lll /\ , O 1:S(JL! l'CIMI N T U

De n11í111n e do De 111c1110rí11 ct rc111í11íscc11ti11<). Este último texto, p articularmente, tratado


como um apêndice ao De 1111Í111n, foi muito caro aos medievais; São Tomás fez-lh e um
comentário detalhado. A memória se encontra, pois, inscrita e m diversas listas: é uma
das cinco partes da retórica, ao lado da í11tclligc11tín e da prouidc11tín, retórica que, por
sua vez, é uma das partes entre as se te artes libe rais (gramática, retórica, dialética,
aritmética, geometria, música, astronomia); mas a memória é também uma parte da
virtude d ,1 prudência, a qual figura entre as virtudes maiores, ao lado da coragem, da
justiça e da temperança. Assim, multiplamente enquadrada e, por esse viés, subme tida
a uma memorização de segundo grau, a memória dos medievais é objeto de elogios
e de cuidados especiais, como é de se espe rar de uma cultura que conhece a escrita, é
certo, mas não a imprensa, e que, além disso, levou ao pináculo a autoridade enuncia-
tiva e escriturária: mestres do pensamento gregos e latinos figuram como a11ctorit11tcs,
ao lado das Sagradas Escrituras, dos textos conciliares e das obras de doutores da
Igreja. Desde o alvorece r da Idade Média, Alcuíno, que Carlos Magno encarrega ra de
restaurar o sistemc:1 educativo da Antigi.iidadc no Império Carolíngio, pode declarar a
seu imperador que a me mória é o " tesouro de toda s as coisas"; todas as coisas: artigos
de fé, caminhos virtuosos que levam ao paraíso, caminhos perniciosos que leva m ao
inferno. Pela memorização, são i11c,i/rndos, na base de "notas de memória", todos os
saberes, habilidades, saber-crer, saber-viver que balizam a caminhada para a beatitu-
de. Desse ponto de vista, a Scc1111da Scrn11d11c da 511111n Tcológicn de São Tomás constitui
o documento maior dessa instrução de razão e de fé da qual a ar:; 111e111ori11e se tornou
a depositária e o org1111011. Ao mesmo tempo que a razão e a fé, a devoção recebe a sua
parte com as imagens eloqüentes do Infe rno, do Purgatório, do Paraíso, eles mesmos
considerados como lugares de inscrição dos vícios e das virtudes, lugares de memória,
no sentido mais expressivo da palavra. Não é de admirar, então, que esse trajeto da
memorização conduza, muito além dos feitos da memória individual, à D ivi11n Co111M in
de Dante. Os lugares percorridos tendo como guia Virgílio e, depois, Beatriz, cons ti-
tuem outras tantas es tações para uma memória meditante que alia à reme moração das
figuras exemplares a memorização dos ensinamentos maiores da tradição, a come mo-
ração dos acontecimentos fundadores d a cultura cris tã 111 • À vista dessa magnífica série
de metáforas dos lugares espi rituais, os feitos da memória artificial se mostram der-

latino a fa zer d a mt•móri a, no final do De i1111c11Jio11c, uma pa rte da virtudl' da 11rnd{'/// i11, ao lado da
i11tcll(1;c11 tia l' dn p rouidc11 tia.
lJ Na verdade, a her,1t1ça nwdil'val d e Ari s tó teles conccrnl'nte b mem ór ia é tripl il. Prim e iro, o
subs titu to oferl'cido íl mdn fo r,1 da imprl'ss,io do sinl'tl' n a cera (p rinwi ro Cilpítulo do De 111i·111ori11
C'I n •11Ji11i~cc11tia); d e p o is, a ilSSociaçii o entre me múr ia e ím ag inaçJo, d e que se di z, no Dc a11i111a,
que "é impossível p e nsar SL'tn im ,1gcns"; enfim , a inclu si'io da rnnemo ti'·cni cil e ntre os processos
d,1 reco rdação arra zoada da lcrnbrnnça 11() seg undo capítulo do De 1111'11H1rio (escolh,1 d l' um pon-
to de partid a, s ubida l' de scid,1 ao lon go de SL'r ies a ssoc ia ti va s, l'lc.).
10 l'odcrl'mos ler a s bl'las p,ígi nas dcd icadas n Da nte por Yates l'l11 T!,c /\ r i of Mc111ory, op. r it., p. '1()4
e scg., e por Weinrich cm L1,1/ic, op. cit. , p. 142 l' SL'g. Segundo este, ,1 topologia d o ,ilém, à qual o
poet,1 cheg ,1, por sinal, depois d e beber a úgua do esquec imento, fo z dl' Dante o Ccdiic/Jt 11i~11w11 11, o
hornl'rn d a memória (i /Jid, p. 145). Wl'inrich não conhl'Ct:' nad a igua l b Dá>i1w Co1J11 ;dia il niio ser o Em
Husrn do tc111po padido, de Ma rcl'I Prou st.
risórios. Era mesmo prec iso uma memória poética para transcender a oposição entre
memória natural e memória artificia l, para pulverizar a oposiçt\o entre uso e abuso 11 •
Não é o que acontL'CL'rá no tL'rmino da terceirt1 revira\'olta.
A terce ira n:.•,·ir,l\·olt.1 , que afeta o destino da memória artificial, é marrnda pela
união da mnemotécnica e do ~cgrcdo /icrn1aico. Ciordano Bruno, para quem conn.>r-
gem todas as análises de Frances Y,1tes, L' a figura emblemé1tiG1 dessa nm·,1 e quase
derrndeira fase do incrín~I percurso da 11r~ 111c11wri11c. A arte e m questc:io tornou-se arte
mágica, arte oculta. Preside a essa metamorfose a con cep ç{lo, apresen tada como um a
re ,·elação, como a quebr,1 de um segredo, de um sistema d e corres pondências entre os
ílstros e o mundo inferior. A arte consistL' em colocar, sobre os círcu los concêntricos d e
um,1 " roda " - a urmfo dc1 memória "-, segundo o princípio d e uma correspondência
termo a termo, a posição dos astros, a t,íbuô das virtudes, a coletânea das imagens
expressi\'as da , ·id ,1, as lis tas d e conceitos, a série das figuras humanas heróicas ou san -
tas, todas as imagens arquetípicas concebí,·eis, enfim, tudo o que pode ser enumerado,
posto em ordem de sistema . O que 6 cnt.'io confiado à m e múria, é um poder di,·ino,
aquele que confere o domínio ,1bsoluto de uma arte combin atória entre a ordem dos
astros e a terra. Trata-se ,1inda de "coloc.1r" as imagens em lu gares, mas esses lugares
sc1 0 os astros e essas imagens, cls "sombras" (o prime iro li,-ro sobre a memória publicc1 -
do por C. l3runo intitula -se De 11111/,ri~ idc11ru111, 1582) cm que cons istem os objetos e os
cKon tecimentos do mundo inferior. Essa ,·crdadeira "alquimia" da imaginação, como
diz Frnnct'S Yates (Tl1c l\rt ofMc111ory, p. 220), preside a urna mnemotécnicô m ágica que
confere a quem a possui um poder sem limites. A desforrcl d,1 reminiscência platónica
e principalmente neoplatónica sobre ,1 psicologia aristoté lica da tnL'mÓria e da recorda-
ção é total, mas ao preço (fa transform,1ç,10 da especulação racional em mistagogia.
Sim, "grande é o puder da memória ", seg undo Santo Agostinho; ma s o retórico cristão
não s,1bia a que excentricidade esse elogio da m e mória feliz podia conduzir. E Cícero
podio chamar de "q uase divinos" os fei tos d e uma memó ri a exercitada; mas nem
e le podia prever a que excessos se prestaria a memória ocultc1 de um homem d o Renas-
cimento, clqucle que Yates cha ma de "o mago da memó rio " (op. cit., p. 297).
Eu gostaria de enKar, para concluir este nipido ,·ôo sobre a ar~ 111c111ori11c, ,1s qucs-
tôes que lcvontél Frances Yates clO termo de seu próprio p e rc urso, antes de escre,·er a
espéciL' de pós-esc rito que constitui seu t'd timo capítu lo intitulado "The art of memo ry
and thc grovvth of scientific rndhod " (op. cit., p. 154). C ito Yatcs: " Há uma pergunta à
qual não posso dar res posta clara o u satisfatôri,1: o que foi, então, a memória oc ulta?
A mudança que a conduz, da forma ção de s imilitudes corporais do mundo intelig í,·el,
ao esforço para se a poderar do mundo inte ligín'I ao p reço de fant,ísticos exercícios da

11 Fr,1 n(L'S Y,1tcs ,:llnd ui 11L'Stt•-. tl'rmos '> L'LI c,1~0 ítu l(, "\lll'die\·,1 1 nwn111n· ,1nd tlw iorrnM ion of im.ige-
r:·": " l)u p onto Lk ,·i..,t,1 d ,1 prL'Sl'nk ubr,1 , qlll' cn1Knm• princip,1lnwntl' :i hi s tór ia ulll'rio r d a MIL',
0 iund,1nwnt.il l'ntc1ti z,1r qu1.' ,1 a rtt> d ,1 ll1L'tnÚria u r ig inou-sl' n,1 kl.1c!P \-léd i,1 . Su,1s rn ,1is p rofundas
r,1ÍLL'S L'stiio num p assado ,1 ltamcnll' \'l.'11L'I"<ÍH·I. F ,w sai r dl'ssas (1rigcns pn1fund,1s t' m isteri(1s,1 s
ljllL' l'l,1 Sl' dt•rra m ou séc ulos ulteriorl's, m,1rc,1da pl'lo c unho de um it•n·or relig ioso L's tr,1nh,1-
rncnk 01mbin,1do cnrn () n1 idado mm·m o técnico que lhe foi ,1p li c,1do n.i iLfode Médi,1" (T/1(' ; \ ri of
,\ lt'/1/()rl/, º!'· , it .. p. 11.'s).
/\ MEM()R I A, A III SH) RI A, O FSQUFCIMF N TO

imaginação - como aqueles a que Giordano Bruno d edicou s ua vida - fez a psique
humana atingir um grau de desempenho criador superior àq uele nunca atingido no
plano da imaginação? É esse o segredo do Renascimento, e a memó ria oculta represen-
ta esse segredo? Lego este problema a outros" (ibid.).
O que responder a Frances Yates? Não podemos contentar-nos em registrar o fato
de que a história das idéias não deu continuidade a essa cu ltura obstinada da memória
e que um novo capítulo foi aberto com a noção de método, com o Nov u111 Orgnnon d e
Francis Bacon e o Discurso sobre o método de Descartes. Afinal, a ars 111e1110rinc, com seu
cul to da ordem, tanto no plano dos lugares quanto no das imagens, era, a seu mod o,
um exercício metódico. É no cerne do empreendimento que é preciso buscar a razão de
seu eclipse. Francis Bacon va i direto ao ponto crítico quando denuncia a "ostentação
prodigiosa" que moti va profundamente a cultura da memória artificial. Desde o início,
é em termos de façanha, de prod.ígio, que essa arte é louvada. Uma espécie de embria-
guez - Kant falaria d e Sclrwiinnrrci no sentido de entusiasmo e, ao mesmo tempo, de
intoxicação - insinuou-se no ponto de articulação entre memória natural e memória
artificial. Uma embriaguez que transformou em seu contrário a modéstia de um duro
tirocínio iniciado nos limites da memória natural, cujos poderes, isto é, ao mesmo tem-
po a amplitude e a exatidão, sempre foi legítimo procurar reforçar. Porque é mesmo
a noção de limite que está cm jogo aqui. Com C. Bruno, a transgressão dos limites é
levada ao seu auge. Mas quais limites? Fundamentalmente, é o limite que s ugere a
relação da memória com o esquecimento 12• A nrs 111c111oriac é uma recusa exagerada d o
esquecimento e, aos poucos, das fraquezas inerentes tan to à preservação dos rastros
qua nto à sua evocação. Correlativamente, a ars 111e111oriae ignorn a pressão dos rastros.
Como foi sugerido uma primeira vez, por ocasião da discussão sobre a metáfora platô-
nica da tupos, da impressão, a noção fenomenológica de rastro, distinta da condição
material, corporal, cortical da impressão, se constrói na base do ser-afetado pelo aconte-
cimento do qual se torna, a posteriori, testemunho por narração. Para a memória a rtifi-
cial, tudo é ação, nada é paixão. Os luga res são soberanamente escolhidos, s ua ord em
ocu lta a arbitrarieda de da sua escolha; e as imagens não são menos manipuladas que
os lugares aos quais são destinadas. Duplo d esafio, pois: do esquecimento e do ser-afe-
tado. A enfatuação final está latente nessa recusa inicial. Grande é, por certo, o poder
da memória, declara Santo Agostinho. Mas este não ig norou o esquecimento, como
observamos já nas primeiras pcíginas deste livro; ele avaliou, aterrorizado, suas amea-
ças e d evastações. Ademais, dessa recusa do esquecimento e do ser-afetado resulta a
preeminência concedida à memorização à custa da recordação. A valorização das ima-
gens e dos lugares pela 11rs 111c111oriac tem como preço a negligência do acontecimento

12 Wcin r ic h vê css.1 recu s.1 do esq uecimento em .1ção j.í no episúd io grego d .1 faça nha de memória
.1 tr ibu íd a a Simôn ides restituindo o lugar a cad.1 morto do b.1nq uete fa t.1 1. Segu ndo Cícero, o poctil
teria proposto a Tcmís toclcs, ban ido d e s ua pMria, c ns iniH-lhe a prodigios.1 .1rte de "lembrar-se
d t:> tudo" (ut 011111in 11H·111i11is::;l'I). O gra nd e homem teria respondido que preferiil a ar te de esquecer,
Cilpilz de poupiH-lhc o sofr ime nto de se lembr.1r d.1qu ilo que ni\o quer e de não poder esquecer o
que guer (Weinrich, Lethc, op. cit., p. 24). Scr.í preciso volta r ilesse .1ssunto no momento de tratar o
esq uecimento como umil grn ndcz.1 com direito próprio.
Dt\ MF\,ll\R I ,\ 1: 1)\ Rl\,11'\; ISCJ:\: C I -\

que esp a nta e surpreende. Ao romper assim o pacto da memória com o passado em
prol da escrita íntima num espaço imaginário, a ars Jlh'//Ioriac passou do feito atlético
de uma memória exercitada àquilo que Yates denomina jus tamente uma "alquimia da
imaginação". A imagi nação, liberada do serviço do passado, tomou o lugar da memó-
ria. O passado, enquanto ausente da história que o conta, constitui o outro limite da
ambiciosa mnemotécn ica, além do esq uecimento, sobre o qual diremos mais tard e até
que ponto ele é solidário com a preteridade do passado' ' .
Há duas maneiras de dar conti nuid ade a essas considerações principia is, que rein-
troduzem a idéia de limite num projeto que a exclui. A primeira é restituir sua medida
a uma cu ltura da memorização nos limites da memória natural; a segunda é lc\'ar em
consideração os abusos que se enxertam no uso, uma vez que este constitui um modo
de manipulação sob a forma da m emória artificial. É às modalidades de uma arte de
memorização contida nos limites da memória natural que são dedicadas as últimas
considerações desta seção. Da magia da memória iremos, pois, nos retirar em direção
a uma pedagogia da memória, isto é, de um enquadramento da cultura da memória
por um projeto educativo, Assim, somos levados de volta à discussão iniciada mais
acima a respeito do uso e do abuso da memorização na edu cação. Mas voltamos a ela
tendo em mente os episódios principais da fabulosa história da memória artificial.
Na ve rdade, não foi o poder de uma imagi nação levada aos extremos que foi Yisa-
do no processo da recitação decorada, naquela mesma época do Renascimento que
fora testem unha dos feitos da memória artificial, mas a a utoridade da herança cultural
transmitida pelos textos. Para esses críticos, o asno costuma\'ª ser designado como
o animal emblcmMi co da memória tola, \'ergando sob a carga dos saberes impostos:
"Só se fazem asnos carregados de livros" 1'1, diz Montaignc. É notável que a crítica da
memória memorizante tcnh,1 coincidido com o elogio do i11gc11 i11111, o gênio, o espírito,
no sentido dado a essa palavra por Hckécio em Do cspírito Houve, assi m, urna fu são 1
" .

da defesa do método, remontando a Ramus, e a defesa do i11ge11i11111 , que tem latente a


cultura da imaginação criadora. A fu são se faz na noção de ju ízo, cara aos partid ários
da s Luzes. Mas, no próprio cerne do juízo, o entendimento raciocinador não conseguiu
refrear o i11gc11i111 11. Pro\',1 disso é a re\'Olté1 de Rousseau contra as Luzes. É, então, cm
nome de um i11gc11i1t111 seh-agem que este d esfere na cultura d a memória, mesmo natu-
ra l, os mais rudes ~olpes: "Émilc nunca aprender.i nada de cor, nem mesmo fábulas,
nem mesmo as de La Fontai ne, por mais ingênuas e encantadoras que scjarn" 1'' .

11 Ed\,·ard C,lSL'Y L'\·nc,1, no início d,1 obr;:1 que cit,1rnns ,1bundnntenwnll' n,1 L'studo ,111terior, I./.,•111e111-
l>cri11g, n dan n Cil u s,1li,, ,1 ml'móriil , nn ~ent id,1 prec isn d e rem c m ,1r,1çZH1, ~wl,1 crítica dc1 p ed,1gl)gi,1
pL' l,1 memória , comn st• n prnccsso da nwmorizaç,10 SL' L'Stendt'SSl' dl' furmc1 indiscri min,1da ao
processo da renwrno r,1ção, L'm pnl\'l'it(1 dl' um,1 cultur,1 (',q11cúdiç11.
!--i !\·lontaigne, F.ss,ii.,, 1, 26, c itado por H. \Nl'inri c h , qut' não dcix,1 de L'\'()CM, 1wssl' omll'xto, S,1nchn
l\inça e SL'Ll burro, Cl)11t1-.1s tandn cum n "enge11hL)So" cavall' iro d a t ri s lL' figurn (Weinrich, / .t'l/1,·,
,1,,. cit., pp. 67-71 ).
1:i H. WL•in ric h se co111pr,1L l'l11 cit,H L'SIL' dito dl' 1kh-0cio : "O g rc1ndl' cspírit,1 n .'10 suplil' ,1 gr,1mk
mcmú ria; acresct' nta rL"i ml'smo qul' a L'X IL' Jb;'i(l L'Xt rem,1 do pri 11lt' i ro L' ,1bso lut,1 mt·nll' t'.xcl u ~i \ ' <1 d ,1
SL'gu nd ,1" (WL"inri c h , if,id, p. 78) .
lh Cit,1do por H. WL'inrich, il>id ., p . 90.
,\ Ml'. Mt)RI/\, A HISIÚRI/\, O ES(.?Ul·.CIMF N TO

Podemos então indagar se, naquele momento, a crítica da memória memorizante


não ultrapassou seu objetivo. Ao abuso por excesso com G. Bruno corresponde um
abuso por falta com J.-J. Rousseau. É verdade que não é a mesma memória que é cele-
brada por um e rebaixada pelo outro. O excesso do primeiro afeta a 11u'111orin artificiosa,
o abuso por falta do outro prejudica a memória natural que, também ela, reclama o que
lhe é devido. Voltam-nos, então, à mente, para além do uso escolar da memorização,
as proezas respeitá veis da memória profissional, a dos médicos, dos juízes, dos pro-
fessores, etc. e a dos artistas da dança, do teatro, da música . A bem da verdade, nunca
nos livramos da memorização.
Antes de virar a página da nrs 111cmoriae, eu gostaria de faze r, com H. Weinrich,
urna breve digressão acerca do esquecimento. Dissemos acima que a nrs 111e111ori11e era
movida pelo desejo exorbitante de " nada esquecer"; um uso comedido da memori-
zação não implica também um uso comedido do esquecimento? N ão se pode falar
de "esquecimento m e tódico", na esteira de Descartes? Se, de fato, a dúvida metódi ca
induz uma rejeição refletida de toda pedagogia pela memória, e n esse sentido, implica
certa estratégia do esquecimento, a regra de recapitulação do Discurso sobre o 111étodo
não constitui um uso metódico da me mória, mas d e uma memória natural liberta d e
toda mnemotécnica? Não se pode, da mesma forma, falar de "esquecimento esclareci-
do", segundo o espírito das Luzes? Esquecimento esclarecido que, no sentido próprio
da palavra, serviria de grade de proteção contra uma cultura teimosa da memória
me morizante? Será necessá rio voltar a esse terna no momento oportuno, quando ten-
taremos dar à nrs 111c1110rinc o simétrico, que seria a nrs oblivionis, segundo o desejo de
H. W einrich em Lct/1c 17 . Por enquanto, essas sugestões convergem p ara a defesa d e um
uso comedido da rememoração- cm nome de urna justn 111c111ôrin -, idéia à qual dará
corpo, em um momento, nossa reflexão sobre os abusos de uma memória manipulada
pela ideologia . Nu m certo sentido, a superação poética da memória artificial por Dante
e o esquecimento metódico à maneira de Desca rtes nos reconduzem, cada um a seu
modo, à rica problemática da mem<iria natural.

lI. Os abusos da memória natural:


men1ória impedida, memória manipulada,
me1nória comandada de modo abusivo

É a umzi tipologi,1 dos usos e 11b11sos da memória na tural que o presente estudo será
de ,1gorn e n1 di,rntv dt·dic.1do. /\ via nessa direção foi trilhada por Nietzsche na Segun-
da Cousid1'/'/l\íÍU i11lt ' JIIJ)('s/h•o, cujo título e; eloqü cnk: D11 11/i/idadc e dos iuco1n1c11ic11tcs
da J11st, ír ia p1m1 11 "c 1du. /\ m,11wirc1 de intcrrng,.r inauguni da por esse texto une numa
1

sem iologi ,1 cornpkxc1 <1 tr,1t,rn1e11to mt;dico dos si ntom,1s e o trata mento filológi co dos
l l ·\ \,11"\l()J{I \ 1 l l. \ I" \ 11:\ ISl'I' '.\ ( 1 \

tropos. A polêmica aqui le ,·,rn tad a cert,rn1ente di z resp eito, primeiro, à his tória, m,1is
p re cisamente à filosofic1 dc1 histó r iil q ua nto ao lu gc1r desta na cul tura. Méls ela d ,i o tom
pilrn um trntilmen to semelhante da memóri,1, m a is precisilmen te d,1 memória coleti,·a,
c1 qu,1 1, co mo repetirei no in ício do próximo estudo, constitui o solo de enraizamento
d ,1 historiografia. Como fo i dito no início do presente estud o, é e nquanto exercido que
a nwmória cc1i sob esse ponto d e , ·ista.
P,1r,1 ev itar um u so m,1 ciço e indiscriminado da noçiio d e c1 b uso de memória, p ro-
ponho a seguinte g rad e dt• leituras. Corneça rt•i por di ,·iscH um il a bo rdagem franca-
m e nte patológica qu e pôe em jogo ca tegorias c línicas L', e,·cn tu a lme n te, terapê u ticc1s,
em p res tadas princ ipc1lmente da ps icanzílise. Te n tarei res ti t uir c1 essc1 p a tologia s u a
m ,1gnitude e s u a d cnsid,1de ao , ·incul,í-la a Jlgun1c1s da s experiê nc ias h um anas m,1is
fundamentais. A seguir, délre i lugar a fo rmas conccrta d c1s d e 1T1c1nipul a çiio ou d e ins-
tntmL'r1tc1lização dc1 m t• móri,1, que dept•n d em de uma crítica das ideologic1s. É nesse
ní,·e l mediano que as noçl'ies d e abuso de nwm<iri a e, acrescentemos d e imediato, de
abuso de esquecimL'nto, são ,1s mziis p ertinentes. Finalrnentl', gostar ia de resen a r para
um ponto de vist,1 normc1tivo, fr,rn canwntl' 6tico-político, ,1 questiio do den:' r d e me-
lllt)ri,1; esse ponto de , ·is t,1 normati,·o dt'\T ser c u idadosc1nwn te di s tinguido do p o n to
d(• , ·ist,1 anterior com o qual é muito freqÜL'ntemcntc confundido. Assim, esse pe rcu rso
de ní,·e l e m n íve l torn<1r-sc-c1 u m percurso dt' figura em fi g ur,1 dos u sos e ,1busos dc1
memórizi, desde zi mem() ri zi i111pcdido ,1té a memória obrigada, p,1ssc1ndo pela nwm óri ,1
1111111ip11 /ad11.

1. Ní,·cl patológico-terapê utico: a me mória impcdid ,1

É rll'SSl' nín' I (' dc sSL' po nto dL' , ·ist,1 qm' se podl' leg itirn,, mL~tltl' fa la r e m lllL'lll(·lr i,1
.táid11, L' até m esmo c11fÍ'f'11111. Isso é a test,1do por cx prl'SSt)l'S C() r rcntcs co rn o tr,1um ,1tis-
m o, ferime n to , cic,1tri/l'S, de. O emp rego d esses ,·oc,íb ul os, e k s mesm os p ,1téticos,
n,'io deixa de colocir g r,l\'L'S cl ificuld,1des. A té quL' ponto, indc1g<1rl'lllos primeiro, L'St,1-
mos ,wtori zados ,1 ,1~1 licc1r <l mcn1líri,1 cok ti,·a c,ltcgor io1s fo r j,1d i.1s no debate analítico,
pnrt,rnto, num nÍH·l intL>rpessoc1l, m,ircado prinçip,1lnwntc pcl,1 mcdi,1ç,io da tr,111 s-
fL•r(•nc i,1? Ess,1 pri1neirc1 dificukfodc scr,i ddi11ili,·,rnH.'lltL~ su~1c r,1cl,1 a p c 11,1s 11P fim d(l
pn'l:-.:imo ca pítu l(). r\dmi tirl'mos ,1qui , p1·0, isori,lllll'llk, u, ,llllr ()~1nc1tór io do nrnCL'il()
de nwmóri,1 co kti,·,1; p() r ou tro IMl11, () USll q u e ck•ll' ~l' r-Í fv il u ,1 seguir nllltribuir,1
ptlStl'ri()r m c rltL' p,11\1 ,1 ll'gitimo1ç,1(, ,kS:-,L' L-() Jll' L'ilo prnblvm,1ti1.:ll. ()ut r,1 d iti,-u k L1d('
de,·l, L'nco nlr,1r ,1qu i çvrtc1 rL'So lu çt1(1 : p(1d l'-S(' indo1g,1r L'lll l] Ll l' nwdid ,1 urn ,1 p ,l l(1 l()g io1
d ,1 lllL'lll(1r i,1, p() r l.i n h l, 11 t r,1t,lllll'llt() d ,1 11w1111'i r ic1 n1111<1 J't1//i11,. ~l ' insnl'\'l' 11urn t1 in , l'~ -

tig ,1ç:io ',() brc () L''\LT(Íl' i11d,1 nwml'1r ic1 . ..;11bn· c1 !t'!,/11 1 lll llL'llH·11,il·,1. . \ d ific u ldc1dl' L' il(l\ ,1:
( ) l]Ul' l'St,í l'lll j1)g() :-,,l (l ,l lll'r,ll/ H''.'> i11di,·id u c1 i~ l ' (() ll'ti, ,b dL· , ·id ,h cl () LISll , :1 ~· r,itil·,1 d,l
lll l ' lll l ll' 1,1 .
l\ na n os orivnl,1rrnu:,, 1wss.1 dupl,1 d itiL-ukL1dv, fll'll:,,l'i :--vr t1p ro~1 ri,1do reunTL'r ,1
dlliS cns,1ios n o t,í, l'i " dv Freud l' Ulm~1c1r,i - l1):--, (l l]llL' (l ,iut,lr n,iu ~·,Hl'CL' kr tl'itll. O
1\ ",1J'\1(JRIA, i\ IIIST()l{IJ\, ll ES(JLICll'vll N 1()

primeiro, datado de 1914, é intitulado "Rememoração, repetição, perlaboração" 1H. No-


taremos logo que o título compreende somente verbos, o que indica o pertencimento
dos três processos ao jogo de forças psíquicas com as quais o psicanalista "trabalha ".
O ponto de partida da reflexão de Freud é a identificação do obstáculo principal
no qual o trabalho de interpretação (Dc11t1111gs11rbcit) esbarra no caminho da recorda-
ção das lembranças traum,Hicas. Esse obstáculo, atribuído às "resistências do recal-
que" (Vcrdrii11g11ngswidcrstii11dc), é designado pelo termo "compulsão de repetição"
(Wicdcrlzo/1111gszw1111g); uma de suas características é uma tendência à passagem ao ato
(Agicrcn), que Freud diz "substituir a lembrança". O paciente "não reproduz [o fato
esquecido] em forma de lembrança, mas em forma de ação: ele o repete sem, obvia-
mente, saber que o repete" (Ccs11111111cltc Wcrkt\ t. X, p. 129). Não estamos longe do
fenômeno de obsessão evocado acima. Deixemos de lado suas implicações quanto ao
esquecimento, pois a elas voltaremos no capítulo sobre o esquecimento, na terceira
parte. De resto, a ênfase recai na passagem ao ato e no lugar que ele ocupa à revelia do
paciente. O importante, para nós, é o vínculo entre compulsão de repetição e resistên-
cia, assim como a substituição da lembrança por esse duplo fcnômeno. Nisso consiste
o obstáculo à continuação da análise. Ora, além desse olhar clínico, Freud enuncia
duas propostas terapêuticas que serão para nós da maior importância no momento
de transpormos a an,ílise clínica ao plano da memória coletiva, como nos conside-
ramos autorizados a fazer nesse estcigio da discussão. A primeira diz respeito ao
analista, a segunda, ao analisando. Ao primeiro, aconselha-se muita paciência com
as repetições que ocorrem sob o manto da transferência. Desse modo, observa Freud, a
transferência cria um domínio intermediário entre a doença e a vida real; pode-se falar
deste com.o de uma "arena", na qual a compulsJo é autorizada a se manifestar numa
libe rdade quase total, pois o fundo patogénico do sujeito tem a oportunidade d e
se manifestar abertamente. Contudo, pede-se também algo ao paciente: ao cessar
de gemer ou de esconder a si mesmo seu verdadeiro estado, ele precisa "encontrar a
coragem de fixar sua atenção em suas manifestações mórbidas, de não mais considerar
sua doença como algo desprezível, mas olhá-la como um adversário digno de estima,
como uma parte de si mesmo cuja presença é muito motivada e na qual convirá colher
dados preciosos para sua vida ulterior" (op. cit., p. 132). Caso contrário, nada d e "re-
conciliaçfio" (Vcrsólr1111/lg) do enfermo com o recalcado (ibid.). Reservemos a palavra
reconciliação, que volti:lréÍ ao primeiro plano em nossas reflexôes ulteriores sobre
o perdão. Detenhamo-nos, por enquanto, nesse duplo m,rnejo das resistências pelo
paciente e seu analista, ,10 qual Freud chi o nome de Durc/111rbcitc11 (op. cit., p. 136), de
zuorki11g tlzrougfz, como foi traduz ido em inglês, de "pcrlaboration", como foi tradu zido
em francês, ou de "remanejamento", como eu preferiria dizer. A palavra importante,
aqui, é trabalho- ou, antes, "trabalhar" - que enfatiza n;1o somente o caráter dinâmi-

18 'Trin11crn, Wil'derhokn, Durcharbeitcn", in Cc., m11111c//c Wcrkc, t. X, Francfort-sur-lL> -M,ú n, S. Fi-


sclwr Vl'rl,1g, FJl J -l Yl 7, pp. 126-IJ6. A pagi naç:io adotad,1 é a da l'd iç:io ,1le m :i. i\ traduç.'ÜJ adoh1d,1,
"I<emémoration, n'.· p<·tition, pcrlaboration", <· a de A. Berm,111, l'l1l /.11 'frc/111 iq11c 11~.11cl1111111/y liq11l',
!'.iris, PUF, 1970.
[).,\ MJ:\t()RI.\ F I J \ RI \11 \J I S( l'.<.I .\

co do processo inteiro, mas a colaboração do analisando nesse trabalho. É em relação


com essa noção de trabalho, enunciada em sua forma \'Crbal, que se torna possí,·el
falar da própria lembrança, assim liberada, como de um trabalho, o "trabalho de re-
memoração" (Eri1111cru11gsarbcit) (op. cit., p. 133). Assim, trabalho é a palavra repetida
\·árias vezes, e simetricamente oposta zi c01npulsão: trabalho de rememoração con-
tra compulsão de repetição, assi1n se poderia resumir o terna desse precioso pequeno
ensaio. Também pertencem a esse trabalho tanto a paciência do analista para com a
repetição canalizada pela transferência como a coragem requeridc1 do analisando de se
reconhecer enfermo, em busca de uma relação verídica com seu passado.
Antes de considerar, com todas as ressakas de princípio e,·ocadas acima, as trans-
posições possíveis do plano privado da relaçJo analítica para o plano público da me-
mória coleti\·a e da história, dirijamo-nos ao segundo ensaio, intitulado " Luto e Me-
lancolia"1'l. Este, sem dúvida, oferece mais resistt'ncia a uma transposição ao plano
da memória coleti\·a que o anterior, na medida em que o luto é menos tratado por si
mesmo, precisamente enquanto trabalho, do que a título de comparação para melhor
des\'endar os enigmas da melancolia . É o confronto com o ensaio anterior q ue pode
ajudar a extrair da própria compa raç,10 uma informaç,10 positi\'cl a respeito do traba-
lho de luto 20 . Mas este ensaio desperta sobretudo profundos ecos numa experiência
milcnM que teve a própric1 melancolia como tema de rneditação e como tormento.
Essas ressah·as iniciais não nos impedem de notar que é o luto - o trabalho de
luto - que é primeiro tomado como termo de comparação e presumido como di re-
tamente acessÍ\·el, p e lo menos nun, primeiro momento. Além disso, é o par lu to / me-
lancolia que de\·e ser tomado em conjunto, e é a propensão do luto à melancolia e a
dificuldade do luto de escapar dessa tremcncb neurose que de\·em suscitar nossas
reflexôes ulteriores sobre a patologia da mL'múria coleti\'a e sobre as perspecti\·as
terapeuticas assim abertas.
"O luto, diz-se no começo, é sempre a reação à perda de uma pessoa amada ou de
uma abstração erigida em substituto dessa pessoa , tal como: pcitria, liberdade, ideal

lLJ "lr,lllcr und \IL'l,1nchnliL' " (llJl5) , in C1·~11111111dt1· W('l"kc, t. X, PJ'- , it. :'\ tr,1du ç,10 <1d()t,1dc1 ,i qui L'
a dl' J. l.aplandw l' 1.-13. l'ont,1lis cm Ald;1p,;_11c//tilo.1;ic, l\ 1ri s, C,1llim,1rd, F!h8 ; rcc d ., co l. " Fp lio
l'SS,1 is", ]986.
2() O que pode le\ <H ,11wgligl'IKÍ,H a instruç,ill qu,' L,uscarnos ,1 l"l'SPL'Ítll d ll p,HL'nksco L'11l1T tr,1 b,1lho
dl' lembranç,1 c t1·,1bal ht, dL' luto SL' dL'\"L' ,lll f,1tu tk ,i IL'rnw tr,1b ,1 lhll svr ,1p lic,1Lio tanto :i nwl,1ncPli,1
qu,intu do lutll no i1rnbitn dn modpln "cn,nt'nn icn " fort t•nw11tl' sol1c1t.id,1 por l'rL'lld n,1 q , uc,1 L'nl
que cscrl'H'll L'SSL' L'll S,1 in. O tL'tn ,1 do l ut<i, (1bsL·n·,1 Pl'tl't' Hom,rns L'lll lli,· :\/1ility tn ,\ lu11rn . C h ic,1go.
Tlw l.inivl'rsit\ llf C hic,1go l'rL".;s, J<JHlJ, n,1,1 L' um IL' rn,1 l'lllrL' uutr,,,; n,1 d l'sc riL;,1 0 L' 11,1 L',p lic,1ç,10
psi c,111,11 ític.1s; L'k L'Sl,i lig,1do :i si 11 tnm,íti,-,1 d,1 h is!l'ria L' an f,1 rno sll L'llll llCiddu : "Os psin 1p<11,1s
sotrl'm dl' rvminiscL·nc i,1s". \!,is Ci 11 t1> li\·,\·~ , ,•!•r,· 11 J'.'-1!"1111,í/i., c, f-'rl'ud l'-.tcl bl'lL'CL' um 1·íncul ll L'IltrL'
ns sintomas hiskricu-, L'11qu,111to sinlt1m,1-, 111nt"·s 1cns t' os 1111,nunwntt' " que t1rn,1nwnt,1111 1wssas
c id,1Lks (H\lm,1 11s. ,,, ,_,·it ., p. 2hl). Os nwnllllll'IlttlS s,10 n •s pt1-.t,1s ;1 ~1L• rd,1. Muito mais, n tr,1balhn
dl' lul\l C· nw:\IL'll"i1 11 :i L'mprl'it,1d,1 psie,111,i lític,1 l'lll SL'll tod\l L'nq u ,111tt1 rl'nt·111cia e rcsig n,1çc1,i l] LIL'
cu lmin,1 11,1 rL•n 111c ili,1ç,1,, um, ,1 pL·rd,1. l l<,m,111-. d ,i uma c1111~,l i,1 ç,1u p<1siti\ ,1 ,1 L'SSL' IL'm ,1 m,1 trici ,1l
qu,111du tr,1t,1 d ,1 indi, idu,K<1ti, comprl'l't1did,1 CllllHl ,1utti-c1pn1pri,1ç,11\ l' ll1 rl'l ,1ç,1(1 Clllll ,l l'/1,111///, 1(
l ' ,l C,lp,icid,ldL' de 11.1 1"1",H
J\ Ml :M(l RI /\, /\ III ST(l l!I ;\, O FSlJlJIT l \11FNl()

e tc." Uma abertura é assim criada, j,1 no início, para a direção que tomaremos a seguir.
E a primeira quesUío que o analista se coloca é a de sabe r por que, em certos doentes,
vemos surgir, "cm seguida a circunstânci21s idênticas, 110 !11g11r do luto, a melancolia "
(grifo nosso). A expressão "no lugar de ... " assinala d e saída o parentesco, do ponto de
vista da estratégia da argumentação, entre os dois e nsa ios que estamos confrontando:
no lugar da lembrança, a passagem ao ato - no lugar do luto, a melancolia. Trata-se
portanto, de certo modo, da oposição entre luto e mela ncolia, da bifurcação, no nível
"económico", entre inves time ntos afetivos diferentes e, nesse sentido, de uma bi fur-
cação en tre duas modalidades de trab21 lho. A primeira oposição que Freud nota é a
diminuição do "sentimento d e s i" (Sclhstgl'.fiilII) na melancolia, ao passo que " no luto
não há diminuição do sentimento de si" . Daí a pergunta: qual é o trabalho fornecido
no luto? Resposta: "O teste da realid ade revelou que o objeto amado deixou de existir,
passando a exigir que tod a a li/lido renuncie ao vínculo que a liga àque le objeto. É ccm-
tra isso que se produz uma revolta compreensível". Segue uma descrição cuidadosa
dos "grandes custos de tempo e de energia de investimento" que essa obediência d a
libido às ordens da realidade requer. Por que esse custo elevado? Porque " a existência
do objeto perdido continua psiquicamente". Assim, é ao sobre-investimento das lem-
branças e das expectati vas, pelas quais a libido permanece ligada ao objeto perdido,
que se deve o preço tão alto a ser pago por essa liquidação: "A realização c m detalhe
de cada urna das ordens ditadas pela rea lidade é o traba lho do luto".
Mas e ntão, por que o luto não é a mel ancolia ? E o que faz o luto pe nd e r para a
melancolia? O que foz do luto um fenómeno normal , e mbora doloroso, é que, "qua n-
do o trabalho do luto se conclui , o ego fica outra vez li vre e desinibido''. É por esse
aspecto que o trabalho de luto pode ser comparado com o trabalho da le mbrança . Se
o tra ba lho da melancolia ocupa neste ensaio uma posição estra tégica paralela à que a
compu lsão de repeti ção ocupa no anterior, pode-se s ugerir que é enqwrnto trabalho
da le mbrança que o trabalho de luto se revela custosa me nte, mas també m recipro-
camente, libertador. O traba lho de luto é o custo d o trabalho dc1 lembrança; mas o
trabalho da lembrança é o benefício d o trabal ho do luto.
An tes de extrair disso as conseqüêncic1s que temos em vista, vcjc1mos quais ensina-
mentos comple me ntc1res o trabalho da m ela ncolia fornece no quadro a nterior do trabn-
lho de luto. Re tomand o nossa reflcxiio inicié1l é1 respeito da diminuiçiio do /cl1gt:fi'il1/ n,1
melancolia, é preciso di zer que, diferentemente do luto, no qua l é o universo que pare-
Cl' empobrecido e va zio, na melanco lia (' o próprio ego que está propriamente dcsoL1 -
do: ele cai vítima da própria dcsvalorizaçzi o, da p rt')prin acusaçi'io, da própria condena-
ção, do próprio rcbílixílmento. En treta nto, isso não é tudo, 1wm mesmo o csscncic1 I: n.io
serv iri a m as rl'criminnçôcs dirigidas a s i mes mo parn e ncobrir recriminaçôcs visando
o objeto d e a mor? "Suas quei xas, escreVL' audaciosamente Freud, são acusações (l/1rc
Klngc11 ~i11d l \1/klagc11)." Acusnções que podem c hcgc1r à martirizaç5o d o objeto ,1 111.ido,
pe rseguido no foro íntimo do luto. Freud enuncic1 c1 hi púh:•se de que a êlcusaç5o, ,w
enfraquecer o investimento objetal, foc ilita o retrai men to no ego ,1ssim como a trans-
formaç5o da discórdi a com ou trem crn laceração de si. Nào acompa nhare mos Freud
D ,\ MI \H .l lil .·\ 1 I J.\ 1,1 \ 11:\ISll '\ C I ·\

mais a di ante em suas pesquisas propriamente p sicc1nzi líticas c1 respe ito da regrcss,'io do
amor objetal ao na rcisismo primá rio, e mesmo ,ül' a fase oral da liliído - ne n-1 tc1rnpou-
co a respeito da parte de sadis mo incorporada ao narcisismo, nem mesmo a tendê ncia
dc1 n1el an colia a im·e rter-se no estad o s in tomatica m ente im·erso da mania. De res to,
Freud é muito cauteloso em suas c xp loraçôes. Limitar-nos-emos a essa citação: "A
melancolic1 , portanto, empresta do luto a lg uns d os seus tra ços, e outros do processo da
regressão desde a escolha objeta l narcisista a té o na rcis ism o".
Agora, se pe rguntarmos o que a melancolia ensina sobre o luto, é preciso \'o ltar a
esse lchgL:fi'ilJI que foi conside rad o como bem conhecido e que Freud caracteri za u ma
\·ez com o " reconhecimento de n ós m esmos" . /\. e le pertence a vergonh,l dia nte de
outre m que o m elancólico ignora, tão ocu pad o ele está consigo mesmo. /\.uto-estima
e \·ergonha seriam assim componentes conjuntos do luto. É o que nota Freud: a " cen-
sura d o consciente" - expressão da ins t,incia gera lmente chamada de consciência
moral - ca minha junto com "o teste da rea lidade em meio às grand es instituiçôes
do ego" . Essa obsen·,1çào con ve rge pa ra o qu e foi dito no e nsa io anterior a respeito
da res ponsab ilidade d o analisando na renúnc ia à passagem i10 ato e ao própri o tra-
balho d e m e móri a . O utra observação: se n a melancolia as que ixas são acu sações, o
luto carrega também a marca desse inquie tantt' pé1rentesco, com a condi ção d e certa
moderação, que se ria própria do luto, moderação q ue limitél ta nto a ac usação q u anto
a mito-recriminação sob a qu a l essa se dissimula. Enfim - e isso talvez seja o mais
importan te - a prox imidade entre Klagc e J\11klagc, en tre queixa e recriminação, que
cl melancolia exibe, n ão rc, ·ela o carMer ambi\·a lente das relaçôes amorosas que faz
a m or e ódio coexistirem ,~ tl' no luto?
Mas 6 com o desfecho pos itivo do lu to, e m contraste com o desastre da mclancolic,,
q ue eu gos taria dt' intcrrompt.•r essa brt:.'\'C incursão n u m dos mais famosos ensa ios de
Freud : "A melancolia a inda nos confronta com outros problemas, cuja respostc1 em
parte nos escapa. O fato de poder d esaparecer após certo tempo, sem deixar grandes
e e\·identes alterações, é um a cc1rac terística que elc1 compartilha com o luto. No q ue
concerne ao luto, pude mos observar que era n ecessá rio decorrer algum tempo pc1ra
que iosse levado a efei to cm detalhe o q ue é exigido pela prm·a d a realidade e para
q ue, urn a vez rea li zado esse trabalho, o ego conseguisse libertar s u a li/lido d o objeto
perd ido. Podemos imag ina r qu e o ego se entrega a um trabalho ,111,1 logo durante a
mel<1 ncoli,1; do pon to de \· ista económico, não compreendcrnos nem u m nem ou tro
fe nCnneno" . F.squeçamos ,1 confissã o de Freud él r espeito d a explicação, e retenha mos
sua liç,10 clí n ica: o tempo d e luto não dei:\,, d e ter relação com d pé1ciêncic1 q ue a ancilisc
dl'rn a nd ,w" ,1 rcs~)L'ito da passagem da rcpe tiç,'io à lembranç,1. A lembrança n ão se
rdl'lT apL'n,1s ,10 tl'mpt1: cl,1 t,1 mbé m requer tL'mpo - um tL'mpo de luto.
'\iw gos t<1ri ,1 dl' krm incir esse confronto L'11tn· luto e nw l,rnn1l i,1 nesta fo i,, perp ll'x,1
de l rl'ud: "N ,1(1 l'nkndl'mos nem um nL'm nutn1 fL•nC1mcnll" . Se a ú lti m c1 pala,-ra niiu
fo i diL1 sobre o lu tLl e o tr'1béllho Lk luto c m ps ic.m,i lisc, L' qu L' t,,mbL'lll n,10 fo i dita
sobn· ,1 ml'l,111cL1li ,1. ÜL'\.L'-SL' mesmo ,1b,111dnnc1r a mc lanco li ,1 ,,os m úiicos, psiq ui a-
tr,b lHI ~.., ~ic,1n,1list,1s °) SL'r,1 el,1 ,1~•l'n,1s um<1 dol'nça nwnt,11? l\1r,1 qut·m IL'u S,1 /11r11
A MUvll)RIA, A HI STÚ RIJ\, O ESQUECIM EN TO

nnd Melnnc/10/y de Raymond Klibansky, Erwin Panofsky e Fritz SaxF1, a redução noso-
lógica da melancolia, iniciada por E. Kraepclin e reorientada por L. Binswanger, é
inaceitável. De fato, como deixar de evocar o lugar ocupado pela melancolia no antigo
sistema dos quatro humores da medicina grega, no qual o humor melancólico - o da
bílis negra (atrn bílis) - convive com o humor sangüíneo, o humor colérico e o humor
fleumático? Aí está mais uma lista para memorizar, que se deve à rede de correspon-
dência com elementos cósmicos, divisões do tempo, idades da vida: "Melancolia, di-
zem textos medievais do século XII, imita a terra, cresce no outono, reina na maturi-
dade". Fisiologia, psicologia, cosmologia estão assim conjugadas, segundo o tríplice
princípio: busca de elementos primários comuns ao microcosmo e ao macrocosmo,
estabelecimento de uma expressão numérica para essas estruturas complexas e lei de
harmonia e de proporcionalidade entre os elementos. Reconhece-se aqui o espírito de
Pitágoras, seguido por Empédoclcs. O importante para a espécie de excurso que arris-
co além - ou, melhor, aquém - de Freud, é que o conceito de humor não parou de
oscilar entre a idéia de doença e a de caráter ou temperamento, o equilíbrio resultando
do grau de harmonia ou de desarmonia entre os humores. Ora, é justamente com a
melancolia que culmina a ambivalência, que se torna assim o ponto crítico do sistema
inteiro. Esse privilégio, por assim dizer, da melancolia, tornou-se mais preciso à me-
dida que a teoria dos quatro humores se transformou em teoria dos temperamentos, e
dos tipos mentais. Depressão e ansiedade (ou medo) tornam-se os sintomas marcantes
da melancolia. Melancolia, então, torna-se sinônimo de insanidade, de loucura. A jun-
ção entre a melancolia da teoria dos humores e a loucura dos heróis trágicos - Ajax,
Héracles, Bclerofonte - , que Platão erigiu cm filosofema, está completa desde o mais
famoso dos problemas atribuídos a Aristóteles, o problema XXX, 1- "uma monogra-
fia sobre a bílis negra", di zem nossas fontes. "Por que ra zão, pergunta o autor do
Problema XXX, os homens mais eminentes em filosofia , em política, cm poesia ou nas
artes são manifestamente melancólicos?" E o texto acrescenta os nomes de Empédo-
cles, Platão e Sócrates à lista dos espíritos perturbados. Como, então, deixar de evocar
a teoria das múltiplas fi g urns de mrmín no próprio Platão e a comparação operada por
muitos diálogos entre exaltação, êxtase, embriaguez, e outros estados " di vinos"? Ora,
todos esses estados são obra da bílis negra! Aqui, o normal e o patológico convivem,
o melancólico vendo-se enviado do médico ao pedagogo e vice-versa. O melancólico é
"excepcional". A teoria romântica do "gênio" está em germe nessa ambígua descrição
do "furor" (para retomar a tradução de Cícero do grego 111n11i11) . Apenas os estóicos
resistem ao optarem decididamente pela leitura psiquiátrica av1111t la lettre.
São os pensadores do Renascimento que, além da transmissão medieval da heran-
ça contrastada recebida dos médicos e dos filósofos gregos da natureza, orientaram

21 Mc/011c/1o!y, Nl'lson , 1964. É essa cdiç:í o que é aqui c itada, com traduçi'to de P. Ricn.' ur.
511/11/'I/ t111tf
Uma t raduçào francesa , de F. Du rand-Bogacrt e L. Évrn rd, cstó d is ponÍVL'I: S11t11me e/ /11 M('it111colie:
él udcs /1istoriq11rs t'I philosophiq11cs, 1111/11rc, rdigion, /ll(;tf,·ci11(' ct ar/, Pnri s, Gallimard, 1989. Adotare-
mos aqui a pag i n.1çiio di'i ed içfü1 origi ni'I 1.
1),\ tvl l: l\1 t'lRI .·\ f' 1)..\ Rl \ 11\J I SCl: \. t l ,\

a meditação sobre a melancolia cm direção à doutrina moderna do gênio 22 . O tema


astral, que nossos eruditos autores perseguem c1té na astrologia ára be, est.-1 sempre
prestes a irromper e m nossos exaltados do Renascimento 2~. O homem do Renasci me n-
to - representado p or um Erasmo, um Marcílio Ficino, um Picco della Mirandola, um
Nicolau de Cusa, um Dürer - persegue menos a sa lvação indi\·idual do que o livre
desenvolvimento da espontaneidade indi\·idual; nesse ímpeto que prenuncia o arre-
batamento do génio romfü1tico, o contraste perturbador entre exa ltação e depressão
se mantém em suspenso. O pólo negati,·o é simplesmente o q ue Lessing chamar.-1 de
"yoluptuosa melan colia", herdeira d a acedia dos Medievais, essa pérfida tentação que
oscil a entre o pecado e a doença. Contudo, o homem do Renascime nto também aposta
que a melancolia pode ser "111clt111clw!i11 gc11cros11" (Sntum 1111d Mc/1111 c/Joly, p. 241 )2-1.
Mas é na gran1ra d e Dürer intitulada Mclc11coli11 l que todas as te ntativas de rea-
bilitação de Saturno e dél melancolia se cristaliza m. É nela que se d etê m os comen-
tários d e Klibansky, Panofsky e Saxl. "Leiamos" él gravura. Uma mulher está sentada,
o olhar me rgulhado numa distância \'azia, o rosto obscuro, o queixo ,1poiado num
punho cerrado; no seu cinto estão dependuradas chaves, símbolos de poder, e uma
bolsa, símbolo de riqueza, dois títulos de vaidade, em suma . A mela ncolia é para sem-
pre essa figura inclindda, pensativa. Cansaço? Pesa r? Tristeza? Meditação? A p ergunta
nilta: postura declinan te da doença ou d o génio que reflete? A resposta não d eve ser
buscada apenas na figura humana; o cenário também é tacitamente eloqüente: ins-
trumentos sem emprego, uma figura geométrica de três dimensões que representa a
geome tria, a quinta das "artes libera is", jazem disp ersos na cena imóvel. A \·aidad e do
saber é assim incorporada à figura d esocupada. Essa fusão entre a geometria que se
entrega à melancolia e a melancolia pe rdida numa geometria sonhadora dá a Mcle11 -
coli11 l seu poder enigmático~': a própria \'erdade seria triste, segund o o provérbio d o
Eclesiastes?
Surge então, para nós, a perg untél: que luz sombria é assim lançada sobre o tex to
de Freud p or esse retrocesso? Parece-me que p ara fa zer sentido é preciso prolongar a
irn estigação sobre a melancolia até uma das fontes do tema soterradas sob a medicina,
a psicologia, a literatura e J iconografia: por tr,ís do lamento de um Alain Chartie r que

')') O leitor não dcix,ir,í de e ~t,1bclcccr um p,ira ll•lo l'ntrL' a ar~ 111,·111uriac, en1c 1d ,1 ,K ima, l' a tL'llíÍcl d ,1
ll1L'l,rncolia . N,10 l'r,1 " louco" o ,1utor d,1 ~ S011if1m, do., iâ,•i11~ (D,· 1111J/,ri, idc,11·11111), G iord a no l3runn'
2> St1t11rn ,111d Mt'/1111t"/z,,/_11, ti/'· ot., p. 125 e seg . O ~,arall.'lo entre as du,1s tt'mMi c,1 s n ão seria ;irbitr,írio,
com o o con firma ,l 1-efcrL' JKi a ,1 Sat urno, "o ast ro d ,1 rnel,rncol i,1 ", na trcll"i içào I itcréí ria., pictti ri c,1 e
poét ica.
2-1 É Marcíl io Fiei no, mais q u,' ninguém, "quem deu fr,rm,1 cfcti,·a :i nwl,1nc(1lia dn homem d e gi:•ni(l
L' ,l reve lou ;io f'l'S!() d,1 lurnpa - em pMti c ular aos gr,mdcs inglcscs dus séculos XVI e XVII, no
clart">-escurn do nl'npl ,1t,mismo c ri s tão l' dl' SL'll rnisticisnw" (K liban sky ct ,1/., S11t11rn 1111d ;\lc/1111 -
c/10/y, op. cit., p. 2:;:;)_ r\.io t•st,1mos long,'. dos ,1t ll't,1s L'lltu s i,1st,1s d ,1111, 111,•111,,ríac, lt·,·am-Jo cm Ct>n t,1
,i s conotilçües a s trn is de muitos pcn s,1d,ll'L'" d(l Renasc inll'nlo.
2:; É \ 'l'rd ,1dL· qul' a iig u ra n •ntr,11 ll'm ,1",1s, m,1 -; ft-ch,1d,1 s, L' quL' /' li/li
a d iH·r ll'm : su gest!i<, dL' "ubli-
m ,1ç.io ' Uma 01rn,1 quL· c inge a cabt•ç,1 e, ~, ,brl'tud(), () nÜnll'rn Qu.itr(l - t i "qu ,1d rado m,íg ico " das
m,ltem ,ít icas lllL'd icas - p.i reCl'lll SL' n · ir l1L' antídoto.
!\ MEM(JR J;\ , /\ III ST ( JRl i\ , O FS(JU ECIM l·. N TO

invoca " Dame Merencolye" ou do rei René que celebra "Dame Tristesse", perfila-se a
acídia, já mencionada acima, na qual, além mesm o da sangüínea "luxüria", da colérica
"d iscórd ia", os espiritualistas da Jd ade Média v iam a pior d as tentações, a saber, a
complacência para com a tristeza. A acídia é essa espécie de preguiça, de lassidão, de
desgosto aos quais o religioso que não reza nem trabalha corre o risco de s ucumbir.
Não toec11T1os, aqui, no fundo moral da melancolia apenas aflorado por Freud sob ovo-
cábulo de Scl/Jsfgl'.fiihl? Isso em que a acídia se compraz não é essa tristeza da memória
meditativa, esse 11100d específico da finitude q ue se tornou consciente de si mesma?
Não é a tristeza se111 co11sn parente da doença-de-morte de Kierkegaard, essa parenta
do desespero ou an tes, segundo a su gestão de Gabri el Marcel, da incsperança 2''? Ao
remon tarmos assim até a acídia dos religiosos, não teremos dado ao trabalho de luto
o interlocutor digno dele? Objetar-se-á que o trabal ho de luto não tem antecedentes
na literatura da melancolia. Nesse sentido, seria mesmo uma criação de Freud. Mas
o traba lho de luto também tem seus antecede ntes nos an tídotos que acompanharam
a melancolia nas tradiçôes médica, psicológica, moral, literária, espi ritual. Entre esses
remédios, encontro a alegria, o humo r, a esperança, a confiança e também ... o traba-
lho. Os autores de Sntum n11d Mcln11cl10ly não estão errados em busca r na poesia lírica
datada do fim da Id ade Média e do Renascimento, em particular a inglesa, de Milton e
do Sh akespeare dos Sonetos até Keats, o elogio de um humor contrastado e, por assim
di zer, d ialético em que Dl'liglzt responde a Mclan choly sob os au spícios da beleza. Seria
preciso prosseguir até Baudelaire essa revisão das figuras poetizadas da melancolia,
para restituir-lhe su a profundidade enigmática que nenhuma nosologia esgota . É para
esse lado que nos empurra Jean Starobinski em Ln Méln11colic a11 111iroir. Trois /ect11res de
Bn11delnire~7 . O poema limina r "Au lecteur", em Lcs Fleurs d11 Mnl , não chama o livro
do Téd io de "livro sa turni no"? O olhar perdido da Melancolia reflete-se no espelho da
consciência refl ex iva, cuja poesia mod ula os re fl exos. Um rn minho d e mem ória é assim
aberto pelo "Spleen ": "Sou a si nistra memória"; "Tenho mais lemb ra nças do que se
ti vesse mil anos ... ". Trata-se, de fato, de figuras do passado histórico que assombram
o famoso poema "O Cisne", que abordaremos sob um ângulo diferente, no p onto cm
que a memorização da história coincid e com a historização da men,ória:'h:

J\ndrô m aca, penso em vús !. . .

Esse S irnois* mentiroso que c om vossos pr,1ntos crL'SCL',


De repente fec undou m in h,1 nwmtí r ia ÍL'rti l. ..

26 Encont r ei p e la p r i111ci1\ 1 vez essa p rob il' mMic,1 d ,1 " tri s k z,1 Sl'm G1u s.:i " n n fim do tomo I d l' Filo~ofi11
111111011t11dc sob o título d ,1 " Tri s teza do íi n i to" ( l .1· Vo /011t11irc t'I / ' /11, 1n/011/11irc, l \ 1ri s, /\ u h il'r, 19SO, 1988,
p. 420 l' sq .;.).
27 jl',111 St,1robins ki, /..a M, ;/1111co/ic 1111 11,iroir. hois frct11 rc,; de Ha11dd11in-, Par is, Jul l i.ird . co l. "Colli:ge dL'
Fr.incl'", I984.
28 C f. ,1 Sl'g uir, tl'rcei ra p<1rtl', cap. 2, pp. -Hl l--Hl2.
N,1 c.1 mp,1nh,1 dl' Trt'i i,1 , d i vi11d ,1 dc q u c rL'pn' scnta o r·io, fi lho dt' Tdi s L' 0 CL' ,1 110-, . (N. d o ·1.)
l l.\ \IF\HW \.\ 1 J).\ l< I \ 11'\ISCl'\l ' I \

..\ssi m 11,1 tlo rcst,1 ondl' meu L'"pí rito SL' l':\ i l,1
L;m,1 n•lha Lembr<1n ça sopra Cllm furç,1 a tromp,1 1:"

E por que não e nKaríamos in fill<' os últimos quartetos e c1s ültima s sonatêls d e
Bee thm·en e s ua p oderoszi e,·ocação d e um êl tri s tez.i s ublimad a? Pro nto, a pal,1\'r,1 foi
proferida : s ublimaç{io. Essa peça q u e fol tc1 na panóplia da 111ctt1psinJh1gia de Freud te ri a
ta h-ez fornecid o a este último o segred o da in,·ersão d a complacê ncia e m rclaçfüJ à
tris teza em tristezc1 s ublimada - e m alegria ~". Sim, o pesar é essc1 tristeza qu e n Jo foz
o trabalho do lu to. Sim , a aleg ria é a recompensa d a renú ncia ao obje to perdid o e a ga-
rantia da reconciliação con1 seu objeto inte riori zad o . E, assin, como o traba lho d e luto
é o cam inho obriga tó rio do traba lho de lem brança, a aleg ri a também pode coroar com
sua graça o trnba lho d e m e mória . No hori zonte d esse trnbalho: um a memória " fL,Ji z ",
quando a image m poéti ca completc1 o tr<1balho d e luto. Contud o, esse hori zonte se
esconde a tr,ís do trabc1l ho d a história cujc1 teoria ainda estiÍ por c riar, além da fenome-
nologia da memória .
Isso posto, \'Oito à questão deixada e m s usp e nso qu,rnto ,1 saber a té qut' p o nto
é legítimo trans por par,1 o plano da m emória coletiv<1 e d a his tóri a as ca tegorias p a-
to lógicas propos tas por Freud nos dois ens<1ios que <1c1b.1mos d e ler. Un1 a jus tificc1ti,·a
proYisória pode ser e ncon trada nos dois lados: no de Freud , e no da fe no 1T1e no logic1 d a
m e mória fe rida.
Do lado d e Freu d , te r-se-ão n ot<1do as ,·êÍ rias a lusões c1 s ituc1çôes q ue ul trapassam
d e lo nge a cen a p siecrna lítica, tanto para o tr,1b a lho de le mb r,rn ç,1 como par,1 o de luto.
Essa a mpliação é ta nto mc1is esp e rada pelo fato de to(fas as s ituaçt-ll'S e \'ocadas nc1 cur a
psicanalítica tere1T1 ,1 n :-r com o outro, n:w somente aq u e le do "romc1nce frimiliM" , mas
o ou tro psicossoci,11 e, por ,1ssim dizer, o o utro da situação his tt'iric,1. De rl's to, Freu d
não se furtou c1 sem el ha ntes ex t rapol,1çôes; e m Totc111 e t11ln1, e m lv1<ii:-1;s L' o n1c>no/t'Í:-n10,
e m O _filt 11 ro de 1111111 i/11:-iio ou em O f\.111 /-c~ /111 1111 ci ziili::.11ç110. F c1 té m es mo al g um,1s de
sueis p sica nt1lises pri,·ad ,1s, se ass im ousa mos di ze r, foram p s ic,1niili ses i11 11/1se111i11, a
n,ais fa m osa send o a d o doutor Schreber. E o q ue dizer do A'lois(;_.; de Mic/Jc/1111gd<i e d e
L/11111 rccord11çi'io de i11fií11ci11 de Leonardo da Vinci? Nt'nhum L'scrü p ul o d eve, pois, nos de-
ter des te la do. A tr,1 n sposiçi'io foi fo cil it,1d ,1 por certas rei n te rpretaçôes d ,1 p sic,111,í li se
pníxim,1s d ,1 he rnlL'n l'Litica , com o se \l' cm ,1J g uns tra b,1lhos ,rnti gos de H <1bL'rt11<1s, nos
qu <1 is ,1 psica n ,i lisl' L' rclnr mulad ,1 em lL'rmos de dcssim boliz,1ç,10 L' de ressi mb o lizc1çc'10,
L' nus q u,1is a l' nt.1SL' rec<1 i n ll papel d,1 :, di sto rç(lt'S s is tem,i tic,1s d c1 com un ir,1ç,'it1 ntl
plano dc1s c iênr i,1s s uc iais. A ü ni c,1 ub jL'Ç,lll q u l' n .'io foi rl's pund id ,1 nas intt'rprl't,1Çt-lt'S

:?,LJ k,111 St.n11bi11 ,; h:1 b ,1li /,l .i,;_;-;i m l' c.1 111 i11 lw , 1u1·. d ,1 ,m lig .i ,ll·idi .i . p,1;-;~,111dl' pc l.i !\ ll'l .11ll'1>li.1 dl'
1h i l' l 'I', li', .i ,l\> ,1 1i,·,'11 d l' B,n1 ,il•l.i i rl', \l q u,1 1. f'1 ir "u ,1 \ 'L', ., rvn 1l'lv ;i nll'rn1·1r i,1. Cf . .i ll'r(c i r,1 k it u r,1 Lil'
/ .,1 ,\ l,'/1111c, 1ii<' ,111 11iir,>; r: " 1.L'" fi g u rv s f'Vll,· 11l't '" : · I ., · C,·g nl'' ".
:Stl h11c,111d< 1 .i "p1>t'/1,· n1t'l,1 11 1Pi_11 111 1111,f-111<'d1,'c ·,1l 1•1 1,·t1_1t'' l' llll '.-> gr,111d,•;,; vl i ~,1bl' l<111\l~, qu,· .1 11u11 c: i.i ,1
"Odl' \lt ML• l,1ndit ,1\ ·· d,• Kl',l h, \lS ,1utt >r1·-., dl' ~11 / 11r11 ,111,I Afr/11 11, h,1/11 rl'tr,1 t,1 m l"iS,1 nll' i,ll1(1>l í.i L',;k-
tiz,ld,1 uin1t, "//1'i,\'/1/,·11,·,/ ,;('/ f~ild'11rt·11,·:,;..; " (<'/'· ci/. , p . 22/s ).
A \,1FW) l{IA, i\ IIISTl)Rli\, () FS(JUFC IMFNTO

hermenêuticas da psicanálise diz respeito à ausência de terapeutas reconhecidos nas


relações inter-hum anas. Mas não se pode dizer, neste caso, que é o espaço público da
discussão que con stitui o equivalente do que se denominava mais acima a "arena"
como região intermediúia entre o terapeuta e o analisando?
Independentemente d essa dificuldade realmente temível, importa mais para nosso
propósito olhar em direção à memória coletiva, para reencontrar em seu nível o equi-
valente das situações patológicas de que trata a psicanéÍ!ise. É a constituição bipolar
da identidade pessoal e da identidade comunitária que, em última instância, justifica
estender a análise freudiana do luto ao traumatis mo da identidade coletiva . Pode-se
falar em traumatismos coletivos e em feridas da memória coletiva, não apenas num
sentido analógico, mas nos termos de urna análise direta. A noção de objeto perd ido
encontra uma aplicação direta nas "perdas" que afetam igualmente o poder, o territó-
rio, as populações que constituem a substância de um Estado. As condutas de luto, por
se desenvolverem a partir da expressão da aflição até a completa reconciliação com o
objeto perdido, são logo ilustradas pelas grandes celebrações funerárias em torno das
quais um povo inte iro se reúne. Nesse aspecto, pode-se dizer que os comportamentos
de luto constituem um exemplo privilegiado de relações cruzadas entre a expressão
privada e a expressão pública. É assim que nosso conceito de memória histórica enfer-
ma encontra uma justificativa 17 posteriori nessa estrutura bipolar dos comportamentos
de luto.
A transposição de categorias patológicas para o plano hi stórico justificar-se-ia
mais completamente caso se conseguisse mostrar que ela não se aplica apenas às si-
tuações excepcionais evocadas acima, mas que e las se devem a uma estrutura funda-
mental da existência coletiva. O que se deve evocar aqui, é a relação fundamental da
história com a violência. Hobbes não estava errado ao afirmar que a filosofia política
nasce de uma situação originária na qual o temor da morte violenta impele o homem
do "estado de natureza" aos vínculos de um pacto contratual que garantirá inicia l-
mente s ua segu rança; de resto, não existe nenhuma comunidade histórica que não
te nh a nascido de uma relação que se possa comparar sem hesitação à guerra. Aquilo
que celebramos como acontecimentos fundadores são essencialmente atos violentos
legitimados posteriormente por um estado de direito precário. A glória de uns foi
humilhação para outros. À celebrnção, de um lado, corresponde a execração, do ou-
tro. Assim se armazenam, nos arquivos da m emória coletiva, ferida s simbólicas que
pedem uma cura. Mais precisamente, o que, 11<1 experiência histórica, surge como
um paradoxo, a saber, excesso de memória aqui, i11s11ficiênci11 de memória ali, se deixa
reinterpretar d entro das categorias da resistência, da compulsão de repetição e, final-
mente, encontra-se s ubmetido à prova do difícil trabalho de rememoração. O excesso
de 111e111ôria lembra muito a co111p11/são de repctiçíio, a qual, segundo Freud, nos leva a
substituir a lembrança verdadeira, pela qual o presente estaria reconciliado com o
passado, pela passagem ao ato: quantas violências no mundo va lem como 11cti11g 011t
"no lugar" da lembrança ! Pode-se até folar, caso se queira, em memória-repetição a
respeito dessas celebrações fúnebres, mas apenas para acrescentar logo em seguida
D .\ \IF\.1 ( )({1.\ 1 l) .\ RL \ 11 :\J<;CÍ'. :\C I.-\

qu e essa m e mória -repetição resiste fl crítica e que a rn ernóric1- lembrc1nçc1 é fu ndame n-


talmente uma m emória crítica.
Se for assim, cnté'io a i11~1(ficiê11cia d e m em ó ria d epende desSél mesmél re inte rp re-
taçZw . O que uns culti\·am com d e leite lúgubre e outros C\' itam com consciência pe-
sada , é a mesma memória-re pe tição. Uns gosta m de n e la se perde r, ou tros te m em ser
por e la engolidos. Entretanto, uns e o utros sofre m do mesmo dt:ffrít de crítica. Eles n ão
alcançam o que Fre ud chama va d e traba lho d e rememo ração.
Pode-se dar mais um passo e sugerir que é no plano d a memó ria coletiva, tal\·ez
mais ainda do que no d a m e mória indi\·idual , que a coincidência entre traba lho de
luto e trabalho d e lembrança a dquire se u sentid o ple no. O fato d e se tratar d e fe ridas
do a mor-pró prio naci onal jus tifica que se fal e e m obje to d e ,1 mo r perdido. É sempre
com perdas que a memó ria fe rida é obriga da a se confronta r. O que e la n ão sabe rea -
lizar, é o trabalho que o teste de realida d e lhe impõe: ,1ba ndonc1r os investimen tos
pelos quais a /ihido continua v inculada ao objeto perd ido, até que 11 perda seja dt'. fi11íti'i. 11- 1

111c11tc i11tcriori::.11dt1. Contudo, cabe e nfatiza r que essa subn1issão ao teste d e realida d e,
constitu tivo do verd ad e iro trabalho de luto, também é parte integrante d o tra balho d a
lembrança. A suges tã o feita acima a resp e ito d as troca s d e s ig nificado e ntre trabalho
da le mbrança e traba lho de luto e ncontra aqui su a jus tifica ti\'a plena.
A transição do ní\·el pa tológico ao nível propriamente prá tico nos é forn ecid a pelas
a no taçôes a respeito d a te rapê utica a propriad a a esses trans tornos. Freud ape la insis-
tentemente para a cooperação do analisand o, e coloca ass im ,1 ex periência an,1lítica
inte ira no ponto d e articulação e ntre o lad o pa ssivo, pâtico, d a m e mó ri a e o lado a ti\·o
do exercício da m e mória. Nesse ponto, a noção de traba lho - traba lho d e rememo ra-
ção, trabalho de luto - ocupa uma posição es tra tégica na re fl exão sobre as fa lhas d a
memória. Essa noção s upôe que os tra nstornos enfocados não são a pe nas sofrid os, m as
que som os responsá\·eis por eles, o que é comprovado pelos conselhos terapêuticos
que élCompanham c1 perlaboração . N um certo sentido, os abusos d e me m ória, d e q ue
falaremos agora, podem aparecer corno d es\·ios pe rv ersos desse tra ba lho em qu e o
luto se junta à rem em oração.

2. Nível prático: a memória manipul ada

Qua lquer que seja <l \'alidade d as in terpretações pa tológicas dos e xcessos e d as de-
fi ciências da me móri a coletiva, não gostaria d e d eixa r que ()Cupc1ssem todo o terreno.
U m lugar distinto d e\·e ser criado, ao lad n das modalidad es ma is o u m t:•nos p ,1ssivas,
so fr idas, p adecid as, d esses "a busos" - mes1no leva nd o cm C()n ta as correções fei tas
pelo p róp rio Freud nesse trata mento unila teral d a passiv idade-, pa ra abusos, no sen-
tido fo rte do te rmo, que resulta m d t:· u m a ma n ipulação concertada d a me mória e d o
esquecim ento p o r d etentores de poder. F,1lc1re i, l' ntão, m en os e m memó ria fer ida do
que e m m em ó ri a instrum en talizad a (a rntego ri.:i weberiana d e raciona lidad e segu nd o
um fim - Z1ucckratio11t1/ítiit - opos ta à d e racio n,1lidade segundo um valor - Wcrtn1-
tio1111/itiit - tem se u lugc1r cH.1ui, ass im com o ,1q ue la, implL·mL'n t.:ida por Habc rm ,1s, d e
/\ MEM(lRI/\, /\ IIISJ"(lRI ,\, O 1.S()UJ:CIMJ :NTO

"razão estratégica" oposta à " ra zão comunicacional"). É nesse plano que se pode mais
legitimamente falar em Jbusos de memória, que são também abusos de esquecimento.
A especificidade dessa segunda abordagem situa-se no cruzamento entre a pro-
blemática da memória e a da identidade, tanto coletiva como pessoa l.
Retomaremos mais detalhadamente, no próximo capítulo, esse problema de inter-
secção ao abordarmos a teoria de Lockc, na qual a memória é e rigida cm critério de
identidr1de. O cerne elo problema é a mobilização da memóric1 a serviço da busca, da
de manda, da reivindicação de identidade. Entre c1s derivc1ções que dele resultc1m, co-
nhecemos alguns sintomas inquietantes: excesso d e memóriil, em tal região do mundo,
portanto, abuso de memória ~ i11s11fich•11ci11 de me mória, em outra, portanto, abuso de
esquecimento. Pois bem, é na problemática da identidade que se deve agora buscar
a causa de fragilidade da memória assim manipulada. Essa fragilidade se acrescenta
àquela propriamente cognitiva que resulta da proximidade entre imaginação e memó-
ria, e nesta encontra seu incentivo e seu adjuvante.
O que faz a fragilidade da identidade? É o carMcr puramente presumido, alegado,
pretenso da identidade. Esse clni111, como diriam os ingleses, esse /\11s17ruch, como di-
riam os alemães, aloja-se nas respostas à pergunta "quem?", "q11l'111 sou eu?", respostas
em "que?", da forma: eis o que somos, nós. Somos tais, assim e não de outro modo. A
fragilidade da identidade consiste na fragilidade dessas respostas em que, que preten-
dem dar a receita dã identidade proclamada e reclamada. O problema é assim afastado
cm mais um grau, da fragilidade da memória à da identidade.
Como causa primeira ela fragilidade da identidade é preciso me ncionar sua rela-
ção difícil com o te mpo; dificuldade prim,íria que, precisamente, justifica o recurso à
memória, enquanto com ponente temporal el<1 identidade, juntamente com a avaliação
do presente e a projeção do futuro. Ora, a rel,1ção com o tempo cria dificuldades cm
razão do car.íter ambíguo da noçJo do mesmo, implícita na do id (•ntico. De fato, o
que significa permanecer o mesmo através do tempo? Já enfrentei, no passado, esse
enigma, para o qual propus distinguir dois sentidos do idêntico: o mesmo como idc111,
s11111c, gleic/1 - o mesmo como ipsc, sei/; Sc//1st. Pareceu-me que .i manutenção de si no
tempo repousa num jogo complexo entre mesmidade e ipseidadc, se nos permitirem
esses ba rbarismos; os aspectos prMicos e pMiCl)S desse jogo ambíguo são mais temíveis
que os aspectos conceituais, epistêmicos. Dirl'i que ,1 tentação identit.íria, a "desrazão
id entit.í rb", corno disse Jacques Le Coff, consis te no ret raimento da identidade ipsc na
identidade idc111, ou, se preferirem, no deslocamento, na deriva, que condu z da flexibi-
lidade, própria da manutençJo d e si na pro111c~sa, :i rigidez inflexível de um rnrátcr, no
Sl'ntido quase tipogrMico do termo.
A segunda causa de fragilidc1dc l; o confronto com outrern, percebido como uma
ameaça. F. um fato que o outro, por ser outro, p,1ss,1 ,1 ser percebido como um pe rigo
pzirzi a identidade própri,1, tanto ,1 do nós como ,1 do cu. Certamente isso pode consti-
tuir uma surpresa: será mesmo preciso qul' noss,1 identidade seja fr.ígil c1 ponto de nJo
conseguir suportar, não conseguir tolerar que outros tenham modos de leva r s ua vid a,
de se compreender, de inscrever sua própria identidade na trama do viver-juntos, di-
(),\ \11 . 1\t (l R I -\ 1 l l.\ Rl\1 1:'\ISC J"\( 1·\

fL•rentcs dos nossos? Assim é. São mesm o as hu milhc1çües, os atti ques reais o u imc1gin á-
rios à auto-estima, sob os golpes d a a lterida de mal to lerada , que fa zem él rel,1ção que o
mes m o m a ntém com o o utro mudar da acolh idc1 à rejeição, à excl usão.
A terceira causa d e fragilidade é a heran ça da \·iolência fundadora . É fo to não exis-
tir comunid ade hist6rica alg uma que não tcnhél nascido de uma relação, a q ua l se pode
ch amar d e original, coJTt a g uerra . O q ue celebramos com o nom e de acontecimentos
fund adores, são essencialme nte c1 tos violentos legiti mados poste ri orm l•n te por u m Es-
tado de direito prec:Írio, legiti mad os, no li mite, por sua própria antigui dade, por sua
\·etu stez. Assi m, os m esmos aconteci men tos podem sig nifica r glória para uns e hu mi-
lhaç,fo pa ra outros. À celebração, de um lado, correspond e a execraçc'io, do o utro. É
assim que se a rm aze nam, nos a rq ui, ·os da memória cole ti\·a, ferid as reais e sim ból icas .
Aqui, a terce irc1 ca usa d e fra gilidade da iden tidade se fund e na segu nda. Resta m ostrcH
por que viés as fo nTtas de m a u uso da memôria pod em enxertc1r-se na reivindic,,ção de
iden tidade cuja frag ilidade prôpriél acaba m os de mos tra r.
As manipulaçües d a m emórici, que serão e\·ocad as JT1<1is a diante, deve m-se à inter-
\ enção de um fa to r inqu ietan te e multiforme que se interca lci entre a re iv ind icação de
identidade e as expressões públicas da memória. Trata-se do fenômeno da id eologia,
cuj o mecanismo tentei demonstrar em ou tro lugM ' 1• O processo ideo lógico é opaco por
dois motivos. Primeiro, permanece dissimulad o; diferentemen te d a utopi a, é inconfes-
sci \'el; m ascara-se ao se transform a r em denúncia contra os ad\·ersários no campo da
competição entre ideologias: é sempre o o utro que atola n a ideologia. Por outro lado,
esse processo é extremamente complexo. Propus distinguir três n í\'eis op era tórios do
fenómeno ideológico, cm fu nção dos efeitos que exerce sobre a compreensão d o mundo
h u,rnrno da é!Ção. Per corridos de alto a bai xo, da s uperfície à profundidade, esses efeitos
são s ucessiva m ente d e distorção da rea lilfad e, de leg itimação do sistema de poder, d e
in tegração do mund o comum por meio de s istemas s imbó licos imanentes à ação. No
n Í\'E~I mais profundo, aq uele e m que se s itua C li fford Geertz, o fenóm en o id eológ ico
parece m esmo constitu ir uma estrutura intransponível d a ação, na medida e m. que a
m ediação s imbó lica fo z a di fe re nça en tre as motivc1çües d a açiio humana e as estruturas
heredi tárias dos com portamen tos genetic.1mentc programados. Uma correlação not,i-
\·el se estabe lece nesse n Í\'t~l fundamen tal entre síntese s imbólica e sistenrns semió ticos,
a lg uns dos quais dependem francatT\Cr.te de uma retórica dos tropos '2• Tomada nesse
nÍY t:'l de pro fundid ade, a anál ise do fen ó men o ideo lógico S L' inscreve na ó rbita de u ma
"scmióticci da cul tura" . É mesmo enquanto fotor de integração que c1 ideologia pode ser
tid,1 como g uardi ã d a identid ad e, n a medida c m q u L' e la oferece u ma répl ica sim bc'i lic,1

:S I !'. Rietl' lll', L'/1fr<1/o:,:ic 1'/ f'L l lnp ic, l'ar i-.., J\ 1itillfb d u Sn ti l, ( Pi. " ! .,1 C lll tk u r dl':- id t:L·-..", JlJ LJ7. \ l in h,1
i11,T· s tig,.1ç,'tll rl'tL'l"L'--.l' ,1 pL'ns,1dnrl',- l,i ,, ditl'J'L'llk "- qu.intn \ l.1n., :\lth u ,-sl'r, !1d<1nnhcim , \ l.1\ \\' L•-
[, n , l l,1bc rm ,1"' (~1 r i11w i r,) pcrindo), C lit lP rli CL'L'l' l / .
,2 " SL· m id C·ia do nwd,, (lllllll ,1 nwtM,1r.1 , ,1 ,111,1 IPg i.1 . ,l iru ni ,1, <1 ,11n bi g üid,1dL•, ,1 Jo g u dL' f' ,1 1.i , r,1-.., ,1
p,1r,1du xll, .t h ipO.:, r b, ,ll·, () ritmo L' tod l l" 11,- ,,u t 1·, ..., l 'il' m L·11tn" dt ) qu e c h ,1111,,mlls in,1Lk qu ,1 d ,1111L' lllL·
dl' \ •st il n ' tu n cil1n ,rn1 1 . . J n .i prnj l'Ç,il1 d ,1-. ,1t it ud l',, f'l'SSl' ,lÍ " l' ll1 ',ll<l f, ,r m.i 11úb!i c ,1, 11 ,lll p ,1, iL-111<1,,
a n ,1 ! isar ,1 i mpu rt,1 nc i,1 d ,ic. ,l SSL' t\ ,-H'" iLil'1lklgi, ,1,, ' ( " !d l'ol, i,g, ,1.., ,1 cu lt u r,1l ,; , ·skm", f' Ubl ic,id,l i11
C. ( ;L'vrt ; , /11, · /11/ l'1p rd11ti,,11 ,>(Cu //u r, ·,, \.1·\\ 'i l, rk . H,1'>Í L l\rnl K~. JlJ;-, . f'· 2 1\' J) .
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às ca usas de fragilidade dessa identidade. Nesse nível de radicalidade, o da ação sim-


bolicamente mediad a, ainda não se pode fa lar de manipulação n em, portanto, d e abuso
de memória. Apen as se pod e falar da coerção silenciosa exercida sobre os costumes
numa sociedad e tradicional. É justamente isso que to rna a noção de ideologia pratica-
mente inextirpável. Entretanto, é preciso acrescentar de pronto que essa fun ção consti-
tuin te da ideologia mal pode opera r fora da intermediação de sua segu nda função, a
de justificati va de um sistema de ordem ou de poder, nem mesmo poten cialmente fora
do alcance da fun ção d e distorção que se enxe rta na precedente. No limite, apenas em
sociedades sem estrutura política hierárquica, e nesse sentido sem poder, se poderia
encontrar o fen ômeno nu d a ideologia como estrutura integra tiva de alg um modo ino-
cente. Definiti vamente, a ideologia gira cm torno do poder>\
De fato, o que a ideologia busca legitimar é a autoridade da ordem ou d o poder - or-
dem, no sentido da relação orgânica entre todo e p arte, poder, no sentido da rela-
ção hierárquica entre governantes e governados. A esse respeito, as aná lises que Max
Weber d edica às noções d e ordem (Ord111111g) e de dominação (Hcrrschajt) têm, para
nossa empreitada, um interesse considerável, mesmo que o autor de Economia e So-
ciedade n ão trate tema ticamente d a ideologia e d e sua relação com a ide ntidad e. Tod a
a aná lise weberiana d o poder'~ gira em torno da pretensão d e legitimidade erigida
por toda forma d e poder, quer seja carism,Hica, tradicional ou burocrática; logo, tudo
d epende d a natureza d o nó - do 11exus - que vincula as pretensões de legitimidad e
levantadas pelos governantes à crença na dita autoridade por parte d os governados.
Nesse nó reside o paradoxo da autoridade. Pod e-se presumir que a ideologia ad vém
precisamente na brecha entre a d em anda de legitimid ad e que emana d e um sistema
d e autorid ade e nossa resposta em termos de crença . A ideologia acrescentaria uma es-
pécie d e mais-valia à nossa crença espontânea, graças à qual esta poderia sati sfa zer às
d emandas da autorid ade. Nesse estágio, a função d a ideologia seria preencher o fosso
d e credibilidade cavado por tod os os sistemas de autoridade, não somente o sistema
caris mático - p orque o chefe é enviado de cima - e o sistema fu ndamentad o na tra-
dição - porque sempre se fez assim - , como também o sistema buroc rático - porque
o perito, supos tame nte, sabe. Max Weber dá crédito à presente hipótese ao defin ir os
tipos de legitimidad e, seus impera tivos e suas exigências, a partir d os tipos de crença
"cm virtu de da s quai s" a ordem é legitimada, o pod er, justificado. Ora, os tipos d e
crença constituem, cad a um a seu m od o, razões para obed ecer. Por sinal, é assim que
se defin e a autorid ade, como poder legítimo d e se fa zer obedecer. Segundo Weber, a
Hcrrschajt consiste essencialmente numa relação hierárqu.ica entre comandar e obede-
cer. Ela se defin e expressa mente p ela expectati va d a obediência e a probabilid ad e - a

33 Cecr t:r, cuj os cam p os d e estudo fora m o Ma rrocos e a Indonés ia, confessa de b om g r<1do:
"l~ po r meio da con s trução das ideologias, d ,1s fi g ura s esq uemclt icas da ord e m socia l, que o
ho mem st• tor na, par,1 o melhor L' para o p ior, um ,mim a i pol íti co". "A fun çã o d a ideologia,
prosseg ue e le, é a dt' puss ib ili ta r u ma p o lítica ,1 utô nom a ao for nece r os conce ito s q u e a fun-
d a men ta m e lhe d 5o sl' ntido, as im ,1gcn s pers ua s ivas ~w l.is qu a is el;i pode ser jud ic iosa nw n ll'
ap rL'L' nd id a ." (i /J id., p. 2 18)
34 I'. RinL'llr, l.' ftfrolos ic e/ l' Ulopi,·, º V cit., PP· 24 1-284.
l),\ M F~lt°l Rf ..\ F 1) .\ RI \ II N I SCÍ· N C I.\

"chance" - de que ela será satis feita. É nesse ponto crítico que os sis temas simból icos
e suas expressões retóricas, também e\'ocadas por C. Geertz, se \'êem mobilizados.
Eles fornecem o conjunto de argume ntos que eleva él id eologia à condi ção de mais-
valia agregada à crença na legitimidade do poderv,_
Essa relação da ideologia com o processo de legitimação dos sistemas de autorida-
de parece-me constituir o eixo central em relação ao qual se distribuem, por um lado,
o fenómeno mais radical de integração comunit,íria por meio d as m ediações simbóli-
CélS - até mesmo re tóricas - da ação e, por outro lado, o fe nómeno mais aparente e
mais fékil de se deplorar e de nunciélr, a saber, o efeito d e dis torção sobre o qual Marx
focalizou s uas melhores análises em A idcolog in nlc111í'í11• • As discutíveis metáforas da
imagem invertida ou do homem d e célbeça para bai xo são conhecid as. O mecanis mo
da distorção, posto por sua vez e m imagens, somente seria pla usí\'el caso se articu-
lélsse com o fenómeno de legitimação que coloco no centro d o dispositivo ideológi co
e caso afe tasse em última instância as mediações simbólicas insupe ráveis da açé'lo. Na
falta desses intermediéhios, presume-se que o detrator d a ideologia seja capaz de dar
urna descrição verdadeira , não d eformada e, portanto, isenta de toda inte rpre tação
em termos de significado, \'alor, norma , da realidade humana fundamental, a saber,
a pnnis, a atividade transformadora. Esse reali smo, até mesmo essa o ntologia da pra-
xis '~ e mais precisamente dn trabalho \ ' ÍH1 º', constituem ao mesmo tempo a fo rça e a
fraqueza da teoria marxista d a ideologi a. De fa to, se a prnxis não integra , a título pri-
mitin), uma camada ideol ógica, na prirneirc1 élcepção da palav ra, não se vê o que, nessa
pnnis, pode ria ser moti\'o d e distorção. Desligada desse contexto simbólico ori ginário,
a d enúncia da ideologia se reduz a um panfleto contra a propaganda. Essa empreitada
purificadora não é vã, pode ter sua necessidade circunstancia l se for desenvolvida na
pcrspcctiva da reconstrução de um espaço püblico de discussão e não na de uma luta
iITtpiedosa que teria por único horizonte a guerra civil'''.

1~ A l) a r ri scar a ex prL'Ss,l o n1clis-, ·;1l ia, su g inJ qul) cl noç,l o n1<1 rx ist;1 de n1 ,1 is-, ·,1lid ccnt rad,1 na pru du-
ç,io d l' ,,a Jort'S n ,1 l'Clln orn ia merca ntil n,'lo p ass,iri,1 de uma íig ura p a r tic ub r d o fon ô mcn o ger,11dt.·
m a is -,-.1lia v incu lad o ao exe rcicill dll plld er, o pndL·r cconúmiCll n,1 forma c.1pitalis ta d a L'Conomi,1
nw rrn nt il sendo a , ·cuiante es~wcificad ,1 p ela d i,·is,'lo d o trab;i lho L'ntrc gm·L·rna ntcs e gl)\·ernados.
36 I'. Ri n l'ur, L'l1fro/ogiL' e/ /' Lltc,pic, 011. cit. , pp. 103-117.

C,1II i m,1 rd, 1976) conti nu,1 Sl'nd o o tex to dL' rl'ÍL'rL·nc ia pa rn uma cornprL'L' n s,i o profunda da anci li st'
marx is t,1 da realidade hum a n a. Eu h a,·i;i L'Scritn urn,1 an,'ili sl' dl'sse b t>líss imo li\'ro pouco depois
d e su a publicaçiio, rl'tomad,1 c m Lc,·t11 rcs :?, L,1 t"o11 / 1ú· d,·s philoso11h,·s, l'aris, Éditions du St>uil, Clll.
"L..i C oull'ur lks idé es", F N2 ; rt'Pd . col. " l\lints Ess;i is ", 1999. Nl'Ss,1 ú ltima L'di ç,io, p p . 26~-2LJ.l
38 Jea n-Luc l'ctit, D 11 fr, 1,•ail ,•i,•,111t 1711 s _vs fr111(' de , ,1t"tio11s . U11,· dis c11ssi,H1 de Alar.r, l';i ri s, Éditio n ~ d u
Se uil, 1980 .
39 Fssa fo i ;i con tr ibui ç,io d L· H,1bl'rma s n a é·p o c,1 de C(J1 11111 iss1111cc t'I /11/át'f (l\ ui s, C;i llim.ird , col.
" I3i bliotht:,qut> d p phi lllSPph iL'", 1976 ; rL'L'd ., col. "Te! ", 1979); ,·er P Ric(t•u r, L'lcic'olog ic e/ f" Lltt'pie,
op. cit., pp. 285-33-t. L;m in te rt:'sse pe la L'rn,rnc ip a çi\o, di st in to d o intt'ressl' p Plo cont role l' p L•l ,1
m dnipulaçiio, ,1os qu,1is corrc~ponder iam ,1s c it:, nci,1s e rnpíric,1s, L' .i té mesmo do inlt'n•ssl' p t' la
comunicaçii o, p rú prio d ,1s c ii•ncias hi s tóric.is L' intcrpretati , ·,1 s, es t.1ri ,1 11,1 b ilSL' d ,1s ciL'TKi ,1s soc ia is
cr íticas tais cornu a p s ican ,í \i sL' e a cr ític,1 da s ideolugi,1s.
/\ Ml:IVl(ll{li\, /1. 111srt'rn1 A, O ISQUl:CIMF N H)

Se essa anMise é plausível, ou mesmo correta, percebe-se facilmente quais molas


movem os diversos empreendimentos de manipulação da memória.
É fricil vinculá-los, respectivamente, aos diversos níveis operatórios da ideologia.
No plano mais profundo, o das mediações simbólicas da ação, a memória é incor-
porada à constituiç,'ío da identidade por meio da função narrativa. A ideologização
da memória torna-se possível pelos recursos de variação oferecidos pelo trabalho de
configuração narrativc1. E como os personagens da narrativa são postos na trama si-
multaneamente à hist(iric1 narrada, a configuração narrativa contribui para modelar a
identidade dos protagonistas da ação ao mesmo tempo que os contornos da própria
ação. Hannah Arcndt nos lembra que a narrativa diz o "quem da ação". É mais pre-
cisamente a função seletiva da narrativa que oferece à manipulação a oportunidade
e os meios de uma estratégia engenhosa que consiste, de saída, numa estratégia do
esquecimento tanto quanto da rememoração. É o que explicaremos no estudo temá-
tico reservado ao esquecimento. Contudo, é no nível em que a ideologia opera como
discurso justificador do poder, da dominação, que se vêem mobilizados os recursos de
manipulação que a narrativa oferece. A dominação, como vimos, não se limita à coer-
ção física. Até o tirano precisa de um retórico, de um sofista, para transformar em dis-
curso sua e mpreitada de sedução e intimicfação. Assim, a narrativa imposta se torna o
instrumento privilegiado dessa dupla operação. A própria mais-valia que a ideologia
agrega à crença oferecida pelos governados para corresponderem à reivindicação de
legitimação levantada pelos governantes apresenta uma textura narrativa: narrativas
de fundação, narrativas de glória e de humilhação alimenL:1m o discurso da lisonja e
do medo. Torna-se assim possível vincular os abusos expressos da memória aos efei-
tos de distorção que dependem do nível fenomenal da ideologia. Nesse nível aparente,
a memfaia irnpostêl está armada por uma história ela mesma "autorizada", a históriêl
oficial, a história aprendida e celebrada publicamente. De fato, uma memória exercida
é, no pl,1110 institucional, uma memória ensinada; a me morização forçada encontra-
se assim arrolada em benefício da rememoração das peripécias da história comum
tidas como os acontecimentos fundadores da identidade comum. O fechamento da
narrativa é assim posto a serviço do fechamento identit,:Írio da comunidade. História
ensinada, história aprendida, mas também história celebrada. À memorização forçada
somam-se as comemorações convencionadas. Um pacto temível se estabelece assim
entre rememoração, memorização e comemoração.
Chegamos aqui aos abusos precisos denunciados por Tzvetan Todorov no ensa io
precisamente intitulado Os alJ//sos da 111c111ôri11~0 , no qual se pode ler um requisitório
severo voltado contra o frenesi contemporâneo por comemorações, com seu cortejo
de ritos e mitos, gera lmente vinculados aos acontecimentos fundadores evocados há
pouco. O embargo da me mória, insiste Todorov, não é especialidade dos regimes to-
talitários apenas; ele é o apanágio de todos os devotos da glória. Dessa denúncia re-
sulta uma advertência contra o que o autor chama de um "elogio incondicional da

40 Tl'.vL't,111 Todorov, l.1·s Ah11~ de /11 1111;1,wirc, Paris, Arl0a , 1995


l l \ \ 11\1\.ll~I \ 1 l l \ Rl .\ 11\ dSl Í:l\ l l .\

memória" (Os 11ln1sos da 111('11/Ôria, p. 13). " O que está e m jogo na mem ó ri a, acrescen t.1
ele, é grand e d e mais p a ra se r abandonado ao e ntus ias mo o u à có ll'r<1 " (op. cit., p . 1-+ ).
N ilo ins istire i num outw aspecto do probl em ,1, a sa ber, cl pretenst"io d e nossos con-
te mpor,1 neos d e se ins ta larem na postura da \'Ítima, no esta tuto d a \' Ítima : " Ter s id o
dtima cl.1 o dire ito de se quei xar, protestar, e rccla rn é.l r" (op . t"if., p. 56). Ess;:1 pos t u ra
g era um pri v ilégio exorbitante, qu e pôe ll resto do mund o ern pos içc'io d e d e ,·cd o r Lk
promissória s . Consen·arei, antes, de Todoro\·, uma última reflexi'i o que nos le,·ar,í à
difícil questã o do ckn_·r de memória: "Como to do traba lho sobre o passad o, o trabc1lh o
do historic1dor jama is consis te ape nas cm l'S tabe lecer fa tos, m ,1s tc1m bém em esco lh er
a lguns d e les como sendo mé.li s d esta cados e m ais s ig nificé.l ti n >s qu e o utros p c1r,1, em
seguid ,1, rel ac ioná-los e ntre si; ora, esse traba lho de selcçi'i o e de combinaçã o é ne-
cess ari a mente orientado p e la busca ni'io da n ~rd a de, mas do be m " (op. cit., p . 150).
Inde pendenterr,ente da s minhas ressal\·,1s p ,1 rn com a ;:1lternélti\·a ,1 qui s uge rid a e ntre é1
,·erdade e o bem, teremos de adiar a té a di scu ssão ulte rior, sobre o d e , ,er de rnemó ri ,1,
cl reorientação d e toda a fala sobre os a busos d a m e m ó ria qu e ck•pc nd e m da busc,1 d a
justiça. Esse cuidado encadeia-se ao que fo i dito c1c i111 a cm ft1n:i r d e um c onselho e :-.:-
trem a m e nte judi cioso de To dorov, o d e ex t rai r da s lembrança s tra umati zantes o , ·a lo r
exempla r que apen a s u m ,1 in versão d ,l mem ó ri a e m p ro jeto pod e tornéH ~x·rtine n te.
Enq u ,1nto o traum a ti smo re m e te a o p ass,1 do, o \'alor l'xcmplar o rient,1 p éHa o futu ro.
Orc1, o que o c ul to d a m e m ória pela mem<iria oblite ra , a o objeti\·cir o futuro , é a questi'i o
do fim , do desafio mornl. O ra , a e ssa qu estão, a prúpria noç,1 0 de u so , implíc ita n a ck
abu so , n i'i o podia d e ixar d e re me ter. Ela j,'í nos f<:·z ultra passar o limiar do terceiro n í\·e l
dl::' noss;:1 investig açi'i o.

3. Nível ético-político: a memóric1 obrigacfa

Q u c1 I é, ind a g a re m os finé.llrn entl', a s itu,1çJ o d o prete n so d eYer de 1nemóri a ? A bem


da ,·erliadc, a p e rgunt,1 é muito pre m a tura Sl::' co n s ide rarm os o p ercurso d e p ensa m e n -
to qu e aind c1 nos resta trilh êt r. Ela nos projct,1 muito a lé m de u rna s im p les fen omenoll)-
g ia d a m e m ó ria, e a té mes mo al é m d e u rn a epis tem olog ia d a his tó ri a, a té o coraçJo da
hermen ê uti ca d ,1 cond ição his tó rica . Dt• foto , n i'i o se pode ig n o rar as condiç{ies hi s tóri-
cas na s qucli s o d e Ye r d e m e mória é n.' querido, ,1 sabe r, n ,1 Europa ocidenta l e p c1rticu -
larmente na França, al g umas d éca das ,1 pós o s horr íveis aconteci111entos dl' m e ad os do
sé cul o XX. A injunçi'io só p assa a fa zer sentid o cm re laçi'io à difi c uld a d es, , ,i,·enc i,1dc1
pela comunid a de n ,icional o u pelas p a rtes fe rid as do corpo político, d e constituir urn,1
m emóri a d esses a con tecimentos d e m o d o a p az ig u a d o . N c10 se pod e ri a fal ar d essas
d ificu lda des d e m a n e ira responsá \ ·c l sem ter ;_111 te s a trn \' essado ,i s planíc ie s úrid as d a
e pistemo log ia do conhecime nto his tór ico 1-..,ar,1 ch ega r à rcg i,10 dos conflitos en t n:~m c-
1rn'iri ,1 indi v idual, mem ó ri<1 cole tiv a, mem ó ri,1 histó ri rn , ne sse p onto e m qu e ,1 m e m ó-
ria , ·i,·a dos sobre\·i\·e ntcs e n frt,nt,1 o o lh;:i r di s ta n ciado e c r ítico d o his toria d o r, p clí,l
nJo m en cionar o d o jui z .
A tvH:M(>RJ ,'\, A IIISH)RJA, () ES QUEC IME N TO

Ora, é nesse ponto de atrito que o dever de memória se revela particularmente car-
regado de ambigi.iidades. A injunção a se lembrar corre o risco de ser entendida como
um convite dirigido à memória para que provoque um curto-circuito no trabalho da
história. Por ff1.eu lado, estou tanto mais atento a esse perigo pelo fato de meu livro ser
uma apologia da memória como matriz de história, na medida em que ela continua
sendo a guardiã da problemática da relação representativa do presente com o passado.
Logo, é grande a tentação de transformar essa apologia numa reivindicação da memó-
ria contra a história. Chegada a hora, resistirei tanto à pretensão oposta, de reduzir a
memória a um simples objeto de história dentre seus "novos objetos", correndo o risco
de despojá-la de sua função matricial, quanto me recusarei a deixar-me arregimentar
pela argumentação inversa. É com essa disposição de espírito que escolhi colocar pela
primeira vez a questão do dever de memória na seção dos usos e abusos da memória,
mes mo que tenha de retoméí-la mais demoradamente na seção sobre o esquecimento.
Dizer "você se lembrará", também significa dizer "você não esquecerá". Pode até ser
que o dever de memória constitua ao mesmo tempo o cúmulo do bom uso e o do abuso
no exercício da memória.
Espantemo-nos primeiro com o paradoxo gramatical que a injunção de se lembrar
constitui. Corno é possível dizer "você se lembrará ", ou seja, contará no futuro essa
memória que se apresenta como guardiã do passado? Mais grave ainda: como pode
ser permitido dizer "você deve lembrar-se", ou seja, deve contar a memória no modo
imperativo, quando cabe à lembrança poder s urgir à maneira de uma evocação cspon-
tfü1ea, portanto, de um pat/10:-, como diz o De 111e111oria de Aristóteles? De que maneira
esse movimento prospectivo do espírito voltado para a lembrança como uma tarefa
a cumprir se articulé~ com as duas disposições deixadas corno que em suspenso, a do
trabalho de memória e a do trabalho de luto, consideradas alternadamente de modo
separado e cm dupla? De certa forma, ele prolonga seu caráter prospectivo. Mas o que
lhe acrescenta?
É certo que, no âmbito preciso da cura terapêutica, o dever de memória se formula
como urna tarefa: ele marca a vontade do analisando de contribuir doravante com a
empreitada conjunta d a análise através das armadilhas da transferência. Essa vonta-
de reveste-se até mesmo da forma do imperativo, o de deixar os representantes do
inconsciente se dizerem e assim, tanto quanto possível, " dizer tudo". Nesse aspecto,
é preciso reler os conselhos que Freud d á ao analista e ao analisando e m seu ensaio
"Rememoração, repetição, perlaboração"~'. Por seu lado, o trabalho de luto, na medida
em que exige tempo, projeta o a rtesão desse trabalho à frente de si mesmo: doravante,
ele continuará a cortar um por um os vínculos que o submetem ao império dos objetos
perdidos de seu amor e de seu ódio; quanto à reconciliação com a própria perda, ela
permanece para sempre uma tarefa inacabada; essa paciência consigo mesmo reveste-
se mesmo dos traços de uma virtude quando a opomos, como tentamos fazer, a esse
vício que consiste no consentimento à tristeza, à acídia dos mestres espirituais, essa
paixão dissimulada que arrasta a melancolia para baixo.

41 Cf. ilcimil, pp. 103-105 e pp. 115- 116.

0i roo •Z•
Isso posto, o que fal ta ao tra balho d e memória e ao trabalho de luto p ara se iguala-
rem ao dever de memória ? O que faltJ, é o elemento imper<üi,·o que não estci expressa -
mente presente na noção de trabalho: trabalho d e memória, tr,1balho de luto. Mais exa-
ta mente, o que a inda falta é o d uplo aspecto do dever, como que se impondo de fora
ao d esejo e exercendo urna coerção sentid a subjetivamente como obrigação. Ora, onde
esses d ois traços se encontram reunidos, do modo mais indiscutí\'el, sen,fo na idéia
de jus tiça, que me ncio namos uma primeira ,·ez e m réplica aos abusos d a memória no
ní,·el da mani p ulação? É a justiça que, ao extrair das lembranças traumatizantes seu
,·alor exemplar, tra nsforma a memória c m projeto; e é esse mesmo projeto de justiça
que dá ao d ever de memória a forma do futuro e do impe ratin). Pode-se então sugerir
que, enquan to imperativo d e justiça, o de,·er d e memória se projeta à maneira de um
terceiro termo no ponto d e junção do trabalho d e luto e d o trabalho de memória. Em
troc.1 , o impe ratÍ\'() recebe do trabalho d e memória e do trabal ho de luto o impulso que
o integra a uma economia das pulsões. Essa força federati,·a do dever de justiça pod e
enUio se estender para além do par memória e luto até aquele formad o conju nta mente
pela dimensão vcritati,·a e pela dimensão pragmática da nw mó ri a; de fato, nosso pró-
prio discurso sobre a memória fo i cond uz ido, até aq ui, segundo duas li nhas paralelas,
a da ambição veritati,·a da me mória, sob o signo d a fidelid ade epistê mica da lembr,1n-
ça em relação ao que efetiva mente aconteceu, e a do uso d,1 memó ria, considerada
como prática e até mesmo como técn iG1 de memorização. Logo, retorno do passado e
exercício do passad o, bipartição esta que repete a divisão em dois capítulos d o tratado
de Aristóteles. Tudo se passa como se o de\'cr d e memória se projetasse à fre nte d a
consciência à ma ne ira de um ponto de COJl\'ergênci a entre" pcrspectiva ,·critati,·a e a
perspectiva pragrn.üica sobre a rr1em ória.
Coloca-se, então, a questão de saber o que d,i à idéia de justiça sua força fcd era ti,·a,
tan to em relação ao objetivo veritati\'o e ,10 objetivo pragmático da memória , quanto
e m relação ao trabolho de memória e ao trabolho de luto. É ,1 relação do d ever de me-
mória com a idéia d e justiça que se den,:, questionar.
Primeiro elemento de resposta: é preciso primeiro lembrar que, entre tod as as ú r-
tudes, a d a justiça é c1 que, por excelência e por constituição, é nlltada para outrem.
Pode-se até di zer que a justiça constitui o componente de alteridad e de todas as ,·irtu-
des que ela arra nca do curto-circuito entre si mesmo e si mesmo. O d ever d e memória
é o de\·cr d e fa zer justiça , pela le mbrança, a um outro que não o si 12.
Segundo elemento de resposta: é chegado o momento de recorrer a um con ceito
novo, o de dívida , q ue é importante não confi na r no de cu lpabilidade. A idéia de dí-
,·ida é inseparável da d e herança. Somos devedores de parte do que somos aos que
nos preccdera rTi. O dever d e memória não se limita a guardcir o ra stro mate rial , escrito
ou outro, dos fatos acabad os, mas entretém o sentimento de dever a outros, d os quais
d iremos mais Miiante que não são mais, mas já fora m . Pagar a d ívida, d iremos, mas
tambt.' m submeter a he rança a inventário.

-l2 Cf. l\ristt'1k les, E.'t11 iq11cti ;\ficolllt1q11,•, li \·n 1 \'.

•l> IOI •l>


,\ tv11::,..,H) l{ l i\, ;\ HI STt°WI ;\, O LSQU FC IMF N TO

Terceiro elemento de resposta: dentre esses outros com quem estamos endivida-
dos, uma prioridade moral célbe às vítiméls. Acima, Todorov advertia contra a pro-
pensão a se proclamnr v ítima e exigir incessantemente reparação. Ele estava certo. A
vítima e m questão aqui é a vítima outra, outra que não nós.
Sendo esta a legitimação do dever de memória enquanto dever d e justiça, como os
abusos se enxertam no bom uso? Eles próprios não podem passar de abusos no manejo
da idéia de justiça. É aqui que certa reiv indicação de memórias passionais, de memó-
rias feridas, contra o alvo mais amplo e mais crítico da história, vem dar à proferição
do dever de mernória um tom cominatório que encontra na exortação a comemorar
oportuna ou inoportunamente sua expressão mais manifesta.
Antecipando desenvolvimentos ulteriores que supõem um estado mais adiantado
da cfo1l é tica da memória e da história, assinalo a existência d e duas inte rpretações mui -
to distintas, embora compatíveis entre si, desse des loca mento do uso ao élbuso.
Pode-se, de um lado, enfatizar o carcíter regressivo do abuso que nos remete à pri-
meira fase de nosso percurso dos usos e abusos da memória sob o signo da memória
impedida. É a explicação que Henry Rousso propõe em Lc Syndro111e de Vic'1_1/". Essa
explicação somente va le nos limites da história do tempo presente, portanto, para um
prazo relativamente curto. O autor tira o melhor proveito das categorias que depen-
dem de uma patologia da memória - traumatismo, recalque, retorno do recalcado,
obsessão, exorcismo. Nesse quadro nocional que somente se legitima por sua eficácia
heurística, o deve r de memória funciona como tentativa de exorcismo numa situação
histórica marcada pela obsessão dos traumatismos sofridos pelos franceses nos anos
1940-1945. É na medida em que a proclamação do deve r de memória permanece ca tiva
do sintoma de obsessão que ele não pára de hesitar entre uso e abuso. O modo como o
dever de memória é proclamado pode parecer, sim, abuso de me mória à maneira dos
abusos denunciados logo acima na seção sobre a memória manipulada. Não se trata
mais, obviamente, de manipulações no sentido d e limitado p ela re lação ideológica do
discurso com o poder, mas, de modo mais sutil, no sentido de uma direção de cons-
ciê ncia que, ela mesma, se proclama porta-voz da de manda de justiça das vítimas. É
essa ca ptação da palavra muda das vítimas que faz o uso se transformar em abuso.
Não é de admirar se reencontramos, nesse nível entre tanto superior da me mória obri-
gada, os mesmos sinais de abuso que na seção precedente, principalmente na forma
do fre nesi de comemoração. Trataremos de modo temático desse conceito de obsessão
num estágio mais adiantado desta obra, no capítulo sobre o esquecimento.
Uma explicação menos centrada no recitativo da história do tempo presente é pro-
posta por Pierre Nora no texto que e ncerra a terceira série dos Lugares de J11e111ôria - as
Fra nça - com o título: "A era das comemorações"-1-1. O artigo é dedicado à "obsessão

43 Henry Rnusso, Lc S1111dro1111' di' Vichy, de 1944 à /l[)S jo11rs, Paris, Éditions du Seuil, 1987 : reed., 1990;
Vic/1_11. L/11 J1t1ss1• q11i Ili' 1111,;,;c pas, Paris, Fayard, 1994; La H1111tisc d11 pasS(', Paris, Tc xtuel, 1998.
44 P. Nora (dir.), l .1'S Li1·11.r de IIH;11wirc (3 pa rtt>s: 1. La Rt'.' publique; li. La N,1tion ; Ili. Les Frc1 ncP),
Par is, Ca 11 i mard, cnl. " 13ibl iothL·quc i llus trée des hi stoi rc s", 1984-1986. Ver 111, Ll's Frane<:.', t. 3, " Dl'
l'archiw à l'cmb1L,111c", p. 977 e scg.
D.\ \1Fl\1 t'll,I·\ 1 l) .\ 1,1 \11'\ISCl' !\:C !.\

comemorntiva " e som e nte se compreende no diMogo est,1belecido por seu autor com
o tex to in,wgural dos "lugc1rcs d e memória " . No momento oportuno, dcdicc1rci um
estudo a esse diálogo de Pierre Nora consigo mesmo~;. Se o m enciono agora é p,1rc1
dele extrair a advertência contra um,1 recuperação de meu próprio trabalho em be-
nefício de um ataque dc1 história em nome d,1 memória. O próprio autor se quei xa
de umt1 recuperação semelh,mte do tem ,1 dos "lugares d e memória" pel,1 "bulimia
comemorativa de época " (Nora, o~ !11gare~ de 111rn1ória III, p. 977): " Estrnnho destinl) o
desses 'lugares de memória': por seus prncedin1entos, seus métodos e seus próprios
títulos, qu eria m ser uma his tória de tipo con trncomcmor,1ti,·o, mc1s él comemcHél~'. ,10
os alcançou. [ ... ] /\ ferra,nenta forj ada para e,·idL'nciar a dist{íncia crítica tornou-se o
instrumento por excelência da comemornção" ... O nosso é um momento his tórico qu e,
portanto, é inteirnmente cc1ractcri zado pela "obscssfül corne1lwr,1tiva": mt1io de 1968,
bicentenário da Renllução Fr,1 ncesa, etc. A explicaçfío proposta por Nora ainda não
nos diz respeito, c1 penas seu diagnóstico: "É a próprin din flmica da comernoraçZ10 que
se im·e rtcu, o modelo memorial levou a melhor sobre o modelo histó rico e, com ele, um
uso completa m en te diferente do pc1ssado, imprL•visível e caprichoso" (op. cit., p. 988).
Que modelo histúrico o modelo mernori,11 substituiu? O modelo de celebr,1çôcs con-
sagr,Hfas i1 soberan ia impesso,1 1do Es tado-naçiio. O modelo mereccrit1 se r chamado de
histórico, porque ,1 ,1utocornprcensão dos fr,1n ceses identifica,·t1-se com a hi stl')ria da
instauraçã o do Es tndo-nação. A ele substitue1n mcmóri,1s p.1rticularcs, fragm e ntadc1s,
locais e cultur,1is-l". Que rci\'indicação est,1 \·inculada a ess,1 im·ersão do histú rico em
comemorc1tivo? lnteress,1 -nos t1qui o que diz res peito à trc1nsição dc1 fenomenologia d ,1
nwmória à cpisten1ologic1 da históri,1 científica . Esta, nos di z Pierre Nora , " tal corno se
constituiu e m instituição d a nação, consistia n,1 retifirnç,io dessa tr,1diç5o de rnt•móric1 ,
no se u enriquecimento; mas, por mais 'crítica ' que pretendesse ser, e la rq..,1-csenta\·,1
,1pL'nas seu aprofundamento. Sua nwta última con s istia mesmo numa identific,1ção
p or filiação. É nesse sentido que história e memória eram uma úniec1 e mesm,1 cois,1; c1
história era uma memó ria n·rificc1da " ((ip. cit., p. 997). A irn·ers,'io que esté'í na origem
da obsess5o comemor,üi\·a consistiria na recuperação das trMiiçôes defuntas, d e f,1ti ,1s
de passado das quais esta mos separados. Em suma, " a comemor,1ç;10 em,1ncipo u-sc do
espt1ço que lhe é tradicionalmente a tri buído, mas é a époc,1 toda que se tornou comc-
rnorati\'a " (op. cit., p . 298) .
Faço questão de di zer, ,10 cabo deste capítul o dedicad o <l priÍtiG1 da mc1rníria , qu e
minha empreitada não depende desse " ímpeto de comemor,1ção memorial " (op. cit. ,
p. 1001 ). Se é \'L'rdade que o " momento-memó ric1" (op. cit, p. 1006) define um c1 époc,1,
c1 nossa, nwu trabc1 lho amb iciona escapar aos critt·rios de pertencimento a essa époG1 ,
seja cm sua fosc fenomenológict1 , epistemológ ica ou hermcnê uti cc1. Com razào ou não.
Por isso ele não se sente ameaçado, mas confortado, pel,1 conclusão de Pierre Nora,

.,i_:; Vt•r i/,id., Ili, t. .1, " l)L' l'<1rchi\'l' ,1 l'cmbit'ml' ", c,1p. 2, ~ -+.
-+6 I'. '\Jnra prl'ci s,1: t' ss.i " mL't,1m1,rfose d ,1 conwmn raç."i n " Sl'ri,1, por s u,1 \ 'L'Z , o L'fl'itn de um ,1 ml't,1-
morfose m,1is ,1mpl,1, '\) de urna Fr<1nça l]lll' p ,1ssnu . l'm menos dL• \·i ntL' ,1 11ns, dL' um<1 cnnsc it·nc i,1
n,,ciona l un it,iri,1 .i um,1 cn n sc iênc i,1 dL· s i d l' tip t) p ,1trimn ni,1l ".
/\ MEM(lR I A, /\ HI STÚRI I\, O ES(JUEC I MEN TO

que anuncia um tempo cm que "a hora da comemoração es tad d efinitivamente en-
cerrada" (op. cit. , p. 1012). Pois não é com a " tirania da memória " (ibid.) que ele quis
contribuir. Esse abuso dos abusos é daqueles que ele denuncia com o mesmo vigor que
o fa z resistir à s ubstituição do trabalho d e luto e do trabalho d e memória pelo dever de
memória e limitar-se a colocar esses dois labores sob a égide da idéia de justiça.

A questão colocada pelo d ever d e memória excede assim os limites de uma sim-
ples fenomenologia da memó ria. Ela excede até os recursos de inteligibilidade de
uma epistemologia do conhecimento histórico. Finalmente, enquanto impera tivo de
justiça, o dever de memória se inscreve numa problemática moral que a presente
obra apenas resvala. Uma segunda evocação parcial do dever d e memória será pro-
posta no âmbito de uma meditação sobre o esquecimento, em relação com um even-
tual direito ao esquecimento. Seremos então confrontados com a d elicada articulação
entre o discurso da memória e do esquecimento e o da culpabilidade e do perdão.
Nessa suspensão interrompe-se nosso exame d a memória exercida, de suas faça-
nhas, de seus usos e de seus abusos.
3
Memória Pessoal, Memória Coletiva

Nota de orientação

1 discussiio co11tc111porâ11ea, 11 pcrg1111ta do sujeito z crd11deiro d11s opcmçiics de 111c-

N
1

111ôria tende II do111i1111r a cena. Ess11 prccipitaçiio é encorajada por 11111a inq11ict11çiio
prôpri11 de nosso c11111po de im•estigaç110: Íl/lporta 110 ltistori11dor saber 911111 é seu co11-
traponto, a 111c111ôri11 dos protagonistas d1111çiio to11111dos u111 a 11111, ou 11 das coletividades to11111-
das e111 conjunto? Apesar dessa dupla 11rgt' 11ci11, resisti i1 te11t11çi'io de iniciar ,ninha im 1cstigaç1io
co111 esse debate às 11c:cs i11cô111odo. Pensei que se clill/in11ria St'll z encno Ji1:c11do-o retroceder
1

do pri111ciro l11g11r, onde 11 pedagogia do disc1ll"so aqui sustentada ta111[)(;111 aco11sc/lrnria 1111111ft'-
lo, p11m o terceiro lugar, onde 11 cocre11ci11 do 111c11 proccdi111c11to requer que cu o rcco11d11:11. Se
11iio se s11[1e o que signifirn a prova da 111e111ôria 1u1 presença z,i, 11 de 1111111 il/lage111 d11s coisas
1

passadas, nc111 o que significa partir e111 ln1sca de 1111111 le111lmmça pcrdid11 011 recncontmd11,
co1110 se pode lcgitill/11111e11te indagar 11 quc111 atribuir essa prorn e essa /1usrn ? Assi111 adiada,
a disrnssiio te//1 a!g1111111 cl11111cc de z1ersar so/Jre unw pcrg1111t11 111c11os abrupta que 11 que se
coloca geral111c11tc 11a Jim1111 de 11111 dilc111a pamlis1111tc: a 111c111ória é pri111ordial111c11te pessoal
011 colcti"ua? Essa pcrg1111ta t; a seguinte: a q11el/l é legíti1110 atribuir o pathos correspo11dc11te à
rcccpçiio da le111lnm1 ç11 e a praxis e111 q11c consiste a /111sca da lc111/1m11ça? A resposta à pcrg1111t11
colocada nesses tcrl/los te111 c'1a11ces de escapar à alternati-ua de 11111 "ou ... 011 entito". Por q11c a
111c111líria haveria de ser ,1triln1ída apenas a 111i111, a ti, a ela 011 ele, ao si11g11lar dos t,is pessoas
s;ra111atimis suscctíucis quer de designar a si próprios, quer de se dirigir rnda 11111n a 11111 t11 , quer
de narrar osjé1tos e os gestos de 11111 terceiro n1111rn 11arratiz 1a c111 terceira pessoa do si11g11lllr? E
por que essa atriln,içâo niio sc_(i1ri11 dircta111c11te a 11ôs, 11 z ós, a eles? E111/1om a discussi'io ahcrtt1
1

pela altematiua que o título deste capít11Io rcsu111c 11iio se rcsoh t1, ol1z. ia111cnte, co111 esse lllCro
1 1

des/om111c11to do pro/7lc111t1, o espaço de 11tri/111içiio prcuia111e11te aberto à totalidade das pessoas


gm111t1ticais (e 111cs1110 das 11110-pcssoa s: se, q11c111 quer que, mda 11111 ) 1fcrcce ao 111e11os 111n t]lll7-
dro apropriado a 1111111 co11fro11taçi'io entre teses que se tornam111 co111c11s1míz eis. 1

Esta é a 111i11'1a pri111cim '1ipótcsc de tm/1allw. A segunda t; a scg11i11tc: a altcrnatirn da


qual partil/los é o frn to rclatizit1111c11tc tardio de 11111 duplo 111ozii111c11to que to111ou sua járn111 e
seu i111p11/so 11111ito depois da cla/Jomçi'ío das duas prohlc111átims 11111iores da proua e da /111srn
da /e111bm11ç11, c!al1omçiio cuja orige111 rc111011ta , co1110 ui111os, 11 t;poca de Platifo e Aristóteles.
/\ l'vll'.l'vl ( ll{I/\, i\ lll ST(W IA, () l·:S(JU l :C I MFNTO

Por u111 Indo, tc/llos n c111crgê11cia de 11111a pro/Jle111ríticn dn s11bjctividade de feição frm1c1rnlf'11te
cgológica; por outro, a irrupção dn sociologia 110 campo das cih1cins sociais e, co111 cln, de 11111
co11ceito inédito de co11scih1cin colctivn . Ora, 11c111 Platão, 11e111 Aristóteles, 11c111 qualquer dos
J\11 tigos considcro11 co1110 1111rn q11estiio prhiia n de saber q11c111 se lc111bra. Eles i11dag11111 o q11e
signifirn ter 011 buscar w1111 lc111lm111ça . J\ atribuição a 11/g11é111 s11scctívcl de dizer c11 ou 11cís
pemumccia i111plícit11 nco11j11gaçiio dos verbos de 111e111ôri11 e de esq11ccime11to a pessoas gra11111-
tirnis e 11 tempos verbais dijáentes. Eles 11iio se colornm 111 essa pcrg1111ta porq11c se colornv11111
outra, a respeito da relação prática entre o i11diuíd110 e a cidade. Eles a rcsolvi11111 bem 011 mal,
co1110 ntcsta a qucrda aberta por A ristôtclcs 110 /iz,ro Il da Política contra a nfom1a da cidade
proposta por Platiio 1111 República II-Ili. Ao 111c11os esse probh'111n estava 110 abrigo de toda
nltcmntiva rui11os11. Seja co111ofor, os i11diuíduos ("cnda 11111" - ti s - "o !to111c111", pelo 111c11os
os /Jo111cns frures definidos por s11n pnrticipaçiio 110 governo da cidade) c11ltivava111, 1111 csrnla de
s11as relnçc"ies privad11s, a virt11de de 11111izndc que tonz11m s11ns trocas iguais e recíprocas.
É 11 e111crgh1cia de u11111 pro/Jlc111ríticn dn subjetividade e, de 111odo cada vez 111nis prc111e11te,
de u111n problcnuítirn cgolôgirn, q11c suscitou t1111to a prob/c11rntiz11ção dn co11sci1'11ci11 quanto o
1110vi11H'11to de rctmi111c11to dcst11 sobre si 111cs1w1, até beirar 11111 solipsis1110 especulativo. Umn
escola do olhar interior, p11ra rcto11111r n expressão inwardness de Clrnrlcs Taylor 1, i11st1711ro11-sc
assim progrcssivn111e11tc. Proporei t1h de suas n111ostras cxc/1/plnrcs. O Jll'l'ÇO n pngnr por essa
mdicaliznçiio subjetiuista é elevado: a ntribrúçiio n 11111 s11jcito coletiuo torno11-se quer i111pc11srí-
vcl, q11cr derivada, 0 11 até 111es1110 frn11rn /llclltc mctafórirn. Om, 11111a posiçiio antifl'tirn s111s iu
co111 o nnscime11to das ciências /Ju11rn11ns -dn !i11g iiística à psicologia, à sociologia e à história.
Ao adotnrc111 como modelo epistc1110/ôgico o tipo de objetividade das cihrcins dn 11nt11reza, essas
cif11ci11s i11st1111ram111 111odclos de i11tc!igibilid11dc para os quais os fc 11ô111c11os sociais siio rcali-
dndes i11d11bitáucis. Mais precis11111c11tc, ao i11dividun/ismo 111ctodolôgico, n csco/o d11rkl1ci11Ii171rn
opc"ic um lzolis1110 111ctodolôgico 110 n111bito do q11nl virrí se inscreuer M1111ricc Halbwachs. Para a
sociologi11, 1111 virada do século XX, 11 co11sch111ci11 coletiva 1', 11ssi111, 1111m dessas realidades cujo
cst11t11to 011tolôgico 11iio e' q11cstio1111do. Em co111pc11snç110, é a 111c111ôrin í11dividu11/, cnq11nnto
i11stâ11ci11 prete11sa11w11tc originária, que se torna probh'11ultic11; n fi'110111e1wlogia nascmtc te111
muita dific11 /dnde para 11iio ser relegada sob o rótulo 111ais 011 IIH' II OS i11fa111a11 tc do psicologis1110
de que eln prctrndc dcfc11dcr-sc; despojada de todo privil(t,;io de crcdibilidndc científirn, a co11s-
ciê11ci11 privada presta-se npc11ns ndescrição e ncxplirnçiio nn via dn i11teriorizaçiio, dn q11nl a
famosa i11trospccçiio, tiio ridirnll1rizadn por A 11g11stc Co111tc, seria o IÍiti1110 estrí/;io. Na melhor
dns hipóteses, ela se toma a coisa 11 explirnr, o cxplica ndum, sc111 privih•gio de originarícd11dc.
A própria palavra origi1111riedade, por si1111/, não tclll sentido 110 horizonte da objctiv11ç110 total
da realidade lw111n11a.
É nessa sit11ação nltm11c11tc polé111irn, q11c opiic a uma tmdiçi'ío n11tign de reflexividade 11111n
tmdiçiio mais recente de ohjctiuidade, q11e 111e111ôri11 i11dividllal e 111c111ôria coletiun s110 postas
c111 posição de rivnlidndc. Contudo, elas niio se opi'íc111 110 111cs1110 pln110, 111ns cm 1111iversos de
discursos q11c se tornnm111 allzcios l/111 no outro.

C hil rles T<1ylor, Lcs So11rc'c~ d11 111oi, op. cit., ver p. 149 e seg., '' L'in t0riorité".

.:;. 106 .g,


0

)),\ MI . \H 1RI .-\ F D .·\ 1, 1\I JN I SCl l\.( I \

Assi111 sendo, 11 t,m:fi1 de 11111 filôst f1 preocupado e111 co111prcc11dcr co1110 n l,istoriogrr~fia
ilrticula seu discurso co111 o da_ti·11011u•110/ogia d11 111c111ôrin é, pri111ciro, a de disccmir as m:iics
desse 11111/-c11tc11dido radirnl por 11111 cx11111c dof1111cio1rn111c11to i11tcrno de cada 11111 dos discursos
s11ste11tndos de 11111 lado e de outro; c111 seguida, t; 11 de lançar pontes entre os dois discursos, 1111
esperança de dar 11lg1111111 crcdi/Ji/ídnde à hipótese de 1111111 co11stit11içiio distinta, pon'111 1111ítun
e crn:11d11, da 111c111ârit1 indiz id1111/ e da 111e111(iria coletiua. É 11cssc estágio da disrn ssáo que
1

proporei recorrer 110 co11ceito de atriln1içi10 conw (0 11ccito opcmtôrio s11scctFud de e..:;/11helcccr
certa co11u'11s11m/1i/idade entre as teses opostas. E111 seg uida, z ir11 o cxa111c de alg11111as das 11w-
1

dt1!idadcs de trorn entre a atrililliçiio a si dos fi.·11ô111e11os 11111e111ô11icos e sua atribuiçâo II outros,
estm11/,os 011 prôxi111os.
Nclll por isso o pruhfc111t1 das rc!açiies entre 111c111âria i11diz id1111/ e 111e111(íria colctiz,a estará
1

resolz ido. A historiogmt,a o rcto111nrâ do co11u·ço. Ele surgirá de 11oz,o qwmdo n !,istôria, ao
1

se colocar por sua zc: co /1/o sujeito de si 111es111a, será tentada a alio/ir o estatuto de 111t1tri: de
1

!,istârin, gem/111c11 te nmccdido à 111c11Híri11, e 11 tratar esta /Í/ti/1/a co1110 11111 dos objetos do co11hc-
ci/lle/lto histórico. Cnl 1cní e11tiio àfilostfa da /1istôri11, sobre a qual t'CrsartÍ a terceiro parte desta
ohm, //l/1ç11r 11111 /Í/ti1110 olhar t1111to so/1rc as re!açi'ics cxtenrns entre 11u'111ória e l1istória qurmto
so/ire as rc!aç{ic_.; i11tcm11s entre 111C'111ôri11 i11diI•idu11/ e 111e111ôrio colctirn.

I. A tradição do olhar interior

1. Santo Agostinho

A defesa do ca rMcr orig inário e primordial da m cm<iria indi\'idual tem dnculos


nos usos da linguagem comum e na p sicolog ia s um,ir ia que a\'ali z a esses u sos. En,
nen hum rcgistro de expe riência \'i\·a, quer se trate do ca mpo cogniti vo, práti co ou
afeti\'O, a aderên cia do ato de a utodesignação do s ujeito fi intenç,io o bjetal de s ua expe-
ri ência é tão tota l. Nesse aspecto, o emprego em francês e cm outrns líng ua s do prono-
me reflexivo "si" nJ o pc1rece fortu ito. J\o se lembrar de a lgo, a lguém se lcmbrn d e si.
Três traços cos tumam ser ressaltados em favor do caráter essencialmente pri\·ado
da memória. Primeiro, a memória parece de foto ser radi ca lmente si n gu la r: minhas
lembra n ças néio s,io as suas. Não se pode tran s fer ir as le mbrnnça s de um para a m emó-
ria do o utro. Enq u an to minha, a memó ri a é um modelo d e min hadade, de possessc'io
pri\'ada, para todas ,is experiênci as \·iw' nciad<1s pelo s ujeito. Em seguida, o dnculo
origina Ida consciência com o passado parece residir na memória. Foi dito com Aristó-
teles, di z-se de nOH) mai s e nfatica m e nte com Sa nto Ag ostin ho, a memória é passado,
e esse pa ssado é o de minh as impressôl'S; nesse sentido, esse passado é m eu passado.
É por esse traço que ,1 memória ga rante c1 continuidade te mporal da p essoa e, por esse
,·iés, essa identidade cuj ds dificuldades e armadilhas en fre ntamos acima. Essa conti-
t\ M l'M()l{ Jt\, A HI ST(lR I/\, O ES(.) UEC IMLNTO

nu idade permite-me remontar sem ruptura do presente vivido élté os acontecimentos


mais longínquos de minha infância. De um lado, as lembranças distribuem-se e se
organizam cm níveis de sentido, em arquipélagos, eventualmente sepa rados por abis-
mos, de outro, a memória continua sendo a capacidade de percorrer, de remontar no
tempo, sem que n ada, em princípio, proíba prosseguir esse mov imento sem solução
de continuidade. É principalmente na na rrativa que se ar ticulam as lembranças no
plural e a memória no singu lar, a diferenciação e a con tinu idade. Assim retrocedo
rumo à minha in fâ ncia, com o sentimento de que as coisas se passaram numa outra
época. É essa alteridad e que, por s ua vez, servirá de ancoragem à diferenciação dos
lapsos de tempo à qual a hi stória procede na base do tempo cronológico. Resta que
esse fator de distinção entre os momentos do passado rememorado não prejudica ne-
nhum dos caracteres m aiores d a relação entre o passado lembrado e o presente, a
saber, a continuidade temporal e a minhadade d a lembrança. Fina lmente, em terceiro
lugar, é à memória que está vinculado o sentido da orientação na passage m do tempo;
orientação em mão dupla, do pa ssado para o futuro, de trás para a frente, por assim
di zer, segundo a flecha d o tempo da mud ança, mas também do futuro para o passa-
do, segundo o movimento inverso de trânsito d a expectati va à lembrança, através do
presente v ivo. É sobre esses traços recolhidos pela experiência comum e a linguagem
corriqueira que a tradição do olhar interior se construiu. É uma tradição cujos gra ndes
precursores se encontram na Antigüidade tardi a de mati z cris tão. Santo Agostinho
é ao mesmo tempo sua expressão e seu iniciador. Pode-se di zer dele que inventou a
interiorid ade sobre o fundo da experiência cristã da conversão. A novidade dessa des-
coberta-criação é realçada pelo contraste com a problem.Hica g rega, e depois latina, do
indi víd uo e da poli~, que primeiro ocupou o lugar que scré1 progressivamente parti-
lhad o entre a filosofia política e a dialética da m emória desdobrada, considerada aqui.
Contudo, se Santo Agostinho conhece o home m interior, ele não con hece a equ ação
entre a identidade, o si e a memória. Esta é uma invenção de John Locke no início do
sécu lo XVIII. Mas também ele ignora rá o sentido transcendental da palav ra "sujeito"
que Kant inaugura e lega a seus sucessores pós-kantianos e ncokantianos, até a filoso-
fi a transcendental de Husserl, que se esforçará por distanciar-se do neoka ntismo e d a
psicologi zação do sujeito transcendental. Entre tanto, não é em Kant que nos detere-
mos, na medida em que a problemática do "sentido interno" é d e leitura extremamen-
te árdua, em razão d a fragmentação da problemática do sujeito em transcendental,
numenal e empírico. Além disso, nem a teoria nem a prática dei xam espaço para um
exame sig nifica ti vo da memória. Por isso, passaremos diretamente a Husserl. É n a sua
obra cm grande parte inédita que se atam a problemática da lembrança e a d o sujeito
que se lembra, interioridade e reflexivid ade. Com Husserl, a escola do olhar interior
atinge seu apogeu. Ao mesmo tempo, toda a tradição do olhar interior se constrói
como um impasse rumo à memória coletiva.
Portanto, não são ainda a consciência e o s i, nem tampouco o sujeito que Sa nto
Agostinho descreve e honra, mas já é o homem interior que se lembra de si mesmo.
A força de Sa nto Agostinho consiste em ter relacio nado a análise d a me m ória à do
tempo nos livros X e XI das Co11fissí'>cs. De foto, essa dupla a n álise é inscpará,·el d e
um contexto absoluta m e nte s ingu lar. Pr imei ro, o gênern li te rário da confissào as-
soc ia fortemente, ao momento d e penitê ncia que pre , ·aleceu mais tarde n o uso cor-
rente do termo, e mais ainda à confissão inicial d a s ubo rdinação do cu à pal ana
criadora que desde sempre precedeu a pala\'ra privada, um momento propriame nte
reflexivo que liga, de imediato, memória e presença a s i na dor da aporia. Em Tc111po
e Narrn tiua l, cito, na esteira d e Jea n Cuitton, essa "confissào" magnífica: "Quanto a
mim pelo menos, Senhor, afli jo-me com isso e a flij o -m e com igo mesmo. To rne i-me
para mim mesm o uma terra d e dific uldade e de s uor\ si m , n ão são mais as ,ireas ce-
lestes q ue agora escru tamos, n em as distâncias as tra is, m as o espírito. Sou e u q uem
me lem bro, eu o esp íri to" (Ego s11111 , q11i 111c111i11i, ego nni11111s)' . Nada de fenomenologi a
da m emór ia, portanto, fora d e uma busca d o lorosa d e interioricfade. Lembre m os
a lgumas etapas dessa b usca.
Primeiro, no lino X das Co1~fi:::sôcs. Nele, o privilégio da interioridade certamente
n ,'\ o é tota l, na medida e m que a busca de Deus d ,í, imediatamente, uma dimensão de
a ltura , de ve rti ca lidad e, à meditação sobre a m emória. Contudo, é 1111 m e mó ri a que
Deus é primeiramente buscado. A ltura e profundidade - s,'ío a m esma coisa - esca-
,·am-se na interioridade~.
É pela metáfora fa m osa d os "\'astos pa lácios d a m em ór ia " que esse li vro ficou fa-
m oso. Ela dá à interioridade o aspecto de uma espacia lid ade es pecífica, a de um lugar
ín timo. Essa m etáfora centra l é reforçad a por uma plêiad e d e fi guras aparentadas: o
"depósito", o "armazé m ", o nde são "depositadas", "p ostas em reserva" as lembra nças
cuja va riedade será enumerada - "todas essas coisas, a m emória ,,s recolhe, para L'\'O-
Gi-las de novo se necessário e la nçá-las de ,·olta, em seus , ·astos abrigos, no segredo
de não sei quais inexplicá\'e is recônditos'' (Co,~fissôc:;, X, Vlll, B). É sobre a m arm· ilha
da recordaçào que o exa me se con centra' : a recordação do meu je ito d e tud o o q ue

2 Essa t•x press,'io C• ass im t rc1duzida por jl',111 C u it ton L'll1 Lt' ·fr111ps c'I /' Ft,·rni ft; c/1c: /llol i11 e/ s11i 11t
A11g11sti11, Pari s, Vrin , 19:n , .i·' t>d., 197 1.
:i S,1int A ugustin, Co11_fi•., ,;io11s, trad uç,'io fr,mcesa , Paris, Ül'SclL;L, d L· l.lrou\\'L'r, nil. " 13iblio t hi_•quL' ,1ll -
g u s tinienne ", 1962, Line X, XV I, 25. Ci t,1do in P. Ric(1•ur, Te111p~ t' f /~1;,.it. t. 1, L'lntrig11e t'I 1,, R1;c"it
hi.,toriquc, P<1ris , Éditions du Seuil , cul. " I.'nrdre philosophiquL•", 198.1; reed ., col. " Points l:ssa is",
] LJLJ] , p. 2] (dL'SS,1 ú lti rn,l L'diçfü1) .

.i " r\ào dm·idn, 111,1 s estou certo n n minh,1 consciL'nc i,1 ( t"r'r l r1 con.,c'i1·11 ti11), SL·nh,ll·, d e q u e te amll. [. .. ]
l'vku Deus: lu z, \·oz, perfunw, a lime ntll, ,1br,1ço d o homem intl'rit)r que h,1 L'll1 mim " (X, X\' I, S) .
:, "Qu ando L'Stou nesse p,1 lá c io, connKll ,b [L,mbr,1 nças p,ir,1 que SL' aprL'SL'lltL'm tod as as que dl';;L·jn.
A lg umas s urgem na hora; a lg um ,1s SL' fozl'rn bu scar por b ;i st,1ntL' tt'mpo L' como que arr,1nc,1r de
L'spéc iL'S d e dept'isitos mais secretos; ,1lgumas chegam cm bandos que se precipitam; e, L'rnbor,1
seja outra que ped imos L' proc ur,1 m ns, L'l,1s pu l,1 m n,1 frente G lllh) que a dize r: 'Tah·L'Z. s ejarnns
mis ? ' E" m àll de nwu co r,1ç,10 ,1s rec h,1ç,1 dn rns to de mi n h ,1 meml·lria, atC• que su r jd d.i t'scur id .'io ,1
que desejo L' qul' .J\'<lllCL' sob 1114..! US ol h ,ls cio sa ir dL' SL'll esconderijo. Ou tr,1 s le mbranças SL' ct1l,,c,1m
d ia n te de m im, sl'm dificu kfade, em ii l,1s bem organizada s, sL'g undo a nrdem Lk c h,1111ada ; a s
que s urg em p ri ml'iw Lks ap,1 reCL'lll di,rntc d as segu in tes L', ,Hl d e s,1pa recerem , fica m em resen·,1 ,
prontas para ressurgi r quando c u assim Lit>s ejar. Eis plenamente o que ncnrre quandu cont n a lgo
d1.:• nwmúri a (c1111111/iq11id 11r11TO 111c111oritcr) " (i/iid, X, V III, 12) .
/\ Ml:M()RJi\, /\ HJ SH'> Rli\, O J" SQU LCI M FN TO

"evoco cm minha memória" atesta que "é interiormente (i11t11s) que realizo esses atos,
no pátio imenso do palé.Ício de minha memória" (X, Vfll, 14). É uma memória feliz
que Santo Agostinho celebra: "Ele é gra nde, esse pode r da memória, excessivamente
grande, meu Deus ! É um sa ntuário vasto e sem limites! Quem tocou seu fundo? E
esse poder é o de me u espírito; ele se deve à minha natureza e eu mesmo não con sigo
apreender tudo o que sou" (X, VIII, 15). De foto, a memória é duas vezes admirável.
Ela o é primeiro em razão de sua a mplitude. Com e feito, as "coisas" recolhida s na
memória não se limita m às imagens d as impressões sensíveis que a me m ória arranca
à di sp e rsão para reuni-la s, mas se estende m às noçües intelectuais, que se podem
chamar de aprendidas e doravante sabidas. Imenso é o tesouro que di zem "conter" a
memória (a memória contém també m "as razões e as le is inumer,lveis dos números e
da s med idas" -X, XI, 19). Às imagens sensíveis e às noções se acrescenta a lembrança
das paixões da alma: d e fato é dado à me mória lembrar-se sem alegria d a a legria, sem
tri steza da tristeza. Segunda operação maravilhosa: ao se tratar d as noções, não são
apenas as imagens das coisas que voltam ao espírito, m as os próprios inteligíveis. Ni s-
so, a memória iguala -se ao cogifd' . Adem a is, memória das "coisas" e memória de mim
mesmo coincidem: aí, encontro tam bém a mim mesmo, le mbro-me de mim, do que
fiz, quando e onde o fiz e da impressão que tive ao fazê- lo. Sim, gra nde é o poder da
memóri a, a ponto d e "eu me lembrar a té de te r me le mbrado" (X, XI II, 20). Em suma,
"o espírito é também a própria memória" (X, XIV, 21).
Me mória feliz, portanto? C laro. Entre tanto, a a meaça do esquecime nto não dei xa
de assombrar esse elogio da memó ri a e de seu poder: desde o começo d o Livro X, fala-
se do home m interior como do luga r "onde brilha para minha alma o que o espaço
não apreende, onde ressoa o que o tempo rapace n ão toma (quod 11011 mpit tc111p11s)"
(X, VI, 8) . Um pouco m a is ad iante, evoca ndo os "gra ndes espaços" e os "va stos pa lá-
cios d a memória", Santo Agostinho fala da lembrança armazenada como de algo "q ue
ainda não foi tragado nem sepultado no esquecimento" (X, VIII, 12). Aq ui, o depósito
está próximo da sepultura ("o esquecimento que sepulta nossas lem bra nças ... " - X,
XVI, 25). Certamente, o reconhecime nto de uma coisa rem emorada é percebido como
uma v itó ria sobre o esq uecimento : "Se ti vesse esquecido a realidade, e u não seria
capaz, obvia mente, d e reconhecer o que esse som é capaz de sig nificar" (X, XVI, 24).
Logo, é preciso p od e r "nom ea r o esquecime nto" (ibid.) para falar cm reconhecimento.
Com efeito, o que vem a ser um objeto p erd ido - a d rac m a da mulher da pa rábo la
evangé lica - , senão uma coisa que, d e certo modo, se tinha guard ado em memória?
Aqui, encontrar é reencontrar, e reencontrar é reconhecer, e reconhecer é aprovar,
logo, julgar que a coisa reencontrada é exatamente a mesma que a coisa bu scad a e,
portanto, posteriormente considerada como esquecida. De fato, se ou tra coisa que não
o obje to buscado nos vo lta à m emór ia, somos capazes de dizer: "Não é isso". "É ver-
d ade que este objeto estava perdido para os olhos; a memória o retinha" (X, XVIII, 27) .

ó As noções, "é preciso re<1grupá- l,1s (colligc11d11) . Dní V t'm o termo cogitarc (pens<1r), pois wgo e cogito
procedem do mesmo modll que 11so e agito,facio ef11ctito" (Co11fi:;st>c~, Livro X, XI, 18). Os verbos em
-ito siio freqüen tati vos, que marcam a repetiçiio da atividade representada pelo verbo simples.

•Z> IIO <2>


DA M I \1llRI ·\ 1 ()\ 1~ 1 1\ II N I SCÍ: l\. c 1..\

Será que isso basta para nos tranq üilizar intci rêlme nte? A bem da \'erdade, apenas o
reconhecimento atesta, na linguagem e posteriormente, que "ainda não esquecemos
completamente o que, ao m enos, nos lembramos de ter esqu ec ido" (X, XX, 28). En-
tretanto, não seria o esq uecimento outra coisa que não aquilo d e que nos lembramos
de ter esquecido, porque dele nos recordamos e o reconhecemos? É para conjurar a
ameaça de um esquecimento mais radicêll que Sa nto Agos tinho, retórico, arrisca-se
a assoc iar ;?i lembrança da m e mória uma lembrança do esq uec imento: "Mas aquilo
de que nos lembra rnos, é pe la memória que o retemos; ora, sem nos lembrarmos do
esquecimento não podería m os absolu ta n1ente, ao ouvir esse nome, reconhecer a rea li-
dade que s ig nifica; se assim é, é a memória que re té m o esq uecime nto" (X, XV I, 2-l).
Mas o que ocorre, no fundo, com o , ·erdadeiro esq u ecimento, a saber, a "privação d e
rnen,6ria" (ibid.)? "Como, e ntão, está aqui para qu e eu d ele me lembre, uma ,·ez que,
quando est,í aqui, n ,10 con s igo me lembrar? " (i/Jid.) . Por um lado, é preciso di ze r que
é a m e mória, no momen to do recon hec imento do obje to esq u ecido, que teste munha
a ex ist[, ncia do esquecimento; e, se é assim, "é a memóri a que retém o e squecime nto"
(i/ 1/d.). Por outro lado, corno se poderia folar d a presença do própr io esquecime nto se
esq uecêssemos , ·erd ad e ira me nte? A ilrm ad ilha está se fech a nd o: "De fato, o que \ 'O U

di zer quando estou certo de m e le mbrar do e squec ime nto? Vou dizer qu e não tenho
n c1 memóric1 aquilo de que me lembro? O u \ 'OU di zer que ten h o o esquecimento na
m e m ória pc1rc1 que eu não esqueçc1? Duplo e perfe ito absu rd o. E a te rceira solução que
aq ui se coloca? Como di ri a que é a imagen1 do esqueci mento q ue minha memór ia
rL'térn e n ão o próprio esq u ec ime nto, qu ci ndo me lembro dele? Isso também, como o
diriil?" (X, XVI, 25.) Aq ui, .1 velha erística ,·cm embaralhar a confiss,io. "E entre tanto,
de qu,1lquer modo que seja, a ind a que esse modo seja incompreensível e incxplíGi, ·cl,
é do próprio esquecimento que me le mbro, tenho certeza disso, d o esquecimento que
sepulta nossas lembra nças" (il1id.).
Supera ndo esse enigmc1, ,1 busca de Deus continu,1 na m emória, m a is alto q ue c1

m e mória, pela m cdiaçc'io da busca da , ·ida feli z: "Superare i a té mesmo essa for ça em
m im que se denomina ,1 m e mória; c u a supcrc1re i par.:i tend er a té ti, doce lu z" (X, XV II,
26). Mas essa s u per,,ção, por s ua ,·ez, não<.' des p rov ida de e n igm,1: "Su perarei também
a me m óri a, para te encontrar ond e? !. .. ] Se for fora de minha memória que te encontro,
é que estou sem memória d e ti; e como entào te encontra rei se n,io tenho mernóri,1 ck
ti?" (i/Jid.). Aqui se d e lineia um esquecimento mais fund amenta l a inda que a ruína d e
tlKias as coi sas , ·isÍ\·eis pelo tempo, o esq u ecime nto d e Deus.
É sobre esse fundo d e ,H.i mi ração pela memó ria, admiraç.'10 ting ida de inquietação
qua nto ;?i ame.iça do esqueci me nto, que podemos recon sidera r as gra ndes dec laraçôes
do Li,To XI sobre o tem po. Entreta nto, n a m e di da em qu e c1 memó ri a é o p resen te do
pa ss,1do, o que éd ito do tempo e de su a relaçc'ío com a i n te ri <.lr id ade pode foci Imente
ser estendido à memória.
Como e u notarei, cm Tc111po e N11rmtii 11, é pela questão d.1 mL'dida dos te m pos q ue
1

Santo Agostinho entra na p rob lemá ti c.1 da interioridade. A qu estc'ío inicia l da medi -
d ,1 é logo atribuída ao lugar do espírito: " É em ti, meu espírito, que meço os tempos"
/\ MEMÓRIA, A HISTÓRIA, O ESQUFCIMENTO

(XI, XXVII, 36). Apenas do passado e do futuro dizemos que são longos ou curtos, quer
que o futuro se encurte, quer que o passado se alongue. Mais fundamentalmente, o
tempo é passagem, tra nsição atestada pela reflexão m ed itante: " É no momento em que
passam que medimos os te mpos, quando os medimos ou os percebemos" (XI, XVI,
2·1) . E mais adiante: "Medimos os tempos quando eles passam" (XI, XXI, 27). Assim o
aninws é considerado como o lugar onde estão as coisas futuras e as coisas passadas. É
n o espaço interior da alma ou do espírito que se d esenrola a dialética entre distensão e
i11te11ção que fornece o fio condutor da minha interpretação do Livro XI das Confissões
em Telllpo r Narrativa. A distc11tio que dissocia os três objetivos do presente - presente
do passado ou memória, presente do futuro ou expectativa, presente do presente ou
atenção - é diste11tio a11illli. Ela tem va lor de dessernelha nça de si a si'. Além disso, é da
maior .importância s ublinhar que a escolha do ponto de vista reflexivo está polemica-
mente ligada a urna rejeição d a explicação aristotélica d a origem do tempo a partir do
movimento cósmico. No que di z respeito à nossa polêmica acerca do caráter privado
ou público da memória, é notável que, para Santo Agostinho, não é principalmente ao
tempo público, ao tempo da comemoração, que a experiência autêntica e original do
tempo inte rior é oposta, mas ao te mpo do mundo. Já me indaguei em Trlllpo e Narrativa
se o tempo histórico pode ser interpretado nos termos d e uma antinomia dessas, ou
se ele não se constrói, antes, como terceiro tempo, no ponto de articulação do tempo
vivido, do tempo fenomenológico, por assim dizer, e do tempo cosmológico. Uma
questão mais radica I surge aqui: a de saber se a inserção da memória individual n as
operações da memória coletiva não impõe urna conciliação semelhante entre tem-
po da alma e tempo do mundo. Por enquanto, basta-nos ter ancorado a questão do
"quem" na do t111i11111 s, sujeito autêntico do ego 111r111i11i.
Não gostaria de encerrar essas breves observações a respeito da fenomenologia
agostiniana do tempo sem a ntes evoca r um problema que nos acompanhará até o
último capítulo desta obra: o de saber se a teoria do tríplice presente n ão confere à
experiência viva do presente uma preeminência tal que a a lteridade do passado seja
por isso afetada e comprometida. E isso apesar mes mo da noção d e diste11tio. A ques-
tão é colocad a mais diretamente pelo papel que desempenha a noção de passagem na
descrição da distc11tio animi: "De que (unde) e po r que (q11a) e em que (q110) ele passa?"
(XI, XXI, 27.) "O trân sito (tra11sirc) do tempo, di z Santo Agostinho, consiste em ir do
(ex) futuro pelo (per) presente dentro (in) do passado" (ibid.). Esqu eça mos a espaciali-
dade inevitável da metMora do local de trânsito e concentremo-nos na diáspora dessa
passagem. Essa passagem - do futuro para o passado pelo presente - significa uma
irredutível diacronia ou uma sutil redução sincrônica, para retomar o vocabulá rio de
Levinas em A11trcnzc11t qu'être 011 au-dc/à de /'csscnce? Essa questão a ntecipa, em p lena

7 Mais precisa me nte, e m a is perigosame nte, a disfr11fio não é apena s da a lma mas dentro da a lm a
(i/1id., 27). Logo, de ntro d e a lgo co mo um lugar d e inscrição para as marrns, as (:(figin de ixada s
pelos acontecimentos pa ssados, em s um a, para im agens.

~ II2 <Z>
0
DA \11. \ 1( >1{1.-\ F IJ ..\ Rf'\11 \I ISCf !\CI.-\

fenomenologia, a da preteridad e do passado, que é insepará\'el da noção de di stância


tempora l. É a ela que dedicaremos nossas últimas reflexões' .

2. John Lockc

A situação de John Locke na corrente filosófica do olbar interior é tota lmente sin-
gular. O eco do platonismo e do neoplatonismo não é mais perceptível como era em
Santo Agostinho e como ressoa fortemente e m Cuchvorth e nos platônicos de Cam-
bridge que Locke conheceu bem e sobre os quais meditou. Por outro lado, o parentes-
co com a problemática cristã da conversão à interioridade dei xo u de ser di scernível.
É de Descartes que o acreditamos - erradamente, como ,·cremos - m a is prc'lximo,
precisamente quanto à questão do ú>gito. Mas a crítica d as idéias inatas o afastou de le
pré\'ia e definiti vamente, ao menos no pla no das idéias de percepção. Resta que John
Locke é o inventor das três noçôes, e da següência que formam juntas: ide11tit_11, co11-
scio11s11c>ss, sclf O capítulo XXV II do Lino li do Ensaio filosófico sobre o c11tc11dil/lc11to
/11111rn110 (1690), intitulado "Of Identity and Diversity", ocupa uma posição estratégica

n a obra a partir d a segunda edição (1694) . Como en fa tiza desde logo Étienne Bal iba r,
a quem devemos um a tradução nova que su bstitui a de Pierre Coste (1 700) e um co-
mentário substancial'1, a invenção da con sciência por Locke tornM-se-á a referência
confessa ou não d as teorias da consciência, na filosofia ocidental, de Leibniz e Con-
dí llac, passando por Kant e Hegel, até Bergson e Husserl. Pois se trata mesmo de uma
invenção quanto aos termos co11scio11s11c>ss e sc{f, i nvençfü.) que recai sobre a noção de
identidade que lhes serve de quadro. A afirmação pode s urpreender se considera rmos
o prestígio do cogito cartesiano e as ocorrências, se não ela palav ra consciência, ao
menos do adjetivo co11scius nas versões latinas das Mcditnçôc>s e das l~cspostas (detalhe
si g nificativo, co11sci11s é regulMmente traduzido em fran cês por outras ex pressôcs: ser
"conhecentes" disso, ter disso "um con hecimento atual", "experimcntar") 111• Con tudo,

8 Também man tl'remos em rese r va a questi\ o dn es ta t uto do pa ss,1do e n qua nto v is;,do pel,1 me-
móri.i . Deve-se d iLer do passado que de n <'i.u é 111.1 is ti u que e le íoi 7 O rec urso repet ido d e Santo
Agosti nho a L'XpressC1L's d ,1 lingu agl'm r orrl'ntl>, L'm p,irticular ilOS ildn:rbios "n ão .. . mais ", "a i nda
n ,'\\1", " h,í q u a nto te m po", " mu ito te mpo ", ",1 ind,1", " j,í ", assim como o duplo t r.it,1 nw11tn do p assud o
como "sL·ndo L' n,io sendo ", constituem tantas pL·d ras a ngulare s l' l11 rL· l,,ç,10 a uma o ntt1log i,1 qul' c1
tt'Sl' da inerê nc i,1 do tl'mpo à alma n àt1 p,·rn1i tl' des dub rdr.
L/ Jo hn LPcke, Jdc11tité e/ Di(fác11cc. L.'im•c11li<'ll de /11 ,·01h( ic11n·, aprc:--l'ntadll, tr,1duz ido e cnm L·ntc1Llo
por Étien ne Balihar, Pari s, Éd. du Scui l, 19')8.
lll O la tim si/li t'o11scit·n·. sil>i co1bci11s c~,c e l1 s ubstunti n1 (011:,;cit·11ti,1, qut• t r,1du/. \1 g rq~o .,1111cidcsi., ,
n,10 signi fica m SL'r consciente de s i, mas t'StM in fo rm,1do, él \ isado dL· a lgo; é uma form ,1 de ju í1.:o.
Le r-st!-iÍ no "dossiê" que F. tien nc Ba IibM acrL'SCt'nt,1 ,1 seu nimt•nUrio t re c hns d e Dt>sca rtL'S, pr i nc i-
pa lme nte n as respostas ,is l),•1t.rii•111c~, Troi, i1;111c,, Q 1111/rii•111cs, Sixii·111cs, S,·pti,·111cs O/Jj1•clio11,, em Lc,
Pri11âJh'S ti<' /11 philo,<'J'hi,·, no h1 trd ic1111,·ct" H11rnu111 L' ,1 lgu m ,1s ç,,rt,,s (LockL', ldc11tilt' d Ditfrn·11cc,
<1p. ât., pp. 26:i-27:l ). En trl't,rnto, ,1 p,1l a ,-r,1 "consc i011ci,1" n,10 l'St,í ,1u s t•n tl'; e l,1 se 10 1ws l'ri11<Í/'t''·
Leibni z p rd eri r;í ".1 p e rcepç.'\ o" (l'V101111dolosi,·, ~ 1-i}. O único an tccedl'ntt' no p ln no do nicabu l,írio
encontril-Sl', nos di1. 13,il iha r, e m R. Cud wor th t' nos platôn in1:.; d l' C ,1111bridgt' (Lockc, ld,·11/ilt' ,·t
Ditkn·11cc, op. cit ., p p. :;7-6.1 ).
/\ MFM(lRIA, /\ l·I IS 'J () RI /\, () ES (.?ULCI MF N H l

o sujeito gramatical do cogito cartesiano não é um sc!J; mas um ego exemplar cujo gesto
o leitor é convidado a repetir. Em Descartes, não há "consciência" no sentido de sc?f
Além disso, se o cogito comporta uma diversidade a título das múltiplas operações de
pensamento e numeradas na Seg1111dn Meditação, essa diversidade não é a dos lugares
e dos momentos pelos quais o sclf lockiano mantém sua identidade p essoal, é uma
dive rsidade de fun ções. O cogito não é uma pessoa definida por sua memória e sua
capacidade de prestar contas a si mesma. Ele surge na fulgurância do ins tante. Nunca
parar de pensar não implica lembrar-se de ter pensado. Somente a continuação da
criação lhe confere a duração. Ele não a possui com exclusividade.
Uma série de operações prévias de redução concorre para limpar o terreno. Enquan-
to a filosofia das Meditnçôes é uma filosofia da certeza, em que esta é uma vitória sobre
a dúvida, o tratado d e Locke é uma vitória sobre a diversidade, sobre a diferença. Além
disso, enquanto nas Mcditnçücs 111etafísicns a certeza de existência se inscreve numa
nova filosofia das substâncias, a pessoa, para Locke, é identificada unicamente pela
consciência que é o se!J; com exclusão de uma metafísica d a substância, a qual, embora
não seja radicalmente excluída, é metodicamente suspensa. Essa consciência é ainda
purificada por um outro lado, o d a linguagem e das palavras; essa outra redução des-
nuda o mental, a Mind, versão inglesa do latim 111e11s. Significar sem as pa lavras - taci-
tamente, nesse sentido-, é próprio da Mind, capaz de refletir diretamente sobre "o que
ocorre em nós". Última depuração: não são idéias inatas que a consciência encontra
cm si mesma; o que ela percebe são as "opcratio11s of 011r own Minds", ora passivas, ao se
tratar das idéias de percepção, ora ativas, ao se tratar dos powers of thc Mind, aos quais
o capítulo XX do livro li - "On Power", " Do poder" - é dedicado.
Isso pos to, o que ocorre com a tríade ide ntidade-consciência-si? Para nós, que nos
indagamos aqui sobre o caráter egológico de uma filosofia da con sciência e da me-
mória, que não p a rece propor nenhuma transição praticável em direção a qualquer
ser em comum, a qualquer situação dialoga l ou comunitária, o primeiro traço notável
é a definição purame nte reflexiva da id entidade, que abre o tratado. É verdade que a
identidade é oposta à diversidade, à diferença, por um ato de comparação da Mi11d que
forma as idéias de identidade e de diferença. Difere ntes são os lugares e os momentos
onde algo existe. Mas é jus tamente essa coisa e não outra que está n esses lugares e
momentos difere ntes. A identidade é obviamente uma relação, mas él referência a
essa outra coisa é logo apagada: a coisa é "a mesma que ela mesma e não uma ou-
trél" (§ 1). Essa expressão s urpreende nte, "mesm a que si mesma", coloca a equação
"idê ntiCé1 ig ual mes mél que si". Nessa relaçzío au to-referencia l se orde n a de saída o
movimento de d obrn r-sc sobre si e m gue consis te a reflexão. A iden tidade é a dobra
desse dobrar-se sobre si. A diferença só é nomecH.f a para ser s us pensa, reduzida. A
expressão "e nzio urn ,1 outr<1" é a marca dessa reduçi'ío. Propondo-se i.1 definir com
novos esforços o princípio ck indi v iduaçiio, "que ta nto se buscou"(§ 3 ), Locke toma
como primeiro l'~L't11plo um Morno, "corpo pe rsistente de uma su~1crfície invariável", e
reitcrn s ua forrnul ,1 dei idl'ntidade ,1 si: " Po is, sendo nesse in s tante o que é e nad a mais,
ele é o mesmo e deve ,1ssim pt'rmarwccr en4uanto continw1r s u,1 ex is t( ncic1: de foto,
parn tocfa t •ss,1 d 11 1-.1c,1 c-., l'k seriÍ o mesmo e ne nhum outro" .
1),\ MI \ l< lR I -\ F D.-\ IU\11'\J ISl i f\(. 1.\

;\ diferença, excl uíd a assim qu e colo cad,1, vol ta na forma de urna diferenciação
dos tip os d e identidade: d epois da identidade dos corpúsculos, que acabamos de
e\·ocar, vêm a identid ad e das plantas (o mesmo carva lho con sen·a a m esma organi-
zação), a ide ntidade dos animais (uma única ,·ida continu a), a iden tidad e do homem
("é s i mplesmentc a partic ipação ininterrupta n a mesma , ·ida . ..''), e por fim a ident id a -
d e pessoal. O cor te importante passa i:l Ssim entre o homem e o s i. É a consciê ncia que
difere ncia a idé ia do mesmo homem e a de um s i, também chamado d e pessoa: " É,
p e nso, um ser pensa nte e inte lige nte, dotado de razão e de reflexão, e que p ode consi-
derar a s i m esmo com o si mes mo, um a mesma coisa pensante e m diferentes tempos e
lugares"(§ 9) . A diferença n ão é mais marcada pelo forn negad o da "out rn coisa", mél s
p e lo dentro exposto dos luga res e dos tempos. O saber d essa ide ntidade a si, dessa
"coisa pensa nte" (referência a Descartes), é a consciênc ia . Gnica negação admitida:
"É impossível a alg u é m (1111y 011e) p e rceber sem também perceber que percebe" (il1id.) .
Encontra-se eliminada a referência cláss ica à s ubs tância, mZtterial o u imate ri al, u na o u
múltipla, à fonte d essa consciência, mesma que si m esm a e sa be ndo-se tal. ;\ diferençi'l
em relação a algo diferente foi conjurad ,1 ? Nem um pouco: "Poi s ,1 consciência se mpre
acompanha o pensamento, e la é o que fa z com que cada um seja o que c hama d e s i
e o que o di s tingue d e todas as outras coisas pensantes" (§ 9). Essa iden tida d e do s i
na consciência basta para colocar él equação que nos interessa aqui e ntre consciênc ia,
si e memóri a . De fato, "a identidade d e tal pl'SSoa estende-se tão longe que essa cons-
ciênciél consegue alcançar retrospec ti\'a rnente toda ação ou pL·nsamento passado; é o
mesmo s i agori'l e e ntão, e o s i que executou essa ação é o mesmo que aquele q ue, no
prese nte, reflete sobre elél " (i/1id.) . A identidade pessoc1l é uma identid a d e tempo ral. É
e ntão que a objeção extraída d o esquec imentl) e do so no, enqua nto inte rrupções da
consc iência, s ugere um retorno com força total d a idéia de s ubstância: a continuidade
de uffi a s ubs tânci a n ão é necessáriél p ara pree n c her as intermitênc iZts da con sciê n c ia?
Locke re plica bra,·anH:.•nte que, inde p e nd entemente do fundo substancial, só a cons-
c iê nc ia "fo z" (makc~) ,1 identidade pessoal(~ 10). lde ntidc1Lie e consciênc ia form a m um
círculo. Como obsen·a Balibar, esse círc ul o n ão é um \'Íc io lógico da teoria: é a própria
im·enção d e Lockc, sa nc ionada pela re dução cb substfmcia: "A mes ma consciê nc ia
reútw [u s ] ações afostad ,1s n o âmago da m t.•sm a pessoa, quai sq uer que sejam as subs-
t."1nc ias que contribuír,1111 par,1 s u ,1 produção" (§ 10). E Lnckc p,1sst1 a lut,1r no front dos
outrns cont ra-exen,pl os c,paren tes: t i d L· do m ín imo cortc1 do L' sc p<1rado do corpo n ão
folta ,) alguma s u bstó nci c1 corpora l, m <.1s :) consc i(•nci a co rporal; quZtnto às personc1lí -
cL1dL'S mü ltiplt1 s, cl,)s n â() tl'm \' Ínc u los q LIL' p nss,1111 ser Zt tri b u ídt)S ,1 uma nw s ma subs-
t<'\ nci ,1 pe ns,1 ntl', s u pnndt)-se que a lllL'S m ,1 su bs tiu1eí" im,üL·ri a l pcrmc1ncç,1 in a lterad c1;
tr,1t.1 -sc mesmo Lfa s nmsc i{•nci,1 s mültipL1s, cindida s, "d u ,1s PL'Sso,1s dife ren tes" (~ 1-+).
Lt)C h' ,1ssumL' su ,1 llpÇclO. /\ réplica c1 objcçZí() ori umfo d ,1 ~"l rl'tL' l"I S,) preex istL' nc ic1 d ,1s
"1111<1 s C, da mL'S111 <1 n,1 tu l'L'/,1: " De fo tn, a q ucst.10 0 ,1 d e s,1 bl'r o q uc i,u e) mcs mc1 p cssn,),
L' n.'i o SL' L' c1 mcsrnc) subslc'i nc icl id{•nti c,1, que pcnsc1 SL'lll ~"l rL' nc1 lllL'Sll1d p esso,), o q ue,
no c,1so, n.10 tem,) lllL'nnr import.1nci,1 "; c, m,1is ,1d i,1 ntl': n t'i o se torna Sócrates aq uc lL'
que n,1u tem "consciL". nci <1 de nc nhum c1 d,is ,1Çl)l'S ou d os p t.:·n s,1nwntos d e St'K rc1tt•s".
/\ MFM()Rl í\, /\ HIST(WJ,\, O FSQUFCIMl::\TO

Mesm a argumentação no caso da ressurreição d e uma pessoa num corpo diferente


do deste mundo: "uma vez que a mesma consciência vai com a alma que ele habita"
(§ 15). Não é a alma que faz o homem, mas a mesma consciência.
No que nos di z respeito, o caso está resolvido: consciência e memória são urna
única e mesma coisa, independentemente de um s uporte substancial. Em síntese, tra-
tando-se da identidade pessoal, a sm11c11css equivale a memória.
Isso posto, que alteridade poderia ainda insinuar-se nas dobras dessa mesmidade
do si?
Num nível a inda formal, pode-se observar que a identidade permanece uma re-
lação de comparação que tem corno contraponto a diversidade, a diferença; a idéia de
algo diferente não cessa de assombrar a referência a si do mesmo. A expressão: urna
coisa mesma que ela mesma e não uma outra contém o antônimo que é nomeado ape-
nas para ser suprimido. Mais precisamente, a propósito do princípio de individuação,
reinterpretado por Locke, são outros que são excluídos, assim que designados; a in-
comunicabilidade pronunciada de duas coisas de mesma espécie implica que, sob o
título do "nenhum outro", outras consciências são visadas de soslaio; para designar
"essa" consciência, não se deve manter em reserva um "qualquer" (mzy), um "cada
um" (evcry onc), termo surdamente distributivo? A identidade desta (this) não é a da-
quela (tl111t) pessoa(§ 9). Na hipótese em que "duas consciências diferentes sem nad a
em comum entre si, ma s que fa zem o mesmo homem agir, uma ao longo do dia, e a ou-
tra de noite", pode-se legitimamente indagar "se o Homem do dia e o Homem da noite
não seriam dua s pessoas tão diferentes quanto Sócrates e Platão" (§ 23). Para forjar
a hipótese, é preci so poder distinguir duas consciências, portanto, situar a diferença
entre as consciências. Mais grave ainda, o que está em jogo é o estatuto lógico-grama-
tical da palavra self, ora tomada genericamente, t/Jc sc?f, ora, singulativamente, my sclf,
o que a flexibilidade d a gramé'itica inglesa permite 11 • Falta uma discussão sobre o es-
tatuto do pronome subs tantivado que oscila assim entre d êitico e nome comum. Mas
Locke decidiu separar as idéias dos nomes. E, entretanto, "a palavra pessoa, tal como
a emprego, é o nome des te (f/Jis) sc?f" (§ 26). E a última palavra do tratado é d eixada ao
nome: "Pois, independentemente da maneira como uma idéia complexa é composta,
basta que a existência faça dela urna única coisa particular, sob qualquer denomina-
ção gue seja, para que a continuação da mes1na ex istência preserve a identidade do
indi víduo sob a identidade do nome"(§ 29).
Num nível ma.i s material, a diferença faz retorno nas duas extremidades da paleta
dos significados da idé ia do si idêntico. A diversidade, excluída formalmente pela
expressão "uma coisa mesma que ela mesma e não outra", oferece-se à memória como
diversidade percorrida e retida dos luga res e dos momentos dos qua is a memória
forma um conjunto. Ora, essa diversidade diz respeito c1 um aspecto da vida subja-
cente à memória que nada mais é que a própria passagem do tempo. A consciência é

11 Sobre i1 vi"lrieLfade dl'SSl'S u sos que " pi1 lav ri1 in gk'si"I ~clf permite, ver o precioso g loss.-ír io que
Éticnnc lfalib.H inc luiu L'l11 sua tradução (il>id ., p p. 249-255) .
IJ..\ ML~l () l, 1-\ I D -\ RF \11:\ ISCÍ',C f.\

consciênci,1 do que se passa nela . A passagern é a das percepçôes e das operaçôes e,


porta nto, de todos os conteúdos que fora m colocados nos dois capítulos ante riores sob
o nome do "que" da memória. Nenhuma po ntL' é lançad a entre a consciência redobra-
da sobre s i mesma e seus poderes que forzim, contudo, objeto de um tratamento dis-
tinto no longo ca pítu lo "On Power". Por não dispor d a categoria de intencionalidade,
Locke não distingue a memó ria de su as lembra nças, as das pe rcepçôes e das opera-
çôes. A me mória é, por assim dizer, sem lembranças. A tmica tensão perce ptín,•l é en-
tre a consc iência e a \·ida, apesar de s ua identificação. Ela se exprime n,1 expressão de
"cont inuação da ex is tência", explicitada pela de "união \·iva". A alte rnâ ncia d a \·ig ília
e do sono, das fases de memória e de esq ueci mento, obriga a reco rrer a esse ,·ocabu-
lá rio da v ida: a continuação da ex is tê ncia so mente é preservada contanto que pers ista
"uma união v iva com aq uilo cm que essa consciência resi dia então"(§ 25). Basta que
essa "união v iva" se afrouxe para que essa parte de nós mes nws possa chegar "a fazer
rea lmente p a rte de uma outra pessoa" (i/1id.). Com o voca bulá rio d a vid a propõe-se
assim o das "partes desse mesmo si" (i/1id.). "A existê ncia continuada" (§ 29), com
sua ameaça de partição interna, tende e ntão a sobre pujar a consciência : ora, é a exis-
tência continuada que, e m última in stânci,1, "faz a identidade" (ibid.). Uma filos ofi a
d a \·ida se delineia por ba ixo da filosofia da con sciência na articul ação d a identidade
do h omem e a do si . Se, à relação com o pa ssado se ac rescenta il relação com o futuro,
a ten são entre antecipação e re me moração suscita a inqu ie tação (w1cns i11 css) q ue afeta
o uso dos p oderes d o espírito. Consciência e inquie tação pode m então se dissocia r.
Na outra extremidade do leque d os sinôn imos do si, o ,ocabulcí rio é tico e,·oca
mais sérias infrações à mesmidade de si a si. Ressalto u-se ac ima o caráter "alheio" (fo-
rc11sic) da linguagem judicial à qua l pertence a pa lav ra "pessoa", embora s eja "o no me
deste si"(§ 26) . Ora, preocupação, impu tação, apropriação perte ncem ao mesmo cam -
po ét ico-juríd ico, o qual implica castigo e recompe nsa. O conceito cha ve é o de "conta
(acco1111t) prestada de si"(§ 25) . Ele respo nde à confissão d a di\·e rsidade íntima e,·0G1-
da h,1 pouco. Ora, essa idéia de conta Je,·a longe. Primeiro e m direção ao futuro : é no
futuro també m que "o si, o mes mo s i continua s ua. existência" (§ 25). E essa existência
continuada à fre nte de si, tanto como retrospec tivarnente reunida, torna a consciência
responsável: quem pode presta r contas de si a si d e seu s atos é "res ponsável " (acco1111/ -
a/1/c) por eles. Ele pode "imputá-los a si m esmo" (ib id. ). Outras expressões seguem
cm cad eia: ser respon sá\·el, também é estc1 r "preocupado" (co11cenied ) (reconhece-se
o latim rnm). A "preocupação com a própria fe licidade acompan ha inev itm·e lmen te a
con sciência" (il1id.) . O d esloca mento para o ,·oca buléírio judicial não demora. O concei-
to de transição é o d e "pessoa", outro "nome deste s i"(§ 26). O que faz d ele o sinónimo
do si, apesar de seu carcÍter "alheio"? O foto de o si "confic1r" (rcco11cile) e "apro priar"
(nppropriatc), isto é atribuir, adjudica r à consciê ncia a propriedade d e se us a tos. O ,·o-
cabu lá rio é aqui extrema m ente d enso: o termo "a propriar" jogc1 com o possessiYo e
com o \·crbo que sig nifica "confessa r como seu " (ou 11). 1

Toc,1mos, aqui, num domínio s ujeito c1 urna dupla lcitur,1: t1 par ti r d e s i e a péH tir
de outrem. Pois que m at ribui? Quem c1prnpric1 ? E até mesmo, que m impu t,1? N,10 se
;\ MFM ()f~I /\ , /\ I IIST(ll~IJ\ , () FS(_)U FCl ~ FN TO

prestam contas também e talvez primeiro ao outro? E quem pune e recompensa? Que
instância nos Últimos Dias pronunciará o veredicto (scnfl'IICC) sobre o qual Locke, to-
mando partido na querela teológica, declara que "será justificado pela consciência que
todas as pessoas terão então" (§ 26).
Essa duplo leitura não é a de Locke. O que reteve minha atenção em seu tratado
sobre a identidade, a consciência e o si, é c1 intrans igência de uma filosofia sem con-
cessão que deve ser chamada de filosofia do "mesmo" 1~.
Encontramos uma confirmação da unívocidade dessa filosofia do mesmo na com-
paração entre a conceitualidade e o vocabulário do Ensaio e os do Segundo tratado sobre
o govcmo O leitor é logo transportado ao cerne do que Hann a h Are ndt gosta de
1
\

chamar de pluralidade humana. De saída, somos herdeiros de Ad ão, submetidos aos


governantes que hoje estão na terra, e nos indagamos a respeito d a fonte de sua auto-
ridade: "Se não se quer dar motivo a que se pense que os governantes deste mundo
são apenas o produto da força e da violência e que os home ns apenas vivem juntos
segundo as regras que vigoram entre os animais selvagens - em que o m a is forte é
quem leva a melhor - e se não se que r, portanto, assim semear os germes de uma
discórdia e terna, d e palavras, de tumultos, d e sedições e de rebeliões [... ], é preciso
encontrar necessa ria m ente um outro modo de nascimento para o governo .. ." (Second
1,-aité d11 go11vemc111c11t, p. 4). Somos la nçados i11 111t!dia rl!s. Qua ndo já existem homen s,
governantes, g uerra e violência, ameaças de discórdia, uma questão se coloca, a da
origem do pode r político. O estado de natureza evocado primeiro, assim como seu
privilégio de igualdade perfeita, não tem raízes na filosofia do si, e mbora as noções de
ação, possessão e p essoa estejam presentes desde o começo do texto. Ele parece não ter
vínc ulo visível com o fechame nto sobre s i da consc iência segundo o Ensaio. É por um
sa lto não motivado que se passa da identidade pessoal ao estado de igua ldade no qual
"todos os homens se encontram por natureza" (capítulo 2). Trata-se de fato de poder,
ma s, de imedia to, de um "poder sobre o utre m", e até mesmo de um estranho poder,
uma vez que é o "de fazê-lo suportar, na medida em que a calma razão e a consciência
o ditam, o que é proporcional à sua transgressão, is to é, apenas o que pode servir à
repa ração e à repressão" (iliid.). De resto, o estado de guerra é evocad o sem de mora
(capítulo 3): ele supõe inimi zade e destruição; é desse estado que, "seg undo a lei fun-
dame ntal de natureza, o homem deve ser preservado ta nto qua nto possível" (ibid.) . O
homem, n ão o si. Como em Hobbes, o home m teme a morte viole nta, esse mal que o

12 Nl'SSL' aspecto, min ha crítica em Soi- 111<1 11/C co111111c 11 11 1111/rc, op. cit ., que cen s ura l..oc kl' por ter con -
fundido ide/// L' ipsc, ni'io te m a ml'nor i n flu[•nc ia sobre o co nteúdo do Tr,1 tado. A ca tl'g oria de s11111c-
111·., :; reina absoluta: n idl'ntidade pl'SSllal nflo propiil' um a a !tl' rnati vn pa ra ,1 s11 111c11css; ela é uma d e
suas v,HÍL'<..fadl's, o bvi anwntl' n mais s ig nific,1tiva , mas que perma nccl' con tida na uni d,1dl' formal
dn idéi a de identidade a si. Apt•nas u111<1 ft,itu n 1 que busGJ Sl' US a rg ume ntos e m ou tros lug.ires
podl' cons i<..krar ,1 idL'ntidadL' p<..'ssoc1 ! como uma ,1 ltL' rniltiva ,i nws111id,1dl'. Fm Locke, o s i n.'io é um
ip~1· qul' podl' sl'r oposto a um ii/1•111, é um ~11111c - L' até mes mo um f.cif11111c - si tund o no topo d ,1
pír,1 midl' d a 11ws mid<1 dt'.
·13 1.,LK kl', Scw11d 'J'mift• du go11 ;,cmc111c11/ ( 1689), tradução fr,rncl's<l , introduç{io L' notas de Jpan F,1bic 11
S pit z, l\ ir is, PU I~ 1994.
1) \ MU,IURI\ 1 ll\ lü:\11:\ilSC('-.ll\

homem faz ao homem. A lei de natureza nós dá o direito "de matá-lo se puder" (ibid. ).
Estamos desde sempre num mundo onde o estado de natureza e o estado de guerra se
opõem. Nada na teoria do si permitia antecipá-lol 4 . O Scg1111do tmtado sobre o gm1crno se
desenrola dora\'ante num cenário diferente do si.

3. Husserl

Husserl será para nós a terceir,1 k'stcmunha da tradiçc'ío do olhar interior. Ele \·em
depois de Locke, mas passou por Kant, os pós-kantianos, principalmente Fichte, de
quem ele, sob muitos aspectos, é bem próximo. É em relaçc'ío a uma filosofia transcen-
dental da consciênci,1 que Husscrl procura situar-se por meio de um retorno crítico ao
Descartes do cogito. Entretanto, ele não se distingue deste último menos que Locke. É
enfim de Santo Agostinho, com freqüência e\'ocado favora\·elmente, que ele mais se
aproxima, ao menos quanto à maneira de \·incular as três problemáticas da interio-
ridade, da memória e do tempo. Minha abordagem de Husserl no presente contexto
difere sensivelmente da que propus em Tc111po e Narmfh_,a , cm que a constituição do
tempo era a aposta principal. Na perspecti\·a de um confronto entre a fenomenologia
da memória individual e a sociologia da m e mória, a atenção foca-se na quinta M cdi-
toçiio cartcsim111, na qual o problema da passagem d,1 egologia à intersubjeti\·idade é
abraçado. Entretanto, não quis abordar a dificuldade de frente. Pri\·ilegiei a \"ia pa-
ciente, digna do rigor desse eterno "iniciador" que foi Husscrl, passando pela proble-
mática da memória. De fato, é no cerne dessa problemática, tal como tratada nas Liçcics
pam 1111w fí'110111c110/ogin do t'o11sciê11ci11 í11ti11111 do tc111po, que se produz o movimento d e
im·crsão, graças ao qual o nlhar interior se desloca da constituição da memó ria em
sua relação ainda objetal com um objeto que se estende no tempo, que dura, para a
constituição do fluxo temporal com exclusão de toda inte nção objetal. Esse desloca-
mento do olhar pareceu-me tão fundamental , tão radical, que me arrisquei a tra tar
a questão da memória cm dois capítulos diferentes. No primeiro capítulo, le\·ei em
consideração o que depende propriamente de uma fenomenologia da lembra nça, de
um lc1do do ponto de \·ista de sua rebç,°t() com um.a coisa que dura (o exemplo do som
quL' continua a rL•ssoar e o da mclodi,1 que se re-(a)prcscnta de novo), de outro, do
ponto d e vista de sua diferença em rel ,1çZlo 21 imagem (Bild, Vorstc/11111g, Pl1t111/11sic). Pa-
rei a an,ílisc da rctcnç,10 e da protcnsé°tn nn momento cm que a referL'ncia a um objeto

l.l L'm único \ ' Í11cuh1 f'l,1ll"Í\ l'I pt1dl'ri,1 Sl'r bu ~c,lll,, l' l'llcontr,1du nu c,1p ítul,1 sobrl' d prop rie d ,1dL'
( L()cke, il>id., Cap, \ ' 1. .-\ krr,1. l ()lll u qul' l' id L'lll"L'rr,1. l; d ,1d,1 aos homL.' lb pnr Dl'us p ar,1 garanti r su a
l'XistL'llCia L' SL'll lwm -L'"Ln, m.is c,1bc-lJw-.; "c1; 1 r,11 •rit1r,•111-sc dc/11 " (1/ >1 d. , p. 22). SL'ria esse o mct'i to
de ,1pmpri.i,;,1L1 d,1 / .11'<11, º l'odl'ri,1 p,HL'Cl'I' ']llL' ,. i,11 . 11m,1 \'l'/ qul' c,1d ,1 "honwm é \entrl'lanto] duno
1

dl' su,1 pnºi pria ~w..;sL 1<1" (1/>icl. , c,1~,, IV, p. 2 71 . \ l,1 -; l ' nu m ,1 l'l'i,1L;,1L1 com ()utnis que p lldcria m Sl' ap,,s-
,-ar Lkl,1. e pur C\l!1SL'g u i1ltl', Ild li11,gu,1gL'l11 dti diwi tn ljlll' e il' t,1L1 clcL1 l' l' l11 rdaç,10 (()111 um o ut ro
\ 'L'rd,lLÜ'iru: "\k·nhum t1u tr\l "L'll<lll cll' lllL'Sllll\ ~,,,-..,ui um dirl'itti sPhn· L·l,1 !,1 pní pri,1 ~wssnal" (i/>id.,
,,. c,1p, )\\, p. 27). 1\ km d,, 111,1 Í'-, ,1 pn ipriL•d,1dl' nu ,1 ~L' ,lll'l'SCL'nl,1 ,, t r,1 [,,1 1h n, c1tl'g,1r i<1 ,1I hl'i,1 ,10 E11,,1/,,:
"Poi s, dadn qul' L'~'L' tr,il1,1lh,, l' indisn1tiH·l11wnk ,1 ~,rnpriL·,Lid e d aqm·ll' qt11..' lrab,1lha . nenhum
,i\..\\~(i \1(1\\i\.'.m ,,krn dele- 1, tid,· ler dírL' ltll '-,ibrl' .1qu1 IL 1 ,1 q11c v k l',t ,1 li g.1dP ... 11/>id ., c 1p, IV, p . 27) .
i\ \ff:VlÚRli\, i\ HISTÚRL\, O l·:S(!ULCIMF.NT(l

que dura - referência constitutiva da lembrança propriamente dita - cede o lugar a


uma constituição, sem a menor referência objetal, a do puro fluxo temporal. A linha
de divisão entre uma fenomenologia da lembrança e uma fenomenologia do fluxo
temporal é relativamente fácil de se traçar, enquanto a lembrança, oposta à imagem,
mantém sua marca distintiva de ato posicional. Ela se torna inapreensível assim que
as noções de impressão, de retenção, de protensão não se referem mais à constituição
de um objeto temporal, mas à do puro fluxo temporal. As três noções que acabamos
de citar ocupam assim uma posição estratégica, no ponto cm que elas podem ser atri-
buídas a uma análise objetal ou ser mobilizadas por uma reflexão exclusiva de toda
referência objetal. É esse deslocamento, equivalente a uma verdadeira inversão, que
é agora levado em conta. A pergunta que me move é, então, esta: em que medida essa
retirada para fora da esfera objeta 1, onde Erin11er1111g significa mais lembrança do que
memória, prepara a tese egológica das Meditnç{ies cnrtesimws que estorva o caminho
em direção ao "estrangeiro" ao invés de controlar seu acesso!'? A escolha dessa per-
gunta diretriz explica que eu, de alguir, modo, coloque em curto-circuito as Liçôcs
pnra 1mw fenonwnologi11 dn co11scih1cin íntima do tempo e a quinta Meditaçüo cartesiana.
Na primeira coletânea, prepara-se o reino da egologia, no segundo texto tenta-se uma
saída heróica rumo às "comunidades intersubjetivas superiores".
O próprio título das LiÇ(JCS para uma fenomenologia da consc1b1ci11 íntima do te111po 1h
anuncia seu teor: a consciência do tempo é declarada íntima. Além do mais, a pala-
vra "consciência" não é aqui tomada no sentido da "consciência de", no modelo da
intencionalidade nd extra. Trata-se, melhor dizendo, com Gérard Granel, da consciên-
cia-tempo - "do tempo imanente do curso da consciência", diz-se já nas primeiras
páginas. Não há intervalos, portanto, entre consciência e tempo. É notável que essa
perfeita imanência seja obtida de uma vez pelo descarte, pela "redução" do tempo
"objetivo", do tempo do mundo, que o senso comum considera como exterior à cons-
ciência. Esse gesto inaugural lembra o de Santo Agostinho, que dissociou o tempo
da alma do tempo físico que Aristóteles vinculava à mudança e colocava assim na
esfera da física. Teremos de nos lembrar disso quando elaborarmos a noção de tempo

15 Minha pergunta niio coincide com a colocada por críticos tiio informados como R. Bernet: para
este último, a pergunta de confiança, se assim se pode dizer, é a dos vínculos que a fenomenologia
transcendental do tempo, que culmina na instância do "presente vivo", mantém com a "metafísica
da presença" perseguida por l·-leidegger. Para es sa leitura p<Ís-heideggeriana, reforç,1da pela pers-
picácia crítica de J. Derrida, a ausência que congela a presençil prcsumicfa do presen te absoluto é
infinitamente mais significativa que a ilusência inscrita na relaçi'ío com essa outra ausência, a do
"estrangeiro" em relaçiio a minha esfera próprin , à minhildade da mcmúriil pessoal.
·16 /\s f.cço1i:; po11r 1111c pl1t;110111hrnlogic de /11 co11scic11n· inli111c du tc111p, levantaram um problem a con-
sidcnível de edição e, cm seguida, de traduçiio. Ao núcleo dns " Leçon-; de 1Y05 sur 18 conso'ence
intime du temps" foram acrescentados "adendns e complementos" (lYOS-1910). É esse conjunto
l~LH.' Heidegger publicou cm 1928 no /11/Jrln1d1fiir l 'lii/osoplnc 111/d pf//ll'//()IJ/l'/1{)/t~\'/,)'Ô/t' !-úr.,d11111g. No-

\ o;; m,1nuscntos for,1n1 reunidos no volume X das H11~·scr/1111111 sob o título !.ur p/11i! ! ·
• '; . [ · , , . . /01/li'IIO O~/C de,
11n11•r1•11 u•tf 'Cll 111ssts1•111s (1893-1917), op. cit. !\ traduç;i o fr,rn cesa cit-idr1 de H ,1, · l) ' '
· (·,, · , e l
por ,crc1ru ranc , retorna o texto de H11,,a/i111111 X Um 1 (lllt . i- -
' '' . L ,n . ussort /""\·· · ·t
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, -J - •· , • , ra l'l 1c,10 ~·xist" , .
/,m ol t !31-.nwt (op. cit.). ' · , ,, wm prdácio dl'
D,\ \-11 M()R I;\ 1· 1) .\ Rl:\ 11 '-! ISCÍ: !'\C I \

histórico e nqua nto tempo de calendário enxertado na ordem cósmica. De sa ída, uJTt
obstáculo maior erige-se na v ia da transição da consciê ncia íntima do te mpo ao tem-
po histórico. A consciência íntima do tempo se fecha desde o início sobre si mesma.
Quanto -à natureza da "apree nsão" pelo espírito do flu xo de consciênci.a e, portanto,
do pa ssado, trata-se d e saber se esse tempo sL'll fido é su scetÍ\'el de ser apreendido e dito
sem empréstimo ao tempo objetivo, cm particular no que di z respeito à sirnultanei-
<.fade, à sucessão e ao sentido da distância temporal, noções que já cruza mos e m nosso
"
1 prime iro capítulo, quando se tra tou de distinguir a memória, \'Oltada para o tempo
termi nad o, da imag inação, o rientad a para o irreal, o fa ntá stico, o fictício. Hu sserl pen-
sa evitar essas dificuldades ao assumir, para a consciência íntima do tempo, \'erdades
a priori aderentes às "apreensões" (A11fti1ss1111gc11), ela s próprias ine rentes ao te mpo
sentido. É notável que esse problema da articulação origin,fria da consciê ncia d o te m-
po se coloque no n íYel de uma "h ilé tica" no sentido da huh·, d a "m atéria" dos gregos,
em oposição a toda morfolog ia aparentad a com a dos obje tos p ercebidos, apreendidos
segundo sua unid ade d e sentido. É esse nÍ\'el de ra dicalidade que a consciência íntima
do tempo e sua constituição por si mesma pretendem alcançar.
Não me deterei nas duas descobe rtas fenomenológicas que devemos a Husserl, d e
urn lado, a di fe rença entre a "re te nção" da fase do flu xo que "ma l acaba" de passar,
e "ainda" adere ao presente, e a "re lembran ça" de fases temporais que d eixara m de
aderir ao presente \' i\·o e, de outro lado, a dife rença entre o caráter posicio nal da lem -
brança e o caráter não posicional da imagem. Arrisquei-me a eYoeci-las no â mbito d e
uma fenomeno log ia "objeta l" que visa distinguir a realidade passada da lemb rança
da irreal idade do imaginário. Focalizarei, aq u i, os pressupostos de uma im·est igação
que afirm a depende r de urna fenomenologiél d a co11sciL•11ci11 e, m a is exa tamen te, da
co11sá•11cia ínti11111, na perspecti\'a que é ,1 nossa neste capítulo, a sa ber, o confro nto
entre reme moração p r i\·ada e comernoraç<'í.o pública.
A terceira seção da s Li1,Jics de 1905 encadeia-se do seguinte modo na preceden te,
em que urna a náli se d a tempora lidade ai nda se apoim·a cm "um obje to indi\·idual"
(§ 35), em a lgo que dura: som ou melod ia. A identid ade desse a lgo e ra constitu ída na
sua duração mesma. Dorava nte é a continuid ad e do fluxo que s ubstitui a identidade
tempora lmente con s t itu ídéL O parágrafo 36 pode assim intitula r-se: "O flu xo consti-
tuti n) do tempo como subje ti vidad e absoluta". O apagamen to do objeto e, por tanto,
do processo indi\·idual e d os predicados aferentes não deixa, entreta nto, a ling uagem
\',Ka nte: resta a pura relação inte rna com a continuidad e de apariçôes entre um ,1 gora
e um an tes, e ntre uma fase atu a l e uma continuidade de pass,1dos. Notemos a dife-
rença de uso da ca tegori a do agora : ela não mais sig nifica ape nas o início ou a cessa-
ção do a lgo que du ra, mas a pu ra ,1t u a lid c1de d a apa ri ção. Certamen te, continua.mos
a nomear esse flu xo seg undo o que é constituído, " ma s nc1d a h á de tempo r,1lmente
'objetivo '": "É a s ubje ti,·idad e absolu ta, e ele tem as propriedades abso lutas do q ue é
preci so d esignar, nwtaforic.:rn,ente, como 'fl u xo', a lgo que jorra 'agora ', nu m ponto d e
atualidade, num p o nto-fonte orig in,1 rio, e tc. No vi\' id o dc1 <lt u,1lidade, te mos o ponto-
fonte o rig inário e uma continu id ade d e momentos de rcss onc'i ncia. !\ira tu d o isso,
fa lta n, nomes" (iliid.).
A MFM()R I I\ , /\ III ST ( lRI A, O 1:SQUl:C IME N IO

A bem da verdade, não faltam nomes, absolutamente. A metafórica do fluxo, que


Husserl compartilha com William James e Bergson, autori za a da fonte: um eixo de
referência é assim preservado para di zer a continuidade; esse eixo é o ponto-fonte ori-
ginário. Não o início de algo, mas o agora do jorro. Podemos conservar o vocabulá-
rio da retenção, mas sem o apoio do algo constituído na duração. O voca bulá rio deve
ser revertido na conta do aparecer enquanto tal. Ainda se poderá falar cm unidade?
Em flu xo uno? Sim, porque a tra nsformação incessante do "agora" em "não mais", e
do "a inda não" num "agora" equiva le à constituição d e um único fluxo, se a palavra
"constituição" mantiver um sentido quando nada é cons tituído senão o próprio flu xo:
"O tempo imanente constitui-se como uno para todos os objetos e processos imanen-
tes. Correlativamente, a consciência temporal d as imanências é a unidade de um todo"
(§ 38). Esse todo nada mais é que um "co11ti1111um constante de modos de consciências,
de modos do ser d ecorrido .. ." (ibid.); aparecer um após o outro ou juntos - simulta-
nea mente - , é o que se costum a chamar de sucessão e coexistência. A necessidade
e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de abandonar a referência a coisas que duram
não d eixa de perturbar Husserl: "mas o que isso quer di zer? Não se pode dizer nada
ma is, aqui, do que 'veja'" (i/Jid.). O quê? A transformação contínua do agora imanente
("um agora de som") cm modos de consciência do passado imediato. O que dá um
novo agora que Husscrl diz ser "de forma " (ibid.). Notemos o recurso à noção de forma
para reforçar a linguagem sobre o flu xo: "A consciência, qua nto à sua forma, enquanto
consciência de uma sensação originária, é idêntica" (ihid.). Contudo, diferentemente de
Ka nt, para quem a linguagem da forma é a do pressuposto, do n priori, e neste sentido
d a invisibilidade 17, certa intuitiv idade estcí ligada a essas formas: agora, an tes, simul-
tanea mente, um após o outro, constantemente (stctig). Essa intuitividade vincula-se à
situação de fase. Ela se traduz pela persistência do vocabulário da intencionalidade,
porém desdobrada entre dois empregos do termo "retenção", de um lado para dizer a
duração de algo, de outro para d izer a persistência da fase atual na unidade do fluxo:
"É num só e único fluxo de consciência que se constitui ao mesmo tempo a unidad e
temporal imanente de som e a unidade do flu xo d a p rópria consciência"(§ 39). E Hus-
serl decla ra sua perplexidade: "Por m a is choca nte (para n ão dizer absurdo, no início)
que possa parecer dizer que o flu xo da consciência constitui sua própria unidade, é
isso mesmo que acontece. E pode-se entendê-lo a partir da con stituição d e sua essên-
cia" (§ 39). A solução desse pa radoxo aparente é a seguinte: de um lado, a unidade da
coisa que dura se constitui através das fases; de outro, o olhar se dirige sobre o fluxo.
Assim, temos duas inter,ciona lidades : uma transversal, apontada para a coisa que d ura
(fa la-se então d e retenção do som); a outra que v isa apenas ao "a inda" enquanto tal dc1
retenção e da série das retenções de retençôes: "assim o flu xo é atravessado por uma
intencionalidade longi tudinal que, no curso do flu xo, recobre a si mesma continuada-
mente" (ibid.) . E Husserl prossegue: "Se me instalo nessa intenciona lidade longitudi-

17 C f. P. R icn'u r, Tt"lllp~ 1'f 1./.t•cit, t. II 1, Lc 'fr111p~ mcu11/(', Pari s, Í:d. du Seu i \, co l. " l..'()rd rl' p hi losoph i-
LjllL'", FJ85; rl'ed ., rol. 'Toin ts Essa is", 199 1; ver 1wss,1 ú ltima 1..'d iç,io pp. 82-1 09.
1)-\ Ml'f-1(11<1·\ F D.\ RI \11 :\ ISCJ°:\ C I .\

na!, afasto do som [... ]o olhar de minha reflexão" (§ 33) e considero somente a relação
da retenção com o s urg imento originário, cm s uma, a inovação contínua do próprio
flu xo. Mas ambas as inte ncionalidades permanecem enlaçadas uma à outra. Em nutras
pa lc1vras, apenas se pode ter acesso à constituição absoluta do fluxo correlativ,1mente
(a pa lana foi usada acima) com a constituição de algo que dum. Graças a essa corre-
lação entre duas intenciona lidades, tem-se o dire ito de escren~r: "Não somente o fluxo
d a consciência im,1 nente constitutiva d o te mpo é, ma s ainda, d e modo té'ío notá, ·el e en-
tre tanto comprce nsí,·cl, ele é tal que um surgirncnto do fluxo em pessoa deve necessa-
riamente ter lugar nele, de,·endo-se por conseguinte necessaria me nte poder apreender
o próprio fluxo e m seu escoamento" (§ 39) . Um novo obs t,k ulo é rapida rnente afasta-
do: é possível que ocorra num segundo fluxo o surgimento em pessoa do flu xo? N5o :
um a regressão in fi nita n 5o constitui ameaça; a constituiç5o do fl u xo é extrem a, porque
consiste numa autocons tituiç5o na qua l o constituinte e o constituído coincide m, na
m edida e m que a constituição dos conteúdos imanentes - a saber, a de experiências
, ·i,·idas no sentido habitual - é "a obra do fluxo absoluto da consciênciél" (§ 40). Essa
obra, contudo, tem limites? A perg unta já se colocava a respeito do hori zonte eYentual
das retenções d e re tençües. Ela se coloca de novo a respeito do fluxo: "Essas rcte nçôes
e protensões 'd eterminadas' têm u m ho ri zonte obscuro; ao se escoare m, passa m por
fases inde terminadéls, relativas ao curso passado e futuro do flu xo, graçc1s às qtwis o
conteúdo atual se insere na unidade do fluxo"(§ 40). A questão colocada a res1x•ito do
hori zonte permanece c1berta. Ne m a questão do nascimento nem a da mo r te cabem
aqui, ao me nos fora do campo d e u1na fenomenologia genética . Quanto à indubitabili-
dade da qual a re tenção dé:l coisa que dura se be neficia, e la se refere à autoconstitu ição
que se be ncficié:l da intuiti,·idade que Ka nt recusm'a às formas 11 priori d a sensibilidade.
Tal é a dupla valênc ia da "impressão" em relação à qual se ordenam as "reproduçôes"
que foram chamadas d e "presentificaçôes" 1' na a nálise conjunta da fantasia e da lem-
brança. O presente é para a presentificação de a lgo (Husserl fala c1qui em "consciência
impressiona !") o que o ind ício temporal é para o conte údo "objeta l" da lembrança.
Inseparável. A correlação se d ,í assim: " Uma p ercepção é a consciência de um objeto.
Contudo, também é, enqua nto consciência, uma impressão, ,1\go de presente 'i manen-
te' " (§ -1:2). C h a ma-se esse nó, esse foco de a presentação "obje ta l" e de presente refle-
xi, ·o, de "con sci[,ncia orig in ,íria". Dessa consciência o rig in,íria, pode-se di zer o que
fo i dito do fl u xo absoluto, qul' n5o requer nenhum outro flu xo mais origin,11 que e!t':
a consciê nc ia prim ,1 ria "n.io te m mais atr,is del a consciência na qual e lc1 seria objeto de
consciência" (i/iid.) . Nesse sen t ido, el a é origin<1ria no sent ido dt.' p rirn,iri,1 . Com rl'laçi'io
a esse origin,írio, <l intencionalid ad e transn,'rsa l, própria d ,1 consc ienc ia de algo, pode
ser con siderad a como um a "objL' ti,·aç,10": "O tl'mpo irna nentl' objl'tiv,1-se n um tempo
dt)Sobjetos constituídos nas ,1pariçôcs imMwntcs, uma H'Z qul', 11<1 multiplicid ad l' t'rn
degrad ê dos conteúdos dl' sensação como un id ,1de do tl•mpo knomenolúgico (L', por-

18 Tambt'm L' ncpntr,1 rno-. () tl'r mll C:1·gc11u·lirti:,:/.:,·it, tr,1LÜ1 /.id() ,1 qui f'l lr " prL·sv n ç,1" ( l lu-.~l'rl, 1 <\< ' 11",
OJ'. á t., p . 117), "º l,idt) dl' C,'SCll ,l'iirtig1111s , trMhl/ id() por "apr l''-L' nLlL:,'lt)", l'll) ju;;t.i p llSÍl) () d l 'rli -
~,·11talii•11, c uj,1 tra duç,10 !c m fr,1nc(•s l n .'i() con s titui p robil'm.i .

o 123 o
A ML l\1() RIA , /\ H I ST(l RI A , O l' SQU LCIM FNTO

tanto, na multiplicidade em degradê, fenomenologicarnente temporal, d as apreensões


desses conteúdos) surge urna coisidade idêntica que, em todas as fases, se apresenta
por sua vez sem cessar em multiplicidades em deg radê" (§ 43). Assim, é invertida a
relação entre as afü11ises da seção precedente, pois a intencionalidade transversa l que
visa um a lgo que dura serve de apoio à intencionalidade longitudinal trazida à aná-
lise pela reflexão. Será que todas as resistências que a fenomenologia objeta I podia
opor à absolutização da presença do presente foram derrubadas? Como tal unidade
do fluxo poderia dizer-se sem o apoio de alguma objetividade constituída? Husserl
obstinadamente inverte a relação: para ter algo que dura, é preciso ter um flu xo que
se constitui ele mesmo. É nessa autoconstituição que termina a empreitada de uma
fenomenologia pum.
A primazia assim concedida à autoconstituição do fluxo temporal impede que se
notem logo os obstáculos que esse subjetivismo extremo opõe à idéia d e uma cons-
tituição simultânea da memó ria individual e da memória coletiva. Ainda é preci so
descobrir que a consciência transcendental constituíd a em seu flu xo designa a si mes-
ma como um ego ele próprio transcendental, em outras palavras que a dupla cogito/
cogitntw11 se desdobra na tríade ego cogito cogítatum. Esse movimento de radicalização
que já vemos iniciado em ldcl'II l é plenamente explícito na quarta Meditaçiio cartesiana,
como prefácio, precisamente, à problemática intersubjetiva. A consciên cia transcen-
denta l de fluxo designa então a si mesma como a de um cu sozinho, e a dificuldade
consistirá em passa r d o ego solitário a um outrem capaz d e se tornar, por su a vez, um
nós 19 • Ora, o que parece faltar à abordagem egológica é o reconhecimento de uma au-
sência primordial, a d e um eu estrangeiro, a d e um outrem, desde sempre implicado
na consciência d e si só.
Surge, então, a questão de saber se esse desconheci mento aparentemente pontual,
que diz respeito à ausência, não afeta toda a empreitada fenomenológica e se a feno-
menologia da consciência íntima d o tem po já n ão sofre de uma ausência igua lmente
íntima que deveria eventualmente ser coordenada com essa outra ausência, a do outro
na posição do ego.
É notável que a pergunta da ausência à presença colocada desde o começo de
nossa investigação p ela teoria platônica do cikôn parece ter desaparecido do horizonte
filosófico da fenomenologia. Ora, essa relação da imagem presente com um algo au-
sente constituía, d esde a época do Tcctcto, o enig ma por excelência da representação
do passado, a marca d a anterioridade acrescentando-se à da ausência. Logo, é possível
indagar-se se o dinamismo que leva gradua lmente a superar a constituição da dura-
ção d e algo pel a constituição por si do flu xo tempora l não equi vale a uma redução
progressiva d e negativ idade na própria concepção do tempo. Redução que teria sua
contrapa rte na d o estrangeiro na esfera do próprio.
Essa redução da au sência é iniciada no pla no da fenomenologia "objeta l" da lem-
brança, primeiro com a éHhilise d as relações entre percepção, lembrança primária,
lembrança sec undá ria e, a seguir, com a das relações entre a lembrança e c1s out ras

19 Nas L1 'ÇOII~, lê-se: o flu xo é "só L' ún ico" (§ 39).


U.·\ Vll:\tt'H-:1.·\ 1 1)\ RF\11:'\J IS C I NCIA

modalidades de presentificação. Não se pode dizer, entretanto, que não seja percep-
tí\'el ne nhum indício de negativ id ad1:._• e m uma ou outra dessas análises eidéticas. Já
foi dito que a lembrança sec undária n ão é a le mbrança primária e que esta não é a
pe rcepção. O que acaba de ocorrer agora mesm o já começou a afu ndar, a desaparecer.
Obv iamente ele é retid o; mas apenas é re tido o que já está desaparecendo. Q ua nto
à rele mbra nça, ela não tem mais nenhuma raiz na percepção; ela é fra ncamente pas-
sada; ela não é ma is; mas o que "ma I acabou d e passar" já é cessação; deixou de apare-
cer. Neste sentido, pode-se falar de ausência crescente ao longo da cadeia memorial.
A hipó tese interpretati \'a é e ntão a seg uinte: a metacategoria q ue trabalha para a
anulação dessas difere nças é a de "modificação". Sua operação p rinci pa l é a de fazer
da retenção o conceito chave de toda a análise te mpora l à custa da relembrança . Em
termos de modificação, a retenção é uma percepção extensa, durável. Ela participa
"ainda" d a lu z da percepção; seu "não mais" é um "aind a". Enquanto uma fe nomeno-
log ia da le mbrança como a d e A ris tóteles da\'a à bu sca do tempo passado um lugar
ig ual àquele concedido à presença na a lma da afecção mnemónica, a fenome nologi a
hu sserlian a da le mbrança dificilmente propõe um equivalente da 11111111111h,is, da rea-
p ropriação do te mpo perdido e, porta nto, do reconhecime nto enquanto atestado de
identidade na diferença. É ao império da mctaca tegoria da modificação que se pode
atribuir a tendê ncia geral da fe nome no logia d a le mbrança a reabsorve r uma le mbran-
ça secundá ria n a le mbrança prim,íria, \'Crdadciro a nexo tempora l do presente; essa
reabsorção ocorre por meio da idéia de re tenção de retenções, sob a qual se dissi mula
a função mediadora da lembrança secundária. Ora, afinal, ela é a verdadeira lembran-
ça, se, como acredito, a exp eriência temporal fundamental é a da dis tância e a da pro-
fundidade tempora l. Di sso resulta qu e toda e qualquer dialé tica está excluída d a
descrição e que todas as polaridades na base das qua is con struímos a fenom enologia
da le mbra nça (capítulo 1, § 2) se e ncontra m d e a lgum modo ac hatadas, amortecidas
sob o ma nto d a idéia de modificação.
Quanto à segu nda série de an,1lises fe nomenológ icas, que diz respeito ao lugar
d a lembrança n,1 família das presentificações, e la oferece muito mais resistência à
empreitad a de redução de alteridad e: a série inteira Bild, Pl11111tasic, Eri1111cn111g si-
tua-se do lado da presentificação, porta nto d a não-presença, ou mais exata mente da
não-apresentação (insisto mais uma \'eZ nessa nua nça que presen'a a an,'i lise das re-
(a)prescntações de serem prematuramente aspiradas por urna teoria hegemónica d o
presente, no sentido de ago ra). A esse respeito, a oposição e ntre atua lidade e inatuali-
dade parece prim iti\·a, irredutível. Pode-se, com Husserl, e nt rec ruzé1 r Bild, Pl1t111tasic,
Eri1111cn111g de muité1S ma neiras: o jogo prossegue entre os membros d a grande famí-
li a das p resentifiCcições ou rc-(a)presentações. Desde sempre, h,1 algo negatiH) com
o "fo nt<ístico", o "fic tício" e o ''rememorado". A fen omeno logia husserliana oferece
todos os meios descritivos pt1r,1 cx pliCéí-lo, rnas seu dinamismo a le,,a a minimi zar sua
própria descobe rta, e até mesmo a anul,í-la.
Este é o caso, ao que parece, (1cl te rceira seção d as Liçi\'~ p11m 111,rn ft'110 111c110/ogi11
d11 co11 scit;J1ci11 ÍJ1fi11111 do tc111po. C rnças c10 rnm·i n1L'nto de d1:._•sloc,1 me nto d,1 a n,Hist' "ob-
;\ :VlF M(lR I A, J\ III STl'lRIA , O FS() UE CIML N l(l

jetal" da le mbrança para a análise reflexiva da me mória, perde-se d e finiti va mente


de vista a negatividade, reduzida à rcsipiscência. Um sinal não e ngana: a primazia
irrestrita da problemática d a retenção que, pelo viés do redobramento, da iteração,
c1bsorve cm seu proveito a da relembrança, a ta I ponto que não se tratará mais senão
de re tenção de re tenções"º. Mais grave ainda: é à retenção apenas que a proble mMica
da dupla intencionalidade transversal e longitudinal está vinculada. A problemá-
tica da unidade pode é.1Ssim ser preservada no plano do flu xo, apesar da depe ndência
dessé.1 probleméitica em relação à constituição dos obje tos te mporai s (um som, um som
uno). O fluxo se beneficia assim do pri vilégio da identidade a si mesmo. As diferen-
ças residuais refugiam-se então nas idéias de fases múltiplas e de "continuidade de
dcgradês" (§ 35). A idéia terminal de "continuidade de aparições" coroa assim a idéia
inicia l de modifiec1ção.
Os pontos d e resistência ao triunfo da presença devem ser buscados em várias
direções: primeiro no plano último da constituição, com a imperiosa correlação e n-
tre a intenciona lidade longitudina l do fluxo c m curso de constituição e a intencio-
nalidade transversal dos objetos te mporais, pois a refle xão requer constantemente
o apoio dé.1 estrutura "objeta l" da lembrança. Em seguida, se subirmos a ladeira da s
Liçc'ies, o desdobramento da le mbrança primária e da lembrança secundária resiste
à ditadura da retenção. Enfim, toda a admirável fenomenologia da família das pre-
sentificações - ficção, "representação pictóri ca", lembrança - atesta um desdobra-
mento fundamental entre re-(a)presentação e apresentação.
Ao termo deste vôo panorâmico, volto à minha sugestão ante rior: não é a dene-
gação da negatividade interna à consciência d e si uma pé.1rente secreta da d enegação
do ca ráter primordial da relação com o al heio na constituição cgológica da consciê n-
cia de si? A questão permanece em abcrtol 1•

20 Não faltam rekrências à rel l'mbrança, mas em conex,10 com a rl' tcnçiio; o parág rafo 39 fala , a
esse respl'ito, d o que é "retido no seg undo g rau nn re te nção". Alé m di sso, a noção de rete nção de
retençôcs cont ra i- se na "de antero-sirnulta1widade" na qua l toda a lteridade se íl nula (§ 39). Em
compl'nsaçiio, é verd ade que, com o retorno da oposiç,10 e ntre "impressão e reprodução"(§ .i2).
o cor te com a presença te nde a se impor novamente. M,1s a afirmação e a correlaçfü>ent re os dois
fenúmenos IL'vam a mt' lhor sobrL' o reconhecimento de sua diforenç;i.
21 Os leitores familiarizados com a obra de Husserl teriio notado a proximidade entre minhas arní -
li ses e as do exce ll'nk L' erudito intérprete de l lu sserl, Rudolf Lkrnct, d o qual se recome nda ler o
" Ein lei t u ng" (Preffic ili) a Tcxtc : 11r Pliii1101m•110/ogi,· dcs i1111cn ·11 1/,cilbc,l'11ss/., ,·i11s ( 1893 -1 91 7), H11 sscr-
li1111,1, t. X, Harnbourg, Fc lix Meiner, 1985, pp. XI-LXXVII; ass im corno "Die ungegen wii rti gc Ce-
gl'nwart, Anwesen lwit und Abwesenhl'it in Huss L·rls Analysis des Zeitbw usstsei n s" [O p resente
não prest:>nte, prcsl'nça l' ausê ncia na ,111cí li se hu ssc rl ia na da consci0nciil do tempo 1, i 11 l'liii110111c -
110!0.1;i~cl1c For~c/11111,'\CII, c d. por E.W. Orth, Fribourg, Munich, Vl'rl,1g Karl Aber, 198.1, pp. 16-57; e
" Lil présenct> d u pass(• dans l'a na lysL' hussl' rl ien nv de la n m sc ic nce du te m ps", lfrc> 11c de 111a11pliy-
siq1u· e/ dt 111om/1•, vol. 19, n" 2, 198.1, pp. 178-198. A tese de R. Bernct, segundo ,1 qual o n ão-dito
do pen samt'nto hussL·rl iano resid iria em s ua fid e lid ,1de des~wrn:-b ida p ara com a "me tafísica da
presença" quL' Heid egger Vl' re inar sobre a fi losofi,1 ocidenta l em nome d o esq ueci mcnto do ser, é
p lausíve l ~ apes,ir d a v ioh:'ncia assumida d ,1 inkrprl't,1çiio; e ntreta nto, ela não deveri a fe cha r o
c,in1inho p ara uma n ' tificaçiio da fentinwnologia hw,scrliana sobre seu pró prio campo da anál isL'
cidl'tirn. Em particular, ela não exige um aba ndono da rderênci,1 da experi[,ncia temporal ao
p rese nte. Sem a marca do agorn, como pod e ríamos di zer que a lgo começa ou acaba? Basta n üo
D.\ Ml·: ~-l (ll< I ,\ 1 J) .\ RI \11:\l'.-,l.Í' :\C I -\

É nessa perplexidade que abandonamos a lciturn da s Liçôc~ pam 1111w _fi'110111c110-


logia da co11scÍl'J1cia í11ti11111 do tc111po e nos ,·olta rnos para a proble m citica que é a nossa
aqui: a da relação e ntre memória indi\'idual e me mória coleti,·a-'-'. De um sa lto, pa s-
samos para a outra ,·ertentc da fenomenolog ia, na interse ção da teor ia da consciê ncia
tra n scendental e a da inters ubjetividade. É o mome nto da quinta Mcditaçt'ío c11rtc~ia1111,
quando Husserl tenta passar do exo solitário a um outrem su sccth·el, por sua ,·ez, de
se tornar um nós 2 ~.
As Liçtic~ para 11111afi•1w111e11ologi11 da co11~CÍ(' IICin í11ti111n do tc111po não permitiam an-
tecipar o ca minho ao te rmo do qua l a experiê nc ia te mporal pode ria to rnar-se uma.
ex periência compartilhada. Naquele estág io, a fenomeno logi a ainda dividia com o
"psicologismo", que entre tanto ela combatia e nquanto obje tivação do campo psíquico,
a problemática de uma ciência da consciê ncia solitári a. Coloca-se, e ntão, a questão de
saber se a exte nsão do ideali smo transcend ental à intersubje ti,·id ade permite abrir

conf undir o prt'SL'lltl' , ·in1 com o instantl' pontual do tempo objL't Í\l1 : a rl'duç,10 do tempo Llbjct i-
\ 'O previne c on tra L'Ss,1 confu são; Sl'm prL'sentL', sem ,in tes, ,wm d e pois, n,1n ex is te d is tim c ia n em

profundidade temporal. É n o próp rio p rL·sentL' ,·i,·n, co mo Santo Agostinho vislumbrara, que a
diste11tío 1111i111í o pe r a. l'vla is do que lc\'<H ,1 di ssolH' r os co ntrn s tl's L' ,is tensôes interna s ,1 0 tem p o, a
enicaçiio d e um presenk l'terno se r\' iri a antes d e contra ste e, assim, Lk rt:'Yelador p a ra ,1 ru p tu r,1
de que fala R. Bernl'I {"La préscnce du pa ssé . . .", art. c it., p. 179) . No limi tl', a im'c·rsii<1 pela qual
um ,1 fenom enologia da d ife re n ça Llcupa ri,i o m esmo c,i mpo qu e c1 fi loso fi ,1 da presen ça idên tic,1
a s i s u scita s u as prúprias dific uldades. O utras inkr prctaçôes akm da s in spirada s p or Heidl'gger
p er m ,1 n ecL·m possí,Tis: n iio teri a Husserl rL' anim,1 do os press upostos da iil os tiii a fic htia n ,1 d a
ident id ade, sem que SL'j,1 nc·cessiirio vinc ular essl' ,·e io de p e n saml'nto ,H ) filo s uposta m e nte ú 11 ico
d ,1 metafísica da presenç a ? É possível indagar-se, com F:mmanue l Le,·inas, c m seu g rande texto
Lc Te111p~ <'I / A ut rc (Pari s, P UF, 198.3), SL' a de negaç,10 pr imeira n iio 0 dl' o rd l'm iu nd,111wntalnwnk
ética, e SL' niio 0 o de~rnn h eci men to d ,1 altL•riLfad e ori g inéiri a de n utrem que torn .1 cego a toda s as
formas d e a lte r idade tomad as um a a umc1. i\las ta mbé m se p o d e prL'ss upor que n ,io ex iste um a
única rnzão para ,is múltiplas formas da CL'g ue ir,1 para o n egat ini, m ,1s apL'nas uma "semelhança
d e f,1 m í lia", inacessí,el a uma unificc1ç,10 sistem,ítica, a qual parc1doxa lmente m a rcar ia o triunfo
da identidad e L'm nome mes m o dei d iien·nça . Em T /1c I lo,;pit,1 /it _ 11 p( /Jrc,;cncc. /Jrol•lc/11,; of Otlianc~,;
i11 Jf11~~cr/',; P/1 e1111 111c11o!osy, Stockho lm, A lm q, ist & W ickse ll , 1998, O. 13irnbaum e xplora com su-
cesso os rec urso s dl'ssa semelhança d e i,1m íl i,1 l' lltrL' todas as fi g uras da n egc1ti v idade na obra de
Hu sserl. A senwlhança de famí li a m .iis noU,Tl, nt·sse aspl'c to, seri a, e n t,10, aq u e la l'ntrl' du as
denegaçõl's : a d a ,1usl'n c i,1 ínti ma an tl! l1lp(1 L' a da ausênci,1 do estr,rngL·i ro il cgolo g ia - o L'S-
t rangl'iro, l'Ssa fig ur,1 Sl'l11 a qual nenhuma egnlog i,1 poder i,1 cuml'çar. De R. Bcrn l't ,1ind,1 , S(1bre
l' s te assu nto, , ·er " L'autre d u temps", i11 E111111,1111{('/ l. c,•í1111s, Pu,;íf i,·i /1 ; e/ Tn111~cc11d1111cc, orga ni za do
por J.-L. Ma r ion, P.iri s, PUF, col. "Ép im é thL;L, ", 2000, pp. l-D-16?,. h 1ltari,1 lcv,ir c m cnnt,1 o q1lunw
XX III das H11 ,;,;cr/i,11u1 , VP rstc//1111:,;, Bild, P/11711/,1.;ic, ,,p. cit., ,1ssim con1t1 ,1 dist inç iin e n trl' a ll'mbra n-
ç,1 como objl'tn intcnc io n,11 e ,1 m L·múria cnmo ,1prL'L·nsiio do tl'mpo; L' apl'nas ,1 l'Sta ti ltim ,1 <JLIL' Sl'
rl'tL•re cl preSL'llll' d iscu ssZlo.
Y) Ti·111po 1' Norr,1/i,•11, t. Ili , op. t'it., pri,·ill'gi,1 um,1 \lut r,1 prnbk•m ,it ic,1, ,1 d,1 intuitiv id a de d,1 con sc iL'll-
ci ,1 do tl'mpo perank s u,1 in,·isibilid ,ld l', tal n imo .1 l'st(• tic1 tr,lll S(L'JlliL•nt,1 1 sl'g und o K,111t p,HL'CL'
i mpC1-l.1.
~~ Edmund l lu ssl'r l, C, 1r/1•.,i1111i,d11· tvkdi/11/i,11101 1111.t l',m , a h •rlr,í:~1·, L'd itc1d ,1s L' int rod tl/idc1s p11r S.
St r,1sser, l lu s:-.t•rli,1 11c1, t. 1, L1 l layc, N ijhnft, \L/h~. F ,is lL' u m ,1 f' rinw ir,1 tr,1duçfü1 cm fr,m C.:•s d t· ,1uto-
1·i,1 dl' C. l'L'iffc r L' E. I.L·,·i11 ,1s (l'aris, !\rm,rnd C11lin, JLn l; Vrin, JLJ.J.7); um,1 no,·,1 traJuçj l, ini pu bl i-
c,1d,1, ,1prL'sl'nt,1d.i L' c1 1ll1t,1d ,1 por M. de l.,1un,1, (l\ 1ris, l'UF, ILl')]). Pmpus urn <1 <1 11 ,ílisl' d ,1s \kdi -
t,K/ ws ca rtl'si,1 n,1 s L' lll se u conjunto L' d,1 quint,1 ,\ l,·,lit,1c,111 c,1rtl'si<1n,1 SL'f',ll'<1d,1mL·n tl' L'm 1\ frt'1>lt' d,· /,1
1•/1,:,1,11111;11,1/o,,; i,·, P,1ris, \'r in , llJ86.
,\ MFM()RI A , 1\ HIST(>RI J\ , O ES(l U l'CIMl'NTO

ca minho para uma fe nomenolog ia da memória comum. Os últimos parág rafos d a fa-
mosa quinta Meditação propõem de fa to o tema da "comunitarização" da experiência
e m todos os seus níveis d e significação, desde a fundação d e um compartilhamento
da natureza físi ca (§ 55) até a famosa constituição de "comunidades intersubjeti vas
superiores" (também chamadas de "personalidades de ordem superior" [§ 58]), cons-
tituição proveniente de um processo de "comunitarização socia l". Certamente não e n-
contramos a expressão memória comum nesse contexto a mpliado da fenomenologia
transcendental, mas e la estaria em perfeita sintonia com o conceito de "mundos cu l-
turais", entendido no sentido d e "mundos vividos concre tos nos quais vivem, passiva
e ativamente, comunidades rel a tiva ou absolutamente separadas" (íbid. ).
É preciso ava Iia r o preço a ser pago p or tal ampliação da fenomenologia à esfera da
vida compartilhada. Foi preci so primeiro radicaliza r o idealismo transcendental até
o ponto cm que o solipsi smo é assumido como um a objeção legítima; a "redução da
experiência transcende nta I à esfera própria"(§ 44) representa, nesse aspccto, o ponto
extremo de interiorização da experiê ncia. A ex periência temporal, tão bem descrita
quarenta a nos a ntes, é virtualmente confinada a essa esfera própria. Seu caráter de
fluxo e de horizonte infinitamente aberto é mesmo explicita m ente enfatizado a partir
o título do parágrafo 46, "A especificidade como esfera das atualidades e pote ncialida-
des do flu xo das vivê ncias". Essa passagem obrigatória pela esfera própria é essencial
à interpretação do que segue: a constituição de o utre m como estra ngeiro não marcará
o enfraquecimento, mas a ntes o fortalecimento d o transcendentalismo hu sscrliano
que culmina numa egologia. De fato, é "na" esfera própria que a experiência do outro
como estrangei ro se constitui, o preço sendo os paradoxos que expus cm o utro luga r 2~.
Trava-se uma forte competição entre duas leituras do fen ôm eno que Husserl designa
com o nome de P1111 ru11g ("empa relh a mento", § 51). De um lado, embora seja mesmo
como estra ngeiro, is to é, como não-eu que o outro se constitua, é "c m" mim que ele
se constitui. Um equilíbrio instável. é proposto entre essas duas leituras pelo recurso
ao conceito da "apresentação" (A ppriisc11t11tío1T), considerado como uma modalidade
inigualável de analogia 2'. A esse respeito, pode-se di zer que a redução à esfera própria
e a teoria dc1 a p ercep ção por analogia que a acompanha constituem os do is pontos de
a ncoragem obrigatórios para uma fenomenologia ulterio r da "comunita rização" da
ex pe riência esboçad a no fina l da quinta Meditação rnrtesía1111. Esfera própria, e mpare-
lhamento, comunitarização, formam assim uma cadeia conceituai sem rup tura, que
leva ao limia r do que se poderia chamar de uma sociologia fenomenológica, que me
arrisquei a acoplar com os conceitos chaves que Max Webe r colocou no início da g ran-
de obra Eco110111i11 e sociedade, a título de um a s ociologia compreensivo-explica ti va.
Não me d e te rei po r muito mais te mpo nas dificuld ad es principiais ligadas ao
acoplamento do ideali smo transcendenta l e da teoria da intersubjetividade. Gostaria

24 Cf. I'. Ricn.> u r, " L, c i nqu ii'.•1m' Afrdi/11/ io11 c11rlt;~i1•11111·", ibid., pp. 197-225.
25 Fa la-s e assim de "apercepçfüi " pur an<1logi<1 . Centenas d e púg inils fornm dedicild as il essa rilra
,)pe rcepção por a n,1Jog i,1 nos manuscritos, (]til' pe rma nl'ce rnm muito tL'mpo inéd itos, d ed icado s ,'i
intersubjetivid ade t ' pu bli c,Kios por lso Kern .
IJ;\ \ ,tF\'t ( rnL\ I" 1)\ Rl:\ 11 \:I SCl'.\Cl.·\

antes de fazer uma pergunta que considero como pré,,ia: para alcançar a noção de
ex periência comum é preciso começar pela idéia do próprio, passar pela experiência
1

de outrem, para fina lme nte proceder a uma terceira operação, dita de comunitari-
zação da ex periência subjetiva? Esse encadeamento é verdadeiramente irre, ,ersí,·el?
Não seria o pressuposto especulativo do idec1 lismo tra nscendenta l que impôe essa
irreve rsibilidade, e não a limitação própria da descrição fen o menológ ica? Mas un1a
fenomenologia pura, isto é, sem pressuposto, é concebível e factível? Estou p e rplexo.
'ào esqueço a distinção e, será preciso confessá-lo, o sa lto que Hegel se viu obrigado
a dar no momento de passar da teoria do espírito s ubjetin1 él do espírito objeti,,o na
E11ciclopfrf ia, e já no cerne da Fc110111c110/og ia do espírito, no limiar do capítulo "Geist"
(capítulo 6). Há um momento e m que é preciso passar do c11 ao 11ôs. Contudo, não é
esse momento original, à mod a de um nO\O ponto de partida?

