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No final de 1972 (ou no começo


de 1973, não sei ao certo), fui avi-
sado pelo meu orientador de tese
(na época, o professor Hans Heinz
Holz) de que Ernst Bloch viria a
uma manifestação de solidariedade
a ele, Holz, que estava sofrendo
uma forte discriminação profissio-
nal, por ser marxista. No dia e na
hora marcados, compareci ao even-
to com bastante antecedência, para
ver de perto a "lenda viva" que era
Bloch.
Quando o vi chegar, assustei-
me. Era magro, muito branco, intei-
ramente cego. Holz e um estudante
o amparavam. Levaram-no ao palco
e lhe puseram um microfone nas
mãos. Tamanha era a fragilidade da
figura, que tive medo do que po-
deria acontecer: temi que, em seu
esforço para falar, o homem tivesse
um infarto.
Mas experimentei uma grata
surpresa: Bloch continuava a ter

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· uma voz clara e firme. Falava com a
mesma elegância com que escrevia.
Era um orador genial. Nunca esque-
cerei o início da sua fala. Ele se
declarou triplamente feliz. Primeiro
porque, mesmo sem poder vê-los,
sentia a presença dos estudantes,
que tinham vindo em grande
número (e a participação - subli-
nhava - é essencial à de1nocracia).
Depois, porque estava ao lado de
Holz, que havia sido seu aluno e de-
monstrava firmeza, reagindo contra
preconceitos que o atingiam e mais
cedo ou mais tarde atingiriam
também muitos outros professores.
E a terceira razão de felicidade
- explicou - consistia no fato de ele,
Bloch, aos noventa anos, "ainda"
estar presente àquele ato.

Leandro Konder

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Sumário

Prcf;icio ....................................................................................................... 13

Parte I (Rela to)


Pequenos sonhos diun1os

l. Co1ncça1nos scn1 nada ... .... ... .......... ... ...... .... ..... ... .... ....... ........... ... 29
2. i\luita coisa tem gosto de m a is .. ..... ......... ..... ....... .. .............. ......... . 29
3. Di;uiamen tc sem saber o amanhã .......... ..... ........ .. ................ .... .... 29
1
1. O esconderijo e a b e la tcn-a estrangeira ...... .. ... ....... .. ... ........ ... ..... 30
E11tresi ...... ........................ .. . ....................... ..................... ............. 30
E 11i casa eJª . l1.0 ... .. .. . . .. ...... . . .... .. .... ....... ..... ... . .. .................... . ~o
., a ca1n111 J

5. Fuga e retorno elo vencedor ............. ........... ........... .. ......... ........... 32


Ú'l1n11far<Í11coras . ............................ . ...... ........ . ....... ... ........... ... .. .... . ~\2
1\ faça ci11tila11fc ......... ..... .......... ...... ... ............... . . ......... ...... . ........... 33
G. Desejos mais maduros e suas imagens ....... ............ ....................... 3G
Os cava!o!l 111a11cos ..... ..... ...................................... ............. .. .. . .. ... ... . 37
, \ 11oite dmfacas l011gas ..... .. .... . .. ........................ .... .. .... .. ............... .. 37
l'o11coa11t,•!ldccr·rrnrosj>orfürs ...... ..... ..... .. .... ...... . ................. ..... ........ 38
1\ i1111c11ç<io dt• 11111110110 dh1nfi1m•11fo ................... . .. . ......... ... ... ....... .. ... . •10
O/Jorf 1111idndt•/mm a mi~,h,r/ . .. ....... ......... ..................................... ,11
.\ l'J'

7. O que resta a clcs<jar na vel hice ..... ......... . ... .. ... .. .... ..................... . -12
\li11ho1! bu/so ... . ...... . ......... .. .......... . ....... .. . ......... .. .... . ........ . .. .. .... .. ..... -12
j1111tt11l11d,1 rn11j11mda, dõtjo o/1os/o: colheita .. ..... ........... ... ... ........ . ...... .. 43
, \ 11oitccrr t ! rasa .... . ...... .. ...... . . ...... ... .... .... .. ............ . .... ... ..... ....... ... .... 45
8. O sinal ela virada .......................... ....... .... ...... ............ .... ........... ... . 117

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!ltrtrlq111--., '" lo , t, IJ(tio ...................................... 5i
/\,/ ão dr I · · nv, i, tau fi 111 tol1IÍ110 ....................... 00
1-' ro, a,q, i/ ........ • ··.. ·....···"·......... ····.. ·............................... 61
t\. .\ limil, .io hi,1ü1i dt•, 1 pul <K' h.í ica . Diforc·111 e lados
d .mto-inl<'l l •• ft·lo plc·tlilic, dt
,tft•&o ('Xpe 1a111c ......... 6i

,\ dn a11d u1 Ir ......................................................................... 67
,\ pul âo bá! im , ai ronfiá,ffl· 11 at1loj11t \t'ff 'll(ÕO .................................
,\ "'°'liftrllfâo l,i,tórirn da pullÕI , mdusi,"' do irulinlo de prcstr11ação . iO
\'nriaç,iod,lmmorr tadodo i-m mo,. ppelill do aftlosrxp«la11ltS,
• . III ntt da />f'ra11ça ............................................................. 12
pr;nnpa
Pul,ão dJ, auto-txpau ão fk1ra aJ1t 11le, aJxrtati,,a ath a ...................... 7i
1

1 M. ifi r nciaçio fundanwntal c~n1rc sonho diumo e anho notumot


1
l 1 rcafüa •o uha ar irn de dC'. 10 no onho notm110, rcalizaç.io
11 fabulantc ant cipadora na fantasia diurnas ............................. 79
( 1
' Tendincia para o 011/to .................................................................... í9
Sonho romo rrnlii.ação de d tjos ........................................................ .
O º""º a11guslia11tee a 1 alizaçào de d eja; ...... .. .. ... .. ........................ !
1• m/JOntod cisitto: o sonho diurno não é um prelúdio do 011/io 11ot11mo .....
Primeiro esrg,mdo cararfP1 do 011!,o diurno: /h,r rw o, ego prrsrrt1ado ... '
Tmrirocanít-d , d' .
"' 0 son,,o mrno: a mrlltonn do mundo .. ........ ............
.... 93
1
Qumto rmátrrdo so11ho diurno· irale'ofi1n .................... 9
Imbrica ão · •. · " .. · .......... " ·.. · • 1())
' 1
ç dosJºl{OS onmms 110/umo ediurno e 1w w.solu(flO ..............
ma
.
' IC! mn;s a ll'11d· •
f'llrta pam o sonho: a "dispo iciio dr humor
"co111011111
'1U!1otlos o11h0Hli1tmos ............ 104
ma t,ez mais os afe/aç ;~;~~~:;~~;·(~~;~~;;~ ·~;;;~~-
/Jemnça ,r. o· , ,
·p· ~~~;~·;1;;~JXro, rí1
11P
'C0>1.Jtftnçn) eoso11hoacordado ..........................................

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O Princípio Esperan9a I 9

15. A ~~sc~t)C;·1a cio ai t.1da-11ào-conscient on do alrnrccer par.:1 dianie.


O ,1_11ul,1-11,1o-c~1~ c1~11te como nova ela ·e de co11sciência e como
classe dc• •consc1enc1 ado110vo:1·1cventude
• , m11<l.,•1 <U ça t le epoca, -
!JrodutMclacle. O conceito da função utópica, eu cn ontro orno
mter se, a i<l~ologia, os arguét.ipo os id ·ais, as alcgo1ias-símbolos .. 115
As duaJ fivnletras ..........··· ··· ······ ······· ·· ······ ··· ·· ······ ····· ·· ·· ....................... l 15
O duplo significado do /n-é-consciente ..................................................... 116
O ai.nda-não-consdenle najuvenl ude, 111 udança de época, /m1dutir1irútde..... L17
J\t~ms sobre ri produtitiidrule: eus três estágios .......................................... L22
Diferenças 11a resi tência que o esquecido e o ainda-11ão-co11schmtc
oferecem à el?tddação . ........................................................ 127
Epilogo sobre a ban-cira que por tau lo lem/10 ob.stmiu o conceito do
ainda-11ão-consci.c11le ........................................................................... 132
A atitddadeconscienlce cicnte noai11da-11ão-co11scie11te, afuu çãoutópica .... 142
Nlai.s sobre afunção utópica: o sujeito contido nela e o co11tragolpe na
c.tistê11cia impe1feita ..........................•.................................................. 146
O encontro da fun ção uló/1ica com. o interesle .......................................... l 119
O encontro da Junção ulópica com a ideologia........................................ 152
O encontro da funç,ão utópica com os arquétipos ..................................... 157
O encontro daJunção utópica com os ideais ........................................... l 64
O encontro dafun ção utópica com as alegorias•símbolos ........................... 173
16. Resquícios d e imagem u tópica na reali2.tção. A Hckna l'gípria a
H elena u·oiana ······························································-················· l 77
Os souhos querem instigar····································································· 177
A uão-satisjação e suas /1ossfoeis implicações ..............................•...•....... 177
Primeira raziio da decepção: afcliâ dadee. tá onde não e. ltÍ5.
Segunda razão da decepção: o 011ho a11l011omizado l' a lm da
daduplaHelena ................................................................•................. 179
Objeçlio it J1rimeira e ii seg1mda razões: a odisjfia da imobilitfndr ............ 185
1 /e,reira razão dos resquícios de i111agr11 utópicas: tJ.S aporia. cúi rmliulção .... 187
1
17. O mundo em qne a fan1asia u1ópica 1cm 11111 ont·lato. Po ihilicladc
real. As catcgotias Jron~ nmmm 11lti111w11 o hori.Lo111c· ..................... 193
O ser 1t 1111a110 não se basta .................................................................... l 9·1
1
mudo muita coi a ainda estâ i11co11c/11sa •••.•••••••••••••••••••••••.•.•••••••••• 194
0 11
QJimi mo 111ilita11IP, as categorias front, novrnn, ultinrnm ................... 196
o "scudo-conforme-a-po ibilidade" e o '" end<>•em-po ibilidade~ rorrt11lefria e
co,reut<' quente 110 marxismo .................................................................. 20:
AJ,arênCÍtl artística como pré-aparência 11isfocl ....................................... 208
Falsa autarquia, J1r~a/1nrê11cia comoJragme11lo real ............................... 21•1
Trata- e do reali mo: todo rcnl tem um horizonte...................................... 219
o cs1ra10 da e, tcgori:1 po ibilidade ······- ················ .. ·•······•···········•· 221

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élz;i ;í J)ttf ----- ErnstBlooh
~
10

., I for,nnl ...............·····. ... .. ... ······ ...............


Opo n r . . -r, f u1l ... ..•... ..........•............................... ······ 222
[1iel obJc/lTIO-/lC ' . l .••.•••.•..•
Opo ·uI ura do obJelO rea .. .............. ......... ······ 2211
, ,,,f co,1'on11c aes 1, ·········· <
opo s11,., :J'
, l b"etii10-reo/ .•.••....•..•.•..••...••..•...••..•••.••••...•.•..•.........•...••..·•···•·· 226
opos m olj tático-/óO'ica co11traopo sfoel ................ ·······232
RrcordaçlÍo: a luta e b •• ••• .. ··········23
· ·/'d d ·· ···· ···· ········· ····· ····· ··•· ·· ··· ·········· 8
Realizar rt /10s ,b, ' a ····· , ··················· 2A
· _ d n1tmdoon a Onzelesesd Mcu-xsobr Fen rba 'l3
1
19. tr:u fonua ., o ~ io ······························--· c1 ··•246
A época da compo i(c◄ ••••• ••••••••• •• • 247 ••••••••••••••••••••••••

- paniento ....... ········· ··········--··························


11qu tao d~ agritlórrico· a contemj1la.ção e a atividade (teses 5 J ~·;)······ .... 250
0gmpo pl temo b • • _ ' ........ 252
. , .· antrolio/ógico:
o urupo InstOJ lCO· ' I' a aulo-allenaçao e o verdadeiro
\;
º . t· (teses4 6 7 9e 10).............................................. 2·
mate11a wno ' ' ' _ . _ ······••... :>9
1\ 0
grupo Ieori a-práxi : co111..pro11açao e 11alldaçao (teses 2 e 8) .................... 264
1

l' A sen lw eseu S1·u o 1Jifjcado


'J •· (tese 11) ············································ •••• ........ . 271
; i
l
1'
OfJoulo arquimédico: associar o sab~· não ~·ó com o passado, mas
ess ncialmente também. com o q1te esla por 1.nr ···································........ 278
20. ínte' : a con tituiçã , 1 t ipatória us pólo :
o instant ob uro, ad 1ua ão m b rto ....................................... 283
G

'. Opul oea obscuridade •f!ivida ....••·· •·· •· •·· ••••· •··· •·· •· •••.. •····· •··. •· ............... 283
O lugar para um po sível a11anço ........................................................... 283
Nascente efoz: a admiração como questão absoluta ................................. 284
Uma 11ez. 111ai a obscuridade do in tan te 11-i1Jido, carp diem ................ 286
A obscwidade do instante 11foido, contirnwção: primeiro plano, espaço
prejudicial, melancolia da plenificação, automediação ........................... 290
1,
Uma 1iez. mais a admiração como questão absoluta, tanto naforma da angús·
i
: 1
tia quanto nadafelicidade; oarquétijJDfntramenteutópico: o bem supremo ...... 295
Onã-<J na origem, o ainda-11ão na história, o nada cru então o tu.do no final ... 301
topia não é um estado duradouro; mas então carpe di m,
só que autenticamente num presente autêntico ........................................ 30?
21. O sonho diumo m fonna ncanta ória:
Paminaoua imag m om p1.omessa ro., 1. a ........................ ... 310
'1
A lerria manlui . 310
Oefeito pormei;~~;~~~:~~·~··············.. ············· .. ·······························:::::::311
N' nh ·························--··································
l li oem torrw do encontro noivad ·····••"······•" 314
OexcesS()deima 'l!n ,• o··················................. . A • 316
0 par suhllme Corpl 1 . .
ª
. ~ \ sal--tiaçao contra ele nimbo em torno do matrunonw ·· ·· ·
'
quejá fi . , '. ~ ·instt ou a utopia do matri,mônio
, . oi cosmica e cnstomór'ica
Pos-imagein do amor J• •. • .. •. .... •• .• . • •• . • .. • •. • •• •• ... .. . • .. ... •. • •
············• 391 -
324
22. O sonho <l. ............................................................................
mrno m fo · s.
o bem r r ma imbólica: a cc ixa d Pandora;
emanes ·em 326
·····•• ........ ..... . . . . ................................ ........................................................ ..

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O Princípio Esperan9a I 11 .

Parte ID (Tra II i ão)


Imagens do de ejo no espelho
(vitrine conto, viagem, filme, teatro)

2: . •az r- • 1nais b 1 d qu ' ......................................................... · · l


2•1. qu n <liz p Ih hoj .......................................................... 3' 2
Ser belJo ............................................................................................. '3?>~
. er·forfe ao e cu111ar .....••. ...... .................... .............. ....•. .......• ............ ... ' 2
25. Ar upan a, vitr in iluminada ................................................... 3
B 1n montada ........................................•....................................•..•..... ' 4
luz do anúncio ................. .............. .... ..... ........................ ......... 335
2 . , b l,i más ara, Ku Klu,x Klan, magazin · oi rido .................. 336
O a111i 11ho lort uo os ...•••.•..........•..••••.•..••.•.••.•••.•••••••...••......•.••••.....•••.• 337
O 11c o jJOr 11zeio do te,1·or .................................................................... 3 8
Litro de SllC so, hi tórias r11el,0sa ......................................................... 341
27. m Ih r ca l lo · n ar: na qu rm ~s e no ir ,
11 nt ·nor man p pnlar ...................................................... 343
coragem. do inteligente........................................................................ 3 5
Um passe de mágica, gênio da lâmpada ................................................ 346
"1 a asas da caução, meu benzinho, eu, t,e ú:uarei embora" ....................... 348
"Vamo embora para os 11aw. d{) Ganges, onde conheço o mais be/,o lugar" ....... 350
Os mares do sul na quermesse e no circo .......................................•...•....... 353
O conto selvagem: o romance po-pula,r ...•.................••........................•...... 357
2 . ncanto da viag m, antiguidades, f; licidad no romanc de t 1Tor ... 359
1\ bela terra estrangeira ..........................•...........................••................. 360
O anseio pelo longínquo e o aposento historicizanle no éculo XIX ...~ .......... 364
A aura da mobília antiga, o encanto das ruínas, o museu ...................... 370
Os jardins palacia11os e as edificações da Arcádia .................................. 377
Tem/10 maluco, Apolo à 11oile .............•.................•................................. 3 O
29. Im g m do d s jo na clan a, a pai tomima e a I rra <lo filme ..... 382
A uova dança e a anliga ..........................................:.. ························· 383
fl nova dança como dança a11/eriorme11te e:"<pressio11i ta, o exotis11w •...•..••. 386
dança cultuai, os daroe es, a dito a dança de roda ............................. 388
jJanlorni:ma nrdo-mudaea jJanlomima igniflcante ........................... 391
O novo mimo através da câmera film.adom ............................................ 394
A fábrica de onho no entido convm/1ido e 110 entido lran J1are11te •.......•. 397
30. teall·ovi.to como institni ;op.u,uligm;ílira a cl isão n l tomada .. .400
cortina se abre ................................................................................... 400
A 11eriflcação do exemjll.o ..................................•............•....................... 401
Mn.i sobre a 11edficação do e emj1lo a serj1rocumdo ................................• 401

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......... ..
E nstBloch
12

l l ilura o mímicaJalad~ eª. en~e~a ão········································-····405


llu ão, aparência sinc ra, znstttuzçao moral ····················.···········••........109
tualização Ja/,sa e atuali ação autêntica ............................................ 413
Mai atualização autêntica: não J1or medo e compaixão,
ma porteimosiae ;perança ..................................................................415
L Ima ns d d s jo ridi ulariz d s odic: d ·,
a pontan am nt humorísti as .............................................. ..118
pa!arninlta e ' ...............................................................···············- 418
Todas as moelas no·oas não prestam para nada,, ................................ 418
, ant, U11 autr ·1n 11d ............................................................ 419
p,s aros deA1istófanes e o castelo no ar ...........................................422
legre sup ração: a~ ra histo1ia de Luciano .....•.................................423
/mo@ ns do d efoespontaneamente humorísticas ................................... ~ fü
2. Happy em], d mascarad ainda assim d [i ndicl ........................ 427

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Prefácio 1

12
Qm·m somos? lk oml<· viemos? Para onde vamos? Que espera-
11 fi,ifura, a mímif'aj,il"d" 1· 111·11f'l'11t1uw .. ............................ 405 mos? O que nos c·spera?
[lusâo, aparfmti.asinl't'm, i111tit11iuw 111m11f.. . .. ..................•.....•...•.. 1~ Muitos S<" s<·nlt·m nmfusos <· nada mais. O chão balan(a, eles não
Atualização falsa e atuafiw("áo 11111,:11/im ........................................... 113 sab<'m por que nem de quê-. Ess<" seu <·stado {- <k angústia. Tornando-se
mais definido, {- medo.
Mais atual,ização aulh1lira: 1ufo /mi 1111'1/o ,. rn111/ 111i 111 11 ,
mas por teimosia eesperan('a .................................................................. 415
Certa wz, algu<'m foi para hem longe para aprender a temer. No
passado pn'iximo, nmseguia-sc isso <·om mais facilidade e proximidade;
31. Imagens do desejo tidintlarizadas <· <,diad:1~. essa arte• de tc·m<·r er-.:1 dominada d<· forma assustadora. Agora, porém,
e as espontaneamente humorísli<·as ............................................... 418
d<·ixando de lado os aa1esãos do nwdo, é o momento para um sentimento
A palavrinha "se" ................................................................................ 418
mais condizente <'0Hosco.
"Todas essas modas n011as não prestam /HLm 11mla" •······························· 118 O que impo1·ta é- apn·ndtT a csp<·rar. O ato ck esperar não resigna:
Le Néant, Un autre monde ............................................................. 11 9
ele- é apaixonado pdo êxito cm lugar do fracasso. A espera, colocada acima
Os pássaros de Aristófanes e o castelo no ar ........................................... 422
do ato ck tcmt·r, não é passiva como cslt·, tampouco está trancafiada em

Af.egr<' superação: a Vera lustona • .
de Luaano ................•...................... 1123·
um nada. O afeto da esp<-ra sai de si mcs1no, ampliando as pessoas, em vez
· ·
f m,af1'er,s do desejo rspontaneamente humorist1.ca:, ..................................... 121· de c·strdtá-las: de n<·m consegue saber o bastante sobre o que interiormente
t',' . • 1127
32. f fafJfJy 1•-nd, desmascarado e ainda assim dcf<·rnhdo ........................ as faz dirigirem-se para um alvo, ou sobn- o que exterimmente pode ser
aliado a elas. A ação dc-sse afeto requer pt·ssoas que se lancem ativamente
naquilo que vai se tornando I Werdendel e do qual das próprias fazem parte.
Essa ação não suporta uma vida ele cão,jogada de modo meramente passivo
no devir [ Sei.ende.l, no intocado, ou mesmo no lastimavelmente reconhecido.
O ato contra a angústia diante ela vida e as maquinações do medo é a
atividade contra os seus oiadores, em grande parte bem identificáveis, e

As uola"' «lc· 1ocl.1pc·, 011lc·111 •·~du ... ivanu·nlt' conH·nl;írio'i <' oh~c·n·a<./,c·s cio 1r:.ul111<,1, Jt:1u "ill:t
claho1 :u;;\o, leu ,1111 lc, ,ul.1·, < 111 , 0111a 1.unhc.··111 a..; uola, c·xplk.11h·a'i apor I.Hb, (H·lu, h.ululc•1c·,
p,11,1 o i11glc·~., N ◄ ,dl1 Plaic•· •· l•.",I K11i~l11, lu·111 co1110 .d~t•11u,1,
1'l.11t(, .~11·phc-11
(ct1111,l,·1nc·11l.11cu•1 ,1111uh11,,1.11•.11.1 1, (1.111«1'! l•1,111111i•,,· \\'1111111.111
14 ErnstBlooh O Princípio Esperança I 15

de procurn no próprio rntmdo aquilo que c~juda o mundo - isto é fenômeno suportado, n1as nao compreendido; lamentado, 1nas uao
encontrável. Quanto já não se sonhou com isso ao longo elos tempos, sonhos removido. De qualquer modo, a remoção é impossívd em solo burgui'-s,
de urna vida melhor que seria possível! A vida de todos os se1·es humanos é ou mesmo no abismo a de advindo, contraído por ele, ainda que ela fosse
pc1vassada por sonhos cliun1os, que em parte são apenas uma fuga insossa dest:jada, o que de modo algum é o caso. Sim, o interesse burguês gostalia
e até cnc1vante, e até presa para enganadores. Outra parle, porém, instiga, de arrastar para dentro do próp1io fran1sso justamente cada um dos demais
não pcnnile se confonnar com o precário que aí est,Í, rn"io permite a intcn·sscs que lhe são contrapostos. Assim, para extenuar a nova vida, ele
resignação. O esperar está no cerne desta outra parte, que é ensinável. Ela torna a próp1·ia agonia aparentemente fundamental, aparentemente
pode ser extraída tanto do sonho diurno livre de regras corno do seu uso ontológica. A situa<:ão sem saída do ser hurgu<'·s é estendida à situação
leviano, pode ser ativada sem estar envolta em névoa. Nenhum se,· humano humana, a lodo o ser. A longo pi-azo, todavia, é cm vão: a esvaziada fornia
jamais viveu sem sonhos diurnos, mas o que imporia é sah<T scmJ>l'C mais de ser burguesa é tão dêm<·rn quanto a classe que por meio dela se declara
sobre des e, desse modo, mantê-los direcionados de fórma dara e solícita única, e é t,io sem sustenla(Üo como a existi'·ncia apan-ntc do próprio
para o que é clin-ito. Que os sonhos diurnos tornem-se ainda mais pi<'nos, inwdiatismo leviano a que se 1·011sagn,u. A ralta ele espcran(.'a é, da mesma,
o que significa que eles se cnriqtwn·rn justamente com o olhar sóbrio - tanto <·m termos lemporais quanto cm contt'lÍdo, o mais inlokrávcl, o
não no sentido da ohstin,H:ão, mas sim no de se tonia1· lúcido. N,"io no absolutam<·nte insuportável para as necessidades humanas. É po1· isto que
sentido do entendimento meramente contemplativo, que aceita as coisas até m<·smo a framk, para que s<:ja eficaz, tem ck trabalhar com a esperança
con10 são e estão 110 monwuto, mas sim no da parli<·ipac;ão, que as an·ita liso1~jci1·a e petV<Tsanwntc cstimnlacla. l~ por isto que jnstamcnlc a espe-
cm seu movimeulo, portanto, lamb{m (·orno podem ir melhor. Q.11e os rança, limitada poré111 a uma mern m,mifrsla(.'ão int<Tior ou corno
sonhos diurnos tonwm-sc, desse modo, realmente mais pknos, isto<', mais consola(,'ão voltada para o alún, {, pn·gacla de todos os ptílpitos. l~ por isto
da,us, menos caprichosos, mais conhecidos, mais compreendidos <' mais que alé mesmo as tíltimas mis{rias da lilosofia ociclcnlal 11;10 conseguem
em comuninH:ão com o co1n·r das coisas. Para <Jll<' o ttigo que <JU<'I' mais apresentar a s11a filosofia da miséria sem a penhora de uma
amadurecer possa <Tescer e ser colhido. suplanta(ão, de uma supera<:ão. lslo é, não mais dr outra maneira senão
Pensai· signific·a transpor. Contudo, de tal 1rn111eira que aquilo <Jll<' que o ser humano s<:ja determinado cm sua essi'·ncia pelo füturo, cntrC'tanto
eshi aí não s<ja ocultado nem omitido. Nc·m na sua ll<'<Tssidadc, nem m<·s- com o indicativo cínico e interesseiro, hipostasiado a parti,· da sua pr<>p1ia
mo no movimento para superá-la. Nern nas causas da 11ecessidade, rn·m condiç,"io ck t·lasse, de que o l'uturo s<·1ia o ktn'irn luminoso elo bar noturno
mesmo no JH'incípio da vi1·ada que nela eslc'í amadm·ec<·ndo. Por essa ra- anunciando a ausência de futuro e que o dcsti110 do s<T humano seria o
zão, a transposi<:ão efetiva não vai cm dire<:ão ao mero vazio de algmn nada. Agora, pois, que os mortos ente,n·m seus m<fftos: o dia que está
cliantc-dc-n(>S, no mero entusiasmo, apenas imaginando abstratamente. Ao c·omeçando, mesmo na protdaçüo que lhe inlligc a noite cp1e se prolonga
conlrc'írio, da rapta o novo como algo mediado pelo existcnle em movi- alén1 da conta, d,i ouvidos a out,·as coisas além do repicar hínebre
mento, ainda que, para ser trazido ,'í luz, cxUa ao extremo a vontade <JllC se· monnaccnlo e putrefato, niilista e vão. Enquanto o s<T hmnano se· encontrar
dirige para ela. A transposição el'ctiva conhece e ativa a tendência de curso c-m maus lençóis, a sua cxistênda tanto p.-ivada quanto pií.blint será
dialético instalada na história. Em ptimeiro lugar, todo ser humano, na perpassada por sonhos diunios, p<>I' sonhos ck uma vida mdhor que a que
medida cm que alnu:ja, vive do fullffo: o que passou vem só mais tarde, e lhe coube até aquele momento. No inantêuti<-o, e ainda mais no autêntico,
o presente autfntico pralicament<' ainda não está aí. O futuro contém o Ioda intenção humana {: erigida sobn· esse fundanwnto. E mesmo onde
temido ou o esperado e, estando de acordo co1n a inten~·ão humana, por- provoca ilusões - como tantas vezes até agora, ora cheio de ba11<·os de areia,
tanto sem malogro, contém somente o esperado. A função e o conteúdo da ora cheio de quinwras -, o fundamento poderá ser ck uma vez denunciado
esp<Tança são incessantementt' cxpc1imentados e, cm ten1pos de socieda- e eventualmente pmificado somente nwdiante a inwstigação ol~jctiva da
de cm ascensão, foram incessantemente acionados e difundidos. Unicamente tendência e subjetiva da intenção. CorrujJtio optimi fJe~úma: a esperança
em uma velha sociedade em declínio, como o Ocidente atual, surge uma l'raudulenta é uma das maiores malfeitoras, até mesmo um dos maiores
certa intenção parcial e efêmera no sentido apenas descendente. Ent.'io, para tormentos do gi'·11cro humano, e a esperança concretan1ente autêntica, a
aqueles que não conseguem achar uma saída para a decadência, o I ll('do se sua mais s{1-ia lw11ki1rn·a. A esperança sabedora e concreta, portanto, é a
:1111<-p<><· e s<' c·o11lrap<><' à <'SJHT,llH.:a. O nicdo se apresenta 1·01110 111.1:-.c ;11;1 (jll(' il'l'Olllj>I' s1rl1jC'IÍ\'dllll'III!' ('()til mais fon:a ('Olllra O medo, a <JllC
:,,1d1jc-1ivi.,1;1 e· o niili.,1110, 1·01110 111;Í,,c·;ll'a ohjclivista cio l1·11c"i11w11,. d.1 , 11..,": olijc·liv;111u-11ll' ln·,1,, 1111 111.1i.., l1;d1ilid,ult- ;', i11l<Tl'll(ICÚ1 ('alisai cios c·o11IC'IÍ<los
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do medo, junto com a insatisfação manifesta que faz parte da espernuça, obstruídos especialmente os caminhos da satisfação ainda por acontecer,
por·que ambas brotam do não à carência. cet1amentc não só de caráter contábil. A esperança, com o seu correlato
Pensar significa transpor. Contudo, até agora o transpor ainda positivo - a certificação ainda im·o1Klusa da cxistê·ncia acima de qualquer
não encontrou o seu pensar rnais preciso. Ou, caso tenha sido encontrado, re~ finita-, não aparec-e dessa forma na história das ciências, nem como
ali havia olhos po1· demais levianos que não enxergaram a questão. O fcnônwno psíquico nem como frnômcuo cósmico e menos ainda corno o
substituto inconsistC'ntc, a representação plagiadora corriqueira, enfim, as portador dac111ilo que mmc·a oco1n·11, do novo possível. Por isto, {> bastante
bugigatq.{as de um espírito de época reacionário, mas tamb{>m extensa, ne.1ti-1 livro, a tentativa de kvar a lilosofia até a esperança, lnn
esquematizante, dcsal<~jaram o que fora descoberto. Marx representa a lugar do mundo t,"io habitado quanto as terras mais c11ltivadas e tão
1·eviravolta na tomada de consciência do transpor concn:'lo. Porém, <'lll inexplorado quanto a Ant,irtida. O que se dar;í em conexão, crítica e ainda
torno dessa reviravolta, h,ihitos de pensamento fortemente incutidos aderem mais elaborada, c·om o conteúdo das obras at{ o momento publicadas pelo
a um rnu11<lo s<·m .fronl. Ali, não só o ser lnunano mas também o autor: Sfmren I Pi.1tasl, em espedal (:eisl der UlofJii, 1A'sf1í.rito da utopia],
entendimento da sua esp<Téln(a são precários. O ato de intencional' não é Thomas Miinzn, l~rb.1t-fu1:ft dii'ser Zeil I Thoma.1 Miinzn~ legado desta épo-
ouvido no seu tom sernpn· antecipatório, a tendência ol~jetiva 11ão é w], Subjf'l<l-Objel<I I SujPilo-objelol. Anseio, <'Xpectativa e esperança neces-
rcconh<·<·ida na sua pot<'n<·ialidadc sempre antecipatóiia. O deúderium, a sitarn, portanto, d<' sua h<"l't11<·nêutica, a ,1mnra do que está diante de nós
tínica <Jnalidade sincera de todos os seres humanos, não foi inv<'stigado. O exige seu con<Tito l'spcdlico, o novum l'<'<Jller o Sl'll conceito avançado. E
ainda-não-conscicnt<', o quc-ainda-11ão-sc-tornon, entbora pre<"ncha o S<"lltido tudo isto com a finalidade de que, pdo r<'ino da possibilidade assim medi-
d<' todos os S<T<'S lnuna11os <· o horizonte de todo ser, não conseguiu se ado, finalme111<' se construa, com olhar crítico, a estrada que kva ao que
impor nem mesmo como palavra, <ptc dini como conceito. Esse florescente necessariamt·nt<' se· busca, <· <pte da s<ja mantida semprl' nessa direção.
campo ck intcrroga<;Ücs pralicam<·ntc ainda não t<"Ve voz na Jilosolia. O Docta .1f1e.1, a "<'sp<Tan<:a COIIlfH'e<·tHlida", torna daro assin1 o conceito de
sonhar para a frcnt<', t·omo diz L<"nin, náo foi rdktido, ap<'nas foi mais um ptincípio que não mais deixa o mm1<l0. Porque ('SS(' princípio desde
csporndicameutc tangenciado, não c11<·011trou 11m c01H·cito ,'i sua altura. O st'Inpre fez parte do pt-o<Tsso do m1mdo, ainda que filosolicamente rejeita-
esperar e o esp<"rado, no st(jcito e no ol~jeto respct·tivament<·, o fenômeno do por tanto tempo. Como 11,io existe uma prod11<:ào const·ientc da histó-
do emergir como 11m todo nào suscitou, até Marx, nenhuma abordagt·m ria em que o alvo - manifestanwnt<· atl\llll'Ütdo no S<'ll caminho - não
global em qu<' cnnmtrasse um lugar, quanto mais um lugar central. O significasse tudo, o conceito d<' ptindpio utópico, no bom sentido, a rigor
grandioso evento da utopia no mundo quas<' não foi csdan·<·ido. De todas lorna-se aqui ainda mais central, qual S<:ja: o da esperança e de seus con-
as singularidades da ignorância, esta {, uma das mais <"vickntes. Diz-se <Jll<' teúdos ligados,; dignidack humaua. Sim, o que foi designado dessa forma
Varrão, em s11a p1·imeira tentativa ck produzir uma grarnálint latina, situa-se no ltoiizonlt' da consci<'·ncia de n1da coisa, consciência que segue
esq l wcc11 o .Jútunw1. Filosofi carne n te, isso ainda não foi p<•ffc bido de modo se adaptando à medida que <"ste horizonte se descortina. Expectativa, espe-
adequado. E signifint que um pensamento preponderantemt'nlc imóvel rança e intcn~·ão voltadas para a possibilidade qn<' ainda não veio a ser:
não nominava nem entendia essa propriedade, e rciteradarn<"ntc excluía o <'ste não é apenas um tra<;o básico da consciência humana, mas, retificado
que lhe sobrevinha. Como saber contemplativo, de é fJer dPfirútionem uni- 1· con1preendido concretamente, uma determinação fundamental em meio

camente um saber do que apenas podt' ser conlcmplado, ou s(ja, do passa- ;'1 realidade objetiva como um todo. Desde Marx não existe mais investiga-
do, e sobre o que-ainda-não-v<·io-a-scr ele estende os conteúdos formais c;ão da verdade e nemjnízo H'alista que possam esquivar-se dos conteúdos
fechados provindos do qm·:iá-se-cfctivou. Conseqüentemente, este mundo, ~11l~jetivos e o~jctivos da esperança do mundo - a não ser sob pena d<'
onde <·le é c·omprccndido historicamente, é um mundo da repetição ou do 1,·ivialidade ou de beco sem saída. A fi1o~o.fta terá conlâênâa do amanhâ,
grande sempre-outra-vez, é um palácio de fatalidades, como Leibniz o de- /0111.ará o partido do futuro, terá âênâa da e~perança. Do contrário, não terá mais
norninou sem romper com de. O evento torna-se histó1ia; o couhecirnento, lflbi'r. E a nova filosofia, como foi inaugurada por Marx, é o mesmo qu<' a
rememorac,;ão; a festividade, c·omemoração do que já ocorreu. É o caso de lilosofia do novo, desta essência que a todos nós espera, aniquila ou pknilirn.
todos os filósofos até o presente momento, com sua forma, idéia ou subs- /\ s11a nmsciência {- o <"spaço aberto do perigo e da vitó1ia a ser conq11is1ad.1
tância assentadas como estando prontas, inclusive no que s<· trft-n· aos 11;1s s11as <·ondi<JH's. Se11 <'Sp,H;o {- a possibilidade real e ohjctiva dentro do
postulados de Kant e até mesmo à dialética de Hegel. Tanto ;i 111·11·.~si1Lul<" prol'<'SSo, 11a vi;1 do p1 <Ípr io ol~jcto, <·m qtH· aquilo q1w foi h11scado
rísic·a 1·01110 a IIH'tarísica <·st1·ag-a1·a111 o ,1pctif<' dl'ssa l'rn111;1, 1111,1111 llil' 1;11lic1lt1u·11f<• pc·lu•, ·,n1· ... l111111;111os <'Ili h1g·ar alg-11111 lúi p10\'id<'11d;ulo, 111a.~
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também cm lugar algum foi malogrado. O seu interesst', que deve S{'r veio a ser é, no mito, o imergir-se, a propensão para o imemorial, inclusive
perseguido com todas as forças, continua sendo aquilo que V<Tdadeiramentc a constante preponderância do prop1iamente pagão, do mítico astral como
tem esperança e reside no Sl)jeito, e aquilo qut' verdadeiramente pode ser o firmamento fixo de tudo o que ocorre. A expressão metódica da mesma
esperado e reside no ol~jcto: o que importa é investigar a função e o vinc:ula<;ão ao passado, estranheza do futuro, está presente no racionalismo
conteúdo dessa coisa central para nós. da anamncse platônica ou na dout1ina de que todo saber selia meramente
O novo considf'rado bom mmc.1 é inteiramente novo. Seu efeito rernemora<:ão. Rememoração de idéias contempladas antes do nasc:iinento,
vai muito além dos sonhos diurnos que perpassam a vida e preenchem a de coisas passadas lá nos primórdios ou coisas etcnias e aistó1icas. Ali onde
arte figurntiva. O que é- des<:jado utopicamente guia todos os moviuwntos a esst·1u-ia coincide pura e simpksmente com o ter-sido e a c·ontja de Minerva
libertários, e tamhé-rn todos os nistãos o conhecem a seu niodo, com a só fhí início ao seu vôo ap6s a itn1pção do n-cp1ísculo, tendo se tornado já
consciência adormecida ou manifestando comoção, a parlir dos tred1os uma velha forma de vida. Igualmente, a dialéti<·a ele I Iegd, no seu definiti-
bíblicos messiânicos ou do ê·x0<l0. Também a irnb1ica<;ão dos sentinwntos vo "círculo composto eh- círculos", encontra-se tolhida pelo fantasnia da
de ter e não ln que perfaz o anseio e a esperança, e o desc:jo ele- dwgar· •·m anámneú~ <' condenada ao anliquwiwn. Marx foi o primeiro a colocar no
casa, s<·m1>rc foram sul~jacentes a toda grande filosofia. Não só no <-ros seu lugar o fHillw.\ da transfonna~·,io, n>rno o início de uma teoria que não
platônico, mas também no conceito abrangente da matéria aristot{-)ica como se resigna a contemplar <· explicar. Desse modo, as divisôes rígidas entre
possibilidade parn a essência e no conceito leibniziano da tendfnda. A futuro e passado desabam por si m<·srnas: o litttiro <pw ainda não veio a ser
esperança age sem mediação nos postulados kantianos da cons<·iê:ncia mornl torna-s<' visível no passado; o passado vingado, herdado, mediado e
e cm rnedia(;;io com o mundo na dialétic·a histó1fra <k I legd. Coutudo, plenifintdo ton1a-sc visível no futuro. O passado n>rnpreendido isolada-
apesar de todas essas patrulhas d<" <"Xploração e até <"Xf><'<fü;ôes para dentro mente e assim registnHlo é uma mera dassilinl(;ào de lll<TGtdoria, isto é,
da fnram ulofúrnm, <'lll todos h,í algo de interro111pido, intcno111pido um .fruotwn coisiíicado sem consciê-ncia de seu .fini e de S<'ll processo contí-
justamente pela cont<'mpl,u,;ão. Quase com mais inl<"nsidad<" c·m I kgd, nuo. Mas a ação venlad<'irn 110 JffÓprio presente 0<·01n: unicamente na
que é quem mais avall(:011: o qu<· foi suplanla o que está por vir, a totalidade desse processo i11condnso tanto para a frente como para trás. A
aglomeração das coisas havidas ohstnlÍ totalmente as categorias de hit111u, dialélica materialista lorna-se o instnnnenlo para dominar· esse p1-ocesso,
Jront, nmnun. Portanto, o prin6pio 111ópin> 11,10 chegou a s<· manifestar para chegar ao 'nm111m mediado e dominado. A ,atio da era burguesa, que
nem no nmndo arcaico-mítico, apcsm· do fxodo pant fr>ra dek, nem no ainda era progn·ssista, é a herança imediata disso (descontando a ideologia
mundo urbano-racionalista, apesar da dialética explosiva. !\ razão disso vinculada ao local e o <T<·scent<· esvaziamento dos conteúdos). Mas essa
st'rá sempre que tanto a mentalidade an-aico-mítica qmmto a tn-hano- ,alio não é- a lÍnica herança: ao cont nítio, também as sociedades precedentes
rn<·ionalista são idealistas em sua aprccia,;ão, pressupondo ,. até mesmo alguns de seus mitos (novamente descontando a ideologia e,
conscqücntenicntc um mundo l"eito, acabado, apredado apenas de modo com mai<ff razão ainda, a superstição pré-cienlífica conservada nelas)
passivo, incluindo o s11pram11nclo pn~jetado para além, no qual se rellete o eventualmente proporcionam material hereditário progrt'ssista a uma
que já veio a ser. Os deuses da pnf<·ição e as idé-ias ou ideais, rel"effntcs lilosofia <JUC superou a harn·ira burguesa do conhecimento, ainda que,
respectivamente às duas mentalidades, são, no seu serilus6rio, tão res_finilae corno se compreende por ek mcsn10, esse mate1ial deva ser especialmente
quanto os assim chamados fatos do aquém em seu ser· empfri<-o. Portanto, esclarecido, criticamente apropriado, redirecionado em sua função.
um futuro do tipo autêntico, aberto corno pron·sso, é inacessível e estranho Pensemos, po1· exemplo, no papel da finalidade (para onde, para quê) em
a toda mera contemplação. Somente uma maneira de pensar direcionada cosmovisões pré-<·apitalistas ou também no significado da qualidade, cm
para a mudança elo mundo, que municia com informação este destjo de seu conceito não mecânico de natureza. Pensemos no mito de Prometeu,
mudança, diz respeito a um futuro que não é feito de constrangimento <(UC Marx chama de "o santo mais ilustre do calendá,io filosófico". Pensemos
(futuro como o espaço de surgimento inconcluso diante dt' nós) e a um tH> mito da idade de ouro e em sua transposição para o futuro na consciê·ncia
passado que não é feito de enc:antanwnto. Por isso, o decisivo é que apenas lll('Ssiânica de tantas classes e povos optimidos. A filosofia marxista, como
o saber corno teoria-práxis consciente diz respeito ao que está em devir e aquela que finah11c·11te se comporta de modo adequado frent<· ao d<'vir ,.
que, por isto mesmo, é passível de decisão. O saber contemplativo, em ao <(li<' <·st,Í po1 s111 g-i1·, conhece ignahnentc todo o passado <·111 sua
contraposição, pode referir-se per definitionem apenas ao que _j,í V<'io a ser-. ;1111pli1ttde <Tiativ;1, potrpt<· da 11;10 conh<•<'<• 11c11l111111 011fro p;1s,~:ido :1 11:10
!\ <'Xpress;10 din-ta dessa atrnção pt'lo quc_já foi, dessa rcfrrt·111"ia ,10 q1w j;í s<·1 o .,iwb vivo, 11 ,1111cl.1 11,10 liquidado./\ lilosol"i:1 111.11xi.~t:1 e; a dn (1111110,
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portanto também a do futuro no passado. Ela é, assim, nessa conscibKia zar vastos e fatigantes trabalhos na artf', na ciência e na vida prática (... ) . ( >
de linhas de frente unidas, teoria-práxis viva da tendência compreendida, desacordo entre o sonho e a realidade nada tem de nocivo se, cada vez cpw
teoria-práxis afeita ao evento, conjurada com o novurn. E permanece sendo sonha, o ser humano acredita seriamente cm seu sonho, se obseJVa atenta-
decisivo o seguinte: a luz, em ntjo brilho o todo como processo inconcluso nwnte a vida, compara suas obse1vaçúes com seus castelos no ar e, de unia
{: retratado e promovido, chama-se docta spe!>, e!>pemnça compreendida em fónna geral, trabalha <·onscientem<'nte para a realização de seu sonho.
term.0.1 dial,étiw-m.ateriali..sla.1. () tema fundamental da filosofia, de uma filosofia Quando existe contato entre o sonho e a vida, então tudo vai bem".
que permanece e é enquanto vem a ser, é a pátria que ai nela não veio a ser, Infrlizmente, há pm1c·os sonhos dC'ssa espécie em nosso movimento. E a
ainda não alcançada, assim como ela está se fonnando, construindo-se na culpa é sobretudo de nossos representantes da crítica legal e do
luta dialético-mate1ialista do novo com o velho. "seguidismo" ilegal, que se· gabam ele sua ponderaçiio, de sc-u "senso" do
A tal tema acrescenta-se aqui mais um sinal. Um sinal para frente, "concrcto". 2
que leva a ultrapassar e não a trotear para trás. O seu significado é "ainda
não", e importa entrar num entendimento com relação a de. Conforme o A este sonhar-para-a-fr<'ute ac-rcsccntc-sc assim mais um sinal. O pre-
que Lenin quis dar a entencl<T numa passagem que comn:a aos poucos a sente livro não traia de outra coisa que não o esperar pant além do dia que
ser muito elogiada, mas ainda não ganhou a atenção men·cida: aí está. O tema das cinco paiü·s desta obra (<·s<Tita ent1·e 1938 t· 1917,
revisada <'111 195,3 e- 1959) são os sonhos de uma vida melhor. Seus traços e
"Com o que devemos sonhar?" Escrevo estas palavras e de n·1wnte fico contelÍclos imediatos, mas sobretudo os <til<' podem S<T mediados, são aco-
ass11stado. lmagi110-111<· sentado no Congresso de Unifka(i'Ío, tendo à minha lhidos, invest igaclos e vcrifirndos largamente. E o caminho leva dos pequenos
frente os rcdaton·s e eolalx>radon's do Rabotsdu:J°i' Djf'lo. E eis que se levanta sonhos acordados p,u-a os n>hnstos, elos dauclicantcs <' passíveis d<' abuso
o nunarada Martynov <', ameac;:ador, dirige-me apalavra: "Mas perrni ta-rnc· pa1-;1 ns vigorosos, dos castelos ele vento inconstantes para aquela coisa que
perguntar! Orna redac;;'ío autônoma ainda tem o din-ito ck sonhar sem ter está por vir e {, m·ccss,íria. Principia-se, portauto, com os sonhos diurnos
comunicado tal fato aos comitês cio Partido?" Depois, é o camarada do tipo mediano, escolhidos leve <· livrenl<'ntc dc-sdc a juvc-ntude até a
Kritsd1évski qn<' se dirige a mim (' (aprofulldando filosoficamente o velhice. l<'.ks prccndl('m a pl'irncir·a parle: Relato, referente ao homem da
camarada Mai-tyuov, que h,í muito já aprofundara o que havia dito o rua e aos ckstjos sem regras. Segue-se entào a segunda parte, fundamental,
camarada Plekhânov) continua ainda mais anwa(ador: "hei mais longe. que apóia e sustC'nta todo o restante: a an,ílise ela conscii·11cia a11te<·ipató1ia.
Pergunto-lhe: se· nm maixista tem algmn direito de sonhar, a não sei· que Em muitos ck seus tn·d1os, por 1·azôcs do próprio assunto e· por sua
csq11cç1 que, depois de Marx, a humanidade sempre se atribui tarefas Fund(utten.laçáo, C'sla parte não é uma leitura isenta de csfon.:o, apresenta
realizáveis, e que a t,itica é um processo d(' crescimento das tarefas que nrn cn·sn·nte grau de dificuldade. Mas este igualmente vai dcucsc:endo
<T<'scemj1111to com o Pa1·tido?" para o leitor que vai tomando ciôncia e sendo conduzido cada vez mais ao
A simples idéia dessas cp1('stúes arnca(adoras, sinto um calafrio, e penso fundo da questão. E tamhún o inteffsse pelo ol~jcto diminui o esforço de
apenas em uma coisa: onde nw esc·muler. Tenten1os nos esconder atrás sua aproptia<:ão, assim como a luz lá. no alto possibilita o montanhismo e o
de Pissarev. montanhismo possibilita uma vista generosa. O impulso básico ela fome
"llá desacordos e desacordos", escrevia Pissarev sobre o desacordo entre o precisa ser analisado aqui, na maneira como ek avança para a p1ivação
sonho e a realidade·. "Meu sonho pode ultrapassar o curso natural dos negada e, portanto, para o p1incipal afeto expectante: a esperança. Uma
acont('cimentos, ou desviar-se e1n uma direção para onde o curso natural das atividades principais nesta parte é a descoberta e a anotaçiio inconfundível
dos acontecimentos jamais poderá conduzir. No primeiro caso, o sonho do "ainda-niio-i:onsciente". Isto é: aquilo que ainda é relativamente
não produz nenhum mal, pode até sustentar e refor(ar a energia do traba- inconsciente, visto pelo seu outro lado, o lado voltado para a frente, não
lhador (... ) . Em tais sonhos, nada pode corromper ou paralisar a força de para trás. Para o lado de um novo ntja aurora se anuncia, do qual nunca
trabalho; ao contrário. Se o ser humano fosse completamente desprovido antes se tivera consciência, e não, por exemplo, de algo esquecido, que
da faculdade de sonhar assim, se não pudesse de vez em quando adiantar
o presente e contemplar em imaginação o quadro lógico e· i111c-ir:1m<·nt<'
ac-:1hado da obra <(IIC' ap<'nas se esboça em suas mãos, <'li ele·• icli,L11111·11l<- V, 1. l.c11i11. (!llt /11 ,·1 ·' ,1, 1/lln/on /nd/1ilanlt•,\ dn no,.,,, 111m 1imrnlo. S;lo P;111lo: llt1d1<T, J!)XH,
11.10 p1 .ri .. , i:1 c·c 1111pn·<·1 Hh-1 o q11c· kva o ser h11111;1110 a c·111p1 c·1·11d1·1 •· 11·:ili-- pp. I'~'.!. •· ~ . . , (11,111 i 1111•,l,1 ., 111,111t· ,1(, 11,ul11101).
22 23
pode serkmbrado como tendo sido, reprimido 011 an-aica111<·11te s11h11wrso , l1<·g-, 111 a i 11g-1 t·ssar 110 tC'111 po <· 110 ('spa(;o. Ao c·o11t rário, os conteúdos dessa
no subconsciente. Da descoberta leibniziana do subconsciente, passando pi oxi111id,1cl<' 111ais imediata ainda fennentam na ohscmidade do instante
pela psicologia romântica da noite e do passado primevo, até a psicanálise l'ivido, q 11c· é o verdadeiro nó do mundo, o enigma do mundo. A conscii-ncia
de Freud, basicamente, até agora, só a "aurora para trás" foi descrita e 11t<Ípica quer enxergar bem longe, mas, no fundo, apenas para atravessar a
analisada. Acreditava-se ter sido descoberto que todo o presente está ,·s<·uridão bem próxima do instante que acabou de ser vivido, em que todo
carregado de memória, carregado de passado no porão do não-mais- o devir [Seiende] está à deriva e oculto de si mesmo. Em outras palavras:
consciente. Não se descobriu que, cm todo o presente, mesmo no que é 1u-cessitamos de um telescópio mais potente, o da consciê'.ncia utópica afia-
lembrado, há um impulso e urna intenupção, uma incubação e uma da, para atravessai· justamente a proximidade mais imediata, assim como
antecipa~·ão do que ainda não veio a ser. .E esse inl<'rrompido-irrompido para atravessai· o imediatismo mais imediato, em que ainda reside o ccrn<'
não ocol'l'c no porão da cons<·iência, mas sim 11a sua linha ck frente. Aqui do encon11·ar-sc e elo estar-aí, no qual está simultaneamente todo o nó elo
trata-se, portanto, dos processos psíquicos elo emergir, processos 111istéiio do m1111elo. Não se trata ele um mistério que subsiste apenas, por
característicos sobretudo da juventude·, dos p<'l'Íodos de mudança, da ('xemplo, para o entendimento insuficiente-, c-rn111anto a questão c·m si e
aventura da produtividade, de todos os fenômenos, pois, em que est,í contido para si c-staria lotalrncntc mais clara <>ti sc-.-ia 11m conteúdo disposto sobn·
e quer articular-se o cpu·-ai11da-n;io-vcio-a-ser. 1{ dessa maneira que o ~i mesmo, mas lrata-se daq11ck mistério n·al que ainda é a questão elo
antecipatório age no campo ela espcnrnça. Po1·tanto, esta tuio ;; amudJida 11mnclo para si mc·srno, (' para cuja soh1(,·ão ela mesma c·stá em procTsso e
afwna.1 rnmo afeto, em oposiçiio ao medo (pois também o me-do conscguc- .1 caminho. Assim, o ai11cla-11ão-co11scicntc- no scT humano c-frtivamentc- faz
antecipar), mas mai.1 11s.wncialmenle mino alo ele direção cognitiva (e, ncstc- parte elo <111c-ai11cla-não-vc-io-a-ser, elo ainda-não-produzido, cio ainda-não-
caso, o oposto não é o medo, mas a lembrança). A conn·p(,',lO e· as idéias da manifrstado 110 1111111<10. O ainda-11ão-co11scic·11tC' com1111in1-sC' <· intC"rag<' com
intenção futura assim caracterizada sào utópicas, mas não no sc·nticlo estreito o quc--ainda-wio-vc-io-a-scT, mais espc·<·ificamC'nte c·orn o que <'Sl,Í surgindo
desla palavra, d<'finido apenas pelo que é ruim (fantasia emotivamente 11a histúria e- no 1111111<10. Sc-nelo que a arnílisC' da consciê·11cia antC"cipat<Íria
irrefletida, duculmu,:ão abstrata e g1,1tuita), mas_justarnC"nte no novo sentido deve1·á servir f11nda111C"11talmenlc· p,1ra cpw os c·ollS<'<IÚC'lltcs reflexos
sustentado do sonho p,u-a a l'n·nte, da antecipação. /\ssim, porlanlo, a propriallH'lll<' ditos, os retratos da vida melhor cksc:jada e antc-cipada,
categoria do utópico possui, além do sentido habitual, justificadamc-ntc- 1onwm-sc- psicomatC"rialmenle co111prec·11sív<"is. ll<"ve1·-s<"-,Í, portanto, tomar
depn·C'Íativo, também 11111 onllu que de rnodo algum <~ necessariamente conh<"cimento cio antcripal<>l'Ío com hasC' c-rn urna ontologia cio ainda-não.
abstrato ou alheio ao 1111111do, mas sim inteirarnentc voltado para o mundo: Por ora, isto hasta sobre a segunda parte, sohn· a iniciada an,ílisc- da Ji.m(ão
o sentido de ultrapassar o curso natural dos acontC"cimcnlos. Entendido sul~jet iva e· ohjet iva da c·spC"ran<;a.
dessa maneira, o terna desta segunda parte é a hrnc;ão utópica e seus RC'lornanclo, c-ntão, aos cksc:jos isolados, s1trgc111 11ova111c·ntc aqueks
c·o11te1íclos, além ela amílisc- dc-ssa função junto à ideologia, aos arquétipos, de car,ÍtcT eluvidoso. /\o invés dos pc-cpwnos ideais sem rC'gras dos relatos,
aos ideais, aos símbolos, às c1tc·go1ias Jrorit e novum, nada e pátria, ao agora se tornam visíveis os tutelados e· dirigidos pda burg11C'sia. Cowl11zidos
problema primordial elo aqui e do agora. Deve-se ter prc-sc-nte ainda, contra dessa forma, suas imagens lamhém podem ser oc11ltadas e distorcidas em
todo o niilismo insípido e imóvd, c1ue também o nada é urna categoria cor-de-rosa e cor de sa11g11c·. /\ IC'ffC'ira partC', a Tmnsi(:iio, mostra imagenc1
utópica, ainda que ext1·c-mamc11tc- antiutópica. Longe ck constituir a base idmlizadas uo P.1j1dho, 1111111 espelho embckzaclor que fr<'qiic-ntcmC'IIIC' refle-
nulificantc ou formar um pano de fundo do mesmo tipo (de tal forma qm· te apenas o que a classe dominante- quer do dc-st:jo elos li·ac·os, e como ela
o dia do ser situe-se entre- duas noites detern1inadas), o nada- exatanrentc· o quer. Mas tudo se esdarece compktamente quando o espelho se migina
como o utópico positivo, a pátria ou o tudo - "existe" apenas corno do povo, nítido e maravilhoso como nos contos de fada. Os clesc:jos refleti-
possibilidack ol~jctiva. Ele envolve o processo do nnrnclo, mas não lhe é dos, freqüentemente normal izaelos, pn·enchern esta p,u-le do livro. A todos
superior. Ambos - tanto o nada como o tudo-, couro caracteres utópicos, eles é comum urna atra(_'·ã.o pelo colorido, c·rnno se isso fóssc suposta e
corno cleterrnina<;ões ameaçadoras ou pknificadoras no mundo, de modo autenticamente o melhor. A atrnção por fantasiar-se, a 11itri.ne iluminada,
algum estão definidos. E da mesma forma o aqui e o agora, que estão faz parte disso, mas também o mundo do.1 wnloc1 de Júda, o lugar longínquo
sempre se iniciando nas proximidades, constituem uma categoria utópica, embelezado na viagem, a dança, a fábrica de sonhos chamada cinema, o
sim, a mais central de todas - pois ela, ao contrário da abordagem redutora exemplo do teatro. Tais coisas uiam a ilusão de uma vida melhor, como na
de um nada ou da abordagenr resplandecente de um tudo, nem mesmo indústria do entretenimento, ou realmente retratam uma vida que é
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111os11·;11la c·111 sua c-ssc11na. Pon:111, q11a11do •·s1;1 pt<:-pi111111a s1· 10111;1 11111 \p,-.~:11 d:1 N01111 i\t/1111/i.1 de Francis Bacon, no .'imhilo da tC::n1ic1 nao se
esboço, cncontra1no-nos ern meio às utopias l>l"opriamcntc dilas, a sah<'r: ,k.~l:ic 011 1H'11l11111ia tnra limítrofe com ~tatu~ próprio de pioneira e contcú-
a~ utopia~ planejada~ ou projetadas. Elas preenchem a quarta parte, a d, •~ d(' csp<T,lllça próprios assentados na natureza. Muito menos viu-se isso
Con~trução, com conteúdo historicamente rico e não só historicamente 11.1 .mp1itcturn, co1no, por exemplo, e1n constn1ções que dão fonna, re-
duradouro. Essa parte desdobra-se nas utopias médicas e nas sociais, nas 111 <,d uzem e prefiguram um espaço mais belo. E, da mesma forma, o utópico
técnicas arquitetônicas e geográficas, nas paisagens ideais da pintura e da 1wnnancceu surpreendentemente encoberto nas situações e paisagens da
poesia. Assomam, assim, os ideais da .1aúde, os ideais fundamentais da l'i111111-a e da poesia, nas suas extravagâncias assim como especialmente nos
,\Oâedade ,1em carência, os milagres da técnica e os casldos de areia e1n tanta ,c11s realismos possíveis dt· visão profunda e longo alcance. E, ainda assim,
coisa que existe na arquitetura. Surgem édens-cldorados nas expediçõe.1 geo- ,·111 todas essas esferas, com seus va1iados <'Onteúdos, a htn<:ão utópi<'a está
gn~fha.1, as paisagens de um meio ambiente- ackquadanwnte rt'tratado na .1g-i11do: entusiasticamente- nas obras mc-non·s, de maneira precisa e realis-
jJintura e na jJOesia, as pe1·spec1ivas de um cm-absoluto na Mibnloria. Tudo 1icunente :;ui gfnnis nas grancks obras . .Justamente a 1iqueza ela fantasia