Independentemente dessas dificukfades, se permanecermos na p c rspecti,·a da


quinta Mcditaçi'io c11rtcsi111rn, o conceito sociológico de consciência cole tiva pode re-
s ultar apenas de um processo secundário de obje tivação das trocas intersubjeti\·as.
Basta, então, esquecermos o processo d e constituição que deu origem a essas enti-
<.fad es parn que as tratemos por sua ,·ez com o s uje itos de inerência pa ra predicados
sem elhantes aos que atribuímos primeirame nte à conscit'ncia indi vidual. Pode-se
então estender a esses produtos da obje ti\·ação das trocas intersubjcti\'as o carMer
a nalógico que Husse rl atribui a todo alter ego com rel ação ao ego próprio. Graças a
essa tra n sfe rência analógica, somos a utori zados a emprega r a primeira p essoa na
form a plural e a atribuir a um nós - inde p ende nteme nte de seu titular - todas
as pre rrogativa s da memória: minhad ade, continuidade, polaridade passado-futuro.
Nessa hipótese, que trans fe re à intersub jeti\'idade todo o peso da constituição das
e ntidades coletivas, importa ja mais esquecer que é por analogia apenas, e em relação
à con sciê ncia indi\·idual e à s ua m e móri a, que se considera a memó ria colc ti\·a como
uma coletâ nea dos rastros dei xados pelos acon tecime ntos que afe ta ram o curso da
história dos gr upos e nvolvidos, e que se lhe recon hece o poder d e e ncenar essas
lembranças comun s por ocasião de fes tas, ritos, celebraçôes públi cas. Uma , ,ez reco-
nhecida a transferê ncia ana lóg ica, nada impede que essas comunidad es inte rsubje-
ti,·as supe riores sejam conside radas como o s ujeito d e inerê ncia de suas lembranças,
que se fale de sua tem pora lid ade ou de sua his toricidade, e m suma, que se este nda
a na log icamente a minhadade das lembranças à idéia de uma possessão por nós de
nossas lembranças cole ti\'as. Isso bas ta pa ra dar à histó ria esc rita um ponto de apoio
dentro da exis tê ncia fenome no lógica dos g rupos . Para o fenomenólogo, a história das
"me ntalidades", das "culturas", n ão pede nada m e nos, ne m nada mais.
A fVIHvl ()l{li\, !\ I II Sºl(lR I J\, O FS(..) LJ ECIMl: N T(l

II. O olhar exterior:


Maurice Ha lbwachs

Várias décadas após a publicação de A Mc111ôria colctiz,a, o pensamento de Maurice


Halbwachs2" conhece um s ucesso inesperadn27• Esse tipo d e entronização não pode
nos d eixar indiferentes, na med ida em que a his tória só pode pretender escorar, corri-
gi r, criticar, ou até mesmo incluir a memória enquanto memória coletiva. Esta consti-
tui o contraponto apropriado da histó ria .
Deve-se a Maurice Halbwachs a audaciosa decisão de pensamento que consiste
em atribuir a memória diretamente a um a entidade coletiva que ele ch a ma de gru-
po ou sociedad e. Na realidade e le já havia forjado o conceito de "quadros sociais da
memória" 2s antes de A Mc111ória coletiva. Na época, era na condição de sociólogo puro,
e na esteira de Émile Durkheim, que ele designava a memória em terceira pessoa e
lhe atribuía es truturas acessíveis à observação objetiva. O passo d ado e m A Memória
colcti-ua consiste cm desimplicar a referência à memória coletiva do próprio traba lho
da memória pessoal enqua nto se recorda de suas lembranças. O capítulo 2, intit ulado
"Memúria indiv idual e memóri a cole tiva", é escrito do princípio ao fim na primei ra
p essoa do singular, num estilo quase autobiográfico. O texto diz fundamentalmente
isto : para se lembrar, precisa-se dos outros. Mas ele ac rescenta: n ão apenas a espécie
d e memória que é a nossa não pode de modo algum ser d erivada desta, como também
a ordem de derivação é inversa. O objetivo d e nossa leitura crítica é pôr à prova essa
conseqüência extrema. Méls é preciso dizer primeiro que é a partir de uma aná lise
sutil da experiência individual de pertencer a um grupo, e na base cio ensino recebido
dos outros, que él memória individual tom a posse de si mesma. Sendo essa a estratégia

26 M,rnrice f l,1lbw,Khs, La M,;11,oiri' co/lcctiz,c, Paris, PUF, 1950 (pu bl icado por Jca n ne A lcxand rc, nas-
c ida Ha lbw,ichs); citaremns a ed içiio crítica L'Stabel1..'cidi1 por Cérnrd Nil mer com a colaboração de
Mc1ria Jai sson, Paris, A lbin Miche l, 1997.
27 Cf. l'iltrick H. Huttnn, "Mau ricl' Halbwachs ,1s h istorian of collec tivL' memory", cm H i~tory 11s 1111
Ar/ 1fMc111ory, Univcrsit y of Vcrmont, 1993, p. 73 e seg. O au tor coloca Halbwach s L'm um lugc1r d L'
honra nu ma scqüênóa que, além d e Wordsworth e Freud, inclui l'hilippc Arii:.•s e Michcl Foucau lt.
Por s ua vez, Mary Douglas{, a a utora de um a im po rta n te int rod ução;\ trnd uçào inglesa de Lo
Mt;111oirc co/lccfic •c (" lntroduc tion : Maurice Halbwac hs !'1 877-1 941 1", i11 M. Ha lbwachs, T he Collec-
tive Mcmory, New York, Harpcr J nd Row, 1980), n a qual ela compa ra a contribuição de Maurice
1lill bw.-ich s àquela d e Edward Eva ns-Pritchard. Seu próprio est udo, Hml' /11,ti/11/io11, Think (Syra-
cuse, Syracuse Un ivcrsity l'rcss, 1986), encon tril apoio cm Maurice f-fa lbwilchs para seu estudo da
"a mnésia estrutural" à qual volta remos no capítulo sobrt! o esquecimento. Por se u lado, muitos
hi storiadores frnncc ses reconhece m 11,1 o bra de Mauricc Halbwach s algo ma is que um apêndice ;:i
snciologi,1 de Ém ile Durkheim, a sa ber, uma VL·rdadc ira introdução ao con fron to entre memória
co letiva L' história. A esse respeito, limitar-nos-em os, nes te capítulo, ao exa me d o capítulo 2, " Me-
mória indiv idu a l e memória coletiva", de /.11 M,;111oiri· collt'clil'c, op. cit ., pp. 5 1-96. Rcspr va remos o
c1pítulo cha ve, intitulado " Mcm(1 ria coldi va e mem ór ia his tú ricil" (p p. 97--142), para urna discus-
são que somente cncon trarj seu lugar no âmbito dil fi losofia c rítirn da hi stória. A distinção entre
mL·mór in coleti va t· memúria hi s túri ca reccbe rü e ntiio um peso ig ua l .'l única d istinç.io que nos
importa neste est,ígio d e nosso ilrgumen to, ilq uela e n tre memória individual e memória coleti va .
28 M. Hal bwachs, Lc•s Codrt'S ~oci1111.Y de• /11 1111;111oirt', Paris, /\Jean, 1925; reed., A lbi n Miclw l, 1994.
I J\ \11\llWI -\ l ll.\ RL\ 11 \i !S<..l:\ll -\

escolhida, não é d e admirar que o apelo ao testemunho dos outros cons titu a o teff1,1
de abertura. É essencialmente no e:111,inho da recordação e do reconheci men to, esses
dois fenómenos mnemónicos maiores d e nossa tipologi<1 d<1 lembranç,1, que n os d e-
paran10s com a memória dos o utros. esse contexto, o testemunho não é considerado
enquanto proferido por alguém para ser colh ido por outro, mas enquanto recebido
por mim de outro a título d e informação sobre o p<1ssado. A esse respeito, ,is pri-
meiras lembranças encontradas nesse c<1minho são as lembrnnças compartilhadas, as
lembr,rnças comuns (as que Casey agrupa sob a denominação " Reminiscing" ). Ela s
nos permitem afirmar "que, na rea lidade, nuncz1 estamos sozinhos"; assim, a tese d o
solipsi smo, ainda que na condição d e hipótese de pensamento, , ·é-se d esca rtada de
sa íd,1. As mais notá\'t:is dentre essas lem branças são aquelas de lugares visitados em
com um . Elas oferecem a oportunidade pri,·ilegiada de se recolocar em pensamento
em tal ou tal grupo. Do papel do testemunho dos outros na recordação da lembrança
pc1ssa-se assim gradati,,amente aos papéis da s lembranças que temos enquanto 1n ern-
bros de um grupo; elas exigem d e nós um deslornmento d e ponto d e vista do qua l
somos cmincnte1T1ente ca pazes. Temos, assim, acesso a acontecimentos reconstruídos
para nós por outros que não nós. Portanto, é por seu lugar num conjunto que os outros
se definem. A sala de aula da escola é, nesse aspecto, um luga r privilegiado de deslo-
camento d e pontos de , ·ista da m e m ó ria . De modo geral, todo grupo atribui lugares.
É desses que se g uard a ou se forma memória . J\s lembranças de viagem mencionadas
acima j,í eram fontes d e deslocamento com ='·.
O ensaio entra na sua fase crítica ao atacar a tese que se pode chamar de psicologi-
zante, representada, na época, por Charles Blondel, segundo a qual a memória indi,·i-
dual seria um a condição necessá ria e suficiente pa ra a record ação e o reconhec im ento
da lembrança . No pano de fundo perfila-se a sombra de Be rgson e, nas proximidades,
<1 concorrência com os historiadores pela preeminê ncia no campo das ciências hu-
manas e m plena expansãn. Portanto, é no prúprio campo do fenómeno mnemt,nico
central que a batalha se trava. Argumento negativo: quando não fa z emos mais parte
do g rupo no memór ia do qual tal lernbranç<1 se con serv,1, ·a, nossa própria me mór ia
se esva i por falta de apoios externos. Argumento posit ivo: " Lembramo-nos contanto
que nos coloquemos no ponto d e ,·ista de um ou vários grupos e nos recoloque mos
cm uma ou várias correntes d e pensc1 mento" (A 111c111ôri11 ni/ctiua, p. 63) 1(1 . Em outras
pala,·ras, não nos lembra m os soz inhos. H.1 lbwac hs ataca aqui frontalmente a tese sen-
su a lis to que \'ê n a origem da lembrança umc1 intuição scns Í\·e l, conservadn ta l qu a l
e recordada de modo idê ntico . Tal lem brnnç,1 é, a lém de inencontr,ível, incon cebí\·e l.
As lembranças d e infância constituem, nesse aspecto, uma excelente referência. Elas
ocorrem cm luga res socia lmente marcad os: o jardim, a Cclsa, o porão, etc., tod os lugzi-
res que Bachclard prczarc1: "É no íl mbito da família que J im ,1 gem se d esloczi, porque

2Y L,,go adia nte tl'n' mns ,1 oport unid adl' d e L'\.lK,H n dnculo qm• H ,1lb1\·,,ch,; L'St.1bek·cL' ll L'n t rL' nw-
rrníri,1 L' L'Sp,1ço. É o título d L' um dos c,1pítulos dL' L1 1111 ;111oir,· cri/it'di,·,·: "A memór ia cull'ti\·c1 L' \l

L';-;p,1çu" (op. cit., pp. 1lJ3 -23h) .


30 PodL•mos L'n fa t i,1,ir ,1 insi;-;t.:•ncia das tlllÇ,iL',; dL' lug,ir L' dL' dcsloranwnto.
A MEM()Rl1\, /\ IIIST( )RI /\, U FS(JUFCil'vll-:NTO

estava nele contida desde o começo e dele nunca saiu" (op. cit., p. 69). E ainda: "Para
a criança, o mundo nunca é vazio de seres humanos, de influê ncias benfozejas ou
malignas" (op. cit., p. 73). Compreende-se, justame nte por isso, que a noção de âmbito
social deixa d e ser uma noção simplesmente objetiva, para se tornar uma dimensão
inerente ao trabalho de recordação. Nesse aspecto, as lembra nças de adulto não dife-
rem das lembranças de infância. Elas nos fazem viajar d e grupo em g rupo, de âmbito
e m âmbito, tanto espaciai s como temporais. Reconhecer um amigo num retrato, é
recolocar-se nos meios em que o vimos. O que se reve la inencontrávcl e inconcebível,
é a idéi a de uma "següência interna" na qual interviria apenas uma " ligação interna,
ou s ubjeti va" qualque r (op. cit., pp. 82-83), para explicar a reaparição da lembrança;
em suma, é à coesfío da lembra nça, cara a Di]they (que Halbwachs parece não ter co-
nhecido), que se d eve re nunciar e, portanto, à idéia segundo a qual "o que fund a me n-
taria a coerência das le mbranças, é a unidade interna da consciência" (op. cit., p. 83).
É certo que acreditávamos observar tal coisa em nós mesmos; "mas somos vítimas,
aqui, de uma ilusão bastante natural" (ibid.). Esta se explica pelo caráter que se tornou
insensível da influê ncia do meio social. Teremos a oportunidade, no capítulo sobre o
esquecimento, de evocar essa amnésia da ação social. Halbwachs observa que somen-
te notamos as influências riva is quando ela s se e nfrentam e m nós. Contudo, mesmo
então, a originalidade das impressões ou dos pensamentos que sentimos não se ex pli-
ca por nossa espontaneidade natural, mas "pelos encontros em nós de correntes que
tên1 uma rea lidade obje tiva fora de nós".
O ponto alto do capítulo consiste, assim, na denúncia de uma atribuição ilusória
da lembrança a nós mesmos, quando pretendemos ser seus possuidores originários.
Mas Halbwachs não ultrapassa ria aqui uma linha inv is ível, aquela que separa a
tese do "nunca nos lembramos sozinhos" da tese do "não somos um sujeito autêntico
de atribuição de lembranças"? O próprio ato de "se recolocar" num g rupo e de se "des-
locar" de grupo cm grupo, e mais geralmente, de adotar o "ponto de vista" do grupo,
não supõe uma esponta neidade capaz de dar seqüência a si m esma? Caso contrário, a
sociedade não teria atores s ociais' 1• Se, em última análise, a idéia da esponta neidade
de um sujeito indi v idual de recordação pode ser denunciada como uma ilusão, é por-
que "nossas pe rcepções do mundo exterior se sucedem segundo a mesma ordem de
s ucessão dos fatos e fe nômenos m ateriais. É a ordem da natureza que p e netra então
em nosso espírito e reg ra o curso de seus estados. Como poderia ser de outro modo,
uma vez que nossas representações não passam de reflexos das coisas? "Um reflexo
não se explica por um reflexo anterior, mas pela coisa que ele reproduz no próprio
instante" (op. cit., p. 85). Assim, há apenas dois princípios de encadeamento: o dos

31 Os historiadores que consulta rl'mos na segunda parte sobre o tem a da constituição do vínculo
social restituirão aos atores sociais essil iniciativa, e m situações quer de justificativa quer de con-
testação no curso da v ida e m "cidades" mllltiplils . Mils Ha lbwnc hs não levn em con sidernção a
objeção por e le mesmo su scitadn, seg undo a qual os mov imentos de se colocar, de se recolocar, de
se deslocar são mov ime ntos espontâneos que sabt.•mns e que podemos fazer. Parndoxa lme ntc, J
réplica que I lalbwachs opôe à teorin sensuJlis ta da memória repousa num acordo profundo com
ela a respe ito do estatuto d a impressão origin úria, da intuição sensível.
D ,\ M 1. t\ 1(l R 1.\ F D ·\ lü: \ ! 1\: 1~C j: \: C 1.\

"f,1tos e fenômenos materiais'' e o d,1 m emória coletiva. Or,1, o primeiro se reflete na


consciência apena s no prese nte: "A intuição sensível estc'i sempre no presente" (op. cit.,
p. 8-l). Disso resulta, no tocante il consciê ncia, que apenas "as própria s divisôes que
a realidade aprcsent,ffa" (op. cit., p. 85) regem a ordem do sensÍ\·el, sem que se possc1
innKar qualquer "atração espontônea e mútua entre os cstéldos de consciênciél assi m
postos em relação" (ihid ). Num,1 pabna, "um reflexo não Sl' ex plica por urn re flexo
anterior, mas pela coisa que ele reproduz no próprio instante" (i/1id.). Então, é p.ir,1 o
bdo das representaçôes coletivas que de, ·emos nos voltar pMa dar conta das lógicas
d e coerência que presidem à percepção do mundo. Ree ncontrilrnos de modo incsper,1-
do um Mgumento kilntiano usado e m fa,·or dc1s estruturas da sociedade. E recaímos
no emprego antigo da noção de quadro: é nos quadros do pens,1mento coleti,·o que
encontramos os meios de evocélr a seqüênciél e o e ncadeamento dos objetos. Son.ente
o pensam e nto coletivo consegue rea lizar essa operação.

Resta explicar como o sentimento da unidade do cu d eri,·a desse p ensa mento co-
lctin). É por intermédio da consciência que consideramos, a cadél momento, pertencer
simultaneamente a ,·ários m e ios; mas essél consciêncic1 existe ,1penas no presente. A
única concessão que o autor se permite é a de dotar ca da consc iência do poder de se
situar no ponto de \'Ísta do g rupo e mai s ainda de passar de um grupo a outro. Contu-
do, essa concessão é rapidamente retirada: essa última atribuição ai nda é uma ilusão
que res ulta de uma adaptação à pressão social ; esta nos le,·a a acreditar que somos os
autores de nossas crenças: "É assim que a maioria das influências sociais às quais obe-
decemos com mais freqüência perma necem despercebidas para nós" (op. cit., p. 90).
Esse defeito de apercepçifo é a principal fonte de ilusão. Quando influências socia is se
opôem e essa oposição permanece, por sua ,·ez, d espercebida, imaginamos que nosso
ato é independente de toda s essas influência s uma vez que não está sob a d ependência
exclusiva de nenhuma delas : "Não percebemos que, na \·erdade, ele resulta d e seu
conjunto, e que ele é sempre dominado pela lei de causalidade" (up. cit., p. 95).
Seria esta a última palav ra desse estudo, por outro léldo notá,·e l, que termina se
enrijecendo num dog mati s mo surpreendente? Creio que não. O ponto de partida de
to da análise não pode ser abolido por sua conclusão: é no ato pessoal da recordação
que foi inicialmente procurada e encontrad,1 a marca do socia l. Ora, esse élto de re-
cordação é a cada ,·cz nosso. Acreditéí-lo, atestéí-lo não pode ser denunciado como
uma ilusão radical. O próprio Halbwachs acredita poder situar-se no ponto d e , ·ista
do \'Ínculo socia l, quando o critica e o contesta. A bem da ,·erdadc, o próprio texto de
H albvvac hs contém os recursos de um a crítica que pode ser \'llltada contra e le. Trata-
se do uso quase leibniziélno da idéia de ponto de v ista, de perspectiva: "De resto, diz
o autor, embora a memória colcti\'a extraia sua força e duração do fato de que um
conjunto de homens lhe serve de suporte, são indivíduos que se lembram enquanto
mernbros do grupo. Agrada-nos di zer que cada memória indiv idual é um ponto de
,·ista sobre a memória coletiva, que esse ponto de v ista muda seg undo o lugar que
n ele ocupo e que, por sua vez, esse luga r muda seg undo as relações que mantenho
A lvlHvt(lRIA, i\ IIIST(l Rli\ , O ES(JUIT L'vtFNTO

com outros meios" (op. cit., pp. 94-95). É o próprio uso que Halbwachs faz das noções
de lugar e de mudança de lugar que põe em xeq ue um uso quase kantiano d a idéia de
quc1dro que se impõe de modo unilateral a cada consciência 12 •

III. Três sujeitos de atribuição da lembrança:


eu, os coletivos, os próxünos

As duas séries de discussão c111teriores sugerem uma mesma conclu são negativa:
nem a sociolog ic1 da memória cole tiva nem a fenomenologia da memória individual
con seguem derivar, d a posição forte que ocupam respectivamente, a legitimidade
apare nte d a tese adversa: coesão dos estados de consciência do eu indiv idual, de um
lado; capacidade das en tidades coletivas de con servar e recordar as lembranças co-
muns, do outro. Mais ainda, as tentativas de d erivação n ão são simétricas; eis por que
não há, aparentemente, áreas de sobreposição entre uma derivação fenomenológica
da memória coletiva e uma derivação sociológica da memória individual.
Proponho-me, ao termo dessa investigação sobre uma aporia maior da proble-
mática da memória, explornr os recursos d e complementaridade que essas duas
abordagens antagonistas contêm, recursos mascarados, de um lado, pelo preconceito
idealista da fenomenologia husserliana (ao menos na parte publicada da obra) e, do
outro, pelo preconceito positiv ista da sociologia em seus gloriosos primórdios. Bus-
carei primeiro identificar a região de linguagem onde os dois discursos podem ser
entrecru zados.
A linguagem comum, retrabalhada com a ajuda d as ferramen ta s de uma semânti-
ca e de uma pragmática do discurso, oferece aqui uma ajuda preciosa, com a noção de
atribuição das operações psíquicas a alguém. Entre os traços que notamos no início de
nossas análises, está o emprego, no plano gra matical, de possessivos da forma "meu",
"o meu" e sua seqüência no singu lar e no plural. A esse respeito, a asserção dessa
possessão privativa da lembrança constitui, na prática de linguagem, um modelo de
minhadade para todos os fenômenos psíquicos. Esses indícios de apropriação que a
retórica da confissão encorajava estão espalhados no texto das Confissc1cs. Mas foi John
Locke quem, g raças à flexibilidad e d a língua inglesa, começou a teori za r a operação

}2 O que fin a lmente enfraquece a posição de Maurice Halbwach s, é seu recurso a uma teoria Sl:' nsua-
li st,1 d a intuição sensível. Esse recurso se tornMá mais difícil depois da virnd a ling üística e, mai s
ainda, d epois d a v irada pragm;:í tica detu.1d a pela e pis te mologia da h is tória. Contudo, essa dupl a
g uin,1da j,1 pode ser dada no plano d a memóri a. Lembra r-se, di ssem os, é fazer a lgo: é declarar que
se viu, fez, adquiriu isso ou aquilo. E esse fa zer memória inscreve-se numa rede de exploração
pr.íticíl d o mundo, d e iniciativíl corporal e me ntal que faz d e nós s uje itos atuantes. Porta nto, é num
presen te mais rico que o da intuição sen s ível que íl le mbrança volta, num prese nte de iniciativa. O
rnp ítulo anterior, d t> dica do ao exercíc io da me mória, m1tori za uma rele itura dos fenóm e nos mne-
mó nicos de um ponto de v ista pragmático, antes qu e a própria operação h istó rica seja recolocadíl
no ca mpo de uma teoria d a ação.
D ,\ 'vll \,l () R J-\ 1 I J\ RI \11\iJ S CJ '\C I-\

ao introduzir a ex p ressão 11ppropri11fl', bem como uma série de jogos semânticos c m


torno da palavrn 0,1'11 to mada e m s ua forma pronomina l o u n ~rba l. Locke nota c1 esse
respeito que, por meio d e seu Grniter fo rcnsic, a linguagem jurídica introduz certc1
distância entre a propried ade apropriada e o possuidor. Ora, essa expressão pode
ser associada a uma pluralidade de possuidores (my ml'11 sc/t; etc.) e até mesmo ao sclf
substantivado: tl1c sei( Além disso, à expressão 11pproprit1tc junta m -se as expressôes
i111p11tc, acco11ntahlc (,1ssumi r a responsabilidade, se r respons,h'el ou responsabiliza r
ou tre m). De fato, uma teoria jurídica da t1scriptio11, que contribui para a elucidação
dos conceitos de in1putaçé'io e de responsabilidade, foi edificada ness,1 bast/ ~. Mas
o emprego do termo "appropria tio n" num contexto jurídico não deve subtrair-lhe a
magnitude sem ântica. Em Si 111cs11w co1110 11111 outro, te nte i res tit ui r à a propriação par te
desse alcance\ quando d a re l,ição entre a ação e seu agente~•. Proponho aqui 1L,,·ar mais
c1diante essa abe rtura estendendo-a à le mbrança, tanto na fo rm,1 passiva da prese nça
dc1 lembrança no es pírito, quanto na for1T1a ativa da busca da le mbrança. São essas
opcraçôes, no se ntido lato da pa lana, que inclui pathos e pm.ri'.',, que são o objeto de
uma atribuição, de uma apropriação, de uma imputação, de um levar em conta, em
suma, de uma adscr ição. Essa ex ten são da idéi ,1 d e apropri ação de uma teoria da ação
a u ma teoria da memória to rna-se possÍ\·cl por m eio d e u m,1 tese gera I a respeito da
total idade do campo psíquico, a qual m e foi inspirada pela obra de P. F. Strawson, Lcs
/11diê.'idus'". Entre as teses que P. F. Straws on desenvolH~ a respeito das relaçôcs gerai s
en tre predicados práticos em pa rticular t' predicados ps íquicos e m gem i, urna nos diz
respeito diretamente: cabe a esses predicados, já que são at ribuh·e is a si mesmo, poder
ser a tribuídos a um outro que si. Essa mobilidade d a atri buição implica três propostas
dist intas: 1) que a atribuição possa ser suspensa ou operada, 2) que esses predicados
conservem o m esmo sentido cm d u as situaçôcs de atribuição distintas, 3) que essa
atribuição múltipla preserve a assimetria e nt re adscrição a si mesmo e ad scrição ao
outro (seu~a scriha/il C/otltcr-asc rih11blc).
Seg undo o primeiro pressuposto, a atribuiçôo con,pens a, de algum modo, u ma
operaçôo inversa, que consis te em manter s uspens a a atribuiçJo a alg uém, com o ú n i-
co intuito de dar um teor descriti vo cstih·el aos predicados psíquicos assim colocados
à espera de atribuição. De fato, é o que ternos feito sem d izê-lo, ao consid cr,ir, nos
dois capítulos precedentes, a lembra nça como uma esp écie de im agem e a recordação
como uma empreitad a d e busca, coroada ou ni'ío pelo reconhec imento. Ao falar do

:n ,ir
H . l. Ha rt, "The '1 scr ipt ion of rt'Sp llns ibil ity ,rnd rights", l 'ro(CCdi11g, 1/1(' /\ ri;:. /()/di1111 S,>c'ldl!, IY .iLJ,
19.iH, p p. 171-lY-!. O s ubstantivo 11;:.cripliP11 t· o , ·L'rb\l to a~crik for,1m Cllnstruídos ,1 lllL' ill c<1 mi 11 hn
e ntre "ckscrc,·cr " L' "prt•scrL'\-cr " p,ir,1 d esig n a r L'spc ci fi ec1m L'n tc ,1 ,1 trihu iç:io dL' a lgP ,1 a lg u t>m .
3-! P. Rineur, S lli-111h11c (()111111c 11111111/rc, 11p. cit., qudrto estudo.
:,:; I'. F. St rawson, /11di;·idu11/s, LPndo n, Methuen a nd C o, 1959; trc1du ç,'lll tra nccsa, Lc•s i11di,·id 11 , , l'.iri s,
Fd itions du Sc•u il, 197.1. l,c1m ino a tese gc r,11 no primeirn cs tud Li dt' ~,ii- 111c•111c n ll11111c 11111111/r,·, ''l'-
(if., pp. 39-5-!, no ."1mbito dL' um,1 tL'ori .i gera l d,1 " rdL' rÍ:' nci,1 ide n ti iic,1 11tL'" (ll q ue permill' recon he-
cer q ue um ind idduo 11 .10 .:, m it ro? ). Eu a ,1plicll e a preciso 110 p l,1110 d a teo ria d .i a ç:io 11 0 quc1r to
estudo, " Les a p Pric s d e l'.i sc ri pti\l n" (i [,id. , p. 11 8 L' sq~.). É ess,1 Ctltim ,1 ,rnâ lise que rL'lllmo ,iqui
p,ira .ipliGí -lc1 ,1os ie n t'1 mL'llOS m,wmúnicos.
/\ MEMÚRlt\, 1\ III ST C)l< J/\ , O l'S(1UECIMFNTO

eikôn, Platão não se pergunta a quem a lembrança "acontece". Ao investigar a ope-


ração da recordação, Aristóteles não se indaga qu anto ao operador da busca. Nossa
própria investigação fenomenológica, a respeito d as relações entre rememoração, me-
morização e comemoração, foi conduzida sob o signo da abstenção na atribuição. A
esse respeito, a memória é ao mesmo tempo um caso particular e um caso sing ular.
Um caso particular, n a medida em que os fenómenos mnemónicos são fenómenos
psíquicos entre outros: fo la-se deles como de afecções e ações; é a esse título que são
atribuídos a qualque r um, a cada um, e que seu sentido pode ser compreendido fo ra
de toda atribuição explícita. É sob essa forma que eles também entram no t'1esa 11r11s
dos significados psíquicos que a literatu ra explora, ora na terceira pessoa do romance
em ele/ela, ora na primeira pessoa da autobiografia ("durante muito tempo, costuma-
va d eitar-me cedo"), e até mesmo na segunda pessoa da invocação ou d a imploração
("Senhor, lembra-te de nós") . A mesma suspensão d e atribuição constitui a condi-
ção d a atribuição dos fe nómenos psíquicos a personagens fictícios. Essa aptidão dos
predicados psíquicos de serem compreendidos em si mesmos n a suspensão de toda
atribuição explícita constitui o que se pode chamar de o "psíquico", que o inglês cha-
ma de Mi11d: o psíquico, a Mind é o repertório dos predicados psíquicos disponíveis
numa d ada cultura 1h. Isso posto, o caso dos fenómenos mnemónicos é singular em
muitos aspcctos. Primeiro, a atribuição ade re tão estreitamente à afecção constituti va
da presença da lembrança e à ação do espírito para reencontrá-la que a suspensão da
atribuição parece particu la rmente abstrata. A forma pronominal dos verbos de me-
mória atesta essa aderência que faz com que lembra r-se de algo é lembrar-se de si. Por
isso, o distanciamento íntimo, marcado pela diferença entre o verbo " lembrar-se" e o
substantivo "lembrança" (uma lembra nça, lembranças), pode passa r despercebido a
ponto de não ser notado. Essa aderência da atribuição à identificação e à nomeação dos
fenómenos mnemônicos explica provavelmente a facilidade com que os pensadores
d a trad ição do olha r interior conseguiram atribuir diretamente a memória à esfera do
si1 7. A esse respeito, pode-se caracteri zar a escola do olhar interior por uma denegação
do distanciamento por meio do qual se pode, no vocabulário de Husserl, distinguir
o noema, o "que" lembrado, da noese, o ato de lembrar-se, refletido em seu "quem". É
assim que a minhadade pôde ser d esig nada como o primeiro traço distinti vo da me-
mória pessoal. Essa aderência tena z do "quem" ao "que" é o que torna particularmen-
te difícil transferir uma lembrança de uma consciência a outra' 8 • Entretanto, é a sus-
pensão da atribuição que possibilita o fcnômeno de atribuição múltipla que constitui

36 Coloque i essa teoria d a atri buição à províl e m minha di scussão com jean-Pie rre Changeux, C1· q11i
11011s f11it pe11scr. Ln 1iat11rc ct la n•glc, Pílris, Odi le J.icob, 1998, pp. 141-150.
37 A concepção aqui propostíl da .itribuição a si mesmo dos ntos de memória encontra um reforço
precioso na ilná lise do ato d e ling ua gem q ue consiste na autodesignação da testemunh.i, esta
atestando seu próprio 1..• nvolvirncnto no ato de testemunhar (cf. a seguir, segunda parte, ca p. 1).
38 Essa pregnância da iltri bu ição no caso da memória explicil o deslocamento em Husserl do voca-
bu l.írio d a in tencionalid ade que, de intenciona lidade ad extra, como na percepção, se torna inten-
ci onalidade ad i11trn, in tenciona lidade lo ng itudinal, prúpria do percurso d a memúria no e ixo d a
tempora lid ade. Essa in tenciona lidade longitudinal é a prúpria consciência ínt ima do tempo.
I) ;\ ML\l () ({i,.\ 1 l.J.\ RJ:\ ll N ISCÍ: NCI·\

o segu ndo pressuposto enfatizado por P. F. Strawson: se um fenôrneno é sc~f-11scri/in/1/c,


també m deve ser ot/Jcr-11scribablc. É assim que nos exprimimos na linguagem comum
e nun1. nível reflexi,·o mais avançado. Assim, a atribuição a outrem n ão é acrescida
p osteriormente, mas coextensiva à atribuição a si. Não se pode fa zer um, sem fa zer o
outro. O que Husserl chamou de Paarnng, "empMclhamento", que atua na percepção
d e outrem, é a opernção silenciosa que, no pla no antepredicativo, possibilita o que a
semântica lingüística chama de otflcr-11scri/1t1/1/c, atribuível a outrem . O que, em outros
contextos, é chamado de Ei1(fiifl/1111g, essa esp écie de imagin ação a fetiva pela qual nos
proje tamos na ,·ida de outre m, não é uma operação dife rente da Prummg do plano
perceptivo, nem da ad scrição ao outro no plano da linguagem.
Resta o terceiro pressuposto: a assimetria entre a atribuição a si e a atribuição ao
outro, no próprio cerne da a tribuição múltipla . Essa assimetria refere-se às modalida-
d es do "preenchimento" - ou da confirmação - da atribuição. No caso do estranho,
a confirmação - é seu nome - permanece conjetural; ela repousa na compreensão
e na interpretação das ex pressões ve rbais e não-verbais no pla no do comportamen-
to d e outrem. Essas operações indiretas depe nde m do qu e Cario Gi n zb urg chamará
mais tarde de "mé todo indiciário" '"; este é guiado pela imag inação afetiva - pela
Ei1~fiil,/1111g -, que nos transporta p ara pe rto da experiência viva de outrem, no modo
que Husserl denomina "apresentação" (Appriisc11tntio11), e que não pode ser igualado a
um "re-viver" efetivo. No caso da atribuição a si mesmo, o "pree nchimento" - é seu
nome - é dire to, imediato, certo; ele imprime em me us atos a ma rca de uma posses-
são, d e uma rninha dade sem distância; uma aderência pré-tcmi'itica, pré-discursi,·a,
antepredicativa subtende o juízo de atribuição a ponto d e tornar inap are nte a di stân-
cia entre o si e suas lembrança s, e de da r razão às teses da escola do olhar interior.
De fato, o juízo de atribuição somente se torna explícito qu,1ndo replica, no plano
refle xivo, à suspensão da atribuição espontânea a s i dos fenômenos mnemónicos; ora,
essa abstração não é arbitrária; e la é constituti,·a do mome nto lingüístico da memória,
ta l como a prática de linguagem cotidiana o promm·eu, é ela que permite nomea r e
descrever de maneira distinta o "me ntal", a Mi11d, enquanto tal. Por outro lado, é esse
sutil distanciamento que jus tifica o emprego do próprio ter mo "preenchime nto" que
depende de urna teori a geral da significação. É por esses traços que o "preenchimen-
to" da significação "atribuível a si" distingue-se da "apresentação" (Appriisc11tatio11)
característica da sig nificação "atribuível a outrem". Ele não é conjetural, indireto, mas
certo, direto. Um e rro pode ser notado posteriorme nte na conjuntura a resp eito de ou-
trem, urna ilusão na atrib uição a si. Tomados neste sentido, erro e ilusão di zem respei-
to a procedime ntos corretivos eles próprios tão assimé tricos quanto as moda lidades
do juízo de atribuição, a expectativa de uma ,·erificação assimétrica confe rindo a cada
,·ez uma significação difere nte à atribuição: sc~f-asc ri/Ja/J/c de um lado, othcr-a~cri/111lilc
do outro. Sobre esse ponto, as considerações de Hu sserl na quinta Meditaçiio a respeito

]lJ Cario Ci nzburg, " Tri1Ct:.'s. R;icines d 'un par,1di g me indicia ire", in Al _11t/1c~, [111/1/i•1111•~, Tmct'~. i\101pf/l1 -
logic e/ lzi~toin·, tr;iduçi\o frnnccs;i , I'ciri ~, Fl,1mrnMion, col. "NouH·llc l>iblioth t.·qul' sc icntifiqu c",
1989, pp. 1.19- 180 (ed iç.1 0 o rigin ,11: tvliti, E 111J,/,•111 i, ~pie, Turin, Eina udi , IY86).

•Z• IJ 7 •Zo
A M FM(lRIA, i\ HIST()R li\, () FS(.?U l :C IMl-: ,' \iTO

da assimetria no preenchimento e as que dizem respeito a uma teoria da atribuição


múltipla dos predicados psíquicos coincidem perfeitamente.
É verdade que o reconhecimento dessa assimetria no próprio cerne da atribuição a
alguém dos fenômenos mnemónicos parece atirar-nos de novo em pleno mar. O espec-
tro da discordância entre memória individual e memória coletiva não estaria voltan-
do à tona no momento em que pensávamos ter chegado ao porto? Esse não é o ca so se
não separarmos esse terceiro pressuposto dos dois anteriores: a assimetria é um traço
adicional da capacidade d e atribuição múltipla, que pressupõe a suspensão da atribui-
ção que permite descrever os fcnômenos mnemônicos corno todo outro fenômeno psí-
quico fora da atribuição a quem quer que seja. O problema das duas memórias n ão foi
abolido. Foi enquadrado. O que dis tingue a atribuição a si, é a apropriação sob o signo
da minhadade, 111y own. A forma de linguagem apropriada é a autodcsignação, que, no
caso da ação, reveste a forma específica da imputação. Contudo, vimos com Locke que
se pode falar em imputação em todo lugar onde h á sclf e conscio11s11css. Sobre essa base
ampliada pode-se toma r a apropriação pela modalidade sc!f-nscribnblc da atribuição. E
é essa capacidade d e designar a si mesmo como o dono das próprias lembranças que,
pela via da P11nn111g, da Ei1fii'1/1111g, do othcr-nscribablc, ou como se quiser denominá-lo,
leva a atribuir a outrem corno a mim os mesmos fenômcnos mnemônicos.

Com base nesses pressupostos cm cadeia, que dizem respeito à noção d e atribui-
ção a alguém dos fenómenos psíquicos cm geral e dos fenômenos mnemônicos em
particular, pode-se tentar uma comparação entre a tese fenomenológirn e a tese so-
ciológica.
Urna fenomenologia da memória, menos sujeita ao que arrisco chamar de precon-
ceito idea lista, pode extrair da concorrência que lhe fa z a sociologia da m emória urna
incitação a se desdobrar na direção de uma fenomenologia direta aplicada à realidade
social, no cerne da qual se inscreve a participação de sujeitos capazes de designar a si
mesmos como sendo, em diferentes graus de consciência refletida, os autores de seus
atos. Esses d esenvolvimentos são encorajados pela existência de traços do exercício da
memória portadores da marca do outro. Em sua fase declarativa, a memória entra na
região da linguagem: a lembrança dita, pronunciada, já é uma espécie d e discurso que
o sujeito trava consigo mesmo. Ora, o pronunciado desse discurso costuma ocorrer n a
língua comum, a língua materna, da qual é preciso dizer que é a língua dos outros.
Ora, essa elevação da lembrança à palavra não se dá sem dificuldades. Cabe, aqui,
lembrar as experiências traumáticas evocadas acima sob a denominação de memória
impedida . A retirada dos obstáculos à rememoração, que fazem da memória um tra-
balho, pode ser ajudada pela intervenção de um terceiro, o psicana lista, entre outros.
Pode-se dizer deste que ele "autori za" o paciente a se lembrar, segundo uma expres-
são de Marie Balmary. Essa autorização, que Locke chamaria d e forcnsic, articula-se
sobre o trabalho d e memória do paciente - melhor dizendo, o analisando - que se
esforça por levar à linguagem sintomas, fantasias, sonhos, etc., para reconstruir uma
cad eia mnemônica compreensível e aceitável aos próprios olhos. Assim posta na via
da oralidade, a rememoração também é posta na via da narrativa, cuja estrutura pú-
blica é patente. É nessa linha d e desem ·oh-ime nto que encontraremos, já no começo
da segunda parte, os procedimentos do testemunho proferido diante de um terceiro,
recebido por ele e eYentualmente registrado num arqui\'O.
Esse ingresso da memória na esfera pública não é me nos notável com os fe nôrnc-
nos de identificação que encontramos sob urna denominação próxima à da memória
impedida, a saber, a memória manipulada: a comparação com outrem apareceu-nos,
então, corno uma fon te maior de insegurança pessoa l. Antes mesmo de leva r em con ta
os mo tivos de fragilid ade ligados ao confronto com outrem, seria prec iso dar a dev ida
atenção ao gesto que consiste em dar um nome àq uele que \·em ao mundo. Cada um
de nós tem um nome que não deu a si mesmo, que recebeu d e outro: cm nossa cultu-
ra, um patronímico que me situa numa linha de filia ção, um nome que me di stingue
na fratria. Essa palana de outrem, d epositada sobre uma \'ida inteira, ao preço d as
dific uldades e dos con flitos que se conhecem, confere um apoio de linguagem, um
aspecto decididamente auto-referencial, a todas as operaçôes d e apropriação pessoa l
que g ra vitam em torno d o núcleo mnemónico.
Porém, foi ao con stituir-se direta mente em fenomenologia da rea lidade socia l que
a fe nomenologia pôde penetrar no ca mpo fechado da sociologia. Esses d esem ·olYi-
me ntos encontraram um reforço na última grande obra de Husserl, La Crise dcs scicn-
ccs c11ropl'C1111es. onde se ch ama a atenção para os aspec tos anteprcdicativos do "mundo
da \'ida", o qual não se identifica, d e modo algum, com uma condição solitciria, ainda
menos solips ista, m as se reveste d e saída de u rna forma cornunitciria. Essa ampliação
d a fenomenologia à esfera social d eu luga r a urna obra notável, a de Alfred Schutz 4' 1•
Este não se detém n as etapas laboriosas da percepção de outrem à maneira da quinta
Meditação. Para ele, a experiência d e outre n1 é um dado tão primitivo quanto a expe-
riência de si . Sua imediatidade é me nos ,1 de uma ev idência cogn itiva que a de uma
fé prática. Acreditamos na existência de outrem porque agimos com ele e sobre ele e
somos a fetados por su a ação. É assim que a fe nomenologia d o mundo socia l pe netra
sem dificuldades no regime do v i\·er juntos, no qual os s ujeitos ativos e passi\'OS são
d e imediato membros de uma comunidade ou de uma coletivid ade. Urna fe nomeno-
logia do pertencimento é convidad a a dar a si mesma sua conceitualidade própria sem
se preocupa r com urna deri vação a pa rtir de um pólo egológ ico. Essa fenom enologia
é fac ilmente emparelh,í.\·el com uma sociolog ia compreensiva corno a de Max Weber,
para a qual a "orientação para outrem" é uma estrutura primitiva da ação social 41 • E,
numa etapa ulte rior, com uma filosofia política corno a de H anna h Arendt, para que m

-10 Cf. /\ . Sc h u tz, Ver si1111'1affr ! 111flw 11 der s,1: i11/t'11 lVdl, Vic 11111', Springl'r, 1932, 1960; traduçc'in ing lesa,
n,c Phc110111c11olos_11of t'1L' S,1â11/ World, E, ·a 11 ,.;ton, N orthwestcrn Un Í\l' rsity rrl'SS, 1967. Vl'r t,l mb6m,
do m esmo au tor, Collcdcd /lapcrs, 3 n1l., L1 H,1yl>, Nijhnif, 1%2-1%h; e n,c Strucf 11 rc of ti,,, 1./fr-
lVorld, Lond res, H e incm,rnn, 1974.
-1 1 M,1 x Wl'bcr, lVirtsd111ft 1111d Ces1'/lsd111 ft, Tii b ingen , Mohr; tr,1 duçào ira n cL'S,1 org,mi z ada por J. C h J -
,·y e E. de Damp iL'rrl', F.-0110111ic e/ S,,cid1;. CP11cq,t, _timd11111c11 t1111r de /11 //1,;oric ,;o(iofosiq11c, Pa ri s,
l' ltm, 1971; H'r ~ l (' 2.
i\ MFM(WIA, A III STÚ l/1 1\, () 1-:Sl.)LJ FCIMLNl()

a pluralidade é um dado primitivo d a filosofia prática. Um dos desenvolv imentos


dessa fenomenologia da rea lidade social diz respeito diretamente à fenomenologia
da mem ória no plano da realidade socia l: ele se dirige ao fenómeno transgeracional
que se inscreve na área intermediária que evocaremos para terminar42 • Alfred Schutz
ded ica um importa nte estudcrn ao encadeamento formado conjuntamente pelos rei-
nos dos contemporâneos, dos predecessores e dos s ucessores. O reino dos contempo-
râneos serve de eixo: ele exprime "a s imultaneidade ou a quase simulta neidade da
consciência de si d o outro com a minha"; cm seu aspecto vivenciado, ele é marcado
p elo fenóm eno do "envelhecer junto" que põe em sinergia duas durações em desdo-
bramento. Um flu xo temporal acompanha outro, enquanto eles duram juntos. A expe-
riência do mundo compartilhada repou sa numa comun idade tanto de te mpo quanto
d e espaço. A originalidade dessa fenom enologia da memó ria compartilhada reside
principalmente na superposição dos g raus de personalização e, inversamente, de ano-
nimato entre os pólos de um "nós" autêntico e o do "se" (partícula apassivadora), do
"eles outros". Os mundos dos predecessores e dos sucessores estendem n as duas di-
reções do passado e d o futuro, da memória e da expectativa, esses traços notáveis do
viver juntos decifrados primeiro no fenómeno d e contemporaneidade.
Essa extensão da fenomenologia à esfera social, como acabamos de dizer, a fez avi-
zinhar-se da sociologia . Ora, esta, em alg umas de suas orientações contemporân eas,
faz, na direção da fenomenologia, um movimento paralelo ao da fenomenologia em
direção à sociologia. Eu me limitarei, aqui, a algumas breves observações, na medida
e m que é no campo da historiogra fia que essas evoluções imprimiram os efeitos que
nos importam. Três anotações à guisa de preparação do terreno. Primeiro, é no campo
de uma teoria da ação que os desenvolvimentos que retomarei na segunda parte desta
obra foram os mais notáveis. Com Bernard Lep etit-1-1, enfatizo a formação do vínculo
social no âmbito das relações de interação e a formação das identidades edificadas so-
bre essa base. Iniciativas e coerções nela desenvolvem s u as dialéticas respectivas.
Tomarem os assim d is tância de urna fenomenologia marcad a estreitamente de-
m a is pelos fenômenos perceptivos e cogniti vos cm gera l. Os fenôme n os de repre-
sentação - d entre os quai s os fenômenos mnemónicos - serão aqui regularm ente
associados às práticas socia is. Segundo, os problemas colocados pela sociologia da
memória coleti va são reformulados pelos historiadores ao tratar da dimensão tem-
poral dos fenômcnos sociais : o empilhamento das durações longas, médias e curtas,
em F. Braudel e nos his toriadores da escola dos A111111/es, assi m como as considerações

42 Em 'fr111p, et Rfrit, t. Ili , op. cit., pp. 198-211 , abordo "a seqüência da s gerações" no âmbito dos co -
nectores que gara ntem a transição en tre o tempo fenomenológico e o terceiro tempo da hi stó ria,
entre te mpo morta l e tempo pú b lico. A simples "s u bstituição" das ge rações é um fenôm c no que
depende da biolog irt humana. Em compen sação, " sociolog ia compreensiva de Dilthey e Mann-
hcim extra i os tra ços qu alitativos do fenómeno de "seqi.iência " (Folgc) do "vínculo g e rac iona l".
43 T/1c P/1c110111c110/ogy of tlic Social World, op. cit ., cap. 4, pp. 139-214.
44 Bern a rd Lepetit (dir.), Lcs FornH'S de /'c:rpéric11cc. L/11 c a11trc lii:,toirc , ocialc, Paris, Albi n Michel, col.
"L'Évolu tio n de l' histoire", 199S.
sobre as relaçôes entre estrutura, conjuntura e acontecimento di zem respeito a essa
retomada, pelos hi s toriadores, dos p roblemas encontrados pelos sociólogos no nÍ\'el
da memória coletiva. A discussão será assim transferida i1 fronteira entre memóri a co-
letiva e história. Fin.ilmente, última obser\'ação, e m consideração pelos historiadores
dos jogos de escalas oferecerá a oportunidade de uma redistribuição dos fen óme nos
rnnernônicos entre os escalôes da micro-história e os da macro-história 4". A esse res-
peito, a história oferecerá esquemas d e med iação entre os pólos extre mos da memória
indi\·id ual e da mcmóric1 coletiva.

Gos taric1 de te rminar este capítulo e esta primeira parte com urna sugestão. Não
existe, e ntre os dois pólos <.fa memórizi individual e da memória coletiva, um p lano
intermecliéfrio d e referência no qual se operam concretamen te as trocas entre ,1 memó-
ria \·iva das pessoas indi vid uais e a memória pública da s comunidades às quais per-
tencemos? Esse pl ano é o da relação com o s próximos, a q uem temos o direito de
atribuir urna memória de um. tipo distinto. Os próximos, essas pessoas que contam
para nós e para élS quais contamos, estão situ ados numa faixa de va riação das dis-
tâncias na relação entre o si e os outros. Va riação de di stâ ncia, mas ta mbém \·ar iação
nas modalidades ati\·as e passivas dos jogos de distanciamento e de aproximação que
fazem da proximidade urna relação dinâmica constan temente em movime nto : tor-
nar-se próximo, Sl'ntir-se próximo. Assim, a proximidade seria a réplica d a an, izade,
dessa pliilia, celebrada pelos Antigos, a meio ca minho entre o indivíduo solitário e o
cidadão definido p ela sua contribuição à poli teia, à vida e à ação da polis. Do mesmo
modo, os próximos estão a meio ca minho entre o si e o se (apassivador) para o qual
derivam as relações de contemporaneidade descritas por Alfred Schutz. O s próximos
são outros próximos, outrens pri\'ilegiados.
Em qual trajeto de atribu ição da me mória se situam os próximos? A ligação com
os próximos corta trans,·ersal e elcti\·amen tc tanto as rclaçôes de filia ção e de conju-
ga lidade quanto as rclaçôes sociais di spersas seg undo as formas múltiplas d e perten-
ci mento4" ou as ordens respectivas de gra ndeza 4~. Em que sentido eles contam para
mim, do ponto de ,·ista da memória compartilhada? À contemporaneidade do "e1l\'c-
lhecer junto", eles ac rescenta m urn a nota especia l referente aos dois "acontecimentos"
que limitam uma ,·id a huma na, o nascimento e a morte. O primeiro escapa à minha
memória, o segundo barra meus projetos. E ambos interessa m à sociedade ape nas c m
razão do estado ci,·il e do ponto de \'ista demográfico da substituição das gerações.
Contudo, ambos importaram ou \'ãO importar para meus próx imos. Alg uns poderão
lamentar minha morte. Entretanto, antes, alguns puderam se alegra r com meu n,1sc i-

-Ei Jacque s Re \·cl (dir.), /<'ux d 'fr /11·//c,. La /// ÍtT1i,11111/_1N ' ir /'c.rpéri1·11cc, l'.1r is, FHESS -Ca llim ,1 rd-Sl' UÍ I,
l l/% .
.J.6 .k,rn -Marc Ft'rry, L6 />11i,,1111cc, de /'npáil'II( ,'. E, ,:;ai ~ur /'idc11tifr ( 1111/,'lll/h1mi11,·, t. II, l .c, Ordn·~ de ln
rl'(0111111i~., 1rncc, l\ 1ri s, Édition s du Cerf, l YlJl.
~7 Luc Bolta nsk i & L1urent Thévcnot, Oc /,1 j11~tifim t io11 . I .,,,; 1;t'o111i111ic, de /11 :"m11drnr, l';iris, C<1 li i mard,
1991 .
1\ \ 11:M()Rl i\, A IIIST() RIA, O ES(.) UJ :CJMl·: :\:T(l

rnento e celebrar, naquela ocasião, o milagre da natalidade 4H, e a doação do nome pelo
qual, a partir de então e durante toda a minha v ida, designarei a mim m esmo. Entre-
mentes, meus próximos são aqueles que me aprovam por existir e cuja exi stência apro-
vo na reciprocidade e na igualdade da estima. A aprovação mútua exprime a partilha
da afirmação que cada um faz de seus poderes e de seus n ão-poderes, o que chamo de
atestação cm Si 111cs11w como u111 outro. O que espero dos meus próximos, é que aprovem
o que atesto: que posso falar, agir, narrar, imputar a mim mesmo a responsabilidade
de minhas ações. Aqui, mais uma vez, Santo Agostinho é o mestre. Leio no d éc imo
Livro das Co11fissiics: " Espero essa conduta da alma fraterna (aninrns [.. . ]fratern 11s) e
não da estrangeira, não dos 'filhos de uma outra raça cuja boca proferiu a vaidade e
cuja direita é uma direita de iniqüidade', mas a alma fraterna, a que ao me aprovar (qui
c11111 approbnt 111c) se alegra comigo e ao me desaprovar se entristece comigo; pois que,

quer me aprove ou me desaprove, ela me ama. Eu me revelarei (i11dicabo me) a pessoas


como essas" (Confissaes, X, IV, 5). Por minha parte, incluo entre meus próximos os que
d esaprovam minhas ações, mas não minha existência.

Portanto, não é apenas com a hipótese d a polaridade entre memória individua l e


memória coletiva que se d eve entrar no campo da história, mas com a d e urna tríplice
atribuição da memória: a si, aos próximos, aos outros.

48 Hannah A rendt, Tl,c f/11 1111111 Co11dit io11, C hicago, T he Un ive rs ity o i C hicago Press, 1958; trad. fran c.,
Co11ditio11 de /'/Jo,1111/c 1110dcmc, prefacio dl' Paul Rinl'ur, P.:iris, Ca lrna nn-Lévy, 1961, 1983, p. 278.
11

HISTÓRIA / EPISTEMOLOGIA
" Eis a aprcsent,1çào da pesquisa [hi~l urit'] de Heród o to de T C1rio - p<1r,1
que, por um la do, os aconte cimentos suscitadns pe lo s homens n:m SL'jam
apagados pelo tl'mpo, L' p or outro, para quL' os g randes e admir,Í\'L' is ft•i -
tos rea li z;idos Sl'ja pt•los gregos, seja pel os bárbaros, niio percam seu fL'-

nomc - pes q uis a . L'l11 p,irtic u la r, da rnus a pela qua l fizeram a gut•rra uns
,w s outros. EntrL' os pL·rs,is, d izem os s.íbios [/usioi ] quL' foram os fe n íc ios
a ca u sa da desa\ ·enç,1..

segu nda parte desta obra é dedicada à epistemologia do conhecimento his-

A tórico. Vou mostrar aqui a situação dessa etapa de minha pesquisa e suas
principais articulações.
Por um lad o, considero concluída a fenomenologia d,1 memória, ressa h ·adas as
\'ariações cultu rais que o conhecimento histórico, integrado à memória indi,·idual e
coletiva, pode ind uz ir na compreensão d e si mesmo no modo mnemônico. Será preci-
so considera r, no momento oportuno, uma s util combinação entre os traços que pode-
ríamos chamar trans-hi stóricos da memória e suas expressões , ·ariáveis ao longo da
históric1. Esse será um dos temas da hermenêutica da condição histórica (terceira parte,
capítulo 2). Scrú necess,irio, antes disso, que a história tenha ating ido a estatura ple-
na de sua a utonomi<1 enquanto ciência humana, segundo a intenção que orienta essa
parte intermediá ri a de meu trabalho. Impor-se-á então, no plano de uma reflexão de
segundo grau, a qucst,'io dos limites internos de um projeto filosófico o mais d as ,·ezes
mantido cm silêncio, projeto esse que seria não somente o dL' uma a u tonomia episte-
mológica da ciência his tórica, rnas também o de uma auto-suficiê ncia de um saber de
si da própria históri,1, seg undo a expressão cara que presidiu ao nascimento e ,'1 apolo-
gia da escola histórica alemã . É no quadro dessa reflc xno sobre os limites, dependente
d e um,1 filosofia crítiCcl da história, que se pode levar ,1 bom termo o confronto entre

H L•rú doto, Hi,toir<':-, i n L'Hi,toirc d ·H(1111i'r<' ,i 1\ 11g11,ti11. l'ri ;fi1c,·., d(', /1i, t1 >ri,·11 , e/ ii'x tc, ~11 r I 'J,i~toirc,
ll'x to~ rL'unidos e Cll!lll' nta dos po r Fr,111ç,1 is Hc1rtog, tradu z idos por :\ l ic hc l C ,1se1,vitz, l\ iri ~. l\ i. du
SL•uil. 199 9, p . -r,.
I IL'ró d t> to : 1) " pai d,1 hi s!t'> r i ,1 " (C íCL'íl>) ou o " p ,1 i d ,1 nwntir:i " (l'lut,ircli)?
r\ Ml:M(lR l r\, J\ HISr( JJ{lr\, O FS(.?UFC I ME N H l

o objetivo de verdade da história 2 e o objetivo de veracidade, ou, como preferiremos


dizer, de fidelidad e d a memória (terceira parte, capítulo 1). Até lá, o esta tuto da histó-
ria com relação à memória será mantido em suspenso, sem que, todav ia, deixemos de
notar, ao longo do ca minho, o ressurgimento das aporias da memória sob seu duplo
aspecto cognitivo e pragmático, principalmente a aporia da representaçã o de uma coi-
sa ausente advinda anteriormente, e a dos usos e abusos aos quais se presta a memória
enquanto atividade exercida, enquanto prática. Mas esse retorno obstinado das apo-
rias d a memória ao cerne do conhecimento histórico n ão poderin servir d e solução ao
problema d as rclnções entre o conhecimento e a prática da história e a experiência da
memória viva, ainda que tal solução apresentasse traços últimos de indecisão; esses
traços também deverão ser conquis tados no campo de batalha de uma reflexão ccm-
duzida até seu limite.
Resta que a autonomia do conhecimento histórico com relação ao fen ómeno mne-
mónico continun sendo o principal pressuposto d e uma epistemologia coerente da
história enquanto disciplina científica e liter,fria. Esse é pelo menos o pressuposto as-
sumido na parte intermediária d este trabalho.
Adotei a expressão operação histórica, ou melhor, his toriográ fica, para definir o
campo percorrido pela análise epistemológica que se segue. Eu a d evo a Michel de
Certeau, cm s ua contribuição ao grande projeto de Pierre Nora e Jacques Le Goff colo-
cado sob o título program ático: Fazer história1 . Além disso, adoto cm suas linhas gerais
a estrutura tri.:idica do ensaio de Michel de Certeau, ainda que lhe atribua conteúdos
diferentes cm pontos importantes. Eu havia testado essa tripartição, ao mesmo tem-
po clara e rica em resultados, cm um trabalho d e etapa encomendad o p elo Instituto
Internacion al de Filosofia \ Tendo em mente essa dupla patronagem, denomino fase
documental aquela que vai da declaração das testemunhas oculares à constituição dos
arquivos e que escolhe como seu programa epi stemológico o estabelecimento da prova
documental (capítulo 1). Em seguida, chamo de fase explicativa / compreensiva aquela
concernente aos múltiplos usos do conector "porque" em resposta à pergunta "por
que?": por que as coisas se passaram assi m e não de outra maneira? O título duplo,

2 François Dosse propõe e m s u,1 obra /. "Histoire (Paris, A. C ol in, 2000) uma sé r ie d e seis perç urs os
que ba lizam a hi stór ia d<1 história . O prime iro in st itu i "o his toriador, um mes tre de ve rdade''
(pp. 8-29). A problemMica da verda d e tem início m enos t•m Heródoto, o primeiro !,i~tc1r, que cm
Tu cídides e Sl'U "c ulto do verdad e iro" (p. 13). É substituíd a pelo nascimen to e a der rota d a cru-
diçiio. Atinge um ponto a lto com a esco la metodo lógica e C. Se ignobos, él ntes q ut> F. Brnude l lhe
imponha a formél cstrutur,1 1, q ue será questionélda e m no me da "c rise do causa lis mo" no fin a l d o
segund o perç u rso d,1 obra de F. DosSL' (cf. adiante, p. 195, n . -i).
3 Em um a primeira Vl'fs,'lo p<1rc i,1l , a q uclil da edição dirigid a por Le Goff l' Nora (Jaçqu es Le Co ff
e Pierre Nor,1 lo rg .l, l-'11 irl' dt' / '!,i~fpirc, 1\ ir is, Ca llim él rd, col . " Bibl iothh1uc d cs h istoi rcs", 1974),
M ichcl dl' C crtc,1u propunha ,1 t'xprcss fl o "ope1'c1çJ n h istóric,1". Na vl'rsão complc tél d e L'Écril ure
di' / ' /Ji~toin' (P,1ri s, C:,1llim ard , col. "B ibli o th1:Sque d cs histoires", 197.'i), e le adota defin itivamente a
c xpn ~ssão "opcr<1 ç.'10 hi storiog ráfic a".
4 r. Ricre u r, " Ph i lnsPph iL's critiques d L' l' h is toi re: recherc h e, e xpl icatio n, éc ritu rc", i11 Cu ttorm
Fkii s ta d (org .), /J/,i/o~o11/1irnl l'ro/Jlrn,~ '/ád11_11, t. 1, Dnrdrcc ht-Bos ton-Londre s, Klu wer Ac.1demi c
l 'ubl islwrs, 1n s tit ut i ntern ,1tiP11.1 I dL' p h i losoph il', Fi94, pp. 139-201.
I I IST(J li l ..\ / 1.l'IS l l· l\1(11.0C I ,\

explicação/compreensão, exprime su ficien temente a recusa da oposição entre exp li-


cação e compreensão que, cotn demas iada frcqi.iéncia, tem impedido que se apreenda
em toda sua amplitude e complexid ade o tratamento do " porque" histórico (capítu-
lo 2). Denomino, enfim, fase representati,a a colocação em forma literária o u escrita do
discurso levado ao conhecimento dos leitores de his tória. Embora o principal desafio
epistem ológico seja decidido na fas e da explicação/compreensão, ele n ão se esgota aí,
na medida em que é na fose da escrita que se declara plenamente a intenção historia-
dora, a de representar o passado tal com o se produziu - qualquer que seja o sentido
atribuído a esse " tal como". É jus tamente nessa terceira fase que as principais aporias
da memória retornam com força ao proscê nio, a da representação de uma coisa ausen-
te sobrevinda anteriormente, e a de uma prática voltada à recordação ativa d o passado
e que a hi stória elen1 a o ní\·el de uma reconstrução (capítulo .3).
Desenvolveremos, no início de cada um dos três capítulos desta segunda parte, o
programa próprio d e cada uma dessas fases. Limitar-nos-emos aqui a precisar o modo
de articulação d esse gra nde ternário historiador.
Propusemos a palana "fase" para caracterizar os três segmentos da operação his-
toriográfica. Não de\'e ha ver aqui qualquer ambigüidade concernente à utilização do
term o: n ão se trata de esté\gios cronologicamente distintos, mas de momentos m eto-
dológicos imbricados uns nos ou tros; repetiremos qua nto for preciso, ninguém con-
su lta um arqui\'O sem um projeto de explicação, sem uma hipó tese de compreensão;
e ninguém se dedica a explicar uma seqüência de acon tecimentos sem recorrer a uma
colocação cm forma liter,fria expressa de caráter narrati,·o, retórico ou imaginativo.
Toda idéia de sucessão cronológica de\'e ser banida do uso do termo "fase operatória".
É apenas no discurso aq u i apresen tado a respeito dos momentos nos quais se desenro-
la a operação historiográfica que as fases se tornam estcigios, etapas sucessivas de um
trajeto que desdobra sua própria linearidade. Evi taríamos completamente a conotação
de sucessividade se fa lássemos de nível, termo que evoc<1 prcferivelmente a supcrpo-
sição, o empilhamento. Mas outra ambigüidade nos esp eraria, a de uma relação entre
infra- e su perestrutura, termos de que a vulgata marxista (que não confundo com a
obra maior de Marx) usou e abusou; cad a um a das trés operaçôes do empreendimento
historiográfico faz as \'ezes de nível de base para as outras duas, na medida cm que
todas servem s ucessivamente com o referentes para as outras duas. Preferi finalmente
o termo "fase", na rn cd id a em que, pri\·ado da ordem cronológica de s u cessão, e le
subl inha a progressão da operação relati,·a ,1 manifestação da intenção histo riadora
de reconstrução verdadeira do passado. Com efeito, é apenas na terceira fase que se
declara abertamente - como j,1 su gerimos - a intenção de representar em ,·erdade
,,s coisas passadas, p ela qual se define cm face da mL•mória o projeto cogniti\'o e pr,í-
tico da história ta l como a escrevem os historiadores profissionais. Um terceiro tenho,
,1quele que preferi cm meu trabalho de d,1pa, é o de progra m é,. Ele convém perfeita-
m en te à caracterização da especificidade do projeto imanente ,1 cada uma das etapas
do percurso. É dotado, nesse se ntido, de um pri\·ilégio analítico relativamente às duas
putras denominaçôcs. É por isso que recorro a ele todas as \·ezcs que a ênfose reca i na
natureza das opernçôes e ncetadas em cacL1 nívl'l.
/\ Cv1Uv1()RI/\, /\ IIIST(JRI /\, O ESQUECIMENTO

A última palavra desta nota geral de orientação será d edicada ao termo historio-
grafia. Até uma época recente, ele desigm1va preferivelmente a investigação episte-
mológica tal como nós aqui a conduzimos segundo seu ritmo ternário. Como Certeau,
emprego-o para designar a própria operação em que consiste o conhecimento histórico
apreendido em ação. Essa escolha de vocabuléirio tem uma vantagem importante que
não aparece se se reserva essa denominação para a fase de escrita da operação, como
o sugere a própria composição da palavra: historiogra fia, ou escrita da história. Para
preservar a amplitude de uso do termo historiográfico, não chamo a terceira fase de
escrita da história, mas de fase literária ou escriturária, quando se trata do modo de ex-
pressão, fase representativa, quando se trata da exposição, do mostrar, da exibição da
intenção historiadora considerada na unidade de suas fases, a saber, a representação
presente das coisas ausentes do passado. A escrita, com efeito, é o patamar de lingua-
gem que o conhecimento histórico sempre já transpôs, ao se dis tanciar da memória
para viver a tripla aventura do arquivamento, da explicação e da representação. A
história é, do começo ao fim, escrita. A esse respeito, os arquivos constituem a primeira
escrita com a qual a história é confrontada, antes de consumar-se ela própria em escrita
no modo literário da escrituralidade. A explicação/compreensão encontra-se assim
enquadrada por duas escritas, uma escrita anterior e uma escrita posterior. Ela recolhe
a energia da primeira e antecipa a energia da segunda.
Mas é sobretudo a chegada à escritura do conhecimento his toriador que mana
da escrita prévia dos arquivos que suscita a questão de confiança à qual não se pode
dar uma resposta a partir do interior da epistemologia do conhecimento histórico, a
questão de saber qual é afinal a relação entre história e memória. É a questão de con-
fiança que uma filosofia crítica da história tem por tarefa, se não resolver, ao menos
articular e analisar. Mas ela é levantada enquanto originária pela entrada em escrita
do conhecimento historiador. Ela paira como o não-dito do empreendimento inteiro.
Para nós que sabemos o que virá a seguir, d e que a terceira parte desta obra tratará,
esse não-dito equivale a pôr em suspenso, a colocar em reserva, à maneira de uma
epokhe metodológica.
É para significar essa colocação em reserva, do modo m ais decididamente interro-
gativo, dubitativo, que escolhi como Prelúdio uma espécie de paródia do mito platô-
nico Fedro, dedicado à invenção da escrita. Com efeito, na medida em que o dom da
escrita é considerado pelo mito como o antídoto da memória, e portanto, como uma
espécie de desafio oposto pela pretensão de verdade da his tória à promessa d e confia-
bilidade da própria memória, ele pode ser considerad o como o paradigma de todos os
sonhos d e s ubstituição da m emória pela história, como o que encontra remos no início
da terceira parte. Assim, é para sublinhar a gravidade d e uma escolha cultural sem
volta, a da escrita da história, que e u me diverti à minha maneira, que foi primeiro a
de Platão, cm reinte rpretar, se não em reescrever, o mito do Fcdro de Platão, que conta
a história da escrita. A questão d e saber se o plwr111nko11 d a história-escri ta é remédio
ou veneno, para retomar uma das proposições do mito do Fcdro, não cessará de acom-
panhar em surdina a investigação epistemológica, antes d e explodir cm plena luz no
plano reflex ivo da filosofia crítica d a história.
HI S J(lR I ·\ / l l' ISTL \llll.llC I,\

Por que recorrer ao mito, mesmo à margem do texto principa l de uma análise
epistemológica altamente racional? Para fazer frente à apnriil na qual se perde toda
im·esti gc1ção tratando do nasci mento, dos primórdios, do princípio do conhecimento
histórico. Essa investigação perfeitamente legítima e à qual dc\·emos trabalhos con-
sideréÍ\'eis' repousa, n a medida cm que é ela própria histórica, sobre uma espécie de
contradição performati ,·a, a saber que essa escrita dos primórdios pressupõe a si mes-
ma como estando j,1 dada para pensar-se cm estado nascente. É preciso ent,10 dis-
ti ngu ir a origem do início. Pode-se procurar datar um início cm um tempo h istórico
escand ido pela crono logia. Esse início é tilh·ez impossível de ser encontrado, como o
sugerem as an tinomias articuladas por Kant na dialética da Crífirn da Rnzi'io Pum. Pode-
se certa me nte marcar algo como um início pcHa o tratamento crítico dos testemunhos,
1T1as n,10 se trata d e um início do modo de pensar histórico, se por isso se entende un-1a
tempora lização da experiência comum segundo um modo irredutÍ\·el à experiência da
memória, mesmo colcti\'a. Essa anterioridade inde terminán•I é a da inscrição, que, sob
uma ou outra forma, acompanhou desde sempre a ora lidade, como o demonstrou ma-
gistralmente Jacques Derrida em Cmnwtologia" Os homens espaçaram seus signos, ao
mesmo tempo - se isso tem algum sentid o - cm que os encadearam ao longo da con-
tinuidade temporal do fluxo verbal. É p or isso que é impossÍ\'Cl encon tra r o iníc io da
escriturai idade historiadora. O carélter circular da de te rminação d e um início histórico
para o conhecimento histórico convida a separar, no cerne do conceito a nfibológico de
nascimento, início e o ri gem. O início consiste e m uma constelação de acontecime ntos
datados, colocados p or um historiador à frente d e um processo his tórico que seria a
história da his tória. É em direção a esse início ou esses inícios que o historiador do nas-
cimento d a história remonta por meio de um movime nto retrospectivo que se produz
no meio já consti tuído do conhecimento histórico. A origem é outra coisa: ela designa
o surgimento d o ato de dis tanciamen to que torna possí\'el o empreendimento corno
um todo e, p ortanto, também seu início no tempo. Esse surgimento é sempre atual e,
portanto, está sempre dado. A história n ão pára de nascer do distancia mento cm que

'i Françtiis C hàt cll't, /_11 \!11 i,,1111t"c de /'l,i,;toirc, l\iris, Éd. dl' M inu it, 19/il; rccd ., F.d. du SL· uil , nil.
" J\iints Essil is", 1996. Ver A. Mom ig li a no, St11dic~ i11 lli.,toriosm1•h_11, Londres, 196'-J (Pm particulc1r:
"lhe p l,lCl' of Hl'rodot us in thc his tory of hi ..;tnr iogr.iphy ", pp. 127-U2 ). Fr,rnçois ll,1rtog, cm f_c
Alir,,ir d ' H,;rodolc. [~~11i ., 11r /11 rcpn\ c11 /11tio11 de /'aul rc (!'éiri s, C,11 1im.ird , col. " Bibl iotht:•quc cks hi s -
tni res", 1980, nm·.i l'd içZw, 1991), aponta no \ ocahu Jj ri o do "prl'f,icio " de He ró d oto a s ua pl' squ is ,1
a marc,1 da s uhstitui ç,io dll ,wdo pelo hi,;tii1· (pp. 11 ]-V III , 275-285). Onde Honwro invoca su a rel,1ç,io
pri\·ilegiada rum as l\1u s,1s ("Ca nta -nic, ó l\ lus a, o homem indu strio sn ... ", ()di~ ~ha, 1, IL lleníd\lto
SL' idl'ntifica na IL'rcc•ir,1 pt:ssoa, il si L' seu lu g,ir: " H l' ródoto de Türip e,púc ,1qui s uas pL'squi s,1s ";
Tucídides, d L'pL\i s dl'll', di r,í qul' "pôs p\lr l'scr itl>'' ,1 n.irrati\',l d,1 g uerr,1 l' ntrl' os pl'loponesiann s L'
t)S ak'niL'll Sl'S. É assim qul' t) n·nomL' (k/ci>., ) dns g rl'gos t' dos b,írb,irns, um,1 n .'/ "l'xpos to", Lkpois
" insc rito ", ser,i u m,1 "posscss.'1\l (k/(' 11111) p,1rn sem prl' ". Nfü1 SL'ri ,1 tod,1\· ia possín•l fa la r dl' um cnrtl'
franco e d din iti nl L' IÜl'l' o aedn e o hi s tori<1dor, nu , como SL' di1\1 mai s <1d i,1 11 tl', cntrl' ,l nr,1 lid adl'
L' ,1 escr ita. 1\ luta contr,1 l1 L'squecimcnt\l L' .i cultura do e logio, cm f.icL' d,1 \·i\llê nci,1 d,1 h ist1'1ri,1 ,
contr,1 um fundo de tra g0di,1, mobili n 1m tod,1s ,i s l' rwrg ia s d,1 dicç,10. Q u,1 11lt1,10 rompimen to cnm
\1 mi to, t•nqw1nh1 ,1contecinll'nto do pt'ns,1111L•nll\, l ; a imfa l'm tt• rmos d l' mito que e ll' podt> fala r d l'
s i nwsmo, i1 m,lllL'irn do nascimento d,1 t•so· itc1.
6 J,icques Dl·rrid,1 , D<' /11 gri1111111t1tulo:,; ic, l'<iris, ~d. dl' \linuit, col. "C r itiqm· ", JLJ67.
i\ Ml ·: M() Rli\, i\ IIIST(lRIJ\, O LS(JUFCIMENTO

consiste o recurso à exterioridade do rastro arquivai. É por isso que reen contramos s ua
marca nas inumeráveis modalidades de grafismo e inscrição que precedem os come-
ços do conhecimento histórico e do ofício de historiador. A origem, portanto, não é o
início. E a noção de nascimento dissimula sob sua anfibologia a diferença entre as duas
categorias de início e de origem.
É essa aporia do nascimento que justifica o uso platónico do mito: o início é his tó-
rico, a origem é mítica. Trata-se aí certamente da reutilização de uma forma d e discur-
so apropriada a todas as histórias de inícios que pressupõem a si mesmos, tais como
a criação do mundo, o nascimento de uma instituição ou a vocação de um profeta.
Reutili zado pelo filósofo, o mito se dá como mito, a título de iniciação e de suplemento
à dialética.
Prelúdio

A história: remédio ou veneno?

onta rei, à maneira do Fcdro de Pl atão, o nascimento mítico da escrita da his-

C tória. Que o mito d a origem da escrita possa, ao sabor da reescrita, soar como
um mito da origem da históri a, essa extensão é, se posso di zer, autorizada
pelo p róprio mito, na medida em que seu tema é o destin o da memória, mesmo que a
ironia seja nele dirigida, em prime iro grau, contra os "discursos escritos" d e orad ores
como Lísias. Além disso, h á outras im·ençôes miríficas: ari tmé ti ca, geom e tri a, mas
também o gamão e o s jogos de dados, que o mito compara à in\'enção da escrita. E não
se volta Pl atão contra s ua p rópria escrita, e le que escreveu e publicou s e u s diálogos?
Ora, é à m e mó ria \·crdad ei ra, à memória autêntica, qu e a im·enção da escrita e de
tod as as drogas aparentadas l; o posta como uma ameaça. De que maneira, en tão, o
debate entre a memória e a história não con stituiria o ass unto do mito?
Para dizê-lo ra pidame nte, o qu e m e fascinou, na esteira de Jacq ues Derrida 1, é a
a m big üidade insupcrá\·el que está assoc iada ao pham1ako11 que o deus oferece ao rei.
Perg unta: da escrita da his tória, também, nã o se d everia perguntar se e la é remédio
ou , ·enen o? Essa q uestão, tanto quanto a a nfibologia da noção de n ascime nto apl icada
à históri a, n ão mais nos deixará; e la ressurgir,í cm um outro Pre lúd io, colocada à fren-
te da terceira parte: a Seg unda Co11sidcraçiio /nf c111pcsti1.1a de N ietzsche.
Entremos n o mito : "Aqui está, ó rei, di z Thcuth, o saber que proporcionará aos
egípcios mais saber, mais ciê ncia e mais memó ria (11111t' 111011ikMero11s); da ciên cia (so-
phii1s) e da memóriê1 (1111/l' lllt' S) o remédi o (pharn1nko11) foi cncontrado" 2 (274c)! São os
gra111111ata que passam para o primeiro p la no das drogas oferecidas por aquele qu e
Theuth chama o "p a i dos caracte res da escrita ", o "pai dos g m11111111ta". Ora, não é a
historiografia, de certa form a, a h e rdeira da ars 111e111oriac, essa ITH.' múria ar t ificia l qu e
e\·oc<h·amos mais acima sob o título da m emorização e rigid ,1 em foça nha? E n ão é de

F n ll impu lso de Sl' ll ma g nifico L'll Sa io d l'd ic,1do ,1 " /.11 p'1,1m1,1c"Í!' d,· J>/,1/011" in La D i~~t;111i11 t1 / it111,
Paris, Éd . du Scui l , ((li. ""i"L-1 QuL·l ", 1972, pp . 6l)- JlJ7.
.\ d, ,to ,1 lr,1du .;,io d l' l..u c Br isson: l'l,Hn n, l'/1,·dr.- , l ',1ri s. 1-"l.1111111.iri,,,, , ü l l. ''C J:", IWN, ]lJ<J7.
A MFM l )RIA , A HI SH) RI A, () ES()U ECIML NTO

memorização, mais que de rememoração, no sentido de uma lembrança precisa de


acontecimentos passados, que se trata essa narrativa:i? O rei, de boa vontade, concede
ao deus o privilégio de engendrar a arte, mas reserva para si o de apreciar-lhe o que
chama o "prejuízo" e a "utilidade" - como o fará ma is tarde Nietzsche a respeito da
história na Scgwufn Co11sidcrnçiia J11tc111pestivn. E o que ele responde à oferta do deus?
"De fato, essa arte produzirá o esquecimento na alma daqueles que a tiverem apren-
dido, porque cessarão de exercer sua memória (llllll' llli's): com efeito, d epositando sua
confiança no escrito (gmpin's), será a partir de fora, graças a impressões do exterior
(t11põ11), e n ão a partir de dentro, graças a si mesmos, que praticarão a rememoração
(a1wmi111nesko111c110us); não é, portanto, da memória, m as da rememoração (lwpa111nescõs)
que tu encontraste o remédio (pf1t1r111ako11t" (275a). Os verbos e substantivos que gra-
vitam em torno da memória são importantes e diferentes : a oferta do deus é a oferta
de urna capacidade indivisa - a de ser "capaz de rememorar". Mas aquilo a que o rei
contrapõe o pretenso remédio é na verdade a remini scência (ana-) . E o que ele assume
sob os traços de um remédio não é a memória, mas uma /111pon111 ês is, uma memória so-
bressalente; a saber, uma técnica que oferece algo "certo" (saplies) e algo "sólido" a esses
ingénuos que crêem "serem os discursos escritos (logous gcgra111111c11011s) algo mais que
um meio de recordar (/wpo11111esai), àquele que já os conhece, as coisas tratadas nesse
escrito" (275c-d). Trata-se aqui, realmente, de memória sobressalente (proponho dizer
de memorização).
A narrativa continua seu curso: a escrita é rapidamente comparada à "pintura"
(zõgraphia) cujas obras imitam os "seres vivos" (hõs zônta ). Não deveríamos nos sur-
preender com essa comparação: ela havia se imposto durante a discussão a respeito
da impressão na cera;. Com efeito, da metáfora da impressão ha v ia-se passado à do
grafismo, outra variedade d e inscrição. Trata-se, porta nto, realmente, da inscrição, na
generalidade de s ua sig nificação. Resta que o parentesco com a pintura é percebido
como algo inquietante (dei11011, "terrível") (275d). Isso será suficientemente repetido ao
serem confrontados o quadro e a narrativa no nível propriamente literário da histo-
riogra fia : o quadro fa z acreditar na realidade, por força daquilo que Ro land Barthes
chama de "efeito de real"; o qual, como é bem conhecido, condena ao silêncio a crítica.
É o qu e acontece com os "discursos escritos": " Por mais que os interroguemos, eles
permanecem rígidos cm uma pose solene, e mantêm-se em silêncio". O não-pensa-
mento que os habita faz com que "seja uma coisa só aquilo que eles se contentam em

3 Sobrl' a continu idade t•ntre a h is toriografi a l' a ars 111c111ori11c, cf. Patrick H Hutton , f-lis/()ry as 1111 !1rt
()f Mc111ory, º1'· cit.
4 O con te xto e a coen'.:•ncia d t! idéi<1s s ugl'n·m que eu <1q u i me afaste de Luc Brisson, que trad uz
l111po11111cs is por "remcmoraçi'io"; prefiro traduzir essa palav ra p or "memorizaçi'i o", ou "lembrete".
Em Th1;al'lc, ·142 e 2-143 a 5, M. Narcy tradu z: "coloco por l'scrito [... J aquilo de que devo mele m-
brar", com u ma nota in teressanll' (op. cit., p. 306): " h11po11111c11111t11: litera lml'n te, suporte da memó-
ria". L<'.•on Robin tradu z como "notas".
5 Recordo, neste momL·n to, minha hipótese a respeito da p oli ssemia do r,1stro: o rastro enquanto
imprcssi'io material, o rastro como imprcs s,io afetiva e o rnstro como imp rcss iin documental. E, a
cada vez, como exterioridade.
l!I SH) RJ.\ / ll '! STF\Hll OCI,\

significar, sempre a mesma" (ihid.). Ora, onde o aspecto rcpetitin1 é mais ostentado, de
modo não problemático, do que nos escritos memorizados, decorados? O caso torna-
se ainda mais opressi,,o: escrito de umêl ,-ez por todas, o discurso est,í à procura de
um interlocutor qualquer - não se sabe a quem ele se dirige. É esse também o caso da
narrativa histórica escrita e publicada: ela é lançada ao vento; dirige-se, corno afirma
Gadamer da Schr(ftlichkcít - da escrituralidade -, a quem que r que sa iba ler. Vício
paralelo: questionada, ela não pode por si só "nem se defender, nem se sah·ar sozi-
nha" (275e) . É exatamente o caso do lino de história, como de todo livro: ele rorn.peu
as amarras com seu enunciador; aquilo que cu jcí chamei de autonomia semântica do
texto é aqui apresentado corno uma situação de desamparo; o socorro de que essa
autonomia o pri\'a só pode vir do traba lho interminável de contextualização e recon-
textuali zação em que consiste a leitura.
Mas e ntão, que garantias oferece o outro di scurso - "irmão do precedente e de
nascimento legítimo" (276a) -, o da verdadeira memória? "Aquele que, transm itindo
um saber, se escreve na alma do homem que aprende, aquele que é capaz de defender-
se sozinho, aquele que sabe diante de quem se deve falar e diante de quem é preciso
cala r." (íliid.). Esse discurso que defende a si mesmo diante de quem é preciso, é o
discurso da verdadeira memória, da memória feliz, segura de ser "do tempo" e de
poder ser compartilhada. Todavia, a oposição à escrita não é to tal. Os dois modos de
discurso continuam aparentados como irmãos, a despeito d e sua diferença de legi-
tin,idade; e, sobretudo, ambos são escrituras, inscrições. Mas é na alma que o verda-
d eiro discurso está inscrito''. É esse parentesco profundo que permite dizer que "o
discurso escrito é d e certa forma uma image m (cídôlo11 )" (276a), daquilo que na me-
mória viva é "vivo", "dotado d e uma alma", rico de "sei,·c1" (276a). A metáfora da \'ida
introduzida mais acima, com a pintura dos seres vivos, pode e ntão ser deslocada até
as terras do culti\'ador av isado que sabe semear, fa zer crescer c colher. Para a ,·erda-
dcira memória, a inscrição é semeadura, suas palavras \·erdadeiras são "sementes"
(:,;pa11wtn). Estamos, assim, autorizados a falar de escrita "viva", no caso dessa escrita
da alma e "desses jardins de caracteres escritos" (276d). Tal é, a despeito do parentesco
en tre logoi, a distância que separa a memória \'iva e o depósito morto. Essa rescn·a de
escrita no próprio seio da memória vi\·a permite encara r a escrita corno um ri sco a ser
e nfrentado : "Mas cada \'ez que ele lo 'agricultor'] escre\·er, sercí acumulando um te-
souro de rememorações para si mesmo, 'se algum dia atingir a csquec idiça \·clhice', e
para quem quer que siga a mesma pista, que ele se deleitM.:i em \ 'Cr brotar essas tenrns
culturas" (276d). O esquecimen to é um a segunda vez nomeado; ele era mais aci ma
indu zido pelo pretenso dom da escrita; é agora sofrido como um malefício da idade.
Mas ele não p resci nde de suas promessa s de d ivcrtimento. Não é então a luta contra
o esquecime nto que preserva o parentesco entre "o irmão abusinl e o irmão legítimo"?
E, perante o esquecimento, o jogo? Jogo bem-vindo para esses \'elhinhos que Nietzsche

h !'osso justiiicar essL' !1ll\' () rl'curso ,1 insniç<'H) SL'm a~w l,ir i\ rt•minisc('nc i,1 prnpriall1L'I1k pt1tC)ni(a,
co m a idéia de rastrll p s íquico, d e PL'l'SL'\'L'r,rn\·a d ,1 impressfüi ~,rinwir,1, da ,ifccç<'i o, do p11//1t 1, , cm
qul' cons is tl' o l'l'L'J1C1Hltro co m o ,1crnltl'ci fllL'lltt i.
A Ml: M (J I,J A, /\ III STÓR IA, O ESQU IT IMLNH J

atacará n a Segunda Co11sidcração J11tcl/lpestivn. Mas como é sério o jogo que anima os
discursos que têm por objeto a justiça e por m étodo a dialética! Jogo no qual se expe-
rimenta prazer, mas no qual igualmente se é tão feliz quanto pode sê-lo um homem:
o justo, com efeito, aí se vê coroado de beleza (277a)!
A tra n sição pelo esquecimento e pelo jogo é tão essencial que o diálogo consegue
e levar-se a outro nível, o <.fa dialética, no qual a oposição entre memória viva e depósi-
to morto se torna secundária. Saímos d a violência do mito, provocador até o exagero, e
adentramos a filosofia (278a). Os discursos, é claro, são "escritos na alma", mas leva m
socorro aos escritos que avalizam essa memória que não passa de uma memória-mu-
leta (lt11po11111esis).
O ca so de Lísias, alvo de Sócrates desde o início do düllogo, pode serv ir de pedra
de toque: a cen sura que dirige contra ele não é que ele escreva seu s discursos, mas
que estes pequem contra a arte; e a arte que lhe falta, é a das definições, das di visões,
da organi zação de discursos tão matizados como uma a lma multicor. Enquanto não
se conhecer "a verdade sobre cada uma das questões d as quais se fala e sobre as quais
se escreve" (277b), não se te rá o domínio do "gênero oratório" (to logõn genos) (277c)
considerado cm toda sua a mplitude, que engloba os escritos d e caráter político. O as-
sunto é, então, não somente epistemológico, na medida cm que o verdadeiro está em
causa, m as é tico e estético, na med ida em que a questão é chegar a um e ntendimento
sobre "as condições em que é belo ou feio (vergonhoso, niskhron) tanto pronunciar
como escrever discursos" (277d). Por que e ntão não teria o escrito a "grande solidez" e
a "grande ela reza" (ibid.) que o mito há pouco reservava à boa memória? Não é o caso
d as leis? A cen sura não cabe então ao escrito e nquanto tal, mas à relação do discurso
com o jus to e o injusto, com o mal e o bem. É cm relação a esse critério que os discur-
sos que "se escrevem na a lm<1 " p revalecem sobre todos os outros e que a estes resta
apenas dizer adeus (278a) ...
Esse adeus, também é dirigido ao phnrniakon do mito? É isso que não se diz. Não
sabemos se o di scurso filo sófico é capa z de conjurar a ambigüidade de um remédio do
qual nunca se sabe se é um benefício ou um veneno.
Qual seria o equivalente dessa situ ação indecisa para nossa tentativa de tra nspo-
sição do mito do Fedro para o plano d as relações entre memória viva e história escrita?
À espécie de reabilitação prudente da escrita e de esboço de reagrupamento fam iliar
entre o irmão basta rdo e o irmão leg ítimo no final do Fcdro corresponde ria, de nosso
lad o, um estágio no qual v iriam a coincidir perfeitamente, de um lado, uma memória
instruída, iluminada pela historiografia, de outro, um a his tória erudi ta habilitada a
reavivar a memória em declínio e assim, seg undo o desejo de Collingwood, de "rea-
tu alizar", de "re-efetuar" o passado. Mas não está esse desejo condenado a perma-
necer insatisfeito? Para que se realizasse, seria preciso exorci7..ar a su speita de que a
história continua a ser um dano para a memória, como o plrnrn111ko11 do mito, do qual
não se sabe afinal se é re méd io ou veneno, ou írn1bns. Daremos vá rias vezes a palavra
c1 essa irredutível dúvidc1.
1
Fase Docunzental:
a Memória Arquivada

Nota de orientação

O
pri111eiro cnpit11/o desta segunda parte t; dcdirndo à _fÍN' dorn111c11tal da opcmçiio
historiogrryica, c111 f 1111çfio da diziisi'io tripartitc das trm:fás proposta nci111a. Niio se
csqucccní q11c co 111 o tcmw Ji1sc }1(70 se tê111 e111 uista est1(1;it1s cro11ologica 111c11tc dis -
tintos d11 c111preitada, 11111s 11iucis de progm11111 q11e so111e11tc o 0!'111r dist1111ciado do epistc111ôlogo
disting ue. Essa .fi1.~c, con siderada isoladm11e11ft', aprcsc11t11-sc ela 111cs11u1 co1110 11111 percurso de
seu tidos cttjns etapas se prcsta111au,11111111iílisc discreta. O termi n us a quo 11i11d11l;11111c111ôria
11prcc11did11 c111 sc11 estrígio dcc/11mtiuo. O tcrminu s ad quem tc111 por nolllc n prorn dorn-
111e11t11/. Entre os dois c.rtrc1110s se dcsdo/,m 11111 i11tc,..i.'1 WJ hast1111tc ·uasto que scrrí cscrmdido da
scg11i11tc 11w11cim. Oisccrnirc111os i11icia/111c11te o dcsliga111e11to da histciria e111 rclaçiio à 111c111círit1
110 p/11110 _fiJm1t1l do espaço e do tc111po. /Jroc11 mrc111os 11111tito que pc>dc se r, q1umto à opcmçiio
historiogr~ficn, o cq11 ii: 1alc11tc d11s.fórn1tb é1 priori da c.rpcrh;11cia fois cc>1110 as dcten11i11a 11111a
Estdirn trn11sccndc11 t11! de estilo ka11tii1110: o q11c Z'l~,11 a se r 11111 tc111pc1 hi.~tórico e 11111 espaço
gcog ntfico, ft,7.,a11do-sc en1 conta s1111 i11díssociá1.•l'I artículaçiio ? (Scçi'io l, "O espaço lwl>ítt1do", e
scçâo I /, "O tempo histórico".)
/Jassa11do da fonna no co11fL'IÍdo, do espaço-tempo histórico às coisas ditas do passa-
do, 11co111p1mlrnrc11ws o 111oui111c11to gmças 110 qual 11 111cn1ári11 dcclt1mti1. •11 se cxtcriori: a 11c>

tcstcn11111!10; s11/ic11t11rc11rns toda 11 _f,Jrça do co111pm111isso da tcstc1111111/rn e111 seu tcsfc1111111/w


(scçi'io !li, "O fcste111u11/,()") . Dder-11os -c111os 110 1110111c11to dc1 i11scríçiio do teste1111111lll1 rccc -
l1ido por outrem: esse 11101uc11to e; aquele 110 1111a/ os co isas ditas c1scila 111 do c11111po dn ornlidt1dc
para o da cscrifn, que t1 J1istcíria dorm•1ml c 1uio 111ais deixará; t; t11111lit; 111 o do 1111sci111c1 1to dti

11rq11ii: u, coligido, co11scn.•11do, co11s11/tndo. Fm11q11c1uio 11 porta dos mquiz •os, o tc'stc11u11 1ill >
1

adc11 t m a : o,w crit irn 1111 qual está 11/i() apc11 ,1...; suicifo à co11fro11taç110 s1'1. 1cr11 c11trl' tc ·stc11w -
11/ios co11corrc11 tcs, 111as t11111ht;111 a/,son•ido e111 11111t1 11rnss11 de doc11111c11 tos, ne111 tod(ls eles
tcs tc111111Tl1os (scçi'io ! V, "O an711ivo '' ). Colot"cl/'-sc-tÍ c11ti'io a q11cstiio da 1. 111/idadc' do pn >í'a
doc11111c11t11/, primeiro co111po11c11tc da f'l'C> I'll c111 /1isl1iri11 (scçiio V, ";\ proz 111 doc11111c11t11/''J.
Co11sidcmdo à /11: do 111ito do Fcdro, o co11j 1111to dessas diligé11 cias denota 11111 tom de scg11-
m11ç11 q111111fo n lcg itilllidadc da co1~f i1111ç11 depositada ,w rnp11cidacit' d,1 historiogrr(fia de ,1111pliar,
A MIMÚRIA, A III SH ) l{I A, () FSQU FC IMENHl

corrigir e critirnr 11 111c111ôrin, e 11ssi111 de co111pc11snr s11as fraquezas 110 plano tanto cognitiuo
q11anto pmg111ático. A idéia co111 q11e 110s co11frontnrc111os no início dn terceira parte, seg1111do n
q11nl a memória poderia ser despojada de sua f 1111ção de matriz dn história para tonznr-se w11n
de suas prov f11cias, 11111 de sc11s objetos de est11do, e11co11tm co111 certeza ,rn confinnçn do histo-
riador qt1e "enfre11t11 o tmbn/110 d11ro", do historiador nos arquivos, s11a garantia mais segura. É
bo/11 que nssilll seja, no 111c1ws para desarmar os negacionistns dos grandes crimes, q11c devem
encontrar sua derrota nos arq11ivos. As razôes pam duvidar se farão fortes o s11ficicntc nos está-
gios seguintes d11 operação historiográfica para não comemorar n vitória sobre o arbitrário q11c
faz a glória do trabnllzo nos arq11ivos.
Scrrí preciso, co11t11do, não esquecer q11e tudo tl'III início não nos arquivos, 111as co111o tesfc-
nw11ho, e que, apesar da cari!11ci11 principiai de confiabilidndc do testcm11nlio, não temos nada
111ellior q11c o tcste1111111ho, e,n IÍlti11111 a,uílisc, para assegurar-nos de que algo aconteceu, a q11e
alguém atesta ter assistido pessoal11ic11te, e que o principal, se não às vezes o único rcct1rso, além
de 011tros tipos de docwncntação, continua a ser o co11fro11to entre tcstcn11111lzos.

I. O espaço habitado

O impulso dado à presente investigação pela retomada do mito do Fcdro nos leva
a organizar a reflexão em torno da noção de inscrição, cuja amplitude excede a da es-
crita cm seu sentido preciso de fixação das expressões orais do discurso num suporte
material. A idéia dominante é a de marcas exteriores adotadas como apoios e escalas
para o traba lho da memória. A fim de preservar a amplit ude da noção de inscrição,
serão consideradas inicialmente as condições formais da inscrição, a saber, as muta-
ções que afetam a espacia lidade e a temporalidade próprias da memória viva, tanto
coletiva como privada. Se a historiografia é inicialmente memória arquivada e se to-
das as operações cognitivas ulteriores recolhidas pela epistemologia do conhecimento
histórico procedem desse primeiro gesto de arquivamento, a mutação historiadora do
espaço e do tempo pode ser tida como a condição forma l de possibi lidade do gesto de
arquiva mento.
Pode-se reconhecer aqui uma situação paralela àquela que se encontra na origem
da Estéticn tm11 sce11dc11tal kantiana, associa ndo o destino do espaço ao do tempo: ao
passar da memória à historiografia, mudam de signo conjuntamente o espaço no qual
se deslocam os protagonistas de uma h istória narrada e o tempo no qual os aconte-
cimentos narrados se desenrolam. A declaração explícita da testemunha, cujo perfil
será abordado mais adiante, é bem expressiva: "Eu estava lá". O imperfeito gramatical
marca o tempo, ao passo que o advérbio marca o espaço. É em conjunto que o aqui e o
lá do espaço v ivido da percepção e da ação e o antes do tempo vivido da memória se
reencontram enquadrados em um sistema de lugares e datas do qual é eliminada are-
ferência ao aqui e ao agora absoluto da experiência viva. O fato de essa dupla mutação
poder ser correlacionada com é.1 posição da escrita relativamente à oralidade é confir-
IIIST(lRI·\ / Fl'ISTF\1()1_0(,I,\

mado pela constituição paralela de duas ciências, a geografia de um lado, secundada


pela técnica cartográfica (gosto de evocar a imponente Galeria dos Mapas do Museu
do Vaticano!), e do outro, a historiografia.
Escolhi, na esteira de Kant na Esti'tirn tm11:,;cc11dc11tal, abordar o par espaço/ tempo
pelo lado do espaço. O momento de exterioridade, comum a todas as "marcas exterio-
res" características da escrita segundo o mito do Fedro, encontra-se assim imediata-
nwnte sublinhado. Além disso, as alternâncias de continuidades e descontinuidades
que pontuam a mutação historiadora das duas formas 11 priori são aí mais fáceis de
decifrar.
De saída, temos a espacialidade corporal e ambiental inerente à evocação da lem-
brança. Para explid-la, opusemos a mundancidadc da memória a seu pólo de refle-
xividade1. As lembranças de ter morado em tal casa de tal cidade ou de ter viajado a
tal parte do mundo são particularmente eloqücntes e preciosas; elas tecem ao mesmo
tempo uma memória íntima e uma memória compartilhada entre pessoas próximas:
nessas lembranças tipos, o espaço corporal é de imediato vinculado ao espaço doam-
biente, fragmento da terra habitável, com suas trilhas mais ou menos praticáveis, seus
obstáculos variadamente transponíveis; é "árduo", teriam dito os Medievais, nosso
relacionamento com o espaço aberto à prática tanto quanto à percepção.
Da memória compartilhada passa-se grada.tiva mente à memória coletiva e a suas
comemorações ligadas a lugares consagrados pela tradição: foi por ocasião dessas
experiências vívidas que fora introduzida a noção de lugar de memória, anterior às
expressões e às fixações que fizeram a fortuna ulterior dessa expressão.
O primeiro marco na via da espacialidade que a geografia põe em paralelo com
a temporalidade da história é aquele proposto por uma fenomenologia do "local" ou
do "lugar"*. Devemos a primeira a E. Cascy, a quem jéi havíamos tomado de emprés-
timo importantes anotações referentes prec isamente à mundancidade do fenómeno
mnemônicd. Embora o título escolhido sugira alguma nostalgia desejosa de "repor as
coisas em seus lugares", trata-se de toda uma aventura de um ser de carne e osso que,
como Ulisses, está tão completamente em seu lugar junto aos sítios visitados quanto
no retorno a Ítaca. A errfü1cia do nm·egador não clama menos por seus direitos que a
residência do sedentário. Claro, meu lugar é ali onde está meu corpo. Mas colocar-se
e deslocar-se são atividades primordiais que fazem do lugar algo a ser buscado. Seria

Cf. ,icim<1, priml'ira parte, cap. 1.


No original o autor us,1 "pl,1ce" e "lieu". O;; dois iur,1111 tradu 1. icfos por " lugar " em po rtugul'S, a
não SL'r quando apareciam na mesma frase, por ;;er mais preciso. Perdeu-se assim o jogo de sign i-
ficantes entrl' " pl,icc" (lug,u), "ernplacl'nwnt ", "dt.:•placer" "dl.'.•placl'ment ", etc. e sobretudo ''place"
(praç,1"), mais ,1baixo. (N. do T.)
2 Ed\1·,ud S. CasL·1·, Cctt i11:,; B,1L'k 111/0 l'/11u·. Tl'ii'tlrd il l./.c11c,ccd L/11dcr., t,111di11:,; ,,(tire Plt1L<'-World, Bloom -
ington l' lndianapolis, Indiana UniH·rsity l'ress, )lJln . Ess,1 ob ra 0 a terceira de uma tri logia q ue
rl'LIIW /fr111,·111/,cri11g l' /11111:,;1 11i11.1;. Com respl'ito ,1 noss us ernpr0stinrns de /~ 1·111('111/,ai11;.: , ci. ,1cim,1,
primei r,1 p<1rk, pp. :i-t-:i7 L' p . 60. "Sl' ai magi n,1ç ,1(1, nota l. Casei·, nos pfll jl'ta 11/c>111 dL' rn·1s cnqu,rnto
qul' a memória nos Tl'Condu1. p11m trti, dL' n(l'> , ll lug,ir nos ap(1i,1 L' nus ,1mbienta , pl'rm,lnl'CL'lld ll
c111 /1oixo e c111 / (l J'll t' de rn\s " (prefocio, p. XV 11 l
A MFM()RIA, 1\ HIST(lRI,\, O FS()Ul·T l f'vffNTO

assustador não encontrar nenhum. Seríamos nós mesmos devastados. A inquietante


estranheza - U11/zci111licl!kcit - ligada ao sentimento de não estar em seu lugar mes-
mo em sua própria casa nos assombra, e isso seria o reinado do vazio. Mas existe
urna questão do lugar porque o espaço tampouco está cheio, saturado. Para dizer a
verdade, é sempre possível, e freqüentemente urgente, deslocar-se, com o risco de ser
esse passageiro, esse caminheiro, esse passeador, esse errante que a cultura contem-
porânea estilhaçada põe cm movimento e ao mesmo tempo paralisa.
A investigação sobre o que significa "lugar" encontra apoio na linguagem co-
mum que conhece expressôes como localização e deslocamento, expressões que
costumam vir em pares. Elas falam de experiências vivas do corpo próprio, que pe-
dem para ser enunciadas em um discurso anterior ao espaço euclidiano, cartesiano,
newtoniano, como insiste Merleau-Ponty em Fcno111c110/ogia da pcrccpçâo. O corpo,
esse aqui absoluto, é o ponto de referência do acolá, próximo ou distante, do incluí-
do e do excluído, do alto e do baixo, da direita e da esquerda, do à frente e do atrás,
e de outras tantas dimensões assimétricas que articulam uma tipologia corporal
não desprovida de algumas valorações éticas, ao menos implícitas, por exemplo, a
da altura ou a do lado direito. A essas dimensões corporais juntam-se de um lado
posturas privilegiadas - em pé, deitado - , ponderações - gravidade, leveza-,
orientações para diante, para trás, de lado, todas elas determinaçôes suscetíveis de
valores opostos: o homem atuante, corno homem cm pé, o doente e também o aman-
te na posição deitada, a alegria que soergue e eleva, a tristeza e a melancolia que
abatem, etc. É sobre essas alternâncias de repouso e de movimento que se enxerta o
ato de habitar, o qual tem suas próprias polaridades: residir e deslocar-se, abrigar-se
sob um teto, franquear um umbral e sair para o exterior. Pensa-se aqui na explora-
ção da casa, do porão ao sótão, na Poéticn do espaço de G. Bachelard.
Para dizer a verdade, os deslocamentos do corpo e mesmo a sua manutenção
no lugar não se deixam nem dizer, nem pensar, nem sequer, no limite, experi-
mentar, sem alguma referência, ao menos alusiva, aos pontos, linhas, superfícies,
volumes, distâncias, inscritos em um espaço destacado da referência ao aqui e
ao acolá inerentes ao corpo próprio. Entre o espaço vivido do corpo próprio e do
ambiente e o espaço público intercala-se o espaço geométrico. Com relação a este,
não há mais lugares privilegiados, mas locais quaisquer. É nos confins do espaço
vivido e do espaço geométrico que se situa o ato de habitar. Ora, o ato de habitar
não se estabelece senão p elo ato de construir. Portanto, é a arquitetura que tra z à
luz a notável composição que formam cm conjunto o espaço geométrico e o espaço
d esdobrado pela condição corpórea. A correlação entre habitar e construir pro-
duz-se assim num terceiro espaço - se quisermos adotar um conceito paralelo ao
de terceiro te mpo, que proponho para o tempo da história, cm que as localizações
espaciais corresponderiam às datas do calendário. Esse terceiro espaço pode ser
inte rpretado tanto como um quadriculado geométrico do espaço vivido, aquele
dos "locais", quanto como uma superposição de "locais" sobre a grade das locali-
ciades quaisquer.
lll ~T()R I ·\ / l l' lc; J 1 \ltlUlCI ,\

Quanto ao ato de construir, considerado como uma operação distinta, ele fa z


prevalecer um tipo de inteligibilidade de mesmo nível que aquele que caracteriza
a config uração do tempo pela composição do enredo~. Entre o tempo "narrado" e o
es paço "construído", as analogias e as interferências abundam. Nem um nem out ro
se reduzem a frações do tempo uni,·ersal e do espaço dos geômetras. Mas eles tam -
pouco lhes opõem urna alte rnati va franca. O a to de config uração intervém de uma e
outra parte no ponto de ruptura e de sutura dos doi s ní,·cis de apreens ão: o espaço
construído é també1T1 espaço geométrico, mensurá\'el e ca lculá,·el; sua qualificação
como lugar de \'ida superpôc-se e se entremeia a sua s propriedades geométricas, da
mesma forma como o tempo narrado tece cm conjunto o tempo cósmi co e o tempo
fenomenológico. Seja ele espaço de fixação no qual permanecer, ou espaço de circu -
lação a percorrer, o espaço construído consiste cm um sistema de sítios para as intc-
raçôes m a is importan tes d a vida. Narrati,·a e construção operam um mesmo tipo
de in scrição, uma na duração, a outr21 na dureza do materia l. Cada nm·o edifício
in screve-se no espaço urbano corno uma narrativa em um meio d e inte rtextualidade.
A nar ra ti v idade impreg na mais direta mente ainda o ato arquitetura l na medida em
que este se determina em relação com uma tradição estabelecida e se arrisca a fazer
com que se alternem renovação e repetição. É na escala do urbanismo que melhor
se percebe o trabalho do tempo no espaço. U1T1a cid ade confronta no mesmo espaço
época s diferentes, oferecendo ao olhar uma histó ria scdimentada dos gostos e d as
formas culturais. A cid ade se d á ao mesmo te mpo a ver e a ler. O tempo narrado e o
espaço habitado estão nela mais estreitarncnte associados do que no ed ifício isolado.
A cidade também susc ita paixões mai s complexas que a casa, na medida eIT1. que
oferece um espaço de d esloca mento, de aproxi mação e d e di s tancia mento. É possí-
,·el a li sentir-se ex tra ,·iad o, errante, perdido, enquanto que seus espaços públicos,
sua s praças, justamente denominadas, convidam às comem orações e às reuniôes
ritu alizadas.
É nesse ponto que as reflexões finais de E. Cascy readquirem , ·igor4 . A atração da na-
tureza selvagem sa i fortalecida da oposição entre o construído e o não-construído, entre

., Em "Arc hitec ture c t n arrati,·ité", C11t11/og11c de la f\,lo~tm "/dt·11tihz ,, Dizfác11 : I'", Tr icnnalc dl' Mil,rn ,
199-l, eu hil\' Íil tl' n t,1 d,, trans pl>r p.iril o p la 11l) ilrqu itl'tur.il ,h c,1 tq~ori.is lig,1d a s à tripl a 111i111c~i.,
L' xpos tas L'tn Tc111po <' Nor r11t i,•11, t. l, op. t"it .. p retig u raç,io, con iigurnçZl o, rdiguração. Eu apo nt,1, ·,1 no
,itn de h abitar a p r l'iigur,1çc10 do ato ,1rq ui tt'tu ra l, na m e dida L'lll quL' a nL'CL'ss id ,1dl' de ,,brigo L' dl'
L·i rc ulaçi\o dt'Sl'nha L) e'.->paço inte rior d ,1 111or,1dia L' o s inten·.i los d,1dos ,1 fX' í COITL' I". Por suc1 n 'Z, ()
ato dL' cons tr ui r SL' d ,í co mo o l:'q ui vail'ntl' l'Spacia l d ,1 coniig u r,1 çZ10 narr,iti,·a pur n1111posiç,10 dll
l'l1rl'd o ; d.i n arr,1ti,·a ao t>d ifício, é él nw s m,1 in tL'nção d e Cllt' n:'ncia in tc> rn.i qul' anima a in tt' ligC>n c i,1
do na rrndor L' do c onstrutor. E n fi m , o h ,1bi ta r, rPstilta nk do n instru ir, l'ra tido p e lo cqu i, akntL' d ,1
" rl'iigur,H;iio'' qul', n,1 ordem da n,11-r,1ti,·a , prod u i'.-SL' n,1 il'itu r.i : o nwr,1d or, corno o ll'itor, ,,collw
() cnn s tru ir co m '.->u,1s L'X pcctati,·a s l ' t,11nbt"·m s u ,1s rL·s is ti'·nc ias L' su<1s contl's t,1çôl's. Fu umc lu í,1 ti
L'll sa io com um cl<)g io da itiner,1nc i,1 .
-1 C,1St'\' n.'ío ig nor,1 llS pmblc111,1s n1lt>c,1d()S PL'i ,1 ,1rqu itl't ur,1 . To da,·i,1, nos c 1pítulos intitul ,1dl1~
" Bu i lding s ill''.-> ,rnd n ilt i, ,1ting pl ,1n's" (C.lSL'Y, Cc·tting Hnd, i11/t> l'/,1(<', op. t'il., pp. l -l6-18 1), a L'n-
i,1SL' H'G1i m ,1i s 11,1 J-'L'lll'traç,10 do mund\l n ,1tu1·,1J n ,1 l'Xpl'rÍt'tK i,1 d l1s " ll)C,li'.-> Cl)ll'.->lruídus J-'L'l ,1s
m ,1rg en s". A Cl'rC,l dn e difíc io L' C<Hbickr,1d ,1 ( ()l llt> <'Stilnch, l'lll l"L' i,1ç,i<1 con1 S l'LI L' ntor n n; \ l S m o-
A M1~1ÓRIA, A IIIST(>RI/\, O ES(.)ULCIMl·:NH>

a arquitetura e a natureza. Esta não se deixa marginaliza r. A soberba do civilizado não


poderia abolir o primado dos locais selvagens (wildemess); a experiência, que se tornou
lendc:íria, dos primeiros colonos americanos, entregues às duas experiências traumáti-
cas do desenraizamento e da desolação, retorna com força junto com os humores sinis-
tros de cidadãos desenraizados em suas casas e que o campo e suas paisagens não mais
reconfortam. Só pode asselvajar-se impunemente (going wild in the Land) quem, como E.
Casey, aspira à doçura da casa, à estabilidade do lar, deixando sempre uma saída para a
U11/Jei111lichkeit de um campo que permaneceu selvagem, de uma paisagem amigável se-
gundo a disposição do sábio norte-americano Thoreau em Wildn1. Mas também temos
na França Ou Bellay e seu "pequeno Liré"...
Essas observaçôes circunstanciais não deveriam ofuscar a lição permanente da
Odisséia, essa narrativa que tece em conjunto os acontecimentos e locais, essa epopéia
que celebra tzmto os e pisódios e as estadas quanto o retorno indefinidamente retarda-
do, esse retorno a Ítaca que supostamente irá "repor as coisas em seus lugares". Joyce,
lembra Casey, escreveu nos estudos preparatórios de seu Ulisses: "Topical History:
Places Remcrnber Events" (Rcmc111bcri11g, p. 277).

Mas, para dar ao tempo da história um contraponto espacial digno de uma ciência
humana, é preciso elevar-se um grau acima na escala da racionalização do lugar. É
preciso proceder do espaço construído da arquitetura à terra habitada da geografia.
Que a geografia constitui, na ordem d as ciências humanas, o correspondente exato
da história, ainda é dizer pouco. Na França, a geografia começou por antecipar certas
conversões metodológicas da história que nos ocuparão ulteriormente'. Vida l de La
Biache foi, com efeito, o primeiro, antes d e Martonne, a reagir contra o positivismo da
hi stória historicizante e a valorizar as noções de " meio", "modo de vida", "cotidiani-
dade". Sua ciência é uma geografia no sentido de que seu objeto é, antes de tudo, "lu-
gares", "paisagens", "efeitos visíveis, na superfície terrestre, dos diversos fenômenos
naturais e humanos" (F. Dosse, L'Histoire cn 111iettcs, p. 24). O lado geométrico da expe-
riência do espaço é visualizado pela cartografia, cuja m arca reencontraremos qua ndo
tratarmos dos jogos de escalas". O lado humano é marcado pelos conceitos de origem
biológica, célula, tecido, organismo.

nurncntos SL' d estacam con tra um fundo dL' dL'marcaçiio. O sítio L' o ed ifíci o levam ad ia nte sua
competiçiio. Essa abordagem assL'gura aos jardins t' aos espaços cultivados uma justa apreciaçiio
que a ;itenção exclusiva dirigida ;ios caste los e aos edi fícios menos prestigiosos tende a ocultar.
Em compcnsaçi'\o, ela niio faz jus aos problemas es pecíficos colocados pela íl rte de construir e m
s ua abon.f agem dominada mais pela oposiçJo t•ntre loca I e espaço do que por seu entrelaçamento,
que cu intl' rprcto, de m inha pa rte, com bílse no moddo do entrelaçamento do tempo cósm ico e do
tempo fenonwnolúg ico.
5 Tomo emprestadas as ohscrvaçties seguintes a Fr,1nçois Dosse em L'/-/i~toirc c11 111icttcs. Dcs "/\1111t1-
lcs" 11 /11 1H111, 1cl/c /1istoirc, l'aris, La Uécouvcrtl', 1987; rel'd ., l'ockct, col. Agora, 1997. Ll'i a-se a nova
cdiçiio e o prd;ício inúiito, 1997. Sobre a influê ncia da geografia, d. pp 23-24, 72-77, 128-138 nessa
última edição.
6 Cf. adia ntl', pp. 220-227.
III ST(JRI .·\ / F l ' ISTI \lllL()Cli\

O que pode ter intluenci,1do a história dos A111rnlc~ é, por um lado, él ênfase dada
às permanências, representadas pelas estruturas estáve is da s pai sagen s, por outro
lado, a preferênciél pela d escrição expressa no florescimento d as monografias regio-
nai s. Esse apego ao territó rio, principa lmente à paisagem rural, e o gosto pe las perma-
nências encontrarão na escola dos A111111/c~ m él is que um eco, com a promoção de uma
\·erdadeira geopolítica na qual se casam a estabilidade das pa isagens e a quase-imobi-
lid ad e da longa duração. O espaço, gos tar,í. de di zer Braudel, torna mais lenta a dura-
ção. Esses espaços são alternativamente os das regiões e os d os mares e oceanos : " Eu
amei apaixonadamente o Mediterrâneo", dec lara Braudel em s u a grande obra, d a qLléll
o Mediterrâ neo é ao mesmo tempo o síti o e o herói. Como L. Febne esc reveu a F Bra u-
dcl: "Entre e sses doi s protagoni stas, Philippe e o m a r Interior, a dis puta é d esigua l"
(citado em L'Hi~toire c11 nziettc~, p. 129). Com respeito à questão que d esencad eou as
obser \'açôes p recedentes, a do d esliga me nto do espaço dos geógrafos e dos historia-
dores e m relação ao espaço da experiên cia Yiva, ancorada p o r sua vez na exte nsão do
corpo e de seu ambiente, não se deve \'a lori z ar exc lusivame nte a ruptura, E\'oca m os
mais ac ima o esquema de uma alternâ ncia d e rupturas, d e suturn s e de retomadas em
um nÍ\·el supe rior das de terminações que d e p ende m do pla no existen c ia l. A geog ra-
fia não é a geometria, n a m edida em que a terra circundada d e oceanos é uma terra
habit,1da. É por isso q ue os geógrafos da L'scola de Viciai de La Biache fal a m dela como
d e um m e io. Ora, o meio, aprende mos com Canguilhem, é o p ó lo d e um d ebate - de
uma A11~1'inandcr~L'f:11ng - do qual o ser ,·i,·o cons titui o outro pólci. A esse respeito,
o possibilismo de Vida ! de La Biache antecipa-se à dialé tica de um Von Uex küll e de
um Kurt C old s tein, E, se na geo-histó ria de Braud e l o meio e o espaço são considera-
dos te rmos equi,·a lentes, o me io permanece um meio d e , ·id ,1 e de c iv ili zação: " Uma
ci\·ilização é e m sua base um espaço traba lhado pelo h omem e pela his tória", lê-se em
J_ a MMítcrnmfr ct /e Monde 111éditcrmn fr/l 11 f'éJJoq11c de Plzilippc II '; e a inda : "Um a civ ili-
zaçi'io, o que é senão o estabe lecimento a ntigo d e certa humanid ad e e m certo espaço?"
(Citado cm L'Histoirc e11 ,nicttes, p. 131.) É esse 1nisto de clima e de c ultu ra que fa z a
geo-história, a qual por sua vez determina os outros ní\·eis de civili zação, segu ndo
m odalidades de e ncadea m e nto que serão discutidas no p róx imo capítulo. O ol ha r
d a geopolítica pode ser consid erado corno " mais esp ac ial que temporal " (L' Hi~toirc
cn n1icttcs, p. 132); m as isso com rel ação ao níve l ins tituc iona l e dos acontecin,entos,
que é aquele das carnadas empilhadas sobre o solo geográfico e por su a vez sujeitas a
estruturas d e natureza te m pora l. Eu h a\·ia o bservado, e m minha te ntati\·a d e renar-
ra ti v iza r o grande lino d e Bra ude l e lê-lo como a g rande tra m a d e O Mcditcrrâ11co .. .,
que sua prime ira pmte, d a qual o espaço s uposta m ente con stituí o tem a, é u m espaço
ptwoado. O p róprio Mediterrâneo é o m ar In ter ior, um m ar e ntre as terras h ab itadas

1 G, C anguillwm , '' Ll' ,·i, ,111t l't so n milil' u ", in /,,1 Co1111,1i~~ 111 1t'<' de /11 ,'ÍL', op . ci f. , pp. 129-l:i-l.
8 FL'rnand l3rauc1PI, f_ a i\1M iferr1111t\• l'I li' Alu11d1' 111t;dit1·rr11 11t;e11 ,i / 't :)',1q11t· de l'/rilippc li, ;\rm ,md Clllin,
19-l9, Duils rL·,·isti l's impor ta nk'S fl,r,1m re,1 li zada s a tC• a q uarta l'diç..iu d l' F/79.
1\ M FM0R l i\, !\ III ST(W IA, (l FSQ U LCIMl' N Tll

ou inabitáveis, acol hcdoras ou inóspitas. O espaço é o meio de i nscrição déls osci lélçôes
mais lentéls que él históri a conhece 9 •
Considerações semelhantes são evocadas pela outra gra nde obra d e Braudel, Ci-
z,i/isatio11 11wtéricl/c 111 : o que se sucede no tempo, são "economi éls-mundo" inscritas no
espaço, mas articuladas entre lugares qua lificados pela atividade hum él na e distri-
buídas cm círculos concêntricos cujos centros se deslocam segundo os p eríodos. Essa
"geografia diferencial" (L'Histoirc c11111icttcs, p. 151) jélmais d eixa o espaço sem a marca
dos jogos d e troca que amarram uma economia a uma geografia e distinguem esta
ültima de uma simples geometria.
Em conclusão, da fenomenologia dos "loca is" que seres d e ca rne e osso ocupam,
abandon<1m, perd em, reencontram - pa ssando pela inteligibilidade própria d a ar-
quitetura - , até a geogr<1fi<1 que d escreve um espaço ht1bitado, o di scurso do espa-
ço traçou ele ta mbé m um percurso ao sabor do qual o espaço v ivido é al ternad<1-
mente abolido pelo espaço geométrico e reconstruído no nível hipe rgeométrico da
oiko11111c11c 11 .

II. O tempo histórico

À dialética do espaço v ivido, do espaço geomé trico e d o espaço h abitad o, cor-


responde uma dialética semelhante do tempo v iv ido, do tempo cósmico e do tempo
hi stórico. Ao mome nto crítico dt1 loca lização na ordem d o espaço corres ponde o da
datação na ordem do tempo.

9 Perm ito-me cit.1 r m inha s obsl'rv.1çües de e n tno sobre a pri m eira parte d e L11 Méditcrm11fr ... : "O
homem a li está presente cm toda parte t' com e le um fervi lh a r d l' acon teci me n tos sintomáticos: a
montnnha fi g ura aí como refú g io e como abrigl1 pa r,1 hom l'ns liv rl'S . Q ua n to às p l.1n ícil'S co s tei rns,
el as nno são e vornda s sem il coloni zação, o trnbalho de drenagem, o rnclhorn m c nto das terras,
a di s sem inação d.1s popu laçües, o s deslocame n tos d e toda es pécie: tran s um â ncia, nomadismo,
invasi'ío. Eis ag ora os m.1rcs, SL'U S litorais e suas ilh.1 s: l' .1 in d.1 n.1 csc.ila dos homen s e de s ua na-
vegação que e les figuram nessa geo-história . Eles estão a li para s e rem d escobe rtos, e xplorados,
s ingrados . É impossível, nwsmo no primC'iro n ível, fala r dclt•s sem evocar as relações de domina-
ção cconômico-políticas (Veneza, Cênova, etc.). O s grnnd t•s co nfli tos entre os impérios espanhol
e turco lançam sua SLlmbra sobre ilS p aisagen s marítimíl s e, com su ns rclaçücs de força, ind icam
já os acontecimen tos. É a ssim que o segundo níve l é não somente implicado, m as a ntecipado pelo
primeiro: a gco -hi stóriíl muda-se rapidamente cm geo-políticíl" (P. Ricteur, Tc111p., l'I /<. fr it, t. 1, op.
cit., pp. 367-368).
10 Fl'rnand Rraud el, Ciui/i:;11tio11 11111/h icl/1·, Écu110111 ic ct C11pita/i:;111c, xv·-XVlll" s iccle, 3 vol., Paris, A r-
mand Colin, 1979.
J'I l'oderíarnos prossl'guir nessa o di ss éia do l'Spaço a ltern ada mente viv ido, cons truído, percorrid o,
ha bitado, com uma 011tologi11 do " lugar ", do mesmo nível qut' ,1 ontologia d a " historicid,1dc" que
ser,1 considerad.i na te rceir.i parte desta obra. Cf. a cole tâ nea de ensaios de Pasca l Amp hou x e t
ai., Lc Sc11s d11 fie11, Paris, Ousia, 1996 - e A. lk rque e P. Nys (dir.), Logiq11c d11 lil'll ct a:111,rc ln1111ni11c,
Paris, O u s iíl , 1997.
IIISHll{I.-\ / 1 l'IS1 F\Hllll(,li\

Não volta.rei à an,í.lise do tempo calend,irico de Tc111po e Nllrmtiz>ll 12. Meu propósito,
hoje, é diferente, na medida em que me importa menos a conciliaçt'io e ntre a perspec-
tiva fenomenológica e a pcrspectiva cosmológica sobre o tempo do que a transiçiio da
memória viva à posição "extrínseca" do conhecimento histórico. É então como uma
das condições formais d e possibilidad e da ope ração his toriogrMiec1 que retorna a no-
ção de terceiro tempo.
Limito-me a rccordM a definição que dá Benveni s te do "tempo c rónico", que eu
chamava terceiro ternpo por conta das necessidades de meu argumento: 1) referência
de todos os acontecimentos a um acontecinwnto fundador que define o eixo do tem-
po; 2) possibilidade de percorrer os inten·alos de tempo segundo as duas direções
opostas da anterioridade e da posteridade com relação à data zero; 3) constituição de
um repertório d e unidades que serve,n para d e nominar os inte n ·alos recorre ntes: dia,
mês, ano, etc.
É essa constituição que importa agora rel ac ionar com a mutação historiadora d o
tempo da memória. Em certo sentido, a datação, enquanto fcnômeno de inscrição,
não é desprovida de dnculos com uma c,1pacidade para a d,1tação, com uma data-
bilidade origin,1ria, inerente à experiência \' i\·a e, singularmente, ao sentimento de
distanciamento do passado e à apreciação da prnfundidadc temporal. Aristóteles em
De 111c111orit1 ct rc111i11i~cc11ti11 press upõe que simultaneidade e sucessão caracteriz,1m de
forma primitiva as relações entre acontecimentos rememorados; do contr.irio, seria
impossível, no trabalho de recordação, escolher um ponto de partida para rt•cons-
truir encadeamentos. Esse carélter primitin) do sentimento dos intervalos resulta da
rcl,1çào que o tempo mantém com o mm·imento: se o tempo é "a lguma coi sa do mo\·i-
mento", é preciso uma alma pMa distinguir dois insta ntes, relacioná-los um ao outro
como o anterior ao posterior, apreciar sua diferença (/1ctcro11) e medir os intervalos (to
111ct11.rn), operações graças às quais o tempo pode ser definido como "o número do mo-
\·imento segundo o anterior-poste rior" (Fí~irn, IV, 11-219b). Quanto a Santo Agostinho,
embora hostil a toda subordinação do tempo ao movimento físico, ele admira como
retórico o poder que tem a alma de medir cm si mesma as extensões de tempo, e assim
comparar, no plano d a dicção, sílabas brc\·es e longas. Para Kant, a noção de ex tensão
temporal não apresenta dificuldades. Ela não resulta de um,1 comparação seg unda ,
en~ntualme ntc inde\'id,1, com a extensão espacial, porém a precede e a torn a possí\·el.
Hu sserl considera as relações de tempo relati\',1S à duração como a-prioris indissoci,1-
\'eis da s "apreensões" imanentes à ex periência íntima do te mpo. Enfim , o próprio
Bergson, o p e nsador da duração, não dm·ida que na le mbrança pura o aconteci mento
e\·ocado retorna com sua data. Para todos eles, a extensão parece um fato primiti\·o,
como o atestam na lingu agem as pe rgunta s "qu ,1 ndo?", " h,i quanto te mpo?", "durante
quanto tempo?", que pe rtence m ao n,esmo pl a no semântico que o discurso da me rn ó-
ria declarativa e do teste munho; à declaração "eu esta\',l lá" ac rescenta-se a afirmação
"isso aconteceu ·,1ntes', 'enquanto', 'd e pois', 'desde', 'durante tc1 nto tem po"'.

12 Ver I'. Ricn.' u r, T,,111p~ ct l~à'it, t. l 11, 011. ,il., pp. l 90- 1Y8 ( <1 pag i naç,i P cit,, dil é ,1 d a rn•d iç.'w dL' 199 1)
/\ MEM(lRIA, A IIIST(lRI/\, O LSQUECIMENTO

Dito isso, a contribuição do tempo calendé'írico consiste cm uma modalidade pro-


priamente temporal de inscrição, a saber, um sistema de datas extrínsecas aos acon-
tecimentos. Assim como no espaço geográfico os lugares referidos ao aqui absoluto
do corpo próprio e do ambiente se tornam locais quaisquer que se deixa m inscrever
entre os sítios cujo plano é desenhado pela cartografia, também o momento presente
com seu agora absoluto torna-se urna data qualquer entre todas aquelas cujo ca lendá-
rio permite o cálculo exato no â mbito deste ou daquele sistema calendárico aceito por
uma parte mais ou menos extensa da humanidade. No que concerne particularmente
ao tempo da memória, o "outrora" do passado rememorado inscreve-se doravante no
interior do "antes que" do passado datado; simetricamente, o "mais tarde" da espera
torna-se o "no momento em que", marcando a coincidência de um acontecimento es-
perado com a grade das datas por vir. Todas as coincidências notáveis referem-se em
última instância àquelas, no tempo crônico, entre um acontecimento social e uma con-
figuração cósmi.c a do tipo astral. Nas pág inas dedicadas ma is acima à nrs 111011orine,
pudemos medir a extensão da incrível exploração desses cálculos realizada por espí-
ritos s utis a serviço de um sonho insensato de domínio sobre os destinos humanosu.
Esse tempo das façanhas da memorização sapiente não é mais o nosso, mas muitos
aspectos da vida em comum continuam regidos por esse cálculo das conjunções data-
das. As distinções familiares aos economistas, sociólogos, cientistas políticos, sem fa-
lar dos historiadores, entre curto prazo, méd io prazo, longo prazo, ciclo, período etc.,
distinções às quais retornaremos, inscrevem-se todas no mesmo tempo calendárico
no qual se deixam medir os intervalos entre acontecimentos datados. A própria brevi-
dade da vida humana recorta-se sobre a imensidão do tempo crónico indefinido.
Por sua vez, o tempo calendárico destaca-se numa seqüência escalonada de re-
presentações do tempo que não se reduzem mais que ele próprio ao tempo vivido
segundo a fenomenologia. Krzysztof Pomian distingue assim, em L'Ordrc du tc111ps1\
"quatro maneiras de visualizar o tempo, de traduzi-lo em signos" (Pró logo, p. IX):
cronometria, cronologia, cronografia, cronosofia. Essa ordem depende essencialmen-
te de um pensável que extravasa a ordem do cognoscível (para retomar a distinção
kantiana entre o Dc11ke11 e o Erke1111 c11) em cujos limites prudentemente se mantém a
história dos historiadores. Enquanto pensáveis, essas articulações ignoram a distin-
ção entre mito e razão, entre filosofia e teologia, entre especulação e imaginação sim-
bólica. Essas considerações do prólogo de L'Ordre du tc111ps são de grande importância
para nossa investigação: não se deveria, com efeito, acreditar que o conhecimento his-
tórico tem por contraponto somente a memória coletiva. Ele deve também conquistar
seu espaço de descrição e de explicação contra um fundo especulativo tão rico quanto
aq uele desdobrado pelas problemáticas do mal, do amor e da morte. É assim que as
categorias mais próximas da prática historiadora que o autor considera no decorrer
de sua obra - acontecimentos, repetições, épocas, estruturas - se destacam contra

13 Cf. acima, primeira parte, cap. 2.


14 Krzysztof l'omian, L'Ordrc d11 te111ps, Paris, Callimard, coL " Bibliotheque dcs histoires", 1984.
o fundo da quádrupla estrutura da ordem do tempo. Reconhecemos a inda o tempo
cale ndárico ou crónico no te mpo da cronometria e da cronologia. O primeiro designa
os ciclos curtos ou longos do tempo que retorna, anda em círculos: dia, sema na, mês,
ano; o segundo designa o tempo linear dos períodos longos: século, milênio e tc., dos
qua is a esca nsão é d i\·ersamente pontu ada por eventos fundame ntai s e fu ndad ores;
inscrevem-se aí ciclos pluri anuais, como as olimpíadas gregas. Si'io essas duas espé-
cies de te mpo que relóg ios e ca lendá rios medem, com a ressa h ·a d e que os inten·a los
da cronologia - como as eras - possue m uma sign ificaçi'io tanto qualitati va como
quantitativa. A cronolog ia, mai s prúxirna d a intenção hi s toriadora, sabe orde nar os
acontecimentos em função de uma série de datas e de nomes e ordena r a scqüência
da s eras e de s uas s ubd i\·isõcs; mas ela ignora a separação entre a nat ureza e a his-
tó ria; eb permite que se fale de histó ria cósm ica, de históriJ d a Terra, de hi stória da
\·ida; a hi stória humana é apenas um d e seu s seg mentos. Com a c ronografia, entramos
em sistemas de notação que pode m prescind ir de ca lendário. Os episódios registra-
dos si'io definidos p o r sua posiçi'io em relação a ou tros: sucessão de aconteci mentos
únicos, bons ou ruins, d e regozijo ou aflição. Esse tempo não é nem cícli co nem linear,
mas amorfo; é ele que a crónica refere nciada na posição do na rrador relata, antes
que a narrativa sepa re a histó ria contada de seu autor. Quanto à cronosofia, que nos
ocupará m a is longamente, seu propósito excede o projeto de história racional q ue se
tornou o nosso. Ela foi cu lti vada por múltiplas famíli.1 s de pensa mento que remexem
os tempos segundo rica s tipologias que opõe m o tempo estacion,:irio ao tempo reH>r-
síYel, o qual p ode ser cíclico ou linea r. A his tória q ue se p ode faze r dessas grandes
re presentações equi\·a le a uma "história da hi stóriJ", da qual, ta lvez, os his toriadores
profissionais ja1nais consiga m libe rtar-se, a partir do momento em que se trata de
atribuir uma significação aos fatos: continuid ade/descontinuid ade, ciclo/ linearidade,
distinção e m períodos ou em e ra s. Mai s urna \'ez, não é pri nci palme nte com a fenome-
nolog ia do tempo \'i\·ido nem com os exercíc ios de narratiYid ade popular ou erudita
que a hi stória é aqui confrontada, mas com uma ordem do pen sável que ignora o sen-
tido d os limites. Ora, as categorias que dela dependem n ão cessa ram de constru ir a
"arquitetura" te mpora l de "nossa civili zação" (op. cit., p. XIII). Nesse aspecto, o te mpo
da história procede ta nto pela limitação dessa imensa ordem do pensável qua nto pela
superação da ordem do \'ivido.

É principalmente sobre as grandes cronosofia s da especulação a respeito do tempo


qu e o te mpo histó rico é conquistado, mas ao p reço de u ma drástica autolim itação.
Da s ricas análi ses de Pomia n, manterei apenas aquilo que concerne à persistência da
cronosofia no hori zonte da s g randes categor ias que ordena rão o discurso hi stórico na
fase da explicação/ compree nsão e na da rep resentação do passado, que r se trate de
"acontec imentos", de "repetições", de "épocas", d e "estruturas" (são esses os títulos
dos quatro primeiros capítulos do lino). Ora, são essas n1esIT1as categorias que cru-
zaremos repetidas \·ezes no c urso de nossa investigação epistemológ ica . É bom sabe r
sobre que excesso do pens,ível elas foram conqui stadas, a ntes de podermos fcl zn face
1\ \H M()R IA , 1\ H I S 1(rn 11\, O l·:SQU ECI M ENTO

à exigência de verdade que a história, supostamente, opõe à ambição d e fidelidade


da memória. Por cronosofia, Pomian entende as grandes periodi zações da história
como as do islã e do cristianismo (cm Daniel e Sa nto Agostinho) e suas tentativas de
colocar-se em correspondência com a cronologia; enfrentam-se nesse campo as crono-
sofia s religiosas e as cronosofias políticas; aparece na Renascença uma periodização
em termos de "épocas" da arte e no século XVIJl em termos de "séculos".
Tenderíamos d e bom grado a considerar a noção de acontecimento como a me-
nos especulativa de tod as e também como a mais evidente. Tanto Michelet como Ma-
billon, Droyse n como Dilthey professam com confiança o primado do fato indi vidual-
mente determinado. Redu zida à esfera d e visibilidade, a chegada do acontecimento à
percepção seria injustificável. Uma aura de invisibilidade que é o próprio passado o
circunda e o entrega às med iélções, que são obje tos de pesquisa e não de percepção.
Com o invi sível, entra em cena a especulação e propõe-se umél "tipologia histórica das
cro nosofias" (op. cit., p. 26). No O cidente cristão, é principalmente sobre a oposição
entre históri a profana e história sagrada, no plano d e uma teologia da história, que
foram conquistadas as relações entre o contínuo e o d escontínuo. Não devemos perder
de vista essa hi stória especulativa quando cru za rmos s ucessivamente a defesa brau-
deli ana de uma história relati va ao não-acontecimento e o "retorno do acontecimento"
na este ira do retorno d o político, até os modelos mais sofisticados colocando lado a
lado acontec imento e estrutura'\
Teríamos criado a noção de "repetições" sem a idéia de uma direçiio e de urna
significação, proporcionada inicialmente por uma tipolog.ia de tipo cronosófico? A
esta d evemos a oposição entre um tempo estacionário e um tempo não-repetível, seja
ele cíclico ou linear e, neste último caso, progressivo ou regressivo. É dessas grandes
orientações que o presente recebe um lugar significativo no todo d a his tória. Assim,
fala-se de idades, séculos, períodos, estádios, épocas. Como a noção de acontecimento,
a d e arquite tura do tempo histórico é conquistada sobre a desintegração do tempo
g loba l da história, da qua l emergiu o problema das relações entre diversos te mpos
loca is. Mas teríamos dei xado de discutir argumentos como o de Bernard de Char-
tres confrontando a "acu idade" do olhar dos anões com a "grandeza" dos gigantes
sobre cujos ombros os primeiros estão sentados? Teríamos renunciado a opor tempo
de renascimento a te mpo de trevas, a espi ar as oscilações causadas por alguns fenó-
menos cíclicos, a espreito r os ava nços e re trocessos, a enaltecer os retornos às fontes,
a proteger da corrupção do gosto e dos costumes os efeitos cumulativos da história?
Não conduzimos mais nenhuma batalha de Antigos e Modernos?"' Não lemos e com-
preend emos, ainda, Vico c Turgot? A " luta da cronosofia do progresso" (op. cit., p. 58)
contra o espectro das filosofias da regressão certamente não abandonou nossos hori-
zontes: a a rg umentação favorável ou contr;fria à modernidade que abordaremos mai s

15 Ver sobre l'Sse ;iss unto : l'élul Vcyne, l.'/11 z,ci1lt1ire dcs diffhc11ccs, lcÇOil i111111g 11m/c d11 Collt\i.;c de Fn111cc,
P;iris, Éd. du Scu il, 1976. Pierre Nor;i, " l.c rl'tour de l'événement", in Jacques Lc Coff e Pierre Norn
(orgs.), Fairc d1• /'i,i, tuirc, t. 1, No11 vc111n />ro/1h•111cs, op. cit.
16 C f. te rceirn p;irte, Cil p. 1," ' Noss;i' mode rnidnde", pp. 320-32Y.
III STl ll{(..\ / 11'1'->I l ' \H)Ull,I ,\

tarde continua a lançar n1ão dessa panó plia de argumentos. Niio admitimos de bom
grado o estatuto cronosófico da idéia, ainda familiar aos historiadores profiss ionais,
de tempo linear cumula tivo e irreversí,·el. A cronosofia do tempo cíclico na ,·irada
do séc ulo XX bastaria para lembr,i-lo. Por outro lado, os c iclos, caros aos economistas
desde o avanço da história dos preços e dc1s flutuações econón'licas, com E. Labrousse
entre outros, apontam o caminho para uma síntese entre tempo cíclico e tempo linear.
Mesmo o e mpilhamento das duraçôes, à maneira de Braudel, e a tcnti:lti,·a a ele acres-
centada de articu lar em tríade estrutura, conjuntura e acontecimento dissimulam mal
o resíduo cronosófi co que se esconde por trás de un-1a fachada científica. Nesse sen-
tido, a libertação de tod a cronosofia, em hwor de um certo agnosticismo me tód ico a
respeito da direção do tempo, não est,-\ concluída. Possi ,·clrne nte ni1o é dese já,·el que
o seja, se a história deve continuar interessante, is to é, cnntinut1r a fal a r à esperança, à
nostalgia, à angústia 1~.
O conceito de épocas (op. cit., c;.1 pítulo 3) é talvez o mais perturbador, na medid,1
em que parece supcrpor-se à cronologia para recortá-la em grandes períodos. Assim
continu a mos, no Ocidente, a di v idir o e nsino da história e até da pesquisa entre Anti-
güidade, Idade Média, Te mpos Modernos, mundo contempor{rneo. Recordamos o pa-
pel que Be1weniste atribui ao ponto zero no ec-\lculo do tempo histórico. O nascin1ento
de Cristo para o Ocidente crist5o, a Hégirc1 para o islã. Mas i:1S periodizaçôes têm uma
história mais ri ca que remonta ao sonho de Daniel relatado na Bíblia h e braica, depois
à teoria das quatro monMquias segundo Sa nto Agostinho; reen contramos em segui-
da as sucessiva s querelas de Antigos e Modt•rnos, tra\'adas en1 torno de periodizaçôes
ri,·ais. A comparação com as idzides d,1 ,·ida t,:imbém te\'e seus adeptos, acompanhada
da dúvida a respeito d a réplica histórica do e nvelhecimento biológico: conheceria a
história uma ,-clhice sem morte? Para dizer a verdade, o conceito de p e ríodos não é
adequado a um a história distinta daquela das concepções cícl icas ou lineares, esta-
cion,irias ou regressi,·as. A Filos<fa da História de H egel oferece ,1 esse respe ito uma
síntese impressionante das múltiplas o rdenaçôes do tempo h istórico. E após Hegel, e
a despeito da promessa de "re nunciar a Hegel ", coloca-se d e no,·o a questão de saber
se todo resíduo cronosófico desapareceu do u so de termos como "patamares" (stagcs)
ado tados em hi stória económica, no plano no qual se cru zam ciclos e segmentos li-
neares. O que est(1 em jogo é nada menos que a possibilidade de uma história sem
direção nem continuidade. É aqui que, segu ndo Pomian, o tema da estrutura adquire
o mesmo relevo do terna do período 1' .

17 Pomi,111 arrisc,1-St' ,1 ,1iirm,1r qu e a Ctl\Kl'pç,10 de um tl'mpu linl'ar, c umulativo l' i1Tl' \'l'rsin' l L;
p,ircialml'ntt' \'l.'ri iic.1 d ,1 pllr três fL•nômcnos prin c ip,li s: 1) c rc:-.ciml' iltL) Lkmogr,1 fi co , ll d ,l l' llL'rgi,1
d ispon ÍVl'l , n d l1 número de i n formc1çúl'S ,Hlll<l Zl'n,1d a s n,1 lllL'lllÚri ,1 ,llll'I i,·a ( L'Ordr!' d11 t1·111p,,
np. (Í f. , pp. 92-lN) .
18 O tl•x to dcci si,·n ,1 esse rl'speito 0 \l de Cl,1udt• Lé,·i-Strau ss l'lll /fo(,' d Hi~toirc, UN FSCO, JlJ::;2;
rl'ed. Paris, C,1 li i mc1rd , nil. " Foi io/ Ess ,1is", 'l lJ87. l'llm i,1 11 cita dt:k um a p,1ssage m ,1 ltc1 mc1ltl' s ign i ii-
cati,·,1 : "O dcSl'll\'Oh"imento dos conlwcinwntos prL;-histt'ir icos l' ,HL]lll'lllógicos tl•ndc ,l 1'., f1 ·11dcr 111>
c~paço for m as de c i,·ili z,1çé'\o qul' áa mos Ie,·,1d,)s ,1 im,1g inar como c~(11/011adt1~ 110 lc111pu ls;,,o sig ni -
iira du,1s cois,is: prim1..'Íl'L), que o 'pmg rl'Ssn ' (:-.l' t,11 te rmo t' aind,1 <'llll\'L'll ien tl' p nra designar um ,1
/\ \1EM(~I{I/\, A HI STÚRIA, O ESQU ECIMENTO

Mas pode-se fazer história sem periodização? Deixemos claro: não somente en-
sinar a história, mas produzi-la? Seria necessár.io, segundo o desejo de Claude Lév i-
Strauss, "desdobrar no espaço formas de civilização que éramos levados a imaginar
esGilonadas no tempo". Consegui-lo, não seria retirar da história todo horizonte de
expectativa, segundo o conceito freqüentemente evocado nesta obra e que devemos
a Koselleck? Mesmo para Lévi-Strauss, a história não poderia isolar-se na idéia de
um espaço de extensão sem hori zonte de expectativa, pois "é somente de tempos em
tempos que a história é cumulativa, ou seja, que os resultados se somam para formar
uma combinação favorável".
A marca das grandes cronosofias do passado é menos fácil de discernir em se
tratando das "estruturas", nas quais Pornian enxerga a quarta articulação da ordem
do tempo. Mostrarei seu papel corno fase da operação his toriográfica, na qual a noção
d e estrutura entra em composições variáveis juntamente com as noções de conjun-
tura e de acontecimento. Mas é bom recordar seu nascimento junto com o fim das
grandes especulações sobre o movimento da história global. Foram certamente as
ciências humanas e sociais que lhe d eram uma dimensão operatória. Mas a marca de
sua origem especulativa se reconhece ainda no "desdobramento de cada uma [dessas
ciências], com algumas raras exceções, em teoria e história" (op. cit., p. 165). A au-
tonomia do teórico com relação ao experimental teria sido conquistada inicialmente
na biologia, em conjunção com a lingüística e a antropologia. As estruturas são esses
novos objetos, esses objetos de teoria, dotados de uma realidade ou de uma existência
d emonstrável, da mesma maneira que se demonstra a existência de um objeto mate-
mático. No campo das ciências humanas, é à lingüística saussuriana que devemos o
desdobramento entre teoria e história e "a entrada simultânea da teoria e do objeto-
estrutura no campo das ciências humanas e sociais" (op. cit., p. 168). A teoria deve
conhecer apenas entidades intemporais, deixando à história a questão dos começos,
dos desenvolvimentos, das árvores genealógicas. O objeto-estrutura é aqui a língua,
distinta da fala. Discutiremos o bastante os efeitos felizes e infeli zes da transposição
desse campo lingüístico no uso historiográfico desse modelo lingüístico e daqueles
que vieram em seguida a Saussure: em particular as noções de diacronia e sincro-
nia, que perdem seu vínculo fenomenológico para ocorrer num sistema estrutural.
A conciliação entre o sistemático, inimigo do arbitrário, e o his tórico, escandido por

reillidade muito diferente daquela ,'1 qual o haví,1mos iniciillmente ilplicado) n5o é nem necessário,
nem contínuo; ele se (i.í por silltos, por pulos ou, como diriilm os biúlogos, por mutaçfü•s. Esses
sil ltos e pulos não consistem em ir sem p re m a is longe na mesmil direção; e les são acompanhndos
de mudanças de orientação, um pouco à maneira do cava lo no xad rez, que tem sempre à sua dis-
posição v,írios movimentos, mns nuncn na mesma direção. A humnn idade em progresso não se
parece nem um pouco com um personagem que sobe uma escada, acresce ntando com cada um
de seus movimentos um novo degrau àquele cuja conquista já realizou; eln evoca, antes, o jogador
c uja sorte se encontra distribuíd a entre vários dados e que, a cada lance, os vê es pa Iha r-sc sobre o
pílno, produí',indo igu al número de resultados diferentes. O que ganhamos em um deles, estamos
sempn.• expostos a perdl'r no outro, e é sonwnte d e tempos em tempos que a história é cumula tiva,
ou sl'ja, que os resultados se somnm parn forma r u ma combinação favorável" (apud L'Ordrc d11
ft>111ps, op. cít., p. 149).
IIIS!\ ) R(..\ / ITI S I l ' 'v!() J()CL\

acontecimentos discretos, torna-se por s ua Yez objeto de especulação, como se \·ê em


R. Jakobson (ver L'ordrc d11 tn11ps, p. 17-1). A hi stória como ciência est,í indire tame nte
implicada na reinteg ração da ciência ling üística no espaço teórico, bem como na rec u-
peração nesse mesmo espaço dos estudos da linguagem lite rária e, em particular, poé-
tica. Mas foi també m a pretensão de dissoh·er a his tória e m uma combinatóri a lógica
ou algébrica, em nome da correlação ent re processo e sistema, que a teoria da história
te\·e de enfrentar no último terço do século XX, como se o estrutura li s mo hom·esse
deposto no rosto da historiogra fia um pérfido beijo de morte 1" . Nosso próprio rec urso
a modelos oriundos da teoria da ação in screver-se-á nessa re\·olta contra a hegemonia
dos modelos estruturalistas, não sem reter algo do império que estes exerceram sobre
a teori a da história; assim ta mbém conceitos de tra nsição tão importa ntes qua nto os
de competência e desempen ho, recebidos d e Noam Chomsky, e remodelados para
cabe rem na relação entre as noçôes de agente, de potência de agir (a age11cy de Charles
Taylor) e de estruturas d e ação como coerçôes, normas, ins tituiçôes. Serão ig ual mente
redescobertas e reabilitadas filosofi as da linguagem pré-es truturalistas, como a de
Von Humboldt, que atrib ui ao dinamismo espirituzil d a humanidade e à s ua ati\·idade
de produ ção o poder de engendrar m uda nças grad u élÍS d e config uração: " Para o esp í-
rito, proclamava Von Humboldt, ser, é agir". A hi stória era reconhec ida nessa dimen-
são geradora. Mas os hi storiadores profissionais, que gosta ri am de se interessar por
Von Hum bold t, não poderiam igno rar a dimensão altame nte teórica de argumentos
como o que Pomia n se compraz em C\'ocar: "Assumida cm sua rea lidade essencial, a
líng ua é uma instância, continu amen te e a cada instante, em processo de tran sição
antecipatória. [... J Em si mesma, a líng ua não é uma obra acabada (crgcm), mas uma
ati\·id ade que se está fazendo (cllcrgcia). Por isso, sua verdadeira definição só pode ser
genética" 211 • (apud L'Ordrc d11 tcmps, p. 209).

Essa longa digressão dedicada ao passado cspeculati\'C) e a !tamente teórico d e nos-


sa noção de tempo histórico tinha somente um objeti\'O, recordar aos historiadores
algumas coisas:

19 : ,ill posso d ei xa r dt.> a ssin,,Iar o esforço C<lnsickr.ín·l d l' l'orn i,111, e m Cllnjun to com RL'nt; Thom, p.Ha
rcslll\'l'r o probkm ,1 r olllrndo por essa ,rnw,,ç,1 d l• d issoluçàll do hist<,rico 11L) sistt.-mü tico, ao prL'Çll d a
construção dt· u ma " k oria gem i da morfogt'.•ncsL' que seja uma tcori,1 L'Slruturalist,1" (l'om i,111, i/,id.,
p . 197 ). Sob re Rcm' Thom, \L'r Pomian, i/ ,id., pp. FJlí-202.
20 l'llmi,rn, " L'histLlire des s truct ures", in J. LL' GL)ff, R. C h<1rti er, J. l<L'\l'I (llrg.), L.11 Nc111,•c//c· 1/i~ltii -
n·, Paris, Re t z C EPL, J<-178, pp. 528-553 ; L'Xi~IL' uma ret'd içãn p,1n: i,1l, Bru xe las, Fd. Co m pk:-;l'S,
1988. O autor L'nfo ti za a llsci laç,i.ll da s ubs t<'r nc i,1 i1 relação no pL1no d,1 ontolog ia. Di ssll rL'Sulta a
d efinição d a nllçàn dl' L'Slrutura p ropnst,1 L' 111 f. 'Ordre d11 to11p~: "Conj unto Ôl' rclaç<-ll'S r,1cionais
e interdepen dL' 11tes cu j,1 rea l idade é d emonstra d a e c u ja dL·scr iç,iL1 é dada po r um a teoria (qul'
co n sti tuem , L'm ll utr,1s pal,l\'ril s, um obj<.'to dl'mon s tr,ívl'I ) L' que 1.' rl',1ii z,1dn por um objdo \·isí-
\ e l reco n s trut Í\'L' I ou obse n ·,ívcl , cuj,1 L'stabi Iid ,ide e i ntl'I igibi I id,1de e la cond ic ion,1 " ( Pom ia n ,
ov cit., p. 2 1:'i). Para Pomian, íl es trutura, ('nq uanto o b je to telírico, t'stiÍ n ,1 linha dirl'ta do dc•sdo-
brame nto que p r eside ll livro: \' ÍSÍ\Tl / im·is í\·(·l , dadLi / con s tru ídll, mns trado / d e nHmst r,Í n'I. O
de sdobramento tl'ó rico/ hi st(irico é um dl' St'US ,1spl'ctos.
A MJ:'v1(JRIA, A III ST0R IA , O f-'SQUl:C IMENHl

- A operação historiográfica procede de uma dupla redução, a da experiência viva


da memória, mas também a da espec ulação multimilena r sobre a ordem do tempo.
- O estruturalismo que fascinou várias gerações de historiadores depende de
uma instância teórica que se situa, por seu lado especulativo, no prolongamento das
grandes cronosofias teológicas e filosóficas, à maneira de uma cronosofia científica,
até mesmo cientificis ta.
- O conhecimento histórico talvez jamais tenha solucionado essas v isões do tem-
po histórico, quando fala d e tempo cíclico ou linear, de tempo estacionário, de declí-
nio ou de progresso. Não seria então tarefa de uma memória ins truída pela história
preservar o rastro dessa história especulati va multissecular e integrá-la a seu univer-
so simbólico? Seria essa a mais elevada d estin ação da memória, não m ais antes, mas
depois da história . Os palácios d a memória, lem os nas Confissões de Santo Agostinho,
não encerram apenas lembranças de acontecimentos, regras de gram ática, exe mplos
de retórica; eles preservam também teorias, inclusive aquelas que, sob o pretexto de
abraçá-la, quase a s ufocaram.

III. O testemunho

O testemunho nos leva, de um sa lto, das condições formai s ao conteúdo das "coisas
d o passado" (pmeterita), das condições de possibilidade ao processo efetivo da opera-
ção historiográfica. Com o testemunho inaugura-se um processo epistemológico que
parte da memória d eclarada, passa pelo arq uivo e pelos documentos e termina na
prova documental.
Num primeiro momento, deter-nos-emos no testemunho enqua nto tal, mantendo
em suspenso o instante da inscrição que é o da memória arquivada. Por que essa
d emora? Por diversas ra zões. Para começar, o testemunho tem várias utilidades: o
arquivamento em vista da consulta por historiadores é somente urna delas, para a lém
da prática do testemunho na vida cotidiana e paralelamente a seu uso judicial sa ncio-
nado pela sentença de um tribunal. Além d isso, no próprio interior d a esfera histórica
o testemunho não encerra sua trajetória com a constituição dos arq uivos, ele ressurge
no fim do percurso epistemológico no nível da representação do passado por n ar-
rativas, ar tifícios retóricos, colocação em irnagcns. Mais que isso, sob certas formas
contemporâneas d e depoimento s uscitadas pelas atrocidades em massa do sécu lo XX,
ele resiste n ão somente à explicação e à representação, mas até à colocação em reserva
nos a rquivos, a ponto de ma nter-se deliberadamente à margem da historiogra fia e
de despertar dúvidas sobre sua intenção veritativa . Isso quer di zer que este capítulo
seguirá apenas um dos destinos do testemunho, selado por seu arq uivamento e san-
cionado pela prova documental. Daí o interesse e a importância de uma tentativa de
aná]ise essencial do testemunho enquanto ta l, respeitando seu potencial d e empregos
múltiplos. No momento de tomar mos algo a um ou outro desses usos, esforça r-nos-
HISIORI:\ / ll'ISTF\IOI OCI-\

emos por isolar os traços suscetíveis de serem compartilhados pela pluralidade dos
empregos~ 1•
É na prática cotidiana do testemunho que é mais facil discernir o núcleo comum
ao uso jurídico e ao uso histórico do testemunho. Esse emprego coloca-nos de imedia-
to diante da questão crucial: até que ponto o testemunho é confüível? Essa questão põe
diretamente na balança a confiança e a suspeita. É então trazendo à luz as condições
em que é fomentada a suspeição que temos a oportunidade de abordar o núcleo de
sentido do testemunho. De fato, a suspeita se desdobra ao longo de uma cadeia de
operações que têm início no nível da percepçc'io de uma cena \·ivida, continua no da
retenção da lembrança, para se concentrar na fase declarati\·a e narrativa da reconsti-
tuição dos traços do acontecimento. A desconfiança dos observadores revest iu-se de
uma forma científica no âmbito da psicologia judiciúria enquanto disciplina experi-
mental. Uma das pro\·as básicas consiste na tarefa imposta a uma coorte de indidduos
de produzir uma reconstituição verbal da mesma cena filmada. O teste supostamente
permite medir a confiabilidade do espírito humano no que diz respeito às operaçôes
propostas, seja no momento da percepção, seja na fase de retenção, seja, enfim, no
momento da reconstituição verbal. O artifício desse teste sobre o qual importa cha-
mar a atenção está em que o experimentador é quem define as condições da pro\'a e
\'alida o estatuto de realidade do fato a ser atestado: esse estatuto é considerado como
adquirido na própria montagem do experimento. São então os desvios em relação a
essc1 realidade comprO\·ada pelo experimentador que são le\·ados em consideração e
medidos. O modelo implícito nessa pressuposição é a confiabilidade indiscutÍ\·el do
olho da câmera. Certamente, os resultados dos experimentos não devem ser despre-
zados: dizem respeito à presença flagrante de distorç<les entre a realidade conhecida
por outros meios e os depoimentos dos sujeitos de laboratório. Para nós, a questão né'ío
é submeter à crítica as conclusües da i11\'estigação a respeito da desqualificação do
testemunho em geral, mas de questionar, por um lado, aquilo que Dulong denomina
o "paradigma do registro", a saber, a Cé'imera, e por outro lado a idéia do "obser\'ador
isento", preconceito ao qual estão submetidos os sujeitos do experimento.
Essa crítica do "modelo regulador" da psicologia judiciária nos recondu z à prcÍti-
ca cotidiana do testemunho na com'Crsaçé'ío comum. Essa abordagem está cm pro-
funda concordância com a teoria da açào que serei mobilizada nas fases explicativa
e representativa da operação historiogrcifica, e com a prima zia que ser,í atribuída à

21 RL'gi stro aqui minh,1 dí,·ida para com ,1 obr,1 de Renaud Dulong, /.,· T ,;1110111 or11/airc. l. t'S ((111di tio11s
socialcs d1• /'11//c,; /11/1 0 11 11,·r,.;01111t'lic, Paris, E! IE55, JYLJH. Ela me permitiu melhorar uma \·ersão anll'-
rior da prL'sL'nll' aniilisL', ,1 dL'spL'ito dl' CL'rta discord,1ncia com su.i tl'SL' íinal dL' um,1 antinomi ,1
global entrl' o "kstc·munhti histórico" L' ,1 historiografia, tl'Sl' rl'sult,rnte de um enfoque qu.isL' que
exc lusivo no tcstt>munho dos ex-combatentL·s L' sobretudo dos sobre,·in'ntt•s da Shoah. Dt• tato,
s.'io e sses testemunhos qutc rtcsistem :i tcxplicaç,10 l' ,1 rcprL'SL'ntaç<'i o hi s tor iográfica. E é primeiro
ao pní prio arqui,·.imentu qul' l'ics resistem. O prubll'ma coloc.ido é L'llti\o o d,1 significaçáo desses
testemunhos no limite, no ca minho de um ,1 <1peraç,10 historit1g ràficc1 que reL·ncontra seus lim ites
a cada fase e ,1té mc·smn L'l1l sua mais L'xigL·ntl' rdlL'x,'ío (cf. ab,1ixo, tL'l'CL'ira parte, cap. 1) . Mas ,1
obra de Du long aprL·sentou a nteriornwntl' uma descr ição essenc ia I do ll'stcmun ho que ni\ti exclui
ti arquivamento, embora ek niio elabore a respectiva tcori,1.
A Ml' íW)RIA, /\ HIST(lRI,\, U FS()UECIMENTO

problemática da representação em sua relação com a ação no plano da constituição


do vínculo social e das identidades que dele decorrem 22 . A atividade de testemunhar,
capturada aquém da bifurcação entre seu uso judiciário e seu uso historiográfico,
revela então a mesma amplitude e o mesmo alcance que a de contar, em virtude do
manifesto parentesco entre as duas atividades, às quais será preciso em breve acres-
centar o ato de prometer, cujo parentesco com o testemunho permanece mais dissi-
mulado. O arquivamento, do lado histórico, e o depoimento perante um tribunal, do
lado judiciário, constituem usos determinados prescritos de um lado para a prova
documental, do outro, para a emissão da sentença. O uso corrente na conversação
comum preserva melhor os traços essenciais do ato de testemunhar que Dulong re-
sume na seguinte definição: " Urna narrativa autobiográfica autenticada de um acon-
tecimento passado, seja essa narrativa realizada em condiçôes informais ou formais "
(Lc Témoin oculairc, p. 43).
Desdobremos os componentes essenciais dessa operação:

1. Duas vertentes são primitivamente diferenciadas e articuladas uma sobre a ou-


tra: de um lado, a asserção da realidade factual do acontecimento relatado, de outro
a certificação ou a autenticação da declaração pela experiência de seu autor, o que
chamamos sua confiabilidadc presumida. A primeira vertente encontra sua expres-
são verbal na descrição da cena vivida cm uma narração que, se não fizesse menção
à implicação do narrador, limitar-se-ia a uma simples informação, pois a cena narra a
si mesma nos termos da distinção proposta por Benveniste entre narrativa e discurso.
Uma nuança importante: essa informação deve ser considerada importante; o fato
atestado deve ser significativo, o que torna problemática urna distinção demasiada-
me nte marcada entre discurso e narrativa. Resta que a factualidade atestada supos-
tamente traça uma fronteira nítida entre realidade e ficção. A fenomenologia da me-
mória confrontou-nos muito cedo com o caráter sempre problemático dessa fronteira.
E a rela ção entre realidade e ficção não deixará de nos atormentar, até o estágio da
representação historiadora do passado. Isso mostra que esse primeiro componente do
testemunho tem seu peso. É nessa articulação que entra em cena toda uma bateria de
suspeitas.
2. A especificidade do testemunho consiste no fato de que a asserção de rea lidade
é inseparável de seu acoplamento com a autodesignação do sujeito que tes temunha 2'.
Desse acoplamento procede a fórmula típica do testemunho: eu estava lá. O que se
atesta é indivisamente a realidade da coisa passada e a presença do narrador nos
locais da ocorrência. E é a testemunha que de início se declara testemunha. Ela no-
meia a si mesma. Um triplo dêitico pontua a autodesignação: a primeira pessoa do

22 Cf. ad iante a nota de orientação do capítulo 2 e a do capítulo 3.


23 O ato de ling uagem pelo qual a testemunha atesta seu envolvime nto pessoal traz uma confir-
mação estrondosa da anólisc proposta mais acima (primeira parte, capítulo 3) da atribuição a si
mesmo da lembrança: jó então, tratava -se de uma espt:>cie de antepredicativa de autodesignação.
JJJ SHWJ..\ / ll ' IS I L\ l OLOl,J..\

singula r, o tempo passado do verbo e a menção ao lá em relação ao aqui. Esse cará-


ter auto-referencia l é por \'ezes s ublinhado por cer tos enunciados introdutórios que
sen·em de "prefacio". Esses tipos de asserções ligam o testemu nho pontual a toda
a história de uma vida. Ao mesn10 tempo, a autodesignação faz aflora r a opacid ade
inex tricável de uma hi stória pessoal que foi ela própri a "enredada em história s". É
por isso que a impressão afe tiva de um acontecime nto capaz de toca r a testemunha
com a força de um golpe não coincide necessariamen te com a importância que lhe
atribui o receptor do testemunho.

3. A a utodesignação se inscreve numa troca que instaura um a situação di aloga l. É


di,rn te de alguém que a testemunha atesta a real id ade d e um a cena à qual d iz ter as-
sistido, eventualmente como ator ou como dtima, mas, no momento do testem unho,
na posição de um terceiro com relação a todos os protagon istas da ação2-1. Essa estru-
tura dialogal do testemu nho rcss,l lta de imediato sua dimens,'io fiduciária: a testemu -
nha pede que lhe dêe m créd ito. Ela não se limita a di zer: "Eu estm·a lá", ela acrescenta:
"Acred ite m em mim." A autenticação do testemunho só ser,~ e ntão completa após a
resposta em eco daquele que recebe o testemunho e o aceita; o testemunho, a partir
desse ins tante, está não apenas autenticado, ele esté1 acreditado. É o credenciarne nto,
enquan to processo em cu rso, que abre a a lte rnativa da q ual p ar timos e ntre a confian-
ça e a su speita. Pode ser mobili zad a toda uma lista d e argumentos de d ú\' ida, que a
psicologia judiciá ria, enKada no início, ali menta com razões bem ponderadas: essa
lista p ode refe rir-se às condições mais comuns para a má p ercepção, a m,1 retenção,
a má reconstituição. Entre estas últimas de\·e-se levar cm conta o intervalo de tempo
tão favorável àquilo que Freud denomina, e m A l11terprctaçiio dos so11/ios, a "elaboração
secundária"; a lista pode diri gir-se d e forma mais inquietante aos méritos pessoa is
da testemunha que fazem com que se costume acreditar nela, como oportunidades
semelha ntes, sen·indo de precedentes, e a re putação comum d a testemunha inclina m
a fazer; nesse caso, o credenciamen to equ i\·alc à autenticação d a testemunha a título
pessoa l. Daí resulta o que se ch a ma su a confiabilid ad e, c uja c1preciação se d eixa assi-
milar à ordem das gra ndezas inte nsi\·as e comparada s.

-l. A possibilidade de s uspeitar cria por sua vez um espaço de controvérsia no qua l
,·,írios testemunhos e vá rias testemun has se vêem confrontados. Sob certas cond ições
gera is de comunicação, esse espaço pode ser chamado espaço público; é nesse contex-
to q ue uma crítica do testemunho se enxerta e m su a prática . A testemunha d e alguma
forma an tecipa essas circunstâ ncias ac rescentando urna terceira clá usula a sua d ecla-
ração: "Eu estava IA", diz ela; "Acred ite m em mim", ac rescenta, e: "Se n ão acredita m
em mim, perguntem a ou tra pessoa", p rofere ela, às vezes com urna ponta de desafio.

2-1 É. lkn\'en islL' obsen·,1 t.'111 Lc Voc11/,11/ain · d,·~ i11~til11/i()11S i11do-,·11ro111;c11111"~ (l'aris, Éd. dL' Minuit,
1969) que no direito rom,1no a pala, ·r,1 tc~ti~, dt.'rivada d e t,·r t i11', dt.>si g n,1 as pt.>ssoas terceiras L'n -
carregadas de ass istir ,1 um co n trato or,1 1 L· h,1bilitadas a autenticar t'ssa transação (apud Dulnng,
/ .1' ·fr111ni11 ot" tt!air,·. º/'· t'il. , p . -1 1).
A MEM()RIA, A HISTÚRIA , O FSQU F.CIME N TU

A testemunha é então a pessoa que aceita ser convocada e responder a um chamado


eventual mente contraditório.

5. Insere-se então uma dimensão suplementar de ordem moral destinada a refor-


çar a credibilidade e a confiabilidade do testemunho, a saber, a disponibilidade da
testemunha de reiterar seu testemunho. A testemunha confiável é aquela que pode
manter seu testemunho no tempo. Essa manutenção aproxima o testemunho da pro-
messa, mais precisamente da promessa anterior a todas as promessas, a de manter
sua promessa, de manter a palavra. O testemunho vem assim unir-se à promessa em
meio aos atos de discurso que especificam a ipseidade em sua diferença da simples
mesmidade, aquela do caráter, ou melhor, da fórmula genética, imutável da concep-
ção à morte do indivíduo, alicerce biológico de sua identidade 2'. A testemunha deve
ser capaz de responder por suas afirmações diante de quem quer que lhe peça contas
delas.

6. Essa estrutura estável da disposição a testemunhar faz do testemunho um fa-


tor de segurança no conjunto das relações constitutivas do vínculo social; por sua
vez, essa contribuição da confiabilidade de uma proporção importante dos agentes
sociais à segurança geral faz do testemunho uma instituição21' . Pode-se falar aqui de
instituição natural, mesmo que a expressão tenha a aparência de um oxímoro. Ela
é útil para distinguir essa certificação em comum de uma narrativa na conversação
comum dos usos técnicos, "artificiais", em que consistem de um lado o arqui va mento
no âmbito de instituições determinadas, de outro a prestação do testemunho regu-
lamentada pelos procedimentos processuais no recinto do tribunal. Lancei mão de
uma expressão paralela para distinguir o exercício ordinário da rememoração dos
artifícios da memorização cultivada na nrs 111c1110rinc: pudemos assim opor a memória
natural à memória artificial. O que faz a instituição é inicia lmente a estabilidade do
testemunho pronto a ser reiterado, em seguida a contribuição da confiabilidade de
cada testemunho à segurança do vínculo social na medida cm que este repousa na
confiança na palavra de outrem 27• Gradativamente, esse vínculo fiduciário se estende
a todas as trocas, contratos e pactos, e constitui o assentimento à palavra de outrem,
princípio do vínculo social, a tal ponto que ele se torna um /111bit11s das comunida-
des consideradas, e até uma regra de prudência: começar por confiar na palavra de

ov
25 Sobre a distinção entrL' ipseidade e mesmidade, cf. Soi-1111;11,c co111111c 1111 a11trc, cit., pp. 167-180 (d,1
reed ição de 1996) . Sobre a promessa, le ia-se Henrik Von Wright, "On prnrnises", in Plr i /o~oplrical
Papcrs /, 1981, pp. 83-99: "gara ntir" que tzi l coisa ocorreu , certifid-lo, equivale a uma " promessa <1
respeito do passado".
26 Reg istro aq ui o completo acordo com Rena ud lJulong quando trata do testemunho ocular como
de uma "instituiçi'ín natural " (Dulong, Le T1;111oi11 oc11/airc, op. cit., pp. 41-69). O autor nota a proxi-
midad e de suas an.iliscs com a da sociologia fenomenológica de Alfrcd Schutz e m Thc Pill'IIO I/IC-
1/0logy of t/1c Social World, op. cit., e com a teoria do espaço público de Hannah Arendt.
27 É o uso que Von Wright fez do termo "instituição" em "On promises". Esse uso estEí próximo das
noções de jogos d e linguagL'm e de "formas de vida" em Wittgenstcin.
IIISl(ll,L\ / l l'ISTf \lllltlCL\

outrem, em seguida duvidar, se fortes raú1es inclinarem a isso. Em meu vocabulé-\rio,


trata-se de uma competência do homem capaz: o crédito outorgado à palavra de ou-
trem faz do mundo social um mundo intersubjetivamente compc1rtilhado. Esse com-
partilhamento é o componente principal do que podemos chamar "senso comum".
É ele que é duramente afetado quando instituições políticas corrompidas instauram
um clima de ,·igiU1ncia mútua, de delação, no qual as priHicas mentirosas solapam as
bases da confiança na linguagem. Reencontramos aqui, expandida até as dimensôes
das estruturas de comunicação de toda uma sociedade, a problemcítica da ITtenH'>ria
manipulada evocada mais acima:>. O que a confiança na pal,wra de outrem refo rça,
não é somente a interdependência, mas a similitude cm humanidade dos membros da
comunidade. O intercâmbio das confianças especifica o ,·ínculo entre seres semelhan-
tes. Isso deve ser dito iufinc para con1pens<1r o excesso de ênfase no tem,1 da diferença
cm muitas teorias contcmporàneas d,1 constituição do vínculo social. A reciprocidade
corrige a insubstituibilidade dos atores. A troca recíproca consolida o sentimento de
existir em meio a outros homens - inter '10111i11cs esse - , como gosta de dizer Hannah
Arendt. Esse entremeio c.fa margem ao dis_-;c11s11s tanto quanto ao consc11s11s. E é mesmo
o dissc11s11s que a crítica dos testemunhos potencialmente di\·ergentes vai colocar no
caminho do testemunho até o arqui\'O. Em conclusc10, é da confiabi !idade, e, portanto,
da atestação biográfica de cada testemunha considerada uma a uma que depende,
em ültima instância, o nível médio de segurança de linguagem de uma sociedade. É
contr,1 esse fundo de confiança presumida que se destaca de maneira trágica a solidão
das "testemunhas históricas" cuja experiência extraordinária mostra as limitações da
capacid,Kie de compreensão mediana , comum. H,í testemunhas que 1ama1s encon-
trarn a audiência ec11x1z de escutei-las e entendê-las 2" .

28 C f. acima, priml'ira parll', pp. 93-99.


29 A prl'ssuposiç.io dL· um mundo comum l' rL'l.iti\ ,lllll'lltl' f,icil dL' formul,ir na ml'dida L'm LJlll' SL'
tr,1ta de um mund(l dL· pL'rCL'pçôcs comuns. Fss,1 situ ,1ç,' ío s implific,1d.i é aquela postu lada por
ML'lvin l'ollnl'r cm "J\·é1wnwnt d monde commun ", subtítulo dadl1 a "Que s'est-il rél'IIL·nw tlt
passé7 ", in J.-L. Petit (dir.), l.' F. ,•1;111·111t·11/ 1'11 J'i.,.,1,cdi,•1', Pa r is, EHE55, col. " Raisnns prntiqu es", 1991 ,
pp. 75-96. O SL'nso cornurn é ,1í definido pl'la prl'ssuposiç.io eh> um mundo compartilhado possín•l:
"C ham a rl'nws dl' idilllll<l da r,1,i"ío nrdin,hia (1111 iili0111 o( 1111111d1111c rca~o11) o conjunto constituído
por L'ssa suposiç,io L' pL'l,1s l1pcr,lÇÔL'S de infcr(•nci,1 qttl' pcrrnitt_• " (Pollnl'r, art. cit., p. 76 ). É, com
deito, L'ssa prcssupl1sição tid,1 pDr " incnrrigín•l ", n,'in falsific.h·el , quL' permite ao mesmo t l't11pll
d iscl'rn ir ,1s discord<'i ncias L' considl'r,í-las n1nw L'nigm ,1s (1111::it'~ } redu tí,·L'is rncd iantl' procl'd i-
nwntos dt' sagacidade. Tratando-se dl' um m undn cu ltu r,11, ns critérios do acordo s,10 ma is d i fíccis
dt' estabciL'cL' r. l muito m,1 is problem,ítico a fi rm,ir que a s d iscnrd,i ncias s,'io d istorçôcs. Sl'ri,1 es se
o c1so se adot,íSSL'mns i ngenuamentc os dois parad igrnas dcnu nci,1dos acima do regist ro scg u n-
do o modelo da c,imera t' da isL'nç,10 do obsL·n·,1dor. i\ suposi~·,'\o dt' um mundo cornpar ti lhc1do
pl1ssí\'el torna-se cnt.'\o i(kal dl' concórdia ma is que de concord:rn c ia . Essl' ideal 6 cntao a pn·ssu-
pl1siçfü1 í.iL' um )-';l'lll' fll dL' \'ida cornp,1rtilhado contr,1 o fundo de um ünicn mundn de pl'rCL' p ç,10 .
Na medida cm que os acontecimentos atL'st.1dos pL'los quais se inkn'ssam os historiadorl's ,;Zw
,1cnntecinwntos tidos como import,rnll's, significatinis, eles transbordam d,1 L'Sfcra pL'rccp ti,·,1 l'
a dentram a das llpiniCw,; ; (l SL'nso comum prL'sumid(1 L; um mundl1 dóxico p,irticubrml'lltl' fr,ígil
que dó lugar a discord,'incias quL' siiu desacordos, disputas, que d,io lug.ir ,1 contnl\'érsias. É so b
ess ,1 condição quL' Sl' coll1ca ,1 quest,'\n da plausibilidade dos Mgunwntos acfo1ntadns pdos pruta-
gon istas. i\brl'-se assi rn espaço ,'i lógica argu nwntati,·,1 do histori,1dor L' do ju i,.. M ,1s a d i fi c u ldadt'
A \H:M()R I A , A HI STélR I A, O ESQUEC IMEN TO

IV. O arquivo

O momento do arquivo é o momento do ingresso na escrita da operação histo-


riográfica. O testemunho é originariamente oral; ele é escutado, ouvido. O arquivo é
escrita; ela é lida, consultada. Nos arquivos, o historiador profissional é um leitor.
Antes do arquivo consultado, constituído, há o arquivarnento' 11 • Ora, este constitui
uma ruptura em um trajeto de continuidade. O testemunho, dissemos, proporciona
uma seqüência narrativa à memória declarativa. Ora, é próprio da narrativa poder
ser destacada de seu narrador, como insiste sem trégua uma crítica literária de ver-
ni z estruturalista . Mas o fenomenólogo não fica atrás: entre o dizer e o dito de toda
enunciação, um sutil desnível se cava, que permite que o enunciado, o dito das coisas
ditas, siga uma carreira que se pode dizer, em sentido estrito, literária. A composição
da trama de urna história contada vem, além disso, reforçar a autonomia semântica de
um texto, à qual a composição em forma de obra proporciona a visibilidade da coisa
escrita 1 1.

de escuta dos testemunhos dns sobrev iven tes de campos de extermínill constitui talvez o mais
inquietante ques tionnmento dn tranqüili zadora coesão do pre tenso mundo comum do sentido.
Trata-se de testemunhos "extrnord inários", no sentido em qut:· excedem a capacidade de compreen-
são "ordinárin", compará vel ao que Pollner acaba de chamar 1111111d1111c rc11so11. A esse respeito, as
reflexfics desanimadoras de Primo Levi em Si c'csl 1111 /10111111e. S011umir:: (ed . orig., Turim, Einaudi,
1947; trad. frnnc. de M<1 rtine Schruoffcnegcr, l'aris, JulliMd, ·1987; reed ., 1994), e mais aind,1 em
Lcs Nni(fmsés ct /cs l\CSCIIPL'S (e d. orig., Turim, Einaudi, 1986; trnd. franc. de André Maugé, Par is,
Ca llimard, 1989), nos dão o qu e pensar.
30 Esse momento do arq uiva mento do tes temunho é marcado na his tória d a his toriografia pelo apa-
reci m ento da figura do /1isl1ir, sob os traços d e Heródoto, de Tucídides e dos o utros h istori<1dores
gregos, L' depois latinos. Evoquei m nis ac im a (Nota d e orientação, p. 149, n . 5), na esteirn de Frnn-
çois H <1rtog, il linha d e ruptura entrl' o aedo ou o rnpsodo e o i,istck O mesmo au tor p recisa, dentro
dessa perspectivn, a rel<1ção en tre o hiMôr e a testemunha. A ntes d ele, É. Benvcniste havia insi stido
na continuidade entre o jui z que resolve os confl itos e a tcstemunl1,1 oc ul a r: " Para nós, o juiz não
é n testemunha; essa v,1riação de sentido iltrap<1lha il aná lise dn passagl'm . M<1s é exatamente por-
que o histôr é il testemunha ocu lar, o único que resolve o debate, que pudemos atribuir ao J,istt1r
o sentido de 'aquele que resolve por meio de um julg,1mcnto sem apel<1ção sobre urna ques tão de
boa fé'" (Lc Voca/1!1/airc dcs i11sti/11tio11s i11do-c11ropfr1111cs, ov
cit., t. li, citndo por F. Hartog, /..e Miroir
d'/ lérodotc, op. cit., p . IX) . Sem dúvida , seria preciso distinguir aqu i aqu ele que dá o testemunho e
,1quele que o recebe, essn testemunha que se tornou juiz. Ness<1 linha, Hartog aprofu nda a sep<1ra-
ção e ntre o J,istür e a teste munha o c ulnr intcrrn lando e ntre a s imples visão e a "ex posi ção " da in-
vestigação um n cn d e in de "milfcas de enunc iação": cu v i, esc utei , digo, escrevo (ibid., p. 298). Esse
jogo da enunciaçã o ocorre nssim entre o olho e o ouvido (i/1id., p. 274), e n tre di zer e escrever (ibid.,
pp. 270-316), t udo isso n il ausênc ia d e sn nção p o r um mestre da verdade (i/Jid., p. XIII ). A escriturn
const itu i nesse s entido a marca d ecisivn : sobre ela se en xertam todas as estratégias nnrrativas d e
onde provém "a capncid <1 de da n arrativn d e fazl'r crer" (ibid., p . 302). Retorn<1remos a essa tl'S l' por
o casião da discussão do conc1:.•ito d e re presentação h is toriadora (cf. adia nte, pp. 302-369).
3 1 P. Ricn.•ur, Du tcxf!' 11 /'11ctio11: c~~ais d 'licr111h1cutiq11c 2, P<1ris, Éd . du Seuil, col. "Esprit", 1986.
H IST() I< 1.-\ / IYIS l l·: ~101.0CI-\

A esses traços d e escriturai idade que possui cm comum com a narrati\'a, o teste-
munho acrescenta traços específicos ligados à estrutura de troca entre aquele que o dá
e aquele que o recebe: em \'irtude do caráter reiterável que lhe confere o estatuto da
instituiçi'io, o testemunho pode ser tornado por escrito, prestado. O depoime nto é por
sua \'ez a condição de possibilidade de instituiçôes específicas dedicadas à coleta, à
conservação, à classificação de uma massa documental tendo e m \'Ísta a consulta por
pessoas habilitadas. O arquivo apresenta-se assim como um. lugar físico que abriga o
d estino dessa espéci e de rastro que cuidadosamente distinguimos do rastro cerebral
e do rastro afetivo, a saber, o rastro documental. Mas o arqui\'() não é apenas um lugar
físico, espacial, é também um lugar social. É sob este seg undo ângulo que Michel de
Certeau trata dele no primeiro dos três painéi s sobre o que, antes de mim, ele deno-
minou operação hi storiográfica 12 . Relacionar um produto a um lugar constitui, diz
ele, a primeira tarefa de uma epistemologia do conhecimento histórico: "Considerar
a his tória como uma ope ração, será tentar, de um modo necessariamente limitado,
compreendê-la como a relação entre um lugar (urna conscrição, um meio, uma profis-
são), procedimentos de análise (um a disciplina) e a construção de um texto (uma lite-
ratura)" (L'Écrit11rc de /'11istoirc, p. 64) . Essa idéia de lugar socia l de produção comporta
um objetivo crítico dirigido contra o positivismo, crítica que Certeau compartilha com
R. Aron na época em que este escre,·ia l11trod11ctio1111 la philosophic de l'lzistoirc: cssai Stll"
lcs li111itcs de /'objcctit>ifi' historiquc (1938). Mas, diferenteme nte des te ú !timo, que subi i-
nha "a dissolução do sujeito", Certeau enfatiza menos a subjetividade dos autores, as
decisões pessoais d o que o nfío-dito do estatuto social da his tória enqu a nto institu i-
ção d o sabe r. Desse rnodo, ele se distingue também de Max Weber que, em Lc Saua11t
et /e Politiquc, "isenta\·a", afirma ele, o poder dos eruditos da s rest rições da sociedade
política. De encontro a esse recalcamento da relação com a sociedade que engendra
o não-dito do " lugar" d e onde o historiador fala, Certeau denuncia, à maneira de
J. Habermas, na época em que este defendi,1 uma "repolitização" das ciências huma-
nas, a apropriação da ling uage m por um suje ito p lural que supostamente "exprime"
o discurso da his tória: "Nisto se confi rmam a prioridade do discurso histórico sobre
cada obra historiográfica partic ular, e a relação desse d iscurso com uma in stituição
soc ial " ("Productions du lie u", in L'Écrit11rc de /'/Iistoirc, pp. 71 -72).
Não basta, contudo, recolocar os hi storiadores na sociecfode para dar con ta do
processo gue constitui um objeto distinto para a epistemologia, a saber, nos termos
do próprio Certeau, o processo que conduz "da reunião dos documentos à redação do

32 "() gest() que redu / ,is id 0i,is .i lugare,- l' 1.. . 1 um gesto d l' histori,1d11r. Comprl'l'ndl'r, ~,,ira l'il', é
,111,1lis,1r cm tcrrnos dl' produçCil's loc.1liz,Í\l•i s 11 111,1kria l quL' ca d ,1 m étod () inic i,1 lnw11te L'St,1bl'-
lt•cL'LI com bilsl' e m sl' us prúprios crité ri os de pertinência" (" L'opt'.!r,llion historiogr,1ph ique ", in
L'Ecrit11rc de /'/1i~f ti irc, tip. t" Ít ., p. 6:1; u111<1 park• dl'SSL' es tud o h,l\"i ,1 sido publica d,1 L'Ill J. 1.l' Cllff L' 11.
!\or,1 1d ir. 1, hiil'I' tÍt' / '1,i~tt>irc, op. (if ., t. 1, p p. )--i 1, S()b o tít ulo " L't>pl;r,llion h istoriq ue") .
;\ MLM(lR l i\ , A HI ST(l R IA, ll FSQ U l:C IM ENHJ

livro" (op. cit., p. 75). A arquite tura em m ú ltipl os níveis desséls unidades socia is que
constituem os arquivos reclama uma aná lise d o ato de inserção e m arquivo, de a rqui-
vamento, su sce tível d e ser loca lizado numa cad eia d e ope rações veritati vas, te ndo p or
termo provisório o estabelecimento da prova d ocumental 11 . Antes da explicação, no
sentido preciso d o estabelecimento d as respostas em "porque" às pe rguntas e m "p or
quê? ", há o estabelecimento das fontes, o quéll, como diz Certea u com propriedade,
cons iste e m "redis tribuir o espaço" que os colecion adores de "raridades", p a ra falar
como Foucault, já ha via m quadriculado. Certeau chama d e " luga r" "o que p e rm ite e
o que proíbe" (op. cit., p. 78) essa o u aquela esp éc ie de discurso em que se enquadra m
as op erações propriamente cognitivas.
Esse gesto d e separa r, de reunir, de coletar é o obje to d e uma disciplina d istinta,
a arqui vís tica, à qual a epistemologia d a operação histórica d eve a descrição d os tra-
ços por meio d os quais o arquivo promove a ruptura com o ouvir-di zer do testemu-
nho o ral. N aturél lme ntc, se os escritos constitue m a porção principal d os dep ósitos de
arqui vos, e se e ntre os escritos os testemunhos das p essoas do passado constituem
o primeiro núcleo, todos os tipos de ras tros possuem a vocação de ser a rq ui vados.
Nesse sentido, a noção de a rquivo restitui ao gesto d e escrever toda a a mplitude que
lhe confe re o mi.to d o Fcdro. Pela m esm a razão, tod a defesa do arqui vo perm a necerá
e m susp enso, na m edida em que não sabe mos, e talvez não saiba m os jama is, se a
passagem do teste munho oral ao testemunho escri to, ao d ocumento de arq uivo, é,
qu anto a sua utilidad e o u seus inconve nientes para a m em ória v iva, reméd io o u ve-
neno - plwnnnkon ...
Proponho recoloca r no quadro dessa dia !ética e ntre mem ó ri a e históri a as n o tações
que e u dedicava à noção d e a rquivo em Tempo e 11nrrntiva 14 • Aqui a ê n fase será dad a
aos traços por meio dos q ua is o a rquivo prom ove a r up tu ra com o ouv ir-dizer dotes-
temunho oral. Assume o primeiro plano a inicia ti va d e uma pessoa física ou jurídica
que v isa a preser va r os rastros de s ua própria a ti vidad e; essa inicia tiva inaug u ra o ato
de faze r história. Ve m em seguida a orga nização mais o u m enos siste m.Hica d o f un do
assim p osto d e lado. Ela con siste c m medidas físicas d e preser vação e e m operações
lóg icas d e classificação dep ende ntes qua ndo nccess,fri o d e u ma técnica elevada ao ní-
vel a rquivístico. Ambos os proced ime ntos são postos a serv iço d o terceiro m omento, o
d a consulta do fund o d e ntro dos limites d as reg ras que lhe autoriza m o acesso1' .

33 Certcau trn ta do L'Stabclccinwn to dos "documen tos" no quadro da segu nda ope rnçi'ío h istorio-
grMica que ele coloca sob o títu lo " Une pratiq ue " l' o subtítu lo " LX•tnb lissemcnt dcs sourccs ou la
n •dist ributio n dl• l'L•span•" (Ce rtt.•,1 u, f,'Écrit 11n· de /"/,ístoirc, op. cif., p p. 84-89). " Em h istória, tudo
começa com o ge sto de SL'pa r,H, de reun ir, de t rans for m ar assim em 'documentos' certos objetos
d is trib u ídos lk out ra forma . Fssa nova dist r ibuiçi'ío cultu ra l é o prim eiro trnba lho " (ihid ., p. 84).
34 P. J{icceur, ·fr11 11,~ cl !?.,;, íl , t. Ili , "V <"ÍI .
35 Fra nçoise l lildcslw inw r, l.cs Ard1i,•c~ de Fn111n·. Ml;IIIPÍrl' de /'llisloirc, Pa ris, Ho noré Chn m p ion,
1997. Jcíln F,ivil'r e l),111 ii:·k Nl'iri nck, "Ll's arc hi ves", in Fr,111çois Bt·darida, L' Histoírc e/ /e Md ic r
d'l,istoric11 1·11 rm11c,·, 19-L"i-199.'i, l'ílris, Éd . d e ln Mn ison des sc iences d e l' honrnw , 1995, pp. 89-110.
Os autores íldo larn ,1 ddi niç."hi de ,irquivos, t'SpL•c ia lnwnte ampla, dnda pela lei fra ncesa de 1979:
"O s arqui\"(1s s,10 1> conjunto d os dnc u nw n tos, indcpl'ndl·ntl'nw ntc dl' s un dntíl, de su,1 form ,1 l'
HIST(lRI .\ / fl' I S! F \!l)lllCI ,\

Se considerarmos, com todas as ressa h·as que faremos mais adiante, que o es-
sencial de um fundo de arquivos consiste em textos, e se desejar mos realmente nos
atermos àqueles, dentre esses textos, que são testemunhos d eixados pelos contem-
porâneos que tiveram acesso ao fund o, a mudança de estatuto do testemunho falado
ao de a rquivo con stitui a primeira mutação historiadora da memória viva submetida
a nosso exame. Pode-se então dizer desses testemunhos escritos o que diz o Fcdro
dos "discursos escritos": "Outra coisa: quando de uma vez por todas foi escrito, cada
discurso vai rolar de um lado para outro e passar indiferentemente por aqueles que
o compreendem, como por aqueles que não se interessa m por ele; ademais, ele não
sabe quem são aqueles a quem deve ou não se dirigir. Se, por outro lado, se ele\·a-
rern a seu respeito vozes discordantes e se ele for injustamente injuriado, ele precisa
sempre do socorro de seu pai, pois é incapaz de defender-se ou de salvar-se sozinho"
(275d,e). Em certo sentido, é exatamen te assim: como toda escrita, um documento de
arquivo está aberto a quem quer que saiba ler; ele não tem, portanto, um destinatá rio
design ado, diferentemente do testemunho oral, dirigido a um interlocutor preciso;
além disso, o documento que dorme nos arquivos é não somente mudo, mas órfão;
os testemunhos que encerra desligaram-se dos autores que os "pusera m no mundo";
estão submetidos aos cu idados de quem tem competência para interrogá-los e assi m
defendê-los, prestar-lhes socorro e assistência. Na cultura histórica que é a nossa, o ar-
qui\'o adquiriu autoridade sobre quem o consulta; pode-se fa lar, como diremos mais
ad ia nte, em revolu ção documental. Em uma fase hoje considerada ultrapassada dos
estudos históricos, o traba lho nos arquivos tinha a reputação de embasa r a objetivi-
dade do conhecimento historiador, assim abrigado da s ubje ti \'idade do his toriador.
Para uma concepção menos passiva da consulta dos arquivos, a muda nça de signo,
que faz do tex to órfão um texto dotado de autoridade, está ligada ao acoplamento do
tes tem unho com uma heurística da pro\·a. Esse acoplame nto é comum ao testemunho
perante o tribunal e ao testemu nho recolhido pelo historiador profissional. Pede-se
ao testemunho que dê prova. É então o testemunho que presta socorro e assistên-
cia ao orador ou ao historiador que o im·oca. No que concerne mais especificamente
à históriJ , a ele\'ação do tes temunho à condição de pn)\'a documental marca rá esse
tempo forte da inversão na relação de assistê nciJ que o escrito exe rce em relação a
essa "memória de apoio", essa '111p(JJl/lil'/llt', memória artificic1l por excelência, à qua l
o 1nito consentia apenas um segu ndo lugar. Indepe nd entemente das peripfrias da
história documental - positivismo ou não - o frenesi documental apoderou-se da
época . Evoca remos, em um a fase mais ,1\·a n çada do presente di scurso (te rceira parte,
c,1pít ulo 2), o p,1\'or de Yerushalmi confrontado com a maré a rqui va i, e a exclamação
de Pierre Nora: "Arqui,·em, arq ui\'L'm, sempre sobrMÚ algo! " Assim reerguido de sua
indignidade e votc1do à in solê ncia, tornou-se o pl11m11oko11 do documento arquivado
ma is ,·eneno que remédio?

de se u s uporte material , prndu Lidos n u 1·L'Cl'bidos p o r tod ,1 p essn ,1 físic,1 n u ju r ídic a (' p o r todn
~cn·iço ou úrg.'lo públin1 ou pri\'ado no l''\LTc ício dv s u,1 ati\·id,1de" (Mt. cit., p. 9::l ).
/\ MFM()RJ/\, /\ IIISTÚ RI/\, O FSQ UFCIMENT()

Sigamos o historiador até os arquivos. Nós o faremos na companhia de Marc


Bloch, que provavelmente foi o historiador que com mais propriedade d elimitou o
lugar do tes temunho na construçã.o do fato histórico1h. O recurso da história ao teste-
munho não é fortuito. Está fundado na própria definição do obje to da história: não é
o passado, não é o tempo, são "os homens no tempo". Por que não o tempo? A prin-
cípio porque ele é o meio, "o plasma onde estão imersos os fenômenos e como que o
lugar d e sua inteligibilidade" (Bloch, Apologic pour l'/Jistoirc 011 Métier d'ltistorien, p. 52).
(Dito d e outra forma, corno foi explicado mais acima, o tempo enqua nto tal constitui
uma das condições formais da efetividade hi s tórica); em seguida, porque ele retorna
como va riável em meio aos objetos por conta de seus ritmos, como dev ia verificá-lo a
problemática braudeliana dos tempos sociais; além disso, a natureza física também se
desenvolve no tempo, e nesse sentido amplo tem uma história; enfim, porque a
fosci nação pelas orige ns- esse "ídolo das origens" - se deve à tematização direta e
exclusiva do tempo; é por isso que a referência aos homens deve figurar na definição.
Mas trata-se dos "homens no tempo", o que implica uma relação fundamental entre o
presente e o passado. É graças a essa dialética - "compreender o prese nte pelo pas-
sado" e, correlativamente, "compreender o passado pelo presente" - que a categoria
do testemunho entra em cena na condição de rastro do passado no presente. O rastro
é, assim, o conceito superior sob cuja égide Marc Bloch coloca o testemunho. Ele cons-
titui o operador, por excelência, de um conhecimento "indireto".
Marc Bloch divide em doi s painéis seu exame das relações da história com o tes-
temunho.
O primeiro tem o título de "observação histórica" (capítulo 2). O segundo, o de
"crítica" (capítulo 3).
Se se pode falar de observação em história, é porque o rastro é para o conheci-
mento histórico o que a observação direta ou instrumental é para as ciências naturai s.
O testemunho figura aí na condição d e primeira subcategoria; ele traz de imediato a
marca que disting ue seu emprego na história de seu emprego nas trocas ordinárias
nas quais predomina a oralidade. É um rastro escrito, aquele que o his toriador en-
contra nos documentos d e arquivos. Enquanto nas trocas ordinárias o testemunho e
s ua recepção são globalmente contemporâneos, na história o testemunho se insc reve
na relação entre o passado e o presente, no movimento da compreensão de um pelo
outro. A escrita é, então, a mediação de uma ciência essencialmente retrospectiva, de
um pensamento "às avessas".
Mas existem rastros que não são "testemunhos escritos" e que dependem ig ual-
mente da observação histórica, a saber, os "vestígios do passado" (op. cit., p. 70) que
fazem a felicidade da arqueologia: cacos, ferramentas, moed as, imagens pintadas ou
esculpidas, mobiliá rio, objetos funerários, restos de moradias, etc. Pode-se, por exten-

36 Mzirc !Jloch, /lpo /o:,;it· 11011r /'/J i~loire 0 11 Méticr d' /Ji~loric11 , prefacio de J.icques Le Coff, P.iris, M.isson ,
A rrna nd Colin, 1993-1997 (l '' ed., Paris, A rm.ind Colin, '1974, prcfrício de Ccorges Duby). A redação
da obrzi, compostil na sol idiio, longl' d,1s biblioteczi s, foi interrompida pl'IJ prisão do grande histo-
riador, con du z ido a seu dcs ti no.
IIISH\ i/ 1.\ / fl'ISTF\101.0LI A

são, chamá-los "teste munhos não-escritos", correndo o risco de uma confusão com os
testemu nhos ora is a cuja sorte retornaremos mais adiante' ~. Veremos, a lém disso, os
testemunhos repartirem-se entre testemunhos voluntários, destinados à posteridade,
e aqueles das teste munhas a cont ragosto, alvos da indiscrição e do apetite do h isto-
riador \.'. Essa cadeia de definições - ciência dos homens no tempo, con hecimento
por rastros, testemunhos escritos e não-escritos, testemunhos ,·oluntár ios e im·olun-
tários - asseg ura o estatuto da história corno ofício e do h istoriador como artesão.
Finalmente, "é nas testemunhas a contragosto que a investigação, no curso de seu s
progressos, foi le,·ada a depos itar cad a ,·ez m ais sua confiança" (op. cit., p. 75) . Com
efeito, à parte as confissões, as autobiografias e o utros diá rios, os documentos oficiais,
os papéis secretos de chancelaria e a lguns relatos confidencia is de che fes militares,
os documentos de a rqui vos provêm em sua maioria de teste munhas a contragosto.
A disparidade dos materiais que po,·oam os arq ui vos é d e fato imensa. Seu domínio
reclama técnicas eruditas, ou mesmo a prática d e disciplinas au xiliares precisas e a
cons ulta de guias diversos para re unir os doc umen tos necess,irios à investigação. O
historiado r profissiona l é aquele que tem sempre em m ente a p erg unta: "Como posso
sabe r o que vou di zer-lhes?" (op. cit., p. 82)'". Essa disposição d e espírito define a hi s-
tória como "investigação", seg undo a etimolog ia grega da palana.
o seio da obsen'ação, essa relação com os "testemun hos do tempo" (op. cit.,
p. 69) - esses "di zeres de outrem" conservados nos arqui\'OS - basta para traça r
duas linhas de con tras te: uma pa ssa entre a história e a sociologia, a o utra a tra\·es-
sa a história dividindo-a entre d uas a titud es metodológicas opostas. A sociologia,
aque la de Durkheim, e nqu a nto indiferente ao tempo, nos inclina a ve r na muda n-
ça um resíduo que e la confia p or cond escendência aos hi storiadores. A defesa da
história será, nesse aspec to, necessariamente uma defesa do acontecimento, essa
contraparte pri\'ilegiada do testemunho, corno diremos m a is adia nte (é na linh a d e
pensa mento t rnçada por Marc Bloch que se inscreverá o discurso d e Pierre Nora e m
fa\'or do "retorno do acontecimento"). A luta entre história e sociolog ia será d ura e
por \'ezes impie dosa, m esmo que Marc Bloc h admita te r aprendido com os soció lo-
gos "a p e nsa r[ ... ] d e modo menos banal ". A seg und a linha di,·isória é aquela que
opõe um método lucid amente reconst r uti vo, em razão de seu relacionamento a ti\'o

37 Propore i m,1 is ,1d i,rnte rt'forçar ,l d is ti 111;,iti L'nlrt' ,ls du.:i s L'Spécit':-. d l' tl'stl'mu n h1i, esc ritos e n,io-
t'scritus, comparando ,1 sl'gunda d ,1 n llç,io de indkio e de conhL·ci nwnttl indic i,í rio propo:-.t,1 por
C M lo Cinzburg.
38 "O bom histori ,1dor, por s ua VL'/., part'Ct' o llgro d ,1 lernfo . Ondt• ic1rt'i ,1 c,HllL' hum ,1nc1, cl t• -;c1Lw qul'
'.->l' encontra st1c1 c1ç,1" (Rloch, 11polo:,:i,· p1>11r /'lii~!t>il'!', up. !'il., p . ::; 1).
39 Ser,í p1-ecis1l l'\'!lCM, ,1lé m disso, ,1 tr,1g i IiLfad t• físi ca dlls docu mcnt()s ck ,irq u ivos, ,is cc1lcístrtlÍL'S n,1-
tu rai s L' as c.it,b trcifes h is t!íricc1 s, os pequenos L' g r,1 ndes dl's,1 s trL'S d,1 hu manid,,dl'? Retorn,HL'lllll'-
,1 isso quando cheg,H () momento, ao f,1larmos do L'"lJUt'c inw n tll com o apagaml'nto dlis r,1 st ms,
pa rt icularmcn!L' o :- doc uml'nt.1 is (cf. tL' rceir,1 p,1r k , pp. -12K--+l::;J_
/\ ML-:MÚRI/\, i\ III ST(lRl i\, O ES(JU EC IM ENTO

com os rastros, a um método que Marc Bloch tac h a de "positivismo", o d e seus mes-
tres Seignobos e Langloi s, cuja preguiça menta l ele ridiculariza 'º.
O segundo painel sobre o qual prossegue o exame das relações da história com
os testemunhos escritos e não-escritos é o da "crítica". Esse termo especifica a história
como ciência. É claro que a contestação e o co nfronto ex istem entre os homens fora
dos procedimentos jurídicos e dos da crítica histórica. Mas só a submissão a prova dos
testemunhos escritos, junto com a dos outros rastros que são os vestígios, tem d ado
luga r a uma crítica cm um sentido digno desse nome. De fato, foi na esfera histórica
que a própria palavra crítica apareceu com o sentido de corroboração dos dizeres de
outrem, antes d e assumir a função transcendental que lhe atribuirá Kant no plano
da exploração dos limites da faculdade de conhecer. A crítica histórica abriu para si
um caminho difícil entre a credulidade espontânea e o ceticismo de princípio dos
pirrônicos. E além d o simples bom senso. Podemos fazer remontar a Lore nzo Vai la, A
doação de Constantino, o nascimento da crítica histórica 41 • Sua idade de ouro é ilustrada

40 Terá C ha rles Seig nobos rea lmente dito: "É mu ito ú t il propor questões a si mesmo, mas mu ito pe-
rigoso respondê-la s"? Ma rc Bloch, que duv ida dessas palavras e mbora as cite, resolve acrescentar:
" Não se t rnta aqui certamente da fala de um fanfarrão. Porém, St' uns físicos não ti vessem sido tão
intrépidos, em que pé es ta ria a fís ica?" (Bloch, A pologic pour /'liistoirc, op. cit ., p. 45.)
41 Lorenzo Va lia, Ln Oo1111tio11 de Co11sta11ti11 (Sur la " D 0n11tio11 de Co11stt111fi11 ", à fui fau%c1J1c11t attríbuéc e/
circn 1440), trad. franc. de Jean-Baptis te G iard, Paris, Les Bclles Lettres, 1993, p refácio
111e11:;011g(' rc,
de Ca rio C inzburg. Esse texto fundador da crítica histórica coloca um problema de leitura e de
inte rpretação na medida e m que fa z "coexistir na mesmíl obra retórica e fi lolog ia, di,ílogo fictício
e di scussão minuciosa das prov,1s documenta is" (C in zbu rg, op. cit., p. XV). É p rec iso re montar à
l~cfóricn de Aristôtclcs para encontrar um modelo retórico para o qual as provas (tn tck111fria) (1354a)
dependem da rac iona lidade própria da retórica, cm torno das noçôes de "persuas ivo" e de "pro-
vável". É cla ro que Aristóteles t inha e m vist,1 a forma judiciária da re tóric;1, e nca rregad a, e ntre as
"ações humanas" (111 pmtto11t11) (1357a), d as ações passadas (1358b), ao cont rá rio da re tórica d elibe-
rativa, a mais nobre, encarregad a das ações futuras, e d a retórica cpidê itica que rege o louvor e a
censura das ações presentes. Esse modelo foi transmi tido aos e ruditos do Renascimento italiano
por Quinti liano, bem conhecido de Valia, na /11stit11tío omtorí11, cujo Livro V conté m um amplo
desenvolvimento a respeito d as provas, e ntre as qua is se encontram os documentos (/11/111/ac), tai s
como os testa mentos e papéis oficiais. "O Decreto de Co11s/1111ti110, obsprva Gin zburg, podia muito
bem en trar nessa última categoria" (Ginzb u rg, op. cít., p. XVI). Re posicionada contra esse pano
de fundo, a mi stu ra dos gêneros na escrita de Va li a é menos su rpreend en te. Ela é feita em duas
partes. Na primeira, Valia s uste nta que a do,1ção d e boa parte das possessões imper ia is que Cons-
tantino teria fe ito ao papa Si lvestre não é absolutamente p lausível; essa parte retórica orga ni za-se
cm torno do di á logo fi ctício ent re Consta ntino e o papa Sil vestre. Na seg unda, Va lia a rgu menta,
com basL' em muitas provas lógicas, estilísticas e do tipo "antiqu ário", pa ra d emon stra r que o
doc umento sobre o q ua l se fundamentil a doaçã o (o pretenso Dccrdo de Co11st11 11t i110) é fa lso.
Partindo da confissão de que "a di stância en tre o Valia polemista e retc'irico e o Va li a iniciador da
crítica histórica moderna p arece impossÍVL'I de cob rir" (C in ;,,burg, op. cit. , p. XI), Ginzburg pole-
miza contra contemporáneos seus que, n,1 esteira de N ie tzsche, recorrem à retórica corno a um a
máquin a de gue rra cé·tiGl contra o pretenso positiv is mo tena z dos historiadores. Para preen che r
esse abismo e rt>enco ntrar um uso apropriado à his to riografia da noção de prova, Cin zburg pro-
põe re montar àquele momento precioso cm que, no prolonga mento de Aristóteles e de Qu inti lia-
no, retórica e prova não estão d issociadas. /\. retó r ica tem de seu lc1do a rac iona lidade que lhe(·
p rópria; (1uanto à prova c m histú ria, como o demonstra o importante ;i rti go de Gin zburg sobre o
"paradigma indic iá ri o" que d iscuto mai s ad iantl', ela n ão obedece principa lmente ao modelo ga-
lilea no do qual procede ,1 versão positiva ou me todológica d a prova documental. Por isso a d ívida
HIST(ll/J..\ / Fl'ISTI \llll ClCI:\

por três grandes nomes: o jesuíta Papebrocck, da congregação dos bollandi stas, fun-
dador da hagiografia científica, dom Mabillon, o beneditino de Saint-Maur, fu ndador
da diplomática, Richard Si mon, o oratoriano que marca os começos ela exegese bíblica
crítica. A esses três nomes é preciso acrescentar o de Spinoza e seu Tratado tt'olôgico-
político e o de Bayle, o duvidador de múltiplos alvos. Será preciso, além disso, enxar
Descartes? Não, se sublinharmos o aspecto matemático d o MNodo, sim, se compa-
ra rmos a dúvida dos hi storiadores à dth ·ida metodológica ca rtesia na~". A " luta com
o documento", como diz Marc Bloch com propriedade, está fu ndada. Sua estratégia
p rincipal consiste em examinar as fontes a fi m de distinguir o verdadeiro do falso, e,
para tanto, cm "fazer falar" testemu n has das q uai s se sabe que p odem engana r-se ou
mentir, não pa ra confundi-las, mas "para compreendê-las" (op. cit., p. 94).
A essa crítica devemos urna cartografia ou urna tipologia dos "maus testemunhos"
(ihid.), cujos resultados poderíamos compara r com os do Tratado das pro-uns judiciais de
J. Bentharn, que Marc Bloch pode ter conhecido, mas cm relação ao qual a crítica his-
toriadora, sob todos os aspectos, es téi bem n a dianteira~'.

O percurso de Marc Bloch é exemplar. Partindo do fa to d a i1npostura, como logro


planejado sobre o fund o, ele passa às razões para mentir, mistificar e frauda r que
podem ser as de indiv íduos engenhosos, fraudadores interessad os, ou as que são co-
muns num a época propícia às fabulaçõcs. Ele considera cm seguida as formas mais
insidiosas do logro: rernanejan1entos sorrateiros, interpolações h ábeis. É dado espaço
aos erros involuntários e às imprecisôes propriamente patológicas que dependem da
psicologia do testemunho (um a obsen ·açào interessante: as contingênci as dos aconte-
cimentos são mais propíci as ao erro do que os móveis íntimos dos destinos humanos).
Marc Bloch não hesita cm ti ra r partido de sua experiência de combatente nas d uas
gra ndes g uerras do século XX para compara r sua experiência de historiador, princi-
palmente rnedieva lista, à do cidadão engajado, atento ao papel da propaganda e da
censura e aos efeitos perniciosos dos rumores.
Ma rc Bloch en xerta seu "Essa i d 'une log ique de la méthodc critique" (op. cit.,
pp. 107-123) nessa t ipologia; esse ensaio desbrava um , ·as to terreno, trabalhado por
muitos depois dele. No centro: o trabalho de comparação e seu jogo de semelhanças e
d iferenças; a contnwérsia ordin ária é aq ui exe mpla rmente exposta em for ma técnica.

dos histo riadores p.ira com Lorcnzo \\1lla 0 grande: dl'lc procede a crudi ç,'\o bt'ncditina da con-
grq;açiio de S,1 int-\1 aur, e a inW'nção por J. \.1<1b illon d.1 diplom át ica (cf. 13landine B,1 rret-Kricgel ,
1.'/ /i,; loir<' ri l 'ág<' t'i,1.,,;i,111c, P.uis, Pu r, 1988). Essa busc,1 da \·er,Kidadt' doeu menta I é ree n cuntrada
nas rcgr,1s lllL'todológiG1s de c rítica interna L' l':>. tern,1 das fonks no séc ulo XX com a escola meto-
d o l\ÍgiL"<l dL' :\ lonud , Lrng lois, Se ignobos, i.,l\ issL', Fustcl dL' Coulangl's .
-t2 11,1, í,1mos cru 1,1do C\) 111 Ül'scartes u1n.1 prinwir,1 \'l' Z por o c,1si ,ill do declínio e da m,1rte d ,1 ar,
111,·111,m,1,• ,lp(°iS C i, ,rd,m() Bruno : ci. aci 111 ,1, p rinwi r,l p,Hll', c,1p. 2, pp. Sl-82.