isso está repleto ele reparos, construindo implkitaou cxplicilamcnte o tr~j<"to humana, junto co1n o seu co1n·lato no n1111Hlo (no momento cm que a
e a imagem final de- um mundo mais perfeito, em rnaniksta(Ões mais bem- Lmtasia torna-se <'specializada e c·onn<·ta), não pode- sc:r investigada nem
formadas e mais c·sse11ciais que aquelas que já se deram cmpiric-arne11tc. Aí 111ventariada de outra maneira senão pela huu.:ão utópic·a e tampou<'o ela
também h,i muita cfemel'iclaclc arbitnüia e abstrata, mas as grandes obras pode ser testada sem o materialismo dialélico. A pré-aparência específica
de arte mostram essencialmente uma pn~-aparência tomada da n·alidade, que a arte mostra é semelhante a um laboratório cm que JHUC<'Ssos, figuras
n>nslrnícla a p,u-tir do seu próprio ol~jeto na sua forma plena. O que se ,. caracteres são kvados até sna finaliza<:ão típica e característica, até o
altera f o olhar parn a cssêrn·ia prefigurada, experimentada cstétin1 e rdi- .ihismo ou a lH'm-avenlura1u.:a do lirn. Essa pt·rcc-pção essencial ele caracteres
gios,mH'lllc. PorC::rn, toda l<'nlativa desse tipo expe1ime11ta algo reparador, e situa<:ôes, in<'!Tlll<" a toda ohra de arte - que se pode chama,- de
algo perfeito, que a lerrn ainda não sustenta. Esse olhar é cliversanwnle shakespea1-iana conf<>rmc· s11a exprcss,io mais cvidenlc, e de dantesca por
concn·to, co1H·sponckndo ,1 barreira de classe. Entretanto, os ol~j<·tivos seu caráter· mais lenninativo -, pressupô<· a possibilidade como estando
1 tlópin)s fundamentais elo chamado querer artístico nos chamados estilos, .icima ela realidade j,í exislcntc. Para lodos os lados vollam-se atos e
esses "exrcdcnlcs" da ideologia, ne1n sempre desaparecem juulo <·om a imagim1<;ôc·s prospeclivos, r11mam estradas oníricas sul~jctivas, mas
sua sociedade. A arquitetura egípcia é um querer tornar-se como pedra, eventualmente lamhérn ol~jetivas, elo que veio a ser para o que- s<· conseguiu
tendo o cristal ela morte como perfeição almejada. A conslrn<:ão gótica é akan(,11", para aquilo que foi hem-sucedido e está. simbolicamente
um <pten·r 1on1ar-se como a videira de Cristo, tendo a árvore da vida circunscrito. Dessa forma, os co11<Tilos do ainda-não e- da inlcn<:ão
corno pnfrição intencionada. E, assim, a arte como um todo mostra-se confúnmiclora já não tê·m nas utopias sociais o sen exemplo 1ínico e até
repl<-ta de mauifrstaçôcs que se tornam símbolos da perfri,·ão, mesmo exaustivo, por mais importanlt"s qne tenham se tornado estas utopias
impulsionadas para um fim de essência utópica. Até agora, loclavia, apenas sociais, abstraindo-se Iodas as outras, para o conhccimc·nto crítico ck un1
no caso das utopias sociais era natural que elas fossem ulópicas: primeiro antc-c·ipar n·alizado. Porém, 1·cst1ingir ou até apenas orient,ff o utópico ao
porque são dn1ominaclas assün e segundo porque a expn:ssão cwli'lo no modo de Tmrnís Morns seria como que1·er reduzir a ekt1icidade ao fünbar-
ar foi utilizada gcralmc·nte e1n conexão com elas, e não apenas com as aman-lo, do qual ela recebeu o seu nome gn·gci e no qual ela foi percebida
mais abstratas dentre elas. O que fez com cpw o conc.-eito ele utopia, como pela primeira vez. Sim, o ut6pin> coincide tão pouco com o romance do
já foi obsc1vado, fosse exageradamente reduzido (ou seja, restringido a Estado <1m· a totalidade ela .filosofia (uma totalidade às vezes qnase esqueci-
romances que falam de um Estado ideal) e adquirisse justamente aquela da) faz-se necessária para fazn jus ao que se designa como utopia. Daí a
modalidade abstrata (pelo caráter preponderantemente abstrato desses vastidão das antecipações, ideais e conteúdos de espenmça reunidos na
romances) que só foi superada quando o soc·ialismo elevou essas utopias parte Construção. Daí - adiante e atnis dos contos de fada sobre um Estado
ao nível de uma ciência. Aí ao menos surgiu, com todos os senões, a ideal - a anotação e a interpretação citadas de utopias médicas, técnicas,
palavra utopia, formulada por Tom,ís Morus, ainda que o conceito de arquitetônicas, geográficas, inclusive das próp1ias paisagens ideais na pin-
utopia, muito mais abrangente em termos filosóficos, não tivesse ainda tura, óptTa, poesia. Daí, por fim, ser esse o lugar para descrever a
ocorrido. Em contrapartida, em outros ideais e planos de ordem técnica, diversificada paisagem da esperança e das perspectivas específicas em r<"la1;iic,
por exemplo, pouca coisa utopicamcntc digna de reflexão foi observada. a ela em memória da sabed01ia filosófica. Isto, apesar do pátho.1 do pas,~a< I< >,
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pn·po11d<"ra11l<' 11as f"ilosol'ia.s pr<"n·dl'llll'S. ;\ clin·(ao q11,1..,1· s«-111p1t· 1110, e 11j;1 11lopia da 1ir1ic1 coisa tH'<Tss,íria rege Iodas as demais, e111l>o1 a l'b

inlcncionada da n1anifestação-essi-11c·ia moslra, wio obstanl<', 11111 pólo .1i111b t·slcja lolal111cnle 11a condição de noção, como ocoITc com o próprio
claramente utópico. A série de todas essas elaborações- que, social, estética csl;ir presente do ser humano. Mas quem dera já tivessem sido alcançados
e filosoficamente dizem respeito à cultm-a do "verdadeiro ser" - termina , · li >ssen1 acessíveis os bens fundan1entais, e estivéssemos a caminho de eli-
sempre se nnvando diante das questões decisivas acerca de uma vida de 111 i11,ff a penú1ia generalizada. No caminho que leva primeiramente aos
trabalho gratificante, livre de exploração, mas também de uma vida para 1(·souros que são devorados pela ferrugem e pelas traças, e só depois àqueles
além do trabalho, que está no problema ideal do óâo. , p t<· permanecern. Este é e continuará sendo o caminho do socialismo, a
A vontade ültima é ade estar verdadeiramente presente. De tal modo 111 ,íxis da utopia concreta. Todo o não-ilusório e o realmente possível nas
que o instante vivido pertencesse a nós e nós a ele e lússe possível dizer a 1111agcns da espcrall(_:a rernontam a Ma1x e trabalham - conquanto seja
ele: "Dure eternamente!". O ser humano quer finalmente estar no aqui e 1·;1riado cn1 cada caso, racionado de acordo cont a situação - na
no agora sendo de 1nesmo, sem adiamento nem distância entrar na sua l ransfonnação socialista do mundo. DessC' modo, a arquitetura da esperança
vida plena. A vontade ulópica auli·ntica Il<IO é de fonna alguma um alme- lorna-se uma arquitetura realizada nas pessoas que at{- aquele momento
jar infinito, ao contrá1io: da quer o 1ncram<'nte imediato e, dessa fonna, o .1pcnas a haviam vislumbrado como sonho e pré-aparh1cia elevada e
contelÍdo não possuído do encontrar-se <' do estar-aí I Da.1ei.n I finalmente lambérn supren1a, 1m1a anptiletura que se realiza na 11ova terra. Nos sonhos
mediado, aclarado e preend1ido, preenchido de modo adequado à de uma vida melhor sC'rnprc residiu o anseio de felicidade, que só pode ser
felicidade. Este é o contelÍdo utópi<-o limítrofe, pn·tcndido no "Dun- 1naugurado pelo marxismo. lslo proporciona, também cm termos
etemamcnte! és tão lindo!" do pn~jeto do Fausto. Assim, as imagens ol~jetivas pedagógicos e de conteúdo, um novo acesso a um marxismo criativo, a
da esperança, no processo de co11stnu;ão, impekm i1ren1savehne11te <·m partir de novas premissas dos lipos suhjelivo e objetivo.
dire<;ão ,h imagens do pr<>pr·io ser humano pkuifi<'ado e do seu ambiente O que assim se tem em mC"nte será caracterizado aqui de 1órma ampla.
plenamente mediado por·de-por'fa11to, ií sua p.-ílria. O acolhimC'nlo dessas No que há de pequeno e 110 que há de grande, verificado com Ioda atenção,
intençôes é- buscado 11a quinta e lÍltima parte, fd,pn/idru/i,_ Nda apar·<·cem, 110 intuito de revelar o real contido nele. Para que, na medida da possibi-

como tentativas <k tomar uma fonna similar à humana, os diversos modelo.1 lidade real, aquilo que está s<"ndo como possibilidade real e o que realmente
morais e os esqwww.~, tantas vezes antitéticos, para uma vida correta. ainda está por anrntecer cheguem ao ser positivo (e tudo o mais é fogo de
Apresentam-se, em seguida, as figuras da ultrapassagem dos limile.1 h.1w1ano.1, palha de uma opinião apressada e conversa de tolos). Isto é, em última
frutos da imaginação poética: D.Juan, Ulisses, Fausto, este último seguindo análise, uma enonne simplicidade ou aquela coisa única que se faz
exatamente cm busca do instante perfeito, na utopia experimentada 110 neccss;-iria. Uma encidopédia das esperanças freqüentemente contém
mundo. D. Quixote adverte e desafia, pela monomania do sonho, pda repctiçôes, mas nunca sobreposições, e no que se refere às primeiras vale
profundeza do sonho. Surg<·, neste mornento, como mn drnmado e tra<;ado aqui a frase de Voltain-, de que ele se repetiria tantas vezes quantas fossem
de linhas cxpn·ssivas muito mais imediatos e de maior alcance, a mú.1it:a, a necessárias para ser entendido. A frase vale tanto mais porque as repetições
arte da i11te11sidade mais forte do ltumanum utópico no mundo, levada a do livro ocorrem, dentro do possível, sen1pre nurn novo nível, de n1odo
cantar e soar. E então são reunidas as imagens da esperança rnntm a morte, que elas ta11to expe1irne11tararn algo quanto pe1nütem experimentar de
contra esse mais duro contragolpe na utopia. A morte é um fato que não maneira sempre renovada aquilo que é igualmente almejado. O
pode ser esquecido e que desperta a esperança. Ela é principalmente uma direcionamento para a única coisa que se faz necessária existia também
forTna daquele nada tragado pela passagem utópica para dentro do ser. nas filosofias precedentes. De que outra forma elas poderiam ter configurado
Não há devir nem vitória cm cp1e a aniquilação do nüm não stja ativamente o amor pela sabedoria? E de que outra forma poderia ter havido urna
tragada. Culminam no mítico, contra a morte e o destino, todas as boas- grande filosofia, isto é, uma filosofia relacionada incessante e totalmente
novas que perfazem a fantasia da religião, as totalmente ilusólias e aquelas com o propriarnentc dito, o essencial? E, pmvcntura, corno poderia ter
de essência humana, que, no fundo, referem-se à redenção em relação ao havido a grande filosofia materialista, com sua capacidade para retratar
111al, à liberdade rumo ao "reino". Segue-se, justamente no que tange à em tennos reais o essencial coerente? Com o traço fundamental da
i111cnção imanente ele fonnação dessa pátiia, o problema do futuro no explicação do mundo a partir de si mesmo ( e na certeza de poder explicá-
1'.1/11Lro sustentador e abrangente da pátria: a natureza. O ponto central aí é lo desse modo), visando à felicidade imanente ( e na certeza de encontrá-
o prnhkma do valor desejável por excelência ou o problema do bem !>upre- la)? Mas os precedentes amigos da sabedoria, também os materialistas até
28
Parte I
(Relato)
Marx,_j:í <'Stahdc('cnmt o propri:1111<·111<' dito n,1110 011ti1·;1111<·11II' 1·x1:-.lc11tc·, Pequenos sonhos diurnos
sim, at{, con10 estatica1nente concluso: <lcs<I<- a :ígua do si11g<"lo Tak:-. ai<: a
idéia do em-si e para-si do absoluto Hegel. Em última análise, foi scmpn· a
tampa da anârnne~isplatônica sobre o erm dialeticamente aberto que manteve
a filosofia precedente afastada da seriedade do fronte elo novum, cerrada
no modo contemplativo e antiquado, indnsive a filosofia ele Hegel. Assim
foi interrompida a perspectiva, assim a recordação descontraiu a esperan-
ça. A<;sim a esperança não nasceu exatamente na recordação (no futuro do
passado). A<;sim a n·<·ordação tarnp<rn<·o se ergueu da esperança (da utopia
concreta mediada historicamente, que prescinde da histól'ia). Assim,
pareceu que se havia chegado à tcndê:nl'ia do ser, isto l', pan·ceu que se
havia chegado h<·mjunto dela. A<;sim, o próprio processo real do nnmdo 1. Começamos sem nada
pareceu ter dwgado a si mesmo, sendo imobilizado. O canítcr forrnador- Movimento-me. Desde n·do na busca. Compktanwntc ávido, gritan-
retratador· do vndadeiro, do real, cm nenhum momento{, tão passível <k do. Não s<· tem o <JlH' s<· que!'.
ser intcrrmnpido como quando o pn><Tsso cm <·urso no mundo já passa
por dt·cidido. Somente ao se abandonar o c·on<·eito fcd1ado e imóvel do '.!. Muita coisa tem gosto de mais
ser surge a n·al dimensão da espern11<;a. O mundo está, ant<·s, rq,Icto de Mas tamb{-m aprendemos a esperar, pois o que uma niança cksc:ja
disposição para algo, tendência para algo, latência de algo,,. o algo assim 1 aramente d1cga imcdiatanH·ntc. Sim, espera-se pdo próprio desejo, até

intencionado significa pknilicação do <1rn· {, inten<·ionado. Signifiea um •pte ek se torne mais dat"O. Uma <Tian~·a agarra tudo para <·ncontraro que
mundo mais adequado a nós, sem don·s indignas, anglÍstia, .ullo-alicmu,:ão, l<'m em mente. Joga tudo fora, está inn·ssantemcnte curiosa e não sabe
nada. Essa tendência, porún, est,í cm curso para aqu<'k <pw _justanwnte pelo quê-. Mas o novo já vive aqui, o outn> com o qual se sonha. Meninos
te1n o no1111:m diante de si. É somc·ntc no nmnun que o para-onde do real <le:stroem o que lhes é presenteado: eles buscam por mais, desembrulham-
mostrn a dete:nninação mais hmdamcntal do seu ol~<'to, e esta c·onvoc·a o 110. Nenhum menino poderia dizer o que é e jamais o terá recebido. Assim,
ser lnunano, cn1 quem o rumnm tem os seus braços. O saber marxista o que é nosso se esvai, ainda não comparece.
significa que os difíceis processos de ascensão se descnvolv<·m tanto uo
conceito quanto na práxis. Na problemática do novurn reside a abundâIKia 3. Diariamente sem saber o amanhã
de campos do saber ainda inabitados. Nela, a sabedmia do nmndo torna- Mais tarde, a criança pega com mais firmeza. Deseja estar onde o
se novamente jovc·m e 01iginária. Se o ser se compreende a partir do seu que sucede é nomeado de fonna mais clara. Quer ser iur1 condutor ou l1IIl
de-onde, então ek se compreende, a partir daí, apenas como um para- doceiro. Procura uma viagem longa, para bem longe, e bolo todos os dias.
onde igualmente teuckncial, ainda inconcluso. O ..,er que wridiâona a wnsâ- É o que parece certo.
ência, assim como a wn.\<;iênâa que trabalha o ser, compreendem-sr. em última ins- A criança utiliza-se também dos bichos para sonhar em ser grande.
tância -"Otnente a partir de onde e para onde tendem. A essência não é o que foi, ao Especialmente dos peqiwnos: eles não dão tanto medo, cabem na palma
contrál'io: a essência mesma do mundo situa-se na linha de frente. da mão. Ou podem ser capturados com redes. Com isso, ativa-se um desejo
remoto. O doceiro se transforma em caçador, e agora há um espaço aberto
cmiosameiite povoado. O lagarto corre, verde e azul; algo espantosamente
colmido voa como uma borboleta. As pedras também estão vivas, e nem
por isso são fugazes. Com elas se pode b1incar, elas brincam junto. "Gosto
Parte I
(Reia,to)
Ma1x,_j;í l'stal)('lcccrnm o propriamente dito l'OIIIO 011tica111<'11tc l'Xis1t·11tc, Pequenos sonhos diurnos
sim, até como estaticamente concluso: desde a água elo singdo Taks ali- a
idéia do em-si e para-si do absoluto Hegel. Em última análise, foi sempre a
tampa da anâmnesis platônica sobre o eras dialeticamente aberto que manteve
a filosofia precedente afastada da seriedade do front e do no11um, ceffada
no modo contemplativo e antiquado, inclusive a filosofia de Hegel. Assim
foi intenompida a perspectiva, assim a reconla<,·ão descontraiu a esperan-
ça. A<;sitn a csp<·rança não nasceu exatamente ua recordação (no futuro do
passado). Assim a n-<·onla\;ào tampouco se ergueu da esperanc;a (da utopia
concreta mediada historicamente, qu<' prcscind<' da história). Assim,
pareceu qut· se havia chegado à tendê-ncia do ser, isto é, pareceu que se
havia chegado bem junto dela. Assim, o próp1io processo real do mundo 1. Começamos sem nada
pareceu tcT d1<·gado a si mesmo, sendo imobilizado. O car.iter formador- Movinwnto-m<·. Desde cedo na busca. Completamente ávido, gril;111
n·tratado1· do verdadeiro, do real, em nenhum momento<~ tão passível de do. Ni'ío se tem o qnc se· qm·i-.
ser inteITompido corno quando o processo cm curso uo muudo já passa
por decidido. Somente ao se abandonar o conceito kchado e imóvel do 2. Muita coisa tem gosto de mais
ser surge a n-al dimensão da esp(Tan<:a. O mundo está, antes, repleto de Mas também apn·rnkmos a esperar, pois o qu<' 11111a criança deseja
disposição para algo, tendh1cia para algo, latêneia d<' algo, e o algo assim raramente chega irncdiatam<"11te. Sim, cspern-sc pelo própiio desejo, ai<:
intencionado signi(ica pknilict(ão do que é int<'n<'Íonado. Significa um que de se !orne mais claro. lJrna criança agarra tudo para <·ncontrar o <[lll'
mundo mais adequado a uós, sem dores indignas, angústia, auto-alienação, tem <·m mente. Joga tudo forn, está inccssantcnwnt<· nuiosa e não sahl'
nada. Essa tenclfnda, por{-m, est;í cm curso para aquck que justamente pelo quê-. Mas o novo já vive aqui, o out1-o com o qual se sonha. Meninos
tem o novwn diante de si. l~ somente no novum qu<' o para-onde do real destroem o que lh<'s é prcs<"nteado: eks busc·am p<H' mais, descmbnilham-
mostra a determinação mais l'uwlarncntal do seu ol~j<·lo, <' esta convoca o no. Nenhum menino pock1ia dizc•r o <pH· {- e· jamais o te1,1 n·cebido. Assi111,
ser htunano, cn1 quc1n o ,w,,w11 tc1n os seus bra<;os. O sabei· 1narxista o que é nosso se esvai, ainda não compan·cc.
significa que os dilfreis pro<'cssos de ascensão se desenvolvem tanto no
conceito quanto na pr.íxis. Na problemática do novwn reside a abundância 3. Diariamente sem saber o amanhã
de campos do saber ainda inabitados. Nela, a sabcdo1ia do mundo torna- Mais tarde, a crian~:a pega com mais firmeza. Desc:ja estar onde o
se novamente jovem e oJiginária. Se o ser se comprccnck a partir do seu qut· s1Kedc é nomeado <k forma mais clara. Qu<T s<·r um condutor ou um
de-onde, então ck se cornprccnck, a partir daí, apenas como um para- doceiro. Procura uma viagem longa, para bem longe, e bolo todos os dias.
onde igualmente tell(kucial, ainda inconcluso. O ser quP- i:ondiâona a consci- É o que pan·ce certo. ·
ência, lLuim como a con,v:i.ênâa que trabalha o ~r::r, comf1reP-ndnn-sr, em última ins- A niança utiliza-se ta1ilbérn dos bichos para sonhar cm ser grande·.
lâ:ru:ia somente a fHuti.r de rmde e f1ara onde lendern. A essência não é o que foi, ao Especialmente elos pequenos: eles não dão tanto medo, c:abem na palma
contrário: a essfncia mesma do mundo situa-se na linha de frente. da mão. Ou podem ser capturados com redes. Com isso, ativa-se um desejo
remoto. O doceiro se transforma em c:açador, e agora há um espaço aberto
curiosamei1te povoado. O lagarto corre, verde e azul; algo espantosamente·
colo1ido voa como uma borboleta. As pedras também estão vivas, e nem
por isso são fugazes. Com elas se pode brincar, elas brincam junto. "Gosto
de tudo assim", disse uma criança, referindo-se à bolinha de gudc qtu· vivo. O quc, 11<·sl(' 1 ;1...,0, q tl<'I" dit.<'r p<'ssoas d(' 111;Í I c·p11l,1<.:.io 0111· ... 11.11111,1•.
havia rolado para longe, mas espc·rava pela criança. Brincar é transfonnar- com as <1uais se anda, entre as quais ninguém supô<' qu(' <'Slcja1110,.... N('111
se, ainda que na certeza de voltar a ser o que era antes. O brincar transfonna ,.._empre os alunos põem tudo de lado, no empenho de dar· 11111a .ilq~11,1
a seu gosto a próp1ia criança, os seus amigos, todas as coisas à sua volta em aos seus pais e pt·ofessores. Os pais e professores, porém, sq{111·.1111<·111('
algo estranhamente familiar: o chão do quarto de brincar torna-se uma saben1 co1no lhes causar aflição. O sofrimento na escola pode s(·1 111;11·,
selva cheia de feras ou um mar em que cada cadeira é um barco. Porém, n·voltante do que qualquer outro mais tarde, exceto o do 1u·isio11ci I o.
quando o habitual se distancia demais ou custa a reassumir a feição antiga, Daí o desejo, similar ao do prisioneiro, de escapar: o mundo (;í lú1 a,
irrompe a angústia. "Olha, o botão é uma bruxa", exclamou aos gritos ainda impreciso, acaba se tornando estranho. Uma mulher cont.t:
uma criança ao brincar, e depois não mexeu mais no botão. Ele não havia "Q,nando era menina, cu sempre queria que entrasse um ladrão <'lll c1s;1.
se transformado em mais do que a criança havia dcs<:jaclo, mas ficou Mostraria tudo para de, prata, dinheiro, roupas. Ele poderia levar ludo
transformado por um tempo demasiado longo. O abrigo doméstico não e, como gratidão por isto, tamhém a mim". Um homem conta: "Q11a11d11
poderá se estender demasiadamente para dentro do sonho. Ek precisa ser ouvi pela primeira vez uma gaita-de-foles, corri atrás dela como st· fos:-.1' .1
pffse1vado como o lugar que o lagarto ainda não danifinrn, qu<' a borboleta coisa mais extravagant('. Conludo, não retornei depois de algum t<'lllf'º·
ainda não ameaçou. 1~ a partir dde que se prefere· lan(ar e colecionar como S('rnpre ocorria em relação às coisas incomuns que passavam pcl.i
olhares pela janela, olhares prohmdos e breves cm dir<'(,10 ao outro. O rua - o afiador de tesouras, o Exército da Salvação e assim por dia11tc·.
próprio animal colorido é uma janela colorida, atrás da qual se situa o Fui para fora da ciclad<', s<"guindo pela estrada elo interior por povoado,s
lugar distante cks<:jado. Quase não é difert'ntc do selo da nu-ta que fala de que conhecia e· mio conhecia. O que atraía não era somente o ho11w111
!erras estrangeiras. 1~ como a concha cm que n1ge o mar quando fautástic·o: seduziu-me o espírito sihilantc que c·u acreditava estar clc-111ro
suficit·ntemc·nte pn>xima do ouvido. O menino sai e cm toda parte ajunta da gaita-de-foles, e· no qual, por fim, <'li nwsmo me tornei". Assim, ao:-.
algo que lhe foi enviado. Isso pode ser, ao mesmo tempo, lcstemunho das set<· ou oito anos, o t·spa<:o estreito torna-se amplo, as eoisas mais estraulla:-.
coisas que o menino quer ver e, para poder vê-las, de vai hem cedo para a a("(mlc<·c·m 11dc (quando a C'seada é retirada elo chão e puxada para cima).
c:arna. Ao olh,11" uma pedra colo1·ida, germina muito do <JlH' ele desejará Todavia, é s<Í o c·scowlcrUo que se <jH<T posto ali: o rapaz que está 11elc-
para si mais tarde. irnp<"1n·ptivdmentt' cvadc-s<· do lug-ar com os amigos. Traslada a si próp1 i« ►
num corcc·I resfólega111c, de pC'11acho in-cquicto, rumo ao espaço sc·g-111"
4. O esconderijo e a bela terra estrangeira da av<"nturn. A noite cst,i n:pl<-ta ck tabernas e castelos, em cada um li.1
peles, anuas, lar<"irns crepitanlcs, homens qual á1von·s, mas nenh11111
Fntre si fflógio. Os d<'scnhos fritos em papd mata-borrão nos cadernos escolan·s
Junla-sc a isso a vontade de ficar invisível. Procura-se um canto: ele dessa época lamhé-m cvicknóam o gosto acentuado pelo esconderijo. llma
protege· e oculta. Tudo se passa agradavelmente no espaço apertado. É segurança armada até os cientes cm posta no papel, mna casa, uma cidade·.
claro qm· ali st· pode fazer o qm· se quer. Uma mulher conta: "Eu me uma fortakzaj1111to ao mar, nivada de c.anhôcs. Ilhas situam-se defronlc-
imaginava debaixo do anrnirio, queria viver ali, brincar corno cachorro". dcla: elas afastam o inimigo que vem pelo mar. Em terra, porém, encontra .
Urn homem conta: "Quando rapazes, c:onstruímos para nós, entre os ran1os, se um tr·iplo dnturão de fort<·s que vigiam a estrada, a única que cond111.
um local que não podia se1· visto do chão. Quando estávarnos sentados lá para dentro da fortaleza do sonho, e ela está minada. Deste modo repousa
cm cima, com a escada recolhida, sem ligação com o solo, nós nos sentíamos a cidade junto ao mar, invisível para a escola e a casa, inacessível ao
completamente felizes". Nisso se delineia diante dos olhos o próprio quarto, intedocutor com olhos sonolentos. E, no entanto, a fortaleza não foi
a vida livre que virá. desenhada apenas como inexpugnável, mas também como poderosa,
resplandecente: muito além da borda do papel, seu efeito leva para o
Em ut~a e já a caminho desconhecido. A própiia vida foi protegida e ce1·cada, bem no alto, por
O garoto escondido também acaba escapando, ainda que timida- ameias que, no entanto, podiam ser galgadas a qualquer momento para
1nente. Ele busca o espaço aberto, apesar de estar se enclausurando: o lançar o olhar ao longe. Esta conexão entre o espaço estreito e a hc-la
que ele fez foi, durante a fuga, armar-se com paredes à sua volta. Melhor terra estrangeira não desaparece nem depois disso. O que vale dizer que·,
ainda quando o esconderijo se move, isto é, quando consiste de algo desde esse tempo, a terra ideal é uma ilha.
5. Fuga e retomo do vencedor .,, i111a de lodos os n·s,ttcs e reis, redistribuía o mapa-1111í1Hli. ( :0111 ap1d.1
Se alguém sonha, nunca fica parado no mesmo lugar. Move-se, quase cio-; c111htws eléuicos, restituí sobretudo a prezada Turquia aos sc11s a 111 ig11•,
que a seu bel-prazer, elo lugar ou condiçào em que se encontra naquele l1111iles. Urna vez ao ano ocorria a noite da fuga, o navio deixava a ;Íg11;1 1·
justo momento. Ali pelos 13 anos de idade, descobre-se o cu corno compa- .,tcTrissava no monte mais alto da terra. Ali eu recebia os meus a111igos,
nlwiro de viagem. Por isso, nessa época, os sonhos de uma vida melhor 1 wnnitia que eles olhassem o futuro p<H' uma janela assentada 1111m l11g·;11

tornam-se especialmente exuberantes. Eles movimentam o dia cfrrvcscen- npccial, praticava os mistédos do raio verde. Esse raio brilha pouco dcpoi.~
tc, sobrevoam esc·ola e casa, levam consigo o que considenunos bon1 e nos do pôr-do-sol no oceano Pacífico e en sabia manejá-lo de tal modo q1w
é caro. Eks são a vanguarda cm fuga e preparam a p1inwirn pousada para , 0111 de se podia1n ver todos os reinos já desaparecidos". Trata-se ainda ili-
aqueks nossos desejos que vão se tornando mais precisos. Pratica-se a arte 'li,agações burguesas do tipo juvenil. No caso de jovens proletários d('-;s;1
ele co11vcTsar sobre o que até aqude momento w"io se vivenciou. E mesmo 11bcle, elas são bem mais ,·ontidas, inclusive mais cornportadas e realistas.
a mente normal inventa histórias nesse período, fábulas füceis, nas quais se ( :ontudo, mesmo que os conteúdos t<.·nham deixado de ser tão fantástiC'os,
sente hem. Tece as histórias 110 caminho da escola 011 110 passeio com os ., fH'Opensão para eles permanc·ceu S('lldo folmlar, indo nitidamente al,:111
amigos, e o naJTador, como m11na fotografia com pose preparada, sempre do que está dado. l;'. claro que essas fabuhl(Ôes nào surgem apenc1s d;,,
est,1 no centro. Nesse período, prnticauwnte todos estão cheios de ódio I'' ofundezas do 1·spírito, mas igualmente dosjon1ais, dos livros de aventura,
contra a nwdion·iclade, ainda 'lue eks mesmos se encaixem no ditado "fi- , 0111 suas ilustra<./1es espkndidam(·nt(' reluzentes, das barracas na fri, .i.
lho de peixe, p<'ixinho é". A jovem tola quer· tornar-se melhor, o jovem , ,nde as corn·ntcs são arrastadas<· partidas, onde se· <·anta a C'anção à cstn·b
makriado ,·osJ)(' no mofo casein>. As m,·ninas ficam ajeitando o prenome 11·-.;pertina e biilha a meia-lua. A,go, a Turquia e similares vêm daí, 1><·111
assim corno fazem com o pt:lllt'ado, tornam-no mais picante do que é e , 111110 a crua ou ,íspc.ra tonalidade de avcntnra em que reverberam essa:-.
assim dão a largada para um sonhado jeito diferente ele ser. Os meninos lonnas. A ligura <>l'iginária do navio d<'signa a vontade de VÍí:~jar, o sonho
movem-s<' cm direção a mna vida mais nobre que a do pai, em direção a ,L, vingarn;a amlmlant(· e da vilôria cx<'>tica. A,go (c o cpw o substitui, o q11l'
fritos clesconmnais. T<'11ta-se ;1 frliddade, que tem gosto de proibido e ton1a •l'iase toda cxp<'riê·ncia individual pod(' colo('ar no S<'II lugar) é um tipo dc
tudo novo. .,1 ('a para os desejos mais importantes dessa época: o des(:jo de ter rn11
111111fo. A vo11tadc dcsp<"da<_·a a casa, onde tudo { <"nfodonho e o melhor<:
J,e11a11tar âncora.1 l'loibido. Assim, na história sem fim, ela conslr<>i o seu castelo no alto da
Nem sempre, ao menos não claramente, os estímulos sexuais atuam 111ontanha, em meio ,'is m1ve11s, ou seu castelo l'cudal <'Ili forma de nave.
aí. As meninas prese,vam por muito tempo um pudor adq11i1ido, os moços
prezam em si nwsmos uma certa frieza ríspida. Freqiientemente, a altivez A taca l'intilanüi
e a egolatria impedem de rC'servar ao amor um lugar especialmente sonha- Só ('lltiio se manifestam os des<:jos que S<' toniaram doces, e logo
do. As pessoas certas pc1n-,·em não estar aí ou estar apenas entre indivídu- .-:-.pmnam. O ,uno,· u;"io deixa 11i11gué-m ('!llrar sozinho 110 casldo dos sonhos
os do mC'smo sexo. Muitas vezes, elas não se C'ncontrarn nc·m mesmo no ato , "1 ir sozinho para o alto-mar. A solidiio n;"io é mais pronu,tda nc·m fabulada.
de dt's<:jar. A,;sirn, nesse c·stágio, os castelos no ar r.ffamente se transfor- ,. lorna-se insuport,ível: da é- o ins11port.ívcl por excdê·ncia na vida que S('
mam cm castelos elo dest:jo, o harém e a mulher dos sonhos só chegam 111icia aos 17 a nos. Por isso, se· a menina ,·ealmente <·crta <kmora muito a
mais tarde. Na pobre fantasia, também se preservam as representações .1pan"cc1·, srn·w· a menina que i1naginamos, inventamos, em algurn lugar.
infantis por um bom tempo, e é exatamente a sofülão dessas representa- J<'.11tão é terrível a dor de ter deixado escapar alguma oportunidade: cada
ções que justifica o motivo ela füga. Uma mulher conta a respeito dessa l<'sta perdida ofenTc lugar parn ideais imaginados e ojowm acredita que,
época: "Eu queria ser pintorn, sonhava estar num castelo oriental sobre p 1slamente naquela noite, um deles teria descido ,\ terra. Agora é tarde
um monte, vivia ali sozinha com o meu filho ikgítimo, que havia tido de para encontrá-lo, pois a menina, mesmo que venha a ser encontrada, nào
um homem muito distinto". Um homem, inquirido a respeito de sua fá- pode mais competir com a imagem demasiadamente intensa que se fa:,,
bula de 15 anos, conta que "cu queria sair mar afora e para isso idealizei , Ida. Todavia, também no caso de encontros felizes o <"ncantamento erótico
um navio de guerra sem igual. Chamava-se Argo e fazia tantos nós por .1t11a: ele envolve a nwnina no seu sonho. A rua ou cidade em que a amada
hora que era quase onipresente em todas as costas da terra. E11 (Ta o 111<ll'a torna-se dourada, transforma-se em festa. O nonw da amada refletc-
senhor do Argo, com o título e o grau de príncipe-almirante, dominava ',c nas pedras, nos tijolos e grades, a sua casa sempre está localizada sob
palmeiras invisíveis. Não se tem certeza das próprias forças, po1q1u· , l.1·, po1 <··111, q11;111lo Íll'IH'lo c q11;111lo espírito dt· 1111iao, q11;111lo a1 dc 1110111.111h.1
são muitas e estorvam mnas às outras. Por isso, o joven1 geralme111e <: 1,avia e ainda h,í sobre um autêntico _jove1n de 17 anos. Contudo, t;1111lw111
arrastado de um lado para outro entre o abatimento extremo (até o ponto o ar da montanha está cheio de reden1oinhos: acompanha a nmd,11H::1 d('
de perguntar se de fato mcTece estar no mundo) e a altivez compensaló1ia. ventos <ptcjoga de um lado para outro a mais i1Kccta de todas as idades da
Embaraço e alrcvirnento estão viu('ulados nesse ponto: o jovem, que não \'ida. A mesma coisa no nível intelectual: apenas poucas pessoas jove11s
pertence' à média ou a detesta, sente-se c·o,no l1lll pequeno deus e, co,no os podem se alegrar de ter aqueles talentos inevitáveis que transformam a
demais não se dão ao trabalho de c·omprová-lo, ele mesmo o faz. Q,ucr ser profissão em vocação e assim poupam a escolha. São muitas as moças qut·
o primeiro a chegar ao alvo, quer sobrepujar. O alvo pode até ser bem g-ostariam de estar num filme, quase todo jovem tem na cabeça uma icl{ia
exterior, mas represl'nta alguma coisa desconhecida. O que para as crianças biilhante que não encontra colocação no mcTcado das profissões habitu-
era a pele fina ou a sorte ele· ter pernas cornp,idas, músntlos r\jos, t1-:msfonna- ;1is. No entanto, esses são des<:jos e indina<,-ô<'s mais gerais que por sort<'
sc para asjovens no orgulho elos chamados relacionamentos de cavalhei- 11ão são seguidos pm· muito tempo. Eks car<"ccm de um detalhe: o dom.
1ns. Para os jovens, na vaidade de S<T visto com a mo<:a mais bonita da Sim, quando - nestes anos com mais frcqüênda - um ímpeto leva a uma
c·idade 011 do bairro. A iuscgi.lrall(:a c a falta de ('Ollliall(:a cm si mesmo se· <'Xprcssividadc efetiva, à da pi11111ra, música ou literatura, é surpreendenlc
accntuarn na pulwnlade, quando a 1Iisteza causada pdo desdém dos ou- que, no 111omt·11to da cxc·cu<:ão, tudo se atrolic. Jovens desse tipo conlw-
tros e a frlicidadc de sn escolhido (de estar no primeiro lugar) atingem o cen1 isto: um fogo por denltu, a arte cst:í tão próxima, mas quando se quer
seu cxtn·mo. Ajuventmk ton1a-sc a,p1i seu p1úprio flagelo ou sua coroa captai· a essênc·ia, da 11u11·cha, cncolh<·-sc de tal maneira que não se conse-
de louros. Né'io há mcio-tem10: para além da solidão, d<' que se foge com gue encher uma página. Ncss<' período, o discurso {: dihmdido e fácil, a
tanta veemência, há apenas a derrola que n·fula as prctensôes de valor, escrita, difícil, e· quando se co11sc·guc produzi-la, o sc·u fruto pa1·cce - exa-
pr<'lcnsôcs cm rda(,'ão ao futuro, 011 a vitória que as comprova. A lamcnt<' para o tra11shonla11tc -- "como uma ameixa ressequida, emugada
irnaluridade c·m si é um c·onvilc· a moslrar sua sup<'rioridadc, e este não é e carhonizada". Bcttina vo11 Arnim, que diz isso t· cm toda a sua vida não
vazio, conto nos anos posl<Tiorcs: é: anles vexa111iuoso, tentador em relação conseguiu ir al{m desse aspc·c·lo juv<'nil, gcrnh11<"11I<' C'scolhcu, por isso
a si mesmo. Se 111do osc·ila dessa maneira e quer S<'l' lixado, constatado, isso mesmo, nu-tas par,i c·xpn·ssar-sl'. lima outra forma é o cfüírio, não sem
vak tanto mais para a luz da vida, a imagem da vida f'ut11ra, esperada pda molivo 111c·111·io11ado ou c·o111p:1rtilhado <·0111 discri<:,"io. Para muitos adultos,
j11vc11111dc. Certo{: apcuas que da 11,10 deve conter hagatclas e ncn1 outra tais anola<,·üc·s, c·aso as lenham kit o<' ciso as lenham prcsc1vado, fiéis à sua
<·stação sc·não a primavera. O _jovem lorlurn-st· c·om o gosto precoce desse vaidadc, s;"io u111 l111viômctro para vnilicaro quanto haixou o curso d'água.
fütmn: que·,· provod-lo todo de uma só vez, inclusive com tempestades, Amor, mdanrolia, brotos de imagens e larv.is ck ickias, tudo é pescado aí
sofiimcnlo, temporais, desde que seja vida, vidaa111ê11tin1-o que até aquele e pcnna11en· i,u·ipicnte. Todavia, a h11: da vida, 11;10 ('ontendo nada
rnomt·nto ainda não veio a ser. O mundo principia com a própria juventude: scdinw11tado, brilha pa1·a si mc·sma, e· tentadora. Assim, <'SS<' período pare-
nada é mais estranho para lm1jovem do que imaginan> p<-ríodo de noivado ce sinrnltanc·ame11tc· inldiz e· hem-aventurado. Mais tarde·, a sensação de
de se11 pai e sua rnãc, e nada mais despropositado que imaginar a si mesmo primavcnt ainda ('Ontém ambas as coisas. Porém, mais ge1H'ralizado é o
em idade avan~:ada, com filhos, q11c, por sua vez, tt'·m o seu próprio tempo gosto pda coragem, pda cor, a amplidão, a altura. O aut[·ntico jovem
de noivado e· sua própria primavera - apar<'ntcmente inigualáveis. Na Slff!-{<' de uma vontack que, nesse período, ainda é cavalh<'ircsn1. Daí o
juventude, mostra-se também que aquilo cpw une e promove a amizade é sonho de aventuras hem-SIIC'<'didas, de hdeza a desn ►h1-ir, de grandeza
ape11as a expectativa <·ommn de um futuro cormun, que une de forma tão que anseia por ser c·omplistada.
objetiva quanto a comunhão no trabalho nos anos posteriores. Pelo fato de a p1·ópria vida ainda csléu- afastada, lodo lugar longín-
Dcsapar·ccendo o füluro comurn, a vitalidade da amizade juvenil (se não quo é embelezado. O desejo não sô arrasta em direção a ek, mas o pró-
tiwr sido nada além disso) vai embora. Por isso, rn"io há nada mais insípido p1io dcsc:jo, agora sem esc·omlerUo, foge pa1·a lá, com 1a1110 mais veemên-
e fon;ado do que o reencontro de ant'igos camaradas de escola apôs longos cia quanto mais limitada for a sua condição. Como sinal disso já basta a
anos. Eles S<' tornaram como os professores, como os adultos d<' outrora, almosfcra distante do trem noturno que leva às cidades 1wquc11as, a distância
como tudo contra o que haviam se co1~juraclo. Tal reunião dá a impressão da capital vista a partir da província. Dessa maneira, toma forma um ideal
de que os rostos e sonhos juvenis não só desapareceram, o <JH<' {- natural, leviano e ousado, impn1denle e belo, sem parentes, bem longe ddes. Dentro
mas também foram traídos. Desse choque inconveniente dq>n·c·1Hle-se, está uma alma expandida cm que a saudade age, enquanto fora há uma
1111:1gn11 da C"id.1d<' so11l1ada que poderia pn-enchcr aquela ahna. S1· 11111 .1e 1·11<· ;i \'Íd;1 do _j<'ilo q11<' V<'io ;1 S<'r par;1 d.i: o que se· lor11011 p('(ptc110-
dos dcs<:jos mais lórtcs da natureza humana e um dos mais freqüentemente I111rg-11i·s (: panial <' insípido. Aquilo que é itnportantt- e·onlinua sen1pre
feridos é o desejo de ser importante, então ele se associa, ademais com l.il1a11do. l'ortanlo, o sonho não páradc se infiltrar nas lacunas. Certamente
especial intensidade, à vontade de viver numa região importante. Moças .1~ ('oisas corriqueiras também têm lugar, freqüentemente o vôo perde

talentosas querem escapulir para lá. Munique atraiu dessa maneira por .d I i111dc. Emerge o ordinário, que não tem as faces lisas e rosadas, já est;1
volta de 1900, Paiis por um pc.-íodo hem maior. Atraído, o estudante põe , 11r1ido. O sonhador, todavia, acredita que finalmente passou a saber o
o pé na metrópole. Ela lhe parece, além do respkndor visível, povoada , p 1<· a vida deveria lhe oferecer.
somente por espcrarn;as impacientes. Ali de nê kr afinal a base e o pano
de fuwlo para mna existência conveniente. As casas, as praças, os palcos 0.1 ca11alo.1 1naru:o.1
aparentam c·starutopinm1cnlc iluminados. No café'., numa soberba 1ncsinha, O desejo elo sonhador retrocede-, procura n·stabdccer algo. O sonho
estão reunidos os eleitos c·snc·ve·nclo seus versos, um céu repleto de violas dt'senha o que telia acontecido se 11111a bohagem tivesse sido evitada, se
espera por aquele que as loca, a fama bate,, _janela. N,io surprcenck que, 11111a ação intdigcnte não tivesse sido ckspndi<:;ada. Os cavalos mancos e as
juntarneute com o ideal do t1i1111fo, o do lnmfo retorna 011 esl,Í cmlmtido boas idéias ch<'gam por último: são como uma piada malograda. Ela
no brilho erótico. Sendo a casa paterna não s<Í J><'<pwna mas também 1wfasta, .,horrece porqt1<· significa alguma oportunidade que escapou. J\
então o rcton10 imagin.-írio do vencedor ao lar é uma satisfa(,io oportunidade perdida {, elaborada, expressada posle-i-iormenle na
partic11lan11entc almejada e muito difundida oniricam<·nle, t;10 superior 1111agina<:ão, que está arrependida e ao mesmo tempo anseia. O
que saíicla os antigos 1onn<·11tos <Jllase ('01110 se· foss<'lll uma moldura a lhe .,rrependirnenlo faz <Ida 11111 sonho ideal que nwlhora o passado. No sonho
dar relevo. A famosa alriz retorna, os pais e vizinhos estão panulos ideal, ou 11.1 anedota de final de cxpcdieulc, distribuem-se bofetadas que o
tirnidanwnt<' ao lado, afavdm<'nt<' da perdoa o <p1<· Ih<' fora infligido. O ,onhador não teve coragem de dai· no momento propício. O sonho ideal,
menino <Jlle oulror·a l<>ra reprimido regressa d<' quadriga, tendo ao S<'ll .,ssim como esse tipo de anedota, repara as perdas na mc-dida em que
lado a hela mo<:a 1-i<-a que conquistou para si como mulher: agora ele não 1l'gride até o mome·nto <'Ili <JH<' ainda era possível evitá-las. Ek desfruta do
é mais itH·ompn·<·rnlido, wm como líder de batalhas ou grande artista - gusto, porém amargu, dos lucros q11e n-rlamcntc seriam obtidos s<· se tivesse
vem, ('Ili todo caso, com uma pompa de dar vergonha. A pi-incesa é sua, 111gressado a lcmpo no n<'g<Ício. Se alguém s<· t'mbriaga nnn a marca <'l'l'a-
formosa, altiva <' meiga, ('Olll um perfume inebrianl<\ e em torno dda da, como é fácil c-scolhcr a ccrla no sonho on na história que se· conta parn
oll(l11la o pntteado manto ck viagem. Tudo isto {- a glória conquistada pelo iludir não s<Í os demais. Ou se a nascente de onde vêm as frustra<:<><·s {,
amado, tudo islo como em Nin·, seu lar. Siio souhos idealistas, de urna imaginada como uma torneira, da é fechada e é como se tudo estiv<·sse
imalui-idade pcn1liar, mas ainda hoje eles S<' rna11tf-m na imagem de perfeitamente hem. O arrepe1Hlinwnto é urn senti_mento que o murnlo
esplendor <JU<' o Ocidente faz destes anos. Ávido, conhecedor, cienlP, hurguês e·onhece quase que apenas no carnpo dos negócios. Portanto, o
fH1rticifJanle, j){)rÍf!roso, fhno: estas palavras regem o genitivo e os desejos "onho pesaroso geralmente tem por objeto algum dinheiro pndido. Mas{,
bnrgnes<·s dajuwntn<lc. A luz no fim elo túnel li·eqiicntemente espreitada l'Xatamcnte nesse sonho que, entre os pequenos-burgueses, a pose ck ]l('nÍi
no céu burguê·s 1on1ou-se, todavia, uma rnancha de sangue. Para os tolos e :,inda tem lugar, um lugar que não foi ocupado na horn certa, e exalanwn-
atordoados, o homem forte chamava-se Hitler. Porém, nunca o tom cinza lc aí tem lugar a palavra explosiva que apenas não detonou na oc1sião
de um jovem homem mediano pôde ficar s<·m fornias caprichosas: o certa. O sonho c·xibe o desc:jado na forma corno poderia ter sido, o justo
próprio desejo as loma nos seus braços. O período que transcoITe entre- como deveria ter sido. Toda fanfarronice faz parte desse ccn.-írio, lodo
março e junho da vida não tem pausa; é pree11d1ido pelo amor ou pelo orgulho tolo bale nc·ssa tecla, e a lembrança ele que a coisa foi diferente se
olhar para uma espée·ic de dignidade impetuosa. enfraqucn· conforme o dcs(:jo t· a vaidade.