-t~ 1-.d i,;,io o rig in ,1 1 ,: rn Ír,lllCL'S dl' ÉtiL'11tlL' Durnunt, l'.iri s, B()ss,1 n gc ; trad ing l., Lond rl's, lt1ld\,·in ,
IK2:i. A rL'spc ito d L'SSL' tr<1t.1do dL' J. BL•nth ,1111. consulk-sl' R. l) uhlng (L,• T1;J11oi11 0(11/oirc, tip. ât.,
p~1. l.lLJ-·1~2) L' CatlwrinL' ,\ud.ird , J\11//,,1/,1sic /1 f,1,,,.iqu,· ct crit iq11,· de /'11t i/itaris111c, t. l, R,·11//w 111 e/ ,;e,
/'IÚ 11r, c11r, 11-; 1 / - 1;:, ,2;, ll'., tus sck-c ion,1d,1s L' ,1J1 rt"SL'nUdos por C 1tlw ri lll' Audc1rd, l'.uis, PUF, JLJ99.
/1 MEMé) Rl/1, A H IST é)R I A , O LSQUECIMl:\: TO

Além da interdição elementar da contradição form a l - um acontecime nto não pode


ao m esmo tempo ser e n ão ser-, a argumentação vai d a arte de desm ascara r as im-
perícias dos plag iários, de discernir as inverossimilhanças no tórias, até a lógica das
probabilidades 44 . Nesse aspecto, Ma rc Bloch não comete o erro d e confundir a pro-
babilidade da produção de um acontecimento - qua l seria n a história o equivalente
da igua ldade inicial d as p ossibilidades no jogo de d ados? "Na crítica do tes temunho,
quase todos os dados são v iciados" (op. cit., p. 116) - com a probabilidade do juízo
de autenticidade produzido pelo leitor de arquivos. Entre o pró e o contra, a d úvida
se fa z instrumento de conhecimento na avaliação dos g raus de verossimilha nça d a
combinação escolhida . Talvez se devesse fa lar tanto de plausibilidade quanto de pro-
l
babilidade. Plausível é o a rg umento digno de ser d efendido em uma contestação.
Acabamos d e sugeri-lo : resta muito a fazer quanto aos procedimentos de va lidação
da prova e ao critério de coerência externa e interna, e muitos trabalham nesse campo.
Pareceu-me oportuno compara r a contribuição de Marc Bloch para essa lógica do mé-
todo crítico à d e Cario Ginzburg concernente ao "paradigma indiciário"4'i. Com efeito,
a aná lise d e Ma rc Bloch deixa d esm arcad a a noção d e vestíg io, evocad a a propósito
da arqueologia e reduzida rapida mente à noção de testemunho não-escrito. O ra, os
vestígios d esempenham um papel n ão desprezível na corroboração dos testemunhos,
como o confirma m as perícias policiais e a interpre tação d os testemunhos o rais ou
escritos. Ca rio Ginzburg fa la aqui de indício e de paradig ma indiciário, corajosa mente
contraposto ao paradig ma galileano da ciên cia.
Duas p erg untas se colocam: quais são os usos do indício cuja convergência auto-
riza os reag rupa mentos sob um único paradig ma?~ 6 Por outro lado, o que di zer i11 fi ne
da relação do indício com o testemunho?
A resposta à primeira pergunta é cons truíd a pelo texto. No ponto d e partida: a
evocação de um hábil apreciador d a a rte-o fa moso Morelli q ue Fre ud invoca em seu
estudo O Moisés de Micl1elm1gclo - que recorreu ao exame de d etalhes ap arentemen te
negligenc iáveis (o contorno dos lóbulos d as orelha s) para desmascara r as cópias fal sas
de pinturas orig inais . Ora, esse método indiciário fez a fel icidade d o dete tive Sherlock
Holmes e, após ele, d e todos os autores de rom a nces policiais. Freud reconhece a í u ma
das fontes d a psican álise, "h abilitad a a adi v inhar as coisas secretas e escondidas a
parti r de traços subestimados ou que não são levados em conta, a pa rtir do rebota lho
da observação" (Le Moise de Mic/1cl-Ange). Os lapsos não cons tituem indícios nesse
sentido, quando os controles se afrouxam e d eixam escapar sig nos incong ruentes?
Pouco a pouco, tod a a semiótica méd ica, com seu conceito de sintoma, se deixa rea-
grupar sob essa categoria de indício. Em segundo pla no se d eixa evoca r o saber elos

4-i "Aqu i, a invest igaçiio h istórica, como ta ntas o utras disc iplinas do espírito, cruza e m seu camin ho
a estrad a régi<1 d a teoria d ,1s p roba bilid íl des" (Bloc h, A pologic pour J'/1istoire, op. cit., p. 11 5).
45 Ca rl o G i nzb urg, "Traces. Rílc ines d ' u n píl rad igme i nd iciíl i re", i n Mytlics, E111/1/i•111('S, Tmccs. Mor11ho-
losic ct hisloirc, op. cit., pp. 139-180.
4(, A co m p<1rílção ex ige do autor umíl erud ição e um a s ut ilezzi sem igua is : p <1ra um m tigo de um as
qu nre ntn p.íginns, um aparn to c rítico d e cento e tri nta e ntrad as.
II IS l ( l R I .-\ / F l'I STl \ l (l l .t lC,I ,\

caçad o res de outrora, decifradores de pistas mudas. Em seguid a \'ê m a s escritas, e a


pró pr ia escrita d a qua l di z G in zburg q ue "ela també m corno a adi v in ha ção d esig nm·a
coisas po r m eio d e coisas" (Mythes, E111l1h'111c~, Tmces, p. 150). É en tão toda a semiótica
que se revela indic iária. O que permite a esse fe ixe de discipli nas con stituir-se e m
pa radig ma? V,frias carac te rísticas: a s ing ularidade da coisa decifrada - o carciter in-
direto da decifração - seu caráter conje tural (term o pro\·eniente da adivinhação) r . E
e is que surge a hi stória: "Tudo isso explica por que a h istúria nunca con seguiu tornar-
se um é1 ciência galilea n a. [ .. .] Como o d o m édico, o conhecimen to hi s tórico é indire to,
ind icitírio e conjet ura l" (op. cit., p. 15-l). N isso c1 esc r ita, a tex tualid ad e, que d esm a teria-
liz a a oralidade, n éio m uda coi sa a lg uma, p o is é a inda e sempre de caso s indi\·id uais
que trata o historiador. É a essa rel ação com a sing ula ridade que Ginzburg \'incula o
cMciter probabilístico d o conhecime nto h istórico.
O ca mpo abe rto p elo paradig m a indiciá rio é imen so : "Se a rea lidade é opaca, exis-
te m zonas privileg iad as - rastros, indícios - que permitem d ec ifrá- la . Essa id é ia,
que constitui o núcleo do paradig m a indició.rio o u scmiótico, prog rediu nos do mí-
ni os m ais va ri ad os d o conhecime nto e moldou p ro funda mente as ciência s h uma n as"
(op. cit., p p. 177-178) .
Coloca-se agora a seg unda pe rg unta : a d o lugar do pa radi g m a indic iário de Ca rlo
Ginzburg com re lação à crítica do testemunho d e Marc Bloch e de seus s ucessores.
Não pen so que seja o caso de escolher e ntre as duas análises. Ao englobar o conhe-
cimento h istó rico sob o paradig m a indiciário, C. Gin zburg e nfraquece se u conceito
d e indício, que se beneficia ao ser oposto ao d e testem unho escrito . ln \'ersam e nte, o
trata m ento p or M. Bloch d os vest ígios com o teste munhos n,i o-esc ritos prejudica a es-
pecificidade do teste munho corno intermediário d a memória em su a fase decla rati\·a
e s ua ex pressão narra ti \'a . O ind ício é referenc iad o e d ecifrado; o testemunho é d ado
e cr iticado. Certa m e nte, é a m esm a sagacidade q ue preside às d u as séries d e opera-
çôes. Mas seu s p ontos de aplicação são dist intos. A se mio log ia indiciá ri a exerce se u
papel de comple m e nto, d e con trole, de corroboração em relação ao testem unh o ora l
ou escrito, n a m e dida m esma em que os sig n o s que ela dec ifrc1 n ão são de or dem ,·er-
b a l: impressões dig itais, arquivos fo tog rá fi cos e, ho je em dia, exames de DNA - essa
a ss inatura biológica do ser v ivo - "testemu n h a m" p or seu mu tism o. Os discu rsos
d iferem entre si de m a ne ira dife rente que os lób u los d as orel ha s.
O benefício d a con tri b u ição de C. C in zburg é e ntão o d e esta be lece r uma d ialética
d o ind íc io e d o testemunho no inte ri o r d a noção de rastro e de, assim, dar ao con ceito
de d oc umento toda su a en vergad ura . Ao ir1esmo tem p o, a re lação d e comple m en ta-
rid ad e e ntre testemunh o e indício \'Cm inscreve r-se n o círculo d a coerên cia intern a-
externa q ue estr ut ura a p rova d ocumen ta l.
De u m lad o, co m efei to, a noção d e ras tro pode ser tid a como a ra iz c0IT1um ao
testem unho e ao ind ício. A esse resp eito, s u a or igem cineg é tica é sig n ifiGüi \·a: u m

-17 Essa ü ltim a carackrístirc1 aparL'n l,1 ,1 ink lig(•ncia ind ic i,í ri.i, ,-,1 pid,1 L' s util , ,i 111 l't is dos g rl'gl1" ,111,1-
li s,1d ,1 e m M . Dl't ie11 t1L' L' .J .-1'. Vernant, L,·~ I.Z.11,,·, de /'i11tt'll(~t'11ú ': /11 1//f' lis ,/,·~ Crct"s, P.1ris . i: I,1111m,1-
rio11, l lJ7-l; 2,1 l' d ., cu l. "C h,1mps", 1978 ; i'' L'd., 1989.
animal passou por ali e deixou seu rastro. É um indício. Mas, por extensão, o indício
pode ser considerado uma escrita na medida cm que a ana logia da impressão adere
originariamente à evocação da marca da letra, para não falar da analogia, também ela
primitiva, entre cikõ11, gra fia e pintura, evocada no início de nossa fenomenologia da
memória~~. Além disso, a própria escrita é uma d eterminada grafia e, nesse aspecto,
uma espécie de indício; por outro lado, a grafologia trata da escrita, seu ductus, seu
trato, segundo o modo indiciário. Inversamente, nesse jogo de analogias, o ind ício
merece ser chamado testemunho não-escrito, à maneira de Marc Bloch. Mas essas
trocas entre indícios e testemunhos não devem impedir que se preserve sua diferença
de uso. Tudo considerado, o beneficiário da operação seria o conceito de documento,
soma dos indícios e dos testemunhos, cuja a mplitude final alcança a amplitude inicial
do rastro~".
Resta o caso limite d e certos testemunhos fundamentalmente orais, ainda que es-
critos na dor, cujo arquivamento é questionado, a ponto de suscitar uma verdadeira
crise do testemunho. Trata-se essencialmente dos testemunhos dos que se salvaram
dos campos de extermínio da Shoah, chamada de Holocausto no meio anglo-saxô-
nico. Havia m sido precedidos pelos dos sobreviventes da Primeira Guerra mundial,
mas somente eles levantaram os problemas de que falaremos. Renaud Dulong co-
locou-os no ponto crítico de sua obra Lc Ténzoin ornlnire: "Témoigner de l'intérieur
d'une vie témoignante", tal é o título sob o qual ele coloca uma obra como a de Primo
Levi, Les Nm~frngés et lcs Rcscnpés"'º. Por que esse tipo de testemunho parece constituir
urna exceção dentro do processo historiográfico? Porque ele coloca um problema d e
acolhimento ao qual o arquivamento não responde e parece até inapropriado, provi-
soriamente incongruente. Trata-se de experiências extremas, propriamente extraordi-
nárias - que abrem para si um difícil caminho ao encontro de capacidades limitadas,
ordinárias de reccpção, de ouvintes educados para urna compreensão compartilhada.
Essa compreensão foi erigida sobre as bases de um senso da semelhança humana no
plano das situações, dos sentimentos, dos pensamentos, das ações. Ora, a experiên-
cia a ser transmitida é a de urna inumanidade sem compa ração com a experiência
do homem ordinário. É nesse sentido que se trata de experiências extremas. Assim é
antecipado um problema que só encontrará sua plena expressão no fim do percurso

48 C f. acima, primei rn parte, cap. 1.


49 A noção de documento, sob a qual se conjugc1m as noções de indício e de testemunho, ganha cm
precisão ao ser p os ta po r sua vt'7. de par com a noção de monumento. J. Lc Coff, em um artigo
" üocu rne nto/ monumento" da E11ciclopédit1 ü11a1ufi, Turim, Ei na udi, vol. V, pp. 14-48, 115() tradu-
zido na coleção de cnsa ios Mc111ârit1 L' l l islôrio, re traça a a v1:•n tu ra cruzada d,1s duas noções: o
d(lcume nto, reputado menos preocupado cm exibir a glória do hPrói, teria inicia lmente levado
a mdhor sobre o monunwnto, de finalidndc lm1datória; tod avia, p,u,1 um a crítica ideológ ica, o
documento 11,10 se revelaria menos tendencioso qul' o monumento. Daí a defesa do conceito misto
de docunwnto-monunwnto. Cf. Tc111ps l'I /~1;cit, t. Ili, º/'· cit ., pp. 2 '14-215.
50 l'ri mo Levi, Lc~ N1111fmg1\ ct lcs /~csn1pc\, op. cit. Esse Iivro, esc rito um ;ino antes do desap.i recimen-
to do a utor, é umrt long.i rcílcxiio sobre J obra precedente, Si c·l'~f 1111 /w,111111·... Leiil-Sl' em particu lc1 r
o c.ipít ulo de Lcs N11 11 fmg1·s e/ lcs l~c~rnpi\ intitulado "Curnmuniq uer".
-
III ST (lR I .-\ / Fi'i " IL \ l( ) l ()CL\

das operações historiográficas, o da represent,1ção historiadora e d e seus limites;'· Os


limites da inscrição e do arquivamento já são postos à pn)\"a, c1ntcs dos da ex plica-
ção e d a compreensão. É por isso que se pode falar de crise do teste munho. Para ser
rece bido, um testemunho deve ser apropriado, qu e r di zer, despoja do tanto qu anto
possíve l da estranheza absoluta qu e o horror engendra. Essa condição drástica não
é satisfeita no caso dos testemunhos dos que se salvaramª'. Uma razão suple m e n-
tar da difi culdade d e comunicar d eve-se ao fato d e qu e a teste11"1unha não este ,·e e l<1
m esm a distante d os aco ntecimentos; e la não "assist iu " a eles; e la mal foi um age n te,
um ato r; ela foi s ua vítima . Como "contar sua pró pria morte" ? pergunta Primo Le,·i.
A bMreira da vergonha acrescenta-se a todéls as dema is barreiras. Daí resulta que a
própr ia compreensão esperada d eve ser por sua vez julgamento, julga mento ÍIT1e dia-
to, julga m e nto sem m ediação, reprovação absoluta . O que, fin a lmente, fa;: a crise do
testemunho é qu e s u a irrupção destoa da conquista inm,g urad a por Lorenzo Valia em
A doação de Co11~tm1fi1w: tratava-se então de lutar contra a credulidade e a impostura ;
trata-se agora de lutar contra a incredulidade e a vontade de esquecer. Inversão d a
problem á tica?
E contudo, m esmo Pr imo Lev i esc re , ·e. Ele escreve após Robert A nte lmc, o autor
d e L'EspL' CL' '1w1111i11c;1, a pós Jean Améry, o autor d e /Jar-dclà /e cri11Jt' ct 1c c/1âti111 c11 t ;~ .
Escreveu-se até sobre seus escritos . E nós esc revemos aqui sobre a enunciação da im-
possibilida de d e comunicar e sobre o imperativo impossível d e testemunhar de qu e,
contudo, eles d ,'ío testem unho. Além disso, esses testemunhos dire tos encontram-se
prog ressivamente e nqu é1d rados, m as não absorv idos, pelos trabalhos de historiado-
res do tempo presente e p ela publicida d e dos grandes processos cri mina is cuja s sen-
ten ças caminham le ntamente na me mó ria coleti vé1 e cujo preço são rudes di~~c 11s11~;; _
É p or isso qu e, ao falar dessas "narrati,·as di re tas", não falarei como R. Ou long d e
"alerg ia à historiografi a" (Le Té111oi11 ornlairc, p. 219). A "a lergia à ex plicação cm gera l"
(op. cit., p. 220), qu e é certa, provoca an tes uma espl~cie de curto-circuito entre o m o-
mento do testemunho, no limiar d a operação his tórica, e o mo m ento da representação
em s ua expressão por escrito, por cim a da s e tapas do a rqui,·a m e nto, da explicação e
até mesmo da compreensão. M as é no mesmo espaço püblico d a historiografia que se
desenrola a cri se do teste munho após Auschvvitz.

:;1 É,, título da obr,1 1Hg,111i zada por Saul FricdlandL·r, l'rohi11g t/1c Li111 i t., o( l./.q,rc~c11tatit111 .\:,1: i~,11
1llld lhe 'Ti1111/ So/11tip11 "', Ca mbridge, M ,1s s .. L' Londres, H an<1rd Uni n ·rs ity l'rcss, 19lJ2; rt'l'd. l lJ%
(cf. adi,rntl', cap. 3 ).
52 Pri rn n Lcvi L·,·uca ,1 l'SSL' respe ito "a ,rngús ti,1 , in scrit,1 L'l11 c,1J ,1 um d t' 111"is, d,1 "b,1lb Lírd i,1 ', l1l > u n i-
, ·e rso dcsL•rto t' , ·.iz io, L's m agad o sob o L'Sp ír íto d e Lk us, m ,is do qu ,1 1 o L's píritn d o honwm L'St.i
a u senll' : ou c1ind c1 n !io ndscido, n u já c:x t in t,1 "' (l. c, ,\ J,111(mg,;s ,·t /(', l~ t'St'll/'t;_, , pp. 81-84 d c1 rL'L'd içZi,1 de
1994; ,1p ud R. Dulong, l.,· fr 111oi11 0( 11/uir,·, ,,,,_(li , p. tJ:i) .
:i3 R. A ntclnw, L'Esl'i·c,· li1111111inc, Paris . C ,1llimard , 19::;7.
,4 J. /\ m0ry, /111r-dclà it' l'ri111e e/ /e c/111t i111,·J1t. L.,., ,IÍ pou r s11 r111l>11/t'r /"i 1h11 m 1011 t11/1/c, Pt1ri s, Actl':-- Sud .
] l)l/'i.

::i::i C f. ,,di a nte, IL'rceir,1 partl', c.1p. 1.


A MFMl1R l t\, ;\ HI ST(lRI ,\, O ESQLl:C I MF'-.' TO

V. A prova documental

Voltemos ao historiador nos arquivos. Ele é seu destinatário n a medida em que


rastros foram conservados por uma instituição com o fim de serem consultados por
quem esteja habilitado a isso, segundo as regras sobre o direito de acesso, os p razos de
consulta variando conforme a categoria de documentos.
Coloca-se nesse estágio a noção de prova documental, que d esign a a porção de
verdade histórica acess ível nessa etapa da operação hi storiográfica. Duas pergun-
tas: o que é provar para um documento ou um m aço de documentos? - e o que é
assim provado?
A resposta à primeira pergunta está amarrada ao ponto de articulação da fase do-
cumental com a fase explicativa e compreensiva, e, a lém desta, com a fase literária da
representação. Se um papel de prova pode ser atribuído aos documentos consultados,
é porque o historiador vem aos arquivos com perguntas. As noções de questionamen-
to e de questionário são, assim, as primeiras que devem ser colocadas na elaboração
da prova documental. É armado de perguntas que o historiador se engaja em uma in-
vestigação dos arquivos. Marc Bloch, mais uma vez, é um dos primeiros, em oposição
aos teóricos que ele chamava de positivistas e que preferiremos chamar de metódicos,
como Langlois e Seignobos"\ a advertir contra o que ele considera uma ingenuidade
epistemológica, a saber, a idéia de que poderia existir uma fase número um, em que o
historiador reuniria os docu mentos, os leria e ponderaria sua autenticidade e veraci-
dade, após a qual v iria a fase número dois, em que ele os utilizaria. A ntoine Pros t, em
Douzc Leçons s11r l'liistoirc, m a rtela, após Paul Lacombe~7, esta forte declaração: não h á
observação sem hipóteses nem fato sem perguntas. Os d ocumentos só falam quando
lhes pedem que veri fiquem, isto é, tornem verdadeira, tal h ipótese. Interdependência,
portanto, entre fatos, documentos e perguntas: "É a pergunta, escreve A. Prost, gue
constrói o objeto hi stórico ao proceder a um recorte original no universo sem limites
dos fatos e dos documentos possíveis" (Douzc Leçons sur l'histoire, p. 79). O autor adere
assim à afirmação de Paul Veyne, que caracteriza o trabalho atual dos historiadores
por um "alonga mento do questionário". Ora, o que suscita esse alongamento é a for-
mulação de hipóteses refe rentes ao lugar do fenôrneno interrogado em e ncadea men-
tos que envolvem a explicação e a compreensão. A pergunta do historiador, acrescenta
nosso autor, "não é uma pergu nta nua, é uma pergunta armada que carrega consigo
certa ídéia das fon tes documentais e dos procedimentos de investigação possíveis"
(op. cit., p. 80). Rastro, documento, pergunta formam assim o tripé de base do con he-

56 Para um ,1 leitur;i mais ju sta de C. Lang lois, C. V. Seignobos, L' /11 /rod11ctio11 n11x ét 11dcs lr istoriq11cs,
Paris, Hachette, 1898, cf. A ntoi ne Prost, "Seignobos rev is ité", Vingtieme Siecle, re vue d ' hi stoire,
no 43, ju 1.-s et. 1994, pp. l00-118.
57 Antoine Prost, /)0 11: <" L1·ço11s su r J'lrisloirc, Pa ris, Éd. du St.>ui l, col. " Po ints His toi rc", 1996. Piltil La-
combe, Oc /'llistoirc co11si1frn\· co111111c scic11c1', l'aris, 1!ac hdte, 1994.
HI S ftWI\ / 1· p1<-;H \H llOCI ,\

cimento histórico. Essa irrupção da pergunta p e rmite lançar um último olhar à no-
ção de documento elaborada mais acima a partir da noção de testemunho. Preso no
feixe das perguntas, o documento não pára de se dis tanciar do teste munho. Nada,
enquanto tal, é docume nto, mesmo que todo resíduo do passado seja potencialmente
rastro. Para o historiado r, o documento não está si mplesmente dado, como a idéia de
ras tro deixado poderia sugerir. Ele é procurado e encontrado. Bem mais que isso, ele é
circun scrito, e nesse sentido constituído, in stituído d ocu mento, pelo questionamento.
Para um histori ador, tudo pode tornar-se documento, ob\'iamente, os cacos das es-
cavações arqueológicas e outros vestíg ios, mas, de modo mais marcante, as informa-
ções tão diversas quanto tabelas e curvas de preços, registros paroquiais, testamen-
tos, bancos de dados estatísticos, e tc. Torna-se assim docume nto tudo o que pode ser
interrogado por um his toriador com a idéia d e nele encontrar uma informação sobre
o passado. Dentre os documentos, muitos, doravante, não são mais testemunhos. As
séries de itens ho mogêneos d e que falare mos no próximo capítulo não são mais se-
que r classificáveis como o que Marc Bloch chamava de testemunhas a contragosto. A
mesma caracte ri zação do documento p ela interrogação que aí se aplica vale para uma
categoria de testemunhos não-escritos, os tes te munhos orais gravados, d os quais a
micro-história e a história do te mpo presente fazem um grande consu mo. Seu papel é
considenivel no conflito e ntre a memó ria dos sobrev ive ntes e a história já escrita. Ora,
esses testemunhos orais só se constitue m em documentos depois de gravados; eles
deixam e ntão a esfera oral para entrar na da escrita, distanciando-se, assim, do papel
do testemunho na conversação comum. [\)de-se dizer então que a memória está ar-
qui\·ada, docume ntada. Seu objeto deixou de ser uma lembrança, no sentido próprio
da palavra, ou seja, algo retido numa relação de continuidade e de apropriação com
respeito a um presente de consciê ncia .
Segunda pe rg unta: o que, nesse estágio d a operação historiográfica, pode ser con-
siderado como provado? A resposta é cla ra: um fato, fatos, suscetíveis de sere1r1 afirma-
dos cm proposições singulares, di scre tas, que geralmente mencio nam datas, lugares,
nomes próprios, \'erbos de ação ou d e estado (estativos). Aqui, uma confusão espreita:
d confusão entre fatos incontes tes e acontecime ntos sobrc\·indos. Uma epistemologia

\'igilante nos adverte aq ui contra a ilusão d e crer que aquilo a que chamamos fato
coincide com aqui lo que realmente se passou, ou até mesmo com a memôri é1 \·í,·ida
que dele têm as testemunhas oculares, como se os fatos dormissem nos documentos
até que os historiadores dali os extraíssem. Essa ilu são, contra a qual luta\'ª Henri
Marrou e m De ln co111111issa11cc historiq11e"', s us tentou du ran te muito te mpo a com ·icção
de que o fato histórico não é fundamenta lrnente diferente do fa to e mpírico nas ciên-
cia s experi mentais da natureza. Será tão necessá rio resistir, quando trata rmos mais
ad ia nte da explicação e da representação, ,1 te ntação d e dissolver o foto his tórico nêl
narração e esta nu ma composiç5o lite r,iria indi s ting uível da fi cção, quanto é preciso

;t,; 1 lcn r i-1rt'• n ée M,1 rrPu, Llc /11 (01111 ai,,1111t·c /Ji~lt•rii/llt'. l\ iris, Éd . d u SL'u i 1, 1Y'i.1.; reed., col. " l\1i n ts ",
19 7'1.
A \1 1::vl Ú Rl i\, /\ HI ST(l l{ l i\, ll FS(J L l·:C I TvlF NIO

recusa r a confu são inicial entre fato histórico e acontecime nto real rememo rado. O fato
não é o acontecimento, ele próprio de volvido à v ida de um a consciê ncia teste munha,
mas o conte údo de um enunciado que v isa a re presentá-lo. Nesse sentido, deveríamos
sempre escrever: o fato de que isto ou aquilo aconteceu. Assim compreendid o, pode-
se di zer do fa to que ele é construído pelo procedime nto que o extrai de uma série de
documentos dos q uais se pode dizer que, em troca, o estabelecem. Essa reciprocidade
entre a co nstrução (pelo procedime nto docume ntal complexo) e o estabelecime nto do
fato (com base no documento) exprime o estatuto epistemológico específico do fato
histó rico. É esse ca rá ter proposiciona l do fa to histórico (no sentido de fato de que) que
rege a mod a lidade de verdade ou de fal sidade ligada ao fato. Nesse nível, os termos
verdadeiro / falso pode m ser to mados de m aneira legítima no sentido popperia no do
refutável e d o ve rificável. É verdadeiro ou é fal so que e m Auschw itz fora m utili zadas
câm a ras d e g,ís pa ra m atar ta ntos judeus, poloneses, ciganos. É n esse nível que se
decide a refutação d o negacionis mo. Por isso era impo rta nte delimita r corre tamente
esse nível. Com efeito, essa qualificação ve ritativa da "prova d ocumental " não será en-
contrada nos n íveis da ex plicação e da representação, nos quais o sentido popperiano
de verdade se torna rá cada vez mais difícil de aplica r.
H averá aqui objeções ao uso que os historiado res faze m d a noção de acontecimen-
to, quer pa ra exilá-la na s margens e m razão de s ua brevidade e de sua fugacidade, e
a ind a mais de seu vínculo privi legiado com o nível político da v ida socia l, quer pa ra
saudar seu re torno. Seja ele tratado como s uspeito ou como hósp ede bem-vindo após
uma longa ausê ncia, é na cond ição de referente último que o acontecime nto pode fi-
g urar no discurso histó rico. A perg unta à qual e le resp o nde é esta : do que estamos fa-
la ndo qua ndo di zemos que algo aconteceu? Não somente não rec uso esse estatuto de
referente, como também advogo inca n savelmente por ele ao longo de toda esta obra.
E é pa ra preservar esse estatuto d e contraparte do di scurso histórico que di stingo o
fa to enqua nto "a cois a dita", o "que" do discurso histórico, do acontecimento enquanto
"a coisa de que se fal a", o "a p ropósito d e que" é o di scurso histórico. A esse respeito,
a asserção de um fa to histórico m a rca a distâ ncia entre o dito (a coisa dita) e a v isão
referencial que, segundo a expressão de Be nveniste, reverte o discurso ao mundo. O
mundo, e m história, é a vid a dos hom e ns d o p assado ta l com o ela foi. É d isso q ue se
trata. E a primeira coisa que se di z disso, é qu e aconteceu. Tal como o dizemos? Eis
toda a questão. E ela nos aco mpa nha rá a té o final do estágio d a representação, onde
encontrará, se n ão sua resolução, ao menos sua formul ação e xata sob a rubrica da re-
presentâ ncia''1. Até lá é preci so de ixa r inde te rminada a questão da relação verdad eira
entre fa to e acontecimento, e to lera r certa indiscriminação no e mprego d e u m termo
pelo o utro por pa rte d os melho res hi storiadoresr,0 .

59 Cf. adi a n te, cap. 3, § 4, p p. 288-296.


óü O artigo de P. Nora, "Lc rc tn ur de l't'.•véne mc nt", in J. Lc Coff e I'. Nora (d ir.), Foirc de /'hisfoirt',
op. cil., t. 1, pp . 210-228, trata fund a men tal me n te do estat uto d a hi stúria contem porâ nea, e, p o r-
ta nto, d a prox im idade do pa ssado relac ionad o ao presente histór ico, em u ma épo ca como a nossa
c m que o p resente é viv ido "como carregado de um sentido já ' hi stór ico"' (Nora, a rt. ci t., p. 210).
HI S 1( ll~I.\ / ll'I '.-, 1 f"\101.0C I.-\

Por m e u lado, p e nso honrar o acontecimento ao considerá-lo a contraparte efe ti\·a


do testemunho enqua nto categoria primei ra da m emória arqui\·ada. Por m a is especi-
ficações ulteriores que se possa m traze r ou impor ao acontec imento, principalmente
e m re lação com as noções de estrutura e de conjuntura, que colocam o aco ntecimen to
num a posição te rceira com re lação a outras noções conexas, o aco ntec imento, em seu
sentido m ais primiti,·o, é aqui lo sobre o que a lg ué m d éi testemunho. É o e mble m a d e
todas as coisas passa das (pmctcrita). Mas o dito do di zer do testemunho é u1T1 fato, o
fato que ... Prec isemos: o "que" aposto à asserção d o fato m anté m em resen·a a \·isad a
intenciona l que será temati zada no fin al do p ercurso epistemológ ico sob o signo da
representância. Somente uma semiót ica imprópria para o discurso his tó rico sus ten-
ta a denegação do referente em favor d o pa r exclusivo constituíd o p elo significa nte
(nar rativo, retó rico, imag inativo) e o signi fi cado (o enunciado do foto ). À concepçào
bin á ria do sig no he rdada de uma ling üís tica saussuria na, ta lvez já mutilada, oponho
a concepção triádica do s ig nificante, d o significado e do referente. Já p ropus em ou-
tro lugar uma fó rm.ula em prestada a Bem ·enis te segundo a qual o di sc urso consiste
em alg u ém di zer alg uma coisa a a lg uém sobre alguma coisc1 segu ndo r egras"1• Nesse
esque ma, o referente é o si m é trico do falante, a saber, o historiador e, antes d e le, a
testemunha p rese nte a se u pró prio testemunho.

Costaria d e lançar um ú ltimo olhar n a relação en tre o p onto d e partida d este


capítu lo - o teste munho - e seu ponto d e chegada - a pnl\'a documental - , no

É t' sse peso do presente snbre o "fazer hist(iria " que p c rmill' dizer q ue "a ,ltualid ade, essa circu -
laçiio genera li zad a d,1 pe rce p ção hi s tú rica , c u lmina num fe nó me no nL1\·o: o a conteci nw nto " (,irt.
c it, p. 211 ). Se u surgirm.·n to pode a té mesmo Sl'r datado: último terço do séc ulo XIX. Trata- se do
"il dvento rápid o d e sse p rese nte h istó r ico " (i /1id. ) O que St' rcpro\·a nos " positivistas" é o terem
fL• ito do passado morto, desligado d o p resL' J1tt' ,·iYO, o campo fec h ado d o conhec iml' Jlto hi s ttí rico .
O f,1 to de o lt!rmo "a co n tecimen to" n;\o d L·s ignar a co is,1 acon tec id a é con firma do pelo simples
fa to d e se fa la r dc1 "prnduçfü1 do ,icontt>c inwnto" (,nt. c it., p. 212) t' das "ml'lamorioses d o a con-
tecinwn to" (art. c it., p . 216 ); tr,1t,1-se do peqm•no notic i,írio abocanhado pela m ídia. Ao fa lar de
aco ntec irnentns c,1pit,1i,; co m o a m o rte Lk f\'ldo T;;t'•:fung, Nora L'scren• : "O fato de tc rl' m ocorrido
os torn a ,1pe na s hi s túricos. Para que h Jj;i um ,l Cl)Jl tec im e nto, é p rec iso que s e j,1 cnnlll'c ido" (art.
c it., p. 212). A hist ó ri ,1 cntiit1 concorre• ( l)J)) os nll'ins de comuniGl ÇiÍP, o cine m a, a I ill'r,1tu r,1 p t1p ul c1r
L' tod os os \'t.'IOrl's d ,1 comu n icaçàll. í\qu i, íl lgo do tcs kmu n ho direto rl'to rn,1 com o gritn: l' ll est,l\'cl
l,í. "A modernidíldl' Sl'Uda o ,icnnll'c imL'ntn, difcrc ntcnw ntc dc1s s ocil'dadcs tradicio nais qul' ti-
nham, a n tl's, lt•nd C:•nc iíl ,1 r,1rt'fo/t•-lo ", pronunci.i Nora (a r t. c it., p . 220) . Em meu voc.ibul,írio, seriíl
,ico nkc inwnto o que l\Jor,1 c hama dL· hi s tt'lr ico, o ll'r o cor r idn. E l ' U nilocaria do lé1Lio do f,1 to a quilo
que L'll' ch a m.i a contL'CimL·ntu e qul' seu \·íncu lo íntimo com "s u,1 s ig n ifi c,1ç.io i n tl'il'ctu a l" tt)rn,1
" pr(lximo dl' um il pri m l'ir,1 form,1 dl' c l,1bor.i çc°lll hi sttírirn " ('\Jt1r,1 , MI. c it., p. 2 16) . "O a o mtcc imen -
to , excl,1ma l' ll', é o m ,Hd\' ilho so d a s so c iL·d a dl's d L' mnu-.íticas" (,Ht. ci t., p . 217) . Ao mesmo IL'mpo
se d e nuncia "o p ,H adoxo do ,Kontcc imcntn" ( .irt. c it., p . 222): com sl' U surg imL' n to, a prni undcz,1
oc ult,1 d o n .io-.icontl'ci ml'ntal VL'lll :i to na. "() .icnn tl'cinwnto lt'm ,1 \·irtudc dl' -1tar L'm Íl'Í ,l'S s ig-
niiirnçiit's L'spc1rs.is " (art. c it., p. 22"i) . "C,, bL' ,lll hi s tori,1dur d l' scit j -l\lS pM,l volt,H da l'\' Ídt\ nc i,1 d o
,1conll'c i nwn to ,ll> l'\" idL·nc i,1 nwnto dn sislL'm ,1. l'nis ,1 un ic id adl', p,1r,1 torn,ir-s c i nlt'l igí\ el, postu l.i
se mpre a l' xis t[•1Ki ,1 de um ,1 st.:•ric qul' ,l rn1, ·idadl' fa z s urg ir " (i/,id. ). F t•is o a co ntec i nwntn - " p
,Kontt•c i nwnto con te mpo r,'irwo" - L'ntrl'g UL' ,1 con tr,1gos tn :1s d ia IL't ica s ionwnt,1da s pe lo-; i n i rn i-
gos d o ,KtmtL'Ci m e nt n, tis ,1Lhog<1dns d ,1 L",tr u t ur,1.
(, 1 e lkm'L'll ÍSÍL', l'rp/1/i•111,·,; de li11g 11i~I iq11c ,1;,;11á,1/,·, l'.iris, C a li i m c1rd , col. " DiogL'lll'", 1l/hh.
i\ MEM ()l{I J\, i\ HISTÚR l i\ , O 1-S()U FCilvl ENT()

facho de luz e sombra proje tado sobre toda essa empreitada pelo mito do Fcdro que
fala da invenção da escrita. Se a continuidade da passagem da m emória à história
é garantida pelas noções de rastro e de testemunho, a descontinuidade ligada aos
efeitos de distanciamento que acabamos de instaurar culmina em uma situação de
cr ise geral no interior da qual vem situar-se a crise específica ligada ao testemunho
intempestivo dos que se salvaram dos ca mpos de ex termínio. Essa crise gera l em-
presta à questão do plinrnrnkon que <1ssombra este estudo um a coloração precisa. O
que a crítica hi stórica questiona, quanto à prova documental , é o caráter fiduciário
do testemunho espontâneo, ou seja, o movim ento natural de depositar sua confian-
ça na palavra ouvida, na palavra de um outro. Abre-se, d esse modo, uma verdadeira
crise. Uma crise da crença, que nos autoriza a considerar o conhecimento histórico
como uma escola da s uspeita. Não é apenas a credulidade que é aqui colocada no
pelourinho, mas a confiabilidade em primeiro lugar do testemunho. Crise do teste-
munho: é a maneira rude que a história documental encontra para contribuir para
a cura da memór ia, e passar p ara o trabalho de rememoração e o traba lho de luto.
Mas será possível duvidar de tudo? Não é na medida cm que confia mos num certo
testemunho que podemos duvid a r d e outro? Uma crise geral do testemunho seria
s uportável ou mesm o pensável? Pode a his tória romper todas as suas amarras com
a memória decla rativa? O hi storiador responderia provavelmente que a história,
em sua totalidade, reforça o testemunho espontâneo pela crítica do testemunho,
ou seja, o confronto entre testemunhos discordantes, com o objetivo d e estabelecer
uma n arrativa provável, plausível. Certamente, ma s permanece a pergunta: a prova
documental é mais remédio que veneno para as falhas constitutivas do testemu nho?
Caberá à explicação e zi representação trazer a lg um alívio a essa confusão, por meio
de um exercício medido da contestação e deu m reforço da atestaçãoh2 .

62 Existe m historiadores qut' souberam e ncontrar n()S arqui vos um eco cfos vozes extintas, corno
Arlctte Farge em Lc Co11/ de /'arcliil'c', l'a ri s, Éd. du Seuil, 1989. Dife re n temente do arquivo judicial
que "apresenta um mundo fragmen tad o", o arquivo dos hi s toriad ores ouve o eco "dessas q uei xas
derrisúrins a rc'speito de ,icontccinwntos derris(1rios, cm que u ns di scutem p or uma ferra menta
roubada e ou tros pcl él .:ígua s uja de rramada cm sua s roupéls. Sinais de uma dt!sord crn míni ma q ue
dei xou rns tros, vis to que dcrnm lu gc1r a relatôrios t' in tcrrogatúri os, esses fatos d a in timidade, cm
que quase n ada é dito, embora tantas cois,1s trnnsp irem, si'io lu gn rcs de investigação e p esqui sa"
(p. 97). Esses ras tros siio, no sentido forte d ,1s palavrns, "falas captadas" (i/1id.) . Ocorre cntiio que' o
historiadnr não é aquele que foz falar os home n s d e o utrora, ma s aquele que os dei xa fo la r. Então,
o d oc umento remete ao ras tro, e o rnstro ao aconteci mcnto.
2
Explicação/Compreensão

Nota de orientação

/
q11n11to ncxplicnçiio/co111prcc11siio que a 11u to110111ia d11 !,istôria rclatiu11111c11te 17 111rn1óri11

E se nfir111n 11111is fortc111c11tc 110 p/11110 epist1'111ológico. A bc111 da t1crdadc, css11 11orn _ti1sc
da opcrnçiio 1,;_.:;toriogrrífica já cstm.'11i111/iric11d1111n precedente, 1111111edidn c111 que 11110 l11í
don1111e11to se111 pcrg1111t11, 11e111 pcrgu11t11 sc111 proicto de cxplic111/íd. É e111 rcl11ç110 17 explimç1'io
que o docu111c11to constitui prm.'a. E11trct11nto, 11q11ilo que 11 explirnçt'io/co111prl'L'11S1'io 11crc_.:;ccnt11
de llOi: 'O cm rclaçifo 110 trnt11111c11to docu111c11t11I do _tiito !,isttírico di: re_.:;peito aos 111odos de e11rn-
dc11111e11to c11trc.fiitos doc11J11c11tados. Explic11r é, c111 g emi, respo11der 17 pergllJ1fn "por que" por
111eio de 1111111 z1nried11dc de utili:nçiies do co11cctor " porquc" 1• Nes_.:;c aspccto, será tdo 11e(c_.:;_.:;rírio
deixar aberto o leque ,fr_.:;sas 11tili:11ç1>cs q111111to é 11cccssrí rio 1111111fcr II opcmçt'io !,i_.:; fo riogrâfirn
1111 Pi: i11/umça dos proccdi111e11tos co111u11_.:; o todos as discipli1111s cic11títi'cas, camctcri:11dn_.:; pelo
rern r_.:;o, _.:;ub _fc1r11u7_.:; d Í'i.>er_.:;as , 11 processos de 111odcl i:11ç1'io suln11ctídos ao teste da uenfic11çifo. É
11ssi111 que modelo e prm.,11 dorn111ental cn111inl,11111 lado 11 lado. A 1110,ieli:ação l; a ohrn do i 11111-
gi111í rio cie11 tífíco, co1110 e1~fi1ti:nm Coli11:fil 'OOd, _.:;eguido por M,n We/1cr e Rny111011d Aro11, oo
tmt11r da i111p11toçiio rn11_.:;11/ _.:; i11g11/ar 2 . Esse i11111gi11ârio arrasto o espírito porn longe do c~f;'rn da
re111e111ornçifo prirnda e plÍ/Jlica , pnm o reino do_.:; possíucis. Se o espírito dcuc, todm 1it1, pcn11,111c-
ccr 110 do111í11io da !,i_.:;fcíria sc111 dc_.:; /i:ar p11m o daficçfío, esse i111ogi11ário dcuc dobrar-se II u111,1
di_.:;cipli110 específico , 11 salicr, u111 recorte 11propri11do de seus o/J_jctos de rcfcrh1 cia.
f_.:;sc recorte t; regido por dois princípios li111itodorcs. Scg1111do o pri111ciro, os modelos expli-
catiuos Pi,"cntcs 1111 prática l1i_.:;toriadora ti:111 co11w c11mcterística co11111111 reportar-se à realidade
/1u111111111 c11qu1111to _tizto social. Ne_.:;sc 11_.:;pccto, n l1istôri11 social 11110 t; 11111 setor entre outro_.:;,
1110_.:; o poHto de uist1111 p11rtir do qual 11 '1istóri11 escolhe seu tcrrc110 , o das ci(>11ci11s _.:;ociai_.:;. Ao
priuilcgiar, j1111to co111 certa escola de história co11 te111porn11e11, co1110 ofÍlrc1110s 1/111is 11di1111tc, 11-"
1110dalidade_.:; pnítirns da co11_.:;tit11içt'io do d11c11/o _.:; ocial e 11_.:; pro/1/c1111ítica_.:; de identidade 11 elas
Pinrnladas, dirni1111irc111os 11 distnncia que _.:; e !111t ia cavado, durante 11 prirneim 111ctadc do _.:;á·u/o
1

XX, eJ1trc 11 !,isf<iria e n/t'110111owlogi11d1111ç,10, 11111s 1111011 a/1olirc111os. As intcraç(ics h1111101111s , e

C . E. M. Anscombe, /11 te11tio11, Oxford, fü1 sir l31ackwl'II, 1957, lLJ7LJ.


~ I'.wl Ricll.'ur, Tcmp., cl f~,ú t, t I, op. cit. VL'r a:-. p,íginas 122 a TN d,1 rcediç;k1 de '!')L)] (segu nd a parte,
C,lp. 1).
1\ MFM()Rf ,\, 1\ IIIST()R l i\ , () IS(JlJFCI\H\:1()

c111 gemi ns 1110dalidades do i11tcrualo, do inter-esse co1110 gosta de dizer H. Arc11dt, que su rgc111
entre os agentes e os pacientes do agir !11111111110, só se prestam nos processos de 111odcliznção
pelos quais n /Jistórin se inscreve c11tre as ciências sociais ao preço de u111n objetivação 111ctodolô-
gicn equiunlentc 11 11111 corte cpiste1110/iígico c111 rclaçíio à 111e111ória e à 11armtic.1a co111u111. A esse
respeito, história e fi'110111e110/ogin da açlío têlll interesse e111 JJL'n111111eccr distintas para 11wior
lwm'.fício de seu diálogo.
O segundo princípio lilllitador diz respeito ao recorte da /Jistórin no c111111w das cic•ncias
sociais. É pela i111portiincir1 que 11 l1istôria atrill/li à 11I11da11çn e às diferenças ou scpamçôcs que
nfet11111 ns 1111ufa11ç11s que cio se distingue das outras ciências sociais e, pri11cip11/1I1entc, da so-
ciologia. Esse traço 1fo;ti11tiuo l' co11111111 a todos os co111p11rti1I1c11tos dn /Jistória: realidade eco-
11ô111irn,fi·11ô111c110s sociais 110 sentido li111itador do fcr1I10, prâtirns e rcprcse11taçi'ícs. Esse traço
co11111111 d1'.fi11c dcfcm11n li111itadorn o n'.f<·re11tc do discurso histórico 110 seio do nfcrente com11111
a todas 11s cii•ncios sociais. Ora, 1111uia11ças e diferenças ou descolllpassos 1111s 11111da11çns co111-
port11111 u11111 co11otaçiío tc111poml 1111wi.fi'st11. Por isso scfalnrâ de /011g11 dumçiío, de curto prazo,
de 11contcci1I1e11to quase pontual. O disrnrso da história poderia então se co111pamr 11ova111c11te
r) fi.'nomcnologia da 111c1nôrin. Ccrt11111c11tc. Todm. 1ia, o I1ocab11/ário do historiador que constrói

suas l,icmrq11i11s de d11raç(ics, co1110 110 tc111po de Labroussc e Braudel, ou que as dispersa, co1110
tclllos fi'ito desde mtão, 11{/0 é o do .fi.'110111c11ôlogo que se refere à cxpcrii~ncia viva da duração,
co1I10 foi o caso 1w prilllcim parte desta obra. Essas d11raçcies stio constrnídas. Mesmo quando
n /Jistôria se esforça por c111/)(lra/1111r s11t1 ordc111 de prioridade, L' sc111pre c111 tcr1I1os de dumçiics
11uí/tipl11s, e, euc11tu11/111c11tc, rn, rcaç,io contra 11 rigidez de 11rq11itl'f11ms de d11mç<ics bc111 c111pi-
lhadas dc111ais, que o /Jistoriador 111od11/a o vivido tc111poral. E111bora a 111c111ôri11 experimente 11
pn?f11miidadc variáuc! do tc111po e ordene suas le111lm111ç11s umas c111 rc/aç1io às outras, csboç1111do
dessa 111nneirn algo co1110 111110 hierarquia entre as !c111branç11s, ainda assi111 ela 11ão forma cs-
pont11ncat11e11te 11 idl'in de duraçiies 111tíltip/as. Esta co11tin1111 sendo apanágio do que Halbwnchs
de110111i11a "111c111ôri11 histórica", co11ccito ao qual rctor1111re1110s 110 1110111ento oport11110. A 111n11i-
pul11ç1io dessa pl11ralidade de d11mçiies pelo lzistoriador é co111111uiad11 por u11111 correlação entre
três fatores: a natureza específica da 111lllit1nç11 co11sidcradn - cco11ô111ic11, i11stit11cio11a!, políticn,
cultural 011 outra -, a cscn/a 1111 q1111/ esta é 11prec1tdida, descrito e cxplicndn e, fi1111!111c11tc, o
ritlllo te111pora! 11propri11do 11 essa escala. Por isso, o priui!égio que Labro11ssc, e Brn11de/ e, de-
pois deles, os historiadores da escola dos Annalcs co11cedera111 aos fc11ô111cnos cco11ô111icos ou
geográficos teve por corolrírio a esco/lJ{1 da escala 111acrocco11ô111icn e a dn longa duração e111 tcr-
111os de rit1110 temporal. Essa corrclaçí10 é o traço cpistcnwlógico mais 11111rcn11tc do tmta111c11to
pela história da di111c11s1io te111poral da aç,io social. Esse traço foi 11i11d1111111is reforçado por uma
correlação suple111e11tar entre 11 11nt11rcz11 cspcc(firn dofc11ô111c110 social to111ado co1110 nfercntc e
o tipo de dorn111e11to privi/C'giado. O que 11 longa duração estrutura 110 p/11110 tc111poml são, por
prioridade, séries de Jatos repetíveis, 11111is que acontcci111c11tos singulares suscetíveis de serem
rc111c111omdos de 1111111eira distintiva; nessas condiçcics, eles estão sujeitos à quantificação e ao
trnta111c11to IIJ{1tc111ático. Co11111 l1istôrin serial e 11 história q11a11tit11tiva1, dista11cia1110-11os tanto

3 Pierre Chm111u, l listoirc q111111tit11fiI1c, f-Jistoirc sái1•1/c, Pari s, !\rmand Colin, col. "Cahie rs des !\nna-
le;;", 1978.
HISJ(ll<f ,\ / l'l' l~I F\ t lll lll,I.·\

q111111to possíue/ da d11raç,io segundo Bcrgso11 011 Bacl1clnrd. Esta111os c111 11111 tc111po nlilstruído,
. .

feito de d11raçôcs estru t11mdns e qua11tifirndas. É oi11dn c111 co11sidcmçâo a essas t111d11ciosas ope-
rnçtics de cstrut11raçiio, que 111orrnn1111 os 111e11âos do sérnlo XX, que 11 ltistâria 111ais rcce11te das
práticas e das reprcsc11t11~·iics e/11l10rou 11111 tmt11111c11 to 11wis qualit11tit,o das dumçiics e, 11ssi111,
pa rcccu rcco11d 11:ir a I, istcÍrio e111 dircçrio àfL'11011n'11olos, ia da 11çr10 e' à.f1'1w111e110/ogia da d II rnçiiu,
que fit e L'solidnri11. M11s 11c111 por isso essa ltistôria renega a post11m o/1jctiu1111tc que ela co11ti111111
11 nm1partil/1ar co111 os tml,11/lws 111ais 11mrc1111 /cs da csco/11 dos Annales.
Dito isso, q111111to aos n:fcrc11tcs da cxplirnç,io /Jistôrirn, fa lta camctcri:ar de 1111111cim 11111is
precisa a 11aturc:11 dns opemçiics dependentes da nplirnçiio. fa ocl711H1s 17 ez,c11tua/ di1 crsid11de
1 1

dos usos do "porque .. ." que scruc de c111{1rc11gc111para as respostas dadas à pcrg1111ta "por ']IIL~? ".
É aqui que se de,x insistir 110 mricdade do ..; tipos de cxplicnçiio e111 !tistória\ A esse respeito,
pode-se di::cr co111 justiça que 11iio existe c111 !1isttíria 11111 111odo priz ilegiado de cxplicaç,io' . Essa
1

1' 11111t1 rnmcterística que a lzistôria dh idc corn a teoria da açtio, 11t1 11/edida cm q11e o rcfáe11tc
1

pcJ11í/ti1110 do disC11r ..;o !tisflirico síio i11temçt>cs s11scetívci::; de c11ge11drar 11/g11111 uí11c11lo social.
Por co11scg11i11te, 11,10 1; s11rprec11dc11te que a !1istcíri11 exi/Jt1 todo o !cquc de 111odos de explic11çiio
suscctíucis de tomar i11tcligí1.•eis as i11tcraçiies !t11111111rns. De 11111 lado , as sáics dcfi1tos repctí-
1.•cis da lzistória q111lllfitatirn prcst11111-se 111111âlise m usal e 110 csta/1c/cci111e11to de reg11!17ridades
que atrae111 a idl'ia de rn11st1, 110 sentido de 1'.ficil•11cir1, L'lll direçiio 11 de legalidade, seg1111do o
li/odeio da rL'laçi'ío "se ... e11tt10 ... ". De outro, o.~ co111port,1111e11tos dos agentes sociais, rcspo11-
dc11do à presst'ío das 11on11as sociais por dii.•ersa~ 11w110/Jms de 11cgoci11çiio, de j11stificnçâo 011 de
de11IÍ11cia, p11x11111 a idL;ia de c1111s11 para o lado da idàa de explicaçt'ío por m:i'ies''. Ma~ esse~ si'io
casos lirnitcs. J\ gm11de 111t1ssa dos tm/Jal/1os !tistôricos desem 0/i. e-se 111111111 regido i11tcn11ediâri11
1 1

011dc se altcma111 e se co111/Ji1111111, dcfon1111 às i: e:es aleatória, 111odos de explicaçi'ío díspt1res. É


1

pam dt1r COlltl7 dessa í't1riedadc da cxplimç,10 liistárirn que i11 tit11/ci estt1 scçiio "Explicnçiio/
co111pree11sr10". Nesse t1specto, podemos co11sidemr superada 17 querela suscitada 110 i11ício do
sérnlo XX c111 tomo do~ tcr111os, tidos co11 1t1 a11t11gô11icos, explirnç/io e co111prcc11s,io. lv11n We-
/l('r 111ostmra-sc 11111ito paspicnz 1111 cloboraç,10 dos conceitos diretores de sua tcorit1 soci,11 ao
com/Ji11t1r, desde o início, explimçiio e n1rnprce11 ..;110~. Mais n·ce11tc111e/ltc, H . ·uo11 \!\1rigl1t, e111
Explanation and Und c rstanding, co11strui11 paro a lústôrit1 11111 111odclo 111isto de e.rplicaçâo
q11cfi1: se aitemare111 scg111en tos rn11s11is ( ,w se11tido de regularidade lega/) e teleológicos ( 110 sc11-

~ Fra n çois D osSL', cm f.'Hi:::toirt', op. cíl., Cl)ioc,1 l) -.L'gundo pL·rrur-.t) dL' su ,1 tr,l\'L'Ss i.i d,1 h i:-tlíri.i :-ob o
s ig no da "imput,1çZ!t1 c<1L1s,1J" (pp. :10-Ci~ ). Fss,1 J1l)\·,1 prob lem,ít ica conwç,1 co m J'(1Jíbi o L' s ua " busc,1
dl' c,rns,1lid,1dl'". El,1 p ,iss,1 p or .1- Bod in, in H·11tor d,1 "nrd l'm d,1 prob,1bilid,1de". El,1 ,ltr,1u'ss,1 ,1
L\1oc,1 das Lu z l's L' .1k,1nç,1 um ápicL' com F Bra ud l' I e a L'scol,1 dos , ~111111/t'., , antes dl' Sl'r d,1d,1 , com
,1 cnn s idl'raç,'io d ,1 nM r,1 ti\',1 , a " \' ira d,1 in tl'r prl't,iti,·a " qul' nmdu ,1 ir,í <10 limiar d ,1 ll'rceira probiL' -
m.ítica, ,1 da n,Hrc1ti,·,1 .
, 1\ rn l VL'Ylll', Co111111,•11/ [)li t;cril /'lzistoin·, l'.iri s, Éd . du Se uil, 1971. ,\ntnirw P ros l , lJciu: c· Lt\ 1>1z,; su r
/'llistc>irc, op. <'ÍI.
h Fm ·fr1111'0 e llll/T11ti, •u, c u ha,·i,1 C1m s,1grado 1\ l'SSL' n c i,11 de m inha s ,1nj Jisl's a l'S Sl' confwn lll l'nln'
explicaçi\o ca u s,1 1 e L'xplicaç.°10 por 1"clZt-1L'S. C f. P Rint•ur, fr11111 , t'f F.,ú t, t. 1, ov
cil ., prinwira p.irll',
C,lp. 2, p. 217 l' Sl' g .
7 Max Wcbl'r, f.t' rJ11,1111ic t'I ., oâdc;, ,>p. o/. Vt'r ,1 pr imci r,1 p,irk, c.1p. 1, ~ l ,1 3.
A MFM(lRJA, :\ HI STÚ R I /\, (l l'S(J U FCJME NTO

tido de 111otivaçi5es suscetíveis de serem racio1111lizad11sY A esse respeito, a corrcl17ção L'vocadl7


11m pouco mais 17ci111a mtrc o tipo de Jato soci17 / considerado dcter111i11a11tc, 17 escala de descrição
e de leitura e o ritmo tc111pora! pode proporcionar 11111 bom guia 1117 exploração dos modelos dife-
rc11ci11dos de explicação qua11to à sua relação co11111 co111prcc11são. Ta!z,cz o leitor fique surpreso
110 11ão ver surgir 11cssc contexto a 11oção de interpretação. Não figuram ela 110 lado da 11oção de
co111prcc11são, na grande época dn querela Vcrs tehe n-crklaren ? A i11tcrpretação não é consi-
derada por Oilthcy u11w fon1111 especial de co111prcc11são lignda à escrita e c111 gemi ao fi'11Ôme110
da i11scriçiio ? Lo11gc de recusar a i111portii11cia da 11oção de interpretação, propo11ho dar-lhe u111
campo de 17plirnção 11111ito ///ais vasto do que lhe atribuín Oiltlzcy; c111 minha opinião, existe in-
tcrprctaçifo nos tn~s nfucis do disrnrso histórico: o docu111c11tal, o dn explicação/comprccnsão e o
da rcpresc11tação literária do passado. Nesse st>nfido, a interpretaçiio é wn traço da investigação
da verdade cm história que perpassa os três níveis: a interpretação é 11111 co111po11c11tc da própria
i11te11ção de verdade de todas as operações !,istoriogr~fims. Trataremos disso 1u1 terceira parte
dcstn obra.
Últi11111 instrnção léxirn e sc1111111tica à cntmda dt>stc capítulo; 11111is que com o silêncio so-
bre o tema da intapretnçiio 110 ii111bito dessa pesquisa sobre a cxplirnçiio/comprec11são, o leitor
poderâ espantar-se co111 o sih1ncio a respeito da di111c11são narrativa do discurso histórico. Adiei
propositadamente seu e:ra111c tra11sfcri11do-o ao ii111bito da terceira operação historiográfica, a
represen tação literária do passado, à qual se atribuirá 1111111 i111portii11ci17 ig1111! à das duas outras
opcraçties. Isso mostra que niio estou renegando 11e11hu111 dos resultados da discussão co11duzid11
ao longo dos três volu111cs de Tempo e narrativa. Mas, ao reclassificar a narratividade da
fim11a como faremos, quero pc1r fim a 11111 111al-ente11dido suscitado pelos defensores da escola
1111rrativista e assumido por seus detratores, 11111!-c11tendido segundo o qual o ato co11fig11 m11tc9
que caracteriza a composição c111 trama constituiria c11qu1111to tal 1111111 alternativa à explicação
principalme11tc causal. A j11stn musa de um Louis O. Mi11k, que continuo rcspeitnndo, parece-
me co111pro111etida pela i111posiçiio dessa dcplorâucl alternativa. P11rccc-111c que a função cogniti-
va da narratividade será, 110fim das co11tas, mais be111 reconhecida se cstivcr ligada à fi1se repre-
sentativa do passado do discurso histórico. Colllprt>e11dcr co1110 o ato que configura a co111posição
da tra111a se artirnln seg1111do os 111odos de cxplicação/co111pree11siio a serviço da represen tação
do passado será então 11111 proble111a. Na medida c111 que a representação não é 1111111 cópia, uma
mim1•sis passiva, a 11arrativid11dc ni'ío s1frcrâ q11nlq11a diminutio capitis por ser associada ao
1110111c11to propria111e11te literário da operação historiogr~fica.

8 Apresentei bastante d eta lh ada m ente o mod elo quase-causal de He nrik von Wrig ht em Trn1ps e/
/~(;cif, t. 1, op. cit., pp. 235-255. Daí e m d iante, dediquei-me em inúmeros e nsa ios a apaz ig uar a que-
rela cxplicaçiio/ compreensão. Essa oposiçiio justificava-se num a é poca e m que as ciências hu-
ma nas sofriam uma forte atraçiio pelos modelos em vigor nas ciências naturnis, sob a pressão do
positivismo de tipo com tia no . Wi Ihei m Di lthey continu a sendo o herói da resis tê ncia d as c iências
d itas do espírito à absorção das ciências humanas pelas ciência s naturais./\ prática d e tiva das
ciênc ias hi stúrica s con v ida a uma iltitude mais ponderada e ma is Lfo1l éti ca.
9 Adoto aqui o vocab ulá rio de Louis O. M ink, ffo;forical U11dcr~tn11di11g, Corncll University Press,
1987.
III SJl)RI.\ / ll' I SlT\Kll.Ot,I ,\

Este capítulo l' construído sobre 1111w 11ipôtcsc de tmha/1,o p11rtirnlt1 r. ProponhtJ sul1111etcr
o tipo de i11tcligihilid11dc próprio dn explicaç1'ío/co111pree11sí'io à prom de u111a classe de objetos
da opcraçí'io /Jistoringrâfirn , a saber, as rcprcscntaç(ks. O capítulo plk, 1bsi111, lado 11 lado 11111
111t'fodo e u111 o/Jjcto. A m:t'to dis so t' a seg11i11tc: 11 1wçiio de reprcsc11t11çiio e sua rirn polisscnlia
atraziesst1111 esta ohm de 11111 !tldo 11 outro. ElafiJi alçada 110 pri111eiro plano das perplexidades da
fi·110111enologin dn 111c111óri11 desde n prol1lc111ática g rega da eikô n; e ela ressurgirá 110 prôxi1110
rnpítulo 110 co11fl'xto da própria opcmçi'io 1,istoriognifirn, soh a,ti,m,a da rcprcsc11tnçiio da escrita
do passado (a escrita da história 110 sentido li111itado do ten110). Desse 11l()do, a 11oç110 de rcprc-
sc11taçiiofig11mrâ dua s t'C:es 1111 parte epistt'111oi<ígio1 do lium: na co11diçiio de ohjeto prit,i!cgiado
do explirnçiio/co111prce11si'io, e 110 co11texto da opcmçiio '1istoriogn~firn. U/11 cm~fÍ'<JJ1to será pm-
posto, 11o fi 11al do c11pít11/o, entre os dois usos que 11cle síio fcitos da 11oç110 de rcpresentaçíio.
No rnpítulo que co111eçt1 nqui, 11 represrnt11ç1fo-ohjcto dcsc111pc11/111 , assi111, o papel de rcfárn-
tc priz,ifcgiado, 110 lodo do cco11ô111ico, do social, do político; esse refác11te L; recortado 110 c11111po
11rnis 11111plo da 11111d1111ç11 social, co11sidcmdt1 co1110 o o/1jeto total do discurso /,istôrico. L sa i' 11
partc_fi11t1! do rnpít11/o.
A ntes de 11/ca11ç11r esse estágio da disc11sst'io, as scg11i11tes etapas scriio percorridas.
Na pri111cim scçâo, propiic-se u111 rápido cxan1c dos 1110111e11tos sig11ific11tiuos do 11istoriogm-
.fia_tim1cesa nos dois pri/1/eirns terços do s/rnlo XX, até o período c/11111111do de crise pelos ol1scr-
,•adores, '1istoriadorcs 011 11110. Nesse quadro cro110/ógico, c::;trnt11rndo csse11cii1!111c11 tc pc/11 grn11-
dc 11t'CJ1t11ra da cscol17_fra11ccst1 dos Annales e do111Í1111do pelo grnndc t•ulto de Fcnu111d Braudc/,
dcsc, ,z,ulPerrn ws ao 111es1110 tc111po as q11csfl>CS de 111Nodo e 11 pru1110çi10 do objeto aqui prit1ilc-
gi11do, pt1m o q1111l, d11m11te 11111ito tc111po, se rcscn,011 o tcr1110 "111c11t11/id11dcs ", i11trod11:ido c111
sociologia por L11cie11 Léziy-Bru/11 co111 o kmw "111c11talidnde pri111itirn" (scçiio !, "!\ pro111oçi'io
da '1isMrin das 111e11 talidades").
Co11duzin'111os essa pesquisa dupla ah' o po11to e111 que Í1 crise do 111(,todo ·ucio se m-rcsccntar
11111a crise da '1istârin das 111e11talidadcs, a quol 11110 luruia cessado de ser z,ífinrn de s1u1 origc111
disc11tíucl 1111 sociologia da "111c11talidt1dc pri111itit1a".
/11tc1To1111h'rc111os essa dupla pesquisa para dar a pnlm m a três 1111torcs - Fo11t"1111lt, Ccr-
1

tca11, Elias - que apresento co1110 os "111estrcs de rigor" cujo socorw solicito pnrn mrt1ctcri:11r
de 1111111l'im /l(l"i'/111 história das 111c11t111idadcs co1110 u11u111m 111 a/1ord11ge111 doft' ll <JIIICIIO total e 110
111es1110 tc11Ipo co1110 u111 11ouo objeto d11 '1istoriogn~fi11. Co111 essos 1110,wgn~fins, '111bit11a rc11ws o
leitor 11 associar 1111oç1'io de 111c11tnlidadcs à de rcprese11tnçôes, p11m prepamr o 1110111c11to c111 que
esta IÍlti111a s11bstit11irá dL:fi11itiva111c11tc 11 pri111cim, graças a sua coniu11çiio co111 a~ noçt1cs de
11ç110 e de agentes de 11çiics (seçiio II, "So/1rc 11lgu11S 111cstrcs de rigor: Midccl Fo11cn11/t, Mic/1el
de Certcau, Norl1crt Elias").
Essa sul1stit11içíio será preparada por 11 111 longo i11tcrlúdio dedirndo ii 11oç110 de escala: se
11iio pe111os as 111cs11111s cois11s c111 111Ícro-'1istóri11, essa z nricd11dc de l1istôria ilustmda pelas mi-
1

crostoric italia11as 110s per111ite z111riar 11 t1/1ord11ge/// das 111c11talidadcs e dns rcpresc11 taçiics c111
_f1111ç110 dos "jogos de csrnla": 1111111cro-/1istiírit1 estri tiio atenta oo peso das rcstriçc1es cstrufurnis
cxcrcidns sobre 11 /011g11 dumçiio, q11c111to o está 11 111icro-'1i..::.tórin 11 i11iciatiua e ii mp11cid11dc de
11cgociaçí'io dos 11gc11tcs '1istâricos c111sit1111çc1cs de i11ccrtc:a.
r11ssare111os, assi111 , d11 idt;ia de 111c11 tnlid11des II de reprcse11t11çt1cs 1111cstcirn d11 11oçiio de ua-
rioçôcs de cscnlas e 110 â111l1ito de 1111111 110m 11/mrdogcm globnl da '1istória das sociedades , aq11clt1
i\ MI-Mt)RI A , A III ST(lRIA, tl ES(.)t.; l:C IME NHl

proposta por Bcmard Lepetit cm Les Formes de l'expérience. Nesta obra, 11 ênfase rccni nas
prrítirns soci11is e nas rcprcscnt11ç6cs integradas a essas prríticas, e as rcprcscnt11çôcs ap11recem
co1110 o co111po11cntc si111bôlico na cstrutumçi'ío do vínculo social e d11s identidades que este pôe
e111 jogo. Dcter-110s-e11ws partirnlar111e11tc na co11ex,10 entre a operatividade das rcprescntaçôcs
e os difcrc11tes tipos de cscnlns 11plicâvcis aos fe11ô 111c110s sociais: cscnla de eficácia e de coerção,
cscn/11 de grandeza na esti111a públicn, escala das duraçt'"5cs encaixadas (scçdo lf l, "Variações de
escalas").
Encerraremos co111 um11 nota crítirn ,rn qual tiraremos partido d11 polissc111ia do termo "re-
present11ç110" para justificar o dcsdolm1me11to d11 represc11t11çdo-objeto e da representação-ope-
ração, do capítulo seg11i11tc. O gra nde vulto de Louis Marin se petfilará pela primeira vez 1111s
últimas páginas deste capítulo c111 que as 11ve11tr1ras da explirnçào/co111prcc11si'ío niio terão cessa-
do de ser escandidas pela aventura da história d11s mentalidades transformada em história das
rcprcscntaçôes (seçâo IV, "Da idéia de 111c11talidadc à de rcpresentaçào").

I. A promoção da história
das mentalidades

Na imensa literatu ra que trata da explicação em história, escolhi aquilo que diz
respeito à emergência e em seguida à consolidação e à renovação do que foi chamado
sucessivamente, ou de forma alternativa, história cultu ral, história das mentalidades,
e finalmente, história das represen tações. Explicarei mais adiante por que, após refle-
tir, adotei esta ú ltima denominação. Nesta seção, proponho comentar a escolha dessa
trajetória, na impossibilidade de justificá-la imediatamente. A noção de mentalidade
represen ta, com efeito, uma noção particularmente vulnerável à crítica, cm razão de
sua falta de clareza e de precisão ou, se formos caridosos, de sua sobrede terminação.
As razões pelas quais ela se impôs aos historiadores são por isso tanto mais dignas de
interesse.
No que me diz respeito, essas razões são as seguin tes.
Mantendo-me inicialmente o mais próximo possível do ofício de historiador, o que
me interessou foi a promoção progressiva de um desses novos "objetos" aos quais a
história mais recente atribui grande importância, a ponto d e se tornar o que chamo
mais acima de objeto pertinente, em outras palavras, objeto de referência próxima para
todo o discurso que a ele se refere. Ora, essa promoção não ocorre sem uma redis tri-
buição dos valores de importância 1t1, dos graus de pertinência, que afetam a posição
dos fenômenos econômicos, sociais, políticos, na escala de importância e, finalmente,
na escala adotada pelo olhar histórico em termos de macro- ou micro-história. Esse

10 _lu s tifico ess<1 ex pressiio n,1 quílrtíl seçiio do c<1 pítulo I díl tcrccirn p a rte (pp. 347-356) dedicado à
relação entre verdade e interpre taçfü1 em história.
11 1s1(rnl-\ / ll'ISI F\lll l ()C f .\

deslocamento no plano d os objetos d e referên cia, de pertinência próxima, não se dcí


sem um desloca n1ento no plano d os m étodos e dos modos d e ex plicação . Os concei-
tos de singula rid ad e (a d os indi víduos o u d os acon tecimentos), d e repe titi \' idade, d e
se riação, serão particula rmente p ostos à pro,·,1; e ma is ainda o d e coerção coleti,·a e,
co rrelativa mente, o de recepção p assi,·a ou nzio por parte dos élgentes socia is. É assim
que \'Cremos d esponta r no fim d o caminho noçô es basta n te n m ·as como as d e ap ro-
priação e negociação.
Ao to mar certo recuo em rel açã o ao trab,1 lho d o histo ri a d or, q uis ve rificclr a tese
segundo a qu a l a hi stória , enq ua nto um a d ,1s ciências do socia l, não infrin ge s ua
disciplina de dista ncia m e nto e m relação à e xpe riência ,·i,·a, a da m em ó ri a coleti,·a,
m esmo q u ando afi rm a se dis tanciclr d o qu e se cha m a, q uase sempre e rron ea mente,
p ositi,·is mo o u, d e m od o ma is justo, h istór ia hi sto ri za n te para caracterizar a época
d e Seignobos e Lang lois n o iníc io do séc ul o XX . Pod e rí,1 mos pensar que , com esse
"no\'o objeto", a histó ria se ap rox imari,1 ao m ,íximo - sabendo-o ou n ão - da feno-
me nolog ia , e m particular a da açiio , o u , com o g osto d e di ze r, a d o ho m e m que age e
so fre. A d espei to d esse encurtame nto déls d ist5ncias, ,1 h istória d as menta lida d es e/
ou d as re prescntaçôcs nã o d e ixc1 de estar s itu ,1da do outro lad o d o corte epistemo ló-
gico que a sep a ra d o tipo d e fcno m eno logi,1 que fo i praticada na p arte d esta obra
d edicad a à m em ória e, sing ul a rme nte, à m em ó ri a colcti\' a, na medid cl cm que a me-
m ó ria cons tit u i u m dos p od ere s desse ser que deno mino homem capaz. Os dese nni l-
\'imentos mais recen tes d a histó ria da s representaçôes a proxima m-se tanto q uanto o
p e rmite a postu ra ob je ti,·a da his tóri a de noções a pa re ntadas à d e poder - p oder
foze r, pod e r d izer, poder narrar, pod er impu ta r-se a origem das pró prias ações. O
di Mogo entre a his tória d as representaçôes e a he rme nêu tica d o ag ir resul tará a ind a
m ais clpe rtad o, na m edida em q ue n ão te rc.i s ido fra nqueado o limi ,1r in \ isín:>l do
con hecime nto hi stó ri co.
Mas existe uma rélzão ma is su ti l e m meu in teresse pela h istóri a d as men ta li dades
e das re presentc1ções, uma razão que se a mplio u a ponto d e ocupa r tod o o fi na l dcs tél
im ·estigaçào. An tecipa ndo-me à última seção d este capítu lo, confesso que essa raôo
se impôs dcfiniti,·a mente a partir do momento em que, pelas razf1es que mencionarei,
a noção de rep resentação fo i p referi da à d e me nta lida d e. Um caso não mais de con fu-
são o u d e ind istinção, mas rea lmente de sobredete rminaç,10 surg iu então cm prime iro
plano. Verifi ca-se - e será preciso mostra r que não se tra ta do efeito de u m acaso
semântico, d e uma lastimável hom o ními a res ul tante d a pobre1.a ou d a parcimónia
do \'Ocabulá ri o - q ue a pél lav ra " represen tação" fig u ra nesta obra cm três con tex tos
diferentes. Ela d esigna inicia lmente o g ra nd e enig ma d a me mória, em relação com a
problem á tica grega d él eikii11 e seu embc1raçoso pa r pha11t11-:;111a ou pfu111t11sia; já d issenws
e repetimos, o fe n ômeno m nem ó nico cons is te na p resença no es pírito d e uma coisa
ausente que, cl lém d isso, não ma is é, p orém foi. Quer seja s implesm en te evocado como
presença, e nessa cond ição como p11tlws, quer seja ati\'amen te b uscad o na operaçáo d e
recordar que se conclui com a experiência do reconhecimen to, cl lem b rançél é repre-
sen tação, re-(ê!)presentação. A cél tcgori él d e rep resen tação ap a rece u rna segunda ,·ez,
A Ml'M(lRIA , A I I I ST(JR I A, () ESQ U EC I ME N TO

porém, no âmbito da teoria da história, na condição de terceira fase da operação histo-


riográfica, quando o trabalho do historiador, iniciado nos arqui vos, termina com a pu-
bli.cação de um livro ou de um artigo dados a ler. A escrita da história tornou-se escrita
literária. Uma pergunta embaraçosa invade então o espaço de pensamento assim aber-
to: como a operação his tórica mantém, ou até mesmo coroa, nesse estágio, a ambição
de verdade pela qual a histó ria se dis tingue da memória e, eventualmente, confronta-
se com o voto de fidelidade desta última? Mais precisamente: como a história, em sua
escrita literária, consegue disting uir-se da ficção? Enunciar esta pergunta é indagar cm
que a história permanece, ou melhor, se to rna representação do passado, algo que a
ficção não é, ao menos intencionalmente, ainda que ela, além do mais, o seja de alguma
forma. Assim, a historiografia repete cm sua fase terminal o enigma levantado pela
memória em sua fase inicial. Ela o repete e o enriquece com todas as conquistas que
colocamos globalmente sob a égide do mito do Fedro sob o signo da escrita. A questão
será então saber se a representação his tórica do passado terá resolvido, ou simples-
mente transposto, as aporias ligadas à sua representação mnemônica. É em relação
a essas duas ocorrências principais que será preciso situar, quanto a seu conteúdo
conceituai, o uso do termo "representação" pelos historiadores. Entre a representação
mnemônica do início de nosso discurso e a representação literária situada no final da
trajetória da operação historiográ fica , a representação se propõe como objeto, corno
referente, de certo discurso historiador. Será possível que a representação-objeto dos
his toriadores não carregue a marca do enigma inicial da representação mnemónica do
passado e não antecipe o enigma terminal da representação histórica do passado?
Limitar-nos-emos na seqüência desta seção a uma recordação sucinta dos momen-
tos importantes da história das mentalidades desde a fundação da escola francesa dos
A111111/es até o período qualificado como de crise pelos observadores, historiadores ou
não. Interromperemos deliberadamente esse rápido exame e nos confrontaremos com
os três principais empreendimentos que, ainda que não se deixem conter dentro dos
limites estritos da história das mentalidad es e das representações, dirigiram ao conjun-
to das ciências humanas um pedido de rigor ao qual será preciso ind agar se a história
ulterior respondeu, ou a té mesmo, de modo mais geral, se uma história das represen-
tações é capaz d e fazê-lo.

É inicialmente a primeira geração da escola dos A1111a/cs, a dos fundadores, Lucien


Febvre e Marc Bloch, que merece ser interrogada, não somente porque a fundação
da revista em 1929 marcou época, mas porque a noção de mentalidade reveste-se na
obra dos fundad ores de uma importância que só será igualada na geração posterior,
no período de articulação marcado por Ernest Labrousse e, mais ainda, por Fcrnand
Braudel. Essa característica é tanto mais notável pelo fato de os A111111/cs d'histoirc éco-
11011lÍquL' ct socia!L' - esse o seu nome de batismo - serem marcados principalmente
por um deslocamen to do interesse do político para o cconômico e por uma rejeição
vigorosa da história à maneira de Seignobos e Langlois, impropriamente chamada de
positivista, o que pode criar uma confusão com a herança comtiana, e menos injusta-

<1), 200 •:>


H 1sn·w 1., / l:l'IS I l" M()L()CJ.-\

mente denominada historizante, cm ,·irtude de sua dependência em relação à escola


a lemã de Leopold Ranke. A singularidade, a do acontecimento e a dos indidduos, a
cronologia escandida pela narração, o político enquanto lugar pri\'ilegiado de inteli-
gibilidade são todos recusados. Empreende-se uma busca de regularidade, de fixidez,
de permanência, segundo o mod elo vizinho da geografia, Jc,·ada a seu apogeu por
Vida! de La Biache, e também da medicin,1 experimental de Claude Bernard; opôe-se
à passividade presumida do historiador confrontado com uma coleção de fotos ,1 in-
tervenção ativa do historiador diante do documento de arquivo 11 . Se, toda\'ia, Lucien
Febvre retorna d e Lévy-Bruhl o conceito de mentalidade, é para proporciona r a urna
história de casos, d ependente da biografia históri ca, o pano de fundo do que ele chama
"aparel hamento mental" 12. Ao generalizar assim o conceito de mentalidade para além
do que a inda se chamava "mentalidade primitiva", matam-se dois coelhos com uma
só cajadada: amplia-se a esfera da pesq uisa histórica para além do económico e, sobre-
tudo, do político, e se oferece a resposta de uma história ancorada no social à história
das idéias praticada pelos filósofos e pela maioria dos historiadores das ciências. A
história das mentalidades abre assim, d e maneira d uradoura, seu longo sulco entre a
história económ ica e a história des istorizada das idéias 1;.
Em 1929, Febne já havia publicado seu L11t/1cr (1928), ao qua l acrescen ta rá R11/ie-
/11i::; e Margucritc de Nm nrrc 1\ Sob sua aparência biográfica, esses três livros colocam
1

um. problema q ue ressurgi rá sob uma outra forma quando a histórü1 questionar sua
capacidade de rep resentar o passado, a sabe r, o problema elos limites da representa-
ção1'. Confrontado com o proble ma da descrença no séc ul o XVI, Febv re estabe leceu
de forma convincente que o acreditá,·el disponível de uma épo ca (a expressão n ão
é d e Febvre), seu "aparelhamento mental", não permite professar, nem mesmo for-
mar, uma visão do mundo abertamente a té ia. O que o homem el e uma dada é poca
pode e o que não pode conceber sobre o mundo, e is o que a hi s tória das menta lida-
des pode se propor a m ostrar, com o risco de deixar na indeterminação a questão de
saber quem pensa assim por meio desse "aparelhamento mental ". O coleti,·o seria
tão indiferenciado quanto a noção de aparelhamento mental parece implicar? Aqui,
o historiador conta com a psicologia de um C. Blond el e a sociologiél de um Lé,·y-
Bruhl e d e um Durkh e im .

11 A prime ir,1 adH' rtênc in havia sido dadíl l'l11 1,J():'l por F. Si mi,, nd cm Sl'LI famoso art igl) "\ktho,k
his torique et sc ience soe ia ll'", !~CI' IIC de ~_1111 //li'.;c /ii,; /ori1111c, 19 03, rdomado nos Anna les, JlJhll; o ,1 h·o
era n obra de Seig nobos: L11 tvldhodc /1i,;to riq11c 11111'/il/11(;1, 1111x s(ic11cc, .;oci11/cs ("1901 ). A histl·iri,1 hi s-
torizan te, objeto de todos os sa rcasmos, nwn·ci,1 , ;intl's, ser ch c1 m;id,1 de Pscol,1 nwtód ic,1, s!:'g undt1
l1 desejo d e Cabri<.·I \tlonod, fundn dor d ;i J~c,•11c /1i;;toriq 11c, com ,1 qual os J\n n;iles com pell'm. Um
jul ga men to mais t•qu,i ninw, como foi d it\l mais ,,cim;i, pode sn lido em A ntoine Prost, "Seignobt)S
rl'\·isité", art. cit. (\·c r ,ic im ,1, p. 188, n. 56).
12 L. Fdwre, Co111"11t~ p,,11r /'histoirc, Paris, Arm,rnd Colin, 1953.
13 A. Uurguit'IT, " Histoirt• d'um' hi sto ire: la n,1 iss,rnce des A1111a/e,;"; J. Re\·el: " Hi s toire L'I science
soci;i le, lcs paradignlL's tks /1111111/cs", A,11111/,·.,, no 11, 1979, " Lcs A111111/c.,, 1929-1979", p. 1311 L' Sl'g.
11 L. r ebvrt', l/11 1Ít'st i11 : J\ l . L11tl,cr, P<1ri s, 1':128; reed., PUF, 1968; /.,· Pro/il,'1 11c d(' /'ill(ro_111111cc 1111 X l' / si,\·/c:
Ia rclig io11 de Jfo[,['/11is, P.iris, Albin Midwl , 1912.
l:i C f. adia nte, Sl'gund,1 p.irte, cap. 3.
A MFM()R JA, A HI SJ'ÓR I A , O 1:S(JU IT l \ ,1 1:\ 1()

Ora, Marc Bloch, em Lcs Rois thn1111wtu rges (1924) e d epois em Ln Snciété féodnle
(1939, 1940, 1948, 1967, 1968), havia encontrado um problem a comparável: como o
rumor, a fal sa notícia da capacidade dos reis de curar os escrofulosos p ôde propa-
gar-se e se impor, se n ão com a ajuda de uma d evoção quase religiosa com respei to à
rea leza? É p reciso s upor, evitand o tod o d esvio an acrônico, a fo rça d e uma estru tura
mental específica, a "mentalid ade feud a l". Ao contrário da história das idéias, d esar-
raigada d o solo social, a história deve d ar lugar a um tratc1 mento deliberadamente
histórico das "m aneirns d e sentir e de pensar". Importam as p ráticas coleti vas, sim bó-
licas, as representações menta is, despercebidas, dos diversos grupos sociais, a ponto
de Febvre poder a larmar-se com o desa pa recimento do indiv íduo na abo rdagem do
problem a por Marc Bloch.
Entre sociedade e indivíduo, o jogo d aquilo que Norbcrt Elias chama civilização não
é avaliado com a mesma medida pelos dois fund ad ores da escola. A marca d e Durkheim
é m ais p rofunda em Bloch, a a tenção às aspirações à indi vid ualidade das pessoas do
Renascimento, cm Febv re Mas o que os une é, de um lado, a certeza d e que os fatos
1
(, .

de ci vilização se d estacam contra um fund o d e his tória socia l, d e outro, a atenção às


relações de inte rdependência entre esferas d e ativ id ad e d e uma socieda d e, atenção
que di spensa de en cerrar-se no impa sse das relaçües entre infra- e superestrutura à
maneira ma rxista. E acima de tudo, é a confiança n o poder fed erati vo d a história em
re lação às ciências sociais vizinhas: sociologia , e tno logia, psicologia, estudos literá-
rios, lingüística. "O ho mem médio segundo os A 1111nlcs", como o d enomina Fra nçois
Dosse 17, esse homem social, n ão é o homem eterno, mas um a fig ura his toricamen te
d atada d o antropocentris mo, d o humanism o h erdado d as Luzes, aquele mesmo que
M. Fouca ult fusti géHá . Mas, ind epende ntem e nte d as objeções que se possam op or
a essa visão do mundo, que depende d a interpretação insep arável d a verdad e em
história 18, podemos legitima mente indaga r-nos, nessa etapa d e nosso discurso, o que
são as articulações internas d essas estruturas m enta is em curso d e evolução, e, sobre-
tu do com o a pressã o social que elas exercem sobre os agentes socia is é recebida ou
sofrida . O d etermi nismo sociologizante ou p sicologizante d os A1111nlcs n a época d e
s u a dominaçã o só se rá efe ti va mente questionad o q uand o a história, ao voltar-se
sobre si mesma, tive r proble ma tiza d o a dia lé tica entre os níveis s uperior e infe rio r
d éls socied ades n a questão d o exercíci o d o pode r.
Após a Primeira G uerra mundia l, a escola dos A 1111alcs (e sua revis ta, daí em d ian te
denominada Éco110111ics, sociétés, ciziilisations) é fa mosa por s ua p referência pela econo-
mia com o referente privilegiado. Essa pertinência primeira condi z com a ferramenta
da quantificação apli cada a fa tos repetíveis, a séries, tratadas esta tisticamen te, com a
cumplicidade do computador. O humanismo da primeira geração dos A 11nnlcs p arece

16 Compare-se o l<11/1cl11i;; de Febvre ao d e Bakhtin.


17 Fra nçois Dosse, L'H istoirc cn 111ict fcs. Dcs "A111rnlcs " à la 11011z,cl/c histoire, op. cif . N ão se d eve de ixar de
le r o novo prefoc io de 1997, que leva e m conta os desenvolvimentos dos qu ais tratarei, por m in ha
parte, na seqüência deste capítulo, na esteira do his toriador Be rnard Lcpetit.
18 Cf. adia nte, terceira parte, cap. 1.

~ 202 ~
11 IST( )R J.\ / ll'ISTU,·IOIO C 11\

reprimido pela re\·erência em relação às forças económicas e sociais. O estruturalismo


de Claude Lévi-Strauss funciona ao mesmo tempo como encorajamento e como concor-
rente1". É preciso então contrapor aos in\'ariantes da sociologia dominante estruturas
que continuam sendo históricas, ou seja, que mudam. Condição satisfeita pelo famoso
conceito de longa duração, instalado por Braudcl no topo de uma pirâmide descen-
dente das durações segundo um esquema que lembra a tríade "estrutura, conjuntura,
acontecimento" de Ernest Labrousse. O tempo assim celebrado é conjugado ao espaço
dos geógrafos, cuja permanência própria ajuda a redu zir a \·elocidade das duraçôes.
O horror ao acontecimento experimentado por Braudel é por d emais conhecido para
que insistamos nele~". Permanece problem,ítica a relação entre temporalidades mais
acumuladas e empilhadas que dialetizadas, segundo um pluralis mo empírico delibe-
radamente subtraído à especulação abstrata , diferentemente da cuidadosa reconstru-
ção, feita por Gcorges Gurvitch, da multiplicidade dos tempos sociais. Essa fragilida-
de conceituai do modelo braudeliano só serii verdadeiramente enfrentada quando se
le,·ar cm conta a quest.10 colocada pela ,·ariação das escalas percorridas pelo olhar do
historiador. A esse respeito, a referência à história total, herdada dos fundadores e rei-
terada com vigor por seus sucessores, autoriza apenas urna recomendação prudente,
a de professar interdependências onde outros, marxistas à frente, acreditam discernir
dependências lineares, horizontais ou ,·erticais, entre os componentes do vínculo so-
cial. Essas relaçôes d e interdependência só pod erão ser problematizadas por si mes-
mas num estágio ulterior da reflexão, quando a preferência pela longa duração ti\'er
sido claramente atribuída a urna opção, até então imoti\'ada, por parte da macro-his-
tó ria, pelo modelo das relações económicas.
Essa aliança entre longa duração e macro-história rege a contribuiç.10 da segunda
geraç.10 dos A111111!cs à história das mentalidades. Uma outra tríade que não a das du-
raçôes hierarquizadas d e\'e ser aqui Ie,·ada em conta: a do econômico, do social e do
cultural. Mas o terceiro cst,1gio desse foguete, segundo a di\'ertida expressão de Pierre
Chaunu, o ad vogado d a história serial e quantitativa, n,1o obedece menos que os ou-
tros dois estágios às regras d e método correia tivas à opção pela longa d uraçào. O mes-
mo primado conferido aos fatos repetÍ\'ei s, seriais, quan tificá \'eis, vale para o mental
assim corno para o económico e o social. E é também o mesmo fatalis mo inspirado pelo
espet,kulo da pressão inexorável das forças económicas, e confirmado pelo da perma-
nência dos espaços geográficos de po\'oamento, que inclina a uma visão do homem
esmagado por forças maiores que ,,s suas, como se vê na outra grande obra de Braudel,

JlJ C la ude Lé \· i-S tra u;;s, " H is toi rc e t ethno lng il'", Rc, 111,· de 111d t1pi1_1h iq11c 1·/ d,· 111om/c, 19-±9, retom ,1d n
em / 111//iropolog ic ~trn ct11 r,1 /c, Pa ri s, Plon, 1973, ,1 quem FL'rnand Br.:i ude l rL'sponde em " l listo irL'
l't scie nce soc ia k. La long uL' Jurl;e ", í\111111/,·, , H1 d fr . 1958, pp. 72 5-7:;_1, retom,1do em Éuit, ~11r
/'/,i,;tpi rc, Paris, Fl .:i mm.ir ion, 1969, p. 70 .
20 Ex pus em dL't a lhe a epi s te nwlog i.:i ut i Iizad,1 pl'la obr,1 c h,we d e BraudL'l, La Mt;dit,·1T1111à' e/ /e ;\ !onde
111,•ditcrm 11 t;l'J1 11 l'époquc de Philippe li, op. á t., l ' lll "/i •111p, e/ /~h it, t. 1, <'V , it., pp. 182-190. ÜL'diquei-me,
n,1quel.:i nportunid adt\ a um a rL'con s tru ç,10, qul' e u hoje c hama ri a n,1rrn ti\·ista, d.:i obr.:i, n,1 qua l
l1lL' ag rada cllnsider,ir o pró prio Med itl'rr,'l nt'o Cllmo <l qua SL'-pe rsnnagL'm d e um g rande L'nrl'do
gL'( 1pol ítico.
/'\ MLM(ll{ Ji\, i\ HIST(lRJ/'\, O ESQUECJMJ:~TO

Civilisation nwtériclle, Éco110111ic ct Capitalisllll' (1979). Estamos longe da gaiola de aço


de Max Weber? Não teria o cconomismo impedido o desdobramento desse terceiro
estágio, como o sugerem as reticências de Braudel a respeito das teses de Max Weber
sobre a ética protestante e o capitalismo? Não se realizou o sonho confederador da
história cm relação às ciências sociais vizinhas em benefício apenas de uma antropolo-
gia intimidada pelo estruturalismo, a despeito de seu desejo de historiza r este último?
Ao menos Braudel, até sua aposentadoria e, além dela, até sua morte, terá oposto com
energia, à ameaça de dispersão, a demanda por uma his tória total.
No balanço do percurso cinqüentenário da revista, feito em 1979 21, os redatores
recordam que a comunidade agrupada em torno dela desejou propor "mais um pro-
grama que uma teoria ", mas reconhecem que a multiplicidade dos objetos sujeitos a
uma investigação sempre mais especializada, mais técnica, a expüe a fazer "reaparecer
a tentação de uma história cumula tiva, em que os resu ltados adquiridos valeriam mais
que as questões colocadas". Jacques Revel encara esse risco no artigo assinado que dá
seqüência ao artigo de A. Burguiere citado acima, sob o título "Histoire et science so-
ciale, les paradigmes d es A1111a/cs" (pp. 1360-1377). Qual é, pergunta ele, "a unidade de
um movimento intelectual que perdura há meio século"? "O que h á em comum entre
o programa extremamente unificado dos primeiros anos e o aparente estilhaçamento
das orientações mais recentes?" Revel prefere falar dos paradigmas particulares que se
sucederam sem se eliminarem. A recusa da abstração, a defesa do concreto contra o es-
quematis mo tornam difícil a formulação desses paradigmas. Impõe-se de início a rela-
tiva dominante económica e social dos primeiros anos da revista, sem que o social seja
em momento algum "o objeto de uma conceitualização sistemática articulada"; "ele é
bem mais o lugar de um inventário sempre aberto das correspondências, das relações
que fundam a interdependência dos fcnômenos". Enxerga-se melhor a ambição de or-
ganizar em torno da história o feixe das ciências sociais, aí compreendidas a sociologia
e a psicologia, e a resistência ao "anti-historismo por vezes terrorista" fomentado pela
leitura de Tristes Tropiqucs (1955) e de Antliropo/ogic structumlc (1958) de Claude Lévi-
Strauss, do que a estrutura conceituai que serve de base ao mesmo tempo a essa ambi-
ção e a essa resistência. Por isso, é difícil discernir o que está cm jogo nas continuidades
e, mais ainda, nas descontinuidades. Não sabemos exatamente qual "constelação do
saber está se desfazendo sob nossos olhos há uns vinte anos". O homem por si só, se
ousamos dizê-lo, constituiria o tema confederador "de uma organização particular do
discurso científico" tal que possamos atribuir ao desaparecimento desse objeto transi-
tório as fragmentações ulteriores do campo da investigação? O autor conhece o discur-
so sobre o estilhaçamento da história, e a té mesmo o de F. Dosse sobre a " história em
migalhas"; ele mantém a recusa e a convicção ligadas à reivindicação d e uma história
global ou total. Recusa das compartimentações, convicção de uma coerência e de uma
convergência. Mas ele não consegue ocultar sua preocupação: "É como se o programa
de história global oferecesse apenas um quadro neutro para o acréscimo de histórias

21 " Les A1111a/c~, 1929-1979", A111111/c~, 1979, pp. 1344-1375.


HIST(ll{J..\ / ll'ISTl:\10Ull./·\

particul a res e cuja organi zação parece não apresen tar p roblem as". Daí a pergu nt,1:
"História estilhaçad a o u história em cons trução?" O a utor não fa z sua escolha.
E o que é fe ito, n esse nevoeiro conceitu ai , da his tória das m en talid ades, que esse
balanço-inventário n c'íll nomeia (como, por sina l, tampouco nomeia os o utros ramos
prin cipais da án·orc d a história)?
Confrontados com essas perguntas e dúvidas, alguns histori ado res soube ram con-
sen·ar a rota d a inteligibilid ade na rcgié"io da história das men talidades, mesm o tendo
de colocar esta ültima sob outras p a tronagens. É o caso d e Robert Mandrou, cuja obra
inte ira é colocada sob a égide da " psicologia histórica" 22 . foi a ele que a E11cyc!op11e-
di11 U11izicr5a/is confiou a d efesa e ilustração da histó ric1 d as men talidades 2' . Mandrou
define assim seu objeto : " [Ela ] se a tribui como objetivo a reconstituiçé"io dos compo r-
tamentos, das exp ressões e d os s ilêncios que tradu zeITl as concepçôes do mundo e as
sensibilidades coleti\·as; representaçôes e imagens, mitos e \·alores, recon hecidos o u
su portad os pelos g rupos ou pela sociedade g loba l, e que consti tue m os conteü dos da
psicologia coletiva, fornecem os e lementos fund amen ta is d essa im·estigaçào" . (Reco-
nhece-se a í a equação entre a men ta lidade d os a utores de líng ua fra n cesa e a Wclt11115-
c'111111111g dos ale mães, cuja tradução seriél nosso conceito d e mentalidade.) Qua nto ao
m é todo, a " psicologia h istórica" que o próp rio Robert Mandrou pratica apóia-se em
conceitos operílcio n ais de d efinição estri ta: \' isõcs do mundo, estruturas e conjunturas.
De um lado, as \'isões do mund o possuem uma coerência própria; do o u tro, certa
continuida de estrutu ra l lhes con fere uma not,ível estabilidade. Enfim , os ritmos e as
flutu açôes, longas e cu rtas, pontuam as circunstâ nc ias conjuntu ra is . Mand rou se colo-
ca assim corno o histo riador do m ental co leti\'o que dá o máximo de crédito à inteligi-
bilida de da história d as m enta lidades, segu nd o uma conceitua lidade que lemb ra a d e
Ernest Labrousse (estrutura, conjuntura, ílcontccimcnto) - e o m ínimo a uma reesc rita
ps icanalítica d a ps icologia coletiva, diferentem e n te d e Miche l d e Certea u .
É també m às m a rgens da escola dos A111,a/c::; que Jean-Pierre Vcrnan publica cm
1965 seu livro principa l, \'árias \'ezes re impresso e r eeditado, Mytlic ct Pe115L'C c/1c: b
Gn'c5 2-I, que ele den omina "Étude de psychologie historique" e que coloca sob a p éltro-
n agem do psicólogo lg nace Mcyerson (él quem a obra é dedicada), e nas \·iz inhanças
d e outro h elenista, Lo u is Gernet. Trnta-se " d e investi gações d edi cadas à h istória in-
terior do homem g rego, à sua organizaç,fo m ental, às mudanças q ue a feta m , do sé-
culo VllI ao século IV a ntes d e n ossa era, o panora mél completo d e suas ati\·idades e
fun çôes psicológicas: quadros do espaço e do tempo, m em óri a, imag inaçé"io, pessoa,
n mtade, práticas sim bólicas e m anejo dos signos, m odos de rac iocínio, ca tegorias de

22 Robert Mandrou, /11/n>d11dio1111 la Fn111(,' 111odcm,·. Essoi de ps.11t"holnxic i,i~lt>riqut' (1961), ret'd. , I\iris,
/\ lbin M ichel, FN8. Ve /11 cu// 11rc pop11/c1ir,· ,·11 Fm11ct' 1111x X V li' e/ X \1 li i' , i,\·/c~. Lo Bihlit>thi•q11,· Nc11c
de Troy,·s (196-l ), rL' L'Ll ., r ,1ris, 1mago, l lJYY. 1\ 111:.:i., t ral~ e/ So1ú ,.,.., e11 Frc111c,· ,111 X V 1/· .,ii·cle. U11e a11c1/_11, ,·
dt' l''.1/L'ilo!o:,;ic i,i~1tmq11e, Par i s, Éd. du S(•u il, 1989.
2.1 E11t"_11dopt1 edio U 11ic•cr,11/i,, 1%8, t. V III , pp. -D6--U8.
2-l J.-P. Vcrnant, M11t'1c e/ /lc1hL'l' chc: lcs Crcc.,: d1 1dt'., de p,ycl1t1Ioxit' i,i.;toriq11c, Paris, Ma spcrn, F/6:i;
reed ., La Décou \'L·rte, 198:;.
/\ MJ: MÚ RI /\, /\ HI ST( ll{ l 1\ , O FS(/UICl\1 1:1\.:TO

pensa mento" (M ytlw ct Pc11séc c/1ez lcs Grccs, p . 5). Vinte anos d epois, o autor reconhece
seu parentesco com a análise estrutural, aplicada a outros mitos ou conjuntos míticos
gregos por vários estudiosos, dentre eles Marcel Détienne com quem e le publica Les
Rusrs de /'intclligc11cc: la 111l'tis dcs Grccs (Flammarion, 1974). A obrn publicada em con-
junto com Pierre Vid al-Naquet, Myt/Jc ct Tragédic en Grccc 1111cic1111c (Maspero, 1972),
traz incontestavelmente a mesma marca . É notável que Jean-Pierre Vernant não rompa
com o humanis mo d a primeira geração d os A 111111/cs. O que lhe importa, em última
análise, é a jornada sinuosa que conduz do mito à razão. Como em My thc ct Tragédic,
trata-se d e mostrar "como se d esenham, a tra vés da tragédia antiga do século V, os pri-
meiros es boços, ainda hesitantes, do homem-agente, mestre de seus atos e responsá vel
por eles, d etentor de uma vontade" (MytlJc ct Pc11sée c/Jez lcs Grecs, p. 7). O autor insiste:
"Do mito à ra zão: tais e ra m os dois pólos entre os quais, em uma visão panorâmica, pa-
recia ter-se decidido, na conc.lusão d este livro, o destino do pensamento g rego" (íbid.),
sem que a especificidade, e até mesmo a estranheza dessa form a d e mentalidade seja
ignorada, como o mostra a investi gação sobre "os avatares dessa forma particular,
tipicamente g rega, de inteligência retorcida, feita d e estra tagem as, de astúcia, de es-
perteza, de logro e d e expedientes de toda espécie", a 111ctis dos gregos, a qual "não
depende inteiramente do mito, nem completamente da ra zão" (ibid.).
Contudo, a vertente principal da histó ria d as mentalidad es, n o interior da escola
dos A111111/es, devia recair cm uma defesa mclis incerta d e seu direito de existir já a partir
da segund a geração, a de Labrousse e Braudel, e ainda mais na época dita d a "nova
história "; d e um lado, apresenta-se o espetáculo de u ma perda de referencial, que le-
vou a se falar d e história estilhaçada, e até mesmo d e história em migalhas, d e outro
lad o, graças até mesmo a essa dispersão, o de uma certa calma ria; é assim que a his tó-
ria d as mentalidades aparece, com tudo que lhe é dev ido, entre os "novos objetos" da
"nova his tória ", n o tomo Ili da obra coleti va patrocinad a por Jacques Le Goff e Pierre
Nora, Fnirc de /'l,istoirc. Ao lado dos "novos p roblemas" (primeira parte) e das "no vas
abordagens" (segunda parte), a história das m entalidad es emancipa-se no momento
em que o projeto de história total se esfum a. Da antiga tutela d a história econômica,
alguns conservaram um entus iasmo pela longa duração e pelo estudo quantitativo,
ao preço d a aniquilação d a fi gura do homem d o humanismo qu e ainda e ra celebrada
por Bloch e Febvre. Em particular, a história do clima proporciona suas medidas e
s uas estratégias a essa "história sem os homcns" 2' . Esse apego tenaz à históri a seri al
faz ressurgir, cm contraste, a indefinição conceitua! da noção de mentalidade entre os
que aceitam a patronagem d essa história especial. Nesse aspecto, a apresentação por
Jacques Le Goff desse "novo objeto" 2'' que seri am "as mentalidades" é m ais desenco-
rajadora para o espírito d e rigor que os preced entes balanços-inventários d e Duby e
Mandrou. O fortalecim ento do topos, anunciad or d e seu eventual desapa recimento, é

25 Emma nue l Leroy- La durie, Histoirc d11 cli11w t dcp11is f'n1111tif, l'a ris, Fla mm a rion, 1%7.
26 Jacq ues Le C off, " Les rnc ntalit('.s: une hi s to ire ambiguc", in Fai re dt• f'/J i::.toirc, t. Ili, Nou veau x Ob-
jets, 0 11. cit., pp. 76-94 .
HI S llWI.\ / Fl'ISTl\1 (\ IUCL\

sa udado por um dito inq u ietante de Marcel Proust: "Mentalidade me agrada. Há como
essa pa la v ras no,·as, que a g ente lança". Se a expressão recobre uma realidade cientí-
fica , se ela encerra alguma coerên cia conceituai, é algo que ~wrmanece problem,1tico.
A crítica deseja crer, contudo, que sua própria imprecisão a recomenda para expri-
mir os "além da história " - entenda-se da história econômic.1 e social; a história das
mentalidades oferece ,,ssim um "estranhamento [ ... J aos intoxicados com a história
económica e social e sobretudo com um marxismo vulgar", transport,1ndo-os até "esse
a lhures" que foram as mentalidades. Satisfaz-se assim a expectativa de Michclet, pro-
porcionando um rosto a "mortos-v ivos ressusci tados" (Fairc de l'/1istoirc). Ao mesmo
tempo, reata-se com Bloch e Febvre; modula-se a noção segundo as épocas, segundo
os meios, à maneira dos etnólogos e dos sociólogos. Se se q uiser falar de arqueologia,
não será no sentido de FouG1tilt, mas no sentido ordinário d a estratigrafia. Quanto a
seu modo operatório, as men talidades funcionam automaticamente, à revelia de seus
portadores; tr,:lta-se menos de pensamentos formados e proferidos que de lugares-co-
muns, de heranças mais ou menos desgastadas, de visôes de mundo inscritas nc1quilo
que nos t1rriscarnos a chamar de inconsciente coletivo. Se a história das mentalidades
conseguiu durante algum tempo merecer seu lugar entre os "novos objetos", é cm
ra dlO da ampliação da esfera documenta l, por um lado, a todos os ras tros, transfor-
m,1dos em tes temunhas coletivas de urna época e, por outro, a todos os documentos
referentes a condutas que se desviam da mentalid ade comum . Essa oscilaçào da noção
en tre o com um e o mt1rginal, grnças à s discordâncias que denunciam a ausência d e
contemporaneidade dos contempodneos, conseg uiu parecer justificar, c1pesar de s ua
indefiniçZío sern,1ntica, o recurso à categoria de mentalidad es. Mas então nào é a histó-
ria das mentalidades, enquanto ta l, que de,·eria ser tratada corno um novo objeto, mas
os temas que reúne a granel o terceiro ,·olume de F11irc cfr /'/li~toirc: do clima à festa,
passando pelo lino, o corpo 27, e aqueles que não são nomeados, os grandes afetos da
,·ida privada 2~, sem esquecer a jovem mulher e ,1 morte~".
Essa inscrição da noção de mentalidade cm m eio aos " no,·os objetos" da história,
ao preço da ampliaçc'ío que acaba mos de mencionar, não era s ustentá vel. A razào pro-
funda da retratação imposta não se reduz à objeção d e indefinição semântica; ela se
de,·e a uma confusão mais grave, a saber, o tratame nto incerto da noção ao mesmo
tempo como um objeto d e estudo, como uma dimensão do \'Ínculo social dis tinta do
dn cu lo económico e do dnculo político, e como um modo explicativo. Essa confusào
d en:• ser debitada à hera nça de Lucicn Lén -Bruhl e de seu conceito de "mentalidMie 1

:?.7 ) t',111 LJclumL·,1u, /.o Pcu r t'II Occidc11/ , l'ciri s, F,1,·,ird, 1978; n:ed., ú\ l. "Pluriel ", 1979. Miclwl \ 'll, ·t'lle,
J>id i; />o roque ct D i;chri<;/ ic111i.,11 / io11 <' li Pro,,c11c,· 1111 X V II /· sú\·/c. / .e<; 11/tit 11dc~ dc, •1111/ la 111ort ,/"c1pri·~ /e<;
d1111<;C<; de<; /1 ·.,t,1111,•111,, l'cnis, Pl()n , 1<.JTt

:?.~ 1/i~loin· de /11 ,,j,, prÍiÚ' (dir dl' I'. A riés e C. LJuby), l'.iris, Fd. d u Sl'ui l, ·1987, reed. 1999, col.
" Points ".
:?.9 Ph ilippl' Arii.•s, 1.'/ /0111111e1Ít'i'tl!II /11111prt , P,iris, Éd. du Seuil, 1977. Lc i,1 111 -sl' tambL' rn os linn-; muito
bl'los dl' Ala in C nrbin, L'ntre o utros: Lc Al i.1,111,· l'I /11 /tHlt/ll i/11·. L'odtimt ct /"i11111:,; i11nin· ,o(it1/, X\/ 11/--
X I X' ~ii·clc, l'a ris, F l,1m mMinn, 1982.
;\ ME'vt()RI A, A lll ST(lR I J\, O ESQULCIM F:--:TO

primiti va". Explicam-se, por meio d a mentalidade primitiva, as crenças irracionais do


ponto de vista da racionalid ad e científica e lógica. Acredita-se ter-se libertado desse
preconceito do observador, que Lévy-Bruhl havia começado a criticar em seus Cnmc.>ts
publicados cm 1949, aplicando a noção de mentalidades a processos de pensamento
ou a conjuntos de crenças próprios de grupos ou d e socied ades inteiras suficiente-
mente distintivos para fa zer delas um traço ao mesmo tempo descritivo e explicativo.
Acredita-se que o que conta como traço distintivo não é o conteúdo dos discursos
apresentados, mas uma nota implícita, um sistema subjacente d e crença; mas, ao tratar
a idéia de mentalidade ao mesmo tempo como um traço d escritivo e como um prin-
cípio d e explicação, não se sai d efinitiva mente da órbita do conceito de mentalidade
primitiva que data da sociologia do início do século XX.
É essa mescla impura que Geoffrey E. R. Lloyd dedicou-se de maneira impiedosa
a desfazer em um ensaio de efeitos arrasadores intitulado Dc111ystifyi11g Mcntnlitics10 . O
a rgumento de Lloyd é simples e direto: o conceito de mentalidade é inútil e nocivo.
Inútil no plano da descrição, nocivo no plano da explicação. Ele h avia servido a Lévy-
Bruhl para descrever os traços pré-lógicos e místicos, como a idéia d e participação,
a tribuídos aos "primitivos". Ele serve aos historiadores contemporâneos para descre-
ver e explicar as modalidades divergentes ou dissonantes d as crenças de uma época
nas quais o observador d e hoje não reconhece sua concepção do mundo: é a um obser-
vador lógico, coerente, científico, que tais crenças do passado, ou até mesmo do tempo
presente, parecem enigmáticas ou paradoxais, se não francamente absurdas; todo o
pré-científico e paracientífico enquadram-se nessa descrição. É uma construção do ob-
servador projetada sobre a visão de mundo dos atores" 1• É nesse ponto que o conceito
de mentalidade volta-se da d escrição para a explicação e que, d e inútil, torna-se noci-
vo, na medida em que dispensa a reconstrução dos contextos e das circunstâncias que
cercaram a aparição das "categorias explícitas que utiliza mos h abitualmente em nos-
sas descrições, em que o juízo de valor ocupa um lugar impo rtan te - a ciência, o mito,
a magia, e a oposição entre o literal e o metafórico" (Dc111ystifyi11g Mentalities, p. 21).
Toda a seqüência da obra d e Lloyd é dedicada a uma bela reconstrução dos contextos
e das circunstâncias da aparição das categorias de um observador racional e científico,
principalmente na época da Grécia clássica, mas também na China. A conquista da
distinção entre o pré-científico (magia e mito) e o científico é objeto de análises rigoro-
sas, centradas principalmente nas condições políticas e nos recu rsos retóricos do uso
público da palavra em contextos polémicos. Reconhecemos aí uma abordagem dos

30 Ceoffrey E. R. Lloyd , Uc111y., tif!1i11g Mc 11/11/ilil's, Ca mbridge Uni versity Prcss, 1990; trad . frnnc. de
F. Regnot, /Jo11 r c11 fi11ir 11ucc lcs 1111•11/nlités, Pa ris, La Découve rte/ l'oclw, col. "Scie nce s huma incs et
socia les", 1996.
31 "A d istinção capita l que se deve obse rva r escrupulosamente é aquela que a antropologia social
estabelece entre as categorias de ator e d e obscn,11dor. Mostro que h,í urna questão crucia 1 na ava-
liação do que é aparentemente en igmático ou nitidamente paradoxa l, que é justamente mostrar se
ex is te m conceitos explícitos de categor ias ling ü ístic;is ou outras" (Lloyd, i/Jid., p. 21).
HIST( lRI ..\ / ITISTF\llll .Ul:1.-\

problemas comparável às de J.-P. Vernant, de P. Vida l- Naquet e d e M. Détienne' 2 . O


pretenso não-dito e implícito que o conceito de mentalidade s upostamente tematiza.
de maneira global e indiscriminada dissoh·e-sc em uma complexa rede de aquisições
graduais e ci rcunstanciadas.
Lloyd teria com isso acabado com as men talid ades? Sim, seguramente, se esti-
,·ermos falando de um modo preguiçoso de ex plicação. A respos ta deve ser mais cir-
cunspecta se se trata de um conceito heurístico aplicado àquilo que, num sistema de
crenças, não se deixa resolver em conteúdos de discursos; a prm·a disso é o insisten te
recurso do próprio Lloyd ao conceito de " estilo de investigação" na reconstrução do
modo grego d e racionalidade 11. Trata-se cntzio de muito mais do que de "enunciados
ou crenças aparentemente [quer dizer, para o observador] estra nhos, bizarros, para-
doxa is, incoerentes ou carregados d e con trad ições" (op. cit. , p. 34), mas daquilo que
se poderia chamar o acredi tá vel disponí,·el de uma época. Claro, é com relação ao ob-
ser\'ador que esse acreditável é definido, mas é realmente com relação aos ato res que
ele se encontra disponí,·el; é nesse sentido que L. Febvre pôde afirmar que o ateísmo
declélrado não era um conceito de crença disponível para um homem do século XVI.
Não é o caráter irracional, pré-científico, pré-lógico, da crença que é assim apontado,
mas seu caráter diferencial, distintivo, no plano daquilo que Lloyd chama precisa-
mente de "estilo d e investigação". A noção de mentalidade é então devolvida a seu
estatuto de "objeto no\'C," do discurso historiador no espaço d eixado a descoberto
pelo econômico, o social e o político. É um nplirn11d11111, não um princípio preguiçoso
de explicação. Se acharmos que a herança do conceito inadequado de " men talidade
primitiva" continu ,1 a ser o pecado origina l do conceito de mentalidade, então mais
,·ale, de fato, ren unciar a ele, dando preferência ao conceito de representação.
Proporno-nos a conqu is tc1r com d ificuldade o direito de proceder a essa subs titui-
ção semântica, de início freqüentando a escola de alguns mestres de rigor (segunda
seção), em seguida propondo o des\'io por um conceito intermcdi,irio, o de escala e de
"mudanças d e escalas" (tercei ra seção).

:12 ,k,111-l'iL'rrc Ve rn.i nt, /. e, O rigi1u.'s de lo pc11 s,\• ·" rcc"q11,·, Pari s, l)L F, 1962; rel'd ., 1990, col. "Quad rigL•".
1Vh1thc d Pen, ,;!' d 1c: /cs CnYs, t. l, op. .-it. r-.t. Dd ienrw e J.-P. Vern ,i n t, L·, l<11scs ,fr f'i11tcllig,·1 1ú': /,1
111cli., dcs Gn't"., , ,ip. cit . P. Vid a l-Naqud, " l.a r,1i so n grccqu c L'I la c ité ", in L,· C/111ssc11r !l fl Ír. F,1 rn1cs de
/h'11 ,fr l'f Jtm11cs d,· s,it"it'I,; d1111s /e 111011dc ,'; 1,'L°, l\1 ri s , Mas pero, 1967, 19Sl , l LJlJ 1.
:n i\o fo lar da distin çi\o L' r1trL' o lite ra l e o nw t,lf,'irin 1 na é p oca da C n;ci ,1 cl,í s~ ica, o ,1utur obst·n ·,1: " É
p rL·ciso Vl'r ,1í ,10 nwsmn te m po um l' iL·nwnh1 t' 11 produ to d l' u m ,1 ,·ir ul l'nt,1 po kmi ca 11,1 q u,11 as in-
\TStig açêies dl' es tilo n11,o lutav,1m para disting uir-se de suas ri,·,1i s, m ,1s n .°Hl exclusi,·c1 m L'IltL' d ,1s
prete ndentes trad ic it1n,1is ,1 s<1bedori ,1 " ( l. hiyd , l'ci11 r c 11 ,t,n ir 11< '1' ( !,·~ 111e11t 11 / 1N~, op. (Í/ ., p . 6 1 ) . M,1is
,1d i,111te, au fa lar s ob rL' 11 dnc ulo L'ntrl' o Lil-St'lln)l\' inll'nto d,1 iilos(1fi,1 l' cL1 c i!'.· ncic1 grvg,i , ÔL' um
l,1do, e a , ·id a políti c,1, do outw, o ,1utor SL' índ ,1g,1 se L'SSil hip,·1 kse p11dL· "c1pwx ímar-nos do s t r.iço s
distintivos dos l'stilos dl' im·l'stig aç,io cl ,1b,ir,1dos n,1 C r6ci,1 ,111tiga" (il•id., p. 65). Sobre ,1 c:-. p rcss,i o
recn r rL'llk "est ilos d l' in n •stigaç,i o", "l'st ilos dL' pl' ils,1mL·nto ", ri. pp. 6h, 208,211, 2 12, 21:;, 2 17, 21 8.
i\ :VIJM(lRJi\, i\ lllST(lRJ/\, O l:S()ULUML~Hl

II. Sobre alguns mestres de rigor:


Michel Foucault, Michel de Certeau, Norbert Elias

Eu não gostaria de entregar o modelo labroussiano e o modelo braudcliano de


história da mentalidade e das representaçôes à crítica de uma historiografia mais re-
cente sem fazer que sejam ouvidas três vozes provenientes, no caso de duas dentre
elas, do exterior da historiografia stricto sensu, mas que elevaram a um grau inédito
de radicalismo a discussão em curso no conjunto das ciências humanas. É de um lado
a defesa de M. Foucault de uma ciência que se quer sem precedentes, denominada
arqueologia do saber, de outro, a defesa de N. Elias de uma ciência das formações
sociais, que se crê inimiga da história, mas que se desenvolve de forma impe riosa
segundo um modo francamente histórico. E, entre os dois, M. de Certeau, o 011tsider
de dentro.
Vale a pena pôr lado a lado os argumentos de Foucault e Elias a fim de manter a
pressão de uma exigência de rigor sobre um discurso dos historiadores profissionais
que se tornaram rebeldes à modelização em voga na escola dos Annalcs.
Havíamos interrompido o exame crítico d e L'Arcf1éologie du savoir' 1 no momento
cm que a teoria do arquivo cede lugar à da arqueologia. Foucault descreve essa gui-
nada como uma inversão do procedimento: após a análise regressiva que conduz das
formações discursivas aos enunciados nus, chegou o momento de retornar aos possí-
veis campos de aplicação, sem que se trate absolutamente de uma repetição do ponto
de partida.
De início, é por ocasião de seu confronto com a história das idéias que a arqueo-
logia abre seu ca minho. Ora, é a uma disciplina que não soube encontrar seu próprio
caminho que ela quer opor seu rude aprendizado. De fato, ora a his tória das idéias
"conta a história das laterais e das margens" (L'Archéologie du savoir, p. 179) (alquimia
e outros espíritos animais, almanaques e outras linguagens flutuantes), ora "recons-
tituem-se desenvolvimentos na forma linear da história" (op. cit., p. 180). De novo,
as negações abundam: nem interpretação, n em reconstrução das continuidades, nem
enfoque no sentido das obras à maneira psicológica, sociológica ou antropol ógica;
em resum o, a arqueologia não procura reconstituir o passado, repetir o que foi.
Mas o que ela que r e o que pode? "Ela é pura e simplesmente uma reescrita, quer
di zer, a forma conservada da exterioridade, uma transformação regrada do que já
foi escrito" (op. cit., p. 183). Que seja, ma s o que isso que r di zer? A capacidade d es-
critiva da arqueologia atua em quatro frentes : novidade, contradiçã o, comparação,
transformação. Na primeira frente, ela serve de árbitro entre o original, que não é
a origem, mas o pontn eh_. ruptura com o já-dito, e o regular, que não é o outro do
que d esv ia, míl s o :1c ürnulo do já-dito. A regul a ridade das prá ticas discursivas se
reconhece pelas an,1log ia s que asseguram a homogeneidade enunciativa e p ela s hie-

34 Mic hL'l Fouc.rnlt, /_'!\rcl,1;0!0.1;ic d11 sm 1oir, Pc1ri s, Callim;:ird, col. "I3ibliothc•que des scie nces hum,1i-
11cs", '1969.
II ISHW I \ / l'l' I STI \ 101.0CL\

rarquiél s que estruturélm estéls últimas e p e rmitem o estabelecimen to de á n ·ores de


deri\·aç,io, como na lingüística com Propp e na história natu ral com Line u. Na segunda
frente, ela conta com a coerência na his tó ria das id éias c1 p onto de considerá- la " uma
regrc1 he urística, u rn a ob rigação de procedimento, quase uma obrigação moral da
irH'estigélçâo" (op. cit., p. 195) . Claro, essél coerência é o resultado d a investigação,
não seu pressuposto; mas elél va le como um opti111u111: "o maior núme ro possí\·el
de cont rad ições reso h-i das pelos mei os mais s impl es" (op. cit., p. 196). Resta que éls
co ntradições contin uc1 m sendo objetos que d evem ser descritos por eles mesmos,
nos quais reencontramos o d escompasso, a dissensão, as c1spen:7a s do discurso. Na
terceira frente, a a rqueologia se faz inte rdiscursivc1, sem resvalar num confronto en tre
\·isões d e m undo; a esse respeito, a competição entre gramáticél geral, hi stória natu-
ral e análise das riquezas em Lcs Mots ct /cs CJwscs most rou a comparaçã o em ação,
longe das idéias de exp ressão, d e re flexo, de influê ncia. Na d a de hermenê utica das
inte nções e das moti\·ações, somente uma resenha das formas específicas de élrticu-
lação. É na quarta frente, a d a mudança e das tra nsforma çôes, que a arqueologia joga
seu d estino. Fouca ul t não se deixou prender pela quase-sincronia dos pensamentos
imó\·eis - nada d e eleatismo! - nem pela sucessão linear dos acontecimen tos - nada
de historicismo! Irrompe o tema da descontinuid ade, com cortes, brechas, aberturas,
redistri b uições súbitas, que Foucault opõe ao " há bito dos h is toriado res" (op. cit.,
p. 221), de masiado preocupados com continuid ades, passagens, antecipações, esboços
pré\·ios. É o mom ento forte da arqueologia: se existe um paradoxo da arqueologia,
ele não es tá no fa to de ela multiplicar as diferenças, mas no fa to de recusar-se a
diminuí-l as - invertendo dessa forma os \·,dores habituai s. " Para a hi stória das
idéias, a diferença é, tal como aparece, erro ou armadilha; ao im ·és de se deixar deter
por ela, a sagac id ade d a an éili se deve proc urar desfazê-la.[ ... ] A arqueologia, em
compe nsação, toma como obje to de sua d escrição aq uilo que se costuma considerar
como obstáculo: ela não tem como proj e to superar as diferenças, mas sim analisá-
la s, di zer em que, exa ta mente, elas consistem, e dif1'rc11ci11-l11<' (017. cit., pp . 222-223).
Na \·erd ade, é à própria idéia de muda nça, demasic1damentc marcada pela idéia de
força \'iva, que é preciso renunciar, em benefício da de transformação, perfeitamente
neutra com relação à grande metafórica do flu xo. Cabe cens urar a Foucau lt o ter
substi tu ído a id eologia do contínuo por u ma ideologia do d escontínuo? Ele dcvoh'e
lealmente o c umprimento' '. Essa é a li ção que quero guard ar e o paradoxo qu e te nto
faze r traba lha r m,1is ad iante.

3:i " E <'1 qut'les que est.1ri,1m tentados a censurar <l a rqut'ologia a ,1 11,ílisl' pr iYilegiada do dl'scon tínuo,
,1 todos l' SSl'S agpr.íftiboc; d ,1 hi s tória e do k'mpo, ,1 tod,1s que confundl'm r u ptura com irr.icinna-
lid ,1de, respond erl' i: 'l'L' lo uso que dl'IL' fazem , SJP \"llCl'S q ue dc~,·a lor iza m o contín uo. Tra tam-no
como um clcmc nto-su pl1rtl' ao qual todo o rt.'sto dL'\T ser relacionc1dll; fazem dele a lei primcir,1,
,1 k-i dil grav id aLk l'ssl'ncial de toda pr,ítica discursi,·a; voct:•s gostariam que ,rnalis,issl'mos toda
mod ific,1çiio no c,1rnpli dessa in{>rciil , 01nlll ,l 11,11 i~a m os todo mo, · i nwnto no campo g ra, iL1cinnal.
:Vla s ,oc0s sú llw nrn ÍL'íL'm L'SSt' l'St,1 tuto nt' utr,1 li /.,1ndn-o, l' repel indo-o a t{> o limite extl'r ior do
tl'mpo, rumo a u m ,1 passi,·id,1de original. ,\ ,irqul'ulogia p roplil'-St' inn'rtl'r essa dispnsiç,io, o u
an tes (pois niio se tr,1t,1 dl' dar ao descontíntlll o p,1pl'i concl'dido ak l'ntão <l conti nuidade) f,1/.L'r

<> 2II ,::,


A MFM() l<I A, A HI SH ) Rl i\ , O ES(JLJ I:( I ME\:T U

Conforme afirmei ao tratar do tema foucaulti ano do arquivo, o tema da arqueolo-


gia desperta a mesm a perplexidade diante de um exercício que qualifiquei então como
ascetismo intelectual. Sob o signo das duas idéias culminantes referentes a arqui vo,
enquanto registro d as formações discursivas, e d e arqueologia, enquanto descrição das
transformações interdiscursivas, Foucault delimitou um terreno radicalmente n eutro,
ou antes, penosamente n eutralizado, o dos enunciad os sem enunciador. Quem podia
manter-se aí, fora ele mesmo? E como continuar a pensar a formação e as transforma-
ções, não mais dos discursos assim neutralizados, mas da relação entre representações
e práticas? Ao passar do arqui vo à arqueologia, Foucault convidava a "inverter o pro-
cedimento" e "seguir em direção a possíveis campos de aplicação" (op. cit., p. 177). É
exa tamente esse projeto que se deve perseguir após Foucault, em um campo que des-
toa d a neutralidade d o território purificado dos enunciados. Para uma historiografi a
que ad ota como referente próximo de seu próprio discurso o vínculo social, e como
sua regra de pertinência a cons ideração das relações entre representações e práticas
sociais, a tarefa consiste em deixar a zona de n eutra lidade dos enunciados puros a fim
de alcançar as relações entre as fo rmações discu rsivas, no sentid o rigoroso d a teoria
d os enunciados, e as formações não-discursivas em que a própria linguagem resis te
a toda redução ao enunciado. Foucault, na verdade, não ignora o problema colocado
por "ins tituições, acontecimentos políticos, práticas e processos econ ômicos" (op. cit. ,
p . 212). Melhor ainda, ao evocar esses exemplos emprestados d o "domínio não-dis-
cursivo", e isso no quadro dos "fa tos comparati vos", ele considera como uma tarefa
d a arqueologia "d e finir form as específicas d e articulação" (ibid. ). Mas pod e ela fazê-lo
sem realizar a saíd a, o deslocamento que acabo de mencionar?36 Tendo as noções de
d ep end ência e de autonomia d eixado de funcionar, a palavra "articulação" continua
sendo amplamente p rogramática. É ela que importa tornar operacional, ao preço de
um d eslocamento d o deslocamento fou caultia no.

Não quero deixa r a companhia d e Fouca ult sem antes evocar, mais uma vez, a
figu ra de Michel d e Certcau, n a medida em que ela oferece uma espécie de contra-
ponto à arqueologia d o saber 17 • Ta mbém existe, no plan o da explicação / compreensão,

o contínuo e o descontínuo joga re m um contra o out ro: mostra r q ue o contínuo se for ma nas
mesmas condições e seg undo as mesmas reg ra s que a d ispe rsão; e que se in sere - exa ta mente
como as difere nças, as inven ções, as nov id ades Oll os desv ios - no cam po da p rát ica di sc urs iva"'
(foucau lt, ihid., pp. 227-228).
36 Considere -se o exemplo d a medicina clássica, tra tad o na Hisloirc de la cli11iq11c e evocado nova -
me nte c m L'Arc/1éologic d11 sauoir. O q ue seri a um t rata me nto a rqueológico de su a rel ação com as
práticas méd icas e não- méd icas, po líticas, t•ntrc ou t ras? Vê-se o que é recusad o: fenóme no de
e xp ress,"io, de reflexo, de s imboli zaçã o, re lação causa l retra n smitida pela consciê nc ia dos s ujeitos
fa la n tes. MZ!s q ua l a rc laçrio positiva com ns p rMicas não-d iscurs ivas? Foucaul t limita-se a at ribui r
à arqueologia a tarefa de m ost ra r como e em que cond ição a "prótica po lítica" faz pa rte d as "co n-
d içücs de emergê-ncia, de in::;erção e de func ionamt•ntn" (op. cil., p. 2 13), do d isc urso médico, por
exemplo. Mas sem su por que d etermi ne seu sentido e su a fo rma .
37 A figura de Mic hc l de Certea u já " retornou" du as vezes (cf. p. 146 e p. 177). Ela retornará em cJ d a
nova dapa de no::.so prúp rio pe rcu rso.

4,• 2 I 2 •Z>
III S T(lR L\ / ll'IS l l.\ll )I.OC IA

um " momento de Certeau". Ele corresponde essencialmente ao segundo segmento


da tríade do "lugar", dos "procedimentos de análise" e da "construção de um tex-
to" (L'Écriturc de f'liistoirei.', p. 64). É o tempo forte designado com o termo "pr,ítica"
(op. cit., pp. 70-101), a que é preciso acrescentar a conclusão de L'Absc11t de /'/1istoirc'"
(p. 171 e seg.) sem esquecer as páginas da m esma coletânea dirigidas diretamente a
Michel Foucault: "o negro sol da linguage m" (op. cit., pp . 115-13-l-).
É inicialmente como investigação que a prática historiogrMica entra na sua fase
crítica, no ímpeto da produção dos docurnentos, os quais são postos à parte d a prática
efeti\·a dos humanos por um gesto de separação que lembra a coleção de "ra ridades"
sob forma de arquiYos segundo Foucault (L'Écrit11rc de /'lzistoirc, p. 185). Certeau não
deixa de apor sua marca pessoal nessa operação inaug ural , caracterizando-a como
redistribuição do espaço que fa z da in\'estigaçào uma modalidade da "produção do
lugar". Mas a marca de Foucault se reconhece pela insis tência na noção de d es,·io que
está expressamente ligada à noção de modelo : é em relação a m.odelos que as diferen-
ças conside radas pe rtinentes apresentam um desvio. Assim, apresentam um des,·io,
na região da história das re presentações, da qual d epende a história relig iosa praticada
por Certeau, "a feitiçaria, a loucura, a festa, a literatura popular, o mundo esquecido
dos camponeses, a Occitânia, e tc., todas elas zonas silenciosas" (op. cit., p. 92). A cada
\'ez, o gesto adequado consiste em "ressa ltar diferenças relati,·as às condiçôes ou às
unidades de onde parte a análise" (i/1id.) É expressamente à pretensão totalizadora que
pode ter sido outrora a da história que o " trabalho no limite" se opõe (ibid.). Mas de
quais modelos se trata? Não se trata dos sis temas de enunciados segundo a arqueolo-
gia d e Foucault, mas de modelos extraídos de outras ciê ncias: econometria , urbanísti-
ca, biologia, enquanto ciência do homogêneo. Fournult situaria esses tipos d e modelos
cm meio às "formações discursivas" e\'ocadas logo no começo de L'Archfo!ogic du sa-
rnir. Contudo, esse recurso a modelos emprestados bas ta p ara jus tifica r a audaciosa
extrapolação que leva Certeau a di zer qu e a posição do particular, e m his tória, situa-se
"no limite do pensá\'el", posição que, por s ua \'ez, requer uma re tórica do excepcional,
cujos contornos dependerão da etapa ulterior da representação e da escrita literá ria,
que pode ser considerada como a contrib uição mais importan te d e Michcl d e Certeau
à problemática d a operação historiográfica .
Mas antes é preciso di zer de que maneira L 'J\hscHt de f'lzisto irc amplia rnais a inda
o espaço de sentido da idéia d e d es\'io ao conjugá-la com a do a usente, a qual, como
explicaremos melhor na seção dedicada à \·erd ad e em hi stúria, constitui, segundo Cer-
teau, a marca distinti,·a do próprio passado. Nesse sentido, a história constitui uma
\·asta "hcterologia " (L 'J\hscHt de /'lzistoirc, p. 173), um p ercurso dos " rastros do outro".
Mas jé:í não era essa a ambição da me mória (nomeada na última página do ensa io), pro-
duzir o primeiro d iscurso do a usen te sob a fi g ura do ícone (op. cit., p. 180)? Seja qual

38 \.l iclwl dl' CL' rll'au , L"F,ri l11n· de /'11istoirc, op. cif .
3lJ :vi ichL'I d e C L·r tl',w , L ·\ 1,., ,·11/ d,· /'/1istoirl', !\)ri :-;, \L1mL', cnl. " RL·pi.•rL•:-; :-;c iL'JKL':-; hu m,1 i 11L':-; l't ~,1C i,1k:-;",
197:1
/\ tv11: r-.t()R I /\, /\ IIIST() Rl i\, O FS(J U l:CIMl'Nffl

for a reserva que se possa fazer à redução da memória e da história apenas à celebração
da ausência, não se pode mais opor, à maneira intransigente d e Foucault, as descon-
tinuidades ostentadas pelo discurso histórico à continuidade presumida do d iscurso
da memória. É tal vez aí que Certeau começa a marca r seu próprio distanciamento em
relação a Foucault. No breve e incisivo ensaio intitulado "Le noir soleil du langage: Mi-
chel Foucau lt" (op. cit. , pp. 115-132), Certeau parte em busca de sua própria diferença.
Ele expõe um após o outro e desordenadamente seu deslumbramento, sua resistência,
seu assentimento em um segundo nível, suas ressalvas d erradeiras. É verdade que ele
se refere m enos à arqueologia do saber do que à trilogia de obras concluída com Les
Mots et les Choses. O jogo alternado da ordem, própria da "base epistemológica" de
cada epistê111e, e da ruptura surgida entre as cpiste111c sucessivas, é bem acolhido, mas
dei xa Certeau insaciado: que "negro sol" se dissimula por detrás dessa mesma a lter-
nância? N ão seria a morte, contudo nomeada pelo próprio Foucault? M as este acaba
entrincheirando-se por trás da "narrativa" dessas a lternâncias entre a coerência e o
acontecimento. É, contudo, nas partes inferiores da narrativa que a razão é verdadeira-
mente "questionada por sua história " (op. cit., p. 125). Então, a arqueologia não escapa
ao "equívoco" resultante desse não-dito. É na esteira dessa suspeita que Certeau toma
suas distâncias: "quem é ele, para saber o gue ninguém sabe? (op. cit., p. 161 ). Na obra
de Foucault, "quem fa la e de onde"?" (ibid.). A pergunta surge d e maio d e 68. E uma
flecha mais afiada é disparada : "fa lar da morte, que funda toda lingu agem, não é ain-
d a afrontar, é talvez ev itar a morte que atinge esse próprio discurso" (op. cit., p. 132).
Temo que aqui Certeau se d esencaminhe, sem estar seguro de que escape m elhor que
Foucault à questão colocada no próprio âmago de seu trabalho pela relação do discur-
so histórico com a m orte. Um leitor que ti vesse aberto sob o mesmo olhar L'Archéologic
du sm1oir e L'Écriturc de /'J,istoirc procuraria de um outro lado o verdadeiro desvio entre
Foucault e Certeau, a saber, do lado da idéia de produção, e mais explicitamente de
produção do lugar. A arqueologia do saber, di ría mos à maneira de Certeau, não diz o
lugar de sua própria produção. Certea u distancia-se de Foucault sa indo da neutrali-
dade absoluta de um discurso sobre o discurso e começando a articular esse discurso
sobre as outras práticas significa ntes, o que é a tarefa própria de uma história das
representações. Ao fazer isso, Certeau adia a dificuldade cri.ada pela ques tão do lugar
de produção até esse momento inaugural em que o gesto de fazer história apresenta
um desvio em relação às práticas por meio d as quais os humanos fazem a história .
Será esse o momento da verdade em história, em que cruzaremos uma última vez com
Certeau. A verdadeira razão do d esvio entre Michel de Certcau e Foucault deveria ser
buscada no enraizamento da investigação do p rimeiro numa an tropologia filosófica
na qual a referência à psicolog ia é fundamental e fund adora . Não foi o acaso de uma
compilação que fez com que ficassem lado a lado em L'Écrit11rc de /'histoirc o grande
arti go sobre "A operação historiográfica", que destilo ao longo de minha obra, e os
dois artigos colocados sob o título comum de "Escritas freudianas": trata-se mesmo de
psicaná lise e de escrita, mais exatamente da escrita da psicanálise cm sua relação com
a d a história dos historiadores. O primeiro desses ensaios, "O que Freud faz da his tó-

•Z> 214 ,z,


l{ISHlRI.-\ / El' ISTL\l(lLll(;JA

ria", foi publicado nos A1111a/cs (1970). Trata-se de saber o que, como analista, Freud
faz da história. Ora, não é quando nos esforçamos por "plantar nas regiões obscuras
da história" (L'Écriturc de /'l,istoirc, p. 292) "conceitos" reputados freudianos, tais como
o nome do pai, complexo de Édipo, transferência, enfim, quando nos servimos da
psicanálise, que aprendemos com ela, mas quando refazemos, diante de um caso tão
singular como um pacto de possessão firmado com o diabo, o trabalho do analista que
da "lenda" (dada a ler) faz uma "história"-1,,_ Tratando-se aqui de Freud, a conclusão
é que este instruí, não quando faz algo da história contada pelos outros, a começar
pelos historiadores, mas quando, à sua maneira, faz história. Não somente uma parte
importante do trabalho de Certcau resulta desse interdmbio entre diversas maneiras
de fazer história, mas é esse intercâmbio que justifica o recurso à psicanálise numa
epistemologia do conhecimento histórico. O segundo ensaio é dedicado a "L'écriture
de Moi"se ct /e Mo11otl1éismc", subtítulo acrescentado ao título principal " La fiction de
l'histoire". O que Freud nos dá a entender nesse texto contrcn-erso não é uma \·erdade
etnológica, segundo os cânones dessa disciplina, rnas a relação entre sua "construção",
que ele denomina um "romance", uma "ficção teórica", e a fabula, ou seja, a "lenda "
produzida numa tradição; escrita, portanto, comparável nesse ponto àquela dos his-
toriadores e que surge de modo inconveniente no território da história. Um romance
histórico vem tornar lugar ao lado das escritas historiadoras. A indecisão do género
literário entre história e ficção, que reencontraremos no próximo capítulo, aumenta a
dificuldade, e a bem da \'erdade, a constitui. Importa-nos, por enquanto, saber em re-
lação a que espécie de escrita assim produzida a espécie da escrita historiado ra é con-
\·idada a se situar. É a busca desse "lugar" do discurso histórico em meio às maneiras
de fazer história que justifica que a psicanálise seja levada cm consideração por u ma
epistemologia que, de interna ao discurso histórico, se faz externa a ele, levando-se em
consideração outras maneiras de fazer história . É o próprio território da histó ria e seu
modo de explicação / compreensão que são assim ampliados. Essa abertura meticulo-
samente dominada depende ainda do rigor de Certeau.

É uma outra espécie de rigor, diferente da praticada principalmente por Michel


Foucault, que a obrn exemplar de Norbert Elias propõe à meditação dos historiadores:
não mais o rigor de um discurso sobre as operaçôes discursi\'as fora do campo prático,
mas o rigor de um discurso sobre o aparelho conceituai empregado numa história
efeti\·a versando de maneira geral sobre o avanço do poder político do fim da Idade
Média até o século XVIII. Se essa obra pode ser submetida à crítica, não é em relação a
sua coerência conceituai, mas cm razão da escolha da esca la macro-histórica, escol ha
que perm anece não problematizada enquanto não for confrontada com urna escolha
difen'IÜL', como, cremos na próxima seção. Ainda é preciso acrescentar que a obra de

.H) 1 ,1 P,1~sc,siu11 d,, Ll111d1111 (1\His, Callim<1rd, col. "A rchi\'(_'s", 198()) coloc,Hia um problema c,11npar,í-
n'i qu.into ,i cPmpnsiç.'ln dt' uma hish°lri.i , ,1k111 d,1 nmtribuiç.'lo dc1 obra <10 l]UL' seriei a micrn -his-
t,, ri ,1 fr,HKl'S,l d,, punt,, cfr ,·ist,1 da ,•scnlha de L'Scal,1.
/1 M FM()R I A, A HIST() Rl/1, () FSQU FCIMFNTO

Elias n ão permaneceria indefesa num confronto com a leitura que vamos praticar ao
sairmos da zona de confusão e de indefinição semântica que acabamos de atravessar.
Tomo por guia a segunda parte de Ln Dy11n111iquc de l'Occidl'llt, intitulada "Esquisse
d'une théorie de la civilisation" ("Esboço de uma teoria da civilização")~ 1• Aquilo que
N. Elias denomina o "processo civilizatório" diz diretamente respeito a nossas preo-
cupações relativas ao estabelecimento d e uma história d as representações. Trata-se de
um processo em curso que, como já o sublinha o título d o prefácio de Roger Chartier
para Ln Société de cour42, situa-se no ponto de articulação entre uma forma ção social
notável, o poder central, o Estado, apreendido em sua fase monárquica de Ancien Ré-
gime, e as modificações da sensibilidade e d o comportamento humano que chamamos
civilização, ou antes, processo civilizatório. Em relação à futura micro-história que se
instala francamente no nível dos agentes sociais, a sociologia de Norbert Elias consiste
em uma macro-história comparável à dos A111wlcs. E isso sob dois aspectos: de um
lado, o processo civiliza tório está correlacionado com fenômenos de grande amplitude
no âmbito da organização da sociedade em Estado, tais corno a monopolização da for-
ça e dos impostos e outras contribuições; de outro lado, esse processo é descrito como
um sistema de coerções progressivamente interiorizad as até o ponto de se tornarem
um fenômeno de autocoerção permanente que Elias d enomina habit11s. É realmente o
si que é a aposta da civilização, que se civiliza, sob a restrição institucional. O percurso
descendente de uma análise realizada de alto a bai xo na escala social revela-se particu-
larmente eficaz no caso d a sociedade de corte, na qual os modelos sociais se difundem
a partir de um núcleo central, a corte, nas camadas coordenadas e subordinadas da
socied ade. Pensa-se então muito naturalmente na relação entre estrutura e conjuntura
em Ernest Labrousse ou n as hiera rquias de escalas de durações cm Braudel. Na rea-
lidade, as coisas são mais complicadas, e a categoria de hnbitus vai recolher todos os
traços que distinguem um fenômeno dinâmico de ordem histórica de um fenômen o
mecânico de ordem física. É notável que Elias não fale d e determinismo - ainda que
fa le de coerção - , mas de interdependência entre as m odificações que afetam a orga-
nização p olítica e as que afetam a sensibilidade e os comportamentos humanos.
A esse respeito, os conceitos chaves de Elias devem ser cuidadosa mente respei-
tados cm sua especificidade rigorosamente desenh ada: "formação" ou "configura-
ção", para d esignar o contorno dos fcnômenos d e organização social, por exemplo,
a socied ade de corte; "equilíbrio das tensões", para designar as molas da dinâmica
socia l, por exemplo, a curialização dos guerreiros que preside à sociedade de corte

4 1 Ln lJy11i1111iq11c de f'Occidc11t con st itui. o tomo li de 0/wr drn l'ro: css der Ziuilis11 fio11 (1" ed ., 1939; 2·'
e d., 1969), s ob o títul o, trad . fra nc. de Pierre Ka mnitze r, Pari s, Ca lma n n -Lévy, 1975. Norbcrt Elias
integra ne le os resul tad os ma is importantes d e s ua obra La Socié té de cnur, que teve u m destino
s ing ular: terminada em 1933 pelo au tor, então assis ten te de Karl Man nhe im n;i u n ivers id ade de
Frank furt, fo i publ irndo somentl' e m 1969, com u rn prólogo i ntítu lado "So c iologie et h istoi rc".
42 Norbcrt Elic1s, lJic lu'ifisc/1e Ccscllsc/111f t, Ncmvicd e lkrli m , ll crma nn Luch terhc1nd Vcrlag, 1969;
trad. franc. de Pie rre Ka mnit1.er e Jean n c Éton:,, Ln S0cid1; de co11r, Paris, Ca Iman n-Lévy, 1974; reed .,
l'éiris, Flc1mmarion, col. "Chnmps", 1985; prefác io de Roge r C harticr: "Forrnation socialc ct écono-
mie psyc hiqul': l,1 s o cié té de cour da n s lc procés de c iv ili sation" (p. !-XXVI II ).
H IST (H{I ,\ / l" l' ISl'F". tOL OCIA

e a competição entre a aristocracia e a burguesia d e negócios que contribuirá para o


estilhaça mento dessa socicdadc~1; "e\'oluçào das fo rmações", para desig nar as trans-
formações reguladas que afetam simultaneamentl' a distribuição e os d eslocamentos
no interior do p oder político e a economia psíquica que rege a distribuição das pulsôes,
dos sentimentos, das representações. Se fosse preciso um úni co termo para designar o
aparelho de descrição e de análise de Norbert Elias, seria o d e interdepend ência, que
deixa entreaberta uma saída para o lado daquilo que, numa abordage m mais sensÍ\·el
à resposta dos agentes sociais, será chamado d e apropriação. Esse limiar - e o im por-
tante corolário d a incerteza-, Elias certamente não o transpôs, mas o lugar onde isso
poderia ser feito está claramente d esignado: s itua-se no trajeto entre a coerção social
e a autocoerção qu e o "Esq uísse d ' une théorie de la civilisation" traz para o primeiro
plano. A ca tegoria de /117/Jitus , de resultado, tornar-se-á então problema. Esse trajeto,
Elias o percorre numa direção somente; faltará percorrê-lo na outra. Aos olhos d e
N. Elias, o importante, de início, é que o processo não seja racional no sentido de dese-
jado e concertado pelos indivíduos: a própria racionalização é efeito da autocoerção; é
na seqüência que a diferenciação social, res u ltante da pressão aumentada da com peti-
ção, s uscita uma diferenciação crescente, e, portanto, uma articulação mais firme, ma is
regular, mais controlada, das condutas e d as representaçôcs, o que é bem resumido
pela expressão economia psíquica, da qual o termo lz11bit11s constitui o sinónimo exato.
Claro, trata-se de coerção, mas de urna autocoerçào que comporta reservas de resposta
suscetíveis de serem expressas no nível do equilíbrio das tensões. Todos os termos
fa miliares do tex to d e Elias são suscetíveis de dialetizaçào: diferenciação, estabilidade,
permanência, controle, prev isibilidade. Tod os os fenómenos de autocoerção descritos
constituem fórmulas de dispersão pa ra os desvios em direção aos extremos que o pro-
cesso civiliza tório se empenha cm resolver: o hnbitus consiste assim numa regulação
sancionada pelo equilíbrio entre des\'ios extremos•~. Nesse aspecto, o fenómeno de
difusão da a utocoerção é inte ressante: ele dá oportunid ade d e introd uz ir, junto com o
conceito de camada social (de início com o par guerreiro / cortesão, d epois com o par
aristocra ta / burg uês), o conceito de ca mada psíquica, próximo das instâncias da teoria
psican alítica (s uperego, self, id), a d espeito da d esconfiança de Elias com relação ao que
ele considera o anti -historicismo d a teoria freudiana. Esse mesmo fenómeno de difusão
de ca mada cm camada (social e psíquica) também faz surgir fe nómenos d e dispersão

-B A rl'speito da rl'l,1ç,10 entrl' hi stória e soc inlog ia, n prólogo de 196Y niio C, concl usivo na nwdid ,1 e m
que o objeto de su,1 crítica C, um il hi s ttí ria ;1 m ,rneira de Ranh•, () li scj.1 , uma histór iil qul' pri\ ilegia
o indivíduo, a \·ontadt• dos qul' dt•cidem, os desL·jos rac io nil is dos ho nll' ns de p oder. Mas o carciter
h istórico da s fornlilÇÜL'S soc iil is, com n a CL)r te, ,1 fa s til toda identiiiG1ç,10 com s upos tos im·a ri,1tltl'S
subtraídos ii mudan ça. O conce ito de mudança soc ial coloca Eli as a ~wsar de tudo d o lad o dos
historiildores. O prl'i,ício de R. C ha rtiL'r é bem d<Hl> ,1 L'Sse rc~pcito.
-l-l "Na rea liLfadt>, o n•s ultc1do dns processos <:i\·ili 1,1tt·irins indi\ id uai s apenas raramcntL', na s d uas
extre midades da cun·a (k d ispe rsão, l' complct,111wntc positi,·o o u completanwntc nL'ga ti,·P. .!\
maioria dos '<:i1· ili z,1dos' mantC>m-se num ,1 linh,1 med i,1 n,1, l' llt íL' esses do is e xtrt•nws. Tr,1çlls
f,1nmíveis e des fo\·l1r,ín.•is du ponto d l' 1·is t,1 socia l, te ndi:•ncias sa ti si,1túri,1s e in satist.itór i,1s do
ponto d e vista pessoa I encon t rn m - SL' L' se m istu rn m L'll1 propllíÇlll'S 1·,iri,h·eis" (La D111111111 iq11,· d,·
/'C!ccidc11 t, PJI. cit., pp. 20 1-202)
/\ I\H:v1Ú RI /\, A III ST(lRI /\ , O FSQü FCI M l: N Hl

e de recentrarnento, graças ao fcnômeno de diminuição dos contras tes que faz de nós
"civilizados".
A contribuição mais notável de Ln Dy11n111iquc de l'Occidcnt para urna história das
mentalidades e das representações deveria ser buscada no exam e feito por Elias de
duas modalidades principais de autocoerção, a da racionalização e a d o pudor. É no
â mbito da vida de corte, com s uas querelas e intrigas, que Norbert Elias, encorajado
por La Bruycre e Saint-Simon, situa um dos momentos importantes d a conquista da
reflexão, da regularização das emoções, do conhecimento do coração humano e do
campo socia l, que o termo racionalização pode resumir. A esse respeito, é possível
acompanhar os rastros do legado da corte até Maupassant e Proust. Trata-se nesse caso
de um fcnômeno de maior envergadura que aquilo que a história das idéias chama
a razão. A adequação entre a coabitação socia l dos homens e o que uma "p sicologia
social da históri a" (Ln Dynamique de l'Occidcnt, p. 251) d everia tomar como u m hnbitus
da economia psíquica considerada cm sua integralidade é aqui estreita. A história das
idéias deseja conhecer apenas conteúdos, "idéias", "pensamen tos", a sociologia do co-
nhecimento das ideologias, até mesmo uma s uperestrutura; a psicanálise, um conflito
entre instâncias con correntes desligadas da his tória socia l. A racionalização consiste
num relacionamento interno a cada ser humano que evolui em correlação como as
inter-relações humanas. O processo civilizató rio nada mais é que essa correlação entre
as mudanças que afetam as estruturas p síquicas e as que afetam as estruturas sociais.
E o hnbitus está na encruzilhada dos dois processos4S. O pudor é a segunda figura que
"o hnhitus dos O cidentais" conquistou. Ele consiste em uma regulação d o medo di ante
dos p erigos interiores que, num regime d e civilid ade, substituíram as ameaças exte-
riores de violência. O medo de ver manifestar-se s ua inferioridade, que está no cerne
da fraqueza diante da superioridade do outro 46, constitui urna peça ch ave do conflito
sobre o qual se constrói a economia psíquica. Aqui tampouco "poderíamos falar de
sentimentos de pudor abstraindo sua sociogêncse" (op. cit., p. 265). Há, certamente,
muito a dizer a respeito d a caracterização do pudor (que Elias associa ao "constrangi-
mento"). O essencial concerne à natureza do processo d e interiorização dos temores
que corresponde, na ordem emocional, à racionalização na ordem intelec tual.
Já dissemos o bastante para indicar os pontos em que as análises de N . Elias se pres-
tariam a uma dialetização dos processos descritos de forma unilateral de alto a baixo na
escala social 47 • Examinaremos mais adiante de que forma o tema da apropriação poderia
equilibrar o da coerção. O próprio Elias abre caminho para uma dialetização desse tipo

45 A rnciona li zaçiio constituiria um bom te rmo de refo rê n cia pa ra uma discussiio que co nfro n tasse
a ê n fase dada à inccrtez;i pela mic ro-história e a ê nfase dad a por Elias à racio n a lizaçiio como
rl'g u lação pu ls ional.
46 Trata-sl', antl's, daquilo qul' o alcmiio cha1TI<1 de Scl1111111111gs t, pudor mesc lado de a ngú stia , do que
d aquilo que uma outra tradição, a d e Simm cl ou d e Ma x Sc h eler, opôe de prden~· nc ia ü c ulpa bi-
lid ,1de.
47 C oncord o aqu i com Rogc r C hart ier, cm seu p refácio a La socídé de co11 r: "Ao Cil rnc ter izar cada fo r-
maçfü1 ou config ura ~:Zio social a pa rtir da rede específica das inte rdependê ncias que nelas liga m
os indi v íduos uns c1os ou tros, Elias est,1 e m cond ições d e compreende r e m sua d in â mi ca e recipro-

.;:, 2 18 .;:,
HI ST( lRI ,\ / El' I S l l \ lU LUC l i\

num belo texto no qual, após ter sublinhado o caráter não racionc1l - no sentido men-
cionado mais acima - da formação dos hábitos, ele observa: " Mas isso não exclui para
nós a possibilidade de fazer dessa 'ci\'ilizaçào' alguma coisa mais 'razoável', mais bem
adaptada a nossas necessidades e a nossos fins. Pois é precisamente por intermédio do
processo civilizatório que o jogo cego dos mecanismos de interdependência amplia a
margem das possibilidades de intervenções conscientes na rede das interdependências
e no habit11s psíquico. Essas intervenções são possibilitadas por nosso conhecimento das
leis imanentes que as regem" (op. cit., p. 185)-1'' .

cidilde ilS re laçéK·s ma ntida s pcll1s diferentes g rupos L', d essil forma , t• ,·itilí il s re presentaçéies si m-
plis til s, unívocas, conge ladils, d il dominação StlC ial ou d il d ifusão cul tu r.11" (prefácio, p. XX V) .
-+8 A contribuição de Ntirbert Elias para uma hi s tôria das me nt,1lidades e das rl'presentaçé'>es encon-
tra um prolongamento parcial no plano soc iolôg ico nu tra b,i lho de Pie rre Bourdie u. Ao reto mar a
noção de /w/Ji/ u j que, ~egundo ele, "d;í con ta do fato d e q ue os ilgen tes soc iil is não são part ícul ,1s
de m.1téria predete rminadas por ca usas e xtc rr1<1s, nem p equenas mô nadils g u iad íls exclu si \·amL·n-
k por raziies internas, e executa ndo uma espécit' de progrnma de ação pericitame nte r,K iona l"
(P. Bourdie u [com L1úc J -O Wc1cqua nt], Rt;po11 ~c~, P<1ris, Éd. du Sc uil, col. " Libre t•xanwn ", 1992,
p. 110), P. Bourdieu St! rernloca no interior d a d ia lét ica esta belecid íl p m N. Elias d a construçfü1 do
sei f e d a coe rção i nst itu ciona 1.
Ele rdoma e compll'ta o trajeto da coerção social à autococrção d esenhado por Norbe rt Elias,
conferindo um alcance ampli ado ao concl'ito de /111/1it11~: " Estrutura L'Struturante q ue o rg,rni za
as pr.ítica s e a percepção das p r.ítirns, o lin[,i/11 ~ é també m estru tura es truturad a: o princíp io de
di\·isões e m classes lóg icas que orga niza íl pe rcep ção d o mundo soci,1 1 é, p or s ua ve z, o produ tn
da incorporação tfo divisão em classes socia is " (l'ierrc 13ourdieu, La L)i,ti11ctio11, critique ~ocial,·
d11 j11srn1c11/, Paris, Éd . dL' Minuit, 1979, p. 191). Assim, o l111/,it11~ permite, pnr um lado, articul.ir
representações e conduta s, L', por outro, comp or essa s represen taçi"ies e con d utas com aq uilo qu e
Bourdieu chama "a estrutura do espaço soc ia l", o qu,1 1 per mite aprl'ender "o con junto dos pontos
a partir dos quais os agentes comuns (dl'ntre e les o soc iólogo ou n pr<1prio leitor em suas condutas
habituais ) dir igem Sl' US olhares íl O mundo social" (ibid ., p. 189).
O /111bit11~ fa z surgir nos indi víduos um "si~te ma d e cl assificil ção " que "op ern contimw mente a
transfig uração d as necessidades em estratég ias, d as rest rições em p referências, e e ngend ra, fo ra
de qu alque r determ in ação mecâ nica, o conjunto da s 'escolhas' con stituti,·as d os Cj /ilo~ de ,•ida
classificados e classifirn ntes que retiram seu sentido, isto é, seu \'a lor, d e suíl p os ição nu m si ste ma
de opos iç0es e de w rre la ções" (Bourdieu, i/1id., p. 195). Assim, o va i,·ém d a "t•st rutu rn d o e~p,1ço
socia l" (e dos "campos" que, segundo Bourdieu, o escandem ) às rep resentações e conduta ~ dlls
agentes é apreendido em sua co mplex idade. Cad a "campli" te m s ua híg ica própria, a qual impõe
"retradu ções" à "estrutura estruturante (111od11~ opcm11di)" que gera "prlld utos l' struturad os (o p11~
operat 11111 )" que são as obra s ou condutílS de u m agente (ibid., p. 192).
Ao estudílr o gosto, l:3ourdieu estabe lece assim a correspond('nciíl entre camada social e ca mada
psíquica esboçadc1 po r Elias e evocada acima: "As diferentes manc ir,1s [... l d e e nt,1bular relaçôes
com as rea tidades L' as ficções, dl' crer nas ficçtit•s ou re,1l i,fadl's que l'ia s simulam Pstão 1.. . l t' S-
treitamente inserid <1s rws siste m,1S de dis pos içôl's (lw/1itu~) caractl'rís ticos d ,1s diferentes c l,1SSL'S
e fraçôcs de d ílsse. O g osto classifica e d<1 ssifica aquele q ue classific.1..." (i /,id., p. VI). Ele mo str,1
assim d e que modo ex plic,ir as re presentaçt"'> cs requer a ,1prl'e ns;io dt•ss.1 corresp ond[•ncia, l'sse no-
ve lo de "sistemas d e disposições", e impli ca por conseg uinte compreende r as rcla ç1"'> l'S dos ,1gentes
com a "t•strutura do e s paçll social" cm seu aspecto histú rico : "O lliho é um p roduto da h ist{)ri,1
reprodu z ido pela educaç,1o " (i/Jid., p. 111), cscrl'\'!.' Bourd ie u cm seu est udo sobre o gos to .
Assim , a noção de /Jobitus tal como foi estmfad.i permite ;:ip recndc r ".is le is ge rais que reprodU ZL'm
as leis de produção, o 111od11s operandi" (op. cit. , p. 1Y3, n. -l) e restabL•kce "a unid ade da prMic,1" ao
não faz e r jus tiça apt:>n as aos "produtos, ,lO op11~ opcm/11111" (ibid.) . O, alnr heurís t ico quanto à fase
explicação/ compreen sfü1 do 1111bit 11s e do uso mctodolúg ico q ue d ele fa z Pierre 13ourd ieu fic,1 ,iss im
jus tifiCíld n.
,\ MEMC1RIA, ,\ IIIST()RIA, O ES(JL!EC I M[J\: TO

III. Variações de escalas

Oiz•crsidade. L/1110 cidade, 11111 campo, de longe ;;iio 111110 cidade e 11111 rn111po;
11111s, à 111cdid11 que 110s 11proxi11111111os, siio cosas, án,orcs, telhas, folhas, plantas,
fi>r111('\as, pernas d1•for/ll('\as, até o infi11ito. Tudo isso se engloba sob o 110111c de
Cll 111p0.
PASCAL, Pensamentos.

Nas análises precedentes, uma questão não foi colocada, a da escala, mais exata-
mente, a da escolha da escala adotada pelo olhar historiador. Certamente, os mode-
los heurísticos propostos e aplicados por Labrousse e Braudel e uma grande parte da
escola dos A1111a/es dependem claramente de uma abordagem macro-histórica, esten-
dida gradualmente da base econômica e geográfica da história até a camada social e
institucional e aos fenômenos ditos do "terceiro tipo", dos quais procedem as forma s
mais estáveis das mentalidades predominantes. Mas essa óptica macro-histórica não
era escolhida deliberadamente, portanto, preferida a uma outra, tida como alternativa.
A seqüência "estrutura, conjuntura, acontecimento" em Labrousse, a hierarquia das
durações em Braudel repousavam implicitamente num jogo de escalas; mas, como o
mostra a composição triparti te de La Méditerranée .. . de Braudel, que continua sendo o
modelo do gênero, a preferência dada à leitura de cima para baixo da hierarquia das
durações não era como tal tematizada, a ponto de podermos conceber uma mudança
de escala e considerar a própria escolha de escala como um poder discricionário do
historiador, com todas as liberdades e as restrições resultantes dessa escolha. O acesso
a essa mobilidade do olhar historiador constitui uma importante conquista da história
do último terço do século XX. Jacques Revel não teve medo d e adotar o termo "jogos
de escalas" 49 para saudar o exercício dessa liberdade metodológica que atribuiremos,
no momento oportuno, à parte de interpretação implicada na investigação da verdade
em história 50 •
Depende desse jogo de escalas a postura micro-histórica adotada por alguns his-
toriadores ita lianos~ 1• Ao reterem como escala d e observação um vilarejo, um grupo
d e famílias, um indivíduo apanhado no tecido social, os adeptos da nzicrostorin não so-
mente impuseram a pertinência do nível micro-his tórico no qual operam, mas trouxe-
mm para o plano da discussão o próprio princípio da variação de escalas 52 • Não é, por-

49 Jacques Revel (org.), Je11x d'frlrcl/cs. La 111icroa11alysc à /'cxpéric11ce, op. cil .


50 Cf. adiante, terce ira parte, cap. 1.
51 J. Re vel re uniu ao seu redor e de B. Lepe tit ("D e l'échelle en histoirc") a lg uns dos micro-h isto-
riadores mais ativo s: Alban Bensa, Maurício Cribaudi, Simon a Cerutti, G iovan ni Lev i, Sabina
Lorign, Edoardo Grandi. A esses nomes d eve-se acrescent a r o de Ca rio C inzburg, ao qual nos
refer i mos freqi.ie nte me nh.'.
52 "Notemos de saída que a d ime nsão 'micro' não goza, sob esse aspccto, de qualquer priv ilég io
particular. É o princípio da vnr iação que conta, n ão a escolha de uma esca la particula r" (Jzicques
Rt:'vcl, "M icroa na lyse et construc tion du socia l", in Jc11x 1.frc/1c/lc~, p. 19).

CZ. 220 4}
HI S J ( >RJ .-\ / ll' IST 1 \ H lUlCJJ\

tanto, a defesa e ilu stração da 111ícrostorí11 enquanto tal q ue \'amos agora empreender,
mas o exame da próp ria noção de Vélfiação de escalas, a fim de apreciar a contribuição
dessa problemática original para a história das mentalidades ou das representações,
que \'imos, primeiro, ameaçada, pelo lado de dentro, de ato lamento (seção I), e depois
intimidada, pelo lado de fora , por ex igências de rigor que sua prática, de conceitos
vagos, torna incapaz d e satisfazer (seção II).
A idéia chave ligada à idé ia de variação de escalas é que não são os mes mos enca-
deamentos que são visíveis quando mudamos de escala, mas conexões que passaram
despercebidas na escala macro-histórica. Esse é o sentido do magn ífico aforismo que
lemos nos Pc11sa111cJ1tos d e Pascal e que Louis Marin, cujo nome aparecerá mais adiante
em nosso próprio discurso, gosta de citar;~.
A noção de escala é um empréstimo da cartografia, da arq ui tetura e da óptica;.i. Em
cartogra fia, existe um referente externo, o território que o mapa representa ; além disso,
as d istâncias medidas pelos mapas de escalas diferentes são comensuráveis segundo
relações homotéticas, o que permite falar da redução de um terreno pela colocação em
urna determinada escala. Todavia, observamos de urna escala para outra uma mu-
dança do nível d e informação em fu nção do nível de organização. Pensemos na red e
rodoviária: em grande escala, vemos grandes eixos de circu lação, em escala menor, a
dis tribuição do lwhítnt. De um mapa a outro, o espaço é contínuo, o território é o mes-
mo, assim a mudança discreta d e escala mostra um mesmo terreno; é esse o aspecto
positivo de uma simples mudança d e proporção: não há lu ga r para a oposição entre
escalas. Sua contrapartida é certa perda d e d etalhes, de comp lexidade, e, portanto, d e
informação, na passagem a uma escala maior. Esse traço duplo - proporcionalidade
d as dimensões e heterogeneidade na informação - não pode deixar de afetar a geo-
grafia, que deve tanto à cartografia;\ Uma geomorfologia discordante aparece com a
mudança de escala no interior da própria geopolítica, como o confirmaria em d etalhe
a releitura da primeira parte d e Ln Méditcmméc ... de Braudel. O termo " Méditerra née"

53 Compara r com este outro frag me nto de l'.:1sca l:


"O que é um homem no in íinito?
Mas para apresenta r-llw um outro prodígio tão espantoso, que ele busque no que con hece as
coisas mais d e licad as. Que um .ícaro lhe ofereça, n a peque nez de se u corpo, partes incomparan.'1-
mente menores, pernas com ilíticulações, ,·eias em suas pernas, sangut' e m s uas veias, humores
nesse sa ngue, gotas de ,íg u a nesses humnrt'S, \ apores nessas gota s; que, di\'idindo ma i~ ainda
essas últimas coisas, ele esgote s u as forças com tais Clmcepçcies, e que n último objeto ,10 qual ele
puder chegar seja ago ra o ob jeto de nosso discurso; e le pen sar,í ta lq:•z que a li estiÍ a pequenez
ex trema da n atu reza" (frag. 185, cd . Michel Le C ue rn, p. l 54; frag. 8-L ed. "La Pl éiade"; fra g. 7l ,
ed. Brunschv icg, maço XV, p. 9 da cópia 9203 em Llium a).
Leia-se Lou is Marin, " Une \'i lle, une cam pag ne d e loin ... : paysage pasca lien", Litthat11rc, 11'' 161,
fe,·. 1986, p. lü, apud l3e rn a rd Lcpdit, "De l'échelle t'll h is toi rt>", in J. Re,·l'l (org. ), /nt.r d/(11('/it'~,
op. cit., p. 93.
5-1 Be rna rd Ll'pct it, art. cit., pp. 71-94; Ma u rizio Cr imaudi, " Éclwllcs, p L·r tinencc, configuratinn", i11 J.
RL·,·e l (org), /c11.\ ,frd1db, op. ál ., pp. ll :1-LlY.
x • O que foi dito mais acima sobn• a noção dt• lugar prcp,1ra o prL'SL'nll' ,irg umento . Vl'r ,1 sq;und,1
p<1rk, cap. 1.
1\ MEM(WJA, A HIST(~RIA, O FSQUF.CIMFNTO

situa o objeto de estudo no nível daquilo que Pascal denomina campo: tudo aquilo é
englobado, diríamos ao término da leitura, sob o nome de Méditerranéc!
O papel da idéia de escala em arquitetura e em urbanismo não é indiferente a
nosso assunto; colocam-se relações de proporção comparáveis às da cartografia, bem
como o balanço entre ganho e perda de informação de acordo com a escala escolhida.
Mas, diferentemente da relação entre o mapa e o território, o plano do arquiteto ou do
urbanista tem por referente um edifício, uma cidade ainda por construir; além disso,
o edifício e a cidade mantêm relações variáveis com contextos escalonados entre a na-
tureza, a paisagem, a rede de comunicação, as partes da cidade já edificadas, etc. Essas
características próprias da noção de escala em arquitetura e urbanismo dizem respeito
ao historiador, na medida em que a operação historiográfica é, num certo sentido, uma
operação arquitetônicas(,. O discurso histórico deve ser construído em forma de obra;
cada obra se insere num ambiente já edificado; as releituras do passado são outras tan-
tas reconstruções, às vezes ao preço de custosas demolições: construir, desconstruir,
reconstruir são gestos familiares para o historiador.
É por meio desses dois empréstimos que a referência à metáfora óptica se torna
operatória na história. As condutas ligadas à acomodação do olhar não são notadas,
na medida em que a natureza, ou até mesmo a beleza, do espetáculo revelado fazem
esquecer os procedimentos de ajuste de que o aparelho óptico se encarrega, ao preço
de manipulações aprendidas. A história, do mesmo modo, funciona alternadamente,
como uma lupa, e até como um microscópio ou um telescópio.
O que a noção de escala comporta de próprio no uso que dela fazem os historia-
dores, é a ausência de comensurabilidade das dimensões. Ao mudar de escala, não
vemos as mesmas coisas maiores ou menores, em caracteres grandes ou pequenos,
como disse Platão na República sobre a relação entre a alma e a cidade. Vemos coisas
diferentes. Não se pode mais falar de redução de escala. São encadeamentos diferentes
em configuração e em causalidade. O balanço entre vantagens e perda de informa-
ção aplica-se a operações de modelização que envolvem formas diferentes do imagi-
nário heurístico. Nesse aspecto, o que se pode censurar à macro-história, na medida
em que não percebeu sua dependência em relação a uma escolha de escala, é que ela
adota inconscientemente um modelo mais cartográfico que especificamente históri-
co, de óptica macroscópica . Pôde-se assim observar em Braudel alguma hesitação na
manipulação da hierarquia das durações: por um lado, presume-se urna relação de
encaixamento entre durações linearmente homogêneas, graças à inclusão de todas as
durações em um único tempo calcndárico, ele próprio indexado pela ordem estelar, e
isso a despeito de uma desconfiança indiscutível com relação aos abusos de cronolo-
gia cometidos pela história de acontecimentos; por outro lado, observa-se um simples
empilha mento das durações superpostas, sem vínculo dialético entre elas. A história
das mentalidades incontestavelmente sofreu dessa carência metodológica relativa à

56 A nrn;ão nietzschiana de história monumental que evocaremos no Prelúdio à terceira parte o con-
firmará, mas também o lugar, v,ír.ias vezes evocado em nosso discurso sobre a história, da noção
de monumento conjugada à de documento.

o:J, 222 ~
IIISTlrnL\ / Fl'IC..11\HllU(,I;\

mudança de escala, na medida em que as mentalidades de massa supostarn.ente de-


pendiam da longa duração, sem que as condições de sua difusão em escalas menores
fossem levadas cm conta. Até em Norbcrt Elias, entretanto um mestre na manipu-
lação do conceito, os fenômenos de autocoerç,10 supostamente atravessam camad,is
sociais sempre bem identificadas - a corte, a nobreza de toga, a cidade, etc.; mas as
mudanças de escala irn.plicadas no exame da difusão dos modelos de comportamento
e das sensibilidades de camada social cm camada social não s,f o percebidas. De um
modo geral, a história das mentalidades, na medida em que simplesmente estendeu
modelos macro-históricos da história económica ao social e aos fenómenos de "tercei-
ro tipo", ateve-se a tratar o conceito de pressão social, na sua relação com a recepção
das mensagens pelos agentes sociais, como uma força irresistÍ\'el atuando de maneira
despercebida. O tratamento das relações entre cultura erudita e cultura popular foi
particularmente afetado por esse pressuposto, solidário a uma leitura de cima para
baixo da escala social; outros pares que dependem de sistemc1s binéfrios similares fo-
ram igualmente consolidados pelo mesmo preconceito: força t 'S fraqueza, autoridade
t'S resistência, e cm geral dominação zis obediência, segundo o esquema weberiano da
dominação (Hcrrsc!u'.ft )'~.
Duas obras testemunhc1s ligadas à esfera da 111icrostorin italiana, acessíveis aos leito-
res franceses, prenderam minha atenção. Cario Ginzburg'', num curto e incisivo pre-
fácio, observa que é graças a uma exceção, dada "a raridade dos testemunhos sobre os
comportamentos e as atitudes, no passado, das classes subalternas", que foi possí\·el
contar "a história de um moleiro do Friuli, Domenico Scandella, dito Menocchio, que
morreu na fogueira, por ordem do Santo Ofício, após uma vida que transcorreu na
mais completa obscuridade" (Lc Fro11111gc ct lcs Vcrs, p. 7). É com base nos autos de dois
processos movidos contra ele que é montado o "rico painel de seus pensamentos e de
seus sentimentos, de seus devaneios e de suas aspirações" (op. cit., p. 8), aos quais se
juntam outros documentos relativos a sua \'ida de artesão, a sua famíli a , e também a
suas leituras. Essa documentação refere-se, portanto, àquilo que chamamos "cultura
das classes subalternas ou ainda cultura popular". Ginzburg não fala de escala, mas
de nível cultural, cuja existência é tida corno a condição necess,iria das disciplinas au-
todefinidas. Esse argumento da definição auto-referencial, ou até mesmo tautológica,

57 Surpreendemo-nos, na leitura dos tl'xtos de metl)Liolngia da micro-história , ao ver o grandL· an-


tropólogo Clifford Gel'rtz SL'r acusado p\lr Cio\·anni Leví e outros de descrt.'\'l'r o que ek con s i-
dl'ra como crern;a s compa rtilhadas no níH·l ck culturas de cert,1 ,implitudc· g eogrMica l' m tl'rmos
de modelos impostos a rece ptores submissos (" f p l'ricnli dei Cl'L'rtzismu", Q11 11dcr11 i sto ri(í, ,1p ud
J. Re\·el ldír.J, fc11x 1frd1cl/c,;, op. cit., p. 26, n . 22 , e p. :n , n . 27). Em compens ação, um autor escan-
dinilv\l, Fredrik 13c1rth, apóia-se em Clitford CL'nt/ par,1 di,1log,1r cnm \lS c1g cntcs soci,1is l'l11 su as
pesqu is,1s de czi mpt, sobrt• a idt'ntidadL' 0tn iec1 ( Et/111ic" C ril 11p~ 111ui fl il 1111d ,11N,, Lnnd res, Ceorges Al-
len , llJ6LJ). Ver também Sclcdcd b~11_11~ o( Jr,·,frrid: Hnrt /1 , t . r, l'n>(c,;~ <111d f()III! i11 Social Lifr, L.ond rl's,
l{outll'dgc and Kegan l'aul, 1981. Um artigu dL· ,1present,1çào ..:, dl'diecido a e le em f c11 x ,fr,·l,,·/1,·, :
l',1ul Andr(• Roscntal , "Construire IL' 'macrn' p,n k 'micro': Frl'drik BMth et la 111icril,/()ri11'', 1'/'· ci t. ,
pp. 141-159.
:;8 Cnln Cinzburg, Lc Fn>111agc l'f /e~ Ver~. L'11 11í,·,·r~ ,/'1111 111c 1111 i,T d11 .\ \ 1 ., ii•dc, tr,KI. iranc., Pari~. .\u-
bier-Fl;immarion, coL " Histuire ", 1LJ8(L
A M L M ( l({IA, A HISHWIA, O ESQLJ l:C IMl: :--J TO

dos grupos sociais e profissionais - como a burguesia - praticada em história social


encontra-se em outros historiadores não marcados pela micro-história italiana, de que
falaremos mais adiante. Os termos de cultura - cultura popular, cultura erudita - e,
em conscqüência, os de classe dominante e de classe subalterna, implicados nas que-
relas ideológicas ligadas ao marxismo vulgar ou aos protestos anticolonialistas, são
retomados. A raridade dos documentos escritos numa cultura largamente oral pôde
servir de desculpa. Mesmo Mandrou, cujo lugar na história das mentalidades assinala-
mos mais acima, não está isento da censura de ter tratado preferencialmente a cultura
imposta às classes populares (voltaremos a isso mais adiante, a propósito da obra d e
Certeau La Possessíon de Loudun), fazendo dela um efeito de aculturação vitoriosa 5" . Se
a literatura destinada ao povo não deve ocultar a literatura produzida pelo povo, é ne-
cessário ainda que esta exista e seja acessível. Foi o caso das confissões de Menocchio,
que, graças a sua raridade, escapavam às solicitações da história serial, quantitativa,
para a qual somente o número e o anonimato são significativos.
Mas corno não recair na anedota e na história de acontecimentos? Urna primeira
resposta é que essa objeção se aplica principalmente contra a história política. Uma
outra, mais convincente, é que são propriedades latentes e dispersas da linguagem
histórica disponível - que precisamente o computador ignora - as que o historiador
traz à luz e organiza em discurso. O que esse historiador articula, são operações de lei-
tura de um homem do povo que tem acesso a almanaques, canções, livros de devoção,
vidas de santos, brochuras de todo tipo e que esse bravo moleiro remodela segundo
sua maneira singular. Ao deixar a história quantitativa, não recaímos na não-comuni-
cação. Além disso, essas reformulações não exprimem somente o poder de releitura
atualizadora exercido por um simples homem do povo, mas a volta à tona de tradições
e heresias dormentes, que uma situação de sobrevida autoriza de alguma forma ares-
surgir. Disso resulta para nosso problema da história das mentalidades que o próprio
conceito de mentalidade deve ser recusado, na medida em que essa história, de um
lado, insiste apenas "nos elementos inertes, obscuros e inconscientes de uma deter-
minada visão do mundo" (Lc Fromnge et les Vers, p. 19), e, de outro, retém somente a
conotação "intcrclasses" de uma cultura comum - preconceito ao qual não escapa um

59 " Identifirnr a 'cultura produ zid a p e las cl,1sses populares' com a 'culturn imposta às massas po-
pubres', decifrar a fi s ionomia da c ultura popular ape nas por me io d as máx imas, dos preceitos e
dos contos fabulosos e:, uma emprL' itada absurda. O atalho apontado por Mandrou para contornc1 r
as dificuldades lig ada s à reconstituição de uma cultura oral nos devolve ao ponto d e p a rtid a"
(Gin zburg, Lc Froningc ct les Vcrs, op. cit ., p. 10). O recu rso d e Genevieve Bolleme à lite ratura de
di v ulgação incorre na s mes ma s objeçôcs. Em compen sação, Bakhtin escapa a essa críti ca no c iso
d e seu livro fundamental sobre ns re laçôes de Rabe lai s com a c ultu ra popular de s ua época, que
se concentra no carn,wal e nos te ma s carna valescos da cultura pop ular. Resta que os protagonis-
tas falam muito através d;is pa lav ras d e Rabebis. A análi se do "ca rna val de Romans" feita por
Emma nuel Lc Roy-L1duril', e mbor;:i reconst ituída com b.:ise num a crônic.:i hos til, cni n.:is g r.:iç.:is
dl' Cinzburg. Em compensação, a insistência de Fouc.:i ult nas e xclusões, nas interdições por meio
d,1s qua is se con s tituiu noss.:i cul t ura amea ç;i dei xa r a cultura popubr e xistir somente por meio
do "gesto que a suprime", como na Hi~tôria da lou cura . Se n loucura somente se ex prime n a única
ling uagem dis ponível, a d a ra zão que a exclui, os protagonis tas est5o fad ados ao silê nc io.
lli"TURJ .\ / ll'i"Tl\1llUlCL-\

Lucien Febvre ao folc1r dos "homens do século XVI". O grande historiador francês terá
resistido, contudo, aos preconceitos insepadn:-is do infeliz legado do conceito socio-
lógico de "mentalidade coletiva". Menocchio, de sua parte, não pode situar-se nessa
linha de ignorância, pois veio após a im·enção da imprensa e da Reforma , a quem de\·e
o fato de ter sido um leitor e um argumentador"' 1•
O outro livro que reteve minha atenção é o de Giovanni Le\·i, Lc Po1ruoir 1111 t 1illagc.
Hi5toirc d'un cxorci::;tc d1111s /e Píé111011t du XVfc sÍL\'/c"1, precedido de "L'histoire au ras
du sol", de Jacques Re,·el. Estamos aí no terreno trabalhado por Norbert Elias. Mas na
parte baixa da escala: no \'ilarejo. N,'ío é nem o grande número, nem o indivíd uo. Não
são tampouco indicadores quantificados - preços ou rendas, níveis de riqueza e dis-
tribuição de profissões-, nomeados mais do que enumerados. Nem as regularidades
de uma história pesada, imóvel, das normas e dos costumes comuns. A aparição e a
articulação dos fenómenos considerados são fruto da mudança de escala. Em \·ez de
agregados acompanhados durante um longo tempo, é um fen·ilhar de inter-relaçôes
que se prestam à decifração. Nem por isso se deve esperar uma ressurreição da \"i\·ên-
cia dos agentes sociais, como se a história deixasse de ser história e se juntasse à fe-
nomenologia da memória coletiva. O respeito por essa sutil fronteira importa a nosso
assunto, que jamais desmente a implícita profissão do corte epistemológico que separa
a história da própria memória coletiva. São sempre interações que são recolhidas e
reconstruídas"2 . A palana importante- reconstrução- é pronunciada; mais adiante,
ela relançará a história das mentalidades, denominada com mais propriedade de his-
tória das representaçôes, para além do exemplo bem delimitado da nlicro5toria. Porém,
antes de proceder a essa extrapolação mais ou menos bem controlada, é preciso ter
conduzido até seu ponto crítico uma história ligada à escolha da escala micro-históri-
ca. J,í. dissemos, numa escala menor, ínfima , vemos coisas que não vemos numa escala
superior. Mas é preciso dize r que aquilo que não ve mos e não devemos esperar ver, é
a vi\·ênci,1 dos protagonistas. O que \·emos continua sendo o social em interação: em
interação fina, mas jci micro-estruturada. Direi ainda, mas com alguma hesitação, que
a tentativa de reconstrução de Giovanni Levi satisfaz apenas parcialmente o famoso
"paradigma do índice" enunciado por Cario Ginzburg em seu célebre artigo "Traces.

óO O n1id ,1doso p ref.icio de Cario Cin zbu rg encerra- se com um ,i to de audaciosa pros pecti,·a : l\1e-
nocchio nos pren·de nesse caminho que Wa lter lknj ,1min traça L' m su,1s "Teses sobre a histl'iri,1 ",
onde se lt\ "Na d,1 do que se , ·eri ficou est,í perdido para a h istó ri,1 1 . . ] mas somente a hu man id,1d e
rt'm ida tem direi to i'I total idade d e se u pass,1lh1". " Rernid,1, ou St'j,1, 1ibertada", <1c rL'sce11tíl Ci nz-
bu rg, que atesta aí suas prúprias com icçôl' S.
ól Título original: C io, ,1nni Lt'Yi, L'crcditti i111111,1/cri11/c. C11 rricr11 di 1111 c,;<nt'i,;la 11..t Pic111011tc dei "'ic','11/0,
Turim, Einaudi, 198::;. A edi ção fran cesa citada aqui é : /..e Pom•oir ,111 ,·i!lagc. Histoirc d'1111 cxtir(i,;/c
d,111., /e PÍl'111011/ d11 X V 1 ,;ii·dc, l\iris, Ca li i ma rd, col. " l3ibliothi.'quc dcs h istui res", 1989 (pre Lícío de
J,icques RcH·l).
62 "Tentei, portanto, t• studar um fragnll'ntu minúsculo do Piemonte do século XV I, utili z,indn um ,1
técnica intensi,·a de rL'Cllnstruçi'ío dos acontecimentos biog rMicos de todos os habitantes du , ·il ,1-
rl'jo de Santena qul' d e ixaram algum rastro ducunwntal " (citadn por J. Re,·el lorg.J, l'rd,íci o ,1 C.
LeYi, op. cit., p . XIII)
i\ Ml'lvl(lRJ.I\, A IIIST()Rli\, O LS(JUl:C IM LNT(l

Racines d'un paradigme indiciaire r,'. A microanálisc praticada aqui não está próxima
11

do faro nem do detetive, nem do especialista cm falsificação de pinturas, nem de qual-


quer espécie de semiótica psicomédica. A mesma operação de reconstrução do real que
distancia do vivido também distancia do indiciário, para se aproximar de operações
mais cl,cissicas de recorte, de articuléição, de confronto de testemunhos, que permitem
11
falar de "história experimental Ora, do que trata a experiência? Do exercício do po-

der na escala micro-histórica do vilarejo. O que se vê nessa escala são as estratégias


familiares e individuais, confrontadas com realidades cconômicas, com relações hie-
rárquicas, num jogo de trocas entre o centro e a periferia, cm resumo, interações que
têm por lugar um vilarejo. Com esse conceito de estratégia, é trazida à luz uma figu ra
notável da racionalidade, cuja fecundidade avaliaremos mais adiante em termos de
incerteza, oposta termo a termo à fixidez, à permanência, à segurança - cm suma, à
certeza - vinculadas ao funcionamento das normas sociais de grande escala, a esses
quase-invariantes da história das mentalidades no longo prazo. Será uma questão le-
gítima saber se as condutas postas sob o signo da estratégia têm por finalidade secreta
ou confessa reduzir a incerteza ou simplesmente compor com cla 61 . O "grande jogo
social e político que é o verdadeiro assunto do livro,, (Revel, prcf,kio, in Lc Pouvoir
1111 vil/age, p. XXV), é, se o desejarmos, o mesmo que aquele reconstruído por Norbert
Elias cm La Dy1111111iquc de l'Occidc11t, mas no sentido em que, conforme o dito dc Pascal,
"tudo isso se engloba sob o nome de campo". Podemos di zer por isso que os detalhes
que, por assim dizer, desenvolveram o campo reconduzem, conforme algumas regras
assinaláveis, a recompor o invólucro?
É toda a questão da passagem dc1 micro-história à macro-história/,". Se pudemos
censurar a macro-história por proceder sem uma regra reconhecida da longa dura-

63 Cario Cinzburg, "Traces. Raci1ws d'un parad igmL' indicia ire", in Myt!1cs, E111/,/i•1111'S, Tmccs. Morplw-
/ogi1· ct /1istoirl', op. cit.
64 Revcl cita: "Essa sociedade, como todas as outras sociedades, é composta de indivíduos cons-
cientes da zona de imprevisibilid,1dc no interior da quill devl' tentar organi zar-se todo compor-
tamento; e a incerteza ni"\o prov0m somente da dificuldade de prever o futuro, mas também da
consciDncia pcrma1wnte de dispor de informa1;õcs limitadas sobre as forças que atuam no me io
social no qual se deve agir. N.'10 L' uma sociedade paralisada peb insegurança, hostil a todo risco,
passiv,1, agarrada aos valores imóveis da autoprotcçi"\o. Melhorar a previsibilidade para au mcntar
a scguranç,1 é um poderoso modelo de inovaçfü1 técnica, política, social" (J. Rcvel [org. ], Prefacio
a C. Lcvi, op. cit., pp. XXIII, XXIV).

65 Essa questão da rdaçi"\o L' d,1 pcrtin[•nci,1 recíproca d,1 micro-histúria e da macro-histúria collJCi1
o problema epistt•mológico iundamcntal cm ciências humanas da agrcgaçi"\o dos d ,1dos. l'ode-st'
passar da escala "micro" à esca la "macro" L' transpor as conclusôes de uma à outra indi fe rente-
mcnte7
P,1rece que a essa questi"\o a economia e a sociologia respondem negativamente .
Assim, as pesquisas de F. Malinvaud cm economia concluem por um "110 /Jridgc", uma ausência de
passagem - matemMica - do campo microcconômico (que repousa na ,1mí lise do compor tamen-
to de um indivíduo sob certas hipútcses) para o campo m ,irrol·corním ico (que analisa comport,1-
mentos de grupos, de conjunto).
A agregaçi"\o dos dados em ciênci,1s sociais gera efeitos perversos ou emergentes que impedem
a transposiçiío do individual ao coletivo. Condorcet mostrara assim que, a partir de preferências
individuais racionais, ni"\o se p od ia concluir pelo estabelecimento de uma prcfcrDncia coletiva
HIST( lRL\ / l l'I S!D1ll l.l lC I ,\

ção p<1ra as durações s ubordinadas, possui a micro-história argumentos pé1ra di zer


que reassumiu o proje to d e história total , poré m vis to por baixo? Considerada con-
cretamente, a questão equi vale a perguntar se o v ila rejo é um lugar fovor,h'el para
se identificarem as formas intermediárias d e poder por meio das quais o poder no
vilarejo se articula JO pode r do Estado na forma como ele é exercido nessa época e
nessa região: a incerteza é precisamente o que afeta a apreciação das forças presentes.
E é tarefa da obra explorar essas relações em que a hierarquia é ,·is ta a partir de baixo.
EnunciJda em termos de episten1ologia do conhecimento histórico, a questão se torna
a da representatividade dessa história de ,·ilarejo e das interações que aí se exercem. A
incerteza dos protagonistas seria ta mbém a do analista? Ela também p esa sobre a capa-
cid ade d e generalização que mante ria em rese rva aquilo que, cm ültima J nálisc, não é
mais que uma história de caso? Mas essa lição poderia ser generalizada a ponto de po-
d er ser oposta termo a termo àquela que Norbert Elias tira de seu estudo da sociedade
d e corte e de sociedades comparáveis?''" Em suma, "qual pode ser a representati ,·idade
d e uma amostra tão circunscrita? O que ela pode nos ensinar que seja gen eralizán~l?"
(Rc\·el, Prefácio, p. XXX.). Edoardo Crendi propôs uma fórmula que Revcl chama de
um elegante oxímoro, a saber, a idéia do "excepcional normal ". A fórmula vale mais
por aquilo que ela recusa: uma interpretação do conceito d e exemplaridade em termos
estatísticos, segundo o modelo da história quantitativa e serial. Talvez ela com·ide sim-
plesmente a comparar entre si as \'isôes do mundo que emergem de níveis dife rentes
d e escala, sem que essas visões do mundo possam ser totalizadas. De que autoridade
superior dependeria tal sobrevôo dos jogos de esca las? Parece du vidoso que cm algum
ponto esteja dado algum lugar em desaprumo, que permitiria esse sobrevôo. Os d ois
fragmentos de Pascal não são intitulados uma primeira \'ez " di,·ersidadc", uma outra
vez "infinidade"?

IV. Da idéia de mentalidade à de representação

Preciso agora apresentar o salto conceituai cons tituído pelo ingresso nJ próxima
seção .
Deixamos, no final do primeiro p a r,ígrafo, o conceito de mentalidad es n um es-
tado de grande confu são, tendo como fundo a noção de história total, n a qual a

rncion,11 (nu St)ja, que respeite a tran si ti,·id,1de d as escolhas). K fü,udnn, em Fjkt~ p,n•crs <'f Ordrc
soâo/, define cs:-.L' d eitn de ilgrL'gaçJL, cot11Ll "" um deito q ue n Zw 0 L'Xplicitil mL'IÜL' b us1."<1dn pel os
agl' n tl's d e um sistL'lll,1 t' que res ulta de su ,1 s ituaçZ10 de intl'rdt:pe nd t'• ric ia ". Por isso, as cnnc lu s Cies
, ·á lidils pi1ra um ind i,·ídu() 11fü1 p()dem SL' r estcndid ,1s i1 um cnnju nto de ind idduos.
Assim , esse esch1n>c inwnto d,1s c i(·ncias sL1c iais pareceria incita r-ll()S a conclui r que micro-histL-,-
r iil e macro-h is tó ri ,1 possuem pertint•nc i,1 s dis tint,1s L' que a p,1 ss,1gcm de um,1 :i outr,1 cimtinua
SL' ndo um proble m,1 cpisll'mo lúg iúl nllda l n,ill resoh ·id o.
66 Revel pa rece dm· idar di sso: " Lida re n te ,H, c h,1L1, a hi stóri,1 dL' um lu gar L' prov,ivelnwnte difere n te
d,'I de todos os o utros ." (j. Re ,·l·I [nrg. l, Prd,1cio ,1 C. Levi, op. âf .. p. XXX ).
/\ M E MÚl<IA , A lll STÚR IA, O ESQ U EC I ME N TO

d as mentalidades supostamente se integra. Fomos então s ubmetidos a dois tipos d e


solicitações: d e um lé1do, aquela oriunda de três discursos muito divergentes, mas
que exige, cada um a seu modo, um rigor conceituai único suscetível de presidir a
um reagrupamento d a história estilhaçada; d e outro lado, a de uma historiografia
origina l, ligada a uma escolha aparentemente inversa d aqu ela, implícita, da h istorio-
grafia dominante na idade de ouro dos A1111alcs, a escolha da escala micro-his tórica.
C hegou a hora d e lança r-se com p rudência e modés tia no cami n ho d e um rem emb ra-
mento do campo histórico em que a his tó ria das mentalidades d esempenharia um
papel fede rativo, com a condição d e assumir o título e a função d e uma histó ria das
representações e das práticas.
Proponho que tomemos po r guia, a fim d e sair da situação de dispersão da h istória
das três últimas décadas do século XX, uma abordagem g lobal que me p a rece respon-
der em grande parte ao rigor conceituai três vezes exigid o, n a medida em que leva a
noção de va riação de escalas a seus limites extremos. Tento mostrar que a s ubstituição,
muitas vezes dei xad a sem explicação, do conceito vago d e mentalid ade p elo d e repre-
sentação, mais bem articul ad o, mais dialético, é perfeitamente coerente com os usos
que vamos propor do conceito generalizad o de variação d e esca las.
A abordagem global à qual me refiro encontrou, na obra coleti va dirigida por Ber-
nard Lepetit, Lcs Fo r111cs de /'cxpéric11cc. Une autrc histoirc socialc('7 , sua m ais explícita
formul ação. Os historiadores aqui reunid os adotam como termo d e referência próxi-
m a - o que, d a minha p arte, chamo de objeto pertinente do d iscurso histórico - a
instauração, nas sociedades considerad as, do vínculo social e d e suas rcspecti vas
mod alidad es d e identidade. O tom dominante é o de uma abordagem pragmática cm
que o foco principal está n as prá ticas sociais e nas representações integradas a essas
práticas'>li. Essa abordagem pode legitimamente afirma r-se como uma crítica d a razão
pragmática em que cru za, sem confundir-se com ela, uma hermenêutica d a ação, que
por sua vez provém d o enriquecimento d a fenomenologia d e Husserl e de Merleau-
Ponty pela semió tica e por toda a profusão d e trabalhos d edicados aos jogos de lingua-
gem (ou d e discurso). O ramo d ecidid amente histórico dessa crítica da razã o p rática é
reconhecido pel o fato d e que o vínculo social e as mudanças que o afeta m são tidos
como o objeto pertinente d o dizer hi.stórico. Assim, o corte epistemológico usad o n o
modelo labroussiano e no modelo braudeliano não é absolutamente renegad o; é d eli-
beradamente assumid o pelo novo programa de pesquisas que coloca "como problem a
p rioritário a questão d as identidades e dos laços sociais"1'9 .
A continuid ade com os p rog ramas anteriores da escola d os A nnalcs n ota-se pelo
fa to de as três p roblemáticas identificadas na in trodução deste capítulo - a d o tipo de
mudança considerad a como a mais pertinente (mud ança econô mica, social, política,

67 CJp. cit.
68 13ern;ird Le petit, "Hi stoire des pratiques, p ratique de l'h istoire ", ibid., p p. 12-16.
69 Bernard Lepetit, ibid., p. 13.
I I IST(lRI.\ / ll'ISIT\1()1.()(.;J ,\

cu ltural, etc.), a da escala de descrição e a d os regi mes tem porais - , deslocarem-se cm


bloco e d e fo rma solidéiria~11•
Sua ligação a uma crítica d a razão pragmática ch a mou p rimeiramen te a atenção
p ara o cará ter semp re mais p roblemático da ins tauração do laço social; por isso fa la-
remos d aqui em dian te mais facil mente de estru turação do que de estrutu ra , tra ta n-
d o-se das normas, d os costumes, d as regras d e direito, enqu anto insti tuições capazes
d e manter juntas as socied ades. Depo is, essa fil iação espontânea a uma crítica da
razão pragm,:itica chamou ma is a atenção sob re a articu lação e ntre prMicas prop ri,1-
m ente ditas e reprcsentaçôes, que pod e m legiti mamente ser cons id eradas como p rá-
ticas teó ricas, ou m elho r, simbólicas~'. Fin almen te, recorrer é1 uma crítica da ra zão
prag mática perm ite jus tifi car o d eslocame nto ocorrido, muitas \'ezes de fo rma irrefle-
tida, d o \'Ocabu lá ri o da menta lid ad e ao da rep resen tação. Procedercn1os agora a u ma
subs titui ção n10ti\·ada d o primeiro termo pe lo últi mo.
A imprecisão semân tica que foi legitim Jmen te criticJda né1 idéia de mentalidad e é
insepar,ivel do caráter maciço e ind iscriminado do fenóme no, que tem sido freq üe nte-
men te com parad o ao cli ma d a época, ou a té, lembra ndo Hegel, ao espírito d os po,·os.
É assim p orque a s irn p les justa posição do me nta l aos ou tros co1T1.p onentcs da socie-
d ade total n ão perm itia que a p arecesse a dialética ín ti ma dessa sociedad e. Ma is be m
articulada com a prMica ou as prMicas sociais, é1 id éia de rep resentação \'a i re\·elar
recursos dia léticos que a idéia de menta li dad e não deixa,·a a p arecer. Va mos mostrar
que a generalização~:- da idéia do jogo d e escalas pod e constitui r urna via p rivi legic1da
para tra zer à ton a a dialética velada dé1 id éia de rep resen tação empa relhad a com a de
práti rn social.
De fa to, o im porta nte, nos jogos d e esca las, não é tan to o p ri \' ilégio con cedido é1
certa escolha d e escala qu an to o própri o p rincíp io da \'a ri ação de esca las, na li n ha
d o afo rismo d e Pasca l usad o como epígra fe da seção anterior. Uma diversi dade de
efeitos pod e en tão ser atribu ída a esse exe rcício d e variaçôes. Agr upei três deles cm
torno d a te mótica d as identidad es e d o , ·ínc ulo socia l. Tod os contri buem, cada u m
de um a ma neira, p a ra recentrar a his toriografia do ú ltimo terço d o sécu lo XX. O
exercício d e variação d e esca las pod e segui r três linhas c01w ergentes: na pri meira,
colocarei as variJções q ue afetam os graus de eficácié1 e de coerção das normas so-
ciais; na segunda, as q ue mod ul a m os gra us de legitimação cm curso nas m ú ltiplas
esferas de pertcncimcnto en tre as quJis se d istribui o \'Íncu lo socia l; na terceira, os
aspectos não-quantita ti vos da esca la d os tempos socia is; isso nos levar,í a re tomar a

70 NPtar-se-â a abL·rtu ra progrl'ss iva dl) S rL·spons,in•is d os A1111alc~ pa ra a kit ura de d ois artigns críti -
cos da rl'v ista: " His tnire d sciencL' socia lL'. Un tourna nt critique)", A111111/e~ ESC, 1988, pp. 29 1-291. F.
sobrl't udo "TL' nton s l'ex pL'rie ncc", /\ 1111,1/,·, LSC, l9H9, pp. 1317-n n.
71 l{citern nqui minha dÍ\·ida pnrn com a Sllciolngi,1 d e Clifford CL'L'rtz, ,1 quem de,·o o cunn, ito d e
ação simbol ica nw nll' m L·d i,1da (cf. D11 te.ri e ti /'11d io11, op. cit., L' l,frologic ,·t Utopie, op. cit .). É por l'SSL'
m otivo qut.> a pre , ·L·nção d os m icro-his!t)ri,1dores dos Q1111d1T11i contra Ct.>l'rtz pareceu-nw um p o u-
co in justa (cf. acim a p. 223, n. 57) .
72 "Mais do q ut' uma esca la, é a variaçi\o dl' esca las q ul' pa recl' ,1qui funda me n ta l" (J . Re \"L'i, prd,i-
cio, in Le Pl111,•oir ,111 ,•il/11:,:c, OJJ. l'il., pp. XXX/ XXX III ).
A M EM()RJ /\, A HJ ST() RJA, () ESQUFCIM FNTO

própria idéia d e mudança social que norteou toda a nossa investigação sobre a ex-
plicação/ compreensão praticad a em histó ria. Nas três linhas de exa me, te remos em
mente a frase d e Pasca l que leva a afi rmar que, em cada escala, vêem-se coisas que
não são vistas em outra escala e que cada visão está no seu direito. No término d esse
triplo percurso poderá ser abordada de frente a estrutura dialética que leva a preferir
a idéia de representa ção à de mentalidade .

1. Escala de eficácia ou de coerção

Como já verificou a mi cro-história, a primeira vantagem da variação de escalas é


poder deslocar a ênfase para as estratégias individuais, familiais ou de grupos, que
questionam a presunção d e submissão dos atores socia is da classe mais baixa às pres-
sões sociais de todo tipo e principalmente àquelas exercidas no plano simbólico. Com
efeito, tal presunção não d eixa de ter ligação com a escolha d e escala macro-histórica.
Nos m od elos dependentes dessa escolha, não apenas as durações parecem hierarqui-
zadas e encaixadas, mas também as representaçôes que regem os comportamentos e as
pr<lticas. Na medida em que uma p resunção d e submissão d os agentes sociais parece
solidária com uma escolha macro-histórica de escala, a escolha micro-histórica induz
uma expectativa inversa, a de estratégias aleatórias, nas quais são valorizados conflitos
e negociações, sob o signo da incerteza.
Se se estende o olhar além d a micro-his tória, s urge o traçado, em outras socied ades
diferentes das interrogadas pela 111icrostori11, d e emaranhados de grande complexidade
en tre a pressão exercida por modelos de comportamentos percebidos como dominan-
tes e a recepção, ou melhor, a apropriação, das mensagens recebidas. Ao mesmo tem-
po vacilam tod os os sistemas binários que opõem cultura erudita a cultura popular, e
todos os pares associados: fo rça/ fraq ueza, autoridade / resistência. A que se opõem:
circulação, negociação, apropriação. É toda a complexidade do jogo social que se deixa
apreender. Nem por isso fica refutada a visão macro-histórica: podemos continuar a
ler Norbert Elias acompanhando o caminhar das ordens simbólicas, e de seu poder d e
coerção, de alto a baixo nas sociedades. É precisamente porque a visão macro-histórica
não foi abolida que foi possível fazer legitimamente a pergunta d a representativid ade
das micro-organizações consideradas sob o aspecto dos fenômenos de poder legíveis
em escala maior. Entretanto, a noção de desvio que encontraremos várias vezes em
contex tos comparáveis não poderia esgotar os recursos combinatórios entre quadros
desenhados em escalas diferentes. Continuam a ser sistemas de cima visitados por
baixo7-'. Sob este aspecto, a extensão, ao campo das representações, dos modelos de
história de longa duração permanece legítima nos limites do ponto de v ista macro-
histórico: há um tempo longo dos traços de mentalidad es. Nada se perde u d a coloca-
ção do problema por Durkheim no início d o século XX, sob o título justamente de

73 Paul André Rosent,~1: "Cons trui re !e 'macro' pa rle 'm icro': Fredrik 13arth et la 111icrojfori11", i11
J. Revel (d ir.), Jeux d'échcl/cs, op. cit., pp. 141-160.

,z, 230 O::•


III ST()l.:I\ / l l'ISTl\1(11()(,1 ,\

"Representações coleti,·as", o term o ,·olta n d o de form a s ign ifica ti va a p ós o uso p ro-


longado daquele de m entalidade no mo\'imento d os A 111111lcs. /\ idéia durkheirniana de
'' normas fundam enta is", solid,hia das de acordos despercebidos e de acordo sobre as
modalidades de acord o, ma ntém su a força pelo menos probl e mátirn e pragmMica~1• A
tarefa consiste mais e n1 repor esses conceitos diretores numa re lação dialética com
aq ueles que regem a a propriação dessas regras de acordo sobre o acordo. Além do
mais, a simples consideração d ,1 necess,iria economia das forças de criação que re-
siste rn às força s d e ru ptu ra nos inclina a conced er a lg um crédito à idéia de um llll/1ifus
costumeiro compar,i\·el ,1 a lgum p rincípio d e inércia , ou até de esquecimento~".
É nesse sentido e sob o signo d a csca lc1 da eficácia ou d ,1 coerção, que pod em se r
retomados conjuntamente o problema d a ins tituição e o dc1s normas, cada um obe-
decend o a regras diH•rsas de contextualilfad e~".
Dentre os princ ipc1 is usos da id éict de instituição (uso jurídico-político, organiza-
ção funcionando de fo rm a reg ular, organizélção no sentido c1mplo lig ando , ·alores,
no rmas, modelos de relação e d e comportamen to, p ap éis) destaca-se ,1 idé ia d e reg ula-
ridade. Uma abo rd agem dinân1ica da constituiç3o do vínculo social vai sobrepor-se à
oposição artificial entre regularidade institucion a l e im·enti,·idade sociél l, se falarmos
mais e m ins titucion a li zação do que em instituiç3n77 . Nesse aspectn, o traba lho d e se-
dimentação ins titu ciona l gan ha ri a, a m e u \'er, em ser com parado com o trabalho de
arq uivnmento que \' imos operando no nível documental dé1 operação hi sto riogr.Hicé1:
não se poderia fa lar, cm sentido ana lógico, d e arqui va m e nto da prcí tica social? Consi-
d e rado desse modo, o processo de instituciona lização faz s urg irem duc1s faces da efi-
cácia das representa çôes: de um lado, em termos d e iden tifirnçé'io (é a função lógica,
cbssificatória das representações), de outro lado em term os de coerção, de coação (é
,1 função prMica d e con fo rm ação dos comportamentos). No ca minho da rep resen-
tação, a insti tuição cria ide ntidade e imposição. Isso posto, ta h ·ez se d eva deixar de
opor o lado coerciti,·o, atribuído de forma preferencic1 I à insti tuição, ao lad o su postc1-
m ente sub versivo reconhecido na experiên cia socia l. Considerado de um ponto d e
, ·is tc1 dinâmico, o processo d e ins tituc ionalização oscil a en tre a prod ução de sen tid o
no estado n ascente e a prod ução de coaçc'io no estado estabelecido. Assim p od eria ser

7-t "DL' fato, a n oç,io dl' 'nurm ,1 fund,111w n t,1l ' I'L'spondl' e m D urk hL'im ,1 uma tripla m•n•ss id ad l'. Su,1
natureza é tal q ul' cl,1 permi te que ,1 socicd ,1dl' Sl' m.intl'nh ,1 unid ,1 , sem princípios dl' orden,1-
nll'nto e x ternos ,1 L'l,1 , L' SL' lll q ue r.1d,1 situ ,1ç,ill p ,irticul.lr .i f,1ç,1 ca ir n,1 ,inomia u u prL'c i~L' da
ree laburnç.'i o de sol id.iriedade revis ta, ,1 partir do iníc io. Eb constitui u m.i hipú tL'SL' 11d /1(1, ou uma
proposi<;zío t,1uto ll'ig ica que ,·a ll' o qm' , a lt• ll d t>s,· io l'X p l ic.i ti \'(l quL' pt•rm ite sua cspeci fi caç,10 dL'-
ta lha da" (B. LepL'tit, " Hi stoirL' ck s pratiqm·s. l'ratiquc dl' l'hi stoire", i11 B. Lcpetit ldir.], L,·, F(l1111cs
de /'npáic11L"c, º/'· o't ., pp. 17- 18).
1 ::, VL)itan'mns a isso no c.1p ítulo d L·di c,1do .io L'squec i nll'nto.
76 Jacq uL's l~l',·e l, " L'inst itution et IL· soci,1 1", in B. Lepet it (dir.), /..,·;; F,•r111,·, de J'npáic11,·L', ,11 •. .-it.,
pp. 63-85; S imona Ccrutt i, "Nornw~ t'l pratiques, ou dl' l,1 lég itimitt:· de lcu r oppos it inn ", i/iid.,
pp. 127-151.
77 Umíl rl'Ícri'.•ncia irnpmt,1 ntc, a L'Ss,1 ordL·m dL' idt;i,1, é con stituíd,1 PL'I() lino d e Lu c Bt)l h111sk i snbrt'
os ext•cutivos, L'XL'mplo notô,·el dt' uma inst ituiç,io d ,itad a s urprcL·ndid ,1 L'Tll f,1sc de i11 stau r,1ç,i o: /.e.,
Cadrc~. l.of,1m111t itl11 ,i'1111 ,xn•11pc ~ocit1l, l\ 1ris, ed . de \:linu it, 1982.
!\ MUvl(lR II\, 1\ IIIST()RII\, O ESQUF.C IMl'.N J' Cl

formulada a idéia d e uma esca la de eficácia das representações. As análises de Nor-


bert Elias sobre as relações entre forças físicas camufladas cm potência simbólica, ou
aind a a proposta d e Michel Foucault em Vigiar e punir, deveriam ser recolocadas
numa escala de eficácia considerada enquanto escala de coação. O importante é que
"os homens precisam das instituições, o que equivale a dizer que tanto se servem
delas quanto as servem" (J. Revel, "L'institution et le social", p. 81 ).
Em outros contextos, prefere-se adotar como referência conceituai a idéia d e nor-
ma, em que o foco está ora nos processos de avaliação que determinam o permitido e o
proibido, ora nas modalidades d o sentimento de obrigação sancionado pela punição.
Também a idéia de norma, desdobrada do plano moral para o plano jurídico, presta-se
a uma variação da escala de eficácia, tanto na ordem da identificação, da qualificação
das cond utas, quanto na d os graus de coerção. É nesse tipo de escala que poderiam
ser colocadas as formas opostas de aprovar e desaprovar, nos procedimentos de le-
gitimação ou de denúncia. Desenvolveremos este ponto quando considerarmos adi-
versidade de aplicação da idéia de norma nos regimes plurais de interação das condu-
tas. Podemos desde já observar-lhe a estrutura dialética geral: as figuras do justo e do
injusto podem ser consideradas como as referências básicas de avaliações opostas; as
fi guras do justo d elimitam as modalidades d e legitimidade pretendida o u assumida;
as do injusto, as modalidades da ilegitimidade denunciada. A essa polaridade básica
vem acrescentar-se, do ponto de vista da dinâmica dos processos, a competência fun-
damental d os agentes sociais em negociar os conflitos. Essa capacidade atua tanto n o
p lano da qualificação dos comportamentos contestados ou assumidos quanto no dos
níveis de coerção rejeitados ou aceitos 78 . Um conceito interessante, a meio caminho
entre justificação e denúncia, seria o d e "ajuste", de ação "que con vérn " 7''.

2. Escala dos graus de leg itimação

A segunda linha na qual o tem a da va riação d e escalas se pres ta a uma extensão


instrutiva é a d os graus de gra ndeza a que podem pretender os agentes sociais na or-
dem da estima pública. Mas ning uém é grande ou pequeno a qua lquer preço. Alguém
se torna grande quando, num contexto de discórdia, se sente justificado por agir da
forma corno age. Logo, gra ndeza e justificação andam lado a lado. A noção d e justifi-
cação acrescenta uma nova dimensão de inteligibilidade às de instituição e de norma;
a discórdia, o conflito, a disputa, a desavença constituem o con texto pertinente. Prepa-
ramos o caminho para a instauração do par grandeza e justificação a partir do momen-
to em que adotamos por princípio geral d e rem embra men to do campo histórico a ins-

78 Pa ra o exa me das condu ta s d e de núnc ia, cf. Lu c I3oltans ki, L'/\ 111011r <'f /11 Ju stice co11111H' co111péfc11-
ccs. Trois essais de sociotox ic de /'11ctio11, Paris, Méta i llé, 1990, prime i rn parte, "Cc dont les gen s sont
capables".
79 La ure nt Thévcnot, "L'action qui con vicnt ", i11 Patrick Pharo ct Louis Quéré (dir.), Les Fon 11cs
d 'aclion, Paris, EHESS, col. "Ra isons pratiques", 1990, pp. 39-69.
H ISTC)R I -\ / l l' I SIT\1U l (lC I .\

tauração do vínculo social e a busca de identidade a ele acoplada. É nas situações de


discórdia que os agentes sociais aumentam seus pedidos de justificação; o mesmo sen-
timento de injustiça que vimos agir nos estratagemas de denúncia opera nas estraté-
gias de legitimação; a pergunta é a seguinte: como justificar o acordo e administrar o
desacordo, principalmente por meio do compromisso, sem sucumbir à violência? Aqui
intervé m a consid eração da grandeza, a qual envolve algo além de uma necessidade
taxonômica de classificação, a saber, uma necessidade de reconhecimento que toma
como referência a escala das avaliações operadas durante provas qualificantes (noção
que é encontrada em outros contextos, tais corno o dos contos heróicos). Luc Boltanski
e Laurent Thévenot acrescentaram um componente complementar de inteligibilidade
ao de grandeza, le,·ando em conta a pluralidade dos regimes d e justificação resultante
da pluralidade dos tipos de conflito; alguém pode ser grande na ordem mercantil e
não o ser na ordem política ou na ordem da reputação pública ou da criação estética.
Assim, o conceito principal passa a ser o de "economias da grandeza"x". O importante
para a presente in\'estigação é juntar à idéia hier,frquica de grandeza, variante da idéia
de esca la, a idéia horizontal da pluralização do vínculo social. Tal entrecruzamento de
duas problemáticas contribui para romper com a idéia de mentalidade comum, facil-
mente confundida com a de um bem comum indife renciado. Por certo, a idéia de " hu-
manidade comum aos membros da cidade" (Boltanski e Thé,·enot, De la j11::.t~ficatio11,
p. 96) não deve ser rejeitada: iguala os homens enqu anto humanos, excluindo em par-
tinilar a escravidão ou o adestramento de suburnanos. Porém, na ausência de diferen-
ciação, esse vínculo permanece n ão político; ao axioma de human idade comum é pre-
ciso acrescentar o de dessemelhança; é ele que aciona as provas de qualificação e
suscita os procedimentos de justificação; estas, por sua ,·ez, estão orientadas para o
estabelecimento de compromissos que satisfaçam ao modelo de "humanidade ordena-
da " (op. cit ., p. 99). O empreendimento continua sendo aleatório e, nesse sentido, in-
certo, na medida em que " não existe posição de destaque, externa e s uperior a cada um
dos mundos, de onde a pluralidade das justiças poderia ser considerada de cima , como
um leque de escolhas ig ualmen te possÍ\'eis" (op . cit., p. 285)' 1• Resulta d aí que é em ci-
dades distintas, em mundos múltiplos, que as tentati,·as de justificação podem fazer
sentidd ~. A difícil questão levantada pela obra é a dos critérios da justificação , ·álidos
cm tal cidade. O critério está ligado ao da identificação das esferas distintas d e ação.

Sl.l Luc B0lt1nski & L1urL·nt Thévl'not, De /11 i11,titio1tio11 : /e, á·o110111i1·, de la sm11dc11r, uv cit . Fiz uma
rL'senha dessa ob ra em Lc J11sti ·, Paris, lsprit, col. "Essil is", 199'1, pp. 12 1-l-l2, l'lll outro C()ntL'xto,
o de "a plural idadl' da s in s tânc ias (il> jus tiça", que leva ;i comp,H,H a obr,1 con s iderada co m a de
Mic h ,wl Wa lzl'r, Sphcrc~ o(f 11~/icc. /11 Dcti·,1~c t>f />/11m/i., 1111111d fq1111/it.11, 'JL·w Yt)rk, Bc1sic Books, 1982;
tra d . fr. dl' Pa scc1 l En gl'I, Spl1i·re~ dci11~fit"c : 1111c ,frti·,,~c d11 pl11r11/i~111c ct de /'1;,1;11/ilt\ Paris, Éd. du S(•uil ,
1997. Compa r,1lfo com a de \.Val:1.er, a apost;i dl' Boltanski-Thc.'• n •n o t n ã o l' o p rob ll'ma da domina-
ÇiHl dl' uma es fera d l' a çiio sobre il o utr,1, portanh1, d<1 eqüidack, ma-:; o d a rL'SOluçà() dos conflitos,
portanto, dos compromissos p,1 ra o bem comum.
81 Uma comparaç,i o p lick ser feita ilqui com r1 pL'rsistl'nte id é ia dl' pluralidade humana qul' ,1tran's-
Sil totfo a obra d e H ,1nnah Arendt.
82 Os il utorl's dis ting ul'm e ntre "c icfades" e "mundos": reservam ll p riml'irl'1 term o a os s l'g nw ntos do
es paço soci<1l recorta dos por cilda sisll'm,1 di sc re to dl' jus t iii cação, utili za ndo como modl'lti o ,1to
dt.' h<1bita r; o segundo termo lcmbrn que o l'lo con s tituti\'o dL· cada c i,fade se VL'ri fic,1 n,,s pm,·,1 s
/\ MFM()RIA, /\ III ST()R t /\ , O 1:S()UFCll'vll: NTO

Abrem-se assim dois debates, que interessam diretamente a nosso propósito - que
é o da fecundidade do tema dos jogos d e esca las para uma história das representações.
A primeira diz respeito ao caráter finito do processo regressivo que, de justificações
elementares em jus tificações segundas, leva a uma justificação última em determinad a
esfera; o recorte entre cidades ou mundos é estritamente correlativo d a coerência dos
regimes de ação assim justificados. O problema, mais uma vez, não é d e ordem taxo-
nôrnica, mas sim d e hierarquia na avaliação; como no sistema de Aristóteles, é preciso
admitir a necessidade de parar em algum ponto; a enumeração das cid ad es - cidade
inspirada, cidade doméstica, cidade mercante, cidade da opinião, cidade cívica, cidade
industrial - é baseada em semelhante postulado da justificação termina l finita. Essa
dificuldade atrai outra: quais discursos dão fé da jus tificação última apropriada a de-
terminada cidade? Como se reconhece a a rg umentação última própria de determinada
cidade ou de determinado mundo? Aqui, os autores adotam urna estratégia original,
porém onerosa: para identificar as argumentações em curso nos debates corriqueiros,
estes são colocados sob a égide de discursos mais articulados, mais fortes, em que o
processo d e justificação é levado ao auge de reflexividade. Assim, convocam-se obras
de filósofos, teólogos, políticos, escritores, chamadas para reforçar manuais destinados
a executivos de empresas e res ponsáveis sindicais. Assim, Adam Smith, Santo Agosti-
nho, Rousseau, Hobbes, Saint-Simon, Bossuet forn ecem os discursos fundadores dos
discursos efetivamente proferidos nos litíg ios comuns. A questão passa a ser a da re-
lação d e conveniência entre discursos fundadores e discursos justificados. Pode ser
motivo d e sa tisfa ção a reintrodução d a filosofia no cerne d as ciências sociais a título
de tradição argumentativa, o que constitui, ao mesmo tempo, para ela urna justificação
indireta e, para o sociólogo ou o economista que são nossos dois autores, o reconheci-
mento do seu pertencimento a uma his tória do sentido. Mas também pode ser motivo
de questionamento sobre a verdadeira natureza do elo existente entre os textos lidos
por nossos sociólogos e os discursos pra ticados pelos agentes sociais, na medida em
que os grandes textos fundadores não foram destinados a tal uso e em que, por outro
lado, são geralmente desconhecidos pelos agentes sociais o u por seus representantes
no plano d o debate público. A objeção que se poderia extrair d aí contra todo o em-
preendimento dos nossos autores não fi ca sem resposta, na medida em que o próprio
espaço social d á luga r a outro tipo de escala, a das leituras escalonadas entre os textos
arquetípicos e os discursos mais fracos. Tanto os primeiros quanto os segundos foram,
enquanto escritos, d ados a ler a uma multiplicidade de leitores que formam cadeia;
afinal de contas, o moleiro do Friuli do século XVI italiano fizera provisão de arg umen-
tos para suas negociações argutas ao sabor de suas leituras a leatórias. Sim, a leitu ra
também tem suas esca las, que se mesclam com as escalas de escrita; nesse sentido,
os grandes textos que servem para explicitar e decifrar os textos de menor porte dos
negociadores comuns ficam, por s ua vez, a meio ca minho entre aqueles escritos pelos
historiadores quando juntam os textos arquetípicos aos discursos implícitos proferidos

qualifica ntes qu e se apóiam e m di s positivos, objetos, coi sas, q ue dão e nsejo a uma socio logia
apropriada a seu duplo aspecto materia l e socia l.
HIST()RJ,\ / l:l'ISH .v tOI.OCI ,\

nas cidades em questão, e aq ueles que os agentes sociais escrevem às vezes sobre si
mesmos. Tal cadeia d e escritas e leituras ga rante a continuidade entre a idéia de repre-
sentação como objeto de histó ria e a d e representação como ferramenta de história''.
Na primeira ace pção, a idéia de representação continua d ependendo da problemática
da explicação / compreensão; na segunda, passa a estar ligada à da escrita da história.

3. Escala dos aspectos não-quantitativos dos tempos sociais

Gostaria d e terminar este exame cursin1 das aplicações da noção de variação de


escalas com uma exte nsão aos aspectos não-quantitativos do componen te temporal da
muda nça social. Os encaixamentos das duraçôes longa, média e breve, conhecidos dos
leitores de F. Braud el, baseia m-se e m primeira a nálise em relações quantitati,·as entre
intervalos mensurá,·eis cm termos de sécu lo para a longa duração, de décadas para as
conjunturas, ou até d e dias e horas para os acontecimentos datados. Uma cronologia
comum pontua datas e intervalos indexados no tempo ca len dá rico. Para tanto, as dura-
ções men suráveis são postas cm correlação com os aspectos repetitivos, quantificáveis,
submetidos a um tratamento es tatístico dos fatos registrados. Mas mesmo no quadro
bem delimitado do mensur,ivel, as durações consideradas apresentam aspectos inten-
sivos freqüentemente d isfarçados de grandezas extensivas tais como a velocidad e ou
a aceleração das mudanças considera das . A essas duas noções, que só a parente mente
são mensuráveis, juntam-se va lores d e intensividade tais como ritmo, cumulativ idade,
recorrência, remanescência e até esqueci mento, na medida em que a colocação cm re-
sen·a das capacidades reais dos agentes sociais acrescenta uma dimen são de latência à
de atu alidad e tempora l. Pod e-se falar a esse respeito de uma escala de disponibilidade
d as competências dos age ntes sociaiss.j.
Isso posto, é possÍ\·el aplicar a noção de esca la e d e \'ariação de escalas a essas
modalidades intensins d o tempo histórico. Não há razão alguma para a bando nar o
traba lho sobre as escalas de duração ini ciado pelos A1111alc::.. Há também um tempo
longo dos traços de mentalid ades. Isso \'ale para a sociedade global, mas também para
as cidades e os mundos cuja pluralidade estrutura o espaço social. Nesse sentido é
preciso aprender a entrecru zar a pluralidade dos mundos da ação não apenas com as
escalas de eficácia, como foi feito acima, mas ta mbém com a escala d os regimes tem-
porais, como vamos tentar fazê-lo . Aqui també m, a ênfase de\'e recair na variação de
esca las e não no suposto privilégio de uma ou outra .
Abordada em termos de grandeza inte nsi\'a e não mais extensiva, a duração li-
gada por Durkheim à noção d e acordo bem-sucedido merece ser reexam inada: "Um

83 Lma sociologia da leitu ra vir ia aqui rdorçM nosso argumento. VL•r RogL'r C harticr, A11 /1ord de /11
fillaisc. /,'/1isloin' c11/ rc ct'l' f it udc ct i11q11id11dc, PMis, A lbi n MichL'I, 1998 .
8-+ Uma tipnlogic1 desses modos de disponibilidadL' comb in c1ria i,1cilnwntc com nossas anotaçôL'S
relativas aos u sos e abu sos d ,1 memória, dt' pL·nde ndo dt• el,1 cs tM impedida, manipulada ou co-
mandada. (Cf. acima , primeira pílíll', cap. 2.)
/\ MFM ( )RIA, /\ HI ST<)R I A, O ESQUECIMENTO

acordo bem-sucedido, observa B. Lepetit, precisamente por ser bem-sucedido, torna-


se norma pela regularidade das suas reiterações imitativas" (Les Formes de /'expérience,
p. 19). É a própria noção de regularidade que deixa de ser óbvia. Emparelhada com
a de reiteração, atrai a contrapartida de comportamentos de apropriação, ligada à
competência dos atores. Uma escal a das temporalidades fica assim aberta a percursos
cruzados. À linearidade d e uma d escida preguiçosa de cima pa ra bai xo responde a
reordenaç5o sempre em curso dos usos da duração. Essa revisão d os conceitos tem po-
rais usados em historiografia deve ser aprofundada. Em outro sentido, ela não deve
poupar certos conceitos que foram privilegiados contra a ênfase dada às es truturns
consideradas quase imóveis sob a influência d o estruturalismo, ou até do marxismo.
Deveriam ser reestudadas as categorias do salto, do desvio, da fratura, da crise, da re-
volução, típicas da cultura histórica do terço fin al do século XX. Sem dúvida, a defesa
dessas categorias é pertinente: ao privilegiar o d esvio em detrimento da estrutura, o
historiador não reforça sua disciplina frente à sociologia, esta reservando-se os tra-
ços de estabilidade e aquela concentrando-se nos traços de instabilidade? Certamente.
Mas as categorias de estabilidade e ins tabilidade, d e continuidade e descontinuidade,
assim como outros pares aparentes de oposições, que dão um toque d e radica lidade
às categorias enumeradas aci ma, devem, a me u ver, ser tratadas no âmbito de pola-
ridad es, relativas por s ua vez à idé ia d e mudança socia!H\ Tal hipercategoria não é
d o mesmo nível conceituai que os pares de opostos que acabamos d e nomear. Ela é
coerente com os traços pertinentes do referente básico do conhecimento histórico, a
saber, o passado enquanto fenómeno societal. Ora, é a esse mes mo nível referen cial
que estão li gad os os aspectos dinâmicos da constituição do vínculo social, com suas
apostas d e identidade, de legibilidade, d e intelig ibilidade. Em relação à metacategoria
da mudança social, as categorias d e continuidade e descontinuidade, d e estabilidade
e instabilidade d everia m ser tratadas como os pólos opos tos de um único espectro.
A esse respeito, não hé1 nenhuma ra zão para d eixar com o sociólogo a questão da esta-
bilidade, que me parece certamente tão digna d e rcexa me quanto as da continuidad e e
da descontinuidad e que, sob a influência benéfica da arqueologia do saber de Michel
Foucault, ocuparam o proscênio do d ebate. A categoria de estabilidade é uma das
mais interessantes entre as atinentes aos aspectos não métricos da duração. Uma das
formas de durar consiste em permanecer. Acumulação, reiteração, permanência são
características próximas desse traço maior. Esses traços d e estabilidade contribuem
para a avaliação dos gra us d e eficácia d as instituições e d as normas considerados aci-
ma. Inscrevem-se em uma esca la d os modos de temporalidade paralela à escala d os
graus d e efi cácia e de coerção. Deveria ser recolocada nessa escala d as temporalidades
a categoria de lzabitus de Pierre Bourdieu, que se insere numa longa história balizad a
pela hcxis aristotélica, s uas reinterpretações m edievais e sua retomada por Panofsky
e sobretudo Norbert Elias. Existe uma his tória lenta dos hábitos. Mostraremos mais

85 As observações que seguem foram suscitada s pela leiturn d os artigos de André Burgu icre, "Le
changement socia l", e de Be rnard Lepetit, "Le présent d e l'h is toi re", i11 B. Lepetit, Lcs J-'om1c~ dl'
f'cxpàic11ce, op. cit., res pectiva mcnte p. 253 e scg. e p. 273 e seg.
III S l (lRI -\ / 1.l' ISll\llllOCI ;\

adiante a fecundidade dessa categoria no qu adro de um tratamento dialético do par


memória/esquecimento. Mas pode-se dizer desde já que ela ganha ao ser emparelha-
da com os as pectos temporais d as categorias forte mente anti-históricas mobilizadas
por Norbert Elias cm La SociNé de cour.
A estabilidade, enquanto modalidade de mudança social, de\·eria ser emparelhada
com a segurança, que concerne ao plano político. De fato, são duas ca tegorias ,·iz inhas
na escala dos modos temporais. Ambas têm a \'Cr com o aspecto de durnção e de per-
manência do vínculo social, considerado ora do ponto de ,·ista da sua veridicid ade,
ora da sua autoridade. A força das idéias tem múltiplos modns d e temporalizaçào.
Recolocadas em um campo dinâmico polarizado, essas ca tegorias pedem uma con-
trnpartida do lado d a apropriação dos , ·a lores relativos ao campo das normas. Esse
\'is-à-vis, essa réplica, podem ser d a ordem da eventualidade, da desconfiança, da
suspeita, da defccção, da denúncia. Neste mesmo registro inscre,·e-se a categoria d e
incerteza que a micro-história coloca em lugar de destaque. Diz respe ito ao aspecto fi-
duciário das represen tações em vias de estabilização. É a categoria mais polémica, que
oscila entre a ruptu ra e a textura do vínculo social. As estratégias \'isando a reduzir a
incerteza atestam de forma eloqüente que a incerteza não de\'e tornar-se, por sua ,·ez,
uma categoria não dialética, como aconteceu com a categoria de in\'ariante'''. "Com o
tempo, diz o autor do P()IIZ'Oir 11 11 ziilfo:,;e, todas as estratégias pessoais e familiares tah 'eZ
tendam a parecer embotadas para se fundirem num resultado comum de equilíbrio re-
lati\'o" (citado por J. Re\'el na sua apresentação da obra, p. XIII). "A utilização estraté-
gi ca das regras sociais" pelos atores parece implicar um uso notá,,el da relaçào causal ,
que seria a tendência à o timização de um curso de ação. Funciona ao m esmo tempo
no eixo horizontal do con\'ívio e no eixo \'e rti ca l das escalas d e eficácia e de tempora-
lização, na med ida em que o jogo social afe ta toda a rede das relações entre centro e
periferi a, entre ca pital e comunid ade local, em s uma, a relação de poder cuja estrutu ra
hierarquizada é intrnnsponível~i. Que esta lógica estratégica se dei xa reinscre\'er cm
última instância nos jogos d e esca las de apropriação, é a conclusão mais importante de

8fi C f o debilte a csse respeitll por J. Rc'n' I no fin a l d ,1 sua ''Pr0sentati on " d ,1 obrn de Cim·anni LL'\·i,
Lc /!011i•oir 1111 l'illa:,;c, º/'· cit.
87 O que Giova nn i LL·\·i com ·ida a ler, e m Sa ntena, L' a "m odulac;Zlo loca l d ,1 g rande hist!Íri ,1" (RL·\el ,
í/,id. , pp. XX I-XX II ). l'ude-se di zer, entfü1, qul' a ~wrsonagem central do lino seja a incerki'.,17 (i/1 id.,
p. XX III ). Ren)I não d e i:>.,1 de rL'd ia let iza r essa catq~oria ao L'SCl'l'\·er: " Ela t' a fig ura maio r atran's
d a qual os honwns de San tl'na aprL'e ndl'm Sl' U tempo. Eles d L'H'lll compor com t' la L', n il medida
do possh·el, reduzi-la" (i/iid.). O pró prio C. l.e\·i abrL' a qul'stiio: "N,io é uma sociedad e par,1 li sada
pl'la insegu ra n ç,1, host il a qu,1lquer risco, passi\·,1, arraigada c1os \·,1lores im!ÍH' is da a u toprott'-
çiin. Melhorar ,1 pre\·is ibilidad e píl ra aunw ntar a segurança<'.• um mode lo plKieros o d e ino\·,iç<'io
téc nica, ps icológ ica l ' soc ial " (ibid. p. XX IV). Com o SL' pôde obsen·.ir, o .1utor nfül dei xou dl' lig .ir
reduç,io de incertez,1 e Sl'gu ra nça. ;\ ll'1girn da id0ia d e l'Stratégia o im p lica, 11<1 m edida e m qlll'
com ·ida ,l cálc ulos em termos dl' lucros e pl'rd ds. É foc il imagina r ter rdut,1do uma v is,10 unil ,1-
tera l do pode r exercido de cim ,1 pa ra bai xo : de i,itu, niio é um si m p les Cllntrúio da lei tend encia l
de concentração do podl'r qul' o deciframentli minucioso das estrat<'.•gias individuais e fomili ,1is
de uma cidad ez inha perdid a pôc e m c\'idê ncia; o poder "im a tl'rial ", o im palp,ível capita l que u m
modesto podestadl' local tir,1 do eq uil íbrio entrl' protagonistas sú se l'ntende à lu z de uma lógica
est ratégica visíl ndo a rt>d u z ir ,1 incl' rtl'za .
A MEM( )l{IA, A HI ST()RI A, O ESQU EC IM EN TO

que possa se beneficiar uma história das representações. A busca de equilíbrio pode
até ser atribuída a uma categoria temporal precisa, corno propõe B. Lepetit, a saber, o
presente dos agentes sociais8.'{. Por presente da história, devemos entender algo bem
diferente do tempo curto das hierarquias de durações encaixadas, mas um estado de
equilíbrio: "Os estragos da defecção, ou ainda da desconfiança e da imitação generali-
zada, estão contidos nele pela existência de convenções que delimitam de antemão o
campo dos possíveis, garantem nesse quadro a diversidade d e opiniões e d e compor-
tamentos, permitem sua coordenação" (B. Lepetit, Les Formes de /'expéric11ce, p . 277).
Podemos dizê-lo: "O ajuste entre a vontade individual e a norma coletiva, entre a in-
tenção do projeto e as características da situação do momento, operam-se num pre-
sente" (op. cit., p. 279t1. Certamente, nem todo o histórico se deixa limitar às situações
de conflito ou de denúncia. Tampouco se deixa reduzir às situações de restauração da
confiança pela criação de novas regras, pelo estabelecimento de novos usos ou pela re-
novação d e costumes antigos. Essas situações só ilustram a apropriação bem-sucedida
do p assado. A inadaptação contrária ao ato que convém também depende do presente
da história, no sentido de presente dos agentes da história. Apropriação e recusa de
pertinência estão aí para atestar que o presente da história comporta igualmente uma
estrutura dialética. Não era inútil enfatizar que uma investigação sobre as escalas de
durações só termina quando se passa a levar em conta o presente histórico'm .

V. A dialética da representação

Ao término desse percurso pelas aventuras do "mental" no campo histórico, é pos-


sível explicar, e até justificar, a lenta passagem do termo " mentalidades" para o termo
"representações" no glossário da historiografia do último terço d o século XX.
O tríplice desenvolvimento que acabamos de propor para a noção de variação d e
escalas - além das escalas de observação e de análise - já coloca no caminho do que
se revela como sendo a dialética da representação: em relação às variações de eficácia e
de coerção, a velha noção de mentalidades parece de fato unilateral, por falta de fiador
por parte dos receptores de m ensagens sociais; em relação às variações nos processos

88 Bernard Lepctit, "Le présent d e l'histoi re", in Lcs Fontlt'S de /'cxpéric11cc, op. cit., pp. 27:1-298. Bol-
tanski e Thévcnot recorriam à mesma constelação de moda lidades tempora is re unid as cm torno
do te nrn da ndequa ção à si tuação presente (c itado por B. Lepetit, ibid. , p. 274).
89 O autor remete a L. Thévc not, " L'action qui conv ic nt ", in Lcs For111cs d'actio11, op. cit.
90 As anotações de Berna rd Lepl'tit sobre " Lc prése nt de l'h istoirc" correspondem à minha noção do
presente como inicia tiva "prática" m a is do que como presença "teórica" (011 lcxfl' n/"nctio11, op. cil.).
Por sua vez, a categoria de iniciativa rcml'lt' a u rna dialética mai s abrangente, tal como aquela
pela qual Kosclleck caracteri za a tempora li zação da história e m Lc F11/ 11r pnss1;. Nesse q uadro con-
ceitua i m a is nrnplo, o p resen te enq uanto in iciativa deve então ser entendido como n pontl' t't1trc
hori zonte de expec tativa e espaço d e experit'.:• ncia. Deixo para a terce ira parte d este livro o exa me
d eta lh;id o da s cntegori;is d e Koselleck.
HI S l llRI -\ / Fl'ISJJ\t()J(.)CI,\

de justificação em curso através d a pluralidade das cidades e dos mundos, a noção


de mentalidade parece indiferenciada, por falta de umc1 articulação plural do espaço
social; enfim , em relação à variedade que influ i também nos modos menos quantifi-
cá,·eis de ternporalização dos ritmos sociais, a noção de men ta lidade p arece operar de
modo maciço, da mesma forma que as estruturas de longa duração, quase im(1Veis, ou
as conjunturas cíclicas, sendo o acontecimento reduzido a uma fun ção de ruptura. Em
oposição, portanto, à idéia unilateral, indiferenciada e maciça de me nta [idade, a idéia
de representação expressa melhor a p luri\'(Kiliade, a diferenciação, a temporal ização
múltipla dos fcnôm enos sociais.
Nesse aspecto, o ca mpo político oferece um terreno fovor,h·e l a urna exploração
regrada de fenómenos relc1tivos à categoria de representação. Sob esse nome, ou o
de opinião, ou até de ideologia, esses fenômenos prestam-se a operações de denomi-
nação e de definiÇélO, às vezes acessíveis à quantificação pelo método das cotas. A obra
de Rem' Rémond Lc::; Oroitc~ c11 Fm11cc''I chega até a propor um exemplo notá,·el de
explicação sistemática que combina estruturn, conjuntura e acontecimento, tra zendo
assim um desmentido à acusação maciça de não-conceitualidade e não-científicidade
da noção de reprcsentdção''2 .

91 RL'lll' R0mond, Lc,; Dn,itc., ,'11 Fm11rc, Paris, Aubil'r, 1982.


92 i\ c1posta do lin,) L' dupl,1: dl' um lado <1 pv rtinL' nc ia da di s tribuiçü(l birníri a d,1s opini{\cs po-
lifo:as e ntre a d iH' itíl L' a L'sq uerda desde ,l RL'\·ol uç/hl Fr,lnCL'Sa, de outro, ,1 pcrtint•nci,1 d ,1 dis-
tribuiçc'i o te rn ári a d ,1s (lpin ii'>L'S reput,id,is de dirl'ita (legitimismu, u rh.>anismo, bonaparti s m o) .
O autor assuml' o ca ráter constru ídu d,, que L'IL' ch,1ma dt.' "sis tema " e o ílpre sen t a com P um
"e11s,1io de intcligt>ncia da \' ida politic,1 fr ,lllCL'sa" (L,•s Droifc,; c11 Fmn cc, 011. cit ., p. 9 ). N L' m a
enumL'raçiíu, nem ,1 ddiniç,10 dL'ssas figuras quL' ritmam o tl'mpo da hi s tl'l ria políti ca da Fr,rn ça
contempor,'inca siio dc1dos imediatos d,1 obst'n açZio; ainda que sua idcntiiiec1ç,10 seja sugNida
pcl,1 prática eieti\ ,1, e la LkpL'ndc dt' "pnlpusi,J1L's", de ",1x iomas", quL' o ana li sta co nstn'1 i: "Tod,1
rea Iid adl' soc ia I apre sent.i -se ao o lh ar (omo um conjunto i nd isti ntn L' ,rniorfo; 0 a mente que tra-
ç,1 ne le Ii n ha s d e sep,1raçZio l' agrup<1 o i n ii n ito dns SL'res t' d a s pos içôL'S L'm a lgumas catL'go rias"
(il>id., p. 18 ). Em compe nsaçii o, René Rémond julga qut' ess,1 constru çii o da mente sa t is f,1 z il \ 'l'-
r ifi caçi'\ o pela "rcil li d ,1de", que ela tem um\ ,1Jor e x pl icíltivo e preditin1 igu a l ao da astrono mia,
a rl'a lid adl' cnnsistindo n,1s L'Stim at i\·as em cu rso das açôes políticas. Nl'sse sentido, pod e- se
di zt~r qul' "a di sti n ç,fo é bem n'al" (i/1id., p. 29): "( .. ) l'ITI po lític,1, n1c1is ,linda qul' l' lll qualqul'r
outrn domínio, o quL' l' tido co mo VL' nfodl'iru to rna -sl' rL'a lmL'ntl' H'rdadt' inl e passa a ter tanto
pL'so quanto ,1qui l,l qul' l'ra Yerd adc irn inic ia lm t'n te " (ibid.) . A ~,rinc ip,11 press uposiç<'10 é a dl'
uma autonomia da s id(,ias política s co mpatí\·el com a \' ilíiabilid ,1de temá tica dos c ritérios d e
pl'rtenci ml'nto ( 1ibt'rdadl', naçiiu, sobe r,1n i,1). Contril o fund o dl'staca-se o "sistt'ma dl' proposi -
ÇÔL'S li g,1das" (íbid. , p . .i l ) c ujo agrupamento g,ir,1rllL' a coes,10 geral: rcl ,lti\·kladc en tre d S du.is
d L· nomi naçôes, aspL'C to L'Strutural , L' m,1is prL'Cisanwntl' topológico, da bipolaridadl' L' dos SL' US
de sdobranwntus s imil ares; reno\'a~·c'io con juntu ra l dos c rikrios d e di s tribuiçiio L' modul ,1ç,10
por um rnilis e um nwnos, L'xclu ind o -SL' llS L'xtrl' mos; Sl'n s ibi lidadL' à s circ unstiincias, desde o
aconll'ciml'nto da distribu ição c spaci,il d,1 Assl'rnbk• ia Co n st ituin k dl' 1789. N ão ternos aqu i
nP\'d mt'nte a noss ,1 tr íMk "L'st rut u r.i, conju ntu r,1, acontec i m c ntu" apli cada às repres L'ntaçúes? A
pr im ,1 Lia Lfada c'i l' s trutura binária ("O s p,irtidos giram em torno dl' um L'i xo fix o como \lS d ,rn-
Çilrinos abraçados qul' d e sc rt'\'t'm as iigurns de um b,11l• SL'm SL' d l'sunir " ) basci ,1-se num<1 l'Spt'-
c u l,1ç,10 ousada S\lPíl' a prl'ÍL·rê•nc iil dad,1 co nj u nt.i mcntt• pel a i nkl igL' nc i,1 L' pelil açzro pol ític.i ao
bin.Hismo: eixo hori zont,11 de um l,1do, dikm,1s pr.íti cos do n utro. O a utor pode leg itim amentl'
íl prox irna r l'Ss,1s (•s pécil's dl' ''arq ut'tip,l'."" (i/1id , p. 39) do id e,11 -tipo dl' Ma x Weber. Fntrl't,111to,
tíll primazia d ad a .:i l'Strutura q u ,rn to ao b in M is mn dirl'ita-e s querd a na Fr,111ça L'ncont ra lim itl'S.
Pr imei r,1menll', o dl'slo ca mentn glob,1 1 d a L'squL'rda para ,1 dirl'it.i , qul' garan te a d in.1rni c,1 dus
s istl'ma s, continua a p ,Hl'Ct'r "mislL'ri osn", "t's tr,1nho", L'ntreg uc aos "par,1doxos" (i /,id., p. 3:'i), t,10
fortl' é a va loriz,1ção negat i\·a da dL·nomi na ç,1 0 d i rL'i ta. Pi! reet', cntreta nto, que ",1 L'ntrada no jogo
/\ MEMÓRIA, /\ I II SHlR I A, O ES(JUECIMENTO

Nesse tríplice eixo, a noção de representação desenvolve por sua vez uma polis-
semia distinta que pode vir a ameaçé'lr sua pertinência semântica. De fato, é possível
levá-la a assumir ora uma função taxonômica: ela guardaria o inventário das práticas
sociais que regem os laços de pertencimento a lugares, territórios, fragmentos does-
paço social, comunidades de filiação; ora uma função reguladora: seria a medida d e
apreciação, de avaliação dos esquemas e valores socialmente compartilhados, ao mes-
mo tempo em que traçaria as linhas de fratura que consagram a fragilidade das múl-
tiplas obrigações dos agentes sociais. A idéia de representação corre então o risco de
significar demais: ela designaria os mültiplos trajetos do trabalho de reconhecimento
de cada um cm relação a cada um e de cada um em relação a todos, aproximando-se
então da noção de "visões do mundo" que, afinal de contas, figura entre os anteceden-
tes da idéia de mentalidade'n_
Sob a ameaça dessa hemorragia do sentido pareceu-me oportuno aproximar a
noção de representação, enquanto objeto do discurso historiador, dos dois outros usos
da mesma palavra no contexto do presente trabalho. No próximo capítulo, seremos
confrontados com a noção de representação enquanto fase terminal da própria ope-
ração historiográfica; tratar-se-á não somente da escrita da história, como se costu-
ma dizer - a história é escrita de uma ponta à outra, dos arquivos aos livros de
história - , mas do acesso da explicação/ compreensão à letra, à literatura, ao livro
dado a ler a um público interessado. Se esta fase - que, como já dissemos, não consti-
tui uma etapa numa s ucessão de operações, mas sim um momento que só a apresenta-
ção didática coloca no final do percurso - merece o nome de representação, é porque,
nesse momento da expressão literária, o discurso historiador declara sua ambição, sua
reivindicação, sua pretensão, a de representar c111 verdade o passado. Detalharemos
mais adiante os componentes d essa ambição veritativa. O historiador encontra-se as-
sim confrontado com o que parece primeiramente urna lamentável ambigüidade do
termo "representação" que, conforme os contextos, designa, enquanto herdeira rebel-
de da idéia de mentalidad e, a representação-objeto do discurso historiador, e, enquanto
fase da operação historiográfica, a representação-operação.
Sob esse aspecto, a história da leitura dá à história das representações o eco de sua
recepção. Como mostrou amplamente Roger Chartier em seus trabalhos sobre a histó-
ria da leitura e dos leitores, as modalidades da operação pública e privada de leitura

político, a aprendizagem da prática, a ace itação progressiva das regras de funcionamento levam
a uma aliança gradual com o regime" (ibid., p. 36) . fmpo sição pragmMi ca? A exp licação parece-
me corresponder às nossas reflexões sob re a pragmâtica da ação socia l e sobre as condições da
ação "adequada " - sem c hega r, no entanto, a teoriza r o jogo de iniciativas e exped ientes dos
pn rcei ros do jogo em situn ções dei ncerteza, como em micro-história. Segundo, a argumentação
relativa à tripnrtição das direitas, que constitui .i tese central da obra, é problemática após a
br ilh a nte defesa do binarismo. A prnvn da pertinência dessa distribuição é, e m certo sentido,
mais histórica, n,1 medida em que ela é menos sistêrnica; o que a testemunha, então, é a possi-
bi lidad e de id entifi ca r as três mesmas denominações num período bastnnte longo, portanto, "n
continuid ade d e czida uma das três através das gerações" (ibid., p. 10). Aqui, é o "detalhe" que
fa z sentido: são 11l'Cl'Ss.:í rias quinhentas páginas para a juda r o lei tor a ori entar-se no espaço
político.
93 Jacques Le Coff, " Les mentalités: une hi stoire ambiguc", in Faire de /'llisfoirc, op. cit., t. Ili , p. 83.
HISTl)RI.\ / l' l'ISTl: \101.0CIA

têm efeitos de sentido na própria compreensão dos textos; assim, os novos modos de
transmissão dos textos na era da sua "representação eletrónica" - revolução da téc-
nica de reprodução e revolução do suporte do texto - induzem uma revolução das
práticas da leitura e, atrélvés dela, das próprias práticas da escrita (Roger Chartier,
Lectures L't Lcctcurs dnn s la Fm11cc iÍL' /'A11cic11 Régi111c, Paris, Éd. du Seuil, 1987; Roger
Chartier (dir.), Histoirc de la lecturc. U11 /ii/nn de rcc/1erclies, IMEC Éditions ct Éd. de la
Maison des sciences de l'hommc, 1995). Fecha-se assim o círculo das representações.
Ocorre-nos então uma hipótese: enquanto fazedor da história, ao levá-la ao nível
do discurso erudito, não estaria o historiador imitando, de forma criadora, o gesto in-
terpretativo pelo qual aqueles e aquelas que fa zem a história tentam compreender-se a
si mesmos e ao seu mundo? A hipótese é particularmente plausível em uma concepção
pragmática da historiografia que cuida de não separar as representações das práticas
pelas quais os agentes sociais instauram o \'Ínculo social, dotando-o de identidades
múltiplas. Existiria de fato uma relação mimética entre a representação-operação, en-
quanto momento do fazer história e a representação-objeto, enquanto momento de
registrar a história.
Ademais, os historiadores, pouco acostumados a pôr o discurso histórico no pro-
longamento crítico da memória tanto pessoal quanto coletiva, não são propensos a
aproximar os dois usos do termo "representação" que acabamos de citar de um uso
mais primitivo, a não ser na ordem do reconhecimento temático, pelo menos no da
constituição da relação com o tempo, a saber, o ato de fazer memória: ele também tem
sua ambição, sua reivindicação, sua pretensão: a de representar o passado C0 /11 fideli-
dade. Ora, a fenomenologia da memória, já na época de Platão e Aristóteles, propôs
uma chave de interpretação do fenóm eno mnemónico, a saber, o poder da memória de
tornar presente uma coisa ausente ocorrida anteriormente. Presença, ausência, ante-
rioridade, representação formam assim a primeiríssima cadeia conceituai do discurso
da memória. Assim, a ambição de fidelidade da memória antecederia a ambição de
Yerdade da história, cuja teoria di stinta ainda estaria por fazer.
Tal chave hermenêutica pode abrir o segredo da representação-objeto, antes de
penetrar o da representc1ção-operação?''-l
Foi o que alguns historiadores tentaram, sem sair do âmbito da his tória das repre-
sentações. Para eles, o importante é atualizar os recursos d e reflexi vidade dos agen-
tes sociais em suas tentativas para compreenderem a si mesmos e ao seu mundo. É
o procedimento recomendado e praticado por Clifford Geertz em Tl1c /11tcrprct11tio11

Y-t Par,1 complicar um pllUCll mai s as Cllisas, seria prL·ciso invocar a dinwn<Hl política d,1 idéia d e
reprL'sentaçil o : seus Cllmponl'ntes m,1is impnrt,1ntes dL'ix.im-se aprn,im.ir d .i rL'presentaçiio me-
morial L' historiogrcific,1 passando pelas idéi ,1s dL· delt'gação, substituiç,io t' de fi guraçJo ,·isí,·e l
que ,·L'remos m.iis adiante. Na ,·erdade, essa dimensão política não est,í a usente d,1s reprL'S,' nta-
ÇÔL's-ob jdos nmsider,1d,1s pelos h is toriad orl's. 1\ dupl,1 fu nçi'io ta xomim ic,1 L' s i mbúl ica da icki,1 Lk
reprL'sent,1ção l'\·oc,1d<1 acima acrescentam -se ''.b Íllrm,1s instituciona I i1,1das l' objeti,·ad,b gr,1ç,1s
i1s quais 'repn..'Sl't1lílntes' (instúnc i,1s ((1lt•ti , ·,1s ou indidduos s ingulares) marcílm dt.' forma \·i~ín•I
t' pL'rpetuada a exisknci,1 do grupo, da comun id<1de ou da classe " (Rl1gcr C harticr, " l.l· nwndl'
comml' représt•nt,1tiPn", in A 11 /Jord d,· /afii/,li,,·, ,,p. cit ., p . 78).
A MFMÚRIA, A IIIST()RIA , O ESQUECIMENTO

of C11/t11res"", o sociólogo !.imitando-se a dar ao conceito os lineamentos de autocom-


preensão imanente a uma cultura. O his toriador também pode tomar esse caminho.
Mas será que pode fazê-lo sem fornecer o instrumento analítico que fa lta a essa au-
tocompreensão espontânea? A resposta só pode ser negativa. Mas o trabalho assim
aplicado à idéia de representação não ultrapassa o privilégio d e conceitualização que
o historiador exerce de uma ponta à outra da operação his toriográfica, portanto, da
lei tura dos arquivos à escrita do Uvro, passando pela explicação/compreensão e p ela
formatação literária. Portanto, não há nada de chocante em introduzir no d iscurso
sobre a representação-objeto fragmentos de a nálise e de definição pertencentes a um
campo discursivo diferente da história: é a liberdade que tomam Louis Marin, Cario
Ginzbu rg e Roger Cha rtier.
Este último, consultando o Dictionnaire universel de Furetiere (1727), descobre os
lineamentos da estrutura bipolar da idéia de representação em geral: a saber, de um
lado, a evocação de uma coisa ausente por meio de uma coisa substi tuída que é o seu
representante padrão, de outro lado, a exibição de uma presença oferecida aos olhos,
a visibilidade da coisa presente tendendo a ocultar a operação de substituição que
equivale a uma verdadeira substituição do ausente. O que surpreende nessa análise
conceituai é que ela é estritamente homogênea com aquela proposta pelos gregos para
a imagem mnemônica, para a eikón. Mas, na medida em que se move no terreno da
imagem, ela ignora a dimensão temporal, a referência ao anterior, essencial à definição
da memória. Em compensação, presta-se a uma ampliação ilimitada pelo lado de uma
teoria geral do signo. É nessa direção que a leva Louis Marin, o grande exegeta da
Logiq11c de Port-Royaf'H'. Ne la, a relação de representação é submetida a um trabalho de
discriminação, de diferenciação, acompanhado por um esforço de identificação aplica-
do às condições de inteligibilidade suscetível de conjurar os erros, a má compreensão,
como fará mais tarde Schleiermacher em sua hermenêutica do símbolo. Na linha dessa
reflexão crítica é que são dados a entender os usos e abusos resultantes da primazia da
visibilidade própria da imagem sobre a designação oblíqua do ausente. Nesse ponto, a
anál ise nocional revela-se útil para uma exploração dos logros resultantes do concurso
oferecido a imagens fortes por uma crença fraca , como lemos em Montaigne, Pasca l
e Spinoza. O historiador acha material nesses autores para explorar a força social das
representações ligadas ao poder, podendo entrar assim numa relação crítica com aso-
ciologia do poder de Norbert Elias. A dialética da representação acrescenta uma nova
dimensão aos fe nómenos abordados acima em termos de escalas de e ficácia. É essa
própria eficácia que se beneficia de um maior grau de inteligibilidade aplicado à idéia
da ausên cia da violência física , qua ndo é ao mesmo tempo significada e substituída
pela violência simbólica.

95 Ver Paul Ricteur, l.'ldéolo,~it· ct l'Utopic, op. cit., pp. 335-351.


96 Louis Marin , La Critique d11 di5cours. Ét 11 dcs s111· la " /.osiq111· de Port-l<oyal" t't lcs " Pc11st•cs" CÍ<' l't1scc1/,
Pari s, Éd. dl' Minuit, col. " Ll' ~ l'llS com mun ", 1975.
HISH)RI ·\ / fl' I SrF\101.UCI:\

Cabia a Cario Ginzburg, respondendo ao artigo d e Chartier em "Représentation: Ie


mot, l'idée, Ia chose'"'~, complementar, por uma profusão de exemplos resultantes da
sua coleta erudita, a dialética da substituição e da visibi lidade apontada por Furetiere.
Trata-se essencialmente d e práticas rituais ligadas ao exercício e à manifestação do
poder, tais como o uso do manequim real nos funerai s reais na Ingla terra e o do ataúde
,·azio na França. O autor vê nessas manipulações de objetos simbólicos a ilustração
simultânea da substituição em relação à coisa ausente - o defunto - e da visibilid ade
da coisa presente - a efígie. Aos poucos, viajando no tempo e no espaço, ele e,·oca os
fun erais das imagens em form a de incineração de estatuetas de cera nos ritos funerá-
rios romanos; daí ele passa às modalidades da relação tanto com a morte - a ausência
por excelência - q uanto com os mo rtos, os ausentes gue ameaçam voltar ou estão in-
cessantemente em busca d e urna sepultura definitiva, por meio de efígies, múmias,
"colossos" e outras estátuas''\ Na falta d e pod er dar, enquanto historiador, uma inter-
pretação abrangente desse "estatuto, variá\'el e não raro ambíguo, das imagens de
determinada sociedade" (art. cit., p. 1221 ), C. Ginzburg prefere respeitar a hetero-
geneidade dos exemplos, mesmo que isso signifique encerrar seu ensaio com uma
pergunta que ficou sem resposta quanto ao próprio estatuto do seu projeto d e pesqui-
sa: "Diz respeito ao estatuto universal (se é que este existe) d o signo ou da imagem ?
O u antes, a um campo cultural específico - e, nesse caso, qual?" (a rt. cit., p . 1225.)
Voltaremos, para concluir, a essa ind ecisão do his toriador.
Uma das ra zões d e sua prudência se deve ao reconhecimento de um fato pertur-
bador: " No caso do estatuto d a imagem, houve, entre os gregos e nós, uma ruptura
profunda, que vamos analisar" (art. cit., p. 1226). Tal ruptura resulta da vi tória do cris-
tianismo, que cavou entre os gregos, os imperadores romanos e nós a fenda significada
pelo culto das relíquias dos mártires. Evidentemente, podemos falar em termos gera is
d a estreita associação entre as imagens e o além; m as continua forte a oposição insti-
tuída entre os ídolos proibidos, aos quais a polêmica cristã red uzira as imagens d os
deuses antigos e d as personagens deificadas, e as relíquias propostas à d evoção dos
fiéis. As heranças do cristianismo medieval relativas ao culto das imagens deveriam,
por sua vez, ser leva das em con ta e, no retorno d e uma história arborescente da icono-
g rafia , seria preciso reservar um destino diferente à prá tica e à teologia da Eucaristia,
n a qua l a presença, essa componente maior da representação, além da sua função d e
memorial em relação a um único acontecimento sacrifica l, se encarrega de significar
não só um ausen te, o Jesus d a história, mas também a presença rea l do corpo de Cristo
morto e ressuscitad o. O artigo d e Cario Ginzburg não entra nessa história tão prcg-

97 111111alcs, 1991, pp. 12 14-123-L Pode-Sl' notar que o .ir tigo de Ci n z bu rg l'St.í s ituado neste núml'ro
dos A1111nlcs na scsS,ll) "Pr,1tiq ue de ];i rcprésentation".
98 Gin zburg lembra aqui sua d ív id a p;ir;i com Gom br ich e se u gra nde lino A rt ,rnd ll/11sio11, Prince-
ton-Bollingcr Ser ies XX XV.s, Princeton-13ollinge r Paperbacks, 1·' t>d ., 1% 0; 2·· ed., 1961 ; J ' cd ., 1969;
trad . fr. de G. Dur,ind, LArt e/ /'//111s it111. Psycilolog ic de /11 rL'pn;sc11 t11tio11 pict11mlc, Paris, Ga llimard,
1979; sem esquecer ,\frdit11tio11s cl/1 11 Ho/>/,v Hor5l' 1111d Ot/1cr b~o11s 011 thc Thcory of /\ri , Londres,
Pha idon, 4·' ed ., 199-l.
A M F \,1 () 1~1.A., A HI ST( ) Rli\, O ESQ U ECIM EN TO

nante e detém sua investigação sobre a Eucaristia no primeiro terço do século XIII.
Entretanto, ele acaba por lançar in fin e uma ténue ponte entre a exegese da efígie do rei
e a da presença real do Cristo no sacramento'19 •
Nesse ponto, Louis Marin toma o bastão 11 111 • Ele é o exegeta insubstituível do que
considera corno o modelo teológico da Eucaristia numa teoria do signo no seio de
urna sociedade cristã. Port-Royal foi o local de eleição para a construção de uma se-
miótica em que lógica da enunciação ("isto é o m eu corpo") e metafísica da presença
real trocam suas valências 111 1• Mas a contribuição de Louis Marin ao vasto problema
da imagem é tão considerável que resolvi evocá-la de forma mais completa no pró-
ximo capítulo, na medida em que ela lança sobre o uso da representação no discurso
historiográfico uma luz mais viva do que a autocompreensão que os agentes sociais
extraem de sua própria prática da representação.
Podemos observar nos trabalhos que antecedem o último grande livro de Louis
Marin, Des pouvoirs de J'image'º~, uma hesitação entre os dois usos de urna teoria geral
da representação. A definição dupla da representação proposta por ele caberia tanto
numa teoria da representação-objeto quanto numa teoria da representação-operação.
Tal definição lembra a de Furetiere: de um lado, " presentificação do ausente ou do
morto" e, do outro, "auto-apresentação instituindo o sujeito de olhar no afeto e no
sentido" (Des pouvoirs de /'image, p. 18). Essa proposta convém de forma equivalente à
expressão literária da historiografia, de que falaremos mais adiante, e aos fenômenos
sociais que antigamente eram abrangidos sob o título de uma história das mentalida-
des. Podemos dizer primeiramente que o historiador procura representar-se o passado
da mesma forma corno os agentes sociais se representam o vínculo social e sua contri-
buição a esse vínculo, tornando-se assim implicitamente leitores do seu ser e do seu
agir em sociedade, e nesse sentido, historiadores do seu tempo presente. Todavia, o
que prevalece em Dcs pouvoirs de l'image é a eficácia social da imagem:" A imagem é ao
mesmo tempo o instrumento da força, o meio da potência e sua constituição enquanto
poder" (ibid .). Ao ligar a problemática do poder à da imagem, como já propunha a
análise do Portrait du roi 101, o autor fa z a teoria da representação oscilar nitidamente
para o lado da análise da sua eficácia social. Estamos numa região visitada também
por Norbert Elias, a das lutas simbólicas em que a crença na força dos signos subs tituiu

99 "É a presença real, concreta, corpórea de Cristo nos sacramentos que te ria permitido, entre o fim do
século Xlll e o início do século XlV, a cristalização desse objeto extraordinário do qual pa rti, este
símbolo concreto da abstração do Estado: a e fígie do re i que se cha mava rcpre$c11t11ç110" (Gin zburg,
"Représentation: k mot, l'idée, la chose", art. cit., p. 1230).
100 Compartilho com R. Chartier a confissão d a dívida contraída pela e pistemologia da hi stória pa ra
com toda a obra de Louis MMin (cf. "Pouvtiirs et limites de la représcntation. Marin, le d iscours
et l'image", in A11 bord de ln f11/nisc, op. cit ., pp. 17:1-190).
101 "É assim, comenta Louis Ma rin, que o corpo teológico é a própria fun ção semióti ca e q ue, para
Port-Royal em 1683, há adequ ação pe rfeita entre o d ogm a ca tólico da presença rca 1e a teoria se-
miótica da represe ntação significante" (citado por Chartier,, p. 177).
102 Louis Ma rin , Dcs po1111oirs de /'i111ngc, Paris, Éd. du Seuil, col. ''l:ordre p hilosophi que", 1993.
]()3 Louis Marin , Le r or trn if d11 rPi, Pa ris, Éd . d e Mi nuit, col. " Le sen s commun ", 1981.

<O 244 •l?


HIST(lRI \ / ll'I S !T\1 ()1.0Cl.t\

a manifestação exte rna d a força num combate de mo rte. Pasca l pode novamente ser
e\·ocado, não mais envolto na aura da semiótica da Eucaristia e d a presença real, mas
na esteira de uma denúncia do " aparelho" dos poderosos. Nesse aspecto, o esboço de
teoria da imaginação nos rc115an1c11to5 jcí era o de uma teoria da dominação simbólica .
É aqui que uma teoria da recepção das mensagens escritas, com seus episódios de
leitura rebelde e subversiva, permitiria que a teoria da violência simbólica destacada
em Oc5 pouvoir5 de /'i11111gc viesse juntar-se i'IS investigações propostas há pouco, sobre a
va riedade das respostas dos agentes sociais à pressão das injunções projetadas na sua
d ireção pelas di\'ersas instâncias de autoridade. Nesse aspecto, o tipo de esquecimento
ligado à substituição d a força bruta pela força das imagens metonímicamente associa-
das ao exercício d esta úl tim a não constituía um corolário implacável d este "poder d a
image m"? O último liwo de Louis Marin abre outro ca minho, onde o primeiro plano é
ocupado pela concorrência entre o texto e a imagem. A teoria da representação pende
novamente para o lado d a expressão literúia da operação histo riográfica.

Mais d o que concluir, gostaria de interromper esta seção expressando uma perple-
xidade: uma história d as represen tações pode por si só atingir um grau aceitá,·el de
inteligibilidade sem antecipar abertamente o estudo da representação enquanto fase
da operação historiográ fica? Pudemos observa r a perplexidade d e C. Ginzburg, p re-
so entre uma d efinição geral da representação e a he terogeneidade dos exemplos em
que se ilustra a competição entre a evocação da ausência e a exibição d a presença. Tal
confissão talvez seja o que convém melh or a um tratam ento da representação-objeto,
se for \'erdade, como supomos aq ui, que é na re flexão efeti va do historiador sobre o
momento da representação incluído na operação historiográfica que ganha expressão
explícita a compreensão que os agentes sociais adquirem deles próprios e do "mundo
como representação".
-,
3
A Representação Historiadora

Nota de orientação

o111 11 rcprescn t11çt'io historiadora, al1ordn111os 11 terceira jásc dn opcrnçiio liistoriogrctn·ca.

C Aplicar-ll1c o título de escrita da ftistôria ou fiistoriogn~fía é 111// equívoco. U11111 tl'sc


constaHtc deste liz,ro t; que a histôri11 é 1111u1 escrita, de 1111111 ponta a ,mtrn: dos arquiuos
aos textos de histori11dores, escritos, pu/Jlic11dos, dados a ler. O selo da escrita é, 11ssi111, tra11~fcri-
do da pri111cira à terceira fase, de 1111111 primeira i11scriçiio a 11111111Í!ti11111. Os dorn111c11tos ti11h11111
seu leitor, o historiador "de 11111//gns arregaçadas ". O livro de história te111 seus leitores, potc11-
ci11/111e11te que/1/ quer que saiba ler, //11 ucrdade, o público esclarecido. Caindo 11ssi111 110 csp11ço
público, o livro de história , coro11111e11to do ''.fir::.cr histôri11", rcco11d11: o seu 11utor ao ccmc do
'f11:er a história ". Arrancado do 111111ufo da açíio pela arq11ii,o, o historiador reinsere-se nele 110
i11scrcucr seu texto ,w n1111uio de seus leitores; por sua vez, o livro de história Jaz-se dorn111c11to,
aberto à série das rci11scriçiics que sub111ete111 o co11!1cci111cnto histórico o 11111 processo co11tí11110
de rcuisão.
Para destarnr a dcpmdh1ci11 dessa fÍN' da opcmçi10 lzistórirn do ::.11porte lllatcrial c111 que se
i11scrt>uc o fivro, podc111osfi1lar co/1/ Miclicl de Ccrtca11 de reprcse11t11çi'io cscriturária 1• Ou ainda,
para marrnr a adj1111çiio de signos de /itcmriedadc aos critérios de cic11t{fícidade, podemos f11!11r
de representação literária; dcf11to, t' grnças 11 essa inscrição tcrllli11al que a história 1111111{fcsta
seu pertc11ci111c11to ao rn111po da litcmtum. Tal o/Jcdiê11cia esta<.111 de.fi1to i111plícita jrí IHJ p/11110
docu111c11t11I; ela se toma 11//lll!fcsta ao se tornar tc.rto d11 história. Portnnto, não podemos esque-
cer que não se trata de 11111111oui111e11to de rcuiraziolta pelo qual ao anseio de rigor epistc11wlôgico
substituir-se-ia 11111 cicsi'ÍO estetizante: as fl'l\fi1ses da opcraçi'ío histôrirn, co1110 jrí sabemos, 11iio
co11stit11c111 estágios succssiuos, 11111s si111 níucis intrincados aos quais somente a preocupação
diddtirn confere 11111a ap1m;11cia de succssiio cro11olôgirn.

\ '1icliel de Cl•rk,1u cn ltKa sob o título " Une l'O'it11n·" a terce ir,1 fasl' lll' L'Op(;ration '1i~h>rio,1;mphiq11c,
OJ>. lÍI. /\dotei ,1 mesma l'SCa nsão e m meu tr,1bal ho. Ek ta mbé m trata nC'ssa seção da "rcpresentação -
c ncl'naçãu litl'r.:í ria" (i/>id., p. 101), que ch am ,1 ,1ind,1 dl' "cscrit,1 his tnri,Kinra" (i/Jid ., p. 103). A escrita,
segundo ele, scri ,1 ",1 im,1gL'm invertida d a pr.itic,1", isto é, da construç:io propriamente dita; ''ela c ri,1
n .irrn\Ôl'S do pa~s,1do qul' ~:io ll equi, a knll' d o,.; CL' mitt'rills n,1s cid adl•s; l'la exorciza e con ft>ssa um ,1
prl'Sl'n\,1 d a mortL' nn me io d,1s c id ,,dL•s" ( il>id. ). \'oltaremo s <1 L'SSl' km,1 nn iim d e nossll pc rc u rso.
li MEM() l{l/1, A HISTÚRIA, O FSQUl:CIMENHl

Uma última palavra a respeito do vocabulário e das escoll1as semânticas que o regem. Talvez
indaguem por que não clza1110 de interpretação esse terceiro nível, como parece legítimo fazê-lo.
A representação do passado não consiste n1111w interpretação dos fatos asseverndos? Sem dú-
·vida. M17s , paradoxo 17pare11tc, não se faz jus à idt'Íl7 de intcrprct17çi10 170 17ssociá-la somente 170
nível representativo da operação histórica. Mostrarei no capít11/o seg11inte dedicado à verdade
em história q11e o conceito de i11terprctação tem n 11u•s11w 17brangência de apfic17ção q11e o de
verdade; ele dcsignl7 11111ito precisamente uma di111ensi10 notável da visada veritativa da /1istória.
Nesse sentido, há interpretação cm todos os níveis da operaçi'io historiográfica, por exemplo, 110
nível documental co111 a seleção das fontes, no nível explicativo-compreensivo com a escolha
entre modos explicativos concorrentes e, de forma mais espet17rnlar, com as Vl7riações de escalas.
O q11e não impedirá de falar, no mo111c11to oport11no, da representação como interprdl7ção.
Q11a11to à escolha do substantivo "representação", ela se justifica de váril7S maneiras. Pri-
meirmncntl't porque 111arca n co11ti1111idmte de uma mesma problemática da.fase explicativa à fase
escriturária ou literária. No capítulo n11terior, aborda111os a noção de represent17ção enquanto
t
objeto privilegiado da explicação/co111preensão, no plmw da formação dos z,fnculos sociais e das
identidades que neles estão cm jogo; e presumimos que a forma como os agentes sociais se
entendem está 17ftnada com a forma como os historiadores se represcnf17111 essa conexão entre a
representação-objeto e a nção social; sugerimos 17té que 17 dialétiC11 entre a remissão à ausêncin e a
visibilidade da presença, já pcrccptÍ'uel 11a represcntnção-objcto, deixn-se decifrar claramente ,w
representação-operação. De formn mnis radical, a 111cs11117 escolhn terrninolôgica deixa aparecer
11111 elo profundo, 11ão mais entre duas fases da operação histórica, mas no plano das relações

entre 17 histórin e a memória. Foi cm termos de representação que a fenomc11ologia da memória


descreveu ofcnômeno nmemônico depois de Platão e Aristóteles, na medida em que a lembrança
se dá como umn imagem do que foi antes visto, ouvido, cxpcri111e11tado, nprendido, adquirido;
e é CJn termos de representação que pode ser form11lado o alvo da memória c11qua11to é dita do
passado. É esta mesma problemática do ícone do passado, colocada 110 início de nossl7 im1esti-
gação, que volta com força ao término de nosso percurso. À representação 11111emônica segue-se
no nosso discurso n rcprescntl7ção histórica. Esta é a razão profunda da escolha do termo "re-
presentação" p17ra denominar a últi11111 fase de nosso percurso cpiste111ológico. Ora, essa corre-
lação Ji111damcntnl i111pôe no exame uma modificação ter111inológiC11 dccisivl7: a rcprcsentaçi'ío
literária ou escrituráril7 deverá deixar-se soletrar em últi111a instf/11cia como represcntf/11cia, a
vl7riação tcr111i11ológica proposta e11fatiza11do não só o caráter ativo da opcraçiio histórica, mas
ta111bém a visada i11tencio11al que Jaz da história a liadeim erudita dl7 memória e de sua aporia
fundadora . Assim, será .fi1rtc111c11tc enfatizado o fato de que a rcpresc11tnçiio 110 p!nno hisflírico
não se limita a conferir 11111a roupagem verbal a 11111 disrnrso cuja coerência estaria co111plct11
antes de sua entrada 11a litemtura, nms que constitui propria111ente uma operação que tc111 o
privilégio de trazer à 1112 a visada rlfcrencial do discurso histórico.
Tal será o alvo deste capítulo. Mas este só será alca11ç17do nos últimos desenvolvi111c11tos.
Antes, aplicaremos os recursos cspcc[ficos da representação. Consideraremos pri111eira111c11tc as
for111as narrativas dn representação (seção l, "Representação e 11arração")2. Já explica111os aci11111

2 François Dosse coloc,1 o tercei ro percurso de s ua obra L'Hi~loirc, op. cil., sob o signo da "rnirr.:itiv<1 "
(pp. 65-9J). De Tito Lívio e Tácito, a vi,1 nilrrntiva passa por Froissart e Commynes e atinge Sl'll
III STl.lRL\ / ll'IS1T\1UIOCJ ,\

por que pnrccc ter sido adiada a análise da co11tri/1uiçi'io da 11nrmti'i.> a pt1rn nJóm/{)çi'ío do disrnr-
so histórico. Quise11ws tirar 11 disrnsslío do impasse 110 qual a lcrnrn111 os partidários e os adt'L'l'-
sários da histárin-1u11Tt1tiê. t1: pnrn uns, que c/1a11u1rc111os de 11a1-r11tit ist11s, a co1~figuraçi'io 1111rmti-
1 1

i't1 t' li/li 111odo cxplicati1>0 t1ltem11tizio que se optic 11 cxplirnçi'io rnusnl; para outros, 11
histcíria-problcnw s11bstit11i11 n histôria-11111.,-atiua. Mas pnra li/IS e outros 11nrrnr cquiut1le a cx-
plirnr. Ao repor a 1111rratiuid11dc 110 terceiro cstdgio da opcraçiio 11111-ratirn, 1//70 npe1111s a lii. ra111os 1

de 1111111 solicitaçiio i11nproprinda, co1110 tn111hé111 libcrnnws 11 pofl'11ci11 rcprcscntatiua nela con-
tida'. Nifo nos dcterc111os 11a cq11aç110 reprcsc11t11çiio-11111-r11çào. Scrd rcscruado para 11111 dc/1atc
cspcc[fico o aspccto 111ais prccisn111e11tc retórico da co111posiçào da 1111rratiT. 111 (scçào II, "Rcprc-
scntaçdo e retórirn "): papel seletivo dasfig1m1s de estilo e de pc11s11111c11to 1111 escollw das i11 tri-
g11s - 111obilizaçiio de nrg11111e11tos prot>tÍi'Cis na tra111a da 1111rrntirn -, prcocupaçiio do escri-
tor de co11uc11ccr per:::.u11di11do: esses silo os rt'c11rsos do 1110111c11 to retórico da con1posiçi'ío do
111nT11tii 0. É a essas solicitaçt'ics do narrador por 111cios retóricos que respondrn1ns posturas cs-
1

pcc(firns do leitor no rcccpçào do texto•. U111 passo decisiz,o scrrí d11do e111 direç110 à problc111âticn
projetada 110 fi111 do cnpítulo co,n a qucsti'io das rl'laçi'ícs do discurso histórico com a ficçi'io (se-
ção III, "A represcntaçi'io /Jistorindorn e os prcstígios da i11wgc111 "). O COl({ronto entre /larmti<.111
lristôrica e narratiua dcficçito é bem co11'1ecido 110 que diz respeito às fimnas literá rias. Menos
cm1hccida é a almmgh1cia do que Louis Mari11 ,_fig11 rn tutelar dessns prigi11as, cl1m110 de "poderes
do i11111ge111 ", os quais dcse11/u1111 os contomos de 11111 i111c11so illlpério que é o do outro que lllio o
real. Co1110 este 1111se11te do tc111po prcse/ltc que é o passndo decorrido não serio torndo pc/11 asa
deste 1111jo da 1111sêficia ? Mas a difirnldade de distinguir lc111brnnç11 e i/1/agcm jfi 11110 era o to r-
111e/lto do fc110111c/lologi11 da 111e111ôrio ? Co111 essa pro/Jlenuítica cspec(fica da co111posiç1io c111
i11111gc11s dos coisas ditas do passado progride u11111 distinção até c11tiio fll'io notada que afeta o
trahol/10 dn rcprcsc11t11çiio, o saber, o ocn;sci111() de 1111//l preuc11paçcio de z,isibilidndc à 1'11:::.ca de
11111a lcgibilid11dc própria do 1111rraçiio. A cocrt' /lcia 11orratiz,11 confere legibilidade; 11 c11cc1111çiio
do p11ssado evorndo drí 11 'i: er. É todo o jogo , c11trcziisto wnn pri111eirn ze: 11 propósito da rcprc-
1 1

scnt11ç110-ohjeto, c11trc a rc111issiio da i111ogcm ii coisa ausente e 11 011to-nsserção da i11111gcn1 c111


~1111 'i. isi/Jilid11de pnípria que doravante se csfl'11de dc .fim1111 explícita ao p/11110 da rcprcsc11t11çcio-
1

opcl'llçiio.
Esta lm·vc 11prcsc11t11ç110 das pri11cip11is 11rtic11l11çiics do capítulo deixa c11tc11dcr que se c~pcm
11111 duplo ejl'ito dos disti11çcks proposta~. De 11111 l11do, trata-se de 11111 fl'llba lho proprii1111c11tc

étpogeu com J. Michdl't, antl'S de bifurcar l'n t rl' as \·,irias '\ ·o lta s " 21 narr,1 ti\'<l L' ser incorpor,Kia Zi
operação historiogrMica integra l por M. de CL'rlL'dU.
3 O presente est udo n1élrc~1 un1 ,1v,1nçn eni rcl,1çZío c.l ~,(,111p~ ct Rt'L"if, L 1n que não Sl' f,i z iél a d lstinçdu
1

entre re presentação-ex plicélção l_' narraç.'in, de um lado p o rqul' o probkrna dél rplaç.'ío dirl'ta t•ntrc
nél rrati vidade t' temporét lid ,1de ncup,1,·;i ,1 atenç,'\o e m d et rimento d;i p assagem pel a memória , til'
outro porque n iit> SL' propunha nenhuma a n,1 li st· ddalhnda dos pwcedimentos de L'Xplicaç,io /
compreensão. Qua nto ,10 fund o, pnrém, a m1ç,i o d e intrig,1 e de co mposiç,io da intrig,1 Cl>nt inu,1
primo rdi;i l ta nto 1wste lin·o co mo no ,1 n k ril1r.
-! Neste p o ntn també m , o p rL'Sl'Iltl' l'St udo disting uL'-Sc tk- Tl'111p~ t' I R,;t"il, e m que os recursos d,1 IT -
tôr ic;i nii n eram d i ÍL're11ei.idt1s dos d a n ,1rr.iti,· idadL•. O p res L·n te L'SÍnrçn p.ira s q1íl ra r os ,bpL·ctns
rl'lóricos dos ,1spectt1s propriaml'IltL' Sl' llliú ticn s d <1 n,1rr,1ti,·,1 L'ncnntr.ir,1 no d eba tl' d,1 s tL'SL'S d l'
Haydcn Whik um ,1 npllrtunid,1dl' pri,·ikgi,1d,1 d e testar noss,1s h ipó tesL'S de lt• it u ra.
;\ "'11 :MÚR I ;\ , A HISl'()l<IA, O ES(.)U ICIME i\iTO

a11alítico z isa11do a distinguir as 11uíltiplas facetas da idéia de representação histórica cm seus


1

aspcctos cscriturários e literários; serão 11ssi111 expostos e desenvolvidos os vários recursos da


rcprcscntaçiio. De outro lado, trata-se de antecipar a cada passo o ohjctivo último deste capí-
tulo, que é discernir a capacidade do discurso histórico de representar o passado, capacidade
que c/111111a111os de reprcsentância (seçi'ío IV, "A rcprcsentância"). Este título desi:;;na a própria
intc11cio11alidadc do conhcci111e11to histórico que se enxerta na do conhcci111ento 111ne111ônico 11a
111edida em que a 111emôria é do passado. Om, as análises detalhadas dedicadas à relação en tre
representação e narraçiio, entre rcprcse11taçi'ío e retórica, entre representação e ficção não bnli-
za111 apenas 11111n progressão no rcco11'1cci111c11to da visada intencional do saber histórico, mas
ta111bé111 uma progressão na resistt;ncia a esse reconheci111e11to. Assim, a representação enquanto
11arraç110 ni'io se volta ingenuamente pnm as coisas ocorridas; a for111a narrativa enquanto tal
i11tcrpi'ic sua complexidade e sua opacidade próprias ao q11e gosto de chamar de pulsi'io referen-
cial da narrativa liistôrica; a estntt11ra narrativa tende a fccl,ar-sc e111 círculo e excluir co1110
exterior ao texto, como pressuposto extralingiiístico ilegítimo, o momento refcrcncinl da narra-
ção. A 111cs111n suspeita de não-pertinfocia rcfcrcncinl da representação recebe llllla forma 11ova
sob o signo da tropologia e da retórica. As próprias figuras não se i11tcrpticm, também elas,
entre o discurso e o que se presume acontecer? Não captam a energia discursiva nas ar111adilhas
dos meandros do discurso e do pensamento? E será que a suspeita não é levada no cúmulo pelo
parentesco entre reprcscntaçi'ío e ficção? É justamente nesse estágio que ressurge a aporia da
qual a memória nos pareceu prisioneira, na medida em que a lembrança se dá como um tipo de
i111age111, de ícone. Como 11111nter a diferença de princípio entre a Í111age111 do ausente conzo irreal
e a illlagem do ausente conzo a11tcrior? O i11tri11ca111ento da representação histórica e da fi cção
literária repete, no fi m do pacurso, aquela n1esma nporia que parecem ator111entar a fenomeno-
logia da 111e111ôria.
Logo, é sob o signo de w11a dra111atizaçi'io progressiva que se desenvolverá a dinâmica deste
capítulo. A contestação não deixará de duplicar a atestação do propósito intencional da história;
tal atestação trará o selo i11delévc/ de u111 protesto contra a suspeita, expressa por uni difícil: "E
110 entanto ... ".

I. Representação e narração

A hipótese que coma nda as análises a seguir diz respeito ao lugar da narratividade
na arquitetura do sabe r histórico. Ela apresenta duas faces . De um lado, admite-se que
a narrativ idad e não constitui uma solução alternativa à expli cação/compreensão, a
despeito do que curiosamente concorda m em di zer os adversários e os defensores de
uma tese que, para resumir, propus chamar de "narrativista". De o utro, afirma-se que
a composição da intriga constitui, no enta nto, um a utêntico componente da operação
historiográfica, mas em outro plano, diferente do da expli cação/compreensão, em q ue
ela não entra em concorrência com os usos do "porque" no sentido ca usal ou até final.
II IST(l l.:I.·\ / Fl' I SIT\1010C: l i\

Em suma, não se trata de uma d esclassificação, de uma re legação da n a rrativ idade a


um,1 posição infe rior, já que a operação d e configuração narrati\·a entra em composi-
ção com todas as modalidades d e ex plicação / compreen são. Nesse sentido, a repre-
sentação, tanto sob seu aspec to narrativo como sob outros aspectos que ci tare mos, não
se acrescenta d e fora à fase documental e à fase explica ti\·a, m as as zicompa nha e as
sustenta.
Dire i, portan to, primeira men te, o que n ão se d eve espe ra r da narrati v idade: que
ela preencha uma lacuna d a ex plicação / compreensão. N esta linha d e combate que
proponho ultrapassar estão curiosélmente reunidos os historiadores de língu a francesa
que resumiram suas queixas na oposição provisória entre h istória-narra ti va e histó-
ria-problema ~ e os autores de líng ua inglesa que e le varam o ato de configuração da
composição da na rra ti va à posição de explicação exclusiva das explicações CélUSi:ÜS, ou
até finais. Criou-se, assim, uma alternati va aparente que fa z da na rratividade ora um
obstác ul o, ora um subs tituto para a explicação.
Em Braude l e seus próximos nos A111111lcs, tudo se d ei n a seqüê ncia "aconteci men to,
n a rrativa, primazia d o político" qua nd o a ênfase recai n a. tomada d e d ec isão por ind i-
vidualid ades fortes. Sem dúvida, ninguém ignorou que, antes d e tornar-se o objeto do
conhecimento histórico, o acontecimento é objeto d e narra ti\·a; em pa rticular, as narra-
ti\·as dos conte mporâneos ocupam um luga r privilegiado e ntre as fontes documentais;
a esse respeito nunca foi esquecida a lição de Marc Bloch. A ques tão era mais d e saber
se o conhecimento histórico oriundo da crítica d essas narra ti\'as d e primeiro g rau ain-
da. ap resen ta, cm suas form as eruditas, traços que o a. parentaria1T1 com as narrativas de
todo tipo que a limenta ra m a arte d e narra r. A respos ta nega ti\·a ex plica-se duplamen-
te. De um lado, por uma concepção tão restr itiva d o acontecimento que a na rrati\·a,
reputada com o sendo o seu veículo, foi tida com o um componente menor, até m a rg i-
na l, do conhecim ento histórico; o processo d a narrativa é então o do acontecimento. De
outro, antes d o desenvolvimento da n arra tolo g ia n a esfera da lingüís tica e d a semióti-
ca, a narra tiva é tida corno uma form a primitiva d e discurso, ao m esmo tempo muito
ligad a à tradição, à lenda, ao folclore e fina lmente a o mito, e mu ito p o u co ela borada
pa ra ser digna de fa zer o s múltiplos testes que marcam o corte epistemológico entre
a h istória mode rna e a his tória tradiciona l. Para dizer a \·e rd ade, as du as ordens d e
consideração anda m juntas: a um conceito pobre de acon tecimento correspo nde um
conceito pobre de n a rrativa; o processo d o acontecimento to rnaria então su pé rflu o um
processo distinto da narrati\·a. Ora, esse processo da histó ria dos acontecimentos tinha
antecede ntes re motos. K. Pomian recorda a crítica que fa zem Mabill on e Voltaire d e
uma história que, di z ia m, só e nsina acon tt>cime ntos que apenas enchem a m emória e
impedem que se ch egue às causas e aos princípios, e assi m, q ue se dê a conhecl'r a na-
tureza profunda d o gêncro humano . Se, no enta nto, uma escrita e laborada d a histó ria-
acon tecimento te\'e d e esperc1r o segundo terço do século XX, foi porque no entrem eio

:, Fra nçois Furl't, " De J' histoirc-r0cit ,'i J'hi ..,tuire-problt·rnL'", D 111,1;,·11,·, n'' 89, 1975, reto mado L'm
I .Atelil'r d!' 1·1i;~1ori,', l'.u i..,, Fl a mm<1rion, 1982.
A MEM(lR I A , /\ HISTÚ RI /\, O LSQ LJ LCI M[!\: TO

a história política ocupélra o proscênio com seu cu lto ao que B. Croce chamava de fatos
"individualmente d eterminados". Rankc e Michelet permanecem os mestres iniguala-
dos desse estilo de história, em que o acontecimento é considerado sing ular e não re-
petível. É essa conjunção entre a primazia da história política e o preconceito favorável
ao acontecimento único, não repetível, que a escola dos A1111ales ataca de frente. A esse
caráter de singularidade não repetível, F. Braudel d evia acrescentar a brevidade que
lhe permitia opor "longa duração" a "história dos acontecimentos"; é essa fu gacidade
do acontecimento que, segundo ele, carac teriza a ação individual, principalmente a
dos tomadores de decisões políticas, da qual se pretendera que é ela que faz os acon-
tecimentos ocorrerem. Em última análise, as duas características de singularidad e e
de brevidade do acontecimento são solidárias da pressuposição maior d a história dita
acontecirnental, a saber, que o indivíduo é o portador último da mudança histórica.
Quanto à história-narrati va, é tida corno mero sinônimo da história acontecimental.
Dessa forma, o estatuto narra tivo d a história não é debatido em separado. Quanto à
rejeição da primazia do acontecimento, no sentido pontual, ela é a conseqüência direta
do d eslocamento do eixo principal da investigação histórica da his tória política para
a história social. De fato, é na história política, militar, diplomá tica, eclesiástica que,
supostamente, os indivíduos - chefes de Estado, chefes de guerra, minis tros, prela-
dos - fazem a história. Também é aí que reina o acontecimento assimilá vel a uma
explosão. A denúncia da história d e batalhas e da história acontecimental constitui
assim o avesso polêmico de uma defesa de uma história do fenômeno humano total,
com, no entanto, urna forte ênfase em suas condições econômicas e sociais. Foi nesse
contexto crítico que n asceu o conceito d e longa duração oposto ao de acontecimento,
entendido no sentido de duração breve, que abordamos acima. A intuição dominante,
já dissemos, é a de uma oposição viva no cerne da realidade social entre o instante e
"o tempo que demora a passar". Comparando o axioma ao paradoxo, Braudel chega
a dizer: "A ciência social tem quase horror ao acontecimento". Esse ataque frontal
à seqüên cia "acontecimento, narrativa, primazia do político" recebeu um reforço d e
peso da introdução m aciça cm história dos procedimentos quantitativos emprestados
da economia e aplicados à história demográfica, social, cu ltural e até espiritual. Com
esse desenvolvimento, uma pressuposição maior relativa à natureza do acontecimento
histórico é questionada, a saber, que a título único o acontecimento n ão se repete. Com
efeito, a história quantitativa é, fu ndamentalmente, urna "história serial" 6 .
Se, segundo os defensores dos Annalcs, a narrativa constitui obstáculo à his tó-
ria-problema enquanto coletânea d e acontecimentos pontuais e forma tradicional

6 De mos no capítulo anterior uma descrição s uci nta do for ta lecimento d a noção de estrutura, en-
tend ida pe los histor ia dores no duplo sentido, estático - de a rquitetura rel acio na l de um dete rm i-
nado conjunto - e di nã m ico - de es tabilidadt• duradoura, cm detrime nto da idéia de aconteci-
mento pontual - , enquanto o termo de conjuntura tende a d esignar o tempo médio em relação ao
tempo longo da t•st rutura (T1'11lJIS et R,\·it, t. 1, op. cit.). Foi ass im que o acontecimento foi relegad o
.'i te rceir.i posição, dl'pois da es trutura e da conjuntura; o acontecimento é e ntão d efinido "como
descontinuidadt• con s tatada c m um modelo" (cf. K. Pomian, L'Ordre d11 /c111ps, op. cif .).
111 s 1c'w 1, / l:I' ISTI. \ICll ()l, L\

de transmissão cultural, segundo a escola narrati vista norte-americana, ela é di gna


de entrar em competição com os modos de explicação que as ciências hu manas teria m
em comum com as ciências da natureza . De obstác ulo à cie ntíficidade da históri a, a
narrativa se transforma em seu s ubstituto. É confrontad a com uma exigê ncia extre ma,
representada pelo m odelo nomo lógico d o conhecimento histórico~, que essa escola de
pensamento iniciou él rea valiação dos recursos de inteligibilidade da narrati,·a. O ra,
esta deve pouco à narrntologia e à sua pretensão d e reconstruir os efeitos de s uperfície
da narrativa a partir de s uas estruturas profundas. Os trélbalhos da escola narra tiYista
prosseguem mais na esteira das pesquisas dedicadas à linguagem comum, à sua gra-
mática e à sua lógica , com o elas funcionam nas línguas naturais. Assim, o caráter confi-
gu ra nte d a na rrati va. foi trazido ao primeiro pl;:rno e m d etrime nto do caráter episód ico,
o único levado em conta pelos histo riadores dos A111znlcs. Em relação ao conflito entre
compreende r e ex plicar, as interpretações narra tivistas tende m a recusar a pe rtinência.
dessa distinção na m edida cm que compreender uma narrati va é, conseqi.ientemente,
explicar os acontecin1entos que ela integra e os fatos que ela relata. A questão será
por conseguinte saber élté que ponto a interpretação nélrrati\'ista dá conta do corte
epistemológico surg ido entre as his tórias que são contadas (storics ) e a história que é
edificada sobre os rastros documentélis (/1istory).
Em Tempo e N armtiua expus as teses s ucessivas da escola na rrntivis tax. Um lugar
muito esp ecial tem d e ser reservad o à obra d e Louis O . Mink, que pe rma neceu mui -
to tempo dispersa an tes de ser reunida em uma obra póstuma sob o título Histori-
cal U11ders tnndíng. O título, que res ume bem o propósito ccntréll dél obra variada de
Mink, não devcriél indu zir ao erro; não se trata absolutamente d e opor compreen são
e explicação, como em Dilthey; trata-se, ao contrcfrio, de CéH,Kte rizar a exp licaçã o
histórica, enquanto " tomar em conjunto ", por um a to configu rante, sinó ptico, sin té-
tico, dotado do mes mo tipo de inte li gibilidade que o julga mento nél Crítica do j//í:o
kantianél. Portanto, não são os traços de intersubjetividade do z crstehe11 que são aqui 1

s ublin had os, m as a função d e "coligação" exercida pela narra ti \'a cons idernda com o
um todo c m relação aos acontecime ntos narrados. A idéiél de que a fo rm a da nar-
rnti\'a seja enquanto tal um " instrumento cognitivo" impõe-se ao término de uma
série de abordagens Célda vez mais precisas, ao preço de uma descoberta d e apori as
relativas ao conhecimento histórico, aporias que somente a interpre tação na rrnti;-ista
podia revela r. Com o recuo d o tempo, podemos hoje creditar a Louis O . Mink o r igor
e a honestid ade util izados por ele no bal él nço dessas apo rias. O problema está posto e
a tormentará toda uma filosofia literári él da his tó ria: qu e diferença sep ara a história
e a fi cção, se él mbas narra m ? A respos ta clássicél, segundo a q ua l apenas a hi stória
rela tél o que aconteceu efeti vamente, não parece contida na id éia d e q ue a forma
narrativa tem e nquanto tal urna função cog nitiva . A aporia , que podemos chama r
de élporia dél verd ade em his tória, é C\'idenciada pelo fo to d e que os his tori éldores

7 VL' r P. Ricu•ur, 7:·,1111~ ct 8-t;t"il, t. 1, op. til , pp 20ll -2 17.


8 VL' r I'. Ricn.•ur, i/iid., pp. s c;-:-1 11.
A MEMl'iR IA, 1\ HIST()l{IA, () FS(.)UFC IMF.N ro

constroem freqüentemente narrativas diferentes e opostas em torno dos mesmos


acontecimentos. Deve-se dizer que um omite acontecime ntos e considerações que
o outro d estaca e vice-versa? A aporia seria conjurada se pudésse mos acrescentar
umas às outras as versões rivais, mesmo que isso implicasse submeter as na rrativas
propos tas a correções apropriadas. Dir-se-á que é a vi da , que presumivelmente tem
a forma de uma história, que confere a força da verdade à narrativa enquanto tal?
Mas a v ida não é uma história, e só assume essa forma na medida em que lhe confe-
rimos esse atributo. Como podemos e ntão continuar pretendendo que encontramos
essa forma na vida , na nossa e, por extensão, na dos ou tros, na das instituições, dos
grupos, das sociedades, das nações? Ora, essa pretensão está solidamente entrinchei-
rada n o próprio proje to de escreve r a história. Resulta daí que não é ma.is p ossível re-
fu giar-se na idéia de " história uni versa l e nquanto vivência". Com efeito, que rel ação
p oderia existir entre esse reino único pres umido e d e te rminado da his tória uni versal
enquanto vivência e as histórias que construímos, já que cada uma tem começo, meio
e fim, e extrai s ua intelig ibilid ade de sua estrutura inte rna apenas? Ora, o dilema não
atinge apenas a narrativa e m seu nível configurante, mas também a própria noção de
acontecimento. Além de pode rmos questionar as regras de u so do termo (será que o
Re nascime nto é um acontecimento?), podemos p erguntar se fa z algum sentido dizer
que d o is historiadores fa zem narrativas diferentes dos mesmos acontecimentos. Se
o acontecimento é um fragmento da n arra ti va, ele segue o destino da narra tiva, e
n ão h á acontecimento b,1sico que possa escapar da na rrativização. Entretanto, não
se pode prescindir da noção de "mesmo acontecimento", por não poder comparar
duas na rra tivas que trata m, como se diz, do mesmo ass unto. Mas o que vem a ser
um acontecimento depurado de qualquer conexão narrativa? Deve ser identificad o
com uma ocorrência no sentido físi co do termo? Mas então, entre acontecimento
e na rrativa, abre-se novo abis mo, compa rável àquele qu e isola a histo riografia da
históri a tal corno ela se produziu de fato. Se Mink fez questão de preservar a cre nça
d e senso comum d e que a história se dife rencia da ficção por sua pretensão à ver-
dade, é porque parece não ter renunciado à idéia de conhecimento histórico. A esse
respeito, o último ensaio publicado por ele (Narrativc Fonn as a Cognitivc I11strume11t)
resume o estado d e perplexidade c m que o autor se encontrava quando a morte veio
inte rromper sua obra. Tratando uma última vez da di ferença entre ficção e história ,
Mink limita-se a consid erar como d esastrosa a eventua lidade de que o senso comum
possa ser demovido de s ua posiçã o defensiva; se o contraste e ntre história e ficção
d esapa recesse, ambas perderiam sua marca específica, a saber, a pretensão à verda-
d e, por parte d a his tória, e à "suspensão voluntária da desconfiança", por parte d a
fi cção. Mas o a utor não diz como a distinção poderia ser preservada. Desistindo d a
resolução do dilem a, Mink preferiu mantê-lo como parte do p róp rio empreendimen-
to histórico.

Em vez de jogar uns contra os outros ad versários e defensores da pertinência ex-


plicativa d a narra tiva enquanto ato con fig urante, pareceu mais útil interrogar-se sobre

.Z• 2 54 .Z•
III Sl\ll{ J-\ / 11 '1 '-ill\llll .\lC I ,\

a forma como podem compor-se juntos dois tipos de intel igibilidade, a inteligibilidade
narrativa e a inteligibilidade explicati\·a".
Quanto à inteligibilidade narrativa, seria preciso comparar as considerações ainda
muito intuitivas da escola narrativista e os trabalhos mais analíticos da narratologia
no plano da semiútic,, dos discursos. Resulta daí uma noção complexa de "coerência
narrativa" que é preciso distinguir, de um lado, do que Dilthey chamava de "coesão
de uma vida", cm que se podem reconhecer trnços pré-na rrativos, e do outro lado, da
noção d e "conexão (ou conexidade) causal ou teleológica ", que está ligada à exp li ca-
ção / compreensão. A coerência narratÍ\'êl te m raízes na primeirêl e articula-se com a
segunda. O que ela traz d e peculiar é o que cha mei de síntese do heterogéneo, para
falar seja da coordenação entre acontecimentos múltiplos, seja daquela entre causas,
intenções, e também acasos numa mesma unidade de sentido. A intriga é a forma
literá ria d essa coordenação: ela consiste em conduzir uma ação complexa d e uma si-
tuação inicial para uma situação terminal por meio de transformações regradas que
se prestem a uma formulação apropriada no quadro da narratologia. Um teor lógico
pode ser atribuído a essas transformaçôes: é o que Aristóteles caracteri zou na Poética
como prov;lvel ou \'erossímil, o verossímil constituindo a face que o provável exibe ao
leitor para persuadi-lo, isto é, induzi-lo a acreditar precisame nte na coerência narrati-
\·a da história narrac.ia 111•
Destacaremos duds implicações desse conceito de coerênci;l narrativa.
Primeiramente, uma definição propriamL'nte narrativa do acontecimento, que será
preciso compor posteriormente com as d efinições que lhe são d ada s no plano da expli-
cação. No plano narrativo, o acontecimento é o que, ao acontecer, fa z a ação a\'ançar:
é uma variável da intriga. São ditos rcpentinos os acontecimentos que suscita m uma
reviravolta incsperac.fa - "contra qualquer expectativa " (para doxa11) 1 diz Aristóte-
les, pensando nos "golpes teatrais'' (pcripctciai ) e nos "efeitos violentos" (patln•) 11 • De
forma geral, qualque r discordância que entre em competição com a concordé1 ncia da
ação tem va lor de ,Kontecimento. Tal conjunção intriga-acontecimento é s uscetÍ\·c) de
transposições notáveis no plano historiográfico, que \'ão muito além d a di ta história
dos acontecimentos, a qual só considera uma das potencialidades do acontecimento
narrativo, a saber, suc1 brevidade associada a s ua subitaneid ade. Há, por assim dizer,
acontecimentos de longa duração, na medida da abrangência, do alrnncc, da história
narrada: o Renascimento, a Reforma, a Re\·olução Francesa são acontecimentos d esse
tipo e m relação a uma trama multissecular.

9 L nvr t:' n ce Storw , " Retour ,1u rt'ci t, ré tl o,io n s s ur unl' ,·il'il JL, histoirl' ", Lc fN /111/, n " 4, 1980,
pp. 11 6-142.
lO 1\ J>,,d ic11 1ig,1 ex pre~s,1menk a c.1t,H SL' à ,l~'fL'L'llS,io d essa C\lL'ri:•nci,1 pL' ln espL'Ctador. A "pu ri fi -
<:aç,itl" das paix0 L's d e terror L' pi e d ,ldL' l', llL'SSV SL'n t ido, \l l'tl'ito d,1 com prL'L'n s:io in teil'ct u al d ,1
in triga (11•11111, ct l~r;cil, t . 1, op. cit., pp. 66-l ll:>) .
11 l'L'rtencer i,1 tamb é m a um a tt.'o ria gt!r,1l d ,1 intri g,1 a c,1tego ria d o rl'con lwci mcnto - 01111,1;110/'i,i., - ,
qul' dl'~ign.i o mtlnll'nto narra ti vo quL' pl'rmik à cuncord i'í n c ia C(llllpl'n s,ir ,1 di scord <'í nc i,1 s u s c ita -
1.i.1 ~wla ~urprL'~,1 do ,lú llltL·ci nw n to n o próprio ,i m ,1gu d a intriga .
i\ MEM(lRIA, ,\ H ISTÚRl i\, O 1:SQ U l:C I Ml:NTO

Segunda implicação: na med ida em que as personagens da narração - os caracte-


res - são compostas em intriga ao mesmo tempo em que a história narrada, a noção
d e identificação n arrativa, correlativa daquela d e coerência narrativa, é s uscetível, por
sua vez, de transposições notáveis no plano hi stórico. A noção d e personagem consti-
tui um operador narrati vo da mesma amplitude que a do acontecimento; as persona-
gens são os agentes e os pacientes da ação narrada. Assim, o Mediterrâneo do grand e
livro de Braudcl pode ser considerado como a quase-personagem da quase-intriga da
ascensão e do declínio do que foi '' nosso mar" na época de Filipe li. Nesse aspecto, a
morte d e Filipe JJ não é o acontecimento à altura da intriga do Mediterrâneo 12 .
Uma terceira implicação, s ugerida pela Poética de Aristóteles, diria respeito à ava-
liação moral das personagens, melhores do que nós na tragédia, inferiores ou igu ais
a nós em virtud e, na comédia. Vamos reservar esse debate para o capítulo seguin te,
no âmbito de uma reflexão mais ampla sobre as relações entre o historiador e o juiz.
Entretanto, não deixaremos de antecipar esse debate quando, ao falar das categorias
retóricas aplicadas às intrigas, formos confrontados com a questão dos limites impos-
tos à representação p or acontecimentos tidos como horríveis, como moralmente ina-
ceitáveis11.
Gostaria agora d e propor dois exemplos de composição entre "coerência narrati-
va" e "conexão causa l ou final", correspondendo aos dois tipos de inteligibilidade evo-
cados acima. Da plausibilidade dessa análise depende em parte a solução d o dilema
de Louis O. Mink e, d e forma mais geral, da aporia cuja progressão acompanharemos
a seguir neste capítulo: p rocura-se cm vão uma ligação direta entre a forma narrativa
e os acontecimentos tais como se produzi ram de fato; a ligação só pode ser indiretél
através da explicação e, aquém desta, através da fase documental, que remete, por sua
vez, ao testemunho e ao créd ito dado à palav ra alheia.
O primeiro exemplo é sugerido pelo uso que foi fe ito no capítulo anterior da noção
de jogo de esca las. Entre todos os tipos d e sínteses d o heterogêneo constituídos pela

12 Foi em relação â extensão parn a história da s ca tl'gorias ilustrad<1s pel<1 narrativa t rad icional e a
nar rativa de ficçâo qu e, cm Tc111p.s ct t,écit, ac rl!Sccntci a cláus ula restritiva "qua se" âs noções de
int riga, de acontecimento e de p ersonagem. Eu falava então cm de rivação segunda d a história
c m relação â narração tradicional e de fi cçiio. Hojc, c u ti ra ria a clá us ula "quase" e conside raria as
categorias nar rativas e m questão como operado res de pleno direi to no plano historiog ráfico, na
medida em que o e lo presum ido nessa obra en tre a história e o ca mpo p rá tico onde se desenrola
a ação socia l autoriza a ap licar diretanwntc ao domínio da h istór ia a categoria aristotél ica dos
"at uantes". O problema colocado dei xa de ser então o d e uma transposi ção, de uma extensão a
pa rt ir de outros usos menos eruditos do narrativo, e passa a ser o da articu lação e ntre cocrênci,1
narrativa e conex idade ex p lica ti va.
1} Deixo de lado o exame de um compone nte de intriga qu e Aristútcles considera corno m;irgin,1 1,
embora o inclua no pe ríme tro d as "partes" do 11111//,os , da fáb ula, da intriga, a saber, o espetáculo
(opsi~) (roJ tirn, 57 e 62 a 15). Mesmo que não contrib ua com o sentid o, este último não pode ser
exc lu ído do campo da nná lise. Designa o lado de v is ibilidade que se acrescenta ao lado de legibi-
lidade d ,1 intriga. É uma quest5o de s,1bcr atC:- q ue ponto, para a for ma escriturária, é importc1 n tc
encena r, mostra r. Aqui, a sed uçi-10 pelo agrndável soma-se à persuasão pelo provável. Abordare-
mos o assun to ao trn tarmos do componcntL' rl'túrico d a represcntaçâo, e mais particularmente
associa ndo-o ,1os "p restígios da imagem".
HISH)l{L\ / Fl' I S I F \ H l l .0(,1 .'\

composição dél intriga, não se poderia levar cm conta o percurso narrati,·izéldo d as


mudanças de escalas? De fa to, nem a micro-históriél, nem tampouco a macro-história
opera continuamente e m uma única e mesma escala. Certamente, a micro-históri a pri-
\"ilegia o nível das interações na escala de um.a aldeia, d e um grupo d e indidduos e
d e famílias; é nesse nÍ\·el que se desenrolam negociações e conflitos e que se descobre
a situação de incerteza que tal história eY idencia. Além disso, ela não dei xa d e ler de
baixo para cima as relações de pode r que se dão cm outra escala. O debate sobre a
exemplaridade dessas histórias locais vi,·idas ao rés-do-chão pressup õe a imbricação
da pequena história na grande história; nesse sen tido, a micro-história não d eixa de
se situar num percurso de mudança de escala que ela narrati\'iza enqua nto caminha.
O mesmo pode ser dito da macro-história. Sob certas formas, ela situa-se em d etermi-
n ado nível, de onde não sai: é o caso das ope raçües de p eriodização que escandem o
te mpo da história e m grandes seqüências balizadas por grandes narrati vas; propõe-se
aqui um conceito narrati\'l1 importante que j,1 encontra,nos um pouco acima, o de "al-
cance ", que Ankersmit elaborou no contex to de uma lógica narra tiva cujas implicações
sobre a relação entre representação e represent5ncia discutire mos mais adi ante 1-1 . O
alcance d e um acontecimento diz a persistência d os seus efeitos longe de sua fonte. Ele
é correlativo do alca nce da própria narrati,·a, cujél unidade d e sentido p erdura. Se nos
limitarmos a esse ní,·el homogêneo, o do período, poderemos notar as pcctos impor-
ta ntes da narrati\·ização, entre os quais a pe rson él lização marcada pelo uso de nomes
próprios (ou quase-nomes próprios): Ren<1sci mento, Re,·olução Fra ncesa, Guerra Fria,
etc. A relação desses nomes próprios com as descrições, que constituem de certa forma
seus predicados, coloG, o problema de uma lógica narrati\·a a propriada a essas estra-
nhas singularid ades de alto nível às q ua is Ankersmit dá o nome d e 11armtio. Mds os
recursos narrativos d a macro-história ta m pouco se dcixan-1 reduzi r a efeitos no mesmo
nÍ\·e L Corno ilustr,, a obra d e Norbert Elias, os efeitos de un, sistema d e poder, como o
da corte monárqui ca, d esd obram-se ao longo de uma esca la descendente até as condu-
tas d e autocontrole n o ní,·el psíquico indívid uaL A esse respeito, o conceito de '1abit11:-;
pode ser consid e rado como um conceito de tra nsição narrativa que o pera ao longo
dessa via descendente do plano supe rior de produção de sentido para o plano inferior
de efetuação con cre ta , graças ao esquecimento d a ca usa dissimulada em seu s efeitos.
O segundo exemplo diz respeito à noção de acontecimento. Lembramos aci ma a
função narrati \'a e nqua nto operndora da mudança no plano da ação n arrada. Po rém,
entre todas as tcntati\·as de definição do acontecimento no plano da explicação, foi
possível e nfati zar a que coordena o acontecimento com a estrutu ra e com a conjuntu-
ra e o associa às id éias de desvio, d e diferença. Serú que não é possível ultrapassar o
abismo lógico que parece ab rir-se entre as duas d efini ções do acon tecimento? Propõe-
se uma hipótese: se dermos toda a sua extensão à idéia da intriga como síntese do
heterogéneo misturando intenções, causas e acasos, não cabe à narrati vél operar urna

1-i Fr,1 n k lin R. A nker~mit, N11rmliz>c Lo:,;i(: 11 S,'111<111tic A1111l.11~i~ 1,f //1 1· H i~ l1 >ria11 ·~ l..t1!/,1;11t1g,·, La H ,1yl',
l\!ijhoff, 1983.
1\ ~1FM ( lRI ,'\, /\ III ST ( JRIA, () I StJU LCIMLNH l

esp6cie de integração narrativa entre os três momentos - estrutura, conjuntura, acon-


tecimento - que a epistemologia dissocia? É o que sugere a idéia, que acabamos de
propor, de urna narrativízação dos jogos de escalas, na medida cm que os três momen-
tos dependem de escalas diferentes, tanto no plano dos níveis de eficácia quanto no
dos ritmos temporais. Encontrei cm R. Kose llcck um apoio determinante para dar for-
ma a essa hipótese. Trata-se de um ensaio intitulado "Representação, acontecimento,
estrutura", que se encontra nél coletânea intitulada Lc Futur pnss(w'. Após afirmar que
as estruturas dependem mais da descrição e dos acontecimentos da narrativa enquan-
to estratos temporais identifiGíveis separadamente, o autor sugere que a dinâmica que
as entrecruza se presta a uma narrativização que faz da narrativa um permutador
entre estrutura e acontecimento. Tal função integrativa da forma narrativa resulta da
distância tomada por esta em relação à simples sucessão cronológica segundo o antes
e o depois, do tipo ·uc11i, vidi, vici. Enquanto unidade de sentido, a intriga é capaz de
articular numa mesma configuraçfü) estruturas e acontecimentos; assim, a evocação
de uma estrutura de dominação pode ser incorporada à narração do acontecimento
cons tituído por uma batalha. Enquanto fenômcno de longa duração, a estrutura se
transforma, pela narrativa, em condição d e possibilidade do acontecimento. Pode-se
falar aqui em estruturas i11 cz,c11t11 retomadas somente posf c·uc11f11111 cm sua significação.
A descrição das estruturas em curso de narrativa contribui assim para esclarecer e
elucidar os acontecimentos enquanto causas independentes de sua cronologia. Aliás,
a relação é reversível; certos acontecimentos são considerados como marcantes na me-
dida cm que servem de indícios para fcnômenos sociais de longa duração e parecem
determinados por eles: d eterminado julgamento cm direito do trabalho pode ilustrar
de forma dramática fenômcnos sociais, jurídicos ou econômicos, de longa duração 11' .
A integração narrativa entre estrutura e acontecimento reforça assim a integração nar-
rativa entre fenômenos situados em níveis diferentes nas escalas de duração e de efi-
ciência. Está claro que a distinção entre d escrição e narração não se apagou; mas se a
descrição preserva a estratificação dos planos, cabe à narrativa entrelaçá-los. A relação
cognitiva entre os dois conceitos é da orde m da dis tinção; ela encontra um comple-
mento didático na remissão de um ao outro graças à configuração narrativa. Aqui, a

15 R. Kosellt>c k, " Darstcllung, Ercignis und Struktur", in Ve rgangene Zukunft. Z ur Scm;intik


ge schi chtlicher Zeiten , Fr;i ncfo rt, Suhrkilmp, 1979; trnd. fr., " Repn:•sent;ition , événemc nt ct
struc ture", in J,c F11f11r passt;: w 11tri/111tio11 ti la ~1;111t111fiq11e dcs tc111ps hisforiq11cs, Pa ri s, EHESS, '1990,
pp. 133-144. O e ns a io deve s er s itu;ido no âmbito de um;i v;ist;i pcsqui s;i vis ando a "definir o
que o tempo d a hi stória represcnt;i" (preiim b ulo) e cujo autor di z que "de todas a s ques We s
coloca da s pela ciência histórica, é ela uma da s mai s difíceis de se rem rcsol v id,1 s" (ibid .). Uma
discu ssã o d as teses mes tra s de R. Kosellcck nessa coletânea e em L' F.xpá ic11cc de /'h i~ foi re, l';i ris,
Gallimard-Scuil-El IESS, 1997, seri\ propnsta no capítulo seguinte em relaçiio com a noç,i o de
verd ride em hi s tó ria . O ens aio que ri presento aqui é, portanto, retirado de seu contexto.
16 Encontramns ,iqui o pdradigma "indic i.írio" de Cirlo Gin zburg. Cf. ;icima, p. 180 e pp. 184-1 85.
H IST(lR I \ / 11'1~1 l:\ll>I UCI ,\

relação entre estrutura e acontecimento é compartível à rela ção entre durações escalo-
nadas. Toda estratificação pode, assim, ser m ediati zada n<1rr,1ti\'amente 1~.
Esses dois exemplos de narrntivização dos modos ex plica ti\'OS acionados na ope-
ração historiográfica comportam dois ensinamentos. Por um lado, n10s tram como as
formas escriturá rias dessa opcraçi'io se articulam com as formas explicativas. Por ou-
tro, mostram como a visada intencional da n a rrativa além d e seu fechamento transita,
atra\·és da explicação, cm direção à realidade atestada. Trata-se agora d e explicitar as
resis tências a essa p assagem.
De fato, não gostaria de deixar a questão da n a rrati\·idade e de SUél contribuição
para a terceira fase da operação his toriog rcffi ca sem ter rese r\'ado certos aspectos d a
com posiçã o da intriga que, junto com os efeitos sem e lhantes dos outros momentos
da expressão cscriturciria da história, tornam paradoxalmente mais difíc il a solução do
problema colocado pela p rete nsão da narrativa his tór ica de rep resen tar o passado.
Na passagem da r epresentação para a represcntância, a narrati,·a ergue obstácu los
ligados precisamente à estrutura do ato de configuração.
Foi da teoria literária que veio a con tes tação e m nome d a disj unção entre a estru-
tura interna do tex to e o rea l cxtratextual. Na m edid a em que a narra tiva de ficção
e a na rrativa histórica p articipam da s m esm as estruturas na rrati vas, a rejeição pela
ortodoxia estruturalista da dimensão referen cial estende-se a toda textualid ade literci -
ria. Tal reje ição é moti,·ada por uma expansão do m.odclo sa ussuriano do plan o dos
signos isolados - ta is como são cole tados em siste mas de tipo lexical - ao d as frases
e, finalm ente, ao d as g randes seqüências textuais. Segund o o modelo, a re lação en-
tre significante e significado dá origem a uma entidade d e dupla fa ce, o signo pro-
priamente dito, cuj,1 apreensão e xclui ,1 relação com o referente. Essa exceção é obrc1
do olhar teórico que e ri ge o s ign o como tema h o mogêneo da ciência lingüística . É o
1T1odelo bipolar s ig nificante-sig nificado, com exclusão do referente, que migrou para
todas as regiões da linguagem acessíveis a um tratamen to semiótico. Assim, uma na r-
ra to logia de tipo sauss uria no pôde a plicar às longas seqüências textuais a excl usão d o
refe rente exigida pelo modelo. Na mesn1a m e did a em que os efe itos sobre a na rra ti \'a
de fi cção podem p arecer discutíveis sem serem desastrosos - discuto-os em A Mctâ -
fLJJ't1 eles podem ser d e vastadores par,1 a na rra ti,·a histórica, cuja dife rença com
P1u a - ,

a narrativa de fi cção é baseada na visada referencial que a perpassa e que é ,1 penas a


significâ nc ia d a representação. Tenta , ·a eu então reconquista r a dimensão refere nc ial
d esd e o níve l da fr ase, enqua nto primeira unidade d e discurso, segundo as análises
de É. Be nvenis tc e R. Ja kobson. Com a fra se, di z ia eu, a lgué m diz algo a a lguém so-
bre algo, segu ndo urna hierarquia de códigos: fonol ógico, lex ical, s intcÍtico, estilístico.

17 " Em rl'al ida de, ll c,1r,íkr prncessu,1 1d,1 hi stúri,1 mudern,1 sú plll°k ser ,1prL'end ido por mcili d ,l L':>.plici-
taç.'io dos ,iconkci nll'nt()S pl'iil s estrutu ras, l' inn•rs,rnwntc " (KosL·lll'c k, l.t' J-'11t11r p11.-;_,1;, ,ip. ât, p. 1."lS).
Koselleck, L' ,·e rd,,dl', prntest,1 contr.1 o il m ,ilg.1 rna do ilcontecinwntu L' da l'Strut u ra. Os cstr,1tos ll'm-
plir,lis nunca Sl' iundc m to talmente; a su ccss.'il1 dzí lugar il s ur p rc-;a do ,Kontecimcnto incsp er,Klo. i\
rL·l.1ç.'i o cogniti1·,1 cfos d llis conceitos, qu L' t'· u m,1 relaç.'io dL' dis t.1nci,1nwnto, n.'io L' abolid,1 pl•lo tipo de
ncgociaç.'io que a nMr,iti1·a instau ra l'ntrl' L'il's. Conceituai idade t! s ing ul,1r idade pt•rm,1m·cem lll'tt>rn-
gê nL'ilS uma L'Jll rt.'1,1ç,i o i1 c)l1tra.
/\ MFM(JRI A, A HIST()RIA, O ES()UECIMEN 'JO

Dizer algo sobre algo me parecia constituir a virtude do discurso e, por extensão, a
do texto enquanto encadeamento de frases 1K. O problema d a referencialidade própria
do discurso histórico parece-me colocar-se de forma distinta, na medida em que uma
tendência ao fecham ento, incrente ao ato de composição d a intriga, opõe-se à pulsão
cxtralingüística, extratextual, referencial en fim, pe la qual a representação se faz re-
presentância14. Mas, antes de fazer ouvir a atestação/protesto que constitui a alma do
que chamo de representância do passado 211, é preciso ter aprofundado o exame dos
outros componentes da fase literária da operação historiográfica. Estes acrescentam
sua próprié1 denegação d e pulsão referencial do discurso histórico àq uela oriunda d a
configuração narrativa enquanto tal 21 •

18 Eu tentarn reencontrnr péH,1 o d iscurso metafórico um a moLfalidade p rópria de referenc ia lidade


no ponto de conjun ção d o "ver como" e do "ser como". l'arcceu-me que L'ssa refere ncialidad e de
um gênero particular, no caso d a na rração d e ficção, pod ia ser transposta para o plélno narrati-
vo. Alé m disso, part·~ceu-nw possívd atribuir uma potência própria d e 1vfiguração à n a rração de
ficçã o p or inte rrnéd io do le itor que se aproxima do texto com su as prúprias expectativéls, estru-
turadas por sua própria ma neira de ser no mundo: são t'ssas man eiras que siio refiguradas pela
11íl rrativél de fi cção.
19 A obra de François Híl rtog, Lc Miroird'Hl;rodol e, já ci tíldél cm nwu trabalho (p. 149, n. 5 e p. 176, n . 30),
propôe ao deb,üe d a id{•ia de represcntaçfio histfai ca uma argurne ntílção notável. Trata-se, como
indirn o subtítulo, d e a represc11 /11çiio do 011/ro, no CílSO o bárbaro c11eeníldo níl na rração das guerríls
pérs icas. O autor escolhe u isolM do grande contex to na rrati vo o " logos cítico" (op. cil., pp. 23-30,
possi111). O que impo rtíl paríl o autor não l' íl verdade presumida das enunciações tendo os citas
como objeto; por ou tro lado, o propós ito d as guerras pérsirns tomíldn e m toda a sua abrangê nciíl
histó r.ica é deixado de lado, mantido em s uspenso, em proveito de um segmento n a rrativo que o
autor vê delimitado por um conjunto de "imposições narrn ti vas" (op. cit., pp. 54-59) que fil tra m, a
exemplo da grade re ticulada do aguareli sta (op. cit., p. 325), os traços pertinentes do nômade: "pa ra
o au tóctone imag inário que é o íltenicnse, é p rec iso um rn1made, niio menos imagi nário, sendo o
cita o escolhido" (op. cit., p. 30). O tex to das /fr;fôrias ser,í ílss im tratíldo como um "espe lho", niin
apenas para o J,i, tM submetido à prova da escritíl, mas para o b,írbaro, que nele reflete suél alterida-
de, e pa ra o g rego, que deci fra nek sua identidad1c·. Umíl questão ílparece níl s entrelinh as: como é
possível ser nômade? Míls a qut~stão ni'\o remete a ne nhum referente: nesse sentido, não ''sélímos"
do tex to; somos con frontados apenas com os enunciados do mesmo contex to (os outros bárbaros,
os gregos); a "representaçiio do outro" d e pende ape nas da "retórica dél a lter idade" (np. cit., p. 225).
Se, en tre tnnto, a le itura IL·víl a Síl ir do texto, nfio l' pnrn ir cm direção aos ílcontecimentos ocorridos
nas guerras pérsicas, mas ao nível intríltextual do imaginário grego do século V: "s<1 ída que se foz
pela li nguagem, na linguagem e que se d ,í no plmm do imílginário" (ov cif., p. 326). O "efeito de urna
narração" (op. cif ., p. 329), ta I é o "espelho de Heródoto", o es pe lho paríl ver o mundo.
Desde que esse trabalho re ivindique seus limites (o que foi feito déls g uerra s pérsicas?), ele é total-
mente legítimo. Ele npenas dificultn a ques t5o do di zer-verdadeiro e m h istúria: a investigação do
fazer- crer não deixa de adiá-la com o risco de mascará-la. O paradoxo d o vetor narrativo é, assim,
revcl éldo com fo rça: gu ia condu zindo ao referente, n narração também é o que ocu lta. Ent retélnto,
ser,1 que o pró prio propósito de "avn liar o efeito do texto sobre o imíl gi nário d o g rego" (op. cit.,
p. 359) n ão lílnça d e outra forma a pcrguntíl d o referente: esse efeito do tex to foi atingido? Pa rece
aqui necessá ria uma his tó ria d él kitura que tenha como refe rente o grego do séc u lo V lendo Heró-
doto. Conhccemo-lo me lhor d o que íl ba ta lha d e Sah1111ina?
20 P. RiCl'eur, Tc111p, l'f /~ (>cif, t. Ili, op. cit.: " Daremos o nome de representâ ncia (ou de lugílr-tenência)
ú rel ação entre as construções da h istóri a e seus v is-à-v is, él saber, um passado ao mesmo te m po
a boi ido e preservado nos seus rastros".
21 Sobre o p roblemn geral das relnções en t re con fig uração e refiguração, cf. Tc111ps e/ l<.frit, t. 1, op. cit.,
" l .a tripie 111i111t·~is", pp. !05-169.

,z, 2 60 <Z•
III S l ()R I.\ / 11'1"'1 l"\l(ll!)Ci ,\

II. Representação e retórica

Vale a pena prestar especial atenção fl dimensão propriamente retóriGl do discur-


so da história, apesar do emaranhado d ,1s figuras ligadas a esse ca mpo com ,,s estru-
turas narrativas . Abordamos aqui uma tradi ção que remonta ,1 Vico e ao seu duplo
legado: no plano d,1 descrição das figuras de pensamento e de discurso, denominadas
tropos - principalmen te a metáfo ra, a m etonímia, a sinédoque e a ironia - , e no da
defesa d e modos de arg umentação que a retfoica opõe às pretensões hegem ón icas da
lógica.
O objetivo des ta nm·a etapa d e nossa im·estigação não consiste apenas em ampliar
o campo dos procedimentos da representação escritur,íria , mas també m em dar cont,1
das resistências que as config urações narrc1ti,·as e re tóri cas opôem à pulsão refcrencictl
que orienta a narrati,·a para o passc1do. Télln'z venhamos a assistir também ao esboço
de urna contra-ofcnsi, ·a d e certo rea lismo crítico cm relação à tentação estetizante à
qual correm o risco de ceder os defensores d a retórica n arrati,·a; foi o que aconteceu
quando os protagonistas do d ebate , ·iram-se confrontéld os, nas últimas d écéldas do
século XX, corri o problema da fi g uração d e acontecimentos que, por s ua m o nstruo-
sidade, faziam éwança r os " limites d a representação". Parte do de ba te desenrolou-se
no cenário francês, mas foi no cemírio americano que ele deu margem à confrontação
à qual acabamos de aludir.
A contribuição francesa ao d eba te data da idad e de ouro do estruturalismo. A re-
\·olução metodológica da qual se \'ale a escola fran cesa \'isa a desvendar os aspec-
tos dos códigos narrati\'os que apresentam estreito parentesco com as propriedades
estruturais gerais d a língua, diferenciada da fala, depois d e Ferdinand de Saussu re.
O postulado básico é que as estruturas da nélrrativa são o homólogo d aquelas das
unidades e lementares da língua 22 • Res ulta daí uma extensão d a lingüística à sem iótiG1
narra tiva. O p rincipal efeito sobre a teoria da narrativa foi urna exclusão de toda ccm-
sideração oriunda d a história liter,fr ia do gênero, a retirad a da ac ronia das estruturas
da diacronia da prática dos discursos, em prol d e u rna logicizaçào e d e uma descrono-
logização cujas etapas béllizei em Tcl/lpo e N11 rmtivn IF' . As implicações no campo his-
tórico poderiam nunca ter despontado, na m edida e m que essa semiótica d él narrati\'a
continua va send o usada, no rastro de Vladimir Propp, na ordem da fi cção, sem que
se p udesse deplorar o utra perda a não ser a da dimensão do maravilhoso, o que não é
desprezível se le,·armos cm conta o p aren tesco 11 contrario dessa qualidade d e crnoçào

22 Roland Bartlws, " lntrl>duction à l'ana lyst> structura le des n \: its", Co1111111111im/io11,;, ll'' 8, 1986, /.e,;
n:cil, kxto rl'tom ,Hfo L'I11 Pr1diq11c du nút, Pa r is, Ed. du Scu il , 1977. Lemos a í
N1, 1c1111 .\ ' de ,;1'11,; du
o seguinte: «A n,1rraçfio é uma grande fr,1 Sl', corno q ualq ue r fr,bt:' con stc1tati,·a é, dl· certa furm ,1, o
esboço de uma peqrn•na na rraçfü1"; '\1 ht1 m o lug ia aqui sugerid a n ,i \l tem ,ipt'nas ,·a lor lwu rísti (o:
implica urn a idcnt idadl' t•ntrc a ling u,1 gc m L' ,1 litl•r,üura" (1>p. t"it ., p. 11).
n P. Rico}ur, Tcmp~ ct !~t;cit, t. 11, L11 Co11fig 11 mli1>11 da11~ /e récit dc f1dio11, l'aris, Éd du SL'u il, col. 'Tordre
philosophiq ut' ", 198-l, rcl'd ., cu!. "Poin ts Ess,iis", 1991 , ra p. 2, " Ll'S co nt r,1intcs sémio tiqucs d e la
n,irrnti v ité". /\s p,1gi n,1s ci tad,1s remdt>m ,i ret:.•d iç.'ío.
/\ MUv1()RJ /\ , /\ HISH)R J/\, O FSQU LCIM ENTO

com aquela, mais assustadora, que a história do século XX dev ia desencadear. Uma
ameaça orientada contra a pretensão referencial da história estava, no entanto, contida
na escolha do modelo saussuriano no plano da semiótica geral; já evocamos as con-
scqüências para o tratamento do discurso histórico da exclusão do referente exigido
pela constituição birníria do signo: significante-significado. Para que o estruturalismo
atingisse a história, foi preciso que a preocupação que se pode qualificar de científica
dos seus defensores se somasse a uma preocupação d e teor mais polêmico e ideológico
dirigidc1 contra o humanismo presumido de todas as práticas representativas. A histó-
ria-narrativc1 está então no mesmo banco dos réus que o romance realista. herdado do
século XIX europeu. A suspeita mis tura-se então à curiosidade, sendo a história-nar-
rativa particularmente acusada de produzir um sujeito adaptado ao sistema de poder
que lhe dá a ilusão do domínio sobre si mesmo, sobre c1 natureza e sobre a história 24.
O "discurso da história" para Roland Barthes constitui o alvo privilegiado desse tipo
de crítica desconfiada . Apoiando-se na exclusão do referente no campo lingüístico, o
autor critica a história-narrativa por instalar a ilusão referencial no cerne da historio-
grafia. A ilusão consiste no fato de que o referente supostamente externo, fund ador, a
saber, o tempo das n's gestac, é hipostasiado em detrimento do significado, a saber, o
sentido que o historiador atribui aos fatos que relata. Produz-se então um curto-circui-
to entre o referente e o significante, e " o discurso encarregado apenas de expressar o
real acredita poder prescindir do termo fundamental das estruturas imaginárias, que
é o significado". Essa. fusão do referente e do significado em benefício do referente en-
gendra o efeito d e real em virtude do qual o referente, sub-repticiamente transformado
cm significado vergonhoso, é revestido dos privilégios do " aconteceu". A história pas-
sa assim a ilusão de encontrar o real que ela representa. Na verdade, seu discurso não
é mais que "um discurso performativo adulterado, no qual o constatativo, o d escritivo
(aparente), na verdade é apenas o significante do ato de fala como ato de autoridade".
No final do artigo, R. Barthes pode aplaudir o declínio da história narrativa e a as-
censão da história estrutural; aos seus olhos, mais do que uma mudança de escola, aí
está uma verdadeira transformação ideológica: "a narração histórica morre porque o
signo da história é doravante menos o real que o inteligíve l" . Faltava precisar o m eca-
nismo dessc1 evicção do signifirndo, rechaçado pelo referente presumido. É o que faz
o segundo ensaio, intitulado precisamente "O efeito de real". Procura-se a chave do
enigma do lado do pc1pel exercido pelas anotações no romc1nce realista e na história
do mesmo período, a saber, os detalhes "supérfluos" que em nada contribuem parn a
estrutura da narrativa, para s ua seta de orientação; são "campos insignificantes" em
relação c10 sentido imposto ao curso da narrativa . É preciso partir dessa insignificâncic1
para dar conta do efeito de real. Antes do romance realista, as anotações contribuíam

24 R. Barthes, "Lt' discours dt' l'histoire", l11jim1111tio11s :.; 11r lcs scic11ccs socialcs, 1967, pp. 15.3-1 66, re-
tomado in Li' Brnissc111c11t de la /1111g 11c, Pa ris, Ed. du Seuil, 1984. " L'effet de récl ", Co1111111111irntio11s,
1968, retomado in Lc 13rnissc111t·11t de Ítl /1111g 11c, op. cil ., pp. 153-174. Evocar-se-á també m neste ponto
a crítica dirigida pelos teóricos do Nomw1111 Jfo111/111 (em particular, Ricardou cm Lc No11um11 H.01111111)
contra a "il usão referenc ial" no romance reali sta.
IIISH)R I.\ / Ll' IS T l"\101.()(,1 ,\

para uma verossimilhança de ca ráter meran,ente estético e absoluta mente não referen-
cia l; c1 ilusão referen cial consiste em trans form.ir a " res is tência à orientação" da anot.i-
çi'ío em resistência a um "rea l supos to": por isso mes mo, h ei rupturn entre o , ·erossínül
a ntigo e o realismo moderno. Mas tarnbém, por isso mesmo, nasce um no,·o , ·e rossímil
que é precisamente o reali sm o, ente ndido como "todo discurso que aceita en unciações
creditadas unicamen te pelo re ferente". É de foto o que acontece em história, e m que "o
ter-sido das coisas é um princípio suficiente da fala " . Tal argumento equivale a tra ns-
ferir um traço n ot,hel do roma nce realis ta do sécu lo XIX para a nc1rra ti va histórica.
É o caso de se pe rguntar se a s usp e ita n ão é inteiramente forjad a a p artir d e um
modelo ling üístico inapropriado ,10 di scurso histó ri co, o qu al seria mais be m e n te n-
d ido a partir d e m odelos alternati,·os para os qu ais o referente, q ua lquer que seja ele,
cons titui uma din,ensâo irred utíve l d e um di scurso dirigido por alguém a alguém
sobre alguma coisa. Faltaric1 d ar conta dc1 especificidad e da refere ncialicbd e e m n.' gime
historiográfico. Minha tese é q ue ela ni'ío pode ser d iscernid a u ni ca mente n o p lano do
funcionamento déls figu ras que o discurso histórico assume, m as deve trans itar pela
prm·a documen ta l, pela ex plicação célusa l/ fi n a l e pela com posição litení ri él . Tal c1rca-
bou ço tríplice continua a ser o segredo d o conhecimento histórico 2' .
A ma ior contribuição para a exploração dos rec ursos propria m ente retóricos da
representt1ção h is tórica con tinua él ser a d e H,,yden Wh ite 2" . Elél ,·ale tél nto pelas inter-
rogações que suscitou quanto pela pertinênc ia d as an éí lises desse pen sc1dor preocu-
pado em a mpliar o campo d e consciência d e seus leitores. O debate aberto pelo <1 uto r
em torno da li teratura da Shoél h deu a suas proposiçl-.,es uma d imen si'ío dramMica
que as teses d os estruturalistas d e líng ua frnncesa não alcançar,1 m . Não se tr,lta d e
uma contribuição pélra a episte mologiél d o conhecimento his tó rico, mas d e uma poL'-
tica cujo terna é a imag inação, mais precisamente a imaginação históri Cc1. A este títu lo,
mostra-se fiel ao espírito da época e ao chamado li11g11i::.tic tum, na medida em que essa
im ag inação é apreend ida nas estruturas do discurso. É, porta nto, de a r tefotos , erba is
q u e se tra tará . Ta l obsen ·ação não diminui ern n,1Lia a abrangêncic1 do esco po. De fa to,
soltam-se duas a m arras. A p rimei ra rege a relação da história com a ficção. Considera-
déls sob o âng ulo da imagi nação d a linguagem, narra ti,,a h istórica e narrnti \'a de ficção

2:=; É prec iso um ,kh,1tl' dL' natureza m,1is t6c nica a rL's pe ito d,l p,lpL'l d,1s "anot,lÇlll'S" n,1 lllrlll,1Ç,ll'
do "efeito d e rea l". Q ue l'las constit uem um bom critério pa r,1 c.ir,ir tl'riz,1r CL·rtos rom ,1 ncL's c,H110
reil Iis t,1s 6 ind ubi t,Í\'L' I. Mils scr;í que f u ncion,1 m d,1 me sma for m a n ,1 narr,1ção histlíric,1) !\;,10 sa-
bl'mos ao CL'rhl. Eu sugl'ri ri a <1ssoc iii- l<1 s :i d imens.'i o ta n to ck ,· isibi Iid<1,k qu<11lto dL' IL•gibil idad L'
das estruturn s lite r,iri,1s do discurso h istúrico. ;.\ o dar a n•r també m Je,·a m a crL' r. l'v!.1s, mes mp
e n tão, ils ano t.tçôes n,10 podem ser scparad ,1s d ,1s "no t,1s" q uL', rdl'g,1das ,1os rndap6s, PS qu ,1is o
rom,rnce rt'ílli st,1 ou n,1turalis t,1 dis1-wnsa, lil'sign,1 m .is fnntl'S d ucu nll'ntais n ,)S q uai s SL' b,lSL'i,1rn
os en unc i<1 tfos p()ntu ,1is rel<1ti vos ,1 f.itos isul,1dos . As "not,1s" < 10, ,1ssim, a cxprL'ssão litl'r,íri,1 d a
rdcr['nci,1 d(ic unwnt,1! de primeiro g rau dll disc urso hi stó rioi.
2h H,1ydL'n Wh ik, Ml'f11lii~l c>n1. TI,, · H i.,forit"al /11111:,;in11t i, ,11 in X / X· Ccn/11 1_11 E11 n>pc, 13.iltimure L' l.(m-
dres, T lw Johns l lopkins Uni vers ity Prt'ss, 197:1; Tropic, of Dí,,l1111s,·, l3,1ltimore e Londrl'S, Tlw
Jo hns H(1pkins Uni , ·L'rsity Press, 1978; Tire Cl'11fcnt o(t/1,· fcimr , 1987. SobrL' ess,1s obr.is, cf. T.·111p~ 1'/
l~hil, t. !, op. cit. , pp. 286-:\0I ; l. Ili , (l/1, cit, p p. 273-282. C f. ,1indi1 R. C h,irtiL'r, "F ig ures rh0t,,riqucs
t't rcpr6sent,1tion hi sto riqul'", A11 />o rd d,· /,1 till11is1·, 11p. cit., pp. lll8 -12:',.
A MEM ()R I A, A III ST (rntA, O ES()U ECl\11.:NTO

pertencem a uma única e mesma classe, a das "ficções verbais". Todos os problemas
ligados à dimensão referencia l do discurso histórico serão abordados a partir dessa
nova classificação. A segunda amarra rege a distinção entre historiografia profissional
e filosofia d a história, pelo menos a parte da filosofia d a his tória que assume a forma
de grandes narra tivas em escala mundial. Ficam assim colocados no mes mo âmbito
Michelet, Ranke, Tocqueville, Burckhardt, Hegel, Marx, Nietzsche, Croce. A proble-
mática comum a todos eles é dar à imaginação histórica a forma de discurso, de um
modo que leve em conta a retórica e, m ais precisa mente, a retórica dos tropas. Tal
forma verbal da imaginação histórica é a composição da trama, o emplotnicnt.
Em Mctnfiistory, a abrangência do olhar do autor manifesta-se no fato de que a ope-
ração d e composição da intriga é retomada por urna seqüência ordenada de tipologias
que dão ao empreendimento o feitio de uma ta xonomia bem articulada. Mas nunca
se deve perder de vista que tal taxonomia opera no nível das estruturas profundas
da imaginação. A oposição entre estrutura profunda e estrutura manifesta não é ig-
norada nem pelos semioticistas, nem pelos psicanalistas. Na situação específica das
fi cçôcs verbais, ela permite hierarquizar as tipologias em vez d e espalhá-l as e justapô-
las. Assim, as quatro tipologias que vamos citar e as composições resultantes d e sua
associação devem ser tidas como as matrizes de combinações possíveis no plano da
imaginação histórica efetiva.
A execução desse programa é me tódica. A principa l tipologia, a que coloca H.
White na esteira de Vico, a tipolog ia d as intrigas, coroa uma hierarquia d e três tipolo-
gias. A primeira depende da percepção estética: é a dimensão story da intriga. De fo rma
semelhante à de Louis O. Mink, a organi zação da história relatada vai além d a simples
cronologia que ainda preva lece nas crónicas, acrescentando à "linha" - story-Ji11c - ,
ao fio da história, umél organização em termos de motivos que podem ser chamados de
inaugurais, transitórios ou terminais. O importa nte é que, como para os defensores do
narra ti vism o exposto acima, a story tem "um efeito explicativo" em virtude unicamen-
te de seu di sposi tivo estrutural. A retórica entra aqui pel a primeira vez em competição
com a epistemologia do conhecimento histórico. A gravidade do conflito é aumentada
por duas considerações: quanto à forma, como insiste a última obra de H. White, de-
veremos di zer que a composição da intriga tende a fa zer prevalecer os conto rnos da
história sobre as significações distintas dos aconteci mentos narrados, na medida em
que a ênfase incide na identificação da classe d e configuração na qual se inscreve tal
intriga. Quanto ao que presumivelmente an teced e a construção da forma, o retórico
não encontra nada anterior aos esboços de narrativ ização, senão um fund o inorganiza-
do - um unproccsscd lzistoricnl rccord. A questão está aberta ao debate d o estatuto dos
dados fac tuais em relação à p rimeiríssima construção d a forma da his tória narrada.
A segunda tipologia refere-se mais aos aspectos cognitivos da narrativa . Mas, à
maneira d os retóricos, a noção d e argumento é considerada mais em sua capacidade
persuasiva do que na d emonstrativa propriamente dita 27 . Que exista uma forma de

27 Uma teoria retórica da argu mentaçiio niio é nllw in ao deba te con tempori\neo. Cf. Wa yn e C. Booth,
J~/1etoric of Fictio11, Ch icago, The Univcrsity of Ch icago Press, 1961. Mais per to das relaçües e n tre
HI ST(lRI ·\ / EPISTI\IOLOCI.\

argumentar própria do discurso narrati\'o e his tórico, e que esta se preste a uma tipo-
logia própria, constitui uma idéia original, quaisquer que sejam os empréstimos feitos
a outros campos além da história da distinção en tre argumentos formalistas, organi-
cistas, mecanicistas e contextualistas 2' .
A terceira tipol ogia, a das implicações ideológicas, depende, antes, dos modos de
engajamentos morais e políticos, portanto, da inserção na prcí.tica presente. Nesse sen-
tido, está ligada ao que Bernard Lepetit chama de presente da história . E\'ocaremos
mais ad iante o problema levantado por essa tipologia, por ocasião do envolvimento
dos protagonistas em certos acontecimentos que não poderiam ser separados de sua
carga moral.
Ocorre então a composição da intriga, considerada por H. White como o modo ex-
plicativo por excelência; foi de Northrop Frye, em A A11nto/J/ÍL1 da Crítica, que H. White
tomou emprestada sua tipologia d e quatro te rmos - romanesco, trágico, cômico, satí-
rico - , aproximando-se assim da retórica de Vico.
Se fosse necessrí.rio caracterizar com um termo próprio o empreendimento de
H. White, seria preciso falar, como o próprio autor, em teoria do estilo. Cada combi-
nação en tre elementos que pertencem a uma ou outra tipologia define o estilo d e uma
obra, que poderá ser caracterizado pela categoria dominante 2'' .
Não se trata de negar a importância da obra pioneira de H. White. Podemos até
lamentar, com R. Chartier, o "encontro perdido" entre Hayden White, Paul Veyne e
Michel Foucault, seus contemporâneos nos anos 70. A idéia de estrutura profunda da
imaginação de\'e s ua indiscutível fecundidade ao elo que estabelece entre criati\'idade
e codificação. Esse es truturalismo dinâmico é perfeitamente plausível. Separados do
imaginário, os paradigmas não passa riam de classes inertes de uma ta xonomia mais
ou menos refinada. Os paradigmas são matrizes destinadas a gerar estruturas mani-
festas em número ilimitado. A esse respeito, a crítica segundo a qual H . White não
teria escolhido entre determi nismo e livre escolha pélrece-me fácil de ser refutada: cabe
precisamente a matrizes formélis abrir um espaço limitildo de escolha. Pod e-se fal ar
nesse sentido de uma produção regrada , noção que lembra o conceito kantiano de
esquematismo, esse "método de produzir imagens". Res ulta daí que as objeções al-
ternadas, de rigidez ta xonômica ou de errânci a no espaço das \'ariações imaginati\'as,
dei xélm de lado a originalidade do projeto, quélisquer que sejam c1s hesitc1çôes e as fra-

rt'túrica e lúgica, Stephen E. Toulmin , Tlt,· U,c-; ,if !\rg1111w11t, C1mbridgl', Cnnbrid gL' L ni,·ersity
Prt'SS, 1958; t rad . fr., Lc~ Lh11gc~ de /'r1 rg 1/111c11t,1t io11 , PMis, l'UF, 199.1.
28 Aiin.il de conta s, a idéia n,'io {> estranha .'1 r o,·lil'LI dl' /\ r istótt'il's, na nwdid ,1 l'm qul' um cod ic iL·ntc
de probabilidadt! est,í lig<1do à compos iç,10 da intrig,1. De rl'sto, a metáfora depemk t,1nto da f L' -
tôrica, enquanto tl'oria d os discu rsos prn\',Ín·i s, quanto d,1 poética, l'nquanto teoria d,1 produç,'io
d os d iscursos.
29 É com a noção d(• esti lo SL'gundo C .C. C ranger ([~~Ili d"11 11,· plt ift1., ,,,,J,ic d11 ~tylc, Paris, ,\rmand
Colin, 1968) qul' seria preci s o n1111parar t) concL·ito do mesmo nome sl'g undo H . Whitl', CPm um ,1
diferença: nl'ste último o es tilo não é a produç,'in concertada d(· uma rl'spost.1 singular apropriada
a uma sit uaçfü1 igu,1]mente singular, mas ,1 L'Xpressão no pl.1110 m,rn i festo d ,1s coerçúcs que regl'm
as es truturas pro funda s d,1 imc1ginaç iit1.
A M FM()l{I A, A fl! ST ()R IA, O ES(JU LCl \!IFN TO

quezas da execução. A idéia de que o autor foi tomado pelo pânico diante do ilimitado
d e uma possível desordem parece-me não só inadequada como injusta, d ado o caráte r
d e processo d e inten ção q ue ela assume 111 • A expressão um pouco d ramática d e bedrock
,i ordcr (rocha ou s us tentác ulo de ordem) não p od eria desviar a a tenção d a pertinência
d o p roblema colocado pela idéia de uma codificação que fun ciona ao m esmo tempo
como um constrang imento e como um espaço de invenção. Abre-se, assim, espaço
para a exploração d as rned iaç<)es propostas pel a p rática estilís tica ao longo d a história
d as tradições literárias. Tal conexão entre fo rm alismo e historicid ad e ainda está por
ser feita: cabe a um sistema d e regras, ao mesmo tempo encontradas e in ventad as,
apresentar traços originais de tradicionalidade que transcendem a a lterna tiva. O mes-
mo acontece com o ch amado estilo. Em compensação, lamento o impasse no qual se
fechou H . White ao tratar das operações d e composição d a intriga como modos expli-
cativos, tidos, na melhor das hipóteses, como indiferentes para os procedimentos cien-
tíficos d o saber histó rico, na pior, como s ubstitu íveis por esses últimos. Existe aí um
verd adeiro cntegory 1J1istake que gera uma suspeita legítima quanto à capacidade d essa
teoria retórica d e traça r um limite nítido entre n arrativa histórica e narrati va d e ficção.
Na m esma medida em que é leg ítimo tra tar as estruturas profundas do imaginário
como matrizes comuns à criação d e intrigas romanescas e à d e intrigas historiad oras,
como atesta seu entrecru zamento na história d os géneros no sécul o XIX, torna-se ur-
gente especificar o momen to referencial que distingue a história da ficção. Ora, essa
discriminação não p ode ser feita sem sair do âmbito d as formas literárias. De nad a
ad ianta então esboça r uma saída desesperada recorrendo simplesmente ao bom senso
e aos enunciad os ma is tradicionais a respeito d a verdade em his tória. É preciso arti-
cular pacientemente os modos d a representação com os d a explicação/compreensão

30 H il ns Ke llne r, Ln11g1111g<' nnd Hi~torirnl Rcprcsc11 /11tío11. Cl'lti11s thc Story Crookcd, Mildison, Tlw Un i-
versity of Wiscon sin Prcss, 1989. O a lvo de ataque é d uplo: é por um lado a c re nça de que foril
ex iste u ma história que pede para se r contada, por outro li1do, a pretens,'lo de q ue essa h is tória
possa ser "d ita de fo rma direta" (~lmight) por um h istori<1d o r honesto ou industrioso usa ndo o
método certo (ris ht). Ape nas a scg und,1 crítica at inge 11. White. 1 lavcri a a lgo vo luntário, repres-
s ivo por fi m - como também se lê e m M. Foucault - , na im pos ição da ordem. A defesa oposta
da d escon tinuidade começa j,1 n a cons ideração do docu men to, cercado d o prestígiD d os arquivos.
Os d estroços do passad o t!s tfío espa lhados, m,1s também os testemun hos sob re esse passado; a
d iscipl ina do cume nta l soma seus p rú prios efeitos d e d estruiçiio selet iva a tod as ilS mo d a lidades
de perd a de informação q ue muti b m a p retensa "ev idência documental". Assim, a retórica nfío
se soma à docume ntação, cercando-a d esde a fon te. Ped ir-se-ia então da na rração que a tenuasse
a a ng ústia susc itad a pe las lacu n as d a ev idê ncia docu me nta l. Mas a na rração p rovoca por s ua vez
novas ansiedadt>s, ligad as a outras descontinuidades. Aqui intervém o debate com a tropologia
introd u z ida por H. White. A le itu ra tropológ ica, di z-se, torna-se por su a vez per turb adora - por-
ta nto, fon te d e nova a nsied ade - se não se recon strú i um n ovo siste ma na base dos quat ro tropos
d e W hi te. O p rctpnso "bcdmck of ordcr" também d eve ser con side rado como u m jogo alegórico em
q ue a ironia é reconhecid a ao mesmo te mpo como tropo mestre dentro d o siste ma e ponto de v ista
sobre o sistem a. 11 . White torna-se suspeito de ter rec uado frt!n te ao que e le próprio chama, com
um mi sto de si mpat ia e ... de a ns ied ade, no fim de Tropics l(( Visco11rsc, de " tl,c nlN1rdisl 1110111rn/ " .
O crítico n ão nos d iz como seria p rec iso esc rever a hi stóri a, nem como a profi ssão de his toriad or
negocia com um a dúv id a que não ser ia "hiperbóli ca '', ma s ve rdadeiramen te metúd ica; lim ita-se a
nos di zer como não se pode escrever a h istória.

<Z> 266 o
HI SHWJ,\ / ll'ISTF \ 1<.ll.lK;11\

e, através desses, com o momento documental e sua matriz d e verdade presumida, a


saber, o testemunho d aqueles que declara m ter se encontrado no local onde as coisas
aconteceram. Nunca acha remos na forma narrativa enquanto ta l a razão d essa busca
d e referencialidade. Esse trabalho de reunificação do discurso histórico considerado
na complexidade das s uas fases operatórias está totalmente ausente d as preocupações
d e H. White.
É em relação a essas apori as da referencialidade d o discurso histórico que a con-
frontação das proposições da retórica narrativa de H. White com os terríveis aconte-
cimentos colocados sob o signo da "solução fina l" constitui um desafio exemplar que
ultrapassa qualque r exercício escolar.
O d esa fio encontrou expressão en fática na noção de "limite da representação" que
dá título à obra de Saul Friedlande r, Pro/1i11g tl,c Li111it::; (i Rcprcsc.'11tation 11 • O vocáb ulo
pode designar dois tipos de limites: d e um lado, um tipo de esgotamento das formas
de representação d isponíveis em nossa cultura para da r legibilid ade e visibilidade ao
aco ntecimento chamado "solução final"; de outro lado, uma solicitação, uma exigência
d e ser dito, represen tad o, elevando-se do próprio cerne do acontecimento, proceden-
do, portanto, dessa origem d o d iscurso que certa tradição retórica considera como
o extralingüístico, banido da terra semiótica. No primeiro caso, tratar-se-ia de limite
interno, no segundo, d e limite externo. O probl ema serié'l então o cfa articulação precisa
entre esses dois tipos de limites. A Shoah, j,1 que temos de chamá-la assim, proporia
para a reflexão, nesse estágio d e nosso debate, ao mesmo tempo a singularidade de
um fenômeno, na fronteira da experiência e do discurso, e a exemplaridade de uma
situação cm que não seriam desvendados apenas os limites cfa rep resentação sob suas
formas n arrativas e retóri.cas, mas todo o empreendimento de escrita da história .
A tropologiJ de H . White não podi a dei xar de ser Jrrastada pelo vendava l'~. Ora,
na própria Al eman ha, uma grande que rela conhecida pelo nome d e Historikcrstreit
(controv érsia dos his toriadores) opusera, entre 1986 e 1988, his toriadores respeita-
dos do período nazista, bem como um filósofo da importância d e Habermas, ace rca
de problemas tais como a singularidade do na zis mo, a pertinência da comparação
com o sta linismo, coloca ndo em jogo a consistência do conceito d e to talitarismo as-
sumido por H. Arendt, enfim a questão da con tinuidade dJ nação a lemã atra,·és - e
além - da cat,í strofe 11 •

31 Sa u l Fr ied land L'r (d i r.), /lro/,ins t/1 ,· Li111it~ o( l~<'J1rc~('///11t icl/1, op. t'ÍI .
32 Doi s de seus a rti gos em T/1(' Co11tc11t o( tl1 c Fo1 111, op. cit., "Tlw , ·a lt1L' of narrativ ity in tlw reprl'se n-
tation of reality " l' "Thl' politics of hi sto ri cal intcrpn:tation", Sl' ric1111 o ,1 1\'tl das crit icas ,·indas do
c,1mpo dos h istLir iadores profi ssiona is, l1vh)m igl ial1l1, C in zbu rg, Spiegl'i , Jacoby.
:n As pL'ças principais d l'ss,1 contn)\'érsia fora m publicadas sob t' título Hi~torikcr~treit. Munich,
Pi pl'r, ·1987; trad . ir. sob o título Oc,•1111/ /'/,i~toirc. l.<'~ doc11mc11t:;; de /11 t'o11tro,·a~c :;; 11r la ~i11s 11!1nité de
/'cxt,•nni1111tio11 de.~ /11 i(, J'ill" /e rt;gi111c 110:i, l'<u is, Ed. d u Ccri, 1988. O famoso título de Ernst Nnltc,
"Un passé qui 11L' n•ut p;i s p,1sse r", ter ia, 1w res tll d o mundo ,Kidcnta l, o d estino qul' se sabL>. Hen -
ry Rllusso acab,iria por ,1pliciÍ-lo ,'1 memúri ,1 fran cesa d o n.'g ime dL' Vichv sob o título modificado
L/11 1111ss,~q11 i nc p11 :;;:;;c ,,,1~.
/1 l'vff!'vl()RfA, /1 HIST()R I A, O FSQUEC IMl: NTO

Foi contra esse pano de fundo carregado de interrogações e paixões referentes à


própria possibilidade de "historiza r" (Historiscrung) o nacional-socialismo, e singular-
mente " Auschwitz", que se d esenrolou o colóquio americano sobre o te rna "History,
Evcnt nnd Discoursc", durante o qual Hayden White e Cario Ginzburg opuseram seus
pontos de vista sobre a noção de verdade histórica. Foi assim que a questão dos limites
da representação sob suas formas na rrativas e retóricas pôde tornar a proporção de
urna s ubmissão à prova - urna provação -dos limites do próprio projeto de se repre-
sentar um acontecimento de tal magnitud e. Hi storização e figuração, mesmo combate
e mesma prova.
Na introdução de Prohi11g t/Jc Li111its .. . , Saul Friedlander propôe um esquema se-
gundo o qua l é preciso partir d os limites externos d o d iscurso para formar a idéia de
limites internos à representação. Sai assim, d eliberad amente, do círculo que forma
consigo mesma a representação. Aconteceu no coração da Europa um "cvent nt thc
li111its" (Probing tlze Li111its .. ., p . 3). Tal acontecimento atinge as camadas mais profun-
das da solidariedade entre os homens: "A uschwitz lws clzn11gcd thc basis for tlu: conti-
nuity of the co11ditio11s of lifc witlzin history" (i/Jid.). A vida-na-his tóri a e não o discurso-
sobre-a-hi stória. É da parte de trás do espelho que se ergue um claim to truth que faz
pesar sobre a representação suas exigências, as quais revelam os limites internos dos
géneros literários: " there are limits to representation whic/J sho11/d not bc b11t ca11 cnsily
be tran sgrcsscd" (itálicos do autor) (ibid.). Pode haver a lgo de wrong com certas repre-
sentações dos acontecimentos (sobretudo quando a transgressão n ão é tão grosseira
quanto a do negacionismo), mesmo sem podermos formular a natureza da transgres-
são, condenada a permanecer no estado de m al-estar. A idéia de transgressão con-
fere, assim , uma intensidade inesperada a um debate iniciado no plano inofe nsivo,
se não inocente, da semiótica, d a narratologia, da tropologia. O acontecimento "nos
limites" tra z a s ua opacidade própria com seu caráter mora lmente "inaceitável" (a
palavra assume a força da lítotes) - seu ca rá ter de "ofensa m oral" . A opacidade
dos acontecimentos passa então a revelar e d enunciar a da linguagem. Ora, essa
d enúncia reveste um ca ráte r insólito num momento do d eba te teórico marcado pelo
que se convencionou chamar de "pós-modernismo", momento em que a crítica d o
realismo ingênuo es tá cm seu apogeu em nom e da polissemia en nbfmc do discurso,
da auto-referencial idade das construções lingi.iís ticas, que tornam impossível a iden-
tificação de toda e qua lquer realidade estável. Sendo assim, q ual resposta plausível o
chamado pós-modernismo poderia dar à ac usação de desarmar o pensamento frente
às sed uções do negacionism o?1 ~

34 "Tlu· cxtcr11li11ntio11s of t'1c /nus lf Europc ns t!,c 1110,t extrcl//c case of 11111, s cri111i1111/ities 11111st c/1111/cngc
t'1corctici1111s of !,istorical rclativism to f ace ti,c corol/11riC's of positions othcrwisc too c11sily dco/1 wit!, 011
1111 n/7::;tmct levei" (Probin:,; l he Li111its o/ Rcprcsc11toticJ11, up. cil., p. 2). É bem verdad e que Fr ied lander
reconhece com o s críticos que não é possível somar num a super-história o ponto de vista dos
ext>cutantes, da s v ítimas e dos espectíldores que assi stiram aos acontecimentos em posições d ife-
rt'ntes. A dificuldade, e ntão, não seria uma invenção do pós-modernismo; este teri a servido como
re velador qua nto a um inextricável dilema s uscitado pela "próprié1 'solução final '".

·~ 268 ~
J I JST( lR I .\ / l l' IS Tl\1ll l tlC I .·\

Confrontado ao esqueIT1a de Friedlander, que procede do acontecimento nos limi-


tes em direção aos limites internos à operação de representaç,fo, H. White tenta, com
ex trema hones tidad e, ir o mais longe possí\·el em d ireção ao acontecimento parti ndo
dos recursos retóri cos da própria representação verba l. Mas uma tropologia do dis-
curso his tórico podia asse melhar-se a algo corno uma "demé1nda ", no sentido forte da
p alavra inglesa, uma clai111 to tru t'1, oriunda dos próprios acontecimen tos ?
O e nsaio de H. Whi te exibe uma espécie de retaliação d e seu próprio discurso.
Por um lado, o au tor exagera a " rclati,·idad e inexpugnável " de toda rep resentc1 ção
dos fenó menos históricos. Tal relatividade d e\'e ser atribuída à própria linguage m, na
medida em que não constitui um 111cdi11111 tra nspa rente, como um espelho que refl etisse
um a realidade presumida. O par intriga / tropo é nova mente consid erado como o lugar
d e resistência é1 qu a lquer retorno n u m rea lismo ingênuo. Por outro lado, cresce uma
suspeita ao longo do ensaio, segundo a qual haveri a n o própri o acontecimento algo
tão monstruoso que derrotaria todos os modos d e re presentação disponíveis. Esse algo
não teria nome cm n enhuma classe conhecida de intrigas, seja ela trágica, cómica ou
outra coisa qualque r. Seguindo a primeira tendência de seu discurso, o autor acumu la
os bloqueios no caminho d o acontecimento. É impossível , declara ele, dis tinguir ent re
"enu nciado factu al " (p roposições ex iste nciai s sing ula res e argumentos), d e um lado,
e rela tórios narrati,·os, do outro; de fato, es tes últimos não d eixa m de transforma r
lis tas d e fatos em storics; ora, estas trazem consigo intrigas e tropos e suas tipologias
próprias. Só ficam os com co111pctiz 1e 11111T11tiucs e ntre as quais nenhum argume nto forma l
permite decidir e nenhum critério tirad o dos enunciados factuais propõe a rbitragem,
uma ,·ez que os fatos já são fatos d e lingu agem . Encontra-se assim solapada no princí-
pi o a distinção entre interpretação e fa to, e ca i a fronteira entre hi stória "\'erdadcira"
e "fa lsa", entre "imaginá rio" e "factual", en tre "figuratin/' e " litera l". Apli cadas aos
aconteci mentos d esignados pela expressão "solução final ", essas considerações con-
du zem à impossibilidade de dar sentido no pla no na rrati Yo à idéia de modalidade
inaceitável de composição da intriga. Nenhum dos mod os conhecid os de composição
da intriga é 11 priori in aceitável; nenhum tampouco é adequado'ª. A distinção entre
aceitável e inaceitéÍ\·el n ão depe nde da tropologia, mas procede de outra região de
nossa capacidade recepti\'a que n ão daquela educad a por nossa cultura narrati\'a. E,
se dissermos com C. Stciner que "o mund o de Auschvv itz reside fora do di scurso as-
sim como reside fora da razão" (citado por H ayde n White i11 Fri edlander, Pro/,i11g t!,c

3:'i Por que n ão o ge rwrn cúm ico, p ratic.ido l'll1 tnm dl' sâti ril , co mo L'm A11111 ., : S11 n 'Íi'11/\ '!ili,· Lk .A rt
Spiegelnrnn 7 Ta mpoucP h ,\ arg umen to dL"cis in) extra ído Ltl h istória dos gêneros liter,üil1s pc1r,1
julgitr a tcntati, ·a de rL'presentação t r,\gic,1 rws d o is ensa ios de A . H illg rube r em Z ,Peil'rlt'i L/11ter-
gm1g: dic 7 ,•rsch/11:,:: 1111g de;; Oe11 tsc/1e11 /~eicl1e., 11 11d da s b ufe d,·s F.11n1piiisd1e11 / 11d1·11/11111s, lk rli n , S il'd lt.· r
VL'rlag, 1986 (trad . ing l., Til'tJ Kil1(Í,; of R11i11 : lhe Sl1t1t l ai11g of lhe Cen11,111 !frid1 ,111d //1 c F.11rope,111 f c,l'r_11).
Nada impede q ul' se heroiciZl'l11 os ca rnckrcs ex ig idos pelo modo tr<1g icn. O utro colabor,ldL))' C\lm
o ,·olumc d e Frit.'d la ndl'r, reter Amkrslm , l'X plora os recu rsos de u m g(' ne ro litl'r,\ rio próxinH1 (ti
(01/11/io da antiga rl'lúrica praticad ,1 pelo m es1lll1 Hillgrubl'r, o prncL"di nwn to que consi ste em colo-
ca r duas nar rilções u m a ao hido d .i outra, il do ,1ss assinilto dl)S jude us e a d a ex pulsão dos a ll'm,ks
d os il ntigos tt.'rritt'1r ios do Les te: just,lpl)Siç.'lo, s uge re-se, não Ya ll' comparação . Ma s é p,1ssí,·c l
c,· it,1r desc ul par uma por trnn s fcn•nci,1 d,1 c,irga l' m11cio n,1l de uma il outr,1?
A M EM ( )R IA, A IIIST()R I J\ , O ESQU FCI ME NTO

Limits .. ., p. 43), de onde pode vir o sentido do indizível e do irrepresentável? Não se


resolverá a dificuldade proibindo qualquer outro modo além da crônica literal, o q ue
equivaleria a pedir para desna r rativiza r os acontecimentos visados. Essa não passa d e
uma forma desesperada de resguardar de tod o acréscimo figurativo uma representa-
ção literal dos acontecimentos: a solução é d esesperada no sentido cm que recai nas
ilusões do realismo ingênuo que foram comuns à principal corrente do romance do
século XIX e à escola positivista em historiografia . É ilusório acre ditar que os enun-
ciados factua is possam satisfazer à idéia do irrepresentável, como se, pela virtude de
sua apresentação literal, os fatos pudessem ser dissociados de s ua re presentação cm
forma de acontecimen tos numa história; acontecimentos, história, intriga estão ligados
solidaria mente ao plano da figuração. H . White desenvolve o argumento até a su speita
atingir todo o empreendimento de representação rea lista de realidade pelo qual Erich
Auerbach caracteriza ra a cultura do Ocidente-·(). No final d e seu ensaio, H . White tenta
uma saída heróica, ao sugerir que certas modalidades de escrita que se dizem pós-
modernistas - que e le insiste em chama r d e modemist - poderiam ter certa afinid ade
com a opacidade do acontecimento: ass im a escrita "intransitiva", cuja noção é em-
prestada de Roland Barthes, que por sua vez a aproxima da "via m édia" da gramática
do grego an tigo; White p en sa reencontrá-la e m certas anotações de J. Derrida sobre a
"différance". Mas, se o estilo d e middlc voiccdncss rompe efeti vamente com o realismo,
o que gara nte que esteja em afinidade com "a nova efetividade"? O totalitarismo não é
de fato 111odernist? Será que basta romper com a representação realista para aproximar
a linguagem não só da opacidade, como também do caráter inadmissível da "solução
final"? Tudo se passa como se, no fim do ensaio, a crítica sem concessão do realismo
ingénuo contribuísse paradoxalmente para fortalecer a demanda de verdade vinda
de fora do discurso, à força de tornar irrisórios os esboços d e comp romisso com um
realismo q ue se torno u inencon trá vel.
Dian te de H. White, Cario Gi nzburg faz uma defesa vibrante não do realismo, mas
da pró pria realidade his tórica do ponto d e vista do testemunho. Lembra ndo a d eclara-
ção do Deuteronômio 19,15 (q ue cita em lati m): 11011 stabit testis 1111us contra nliqucm - ,
faz uma comparação com a prescrição do código Justiniano: h'stis 1mus, testis nulllls. De
golpe, o título "Just onc witness" produ z um som desesperado, como se os documen-
tos acumulados fi cassem abaixo d o limiar do duplo testemunho, a menos que se de -
signe por antífrase o excesso dos testemunhos em relação à capacidade das intrigas
de produzir um discurso coerente e ace itável1 7 . O a rrazoado cm favor da realidade do

:16 A gr.:inde obrn de E. J\ ucrb.:ich é intitulad .:i Mi111csi,; : Dnrgc,;tc/lte Wirklichkcit i11 der t1/)('11dlii11disc!,rn
Litcmt11r, Bc rnc, Frnnckc, 1946; trnd. fr. de Corn clius He im , Milll('SÍ~ : /11 rcprl,c11t11tio11 d1· la 1ú1/ité
d1111s /11 /ifh' mfu rc occidc11tnlc, Paris, Gall imard, 1968. Evoco-a cm Te11111s ct /<.écil, t. li, op. cit., p . 157,
n. 2. No primeiro capítulo, o .:iu tor insiste na profundid.:ide, na riqueza com o p.:ino de iundo das
personagens bíblicas, como Abraão, o apóstolo Pa u lo, d iferentemente das personagens homéric.:is
sem dcnsi<.fad e. J\uerbach vê nessa profundidade um indício de rea lidade.
:17 C in zbu rg pcns.:i .:i tingir o argumento de Whi te ao trn zer à to na s u as raízes s uspeit;1s n o rela tivis-
mo e no idea li smo dos pe nsadores ita lianos lk ned etto C roce e Cent ile. Ele seg ue se u ra stro até em
T/1c Co11tc11 / of lhe FM111 de 1987.
III Slll l<I·\ / Ll'ISIF\1010(,li\

passado histórico, aparentado ao de Vidal-Naquet em Lcs /11{1< la Mt'111oire, !e Pn'sc11t


de !11 111('111oirc (La Décom ·erte, 1981, 1991 , 1995), assume assim o
e em Lcs /\.ss11ssi11s
duplo aspecto de uma atestação incontest,h·cl e de um protesto moral que prolonga a
\·iolência do impulso que leva um sobn.'\'i\·ente como Primo Levi a testemunhar 1' . É
sobre esse e maranhado da atestação e do protesto no caso da lite ratura da Shoah que
é preciso refletir. Sem admitir esse estatuto misto, não se compreenderia por que nem
como a representação den•ria integrar il sua formula ção a d ime nsão "inadmissÍ\·el"
do acontecimento. Mas e ntão, tanto quanto o historiador, é o cidadão que é solicitc1-
do pelo acontecimento. Solicitado ao nÍ\·el de sua participação na memória coletiva,
diante da qual o historiador é chamado a prestar contas. Mas este não o faz sem lançar
mão dos recursos críticos que estão na éllçada d e s ua competência de his tori,1d or pro-
fissional. A tarefa do historiéldor frente a.os acontecimentos " nos limites" não se limit,1
à habitual caça à falsificação que, desd e o caso c.fa Ooaçiio de Co11s ta11 ti110, tornou-se a
gra nde especialidade d él hi stória eruditél . Estende-se à discriminação dos testemunhos
em fun ção de sua origem: diferentes são os testemunhos de sobre\'iventes, diferentes
os de executantes ;", diferen tes os de es pectadores en\'oh ·idos, a títulos e graus di\·er-
sos, nas ,1trocidades d e massa; cabe então à crítica histórica explicar por que n,'ío se
pode escrever a história ab ran gente que anularia a diferença intransponí\·el entre as
perspectivas. Tais consideraç<)es críticas podem partirnla rmente ajudar a dissipa r que-
relas inúte is como a que opõe his túriél d a \·id,1 cotidiana do povo alemão, históriél das
coerções económicas, sociais, culturais, ideológ icas, his tória da tomada de decisão na
cúpulc1 do Estado: a noçiio de escalas, de escolha de escalas e de mudança d e escalas,
poderia ser élqui innKadél de maneirél útil, d e encontro ao enfrentamento e ntre inter-
pretação dita "funcionalista" e interpretação dita "intencionalista"; como já \·imos, as
próprias noçôes de fato e interpretaç,'io \'Miam segundo él escala considerada. O histo-
riador da Shoah tam pouco deveria se d e ix,u intimidar pelo postulado segundo o qual
explicar é desculpar, compreender é perdoar. O julgamento moral emaranhado com o
julgame nto histórico está ligado a uma camada do sentido his tórico diferente daquela
da descrição e da ex plicação; não de\'eria, portanto, intimidar l) historiador a ponto d e
le\·á-lo a censurar-se.
É possível precisar com mais antecedência de que form u o julga mento moral,
significado pela expressão de inaceitá\·e l, endereçado por Sa ul Friedla nder a esta ou
aquela forma d e figuração do acontecimento, se articula com a vig ilâ ncia crítica de
que acabamos de dar a lguns exe mplos? É o que Adorno procura\'a saber ao pe rgun-

18 Foi assim m es mo qm' FricdlandL'r rL'Cl'beu o l'n sa io dL' C aril) Cin zburg: " Embora a crític,1 d,1s
posi çôcs de 'vVh i!L' j .. . ] optL' por uma abnrd ,1g L'lll ep istemolúg ic.i, a defcsd apaixonad.i de CMIL)
Cinzburg da o bjt>ti,·id,1de e da verdadL' hi st<1 rica b,iseia-se t,rnto numa posiçZw profundanwn-
tl' é tica quanto cm categorias ,rna lítirns" (F riedl,rndcr jdir.J, /Jrp/,i11g tlic Li111ils o( l~eprc~c11tat1u11,
P/'· â t., p. 8) .
39 Em um dos cn s,1ios rL'unidns por S,1ul hiL·dl,1ndcr, C. R. 13nl\\ ning cx pôe seu tr,1balhn sobrL' llS
a rqui,·os de um bata I h,io da pol ír ia de rl'SL'n ·a ,1 IL'm,i em ll~Wraç,io nu ma cidad1..,z inha pl1lones,1 :
"Cermil n memon·, judici,11 inter rog,1tion and histnr ica l rl'cons truction : \\'ri t in); pL'rpl'trator h is-
torv frnm post,,·íl r tl'stinmny" (i/,id., pp. 22-36) .
/1 MLM(lRI A, A III ST() Rl/1, () ES(JUFCIMEN 10

tar: "What does coming to tcn11s with (A1~farbcitu11g) thc past 111et111?"4º Pode ser d e algum
socorro recorrer de forma prudente a categorias psicanalíticas tais como trauma, re-
petição, trabalho de memória, entendido como working thro11gh, e, acima de tudo, à
de transferência aplicada não a pessoas, mas sim a situações nas quais os agentes da
história foram diversamente " investidos" . Por outro lado, arriscamo-nos a fazê-lo ao
falar dos usos e abusos da memória e singularmente dos embaraços da memória im-
pedida41. É numa situação comparável que o trabalho da história é confrontado com
os acontecimentos no limite. É preciso retomar como ponto de partida, aqui, a diver-
sidade da s situações das testemunhas convocadas, tal como foi evocada acima: não se
trata apenas de pontos de vista diferentes, mas de investimentos heterogêneos. É a via
explorada por Dominick La Capra em s ua contribuição a Probilzg thc limits .. .: antigos
nazistas, jovens judeus ou alemães, etc., estão envolvidos em situações transfcrenciais
diferentes. A questão então é saber se um critério de aceitabilidade poderia ser extraí-
do da maneira como determinada tentati va de tratamento histórico de acontecimentos
supremamente traumáticos é suscetível de acompanhar e de facilitar o processo de
working through 42 • Nesse sentido, o critério é mais terapêutico do que epistemológico.
Seu manejo é difícil, na medida em que o historiador está, por sua vez, numa relação
transferencial indire ta com o traumatismo através dos testemunhos que privilegia. O
historiador também tem um problema d e identificação no momento de escolher seu
7.1is-à-vis. Tal redobramento da relação transferencial confirma a posição híbrida do his-
toriador confrontado com o Holocausto: ele fala na terceira pessoa enquanto cientista
profissional e na primeira pessoa enquanto intelectual crítico; mas não se pode fixar

40 Citado por Dominic k La Capra, "Represcnting thc Holocaust: reflcctions on the historians' deba-
te" (íbid ., pp. rnH-127) .
41 Cf. acima, pp. 83-86.
42 "How slro11/d 011(' 11c:;:oât1t<' tm11sjá<'11ti11/ re/11tio11;; lo tire o/Jjcct of ;;t11dy 7 '', pergunta La Capra (Frie-
d lande r [d ir.j, 011. cit., p. 110). Estl' apl ica sem demorn seu critério aos termos de um dos debates
mais agudos da controvt'.'rsia dos historiadores alcmc'íes: a q uestão cm saber se o Holocausto (foi
o termo escolhido pelo autor, que justifica cuidadosamente a escolha: op. cit., p. 357, n. 4) deve ser
tratado, enquanto fcnúmeno hi stórico, como único ou compará vel. Este não é nosso problem,1
aqui; mas t'.• interessa nte notar a forma como La Caprn aplica seu critério que se pode chamar d e
terapêutico. H,í um sentido, di z e le, e m que o acontecimento deve ser tomado como único, tanto
pela m agn itude de seus efeitos devastadores L1uanto por sua origem no compor ta mento de um
Estado criminoso; há um sent ido em que é comparável, na medida em que unicidade está ligada
,'\ diferen ça e diferença, à comparaçi'í o, e em que comparar pertence a entende r. Mas é a forma
como o argumento d a unicidade e o da compara bili dade são manejados que importa: a questão
é saber a cada vez, por e xemplo, se a compnração contr ibu i, ao nivelar as situ açôes, à denegação,
ou cntiío, ao contnírio, se a proclamação veemente da unicidade incomparéÍvel do aconteci mento
não leva, na via d a sacrn li zaçfü) e d a monumentalização, a uma fixação do trauma tismo que seria
preciso ílssimila r, com Freud, à repetição, a qual, como já v imos, constitui a principal rcsistênciél
ao ,uorki11g tlzrouglr L' leva ao atolamcnto no acti11g 011!. !'ode-se di zer o mesmo da escolha de esca las
evocada acima, segu ndo se mergulhe na vida cotidiana do povo a lemão ou se se te nte desvendar
o segredo da decisão na cúpula . A questão deixa en tão de ser a da primaz ia da unicidade ou da
comparabilidade, ou até da centralidade opos ta à margina lidade, passando a ser ,1 de saber de que
forma tal abordagem contribui para uma boa negociação das "relaçôcs transfe renc ia is com o ob -
jeto do estudo". Ora, os impasses do ,11orki11g t/rro11g!, não são menores de um lado que do ou t ro.
HI ST ( )I<!-\ / l l'ISTF\HllOCI .-\

a distinção entre o especialista e o que Raymo nd Aron teria chamado de espcctador


engajado.
Se remontarmos agora à fonte da demanda por \'crdadc e, portanto, ao loca l do
traumatismo inicial, convém dizer que essa fonte não est,i na representação, mas na
experiência viva do " fazer história" tal como é diversamente enfrentada pelos prota-
gonistas. Foi, como dissemos com Hélbermas, um "ataque à camada mais profunda de
solidariedade com aqueles que têm figurél de homem" 4 '. É n esse sentido que o acon teci-
mento d enominado Auschwitz é um acontecimento nos limites. Ele o é já na memória
individual e coleti\'a, antes de sê-lo no discurso do historiador. É desse foco que se
ergue a atestação-protesto que coloG1 o histori ador-cidadão en1 situação d e responsa-
bilidade em relação ao passado.
Devemos continuar chamando de externo esse limite imposto às pretensôes de
auto-suficiência das formas retóricas da representação? Não, se considerarmos a natu-
reza , ·erdadeira da relação da história com a memória, que é a de urna retorna da crítica,
tão interna quanto externa. Sim, se considerarmos a origem de tal pretensão, que é n,e-
nos ligada ao uso cfeti\'o das formas retóricas do que à teoria literária - estrutura lista
ou outra - que proclama o fechamento cm si das configurações narrativas e retóricas
e declara a exclusão do referente extraling üístico. Isso posto, externo e/ ou interno, o
limite inerente ao acontecimento dito "nos limites" prolonga seus efeitos no cerne da
representação cujos limites próprios ele faz aparecer, a saber, a impossível adequação
das formas disponíYe is de fi g uração à d e manda de verdade que surge do coração da
histó ria viva. Oe\'emos chegar à conclusão do esgotame nto dessas formas, e antes de
tudo ao das for mas herdadas da tradição naturalista e realista d o romance e da histó-
ria do século p assado? Certamente. Mas essa constataçã o não deve impedir, de\·e, ao
contrário, estimular a exploração de modos d e expressão alternativos, eventualmente
ligados a outros suportes além do livro dado a ler: en cenação tea tral, filme, arte plás-
tica. Não é proibido procurar infinitam ente preencher a dis tância entre a cap acidad e
representa tiva do discurso e a solicitação do acontecimento, e\'itando nutrir, em fa\'or
dos estilos de escrita que H. White chama de 1110dcmi:=; t, uma ilusão parale la à que ele
denuncia do lado da tradição reali sta.
Resulta dessas considerações que a tentativa d e escre,·er a históri a da "solução
final " não é um empreendimento desesperado, se não esquecermos a origem dos limi-
tes de princípio que a a fetam . É, antes, a oportunidade de recordar o trajeto que d en:
efetua r o crítico, remontando da rep resentação à explicação / com preensão e dest,1 ao
trabalho documental, até os últimos teste munhos, cuja com p ilaçiio se sabe estar esti-
lhaçada, entre a voz dos algozes, a das dtimas, a dos sobre\·i,cntes, a dos espectadores
di,·ersa mentc em ·oh·idos~4 •

-B Jürgen H,1bcrm.is, [ ín,· /\ ri Sd111dc11~of,,1,i(k /1111s , Fr,rncfort, 1987, p. 16.l O .1rtigo pode ser lido L'm
fr,111ei:·s in Ucrnnt /'/11~/oirc, sob o títuln : "Unt' m,rnierc d e liq uidl'r ll's d o mm,1gl's. Ll'S tend,rnces
,1pnlogétiq ues dans l'h ish1riogrn phie rnntl'mpora in e ,1 llemande" (clJI. â f., p~~- .+7-61).
-+-+ N,1Lfa C, dito aqui d a infl ui:,ncia Lwn0fica c.ubrt.' a memúri,1 cPkti,·a que St ' p(1dc es~wrar d ,1 ,1prc-
sentilçi'ln L' da p ub lic,1ç,10 do'.-> g rnndl's procl'~:-os criminilis d ,1 s l'g und ,1 ml'tadc do séc ulo XX. I::I,1
/\ MEM()Rl t\ , 1\ III ST Ú RI/\, O ESQUl:CIML~TO

Perguntaremos por fim em que os problemas colocados p ela escrita do aconteci-


mento "nos limites" denominado Auschwitz são exemplares para uma reflexão geral
sobre a historiografia? São exemplares na medida em que eles próprios são, enquanto
tais, proble mas " no limite". Encontramos no caminho várias ilustrações dessa proble-
matização extrema : impossibilidade de neutrc1lizar as diferenças d e posição d as teste-
munhas nos jogos de escalas; impossibilidade de sornar numa história abrangente as
reconstruções avalizadas por investimentos afetivos heterogéneos; dialética intrans-
ponível entre unicidade e incomparabilidade no pró prio cerne da idéia de singulari-
dade. Toda singularidade - ora única e /ou ora incomparável - talvez seja, a duplo
título, portadora de exemplaridade.

III. A representação historiadora


e os prestígios da imagem

Numa primeira aproximação, a evocação da dimensão icônica da representação


historiadora não deveria trazer grandes transtornos a nossa análise. Ou, de fato, trata-
se apenas da oposição entre dois gêneros literários totalmente constituídos, a n arrativa
d e ficção e a narrativa histórica, ou então só se acentuam certos traços já observados da
n arratividade e amplamente comentados sob o título dos efeitos retóricos solidários da
composição da intri ga.
Gostaríamos d e mostrar que, sob o termo d e imagem, volta ao primeiro plano uma
aporia cujo local de origem está na constituição icônica d a própria memória .
Fiquemos um tempo no nível do que acaba de ser chamado de primeira aproxima-
ção. O par narrativa histórica / narrativa de ficção, tal corno aparece já constituído no
nível dos géneros literá rios, é claramente um par antinômico. Urna coisa é um roman-
ce, mesmo realista; outra coisa, um livro de história. Dis tinguem-se pela natureza do
pacto implícito ocorrido entre o escritor e seu leitor. Embora inforrnulado, esse pacto
estrutura expectativas diferentes, por parte do leitor, e promessas diferentes, por parte
do autor. Ao abrir um romance, o leitor prepara-se para entrar num universo irrea l a
respeito do qual a questão de saber onde e quando aquelas coisas acontecera m é in-
congruente; em compensação, o mesmo leitor está disposto a operar o que Coleridge
chamava d e wilful s11spension of disbelief, sem garantia de que a história narrad a seja

s upiie a qua lificaçiin penal dos crimes de massa, logo, uma junção entre julgamento m oral e julga-
mento lega l. A possibi lidade de tal qu a lifirnçiio está inscrita no própri o acontecimento enqua n to
crime do terceiro, is to é, desse Estado que d eve segu ra n ça e proteção a quem que r que resida e m
seu território dl' jurisdiçiin. Esse aspccto de " hi s toricizaçào" d os acontecime ntos tra um Micos não
d iz respeito ape n,1s à s ua fig uraçiio, ma s à sua qualificaçiio lega l. (Cf. Mark Osiel, Mass Atmci t y,
Col/ecfipc A,11'111ori1 ,md t lic Lmu, New Brunswick [USA], New Jersey (USA), Transac tion Publ., 1997.)
Voltaremos a cssl' ponto qua ndo d a discuss;io sobre as re lações entre o h isto riador e o juiz. Mas
podemos desde j.-í obser var que essa q ua lific;ição lega l desmente a tese segundo a qual o acon tec i-
m ento Auschw itz Sl' ri,1 indi z ível s ob todos os aspcc tos. É p ossível e é necess,h io fa lar dele.
IIJ S J'l )J{J .\ / l l'I SH \ 10 1. 0 CJ ,\

interessante: o leitor s uspende de bom grado sua d esconfiança, sua incredulidade, e


aceita entrar no jogo do como se - como se aquelas coisas narrad as ti vessem aconte-
cido. Ao abrir um livro d e história, o leitor espera entrar, sob a conduta do devorador
de arquivos, num mundo de acontecimentos que ocorrera m realmente. Além disso, ao
ultrapassar o limiar da escrita, ele se mantém e m guarda, abre um o lho crítico e exige,
se não um discurso ,·erdadeiro compará,·cl ao de um tratado de física, pelo menos um
discurso plausível, ad missível, prován'I e, em todo caso, honesto e verídico; educado
para d etectar as folsificaçôes, não quer lidar com um mentiroso~'.
Enquanto continuarmos assim no plano dos gêneros literários constituídos, não se
pode admitir a confusão, pelo menos no princípio, entre os dois tipos de narra ti vas.
Irrealidad e e realidade são tidas como mod al idades referencia is heterogêneas; a in-
tencionalidade histórica impli ca que as construçôes do historiador tenham a ambição
de serem reconstruçôes mais ou n1cnos aproximadas d aquil o que um dia foi "real",
quaisquer que sejam as dificuldades suposta mente resol\'idas d o que continuamos
a chama r de rcpresentância, às quais dedicaremos as últimas discussões do presente
capítu lo. Entretanto, a d espeito da distinção de princípio entre passado " real" e ficção
"irreal", um tratamento dialético d essa dicotomia elementar impôe-se pelo fato do
entrecruza mento d os efeitos exercidos por ficções e narrati\'as verd adeiras ao nÍ\·el do
que se pode chamar de "o mundo do texto", pedra angular de uma teoria da leitura~".

45 É na b,1se d e um.1 "re lação de contraponto" e ntre a ficção e o mundLi hi st{irico que, e m fr111 p~ ct
Ri;cit Ili, trnto d e "o e n trec ruzamento da his túria l ' dil ficçiin " (rn p. ::;), após ter consid e rado sepil-
radamente, d L' um lado, "a ficçãn e as Yar iaçi)es im agi nati \·as sobre n tcmpn" (Gip. 2) e, de o utro,
" .i re<1 lidndt· do passado histórico" (c,1 p ..i). A o pç.io do livro t!ra e nti\o exa min m di ret,rnw nte .i

re lação e nt re íl narrati\·c1 e o tempo sem considL·ra r a nwmúria; L'I',l "a ne utra li zaç,10 do te mpo
hi s tó rico" que me sen·ia co m o tt•m a d e intrnd uçãu paril o g rande jogL) da s \·ariações imag in,iti\·ns
produ zid as pl'líl ficção sobre o local da falha entre tempo \'i\·ido e tempo do mundo; a al forri,1
da narra tiva de fi cção quanto às impnsiçôes do te mpo calcndárico era assi m cons ide rada um fato
d e c ultura doc u ment;ido pela história liter,íri,1 d esde a e popéi;i e a tragédia grega até o rom c1 nce
moderno e contemporâneo. A pc1la\'ril ''p,ic to" fo i pronunciada uma \ 'l'Z (Te111ps ct Rà·it, t. li, op. cit.,
p . 168), e m refe rênc ia à obra de Philippe LejL'une, /.e l 'actt' 1111tobiogmFhiq11c, Paris, Ed. du Seuil, 1975.
46 O mundo do tex tn: "esll' mu ndo no qu;il podL·ríamos morm e dL'sdobrar nossas po tencia lid ades
m <1is pL'Sso a is" (7i·1111>~ d Rt·cit. t. 111, ovcit , p . l-l9). Esse tema é introdu zido em Tc1111>s ct Rt·ât l sob
o título da tríplice 111i111csis, a refig u ração consti tu ind o o terceiro estágio rni m ov imen to da fi g ura,
após a config u ração, e, 111.1 is aci ma, a p re figu raç.'i o do tempo ('fr111ps t' / l\ ú· it. t. 1, op. cit. , !v1i111l'Sis li 1,
~, p . 109-129). A teoria dos efeitos c rn z,1dos d ,1 narrati\·a dl' ficção t' d ;i n.irr,1tiva hi s túrira constitui
,1 peça-mes tra dos dispositi\'os dl' refig uraçüo d o IL'mpo em Tc111ps ct l\,'(Ít Il i, cap. 5. A única ques-
tão ,1utor izada, dL'sdt• que St.' ace itL' como ce rta ,1 d ifL' rL'nça entrL' gt'llL'nis likr,íri o s j,í c()n s titu ídos,
é c1 do "en trl'cr u z,Hl)t'ntu da hi s ttí ri a e Lirl ficçiio " no pl a no de rdigur,1ç,i,1 det iva do te m po \'Í\·ido,
sL' m clln s idL'r,1r a rn t'd iaçãn d,1 mL·m(Í ri,1. EssL' entrccr u z.1 men t(1 C()Jl sistL' no fa to de q ue " .i histúriil
t> ,1 ficçiio só C(incrctizam c,1da um a s ua rL·s~wct i\ ·,1 intL·nc ion,llid ,1dt> qu,1ndo recorrem 11 ink nci,1-
n,1Iid ad c d,1 ou tra " (op. (i /., p. 265). Dt• um lado, podc-sl' fol ar em h istcir izaç,10 d ,1 ficç.'\o nil nwdid,1
L'l11 qut.• a su spL'llS<t(l c,llnp lact•nll' da s uspL' içc.io b,lSt'Ía-st.' num ,1 1wutrn li zaçc.io dos t raçns ''rc,1 li s-
t,1s" n,10 só d ,1s n,1rr,1 ti\·,1s hi s tó ric.1s ma is d.ibor,1d,1s, m,1s tc1m bt' m das n,1rral i\·as de \·id a mai s
L'Sp,mtâ neas, ilss im Cllml) d e tod as as n,1rr,1ti\·,1s lig,1das ao q ut' SL' pode c ha m a r dL' n a rrati\·as d l'
conversação . Já o re pdimlls com l la n n,1h ,\ n•nd t. ,1 na r rati,·.i diz o "quem " d a ;ição; é a ,1çc.io Cl)lllll
modelo de ekti\ ·id ,1de que le \'<l a n.ir1-.1ti\·,1 p,1r,1 s u,1 L·sfe ra própria; nL'SSe sen tido, narrar o que q ul'r
qut· SL'Ííl é na rrá-lo cumo se ti\'l'SSL' acuntt'cidu. O "corno se pfl'ti \'<l lllen te 0CL1rrido" fa z partl' do se nti-
1\ Ml'M()R I A, /1 HIST(ll{l/1, O 1-' S(JL'FCIM F N TO

O que chamávamos antigamente de "ficcionalização do discurso hi stórico" pode


ser reformulado como entrecruzamento d a legibilidade e da visibilidade no seio da re-
presentação historiadora . Surge então a tentação d e procurar do lado dos efeitos retó-
ricos evocados acima a chave desse imaginário de um n ovo gênero. Não chamamos d e
fi guras os trapos que não só ornamentam como também articulam o discurso histórico
com sua fase literária? A sugestão é boa, mas leva muito mais longe do que o previsto.
De fato, o que tem que ser d esdobrado, como no exame do avesso de uma tapeça ria,
é p recisamente o elo tecido entre legibilidade e v isibilidade no nível da recepção do
texto literário. De fato, a narrativa dá a entend er e a ver. A dissociação dos dois efeitos
emaranhados é facilitada quando se separam o enquad ra mento e o seqüenciamento, a
estase descritiva e o avanço propriamente narrativo, ele mesmo precipitado pelo que
a roéticn d e Aristóteles chama de peripécia, tra tando-se cm particular da reviravolta e
dos efeitos violentos. O historiador conhece bem essa altcrnância47 : muitas vezes é por
uma junção de quadros que ele descreve a situação em que se implanta o início de sua
narração; é da mesma forma que p ode termina r sua obra, a menos que resolva d eixar
as coisas em suspenso, como Thomas Mann perdendo dei iberadamente de vista seu
herói no fim d e A Montanha Mágica: o historiad or não fica alheio a essas estratégias de
encerramento de narrativa que só adquirem sentido, aos olhos do leitor esclarecido,
graças a um jogo hábil de frustração com suas expectativas habituais. Mas é com o
retrato das personagens da n arrativa, sejam narrativas de vida, narrativas de ficção ou
narrativas históricas, que a visibilidade s upera claramente a legibilidade. Ora, aí está
uma tese constante deste livro: as personagens da narrativa são inseridas na intriga

do que atribu ímos a toda narrativa; nesse nível, o sentido imanente é insepa rável de uma referência
externa, asseverada, nega d a ou suspensa; essa ade rência da referência ad cxt m ao sentido a té na
ficção pa rece implicada pelo caráter posicional da asserção d o passado na ling uagem comum; algo
que foi é afirmado o u negado; resulta daí que a narrativa d e ficção mantém esse traço posicional na
form a do q uase. Quase-passados são os q uase-acontecimentos e as quase-personagens das intrigas
fictícias. Além disso, é g raças a essa simu lação de existência que a ficção pode explorar os aspec-
tos da tempora lidade vivida que a narrativa rea li sta não atinge. As variações imagi nati vas sobre
o tem po q ue explorava Tc111ps ct !<.écit Ili ex traem sua força de exploração, de descoberta, de revela-
ção, das estrutu ras profundas da experiência tempora I; da í resu lta o caráter d e verossimilhança q ue
Ari stóte les associava às fábulas épicas ou t n1gica s. É graças a essa relação de veross imilha nça
que a narrativa d e fi cção está habilitada a detectar, na forma das variações imag inativas, as poten-
cialidades não efetuadas do passado histúrico. Por outro lado, produz-se um efeito de "ficcionaliza-
ção da h istória", atribuível à interferência do imaginário nesse <1specto: a construção dos apa re lhos
de medida do tempo (do s 11ô111<111 ao calendário e ao relógio) e de todos os ins trumentos de datação
do tempo histórico - um produto da imaginação científica; quanto a esses ra stros que são os do-
cu mentos de a rqui vo, eles só se tornam legíveis a parti r de hipóteses interpretativas produ zidas
pelo que Collingwood chamava de imaginação histórica. Esbarrávamos, então, num fenómeno ao
qual a presente ancfüse va i voltar e q ue vai muito a lém das mediações imaginárias que acabamos
de enumerar: a saber, o poder de "descrever" ligado à função propriamente representativa da ima-
g inação hist<írica.
47 R. Koselleck, "Représentation, événe mL'llt et s tru cture", in Lc F11t11r passt:, np. cil., p. D3. Entre os
proble mas da rcpn.'scntação (D11 rstel/1111g), o au tor distingue cntrl' narrar (crz.iihlcn) e descrever
(l)('sc/1reibc11), a estrutura ficando do lado da dcscriçiio e o acontecimento, do lado dn narrativa.
Cf. aci m a, pp. 235-238.
HI ST()R L\ / J: J' ISrt-: \llll()(;J ,\

ao mesmo tempo em que o são também os acontecimentos que, juntos, constituem a


história narrada. Com o retrato, distinto do fio da trama da narração, o par do legí\'el
e do , ·isível desdobra-se nitidamente.
Ora, acontece que esse par di:1 lugar a trocas notáveis que são fontes de efeitos de
sentidos comparáveis àqueles que se produzem entre narrativa de ficção e narrati,·a
de história. Pode-se dizer alternadamente do amador de arte que ele lê uma pintura~'
e, do narrador, que ele pinta uma cena de batalha. Como são possíveis tais trocas? Será
apenas quando a narrativa expõe um espaço, umJ paisagem, lugares, ou quando se
detém num rosto, numa postura, num porte, cm que uma personagem se dá a ,·er por
inteiro? Em resumo, só há legibilidade numa relação polar com a visibilidade - dis-
tinção que a superposição dos extremos rü'io aboliria? Ou é preciso di zer que, em todos
os casos, a narrativa coloca diante dos olhos, dá a ver? Já é o que sugere Aristóteles
em suas observaçües sobre a metáfora cm Retórica /1/. Irn·estigando as "virtudes da
/cxis" (locução, elocução), o filósofo assc\'era que tal virtude consiste em "colocar sob
os olhos" (III, 10, 1-110 b 33). Esse poder da figura de colocar sob os olhos d eve ser li-
gado a um poder mais fundamental que define o prnjeto retórico considerado em toda
a sua abrangência, a saber, a "faculdade de descobrir especulativamente o gue, em
cada caso, pode ser próprio para persuadir" (1356 b 25-26 e 1356 a 19-20). O pit/11111011 ,
o "persuasivo enquanto tal", eis o tema recorrente da retórica. Certamente, persuasão
não é sedução: e toda a ambição de Aristóteles terá sido estabilizar a retórica a meio
caminho entre lógica e sofística, graças ao elo entre o persuasi,·o e o verossímil no sen-
tido do provável (to cikos). Essa definição da retórica como tckll/lt' do discurso próprio
para persuadir est,1 na origem de todos os prestígios que o imaginário é suscctí\'el d e
enxertar na visibilidade das figuras da linguagem 44 .
Acicatados pela perplexidade dos grandes Antigos, reatamos o fio interrompido de
nossas reflexões sobre a dialética de ausência e de presença iniciada no âmbito de uma
história das representações sociais. Admitimos naquela ocasião que o funciona1nen-
to dessa dialética na préHica reprcsentati\'a dos agentes sociais só é verdadeiramente
esclarecido quando retomado e explicitado pelo próprio discurso do historiador re-
presentando-se a representação dos atores sociais. A representação-operação, ao nh·el
da qual permaneceremos agora, não constituirá apenas um complemento do olhar da
representação-objeto de história mas também um acréscimo, na medida em que c1 re-
presentação-operação pode ser tida como a fase reflexiva da representação-objeto.

-!8 Louis Marin , Opaót,; de /11 pci 11t11 rc. bs11i~ ~111· /11 1l'pré;;c11/ation d11 Q11111/n>cc11 ft>, l'a ris, Ushcr, llJ89,
pp 251 -266.
-!lJ No prúprio Aristó te les, um e]() mais secreto se l'stabelece entre() poder da metáfora d l' pC1r sob os
olht1s e o projeto de persuasão que ,111imc1 a rl't{1rica, a saber, o pode r da nwtcifora de "significar as
ct1isas em ato" (Ili , 11, 1-111 b 2-t-25 ). Ora, qu a ndo o di scurso 6 mais aptLl a sign ificar as coi sas cm
,ito 7 A respost;i est,~ na rnd irn, ciê ncia da produçã() dos di scursos: t' quando o 11111 //Jo;;, c1 l,íbul,1 ,
a intriga, con segul' produzir uma 111i111(·~i~, um,1 imitação, uma rcpresent,1ç,'io dos '\wrsonagens
como ,ittwntes e em atp" (PO<;lirn, ·1-1-18 ,1 21). Um,, ponte é a ssim lançadc1 ent re a v isibilid,1de no
d iscurso e a energ ia n.i s coi sas hum ;i n zi s, L'ntrL' ,1 metáfora \' i\·,1 e ,1 ex istl; ncizi \'Í\',). - A L'x press.'10
"pôr sob os olhos" far<1 um sucesso considcr,ín.> l, d;i retórica de Fontanier dté ,1 semióticzi de l'l'ircl',
cf. La !vktapliorc ,·i,•c, cap. 5, § 2, " Le monwn t ict1niqul' dl' la m éta phore ", L' § 6, " lcônc e t imagl'".
A MEM()RIA, A 111Sl( JRIA, O ESl.)UlCIMENTO

Proponho tomar aqui como guia os trabalhos que Louis Marin dedicou aos prestí-
gios da imagem, tais como os vê lucidamente fomentados por bons escritores do sécu-
lo XVII para a glória do poder monárquico e de sua figura encarnada, o rei. Durante
minha leitura do Portraít du roi50 deixarei em suspenso a questão de saber se persiste
alguma instrução, referente às relações entre justificação do poder e prestígios da ima-
gem, para os cidadãos de uma democracia que acredita ter rompido com o elogio do
rei, além do que se tornou para eles uma espécie de caso um tanto exótico.
Louis Marin enfatiza de pronto a força, o poder da imagem que substitui uma coisa
presente em outro lugar. É a dimensão transitiva da imagem que é assim enfatizada
no que se pode chamar de uma "teoria dos efeitos" que encontra em Pascal ecos fortís-
simos. "O efeito-poder da representação é a própria representação" (Le Portraít du roí,
p . 11 ). Tal efeito-poder encontra seu campo privilegiado de exercício na esfera políti-
ca, na medida em que nela o poder é animado pelo desejo de absoluto. É a marca do
absoluto depositada no poder que deixa, por assim dizer, o imaginário transtornado,
levando-o para o lado do fantástico: à falta de infinito efetivo e substituindo-se a ele,
"o absoluto imaginário do monarca". O rei só é verdadeiramente rei, isto é, monar-
ca, nas imagens que lhe conferem uma presença considerada real. Aqui, Louis Marin
lança uma hipótese sedutora segundo a qual "o imaginário e o simbólico político do
monarca absoluto" teriam reencontrado "o motivo eucarístico" cujo papel central fora
mostrado no trabalho anterior do autor sobre a Logíque de Port-Royal. O enunciado
"este é o meu corpo" não governaria apenas toda a semiótica da proposição atributiva
no plano lógico, como também o discurso do poder no plano político51•
A frase "o Estado sou eu" seria o equivalente político da frase de consagração da
hóstia"2 . Só sabemos que essa "transposição" política é da ordem do "engodo", na
linha da "fantástica" evocada por Platão em O Sofista, na base de um discurso externo,
irônico e crítico, que Louis Marin vê formulado nos famosos Pc11sarnc11tos em que Pas-
cal desmonta impiedosamente o jogo velado das trocas entre o discurso da força e o
discurso da justiça . São, assim, instaurados e praticados três níveis de discurso: aquele
implícito na representação que opera no cerne da prática social, aquele explícito da
representação articulada pelo louvor do poder, aquele que revela o poder como repre-
sentação e a representação como poder. Terá o terceiro discurso, que dá uma dimensão

50 Louis Marin, Lc Jlortrnit d11 roi, op. cit.


51 Loui s Marin encontra um a base pa ra sua exegese do di scurso do poder no grande livro de Ern s t
H . Kantorowicz, T/1c Kill{s Two Bodic:=;. J\ St11dy ili M cdincvnl JJolitical T/Jcology (Princeton, Princeton
University Prcss, 1937; trad . fr., Lc~ Vc11x Corps d11 roi, Pa ris, Gallimard, 1989), que expõe a função
d e modelo jurídico e político d esempenhada pela teo logia católica do corpus mystic1u11 na elabo-
ração da teoria da realeza, da coroa e d a dignid ade reais. Se apenas o corpo fís ico do rei morre,
p ermanecendo o se u corpo místico, é porque, sob a égide da teologia do sacramento, a in s tituiçfi o
moná rqui ca baseia-se na "repetição de um mis tério sagrado do signo e do segredo" (L c flortmit d11
mi, op. cil., p. 14).
52 Loui s Marin fala aqui de "paródia da Eucari stia": "a intrans ponível fronteira" entre "os símbolos
eucarísticos de Jes us Cristo" e "os signos políticos do monarca" (Lc Por/mil du rui, op. cit., p. 18) foi
trans posta pelo desejo de absoluto do p oder, mt•diante "a representação fantá stica do mo narca
absoluto em seu retrato" (í/1id.) .
IIIST( lRI.-\ / l l' ISTI\Hll.OCl 1\

antro pológiG1 ao jogo da representação e do poder, a virtude d e pôr cm movimento


outra investigação que versaria sobre um jogo comparável que prossegue além da
queda da monarqu ia, em novas p rojeções do poder do rei? Tal é a perg unta que por
enquanto mantere1nos em suspenso.
Seja qual for a natureza dessas ressonâncias políticas d a teologia d a trans ubstan-
ciação e d o caráter d e desvio potencialm ente blasfematório d a operação, é notá\·el
que o discurso do poder, quando exp licitado no plano da representação historiadora,
assuma si multanea1nente as duas formas da n a rra ti va, enKador de ausência, e do
ícone, portador de presença real. Mas, tomadas juntas, ausência e presença p roduzem
a representação como poder "no fantasma de um corpo real, de um retrato do príncipe
chamado de mon arca absoluto". "De um lado, portanto, um ícone que é a p resença
real e viva d o monarca, do o utro uma narra ti va que é seu túmulo que subsiste para
sempre"']. Louis Marin propõe duas ilustraçôes desse duplo funcionamento da re-
presentação do poder. Urna primeira vez, com o comentário do " Projet de l'histoire
de Louis XIV" endereçado a Colbert pelo historiador de co rte Pe llisson-Fontanier'-1,
é a legibilidade da narrativa que gera a visib ilidade em um quase-"retratar". U ma
segunda vez, com o tratamento como " hóstia real" de "a meda lha histórica " cunhada
à efígie d e Luís XIV,\ é a \'isibilidade do retrato que engendra a legibilidade de um
quase-recitativo da glória.
O " Projet d e l'histoire de Louis XIV" é de fa to um texto extraord inário, no sentid o
em que expõe aos olhos do le itor os estratagemas da história ainda a ser escrita , no
intuito, mal dissimulado, de fazer cai r por sua vez em sua armad ilha, que é apenas a
outorga de uma s ub ve nção real, o destinatário último da escrita, a saber, o rei. Assim
posto a nu, o estratagema da escrita da história reduz-se ao uso ard iloso dos prestígios
da imagem a serviço do louvor. Outra retórica diferente da das figuras é aq ui mobi-
lizada, a retórica d e origem aristotélica dos três géneros do discurso público: género
judiciário que rege as advocacias, gênero deliberativo que impera na decisão políti-
ca, género epid íctico (também chamado de demonstrativo) ilustrado pelos louvores
e pelas reprovações, a oração fúnebre constituindo s ua mais eloqüente expressão. Tal
classificação, m ais regrada pela distinção entre os destinatários do discurso d o que
pela diferença d os procedimentos de esti lo, retoma vigorosamente a exploração reg ra-
da do discurso de elogio que, na época do poder monárquico absoluto, ocupa o lugar
desmedido que o abafamento do gênero deliberativo, relegado ao segredo do gabinete
do rei, deixa vago. Ora, a que se destina o louvor, na ordem do poder político? À gran-
deza, e ao brilho dessa gra ndeza que é a glória. É ao serv iço da grandeza e da glória
que são dispensados os prestígios da imagem invocados pelo "Projet de l'histoire de

'i'l O s lóg icos d t' l'ort-Ro~·,11 fonwcl'ram um instrumL·nto an a lítico pa ra di s tinguir a narrnti\·a d o
ícone ,w examinar e m L'Arl de pc11scr (li , IV) o enunciado "O ret rato dl' Cés.H, é César", e ,H) exem-
p lificar por mapa s e retratos a definição do signn como reprl'senta ç,'i o fundame n ta n do o d irl'it()
(k dar ao sig no o nome da coisa s ignificad ,1 (1, IV ) (Lc J>o rl mit clu roi, ()p. t"it., p. 16) .
.'i-1 "LL' réc it d u rui ou commcnt écrire l' hi stti irc ". i/,íd. , pp. 49-1()7.
:,:, " L' hos tie roy,1 le : la mú ic1ille h istorique", ibid ., pp . 1-17- 168.
i\ Mr.M ( >Rl i\, A tll ST(>RI ,\, O FSQ U EC I MLN TO

Louis XIV". A astúcia do historiador cm oferta de serviços é primeiramente antecipar


a forma como se pensa um poder que se quer absoluto: "Qual é a fantasmática na qual
e pela qual se racionaliza a política desse d esejo? Qual é o imaginário do absolutismo e
o papel e a função d a historiogra fia na constituição dessa fantasmática e na construção
desse imaginário?" (op. cít., p. 59.) O argumento da armadilha, com licença d a palavra,
cabe inteiramente na frase profe rida pelo turibulário: "É preciso louvar o rei em tod a
parte, mas por assim di zer sem louvor, por uma narra tiva d e tudo o que o vim os fa-
zer, dizer e pensar .. . " O ardil funciona se o louvado r conseguir "arrancar [os epítetos
e louvores que o rei merece] da boca d o leitor pelas próprias coisas". Não cabe ao
escritor dizer a grandeza e a glória: cabe ao leitor, sob a hábil condução da narra tiva.
Devem também ser contados entre os recursos narrativos assim mobilizados em vista
do efeito de louvor o enquadramento d o campo d e forças, a abreviação na narrativa
das façanhas, a brcvitas, cara a Tácito, fa zendo as vezes d e líto tes, a pintura d os atores
e das cenas, e todos os simulacros de presença suscetíveis de suscitar o prazer de
leitura. Um lugar d e honra d eve ser atribuíd o à hipotipose narrativa, essa "descrição
animada e marca nte" (Robert) que, mais do que qualquer outro procedimento retórico,
coloca sob os olhosS6 e erige, assim, a personagem, o acontecimento, a cena em exem-
plos instrutivos: "Tudo d e grande que [a história] encontra, coloca-o sob uma lu z mais
bonita com um estilo mais nobre, mais composto, que contém muito em pouco espaço
e onde não há palavras p erdidas". Assim se exprime Pascal sob o título d e " Razão
dos efeitos" (Pensamentos, maço V, citado in Le Portrait dll roi, p . 100). A preocupação
de mostrar contando é ainda mais m arcante n o Élogc historiquc du Roí sur ses conquêtcs
dcpuis l'an née 1672 j11squ 'c11 1678, de Racine e Boileau. Louis Marin des taca estas frases
eloqüentes: "Algumas pessoas mais partícula rmente zelosas d e sua glória quiseram
ter em seu gabinete um resumo em quadros d as maiores ações d esse príncipe, o que
deu ensejo a esse opúsculo que encerra tantas maravilhas em p ouquíssimo espaço,
para colocar-lhes a cada instante sob os olhos o que vem a ser a mais cara ocupação de
seu pensamento" (op. cit., p. 148). A grandeza do monarca salta aos olhos, uma vez que
a estratégia da narrativa consegue d eixá-lo parecido com o arqui-ator da gesta.
Tal é resumidamente o ardil historiador, digno da mctis d os gregos d escrita por
Jean-Pierre Vernant: consiste na dissimulação do próprio projeto de panegírico que,
tal qual o recalcado, deve retornar pela boca do leitor. Pode-se então falar em "simu-
lação historiadora" (op. cif., p. 191) para dizer esse poder da representação "d e que o
absoluto precisa para se constituir de forma absoluta" (op. cit., p . 91), poder dirigido
para a extorsão do panegírico no momento d a leitura. O surpreendente é que o au-
tor d o projeto de his tória tenha ousado desmontar a armadilha ao enunciá-lo - para
deleite do historióg rafo contemporâneo. A qu estão será para nós saber se, com o fim
da mon arq uia de Ancien Régime e a transferên cia para o povo da sobera nia e de seus
atributos, a historiogra fia pôde eliminar da representação qualquer vestíg io do discur-

56 I\ expressão "pôr sob os o lhos", que vem diret<1men te d,1 Rctórirn de Ari stóteles, é ;iplicad c1 por
Fon tan ier à hipotipose, que, observ;i L. Marin, leva ao auge o esti lo de narração ao ;inul á-lo na
fi cção de uma presença "sob os olhos" (i/J id., p. 148).
III ST (lRL\ / ll' I S!l\!l)l. l)C I..\

so d e louvor. Será perguntar ao mes mo tempo se a categoria de grandeza e a de glória,


que lhe é conexa, podem desaparecer sem deixar vestígios do horizonte da história do
poder. Estava resen·ado apenas à " maneira absolutista d e escre\·er a história absoluta
do absolutismo" (op. cit., p. 107) extrair da legibilidade da narrati\'a a visibilidade de
uma descrição narrativa que conseguiria "pintar mais do que contar, fazer ver à ima-
ginação tudo o que se põe no papel", segundo o desejo com o qual conclui o autor do
"Projet de l'histoire de Louis XIV"? A democracia moderna pôs fim ao elogio do rei e
à fantasmática a sen·iço deste elogio'~?
A relação entre legibilidade e visibilidade é alterada no re trato do rei em medalha.
Ou melhor, é a troca entre legibilidade e \'isibilidade que pro\·ém do pólo irwerso.
Louis Marin pode dizer no início do seu estudo sobre " L'hostie royale: la médaille
historique": "Narrar a história do rei em um relato é fazer com que seja vista. Mostrar
a história do rei em seu ícone é fazer com que seja narrada " (op. cit., p. 147). Um quias-
ma se estabelece fazendo com que o quadro narre e a narrativa mostre, cada modo
d e re presentação encontrando seu efeito mais específico, m ais peculiar, no campo do
outro. Por outro lado, di z-se que se lê um quadro pintado. A medalha é o procedi-
mento mais notável de representação icônica capaz de simular a visibilidade e, ainda
por cima, a legibilidade, pelo muito que ela dá a narrar ao dar a ver. Diferentemente
da iluminura que ilustra um texto, ou até da tapeçaria que quase sempre representa
apenas um instante de história, a medalha é um retrato que, como a hipotipose, ofe-
rece um resu mo em forma d e quadro. Ao dar a ver o retrato do rei numa inscrição
específica, uma gravura no meta l, a medalha retrata, pela virtude do ouro e de seu
brilho, o esplendor da glória. Além disso, a medalha, assim como uma moeda, pode
ser mostrada, tocada, trocada. Mas sobretudo, graças à dureza e à durabilidade do
metal, fundamenta uma p ermanência de memória, ao transformar o brilho passageiro
da façanha em glória perpétua. Uma escala com a narrativa é gara ntida pela divisa
inscrita no anverso da figura do rei marcada em s ua efígie e e m seu nome; ela garante
a exemplaridade potencialmente universal das virtudes g ra\·ad as no ouro. No centro
resplandece o nome. O louvor chega ao nome atra vés de façanhas e \'irtudcs. Foi assim
que a medalha histórica p ôd e e m sua época ser chamada d e monumento, assim como
os sepulcros funerários que avisam e admoestam todos aqueles que esti veram ausen-
tes d o local e do tempo sobre o acontecimento rememorado. A medalha histórica do
rei foi por excelência "o signo monumental do poder político absoluto na infinidade de
sua representação" (op. cit., p. 150).

:i7 Exce to P<1sGli , que l'\'llC,iremos m a is adi a nte, n Crn nde Séc ul o n,lL) p.ireCL' ter k~va(fo a auto crí-
ti ca a lém de frágei s di s tinçôes e ntH· o t•lo gin e a bajulaçãn: se rá q ue o e log io s e diferen ci a d ,1
bajula ç5o a pe nas pL·l,1 moderação, pela resen a, pt'l a prc teriç,iLl (" lou\·ai o Rei em toda par te,
m as po r assim d izt'r se m louvor"), ll'\·and(l -SL' em C(lnta a auto ri zação dada pe la instituição
:d esiástica o u p ol ític,1~ O ba julad(lr d L'\'l' a ind a SL'r u m parc1 sit,1, Ctltllll s ugere ,1 111,íxim,1 de
a Fn ntaine na bibula O Cor,•o !' 11 R11pP~1i? St•ria prL·ciso reler (l famosti tt•xto da h ' 110111,·11<1hi_\ i11
c:,;pfrito de Hegel sPbrc a baju lação, conw n •co m L·n d ,1 L. Milrin , " Lcs tactiqucs du rl'nard " (/.,·
'f rait d11 roí, 011. ci t., pp. 11 7-·129); ac rl'SCL'ntaria Lfr bom g rado .1qui ,is p,iginas quP Norbl' rt Fl i,1s
j ica c10 cortes5o cm L11 Sot"id1: de w 11r.
A Mt:ivt()Rl i\ , A IIIST()RIA, O ESQ U l:C IMFNHl

Encerrou-se o tempo da medalha, pelo menos no Ocidente, com a queda da monar-


qui a absoluta? Desapareceu com o do elogio contido na narrativa do rei? Sem dú vida
sim, se a ênfase reca ir na conotação teológica que autoriza a chamar a medalha de
"hóstia real", " hóstia sacramental do poder de Estado" (op. cit., p. 164). Talvez não, se
conferirmos à temática da grandeza a permanência por assim dizer transistórica que
lhe permitiria sobreviver à glória defunta do monarca absoluto. Um pouco de brilho,
um pouco d e glória não continuam a aureolar a figura contemporânea do príncipe,
mesmo quando seu retrato se reduz à dimensão d e um selo postal? Mas as medalhas
tampouco estão faltando em toda parte e em todos os tempos ...

Dissemos que a representação narrativa e iconográfica operada pela história trazia


à luz do dia a representação praticada pelos atores socia is. Mas o que traz à luz do dia
as estratégias da representação, quando estas são ditas fomentadas por um imaginário
fantasmático e denunciadas como simulacros? Quem está falando aí?
A resposta de Louis Marin em Le Portrait du roi é impressionante. É nos Pe11sa-
111c11tos de Pascal, que tratam da força e da justiça, que o leitor vê desmontados os
prestígios da imaginação. Não é mais então no plano da operação historiográfica que
o pensador dos Pensa111e11tos exerce s ua lucidez, mas n o d e uma antropologia filosó-
fi ca cujas proposições fazem abstração de toda localização no espaço geográfico e no
tempo histórico, emboré1 fosse lícito, para um discurso d e gra u aind a superior, o de
uma his tória das idé ias, considerar como datado e situ ad o este ou aquele pensamen-
to. Mas n ão é assim que os Pe11sn/llentos pedem p ara ser lidos: o pacto com o leitor é
aqui o da veracidade frente à dissimulação' 8 • O que os famosos Pc11samc11tos, tratando
das relações entre a força e a justiça, trazem à baila, são os "efeitos" do imaginário
que resume a expressão ainda não evocada d e levar a crer. Tal "efeito" é um efeito
de sentido na med id a cm que é um efeito d e força . Duas proposições são articulad as
por Louis Marin:

1. "O discurso é o mod o de existência de um imaginário da força, imaginário cujo


nome é poder."

2. "O poder é o imagimírio da força quando ela se enuncia como discurso de justi-
ça" (op. cit., p . 23).

De um lado, portanto, a fo rçc1 torna-se poder ao adotar o discurso d a justiça, do


ou tro, o discurso da justiça torna-se poder ao substituir os efeitos da força. Tudo se

58 Essa reh1ção críti ca d e seg undo g rau entre o simples rela tó rio dos proced imen tos do elog io
crítica pasca liana da im ag inn ç,10 é ilpresentada na in trod ução ao Portmit d11 roi como a reve'
de u m "contra modelo" (op. cit ., p. 8) em reh1ção .'1 teori a dn ling uagem dos Sen hores de Port-'
il q ual o ,1utor d ediGira uma obra a nterior inti t ulada La Cr itiq1H' d11 disco11rs. Ét 11dcs s11r la "
de flort- f?.oy11/" ct /e, " /Jcll ,i'C, " de /J11~c11/, op. cit. De fa to, ca racter izou-se como desv io o u so
do modelo tL'olúgico da Eucar is ti,1, no qu,11 Louis Marin vê converg ir a sL'm iótica d a prop
a tcolog i,1 do sacrame11to.
IIIST(lRI\ / Fl'ISlT\IOl.llCl 1\

trava na relação circular entre substituir e ser considerado como . .. É o círculo do fazer
acreditar. Aqui, o imaginário não designa mais a simples \·isibilidade do ícone que
coloca sob os olhos os acontecimentos e as personagens da narração, mas também. uma
potência discursiva.
Não se trata de empreender aqui urna exegese dos fragmentos que sugerem seriar
as três palavras mestras "força", ,,justiça", "imaginação", como se fosse autorizado
um ünico percurso: ora são comentadas separadamente, ora em pares, nunca as três
juntas. É, portanto, urna interpretação, aliás altamente plausí\·el, que Louis Marin pro-
pôe nas páginas magníficas que constituem a "abertura" da obra com o título "O rei
ou a força justificada. ComentéÍrios pascalianos". A reunião e a seriação de declarações
tiradas dos Fmg111mtos são abertamente orientadas pela preocupação de desmantelar
os estratagemas da imaginação do poder. "É preciso ter um pensamento por trás e
julgar tudo por aí, falando, entretanto, como o povo" (La fuma , fragmento 91 ). Apenas
o par força/justiça é estabelecido pelo texto, podendo-se colocar como sedimento a
famosa asserção: "Sendo impossível impor a obediênciJ à justiçJ, foi imposta como
justa a obediência à força. Sendo impossín'I fortalecer a justiça, justificou-se a força ,
a fim de que o justo e o forte ficassem juntos e reinasse a paz, que é o bem soberano "
(fragmento 81). A justificação da força pode ser tida como a proposição pi\'Ô de toda
uma mont<1gem em que são revelados sucessi\'arnente os títulos do justo a ser seguido
e os da força a ser obedecida, depois a inversão das aparentes simetrias da força e da
justiça: "A justiça sem força é contradita, pois sempre há rnah·ados: a força se1T1 a justi-
ça é acusada" . Deixa-se cm suspenso a questão de saber o que seria sua reconcilia ção:
" Portanto, é preciso colocar juntas ... " Só importa para nosso propósito o discu rso de
autojustificação da força. Nesse ponto crítico é lícito inserir o não menos famoso frag-
mento sobre a imaginação"". Que, falando de "essJ amante de erro e de falsidade",
de "essa soberba potência inimiga da razão" (fragmento 81), Pascal tivesse explicita-
mente em vista os efeitos d e pode r político, continua discutível: o discurso de filosofia
antropológica é colocado sob a égide de conceitos de maior alcance, tais como miséria
e vaidade. Todavia, tomados em conjunto, os fragmentos 44, 87,828 autorizam, entre
\'árias leituras possíveis, o tratamento do imaginário como operador do processo de
justificação da força : de fato, a própria imaginação é uma potência - "soberba potên-
cia"; "ela leva a acreditar, a duvidar, a negM a razão "; "ela dispensa a reputação, que
confere respeito e \'eneração às pessoas, às obr,1s, às leis, aos grandes". Outros efeitos:
"a afeição ou o ódio mudam a face da justiça "; e ainda : "a imaginação dispõe d e tudo;
faz a beleza, a justiça e a felicidade que é o todo do mundo" . Qual outra potência além
da imaginação poderia revestir de prestígio juízes, médicos, pregadores? O mais c io-

::;9 Ao comentar u tn,c ho irCmicn do fr,1 gnwnt\\ lS=i: "Q ua nto m,1is bral;o~, m,1is força . St' r Cllrdjl)Sll é
mostrar sua tllrç,1", Louis l'v1arin introdu z a intl'rL·ss,rnte noçiio de " mais-Y,1lia ", mai s L'Xdt,llllL'n tl'
dl' m ,1is -va lia signiiica ntl', qul' L'U t,llllbL'lll ll'st,11\1 cm l.'lift;o/i,gi,· t'I /' L/topic, em contexto \ izi nho,
,l saber, a tl'oria d,1 dlm1in,1ç,io de Ma x \Vebcr e sua tipologia das (rL·nç,1s legitirnador,1s. Eu (\ l lll -

p,ir,ira o que era d itll L' Ilt,10 d a c rença como "L'Xccdente " próprio da idéia d e mais -\·a I ia na ordL·m
simbó lica.
/\ M l·: \,1()RI/\, /\ HI ST(JR IA, O ESQUFC IMF N T<l

qüente de todos os Fmg111e11tos, a meu ver, é aquele, entre os papéis não classificados
na Série XXXI, que confronta numa pungente síntese as "cordas de necessidade" e as
"cordas de imaginação": "As cordas que ligam o respeito d e uns para com os outros
são geralmente cordas d e necessidade; pois é preciso que haja diferentes graus, já que
todos os homens querem dominar e nem todos o pod em, mas alguns sim. [ ... ] E é aí
que a imaginação começa a desempenhar seu papel. Até então, foi a força pura que o
fez. Aqui, é a força que se limita pela imaginação a um único partido, na França o dos
fidalgos, na Suíça o dos plebeus, etc. Ora, essas cordas que ligam, portanto, o respeito
a este e aquele em particular são cordas de imaginação" (fragmento 828). Neste ponto,
o discurso pascaliano é verdadeiramente o discurso de acusação da força sem justiça;
a tinge verdadeiramente a " tira nia" no poder dos grandes; mas se atinge a vaidade d o
poder, é porque visa além do políticd•1•

Até onde a epistemologia crítica da operação historiográfica está habilitada a avan-


çar nessa pista para a qual a levam os "comentários pascalianos" de Louis Marin? Não
muito longe d e sua área de competência, mesmo se esta for estendida à ordem das
representações ligadas à prática social. Bastante longe, entretanto, se for preciso encon-
trar na dimensão suprapolítica do discurso antropológico um motivo, um incentivo,
um apoio, na hora de perg untar se outras figura s do poder além da do rei absoluto são
suscetíveis de receber uma iluminação, ainda que lateral, com a extensão da proble-
mática da representação do poder que a antropologia pascaliana possibilita.
Ao longo de nossa refl exão d eitamos várias pedras angulares neste caminho que,
sem deixar as representações do poder, conduz às paragens de configurações políticas
pós-absolutistas em que outros prestígios da imagem são suscetíveis de se exercer, a
m enos que sejam os mesmos com outra roupagem.
Uma palavra pode cristaliza r o ponto da interrogação: a palavra "grandeza". De
fato, ela pertence aos dois registros do político e do antropológico; ademais, está li-
gada à problemática da representação através do modo retórico do louvor. Voltemos
uma última vez a Pascal. Por um lado, a grandeza pertence à mesma constelação que
a miséria, da qual é o pólo oposto na ordem das contrariedad es e da desproporção do
homem, e que a vaidade que a inclina para a miséria: "A grandeza do homem é g rande
n a medida em que ele se sabe miserável; uma árvore não se sabe miserável. Portanto,
saber (-se) miserável é ser miserável, mas saber que se é miserá vel é ser grande" (frag-
mento 114). Por outro lado, a grandeza está ligada ao político: "São exatamente essas
misérias todas que provam sua grandeza. São misérias d e grão-senhor. Misérias de um
rei despossuído" (fragmento 116). Pascal insis te: "Pois quem se sente infeliz por não

60 Por isso não se deve separar o d iscurso da imaginação daqu ele do costume, nem ta mpo uco da-
qlll'lc da loucura - o "respei to e o terror" (fragm ento 25) fa zendo a p onte entre o discurso da
"fraqueza " e o disc urso da "força justificada". De forma que o p róprio tema da imaginação n ão
csgotil todos os seus efeitos de forç;i e seus efeitos de sentido no político. A idéia de lei também
se mantém nessa a rticul<1ção: "A lei é le i e nada m a is. O costume fa z toda a eqü idade pela única
ra zão de que l' recebido, es te é o fundamento místico de sua <1utoridc1de" (fragmento 108).
HI S n )l~ I.-\ / f-: l'I S1T ~1t11.0C I ,\

ser rei a não ser um rei despossuído" (fragmento 117). Ora, a figura do rei despossuído
não é apenas passageira: em geral, o homem pode ser visto como um rei despossuí-
do. Ora, é esse rei despossuído que, numa surpreendente fábula d estinada ao jm·em
príncipe, Pascal vê "jogado pela tempestade numa ilha desconhecida, cujos habitan tes
tinham dificuldade para encontrar o rei que estava perdido". Eis que esse homem,
que por acaso se pa rece com o rei perdido, é "confundido com ele, reconhecido nessa
qualidade por todo o povo". E o que ele fez? "Aceitou todo o respeito que lhe quise-
ram dar e deixou que o tratassem como rci""1• Portanto, o que fa z o rei é um "efei to de
retrato", um "efeito de representação". E é por sua vez a imagem, d edicada ao prín-
cipe, desse "náufrago rei ", convertido no "usurpador legítimo", que dá sua força de
instrução à epístola. Nessa imagem, juntam-se o político e o antropológico. Ao mesmo
tempo, desvenda-se o segredo das representações em simulação que sustentam essas
grandezas carnais às quais pertencem o rei e todos aqueles que são chamados ou se
chamam de grandes.
Se a grandeza pode assim pertencer aos dois registros do antropológico (o "ho-
mem") e do político (o "rei"), é porque encerra em seu princípio (em sua ,·erdade
conhecida, como todos os princípios, "não apenas pela razão como também pelo co-
ração", fragmento 110) uma regra de dispersão e d e hierarquia . É conhecido o famoso
fra gmento sobre as "ordens de grandeza": grandezas de carne, grandezas de espírito,
grandezas de caridade (fragmento 308). Cada grandeza tem seu grau de visibilidade,
seu lustro, seu brilho; os reis junta m-se aos ricos e aos capitães entre as "grandezas
carnais"h2 .

Dessas considerações surge a questão com a qual encerro nossa investigação so-
bre os prestígios d a imagem emaranhados com a representação his toriadora. O que
sobrou do tema da grandeza na narração do poder após o apagamento da fi gura do
rei absoluto? Ora, questionar-se sobre a possível perenidade do tema do poder é ao
mesmo tempo ques tionar-se sobre a persistência da retórica do louvor que é seu corre-
lato literário, com seu séqüito de imagens prestigiosas. Teria a grandeza abandonado
o ca mpo político? E devem e podem os historiadores renunciar ao discurso de elogio
e às suas pompas?
À primeira pergunta, respond o com du as observações que deixo numa ordem
dispersa, tamanha é a minha preocupação em não tratar como se o dominasse um
problema d e filosofia política que, além do mais, ultrapassa a competência de uma
epistemologia da operação histórica. Todavia, a questão não pode ser evitada na me-
d ida em que o Estado-nação permanece o pólo organizador dos referentes comuns do

hl Sl'g undo um dos Di,co111·s sur /11 co11ditio11 dcs :,ri111d~ de Pascol, um grandl' é um prop r ict,ír io dt'
bl'ns, " um rico c ujo ter determina o ser" (/.1' r ortrnil d11 roi, º/'· cil., p. 265).
62 Llluis Marin fi cou tiio f,i sc inado ptlr l'SSd " im ,igcm " do n,iu frag\l rl'i q ue ,1 usou p a ra conc luir/.('
/.',ir/ mil du mi, e m posiç ão si mét ri ca e m rcl,1ç,'io '1llS ''frng rnl'nts d e-. f >t'11sfrs s u r la Í<ircl' (• t l,1 jus-
tiCL'" que fa zem ;i al>t'r l um d;i obril . Al0m disstl, o ,1utor , ·o ltou .lll tL'lll,l L' lll Dcs 1m11 ,•oir., de /'i111c1sc,
(l/1. cil., g losas V I, " LL' portr,lit d u roi n,rnfr,ig0", pp. 186- 19:i.
;\ M EM()R I A , /\ III SH)l~ l i\ , O 1:SQ Ul:CIM l: NH)

discurso histó rico, n a falta d e acesso a um ponto d e vista cosmopolita. Pma continuar
a ser esse pólo organi zador, o Estado-nação não d eve continuar sendo celebrado como
grandeza? Essa refo rmulação da pergunta suscita minha primeira observação. Tomo-
a emprestad a à fil osofia hegeliana do Estado n os Princípios dn Filosofin do Direito. Ao
questionar-se sobre o poder d o príncipe (§ 275), Hegel dis tingue nele três elemen tos
que competem à constituição enquanto totalidade racion al: à univ ersalidade da cons-
tituição e d as leis, e ao processo d a d eliberação, vem juntar-se "o momento d a decisão
suprema como d ete rminação d e si"; nele reside "o princípio distinti vo do p od er do
príncipe" (ibid.). Esse momento é encarnado num indivíduo que, no regime monár-
quico, é d estinado à dignidad e d e mona rca p elo nascimento. Por ma is contingente
que seja esse momento, contingência assumida pelo direito hereditéfri o, ele é irred u ti-
velmente constitutivo da soberania estatal. Objetar-se-á que o pensamento político d e
H egel não sa iu d o orbc do princípio mornirqui co e, nesse sentido, do espaço d o abso-
luto político, a d espeito dc1s simpatias d o pensad or pela mona rquia liberal. Mas He-
gel já é o pensador do Estado moderno pós-revolucion ário, isto é, constituciona l, por
contraste com o Estado aristocrático. É dentro desses limites que se coloca a questão
de saber se em regime constitucional o político p ode ser isento d o momento d a decisão
s uprema e, para resumir, escapar totalmente da personalização do poder. A história
contemporân ea parece ratifica r tal s uspeita. Éric Weil, em sua Filosofia Polítirn, propõe
u m quadro sensato para o debate. Ele d efine o Estado em termos formais: "O Es tado é
a organização de uma comunidade histórica. Organizada em Estado, a comunid ade é
capaz d e tomar d ecisões" (Prop . 31). É no trajeto d a tomada d e decisão, no âmbito d ,1
Constituição, com o apoio d a administração no estágio da deliberação e da execução, e
a escala do Parlamento na discussão e instauração das leis, que se coloca in fine o pro-
blema do exercício da autoridade política, em p articular nas situações trágicas em que
a existência física e a integridad e moral d o Estado correm perigo. É então que se revela
o verdadeiro homem de Estado. Com essa noção d e homem de Estad o, em p leno sis-
tema cons titucional, retorna a questão hegeliana do príncipe enquanto encarnação hic
ct 111111c d o "momento d a decisão suprema com o d eterminação de si". Tal momento
também é o da g randeza.
Objetar-se-á ainda que, por trás da fi gura d o homem d e Estado, reintroduzimos
sorrateiramente o retrato d o rei? Apresentarei então minha segunda observação, que
redistribuirá as fig uras da grandeza num esp aço social m ais amplo, d igno, po r s ua am-
plitude, da consideração pascaliana sobre a plu ra lidade das ordens d e grandeza . Foi
possível, na última d écada d o século XX, que um li vro fosse subintitulado " Les écono-
mies de lc1 grandeur"">, tendo aberto um novo caminho à id éia de grandeza ligad a não
à de poder político mas àquela mais abra ngente d e jus tificação, de ped id o de jus tiçc1.
É em situações d e disputas que as provas de qualificação en volvendo a ava liação das
pessoas recorrem a estratégias argumentati vas destinadas a justificar s ua ação ou a

63 Luc Bo lt;rns ki e Lau rent T h0venot, De' la j 11Mi{irnfion: /e~ t·co110111ic~ de /11 g r1111drn r, op. Lif.; cf. m in ha
a niÍ li se desta o b ra, aci m a, pp. 232-2:13.

<'J• 286 •?.>


fllST(lRJ\ / F l' IST I \ IO IOCI ,\

sustentar as críti cas no meio das desa\·enças. O que é notc'í \·el né'io é apenas que a idé ia
d e grandeza fa ça sua reentrada na socio logia d a ação e, po rtan to, também na his tória
das representações, mas que v olte sob a forma do plura l. Existem economias da gran-
deza. São ditas gra ndezas as formas legítimas do bem comum e m situações típicas d e
d esavenças a partir d o momento e m que são legitimadas por argum e ntações típicas.
Pouco importa aq ui d e que form a são selecionadas as argumentações, na base de que
texto canónico da fil osofia política: sua irredutível plurnlid ade torna a g randeza dife-
rente d epend endo de se as provas de qualificação acontecem na cidade inspirada, na
cidade doméstica, na cidade da opinião, na cid ade cív ica ou na cidade indus tria l. PMa
n osso propósito, o importa nte é que a grandeza seja le\'ada cm conta pela filosofia
prática e n as ciê ncias humanas associada à idéia de jus tificação como um dos regi-
mes de apreensão do bem com um no âmago do ser-com-os-o utros. Tra ta-se a inda
de fato de "formas pol íticas da grandeza" (Lc Portmit d11 roi, p. 107 e seg.), mas num a
accpção tão ampla do termo "política" que o prestíg io do re i cm seu retrato se encontra
totalmente exorcizado pela substi tuição da figura do rei pela das pessoas e de suas
pretensões à jus tiça. A \'Olta do tema da grandeza fica ai nd a mais surpreenden te.
Essa dupla resistência do tema da gra nd eza à eliminação numa filosofia política
centrada ora no Estado, o ra na importâ n cia dada a ela por uma sociologia da ação jus-
tificada a utoriza a fazer a pergunta que \ 'Cm coroar nossa investigação sobre os prestí-
g ios d a imagem no elog io da gra ndeza. Se o tema da gra ndeza é inexpugnável , será o
caso também da retórica do e logio, que, n a ép oca da monarquia absoluta, estend eu-se
sem pudor a ponto de ultrapassar a linha tênue que diferencia o elogio da bajulação?
A essa pergunta indiscreta não poderia escapar a escrita da história marcada pelos
"grandes" nomes d e Ranke e Miche lct. É \'erdade que é para não julgar, portanto, con-
s iderar grandes ou não, as ações do passado que Ranke declara limitar-se aos aconte-
cimentos " tais como ocorreram de fato ". Tal princípio, no qual estamos inclinados a ler
uma pretensão de fidelidade, foi sobretudo a ex pressão de uma reserva, d e um recuo
para fora da região das preferências subjetivas e de uma renú ncia ao e logio scleti\'O.
Mas o elogio n ão se refugia n a confissão que se ][, em N11c/1 /11_c;s: "Cada é poca est,i sob
(1111fcr) Deus e seu va lor não d epende do que a an tecede, mas de s ua própria ex istência,
L'm seu próprio se~{.[ ... ] Todas as gerações da humanid ade são igualmente justificadas
aos ol hos de Deus: é assim que a históri,1 de ve ver as coisas?"".J J\s idéias de época e
de geração são m a is difusas do que c1S d e individualidades h istóricas, mas constituem
unidades de sentid o às q u ais se ded ica o apreço do historiador, a justificação aos olhos
d e Deus vindo apor o selo da teolog id n a d iscrição do e logio.
O caso de M ich e let é ainda mais surpreendente: poucos historiadores deram asas
con1 tanta liberdade e jú bi lo à admiração pelas grandes figuras daqueles que fi1 cr,m1 ,1
França . A própria França nunca mereceu tanto ser chamada pelo nome próprio como

n4 1.. Ranh•, Lll> cr di, · Epnd1 c11 da 11c111•re11 C1·., c"llid11<', l'd. M. Herrfcld , p. ~O. C itado por Lt'o n.1rd Kr ic-
gl'r, n,c /\1ct111i11g o( H1 , tor11, T lw Uniq_'r'.--ity ,,f Chicago Press, C hicago ,rnd London, 1977, p . 6. Fm
f- 11glis/1 H i~tory, R,111 kc qui s "ap,1g a r se u prtipr il> se i f [ ... 1dl•i:-.ar qm· ,is co is,1 s falem L' que dp<Hl'Çdm
,1s pudl'l"llS,lS (111 ig/J t_11) forças que s urgiram ,Hi h1n gl1 dos s<·cull> '.--" (1/>id., p. 'i) .
i\ Mt:M(lRJ i\, A IIISTÚR IJ\, O FS(.)UEC:IMFNTO

nos sucessivos prefácios da História da França"\ Os historiadores da Revolução France-


sa, de Guizot a Fure t, teriam saído do círculo d o elogio? E será que basta não ser turi-
bulário declarado para ser isento66 ? O discreto charme do Estado-nação, pivô comum
à época moderna da história que se faz e da história que se narra, não é a mola de um
elogio contido que, sem qualquer artimanha, repete a estratégia confessa do "Projet
de l'histoire de Louis XIV": "É preciso elogiar o rei sempre, mas por assim dizer sem
louvor, por uma narração de tudo o que o vimos fazer, dizer e pensar. .. "? E n ão per-
dura o mesmo d esejo "de arrancar [os qualificativos e os louvores magníficos que o rei
merece] da boca do leitor pelas próprias coisas"?
A pergunta parecerá menos incongruente se, no lugar do elogio, usarmos a repro-
vação, seu oposto na classe dos discursos epidícticos, segundo a classificação recebida
da retórica dos Antigos. Não foi a reprovação extrema, sob a lítotes do inaceitável, que
cobriu de infâmia a "solução final " e suscitou acima nossas reflexões sobre os "limites
da representação"? Os acontecimentos "nos limites" evocados então n ão ocupam em
nosso próprio discurso o pólo oposto àquele dos signos da grandeza à qual se d estina
o elogio? De fato, é desconcertante a simetria que opõe a reprovação absoluta imposta
pela consciência moral à política dos nazistas e o elogio absoluto endereçado por seus
súditos ao rei em seu retrato .. .

IV. Representância

Este último parágrafo quer ser ao mesmo tempo a recapitulação do caminho per-
corrido no capítulo "Representação historiadora" e a abertura de uma questão que ul-
trapassa os recursos da epistemologia da historiografia e se mantém no limiar de uma
ontologia da existência cm históri a; a esta reservo o vocábulo de condição histórica.

65 Jules Michclet escreve em Histoirc de Fm11cc, prefáci o de 1869: " Naqueles dias m emoráveis, fez-se
uma gra nde lu z e v islumbrei a Fra nça. [ ... ) Fui o primeiro a vê-la como uma a lma e como uma
pessoa ...".
66 Fl'rnand Braudel faz eco i1 M ichelet já na prime ira p ,igi n a de L'fdc11 tité de• /11 Fm11cr (Pa ris, Flamma-
rion, 1990, rced., 2000): "Digo isso d e uma vez por todi'ls: amo a França com a mesma pai xão, exi-
gente e compli cada, que Jules Mi che lc t. Sem distinguir entre s uas virtudes e seus defeitos, entre
o q ue prefiro l ' o que nceito mais dificilme nte. Ma s tal paix.'i o inte rferirá pouco nas páginas desta
obra. Mt1 ntê-la-ei cuidadosa mente à distilnciíl, pode ser que ela us e de íl rtimanha comigo, que me
surpreendíl, por isso vou vigiá-lil de perto" (p. 9). Pierre Nora n fí o fica atrás de Michclet e Braudel
e m Les Li,·11x de 1111;111oire, p rincipalmente na te rceira série Lcs Fm11cc. Rebate ndo a acusaçfío d e na-
ciona lis mo, coloca sob o quase-nome prúprio da "francidíldc" o único orga nismo que constituem
juntíls e m forma de trindade laica A R.epública, A Naçiio, As Fm11ç11, e acrescenta, fingindo questio -
n,ir: "J,i n'Pararnm que todas as grt1mks hi s tórias dâ Fr<1nça, de Étienm• Pasquie r no séc ulo XV I íl
Michclet, de Michclet a l .av isse e a l3ra udel, começam o u acílbílm com umíl declaração d e íl mor à
França, uma profissZw de fé? Amor, fc'.-, s,10 palavras que evitei com cuidado, para substituí-las por
aquelas exigidas p ela épncíl e pelo ponto de vista etno lógico" (" La nnt ion sa ns na tiona li sm e", in
Es/iacc:,; Tc111ps, Lcs C11/1icrs, n" 59-60-61, 1995, p. ó9).