6. Desejos mais maduros e suas imagens A noite da~ Jacas longa~


Os desejos mais maduros não precisam s<'l' menos inquietos, pois o A multiplicidade de sonhos cm que se gostaiia de pagar na mesma
ato de desejar não diminui posteriormente: o que diminui é o que se deseja. moeda não estão distantes disso. Eles têm um sabor peculiar: a vingança é
A pulsão que se 101·nou mais velha mira com mais precisão, tem doce, mas, se for apenas imaginada, também é reles. A maioria das pessoas
conhecimento, instala-se no ima1wnte. Não que, dessa maneira, a pulsão {, muito covarde para o mal, muito fraca para o bem: antegoza no sonho
de vingança o mal que não faz ou ainda não consegue fa/.<·r. l>c ·-.cl, .,.., 11i;1s temporariamente despeja a água que lava, até aquele n1omento, a sua
tempos antigos, a pequena burguesia gosta de conter a raiva, é bem p1ci1111C ► ,·xislência, que lhe é tida por insuficiente. Os seus sonhos acordados
dela bater na pessoa errada, já que se lança preferencialmente na direção 11crmanecem na esfera pessoal: eles são- com predileção <'special- sexuais,
da menor resistência. Da Noite das Facas Longas veio Hitler, do sonho c·m seguida de negócios, e transbordam em ambos os casos. Passeios
dessa noite de foi aclamado pelos scnhort's, por se tornar útil a eles. O solitários proporcionam essas Ílnagens, romances que dizem respeito ao
sonho nazisla de vingança também é sul~jetivamentc reprimido, não é ,·u corncçan1 assim a ser tecidos. Essas imagens não são mais juvenis, e nem
rebelde: é raiva surda, não revolucionária. Até no que se refere à chama- dominadas por super-homem, navio dos sonhos, príncipe-almirante. Mas
da "mão de ferro", ou sc:ja, ao ódio contrn a vida imoral dos naiizes aduncos s,'io suficientemente aventurescas para enfcilar aquele ovo [1ito com balata
e da classe superior, a virlll(k da classe média apenas traiu, como sempre de todo dia a ponto de ton1á-lo iin-conhecívd. O tímido ou aquele que se
nesses casos, o seu sonho mais particular. Assim como, com sua vingança, casou por cas,u- gozam dos prazen·s dC' um amante perfeito: a imagina<;ão
ela não odeia a explornção, e sim apenas a co1Hfü)io ck nã.o ser ela mesma ardente sc·1ve uma po1·ção dupla ou tripla, forças inesgotávc'is estão ,l
um explorador, da mc·snia f'orma a virtude não odeia a cama mac·ia elos disposi<:ão. Existem os chamados c;IJ'IÔ<·s humorísticos em <pw uma mu-
ricos, e sim apenas o fato ck não ter uma igual para si. l~ 11is10 que estão de lher nua aparece como uma bola de cndl<'1·: sem peso, pode ser virada
olho cksck sempre as 111a11c·h<"1c·s elos folhetins, que goslam ele escandali- para todos os lados, usada a bel-prazer. Sem oferecer resistência, ela é
zar, a impn·nsa ela st!jeira e da g1usseria. "A verdade, a nova ck hc~je: os imaginada como a Calipso do Babhil carente, porém num sentido mais
frangos para sopa da lc~ja Wertheirn - O harém na mansiio do zoológico: elevado. Gcralmenle s,'io 111ui1as as mulheres totalmente domesticadas, uma
rcvcla~·ôes c·sp<"laculares". Trnta-se, J><ff<"lll, 1ão-somc·11te de n·vda<:ôc·s so- mistura ck amor livre e· harém. Com posi<:ôes e grupos que se revezam,
bre o aho1n·ri111c11to elo próprio p<"<jU<·no-lmrguê·s, 1,11110 110 cpu- se n·fere uns sendo violados, os outros assistindo, uma sdva oní1ica ele olhos ardentes
ao Juno cnonne d,1 l<~ja Werthcim quanlo ,, lascíviajll(laica. Daí a tenclê-n- e pnnas ahntas. Non11almentc, o h,ll'ém imaginado é ocupado por aquelas
cia imediata ele se colocar 110 lugar da Werthcim arruinada, após um acer- mulheres que o liher1i110 l><'rn-<·omp01·tado, muitas vezes também impotente,
to de contas <]li<' suhstitui 11,io essa 1mí administra<:;'10 pretcnsan1entc odia- não co11seg11i11 ter na viela. Todavia, é verdade que a pura divagaç;"i.o não
da, mas apenas o Sl!jcito que a <'X<TCC'. O aspecto insidioso e brutal disso, o satisfaz, 11cm mc·smo a dos dcsc:jos que amadrn·ecTrnm com 1a11ta volnpia,
aspecto asqueroso e· pe11<·t rantc como cheiro d<" urina desse tipo de desejo pois o homem não foi feito apenas parn o amor. Por isso, o so11ho acordado
C'arnctcrizou desde sempre o populacho. Esse dcs<:io t venal e absurda- do b11rg11i'·s ta111hé111 se torna pr,ÍIÍ<"o.
mc·nle pe1igoso - logo, pode ser ofüscado e usado por aqueles que têm os As fo1·ças dajuvcntmk devel'iam estar cm a~·ão. Porlanto, 110 desejo,
1·<·nlJ'sos e ck falo cslão ol~jetivamcnte interessados nos f1ogmms fascistas. somos nós mesmos essas fon,:as, c•1fficp1ecidas agora pda expcriê-ncia. Na
O insligaclor, a essê·ncia da Noite das Facas Longas, obviamente foi o gran- sociedade llorescTnle ainda há o que fazer e aquele que passeia n·c·ohra o
ck capital, mas o peqm·no-lmrguê-s ensandecido constituiu a manifestação ânimo especulativo quando sonha. No seu sonho, há muito de n1mprou,
espantosa, horrivdmente manipuh'ivel dessa cssê·ncia. Dda partiu o terror, ampliou e· 111ockrnizou a lunat iva lc~ja da esquina. I lá muito de se tornou
esse veneno que nem de longe f()i todo expelido <· está no averagf man on veread01·, um homc·m diante do c1ual muitos dos que agora mal lhe
lhe slrffl, como se· drnma agora o pequc·no-burguê-s cm inglês ame1icano. agrnckn·m !iram o chapéu. JJ;í mui lo o 1iegócio já foi wndido de novo, o
Seus desejos de vingança são podres e cegos, e ai de <p1em tocar neles. É vaslo mundo o acolhe, da f<lnna como o ci11ema o representa, o pavilhão
uma sorte que o populacho sc:j,1 igualmente inlid: de também vai ler pra- de caça na mata, a fortalc1.aju11to ao mar, o ialc próprio. Tudo islo quase
Z<T cm conter sua raiva caso niio h,~ja mais ordens ele policiamenlo notur- como 11a pul)('rcladc, só que provido de dinhein> cm vez de ideais. Diante
no para a prevenção de delitos. do anseio sempre desperto, todavia 1nais sedimentado, ergue-se um grupo
de comodidades acessíveis, imaginadas com precisão, só que não possuídas.
Pou,co ante.., de cerrar os fJorlões Ness<· matagal, diferentemente dacp1ek dajuvcntucle, pode-se ir até o fim:
Em que se transfonna, pois, a vida mais freqüente e plac·iclamente além do mar tropical, sulcado pelo iate, situa-se o cassino à beira-mar,
cotidiana, quando sonhamos? Deixamos de lado os desejos fixadrn, na vin- onde se pode jogar. Contudo, como se pode ver, os sonhos particulares do
gança. Além deles, há também os afetuosos, inofensivarnc·111c- lolos e tipo mais maduro não deixam de ser às vezes tolos, às vezes exóticos. Embora
col01idos. Em geral, o homem pequeno, sem consciência de das.~,·, < , , 11 te ·11ta- eles 1·etratem mais as coisas passadas que as futuras, mais as coisas conhecidas
se em reorganiza,· um pouco o que lhe pertence. Ele não 1110d i 11( ;i 11,1da, e negadas ao sonhador do que as idéias obstinadas. Quando se aproxima o
n1omento de se fechare1n os portões, tanto no sentido sexual qua111t, 11,,, l.1 <·xt1apola1· o qu(' existe, ai(: 11ies1110 110 S('U so11lto 111ais 011s;l(lo. l•.lt- (' .,
capacidade- de produção comercial, sabe-se de qualquer modo que du-gt" 1 pessoa com mais facilidade para desistir dos ideais dajuveutwk (' din·<i( >11.11
ao fim a "pista livre para aqude que é capaz" no mundo que propagou sua vontade apenas para aquilo que pode alcançar. Apreseuta-s<' 1011111
este lema, o mundo capitalista. Daí que o homem médio, o pequeno-burguês !tomem capaz, bem posicionado na vida profissional, cheio de planos co111
proletarizado, rnas st·m consciência proletária, sonha muito mais com perspectiva de lucro, mas no mais sem aquilo que ele chama, gerah11c11k
castelos na lua do que o cidadão de posses, <1ue sabe o que tem. Este último com desprezo, de utópico. Difcrent<"mente do assalariado, o rico pode
rumina os pensamentos na co1n·nte favor·ável daquilo que já conseguiu. O proporcionar-se qualquer des<'.jo, nem tem um desejo determinado, isto(;.
hon1em mé-dio, ao contníiio, encontra so1nentc conlas ii sua volta, e as alimentado por um longo tempo antes de ser realizado. Mas, por mais q11c
golpeia, ainda que apenas na imagina<:ão sossegada, enquanto 11,10 aparece se leia apenas o lado esquerdo de todos os cardápios - ao contrário dos
mn flautista de I fameln:• ou enquanto não com1H·ee11<k de onde vê·m suas crnpreg-ados, (jllt' lê:cm o direito, 011<k constam os prc,·os -, é justame111<·
fn1s1t·açôes. Ek ex<-i-cita sua imagina<;,"ío cm visôcs que cintilam cm sua este excesso que vai gerar 11ma forma espe<"Ílica de dest:jo mais mad11m.
dirq:ão provindas da sala de estar da vida, onde ele n1111ca pôs o pé. mais sedinwntado: ao invé-s da pcmíria, o tédio. Não há velocidade, lt1xo
ou litornl - J><ff mais azul que s<:j,1 -· que ajudem a escapar disso. Mesmo a~
A ÍN711'fl(.'<J.O dP 11111 nrmo dh1atimn1/o emo</>cs do jogo tornam-se insípidas com o tempo. No abismo das posM·~
A maioria das pessoas na 111a aparenta estar pensando cm bem outra paira essa bnuna do tédio, e o <·11111e distante, por 11,10 existir, não se kva11
coisa. A outra coisa é preponderantemente dinheiro, mas tarnbé-m aquilo ta acima dda. Os des<:jos, que ainda assim se erguem acima dessa bn1111;1,
cm que o dinheiro poderia ser co11v<Ttido. No caso <·ontrá1io, não seria são nnicamentc os de um p-i.wm r,ípido, do volúvel espfrito esnobe, da
tiio fácil atrair com adcn·<:os, seduzir com uma bela figura. Não exist'iria o moda e d(' sua variac::ão, pressupondo <jll<' esta n;"ío sl:ja tão cxtravaganl<'.
flanador, nem a constante indinac:;ão d<" cada um para tornar-se 1nn <lcss<'s Com n·1ü·1.a, consta11te11H·nt<' se c:·stão p1uduzindo modelos novos tanihé-m
flanadorcs. Dcss<' modo, tamhé-m a rua do comé-rcio cst,í sobrecarregada para a massa, para que h,~ja l'aturnmento (que ainda não ('st,t assegurado
de sonhos,<' não s6 o passeio mais n1.-al 011 a vida e a a t ividaclc no subúrbio. unica11H·11te pela produ~·,io de 1-dilgo), mas o cstín111lo partiu pl'imeiro d,·
Uma mulhn est,í parada clianlc da vit1ine olhando para 11m sapato d<' cima (' é mais antigo que o gosto pdo faturamc11to. O 1-ico, que de resto
couro de crocodilo com bordas amaciadas, 11111 homem passa e olha para a nada {, <· mula po<k - porém, o 1-i<-o 11uma modalidade cada vez mais rara,
11111lhcr, e assim cada 11m deles l<'lll 11111 pccla(o da ten~t elos sonhos. "H<í a do grn11d<' ,·apitalista -, cuida para que ao 111c11os lhe tornem o tédio
felicidade s11fü·ie11te 110 1111mdo, n1<·nos para mim" - é o que diz para si intercssa11h·. Xcn:es, j,í <·m sua í-porn, havia prn111<'tido 11111 prê:mio pela
m<"smo <'Ili toda pari<' o d<"s<:jo que vagueia. Todavia, com isso ele demonstra inven,·ão de 11111 novo div<'rti111c11to. Numa forma mais moderna, a tentati-
<111<' apen;;is q11<'1· atranca,· algo do mm1<lo, S('Ill contudo transformar o va de htgir da fanura <'IIV<Teda pdo esnobismo. Ou tamb<-m pelo capri-
nrnndo. O empregado, o pe<1uc:·110-b111'guê·s, de qu<' se fala aqui, esse estrato cho: um iuglfs rico viajou por todos os país1·s <·111 que se <·ncontra.111 arcos
de modo algum homogê-nco, mas pn>grcssivamcntc hornogeneizado, ogivais para fotografá-los. Assim, para as pessoas nwclianas, os desejos bur-
satisfaz-se em ter as ncn·ssidades que lhe são despertadas pela vitrine para gu<'scs, ao m<·nos os da vida privada, acabam fozcndo <·0111 <pw das quei-
de modelada. Isso unifica todos os sonhos burgueses, mas novan1cnte os ra111 corlar tamh{-111 o seu pcda<.:o do bolo, sem trnnsfónnar a padaria,
ra<·ionaliza, nwsmo na divaga<;ão mais longínqua, no litoral mais azul da corno diz Brccht cm sua ÔjNm dos três vinténs. Parn os ricos, des acabam
agê:nc-ia de viagens e até mais além, de modo que dcs não extrapolem a ohrigatoriamc11tc d<' modo est1c111ho, ou s<:ja, St'lllJH'<' mais insullados rumo
realidade dada. Se as pessoas com esse tipo de dcs<:jo vivem acima de suas a uma nulidade cada v<·z maior.
próprias condiçô<·s, jamais estão adrna das nmdi<;ôcs existentes em ter-
mos gerais. Se isso já vale para o empregado de meia-idade e até o momen- Oporlunida<Ü fmra .1er aini.gúvel
to com a consciência tão nebulosa da classe média, então o membro da O sonhador não-burguê-s também aprecia coisas que pertencem aos
alta burguesia, n~jas condiçôes lhe bastam, tem ainda menos motivo para ontrus. Mas o que ele imagina essencialmente é uma vida sem exploração,
uma vida que deve ser ganha. Ele não é o molnsco colado à pedra que
precisa esperar por aquilo que o acaso irá llw levar: ck ultrapassa a
S<:'gundo a l<:'mb medi .. val, o Jlant ista 1migico de IIamein livrou a cidade d" I l:unc ln dos realidade dada, tanto nas ações como ao sonhar. A existê:ncia feliz qm·
ratos levando-os a se ritirare1n no rio para seguirern sua n1úsica. antecipa situa-se atrás de uma cortina de fumaça, atrás ela fumaça de mna
tremenda transformação. O mundo que então surgirá estará ig11al111c11tc • 11j;1 l;dta ('.lllsa dot, ale- di111i1111e111. Co11111do, 1111tll1plit·,1-SI' o ;111.~c·io pn1
transformado e nele nenhum Babbit terá lugar ou poderá se espregui<;ar , 011fo1·10, <' qualquer coisa pode se lornar dcsconfort,ívd pata 11111 V<'ll10
confortavelmente. Não que o conforto cm si seja suspeito ou restrito à sua 1;1111:inza, alé rnes1no o habitual, quanto rnais o novo. O jovem 1unq><·11
fo1n1a burguesa. Cada um com seu filé e seus dois automóveis na garagem: com o seu meio e luta contra ele. O homem aplica a sua força sohn- d<",
este tambén1 é 1m1 sonho revolucionário, e não apenas francf>s ou americano 11111itas vezes com a perda dos seus sonhos, até de sua consciência, que _j;í
ou "gcncricamcnlc humano". Mas os valores da felicidade baseada no havia sido melhor. O mais velho, o idoso, quando se incomoda com o
conforto deslocam-se para as perspectivas do sonho ideal revolucionário, 11111ndo, não luta contra ele como o jovem, mas corre o risco de tornar-s<"
já porque a felicidade não decorre mais da infelicidade do outro nem se dcsg-ostoso dele, resmungando irritado. Ao menos quando o idoso se inila,
mede por ela. Isto porque a pessoa ao lado não é mais a han-eira para a quando se recolhe pura e simpksmcnle à avan•za e· ao egoísmo. Na e1·a
própria Jihcnladc, mas o lugar c·m que ela se c·oll<Teliza. Em lugar da burguesa, o dinheiro p,ll'<'C<' s<T mais descj,ívd que nunca, não só a partir
liberdade para comprar, brilha a liberdade resultante do comprar; no do instinto ll<'UH>tin> de pn·se1v,H:ão, que lrnnsfonna em garras as mãos
luga1· da imaginada akgl'ia de vigarista na guerra econômica, a imaginada para as quais o m<'io torna-se sempre um fim, mas tamhérn a partir da
vitória na lula ck classes prokt,íria. E, ainda acima desta, resplandecem angústia de um ser desvalido li·e11tc ,1 vida. O vinho e o bolso continuam
a paz dislanle, a oportunidade distante de ser solidário com todos os sendo o cks<:jo pern1anc·nle na idade trivial,<' nem sempre ,qwnas na trivial.
seres lnunanos, ser amigável com lodos, ocasião que constitui o alvo Vinho, mulhcT e crnçúc·s: esta associ,H:ão se desfaz e a garrafa detém a
distante da luta. Todavia, o 1·i1mo cm que tudo isso ainda se encontra d,í prefrrfncia. Fiducif, ditoso inn,"io. I{ por isso que um velho que bebe
a impressão que cm seus detalhes os sonhos não-burgueses ainda são aparenta ser mais belo do que um amante vdho.
considcravclmenlc menos precisos que aqueks ern que basta estender a
mão para a vilrine ,1 sua disposi~·ão. Nenhuma c·asa comercial envia-lhes Jw11m./ 1uJ,, rnnjurruia, rfr.1Pjo ofJo.\lo: 1:o/l,,,,iü1
o catéílog-o, n,"io héí nenhum benfrilor para realizar esses sonhos. Em Tamb{-m a pessoa jovem, e especiah11enl<' <"la, des<:j,1 vivei· por muito
com1><·ns,l(;ão, eles n;:ío só ckl<'.'-m uma posição incomparavelmente mais tempo. Por{m, nisto ranuneule se· indui o des<:jo de ser um velho - o que
elevada mas tambhn t<'.'-m uma expectativa do desconhecido, uma {- pouco eonsidcrndo. l lrn_jovem pode imaginar-se- como homem, mas difi-
planificação do n,"io-realizado que o ideal lm1·g11ê·s dos anos da maturidade cilmente como idoso: a manh,t aponta para o nwio-<lia, não para a. noite.
não possui mais. Em si é eslrnnho que- o envellwcirnento, ua medida cm que se refere à
perda de uma condi(ão anterior com ou sem raz,"io sentida como mais
7. O que resta a desejar na velhice bela, só eonH·n· a ser percebido de fato por volla dos !>O anos. Não haveria
Na vdhicc, aprendemos a es<1nec·t-r. Os dcs<:jos estimulantes recuam, perda para o jovem que deixa para trás a cri,111(a? E n,10 haveria uma
embora as suas imagens pcnnane(,Hll. Eles pn~jetam a fuga, como outrora perda para o homem quando deixa a iloresc<'.'-ncia da_juventudc, quando o
em março: a menina-mo<:a e a idade perigosa, o adolescente engmnado e impulso se alrolia? A crian~·a 11ão n10rrcjá na mo~·a e 110 mo\·o sexualmente
o velho janota podem reunir-se no des<:jo caótieo de uma vida nova. Ao maduros, no eu e em sua responsabilidade, <·omo da se apresenta então?
menos _já nã.o se n·de à lcnta,;ão tão espontaneamente. Ainda que o A lllél<' sente isso quando os primeiros vestígios de barba come(arn a coçar
dcs<:jo não ceda, quem o faz {- a for~·a que eonfia poder realizá-lo. Ainda e espetar em seu !ilho. O próprio moço o sente quando a vida deixa de ser
que a fon:a não ceda, cede o dom frustrado de imaginar as cmsas por uma brincadeira, quando as pequenas coisas e esc·ornler~jos tornam-se
antecipação. Nesses termos, quase semJHT apenas nesses lennos, a inacessíveis ao coqJO em crescimento. E a nostalgia at{, é li-adicional na
inquietação diminui. transi(ão para a primeira fase da idade adulta, no momento em que
desaparece o viço de rapaz e tem início o filistério. Contudo, o corte
Vinho e bolso provocado pda velhice é mais evidente <pie qualquer dos anteriores e mais
Em compensação, multiplicam-se os medos ditados pela razão, medos brutalmente negativo. Nele parece se concentrar a perda. A capacidade
que se quer evitar. O corpo não se recupera mais tão rapidamente eomo reprndutiva diminui, a capacidade de dar à luz cessa totalmente, o brilho
antes, cada esfon:o é dobrado. O trabalho não transcorre mais com tanta desaparece, o verão chega ao fim. E se o próprio idoso não percebe que se
rapidez, a incerteza financeira pressiona com mais for·ça que ante1·ionncnte. trata dele mesmo, os outros percebem, e no efrito ele vê a causa, não
As necessidades lancinantes, aquelas ct!ͪ satisfação não causa alegria, mas importa quão jovem esteja forçado a se sentir. Para a maimia dos velhos, {-
muito instn1tivo quando pda primeira vez urna moça se levanta para lhe 11111 va1.io p.~iq11il'o 011, 110 111í11imo, a Ltlla d!'< br.-1a 011 d<' !'sd.11 <·1 111..-111, •
ceder o lugar. Essa gentileza não é apenas o efeito ele um ganho da idade: •,01>1 <' o ga11ho que a idadt' traz. De 1110<10 bem n·s11111ido, pod!'-sl' d111·1.
da é fatal. E até mesmo o velho peralta que nada quer além de se iludir porla11lo: o simples sofrimento na velhice, na Ill<'dida <'Ili <)li<' S<' IL1la d,
com a supe1ficialidade, o dom mais leve da juventude, mesmo ele é surpre- 11111a velhice ,·elativamcnte saudável, construída sobre uma vida at iv.1, 1(''111('1
endido pela percepção de como a vida é nu-ta. Na velhice, algo sucedido 11111 s1tjcito tolo que o experimenta e unia sociedade burguesa tardia '1'11'
há muito tempo pode parecer tão próximo como as montanhas longínquas ,kscsperadamente põe uma maquiagem de juventude. Diz um dila<h111111·.
pouco antes de chover. Essa percepção é acolhida quase com inuednlidade , I' iarnlo tudo tiver acabado, ficará claro se a vela era de cera ou d<' s<·lio:
também pelo ancião robusto - parece ter sido ontem que os jovens à sua 011 seja, a velhice mesma não tem culpa pela feiúra da imagem qu<' prnd111.
volta eram da mesma idade. Não há dúvida, portanto: a específica sensação F sociedades que não receavam encarar o fim, diferentemente da h111-gi u ·~.i
da idade que tem início em torno dos 50, às vezes já anles, é pouco prepa- que hoje está em declínio-, tinham e viam a velhice como um dc·sah10
rada pelas transições d" um e.\üigio /mm outro vivenciadas anteriormente e 1 har desc;:jável e bem-vindo. Assim foi no conselho dos anciãos csparla110,
nào tão 11itidame11te. Com alguma razão, ela é percebida como algo desco- 110 senado da Roma ainda republicana e mesmo na novidade da cxp<·1 ii·11
nhecido. A causa disso est;í na falta ele clareza on na falta <k esclarecimento , ia socialista. Então, ck todo modo rcsla um outro destino a ser ouvido,
sobre o ganho que a velhice prnporciona, nào obstante Indo o <JUe é bn1- diferente daqude qm· declina, n-sta consideravelmente mais do q1w ",1
talnwnle negativo, que pode esta,· e em 1íltima amílise eiMí associado a da. honra e esta cabc<,'a cncanecida", 1 pois uma sociedade florescente 11;10 1<'li li'.
Por isso, a samt1<;:"io ela velhice {- n1ptada preponckrnntementc apenas como <omo esta que cslá cm declínio, ver no ser-velho o reflexo de sua i111ag·1·111.
uma despedida, ou s<:ja, tendo a morte como desenlace. Esta, possível em 111as saúda nda o seu apogeu. Em seu corüunlo, a velhice, assim como C'ada
qualquer idade, mas i11evi1ávd na idade mais avan~·,1<la, 11,10 chí ;,) mar~ 11111 dos anteriores cst;igios da vida, sem dtívida apresenta um ganho po~s,
baixa qnalquc'J' nova persp<'cliva de pode,· exp<'ri111enta1· uma maré alta. E n·l, específico, um ganho que compensa a despedida do estágio f>r<'<'<•<i<-11
isto que torna a transi<)io chamada velhice tão ckcisiva. f o que a torna I<'. O euvdh<'cimento, po1'tanto, não só dC'signa um período desejáwl, (·111
inconfundívd cm compara<:iio com as ante1iores, O('llltas sob uma Iolhagem que se vive1Kion muito, c·m que o maior· mín1<To possível de coisas púdl'
nova. l~ corno se a dor da despedida - a dor que o n1<><:<> <JlH' deixa a i<L1dc ~,-r experimentado na sua conclusão. O envdlwcinH·nto pode designar ta111
infantil e o homem que deixa a idade jovem podem 11:"io l<T ~entido - fosse 1>{-m um ideal ck acordo com a condi<,:ão dada: o ideal da "visão pa1umi111i
<·111,io ren1perada e ,HT<'s<·entada ao próprio 01110110. l;'. por isso que uma <'a", e c-ve11tualm<'nte da colheita. Assim, Voltaire disse que, para o ig110
velhice atípica també-m d<'rnonstrn desc:jos de retornar a uma juventude 1·;mte, a velhice seria c·omo o inverno; para o s,ihio, como a vindima 1· , •
que, naquele tempo e lugar específicos, podia ser pern·hida como algo Ligar. Isto não exclui a_juventnd<', mas a inclui como aquilo que se dcix.1
incompleto, ou s<'.ia, como florescência admirável e fruto ainda n:"io .11nadureccr. Não h,i mais sofiinwuto no cks<jo ck retornar àjuventll<k,
conc-cbívd, delimitado, maduro para um balanço. Um velho ainda ativo j11stamentc em virtude da rcla~·,'i.o madtu-a com aquilo que está por clH'ga,:
<·m seu trabalho, que portanto não se encontn1 11a sua toca de inverno l'sse dcs<'.ͺ compensa, preenche-se com o contctído alcançado, com simpli
lambendo as patas da memÔlia, dcsc:jará no mínimo que retorne o longo ,·idade e significação. Assim, de modo geral, os anos tardios de 11111 s1·1
tempo que tinha diante de si aos 20 anos. Desc:jará que retorne a magia l1umano contn·ão tanto mais_juventmlc- não no sentido de cópia-qua1110
dos amplos panos de fundo que a vida ainda lhe oferecia naquela época e 111ais con<'entra~'ão _j{i havia na sua juventude. Então, as etapas da vicia,
que, encurtando-se o futuro (con1 os anos que podem ser "contados"), se1n portanto também a velhice, perdem seu 1igo1· isolado. O ideal saudável <b
dúvida também diminui. A'isim, na idade certa, a resignação ganha vida vdhice e na velhice é o da rnatrnidade bem-acabada. A essa maturidacl<' <·
em sua forma autêntica e concentrada, uma resignação que a juventude sô mais cômodo dar que tomar.
conhe<'e como parcialrnC'ntc autêntica e passageira. Não se caracteriza aí
uma mera despedida de nma etapa da vida, com sonhos desfeitos, realizações Anoitecer e c11,s11,
frustradas, mas a despedida da longa vida propriamente dita. Poder estar assim concentrado requer <JUC não haja bandho. l 1111
Apesar disso, é raro que essa espécie <k pressão ligada ao envelhe- 1íltimo des<:jo, que perpassa todos os desejos da velhice, muitas vezes não c
cimento st:ͪ tão evidente. E, sintomaticamente, ela não aparece em todas impensável: o de sossego. Ele pode ser tão torturante, até tão ávido como
as pessoas nem todo o tempo corn a mes1na intensidade, com o mesmo
desembaraço. Antes, à maré baixa que toma conta do corpo deve se somar Cf. Levítico: 19,32.
a antiga caça à distração. E também a chama da sexualidade, que <·spc• 1.d po1qia11(:a, o descanso invernal da classe média la111IH:111 .-~Li 11111110
mente nas rnulheres costuma lembrar a pré--puberdaclc, é cortada dessa prejudicado. Somente a sociedade socialista pode satisfazei· o dcscjo d,
maneira. Mesmo o ser eventualmente produtivo, tão similar ao da juventude, úc·io ela velhice. Contudo, também aí o ócio, agora com sentido posi I jy, ,, ,
tão familia,· a da, necessita mais do que antes (ou ainda mais) estar livre diferente de anles, pelo fato de a diferença entre as gerações 11;10 111;11-,
de qualquer perturbaçào. E todo vdho eles<:ja ter a pennissào de sentii--se produzir urna separação tão nítida. A vida atual é talhada de forma lu-111
exaurielo pela vida. Estando ek próprio em meio à agitação do mundo, mais nítida em termos políticos, e não se poele mais afimiar que a wll1ic e·,
então ao menos cm par"t<· que sc:ja como se não estivesse. A vaidade é- a apesar de sua sobriedade, seria pura e simplesmente reacionária, e ;1 j11
última roupa que o ser· humano <kspe, mas até mesmo um velho atípico ventude, apesar de seu vic,:o, punt e simplesmente progn·ssi~t ;1.
costuma se desfazer dela por um pouco de tranqüilidade. Justamente no Freqüentemente chi-se o inverso, e o dcs<:jo ele sossego ela velhice, 1111111
não-filistfrio da velhice, enfeita-se maravilhosamente a imagem dessa tran- período em que - para citar apenas um sintoma - ainda existem ligas cl.1
qüilidade, do campo ern lugar da cidade, cio rchígio em que as n>11pas juventude fascista, <·0111 a cabc(a erguida, nào coincide cm toda pari<' co111
molhadas secam sem muita complint(ão. O des<:jo de sossego abafa, c·m o desc:jo d<· pernevera1· no et<'nlo passado. Ficou mais r,kil do que rn111c·a
casos mais expressivos, até- mesmo o an-epc11clirnc11to por· omissões e ctTos para a velhice queimar em duas pontas, ou s<:ja, com coragem e co111
cometidos 110 passado. Os equívon>s ele sua viela, a longo prazo, pareceram cxperii'·ncia e·, ao mc·smo tempo, com consciê·ncia nova<· o kgaelo conhecido.
i11clikrentes ao velho Goethe, quando 11,10 até hem-sun·diclos. A sorte A pessoa envelhecida CJll<', sentada no ha11<·0 dia11te ela porta ele sua casa 11:1
recusada, e até-o trabalho i11ac1hado ainda atonncntam, mas na lembrança fiiag<'m noturna, repassa tudo que viV<'II e nada mais além disso, este tr,t<:o
ao menos este tíltirno quase toma ronna, com ou sem rnz,10. Toelos esses do ideal ele Grünm foi tirado de cirnrhl<;ào tanto cm tcnnos de economi.i
desc:jos e scntimc·ntos tardios e <·omplaccnlcs tornam-se daros a partir elo quanto de conlelÍdo. Poré-111, ainda não foi esquecido o desc:jo intenso
discurso deJanlb Grimm sobre a vdhin·, ptukrido nos seus 75 anos. Esse qne se· conjuga tão hem ao d<'sc:jo d<' soss<'g<> a po11to d<· inten-omper a fase
disn1i-so, l><'m mais nolmsdo que 11ol1ms, é sustentado pela ~rala <·onsciênc-ia irnproclutiva ela vida ao seu redor. Assi111,_j11stamcntc o a111or ,1 lranqüilidadc
d<' que <·nvellH'<'<T s<·t-ia uma kli<·idad<'. As mais s<'11síveis deficiências pode cst,u- mais dista Ili<' da ;1g-it,1<;ão capitalista do que umajuvcntucle q11<'
c·orporais s,10 at<'mtadas pelo desc:jo gciwralil'.ado ck sossego, sendo até- couh111d<' agita(,-ão co111 vicia. Aí a vdhin· (com a qual o mtmclo burguts
m<·smo adidonadas ao c·onle\Ído dcss<' desejo. M<"smo a possível surdez 11;10 sah<' mais o que fazer) l<'lll o din·ito ele se·,· arc1ica. lk ser distinta,
tem, de acordo com Grimm, o lado bom de não mais s<T interrompido c·xt<-rna11do uma posllffa, utilizando palavras, hrn(ando olhar<'s abrangent<'s
pda fala supfrllua e· pda tagarelice imítil; a dimi11uic:ão da visão tem o que não se· 01·iginam no dia de h<~j<' <· não se· d<'slinam a <'k. Encarnando
efrito de <JII<' muitos dC'talhcs incômodos dcsap,ll"<'<Tm. Grimm traz à épocas c·m que nem lltdo ainda era atividacl<' empn·c·11clcclorn <' sobretudo
kmbran(;a o vi<kntc cego. E <kscn·vc o gozo que o passeio solitário é-pon1s c111 que essa atividade f interrompida. [sso é- o que possibilita
proporciona ao ancião, como se intcnsifi<-a o sentimento pela natureza. cstabekn-r uma li~,u,-ão surpnTndenle e ainda assim nrn1pn·c·11sível entre
Nda, o S<T humano est,Í sozinho nrnsigo mesmo, sile1u·ia a conversa loquaz muita coisa antiga d<' hc~j<· ern dia - na 111<·clida cm qm· se encheu d<·
das plantas, o mm1<lo c·sniren· ao anoitc·ccT, mas a .ígua torna-se clara. A salwclo,·ia - e um novo tempo, um tempo livre de lobos descarados,
lÍltima pon:ào da vida é consagrada à contcmpla<Jío. A 11ecessidade passada habilidosos e· brutais. Pol"lanto, o t<·mpo do soc·ialismo. Des<:jo <· <·apacidadc·
nào é mais sentida, a felicidade passada se acalma, renovada pela lembrnnça. d<' <'Slar livre ela pressa ordinária, de ver o importante, csc1uecer o
Os golpes do cinzel da vida fizernrn Stffgir urna forma c·sscncial, e o essencial irrckvautC': <·oisas assim são vida pr·opriamente elita na vclhic<'.
mais do que nunca é bem-vindo aos seus olhos. E111re1anto, também esse
tipo de scpara<:ão de outras fases da vida, ressaltada pelo desejo de sossego 8. O sinal da virada
e por um tipo de imobilidade andarilha, val"ia de acordo com as épocas. t clesagracl,ivcl ser incomodado. Porém, é- estranha a facilidade com
Ihí muito que se 1oi a época do romanticismo burguês, do Bieckrmeier, <Jll<' nos dC'ixamos interromper pelo novo, pelo inesp<'rado. Con10 se não
sentirnenlo que a velha alma, presente também cm personagens menos houvcss<' recanto da vida tão bom que não pudesse· S<T abandonado a qual-
puros que os de .Jacob G1imm, p<·nnitiu que entrasse no próprio p<'ilo e <pt<-r momento. O desejo ele ser diferente arrebata, mas muitas vezes engana.
deixou que a se1visse na longa /,a,ble ri 'hôte rmesa de hóspeeles] das lll<'Jll<>rias. Contudo, de qualquer modo ele força a sair do habitual.
O mundo capitalista tardio ao menos mantém para os velhos um ha11co ela Algo novo deve vir, algo que enleva. A maioria é estimulada já pela
boa esperança. Pela redução ou falta de credibilidade da aplica<:,10 em dikrc·n<:a vazia cm relação ao até-agora, pelo fresem·, num primeiro momento
Parte II
independente de qual seja o seu conteúdo. Aíjá se sente prazer pelo sim- (Fzmdamentação)
ples fato de ocorrer algo, desde que não implique nenhuma desgra<;a para A consciência antecipadora
nós mesmos. Na Jonna mais rasteira, o que seduz é a fofoca, a notícia
sobre a briga alheia. Mas também o jornal vive cm grande parte da neces-
sidade do i~msitaclo: a última novidade é a sensação. Por isso, nada é tão
indiferente, nem tão imerecidamente indiferente, quanto o jornal de um
ou mais dias atrás. O jornal de hoje é superestimado; o de ontem, subesti-
mado: o ferrão da smvrcsa lhe foi extraído. Toda essa carfa1cia ordinária
ou mediana pressupõe tédio que 11<·<:cssita ser diminado, mas põe em
movimento, ao mesmo tempo, algo mais elevado. No fundo, ela vai ao
t·n<·ontro de urna notícia desejada, uma notícia libertadora. Nesta, o con-
teúdo de forma alguma é indifrrentc, mas trnnsJi:)nna o novo no esperado,
finalmente alcançado, hern-snccdido. O novo é saudado como inuão, che-
gando <k viagem da r<"gião em que nasce o sol. O des<jo sensacionalista é
!}. O que sucede como urgente
trivial e ilusório para almas delicadas <· triviais, profundo para as fortes,
Quem nos impulsiona? Nós nos movcrnos, sornos ardentes e incisivos.
capazes de enxergar. Ele quer que o ser huma110 não est<:ja em m,l situa-
() que vive é cslimulado - <· em primeiro lugar por si mesmo. Enquanto
<:ão, qu<· de esteja <·onfon11<· seu lugar e· seu trabalho. Que esse trabalho
l'Xiste, respira e nos atiça. Para nos fazer fé1ver a panir de baixo.
não o ahastec::a com esmolas, mas que a velha call(;iio da pcmíria finalmente
Não se pode sentir que se c·st,í vivo. O JffÓprio "quê" que nos estat11i
chegue ao lim.
('01110 vivos 11,io assoma. Ele repousa l><·m fundo, lá onde con1eçamos a s<·t
1t para Li que se dirige a escuta e se espreita i11tensanw111c. A vontade ('01ll01·ais. Tcm-se cm m<·nte essa agita<;ão dentro de nós quando se diz q111·
d<" que s<· trata provém da pc111íria e 11,10 cksaparccer,í enquanto esta não
o ser humano não vivc para vivc:i-, mas "porque" vive. Ninguém escol11<'11
for· eliminada. Assim, sah,ívamos c·omo nian<,:as, e 11<·m sempre de susto,
para si esse <·stado ele urgê-ncia: ek está conosco desde que existimos e pelo
assim que a campainha soava. Seu som ntsga a sala siknciosa e oca, especi-
fato de cxistinnos. No nosso ser inl<'diato, tudo se ctí de modo vazio e por
almente ao a11oikcer. Talvez agora tc11ha chegado aquilo que obscura-
isto ávido, ahn<:jante e por isto inquieto. Mas nada disso se sente. Prinwirn
m<·11te se tem <·111 mcnte, acptilo que procuramos e que, por sua vez, pron1-
é preciso quc isso saia de si mesmo. Então é p<·n-cbido como uma urgência
ra a nós. Sua chidiva transfúnna e melhora tudo, traz um novo tempo. O
muito vaga e i11definida. Nenhum viventes<· livrn do quê dessa urgêná1,
som dessa campainha f)('l'Jllancc·e em cada ouvido, associa-se com todo
por mais que esse qui'- lenha lhe c·,111sado. Essa sede se manifrsta
chamado agrad,ívc-1 vindo ck fora. Com o gra11de despertar que aí está e
conslanl<·m<·nte e não se identifica.
c·stá vindo. Todavia, por si sô, a expectativa não o traz. Mas ela faz com que
não se possa ignorar o som, se estiver· bem direcio11ada para ele e para
10. O almejar e o desejar em estado puro, não satisfeitos
aquilo que ek representa. Ela não se deixa enganar por muito tempo, pois
Do mero inte1ior, algo procurn vir à tona. O urgente se exteriori,1.a
a mentira não dura muito. E muito menos pode enganar por muito tempo
primeiramente corno almtjar; ambicionando alguma coisa. Se o almejar <' .11'11
aquela me11tirn mais sutil, isto é, quase mais pérfida, que soni farisaicarr1eutc
tido, então passa a ser um anúar, a única condição sincera de todos os s<·n·s
e- difama, porque a novidade sodalista acoutccc cmn poder e não com
hmnanos. O próprio ato de ansiar não é menos vago e genérico do que a
tagan·lice, com o trabalho ánluo ela <·omp1uva~·ão e não com lábia desleal.
urgência, mas ao menos é direcionado claramente para fora de si, não fim
A ânsia pelo melhor penna11ecc, po1· mais quc o melhor seja impedido. Sc
revolvendo as coisas como a urgência, vagueia solto. Todavia, é por excdc'·11•
o que se des<:j,1 vier a ocorrer, de qualquer maneira será surpreendente.
eia igualmente iITequieto, ávido. Porém, caso o ansiar venha a se fixai· <'Ili si
mesn10, ele se reduz a uma mera avidez g<'nérica que, vagueando n·µ;a 1·
vazia, nem mesmo consegue se dirigir ao lugar onde pode1ia ser saciada.
Parte II
(Fundamentação)
A consciência antecipadora

!l. O que sucede como urgente


Q11c111 110s impulsiona? Nós 110s movemos, somos ank111cs e incisivos.
s- ◄ > que viv<' {- estimulado - <' c-111 prim<'iro lugar por si m<'smo. Enquanto
0
('xiste, respira e nos ati<.:a. Para nos l'az<'r f<'1ver a parlir ele baixo.
Não S<' pode s<·11tir <Jll<' s<· <'Slá vivo. O pníp1·io "<pi[•" que nos <·statui
1-
( omo vivos 11iio assoma. Ele r<'po11sa h<·m f1111do, l;í oll(k <·0111<·i;a1nos a ser
( orp<ffais. Tc111-sc <·m 1111·111c essa agi1,H:,io dcnlro ele nós quando se diz que
o ser humano niío viv<' para viv<T, mas "porque" viv<'. Ninguém escolheu
para si css<' cslaclo de urgê'ncia: ele <'Slá <·011os<·o dC'sde <JUC existimos e pelo
Lito ele cxistirmos. No uosso s<T imediato, tudos<· d,í de modo vazio e por
isto ávido, al111<:ja11tc <· por isto inquieto. Mas nada disso se sente. Primeiro
<: preciso <JU<· isso saia d<· si 11H·smo. Eu tão {- p<'rc<'hido como uma urgência
111uito vaga <· iuddinida. Nenhum vivcul<' se livra do quê dessa urgência,
por mais que esse q\1(--; t<·nha lhe cansado. Essa sede se manifesta
constanl<'meuk <' 11;10 se icknlifi<·a.

10. O almejar e o desejar em estado puro, não satisfeitos


Do mero inlcrior, algo procura vir ,1. tona. O urgente se exterioriza
/HÚl/.('Ímmenle como al111Pjw; ambicionando alguma coisa. Se o almejar é !ten-
lido, então passa a ser um an.1iw; a única condição sincera de todos os seres
humanos. O próprio ato de ansiar não é menos vago e genérico do que a
urgência, mas ao menos {- direcionado claramente para fora de si, não fica
revolvendo as coisas como a nrgê:ucia, vagueia solto. Todavia, é por excelên-
cia igualmente iITequieto, ávido. Porém, caso o ansiar venha a se fixar em si
mesmo, ele se reduz a mna mera avidez genérica que, vagueando cega e
vazia, nem mesmo consegue se dirigir ao lugar onde poderia ser saciada.
l'ara 1;11110, o .111st'io d('vc lffi111<'i10 n1ma1 dara1111·1111· ,·111 d11ct .10 a 11 l\'I( Lulc. Ern ('0llt r;1part ida, todo qm·nT é um qu<Ter-fazer. Pode-se des<:jar
algo. Es1;111do assim del<:nuinado, de p{íra de dar golpes para lodn-. os Lidos ,pu· ;n11a11hú faça bmn ternpo, Cinbora em absolutamente nada se possa
ao mesmo ternpo: toma-se urn bu~car [SuchenJ que tem e não km o que , 011t1ilmir para isso. Desejos podem até ser completamente in-acionais,
busca, uma atividade direcionada para um alvo. O seu n1mar-para divide-se 1u1de111 se dar no sentido de que X ou Yainda <'Stc:jam vivos. Eventualmente
desde sempre conforme aqui.lo para o qne está direcionado. Torna-se, por- l.1/ sentido desejar isto, mas é absurdo querê·-lo. Por isso, o dcsc:jo permanece
tanto, C'sta ou aquela f1ulsúo I TriPbl que pode ser individualmente denomina- , 01ulc a vontade nada mais pode mudar. O arn·pe11dido deseja não ter
da. Esse conceito, sem dúvida muitas vezes embotado e coisificado de forma 1, ·;dizado unia certa a(ão, mas niio pode <'Xatamcntc quenT isso. Igualmente

n·aciorníria, tem o mesmo scnlido que nffe.1.1idade. Mas, como a palavra "desanimado, o hesitante, o muitas vezes desiludido, o fraco ck vontade,
n.l'l'e.1.1idade mio evoca da mesma forma a atividad<· din-cionada para um alvo, t, idos têm desc:jos, até bastante intensos, sem que se movam nuno ao q11en-r--
s<:jam mantidos a palavra e o con<Tito /ml.1iio entendidos de modo não l.1zer. Além disso, pode-se desejar diversas coisas, e a <'Scolha será um
embotado. Ele snnpn- busca pn·endl<'r, Ill<'dia11te algo <·xteüor, um vazio, lonnento, mas apenas uma delas se pode quen-r. A<p1ck qn<' q11er, ao
algo de que carece o almc:jar e ansiar, alg'O que falta. Esse algo difen·nciado, , ontnfrio, j,í estabdcce11 uma prcf<T<·ncia: sabe o que prcfrre, a escolha
comprec11<lido como o pilo 011 a mulh<'r ou o poder e assim por diant<', é o licou pan, tnís. O desejar pode s<Tind<"ciso, apesank uma hem detc·nninada
<1ue subdivide o movimc·nto direcionado para um alvo nas suas dilt·n·111es 1111agina(,10 do alvo para o <piai se estende. O <)ll<'l'<'I', ao contr.írio, {-
pulsôes. A partir disso, vale diz<·1· qm· se o alnu:jar sentido é apeuas u111 11ecessaria111ent<· urn avançar ativo rumo a <"sse alvo, dirige-s<' para fora,
anseio ge11(rin,, eot,10 a jml.1<10 .\/'t1lÍda <~ o cspc<"Ílico de cada mna das jHúxr1e.1, tem de s<· medir n11ic1mentc com <·oisas realmente dadas. Sendo que o
dos afio.\. Esse algo faz com <)li<' a pulsi'ío, uma vez tendo se saci;1do no seu caminho lrilhado pelo d<·s<.:j;1r, anescido <· assim solidilic1do pdo querer,
ol~jcto, possa S<' arref'ccer, até n·ssar tempora1·i;11nc11te, dif"crentcmcnte da pode até S<'I' pn>priam<·nte i11dcscjado, 011 s<:ja, ;ísp<"ro ou amargo.
avidez, qm· <·0111i1111a insadávd. Port;111to, o alvo p;1rn o qual se dirige a Entretanto, <'lll última análise, nada se pode <111<-r<-r além do que{,, d<·s<:ja-
p11ls,10 <\ ao 11H·smo tempo. aquilo cm que da {- sa('iacla (1w lll<'dicla <·111 <(IH' do: o desejo inl<T<'ssciro é "o modo da puls;io", "a melodia da pulsiio",
sc e11<·011tra ao seu akann·). O animal dirig·<·-se p.rra o alvo confonne lhe •1uc pr-ovoca o q11<T<-r, que lhe entoa o que de d<'V<' querer. Assim, ai11da
dita o apetite 110 monwnto, o ser h11111a110 o retrata por ;rntecipa<.Jio. <1u<· exista 111n d<"s<:jars<"m o q1H·1·er, isto é, 11111 des<:jardamlica11te <· inativo,
Por isso, o s<·r h11111;mo ( ('apa1: niio só de l<.T apetite I hef:!,dun11 rnas <1uc s<· esgot;1 na i111agi11a(_',10 ou é impossível, niío h;í qrn·r·<·np1e 11;10 tenha
também de <ksej,u- algo I witnsl'ht'fl 1- O ato de des<:jar é mais amplo, possui sido J)l'<'('<'dido por um desejar. E o qu<-r<·r· será tanto mais intenso <p1a11to
mais matiz<·s do qu<· o apc1<·n-r, pois o desejar se expande para uma co11- mais vividamc111e o alvo, concehido <'Ili comum com o desejar, tiver assumido
n:pc;iío cm que o apetite- imagina a forma do seu ol~j<·to. O apcte('<'I' certa- a forma de 11m ideal. lks<:jos nada fazem, rnas C'ks <Lio l'onna <' ret<'•rn com
mente é muito mais autig-c, do <p1e a imaginação de algo que apetece. Con- <·s1><·cial liddidadc o que dev<'ria ser l<:ito. A mo(a <JU<' gostaria ck sentir-se
t11clo, o apclenT passa a s<T um <kst:jar, adquire a <·on<·<-pç·ão mais 011 espkndorosa <' cort<:jada <' o holll<'lll qu<' sonha <·om f"citos futuros vestem
menos ddiuida de seu ol~jcto, mais prcc-isamente de algo melhor: O anseio a pohr<'Za ou o n1tidia110 como urna roupa provisó1ia. N;"ío é p<ll' isso q11e
elo desejo inte11sifü·a-S<' _justanwnte com a imaginaç;"io do melhor, atf da ela vai cair, mas d<"ntro dda o se1· hmrnmo SC' scnt<' menos il vontade. O
p<Tfei<.,·,10 <ksse ol~jcto a ser· nmsrnnado. De modo qu<· pode ser dito, rn"io mero apetite e sua puls;io S<' at<'-m prim<'ira11H·11te ao que estí ao S<'U alcanc<',
em rda<Jío ao apcl<'cer, mas certamente em rela<,Jio ao anseio do desejo: mas o d<"seja1· imaginativo co111ido n<"ks a111bicioua mais. Assim, de se
ainda qu<' o ato de dcs<:jar não provenha da imagina(,10, {- só com ela qu<' mantém insalisfrito, isto é, nada do que existe lhe hasta de fato. A pulsão,
de vem ,'i tona. Simultaneamente, ele é ainda mais <"Stirnulado por ela na como um almejar detcnnim1do, como apetite por· algo, permanece viva
mesma propor(ão em que aquilo que está sendo imag·i nado, pintado diant <' em t mio isso.
dos olhos, promete satisfação. Portanto, onde houver a imaginação de algo
melhor, no fundo de algo certamente perfeito, aí ocorre o desejar e, 11. O homem como um ser de pulsões bastante amplo
conforme o caso, trata-se de um desejar impaciente, exigente. Assim, a Necessidade de
representação/e
mera imagina~·iio se torna um ideal, que se mostra provido da etiqueta squematização. O corf10 individual
ASSIM DEVERIA SER. Porém, por mais intenso que seja, neste ponto o desejar Exposição A pulsão necessita de alguém por tn'is de si. Po1·ém, quem f o
(Darstellung).
se di[ncncia do querer propriamente dito por S<'ll modo passivo, ainda estimulável que busca? Quem se move no movimento vivo? Quem <lá o
parecido com o ansiar. No desejar ainda não há nada de trabalho ou impulso no animal? Quem des<:ja rn> ser humano? Aqui nem tudo gira em
101110 do ('li, pois 11ma p11lsüo 110s wlnn1h11. Todavia, isto 11;10 ,ig11lli1·;1 q11t' 1111livid11.1l <· t 111iliza<lo somc·ntc na medida dessa participação, quando o
não exista qualquer ser individual, completo crn si mesrno, que caJT('ga as , 01 po .tg-c c·m seu próp1io favor, fugindo do que prejudica e buscando o
pulsões, sente-as e, mediante a sua satisfação, desfaz-se de todo sentimento •111<· mantém. Por isso, existem várias molas propulsoras, dependendo do
de desgosto. Ao contl'ário, esse ser é, cm primeiro lugar, o corpo vivo , .1so, c não uma única, que n1ovimenta tudo. Só existe continuamente o
individual: sendo movido por estímulos e trnnsborclanclo deles, possui de , orpo que quer se rnanter e por isso come, bebe, ,una, donüna. É son1cnte
os impulsos, que não pairam ele modo genérico. Se o animal come, é o seu dc que age nas pulsões, por mais diversificadas que elas sejam, mesmo as
corpo c1m· fica saciado, e· nada além disso. •111c foram transformadas pelo cu que surgiu e por suas relações.

Nâo há fmlsúo s~/11. suporte corjJOral A fHlixâo wmbi.anle


O qn<' se sente c·omo cor-po n'!'tamC'nte é, em si mcsnH>, bastanlC' São vá1ias as pulsôcs cptt· o s<"r humano traz sempre consigo, pois de
genérico. Ek apenas se· enrnrilm bem ou mal, o C)llC' não é um achado 11.10 só presetva a maior parte das pulsôcs animais como gera outras. A~sim,
muito claro. Em conlraposi<;ão, cada pulsão parece atuar decididamc·11tc 11ão só o S<'U corpo, mas o seu <'li é igualmente afetivo. O ser humano
como 11m quC'm e· como se puxasse o coq>o a Irás dC' si. f como se não fosse .-onsciente é o animal mais difícil de saciar: é de o animal que, pa1·a a
o coq>o que tem o impulso, mas o impulso que tC'm o corpo e o cldine, .-;atisfa<;iio ck S<'US cks<:jos, não vai dir<'lo ao ponto. Se lhe falta o nc·c·c·ss;írio
confrrc-lhC' a cor do momcnlo - venndho de raiva, amarelo de invc:ja, ;", vida, dc sc·nl<' essa carên<·ia como nenhum outn> ser: visôcs da Jómc
venk dC' aborrccimC"11to - c·omo a um peda~:o d<' pano. Acresce-se a isso a emergem. Se de tem o m·n·ssário, com o desfn1te erncrgcm novos apetit<'s,
longa durnc:ão e· o aspecto aparcntemcn1<· desprovido de Sl~jeito que as <jlH" mokstam d<' outra m,111eira e· niio m<·nos do que anlt's o fazia a pura
pulsôes possuem no chamado instinto. Os pintinhos n'cérn-saídos da nis<"a carência. Os ricos c supcrnuliiclos (pori-m não s<Í dC"s) sofrem <'V<'ntualmc·utt·
ciscam imcdiatanwnt<' <'m busca d<' grãos, por um <'aminho pree-stabekddo, da ~i 'l!~1tlar comich,io cio não-s<'i-hem-<>-quê. Sobretudo o luxo (<jll<'
pdo qual, da maneira mais objetiva possível, alcançam o que lhes c·ah<'. A .1par('11t<·mc11t<' prec·1H·h<' tudo) é um impulsionado1· insaciável. Xt·1x<·s
via é monitorada pelo c·cTelwlo, mas, c·m scg-uida, confonne as cksC'ol><'rtas 1·stip11lou 11111 prêmio ]><'la invell(:ão de um novo divertimento. Não se· tratava
de Pavlov, esse monitoramento pod<' ser alterado pelo eórtcx eer<'hral <' ap<'nas do tédio e· sim dc um impulso que ck desconhecia, ao menos como
pdo hábitat que {, vivendado <·orno algo modificado. Isto ocorn· princi- damor, e· <JH<· rcdamava s<'r saciado. Mesmo 110 curso ela hist<Íria, com
palm<'utc entre os animais superiores. Todavia, o chamado instinlo alua suas formas c1111hiantcs, nas din1eusões crescentes de atendimento à
falsamcn1c c·o11H> uma pulsão que orienta a si 1nesn10, e tambi-m SC'rcs dl'111a11cla, clilicilmcntc alguma pulsão penmmece a mesma e nenhuma delas
humanos o conhecem, especialmente as mulheres-se não no amor, então se apn·senta como acabada. Os novos objetos despertam cobiças e paixões
no cuidado maternal. Acpii de fato fica a impressão de que as pulsôcs 1ê·m de 11111a oricntac.,·,io diversa, das quais até ontem ninguém intuía nada. Por
vida própria e· dominam o corpo, para não falar da alma. Por vezes, e-x<'mplo, a puls;"ío de aquisição, ela própria aliás adquirida, alcançou uma
também as pnlsôes menos objetivas aparentam ind<'pcndê·ucia, amplit tl<k totalmcntc dcsconhecida em épocas pré-capitalistas. Até mesmo
transformando o ser humano em sua presa. É o caso dos neuróticos, nos a libido sexual {, por· da obliterada de muitas maneiras. Igualmente muito
<piais uma tcndência impulsiva isolada, de aspecto quase an1árquico, r<'c<'lll<' {, a obsc-ssão pdo recor-de na sociedade capitalista tardia, assim
sul~juga não scí o corpo mas também o eu consciente e S<' dcpara com de como a obsessão IC'nlicista e· vazia pela velocidade sempre maior, que se
como se· foss<' diante de um estranho. Igualmente é assim com os indivíduos configurou a par1ir dos vcículos motorizados. Entretanto, sobretudo o
sadios no instante cm que são "dmninados" por uma compulsão, como se capilal monopolis1a pr<'cisa intensificar a obsessão abstraia pe-lo recorde
o afeto fosse soberano. Nesse caso, pode-se afirmar que não fói a moça que visando ao açulanw11to dos trabalhadores, pois de- outra forma o lucro
se afogou por causa de um desgosto amoroso e sim o desgosto amoroso máximo não poderia ser exlraído tão rapidamente. Novidade quase
que levou a moça a se afogar. Apesar dessa aparência pmvcntura destituída arrebatadora é o instinto fascista para a morte, compai·ável, por exemplo,
de sltjeito, nada no COIJJO permite fazer das pulsões portadoras de si mesmas. ao instinto sentimental da época de Werther e da época romântico-noturna,
Quando a ave constrói seu ninho, quando a ancloiinha encontra o ninho mas é muito diverso o conteúdo social que o estimula e direciona. Ele é
do ano anterior, é verdade que ainda não é tlIIl eu que- atua nesses processos premiado em parte pela morte em batalha na guerra imperialista, em parte
enigmáticos, mas tampouco uma pulsão independente que pudesse passar pela falta de perspectiva da existência burguesa tardia como um todo. Em
sem o corpo. Também o instinto impulsivo participa do sustento do coqJO com pcnsac:ão, o instinto religioso recuou, se é possível chamar assim a esse
1·1111· provido c111 g-r;111dc p;irte de 11111a s11p<-restn1t11ra, a p11ls;10 p,11a 1·i111a, 1t 11111'11ci;1 para o p1·a1:<T nq.~ativo, ou s<ja, o in1pulso ek 11101'1<·. Avontad<' da

o <Tos voltado para o imutável. E quando foi instigado de modo deg·encra- , 11.,1111;1 <: associada tan1bén1 à mo1te por acontecer, não apenas à cópula.
do e enganoso, como em diversas seduções fascistas, o impulso para cima \·:,1111 como os organismos multicelulares desde o início rumam para a morte
praticamente não subsistiu como tal, afundou no solo, em sangue e solo. 5 , ., 1lq{rndação letal já se inicia najuve-ntude, por e-xemplo no estreitamento
Em suma, está ficando claro que o ser humano é um ser de pulsõ<'s tão , 1, ,, v;1sos, assim também um impulso específico est,í direcionado para o
cambiante quanto amplo, um amontoado de d('sc:jos cambiante:, e geral- I ", ,n-sso de morte, para o esftiar. Trata-se do impulso de destruição e de
mente mal ordenados. Fica difícil lo<·alizar uma mola pn>pulsora constan- -11:11-.~são. Freud quis caracterizá-lo como instinto próprio, ainda que <k ma-
te, uma lÍnica pulsão fundamental, a menos <pw da 1·e<·eha independência 11, li hidinal, a pal'tir do apetite scídi<·o. O nunor da vida, que parte do amor,
e, dessa forma, fi<]ll<' suspensa no ar. A mola propulsorn principal não se ·.n ia assim sikrKiado ou destruído pela mesma libido. O dC'se:jo de destrni-
tonta visível nem m<·smo nn seres humanos da mesma época e· da mesma ' .10 se extcn1aria em n:la<:,io ao próprio corpo na alegria pela disciplina
dasse, se analisamos psicanaliticarnentc seu suposto me·canismo puramen- l 111gal, nas wu-iadas tendi'-neias asn:t icas. Em rda~·ão a corpos e ol~j<'tos allwi-
te inf<'1ior. Certamente há vá1ias pulsões fundamentais: ora uma apan-c<· ' ,,, o instinto de mo1ü· se externaria como n11ddad<', como i'-xtasc ineg;ívd
com mais força, ora outra, ora elas agem simultaneamente corno ventos 1wb destnli<;ão que <·11t;ío s<· abate sohn- os demais. També-111 o instinto de
contrá1ios cm torno de mn barco. E das ne1n seepw1· pennaiwcem seme- 111< ,rte é lihidi11al, o <ili(' é indicado p<'la constante associa<;,io entre n11ddad<'
lhantes a si mesmas. "O ser hu1nano quer construir sua felicidade". Esta , prazer S<'XUal, soh1rllldo o s<·11ti111<'11to da 11101"1<· do amor. Em todo caso,
frase com certeza parece bastante antiga e sem dúvida t<'m hem outro cré- .11111i o e·<'rn<· é<· J><Tlll,lll<'<T sC'ndo s<'x11al, <· a partir ckk o homem é movido.
dito c111e não a makdiá·ncia do eterno impulso do animal pr<'dador. Mas,
se perguntanuos: "Q,tw frlicidade <' para qui'·?", cntáo justamente neste J>uf.1<l0 do ego <' recalqal'
ponto têm início as perguntas e· s111ikzas. l~ da,n epH· s<Tia muito estranho Ap<'11as s11pl<·1tH·11tan11<'nl<' é acr<'scida nma outra for<;a mais estrita.
que, na história das dasses, <'lll que reitcradanwntt· vieram ,1 tona novos l\:o entanto, <'SS<' d<·111<·11to <'Strito <' também ag111::ado é importantt' no ser
propósitos para o alnu:jar, _j11sta111<'11te ,1 atividade ol~jetiva das pulsô<'s l1111nano, pois é o s<·11 ('g·o. Freud f'n·qüenl<'111<'1tte reiteTa, não sem des-
transcon-csse de modo 1m;'.i11i11H', 1irm<· <' acabado. 111cntidos, que, além do instinto sexual e do iHsliuto de morte a ele
.1sserndhado, ta111h<:111 distinguiu um instinto puramente lnunano. Se
12. Diferentes concepções da pulsão humana básica houvesse apenas a libido, e nada além dela, não poderiam nos surgir
conflitos e 1H·11Jus<·s. Mas o fato é que, ao lado do "obscuro id' do corpo e
J\ jmlsüo Mix1u1,l de suas pulsô('s situa-se, d<' acordo com Fr·eud, o ego. Aos instintos sexuais
Mas algo o corpo tem de almejar em prirncitn lug·ar e de lónna nmtrnpô<'m-:w as p11lsô<'s do <'go. A psicanálise como lllll tudo, diz Freud,
especial. Qual é cntáo a mola p1np11lsorn p1incipal de nossas atuais reflexôcs ''foi edilicada sobre a rigorosa sepanH:ão entre as pulsões sexuais e as pulsões
e buscas? Como é- sabido, Freud coloca o instinto s<·xt1al como o primeiro do ego". O ('go al'inw1, nega <· <Tnstll'a as pulsões. Dele depende a
e mais forte de lodos. <onscii'-ncia, o pod<'r 'Ili<' d;í <·oe·sáo a nossa vida psíquica. Ele é o poder
Com isto, a libido n:ge a vida, sendo fundamental tanto cm tennos ·•que vai dormir.', noite e· <·ntáo ainda llla!H'.ja a censura do sonho". A
temporais como de <·onletído.Ji o ato de sugar do lactente estaria associado puls.io do <·go recaka o <Ili<', nas pulsões sexuais e em seus conteúdos, não
ao prazer sexual e oco1n..-ia em grande parte por causa desse prazer. Igual- se coaduna com a sua linha (mais sobn· isso logo a seguir). Desse- modo, a
mente a fome cstaiia suhonlinada ao instinto sexual, a satisfação torna-se nossa vida psíquica { dnalisJa, ap('sar da libido, que iniciou tudo: ela se
relaxamento sexual. J\ relação com o próprio coq>o e depois com objetos move "entre o ego <·oeso <' o que foi separado pelo recalque". É essa tensão
exteriores a ele, especialmente com pessoas à sua volta, apresenta-se, desse· que provoca, quando leva ,1 contradi<;áo, o conllito patogênico, que é assim
modo, ('Ill toda parte corno antes de mais nada sexual. Só que a libido não um conflito entre as pnlsücs do <'go e as pulst>es sexuais. Do ego partem
pennancceu sendo a única pulsão em Freud, pdo menos não a libido no
sentido do prazer positivo. O Freud tardio acentuava paralelamente uma os recalques, por nu·io dos quais certas tendências psíquicas são
excluídas não só ela consciência mas também dos outros tipos de
Refrrh1da à ideologia nazista ele "sangue e solo", qne apn-go.-.va a pureza racial ariana valorização e atividade. O que foi posto de lado por meio do recalque
("sangue") e a reocupação do suposto território alemão ("solo p,ítrio"). contrapõe-se ao ego na análise, e a análise recebe a tarefa de suprimir
;is n·sish··111"i.1s <111<· o <'go 1m111iks1.1 ao S<· on1par <·0111 o «pw 101 wp1 irni- d11 , l'Sj>l'Ílo aos ro11lcúdos do superego (dos quais fazem parte não só a
do. 1d igi,ío mas t amhé:-m os postulados da transformação do mundo) e com
1cfnfncia ao nnmdo exterior, consisti1ia exdu,1ivwnenle de "ilusôcs". O
O ego providencia a purgação das sensações de desprazer mediante pníprio mundo interior, no entanto, que tem o seu defensor no superego,
a satisfação do impulso, mas faz isto à sua maneira, ou seja, censurando, pl'rmanecc sendo, em última análise, scmpt-e o da libido ou dos impnlsos
moralizando e sobn·tudo levando cm consideração o que pode ser 1qHimidos, do" idinconsciente" no homem. O id dessa libido é:(' permanece
alcançado, a "rcalidaçle". Esse aspecto moralizante - o que quer dizer --wndo, confon:ne Freud, o rei110 innrnsciente ela puls;io que preenche o
adaptado aos usos do mundo buq.{nê'.s de Freud - é:, de açordo com Freud, co1vo, que nos envolve lotalrnentc, <·oufónnc o S<'ll lado a11in1al assim co1110
a linha adquirida da pulsão do ego. Por meio dela surge até mesmo uma 110 seu aspecto de superego. Ele faz com "que sejamos 'vividos' por poderes
ruptura da libido, ou s<:ja, do princípio do prazer, que de rcslo ck1en11ina desconhecidos, inco11lrol.'ívcis" (o que vale dizer pda clomi1u"·;"ío alheia do
todos os p1·oc:<·ssos impulsivos. O homem adulto, ou mdhor, o bm-g11i·s 111odo d<' prodrn;ão capitalista, <pt<' Fn·ud tn111sformo11110 idda libido). A
i11divid11al, visto por Fr<"ucl de maneira burguesa, quebra os chifres psicarnílise é:, em co11traposi"·;io, "um i11stnm1<·11to que ckvcr;í pcnnilir ao
cliouisíacos m1 "realidade", como Freud chama o seu e11torno lmrg-ui'·s (o ego a conquisla progr('ssiva do irC'. Dessa forma, só é: uovamt·111<' lihenula
muuclo da m<-rcadoria e sua ideologia). ;1 puls,io lihiclinal fundam<'ntal, isto é:, da não é:- n-duzida pelos n·cilqm·s

11cm soh1·ep1!jacla pelas lig-a(<><·s com o ideal cio ego. l~ vc-rdadc q11(' Freud
O ego cclucado <kssa maneira lornou-sc "racional". Ele· não mais s<· que'!', dessa forma, traz<'r ntl'io11al111c·ule à luz o <pt<· foi n·calcaclo, o
deixa dominar pclo princípio elo prnze1·, mas segue o princípio da inconscicnlc·, portanto r<'duzir o mofo hipcícrita <' tamhé:-m ncurolizantc.
rcalida<k, que 110 limclo tamhhu <pwr akan<:ar o prazer, ainda q11c- Mas o que deve vir· sc-r;Í lll<T,1111<·111<' a claridadt" elo dia para ckntro ele uma
p1u1dado <· di111i1111íclo, mas assegurado pela consicl<'rn~:ão da rcaliclad<'. libido p.-ivada e do "mal-eslar" de 11111a n1lt11ra ,1 qual supostamente nada
falta além da <'01Te11te ele ar da psil'a11,ílise.
E ai11da assim o <·go, <· ,11<~ a "realidade" ou o 1111111<lo <·xlc.-ior lmrguê'.s,
não seriam s111i< iclll('s p,11·a a n·11s11ra C' i11d11sivc para a suhlima,;ào dos im- Un1dr/1U', m111f,lr'xo, inrnn.1-ân1fr r s11.hlimaçiio
pulsos lihidinais se, alún disso, n;io exist issc ao lado, aciu1a dele, o sufH'f1'{!,'0 Em todo ('aso, o instinto sexual pen11,u1<·c-c hmcla111c·111al, ainda qne
ou o irlml do 1go. O superego é o outro conlclÍdo do eg-o. Ele rqm·sc111a, de não seja 1í11ico e exclusivo. A mo<:a !'<'Catada apenas SI' recusar,í a admi1ir
acordo com Frc11cl, a nossa rd:u,;;'io pan·111al. Ele produz Iodas as fonnaç<><·s sua po.~sihilidacle: o ego comportado reprime a .,l'xwtlidarle. Isso faz com
s11hstilulivas da piedade. O ego rq>n·scula os direitos elo rn1111do cxlcrior. O que a Sl'Xualidad<' fen11<·11te e pressione a ponto de 11;10 c·onseg-uir se
superego, <'Ili conlrapartida, é "o def'cnsor do mundo interior·", a "origem <·xlerioriz,11" na vida n·al 011 permitida. Os burgueses l'0m os quais Freud se
da nrnscii'-ncia e do sentimento de culpa" (sendo esle cousliluído pelas lcns<>es deparou n1111ul1am a .11'x1wlidad1' e· seus desejos com uma espessa trnma de
<·nln· as exigi'·ucias ela co11scii'-m·ia e as realizações cio ego). Ele é o "gennc· a cliscri1:ão, hipoC'l'isia e 111c·ntirn. lk fato, a libido está sl~jcita a urna censura
partir elo q11al se· formaram Iodas as religiões". Represenl,nHlo o pai <· a moraliza111c· j;í 110 próprio indivíduo e n.10 só na hipocrisia da sociedade,
n1ãc, o s11percgo obsc1va, amc·a(a e conduz o ego, assi,n co1no ante1ionne11- uma n·nsura que não c!C'ixa nosso venladein> ser transpor o li1niar da
lc o pai e a 111,ic· füziam com a niam;a. Desse modo, de proporciona ao ego l'ons<·ii'-ncia. Essa cc·nsurn trnnl'a, recaira a pulsão sexual-ou a difama se o
uma diretriz e é: a fonte da fonnação dos ideais. Todavia,justamente por sua recalque não o faz pkm1mente-, niando obstáculos ao seu reconhecimento.
instfü1cia parcnlal cpte continua atuante, no superego sohn·vive facilmente Nesse ponto, a libido JH'l'IIJalll'CC', para Freud, lauto a lÍnica pulsão
alg-o ameaçador. A conscii'·ucia é severa; o senso do dever, tenebroso. O f't.mdameutal quanto o conlc·tído essencial ela exis1ê11c·ia humana, pois o
superego muitas vezes prcsctva, a partir do lado parental, as tradições e os ego é:-, como foi obsctvado, apenas a instância controladora. Ele revista a
ideais elo passado. Entretanto, a despeito disso ek- faz um desvio, evitando o bagagem lrazida pela libido, obriga-a a se dissimular, eventualmente até a
ego desperto para se unir à libido no seio das trevas que lhes são comuns, no se rnblimarno espiritual, mas o pníp1io ego é improdutivo. Quando a cc11s111~1
lngarobsnlt'o onde se molda o iddo mundo interior. Tudo isso se acrescenta moralizante recalca, ela o faz apcuas na superfície. No processo de rernlq111·,
à libido original, ao menos no Freud tardio. Compõe-se assim uma extra- os desejos não realizados, ou até mesmo anulados pelo sili'-11cio,
ordinária superestrutura de pulsões - uma superestrutura que, em grande simplesmente submergem num inconsc ieute mais ou menos compklo. /\li
parte, deveni ser novamente desconst1uída por meio da análise e, no que eles apodrecem, fmmando tensões e complexos neuróticos, scrn q11<· :11pwk
q11(' sol'rc possa conhecer as causas do seu sofrüncnto. O i11tlT<·ss1· sl'xual , 1111po1 lante ohs<Tv,11· <Jll<', <k acordo con1 Freud, a resistência e1n tornar-