<Z* 288 .:;,


lilST() l,1-\ / IJ'lo.;JT\lllU)CI ,\

A palav ra " representância" cond ensa cm si todas as ex pectati vas, todas as exi-
gências e toda s as aporias ligada s ao que também é chamado de intenção ou inten-
cionalidade historiadora: designa a expectativa ligada ao conhecimento histórico das
construções que cons tituem reconstruções d o curso passado dos acontecime ntos . In-
troduzimos acima essa relação sob a feição de um pacto entre o escritor e o leito r. Dife-
ren temente do pacto entre um autor e um leitor de fi cção que se baseia na dupla con-
Yenção de s usp end er a expectativa de qualquer descrição de um real ex tralingüístico
e, em contrapa rtida, reter o interesse d o leitor, o autor e o leitor de um texto histórico
convencionam que se tratará de s ituações, acontecimentos, encadeamentos, persona-
gens que existiram realmente ante riormen te, isto é, a ntes que tenham sido rela tad os, o
interesse ou o prazer de leitura res ultando como que por acréscimo. A perg unta agora
co locada visa a sab e r se, como e em que medida o historiador satisfa z à expectativa e
à promessa subscritas nesse pa cto.
Gostaria d e enfati zar duas respostas complementares. Primeira resposta: a sus-
peita de que a promessa não foi nem podia se r cumprida está e m seu a poge u na fase
da representação, n o momento em que, paradoxalmente, o historiador parecia mais
bem equipado para honrar a intenção de representar o p assado: tal intenção não era
a alma de todas as operações postas sob o título d a representação his toriadora? A se-
gunda respos ta é que a réplica à suspeita de traição não reside no momento único da
representação literária, mas s im em sua articulação com os dois momentos anterio res
de explicação/ compreensão e de documentação, e, aprofundando a busca, na articu la-
ção da história com a m emória.
De fato, a expectativa parecia a tingir seu a uge, quanto à capacidade d a historio-
grafia para cumprir o pacto de leitura, com a fase da representação historiadora. A
representação quer ser representação de ... Se as construções d a fase da explicação /
compreensão visam constituir re-cons truções do passado, tal intenção parece dita e
mostrada na fase representativa: não é ao narrar, ao subme ter a na rrativa às formas de
um estilo, e, para coroa r tudo, ao colocar sob os olhos, que se ratifica, o u, para retomar
urna expressão de Roger Cha rtier, que se dá crédito ao discurso h istórico"~? Pode-se
di zer que sim. O que eu chamava em Tc111 po e Nar rath.,,1 de a "convicção robus ta" q ue
a nima o trabalho do his toriador é ela pró pria ta mbé m le\'a da aos olhos do leitor pela
escri ta literária que, pelas três vias percorridas sucessivamente do narra tivo, do retó-
rico e do imaginati, ·o, ao mesm o tempo assina e cumpre o con tra to. Como a intencio-
nalidade his tórica n ão estaria em seu apogeu com modalidades de escrita q ue não se
limitam a dar tuna roupagem ling üística a uma inteligência do passado que já estaria
toda constituída e toda armada antes d e investir-se em formas litedrias? Com efeito,
as coisas seriam m ais s imples se a forma escriturária d a historiogra fia não contribu ísse
com seu valor cogniti\'o, se a ex plicação/compreen são fosse comp leta antes de ser
comunicada pelo escrito a um público de leito res. Mas, agora que já desistimos d e
considerar a expressão como uma ro upa neutra e transparente colocad a sobre uma

67 R. C hartier, " L'histuirL' entre récit l't conn ,1issance", in /\11 l•i>nf de lnti1/oi,c, op. cit ., p. 93.
/\ '.\111:M(W f /\, /\ III ST (JRI/\, O FS(JUl:C IMI. V l\ l

significação completa cm seu sentido, como pôde afirmar Husserl n o início das Pesqui-
sas Lógirns, agora então que já nos acos tumamos a considerar pensamento e linguagem
como inseparáveis, estamos prontos para ouvir declarações diametralmente opostas a
essa d esconexão da linguagem, a saber que, no caso da escrita literária da história, a
narratividade acrescenta seus modos de intelig ibilidade aos d a explicação / compreen-
são; por sua vez, as figura s de estilo revelaram-se figuras de pensamento suscetíveis
d e acrescentar uma dimensão própria de exibição à legibilidade própria das narra ti-
vas. Resumindo, todo o movimento que deslocava a explicação/compreenszío para a
representação literária, e todo o movimento interno à representação que desloca va a
legibilidade para a visibilidade, a mbos os movimentos, ao que tud o indica, querem
permanecer a serviço da ene rgia transitiva da representação historiadora. Sim, a repre-
sentação histori adora enquanto tal d everia dar testemunho de que o pacto com o leitor
pode ser cumprido pelo historiador.
E no entanto ...
E no entanto, vimos crescer, no mesmo ritmo que a pulsão realis ta, a resistência
que a forma literária opõe à exteriori zação no extratextual. As form as narrativas, ao
dar à n éirrativa um fecho interno à intrigél, tendem a produzir um efeito de enclausu-
ramento, que não é menor quando o narrador, contrariando a expectativa do leitor, faz
tudo p ara decepcionar este último por alguns estratagemas de não-encla usuramento.
Assim é que o próprio ato de narrar chega a cindir-se desse "real" élssim posto entre
parênteses. Um efeito da mesma ordem procede, como já vimos, do jogo das figuras
d e estilo, a ponto de to rnM vaga a fronteira entre ficçã o e realidade, de tal modo essas
figura s se revelam comuns a tudo o que se <.fa como fábula discursiva. O para doxo
atinge seu apogeu com as estratégias que v isam a pôr sob os olhos. Na própria medida
em que mantêm a verossimilhança, elas são suscetíveis de d ar ra zão à crítica dirigida
por Ro land Barthes contrn o "efeito de real". A esse respeito, tratando-se d a micro-
histúria, é possível primeiramente élpreciar o efeito de credibilidade por proximidade
produzido por na rrativas de fato "próximas das pessoas ", e, após reflexão, élChar sur-
preendente o efeito d e exotismo suscitado por descrições q ue se torna m estranhas, ou
até éllhcias exatamente por sua precisão. O leitor encontra-se na situ ação de Fabrice na
batalha de Waterloo, incapaz até d e formélr a idéia d e batalha, mais ainda de dar-lhe o
no me com o qual esta será celebrada por aqueles que hão d e querer recolocar o "d eta-
lhe" num quadro cuja visibilidade turva o olhar até a cegueira. Segundo a expressão
de J. Revel, " lida de muito p erto, a imagem não é fácil de ser d ecifrada no tapete"(,K.
H,1 nutra for ma de púr sob os olhos cujo efeito é afastar e, no limite, exilar. A escrita

68 Jacques Rcvel, " Microhistoi re e t cons truction du social ", in /cux ,frc/1c/les, op. cil., p. ·15 e seg.:
"Com os micro-his to riadores [... I, a busca de uma forma n ão dcpcn dL' fu ndamenta lmente d e uma
escolha estét ica (embora esta não es tej;i ausente). Ela me parece, an tes, de ordem heurística; e isso
du p la mente. Ela conv ida o lt'Íto r a participa r da con s trução d e um objeto de pesq uisa; associ;i-o à
elaboração de uma inte rpretação" (ov cil., pp. 32-33). O p ara lelo co m o romance dl'pois de Proust,
Musil ou Joyce convid a a um a rl'flcxão quL' ultrapa ss,1 o fünbito fixado pelo rom.ince re.i li sta d o
st'c ulo XIX: "/\ rel.ição entre um a forma de e xposiç5o e um conteúdo de conhecimentos tornou-
se objeto de umn inte rroga ção e xplícita" (ibid., p. 34). F o a utor cvorn o efeito de estrnnh.imento
IIIST(ll{I .\ / ll'I S I F\llll UCI ,\

em grande escala, a que retrata períodos históricos, cria um efeito que pod e ser cha-
mado ainda de visual, a saber, o de uma visão sinóptica. A amplidão do olhar é então
definida por seu alcance, como se diz d e um telescópio. Uma problemática im·ersa da
a nterior é assim suscitada pela história considerada em seus traços ma is gerais. Amea-
ça surgir um nO\'O tipo de fechamento, o das grandes narrativas, que tende m a con-
fluir com as Sé1gas e as lendas fundadoras. Uma lógica de um género novo instala-se
si lenciosamente, a qual F. R. Ankersmit tentou fechar sobre ela mesma 1'' 1: a d e 1111rmtio:;;
suscetíveis de cobrir vastos períodos d e história. O uso do nome próprio -Revolução
Francesa, "solução final ", etc. - é um dos s ignos distintivos da lógica circular, em
virtude da qual o nome próprio fun ciona como sujeito lógico para toda a série dos
atributos que o deser'\\'olvem e m termos de acontecimentos, estruturas, personagens,
instituiçües. Essas 1111rmtio:;;, como diz Ankersmit, tendem à auto-refcrencialidade, já
que o sentido do nome próprio não é dado fora dessa série de atributos. Resulta daí,
por um lado, a incomens urabilidade entre si dc1s 1111rmtio:;; que presumidamente trc1tam
do mesmo te ma e, por outro lado, a transferência para os autores singulares dessas
grandes 11armtios da controvérsia c1berta entre histórias ri\·ai s. Não se fala da história
da Revolução Francesa segundo Michelet, segundo Mathicz, segundo Furet? O debate
ep istemológico fi ca assi m desviado para o campo do que chamaremos no próximo
capítulo de interpretação, num sentido limitado cm que a ênfase recai no engajamento
<.iél subjetividade do his toriador: de foto, só h ,í um Michelet, um Furet frente à única
Re\'oluçào Francesa~'' .
Coincidem assim de forma inesperada a s uspeita de fechamento élplicada às p e-
quenas narrati\'as e aquela aplicada ilS narrati vas de maior alcance. Num caso, a sus-
peita ergue uma barreira invisível entre o par significante / significado e o referente; no
segundo, cava um abismo lógico entre o rea l presumido e o ciclo formado p elo tema
quase p ersonificado e a seqüência de acontecimentos que o qualifiCél m. É assim que as
modalidades literá rias que supostamente de\·e riam com·cncer o leitor da rea lidade,

em relaç,10 ao modelo í ntl'rprC'tati,·o do d ísc u rso dom í n,llltl' : fabri ce l' l11 Watl' rloo ''sú percdw ,1
d L'Sordem" (i/,id., p. J:;).
69 L R. Ankersmi t, '\!11r mti,•,· Lo;;:ic: 11 Sc111,111 /i( l ll111l.11~is of tl1c Historir111 ·~ L1111:,;1u1:~c, º/'· cit.
70 Faço uma an ,í li st' mai s aprofundad,1 d l' N11rratii 1c /., 1g ic: 11 Sc111,111tic 1\ 1111/ys i, of lhe rlist,1rin11·., L,111 -
;;:1111gc em " l'h iil1sophies critiques d l' l'h is to ire : reche rc hc, L'X plic,1tion, L;cr itu rc", in J)Jiilo,,,,,i,i,11/
l ' ro/1/c111, } ádny, up. cit. Enfatizo a í s ucessiY<1 111L' 11tl' ;:i rdut<1ç,io d l' tud,1 tl'uri ,1 d a VL'rd ,1d e cor res-
pond<'.~ ncia l'ntrl' um,1 1111rmtio e a lgn que som os incap,1ZL'S de mustr,ir - a afir m,1 ção de Jwtcro-
g L'ncid ade entre ,1 fur m,1 nar rnti,·il e a realidade supos tamL'n k ,Kh·ind,1; o p,Hl'ntesco d;:i relação
L'Xi stente entre o núclL'o narrativo e ll L'ÍL~ito que dL'SL'nvoln• se u sent ido com aquL'lc quL' Leibn iz
estabclecl' entre a "substância" L' os " prPdic1dL1s" consideradus i1wre ntL'S il subsUí nci a; e nfim , ore-
c urso complenwnta r ac1s cr it<'.•rins de m,1xi 111i zaç,10 da abrangência (~t'np,·) das grn ndl's narr,1ti,·a ;,;
que tl'mpL·ra o id e,1i ísm t1 proft-ssadu pelo ,1 uto r. C ontinua intac t.i, a m e u \'l'r, a LJ LIL'Stão d ,1 "rl',1lid,1-
d e", ;:i rL~sp L'Íto da qu,11 as , ·,írías 1111rr11tiii., se enfrent.im d e ta l forma que se pode di zer Lk uma que
L'Sl,í rL'L'SCrt',·cndu outrn ,rntl'rior \'L'rsando Sl1brL' ll mes m o ll'ma. O que quer di ;,.e r p ass,1do, ll1L'Sl11l\
que se dcd<1 rL' q ue "u pró prio p,1ss.1do n ,il1 impÔL' ,is fn r m ,1s como d t \·L·ria ser rcprl'SL'ntildo"' O
1

L'rrn n iio seria ,1q11i o dL' querer atribuir dirl't,111w11tc ils 1111rmtio~ Lk g r,111dc alca nce um cneíicil'11tc
,·c ritati vo, i ndL'PL'ndentcnwnlt' dos cnu nci,H.i os pa rci,1 is concernentes ,10 p rocl'd i 1111:.' nto d oc umc n-
t<1 I e i1s t'xp lic,1ções limit,1d.1s a scqüt•nci,1 s 111,1is c ur tas?
A MLM()Rli\, A III ST(W IA, l) ESQU EC l 'vl F'.\ TO

das conjunturas, das estruturas e dos acontecimentos encenados tornam-se suspeitas


d e abusar da confiança do leitor ao abolir a fronteira entre convencer e fazer acreditar.
Essc1 afronta só pode então suscitar uma réplica veemente que transforma em p rotesto
a atestação espontânea que o historiador de boa-fé associa a uma obra bem feita . Esse
protesto aproxima-se de forma inesperada da pacata declaração de Ranke quando este
se propüe relatar os acontecimentos "tais como acontecera m de fato (cigmtlicl,)".
Mas então, como evitar a ingenuidade de tal protesto?
A resposta parece-me estar contida na seguinte asserção: uma vez questionados os
modos representativos que supostamente dão forma literária à intencionalidade his-
tórica, a única maneira respons.,~vel de fa zer prevalecer a atestação de realidade sobre
a suspeição de não-pertinência é repor em seu lugar a fase escriturária em relação às
fases prévias da explicação compreensiva e da prova d ocumental. Em outros termos,
quando juntas, escriturai idade, explicação compreensiva e prova documental são sus-
cetíveis d e credenciar a pretensão .'1 verdade do discurso histórico 71 • Só o movimento
d e remeter a arte de escrever às " técnicas de pesquisa" e aos "procedimentos críticos"
é suscetível de trazer o protesto à ca tegoria de atestação transformada em crítica.
Estaremos, entretanto, retomando o gesto da suspeição ao evocar a frase de R. Bar-
thes usada como epigrama por H. White em T/Jc Contcnt of thc For111: "O fato tem ape-
nas uma existência lingüística"? E será que cu m esmo, ao tratar do fato histórico, não
propus que se disting uisse a proposição enunciando "o fato de que .. . " do próprio
acontecimento 72 ? O rea lis mo crítico aqui professado é forçado a dar outro passo aquém
da proposição factual e invocar a dimensão testemunhal do documento. De fato, está
n o cerne da prova documental a força do testemunho que se expõe. E não vejo corno
se poderia remontar além da tríplice declaração da testemunha: 1) Estava lá; 2) Acredi-
tem em mim; 3) Se n ão acreditarem, perguntem a outra pessoa. Caçoarão do realismo
ingênuo do testemunho? É possível. Mas isso seria esquecer que o germe da crítica
está implantado no testemunho vivo 7>, a crítica d o testemunho alcançando aos poucos
toda a esfera dos documentos, até o último enigma do que se d á, sob o nome de rastro,

71 Ta l L' a tl'Se que reiv ind ica R. C hartic r no fim de s u a discussão da obrn de Hayd«:>n White; este,
como nos le mbrnmos, considera como intransponível uma abordagem sem iológicn que qucstio-
n él a segurança dos testemunhos prestados dos aconteci mentos e autori za assim a "negligenciar
(pnss over) a questão da honestidade d o texto, d e sua objetiv id ade" (Thc Co11/c11t of tlte F()r,11, vp. cit.,
p. 192, citado in A11 /1ord de /11 jiiil1ísc, ()p. cíl., p. 123). R. Chartier replica: "Fazer a h istúria da his tó-
rü1 m10 é entende r com o, em cada config uração histórica d ada, os hi storiadores lançam mão de
técnicas de pesquisa e proced ime ntos críticos q ue, justa mente, dão a seus disc ursos, de forma
desig ua l, essa ' honestid ade' e essél 'objctividéldc'?" (íbíd., p. 123). Em outro trecho, R. Charticr
declara: "Considerar, acertadame nte, que a cscrit,1 da hi s tó ria pe rtence il classe d as narrati vas não
equi va le a con siderar como ilusória sua intençã o de ve rdad e, de uma verdad e entendida como
representação adequada daquilo que foi" ("Phi losoph ie ct his toire: un dialogue", in F. I3edarida,
CHí~foírc e/ /e MNícr d'liístoríc11 c11 Fm11cc, 1945-1995, op. cit., p. 163) .
72 Cf. acimél, pp. 189-1 91.
73 Nunca insistiremos o s uficie nte nél m ud ança crítica que pode ter representado para a hi storiogra-
fiél a famosa querc!él em torno da LJ01111tio11 de Co11stn11tí11; cf. Célrlo Cin zburg, prefácio a Loren zo
Valia, Ln D01111lío11 d,· Co11~tn11/í11, op. cíl ., pp. IX-XX I.
IIIST() l~L\ / ll'IS I F\lll LUCL\

como o efeito-signo de sua cau sa. Ocorreu-m.e dizer que né'\o ten,os nad a melhor do
que a m emória para certificar a realidade d e nossas lembranças. Dizemos ago ra: não
temos n ada m e lhor d o que o testem unho e a c rítica do testem unho para d a r créd ito à
rcpresentaçé'\o his toriadora do passado.
Até ago ra, pouco pronunciei a palavra " \'e rdade", nem mesmo arrisquei uma afir-
mação rel a ti va à verdade em história, e mbora tenha prom etido no iníc io desta obra
comparar a verdade presumida da representação histórica do passado à fide lidade
pres umida da represen tação mne m ónica.
O que a palavra ",·crd adc" acrcscen ti'lria à pala vra "representâ n cia "? Um a asser-
ção arriscadi'l que lt:,·a o discurso da hi stc'1 ria n ão somente a um ,1 relação com a mernó-
ria, como tentaremos no capítulo seguinte, m as a urna rel ação co m as outras ciências,
ciências humanas e ciências d a natureza. A prete nsão à verd ad e da h istórii'l p assa a
fa ze r sentid o relativamente à pretensão à , ·erdade dessas o u tras ciências. P ropôem-se
en tão cri térios de qua lificação d essa p retensão. E é, ev identemente, o próprio passado
que é o objetivo referencial dessa pretensé'\o. É possível defin ir esse obje tivo referencial
em termos diferentes dos d a correspondênci a, da adequação? Chama r d e "rea l" o que
corresponderia ao m omento de asscrçi'io d a representação? Não é o que parece, sob
pena d e desistir da própr ia questão d a Yerd ade. A rep resentação tem uma contra-
pa rte, um Ccgc11iibcr, segundo uma ex pressão q ue retomei d e K. Heuss i~-1 em Tempo e
Nnrm tirn. Eu também me a rriscava a fala r em " lugar-tenência " para precisar o modo
d e verdade próprio da representâ n cia, a ponto d e con siderar corno s inónimas essas
du as expressões~;. Mas é m a is fácil \'e r q uais acep ções da n oção de correspondência
ficam excluídas do que ver o que especifica ria essa n oção cm relação aos usos do termo
" correspondência" cm o utras regiões do sab er. Fica manifestam en te excluída a cha -
mada pict11rc thcor_t/, q ue reduziria a correspondência a uma imitação-cópia. Com·ém
dizer que nunca se a caba totalmente com esse fan tasma, na m edida em que a idéia de
semelhança parece d ifíc il d e expulsar totalm ente: Pla tão não conduziu toda a discus-
si'io sobre a cikô11 para o caminho d e uma dis tinção interna à arte mimética, qua ndo
distin gue entre duas m imé ticas, uma m imética prop riamente icônica e uma m imética
fantasm á tica? Mas para que a mimética cubra ta mbém o fan t,ístico, é preciso que e la se
distinga da repetição d o mesmo cm for ma de cópia; a imitação deve incorpora r uma
heterolog ia mínima se ela tem d e cobrir tão vastas regiões. De qualqu er forma , uma
n arrati va não se parece com o acon tecimento que e la narra: isso já foi s u fic ientemente
dito pe los narra ti \' is tas m ais convincentes. O uso aristotélico d a 11Ii11n·sis n a Podirn já
preenchi a essa he terologia m ínima. a esteira de Aristóteles, ap liquei-me no passado
a modular os recursos miméticos d o disc u rso narra tivo à bitola d a tríplice 111i111cs is:
prefi g uração, configuração, re fi g uração. É com esta última que é m aior a d istâ ncia
entre 111i111csis e imitaçã o-cópia. Resta o enigma da adequação própria d a 111i11u·sis re fi-

7-l K. Heussi, /J ic Kri~ i~ de., Hi~tori~11111~, Tiibingl' n, Mohr, 1912, d. Tt•111 p, e/ l~à"il, t. Ili, op cil., p. 2:'>J.
i ::, Apoi,w<1-me nil d i fen.·n<;il ent re Ver/ rct1111g l' Vc>r~/cl/1111g do v o e i bu l,i rio a lcmiio, traduz i n dt) VC1"trc -
/1111g po r " lu gar-tt>ni:•ncia" (frmp~ t'I J<hil, t . 111, np. cit., p. 2:i3).
A MFM(lRI/\, i\ IIIST() RIA, () FSQ U ECIME ;\; TO

guração. É preciso reconhecer que as noções de vis-à-vis, de lugar-tenência, constituem


mais o nome de um problema do que o de uma solução. Limitava-me em Tempo e
Narmti'ua II f a propor urna "articulação conceituai" com o enigma que constitui a ade-
quação por lugar-tenê ncia 7h . Por essa tentativa altamente meta-histórica, eu tentava
salvar o que de ve sê-lo da fórmula d e Rankc segundo a qual a tarefa da história não
é "julgar o passado", mas mostrar os acontecimentos "tais como ocorreram de fato".
Com efeito, o "tal como" da fórmula de Ranke designa apenas o que chamo de função
de lugar-tenência. O que "realmente" se passou permanece assim inseparável do "tal
como" efetivamente se passou.
Não tenho nada para mudar hoje nessa tentativa de explicitação do conceito de re-
presentância-lugar-tenência. Prefiro dedicar-me a outro enigma que me parece residir
no cerne da relação de adequação presumida entre a representação historiadora e o
passado. Lembramos que Aristóteles, em sua teoria da memória, distingue a lembrança
(11111e111L' ) da imagem em geral (cikô11) pela marca do anteriormente (protcron). Pode-se
perguntar então o que advém da dialética de presença e de ausência constitutiva do
ícone quando aplicada em regime de história a essa condição de anterioridade do pas-
sado em relação à narrativa que se faz dele.
Pode-se dizer o seguinte: a representação historiadora é de fato uma imagem pre-
sente de uma coisa ausente; mas a própria coisa ausente desdobra-se em desaparição e
existência no passado. As coisas passadas são abolidas, mas ninguém pode fa zer com
que não tenham sido. É esse duplo estatuto do passado que vários idiomas expressam
por um jogo sutil entre tempos verbais e advérbios de tempo. Dizemos cm francês que
algo não é mais, mas foi. Não é inaceitável sugerir que o "ter sido" constitui o último
referente visado através do "não ser mais". A ausência seria assim desdobrada entre a
ausência como visada pela imagem presente e a a usência das coisas passadas enquan-
to concluídas em relação ao seu "ter sido". É nesse sentido que o anteriormente signi-
fi caria a realidade, mas a realidade no passado. Nesse ponto, a epistemologia da his-
tória confina com a ontologia do ser-no-mundo. Chamarei de condição histórica esse
regime de existência colocado sob o signo do passado como não sendo mais e tendo
sido. E a veemência asserti va da representação historiadora enquanto representância
basear-se-ia unicamente na positividade do "ter sido" visado através da n egatividade

76 Essn nrticulilçiio con ceituai apoiavn-se numa dinlética transpostn daquela dos "grandes gêneros"
dos Liltimos diálogos p la túnicos. Eu pri v ileg iava i1 trfade " Mesmo, Outro, Aná logo". Sob o signo
do Mesmo, colocava a idéia de ree ncenaçiio (rern11ct111c11/) do passado seg undo Collingwood . Sob
o sig no do Outro, a apologia da di ferença e da au s('ncia, onde cu encontra va Paul Vey nc e o seu
fm,c11t11ire de:; dijjácncc;; c M ichcl de Ccrteau e sua in sistf·ncia no passado como "ausente da histó-
ria". Sob o signo do Análogo, colocava a abo rdagem tropolúgica de Haydcn White. Aproximnva
entiio a análise do "ta l como" da fórmula d e Ranke "tal como efe tivamente adv ind o" d a análi se
do "como" no capítu lo final d e La Métaphorc vi<1c, onde ju n tnva o "ver-como" do plano sem â n tico
ao "ser-como" do pl<1no ontológico. Tornava-se assim p ossível fa lar da "redescrição metafórica"
d o passado pela hist<'iria.
HI ST (lRI ..\ / ITI SI J:\IUl ()Cl.\

do " não ser mais" . Aqui, devo confessá-lo, a cpistemologit1 da operação historiográfict1
atinge seu limite inte rno ao beirar os confins de uma ontologia do se r histórico~:.

77 Após releitu r,1 , ,1 noçZHJ 111,1is probil•m.Hi c,1 (k tlld ,1 a sq.;und;i p,1 rte t."· CL'rt,l nwnll' <1 dL' rep rl'SL'llt,i 11 -
ci.1, jii test;id;i u mt1 p ri nwi ra \ ºt:'Z e m 1i·11111s t'I /{hit. Sl'ri"Í cl,1 ,1pl'n,1s ll 110111L' dl' um pmbil'm ,1 tn111,1dn
co1110 soluçi\o ou , pillr, um ex pediente? F.m tndo caso, e l.1 n ZHl é o frutt1 d e um,1 irnpro,·is,H;,in. Tem
uma longa hisllí ri,1 iL'xic,11 e semi1ntica antes da historiog rafi,1 :
,1) EJ;i tem como ilnlgínquo ,1 ncestril I a noç,ill rom,1 na tk rep mc::c11/,1/ Íl>, p<1ra di zer a s u piL·nci,1 kga 1
L'XL'rCiLfa por " represl'ntantL•s" v is í,Tis dl' um,1 ,1utoridt1d l' " rq1rest•n tada". O s uplen te, L'SSL' s u bs-
tituto, L'XL'ffl' seus d i rL·itos, 111,1s dependl' d,1 ~wsso.i reprL'scnt,1d,1. Ao cont,1to com a conce pç.'iu
cri sti'í da Enc,,rn ,1ç.i o, <1 nuç,io ,1 dqu i riu u 111,1 dL'nsidade llln·a, ,1 de uma prl'sc nç.i reprcsl'nt,1d,1 do
di,·inl), q ue encont r,1 na liturgi.-i L' no teat ro s,icrn s u,1 esfera de ex press,io.
b) A p,1Ja,-ra p,1ssa dli latim cl,bs ico ao a ll'm.iu p nr inte rméd in dl1 tern111 Vafrc/ 1111g, dupl,1 L'X,1-
ta dl' rcpmcse11/afi,1. (Os tradutorl'S fr,111Cl'Ses dL· \Íi'rÍ I<' ct Afrt/;odc d e H .-C. Cad,1mer, Pari s, ld.
du Seuil, 1996, tr,1duze111 Vc rt rct1111.1;, rcpr,1c~c11/r1tiu, por " rL'prL'SL'n taç,"iu-supl<'.· nc ia " ]p. I.J.6 1. SL·ri,1
poss Í\·cl diZl'r t,1mbém "rl'prcsl'ntaç,iu , ·id ri,1". Cnmu h1mbém St'ria poss ín·l con serY,ir u J,1ti 111
rcpmc~c11t,1tiu.) No o mll'xto d a ht•rmen<'.• ut ic,1 ,1 pl ic<1Cl<1 às obras de <1 rte, ,1 Ver / rct u11g acab,1 dL· l'm a n-
cipa r-se da tutl'l ,1 da \!or~tcl/1111.1; no sentidll dl' representaç,10 subjl'ti,·a, de ,1pan::•ncia (o u mel hor,
dl.' apar ição) em L' par,1 o espírito, como é ll c,1su L'lll Kant e na tr,1diç,il1 d ,1 filosoii,1 transcendL·n-
t,1 1. Aqui, n "fenônwno " p e rm a nece opl1sto ,i "cois,1 l'm s i" que n,in apa rece. Cad,1nwr d ,1 seu
pleno desenn1h-inwnto à itki,1 de Vcrt rc/1111:,; an rest it uir-lhL· s u,1 "ya JL•nci<1 ontolúgic,i'' (p. I:N ).
1\ p.-ilm· ril rel'ncnnt ra cntãu a problem ,í tica mais ampla da V11r~tl'i/1111g, tradu z id a em fran CL'S po r
"représentatiun" nL1 SL'ntidn de exposiç,10, l'X ibiç,io, mostra de um Sl'r subjacente. A esse tl'm,1 l'
Lkdic,1da a hermeni:·utica gc1dame ri,1 n a d ,1 Llbrc1 de .irtc. O p,1r V11rslclí1111:d Vcrt rc/1111.1; migr,1 a;;si m
do jogo I itü rgico par,1 o jogo t•s té ticll em tn rno do concl'ito-núclco de Rild, " i milg L'm-qu ,1d rn ". Nem
por isso as dua s nuçôes si'Hi estet izad,1s, ~w ki menos no sentid n restritll dt.' u m rt•cnlh imL'llto 11,1
Lrlci•11is, a t•xperiê-nc i,1 ",·i,·ida ". Lkm ,10 contrciriu, é todo o campn l'Sté tico LJLIL', sob a égidL· dtl 1-l i/d,
recnbre sua dignid,1de ontológica, e n quL' t•stii cm jogo é "o ser , ·e rd,1dci rn da obra de c1rtc " (p. K7
e st:>g.). Efl'li,·anwnte, segundo C;id arncr, o 1-lild é m ,li s do que um,1 "cúpi,1 " (Ah/,i/d), L' ll dt•lt>gad n ,\
re prese ntação dL' um "modelo" (Ur-/ii/d) tnm ,1dn no sentido m ,1is t1mplo d ,1 tota lid,1de d os modns
de ser no mundo, sob forma de tonalid ,lliL·s afoti,·,1s, de person agens fictíci as ou rc·,1is, d e c1çC1es t.:·
intrigils, etc. O irnportantl' 1wsst' ''proCL'SSll o nto lúg ico" (Gt'~c/;c/ic11) é qu l' a dependénc i.i d,1 im,1-
gc m e m rclaç,i (1 ,1 se u m odelo t' cnmpl'n s,1da pt• lo ".1crés ci m o (L.11,mc/1,) d e ser " que a im,igL'lll
confere de , ·o lta ,Hl mtidclo : "L' unica me nk à imag em , ins istl' Cadamer, qut' o modelo deH· ti f,,to
d e se tornar im élgcm , embor,1 a imagem n.io pa SSl' da m,rnifest,1çiio do modelo" (p. l.J.7) .
c) É sobre esse p<1nll de fu ndo que é preciso s itu,ir ,1 ten t.-it i,·a dt' t ransposição d il "reprcscntc1ç,1o-
s uplê nci ;i" da esier,1 estética ,1 da hi s tor iogr;i fit1, e com e la de tod,1 ,1 p rob lemiÍtic,1 da 011r~t,•l/1111s-
Vnt rc/ 1111s. O compnnentl' imngétini d a IL'mbranç,1 cons titui um passo nessa d irl'ç.io. É , ·L~rdade
que, segundo Ca damcr, este pertence, p(1r outm lado, à pmblemiitica do s ig no e da significaç,"iti
(p. 158): a lembrança des ig na o pc1ssadn; m,1s a dcs ig n ,1ç.io passa PL' ia figur,1çiio . hí ntin era L'Ssa a
pressupos ição n ' indada pt•l;i á/.:611 g rt•g,1) E n,1 o f,1 la mo s, cnm Be rgson, dL' lernbranç,1 -i 111 <1gem )
\l .io co nferimos à narr,1ç,io L' il s ua compnsiç ,i ll t•m i111 c1gl'ns o poder dL· .icrescent,ir ,1 , ·is ibilid ,1d c
,i lcgibi lidc1dc d,1 int riga? Fica ent.io pllSSÍH'l es tc nckr à lembr,111ç,1-imagL·m a prnbll'mMica da
rep resc ntação-s u p lênc ia e crL·d itar-1 lw a idéia de ",ic rL;sci mo dl' se r" a ntes conced id ,1 ,1 llbra d L·
,irtl'; com a IPmbril nça també m , "o re prt'sent,1do chega ,10 seu ser mes mo: e le soÍrl' u m ;icréscimo
de SL'r" (p. -i :;K ). O qm' é ass im a u mentadll ~w la rep rese nta ção fi g ur,1da, t"· n próprio pcrtl'nc ime ntn
do acontl'c inwnto ao p,1ssado.
d) Resta a ~wrcorre r n res to do trajl'to : da lembrança i1 rcprt'Sc ntaç,1n hi s tori i1 d or,1 . .--\ tL'SL' ,iq ui é
que seu pertencim e nto ,i literat ura, p o rtanto, ,1t1 c,1mpo d a escr it ,1, n.io coloca ,wnhum limill' à t'X-
lt'n siio da prnb il'm,ít ica d a reprl'SL'lll,1ç,1L1-suplL·nci,1. D.-i Spr,1d1/id1kl'if .'l Sclir{ftlic/ikc il , ,1 estr ut ur<1
ontolúgirn da D11r~tdl11ng ronti nu ,1 f.1 zendn, a ler se u direito. Tnd ,1 ,1 hl'rmenêuti c,1 tc.x t u,1 1L' a;;sirn
co lo c,1d a sob o tema do acrésci m o de SL'r ,1plic,1do ,1 obra d e arte . .'\ L'sse rl's pe itll, é prL'CI Sll rl'nun-
ciar il idé ia sl'dutnra, num p rimei ro monwnto, dL' um a restituiç,in pela pxegcse do pens,111w11t(1
llrigi na 1, idé ia qul', sL·gu ndn C,1 d a mcr, cn nti nu,iri a a Sl' r ,1 pressuposiç,io t,í cita de Sch ll'iern1acher
A MEM()RIA , A HI SH)RIA, O FSQUEC IMEN T()

(p. 172). Hegel, em compensação, está plenamente con scien te da impotência de qua !quer restaura-
ção. Basta evocar o famoso trecho da Fc110111c110logia do Espírito (trad. fr. Hy ppolitc, li, 261 ) sobre o
declínio da vida antiga e de sua "religião da arte": "As obras das Musas[ ... ] são hoje o que elas são
para nós: belos frutos caídos da árvore, que um destino favorável nos ofereceu, assim como uma
moça apresenta esses fru tos; não há mais a vid a efetiva de s ua presença ...". Nenhuma restauração
com pensará essa perdn: ao recolocnr as obra s cm seu contexto histórico, instaura-se com elas umn
relação niio de vida mas de simples re presentnção (Vorstcllu11g). Outra é a tarefo verdade ira da
mente pe nsa nte: que o espírito seja representndo (dargcstellt) de um modo s uperior. A Eri 1111c-
n111g - interiorização - começa a cumprir esta tarefo. "Aq ui , conclui Gadamer, Hegel rompe o
quadro no qu al se colocavJ o problema tfa compreen são em Schlciermachcr" (Vérité et Méthodc,
op. cit , p.173).
e) EssJ é a longa história da reprcsentJção-suplência que percebo por t rás da noção de represen-
tânci<1 em história que ndvogo. Por que, apesn r dessa brilhante ascendêncin, a idéia de reprcsenta-
ção-suplê ncia, de rcprescntância, permanece problem,,tica? Uma primeira razão desse mal-estar
está ligada ao foto de que ela se pe rfila no ponto de artic ulação ela epistemologia e da ontologi<1.
Ora, as a ntecipações de uma o ntolog i<1 da condiçiio his tórica, t<1l como será conduzidn n n terceira
parte, podem ser d enunciadas como intrusões da "meta física" no campo dns ciências humanéls
por profissionais da h istória preocupados em banir qualquer suspeita ele volta à "filosofia da his-
tória". Quanto a mim, assumo o risco pensando que n recusn de levar cm conta, no m omen to opor-
tuno, prob lema s ligados à hermenêutica da condição hi s tórica condena a dei xar se m e lucidnção o
estatu to do que se e nuncia legitim amente como um "real ismo cr ítico" p rofessado nél fronteirél da
epistemologia do conhecime nto histórico. Além das querelas de mé todo, uma razão mais profun-
da está ligada à próprin nntureza do probl em a colocad o da re presen tação cio p<1ssado em his tória.
Por q ue a noção de representação parece opaca, a não st>r porque o fenómeno do recon hecimento
que d is ting ue de qualquer outra n relação dn memória com o passado não tem para lelo no plano
da histúri<1? Tal irredutível di ferença cor re o risco de ser ignorada qunndo da extensão da rep re-
sentação-suplência tfo obra de arte à lemb rança e à esc rita da his tória. Ora, esse distanciamento
continu,ir,i crescendo com nossas reflexões posteriores sobre as rclnções en tre memórin e história.
O enigma passado é fin nlmente o d e um conhecimen to sem recon hecimento. Com isso deve-se,
ent retanto, afi rm ar q ue a representação historiadora permanece pura e simplesmente em fal ta
e m relação ao que, no epílogo do Epílogo, conside rarei como o pequeno milag re da memória?
Isso seria esquecer a vertente positivn da representação-s uplência, a saber, o acréscimo de ser q ue
ela confere àquilo mes mo que é por e la represen tado. É mesmo, a meu ver, com n representação
historiadora que esse au men to de significação chega ao seu cú mu lo, precisamente por fa lta de in-
tuiti vidade. Ora, esse acréscimo de sentido é o fruto da tota lidade das operações hi storiográficas.
Deve ilssim ser creditado à dimensão crítica dn hi stória. A idéia ele representi\ncia é então a ma-
nei ra menos ruim de homenagea r um proced imen to reconstrutivo, o úni co d isponível a serviço
d;i verdade em hi stória.
III

A CONDIÇÃO HISTÓRICA
exame da operação his toriogní.fica no plano episte mológico terminou; foi
conduzido através dos três momentos do arquivo, da explicação/compreen-

º são e da representação histórica. Abre-se um a reflexão de segundo grau so-


bre as condições de possibilidade desse discurso. Ela se destina a ocupar o luga r d a
filosofia especulativa da história no duplo sentido de história do mundo e de história
da razào. Todas as considerações depend entes dessa reflexão são colocadas sob o tí-
tulo da hermenêutica, no sentido ma is geral de exame dos modos de compreensão
implicados nos saberes com vocação objetiva. O que é entender no modo histórico? Tal
é a pergunta mai s abrangente que abre esse novo ciclo de análises.
Ela suscita dois tipos de inves tigações, que se di videm em duas vertentes, uma
,·ertente crítica e uma vertente ontológica.
Na vertente crítica, a reflexão consiste numa imposição de limites a qualquer pre-
tensão totalizante ligad a ao saber histórico; ela e lege como aln) algumas modalidades
da llllbris especulati\·a que leva o discurso da história sobre si mesma a erigir-se em
discurso da História em si que conhece ,1 si mesma; nessa n1esma medida, esse exame
crítico correspo nde à \'alidação das operações objetiva ntes (referentes à e pi stemologia)
que presidem a escrita da história (capítulo 1 ).
Na vertente ontológica, a hermenêutica dá-se como tarefa a explo ração das pressu-
posiçôes que podem ser ditas existenciais tanto do saber historiográfico efetivo quanto
do di scurso crítico anterior. São exis tenciais no sentido d e que estruturam a forma
própria de existir, de ser no mundo, desse ser que somos individualmente. Dizem
respeito, cm primeiro luga r, à condição histórica intransponível desse ser. Para ca-
racteriza r tal cond ição histórica, poder-se-ia emprega r, a título emblemático, o termo
de historicidad e. Se, no entanto, não o proponho, é e m razão dos equívocos resultan-
tes de s ua his túria relativamente longa, que me esforça rei por esclarecer. Uma razão
mais fundam ental leva-me a preferir a expressão "condição histórica". Por condição
entendo duas coisas: de um lado, um a situação na qua l cada um se encontra cada vez
implicad o, Pascal diria " fechado"; de ou tro, uma condicionalidade, no sentido de con-
/\ M EM ('lR I A, A HISTÓR I/\, O ESQUFC IMF NT()

dição de possibilidade de orde m ontológica, ou, como acabamos de di zer, existencial


em relação mesmo às ca tegorias da hermenêutica crítica. Fazemos a história e fazemos
história porque somos históricos (capítulo 2).
A coerência do empreendimento repousa, portanto, na n ecessidade da dupla pas-
sagem do saber histórico à hermenêutica crítica, e desta à hermenêutica ontológica.
Essa necessidade não pode ser demonstrada n priori: só surge se for pos ta em prática,
o que equi vale a ser posta à prova . Até o fim, a articulação presumida permanecerá
uma hipótese de trabalho.
Pensei em concluir a terceira parte deste livro com uma exploração do fcnôme-
no do esquecimento. A palavra consta do título des ta obra, em pé de igualdade com
memória e história. Com efeito, o fenômeno é da mesma amplitude que as duas gran-
des classes de fenômenos relativos ao passado: é o passado, em s ua dupla dimensão
mnemônica e histórica que, no esquecimento, se perde; a destruição d e um arquivo,
um museu, uma cidade - esses tes temunhos d a história passada - equivale a esque-
cimento. Há esquecimento onde houve rastro. Mas o esquecimento não é apenas o
inimigo da memória e d a história. Uma das teses que mais prezo é que existe ta mbém
um esquecimento de reserva que o torna um recurso para a memória e para a história,
sem que seja possível estabelecer o balanço dessa luta de Titãs. Essa dupla valência do
esquecimento só se entende quando se leva toda a problemá tica do esquecimento ao
nível da condição his tó rica subjacente ao conjunto d e nossas relações com o tempo.
O esquecimento é emblemático da vulnerabilidade de toda a condição histórica. Tal
consideração justifica o lugar do capítulo sobre o esquecimento na parte hermenêuti-
ca d esta obra, depois da hermenêutica ontológica. A transição de urna problemática
para a outra terá sido preparada pela revisão do conjunto das relações entre memória
e história na última seção do capítulo anterior. Assim se fecha com o capítulo sobre o
esquecimento a tríade colocada no início deste Jivro (capítulo 3).

Entretanto, falta um parceiro para a investigação: o perdão. Num sentido, o perdão


faz par com o esquecimento: não é ele uma espécie de esquecimento feli z ? Mais fun-
damentalmente a inda, não é a figura de uma memória reconciliad a? Certamente. No
entan to, duas razões m e levaram a continuar seu exa me por assim dizer fora do texto,
na forma d e Epílogo.
Por um lado, o perdão fa z referência à culpabilidade e ao castigo; ora, todas as
nossas aná lises eludiram essa problemá tica. O problema da memória foi fundam ental-
mente o da fidelidade ao passado; ora, a culpabilidade aparece corno um componente
suplementar em relação ao reconhecimento das imagens do passado. Terá sido então
necessário mantê-la em suspenso, como outrora o erro na época de Filosofia dn vontndc.
Dá-se o mesmo com a história: o que está em jogo na história terá sido a verdade em
sua relação crítica com a fid elidade da memória; é verdade que n ão terá sido possí-

o 300 o
/\ CO'.\:Il l(. ..\tl HI ST(ll{I Ci\

Yel enKa r os gra ndes crimes do século XX; mas não foi o historiador quem assim os
cla ssificou: a repro,·açé°10 que recai sobre eles e que faz com que sejam considerados
como inaceitáveis - que lítotes! - é p ronu nci<1da pelo cidadão, que o his toriador,
é ,·erdade, nunca dei xa de ser. Mas a dificuld ade consiste precisamente em exercer
o julgamento histórico num espírito d e imparcialidade sob o sig no da condenação
moral. Quanto à ir1\'estigação sobre a condição histórica, ela també m se a,·izi nha do
fenómeno da culpa, porta nto, do perdão; mas impõe-se como li mite não ul trapassar
esse limiar ao formar a idéia de estar em dí,·ida, no sentido de dependência de u ma
herança transmitida, faze ndo-se abstração d e qualquer acusação.
Outro moti\'Ci: se, por um lado, a culpa acrescenta seu peso ;:w d o ser cm dí\'ida,
por o utro, o perdé'io propôe-sc como o horizonte esca tológico de toda a prob lemMi ca
d a memória, da história e do esq ueci rnento. Tal heterogeneidad e d e origem não im-
pede que o perdão imprima a marca de seus signos sobre todas as instâ ncias do pas-
sado: é nesse sentido que ele se oferece corno seu horizonte com u m de cumprimento.
Mas essa aproximação do csklwto11 não ga rante nenhum lrnppy c11d para tod o o nosso
empreendimento: por isso só trataremos d o perdão difícil (Epílogo).
Prelúdio

O fardo da história e o não-histórico

esejou-se separar, pôr à margem da epistemologia e da ontologia da história,

D a contribuiçé°10 de Nietzsche ao deba te. A Scg1111d11 co11sidcraçí'ío i11tc111pcstit 1n,


publicada em 1872 por Nietzsche, ent,io titular da cátedra de filosofia clássica
na Uniw·rsidade de Basiléia, não contribui cm nada com o exame crítico da opera-
ção histórica; nada, tampouco, ao da filosofia pré- ou pós-hegeliana da história. Ela
é intempestiva no sentido em que só oferece, frente aos incômodos de uma cultura
maciçamente histórica, uma saída do histórico situada sob o signo enigmático do não-
histórico. Na bandeira desse panfleto, podemos ler o lema prograrn,Hico: "Da utilida-
de e dos inconvenientes da história (Historie) para a vida" 1• A leitura que proponho da
Scg1111d11 co11sidcraçiio i11tc111pcstiva de Nietzsche baseia-se no próprio estilo do ensaio: o
tom é excessivo, por ajustar-se a um ten1a de excesso, o excesso de história. A esse títu-
lo, no início desta terceira parte, d eve ser posto em paralelo e fazer eco ao mito do Fc-
dro, que preludia a segunda parte. Fecha-se assim um círculo: a leitura que proponho
do mito platônico j,í constituía um excesso, na medida em que colocava nitidamente a
historiogrc1 fia do me smo lado que os gn111111111t11 literalmente ,·isados pelo mito. A livre
interpretação que ora proponho do texto de Nietzsche arrisca-se a situar o excesso da
cultura histórica do mesmo lado que os gn111111u1t11 incriminados e a tratar o discurso
de defesa do não-histórico como um equi\'alente, por assim dizer pós-historiogrMico
e pós-historicizante, que o colocaria do mesmo bdo que o elogio dirigido por Platão
,1 uma memória anterior à entrada em escrita. Até a hesitação de Nietzsche a respeito

d,1 cura da "doença histórica" faz eco à ambigüidade do plum1111ko11, hesitando entre o
\ eneno e o remédio no texto do Fcdro. O leitor h,í de conceder-me a licença do " jogo"
que Platão reivindiet1,·a não só para seu próprio apólogo mzis também para a dialética
seriíssima que marca a saída do mito pela porta principal do discurso filosófico.

Tt>xto t.'st.-ibelL·cido por Ciurgio Colli t.' M,1 zz ino fv1ontinari, trad . fr. dL' l'il'rrc Pusch, Par is, C,11li -
m<1rd, ]99(). No e ntant(1, Sl' t:11 tradução foi ,1dutada aqui par,1 o !(•,to c itado, preferi usar nu título
"intempesti\'a" a " in,1tual ".
1\ MFM()l{IJ\, J\ IIIST(JRI/\ , O ESQULCIME NH)

Duas observações antes de entrar no cerne da interpretação: por um lado, não po-
deremos perder de vista que o abuso contra o qual Platão protestava era o do discurso
escrito, desdobrado em toda a extensão da retórica. No ensaio de Nietzsche, é a cultura
histórica dos Modernos que ocupa um lugar comparável ao da retórica dos Antigos
instalada na escrita. Os dois contextos são, é verdade, consideravelmente diferentes, a
tal ponto que não seria razoável sobrepor termo a termo a t111t1111J1l'Sis vilipendiada pelos
gmmn111t11 e a força plástica da vida que o ensaio nietzschian o quer livrar dos malefícios
da cultura histórica. Minha interpretação comporta, portanto, os limites usuais de uma
leitura analógica. Por outro lado, o alvo de Nietzsche não é o método histórico-crítico,
a historiografia propriamente dita, mas a cultura histórica. E em termos de utilidade e
inconvenientes, essa cultura é confrontada com a vida, não com a memória. Segundo
motivo, portanto, para não confundir analogia e equivalência.
A pergunta que suscita o humor intempestivo de Nietzsche é simples: como so-
breviver a uma cultura histórica triunfante? O ensaio não traz resposta unívoca. Mas
Platão tampouco dizia no Fcdro o que seria a t111t1m11esis ao sair da crise da retórica es-
crita, embora dissesse o que devia ser a dialética argumentativa. A defesa do anistórico
e do supra-histórico está neste ponto na mesma situação programática que a dialética
celebrada no fim do Fedro. A força principal do texto nos dois casos é a da denúncia;
em Nietzsche, o tom de denúncia anuncia-se já no título: a consideração é declarada
Unzcitgcmiisse - intempestiva, inatual, à medida do U11/zistorischcs e do Supmhistoris-
clics evocados para salvar a cultura alemã da doença histórica 2 • Além disso, o tema do
"dano" está lançado já no prefácio>. Também é inatual a medicação que se pede, desde
o princípio, à filologia clássica 4 •
Deixo de lado para discussão posterior o comentário suscitado pela comparação
provocadora proposta no início do ensaio entre o esquecimento do bovídeo que vive
"de forma não histórica" (Sc:,;unda considcmção intcmpcstirn, p . 95) e a "força de esque-
cer" (op. cit., p. 96) exigida por qualquer ação, a própria força que pcrmitiré1 ao homem
da memória e da história "curar suas feridas, reparar suas perdas, reconstituir em
suas próprias bases as formas rompidas" (op. cit., p . 97). Preferiria insistir aqui no elo
mantido ao longo do ensaio entre cultura histórica e modernidade. Ora, este elo, insis-
tentemente destacado pelo ensaio de Kosclleck comentado acima, é tão forte que fa z
da consideração inatual uma defesa ao mesmo tempo anti-historicista e antimoderna.
A Segunda considcrnção é tão categoricamente anti-historicista e antimoderna no plano

2 " lnntu;il, tal consideração o é ainda porque procuro entende r como um mal, um dano, uma ca-
rência, ,1 lgo de que a época se glorifica com razão, a saber, su;i cultura histórica , pois penso até
que todos estamos sofrendo de febre historiadora e que devería mos pelo menos percebê-lo" (ibid.,
p. 94).
3 Dever-se-ia estabelecer um florilégio do vocabulário médico, adequado à temáti ca da vida: sa tu-
ração, repugnância, enjôo, repulsa, degenerescência, carga opressiva, fardo, ferida , perda, ru ptu-
ra, morte. Do outro lado, cura, salvação, remédio . . .
4 ''Minha profissão de filólogo cl,íssico d ,í -me o direito de diz{•-lo: pois não sei qual sentido a filo-
logia clássica poderia te r hoje, a não ser o de exercer uma influênc ia inatual, isto é, agir contra o
kmpo, port;into, sobre o tempo, l', tomara, cm proveito de um tempo futuro " (ibid., p. 94).
i\ CO .' \Dl (.\() H IST() RICA

do tema quanto no d o tom . Desde o primeiro parágrafo, cri a-se um suspense, prcser-
,·a-se uma ambigüidade: "O elemento histórico e o ele mento n ão-histórico são igual-
mente necessários à sa úde d e um indidduo, de um povo, de uma civilização" (op. cit.,
p. 98). A ê nfase recai, é \Trdade, no não-históricoº: " História demais mata o h o mem".
Somente "o estado absolutamente não-histórico, anti-histórico, não gera a penas a ação
inju sta m as todo ato de justiça " (op. cit., p. 99). O não fala mais a lto: nisso, a Scg1111dn
cu11:;;idcrnçiio i11tc111pcsti111 é, como foi dito, excessiva. E o autor sabe disso e o confessa:
1

"Mas se é verdade, como teremos que estabelecer, que um excesso de conhecimentos


históricos prejudica o ser vivo, também é necessário entender que a v ida precisa do
serviço da história" (op. cit. , p. 103).
Proponho ilustrar a ambigüidade que compensa a veemência do ataque mediante
o tratamento dado no início do ensaio às " três formas d e história ", bem estudadas
pelos comentari stas, e cujo exame acrescento aqui ao dossiê d o veneno e do rem é-
dio. De fato, análises ponderadas são d edicadas ora à história monumental, ora à
história tradicionalista, ora à história crítica. P rimeiramente, é importante precisar o
n ível reflexivo no qua l essas três categorias são instituídas: n ão são m a is categorias
epistemológicas, com.o as que estabelecemos acima - prov a documental, explicação,
representação. Mas também indepc ndem do nível de reflexividade integ ral em que
se situa o conceito d e processo, a lvo por excelência dos golpes desferidos contra a
ilusão historicista: "Os 'espíritos histo riad o res"' - como N ietzsche propüe que sejam
chamados - "acreditam que o sentido da existência se d esvela progressivamente ao
longo de um processo, só olham para trás p ar a entend er o presente à lu z d o caminho
já percorrido e para aprender a d esejar o futuro de forma mais ousada; n ão sabem cm
que medida, apesar de tod o o seu conhecimento histó rico, pensam e agem de form a
não-histórica, tampouco sabem em que m edida a própria ativ id ade de historiad or é
com and ada pela vida e não pela pura bu sca d o conhecime nto " (op. cit., p. 101 ). O nível
no qua l se fa z essa i11\'estigação pré,·ia é expressamente pragmático, na m ed ida em
que nela se expressa fundamentalmente a re lação da Hi:-tôrin com a v ida e n ão com
o saber: a cada Yez é " o ho m em ativo e poderoso" (op. cit., p. 103) que é a m edida da
utilidade para a v ida.
Isso posto, vale a pena d e longar-se no traba lho d e discriminação operado em cada
um dos três níveis di fere nciados por Nietzsche em relação ao eq uívoco pl an tad o no
cen tro d o e nsai o.
Assim, a história monumental n ão é definida primeirnmentc pe lo excesso, mas
pe la utilidade contida em "mod e los a serem imitados e ultra p,1ssados" (op. cit ., p. 10-l);
por essa história, "a grandeza perpetua-se" (op. cit., p. 103). Ora , é precisamente a
grandeza que a doença histórica nivela a té a ins ignificância. Portanto, é na util idade

:, A L'SSL' propl·lsit,), um,1 Pbsl'r vaçiiP SllbrL' a tr,1d uç.'io: n.'io se dl'n' tradu zi r dos L/11/iisftir is<"iit's po r
"' não-his toricidade " (i/iid., p. 99) , sob pen,1 de e n t r,1r numa proble111Mic 1 bem diferL·nte, prL'CÍSil -
nwnte il d,1 Ccsdlic/1//it"i1kcil que proVL' tn de um hori 1.onte fi lost'i fico tota I me nte di stinto L' ú lllstitu i
uma k n t,1tiYil m ui tP diferente p;irn s,1ir d ,1 cri~c do hi storicismn. \\ 1ltarcmos a e s te p()tl!() mai s
t,Hdl'.
/1 MEM(lRIA, A lllSl(lRIA, O FS(I UECIMENTO

que o excesso se enxerta: ele consiste no abuso das analogias que fa zem com que "tre-
chos inteiros do passado sejam esquecidos, desprezados, e corram num fluxo cinzento
e uniforme de onde apenas alguns fatos aumentados emergem como ilhotas isoladas"
(op. cit., p. 107). É quando ela se torna prejudicial ao passado. Mas também prejudica
o presente: a admiração sem limites pelos grandes e poderosos do passado torna-se o
disfarce sob o qual se dissimula o ódio pelos grandes e poderosos do presente.
A ambigi.iidade da história tradici.onalis ta não é menor; conservar e venerar costu-
mes e tradições é útil para a vida: sem raízes, n ão há flores nem frutos; mas, urna vez
mais, o próprio passado sofre, todas as coisas passadas acabam cobertas por um véu
uniforme de venerabilidade, e "o que é novo e está nascendo acaba sendo rejeitado e
atacado". Essa história só sabe conservar, não engendrar.
Quanto à história crítica, ela não se identifica com a ilusão his toricis ta. Constitui
apenas um momento, o do julgamento, na medida em que "todo passado merece ser
condenado" (op. cit., p. 113); nesse sentido, a história crítica designa o momento do
esquecimento merecido. Aqui, o perigo p ara a vida coincide com sua utilidade.
Portanto, existe de fato uma necessidade d e história, seja ela monumental, tradi-
cionalista ou crítica. A ambigüidade residual, que comparo à do pfianunkon do Fedro,
resulta do que a história comporta de não-excesso em cada um dos três níveis consi-
derados, em suma, da utilidade incontestável da história para a vida, em termos de
imitação da grandeza, de veneração pelas tradições passadas, de exercício crítico do
julgamento. Para dizer a verdade, Nietzsche n ão pesou realmente nesse texto a utili-
dade e os inconvenientes, na medida em que o excesso se declêlra no próprio cerne do
histórico. O próprio ponto de equilíbrio permanece problemático: "Na medida em que
serve a vida, sugere Nietzsche, a história serve a uma força não-histórica: portanto,
nunca poderá nem deverá tornar-se, nessa posição subordinada, uma ciência pura,
como a matemática, por exemplo. Quanto a saber até que ponto a vida precisa dos
serviços da história, é uma das perguntas e das preocupações mais sérias relativas à
saúde de um indivíduo, de um povo, de uma civilização. Pois história demais abala a
vida e a faz degenerar, e tal degenerescência também acaba pondo em perigo a própria
história" (op. cit., p. 103). Mas será que o balanço pedido no título pode ser estabeleci-
do? Tal é a pergunta que continua em aberto no fim do ensaio.
O ataque à modernidade, privado das nuanças anteriores, é introduzido pela idéia
de uma interposição entre a his tória e a vida de um "astro magnífico e resplandecen-
te", a saber, "a vontade de fazer da história uma ciência" (op. cit. , p. 115). Essa vontade
ca racteriza o " homem moderno" (ibid.). E consiste numa violência cometida contra a
memória, equivalente a uma inundação, a uma invasão. O sintoma primeiro da doen-
ça é "a notável oposição - desconhecida dos povos antigos-entre uma interioridade
à qual não corresponde nenhuma exterioridade e uma exterioridade à qual não corres-
ponde nenhuma interioridade" (op. cit., p. 116). Não esta mos longe da estigmatização
pelo Pedro das "ma rcas externas" que alienam a memória . Ma s a crítica adota um tom
moderno na medidc1 cm que c1 própria distinção entre c1s categorias do interior e do
exterior é uma conquista moderna, dos alemães cm primeiro lugar: "n5o somos o fa-
,\ CO .' \D IC:,\<.) H l~T(l R IC/\

moso povo da profundidade interio r"? (op. cit., p. 119 .) E en tretanto já nos tornamos
"enciclopédias a mbulantes"; em cada uma d elas d everia ser impressa a de dica tória:
" manual d e cultura inte rio r pa ra bárbaros exteriores" (op. cit., p . 117).
O ataque em regrn , ao continua r, faz ex plodir os diques entre os quais Nietzsche
projeta canalizá-lo (os cinco pontos de vista do início do p arágrafo 5!): extirpação dos
insti ntos, dissimulação a trás de m ásca ras, conversas d e anciôes grisalhos (o Fedro tam-
bém não reserv,wa aos anci ãos o sabor d os gm11111wtn?), " neutra lidade dos eunucos,
redobrame nto sem fim da crítica pela crítica, perda da sed e d e justiça"" em prcn-eito
d e uma benevol ência indife rente para com a "objeti vidade"~, esmo recime nto pregui-
çoso diante da "marcha das coisas", refú g io na " melancólica indiferença"~. Retumbam
então ao mesmo tempo a d eclaração ma ior do e nsaio (" É somente da mais a lta força
d o presente q ue ,·ocês têm o dire ito de inte rpretar o passad o" [op. cit., p . 134]) e a
profecia última ("Somente aquele que cons trói o futuro de tém o direito d e julgar o
passado" [ibid .1). In sinua-se a id éia de "justiça histórica " cujo jul gamento é "sempre
destruti vo" (up. cit. , p. 136). É o ónus a ser pago para que re nasça o instinto de cons-
trução que deveria arrancar a celebração da arte e a té a devoção relig iosa do puro
conhecimento cie ntifico (op. cit., pp. 136-137). Ar risca-se então, sem proteção, o elogio
d a ilusão, diametra lmente oposto à rea lização por ele mesm o do conceito segundo a
grandiosa filosofü1 hegeliana da história". O próprio Platão, o da República, III , 40-1b e
seg., mobilizou-se em prol d a " vasta m entira necessá ria" (op. cit., p . 164), às expensas
da pretensa verdade necessá ria. A contradição é assim le\'ada ao âmago da idéia de
modernidade: os no,·os tempos que ela in\'oca estão colocados pela cultura his tc'i rica
sob o s ig no da velhice.
Ao té rmino d esse ataque desmedido, é bastante difícil dizer o que é o não-histórico e
o supra-histórico. Um tema, entretanto, serve d e e lo en tre esses conceitos limites e o dis-
curso em defesa da vida: o te ma da juventude. Ele eco a no fi nal do ensaio, assim como o
fa rá o da nata lidade no fim de/\ Condiçfío do !10111c111111odcmo de Ha nna h Arendt. A excla-
mação - " Pensando aq ui na juventude, g rito: ' terra! terra!' " (op. cit., p . 161 ) - pode

6 "É soml~nte na mcdida cm q ue o homem ,1 ma ntL' da verd ade nutre t,1mbém íl vontade in condi -
ciona l d e ser justo, que hii ,1lgo grandt' 11 l'SSa Sl'dL' dl' vc rdadl' qul' L'm tod a parte é glorificada de
form,1 tfio inconsiderad a" (i[,íd., p . 128) .
7 " F.ssl's his to riadores ingênuos chama m d e 'llbjeti,·id ,1t.fr' l l i.itu de nwdi r opinicics e atus p assados
pehis opin iôes comuns do mo mento presL·nk, L' l11 que encontrnm () c,'\ no ne de toda \·erd adt-; seu
tr.ib,1l ho l' acllmodar () p,bs,1do ,i tri,· i,1 lid ,1dL· .itu,) l" (i/,íd. , p . 130). E ma is adiante : "é .issim que
o homem estende sua tel,1 sobrl' o pass,1do L' SL' to rn ,1 mes t n.' Lfr le ; L; ,1ssi m que se m ,1 nifesta seu
inst into artís ticP - 111 ,1s n<'ío seu in s tinto dl' \erd ,1de e de justi ç,1. i\ objet i\·idade e L) es p íritn de
jus tiça sJo duas cnis,1s t(lt,1lnw nll' d ifL' rL·nks" (í/ 1íd., p. 131).
t-\ O g ri tn de g uL'rr,1 : " Di\·is<'in do trnbalho' FormM filei ras' " niio l'n con tra L'C\l n,1 n mfiss,10 dc si ludi -
d,1 de l'ierrL' :\:()r,1: ".-\rquin•m, ,nq ui , ·L·m, q •mpre subrariÍ ,1lguma Cllis.i "?
<.J ~ idzschl' 11,111 rL'sistl' ,1(1 L'x,1gl'ro de fing ir que I lL'gL'I tcnh.i identificad o o "processo un i\crsa l"
com s u.i pn'l pri,1 L'xish:•ncia berlinenSL' (í/,íd ., p. 1-17); redu z indo-Sl' tudo o quL' vir ia depoi s ,1 uma
"ú1d11 mu sical do ronLfo d ,1 hi stc'iri a uni ,·l·rsa l, o u ma is L·xat,1mentl', a um<1 repl'tiçlio s upérflua "
(í[,íd.) . É ,erd.idt•, concedL' Nil't zsclw, qm• Hegel " ll il O disSL' isso" (i/iid.); 111<1s de impl ,111tou nos
t!spíri tos o mot i,·u para ,icred it,í -lo.
A M EM Ó RI A, A H IST (lRIA, O F:SQUFCI Ml·: N TO

parecer um pouco apelativa: ela ganha sentido no âmbito d o par juventude/ velhice,
que articula subterraneamente o ensaio, cm prol de uma reflexão geral sobre o envelhe-
cimento que a meditação sobre a condição histórica não pode eludir. A juventude não é
uma idade da vida, mas uma metáfora da força plástica da vida.
É na aura d a invocação à juventude que ressu rge í11 fine o termo insistente da d oen-
ça histórica, o qual por sua vez traz o terna do remédio do qual n ão se sabe a final se
não é também veneno, em razão de sua aliança secreta com a justiça que condena.
Tudo se estreita, de fa to, nas últimas páginas de um ensa io que até então arrasta va-se
enfadonho: " Não nos surpreenderá o fato de serem nomes de venenos (Gíften) - os
antídotos da história são as forças não-históricas e supra-históricas" (op. cit., p. 166).
Na verdade, Nietzsche não é muito prolixo para difere nciar o não-his tórico do supra-
histórico. "Não-histórico" é associado à "arte e à força de esquecer" e de "fechar-se
num horizonte limitado" (íbíd.). Uma ponte é lançada em direção às consid erações do
início do ensaio sobre os dois esquecimentos, o do ruminante e o do homem histórico.
Sabemos agora que esse esquecimento não é históri co, mas sim não-histórico. Quanto
ao "supra-histórico", ele desvia o olhar d o devir, dirigindo-o aos poderes dispensa-
dores de eternidade que são a arte e a religião. Por conseguinte, é a ciência que fa la
aqui de veneno, tamanho é seu ódio a esses poderes, assim como ao esquecimento no
qual só vê a morte do saber 'º. O não-histórico e o supra-histórico constituem assim o
antídoto (Gegennzittcl) natural à invasão d a v ida pela história, à doença histórica. "Sem
dúvida tal antídoto há de causar algum sofrim ento a nós, doentes da história. Mas esta
não prova nada contra a terapêutica (Heílvcrfahrcn) adotada" (op. cit., p. 167).
É dessa terapêutica que a juventude é o arauto: pois ela "sofrerá da m esm a forma
com o mal e com o remédio" (Gcgenmíttel) (íbíd.) .
Ju ventude contra epígono grisalho: "essa parábola (Gleíclmis) aplica-se a cada um
de nós" (op. cit., p. 169).

10 A esse respeito, Colli e Monti mi ri restituem uma versão a nterior da página: "A ciê ncia conside ra
ambos como vene nos; mas é somente um defeito da ciência que faz com que só veja neles vene nos
e não remédios. Fa lta à ciência um ramo, u m tipo de terapêu tica su perior que estuda ria os efei tos
d a c iê ncia sobre a vida e fixa ria a dose de ciência que pe rmite a saúde de um povo ou de um,1
civi li zação. !'rescriçã o: as forças não-hístórí rns en sinam o esquecimen to, local iza m, criam u m
clima, um hori zo nte; as forças s up ra-históri cas tornam mais ind iferente ãs seduções da histór ia,
aca lmam e desv iam a ate nção. Natu n •za, filosofia, arte, compai xão" (i/1id ., pp. 113-114).
1
A Filosofia Crítica da História

Nota de orientação

/
pela filosofia crítica da ltistôria que inicia111os o perrnrso l!en11c11t'utico. Seria u111 erro

E acreditar que, por.fá/ta de 1111w _filost~h·a da história de tipo especulativo, lzá lugar apenas
para uma epistemologia da opemçi'io historiográfica. Sobra 11111 espaço de sentido pam os
conceitos 111eta-lzistôricos que depc11de111 de 11111a crítica filos(~fi·ca aparentada àquela exercida por
Ka11t na Crítica do juízo, e q11e mereceria o 1w111c de "crítica do j11í:o lzistôrico". Con sidero-a
ca1110 o primeiro m1110 da lzen11e1Zê11tica, 110 sentido de que ela se indaga a respeito da nature-
::.a do co111pree11der que atnruessa os três 11w111cntos da operação lzistoriográfica. Essa pri111cira
l!em1enêutirn aborda 11 n:flcxão de segundo grau por sua ucrtc11te crítica, 110 duplo sentido de
dcslcgiti11111ção das prctensôes do saber de si da história a erigir-se c111 saber absolllto, e de lt'gi-
ti111ação do saber ltistôrico de uornção obfetiua.
A epistc1110Iogia de nossa segunda parte co111cçou a apelar para essa csp(>cic de rt:flexiio,
pri11cipa/111c11te quando c.ra111inou 111odelos cronológicos e/ahomdos pela disciplina. E11trcta11-
to, faltaua uma elaboração distinta das condiçiies de possibilidade de rntcgorias tc111pomis dig-
nas de serem e1Z1111ciadas nos termos do te111po da história. O uornh11lário da 11wdclizaçiio - os
fa1110sos "modelos temporais" da história dos Annales- não cstaz,a à altura dessa empreitada
crítica. É a Rci11/1ard Kosellcck que de110 a identificação da distância entre os modelos q11e
at11a111 na operação historiográfica e as categorias IC'mporais da história. A "história dos con-
ceitos" -a Begriffsgeschichte - , à qual 11111a parte importante de sua obra é dedirnda, refe-
re-se às categorias q11e regc111 o tratamento liistôrico do tempo, à ''/iistorizaçiio" generali:ada
dos saberes rclatiuos a todo o ca111po prático. O capítulo seg11i11 te 111ostnmí que esse cx11111c, por
s1111 ue: , aponta 11a direçiio de 11111a /icr111c1n~11tica ontológica da condiçiio Jiistórica, 1111 111cdida
e111 que essa ltistori:açiio depende de 1111,a cxperi[,11ci11110 sc11tidofortc da palavra, de 1111111 "cx-
pcrifocia da !1istóri11 ", scg11 11do o título de 1111111 das coletâneas de ensaios de Kosellcck. O pre-
sente rnpít11/o se 1111111tcrá nos lilllites de 11111a crítica da prctensiio do sa/1cr de si da história a se
erigir c111 saber absoluto, c111 rcflexrío total.
As d11as sig11~6caçiies 111cstms da crítica scriio nltcmad11111c11tc exploradas. As d11as pri-
111eims seçiks priuilcgiardo 11 cxtre111idade 11cgati'u11 da crítico; as duas últi111as considerariio as
dialétirns externa e i11tcm11 ao saber de si da llisttíria que 11tcsta111 de 111m1cim positiua a 1111toli-
111itaçiio ass11111ida desse saber.
A MErvl(lJ{JA, A HJ STÚ RIA, O léS(JUEC JMFNTO

Começare111os por avaliar a ambição mais alta que a filosofio ro111ii11tica e pôs-romântico ale-
mã atribuiu ao saber de si da /Jistôrin . Conduzirei essa investigação norteado pelo grande artigo
de Kosclleck, "História" - Geschichte - , dedicado à constituição da /Jistôria co1110 singular
coletivo enfeixando o conjunto das histórias especiais. A se111ânticn dos conceitos históricos
scruirá de detector cm relação ao sonho de auto-s11ficiência expresso na fôm111la "a própria his-
tória" (Geschichte selber) rcivindicnda pelos autores envolvidos. fase sonho será levado até o
ponto cm que volta contra si 111cs1110 a arma do "todo história" (seção[).
Essa crítica aplicada à mnbição 11111is extremo e mais declarada do saber de si da história será
e111 seguida aplicada a 1111w prctcnsiio c111 aparência dia111etral111e11te oposta à precedente, aquela
de considerar a época presente não sonu'nte como diferente, mas como prcferíz,el a qualquer
outra. Essa autocelebração, junto com a autodesignação, é característica da apologia da mo-
dernidade. Em minha opi11iiío, 11 expressão ''nossa" modernidade leva a u11ra aporia se111elha11te
àquela contida na expressão "a própria história". É primeiro 11 "recorrência histórica" da defesa
da modernidade, do Rennsci111ento e das Luzes até nossos dias, q11e semeia a conf11são. Mas
é mais visivelmente a co11corrh1cía entre várias dlifc'sas que 111istura111 valorização e cronolo-
gia, como, por exemplo, a de Condorcct e 11 de Baudelaire, que desestabiliza 111nis certa111ente a
preferência por si mesma assumida por uma época. Colocn-se entiio a questiio de saber se umn
argumentação e111 puros termos de valor pode eludir o equívoco de 11m discurso que invoca no
111es1110 tempo o universal e sua situação no presen te histórico. Outra questão que se colocn é a

de saber se o discurso do pôs-moderno escapa à contradição interna. Seja como for, a singulari-
dade histórica que pensa a si mesma suscita 11111a aporia simétrica à di7 totalidade históricn que
se sabe nbsolu tamente (seção 11).
A hermenêutica crítica não esgota seus recursos 110 de111Íncia das forml7s abertas ou dissi-
muladas da pretensão do saber de si da história à reflexão total. Ela está atenta às tcns{ies, às
dialéticas, graças às quais esse saber avalia de modo positivo s11a limitação.
A polaridade entre o j11lga111ento judicial e o j11lgnme11to histórico é umn dessas dialéticas
notáveis, ao 1nesmo tempo cm que conti111117 a ser uma limitnção externa à qual está submetida
a história: o desejo de imparcialidade co11111111 às duas modn!idades de julgamento é submetido,
em seu exercício efetivo, a coerções opostas. A impossibilidade de ocupar sozinho a posição do
terceiro já se evidencia na comparação entre os dois percursos da tomada de decisão, processo,
de um lado, arquivo, do outro; determinado uso do testenumho e da prova aqui e ali; determi-
nada finalidade da smtcnça terminal dos dois lados. A ênfase principal recai na concentração
do julgamento judicial sobre a responsabilidade i11divid11al oposta à expansão do j11lgn111ento
lzistôrico aos contextos mnis abertos da açi'io coletiva. Essas cmzsiderações sobre os dois ofícios,
de historiador e de juiz, servem de i11trod11ção à provnçiio proposta pelo caso dos grandes crimes
do século XX, submetidos altenzndm11e11te à justiça penal dos grandes processos e ao julgm11e11-
to dos historiadores. Uma das apostas teóricas da comparação diz respeito ao estatuto atribuído
à singulnridnde ao mesmo tempo 1110ml e histórica dos crimes do século. No plano prático, o
exercício público de um e outro j11lgn111e11to é a oportunidade de ressaltar o pnpel tempfotico e
pedagógico do "dissensus cívico" suscitado pelas controvérsias que an imam o espaço público
de discussão nos pontos de i11terferb1cia da história 110 c11111po da 1nemôrin coletiva. Assim, o
próprio cidadão é um terceiro entre o juiz e o historiador (seção /IT) .

~ 310 •.l>
U11111 últi111a polaridade enfatiza 11 li111it11çiio interna à q1111! o s11/ler de si da história está
s11lm1ctido. Ela niio se situa 11111is entre a histcíri11 e sc11 outro, co1110 t; o rnso do j11lga111c11to
j11dicial; c/11 cstfÍ 110 próprio â111ago da operaçi'io !,istoriogn~fica 1111forn111 da corrclaçiio entre o
projeto de ucrdadc e o co111po11c11tc i11tcrprct11tiz 0 da própria opcmçi'ío liistoriog1Afica. Trata-
1

se de 111uito 11/{lis do que o e11g11j11111c11to :011l1jctiuo do historiador 1rn fon1111çi'ío d11 ol1jctiuidadc
!,istôricn: trata-se do jogo de opçôcs que l111/i:11 todas as fa ses da opemçt'io, do 11rq11iuo à rcprc-
sc11taçi'ío historiadora. Assi111, n intcrprctaçi'io nwstm ter 11 111cs11rn 11111plit11dc que o projeto de
ucrdadc. Ess11 co11sidcraçiio j11st1firn seu lugar 110 fi111 do percurso n'.flcxivo re11/i:11do neste
rnpít11!0 (seção IV ).

I. "Die Geschichte selber", "a própria história"

Refaremos, com R. Koselleck, a viagem às fontes da grandiosa ambição, que é a do


saber de si da história, d e ter acesso à reflexão total, forma eminente do saber absoluto.
A ele devemos o reconhecimento da distância entre os modelos tem porais que atuílm
na operação historiográfica e as categorias temporais da his tória.
Certamente, eu já havia resenhado em Tc111po e 11111-ratiz,a Ili o famoso ensaio intitu-
lado "Ca mpo de experiência e horizonte de expectativa: duas categorias históricas",
retomado em Of11t11ro passado; mas não ha\'ia vislumbrado o vínculo entre aquele ensaio
e o conjunto de pesquisas dependentes de um tipo de discurso hierarquicamente supe-
rior àquele da epistemologia da operação historiográfica 1• No que diz respeito às noçües
de campo de experiência e de horizonte de expectativa, trata-se, observa Koscllcck, "de
categorias do conhecimento suscetíveis de ajudar a fundamentar a possibilidade de uma
história" (O futuro p11ss11do, p. 208). Mais radicalmente, trata-se de definir o "tempo da
história ", tarefa da qual se diz no prólogo que "entre todas as questões levantadas pela
ciência históricíl, é uma das mais difíceis de resolver". De fato, quando se trnta dos con-

Em Tc111po e 11rnrati,•11, t. Ili, op. cil., pp. 37'i-39 1, introduzo as anéÍ!iSt'S de R. Kosellcc k l\lg\l depois
do confrnnto com ,1 filosofia hcgt:li ,rna da história ("Renunciar a Hegel ", pp. 149-174-) e tento colo-
c,í -bs s\lb a égide de uma herm e nê utica d,1 consciência his túrica, c uja c,1tegoria mestra é· a de ser
afl't.1d,1 ~wlu p,1ssc1d\l, que de\·o a H,rns C . C,1danwr. Kosellec k encontr,1-sl' assim intercalad o l'lltrc
Hegel, a quem renuncio, e Cada mer, a quL'rn nw ,11 io. O que ia lta , t!ntào, a essa pl'rspecti\·açàLl, é
Ll rcC\lnlwciml'ntn da dimensão tr,rnsccndl'ntal das categorias m c ta-his túricas. Esse rcconheci-
nwnt\l somen tl' Sl' tornou possível apL'is um,1 rccnnstruçi\o paciente da op e raçào historiog rMica
libL•rada dos limitl'5 de uma inq uic taçi\o narratológica dnminantt'. É em relaçi'\o .:1os 111odc/i1_,; da
opcrnç,'iP histllrit)grMic,1 que ;:i s rntcgori11,; l'X,l m i11,1das por R. Kosl'I lt•c k dt:>finem seu estatuto ml:'tíl-
h is túrico. NL'm por isso renego ,1 .:1bo rd ,1gcm hc rmL'llL'Utica dl' Tc111po e 1111rrnl i u11 ///: o própr io R.
KL1sellcc k particip<1, junto com Har,1ld Weinrich L' Kt1rl Hc in z Stierle, do grupo d e pL'squisa que
publica o />octi/.: 1111d f1 1T 1111·111·11ti/.:. F no \"lilurm.• V dessa colL'Ç,lL\ sob (l título de Ccscliic/1/c, t:rcig 11i,;
1111d Fr:iili/1111:,:, IHish'iria, Acontt'c inwntLl, 1\J,irr,lti\"al, que foram publicados d ois dos artigos rl'to-
mados em O_f11t11ro 11c1,;,;ado: " Hist{iriíl, histi)ri ,is L' L'slrutur,1s IL'mporai s ior111,1is" e "RL'prL'SL'lltaç,10,
,iconll'ci ll1l'nto L' l'Strutu r,1 ··.
A J\.1FM( lR I A, A H IST(lRIA, O FSQ UEC IMFNTO

teúdos da história, um sistema confiável de datação basta; quanto aos ritmos temporais
dos conjuntos que o discurso histórico delimita, eles se destacam contra o fundo de um
"tempo da história" que pontua, pura e simplesmente, a história.
Koselleck tem bons motivos para caracterizar essas categorias como meta-históri-
cas. Essa avaliação de seu estatuto é confirmada pela homolog ia d e constituição entre
as categorias do tempo histórico em Koselleck e as do tempo interior nas Confissôcs
de Santo Agostinho. O paralelismo entre o par horizonte de expectativa e espaço de
experiência e o par presente do futuro e presente do passado é marcante. Os dois pares
dependem do mesmo nível de discurso. Ademais, eles se prestam um socorro mútuo:
as estruturas do tempo histórico não se limitam a dar às do tempo mnernônico uma
amplitude mais vasta, mas abrem um espaço crítico no qual a história pode exercer
sua função corretiva cm relação à memória; em troca, a dialética agos tiniana do tríplice
presente reabre o passado da história sobre um presente de iniciativa e um futuro de
antecipação dos quais, quando chegar o momento, será preciso reencontrar a marca
no cerne da empreitada histori adora. Resta que Koselleck está habilitado a dizer que
"nem Santo Agostinho nem Heidegger fizeram sua interrogação incidir sobre o tempo
da história" (op. cit., p. 328) - o que não é tão verdadeiro no caso de Gadamer, como
afirmo em Tempo e 11arrativ11 TIi. A contribuição d as análises d e Kosellcck consiste no
tratamento dessas ca tegorias como condições do discernimento das mudanças que
afetam o próprio tempo histórico e, principalmente, dos traços diferenciais da visão
que os Modernos têm da mudança his tó rica 2• A própria modernidade - voltaremos
a isso mais adiante - é um fenómeno his tórico global, na medida em que apreen-
de os Tempos modernos como tempos novos; ora, essa apreensão somente se deixa
refletir em termos d e afastamento crescente das expectativas em relação a tod as as
experiências feitas a té hoje. Não era o que acontecia com as expecta tivas escatológicas
da cri.standade histórica que, em razão de seu estatuto ultramund ano, não podiam
ser coordenadas com a experiência comum d entro d e um único processo histórico. A
abertura do horizonte d e expecta tiva designado pelo termo "progresso" é a condição
prév ia d a con cepção dos Tempos modernos como novos, o que constitui a definição
tautológica da modernidade, pelo menos em alemão. A esse respeito, pode-se falar de
" tempora lização da experiência da história" enquanto processo de ape rfeiçoamento
constante e crescente. Múltiplas experiências p odem ser enumeradas tan to na ordem
da expectativa quanto na da exp eriência rememorada; progressos desiguais se deixa m
inclusive distinguir; mas uma n ovidad e global aprofunda a distância entre o campo
de experiência e o horizonte de expectativa'. As noções d e aceleração e de caráter di s-

2 O título C)f11t11ro p11ss11dc> p ode ser entend ido no sent ido de futu ro tnl como ele n ão é ma is, de futu -
ro aca bildo, característico dn é pocn cm que foi pensada a his tória enqua nto ta l.
3 Embora Kant n ão tenha escrito a crítica d o juízo histórico q ue teria constituído a te rceira parte da
Crítica do juízo, ele d eixou seu esboço e m O co11flito d11s f11rnhfodcs. Assim, lemos n a seg und a seção,
§ 5: "Na espécie huma na, há de sobrev ir alg uma experiênc ia que, enqu anto acontecime nto, ind iqul'
nessa espécie uma dis posição e uma a ptidão a ser cau sa do progresso rumo ao melhor e, u ma vez
que este deve ser o ,1to de um ser dotado de liberdade, a ser seu 11rtcs1io; pode-se a fi rma r qm' um
acontec imento é o efeito d e uma determinada c.nisa qu and o se prod u zem as circ unstâ ncias q ue
,\ (ll:\lllt; An J IIST\lRIC A

ponÍ\'el da história pertencem ao mesmo ciclo. A aceleração é o indício infalÍ\·el d e


que a distância só se mantém modificando-se permanentemente; a aceleração é uma
metacategoria dos ritmos temporais que vincula a melhora ao encurtamento dos in-
ter\'alos; ela déí à noção de velocidade um toque histórico; ela permite a contrnrio falar
de atraso, de adiantamento, d e estagnação, de regressão. Quanto ao caráter disponível
da história, ao seu carélter factível, ele designa uma capacidade que é ao mesmo tempo
a dos agentes da história e a dos historiadores que dispôem d a história ao escrevê-la.j.
Que alguém faça a história é uma fórmula moderna impensável antes do fim do século
XVIII e que foi de algum modo ratificada pela Revolução Francesa e Napoleão. O n ível
meta-histórico do conceito se evidencia no fato de ter podido sobrevive r à crença no
progresso, como atesta, fora da es fera alemã \ o orgulhoso lema emprestado de Michel
de Certeau sob o qual Jacques Le Goff e Pierre Nora reuniram os historiadores france-
ses nos anos 70''. Se a noção de exeqüibilidade da história é tão tenaz, é prova,·elmente
porque ambiciona alinhar nossa relação dupla com a história - fa zer a história e fazer
história - com a competência constituti,·a do campo prático daquilo que chamo, com
um termo abrangente, de "homem capaz".
Nada enfatiza melhor o caráter unilateral do conceito de exeqüibilidade da história
do que seu vínculo estreito com a metacategoria por excel ência que constitui o próprio
conceito de história corno singular coletivo. É a categoria mestra sob cuja condição o
tempo da história pode ser pensado. Existe tempo da história na medida em que há
uma história una. É a tese mestra de Kosellcck, num artigo seminal publicado no Léxico
IIi~tôrico dn lí11g11a polítinHocíal na A/c111a11!,a com o título simples d e "Geschichte":. Nes-
se aspecto, seria uma ilusão acreditar que o repúdio clamoroso da filosofia hegeliana
da história e, num grau menor, a eliminação altiva das especulações arriscadas de

colaboram para isso ". Essa "his tó ri.i profética do género hum a no" apóia-se nos sinais que a hi stú-
ria efetiva emite da dl's tinaçãu cosmopolítica do gé nero humarlú. P,1r<1 Kant, a Re\'lilução Francesa
foi um desses sin ,li s, do qu.il di z: "Tal fenómeno da hi s tóri a d,1 hum ,rnidade não s e t.' squen.' mai s"
(0 nmj1i to d,15,tilc11/d11 dc5, 2·· seção,§ 7).

-l Kose lleck dedica um ,1 .in,íli se separad.i ,1 essa noção de di sponi bilid ade (0,tiituro p115511do, 11p. i"if.,
p. 2:\3 L' Sl'g. )
~ C ita-se com ireqüénci ,1 ,1 fó rmula d e Treitschke que Kose llt·ck rel ata : "Se ,1 histó ria fosse u111 ,1 ciê n-
cia exata, de,Tríamos t.'star e m condição d e dl•s,·endar o futuro d os Estados. Nãn podt.·mos fo zê-
lo, pois, por toda parte, a cii:•ncia hi stórica esbarra no mist6rio d.i p c rson<1lidade. São indidduos,
homens que fo1.e111 ,1 his tória, homens como Lutero, Frederico o C r,1 nde e Bismarck. Essa gr,1nde e
hen'iica verdade s erá sempre jus ta; ma s o fato de esses homl'ns parecerem scr us homcns certos !lll
momento certo pL·rma nL·cerá para todo o SL'mpre um mi s t6rio pa r,, nós s imples mortais. O tl'mpo
forma o gênio, m ,is n,~o n cria" (c itado por Koscl lcck, i /1id. , p. 2-l'i ).
6 '.\Jo texto de aprt•se nt,1çiio d ,1 nbr,1 co let i,·a Fc1irc de I '/,i:,;foirc, a no,·idc1d e da empre itada L' enfa ti-
zada: "Obra coleti,·a t' d i\·e rsa, l'Ste li,·rn p rt•tende entret,111to ilu ;.trar L' pro mo,·cr um non i tip 11
d e hi stória ". 1\ no ,·id ,1de, s ob as tri:•s fór mulas " l'rnb lern as llll\'11s", "Conceitos non is", "Ohjl.' los
novns", replica an es fa cela me nto do c,1 mpo hi s tórico na nw;.m ,1 t.:•poc,1. '. L'Stl' sentid o, el a e;.t,í e m
sinto ni a com a uni fi c.1çiio do conceitu de h istt)ri,1 , qm• será tr,1t,1d ,1 111 ,1 is ,1d ia nte.
7 A rtigo "Ceschichll'", in Ce5cf1icl1t /i(/1c Crn11d/,c:,; rifk, Stuttgart, Kktt-Cn tt,1 , 197.S. A traduç,10 fra n-
cesa desse texto, p11r l'vlicht'l Wcrne r, é co lncMia no início d a cole t.'nw ,1 dt• ,irtigos l."f-:.r)'àic11t"e ,ie
/'hi~toirc, op. cit.
A \-1F \11ÚRli\, /1 III ST()RIA, () ES(_)UFC I MFNTO

um Spengle r ou de um Toyn bee, e a té mes mo de êmulos mais recentes com ambições


pla ne tárias, e xoneram os hi storiadores da ta refa de explicar por que a mesma pala-
vra " história" desigrw, sem anfibologia facilmente denunciável, o singular coletivo
da seqüência dos acontecimentos e o conjunto dos discursos suste ntados a respeito
desse singular coletivo. A questão está ligada ao nível transcendental de um discurso
crítico sobre a história. Koselleck recorre à ferramenta notável de uma semântica con-
ceituai, espécie de lex icografia seletiva do vocabulário básico das ciências históricas.
Mas, diferentemente de uma obra lexicográfica limitada a um exame dos conceitos
sob a condição da colocação entre parênteses do referente, as metacategorias trazidas
à luz pela empreitada são, à mod a das categorias kantianas, as condições d e possibili-
dade de uma e xperiê ncia específica. Assim, o léxico se apóia numa relação triangular:
conceito diretor, funcionamento da linguagem e experiê ncia. O campo de aplicação
desses conceitos diretores é constituído pelo que o au tor chama de "expe riê ncia da
his tória"K, a saber, algo mais que um território epistemológico, uma autêntica relação
com o mundo, comparável àquela s ubjacente à experiência física . Ora, essa experiência
é própria da época moderna. O autor fala de um "espaço novo de exp eri ência". Essa
referência à modernid ade, sobre a qual voltaremos m ais detid a mente, m a rca, d esde o
início, o caráter d e época da própria semântica conceitual. Essa marca de época não
pode dei xa r de colocar a empreitada sob o signo do his toricismo ao qual seu próprio
pe rcurso a leva, sem que essa solução tenha sido buscada.
No início dessa história afirma -se uma expectativa ingênua cuja complexidade cres-
cente será revelada por seu curso ulterior. Koselleck vincula essa expectativa a "dois
acontecimentos de longa duração que acabam confluind o e, por isso m esmo, abrindo
um espaço de experiência que antes não pudera ser formulado" ("Geschichte", p. 10).
Tra ta-se, de um lado, do nascin1ento do conceito de história enquanto coletivo sí11g11lar
que liga as his tórias especiais sob um conceito comum; e, de outro, "da contaminação
mútua" dos conceitos de Gcschichtc, enquanto complexo de acontecimentos, e d e His-
torie, enquanto conhecimento, narra ti va e ciência histórica, contaminação que resultou
numa absorção do segundo pelo primeiro. Esses dois acontecimentos conceituais, por
assim dizer, acabam por formar um só, a saber, a produção d o conceito de "história
enquan to tal ", de" a própria história" (Gcscl1icl1tc sclbcr).
O nascimento do conceito de his tó ria como coletivo sing ular sob o qual se reúne
o conjunto das histórias p articul ares marca a conquis ta d a maior distância concebível
entre a história una e a multiplicidade ilimitada das memórias individuais e a plurali-
dade das memórias coletivas enfatizada por H albwachs. Essa conquis ta é sancionada
pela id éia de que a própria história se torna seu próprio sujeito. Se há experiência
nova, é exatamente a da autodesig nação de um novo s ujeito de a tribuição denomina-
do história.

H b: o t ítul o d ado à coletnncn de art igos ao qual pertence "O concei to de hi s tó ria": R. Kose lleck,
L'Expáirn cc d1· /'hi.,toirc, op. cit.
,\ U l's UI (, -\l l II ISllll{ IC ,\

Compreende-se que o segundo "acontecimen to " apo ntc1do por Koselleck - a


saber, a c1bsorção de Historie por Ccscliic!,tc - tenha podido se con fundir com o d c1
formação do conceito d e história como coletivo singular. A autonomia da h istória
sujeito de si mesma comanda, em última instância , a organização de sua represe n-
tação. A história, ao se produzir, articula seu próprio discurso. Essa absorção oco r-
reu apesar das resistências esporcklicas de autores, como Nicbuhr, apaixonados pela
precisão metodológica. A velha d e fini ção que remonta ,1 C ícero (" A história é urna
n a rrativa verídica de coisas passad as"), assim como a antiga a tribuição à !,i-;toria d e
uma fun ção instituidorn (/1i~tori11 11111gistra t 1 it11c) se vêcrn rea propriadas pela nm·a
ex periência da história q ue se refle te L'nqu,rnto acontece. Dessa re fle xividade da his-
tória deriva um concei to específico d e tempo histórico, um a temporalização propria-
m ente histórica".
Nesse estágio, que se pode qua lificar de ingenuidade ou d e inocênci,1, o termo his-
tória exibe um teor reali sta que garante à história enquanto tal umc1 pretensão própria
à verdade 111 •
Antes de irmos mais adiante, a ex pressão "experiência da históri a ", usada por Ko-
selleck como título da obra inteira nc1 qual se inscreve o artigo cm questão, m erece
reflexão. "U m nO\'O espaço de experiência", diz ele, foi abe rto "do qual a escola his-
tórica se alimenta desde então" (élrt. cit., p. 51 ). Ora, esse espaço d e experiência coin-
cide com a modernidade. Pode -se então folar, em síntese, d e experiência m od e rna dél
históriél. A esse respeito, o le itor no tará uma mudança importa n te no vocabulMio d e
Koselleck d esde Of11t11ro f.//1:-;517lio , onde espaço de experiência era oposto a horizonte de
expectativa (cf. Tc111po e 11m-rnti'un III, op. cit, pp. 375-391). Aplicado dorava nte à história
enquanto tal, o conceito d e ex per iê ncia, qualificado pela modernidade, recobre as três
instâncias do tempo. Ele vincula o passado advindo, o futuro esperado e o presente
\'ivid o e agido. O que é declarado moderno por excelência, é esse carcí ter onitemporal
da his tória. Ao mesmo tempo, o conceito de história se reveste, a lé m d e seu significado
temporal renm·ado, de uma signifirnção antropológica nm·a: a h istória é a h istória da
humanidad e e, nesse sentido, histó ria mu ndi a l, his tória mund ia l d os p o vos. A huma-
nidade se torna simultaneamente o objeto total e o sujeito úni co da históric1, c10 m esmo
tempo em que a história se faz coleti,·o singular.
É sobre esse fundo de pressupostos que é preciso ressituar o surgime nto das no-
ções de "filosofia da história ", com Voltaire, de "ldéia d e uma história uni\·ersal do
po nto d e vista cosmopolítico", com Kant, de "filosofia da histó ria da humanidade",
com Herder, de "filosofia do mundo" (Wcltgc~c!Iic/1tc), que Schill er erigiu cm " tribuna l
do mundo" . Com e ste último d esem ·oh·imento, à expansão do território narrati\'(l da

Y "A d istinçã o d e um tl'mp1) hi stó r icll por n,1turt'z,1 n o conceito de hi st(·,r i,1 o,inc id c n1m ,l l'\f'l'rÍL'll-
cia dos Tem pos mudemos " (i[,id. , p. 21) .
l ll " Esse mundo d t• t'X Pt' f il' ncia ll· m um ,1 pretcnsiio imanente à \'l'rd,tdc " (i/ ,id., p. 22). E m.1is ,1d i,rnll':
" Para dizC•-lo de mndl, exagerado, a hi stória (Cc~d,ic/,/c) é uma t'sp6c ie ck c,1 k gu ri a tr,1nscl'nden-
ta I que vis.1 à cond i~·,10 de possibi lid ade das hi st(ir ias" (i/Jid. , p . 27 ). LJm,·sen podl'rá di zl'r dcl,i que
"l'ia ml'sma é seu pn'iprio s,1ber" (cit,1 do ihid.).
A Ml'.M(lRIA, A HIST()RI A , O FSQUFCI IVIFNTU

história se acrescenta urna reflexão moralizadora de alcance universal sobre o próprio


significado da história 11 •
Falta apenas a dimensão especulativa anunciada por Novalis quando proclamou
que "a história engendra a si mesma" (citado in "Geschichte", p. 48). A obra de Hegel,
A mzi'io 1w história, coroa essa epopéia conceituai. É sob a égide da dialética do espírito
objetivo que é firmado o pacto entre o racional e o real, sobre o qual se diz que exprime
a idéia mais alta da filosofia 12 • O vínculo no qual essa identidade se mostra é a própria
história. Toma-se ao mesmo tempo distância em relação à disciplina histórica comum,
que foi censurada por rondar na casa dos mortos. A esse respeito, é preciso ser grato
a Hegel por sua crfüca à idéia abstrata de um mundo que não é mais a potência de
vida levada pelo espírito ao cerne do presente. Algo se anuncia aqui que encontrará
no elogio da vida feito por Nietzsche uma conclusão veemente, e também na oposição
instaurada por Heidegger entre o ter-sido do passado verdadeiro e o passado acabado
subtraído a nosso império. Mas tampouco se poderia desconsiderar o nascimento, sob
a proteção da filosofia hegeliana (herdeira, nisso, da orientação antiteológica das Lu-
zes, mais que dos românticos), de urna religião secular afiançada pela equação entre a
história e a razão. A história é o desenvolvimento do espírito no seio da humanidade.
Se Koselleck pode falar de experiência da história, é também na medida em que o ccm-
ceito de história pode pretender preencher o espaço antes ocupado pela religião. É em
razão desse parentesco e dessa substituição que a filosofia idealista da história pôde
elevar-se acima das simples análises causais, integrar temporalidades múltiplas, abrir-
se para o futuro, ou melhor, abrir um novo porvir, e assim reinterpretar o topos antigo
da história mestra de vida, mais perto das promessas de redenção despejadas sobre a
humanidade vindoura pela Revolução Francesa, mãe de todas as rupturas.
Mas com a palavra "ruptura" um dedo é apontado em direção a uma falha que
fende do interior a idéia presumida abrangente, totalizadora, da história do mundo.
Pode-se seguir o rastro dos efeitos cada vez mais devastadores dessa falha.

11 Leremos no ensaio incrive.lmcntc documentado de Koselleck as contribuições distintas de pcn-


S<1dores tão importantes como Chladenius, Wieland, von Humboldt, F. Schlegel, F. von Schiller,
Novalis e sobretudo Herder, sem folar dos grandes da escola histórica alemã: R,1nke, Droysen,
Niebuhr, 13urckhardt.
12 "Mas a única idéia que a filosofia forne ce é a simples idéia lfa Ra:âo - a idéia de que a Razão
govnna o mundo e que, conseqüentemente, a história universal também se desenvolveu racional-
m ente. Essa convicção, essa idéia constitui uma pres unção em relação à história como tal, mas não
e111 rclaçiio ií filosofia. Nesta está dc111011stmdo pelo conhecimento especulativo que a Ra zão - pode-
mos ilqui nos ater a esse termo sem insistir muito mais na relação com Deus - é sua substância,
o J'Odcr infinito, ,1 11111tfri11 i11filiit11 de toda vida natura l ou espiritual - e também afom111 infinita da
realização de seu prúprio conteúdo.[ ... ] A ldé ia é o verdadeiro, o eterno, o poder absoluto. Ela se
manifesta no mundo e nada nele se manifesta que não scjil ela, sua majestade e sua magnificên cia:
eis o que a filosofia demons tra e que aqui é suposto como demonstrado" (trad. franc. de Kostas Pa-
paio,1nnou, Paris, 10/ 18, col. "Philosophie d cssais ", pp. 47-48). Cf. Tc111po e 1111rmtirn, t. TIi, op. cit.,
"Renunciar a Ht•gcl ", pp. 349-374. É verdade que li m:110 1111 lii~tária é a obra mais fraca de Hegel e
que pesa pouco cm comparação com a E11ciclopédi11 das CÍ1' 11cias filosôfirns e com Suil grande Lógirn,
que cont inuam a ser o Himalaia a escalar - e a vencer.
,\ C()\:J)l(,\ll lllST(lRIC,\

A menor infração à idéia de história una e de humanidade una deve ser atribuída
às resistências din~rsas daquilo que se pode chamar, num sentido amplo, com Hannah
Arendt, de p/11mlidadc ln111u111a. Esta trabalha do interior o próprio conceito de história
como coletivo singular. São sempre histórias especiais que a história universal ou a
história do mundo pretende englobar. Ora, essas histórias especiais se dizem segundo
critérios múltiplos: quer se trate de distribuição geogrMica, de periodização do curso
da história, de distinções te máticas (história política e diplomMica, história económica
e social, história das culturas e das mentalidades). Essas diversas figuras da pluralida-
de humana não se deixam reduzir a um efeito de especialização profissional do o fício
de historiador. Elas se de,·em a um fato primeiro, a fragmentação e até mesmo a dis-
persão do fenómeno humano. Existe uma humanidade, mas povos (muitos filósofos
do século XIX falam assim do "espírito dos plwos"), isto é, línguas, costumes, culturas,
religiões e, no nível propriamente político, nações enquadradas por Estados. A refe-
rência à nação foi mesmo tão forte que os representantes da grande escola histórica
alemã não cessaram de escrever a história do ponto de vista da nação ale mã. O mesmo
se deu na França, com Michelet em particular. O paradoxo é enorme: a história é pro-
clamada mundial por historiadores patriotas. Saber se uma história pode ser escrita de
um ponto de vista cosmopolítico passa então a ser um ponto de discussão.
Essa resistência das histórias especiais à globalização não é a mais ameaçadora:
pode-se ainda vinculá-la quer a limitações de competência inerentes ao ofício de histo-
riador, uma vez que o método histórico-crítico exige uma especiali zação cada vez mais
afinada da pesquisa, quer a um traço da condição de historiador que faz do homem
historiador um cientista e um cidadão ao mesmo tempo, um cientista que faz história
ao escrevê-la, um cidadão que faz a história em relação com os outros atores da cena
pública . Mesmo assim, surge certa ambigüidade quanto ao estatuto epistemol ógico
da idéia de história mundial ou universal. Trata-se de urna idéia reguladora no sentido
kantiano, que exige, no plano teórico, a unificação dos sab eres múltiplos, e que propõe,
no plano prático e político, urna tarefa que pode ser chamada de cosmopolita, no intui-
to de estabelecer a paz entre os Estados-nações e de difundir mundialmente ideais da
democracia?i:i Ou se trata d e uma idéia detcn11i11a11tc, constitutiva, à maneira da Idéi11
hegeliana na qual o racional e o real coincidem? Segundo a primeira acepção, a história
dn 1c se tornar universal, mundial; de acordo com a segunda, ela é mundial, uni,·ersal,
enquanto devir cm marcha de sua própria produção. Nos dois casos, a resistência da
pluralidade humana constitui um paradoxo e, no limite, um escândalo. O conceito de
coletivo singular seria realmente honrado apenas se se conseguisse renova r o princípio
leibniziano de razão suficiente, pelo qual a diversidade, a ,·ariedade, a complexidade
dos fenómenos constituem os componentes bem-vindos da idéia do todo. Essa inter-
pretação mediana entre idéia reguladora e idéia constituti,·a não me parece fora do
alcance de urna concepção propriamente dialética da história .

n Nus prúprius limites dessa furmulil ç,10 prudente, ,1 itk;i,1 de histúri,1 mtrndi,11 concebi da corno u m,1
c iCncia diretriz parL'Cl' Uío inCL'rta aos olhos de K,1nt que ele acrL'di t,1 quL' e l<1 ,1i nda 11.10 tenha <;id o
e<;crita e que aind<1 n,10 encontrou seu KepiL'r ()li seu Ne,,·ton .
i\ rv1LM(l J'1 ,\, A IIISTt°lRlt\, O FS(JLl:Clf\1F N H)

A idéia de história universal ou mundial parece-me posta mais drasticamente à


prova no próprio plano da tc111poralizaçiio da marcha da história. A modernidade faz
surgir traços inéditos de diacronia que dão uma fisionomia nova à velha tripartição
ílgostiniana entre passado, presente e futuro, e mais que tudo, à idéia a ela associada
de uma "distensão da alma". Em O.futuro passado, Koselleck já enfatizara os efeitos do
topos do progresso sobre a representação do tempo da história. Mas a idéia de progres-
so não se limita a sugerir a de uma superioridade a priori do futuro - ou mais exata-
mente das coisas por vir- sobre as coisas passadas. A idéia de novidade vinculada à de
modernidade (modernidade, cm alemão, se diz "tempo novo" - 11euc11 Zcitcn e, a se-
guir, Ncuzcit) implica no mínimo uma depreciação dos tempos anteriores tachados de
obsolescência, no máximo uma denegação que equivale a uma ruptura. Já evocamos o
efeito de ruptura atribuído à Revolução Francesa pela i11tclligc11tsia européia do século
XIX. As luzes da razão já haviam feito os tempos medievais parecerem tenebrosos; na
sua esteira, a impulsão revolucionéfria faz os tempos passados parecerem mortos. O
paradoxo é temível quanto à idéia de história mundial, universal: a unidade da his tória
pode ser engendrada por aquilo mesmo que a rompe? 1-1 Para superar o paradoxo, seria
preciso que a força de integração liberada pe la en e rgia da novidade fosse superior à
força de ruptura que emana do acontecimento considerado como fundador de te mpos
novos. O desenrolar da história mais recente está longe de satisfazer esse desejo . O
crescimento do multiculturalismo é, nesse aspecto, fonte de grande perplexidade.
Esse fenômeno de depreciação do passado apresenta vários corolários notáveis.
Notaremos primeiro o aumento do sentimento de distanciamento que, na escala de
uma série de várias ge rações, tende a obliterar o sentimento da dívida dos contempo-
râneos para com os antecessores, para retomar o vocabulário de Alfred Schutz; pior
ainda, os próprios contemporâneos pertencentes a Véfrias gerações que vivem ao mes-
mo tempo sofrem a provação de uma não-contemporaneidade do contemporâ neo.
Notaremos, em seguida, o sentimento d e aceleração da história que Koselleck inter-
preta como um efeito da dissociação do vínculo entre expectativa e experiência, uma
vez que um maior número de fenômenos percebidos como mudanças significativas
ocorrem no mesmo lapso de tempo.
Essas alterações profundas da unidade da história no plano de sua temporaliza-
ção equivalem a uma vitória da dístmtio a11imi segundo Santo Agostinho que põe em
p e rigo a unidade d e intcntio do processo histórico. Entretanto, no plano da memória,
havia um recurso: essa form a de repetição que consistia no reconhecimento do passa-
do rememorado no inte rior do presente. Que equivalente desse reconhecimento a his-
tória ofe receria se fosse cond enada pela novid ade dos tempos vindouros a reconstruir
um passado morto, sem nos deixar a esperança de reconhecê-lo como nosso? Vemos

14 Kosc llcc k cita uma carta de Ruge a Ma rx d atada de 1843: "Náo podl'mos continuM nosso passado
a não SL'r rompendo nitidamente com ele" (J\ cxperil~11cia da '1i~tôria, op. cit., p. 85). Em A ideologia
olcnui, Marx acredita que o ad vento d o comunismo somente transformará a história vigente em
história mundial ao prL'ço da d esqualificação de toda a h istória anterior, redu z ida ao estág io d e
pré-história.
despontar, aqui, um te ma que só tomMéÍ forma no fim do capítulo seguinte, o da "in-
quietante estranheza" da história.
;\ d epreciação do passado não bastaria para minar de dentro a afirmação da hi stória
como totalidade auto-suficiente se um deito mais d evastador não tivesse se acrescido
él ela, a saber, a liistori:açiio de toda a experiênci,1 huma na. A \'alorização do futuro te ria

permanecido uma fonte de certeza se não ti,·csse sido acompanhada pela relati,·ização
de con teúdos de crença considerados inn1tán..'is. Ta lvez esses dois efeitos sejam poten-
cialmente a ntagonistas, na medida em que o segundo - a relati\'ização - contribui
para minar o prime iro - a historizaçào, até então acoplada a uma expectati va ga ranti-
da por si mesma. É nesse ponto que a história do conceito de história desemboca numa
ambigüidade que a crise do historismo levará ao primeiro plano, mas que é como que
um efeito perve rso do que Koselleck chama d e histori zação do te mpo.
O efeito devas tador foi particularmente visível cm relação i1 versão teológica do
topos do progresso, a saber, a idéia de Hcifsge~chicl1tc - "história da sa lvação" - que
depende da escatologia cristã. A be m da \'erdad e, o topos do progresso se beneficiara
primeiro de um impulso vindo da teologia por meio do esquema da "promessa" e do
"cumprimento", o qual constituírn a matriz original da Hcif\c.;cschicl1te no âmago da
escola de Gottingen, desde o século XV III. Ora, esse esquema continuou a alimentar a
teologia da história até meados do século XX. O efeito bumerangue do tema da relati-
,·idade histórica sobre a Hcil~gcsc/1ic/1tc foi grave. Se a própria Rc,·elaçào é progressiva,
a recíproca se impôe: a , ·inda do Reino de Deus é por sua ,·ez um descrl\'oh·imcnto
his tó rico e a escatologic1 cristã se dissoln' num processo. A própria idé ia de s,11\·ação
eterna perde seu referente imutável. É assim que o conceito de Heífsgesc!Iicl1fl', primei-
ro proposto como uma alternativa da historização, mesmo com o risco de fun cionar
como um duplo teológico do conceito profano de progresso, inve rteu-se em fator de
hi storização integral.
De fato, todos os campos da experiência foram g radualmente afetados pela relati-
\'idade histórica, como atesta o triunfo das idéias de ponto d e vista e d e pe rspecti va.
Tantos observadores, tantos pontos de ,·ista. Pod e-se, certamente, atribuir a essa idéia
uma origem leibniziana, mas ao preço do abandono da referência forte a uma integra l
dos pontos de vista. A idéia de uma pluralidade de pontos de ,·ista, uma vez pri,·ada
de toda vista panorâmica, propõe-se como a idéia antidogmática por excelência. Mas
coloca-se então a questão de saber se a tese que afirma a reL:iti,·idc1de de toda asserção
não d estrói a si mesma por auto-referência. Enunciada na forma radirnl que o ceticis-
mo lhe confere - " tod a afirmação, toda estimativa é relati\·a às condições históricas de
sua enunciação" - , ela corre o risco de ca ir sob a acusação de "contradição pe rformati-
,·a" dirigida por Karl Otto Apel aos defensores do ceticismo frente à noção ético-juríd i-
c1 de validade 1; . Cabe indagar se a idéia de ,·erd adc, mas também a do bom e do justo,
podem ser radicalm.cnte historicizadas sem desaparecer. A relatividade que resulta

1:; A contradição é pcrforrn,1ti,"<1 pois nào ~l.' refere an con tl'Lld l1 scmimtiço d,1 asscrçàn, m,1~ at1 ,l tl1
quL' a cn unci,l l' qm· se considera, L'nqu ,1ntn t,11. como vnd,,dl'irn, Cl11llll n,10 rt'lati\'ll.
/\ MEM(JR I /\ , ,\ lllSTÚ R I A, O l:S(JL; FC I ME N TO

da temporalização da história pode alimentar durante um certo tempo a acusação d e


ideologia dirigida por um protagonista a seu adversá rio - sob a forma da pergunta
peremptória "de onde o senhor está fa lando?" -, mas ela se volta finalmente contra
aq uele que a profere e interioriza-se em suspeita paralisante '(,.

11
No fim desse ensaio notável, "Geschichte Koselleck dá livre curso à confissão.
,

Após ter exposto os escrúpulos de Ranke a res peito da suspensão de todo posicion a-
mento do historiador nos combates d o presente, ele nota:" Assim como (e talvez ma is
ainda) esses posicionamentos vin culados a essa antiga controvérsia, a ambivalência
da expressão 'a própria história' (Gcschicl1tc sclbcr) tem a característica de revelar ao
mesmo tempo todas as objeções que podem ser levantadas contra ela" (art. cit., p . 80).
As contradições que minavam a noção revelaram o caráter ins ustentável dessa pre-
tensão ao saber absoluto e da lwbris que a animava. Outra questão será a de saber se
o que Koselleck chama de "experiência da história " n ão excede os limites de uma his-
tória conceituai, que atribuo ao nível de uma hermenêutica crítica, e não põe em jogo
categor.i as que podemos chamar d e existenciais que d ependem d e uma h ermenêutica
ontológica. É o que d á a entender a reflexão sobre o duplo sentido da palavra histó ria,
como conjunto dos acontecimentos advindos e conjunto dos relatos sobre esses acon-
tecimentos.

II. "Nossa" modernidade

A fil osofia crítica aplicada à his tória tem como tarefa principal, corno dissemos,
refletir sobre os limites que um saber sobre si da história que se quer absoluto ten-
taria transgredir. O tratamento da história com o sing ular coleti vo erigido em s ujeito
de si mesmo - a História - é a expressão mais man ifesta dessa pretensão. Mas essa
provação não é a única. Uma segunda forma mais dissimulada da mesma pretensão
lhe é simetricamente oposta: ela consiste em elevar ao absoluto o presente histórico
erigido em observa tório e até mesmo em tribunal de todas as formações, e m particular
culturais, que o precedera m. Essa pretensão dissimula-se sob os traços sedutores de
um conceito à primeira vista isento de toda veleidade de transgressão dos limites: o

lh Seg undo Koselkck, desde meados do sécu lo XV lll, J. M. Chladcnius teria vislumbrado o efei-
to devas tador da idéia de p onto de vis ta (L'Expéric11 cc dl' /'/1istoirc, op. cit., p. 75). Ko selleck nota:
"Chladen ius instaura um quadro teórico q ue não foi ultrapassado hoje em d ia" (ibid., p. 76). Mas é
F. Schlegel, e m O/ler die 11c11n-c Gcsc/1id1tc. Vor/cs1111se11 (1810-1 811), quem teria formulado com todi'I
lu cidez, contra Hegel "i'I apor ia que s urg iu entre o fato de v isar a verdade e a cons tatação de su a
relatividade hi stó ric;1" (p. 79 e n. 279). MJis grave a inda, t.'le teria vislumbrado no cerne do p rópr io
projeto hegeliano uma co ntrad ição mortal en tre ;:i a mbição de ;:ibarca r "a tot;:i lid ade dos po ntos
de v ista" (exp ressão lid a no próprio I lt'gel em La /~11iso11 dn11s /'/1istoirc) e a defesa pelo filósofo da
liberdade, da raz ão, d o direito. Entre a total iz,1ção e o pos ic ionamento, entre a ra zão especulativa
e o juízo militante, in s inua r-se-i a uma sutil contradição.
conceito de m od ernidade. A impossí,·el rei\'indicação li ga da a esse conceito apenas
é dcs\'endada qua ndo se lhe restitui sua formula ção inteirn e exa ta, e quando se di z
e se escreve "nossa" mode rnidélde. Não se trata de nada menos do que dél "idéia que
nosso te mpo se fa z de s i mesmo em sua dife re nça , em s ua ' novidade' e m relação ao
passac:i o "11 . "N osso " , " nosso " t empo, ,, nossa
_ ,, epoca,
, " nosso ,, presen
_ te, sao
- tan têlS as
expressões que equivalem à idéia d e modernidade. A pe rg unta é esta: como "nosso"
tempo poderia pensar a s i m esm o absolutamente? A perg unta é rigorosamen te sim é-
trica à que nos ocupou um pouco acima: trêlta\'êl-se então do todo d a His tória, enquan-
to sing ular coletivo, que tenta\'êl se colocar absolutamente em sujeito de si mesmo:
"a própria his tória". Desa lojada d essa posição ins usten tá,·el, a pretensão à re flexão
absoluta se volta sobre o exa to o posto d esse co le ti vo singular, a sabe r, o momen to h is-
tórico singular, o agora da história presente. Ora, essa pretensão está hoje muito , ·i,·a,
embora aquela da qual ela é a contrapartida esteja geralmente abandona da. A re i,·indi-
cação que ela , ·e icula é, pnl\'a ve lmente, tão ine lut,ível q ua nto, apesar da crítica, a tenaz
referência à História total, sob os , ·ocábulos his tória do mundo, ou história uni,·ersal,
e m cujo pano d e fundo se recortariam as áreas históricas b,1lizadas pelos historiadores.
Um agnosticismo rigoroso para com a id t"ia de modernidade tal vez seja impra tic,í, ·el.
Com efeito, corno não tentar dizer cm que tempo estamos , ·i,·endo? Dizer s ua dife-
rença e s ua nov idade em re lação a qu a lquer outro? O único ga nho esperado d a crítica
seri a então a confissão do esta tuto contro\'l'rso, polé mico, nã o conclus Í\'O d e todas as
discussões sobre o ", ·erdadeiro" sentido de "nossa" m od e rnidade.
Extraire i m eu primeiro argumento contra a pretensão de " nossa" modernidade a
constituir exceção a essa recorrência e a se pensar absoluta mcn te 's d o que H. R. Jauss
chama de " as r ecorrências hi stóricas " da pala \'ra. Essa " recorrência his tórica '' é ates-
tada por um discu rso que se inscre, ·e perfeitamente numa teoria da representação,
atinen te, com o foi mostrad o na segunda pa rte d esta obra, à op eração h istoriográfica.
Com a diferença considerá\'el d e que não se trata de uma representação entre outras,
mas da representação que essa operação se d é'i d e si m esma, uma vez que as duas
figuras da representação-objeto e da representação-operação coincidem. Essa a uto-re-
presentação afirm c1 dar testem unho da época inteira na qual seu próprio discurso se
inscreve. Ora, , ·á rias épocas caracteriza ram-se como modernas. O p a ra doxo ligado ao
próprio tema " 110 ~~11 época" proced e dessa re petição.

17 H. R. Jauss, " Li ' \ln dL'rn ité' d a ns la trn d iti nn litlt'r,1ir1:.· et l,1 consciL'nCL' d '.1 ujo u rd 'hu i", in /Jo11r 11111·
c~th.;tiq11c de /11 rácpt ion , tr,1d. fra nc. d l' C. Ma i llard , l'c1 ri s, G,1 Il i mard, 1978, pp. 158-209.

18 A prúpri,1 p ,1 la,T,l modL' rn id adl', not,1 H . R. Jau ss no iníc io dL' Sl' LI L'nsa io, "aprL'sen ta [ .. . 1 L'SSL'
paradoxo dL' des mentir com tnd a ce rll'7'1, ,1 todo momento, por s ua rL·corrf'1Ki a histórica, a prekn-
s,10 q ue L'la afirma" (i/,id., p. 1~8). Uma rl'la ti,·ilfadl' corn pa r,ín•I :1quela que ha v ia s urprL·end id o ,1
pre tL'ns,io d a " pn'ipri,1 hi stl·iri a" a se rL'fll'tir abso lutamentL' at ing irá ass im em c hL'io a p rl'IL'n s,10
d e "nossa " m oder nidade ,1 Sl' distinguir ,1bsoluhrnwnk Lk tod,1s as mudcrnidadcs do pass,1do. As
inl' lu t,í vt' is cnntron' rs i,1 s que afl't,1m o di sc urso sobrL' a modernid,1de serão b rl'\'enwntl' l'nica d ,1s
,1pe nas a títu lo dL' si n tom a com ple mL'nt,ir d a incap,K idade d ,1 cnn sci.:•ncia dt.· atu alidêidL' dc se
rl'tlt>tir totalme ntL'.

•Z> J2I 0
/\ 'v11 ' \1ÚRI/\, /\ III ST() RI A, O l ·: S<.:)U IT ! 1'vfl: \:l()

Pod e-se seguir él narrati vél do historiador percorrendo élS ocorrênciéls sucessivas
dos termos que se ligam ao mesmo cél mpo semân tico e repetem as escolhas termi-
nológicélS que resulta ram em "nossa" modernidade, a mode rnidéldc refe rente a n ós,
agentes Lfa históriél presente. E pode-se surpreender o mome nto cm que a valorização
implícita ou explícita confere à expressão um sentido norméltivo.
Jacques Le Coff fez esse pe rcu rso e m Histoirc ct 111émoirc Ele encadeia as dis tin- 1
".

çôes do seguinte modo. Primeiro, ele propôc, num plano a inda forma l, a dis tinção
entre o antes e o depois, implícita nas noções conexas d e sim u lta neid ade e sucessé"ío.
Sobre ela se cdifirn a oposição entre passado e presente que rege a seqüência das dis-
tinções que o histori ador recolhe no nível da "consciência social histórica" (Histoirc l.'t
Ménwirc, p. 33). A distinção decisiva, que condu z élO limiar dél idéia de modernidade,
é constituída pela oposição "antiquéldo" (antigo) versus "moderno" 2º. Essa oposição,
di z ele, "desenvol veu-se num contexto ambíguo e complexo" (op. cit. , p. 59). De foto,
o termo " moderno" mudou v,írias vezes de parceiro (antiquado, mas também antigo,
tréldicional), élO mesmo ternpo cm que ligava sua sorte a sinónimos diferentes (recen-
te, novo). Além disso, cada um dos termos do par não deixou de ser acompanhado
de conotações laud atórias, pejorativas ou neutras. Neutro foi o primeiro emprego de
" moderno" no béli xo latim (o advérbio 111odo significa vél recente mente), e de "antiqua-
do" (no sentido do que pertence élO pélssado). Menos neutros fora m os usos ulteriores,
quando "a ntiquado" passou a designar o mundo greco-romano antes do triun fo do
cristianismo, mundo desde então designado pela palavrél "Antigüidade" 21• A neutrali-
dade não vigon-ir,1 mais quando ao termo " moderno" se élcrescentar o epíte to "novo",
termo léluda tório por excelência , a partir do século XVI, quando seu único oposto não
se rá mais o él ntiquado, mas o medieval, segundo umél divisão da história e m três épo-
cas, antiga, medieval e moderna (11c11crc em alemão). A a mbig üidade aumenta quando
a Antigüidadc passa, de cronologicamente ultrnpassadél, a exemplar, a título do gran-
de Renascimento do século XVF .
Foi então que a narrativa his tórica cruzou as élva liações pejorativas ou la udatórias
que se sobrepusernm à enumeração dos pe ríodos no estilo d as cronosofiéls estudadas
por Pomi an (reino, idade, era, período, e até mesmo sécu lo, como nas expressões o

19 J<1cq u~'S Lc C o ff, H isloirc ct M1·111oin', l'.iri s, G;:i llinrnrd, 19%. O <1 u tor (pp. 33-58) inte rrog;:i s uces-
s ivamcntL' os ps icúlogos (l'i;:i gl't, Fraissl'), os lingüistil s (Wci nrich , Ben veni ste), os ontropúlligns
(Lévi-Strau ss, Hobsbaw m), os hi s toriadores dzi hi stóri,1 (Chfü<.., Jl't, D u pro nt, Bloc h).
20 /l1id. , pp.,59-103.
21 Deve-se n E. R. C u rtiu s ºgra nde investigação erudita Lo Lillánt11rc curu11fr11 11c ct /e Mo11c11 Âgc l,1ti11,
lkrne, 1948; trad. frnn c. de Jc;in Bréjoux, 2 vol., l'ori s, Pockl't, col. "Agora ", 1986. Jauss enfati za a
orig ina Iid ade d o conceitua Iidade mediev.i 1, ao contr<í rio de C urtius, que apena s v iu nelo a repeti-
ção de um mod elo v indo da prúpri ,1 /\ ntig ü idade (" Li Mode rnité ", ar t. cit., p. 159). Em pa rtic ul ar,
n recurso à tipo log ia constitui u m modo de e ncade,1mento origino !. A idé ia de "transbo rdomL'n to
tipológico" parece mesmo ser o c h;i ve da fomosa mn b igüid ode contida no elogio cuja paternidade
Jc,111 de Sa li sbury atribui a Berni'Jrd de Chartrcs: "So mos anôcs nos ombros de g igc1 ntes." O q ue é
mais ho n roso, a solidez de um giga nte ou a vista p e rs p icnz de um aniio?
22 SobrL' ,1 é poca do Re na scimento, cf. Jauss, J>o11r une <'sf/1l'liq11c de lo rfrcptio11, OJI, cit., pp. 170-1 75 .

.:, 322 @
Grande Século, o século de Luís XIV, o século déls Luzes). O historiéldor é testcmu nh.él
desscl sobrecarga de sentido que fa z da superioridade de "nossél época " um lemél de
combate. Esse patamar é ultrapassado quando a idéia de nm·idade recebe como cnn-
tré'irio a de tradição, a qual, de simples transmissão de herança, tornou-se sinónimo
de resistência às idéias e aos costumes no,·os. As coisas se complicam com o conceito
cíclico de Renascimento, pois o elogio se dirigia a um passado reencontrado - él An-
tigüidadc greco-romana pagã - para além do efeito d e ruptura engendrado pelo ad-
vento da novidade. É nessa enc ru zilhada do linear e do cíclico que se decidiu o destino
do conceito de imitação, e le mesmo herdado da 11Ii11u•si::- d os gregos: imitar é repetir, no
sentido de copiar, ou repetir, no sentido de trazer de \'Olta à \'ida? A famosa querela
dos Antigos e dos Modernos, no século XV II francês e inglês, girél cm torno desséls
,·éllorizações opostíls d a pre tensél exemplílridade dos mod elos antigos~'. A lineélri(fad c
leva definitivamente él me lhor com a idéia de progresso, que merece o quéllitati\·o de
topo::- na medida em que n esse "lugar-comum" firma-se a alianç,1 do moderno e do
novo diante da \"etustez díl tradição.
A seqüência "moderno", " novidade", "progresso" fun ciona à moda de um sintag-
ma nos dois textos cultos relativamente aos quais se orientará a seqüência de nossa
discussão: as Rif7cxions s11r /'l,istoirc dcs progn's de /'csprit hu11111i11 de Turgot (17-19) e o
Esq11issc ci'u11 t11hlc1111 dcs progrc"s de /'csprit /J1111wi11 de Condorcet (1794). História ou quc1-
dro, é o balanço de uma aquisição da consciên cia ocidental, que se coloca como guia
da humanidade intei ra. O elog io do moderno faz coincidir, no plano meta-hi stórico,
a reflexão que se pres ume total da his tória sobre s i mesma e a do momento histórico
privilegiado. O importante é que a projeção do futuro é daí e m diante solidária da re-
trospecção sobre os te mpos passados. Doravante, o século pode ser visto com os olhos
do porvir. É nesse sentido que o futuro das gerações das quais nossa própria moder-
nidade se disting ue aparece como um futuro ultrapassado, segundo o belo título d e
Koselleck Oic 1:icrg1111gc11c Z11k111~ft, que e\·oc,1 o futuro ta l corno não é m ,1is, entendc1 -se
ta l como ele não é mais o nosso. Mas a hi stória dél idé iél d e modernidade continua alé m
das Lu zes européiéls, e as hesitaçôes do \'ocabulário se acum ulam. A substituiçã o de
"antigo" por " antiquado" já havia mélrcado o afastamento his tó rico entre os Tempos
Mod ernos e a Antigüidade. A de " moderno" por " româ ntirn " foi acompanha(fa pela
substituição simétrica de "a ntigo" por "clássico", no sentido d e indelé\·cl, de exern-
plélr, e até mesrno de perfeito. Com o romantismo, o Mode rno redescobre pa ra si un1
duplo passado "gótico" e ",1ntiquado", ao passo que a superioridad e d e nosso tl'mpo
se encontra matizada pela idé ia , ca ra a Montesquieu, de que cad a época e cada naçi'io
tem seu génio. O JTtais surpreende nte nessa história takez seja o destino das palanas

23 Sobre a qul'rel,1 dlls A nti gos L' chis :'vlode nws, d . Jil uss, i/,id ., pp. 17'i- lHO. /\ ''L1 uerel a ", nut,1 J,1u ss.
m1s pl'rmitc d ,1ta r ll comcç(l do sécull, d ,1s Lu zL·s n,1 Fr,1nç,1 (1>p. cit., p. 17:;). (o que, por sinal , Didl'-
n1t e d '/\kmlwrt procla m,iriin com pr,1zcr n,1 F11(_l1,lop1;dic) , ,1 apost,1 sendl> a prdensa e :-.L'm pl.1r i-
<.i adl' dos modclus ant ig us.
/\ MFMÚRIA, /\ 1II ST()l{I /\, O FS(.)U IT I MENTO

"romance" e "romantis mo" 2-i: como nos romances de cavalaria - esses poemas em
língua popular-, a fi cção impregna a imagem do mundo, o inverossímil recolhendo
a poesia da vida além de todo pitoresco; como Aristóteles o sugeria no fa moso texto da
Poética que pronunciava a s uperioridade do épico e d o trágico sobre a simples história
na ordem da verdade. Mas então, não é mais o acordo com as idéias do tempo que
predomina na idéia d e modernidade, mas a insatisfação e o desacordo com o tempo
presente. A modernidade está a ponto de se definir opondo-se a si mesma. Nessa tra-
jetória, a Alemanha e a França ocupam posiçôes hcterogêneas, uma vez que o grande
corte da Revolução Fra ncesa se prolonga numa ruptura no nível dos costumes e do
gosto. Stcndhal, sem q uem Baudelaire seria incompreensível, já não precisa do con-
traste da Antigüidadc para imprimir um prestígio incomparável à simples atualidade
do presentc2:i.
É nesse ponto que nosso discurso sobre a modernidade muda bruscamente de
regime. Deixando a história dos empregos passados do termo "moderno", história
desenvolvida à mane ira de uma história das representações, a discussão volta-se para
os significados ligad os à "nossa" modernidade, a modernidade referente a nós que
dela falamos hoje. Tentamos então dis tinguir " nossa" modernidade da dos "outros",
daqueles que, antes d e nós, se d ecla ra ram modernos. De conceito repetitivo, iterati vo,
o conceito de modernidade torna-se agora, cm nosso discurso, o indício de uma sin-
gularidade comparável à do aqui e do agora de nossa condição corporal. Em outras
palavras, o adjetivo possessivo "nossa" opera à moda de um dêitico elevado à dimen-
são d e um período inteiro: é do " nosso" tempo que se trata. Ele se distingue dos outros
tempos como o "agora" e o "aqui " da experiência viva se opõem a "antigamente" e a
"lá". Um absoluto, no sentido de não-relativo, coloca-se e designa a si mesmo. Vincent
Descombes começa nestes termos um ensa io dedicado aos empregos contemporâneos
do termo "moderno" 2" : "Em outros tempos, palavras tão carregadas como ' tempo pre-
sente', 'mundo moderno', ' modernidade' teriam evocado fenómenos de inovação e d e
ruptu ra". "Em outros tempos"? A expressão não se liga mais a uma história objetiva
das representações, ela designa os tempos que não são mais os nossos. O ensaio pros-
segue nestes termos: " Faz uns vinte anos [contados a partir do presente d a escrita do

24 Jauss, JJour 1111c csllH•f iquc de la rhcptio11, op. cif., pp. 187-197 (pp. 206-212 ?), cita o Oicfio1111nirc de
/'Arn1fr111ic d e 1798: romântico "d iz-SL' gera Imente dos Iugares, das pa is<1gens, que lembram à im a-
g inação desc rições, poemas e romancl's". Evoca mos acima, com E. Casey, o papel da paisagem
na consciência que tomamos do espaço habitado. Do lado a le mão, foi Herde r e, na sua esteira, o
roman tis mo a le mão que elevaram o gút ico à posição da verdade poética .
25 Com Stendhal, nota Jauss, "o rom;intismo, não é mais a ntração pelo q ue tra nscende o presente,
oposição polar e ntre a realiLfade cotidiana e os longínquos do p assado; é a a tua lidade, a beleza
il
de hoje, que, ao se tornnr íl de ontem, perderá inev itavelmente seu atra ti vo v ivo e somente poderá
apresentar doravante um interesse hi stó rico": o romantismo é "a arte d e apresen ta r aos povos as
obr;is literárias que, no estado atual de seus hábitos e de s uas crenças, são suscetíveis de lhes dar o
maior prazer p ossíve l. O classicismo, pelo contrM io, lhes apresenta a li tera tu ra que dava o maior
prazer possível a seus ta taravôs" (citado i/1id. , p. 196).
26 Vinct•n t Descombes, "Une qucstio n de ch ronologie", i11 Jacques Poulain, l'cnscr n11 pn·sc11/, Paris,
L'Harmattan, 1998, pp. 43-79.
r\ Ctl, 1) 1<.;.\t l IIIST(lRJL\

ensa io] que esses mesmos temas do mod erno e do presente são, para os filósofos, uma
oportunidade de se \'Oltarem parn seu passado. O q ue é designado como moderno
parece estar atrás de nós" ("Une question de chronologic ", in Pcllscr 1111 pn;scnt, p. -13).
E não falamos mais disso como simples observador, como simples cronista das repre-
sentações passadas. Falamos enquanto herdeiros. De fato, é a hera nça das Luzes que
está cm jogo, para nós que dela falamos hoje. O tom d ,1 contnH'érsia é logo instaurado:
"O pressuposto, então, é que haveria apenas um a herança das Luzes" (op. cit., p. -!-!).
Pressuposto por quem? Eles nfio são designados nomeadamente, os que, pela boca do
autor do ensaio, nos interpelam na segunda pessoa: "Não podeis dividir esta herança"
(ibid.). A reflexão abandonou o tom da retrospecção; ela se fez combatente. Ao mes mo
tem po, ela se tornou mais loca l: "Pa ra nós, as Luzes francesas são inseparéí ,·eis da Re-
,·olução Francesa e de suas conseqüências históricas. Nossa refle xão sobre a filosofia
das Luzes não pode mais ser exa tamente a mesma que a dos que têm como referên-
cia a Revolução americana ou daqueles para quem as Luzes são uma Atdkliirnng sem
trad ução política tão direta" (op. cit., pp. -!-1--+5). Por isso nem mesmo sabemos como
traduzir em franc ês o inglês 111odcmit_11, usado, por exemplo, por Leo Strauss quando
atribui a Jean-Jacques Rousseau "t!,cfirst crisis (f 111odcmil_1t'' e joga ao mesmo tempo
com a cronologia e com a apologia que opôe reacionário a radica l. A bem da ,·erdadc,
a modernidade que não é mais a nossa inscn.'\'e-se numa cronologia que d eixou de
ser neutra, indiferente ao que ela ord ena : "Ora, não é uma cronologia indiferente que
os filósofos [os dos últimos vinte anos] retêm, mas uma cronologia na qual a data dos
pensamentos e dos fa tos corresponde a seu significad o, não ao ca lefüfario" (op. cit. ,
p . -18). Ora, essa cronologia qualificada, essa "cronologia filosófica" (op. cit., p. 50),
é, por sua vez, objeto d e contestação, pois os pensadores das Luzes creditaram suas
preten sões à superioridade de urna filosofia d a h istória, digna das cronosofi as do pas-
sad o estudad as por Pomian. Foi o caso das "épocas" do quadro de Condorcet e,·ocado
acima no tom da h istoriografia objeti n. Elas correspondem ao conceito aq ui proposto
de cronologia filosófica: a época moderna ne las não designa apenas a época presen te,
mas também a época do triun fo da razão. A periodização é filosófi ca . Pod e-se ainda
cham,1-la de crono logia? De fa to, a modernidade é ao mesmo tempo autovalorizado-
ra e auto-re ferencia l. Ela caracteri za a si mesma como época superior ao se designar
como presente e, por isso, única. Do mesmo modo, nota Descombes, outros usos do
termo "modernid ade" permanecem estranhos a Condorcet como, por exemplo, o que
le,'éHia em conta a distância entre a abstração e a prática, com seu cortejo de tradições
e preconceitos e, mais a inda, um uso do termo que ressa ltaria a rela tividad e histórica
d os modelos propostos aos homens e veri a em conseqüência, nas obras-primas da
Antigüidad e, não fracassos mas as obras-primas d e u ma outra época 27 . A relati \·idade
saudada pelo hi storiador teria se tornado imedia tamente a mod ernidade d e hoje? Seja
como for, o moderno, segundo Condorcet, não seria ma is o nosso.

27 "Condorcd nZ\o acred ita dL' mod o ;i lg um que ha ja e s t,ígios de um dL'SL'nn1lv imento do espírit() llll
t'squemas d e referênc i,1 incomensur,h·e is. Toda idL' Íil de re lati,·idade lhe l' estrc1 11ha" (i/iid ., p . 61) .
/1 MEMl)RI /\, A HI ST(lR I!\, O ESQUFCIM EN TU

E por quê? Porque houve Baudelaire, aquele que inseriu a palavra "modernida-
de" na língua francesa com uma outra entonação que a da palavra "moderno", pois
esta última permanece marcada por uma concepção normativa da razão abstrata. Ela
designa, agora, "uma consciência histórica de si ". "Não há a modernidade, há 11ossn
modernidade" (op. cit., p . 62). Na rai z de uma pura indicação temporal que estatui
sobre a diferença de posição no tempo do moderno e do antiquado, estcí o gesto d e
extrair do presente o que é digno d e ser retido e de se tornar antigüidad e, ou seja, a
vitalidade, a individualidade, a variedade do mundo - a "beleza da vida ", segundo
a expressão que pode mos ler em Lc peintrc de ln víe /1/0dcme. É nos costumes, mais exa-
tamente nesse novo espaço social cons tituído pela rua e pelo salão, que o pintor vai
haurir suas figuras. Essa referência aos costumes, que fa z eco a Montesquieu através
de Stendhal, e mais ainda, talvez, a Herder, para quem todas as culturas se colocam
com direito igual, permite essa confissão ao crítico: "Todos os séculos e todos os povos
tiveram sua beleza, temos inevitavelmente a nossa" (citado por V. Descombes, op. cit.,
p. 68). E ainda: "Existem tantas belezas quantas são as maneiras habituais de buscar
a felicidade" (op. cit., p. 69). Pode-se falar em "moral do século" (í/Jid.) num sentido
não cronológico do termo, segundo, insiste Descombes, uma cronologia extraída do
conteúdo daquilo que ela ordena segundo o antigo e o moderno. Um tempo, uma
época, qu er dizer "um modo de compreender a moral, o amor, a religião, etc." (op. cít. ,
p. 72). Vê-se bem que certo cosmopolitismo pode resultar disso, na medida em que
todos os usos têm uma legitimidade e mesmo uma coerência própria que articula "as
razões dos usos" (op. cit., p. 73), as quais são tão diversas quanto as líng uas. Mas o que
significa i'l referência de Baudelaire a uma "transcendência inefável" (np. cit., p. 74),
que se lê no ensaio sobre a Exposiçiio 1111ivcrsnl de 1855 que trata do cosmopolitismo? Ao
empreender "a comparação das nações e de seus produtos respecti vos", o crítico reco-
nhece "sua igual utilidad e em relação com AQUELE que é indefinível" (citado ibíd.). A
diversidade pode ser celebrada sem o recurso a um presente indefinível?
Ao cabo deste percurso, vê-se por que a modernidade de Baudelaire já não é mai s o
moderno dôs Luzes28 • Mas ainda é nossa modernidad e? Ou esta última também man-
teve distância em relação àquela modernidade?

Portanto, se o conceito de modernidade é, para a história das representações, um


conceito repetitivo, o que chamamos de "nosso tempo" se distingue do tempo dos
outros, dos outros tempos, a ponto d e estarmos em situação de dis tinguir nossa mo-
dernidad e das modernidades anteriores. Assim, existe uma concorrência entre dois
empregos d o termo " modernidade", segundo d esigne o fenômeno iterati vo que uma

28 O ensaio d e V. Dl'scombcs n iio \',li além dessa conclusfü>: "Tentei sustentar isso: a noçiio d e mo-
dernidade exprime, po r p;irte de um escritor fra ncês, um con sent imento (dificilmente conced ido)
em somente pode r re presentar parte da hum an idade. Falilr d e nossil modernidade é aceitar n.io
e ncnrnar imedia tamcntt', e m nossa língua, e m nossas ins tituiçôes, e m noss as obra s prima s, as
as pi rnções mais e lev,1das do gênero humano" (ibid., p. 77). Ler-se-á do mesmo autor, a fim d e
prosseguir essa refll'xiio, JJ/1ilo.,op//ic par gws tc111ps, Paris, Éditions de Minuit, 1989.
,.\ l l l'\ DI(, .\l l 111'-;J (l R IC\

his tó ria das representaçôes percorre ou a autocomprcensão de nossa diferença , ou


seja, da diferença de nós, t;1is e tais, sob o império do dêitico "nós" que se distingue,
então, do descritin) "eles".
O discurso da modernidade muda mais uma vez d e regime quando, ao perder
de vista o paradoxo ligado à pretensão de Cclrr1cterizé1r noss,1 época por sua diferença
cm relação a qualquer outra, ele se refere aos valores que nossr1 modernidade, supos-
tamente, defend e e ilustrn. Por falta de uma reflexão pn\·ia sobre as condiçôes de t,11
,1\"éliiaçào, o elogio e a censurn estão condenados a se alternarem numa contro\·érsia
propriamente intcrminá\'cl. Nem sequer h,í mais preocu pé1ÇclO cm distinguir, corTtO
fez Vincent Descornbes, e ntre uma cronologia pelo conteúdo e umé1 cronologia pelas
dé1 tas. Considern-se como certa e níltural a possibilidade de quéllificar de modo sen-
Sêl to nossa éporn cm sua diferença com qualquer outra. Vai-se direto a seus méri tos e
deméritos. E, se essa discussão for befft conduzida , como é o caso, né1 minha opinii'ío,
no pequeno li\·ro de Charles Taylor Lc 11wfai:,;c de /11 111odemif1.' 2'', a estranheza d e uma
fala referente a "nossa" modernidade é eludida pela prud ente dccis5o de identificar o
moderno ao contcmporàneo. A obra de C. Taylor começa nes tes termos: " Minha fala
enfocará certos mal-estares da modernidade. Entendo com isso traços característi cos
da cultura e da sociedade contemporâ neas que ,1s pessoa s percebem como um recuo
o u uma decadência, apesar do 'progresso de noss,1 ci\·iliz,1ção'" (Lc 11111/aí~c de l,1 1110-
dcmitc', p . 9). EntcndL'-se, e prova\'elmente de modo legítimo, que a querela n5o teria
lugar se a evolução dos costumes, das idéias, das práticas, dos sentimentos não fosse
irreversível. E é apesar dessa irren.'rsibilidade que se colocc1 ;1 questão do ,1\·anço ou
do recuo, da melhoria ou da decad[,ncia que marcaria nossa época. O que é preciso
colocar em discussão, são "traços G1 racterísticos" que não sâo determinados por sua
situação temporal - hoje - , mas por seu lugar numa esca la 1noral. A neutralin1ção
de toda cronologia ocorre logo. Se "alguns consid eram toda a época modern,1 desde
o séc ulo XVII como uma lo nga decadência" (//Jid.), não é essa cronologia que importa,
mas as "variaçôes sobre alg uns temas fundamentais" (i/1id.). É do "tema da d ecadên-
cia" (i/Jid.) que \'a i se tratar. Quem süo, então, os oper,1 do res da c1valiaçào? Aqueles
q ue, ao longo do li\' ro, s,io chamad os de "as pessoas". Não surpreende, entéio, que a
controvérs ia ocorra sem advogado identifica do. Ao mesmo tempo, porém, ela abando-
na o campo de urnêl re fl exão sobre os limites de toda consideração sobre o signifi cado
da é poca atual enqu,111to constituti\·a do agora da históri<1. De fato, os três temas dis-
cutidos por Taylor dependem de urn,1 cwaliação mornl, ini cialmente sem quc1lificação
temporal particul c.ir, mas insistentemente pontuada por trc1 ços que podemos qualificar
como marcados p ela época. É o caso dos três "ma l-estares" exa minados por Taylor. O
primeiro diz respeito a essa " mais bela conqu ista da modernidade" (op. cit. , p . 10) que
é o indi vidualismo. O que estci cm jogo nessa discussão é fra ncc1mcntc moral: o mc1l-
estar "concerne ao que se pode cha1nar de uma perda de sentido: o desaparecimen to
dos horizontes morais" (op. cit. , p. 18). O segundo mal-es tar, que resulta da dominc1çàL1

2LJ Charles T.1ylnr, /.1· 11111/ai.,c de la 11111.fcmifr, r<1rís, Éd. du Cerf, JLN-l.
A l\1LM(lRIA, J\ III ST()R l i\, O FSQUFCIMLNTO

tecnológica, refere-se às ameaças para nossa liberdade que provêm do reino da razão
instrumenta!. O terceiro di z respeito ao despotismo "brando", segundo a expressão
de Tocqueville, imposto pelo Estado moderno a cidadãos postos sob tutela. O exame
desses três mal-estares confronta os d etratores e os defensores da modernidade. Mas
a posição no presente dos protagonistas do confronto perdeu toda pertinência. Assim,
o primeiro mal-estar, o único examinado em mais detalhes, suscita uma discussão so-
bre "a força moral do ideal da autenticidade" (op. cit., p. 25). O interesse da posição
de Taylor é que ela somente tenta escapar à alternativa da detestação e da apologia, e
até mesmo à tentação da solução de compromisso, por " um esforço de movimento de
volta às fontes graças ao qual esse idea l poderia nos auxiliar a end ireitar n ossas con-
dutas" (op. cit., p. 31). Orn, o exame das "fontes da autenticidade" (op. cit., p. 33 e seg.)
não pára de oscilar entre considerações históricas e anistóricas. Afirm a-se de saída que
"a ética da autenticidade, relativamente recente, pertence à cultura moderna" (op. cit.,
p. 33). Nesse sentido, ela é datada: ela tem sua fontc" no romantismo; " fonte", aqui,
11

quer dizer "origem" no sentido histórico; mas a palavra também quer dizer "funda-
mento"; além do mais, a ênfase se desloca progressivamente da questão das origens
para um "horizonte de indagações essenciais" (op. cit., p. 48), tal como a "necessidade
de reconhecimento" (op. cit., p . 51). Essa discussão prolongada do idea l individualista
de realização de si serve de modelo para as duas outras discussões. Seja como for, nada
é dito sobre a posição no presente dos protagonistas da discussão. Se esse não-dito ti-
vesse de ser remediado, seria por meio de uma elucidação d a relação entre o uni versal
e o presente. De um lado, um universal ético-político é presumido pela d efesa e ilus-
tração de certos temas atribuídos à modernidade. De outro, o advogado que sustenta
esse discurso se reconhece no cerne de mudanças sociais consideráveis. Se o presente
histórico pode pretender pensar a si mesmo, apenas pode ser corno ponto nodal do
universal e do histórico. É nessa direção que deveria orientar-se uma discussão arra-
zoada a respeito d os benefícios e d os malefícios da "modernidade".
Um quarto estágio d a discussão sobre a mo dernidade é alcan çado com o surgi-
mento do termo "pós-moderno", freqüentcmcnte usado pelos au tores d e língua ingle-
sa como sinônimo de modernista. Ele implica, a título negati vo, a recusa d e todo signi-
ficado aceitável do moderno e d a modernidade. Na med ida em que o emprego ainda
recente do conceito d e modernidade comporta um gra u d e legitimação não apenas de
sua diferença, mas de sua preferência por si mesmo, a recusa de tod a tese normativa
subtrai inelutavclmente as pos ições que invocam o pós-modernismo de toda justifica-
ti va plausível e provável.
Essa situação é lucida mente assumida e ana lisada por Jean-François Lyotard em
Ln co11ditio11 postn1odeme·111: "Nossa hipótese de trabalho é que o saber muda de estatuto
ao mesmo tempo que as sociedades na idade pós-industrial e as culturas na idade
pós-moderna " (p. 11). Mas qual é o estatuto do discurso no qual se enuncia essa hi-
pótese? O pós-industrial tem seus pontos d e referência sociológicos e se presta a uma

30 )l'iln-Fr,rnçois Lyotard, l.11 co11ditio11 pos/111odcmc, Paris, Éd. de Minu it, 1979.
1\ Ul'(l)J(,". \Cl I JJST(! RJ C \

enumeração precisa de seus traços distintivos: " Eis teste munhos evidentes, e a lista
não é exaustiva " (np. cit. , p . 12). A h egemonia da in fo rmcitica e a lógica que ela impõe
tam bém se inscrevem num critério atribuín:'1, assim como a m e rcantilização d o sabe r
e a informatização da socied ad e que delas resultam .
Segundo Lyotard , o que entrou cm falência são os discursos de legitimação, quer
sejam os do positi\'ism o, cuja ex pressão na história \'imos na escola metódica que
precede os A111111/es, ou os da he rmenêutica, com Cadamer e seus discípulos alemães
e franceses . A idé ia original é então discernir, sob esses discursos de legitimação, a
força retórica investida nas "grandes narrativas", tais como as propostas pelas for-
mas secularizadas da teologia cristã , no marxismo do século XX, particularmente. São
essas g rand es narrativas que teriam perdido toda credibilida de. Queiramos ou não,
en gaja mo-nos num discurso da deslegitimação11 . A Jürgcn Habermas, para que m a
modernidade continua a ser um projeto inacabado'~, ele opôe um sentido agudo d o
cará ter inconciliáve l d os discursos sustentados e a impotência do desejo de consenso
para arbitrar os debates 1 1 . Única abertura no firma m ento em ,·ista: urna prcítica da jus-
tiça apoiada em form as locais d e acordos tecidos a partir de desavenças insuper,Í\·eis
e sustentados por p equenas narrativas.
Mas como um debate, corno aquele travado com H a be rm as, pode ri a ser decid i-
d o se a idéia de critério de acordo é e la mes ma posta cm litígio? E sobretudo, com o
simplesmente entrar num debate que elude a pergunta pré, ·ia da possibilidade d e
caracteri z ar a é p oca c m que se v ive? Essa dificu ld ade é comum à reiv ind icação cm
fa,·o r de " nossa " modernidade e à autodesignação d e nossa época, ou pelo menos
d e um fluxo conte mporân eo, como pós-moderno. Esse conceito - se é que se trata
d e um conceito - en cer ra certamente uma forte carga po lê mi ca e urna força retó rica
incontestáve l d e d e núncia . Mas uma forma dissimul ada da contradição p crforrna-
tiva evocada acima provavelmente o condena a d eclarar a si mesmo impensado e
impensc1vel 14 .

31 "A grande narra ti \·,1 perd e u tod a c redibilid,1de, independenteme nh: d o mo d o Lk configu raç,10 que
lhe for atribuído : narrati\·a es pec u lati\·a, na rrclti\·,1 da e rna nc ipaçã(1" (il>id ., p. 63).
32 Jürgen ffobermas, " La moLkrni té, u n projet i nache\'l'" (disc urso pniferido quando d a e ntrqi;,1 dn
prêmio Adonw d a cidade de Fr,rnk fu r t, e m ll de sl'ternbro de 1960). trad . franc. d e Gt'.'rard Raulet,
Critique, de outubro de 191f1, pp. 950-lJf,7. O autor denuncia a te nd ência estet iz ante d os di scursos
pós-mode rnos l' o pt•rigo de con se n·antismo e de oportuni s mo lig,1do ,lll ,1ba ndono das gra mks
ca u sas da po lítica libe ra l.
:n "O consenso é somente um,1 e tapa d <1s discussúes, 11,10 seu fim " (Li1 Ct>11ditio11 po~t111ndl'rnc, up. t' Í / .,
p. 1()6).
J ~ O lino mai s sign iíirn ti\"(l d l' Lyotard , de fo to, e'· Li' d1ffá,·11d, Pc1ris, Éd . de Mi n ui t, 1983. Apt'1s um
exúrd io sem con cessão ("Di forentcm e ntt' de um litígin, uma di s puta seria um caso d e confli -
to entre duas pa r tes !pelo menos ], que não plldL'ria ser decid id a eqü itati\'amc n te, por falta d L'
urn a regra de julg,1me nto a plicá\·e l às dua s ,irgunwntaçôt's " lp. lJ I} , um,1 g ra nd e transição pel,1
"ob rigação"(pp. 1SlJ-lR6) no g llsto Jt,\·inassi,lllll ("a ca usa lidadt· por libt' rd ad t• d á sina is, ja m ,1 is
efeitos consta táYeis, nL' m ca deia s dl' dei tns" lp. 1861), a obra tt'r mina nu m percurso d t' fi g ura s
11.irrativas cn loca d as sob o título d(1 últ imo capítulo, "O s ig no dl' hi stór ia " (pp . 218-260). O fim
eni g mático do li\ ro nZw lc\·a de volt,1 da di s putc1 ao litíg io 7 E o litíg iP nfüi (, o reg ime do di scur-
/\ MFMÚRI /\, /\ III ST()RI/\, O FSQUEC ll'vll: N TO

III. O historiador e o juiz

Uma comparnção entre a tarefa do historiador e a do juiz é prova velmente espe-


rada. Por que apresentá-la neste momento de nossa investigação, no âmbito de uma
reflexão crítica sobre os limites do conhecimento histórico? A razão é que os papéis
respectivos do historiador e do juiz, designados por sua intenção de verdade e de justi-
ça, os convidam a ocupar a posição do terceiro em relação aos lugmes ocupados no es-
paço público pelos protagonistas da ação social. Ora, um desejo de imparcialidade está
ligado a essa posição do terceiro. Essa ambição é provavelmente mais modesta que as
duas precedentes, discutidas acima. Portanto, o fato de esse desejo ser compartilhado
por dois protagonistc1s tão diferentes quanto o historiador e o juiz já atesta a limitação
interna desse desejo partilhado. Ao que seria preciso acrescentar que outros atores que
não o historiador e o juiz podem reivindicar essa posição de imparcialidade: o edurn-
dor que transmite saberes e valores num Estado democrático, o Estado e sua adminis-
tração colocados em situação de arbitragem, enfim, e sobretudo, o próprio cidadão que
se encontra numa situação semelhante à do Contrnto social segundo Rousseau e da que
John Rawls caracteriza como o "véu de ignorância" em Teoria da justiça. Esse desejo d e
imparcialidade ligado à posição do terceiro na diversidade dessas versões depende de
uma filosofia crítica da história, na medida em que a ambição de verdade e de justiça
é objeto de uma vigilância nas fronteiras d entro das quais sua legitimidade é inteira.
Assim, d ever-se-á coloca r o desejo de imparcialidade sob o signo da impossibilidade
de um terceiro absoluto.
Uma palavra sobre a imparcialidade como virtude intelectual e morc1l comum a
todos os pretendentes à função do terceiro. Thomas Nagcl fala muito bem dela em
Ég11/ité d PartialitP'. Sob o título "Dois pontos de vista", o autor define nestes termos
as condições de um julgamento imparcial cm geral: " Nossa experiência do mundo e
quase todos os nossos desejos dependem de nossos pontos de vista individuais: vemos
as coisas daqui, por assim dizer. Também somos capazes de pensar o mundo de ma-
neira abstrata, a partir da posição particular que é a nossa, fazendo abstração do que
somos. É possível abstrair-se de maneira muito mais radical ainda das contingências
do mundo[ ... ] Cada um de nós parte d e um conjunto de preocupações, de desejos e
de interesses próprios e reconhece que o mesmo ocorre com os outros. Em seguida, po-
demos, pelo pensamento, nos afastar da posição particular que ocupamos no mundo e
nos interessar por todos sem distinguir particularmente esse cu que acontece sermos"

so aqui sustentado sobre a an,í lise dos gêne ros de d iscursos? O élU tor levantél pa ra si mesmo él
objeçi'ío. "/\o declarnr que há litígio, você já julgou a partir de um ponto de v is ta 'universa l', o d;i
análise dos g['neros de disc ursos. O interesse posto cm jogo nesse tipo de ponto de vista n ,io é o
da s narrativas. Você ta mb<'.'111 as est.í prcjudicél ndo ... " (i/1id., p. 227).
Mai s adiante, na scçzio sobre o jui z e o hi s toriador, ;:idvogo um uso tcrapt'utico e pcdag<ig ico do
di~~(' ll :-11:;, próximo do qu e Lyotard chama de litígio. Também encontraremos no Epílogo sobre o
perdão difícil os conceitos a parentados de inextri cávcl e de irreparável.
J 5 Thoma s Nagel, Égnlilt' e/ JJ11rtinlifr (1991), trad. franc. d e Claire Beauvillard, l'ilris, PUF, 1994.

<(l, 33° <(l,


(f.galift; ct P11rti11/1N, p. 9). Pode-se chamar de impessoal esse ponto de vista q ue é uma
espécie de não-ponto de vista. Ele é indivisamente epistêmico e moral. Pode-se falar,
a seu respeito, de , ·irtude intelectual. O aspecto epistêmico se deve ao desdobramento
interno ao ponto de \·ista, o aspecto moral à afirmação implícita de igualdade de \'a lor
e de dignidade dos pontos de vista, contanto que o outro ponto de vista seja o ponto
de vista do outro: " No primeiro estágio, a intenção fundamental que ressalta sob o
ponto de vista impessoal é a seguinte: 'toda vida conta, e nenhuma é mais importante
que outra"' (op. cit., p. 10). E ainda : "Deveríamos viver de fato como se estivéssemos
sob a direção de um espectador indulgente e imparcial deste mundo no qual não pas-
samos de um entre alguns bilhões" (op. cit., p. 14). O resto da obra de Thomas Nagel
é dedicado à contribuição da idéia de imparcialidade para uma teoria da justiça, por
meio da idéia de igualdade. Nós a retomaremos pesando os méritos respectivos da
imparcialidade i1wocada, alternadamente, pelo juiz e pelo historiador. Ambos com-
partilham a mesma deontologia profissional resumida pelo famoso adágio 11cc studio,
11cc ira - nem f.wor, nem cólera. Nem complacência, nem espírito de vingança.
Corno e até que ponto o historiador e o jui z cumprem essa regra de imparcialidade
inscrita em suas d eontologias profissionais respectivas? E ajudados por que forças so-
ciais e políticas, tanto quanto pessoais ou corporativas? Essas perguntas inscrevem-se
no prolonga mento daquelas dirigidas à pretensão da História a se colocar fora de todo
ponto de vista, e às da época presente a julgar todas as formas passadas de moder-
nidade. A comparação entre o papel do historiador e o do juiz constitui, em muitos
aspectos, um lorns classicus. Eu gostaria, entretanto, de acrescentar ao balanço das con-
siderações, sobre as quais um vasto acordo pode ser obsen·ado entre porta-vozes reco-
nhecidos das duas disciplinas, uma apresentação mais controvertida das reflexões sus-
citadas no fim do século XX pelo surgimento, na história , de dramas de uma violência,
de uma crue ldade e de uma injustiça extremas. Ora, esses acontecimentos suscitaram,
no campo de exercício dos dois ofícios considerados, um importante mal-estar, que,
por sua vez, deixou, ao nível da opinião pública, rastros documentados susce tíveis d e
enriquecer e de rernwar uma discussão que tenderia a encerrar um consenso estimá\·el
entre especialistas.
Em se tratando das coerções mais gerais e mais est,íveis que pesa m sobre os ofícios
respectivos do juiz e do historiador - pelo menos na ,írea geopolítica do Ocidente e
nas épocas que os historiadores denominam "moderna" e "contemporânea", acres-
centando-lhes "a história do tempo presente"-, o ponto de partida da compa ra çã o
é obrigatório: ele consiste na diferença estrutural que separa o processo dirigido no
recinto do tribunal e a crítica historiogrMica iniciada no âmbito dos arquivos. Nas duas
situações, a mesma estrutura de linguagem é engajada, a do testemunho exam inada
acima, d esde seu arraigamento na me mória declarati,·a em sua fase oral até sua inscri-
ção no âmago da massa documental preservada e codificada no âmbito institucional
do arquivo, no qual uma instituição guarda o rastro de sua atividade passada para con-
sulta ulterior. Durante esse exame, Ie,·,rn1os em conta a bifurcação das vias seguidas
pelo testemunho quando passa de seu uso na conversa comum para seu u so histórico
/\ MFM( lR I /\ , A HI STÓRI A, O LSQUEC l l'v1 EN TO

ou judiciário. Antes de sublinhar as oposições mais manifestas que distinguem o uso


do testemunho no tribunal e seu uso nos arquivos, podemos nos deter nos dois tra-
ços comuns a ambos: a preocupação com a prova e o exa me crítico da credibilidade
das testemunhas - dois traços que andam juntos. Num breve ensaio intitulado pre-
cisamente Lc jugc ct l'/1istorh•11' 6 Cario Ginzburg cita com prazer as palavras de Luigi
1

Feragioli: "O processo é, por assim dizer, o único caso de 'experimentação historiogré1-
fica' - nele as fontes intervêm de viuo, não só porque são recolhidas diretamente, mas
também porque são confrontadas urnas com as outras, submetidas a exames cru zados
e incitadas a reproduzir, como num psicodrarna, o caso que está sendo julgado"17.
A bem da verdade, essa exemplaridade do uso da prova no plano judicial só opera
plenamente na fase prévia da instrução, quando esta é distinta da fase central do pro-
cesso, o que não é o caso em todos os sistemas judiciais. É nesse âmbito limitado que a
questão da prova e a da veracidade se colocam, principalmente quando da formulação
de confissões cuja credibilidade e, mais ainda, a veracidad e, não são inegáveis. Obvia-
mente, a aplicação do critério de concordância e o recurso a verificações independen-
tes da confissão ilustram perfei tamente as teses de Ginzburg, historiógrafo, sobre o
"parad igma indiciário">8 : mesma complementaridade entre a oralidade do testemu-
nho e a materialidade dos indícios autenticados por perícias aprofundadas; mesma
pertinência dos "errinhos", sinal provável de inautenticidade; mesma primazia conce-
dida ao questionamento, ao jogo da imaginação com os possíveis; mesma perspicácia
aplicada a encontrar contradições, incoerências, inverossimilhanças; mesma atenção
conferida aos silêncios, às omissões voluntárias ou não; mesma familiaridade, enfim,
com os recursos de falsifirnção da ling uagem cm termos de erro, de mentira, de auto-
intoxicação, de ilusão. A esse respeito, tanto o juiz quanto o historiador se tornaram
peritos na exibição das falsificações e, neste sentido, mestres, um e outro, no manejo
da s uspeitaN.
Certamente, esta é uma boa oportunidade para lembrar com G inzburg que a pala-
vra historia provém simultaneamente da linguagem médica, da a rgumentação retórica
do meio jurídico e da arte da persuasão exercida perante os tribunais. O historiador

16 Cario Ginzburg, Ll' /11gc e/ /'Hisloricn, tradução francesa por uma equipe de tradutores e posfácio do
autor, Paris, Yerd icr, 1997 (títu lo origina l: li giudicc e lo storico, Torino, Einaudi, 1991).
37 Ca rio Gi n zburg, ibid., p. 24. As circunstnncias desse ensa io não são ind iferentcs a nosso propósito.
O grande historiador dl'scnvolve um argumcnt,irio cerrado em prol de um amigo condl'nado a
um,1 pesada pena de prisão por fatos de terrorismo que remonta m a dezoito anos, por ocasião
do outono quente de 1969. A condenação se fundamentava, no essencia l, na s confissões de outro
acusado "arrependido". O paradoxo do e nsaio é que é o hi s toriad or quem se esforça por refu tar o
juiz, apesar do créd ito de p rincípio concedido a ambos no manejo da prova.
38 Cf. acima, pp. 185-186 e p. 226.
39 Depois de te r citado a " Lcçon d 'ouverture de Lucien Febvre au College d e France" em apoio a suas
observações sob re o papel da hipótese, Gin zburg evoca favoravelmente a obra exemplar de Marc
Bloch, Lcs F<ois tlrn1111111t11rgrs, que revelou o mecanismo de crença segundo o qual reis teriam sido
agrac iados com o poder de curar escrofu losos pela imposição das mãos. Reencontramos aqui o
C inz burg familiM dos processos por bruxaria, no decorrer dos q u a is p uderam ser vistos inquisi-
dores condenar os acusados de bruxaria.

4:, 33 2 {:,
,\ C(l'\ Ili<; \O H IST(lR ICA

não se comporta com muita freqüência como o advogado de uma causa, como os his-
toriadores franceses da Revolução Francesa, que advoga\·arn, alternadamente, antes
da época dos A1111a/cs, a favor ou contra Danton, a favor ou contra os Girondinos ou
os Jacobinos? Mas, acima de todo, a insistência quase cxclusi,·a de Ginzburg na pro,·a,
cujo manejo ele considera comum aos juízes e aos historiadores, deve ser \'inculada à
luta que o autor tra,·a contra a dúvida instilada na profiss;fo historiadora por autores
corno Hayden White, sempre à espreita da feitura retórica do discurso historiador:
"Para mim, insiste Ginzburg, como para muitos outros, as noçôes de prcwa e de \'er-
dade são, pelo contrário, parte integrante do ofício de historiador. [ ... ] A ancfüse das
representações não pode ignorar o princípio de realidade" (Lc jugc ct /'!1istoric11 , p. 23).
"O ofício de ambos [historiadores e juízes] fundamenta-se na possibilidade de pro,·ar,
em função de regras determinadas, que X fez Y; X podendo designar indiscriminada-
mente o protagonista, eventualmente anônirno, de um acontecimento histó rico ou o
sujeito implicado num procedimento penal; e Y uma ação qualquer" (i/Jid.).
Contudo, a tese segundo a qual a situação do processo apresentaria de 1.'1t'O as fon-
tes do julgamento comum ao historiador e ao juiz tem seus limites no próprio pla no
em que estabelece seus argumentos: no plano propriamente inquisitó rio da busca.
As hipóteses mais fantástica s que presidiam o processo por bruxaria não permane-
ceram irrefutáveis por muito tempo, antes que a Congregação Romana do Santo Ofí-
cio passasse a exigir provas, "confirmações objetivas" dos juízes? E certos processos
rn.odemos por traição, complô, terrorismo não participam do espírito pen'Crso q ue
costumava prevalecer nos processos inquisitoriais? Mas sobretudo nossas reflexões
anteriores sobre as complexidades da representação historiadora podem alertar contra
um recurso abrupto demais ao "princípio de realidade" .
Portanto, importa retornar o exame do modelo do processo em seu iníci o e le\·á-lo
além da fase d a i11Yestigação preliminar - da instrução se for o caso-, fazê-lo atra-
,-essar a fase do debate em que o processo consiste realmente, e lev,1-lo até sua conclu-
são, o pronunciamento da sentença.
Lembremos que o processo se apóia numa red e de relações que articulam diver-
samente a situação tipo do processo - situação que opõe interesses, direitos, bens
simbólicos contestados. A esse respeito, os processos por traição, subversão, complô
e terrorismo não são exemplares na medida em que pôem diretamente em jogo a
segurança, como condição primária do ,·iver juntos. A contestaç,10 da distribu ição d e
bens privativos é mais instrutiva para nossa discussão presente: de fato, as infrações,
os delitos, e até mesmo os crimes, confrontam pretensões comparáveis, comen su-
r,h·eis - o que, de novo, não ser,í mais o caso com os grandes processos criminais
enicados mais adiante. A infração, então, é uma espécie de interação, ob\·iamente
\'iolenta, mas na qual uma pluralidade de a tores estú implicada.
O processo começa por encenar os fatos incriminados para representá-los fora de
sua pura efetividade e dar visibilidade à infração come tida em relação a regras de
direito que todos, supostamente, de,·em conhecer, p or um autor singular, em d etri-
mento de uma vítima habilitada a pedir que sua queixa seja instruída e que seu dano

<Z> 333 ©
A MLM(W I A, /\ III ST (rnlA, O FSQUEC I M EN H)

presumido seja reparado ou compensado40 . Assim, os fatos passados somente são re-
presentados sob a qualificação dclituosa escolhida antes do processo propriamente
dito. Eles são representados no presente sob o hori zonte do efeito social futuro da
sentença que decidirá o caso. A relação com o tempo é aqui particularmente notável: a
representação no presente consiste numa encenação, numa teatra lização, que suscitou
a lternadamente os sarcasmos de um Pascal e de um Moliere, e um discurso comedido
de legitimação consciente d e sua operatividade no segundo grau; essa presença viva
das cenas reencenadas no único plano do discurso está vinculada à visibilidade cujo
jogo mostramos cm relação com a dizibilidade no plano da representação literária do
passado4 1• Ela é apenas solenizada pelo rito social regulad o pelo processo criminal
para dar ao julgamento judicial uma estrutura e uma estatura públicas. De fato, trata-
se de nada menos do que ripostar ao d esgaste pelo tempo de todo tipo d e rastros, ma-
teriais, afetivos, sociais, deixados pela falta . Garapon evoca a reflexão de Jean Améry
que fala, a esse respeito, d e "processo de inversão moral do tempo", entenda-se desse
tempo quase biológico que será diretamente evocado no capítulo do esquecimento. O
filósofo-juiz também cita a expressi'ío de Emmanuel Levinas, que fala de " co-presença
diante de um terceiro de jus tiça". Além da qualificação moral ad icional, e em relação
direta com ela, a representação dos fa tos também é representação c11fre partes adversas,
acareação dos protagonistas, comparecimento de todos, ao que se pode opor a solidão
do leitor de arquivos cujo mutismo só um historiador pode romper. Assim, o processo
põe em cena um tempo reconstituído do passa do no qual são visados fatos que, por
s ua vez, já constituíam provações de memória: além dos danos físicos infligidos a en-
tidades definidas por sua história própria, as rupturas de contra to, as contestações a
respeito de atribuição de bens, de posições de poder e de autoridade, e todos os outros
delitos e crimes constituem o utras tantas feridas de memória que demandam um tra-
balho de memória inseparável de um trabalho de luto visando a uma reapropriação
por todas as partes do delito e do crime, apesar de sua estranheza essencial. Da cena
traumática à cena simbólica, poderíamos dizer. É sobre esse fundo que se deverá res-
s ituar, mais adiante, os grandes processos criminais da segund n metade do século XX
e seu percurso pelos próprios ca minhos não famil iares do dissc11s11s.
A cena do processo sendo esta, os traços pelos quais este se presta a uma com-
paração com a inves tigação historiográfica são d e duas ordens. Os primeiros dizem
respeito à fase deliberativa, os segundos à fase conclusiva do julga men to. Em sua fase
deliberativa, o processo consiste essenci almente numa cerimônia d e linguagem que
põe em jogo uma pluralidade de protagonista s; ele se apóia numa confrontação de
argumentos cm que as partes opostas têm um acesso igual à palavra; p elo próprio
modo como ocorre, essa controvérsia organizada quer ser um modelo de discussão
em que as paixões que alimentaram o conflito são transferidas para dentro d a arena da

40 As obscrvaçôes que se seguem devem muito a A ntoine Ca rapon, "La justice e t J'inversion morale
du temps", in Po11rq11oi se so1/l1l'11ír?, Par is, Crasset, "Aciidémie uni versel le d es cu lt urcs", Forum
intcrnational Mémoire d Histoirc, 1999.
41 C f. acima, segunda parte, cap. 3, e cm p<1rticular pp. 274-288.
linguagem. Essa cadeia de discursos cruzados articuh1, uns com os outros, monwn tos
de argumentação, com seus si logismos práticos, e momentos dl' interpretação que se
referem ao mesmo tempo à coerência da scqüência narrc1ti\·a dos fatos incriminados
e à conformidade da regra de direito destin,1d,1 a qua lificar penalmentc os fatos-1 2• No
ponto de convergência dessas duas linhc1s de interpreta ção cai a sentença, a bem cha-
mada "decisão"; nesse ponto, o aspecto punitivo da pena enquanto sanção não pode-
ria eclipsar a função suprema da sentença que é a d e afinnar o direito numa situação
determinada; é por isso que a função de retribuição da sentenç,1 deve ser cons ide rada
como subordinada a sua função restauradora tanto da ordem pública quanto da digni-
dade das vítimas a quem ju stiça é fe ita .
Resta que, por seu ca ráter ddinitivo, a sentença marca a diferença m,1is e,·idcnte
e ntre a abordagem jurídica e a abordagem historiográfica dos mesmos fatos: a coisa
julgc1da pode ser contestada pe la opinião pública, mas não julgada novamente; 11011 /Ji~
idc111; quanto à re,·isão, é " un1a arma de um tiro sú" (A. Ga rapon). /\ co11trano, a lenti-
dão para julgar ou termina r um processo acrescentaria um nO\'O mal àquele suscitado
pelo delito ou crime. E não julgar deixaria a últim,1 p,11,wra a esse mal e acrescenta-
ria desconhecimento e abandono aos danos infligidos à \'Ítima. En tão, é além do jul-
ga mento que começa , para o condenado, uma outra e ra temporal, um outro hori zon te
d e expectativa sobre o qual se abrem as opçôes que são cons ideradas mais adiante sob
as rubricas do esquecimento e do perdão. E é assim porque a sentença, que term inou
a seqüência do julgamento com os efeitos bené ficos que IT1encionamos quan to à lei, à
ordem pública e ao amor-próprio das vítimas, deixa, do lé1do do condem1do, sobretudo
na condiçé'\ o de deten t(), uma me mória ni'lo apaziguada, não purgada, e entrega à sorte
um paciente oferecido a novc1s violências potenciais.
O que acontece, então, com o confronto entre a tarefa do juiz e é1 do historiador? As
cond içôes do profcrimento da sentença no recinto do tribunal abriram, como acaba-
mos de ver, uma brecha na frente comum defendida pelo historié1dor perante o erro e
a in ju stiça. O juiz de,·e ju lgar - é sua função. Ele deve concl ui r. Ele deve d ecidir. Ele
de,'e reinstaurar uma justa dis tâ ncia entre o cu lpado e a dtima, segundo uma topolo-
gia imperiosamente binária. Tudo isso, o hi storiador não faz, não pode, não quer fazer;
se te nta, com o risco de eri gir-se sozinho cm tribunal d él histó ria, é ao preço da confis-
são da precariedade d e um julgamento cuj,1 p arci,1lidadc e a té mesmo a milit,1ncia ele
reconhece. Mas enti'lo, seu julgamento audacioso é submetido à crítica da corporaç,fo
historiadora e à do público esclarecido, sua obra oferecida a um processo ilimitado
de rcvisôes que faz da escrita da história uma perpétua reescrita. Essa abertura para
a reescrita marca a di fe re nça entre um julgamento hi stóri co provisório e um julga-
mento judicial definitin). A brecha assim aberta na frente uniforme dos cavaleiros dél
imparcialilfade ni1o péíra de ampliar-se na re tagu arda da fosc terminal do julga mento.
O julgamento penal, reg ido pelo princípio d a culpabilidade indi vidual, somente co-
nhece, por natureza, acusados portadores de um nome próprio, por s inal con\·ilfados
a declinar sua identidade na abertura do processo.

42 1\)U] Riccl'ur, " L',ick dl' jugL!r " L! " lntL'rpr0t,1tion 1..' l / ou argunwntation ", in Lc ;11~/c, op. (il.
!\ MFM(1RIA, A HIST(lRIA, O FSQ U FCIME N Hl

E são ações pontuais ou, pelo menos, as contribuições distintas e identificáveis dos
protagonistas envolvidos numa ação coletiva - e isso, mesmo no caso de delitos co-
metidos "em associação"-, que são submetidas ao exame dos juízes, tanto no plano
narrativo quanto no plano normativo; a conformidade que o julgamento estabelece
entre a verdade presumida da seqüência narrativa e a imputabilidade que recai sobre
o acusado - esse fit no qual explicação e interpretação se conjugam no limiar do pro-
ferimento da sentença - opera apenas nos limites traçados pela seleção prévia dos
protagonistas e dos fatos incriminados. Quanto à operação de encenação pela qual
começamos por caracterizar a sessão püblica do processo, com o comparecimento de
todos os protagonistas, ela d á visibilidade até a essa delimitação das ações e dos perso-
nagens. Por princípio, a cena jurídica é limitada. Obviamente, o tribunal não se proíbe
de ampliar sua investigação em torno da ação incriminada, no espaço e no tempo e
além da biografia dos acusados. Entre as circunstâncias da ação, vão figurar as influên-
cias, as pressões, as coerções e, em segundo plano, as grandes desordens de sociedade
cuja ação delituosa tende a tornar-se um sintoma entre outros. Afinal, foi um juiz quem
escreveu o li vro intitulado E111pêtré dn11s dcs hístoírcs (Enredado c111 !1ístórias). Tudo ocorre
como se a instrução fosse reaberta pelo processo público que, supostamente, dev ia
encerrá-la. Mas, por bem ou por mal, o efeito de desculpação de uma complacência
excessiva, concedida às circunstâncias e a seus círculos concêntricos indefinidamen-
te abertos será finalmente conjurado pela recordação oportuna da regra do processo,
que é a de julgar tal ser humano e tais atos imputáveis a este último, mesmo quando
o julgamento deva levar em conta circunstâncias atenuantes, cujo peso relativo será
eventualmente aceito pelo juiz na aplicação das penas, se é que elas têm algum peso.
O círculo potencialmente ilimitado da explicação se encerra implacavelmente sobre o
julgamento, que, i11 fine, pode apenas ser uma condenação ou uma absolvição. Faz-se
sentir então o caráter incisivo da palavra de justiça.
Esses círculos, que o juiz encerra depois de tê-los aberto cautelosamente, são rea-
bertos pelo historiador. O círculo das ações cujos autores individuais são considerados
como responsáveis apenas pode inserir-se no campo da história dos acontecimentos,
o qual, como vimos, se deixa tratar como um nível entre outros no empilhamento das
durações e das causalidades. O fato incriminado se deixa então alinhar, enquanto acon-
tecimento entre outros, nas conjunturas e nas estruturas com as quais forma uma seqüên-
cia. E mesmo se, depois da grande época dos Amznlcs, a historiografia se mostra muito
mais atenta às intervenções dos agentes históricos, e se ela concede às representações
um lugar de honra em relação com as ações individuais e coletivas das quais proced e o
vínculo social, as representações então metodicamente recolocadas cm suas escalas de
eficiência só interessam ao historiador a título de fcnômenos coletivos. O mesmo ocorre
inclusive no p lano da micro-história, ao qual a dita inves tigação de personalidade dos
tribunais poderia ser legitimamente comparada . Apenas a marca d eixada sobre a menor
das sociedades pelas intervenções individuais se reveste de uma significação histórica.
Assim, a discordância entre o julgamento histórico e o julgamento judicial, eviden-
te na fase terminal, amplia-se d epois deste ponto ültimo; ela afeta todas as fases da
,\ CO"'\L)l(_; .-\ll III SH ) l{ IC..\

operação judicial e da operação historiogrMica, a tal ponto que podemos nos indagar
se é com os mesmos ouvidos que o juiz e o historiador ouvem o testemunho, essa es-
trutura inicial comum aos dois papéis.
O confronto entre os dois ofícios, de juiz e d e his toriador, correria o risco d e se
perder no tédio d e um debate acadêmico se não se fi zessem ouvir as vozes dos que ti-
\·eram de julgar, a títulos diversos, crimes cometidos em vários luga res do mundo por
regimes totalitários ou autoritários, em meados do século XX. Essas vozes pertencem
ao período de transição em que ocorreu a recons trução ou a cons trução de regimes
d e mocráticos cons titucionais. São as vozes cruzadas de juízes e de historiadores cujos
julgamentos são parte integrante d essa instauração. Evocarei, por um lado, o p apel
d esempenhado pe los g randes processos criminais organizados d esd e o fim d a Segun-
da Guerra Mundial em escala de vários continentes, mas de modo singular na Europa
na esteira da Shoah - e por outro, a controvérsia entre historiadores alemães que
tratara m como his toriadores responsáveis os mesmos acontecimentos vinculados a
essa catástrofe. Eis, d e um lado, tribunais e juízes que penetram uolcns 11olc11:-:. no ter-
ritório do historiador antes que seu s veredictos se marquem no corpo da história qu e
se faz - e do outro, his toriadores que te ntam exercer seu ofício sob a a meaça de uma
conde nação moral, ju rídica, política, pn..1veniente da mesma ins tância judicatória que
o veredicto dos tribunais penais, veredicto que, por sua vez, eles correm o risco de
reforçar, atenuar, d esloca r, e até mesmo subverter por não pod er ignorá-lo.
Uma situação surdamente conflituosa entre a a bordagem judicial e a abord agem
his tórica dos mesmos acontecimentos ex ige ser, quando não desa tada, pelo menos
explicitada.
Para ilustrar a primeira vertente do debate, escolhi a obra de Mark Osiel, M11ss
Atrocity, Collcctiuc Mc111on1111uf the Laiu~' . O autor, que se vangloria d e aproximar duas
famílias de espírito que se ignoram , pelo menos nos Estados-Unidos - a dos sociólo-
gos e a dos homens de lei ((awyers) - , propôe-se a apreciar a influência exercid a sobre
a memória coletiva dos povos envoh·idos cm diligências judiciais e sentenças proferi-
d as pelos tribunais nos grandes processos criminais da segunda metade do século XX
em Nurcmberg, e m Tóquio, na Argentina, na França. O objeto temático da investiga-
ção - a dos tribunais primeiro, a d o sociólogo-jurista em segui da - é d esignad o pelo
te rmo de "a trocidad e em massa" (ou "massacre administrati\'o"t termo aparentemen-
te ne utro, em comparação com a presunção d e unicidade da Shoah (denominada Ho-
locausto pelos autores anglo-saxônicos), mas termo cuja precisão basta para delimitar
os crimes de Estado come tid os por regimes tão dife rentes quanto o d os nazistas, dos
militaristas japoneses, d os generais argentinos, d os colaborad ores franceses na épo-
ca d e Vichy. A linha geral da obra é a seguinte: ao contrá rio d e Durkheim, que vê
na conde nação unàn imc da criminalidade co mum um meio direto - med nico - de
reforço do co11sc11:-:. 11s social, Osiel e nfoca o dissC11s11s susci tad o pela sessão pública d os
processos e a função educa ti va exercida por esse dissc11s11s mesmo no plano d a opi-

-i3 M,,rk Osil•l, Ma~~ Atn>cit _11- Co!lcdiz•c Mt·111on1 ,111 ,I tlic Lmu. ºI'- ât.
A M l·: M()R I A , A HISl'( ll{I A , O ES{JU IT I M F. N Hl

nião pública e da memória coletiva que ao mesmo tempo se exprime e se forma nesse
plano. A confiança d eposi tada nos benefícios esperados dessa cultura da controvérsia
vincula-se ao credo mora l e político do autor quanto às condições da ins tauração d e
uma sociedade liberal - no sentido político que os autores anglo-saxônicos atribuem
ao termo "liberal": é liberal (de modo quase tautológico) uma sociedade que extrai
sua legitimidade militante da delibern ção pública, do caráter aberto dos debates e dos
antagonis mos residuais que estes d eixam atrás de si. Além disso, na medida em que a
memóri a coletiva é o alvo visado por esse rude aprendizado pelo qual uma sociedade
constrói sua solidariedade, ocorre que a obra oferece a oportunidade de uma reflexão
sobre a própria memória 4-1.
Fiel a seu tema - a educação cívica da memória coletiva pelo disscnsus -, o a u-
tor constrói seu livro sobre a seqüência das objeções dirigidas contra a pretensão dos
tribunais a pronunciar uma palavra justa e verdadeira, e nessa condição exemplar,
apesar d o caráter extraordinário tanto dos fatos incriminados quanto d a própria ma-
nutenção dos processos. Dos "seis obstáculos" considerados, apenas me deterei nos
que dizem diretamente respeito às relações entre a abordagem judicial e a aborda-
gem historiográfica 4s. Esta última é mobilizada duas vezes: primeiro, no d ecorre r dos
processos, a título d e argumentação nas mãos da acusação e da d efesa, segundo, no
trajeto que, da corte d e justiça, leva à praça pública. Na verdade, esses dois momentos
não passa m de um, n a medida em que, como dissemos, o processo dá visibilidade aos
acontecimentos que ele reencena num palco acessível ao público. Em compensação, é
o próprio processo que penetra assim nas cabeças e nos lares por meio da discussão
pública e neles transplanta seu próprio disscnsus. Ao abordar o problema pelo lado dos
"obstáculos" levantados contra a pretensão dos juízes de escrever uma história justa, o
autor há de majorar ao extremo as objeções extraídas da especificidade da abordagem
historiográfica, inevitavelmente abalada pela argumentação jurídica. As discordâncias
evocadas acima de m od o abstrato demais são assim maliciosamente amplificadas e,
agora, ilustradas pelas peripécias concretas dos processos tomados um por um. Todas
as tensões entre as duas abordagens resultam do fato d e que a incriminação jurídica se
apóia no princípio da culpabilidade indi vidual : disso resulta a concentração da aten-
ção dos juízes num pequeno número d e atores da his tória, os d o topo do Estado, e no
raio d e ação que eles podem exercer sobre o curso das coisas. O his toriador não pode
admitir essa limitação do olhar; ele estenden:í. sua investigação a um número maior
de atores, aos executantes de segundo plano, aos bystnndcrs, essas testemunhas mais
ou menos passivas constituídas pelas populações mudas e cúmplices. Ele recolocará
as d ecisões pontuais dos dirigentes e s uas intervenções no âmbito d e encad ea mentos
mais vastos, ma is complexos. Ali onde o processo criminal quer apenas conhecer pro-

44 O c11pítulo 2, "Snlidarity thniugh civil disscnsus", é um excelente resumo das teses (il>id., pp. 36-55).
Ress11 lt11 remos a aud ac iosa ex pressão " poéti ca da narrativ id ade lega l" (lliid., p. 3), que cobre a em-
prcitad;i inte ira.
45 Capítu lo 4, " Losing pers pccti vc, di storti ng hi s tory" (iliid., pp. 79-141); c11p. 8, " Ma king pub lic mc-
mory, publicity " (i/1id., pp. 240-292).
tagonistas indi\·iduais, a investigação histéirica não dei xa de religar os personagens a
multidôcs, correntes e forças anônimas. É notc'ível que os adnigados dos acusados dos
grandes processos tenham sistematicamente deturpado, em benefício de seus clientes,
essa ampliação do CéH11po de investigação, tanto do lado dos encadeamentos entre
acontecimentos, quanto do lado do L'mbaralhamento das iniciativas e das intervenções
indi ,·id ua is.
Segundo contraste: os processos criminais são atos de justiça política que visam a
estabelecer uma \'e rsào fixa dos fatos incriminados por meio do caráter definitivo da
sentença . Obviamente, os juízes sabem que o importante não é punir, mas proferir
uma palavra de justiça. Mas essa palavra encerra o d ebate, "deté m " a contro,·érsia.
Essa coerção se de\·e à finalidade curta do processo criminal : julgar agora e definiti,·a-
mente. É a esse preço que a sentença dos processos criminais pode pretender educar a
opinião pública por meio da perturbação de consciência que ela começa por suscitar.
Le\·ando o argumento até o fim, o contestatário denunciará o perigo vinculado à idéia
de uma versão oficial, e até mesmo d e uma história oficial dos acontecimentos. É aqui
que pesa a acusação de "distorção". Ela pode espantar vindo de discutidores incapazes
de opor uma versão verídica à versão pretensamente corrompida sem se contradize-
r1..'m. Apenas pode ser considerado como distorção o projeto de propor, ou até mesmo
de impor, uma narrativa verídica para apoiar a condenação dos acusados. Segundo
esse argumento, toda memória, por ser seletiva, já é distorção; apenas se pode opor,
então, a uma versão parcial, outra ve rsão igualmente frágil. Mas há um aspecto sob
o qual, paradoxalmente, o processo confirma, por seu próprio procedimento mais do
que por sua conclusão, o ceticismo presumido dos historiadores atingidos pela crítica
dos "re tóricos", mais ou menos próximos de Hayden White.j". Ao distribuir a palavra
de modo igual entre ad\·ogados das duas partes, e ao possibilitar, com essa regra de
procedimento, que as narrativas e as argumentações adversas se façam ouvir, c1 ins-
t{mcia judicial não encoraja a prática de um julgamento historicamente "equilibrado",
prestes a resvalar para o lado da equivalência moral e, no limite, para o lado da des-
culpação? Essa estratégia os advogados dos criminosos també m souberam empregar a
título da famosa interjeição: tu q11oq11c!
O tratamento, por Osiel, desse tipo de objeção é interessante. Todo seu esforço visa
a incluí-lo na sua visão "liberal" da discussão pública na categoria do dissc11s11s edu-
cati,·o. Mas, para ter êxito, e le deve privar a objeção de seu veneno céti.co. Para tanto,
ele precisa afirmar, primeiro, que o próprio exercício da controvérsia, da qual o advo-
gado de criminosos confirmados mai s desleal, mais desprovido d e escrúpulos tenta se
aproveitar, cons titui uma prova pela açJo da superioridade ética dos valores libe rais
sob a égide dos quais os processos ocorrem . Nesse sentido, o processo constitui um
testemunho d essa superioridade da qw1l um d os beneficiários é a liberdade de palavra
do advogado dos criminosos. Mas ele precisa também afirmar que todas as narrati\'as
não se valem, que é possível pronunciar, pelo menos a título provisório, uma versão

-16 Cf. a c ima , scgund ,1 pMte, Célp. J, pp. 2hJ-27ll.

cl:• 339 •ll>


;\ ME M(lRI;\, A HIST( WIA, O FS<..)U EUME NTO

mais plausível, mais provável, que a defesa dos acusados não consegue desacreditar.
Em outras palavras, é possível dar crédito a urna narrativa, independentemente do
fato de esse relato ter um alcance educativo em relação aos valores de uma sociedade
democrática em período d e transição.
Reencontro aqui. minha própria defesa de uma articulação mais meticulosa d as três
fases da operação historiográfica, entre prova documental, explicação/ compreensão
e representação his toriadora. O fato de o tribunal encenar a ação reconstruída não
justifica que retenha apenas a fase "representativa" da operação historiográfica, tão
fortemente marcada pelos tropos e figuras dos quais a retórica se aproveita. Mas então,
é preciso confessar que no momento de ampliar o campo dos protagonistas e das ações
narradas e de multiplicar os níveis de análise, o juiz passa a palavra ao historiador. A
sabedoria consiste em dizer que o juiz não d eve brincar de historiador; ele d eve julgar
nos limites de sua competência - limites que são imperiosos; ele deve julgar em sua
alma e consciência. Nesse sentido, Osiel pode arriscar a expressão "narrativa liberal",
e mesmo "memória liberal" (op. cit., p. 238). Mas os historiadores tampouco têm con-
dição de escrever a única história que englobaria a dos executantes, a das vítimas e a
das testemunhas. Isso não quer dizer que eles não podem buscar um consensus parcial
sobre histórias parei.ais cujos limites, ao contrário dos juízes, eles têm a possibilidade~
o d ever d e transgredir indefinidamente. Que cada um faça sua parte!
Se evoco aqui a "controvérsia dos historiadores" (Historikerstrcit) dos anos 1986 e
seguintes na Alemanha 47, não é para cobrir a totalidade dos fatos relativos a essa que-
rela; outros aspectos serão abordados a propósito do esquecimento e do perdão. Numa
reflexão sobre as relações entre juiz e historiador, a perg unta é exatamente simétrica
e inversa d aquela colocada pelo livro d e M. Osiel: em que medida, perguntávamos,
uma argumentação historiográfica pode legitimamente contribuir para a formulação
de uma sentença penal que puna os grandes criminosos do século XX e assim alimen-
tar um dissensus com vocação educativa? A pergunta inversa é esta: cm que medida
um debate p ode ser travado entre historiadores profissionais sob a vigilância de um
julgamento de condenação já proferido, não apenas no plano da opinião pública inter-
nacional e nacional, mas no plano judicial e penal? Dá-se margem, no plano historio-
gráfico, a um dissensus que não seja percebido como desculpação? Esse vínculo entre
explicação e desculpação - para n ão falar de aprovação - foi pouco estudado em si
mesmo, embora seja constantemente subjacente à controvérsia, pois a suspeita de uns
engendra a autojustificação dos outros, num jogo entre acusação e desculpação, como
se existissem situações n as quais historiadores poderiam ser eles mesmos acusados
enquanto historiadores.

47 Ocrn11/ /'11istoirc, op. cit. É a segunda vez que abordo os problemas historiogrMicos vinculados .'1
Shoa h (Holocaust cm ing l&s); il prime ira fni n o â mbito da epistemologia aplicada ao proble ma da
representação histórica; a questão e ra a dos limites impostos à representação tanto n o que diz res-
peito à exposição dos acontecimentos pela ling uagem ou outro meio, quanto em rel ação ao alca nce
"realista" tfa representação. Os mes mos fatos são aqui co locados sob os domínios cru zados do jul-
ga mento ax iológico e do julgamento historiográfico.
A C<Y\I)I(; .\( ) f llST( WIC 1\

Não é apenas a relação do historiador com o juiz que se vê assim invertida, com
o historiador trabalhando sob o olhar do povo juiz que já proferiu a condenação. É a
relação com uma tradição historiogrMica que, ao eliminar o elogio e, de modo geral, a
apologética, também se esforçou por eliminar a repreensão.
Depois de nos indagarmos se o elogio sobrevivera à destituição da figura do rei,
puséramos de lado a questão de saber se a censura tinha uma sorte comparável. Tam-
bém tínhamos evocado a dificuldade que existe para representar o horror absoluto nos
confins desses limites da representação que Saul Friedlander explora frente ao que cha-
ma de "o inaceitc1vel" 1'. Ora, é esse problema preciso que ressurge, agora, no âmbito
da filosofia crítica da história. É possÍ\·el um tratamento historiográfico do inaceitével?
A dificuldade maior se deve à gravidade excepcional dos crimes. Independente mente
de sua unicidade e de sua comparabilidade em termos historiogrMicos - e este será,
no fim, o cerne do debate-, existem urna singularidade e uma incomparabilidade
éticas que se devem à magnitude do crime, ao fato de ele ter sido cometido pelo pró-
prio Estado contra uma parte discriminada da população à qual ele devia proteção e
segurança, ao fato de ele ter sido executado por uma administração sem alma, tolera do
sem objeções marcantes pelas elites dirigentes, sofrido sem resistência importante por
uma população inteira . O extremo desumano corresponde assim ao que Jean Nabert
designava com o termo de injustificável, no sentido de ação que excede as normas ne-
gativas. Falei, em outro lugar, do horrível como contrário do admirável e do subl ime, e
do qual Kant diz que excede em quantidade e em intensidade os limites do imaginário.
É a excepcionalidade do mal que é assim designada. É nessas condições "impossíveis"
que se colocou, para os historiadores alemães, a tarefa que Christian Meier resume
nestas palavras: "condenar e compreender"~". Em outras pala\·ras: compreender sem
desculpar, sem tornar-se cúmplice da fuga e da denegação. Ora, compreender é fazer
usos outros que não o moral das categorias de unicidade e de comparabilidade. De que
modo esses outros usos podem contribuir para a reapropriação pelo povo daquilo que
ele reprova absolutamente? E, por outro lado, como acolher o extraordinário com os
meios ordinários da compreensão histórica?
Isolo propositadamente a contribuição de E. Noite a esse debate, na medida e m
que a sua foi a mais controvertida. Esse especialista do período nazista parte de uma
constatação: "O Terceiro Reich acabou há trinta e cinco anos, mas ainda esté bem vivo "
(Dcua11t /'histoirc, p. 9) . E ele acrescenta sem ambigüidade: "Se a lembrança do Terceiro
Reich ainda está muito vi,·a hoje, é - deixando de lado certos casos marginais - com
uma conotação completamente negativa, e isso por bons moti\·os" (op. cit. , p . 8). Logo,
o discurso de Noite não quer ser o de um negacionista e, certamente, não é este o caso.
A condenação moral sustentada pelos sobreviventes é assumida: "Um julgamento ne-
gativo é simplesmente urna necessidade \·ital " (ihid.). O que passa então a inquietar
Noite é a ameaça , para a pesquisa, de uma narra tiva ele,·ada à condição de ideologia

-+8 Ver a segunda partL>, c,1p. 3, pp. 2h7-2Tl.

-t9 l .krn11/ J'J,i~f[)irc , ' ' /'- cit. , p. 37 e scg.


/1 MFMÚRIA, A HIST(JRIA, O F.SQUFCIMLN l' (l

fundadora, o negativo que se torna lenda e mito. Então, é preciso submeter a história
do Terceiro Reich a uma revisão que não seja uma simples inversão do julgamento
fundamentalmente negativo: " No essencial, a imagem negativa do Terceiro Reich não
requer revisão alguma e não poderia ser objeto de nenhuma revisão" (op. cit., p. 11). A
revisão proposta incide essencialmente sobre o que Osiel chamava de quadro (frm11c)
da narrativa . Onde iniciá-la? perguntava ele. Até onde estendê-la? Onde terminá-la?
E Nolte não hesita em remontar ao início da revolução industrial para evocar i11 fine a
d eclaração de Ch,úm Weizmann incitando os judeus do mundo inteiro a lutar ao lado
da Inglaterra, cm setembro de 1939. É, portanto, uma ampliação da perspectiva - e
ao mesmo tempo um terrível atalho - que a postura de revisão exige. O que ela deixa
aparecer no intervalo é uma multidão de antecedentes exterminacionistas, o mais pró-
ximo sendo o longo episódio do bolchevismo. "A recusa de ressituar nesse contexto o
extermínio dos judeus perpetrado sob Hitler talvez se deva a motivos muito estimá-
veis, mas ela falsifica a história" (op. cit., p. 21). O deslocamento decisivo no discurso
do próprio Noite ocorre na passagem da comparação à causalidade: "O que se chama
de extermínio dos judeus perpetrado sob o Terceiro Reich foi uma reação, uma cópia
deformada e não uma inovação nem um original" (ibid.). Três procedimentos são as-
sim acrescentados: ampliação temporal do contexto, comparação com fatos semelhan-
tes contemporâneos ou anteriores, relação de causalidade de original a cópia. Juntas,
essas propostas significam " revisão de perspectiva" (op. cit., p. 23). Daí a pergunta: por
que esse passado não quer passar, desaparecer? Por que ele se torna até mesmo cada
vez mais vivo, vivaz e ativo, não, certamente, como um modelo, mas como algo repul-
sivo? Porque se subtraiu esse passado a todo debate crítico estreitando o campo para
concentrar-se na "solução final": " As regras mais simples que valem para o passado de
quaisquer países parecem aqui abolidas" (op. cit., p . 31). São essas regras que exigem,
como se disse, que se amplie o contexto, que se compare, que se busquem os vínculos
de causalidade. Elas p ermitem concluir que o assassinato por razão de Estado, come-
tido pelos bolcheviques, pôde constituir "o precedente lógico e factual" (op. cit., p. 34)
do assassinato por motivo de raça dos nazistas, o que faz do arquipélago do Gulag um
acontecimento "mais original" que Auschwitz.
Esse uso maciço da comparação acaba com a singularidade ou com a unicidade,
a comparação, sozinha, possibilitando identificar as diferenças - "a única exceção
[sendo] a técnica usada nas câmaras de gás" (op. cit., p. 33). Noite espera que o deba-
te crítico, sendo assim ampliado, talvez permita "fazer passar" esse passado, corno
qualquer outro, e se apropriar dele. O que não quer passar, no fim das contas, não é o
crime nazista, mas sua origem não dita, o crime "asiático", do qual Hitler e os nazistas
se consideravam como as vítimas potenciais ou reais.
No que di z respeito à comparação entre o juiz e o historiador, seu uso por Noite
coloca o historiador nos antípodas do juiz que trata de maneira singular casos parti-
culares51'. Numa outra frente, Noite abre uma crise entre o julgamento histórico e o

50 Um outro protagonista do debate, M. Stürmer, define a sing ularid ade de Auschwitz pela ruptura
da continuidade temporal que afeta a ide ntidade nacional; ora, essa ruptura também tem antcce-
,\ Ctl'.\DI(, \ll ltJ:-;HlRIC\

julgamento moral, jurídico ou político. É nessa articulação que o filósofo Habermas


interveio"'. Separo o que diz respeito às relações entre o julgamento historiogrMico
e o julgamento moral, jurídico ou político. Ao denunciar "as tendências apologéticas
da história contemporfüica alemã", Habermas questiona a distinção entre n.•,·isão e
revisionismo. As três regras evocadas acima -ampliação do campo, comparação, \"Ín-
culo causal - são um prete xto para "liquidar os danos" (op. cit., p. 47). O que ele ata-
ca não é, portanto, o programa historiográfico, mas os pressupostos éticos e políticos
implícitos, que são os de um nco-revisionismo afiliado à tradição do conservantismo
nacional; a esse nücleo vinculam-se: a retirada nos lugares-comuns da antropologia, a
atribuição fácil dem,1is, pela ontologia heideggeriana, da especificidade do fenómeno
histórico à modernidade técnica, "essas profundezas abissais onde todos os ga tos são
pardos" (op. cit. , p. 53). Habermas acerta quando denuncia o efeito de desculpação que
resulta da dissolução da singularidade dos crimes nazistas, comparados a uma respos-
ta às ameaças de aniquilação vindas dos bolcheviques. Esperar-se-ia, contudo, de uma

,'
argumentação como a de Habermas que cornportasse uma reflexão sobre a unicidade
da Shoah, não ape nas na orde m do julgamento moral e político, mas no plano espe-
cificamente historiogrélfico. Na falta dessa discussão, a "compreensão distanciante"
dos defensores de uma revisão apenas pode ser atacada no plano de suas conotações
morais, a mais tenaz das quais seria o serviço do tradicional Estado-nação, essa " for-
ma convencional de ide ntidade nacional" (op. cit., p . 58) - à qual Habcrmas op õe seu
"patriotismo constitucional" que situa a fidelidade às regras de um Es tado de direito
acima do pertencimento a um povo. Compreende-se, então, por que a vergonha de
Auschwitz deve se r protegida de toda suspeita d e apologia , se é ve rdade que "um
compromisso ancorado nas convicções favo ráveis ao p rincípio constitucional univer-
salista, infelizmente, apenas pôde se forjar na nação cultural dos alemães após - e
através de - Auschwitz" (op. cit., p. 58). Nesse ponto, a de fesa de Haberrnas converge
p a ra a de M. Osiel em p rol de uma m emória "liberal" , d e uma na rrativa " liberal",
d e uma discussão "liberal ". Mas então seria preciso enfrentar, como fa z esse autor,
os argumentos opostos extraídos da prática historiográfica, se se quise r d a r o direito
de acoplar a singularidade assumida de Auschwitz à universalidade volunta rista d o
patriotismo constitucional.

dentes no passado alern.10: a ausência de ancoragem da mernlÍria n,is certezas que, de sde a época
pré-hi t leria na, cr io u "um país sem histt'ir ia ". Ora, ni\o é tudti p ossíH· I num país s em hi s tória? Nüo
soml'ntl' a barbá rie reCl'nte m,1s também a rl'ti ct' ncic1 atual em bu scar "a hi stóri a perdida" (1/,id .,
p. 27). Daí a tarefa :i qu a I os historiadure s est,iu con\' idados : sair da obsessii o rcstau ra ndo a cu n-
ti nuid adc. l'ur se u lad o, o a uto r d e h 1•cicrlci U11 tcrg1111g [D upl a a niquil ação], A. Hill g rubc r, ju s-
tapiie os s ofrimentos dos alem ães da parte oriental da A lem,1nh a, quando do desmorona mento
d a fr ente ru ssa, a os dos jude us quando de seu exte rmínio, sem explicitar a " intcrnç,io so mb ri,1"
dessas duas sé ries d e aconhximentos, a '\kstruiç,10 do l,cich alem iio" C' o "fi m do jud ,1ís mo L'Uro-
pcu ''. O autor c ria assim um suspL'nse quL' deixa a porta abe rta pa ra um julgame nto d efi n iti\"\) que
u historiador n.-io tem ubri gaç.-io d e inrmu lar.
:il Jürge n Halwrmas, " Une manit•rc de liquidcr les dommages Les tt' ndances apologé tiques d ,1ns
,,p
J'hi stnriograph ie cnn tl'mpora inc ,1 llc ma ndc" (U,·,·,111/ /'hi , t,1irc, t' ÍI ., p 47 l' scg. }.
A MEMÚRIA, A HISTÚRIA, O ISQU!:CIMl·NHl

Falar como historiador "da singularidade dos crimes nazistas" exige que se tenha
previamente submetido à análise a idéia de singularidade- ou, como se diz também,
de unicidade - como o exige uma filosofia crítica da história.

Proponho, para tanto, as teses seguintes:

Tese 1
A singularidade histórica não é a singularidade moral que identificamos acima
ao extremo desumano; essa singularidade pelo excesso quanto ao mal, que Nabert
chama de o injustificável e Friedlander, de o inaceitável, não pode, obviamente, ser
separada de traços históricos identificáveis; mas ela depende do julgamento moral
por assim dizer deturpado. É preciso, então, fa zer todo um percurso no plano his-
toriográfico para implementar um conceito de singularidade ligado ao julgamento
histórico.

Tese 2
A respeito da singularidade histórica, num sentido primeiro e banalmente co-
mum, todo acontecimento que, simplesmente, advém no plano da história que se
faz, e toda seqüência narrativa não repetível no tempo e no espaço, toda série causal
contingente no sentido de Cournot são singulares; um vínculo possível com a sin-
gularidade moral resulta da imputação da ação a agentes individualizados e a toda
quase-pessoa e a todo quase-acontecimento, identificados por um nome próprios2 .
Essa primeira abordagem do conceito de singularidade no plano do julgamento
histórico diz respeito, de modo eletivo, ao debate histórico acerca da Shoah, o qual
opõe a escola intencionalista, para a qual importam mais os atos da equipe dirigente,
em particular a tomada de decisão quanto à "solução final", à escola funcionalista,
mais atenta ao jogo das instituições, às forças anônimas, aos comportamentos de uma
população. O que está em jogo nesse debate é a atribuição da responsabilidade do
crime a um leque de sujeitos: alguém, um grupo, um povo"1. A afinidade é certamente
maior entre a atenção dada pelos defensores da primeira escola aos atos imputáveis a
agentes individuais e a abordagem criminal dos tribunais; a tensão é mais viva entre,
de um lado, o julgamento moral e jurídico e, do outro, a explicação funcional , mais
conforme às tendências gerais da história contemporânea. Por isso mesmo, ela está
mais exposta às interpretações desculpantes. Vimos historiadores relacionarem a idéia

52 De fato, é difícil urna narrativa ser totalmente privada de toda apreciação moral d os personage ns
e de suas ações. Na sua Poétirn, Aristóteles fala dos caracteres trágicos como sendo "melhores do
que nós" e dos caracte res cómicos como sendo "iguais a nós" ou "piores que nós". É ve rdad e qu e
ele bane o desumano de seu campo poético. Isso leva Osiel a dizer que, entre todos os gêneros
literários, nem mesmo a tragédia é apropriada à lcg11! 1111rmli11c, mas apenas o ,nornlity plny (Mn~;;
atrocify, collcctin' lll<' lllor.11 a11d thc lrnu, op. cil. , p. 283 e scg.).
53 Remeto às minhas teses sobre a atribuição da memória a um leque de sujeitos (ver primeira parte,
cap. 3). Encontrarei mais adiante um problema co mparável, concernente à <1tribuição múltip la dê!
morte e do morrer.
,\ (Cl\:1)1 " .\l) IIISIORll.-\

de singularidade à de continuidade temporal no seio da autocomprccnsão do po\'o


alemão: o efeito de ruptura atribuído à singularidade pode então ser usado quer como
desculpação - "os acontecimentos da Shoah não pertencem à cadeia histórica pela
qual nos identificamos" -quer como argumento acusador- "como tal pm·o pôde ser
capaz de tais aberrações?" Outras opções morais são assim abertas: seja a dep loração
infinita e o mergulho no abismo da melancolia, seja o sobressalto da responsabilidade
CÍ\'ica: "O que fazer para que tais coisas nunca se reproduzam?"

Tc:;c3
Num segundo sentido, singularidade significa incomparabilidade, o que também
é um significado de unicidade. Passa-se do primeiro sentido ao segundo pelo uso da
comparação entre acontecimentos e açôes pertencentes à mesma série, à mesma con-
tinuidade histórica, à mesma tradição identificante; a excepcionalidade evocada h,-í
pouco se deve a esse sentido transicional. A incomparabilidade presumida constitui
uma categoria distinta quando dois conjuntos históricos heterogéneos são confronta-
dos: esse já era o caso nas atrocidades em massa e nos extermínios do passado, entre
os quais está o Terror na França, mas principalmente no desenrolar parcialmente con-
temporâneo do regime bolchevique e do regime nazista. Antes de se pronunciar sobre
a causalidade de um sobre o outro, é preciso entender-se sobre as semelhanças e as

'' diferenças referentes às estruturas de poder, aos critérios de discriminação, às estraté-


gias de eliminação, às práticas de destruição física e de humilhação moral. Em todos
esses aspectos, o Gulag e Auschwitz são semelhantes e dessemelhantes. A controvér-
sia permanece aberta a respeito da proporção entre semelhança e dessemelhança; ela
interessa diretamente ao Historikerstreit alemão, uma \'ez que a pretensa causalidade
foi atribuída ao modelo em relação à cópia. O deslocamento perverso da semelhança à
desculpação é possibilitado pela comparação da equivalência dos crimes à compensa-
ção de um pelo outro (reconhece-se o argumento identificado por Osiel sob o signo
da famosa apóstrofe: tu quoque1). A contn.wérsia também diz respeito a povos outros
que não o alemão, na medida cm que o modelo soviético sen·iu de norma aos partidos
comunistas ocidentais e, mais amplamente, a muitos mo\·imentos antifascistas, para
os quais a própria idéia de semelhança entre os dois sistemas continuou a ser anátema
por muito tempo. Independentemente do grau de semelhança entre os dois sistemas,
a questão que permanece é a da existência de uma eventual \'ontade política de imitar e
do grau de coerção exercida pelo modelo, a ponto de ele ter podido tornar ine\'it,-í,·el
a política de retorsão, ,10 abrigo da qual o crime nazista teria ocorrido. Os usos des-
,·iantes do comparatismo são prova\·elrnente fáceis de desmascarar nessa ,·,1ga fron-
teira que separa a revisão do revisionismo. Mas, além dessas brigas circunstanciadas,
permanece colocado o problema do uso honesto do cornparatisrno no plano historio-
grMico: o ponto crítico diz respeito à categoria de totalitarismo, adotada, entre outros,
por Hannah Arendf 4 . Nada proíbe construir sob esse ,·odbulo uma classe ddin icL1

5-J. 1\ rL'ndt.. Til e O ri,1;i11~ of"ftift1lilor i~111 , \k-w York, H <Hcourt, Bracl' & World , 1951 , 1958, 1% h,
H ,11111,1 h
1968; trad. fr,1nc., Le, l>ris,i11c, du /0/11/it,m,111,· , :l ,·,)I., Paris, Éd. du Sl'uil , coll. 'Toinb" : t. 1.. ~11r
/\ Ml'M(JRl1\, J\ IIIST(JRI/\, () FS(_)UH_" IMF N J'Cl

pela noção de atrocidades cm massa (M. Osiel) ou, como prefiro dizer com Antoine
Carapon, de crime do terceiro, entendendo por terceiro o Estado, definido por sua
obrigação primeira de garantir a segurança de quem quer que resida no território deli-
mitado pelas regras institucionais que legitimam e obrigam esse Estado. É então possí-
vel, nesse quadro, estabelecer a lista das semelhanças e das diferenças entre sistemas.
Por outro lado, a idéia de incomparabilidade apenas tem significado próprio a título
de grau zero da semelhança, portanto, no âmbito de um procedimento de comparação.
As questôes controvertidas são então múltiplas: até que ponto um género classifica-
tório constitui uma estrutura comum? E que relação existe entre a estrutura presumida
e os procedimentos efetivos de extermínio? Que liberdade existiu entre a estratégia
programada no topo e todos os escalões de execução? Tudo isso é discutível. Mas,
mesmo supondo que a tese da incomparabilidade aplicada à Shoah seja plausível no
plano historiográfico, o erro seria confundir a excepcionalidade absoluta no plano mo-
ral com a incomparabilidade relativa no plano historiográfico. Essa confusão costuma
afetar a tese do pcrtencimento dos dois sistemas, bolchevique e hitleriano, ao mesmo
género - totalitário, no caso-, até mesmo a asserção de uma influência mimética e
causal de um crime sobre o outro. Essa mesma confusão afeta com muita freqüência a
alegação da singularidade absoluta dos crimes nazistas. Inversamente, não vemos em
que o pertencimento ao mesmo género, totalitário, no caso - e até mesmo a influência
mimética e causal de um crime sobre o outro - teria uma virtude desculpante para os
herdeiros da dívida de um crime particular. O segundo uso do conceito de singularida-
de - o incomparc-1vel - não apaga o primeiro - o não repetível: o género comum não
impede a diferença específica, na medida em que é ela que importa para o julgamento
moral de cada crime tomado individualmente. A esse respeito, defenderia de bom
grado uma singularidade propriamente moral, no sentido de uma incomparabilidade
absoluta das irrupções do horror, como se as figuras do mal tivessem, em razão da
simetria entre o admirável e o abominável, uma singularidade moral absoluta. Não
há escala do desumano, porque o desumano cst,i fora de escala, por estar fora das
próprias normas negativas.
Não h,i, então, nenhum vínculo atribuível entre o uso moral das idéias de unicidade
e de incomparabilidade e seu uso historiográfico? Vislumbro um, que seria a idéia de
exemplaridade do singular. Esta não depende nem da avaliação moral enquanto tal,
nem da categorização historiográfica, nem da sua superposição de ambas, que seria
um retorno à ambigüidade, à confusão. Essa idéia forma-se no trajeto da reccpção até
o plano da memória histórica. A última questão, de fato, é a de saber o que cidadãos
responsáveis fa zem com uma querela entre historiadores e, além desta, do debate en-
tre juízes e historiadores. Aqui reencontramos a idéia de dissr11s11s educativo de Mark
Osiel. A esse respeito, é significativo que as peças do Historikcrstrcit tenham sido im-
pressas num jornal de grande tiragem. A disputa dos historiadores, levada à praça

/'1111tis1;111itis111c, tr,1d. franc. de Micheline Poutcau, 1998; t. li, L' l11111hi11/i;;111c, trad. frilnc. d e Mil rtinc
Lciris, 1998; t. Ili , Lc sysfr111c lo/11/ilairc, trild. franc. de Jcan-Loup Bourget, 1995.
,\ C O '\l"JI~ ,\,1 1 II SHlR IC ,\

pública, já era uma fase do dissc11s11s gerador de democracia . A idéia de singularidade


exemplar só pod e ser formada por uma opinião pública esclarecida que transforma
o julgamento retrospectivo sobre o crime em juramento de e, ·itc1r seu retorno. Assim
ressituada na categoria da promessa, a meditação sobre o mal pode ser arrancada da
de ploração infinita e da melancolia desarmante e, mais fundamentalmente ainda, do
círculo infernal da inculpação e da desculpação.

Começamos com a busca do te rceiro imparcial, mas não infalível, e termina mos
com o acréscimo, à dupla do juiz e do hi s toriador, de um terceiro parceiro, o cidadão.
Ele e merge como um terceiro no te mpo: seu olhar estrutura-se a partir de s ua expe-
riência própria, instru ída diversamente pelo julgamento pena l e pela im·estigaçã o
hi stórica publicada . Por outro lado, s ua intervenção nunca é aca bada, o que o coloca,
antes, do lado do historiador. Mas ele est,í em busrn d e um julgamento garantido,
o qual gostaria que fosse definitivo, como o do juiz. Sob todos os aspectos, ele con-
tinua sendo o úbitro de rradeiro. É ele o portador militante dos va lores " liberais"
da democracia constitucional. Apenas a convicção do cid adão justifica, cm última
instân cia, a eqüidade do procedimento penal no recinto do tribunal e a hones tidad e
intelectual do hi storiador nos a rq ui\'os. É essa mesma com ·icçã o que, em últi1na ins-
tância, permite, retrospecti va mente, no mear o desumano como contrário absoluto
dos va lores "libera is".

IV. A interpretação em história

A última limitação interna a que se submete a reflexão da história sobre seu pró-
prio projeto de verdade relacion a-se com a noção de interpretação, cujo conceito será
especificado mais adiante. Pod e-se estranha r a evocação ta rdia do tema da interp re ta-
ção em nosso próprio discurso: não poderia ter aparecido no lugar da representação,
ou seja, no âmbito da epistemologia da operação his toriográfica? Fizemos, neste caso,
outra escolha semântica que, pareceu-nos, faz mais justiça à amplidão do conceito de
interpretação: de foto, longe d e constituir, como a representação, uma fase - embo-
ra n ão cronológica - da operação historiográfica, a interpretação depende, antes, da
reflexão segunda sobre o curso total dessa ope ração; ela reúne todas as fases, enfati-
zando assim, simultanea mente, a impossibilidade da reflexão tota l do conhecimento
histórico sobre si mesmo e a va lidad e do projeto de ve rdade da história nos limi tes de
seu espaço d e val idação.
A amplitude do concei to d e interpretação não está aind a to tíl.lmcnte recon hecid a
numa versão que considero como uma forma fraca d a reflexão sobre si mesma eco-
mumente apresentada sob o título "subjetivid ade ucr::;11s objetividade na história "ªª.

:,:, foi sob esse áng uln que encon t rC'i, pcl,1 pr i mL'Íra , ·ez, esse problt•m,1 L'm ITIL'LIS a rti gos dos am1s
50 (,1prcscntados em Hi~toirc d Vt;rité, PMís, Éd. du 5l'uil, co ll. "Es prit ", 1955) . Nt1 prefocin d<1 pri-

•::> 347 °'"


t\ MEM(lRIA, A HISTÚRI/\, O FSQUFCIM EN TO

Não que falte justificativa para essa abordagem; ela continua vulnerável à acusação de
psicologismo ou de sociologismo, por não situar o trabalho da interpretação no pró-
prio cerne de cada um dos procedimentos da historiografia. Na verdade, o que se põe
em evidência, sob a denominação canónica de "subjetividade versus objetividade", é,
por um lado, o envolvimento pessoal do historiador no processo de conhecimento e,
por outro lado, seu envolvimento social e, mais especificamen te, institucional. O duplo
envolvimento do historiador constitui um simples corolário da dimensão de inter-
subjetividade do conhecimento histórico enquanto domínio do conhecimento de ou-
trem; mais exatamente, os homens do passado acumulam a dupla alteridade do alheio
e do ser passado, ao que Dilthey acrescenta a alteridade suplementar que a mediação
pela inscrição constitui, ao es pecificar a interpretação entre as modalidades da com-
preensão: alteridade do alheio, alteridade das coisas passadas, alteridade da inscrição
se conjugam para fixar o conhecimento histórico no âmbito das ciências do espírito. O
a rgumento diltheyano que é também, em parte, o de Max Weber e o de Karl Jaspers,
encontrou eco junto a historiadores profissionais como Raymond Aron e Henri-lrénée
Marrou.
A tese principal de doutorado de Raymond Aron, intitulada Introd11ctio11 à /11 phi-
losophic de l'histoírc, tinha, como subtítulo, "Essai sur les limites de l'objectivité histo-
rique"sh_ Ela foi recebida, muitas vezes, com suspeita, em razão de algumas de suas
fórmulas provocadoras. Assim, a primeira seção dedicada às noções de compreensão
e de significação conclui-se pela "dissolução do objeto" (lntrodu ction .. ., p . 120). A ex-
pressão recobre uma consideração moderada: "Não exis te uma realidade histórica,
já pronta antes da ciência, que conviria simplesmente reproduzir com fidelidade. A
realidade histórica, por ser humana, é ambígua e inesgotável". Da mesma forma que
o envolvimento pessoal, social e institucional do historiador, na compreensão, é enfa-
tizado, "o esforço necessário de desprendimento rumo à objetividade" (ibid.) é levado
em consideração: "Essa dialética do d esprendimento e da apropriação tende a consa-
grar bem menos a incerteza da interpretação do que a liberdade do espírito (da qual o
historiador participa como criador), e revela o fim autêntico da ciência histórica. Esta,
corno toda reflexão, é, por assim dizer, tanto prática como teórica" (op. cit., p . 121). Na
conclusão da segunda seção, ao voltar aos " limites da compreensão" (op. cit., p. 153),

mcira edição (1955), trata-se d a "verdade limitada d a história dos his toriadores" (p. 10); mas cm
na ~wrspectiva de uma" hi s tória filosófica da filosofia " que, naquela época, era o objeto d e meus
ensinamentos. A polaridade ent re a crítica do con hecimento histórico e um sentido escatológi-
co da unidade indefinidamente adiada do verdadeiro garantia a dinâ mica dessa coletâ nea d e
ensaios, que fazia a lte rnar a "preocupação epistemol ógica" e a "preoc upação ético-cultura l". A
implicação cm então meta-hi stórica, a saber, "a corage m de fa zer his tó ri.i da filosofia sem filosofia
da hi stória" (ibid ., p. 11). Na verdade, apenas o primeiro ensaio (1952), "Objectivité et s ubjectivi té
c n histoire" (ibid., pp. 25-48), rt>spondia ao título ambicioso da primeira pa rte do livro : "Yé rité
d ans la connil iss.i nce de l' hi stoi rc".
56 l{a y mond Aron, /11trod11ctio11 ii la plli/osophic de /'llistoirc, l'ari s, C allima rd , 1938. /\ tese complemcn-
t.ir se int itu lava La pliilosoplric critique de /'lristoin'. Fssai s11r 1111c théorie t1/lc1111111de de J'lristoire, Paris,
Yrin, 1938. Devo também a Ray mond Aron a expressão "filosofia c rítica da hist(nia". Pode-sl' ler
uma nova t_•diçiio revi s ta L' a notada por Sylvic Mesure, Paris, Ga llim a rd, 1986.
1\ CO:\Dl(,,\(l IIIST (l "IC;\

Raymond Aron se esforça por ultrapassar a accpção do termo "compreensão" tal qual
acredita encontrá-la em Jaspers e Weber. Ele busca um equilíbrio entre duas outras
significaçôes, contrárias e complementares, da mesma expressão. De um lado, a com-
preensão implica "uma objetivação dos fatos psíquicos"; ora, "que sacrifícios com-
porta esta objetivação?" (ibid.) . De outro lado, a compreensão "sempre compromete
o intérprete. Este nunca é comparável a um físico, continua a ser homem e sábio ao
mesmo tempo. Ele não quer se tornar um sábio puro, \ 'isto que a compreensão, além
do saber, visa à apropriação do passado" (op. cit., p . 15-1). A ênfase recai, então, so-
bre a "objetivação imperfeita", ligada às condições concretas da "comunicação das
consciências" (il1id.). A última seção, intitulada "Histoire et \'érité", acarreta a reflexão
sobre os limites do relativismo histórico cm direção a uma ontologia do ser histórico,
que conduziria, além do quadro traçado, a uma concepção filosófica da existência. Na
verdade, os limites da objetividade são aqueles de um discurso científico cm relação
a uma consideração filosófica: "L'homme cst historique", última parte da obra, não
pára de martelar tal afirmação. Não é indiferente, para a seqüência das nossas consi-
derações, que a última ênfase seja dada à desfatalização da necessidade histórica cm
nome da liberdade sempre em prnjeto: "A história é livre porque não é escrita ante-
cipadamente, nem determinada como uma natureza ou urna fatalidade, imprevisível
como o homem para si mesmo" (op. cit., p. 323). Em última instância, é o homem da
decisão, o cidadão - envolvido ou espectador descomprometido - que pronuncia,
em caráter retrospectivo, a conclusão d e um liwo dedicado aos limites da objetividade
histórica: "A existência humana é dialética, ou seja, dramática, visto que ela age num
mundo incoerente, compromete-se apesar da duração, busca uma verdade que lhe
foge, com a única garantia de urna ciência fragmentária para uma re flexão formal "
(op. cit., p. 350).
A obra paralela de Henri-Irénée Marrou, De la co111111issa11cc '1istoriquc ª7 , constituía,
logo após a tese de Raymond Arlm, a única tentativa de reflexão sobre a história ar-
riscada por um historiador profissional antes de Le Roy Ladurie, em Les p11ys1111s de
Lm1g11cdoc, e de Paul Vcyne em Co11I111c11t 011 écrit l'1zistoirc (1972) e, evidentemente,
antes de Michel de Certeau (pelo menos nas primeiras edições). Definido como "o
conhecimento do passado humano" (De la co111wiss1111cc /zistoriquc, p. 29), mais preci-
samente "conhecimento cientificamente elaborado do passado" (ihid.) , o conhecimento
histórico implica a correlação entre subjeti,·idade e objeti,·idade, na medida em que
relaciona, por iniciativa do historiador, o passado dos homens de outrora e o presente
dos homens de hoje . A intervenção do histori ador não é parasitária, m as consti tutiva
do modo do conhecimento histórico. Propósito eminentemente antipositivista, cujo
ah·o é Seignobos, com sua fórmula quiç,í arbitrariamente isolada:" A histó ria é apenas
a ordenação dos documentos" (op. cit., p. 56). O historiador, protesta Marrou, é, em
primeiro lugar, aquele que questiona os documentos. Sua arte nasce como he rmenê u-

='1 Op. o/. O I i,-ro, publ ic,1do em 1':l:'ill, foi prL'cl'd idu por cerc,1 dl' Lkz <1rt igns, c uj,1 1ist,1 SL' L'ncon tr,1 nas
pp. 23 -24

{;> 349 e:;,


A MFM(lRI ;\, A HIST( rnl ;\, O FS(JUITIMFVH)

tica. Ela continua como compreensão, que é <..'sscncialrncntc a interpretação de signos.


Visa ao "encontro do outro", à "reciprocidade das consciências". A compreensão de
outrem torna-se, assim, a estrela-guia do historiador, ao preço d e uma cpoklzt' do ego,
num verdadeiro esquecimento de si. Nesse sentido, a implicação subjetiva constitui,
simultaneamente, a condição e o limite do conhecimento histórico. A nota pessoal de
Marrou, cm relação a Dilthey e a Aron, permanece a ênfase dada à amizade que nos
torna "conaturais a outrem" (op. cit., p. 93). Não há verdade sem amizade. Reconhe-
ce-se a marca agostiniana impressa no talento de um grnnde historiador. A filosofia
crítica da história descortina, assim, uma ética do conhecimento histórico:;;;.
Se a obra de Marrou nem sempre foi bem acolhida ("Por favor, não valorizemos
excessivamente o papel do historiador", protestou Braudel), talvez seja porque a crí-
tica d a objetividade não estava suficientemente respaldada por uma crítica paralela
da subjetividade: não bas ta evocar, em termos gerais, uma epokl,e do ego, um esqueci-
mento de si, é preciso dar a conhecer as operaçües subjetivas precisas, suscetíveis de
definir o que cu propunha chamar, outrora, de "boa subjetividade""4 , para distinguir o
ego de busca de um ego patético.
A história do contemporâneo, chamada também de história do tempo presente,
constitui um observatório notável para medir as dificuldades que s urgem entre a inter-
pretação e a busca da verdade na história. Essas dificuldades não se devem principal-
mente à inevitável intervenção da subjetividade da história, mas à posição temporal
entre o momento do aconteci mento e o da narrativa que o relata. Com essa espécie de
história contemporânea, o trabalho nos arquivos continua sendo ainda confrontado
com o testemunho dos vivos, que são, muitas vezes, sobreviventes do acontecimento
considerado. É essa situação insólita que René Rémond relata cm sua "lntroduction"
a Notre siccle, 1918-198860 • A história desse período recente, diz ele, apresenta, em re-
lação ao resto da história, uma dupla singularidade, decorrente da especificidade d e
seu objeto: a primeira é a contemporaneidade, que resulta do fato de que "todos os
momentos que compõem essa história foram tes temunhados por homens e mulheres
que ainda vivem entre nós" (Notre siccle, p. 7); a questão é, então, saber se é possível
"escrever a história de seu tempo sem confundir os dois papéis, cuja distinção é im-
portante manter: o de memorialista e o de historiador" (op. cit., p. 8). A segunda é o
inacabamento do período estudado: não há nenhum termo final de onde se abarcaria

58 No apêndice redigido em 1975, Marrou saúda com considcrnçiio a obra de Certeau L'écrit1m.' de
/'histoirc e se confronta, pelo lado da escolíl cética, com as desconfianças de Roland Barthcs expres-
Si1 S no temil do "efeito do real ".