foi apenas esquecido, não desaparece, continua a agir sob camuflagens de .,. 1011scic-11tc- n·siclc 1neran1ente na vontade do paciente, e não no n1atcrial
todo tipo. Freud procurou evidenciar o aguilhão libidinal já nas psicopatias do pr/)p1·io inconsciente, ou seja, aquele inconsciente que Freud estatui e
do cotidiano, na promessa, no lapso, nos malogros do tipo apan"ntcmente , I' w - abstraindo do grotesco de seus conteúdos essencialmente libidinais-
mais casual e insignificante. Pulsões nào exteriorizadas, experiências l ,.1~ic11nente é un1 produto ou ao menos um refúgio do recalque. Nesses
inconclusas, feridas e dccepçôcs esquecid;:is continuam a arder. Elas 1,·11110s, o próprio recalque {- um processo
desapareceram da consciê-ncia do ego, mas 11ão da alma. I{ delas que provêm
a sensibilidade aparentemente infundada, a reação exagerada, a aç'to pelo qual um ato passível de ser toniado consdcntc, porlanto nm ato
1wun'>tica compulsiva e, por fim, os afetos que se tornaram absurclamcntc que pertence ao sistema do pr·é--<·onscicnte, é tornado inn>11sciente,
i11dq>e11<kntcs e sem conteúdo: o 1·omj1ln:o. Aqui vi'·m ;i tona todos os portanto revertido para o sistema do inc:onscicnt<'. E chamamos
fantasmas possíveis ou apenas os fantasmas freudianos: a inveja do pê-nis, o igualmcnll' ele n·calqu<' quando o ato psíquico i11conscic11tc nem chega
complexo de castr.u::ão, o nm1pkxo de l~dipo e outros mais. lk acordo a SlT admitido 110 sisl<'llla pré-<·011scic-11te contíguo, mas<~ n:jeitadojá
com Freud, há uma irrita<:ão sexual ua hasc de todos os complexos, que no limiar· pela ('(•11s11ra.
estariam fixados 1111m trauma i11fontil esquecido. Nas vivi'·ncias da inlfü1cia
teriam sua origem o complexo de cast1·,u;ão e o chamado complexo de Assim, a libido tornada cot1scit·11te não deixa qualquer outra saída
l{dipo do ()dio ao pai (embora o próp1io l{dipo, como disse certa vez .dé-m claquda que kva a 11111 passado revisitado e desvendado. A psicamílisc
Chestcrton, tenha sido o lÍnico s<·1· lrnma110 que seguramente não tinha quer ser ab 0110 m<·111ória suhcortic-.il, solitá1ia, cnn1psulada <·, como da
nc11h11m complexo de l~dipo, pois até o lÍltimo momento não s,1bia que própria diz, suhtern111ca, aqucrônti<'a.
Laio, a quem de matou, era seu pai, e J<>casta, a quern ele desposou, em Por essa ra:t.iio, o inconsci<'nle é, para Freud, meramente a instância
sua nüic). Tudo isto, denominado desta fonn<1 estranha e S<"'ndo <1incla mais para onde algo pode ser r<'vertido. Ou, na melhor das hipóteses, como um
estrnnho por ecoar parn o alto, seria totalrnente "originário ck processos id que envolve a co11s<·iê11cia corno um anel fechado, um ente herdado da
interrompidos, que foram alvo de algum distúrbio e tiveram de pc-rrna1H·cer história t rihal <'HVolvcndo todo o homem consciente. "Com a ajuda do
inc·onsc·ientes". Assim, se fosse possível descer consciente1nentc ao porão supen·go, o cu haure, de um modo para nós ainda obscuro, das
do que foi recalcado, tm-nar conscientes as precondiçõcs inconscicnt<'s dos 1·xpe1ic~11cias dos tempos p1imordiais acumuladas no iâ'. Dessa fonna, o
sintomas neuróticos, então o neurótico seria curado, isto é, o seu ego inconsl'ientc da psinu1álise, como se pode ver, nunca é um ainda-não-
assumüia as rédeas do seu id. O homem que conhece a causa dos seus rnnscin,tr, um demc·nto das progn:ssões. Ele consiste, antes, de regressões.
complexos podeiia curar a si mesmo. Todavia, só a psican,llise poderia De modo c·o1Tcs1xmde11te, tornar consciente C'SS<' inconsciente revela apenas
auxiliá-lo a obter esse conhecimento. Uma penosa sondagem das o que _j;í foi, o que vale dizer que no inrnn.w:irnle/rmuliano nâo há nada de
profundezas, urna atenção a instâ.ncias aparentemente secundárias, novo. Isto tornou-se ainda mais claro quando C. <~ . .Jung, o fascista
csp<·cialnwnte as tornadas secundárias, mas também aten(,·ão à desconfiança psicanalúiro, reduziu a libido e seus co11t<·líclos i11consc-ientes a um fenômeno
contra ideologias que soam bem demais (como a "santidade" da pré-históri('o. De acordo com esta visão, no ineonsciente residiriam
maternidade e· similares) - toda essa habilidade de detetive setia necessária exclusivamente memórias ou fantasias primordiais da história tribal,
para n·conhec·cro cont<·údo do sintoma neurótico e charrní-lo à consciência falsamente denominadas arquétipos. Todos os id<"ais rcmontariam a essa
do paciente. O caminho principal para isso, a via regia s<·1ia, como se sabe, noite, n·pn·s<'11ta1iam meramente os tempos prirnorcliais.Jung até mesmo
a inteq>retação dos sonhos, mais precisamente a interpretação dos sonhos considc-rn a 11oite como tão colorida que a consciência empalidece diante
noturnos corno acp1cles em que o ego censurador está ad?nnecido e nos dela. Ele menospreza a consciência, como alguém que desdenha a luz.
quais o árduo mundo exterior se tornou imperccptívd. Para Freud, todo Freud, cm contraposição, até mantém a consdê-ncia iluminadora, mas se
sonho é n-alizac;·ào de uma fantasia inconsciente do dcsc:jo. O que interessa trata de urna consciência envolta pelo anel do id, pelo inconsciente (ixo de
é decifrar analiticamente, a partir do simbolismo com que o sonho se reveste, uma libido fixa. Nem as composições artísticas, por mais produtivas que
o que- se manifesta em termos de dest";jo. Em toda parte, o neurótico opõe sejam, conduzem para fora desse fixum: elas são meramente !>ublimações da
a essa decifração uma resistência característica: o que foi esquecido quer libido encerrada em si mesma - a fantasia substitui a 1·ealização das pulsôes.
pcnnanecer esquecido e o seu sintoma quer continuar disfarçado. Todavia, "A tarefa a ser resolvida é entào", diz Freud, "deslocar os alvos da pulsão
d(' lal 111<111<·ira <JW' não possam ser atingidos pela n:jci<Jío do 111111 u lo 1·xl1·- lnuli·11ci;1 i1 pc1vtTsao, d<' 011d<' <pt<T que l<'11ha111 vindo" (Adkr, /)n 111n//Í·.,1'
rior". A pulsão sexual pode ser refinada como carita~, co1110 dl'di<a<:iío ao t :h,11111!/n I O caráter ner·oo.w], 1922, p. 5). No princípio da f'volução que
bem-estar do próximo, da humanidade. A libido sublimada num nível mais leva :, ll<'Urosc, o sentimento de insegurança e de infe1ioridade situa-se
elevado perfaz a alegria do artista por sua criação, bem como o desfrute e .1111<·a(:ador. O impulso do poder não realizado gera o ('ompkxo de
a satisfação (compensatória) do nào-artista com a obra de arte, pois esta 111f'crioridade. Mas, assim como a pde torna-st· mais <'Spessa sobre uma
proporciona a pura realiza(:ão do desejo do tipo elaborado e incontido: l<-1ida, cm uma medida ele segurall(;a contra alguma lesão futura, e como a
mulheres, casamento, heróis e inclusive o belo e trágico cadáver. Ela h11H:ào do rim restante se intensifica quando se perde um deles, também o
proporciona ao homem na platéia o que falta ao homem na vida: vestes de , 1·11 compensa infrrioriza<,:Ôes psíqni<·as. Em pane mediante más('aras <'

ouro cmno uni belo sonho noturno. Com isto, o espectador ou conviva lin;ôcs - a vontade ele potf-u('ia torna-se <'ntão vontade de apad·ncia -, mas
extravasa os seus desejos de modo a não mais sofrer por causa deks. Po- também mediante um melhor cles<'lll])('llho: H<'SI<' caso, a vontade ele po-
rém, toda rn/ar:1e desse tipo JHT1rnuwn· dfrncra, até mesmo ilusória: de tência mantém-se in<'><·11a, <'Vc-11tuallllct1I<' num hdo mundo de fantasia.
acordo com Freud, a arte trabalha cxclnsivamenlc com as ilusôcs que a Contudo, aqui 11,10 se vislnmbrn <k oncl<' da poderia ti1·ar o seu mate1ial,
libido insatisfeita pcnnile que lhe vendam. Freud é mecanicista neste ponlo pois a vo111acle de potf-ncia,já dcspc!jacla <'Ili si, u,10 t<'m <·01110 ser sublimada
e se encontra dist,111tc da no1)0 de P,1vlov, para quem são justamenle os nn seu <·011l níclo. Apesar disso, o que pt-r111a11<·n· essencial ll<'ssa vontad<' é
processos psíquicos rn,iis elevados que, sofrendo inJlu[·ncia duradoura das o ol~j<'tivo <·stahd<'cido <·m nmfon11icladc com o <pHT<'l' t·slar na frente.
1ransfonrn1(,'Ôcs p<-rcebidas 110 amhie111e, aluam sobre os processos al'clivos Ele ontpa o lugar ele 11111a lll<Ta p11lsi10 inata a parti,· de baixo, ou seja, da
e orgánicos, e de modo ,1lg111n siio manif'csla</H'-s; independentes ou for- libido sexual l'rc11dia11a. O indivíduo nmstrói ,1 si lll<·s1110 mediante um
mas de c·omJH·nsa(,to cm si ilusórias. Para Freud, 110 entanto, pennanece modelo 1101·t<-aclor 011 ainda apenas ll!('(lianlc tcatralidacl<' <' fiq:ão:
unicamente a lihido scx11al,junlo a seu conflilo com as pulsôes do ego e o
porão da <·onscié'ncia, do qual e111<Tg-em as ilusôes. !\ i11.~cg11ra11(a, vivida como um <·011slrn11gi111<·11to, é l'<'d11zida ;1 sua
medida mais l'l<·111c11tar <· esla <: transfonnada no seu <·xtn·mo oposto,
Pulsúo de jJOlh/.i'Út, fmlúio de Pxta.1e, inrnn,11.in1.te coletivo 110 seu contraste, que, como 11111 ol~jctivo ficlkio, <: posto como ponto
Porém, 11cm mesmo 1111m corpo concebido com lauta apatia o insli11lo nol'l<'ador dc todos os d<•s<:jos, fanlasias l' ,1spirn~/)('s.
sex11al pode agir o tempo lodo, e nem sozinho. Por isso, depois de ler
opiado por esse caminho, Freud foi qucslionado por alg-1111s de seus al1111os, Assi111, o hom<·111 -- outra coisa além do indivíduo não 0<'offc nessa
q11e se apn'ssaram em dar destaq11c a uma f'on:a impulsiva be1n difrff11le psicolog-ia individ11al - forma o seu carátec
ou cm banhar a libido em bronze. A pi-imcira tentai iva lói de Alfred Adkr,
o autor da chamada psicologia individual, e a scg1111da (mediante uma Para 11,'io errar o caminho para o alto, para se assegurar dele compkla-
p,ítina mítica) foi de C. G. Jung. Freud acusa a ambos de, dessa fonna, 111< ·u I<·, ele traça nos am pios campos caóticos de s11a alma linhas di1rtriz<'s
"terem eliminado de um só golpe o problema da sexualidade que pesa q11<· atuam constanl<·menle e tomam a Iúrma de traços de nmítcr.
sobre todos". De q11alq11er modo, no sistema de outras molas propulsoras,
ele pareceu climiwívcl, não sendo assim a coisa definitivamente única e Para Aclkr, tudo o <JII<' é pessoal é f'undanwnlalmcntc frito<' criado
lotai. De modo cmineutemcnle capitalisla e sohre urna base bissexual, Adkr cl<'sclc o início, mcdiant<' uma vontade proposital <'Ili grande medida in-
coloca a vontade de potc'ncia como ,1 pulsào hmdamcnlal do hornen1: o ser consc·icntc, mas de modo algum ingênua. Q,u<'tn govenia {-
humano quer, antes de tudo, dominar e derrolar. Vindo de baixo, ele f1111damc11tahncnte a cau..w .fina/is, <Jlll' subordina a c:oudi~·ão biokígica ao
quer chegar ao topo, permanecer em cima, passar da linha feminina para ol~j<'livo ck interesse capitalisla, que visa à afinna<;ão da personalidade, ao
a masculina, confirmar-se individualmente como vencedor. Vaidade, aumento do senso de perso11alicladc. Desta maneira, tendo Adkr expulso
a1nbiçào e "protesto masculino" sào os afetos nos quais essa pulsão a sexualidade da libido e instituído o podC'r individual, a sua definição de
fundamental se mauifrsta de forma mais visível. A vaidade ferida e a ambição pulsão percorreu cada vez mais int<'nsamcnte a tntjctó1ia capitalista ck
fracassada sào a fonte da maioria das neuroses. A própria sexualidade é Schopenham'r a Nietzsche e reflete t·ssa tn~jc:tó1ia na perspectiva icleológico-
apenas um meio para o objetivo final, que é a obtcnçào de poder: "Nessa J>Sicanalítica. O conceito freudiano da libido tinha pontos de contato com a
idéia nortcadora enquadram-se também a libido, a pulsào sexual e a vontade de vida da filosofia de Sd10penhaucr, que havia designado os órgãos
:-.l'x11;1is t 01110 "po111os lúc.1i:-. (b vo111;uk". J\ 1 101111/ill' if,, /)1)/1:1,, i11 dt' \dl<-1, nn , 011 ('Spo11tlia ao ,,_,/i/(J 11m 0 011 .\1'n:.1.,i()ni,,1110 dos anos 1890, ro111inlta k-
1