59 "A s ubjetividade d o historiad or, como todil s ubjetiv idade científica, represe ntil a vitória de uma
boa s ubjetividade sobre um a má subjetividade" (Hisloirc ct Wri/1;, op. cif ., p. 36). "A profissiio de
historiador faz a história l' o hi stor iador" (ihid., p. 37). Eu enfa ti zava entiio, s ucessiva mente, o
julgamento de importância, o pertcncimcnto do his toriador à mes m a história, à mesma humani-
dade que os homens do passado, a tra nsferência para urna outra subjetividade adotada como urna
L'spécie de perspectiva.
60 Noln> sihlc, 19'/8 -1 988, por Re né Rémond (em colaboraçiio com J.-F. Sirinclli), ú.ltimo volume da
Histoirc ifr Fmncc, orga nizada por )L'an Favier, Pari s, Fayard, 1988.
,\ (._(l'\ IJl (,. \ll lll "illl<IC .\

uma fa ixa de duração em s ua sig nificação última; ao desmen tido da primeira ,·e r-
são pe los contempo râneos pod e acrescentar-se o dos a co ntecimentos futuros. Na fal ta
d essa p e rspecti,·a, a principa l d ificul dade d<1 história de u m tempo dcmàsiad ame nte
próximo é a "de estabe lecer um a hierarquia de importfüK ia e d e avaliar homens e
acontecimentos" (op. cit. , p. 11). O ra, a noção de importância é aque la sobre a qual se
rec ruzam, afirmamos, a interpre tação e a objetivid ad e. A d ificuld ade referente à fo r-
mação d o julgam ento é o coro hí rio d aquela que a feta a perspecti vação. N a , -crd ade,
o histori ador pod e r,í inscrever, e1T1 benefício d e su a d efesa, um resultado irn·olun t,1-
rio de sua empreitada: ele poderá "a m ainar os julgame ntos ma is severos, mati za r as
a\·alic1çôes mais ad mirati vas" (op. t"it., p. 12). Não se p oderá, e ntão, cen sura r-lhe essa
" red ução d os descompassos" (ibid.)?
As dific uldades com as qua is se confronta o histo ria dor do passad o recente rec1\·i-
\·am as interrogações anterio res concern entes ao traba lho de n1emó ria e, ma is ainda,
ao traba lho de luto . Tudo acontece como se uma história p róx ima d e mais impedisse a
memória-re le mbrança d e se despregar da me mória-retenção e, simplesmente, o pas-
sado d e se sep a ra r do p resen te, o d ecorrido não exercend o ma is a fun ção d e m ed iação
d o "não .. . mais" em re lação ao "ter sido" . N u ma o u tra ling uagem , que será a nossa
ma is adiante, a d ifi culdade, aqui, é a d e e ri g ir sepultura e túm u lo e m fa vor d os mortos
de on tem"1•
Falar da interpreta ção, e m termos de o peração, é tratá- la co mo um comple xo de
a tos d e ling uagem - de enunciações - inco rporado aos e nunciados objeti\'antes do
discurso histó rico. Nesse com p lexo, vá rios compo ne ntes podem ser discernidos: pri-
meira mente, a preocupação em tornar mais claro, explicita r, desd obrar um conju nto
d e significações considera das obscuras, \'isando a uma melhor compreensão pelo in-
terlocutor. A seguir, o reconhecimento do fato de qu e sempre é possível interpretar
de ou tra form a o mesmo com plexo e, p o rtanto, a ad mi ssão d e um grau ine\'itável de
con trovérsia, de conflito entre interpretaçôes rivais; cm segui da, a pre tensão d e d otar a
interpretação ass umi <.f. a com a rgu mentos p lausíveis, p ossi\·elme nte prováveis, subme-
tidos à p arte ad versa; finà lmente, a con fi ssão de que, por trás da interp re tação, su bsis te
sem p re um fundo impenetrável, op aco, inesgot,ível de mo ti\·açcies pessoais e cul tu-
ra is, d o qua l o s ujeito ja ma is acabo u de dar conta. Nesse complexo de componentes,
a re flexão progrid e da enu nciação, <.'. nq uanto a to d e ling uagem , ao enu nciad o r, como

bl 1-kn ry Ro usso ac r vscen ta cn n fi rm,iç,'iu l' com p lemen tn .'1 an ,í I ist' de R. Rénrnnd e m /.a l /a11 / i~,· d11
1111,,1;,op. t'II., cap. 2, " P(lUr u ne histuirL' du k mp s prC>scnt ", pp. ,4lJ-Y3. N,1 este ira d e l\l arc Bloch,
ele lcm b r,1 que a d ialt.'.•tica entre o p.issado e o presL·ntc !'.• n in stituti\ a da proíiss5o do historiador,
m<1 s quL' "a anál iSl' do prcsL·nte ~wrmik, t'lll SL'nt id n inverso, cnmpn.'L'ndcr o p,1 ss,1do" (i/•id .. p. 5-n .
\l.1rc Bloch 11 /io ,1 r riscou -sl' ,1 eSUl'\·er C{t n111g,· INfáit c sob 1) ckito do ,icon tecimentnJ Com ,1
hi s tó ria do IL'mpP prl'sente rl'torn.im iort.iil'c id ()s 11 p11l ít ico L' n ,icontec iml'nto. 1\ objl'ç,10 d ,1 f.ilt,1
d l' rL·c uo ,1d nlg.i ndn pnr um p razo de r igPr SL· ri ,1 ,1pc11a s, 11,1 m,lÍ1)rÍ <1 d ,1s \'L'ZL'S, u m ,í libi idc oló -
gicl) ,·a r iiÍ\'l'I sl'g u ndo o que l'St,í cm jogli; ,) dl's.iti o lll L'l"l'CL'ri,1 ser l'llfrt•ntad o c m lwnciício d l'
um d i;í logo L'ntrl', inis, e ntre contL'mpn r.'í ncns, l' dL' u ma i tltl'f'l'llg,iç,'io q ul' tra ta prl'c isamL·nte d,1
fro ntl'ir,1 indckrmina d a que sq s,1 1-.1 o p,1ss,1d1) d 1) p rl'SL'nll' l', ,ifin,11, o ,irquivo d o tl'stl'm u n h n. É
lll'SS,l frn n tcir,1 q u L' Sl' dL'c idc, fi n,1lnlL' ntl', .i rL'l11.l lll' llCia d n p,1ss,1 dll n,1~ rt-prcscntaçúL'S cokti\·,1s;
(' nc l,1 t.i m b.:•111 q u l' Pss,1 obsess:io dL' \L' s1·r trazid-i ;1 luz L' L' \1irc ih1 d,1.
/\ MEM(W I /\ , /\ HIST(lRI:\, O ESQUJ:Cl\11·: N TO

o quem dos atos de interpretação. É esse complexo operatório que pode constituir a
correlação entre vertente subjeti va e vertente objetiva do conhecimento histórico.
Essa correlação pode ser detectada em cada um dos estágios da operação historio-
grá fi ca que temos percorrido. De fato, a interpretação opera desde o estágio da consul-
ta aos arquivos, e até mesmo bem antes, desde o estágio de sua cons tituição. Uma esco-
lha presidiu o estabelecimento desses arquivos: como Collingwood gostava de dizer,
"Evcrytlzing in the 7.uorld is patcntial evide11ccfor any subject wlwtcver" (citado por Marrou,
De ln co11naissa11cc hi:;toriq11c, p. 289). Por mais liberal que seja a operação de reunião e
de preservação dos rastros de s ua própria ati vidad e que uma instituição decida preser-
var, ela é inelutavelmente seleti va; nem todos os rastros se transformam em arquivos;
um arquivo exaustivo é impensável, e nem todos os testemunhos fazem arquivosh2 . Se
agora passamos d o estágio da instituição para o da consulta por d eterminado historia-
dor, novas dificuldades de interpretação se apresentam: por mais limitados que sejam
os arqui vos cm termos de número de entradas, eles constituem, à primeira vista, um
mundo ilimitado, ou até mesmo um verdadeiro caos. Um novo fator de seleção entra
em cena com o jogo das questões que guia a consulta dos arquivos. A esse respeito,
Paul Vcyne falou do "prolongamento do questionário"; o questionário tampouco é in-
finito, e a regra de seleção das perguntas não é transparente para o espírito. Por que se
interessar mais pela história grega do que pela história medieval? A pergunta continua
em grande parte sem resposta clara e sem réplica. Quanto à crítica dos testemunhos
que constituem o núcleo duro da fase documental, ela depende certamente da lógica
do provável evocada há pouco; mas uma crise de credibilidade não pode ser totalmen-
te evi tad a no que diz respeito à confiabilidade dos testemunhos discordantes; como
dosar a confiança e a desconfiança em relação à palavra de o utrem, cujo rastro está no
documento? O trabalho de esclarecimento e de arg umentação implicado na crítica d o
testemunho não se fa z sem correr os riscos próprios d e uma disciplina d efinida por
Cario Ginzburg como o "paradigma indiciário" . Nesse sen tido, a noção de prova do-
cumental deve ser invocada com moderação; cm comparação com os estágios ulterio-
res da operação historiográfica, e em consideração às permissões e exigências de uma
lógica probabilista, a prova documental é aq uilo que, em história, se aproxima mais do
critério popperiano de verificação e refutação. Sob a égide d e um amplo acordo entre
especia listas, pode-se dizer que uma interpretação factual foi verificada no sentido de
que não foi refutada n o estado presente d a documentação acessível. A esse respeito,
é importante preservar a relativa autonomia do est,ígio d ocumenta l no plano da dis-
cussão suscitada pelas teses n egacionistas concernentes à Shoah. Os fa tos alegados não
são, evidentemente, fatos brutos, e muito menos o dublê dos próprios acontecimentos;
eles continuam a ser de natureza proposicional: o fato de que ... É precisamente nessa
cond ição que eles são s uscetíveis de serem patenteados.
A discussão sobre a prova documental conduz assim , na turalmente, à questão da
relação entre intcrpretJção e explicação/ compreensão. É nesse n ível que a dicotomia

62 C f. a scg und i:1 parte, c.ip. 1.


,\ ((l\;J)J<.,' .\ll fl! ST(lRJ<. ,\

pretendida entre os dois termos é mais enganosa. A interpretação é um con1ponente


da explicação: seu contraponto "subjetin)" , no sentido que dissemos. Discerne-se nela,
primeiramente, a preocupação de esclarecimento, colocada à frente das operaçôes de
interpretação; a operação c1 ser discernida, nesse plano, concerne à imbricação no pla -
no da linguagem comum dos usos logica mente heterogêneos do conector sin tático
"porque". Alguns estão próximos do qu e é tido como conexão ca usal ou regularidade
legal no campo das ciências da natureza; outros merecem ser chamados de expli cações
por razões. Essa justaposição indiscriminada gerou soluçôes unilaterais em termos de
" ou ... ou ... ": de um lado, pelos defensores do princípio da unidade da ciência na
época do positi,·isrno lógico, do outro, pelos advogados da distinção entre ciência do
espírito e ciências da natureza na esteira de Wilhelm Dilthey; a defesa de um modelo
explicitamente misto, em Max Weber ou Henrik von Wright''\ equivale ao esclareci-
mento no sentido de explicitação, de d esdobramento. Pode-se mostrnr que a ca paci-
dade humana de agir nos sistemas din ftm icos fechados implica a recorrência a tais
modelos mistos de explicação. Permanecem relativame nte opacas as motivações pes-
soais que presidem a preferência conced ida a esse ou àq uell' modo explicati,·o. Nesse
sentido, a discussão que trata dos jogos de escalas é especialmente eloqüente: por que
preferir a abordagem micro-his tórica? Por que se interessar por movimentos his tóricos
que exigem essa abordagem? Por que se interessa r, preferencialmente, pela negocia -
ção em situações de incerteza? Por c1rgumentos justificativos em situações de conflito?
Aqui, a motivação atinge a articulação subtcrrftnea entre o presente do historiador e o
passado dos acontecimentos relatados. Ora, essa articulação niío é integralmente clara
a si mesma. Le\'ando-se e m conta o lugar que a questão dos jogos de escalas ocupa na
história das representações, é a conexão sutil entre moti,,ação pessoal e argumentação
pública que se \'ê implicada na correlação entre a interpretação (subjetiva) e a explica-
ção/ compreensão (objeti,·a).
Isso posto, não há mais necessidade de se deter no caso da representação pela
escrita. Conquanto, nesse estéÍgio, o perigo do desconhecimento seja ma ior quanto à
natureza dialética da correlação entre objetividade e subjeti,·idade, como o mostra o
uso freq üentemente indiferenciado dos te rmos " representação" e " interpretação". A
substituição de um tern,o pelo outro não ocorre sem razão, sabendo-se tudo o que se
pôde di zer sobre o papel do narrativo, do retó rico e do imaginéÍrio no plano da escri-
ta . No que diz respeito ao narrati\'o, ninguém ignora que se pode sempre contar de
outra maneira, haja ,·ista o canitcr seletivo de toda composição cm intri ga; e pode-se
jogar com os tipos de intrigas e os outros estratagemas retóricos; e pode-se escolh er
mostrar ma is do que narrar. Tudo isso é muito conhecido. As scqüências ininterruptas
de reescritas, em especial no plano das narrati vas de grande alcance, tes temunham a
dinâmica indomável do trabalho de escrita no qual se exprimem, simultaneamente, o

63 \la x Weber, lt"1>111>11IÍ1' e/ ~oâa1•, op. ót ., §§ 1-:\. H. \on Wright, l:.r11la11,1tio11 ,111d U11clcr~/1111di11g, Lnn -
dres, RoutlL'dgc ,1 nd Keg,111 l'aul, 1971. O autor ddl'ndl' um modclu mistti que une segnwntos cc1u-
s,1is e segme n to:- tl'klllúgicos implic,, dlls, conjunt,1nwn ll', pL'l,1 inll'rH·nçc'i11 dt' agentes humanos
tantn no plano soc i,1 1 qu,rnto físi co .

,z. 353 <Z•


1\ 'vtLM ( WJA, i\ HI ST(l J{ J;\, () LS(JU J:CJ Ml :N J'U

gênio do escritor e o talento do artesão. Todavia, identificar interpretação e represen-


tação sem precaução nos priva do instrumento distinto da análise, pois a interpretação
já está operando nos outros estágios da atividade historiográfica. Além disso, o trata-
mento d esses dois vocábulos como simples sinônimos consagra a tendência criticável
de separar o estrato representativo das outras camadas do discurso histórico, no qual a
dialética entre interpretação e argumentação é mais fácil de ser decifrada. É a ope ração
historiog ráfica, e m todo o seu curso e cm suas múltiplas ramificações, que exi be a cor-
rclação e ntre subjetividade e objetividade cm história. Se esse é mesmo o caso, talvez
seja preciso renunciar a essa formulação ambígua e falar francamente da correlação
entre inte rpretação e verdade em história.
Essa implicação da interpre tação em todas as fa ses da operação historiogrMica co-
manda finalmente o status da verdade cm história.
Deve-se a Jacques Ranciere, em Les No111s de f'ltistoirf. Essai de poétiquc du srruoir(' 1,
uma sistematização dos resultados de s uas própria s reflexões relativas a esse estatuto.
Ele a coloca sob o signo da poética, em algum lugar no ponto de articulação entre o
que chamo de herme nêutica crítica e hermenêutica ontológica''r,. Essencialmente, trata-
se d e uma reflexão d e segundo grau sobre a "nova história " de Braudcl, mas ta mbém
uma evocação d e Michelet antes dos A1111nlcs, e de Certeau depois. Trata-se de uma
poética, pois ela lida o tempo todo com a polissemia das palavras, a começar p ela ho-
monímia do termo " história" que nos acompanhou incessa ntemente e, de modo mais
geral, com a impossibilidade de fixar o lugar da história no discurso: entre a ciê ncia e
a literatura, entre a explicação erudita e a ficção mentirosa, entre a história-ciência e a
história-narrati va . A impossibilidade para a his tória, segundo os A1rnnlcs, parti cula r-
mente, de elevar-se ao patamar da cicntificidade exigido d e uma ciência do social é, a
esse respeito, exemplar. f)orém, como ultrapassa r o "nem ... nem ... " que resultaria de
uma si mples recusa de alternativa? A resposta específica , propõe Rancie re, "pertence
a uma elaboração poética do objeto e da língua do saber" (Lcs Noms de l 'ltistoire, p. 19).
É o elo entre o objeto e a língua que impüe o termo "poética": é "a língua dos histo-
riadores" (ibid.) que "marca a especificidade própria da ciência histórica" (ibid.). Em
relação à amplitude aqui atribuída à problemMica da interpretação nos três níveis do
arquivo, da expliG1ção / compreensão e da representação, a poé tica d e Rancicre parece
redu zida à fase de representação. Na verdade, não é bem assim. A questão dos nomes
remonta, de certo modo, da representação até o primeiro ateliê da his tória, na medida
cm que, como foi aqui afirmado, a historiografia é, do princípio ao fim, escrita; os tes-
temunhos escritos e todos os monumentos / documentos estão relacionados a denomi-
nações, o que o historiador profissional e ncontra a título de nomenclaturas e de outros
questionários. ]é1 nos arquivos, "palavras captad as" 66 ped e m para ser libertadas. E a

64 Jacq ues Ra ncie re, Lc;; No111s de /'/1istoire. Essai de podiq11c d11 ;;auoir, Paris, Éd . du Sl'u il, col. " La Li-
brairie du xx,· s ii:•cle", 1992.
6S No qm' me di z respeito, denomine i "poétirn d,1 na rrat iva" ,1 réplica do s,iber n,irrntivo às aporias
da te m pora lidad e. Cf. ·1c•111ps d t,à"it, t. 111, op. cit., seg unda parte.
(,6 A rlct te Fargcs, Le Co ,it de f'orcftiN, op. cit .

.z. 354 .z.


pergunta se impõe: ser,i isso narrativa ou ciência? Ou algum discurso instável en tre as
duas? Ranciere vê o discurso histórico enredado entre a inadequação da narrati,·a e da
ciência e a extinção dessa inadequação, entre uma exigência e sua impossibil idade''~.
O modo de verdade do saber histórico consiste nesse jogo entre essa indeterminação
e sua supressão'''.
Para orientar positivamente o procedimento, Ranciere recorreu ao concei to de pac-
to, que me ocorreu também testar; ele propõe não urn duplo, mas um triplo contrato:
científico, que implica a ordem oculta das leis e das estruturas; narrativo, que dá legi-
bilidade a essa ordem; político, que \'Íncula a invisibilidade da ordem e a legibilidade
da narrativa "às coerções contraditórias da idade das massas" (op. cít. , p. 2-l.)"".
Rancierc escolheu, como pedra de toque de sua poética, a operação da linguagem
pela qual Braudel, no final de La MMítcrra11à' ... , eleva a narrativa dos acontecimentos
da morte de Filipe li à categoria de emblema da morte da figura real em seu retra-
to de majestade. Toda a problemática da representação histórica encontra-se assim
mobilizada, mas também a de seu lugar na grande obra dirigida contra o primado
dos acontecimentos. Este se encontra , assim, simultaneamente destituído e restituído,
sob pena de ver a empreitada histórica dissolvida na científicidade positiva. Ranciere
completa minha própria análise da estrutur,1 narrnti\·a dissimulada do conjunto cb
obra com um exame do uso gramatical dos tempos verbais, à luz da distinção recebida
de Berwcniste entre o tempo da narrati,·a que faz sua própria narração e o tempo do
discurso no qual o locutor se implica. A distinção talvez não seja tão operatória quanto
se desejaria no caso do texto braudeliano. A conjunção entre a função régia e o nome
próprio do rei 1T1orto comprova, em compensação, o encontro entre poética e política;
a deslegitimaç,i.o dos reis no plano de fundo da morte desse rei anuncia , na ,-crdade,
a ,1scensão simultânea da política republicana e do discurso histórico da legitimaç,i.o,
aberta ou té'icita, desse regime élO mesmo tempo político e poético~'1•
O exame das formas que assun1e a arti culação entre o saber histórico e o par das
figuras e das palanas continua além da reflexão sobre o rei morto e a deslegitimação
dos reis. A história sempre fez falar n,10 somente os mortos, mas todos os prot,1gonistas
silenciosos. Nesse sentido, ela ratifica "o excesso das palanas" (op. cít., p. 53) cm ,·ista
da apropriação da pala,·ra do outro; por isso, a contnwérsia é inesgot,h·cl entre as lei-

67 "f;;Sl' e s tudo pr()LTdc do que decídí denom í 11<1r pol'líca do s,1bl'r: l'Studo d() conjunto dos procl'di-
nwntos líterári()s pl'los quais um discurS() Sl' subtraí Zt líkt"<1tura , s e ,itr íbui um l'St,1 t uto ck c it•ncia
L' o sígnifirn" (/ .e~ 11 rn11 , dl' /'l,istoirl', ºF cit , p. 21 ). A p,1lavra "s<1bl'r l'nf.1ti z a a ,HnplítullL' p()tl'ncial
0

d,1 nper,1ção rl'lll'\.Í\ a.


68 O indecídín' I lk que i'1L1reí no final do capítulo 2 cntrL' llll'llllír·ía L' hístóri.i é parentl' ckssa índc-
tcrminaç<'Hi poéti<.:,1 lfo " príndpío de índiscl'rnibiliLfade" (i/, id., p . 3:'i ).
69 Encontrei nbliqu<1mentc L'Ssa tl'rceir,1 di11w11s,1ll, Sl' ͪ por nc.1 s í,10 do rL'tr,ito do Tl'Í L' do di scurs()
de l'l()gío da g randcz,1 {sl'gund,1 partl', c,1p ..1, pp. TN-358) , SL'jd por L'l',bi,10 dos grande s c ríml's dl)
Sl' etdn XX, quL' ÍÍZL'r,1rn surgir, rw prnsct' n io, a iígura do cid,1d,10 co rnn um tl'rcciro, e ntre () ju í/. l '
() histori,1dor.
7ll O discurso sobre () "rcí rnnrto" l.'nscja uma t)Utr,1 problcrnMic.1 , ,1 s,1b l'r, ,1 morte L'lll hístt.)rí,1; no
prtÍ\.Ítllo capítulL), \Olt<1rei Zt contribuição dL· I,,rncii:,rc para L'SSL' dl'batl'.
A Ml:MÓRIA, i\ IIISHlRIA, O FSQUFCIMFNTO

turas, por exemplo, da Revolução Francesa, pois a história é fadada ao revisionismo7 1•


Aqui, as palavras demonstram ser, mais que instrumentos de classificação, meios de
denominação. Assim, "nobre", "social", "ordem", "classe", que não sabemos se são
nomes próprios ou impróprios; a ilusão retrospectiva é o preço pago pela ideologia
dos atores. Esse processo da nomeação é particularmente perturbador, em se tratan-
do das "narrativas fundadoras" (op. cit., p. 89), especialmente aquelas que deram um
nome ao que sucedeu aos reis: a França, a p,Hria, a nação, essas "abstrações personi-
ficadas". Acontecimento e nome andam juntos na encenação. Quem faz ver, faz falar.
Essa outorga da palavra é particularmente inelutável em se tratando dos "pobres",
esses anônimos, ainda que queixas e autos venham apoiá-la. O discurso substituído
é essencialmente antimimético; ele não existe, produz algo oculto: ele diz o que esses
outros poderiam dizer. Então, na perspectiva do debate, a questão é saber se as massas
encontraram, na idade que é a delas, um discurso apropriado, entre a lenda e o discur-
so científico. Nessa circunstância, o que ocorre com o triplo contrato do historiador?
Urna "história herética" (op. cit., p. 177)?

71 O revisionismo, L'm geral, resume-se a um,i simples formuhi: "não aconteceu nada daquilo que foi
dito" (Lcs 110111, de /'l,i~toirc, op. cit., p. 78). Toda a nossa problemática da representância é aqui posta
à prova.
2
História e Tempo

Nota de orientação

capítulo 1111teriorfiii dedicado à ucrtc11te crítica dn licm1c11t' 11fica, a crítica co11sisfi11 -


do, por u111 l11do, 111111u1 i111posiç1fo de limites n todn prcfc11siio totalizadorn e, por outro

º lado, 111111111 cxplornçiio dos títulos de ·ualidade de 11111a historiografia co11scie11 tc de


suas li111it11çiics. E111 sua _tón,m 11cg11th. 1a, 11 crífirn foi s11ccssiu11111enfe dirigida contm o c111111 -
ci11do_tiw1co da hubri s do snlicr absoluto da " pníprin História ", e contra asfor111ns di~fi7rç11d11 s,
e gcml111cntc 11 iio rcco11/iccidns, dn 11u's11111 hubris; c111 sua for,1111 positiua, ela fr,z ,011 e111 co11si-
dernçiio algumas das 111ais ft:czmdas oposiç()cs infernas do s11bcr de si dn /Jisfôria , co1110 o pnr
fom111do pelo j11i: e o '1isfori11dor 011, ainda, a tcnsiio entre interpret11ç110 e olijeti-uidadc 110 plano
da l1istôria cícnt(fica.
O capítlllo qlle se segue marca a passagc111 da /1cm1e11fotirn crítica parn 1111111 '1em1e11(' llfirn
011to!ôgica, dirigida à condiçiio histôrirn c1u71w11to 111odo de ser i11cxcedíuc/ 1
• O tcn110 " '1cm1c-
nL'llfic11" co11fi1w11 n ser cons iderado 1111111 sentido de teoria d11 i11tcrprctaçiio, tal comofoi dcter-
111i11ado 1u1 1ílti111i1 scçiio do capítulo a11fcrior. Q111111to ao z1crlio s11bst1111timdo "ser", ao qual o
fcr1110 " '1cn11t:11t~11fica " foi associado, pcrn1t111ccc aberto 11 111110 pl11mlidadc de accpçôcs, co1110 st!
lê 1111 _{twwsa dcclamçiio de Aristóteles 11a Metafísica, E, 2: ''O ser se diz de mlÍlfiplas 111a11ci-
ms " . E111 outro lugar, usei esta ca11ç110 11ristotdica co1110 argu111c11to para explorar os rcc11rsos
da i11terprctaçiio que prh 1ilcgia, c.>11trc as ,frccrsas accpçiks, a do ser co1110 nfo e co1110 pofL•11cia
110 p/11110 de 11111a 1111fropologin filosL~ficn : é dessa fimna que propo11!10, 110 decorrer do presente
rnpítulo, considerar o "poder.fa zer mc111ôria " co1110 11111 dos poderes - assi111 como o podcrfalar,
o poder ag ir, o poder co11far, o poder ser i111p11táz el aos próprios atos 1111 co11diç110 de seu l:'er-
1

dadciro autor. Nada 11111is será dito solirc o ser e11q111mfo ser. E111 co111pc11saçi'io, co11sidcrar-sc-á
co1110 legíti111a toda te11t11fiut1 de caracferi:ar o 111odo do ser que so111os , a cada ve:, e111 oposição 110
1110do de ser de outros sendo que 11110 ll(ÍS, i11dcpc11de11fe111e11te, c111 /Í{ti111a i 11stfi nci11, da rc/açi'io
desse ser com o ser. Ao adota r essa 1111111cim de 11/iordar o prohle11111, sit110-111c volcns nolens 1111S

François üosse s itua o quarto pL'rcurso dl' seu livro l .'llislt>irc, op. cit., St) b o s igno das "rupturas
do tempo" (pp. 9h-136) . O ilutor condu z o ll'itor de Aristútelcs e dl' S.:in to Agostinho, passando por
Husserl e Heidegger, até os grandes questionamentos si mboli zados pL'los nomes de \V. Lknja min,
F N il'tzsc he, N . Elias e, e m última in ~tânci,1, l'vt. Foucault.
/\ MEM(ll{I/\ , /\ II IST()R JA , O i :SQUl·:Cl\'1F"iTO

vizinhanças de Heidegger, cuja leitura escolhi limitar a Ser e Tempo, u111 dos grandes li'uros
do século XX 2 . Se aceito nfôn11u/a declamtim co111 a qual se i11ici11 este livro: "Hoje, n questão
do ser cniu 110 esqucci111c11to, muito embora nosso tempo considere 11111 progresso reafirmar n
'111etnfísicn'", é exatamente, co1110 foi pedido, n fi111 de i11scrcz 1er 111i11ha "pesquisa" 11n scqiic~ncin
dn de Platiio e de Aristóteles, como comecei n fazer desde ns pri111cims pági11as da presente obra.
Essa obediência à ohjurgação liminar de Ser e Tempo, que convida 11 "111na repetição da ques-
tão do sentido do ser" (p. 3), 11ão i111pcdirá que este capítulo seja tratado como 11111 debate com
Heidegger, o que dará a esta disrnssão 11111 tom basta11tc diferente daquele, de c11111plicidade mais
que de confro11taçi'ío, que prevalecerá 110 cnpítulo seguinte, sobre o csqueci111e11to, na discussão
de Matéria e Memória, de Henri Bergson.
Eis nlg111nas co11sidcmçi'ics que me 11umtê111 nn proxi111idadc das análises de Ser e Tempo e,
ao 111cs1110 tempo, me ll'7.1a111 progressivamente à controvérsia co111 elas.
Pri111cira111entc, citnrci a tentativn de cfo,tinguir o modo de ::;cr que somos n cada vez, de ou-
tros modos de ser, pela 111a11eira diferente de ser 110 mundo, e a caracterizaçüo global desse modo
de ser pela prcowpnçi'ío considerada c111 suas dcter111inaçi'íes tcôricns, prâtirns e afetivas. Adoto
essa caracterizaçi'ío essencial co111 tn11to mais prazer porque, de certa 11rnncira, a pressupus, ao
dar co1110 referente próximo da historiografia o agir socinl exercido nns situaçéies de incerteza,
sob a li111itaçiio da produçi'ío do ví11rnlo social e das identidades c111 questão. A esse respeito, é
legíti1110 aceitar co1110 conceito mztolôgico de rcfcn'11cia últi111n o Dasein l,eideggcria110, carac-
terizado de mam'ira diferencial pela preornpação, co11sidem11do-sc os J11odos de ser das simples
coisas dnda s (Hcidcgga diz vorhanden, "à 111ão") e 11wnejávcis (zuhanden, "ao alcance da
111110"). A 111etrífora da 111iio sugere LI/li tipo de oposição pressuposta por Kmzt quando proc/a111n
"fins e111 si" as pessoas, estes seres que não de1.1c111 ser trntndos apenas como meios, porque eles
s110 e11q11nnto tais "fins e111 si". A cnractcrizaç110 1110ml L' rcn/111c11tc elevada, por essa fôrnzu -
la, à categoria ontológica. Podemos chamar de existcncinrios as cntcgorias que, à maneira da
A11alíticn do Dasein, precisam o 111odo de ser subjacente no J11odo de apreensão correspo11dentc:
cxish·ncia, resolução, consci[>ncia, si, scr-co111 ... Neste caso, segue-se apenns a orientação de
Aristóteles em Ética a Nicômaco, segundo a qual o 111étodo é dcterlllinado n cadn vez pela
1111t11rcza do sujeito de estudo. Os existc11cirírios s110 esses modos de dcscriç110. Eles são assim
c/1n111ados porque dc/i111itn111 a existfocia, 110 sentido forte da palavra, como 111m1eira de s11rgir
nos cenários do 111u11do. Pressupõe-se que é possível falnr de 111n11cira universal do scr-ho111c111
e111 situaçiic's rnlturais variáveis, co1110 é o cnso, por cxc111plo, qunndo, lendo Tácito, Sltnkespenrc
011 Dostoiévski, dizemos que neles nos rec11co11tra111os. Supiie-se, além disso, que é possível

distinguir o existcncirírio, como rcgi111c npropriado a essa espécie de universalidade q11e Kant
teria co111p11rado, 1111 Crítica do Juízo, à co111u11icn/Jilidadc do j11lgame11to de gosto, entretanto
desprovido de objetividade cognitiva, do existencial co1110 disposição de reccpção, pcssonl ou

2 Martin Heidegger, Scí11 1111d i',cit. A obra foi publicad,1 em 1927 no /ahr/,11ch f iir Pltii110111c11ologil' 1111d
phii110111rnologisc/1c Forsc/11111g de E. Husserl , t. VI li, e simul taneamente em vo lume separado. Estou
me refl'rindo ao texto francês da nona ediçi'\o (1960), tradu z ido por E. Martinea u, Êlrc e/ Te111ps,
l'éiris, Authcnti cn, 1985. A paginação aqui re produ z ida é a da versão a lemã, indicada na margem
da tradução de Martineau.
,\ U l '\ 1) l l, .\ ( l 111 S 1() !{ 1l -\

co1111111itâria, 11a ordc111 tcôrirn, prátirn 011 aft'frrn. Às uc:es, l; difícil 111t111fcr essa disti11çtio, co1110
as co11sidcmçiicsfcitas 11u1is adiante sobre 11 111orte e rJ scr-p11m-11-11wrtc co111prouariio.
Pcm1ito-111cfc1:cr u11rn pri111cira rcssali. 11 11cssc níucl 11111ito gemi de considcmçiio. O disrnr-
1

so licidcggcrirrno do prcornpaçifo 11110 111c parece deixar lugar 11 esse cxistc11ciârio tiio particul11r
da carne, do corpo 1rn11111uio, do corpo 111cu, tal co1110 H11sscrl ti11/za co111cç11do II e/ahmí-lo e111
seus lÍltimos tm/J11!11os 1u1 li11/w da q11i11ta Meditação cartesiana; ele 111c p11recc i111p!íc11do 1111
111edit11çiio so/J/'e a 111ortc, so/1rc o 1111sci111n1to e sohre esse c11trc111cio do i11tcru11 /o entre 11,1sci-
111c11to e 111ortc so/irc o qual Heidegger constrói s1111 idt'i11 da Jzistoricidadc. Ora, essa rntcgoria da
camc i111plic11 certa ultrap11ssagc111 do ahis1110 lôgico cauado pela Jzer111c1u~11tica do Dasein, c11trc
os cxistc11ciários que grm itm11 c111 tomo do 11/Íclco d11 prcoc11p11çiio, e as categorias 1111s ,11111is se
1

art1cula111 os 111odos de ser das coisos co111plct11111c11tc d11d11s e 1111111ciâucis. A c11p11cid11de do Ano-
lítica do Dasein paro rcco111Icccr e s11pcmr css11 d(fic11/dadc 11i11d11 está por dcmons tmr.
Seg11nd11 considemçiio: adoto a idéia co11d11tora de Ser e Ternpo, de acordo co111 11 q1111I 11
te111pomlid11dc nmstit11i 11110 so111c11te 11111i1 úll't1cterístic11 pri11âpt1I do ser q11c so111os, 11111s t11111-
bi;111 t1q11c!a que, 11111is que q1111/q11cr 011trn , 1bsi1u1/11 a rclaçiio desse ser co111 o ser cnq1111nto ser.
Tc11/10 tanto /llt1is ra:do de adotar essa idóa, porq11c co11sidero, por 011tm lado, a accpçdo do ser
co/1/o ato e co1110 poh'ncia co11w 11111ais sinto11i:ada rn111 11111111111tropologiafilosôfirn do Jzo111e111
rnpa:. Alé111 disso, ser e poh~11ci11 fl~,11 c/11m111e11tc 11 zicr co111 o tc/Jlpo, co1110 11 Lógica de Hegel,
11 q1111/ Heidegger reli/etc c111 se11 cxórdio, deixa claro. Nesse sentido, o te111po figura co,no 1111111
111ctacafl'gori11 de 111cs1110 11ízJc/ q11c II prcoc11paçiio e111 Ser e Tempo: o prcoc11p11ç110 (; tcmpoml,
e o tc111po l' tc111po da prcocupaçiio. Rcnmlzcccr esse estatuto 1/(10 i111pcdc de co11sidcmr co1110
csse11ci11/111e11fc aporéticos 11111itos discursos tidos co1110 cxc111plarcs ,w lzistória do pro/ilc11/il '. É,
de resto, o que fi1: Heidegger c111 s1111 uítirn d11 rntcgoria "c. 11/gar" d(l teillpo. N/io c11tmrci de
1

1//[)d() 11lg11/1/ 1/CSStl l)IICrcl11, li respeito da qu11I SOi/ /111sta11tc /'t'SC/'c. ildo, L' COIICCilf/'171'-11/L'-Ci /Il i/li
1

IÍ11ico problc11111, ti'io li111itado qua11to outros licrdodos da trndiç11ofi/o_.:;(ífi'c11, 11 snlicr, t1 ct1p11cidt1dc
de 11n1t1 ontologia da tc111pomlid11dc de tonzt1r possíuel, JIO sentido cxiste11 ciário da possi/1i/id11de,
a rcprcsc11taç{io do passndo pela Jzistôria e, 11q11(;111 dc~tn , pela 111c111tíri11. Essa n11111cira de co/ocnr
o proli!c111a l' dc/i111it11d11 pelas considcmçiics que seguem.
Terceira considcmç110: Heidegger propiie llillil a11álisc da tc111pomlidodc que articula ,1s tn\
instâncias tc111pomis do futuro , do passado e do presente. Co1110 c111 S1111to Agostinlzo e, ao seu
J1Iodo, c111 Koscllcck, o passado - a qualidade passada do passado, 11 preteridndc - so111e11tc se
co111prccndc rn1 suo co,zstituiçtio distinta acoplada à q1111/idadcfÍlt11m do futuro e ,1 qualidade
prc~c11 te do prcse11 te. Esse posicio1111111c11 to (; ah sol u ta111c11 te dccisic. 0 rnz _fáce de 1111111 prcss11 po-
1

siç110 ainda 11110 cxplicit11d11 c111 toda nossa c111prcitadt1. Dcfi1to. t; 11otâucl que 11f1'/1(1111c11ologi11
da 111c,1Híria e t1 cpisfl'111ologi11 da história cstcj,1111 hascadas, sc111 o sahcrrn1, 111111111 psc11dlH'c. 1- 1

dê11ci11, segundo a qual a prctcridadc se co111prcc11dcri11 por si S<Í, alistraçtio feita do fut uro,
11u11111 atitude de pum rctrospccç110. Entende-se 11uc 11111c111ôria tc111 por olijcto, 1u10 prdcrc11cial,

> J\ L'SSC rL·spcito, nZw knhu n,1da a modificir, mds soml'nte" ,KrL'Scentc1r ,i discussão quL' p r,,p lln ho
l'lll T1•111p~ e/ Í\1Ú/ /ff: css,1 discussJll L'St,l\·,1 dl'limitada por um,1 qul•sUío, qul' n,'itl L' mais a minh,1
aqui: a da relaçc'io entre um ;i fenomenologia do ll'mpo YÍYido e umd cosnwlogi ,1 do tl' m pu fís ic,i;
,1 história estaY,l L'llh'io colocada sub a ..:•gide dL· um ,1 " po..:•tira da na rr,lti, a ", consid L·r,1d ,1 c,1p,1z 1.k
t,1rnar produtiY,l ,1 "apor0tira do ternpn" que inic i,1lnwntl' p,ir,1 lisc1 ll pcns,1 me11to.
/\ MJ:M(lRli\, /\ IIISIÜRli\, O 1:SQUl:C:IMl-:NTO

11111s cxc/11siv11111c11te, o p11ssado. A fiír11111!11 de AristMcles que gosto de repetir, "A memória é
do p11ssado", não tem necessidade de cuocar o futuro para dar sentido 1: uigor a sua afirnwção:
o presente, é verdade, está implicado 110 paradoxo do ausente, paradoxo co111u111 , como se viu,
ii i11wgi11açí10 do irreal e ii 111c111ôri11 do anterior. Mas o futuro é, de certa fin11111, posto en tre
parhlteses 11afor111ul11çí'io desse passado. E o próprio presente 11ão é tcmatizado como tal ,uz pcrs-
pcctiua do 1111tcrior. Não é isso, afinal, que acontece quando procuramos 11111a lc111bmnç11, quando
nos dedicamos no trabnll,o da 111c1Hôria, ou ate' 111cs1110 110 culto da lembrança? Assim, Husscrí
desenvolve cxtc11smnc11tc uma teoria da rctc11çiio e da rclcmbm11ça, e trata de modo apenas
s111wírio da protcnsão, como se se tratasse de uma simetria obrigatória. A cultura da memória,
como ars mcmoriac, constrói-se sobre tal abstração do futuro. Mas é ii história, sobretudo, que
esse eclipse do futuro diz respeito 11/ctodologicamente. Por isso, o que seremos levados n dizer
111ais 11dia11tc da inclusão da futuridade 111111pree11siio do passado histórico estará total111e11te e111
oposição à oricntaçifo clara111c11te rctrospectiva do conlzccimcnto histórico. Objetar-se-á a essa
redução da história ii rctrospccção, que o historiador, co1110 cidadão e ator da histôrin que se faz,
i11c/11i, e111 sua motivação de artesão da história, sua própria relação com o futuro da cidade. É
i_ 1erdade, e daremos razão, 110 1110111cnto oportuno, 110 historindor-l. Resta que ele não inclui essa

rclaçíio COI// o objeto de seu estudo no tc11111 que recorta 110 passado decorrido; observou-se, 11
esse respeito, que a i,rucstigaçi'io do passado histórico implica apenas tn•s posiçôes temporais:
n do 11conteci111ento-alvo, 11 dos 11co11teci111c11tos intercalados entre este e a posição temporal do
historiador, e enfim, o ,,wmcnto da escrita da história: tr{;s datas, portanto, das quais duas 110
passado e 1111111 no presente. Quanto à defi11ição da história proposta por Marc Bloc/1, a saber,
"a cit•ncin dos '10111cns 110 tempo ", cía não deve mascarar esse limite i11tcmo do ponto de vista
rctrospcctivo da história: os /101//e11s 110 tempo são, 1111 verdade, os l,01/lclls de outrora, que vi-
vcra111 antes que o historiador escrevesse sobre eles. Há, portanto, llllla legitimidade provisória
e111 questionar o referente da 111rn1ôri11 e da história sob 11 condição da abstraçíio do futuro. A
questão será, então, saber se 1111w solução pnm o cnig111a da prctcridade pode ser encontrada nos
limites dessa abstração.
A essa abstração não tc11wtizada 110 duplo plano cm que opera - o plano da fenomenologia
da 111c111ôri11 e o da epistc111ologi11 da história-, n hcr111e11êu tic11 do ser histórico opôe a pers-
pcctivaç{ío da preteridadc, c111 relação ii futuridade do presente e ii presença do presen te. Nesse
p/11110, 11 constituição temporal do ser que somos se mostra J/lais fundamental que 11 referência
simples da memória e da história 110 passado enquanto tal. Em outras palavras, 11 ternporalidade
co11stit11i a prcco11dição cxistenciária da referl'ncia da memória e da história 110 passado.
Ora, 11 11bord11ge111 hcidcggcriana é tanto mais provocadora porque, difcrentc111entc da de
Santo Agostinho, a ênfase principal recai sobre o futuro, e não sobre o presente. Le111brm110-nos
das dcc/araçi'5es estrondosas do mlfor das Confissões: existem trl's presentes, o presente do passn-
do, que é a 11/CllllÍria, o presente do futuro, que é a expectativa, o presente do presente, que é 11 in-
tuição (011 a 11tc11çâo). Este triplo prcscntc é o princípio orga11iz11dor da temporalidade; nele se
declara n deiscc'ncia í11ti111a dcno111i11ad11 por Santo Agostinho de distcntio animi, que Jaz do

4 François Dosse reserva para o quinto percurso de CHisfoire, op. cil., zt temível ques tão da crise do
te/os. "De la Providence au progres de la Raison" (pp. 137--168), o percurso hesita entre a Fortuna, a
gesta divina, a razão nil histúriil, o materialismo histó rico, para se perder nzt crise do his toricismo.
,\ C0'.'- 1)1 (, .· \(l HI SH) l{ll i\

tc111po l,u11u1110 11 réplirn ci<'.ficic11te d11 eternidade dii. 1i1111, esse ctcmo presente. So/1 o regi111c da
prcocupaçifo, en1 Heidegger, l' a "11ntecip11çiio" que se torna o pá/o de rt'.fcrfnci11 de toda a 1111cílise
da tc111pomlidt1dc, co111sua conot11ção l,cníirn de "resolução 1111tccipadorn". É uma boa hipótese de
tmbal/10 considerar 11 relação co111 o fi,turo co1110 r1q11el11 que indu:, seg1111do 1un 111odo IÍnico de
i111pficaçiio, a seq1Nncia das outras detcn11in11çí'ics te111porais da cxperh;11cia !,ist<írirn. De saída, a
prcteridadc, isolada pcfa operação !,istoriogn~firn, é posta c111f11se dic7ldica com afitturidadc que
c1 011tologia pm1110í.'Cc70 lugar de destaque. Pode-se, todavia , resistir 11 sugcsti'io de que c7 orie11t11-

çiio pam o fúturo seria 111aisjilllda111c11tal, ou, CO/JIO dirc111os depois, 111c1is autêntirn e 11111is origi-
nríria do que 11 orienfc7Çiio pc7m o p11ssc7do e aquela para o presente, cn1 rn:iio d11 densidade 011tolô-
gica do scr-p11m-a-111ortc que 111ostmrc11ws estar estrcita111cntc ligc7do à di111c11são do futuro;
si111l'fricn111cnte, pode-se resistir à tendência a redu:ir 11 relaçiio co111 o presente à prcornpaçc'ío
atrmji1da: a s11rprcsr1, o SL~fi-i111cnto e o go:o, e ta111bé111 a iniciati'i a, s110 grn11dc:as 11otríí. eis do
1 1

presente que 1111111 teoria da ação e, por í111plirnç110, 1111111 teori11 dn l1istcíria dcue111 lcmr Clll Ul/lta.
Quarta co11sidemçiio: c1h'111 da 11orn 1111111eim de ordenar a tripartiç,io da cxperÍl'11ci11 tc111po-
ml, Heidegger prop{ic u11111 llierarqui:aç110 original dos //lodos de tc111poralizaçiio que 1. ai abrir 1

perspcctivas i11édit11s 110 co11fi·o11to entre a A'losofia e a cpístc1110!0:,:;i11 da história. E111 Ser e Tem-
po, tn's títulos são d11dos nos graus dessn llicmrquia i11tcr1111: a tc111pomlid11dc propri11111Clltc
dita, cu diria a te111pomlid11de fu11dn111c11tal, i11trodu:id11 pela oric11t11ç1io pnm o futuro , e que
ucn'111os espccifirndr1 pelo scr-p11m-a-1110rtc; 11 liistoricidnde, i11trod11:id11 pela co11sidemç110 do
i11terrnlo que se "estende" - 011 se estica - entre n11sci111cnto e 11u1rtc e onde prc, 111/ece, de certa
1111111cim, a rcfcn'11ci11110 passado que a liistória e, 1111tcs dela, a 111e1nôri11 privilcgi11111; a i11tmtelll-
pomlid11dc - ou scr-110-tclllpo - c111 que predollli11a a preocupaçtio que nos ton111 dcpe11dc11tcs,
110 presente, das coisas presentes e 111a1u'ilÍ'i'l'ÍS "jzmto" das quais existi111os 110 111u11do. Colllo se
z>t\ certa corrcl11ç1io se cst11bclccc entre os tn's 11íueis de tc111pomli:açtio e a prcvah'11cit111/ternada
das tr[,s i11st1111cias do futuro, do passado e do presente.
E111 virtude dessa correlação, pode-se esperar ,111c o co1~fro11to entre 17 011to!ogi11 do ser liistô-
rico e 17 epistemologia da lzistoriogn~fin se concentre 110 segundo 11h cl, co1110 sugere o tcnno Ges-
1

chichtlichkcit, a este atribuído: a palm m é construída co111 base 110 subst1111tá 0 Geschichte,
1 1

"ltistôria ", atnwés do adictiPo gcschichtli ch, liistôrico. (No 111011u'11to oportuno, disrntirei a
tmd11çiio dessas p11lm ms-cl11rue.) Ora, que o co11fro11to 11nu11ci11do possa, contudo, se cst11bclccer
1

desde o 11h1c/ da tc111porafidadc fu11dl7111ental , (; o que 1~fin11arci dentro de instantes. Mas antes
de tudo, quero abrir 11 disc11ssi'io que pcrn1caní todos os 11Í'ucis de 1111cílise. Ela tmta da 11ot11rc:11
do //lodo de dcrirnçiio que prc!sidc 11 tr1111siç110 de 11111 nível ao outro. Heidegger camctcri:a esse
lllodo de dcri1.1c1çiili pelo gm11 de a11te11ticid11de e de originaricdade que ele Vl' decrescer de 11111
nh,c/ ao outro, à 111cdid11 que nos nproxi11w111os da c~fcm de atraçiio da co11ccpçi10 "z 11lg11r" 1

do tc111po. Ora, o que se c/11111111, aqui, de a11te11ticid11dc ll(IO te111 critério de i11tc!igi/1i!id11dc: o
au têntico f11la de si e se fa: reco11/1eccr co1110 tal por aquele que a ele se dcdicn. É 1un tcm10
c111to-ri:fácnci11/ no disrnrso de Ser e Tempo. 51111 i/1/prccisi'io se iguala 11pc1111s àq11c/11 que
,~f'cta outros termos do z,ocal111lrírio lzcidcggcric1110: 11 resoluçi'io, tcr1110 si11g11lr1rn1c11tc associa-
do à "1111tccip11çiio ", e que niio co111port11 11c11lnu/111 dctcn11in11çáo, 11cn'11111u1 111nrca pn'.fermcial
co11ccme11 te a 11111 projeto qualquer de reali:11ç1io; a co11scil•11ci11 co1110 c!,mnndo de si 11 si, sc111
i11,-ficaç110 rclatirn 110 bc111 011 ao //la/, 110 pcr111itido 011 ao proi/1ido, à o/Jrigaçiio 011 à proil1içi'ío. De
i\ MUvlÚRli\, i\ HIST()Rli\, ll FS(JL.JICIML N TO

pontn a ponta, o ato filosófico, tmnsido de a11glÍstia, procede do nada e se dispersa nas trevas. A
autenticidade sofre desse pare11tcsco com aquilo que Mcrlrnu-Po11ty clwnw de "ser sclvagen1 ";
por isso o discurso que ela engendra é co11stn11tc111c11te i1111caçado de suc1u11bir no que Adorno
dc11u11cin como "jargiio da 1111tc11ticidadc". O acopli1111e11to do 1111tê11tico co111 o originário poderia
salvá-lo desse perigo, se atrilndssc,nos à origi1111riedade outmfu11çi'ío alé111 daquela de redobrar
i1 i1/cgaçiio de autenticidade. Seria o caso, p11rccc-111c, se c11tcndêssc111os como condiçiio histôrirn,
segundo o que a expressiio sugere, 11111n co11diçiio cxiste11ciárin de possibilidade de toda a seqiit'll-
cia dos discursos sobre o histórico c111 gemi, 11n vida cotidia11a, na ficçiio e c111 história. Seria
11ssi111 cxistc11ciariamc11te justificado o duplo e111prcgo da palavra "história": co1110 conjunto
dos aco11tcci111e11tos (dos fatos) decorridos, presentes e futuros , e co1110 conjunto dos discu rsos
sobre esses 11co11teci111cntos (esses fatos) ,w testc11111111Io, 1111 narrativa, 11a explicaçiio e, fi11al-
111c11tc, na rcpresmtaçiio historiadora do passado. Fazc1110s a história e fazemos histôrii1 porque
somos históricos. Este "porque" é o da co11dicionalidade existcnciária. Ora, é sobre essa 110ç110
de co11dicio1111/idadc cxistcnciária que ci1bc regular uma ordc111 de derivação que m10 se reduza
a 11111a perda progressiva de densidade ontológica, mas que scj11 111arcad11 por 1111w dctcnni1111çi10
crescente do lado do contraponto cpiste1110/ógico.
Essa proposiç110 relativa ao modo de derivaçiio de 1/111 nível de te111poralidadc a outro co11u111-
da o estilo da cot~frontaçiio, aqui proposta, entre a ontologia da co11diç110 /1istôric11 e a cpistc-
1110/ogia do co111Ieci111cnto histórico e, através deste, com afc11m11c110/ogia da 111c111óri11. A ordc111
seguida será aquela sobre 11 qual está co11struída 11 teoria da temporalidade cm Ser e Tempo:
temporalidade, historicidade, intmtemporalidade. Mas cada scçiio comportará duns vertentes, a
da analítica do tempo e 11 da réplica historiográfica.
Abrir o debate entre filosofia e história, desde o nível da temporalidade profunda, pode pare-
cer incspcmdo. Sabe-se que Heidegger 11iio so111e11tc pôs a h(fasc principal 110 futuro, de encontro
à oríentaçiio rctrospcctíva da história e da 111c111ôria, mas colocou 11 f11t11rídade sob o signo do
ser-p11ra-11-111ortc, s11lm1cte11do, assim, o tempo indefinido da natureza e da história à d11ra lei
da fi11itude mortal. Minha tese é 11 seguinte: o historiador niio ficou sem voz por causa dessa
1111111eíra radical de entrar 11a prohlc111rítica inteira dn temporalidade. Para Heidegger, a morte
afeta o si-mcs1110 cm sua solidiio intransferível e i11co1111111icâvcl: assumir esse destino é apor o
selo da autenticidade 1111 totalidade da cxperíéncia, assim colocada à sombra da morte; a rcsoluçiio
na "antccip11ç110" é a figura revestida pela prcornpaçiio confrontada 110 final dos poderes 111ais
próprios do Dasein. Como o historiador teria uma palavra a dizer a partir desse nível c111 que a
n11te11ticidadc e a originaricdade coincidem? Tornar-se-ia ele o advogado do "111orre-sc" onde se
co11s11111e a retórica do inauth,tico ? Contudo, é esse caminho que se oferece para ser explorado.
Sugiro humildcnu'11tc 11nu1 leitura alternativa do sentido da mortalidade, 1111 qual a refcrh,cin ao
corpo próprio i111p(5c o desvio pela biologia e o retomo a si por uma paciente apropriaç110 de 11111
saber totalmente exterior da morte co11111111. Essa leitura sem prcte11st'ío abriria o caminho para
1m111 atribuição múltipla do morrer: para si, para os próximos, para os outros. Entre todos esses
outros, os mortos do passado, abraçados pelo olhar retrospcctivo da história. Niio seria c11t110 o
privilégio da história oferecer a esses ausentes da história a piedade de 11111gesto de sepultura? A
equação entre escrita e sepultura seria proposta, assim, como a réplirn do discurso do historiador
ao do fi!ôsofo (scçiio [) .
,\ C l)'\lllt,· \,1 III ST(l l{ IC .-\

É e111 torno do tc11111 da Geschichtlichkeit que o debate c11trc 011tologia e /1istoriogrnfi11 se


estreita. A 11tili:açiio, por Heidegger, do próprio tcr/1/o historicidade inscreve-se 111111111 história
sc111ii11tica i1111ugurad11 por Hegel L' rcto111nda por OilthL'_tf e si:11 corrcspo11dc11tc, o conde Yorck.
Heidegger entra 110 debate graças 11 crítica do conceito dilt/1cy,1110 de "co11cxiio de uid,1, cuja
ji1lt11 de f11nd11111c11to ontológico de11u11ci11. Ele 111,1rrn sua d~fere11ç11 ,w colornr o _fó1ô111c110 d11
"exte11siio" entre 1111sci111c11to e 111ortc sob 11 égide da cxpcrié11ci11 11111is 1111fl'11tic11 do scr-para-11-
111ortc. 011 historiogn(fin de seu tc111po, ele 11pc11as J'l'ft;111 a i11dig('11cit1 011tolôgica dos co11ccitos
diretiuos aprouados pelo 11cok1111tisJ110. A discussi'io 11ssi111 11/Jcrta l'.fáecc 11 oport1111id11de de pôr
à proua o sentido atrilJ//ído por Heidegger 11 dcri·c.111çiio de w11 11íí'cl 11 outro da telllporali:açt'ío.
Proponho co111pc11s11r II abordage111 c111tem10::. de dtJicit 011tolôgico, lc'i. 1111do e111 co11sidcmç,10 os
1

rcrnrsos de possibili:11ç,10 cxistc11ciríri11 do proccdi111c11to historiogn~fico que, e111 111i11h11 opi11iiío,


alg1111s temas jiirtes da ,mrílise '1cidcggcria11t1 C()11th11: a disti11 çiio, 110 próprio nível d11 rclaçi'io
co111 o passado, c11trc o p11ssado decorrido, s11/1tmído 11 nosso i111pério, e o passado e11q111111to te11d()
sido, e que adere, nessa condiçiio, 11 11os::.11 existé11ci11 de prcoc11p11çii(); a id6 a de tn111s111iss110 gc-
mcio,111! que dá à dí'i.'id11 u11111 colornçi'io 110 111cs11zo tc111po c11m11/ e i11stit11cio11al; e 11 "rcpetiçiio",
te11111 kicrkegaardi11110 por exceh'11CÍa, gmç11s ao qual 11 histôrin ap11rccc 11110 apenas co1110 ez,oca-
çt'ío dos /1/ortos, ma::. co1110 e11cc1111ç1fo dos uiz os de 011trom (seçiio li).
1

É 110 11í-ucl d11 i11tmtc111pomlid11ifL' - do scr-1w-tc111po - que 11 011tolog i11 do Dascin rnco11-
tra a história, 11110 11111is 11pc1ws c111 seu gesto i1111ugurnl e c111 suas press11posiçães epistt'111icas,
111t1s 11t1 lfetividadc de seu tmba/ho. Esse 111odo é o 111c11os 11uté11tico, porque sua refcrL'IICia ns
111edid11s do te111po o colorn 1111csfcra de atmç110 daquilo que Heidegger co11sidem co1110 a co11ccp-
çiio "z,u/gar" do tempo, que ele rcco11hccc c111todas as filosofia s do tc111po de Aristóteles 11 Hegel ,
co11ccpçiio scg1111do 11 qu11l o tc111po L; rcdu:ido a 1111111 scqiú'11cia q1111lq11cr de 1110111e11tos discretos.
E11trcta11to, esse modo lll'io t; desprovido de origi1111ricdadc, 11 ponto de Heidegger declará-lo "co-
urigi11ário" dos prcccde11tes, porque "co11t11r co111 o tc111po" se co111prcc11dc antes de tod11 e qual-
quer /1/cdida, e dcsc11 z(1h e 11111 fl'ixc rntcgorinl 11otáz,('/ q11e estrutura a rclaçt'fo de prcornp11çr10
1 1

que 110s ligo às coisas co11111s quais 110s ornp11111os 11tiu11111c11tc. Es::.as categorias - databilid11de,
mrâter p1í/Jlico, csu111::.110 dos rit111os de Pida - pcr111itc111 e11cct11r 11111 debate original co111 11
prática historiadora. Ess11 apreensão positirn do trnlJt1/lw do 1Iistori11dor 111c pem1itef11:er 11111n
rc/cit11m do co11j1111to da::. 11111iliscs a11tcriorcs, 110 ponto e111 que história e 111e111ôria se rccru:11111.
P11reccu-111e quc a ontologia do ser-histórico que abraça a co11diçiio tc111poml 1w seu triplo aspl'C-
to - f uturo, passado, presente - cstrí /zabilitada II arbitrar prctcnsi'lcs rh,ais à l1egc111011i11, 110
csp11çofi'clwdo da rctrospccçiio. De 11111 lado, 11 história gostaria de rcd11 : ir 111ncmóri11 ao estatuto
de objeto entre outros, e111 se11 campo de pesq11i."11; de outro, a 111e111ôria colctiua opi'ic sc11s recur-
sos de co111c111omç,'io à empreitada de 11c11trali:aç110 das sig11~fica çi5cs ui'i.,idas sob o olhar dist1111-
ci11do do historiador. So/111s co11diçLics de rctrospccçiics co1111111s à história e à 111c111ôri11, 11 q11crc-
/11 de prioridade(; i11decidíz cl. É 11 essa própria i11dccidibilidadc que sefi1: justiça 111111rn 011tologi11
1

n·spo11sríuel pelo se11 co11trapo11to cpistênúco. Ao rccolornr a rclaçiio do prcse11te da historia co111
o passado, que 011trom_fói, /lias 11ão (> /1/ais , 1111 rct11guard11 da gm11de dialairn c7uc urde a a11tc-
cipaçiio rcso/1tf11 dof11turo, 11 repetição do passado que tc111 sido, e a preocupação da i11iciatá,a e
da açiio sensata, n 01 rtologia da co11diçiio /1istârica j11st(fica o rnrâtcr i111fccidívcl da rclaçiio entre
11 /zistóri11 e 11 111c111ôri11, n ocado desde o Prc//Ídio d11 seg1111da parte, consagrado 110 111ito da i11-
1

z1t·11ç110 da escritn 110 Fedrn de Platdo (scç,10 ! II) .


A MF.M(lRIA, A IIIST()RIA, O ES()UJ :llvllN 10

A última palavra caberá a trl\; lzistoriadorcs que, juntando o existencial ao cxistcnciário,


revelam a "inquietante estranheza" da /Jistória, sob o signo de 1111111 aporia que, uma vez com-
preendida, terá deixado de ser paralisante (seção IV) .

I. Temporalidade

1. O ser-para-a-morte

Devemos primeiramente a Santo Agostinho o tema da tridimensionalidade da


temporalidade atribuída à alma. Dois traços maiores, que serão reinterpretados por
Heidegger, são enfatizados por Santo Agostinho: a diáspora originária das três dimen-
sões, que implica sua impossível totalização e, corolário do tema preced ente, a igual
primordialidade das três instâncias. O primeiro tema - eu falava outrora 5 de "discor-
dância" para traduzir a dístcntio aninzi (em que se encontra a diastasis dos neoplató-
nicos) - é enunciado nas Confissiics em tom de deploração: é da "região da desseme-
lhança" que a alma faz ouvir seu gemido. Em Santo Agostinho, o segundo tema
adquire uma forma com a qual Heidegger rompe de maneira decisiva: a igual primor-
dialidade das três instâncias temporais se distribui a partir de um centro que é o pre-
sente. É o presente que explode em três direções, reduplicando-se, a cada vez, de certa
forma: "Existem três tempos: o passado, o presente, o futuro". Ora, "o presente do
passado, é a memória; o presente do presente, é a visão (contuitus) [teremos, mais
adiante, attcntio]; o presente do futuro, é a expectativa"h. Certamente, não faltam argu-
mentos a Santo Agostinho: visamos o passado apenas na base de vcstigin - de ima-
gens-impressões - presentes na alma; ocorre o mesmo com as antecipações presentes
das coisas vindouras. Portanto, é a problemática (e o enigma que a ela se associa) da
presença do ausente que impõe a tripla referência ao presente; mas, pode-se objetar, os
vcstigia, os rastros, supondo-se que seja necessário postular sua presença, não são visa-
dos como tais na condição do presente vivido; não prestamos atenção neles, mas na
preteridade das coisas passadas e na futuridad e das coisas vindouras; portanto, é legí-
timo suspeitar, como o fazem os críticos modernos e pós-modernos da "representação",
alguma "metafísica da presença", introduzida de modo sub-reptício sob a instância d a

5 P. Ricceur, Tc11111s ct R/cit, t. 1, op. cit., pp. 86-92, primeira parte, cap. 2, § 3, "A discordância inclu ída".
Dava-se ênfase, naquela época, à relação difícil - talvez, não encontrável - entre o tempo da
,1lma e o tempo cósmico; o tempo calendárico era proposto como um operador da transição de
um ao outro. Abre-se .iqui um outro debate, na fronteira da ontologia da condição histórica e da
epistemologia do conhecimento histórico.
6 E a inda : "Se me permitirt'm falar assim, vejo (vidco) três tempos ; sim, confesso (f11tcorq11c), há três
tempos".
A Cl)'d)ll,\() HISTURIC\

presença cm nome do presente do presente, este estranho presente redobrado~. Defen-


do, em outro lugar, uma leitura mais polissêmica da noçé'io do presente: este não se
reduz à presença, por assim dizer, óptica, sensorial ou cognitiva do termo; é também o
presente do sofrer e do gozar, e, mais ainda, o presente da iniciativa, tal como é cele-
brado no fim do famoso texto de Nietzsche, evocado no Prelúdio da terceira parte da
presente obra.
Não se deve pedir a Santo Agostinho que resolva um problema que não é dele,
o das relações possíveis com o conhecin1ento histórico. Por um lado, suas reflexões
sobre o tempo o situam, na scqüência da história das idéias, na linha que caracterizei,
mais acima, como escola do olhar interior, com a conseqüente dificuldade de tratar
com igualdade memória pessoal e memória coletivas. Por outro lado, cabe à teologia
interpretar o tempo histórico. Na esteira de Henri Marrou, ele também um bom his-
toriador, a questão de uma possível articulação da teologia da história com a historio-
grafia deveria então ser dirigida à Cidade de De11s, e à concepção das duas cidades". E
é sob o signo do que Pomian denomina cronosofia que a im'Cstigação filosófica dessa
relação entre teologia e historiografia poderia ser tentada. Ela ultrapassaria os limites
do presente estudo.
A transição de Santo Agostinho para Heidegger é, à primeira vista, fácil: ela é
proposta pela tríade agora bem conhecida das instâncias da temporalidade: passado,
presente, futuro. Mas duas diferenças iniciais considenciveis, devidas à situaçc'io dos
dois pensadores cm seus rcspectivos contextos, os mantêm bem distantes um do ou-
tro. Santo Agostinho aparece no horizonte do neoplatonismo cristão; Heidegger, no
da filosofia alemã que culmina no neokantismo do início do século XX; ora, quanto
às escolas inscritas nessa veia filosófica, hé um problema relativo à possibilidade e à
legitimidade do saber histórico. Nesse aspecto, tudo se decide na passagem de uma
filosofia crítica da história, tal como a professada no capítulo anterior da presente obra,
para uma ontologia da historicidade ou, como prefiro dizer, da condição histórica.
E é na própria palana historicidade que se imprime o movimento de gangorra da
filosofia crítica para a filosofia ontológica da história. É a essa inversão defro11t que as
investigações que se seguem conduzem. Mas esse momento crítico é precedido por
uma anéilise, tida como ainda mais original, da temporalidade fundamental; à primei-
ra ,·ista, a historiografia não parece cm·olvida nesse nível de extrema radicalidade.
Direi mais adiante de que maneira inesperada ela se ergue como uma parceira legítima
antes mesmo de o conceito de historicidade ser tematizado. Ora, não somente esse úl-

7 Uma raúio própri,1 do cristianismo platnni zante para priYilcgiar n presente se den' .'l rt.'fL' rt'ncia
do presente \'i\·ido na eternidade, concebido como um 111111c , t1111,, ou seja, um eterno presente.
l\fas esse prcscntl' L'tcrno 11,10 contribui tanto para a constituiç<'iu du prL'S('nte da alma , quan to lhe
ser ve de contraponto e de contrastt•: nosso presente sofre por nZH1 SL'r o eterno presente ; por isso
ele rL'quer a dialétic,1 d,1s duas outras instimcias.
8 Cf. primeira partl', cap 1.
l) H.-1. Marrou, L'11111/,i,•11/c11L",' de /'l!i,toírc d1c: ,oi11t A11g11.;ti11, Paris, Vrin, 19"(); La tllt·ologic de /'11i, toire,
Paris, Éd. du Seuil, 1968.
A MLM()RIA, A HIST()t{lt\, O ISQULCIMI NTO

timo conceito é colocado cm posição secundária, mas o acesso ao nível mais radical é,
por sua vez, interminavelmente adiado no texto de Sc>r e Tempo . Previamente, deve-se
atribuir seu sentido pleno ao lugar filosófico no qual a questão se coloca. Esse lugar
filosófico é o Dnsci11, nome dado a "este sendo que nós mesmos somos a cada vez" (Ser
e Tempo, p. 7). Trata-se do homem? Não, se por homem designarmos um sendo indife-
rente a seu ser; sim, se este sai de sua indiferença e se compreende como esse ser para
o qual o ser está cm jogo (op. cit., p. 143). É por isso que, como F. Dastur, decidi não
traduzir o termo Dasci11 111 • Essa maneira de entrar na problemática é da maior impor-
tância para nós que levantamos a questão desse referente do conhecimento histórico:
esse referente último era, na linha de Bernard Lepetit, o agir em comum no mundo
social. As escalas temporais consideradas e percorridas pelos historiadores eram re-
gradas por esse referente último. Ora, o agir é destituído dessa posição, assim como o
homem considerado no sentido empírico de agente e paciente desse agir; assim com-
preendido, o homem e seu agir pertencem à categoria de Vorlw11de11sci11, que significa
a pura e simples presença de fato da coisa. A ontologia fundamental propõe uma re-
gressão aquém dessa presença de fato, na condição de fazer da questão do sentido do
ser - que, diz a primeira frase de Ser e Tempo, hoje caiu no esquecimento - a questão
derradeira. Essa ruptura inaugural, paga pela intradutibilidade da palavra Dasei11, não
exclui o exercício de urna função de condicionalidade a respeito do que as ciências
humanas chamam de agir humano, agir social, na medida em que a metacategoria da
preocupação ocupa uma posição axial na fenomenologia hermenêutica, cujo referente
derradeiro é o Dasein 11 • É preciso esperar o capítulo 6 da primeira seção intitulada "A
análise fundamental preparatória do Oascin" para ter acesso à tematização da preocu-
pação como ser do Dascin. É notável que seja mais por uma afecção do que por uma
instância teórica ou prática que a preocupação se faça compreender, ou seja, a afecção
fundamental da angústia, invocada, aqui, em virtude não de seu caráter emocional,
mas de seu poder de abertura em relação ao ser próprio do Dascin confrontado con-
sigo mesmo. É fundamental que essa abertura seja abertura para a totalidade do que
somos, mais precisamente, para o "todo estrutural" desse ser confrontado com seu ser.
Essa questão da totalidade nos acompanhará em toda a seqüência dessas reflexões. A
possibilidade da fuga diante de si mesmo é, aqui, contemporânea da capacidade de
abertura inerente à angústia. Pode-se considerar o parágrafo 41 - "O ser do Dasein
como preocupação" - como a célula matricial dessa análise fundamental prepara-
tória. É mesmo do "todo estrutural do Dasci11" que se trata aqui (op. cit. , p. 191). Já se
desenha o tema do ser adiante de si, que anuncia o privilégio do futuro na constituição
da temporalidade originária. Dessa estrutura da preocupação, a psicologia comum,
que é também a dos historiadores e a dos juízes, apreende apenas sua sombra levada
para a cotidianidade, sob as espécies da preocupação (por si mesmo) e da solicitude

10 hançoise Dastur, //cidl'ggcr et /11 Q11l',fio11 d11 fc111ps, Paris, PUF, 1990.
ll Em Tc111po e 1111rrofiz 111 Ili, dedico longas an.ílises aos estudos preparatúrios concernentes, de um
lado, à fenomenologia hermenêutica (op. cit., pp. 92-95), do outro, à posição axial da preocupação
na ontologia do D11sci11 (op. cil., pp. 95-102).
,\ Cll"-IJl" ..\(l fll'.-ilt°lRll ,\

(por outrem); mas "mesmo na inautenticidade, o 011:,;ci11 permanece essencialmente


adiante de si, do mesmo modo que a fuga decadente do D11sci11 diante de si mesmo
manifesta ainda a constituição de ser, segundo a qual, para esse sendo, seu ser está cm
jogo" (op. cit., p. 193). Importa-nos a afirmação segundo a qual "a presente pesqu isa
fundamental-ontológica, que nào aspira nem a uma ontologia completa do Dasci11 ,
nem, muito menos, a uma antropologia concreta, pode se limitar a fornecer, aqui, uma
indicaçiio sobre a maneira pela qual esses fenómenos são fundamentados ex istencial-
mente na preocupação" (op. cit., p. 194). A preocupação é posta assim como a categoria
mestra da Analítica do D11:,;ci11, e dotada de uma amplitude igual de sentido 12.
Como a seqüência de nossas arnílises \ 'ai progressivamente confirmar, dedico
uma atenção especial à capacidade fundadora da fenomenologia hermenêutica de
Ser e tc111po, em relação ao que aqui se chama de "antropologia concreta ". A p edra
de toque será - parafraseando a frase que acaba de ser citada - "a maneira pela
qual esses fenómenos [,1 história dos histori ..1dorcs e a memória das pesso,1s comuns]
são fundamentados existenciariamcnte na preocupação [e na temporalidade d,1 preo-
cupação!". Meu medo, digo sem rodeios, é que a hierarquizaç{ío, em Ser e tc111po,
das inst{mcias temporais - temporalidade fundamental, historicidade, intratempo-
ralidade - cm termos de originariedade decrescente e de inautenticidad e crescen-
te, seja obstáculo ao reconhecimento dos recursos de condicionalidade - e nesse
sentido de legitimidade - di spensado progressivamente de instância fundamental
para instância fundamentada. Este será, dur,rnte todo este capítulo, o fio condutor de
minha confront,1ção com a Analítica do 011sci11.
É realmente notável que a segunda seção, intitulada "D11sci11 e temporalidade "
(§ -15 e seg.), comece com um capítulo que reúne duas proble rr1é1ticas: a da totalidade
("o ser-todo possível do Dasci11", § 46) e a da mortalidade (" projeto existenciário de um
ser autêntico para a morte",§ 53). Tudo se decide neste 11cx11s entre a vastidão do po-
der-ser total e a finitude do horizonte nwrtal. Antes mesmo de ter começado a explorar
os estratos da temporalização de todos os registros de existência, sabemos que a entra-
da na dialética das instâncias da temporalilfadc se fará pelo futuro, e que a futuridade
é estruturalmente barrada pelo horizonte finito da morte. O primado do futuro é im-
plicado no terna do ser-para-a-morte; este condensa, assim, toda a plenitude de senti-
do \'islumbrada na anúlise preparatória da preocupação, sob o título de "antecipação
de si". Por conseguinte, o estreito 11cx11:,; entre poder-ser-todo e mortalidade se propõe
como uma espécie de cume, do qual proccdcr,l ulteriormente o movimento de consti-
tuição gradati\'a das ins tâncias d eri,·adas d e te mporalização. Importa ter uma idéia

12 SobrL' a i nte rprctaç,'io do l)o~t'ill como prL·ncup,1½-5º (por volt,1 do§ -1-1 ), cf. F. Das tu r, 1fc id,sga ct /11
,111,·,t ion d11 tc1111'~, tl/'· cit. , pp. 42-.S.S, e Jean Crl'isch , 011tolug ic cl tt·1111'omlit<;. E., quí,sc d '1111c 11Il cr prétatir111
i11tégmlc de ' Sci11 11 11d 71·it'", Paris, l'U !·~col. "Épi mL'thL·e", 199-1-, p . 2:\6 c scg. : " Embora pud L·sst•mos ter
,1 imprL'SSiHl de qul', com a prcoc up,1ç,1 u, ,1 ,111,ilisl' L'xistcnci,íri,1 h,lYi.i cl1eg<1do ,1 um porto segu ro,
n.'io é bem assim . ,\ prcocupaç5o é muit() mais um ponto de pa rtida d o qul' um ponto de cl1l'g,1d,1.
Assim, anunc ia -Sl' a llL'Ccssidade [ ... j de uma segumfo grnnde naH'gaç5n que ocupe a seg unda par!C'
de Sci11 1111d Z,·it: a an,ílisc das rclaçt)L'S l'll trc D t1 ., ei11 e tcmporalid,1dl' qul' a preocupaç5o pl'rmitl'
cntrl'vl'r" (o p. cit , p 2-1-1 ). É a "antccip,1ç,in de si " ljlll' ll'm , ,1q11i , u \ alor de um L'fL·ito dl' anüncil1.
A MEM()R I A , A IIISTt°)RIA, O ESQUE C I MF N Hl

clara sobre os dois termos da correlação inaugural tal como formulada no título do
primeiro capítulo: "O ser-todo-possível do Dasci11 e o ser-para-a-morte" (op. cít., p. 235).
É a estrutura da preocupação que impõe, pela própria abertura, a problemática da to-
talidade, e lhe confere a modalidade da potencialidade, do poder-ser, como diz, em
resumo, a expressão Cn11zsci11kô1111c11 (poder-ser-todo, ser-todo possível): por todo é
preciso entender não sistema fechado, mas integralidade, e, nesse sentido, abertura. E
abertura dando sempre lugar à ocorrência do "excedente" (ou do "sursis" -Ausstand,
§ 48), logo, ao inacabamento. Este termo inacabamento é importante na medida em
que o "para" de o ser-para-a-morte parece implicar alguma destinação para o acabJ-
mento. Não há um cntrcchoque entre abertura e fechamento, integralidade n ão satu-
rável e fim em forma de encerramento? A tensão quase insuportável que aflora na
linguagem à maneira de um oxímoro - o cumprimento do não cumprido - não é
estranhamente atenuada pela promoção do ser-para-a-morte que, no texto heideg-
geriam), parece ocultar o tema prévio do poder-ser-todo? Para restituir todo seu vigor
a essa última expressão, não é preciso d eixar ao poder-ser sua abertura não se apres-
sando em acrescentar: um todo? Essa adjunção aparentemente anódina encerra a pos-
sibilidade de todos os deslizamentos sucessivos: ser-todo, excedente como sursis, ser-
para-o-fim , ser-para-a-morte; a lém dos deslizamentos, as redefiniçôes às avessas: o
"parn" de o ser-para-a-mor te propõe um sen tido da possibilidade - "ser para uma
possibi lidade" - que se projeta como urna possibilidade fechada na possibilidade
aberta do poder-ser. A antecipação da preocupação se encontra afetada por sua refor-
mulação em "antecipação na possibilidade" (op. cít., p. 261).
Eis que a morte se torna "a mais própria possibilidad e do Dnscí11" (op. cit., p. 263),
a mais própria, absoluta, inexcedível, certa de uma espécie não epistemológica de cer-
teza, angustiante de tanta indeterminação. Sob esse aspecto, a passagem p ela idéia de
fim, com sua polissemia bastante conhecida, vale ser enfa tizada: fim que espera o On-
scí11, que o espreita, que o precede, fim incessantemente sempre iminente 11. Não escon-
do minha perplexidade ao final da relcitura desse capítulo nodal: os recursos de aber-
tura do ser possível não foram obturados pela insistência na temática da morte? A
tensão entre abertura e fechamento não é atenuada pelo reinado que exerce ín fin e o
ser-para-a-morte, tratado como ser para um possível? A angústia que põe seu selo so-
bre a ameaça sempre iminen te do morrer não mascara a alegria do entusiasmo do vi-
ver? A esse respeito, o silêncio de Ser e Tempo sobre o fenômeno do nascimento- pelo
menos nesse estágio inaugural - é impressionante. Como Jean Greisch (Ontologíc et
tcniporalíté, p. 283), apraz-me evocar o tema da "natalidade" (Ccbfirtigkcit) que, segun-
do Hannah Arendt cm Co11diçiio do ho111rn1 111odcrno, s ubentende as ca tegorias da vita
nctírn: trabalho, obra, ação. Seu júbilo não deveria ser oposto ao que parece uma obses-
são da metafísica pelo problema da morte, tal corno é abordado no Fédo11 de Platão

13 Jean Creisch atribui um lugar de honra à "definição recapitu lé1tiva do possível ser-p ,ira-a-morte
autêntico'':" a antecip,1ç5o". Pode-se ler a mais vigorosa defesa de uma a titude diante da mor-
te semelhante àq uela articu lada no Scin 1111d 7cit em F. Dastur, Ln Mort . Ess11i s11r /11 f i11it11dc, Paris,
Hatier, 1994.
i\ (ll'\ l ) IÇ\t ) HIST(lRJC ,\

(6-l- a -1, 6), elogiando a "preocupação do mo rrer" (1//clcf~ to11 tlu111ato11)? Se é n•rdade
que a banalização do morrer, no que d iz respeito ao "se" (apassivéld o r), equi\·ale à cs-
qui\·a, a obsessão angustiélda não equi \'a le à obturação das resen·éls de abertura d o ser
possível? Não seria então necessário explorar os recursos dél experiê ncia do poder-ser
aq uém de sua captu ra pelo ser-para-a-morte? Não é preciso então ouvir Spinoza: "O
homem livre não p ensa em nada menos que na morte e sua sabedoria é uma meditação
não da morte, mas da \ 'id a" (Ética, IV Parte, Proposição 67)? O júbilo fomentado pelo
desejo - que assumo - de permanecer \'ivo até ... e não pela morte, não faz sobres-
sair, p elo contraste, o lado existencia l, parcial e inelutavelmente fragmentário da reso-
lução heideggeriana diante do morrer?

Com base nessa pe rplexidade, proponho explorar duas pistas que, cada uma a seu
modo, preparam um diálogo, talvez inesperado, entre o filósofo e o historiador a res-
peito da morte.
Primeiramente, é à idéia da morte como possibilidad e íntima do mais aprnpriéldo
poder-ser que eu gostariél de opor uma leitura alternati\'a do poder morrer. À espécie
de curto-circuito que Heidegger operél entre o poder-ser e a mortalidade, cu subs-
tituiria o longo d esv io que segue. De fato, parece-me que folta u m tema na aná lise
heideggeriélnél da preocupação: o da relação com o próprio corpo, com a ca rne, graças
à qual o poder-ser reveste a forma do desejo, no sentido mais amplo d o termo que in-
clui o co1w/ 11s, segundo Spinoza, a apetição, segundo Leibni z, a libido, segundo Freud,
o desejo de ser e o esforço pa ra exis tir, segundo Jea n Nabert. Como a morte \'em se
inscrever nessa relação com a carne? Começa aqui o longo des\'io. Aprendo a morte
corno o destino inclutável do corpo-objeto; aprendo-él pela biologia confirmada pela
experiência cotidiana; a biologia me di z que a mortalidade constitui a outra meta-
de de um par, do qual a reprodução sexuada constitui urna metade. Considerar-se-á
esse saber como ind igno da ontologia e m razão d e sua factualidade, de seu cará ter
empírico? Relegá-lo-e mos ao império da Vorlu111dc11'1cit ou da Z11'1n11dc11'1cit, entre as
coisas à mão ou ao alca nce da mão? A cél rne con funde essa sepa ração dos modos de
ser. Esta somente pre\'a leceria se esse saber objeti vo e objeti vante da morte não fosse
interiori zado, aprop riado, impresso na carne desse ser Yi\'O, desse ser de desejo que
somos. Uma vez que esse momento de distanci,1mento é sobrepujado pelo momento
de apropriação, a m orte torna-se susceth·el de se inscre\·e r nél compreensão de si como
morte própria, con10 condição mortal. Mas a que p reço? 1\ biologia ensina apenas
um "é preciso" geral, genérico: porque somos essa espécie de seres vivos, precisa mos
morrer, existe, para nós, o "morre r". Mas, m esmo interiorizado, é1propriado, esse sa-
ber continua hete rogênco ao d esejo de ,·i\·er, ao que rer \·i\·er, essa figura carnal d él
preocupação, do " poder ser u m todo". É some nte ao fin al de um longo trabalho sobre
si que a necessidad e totalmente factua l de morrer pod e se com ·erte r, certa rnentl', não
em poder-morre r, mas e rn c1ceitação do ter que morrer. Trnta-se, nesse caso, d e uma
"a ntecipação" de um gê nero único, fruto d a sa bedoria. Em último caso, numa ce rta
perspectiva, a mar a morte como urna irmã, da mesma maneira que o p(rl'crcllo de As-
1\ Ml:MÚR l t\, t\ III ST<) RI A, O FS(JU FCl\ff \: TO

sis, continua sendo um dom que depende de uma economia inacessível, até mesmo a
uma experiência existencial tão singular quanto o estoicismo aparente de um Heideg-
ger, a economia que, no Novo Testamento, é denominada agape. Se persistirmos em
distinguir o existenciário originário da variedade dos posicionamentos existenciais,
decorrentes de tradições culturais ou de experiências pessoais distintas, o descompas-
so subsiste nesse nível originário entre o querer viver e o ter que morrer; este último
faz da morte uma interrupção, ao mes mo tempo inelut;-í.vcl e aleatória, do poder-ser
mais originário '\ Acabar com esse descompasso pela acei tação continua a ser uma
tarefa à qual todos nós estamos submetidos, e que enfrentamos com mais ou menos
sucesso'". Porém, mesmo aceita, a morte continua assustadora, angustiante, em razão
de seu caráter radica lmente heterogêneo a nosso desejo, e do custo que representa s ua
acolhida. Tal vez não tenhamos mes mo alcançado nessa primeira pista - o caminho
da exterioridade e da fa ctualidade - a morada da inimizade de onde a morte procede,
e que só será reconhecida se seguirmos a segunda pista.
O desvio proposto por essa segunda pista não é mais nem o da exterioridade, nem
o da factualidade, mas o da pluralidade. Que significa a morte quanto à nossa maneira
de ser entre os outros humanos - quanto ao inter-esse que Heidegger declina no voca-
bulário do Mitscin? Neste último, é s urpreendente que a morte de outrem seja conside-
rada uma experiência inadequada à procura de radicalismo inscrita n a angústia expli-
citada, no plano do discurso, pelo conceito de ser-para-a-morte. Que a inautenticidade
espreita a prova da morte do outro, é indubitável: a confissão secreta de que a morte,
que levou nosso próximo mais querido, de fato nos poupou, abre o ca minho para uma
estratégia d e evitamento, a qual, esperamos, também nos poupará o momento de ver-
dade do face a face com nossa própria morte. Porém, a relação de si consigo mesmo
tampouco está livre d e as túcias igualmente dissimul adas. O que é mais importante
sondar são os recursos de veracidade contidos na experiência da perda do ser amado,
recolocad os na persp ectiva do difícil trabalho de apropriação do saber sobre a morte.
No caminho que passa pe la morte d o outro ~ outra fi gura do desvio - , aprendemos
sucessivamente duas coisas: a perda e o luto. Quanto à perda, a separação como rup-
tura d a comunicação - o morto, aquele que não mais responde - constitui uma ver-
dad eira amputação do si mesmo, na medida em que a relação com o desaparecido faz
parte integrante da identidade própria. A perda do outro é, de certa forma, perda de si

14 Com esse propósito, podem-se evocar as contundentes observ,1ções de Si mo ne Wcil sobre odes-
tino e a infelic id ad l'. É sempre a despe ito de um dest ino contrário que é p rec iso viver e ama r.
Simone Weil, CEtmrcs, Paris, Ca llima rd , col. "Quarto", 1989, " Malhcur e t joic", pp. 681 -784.
15 Rele ia-se, em benefício d essa sabedoria, o c.:1pítu lo XX do Li vro Idos Ensaio., de Monta igne: "Que
filosofar, é aprender a morrer". Como u m in imigo que n.'io se pode evi tar, "a prendamos a supor-
t,í -lo sem recu,1r e a co mba tê-lo. E pa rn começar a suprimir-lhe a maior vantagem que ele tem
sobn' nós, tomemos uma di reção tota lmente contrária à ha bitua l. Suprimamos s ua estranheza,
prat ique mos e acostumt.•mo-nos com elt:'. Não te nha mos nad a tão constantemente na cabeça como
a morte. A cad a ins ta nte, rc prese ntemo-la L' lll nossa imaginação e em todos os as pectos". E aind a:
"Quem aprende u a mor rer, desaprende u a ser v ir. O saber morrer nos libera de toda suj eição l'
opressão" (/ .cs Essois, ed . dl' Picrrl' Villey, Paris, Quadri ge, PUF, 1992) .
,\ Cl)''d)l l, ,\t1 III SHlRI C ,\

mesmo e constitui, assim, uma etapa no caminho da "antecipação". A etapa seguinte é


a do luto, evocada \' éÍ.rias vezes neste livro. No final do mo\'imento de interiorização
d o objeto de amor perdido para sempre, delineia-se a reconciliação com a perda, no
que consiste, precisamente, o trabalho do luto. Não podemos antecipar, no horizonte
do luto do outro, o luto que coroaria a perda antecipada de nossa própria \'ida? Nesse
caminho da interiorização redobrada, a antecipação do luto que nossos próximos terão
d e fazer, em relação ao nosso próprio d esaparecime nto, pode nos aj uda r a aceitar nos-
sa morte futura como uma perd a com a qual procuramos nos reconciliar antecipa-
damente.
É preciso dar mais um passo e recolhe r uma mensagem de autenticidade da morte
de todos esses outros que não nos são próximos? É chegado o momento de desenvol-
\'er, mais uma vez, a tríade do si, dos próximos e dos outros, como se tentou por oca-
sião do problema d e atribuição d a memória '''. Espero que esse novo desdobramento
nos abra a problemática da morte cm históri,~ que é, aqui, o nosso alvo. Vai-se muito
depressa, em minha opinião, quando se atribui ao "se" (apassivador) a soma das rela-
ções a utênticas. Embora a idéia d e justiça, evocada por ocasião d o pretenso d ever de
memória, se refira à posição do terceiro nas relações inte r-humanas, a mo rte de todos
esses outros encerra um ensinamento que ne m a relação de si pa ra si, nem a relação
com os próximos poderiam dar. A perd a e o luto reveste m, no nível considerado banal
do "se" (apassivador), formas inéditas que contribuem para nossa mais íntima apren-
di zagem da morte. De fato, existe uma forma de morte que só se encontra em estado
puro, por assi m di zer, na esfera d a existência pública: a morte violenta, o assassinato.
Não se poderia faze r economia desse novo desvio, que j.-i é um desv io pela hi stória,
mas també m desvio p elo político. O medo da morte violenta, como se sabe, é conside-
rado por Hobbes com o uma passagem obrigatória cm direção ao contra to celebrado
entre todos os membros de uma comunidade his tórica a favor de um soberano não
contratante. Ora, a mo rte violenta não poderia ser apressadamente incluída entre as
coisas dadas e manejéÍ.\'eis. Ela significa alguma coisa essencial concernente à morte
em geral e, em última instância, à nossa morte. A morte dos próximos, sobre a qual
preferimos medita r, é, na verdade, a morte "suave", a inda que o horror da agonia a
desfi g ure. Mesmo assi m, ela equi vale à libertação, ao ap aziguame nto, como o rosto do
defunto permite ver, segundo o desejo secreto dos sobrev iventes. A morte violenta não
se deixa domar tão facilme nte. O suicídio também, enquanto assassinato de si mesmo,
quando nos afeta, repe te essa dura lição. Que lição? Que, talvez, toda morte seja uma
espéc ie d e assassina to. É a intuição explorada por E. Levinas em algumas p áginas con-
tunde ntes d e Total i f t; ct f 1~fi11i 17• O que o assassinato - ele,·ado à categoria de paradig-
ma fundador pelo assassinato cometido por Caim contra seu irmão Abel - revela, e
que a simples d esap arição, a partida, a cessação d e existir da morte dos próximos não
diz, é a marca do n ada, pelo viés d o aniquilamento visado. Só a "paixão do assassi-

16 Cf. primei r,1 partl', cap. 1.


17 F. L e\·in,1 s, fotalité ct /11 fi 11i. [~~11i ~11r /'cxtériorit1i, La H i1ye, Nijhoff, 1% 1, pp. 208-213.
i\ tv11'M()R I /\, /\ HI ST()Rli\, O ESQUFCIMl'. NTll

nato" declara essa marca 11l. Levinas vai direto à resposta ética que essa paixão suscita:
a impossibilidade moral d e aniquilar inscreve-se, doravante, em todos os rostos. A
interdição do assassinato replica a uma possibilidade assustadora e se inscreve nessa
própria possibilidade. Mas, além dessa grande lição que inaugura a entrada na ética,
o assassinato, que é fundam entalmente morte infligida a outrem, reflete-se na relação
de mim mesmo com minha própria morte. O sentimento d e iminência, que preced e
todo saber sobre a morte, se dá a compreender como iminência de uma ameaça vinda
de um ponto d esconhecido d o futuro. Ultima lntet, repete E. Lev inas: "Na morte, estou
exposto à violência absoluta, ao assassinato na noite" (Totnlité ct lllfini, p. 210). Uma
inquietante malevolência do Outro aproxima-se d e mim - contra mim : "como se o
assassinato, em vez de ser uma das oportunidades de morrer, não se separasse da es-
sência da morte, como se a aproximação da morte perman ecesse como uma das possi-
bilidades da relação com Outrem" (op. cit., p. 211). Silencioso sobre o eventual pós-
morte ("nada ou recomeço? Não sei" [ibid.]), E. Levinas é claro e enfático sobre o antes
da morte, que só pode ser um ser-contra-a-morte, e não um ser-para-a-morte. A vida?
Um projeto em sursis sob o horizonte de uma "pura ameaça e que vem de uma abso-
luta alteridade" (ibid.). Medo, não do nada, mas da violência e, nesse sentido, "medo
de Outrem" (op. cit., p . 212) 1'1• Ao ser-para-a-morte heid eggeriano, Levinas opõe um
apesar-da-morte, um contra-a-morte que abre um espaço frágil d e manifestação para
a "bondade liberada d a gravitação egoísta" (op. cit., p . 213)2°.
Além do ensinamento ético - e também político 21 - que Levinas retira d essa me-
ditação sobre a violência da morte, gostaria de evocar uma das figuras de que pode
revestir-se o luto que convém à perd a, à qual "a paixão d o assassinato" dá sua incisivi-
dadc. Essa figura nos leva a caminho d e nossa próxima reflexão sobre a morte na his-
tória. O que poderia ser, d e fato, uma visão apaziguada, digna, d a ameaça significada
pela morte violenta? Não seria a banalidade assumida do "morre-se"? Essa banalidade
n ão pode recuperar sua força d e a testação ontológica? Seria esse o caso, se pudéssemos
contemplar a ameaça de interrupção de nosso desejo como uma igualização eqüitati-
va: como todo mundo, antes d e mim e d epois d e mim, tenho de morrer. Com a morte,
acaba-se o tempo dos privilégios. Não é a mensagem que transmite a sóbria narrati va

18 "A identificação d a morte com o n ada convém à morte do O ut ro no assassinato" (ibid., p. 209).
19 "Esse nada é u m intL'rva lo a lé m do qual jaz uma vontade host il" (it,id., p. 212). "Ex postos a uma
vontade estrangeira" (ibid.), nós o somos.
20 "O Desejo no qual se d issolve a vontade a meaçad a não defend e ma is os po deres dl' uma vontade,
mas tem seu cent ro fora de la m esma, como a bondadL' cujo sentido a morte não pock retirar" (ibid. ,
p. 21J).
21 Lcv in as g osta d e concluir essas p iÍg in as somb rias evoca ndo "a outra oportuni d<1de que a vont<1de
capta n o tempo que lhe Lk ixa seu ser-contra-a-morte: a fund ação d,1 s instit uiçôcs em q ue a vonta-
de, éltrnvt'.•s da morte, gara n te um mundo sensato, mas impessoal " (i /,id.). O s di zeres sobre a just iça
em A 11/ rc111 c11t q11 'i'trc 011 a11-dc/11 de /'cssc11cc, La Haye, N ijhoff, 1974, con fert'm ce rta densidadL' a esse
t•sboço r,ípido d e uma políti ca da bondade ã sombra da morte.

,z, 372 ,z,


/\ Cll\:D l t, ..\() II I SJ"(lRIC ,\

d a morte d os Patriarcas nessa To ra, cara a E. Levinas: "ele se d eitou com seus pais ",
"ele se reuniu aos seus" 2~?

2. A morte em história

O his toriador está condenado a ficar sem voz diante do d iscurso solitário d o filó-
sofo?
A tese d esta seção é que, apesar dos p ropósitos explícitos de He idegger e, sobre-
tudo, apesar do radica lismo d o tem a da tempo ra lida d e funda men ta l e d e seu d istan-
cia mento d e tod a temá tica historiog ráfica, um diálogo entre o fil ósofo e o historiad or é
possível no próprio n ível instituído po r Heidegger, o do ser-para-a-morte.
Além d o desd obramento d esse tema, indicado p elas leituras a lternativas sugerid as
d e imediato, o texto d e Ser e Tc/llpo propõe outras a berturas e m direção a um e spaço
comum d e confronto.
Primeira a bertura: o grande capítulo sobre o ser-para-a-mo rte é seguido d e u ma
m editação d edicada ao tema d o Gcwisscn (termo tradu zido, aproximativam ente, po r
"consciência moral"). O ra, esse conceito é ime diatam ente associad o, em Heidegger,
ao d e a testação (Bc:cug11ng). A a testação é o m o d o verita tivo sob o qual o conceito d e
p oder-ser-um-to do e o de ser-para-a-morte se faze m compreender. A esse respeito,
p od e-se fal ar d e a testação no futuro, d e a testação d a própria futurid ad e da p reocu-
p ação em s ua cap acidade d e "a ntecipação". Mas, na ve rda d e, a a testação tem como
contraponto integral a cond ição histó rica desdobrad a em seus três êxtases temporais.
Aliás, é possível mante r o testemunho, tal corno o encontra mos na presen te ob ra 2 ',
sob suas formas retrospectivas, na vida cotidia na, no tribuna l ou em hi s tó ri a, com o
correla to, no p assad o, d a atestação que tra ta do pode r-ser apreendido sob a figu ra da
a ntecipação. O p ape l d e p ossibilitação, atribuíd o à metaca tegoria da condição his tó-
r ica, tem a o portunida d e d e se exercer com a corre lação entre atestação no futu ro e
atestação no passado. Ao que é preciso juntar a a testação no presente susten tad o pelo
p osso, modo verbal d e tod os os ve rbos d e ação e d e paixão que, em Si 111cs1110 colllo 11111
outro, d escrevem o h o me m capaz: capaz d e palav ra, ação, na rra tiva, imputação; essa
certeza no p resen te enquad ra a a testação no fu turo e o testemunho no p assad o. A fo rça
d o texto d e H eid egg er é p e rmitir à a testação se ex pandir d o futu ro d a antecipação pa ra
o passad o d a retrosp ecção.
Segunda abe rtura: a onto logia d o poder-ser / p oder-morrer não d eixa a preterida-
d e numa relação d e exterio rid ad e o u de po laridad e a dversati,·a, como é a ind a o caso
d os conceitos d e horizo nte d e expectat i,·a e de esp aço de experiência cm Koselleck e

22 Ct•m•sis 35,29; -19,33. Montt1 igne niío ig n orou L'Ssa s abed nr i,1. Ante r iormente, o u v imo-ltl f.1 1.ir d ,1
m o r tL' como do inim igo com o qu;il d l'H' nws nos ,Kl)St u m,H. É prec iso Ou\·i-lll fo zL·r- llw justiç,1 : "A
igu,1 ld a d c é a prime i r,1 peç,1 d ,1 c qi.iid c1d t•. Que m pode Sl' q ueixM dt> Sl'r cmnp rcendido, ondl' tnd os
siío comprc cnd idos J" (F11~,,io,, Li \-ro 1, cap. XX.)
23 Ci. segu n da p.irk, cap . 1, p p. 170-175.
i\ MEM(lRJA, i\ HI ST(JRJ J\, O F.SQUECl\'1ENTO

em nossas próprias am1lises; por sinal, Koselleck não deixou, como se observou mais
acima, de enfatizar seu caráter singular, como uma estrutura de fato da "experiência
da história". Cabe à "antecipação", segundo Ser e Tempo, implicar a preteridade. Mas
em que sentido do termo? Toma-se aqui uma decisão cujas conseqüências indiretas
para a história são imensas: não é como decorrido e forn de alcance de nossa vontade
de domínio que o passado é, ulteriormente, visado como "tendo sido". A esse respeito,
a decisão, de aparência simplesmente semântica, de preferir CewcscnJicit - qualidade
de ter sido - a Vcrgr111ge11'1eit - o passado decorrido, desaparecido - para exprimir
a preteridade, está em afi nidade com o movimento que reconduz a filosofia crítica
da história à ontologia da condição histórica. Temos antecipado inúmeras vezes essa
prioridade do "ter sido" sobre o passado como decorrido, nos seguintes termos: o
"não ... mais" do passado não poderia, dizíamos, obscurecer a perspectiva historiado-
ra que dirige o olhar para viventes que existiram, antes de se tornarem os "ausentes
da história". Ora, é da maior importância que essa re-qualificação do passado seja
introduzida pela primeira vez no âmbito da análise da temporalidade fundamental, a
da preocupação (Ser e Tempo, § 65), an tes de se levar em consideração o tema da his-
toricidade e o problema específico da história. O elo entre futuridade e preterídade é
garantido por um conceito ponte, o de estar em dívida . A resolução antecipadora só
pode ser um assumir a dívida que marca nossa dependência do passado em termos
de herança 24 • Ora, a noção de dívida (Sclwld em alemão) foi despojada anteriormen-
te, no capítulo do Cewisscn, de seu aguilhão de inculpação, de culpabilidade, o que
pode parecer prejudicial no caso d e um julgamento his tórico sobre crimes notórios,
como aqueles evocados mais acima por ocasião, entre outras, da controvérsia dos
historiadores alemães. Heidegger teria desmoralizado excessivamente o conceito de
dívida? Penso que a idéia d e falta deve retomar seu lugar num estágio bem preciso
do julgamento histórico, quando a compreensão historiadora se confronta com erros
comprovados; a noção d e dano cometido contra outrem preserva, então, a dimensão
propriamente ética da dívida, sua dimensão culpável. Falaremos bastante sobre isso
no capítulo do perdão. Mas antes, é bom dispor de um concei to moralmente neutro
de dívida, que não expresse mais do que o conceito d e herança transmitida e a ser
assumida, o que não exclui um inventário crítico.
Esse conceito de dívida-herança vem se colocar sob o de representância proposto,
no âmbito da epistemologia do conhecimento histórico, como guardião da pretensão

24 "A decisão antecipadora compreende o Dasi:in em seu ser-em-dívida essencial. Compreender-se


sign ifica assumir o ser-em-dívida ao ex istir, ser enqua nto fundamento lançado da nulidade. Mas
assumir o ser-lançado significa ser aute nticamente o Da scin tal como t!lc já era a rnda vez./\ assunção
do ser-la nçado, no entanto, só é possível na medida em q ue o Oasci11 v indouro puder ser seu mais
próprio 'comú ele já era a cada vez', isto é, seu 's id o'. É apenas para tanto que o Dasein é, cm geral,
como sou sido, que e le pode adv ir de maneira v indoura a si mesmo, re-vindoura. Autenticamente
vindouro, o Dasein é autenticamente ,;frio. A antecipação rumo à possibilidade extrema e a ma is
própria é o rc-vir compreensivo rumo ao "sido" mais próprio. O Dasci11 só pode ter sido auten -
ticamente enquanto vindouro. O ser-sido, de certo m odo, brota do futuro " (Ser e Tempo, op. cit.,
pp. 325-326).

@ 374@
referencial do discurso histórico: qu e as construções do historiador possam ambicio-
nar ser tangencia lmente, de algum modo, reconstruçôes do que efetivamente ad \·cio
"tal como tendo efetivamente sido", segundo as palavras d e Leopold Ranke, é o que
significa o conceito de representância . Mas não nos foi possí\·el dissimular seu caráter
problemático, no próprio plano em que se articula. Ele fica como que em suspenso,
à maneira de UITta pretensão arriscada, no horizonte da operação his toriogrcí fica . O
ser-em-dívida constitui, nesse sentido, a possibilidade existenciária da representância.
Enqua n to a noçã o de representância contin ua dependente, quanto à sua estrutura de
sentido, da perspectiva delibe radamente retrospectiva do saber histórico, o ser-em-
dívida constitui o inverso da resolução antecipadora . Diremos, na seção seguinte, o
que o historiador pode reter, ao levar cm consideração a "antecipaçfü>", no plano de-
ri\·ado da historicidade, em que se trava expressamente o diálogo en tre o filóso fo e o
historiador.
Porta nto, é sob o signo do ser-em-dívida que o ter-sido prevalece e m densidade
ontológica sobre o não ser mais do passado decorrido. Uma dialética se abre entre "ter
sido" e "decorrido", que é de grande auxílio no diálogo entre o historiador e o filósofo
e no trabalho próprio daquele. É preciso, contudo, que o bom direito de cada um dos
dois termos do par tenha sido preservado. Pode-se, aqui, resistir à an,ílise de Heideg-
ger, para quem a determinação do passado como decorrido de\'e ser tomada como uma
forma inautêntica d e temporalidade, tributária d o conceito v ulgar do tempo, simples
somatório de agoras evanescentes 2'. É nesse ponto que o manuseio dos qualificativos
"autêntico"-"inautêntico" se revela inadequado à função de possibilitação atribuída
à conceitualidadc on tológica e torna difícil, se não impossível, o diálogo do filósofo
-::om o historiador. Nesse sentido, esse diálogo requer que sej,1 feita justiça ao conceito
de passado decorrido e que a dialética do " ter sido" e do "não ... mais" seja restabe-
lecida em toda a sua força dramática . É indubitável que o "simplesmente d ecorrido"
tem a marca do irrevogável e que o irrewigúvel, por s ua vez, sugere a impotência para
mudar as coisas; nesse sentido, o decorrido fica ao lado do manejável e do disponível
(uorlu111dc11 e z11!u111dc11), ca tegorias declaradas inadequadas ao teor ontológico da preo-
cupaçé'io. Mas o cará ter não manejá,,el, indisponível do passado parece efetivamente
corresponder, na esfera prática, à ausência, na esfera cogniti,·a da representação. Aqui,
a junção entre ser-em-dívida - ca tegoria ontológica - e representâ ncia - categoria
epistemológica - mostra-se fecunda, na medida em que a representància eleva ao pla-
no da epistemologia da operação historiográfica o enigma da representação presente
do passado ausente que, como já foi dito várias vezes, constitu i o enigma primário
do fenômcno mnemônico. Mas Ser e Tc111po ignora o problema da memória e toca no
problema do esquecimento apenas de forma episódica. Falaremos mais adiante sobre
a conseqüência d essa omissão no plano da historici dade e do debate com a historio-
grafia. Mas pode-se deplorar sua faltzi já na análise radical da preocupação, cm cujo

25 "'Os n mceitos de " p or \ .ir", "passad o '' L' '' prL'SL'nll'" n asce ra 111 , pri mci ramen tc, na co mpn·L·ns,io
inaulL'ntica do tempo" (i/>id., p. }26.)

<Z, 375 <Z•


A MEM()Rlt\, A HI Sl ÜR IA, O FS(.) U ECIMl' N T()

nível é tomada a decisão de opor "tendo sido" - mais autêntico - a passado "decor-
rido" - menos autêntico. O debate entre o filósofo e o historiador tem tudo a ganhar
com o restabelecimento da dialética de presença e de ausência, inerente a qualquer
representação, mnemônica ou historiadora, do passado. A própria visada do passado
como tendo sido sai fortalecida desse debate, desde que tendo sido signifique ter sido
presente, vivo, vivaz.
É nesse plano de fundo dialético que o historiador estabelece sua contribuição es-
pecífica à meditação sobre a morte.
De fato, de que modo poderíamos negligenciar o simples fato de que, na história,
só se lida com os mortos de outrora? A história do tempo presente é, parcialmente,
uma exceção, na medida em que convoca vivos. Mas é na condição de testemunhas
que sobreviveram a acontecimentos, que estão resvalando na ausência decorrida, e,
muitas vezes, na condição d e testemunhas inaudfveis por parecerem extremamente
inaceitáveis, segundo os parâmetros da compreensão habitual dos contemporâneos,
os acontecimentos extraordinários que elas testemunham. Por isso, parecem mais "de-
corridos" do que todo o passado abolido. Às vezes, essas testemunhas morrem por
causa dessa incompreensão. Objetar-se-á a essa ênfase da morte em história que ela
só é pertinente numa história de acontecimentos, para a qual contam as decisões e
também as paixões de algumas personalidades marcantes; acrescentar-se-á que a jun-
ção entre acontecimento e estrutura leva a um apagamento, no anonimato, do traço
de mortalidade posto sobre os indivíduos considerados um a um. Mas, em primeiro
lugar, mesmo na perspectiva de uma história na qual a estrutura prevaleceria sobre o
acontecimento, a narrativa histórica fa z ressurgir os traços d e mortalidade no nível de
entidades tratadas como quase-personagens: a morte do Mediterrâneo como herói co-
letivo da história política do século XVI confere à morte propriamente dita uma gran-
deza proporcional à da quase-personagem. Além disso, a morte anônima de todos
esses homens que apenas passam pelo palco da história perg unta silenciosamente ao
pensamento meditante qual o sentido exato d esse anonimato. É a questão do "morre-
se", à qual tratamos, anteriormente, d e restituir s ua densidade ontológica, sob o duplo
signo da crueldade da morte violenta e da eqüidade da morte que iguala os destinos.
É justamente dessa morte que a história trata.
Mas de que maneira e em que termos?
H ,í duas maneiras de responder a essa pergunta. A primeira é ca racterizando a
relação com a morte como uma das representações-objetos, cujo inventário a nova
história se comprouve em fazer. Existe, efetivamente, uma história da morte - no Oci-
dente ou alhures - que constitui uma das mais notáveis conquistas no campo da his-
tória das mentalidades e das representações. Mas se esse "objeto novo" pode parecer
indigno de reter a atenção do filósofo, não acontece o mesmo com a morte, por estar
implicada no próprio ato de fazer história. A morte se mistura, então, com a represen-
tação enquanto operação historiográfica . A morte assinala, de certa forma, o ausente
na história. O ausente no discurso historiognHico. À primeira vista, a representação do
passado como reino dos mortos parece condenar a história a só oferecer à leitura um
,\ Ul'.\DI<. \() III Sl tlRll.\

teatro de sombras, agitadas por sobre\'h·entes em sursis da condenação à morte. Resta


uma saída: considerar a operação historiogrMica como o equivalente escriturário do
rito social do sepultamento, da sepultura.
De fato, a sepultura não é somente um lugar à parte de nossas cidades, esse lugar
chamado cemitério onde colocamos os despojos dos vi\'OS que retornam ao pó. Ela é
um ato, o de enterrar. Esse gesto não é pontual; não se limita ao momento do enterro;
a sepultura permanece, porque permanece o gesto de sepultar; seu trajeto é o mesmo
do luto que transforma cm presença interior a ausência física do objeto perdido. A
sepultura corno lugar material torna-se, assim, a marca duradoura do luto, o resumo
do gesto de sepultura.
É esse gesto de sepultura que a historiografia transforma cm escrita. A esse respei-
to, Michel de Certeau é o mais eloqüente porta-\'oz dessa transfiguração da mo rte em
história, em sepultura, pelo historiador.
Num primeiro momento, aquele definido em L'Alisc11t de /'histoirc, o morto é o
que falta à história. Já se evocou, por ocasi{io do encontro de Certeau com Foucault,
a suspeita dirigida a este último de não te r ido até o fim daquilo que parece exigir "o
pensamento do exterior", "o sol negro da linguagem ""''. É a rude conseqüência de um
discurso sobre o descompasso: "a mudança do espaço no qual o discurso se produz
tem como condição o corte que o outro nele introduz" (L'A/J:;cnt de f'liistoirc, p. 8), outro
que só aparece "como rastro do que foi" (op. cit., p. 9). A história será esse "discurso"
que se organiza em torno de um "presente que falta" (i/Jid.). Pode-se ainda ou\'ir a
\'OZ dos vivos? Não: "uma lite ratura se fabrica a partir de impressões definiti\'amente

mudas, o que passou não voltará mais, a voz está perdida para sempre, e é a morte que
impõe o mutismo ao rastro" (op. cit., p, 11 ). Era necessário esse avanço na meditação
da ausência para dar toda sua força ao tema da sepultura"~. De fato, a sepultura parece

26 "Michel Foucau lt ", in L'a/,sc11t de /'!1isloirc, op. t'il. , pp. 125-132. Esse pe ns,1mento do exteril)I' orien ta-
ria toda a procura do sentido para essa "regü10 onde espreita a morte " (a t'xpressão é de Foucault
em Lcs 1110/s ct /e, choses, p. 395). Mas" ... falar d,1 morte que funda toda linguagem, ainda n,in é t'n-
frentar, é taln'z t'\·itar a morte que atinge o pn'iprio discurso" (tip. l'il ., p. B2). Cf. acima, segunda
parte, capítulo 2, pp. 2Hl -219.
27 Vale L'nfatizar o papel exercido na teoria geral da hist{1riil pel,1 históri,1 especial dos místicos n a
obra de Certeau. Surin est;í no centro dessa história da s espiritualidades apreendidas em sua
linguagem (La Fa/,/c 111_1f,tiq 11c, XV I', XV II .,it\-/c, l'aris, Gallimard , 1982) Além de Surin, a "iil oso-
fiil dos Silntos" de Henri Bremond chamou a atenç,10 de Certeau, que lhe dedica, em L>1/J,enl dt·
/'/11sloire, uma resenha substancial datada de 1966. Ora, essa "filosotia dos sa ntos" gr,nita em tor-
no de sentimentos noturnos, tais como a "dL'Solaç,10", o "dL'Scspew ", o '\·azio" (" Henri 13remond,
historiador de um si lê ncio", in L'A/,~rn l d<' /'/ii, tnirc, op. cit., pp. 73 -IU8 ) O not,ível é que, para Cer-
teau, o passado seja, no discurso histúr ico, o que Deus é no disn1rso míst ico: au sente. O d ecurr ido
é o ausente qu ,1se "místico" do discurs,1 histórico. Certl'au di z: " Isso ocorreu e n i'lo l'X isll> ma is ".
Essa eq uaç{ío est,í no cerne do ensaio " I {istoire et rnystiqul'", publicado pela primeira H'7 em
1972, na /-i.t'<'II<' d'/ii,;/t>in · d<' la spiri/ 1111/11,; (l'ssl' ens,1iu l' contl'mpor,inco d,1 red,1ção d t' " L'o pé ratio n
historiquc", publicado em hnrc de /'/1is/t1irt', t')'. ,·1t., t. 1). Est,í dito clar,1mL'l1te no final do PL' rcurso,
cio abordar as rl'i,1çôl's entre o hi s tóricu L' o místicu, qul' "i:, ,1 hipóll'~L' qul' iormou p,1ul,itina 11wntc
um itinenhio d e hist,'iria no c,1mpo da litL'r,1tur,1 espiritual do ,;t',uiln XVII " (L'/\h~rn t de' /'/11 ,/t>1rl',
º!' cil., p. 167 ).
t\ Ml·M(rnl,\, t\ IIIST()R[t\, () l:S(_)Ul:u rvll' N T()

esgotar seu efeito no ato que "torna presente na linguagem o ato social de existir hoje
e lhe fornece um ponto de referência cultural" (op. cit., p. 159). Somente a autoposição
do presente social parece compensar o ato que remete o passado à sua ausência. Então,
a ausência não é mais um estado, mas o resultado de um trabalho da história, verda-
deira máquina de produzir separação, de suscitar heterologia, esse logos do outro. A
imagem do cemitério garantido ao morto surge então, naturalmente, sob a pena. Ela é
primeiramente a imagem forte da ausência definitiva dos falecidos, a réplica à denega-
ção da morte que chega até a se dissimular na ficção da verossimilhança.
Nesse momento de suspensão, o discurso de Michelet parece o da "alucinação (o
retorno, a 'ressurreição') litenfria do morto" (op. cit., p. 179). Resta que os rastros são
mudos, e que o único "falar ainda" é a narrativa da história: "Ela pode falar do sentido
tornado possível da ausência, quando não há mais nenhum lugar além do discurso"
(op. cit., p. 170). O tema do cemitério só faz valorizar ainda mais o da ausência: "A es-
crita historiadora dá lugar à falta, e a esconde; ela cria essas narrativas do passado que
são equivalentes aos cemitérios nas cidades; ela exorciza e reconhece uma presença da
morte no meio dos vivos" (op. cit., p. 103).
A reviravolta ocorre no próprio cerne do tema do cemitério, sob o signo da equação
entre escrita e sepultura . Esse vínculo forte manifesta-se em algumas páginas magní-
ficas de L'Écrit11rc de /''1istoirc 2H. Primeiramente, é em termos de lugar que se falou da
sepultura. Esse lugar no discurso tem como contraparte o lugar do leitor ao qual se
dirige a escrita da história. A passagem da sepultura-lugar para a sepultura-gesto é ga-
rantida pelo que Certeau denomina " a inversão literária dos procedimentos inerentes
à pesquisa" (L'Écriture de /'histoirc, p. 118). Esse gesto, segundo ele, tem dois aspectos.
De um lado, a escrita, à maneira de um rito de sepultamento, "exorciza o morto intro-
duzindo-o no discurso"; mas a galeria de quadros faz isso com excelência; assim, pare-
ce confirmada a fantasia da dança macabra: "a cena apresentada aos olhos do leitor é a
de uma população - personagen s, mentalidades ou preços" (op. cit., p. 11 7) . De outro
lado, a escrita exerce uma "função simbolizadora " que "permite que uma sociedade se
situe, ao atribuir-se um passado na linguagem " (op. cit. , p. 118). Uma relação dinâmica
é assim instituída entre os dois lugares, o do morto e o do leitor 2" . A sepultura-lugar
torna-se sepultura-ato: "Onde a pesquisa realizava uma crítica dos possíveis presen-
tes, a escrita constrói uma sepultura para o morto. [ ... ] assim, pode-se dizer que ela
faz mortos para que haja vivos" (op. cit., p. 119). Essa "conversão escriturária" (i/Jid.)
leva mais adiante que a simples narratividade; ela exerce um papel performativo: "A
linguage m permite a uma pr<ítica situar-se em relação ao seu outro, o passado" (ibid.) ;
não é simplesmente a mera narratividade que é assim ultrapassada, mas, com ela, a
função do álibi, de ilusão realista, que puxa o "fazer a história " para o lado do "contar

28 "O lugar do morto e o lu ga r do leitor", in l.' Écritu rc de f'histoirc, op. cit., pp. 11 7-120.
29 '" Marcar' um passado é dar um lu g.ir ,1os mor tos, m as tam bém redistribuir o espaço dos possí-
Vl'is, determinar negativamente o que devl' ser feito e, por conseguinte, utili zar a narrativ idadl'
que L'ntl'rra os mortos como meio de fixar um luga r pa ra os vivos" (iliid., p.119) .
,\ C< 1, Dl l. \p 11 !ST() R ll ..\

his tó ri as"; a performatividade atribui ao leitor um lugar, que é um lugar a ser preen-
chido, um "dever-fa ze r" (op. cit., p. 129) .
Essas pala vras contundentes ecoa m nas an cí lises que Jacq ues Ra n cic re d ed ica ao
te m a d o " re i morto " cm Lcs No111s de l'l1istoirc. Prime ira mente, observa-se que él m orte
cm his tó ria não é dire tél m entc êl m orte indiscriminad a d os anónimos. Elêl é, em pri mei-
ro lugar, a morte d os qu e tê m um n o me, êl morte qu e fo z o acontecime nto. Entre ta nto,
tra ta-se d e uma m o rte que une o nome p róprio à fun ção e cede à tra nsferência mc toní-
m iCêl nêl ins tituição: a morte do re i é, graças ,1 0 "excesso d as pa lav ras", a d eslegi tim a-
ção d os reis. Alé m da m orte natura l de Filipe II, a "poéti ca d o sa ber" encontra no cru-
za m ento que se pode cha m a r de hobbesiano do p oético e do político a morte \'iolenta
d e Ca rlos Ida lng la terrél , que evoca m eta foricamcntc o perigo d e m o rte com o qu a l d e-
para ca d a home m n a condição na tu ra l, ma s também a do corpo p o lítico como ta l. E e m
segu ida, há, paulatina mente, a m orte dos supl iciados da Inqu isição: d o is teste mun h os
extrem os da rela ção d o ser falante com a morte são assim aproximad os, o reg icíd io e
a Inquisição (Lcs No111s de f'histoirc, p . 151 ); morte resga tada pela históri a , contra m o rte
não resga tada, o bsen·a o autor. É êl oportunidade, para este, d e ligar a p roble mútica d o
lugar, q ue se revelar<1 ser túmulo, à d os discu rso s discord a ntes e erran tes aos quais d ão
a pal,wra o Mon tnil/011 d e Emmanu el Leroy-La duri e e Ln Fa li/e 111.115tiq 11c d e Certea u . O
histo riado r aparece, ass im, de vá ri as m aneiras, com o aq u ele que foz fa la r os m o rtos. E
era preciso a destitu ição d e mocr,:1tica d a fi g ura d o re i e m majestad e p a ra alcança r a ,·oz
m.uda dos pobres e das massas e, atra\'éS deles, a morte comum . Porque o rei ta m bém
m orre como tod o m u nd o. É nesse po nto que Ra nciere se reúne a Certea u . À revelia de
Bra ude l, quand o se con\'ida para a câmara d o re i em m eio aos embaixadores, o que
está e m jogo, e que n ão o preocupou, são as "condições de escrita d a n a rrativa histó rica
erudita na idade d e m ocrá tica, as condições d e a rticulação do tripl o contrato cie ntífico,
na rra tivo e político" (op. cit., p. 47). Dora,·ante, "a pulsã o de m orte inc re nte à cren ça
eru dita na histó ria " (op. cit., p. 88) n ão procede apenas d a fi g u ra d o rei m o rto, m as d<1
morte s ig nificada p elo ca ráter d ecorrido do p assa d o histórico. Hi s to ri ad or român ti co,
Michele t conjura a m o rte e m grande escala, antes d o fa la r científico dos A 111111/c5'''. Essa
mor te e m massa acede à leg ibilidad e e à visibilidad e, ao mesmo tempo que o para d ig-
m a " republican o-rom ânti co" da his tória . A m orte e m histó ria, eu diri a, é in erente ao
que Rél nciere ch am a d e " n a rra tiv a fund adora " (op. cit., p . 89 e seg.). É a m orte n a escala
d o passado na condição d e decorrido. " É a inclu são d a m o rte na ciên cia, não com o
resíd uo, m as corno condição de possibilidade . [ .. . ] Existe histó ri a p orque existe m o
d ecorr ido e uma p a ixão es p ecífica pelo decorrido. E há h istó ria p orq ue h é1 um a a usên-
cia das coisas nas palav ras, d o n om ead o nos no m es" (op. cit., p. 129). Dupla a usência,
p ortanto: "a da p róp ri a coisa qu e não existe m ais" e a d o acon tecimen to que " n unca foi
com o se disse " (i /1id.). Assim, tod a nossa problc m <'ítica d a relação d a m e m ó ri a e d a his-
tó ri a com a ausên cia d o p assado é alca nçada pelo te ma da morte n,1 hi st(ffia . Sem che-

30 Rancit-'re c ita o belo IL'"to do }011mal d l' M idwlet, ed itado po r Pil'ITL' Vi,1l,lnL'ix: " É preciso ou,· ir ,is
pa la, ·ras q ue nunc,1 fnr,1m d it,1s. I... ] Entlto, som e nte, os mortos se resigna rlto ao SL'pu kro " (,1pud
J. Ra ncien.', Lcs Nollls de J'l,i,toirc, ov cit., p. 128)

<2> 379 •Z.


t\ MEM(lRJA, A HIST(lRJt\, () ESQUECIMENTO

gar à distinção do decorrido e do "ter sido", que me é cara, Ranciere, inscrevendo-se


na esteira de Michelet, arrisca-se a evocar o "suplemento d e vida" (op. cit., p. 130) con-
temporâneo do "excesso das pa lavras", e até o "resgate da ausência" (op. cit., p. 131),
que poderia ser um tema de Walter Benjamin. Em todo caso, é a função do discurso,
como lugar da palavra, oferecer aos mortos do passado uma terra e um túmulo: "O
solo é inscrição de nome, o túmulo, passagem das vozes" (op. cit., p. 135). É então que
se ouve a voz de Ccrteau designando dois lugares simétricos ao leitor e ao morto. Para
um e outro, a linguagem é "a morte aquietada" (op. cit., p. 151).
Com esse discurso, o his toriador dá a réplica ao filósofo que está "se explicando
com " o tema heideggeriano do ser-para-a-morte. De um lad o, a ontologia do ser histó-
rico traz sua total justificativa a essa conversão escriturária, em favor da qual um pre-
sente e um futuro estão abertos adiante do discurso retrospectivo da história. De outro,
a interpretação, pelo próprio historiador, dessa operação em termos de sepultura vem
reforçar a tentativa do filósofo de opor à ontologia do ser-para-a-morte uma ontologia
do ser-diante-da-morte, contra-a-morte, na qual seria levado em consideração o traba-
lho do luto. Uma versão ontológica e uma versão historiográfica do trabalho do luto se
reuniriam assim num discurso-sepultura a duas vozes.

II. Historicidade

O segundo nível de temporalização alcançado na ordem de derivação é chamado,


por Heidegger, de Geschíc!Jtlichkeít. É nesse nível que se pressupõe que o filósofo en-
contre as pretensões epistemológicas da historiografia. Também é nesse nível, como
no seguinte, que se d ecide o sentido da derivação entre níveis, reivindicada por Hei-
degger. À derivação em termos de graus decrescentes de originariedade e de auten-
ticidade, eu gostaria de opor urna derivação em termos de condição de possibilidade
existenciária em relação ao conhecimento histórico. Ora, essa outra modalidade de
derivação pode ser interpretada tanto como um aumento de inteligibilidade, quanto
de uma diminuição de densidad e ontológica.
Uma pergunta prévia se impõe: corno traduzir o alemão Geschichtlichkeit? A maio-
ria dos tradutores franceses de Ser e Tempo opta por "historialidade", a fim de enfatizar
a total originalidade de Heidegger no uso desse termo emprestado. O inconveniente é
dissimular a d ependência de Heidegger em relação a seus antecessores e privar os lei-
tores da descoberta do fato de que, em alemão, um mesmo termo aparece em contextos
sucessivos. Afinal de contas, o termo Geschichte, sobre o qual é construído o abstrato de
segunda ordem (passa-se de Geschíchte a Geschichtlichkeit pelo adjetivo geschichtlich, de
acordo com um modo de derivação terminológica apreciado pelos alemães e ampla-
mente explorado por Hegel, seus contemporâneos e seus sucessores11 ), n ão se presta

3 1 Deve-se também a Hegel, para o melhor e o pior, o gosto pe los termos abstratos terminzidos em
-hcit e -kcil. A esse res~wito, o termo Ccsc/1ic/1tlichkcit niio d estoa do leq ue dos adjetivos substantiva-
a esse hábil despregamento: Gcsc/1íchtl' - " história " - é, afinal d e contas, a única pa-
la vra disponível, apesar das tentativas de opor Geschic/1tc a Historie, e a despeito d as
ambigüidades que cabe precisamente ao filósofo escla recer. Heidegger concorda, ele
qu e, no início do parágrafo 73, anuncia que " nosso próximo objetivo é encontrar o
ponto d e partida p ara a questão ordinária da essência da história (Gcschiclztc), ou seja,
para a construção cxistenciária da Gescl1ícl1tlicl1kcit" (Ser e Tc111po, p. 378). São exata-
mente a palavra e a noção de história que são questionadas sob a forma do conceito de
Gcschícl1tlicl1kcit: a condição de ser histórico. Por isso, pareceu-me preferível assumir,
na trad ução em francês, as mesmas ambigüidades da língua alemã; com isso, a ori gi-
nalidade de Heidegger sai ainda mais fortalecida 12 .

1. A trajetória do termo Gesclúclztliclzkl'it

Com o intuito d e compreender melhor a ruptura que marca o emprego, por Heideg-
ger, do termo Gcsc/1ic/1tlic/1kcít, pode ser útil retraçar brevemente a trajetória de seus
usos a partir de Hegel, que aclimatou o termo ao te rreno da filosofia, até a correspon-
dência entre Dilthey e o conde Yorck (1 877-1897). Heidegger intervém nesse último
estágio1'.
A palavra é urna criação do século XIX. Hegel imprimiu-lhe sua significação fi-
losófica14. O termo surgiu, pela primeira vez, com toda sua força d e significação, em
Lições sobre a história da fi losofia: trata-se da Grécia antiga, "em nome da qual o homem
culto da Europa (e em particular, nós, os alem ães) se sente em casa (J1ei111ntlícl1 in scincr
Hei111nt)". Mas é a própria maneira como os gregos habitaram suas cosmologias, suas
mitologias, sua his tória dos deuses e dos homens que deu aos próprios gregos "esse
caráter de livre e bela Gcscl1ichtlic/1kcit". O nome d e Mnemósine é associado a essa "se-
mente d a liberdade pensante": da mesma maneira que os gregos se sentiram "em casa

dos, e les próprios o riginados de substantirns s im ples (Lcl,c11digkeit, /1111erlichkcit, Ofti'11 /1t1rkcit, sem
esquecer o s urpreendente Stci11igkcit, que d esigna a pedridad e da ped ra 1). L. Renthe-Fi n k Iista-os
resumidamente em Cc~cltid1tlicltkcit. /11r tcr111i11c1fosi~chcr 111uf bcgr!(!7ic/1cr Ur~pru11g bei Hegel. Hai1111,
Uiltltcy 1111d Yo ,ü, Gti ttingen , Va ndenhoeck und I,uprecht, 1%-l, pp. 30-JI.
32 M,rntenho a trnduçào d e Cc~chic'1tlicl1kcil por " histori ,1lidadt'" apenas n ,1s citaç{ies das tr,1duç0l'S e
dns coment,írios nos qu,1is foi fe ita essa csct1lha.
:n Devo t'ssa bn,,·e h isto ria sobre os e mprq~os do termo Ccscl,ic/,f/ic/1kcit ,1 Leonhard von Rentlw-Fink,
in Cc~d1ic!,t/ic/1kcit .. ., o;i. cit. Incluo também a grande monografia de Cerh<1rd lfa ue r, "Cc~c'1ic/1tli -
d1kcit " Wcgc 1111d lrri1•cgc ci11c, Rcgriff~, Wa lter de Cruy tt•r, 1%1.
1-l Um t'mpregtl conctlrrentl', que niitl foi abolid o, desig na a foct u ,1lid,1 dc de um acontt•ci nwntc1 nc1r-
radu, c m particular n ca rML·r não legend ,fr i,1 d,1s n ,Hrativas c ,·a ngélicas. /\ssim, os exegetas f,1l,1m,
ainda hoje, da hi st()ric idade de jes us, sobretud o dep(\i s da quL·rl'la iniciada por Da,·id Strauss, e
Lfo dt!scm·olv inwnto da Cc,c/iichfl> der l.c/ic11 -fc~11 -For., c/111ng, d in ilgada por A lbert Sc11,,·(•it/.er nl,
início do sécu lc1 XX. É rll'SSl' scnt id() d l' foctu ,1l id ,1d c vcr ídi c,1 do" ,icnnteci mcntos qu e (\ te rmo
"h istoricich1 de" ,1p,lrL'Cl' em 1872, na co ndiç,1<1 dL' neolog is mo, nu Didii>1n111irc de Littré. FH·11tu,1l-
me ntl' o(l1rrerá t,1111b0m a uposiçiio de um C ri st<> gc,dlic/itlich ap k sus lli,tori(/1!
/\ \11Uv1(l RI /\, /\ III STÚR J/\ , O FS(JUFCJMJ: N T()

na própria casa'', a filosofia pode usufruir, depois deles, do mesmo espírito de " fami-
liaridade (Hci111atlic'1kcit) existente" (citado por Renthe-Fink, Gcsc'1íc'1tlichkeit, p. 21).
Hegel emprega a palavra num segundo contexto, o d o "momento imenso no cris-
tianis mo", com "o saber que Cristo se tornou um homem verdadeiro" (segunda edição
das Liçôcs ... de Michelet). Devemos aos Padres da Igreja o desenvolvimento da "verda-
deira idéia do espírito sob a forma determinada da historicidade ao mesmo tempo"
(citado por Renthe-Fink, op. cit. , p. 21).
É notável que seja sob o duplo signo da Grécia e do cristianismo que o termo histo-
ricidade tenha entrado no léxico filosófico. Com o primeiro emprego- e passando por
Mnemósine - , não se está longe do elogio que é feito na Fc110111cnologia do espírito da
religiosidade estética que marca a interioridade (Eri1111em11g) mnemónica - a Eri11nc-
ru11g dos gregos. Quanto ao segundo e mprego, uma transição análoga, pela memória,
fa z parte da mais antiga tradição do cristianismo c de sua instituição (" Fazei isso em
minha memória"f''. Resta, contudo, que Hegel n ão empregou o termo historicidade
fora dessas duas referências a d ois momentos cruciais da história do espírito16 . Na
verdade, é o termo Gcscl1ic/1tc - repetido pelo termo Ccscl1icl1tlichkcit - que, desde
Herder, Goethe e os românticos alemães, carrega a marca de profundidade e de gravi-
dade que assumirá o termo historicidade. Só a exemplaridad e d esses dois momentos
fundadores da história do espírito permite, retrospecti vamcnte, creditar ao emprego
h egeliano do termo historicidade a mesma capacidad e d e fundação. Afinal d e contas,
a história significativa, para Hegel, é a do espírito. E o problema que ele trans mite a
seus intérpretes e a seus s ucessores é o da tensão entre verdade e história. Como pode,
pergunta o filósofo, o espírito ter uma história? Pelo can:Her epocal da questão, a his-
tória filosófica já fez secessão em relação à história dos historiadores. A factualidad e
perdeu todo interesse filosófico; foi reduzida a mera narrativa.
A obra imensa, di fusa, inacabada de Dilthey constitui o elo decisivo na história dos
empregos do termo Gcschichtlic/1keit. Mas ele só se presta a ocorrências raras compa-
radas com o emprego maciço d e Lcbcndigkcit, "sentido da vida". É a correspondência
com Yorck que o levará ao primeiro plano. Em compensação, o termo Ceschichte é oni-
prescnte. Ele es tá no âmago do projeto de fundação das ciências do espírito em pé de
igua ldade com as ciências d a na tureza' 7 . O espírito é histórico de ponta a ponta.
A grande problemática da l11t rod11çiio às ciô1cins do cspíríto'H, cuja primeira parte, a
única totalmente aca bada, foi publicada em 1883, é a d efesa da autonomia, da total

35 Daniel Ma rgue rnt e jea n Zum stein, La M1;11mirc ct /e Tc111ps. Mé/1111gcs 1:rfcrts à Pierre Honnard, Ceni:.'ve,
Labor et Fides, Lc monde ck la l3iblc no 23, avri l 1991.
Jf, Niio L' de s urpreender que Schk'ie rm aclwr se tenha e rigido como medi ador entre esses dois " mo-
men tos" exemplares.
37 O adjeti vo gcschic/1 //icl, é antagóni co ao termo hi:-toric/1 desde o L'nunciado do programa d e u ma
"críticn da razão histúrica" (l,is/orisc/1). S 11 r frtudc de /'hisl oirc des ;;cicn ccs /1111110i11cs, socialcs e/ poli-
tiques (1875), trad. frnnc. de Sy lvie Me~ure i11 Dilthey, CEuvrcs, t. !, Critique de la miso11 historiq11c.
/11trod11ctio11 a,ix scicnce, de /'csprit, Pa ri s, Éd. du Cerf, 1992, pp. 43-142.
38 Trad u z ido e apresentadn por Sylv ie Mesure, ibid., pp. 145-361.
auto-suficiênci c1 déls ciências do espírito: "As c iências do esp írito: um todo élutônomo
ao lado das ciências da nc1 tureza " (!11trod11çifo ... , p . 157)"'. Essas ciências são a utóno-
ma g raças à cons tituição unitá ria d o esp írito, e le próprio apreendido na auto-reflexão
(Scl/Jstl1csi11m111g). Esse sentid o d a unid ade ind ivisí\'e l d o espírito não cessou d e ser
reforçad o ao longo d as publicações acunndadas d e Di lthey. Ao contrá rio das \·isôes
m eca nistas ligadas ao associacionis mo tr iunfante em psicologia , a noção de "conjunto
estru tura l (Stru kt11r: 11s11111111c11!1t111g) psíquico" é introduzida desd e as prime iras pé\ginas
de Ed{firnçiio~n. Essa expressão pertence él u m rico campo semân tico reunido em torno
do term o Z 11s1m1111c11!1t111g, estre itamente assoc iéldo ao termo \·ida~1• Não se pode afir-
mar m a is contundentemente o enraizame nto dire to dos conceitos de vocação científica
na própria d en sidade da vida~2.
O ra, é notéh·el que, cm nenhum momento, a id éia de "conexi'io estrutura l \"i\·a " o u
de "conjunto estrutural psíquico" - ou como se queira chama r - esteja associa da em
Dilthey, como estélrá c m He idegger, à id éia d e intervalo en tre o nascimento e a m orte.
Pa ra ele, a morte ni'io é referê ncia de fini tudc para a a uto-refle xão . Ne m tampouco o
nascimento, a liás. A u nidade viva do espírito se compreende cm si, sem outro intermc-
dicfrio conceitua i. Urn a rede nocional é assim introduz ida, li gando Lcl1c11digkcit, Gcscl1i-
c'1tlic'1kcit, Frcilicit e E11tcuick/1111g. Vida, hi s toric idad e, liberdade, d esenvo lvimento. Orn,
nessa seqüência, o momento de historicidade não te m nenhum privilégio particula r,
ele não aparece na I11trod11çi'io ... de 1893. Apa rece furti\'amente no D iscurso i111111gural
1111 Academia das ch•ncias~~ (1887) e, ma is uma vez, no Discurso i 111111g11ra/ do 1111ii 1crsârio de
sctc11/a 1111os+i (1 903). Não é por arnso que, no d ecorrer da correspo ndência com Yorck,

39 Em relaçiio ao tl'rmn "c il'nc ias do es pírito". D iltlwy concord a quL' de 11,10 d is p ôe dl' um a Lll'nn mi -
naçiio <1d eq u ,1da; 11,1 falta de co isa ml'l h tir, ,ldllta o te rmo introdu z id o em ;i lemâll p.ir,1 tr,1d uzir
(18-+9) ,1 cxprL'Ssiio 1110ml ,(ic11ccs na Lógica d e John Stuart Mill (18-t3).
-tll üi lthey, L' Édiffra tio11 d11 111011d1· /1islo r iq11c dt111~ /e~ st"ic11ccs dc /'c~l'r it, t raduzido e .i prcsent.id ll por
Syh-ie Mes ure, i11 Dilthey, CF11 ,•rc~, t. 111, Pari s. Éd . du Cerf, 1988.
41 N um a "Adn:•rt{•nci,1 do tradu to r", Sy h ·ie l'vk s urL' llbser v,1 : " 7.11~,1111111,' 11'11111:,;, ver dadl' ira cr u /. d e
q ua lquer tradução de üi lt hey, é traduzid u 11 ,1 m ,1 iori.i d<1s ,.L'ZL's por "conju nto", m ,1s a p.i 1,1\" ra
significa a lgulllas H '7l'S talllbé m "es trutura", "sistt>ma", "C()l'rL·ncia" ou "contexto". Bcd1·11t1111,1;~:11-
,;11111111c11'11111,' \, "con junto sig nifica tin/', desig nc1 um con juntl) significa ntl', ao m esmo tempo, ClllllO
t(1ta lid ,1de e t>m s eus l'lcnwntos" (L'Édifirn tio11 .. , 11p. cit., pp. 27-28 ). Fm sua tr,1duçã o d l' St'r ,, fr111po,
r:. Marti ne.iu tr,1duz L.,•h1·11s:11 ..:.n111111,·11h1111g p o r "encadca m l'nto da , ·id ,1" (op. cit ., p. 373) . Pndl' -Sl'
diZl'r tambL;m "n 1nL':>-ão da \·ida", p ,1r,1 resl'n·,ir ,10 pbno d a nJrr,lt iY,1 ,1 noçiio de "coert•nc i,1 n,ir-
r,lti\·.i".
42 Em 011/0/og ie e/ fr111pomlifr, jea n C rcisch renwk ,1 du,1s pa ssc1gl'n s sign ificativas d e L'Fdifi,·11/ i,,11 .. .
"Tod as essas catcguria s da ,·id,1 e d a h is tór i,1 são formas d l' e nunc ia do s qu e 1... ] recelwm uma .ipli-
cação u ni versa l no domín io d,1 s ciên c i,1s do l'Spírito. Os enunciados prn\·(·m da própriil \·iu:nci ,1"
(c itado p or Cn•isch, (l/'· cit ., p. 353) .
.n T r,1d u çã n fra1Kl'S,1 de Syh ic Mes u rl' i11 üi lthey, (F. 11 , 1r,·~, t. 1, º1'· ( i/ ., ~'P· 19 -22 : " Nosso sfr u lll r t.'C(l-
nlwcl'u, g rzi ç,1s ii Escnl,1 hi s túri czi, a histllrici(i.1de d,1 hrnnt' m l' Lk tudas as organ iz açôcs s,1c i,ii < "
(~,. 2ll )
-U Tr,1duçc'io fran ccs,1 dl' Sd, ic Mcsurl' : ;,;\cul tura,;_ L'lll prirnl'irn lug,ir, um L'lll<1mnh,1dn de con-
juntos fina li z,1dos. Ca d a um deles, como a língu,1, (l di re ito, o mit(l L' ,1 re li gios idadl', a poL'sia , ,1 ii -
lo so fü1 , possu i uma lq~isl.1çã o inte rn ,1 qu,· cu nd ic in na s u il l'Strutu r.i, que detnrnin,1 s u ,1 L'\"()luç,1\1.
i\ MF Mé)Rli\, /1 111sr( m1A , O ESQ UECI ME NTO

ele reaparece, cercado por uma auréola d e religiosidade, distanciado do dogmatismo


teológico e no prolongamento da operação hegeliana de racionalização e de seculari-
zação (intencional ou não) da teologia cristã trinitária.
É nesse rico plano d e fundo de certeza refletida que a correspondência com o conde
Paul Yorck von Wartenburg (1886-1897) 4~ veio lançar um olhar distanciado e crítico
sobre o próprio empreendimento de fund amentar o conjunto autônomo d as ciências do
espírito no conceito de vida . Cabia a Yorck aprofundar o fosso entre a auto-reflexão e
qualquer outro projeto empírico de ciência histórica. O conceito de historicidade é clara-
mente reivindicado junto aos conceitos de vitalidade e de interioridade (ah! as palavras
em -heit e -keit!). Mas o termo preferido é, finalmente, o de geschichtliche Lebendigkeit
(Renthe-Fink, Geschiclrtfichkeit, p. 113). E Yorck incentiva seu amigo a d enunciar cada
vez mais a pobreza espiritual das ciências históricas empíricas. Ao evocar a recente
publicação por Dilthey de Idéia de 11111a psicologia descritiva e analítica (1894), Yorck d e-
nuncia a ins uficiência da psicologia como ciência humana perante a plenitude da "vida
histórica". O que falta à auto-reflexão como meio primário de conhecimento, observa
Yorck, é uma "análise crítica" do d éficit ontológico das ciências agrupadas em torno da
psicologia, ou seja, fundamentalmente, uma lógica fundamental a preceder e guiar as
ciências. Vem então a famosa frase de Yorck: as pesquisas de Dilthey "enfatizam muito
pouco a diferença genética entre ôntico e histórico (lústorisch)". Essa diferença, que não
faz parte do vocabulário de Dilthey, quer exprimir o d escompasso máximo entre o onto-
lógico e o pretenso científico. É essa oposição que Heidegger retomaria. Onde falta essa
diferença, a historiografia continua prisioneira"de determinações puramente oculares".
Onde ela é reconhecida, pode-se di zer com força: "como sou natureza, sou história".
As proposições de Yorck ocorrem numa época em que seu amigo está preso à se-
gunda parte da Vida de Sc/dcicn11acher, que ele não terminará, e n a qual tenta dar urna
seqüência à Introduçi'ío ... de 1883, que permanecerá inacabada igualmente. É também
aquela na qual Dilthey sofre os ataques de seu colega Ebbinghaus, o porta-voz da psi-
cologia científica. Dilthey é intimado, por Yorck, a replicar, enfatizando cada vez mais
o caráter imediato da certeza relacionada à auto-reflexão, que se dirige diretamente
às conexões estruturais da vida. A Lcbcndigkcit não poderia presci ndir dessa "coesão
interna d a vida " . Isso não impede, por outro lado, que o conceito de historicidade
seja puxado em direção a uma religiosidade antidogmática, ela própria denominada

Assim é que foi compreendido o teor histórico desses conjuntos. A obra de Hegel e d e Schleicr-
macher consi s te em pene trar n a siste maticid ade abstrata desses conjun tos, tomando consciê ncia
d e s ua his toricidade. A t! les se aplicará o método comparativo, e serão an a li sados sob o â ng ulo
de seu desenvol v imento hi stúrico. E que grupo d e homens estava aq ui traba lha ndo" ' (l/Jid., p. 33.)
O breve di scurso te rmina, contudo, com uma n ota inq uie ta: "A v isão his t<'i rica do mu nd o lib ero u
o espírito humano d os últimos grilhôes que as ciê ncias da natureza t' a fil osofia a inda não rom-
peram, ma s onde e stão os meios q ue permitem superar a a narqu ia d as convicções que ameaça
se propaga r 7 Trabalhei tod a minha v id a par.i resolver problemas referentes àque le qu e acabo de
evoc.H. Vejo o objetivo desse esforço. Se ficar no m eio do caminho, esp ero que meu s jovens com-
p,rnhe irns de estrad;i, meus discíp ulos, s igam até o fim " (i/1id., p. 36) .
45 A correspondência entre Dilthcy e Yorck pode ser lida i 11 Wilhcm Dilthcy, Philosop!lic 11111f Cci., -
/1•,wi~sc 11scl111jt, Buc hrt•ihc, t. 1, 1923, pa rte l.
"h istórica", cm um sentido não crono lógico do termo. A última carta de Dilthcy (\·erJ o
de 1897) encerra uma de suas raras confissões: "Sim! O termo Ccscliicl1t/icl1kcit é o mais
apto a caracterizar a tarefa suprema das ciências do espírito, que é a de enfrentar, na
auto-reflexão, cm nome da 'vita lidad e espontâ nea vitoriosa', o déficit de espiritua lid a-
de dos novos tempos" : fazer valer, di z ele, "a consciência da natureza supra-sensível e
supra-racional da próp ria his toricidade" (Renthe-Fink, Ccsc'1ichtlicl1kcit, p. 107). Yorck
morre em 12 de setembro d e 1899. É o fim da discussão sobre a historicidade. O \'ocá-
bulo só aparece de no,·o no Oisrnrso do scpt11t1gl;si11w 1111iucrsário de 1903, e no Pn:{tfrio de
1911, como foi dito anteriormente. É apenas um apagamento terminológico; Dílthey
continuará a falar de "mundo histórico" e rei,·indicará para as ciências do espírito a
"fundação do conhecimento do mundo espiritua l, fundação que torna possí,·el o pró-
prio mundo" (Prefácio, trad. fr,mc., CE11t rcs /, p. 40).
1

A intervenção de Heidegger se en xerta exatamente ne sse debate aberto por Yorc k


no centro da obra de Dilthcy. Heid egger o confessa no início d o parágrafo 77, si-
tuado em um fim de capítulo: "A ex-pl icitação do proble ma da história, qu e acaba
de ser cumprida, n asceu de uma apropriação d o traba lho de Dilthey . Ela fo i confir-
mada e mesmo con solidad a pelas teses do conde Yorck, que se encontram di spersas
e1T1 suas cartas a Dilthey" (Ser e Tc/1/po, p. 397). Daí, c1 estranha redação - única em
seu género - d e uma scqüência de parágrafos que consistem, essencialmente, num
florilégio de citc1çôes. He idegger situa-se abertamente c10 lado de Yorck, no ponto crí-
tico cm que a "psicologia", destinadc1 a compreender a ''v ida ", se propõe a expor "a
totalidade do fato 'homem'" (op. cit., p. 398). Como pode o homem, dessa maneira,
ser ao mesmo tempo objeto das ciências do espírito e rai z dessas ciências? A questão
vai mais a lém da querela fronteiriça entre ciências do espírito e ciênc ias da natureza,
entre compreender e explicar, bem além da promoção da psicologia como ciência de
referência para a fil osofia. Ela aposta na compreensão da historicidade, como os dois
amigos concordam. De Yorck foram retidas a intervenção relativa à publicação por
Dilthey, cm 1894, de Idà11 de u11rn psicologi11 dcscritiua e r11111/ítirn e a célebre distinção
e ntre "ôntico" e " hi stórico".
É duvidoso que esse recurso interessado às a notações de Yorck e, sobretudo, à sua
terminologia - ôntico contra histórico - tenha facilitado urn a "apropriação do traba -
lho de Dilthey". O ôntico de Yorck não é o ônti co de He id egger, que faz par, de uma
maneira única, com o ontológico. Esclarecer esse ponto só faria con fundir as pistas e
afastar do verdadeiro centro do pensamento do próprio Dilthey, a saber, o nó e ntre
Vida e História.
Não é sob re essa ambigüidadc que Heidegger constrói sua própria inte rpretação
da historicidade, mas sobre a falta e xperimentada no final da meditação sobre a "co-
nexão co-originária [enraizada na preocupação] entre morte, dívida e consciê ncia"
(op. cit., p. 372)-11,_O que falta é o o utro " fi m ", a saber, o "começo", o "nascimento" e,

-l6 O p<1rágrafo 72, que ina ug urnva o con1ur1to das ,rn á li sl's int itulad ,1s como a historicid ,1dl'-hi sto-
ria lid ade, coml'ç,1 pelil cx prl'Ss{\o de um "g r,1nde es crúpulo ": "O todo do 011~ci11 deixo u -sl' dl' f,1!0
J\ MEM(lRli\, J\ HIST()RIA, ll J:SQUFCIMJ:NTU

entre os dois, o intervalo que Heidegger denomina "extensão" (A11sdc/111u11g, op. cit.,
p . 373). E ele confessa que esse entremeio, no qual o Dnsci11 continua a se manter, "pas-
sou despercebido na análise do ser-todo" (íhid.). Cabe notar que, apesar de ter intitu-
lado o capítulo com o termo "historicidade", Heidegger não tenha iniciado com ele
a confrontação com Dilthey, mas com o tema da "conexão da vida", cujo contexto
sistemático foi reconstruído acima. E é em algumas linhas que ele se despede do con-
ceito diltheyano: por um lado, ele se dissolveria numa scqüência de vivências que
se desenvolve "no tempo", o que o remete ao estágio seguinte de derivação, o da in-
tra temporalidade; e por outro lado, o que é mais grave, o "preconceito ontológico"
que guia a caracterização do encadeamento cm questão localiza-o, sem reserva, "em
cada agora", na região ontológica do "ser-à-mão" e colocando-o desse modo sob él
dominação do conceito vulgar do tempo que pu xa para baixo a dialética descendente
da temporalidade. É impossível, proclama Heidegger, conduzir sobre essa base defi-
ciente "uma análise ontológica autêntica da ex-tensão do Dasei11 entre nascimento e
morte" (op. cít., p. 374). Tem-se, então, a tese segundo a qual somente o pensamento do
ser-para-a-morte é s uscetível de dar um suporte ontológico à idéia de intervalo (que
Dilthey nunca considerou), sob a condição complementar que o nascimento seja, por
sua vez, interpretado como o outro "fim", simétrico do fim por excelência; pode-se
então dizer que o Dnsci11 existe "nativamen te" como se diz que exis te "mortalmente".
Ora, o que é o intervalo, senão a preocupação? "Enquanto preocupação, o Dasci11 é o
entremeio" (op. cit., p. 374).
Em nenhum lugar, ta lvez, se faz sentir com mais veemência a ausência de uma
reflexão sobre a natureza humana que permita designar a natalidade como condição
de já estar lá, e não apenas como acontecimento do nascimento, falsamente simétrico
àquele, ainda não decorrido, da morte.
Não obstante esses limites inicia is, a noção de extensão, ou melhor dizendo, de
alongamento, é rica em harmônicos suscetíveis de alimentar o debate com o historia-
dor. Três noções são propostas: a de motilidade, que expressa a mutabilidade quali-
tativa e dinâmica da existência; a de permanência, que dá um toque temporal à idéia
da manutenção do si (uma análise anterior havia reconhecido nela a determinação do
"quem" do Dascí11); enfim, a de "proveniência", que reinterpreta de maneira existenciá-
ria o antiqüíssimo termo Gcschc/1c11, enfatizando o aspecto de operação temporalizado-
ra inerente à idéia de extensão. Assim, encontra-se ocupado o lugar deixado vazio, no
plano ontológico, pelo conceito diltheyano de conexão da vida. "A ques tão do 'enca-
deamento' do Dnsci11 é o problema ontológico de seu provir. A liberação da estrutura
d e proveniência e de suas condições temporal-cxistenciárias de possibilidade significa
a obtenção de uma compreensão ontológica da historialidade" (op. cít., p. 375).

levar, do ponto de v ista do seu ser-todo aut(' ntico, à pn'.•-aquisiçi.io da a nMisc existenciária 7 Sem
düvida, L' possível q ue o quest ionamento anterior relativo à totalidade do D11sci11 possuíl s ua ver-
dadeira uní vocid ade ontoló~ica; e niio é menos poss ível, por outro lado, que a própria qucstiio
ll'nha encontr,1do, no que concerne ílO ser-para-o-fim, íl resposta que ela reclamava. Só que, entre-
tm1to, a morte é apenas o fim do D11~ci11, ou, para di zer form;ilmente, ela é apenas um dDs dois fin s
que circ unsc revem a tota lidade d o 011sci11" (Ser e 'frl/lpo, op. cil., pp. 372-373).
,\ C(l ~lli( .\U I II SH)I\I C..\

Ao mesmo tempo responde a Dilthey, " [ ... ] estéÍ decidido n lu ga r ocupado pelo
prob lcmr1 da histó ri a " (op. cit. , p. 375). É notável que Heidegger não se confronte, de
mod o nenhum, com o ofício do histo riador, mas com o que ele chama de " modo cie n-
tífico-teórico do problema da 'histó ria ' " (i[Jid.). Trata-se, essencial m ente, de tcn tat i\·as
liga d as à tradição neokantiana de pensar a his tória, seja a partir do lugar que seu
m étodo lhe confe re na arquitetura dos saberes, à maneira de Simme l e de Rickcrt,
nominalmente designados (il1id.), seja diretamente a partir de seu obje to, o foto h istó-
rico. O qu e Heidegg e r considera como o fenómeno fundamental da histó ria, a sabe r, a
historicidade da ex istência, encontra-se irremedi ave lmente eyacuado p e los defenso res
d e um neokantisrno dominante: "Como a história, pergunta He idegger, pode se tornar
objeto possível de história?" A resposta a essa pergunta somente pode ser depreen-
dida "a partir do modo de ser do historial e de seu enra izamento na temporalidad e "
(il1id.). Heidegger p o uco avança na direção que adota re m os mais ad ia nte. A noção de
d erivação, tomada no sentido de gra u descend ente de autenticidade, s uscita ap enas
um recurso do m en os autêntico p a ra o mais autêntico. Quanto à possibi lita ção dosa-
ber histórico, limita-se a afirmar que a h istóri a-ciência se 1nm·e entre as modalidades
objetivadas d o m odo de se r d o " histó ri co" . É p ossível, assim, ler às avessas urna cad e ia
de relaçôes de depend ê ncia: o objeto d a história - o hi stórico - a his toricidad e - seu
enra iza mento n a temporalidade. É essen cialn,cntc esse processo regressivo qu e Hei-
d egger opõe a qualquer tentati va d e pen sa r a objetividade do fato histórico no âmbito
de u m a teoria do conh eci mento.
Para com eçar esse mov imento de retorno d o ina u tên tico ,w a utênti co, Heidegger
não hesita em partir das pesquisas dese1woh·idas sob o signo "d os concei tos nilgares
d a história" (op. ât., p. 376). O importante, depois desse ponto de partida, é "a expo-
sição do p roblema ontológico d a hi storialida d e " (il1id.). Esta não pode ser nada ma is
além do "desvendamento do qu e jtí se encon tra velado na tempora lização da te m-
poralidade" (ibid.). He idegger re p e te: " A interpreta ção ex istenciária da história corno
ciência visa unicamente à a tribuição d e s ua provcnil'IKia ontol ógica a p a rtir da hi sto-
rialidade do D11sci1T" (i/Jid.) . M elhor dizendo: "Este sendo n ão é 'tern.poral' porque ' est,í
n a histó ri a', m as, pelo con trário , [... ] só existe e só p ode existir historialmente, porque
é te mpornl no fundo d e seu ser" (i/1id.).
Deve-se, con tud o, co nfessa r qu e n ,1o nos aproximamos ,·erdadciramen te do qu e é
chamado, na presente obra, de o trabalho da hi stória e que Heidegger é1tribui ao "D11-
sci11 fac tício" (i/Jid.); a consid eração da o p eração his toriogré1fiG1 é remetida ao est,i g io
seguinte da operação de d erivação, a intratempora lidade. De fato, como faz e r históric1
sem ca lend ário n em re lógicY1~? Isso é concordc1r q ue o destino d a his tória efeti\·a niio se
decide no nível da h istori cidade, mas no da intra tcmpora lidadc. No da histori cidade,
a discussão só ati nge a reflexão de segund o gra u sob re a epistemologia tal como a
atribu ímos, n o capítul o precedente, a uma filosofia crítica da história. A antecipação

-17 V i sil-se co m issl) P quL· c h ,1 1110 em Tc111110 ,· 11 ;11.,-11tii•t1 li I o te rn·iro- kmpo hi s tó ri co, tL'mpo do r ast w,
d ils geraç(ws t' dns g r,111des conL'Clores l'ntre IL>mpo etís mi Cl l l' tempo fenomL'nológico.
/\ M FM C) RI/\ , A H I SH ) RI A, O FSQ UECIMFN TO

forçada d o estágio seguinte de deri vaçã o dos modos d e temporalização s uscita


uma observação e mbaraçada: " Mas, n a medid a e m que o te mpo com o intratemp o-
ralidad e 'provém' também d a tempora lidade d o Dnscin, his torialidad e e intratem-
poralidad e manifes tam igualmente um a co-originariedade. Por conseguinte, a expli-
citação vulgar do caráter temporal d a história p reserva seu direito nos limites qu e são
os seus" (op. cit., p. 377). Certa competição trava-se, assim, entre derivação - que é
chamad a, algumas linhas acima, d e "d edução" (entre aspas) - e co-originariedad e·18 •

2. Historicidade e historiografia

Gostari a de retomar, graças a esse momento de suspensão e de hesitação, a tentati-


va de diálogo crítico entre a fil osofia e a história começada no final d a primeira seção
deste capítulo e interrompida no tema d a escrita d a história como sepultura. É para o
campo d e trabalho d o historiad o r que eu gostaria d e atrai r o filósofo. É o que o próprio
Heidegger propõe ao abrir a d iscussão sobre o estatuto d a h istória-ciência, mediante
uma reflexão sobre os sentidos ambíguos d a palavra "história", onde não figuram ain-
da as determinações propriamente historiográficas d o conceito (§ 73). Ele enumera e
percorre quatro acep ções correntes do termo: o passado como indisponível; o passado
como ainda atuante; a histúria como soma das coisas transmitidas; a autoridad e d a tra-
dição. Sob esses quatro aspectos, reencontra-se, segundo ele, o Gcscl1chc11, o "p rovir",
a inda que mascarad o sob as aparências do acontecimento em ergente e transmitido.
Diz-se algo, aqui, que concerne ao historiador num sentido eminentemente constru-
tivo: o tendo-sido prevalece sobre o simplesmente d ecorrido, caracterizado por s ua
s ubtração a nossas apreensões na perspecti va d o passad o. Várias vezes abord amos
essa dialética do "ter-sido" e d o "não ser mais", e enfa tiza mos sua ancoragem na lin-
guagem comum e n a exp eri ência mnemónica, antes de sua elaboração pela historio-
g rafia consid erada em sua fa se representativa. Heid egger lança sobre essa dialética um
o lhar penetra nte ao fazer um c1 reflexão crítica sobre a n oção d e vestígio, ruína, antigui-
d ades, obje tos d e museu. Usa ndo sua ca tegorização dos sendo, distribuídos entre os
existenciá rios (tais como p reocupação, angústia, ipseidade ... ) e os sendo "à-mão" ou
"ao-alcance-da-mão" (digamos, as coisas d adas e manejáveis), ele observa que aquilo
que reunimos sob a idéia d e rastro não teria nenhuma marca do passad o se não pu-
d éssemos relacionar esses ind ícios a um a mbiente que, desaparecido, leva consigo,
todavia, seu ter-sido. Se se p ode dizer que certas coisas provêm do passad o, é porque

48 Jean C reisch en fa tiz a a esse res peito "a mi stu ra d e modés ti a e d e pre ten são con tida nessa d ete r-
minação da ta refa". E e le acresce nta : " É sufi ciente pa ra fazer justiça a essas disciplinas [a s ciên cias
do homem!, ou não é preciso co nsidera r a p ossib ilid ade d e u ma de te rm inação m ais positiva d a re-
lação e ntre a ontologia da hi storinlidad e e u ma epi s temologia d a s c iê ncias histú ricas? " (0 11 /0/ogfr
e/ tcmpom/i /1', op. cit., p p. 357-358.) É il p roposição q ue d esenvo lvo nns p,í ginas seguintes, n a li n h a
de m in has observaç1)es d e 7t·111po e narrativa III, nas q u ais e u falava d e um "en riq uecime n to" do
o rig in;írio pelo d e rivado, o u d e u mn "d erivação inovadora" d e u m ao outro (op. cit. , pp. 108-'J09).
.\ ltl'. LJ IÇ-\(l f l lS IL'JRIC ,\

o Onsei11 traz consigo os rastros de sua pr<)\'eniência sob a forma da dívida e da heran-
ça: "Inequivocamente, o Oasei11 nunG1 pode ser passado, não porque seja imperecí\·el,
mas porque nunca pode, essencialmente, estar-à-mão, mas, se ele é, ele existe" (op. cit.,
p . 380). Um diálogo com o historiador pode ser travado neste ponto: a contribuição
do filósofo reside, aqui, na crítica dirigida a um tratamento do passado cm termos de
instrumento, de utensílio. O limite d essa crítica resulta da ruptura ins tituída entre os
modos de ser do existente e da coisa dada e manejável, ruptura que a operação histo-
riográfica repete na base do ato mne mónico. Contudo, conduzimos a epistemologia
da operação his toriográfica até o enigma da representância do passado tendo-sido,
atra\'éS da ausência do passado decorrido. Por tré1S do enigma da representância, de-
lineia-se o da representação icónica d o passado no ato de memória. Ora, Heidegger
não deu lugar à memória nem a seu florão, o ato de reconhecimento, ao qual Bergson
soube conceder toda a atenção que ele m erece, como será am plamente mostrado no
capítulo seguinte. Mas pode-se sugerir que a dia lética de presença e de ausência , fo r-
mulada desde a problemática grega da cikô11, seja confrontada com a análise hcidcg-
gcriana do vestígio. Heidegger não remeteu muito depressa o caréiter de au sência do
passado acabado à indisponibilidade do manip u lável? Com isso, não eludiu todas as
dificuldades ligadas à representação do que não é mais, mas que foi urna vez? Em ,·ez
disso, Heidegger oferece, é bem verdade, a idéia forte da subordinação de todo o his tó-
rico intramund ano ao histórico primordial que somos enquanto seres de preocupação.
Ele chega mesmo a esboçar, em torno da " historialidade" do Oasci11, " historialidade"
primeira, uma " his torialid ade" segunda, a "da história do mundo": "o instrumento e
a obra, livros, por exemplo, têm seus destinos", monumentos e instituições tê m s ua
história. Mas a natureza também é historial. Decerto, não exatamente quando fa lamos
de "história natu ral", mas ela é, sim, historial como paisagem, como domínio de ins-
talação e de exploração, como ca mpo de batalha ou corno lugar de culto. Este sendo
intramundano é como tal historial, e sua história não representa um quadro "exte rior"
que acompan haria pura e simplesmente a hi stó ria "interior" da "a lma" . Chamamos
esse sendo de "m undo-historial" (op. cit., pp. 388-389).
Mas a disjunção dos modos de ser - o do existenci éfrio, de um lado, e o do mane-
jável, do outro- imped e de levar o mo\'imen to da deri\'ação a té o ponto em que seria
reconhecida a total va lidade do fenóme no do rastro. A problemiHica da representân-
cia, no pl ano histórico, e já a da representação icónica no plano rnnemô nico, parecem-
me s uscetíveis de sobrepor essa descontinuidade ontológica. A noção de vestígio, am-
pliada à do rastro, poderia então dar azo a uma discussão que levaria cm con ta a
dimensão veritativa do ato mnemónico e do ato historiográfico. Por falta dessa con-
fronta ção, Heidegger só compensa a reinserção obstinada da d ependência da histo-
ricidade acerca da temporalidade fund amenta l4''pela e\·ocação de traços resultan tes da

-l-lJ "Por isso, a interprL'taç,10 da histor ialidade dn D11sci11 ren'la ser no fundu ape na s um,1 l'l,1b(11\1çàu
m ,1is concreta da IL'mpora lid adc" (Ser e Tc111p,1, op. cíf ., p. 382). E mais adiante: "O ser ,1utt'ntico
par<1 a morte, is tn é, a finitude da temporc1 lidade, é o fundanH.'1lt(1 reti rado da hi stl1rialid ,1dL· do
0 1N·i11" (i/,id., p . .i 86)
/\ Ml êM(lRI/\, A HIST(lRIA, O L:S()U FCIMENTll

dependência do ser histórico em relação ao mundo, na linha das noções já analisadas


de herança e de transm issão, completadas pela do ser em comum. Fala-se, assim, de
destino e de sorte, graças a uma certa assonância entre as palavras alemãs Gcschichtc,
Scl1icksal (destino), Gesclzick (sorte). Sob esse aspecto, podemos nos inquietar com as
sobrecargas herúicas que a preocupação do concreto impõe a esse respeito"º.
Prefiro dar continuidade à minha busca de pontos de partida para um debate cons-
trutivo no texto de Heidegger.
Retenho dois termos condutores: o de seqüência das gerações, emprestado de Dil-
they, e o de repetição, herdado de Kierkegaa rd. Ambos são s uscetíveis de fazer o papel
de conectores entre a ontologia do ser histórico e a epistemo logia da operação histo-
riográfica.
O concei to de geração é, certamente, dos mais apropriados a atribuir uma densida-
de concreta ao conceito mais geral de transmissão, e até mesmo de herança. Mas, tam-
bém aqui, fa lta o toque humano que o conceito de natalidade poderia ter afiançado. E
sobre essa base pode ria ser erigida toda a simbólica da filia ção e todo o aparelho jurí-
dico ligado à idéia d e genealogia, pelo qual o v ivente propriamente dito é ins tituído:
"É preciso lembrar-se, diz logo de saída Pierre Legendre~1, que as instituições são um
fenómeno d a vida" (L' lncsti111nblc Objct de ln tm11s111issio11, p. 9). Para isso é preciso lem-
brar que a humanidade deve ser definida como o vivente falante, o que faz da genealo-
gia uma estrutura irredutível às fun ções de reprodução. Dilthey não teria refutado, na
linha de seu conceito de "conexão da vida", a afirmação de que "a vida não vive e que
é uma tarefa humana instituir o vivo": "fabricar o vínculo institucional é tarefa da ge-
nea logia, que s ustenta o fio da vid a" (ibid., p. 10). O sociólogo, o jurista e o psicanalista
não são os únicos interessados no "estudo do princípio genealógico do Ocidente", o
historiador também se interessa por ele, na medida em que afirma, com Bernard Lepe-
tit, que o referente da histó ria é a constituição do vínculo social considerado em todas
as suas dimensões, no ponto de junção das práticas e das representações. A história
também é uma ciência do vivente falante; a normatividade jurídica que ordena o cam-
po genealógico não é apenas um de seus objetos, e nem mesmo um objeto " novo", mas
é uma pressuposição ligada à posição de seu objeto e, nesse sentido, uma pressuposi-
ção existenciária: a hi.stória encontra apenas viventes falantes em curso de instituição.
A genea logia é a instituição que fa z com que a vida seja humana. Nesse sentid o, ela é
um componente da representância, cons titutiva da intencionalidade historiadora.
O tema da repetição, cuja origem kierkegaardiana acabamos de lembrar, é, por
s ua vez, de grande fec undidade quanto à fundação ontol ógica da to talidade da em-
preitada historiográ fica: "a resolução que retorna a si mesma, que se entrega, torna-se
en tão a repetição de uma possibilidade transmitida de ex istência" (Ser e Tempo, p. 385).
Ainda aq ui, a ên fase dada por Heidegger dirige-se à remissão a uma fundação mais

50 Tc111po e narrai iua, t. 111, op. cit., p. 116 e seg. J. Creisch, 0 11tologic ct Tc111pomli/1', op. cit., pp. 369-374.
51 l'ierre Lq ~cndn.', L' /11csfi11111/Jl1· Objct de /11 tm11s111issio11 . b,ai s11r /e príncipe gt' 11L'll/og iq11c c11 Occidrnt,
Paris, Fayard, 1985.
,\ (()'\_[ll(.\(l HISl(ll/lC\

profunda: "a repetição autêntica de um,1 possibilidade de existência passada, o fato de


que o D11sci11 escolhe seus heróis, fundamenta-se existenciariamcnte na resolução ante-
cipadora; pois é nela, apenas, que faz a escolha que liberta para o prosseguimento do
comb,ltc e para a fidelidade ao repeth·el" (i/Jid.). Pode-se considerar que o pensan1ento
esboçado abre um campo mais vasto do que "él escolha de seus próprios heróis", sur-
preendente obsen·açé:io cuja inquietante "sorte" na época da realização "histórica" da
filosofia da "c.ítedra" é conhecida. Parn nós, é infinitamente mais promissora a afirma-
ção segundo a qual repetir não é nem reefetuar imediat,1mente, nem reelaborar: é " rea -
lizar de novo". Trata-se aqui de um chamado, de uma réplica, de uma rcspos t,1, e até
mesmo de uma re\·ogação das heranças. A potência criadora da repetição permanece
inteira nesse poder de reabrir o passado sobre o futuro.
Assim compreendida, a repetição pode ser consideracfa uma refundaçi'ío ontoló-
gica do gesto historiogrcifico, retomado na linha de su,1 intencionalidade mais funda-
mental. Mais ainda: a repetição permite completar e enriquecer a meditação proposta
anteriormente, sob o título da morte na história. Esta nos lenn1 até o gesto de sep ultura
pelo qual o historiador, dando espaço aos mortos, cria espaço para os vivos. Uma me-
ditação sobre a repetição autoriza um passo d mais, graças à idéia de que os mortos de
outrora foram \'i,·os, e que a história, dl' certa maneira, aproxima-se do se u ter-sido-
\ i\'O. Os mortos de hoje são os vi\'OS de ontem, que agem e sofrem.
Como o historiador pode dar esse passo suplementar, alén, do sepultamento, ele
que é o homem da retrospecção?
Pode-se tentar dar urna resposta sob um duplo patrocínio, o de Michclet e o de
Collingwood .
Jules Michclet continw1r,1 a ser o historiador visioncÍrio que, tendo entendido c1
França, quis lhe dar uma história; mas a história da França é a de um ser ati,·o e ,·in).
"Antes de mim, proclama ele, ninguém a tinha abarcado com o olhar na unidade \'i\·a
dos acontecimentos naturais e geogrMicos que a constituíram. Fui o prim.ciro a ,·é-la
como uma alma e corno uma pessoa. [ ... ] Para encontrar a \·ida histórica, seria preci-
so segui-la pacientemente em todos os seus caminhos, em todas as suas formas, em
todos os seus elementos. Mas seria preciso tarnbém uma paixão ainda maior, refa zer,
restabelecer o jogo de todos eles, a ação recíproca dessas forças \'ivas, num poderoso
mo\'imento que se tornaria a própria vida ." Surge então o tema da ressurreição: " Mais
complicado ainda e mais assustador era meu problema histórico como ressurreição d a
\'ida integral, não e m suas superfícies, mas em seus organismos internos e profundos.
Nenhum sábio teria pensado nisso. Felizmente, eu né:io o era " (prefrk io de 1869 de
Hi~toirc de Francc).
Meio século mais tarde, Collingwood repetiu Michelet com um tema mais sóbrio,
o da "reefetuação" (rcc1111ct111c11/) do passado no presenteª:'. Segundo esse conceito, a

:'i2 Collingwood , T/1c ldc11 ,,f ffi~tor_11, obra pc'1stuma publicada p(1r T !\1. Knox l'm JLJ,l6 (CIMen don
Press, Oxford Uni ,·ersity Press, 19.'ltí), com basl' n,1s con fort'ncias l'Scri t,1s cm Oxford l'll1 ]ln n, após
a nomeaç,10 dL' C ulling11·ood p<1r,1 a cMedra de filosofi a L' meta f ísica . L' p ,irci,1lnwn!L' rL·,·istas pL'lo
autor <lté 19,lll.
A MFM()Rli\, A IIIST()RIA, O ESQUl:Cl"vlt:NHl

operação historiográfica aparece como des-distanciarncnto-identificação com aquilo


que outrora foi. Mas ao preço da extração fora do acontecimento físico, de sua face "in-
terior" que se pode chamar pensamento. Ao fim de uma reconstrução que mobiliza a
imaginação histórica, o pensamento do historiador pode ser considerado uma maneira
de re-pensar o que urna vez foi pensado. Num certo sentido, Collingwood prenuncia
Heidegger: "O passado, num processo natural, é um passado ultrapassado e morto"
(Tlzc Idrn of History, p . 225). Ora, na natureza, os instantes morrem e são substituídos
por outros. Em compensação, o mesmo acontecimento historicamente conhecido "sur-
ge no presente" (i/Jid.). Sua sobrevida é o próprio ato de sua reefetuação em pensa-
mento. Falta a essa concepção identitcíria, evidentemente, o momento de alteridade
que a idéia de "repetição" inclui; mais radicalmente, ela se baseia na dissociação do
ponto de vista do acontecimento entre sua ocorrência e sua significação. Ora, é esse
próprio co-pcrtencimcnto que a "repetição" recolhe.
Pode-se fazer justiça à conccpção lírica da "ressurreição" e à concepção "idealis-
ta" da "reefetuação", colocando sob o signo da idéia de repetição a "recordação" do
horizonte de expectativa dos homens d e outrora. A esse respeito, o caráte r retrospec-
tivo da história não poderia constituir para ela um aprisionamento na determinação.
Seria o caso se ficássemos presos à opinião segundo a qual o passado não pode mais
ser mudado e, por essa razão, parece determinado. De acordo com essa opinião, só
o futuro pode ser tido como incerto, aberto e, nesse sentido, indeterminado. De fato,
se os fatos são indeléveis, se não podemos mais desfazer o que foi feito, nem fazer
com que aquilo que aconteceu não tenha ocorrido, em compensação, o sentido do
que aconteceu não é determinado de uma vez por todas; além de os acontecimentos
do passado poderem ser contados e interpretados de outra forma, a carga moral vin-
culada à relação de dívida para com o passado pode se tornar mais pesada ou mais
leve. Falaremos mais sobre isso no Epílogo dedicado ao perdão. Entretanto, podemos,
desde agora, progredir bastante nessa direção, graças a uma ampliação e a um apro-
fundamento da noção de dívida muito além da noção de culpabilidade, como propõe
Heidegger: à idéia de dívida pertence o caráter de "carga", d e "peso", de fardo; onde
se reencontra o tema da herança e da transmissão, despojado da idéia de falta moral.
Certamente, a idéia de dívida não é um simples corolário da idéia de rastro: o rastro
exige ser seguido; é uma mera remissão ao passado do passado; ele significa, não
obriga. Enquanto obriga, a dívida tampouco se esgota na idéia de fardo: ela religa o
ser afetado pelo passé'ldo ao poder-se r voltado para o futuro. No vocabulário de Ko-
selleck, ela liga o espaço de experiência ao hori zonte de expectativa.
É nessa base que se pode falar de uma repercussão do futuro sobre o passad o,
no próprio cerne do ponto d e vista retrospectivo da história. É dado ao historiador
poder voltar, na imaginação, a um momento qualquer do passado como tendo sido
presente e, portanto, como tendo sido vivido pebs pessoas de outrora, na condição de
presente de seus passados e de presente de seus futuros, para retom a r, mais uma vez,
as fórmulas de Santo Agostinho. Os homens do passado foram, como nós, sujeitos de
iniciativa, de retrospecção e de prospecção. As conseqüências epistemológicas dessa
consideração são nottin?is. Saber que os homens do passado formularam expectações,
pre\'isões, desejos, temores e projetos é fraturar o determinismo histórico, reintrodu-
zindo, retrospecti\·amente, a contingência na história.
Retomamos um tema recorrente em Raymond Aron em sua l11trod11çi'io à filosofia dn
!1i:;;tôrit1 (1937), ou seja, sua luta contra a "ilusão retrospecti\·a de fatalidade " (p. 187).
Ele introduz esse tema em conexão com o recurso do historiador a construções irreais,
pelo qual aderia ao conceito weberiano da "imputação causal singular". Mas ele am-
plia\·a o mesmo tema por uma reflexão sobre o vínculo entre contingência e necessida-
de na causalidade histórica: "entendemos aqui que a contingência é, simultaneamente,
a possibilidade de conceber o acontecimento diferente, e a impossibilidade de deduzir
o acontecimento do conjunto da situação anterior" (111trod11çâo .. ., p. 223). É essa con-
sideração geral sobre a causalidade histórica que predispõe a \'incular a reação contra
a ilusão retrospecti\·a de fatalidade a urna conccpção global da história, definida como
"esforço de ressurreição, mais precisamente para se reportar ao momento da ação,
para tornar-se o contemporâneo do ator" (ov cit., p. 234).
A história dos historiadores não est.í., port.rnto, condenada à historicidade inau-
têntica que Heidegger declara "cega às possibilidades" (Ser e Tc111po, p. 391 ), como o
seria uma historiografia fechada numa atitude museogr.í.fica. A historiografia tam bém
compreende o passado como "retorno" de possibilidades escondidas.
A idéia de "repetição", compree ndida segundo a palana d e Heidegger como a
"força" do possível (op. cit., p. 395), seria, então, a mais apropriada para exprimir a
convergência no limite entre o discurso sobre a historicidade e o discurso da história.
Com essa idéia, gostaria d e concluir esta seção, atribuindo-lhe o alcance suplemen tar
que lhe confere o que Heidegger chama de a travessia da "história da transmissão",
a saber, a espessura dos processos interpretativos interpolados entre a representação
presente e o tendo-sido do passado "repetido"" . No tema da repetição, recruzam-se a
segunda e a terceira parte da presente obra.

::;3 J. Creisch (011tolt1c1;ic ct fr111pomlift\ op. til., p . .17-1) relaciona, opPrtun,1mL·ntl', o qul' HL·idl'ggl'r dc-
r1L1mina aqui " histúria da trnnsmissl\o" cum ll que Cad.inll'r chama llL' "história da açZ\o" (Wir-
k1u1gsgcsc/1it"!1tc): "É um fato, conwnta C,1d,1mer, qut' niio se lig,1 ,1pena s ,ll) fencímeno histt1ricu o u
ú ubr,1 transmitida, ma;; também , num,1 ternMica segunda, ú su,1 açZio na histúria qul', ,1íin.1l dL'
contas, comporta tambL·rn a hi;;tór ia da pcsqu is,1 " ( Wrilt; et Mdh odc, P/1 cit, p. 322) . Esse pa r,ígra fo
importante dl' Vi;rité ct i\frtlwdc ni'io dL'\'l' ser st.·p,1r,1do do qlll' o precede, e que trata da sign ificaçfü1
hl'rrrn·nê·utica '\fa distóncia histórica " (i/,id., p. 312 e seg.): est,1 n,io dc\'t.' sl'r comprL'L'ndid ,1 como
um csp,1ço \·azio, urna separ,1ção, mas como um L'spaçu produti\O de compreens,io, cornn um
entremeio que u círculo hcrnienê·utico foch,1, círculo formado, conjuntamente, pela intc rprc taç.'io
L' s ti.1 contrapartt'. A distánci,1 tl'mporal a,;sirn curnprL'l'ndida L' d n,ndiçii\1 da " hi stória da ,1çii,/'.
A rv1EM(lRIA, A HIST(lRIA, O ESQLiJ :CJMJ:VIO

III. Ser-"no"-tempo

1. No caminho do inautêntico

Em Ser e Tc111po (segunda parte, capítulo 6), o termo "intra temporalidade" designa
a terceira modalidade de temporalização. Na verdade, é nesse nível que se determina
a história dos historiadores tal como ela é factualmente operada. De fato, é "no" tempo
que os acontecimentos ocorrem. O "ser-no" foi reconhecido em toda sua legitimidade
ontológica desde a primeira parte da obra. O "ser-no-tempo" é a maneira temporal de
ser-no-mundo. Desse modo, a preocupação, essa estrutura fundamental do ser que
somos, dá-se como inquietação. Ser-no significa então ser-junto - junto das coisas
do mundo. A maneira de "contar com o tempo", que resume todas as nossas relações
com o tempo nesse nível, exprime, fundamentalmente, a maneira temporal de ser-no-
mundo. E é por um efeito de nivelamento que o ser-no-tempo é puxado para o lado do
conceito vulgar do tempo como seqüência de instantes discretos oferecidos ao cálculo
numérico. Por conseguinte, é importante ficar atento aos traços positivos dessa relação
com o tempo que depende ainda da ontologia do ser histórico. A esse respeito, a lin-
guagem comum é um bom guia; expressa nossas múltiplas maneiras de contar com o
tempo: ter tempo, ganhar tempo, dar tempo etc. 5-1. A tarefa do hermeneuta é, aqui, se-
gundo Heidegger, liberar as implicações existenciárias tácitas dessas expressões. Elas
se deixam reagrupar em torno da preocupação que nos coloca na dependência das
coisas "junto" das quais vivemos no presente vivo. Assim, a preocupação leva para o
centro da análise a referência ao presente, da mesma maneira que o ser-para-a-morte
impõe a referência ao futuro, e a historicidade, a referência ao passado. Nesse ponto, as
análises de Santo Agostinho e de Husserl, organizando o tempo em torno da instância
do presente, são pertinentes. A preocupação ratifica essa prioridade. O discurso da
preocupação é, cm primeiro lugar, um discurso centrado no presente vivo. No cerne
do dispositivo da linguagem, preside o "agora que ... " a partir do qual todos os acon-
tecimentos se deixam datar. É preciso, ainda, liberar a databilidade da determinação
de data numa cronologia que determina a operação de "contar com o tempo" por
um "cálculo" de intervalos medidos. Por sua vez, a databilidade, como capacidade
do tempo de ser contado, evoca o estiramento do tempo, figura concreta do que foi
chamado, acima, de extensão. Acrescenta-se, enfim, um traço que marca a parte do
ser em comum nas maneiras de contar com o tempo: é a publicidade, caráter público
da databilidade e do estiramento. O cálculo do tempo astronômico e do tempo calcn-
dárico enxerta-se nessas escansões do tempo da preocupação. Antes da quantificação,
há essas medidas ritmadas do dia e da noite, do repouso e do sono, do trabalho e da
festa. A respeito disso, pode-se falar de um "tempo preocupado" (Ser e Tempo, p. 414).

54 Em Si 111es1110 rn1110 u111 outro, op. cif., l'nfatizo a riqueza de sentido da metjfora da "con ta", que
encontramos em v,1rias línguas, como base da idéia de imputabilidade (a cco1111 /11/Jility em ingl L'S,
Rcc/111c11gefiiliigkcit em alemão).

@ 394 @
.-\ C O\:IJl(,' .\(l J-I IST(l J{ll ,\

Ú ltimo toque da análise existenciária : um tempo pode ser considerado oportuno, ou-
tro, inoportuno; tempo para fazer ou não fazer;;. A "significati\'idade" seria a expres-
são recapi tulativa mais apropriada dessa cadeia de determinações do ser no tempo.
Contudo, esta não d e ixa de gravitar em torno do agora: dizer "agora" (op. cit., p. 41 6)
resume, ainda que tacitamente, o discurso da preocupação.
A força dessa arnílise é não se deixar fechar em oposições de escola, tais qu a is o
subjetivo e o objetin1. Afirma-se que o tempo do mund o é "mais objetivo que todo
objeto possível " e "mais subjetivo que todo sujeito possível " (op. cit., p. 419).

2. O ser-no-tempo e a dialética da memória e da história~(,

Fala-se apenas um,1 \·ez da história, nas linhas introdutórias do capítulo sobre a
intratemporalidade d e Ser e.' Tempo. Para Heidegger, o que importa é a vulnerabilidade
desse modo temporal ao efeito de ni\·elamento exercido sobre ele pelo conceito vulgar
do tempo. Em conseqüência, todo o esforço se concentra na preservação dos \'Ínculos
desse modo temporal com a historicidad e e, além dessa, com a temporalidade funda-
mental do ser-para-a-morte. Proponho-me, contudo, a contin uar, ai nda nesse nível, o
diálogo entre o filósofo e o h isto riador. Num sentido, de fato, o que autoriza H eidegger
a folar, desde o início, da " incomple tude da análise temporal precedente do Dnsci11"
(op. cit., p. 404) é a preocupação de restituir, claramente, seu direito à "explicitação
'ôntico-temporal' factícia da história " (i/iid.). O adjetivo "factício", para o qual prefiro
a tradução franc esa "factual", visa, aqui, explicitamente, a prcitica efetiva da história,

:,:, j. Crcisch L'\'OG1 ns H'rsus do Qo/1t'lct bíbli n): "H,í um momento para tudo e um tempo p,ira t\)do
propósito debaixu do céu . Tt::·mpo de nasn.•r, e tempo dt::· morrer; kmpo dt• plantar, e tempo pa ra
c1rranca r a planta ... " ( Ecles iílstes 3,1-8). Creisch abrt::' s obre l'SSe a ssunto LI mil d iscuss,10 (On tologic
<'I Tc111pomlif( ;, up. cit., pp. 39-l--l02) que n,io pode deixar o h ist llric1d11r indiferente: a ex pressão de
tL'mpo comum ou tl'mpo público ílbre u m ,1 L'Scolha en trL' dti.1s inlL'rp retílÇÚt'S, il pri meira e nfati-
z,1ndo a a lterid ,1de do llutrn, como em Le,·i nas em Lc Tc111p~ ct l'/1111rc e, a segunda, sobre o \'Íncu 11)
co m a e xtL'rioridade espaci;il, por ocasião dns " lugares" que dennminamos ao mesmo templ) que
,is datíls 7 t preciso escolher entre e ssas du,1s kitur,1s 7 O que dissemos mai s acima, de acordl, com
E. Casey, sobre a H' rtl'ntl' "mund;ina" da lembr,111çc1 (prinll'ir,1 parte, c,1pítulo 1) defende n segun-
dn sentido; o que dissemos, por outro lad o, sobn.' ,1 atribuiçfül triplc1 da menHíria, a si m esmo, aos
próximos e aos distantt>s (primei rei parte, capítulo 3), ddendl' o priml' Íro sentido, L'JTI pr\ll de uma
rcd istribu ição dn tl'm p\l no leque completo d ,1s i n st{rncia s d l' ,itribu iç,10: o pn'iprio, os pr<ixi mos,
o s distantes.
S6 François DossL' tcn• a iel iz id é i;i dl' tt>rmin.H ,1 gr,llldl' invL·s ti gaç.'i n de sua obra L'l/i~loin·, op. cit.,
c11m o diálogo l'lltre a histúri,1 e a m e mú ria (" Lne histoire soci,1lc de la mém oi re", p p. 169-193). O
sexto perc urso pro pns to ~wlo ,1utor tem SL'U ponto de partid ,l tlll " rom,1nce n ,1cion a l" (p. 169 e scg. ),
,ltinge ll ápice com Bprgson e "a distinç,10 e ntre duas memúrias", pe1wt ra co m l la lbwach s nc1 na
da "di sso ciação hi sttiri a / nwrnór ia", p,,r,1 desL' mboc,,r na s iormas ,·a ri,1das de problem ,itiz,1ç,1n
mútu,1 d as duas grandes instc'í ncias de retrospecçiio. A últim ,1 p ,11,n-r,1 L' ent,10 pronunci,1da pel,1
in s tância do futuro: do ho ri í'Olltl' de expectatiY ,l procede n com·itl' p,,ra "n•visita r as Z\lnas de
sombra", para substituir a " repetição fas tidiosa" ~wla "cri,1ti,· id<1de ", enii m, para rL'colocar, n1m
Kosclleck, mcmúria e hi stúria sob a égide do "futuro do pass,1d11".
A MFM()RIA, A IIISH'JRIA, O ESQUFCl\ffNTO

na medida em que, como as ciências da natureza, ela faz intervir o "fator tempo".
Aqui, questiona-se, exatamente, a profissão do historiador. Uma nova reflexão sobre
essa profissão mereceria ser empreendida sob a égide da análise existenciária dessa
qualidade temporal retomada no momento de hesitação, no qual o ato de "contar com
o tempo" ainda não foi incluído no "cálculo".
A referência de base à preocupação pode servir de ponto de partida para esse úl-
timo colóquio com o historiador. De acordo com a orientação geral da historiografia
que privilegiamos, o referente último do discurso da história é a ação social cm sua
capacidade de produzir vínculo social e identidades. São assim levados ao primeiro
plano agentes capazes de iniciativa, de orientação, em situações de incerteza, em répli-
ca a restrições, normas, instituições. A atenção dada aos fenômenos de escala reforçou
esse primado conferido ao agir em comum, no duplo plano dos comportamentos e das
representações. É-nos, assim, permitido acrescentar à observação anterior, que diz res-
peito, sucessivamente, à morte na história e à historicidade na história, a referência a
humanos preocupados com o seu agir em comum. O historiador não tem apenas como
contraponto mortos, para os quais ele constrói um túmulo escriturário; ele não se dedi-
ca apenas a ressuscitar viventes de outrora, que não existem mais, mas que existiram;
ele se dedica are-apresentar ações e paixões. Quanto a mim, associo, explicitamente,
a tese favorável à idéia de que o referente último da representação historiadora é o
vivente antigo, atrás do ausente de hoje na história, à mudança de paradigma que, na
"guinada crítica" dos A1111nlcs dos anos 80, promoveu o que se pôde chamar de "pa-
radoxo do ator",7 • A história visa não apenas ao vivente de outrora, na retaguarda do
morto de hoje, mas ao ator da história decorrida, desde que se decida "levar a sério os
próprios atores". A esse respeito, as noções de competência e de ajuste expressam bem
o equivalente historiográfico da preocupação heideggeriana.
Essa consideração geral me servirá de exórdio para uma penúltima releitura do
movimento de conjunto da presente obra, não mais apenas no ponto em que se recru-
zaram a idéia de representância e a de repetição no final da seção precedente, m as, de
modo mais amplo, no ponto de sutura entre uma fenomenologia da memória e urna
epistemologia da história. Em Heidegger, não encontramos palavra alguma sobre a
memória, mas, sim, alguns traços penetrantes sobre o esquecirnento5K, ao qual faremos
justiça no próximo capítulo. Ora, as perplexidades mais tenazes, concernentes ao tra-

57 Cf. Christian Delac roix, "La falaise et !e rivage. Histoire du 'tournant critique"', in Espaces Tc111ps,
Lcs Calricrs, n'' 59-60-61, 1995, pp. 59-61, 86-111. Sob o signo da C.C. (guinada crítica), o autor refaz
o pl'rcurso que fizemos nos primeiros parógrafos do capítulo "Expli cação/compreensão ". Seu
caminho passa por muitos autores, com os quais eu também cruzei: Bernard Lepetit, os hi storia-
dores da 111icrostori11, a soci ologia das cidades de Boltanski-Thévenot, etc. O número dos A 111111/cs d e
novembro-dezembro de 1990 sobre as "mobilidades" já confirmava essa exaltação do paradigm a
da ação e do ator, reivindicando que se " levassem a sério as representações e as lcgiti mações tc(1-
rica s e práticas que o s atores constroem " (op. cit., p. 1273 ; citado por C. Delacroix, art. cit., p . 103) .
58 Cf. Ser e Te111po, op. cít., pp. 44, 219, 292, 339, 341, 342, 345, 347, 354, 369, 391 , 407, 409, 410, 424, 425
([11dcx :11 Heideggcrs Sci11 1111d lcit, Tübingen, Niemeyer, 1961). No próximo capítulo retoma rei al-
gt11nas das observações mais importantes de Ser e Tc111po sobre o esquecimento.
tamento "factício" do tempo pelo historiador, dizem respeito à articulação do saber
histórico sobre o trabalho de memória no presente da história"". Gostaria de mostrar
que, na atitude por princípio rctrospccti\·a comum à memória e à história, a prioridade
entre essas duas perspectivas do passado é indecidível. A ontologia do ser histórico
que abraça a condição temporal em sua tripartição - passado, presente, futuro- está
habilitada a legitimar esse caréÍtcr indecidí\·el, sob a condição da abstração do presente
e do futuro. Proponho proceder a uma repetição dessa situação de indecidibilidade,
com o objetivo de autenticá-la como legítima e justificada nos limites em que ela é
reconhecida.
Estabelecerei um paralelo entre dois desenvolvimentos cruzados e concorrentes.
De um lado, temos a pretensão de dissolver o campo da memória no da história gra-
ças ao desenvolvimento de uma história da memória, considerada como um de seus
objetos privilegiados; do outro, temos a resistência da memória a tal absorção graças
à sua capacidade de se historicizar sob uma diversidade de figuras culturais. Uma
passagem no limite, Ílwersa da precedente, designa-se sob a forma de uma re H1lta
da memória colcti\·a contra o que surge como uma tentati\'él de dominação sobre seu
culto da lembrança.

a) A memória, simples província da história?

Essa di111in11tio rnpitis é incentivada pelo desenvolvimento tardio de uma história da


memória. De fato, nada impede de fazer surgir a memória entre os "novos'' objetos da
história, ao lado do corpo, da cozinha, da morte, do sexo, da festa e, por que não, das
finadas mentalidades. A esse respeito, a obra de Le Goff ML'IIIOirc ct Histoirc é exem-
plar"n. A história da memória, diz ele, faz parte de uma "história da história " (prefácio
da edição francesa), portanto, de um procedimento de cunho reflexivo. A história da
memória é o primeiro dos capítulos dessa história redobrada e, nessa condição, a me-
mória é ainda reconhecida como a "matéria-prima da história", "o viveiro consultado
pelos historiadores" (Mé111oirc ct Hi~toire , p. 10). A disciplina histórica "vem, por sua
\'ez, alimentar a m emória, e entra no grande processo dialético da memória e do es-
quecimento vivido pelos indivíduos e pelas sociedades" (op. cit. , pp. 10-11). Mas o tom
continua marcado pela desconfiança cm relação a um elogio excessivo da memória :
"Pri\·ilegiar demais a memória é imergir na onda indomável do tempo" (op. cit., p. 11 ).
O estatuto da memória, numa história da história, é insepará\·el de uma reflexão acer-
ca do binômio passado / presente, que se inscreve numa rubrica distinta, na medida em
que a oposição marcada por esse par não é neutra, mas subentende ou exprime um
sistema de valorização, como nos pares: antigo / moderno, progresso / reação. O que é

::;y Bernard Lepl•tit, "Le présent de l'histoire", in Lc, hm11c~ de /c.rphic11,·c, t'P. cit , p. 273. " É na tr,rns-
iormaçào do \'alor do presente que encontramos a origem da mudança d e situação do p,1 s sad o"
(1/,id, p. 290)
6ll O capítulo "Mémoire" é um dos dez artigos publica dos suct•ssi\·amerüe na E11c_11dc1pcdi11 [ i 111111di,
Turino, Einaudi , 1986, t._•d. franc. parcial, Pari s, C,1llimard, 1988.
J\ :'vtEM(H<IJ\, J\ IIISH'>RIA, O l'SQ U ECJMléNTO

próprio da história da memória é a história de seus modos de transmissão. O proce-


dimento do historiador aproxima-se, aqui, do de A. Leroy-Gourhan, em Le Gcstc ct ln
Parole. Assim, nas divisões periódicas da história da memória, passa-se, sucessiva-
mente, das sociedades sem escrita para o desenvolvimento da memória, indo da orali -
dade para a escrita, da Pré-história para a Antigüidade; em seguida, para o equilíbrio
entre o oral e a escrita na época medieval; depois, ao progresso da memória escrita do
século XVI até os nossos dias, para terminar com os "transtornos contemporâneos da
me mória" 61 •
É na esteira da história da memória que ganha corpo a tentação de despojar a me-
mória de sua função matricial em relação à história. É o tipo de risco que Krzysztof
Pomian assume, sem ceder a ele, em seu ensaio intitulado "Da história , parte da me-
mória, à memória, objeto de história" 1' 2• O título parece anunciar um trajeto sem retor-
no. De fato, leva-se em consideração uma cultura determinada da memória: a que está
relacionada ao passado da Europa cristã e, mais especificamente, católica. A his tória
dessa figura é conduzida de seu apogeu a seu declínio, de acordo com um modo narra-
tivo bastante conhecido. Contudo, não é a interpretação unívoca anunciada pelo título
que prevalece no final do percurso, mas a confissão de uma relação mais dialética entre
história e memória coletiva, sem que, todavia, sejam reconhecidos os traços d a memó-
ria e do esquecimento que permanecem os menos sensíveis às va riações resultantes de
uma história dos investimentos culturais da memória.
Desde o início do artigo, a memória é rapidamente caracterizada como memória
relativa a acontecimentos. Nada aparece aqui das sutilezas da relação entre a ausência
do passado e sua representação no presente, nem das dificuldades ligadas à ambição
veritativa da memória em seu estado declarativo. Essa última aparece, desde o início,
presa nas redes de uma a utoridade transcendente, em que os problemas de credibi-
lidade são considerados como já resolvidos. Nesse estágio inicial, a memória coletiva
"continua imbricada no conjunto das representações que tratam do além" ("De l'his-
toire ... ", p. 73). A idéia d e uma "identificação do passado antigo com o além" (ibid.)
desempenha, dessa forma, o papel de arquétipo do estágio agora ultrap assado. Nesse
estágio, o religioso mantém cativas as reservas de problematização do testemunho.
As representações, freqüentemente encenadas pela liturgia e que deportam o imagi-
nário para um além, já preencheram vazios da relação fiducié:íria na qual se estabele-
ce o testemunho. É por isso que a história da relação da história com a memória só
poderá ser, doravante, a de uma autonomização da história e m relação à memória,
a d e uma "fissura [.. .J entre o passado e o além e, parale lamente, entre a memória
coletiva e a crença religiosa" (art. cit., p. 75). Em be nefício dessa autonomização são
prodigalizados os episódios maiores da comunicação ligados à irrupção da escrita e,

61 Le Goff b nliza a trnnsição da "me mória em fichas", parn falar como Leroy-Gourhan, pa ra a "me-
ca nografia" e para a "memúria eletrônica" (Histoirc et Mé111oirc, op. cit., pp. 164-165) . Assim, con sti-
tut'm-se gigantescos arquivos bibliogrMicos, em rela ção aos quais Yeru sh almi e Nora assinab rã o,
um pouco ma is ad ia nte, suas preocupações.
62 Krzysz tof Pomian, Rcvuc de 111 él11physiq11c ct de 111omlc, n'' 1, 1998, pp. 63-110.
,\ Ul\.D I(, \ll III SHlR ICA

de modo ainda mais dr,1111,itico, da imprensa, e, depois, da difusão mercantil das obras
impressas. Os momentos marcantes dessa passagem da história durante o século XX
são bastante conhecidos: fase dos J\1111t1/cs, papel crescente de uma cronologia que não
deve mais nadJ à rememoração, introdução no discurso d e no,·as exigências retóricas,
adoção de uma narrati\'a contínua, apelo à invisibilidad e d e motivações suscetíveis
de serem racionalizadas, ao invés dos recursos à pro\'idência , ao destino, à sorte, ao
acaso. A credibilidade argumentada dos documentos escritos rompe, doravante, com
o estatuto fiduciário de uma me mória autorizada de cima para baixo. Assim, pode ser
neutraliza da a oposição aparentemente dirimente entre a si ng ularidade dos acon teci-
men tos ou das obras, a,·ançad a pela hermenêutica, e a repetição de itens, segundo a
his tória serial. Nos dois casos, a his tória trata "do que não foi objeto de uma apreensão
pelos contemporâneos" (art. cit., p. 102). Ambos recorre,n a " ,·ias cxtramemoriais".
Diferem apenas os objetos: de um lado, obras literéí rias e artísticas, de outro, entidades
conléÍ\'eis, como se ,·ê e m economia, cm demografia ou em sociologia. De todas essas
maneiras, a noçiio de fonte se liberta totalmente da noção de testemunho, no sentido
intencional do termo. /\ essa variedade de documentos, acrescenta-se a noção de ,·estí-
g io emprestada da estratigrnfia geológica; a ampliação sofrid a pelas noções familiares
de fonte, docun.ento e rastro, mos tra-se, assim, simultaneamente, temporal, espacial
e temática, send o q ue esse último qualificativo leva e m conta a diferenciação entre
história política , econômica, socia l, cul tural. Assim, cons tró i-se um passado, do qual
ninguém pôde se lembra r. É para essa história, solid.fria de um "po nto de vista line de
todo egocentrismo", que a história dei xo u de ser " parte d a memória", e que a memória
se tornou " parte da hi stória ".
A defesJ d e K. Pomim1 de uma história libertada do jugo da me mória, ,·isto que
esta é identificada com uma d essas figura s culturais historicamente datadas, não deixa
d e ter força, uma ,,ez aceito o ca rcíter unilateral d a abord agem do autor: "As relações
en tre a memória e a his tória serão abordadas aqui numa pcrspectiva histórica " (art.
cit., p . 60). Ao mes mo tempo, são ignorJdos os recursos potenciais da memória que
permitiriam empregar esse termo num sentido menos determ inado culturalmente.
Parece-me que esse desconhecimento resulta da postulação inicial de um parentesco
de princípio entre memória e percepção, pare ntesco afiançado, a parentemente, pelo
fenômeno do testemunho ocular. Presume-se que a testem unha tenha visto. Mas a
problcmcitica da presença do ausente na representação do passado, assim como o ca-
réter eminentemente fiduciário do tes temunho ainda que ocular (cu es ta,·a presente,
acredite ou não) são, assim, perdidos d e , ·ista d esde o começo. Tratando-se do caráter
coleti,·o da rnemória, perdeu-se também de \'is ta a consciência fundamental de p er-
tencer a um grupo capaz de se designar na primeira pessoa do plu ral e de mold a r sua
id entidad e ao preço d as ilusões e das ,·iolências que se conhece. Mais do q ue tud o,
paira sobre o ensaio uma desconfiança ,·isceral e m relação a essêl memória med ie,·éll ,
pela quéll J. Le Coff manifesto u tan ta simpatia.
Todavia , o ensa io não segue essa tendência sem corrig ir, com uma série de to-
ques sucessivos, seu ca r,íter unil ateral. V,í rias observaçc"ies ach ·ogam a idéia, não de
/1 MEMÚl~IA, A HI ST (JRIA, O ESQU FCIM ENTO

uma substituição da memória pela história, mas de um rcrnanejamento incessante da


relação entre história e memória coletiva. Assim, é creditada ao humanismo "a re-
distribuição da memória das elites" (art. cit., p. 83). Da mesma maneira, fala-se da
"memória coletiva dos eruditos" (art. cit., p. 85). Diz-se que a imprensa suscitou várias
"renovações da memória coletiva" (art. cit., p. 88), ligadas à elevação do passado pró-
ximo e longínquo à categoria d e objeto de estudo. Considera-se também que a crise
aberta pela Reforma suscitou, no seio da cristandade, uma "guerra das memórias"
(art. cit., p. 92). Até o "divórcio entre história e memória" (art. cit., p. 93), sob a dupla
forma de uma "ruptura da memória literária e artística e de uma ruptura da memória
jurídica e política" (art. cit., p . 94), equivale à construção de uma "nova memória"
(ibid .). Finalmente, acrescenta-se que a emancipação cognitiva em relação à memória
(art. cit., pp. 93-97) culmina na ampliação temporal, espacial e temática "das memórias
coletivas dos europeus" (art. cit., p. 103). O que o percurso d esenhado pelo ensaio de
K. Pomian estabelece, efetivamente, além da inversão das relações entre história e me-
mória resumidas pelo título, é um sistema de descompassos, nos quais as diferenças
entre história e memória são "máximas quando se trata de um passado muito longín-
quo, do passado da natureza, e reduzidas ao mínimo, quando o passado está próximo,
cm todos os aspectos, da história" (art. cit., p. 107). Esse jogo de diferenças atesta que o
fato d e se tornar objeto de histó ria é algo que ainda acontece a essa memória, cuja cons-
tituição representativa, na minha opinião, torna possível, cm princípio, esses descom-
passos. A esse respeito, o tom das últimas páginas do ensaio se torna mais didático:
"entre a história e a memória não há compartimento estanque" (art. cit., p. 109). Fala-se
de uma "memória nova", "que se superpõe à antiga memória escrita, assim como esta
se superpôs a uma memória oral ainda mais antiga" (art. cit., p. 108). Minha interpre-
tação sobre o abrandamento da tese vigorosa que reforça o ensaio é a seguinte: foj a
preocupação de preservar o papel formador da história, em relação ao sentido cívico
e, mais precisamente, ao sentido nacional, portanto, em relação à identidade projetada
pela consciência coletiva, que frcou a impulsão polêmica originada da oposição maior
entre a história erudita e uma memória enquadrada pela religião, na Europa cristã.

b) A memória, encarregada da história?

Escutemos agora a defesa inversa. É permitido conceber uma história que se servi-
ria tanto das variações imaginativas, dependentes de uma his tória cultural da memó-
ria e do esquecimento, como d e reveladores a respeito de potencialidades mnemônicas
dissimuladas pelo cotidiano. A esse respeito, poder-se-ia falar de "historização da me-
mória", mas seu benefício d everia ser posto na conta da memória.
Escolhi como exemplo dessa historização da memória o exame proposto por Ri-
chard Tcrdiman, crítico literário de língua inglesa, do que ele denomina "crise da me-
mória", a qual ele vê surgir no ponto mais sensível da litera tura do " longo século
XIX" 61 • Uma correlação é proposta entre uma consciência de época, caracterizada por

63 Rich ard Terdiman, l'rcsc11f 1111d Past. Modcrnify 1111d t'1c Mrn1ory Cri~is, ltharn e Londres, Comei 1
University Press, 1993. t\ obra L' dedicada ao "funcionamento da memóri,1 n a cultura". A irn'l'S-
Baudelaire com o termo modernidade, e essa "crise da memúria ". Essa correlação aco-
pla um conceito oriundo da periodização da história (o " longo século XIX") e figuras
determinadas da operação mnemônica (as figuras de crise). É nesse aco plamento que
consiste a historização da memória. Longe d e ra tificar a tese, anteriormente critica-
da, d a subordinação da memória à história, da qual teria se tornado o objeto, esse
fenôm eno reforça a tese oposta, segundo a qual a memória se encontra revelada a si
mesma, em s ua p rofund idade, pelo mo\·imento da históri a. Além disso, em \ ·ez de a
crise d a memória poder ser considerada como uma simples dissolução da relação en-
tre passado e presente, as obras que lhe conferem uma expressão escrita lhe atribuem,
ao mesmo tempo, u ma inteligibilidad e notável ligada à própria d elimitação dessas
configurações culturais. Seria essa a dádiva da modernidade à fenomenologia - a
hermenêutica lançando a passarela de uma senüótica das representações do passado
entre fenômeno his tórico e fenômeno mnemô nico. Assim, o enigma da representação
do passado no presente se encontraria, simu ltaneamente, aprofu ndado e elucidado, na
medida de sua d eterminação cultural.
Ao escolher comentar a Co11fissiio de 11111_fillw do sérnlo, d e Musset, e o poema "O Cis-
ne", extraído d os "Quadros parisienses" d as Flores do Mal d e Baudelaire, Richard Ter-
diman estabeleceu, como contraparte, um espaço textual apropriado à correlação entre
crise histórica e crise rnnemônica. A passagem de uma crise para a outra foi possí\'el
porque, por um lado, o que se chama de revoluções do século XIX são, indivisamente,
acontecimentos efeti\'amente ocorridos e relatórios desses acontecimentos, em suma,
narrativas trans mitidas, e, por outro lado, porque a literatura constitui um laboratório
verbal, retórico e poético, de uma inacreditável força de elucidação, de discriminação
e até mesmo d e teorização. O histórico contad o e o mnemônico experimentad o se re-
cruzam na linguagem.
Portanto, são configuraçôes cu ltura is particulares do fenômeno mnemónico q ue a
história dos Tempos Modernos d á a conhecer. E são fi guras de crise. Pa radoxal é que
essas figuras, que parecem privilegiar a dissolução do vínculo em virtude do qual o
p assad o persiste n o p resente, sejam figuras inteligíveis em razão das possib ilidades
de conceitualização abertas pela poética da crise. É possível relacionar as múl tiplas
variantes desse disc urso da crise com o tema m aciça mente p re\'alente da perda. A esse
respeito, o discurso d a modernidade contrasta, numa tipologia sum aria mente bi nária,
com o discurso da reminiscência integra l que pud emos ler na Ft'110111e110/ogia do espírito
de Hegel, e que a ca lma goethiana repercutira vibrantemente. Ao contrário, diz-se: o
desespero do que desaparece, a impotência para acumular a lembrança e arquivar a
memória, o excesso d e presença de um pa ssa do que não pá ra d e assombra r o presente
e, paradoxalmente, a fa lta de presença d e um passado para semp re irrcvog,h-el, a fuga
desnortead a do passado e o congelamen to d o presente, a incapacidade de esquecer
e a incapacidade d e se lembrar do acon tecimento a uma boa distâ ncia. Em resum o,

tig,iç.'í o é fei t.1 dL·ntrn d o espír ito d e "t//e '1i~ton1 o( (011~rio 11 ~11c~~", L'ns inada na Uni,·e rsid,1de da
C,1li fúrn ia e m S,111t,1 Cruz L' 11ll Dep.ir t,inwn to dL' Fr,incês d ,1 St,1nford Unin•rs ity, acL·rc,rnd o-se d o
pl'nsaml'nto dl' Mic hL'I dl' Ccrtrnu .
A Ml:M(Wli\, A III ST(l l!IA, O FSQU l -:C I MF\; T()

a superposição do indelével e do irrevogável. Ainda mais sutil é a ruptura da dialo-


gicidade inerente a uma memória comparti lhada, na experiência pungente da solidão.
Diante desses textos literá rios d e uma extrema sutíleza, é preciso aprender a docilida-
d e da leitura e a astúcia de uma dialética sinuosa.
Assim, não é indiferente que seja em favor d e uma transgressão desteologizada
do tema literário da confissão, herdado de Santo Agostinho e de Rousseau, e d e
uma reviravolta da confissão contra seu projeto terapê utico, que um "filho do sécu-
lo" pôde confessar o que é apropriadamente d enominado "mal do século" e, assim,
confiar o cpocal a urna dicção s ingular, que confere uma nova eficácia performa tiva
à confissãd'4.
Quanto ao poem a "O Cisne", é a homonímia de uma única palavra - o cisne e o
signo* - que, desde a enunciação do título, convida o leitor a achar a pista das astú-
cias dos jogos da representação d estinados a significar a perda. De fato, é a perda que
reina no núcleo do que Terd irnan denomina "11111c111011Ícs of disposscssion ". O leitor não
d eixará de comparar essa interpretação do "Cisne" de Baudelaire, na qual se en fa tiza
deliberadamente o fenómeno da historização d a memória, com a interpretação de Jean
Starobinski, evocada mais acima 6~. Em favor dessa aproximação, sugiro relacionar a
"11mcmo11ícs of disposscssion ", segundo Terdirnan, ao que se poderia chama r, segundo
Starobinski, de a mnemónica da melancolia. É exatamente nessa linha frágil que sepa-
ra o luto da melancolia que o poema aponta a crise da memória.
O que a literatura da crise d a memória suscitada pelo horror à história revela, a fi-
nal, é o caráter problemático do modo de perseverança do passa do no presente; esse
traço, já o d issemos, resulta do fa to de que a referência à ausência é constitutiva do
modo de presença da lembrança. Nesse sentido, a perda pode se revela r inerente ao
trabalho da remem oração. Todavia, essa referência à ausência não seria fonte de per-
plexidade se a ausência permanecesse sem pre compensada pela espécie de presença
própria d a anamnese, quando esta é coroada pela experiência viva do reconhecimento,
emblem a da memória feliz. O que faz a crise, n a crise da memória, é a obliteração da
vertente intuitiva da representação e a ameaça, que a ela se acrescenta, de perder o
que se pode chamar de atestação do ocorrido, sem o que a memória seria indiscernível
da ficção. A dimensão nostálgica do mal do sécu lo, do spleen, procede, entretanto, d a
resistência d essa irredutível atestação a s ua própria d estruição. Vigny e Baudelaire
confessam, sucessivamente, essa irred utibilidade: "Para escrever a história d a própria
vida, é preciso antes ter vivido; logo, não é sobre a minha v ida que escrevo", declara
Vigny. "Tenh o mais lembranças do que se tivesse mil anos", confessa o chantre do
"irrepa rável".
O que permite, em última a ná lise, imputar esse processo de historização da me-
m ória à memória mais do que à história? É a necessidade d e completar a eidética

64 R. Terdiman, "Thc mnerno nics of Musset's con fess ion", ibid., pp. 75-105.
Em fr.:i n cês, ;:i hornonírnia é expressa pelas palavras "cygne" e "signc ". (N. do T.)
65 C f. primeira parte, p. ]22, n a qual 0 tratada a obra de Jea n Starobins ki, Ln Mélan colic 111111,iroir. Trois
!t:ctu/'r's de Hn11dclnirc, 011. cit.
1\ Cll" l) J<....\ () H ISTOR JC,\

da m emória por um e xam e das variaçôes imaginativas pri\' ilcgiadas pelo curso da
história. Afinal, a eidétirn atinge apenas uma capacidade, um pode r fazer, o poder
fazer memória, como autoriza a dizé-lo a abordagem da memória enquanto exercida
(primeira parte, capítulo 2). A esse respeito, as potencia lid ades mne mônicê!S são da
mcsmêl o rdem que as percorridas cm Si 111c~1110 co1110 111n outro, sob êlS rubricas do posso
fazer, falar, contar, e me considerar capaz de imputação m ora l. Todas essas pote nciali-
dades d esignam as ap tidôes do que cha m o de o homem capaz, outra d enominação do
si m esmo. O e u posso me lembrar se inscreve também no rcgistro d os poder fa ze r d o
homem capaz. Como as outras capacidades, e la depende d esse modo de certeza que
merece o nome de a testação, simultaneamente irrefutável em termos de prcn-a cogn i-
ti\·a e s ubmetid a à s uspe ita, em virtude de seu caráter d e crença. A feno menologia do
testemunho conduz iu a anéí lise da atestação até o limiar do fa zer his tória. Isso posto,
essas potencialid ad es, cujo núcleo im·aria nte a c idética pretende ating ir, perma necem
indete rminadas qu,ulto à s ua realização histórica . A fenomenologia d eve, aqui, e le\·ar-
se ao nível de uma hermenêutica que leva em cons ideração as figura s culturais limita-
d as que con stituem, de certa forma, o texto hi stórico da memória. Essa medi aç,fo pela
história é, principa lme nte, possibilitada pelo caráter d eclara ti vo da me mória. Além
disso, e la se to rna mais urgente pe lo cará ter problemMico do fenômeno mnem ónico
central, a sa be r, o en igma de uma representação presente do passado au sente. Torna-
se legítimo supor que é sempre sob formas culturais historirn mente limitad as q ue a ca-
pacidade de fa zer memória se deixa a preende r. Em contrapa rtida, é na m edida em que
essas d e te rminaçôes culturais são a cada \'ez limitadas que elas são conceitualrnente
identificáveis. A "crise da memória " - como " 11111e111011ics ci disposscss io11 " , segun do
Te rdima n - constitui uma d essas crista lizações levadas conjuntamente cm conside-
raçào pela história literária e pela fe nomenologia concebid a com o hermenêutica. O
processo de his torização da memória, \·ersad o em benefício de uma fenome no logia
hermenêutica d a me mória, mostra-se, assim, estritamente simétrico ao processo pelo
q ual a his tó ria exerce sua função corre ti,·a de \'erdade cm relação a uma me móri a que
exerce incessantem ente, a seu respeito, sua fun ção matricial.
Portanto, não é numa aporia paralisante que d e\'e d esembocar o debate inces-
sa ntem ente retomado entre as pre tensôes ri vais da história e da me mória d e cobrir
a tota lidade d o rn mpo abe rto, por trás do presente, pela representação d o passado.
Certa mente, nas condições de retrospecção comuns à memória e à his tória, o conflito
pe rmanece indecidÍ\·el . Mas sabemos por que ele é assim, já que a re lação d o presente
do h istoriador com o passado é recolocada sobre o pano de fundo d a gr a nde di a lética
que mistura a a ntecipação resolvida, a repetiçã o do passado e a preocupação presente.
Assim e moldurad ,1s, liistórill da 111e1nória e histori: açí'io dll 111c111ória pode m se confrontar
nu ma dialética aberta, que as pn.'sen·a d essa passagem no limite, dessa h11hri~ que
seriam, d e um lado, a pretensão da história d e redu z ir a me mó ri a à ca tegoria de um
d e seus obje tos, d e o utro, a p retensão da m emória coleti,·a d e a\'assalar a história pelo
viés d esses abusos de memória, nos qu ais pod em se transfo rm ar as comemoraçôes
impostas pelo poder político ou p elos g rupos d e pressão.
1\ MLM(lRI A, A III ST() RIA, O ESQ Ul:Cl v!l'I\ TO

Essa dialética aberta oferece uma réplica razoável à questão irônica, colocada no
Pre lúdio d a segunda parte, de sabe r se o plrnr111nko11 d a invenção da história, sobre o
modelo d a invenção da escrita, é veneno ou remédio. A questão inicial, falsamente
ingênua, encontra-se, doravante, "repetida" no molde da phronesis, da consciência
avisada.
É para a instrução dessa consciência avisada que vão contribuir os testemunhos d e
três historiado res que inscreveram essa dialética na parte mais sensível da profissão
de historiador.

IV. A inquietante estranheza da história

Unheimlichkeit é o nome dado por Freud ao sentimento penoso experimentado por


ocasião de sonhos que giram em torno d o tema dos olhos vazados, da degolação, da
castração. É o termo que se traduziu, d e modo feliz por "inquietante estranheza" (un-
canny, em inglês).
Eu o adoto, quando, pela última vez, elevo o testemunho à categoria de pesagem
existencial dos pontos teóricos engajados sob os títulos sucessivos de "a morte n a his-
tória" {seção J, 2), "a dialética d a historicidade e da historiografia" {seção II, 2) e "a
dialética da memória e da história" (seção III, 2).

1. Maurice Halbwachs: a memória fraturada pela história

Os leitores de Memória coletiva talvez nunca tenham avaliado a medida da ruptura


que interrompe o curso d a obra, quando é introduzida a inesperada distinção entre
memória coletiva e memória histórica 66 • A principal linha de p artilha, pela qual o au-
tor batalhou no passado, não passava entre m emória individual e memória coletiva,
essas "duas espécies de memória" (Memória coletiva, p. 97) - essas "duas m aneiras
de as lembranças se organizarem" (ibid.)? E, n o entanto, a diferença é marcada com
intensidade: entre memória individual e memória coletiva, o vínculo é íntimo, ima-
nente, as duas espécies de memória se interpenetram . É a tese principal da obra. Não
acontece o mesmo com a história, enquanto não for d estinada ao que vai se tornar
memória "histórica". O au tor se recoloca na s ituação de aluno aprendiz d a história.
Essa situação escolar é típica. Em primeiro lugar, a história é aprendida pela memori-
zação d e datas, de fa tos, de nomenclaturas, d e acontecimentos m arcantes, de persona-
gens importantes, de festas a celebrar. É, essencialmente, uma narrativa ensinada, cujo
quadro d e referência é a nação. Nesse estágio d a descoberta, ela própria relembrada
ulteriormente, a história é percebida, principalmente pelo aluno, como "exterior" e

66 O título do capítulo 3 é: "Memória colet iva L' memória histórica". As citações remetem à be m-vin-
da reed ição de 1997 de Ln M1•111oírc collcti'uc, op. cít.
morta. A marca negativa d e positada nos fatos evocados consiste em que a criança não
pôde testemunhá-los. É o reinado do om·ir-dizer e da leitura didática. O sentimento
de exterioridade se encontra reforçado pelo enquadram ento calendári C<.) dos acon te-
cimentos ensinados: aprende-se, nessa idade, a ler o calendário, como se aprendeu a
\'eras horas 67 • A insistê ncia nesse conceito de exteri o ridade tem, segura mente, um tom
polêmico, mas ela di z respeito a uma perplexidade que nos é familiar desde o Fcdro
de Platão. A continuação do capítulo é dedicad a à rea bsorção prog ressiva d o d escom-
passo entre a his tória ensinada e a m e m ória ,·ivida, descompasso esse reconstruído na
situação da posterioridade. "É posterio rmente, então, que pode m os ligar as diversas
fases de nossa vida aos acontecimentos naciona is" (op. cit. , p. 101). No início, porém,
certa violência vinda do exterior é exercida sobre a m emória"\ A descoberta do qu e se
cha m a réÍ de m emória histórica consiste numa verdade ira aculturação à exterioridade ".
Essa aculturação é a d e uma familiarização progressiva com o não familiar, com a in-
quie tante estranheza do passado his tó rico.
Essa familiarização consiste num pe rcurso iniciático, através dos círculos concêntri-
cos constituídos pelo núcleo familiílr, pelas camaradagens, amizades, re laçôes sociais
dos pais e, mais do que tudo, pela descoberta do passado histórico por intermédio da
memória dos ancestrais. O vínculo transgeracional constitui, a esse respeito, a es pinha
dorsal do capítulo "Memória coletiva e m em ó ria histórica": através da memó ri a an ces-
tral transita o " rumor confuso que é como o movimento da h istória" (op. cit. , p. 11 1).
Na medida em que os mais velhos da família perdem o interesse nos acontecimentos
contemporâneos, eles in teressam as geraçôes seguintes no que foi o cen á ri o de suas
próprias infâncias.
Gostaria de m e d eter, m a is uma vez~", no fenômeno d a memó ria transgera ciona l
que estrutura profunda mente o capítulo de Maurice H a lbwachs. É e le que assegura a
transição entre a histó ria a p rendida e a memória viva. Em Tc111po e 11arrntiz 1n, e, ·oquei
esse fen ó m eno sob o título d e " A scqüência das gerações" e o incluí entre os procedi-
m entos da inserção d o tempo vivido na vas tidão do tempo cósmic</ 1• Na verd ade, não
se trata ainda de um procedimento da historiog rafia com o são o tempo calendárico e
os a rquivos. Trata-se de uma experiência forte, que contribui para ampliar o círcu lo

67 Ess,1s divisôcs "se impôem de fora a tnd,1s as memórias ind i\·iduais precisanwnte porque elas n.'io
tê m origem em nenh u ma d e las" (A 111c111ô,-i11 cofl'l i t111, op. cit., p. 101). O mesmo va le p a ra "as data s
marcadas no mostrador da hi stó ria " (i/Jid.).
68 "Os acontecim(•ntos e .is datas que const it uL'm a própria s ubstân cia LLl \·id a em g rupo SlÍ podem
se r, parn o indiddu o, sina is e xte ri ores, aos quais e les só se repor tam sob a condição que sc1í rem de
si" (i/1id , p. 102).
69 A primeira vez em quL' ,1 pa lavra aparece no texto, fa la-se com prudL·ncia ''d e um a ou tra nwnHíria
que se denomin.iria de hishírica, na qual só t'stc1ri,1m incluídos acon tL'cimL'1üos n,ic iona is que n,io
pudemos conhece r ent.'io" (i/,id ., p. lOS).
70 Encont rn mos a questão do vínc ulo gcrac ion,11 e m ligaç,io com o cnncl'itn kiL'rkcgaardi ,11w, rt't11-
m,1dn por Heidt:>gger, d L' "repe t iç:\o". Nessa o por tu n idad e, L'\'lKamos com P. Ll'gcnd rl' o aspccto
institucional da filia ç,io.
71 Tc111po e 1111rr11ti, •,1, t . Il i, up. t"it., pp. 198-2 11.
/\ MLM()RIA, /\ HIST( )RI A, O FSQ U EC IM ENTO

dos próximos, abrindo-o em direção a um passado que, ao mesmo te mpo em que


pertence àqueles de nossos ancestrais ainda em vida, nos põe em comunicação com as
experiências de uma outra geração que não a nossa. A noção de geração, que é aqui
a chave, oferece o duplo sentido da contemporaneidade de uma "mesma" geração, à
qual pertencem, conjuntamente, seres de idades diferentes, e da scqüência d as gera-
ções, no sentido da substitui ção de uma geração por outra. Quando crianças, apren-
demos a nos situar nessa dupla rel ação, muito bem resumida pela expressão proposta
por Alfred Schutz72 , do triplo reinado dos predecessores, dos contemporâneos e dos
sucessores. Essa expressão marca a transição entre um vínculo interpessoal em "nós"
e uma relaçã o anónima. Testemunha disso é o vínculo de filiação que faz, simultanea-
mente, brecha e s utura. É, ao mesmo tempo, um vínculo carnal ancorado na biologia,
graças à reprodução sexuada e à substituição constante dos mortos pelos vivos, e um
vínculo social fortemente codificado pelo sistema de parentesco próprio da sociedade
à qual pertencemos . Entre o biológ ico e o socia l intercala-se o sentimento tanto afe-
tivo quanto jurídico da adoção, que eleva o fato bruto do engendramento ao nível
simbólico da fili ação, no sentido mais expressivo d a palavra 71 • É esse vínculo carnal
de aspectos múltiplos que tende a se apagar na noção d e seqüência das gerações. Mau-
rice Halbwachs, cm seu texto quase autobiográfico escrito na primeira p essoa, assinala
o papel das narrativas recebidas d a boca dos m ais velhos d a família, na ampliação d o
horizonte temporal que a noção de memória histórica consagra. Apoiad o na narrati va
dos ancestrais, o vínculo de filiação vem se enxertar na imensa árvore genealógica
cujas raízes se perdem no solo d a história. E quando, por s ua vez, a narrativa d os
ancestrais recai no silêncio, o anonimato do vínculo geracional prevalece sobre a di-
mensão ainda carnal do vínculo d e filiação. Então, resta apenas a noção abstrata de
seqüência das gerações: o anonimato fez oscilar a memória viva na história.
Todavia, não se pode dizer que o testemunho d e Mamice Halbwachs chegue à d e-
negação da memória coletiva. O próprio termo sanciona o s ucesso relativo da integra-
ção da história numa memória individual e coletiva ampliada. De um lado, a história
escolar, feita de datas e d e fatos memorizados, anima-se com correntes de pensamento
e com a experiência, e torna-se aquilo que o próprio sociólogo tinha considerado ante-
riormente como "os quadros sociais da memória". De o utro, a memória, tanto pessoal
como coletiva, enriquece-se com o passado histórico, que se torna progressivamente o
nosso. Ao substituir a escuta da palavra dos "velhos", a leitura d á, ao mesmo tempo,
uma dimensão pública e íntima à noção dos rastros do passado. A d escoberta dos
monumentos do passado é a ocasião para descobrir "ilhotas de passado conservadas"

72 A lfred Schutz, Tlie f1hc110111c11olosy of t/,c Social Wor/d, op. cit.


73 Insisto, em outrn parte, no fa to de que o nascimento e a morte não constituem lembra nças pessoais
e têm a ver com a m cm<Íria d os prúx imos suscetíve is d e se regozijarem com uma e se afli girem
com a outra. A memória cole tiva, e co m mais razão, a memória hi s tórica, s<Í retêm desses "acon-
tecimentos" a substituição dos iltores da história, uns pelos outros, segundo a seqüência regu la-
mentada da trans mi ssão dos papéis. Sob o olhar do terceiro historiador, as gerações se suced em
nas escrituras do reg ist ro civ il.
(op. cit. , p. 115), e nquanto as cidades ,·isitadas g uardam suils " fisionomias d e ou trora"
(i/1id.). É assim qu e, pouco a pouco, a memória histórica se integra à memória \'i\·a. O
caráte r de e nigma que obscurece as narrati,·as do p assad o long ínquo se atenua, ao
mesmo tempo em que as lacunas d e nossas próprias le mbranças se preenche m e s ua
obscuridade se dissipa. o ho rizonte, d e lineia-se o d esejo d e uma memória integral,
re unindo memóri a indi\'idual , memória coletiva e m e mória histórica, desejo que a r-
ranca de Halbwac hs essa exclamação di g n a de Bergson (e de Freud): " N a da esquece-
mos '' (op. cit., p. 126).
A história fundiu-se, fin almente, na memória? E a memó ria se ampliou cm memó-
ria histórica? A esse respeito, as últimas reticências d e Mauri ce Halbwach s são signi -
ficativas. À primeira , ·is ta, elas teste munha m um mal-estar nas fronteira s da disciplina
histórica e uma quere la com v istas a um a di \' isão disci plinar. É , ·erdade, poré m a cri-
se toca mais profundamente no ponto exato crn que a memó ria histórica se avizinha
da memória cole tiva . Em primeiro luga r, a referência principal d a memó ria h is tórica
continua a ser a nação; ora, entre o indidduo e a nação h á muitos outros grupos,
cm p articul ar , profiss ionais. Em seg uida, um a discordância secreta, que nossas duas
outras teste munhas ampliarão, subsiste e ntre memória coletiva e memória his tórica,
o que fa z com que Halbwachs diga que, "cm gera l, a história só começa no p onto e m
qu e te rmina a tradição" (op. cit., p. 130). O papel da escrita, que se tornou para n ós o
eixo e m torno do q ual gi ra a operação his to riog ráfica, é considerado p e lo autor como
o princípio de dis tancia mento da "narração seg uida", na qua l se deposita a histó ria. O
afastamento no te mpo é assim consagrado pelo afastamento na escrita. A esse resp eito,
gosto de enfatizar, n o texto d e Ha lbwachs, o recurso recorrente ao advérbio ou trora,
que me apraz opor ao a nteriormente da memóri a 7<. N as últimas p áginas do ca pítulo, a
oposição e ntre os procedimentos d a histó ria e rudita e o exercício da m e mória coleti \'a
torna-se um requisitório, uma esp écie d e desafio dirigido a colegas tão próximos como
Marc Bloch e Lucien Febvre.
Dois traços distintivos d a história são tidos corno irredutÍ\·eis. À continuidade da
memó ria viva se o p õe, prime irame nte, a d escontinuid ad e induz ida pelo trabalho de
periodização próprio do conhecimento histórico; d escontinuidade que enfatiza o ca-
ráte r decorrido, abolido, d o p assado: "Na história, tem-se a imp ressã o d e que, de um
período ao outro, tudo é re novado ... " (op. cit. , p. 132). Assim, a his tória se interessa,
sobretudo, pel as diferenças e pelas opos ições. Cabe, então, à memória coletiva, por
ocasião principalmente das gra nd es re,·oluções, reforçar as no\'as instituiçôes socia is
"com tud o o que se pode retornar de trad ições" (op. cit., p . 13-l). É exata m e nte esse d e-
sejo, essa expectati\·a, que a crise d a con sciên cia histórica e\'ocad a por nossos dois o u-
tros a utores qu estion a rá mais uma \'ez. Segundo tra ço dis tintin1: h ,í vú ri as me m órias
cole ti\'as. Em compen sação, "a históri a é un, a e pode-se di zer qu e só há uma história"
(op. cit., pp. 135-136). Certam ente, como se di sse, a nação contin ua a ser a referência

7-l " H,i uma soluçiill de continuid zidl' entre ,1 s,Kil'd ,1dl' que IC• ess,1 h istó ri,1 e os g ruplls testemu-
nhas ou atores dos .icnntt·cinwntos d t' outrnr,1 que nela siio narradt)s" (/\ 111c111ciri11 o>ll'li,'<1, op. cit. ,
p. 131).
/\ ML M ()RJA, /\ HI ST()RJ A, () ESQ U EC IM ENTO

principal da memória histórica, e a pesquisa histórica continua a distinguir história d a


França, his tória da Alemanha, história da Itália. Mas o que se visa, por intermédio de
"somas su cessivas", é um quadro total, no qual " qualquer fa to é tão inte ressante qua n-
to outro qualquer e merece também ser destacado e transcrito" (op. cit., p. 134). Eis
que se evoca, graças a esse quadro, no qual " tudo está [ ... ]no mesmo plano" (op. cit.,
p. 136), o ponto de vista imparcial que Thomas Nagel transformará em teoria 7'. Ele tem
como manifestação historiadora "a orientação natural do espírito histórico" (op. cit.,
p. 136) rumo à história universal, que pode se apresentar "como c1 memória universal
do gênero humano" (op. cit., p. 137). A musc1 da história não é Polímnia? Ora, é impos-
sível reviver um passado que se tornou exterior aos próprios grupos.
Assim, o texto de Maurice Halbwachs descreve uma curva : da história escolar,
exterior à memória d a criança, elevou-se para uma memória histórica que, idealmente,
funde-se na memória coletiva que, por s ua vez, ela amplia, e í11 fine desemboca numa
histó ria universal que se interessa pelas diferenças de época e reabsorve as diferen ças
de mentalidade, sob um olhar trazido de lugar nenhum. A his tória, assim reconsi-
derada, merece ainda o nome d e "memória histórica"?7(, Memória e história não são
condenadas a uma coabitação forçada?

2. Yerushalmi: "mal-estar na historiografia"

H e ródoto pode ter s ido o pai da hi s tó ri a; o sentido na história foi in ven-


ção dos iudeu s.
t
ZAKHOR, I'. 24.

O livro de Ycrushalmi 77 tem a virtude, testemunhada pelas obras oriundas de


pensadores judeus, de permitir o acesso a um problema universal graças à exceção
constituída pela singularidade d a existência judaica. É o caso da tensão que atravessa
o século entre a mem ória judaica e a escrita da história, a historiografia. Esse livro che-
ga assim, oportunamente, ao meu próprio discurso sobre a história no momento em
que se d á ênfase ao distanciamento constitutivo da perspectiva histórica em relação à
própria memória coletiva, sobretudo coletiva, seria preciso dizer. Nesse sentido, este
livro segue o passo fora da memória evocado por Maurice Halbwachs, que Yerushalmi
menciona, aliás, com gra tidão. Já é significativo, para designar o conhecimento his-
tórico, o uso do termo "historiografia" que, segundo o trad utor, designa, muito fre-
qüentemcnte cm francês, uma disciplina refletida, a saber, "a análise, n o tempo, dos

75 C f. acima as observaçôes sobre a im parcialid ade, desejo comum ao historiador e ao juiz (terce ira
parte, capítulo 1, pp. 330-337).
76 A pr(,pria e xpressão memória histórica é posta cm dúvida v,í ri as vezes (A m e mória cokti \'il,
op. cit , pp. 105, 113, 118, 140).
77 Yerush a lmi, Zokl,or. /Ciui~I, hislory 1111d /ecl' isl, 111c111o ry, Uni versity of Washing ton l'ress, 1982; trad .
frnnc. de Éric Vig ne, Zaklwr. Histoirc j11h 1c e/ 111t;111oire juic>c, Paris, La Découvertc, 1984.
,\ Cll:\ U l<.,' ..\( l I II S J(l RJC ,\

métodos e das interpretações dos historiadores" (Zaklzor, p. Sf". A singularidade da


experiên cia juda ica é a indiferença secular de uma cultura eminentemente carregada
de história pelo tratame nto historiográ fi co d a mesma. Essa singularidade me parece
re\·eladora das resistências que toda m emória pode opor a tal tratamento. Num sen-
tido, el a desnuda, de uma ma n eira geral, a crise que a histó ria como historiografia
suscita no próprio centro da memória; que ,1 m emória pessoal ou coletiva se refira, por
definição, a um passad o mantido v ivo graças à transmissão d e geração e m geração, aí
está a fonte de urna resistência da memória a seu tratamento historiográfico. A í se en-
contra a ameaça d e d esenraiza m ento; H albwachs não disse: "A história começa onde
pára a tradição? " Ora, há várias formas de a tradição parar, segundo a mane ira como
o distanciamento historiador afeta a m emória , quer a consolide, corrij a, desloque, con-
teste, inte rrompa, destrua. O quadro dos efeitos de distancia mento é complexo. E é
aq ui que as especificidades culturais se afirmam, e que a singularidade dos judeus é
pa ra todos a m ais instru ti\'a 7" . O ponto crítico consiste no fato de que a memória decla-
ra ti\·a, a m emória que se enuncia, fa zendo-se narrativa, carrega-se d e interpretações
imanentes à narrativa. É possível falar, a esse respeito, de sentido da his tória, o qual
pode se encontrar , ·eiculado por géneros literários alhe ios à preocupação d e ex plicar
os acontecimentos históricos. En tão, é no seio da experiência verbal, discursiva, liter,1-
ri a, que o distanciamento historiador o pera . Aqu i ta mbém , o caso da m e m ória judaica
é, ao m esmo tempo, singular e exemplar. De fato, não se de\·eria crer que a m emória,
enq uanto alheia à historiogra fia, se re du zisse à tradição oral. Não é bem assim "entre
um povo tão alfabetizado quanto os judeus e a tal ponto d edicado à leitura" (op. cit.,

1 p. 14); o exempl o que dá a cultura judaica, g rosso mod o, até à Idade das Luzes, é o d e
uma memória impregnada de sentido, m as não de sentido historiog rá fico. O apelo a
lembrar-se - o fa moso Zaklwr -, martelado muitas e muitas vezes pela Bíblia'", é-nos
bastante conhecido, como foi dito ma is acirnas1; m as a injunção que v isa à tra nsm issão
das na rrativas e das leis se dirige aqui, através dos próximos, ao povo inteiro, interpe-
lado sob o nome coleti\'O d e Is rae l; a ba rreira entre o próximo e o longínquo foi aboli-
da; tod os os ch amados são próximos. "Ouve, ó Israe l", diz o Chc11w. Essa injunção faz
com que, "mesmo quando não requis itada, a memóri a continue a ser sempre aquilo
do qual tudo de pende" (op. cit., p. 21 ). Que essa injunçâo não designe de modo a lgum

7~ Na minha opiniãu, ,i l'Scolha semânt ica de nosso autor merL'Cl' ser estend id,1 à disciplina dos hi s-
tori.idort•s cm todo contexto cultural. El,1 significa que a escri ta e ,1 lt'iturn consti tuem , u1m(1 flii
mostrado mai s acima, cond içl'>es consubst,111ci,1i s d,1 operação h istoriadora .
79 "Ess,1 obra tem como tema essenc ial o que, por muitn tpmpo, lll t' pareceu SL'r um p,nado\:o L' que
tente i compreender: enq u,111 to o judaísnw , ,1tr,1,·0s dos tempos, sL·mprc ioi muito imprq~nad(1 do
sign ificado d a história, por que a histnri og r,ifi,1 dese mpenhou apL'll,b, na mel hor da s hipútl' ses,
um papel a ncil,ir t>ntrL' llS judeus, l', qua se SL'mp rc, n .'1 0 d t•scmpenho u papel a lgu m 7 \ias pnl\'a-
çúes experinwntadas pelos judeu s, a mt•múr ia do passado foi SL'mprc L'Sse ncial, mas plW q ue llS
hi sto riadores nu n c,1 for,1m seus pri mci ros dq1llsiU rios7 " (Z11/.:hor, op. ,·il., p. 12.)
80 Deuteronêimill 6,IU -12; 8, 11 -18.
81 Cf. aci ma ,1 di~c u ss,iP qul' trn t,1 do pn•sumido d ever dl' lllL'lllÚri ,1 (primeir,1 p,irll', c,1pítulo 2,
pp. 99-10-4).
1\ MIM()Rl/1, li HI ST(lRI A, O ES(JUJ-C Jrv11NTl)

a obrigação de escrever uma "coletânea verdadeira dos acontecimentos históricos"


(ibid.), eis o que é preciso, primeiramente, admitir e compreender. O espantoso é qu e,
diferentemente das concepções dominantes da história entre os gregos, "o antigo Is-
rael foi o primeiro que d eu sentido à história"s:!_ A expressão "Deus de nossos pais" é a
primeira a testemunhar o caráter "histórico" da revelação bíblica 81. Se nos detivermos
um momento nessa declaração, podemos nos perguntar se o reconhecimento tardio
do caráter histórico da fé bíblica já não é uma reconstrução originada da historiografia
à procura de seus antecedentes, ou melhor, um solo de enraizamento, não somente
anterior, mas estranho. Por ca usa d esse efeito de estranheza, empregamos a palavra
história e, principalmente, falamos de sentido d a história sem historiografia8 \ Decerto,
uma estreita exegese do vocabulário bíblico da memória, ele próprio inserido no vo-
cabulário d a Aliérnça, exegese completada por um cuidadoso trabalho de correlação
entre os ritos das grandes festas e as narrativas 8 ', dá a essa reconstrução do sentido
hebraico da história uma exatidão e uma fidelidade que fazem com que ela se apro-
xime da reefetuação tão cara a Col!ingwood. O lugar da narrativa ao lado das leis, e
mesmo antes delas, na redação canônica da Tora, testemunha essa preocupação com
o sentido da história. Mas como a diferença entre, de um lado, a poesia e a lenda e, de
outro, a história erudita é ignorada, ocorre que o sentido da história ignora a his torio-
grafia. Somos nós, equipados pelo método histórico-crítico, que nos perguntamos se
essa narrati va constitui uma "coletânea verdadeira d e acontecimentos históricos". É,
portanto, sob o controle do olhar retrospectivo que podemos dizer, com Yerushalmi,
que "não há equivalência entre o sentido na história, a m emória do passado e a es-
crita da his tória 1.. .] [e que] n em o sentido, nem a memória dependem finalmente do
gênero his tórico" (op. cit., pp. 30-31 ). O fechamento do Cânone, ratificad o pela leitura
pública, na sinagoga, das narrativas do Pentateuco e dos trechos tirados semanalmen-
te dos Profetas, conferiu ao corpus bíblico, completado pelo Talmude e pelo Midrash,
a autoridade das Sagradas EscriturasH6 _ Dessa autoridade, da qual os rabinos foram os

82 "O encontro essencia l do homem e d o divino deixou bruscamente - por assim dizer - o reino da
natureza para se inscrever no plano d a histúr ia, dorava nte p ensad a e m termos do desafio lançado
p\1r De us e da resposta dada pelo homem" (1/..okltor, op. cit., p. 24).
83 /\ esse respeito, é preciso m ostra r-se reconhec ido c1 YL·rushalrni por não s uperes timar a o posição
entre tem po cíclico e tempo linear: cnqu,rnto o tempo da história é linear, o retorno das es taçCws,
ritos e festas é cíclico. Sobre esse assunto, ler-se-á A. Momigliano, "Time and ancicnt hi storiogrn-
phy", in A11cie11t a11d 11wdcm !-liston1, Middletown, Connecti cut, 1977, pp. 179-214. Ycrushalrni ob-
serva com razão que "as pcrcepçõcs do te m po e as conccpçiíes d a his tória não eng lobam él mesrn,1
coisa" ('/..oklwr, op. cit., pp. 122-123).
84 "/\ dificuldade que cxistl' c m ex plica r esse apare nte paradoxo vem de um a pobreza de linguagem
que nos obriga, porfnlto de coiso 111e/ltor, a uti Iizar a palavra ' hi stória ' para designar tanto o passado
do q ual tratam os historiadores, como o passado da tradição judaica" (il!id., p. 42). !{essa ltar-se-,í a
declaração: por folta de coisa 111c//1or.
85 Observaremos, em particular, as narrnti vas em forma de cr!'do, como o Deuteronô mio 26,5-9, em
torno do qual o gra ndt: exegeta Von Rad articulava, na época, a "teologia das tradiçCws do a ntig(,
Isra el": T/1éologic dl's J\/tc11 1i's /11111c11/s, Munich, Chr. Kaiser Verlag, ·1960.
86 S,1grad as : isto 0, postas à parte do d iscurso H'St,rnte t', po rta nto, do o lhar c rítico.
A CO\: Dl<," .\, l I I IST( lR IC 1\

guardiões e os avalistas, d evia resultar a indife rença e mes mo a resistência tbs comu-
nidades judaicas da Idade Média (e mais além) a um tratamento historiog rá fico d e su c1
própria história e d e seus próprios sofrimentos. Ao que devem ser ac rescentadas as
especulações ulteriores dos Sábios, que se afastarão cla ramente d e toda atenção a um
sentido da história aind a imane nte às na rrati,·as e aos ritos da época bíblica.
Não é nosso propósito reconstituir, na esteira de Ye rus halmi, as e tapas d essa con-
frontação entre a m emória, o sentido da história e a historiografia. Em compe nsação,
as reflexões finais do autor muito nos importam, pois a singula rida de judaica se re,·ela
exempl a r cm relação ao que o próprio a utor chí.1ma d e o " ma l-esta r na hi storiogra fia"
(op. cit., p. 93), mal-estar ao qual é ded icada a última d as quatro conferências que cons-
tituem o livro Z ak/l(lr. O mal-estar próprio ao "historiador judeu profissional " (op. cit.,
p. 97), que Yerusha lmi decla ra ser, é exemplar pe lo fato de que o próprio projeto d e
uma WisS('11scluift dcs Judc11t11111s, nascido na Alemanha por ,·olta de 1820, não se limita
ao ad,ento de uma metodologia científica, mas implica uma crítica radica l d o sen tid o
teológico aderente à memória judaica, e equi,·a le à ad oção da ideologia historicis ta que
enfatiza a his toricidad e de todas as coisas . A rel aç.'10 vertical entre a eternidade ,,i,·a do

·- desíg nio di vino e a s vi cissitud es te mporais do povo eleito, q ue esta va no p r incíp io


do sentido bíblico e talmúdico da história, ced e lugar a urna relação hori zonta l d e
encad eame nto causal e d e validações pela história d e tOLfas as convicçõe s veem entes
da tradição. Mais que os outros, os judeus piedosos ressentem o " fardo d a his tó ria "s~_
O que é exemplar, aqui, é a correl ação entre historiog rafia e secularizaçã o, isto é,
para os jude us, "a assimilação no exterior, o d esmorona me nto no inte rior" (op. cit.,
p. 101). A noção de uma his tória judaica profana, que se desenrolaria no mes mo p lano
de realidade que qua lquer história, substitui uma concepçào prm ·idencial da histó ria .
Assim, apresenta-se pa ra todos, a exemplo do destino do p(n-o judeu, o problen,a
d as relações entre uma his toriografia sepa rad a da memória coletiva e o que nela sub-
siste de tradições nã o historicizadas. O leque das soluções, e\"Cxadas mais acima, de,·c
agora se r aberto. Na medida e m que, na cultura judaica, "a me móri a d e grupo [... ]
nunca d ependeu d os historiadores " (op. cit ., p . 110), coloca-se a questão do choque no
retorno da história sobre toda memória. A historiografia, observa Yerus ha lmi, refle tin-
do aqui para todos, "não é urna te ntati,·a d e resta urar a mem ó ria, mas representa u m
género realmente no ,·o d e memó ria" (op. cit., p . 111). Le\·a ndo mais alé m o arg umento,
Yerusha lmi indaga-se se, de qualquer maneira , querer sah-ar tudo do p a ssado é um
proje to razoáve l. A própria idé ia de nada esquece r não vai ao encontro d a loucu ra do
hon,em da memória integral, o célebre F1111cs e/ 111c111orioso (" Funes que nada esq uL'ce ")
d as FiCÇ()CS d e Borges? Paradoxalme nte, o delírio d e exaus ti,·idad e se revela contrcí ri o
ao próprio projeto d e fa zer his tó ria "". Curioszimentc, Yerusha lmi vc1 i ao encon tro d a
excla mação d e Nie tzsche na Sc:.;11J1dt1 co11~idcmçiio i 11 tc111pc~fÍ'i. 11: " Há um grau d e insônia,
1

87 É o título dL· um artigti de H. White: "Tlw Burd e n of 1-lis ttw,, ", in /-11,/tiry a11d F!i,·t'l"_II .'í i 1966),
t'/'· cit., pp. 111-13-l, citado por Yer ush,1lm i, Z11/.:/1or, º!'· â l ., p. l-l-l .
88 ",,\ em prc itad.i acabo u p or se automa nll>r, a bu sc.1 tornou-se f,1ust ica [ . . l ,1 som bra d e Func-; que
n ad a esquece pa ira sobrL' todos nós" (i/1id. , p p. 1rn - 119) .
/\ ML l\1(11{ 1/\, /\ IIIST( l RI !\ , O I S(lUFCIMI N TO

d e ruminação, d e s ignificado histórico além d o qual o ser vivo se encontra abalado


e finalmente destruído" (citado in Znkl10r, p. 147). A perplexidade do autor continua
grande. De um lado, ele ouve a consideração otimista de Rosens tock-Huessy sobre
a função terapêutica da his tó ria~''. De outro, pres ta atenção nas considerações a nti-
historicistas de G. Scholem e F. Rosenzweig. Nesse fogo cruzado - "hoje o mundo
jude u está na encruzilhada dos caminhos" (op. cit., p. 11 6) - , Yerushalmi assume seu
"mal-estar", o d o "historiador judeu profissional". Esse mal-estar é talvez o nosso, o
d e nós todos, filhos bastardos d a memória judaica e da histo riografi a secularizada do
século XIX.

3. Pierre Nora: insólitos lugares de memória

Pierre Nora é o inventor dos "lugares de memória"<J\). A noção é a pedra angular da


imensa coleção de artigos reunidos por Nora e apresentados, em 1984, sob esse signo
tutelar. Para descobrir-lhes a inquietante estranheza, é preciso refazer todo o p ercurso
dos ensaios d o m estre de obras, desde o artigo de 1984 até o d e 1992, data da publica-
ção do tomo III dos Lieux de 111é1110irc. À segurança do tom do primeiro artigo, intitu-
lado "Entre Memória e História. A problemá tica dos lugares", sucede a exasperação
suscitada pelo confisco d o tema por p a rte da paixão de comemoração, contra a qual o
autor p ôde se erguer em nome da histó ria nacional. Esse g rande movime nto p endular,
do primeiro ensaio ao último, revela, talvez, o que a noção continha de insólito desde
o começo.

a) Logo d e saíd a, o a rtigo d e 1984 anuncia, ao mesmo te mpo, uma ruptura, uma
pe rda e a e mergência d e um fenómeno novo. A ruptura se dá entre m em ó ria e histó ria .
A pe rda é a d o que se d enominou "história-memória" . O fenôm eno novo é o estágio de
uma "memória captad a pela his tória " . O tom é o de um historiador que se posiciona
c m relação ao tempo no qual articula esse triplo anúncio. Este não trata d e um acon-
tecimento, mas de uma situação. E é com base nessa situação que se d eve falar, p ela
primeira vez, de luga res de memó ria. Retomemos cada um d esses pontos, começando
pelo último e colocando, provisoriamente, entre parênteses as alusões disp ersas ao
tema dos luga res de me mória.
O jul gamento do historiador assemelha-se ao do filósofo Karl Jaspers qua ndo esta-
tui sobre "a s ituação espiritual de nosso te mpo". Essa s ituação é abordada sob o ponto
de vista do historiador, à maneira de uma conjuntura da qual é importante decifrar os

89 "O hi s toriador, esc reve E. Rosenstock-Huessy, é o médico da memória. Sua v irtude é cuid a r das
fer idas, verd ad c irn s feridas. Assim corno o méd ico deve agir independe nteme nte das teorias mé-
dica s, porque se u pac iente es tá d oente, assim também deve agir o historiador, im p uls ionado pela
moral, p a ra restaurar a memória de uma n ação, ou a da humanidade" (011/ of l-?.e,10/11tio11 1 Ncw
York, 1964, p. 696; ci tado por Yc rusha lm i, L'.11klwr, op. cit., p. 110).
90 Pie rre No ra (d ir.), Lc~ Lic11x de IIIL;111oirc, l, " La Rép ubliquc", op. cil., 198-l, pp. XV II-X UI.
sintomas com uma docilidade que justifique a firm eza do posicioname nto. A memória,
da qual se fala no começo, nã o é a capacidade geral investig ada pela fenom e nologia,
mas uma configuração cultural da m esma orde m que aque la à qu a l se referiu, mais
acima, um Terdiman; e a histó ria não é a opcrnção obje ti \'a abordada pela epis te molo-
gia, mas a re fle xão d e segundo grau para a qual, muitas vezes, se reserva, na Fra nça,
o te rmo "his toriografia", no sentido de história da his tória . Por isso seu lugar está
exc1tamente no final de um ca pítulo dedicado à condição histórica, mas apreendido
nos limites do presen te his tórico.
Primeiro tema, portanto: a ruptu ra entre m e mória e história. Para urna "memó ria
integrada", o p assad o aderia, d e modo contín uo, ao prese nte; e ra a "memória \ ·er-
dadeira " . A nossa , " que é ape nas hi s tóri a, ra s tro e triagem " (Lc~ Lirnx de 111é111oirc /,
p. XVIII), p erd eu "a ad equação da his tória e da m e m ó ria " (i/iid.) . "Uma vez que h á
rastro , m ed iação, n ão se es tá mai s na m e mória verdadeira, mas na história " (op. cit. ,
p. XIX )'11 • A m emó ri a é um fenômeno sempre atual, um dnculo vivido no presente
eterno, e "a histó ria, uma representação do p assa do" (i/Jid.). " A m emória é absoluta,
e a his tó ria só con hece o relativo" (iliid.). "A his tória é d e limitação do p assado \'i\'i-
d o" (np. cit., p . XX)" 2 •
Segundo tema: a perda da his tória -me m ória. "Só se fala tan to de m e m ória por-
que ela não existe mais" (op. cit., p . XV II ). Oespregamento, término, acabame nto,
passado d e finiti v ame nte morto: ta ntas p a la \'ras que fa la m d o desa parecimento. Os
sinais: o fim d os camponeses; o fim das sociedad es-m e mória (Igreja, escola, fam ília,
Es tado); o fim das ideolog ias-me mórias qu e liga m o futuro projetado ao passado
re le mbrado - e, e m compensação, a a p ar ição d e uma "his tória da histó ria " (op. cit.,
p . XX), de uma "consciê ncia his toriográ fi ca". Ela "traduz a s ub versão inte rn a de
uma his tória-memória por uma história c rítica " (op . cit., p . XXI), n a qual "a his tó ri a
começa a fazer s ua própria história" (ibid .). Na França, particularme nte, "a historio-
grafia é iconoclasta e irreverente" (ibid.). É o efeito da " desidentificação com a m e mó-
ria" (ibid.). Um te m a anexo se to rna preciso e se ampliará num artigo ulterior d e
No ra : a perda da refe rência à na ção, ao Estado-nação. Tra ta\'a-se de uma s imbiose,
caracte rística d o espírito d a Terceira República (dema r cada no p la n o profissi onal
p e lo nascime nto d a Rcu11c Jiistoriq11c, e m 1876), que implica um a d efi nição da m emó-
ria perdida como si mes ma, já aberta, a lé m d e sua intimidade e de s ua continuidade
in te rn a, p ara o ser e m comum do Estado-n ação. Daí a es tranha noção d e história-
m e mória em torno da qua l grav ita a primeira parte do artigo, intitulada "O fim dc1
his tória -memória" (op. cit., pp. XVII-XXV). A m e mória perdid a n ão era um a m e mó-
ri a indi vidual, n e m um a s imples memória cole ti va, m as já era um a m e m ória ins truí-
da no modo da sacra lidad e : " his tória sagrada po rq ue naç,1 0 san ta. É pela na ção qu e

9 1 Aqui, um <1 not.:i sobre ,1 lllL'lllt'1ri,1 jud ,1ic,1 , q ul' "e"clu ía uma prl'l)Cupaç,io com a hi stúr i,1" (if,id.,
p. X I X), fo/. em <1 Yl'ru s h,1lmi .
91 É il H,1lbwachs qu l' Sl' a lud e, pela opns iç,il1 l'tltl"L' ,1 nwm{ll"ia dv g ru pl1, "rnL·m<irii1 S múltipl,1s l'
dl's m u ltiplic,1da s, cnll'ti\·.is, p lu ra is L' ind i\· idu,1 I iz,1d.:is", l' ,1 h istôri,1 qt1l' "p l'rle nce ,1 todlls L' ,1 n i n-
g u é m, o que lhl' d,í u ma\ oc1 ç,i o p <1 ra (l uni n·r~a l" (ih1d ., p. X IX) .
i\ M EM()R Ji\, i\ HIST() Rl i\, O FS(JUl:Cl:v11 ê\:10

nossa memória se manteve no sagrado" (op. cit., p. XXII)''1. " A nação-memória terá
sido a última encarnação da história-memória" (op. cit., p. XXIII). A história-memó-
ria abrangia, assim, por intermédio da nação, o mesmo espaço de sentido que a
memória.
Terceiro tema: da ruptura entre história e memória, da perda assumida da históri a-
memória, emerge urna nova figura, a da " memória apreendida pela história" (op. cit.,
p. XXV). Três traços dessa nova figura são d esenhados. Em primeiro lugar, o reinado
do a rquivo. Essa nova memória é uma memória "a rquivís tica" (op. cit., p. XXVI), uma
"memória de papel", diria Leibniz. Reconhecemos nessa "obsessão do mquivo" (i/Jid.)
a grande mutação exagerada pelo mito de Fcdro, que trata da invenção da escrita. Vitó-
ria do escriturário no próprio cerne do memorial. Superstição e respeito pelo rastro: "O
sagrado investiu-se no rastro, que é sua negação" (op. cit., p. XXVII). O sentimento da
perda, como no mito platônico, torna-se a contrapartida dessa institucionalização da
memória. " Produz ir arquivo é o imperativo d a época" (op. cif., p. XXVIII). É um pouco
em tom de imprecação que Nora exclama:" Arquivai, arquivai, sempre restará algo!"
(ihid.). O arquivo "não é mais o saldo mais ou menos intencional de uma memória vivi-
da, mas a secreção voluntária e organizada de uma memória perdida". "Terrorismo da
memória historizada" (ibid.). É exatamente o tom do Fcdro de Platão, mas também o de
Halbwachs, reencontrado, tal é a insistência com que é enfatizado o caráter coercitivo
dessa memória vinda do exterior. É notável que, a essa materialização da memória,
esteja vinculado o elogio do património (1980: o Ano do Patrimônio), cujos efeitos
corrosivos em relação à idéia de lugares de memória como contemporânea da memó-
ria apreendida pela história, e não em rebelião cm relação à história, serão mostrados
pelos ensaios subseqücntes de Nora. Ele enfatiza, contudo, sua dilatação "até as fron-
teiras do incerto" (op. cit., p. XVII): de "propriedade transmitida pelos ancestrais íde]
patrimônio cultural de um país" - em resumo, "de uma concepção bastante restritiva
dos monumentos históricos, passou-se, muito abruptamente, com a convenção dos sí-
tios, para uma concepção que, teoricamente, poderia não deixar escapar nada" (op. cit.,
p. XXVJH). O leitor de Nora podia, desde 1984, ouvir a ameaça de uma redução in-
versa, dos lugares de memória cm sítios topográficos dedicados às comemorações.
Segundo traço, segundo sintoma: Nora vê no movimento de "conversão definitiva da
memória em psicologia individual" (op. cit., p . XXXIX) o preço a ser pago pela meta-
morfose histórica da memória. Segundo ele, isso não seria uma sobrevivência direta
da " memória verdadeira", mas um produto cultural de compensação pclé:1 his torização
da memória. Deveríamos a essa conversão Be rgson, Freud e Proust. Mélis que tudo,
a ela deveríamos o famoso dever de memória que se impõe inicialmente a cada um:
"Quando a memória não está mais cm todos os lugares, ela não estaria em nenhum
lugar se uma consciência individual, numa decisão solit,fria, não decidisse dela se en-

93 Esta con sideraçiio sobre a histór ia-m emória distingue Norn de Hal bwílchs, que tr,içava um corte
preciso entre memória coletiva e m emória histórica.
carregar novamente" (op. cit., p. XXX)"-1. Último sinal, último s intoma da metamorfose
da memória apreendida pe la histó ria: após a mem ória-a rq ui\'O e a mcmória-de\'er,
a memória-distância. Na \'e rdadc, era o prirneiro tema, o da ruptura entre história e
memória; agora ele é retomado sob o signo da d escontinuidade: passamos "d e um
passado de fácil acesso a um passado \'i\ cnciado como unia fratura" (op. cit. , p. XXXI).
Tah·ez ha ja, nesse tema, um eco do Foucault da Arqueologia do ~11/Jcr, militando contra a
ideo logia da continuidade memorial. Nora fala do "cul to da continuid ade" (i/Jid.).
É com base nessa nova s itu ação que surge a noção de lugares de memória. Enten-
de-se q ue não se trata aqui, unica mente, nem mesmo principa lmente, de lugares topo-
g ráficos, mas de marcas exteriores, como em Fcdro de Platão, nas quais as condutas so-
cia is podem buscar apoio para suas transaçôes cotidia nas. Assim, os primeiros lugares
ci tados no torno I são o calendário republicano, representaçào externa do ten,po social,
a ba ndeira, e mblema nacional oferecido a todos. Tantos objetos s imbólicos de memó-
ria, como a Bandeira Tricolor, os Arqui\'lis, as biblio tecas, os dicionários, os museus,
assi m como as comemorações, as festas, o Panteào ou o Arco d o Triunfo, o dicion,irio
Larousse e o Muro dos Federados. Tantos obje tos s imból icos d e memória oferecidos
como instrumentos de base d o trabal ho hi stórico. Os lugares de memória sào, e u d i-
ri a, inscrições, no sentido a mplo atribuído a esse termo em nossas med itações sobre
a escrita e o espaço'''. Essa abertura da noção de ve ser enfatizada desde o início, pois
é seu acha tamento nas loca lid ades territoriais, graças à metamorfose patrimonial da
identidade naciona l, que tornará possí\·e l essa captura do temc1 pelo espírito de come-
moração que serei d eplorado pelo artigo de 1992. No início, a noção, em \' irtude de sua
e,wergadura , não est,i a serviço da m emória, mas da história: "Hei lugares de memória
porque não hcí mais meios d e memória", é a franca dec laração que sa úda a entrada em
cena da noção (op. cit., p. XV II). Certamente, é em luga res que "se cristali za e se refu g ia
a memória" (i/Jid.), mas trata-se de urna " memória dilacerada", cujo dilaceramento não
é, na verd ade, tào completo q ue a referência à memória possa ser apagada. Nela, o sen-
timento da continuidade é s implesmen te " residual". "Os luga res de memória são, pri-
meiramente, res tos" (()JI. cit., p. XX I)"'·. Dessa ambigüidadc inicia l \·irão os deslizamen-

lJ-J Segunda rde rt'nci,1 :i menHíria jud,úGl: " Par,1 comprccmkr ,1 forçil t.' (l ilpelo dessil atribuiç,io,
ta ln:'1. fosse prL·cisu nilt<H-SL' par.i ,1 lllL'Irníric1 juLfoica, que con lwce hl1jt.', e ntre tantos judt.' US dt•s ju-
dc1iz ,1dos, um ,1 recl'ntl' rl'at i,·ação. Pois, 1wss,1 tradiç,in que n iiu tl'm uutrn histúria SL'n,iu su.i prú-
pria ml'múrí<1, ser judeu L' 1cm br,ll'-Sl' de Sl?- lo, m,1S t.'ssa lt.>mbrn n ç,1 i rrcc u s,í,·t.'I, uma 1·c 1 in tl'rio ri-
;,ada, u intima, poucll ,1 p\luco, a s(•-lp ll1l,1 lnwnll'. \kmúri,1 dL'. quê', L' lll ülti m,1 i n sti1ncia: Ill<'Illl)ri ,1
da mcmúria. A ps icologizaç :io da 11w111<íria deu ,1 tpdps u se nti nwnlL> dL' q ul' s ua rl'dl'nç,10 ckpl'n-
d i,1, fina Imcnll', d,1 qu it,1Ç,i ll dl' u rn ,1 d 1\·id,1 i m po ssí,·l'I " (Lc~ L icux dl' 111,;1111>il'C, 1, " La Ré publ iqup",
P/'· ât., pp. XXX-XX.\ I).
lJ'i C f. ,icirnil, st.'gu nd a p<1r tt.', c,1pítulo 1.
l)<, l not,Í\'L'I l]LIL' ,1 id l'.•i ,1 dl' coITIL'Illllr,1ç,10, rL'pl'l id,1rncn tl' in nic1d,1 . fiqu t· ,1pr is innad ,1 11,1 nostal -
g ia d,1 hi s túri,1 - nwm úri,1. F l,1 ilind,1 n,10 tui dl·n unci ,1d,1 cumu rc.:•pl ic,1 d,1 mcm<iri,1 ,lll i mpério
da h i s tl'iria: "Sem ,. ig i l,i n c ia cn mt'llllll',lti\' ,l , ,1 h ishíria o s , ,1 I'l'L'rÍ ,1 rapid ,1rnentl' 1os Iug,ircs dl'
lllL'múri,1 1" (il•id .. p. XXIV). l da s u ,1 furn;,io dl' refúgio qu t' ,1 mt:>múria conwmorati1·,1 rl'tlllll.H,i
11 cltaq uc d,1 históri,1 n ,1c in 11c1l. J\ fr,lSL' n,1 qu,11 I'l'\'l'l'bl'r,1 o tdtimo ,nt igo sobre ,1 era da comt.'Illll-
1-.1½-·'º mt.·rt.'CL' st.·r cit,1d,1: " l)L·i-d i:1,1nwnto d\l 111 L'mori <1I p,11'.i o histl'ir ico, de um mund o llndc h.i,·ia
i\ MUvlÚRIA, A IIIST()l{li\, O ESQUE CIMENTO

tos ulteriores da noção. O lugar extrai sua função da ruptura e da perda citadas: "Se
ainda habitássemos nossa memória, não precisaríamos consagrar-lhe lugares" (op. cit.,
p. XIX)97 . Contudo, o caráter residual da memória, sob o signo da história crítica, leva
a dizer que "uma sociedade que seria vivida integralmente sob o signo da história não
conheceria, afinal de contas, assim como uma sociedade tradicional, lugares nos quais
ancorar sua memória", (op. cit., p. XX). De fato, os lugares continuam a ser lugares de
memória, e não de história. O momento dos lugares de história é aquele "no qual ainda
palpita algo de urna vida simbólica" (op. cit., p. XXV).
Resta-nos falar dos lugares de memória sob o novo regime da memória apreen-
dida pela história. "Os lugares de memória, uma outra história", é anunciado com
um tom firme na terceira seção do artigo de 1984 (op. cit., pp. XXXIV-XLII). O ensaio
termina, com efeito, com uma nota conciliatória. Concede-se aos lugares de memória
uma eficácia notável, a de engendrar "urna outra história". Eles extraem esse poder
do pertencimento aos dois reinos da memória e da história . Por um lado, "é preciso
que haja vontade de memória. [... ] Basta que falte essa intenção de memória para que
os lugares de memória sejam lugares de história". Mas não se diz se essa memória é
a memória perdida da história-memória, cuja perda foi inicialmente deplorada, ou a
memória refugiada nos arcanos da psicologia individual e sua solicitação de dever.
Por outro lado, é preciso que a história se proponha a ser uma memória esclarecida,
corrigida. Mas tampouco foi dito no que se transforma o projeto de dessacralização da
história.
Esse poder de fazer interagir esses dois fatores, a ponto de chegarem a sua "so-
bredeterminação recíproca", repousa na estrutura complexa dos lugares de memória
que acumulam os três sentidos da palavra: material, simbólico e funcional. O primeiro
fixa os lugares de memória em realidades que consideraríamos inteiramente dadas e
manejáveis; o segundo é obra de imaginação e garante a cristalização das lembranças
e sua transmissão; o terceiro leva ao ritual que, no entanto, a história tende a destituir,
corno se vê com os acontecimentos fundadores ou com os acontecimentos espetácu-
los, e com os lugares refúgios e outros santuários. Nessa ocasião, Nora evoca a noção
de geração, à qual um artigo ulterior será dedicado, e que supostamente acumula as
três significações. O tom torna-se quase lírico para falar dessa espiral do coletivo e do
individual, do prosaico e do sagrado, do imutável e do mutável - e dessas "faixas
de Moebius enroladas sobre si mesmas", nas quais se encerra "o máximo de sentido
no mínimo de sinais" (op. cit., p. XXXV). A pretexto do património, evocado com in-
dulgência, o malefício da patrimonialização ainda não é percebido em sua tendência
a reduzir o lugar de memória ao sítio topográfico e a entregar o culto da memória aos
abusos da comemoração.

ancl'strai s para um mundo da relação contingente ao que nos foz , passa gem de um a h is túria
totêmica para uma histúria crítica: é o momento dos lug,irt'S de mern úria . Não mais se celeb ra a
nação, porL'l11 SL' estudam suas celebraçôes" (i/Jid. , p. XXV) .
97 Ouve-se aqui um eco das críticas desenvolvidas por Platão contra o "11 idc-1111'lllOirc", a !111p0111111•sis
(cf. prime ira ~xirte, capítulo 1).
.. \ C(l :\ i) ll_..\Cl III ST( lRIC .-\

b) O primeiro artigo d e 1984 sobre os lugares de memóri,, seria seg uido de \·,irias
outras intervenções d e Nora, e m pontos estra tég icos d,1 grande obra que e le dirigi a .
No ensaio "A nação-mem ória", publicad o após mais d e quaren ta tex tos d ed icados à
nação (Lic 11x de: 111t'111oirc ![), a recompos ição à q ua l convidam esses enfoques pontua is
tem como tema condutor o d ev ir da " m emfoia nacional ". Quatro tipos que bal izam
uma cronologia com grandes malhas são propostos: memóri a fundadora , contem porâ-
nea da mona rquia feudal e do período de definição e de afirmação do Estado; m em ó-
ria- Estado, "abson ·ida na imagem de sua pró pria representação" (a mesma que Louis
Marin cara cteri zou , m a is acima, como o " retrélto d o re i"); memória-nacional, m em ória
da nação que to m a consciência de si mesma como nzição, d a qual d á testemunho Mi-
chelet, ele " que transcende todo lugar d e m em ória, porqut', d e todos, ele é o lugélf
geométrico e o denominador comum, a ,1lmé1 d esses luga res de m e tnória " (Lic11x de
111t;11wirc li, p. 649); enfim, memória-cidad ã, d a qua l A lain é " o m od elo quintessencia-
do" (op. cit., p. 650). Mas, a firma-se, é o quinto tipo que confere, retrospecti\·amente,
um sentido a esse percurso afinal decepcionante: o tipo que é o n osso, " uma memória-
patrimônio" (il1id.) . Para nossa in vestigação sob re o d estino d a idéia de luga res de
memória nos textos d e Nora, esse momento da análise é d ecisin): ele marca uma re\' i-
ravolta intern a na p róp ri a noção de lugar de me mória. A definição é concisa: " por
memória-património niio se d eve compreende r tão-som ente a a mpliação brutal dci no-
ção e su a dilatação recente e problem á tica a todos os objetos testemunhas do passado
nacio nal, porém, muito m a is profundamente, a tra ns forma çiio cm bem comum e em
herzi nça coletiva d as apostas tradicionais da própria memória" (iliid.). Muito mais ser,:i
dito sobre esse assunto no último ensaio de Nora, que se encontra no fim d o tomo III
dos Lic11x de 111t' 111oirc; a pe nas sua marca sobre a dialé tica d a memó ria e da história é
aqui sublinhada . Dessa transformação p a trimonia l, diz-se apen as que e la " tra z uma
renovaçiio , em curso e m toda parte, da abordagem histórica da França pe ta memória ,
cuja centralidade a emprei tada d os Lie11x de 111é111oirc gostaria d e consagrar" (op. cit.,
p. 651 ). Dora vante, o sentimento de p ertencimento à naçiio, " no modo de uma sensibi-
lidade ren ovada à s ingularidade nacional" preva lece sobre as mediações e as oposi-
ções à identifícaçiio da n ação com o Estado: "Chegou a hora d e uma memória patri m <)-
n io e do reenco ntro da França com urna nação sem nacionalismo" (op. cit., p. 652). Esse
apagamen to d o dnculo entre a nação e o Estado tem como corolário a promoção da
memória, em função da qu a l apenas "a naçiio deve s ua aceitação unitária, gua rda s ua
pertinência e sua legitimid ad e" (op. cit., p . 653). Fazendo-se, assim, a econom ia do des-
\·io pelo Estado, a n1emória p retende fazer tam bé m a economia d o desv io pe la hi stória,
fundamento sol id ário na França da constituiçZio do Estado-nação: "dessa sedime nta-
ção nacional da m em ória , que se tra vo u em torno d o Estado, uma história completa -
m ente desen vol\' ida sob o ho ri zon te d o Estado-naçiio niio é m a is ca paz de presta r
contas" (op. cit., p. 65-¼}. Doravante, " 'A França ' é s ua p rópria m emória ou não é"
(op. cit. , p. 655).
No final d esse brC\ 'C e nsa io, pre\'a lecc ai nd él certa aguiescência à emergência da
mem ó ria-patrimó nio, tida corno característica do quinto tipo de mem ó ri a naciona l,
/\ \ffM(ml A, ,\ IIJ ST()l{ J;\, () FS() L; J:ClívtF N ro

e d e seu corolário, a "d epreciação d a versão nacionalista da n ação, galocêntrica, im-


perial e un iversa lista" (op. cít. , p. 657). Todavia, não é certo que a última palavra seja
pronunciad a enqua nto a noção de pa trimônio continuar indete rminada, e enquanto
continuar d espercebida s ua ca pacida de d e n ocividade e m relação à própri a idé ia d e
luga r d e m e m ória.

e) O ensaio "A geração " incluído na prime ira seção "Conflitos e partilhas", d a ter-
ceira pa rte, " Les Fran ce", to m o 1, d os Licux de IIIL'Jl!Oirc (pp. 931-969), não p arece muito
anuncia r, pelo título e pelo tema, um prog resso na a ná lise da idéia do luga r d e m em ó-
ri a e, mais precisam ente, de sua transformação pelo con tato com a d e p atrimônio. Mas
n ão é bem a ssim. Com a id éia d e geração, prevalece u ma v isão pura m ente h ori zonta l
d o v ínculo socia l; uma geração s ubs titui outra p or troca contín u a; sobretud o, a idéia
d e geração marca a desqualificação da geração d escendente p ela geração ascendente:
"O p assado não é m ais a lei: é a essência do fe nó meno" (Lic11x de 111é111oírc lll, tomo l,
p . 934). Essa " ruptura simbó lica" ga rante a preeminênciéi da identida d e h orizonta l
sobre todas as fo rm as d e solida riedade verti cal. Apesar das apori as nas qu ais esba r-
ra uma d efinição teórica d o fen ôm cno - que o a utor p ercorre-, impõe-se um tipo
d e p erte ncimento, c1 solidariedade ge ra ciona l e, com e la, uma questão notável : " Po r
que e com o, à m edid a que se acelera a mudança, a identificação hor izontal d o indiví-
du o pe la simples ig u ald ad e das id ad es n ão pôd e p reced e r tod as as outras form as d e
iden tificação vertica l?" (op. cit., p. 942). Não basta retraçar as e tapas "da construção
histórica d o m odelo" (op. cít., p p. 944-955), embora a passagem da noção p róxima da
bi olog ia, d a substituição d os m o rtos p e los v iv os à d e geração compreendida com o
urna form ação histó rica sing ul c1r p ermita encena r a histó ria d a mem ó ria : " H á pro-
vavelm en te, em cada país, uma geração, e só uma, que serviu d e m odelo e p adrão
para todas as seguintes" (op. cit., p . 944). Assim, Musset forjou a fó rmula poética d os
"filhos do século" q ue en contra mos anteriormente, com Terdim an . Na Fran ça, p a rti-
cu la rm ente, en trelaçara m-se nc1 panóplia g cracional os eixos d o p olítico e dc1 litera-
tu ra, d o p od er e d as pa lavras. É n essa a tmosfera que a história foi promov id a com o
discip lina, com s u a g rande p eriodização cíclica concelebrad a cm maio d e 1968. Fa lta
ex plicar por que a históri a da Fran ça pô d e ser ditc1d a pe la pulsão das gerações. O fe-
rece-se, e n tão, a noção d e luga r d e m em ória e s u a mistura de m e m ó ria e d e his tó ria,
sob o sig no d a subversão gcracion a l: " A gera ção é e sempre foi um misto de m em ó ria
e de história, mas numa re lação e em proporções q ue pa recem, ao lo ngo d os tem pos,
terem se invertido" (op. cit. , p. 955). A in versão consiste no fa to de que a noção de
geração, cons tru íd a n a retrosp ecção e, n essa cond ição, a travessa d a pela his tó ria, es-
conde-se em seu "efeito de rem em oração" (op . cit., p. 956), com o se vê no tempo de
Pégu y e de Barres. Imposta p rimeiram ente d e fora, ela é, e m segu id a, v iolentam ente
interiori zad a (o leitor p ercebe aqui um eco d as considerações d e Ha lbwach s sobre a
form ação do q u e ele cha m a " m em ó ria histórica"). Mais aind a: h abi ta d a pela história,
a me m ó ria de geração se en contra "esm agada por seu p eso" (op. cit., p. 958) (agora é a
marca de Nietzsche n o ensa io d e 1872, aqui apresentado no Prelúdio). A re m e m oração
1\ Cll\.!ll<., \c.1 II JS! ( lRIC..\

transforma-se em comemoração, com sua obsessão por uma história acabada, decor-
rida: "Fal ta a lgo no início de uma geração, uma espécie de luto " (op. cit. , p. 958) (aqui
cruzamos com Hcnrv Rousso e a obsessão da síndrome de Vichv). "É essa celeb racZio
- - >

histórica, intrinsecamente mitológica e comemorativa, que fa z com que a geração saia


da história para se instalar na m emóri a" (op. cit., p. 959) (essa seção é intitul ad a " O
banho de memória" [op. cit., pp. 955-96-+]). Estamos exatamente na memória pura, a
que dispensa a história e elimina íl dur,lçào, para dela fazer um presente sem his tória:
o passado é, então, segundo uma obsen·ação de François Furet, " imemo ri a lizado", a
fim de melhor " memorializar" o presente.
Nesse ponto, o hi storiador N ora resis te: o artigo "La génération" termin,1, sem
comp lacência pelo reino da comemoração, com uma d efesa de um a " consciência da
história desdobrada" (op. cit., p. 966) - desdobrada entre sua " ruminação memorial "
(op. cit., p. 962) e a e,·ocação da grande hi stória do mundo no seio da qual a França é
ch amada a situar sua potência média. À , ·ersão unidimensional imposta pela mito-
logia geracional, o historiador, ou melhor, provavelmente, o cidadão n o histori c1d or,
opõe " a partilha entre o que só depende <.fa memória ger,1eiont1l e o que só d epende da
memória his tórica" (op. cit., p. 963).
Nisso tudo, o que foi feito da idéia de lugar de memória? Num sen ti do, ela está , a
contragosto do historiador, corno que sacralizada pela comemoração"·'. Mas não se dis-
se ainda que o elo, , ·islumbrado no ensaio precedente, entre a idéia de lugar de m e mó-
ria e a trn nsformação patrimonial da ide ntidade nacional an u ncia sua suti l pern~rsào.
De fato, res ta citar a captura patrimonial da idéia de lugar de memória - a captura no
espaço após a captura no presente.

d) O artigo de 1992 " L'ere de la commém oration » (Lieux de 11h'n10irc JJ !, " Les Fran-
ce'', terceira parte, tomo I, " De l'archi,·e à !'em b leme", pp. 977-1012) fecha o círculo,
seis anos depois do lançamento d o artigo "Lieux de m émoire". Ele o encerra com uma
nota deplora tiva: "Estran ho des tin o o desses Lugnrc:-; de 111c111ôria: pretenderam ser, p o r
seus procedimentos, métodos e pelo próprio título, uma histó ria do tipo contracomc-
morativo, mas a comemoração os agarrou" (Licux de 1111;111oirc Ili , p. 977). Desejou-se
" fazer das próprias comemorações um dos objetos priv ilegié1dos de su a d issecação"
(ibid .), e a bulimia comemorativa abson·eu a tentativa destinada a dominar o fen óme-
no. Tudo ocorreu com o se, graças à saída da França d o con texto da grande hist()ria,
a publicação dos Licux tivesse vindo refo rça r a obsessão comemorativa. Resta, corno
(mica réplica ao historiador, que e le se dedique a "compreender, por sua vez, as ra-
zões dessa recu peração" (i/1id.).

98 "Aiin.i l, ocorreu , ClHl l ,1 ge r,,çàl), um.i s ulwc rs.'in inkrn,, a n.í log,, ,1 quL' pudemos descn',·n L'm
rL'lação ao acontl'ci mento moderno t' m id iati 1.ad o" ( Lc~ Lie11.r de 111t;111oire, 1, tl/'· t'il., p. 9-fl ). () <1utur
rl'metL' ,1qui a sl' u art igu "A ,·o lta d o acontl'cinwntu " (em 1-ú irc de 1·1r1~ft •irc, op. âl.).
i\ MEM(mJA, A HJST(lKI /\, O ES(.)CECIME l\;TO

De fato, é a própria comemoré\ção guc se metamorfoseou'/'1, como comprova, mais


ainda do gue o bicentenário da Revolução Francesa, a autocclebração de Maio de 1968.
A Revolução tinha inventado um modelo clássico d e comemoração nacional. É esse
modelo que foi implodido e subvertido: reencontramos as observações disseminadas
nos artigos anteriores sobre o declínio do modelo de identidade n acional centrado no
Estíldo-nação: "O apagamento do guadro unitário do Estado-nação destruiu o siste-
ma tradicional que era sua expressão simbólica e concentrada . Não há mais superego
comum, o cânone desapareceu " (op. cit., p. 984). Uma batalha das memórias ocupa o
cenário: o cultural e o loca l, destruidores do naciona l, congestionam as mídias 1110 •
Volta reforçado o tema do patrimonial, várias vezes ventilado nos artigos ante-
riores: "Do nacional ao patrimonial " (op. cit., p. 992), tal é o segredo da metamorfose
balizada por narrativas d e comemorações n as páginas precedentes. O fim do mundo
rural é uma ocasião para isso; a saída d a Fran ça da órbita da guerra, a morte do ho-
mem em 18 de junho são ou tras; em seguida, o sucesso do Ano do Patrimônio (1980),
que consagra a regionalização da memória coletiva: está no caminho a metamorfose
que, da história, conduz ao rememorativo, e deste, ao comemora tivo, fazendo da era
da comemoração o coroamento dessa seqüência d e inversões. A história deixou de ser
"uma memória verificada" (op. cit., p . 997), em simbiose com uma história nacional.
"A comemoração emancipou-se de seu espaço de atribuição tradicional, m as foi toda a
época que se tornou comemorativa (op. cit., p . 998). Mesmo a publicação da obra Faire
de /'llistoire por Jacq ues Le Goff e Pierre Nora em 1973, que eleva a memória à categoria
de objeto novo da história graças aos trabalhos de Goubert, Duby e Lacouture, devia
con tribuir, contra a sua vontade, para essa subversão da memória contra a história. O
entusiasmo de comemoração memorial era tão forte que mesmo a esquerda francesa
a ele sucumbiu com François Mitterrand no Panteão, em 1981. Mas é a promoção do
patrimônio e sua cristalização no "monume nto histórico", com sua topografia espe-
tacular e sua nostalgia arqueológica, que marca a época, a "era da comemoração": "o
'matrimonializável' tomou-se infinito" (op. cit., p. 1005). O contra-senso sobre a pró-
pria noção de lugar de memória instaurou-se: de instrumento simbólico, cujo interesse
heurístico era imaterializar o "lugar", a n oção tornou-se presa da comemoração de tipo
patrimonial: "E o patrimônio passou diretamente do bem que se possui por herança
para o bem que vos constitui" (op. cit., p. 1010). Ao mesmo tempo, a história nacional
e, com ela, a história como mito, foi substituída pela memória nacional, essa idéia re-
cente. "Nação memorial" ao invés de e em lugar de "nação histórica" (op. cit., p . 1011):
a s ubversão é profunda. O passado não é mais garantia do futuro, eis a razão principal
da promoção da memória como campo dinâmico e única promessa de continuidade. A
solidariedade do presente e da memória substituiu a solidariedade do passado e do fu-

99 Falei sobre isso cm termos positivos, nil primeiril parte des ta obra, na co mpa nhia de E. Cõscy ;
d. acimil, pp. 54-56 e p. 157.
100 Assim, o tricente n á r io da Revogaç5o do Edito de Na ntes teriil a limentado mais o imaginário prn-
tl'stante que o irnagincír io nacional dcdirndo a uma reconc il iação e il um esquecimento das ofen-
sas impostas pelo soberano (Lcs Lic11x de 111é111oirc, 111, op. cit., p . 991 ).
.·\ Ul:\Dlt: .\() II JSTt)RJC\

tum. "É à emergência desse presente historizado que se de \·e a emergência correlati\·a
da ' id entidade'". Um uso me morial substituiu o an tigo u so puramente ad ministrati\'O
ou policial:" A França como 'pessoa' ch a ma\·,1 s ua história. A França como ide ntidade
só prepara seu fu turo nd d ecifração d e sua me mó ria" (op. cit., p. 1010) . Amargura.

Então, a noçã o de lugares de memória foi , no final das conta s, mal esco lhida ?
Uma sombra passa sobre o te rmo e por sua " ali a nça apare nte mente contra ditória de
dua s pa lavra s, uma delas dando id éia de afas tamento e a outra, de aproximação " (op.
cit., p. 1011 ). O his toriador não quer, toda\·ia , se perder no pesar e na nostalgia . Ele
prefere a réplica a lti\·a: " Ao a utorizar a junção d e objetos d e na turezas tão di fe re ntes,
[a expressão lugares de memória] permite, n a explosão, a recomposi ção do nacion,11
explodido. É o qu e justifica, talvez, a am bição d esses três \'(J)umes e m mú ltipl as \ ' O -
zes e dos quat ro que os p recederam: constituir, na cadeia p ra ti came nte contínua das
histórias da França, um momento do olhar dos fra nceses sobre a França " (i/1id.).
Assim, ao escre \·er, e ao fazer uma representação escriturária da subversão da
"nação his tórica" pela "memória nacio na l", o historiador-cidadão resiste. Não sem
lançar um desa fi o à sua época: falando no futuro an terior, ele e\'oca o mome nto e rn
que "uma outra m a ne ira do ser-juntos será implantada ", e en-1 que "a necess idade
de exuma r as referê ncias e ex plorar os lu ga res terá desaparecid o" (op . cit., p . 1012).
Então - anú ncio in\'erso daquele pelo qual, fa z alguns anos, a introduç,fo d e Licux
âc 1né111oirc se iniciou - , "a e ra d,1 comem ora ção será de finiti\'amente encerrada. A
tirani a d a memóri,1 só ten,í. durado algum tempo, mas era o nosso tempo" (ihid.).
Direi, contudo, que até lá prevalece a "inquietante estranheza" da históric1, justa-
mente quando ela pretende compreende r as razões de su a contestação pela memória
comemorativa.
3
O Esquecimento

Nota de orientação

O
csq11eci111c11to e o pcrdiio dcsig1111n1 , scpamdo e co11j 1111tnn1e11tc, o liori: 011tc de toda a
11ossn pesqu1s11. Scpt1rnd11111e11tc, na 111cd1d11 c111 que mda 111 11 deles depende de 1111111

prol1/e1111itic11 disti11tn: 110 mso do csq ueâ111c11to, 11 da 111c111ória e dafidclid11de 110 pas-
:::.11do; 110 do perdão, t1 d11 rnlp11bil idode e d11 rcco11ciliação co111 o pi1ss11do Co11j1111t11111c11tc, 1111
111edid11 e111que seus respcctiuos itinerários se rccm:11111 1111111 l11g11 r que 11,fo L' 11111 lugar, e 1111c o
tern10 liori:ontc dcsig11n lllf1is corrct11111c11tc. H ori:011tc de 111n111ne111ôri1111p11:ig1111d11, e 11tt; 111es-
1110 de 11111 esqucci111c11to fcli: .
l\/11 111 sc11tido, n pro/Jlc1111ítirn do csq11cci111L'11to (; 11 11111 is t 11st11, 1111 111edid11 e,11 que o 11p11:i-
1

g11n111e11to dn 111c111âri11, c111 que co11sistc o pcrdiio, p11rccc co11stit11 i r II últi111t1 ctap11 de 11111 per-
curso do csq11eci111e11to, que cul111i1111 11css11 M S obli v ionis que H11 rald Wci11ricl1' dcscj11ri11 t'er
co11stituída p11rnlela111e11te à ars m e m o riae cx11111i1 111d11 e cc/c/1rad11 por Fra11ccs Y11tes. Foi cn1
co11sideraçav 11 t"Sse sentido que decidi i11duir, 110 título da presc11tc ol1ra, o esquccin1e11to, c111 pt;

de ig 1111ltfadc co111 n 111c111(ír i11 e 11 /1istôri11. Ocfi1to, o csq11eci111e11to co11 ti1111n 11 sa a i11qu iet1111te
n111caçt1 que se dcli11cit1 110 p/11110 de j it11do da }Í'110111c110/ogi11 do 111c111óri11 e dn epistc111ologi11 da
história. Sob C%C aspccto, ele L; o tcr1110 c111/1/c11uít ico d11 co11diç110 lz is tôrico to11lf1dt1 co1110 tc111t1 de
11oss11 terceira p11rtc, o c111/1lc11w da ·u11!11cml1ilid11dc dessa co11diçiio. l\/ 11111 out ro sc11 tido, o pro-
blc11111 da 111c111ârit1 L' o 11wis msto, uisto que 11 l'ê. c11t1111! ars oblivionis se projct11co111011111 duplo
1

da ars m emoriae, 1111111 fig 11ra da 111c111ôriafdi:. O ra, de certa 1111111cira , 11 idéi11 de 111c111(ír iafdi:
ti11'11111[1erto o c,1111i11/w pam toda n 11oss11 c111preil11d11, co11t1111to 1111c tratdssc111os de 11110 dcix11r 11
p11tologi11d11111c111ória lcI 111r 11 111c//,or sobre 11ft'110111c11ologi11 da 111c111ôri11 co11111111 considcmda c111
s1u1sjiN 'S de c11111prilllc1 1to bc111 sucedido; é t crdadc que 1u10 s11hí11111os, c11t,10, qual ser ia o preço
1

11 p11g11r por atri/J11ir sent ido pleno ii idl'ia de 1nc111(iria fcli: , 11 s11 /1cr, ,1 tmI 1cssi11 da di11létirn da
/1i:::.tôri11 e da 111e111ôri11 e, p11ra co11c/11ir, 11 d11pl11 proua do csq11cci111cnto e do pcrdiio.
É nesse jogo de lwri:011tes, 110 111cs1110 sentido c1/I que pudc1110:::. _ti1/a r de jogo de csc11las , que
11oss11 im 1cstig11çr10 tcr111i11arâ. No sentido dado por Cadmncr e que ,1ss111110, lwriz.011tc 11110 quer
di:a so111c11tc fusão dos /10ri:ontcs, 11111s tt1111/1(;111 _ti1ga de /wri:011tcs, i1111ct1/)(1 /IIC11to. Tal co11 -

Cf. ac ima, pp 76, 78, 8ll-82.


i\ \i1FM (1RIA, !\ HIST( )Rli\, O FS()UFCIMFN TO

fi5siío 11iio t; inesperada 1w111 c111precndi1He11to que é apreselltado, desde o illício, sob o signo da
crítica impiedosa dirigidn co11tm n hubris da rcflexi'ío total.

Podt'-SC falar /011gal1lcntc 50/Jre o esquecilllcnto SC/1/ evocar ai11d11 a problemátirn do perdão.
É o quefarc111os neste cnpítulo. De início e maciçanzcntc, é como dano à co11Jiabilidadc da mcmô-
ria que o csqucci111ento é sentido. 011110, fmqucw, lacu11a. Sob esse aspecto, 11 própria 111c111ôri11
se defi11e, pelo 111enos 111u11a pri111L'ira i11stli11cia, co/1/o luta contra o csqucci111c11to. Heródoto a111-
hicio11a preservar do csqucci1Jlc11to a glcíria dos gregos e dos bárbaros. E nosso famo so dever de
111c11iória Cllu 11cin-sc como 1111111exortação1111110 esquecer. Poré111, ao 1Jles1110 te111po, t' 110 111cs1110
1110vi111c11to espontlilleo, a_fasta111os o l'spectro de 1111111 memória que nada esqueceria. Co11side-
ra1110-la até 111cs1/lo 111011struosa. Temos presente no espírito a fáhula de Luis Borges sobre o ho-
111c111 que 11ada esquecia, retratado por Funes el memorioso 2• Haveria , portanto, u,1111 medida
110 uso da 111e111ôria /111111111111, 11111 °1/ada demasiado", segundo unwfômwla da sabedoria antiga?

O esq11cci111c11to 11iío seria, portanto, sob todos os aspcctos, o inimigo da 111emôria, e a me111ôria
deveria negociar colll o csqueci111c11to para acltar, às cegas, a medida exata de seu equilíbrio com
ele? E essa justa 111c11lôria teria algu11111 coisa c111 comu111 com a n.·11IÍ11cin à reflexão total? U111a
111e111ória sc111 csqueci111c11to seria o últi111ofa11tas111a, a última represl'11tação dessa reflexão total
q11c co111bate111os ohstinada11u•11tc c111 todos os rcgistros da lter111en(1utica da condição histórica?
É preciso ter e111 111e11te esse prcsse11ti111e11to - essa Ahnung - d11m11tc toda a travessia
dos deefiladeiros que escondrn za linha do !torizonte.
Nno é exagero falar aq11i de deefiladeiros a serei// transpostos. Quem resolve avaliar os nzn-
lefícios evidentes e os be11cfícios presu/1/idos do esqueci111e11to COI/fronta-se, e111 primeiro lugar,
co111 uma polissc/1/ia opressivn da palavra "esqueci111c11to", cuja abundância é atestada 11a ltistô-
ri11 literária tal como Hamld Wei11riclt a escre-ue11. Para //OS livrar da opressão q11e a linguagclll
acrescenta, pela s11a profu1:,no, à i11co11stâ11cia 110stá(<_?ica incrente 110 tema do esqueci111ento, pro-
ponlto umn grade de leitura baseadn na idéia de grau de profundidade do esquecimento. Para
esclarecer essn disti11çno, eu a colocarei c111rclaçào com a que presidiu, a11tcriormc11tc, à descri-
ç110 dos fc11ô111c11os 11111emô11icos considerados sob seu ângulo "objetal" (segundo o uso substmz-
tivo do termo "lc111brança"), a distinção rntrc abord11ge111 cognitiva f abordagem prag111rítica;
sob a primeira, a 111e111ôria foi 11prcc11dida de acordo co111 sua ambição de representar fielme11te o
passado, enquanto a segunda refere-se ao lado operatório dn memória, seu exercício, o qual é a
ocasião da ars memoriae, mas também de usos e abusos que tentamos rcpertoriar, segu11do
1111111 escala própria. O csq11ccime11to coll'oida a 111t1a relcitum das duns problemáticas e de sua
articulação graças a u111 princípio 11ovo de discri111i11ação, o dos níveis de profundidade e de
111(1//ifcstnção. De fato, o esqucci111cnto propõe ,una nova significação dada à idéia de profundi-
dade que a fc110111c11ologia da 111e111ôria tende a identificar com a distância, com o afastamento,
segundo uma fórmula horizontal da prof1111didadc; o csqueci111c11to propõe, no plano existencial,
uma espt•cie de perspectivação que a 111et~fom da profundidnde vertical tenta exprimir.

2 J. L. Borges, 'Tunes qu i n'oubli<1 it p<1s", in Fictio11 ~, Pari s, Co llim nrd, 1957.


a\ ('()\:Ili(_.\() H!ST(lRIC\

Octc11do-111c 11111 inst1711fc no pln110 da prc!fi111didadc, propo11/Jo pôr c111 corrc/17çi'io a pro-
/1/c111rítirn rclatiul7 11 esse 11íz,c/ c:011117 a/1ordagc111 cognitiva d11 111n11ôri11 cspo11ti'i11c11. Ocfi1to, o
que o esq11cci111c11to desperta 11cssn e11cr11:illwd11 t; a prápria 17pori11 que estâ 11(1_fÓ11 tc do cmâter
pro/1/c111rítico da rcprcse11taçi'ío do passado, (1 s11/Jcr, 17 _[t1/ta de co11fia/Ji/id17dc dl7 1nc111ôri11; o es-
q11cci111rnto é o dcs(lfio por e:rcelência oposto à 11111/Jiçiio de co1~fi11/Jilidadc da mc111ôri11. Om, (1
co1~fi(lbili,111dc da le11ilmmç11 procede do cni:;:11111 co11stit11tivo de toda II proble111ática da 111c111óri11,
11 S(lber, a dinlética de presença e de (111sê11ci11 110 â1nago da representação do passado , ao que se
ncresccnta o sc11ti111c11to de distância próprio à /e111linmç(I, difác11te111c11tc da 1111sfoci11 si111plcs
d11 i11117gc111, quer cs tl7 sin.'17 p17m descre1. 1er 011 si11111!ar. A prol1/c111âtic11 do csq11eci111e11to,_tim11u-
/adl7 e111 seu nível de 11111ior pnf ll1did11dc, i11ten't;111 110 ponto 111(1is crítico dessa prol1/e111átic11
de prcsc11ç(I, de 1111st~11cia e de distfi11ci11, 110 pó/o oposto a esse pcq11e110 111ilagrc de 111c111ôriafdi:
co11stit11ído pelo rcnmheci111e11to 17t1111/ da /e111/1ra11ça p11ss11d11.
É nesse ponto crítico que é proposta 11 gnmdc /1!fiircação que rni co1111111Lfa r as duns pri111ci-
ras partes deste estudo - ,1 saber, (1 pol11ridade entre duas grandes figuras do csq11cci111c11to
prof1111do, que dc110111i110 esq11cci111c11to por ,1p11ga111e11to dos rastro::., e esq11eci111e11to de rcscn 'a,
expressiio que, dentro e111 pouco, te11 t11rei f11stifimr. A essa grande /1{/itrrnçi'ío s,10 dcdirndas a
pri111cirt1 e 11 scg1111 di1 partes deste cnpítulo. Co1110 a dc110111i11aç110 da prilllcira fisura do esquc-
ci111e11to profundo per111itc co111prcc11dcr, é (1 problc1111iticn do mstro que co11u111d(I 11 do esqueci-
111rn to nesse 11 ízxl radical. Essll irrnpçiio é totlll lllCII te prn,isí1.,ef. Desde o i11 ício dcstll o/1ra,
fim,os co11fro11tados co111 17 proposição do Tceteto de Plat110 de unir o dc::. ti110 da cikiín llO da
tupos, da i111prcssiio, baseado 1111111111odelo dl7 11111rca dei.rnda por u111 anel 11t1 cern. É esse 1. 1í11cu -
lo alegado entre i111age111 e i111prcssi'ío que o csq11cci111c11to ol1rig1111 explornr 111ais prcf1111d11111c11fl'
do que fi:c111os afl; agom. Ocfiito, toda nossa prol1/e1111ítica do rastro, da A11tigii ilfodc llos nossos
dias, é herdeira dcss(I Hoçiio a11tig(I de i111prcssiio, 11 q11ll!, longe de rcsoft,er o e11ig11111 da presença
da 1111s1'11CÍa que agnm111 prohlc11uítirn dn rcpresc11taçi'ío do passado, acrcsce11t11-ll1e seu c11ig11111
próprio. Q zwl ?
Desde o co111c11 târio dos textos de Plat,10 e de Aristóteles, fu11di1111c11t11dos 1117 111etáfóm da
i111prcssi'ío 11(1 cem , propus distinguir tn~s l'SJh'CÍcs de mstros: o rastro escrito, que se forno11 , 110
plano da opcraçi'ío historiogn~fica, rastro dorn111e11t11!; o rastro psíquico, que é pnfcrÍi.'C! clum1ar
de i111prcss110, 110 sentido de 1~fÍ'CÇ110, deixada c111 nós por 11111 aco11tcciJ11c11to 11111rco11te 011 , co1110
se di:, clzoca11tc; c11fi111, o mstro cerebral, cortical, tmtlldo pelas 11c11mcifocias. Aqui, deixarei
de lado o destino do rastro doc11111e11t11!, que já jiii discutido 1111 seg1111da p11rte, não sC111 /e111/il'llr
que, co1110 lodo mstro 11u1teri11! - e, 11 esse respeit(1, o rostro cortical está do 111es1110 lado que o
rastro dorn111c11tal - , ele pode ser oltel'lldo fisic11111c11tc, apagado, destrnído; _fali, entre tJutms
fi11t1lid11des, para co11jumr essa 11111C(IÇl1 de ap11g11111c11to que se i11stit11iu o arqui-uo. Resta 11 justa-
posiç110 das duas outl'lls es1ú·ies de rastros: mstro psíquico, rastro cortical. Toda a prol1/c111âtirn
do l'sq11cci 111c11 to pnfu 11do se decide 11css11 (lf'ficu laç110.
A d~fic11ld11dc t\ c111 pri111ciro lugar, 1111111 d~firnldadc de 11l1ordagc111. É por rn111i11/ios mdi-
cal111e11tc lzctcrogê11eos que tc111os acesso 11 11111 ou 110 outro. Sá co11hecc111os o rastro ccrcbl'lll,
cortirnl, cxtcma1111:11tc, pelo co11/1eci111c11to cient(fico, se111 que a este corrcspo11dl7 u111a pniua
sc11tid11, ui-uid11, conw 110 caso dessa parte da sc11si/1ilid,1dc orgânico que 11os.fi1: dizer que 1.'e11ws
"co111" 11ossos olhos t' que scg11m111os "co111 '' 11oss11s 1wfos. Não di:c1110s, da 111cs111a 1111111eim, que
/\ MFM() RI /\ , /\ HI ST () RI /\ , O FS(JUl :C JMENTtl

pensn111os "co111 " 11osso d rehro. Apre11de111os que esse cérebro-objeto é 11osso cérebro, situado
nessa cnixa craniana que é nossa cabeça, co111 sua facl,ada de rosto, nossa cabeça, cmblcnrn da
J,cge111011ia que pretendemos exercer sobre nossos 111e111bros. Complexa é essa npropriaçi'io de
"nosso" cérebro - e dos rastros que o co11hecin1c11to objetivo nele desenha . A primeira seção
deste capítulo será dedicada às discu ssc'íes sobre a noçi'io de rastro nmésico' . Dela rcsultn odes-
tino da primeira forma de esquecimen to profundo, o esqucci111c11to por npaga111e11to dos rastros.
O ncesso nos presumidos rastros psíquicos é totalmmte diverso. Ele é muito 111nis dissimulado.
Só se fi1ln deles retrospectivnmente, co1/l base em experiências precisas que têlll como modelo o
reconhccimc11to das i111nge11s do passado; cssns experiências fazem pensar, 11/tcrior111c11tc, que
muitas le111bra11ças, talvez as mais preciosas entre as le111bm11ças de i11Jâ11cia, 11ão foram defini-
tiva111e11te apagadas, mas apenas tomadas inacessíveis, indisponíucis, o que nos leva a dizer que
esquecemos 111e11os do que acredita111os 011 do que tememos.
A dificuldade relacionada à problcn1ática dos dois rastros, porélll , 11ãu é apenas de acesso aos
fc11ô111e110s e111 questão. Ela diz respeito à prôpri11 sig11ificação que pode ser dada às duas ncepções
do rastro, 111w1 cxtcma, a outra, í11ti111a. A primeira seção, dedicada ao manejo co11ccitual da
idéia dí! rastro 11111ésico 110 âlllbito das ncurociê11cias, está articulndn em tn'S 1110111e11tos. 7) Pcr-
gw1tar-sc-â, previa111e11fe, q1111! é a posição de princípio do filósofo que sou perante os cientistas
quefafalll, de 111odo gemi, de rastros 11111h,icos 011 m"'ío 11111ésicos? 2) De 111odo mais específico: o
q11e são rastros 11111ésicos? A esse respeito, que c11sina111e11to 111útuo se dão o f e110111e11ólogo e o
neurologista? É nesse estágio do questio11a111e11to que a interrogação mais importante será con-
du zida ao seu 111ais alto grau de probfelllaticidade. 3) Que lugar,fi11a/111c11tc, a questão do esquc-
cillle11to ocupará 110 qundro dns disfu11çc'ies da 111emcíria ? O esquecimento é rea/111c11tc u11w dis-
f unção ? É com esse terceiro seglllc11to da investigação que o esquecimen to por apagamento de
rastros será delilllit11do 11111is de perto. Mas o princípio da solução proposta estará contido 110
primeiro mon1ento, colll as idc'ias de causa sine qua non, de substrato, de correlação en tre or-
gm1izaç110 e.função. A orientação geral será a de um desvio epistc1110/ôgico entre o disrnrso sobre
o 11c11ro11nl e o discurso sobre o psíquico. Esse dcs1_1io será protegido contra toda e qualquer ex-
trapolação espiritualista 011 red11cio11is1110 111ateria!isfa, 111cdiantc 11111n abste11çi'io sei// fa!Jw, 110
plano 011tológico, 11a querela clássica sobre a questt"'ío dita da união da a!nrn e do corpo.
É graças a essa s11spe11st'ío que levarei o li/ais longe possível, na scgu11da seçiío, a pressu-
posição sobre a qual se estabelece o rcrnrso a uma noção distinta de rastro psíq uico, seja qual
for seu condicio11a111e11to 11euro11al. A experiência-chave, como acabamos de dizer, é a do reco-
nlzcci11le11to. Falo dele COI/lo de 11111pcq11c110111i!agrc. DeJato, J no 11101nc11to do reco11'1cci111e11to
que se considera a imagem presente como fiel à afecção prilllcira, ao clzoquc do aco11tecime11to.
Onde as neuroch' ncias falai// sí111plcs111e11te de reativação dos rastros, o fenomenólogo, deixan-
do-se instrnir pela experiência viva, fi1lará de 1111w persistc1ncia da i111pressão originária. É esse
disrnrso que tentarei elevar a seu mais alto gra u de i11ca11descê11cia, explorando, 11a esteira de
Bergson, e,n Matéria e Memória, a prcssuposiçt"'ío i11tcim111c11te rctrospectiva de 11111 11asci-
ll/e11to da /e111bra11ça desde o exato mo111c11to da illlpresst"'ío, de 11m11 "revivcsd11cia das imagens"

3 Adoto n vocabulár io das neurociências, que falam d e rastro mnésico. Rt>sl'rvo o te rmo mnemó ni-
co para o conjunto dos fe nô me nos ligados a uma ícnomenologia da memória.
,\ CO\;D\(, .\l) Hl ~l() RI CA

no 11w111c11to do reco111Ieci111c11to. UI/la exiM!~1,cin "i11co11scie11tc" da lc///hmnça dcPe, enti'io, ser


po::;tulada, i11dcpc11 de11tc111e11tc do sc11tido que se possa atrilnlir a essa i11co11 sci(~11cia. É essa
IIipôtcsc da preseruaçiio por si, co11stifl1ti-ua da própria duraçiio, que tc11t11rci estender a outros
fc118111c11os de latê11cit1, ate; o ponto c111 que essa laft~11cia possa ser t:011sidcmd11 co11101111111_A·g11 m
positiva do csq11eci111c11to que de110111i110 esq11cci111c11to de rcscrp11. Efetiz,11111c11tc, é a esse tesouro
do esq11ccimc11to que recorro q111111do /c111Io o pm:cr de 111c lc111lmn do que, certa ·ue:, Pi, 011ui,
cxperi11lc11tci, aprendi, adquiri. É co111 /Jase nessa pcrseucmnça que o IIistoriador podcrri, 1111
esteira de Tucídides, ed(ficar o projeto de 11111 "co111Ieci111c11to adquirido para sc111pre".
Ccrt11111c11 tc, persiste o problcllla de 11triln1ir, n>11j1111fa,11c11te, o cst11t11to 11c11ro1111I dos ms-
tros lllllésicos e o estatuto do que se di: c111 ten11os de persistência , rc1111111é11cia , rcuit>esn~ncin ,
d II raçiio. Talvez fosse preciso sc llfcr, pelo 111c110s , ,a espécie de disrn rso que llss 111110, 17 profissiio
da polissnnill da 11oçiio de rastro, u11111 vc: que 11 idéin de rastro psíquico ráuindicn 11111 direito
ig1111/ ii de mstro 11c1u-01111I. Duas leituras dos fr'11t,111c11os 11111c111ô11icos estaria///, assi111, co111pe-
tí11do. A pri111eim lcu1117 idéill de esq11eci111e11to dcfi11iti7. 10: é o csqucci111e11to por llpllgt1111e11to de
mstros; a scg1111d11 lcrn 11 idéia de esq11eci111e11to reucrsÍ'uel e, 11ft; 111cs1110, ii id611 do i11esq11ccí-
7.'c,f, t' o esq11eci111c11to de reserva. Nossos sc11ti111e11tos 11111/Jic.1lllc11fes c111 rcl11çiio no esq11cci111c11 -
to e11co11tmria111, nssi111, sua origc//1 e sua j11st(firnçi10 espccu/atíz. 111 1111 compctiçiio entre duas
11bord11gc11s lu:terogê11t'11s do e11ig111n do csq11cci111e11to prof1111do, 1111w ocorrendo 1,0 rn111i11ho
da i11feriorizaçiio e d11 apropriação de 11111 sl1/1cr objctiuo, 11 outra, 110 can1i11lw da rctro spccçiio a
partir da npcric•11cin princeps do rcco11l1eci111c11to. De 11111 lado, o csq11eci111c11 fo 110S ll111cdro11ta.
Niio est1111ws co11dc1111dos 11 esquecer tudo? De outro, Sl11.1dn11ws como 1111111 pcq11c11nfclicid11de o
reto/'1/o de 111n Jrag//lc11fo de passado nrrn11cado, conw se diz, 110 csqueci111c11to. As duns leituras
prosscg11e111 110 decorrer de nossa vida - co11111 per/1/issão do cáchro.
Co11ti11un11do 11oss11 progressiio ao /011go do eixo ucrtical dos 11 íê.'cis de profundidllde does-
q11cci111e11fo1 chcgn111os às figuras do csq11ccimc11to 1111111ifcsto. A terceim seção deste capítulo
será dedicada a ex1111Ii11á-l11s. Prczwecc11do-110s da correlaçiio llci11111 proposta c11trc as gr1111des
dic. 1isiics destc capítulo e 11 distinçiio c11trc a/1ordage111 cognitim e 11bonfagc111 pmg111ática dos
fr•11ô111e11os 11111rn1811icos, i11tit11l11n'111os essa scçiio de prag/1/ritirn do csq11cci111e11to. O esq11cci-
111c11to 111n11ifcsto t' ta111/Jé111 11111 esqucci111c11to exercido. Pam 110s llj11d11r n dccijiw· .fi.'11(1111c110s
origi11ados dessa pmg111ritica do esq11eci111c11to, adotarei a grade de leitura dos usos e abusos da
111e111ôrin, posta à prm.1t1 das análises do segundo capítu lo dn pri//lcim pl11'tc. U/1/n liicmrq11in
se111cl/11mfc csrnndirâ 11 progn'ss,10 na 1111111(fcst11ç110 do esq11cci//le11to exercido. O csq11cci111c11to
11110 tfcrcccrri 11pc11as 11111 rcdobm111c11to d11 descriçiio, cn, que os 111cs111os usos d11 111c111ôri11 se
n'i.>c/11ri11111 sob o 110;: 10 íi11g11/o dos usos do csq11cci111c11to; estes 1ífti1110s trarão consigo 1111111
prol1/c111ritirn cspec[fica, distribuindo s11ns 1111111ifcst11çiies 1n1111 eixo /[()ri:011 tal di7. 1idido c11trc 11111
pôlo p11ssiz10 e 11111 pó/o atiuo. O csq11cci111cnto rn 1c/11râ, c11t110, 11/1111 cstmtégia asf11cios11 q11c lhe
t; 11111ito própria. Pam co11c/11ir, proporc111os 11n1 cxc111plo desses usos e 11l111sos do csq11cci111c11to
e//lprestado d11 l1istôri11 do fc/1/po presente.
No final dessll i11ucstig11çiio dedicada 11 prngnuitirn do csq11cci111e11to, o paralelo co,11 11 llic-
rarq11i11 dos usos e almsos da 111c111ôri11 co11d11:irâ, i11c/11tmxl//lcJ1tc, 11 qucsti'io de saber q11c eco
e q11e rcspaldo as d{firnldadcs e as 11111/Jigiiidadcs lcrn11t11das pelo pres11/llido dl!1'l'r de 111cm(írit1
podem c11co11tmr do lodo do csq11cci111ento - e por que 11110 se podc_tí1/11r de //lodo 11lg11//l de dCt'Cr
de esquecimento.
/\ Ml·M()Rli\, A IIISTÓR IA, O FS(JUECIMFNTO

I. O esquecimento e o apagamento dos rastros

Nas ciências neuronais, costuma-se enfrentar diretamente o problema dos rastros


mnésicos, visando a localizá-los ou a subordinar as questões de topografia às de cone-
xidade, de hierarquia de a rquiteturas sinápticas; daí, passa-se às relações entre orga-
nização e função e, com base nessa correlação, identifica-se o correspondente mental
(ou psíquico) do cortical em termos de representações e de imagens, entre as quais as
imagens mnésicas. O esquecimento é então evocado nas proximidades das disfunções
das operações mnésicas, na frontei ra incerta entre o normal e o patológico.
Esse programa e essa progressão de pensamento são cientificamente irrepreen-
síveis. E refarei esse percurso sob a condução do ne urologista . As questões do filóso-
fo - de um filósofo - são de outra ordem. Em primeiro lugar, há a questão prévia,
evocada em nossa nota d e orientação, do lugar da idéia de rastro cortical na tipologia
dos empregos da noção. Uma vez situada a idéia de rastro cortical, a questão é saber
como se reconhece que um rastro é um rastro mnésico, a não ser, no plano da função e
da expressão física, pela relação com o tempo e com o passado. Ora, para o fenomenó-
logo, essa relação é especificada pela probleméHica central da imagem-lembrança, ou
seja, a dialética de presença, de ausência e de distâ ncia que inaugurou, acompanhou e
atormentou nossa pesquisa. O papel do filósofo é, então, relacionar a ciência dos ras-
tros mnésicos com a probleméHica central em fenomenologia da representação do pas-
sad o. A releitura dos trabalhos do neurologista, que faremos cm seguida, é totalmente
comandada por essa confrontação do saber n eurológico com a dialética da imagem
mnemônica. Essa confrontação exclui um ataque dire to da noção de rastro mnésico.
Impõe-se a paciência de um longo desvio que começa pelo esclarecimento d a relação
que a espécie d e filosofia aqui professada mantém com as neurociências. Depois, a
noção d e rastro mnésico poderá ser abordada frontalmente quanto à sua relação com
o enigma da representação presente do passado ausente. Porém, mesmo então, aind a
não se terá falado, especificamente, do esquecimento: que espécie de disfunção é essa?
Seria uma disfunção como as amnésias ligadas à clínica?

a) No que diz respeito à minha posição de filósofo perante as neurociências, toma-


rei a liberdade de resumir a argumentação que desenvolvi cm minha discussão com
Jean-Pierre Changcux em Cc qui 11011s fnit pc11scr. Ln 11nt11re et la régie~. Não é no plano
de uma ontologia monista ou dualista que tento me manter, mas no de uma semânti-
ca dos discursos mantidos, por um lado, pelas ciências neuronais, e, por outro, pelos
filósofos que rei vindicam a tripla herança da filosofia reflexiva francesa (de Maine d e
Biran e Rava isson a Jean Nabert), d a fenomenologia (de Husserl a Sartre e Merleau-
Ponty) e da hermenêutica (de Schleiermacher a Dilthcy, Heidegger e Gadamer)5. Eu

4 J.-P. Chn ngeu x e P. Rie<l'u r, Cc q11i 11011s fnit prnscr. Ln 11nt11re e/ la n\'\ll', op. cit.
5 Já no iníc io, decla re i o segu inte: "M inhn tese inicial é que os discursos dos dois lados derivam d e
duas pcrspectivas heterogêneas, isto é, não red u tíveis uma à outrn e não deriváveis urna da o utra .
Num discurso, trata-se de neurónios, de conexões neuronais, de sis tem a neuronal; no outro, fo la-
me apoiava, então, na id éia d e que todo saber, por definição lim itado, relaciona-se ao
que é, para ele, o referente último, reconhecido como tal pela comunidade cien tífica da
mesma disciplina, esse re ferente não sendo ültimo senão nesse campo e defi ni ndo-se
ao mesmo tempo em que ele. Não se de\'t\ portanto, transform ar um dualismo de refe-
rentes num dualismo de substâncias. Essa proibição diz respeito tanto ao filósofo como
ao cientista: para o primeiro, o termo "mental" não se ig uala ao termo "i material",
muito pelo contr,irio. O mental vivido implica o corporal, mas num sentido da palana
"corpo" irredutÍ\'el ao corpo objetivo tal como é conhecido nas ciências da natureza.
Ao corpo-objeto opôe-se semanticamente o corpo vivido, o corpo próprio, meu corpo
(de onde falo), teu corpo (a ti, a quem me dirijo), seu corpo (dele ou dela, de que m con-
to a história). Há apenas um corpo meu, enquanto todos os corpos-objetos estão diante
de mim. Um problema que continua mal resolv ido pelo fenomenólogo hermenêutico
é o de explicar a "objetivação", como ele diz, pela qual o corpo próprio é apreendido
como "corpo-objeto"''. De fato, o trajeto entre o corpo próprio e o corpo-objeto é longo.
É preciso fazer o des,·io através da idéia de urna natureza comum e, para isso, passa r
pela id éia d e urna intersubjeti v idade fundadora de um saber comum, e remontar até a
atribuição de estados mentais compará\'eis e concord antes entre uma pluralidade de
sujeitos enca rnados. Em última ins tância, só essa plura lidade est,í habilitada a di zer
"meu " cérebro como um dos cérebros, outro entre todos os outros. Posso então dizer
que o outro tem, como cu, um cérebro. É no fim desse longo circuito que existe "o" cé-
rebro, objeto das neurociências. Estas têm como indiscutível o processo de objetivaçé'ío
que continua a ser p ara a fenomenologia hermenêutica um p roblema considerá,·el, em
muitos aspectos mal resol\'ido. Em que sentido, d e fato, o corpo próprio e o corpo-ob-
jeto são o mesmo corpoF O problema é di fícil, na medida em que n ão se vê, à primeira
vista, passagcrn alguma d e uma ordem de discurso para a outra : ou falo de neurónios,
etc., e me atenho a certa linguagem, ou falo d e pensamentos, ações, sentimentos, e os
ligo a meu corpo, com o qual tenho uma relação de posse, de pertencimento. Podemos
agradecer a Desca rtes por ter levad o o problema do dualismo epistemológico a seu
ponto crítico, além das facilidades e das confusões do hilemorfismo medieval, até ao
limiar da noção do "homem", como esse ser que não está em seu corpo como o co-

Sl' de conhec im entos, aç,ies, St'ntimentos, istn 1.'-, d e ,itos ou est,1 dos c,irac te rizadt1s p or intcnç(ll'S,
mt1ti,·c1ç(ies, \'alores. C llmb,1 tcrei, port.into, P q ue cha m nrei , dor;:i,·a,ite, dL' ami11 gama semântico, L'
qul' , ·ejo resumido nn fórmula di g na dl' um oxím oru: "O CL·reb rn pt'ns,1 " (t>/ 1. r i/., p . 25) .
6 :--Jo que d iz respeito ;i noç,i o d e referen te último, Ll problema foi encont rado v,,rias , ·ezes nesta
llbr,1; assi m, au tratar d a opernç,i o hi s toriog rMic;1, ad miti quL' o rdl'rentC' último era a c1ç,'h1 cm
com um n o tra je to da formação do \'Ínc ulo social e d as identidndes afere n tes. De m a nl'i ra mais
prccisn, adotei, no pla1w da represe nt,iç,i(l litc dr i,1 historiado ra , o co nceito de pac to d e ll'itura
entrl' o esc ritLlr e seu público, pe lo q u al siio delimitadas as L'Xpectati,·,,s, por exemplo, de fi cçiio
ou de rL·alidade, tratand o-se d t' uma hi s túr ia cont,1da. Um pacto de 111c•sm<1 natureza se L'S tabelece
taci taml'ntl' entre os cienti stas e o pú blico escl arecid o .
7 Em La Na turc ct la J.?.i·gl,·, ,,presento essl' problema cumo o deu m terCL'i ro di sc urso: s cri,1 um d iscu r-
so absoluto, outra \·e rsiio do discurso d a retlexiio aqui com batido 7 Ou outro discurso, quer cspe-
cu !ativo à maneira d e Spi noza o u dos pós-kc1nti ,,nlls, qu er fr anca llll'nte m ítico, a b erto a mü ltipl,,s
transposiçÕL'S?
,\ MF'v1()/{1/\, A HIST( l/{IJ\, O LS(?UL C /\11·: :'\:Hl

mandante em seu navio 8 • Ora, o cérebro é, sob esse aspecto, notável: enquanto tenho
com alguns órgãos - sensoriais, motores - urna relação dupla que me permite tanto
considerar os olhos e as mãos como partes da natureza objetiva, quanto dizer que vejo
com meus olhos, seguro com minhas mãos, não posso dizer, da mesma maneira, d e
acordo com o mes mo sentido de pertencimento, que penso com meu cérebro. Não sei
se é contingente que o cérebro seja insensível, mas o fato é que não sinto nem movo
meu cérebro como um órgão meu; nesse aspecto, ele é totalmente objetivo. Só me apro-
prio dele enquanto alojado em minha caixa craniana, portanto, nessa cabeça que honro
e protejo como lugar de poder, de hegemonia, na postura vertical, essa maneira de se
apresentar e de se manter diante do resto do mundo. O cientista se permite, talvez,
dizer que o homem pensa com seu cérebro; para o filósofo, não há paralelo entre as
duas frases: "eu seguro com minhas mãos", "eu compreendo com meu cérebro". Para
ele, o cientista se concede uma permissão cm seu pacto de discurso que faz com que
a preposição "com" d esigne outra coisa que não o elo vivido de pertencimcnto e de
posse referente ao corpo próprio, ou seja, à relação entre organização e função, d e que
falaremos um pouco.
Colocando-se na fronteira entre o epistemológico e o ontológico, o filósofo se aterá
de bom grado à fórmula de Platão em Fàfon: Sócrates, ao ser interrogado sobre as
causas que fazem com que ele não fuja, mas permaneça sentado à espera da morte que
lhe é infligida pela cidade, dá duas respostas: ele permanece nessa posição porque os
membros de seu corpo ali o retêm; o corpo é então a causa sem a qual - a causa sinc
qua 11011; mas a causa verdadeira que faz com ele permaneça ali é a obediência às leis da
cidade. Retomando a fórmula, direi que o cérebro só é causa no plano da condiciona-
lidade expressa pela idé ia d e causa sine q11a 11011. Pode-se então falar como Aristóteles,
no âmbito de sua teoria das formas de ca usalidade, de causa material, ou, como prefiro
dizer, de s ubstrato.
O cientista ainda respeita os limites desse discurso causal quando se restringe a
falar da "contribuiçã o" de tal área cortical, do "papel", da "i mplicação", e mesmo d a
"responsabilidade" d e tal montagem neuronal, ou ainda quando declara que o cérebro
está "envolvido" no aparecimento de tais fenômcnos psíquicos. Porém o biólogo exige
mais, e isso independentemente da opção filosófica compartilhada de bom grado pela
comunidade científica, para a qual o dualismo alma-corpo é anátema e o monismo
materialista uma pressuposição evidente na condição de artigo do pacto que rege a
com unidade científica. O homem das neurociências reivindica, em seu próprio campo,
um uso menos negativo da causalidade que reina entre a estrutura ou a organização e
a função. Essa relação passa por cima de certa heterogeneidade - a organização não
é a função - e, nessa condição, equivale a correlação. E esta exprime mais do que a
causa sinc qua non: a esta, ela acrescenta urna condiciona lidade positiva que autoriza

8 F. Azou v i, "La formation d e J'individu com me su jet corporel à p a rtir d e Descartes" i11 C . Ca zzani-
ga e C. Zarka (dir.), L'i11diz,id11011cl pc11sicro 1110,frmo, sccoli 16-18; trad . fra nc., L'/11div id11 dm1s lo pc11s1;c
111odcrnc, XVJ/· -XVl/1" sii\-/c, t. 1, Pisa, ETS, Is tituto ita liano di cultura (Fr.), Universitn degli Studi
(Pi sa), 1995.

<Z> 43º <Z>


,\ Ul's l ) l l, \ () Hhl (l \{I(_ ,\

i1 1_fi11c a afirmação de que o cérebro é essc1 organização que faz com que e u pense ou,
em resumo, que me fa z pensar. Le \·ando sua , ·ar1tagern mais além , o biólogo buscará
argu mentos na correlaç,'io entre a estrutura e a função e transferirá pa ra a organiza-
ção cerebral entidades que d epend e m, por outro lzido, do discurso do mental, como
representações e in1agens, entidades que tê m visivelmente uma ligação com a função.
Aqui, o filósofo h esitarcí e sus peitará de um a1rnílgama semántico que, segundo ele,
infri nge as permissôes ligadas à id éia de correlação. Mas o biólogo se prevalece da
nova arnbigüidad e relacionad a com a noção d e função: progressivamente, todo o não-
cortical é função. A tend ência hegemónica própria a toda ciê ncia exerce-se, então, em
relação às ciências próximas, quer a bêlixo do nível d a organização corti ca l molar, no
p la no da química biológica, impli ca da pa rticularmente no tratame nto dos pe rmuta-
dores sinápticos, quer, de ma neira mais problemíitica para o fil ósofo, acima do nÍ\·el
propriamente cortica l, na ordem das ciêncic1s cognitivas (fal,1 mos de ciê ncias neuro-
cogniti\'as), da psicologia d o comp ortamento, da e tologia, d a psicologia social, mesmo
que, para tan to, tenha de tra nspor a legre mente o passo entre rastro cortical e rastro
cultural. Aqui, o fil ósofo obrigar-se-,i, d e mod o natural , a moderar sua vigilfmcia se-
mántica com uma tole rância cm relaçã o a trc1 nsgressões admitidas, como por estipula-
ção, pela comunidade científica cm questão. É assi m que o neurologista se au toriz<1 a
pôr as imagens no cérebro, a despeito das ressalvas nutrid as pelo rigorismo semâ ntico
do fil ósofo. A tra nsgressão parece menos flagrante a este últim o quando as ciências
ncuron,1is se avizinham da fenomenologi a da açé'io, com base na idéic1 de que o cérebro
é um sistema p rojeti,·o, uma \'ez que as id éias a nexas de antecipação, d e exploração
dependem de um no\·o domínio mis to corno se, na dimensão prática, a fronteira ent re
os d ois discu rsos, científi co e fenomenológico, fosse mais porosa do que nc1 dimensão
teórica. No plano da ação, a correlação e ntre neurologia e feno menologia equi,,ale a
correspondência".
b) Com a qucstào mais específio1 dos ras tros mnésicos, estreitamos nosso domínio
e nos aproximamos d a morada da amnés ia e do esquecimento . Ao mesmo tempo,
a prox imamo-nos do cerne do deba te, ou seja, da relação entre a significaçào fenome-
nológica cfa imagem-lembrança e ,1 ma terialidade do rastro.
À primeira vista, a fenome no logia tem pouco a esperar do ensino da clínica prolon-
gad a pela observação ana tomofisiológica ,1plicada ao cérebro. V,írias vezes, a rri squei-
me a dizer que o conhecimento d o que se passil no cérebro só contribui diretamente
pa ra a au tocomprecnsào nos cc1sos d e dis funções, cm razão de o comportamento ser

Y i\. lkrt hoz, Lc St'1 1~ du 111ou,•c1111·11 f, l'ari s, Odik· J,icob, 1991. A. C l<Hk, lki11g tli1Tc: !'11tti11s L-!rni11, B0d_11
11 11d Wor/d togctha ag,1111, ~-I IT, 1997. J. CL'dilL'r()d , Cog 11itiuc N c11n,~c ic11c",· o( /\ctio11, l31ilck\\'l'IL 1997.
_1 .-L. r l' tit, " Int rod ucti on gL·n0rnk", in J.- L. r l'lit (cd .), U;; Nc11roscic11<"1'~ ct lo l'liilosopliic de /'octio11 ,
prefoc io de A lil in BerthnL, l'ilris, Vr in, llJlJ7, pp. 1-37. Quilnto a m im , intt:>rl'SSL' i-nw p o r ta is d e-
Sl' l1Hlh'inwntos 1i.1 rnedid,1 L'm que minh,1 ,1b11rd ,1gL'm d () Íl'n (inwno social \ ·isado pela oper,,ç,'io
h istoriog r.ífiec1 coord (•nou reprcse nt,1 ção e ,1ção. F.n c()ntril mos, ,10 m esm o tempo, umil tesL' c,u,1 ,1
C. Ca n g uilhem , rl'ÍPrentl' :i id é iil de ITIL'i(). Este nân 0 () rnund() já pnmto, tc1l corno iJ ex p e riê nc i,1 o
conhece, mas esSL' meio ,1mbicnll' que os \·inis cnnfiguram com sw1 ati \·id,1dc L'xplPrnd()nJ . Cf. La
Ci1111wi,;,;a11Ct' de /11 ,·ic, º/'· ci f.
!\ MFM()RIA, !\ HI ST(lR JA, O ESQUECIMENTO

por elas afetado, nem que seja apenas sob a forma do recurso aos tratamentos, e, d e um
modo geral, em razão dos reajustes das condutas a um ambiente "reduzido", segundo
uma expressão de Kurt Goldstein retomada po r Georges Canguilhem. Porém, mesmo
então, quando ocorre uma doença, que implica diretamente o cérebro, o reajuste de to-
das as condutas à "situação catastrófica " exige de tal forma a atenção dos familiares do
doente - sem falar da perturbação deste último - que esse transtorno das condutas
impede que os saberes sobre o cérebro seja m levad os em conta. As neurociências, so-
mos tentados a dizer, não contribuem, diretamente, em n ada para a conduta da vida.
É por isso que podemos d esenvol ver um discurso ético e político sobre a memória - e
empreender atividades científicas especializadas em várias ciências humanas - sem
mesmo mencionar o cérebro. A própria episte molog ia do conhecimento his tórico não
teve nem ocasião, nem obrigação de recorrer às ciências neuronais; seu referente úl-
timo, a ação social, não o exigia. Nem por isso reivindicaria para a fenomenologia da
memória um direito qualquer de ignorância quanto às ciências neuronais.
As n eurociências focadas na memória podem instruir, uma primeira vez, a con-
duta da vida no nível desse saber refletido em q ue consiste uma hermenêutica da vida.
Além da utilidade direta, há a curiosidade pelas coisas da natureza, entre as quais o
cérebro é, provavelmente, a mais maravilhosa produção. Ora, essa curiosidade - a
mesma, em suma, que aquela que motiva a epistemologia da história - é uma das
disposições que articula nossa relação com o mundo. A depend ência ca usal cm que
estamos em relação ao funcionamento cerebrnl, dependência cujo conhecimento d eve-
mos à curiosidade, não deixa de nos ensinar, ainda que na ausência de um sofrimento
qualquer ca usado por uma disfunção. Esse ensinamento contrib ui para nos alertar
contra a pretcnsiosa /111bris que gostaria de nos fazer passar por donos e proprietá-
rios da n a tureza. É todo nosso ser-no-mundo que se aba la. Se há um ponto no qual a
fenomenologia da memória se encontra em ressonância com esse ensinamento geral
das ncurociências, é no nível de nossas reflexôes sobre a mundanidade d a lembrança
na estei ra da obra de Casey, Re111embcri11g 111• Podemos, porém, ampliar essa brecha no
muro do desconhecimento mútuo.
É notável que os trabalhos diretamente d edicad os à memória e a suas distorções"
destinem tantos esforços ao que P. Buser 12 denomina uma taxinomia da memória, ou
melhor, das memórias: quantas memórias, p ergunta-se, precisamos contar? É o se-
gundo grande ensinamento recebido da clínica. Nesse nível, impôe-se uma confron-
tação direta com a fenomenologia da m emória proposta mais acima. A esse respeito,
as discordâncias, mais superficiais do que parecem à primeira vista, não deveriam
surpreender. Elas se devem essencialmente às diferenças no plano do questionamento
e dos métodos de abordagem. Nossa tipologia, com seus pares d e opostos, era essen-
cialmente motivada pela questão do tempo, da distância e da profundidade temporal;
a lém disso, ela era orientada por uma conceitualidade tradicional (o que vimos em

IO Cf. acima, prime ira pa rte, cap. 1, pp. 54-60.


11 ü. Sc h<1cter (dir.), Mc111ory 0 1\ tortio11s, Harvard U n ivcrsity Press, 1995.
12 Pie rre Buser, Cerucn11 de soi, Ccn>1•1111 de /'a11/rc, Pilr is, Od i le Jacob, 1998.
i\ CO'\ J.)((; .\() 11 1s n\ 1, IC t\

conceitos como representt1ção, ficção, " represcntt1ção pictórict1"); enfim , clt1 era guiad a
pela preocupação com a análise essencial, muitas vezes na contracorrente d as distin-
ções do senso comum ou d a psicologia experimental da época.
Por seu lt1do, a taxinomia originada d a clínica depende de condições d e obsen·ação
que estão, na maioria das \'ezes, muito distanciadas daquelas da vida cotidiana: ora
são recons truções de estrutu ras que de\'(~Jn ser pressupos tas para explicar o caráter
seletivo d essa ou d aquela disfunção, ora são observações conduzidas e m condições
totalmen te artificiais, sendo que é o experimentador quem dá as cartas, particular-
mente na formulação d e tarefas propostas aos sujeitos de experiência; por sua ,·ez, as
respostas dadas a essas tarefas são inte rpretadas em função da va riedade dos critérios
de sucesso escolhidos, ou até mesmo da diversidade das opções dos pesquisadores,
muitas vezes formados em trad ições experime ntais bastante diferentes. Assim, as dis-
tinções que P. Buser propõe resultam d e uma espécie de co11sc11sus p ara o qual con-
tribuíram, além da clínica propriamente ditc1, as ciê ncias cognitivas, a psicol ogia do
comportamento, a c tologic1, a psicologia social. Nem por isso essas distinções d eixam
de ser interessantes. É o caso da distinção mais bem ra tificada e ntre memó ria d e curto
prazo e memória d e longo prazo e, cm seguida, das distinções internas de uma ou d e
outra. Assim, fala-se de memória imediata, subdivisão da memória de curto prazo,
cuja eficiência é med ida na escala da segunda (estamos, desde o início, no tem po obje-
ti,·o dos cronômetros); falar-se-á também de memória de trabalho, cu ja denominação
lembra é1 maneira p ela qual ela foi identificada, ou seja, na ocasião da execu ção de
tarefas cogniti vas di,·ersas d efinidas pelo experimentador. Particularmente interes-
sante é a distinção entre memória dccla rati,·a e memória processual (a das ati,·idades
gestuais e das aptidões motoras ); essa distinção nos fa z lembrar a de Be rgson entre as
"duas me mórias", o u a teoria d os haliit11::; de Panofs ky, Elias, Bourdieu. É notável que a
compartimentação n ão pMou d e ser aprofundada, segundo a classe das atividades em
questão (aprendizagem, reconhecimento de objetos, de rostos, aquisições semânticas,
saberes e habilidades, etc. ); até a memória espacia l tem direito a uma menção dis tinta .
Ficamos surpresos, ao mesmo tem po, com a amplitude e com a precisão d a in forma -
ção, e com certa estreiteza inerente ao caráter abs trato das cond ições de experi ência
relativamente às situações concre tas da ,·id a, em relação, além disso, às outras fun ções
mentais e, enfim , em relação ao en volvimento de todo o organ ismo. A esse resp eito, os
esforços pa ra compe nsar essa compartimentação, à qual se refere P. Buser, le \'ada até
uma frn gmentação das mem órias especializadas, merecem ser considerados; foi assim
que a noção de consciência, no sentido d e ,·igilâ ncia simples o u mmrc11ess, fez seu re-
aparecimento no campo das disciplinas neurocogn itivas e, com ela, a noção de nÍ\·eis
conscienciais . Obtém-se, dessa forma , a interessante distinção e ntre me mó ria exp lícita
e memória imp lícita d e orde m infraconsciencial. Sob esse aspecto, o título que Buser
deu a seu capítulo - "Consciência e in fraconsciência" - exprime perfeitamente a
ambição de remembrar as taxinomias esm igalhadélS em fun ção não mais d e cri térios
de êxito na resolução d as tarefas, mas dos n ín ?is conscienciais. Não é mais e ntão, como
há pouco, o lado d e " mund,irtid ade" da memória q ue é , ·isitad o, mas seus modos de

o 433 .z.
A M EM (l l<I A, A III STÚl< I A, O FSQUEC I M l: N TO

re-apropriação pela consciência subjetiva. Nossa teoria da atribuição da memória se


encontra, assim, enriquecida pela consideração dos graus de efetividade da tomada
de consciência. Mais adiante, retomaremos esse tema a respeito da recordação e dos
distúrbios da recordação suscetíveis de despertar o interesse por urna investigação
sobre o esquecimento.
Provavelmente, o leitor deve se perguntar o que foi feito, nisso tudo, das localiza-
ções cerebrais ou d a atribuição d e tal função mnemónica a d eterminado circuito, a de-
term inada arquitetura neu rona l. Alcançamos aqui o ponto mais d elicado da aventura,
n ão tanto no plano da observação anatomoclinica, mas no plano d a interpretação de
um saber sobre os ras tros mnésicos.
De fato, é no momento em que as ciências neuronais estão mais perto de seu alvo
que elas atingem o ponto mais extremo d e problematicidade. As loca lizações em te r-
mos de á reas, circuitos, sistemas, são a mais notável ilustração d a correlação entre
organização e fun ção. O que acabamos d e descrever sob a égide da tax inomia das me-
mórias concerne ao lado função para o qual a ciência propriamente neuronal procura
a con trapartida em termos de organização, a con trapartida cortica l. Aqui, toca mos no
aspecto mais notável e mais admirável d e tod a a empreitada: fazer ava nçar conjunta-
mente a identificação das funções e a das organizações. Sob esse as pecto, a área d as
localizações está longe de encerrada.
Mas o que teríamos compreendido, afinal, se tivéssemos conseguido elaborar um
quadro com duas colunas, apresentando, de um lado, a geografia cortical e, do outro,
a taxinomia funciona l? Teríamos compreendido o fen ômeno mnemônico na s ua mais
íntima constituição?
Na verdade, é a própria significação da noção de rastro, em relação ao tempo de-
corrido, que nos empenhamos em esclarecer. A dificuldade com a qual esbarra toda a
empreitada resulta de um fato simples: "Todos os rastros estão no presente. Nenh um
d eles exprime ausência, muito menos anterioridade. Então, é preciso dotar o rastro /

d e uma dimensão semiótica, com um valor de signo, e consid era r o rastro com o um
efeito-signo, signo da ação do sinete sobre a impressão" (Ce qui 1w11s fnít penser. Ln 11n-
t11rc et Ia n'glc, p . 170). Passaremos d a metáfora da impressão na cera à do grafismo no
quadro? A aporia é a mesma: "O que faz com que a inscrição esteja, ao mesmo tempo,
presente corno ta l e como signo do ausente, do anterior?" (ibíd.) Invocar-se-á a "esta-
bilidade dos ras tros", à maneira d e hieróglifos? (J.-P. Changeux fala d e "hieróglifos
sinápticos", op. cit., p. 164.) Resta d ecifrar os hieróglifos, como quando se lê a idade da
árvore, contando-se os círculos concêntricos d esenhados no corte do tronco. Em resu-
m o, "para pensar o rastro, é preciso pensá-lo, simultaneamente, como efeito presente e
signo de s ua causa au sente. Ora, no ras tro material não há alterid ade, n ão há ausência.
Nele, tudo é positividade e p resença" (op. cit. , p. 170).
Nesse sentido, a aporia estava completa d esde s ua primeira formulação no Tcctcto
de Platão. A metáfora da impressão não resolve o enigma da representação da au-
sência e da distância. Não é o seu papel. Este é fa zer corresponder uma fu nção a urna
organização. Quanto à função mnemônica, ela é especificada, entre todas as outras,
;\ U l\.° D I(,. .\U 11 I STl)R IC\

pela relação da representação com o tempo e, no cerne dessa relação, pela d ialética
de presença, ausência e distância que é a marca do fenômeno mne mónico. Apenas o
discurso sobre o mental o explica. Então, a tarefa das ncurociências é dizer não o que
me faz pensar, ou seja, essa dialética que dá tanto o que pensar, mas o que faz com que
cu pense, ou seja, a estrutura neuronal sem a qual eu não pensaria. Já é alguma coisa,
mas não é tudo.

e) Resta falar do esquecime nto! A clínica só aborda o tema preciso do esqueci men-
to na proximidade das disfunções ou, como se diz, das "distorções d a memória" . Mas
o esquecimento é uma disfunção, uma distorção? Em certos aspcctos, sim. Tratando-se
do esquecimento d efiniti vo, atribuível a um a paga mento d os rastros, ele é vivido como
uma ameaça: é contra esse tipo de esquecimento que fazemos trabalha r a memória, a
fim d e retardar seu curso, e a té mesmo imobilizéí-lo. As extraordinárias façanhas da t7r5
111c111oriae destina,·am-se a conjurar a infel icidad e do esquecimento por uma espécie de
supervalorização da memorização que \ 'inha acudir a reme moração. Mas a memória
artificial é a grande perdedora dessa batalha desigual. Em resumo, o esquecime nto é
deplorado da mesma forma que o cm·elhecimento ou a morte: é uma das faces do ine-
lutávcl, do irremediável. No entanto, o esquecimento estc-í. associado à memória, como
\'eremos nos dois ite ns seguintes: sua s estratégias e, cm certas condiçê>es, sua cultura
digna de uma ve rdadeira nr5 o/Jli-uio11i5 fazem com que não seja possível classificar, si m-
plesmente, o esquecimento por apagamento de rastros entre as disfunções ao lado da
amnésia, nem entre as distorções da me mória qu e afetam s ua confia bilidade . Alguns
dos fotos que evocaremos mais adiante dão crédito à idéia paradoxal segu ndo a qual o
esquecimento pode estar té'ío estreitamente confundido com a memória, que pode ser
considerado corno uma d e s uas condi çôes. Essa imbriG1ção do esquecimento com a
memória explica o silêncio das neurociências e m relação à experiência tão inqu ietante
e ambivalente do esq uecimento comum. Mas o primeiro silêncio é, nesse caso, o dos
próprios órgãos. A esse respeito, o esquecimento comum segue o destino da memória
feliz: esta é muda em sua base neuronal. Os fenômenos mne mônicos são vi v idos no
silêncio dos órgãos. O esquecimento comum está, sob esse aspecto, do mesmo lado
silencioso que a memória co mum. Es ta é a g rande diferença entre o esquecimento e as
amnésias de todos os tipos sobre as quais é fé rtil a literatura clínica. Mesmo a infelici-
dade do esquecimento definitivo continua a ser uma infelicidade exis tencial que con-
\'ida n1ais à poesia e à sabedoria do que à ciência . E, se esse esquecimento tiYesse uma
palavra a dizer no p lano do saber, seria para questionar m)\'amentc a fron teira entre
o normal e o p atológico . Esse efeito d e e mara nhamen to não é o me nos perturbador.
Outra problem,Hica que não a probleméitica biológica e médica eleva-se nesse fu ndo
de silêncio: a das situaçôes-limite e m que o esquecimento ,·em se junta r ao envelhe-
cimento e à mortalid ade; então, não são a penas os ó rgãos q ue perma necem silenciosos,
mas o discurso científico e o discurso filosófico, na medida em que este continua p reso
nas redes da epis temolog ia. A filosofia crítica da história e da memó ri a tampouco se
mostra à altura d a hermenê utica da condição his tórica .

<) 435 <>


A MEM()KIA, A HI SH)RIA, O fS(lUECIMENTO

II. O esquecimento e a persistência dos rastros

Não encerramos a questão da inscrição. Como foi dito, a noção de rastro não se re-
duz nem ao rastro documentário, nem ao rastro cortical; ambos consistem em marcas
"exteriores", embora em sentidos diferentes: o da instituição social para o arquivo,
o da organização biológica para o cérebro; resta o terceiro tipo de inscrição, o mais
problemático, embora o mais significativo para a seqüência de nossa investigação; ele
consiste na persistência das impressões primeiras enquanto passividades: um acon-
tecimento nos marcou, tocou, afetou e a marca afetiva permanece em nosso espírito.
É notável que essa tese seja da ordem do pressuposto. Diremos por que dentro de
um instante. Mas antes desenvolvamos os múltiplos pressupostos aqui implicados.
De um lado, e este é o pressuposto fundamental, admito que, a título originário, o
próprio das afecções é sobreviver, persistir, permanecer, durar, conservando a mar-
ca da ausência e da distância, cujo princípio buscamos em vão no plano dos rastros
corticais; neste sentido, essas inscrições-afecções conteriam o segredo do enigma do
rastro mnemônico: seriam o depositário da significação mais dissimulada, embora
mais originária, do verbo "permanecer", sinônimo de "durar". Esse primeiro pres-
suposto situa toda a análise que se segue nas proximidades de Bergson em Matéria
e Memôria 11.
Por outro lado, essa significação ser-nos-ia geralmente mascarada em razão dos
obstáculos à recordação que tentaremos inventariar na terceira seção deste capítulo.
Sob esse aspecto, certas experiências privilegiadas cuja figura chave evocaremos logo
a seguir constituem, apesar desses obstáculos, o início de uma verificação existencial
desse segundo pressuposto.
Terceiro pressuposto: não há a menor contradição entre a afirmação a respeito da
capacidade das inscrições-afecções d e permanecer e durar e o saber a respeito dos
rastros corticais; o acesso a esses dois tipos de rastros inscreve-se em modos de pensa-
mento heterogéneos: existencial de um lado, objetivo do outro.
Quarto pressuposto: a sobrevivência das imagens, reconhecida em sua especifi-
cidade graças aos dois últimos pressupostos, merece ser considerada como uma forma
fundamental de esquecimento profundo, que chamo de esquecimento de reserva.
O primeiro press uposto será o objeto da discussão principal. O segundo será exa-
minado na terceira seção deste capítulo. O quarto s urgirá na conclusão da presente
seção.
O terceiro pode ser discutido desde agora na medida em que questiona dire ta -
mente a diferença entre os dois tipos de rastros aqui con frontados: o rastro cortical e
o rastro psíquico. É preciso afirmar com convicção que nada é subtraído dos ensina-
mentos mais bem estabelecidos das n eurociências por essa exploração do rastro afe-
tivo: déficits mais ou menos graves continuam a ameaçar nossa memória e fazem
com que o esquecimento por apagamento dos rastros corticais continue a ser a fig ura

13 He nri Bergson, Mntii'rt' l't Ml;111oirc. b,ai , ur /11 rc/11tio11 d11 wrp, à /'c~prit (1896), op. cit.
cotidiana dessa insidiosa ameaça; além disso, a base cortica l d e nossa existência cor-
poral não cessa de constituir a causa :,;ínc q11a 11011 de nossa ati\'idade m e nta l no silên-
cio dos órgãos; finalmente, a correlação entre organização e fun ção ta mpouco d eixa
de e ntrete r, sem que o saibamos, a base contínua d e nossa existência corporal. Por-
tanto, não é d e encontro a essa estrutura bás ica que a hipótese de trabalho aq ui pro-
pos ta desenvolve se us meios de pro\'as. Trata-se d e dois sa beres heterogêneos sobre
o esquecimento: um sabe r exterio r e um saber íntimo. Cada qua l comporta suas ra-
zões de confiança e seus motivos de sus peita. Por um lad o, confio na máquina corpo-
ral no exercício da m e mória feliz; mas desconfio de seus recursos mal controlados de
nocividade, d e inquietação e d e sofrimento. Por outro lado, confio na capacidade
originária de durar e permanecer das inscrições-a fccçôes, capacidade sem a qual c u
não teria acesso algum à compreensão parcial do que significa presença da a usência,
anterioridade, distâ ncia e profundidade temporal; mas também desconfio dos entra-
ves impostos ao trabalho da memó ria, os qua is, por s ua vez, se conve rte ram e m opor-
tunidade de usos e abusos para o esquecimento. É assim que chegam os a confu ndir
impedimentos potencialmente revers íveis com um apagamento incontorn,h·el. Essa
confusão não é menos prejudicial no plano e pistemológico do que no plano existen-
cial. À hesitação entre a ameaça de um esquecimento definiti vo e a obsessão de uma
me mória proibida acrescenta-se a incapacidade teórica d e reconhecer a especificida-
d e do rastro ps íquico e a irredutibilidade dos proble mas ligados à imprcssão-afec-
ção. Esse estado de confusão tanto epis temológico quanto existencial nos obriga a
\'Oltar ao primeiro pressuposto, que os dois seguintes apenas reforçam.
Quais experiências pode m ser consideradas como confirmações da hipótese da so-
bre,·i\'ência das impressües-a fecções alé m d e sua aparição? Neste ponto, a experiência
pri11ceps é a do reconhecimento, esse pequeno milagre da memória feli z . Uma imagem
me acode ao espírito; e digo em meu coração: é ele sim, é ela sim. Reconheço-o, reco-
nheço-a . Esse reconhecimento pode assumir dife rentes formas. Ele já se produz no de-
correr da percepção: um ser esteve presente uma vez; ausentou-se; voltou. Aparecer,
desaparecer, reap a recer. Nesse caso, o reconhecimento ajusta - ajunta - o reaparecer
ao aparecer por meio do d esap arecer. Essa p eq uena felicidade da percep ção deu ense-
jo a muitas descriçües clássicas. Pensa-se em Platão evocando os malog ros d a confusão
e as chances do reconhecime nto obtido no Tcctcto e no Filcbo. Pensa-se na pe ripécia do
reconhecimento, n a 1111ng11i>risis - na tragédi a grega: Édipo reconhece c m sua própria
p essoa o maléfico iniciador dos males da cidade. Pensa-se e m Kant reconstruindo a
obje ti vidad e d o fenômeno na base d a tríplice síntese subjcti,·a, a recognição (Rckog11i-
tio11 ) vindo coroa r a s imples apreensão na intuição e na re produçé'ío das representações
na imaginação. Pensa-se ta mbé m em Husserl, que iguala a percepção do objeto espa-
cial à combinatória de seus pe rfis ou esboços. Por s ua \ 'CZ, a recog nição kan ti ana terá
uma descendência concei tua i na A11erkc1111 1111g, o reconhecimen to hegelia no, esse ato
ético no qual culmina a problemcitica da inters ubjeti v idade na arti culação do espírito
subjetivo e do espírito objetivo. De muitos m odos, conhecer é recon hecer. O reconhe-
cimento ta mbém pode apoiar-se num suporte materi al, numa ap resentação figurada,

., 437 o;:,
A Ml: M(lRIA, /\ IIIST(JRJ A, () F.SQ U FC I MF1': TO

retrato, foto, pois a representação induz a identificação com a coisa retratada cm sua
ausência: a esse entrelaçamento eram dedicadas as intermináveis análises de Husserl,
que ligavam Plzantasíc, Bild e Eri1111cru11g.
Finalmente, há o reconhecimento propriamente mnemônico, geralmente chamado
de reconhecimento, fora do contexto de percepção e sem suporte de representação
necessário; ele consiste na exata superposição da imagem presente à mente e do rastro
psíquico, também chamado de imagem, deixado pela impressão primeira. Ele realiza o
"ajuste", evocado pelo Tcetl'fo, entre o colocar do pé e a impressão antiga. Esse pequeno
milagre de múltiplas facetas propõe a solução em ato do enigma primeiro, constituído
pela representação presente de uma coisa passada. A esse respeito, o reconhecimento
é o ato mnemônico por excelência. Sem essa resolução efetiva, o enigma continuaria a
ser uma aporia pura e simples. É para esse ato que converge o feixe d e presunções de
confiabilidade ou de não-confiabilidade apontado para a lembrança. Talvez tenhamos
colocado o pé na impressão errada, ou apanhado o pombo errado no pombal. Talvez
tenhamos sido vítimas de um falso reconhecimento, como quem, de longe, confunde
uma árvore com uma personagem conhecida. Entretanto, quem poderia abalar, com
suas suspeitas dirigidas de fora , a certeza ligada à felicidade de tal reconhecimento
gue consideramos, em nosso coração, como indubitável? Quem pode afirmar nun-
ca ter confiado cm tais reencontros da memória? Os acontecimentos norteadores, os
acontecimentos fundadores de urna existência solitária ou compartilhada não depen-
dem dessa confiança primeira? E não continuamos a medir nossas confusões e nossas
decepções em função dos sinais oriundos d e um reconhecimento inabalável?
Como acabamos d e dizer, o enigma da presença da ausência está resolvido na
efetividade do ato mnemônico e na certeza que coroa essa efetividade. Mas ele não
se tornaria mais impenetrável no plano especulativo? De fato, voltemos ao termo de
nosso primeiro pressuposto: estimamos que a impressão-afecção permanece. E por
permanecer, ela possibilita o reconhecimento. Mas como sabemos disso? O enigma
especulativo subsiste no próprio cerne de sua resolução efetiva. De fato, o pressu-
posto é inteiramente retrospectivo. Ele é proferido a posteriori. Talvez seja mesmo
este o modelo do a posteriori. Na narrativa ulterior, ele apenas se enuncia no futuro
composto do subjuntivo: se tiver sido verdade que reconheci este ser amado corno
tendo permanecido o mesmo apesar de uma longa ausência, uma ausência definitiva .
"Tardei a reconhecer-te, ó verdade!" exclama dolorosamente Santo Agostinho. Tar-
dei a reconhecer-te é a confissão emblemática de todo reconhecimento. Sobre o pres-
suposto retrospectivo, construo um raciocínio: foi preciso que algo permanecesse da
primeira impressão para que del a me lembre agora . Se uma lembrança volta, é porque
eu a perdera; mas se, apesar disso, eu a reencontro e reconheço, é que s ua imagem
sobrevivera.
Este é, resumido in 1111cc, o raciocínio d e Bergson em Matéria e Memória. Bergson, a
meu ver, continua a ser o filósofo que mais se aproximou do entendimento do vínculo
estreito que existe entre o que chama de "sobrevivência das imagens" e o fenômeno
chave do reconhecimento. Detenhamo-nos, para verificá-lo, nos capítulos 2 e 3 de Ma-
;\ Cll'\. DIC., .\l l 11JS Jt)R IC /\

téria e Mr/1/âria, que constituem o cerne psicológico da obra inteira. O primeiro intitu-
la-se: "Do reconhecime nto das ima gens. A memória e o cérebro". E o segundo: "Da
sobrevivência das imélgens. A memória e o espírito". Reconheci mento e sobrevi,·ência
são corno que os dois pilares centrais da obra.
Para compreender a centralidade d essas duas noções, remontenws o curso d e nos-
sa i,westigação até o ponto em que, pela primeira vez, nos deparamos separadamente
com a problemática d o reconhecimento e a da sobrevivência das imagens. Encontra-
mos pela primeira vez a questão do reconhecime nto no âmbi to de nossa fe nomenologia
da memória quando da distinção das duas memórias: a memória-hábito, que é sim -
plesmente agida e sem reconhecimento explícito, e a memória-rememoração, que n ão
prescinde de reconhecimento declarado. Contudo, naq uele estágio, isso continua\'a a
ser uma polaridade entre outras. Quanto à questão da sobre,·ivência, nós a encontra-
mos pe la primeira vez, já com Bergson, quando tratamos da dis tinção entre a lembran-
ça e a imagem; postulamos, então, a existência da le mbrança "pura " como u1n estado
\'irtual da representação do passado, c1 nterior à sua vinda em image m sob a forma
mista da le mbrança-imagem. Foi a " realização da le mbra nça" que re teve então nossa
atenção, sem que a p ostul ação da lembra nça "pura " ti vesse sido esclarecida, permane-
cend o como que preservada da c uriosidade pelas aspas. Tínha mos d e ixado a le m-
bran ça "pura " n c1 condição do virttléll. É n esse ponto crítico que se deve retomM a lei-
tura, para levá-la a atribuir a essa lembrança "pura", além da virtualidade, a
inconsciência e um c1 existência comparável à que atribuímos às coisas exteriores quan-
do não as percebemos. São essas audaciosas equaçôes que nos a utori za rão m ais ta rd e
a erigir, p or nossa ,·ez, esse es tatuto d e sobre,·i\'ê ncia das imagens num segundo p ara-
digma d e esquecimento, concorrente daquele do apagamento dos ras tros (nosso quar-
to pressupos to).
Para compreende r esse encadeamento conceituai, é preciso remonta r mc1 is c1cima
em Matéria e Mrn1ório , até a tese inaug ural da obra toda, a saber, que o corpo não passa
de um órgão de ação, e não de representação, e q ue o cérebro é o centro organi zador
desse sistema que age. Essc1 tese exclui de saíd a que se procure no cérebro a ra zão da
conservação das lembranças. A idéia d e que o cérebro se lembre d e ter sido impressio-
nado é considerad a como incompreensÍ\'el e m si mesmc1, o q ue não exclui que o cére-
bro tenha um pc1pel a d esempenhar na memória. Mas este é de o utra ordem que a da
representação. Enqwrnto órgão de ação, e le exerce seus efeitos sobre o próprio trajeto
da lembra nça "pura" à imagem e, portanto, sobre o trajeto (fa recordação. A discussão
com as ne urociências da época se dc\'e inteirame nte a essa atribuição ao cérebro d o
campo da ação apenas, isto é, do mo\' imento físico: na impossi bilidade de esperar do
cérebro que ele encerre é1 solução da consen ·ação d o passado e m termos de represen-
tação, deve-se buscar outra direção e atribuir à impressão o p oder de sobre\·i,·er, per-
manecer, durar, e fazer desse pod er não um cxplic1111d11111 - como na tese neuronal-,
mas um princípio auto-su ficie nte de exp licação. Para Bergson, a dicotomia entre ação
e rep resentação é a razão úl tima d a dicotomia entre cérebro e memória . Essa dupla di -
cotomia está de acordo com o método de di\'isão aplicado com rigor ao longo d e tod a
/\ ML: M(W l 1\, A HI ST() RII\, O ES(JUECIMl'NTO

a obra, que consiste numa passagem aos extremos an tes d e reconstituir os fenômenos
ambíguos e confusos da experiência cotidiana como mistos cujo entendimento é diferi-
do. O reconhecimento é o modelo desses mistos reconstruídos, e o entrelaçamento das
duas memórias, o e xemplo do misto mais fácil de se decompor e recompor. Por fal ta
dessa chave de leitura, não soubemos discernir na famosa distinção entre "as duas
formas de memória" (Math~rc et Mé11loirc, p . 225 e segs.) duas modalidades de reconhe-
cimento, a primeira se fazendo pela ação, a segunda por um trabalho do espírito "que
iria busca r no passado as representações mais capazes de se inscreverem na situação
atual, para dirigi-las rumo ao presente" (op. cit., p. 224).
Uma questão estava posta por antecipação, a de saber "como se conserva m essas
representações e quais relações elas mantêm com os fenômenos motores. Essa questão
será aprofundada apenas em nosso próximo capítulo, quando tivermos tratado do
inconsciente e mos trado em que consiste, no fundo, a distinção entre o passado e o
presente" (op. cit., p. 224). É notável que essa dificuldade só possa ser colocada a partir
do fenômeno do reconhecimento, no qual ela se encontra resolvida em ato. Enquanto
isso, a psicologia é habilitada a declarar "que o passado parece mesmo armazenar-se,
como havíamos previsto, sob essas duas forma s extremas, d e um lado os mecanismos
motores que o usam, do outro as imagens-lembranças pessoais que desenham todos
os acontecimentos do passado, com seu con torno, sua cor e seu lugar no tempo" (op.
cit., p. 234). Pod e-se assim notar que essas duas formas extremas de " fidelidade a con-
servar" (íbid.) que são "a memória que revê" e "a memória que repete" (ibid. ) operam
ora em sinergia, ora em oposição. Alertou-se, entretanto, contra o privilégio conferido
pelo senso comum aos fenômenos mis tos e, em razão da regra de di visão 1' , d eu-se
prioridade às form as extremas, afastando-se assim "a estranha hipótese de lembran-
ças armazenadas no cérebro que se tornariam conscientes por um verdadeiro mila-
gre, e m e levariam de volta ao passado por um processo misterioso" (op. cit., p . 235).
Reencontro aqui m eu argumento segundo o qual o rastro material está inteiramente
presente e deveria ser dotado de uma dimensão semiótica para significar que ele é do
passado. No vocabulário de Bergson, o rastro cortical deve ser recolocado no centro
d essa tota lidade d e imagens que chamamos de mundo (é o tema do difícil e enigmá-

14 Em se u e nsaio Lc Bcrgso11i~111t·, Paris, PUF, 1966, cap. 1, '' L'intuiti on comme méthode", Gilles Dc-
leu ze o bserva qu e o recurso à intuição né'io significa, p ara Bergson, licença dada ao inefável: "A
intuição né'io é um sentimento, ne m uma aspiração, uma simpatia confu sa, m<1s um m é todo ela -
bora do e até um d os métod os, not<1 Dclcu ze, mai s elaborados d a filosofia" (p. l ). O método de
divisão, p a rente do de Platão no Filc/10, é, sob esse <1specto, um ponto import<1nte desse método:
n ão o Uno contra o Múltiplo, postos cm sua generalidade, mas doi s tipos de multiplicidade (ibid.,
p. 31) . Um modelo de multiplicid<1de é proposto no m étodo de divi são que desenh,1 um espectro a
percorrer, ex tremos a ident ificar e um m isto a recons truir. Va le notar, tam bém com Delcu ze, que
<1s alternâncias de dual ismo e de monismo que baliza m Mntáin e Mc111ória depend em do tipo de
multiplicidade con s idcrad,1 <1 cadil vez e do tipo de misto reconstruído. A notnção é importil nte,
n a medida cm que a identificação dos fa lsos problem<1s constitu i mai s uma d<1s m.íx imas caras
a Bergson e qu e pode ser considerada um cornhírio dessa disti nção dos ti pos d e mu ltiplicidad e;
ora, o p roblema da un ião da ,1 lmi1 e do corpo s u rge t!m muitos as p ectos como um desses fa lsos
problemas; colocar corret<1 men tc os problemas contimrn a ser a prime ira tarefa do filósofo.
A <. O, l) J e,·_.\() li IST(lJ{ JC ,\

tico capítulo 1) e tratado "como urna entre essas imagens, a última , a que obtemos a
todo momento ao praticar um corte instanté'ineo no de,·ir em geral. Nesse corte, nosso
corpo ocupa o centro" (op. cit., p. 223) 1' .
Nesse estágio da análise, apenas uma separação exa ta das duas memórias prepara
o cam inho para a tese da independência da memória-representação. Nada foi dito, ain-
da, sobre as condições dessa independência. Pelo menos, pod e-se afirma r que "o ato
concreto pelo qual rea preendemos o passado no presente é o reconhecimento" (op. cit. ,
p . 235). Cabe ao ca pítul o 3 encarregar-se da questão deixada em s uspenso, "a de saber
como se conservam as representações e quais relações mantêm com os mecanismos
motores" (op. cit., p. 224).
Abramos o capítulo 3: em quarenta p,'lginas (op. cit., pp. 276-31 6) de uma densidade
extrema, Bergson dá a cha ve d aquilo que chama de "a sobrevi,·ên cia das imagens" (op.
cit., p. 276).
Havíamos apenas iniciado sua análise acompanhando as fases da operação pela
qual a lembrança "pura" sai de seu estado ,·irtual e passa ao estado atual; somente o
tornar-se-imagem da lembrança reti\'era nossa atenção. A questão levantada agora é
ma is radical: apesar de sua tendência a imitar a percepção ao se realizar, nota Bergson,
nossa lembrança "permanece ligada ao passado por s uas raízes profundas, e se, uma
,·ez realizada, ela não sofresse os efeitos de sua virtualidade original, se não fosse, ao
mesmo tempo apenas um estado p resente, algo que contrasta com o presente, nunca a
reconheceríamos como uma lembrança" (op. cit. , p . 277). Tudo está dito num tom mui-
to elegante: contrastar com o presente, reconhecer como uma lembrança. É o enigma,
inteiramente reafirmado, da presença da ausência e da distância , tal como enunciado
d esde o começo da presente obra! 1''
A solução da sobre\'i vência é rad ical. Ela consiste numa cadeia de proposiçôes
dessimplicadas do fenómeno do reconheci mento. Reconhecer uma lembrança é reen-
contrá-la. Reencontrá-la é presumi-la p rincipia lrnente disponível, se n ão acessí\'el.
Disponível, como à espera de recordação, mas não ao alcance da mão, corno as a\'eS do
pombal de Platão que é possível possuir, mas não aga rra r. Cabe assim à experiência do
recon hecimento remeter a um est;Klo de latência da lembranç,1 da impressão prime ira

1:=; Um pouco mais t,1rdt', Bergson obsen·,u,í que, para con sen·,u im agen s, ser ia prec iso que o cére-
bro ti\'esse o podt>r de conservar a si mes mo. "Admitam os por um instante que o passado sobre,·i-
, ·a a si mesmo nu est,1do de lembrança <Hmal'.cn,1d,1 nu céreb ro; c nt:w, para c11nsen·ar a lembrança,
sed preciso que L) cérd1ro conservL' peh1 menos ,1 s i mesmo. Mas esst' n .' rL'bro, enq uanto imc1gt' m
estendid a no espaço, o cupa ,1penas o mo nwnlt) presente; c ll' constitu i, co m todo o rL'Slo d o uni-
, ·erso materia 1, um co rtl' i nct' ssankm en te re no,·ado du tkv i r un i,·e rs,1 l. L11go, tt:> re is d e s upur que
eSSL' universo ]X'rt' CL' L' renasce, p o r um , ·erd adei ro mi l.ig rc, em tod os tb momentos da dur,1ç,io,
ou tereis de trans mit ir-lhe a continuid a de de e:,.istt' nci,1 que recusais :i consciência, L' fozL'r dt'
seu passado um,1 realidade que subrL'\·i,·e ,1 si nwsma e se prolonga em seu presente: port,rnto,
ni'io krci s ganht1 cois,1 ,1 lg uma ao arm ,lZL'l1,H n 1ssas ll'mbranças n,1 m,ltl'ria e, pelo contrc1rio, n1s
\'L're is obrigados ,1 t'Sknder à tota lid,1dt· dus L'stados do mu ndll matcri,1 1 L'Ssa sob rt'\' i,·ência i ndt.'-
pt.indente l' intcg r,11 d o passado qut.' i'l'CLJ Sasll's ,10s L'Stados psinilúg icos" (M,1tii-r1' ,·/ A 11;111 t1ir!'. tlJI.
cit., p. 290)
16 Cf. acima, p. 27.
/\ M J: Mt)R I A, 1\ IIISH)RIA, O FS(>U l·:C l :V1EN TO

cuja image m teve de se constituir ao mesmo tempo cm que a afecção originária. De


fato, um corolário importante da tese da sobrevivência em estado de latência das ima-
gens d o passado é que um presente qualquer, desd e seu surgimento, já é seu próprio
passado; pois como se tornaria passado se não tivesse se cons tituído ao mesmo tempo
em que era presente. Como nota Delcuze: "Existe aí como que uma posição funda-
mental do tempo, assim como o paradoxo mais profundo da memória: o passado é
'contemporâneo' do presente que ele foi. Se o passado tivesse de esperar para não mais
ser, se ele não fosse passado imediatamente e agora, 'passado em gera l', nunca poderia
se tornar o que ele é, nunca seria este passado. 1... 1O passado nunca se constituiria, se
não coex istisse com o presente do qual ele é o passado" (Ll' Bergsonismc, p. 54). Dele uzc
acrescenta: "Não apenas o passado coexiste com o presente que ele foi, mas [ ... ] é o
passado inteiro, integral, todo nosso passado que coexiste com cada presente. A famosa
me táfora do cone representa esse estado completo de coexistência " (op. cit., p. 55).
Por sua vez, a idéia de latência invoca a de inconsciente, se chamarmos de consciên-
cia a disposição para élgir, a atenção à vida, pela qua l se exprime a relação do corpo
com a ação. Insistamos com Bergson: "Nosso presente é a própria materialidade de
nossa existência, isto é, um conjunto de sensações e de IT1ovimentos, nada mais" (Mn-
ticre et Mé111oirc, p. 281). Disso resulta que, por contraste, por "hipótese" (op. cit., p . 282),
o passéldo é "o que não age mais" (op. cit. , p. 283). É nesse momento crucial da reflexão
que Bergson declara : "Essa impotência radical da ' lembrança pura' nos ajudará p re-
cisamente a compreender como ela se conserva em estado latente" (ibid.). A palavra
"incon sciente" pode então ser proferida em conjunto com "impotência". A cadeia das
implicélções completa-se com um último termo: é possível conceder, para as lembran-
ças que ainda não tivern m acesso, pela recordação, à luz da consciência, o mesmo
tipo de existência que éltribuímos às coisas que nos rodeiam quando não as percebe-
mos 17. É esse sentido d o verbo "exis tir" que es tá assim implicado na tese da latência
e da inconsciência d as lembrançéls conservadas do passado: "Mas alcançamos aqu i o
proble ma capital da existência, problem a que podemos apenas roça r, pélra não corre r
o risco d e sermos levados, de questão em questão, até o próprio cerne da metafísica"

17 Bergson se aproxim a, aqu i, das regiões do incon sciente freqüentada s por 1-'reud. Ao falar dos
ant?i s de cxpiln siio q ue se liga m numa cadeia, Bergso n not.:i: "Sob ess.:i forma condensada, nos-
sa vida psicológica an terior ex iste a té mais, para nós, do que o mundo e xterno, do quc1 l nunca
percebemos mais do que uma parte ínfirn n, ao p,1sso que, pelo contrário, usamos a tota lid ade dL!
nossa experiêncin vivida . É vcnfade qm' a possuímos assim apena s abrev iadamen te, e que no ssas
a ntigas pcrcepções, consideradas como ind iv idualidades distintas, nos d ão a impressão quer de
terem desapa recid o tota lme nte, q ue r <fr somente reaparecerem ao bcl-pra zpr de s uc1 fanta s ia. Mas
e ssa apa r[•ncia de dest ru içiio completa ou de ressurreição caprichosa se deve s implesmente ao fa to
de a co nsciêncizi zttu a I accitM n e.ida instante o üti I e rej eitar momentaneamente o s upérfluo" (ibid.,
p. 287). Q uanto à rclaçi'\o cntn• o incon scien te bergsoniano e o inconsciente freudiano, é um a per-
g unta que tocare mos apena s na terceira seção deste cnpítulo. Not1c•rnos, co ntudo, que Bergson não
ignorou o problema, como mostra um texto dt• Ln Pcn~t;c cf /e Mo1ma11/, que De le uzc cita: "Até nossa
idéia de um a conser vaç,io integral do passado e ncontrou cada vez mais suí.1 verificação e m p írica
no vns to conjunto de ex~wri0ncias ins tituído pt>los d iscípulos de FrL'ud" (La Pe 11 ~fr cf /e Mo11 Pt111/,
in ( El1urc~, op. cil ., p. l '.116).
/1 U)\.IJ l\ \ ( l IIISHlRIC ,\

(op. cit., p. 288). Essa tese permJnecc na ordem d o pressu posto e d a retros p ecção. ~ ão
pe rcebemos a sobre\' i\·ência, nós a pressupomos e ne la Jcreditamos 1' . E é o reconhe-
cimento que nos autoriza a acreditar: aquilo que um a vez , ·.i mos, ouvim os, sentin10s,
aprendemos não esté:Í d efinitivamente perdido, mas sobrc\'i\·e, p o is podemos recor-
dá-lo e reconh ecê-lo. Ele sobrevive. Mas onde? Essa p ergu nta constitui uma cilad a,
mas ela talvez seja ine\·itável, na m edida e m que é difícil não designar em termos d e
continente o lugar psíquico "de onde", como se di z, a lembra nça , ·olta. O próprio Berg-
son não afi rma que \ 'élmos buscar a lembrança onde ela est,í, no passado? Mas toda
sua empreitada consiste em subs tituir a pergunta "onde?" pela pergunta "como?": " só
restituirei [à lembrança ] seu ca ráter de lembrança reporta ndo-me à operação pelJ qual
a e, ·oqu ei, virtual, do fundo de seu passad o" (op. cit. , p. 282). Ta lvez aí esteja a \·crd ade
profunda d a n1w11111L'Sis g rega: busca r, é esperar reencontrar. E reencontrar é reconhecer
o que uma vez - anteriormente - se aprendeu. As poderosas imagens do " lugéir"
nas Co ,~fissôcs de Sa nto Agostinho, comparando a m e m ó ria a '\·astos palácios", a "de-
pósitos" onde as lembra nças são armazenadas, nos encantam litera lmente. E a antiga
assoc iação entre cik6n e tupos forma-se de novo, ins idiosamente. Para resistir a essa
sed ução, é preciso incessantemente formar de no\'o a cadeia conceituai: sobrevi,·ência
ig ual latência igu al impotência igu al inconsciência ig u al ex istência. O vínculo da ca-
deia é a convicção de que o devir não significa fundamentalmente passagem , JT1as, sob
o signo da memória, duração. Um devir q ue dura, nisto consiste a intuição mestra de
Mt1thit11: Mc111ório.
Mas fo rmar d e no,·o essa cadeia conceitu a i e elevar-se a essa intui ção m estra é
sempre saltar para fora d o círcu lo desenh ado cm torno de nós pela aten ção à ,·ida. É
tran sportar-nos para esse nutro lugar da ação que o sonh o é: "Um ser humano que
sonhasse sua existência ao invés de vi\·ê-la também manteria provavelmente sob seu
o lhar, a tod o momento, a multid ão infinita dos detalhes de s u a his tória passada " (op.
cit., p. 295). Um salto é de fato necessário para remontar à fonte da lembran ça "pura",
na rn edidJ em que o utra vertente da ancÍlise a le va a segu ir o m ov imento descendente
da lembran ça "pura" rumo à imagem na qu a l aquela se rea liza. Conhece-se o esque-
ma ch amado de con e in vertido (op. cit. , pp. 292-294) pelo qual Bergson visualizo u de
algum m odo pc1ra seus leitores (como fez Husserl nas Liçi'ic~ d e 1905) esse processo
d e rea lização. A base do cone figura a tota lidade das lembran ças acumuladas na m e-
mória. O vérti ce figura o contato pontual com o plano d a ação, nesse ponto estreito
constituído pelo corpo que age; esse centro é, a seu modo, um lugar de mem ória, mas
essa memória quase instantânea nada mais é que a rnernória-h,:ibito; não passa de um
ponto móvel, aque le do presente que, incessan temente, passc1, ao contrári o da '\·creia-

18 Sl! foss e p rl'ciso n•sumir /l.111 frri11 1· M,·111ôri11 nu1n.1 frasl', sl'ri,1 prL'ciso dizer que a lemhranç,1 "con-
sen·a-se ,1 s i mes ma". Fss,1 declarciçàn se IL· em i.ll Pc11::,;c ct /e /l.fou ,•,111 / (,,p. ât., p. B l 'i): " l'l'rcl'bl'-
mus q ue a e xpcriL·1Ki,1 intl'rna cm t.'stadn puru, au nns d ar um ,1 'substii nci,1 ' c uja L'Ssi:•n(i,1 é d11r,1r
l', con SL'qi.il'ntenwntL', prnhrn~,ir incessa ntpnwnte no prL'St>nte um p,1ss,1do indes tr utí\ ·el, nos ll'ri,1

d ispL'nsado l' ;i té nll'S lllll proibido dl' bu scdr onde a lembr,1nça é consL·n·,Kfa. Ela se CllllSL'l"\',1 ,1 c;i
mesma ..." (citado por lJdl' UZt', /.e lkr:,;::P11i::111,·, op. cit., p . .J.9).
A MEM()J!IA, A HISH)RJJ\, () FSQU l:CIMF N TO

deira memória" (op. cit., p. 293) representada pela vasta base do cone. Esse esquema
busca ilustrar ao mesmo tempo a heterogeneidade das memórias e a maneira como
elas se prestam um apoio mútuo. O esquema se enriquece se quisermos aplicar-lhe
a figuração do capítulo anterior, onde a massa das lembranças era representada por
círculos concêntricos capazes de se diluírem indefinidamente segundo os graus de
profundidade crescentes ou de se concentrarem numa lembrança precisa, "segundo o
grau de tensão que nosso esp.írito adota, segundo a altura em que ele se situa" (op. cit.,
p. 251 ); assim, é a multiplicidade não numérica das lembranças que vem se incorporar
no esquema simplificado do cone. Esse esquema não pode ser n egligenciado, sobre-
tudo porque marca o ponto culminante do método bergsoniano de divisão; "a relação
do passado com o presente" (op. cit., p. 291 e segs.) ilustrada pelo esquema d esig-
na i11 fine a reconstrução de uma experiência híbrida, mista: "prntirnme11te, pcrcebe111os
apenas o passado, o presente 'puro' sendo o inapreensível progresso do passado roendo
o porvir" (op. cit., p. 291). Toda a sutileza do m étodo bergsoniano está aqui em ação: o
movimento reflexivo de subida isola a lembrança "pura" no momento do pensamento
sonhador. Poder-se-ia falar, aqui, de memória meditante, em um dos sentidos do ale-
mão Cediic/1tnis, distinto de Erinnerung e aparentado com Denkcn e Andenken; de fato,
há mais do que sonho na evocação da latência daquilo que permanece do passado:
algo como uma especulação (Bergson fala, às vezes, "de uma memória inteiramente
contemplativa" [op. cit., p. 2961), no sentido de um pensamento no limite, pensamento
que especu la sobre as inevitáveis aspas que delimitam a palavra lembrança "pura". De
fato, essa especulação procede na contra-encosta do esforço d e recordação. Na verda-
de, ela não progride, ela regride, recua, remonta. Entretanto, é no próprio movimento
da recordação e, portanto, na progressão da "lembrança pura" rumo à lembrança-
imagem, que a reflexão se esforça por desfazer o que o reconhecimento faz, a saber,
reapreender o passado no presente, a ausência na presença. Bergson descreve essa
operação de modo admirável; ao falar da passagem da lembrança do estado virtual ao
estado atual, ele observa: "Mas nossa lembrança ainda continua no estado virtual; sim-
plesmente dispamo-nos a recebê-la adotando a atitude apropriada. Aos poucos, surge
como gue uma nebulosidade que se condensa; de virtual, ela passa ao estado atual; e,
à medida que seus contornos se desenham e que sua superfície se colore, ela tende a
imitar a percepção. Mas permanece ligada ao passado por suas raízes profundas, e se,
urna vez realizada, não sofresse os efeitos de sua virtualidade original, se não fosse, ao
mes mo tempo em que é um estado presente, algo que se destaca do passado, nunca
a reconhecería mos como uma lembrança" (op. cit., p. 277). Reconhecer a lembrança
"como uma lembrança ", eis todo o enigma resumido. Mas para trazê-lo à luz do dia, é
preciso sonhar, obviamente, mas também pensar. Então começamos a especular sobre
o gue significa a metáfora da profundidade, e o que significa estado v irtuaJ1'1•

19 Deleuze enfati za esse traço do p rocesso regressivo requerido pela marcha rumo ao virtuil l: "Ins-
tala-se de saída no passado, pula-se no passado como num elemento próprio. Assim como não
percebemos ilS cois.is em nós 111L'Smos, m,1 s onde elas estão, apenas apreendemos o passado onde
e le est,í, nele mcsm1 i , e não e m nós, em nosso presente. Portanto, h,í um 'passado cm gera l' que não
/\ Ctl'd)l(; ..\\l I l l~T(lll lCt\

Algumas obsen·ações críticas impõem-se antes que consideremos o quarto e últi-


mo pressuposto dessa segunda viagem ao pa ís do esquecimento, a saber, o direito d e
considerar a "sobre\·i,·ência das imagens" como uma figura do esquecimento, digna
de ser oposta ao esquecimento por apagamento dos rastros.
Minhas observações en focam dois pontos: primeiro, é legítimo isolar a tese que o
próprio Bergson chama de psicológica da tese metafísica que dá seu título completo
a Matéria e Memória? De fato, os dois capítulos centrais que tomamos como guias são
enquadrados por um capítulo inicial e um capítulo termina l q ue, juntos, desenham o
en velope metafísico d a psicologia. É com uma tese metafísica que o livro começa: a de
considerar o conjunto da rea lidade como um mundo de "imagens" num sentido d a
palavra que excede toda psicolog ia; não se trata d e nada menos que de decidir entre o
realismo e o idealismo em teoria do conhecimento; essas imagens, que não são mais
imagens de nada, são, diz Bergson, um pouco menos consistentes que aquilo que o
realismo considera corno independente de toda consciência e um pouco mais d o que
aquilo que o idealismo, pelo menos o de Berkeley - já \'isado por Kant sob o título d e
"A refutação do idealismo" na Crítirn da Rn:iio pum - , considera como simples con-
teúdo evanescente de percepção. Ora, o corpo e o cérebro são considerados como es-
pécies de irrupção prática nesse uni\'erso neutro d e imagens; nessa condição, eles são
ao mesmo tempo imagens e o centro pr.Hico d esse mundo de imagens. O desmantela-
mento daquilo que se chama de matéria já começou, n a medida em que o materialismo
constitui o cúmulo do realismo. Mas o capítulo 1 não vai rnais longe. É preciso então
pular até o fim do cap ítulo 4 para formula r a tese metafísica integral que, segundo a
expressão de Frédéric Worms 211, não consiste em nada menos que "uma metafísica d a
matéria fund ada na duração" ({11trod11cticJ/1 à 'Mntierc ct Méllloirc' de Bergson, p. 187 e
seg.). Ora, é na base de tal metafísica que é proposta uma releitura do problema clássi-
co da união d a alma ao corpo (como Bergson prefere dizer, Matihc l't Méllloirc, p. 317),
releitura que, por um lado, consiste na eliminJção de um folso problema e, pelo outro,
elabora um dualismo inclassifidvel en tre as figuras históricas do dua lismo. Aliás, fa-
ses de monis mo e de dua lismo alternam-se segundo o tipo de multiplicidades a di,·idir
e de mistos a reconstruir. Assim, descobre-se com s urpresa que a oposição entre dura-
ção e matéria não é d efinitiva, se for ,·erdade iro que se pod e fonnar a idéia de uma
multiplicidade de ritmos ma is ou menos ten sos de durações. Esse monismo di feren-

é u passad o pa rticular desse o u daqul'lt..' presentt:>, m as que é cumo quc um clementu l)ntolúg icu,
um pa ssado t..'tL'rno L' de tudos os tempos, Clllld iç,"to parn a 'p ,1ss<1gc111' d(' todo presente parti( ul ,ir.
É o passad u L'm )?;L'1-.1 l que possibilita todos L)S pa ssados. l{ecolocamn-nos pr ime iro, diz Bergson ,
no passado e m ger,1l: t) Ljllt' L'le dcscrl'\'L' ,1ss im , é o solto poro dt'11/r,, do n11to/pgi11" (i/,id., pp. 31 -:;2).
N l•ssa oportunidê!de, IJe leul'.e illh·e rtl' como, <1ntl's d e le, fl'q ul'ri,1 Hyppoli te ("Ou lw rgson isrne
:1 l'L'x istenti <1 li s mL•", Mcrrnrt' de Fnrn t'c, jul. ll/-lLJ; l' "/\spL'c ts di\l' rs d v la mt'.• moirL' chc/. Bcrgsnn",
l~t'i'IIC i11ten111t io1111/c d,· pi,i/n.,ophic, ou t. ILJ--19 ), contra u mil intt•r prl'taç,i l) psico logiz.intc do te xto
bergsoniano. M,1s, para Bergson, a rl'ÍL'l'l'nci ,1 :i psico log ia continua ,1 ser uma refen:•nci,1 rnibn' L'
p rcserv,1 a di stin i.;,10 L'ntrc ps icologi,1 L' nwLitísir,1, :1 qu,11 \ ·o lt,Hl'm os m,1is ad ianll' .
20 Fr0d(•ric Worn1 s, /11/ riid11 d io11 11 "Mali,·ri· t'l ,\ 1,:111,lirt'" de l.icr,1; ." <'II, r'/'· ,·i/.
/\ M l ' '\-1()R I ;\, /\ HIST(ll{li\, O FS(.)UFClt\1ENTO

ciado das durações não tem mais nad a em comum com nenhum dos dualismos elabo-
rad os desde a época dos cartesianos e dos pós-cartesianos2 1•
Mas essa n ão é a última palavra da obra. As últimas páginas de Matfrin e Me111ôrin
são ded icadas à formulação d e três polaridad es c1~1ssicas: extenso/inextenso, qualida-
de / quantidade, liberd ad e/ necessidade. Portanto, é preciso ler Mntéri11 e Me111ôrin do
primeiro ao último capítulo e este até as últimas p áginas. Admito isto.
Resta que a psicologia estabelecida sobre o par reconhec imento/sobrevivên cia não
apenas é perfeitamente delimitada n o decorrer da obra, mas pode ser considerada
uma cha ve distinta da metafísica que a circunscreve. De fato, tud o começa pela tese de
que "nosso corpo é um instrumento de ação e somente d e ação" (op. cit., p. 356). Assim
começam as págin as intituladas "Resumo e conclusão" (op. cit., pp. 356-378). Neste
sentido, a oposição ação/representação cons titui uma primeira tese explicitamente
psicológica e apenas implicitamente metafísica em razão de suas conseqüências para
a idéia de matéria. Passa-se d aí à tese da sobrevivência por si d as imagens do passa-
do, por meio d e um coroléfrio da p rimeirn tese, a saber, que a consciência do presente
consiste essencialmente na atenção à vida; ora, isso é o oposto da tese segundo a qual
a lembrança "pura" é marcada pela impotência e pela inconsciência e, nesse sentido,
existe por si. Uma antítese psicológica preside assim a toda a empreitada, e o par que
dá seu título aos dois capítulos centrais - o reconhecimento das imagens e a sobrevi-
vência das imagens - constrói-se sobre essa antítese.
Portanto, é em relação él essa psicologia que tento situar-me, deixando de lado a
teoria generalizada das imagens do capítulo 1 e o uso hiperbólico que é feito da noção
de duração n o fin a l do capítulo 4 em nome de uma hierarquia de ri tmos de tensões
e d e contrações da duração. Por meu líldo - e esta será a segunda série d e m inhas
observações - , tento reinterpretar a oposição princeps entre o cérebro ins trumento
de ação e a representação auto-suficiente em te rmos compatíveis com a distinção que
faço entre rastros mnésicos, enquanto substrato material, e ras tros psíquicos, enqua nto
dimensão pré-representativa da experiência viva. Dizer que o cérebro é instrumento
de ação e d e ação apenas, significa, a meu ver, caracterizar cm bloco a abordagem
neuronal, a qual apenas dá acesso à observaç5o de fen ôm enos que são ações no sentido
puramente objetivo do termo; de fato, as neu rociências conhecem apenas organizações
e funcionamentos correlativos, logo, ações físicas, e os rastros que dizem respeito a
essas estruturas não designam a s i próprios como rastros no sentido semiológico de
efeitos-signos de s ua causa. Essa transposição da tese inaugural de Bergson a respeito
do cérebro corno simples instrumento d e ação não impede de restituir à ação, no sen-
tido vivid o da palavra, s ua parte na estruturação da experiência viva, em conjunto e
não em antítese com a representação. Ora, essa restituição encontra urna resistên cia
certa por parte de Bergson. A ação, segundo ele, é muito mais que o movimento físico,
esse corte ins tantâneo no devir do mundo - é uma atitude de vida; é a própria cons-

21 Dell'u ze dt>di ca um capítu lo à ques tão : " Une ou p lu sieurs du rées 7 " ( /.e lk rsso11is111c, op. cit., p . 71
l' seg.).
ciência enquanto atuante. E é por um salto que se de\"e romper o círculo mágico da
atenção à vida parJ entregar-se à lembrança numa espécie de estado de sonho. Sob
esse aspecto, a litcrn tura mais que a experiência cotidiana esté do lado de Bergson: li-
teratura da melan colia, da nostalgia, do spleen, sem falar da B11sc11 do tc111po perdido que,
mais que nenhuma obra, se erige como o monumento literário simétrico a Mnft;ria t'

Mc11Híri11. Mas pode-se desassociar t,fo radicalmente a ação e a representação? A ten-


dência geral da presente obra é considercH o pa r ação e representação como a m a triz
dupla do vínculo social e das identidéldes que o instituem. Esse disscntimento seria,
portanto, a marca de uma ruptura com Bergson? Não o creio. É preciso voltar ao mé-
todo bergsoniano de divisão que com·ida a se levar aos extre mos d e um espectro de
fenóme nos antes d e recons truir como um misto a experiência cotidi ana cuja complexi-
dade e confusão constituem obstáculo à descrição. Então, posso dizer que reencontro
Bergson no caminho dessa reconstrução: d e fato, a experiência pri11ccps do reconheci-
mento, que forma o par com a da sobn., , ·in}n cia das imagens, propõe-se como uma
dessas experiências ,·i,·as no ca minho d,1 recordação das lembranças; é nessa experiên-
cia ,·i,·a que a siner g ia entre ação e representação se atesta. O mornento da lembran ça
" pura ", alcançado por um salto para fora da e s fera prática, era apenas v irtual, e o mo-
mento do reconhec imento e fetivo marca a reinserção da lembrança na massa da ação
,·i,·a. O fato d e, no momento do salto, a lt'mbranç,1 "se d estaca r" do presente, segundo
a expressão feliz de Bergson, esse movimento de retirada, de hesitação, de questio-
namento faz parte da dialé tica concreta da representação e da ação. Os interlocu tores
do Filcbo de Platão n ão param de se indagar: quem é? É um honwm ou urna árvore? O
luga r da confusão é des ignado por essa epok/J(', essa s uspensão, d ecidida pela proposi-
ção declarativa: é ele, sim! É ela, sim!
Resulta dessas observaçôes que o reconheci mento pode ser colocado numa outra
escala que a dos g raus d e proximidade da re presen tação cm relação à prática. Pode-se
também abordar a re presentação em termos de modo de" apresentação", à maneira de
Husserl, e opor à apresentação percepti,·a a tríbua das re-(a)presentaçõcs, ou melhor,
das presentificaçõt's, como n a tríade husserl iana Plumtnsic, Bild, Eri1111cn111g; uma con-
cepção a lternativa da representação abre-se então para a re flexão.
Se essas observações críticas nos afastam d e certo uso indiscriminado do conceito
de ação, ap licado ta nto ao cérebro enquan to objeto científico quanto à prMica da , ·id a,
elas reforçam, a meu , ·er, a tese maior da sobre,·ivência por s i das imagens do passado.
Essa tese prescinde da oposição entre ação ,·ivid a e representação para ser e ntendi-
da. Basta-lhe a c1firmação du p la : primeiro, que um rastro cortica l nã o sobre,· i,·e a si
n-1esmo no sen tido de sabe r-se enquanto rastro d e . .. - do acontecime nto que se fo i,
passado; cm segu ida, que uma experiência , ·iva, parc1 existir enquanto tat h,í de ser,
desde o começo, sobre\'ivência d e si nwsma , e 1wsse sen tido rastro psíqu ico. Mo tái11 e
Mc111óri11 inteiro dei xa-se então resumir do seguinte mod o no , ·occ1bulnrio da inscrição
que a polissem ia da noção de rastro d esc1l\'oh·e: a inscrição, no se ntido psíquico do
termo, nada m ais é que a sobrevi\'t}ncia por s i da imagem mnemónica contempo rânea
d,1 experiência orig inii ri,1.
A l'v1FM ( lRI A , A H I ST( lRIA , O ES() L' LC I MENH>

Para fin alizar, ch egou o momento de considerar o último dos pressupostos sobre o
qual a presente investigação se edifica, a saber, que a sobrevivência por si das impres-
sões-afecções merece ser considerada como uma fi gura do esquecimento fundamental,
na mes mêl categoria que o esquecimento por apaga mento dos rastros. Isso, Bergson
não diz. Ele parece mesmo nunca ter pensado no esquecimento senão em termos de
apagamento. A última frase do capítulo 3 refere-se explicitamente a tal forma do es-
quecimento. Ela surge ao fim de um raciocínio no qual o método de divisão reconduz
ao nível dos fenômenos mistos: o cérebro é então recolocado na posição "de um in-
termediário entre as sensações e os movimentos" (op. cit., p. 315). E Bergson observa:
"Nesse sentido, o cérebro contribui para recordar a lembrança útil, mas mais ainda
para afastar provisoriamente todas as outras" (ibid.). Cai então a sentença: "Não ve-
mos corno a memóri a se alojari.a na matéria, mas entendemos bem, segundo a palav ra
profunda d e um filósofo contemporâneo [Ravaisson], que 'a materialidade ponha o
esquecimento em n ós' "(op. cit., pp. 315-316). É a última palavra do grande capítulo
sobre a sobrevivência .
A título de que, então, a sobrevivên cia da lembrança teria valor de esquecimento?
Ora, precisamente em nome da impo tência, da inconsciência, da existência, reco-
nhecidas na lembrança na condição do "virtual ". Portanto, não é mais o esquecimento
que a materialidade põe em n ós, o esquecimento por apagamento dos rastros, mas
o esquecimento por assim di zer de reserva ou d e recurso. O esquecimento designa
então o caráter despercebido da perseverança da lembrança, sua subtração à vigilância
da consciência.
Que argumentos podem ser formulados para apoiar esse pressuposto?
Primeiro vem a ambigüidade que merece ser preservada no plano de nossa ati tude
global a respeito do esquecimento. De um lado, temos diariamente a experiên cia da
erosão da memória e acrescentamos essa experiência à do envelhecimento, da aproxi-
mação da morte. Essa erosão contribui para essa tristeza que eu chamava, antigamen-
te, de "tristeza do acabado" 22 . Ela tem por hori zonte a perda definitiv a da memória, a
morte anunciada das lembranças. De outro lado, conhecemos as pequenas felicidades
do retorno, às vezes inopinado, de lembranças que acreditávamos perdidas para sem-
pre. Então precisamos dizer, como já dissemos uma vez acima, que esquecemos muito
menos coisas do que acreditamos ou tememos.
Propõem-se, em seguida, diversas experiências que dão aos episódios ainda pon-
tuais do reconhecimento a dimensão de uma estrutura existencial perman ente. Essas
experiências balizam uma ampliação progressiva do campo do "virtual". O bviamente,
o núcleo da memória profunda consiste numa m assa d e marcas que designam o que,
d e uma maneira ou de outra, vimos, entendemos, sentimos, ap rend emos, adqui rimos;
são os p,lssaros do pombal do Tectcto que cu " possuo" mas não " agarro". Em torno
desse núcleo agrupam-se maneiras costumei ras de pensar, de agi r, de sentir, em suma,
hábitos, lwbitus, no sentido de Aristóteles, Panofsky, Elias, Bourdieu . Sob esse aspecto,

22 Ver JJ/iilo~ol'hic de /11 c•o/011/1;, t. 1, Lc Vo/011t11irc e/ /' /11 uolo11/11irc, op. cit.
a diferença bergsoniana entre memória-h,füito e memórié1 dos acontecimentos, que \'é11e
no momento da realização da lembrança, não \'ale mais no ní\·el profundo da colocé1-
ção em reserva. A ite ra ção, a repetição e mbotam as arestas das marcas mnemónicas
pontuais e produzem essas grandes disposiçôes para a é1Çào que Ravaisson cclebr,H'a ,
antigam ente, sob o amplo vocábulo Ha/li t11dc. Memórié1 profundé1 e memó ria-hábito
coincidem, então, sob a figurn abrangente dé1 disponibilidade. O homem capé1z sen·e-
se desse t/1csa11rns e conté1 com a segurança, a garé1ntia que ele oferece. A seguir, \'êm os
saberes gerais, tais como regras de arítn,étíca ou d e gramMica, léxicos familiares ou es-
trangeiros, regras de jogos, etc. Os teoremas que o jovem escnwo do M é11011 redescobre
são dessa ordem. Irnediaté1mente é1pós esses sabe res geré1is, \·êm é1S estruturas II prio ri
do saber, digamos o transcendenta l, isto é, tudo aquilo de que se pode di zer, com o
Leibniz dos Nouos c11saios sol1rc o c11tc11di111c11/o /111111n110 : tudo o que está no entendimen-
to esteve primeiro no sensível, exceto o próprio entendimento humano. Ao que seria
preciso acrescentar as estruturas meta- da especulação e da filosofia primeira (o uno e
o múltiplo, o mesmo e o o utro, o ser, a substância e a C11ergci11). Finalmente, \'iria o que
me a\'enturo a chamar de o ime morial : o que nunca foi acontecimento para mim e o
que de fato jamé1is adquirimos, aquilo que é até menos form a l do que ontológico. No
fundo do fundo , tería mos o esquecimento das fund açôes, de suas doações originárias,
força de v ida, força criadora de histórié1 , Llr::;prnllg, "origem", enquanto irredutí\·el é10
começo, origem já sempre lá, como a Criação d e que fal a Franz Rosenzwe ig cm L'Étoilc
de ln Rédc111ptio11, e a que se refere como o fundamento perpétuo, ou ainda a Doação que
dá absolutamente ao doado r o doar, ao donatéirio o receber, ao dom o ser dad o, segun-
do Jeé1 n-Lucas Marior, em RM11ctio11 ct Oo1111tio11 (Paris, PUF, col. "Épimé thée", 1989), e
em Étn11t do1111é. Essai ci'1111c pl1é11011u;11ofogic de la do11atio11 Waris, PUF, col. "Épiméthée",
·1998). Saímos d e todas as linearidades na rra tivas; ou , se ainda se pudesse fal ar de
narrativa, seria d e uma nar rativa que teria rompido com todé1 cronologié1. Neste sen ti-
do, toda origem, tomada na sua potência originante, re\·ela-se irredu tível a um in ício
datado e, nessa condição, está ligado ao mesmo estatuto do esquecimento fundador.
É importante penetrarmos né1 á rea do esquecimento sob o signo de uma é1mbigüidade
primordial. Esta nos acompé1nhará até o fim desta obra, como se, vindo das profunde-
zas do esquecimento, é1 dupla valência da destruição e da perseverança se pe rpetuasse
a té é1S camadas s uperficiais d o esquecimento.
Com essas duas figuras do esquecimento profundo, primordial, alcançamos um
fundo mítico do filosofa r: aquele que fe z chamar o esquecimento d e U th1'. Mas tam-
bém aquele que d á à memória os meios de combate r o esquecimento: a reminiscência
plató nica te m a \·er com essas duas figuras do esquecimento. Elél procede d o segundo
esquecimento, que o nascimento não consegui u apaga r e d o qual a rememora çé'ío, a
reminiscência se alimenta: assim é p ossh·e l aprender o que, de certo modo, nunca
se deixou de saber. Contra o esquec ime nto d estruidor, o esquecimento que preserva.
Tah·ez seja esta a explicaçé'ío de um pé1radoxo pouco no tado do texto de Heidegger~', a

23 Esse paradoxo é tanto mais surpreendente porque d estoa d,1 st.·qüi:, ncia d,1s ocorrências do termo
"esqueci me ntu " em .Ser e 1i·111po; com um a t.'111 ica exceç,io, el,1s den ot,1111 ,1 inautenti cidade na pr,üi-
/\ f\ffM(> l<l t\ , /\ 1II ST (l l{I/\, O FS(.)UFl IM FNTO

saber, que é o esquecimento que torna possíve l a memória:" Assim como a expectativa
só é possível na base de um esperar por, também a lembrança (Eri11ncru11g) só é possí-
vel na base de um esquecer, e não o contrário; pois é no modo d o esquecimento que o
ser-sido 'abre' primariamente o ho ri zonte no qual, ao se engajar nele, o Dnscin perdido
na 'exterioridade' d aq uilo com que se preocu pa pode se relembrar" (Êtrc et Tc111ps,
p. 339; trad. franc. d e Martineau, p. 238). Esse paradoxo aparente é esclarecido, se se
levar em conta uma decisão terminológica importante, evocada no capítulo an terior;
enquanto Heidegger guarda para o fu tu ro e para o presente o vocabulário corrente, ele
rompe com o uso de denominar o passado d e Vcrgn11gc11heit e decide design.í-lo pelo
pretérito perfeito do verbo ser: gcwese11, Ccwcscnheit (Martineau traduz: "ser-sido").
Essa escolha é capita l e resolve urna arnbigüidade, ou antes, urna duplicidade grama-
tica l: de fato, di zemos d o passado que ele não é mais, mas que ele foi . Com a primeira
d enominação, enfatiza mos seu desaparecimento, sua ausência. Mas ausência a quê?
À nossa pretensão d e agi r sobre ele, d e mantê-lo "à mão" (Z11/w11dcn). Com a segunda
denominação, enfatiza mos sua plena anterioridad e com relação a todo acontecimento
datado, lembrado ou esquecido. Anterioridade que não se limita a subtraí-lo a nosso
império, como é o caso do passado-ultrapassado (Vc rgn11gc11hcit), mas anterioridade
que preserva. Ninguém pode fa zer com que o que não é mais não tenha sido. É ao
passado como tendo sido que se v incula esse esquecimento que, como diz Heidegger,
condiciona a lembran ça. Compreende-se o paradoxo aparente se por esquecimento se

cada preoc upação . O esquec ime11to não está primordia lmentC' rdilcion ado com íl memória; com o
esq uecime nto do SL'r, é cons tit utivo da cond ição inaut[,nticíl: é o "escnndirnL'n to" no sentido grego
do /1111t/11111L'i11, ao qual He idq;gl~r opc:->e o "não cscondimL'nto" díl o/('fl,ci11 que trílduz imos por "ve r-
dade " (Êtrc ct Tcll1ps, op. cit., p. 219). Num sentido próximo, o capítulo "Ccwissen" (consciênciil)
aborda o "esquccinwnto d il consciê ncia", como esquiva dil ild vocilção v indíl da profundidade do
po der-ser prúp rio. A ind a é na linha da ina utenti c idade qu e o esq u eci m en to, co ntemporâ neo
da repetição, se revelíl corno "desengajarne nto fechado a s i pe rante o 'sido' mais p róprio "
(ibid., p. 339). Mas no ta-se que "tal esq ul'Cimen to n ão é nada, nem mesmo é a fal ta da lem brança,
ma s um modo ccstcí tico pró prio, 'positi vo' do ser c have" (ibid.). Pode-se e ntüo fa lar de um "pocfrr
do esq uecimen to" (ibid., p. 345) t>mara nhadn à preoc upa ção cotid iilníl. Cabe ao impé rio do presen-
te na cu riosidade esquecer o an tes (ibid ., p. 347). Para quem se perde no mund o da s fe rra mentas, o
esquecimento do si mesmo(, necessá rio (ibid., p. 354). !'ode-se então falar, na forma de oxímoro, de
"esq uecimento a tento" (i /1id., p. 369). O esq uecimento, nes te sen tido, é característico do "se" (apas-
s ivador), "cego às possibilid ad t•s", "incapaz de repetir o sendo-sido" (ibid., p. 391). Embaraçado no
presente d a preocupação, o t.'squccinwnto signi fi ca umíl te mpnralidílde "sem expecta t iva" (iliid. ,
p. 407), irresoluta, seg undo o modo de um "present ificar in-ílten to-esquecediço" (iúid., p. 410). O
a tolamen to da te mpo ra lid ad e na concepção v ul gar do tempo supostílmcnte "infinito" é pon tuado
pela "representação esquccediça d e s i" (iliid., p. 424) . Di zer "o tempo passa", sig nifica esqu ecer
os instilntes que d esl izam (ilúd., p. 425). É sobre o fu nd o dessa lita ni a da inautenticid ade que se
destaca a única a lu s,io, cm Ser e Tc111pP, ú rclaçfü1 d o esquec imen to com a lembrança: "Assim como
a expec tat iva só é possíve l na base de um esperar por, também a le mbra nça apena s (• possível na
base de um esquecer, e não o contrá rio; pois t'. no modo do esq ueci mento que o 'se r-s ido' 'abre'
pr imar iamente o horizon te onde, ao ne le se engaj,1r, o V11sci11 perdido na 'exterioridade' daqu ilo
com que se preocupa pode se rele mbrar" (ibid., p. 339). N<'io se sa be se a d enegação do esq uecimen-
to acarreta em seu Vc1j i1!/c11 o trabalho de memória, ou se a graça do reconhec ime nto do passado
poderi a e levar o esquecimento de s ua expiração-decadê ncia e a lçá-ln à cond ição do esquecimento
de rese rva .
entende o imemorial recurso e não a inexor,í,·el destruição. Confirmando essa hipótese
de leitura, pode-se remontar algumas linhas acima, até a passzigern em que Heidegger
põe o esqueci,nento em relação com a repetição (Wicdcr'10/1111g) no sentido da reto-
n,ad a, que consiste em "assumir o sendo que o Oa~ei11 já é" (il 1id.). Assim, ocorre um
acoplamento entre "antecipar" e " retornar", como e m Koselleck entre hori zonte de
expecta tiva e espaço de experiência, mas no nível que Heidegger consideraria como
derivado da consciê ncia histórica. É em torno do "já", marco temporal comum ao ser
lançado, à dívida, à d errelição, que se organiza a cadeia d as expressões aparentadas:
tendo sido, esquecimento, o poder mais pn·l prio, repetição, retomada . Em resumo, o
esquecimento re,·este-se d e uma significação positiva na medida em que o tendo-sido
pre\'alece sobre o não mais ser na significação vinculada à idéia do passado. O tendo-
sido faz do esquecimento o recurso imemorial oferecido ao trabalho da lembrança.
Finalmente, a ambigüidade primeira do esq uecimento destruidor e do esqueci-
mento fundador permanece fundamentalmen te indecidh·el. Não há, pa ra \'istas hu-
manas, ponto de vista superior d e onde se ,·is lurnbraria .1 fonte comum ao destruir e .10
construir. Não há , para nós, balanço possÍ\·cl dessa grande dramaturgia do se r.

III. O esquecimento de recordação: usos e abusos

É agora para a segunda dimensão da memória, a reminiscência dos Antigos, o


recolhimento ou a recordação dos Modernos, que va mos nos , ·oltar: que modalidades
de esquecimento são reveladas pela prática conjunta da me mória e do esquecimento 7
Desloca mos nosso olhar das camadas profundas da experiência, onde o esquecimento
prossegue silenciosamente tanto sua obra d e erosão como sua obra de manutenção,
para os níveis de vigilância onde a atenção à , ·ida trama seus ard is.
Esse nível de manifestação também é aquele e m que as figuras do esquecimento
se dispersam e d esafiam toda tipologia, como o compn)\ a a ,·ariedadc quase incont,í-
,·el das expressões ,·e rbais, dos ditos de sabedoria popular, dos ditados e pron' rbios,
assim como das elaborações literárias das quais Harald Weinrich propõe a história
arrazoada . As razões dessa surpreendente proliferação dcYcrn ser buscadas em. ,·,irias
direções. De um lado, as anotações sobre o esquecimento constituem, cm grande parte,
um simples am·erso daquelas que dizem respe ito à ,ncmória; lembrar-se é, cm grande
parte, não esquecer. De outro lado, as manifestações indh·iduais do esquecimento es-
t.io inextricavelmcnte misturndas em suas formas coletivas, a ponto de as experiências
mais perturbadoras do esq uecimento, como a obsessão, somente desen\'Ol\'ercm seus
efeitos mais maléficos na escala das memórias coleti\·as; ora, é também nessa escala
que intervém a problem ática do perdão, a qual manteremos afastada por tan to tempo
quanto possível.
Para nos orientarmos nesse dédalo, proponho uma grade si mples de lciturc1, a
qual, mais uma \· ez, comporta um eixo ,·crtical dos graus de manifestação e um ei xo
t\ MLM(ll<l t\, ;\ HIST(lRI A, O l:S()U l iC IMF N TO

horizontal dos modos de passividade ou de atividade. As considerações de Pierre


Buser sobre o consciente e o infraconsciente no plano dos fenômenos mnemónicos
abrem caminho para a primeira regra de ordenação; a elas se acrescentarão em massa
as contribuiçôcs da psican,ilise às quais recorreremos em breve. Quanto aos modos de
passividade e de atividade que desdobramos horizontalmente, toda a fenomenologia
da recordação nos prepara para explic;i-los: o esforço de recordação tem seus graus
numa escala do árduo, corno teriam dito os Medievais. Não é esta a última palavra da
Étirn de Spinoza: "E é preciso que seja difícil aquilo que se encontra tão raramente"?
Ao recortar assim duas regras de classificação, do mais profundo ao mais manifesto,
do mais passivo ao mais ativo, também recortamos, sem preocupação excessiva com a
simetria, a tipologia dos usos e dos abusos da memória: memória impedida, memória
manipulada, memória obrigada. Não se tratarcí, entretanto, de uma simples parelha,
na medida cm que serão integrados ao plano da fenomenologia da memória fenôme-
nos complexos que não podíamos antecipar e que envolvem não somente a memória
coletiva, mas o jogo complicado entre a história e a memória, sem contar os cruza-
mentos entre a problemática do esquecimento e a do perdão, que serão abordados
diretamente no Epílogo.

1. O esquecimento e a memória impedida

Uma das razões para acreditar que o esquecimento por apagamento dos rastros
corticais não esgota o problema do esquecimento é que muitos esquecimentos se de-
vem ao impedimento de ter acesso aos tesouros enterrados da memória. O reconheci-
mento freqüentemente inopinado de uma imagem do passado tem assim constituído,
até agora, a experiência pri11ccps do retorno de um passado esquecido. É por motivos
didáticos ligados à distinção entre memória e reminiscência que temos mantido essa
experiência nos limites da repentinidade, abstração feita do trabalho de recordação
que pôde precedê-la. Ora, é no caminho da recordação que se encontram os obstáculos
para o retorno da imagem. Do instantâneo do retorno e da captura, remontamos ao
gradual da busca e da caça.
É neste estágio de nossa investigação que recolhemos pela segunda vez, de modo
sistemático, os ensinamentos da psicanálise mais aptos a ultrapassarem o confinamen-
to do colóquio analítico. Depois de ter relido os dois textos examinados para apoiar
o tema da memória impedida, ampliaremos a brecha em direção a fenômenos mais
especificamente atribuíveis à problemática do esquecimento e, sobretudo, de grande
alcance no plano d e uma memória coletiva por outro lado carregada de história.
A memória impedida evocada em "Rememoração, repetição, perlaboração" e em
"Luto e me lancolia" é uma memória csquecidiça. Lembramos da reflexão de Freud
no início do primeiro texto: o paciente repete ao invés de se lembrar. Ao invés de:
a repetição vale esquecimento. E o próprio esquecimento é chamado de trabalho na
medida em que é a obra da compulsão de repetição, a qual impede a conscientização
do acontecimento traumático. A primeira lição da psicanálise é, aqui, que o trauma
,\ C(l\,l) ll.c.\O IIISlllll!C ;\

permanece mesmo quando inacessí\'el, indisponível. No seu lugar surgem fenómenos


de substituição, sintomas, que mascaram o retorno do recalcado de modos di\'ersos,
oferecidos à decifração operada em comum p elo analisando e o analista. A segunda
lição é que, em circunstâncias particulares, porções inteiras do passado reputadas es-
quecidas e perdidas podem voltélr. Assim, a psicarnílise é, para o filósofo, o aliado mais
confiável a fa\'or da tese do inesquecí\'el. Un1a das con\'icções mais firmes de Freud
foi mesmo que o passado \·ivenciado é indestrutível. Essa co,wicção é insepará\'cl da
tese do inconsciente decbrado :eitlo~, subtraído ao tempo, entenda-se ao tempo da
consciência com seu antes e seu depois, su<1s sucessôes e suas coincidências. Sob esse
aspecto, impõe-se UITta compa ração entre Bergson e Freud, os dois advogados do ines-
quecível. Não \'ejo incompatibilidade alguma entre suas duas nnçôes d e inconsciente.
O de Bergson cobre a totalidade do passado, que a consciência atw,l centrada n,1 ação
fecha atrás dela . O de Freud parece mais lim itado, se assi m se ousa dizer, na medida
em que cobre apenas a região das lembranças cujo acesso é proibido, censuradas pela
barreira do recalque; além disso, a teoria do recalque, vinculadél à da compulsão de re-
petição, parece confinar a descoberta na região do patológico. Em compensação, Freud
corrige Bergson num ponto essencial que, à primeira vista, parece tornar a psica ná lise
incompatível com o bergsonismo: enquanto o inconsciente bergsoniano é definido por
sua impotência, o inconsciente freudiano de\·e a seu \'Ínculo co1n a pulsão o caráter
energético que encorajou a lei tum "económ ica" da doutrina. Tudo o que Bergson pare-
ce situar do lado da atenção à vida parece reportado ao dinamismo pulsional da liliido
inconsciente. Não penso q ue se de,·a parar nessa discordância aparentemente gritante.
Da parte de Bergson, a última palavra não é dita com a equação impotência-inconsciên-
cia-existência. A lembrança pura só é impotente em relação a uma consciência preo-
cupada com a utilidade prática. A impotência atribuída élO inconsciente mnemónico
apenas é assim por antífrase: ela é sél ncionada pelo salto para fora do círculo mágico da
preocupação a curto prazo e pela retirada nc1 região da consciência sonhadora. Além
disso, a tese do re\'ivescimento das imagens d o passado pélreceu-nos compatível com
o fato de levM em con ta o par ação/representação que deixa fora do campo da expe-
riência viva apenas aquele tipo de ação élCessível ao olhar objetivo das neurociências,
a saber, o funcionam.ento neuronal sem o qual não pensa ría mos. Do lado ps icanalíti-
co, o corte que caracteriza o inconsciente por recalque e m relação ao inconsciente da
lembrança pura não constitui, em relação ao inconsciente bergsoniano, um abismo in-
transponível. Não é iguéllmente uma suspensão da preocupação imedia ta que o ,,cesso
ao colóquio analítico e sua regra de "tudo dizer" requer? Iniciar uma psica n,í lise não
é um modo de deixar o sonho se dizer? Mc1s sobretudo, o que acabamos de chamar
de segunda lição dél psicaná lise, a saber, a cre nça na indestrutibi lidade do passado
\'i\·enciado, não prescinde de uma terceira lição que se lê m elhor no segundo ensaio
e,,ocado em nosso célpítulo sobre a memória impedida: a pe rlaboração em que consiste
o trabalho de rememornção não se dá sem o trabalho de luto pelo qual nos desprende-
mos dos objetos perdidos do amor e do ódio. Ess,1 integração da p erda à experiência
da rememoração tem um significado considcrcível para toda s as transposições metafó-
,\ Ml :M (> Rl i\, i\ HI ST(>Rli\ , O l:SC,UI C I M l: N TO

ricas dos ens inamentos da psicanálise fora de s ua esfera d e ope ração. O que está am ea-
çando aqui e não se deixa dizer n a mesma conceitualidade que a pulsão de re pe tição,
pelo menos numa primeira aproxim ação, é a a tração da m elancolia cujas ramificações
exploramos muito além da esfera propriamente patológica onde Freud a confinou. É
assim que se compõem, no quadro clínico das neuroses ditas de transferência, as figu-
ras substitu ídas do sintoma e as medidas de autodepreciação da m e lancolia, o excesso
do retorno do recalcado e o vazio do sentimento de si perdido. Não é mais possível
pensar cm termos d e pulsão sem também pensar em termos de obje to perdido.
Essas instruções da psicanálise que acabam de ser evocadas dariam acesso aos abu-
sos encontrados assim que se sai do â mbito do colóquio analítico de limitado pela com-
petência e p ela deontologia profissional, e que se afasta do discurso clíni co? Sim , pro-
vavelmente, pois é fato que a psicanálise, bem ou mal, gerou um tipo de v ulgata q ue
a elevou 8 condição de fenó meno cultural ao mes mo te mpo sub versivo e estruturante;
mas outro fa to é que Fre ud foi o primeiro a sempre arrancar s ua d escobe rta do sigilo
do segredo méd ico, não somente ao publicar suas pesquisas teóricas como também ao
multiplica r s uas excursões fora da esfera do patológico. Nesse asp ecto, Psicopatologia
dn vídn cotídim1a constitui uma baliza preciosa na es trada que, do colóquio analítico,
leva à cena pública da sociedade.
Ora, é principa lmente de esquecimento que Psicop11to!ogi11 da vidn cotidínna trata,
essa esfera de ntividade tão próxima do espaço público. E a colheita é abund ante: pri-
me iro, ao rea tar os fios, apa rentemente cortados, do presente com um passado que se
poderia acre dita r abolido para sempre, a obra enriquece, a seu m od o, a defesa feita
pela Tm11mde11t1111g d a indestrutibilidade d o passado; e m seguida, ao discernir inten-
ções tornadas inconscientes pelos mecanism os d evidos ao recalque, ela introduz in-
teligibilidade onde se invoca a lternadamen te o acaso o u o a utomatismo; enfim, ela
esboça, no seu desenrolar, linhas de transposição da esfera privada à esfera pública.
O caso do esquec ime nto dos nomes próprios que ma rca o início da coletânea ilus-
tra maravilhosa mente o primeiro desígnio: procura-se um nome conhecido, outro vem
cm seu lugar; a a ná lise revela uma sutil s ubstituição motivada por desejos incons-
cientes. O e xemplo d as le mbranças encobridoras, interpostas entre nossas impressões
infa ntis e as n arra ti vas que d elas fazemos com toda confiança, acrescenta à simples
s ubstituição no esquecimento dos nomes uma verdadeira produção de falsas lembran-
ças que nos desnorteiam sem que o percebamos; o esqueci mento de impressões e de
acontecimentos vivenciados (is to é, de coisas que sabemos ou que sabíamos) e o esque-
cimento de projetos, que equivale à o missão, à negligência seletiva, revelam um lado
ardiloso do inconsciente colocado em postura de fensiva . Os casos d e esquecimento
de projetos - omissão de fazer - revelam, a lém d isso, os recursos estra tégicos do
desejo em suas relações com outrem: a consciê ncia moral buscará neles seu a rsenal
de desculpas para s ua estratégia de desculpação. A ling uagem contribuí com isso por
seus lap sos; a prá tica gestual pelas confusões, d esajeitamentos e o utros a tos falhos (a
chave do escritório inserida na porta errada). É essa mesma habilidade, ,minhada em
inte nções inconscientes, que se de ixa reconhecer numa o utra vertente da vida cotidia-

<i> 454 .z,


na, que é a dos po\·os: esquecimentos, lembranças encobridoras, ,1tos folhos assumem,
na escala da memória coletiva, proporções gigantesrns, que apenas a história, e mais
precisamente, a hi stória da memória L' capaz de trazer à luz.

2. O esquecimento e a memória manipulélda

Prosseguindo nossa exp loração dos usos e abusos do esquecimento alén1 do ni\·el
psicopatológico da m emória impedida, t•ncontrarnos formas de esquecimento ao mes-
mo tempo mais afastadas das camadas profundas do esquecimento e, portanto, mais
manifes tas, mas também mais espalhadas entre um pólo de passividade e de ati\·ida-
de. Este era, e m nosso estudo paralelo das práticas ligadas à recordação, o ní,·el da
memória manipulada (,·er acima, pp. 93-99). Também era o ní,·el cm que a problemá-
tica da memória cruza,·a a da iden tidade a ponto de com ela se confundir, corno e m
Locke: tudo o que constitui a fragilidade da identidade se re,·ela assim oportunidade
de manipulação da memória, principalmente por via ideológica. Por que os abusos da
memória são, de saída , abusos do esquecimento? Nossa explicação, então, foi: por cau-
sa da função mediadora da narrativa, os abusos de memória tornam-se abusos de es-
quecimento. De fato, antes do abuso, h,i o uso, a saber, o cartiter inelutavclrnente sele-
ti,·o da narrati\'a. Assim como é irnpossh·cl le mbrar-se de tudo, é irnpossÍ\"el narrar
tudo. A idéia de narração cxausti,·a é urna idé ia pcrformatiYa mente irnpossí\·cl. A
narrativa comporta necessariarnentc urna dimens,io seleti\·a. Alcançamos, aqui, ,1 rela-
ção estreita entre rnernória declarativa, narrati\·idade, teste rnunho, represent.,1çào figu-
rada do passado histórico. Como notamos então, a ideologização da memória é possi-
bilitada pelos recursos de variação que o trabalho de configuraçào narrati,·a oferece.
As estratégias do esquecimento enxertam-se diretamente nesse traba lho de configura-
ção: pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases, refigu-
rando diferentemente os protagonistas da ação assim como os contornos dela. Para
quem atravessou tod as as camadas d e con figura ção e de refiguraçào narrati,·él desd e a
constituição da identidade pessoal até a das identidades comunitárias que estruturam
nossos vínculos de pertencimento, o perigo maior, no fim do percurso, está no manejo
da história autorizada, imposta, celebrada , comemorada - da história oficial. O rec ur-
so à narrativa torni'l-se i'lssim a mmadilha, qu a nd o potências superiores passam a dire-
cionar a composição da intriga e impôcm urnc1 narrativa canónica por m eio de intimi-
dação ou de sedução, de medo ou de lisonja. Está em ação aqui urna forma ardilosa de
esqueci mento, resultante do desapossamento dos atores sociais de seu poder originá-
rio de narrarc1n a si mesmos. Mc1s esse dcsapossarnento não existe sem uma cu mpl ici-
dade secreta, que faz do esquecimento um comportamento semipassivo e scrni-ati,·o,
como se vê no esqueci mento de fuga, expressão da má-fé, e s ua estratégia de e\·itação
moti\'ada por urna obscura vontade de não se informar, de não investigar o mal come-
tido pelo meio que cerca o cidadão, cm suma por um que rer-não-saber. A Europa
ocidental e o resto da Europa dcr,1 m, depois dos anos de churnbo de meados do sécu lo
XX, o espetáculo afliti\'l} dessa vontade obstinada. A falta excessiva de memó ria, de

e;:;, 455 •X>


!\ MF\il()RIA, A IIIST<) RI /\, O ES(.)l.JECIMFNTO

que se fa lou cm outro lugar, pode ser classificada como esquecimento passivo, na me-
dida em que pode aparecer como um déficit do trabalho de memória. Mas, enquanto
estratégia de evitação, de esquiva, de fuga , trata-se de urna forma ambígua, ativa tanto
quanto passiva, d e esquecimento. Enquanto a tivo, esse esquecimento acarreta o mes-
mo tipo de responsabilidade que a imputada aos atos de negligência, de omissão, de
imprud ência, de imprevidência, em todas as situações de não-agir, nas quais, poste-
riormente, uma consciência esclarecida e honesta reconhece que se devia e se podia
saber ou pelo menos buscar saber, que se devia e se podia intervir. Reencontra-se as-
sim, no caminho da reconquista pelos agentes sociais do domínio d e sua capacidade
de fazer narra ti va, todos os obstáculos ligados ao desabamento das formas d e socorro
que a memória de cada um pode encontrar na dos outros enquanto capazes de autori-
zar, de ajudar a fa zer narrativa de modo ao m esmo tempo inteligível, aceitável e res-
ponsável. Mas a responsabilidade da cegueira recai sobre cada um. Aqui o lema das
Luzes: saperc a11dc! Saia da menoridade! pode ser reescrito como: ousa fazer narrativa
por ti mesmo.
É nesse nível de manifestação do esquecimento, a meio caminho entre transtornos
atinentes a uma psicopatologia da vida cotidiana e transtornos atribuíveis a uma so-
ciologia da ideolog ia, que a historiografia pode tentar d ar uma eficácia operatória a
categorias emprestadas dessas duas disciplinas. A his tória do tempo presente é, nesse
sentido, um âmbito propício a essa provação, na medida em que ela própria está numa
outra fronteira, aquela onde esbarram uma na outra a palavra d as testemunhas ainda
vivas e a escrita cm que já se recolhem os rastros documentários dos acontecimentos
considerados. Como foi dito uma primeira vez por antecipação 24, o período d a história
de França que se segue às violências do período 1940-1945 e, sobretudo, à ambigüida-
de política do regime d e Vichy, se presta de modo eletivo a uma transposição histori-
zante d e certos conceitos psicanalíticos, eles mesmos ca ídos no d omín io público, como
traumatismo, recalque, retorno do recalcado, denegação, etc. Henry Rousso 2c, assumiu
o risco epistemológico - e, às vezes, político - d e construir uma grade d e leitura dos
comportamentos públicos e privados de 1940-1944 até nossos dias na base do conceito
de obsessão: a "obsessão do passado" . Esse conceito é parente daquele de repetição
que já encontramos, precisamente como oposto ao de perlaboração, de trabalho de
memória 2r,. O autor pode assim considerar sua própria contribuição à história da "sín-

24 C f. acima, primeira parte, capítulo 2 sobre o deve r d e me mória, pp. 99-104.


25 Henry Rousso, Li' Sy11dro111e de Vichy de 1944 ii nos jour::;, op. cit.; Vichy, 1111 pas::;é qui 11c passe pas, op. cit.;
La l /1111tis1' d11 /1CISS1\ op. cil. É de se notar que a expressão "um passado que não passa", sinónima de
obsessão, é reencontrada na controvérsia dos his toriadores alemães. Nesse sentido, a evocação aqui
dos trabalhos de He nry Rousso deve ser acrescentada à dos trabalhos d e seus colegas alem ães: a
d ife rença das situações d e traba lho entre histori ad o res fran ceses e hi s toriadores a lcmâ es con stitui-
ria , por si só, um te ma pa ra his toriadon,•s. Os trabalhos concebidos nas margens opostas do Reno
coi ncidem num outro ponto sensível: a relação entre o juiz e o his toriador (Henry Rou sso: "Que!
tribun a l pour I' hi stoire ?", in La lrn11tise du p11s::;é, op. cit.1 pp. 85-1 38) . C f. acima, "O hi s to riador e o
jui z", pp. 338-347.
26 C f. ac im a, primeira p artl', capítulo 2, "/\ memór ia impedida".
1\ CO~ l ) I(. .\\1 III ST (lR IC 1\

drome de Vichy" como um ato d e cidadania, destinado a ajudar seus contemporàneos


a passar do exorcismo sempre inacabado ao trabalho de memória, do qual não se deve
esquecer que també m é um trabalho de luto.
A escolha do tema da obsessão do passado dá a oportunidade de escrever, cm pa-
ralelo à história do regime de Vichy, "outra his tória, a de sua lembrança, de sua rema-
nescência, de seu devir, depois de 19-1-1" (Lc S_1111drolllc de Vichy, p. 9). Neste sentido, a
síndrome de Vichy inscreve-se na his t6ria da memória evocada no capítulo prcceden-
t e2~. A obsessão é uma categoria que se inscre\·c nessa história da memória enquanto
posteridade do acontecimento. Outra vantagem desse tema: seu alvo direto é tanto o
esquecimento quanto a memória, éltra,·és de atos falhas, não-ditos, lapsus e, sobretudo,
retorno do recalcado: "Pois, mesmo estudada em escala d e uma sociedade, a memória
revela-se como uma organização do esquecimento" (op. cit., p. 12). Outro priYilégio do
assunto tratado: ele põe e m cena fraturas suscitadas pela própria controvérsia, a qual,
por esse motivo, merece ser anexada ao dossiê do dissc11s11s aberto por Mark OsieF'.
Urna vez assumida a escolha do tema, a justificativa do emprego da "metáfora" psica-
nalítica29 da ne urose e da obsessão encontra s ua fecundidade heurística na sua eficá-
cia herme nêutica. Essa eficácia demonstra-se principalmente no nível da "ordenação
historiadora" dos s intomas atinentes às síndromes. Essa ordenação, segundo o autor,
evidenciou uma evolução em quatro fases (op. cit., p. 19). Fase do luto entre 19-14 e
1955, no sentido da aflição mais do que d o trabalho propriam ente dito de luto, o qual,
precisamente, não se dá - "o luto inacabado", nota o historiador (op. cit., p. 29); fase
marcada pelas seqüelas da g uerra civil, da d epuração até a anistia. Fase d e recalque
por meio do estabelecimento de um mito hegemónico, o resistencialis mo, na órbita
do Partido Comunista e do partido gaullista. Fase do retorno do recalcado, quando o
espelho se que brou e o mito se partiu em estilhaços (é aqui que Rousso oferece suas
m elhores páginas com a meditação acerca do admirável filme Lc Cl111gri11 ct la Pitié, com
a qual o caso Touvier acabou ganhando, por tabela, uma dimensão simbólica inespe-
rada). Finalmente, fase da obsessão, da qual parece que ainda não saímos, marcada
pelo despertar da memória judaica e a importância das reminiscências d a Ocupação
no debate político interno.
Como a "organização do esquecimento" opera nessas diferentes fas es?
Quanto à primeira, o conceito d e lembrança encobridora funciona tanto na esca la
d a m emória coleti\·a como na da psicologia da vida cotidiana, por meio da exaltação
d o acontecimento da Libertação: "Com a dis tância, a hierarquia das representações
suplantou a dos fatos, que confunde a importâ ncia histó rica d e um acontecimento com

'27 Cf. terceira p,1rte, capitulo 2, § 1. Sobre ,1 histúri,1 d ,1 memúria, ci. H . Rousso, Lc Sy11dn>111c de Vic/1_11, op.
cit., p. 11°1 . O d nculo é ieito com a nnçào dl' "lug<1res dl' rnemúri,1" dl' Pil'ííL' Nora.
28 Cf. acima "O historia d or e o juiz": PS rnesmllS tipos de peças est,i Ll assim ane xa d os ,w dossiL; das
gut'rra s fr;inco-íra nces,is e ao dos g ran des processos crimina is: fil nH.' S ( Le C/111g ri11 e/ lo Pit i1 ;), pL'ÇclS
d t' teat ro, etc.
'29 "... os empréstim os foi tos :i psicaná li se tL'lll aqui apenas \·alnr de nwtMora s, n ào de c xplicaç3Ll" (/ .1·
11, O/'· t" i l , p. 19).
S_11ndn1mc de Virh_
A M l:MÚ RIA , A HI ST () J, IA , () ESQUFC IMl' N TO

seu cará ter positi vo ou negativo" (op. cit., p. 29); lembrança encobridora, que permite
ao grnnde libertador dizer que "Vichy sempre foi, e ainda é, nulo e inexistente". Logo,
Vichy será posto entre parênteses, ocultando-se assim a especificidade da ocupação
na zista . O retorno d as vítimas do uni verso concentracionário torna-se assim o aconte-
cimento ma is rapid amente recalcado. As comemorações ratificam a lembrança incom-
pleta e seu fundo d e esquecimento.
N a fa se do recalque, o "exorcismo gaulliano" (op. cit., p. 89) quase consegue ocul-
tar, mas não pode impedir, quando da guerra da Argélia, o que o his toriador ca racte-
ri za finamente como o "rejogo da falh a" (op. cit., p . 93) - "O jogo e o rejogo d as seqüe-
las" (op. cit., p . 11 7). Tudo está presente: a herança, a nostalgia, o fantasma (Maurras)
e novamente as celebrações (o v igésimo aniversá rio da Libertélção, jean Moulin no
Panthéon).
As páginas da obra intitulélda " Le miroir brisé" (op. cit. , p. 11 8 e seg.) são as m ais
ricas no plano d o jogo d as representações: " o impiedoso Desgosto (Cl111gri11) ... ", diz-se
nelas (op. cít., p. 121). O passado recalcado explode na tela, clamando seu " lembra-
te" pela boca d e tes temunhas postas cm cena através de seus não-ditos e lnpsus; uma
dimensão tinha sido esquecida: o anti-semitis mo de Estado de tradição francesa. A
desmistificação do resistencialismo passa por um rude afrontamento entre m emórias,
a frontamento digno d o dissc11s11s d e que se falou na esteira de Mark Os iel. A exorta-
ção ao esquecimento, junto com a g raça presidencial outorgada ao miliciano Touvier,
em nome da paz social, leva ao primeiro plano uma questão cujas ramificações n o
ponto em que se cruza m a memória, o esquecimento e o perdão desenvo lveremos n o
m omento oportuno. Aqui, o histo riador deixa ouv ir a voz d o cid adão: "Como fazer
aceitar o emprego da guerra fran co-francesa, num momento em que as consciências
se d espertam, em que O Desgosto levanta a ta mpa, em que o d ebate se d esencad eia
de novo? Pode-se m iar num gesto só, furti vo ou simbólico, os questionam entos e as
dú vid as das novas gerações? Podem-se ignora r as angús tias dos antigos resistentes
ou depo rtados que lutam contra a amnésia?" (op. cit., pp. 147-148). A perg unta é tanto
mais premente porque " o esquecimento que ela preconiza não se acompanha de ne-
nhuma outra leitura satisfatória d a história, diferentemente d a palavra gaulliana" (op.
cit. , p. 148)111 • Disso resulta que a graça anis tiante ganhou va lor d e amnésia.
Sob o título " L'obsession" - que caracteri za um período, o nosso ainda, e que d á
sua p erspectiva ao livro-, um fenômcno como o renascimento de uma memória ju-
d aica confere um conteúdo concreto à idéia d e que quem fi xa o olhar num aspecto d o
passad o - a Ocupação - se torna cego a outro - o extermínio dos judeus. A obsessão
é seleti va e as narrati vas dominantes ratificam uma obliteração de p arte do campo d o
olhar; mais uma vez, a representação fílmica desempenha seu papel (Holocnustc, N11it
ct Brouillard revisitado); mais uma vez, o penal cruza o n arra ti vo: o processo Barbie,
antes dos casos Legay, Bousquet e Papon, projeta para o proscênio uma desgraça e
uma responsabilidade que o fa scínio exercido pela colaboração havia impedido d e

30 " La ju stice ct l' hi storien", Lc Oé/iat, n'' 32, nov. 1988.


apreender em sua especificidade distíntél. Ver umél coisa é não ver outra. NMrar um
drama é esquecer outro.
Nisso tudo, a estrutura patológica, a conjunturn ideológica e él encenação midiática
juntaram regu.larmentc seus efeitos perversos, ao passo que a passi\·id ,1 de desculpató-
ria se conciliava com a artimanha ativa das omissões, das cegueiras, das negligências.
A famosa "banalização" do mal não passa, nesse sentido, de um efeito-sintoma dessa
combinatória ardilosa. O historiador do tempo presente não pode, então, escc,par à
pergunta maior, a da transmissão do passado: é preciso folar dela? Como falar ddél?
A pergunta dirige-se tanto ao cidadão quélnto élO historiador; este último, pelo menos,
traz, nas águas tur\'as da memória coletiva dividida contra si mesma, o rigor do olhar
distanciado. Num ponto, pelo menos, s ua positividade pode afirmar-se sem resen·a:
na impugnação factual do negacionisrno; este último não depende mais d a patologia
d o esquecimento, nem mesmo da manipulélçãu ideológicél, mas do mélnejo da falsifi-
cação, contra o qual a história esté~ bem Mmada desde Valia e o desmantelamento da
falsifi cação da Doaçi'ío de Co11~ ta11ti110. O limite para o historiador, como para o cineasta,
o narrador e o juiz, está em outro lugar: nél parte intransnússí\·el d e uma experiência
extrema. Mas, como foi \'árias vezes enfatizado no curso da presente obra, quem diz
intransmissível não fala indizíve1:i 1•

3. O esquecimento comandado: a anistia

Os abusos de memóriél colocados sob o signo da memória obrigélda, comandada,


têm seu paralelo e seu complemento nos abusos de esquecimento? Sim, sob formas
instituciona is d e esquecimento cuja fronteira com a amnésia é fácil de ultrapassar: tra-
ta-se principalmente da anistia e, de modo mais marginal, do direito de graça, também
chamado d e grnça anistiante. A fronteirn entre esquecimento e perdão é insidiosamen-
te ultrapassada nél medida em que essas duas disposiçôes lidam com processos judi-
ciais e com a imposição da pena; ora, a questão do perdão se coloca onde há acusação,
condenação e castigo; por outro lado, as leis que tratam da anistia a designélffl como
um tipo de perdão. Limitar-me-ei neste ca pítulo ao élspecto institucional discricionário
d as medidas correspondentes e deixarei para o Epílogo a questão do apagamento da
fronteira com o perdão induzido pelo apaga men to da fronteira com a amnésia.
O direito de grnça é um privilégio régio usado apenas periodicamente, à discrição
do chefe do Estado. Trata-se do resídt10 de um direito quase didno ligado à soberaniél
subjetiva do príncipe e justificado, na época do teológico-político, pe la unção religiosa
que coroava o poder d e coerção do príncipe. Kant já disse tudo de bom e de ruim que
se de\·e pcnsélr dele~2.

.11 Pierre Vicbl-Naqul't, L,·~ fui/~, /11 M,•111c>in· ct /e Pn•.,c11/, Paris, :'vlaspt•rn, 1981. Alain Finkil'lkraut,
L'A ,•c11ir d'1111c 11égnt io11. l./.,;flcxícn1 , 11r /11 que,/ i1>11 d11 g,;11ocidc, l'aris, [d. du St'u il, 1982.
32 Kant, "Ll' droit de grnc il'r ", in /,11 Métap!,_11,iq111· di•,; 111ct•11r,, 1, Do.-tri11,· d11 drc>it, lntrod uçiio L' tradu ção
Lk A. Philonl'nkn, !\,r is, Vrin , 1971, sl'gu nda park, " Le droit publ ic", r em arques générn les, E, " Du

.z, 459 <>


A MFM (l l<IA, A III STC)RIA, O FS(?UFC I MF\:TO

A anistia tem um c1lcance completc1mente diferente. Primeiro, ela põe um fim a


graves d esordens políticas que c1fctc1m a paz civil - guerrc1s civis, episódios revolucio-
nários, mudanças violentas d e regimes políticos - , violência que a anistia, presumi-
damente, interrompe. Além dessas circunstâncias extraordinárias, a anistia distingue-
se pela instância que a instaura: o Parlamento, hoje em dia, na França. Considerada
quanto ao seu conteúdo, ela visa a uma categoria de delitos e crimes cometidos por
ambas as partes durante o período de sedição. Nesse sentido, ela opera como um tipo
d e prescrição seletiva e pontual que deixa fora de seu ca mpo certas categorias de d elin-
qüentes. Mas a anistia, enquanto esquecimento institucional, toca nas próprias raízes
do político e, através d este, na relação mais profunda e mais dissimulada com um pas-
sado declarado proibido. A proximidade mais que fonética, e até mesmo semân tica,
entre anistia e amnésia aponta para a existência de um pacto secreto com a d en egação
de memória que, como veremos mais adiante, na verdade a afasta do perdão após ter
proposto sua simulação.
Considerada no seu projeto confesso, a anistia objetiva a reconciliação entre cida-
dãos inimigos, a paz cívica. Temos vários modelos notáveis. O mais antigo, recordado
por Aristóteles em A Co11stit11iç1'ío d1: Atc11ns, é extraído do famoso decreto promulgado
em Atenas em 403 a.C., após a vitória da d emocracia sobre a oligarquia dos Trinta''.
A fórmula merece ser recordada. Na realidade, ela é dupla. De um lado, o decreto
propriamente dito; de outro, o juramento proferido nominativamente pelos cidadãos
tomados um a um. De um lado, "é proibido lembrar os males las desgraças]"; para di-
zer isso, o grego tem um sintagma único (11111 êsiknkei11) que visa a lembrança-contra; por
outro, "não recordarei os males [as desgraças]", sob pena das maldições desencadea-
das pelo perjúrio. As fórmulas negativas são marcantes: não recordar. Ora, a record a-
ção negaria algo, a saber, o esqueci mento. Esquecimento contra esquecimento? Esque-
cimento d a discórdia contra esquecimento dos danos sofridos? É nessas profundezas
que será preciso se embrenhar quando ch egar a hora . Permanecendo na s uperfície

droit de punir et de gracicr": "O direito de agr;ici;ir o criminoso, quer ;i bra ndando sua pena, quer
perdoando-a comple tamente, é, e ntre todos os direitos do soberano, o mais delicado, pois, ao mes-
mo te mpo em q ue dá mais brilho à sua g ra ndeza, é a oportunidade de cometer a maior injustiçil".
E Kant acrescenta: "Por tanto, é apenas a resp eito d e um crime que afeta a ele mesmo que ele pode
usá-lo" (p. 220).
:n Nicolc Loraux lhe dedica um li vro inte iro: La Cift' diz,is(>c. L'ou/Jlí d1111s /11111é111oírc d'At/n\ 11cs, Paris,
Payot, 1997. O p erc urso do livro é significativo: par te d a cvocaçfío do víncu lo profundo entre a
"scdiçfío" (s/11sis) e a d escendê ncia mítica dos "Enfants de la Nuit" sob a figura de Éris, a Discórdia
("Éris : forma arca ica da rcflexfío grega sobre o político" [p. 11 91). A a ná lise a trnvessa as camadas
do verbo poético em direção à prosa do político, assum ida e proclamada. O livro te rmina nas
"políticas d a reconci liação" (p. 195 e seg.) e te nta aval iar o preço pago em termos de denegação do
fundo recalcado de Discórdia. Por motivos de estratégia pessoa l, seguire i a orde m inversa, d o d e-
creto de a nist ia e do juramento de nfío-memória rumo ao fund o invencível da Cóler a e da Afliçi'io
"in-csquecidiça", seg undo a forte expressão da autora (p. 165).
:\ l ( l:\ Dt c,· .\l l II IS T(W IC.-\

das coisas, é preciso saudar a ambiçiio confessa do d ecreto e do juramento atenienses.


Finda a guerra, é proclamado solenem ente: os combates presentes, de que a tragéd ia
fal a, tornam-se o passado a não ser recordado. A prosa do político vem substituí-la.
Um imaginé'írio CÍ\·ico é instaurado, no qual a amizade e até mesmo o vínculo entre
irmiios são promov idos à condição de fundação, ,,pesar dos assassinatos familiares;
él arbitragem é posta acima da justiça processual que mantém os conflitos \'i\·os sob o

pretexto de decidi -los; mais radicalmen te, a democracia quer esquecer que ela é poder
(kratos): ela quer ser esquecime nto mesmo da \'itó ria, na bene\·o lê ncia compcHtilhada;
preferir-se-á então o termo politcin, qu e significa ordem constituciona l, ao termo demo-
cracia, que carrega cl marca do poder, do kratos. Em suma, reassentar-se-á a política
sobre o esquecimento da sedição. Medir-se-,1 mais adiante o preço que de\·erá pagar a
empreitada de não esq uecer de esquecer.
a Frnnça , existe u m mod elo dis tinto com o Ed ito de Na ntes promulgad o por
Henri IV . Nele se lê: " Artigo 1: Prim eiro, que a me mória de todas as coisas pa ssadas
de ambos os lados desde o início do mês de março d e 1585 até nosso ad\'ento ~ coroa,
e duran te os outros distúrbios preced entes, e quando deles, permanecer,i apagada e
adormecida como coisa não ocorrida. Não será possível nem permitido a nossos
procura dores-gerais nem a quaisquer o utras pessoas, públicas ou privadas, e m qual-
que r tempo ou oportunidade, fa zer deles menção, processo ou ação processual em
nenhuma corte ou jurisdição. - Artigo 2: Proibimos a todos os nossos súditos, de
qualquer condição ou qualidade, renm·ar a memória d esse passad o, a tacar, ressentir,
insultar ou pro\'ocar um ao outro em re provação pelo que ocorreu por qualquer moti-
\'O e pretexto, disputar, contestar, brigar, ultrajar-se nem ofender-se por fato ou por

pala vra; devem se conter e viver juntos serenamente, como irmi'ios, amigos e concida-
d ãos, sob pena aos contraventores de serem punidos como infratores de paz e pertu r-
badores do repouso público". A expressão ''como coisa não ocorrida" é surpreenden-
te: ela enfatiza o lé'l do mágico da ope raçi'io que consis te cm fazer como se nada ti\·essc
acontecido. As negações abundam, como na Grécia d e Trasibulo. A dimensão verbal é
enfati zada, assim como o alcance p enal pela cessação das persecuções. Enfim, a trilo-
gia " irmãos, amigos, concidadãos" recorda as políticas gregas da reconciliação. Falta o
jurame nto que colocava a anistia sob a caução dos deuses e da imprecação, essa má-
quina d e punir o pe rjúrio. Mesma ambição d e "fazer calar o não-esquecimento da
me mória" (Nicole Loraux, Ln Cité di'uisée, p. 171 ). A no\'idadc não estcí nisso, mas do
lado da instância qu e proibe e de sua moti\'ação: é o rei da França que intervém numa
contro\'érsia religiosa e numa guerra ci\·il entre confissôes cristãs, numa época em que
os controversistas foram incapa zes d e fazer preva lecer o espírito de concórdia sobre as
querelas confessionais. O homem d e Estado prevalece, aqui, sobre os teólogos, em
nome de urna prerroga ti\'a prova\·elmente herdada do direito régio de clemência, mas
em nome de uma concepção do político marcada por sua \'ez com o selo do teológico,
como afirma enfatica mente o Preâ mbulo: é um rei muito cristão que se propõe não a
refund ar a religião, mas a fundamentar a coisa pública sobre um a base religiosa sanea-
da. Nesse sentido, d e\·e-se falar mais de um "sonho rompido do Renascimento ", o d e
/\ MEM()RIA, /\ II IST() RI /\, () ESQU LCIME N TO

um Michel de )'Hospital em particular, do que de antecipação da moral e da política


de tolerância 14 .
Completamente diferente é a anis tia tão abundantemente praticada pela República
francesa sob todos os seus regimes. Confiada à nação soberana em suas assembléias
representativas, é um ato político que se tornou tradicionaP~. O direito régio, a não ser
por uma exceção (o direito de graça), é transferido ao povo: fonte de direito positivo, ele
está habilitado a limitar seus efeitos; a anistia põe um fim a todos os processos em anda-
mento e s uspende todas as ações judiciais. Trata-se mesmo d e um esquecimento jurídico
limitado, embora de vasto alcance, na med ida cm que a cessação dos processos equivale
a apagar a memória em sua expressão de atestação e a di zer que nada ocorreu.
É obviamente útil - é a palavra justa - lembrar que todo o mundo cometeu cri-
mes, pôr um limite à revanche dos vencedores e evitar acrescentar os excessos da jus-
tiça aos do combate. Mais que tudo, é útil, como no tempo dos gregos e dos romanos,
reafirmar a unidade nacional por uma cerimônia de linguagem, prolongada pelo ceri-
monial dos hinos e das celebrações públicas. Mas o d efeito dessa unidade imaginária
não seria o de apagar da memória oficial os exemplos de crimes suscetíveis de proteger
o futuro das faltas do passado e, ao privar a opinião pública dos benefícios do dissen-
sus, d e condenar as m emórias concorrentes a uma vida s ubterrânea malsã?
Ao se aproximar assim da amnésia, a anistia põe a relação com o passado fora do
campo em que a probleméHica do p erd ão encontraria com o disscnsus seu justo lugar.
O que é feito, então, do pretenso dever de esquecimento? Além do fato de uma
projeção n o futuro no modo imperativo ser tão imprópria para o esquecimento quan-
to para a memória, ta l mandamento equivaleria a uma amnésia comandada. Se esta
conseguisse ter êxito - e infelizmente nada se constitui em obstáculo à ultrapassagem
da tênue linha d e demarcação entre anistia e amnésia - , a memória privada e coletiva
seria privada da salutar crise de identidade que possibilita uma reapropriação lúcida
do passado e de sua ca rga traumática. Aquém dessa provação, a instituição da anistia
só pode responder a um desígnio d e terapia social emergencia l, sob o signo da utilid a-
de e não da verdade. Direi, no Epílogo, como a fronteira entre anistia e amnésia pode
ser preservada em sua integridade graças ao trabalho de memória, complementado
pelo do luto, e norteado pelo espírito de perdão. Se uma forma de esquecimento puder
então ser legitimamente evocada, não será um d ever calar o mal, mas di zê-lo num
modo apaziguado, sem cólera. Essa dicção tampouco será a de um m andamento, de
uma ordem, mas a de um desejo no modo optativo.

34 Thierry Wangfleteten, "L'idéa l de concorde l't d'unanimité. Un rêve brisé de la Rcnaissa nce", in
His toirc c11 ropfr1111c de /11 toláa11cc du XV/" 1111 X x·· sii'c/1•, Paris, Le Liv re de Poche, Libra irie généralc
fra nçai sc, 1998.
35 Sté phane Gacon, "L'oubli in s titutionnel", in 011/Jlicr 110s crimes. L'111111u·sic 1111tio1111/c : une spéciffrit(,
fmnça i~c?, l'ari s, Autrement, 1994, pp. 98-'111. A exposiç{io dos mot ivos do projeto de lei sobre n
extinção de cer tas ações penais quando do caso Drcyfu s conté m a segu in te d eclaração: "Pedi mos
que o P.irbmento acrescente o esquecime nto ri clemê ncin e vote di sposiçôes lega is que, sem de ixar
de p rcscrv,ir os inte rt.·sses dos terceiros, coloq uem .is pni xõcs n.i impotênc ia de fa/.cr rev iver o
mnis doloroso conflito" (p. 100).
EPÍLO G O

o P E R D Ã O D I F Í C I L
·-----------------·
perdão coloca 11111n questão pri11ripial111t'11fc disti11ta daquela que, desde a Adzicrtê11ci11
deste /Íê. ~0_, JIIOtiP(~U !Olfn /IOSSa empreitada, a da rcprese11taçiio do passado, 110 plano

º
1

da 111c11101w e da !11stona e co111 o risco do csqucrn11c11to. A questão ora colocada nf' rc-sc
a 11111 cnig/J/11 outro que o da rcprcscntaçiio prcsrntc de 1111111 coisa a11se11tc 111arcnd11 pelo selo do ante-
rior. Ele é duplo: é, por u111 lado, o e11ig111t1 de 1111111 fi1lta que p11mlist1ri11 o poder de agir desse "!10-
111c111 capaz " que so111os; e 1', c111 n;plica, o da cucllfual suspc11siio dessa incapacidade e:ristc11cial,
que o termo perdão designa. Esse duplo e11ig11111 atrirucssa de ·vh's o da rcpresc11tação do pt1ssado,
pois os efeitos da _fi1lt11 e os do perdão recru:::.11111 todas t1s opemçiics co11stitutivos da 111c111ôri11 e
da história e i111pri111('/II 110 csqucci11u'11to 1111u1 11w1-c11 partirnlar. Mas , embora 11 falta constitua
a oportunidade do perdão, L; 11 110111cnç1'ío do pcnit'ío que dá o tolll 110 Epílogo in teiro. Esse tom é
o de 11111a escatologia da representação do passado. O perdão, se te11111lg11111 sentido e se existe,
co11sti tu i o '1orizo11 te co11111111 da 111c111ôria, da II istória e do esqueci111c11 to. Sempre c111scgu11do
plano, o /10rizo11tc foge ao do111í11io. Ele toma o perdão difícil: 11c111 _tiícil, 11cm i111possh,c/ 1• Ele
i111pri111c o selo do i11acaha111c11 to ,w e111 prcitada inteira. Ele é tão d(fícil de se dar e de se rcccl,cr
q11a11to de se co11ceit11ar. A trajetória do pcrdt'io tc111 sua origc1111111 desproporção que existe e11trc
os dois pó/os da falta e do perdão. Falarei, 1w longo deste ensaio, de u11111 diferença de altitude, de
11111 a disparidade ucrtical, entre 11 prof1111did11dc da _tí1lt11 e n 11lt11rn do pcrdr'ío. Essa polaridade t;
constit11ti"u11 da cq11aç,10 do perdão: c111/1aixo a co11_fissi10 do falta , 110 alto o lii110 ao pcrdiio. Aqui,
/111zç11-sc 111110 de doi_,- atos de discursos; o prilllciro lcT. 1n à linguagc111 1111/17 cxpcrit•ncia da 1111:s1/la
ordc111 que 11 solidr'ío, o fmrnsso, o co111batc, esse:- "dados da cxperié11cia " (J. N11/1crtJ - c:--:--as
"situaçiics li111ites" (Karl Ja spers) - 110s quais se cllxcrta o pc11:--a111c11to rcj7cxívo. O lugar da
acusaçiio 1110ml é 11ssi1ll posto 11 dcsco/Jerto - a i111p11t11liilid11dc, esse lugar c111 que o agente se
/ig11à s111111ç1'ío e adl/litc sua rcspo11s11l1i/id11dc por c/11 . O segundo(; da alçada da grande poesia
s11pic11cial que, 1111111111es111011/c11to, cc/c/1m o a111or e 11 alegria. Há() penft1o, diz a ;: 10 :: . A tc11siio
entre 11 co1!fissão e o /1i110 será l1:7.'17da aos arredores de 11111 po11to de rnptum, pois a i111possi/ii-
lid11dc do pcrdiio rcplirn 110 caráter i111pcrdoâ z,c/ do 1111111110ml. Assi111 será Jim1111lada a cquaç,'ío
do perdão (seção IJ.

O tít ulo d eslL' epi l()gll nw foi sugL'ridll pl'l ,1 l'>.Cl'lcntL' obra dl' D()nll'n ico Jer\'lll ino, l.'A111prc clrfficile,
Romíl, Ed izion i Studium , 1995.
A MLM()RIA, i\ HI STÓRl/1 , O FSQL;l:CIMI .NTO

A trajetória do perdão assim il/lpclida se reveste, então, da figura de 111/la odisséia dcsti11adn
a reconduzir gradativamc11tc o perdão das regii>cs mnis ajnstndas da ipscidadc (o jurídico, o
político e a 111oralidadc social) até o lugar de sua i111possibilidnde prcs11111ida, a saber, a i111p11-
tabilidadc. Essa odisséia atravessa 11111a série de i11stit11içiks suscitadns pcln acusação pública.
Estas, por sua vez, surgc111 escalonadas c111 várias caJ11adas se:,;undo o grau de interiorização da
culpabilidade proferida pela regra social: é no nível do judiciário que se coloca a temível questão
da i111prescritibifidadc dos crimes, a qual pode ser considerada como a pril/leira provação maior
da problemática prática do perdão. O percurso continuará do plano da culpabilidade criJ11i11al
no da culpabilidade política e moral, inerente ao cstntuto de cidadania co111partillzada. J\ questi'ío
colocada é então a do lugar do perdão na 111arge111 de instituiçi>es encarregadas da p1miç110. Se
a justiça é mesmo para ser feita , sob pena de que a i111pu11idade dos culpados seja co11sngrada, o
perdão somente pode se rcJugiar em gestos incapazes de se tra11sfor111are111 em instituiçtics. fases
gestos que constit11iría111 o incógnito do perdão desi:,;1111111 o lugar i11c/11táve/ da consideração
devida a todo ho111c111, si11g11far111entc 110 culpado (seção li).
Na segunda etapa de nossa odisséia, constata-se uma relação 11otávcl que, por 11111 tempo,
pôe a demanda de perdão e a outorga do perdão 111111, plano de igualdade e de reciprocidade, co1110
se, entre os dois atos de discursos, existisse uma verdadeira relação de troca. A exploração dessa
pista é encorajada pelo parentesco e111 111uitas línguas entre perdão e dom. Nesse sentido, a cor-
relação entre o dom e o co11trado111 em certas formas arcaicas da troca tende a reforçar a hipótese
segundo a qual demanda e ojáta de perdão se equilibrariam numa relação horizontal. Pareceu-
me que, antes de ser corrigida, essa sugestão merece ser levada até o extremo, até o ponto cm
que mesnw o amor pelos inimigos pode aparecer como o restabelecimento da troca nwn nível
não comercial. O problema passa então a ser o de reo mquistar, do cerne da rclaçifo !wrizcmtal de
troca, a assimetria de uma relação vertical inerente à equação inicial do pcrdiio (scçí'ío !II).
É então ao ccnze da ipscidadc que se deve reportar a efetuação dessa troca desigual. Uma
última tentativa de cscl11reci111ento que, mais uma vez, repousa 1w11w correlação horizontal, se
prop{ic com a dupla do perdão e da prornessa. Para se ligar pela promessa, o sujeito da ação de-
veria também poder desligar-se pelo perdão. A estrutura fclllporal da açiio, nwi~ prcci:;1ul{(: flte, a
irreversibilidade e 11 imprevisibilidade do tempo, exigiria a réplica de 11111 duplo do111í11io exercido
sobre a co11d11ção da ação. Minha tese, aqui, é que existe 11111a assimetria significativa entre o
poder perdoar e o poder pro111cter, como o comprova a impossibilidade de autênticas instituições
políticas do perdão. Assim, 110 centro da ipscidade e no foco d11 imputabilidade, revela-se o para-
doxo do perdão aguçado pela dialética do arrependimento na grande tradição abrar1111ica. Trata-
se nada menos que do poder do espírito de perdão de desligar o agente de seu ato (seçi'ío IV).
Resta tentar uma rernpitulaç{ío de todo o percurso efetuado em A Memória, a História,
o Esquecimento, n luz do espírito de perdão. O que está cm jogo é a projeção de um tipo de
escatologia da 111c111ôria e\ 11a sua esteira, da história e do esquecimento. Formulada no ,nodo
optativo, essa ese11tologi11 cstrntura-se a partir e c 111 tomo do desejo de u111a memória feliz e
apaziguada, da qual algo se transl/lifc 1w prática dn história e até o â11wgo das i11superâveis
incertezas que domi11n111 nossas rc!açôes com o c'squcci111e11to (seçt'ío V).
ll l'FRD..\ll !)111 ( l i.

I. A equação do perdão

1. Profundidade : a falta

A falta é o pressuposto existencial do pen.icfo (digo existencial, e não mais existcn-


ciário como nas páginéls precedentes, pMél marcar a impossibil idade de distinguir,
aqui, entre um traço inseparéível d a condição hi stórica d o ser que somos a cada \'ez
e uma experiência pessoal e coleti va marcad a por uma história cultural cujo ca ráte r
uni versal permanece pretenso),
É essencialmente num sentimento que se dá a experiência da fa lta, Esta é uma
primeira dificul dade, na medida cm que a filosofia, e mais especifica mente a filosofiél
n1oral, pouco se dete\'e nos sentimentos enquanto afecçõcs específicas, distintas d as
emoçôes e das paixôes, A noção de au to-afecção d e origem kantiana permanece, a
esse respeito, difíciL Jean Nabert, o filósofo racionalista que se a\'enturou mais longe
nessa direção, põe a experiência d a falta , ao lado d ns do fracasso e da solidão, entre
os "dados da reflexão" 2 , Ele se assemelha assim a Karl Jaspers, menos tribut,frio da
tradição ka ntiana, fich tiana e pós-kantiana, que situa a cu lpabilid ade, outro nome da
falta, entre as "situações limites", isto é, essas determinaçôes não fortuitas da existên-
cia que sempre encontramos já dadas, tais como a morte, o sofrimento, o combate',
Neste sentido, a culpabilidade, como as outras "situações limites", está implicada em
todas as situações fortuitas e diz respeito ao que nós mesmos d esignamos pelo termo
d e condição histórica no plano de uma hermenêutica ontológica,
É para a reflexão que a experiência da falta se propôe como um dado, Ele lhe dá
o que pensar, O que se oferece primeiro à reflexão é a designação da estrutura fu nda-
menta l na qual essa experiência vem se inscre\·er, Essa estrutura é a da imputabilidad e
de nossos a tos, De fa to, não pode haver perdão a não ser que se possa acusar a lguém,
presumi-lo ou d eclará-lo cul pado, E apenas se podem acusar atos imputáveis a um
agen te que se consid era como seu autor \'Crdadciro, Em outros termos, a imputabili-
dade é essa capacidad e, essa aptidão, em virtude da qual ações podem ser levadas à
conta de alguém , Essa metáfora da conta constitui um excelente esquema para o con-
ceito de imputabilidade, que encontra outra expressão apropriada na sintaxe comum
às mesmas línguas d o Yerbo modal " poder": posso falar, agir, narrar, levar meus atos
à minha conta - eles podem ser a mim imputados, Nesse sentido, a im putabilidade

2 JL',111 N,1hcrt, FN111c11/, po 11r 1111c t%iq11c, Pa ri s, l'U F, JlJ.n, li vro l, " Lt's donnl'L'S de la réflexion", cap, l,
" L'cxpé ricnce de la ta utl'", pp. n-·18. "Os sent imen to s al imentam a reflex ,10 , são s u,1 mzikria: fa zem
com que ,1 reflexZlo, embora li,·re, ap,HL'Çil com,l um momcntn 11 ,1 hi stt'iri ,1 do desc ju constitut ini dt>
n11sso ser" ( p. -l L
1 Ka rl Jas pers, /lf,j/[)_s[)pi,ic. Ori1•11/11/io11 d1111" /e' 1111111d,•. Fd11 irc111c11 / d1' /',·.r i,lt'11ce. Mii/11p l111~iq11,·, trad,
fr,rnc dl· jeanne Hcrsc h, P,iri s- Berl in- l-leidclbe rg -Nt•w York-Tó quio, Springe r-Verlag, 1986; edi-
~ôes originai s: lkrlin- He idl'lbe rg , Spr inhl'r-VL·rl ag, 1912, FJ-l8, ]95ó, 1973; livro li, Éd,1in·111 ,·11t de
/'cxi~lc11cc, lllt• di1·ision, " L'L·x istcnn' cn tant qu 'i n conditionna li té L'I1 s itu,ition, Conscience d M-
tion. L1 c u lpabi Iité ", pp. -l55- -l58,
t\ ~ffM(lR IA, /\ 1 II SHl RI A, O FSQU FC l \'1 1: NTO

constitui uma dimensão integrante do que chamo de homem capaz. É na região da im-
putabilidade que a falta , a culpabilidade, d eve ser buscada. Essa região é a d a articula-
ção entre o ato e o agente, entre o "quê" dos a tos e o " quem" da potência d e agir - da
agency. E é essa articulação que, na experiência da falta, é de algum modo afetada,
ferida por uma afecção penosa.
Essa articulação não n os é desconhecida: nós a exploramos na primeira parte desta
obra ao passarmos d e uma análise objetal da memória-lembrança para uma análise re-
flexiva d a memória de si mesmo. Já se tratava de um 11cx11s entre o "quê" das lemb ra n-
ças e o "quem " da memória . Nessa ocasião pusemos à prova o conceito de a tribuição
da memória-lembrança a um s ujeito d e inerência e propusemos redistribuir a atribui-
ção sobre o tríplice eixo do próprio, do próximo e do longínquo. Reencontraremos no
terceiro momento deste epílogo a oportunidade d e aplicar ao perdão essa tripartição
da atribuição. N o estágio inicial da presente investigação, a radicalidade da experiên-
cia da falta impõe que nos mantenhamos nos limites de uma atribuição a si mesmo da
falta, nem que tenhamos de esboçar, já n esse nível, as condições de uma colocação em
comum de uma culpabilidade fund amental. A forma específica que toma a auto-atri-
buição da falta é a d a confissão, esse ato de linguagem pelo qual um sujeito toma sobre
si, assume a acusação. Esse ato tem certamente a ver com a rememoração na medida
em que dentro desta já se atesta um poder d e vinculação criador de história. Mas a
rememoração é principialmente inocente. E é nessa condição que a descrevemos. Ou
antes, corno antigamente, em Filosofia da vontade, construída sobre a hipó tese da epokhe
da culpabilidade4, é na indeterminação e idética de uma descrição metodicamente ig-
norante da distinção entre inocência e culpabilidade que a fenomenologia d a memória
foi conduz ida d e parte em parte. A epokhe é agora s uspensa e, em relação a essa indis-
tinção concertada, a falta depende dos parcrga, dos "pon tos secundários" d a fenome-
nologia d a memória. Com isso o enigma da falta se torna maior aind a: permanece a
questão d e saber em que medida a fa lta tratada no vocabulário d e Nabert como um
"dado da refle xão" constitui, num outro vocabu lário, o de Jaspers, uma situação limite
da mesma natureza e da mesma ordem que o sofrimento, o fracasso, a morte, a solidão.
Seja como for, a confissão ultrapassa o abis mo cavado por um escrúpulo tão metódico
quanto a dúvida hiperbólica ca rtesiana entre a inocência e a culpabilidade.
Por sua vez, a confissão ultrapassa um abismo outro que aquele que separa a cul-
pabilidade empírica da inocência que pode ser chamada de metódica, a saber, o abis-
mo entre o ato e seu agente. É esse abismo que vai, a partir de agora, nos interessa r
exclusivamente. Obv iamente, é legítimo traçar urna linha entre a ação e seu agente. É o
que fazemos ao cond en armos moral, jurídica ou politicamente uma ação. Por seu lado
"objetal", a falta consiste na transgressão de uma regra qualquer, de um d ever, que
envolve conseqüências apreensíveis, a saber, fundamentalmente, um dano ca usado a
outrem. É um agir mau e, nessa condição, condenável em termos de apreciação nega-

4 l'hilo~opllic de la z,o/011tc;, t. !, Lc Voh)Jffnirc ct /' /11vo!oJ1/11irc, op. cit., l ntroduç5o gera!, '' L'abst ract ínn d t'
la foute", pp. 23-31 .
O l' IRD.-\tl D lf'ÍCIL

ti\'a. No vocabulário do e nsaio kantiano sobre as grandezas negativas, a falta é uma


gra ndeza negativa da prática'. Nessa primeirél condição, a falta é tão limitada quan-
to a regra que ela infringe, m esmo que suas conseqüências possam, por seu impac to
cm termos de padecimento infligido, rt.?\'estir-se de um aspe cto indefinido. As coisas
são diferentes na implicação do agente n o ato. Es ta eq ui va le a " ilimitar a repercussão
sobre a consciência de cad a uma d e nossas açôes" (Nabert, É/(>111c11ts pour 1111c L'thiq11c,
p. 6.). O que está em jogo é, no que di z respei to à confissão, "por trás da qualidade de
sua ação, a qualidade da causa lidade da qual s ua ação procedeu " (op. cit., p. 7). N esse
nível de profundidade, o reconhecimento de s i é indivisamente ação e pai xão, ação
de agir m al e paixão d e ser afetado por s ua própria ação. Por isso o reconhecime nto
do \'Ínculo entre a ação e o agente acompan h a-se de uma s urpresa d a consciência,
espantada, após a ação, po r "n ão m ais p o der dissociar a idéia de sua própria causali-
dade da lembrança do a to sing ular que ela rea lizou" (op. cit., p . S). Sob esse as pecto, a
representação do ato impede, de algum modo, o retorno da ação ao agente. As repre-
sentações fragm entá rias da memória seguem as linhas de dispersão d a lembran ça. A
refl exão, em compensação, remete ao foco da memória do si q ue é o lu gar da a fecção
constitutiva do sentimento de falta. O trajeto do a to ao agente redobra o da memória-
lembrança à m emóri a re fletida. Ele o redobra e dele se d estaca, no sentimento da perda
da in tegrid ade própria. A ilimitação é, ao m esmo tempo, sentime nto do inson d ,í.vel.
Escapando ao sentimento da incoerência e do acaba.do, a consciência do p assado se
torna apropriação da potência de agi r em se u estado d e dcrrelição. Entre o m a l q ue
está em s ua ação e o m al que está em su a causalidade, a diferen ça é a d e uma inade-
quação d o c u a seu d esejo m ais profundo. Este não pode ser enunciado a n ão ser e m
termos de desejo de in teg ridade; o q ua l é mais bem conhecido pelas falhas d o esforço
para exis tir do que pelas ap roximações de seu ser próprio. Nesse sentido, poder-se-ia
fa lar de um passado, se não imemorial, pelo menos d e " um passad o que ultrapassa o
âmbito de s uas lembran ças e de toda su a histó ria empírica" (op. cit. , p.13). Se assim se
pode d izer, a \'irtude da fa lta é a d e d ar acesso a esse passado pré-empírico, embora
não sem história, tal é a intensid ad e com que a experiência da fa lta adere à histó ri a do
desejo. Portanto, é com caute la que se falará a qui d e experiên cia metafísica para dizer
essa a nteriorid ad e da constituição m á com relação à cronologia da ação. A significação
dessa an terioridade é a de permanecer para sempre prática e d e resisti r a toda d omi-
nação especula ti Ya.
Isso quer di zer que a té uma especulação que pe rmanecesse sob o controle da pd-
tica deveria pe rmanecer proibida? Não se poderia con corda r com isso, na medida em
q ue o vocabulári o do ser e d o não-ser já se e ncontra m obil izado por toda exp ressão
que des igna o ser que somos, na forma do d esejo de ser e d o esforço para existir: em
su ma , o ser própri o d o d esejo e le m esmo. O próprio termo d e causali d a de ap licado à
potência d e ag ir e à impotência que figura a fa lta d ô testemunho do que eu costu ma Ya

:, Kant, L~~ai po11r i11t n ,d11in· c11 11l1ilo~,,,,/1i,· /e Ct>11L°cpt d,· g ro11dc11 r 11(·~ati,·,·, in Cl.: 11,·rc~ 11/iihi~tl/,'1 iq 11t',,
l'aris, Ca ll imard, w l. " Biblio thi.'qttt.' dl' la I'10i ,1dc", t. 1, pp. 277-280.
i\ MEl'vl ()R I A, A III ST()R I A, () FSQUECIME N T (.)

chamar de veemência ontológica do discurso sobre si mesmo. Essa veemência onto-


lógica, que é a da atestação, me parece marcada na linguagem pela caracterização da
falta como mal, mal moral obviamente, mas m esmo assim, mal.
Em Nabert, a substituição do termo "fa lta " pelo termo "mal" no ensaio intitulado
precisamente Essai s11r le mal" é, nesse sentido, indica ti va e exempla r. A proximidade
inquietante de discursos "metafísicos" que se tornaram insustentáveis não deve para-
lisar a curiosidade do espírito a ponto de lhe p roibir usar o verbo ser na forma negativa
do não-ser, como o sugere o termo m al moral. Contanto que, toda via, se permaneça na
linha da acepção do ser como potência e ato mais do que como substância, atributo e
acidente. Esse aprofundamento da profundidade, se assim se pode dizer, não deixa de
ter benefícios no próprio plano da fenomenologia d a falta. Vou enumerá-los.
Primeiro, sob a égide da metacategoria do não-ser, a experiência da falta é nova-
mente posta em relação com as outras experiências negativas d as quais também se
pod e falar como de participações no não-ser. Assim, o fracasso enquanto contrário do
sucesso na dimensão da eficácia, da eficiência própria, tem seu vocabulário específico
em termos de potência e de ato, de projeto e de realização, de sonho e de cumprimento.
O fracasso mantém assim a experiência da falta na linha da metafísica do ser e da po-
tência, que convém a uma antropologia do homem capaz. A experiência da solid ão
não é menos rica em harmónicos ontológicos: obviamente, ela adere à experiência da
falta enquanto esta é fundamentalmente solitária, mas ao mesmo tempo ela dá, por con-
traste, seu preço à experiência do ser-com e, a título d essa dialética da solidão e da parti-
lha, autoriza a dizer "nós" com toda veracidade. Numa outra linguagem , a de Hannah
Arendt, a solidão é a contrapartida do fato da pluralidade humana. A solidão perma-
nece fundamentalmente corno uma interrupção d a comunicação recíproca e mostra
suas intermitências. Por sua vez, a situação limite do conflito, segundo Karl Jaspers,
acrescenta à intermitência própria da solidão a idéia de um antagonismo intransponí-
vel n o qual se enxerta uma agonística do discurso e da ação: agonística d o discurso que
impõe o caráter irredutível ao plano político e social do dissensus várias vezes evocado
neste livro - agonística da ação, que parece inseparável do fa to d e que toda ação é
ação sobre ... , portanto, fonte d e assimetria entre o autor d a ação e seu receptor. Reco-
locada nesse quadro, a experiência n egativa d a falta se reveste da dimensão d o mal.
Outro efeito desse acoplamento entre falta e mal: a referência ao mal sugere a idéia
de um excesso, de urna demasia insuportável. Esse aspecto das coisas é p articular-
mente enfa tizado d esde as primeiras pág inas do Essai sur le mal de Nabert. O capítulo
é intitulado " L' injus tifiable". O que esse vocábulo designa que não tenha sido dito nos
Éléments pour une étliiq11c? É notável que seja primeiro pelo lado das ações que a noção
do mal entra no campo da reflexão sobre o injustificável antes de se reportar ao sujei-
to. Tornado do lado objetal, o injustificável designa esse excesso d o não-válido, esse
além das infrações medid as em função d as regras que a consciência moral reconhece:
tal crueldade, tal baixeza, ta l desigualdade extrema nas condições sociais me como-

6 J. Na bc rt, Essai s11r ft, 11111/, 1'.iris, l' UF, col. ''Épiméthé e", 1955; reed., Aubier, 1970.
(l l'FRIJ\() D IFICII

\'Cm sem que eu possa d esignar as normas \·iobd as; não se trata mais de um simples
contrário que eu ainda compreenderia em oposição ao válido; são males que se inscrc-
\·em numa contradição mais radical que a d o V<eilido e do não-,·álido e suscitam uma
demanda d e justificação que o cumprimento do d ever não sa tisfaria mais. Apenas se
pode s ugerir esse excesso do não-v,ilido atravessando o dlido passando pelo limite;
"são, diz Jean Nabert, males, são dilaceramentos do ser interior, conflitos, sofrimentos
sem apaziguamento concebível". Então os males são desgraças inqualificciveis para
aqueles que os suportam 7 . As narrativas dos sobreviventes da Sh oah, tão difíceis de
se entender simplesmente, apontaram para essa direção no d ecorrer de nosso próprio
texto: Saul Friedlander falou, nesse sentido, d e "o inaceitá\·el'', o que é uma lítotes.
Tomado do lado d o agente a quem esses atos são imputá,·eis, o excesso próprio do
injustificável constitui ou tro tipo de ilimitação que niio a da causalidade insondável
ca\·ad a por triis dos atos na intimidade do sujei to: é uma ilimitaçiio simétrica àquela
do dano feito a outrem, cu ja possibilidade é inscrita nesse d ano por excelên cia, a saber,
o assassinato, a morte não sofrida mas infligida ao outro, em suma "esse mal que o
homem faz ao homem"~. Com efeito, a lém da vontade de fa zer sofrer e d e eliminar,
ergue-se a vontade d e humilhar, de entregar o outro à d errclição do abandono, do
autod esprezo. O injustifiecivel exagera a experiência d a fa lta, na medida em que à con-
fissão d o além do n ão-\'álid o da parte das ações se ac rescenta a d a cumplicidade do
querer d a parte do agente. Alcança mos aq ui um imped imen to íntimo, uma impotência
radical de coincidir com qualquer modelo de dignidade, e ao mesmo tempo um frenesi
de engajamento na ação, do qual o ódio mal d,1 a medida, e que faz explodir a própria
idéic1 de afccção do s ujeito por suas próprias ações. Mesmo a noção proposta por Na-
bert de "causa lidad e impura" parece inadequada. Dificilmente a idéia d e deca dência
irremediélvel é mais cabível. Assim, é o extrem o d o mal infligido a outrem, na ruptura
do vínculo humano, que se torna o indício desse outro extremo, o da maldade ínti-
ma d o criminoso. É nesse ponto que se anuncia m noções como o irreparável do lad o
dos efeitos, o imprescritível do lado da justiça penal, o imperdoável do lado do juízo
mora l. É com essas noções que se confrontará o último momento deste epílogo. Q ue
extremo da justifica ção ainda permanece acessível então?''
Último benefício''' de uma ligação entre a id éia de falta e a d e mal: a conjunção
convida a ir até os confins do grande im agi nário cultu ral que a li mentou o pensa mento
com expressões míticas. Nenhum tema, fora o amor e a ffto rte, suscitou tantas cons-
truções simbólicas quan to o ma l. O que continua a ser filosoficamente instru tivo é o
tratamento narra ti,·o da questão da origem na qual o pensan,ento pu ramente cspecu-
lati,·o se perde até o fracasso . Com a narrativa, como se \'ê no mito adâ mico da Tora

7 .Íl'd n 1\ m 6 rv, f>t1 r- dd,i /e rr i111c ct /e d1 âti111n 1/. [ ,:,:ai 110 11r s11rn1011t,•r /'i11., 11m 1(i11 /11/,/c, op. cit.
8 "v1y ri am Rc\·J ul t d '.-\llo nnL'S, Cc que' /'lio111111c ti,it ri /'/111111111c. L,:,:11i ,:11 r !,· 111,1/ J'"litiquc, l'aris, F lamma-
rion, Sc uil, col. " C h,1 mps ", 1995.
9 " [:-; istl' a lgo a bsl1lutc1 mc ntc inju stific,í\' d ? !\c s s,1 pcrg un t,1 ngrupa m -sc tt1das ,is perg u nta s e nad a
SL' d isse s e l'ln PL'ril1il l1l'Cl' sem r<.?s postn" (J. '.\J,1bL•rt, E., sni ;; 11r /1• 111t1!, (l/'· cit ., p . 142).
10 Pa ul Ricn,.•t1r, cm cnlab()ra ç,10 C()ill A nd ré l.aC ncq u L', /Jc11,-;cr /11 Rif,fc·, l '<iri s, Éd . du SL'Ui l, 1998.
/\ M EM( ) RI A, A HI S T( lR I ,'\, () ESQULCIMENT(l

judaica, surge a idéia de um acontecimento primordial, o da perda d a inocên cia - e,


com a idéia de acontecimento, a de uma contingência de algum mod o trans-histórica.
A perda da inocência é algo ocorrido num tempo primordial que n ão pode ser coorde-
nado com o d a história e, portanto, algo que poderia não ter ocorrido. Surge a idéia de
um mal dado desd e sempre n a empiria e, entretanto, fundamentalmente contingente
na ordem primordial. Ela é filosofica mente interessante n a medida em que urna dis-
tância se encontra assim cavada entre o agente e a ação. A ação é dorava nte reputad a
universalmente má e, nessa condição, universalmente d eplorá vel e d eplorada. Mas
algo do sujeito é isentado, que poderia n ão ter sido dissipado na ad esão d a von tade
ao mal cometido, uma inocência que, ta lvez, não tenha sido totalmente abolida e que
irromperia quando d e certas experiências d e felicidade extrem a. No passado d efendi
a tese segundo a qual a culpabilidade constitui uma situação limite h eterogên ea d a
finitude constitutiva da condição human a. A descontinuidad e, pensav a eu, justificaria
que se passe d e urna eidética d o voluntário e d o involuntário, à moda husserliana,
a uma hermenêuti ca aberta sobre os símbolos p r imários d a falta, tais como sujeira,
d esvio, pecad o, e sobre os símbol os secundá rios estruturados pelos grandes mitos que
alimentaram, em p articular, o pensamento d o Ocidente, sem falar d os mitos raciona-
lizados, aqueles das diversas gnoses, inclusive a gnose cristã antignóstica do pecad o
original. Pa ra nossa presente investigação, essa aten ção d ad a aos mitos d e culpabili-
dade conserva um interesse, não tanto para uma especulação sobre a origem do mal,
cuja vaidade me pa rece irremediável 11 , mas para uma exploração dos recursos de re-
generação m antidos intactos. É a eles que se recorrerá no fim de nosso percurso. No
tratamento narrati vo e mítico d a origem d o mal, desenhar-se-ia em bai xo-relevo um
lugar para o perdão.

2. Altura: o perdão

Se fosse preciso p rofe rir uma única palavra no fim d essa d escida às p rofundezas da
experiência d a fa lta, com ressa lva d e toda escapad ela no imaginário mítico, seria a de
imperdoável. A palav ra não se aplica ap enas aos crimes que, cm razão da imensid ão
d a d esgraça que assola as vítimas, cabem na d enominação do injustificável segundo
N abert. Ela não se aplica tampouco apenas aos atores que, nomeadamente, perpetra-
ra m esses crimes. Ela se aplica também ao vínculo mais íntimo que une o agente à
ação, o culpado ao crime. De fato, independentemente d a conti ngência p ré-empírica
do acontecimento fundador d a tradição d o ma l, a ação humana é p ara sempre entre-
gue à experiência da fa lta . Mesmo que a culpabilidade não seja originária, ela é para
sempre radical. É essa aderência d a culpabilidad e à condição human a que, ao que
parece, a torna não só imperdoável de fa to, mas imperdoável d e direito .. . Arran car a
culpabilidade da ex istên cia seria, ao que parece, des truir essa última completamente.

li P. Riccrur, Ll' Mo/. L/11 tÍ('./i à lo philosoplric e/ il lo t!,,,ologic, Genebra, La bor e t fides, 1986.
ll l'IR D.-\ll D I FÍCIi

Essa conseqi.iência foi d edu zida com um rigor implaCé1\·el por Nicohú Hartmann
cm sua Étirn. Se o perdão fosse possível , di z ele, ele constituiria um mal moral , pois
d eixaria a liberdade humana à disposi ção d e Deus e ofenderia o orgulho humano:
"Não se pode, para ninguém, suprimir o ser-culpado da ação m,i, porque ele é inse-
pa rán:-1 d o culpad o" 12 • Voltamos ao ponto d e partida da análise precedente, a Sélber,
ao conceito de imputélbilidade, essa aptidão para nos responsabili zarmos por nossas
ações, na condição de seu autor verdadeiro. A experiência da falta adere tanto à impu-
tabilidade que ela é seu ó rgão e seu ren:-lador. Obviamente, concede Hartman n, pode-
se mitigar a m ordida d a falta , seu fe rrão, a té n as relações entre comunida des, mas não
c1 própria culpabilidade: "Existe mesmo, no plano moral, uma \'itória sobre o mal[ ... ]

mas não um a niquila mento da falta". Pode-se dar testemunho da compreensão pelo
criminoso, não absolvê-lo. Po r essência, a fal ta é imperd oável não somente d e fato,
mas d e direito.
Co mo Klaus M. Koda lle, tomarei essas d eclarações de Nicola'i Hartmann como a
ad,·ertência dirigida a todo discurso sobre o perdão por uma ética fil osófica que se
pretende imunizada contra toda infiltração teológ ica. O vínculo entre a falta e o ~c~f
entre a culpabilidade e a ipseidade p arece indissolúvel.
A procl amação resumi(fa nessas simples p alavras: "Há o perdão" ressoa com o um
d esafio inverso.
A expressão "h á" que r p roteger o que Lév inas d enominava a ileid a de dentro de
toda proclamação do mesmo gênero. A ileidade, ag ui, é a d a altura d e onde o perdão é
anunc iado, sem qu e essa altura deva ser atribuída rapidamente demais a alg uém que
seria seu sujeito absoluto. A origem, pn)\'ave lmente, nada mais é que uma pessoa, no
sentido em gue ela é fonte d e personalização. Mas o p ri ncípio, le mbra Stanislas Breton,
nada é do que procede dele. O "há" da voz do p erdão o di z a seu modo. Por isso, fala-

1 rei dessa voz como de uma voz de cima. Ela é de ci ma, como a confissão da falta pro-
cedia da profundidad e insondáve l d a ipseidade. É uma voz silenciosa, mas não mud a.
Silenc iosa, pois não é um clamor como o dos furiosos, não muda, p ois não privada d e
palavra. Um discurso apropriado lhe é de foto dedicado, o do hino. Discurso do elogio
e da celebração. Ele diz: h,1, cs gibt, tl1crc i~ ... o pe rdão - o artigo "o" designando a
deidade. Po is o hino não precisa dizer quem perdoa e a quem. Há o perdão como há
a a legria, como há a sabedoria, a loucura, o amor. O a m or, precisamente. O perdão é
d a mesma família.
Como não evocar o hino ao a m or proclamado por São Pau lo na Primeira Epís-
to la aos Coríntios? Ma s cuida d o: o que o h ino denomina não é alguém, pelo menos
num prime iro m o,·ime nto de pensamento, mas um "dom esp iritua l" - um "caris-
ma" - concedido pelo Espírito Santo: "No que diz respeito aos dons es pirituais,
irmã.os, não quero , ·é-los na ignorância" . Ass im se anuncia o hino (1 C or. 12,1). E o
lntníito propri a m ente dito e ncarece:" Aspirni aos dnns espirituais. E vos mos trarei

12 Citado por Klaus M . Kodal k, Vcr: ci/11111s 11,1(/1 \Vc11dc:cite11 ? [con ÍL'n:'nc i,1s i n ,1ug u r,1is pniiL' r iL"L1-. na
UniH'rs idadL' Fril'drich-Schiller de lena , 2 jun. 199-l], Erla ngen e l,•na, Pa lm t' Enke, 199-l.
A MEMÚRIA, A HIST( lR I A , () ESQU ECIMENH)

uma via que ultrapassa a todas" (12,31). Segue-se a famosa litania dos "Ainda que
eu ... " (ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, ainda que eu tivesse
o dom de profecia, ainda que eu tivesse a plenitude d a fé, ainda que eu distribuísse
meus bens e entregasse meu corpo às chamas ... ) e a litania d os "Se eu não ti ver. .. " (se
eu não tiver a caridade, não sou. Não passo d e um vão sonhador, não sou nada, nada
adianta). Esse ataque retórico do tema pela d enúncia d e um d efeito, d e urna falta, na
articulação do ter e do ser, exprime em termos negativos a via d a eminência. A via do
que ultrapassa todos os outros dons espirituais. O apóstolo pode então desenvolver
o discurso da efusão, no tempo verbal do indicativo presente: a caridade é isto .. . é
aq uilo ... ela é o que ela fa z. " Ela n ão leva o mal cm conta; ela não se alegra da injustiça,
mas põe sua alegria na verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta."
Portanto, se ela não leva o mal em conta, é porque ela desce ao lugar da acusação, da
imputabilidad e, que fa z as contas do si mesmo. Se ela se enuncia no presente, é por-
que seu tempo é o da permanência, da duração mais abrangente, menos distendida,
dir-se-ia em linguagem bergsoniana. Ela "nunca passa", "e la permanece". E ela per-
manece mais excelentemente que as outras grandezas: "Em suma, a fé, a esperança e
a caridade permanecem todas as três, mas a m aior entre elas, é a caridade". A m aior:
porque ela é a própria Altura. Ora, se a caridade d esculpa tudo, esse tudo compreende
o imperdoável. Senão, ela mesma seria aniquilada. N esse sentido, Jacques Derrida,
que eu reencontro aq ui, está certo: o perdão dirige-se ao imperdoável ou não é. Ele
é incondicional, ele é sem exceção e sem restrição. Ele não pressupõe um pedido de
perdão: "Não se pode ou não se deveria perdoar, apenas h á perdão, se houver, onde
h á algo imperdoável" 13. Todo o resto da problemática parte daí, do que Pasca l chama
d e "d esproporção", num vocabulário marcado pela geometria cósmica e a álgebra que
opõe dois infinitos ex tremos. Essa d esproporção entre a profundidade da falta e a al-
tura do perdão será nosso tormento até o fim d este ensaio. Ora, essa exigência infinita,
que emana de um impera tivo incondicional, é de fato mascarada por dois tipos d e
fatores que se devem à inscrição de fa to do imperativo numa história .
Primeiro, o mandamento de perdoar nos é trans mitido por uma cultura determi-
nada cuja amplidão não consegue dissimular a limitação. Derrida nota que a lingua-
gem que se tenta ajustar ao imperativo pertence "a uma h erança religiosa, digamos
abraâmica, para nela reunir o judaísmo, os cristianismos e os islamismos". Ora, essa
tradição, complexa e diferenciada, e até mesmo conflituosa, é ao mesmo tempo singu-
lar e em via de universalização. Ela é singular, pois é p roduzida pela " memória abraâ-
mica das religiões do Livro e numa interpretação judaica, mas sobretudo cristã d o
próximo e d o semelhan te" (ibid.). Sob esse aspecto, ningu ém ignora que o hino à cari-
dade d e São Paulo é inseparável do querig ma de Jesus Cris to, de sua inscrição numa
proclamação trinitária e de um a tipolog ia dos " dons" no seio da com unidade eclesial
primitiva. A entronização, entretanto, é uni versal, o u pelo menos em via de universa-
lização, o que de fato equivale, n ota Derrida, a uma "cris tianização qu e não precisa

13 Jacques Derrid a, "Le siecle et le pardon", Lc Monde des débnts, dez. 1999.

<z. 474 ~
() l'FRIL\U DIFÍCIi

mais da Igreja cristã" (i/Jid.), como se vê no cenário japonês e quando de certas expres-
sões do fenómeno de "mundialatinização" do discurso cristão. Essa simples observa-
ção levanta o problema considerável das relações entre o fundamental e o histórico
para toda mensagem ética com pretensão universal, inclusive o discurso dos direitos
humanos. Nesse sentido, pode-se falar de universal pretendido, submetido à discus-
são de uma opinião pública em via de formação cm escala mundial. Por falta de tal
ratificação, podemos nos preocupar com a banalização do teste de universalização em
proveito da confusão entre universalização na ordem moral, internacionalização de
ordem política e globalização de ordem cultural. Dessa banalização, nada se teria a
dizer, a não ser apelar para uma vigilância scm,1ntica maior na discussão pública, se
não interviesse um segundo fator que Jacques Derrida chama de "encenação". Ele
pensa cm "todas as cenas de arrependimento, de confissão, de perdão ou de descul-
pas que se multiplicam na cena geopolítica desde a última guerra, e de modo acelera-
do faz alguns anos". Ora, é graças a essas encenações que a linguagem abraâmica do
perdão se difunde de modo não crítico. O que ocorre com o "espaço teatral " no qual
se interpreta "a grande cena de arrependimento"? O que ocorre com essa "teatralida-
de"? Parece-me que se pode suspeitar, neste caso, de um fenómeno de abuso compa-
r~h'el àqueles muitas vezes denunciados nesta obra, quer se trate do presumido dever
de memória ou da era da comemoração: "Mas o simulacro, o ritual automático, a hi-
pocrisia, o cálculo ou a macaquice desempenharam muitas vezes seu papel, e vêm
parasitar essa cerimónia da culpabilidade". Na realidade, trata-se de um mesmo e
único complexo de abuso. Mas abuso de quê? Se se diz, ainda com Derrida, que há
"urna urgência universal da memória" e que "é preciso voltar-se para o passado", a
questão de uma inscrição dessa necessidade moral na história coloca-se inelutavcl-
mente. Dcrrida o admite quando pede, com toda a razão, que esse ato de memória, de
auto-acusação, de "arrependimento", de comparecimento, seja levado "ao mesmo
tempo além da instância política e do Estado-nação". A questão grave, então, é a de
saber se uma margem de além do jurídico e do político se deixa identificar no cerne
de um e outro regime, cm suma, se o simulacro pode macaquear gestos autênticos, e
até mesmo instituições legítimas. O fato de a noção de crime contra a humanidade
permanecer, a esse respeito, "no horizonte de toda a geopolítica do perdão", é prova-
\'clmentc a última provação desse vasto questionamento. De minha parte, reformula-
rei o problema nestes termos: se há o perdão, pelo menos no nível do hino - do hino
abraâmico, se assim se quiser - , existe perdão para nós? Ou então é preciso dizer,
com Derrida: "Cada \'ez que o perdão cst,í a serviço de uma finalidade, seja ela nobre
e espiritual (remição ou redenção, reconciliação, salvação), cada vez que ele tende a
restabelecer uma normalidade (social, nacional, política, psicológica) por um trabalho
do luto, por alguma terapia ou ecologia da memória, então o 'p erdão' não é puro -
nem seu conceito. O perdão não é, não deveria ser nem normal, nem normativo, nem
normalizante. Ele deveria permanecer cxcepcional e extraordinário, à prova do im-
possível: corno se interrompesse o fluxo comum da ternpornlidade histórica". É essa
"prova do impossí\'cl" que é preciso enfrentar agora.

~ 475 çí)>
/\ \ffM(lRI/\, ,\ HIST( ll{l/\, O LSQUL:CIMl: NTO

II. A odisséia do espírito de perdão:


a travessia das instituições

As situações classificadas globalmente sob o signo da instituição - do outro lon-


gínquo - têm em comum o fato de a falta ser colocada na regra social da inculpação.
Num âmbito institucional que o autoriza, alguém que acusa alguém, segundo regras,
transforma-o em inculpado. Uma conexão que ainda não foi nomeada se instaura, a
conexão entre o perdão e a punição. O axioma é este: nessa dimensão social, só se pode
perdoar quando se pode punir; e deve-se punir quando há infração a regras comuns. A
seqüência das conexões é rigorosa: onde há regra social, há possibilidade de infração;
onde há infração, há o punível, a punição visando a restaurar a lei ao negar simbólica
e efetivamente o dano cometido à custa de outrem, a vítima. Se o perdão fosse possí-
vel nesse nível, ele consistiria em retirar a sanção punitiva, em não punir quando se
pode e se deve punir. Isso é impossível diretamente, pois o perdão cria impunidade,
que é urna grande injustiça. Sob o signo da inculpação, o perdão não pode encontrar
frontalmente a falta, mas apenas marginalmente o culpado. O imperdoável d e direito
permanece. Para nos guiar no dédalo dos níveis institucionais, adoto uma grade de lei-
tura parecida com a proposta por Karl Jaspers em Dic Sclrnldfmgc - essa obra chocante
do imediato pós-guerra, traduzida em francês como La culpabilité allcmandc, mas a cuja
amplitude conceituai é preciso fazer jus, quase meio século depois.
Karl Jaspers 14 distingue quatro tipos de culpabilidade, todas referindo-se a atos e,
através deles, a pessoas submetidas ao julgamento penal. Esses atos correspondem
aos critérios seguintes: que categoria de falta? Perante que instância? Com que efeitos?
Dando direito a que tipo de justificação, de desculpação, de sanção? O filósofo põe em
primeiro lugar, como faremos aqui, a culpabilidade criminal: ela diz respeito a atos
que violam leis unívocas; a instância competente é o tribunal no palco do processo;
o efeito produzido é o castigo; a questão da legitimidade, pode-se acrescentar, deslo-
ca-se do plano do direito internacional em via de formação ao das opiniões públicas
educadas pelo dissc11sus segundo o esquema proposto acima quando da discussão a
respeito das relações entre o juiz e o historiador 1'. Dei xarei provisoriamente de lado os
três outros tipos de culpabilidade, a culpabilidade política na qual incorre o cidadão
por causa de seu pertencimento ao mesmo corpo político que os criminosos de Estado,
a culpabilidade moral ligada a todos os atos individuais suscetíveis d e terem contri-
buído efetivamente, de uma maneira ou d e outra, com os crimes de Estado, e enfim a
culpabilidade dita "metafísica" que é solidária do fato de ser homem numa tradição
trans-histórica do mal. Esse último tipo de culpabilidade é aquele que foi abordado no
início deste Epílogo.

14 Karl Jaspers, LJic Sc/ntfdf ragc (1946), Munique, R. Pipcr, 1979; trad. franc. de Jeanne He rsch, La C11/-
pa/Jilit!; ollc111011dc, prefacio de Pierre Vidal-Naquet, Paris, Éd . de M inuit, col. "Arg umcnts", 1990.
15 Cf. acima, terceira parte, rap. 1, seção Ili, "O historiador e o juiz".
O l'FRI) .\() DIIÍC II

1. A culpabilidade criminal e o imprescritível

O século XX lew1u ao primeiro plano a culpabilidade criminal quando dos crimes


que cabem na categoria do injustifiGí vel segundo Nabert. Alguns deles foram julgados
em Nurcmberg, Tóquio, Buenos Aires, Paris, Lyon e Bordea ux. Outros são ou serão
julgados em Haia perante o Tribunal Penal Internacional. Seu julgamento suscitou
uma lq~islação criminal especial d e direito internacional e d e direito interno que d e-
fine os crimes contra a humanidade, distintos dos crimes de guerra, e, dentre eles, o
crime de genocídio. É pela questão da imprescritibilidade que essa disposição legal
toca em nosso problema d o perd ão.
A questão do imprescritível coloca-se porque a prescrição existe de direito pa ra
todos os delitos e crimes sem exceção, sendo que o prazo d e prescrição varia segundo
a natureza dos delitos e dos crimes. Trata-se, por um lado, de uma legislação de direi-
to ci\'il que se re\'este de urna dupla forma, aquisitiva e liberatória; sob a primeira
forma, ela estatui que, passado um dado prazo, urna pretensão à propriedade de coi-
sas não pode ser oposta àquele que a d etém de foto; assim, ela se torna um meio de
adquirir de modo d efinitivo a propriedade de uma coisa; sob a segunda forma, ela li-
bera de urna obrigação, de uma dí\'ida, exting uindo-a. Por outro lado, a prescrição é
uma disposição de direito penal: ela consiste numa extinção da ação em justiça; ela
proíbe que o solicitante, passado um prazo, acione o tribunal com petente; uma \'eZ o
tribunal acionado, ela impede toda continuação de ações (com exceção das infraçôes
d e deserção e de insubmissão d efinidas pelo Código de jus tiça militar). Em tod as as
suas formas, a prescrição é uma instituição surpreendente, que fundamenta sua auto-
ridade, a duras penas, no efeito presumido do tempo sobre obrigações que, suposta-
mente, persistem no tempo. Diferentemente da anistia que, como foi mostrado no final
do capítulo sobre o esquecimento 1'', tende a apagar as marcas psíquicas ou sociais,
corno se nada houvesse ocorrido, a prescrição consiste numa interdição de considera r
as conseqüências penais da ação cometida, isto é, o direito e até mes mo a obrigação d e
processar penalmen te. Se a prescrição lida com o tempo, se ela é "um efeito d o tem po"
como d eclara o Código C i\·il 17, é da irrc\'ersibilidade que se trata: é a recusa, depois de
um lapso d e anos definido a rbitrariamente, de retroceder nova mente no tempo até o
ato e seus rastros ilegais ou irregulares. Os ras tros não são apagados: é o caminho até

!h Cf. acima, terceira p zi r te, ca p. :1, pp. "t59--!h2 .


17 O a rtigo 2219 do Cúdigo Ci, ·il enuncia cruamente o arg umentu do l'Ít.:'ito do tempo: "A prescr iç,10
é um meio de adq u irir o u de se liberar por certo lzipso de te m po, e sob as condiÇ()l'S determina -
d,1!> p elzi le i." Por certo lapso de tem po? G ra<;as a o tem po, talu·z <1 lgt11..' m te nh a sido espoli ado
num dado momento e (1utro ani s ticido d e sua , ·iol(,ncia or ig in a l. C . Bautry-Laca ntincril' e· i\ lhl'rt
Tissit:.'r, cm seu Tmífr théoriquc ct pmtiquc dt' Vroit cic1il. De ln prc~aiplit>11, l'c1ris, Sircy, 192-l, cita m
Bo urdalouc num de seus Scn11011j : "Co nto com , ossa ex pe riência. l'crcor rc r as c,1sas e ,1s família s
dist ing uid as pela r iq ucz,1 e pc l,1 ah und,i nria dos ben s, bens d,1qm•l,1s que mais se , ·a nglllr ic1m
de serem bonrad ,mwnte es t,1be lec id as, aq uL'l,1 s L'm que, por s in al, s urgl'm probidade l' rel igiân.
SL· re monta rdes atl' a fonte de onde pnAe ill essa op ulf, nc ia, apl'nas encontrareis qul' c m tlldd s se
descobrem, dcsdl' a urigL'm l! no princíp io, cpisas qul' fazem estrenwcer" (p. 25).
/\ MEMÓ RIA, A HI ST ( lRIA , O ES(.)U EC IM F.NTO

eles que é proibido, o que a palavra "extinção" significa quando aplicada às dívidas e
ao direito de ação pena l. Como o tempo sozinho poderia - o que já é um modo d e
dizer - operar a prescrição sem um consentimento tácito para com a inação da socie-
d ad e? Sua justificação é puramente utilitária. É de utilid ade pública pôr um termo aos
processos eventuais suscitad os pela aquisição das coisas, pela cobrança das dívidas e
pela ação pública dirigida contra os contraventores da regra social. A prescrição aqui-
sitiva vem consolidar p ropried ad es; a prescrição liberatória protege de um endivi-
da mento indefinido. A prescrição da ação pública penal reforça o caráter conclusivo,
" definitivo", das sentenças penais em geral, que, supostamente, põem um termo ao
estad o de incerteza jurídica que dá lugar a processos. Para terminar os processos é
preciso não reabri-los ou simplesmente nem abri-los. O conceito d e extinção - extin-
ção d a dívida em direito civil, extinção do direito de processar em direito criminal - é,
sob esse aspecto, significati vo. Ele abarca ao mesmo tempo um fenómeno de passivi-
dad e, de inércia, d e negligência, d e inação social e um gesto social arbitrário que auto-
riza a considerar a instituição da prescrição como uma criação do direito positivo. O
pap el d e regulação social aqui exercido é heterogéneo ao p erdão. A prescrição tem
um papel de preserv ação da ordem social que se inscreve num tempo longo. Mesm o
que o perdão tenha um papel social importante, como será mostrado mais adiante
junto com a promessa, ele tem urna natureza e urna origem inscritas n a função social,
mesmo a mais marcada pela preocupação com a paz comum .
É sobre esse pano de fund o que se deve recolocar a legislação que pronuncia a
imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e, entre eles, dos crimes de geno-
cídio18. A imprescritibilidade significa que não cabe invocar o princípio d e prescrição.

18 Os crimes contra a huma nidad e foram d efinidos pelas Cartas dos tribunais militares internacio-
nais d e Nurembe rg e em seguida de Tóquio d e 8 de agosto d e 1945 e 12 de ja neiro de 1946. Esses
textos dis ting uem: os a tos inumanos come tidos co ntra toda população civil antes de e durante
a g ue rra, entre os qua is o assassina to, o extermínio, a redução à escrav idão e a dep ortação; as
perseg uições p or moti vos pol íticos, raciais ou relig iosos. As Nações Unidas prec isaram a noção
pela Convenção sobre o genocídio de 10 de d ezem bro de 1948. A Convenção d e 26 de novembro
de 1%8 sobre a im prescritibilidade e a resolução de 13 d e d eze mbro de 1973 que pregavam u m a
cooperação internaciona l pa ra a perseguição dos crim inosos coloca ra m o selo d o direito inter-
nac iona l sobre a noção. Para le la mente, a noção d e crime contra a h u man idade foi inclu ída no
Dire ito interno fran cês pela lei d e 26 d e dezem bro de 1964, que "constata" a imprescritibilid ade
dos cr imes contra a huma nidade e do genocídio por referência à resolução das Nações Unid as de
1946: esses crimes são d ecl arad os "imprescritíveis por sua na tureza". A ju risprudê ncia, exp ressa
por uma série d e d ecisões da Corte d e cassação suscitad as pelos processos impetrados e m nome
dessa acusação (casos Touv ie r e Barbic), levo u a considera r como crimes imprescritíveis "os atos
desumanos e as pe rseg uições q ue, cm nome de um Estad o q ue prat ica uma política de hegemonia
ideológ ica, fora m come tidos de modo sis tem ático, não some nte contra pessoas c m razão d e seu
per tencime nto a uma coletiv idade rac ial ou religi osa, como ta mbém contra os ad versá rios d essa
política, ind e pendentemente d a forma de s ua oposição". Um p rime iro elemento comum con cerne
à existência d e um pla no concertado. Segundo ele me nto comu m, as vítimas são p esso as e n u nca
bens, d iferenteme nte dos crimes de g uerra. A d efi nição do crime contra a hu man id ade está do-
ravante fi xad a pelos a rtigos 211 -1 e segu intes d o novo Cód igo Penal d e 1994. O genocíd io é nele
d efinido como um cr ime contra a huma nidade que tende à destruição de um grupo, que pratica
atentad o volu ntár io à vida, à integridad e física ou p síquica, ou q ue submete os me mbros d o g rupo
d iscriminado "a condições d e ex istê ncia d e natureza a aca rre ta r a destru ição tota l ou pa rcial do
ll l 'Ll{D,\O l)IFÍCII.

Ela suspende um princípio que consiste, por sua vez, cm criar obstáculo ao exercício
da ação pública. Ao suprimir os prazos de ação processual, o princípio de imprescri-
tibilidade autoriza a processa r indefinidamente os autores desses crimes imensos. Nes-
se sentido, ele restitui ao direito sua força de persistir apesar dos obstáculos opostos ao
desdobramento dos efeitos do direito. A justificação dessa suspensão de uma regra ela
mesma suspensiva apela para vários argumentos. É fundamentalmente a gravidade
extrema dos crimes que justifica a perseguição dos criminosos sem limite no tempo.
Diante do argumento falacioso do desgaste da vindita pública pelo efeito mecânico
do tempo, a presunção é que a reprovação dos crimes considerados n ão conhece li-
mite no tempo. A esse argumento acrescenta-se a consideração da perversidade d e
planos concertados, visada pela definição restriti va do crime contra a humanidade no
direito interno francês. Essa circunstância justifica um zelo particular em perseguir os
criminosos, cm ra zão da impossibilidade de julgar rapidamente, pois os culpados são
peritos em se subtrair à justiça pela fuga, ou pela camuflagem d e identidade. Diante
da provação desses ardis, são necessárias provas que resistam ao desgaste do tempo
e uma fala que tampouco deve conhecer prazo de prescrição. Isso posto, o que acon-
tece com as relações entre o imprescritível e o imperdoável? A meu ver, seria um erro
confundir as duas noções: os crimes contra a humanidade e o crime d e genocíd io só
podem ser considerados (inadequadamente) imperdoáveis porque a questão não se
coloca. Foi s ugerido acima: é preciso que justiça seja feita. Não se poderia substituir a
justiça pela graça. Perdoar significaria ratificar a impunidade, o que seria uma grande
injustiça cometida à custa da lei e, mais ainda, das vítimas. A confusão, contudo, pôde
ser encorajada pelo fato de a enormidade dos crimes romper com o princípio de pro-
porção que rege as relações entre e escala dos delitos ou dos crimes e a dos casti gos.
Não há castigo apropriado para um crime desproporcional. Nesse sentido, tais crimes
constituem um imperdoável d e fato' y· Além disso, a confusão pôde ser encorajada

grupo, inclusive aborto, esterili zação, se paração d os adultos L'm estado de procriar, trans ierên-
cias forçada s de filhos". Todos L'sses a tos criminosos con sagram a r up tur,1 da iguald ad e entre
os homens afirmada pelos arti gos primL'irn e terceiro da Ül'claração Internacional d ns Di rL'itos
Humanos.
19 É assim, ac redito, que se pod em compreender as variações de Vlad imir Janké lév itch snbrc essl'
assunto. Num p rimeiro ensaio, publicado em 195ó (I'aris, Éd. du Set1il, 1986) com o título
L'l111prc~criptiblc, co ntemporâneo das polt:•m iras rclMivas à prescrição dos cr imes h itlerianos, ele
argumentara, segundo confessou, contra o perdão. Mas era rl'almente essa a qu estão 7 Po r out ro
lado, esse ensaio e ra, pelo tom, uma imprecaçãti mai s que uma d efesa , onde a parte contr,íria
n ão tinha a palavra. Ele estm·a certo num ponto: "Todos os cr itér ios jurídicos gera lmente aplid-
n'is aos crimes de direito como em matéria de presc r içJo são aqui p(1stos cm xeq ue" (op. cit., p. 21):
criml' " intl'rnac io na l", crime contra "a ess.::•nria humana", crime con tra "n direito de e xisti r", tan-
tos crimes desmesurados; "esqm!cer esses crimt'S gigantescos contra a huma nidade seria um nn\'li
crimt' contra o gênno hu mano". É isso que L' ll chamo de imperdo,h ·el de fato . O estudo d l• 1967
sobre Le I'11rdo11 (Paris, J\ubie r) trilha outra pi s ta, 11<1 qual o tempo do pcrdc'i o é ide ntificado com o
tempo do esquec imento. É então do desgaste do tempo que SL' trata (" l:usure", op. cil. , p. 30). Sq;ue
u ma terceira abordagem, cm 1971, com o título interrogativo l't1rd<11111cr J (Éd. d u l'avi lhin, reto-
m ado in L'imprescripti ble, op. cit .). Nele se lê a fomosa exc lamaç.'io: "O perdfüi 1 Mas eles j.í nos
pediram perdão?" (op. cit., p. 50.) "J\pen<1s o d csampan1 e a derreliç,io do culpad o d ,1 riam um st'n-

•} 479 °
/\ MHvl ()Rli\, A IIISHlRI/\, O J: S(JL; F<..IMF N Hl

pelo conceito vizinho de expiação. Fala-se de bom grado de crime inexpiável. Mas o
que seria a expiação, senão uma absolvição obtida pelo próprio castigo, este tendo de
algum modo esgotado a taça de maldade? Nesse sentido, a expiação teria por efeito a
extinção dos processos, como o exige a prescrição. Então, chamar de inexpiáveis d ados
crimes significa declará-los imperdrn-íveis. M as essa problemática é inapropriada ao
direi to crimina 1.
isso quer dizer que o espírito d e perdão não pode dar nenhum sinal de si mes-
mo no plano d a culpabilidade criminal? N ão acredito. Pôde-se notar que esse tipo
de culpabilidade continuou sendo medida em função das infrações a leis unívocas.
São os crimes que são declarados imprescritívcis. Mas são os indivíduos que são cas-
tigados. Contanto que culpado signifique punível, a culpabilidade remonta dos atos
a seus autores. Ora, algo se deve ao culpado. Pode-se chamar isso de consideração,
esse contrário do desprezo. Só se compreende o alca nce dessa disposição de espíri-
to se se abandonar a região especial d os crimes extremos para retornar aos crimes
de direito comum. Seus autores têm direito à consideração porque continuam sendo
h omens como seus juízes; nessa condição, são pres umidos inocentes até sua conde-
n ação; além disso, eles são chamados a comparecer com suas vítimas no âmbito da
mesma encenação d o processo; eles também são autorizados a ser ouvidos e a se de-
fender. Finalmente, eles sofrem a pena que, mesm o reduzida à multa e à privação de
liberdade, continua a ser um sofrimento somado ao sofrimento, sobretudo no caso
das penas longas. Mas a consideração não está limitada ao âmbito do processo, nem,
tampouco, ao da execução da pena. Ela é fad ada a irrigar a tota lidade das operações
implicadas no tratamento da criminalidade. Ela concerne obviamente às operações de
polícia. Mas, d e modo mais significa tivo, a consideração concerne ao espírito no qual
os problemas criminais deveriam ser abordados. Se for verdade que a função do pro-
cesso é a de substituir a violência pelo discurso, o assassinato pela d iscussão, é fato que
nem todo o mundo tem o mesmo acesso às armas da discussão. Existem excluídos da
palavra que, arras tados perante os tribunais, cm particular no caso d e julgamento de
fl agra nte delito, podem sentir o comparecimento como uma expressão suplementar
d o que experimenta m diariamente como v iolência institucional. Então, é o julgam ento
proferido de fora pela moral sobre o direito que justifica o adágio: summ11111 jus, sunmzn
injuria. Esse julgamento proferido pela moral sobre a justiça prolonga-se em julgamen-
to proferido de dentro do espaço judiciário, na forma de injunções dirigidas à justiça,
que d ela exigem que seja sempre mais justa, isto é, ao mesmo tempo mais universal
e mais sin gular, ma is preocupada com as condições con cretas da igualdade perante a
lei e mais aten ta à identidade na rra ti va dos acusados. É tudo isso que a consideração
d as pessoas implica.

tido e uma razão de ser ao perdão" (ibid .). Es tamos aqu i num a nutra prob lem ática, na qual, de fo to,
certa reciprocidade seria restabelecida pelo ato de pedir perd ão. Ja nké lév itch está mesmo a par da
contradição aparente•: "Existe entre o absoluto da lei de amor e o absolu to da liberdade ma lvada
u m rasgo que não pod e ser inteiramente d escosido. Não buscamos reconciliar a irracional idade
do mal com a on ipotência do a mor. O perd ,io é forte como o mal, mas o mal é forte como o perdão"
(Adve rtê ncia, pp. 14-1 5).
ll l'FR ll .\\l ll l l ÍC IJ.

O fato de o horror de crimes imensos impedir que se estend a essa consideração a


seus autores continua a ser a marca de nossa incapacidade de amar absolutamente. É
o sentido da última confissão d e Jankélé\'itch: "O perd ão é forte como o mal , mas o
mal é forte como o p erd ão". Ela coincide com a de Freud, que termina numa hesitação
semelhante sua enxação da g igantomaquia em que Eros e Tàna tos se enfrentam.

2. A culpabilidade política

Cabe distinguir, com Karl Jasp ers, a culpabilidade p olítica dos cidadãos, assim
como d os homens políticos, da resp onsabi lidade criminal qu e pode se r julgada pelos
tribunais e, portanto, dos procedimentos penais que regem o c urso dos processos.
Ela resulta do pcrtencimento d e fato dos cidadãos ao corpo político cm nome do qual
os crimes foram cometidos. Nesse sentido, ela pode ser dita coletiva, com a condição
de n ão ser criminalizada: a noção de pc)\'o criminoso de,·e ser expressamente rejeita-
d a . Mas esse tipo de culpabilidade e ngaja os membros d a comunidade política inde-
pende ntemente d e seus atos indi\'iduais ou de seu grau d e aquiescência à políti ca do
Estado. Quem usufruiu os benefícios da ordem pública d e,,e, de certo modo, respon-
der pelos males criados p elo Estado d o qual foz parte . Diante de q ue m se exerce esse
tipo de responsabil ida de (Haft1111g )? Em 19-J.7, Karl Jas pers respondia : dia nte do \'Cn-
cedor - "Ele arriscou a vida e o desfecho lhe foi favorá\'cl " (La C11lpabilitL; allc111a11dc,
p. 56). Hoje cm dia, diríamos: diante das autoridades representati\'as dos interesses
e dos direitos das \'Ítimas e di a nte das no,·as autoridades de um Estado democrático.
Mas trata-se sempre d e u1na re lação de poder, d e do m inação, ne m que seja a d a
maioria sobre a minoria. Quanto aos efeitos, eles se di s tribue m entre as sançôcs pu-
niti\'a s, profe ridas por cortes de jus tiça e m nome de uma política de depuração, e as
obrigações de repara ção a longo pra zo, assumidas pelo Estado oriundo da nm·a rela-
çã o de forças. Mas, mais importa nte que a punição - e n,es mo que a reparação -
continua a ser a palana d e jus tiça que estabelece public,1me nte as responsabil idades
d e cada um dos protagonistas e designa os luga res respccti,·os do agressor e da ,·íti-
ma numa relação de justa distância.
Os limites dessa culpabilidade s,io certos: relações de forças permanecem engaja-
das; sob esse aspccto, é preciso e\'itar erigir a his tória da força em tribunal mundiaL
Mas, nesses limites, conflitos que interessam a problemê.Íti ca do perdão têm seu luga r.
Ainda nos encontramos sob o regime d,, culpabilidade, d a inculpação, na medida em
que p e rmanece mos no campo da rcpnwação e da condenação. Podem , então, surgir
estratégias de desculpação que cria m obst,ículo ao progresso do espírito de perdão cm
direção ao si (sc~t) culpad o. A d efes,, sempre tem argumentos: podem-se opor fatos
aos fatos; apelar pa ra os d ireitos das gentes contra os d ireitos nacio nais; denunciar os
desígnios interessados dos juízes, ou até mesmo acusá-los d e te rem contribuído pa ra
o flagelo (!11 q11oq11c!); ou ainda tentar afogar as peripécias loca is na vasta história dos
acontecimentos do mundo. Cabe e ntão il opinié'\o esclarecid a sempre trazer de ,,oJta o
exa me d e consciê'ncia do gra nde palco ao pequeno palco do Estado em que foi alimcn-
/\ MFMÚRI/\, /\ HISTélRIA, O FSQUFCIMFNTO

tado. A esse respeito, uma forma honrosa de desculpação deve ser denunciada, aquela
invocada pelo cidadão que se considera como não envolvido na vida da cidade: " A éti-
ca política, lembra Karl Jaspers, fundamenta-se no princípio de uma vida do Estado da
qual todos participam, por sua consciência, seu saber, suas opiniões e suas vontades"
(op. cit., p. 49). Em contrapartida, a consideração devida ao réu toma, no plano político,
a forma da moderação no exercício do poder, da autolimitação no uso da violência, e
até mesmo da clemência para com os vencidos: parccrc victis! A clemência, a magnani-
midade, essa sombra do perdão ...

3. A culpabilidade moral

Com a responsabilidade moral, afastamo-nos um grau da estrutura do processo


e nos aproximamos do foco da culpabilidade, a vontade má. Trata-se da massa dos
atos individuais, pequenos ou grandes, que contribuíram, por sua aquiescência tá-
cita ou expressa, para a culpabilidade criminal dos políticos e para a culpabilidade
política dos membros do corpo político. Aqui termina a responsabilidade coletiva
de natureza política e começa a responsabilidade pessoal: "A instância competente
é a consciência individual, é a comunicação com o amigo e o próximo, com o irmão
humano capaz de amar e de se interessar por minha alma" (Karl Jaspers, La Culpabi-
lité allcmande, pp. 46-47). Esboça-se, aqui, a transição do regime da acusação para o
da troca entre demanda e perdão, ao qual chegaremos num instante. Mas é também
nesse nível que as estratégias de desculpação se desenfreiam: elas encontram um
reforço nas argúcias de quem quer sempre ter razão. Em parte alguma a honestidade
intelectual e a vontade de se ver de modo transparente são mais requeridas do que
nesse plano das motivações complexas. Reencontra-se, aqui, a vontade de não saber,
o refúgio na cegueira e as táticas do esquecimento semipassivo, semi-ativo evoca-
das acima. Mas seria preciso evocar também os excessos inversos da auto-acusação
ostensiva e desavergonhada, o sacrifício do orgulho pessoal que pode se converter
em agressividade contra os compatriotas atingidos pelo mutismo20 . Pensa-se na en-
cenação verbal do " juiz penitente" na narrativa A queda de Camus, em que os dois
papéis do acusador e do acusado são astuciosamente combinados, sem a mediação

20 Kodalle, que não é suspeito de complacênciil em relação à desculpação barata, não se mostra me-
nos severo contra o "hipermoralismo arrogante" (op. cit., p. 36) que lhe serve de contraponto.
Confrontado com a mesma questão, Max Weber, depois da Primeira Guerra Mundial, denunciava ,
entre seus concidadãos, os vencidos que se flagelavam e se entregavam à caça ao culpado: "Seri a
melhor eles adotilrem umil atitude viril e digna dizendo ao inimigo: 'Nós perdemos a guerra e
vocês a ganharam. Esqueçamos o passado e discutamos agora conseqi.iências que se devem tirar
da situação nova! ... ] considerando a responsabilidade diante do futuro que pesa em primeiro
lugar sobre o vencedor'"(Ll' Sav1111t ct /e Folitiqul', Paris, Pl<m, 1959; reed., 10/ 18, col. "Bibliotheques",
1996, p. 201). Karl Jaspers, vinte e cinco anos mais tarde, pede muito mais contrição por parte de
seus compatriotas.
() 1'1'1\1) ..\() Ull'ÍCII

de um terceiro imparcial e indulgente 21 . A situação do imediato pós-guerra não de-


veria contudo focalizar a atenção unicamente na responsabilidade moral engajada
na relação dos indivíduos com a força pública do Estado naciona l e os problemas
internos colocados pelos totalitarismos. As guerras de libertação, as guerras colo-
niais e pós-coloniais, e mais ainda os confli tos e as guerras suscitados pelas rei\·in-
dicações d e minorias étnicas, culturais, religiosas projetaram ao primeiro plano uma
pergunta inquietante que Klaus M. Kodalle coloca no início de s uas reflexões sobre a
dimensão pública do perdão: os povos são capazes de perdoar? A pergunta dirige-se
obvia mente aos indivíduos tomados um a um; por isso trata-se mesmo de respon-
sabilidade moral a respeito de comportamentos precisos; mas a motivação dos atos
é substituída pela memória coletiva na escala de comunidades históricas carregadas
d e história. Sob esse aspecto, esses conflitos disseminados pelo plane ta inteiro com-
partilham com aqueles evocados pelos grandes processos criminais do século XX a
mesma estrutura de imbricação entre o pri\'ado e o público. É nesse último nível que
se coloca a pergunta de Kodalle. A resposta é infelizmente nega tiva. Disso se dev e
concl uir que os discursos sobre "a reconcilia ção dos povos permanecem um voto
piedoso". A coletividade não tem consciência moral; assim confrontados com a cul-
pabilidad e "de fora", os povos recaem no repisamento dos \'elhos ódios, das antigas
humilhações. O pensamento político esbarra aqui num fenômeno maior, a saber, a
irredu tibilidade da relação amigo-inimigo, sobre a qual Carl Schrnitt construiu sua
filosofia política, às relações de inimizade entre indivíduos. Essa cons tatação feita a
contragosto é particularmente embaraçosa para urna concep ção da memória, como
aquela proposta nesta obra, segundo a qual h á continuidade e relação mútu a entre
a memória individual e a memória coletiva, esta erigida cm memória histórica no
sentido de Halbwachs. O amor e o ódio funcionam de outro modo, ao que parece, na
esca la coletiva da memória.
Confrontado com esse balanço sombrio, Kodalle propôe como remédio para me-
mórias doe ntias a idéia da normalidade nas relações entre vizinhos inimigos; ele con-
cebe a normalidade como uma espécie d e i11cog11ito do perdão (/11kog11ito der Vcr:cil11lllg)
(Vcr::cilrnng nach Wn1dc:citc11? , p . 14). Não, d iz ele, a fraternização, mas a correção nas
relações trocadas. E ele relaciona essa idéia com a de uma cultura da consideraçã o (Na -
clz::;ic/1tlichkcít) em escala cívica e cosmopolita. Já e ncontra mos essa noção no plano da
culpabilidade criminal. Ela pôde ser es tendida ao plano da responsabilidade política
na forma da moderação, da mansuetude, da clemência. Ela pod e, finalmente, seres-
tendida ao plano da responsabilidade moral confrontada com os "ódios hereditários"
na forma de uma vontade tenaz de compreender esses outros dos quais a história
fez inimigos. Ela implica a recusa, aplicada à própria pessoa , da desculpação barata
para com o estrangeiro, inimigo ou ex-inimigo. Nesse nível, a benevolência passa cm
particular por uma atenção a acontecime ntos fundadores que não são os meus e às

21 Cf. P. Cifford , "Soc rates in Amsterdam: tht: uses nf irnny in 'L,1 chutl'' ", Edimburg(), T/1c Modem
L,111s11asc /fr,,it',1', T',f:,, 1978, pp. 499-512.
/\ Ml :M()Rl 1\, A l!I ST()R IA , O ES(JUECIML: NH )

narrativas de vida que são as da outra parte; cabe aqui repetir o adágio: "aprender a
narrar d e outro modo". É no âmbito dessa cultura da consideração aplicada às relações
de política externa que passam a fazer sentido gestos incapazes de se transformar em
instituição, como a gcnuflexão do chanceler Brandt em Varsóvia. Seu carMer excepcio-
nal importa. É graças a uma alquimia secreta que conseguem agir sobre as ins tituições,
ao suscitarem uma "disposição à consideração", segundo a expressão de Kodalle. Ora,
ocorre que esses gestos são também pedidos de perdão. Nessa condição, eles compro-
vam seu pertencimcnto a dois regimes de pensamento, o da inculpação, que é também
o do imperdoável, e o da troca entre uma d emanda e uma oferta, cm que o imper-
doável começa a se esfarelar. É em direção a esse novo regime que se deve ir agora.

III. A odisséia do espírito de perdão:


a escala da troca

Avancemos um passo para fora do círculo da acusação e da punição, círculo dentro


do qual só há um lugar marginal para o perdão. Esse passo é suscitado por uma per-
gunta como a que Jankélévitch colocava: "Pediram-nos perdão?" A pergunta pressu-
põe que, se o agressor tivesse pedido perdão, perdoá-lo teria sido urna questão cabível.
Ora, essa suposição em si se opõe frontalmente à caracterização maior do perdão, sua
incondicionalidade. Se há o perdão, dissemos com Derrida, ele deve poder ser cem-
cedido independentemente de pedido. Entretanto acreditamos, numa crença prMica,
que existe algo corno uma correlação entre o perdão pedido e o perdão concedido. Essa
crença transporta a falta do regime unilateral da inculpação e do castigo para o regime
da troca. Os gestos de homens de Estado pedindo perdão a suas vítimas chamam a
atenção para a força do pedido de perdão em certas condições políticas excepcionais.
Minha tese, aqui, é que se o ingresso do perdão no círculo da troca marca a tomada
em conta da relação bilateral entre a demanda e a oferta do perdão, o caráter vertical
da relação entre altura e profundidade, en tre incondicionalidade e condicionalidade
permanece não reconhecido. Isso é comprovado pelos dilemas próprios a essa cor-
relação, de resto notável. Como nota Olivier Abel no posfácio que escreve para uma
investigação sobre o perdão, apenas se pode oferecer, pelo menos nesse estágio, uma
"geografia dos dilemas" 22 . Esses dilemas se enxertam na confrontação de dois atos
de discursos, o do culpado que enuncia a falta cometida, à custa de um tremendo
trabalho de formulação do dano, d e uma penosa composição de intriga, e o da vítima
supostamente ca paz de pronunciar a palavra libertadora d e perdão. Esta ilustraria
perfeitamente a força de um ato de discurso que faz o que diz: "Eu te perdôo". Os
dilemas referem-se precisamente às condições dessa troca de palavras e se oferecem

22 Olivier Abel, 'Tabll's du pardon. Géographie des dilemmes et parcours bibliographique", in L,, Par-
do11 . Hri:;;er ln deite cf /'011/ili, l'.1ris, Aut rement, série " Morales", 1992, pp. 208-236.
O l'FRLJ.\n Ll l f-'ÍCI I

como uma série de interrogações: "Pode-se perdoar àquele que nJo confessa sua fal -
ta?" "É preciso que quem enuncia o perdão tenha sido o ofendido?" "Pode-se perdoar
a si mesmo?" 21 Mesmo que tal autor decida num sentido e não no outrn - e como o
filósofo não faria isso se, pelo menos, sua tarefa não se limita a registrar os dilemas? -,
sempre resta um lugar para a objeçZio.
Diante do primeiro dilema, parece-me que esperar a confissão do culpado é res-
peitar seu orgulho - assegurar-lhe essa consideração de que se falava acima. O se-
gundo dilema é ma is perturbador: o círcu lo das vítimas não pá ra de crescer, em ra-
zão de relações de filiação, da existência de \'Ínculos cornunit,irios, d,1 proximidad e
cultural, e isso até um limite que cabl' à sabedoria política determinar, nem que seja
para se precaver contra os excessos da tendência contemporânea à \'itirnização. É mais
a contrapartida da pergunta colocada q ue é embaraçosa: apenas o ofensor primeiro
está habilitado a ped ir perdão? As cenas públicas de penitência e de contrição e\·oca-
das acima suscitam, além da suspeita de banalização e d e teatralização, uma questão
de legitimidade: com que direito um homem político ern função, ou o líder atual de
urna comunidade re ligiosa podem pedir perdão a vítimas de quen, , de resto, eles não
são o agressor pessoa l e as quais, por sua \'eZ, não sofreram pessoa lmente o dano em
questão? Surge urna questão de represcntati\·ídade no tempo e no espaço ao longo d a
linha de continuidade de uma tradição ininterrupta. O paradoxo é que instituições
não têm consciência moral e são seus representantes que, ao falarem em seu nome,
lhes confere m algo como um nome próprio e, com ele, uma culpabilid ade histórica.
Certos membros das comunidades en\'oh·idas podem contudo não se sentir engajados
pessoalmente por uma solidariedade cultural que detém urna força que não a d a soli-
dariedade política da qual resulta a responsabilidade colcti\·a enxada mais acimc1 2-i.
Quanto ao terceiro dilema, ele só reccber,i uma resposta completa na ültima etapa
de nossa odisséia. A hipótese de um perdão exercido d e si para si m esmo é duplamen-
te problemática; d e um lado, a dualidade d os papéis de ag ressor e de vítima resiste

23 /11id, pp. 211-2 16.


: A Cf. Walter Sc h wt>idler, "Vl' í ZL'i hung und gl'sc hic htliclw ldL•ntit;it, Libe r dil' C ren z1._•n der knlll•kti-
1

' en En tsc huldi gung " [O Pl'rdiio e ,1 identidadt• hi stú ric.1, ak•m d a s fwnte ir,1s d a desculp,1çi'lo co le-
t i\c1], S11/:::/111rga /ahr/111,h f iir l'ili/o:;ophic, XLI V/ XLV, l lJlJ9/ 2lHHl.
O autur l' \'llC.1 d esc ulpa s pi."1bli cas de honwn s políticos n,1 A ml' ric,1, n a i\ustr,ília, no J,1pii,), ,is sirn
como ,1 corni ssi'lo " Verdadl' l' Rcconcili,1çiio " d ,i África do S ul, ()li ,1ind ,1 ll pL·d ido de perd,·h1 fl'itn
por bispos rnll'1licos ou() próprio papa. ~wlas C ru za d <1s o u a lnqui siç,io; o qu e st• qul's tion,1 aq ui é
urna forma d l' res pons,1bilid,1dl..' mor<1l qul' implica a l'Xistt'n cia d e uma "memória nwral " d e d i-
ml'nsfüi comunit,hia, em o utras p a la,· ras, P rl'con 11L'ci nw nto de uma dinwns.'10 moral da nicn1tíria
col e ti,·a, dimen são nwr,1 1 que ser i,1 c1 fontl' dL' um ,1 " identid ,1dl' hi s túrica " p,1rn uma comunid ade
humana. A nwmC1r ia, di z o ,1 utor, também é ,1 lgo d e público dL'pL·ndL·nte d o juí/() mora l. EstL'
também admite a L'Xistê nc i<1 dt• dile m,1s mor<1is d t• pL·ndt:.·ntl's d,1 proble mMica da JICrpit'.rin: ,1 tran s-
fl•rênc ia da c u lpabi Iidade n,1 esfera da sol id ,iriedade hu ma n,1 h ipe rpo l ít ic;i nàn dt•\'l', com L'ÍL·ito,
a lime ntar <1 s ll'nt ,1 ti,·,b dl' dt.•sculpaçi'lo do indidduo no plann ck1 qul', ,1c im,1, foi c h,1 m c1do dl'
c ulp,1bilidadL· mor,11. De fato, a cksculpaç.'H1 pode SL' r m ,1is pérfida qul' ,i incu lp,H;i'lo, que, por Sl'U
lad o, pode ser l'xorbitantc. A solid ar it'dad e ,1q ui e n n1l\' ida in sCl'l'H'r-SL' -i a, seg und o Sdm·L·idkr,
!lL'SSL'S de\'l' res quL' K,1nt ch,1ma,·,1 d l' " im pl'rfl'itns", l' q ul' seri,1 ml'lho r ,·inc ul ar ao ord(l ,1111,H·i,
segund o Sa n h) Ag ostinh,1.
A MEM()RIA, A lllST()RIA, O 1:SQUFCIMFNIO

a uma inteira interiorização: somente outro pode perdoar, a vítima; de outro lado, e
essa ressalva é decisiva, a diferença de altura entre o perdão e a confissão da falta não
é mais reconhecida numa relação cuja estrutura vertical é projetada numa correlação
horizontal.
É esse desconhecimento que, em minha opinião, onera a identificação apressada
do perdão com uma troca definida apenas pela reciprocidade.

1. A economia do dom

Para tirar a limpo essa ambigüidade, proponho relacionar a estrutura particular


dos dilemas do perdão com as dificuldades suscitadas pela extensão de um mo-
delo de troca vinculado ao conceito de dom à problemática do perdão. A etimolo-
gia e a semântica de numerosas línguas encorajam essa comparação: dom-perdão,
gift-forgiving, dono-perdono, Geben-Vergeben .. . Ora, a idéia de dom tem suas próprias
dificuldades, que podem ser decompostas em dois momentos. Importa primeiro re-
conquistar a dimensão recíproca do dom, contra sua primeira caracterização como
unilateral. Trata-se em seguida de restituir, no cerne da relação de troca, a diferença
de altitude que diferencia o perdão do dom segundo o espírito da troca.
A respeito da primeira confrontação, é preciso confessar que a tese do dom sem
troca tem muita força e atrai um excesso de atenção: dar, di z o Petit Robert, é "abando-
nar a alguém numa intenção liberal, ou sem nada receber em troca, uma coisa que se
possui ou de que se usufrui". A ênfase recai mesmo, aqui, na ausência de reciprocida-
de. A assimetria entre aquele que dá e aquele que recebe a parece inteira. À primeira
vista, isso não está errado. Dar mais do que se deve constitui de fato uma figura para-
lela ao dar sem nada receber em troca. Mas, por outro lado, outra lógica empurra o
dom para o restabelecimento da equivalência num outro nível que não aquele com o
qual a lógica de superabundância rompe 25 . Sob esse aspecto, o livro clássico de Marcel
Mauss sobre o dom, forma arcaica da troca, deve nos alertar 2h. Mauss não opõe o dom
à troca, mas à forma comercial da troca, ao cálculo, ao interesse: "Um presente dado
espera sempre um presente em troca", lê-se num velho poema escandinavo. A contra~
partida do dom, de fato, não é receber, mas dar em troca, retribuir. O que o sociólogo
explora, é um traço " profundo mas não isolado: o caráter voluntário, por assim dizer,
aparentemente livre e gratuito e, entretanto, forçado e interessado dessas prestações"
(Essai sur le don , p. 147). A pergunta é esta: "Que força existe na coisa que se d á que faz

25 Em /1111011r e/ Ju stice (edição bilíngi.ie, Ti.ibingcn, Mohr, 1990), cu opusera a lógica de s uperabun-
dânc ia, própria do que e u denominava d e economia do dom, à lógica de equivalência, própria da
t•conomia da jus tiça, com s uas pesagens e suas bal a nças, até na aplicação das penas. C f. também
Luc 13oltanski, L'A.111011r ct la Justice com111c co111pétc11ccs, op. cil .
26 Marce l Mauss, Ess11i s11r /e don. formes ct mison de /'éc/11111gc dans /cs sociétés arcliai'q11cs, in Annéc so-
ciologiq11c, 1923-1924, t. I; artigo retomado i11 Marcel Mauss, Sociologic e/ /111/hropologic, Paris, PUF,
1950; 8" ed., col. "Quadrige", 1990. Essa obra d e Mauss é contemporânea da de C. Malinowski no
mesmo campo e da de M. Davy sobre a fé jurada (1922).
ll 1'1.R D.- \() Il i F IC II.

com que o donatário a retribua?" (op. cit., p. 148.) O enigma reside no vínculo entre três
obrigações: a de dar, a de receber, a de retribuir. É a energia desse vínculo que, segun-
do os porta-vozes dessas populaçôes 27 , subjaz à obrig açã o do dom em troca; a obriga-
ção d e d evolver proced e da coisa recebid a, a qual não é inerte: "nas coisas trocada s
no potlntch há uma virtude que força os dons a circularem, a serem dados e retribuí-
dos" (op. cit., p. 214f' . O fundo contra o qual se destacaram a escola comercial e s ua

27 É essa fo fa q ue C budl' Lé\·i-Strau ss quest iona n,1 s uil fo mosa " lntroduction ;1 l'ce uv re d e Marcel
M,rn ss" (in Sociolo:,;ic e/ !\11 thru110/ogic, op. cil. ): ,1s noçôcs recebid as da s p opul <1çties estud ada s "n,ili
s,io noçt'ícs c ientíficas. Elas não cscl a rl'Cl'lll os fenóm e nos que nos propuse mos a L'Xplicar, mas
dl'les participam'' (op. cil. , p . 45). As noçôcs d e tipo 111111111 re presentam o e xced e nte de s igniiicaç,io,
o sig niiic<1ntt' flutuante, do qual o honwm d is pÜl' L'm seu esforço para compreende r o mund o. Pa rn
s,li r d a simples re p t't ição, d ,1 ta uto logia, a ciL'nci,1 só p od e ria \"f.' r nela s a p ró pri a forma d a n' lação
de troca numa d e suas intcrpretaçiks pn'.·-científicas. Nosso problema , aqui, 0 complctarne ntl'
difl're nte: o da pcrsistt•ncia d esse arcaísmo no plano feno me nológ ico d a prática l' da comprel•n s,io
qu e temos das form as residuais da troca n füi conwrcial n a idade da cit'•ncia .
Encontraremos em Vincent IJescombl'S, " Les essa is sur le don", in Lc~ /11 .,tit11tio11 ~ d11 ~1·11 ~, Pa ri s,
Éd . d l' Minuit, 19% , pp. 237-266, uma discuss,fo Lfas objeçfit'S d e l é\·i-Strau ss. Ela é inserida num ,1
a n.íl ise lóg ica d as relaçôl's tr iádicas, d a qu,1 1 a troca dos don s cons titui um caso pa rtic u lil r (doa-
dl)r, dom, doniltário). Q u<1nto à crítica que l.é\· i-Strau ss d irige a Mau ss, po r este te r assu mido a
dl'scriçiio que os at ores do dom fa zem da s transaç(ws c m quL·st:i o, e la n,io teri a eft•ito cont ra o
ca rátt'r jurídico de o b rigaçi'ío que presid(' ~troca.Bu scar nu ma estrutura inn inscie nte do esp íritll
a ca usa eficienk d a obrigação é tratar a obrigaçãn como uma explicaç,io d a qual apenas se tt>ria
dado um<1 vers,io ilusl"iria e m termos d e "c inwnto mís tico" (Descombes, op. cit .) . De e ncontro à ex-
plicc1ção por infr<1-cstrutu ras inconscie 1l!L'~ d o es píri to, "o b~ai .,11r it' do11 , d e Mauss, é escrito num
estilo d escritivo q ue n ão pode se não sat isfa zer os filósofo s que col ocam, com l'e irce, qul' a rela ç<'io
do dom e nvol\"L' o iniinito l' ultrnpassa tod a rl'du ção a fot os brutos, ou ainda, com Wittgen stein,
qut' a regra não L' uma ca usa dicienlt' d a n rnduta (um meca nismo psico lógico ou o utro), mas u m,1
norma que ,is pessna s segue m porque que n •m usá-la para se dirigir na\ id a" (IJescombes, op. cit.,
p. 2'i7). A pergunta niloec1da, parece- me, é a d a rclaçáo e ntre a h"ig ica da s rclaçüe s tri,ídica s (d ar
a lg uma coi sa a alg u é m) e il o brigação d e irnple mL' Ilt.í-la c m s ituaçôes cnnc rctas d e natureza h istú-
rica. Surge e ntão, legitima mente, o p roblema q ue é aqui o nosso, d a pe rsistênc ia d o a rc;1ísmo p re-
sumido do pot/11td 1 n o plano d a prJt icil da troca não come rcia l na idade d a c iê ncia e d a tt'•c n ic<1.
28 Dt>sd e o início da im·estigaçiio desenvo hid a e m populações contemporii ne.is tão diversas q ua n-
to certas tribos do Noroeste americano (às quais se deve a d e nominaçiio dli potlatc/1), da Ml'lané -
sic1 , d a l'olinésia , d a Au st ní lia, coloca-se, para nós IL'itores, a q uesU\o d a 1-wrsis tên c ia d os r<1 stros
dei xados em nossas relaçtie s contra tu a is p or esse arcaís mo de um reg ime d e troca anterio r ,i
ins t it uição dos mcrca d ort>s e de sua princ ipa l inv enção, a moed a p ropria me nte dita. Há n isso,
nota Ma uss, um funciona men to s ubjacentt~ a noss,1 moral l' a nossa l'Conomiil - "urna das rochils
hum,1nas sobre as qua is nnssas soc ied ad l'S são const ru íd as" (i/1id. ). O qu e essa forma d e troc;1
l'ntre prestação l' contrn prestação valor iz,1 é a competitividad e 11,1 munificê ncia, pois o excesso no
d om s uscita o contradom . Ta l é a form a a rca ic,1 da troca e sun ra zão. Ora, Mauss discerne ,1 s so-
bn' \·ivênc ias d essa for ma nos direi tos ,1 nt igPs (dire ito rom,1n o muitl) antigo ) L' nas econo m ias an -
t igas (o penhor do d irei to gL'rmt\ nico). r or cnnscg uink, são as "conclu st"ies de mora l" de Mau ss
qul' nos interessam .iq ui : "Não temos a pen as um ,1 moral de merc.id orL'S", exclam a o mor,1 li sta
encorajado pelo soe iólogn (i /Jid., p. 259). "E m nosso s di as, acrL·scen ta, ns \ l'i hos princípios n'agL'lll
contra os rigores, a s abs tral;t'ícs e as d es um a nidades de 1wsso~ n 'i digos [... ] l ' e ss,1 reação co11tr,1
,1 insens ibilidad e runrn na e saxónica de nosso regime é pe rfe itamente sa udável e for te " (il>id.,

p. 260). E de acrescenta .i polidez à hospitalid<1de s nb a ég ide da gene ros id ad e. Nota-se a inquie-


ta nte d e ri va d o d om re putad o funesto, co1rn1 o ,ltesta o d u plo sentid o d a palav ra s,ift nas língu<1s
ge rm ii nicas: dom po r um J,1do, veneno d o nutro. C om o não C \"ll G H , a esse respeito, o plrnn1111J.:011
segundo o rcdro d e Pla tão que ta nto nns ocupou ?
/\ MEM Ó RI A , A III ST (J RI A , O ESQ U EC I MF N TO

noção de interesse individual, cujo triunfo é celebrado pela Fah/c dcs abeillcs de Man-
d eville (op. cit., p . 271), deve p ermanecer como um fundamento ao qual voltar: aqui,
"chegamos à pedra angular" (op. cif. , p. 264). " Dá tanto quanto tomas, tudo estará
muito bem ", di z um belo provérbio m aori (op. cit., p. 265).

2. Dom e perdão

O modelo arca ico assim rev isitado oferece um apo io suficiente para resolver os
dilemas do perdão? A resposta pod e ser positiva, pelo menos no que tange à p rime i-
ra parte do argumento que diz respeito à dimensão bilateral e recíproca do perd ão.
Ora, a objeção ressurge do seguinte modo: ao alinhar pura e simplesmente o perdão
com a circularidade d o dom, o modelo não p ermitiria mais distinguir entre o perdão
e a retribuição, que igualam inteira mente os parceiros. Sentimo-nos, então, tentad os
a inverter o discurso e a saltar para o outro pólo do d ilema . Com o q uê somos então
con fro ntados? Com o mandamento radical de amar os inimigos sem recompensa . Esse
mandamento impossível parece ser o único à altura do espírito d e perdão. O inimigo
não pediu perdão: é preciso amá-lo tal como ele é. Ora, esse mandamento não se volta
apenas contra o princíp io de retribuição, nem apenas contra a lei de talião que ele
pretend e corrigir, m as, no limite, contra a Regra d e Ouro que d everia romper o talião.
"Não faças aos outros o que não d esejas que te façam ", d iz a Regra de Ouro. De nada
ad ianta reescrevê-la: "Não faças a outrem o que ele não gostaria que lhe fi zesses."
É a reciprocidade que está cm questão. Gradualmente, a suspeita investe contra os
comportamentos privados ou públicos em nome do espírito d e generos idade (volun-
tariado, coletas p úblicas, respostas à mendicidad e), sem falar dos ataques de que, hoje
em dia, são vítim as as organi zações n ão governamentais de intervenção humanitá ria.
Os ad versários a rg umentam assim: dar obriga a d ar cm troca (do ut dcs); dar cria sub-
terra neamente a d esigualdade ao coloca r os d oadores em posição de s uperioridade
condescendente; d ar vincula o benefi ciário, transformad o em d evedor, d eved or de re-
conhecimento; d ar esmaga o beneficiá rio sob o peso d e uma d ívida insolvível.
A críti ca não é necessariamente malevolente; os Evangelistas a colocam na b oca
de Jesus, logo d epois, precisamente, d a recordação d a Regra d e O u ro. Lê-se is to: "Se
amais os que vos am am, que reconhecimento tereis? Pois os pecad ores ta mbém amam
os que os amam; [ .. . l mas amai vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem nada
esp erar em troca" (Lucas 6,32-37). A crítica anterior é, assim, radica lizada: a medida
absoluta do dom é o amo r aos inim igos. E é a ele que está associad a a idéia d e um em-
préstimo sem esperança de retorno. Longe d e se em botar, a crítica radicaliza-se sob a
pressão de um mand am ento (quase) impossível.
Eu gostaria d e s ugerir, não somente que ap en as a troca comercial cai sob a crítica,
mas q ue uma form a superior d e troca é v isada até mesmo no amor aos inimigos. Todas
as objeções, de fa to, pressupõem um interesse escondido atrás da gen erosidade. As-
sim , elas mesmas se mantêm no espc1ço dos bens comerciais, o qual tem s ua legitimi da-
de, mas p recisa mente numa ordem em que a expectativa d a reciprocidade se reves te
ll l'llü)-\0 DIFÍCIL

da forma da equi\·alência monet,íria. O mandamento de amar seus inimigos começa


por destruir a regra de reciprocidade, ao exigir o extremo; fiel à retórica evangélica da
hipérbole, o mandamento quereria que fosse justificado apenas o dom oferecido ao
inimigo, de quem, por hipótese, nada se espera em troca. Mas, precisamente, a hipó-
tese é falsa: o que se espera do amor é que converta o inimigo em amigo. O potlatch,
celebrado por Marcel Mauss, rompia a ordem comercial a partir de dentro pela muni-
ficência - como faz, a seu modo, a "despesa" segundo Georges Bataille. O E\'angelho
o faz dando ao dom wna medida "louca" da qual os atos de generosidade corriqueiros
apenas se aproximam de longe2".
Que nome dar a essa forma não comercial do dom? Não mais a troca entre dar e re-
tribuir, mas entre dar e simplesmente receber' 11• O que era potencialmente ofendido na
generosidade, ainda tributária da ordem comercial, era a dignidade do donatério. Dar
honrando o beneficiário é a forma de que se reveste, no plano da troca, a consideração
C\'Ocada acima. A reciprocidade do dar e do receber põe fim à assimetria horizontal
do dom sem espírito de troca, sob a égide da figura singular de que a consideração
passa então a se H:\·estir. O reconhecimento da dimensão recíproca da relação entre a
demanda e a oferta do perdão constitui apenas uma primeira etapa na reconstrução in-
tegral dessa relação. Falta dar conta da distância \'ertical entre os dois pólos do perdão:
é dela, de fato, que se trata na confrontação entre a incondicionalidade do perdão e a
condicionalidade do pedido de perdão. Essa dificuldade, que renasce incessantemen-
te, ressurge no próprio cerne do modelo da troca aplicado ao perdão, na forma de uma
pergunta: o que torna os parceiros capazes de entrarem na troca entre a confissão e o
perdão? A pergunta não é vã, se se cnKam mais uma ,·ez os obstáculos que barram
o acesso à confissão e aqueles, nada menores, que se erigem no limiar da pala\·ra de
perdão; de fato, pedir perdão também é manter-se disposto a receber uma resposta
negativa: não, não posso, não posso p e rdoar. Ora, o modelo da troca considera a obri-
gação de dar, receber e retribuir como fato consumado. J,í \·imos que Mauss atribui sua
origem à força quase rn,igica da coisa trocada. O que ocorre com a invisÍ\'el fo rça que
une os dois atos de discurso da confissão e do perdão? Esse caráter aleatório da tran-
sação presumida resulta da assimetria, que se pode chamar de vertical, que tende a
mascarar a reciprocidade da troca: na \'erdadc, o perdão ultrapassa um inten·alo entre
o alto e o baixo, entre o muito alto do espírito d e pe rdão e o abismo da culpabilidade.
Essa assimetria é constitutiva da equação do perdão. Ela nos acompanha como um
enigma que nunca se acaba de sondar.
Diante dessas perplexidades, eu gostaria de evocar as dificuldades específicas
corajosamente assumidas pelos promotores da famosa comissão "Verdade e Recon-
ciliação" (Truth and Rcconciliation Commission), desejada pelo presidente da nova

2LJ Arrisc.:ir-me-ei ,1 di z er qut.' íl'encontro algo d,1 hipl'rbole e\·angéliC<1 ,1té n ,1 u topia política da "pa z
pL'rpétu,1 ", segundo K,1nt: utopia que contl'rl' a todo homl'm o direito de ser rL'Cl'b ido L'lll p ,1ís
estrangeirn "como um hós pede l' n,fo c o t11l\ um inimigo", pois ,1 hlispitalid,1de uni\'l'rs,11 constitui,
na verdade, o paralelo, na pulític,1, do amor l'L1ngélico aps inimigos.
30 Petl>r Kemp, {_' /rrc111p/11ça/,fc, Paris, Cort i, l lJlJ7.
A MEMÚRIA, A HISTÚRIA, O ESQUECIMENTO

África do Sul, Nelson Mandela, e valentemente presidida pelo bispo Desmond Tutu.
A missão dessa comissão, que deliberou de janeiro de 1996 a julho de 1998 e entregou
seu relatório em cinco grandes volumes em outubro de 1998, era a de "coletar os tes-
temunhos, consolar os ofendidos, indenizar as vítimas e anistiar quem confessasse ter
cometido crimes políticos"11 .
"Compreender e não vingar", tal era o propósito, em contraste com a lógica puni-
tiva dos grandes processos criminais de Nuremberg e Tóquio12 • Nem a anistia, nem a
imunidade coletiva. Nesse sentido, é mesmo sob a égide do modelo da troca que essa
experiência alternativa de depuração de um passado violento merece ser evocada.
Certamente, ainda é cedo demais para avaliar os efeitos dessa empreitada de justi-
ça dita reparadora sobre as populações. Mas a reflexão foi levada suficientemente lon-
ge pelos protagonistas e muitas testemunhas diretas para que um balanço provisório
pudesse ser estabelecido a respeito dos obstáculos encontrados e dos limites inerentes
a uma operação que não visava o perdão, mas a reconciliação em sua dimensão ex-
plicitamente política, tal como K. Jaspers a delimitou com o nome de culpabilidade
política.
Do lado das vítimas, o benefício é inegável em termos indivisamente terapêuticos,
morais e políticos. Famílias que lutaram durante anos para saber puderam dizer sua
dor, exalar seu ódio perante os ofensores e diante de testemunhas. À custa de longas
sessões, puderam narrar as sevícias e nomear os criminosos. Nesse sentido, as audiên-
cias permitiram verdadeiramente um exercício público do trabalho de memória e de
luto, guiado por um procedimento contraditório apropriado. Ao oferecer um espaço
público à queixa e à narrativa dos sofrimentos, a comissão certamente suscitou urna
katlwrsis compartilhada. Além do mais, o importante é que, além dos indivíduos con-
vocados, profissionais oriundos dos meios de negócios, da imprensa, da sociedade
civil, das Igrejas tenham sido convidados a sondar suas memórias.
Sendo assim, talvez seja esperar demais dessa experiência sem precedente per-
guntar até que ponto os protagonistas conseguiram avançar no caminho do perdão

31 Sophie Pons, Apart/Jeid. L'avcu ct /e pardon, Paris, Bayard, 2000, p. 13. A comissão, composta por
vinte e nove pessoas, oriundas de grupos religiosos, políticos e cívicos, era composta por três co-
mités: o comité de violação dos direitos humanos, cuja missão era estabelecer a natureza, a causa
e a amplidão dos abusos cometidos entre 1960 e 1994, e que era dotado de poderes ampliados de
investigação e de citação para comparecer; o comiti:• de reparação e de indenização, cuja missão
era identificar as vítimas e estudar suas queixas em vista de indeni zações, de ajuda material e de
apoio psicológico; o comité de anistia, encarregado de examinar os pedidos de perdão, sob a con-
dição de confissiíes completas que comprovassem a motiv,1ção política dos atos incriminados.
32 "A maior inovação dos sul-africanos se deveu a um princípio, o de uma anistia individual e con-
dicional, inversa das anistias gerais outorgadas na América Latina sob a pressão dos m ilitares.
Não se tratava de apagar, mas de revelar, não de encobrir os crimes, mas pelo contrário, de desco-
bri-los. Os antigos criminosos tiveram de participar da reescrita da história nacional para serem
perdoados: a imunidade se merece, ela implica o reconhecimento público de seus crimes e a acei-
tação das novas regras democráticas. r... ] Desde a noite dos tempos, diz-se que todo crime merece
castigo. foi nos confins do continente africano, pela iniciativa de um antigo prisioneiro político e
sob a direção de um homem de Igreja , que um país explorou uma nova via, a do perdão aos que
reconhecem s uas ofensas" (S. Pons, op. cit., pp. 17-18).
() PF RD .-\ (l l ) IFIC! l.

\'erdadeiro. É difíci l dizer. A preocupação legítima em atrib uir indenizações podia ser
satisfeita sem que a purificação da memória fosse levada até a renúncia à cólera, ligada
à outorga sincera do perdão, como, por sinal, ocorreu por parte d e sujeitos pro\'idos
de consciência religiosa ou medita ti va, ou conhecedores d as encantações pertencen tes
à sabedoria ances tra l. Muitos, em compe nsação, alegraram-se publicamente quando a
anistia foi recusad a aos que os haviam e nlutado, ou recusara m as desculpas de quem
ofendeu seus próxim os. Por outro lad o, a anistia concedida pelo comitê competen te
tampouco va lia p erdão por pa rte de vítimas privadas da satisfação que a sanção de
um processo costuma trazer.
Do lado dos acu sa dos, o ba lanço é mais contrastado e, sobretudo, mais ambíguo:
a confissão pública n ão teria sido, com muita freqüência, um estratagema para pedir
e obter urna anistia liberatóri a de toda ação judicia l e de toda condenação penal? Con-
fessa r, para não acabar perante os tribunais ... Não responder às p erguntas da vítima,
mas sa tisfazer os crité rios lega is dos quais depende a anis tia ... O espetáculo do arre-
pendime nto público deixa perplexo. De fato, o u so público como simples conve nção
de linguagem não podia deixa r de ser a oportuni dade de procedime ntos visando à
simples anis tia p olítica . Confessar excessos, sem nada conceder da convicção de ter es-
tado certo, era fa zer o uso m ais econôrnico das regras do jogo da confissão. O que dizer
então dos acusad os que transformaram em vantagem os procedimentos da confissão
ao se tornarem dela tores eficientes d e seus s upe riores o u cúmplices? Obvia mente, con-
tribuíram pa ra estabelecer a verdade factual, mas à custa da verdade que liberta . A
impunid ade d e fato de crimes antigos transformou-se, para eles, em impunidade de
d ireito, cm recompensa de confissões sem contrição. Em contraste, a recusa altiva
de tais a ntigos m estres que se negaram a pedir perdão m e rece muito mais respeito,
se essa recusa é politi came nte prejudi cial, na medida em qu e entre té m a cul tura do
d esprezo.
Essas perplexidades, que advêm nas duas faces da troca entre a confissão e o per-
dão, conv idam a considerar os limites inc re ntes a esse proje to d e reconciliação. A pró-
pria instauração da comissão resulta va de negociações veementes entre o an tigo poder
e o novo, sem fa lar dos confrontos entre facçôes rivais condenadas a compartilhar a
vitória. Mais profunda e duradouramente, as \' io lências d o apart!,cíd deixaram feridas
que alguns anos de au diências públicas não pode riam bastar para curar~'. Com isso
somos levados d e volta, a contragosto, à viz inhança da inquietante constatação d e
Kod alle, segundo a qual os povos n ão p e rdoam. Os promotores e os advogados da
comi ssão "Verdade e Reconciliação" ousaram apostar em desmentir essa confissão de-
siludida e deram urna chance his tórica a urna forma públ ica do trabalho de memória e
de luto a serviço da paz pública. Muitas vezes, a comissão expôs verdades bru tais que
as instâ ncias da reconciliação políti ca entre antigos inimigos não consegui am tolerar,

33 Ao peso político dos não -d itos, é p reci so acrL'SCL·ntar os e ns ina 1T1e ntus do desprezo, a obsess!it) d os
medos nncestrais, a s justificaç<ies ideohígica s, ou .tté mesmo teolúgic,1s, da injustiça, os arg umen-
tos geopo líticos que da tam d ,1 g uerr;i fr i,1 (' todo o c1 parato d;is moti\',lÇÚL'S q ue d izem n 'speito ,i
identidade pessoa l L' cu ll'ti \·a. Tudo isso fo rm c1 um<1 e no rme massa para se il'va nta r.
/\ MEMÓRIA , J\ II I STé)RIA, O FSQULCI M FN 10

corno m ostra a rejeição por muitos do relatório da comissão. Não é prova d e deses-
perança o fato de reconhecer os limites n ão circunstanciais, mas por assim dizeres-
truturais, de urna empreitada de reconciliação que não somente requer muito tempo,
mas um trabalho sobre si em gue não é excessivo discernir algo como um incognito do
perdão sob a figura de um exercício público de reconciliação política.
A experiência dolorosa da comissão "Verdade e Reconciliação" nos traz d e volta,
graças às próprias perplexidades gue ela suscitou em seus protagonistas e em s uas
testemunhas, ao ponto onde interrompemos a discussão d as relaçôes entre perdão,
troca e dom. Como sugere o título dado a essa seção do Epílogo, essa discussão, prova-
velmente, não passava de urna escala na trajetória tensa entre a formulação da equação
do perdão e s ua resolução no plano da ipseidade mais secreta. Mas essa escala era ne-
cessária para fazer su rgir a dimensão d e altcridade de um a to gue, fund amentalmente,
é uma relação. Liga mos esse ca ráter relacional ao face a face que confronta d ois atos
de d iscurso, o da confissão e o da absolv ição: "Eu te peço perdão. - Eu te perdôo".
Esses dois atos d e discurso fa zem o que dizem: o dano é efetivamente confessado, ele é
efetivamente perdoado. A questão, então, é a de compreender corno isso ocorre, tendo
em conta os termos d a equação do perdão, a saber, a incomensurabilidade aparente
entre a incondiciona lidade do perdão e a condicionalidade do pedido d e perdão. Esse
abismo não seria de certo modo ultrapassado por meio d e um tipo de troca que pre-
serva a polaridade dos extremos? Propõe-se, então, o modelo do d om e sua dialética
de contradom. A desproporção entre a palavra d e perdão e a da confissão retorna na
forma de uma única perg unta: que força torna capaz de pedir, de dar, de receber a
palavra de perdão?

IV. O retorno sobre si

É agora ao cerne da ipseid ad e que se d eve transportar o exame. Mas a que poder,
a que coragem pode-se apelar para simplesmente pedir perdão?

1. O perdão e a promessa

Antes de entrar no paradoxo do arrependimento, é preciso pôr à prova urna tenta-


ti va de escla recimento que, para nós, será a última depois daquela da troca e do dom;
é em nossa capacidade de regrar o curso do tempo que parece poder ser hau rida a
coragem de pedir perdão. A tentati va é a de H annah Arendt em Condition de f'homme
11wdcm e14 . Sua reputação não é usurpad a: ela repousa na revalorização de uma simbó-
lica muito antiga, a do dcsfigar-ligar, e no acoplamento sob esse tema dialético entre o
perdão e a promessa, um que nos desliga ria e a outra que nos ligaria. A v irtude d essas

34 Hannah A ren dt, TJ,c H11111a11 Co11ditio11, op. cit.


() 1'1 IW..\(l D l l'ÍC IL

duas ca pacidad es é a de replicar de maneira responsável às coerçôes tempo rais às


quais está submetida a "continuação da ação" no plano dos negócios humanos~'.
A ação, como \'imos, é a te rceira categoria de um trio: labor, obra , ação. É a tría-
de básica da uia actirn considerada em suas estruturas antropológicas, na articulação
entre o fundam e ntal e o histórico. Ora, é por s ua temporalidad e própria que a ação
se distingue dos dois outros termos . O labor consuma-se na consumação, a obra quer
durar mais que seus autores mortais, a ação que r simplesmente continuar. Enquanto
cm Heidegger não h,1, propriamente dizendo, ca tegoria da ação que, cm ligação com a
preocupação, seja cap az de fo rnecer uma base pa ra uma moral e uma política, Hannah
Arendt tampouco tem que passa r pelo desfilad eiro do Mitsci11 para com unalizar a preo-
cupação, a qual em Ser e Tc111po perma nece marcada pelo selo da morte in comuniGh·el.
De sa ída, num ünico traço di reto, a ação se desenrola num espaço de visibilidade pü-
blica onde ela exp õe sua rede, s ua teia d e relaçôes e de interações. Falar e agir ocorrem
no espaço público de exposição do huma no, e isso diretamente, sem transposição d a
intimidade à publicidade, da interioridade à socialidad e. A pluralidade humana é pri-
miti\'a. Por que, então, é preciso passa r p elo pode r de p erd oar e pelo de prometer? Em
razã o do que Arendt chama de as "fraquezas" intrínsecas da pluralidade. De fato, a
fra gi lidad e dos negócios humanos não se red uz ao caráter pereCÍ\'el, mortal, de em -
preitadas submetidas à ordem impiedosa das coisas, ao apagamento físico dos rastros,
esse pro\'edor do esquecimento d efiniti,·o. O perigo se d e\'e ao caráter de incerteza
ligado à ação sob a condição da pluralidade. Essa incerteza de\'e ser relacionada, d e
um lado, com a irreversibilid ade que arruína o desejo de dnminaç,~o soberana a plicada
às conseqüências da ação, à qual replica o perdão e, por outro lado, com a impre\'Ísi-
bilidade que arruína a con fiança num curso esperado de ação, a confiabilidade do agir
huma no, à qual replica a promessa'''.

3:; Lm p;i sso 1wssc1 din'Çdo foi d,1do por _l,111ké1L-,·itch em L'/nú·l'l'~i[,fl' t'f !t1 No~tolgi<', Paris, Fl,1 111111<1-
ri!ln, ·1974. O a utor opõe fortemenll' o i1TL'\·og,í,-cl ,10 irrevc rsí,·el (cap. -i ). O irrL·versí,·el exprime
qul' o homl'm ni1o pod e \'l)]tar ao SL'U passado, nem o passado , ·oltar com o passado; o ir rc\'lig,í\'l'i
s ig nific,1 qut' o "ter s id,)" - princip;ilnwnll' o "ter fe ito " - não pode SL'r ,111iqui lado: o qul' íoi ieito
n,io podL' ser des feito. D uas im possibi Iid;ides im ·l'rsa s. /\ nosta lgia, q u e cr,1 o primei ro senti nwn t!l
ex plorado pelo autor, pende p,1ra o lado do irre\'l'rs Í\·e l. É o pesclf d t) nunrn mais, que gostari,1 dt'
rt>ter, rL·viver. O n•m orso é o utr,1 cois,~: L'IL' gost,Hia d e apagar, "dt·s,·iH' r" (OJ'. cif., p . 219). O remor-
so op<lL' seu cadtl'r espec ifi camente ético <'1 tnn,1 li,bdc t·stcti za ntt· L' intensamente pMica do pesar.
Nem p o r isso é menos pungente. Se "o esquec imL'n to 11,10 niili/.,l o ir re\'ligci,·el" (ov l°it., p . 2~3), SL'
L'Ste é o inapag,h ·t'I, n.'lo SL' dt'\'l' conta r com a enis,'ili te mpora l para re,og,n o passado, rnds com
o at(l q ut.' desliga . Então, é prl'ciso m,llltl'r em rt:•sen·a a idt'ia d e qul' ",1 rt'\'t)gação dei x.i atr,ís de
si u m rL·síduo irredutí,·el " (,,p. (Í/., p . 237). Ser,í ,l p,1rte inelutiÍ\'el do luto. /\qui nos aprn:\imamtlS
d!l imperdo.índ e, com t• le, d o irre p.iní\'t•I, \'L'Stígios ú ltimos dn "te r s ido" l' do "ter conwtido". lm-
possí,·l'i 1111do11e, Cllll1l) diz Sh ,1kL'spt'ílfl' L'm ,\J 11d>t'f/1, impossí,·e l "inft>it(l" (,1p. cit., p. 2-l l}. É no fin.i l
dt'SSL' c;ipítu lo qul' Janké k,·i tch pronuncia ,1 frase reproduzid,1 11<1 po rta de sua rl'sidênc i.i t' n,1
epígrafe dcsll' li,·ro: "Aqul'ic que foi jiÍ n,10 pllde m,1i s n.'lo ter s ido: d(lr,l\"antL', esse fato miste rillS\l
L' proíu nda me nte obsc uro d l' tL'r sidll (• seu ,·i,ítico p,H,) ,l ctt•rn id adt•" (<'/'· ( it., p. 275).
36 A t.'strita polaridadt• t!ntre os esquem as dll li g,rnlL'nto e do deslig anll'nto susci to u uma intl' rl's-
sa nte explo ração de st•u s rl'cu rsos de ar t icul,1ção em novos c,rniptlS: Françoi s Ost, em l..l' Tc1111 >~ du
droit, Pari s, Odiit' J,icnb, ILJ9LJ, dL'SL'n,·tih't• sobrl' a tempora lid ad L' d o direito " um ,1 med id .:1 em qu,1-
trt) ll'mpos": li gar ,1 p <1ssad ,) (nwmór i.1), d L'sli gM o passado (perd..io ), lig,ir o fut uro (pmnw:;;sa ),
A MEMÓRIA, A HI STÓRIA, O FSQUEC IMENTO

Em relação à problemática iniciada por nós desde a primeira parte do presente


ensaio, em que o perdão é visto como vindo do alto, a posição assumida por Hannah
Arendt marca uma distância significativa: "contra a irreversibilidade e a imprevisibi-
lidade do processo desencadeado pela ação, diz ela, o remédio não provém de outra
faculdade eventualmente superior, mas é uma das virtualidades da ação humana ... "
(Condition de l'honzrne moderne, p. 266). É na linguagem da faculdade que se fala de "a
faculdade de perdoar, de fazer e de manter promessas" (ibid.). Dir-se-á que ninguém
pode perdoar a si mesmo e que, entregues a nós mesmos, vagaríamos sem força e
sem meta? É verdade: "as duas faculdades dependem da pluralidade". A pluralidade
humana basta ao vis-à-vis requerido de uma parte e de outra. A faculdade d e perdão
e a de promessa repousam em experiências que ninguém pode fazer na solidão e que
se fundamentam inteiramente na presença d e outrem. Se a origem dessas duas fa-
culdades é inerente à pluralidade, sua esfera de exercício é eminentemente política.
Sobre esse ponto, Arendt usa a seu favor a exegese dos textos evangélicos mais fa-
voráveis à sua interpretação. Esses textos dizem que apenas trocando o perdão entre
si, os homens poderão esperar ser perdoados também por Deus: o poder de perdoar
é um poder humano.1 7• "Apenas, nota Arendt, desligando-se assim mutuamente do
que fizeram, os homens podem continuar a ser agentes livres" (op. cit., p. 270). Isso é
confirmado, por um lado, pela oposição entre perdão e vingança, essas duas maneiras
humanas de reagir à ofensa; por outro, pelo paralelismo entre perdão e castigo, ambos
interrompendo uma seqüência sem fim de danos 38 .
É essa simetria exata em termos de poder entre o perdão e a promessa que eu gosta-
ria de questionar. Hannah Arendt percebeu que o perdão tem uma aura religiosa que a
promessa não tem. Esta replica à imprevisibilidade que resulta das intermitências do
coração e da complexidade das cadeias de conseqüências de nossos atos; a essa dupla
incerteza dos negócios humanos, a promessa opõe a faculdade de reger o futuro como
se se tratasse do presente. E essa capacidade encontra de saída sua inscrição política

desligar o futu ro (questionamento). O tempo de que fala o direito "é o presente, pois é no presente
que se joga a medida em quatro tempos do direito" (op. cit., p. 333).
37 Lê-se em Mateus 18,35: " É assim que também meu Pai celeste vos tra tará, se cada um de vós não
perdoar de coração a seu irmão". Ou ainda: "Se perdoardes aos home ns suas ofensas, também
vosso Pai celeste vos perdoará; mas se n ão perdoardes aos homens, vosso Pai tampouco perdoará
vossas ofen sa s" (Mateus, 6,14-15). Lucas 17,3: "Se te u irmão pecar, repreende-o e, se ele se arrepen-
der, perdoa-lhe. E se sete vezes por dia ele pecar contra ti e sete vezes vier ter contigo dizendo-te:
'Arrependo-me', tu lhe perdoads''.
38 Nesse ponto, Hannah Arendt tem um momento d e hes itação: "É, portanto, muito significativo,
é um elemento estrutural da esfera dos negócios humanos, que os homens sejam incapazes de
perdoar o que não podem punir, e que sejam incapa zes de punir o que se revela imperdoável. É a
marca verdadeira das ofensas que, desde Kant, são chamadas de "rad ica lmente más" e das quais
sabemos tão pouco, mesmo nós que fomos expostos a uma de suas raras explosões em público.
Tudo o que sabemos é que não podemos nem punir nem perdoar essas ofensas e que, conseqüen-
temente, elas transcendem a esfera dos negócios humanos e o potencial pode r humano, ambos
os quais elas destroem radicalmente cm toda parte e m que s urgem. Então, quando o próprio ato
nos destitui de todo poder, na verdade podemos apenas repetir com Jesus: 'Seria melhor para ele
ver-se passar na garganta uma pedra de moinho e ser jogado no mar. .."'(op. cif ., p. 271).

<} 494 4>


. ..,.,.___ ,.,..._,._, __ __ _______
, ,

() 1'1: 1rn,\(l Ull 'ÍCIL

na conclusão dos pactos e tratados que consistem em trocas de promessas declaradas


inv ioláveis. Neste ponto, Arcnd t reencontra N ietzsche nil segunda dissertação de La
gfoéalogie de la 111oralc, em que a promessa se anuncia como "memória da vontade",
conquistada sobre a preguiça do esq uccimento 1' 1• A esse traço, oriundo de Nietzsche,
A rendt acrescenta a inscrição do ato de prometer no jogo da pluralidade, que, por sua
\ 'CZ, marca o acesso da promessa ao campo político.

As coisas são diferentes com o perdão, cuja relação com o amor o mantém afastado
do político.
Uma prova por absurdo disso está no fraca sso às vezes monstruoso de todas as
tenta ti vas para institu cionalizar o perdão. Enquanto existem institui ções confiáveis
da promessa, que se inscrevem a títulos diversos na ordem da fé jurada - não existe
nenhuma do perd ão. Evocou-se aci ma essa caricatura do perdão que é a anistia~ 11 ,
forma instituciona l do esquecimento. Mas pode-se evocar numa dimensão comple-
ta mente dife rente as perplexidades levantadas pe la admini stração do sacramento da
penitência na Igreja católica.J 1• No exato oposto do exercício do poder de ligar e dcs-

39 Frit•drich Nietzsche, /.11 C1•111·11logic de la momlc, texto estabell'cido p,ir C. Colli e M. Montin;iri,
tr;id. franc. de Js;ibe ll e Hid enbrc1 nd L' Jean Gra tien, Paris, Callinrnrd, Cl)l. "Folio", 1987. O começo
da segunda dissert<1ção d e La Cé111•t1losic de /11111omlc é estrondoso: "Criar um a nima l que possil
prometer, n ão é essa tarefa paradoxa l que ,1 natureza Sl' prop11s, L'l11 se tratando do hu mano;
11 Zi L1 é esse o problL•ma \·e rdadeiro do homL'm 7 Mas o fato de essL' problema ser resoh·ido numa
,1mpl.1 me did a, e is o que n Zi o deixa rá de espan tar aquele qUl' sabt' bem que força a isso se opüe:
a io rça do esqueciment()". E como e le t.' resoh· ido? l'l'la promessa ft•ita contra o esquec inwnto.
O r,1, o esquecime nto, po r sua vez, n Zio é co nsiderado uma simples iné rcia, mas "uma faculd ad e
de inibição ativa L' u111<1 fac uldade positi\·a em toda a força do krmo". A promessa figura entfüi
na W'rwalogia como u ma conquista de segundo grau; ela 6 conqu is tad n sobrl' o esquecimen to,
L'lL' mesmo conquistado sob re a agitação da \·ida: "eis a utilidade do esquL·cimentn, ati\'o, como
cu disse, espt.>cie d e porteiro, g u ard ião da ordem psíquica, da tranqi.iilidadc, d n etiqueta". É de
encontro a esse esquecimento que a mem<iria trabalha, não qua lqut•r memória, não a mem<iria
gu ardiã do pass;ido, a reme moração do acontecimento decorrido, d o passado termin ado, mas
essa memória que coniere ao homem o p oder dL' cumprir s u as promes sas, de se m a n ter; memó-
ria de ipseidad e, dirfo mos, me mória que, ao regu la r o fut uro sobre o com p ro mi sso do passado,
tL1rn a o homem "pre\·isível, regula r, nL'cess,í rill" - l' assim cap.i L de "resp onder por s i nwsmo
como por vi r". É sobre esse fund o g lorios o que se d esencadeia esse outro "caso lúgubre": a d í\ i-
d.i, o l'r ro, a culpabilidade. Sobrt' tud o isso, ll•r a ,1d mirável obra dL' C il k·s Deleu zt.', Nict:scl!c e/ /11
/>liilosopl!ie, l'aris, PUF, cnl. "Quadrigl'", 1%2, 1998.
40 Cf. acima, terceira par te, cap. 3, pp. 462-463.
41 JL'an Delumeau, L'/1.,•cu t'I /e />11rdo11. Lcs difjicult,\ de /11 C1ll1jÍ'ssio11, X /1/'-XV II/' si,•cle, Pari s, Fayard,
1964, 1992: "NL'nhuma outra Igreja cristã nem nenhuma outra rL•lig ião conct.>dera m tanta impor-
tància quanto o ca tolicismo à con fissão detalh,1Lfa L' repetid a dos pecados. Pe rmanecemos marca -
dos por esse incessa nte convite e por L'ssa formid ,i\'el contribuiçfü) <10 autoconhecimento" (p. 5) .
Res ta saber SL' a outorga do pe rd ão à cu stil de ta l co nfissão fui mai s fon te de segura nça do que de
medo e de culpabili zação, como se indaga o autor 11<1 lin h a d e Sl'US traba lhos sobre I.n Pcur c11 (kci-
dm! (1978) d Lc Ph/Ji• e/ !t1 J.'c11 r. Ln rnl11alii!ist1/io11 c11 Occidc11/ (1983): " Fazer o pecador confessar-SL'
para rL'Cl'ber do padrL' o perd ão d iv ino t.' ir L'mbur.i tranqüi lizc1do : t.11 ioi ,1 ambição da Igreja cató-
lica, sobrd udo ,1 partir do mo me nto em que tornou a confissão pr ivada obrigatória a cada ano L',
a lé rn disso, exigiu d os fiéis a confissão d e talh.i da dL' todos os seus pt•cndos 'mor ta is" ' (p. 9) . O utra
quL'stão é esclarecer os pressupostos dl' um sistema que confia o "poder das chaves" ,1 clérigos,
ap<1rtados da comunidadL' dos iié is, no tríplice papel dl' "m(•d ico", "jui z" L' "p,li " (p. 27).

<7,> 495 ez.


A MEM ( ll<IA, i\ IIIST(lRI A, O ESQ U EC IMI: !\ ro

ligar numa comunidad e eclesial bem ordenada no intuito de tranqüili zar e perdoar,
ergue-se a figura do Grande Inquisidor em Os Jn11ãos Knrrrninzop de Dostoiévski 42 • É
na escala da lenda do Grande Inquisidor que devem ser medidas as tentativas até
m esmo benignas de obter a salvação dos homens à custa de sua liberdade. Não há
política do perdão.
É o que Hannah Arendt intuiu. Ela o diz a partir do pólo oposto àquele figurado
pelo Grande Inquisidor, o pólo do amor: o amor, um "fenômeno muito raro, é verd a-
d e, na vida humana" (op. cít., p. 272), se revela estranho ao mundo e, por esse motivo,
n ão somente apolítico mas antipolítico. Essa discrepân cia entre os níveis operatórios
do perdão e da promessa nos importa eminentemente. Ela apenas é mascarada pela
simetria entre essas duas " fraquezas" que as coisas humanas devem à sua condição
temporal, irreversibilidade e imprevisibilidade. E é essa simetria que parece autorizar
o salto que a autora d.:í nestes termos: "Mas ao amor, ao fato d e ele estar bem fechado
em sua esfera, corresponde o respeito no vasto campo dos negócios humanos" (op. cit.,
p. 273). Mais que o agap(' do apóstolo, ela evoca a pliilia politiki! do filósofo, esse tipo d e
amizade sem intimidade, sem proximidade. Essa última observação reconduz o per-
dão ao plano da troca horizontal d e nossa seção precedente. É no âmago da pluralida-
de humana que o perdão exerce o mesmo poder de revelação do "quem " que a ação e
o discurso encerram. Arendt parece até sugerir que poderíamos perdoar a nós mesmos
se pudéssemos perceber a nós mesmos: somos considerados incapazes de perdoar-nos
porque "dependemos dos outros, diante dos quais aparecemos numa singularidade
que somos incapazes d e perceber" (i/Jid.).
Mas será que tudo se decide no espaço de visibilidade da esfera pública? A
última página do capítulo da ação cm Co11ditio11 de /'ho111111c nwdeme introduz re-
pentinamente uma meditação sobre a mortalidade e a n ata lid ade que acaba por
abranger a ação humana: "dei xa dos a eles mesmos, os negócios humanos somente
podem obedecer à lei da mortalidade, a lei mais segura, a única lei certa de um a
vida passada entre nascimento e morte" (op . cit., p. 277). Se a faculdade de agir,
junto com a de falar, pode interferir nessa lei a ponto d e interromper o automa tis-
mo inexo rá vel, é porque ação e lingu agem ex traem seus recursos d a "a rticulação
d a natalidade" (op. cit., p. 276). N ão se deve ouvir, aqui, um discreto embora obsti-
nado protesto dirigido ,"l filosofia h eideggeriana do ser-para-a-morte? Não se deve
"recordar constantemente que os homens, embora deva m morrer, não nasceram

42 Figura do Anticri s to - e carct.'reiro do Cris to, esse venced o r d as três te ntações satânicas segun-
do os Evangelhos, ma s o gra nde vencido da história -, o Grande Inquis id or oferece às multi-
düt.•s a paz da consciL·ncia, a remi ss.'io dt.' todos o s p ecado s em troca da submissão: "Es távamos
certos ao agir assim , d iga-me? Não era am,1r a humanid ade com preende r s ua fraqueza, a li via r
se u fardo com amor, tolerar da su a fraca natureza até o peca d o, contanto que fosse co m no ssa
pe rmi ssão? Por tanto, por qu e v ir e nt ravar noss a obra ? [... 1Tornélre mos todos os homens fel izes,
as revoltas e os m.t ssac res inseparávl'is de tu .t libenfad e cessari'io. [... I D iremos a e les q ue todo
p ecad o St.' rá remido, se for cometido com nossa p ermissão; é por a mor que perm it iremos que
p eque m e tomaremos a pena sobre n ós. Eles nos amarão como benfeitores que assume m SL'US
p ecados diante de Deus. Eles não te rão nenhu m segredo pma conosco" (" L.t légende du C rand
lnqui s iteur ", in Lcs Frhcs Kt1mlllazov, trad . franc., Pa ris, Callimard, 1952, 1973, t. 1, pp. 358-361).
ll l'IRD..\l) D ll'ÍC II

pa ra morrer, ma s para inovar"? (op. cit. , p . 277.) Nesse sentid o, "a ação pa rece u m
mil agre" (i /Jid .)4' .
A evocação do milagre d a ação, na origem do m ilag re do perd ão, qu estiona seria-
men te toda a análise d a fac ul dad e de p erdoar. Como se a rticula a dominação sobre o
tempo e o milagre d a na talidade? É exatamente essa pe rgunta que dá um novo impul-
so a tod a a e mpreitada e con vida a le,·c.u a odisséia do espíri to d e perdão até o foco
da ipseidade. Em minh a opinião, o que falta à interpretação política do perdão, que
garantia a simetria deste com a promessa no mesmo nível que a troca, é uma reflexão
sobre o próprio ato de desliga r, p roposto como condição do d e ligar44 • Pa rece-me que
H annah Arendt fi cou no limia r do enigma ao situar o gesto na interseção do ato e de
suas conseqüências, e não d o agen te e do ato. O bviamente, o perdão tem esse efeito
de dissociar a dívid a d e sua ca rga d e culpabilid ade e, d e algum modo, desnuda r o fe -
nómen o d e dívida, enquan to d epe ndência de uma herança recebida . Mas ele faz mais.
Pelo menos, deveria faze r muito mais: d esligar o agente d e seu ato.

2. Desligar o agente de seu ato

Entendamos bem o que está em jogo. Toda nossa investigação sobre o perdão p ar-
tiu da análise da confissão pela qu al o cul pad o toma s ua falta sobre si, interiori zando
assim uma acusação que visa dora \'ante ao autor por trás d o ato: o que os cód igos
d esaprovam , são infrações à l.ei - mas o que os tribunais punem são pessoas. Essa
consta tação nos le\'C)U à tese de Nicolai Hartmann que afirma a insep arabilidade d o
ato e do agente. Dessa dec la ração, erigida em provocação, concluímos que a ipseidade
culpada tem um caráter impe rdoável d e direito. Foi então e m réplica a esse imperdo/1-
vcl de direito que estabelecemos a exigênci a do perdão impossÍ\·el. E tod as as nossas
a nálises ulte riores consistiram nu ma exploraçiio do inte rva lo a berto entre a falta im-
p erdoável e o perdão impossível. Os gestos excepcionais de perdão, os preceitos c1
respeito dc1 con sideração devida àquele c1 ser julgado e todos esses com porta men tos

-D " Na rea lid ade, a aç,10 t; ,1 ü nic,1 foc uld,Hk m il,1grosa, tauma turga : Jesus de Nazaré, cu jas ,·is0es
penl'trantes sobre essa faculdade evoc,1111, p l'la o ri g inalid<1 de e pel,1 nm·idadc, as de Sóc ra tes so-
bre as possib ilidades d o p ensanwnto, jesu s s,1bi,1 p mvavelme nte bem disso quilndo co m pil ra,·a
n pod er de perdoa r com n p oder ma is geral dl' re,1li z ar mil agn•s, coloca ndo a mbos no mesmo
p lano e ao i1lc,111CL' do ho m e m . O m ilag re que sah· ,1 o mundo, a esiera dos negócios humanos, da
ru ína mirm a l, 'natu ra l', <..' iin ,1 lmente o fato da n,1ta lidadL', no q u a l se (•n ra íza o ntolog iec1 m en tt' a
fo culdade de ag ir. 1.. . ] É essa esperan1;a e ess,1 ft'• no mun do q ue, p rn,·a,·d nwnk , Pncontra ram s ua
cxprcssi'io m a is s uci nta, ma is g lori osa, na pequen,1 iraSL' dos E\'an gl'l hos q ut' ,1 nun ci,1,·a su,1 'bo,1
no,·a': 'uma crian çc1 n,1scl'u para n1ís"' (,ip. cit ., pp . 277-278) .
-1-1 :\ a rticu lação p or H élnnah Arendt da d u pla formad a pl'l o perdão t' pel ,1 p ro messa em fu nç,io de
,,ua relaç.'ío com o tem p o não é a ú n ica possíu~l. A auto ra de Co 11dif io11 d,· /'h,m1111c 11wda 11c escolheu
,is temas d a irren•rs ibilidade e da im p re,·isibilid ade, Ja nkt:>10,·itch os d,1 irre,·ersib ilidade L' d ,1
irrL·,·ngabilid ad l'. O liYier Abt• l, nos tr,1ba lhos inC,d itos que pude consult.ir, re fe re-se il seqü(•ncia
te mpo ra l const it uíd a pt.>las ca pacidades dL' c,mwç.ir, dl' l'n trn r n,1 trnc,1, na qual inclu i a p ronwss,1,
q ue é a d e se mante r na ln)C.1, sob a ég idl' da id é i,1 d e justiça, L' dL' s,1ir da t roc.i, q ul' é o pL'rd c'io.
Entrl' ,1s do is púlos, d iz elt.>, es te nde-se o intl'n·,1 10 d a dica.
A M F.M ( )RIA, A HISTÚRIA, O ESQUECIME N TO

que nos arriscamos a considerar, no tríplice plano da culpabilidade criminal, política e


moral, como incognito do perdão - e que, com muita freqüêncía, não passam de álibis
do perdão - preencheram laboriosamente o intervalo. Finalmente, tudo se decide na
possibilidade de separar o agente de sua ação. Esse desligamento marcaria a inscrição,
no campo da disparidade horizontal entre a potência e o ato, da disparidade vertical
entre o muito alto do perd ão e o abismo da culpabilidade. O culpado, que se tornou ca-
paz de recomeçar, tal seria a figura desse desligamento que comanda todos os outros.
Trata-se do d esligamento que comanda todos os outros. Mas é ele mesmo possí-
vel? Retomo aqui uma última vez o argumento de Derrida: separar o culpado de seu
ato, ou em outras palavras, perdoar o culpado sem deixar de condenar sua ação, seria
perdoar um sujeito outro que não aquele que cometeu o ato45 . O argumento é sério e a
resposta difícil. Ela deve ser buscada, a meu ver, em uma separação mais radical que
a suposta pelo argumento entre um primeiro sujeito, aquele do dano cometido, e um
segundo sujeito, aquele que é punido, uma separação no cerne do poder de agir - da
agency - , a saber, entre a efetuação e a capacidade que esta atualiza. Essa dissociação
íntima significa que a capacidade de engajamento do s ujeito moral não é esgotada por
s uas inscrições diversas no curso do mundo. Essa dissociação exprime um ato de fé,
um crédito dado aos recursos de regeneração do si.
Para fazer jus tiça a esse último ato de confiança, não há outro recurso senão assumir
um último paradoxo que as religiões do Livro propõem e que vejo inscrito na memória
abraâmica. Ele se e nuncia na forma de um acoplamento que ainda não mencionamos e
que opera num grau de intimidade que nenhum dos acoplamentos evocados até aq ui
alcança: o do perdão e do arrependimento.
Trata-se, aqui, de algo muito diferente de uma transação46 • Esse paradoxo, mais
que um dilema, sugere a idéia de um círculo de um gênero único, em virtude do qual a
resposta existencial ao perdão é, de algum modo, implicada no próprio dom, ao passo
que a antecedência do dom é reconhecida no próprio cerne do gesto inaugural d e ar-

45 Mn is precisamente, ao fa lm do perdão cond icionn l explici tamente ped ido, Derrida acrescenta:
"E o qual, então, n ão é ma is totn lmente o c ulpado, mns já outro, e melhor que o culpndo. Nessa
medida, e com essa condição, não é mais ao rn lpado cnq11a11/o tal que se perdon" (ibid.). O mesmo,
diria eu, mas potenc ia lmente outro, ma s não outro.
46 J\nnick Charles-Saget, Rctour, J~epc11tir et Constitution de Soi, Paris, Vri n, col. " Problemes et Contrn-
verses", 1998. Os trabalhos do Centre A. J. Festug iere d e Pa ri s X-Nanterre reunidos nessa coletâ-
nea são dedicados aos e ntrecruzn mentos entre o arrependimento bíblico e o retorno ao Princípi o
no neoplatoni sm o . O pr ime iro tem sun ra iz na Tcs/nmali hebraica, como retorno a Deus, à A liança,
à via reta, sob o sig no da Lei. Por s un vez, o Evangelho de São Marcos evoca o batismo de a rre-
p endimento (mrlanoia) do Bati sta (111cta11oia se di rá convcrsio cm latim). O arrependimento cri stão
se dá então menos como um "retornilr" do q ue como um gesto inaugu ral. O g rego dos Se tenta
e o dos Escritos sapienciais se inspiram na figura do retorno, da "Volta", da cpistropha. Em com-
pensação, as Ené11d11s de Plotino propõem o mov imento puramente fil osófico da epistrophe, q ue é
u ma busca de conhec imento ao mesmo tempo em q ue um ímpeto a fe tivo. Com Proclo, o re to rno
ao Princípio se torna círculo fechado sobre si mesmo. É apenas com a escola do olha r inte rior (cf.
ilCÍ.ma, primei ra pa rte, ca p. 3, pp. 107-129) que Sl' coloca a questão d a contribu ição do retorno ou do
arrependimento p ilrn il constituição de si - e, com essa questão, a seqüência dos pilradoxos aq ui
evocados.
O l'FIWAO l) lf:í cr 1

rependimento. Obviamente, se há o perd ão, "ele permanece", como se diz d o amor no


hino que celebra sua grandeza; se ele for a própria altura, então ele não permite antes
nem depois, ao passo que a resposta d o arrependimento chega no tempo, quer ela seja
repentina, como em certas conversões espetaculares, ou progressiva, na provação de
uma vida inteira. O paradoxo é precisa mente o d a relação circular entre o que "per-
manece" para sempre e o que acontece a cada vez. Sabe-se, a este respeito, quantos
pensamentos dogmáticos se d eixaram enclausurar em lógicas alternativas: a graça pri-
meiro, e até mesmo a graça apenas, ou a iniciativa humana em primeiro. O impasse se
torna total com a entrada em cena da causalidade preveniente, adjuvante, soberana ou
outra. Portanto, deixemos o paradoxo no seu estatuto nascente, longe das sobrecargas
especulativas, e limitemo-nos a di zer como ele se inscreve na condição histórica: sob as
figuras variadas do desligamento que a fetam a relação do agente com o ato.
Esse ato d e desligamento não é filosoficamente aberrante: ele continua conforme
com a linha d e uma filosofia da ação na qual a ênfase recai nos poderes que, juntos,
compõem o retrato d o homem capaz. Po r s ua vez, essa antropologia filosófica se apóia
numa ontologia fundamental que, na grande polissemia do verbo ser segundo a me-
tafísica de Aristóteles, dá preferência ao ser como ato e como potência, diferentemente
da acepção substancialista que prevaleceu na metafísica até Kant. Essa ontologia fun-
damental do ato e da potência, que podemos rastrear em Leibniz, Spinoza, Schelling,
Bergson e Freud, ressurge, a meu ver, nas fronteiras d a fil osofia moral, no ponto onde
uma filosofia da religião se enxerta numa concepção deontológica da moral, como se
vê no próprio Kant, na última seção do Ensaio sobre o mal radical, posta no início da Fi-
losofia da religião nos limites da sim ples razão. Por mais radical que seja o mal, diz-se - o
que ele é de fato enquanto máxima de todas os máximas ruins-, ele não é originário.
Radical é a "propensão" ao mal, originária é a "disposição" para o be m. Ora, é essa
disposição para o bem que estava presu mid a na fórmula fa mosa que abre a primeira
seção dos Funda111e11tos da metafísica dos costumes: "De tudo o que é possível conceber
no mundo e até mesmo, em geral, fora do mundo, nada pode ser considerado como
bom sem restrição, a não ser uma boa vontade". Essa declaração não marca apenas a
absorção explícita de uma ética teleológica numa moral d eontológica, mas também,
em sentido inverso, o reconhecimento implícito do arraigamento da segunda na pri-
meira. É esse arraigamento que é rea firmado nas fórmulas de A Religião ... que marcam
a articulação da propensão ao mal com a dis posição para o bem : todo o discurso so-
bre a disposição (A11Iage) é de fato um discurso teleológico que encadeia uma à outra
a d isposição à animalídade, esta à racionalidade e, finalm ente, esta à personalidade.
Esse trio resume-se na afirmação de que "a dis posição primitiva do homem é boa"
(Observação geral). Assim, a fórmula inaugural da filosofia mora l e a fór mula terminal
do Ensaio sobre o 111a/ radical coincidem exatamente.
Ora, é nessa "disposição primitiva para o bem" que reside a possibilidade d e seu
"restabelecimento em s ua força". Estou inclinado a dizer que, sob essa modesta d esig-
nação - "a restauração em nós da disposição primitiva para o bem"-, vela-se e des-
vela-se o projeto inteiro de uma filosofi a da religião centrada no tema da liberação do

<t> 499 <l>


A M l, MÚRIA, A HIST(lR IA, O J:SQUECIMFNTO

fundo de bondade do homem. Esse "móvel para o bem", declara Kant, "nunca pude-
mos perdê-lo, e se tivesse sido possível, nunca poderíamos readquiri-lo" (A Religião ... ,
p. 69). Essa convicção encontra apoio numa releitura filosófica dos velhos mitos que
abordam a origem meta- ou trans-histórica do mal. A esse respeito, evocamos mais
acima o mito adâmico no qual a queda é narrada como um acontecimento primordial
que inaugura um tempo pós-inocência. A forma da narrativa está assim preservando
a contingência radical de um estatuto histórico tornado irremediável mas de forma
alguma fatal quanto a seu advento. Essa defasagem em relação ao estatuto criatura!
conserva a possibilidade d e outra história inaugurada a cada vez pelo ato de arrepen-
dimento e pontuada por todas as irrupções de bondade e de inocência no decorrer dos
tempos. É a essa possibilidade existenciária-existencial posta sob a guarda da narra-
tiva de origem que faz eco a disposição p ara o bem sobre a qual se constrói a filosofia
kantiana de A Religião nos limites dn simples rnzão. Deveriam então passar a servir esse
imenso projeto de restauração, d e um lado, os símbolos que - como o do servidor que
sofre e de sua expressão crística - alimentam o imaginário religioso judaico e cristão;
e de outro lado, as instituições metapolíticas - tais corno, na cristandade, as formas
visíveis da Igreja colocadas, em relação a esse depósito imaginário, na dupla posição de
discípulo e guardião. É a esses símbolos e instituições que é dedicada a seqüência de A
Religião ... , que Kant desenvolve, é verdade, num tom cada vez mais veemente para com
as formas históricas revestidas por esse religioso básico que, hoje em dia, diríamos ser o
das religiões do Livro.
É no plano d e fundo dessa leitura filosófica do religioso ocidental que se destaca o
enigma do perdão no espaço de sentido d essas religiões. Ao tratar da inscrição does-
pírito de perdão nas operações da vontade, Kant se limita aqui a evocar a "cooperação
sobrenatural" suscetível de acompanhar e completar "a acolhida do móvel moral nas
máximas da vontade". Esse nó é tanto o desligamento do perdão quanto a ligação d a
promessa 47 .
O que acontece, então, com a inteligibilidade de que essa conjunção é suscetível?
Quaisquer que sejam as soluções tentadas no d ecorrer das querelas teológicas sobre
o tema da liberdade e d a graça, das quais Kant se dissocia na terceira parte d e A Reli-
giifo .. ., não parece que o vocabulário do incondicional e do condicional, herdado das
antinomias da dialética d a Razão pura, convenha à problemática do perdão e do ar-
rependimento. À disjunção, ao dilema, parece ser preciso opor o paradoxo. É preciso

47 "Suponde q ue, para tornar-se bom t>u melhor, uma cooperação sobrenatural também seja neces-
sá ria, que ela consista simplesmente na redução dos obstáculos ou que sejél mesmo ajuda positiva,
a inda assim o homem deve antes se tornar digno d e recebê-la e de aceitar essa assistênciél (o que
n ão é pouco), isto é, acolher em s ua máxima o crescimento positivo d e força pelo qual apenas se
to rna possível que o bem lhe seja imputado e que e le mesmo seja reconhecido como homem de
bem" (Ka nt, La Re/igio11. , p. 67). Uma filosofia da religião nos limites da si mples razão proíbe-se
de escolher entre essas duas interpretações que beiram o engajamento existen cial pessoal, guiado
por uma ou a o utra trad ição de le iturn e interprctélção no ,°lm bito das re ligiões do Livro. A ú ltima
pa lavra da "Obscrv.:ição gera l" visa a exortar Célda um a empregar sua disposição original para o
bem él fim de estar cm estado de ter esperança de "que o que não estéÍ em seu podt.•r será comple-
tado por uma colaboração do alto" (op. cit., p. 76).

•3> 500 .Z•


ll l'FRD -\ll DI FÍC I i

que se renuncie a falar no modo espeetilatin) ou trnnsccndental desse paradoxo•~. De


natureza irreduti\·elrnente prática, ele sô se deixa enunciar na gramática do optatin).
Sob o signo do perdão, o culpado seria considerado como capaz de outra coisa
além de seus delitos e fa ltas. Ele seria de\·oh·ido à sua ca pacidade de agir, e a ação, à
de continuar. É essa capacidade que seria saudada nos mínimos atos de considert1ção
nos quais reconhecemos o i11cognito do perdão encenado na cena pública. Finalmente,
é dessa capacidade restaurada que a promessa que projeta a ação para o futuro se
apoderaria. A fórmula dessa fala libertadora, abandonada à nudez de sua enunciação,
se ria: tu vales mais que teus atos.

V. Retorno sobre um itinerário: recapitulação

U111c1 uez rcco11d11: id11 a trajetória do padi10 a seu luga r de origc111 e o si (self) reconlzccido
e111 sua capacidade 111oral f1111d11mc11t11I, a i111put11/Jilidadc, a questão é saber que ollz11r 11oss11s
n:flc.nics sobre o ato de perdoar 110s perl//Ítc111 la11çar solnc a tot11lid11dc do ca111inlzo percorrido
nesse !it ro. O que é feito d11 111rn1ôria, dn lzistória e do csqucci111c11to, torndos pelo ôpírito de
1

perdão~ A resposta 11 essa perg1111ta zíltima co11stit11i, por assi111 di:cr, o epílogo do Epílogo.
O disrnrso que com é111 11 essa recapit11laç1'io 11110 é 111ais o de 1111111 .fi'110111e11ologi11, 11c111 de
1

uma epistc111ologi11, 11c111111cs1110 de 11/1/11 l!em1c11ê11tic11, é o da exploração do lzorizontc de reali:11-


çiio da rndeia das operaçiics coustituti-uas desse ê 11sto llle111orial do te111po que inclui a 111e111ôri11,
1

a história e o esq11ecilllc/lto. A esse respeito, 11rrisco-lllt: a falar de escatologia para s11h/i11!1t1r 11


di111c11si10 de antecipação e de projeçiio desse lwri:011te IÍlti1110. O modo gmnwtical 11111is apro-
priado, aqui, é o optnth 0 do dest:jo, 11 meio ca11Ii11lzo entre o i11dicatiz_ 0 da descrição e o i111pem-
1 1

ti-uo da prescrição.
Na ucrdade, só idc11t~fiq11ci tardi11111e11tc esse l'Íllrnlo pres11111ido entre o espírito de perdão
e o lzori::.outc de rcali:açíio de toda nossa e111prcit11d11. Trata-se 1111111ifcst11111c11tc de 11111 efeito
de re/citum. O prcssc11ti111c11to desse z1í11c11lo teria me g11i11do desde o começo? Talz 1c:. Sc_tii r
o caso, aplicarei a ele a distinção, proposta 110 i11ícío de Si mesmo como um outro, entre o
rnrso s11btcrrâ11L'o d11 motiuação e o desc11z,o/z,i111cuto controlado d1111rg11llle11t11ção? Ou 11i11da,
a disti11ç110 que ,te-uo, acredito, a Euge11 Fi11k, entre co11ceitos operatórios, 111111cn i11tcgml11[(:11tc
expostos diante do espírito, e conceitos temáticos, erigidos c111 objetos pcrti11rntes de saber? Eu

-!8 " Para um homL'm mau por na turL'za, a possibi lidadL' de St' tornar bom por s i nws mo é alg\l q ue
exced e todas as nos~as idéias: de iato, comll u111.1 ,ln·orL' m á plld eria carreg,ir bllns frutos J FntrL'·
t,rnto, Cllmo, segundo .i niniiss,ill ieita ,1cim,1, um,1,írn1rc boa na origem (sl'gundo sua dispnsi ç,i ll)
pn1du1.iu maus fruto s e ,1 quedc1 do bem no 111,11 (se se cons idera r que o mal pnl\'érn d,1 lilwrd ,1 dc)
nfü1 é mais intcligíH·l quL' a e lt>\'aç{Hl d\i m,1I ao bem , a possibilidade deste último caso nôo ptide
ser contestada. Pois, ,1 ~ws,1r dessa qued ,1 , ll mandaml' IÜO de "quL' temos p or tibrigaç,io to rnar-nos
m el hllr " L'Coa L'm noss,1 ,1!111,1 com muita força : é prl'c iso, por conseguintl', que o possa mos, ml'-.-
lllll st• aqu ilo que ptitkmos fazer fosse L'lll s i insuficiL'nte L' assim nlls torn,~ SSL'lllos simplesnwnll'
suscetÍ\·eis de recebl'r um ,1 u xí lio \'indo Lfo ,1 ltt1 L' insondávl'i para n(1s" (t>p. t"ÍI., pp. 67-68).
A MF.MÚRIA, A HI STÚR IA, O ESQUEC I MENTO

não saberia dizer. O que sei, em compensação, é que o que está enr jogo em toda a investigação
merece o belo nome de felicidade.

1. A memória feliz

Posso dizer, a posteriori, que a estrela norteadora de toda a fenomenologia da me-


mória foi a idéia d e memória feli z. Ela estava dissimulada na definição da visada cogni-
tiva da memória pela fidelidade. A fidelidade ao passado não é um dado, mas um
voto. Como todos os votos, pode ser frustrado, e até mesmo traído. A originalidade
d esse voto é gue ele consiste não numa ação, mas numa representação retomada numa
següência de atos de linguagem constitutivos da dimensão declarativa da memória .
Como todos os atos d e discurso, os da memória d eclarativa também podem ter êxito
ou fracassar. Nessa condição, esse desejo não é primeiro vislumbrado como um voto,
mas como uma pretensão, uma reivindicação - um claim - onerado por uma aporia
inicial cujo enunciado me agradou repetir, a aporia gue constitui a representação pre-
sen te d e uma coisa ausente marcada pelo selo da anterioridade, da distância temporal..
Ora, se essa aporia constituiu um real embaraço para o pensamento, ela nunca foi eri-
gida em impasse. Assim, a tipologia das operações mnemônicas foi, do princípio ao
fim, uma tipologia dos modos de ultrapassagem do dilema da presença e da ausência.
Dessa tipologia arborescente destacou-se progressivamente o tema régio do reconheci-
mento da lembrança. De início, n ão passava de uma das figuras da tipologia d a memó-
ria, e é apenas no final, na esteira da análise bergsoniana do reconhecimento das ima-
gens e sob o belo nome de sobrevivência ou de revivescimento das imagens, que o
fenômeno do reconhecimento afirmou sua preemi nência. É nele que distingo, hoje em
dia, o eguivalente do que, nas seções precedentes deste Epílogo, foi caracterizado
como incogníto do perdão. Equivalente apenas, na medida em que não é a nota de cul-
pabilidade que é aqui discriminante, mas apenas a de reconciliação, que imprime sua
marca final na seqüência inteira das operações mnemônicas. Considero o reconheci-
mento como o pequeno milagre da memória. Enquanto milagre, ta mbém ele pode
faltar. Mas quando ele se produz, sob os dedos que folheiam um álbum de fotos, ou
quando do encontro inesperado de uma pessoa conhecida, ou quando da evocação si-
lenciosa de um ser ausente ou desaparecido para sempre, escapa o grito: "É ela! É ele!"
E a mesma saudação acompanha gradualmente, sob cores menos vivas, um aconteci-
m ento rememorado, uma habilidade reconquistada, um estado de coisas de novo pro-
movido à "recognição". Todo o fazer-memória res ume-se assim no reconhecimento.
O brilho dessa estrela norteadora estende-se, para além da tipologia d a memória,
ao conjunto da investigação fenomenológica .
A referência à memória feliz autorizou-me, desde o início, a adiar até quase o fim
do livro a contribuição das ciências neuronais ao conhecimento da memória. O argu-
mento subjacente era que a compreensão dos fenômenos mnemônicos se faz no silên-
(1 l'FRDAO DIFÍCIi

cio dos órgãos, até que disfun ções imponham que se leve m e m conta, no plano dos
comportamentos vividos e d a conduta da vida, saberes que têm o cérebro por objeto.
É o mesmo pressuposto da clareza a si mesmo do fenóme no do reconhecimento
que, em seguida, armou a lâmina que decide entre duas ausências, a do anterior e a do
irreal, e assim cindiu por princípio a memória da imaginação, apesar das inquietantes
incursões da alucinação no campo mnemónico. Acredito poder geralmente distinguir
um a lembrança de uma ficção, embora seja como imagem que a lembrança volte. Ob-
viamente, desejaria ser sempre capaz de fazer essa discriminação.
Ainda é o mes mo gesto d e confi ança que acompanhou a exploração dos usos e
abusos que balizam a reconquista da lembrança nos trajetos d a recordação. Memória
impedida, memória manipulada, memória comandada, tantas fi guras da lembrança
difícil, embora não impossível. O preço a ser pago foi a conjunção entre trabalho de
memória e trabalho de luto. Mas acredito que, em certas circunstâncias favoráveis, tais
como a autorização dada por outro de se lembrar, ou antes, a ajuda trazida por outrem
na p a rtilha da lembrança, pode-se dizer que a recordação teve êxito e que o luto foi
retido no declive fatal rumo à melancolia, essa complacência para com a tristeza. Se
assim fosse, a memória feliz se transformaria em memória apaziguada.
Enfim, é no reconhecimento de si mesmo que culmina, no modo do desejo, o
momento reflexivo da memória. Ora, tivemos o cuidado d e não nos dei xar fascinar
pela aparência de imediatid ade, de certeza, de segurança d e que esse momento refle-
xivo se reveste fa cilmente. Ele também é um voto, uma pre tensão, uma reivindicação.
Sob esse aspecto, o esboço de uma teoria da atribuição, sob a tríplice figura da atribui-
ção da memória a si, aos próximos e aos outros longínquos, merece ser retomado sob
a pe rspectiva da dialética do liga r e do d esligar proposta pela problemMica do pe rdão.
Em compensação, ao se estender assim à esfer,1 da me mória, essa dialética acaba d e se
d eslocar à esfera específica da culpabilidade para adquirir a envergad ura de uma dia-
lética d a reconciliação. Recolocada à luz d a dialética do d esliga r-ligar, verifica-se que a
atribuição a s i do conjunto das le mbranças que constituem a identidad e frágil de uma
vida singular resulta da med iação incessante entre um momento de distanciamento e
um momento d e apropriação. Preciso pode r considerar à distância o palco e m que as
le mbranças do passado são conv idadas a comparecer para sentir-me autorizado a con-
sidera r sua seqüência inteira como minha, corno minha possessão. Ao mesmo tempo,
a tese da tríplice atribuição dos fenôrnenos mnemónicos a si, aos outros próximos e aos
outros longínquos, cmwida a abrir a dialética do desligar-liga r a outro que não eu mes-
mo. O que foi dado acima como a aprovação dirigida à maneira d e ser e de agir dos
que considero como meus próximos - e a aprovação vale como critério de proximida-
de - consiste também num desligamento-ligação: de um lado, a conside ração dirigida
à dignidade de outro - e que mereceu acima ser conside rad a como um i11cog11ito d o
perd ão nas situações marcadas pela acusação públiCc1 - constitui o mome nto de des-
li ga mento d a a pro\·ação, ao passo que a simpa tia constitui seu momento de ligação.
Caberá ao conhecime nto histórico prosseguir essa dialética d o desliga r-ligar no plano
da a tribuição da memória a todos os outros que não eu e me us próximos.
A \1Uv1(lRIA, A HIST()RJA, O FSQUFCIME!\:Hl

Assim se desenvolve a dialética do desligar-ligar ao longo das linhas da atribuição


da lembrança a sujeitos múltiplos de memória: memória feliz, memória apaziguada,
memória reconciliada, tais seriam as figuras da felicidade que nossa memória deseja
para nós mesmos e para nossos próximos.
"Quem nós ensinará a decantar a alegria da lembrança?" exclamava André Breton
em L'An10urfou 49 , dando um eco contemporâneo, além das Bem-aventuranças evangé-
licas, à apóstrofe do salmista hebraico: "Quem nos fará ver a felicidade?" (Salmos 4,7).
A memória feliz é uma das respostas dadas a essa pergunta retórica.

2. História infeliz?

Aplicada à história, a idéia de escatologia não deixa de suscitar ambigüidades. Não


estamos voltando a essas projeções metafísicas ou teológicas que Pomian coloca na
categoria das "cronosofias", em oposição às cronologias e cronografias da ciência his-
tórica? Deve ficar claro, aqui, que se trata do horizonte de realização do conhecimento
histórico consciente de seus limites, que vimos avaliando desde o começo da terceira
parte desta obra.
O fato maior que faz surgir a comparação entre o projeto de verdade da história e a
visada de fidelidade da memória é que o pequeno milagre do reconhecimento não tem
equivalente na história. Esse fosso, que nunca será inteiramente preenchido, resulta
do corte, que se pode qualificar de epistemológico, que o regime da escrita impõe ao
conjunto das operações historiográficas. Estas, como temos repetido, são do princípio
ao fim tipos de escritas, desde a etapa dos arquivos até a da escrita literária em forma
de livros ou artigos oferecidos à leitura. Sob esse aspecto, pudemos reinterpretar o
mito do Fcdro sobre a origem da escrita - ou pelo menos da escrita confiada a signos
externos - como mito da origem da historiografia em todos os seus estados.
Não que toda transição entre a memória e a história seja abolida por essa trans-
posição de escrita, como o comprova o testemunho, esse ato fundador do discurso
histórico: "Eu estava lá! Acreditem em mim ou não. E se vocês não acreditarem em
mim, perguntem a qualquer um!" Assim entregue à crença de outro, o testemunho
transmite à história a energia da memória declarativa. Mas a palavra viva da testemu-
nha, transmutada em escrita, se funde na massa dos documentos de arquivos que de-
pendem de um novo paradigma, o paradigma "indiciário", que engloba os rastros de
toda natureza. Nem todos os documentos são testemunhos, como são os documentos
das "testemunhas à revelia". Além disso, nem todos os fatos considerados como esta-
belecidos são acontecimentos pontuais. Muitos acontecimentos reputados históricos
nunca foram lembranças de ninguém.
A defasagem entre a história e a memória se aprofunda na fase explicativa, na qual
todos os usos disponíveis do conectivo "porque ... " são postos à prova. Obviamente, o

49 André Breton, L'A111011r j<JII, Paris, Callimard, 1937.


ll l'FRD ..\ll l)JJ ÍC I I

acoplamento entre a explicação e a compreensão, que não paramos de enfatizar, con-


tinua a preservar a continuidade com a capacidade de decisão exercida pelos agentes
socia is em situações de indecisão e, por esse viés, a continuidade com a compreensão
de si tributüria da memória. Mas o conhecimento histórico dá a vantagem a arquite-
turas de sentido que excedem os próprios recursos da memória coleti va: articulação
entre acontecimentos, estruturas e conjunturas, multiplicação das escalas de duração
estendidas às esca las de normas e de a,·aliações, distribuição dos objetos pertinentes
da história c m múltiplos planos, económico, político, social, cultu ral, religioso, e tc. A
história não é apenas mais vasta que a memória, mas seu tempo é folheado d e outro
modo. O cúmu lo do afastamento da história com relaçé"io à memória foi alcançado
com o tratamento dos fatos d e memória como "objetos nm·os", da mesma ordem que
o sexo, a moda, a morte. Assim, a representação mnemónica, ,·eículo do vínc ulo com o
passado, torna-se ela mesma objeto de história. A questão de saber se a memóriél , de
matriz de história, não se tornou simples objeto de história, pôde legitimamente se
colocar. Chegados a esse ponto extremo de redução historiográfica da memória, de-
mos voz ao protesto no qual se refugia o poder d e atestação da memória a respeito do
passado. A história pode ampliar, comple tar, corrigir, e até mesmo refutar o testemu-
nho da memória sobre o passado, mas não pode aboli-lo. Por quê? Porque, segundo
nos pareceu, a memória continua a ser o guardião da última dialética constituti,·a da
preteridade do passado, a saber, a relação entre o "não mais" que marca seu carüter
acabado, abolido, ultrapassado, e o "tendo-sido" que designa seu cará ter originário
e, nesse sentido, indestrutível. Que algo tenha efetivamente ocorrido, é a crença an-
tepredicativa - e até mesmo pré-narrati,·a - na qual re pousa o reconhecimen to das
imagens do passado e o testemunho oral. Nesse sentido, os acontecimentos, tais como
él Shoah e os grandes crimes do século XX, situados nos limites da representação, eri-
gem-se e m nome de todos os acontecimentos que deixaram sua impressão traumática
nos corações e nos corpos: protestam que foram e, nessa condição, pedem para ser
ditos, narrados, compreendidos. Esse protesto, que alimenta a atestação, é da ordem
da crença: ela pode ser contestada, mas não refutada.
Dois corolários resultam dessa constituição frélgil do con hecimento histórico.
De um lado, a representélçâo mnemônica tem corno único correspondente histórico,
por fa lta do élval do reconhecimento, o concei to de representância, cujo caráter precá-
rio enfatizamos. Apenas o trabalho de re\'isão e de reescrita rea lizado pelo historiê1dor
cm seu escritório é suscetÍ\·el de reforçar o créd ito dél presu nção de que as construções
do historiador podem ser reconstruções de acontecimentos efcti\'arnente ocorridos.
Segundo corolário: a competição entre a memória e a h istória, entre a fid elidade
d e urna e a ve rdade da outra, não pode ser decidida no plano epistemológico. Nesse
sentido, a suspeita instilada pelo mito do Fcdro - o p!111m111ko11 da escrita é \'eneno ou
remédio? - nu nca pôde ser suspensa no p lano gnoseológico. Ela se viu impulsionada
de novo pelos ataq ues d e Nietzsche aos abusos da cultura histórica . Um último eco
pode ser ouvido nos tcste n1Unhos de alguns historiadores notó rios sobre a "inquie-
tante estranheza da históric1 ". É para outro p<1lco que o debate de\'e ser le,·ado, o do
/1 MEM Ó RIA, A I I ISTÚR I A, ll FSQUFCIMENTO

leitor de história que também é o do cidad ão avisado. Cabe ao destinatário do texto


histórico fazer, nele mesmo e no plano da discussão pública, o balanço entre a história
e a memó ria.
É esta a última palavra a res peito da sombra que o espírito de perdão projetaria
sobre a história dos historiadores? A verdadei ra réplica à ausência em história de um
equivalente do fen ômeno mnernônico do reconhecimento pode ser lida nas páginas
dedicadas à mo rte em história . A hi stó ria, di zíamos então, en carrega-se dos mortos
d e antigamente de quem somos os herdeiros. A operação histórica por inteiro pode
então ser considerada como um ato de sepultamento. Não um lugar, um cemitério,
simples depósito de ossadas, mas um a to renovado de sepultamento. Essa sepultura
escriturária prolonga no plano da hi stória o trabalho d e memória e o traba lho de
luto. O trabalho de luto separa definitivamente o passado do presente e abre espaço
ao futuro. O trabalho d e memória teria alcançado sua meta se a recons trução d o
passado consegui sse s uscitar um tipo de ressurreição d o passado. Deve-se dei xar
apenas aos êmulos, confessos ou não, de Michelet a responsabilidade desse voto
romântico? Não é a mbição de todo his toriador alca n çar, atrás da máscara da morte,
o rosto dos que, no passado, existiram, agiram e sofreram, e fizeram promessas que
d eixaram sem cumprir? Ali estaria o voto mais dissimulado do conhecimento his-
tórico. Mas seu cumprimen to sempre ad iad o não pertence mais aos que escrevem a
história, está nas m ãos dos que fazem a história.
Como não evocar aqui a figura de Klee intitulada Angel11s Nov11s, tal como a des-
creveu Walter Benjamin n a nona de suas "Theses sur la philosophie de l'histoire"?"º
"Existe, diz-se, um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Ele representa um
anjo que parece querer afastar-se do lugar onde ele se mantém imóvel. Seus olhos
estão arregalados, sua boca aberta, suas asas estendidas. Esse é o aspecto que o anjo
da história necessariamente deve ter. Seu rosto está voltado para o passado. Onde se
apresenta a nós um a cadeia de acontecimentos, ele apenas vê uma só e única catástro-
fe. [... ] Ele gostaria mui to de deter-se, acordar os mortos e reunir os vencidos"'. Mas do
paraíso sopra uma tempestade que se prendeu em suas asas, tão forte que o anjo n ão
consegue mais fech ,~-Jas. Essa tempestade o empurra incessantemen te para o futuro
para o qual ele d á as costas, enquanto diante dele as ruínas se acumulam até o céu.
Essa tempestade é o que cha mamos de progresso." O que vem a ser, portanto, para
nós, essa tempestade que tanto paralisa o anjo da história? Não seria, sob a figura hoje

50 Walte r Benjamin, "Thcscs su r la philnsophi e de l' hi stoirc" (1940), in Sclirif/('//, 1955, l ll11mi11atio11c11,
1961, /\ngelus Nov us, 1966, Fra nk fu r t, Su hrkamp Yerlag; trad. franc. de M. de Gand ill ac i11 Wa lter
Benjamin, (Euvrcs li . /Jo(>siet'I l~h 10/11lio11, l'aris, Den oel, 1971, pp. 277-288. Outra tradução existe em
Walter Benjamin, Écrits fm 11ç1ús, Paris, Ga llimard, 199"1, com o títul o "Sur le con cept d ' histoire"
(1940), pp. 333-356. Cito a pri mci ra d as traduçôes mencionadas. Sobre as "Thcses ...", ler: Stéph a ne
Moscs, L'/\ngc de /'/Ji:::toire. lfosc11 z,l'c(1;, /k11j11111i11 , Sclwlc111, Paris, Éd. du Se uil, 1992, pp. 173-181; Jean-
ne-Marie Cagnebin, Histoirc l'I N11rmlio11 chc: W11/ter Hc11j11111i11, Paris. L'Harmattan, 1994, "H istoire
et césure", pp. 14'.H73.
51 Na verdade, essl' seria o caso se o futuro pudesse salvar do esq uecimento a hi stória dos venc idos:
tudo seria e n fim "recordado". Nesse ponto futuro, revol ução e redenção coinc idi riam.

•Z. 506 •Z.


() 1'11{() _.\() 1) 11 ÍCI 1

em dia contestada do progresso, a história que os homens fazem e que se abate sob re
a história que os historiadores escrevem? Mas então não é mais desses últimos que
depende o sentido presumido da história, mas do cidadão que dá uma seqüência aos
acontecimentos do passado. Permanece, para o historiador de profissão, aquém desse
horizonte de fuga, a inquietante estranheza da história, a intermin,ívcl competição
entre o voto de fidelidade da memória e a busca da verdade em história.
Falaremos, então, d e história infeliz? Não sei. Mas não direi: infeliz história. De
fato, há um privilégio que não pode ser recusado à história, não ap enas o de estender
a memória coletiva além de toda lembrança efetiva, mas o de corrigir, criticar, e até
mesmo desmentir a memória de uma comunidade determinada, quando ela se retrai
e se fecha sobre seus sofrimentos próprios a ponto de se tornar cega e surda aos so-
frimentos das outras comunidades. É no caminho da crítica histórica que a rnemória
encontra o sentido da justiça. O que seria uma memória feliz que não fosse também
uma memória eqüitatiYa?

3. O perdão e o esquecimento

Confessaremos i11fi11e algo como o ,·oto de um esquecimento feliz? Vou dizer algu-
mas de minhas reticências quanto a um l1appy c11d atribuído à nossa empreitada toda.
Minhas hesitações começam no plano das manifestações de superfície do esque-
cimen to e se estendem à sua constituição profunda, no plano onde se confu ndem o
esquecimento de apagamento e o esquecimento de reser\'a.
As artimanhas do esquecimento ainda são fáceis de desmascarar no plano cm que
as instituições do esquecimento, das quais a anistia constitui o paradigma, dão força
aos abusos do esquecimento que contrabalançam os abusos dc:1 memória. O caso da
anistia de Atenas, que nos ocupou no capítulo final sobre o esquecimento é, nesse
aspecto, exemplar. Viu-se sobre que estratégia de denegação da violência fundadora
se estabelece então a paz cívica. O decreto, reconhecido pelo juramento, ex igindo que
"os males não sejam lembrados", não pretende nada menos do que ocultar a realidade
da stasis, da guerra intestina, a cidade aprovando apenas a g uerra no exterior. O corpo
político, em seu ser profundo, é declarado alheio ao conflito. A pergunta é então colo-
cada: é possível fa zer urna política sensata sem algo como uma censura da memória?
A prosa política começa onde termina a vingança, sob pena de a história permanecer
enclausurada na mortal alternc'lncia entre o ódio eterno L' a memória esquecidiça. Uma
sociedade não pode estar indefinidamente encolerizada contra si mesma. Então, ape-
nas a poesia presen a a força do não-esquecimento rcfugiad<) na aflição que Ésqu il o
declara " insaciéÍvel de males" (t:11111(~J1idcs, ,·. 976). A poL'sia sabe ainda que o político re-
pousa no esquecimento do não-esqu ecimento, "esse oxímoro nu nca formubdo '', di-
Ziél Nicole Lorau x (La Cité diuiséc, p. Hí1 ). O juramento sô pode e,·ncá-lo e articuléÍ -lo
no 1nodo da negação da negação, que d ecreta o não-lugar dessa infelicidade da qual
Electra proclama ser ela mesma "infelicidad e que não esquece" (E/cetro, ,·v. 12-16-
12-17). Essa é a aposta espiritual da anistia: fazer calar o não-esquecimento da me-
,\ MLM()RIA, 1\ HIST(lRIA, O ESQU l:C l !\11:N TO

mória. Eis por que o político grego precisa do religioso para sustentar a vontade de
esquecimento do inesquecível, na forma das imprecações no horizonte do perjúrio.
Na falta do religioso e do poético, viu-se que a ambição da retórica da glória, na épo-
ca dos reis, evocada junto com a idéia de grandeza, era a de impor outra memória no
lugar da de Éris, a Discórdia. O juramento, esse rito de palavra - lwrkos conspiran-
do com ll'fhi! - talvez tenha desaparecido da prosa democrática e republicana, mas
não o elogio da cidade por ela mesma, com seus eufemismos, suas cerimônias, seus
rituais cívicos, suas comemorações. Aqui, o filósofo evitará condenar as sucessivas
anistias das quais a República Francesa, em particular, faz muito uso, mas sublinhará
seu caráter simplesmente utilitário, terapêutico. E ele escutará a voz da inesquecidiça
memória, excluída do campo do poder pela esquecidiça memória ligada à refundação
prosaica do político. A esse preço, a fina divisória que separa a anistia da amnésia
pode ser preservada. Que a cidade continue a ser "a cidade dividida", é um saber que
se inscreve na sabedoria prática e cm seu exercício político, para o qual concorre o uso
roborativo do disscnsus, eco da inesquecidiça memória da discórdia .
O mal-estar quanto à justa atitude que se deve adotar perante os usos e abusos do
esquecimento, principalmente na prMica institucional, é finalmente o sintoma de uma
incerteza tenaz que afeta a relação do esquecimento com o perdão no plano de sua es-
trutura profunda. A pergunta volta insistentemente: se é possível falar em memória fe-
liz, existe algo como um esquecimento feliz? Em minha opinião, uma última indecisão
acomete o que poderia se apresentar como uma escatologia do esquecimento. Tínha-
mos antecipado essa crise no fim do capítulo sobre o esquecimento, ao pôr na balança
o esquecimento por apagamento de rastros e o esquecimento de reserva. É exatamente
dessa balança que se trata de novo na perspectiva de uma memória feliz.
Por que não se pode falar em esquecimento feliz, do mesmo modo como se pôde
falar cm memória feli z?
Uma primeira ra zão é que nossa relação com o esquecimento não é marcada por
acontecimentos de pensa mento comparáveis ao reconhecimento, o qual nos agradou
ch amar d e pequeno milagre da memória - urna lembrança é evocada, ela sobrcvém,
ela volta, reconhecemos num instante a coisa, o acontecimento, a pessoa e exclama-
mos: " É ela( É ele! " A vinda de uma lembrança é um acontecimento. O esquecimento
não é um acontecimento, algo que ocorre ou que se faz ocorrer. Obviamente pode-se
perceber que se esqueceu, e nota-se isso num dado momento. Mas o que se reconhece
então é o estado de esquecimento no qual se estava. Esse estado pode obviamente ser
chamado de uma "força", como declara Nietzsche no início da segunda dissertação
de La gé11éalogic de la nwm!c. Não é, di z ele, " um,1 simples -uis i11crti11c" (Cé11é11/ogic ... ,
p. 271 ), é muito n-1ais " uma faculdade de inibição ativa, uma faculdade positi va em
toda ,1 força do termo" (i/lid.). Mas como sonws avisados desse poder que fa z does-
quecimento "o porteiro, o g uardião da ordem psíquica, da tranqüilidade, da etiqueta"
(il1id.)? Sabemos disso pela graça da memória, essa faculdade contrária "com a ajuda
da qual , cm determinados casos, o esquecimento é suspenso - a saber, nos casos em
que se trata de p rometer" (op. cit., p. 252). Nesses casos determin ad os, p ode-se fa lar
(l l'I .RD ..\tl IJIFI CI I

não apenas de faculdade, mas de vontade de não esquecer, '\·ontade que persiste em
querer o que quis urna \'ez, de uma memória da vontade propriamente dita" (i/Jid.).
É ligando-se que se desliga do que era uma força, mas não ainda uma vontade. Ob-
jetar-se-á que as estratégias de esquecimento, de que se falou logo acima, consistem
em intervenções mais ou menos ativas que se podem denunciar como modos respon-
sá\·eis de omissão, de negligência, de cegueira. Mas, se uma culpabilidade moral pode
ser ligada aos comportamentos dependentes da classe do não-agir, como queria Karl
Jaspers em Sclwldfmie, é porque se trata d e un,a multidão de atos pontuais de não-agir
cujas ocasiões precisas podem ser posteriormente rememoradas.
Um segundo moti\·o para afastar a idéia de uma simetria entre memória e esque-
cimento em termos de êxi to ou de realização é que, em relação ao perdão, o esqueci-
mento tem seus dilemas próprios. Esses se deYem ao fato de que, enquanto a memória
lida com acontecimentos até nas trocas que dão lugar a retribuição, reparação, absol-
,·ição, o esquecimento desenvolve situações duradouras e que, nesse sentido, podem
ser chamadas de históricas, pois são constitutivas do trágico da ação. Assim, o esque-
cimento impede a ação de continuar, quer por confusões de papéis impossh·eis de
desemaranhar, quer por conflitos insuperáveis n os quais a disputa é insolúvel, intrans-
poní\·el, quer ainda por danos irrepará veis que costumam remontar a épocas recua-
das. Se o perdão tem algum papel nessas situaçôcs de um trágico crescente"2, só pode
tratar-se de um tipo de trabalho não pontual a respeito da maneira de esperar e d e
acolher situações típicas: o inextricável, o irreconciliável, o irreparável. Essa aceitação
tácita lida menos com a memória do que com o luto enquanto disposição duradoura.
De fato, as três figuras aqui evocadas são figuras da perda; admitir que hcí perda para
sempre seria a má xima de sabedoria digna de ser considerada como o Íll(og11ito do
perdão no trágico da ação. A busca paciente da solução de compromisso seria a moeda
de troco, mas também a acolhida do di:-sc11:-11s na ética da discussé'i.o. Deve-se chegar
a dizer "esquecer a dh·ida ", essa figura da perda? Sim, pro\·a\-elmcnte, na medida
cm que a dívida confina na falta e enclausura na rcpetiçé'i.n. Não, enquanto ela signi-
fica reconhecimento de herança. Um sutil trabalho de d esligamento e ligação dcn' ser
rea lizado no próprio cerne da dívida: por um lado, desligamento da falta , por outro,
ligação de um de, edor para sempre insokente. A dívida sem a falta. A dívida posta a
nu . Onde se reencontra a dívida para com os rnortos e a históri;:i corno sepultura.
A razão mais irredutí,·el d;:i assimetric1 entre o esquecimento e c1 memória em rela-
ção ao perdão reside no cariltcr ind ccidí,·el da polcHidade que pôe o império subterrâ -
neo do esquecimento em conflito consigo mesmo: a polaridade entre o esquecimento
por apagamento e o esq uecimento de resen a. É sobre a confissão dessa ambigi.iid,1dc
irredutível que se pode apor ,1 marca mais preciosa e mais secreta do perd J o. Admitir
que " nzio h ti, para a \·istc1 humana, ponto de ,·ista supL'rillf de l1ndc se avistc1ri,1 ,1 fontL'

'i2 O. ,\bcl, "CL' quv k p.irdon , ·iL·nt f.1i1·l, d,111S l' hi-,toirl'", r ~1>1if, ILJLJ\ n · 7, /., · Poid., il,· /11 111,;111,1ir,·.
\:t1t,1r-sl'-,1 ,1 p ro:--imid,1dl' dcs-;a prtibk•m ,ítica c,,111 ,1 dv I lq~L'l 11 ,1 f t·11,11111·110/o;,:it1 do <'-)'irit, •, t'm
q ul' o pcrd Zw rvpnu..; ,1 nu m ,1 r v n t'1n ( i,1 rL'(Íf' H ,,,1 dPs p ,irl idtls, nu 111,1 l'L' IH·1n(i,1 de c,1d,1 u 111 ,1 -,u ,1
p,1 re ia Iid ,l dl'.
A Ml:M(li{IA, A IIISTÚRIA, O L S(JU FCIMJ:N TO

comum do destruir e do construir": este foi, acima, o veredicto da hermenêutica da


condição histórica proferido sobre o esquecimento: "Dessa grande dramaturgia do ser,
dizíamos para concluir, é impossível, para nós, fazer um balanço". Por isso não pode
haver um esquecimento feliz como se pode sonhar com uma memória feliz. Qual seria
a marca do perdão sobre essa confissão? Negativamente, ela consistiria em inscrever a
impotência da reflexão e da especulação em primeiro lugar na lista das coisas às quais
se deve renunciar, diante do irreparável e, positivamente, em incorporar essa renún-
cia do saber nas pequenas felicidades da memória feliz quando a barreira do esqueci-
mento é recuada em alguns graus. Poder-se-ia falar então de uma ars oblivionis, no
sentido em que se falou várias vezes de uma ars 111c111oríae? A bem da verdade, é difícil
traçar caminhos nesse espaço pouco familiar. Proponho três pistas para nossa explo-
ração.Poder-se-ia, à moda de Hara1d Weinrich, a quem devo a fórmula "\ projetar essa
arte como o simétrico estrito da ars 111e111oriae celebrada por Frances Yates. Enquanto
esta última era essencialmente uma técnica da memorização mais que um abandono
à rememoração e a seus lampejos espontâneos, a arte oposta seria urna "letatécnica"
(Lcthc, p. 29). De fato, se seguirmos os tratados de arte mnemônica contemporâneos
das proezas da nrs mc1110riac~\ a arte do esquecimento deveria assentar-se numa retó-
rica da extinção: escrever para apagar - o contrário do fazer arquivo. M as Weinrich,
por demais atormentado por "Auschwitz e pelo esquecimento impossível", não subs-
creve esse sonho bárbaro (op. cit., p. 253 e seg.). Esse saque, que já foi chamado de
auto-de-fé, desenha-se no horizonte da memória como uma ameaça pior que o es-
quecimento por apagamento. Essa redução a cinzas, enquanto experiência limite, não
seria a prova por absurdo de que a arte do esquecimento, se é que ela existe, não pode
se constituir em projeto distinto, ao lado do voto de memória feliz? Propõe-se então,
ao invés dessa ruinosa competição entre as estratégias da memória e do esquecimento,
o possível trabalho do esquecimento, tecido entre todas as fibras que nos vinculam
ao tempo: memória do passado, expectativa do futuro e atenção ao presente. É a via
escolhida por Marcos Augé cm Lcs Formes de f'uublis,. Observador e intérprete sutil dos
ritos africanos, o autor desenha três "figuras" do esquecimento que os ritos elevam à
condição de emblemas. Para retornar ao passado, diz ele, é preciso esquecer o presen-
te, como nos estados de possessão. Para reencontrar o presente, é preciso suspender
os vínculos com o passado e com o futuro, como nos jogos d e inversão de papéis. Para
abraçar o futuro, é preciso esquecer o passado num gesto de inauguração, de início,
de recomeço, como nos ritos de iniciação. E "é sempre no presente, finalmente, que
o esquecimento se conjuga" (Lcs Formes de /'oubli, p. 78). Como o sugerem as figuras
emblemáticas, as "três filhas" do esq uecimento (op. cit., p. 79) reinam sobre as coletivi-
dades e sobre os indivíduos; são ao mesmo te mpo instituições e provaçôes: "A relação
do tempo se pensa sempre no singular-plural. O que significa que se deve ser pelo me-

53 Harald Weinrich, Ll'fhe, K1111st 111ul Kritik des Vcrgcssc11s, op. cit.
S4 Cf. acima, primeira parte, cap. 2, § 1, pp. 73-82.
5~ M<1rc /\ugé, Lr:;; Formes de /'011/1/i, l'aris, Payot, 1998.
ll 1'1 IW ..\ll IJll· Í(.' 11.

n os dois para esquecer, isto é, para gerir o tempo" (op. cit., p. 8-l). Mas se "nada é mais
d ifícil de conseguir do que um re torno" (op. cit., p. 84), como se sabe desde êl Odiss611,
e têll\'ez, também, uma suspensão e um recomeço, de\'er-se-ia buscar esquecer, com
o risco d e somente reencontrar urna me mória interminá\'el, como o narrador de E111
busca do tc111po perdido? Não é preciso, de algum modo, que o esquecimento, enganando
sua própria vigilância, esqueça a si mesmo?
Urna te rceira pis ta se o ferece a explorar: a de um esquecimento que não seria mais
nem estra tégia, nem trabalho, um esquecimento ocioso. Ele seria um duplo d a memó-
ria, não a título de rememoração do ad\'indo, nem de memorização das habilidades,
nem, tampouco, de come moração de acontecimentos fundadores de nossa identida-
d e, irias de disposição preocupada instalad a na duração. De foto, embora a memóri a
seja uma capacidade, o poder de fazer-memória, ela é mais fundamentalmente uma
figura da preocupação, essa estrutura antropológica básica da condi ção histórica. Na
memória-preoc upação, fica mos junto do passado, pe rma necemos preocupados com
ele. Não haveria, e ntélo, uma forma suprema d e esquecimento, enqu an to disposição
e maneira de ser no mundo, que seria a despreocupação ou, melhor dizendo, a não-
preocupação? Das preocupações, da preocupação, não se falaria mais, como no final,
dizem, de uma psicanálise que Freud qualificaria d e "te rmi rnivcl" ... Mas para não
recair na s armadilhas d a a nistia-a mnésia, essa 11rs oblivio11is não poderia constituir um
reino dis tinto da memória, por complacê ncia com o desgaste do te mpo. Ela somente
pode caber no opta ti\·o da mem ória fe liz. Ape nas acrescentaria uma no ta graciosa ao
trabalho de memória e ao trabalho de luto. Pois não seria mais trabalho algum.
Como deixar d e e\'oca r - em eco à a p óstrofe d e André Breton sobre a alegria da
le mbrança e em contra ponto à evocação por Walter Benjamin do anjo da história com
as asas dobradas - Kierkegaa rd e seu elogio d o esquecimento corno libe ração d a preo-
cupação?
De fato, é mesmo aos "preocupéldos" que se dirigia a exortação do Evangelista
él "considera r os lírios dos campos e as él\'es d o céu"'": "Se o preocupado, obser\'a
Kierkegaard, prestar uma aten ção rea l élos lírios e às a\'es, se neles e na \'ida deles
se esquecer, a prenderá, com esses mestres, p or si mesmo, irnperceptivclmente, algo
de si mesmo" (Disco 11rs <\i{fin 11 ts .. . , p . 157). O que ele aprenderá com os lírios é que
"eles não trabalham ''. Deve-se e ntão compreender que até o tra ba lho de 1nemória e
o trabalho de luto de\·ern ser esquecid os? E como também " não fiam", sua simples
existê ncia sendo suas vestimcntas, d eve-se comp reende r que "o homem também, sem
trdbalha r nem fiar, sem nen hum mé rito próprio, está, pelo simples fato d e ser homem,
mais magnificamente vestido que Sa lo1T1,i.o na sua glória " ? Quanto aos p,~ssaros, "não
semeiam, nem ceifam, nem recolhem e m celeiros ". Mas, se "o pombo, é o homem ",
como es te conseguirá não mais "bancar o a\' isado", "rom per com a inquietação das
comparações", para "contentar-se com sua condição de homem"?

'i6 Sürcn Kierkcg,1 Md, "Cl' que nous apprl'nnl'n l ks li s Lks c h,1mps l't lc" o isc,rn x d u c iel ", in Di~t",1111,
,·difi1111t., 11 di,>t'I'., p,1i11t , tÍt' t'IIC (1 847), trad . fr,11K. Lk l'.-11. Tisscau L' L-i\1. J,1cqul't-Tissc,1 u, l'.Hi~, Éd.
dç L'Or,rntc, 'JL)t,(, .
1\ Ml'M()RI/\, A HIST( lRIA, O l: S() UEC I MF NTO

Que "distração divina ", como Kierkcgaard denomina esse "esquecimento da afli-
ção", para distingui-lo do divertimento comum, será capaz de levar o homem "a exa-
minar o q11a11to é 111ag11ífico ser ho111c111" (op. cit., p. 80)?
Despreocupada memória no horizonte da preocupada memória, alma comum à
esquecidiça e à incsquecidiça memória.
Sob o signo desse último incognito do perdão, poder-se-ia fazer eco ao Dito de sabe-
doria do Cântico dos Cânticos : "O amor é tão forte quanto a morte" . O esquecimento
de reserva, diria cu então, é tão forte quanto o esquecimento de apagamento.
ll l'll<D-\ ll Dll lllL

Sob ;:i his tóri,1 , a nw111(1ri,1 L' o L'sq u cc inwntll.


S(lb a nwmúri,1 l' o L'squc•c i nwnto, ,l \ ' id ,1.
Ma s t' SC l'l'\'l' r ,1 \·id,1 0 outra históri ,1.
I nacab,1 mcnto.

Pau l Ricn.•ur
Í N D I e E s
/

1ndice temático

AÇAO (ngmcy): 169, 193-194, 199, 244, 468, 469, - Ver tn111/1é111 MernóriJ obr iga dil cm l'v1EMÓ-
498. RIA.
ACONTECIM ENTO: 25, :n, 34, 41-42, 44, 55- COMPREENSÃO: ,•cr EXPLICAÇ;\O/ COM-
58, 69, 72, 80, 141 , 163-16-l, 165-168, 171-173, PREENSÀO.
181, 184, 190-191, 194, 201, 203, 205, 21 4, 220, CONFISSÃO: 332, 4h5, 4h8, 469, 473, 475, 485,
239, 243, 251-251, 254-259, 267-273, 280, 281, 486, 489, 491 -492, 497, 509-51O.
292,293,315,318, 333, 336, 342, 350, 376, 379,
- Ver t11111l>é111 CU LPABILIDADE .
386, 388, 392, 393, -l01 , 412-413, 425, 426, 436,
CON fl SSÕ [S: 170 -1 76, 491.
447, 449, 450, 452, -l57, -l72, -l73, 500, 502, 508.
CONJUNTUR A: 137, 141, 167, 168, 191, 203, 205,
- Ver t11111bt;111 CON JUl'\TURA; ESTRUTU-
2 16,220,235, 239,258, 292,336, 41 2, 439,305.
RA.
- Ver t11111/1é111 ACO'.\JTECI MENTO; ESTRU-
ACUSAÇÃO: ucr CULl'Aíl!LIIJADE.
TURA.
AFECÇÃO (pat/10 ~): 24, 34, 35, 45, 48, 55, 71, 83,
100, 105, 135, 199. CONSCi f:NCI A DE SI : 124, 126, 140.

A'VINÉSI A: ver ESQUECIMENTO. - Ver ta111bt;111 l{EfLEX ÃO.


AN ISTI !\: ucr ÜL'ver de esquec imento em ES- A MEMÓRIA, A I IISTÓRI A, O ESQUECI-
QU ECI MENTO. MENTO
- Ver t11111/Jt•111 Amnésia em ESQUECI - CONSIDERAÇJ\O: 479, 480,481, 482, 483,484,
MENTO. 485, 489, 497, '.101 , 503.
APROVAÇÃO: z•cr ATRll:3UIÇÃO. CRI ME: 30l, 310, 333-335, 33h, 337, 341, 342-347,
ARQUEOLOGI A DO SJ\8ER: 210, 212-214, 236, 374, 460, 462, 466, 475, 476-477, 478-481, 490,
415. 491,505.
ARQU IVO: 139, 154, 155, 156, 170, 176-187, 210, - Ver t11111h;111 CLJ LPJ\HILI DADE.
212, 247,299,300,310,3 11,331,350, 3.'i2, 3:i4, CU LPABI LIDADE
414,415,419,425, 43h, 510. -criminal: 466, 478-481, 482,483, 498.
- Ver t11111bé11 1 DOCU\1.ENTO. - lmputilbiiid,Kic : l 17, 135, 138, 142, 193, 199,
ATRIBU IÇÃO 200, 344, 357, J73, 393, 402-403, 465 -468, 471,
- da lembrança: 13-l-142, 503-4. (Ver t11111l>t;111 473, 474, 501.
:vl ernória pcssoa l / coleti\·a l'm MEMÓRL.\.) - 1ncu lpaçc'w: 335-336, 340, 347, 476, 481, 483.
- d a morte: 369-370, 373. - rnetafísic,1 : h9- 470, 476.
- da responsabil idade: 344. (Ver tn111/>t;111 \,k - - mora 1: 476, 482-483, 509.
mória pessoa I/colcti\·il cm M EMÓRI A) - política: 466, 476, 48 1-482, 490-491.
COMEMORAÇÃO: -l 5, 60, 73, 78, 98, 102-104, - Ver tt1111/>é 111 CON flSSÃO; CR I\1E; DES-
112, 121 , 136, 157, l:i9, 363,403, 41 2, 414-41 6, CUI.P!\ÇÃO; IJESCU LP!\; FALTA; !NO-
419-421, 458, 475, _:;11 .
i\ MEM(lR l i\, i\ HI ST(lRli\, O l·SQUl:CIMENTO

CÊNC IA; MJ\ L; PENA; PROCESSO; PU N I- ESQUECIMENTO: 27, 28, 32, 40, 45, 46, 48, 49,
ÇÃO; VÍTIMA. 52, 54, 55, 57-58, 60, 76, 77, 80, 81, 82-84, 93,
94, 98, 100, 102, 104, 106, 110-111, 115, 117, 132,
01\SE/N: 358, 359, 362, 363, 366-368, 386-388, 152, 153-154, 231, 235, 237, 245, 257, 300-301,
389,391,395, 450, 451. 304, 306, 308, 334, 335, 340, 350, 358, 366, 375,
- Ver la111/1é111 SER. 396-398,400, 423-462, 465, 466, 477,482,493-
495, 501, 507-512.
DESCULPJ\: 454,474, 475,491.
- Amnésia: 45-46, 132,431,435,458, 459,460,
- Ver tn111/1é111 CULPABIUDJ\DE.
462,508.
DESCULPAÇÃO: 336, 339-340, 343, 345, 347,
- Ars o/1/á1ioui:;: 82, 423, 435, 510, 511.
454, 476, 482, 483.
- de recordação: 451 -462.
- Ver tamh('III CULPABIUDJ\DE.
- de reserva: 300-425, 427, 436-450, 507, 508-
D/SSENS US: 175, 187, 310, 334, 337-340, 346,
509.
347, 457, 458, 462, 470, 476, 508, 509.
- Dever d e-, a nis ti a: 459-462, 477, 490-492,
DÍVIDA: 101 , 301 , 318-319, 346, 363, 374-376,
495, 507, 508.
385, 389, 451, 488, 497, 509.
- Ver l11111bé111 MEMÓRIA; PERDÃO.
- Herançil: 10l, 301, 374-376, 389,390, 497,509.
- feli z : 300, 423, 508-510.
DO CUMENTO: 170-175, 178, 179, 183, 185-190,
- por apagamento dos rastros: 428-435.
193,194,201,207,247,292,352,399.
ESTRUTURA : 141, 161, 164-1 70, 173-175, 177,
- Doc ume nto-m o nume nto: 58, 186, 354.
191, 202-206, 211, 216, 218, 220, 229, 235-236,
- Vrr tnm/Jc' llt LUGAR DE M EMÚRIA.
237-239, 242, 253, 254, 257-259, 261-262, 263,
- Fase doc ume nta l: 146-147, 155-192, 250-251, 264,265, 266, 291,292,312,331,334,345,346,
256, 352. (Ver t11111/1é111 O pernção hi s toriográ- 355, 374, 375, 376, 386, 390, 394, 41 6, 430-431,
ficil em HI STORIOCRAFI /\.) 433, 435, 437, 446, 448-449, 459, 466, 467, 482,
DOM 483, 486, 492, 493, 505, 508, 511.
- Economiil d o - , e troca: 486-488. - Ver ln111/Jé111 CONJUNTU R A; ACONTECI-
- e perdão: 466, 488-492. MENTO.
DURAÇÃO: ver TEMPO. EX !STENCIÁRIO: 54, 299, 300, 358, 359, 360,
362, 364, 367, 370, 375, 380-381, 386, 387, 390-
EIDÔLON: ucr IMAGEM. 391, 395,396,467.
E/ KÔN: 26, 27-34, 36, 38, 39, 45, 53, 61, 67, 71, 124, - Catcgoriils ex istenciá ria s: 299, 320, 363,
136, 186, 197, 199, 242, 274-275, 280-281, 293, 394.
294,389, 425,443. EXPER IÊNCIA
- Arte eicástica e mimé tica : 31-32, 38-39, 71, - da história: 309,312,314,315,316,320, 373-
293. 374.
ÉPOCJ\: ver Cronosofüi c111 TEMPO. - te mporal: 125, 127-129, 361.
ERRO : 27-30, 39,137, 183-184, 211,283,332,335. - Ver fa111úé111 Espaço d e exper iência c111 ES-
ESCJ\LAS: PAÇO.
- de tempo: 235-236, 258,366,505. EXPLICAÇÃO/ COMPREENSÃO: 147, 148, 165,
193-248, 250-251, 255, 266, 273, 289-290, 299,
- Vilriações de : 197, 198, 203, 220-228, 229,
340, 352, 354.
232, 235, 238.
- Ver tn111bé111 Operação his toriográfica em
ESCATO LOGJ/\: 501-51 2.
HISTO RIOG RAFIA.
- Horizonte; 53, 57, 59, 66, 91, 97, 123, 128, 168,
281,301 , 308, 311-312, 315,328,334,335,367,
370, 371,372, 373, 375, 392, 423, 424, 448, 450, FALTA: 374,393,465, 467-473, 474, 476, 484-485,
451,465,475,501,504,508,510, 512. 497,509.
ESCR ITURA (DA HISTÓRIA): uc r l)] SCURSO - Ver tn111bé111 CULPABILIDADE.
HISTÓRICO. FIDELIDADE DA MEMÓRIA 24, 26, 29, 32, 40,
ESPJ\ÇO 45, 70, 72, 101, 146, 166, 200, 241, 293, 300, 423,
440, 502, 504-507.
- de experiênc ia: 311 -315, 373,392, 451.
- Ver tn111bé111 VERDADE.
- habitado: 155, 156-162.
Í\:l)J(_I s

GERAÇÃO: 75, l-+1 -1-+2, 287, 318-319, 323, 363, - Ver t 11111/1t' III [ piste mologi.:i d.:i histórid l'/11

390, -106, -109, -l1 6--l1 9, -158. HI STÚ RI A E DISCL RSO HI STÓRICO.
GIV \PH: z,1•r !NSCR IÇ/\.0.
ICÓN ICO: i'cr F. I K(l;\J.
HARITUS: -l5, 17-l, 216-218, 231, 236, 257, -133, IDEN T IDADE:
-l-!H. - coktiv,1: 92.
HERMENÊUTICA - pessoa l: 92, 11 3-11 9, 455.
- crítica do conhecimento hi stórico: 309-356. !MACEM
- ontológica : 357--103. - fidâ/011: 28, 30, 3 1, 3-i, IS3.
HISTÓRIA - e lugan's, c1r., lll('llrnric1(': ,•cr ML' mor i1.açiio
- "a própria Históriél" (d ic Gcsc/1ic/itc sc/1,n/ : cJJ1 MEMÓl{IA.
311-320. - 1magem-ficção: 27, 31 , 38, 65, [ 99.
- d ,1s menta lid.:idcs: ,,a Represent,1 çc10-ob- - 1magem-lembr,rnça: 26, 38-39, 61-n3, -i28,
jeto em REPRESE NTAÇÃO. -i31.
- Ep istemologi.:i da: 99, 103, 1-13-293, 360-362, - Prestíg ios da: ,,,.,. Rt:.'prescntação hi storia-
3% , -123, -132. dor.:i c111 REPRESENTAÇÃO.
- Ver t1111il1t;111 Filosofia críti c,1 da hi stória sob - Ver tm11/1t·111 E!KtiN.
HISTÓRIA. IMAG INAÇÃO: 25 -2n, 77, 79-81 , 9-i, 121, 137,
- Fardo da: 303-308, -til 16-i, 205, 2-i5, 263, 26-i, 265, 28 1, 382-384, 332,
- Filosofia crítica da : 309-356. 360, 392, -i 16, -i37, 503
- Inquieta nte es tranhen 1 da : -Hl4-,l21 , 505, I MPRESCR ITÍVEL: -171 , -l77, 479.
507. IMPRESSÃO (~(· 111c iu11): , cr RASTRO
1

- Miu ostoria: 220-221 , 223-227, 230 IN DÍC IO : 26, 5:i, 123, 125, 184, 186, 226, 313,
J\ MEMÓRIA, A HISTÓRI A, O ESQUECl- -i76.
:V1ENTO - P.:irndig ma indici,írio: 184-18\ 225, 332,
- Ver te11n/Jt'111 HISTOR IADOR; HISTORIO- 352.
GRAFIA; HISTÓRICO. HISTORIADOR (1::5). - Ver /11111/1<;111 Ra stro material c111 RASTRO.
- Controvérsia d os - (Historikcr,;trcil): 267- 1NOC ÊNCI A: -i68, -i72, 500
27-l, 3-l0-347. - Ver /11111/it;,11 CU I. P/\BI LIDADE.
- e jui z: 330-347. INSCR IÇÃO (g rnpltt·): 36, 37, 39, 75, 77-78, 1-i9,
HISTÓRICA/ O 150, 152-153, 155, 156, 159, 163-16-i, 170, 187,
- Comi ição: 297-462. 196, 207, 281,331 , 3-l8, -il5, 434, -i36, -147.
- Con hecimento: -12, :il , 57, 58, 59, 99, 104, 107, - Ver /11111/)('111 f./ KôN; RASTRO.
1-l:i, 146, 148, H 9, 15 0, 156, 163, 164, 170, 177, INT ER IOR IDADE : Per REFLEXÃO.
180, 185, 188, 190, 19 2, 199, 21s, 227, 23n, 2-17, INTER PRETAÇÃO (EM HISTÓR IA): -i3, 196,
250, 251, 253-25-i, 263-26-i, 289, 330, 3-l7, 3-19, 202, 210, 220, 227, 2-il , 243, 248, 253, 269, 271,
350, 351 -352, 360, 362, 365, 366, 374, 380, -i07, 283, 291,311, 347-356, 380, 385-386, 387, 398.
-i08, -l32, 50-i-506 - Va tolll/'(;111 OBJET IVIDADE : História l'
- Discurso: 165, 177-178, 190-191 , 19-i, 195- verdade c111 VERDADE.
197, 213-214, 215, 222, 228, 247-296, 311, 351, IPSEIDADE : 9-i, 17-i, 388, 466,473, -l92--i97.
35-i-355,375,50-i.
f!I STORICID/\DE (dic Gcscl1icl1tlicl1kcil) : ,'t'r JUI Z: per Hi stori,Klor e juiz c111 HI STORIA-
Condição histó rica c111 HISTÓRICA. IJ()I{(ES}.
HISTORIOGRAFIA: 1-iO, 1-i8, 15 1, 152-153, 15-i, JURAMEN TO : ,•cr l'RO MF.5SA.
155, 156-157, 169, 170, 187, 197, 200, 210, 212,
JUST IFICAÇÃO
227, 228, 229, 236, 238, 2-i l , 244, 247-2%, 30 \
- e injustific,1,·el: 3-i l, 3-i-l, 470-471, 477
.30-i.
- Ope r.:ição historiog rMica: ,•cr DOCüME N-
LEM BRANÇA
TO; EXPLICAÇAO/ COMPREENSÃO; Re-
- imagem: ,,,•r Imagem-lembrança <'111 IMA-
p resentação historiado ra t' III REPR ESENTA-
GEM .
ÇÃO.
A MEM ( )RI A , A III ST() R I A, O ES(J U EC IMl·: NTO

- primária (rctenç5o): 49, 50-52, 61 , 62, 63, 359-362, 396,423,424,432,435, 439,452, 468,
64-65, 119-120, 121-123, 125-126, 171,173,351, 501-502.
360. - Reminiscê ncia, rem emoração (n11n11111csis): 24,
- pura: 47, 67-70, 163,442,444,453. 26, 30, 37-40, 41, 45, 46, 52, 55, 58, 59, 61, 71-72,
- secundnria (re produção): 47, 49, 50, 52, 53, 79, 80, 81, 82, 85, 92, 93, 98, 117, 121, 125, 136,
64, 65, 124-126. 138-139, 152, 174, 192, 193, 304,399,401,402,
- Va tn111/1ó11 MEMÓRIA; ESQUECIMEN- 418,435,449,451,452,453,468, 511.
TO. - Trabalho de: 48, 87, 91, 99-104, 138,272,334,
LIGAR 351,397,456,457,462,490,491,503,506,511.
- Va tn111/1é111 Trabalho de luto e111 LUTO.
- Ligar-des ligar, 1igamento-desl igamento:
466, 495,497-501. - Ver ft1lllb1'111 LEMBRANÇA; VERDADE.

LUGAR DE MEMÓRIA: 102, 103, 156-162. MEMORIZAÇÃO: ver MEMÓRIA.


- Ver t11111ÍJ(;111 DOCU M ENTO-MON UM EN- MENTALIDADES: ucr Representação-objeto
TO. c111 REPRESENTAÇÃO.

LUTO: 85-87, 90-93, lOO-HJI, 370-372, 377, 402, MODERNIDADE: 166, 304, 306-307, 310, 312,
419, 457,462, 475, 490, 491 , 503, 506, 509. 314-315, 318, 320-329, 331, 343, 401.
- Trabalho de: 85-87, 90-93, 100-101, 104, 192, - "Nossa modernidade": 320-329.
334, 351, 453, 457, 503, 506, 511 . - Pós -moderno: 268, 329, 310, 328-329.
MORTE
MAL - cm histórir1: 214,245, 371, 373-380, 396,404,
- moral: 465, 470-472. 506.
- rndical: 500. - Sepultura: 243, 351, 362, 377-378, 380, 388,
- Ver ta111bé111 CULPABILIDADE. 391, 506, 509.

MASSACRE ADMINISTRATIVO: 186, 337.


MELANCOLIA: 85-90, 100, 158, 345, 347, 402, NARRAÇÃO (E HISTÓRIA): 172,189, 201, 248-
447, 452, 454, 503. 260, 262, 283, 355, 407, 455.
- Ver lt1111b1;111 LUTO. - Coerência narrativa: 249, 255-256.
- Ver t11111b1•111 Representação historiadora c111
MEMÓRIA (11111t'lllt' ) : 24, 37, 38, 45, 61, 71,294.
REPRESENTAÇÃO.
- arquivada: ver DOCUMENTO.
NATALIDADE: 307, 368, 386, 390, 497.
- impedida: 72, 83-93, 102, 138-139, 271-272,
452-455.
OBJETIVIDADE: 49, 51, 106, 124, 179, 307, 311,
- fc li i'.: 79, 110, 111, 153-154, 402, 423, 435, 437,
347-356, 358, 387.
466, 503, 504, 507, 508, 510 -511.
- Ver tn111b1;111 VERDADE; INTERPRETA-
- manipulada: 72, 82, 83, 93-99, 102, 139, 175,
ÇÃO.
452, 455, 503.
OLHAR
- Memorização, nidc-11H;111oirc ('111po11111ii~is):
38, 56, 58, 66-82, 151 -152, 154, 164, 174, 360, - inte rior/ e xterior: ver Memória pes soal / co-
377, 423, 424-425, 435, 511. letiva c111 MEMÓRIA.
- obrigada, dever de: 83, 99-104, 452,459.
- Ver /11111bé111 Dever de es quecimento e111 ES- PASSADO; ver TEMPO.
QUEC IM ENTO. PENA: 335, 459-461, 466.
- pessoa l/ coletiva: 55, 60, 70, 83-85, 91-95, 99, - Va tn111/Jé111 CULPABILIDADE.
105-142, 157, 164, 187, 199, 271 , 3 10, 337, 338, PERDÃO
363, 365, 397-400, 403, 404, 406-409, 411, 413, - Imperdoável: 465, 471-479, 484,497.
417, 451, 452, 455, 457, 459, 482, 483, 505. - Irreversibi lidade: 466, 477,493,496.
- Ver /11111/n;,11 Atribuição da lembrança e111 - Penitência, arrepend imento : 466, 475,485,
ATRIBU IÇ ÃO. 491-492, 495, 498, 500.
- Fenomenolog ia da - , fenómenos mnemó- - Ver tn111/J1•111 CULPABILIDADE; DOM; ES-
nicos: 23-26, 40-60, 66, 70, 91, 99, 103, 104, 106, QUECIMENTO.
107, 119, 127-128, 130-131, 134, 135-141, 145, P/-JARMAKON : 148, 151 -152, 154, 178-179, 192,
172, '186, 193-1 94, 197, 225, 241, 248, 249, 250, 303, 306, 404, 505.
Í''-'.)J U S

PLURALIDADE H U\-1ANA: 118,317, -!70, -!93, REPR ESfNTAÇ AO


-196. - Rcprcsent,incia: 190-191, 248, 250, 257, 259-
!'RESCRIÇÃO: 460, -177--180. 260, 275, 288, 293-29-l, 374-375, 389, 3% , 505.
- Ver ta111/Jé111 IMPRESCR ITÍVEL. - Rcprese nt,1ç,10 -objeto: 196-2-15, 218, 277,
PRESENÇA DO AUSEl\:TE: ,•cr Imag cm-le m - 321.
br,rnça c111 IM AG EM. - Rc prl'Sc ntaç.'10-npc raç..10 o u repn'Sl' nt,1çi'ío
PROC ESSO: ;,cr Historiador e juiz c111 HIS- hi s toriadora : 21 7-295.
TOR IADOR( ES). - Ver t11111!1t;111 Operaç.'í o histo rio g ráfica c 111

- Ver tn111/1é111 CU LPABILIDADE. H ISTOR IOGRA FIA.


PROM ESSA: 174, 289,319,347, 46ó, -178, -!92--197, REPRES ENTÂNC IA: ,•cr REPRESENTAÇAO.
500-501. RETÓRICA: ,'1T Di scu rso histórico cm HISTÓ-
- Impre vis ibilid a d e: -ló6, -llJ-l. RICA.
- Ver t11111/Jc;111 PERDÃO. - Ver to 111/ii;111 Im.1gcns l' lug are s c111 !VIA-
PROVA DOCUMENTA I..: , 11·r DOCUMENTO. GEM.
- Ver t11111h;111 Hi sto ri ado r e jui z c m HISTO-
RIADORES. SEPULTURA: ,•cr ~IO IUE .

PRÓXIMOS: l-ll -1-12, 371. SFR

- Ver AT RrBU IÇÃO e Memória pt·s-


ta111/1é111
- Tendo sido: 6-l (kndo-s id o ), 29-l, 363, 37-+,
s oal / coleti va em VIEMÓR!A. 376, 388-389 (tendo-s ido), 392, 393 (tcndo -
s ido), -Fill, -!51 (tendo-sido), 505 (tendo -sido).
l'U N IÇÃO: 11 7 (castigo), 232, 300 (castigo),-!59
(Ver 111111/1,;111 DASE! N ; T EMPO.)
(castigo), 466, -176, -181, -18-l.
- Sc r-"n o"-tc mp o: 361, 363, 39-l-401.
- Ve r tmn/11' 111 CUL PA BILIDADE.
- Ver /11111/1,;111 Condiç,10 hi s tó rica c111 1--! IST()-
RAST RO RICO.
- Impressão (:.-1' 111cit111 ) : 27-3-l, 36-39, -15, 77, 80, - Se r-p a r,i-.1-mnrtc: 359, 361-363, 361 -373,
186, -125, 434, -138. 380, 386, 391-395, 196.
- mdterial (t11pc1~) : 27, 32-3, 36, 38-39, 67, 80, - Ver /11111/11;111 rv!O RT E.
-t25, -l-B. S I: l'cr REfLEXr\O; Consciên cia d t· si c Ide nti-
- Ver 10111/,1;111 INDÍC IO. dade PL's soal 1' 111 IDE NT IDADE.
- mnés ico, cortic,1 1: 3-l, -15, 73, 425, -1 28, -D ll-
-131, -13-l, 436, -l-10, -l-f7. TEMPO
- psíq ui co, imp ress..10-afecçfül: 3-t -f25, -f28, - Crun os o iia : 16-l-1 67, 170,325,363.
-U7--f38. - Ou ra çZio: 2:i, 50-53, 58, 11-l, 121-1 22, 12-f,
RECONHECIME!',;TO: 26, 30, 32, 48, 53, 56, 68, 133, 159, 161, ]63, 191, 197, 203, 206, 223, 230,
70-7 1, 73, 87, 11()-111 , 12-t-125, 131, 135, 138, 235 -236, 239, 2S2, 258, 314, 3-!9, 351 , 4 19, -127,
199, 233-234, 2-fo-2-11 , 2-f3, 250, :mo, 311, 1m, H 3, -145-4-16, -!7-l, 505, 511.
328, 351, 367, 389, -102, -llü, -!2-l, 426, -f33, -1 37-
- H is ttiria l' - : 357--121.
-l-ll , H 3-4-l-l, -l-16 --l-!8, -150, 452, 469, 188, -!99,
302, 504-506, 508-509. - lm p rcYi s ibi lid adl' : , 1cr PROM ESSA.

- Ver t o111bt;111 MPv1é1RIA; Esqucci rnl'nto d L' - lrrcH'rsi b ili dadc: ucr PERDÃO
res e r va e111 ESQUECIMENTO. - Pn..'scntc, p,1ssado, futuro : 27-29, 3-l -36, -lll-
RHLEXÀO: 31, 33, 11, -13, -!7, 56, 82, 81, 86, 93, 41 , -f3-15, -17-18, 50-51, 56-57, 63-70, 7-l, 82-83,
99, 11 2, 11-l-115, 120, 123-1 24, 126, 1-15-1 -!6, 92, 91, 96, 100-102, !04, 108, 111-112, 115, 11 9,
156,203,218, 212, 2-15, 256, 267, 27-l, 28-l, 290, 121, 123-125, 133, 148, 156, 16-l, 166, 180, 187,
299, 308-311 , 31:i, 320, 323, 32:i, 327, 330, 331, 189, 208, 238, 2-f 1-2-l-l, 249, 265, 30:i-307, 310,
338, 340, 3-13, 347-318, 3-19, 351, 351 -3S5, 372, 3 12, 315-316, 318, 320-322, 32-l-326, 328, 331,
386-387, 12-l, -l-12, 1-l-l, 147, 152, -167, 469, -!90, 334, 319-:r:;_1, 357, 3S9-365, 367, 373, 375-378,
-!97, 510. 380, 391 -39-l, 397-398, -llH-103, -113, -lllJ-421 ,
REMEMORAÇÃO: ,•cr VIEMÓR IA. 427-428, -1 3-l, 438, -l10-H4, H 6, -!50, -15-f, -l.56,
REPETIÇ ÃO: S5, 57, 75, 8-l-87, 92, 272, 293, 3 18, 459, -17-l, -19-f, 50ó, 5IO.
32 1, 363, 390-393, 396, 399, -!OJ, H 9, -f'i1--lS4, - Tcmporali zaçc10 : 50, 77, 119, 237, 239, 315,
-!S6, 509. 318 , :no, 361,363, 367, 380, 387, 39-l.
1\ MEM()RJ/\, A HIS'J()RIA, O ES(lUECIMLNHl

- Temporalidade: 59,365. - Ver t11111bh 11 FIDELIDADE DA MEMÓRIA.


TERCEIRO: 105, 139,173,310,330,334, 346-347, - Hi s tória e: 146, 148, 154, 166, 187, 189, 196,
371, 483. 200, 214, 220, 241, 248, 253-254, 269, 273, 292-
TESTEMUNHO: ver DOCUMENTO. 293, 300, 307, 310-311, 319, 330, 335, 354, 373,
TROCA: ver DOM. 403,443,459,489,491, 504-507.
- Vcrossimilhança: 184,263,290.
UNICIDADE: 274,337, 341-344, 346. VÍTIMA: 99, 173,187,333,335,476,485,491.
- Ver tomb(;III CU LPABIUDADE.
VERDADE
- Ambição veritativa da memória: 40, 70, 72,
101, 146, 148, 166, 196, 200, 241, 248, 254, 292-
293, 300, 310-31 1, 398.
/

Indice dos nomes e das obras citadas*

* Os números cm negrito remetem às referências completas da obra.

Ü l! R.·\ S CllLJ . 1IV!\S Ol' .-\\:()'\ l\ 1-\C: - Diogi·11c, 251 n5.


- F\ pril, 509 1152.
-Â 11cic11t 1111d Modcr11 Hi~tory, 410 n83. - !11forllla tit111,; s11r lcs ,cic11ccs soci11/cs, 262 n 24.
- Câ11fíco dos Câ11tiw:::, .'i l 2. - /11hrh11c/1 _fiir Plui110111c110/ogic 1111d piJiint>llll'-
- Uc11tcro11ii111io, 410 n85. 110/ogisciJc Fo rsciJ1111g, 358 n2.
- Oeua11t /'histoirc. Lc.; doc11111c11ts dí' la co11tm- - Le 0 1•/111/, 255 n9, 458 n30.
1•cr~c s11r /11 .;i11g11larif1• de /'c.rtcr111i1111/io11 de~ - Lcs Cahicr.,, 288 n 66, 396 n57.
/u i,:.; par /e rcsí111c 1111:í, 267 n33, 273 n43, 3-10 - Littá11t11rc, 221 n53.
n47, 341 ,341 n49, 34 3 n 51. - M ercurc de Fnmcc, 445 nl 9.
- Dictio111lllirc de /';\ c11d1•111ic, 324 n24. - f>rocccdi11gs o{ f/Jc A ristotcli1111 Soâc/ _11, 135
- Oidio111111rc Lc Rol,crt, 280. n33.
- Ecb instcs, 89, 395 n 55. - Rcu11c d 'iJistuire de /11 ;;pirit11alifl\ 377 n27.
- f.11clyc!opacdi11 U11í,•t•rs11/is, 205, 205 n23. - Rn,11c de 111dapiJy,.;iq11c t'I de 111or11Ic, 126 n21 ,
- [11cyclopedia Ei1111udi, 186 n49, 397 n60. 201 n19, 398 n62.
- Eu1111scll10s, 489, 496 1142, 497 1143, 498 n46. - lfru11e de ,;_1111t/1i•,.;e /Jisloriq11c, 201 n 11 .
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509 n52.
Pl:l'1l ll.l1Ct )S - "Tc1bl es du pardon. Céogrnphie d cs di -
ll'mmes ct parcours bibl iog raphique", in Lc
- A 111111/cs, 140, 161, 194-195, 195 114, 197, 200, Pardo ,,. Bri;;cr la deite ct /'o11bl i, 484 n22.
201 n13, 202-203, 203 1119, 204 n21 , 205-206, ACOSTlNHO (SAt\TO)
210, 21 5-216, 220, 228, 229 n 70, 231, 243 n97, - Co11fi~stks, 50, 77, 109, 1()9 n3 (frc1 nc.), 110
251-253, 309, 329, 333, 336, 354, 379, 396, 396 116, 11 2, 134, 142, 170, 312, 360, 364, 443.
n57, 399. - Â Cidade de Dc11s, 365.
-Â11111•e sociologiq11c, 486 11 26. AMÉRY J.
- Co1111111111irnlio11s , 261 n 22, 262 1124. - Par-de/à fc, c"ri111t' t'f ft, c/1íit i111c11t. E,.;,;ai pvur
- Critique, 329 n 32. .~11rn1011ta /'i11,.;11rn1011/t1blc, 187, 187 n54, 471
n7.
A MFM()RJA, A HISTÚRIA, O FSQCECIMF:\iTO

AMI'HOUX (P.) AUCÉ (M.)


- Lc Srns du licu, 162 nll. - Lcs For/1/cs de /'oubli, 510, 510 n55.
ANKERSMIT (F. R.) AZOUVI (F.)
- Nnrrati1'l' Logic: a Sc111n11tic A1111l_11sis of t!,c - "La formation de l'i11dividu comme sujet
Histori1111's La11g11ngc, 257 n14, 291 n69. corporel à partir de Descartes", i11 L'/11dividu
ANSCOMBE (C. E. M.) dans la pe11St'e 1110dcrnc, XV/1"-X V J//' siccle,
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ANTELME (R.)
BACHELARD (C.)
- L'bpi'CC /11111wi11c, 187, 187 n53.
- Poétiquc de /'espace, 158.
ARENDT (li.)
BACON (F.)
- Co11ditio11 de J'/10111111c 111odcmc (Tl,c H11111n11
Co11ditio11), 142 n48, 307, 368, 492, 492 n34, - Novu111 Orga11011, 80.
494, 496, 497 n44. BAKHTINE (M.)
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- L' !111périnlis111c, 346 n54. - L'Histoirc à /'iigc classiq11c, 183 n41.
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78 n10, 80 n12, 8 1 nl-l, 82,510, 510 n53.
Título A me111<Íria , a história, o esquecimento

Auror Paul Riccx:ur

Assisrrnt(' técnico de dirt:ção Jos~ Emílio Maio rino


Coordenador editorial Ricardo Lima
Sccrcdrio gdfico Ednilson Tristão
Traduçáo Alain François (coord.)
Annie C ambc - Carolina Violante P,res
José Emílio Maiorino - Maria José Pnillo Isaac
Maria Mareia Bértolo Caff<'.:
Pn:paraç;io dos originais Mary Amazonas Leite de Barros
Revisão José Emílio J\faiorino
Ed iwraçiio ckrrônic1 S ílvia Hdcna P. C. Gonçalves
Projeto gráfico Editora da Unicamp
Design de capa Ana Basaglia
Formato 16 x 2, cm
Papel Offscr 7 5 g/ m.' - miolo
Carr,io supremo 25 0 gi m' - capa
Tipologia Palatino
Nú mero de p;íginas 5,6

Imagem d<.: capa


A História e o deus alado C nlt1os

ESTA O BR A FOI I MPRESSA NA GR Á FI C A RETTEC


PAR A A EDITORA I>A UN I CAMI' EM DEZEMBRO DE lü 14

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