c01111·aposit,:,lO, coi11<·iclc literalmente, iis vezes também em co111('1ído, com a 111as d(' liberdade e nt>nhum de comprometimento retrógrado. D. H.
lÍ.ltima definição de Nietzsche para a pulsão fundamental. Dessa maneira, na l ,;1wreuce, por sua vez, e Jung con1 ele, canta o amor selvagem dos ternpos
psicanálise, Nietzsche saiu vitorioso sobre Schopenhauer, ou seja, a cotovelada 1•rimitivos, o qual o ser humano abandonou parn sua infelicidade. Na carne
imperialista sobre o corpo contabilizado entre prazer e desprazer. A luta da de busca a lua noturna, no sangue ek busC'a o sol liberto da consciência. E
concorrência, que praticamente nào deixa mais tempo para preocupações Klages bate na mesma tecla, só que de forma abstrnta. Além de evocar a
sexuais, privilegia a dcdicac_-;;ío em lugar da lascívia: o dia acalorado do homem Idade Média, <·omo o fazem os românticos mais antigos, ele retorna até o
de negócios sobrepõe-se .-1 noite ardente do homem da vida e sua libido. dilúvio,juslamc·11te onde reside a libido impessoal e pandcmoníaca de.Jung.
Todavia, isso também nào clmuu muito, pois cada vez menos pessoas Ensina Jung que atf <'Xislem egos e indivíduos, mas isso nào alcança as
eram atraídas pelo dia que se havia tornado inóspito. Cada vez mais forte profundezas da alma, a JHTso11alidack se-ria apenas uma máscara ou um
s<· lorno11 o cksc:jo do pequeno-lmrg11ê·s ele se recolher numa obscuridade papel clest·mpenhado sodalm<·111c·. O que alua na 1wrsonalidack e enquanto
irrcspons,ívd e mais 011 mc·nos sclvag-<·m. À medida q11e a livn:-init·ialiva personalicbdc seria antes uma pn·ss,io vital, pn><T<kntc d<' camadas muito
perdia espac;o pa1~1 o capitalismo monopolisla, diminuíam o interesse e as mais prohmdas, m11i10 mais antigas, m,ígico-roktivas, como, por ex<'rnplo,
cha11n·s para se· 1rilhar o chamado cami11ho p,ll"a as ali ums. Mais atraente a da r.H.:a. No S<'II pníprio seio, a pessoa individual s<'ria ck natun·za coletiva
tor11ou-se o u1111inho pan1 as d1amadas prohmclczas, onde os olhos resva- e haveria d<· s<· ent'ami11har nessa clitT(,-;io:
lam ao inv{s de se· lixarem mim ol~jetivo. Em <·011sc{1iii'-ncia, C. G. Jung,
esse psinrnalisla que espumava fast·ismo, substituiu a pulsão de po1ê·11cia Como o i11divíd110 1üo <: ap1·11as 11111 S('I" i11tlivicl11al, mas sua existência
pela pulsão cio i'-xtase. Assilll como a s1,,xualid1ule { apl·nas uma parte dt·ssa pressup<'><' 11111 n•lacion;1111c•n10 <·olctivo, assim lamlx:111 o pron·sso de
libido dionisianimc·nte ge11frica, ig11alnw11tt· se dava com a vontade ck po- i1ulividt1a(,io 11,io kva ao isolamento, mas a um relacionamento coletivo
1ê·1Kia, sendo esta 1íl1i111a at{, trnnsJúnnada num <·ompkto t':·xtasc· elo massa- wais i111t·11so e mais abrangente (C. G.Jung. Tipospsicológi,cos. Petrópolis:
cre·, m1111 entoqwcimento ol~jctivo que de modo algum<: individual. Po1'- Vozt·s, 19!) 1, p. ,127. Trad. de Lúcia Mathilde Endlich Orth).
la11to, para Jung, a libido torna-se 111n;1 1111iclaclc primitiva affaica,
iuclikffnciacla ck Iodas as p11lsôes ou pura<· simpks111enle erm: ela abran- J\ colll(H't ic:,10 t· a livre t'OIIC<HT<'IICÍa, que para Adler ainda instigavam
ge desde o c·omt·1· at{- a Santa ( :<'ia, desde o rni/us a1{ a unio mystica, desde o sohn·p1!jamc11to t· a psi('(>log·ia individual cada vez mais aguçada, afundam
a boca espumant<' do xarn,"i, 011 mc·smo do grande gncrrcit-o, até o transe aqui na rn111,w1idarlF' do /mrr() e na /1,1irn.1.1Í'11Ü'.1e, 011 st:ja,_j11stamcnte na regressão
de Fra A11gdico. Tamb{m aqui Nietzsche { vi1orioso sobre Schopenhaul'I", an-ako-n,ktiva. l•'.ss<' incons<·it·11lt· imp<'ssoal, at{, i111mia110, desponta por
mas sua vitória {, a aJinnat;,to de 11111 Dioniso de rnescali11a frente à negac;;ío dctnís ela cxpnii'-nria i11clivicl11al <·01n·spond<·nlc, quando 11.10 por detrás
da voutadc d<· vida. Ern conseqüência disso, o aspecto i11conscicnte clC'ssa dos rcs1os an-ai1·os da m<·mória ela hlllnanidack. Assim, as lembranças
libido mislilicada 11,10 é combatido, nào se· pmcura diluí-lo na consciência primordi,1is do l<'111po de nossos ,llH'<•strais animais, porlanlo muito a11tc1i-
atual, como faz Freud. Para.Jung, ao coutdrio, a n<·urosc, especialrnent<' a ores ao dilúvio, p<·rm,uwn·,·iam vivas. Para isso,Jung re1oma o conc·cito da
dos sc·1·cs humanos lllodcrnos, demasiadamc·nte l'ivilizados e conscientes, engm111.r11.1' que Se111011ç·11trocl11zi11 na biologia, o conc·c-ito ck uma mc·mó-
procede justamente· do fato de eles cstan-m ckmasiaclarnente afastados ria da 111até-1ia orgânica c·omo um. todo<' dos vest ígio.s dessa n.i.cmória, que
daquilo que brota inconscientemente, do mundo do "pensamento sensiti- s,10 moldados 11a libic o como um cshot,:o a11imal ptirnonlial e mantêm o
vo pri1nordial". Neste ponto,Jung entra em conta1o não só corno Dioniso int·onst·ic111c- propriam 1tc dito pH·so ,1s cxpniê·uc·ias elo p<'ríodo arcaico.
fascistizado, mas em parte também c·om a filosofia vitalista de Bergson. D<"sla forma, o processo de ducida1;;10 da psicossíntc·s<· não faz vir à tona
Mesmo que numa dissidência ck rnrá1n liberal, lkrgsonjá havia jogado a nem clcn>Inpõe e1n partes explícitas, mas "cai cm si" e retorna, com o
intuição contra a razão, a inquietaçào criativa C'ontra a ordem c·crrada e a símbolo fornecido pela neurose ou ele outra maneira, até a noite de onde
geometria rígida. Mas, muito mais que com o elá vital de Bergson, o fascis- { origi11á1ia: "Exatamente da mesma maneira que a awilise (o procedimento
ta.Jung tem afinidade com os desvios romântico-reacionários que- o vi talisrno de redwiã<> aos casos) desn1embra o símbolo cm seus n>mponcntes, o
de Bergson abordou. É o caso dos poetas sentimentais do p<'-nis, t'omo D. procedimento de síntese condensa o símbolo numa expressào mais gené1ica
H. Lawrence, dos filósofos convertidos ao culto de Tarzã C'Olllo Ludwig e mais in Idigívcl". O inconsciente freudiano - apesar dos elementos arcaicos
Klages. O elã vital de Bergson ainda estava direcionado para a frente, da história tribal que ele acreditava ver e que, na sua escola, foram
"csc;l\',1do:-;" :1tc as k111hr;111ç1.~ prilllonli,1is dos pri11wiros .1111111.11.., 1!·11 cs- c;111sa1b do ass1;dio dos de11w11los pn'.-lm1:1n·s, ;ibrc ,1 front<'ira
trcs - era em grande parlt' individual, 011 s<:ja, prceudlido por 1 <·< alqucs ct<-r11a111C·11le disputada da consc·iência, surge o antigo, o inconscic11-
adquiridos individualmente e provindos do passado recente de um indivíd110 tc, gTaças ao processo de transformação e identificação mágicas do eu,
da modernidade. O inconsciente junguiano, em contrapartida, é graças à vivência mais antiga do ser onipresente e eterno.
completamente gen{>Jico, piimitivo c coletivo. Ele se apresenta como a
"mina de r>OO mil anos embaixo de alguns milênios de civilização", e então Jung impeliu a libido cada vez com mais fon:a rumo a essas con<·xôcs
embaixo também de alguns anos da vida individual. Nesse solo não só não .11caicas, ao rnesrno tempo que coucchia esses primónlios de modo tão
há nada de novo como sua matéiia decididamente {> feita de conteúdos nebuloso e gené1ico que toda irmlio de outrora, i11clifcre11tcmcnte do que
primitivos. Tudo o que é novo {- "º
if1.,o sem valo1·, até hostil aos valores. De ela diz, não enconlra um luganklinido. Aqui rcahrn·nle trata-se da noite cm
acordo com.Jung e Klagcs, nova {- apenas a atual destn1ic;·,'io do instinto, a que todos os gatos s,10 pardos, a noite da libido ampliada im<·11suravdmcnte,
desagregação do fundamc11to fantasioso primitivo por meio do intelecto. "ºletivizada como v<·nln· da natureza, que agora também passou a se chamar
Também o nrnllito neurótico é um sohimcnlo causado pela inl<·1vc1H;;ão (/!ma 11nhwn1tl. Eros, Plal,10, leosolia hindu, imagens alquímicas <· astrológi-
do intelecto nesse <·ont<"údo feito ele p11lsôcs e fantasias. 011, como disse cas, Plotino 011 o que C. (;.Jung· imagina c·om tudo isso revoluteiam niotica-
Lawrence: os seres humanos perderam a lua que havia <'lll sua carne, o sol mente, todos unidos pda libido "pr(-lunar":
<JllC havia cm seu sang"II<'. Por isso, o m'11n'>tico m'io deveria ser afastado
ddinitivamcnte do inconsciente que de ainda 1cm, pois seria 11<·c·css:íiio, No que diz l'<'speito ao aspecto psicológico dcs~c conn·ito, trago ú
antes, n·concluzi-lo ao inconscicnle coktivo, na qualidade ck "pod<'rcs i rnc·1111íria, neste ponto, o significado <·os111ogô11ico do Eros 1·111 Pbtão e·
prinll'vos da vida". A psicossính'sc- fug·i11do do prcs<'nh', odiando o fu111ro, cm I ksíodo, bern como a figura ádka de Fanés, o "l11mi11oso", o
h11sca11do os tempos primordiais -- se torna assim o m<·smo que 1Plip;iüo 110 primeiro a existir, o pai de F.ros 1---1- () ~ignilicado órfico de .F,més
sentido etimológico da palavra, 011 seja, re-lig-io, "rdiga<;ào", sendo que c·n11·<· iguala-se ,10 do Kfüna hi11d11, o deus do ,Ull<ff, que igualmente é 11111
a boca cspurnante do xa1mi e Jll<·strc Eckart 11ão se tllostrn qual<1m·1· dif<·- p1·i11..ípio (·os11wgfü1ico ( Wandhtngtn und Symboll' der /,ibido
1T11~;a, 1111111a venlad<'irn noite <'Ili que tudo é tokrado: o xamã até- é me- 1'/ 'mnsfám11t('Ô1'1 t sím/1()/0.1 da libido], 1925, p. 127).
lhoL E desta fon11a a s11p<·1·st i(ão mais hizal"J'a Icm mais valor que o csda-
n·c·ime11to, pois <~ evidenh' que o i11c·o11scil'nt e cokl ivo ele Jung está mais Pulando por cima de .ihismos, acrescenta-se ainda, como se fosse a
impregnado da lo11c11ra da bruxaria <)IH' da razão pura. lll<'Sllla coisa .... lalvez por so;u· ele modo tão cós1nico -, que "para o
ncoplatônico Ploti110, a alma do 1111111do é a energia do intelecto". Dessa
f,:ros I' o., an[ll.~tif;os forma, a lihidoj1111g11ia11a se ahn: corno mn saco cheio de misté1ios atávicos
E11tre outras coisas, o <JII(' resulta é que o c11 consciente é tomado do indigeridos, 011 melhor, de ahracadahras, e esse saco é carregado, nas pala-
c·otpo. A libido{: ai( <·xp11lsa totalmente par:1 as trevas, para o inconscienl<' vras d<' J1111g, "at t,ís d<' si como um raho invisível de sámio: cuidadosamente
como alvo. Em Freud, o doente era kmhrado do i11nmsciente apenas para cortado fora, <'lc se torna a scrpC'nl<' de salvação do mistério" ( Über die
cp1e se libertasse dele. Em C. G . .Jun~{, no <·nla11to, de é lembrado do in- Jlnl1l'lyfJ1'/I d!'.1 lwllrf<tir,l'fl /Jn11u.1.1l.1tt·ns I Sobre os arquétipos.da 1·on..,âênci11, rn1Rli71a],
consciente para qu<· nwrgullw complet.1m<·nll· nele, mais precisamente <'IH 19,15, p. 227). Pois quanto ao se 1 l<·or, o dilúvio é o que está mais próximo
camadas cada vez mais profundas, camadas cada vez mais remotas do pas- do <Tos, que deu inírio a 111do, ·, para.Já ele almeja reton1ar, ao longo de
sado. A libido toma-se atTaica. Sangue e solo, homem de Neandertal e ]i nhas p1·é-lúgi<·as, pm,1 long<' da n n.•,dtncia. A localização anatômica dessa
ptTÍOdo terci,í.rio se lalH:am, ao nwsmo tempo, ao sc·u encontro. O discípulo libido é o antiqüíssimo sisl<'ma 11nvoso simpático, não o sistema cerebrospinal.
de Jung e Klagcs, Gottfried Benn, conferiu a isso uma expressão tão S<'ll árga-no-n continua sendo a mitologia,já meio insufkiente para si mesma,
psicossintética quanto lírica: _j;Í que foi demasiadamente esdan·cida. De acordo com.Jung, o vínculo com
a m:k, por exemplo, não{: o <JIIC' se tem com a mãe individual, mas com
Carregamos em nossa alma os povos mais antigos e, quando a ratio uma imagem gené1ica plimonlial da mãe. Trata-se do vínculo com Gaia ou
tardia se afrouxa, eles se elevam, em sonho e transe, com seus ritos, Cibele, c·om aquela entidade I Wl'srnheitJ arcaica (entidade prethita I Ge-
seu espírito pré-lógico, e proporcionam um momento de participação we.,enhl'tl]), que está na origem, <'lll igual medida, de Astarte, Ísis, Ma1ia.
mística. Assim qm' a superestrutura lógica se solta, assim q11<- a c·asca, Portanto, a libido é aí preenchida, cm termos gerais, de modo puramente
"p1 otot ipi('o": pon11cio d!'< ;ida 111;1c individ11al 11 a11spa1rc<"lll 1· s;w111\'11011osos 1,ic ,111111 Li" ( co1110 ela modcst,1111ent<" se ck110111i11a) co11111111 ;1 ;1111hos: o lilw1 .d
os "anp1élípos da u1ãe-lerra". O archtd:ypu~ por cxcdêucia, a 11j)/t'.,1·nlation •1111'1' t11r11ar co11seie11te o que fói recalcado, o reaciornírio quer n·n111<Tta1· ,,
collecti:ue de Lévy-Bruhl é a palavra-chave com que a libido junguiana evoca o •111(· c·st,Í eonscicntc corno que foi recalcado, até mesmo cmpmT,i-lo eada V<"/.
seu inconsciente coletivo. Com isto, o inconsciente, e apenas ele, é povoado 111ais profundamente para o inconsciente. Em Freud, o inconsciente é
continuamente por arquétipos: ·se1pente, cozinha, fogo, panela no fogo, , 0111batido e, na medida em que se trata de algo adquirido individualmente,
profundidade da água, mãe-terra e velho sábio são alguns exemplos. (· mantido no ambiente do indivíduo. Em Jung, o inconsciente é saudado e
Justamenle no horn<·m de h~j<', rcsuJtanle de uma mistura mítica, esse aspecto :issentado completamente no arcaico-coletivo, e além disso considerado com
prototípico seiia mais fácil de se inflamar: quem fala por meio ele arquélipos tolerância irrestrita em relação a tudo o c1ue nele flutua em tennos de névoa,
se vale de mil línguas e isto, de acordo com .Jung, unican1ente porque a 111unen ou tabu. Por outro lado, no ponto príncip;:il o mestre Freud está no
niatura intdectual se c·om1mirn nwcliante o imagiuário elas pulsões do animal rnesn10 nível dos seus discípulos pervertidos: um e outros concebem o
humano pâmilivo, mcdianle a enorme ressonância do sangue e do solo. O inconsciente meramente eomo algo passado na evolll<:ão histórica, co1no
inconscicu1t· coletivo, porém, não é apenas o lugar desse tipo de saúde: de algo sub1nc·1-so uo pot~io e existente apenas ali. l fm e 011lros conhecem,
acordo com .Jung, ek conlém igualmcnlc Iodas as fonnas básicas d;:i fantasia ainda que hem difen·nc-iados quanto ;'i natureza e ,i c-xtC'nsão da regressão,
ln11na1u - o cpw qn<T cp1c lenha sido sonhado c·orno mundo melhor ou mais apenas um ineonsc-ientc voltado pa1~1 trás ou situado abaixo da consciência
belo {, a alma da raça, é a era dos arquétipos. já existenlC'. Eles não conh<'ecm rnna pré--eonseiênda do novo. E no que diz
Dessa maneira alorcloaute, buscou-se deixar a daiidadc nnno à ohsn1- resp<·ito ,i doutrina das pnlsôes propriamente ditas, as quais aqui temos em
1idadc. O cmpnTndimcnto eapitalista só é questionável se a consciência ele ' quest,io, o qu<' une a escola psicanalítiea como um lodo é- que da enfatiza
suas vílimas for atordoada durante seu tempo livre. De modo conseqüc-ntc-, somente pulsôcs picant<·s, dista1Kia11do-as, alé-111 disso, ck modo mítico-
Jung generalizou e arcaizou <'IIl toda linha o i11c·onsc·ic-nle freudiano, qur conn-ptual do coq>0 vivo. Desse modo, surge 11m ídolo diamado libido ou
mio ckvc1ia ser explicado de fonna raeionalista. Tampouco ocorre aí uma 11ontarf,, rw fmlh1ria ou fnolo-nioni.m e sohrC'tuclo oco1n· uma ahsolutização
sublim,H;,io (que eomo tal, scg1111do Freud, ao menos leva à cultura) ..Jmig, o dC'ssc- ídolo. Assim como o absolutizado é dista11c'iado do eorpo vivo, que de
discípulo de Frcucl, clísta1H·iou-sc da "psicologiajudairn" também neste pon- fato (Jll<T pn·s<·twll' apenas a si mesmo <· nada mais, lauto c·m Fn·ud como
to, quando a co1~junt11ra foi propícia. No lugar da s11hlimc1ção vigora a "noite em Adkr e mc·smo <"Ili Jung de jamais <: discutido c·omo uma 11wiâ11el da~
primordial sagrada e escura", preenchida com hrillto dc- sangue e uma orgia condiçíie.1· soâoffonômim.1. Porr-111, se de fato se )>H'tende distinguir pulsões
de imagens. E essa potc'.'·nc·ia já est,í cm ordem, <' a tíuica coisa que vive cm fundan1<·11tais 110 ho111c111, das variam em hnu,:ão de nmdic;ôes materiais tais
onkm. lk fato,.Jung lopo11 aí, corno ainda vcn·mos, eom um não irrelevante como dassc <' C::pont, <' co11seqii<'llt<·nwnlt' tamh{-m co11fi:>1nw a i11tenção e a
co1ijunto de fantasias: os arquftipos. Todavia, por ter fonnado o seu concTi- direc;ão da pulsão. E o 111aís importante é que todas as pulsôes fundamentais
lo a partir do Romautismo, ele nunca o livrou do diletantismo romântieo enfatizadas psicanalitira111e11te a rigor não são fundanwntais: são muito
não csln1ttm1do. Para a chamada psicossíntesc, a tínica coisa aproveitável { parciais. Elas nüo SC' destacam dC' modo tão evidenle eomo, p<ff exemplo, a
o prototípico cm seu co1tjunlo, e a baboseira 1mígirn (comandada pelo capi- fome, que jJsir·analiticrunn1lt1 Jói dei:x:ada de fora em toda fHu-lP. Elas não são
tal monopolisla) lhe é ú1il. A relação dessa libido pfü1ica com o fascismo instfüJCia IÍltima do mesmo nívd que a mais simples pulsão de se manter
alemão{, evidente: aqui a consciência dos son;'.'unhulosjunguianos continua vivo. Esla é a pulsão ck autoprcsc1va~·,io. Só da é tão fündamental-a despeito
atuante. Também para o fascismo o ódio à intdigc'.'-ncia é, como diz Jung de toda 111uda11c:a que possa ocorrer- a ponto de colocar cm movimento as
literalmente, "o único meio para cornp<·nséll· os danos da sociedade atual". outras pulsôcs.
Também o fas<'ismo necessita do culto aos mortos de uma era primordial
retocada para obstruir o futmn, fundamentai· a barbá1ie, bloquear a revolu- 13. A limitação histórica de todas as pulsões básicas
ção. Tudo isso kva a pulsão fundamental a se tornar uma pulsão <·m direção Diferentes estados do auto-interesse
à base cm que Dioniso só quer ser d1amado de Moloque. l l111a base de Afetos plenificados e afetos expectantes
regressão para a qual tudo o que é humano se torna novamente c·stranho {,
louvada corno medicina e moral. A'isim, como foi dito, Freud, que pelo A dem.a:nda urgente
menos ainda pretendia esclarecer em termos liberais, e o Jt111g- fascita- Muito pouco, infinitamente pouco foi dito até agora a respeito da
rnistificador representam em grande medida pólos opostos 11a "psicologia fome, embora esse aguilhão tenha mn aspecto bastante 01iginal ou arcaico,
p11lsao h111d.1m<·ntal. Soma-se a das urna limita(_',to nacionalista, 1alvc/ 11:10
l'ºi~ 11111 .~(T l111111;1110 S<'lll ;diuH'11lo p<·n·n·, ('ll<!lla1110 é poss1\·d ,wc1 M'III
110 (jtlc sc r<'fcrc à libido, n1as ccrta1nente no que tange à censura n10ral do
dcsl'n11ar do amor pelo menos por algum tempo. Tanto mais <·· po~sívcl
ego e conseqüentemente o recalque. Neste ponto, há uma dife1·enca
:iver se1~1 a satisfação da pulsão de potência, tanto mais sem o regresso ao
mconsc1ente de ancestrais de 500 mil anos atrás. Mas o dcs<"mpregado que
caraclerística entre a classe média de diversos países, especialmente ,la
hança e da Alemanha. Se cm Pa1is um solteiro não traz pelo menos uma
está sucumbindo, que há dias nada comeu, realmente foi levado à situação
\'('Z por se1nana urna moça ao quarto cio hotd ou não passa uma noilc
de necessidade mais antiga da nossa existência e a torna visível. A
lc>_ra, o gerente fica preoc11paclo por causa da nmta, pois o inquilino pa1Tce
corniscra<:ão por quem est,í rnotn'ndo ck fome, de qualquer maneira, é a
11ao_ ser sexualmente normal. Logo, julga que ele seria igualmente capaz
única difundida, at{, mesmo a única possível cm termos mais amplos. A
dc hcar devendo o aluguel. O burguês da F1·an~·a tem, assim, uma resc,va
mo~·a e ai é mesmo o homem que anseia por amor não provocam compaixão.
de dissimula<:ão hem nwnor <pH· a cio alemão ou at{- a cio inglês m{-clio.
Em contrnposi<:ão, a queixa da fon~e {- ele fato a mais forte, a 1ínica que
<_:o_n~eqúcnt<~mente, de acumula m<·nos mofo sexual, menos complexos
pode ser apresentada sem rodeios. A dcsgraça cio faminto {- dado crúlito.
li~n~lmosos lntlos do recalque. E entre o proletariado 1wm o lingu,~jar
Ao n·vés, at{ mesmo <JlH'lll est;Í passando fi·io, ai{ mesmo o doente, mais
d1ssnnulaclo <' muito menos a libido tem um <'spa<:o t."io amplo como foi
ainda o doente de amor dão a impressão ele viverem no luxo. At{ a dona-,
:1s_sumiclo r1:b ~rigim, pela psica11,ílis<' vicncns<·. A fome (' a p1·<·on1pa<:ão rcs-
cle-n1sa mais insc11sívd evcntualmn1te esquece o rancor de sua avareza:
1rmgcm a h))J(lo 11a dass<· inkrior: ali h,í soli·im<·nlos lllC'llOS nobres,<· des
quando o m<·rnligo loma a sopa recebida por caridade.Já aqui, nessa forma;
tt·m uma 1·ausa mais consistc11tc, que não nccc·ssita de lanlos artifícios para
<~e comiserac:,10 habitual, ficam evidentes a priva<:,to e o cksc:jar que está 1
~<-r n-<·011h<"cida. Os conflitos 11<·un>licos do proklariaclo i11fdiz111entc não
ligado a da. O <·slfünago {- ;1 primeira lilmpada na qual clcvc ser clenamaclo:
«'onsistcm d<' algo Ião bem situado como a "fixai;,10 da lihido <'lll
o <Íko. Seu anseio <' preciso, sua puls;io liio incvit,ívd que nem mesmo'
detcnnin,Hlas zonas erógenas" de Freud, ou a "m,íscara mal ajustada do
pode se1· n'c·akada por muito tempo.
caráter" de AcllcT, ou a "regressão incompleta aos primórdios" ·d<' Jung. A
;111gtístia di:1nt<· da perda do emprego dificilmente ser;í um complexo de
J\ fml,âo hríúu1 mai.\ 1·01!J'i1i-oel: 11 1utlofnPsN'"/J1.tçâo
castra<)io. E wrdade que a psicanálise não pode escapar de ;:\s wzes se dar
Todavia, por mais alto que a fome grilt', raram<·nlc ela é tratada do·
«'Onta da fome<' da sede, bem corno do interesse da autopreserva<;ão. Porém,
ponlo de vista m{dico. Essa omiss;io mostra que a psicrnálise trata e sn11pre ·
sing11lannc111c, Frcucl não associa o impulso de autopreservação ao
tratou ap<'nas de sofredores privilegiados. A prcon1pação de enconlrnr
estômago e ao sistema nnporal como urn todo, no qual ele está ancorado,
alim<'nlo <'rn para Freud e seus dientes a mais sem hmdamento. O rn{-din>
mas ao <'<>ttjuuto das pulsôcs tardias do ego - o mesmo que está encarregado
psinrnalista <' sohretmlo seu paciente provêm de um estrato médio que ai<'
ela C<'IISLll'a moral. D<'SS<' modo, ele se parece cmn aquele que se associou
nTentcmente não precisou se p1·eocup,u- muito c-0111 o estômago. Entretanto,
post<'ríonnente 1· sohrc o qual não se fala no consultório, como urn ade
quando a Viena de Freud se· tornou menos dt'spreocupada, abriu-se um
an:r.\.mirr I alo aoi.urírio] cm 1·clação ao propulsor de tudo, o eros. Porém,
nmsul1ório psirnnalítico parn p<·ssoas que haviam tentado suicídio e nek
não S<' vislumbn, uma ('OIHTJ>ção erótica da históri,~ que possa entrar no
houv<' oportunidade d<' se· tomar conhecimento ele pulsões situadas abaixo
luga_r ~la co111·cp<:i1.o <~<·onômint, nenhuma explica(ão do mundo a partir
da libido, pois mais de nov<'nta por c·c-nto <l<' todos os suicídios ocorrem
ela hb1do e suas cksf1gura<:ôcs cm lugar de uma explica~·ão a partir da
por ncccssicladc econô111ica <' ap<'nas o n·stant<· por decepção a1norosa
cccrnomia <' suas supercslruluras. Por· isso, aqui tarnb{-m vamos restringir a
(aliás, n;'Ío n·rnlcacla). Conlmlo, mesmo quando a burguesia de Viena
expressão n:al ela <jlll'Slão: o i-ntnrr1se econômi.co igualmente não sendo o
perdeu seus privilégios, uma ins<Ti(;ão continuava pendurada na parede
único, mas o hmclamental. A autoprcservação que ude se manifesta é a
do consnll6rio psicanalítico: Qllt-:STÚES ECON<'>MICAS E SOCIAIS NÃO PODERÃO SER
mais sólida dentre as vá1ias pulsôes fündamentais e, não obstante todas as
TRATADAS NESTE LUGAR. É compreensível <pie, dessa rnaneira, pouco S<'
modifica<:ôes temporais e de classe a que ela também cslá st~jeita, com
soubesse da viela interior de quem havia tentado suicídio. E nem se poderia
certeza <'amais universal. Por isso, com toda a rese1va <· manifesta aversão
curar o complexo mais fr<'qücnle - aquele· que Franziska Rcventlow
contra abso]utizações, pode-se afirmar· o seguinte: a autoprcse1vação - tendo
denorniuou, cm termos inteiramente não n1éclicos, de cornj,lP.rn do dinheiro.
a fome como expressão mais cvidcntJ(- é a única pulsão fundamental que,
O aguilhão da fonw, portanto, é cuspido da psicanálise da HH's111a maneira
dentre as várias, seguramente mcry'<"e este nome. Ela {- a instância última e
auç o lin!!ngia~~ dissimulado cios salôcs cosoe, a libido. Eslas são as
ti1a1s concretà cio seu portac16f Ate o· 1ctea11sfà 'Sci1Jl1eÍ" e· obnga<lo a
consickrnçõcs de ordem social que limitam a investigação psic;111alítica da /
11·n,11lwcn q11c o 1111111<10 <; movido "pda lúmc •· pdo a11101 ", 1oloi;111do, 1Li <Tiat111·,1. Desse modo, o chamado ho1nem 1novido pela p11k10 original,
;uln11ais, a lúmc cm primeiro lugar e o amor ern segundo. Essa ohsc1vação, ... ituado ahaixo do homem histórico e do ho1ne1n rnoderno, não pode ser
mesmo sem conseqüências palpáveis, ainda era possível naquele tempo <la 1·11contrn<lo e nem existe cientificamente. O que assim se chama é (em
burguesia cm ascensão. Na burguesia tardia, à qual pertence também a Fn·ud) o homem burguês movido por pulsões, desfigurado e sepultado
psicanálise de Freud, a fome foi suprimida ou se tornou um subtipo da "ºb a linguagem dissimulada da era vitmiana, ou mesmo (em Jung) uma
libido, talvez a sua "fase oral". A autopr·escrvação não aparece em lugar lantasmagoria fascista extraída de frascos mitológicos. Corno a investigação
algum corno nma pulsão original. Suum e.1.111 con.1ernare, "permanecer cm da pulsão fundamental reflete mais que qualquer outra a pulsão própria
seu s<-r": este é e continuará sendo, conforme a definic;ão incontestável de ' desta ou daquela época, ela chegou aos resultados mais va1iados. O "homem
Espinosa, o afJfJetitusdc todos os seres. Mesmo <.pt<' o espírito de con<·offência natural" de Rousseau era an-ádico e racional; o "homem natural" de
da economia capitalista o tenha individualizado além da medida, ele Nietzsche, ao contr.il'io, era dionisíaco e avesso à razão. Isto significa que o
perpassa incessantemenl<' todas as sodcdacks, não imporia a quantas p1imeiro realizou os des<:jos do I111minismo; o segundo, os dcst:jos do
modiftc.t<;õcs esteve St!jeito. imp<"rialismo (<', ao mesmo tempo, o "ansc·io anticapilalista" latente cutn·
os burgueses). lk modo <·mn·spo11<kntc, também se pode clcll'nnina1· com
J\ 111odij'iwç-/io histórim rias fml.1·r11<1, indn1Í11e do ifl.ltinto de p,-e.1er11açáo prccis,10 o lugar hist<Íriro da "criatura", como F1rud a distingue: esse homern
Se ncnhmna pulsão p<-rm,11wn· irnut.'ívd, o mesn10 se dá co,n aquilo movido pela libido vive -juntamente com as realizações sonhadas dos S<'llS
<1ue a sustenta. Nada está estabelecido de uma vez por todas desde o inkio, desejos - no mrnulo burguf-s de algumas décadas antes<· algumas décadas
e justamenlc o nosso si-mesmo n,'io nos é predeterminado. Havendo 11ma após l 900 ( csle sendo o ano-chave da "lih<-r-tac;;10 experimentada pda nll'll<'
mudança his1ó1fra das paixôcs, surgindo cm n·la<;iío ao cspírito", libcrta~Jío <k cu-áter s<·<Tssio11ista). O tipo da
novados, modifíca-s<' também a fogiu·irn s1tl~jctiva na qual todas elas esüío, percq>1;ão sexual, logo, da excitabilidade da libido, também é variávd ern
cozinhando. Não h,í mais uma puls:'.io "01·iginal", tampouco há um "ser: cada socicdade e <·m ntda camada dessa sociedade. Mesmo para a fome
huma110 p.-imonlial" ou até 11111 "vdho Adão". A pretensa "nat111Tza; não h,í uma csl rui um "natural" da pulsão, pois o tipo da pt·rcep<;,10 assodada
hu111;111a", nos termos <k uma investiga<;,"io rígida da pulsão fundamental.1, a ela, logo o 1111111do dos estímulos, é hist01icamentc va1iávd. Nem mesmo
foi ren-iada e derrubada <"<•m vezes 110 decorrer d:1 história. Pode ser q 11c,: ela <·outinua sendo, 110 homem, llllla tendência básica de cunho biológico,
<·nln· as plantas dC' cultivo e os a11imais domésticos, tC'nha sido pn"sc1vado que s<· rcsll·ingc ao instinto lixo da busca do alimento e a seus caminhos
rnnjeito originário, por <'ansa do elnncnto externo t· acrescido do cultivo; estahdet·idos. Ao contrário, como un1a necessidade surgida e monitorada
e da <Ti,1<;ão. Enlrc os homens, 11:'ío. Entre as plantas de cultivo e os animais' socialmente, da t·sl,Í cm intcra<,·ão recíproca com as demais necessidades
domésticos n>m n..-teza ainda h;í a singda rosa-canina, que foi enobrecida: sociais hislo1·icamente vari,íveis, das quais ela é a base e juntamente com as
até d1egar ,is rosas d<' luxo, <· a pomba selvagem, da qual provê1n todas as 1
quais da se 11·,111sJónna, da mesma 1naneira que causa transformações -
nossas pombas domésticas e a qual das eventualmente voltariam a ser. O; quanto maior lixo mím<To de camadas e mais exigente for o seu apetite.
homem histórico, cm cont raparl ida, mesmo voilando a llill estado selvagem, : Em suma: todas as clefiniçõ<·s ela pulsão fundamental só vingam no solo do
jamais torna1·;í a s<T o homem pri1nitivo que <Tiou as diferenlcs formas de. seu tempo <· <·slão n·st1·itas a de. Por esse n1otivo, não podern ser
domcsticac;ão ao longo da história. Ele se tornará um bárbaro decadente ' absolutizadas, e menos ainda é possível afastá-las do respectivo ser econô-
<·om uma psicopatia pulsional bem c:onhccida, classificada historicamente.· mico elos hom<"ns. A libido (que no caso dos animais está r·cstiita ao período
Ek se tornará um Barba-Roxa ou Nero on Calígula ou Hitler, mas não um do rio) e a pulsão de pot<'.'·1Kia (que não se inicia antes da divisão de classes)
homem de Neandertal saído do "saudável dihívio". Também muitos dos: aparecem, cm contrapartida, t·omo scn111dá1ias, trazendo aliás todas ela~ a
chamados p1imitivos de h~je, como s<· sabe, <k forma alguma são tais: cks ' fome, o apetite dentro de si. A sua necessidade de sup1ir a demanda é o
não são a niatura humana mais antiga. Representam, antes, os produtos óko na lâmpada da história. Contudo, coITespondendo ao modo variável
da de<·adêuc-ia ck grandes culturas. Não são a velha physis, mas há muito , do atendimento da demanda, mesmo essa necessidade primá1ia tem
já se tornaram a nova physi.1 em virtude de lerem herdado <1nalidacks aspectos diferenciados. A última instância na estn1tura das pulsões ao longo
historicamente adquiridas. O "pagão" batizado pelo mission;'írio, o "velho da história é representada pdo intcn:sse econômico, mas mesmo ele e
Adão" despido pelo cristão são novamente eles mesmos, os "( :rislos" de exatamente ele tem, corno se sabe, suas formas históricas variáveis, suas
uma tradição e uma religião ante1ior, isto é, de urna anterior rC'yjravolta modificações no modo de prodrn,'.ão e de troca. Sim, indusiw o próprio
si--11H·s1110 dos h01ll('t1s <(lll' <(lHT se co11s(·tvar, q11c s<· rql1od111 11u-dia11tc o , 1110(,'0<"S <)'1<', desde n·do, fazl'm parte das "disposi<;Ó<'s" org.'i11ic1s. Assi111,
consumo d<' alimentos, que é co-produzi<lo pelo n·sp<'cl ivo 111oddo .dg1111s holll<'IIS jovens e tipos eróticos expcrirne11tarn dm-antc toda a vida
econômico e pela respectiva relação com a natureza, é o ent<" hist01-icamcnte ,1111a forma de enan1oran1ento intransitiva, uma emoção anteiior aos seus
mais va1iável: um ente que, apesar da sua pulsão fundam<"ntal mais confiável , ,11jl'los, que só mais tarde vão se incluir nda. E nem eles foram predispostos
- que permanece relativamente a mais genérica possív<"l, a fom<" -, ,o <'namoramento de modo narcisista, ou seja, a partir do próp1io corpo.
constantenlC'nt<" tem ele p<TCOIT<T a história para pod<"r existir e vir a ser , hsim há- não como emoção, mas c-c-rtarneute como estado de ânimo - a
mediante o trabalho. A história é, romo possível conquista do homem, a lcwza de ânimo determinada pelo caráter, e inclusive a esp<"rança, uma
metamodosc do homem justmnente cm vista do nosso cerne, do si-1nesn10 ,~-..pcrança que já surge antes mesmo ele saber exatamente o que espera.
que ainda est,'í em fom1ação. St'm se restringir ao s14fish .1ystrm [ sistema l l<'ssa fonna, fala-se 011 falava-se ck um "temptT,mwnto" sangüíneo (ou do
egoísta [, a <'Sta fas<' capitalista elo egoísmo, mas existente antes dela e tanto oposto, 1un "temperamento" mdan<·ólico), que deva toda a "disposição"
mais depois dela, a autopresnva(,lO, a co11se1vaç{ío do horncm de modo , ,rg-ânica à condição ele estado de ânimo. EstC' tempC'ramento pode ir muito
algum busca a co11sc1va(,lO do que o si-mesmo j.-1 obteve e do que j;í lhe ' .1 lé-m do mero estado de ânimo e alntn\·,u- as t'lllO(,'Ôes int ,·ansit ivas, levando

sucecl<'u. Assim, autopn·s<·1va<.:ão significa, l'lll iíltima instância, o apetite: nmsigo <·ontetídos imaginativos "fundantes" sem consisti'·1u·ia ou mesmo
ele propoffionar condi<:ôes mais adequadas (' apropriadas ao nosso si-,: 11cnhum contl'lÍdo. Todavia, quanto mais st· anunulam estes ('ontctídos
nu·smo a d('sdohrn1·-se, este si-mesmo qu<' conw<:a a se construir por meio'~, ligados ,1 sc·ns.-11,:ão <' ,1 imagina\·ão, tanto mais darnmcntl' esses processos
ela solidariedade (' ell(ptanto solida1-icdade. lnstauraclas essas conclic,;ôes, i11transi1ivos tornam-se transilivos <· assodados a 11111 ol~j<'to: se o vago anseio
por meio delas S(' prl'para o c11co11tro ('()))sigo mesmo, que, de f'onna ,. se transforma c·m desejo pkno de ronteúclos ao imaginar seu objeto, da
dcsco11n·1·tante, tem início <'lll todos os frnômeuos e obras que anunciam·:: 111es1na fonna o nnmdo dos al'l'tos é regido pelo amor a algo, pela csperanc;a
uma condit,io deli ui tiva. Todavia, o nosso si-m<'smo, <·0111 sua fome e os ., . de algo, pela alq~ria trazida por algo. lk qualcpwr maneira, nem existiriam
mtíltiplos d<'s<lohram<'ntos ligados a ela, conliuua sempre aberto, em avers<>es 011 a11seios Sl'tll esse algo exterior q11(' os provoca. Mas <'SS<' algo
movinH·nto, ampliaB<lo-se. cxtnior não precisa senkfinido ant<'cipadam<·nte. Os afetos n,io se limitam
ao nt<'ro excffí<·io d<' sua vivi'·ncia, nem llll'Slllo numa inlerpreta(.',to icl<'alista,
Variaçiio d,, humor<' e.\lado do .\Í-lll<'.11110, app<·titus dos afetos expectanfl'.1, s<"grnulo a qual o seu conteúdo se destacaria ('(HICl'l'tamcnte apenas como
j1rinf'ÍjHllmenf1, da nj1em11ra "o <111e está contido" e mio também como lllll ohj<'to exte1ior daram<·nle
Novamn1t<· tomemos como po11to de partida a fome: não são só as estimulante. l'm·(m, a dif<'n-n<:a ('lll rda<:ão a l'<'Jff<•s<·nta(Úes <' p<'nsamentos
pulsôes imediatas que dela procedem. Da fom<' das hrotam como pnlsôes não pode ser apagada nem no processo d<' ll~msiliviz,u:ão dos afetos. A
"sentidas", como sentim<'ntos pulsionais I Tri.d>p;i1ii.hle], nos quais o anseio difrrcn<:a é nu-acterizada pda natureza dcss<' intcncionar afctivo, natureza
011 a aversão tonwm consciência de si mesmos com maior ou n1enor inten- que s<· d,í e está voltada partin1larmente para si mesma, ainda que de
sidack. Essas pulsôcs <]li(' impelem não apenas de modo imediato mas modo semi-inl<'diato. No ato de imaginar, como no ato de pensar, há 11111
tambhn <·omo scntinwnto são as cmo<:ôcs [ (;1,miitsbewegungen I ou afetos. ato do intcncionar. Ele foi separado do "ol~jcto designado", ainda que cl<'
Quando o homem se joga inteirn mnn único afl'lo, este torna-se uma paixão. um modo idealista tcrrivdrncnte exagerado, por Franz Brcnta110, depois
Todavia, por todas as emo<:ôes flui uma seiva toda especial que V<"m do por I Iusscrl. Poré-111, no imaginar, no pensar, não é esse ato mesmo que (
nll'a(,lO, como um sangue· psíquico. E corno <'lll cada afeto, dikn·nternente imaginado, pensado: ao contrário, c·om muito esforço de precisou
da sensação 011 da n'pn·sentação, h.-í urna templ'ratura interna, t'sta tainbém ' primeiramente ser tornado acessível "à pcrrcp~,-ão interior". No caso dos
sente a si mC'sma. Portanto, os afetos se cli{<Teuciam das sensa<./H·s e repre- afetos, em contrapartida, uem mc·smo é requerida tuna análise· suplemen-
sentaçú<"s, nma vez que ocorrem quando tomam consciência íntima desse tar no sentido de Brentano, de uma libertac,·ào da "psicologia do ato" em
processo como de um scntirneuto de si que ainda é parcialm<'llt<' imediato. rda(;ão à "psicologia do conteúdo": os próprios afetos, corno atos intencio-
Eks podem ocon-cr de modo ol~jetivanwnte vago ness<' "<·stado" d<" nais, tf:rn a si mesmos como estados. E des ti'·m a si mesmos <·omo estados
autoconscientizar-se, antes n1esmo ele haver um objeto exterior nili.do para intensivos, porque são movidos principalmeuk pelo ahn('._jar, pelo impul-
o qual se move o ânimo. Isto não só no estado difuso e inddi11ido que se so, pelo intcncionar que está na base de todos os atos intencionais e também
chama ac/1,ah~e e, de modo menos imediato, dúposição (disto 1r;1taremos dos imaginativos e cognitivo-avaliativos. Em tÍltima análise, é o "interesse"
mais tarde), mas também num estado mais definido, pelo 11w11os naquelas que está na sua base e realm<"nte trata-se do que mais de perto toca os seres
l111111;111os. l>:t 111(·s111a forma que o afeto básico da 101nc, q11(' lt"Volv(' 1)J'i- 1w1 ('(•p1:,10 i11t(Tior". Portanto, tão inquebra11taveln){'11le todo "C'11t1·1uln -,e
t11<'iro o SC'U {)l'Óp1io inteiior, todos os afetos são primeiramente estados n11 1·xis1i'·11cia" está ligado à proximidade dos afetos; toda contempl.u:ao
do si-mesmo e justamente como tais estados do si-rnesn:10 eles são as intenções 1>1 ira do objeto, ao distanciamento em relação aos afetos. A pa1·1it· daí,
mais ativas . Por causa da sua referência a si mesma, a vida afetiva não é pode-se afinnar que onde a filosofia se ativer apenas às emoções, tudo o
apenas uma vida intensiva imediata, eminentemente intencionada em si , pw proceder disso é considerado como "mundo da conversa fiada", 110
mesma: ela é também o modo de ser do que Kicrkegaani, no seu tempo, ·,<·11tido de Kierkegaard; onde, em contraposição, o filosofar se ativer
chamou de Pxistenâal.. Com outras palavras: apenas o âni/11,o, como surna p11ramente à cogitatio, tudo o que no afetivo aspira cum ira et studio vale,
das en1oções, ton1011-sc um conceito existencial, da r:omoçüo, e não o e.1j)írito Lnnbérn rnetodican1enle, corno f)erlurhatio animi, portanto, como "asilo da
t<-órico-ol~jetivo. Assim, não é sem rnzão que o diamado pensamento exis- 111sciência", no sentido de Espinosa. Mas o contato intelectual (ainda que
tencial, hc~jc tão nulamente ckteriorndo, teve início em Agostinho, c·om as 11iío rnais) com os afetos{, ncccss,irio para todo autoconhecin1ento, e esse
suas ConfiHões aharncnlc emodonais, e mesmo o ton1,H"-sc consciente da· . nmtato ocorreu S<'lll]ff<' <)li<' o auloronlwcimcnlo foi IC'ntado de modo
consciê1l<'ia nasceu aí, da aulo-rdkxão de uma natureza intensamente vo- ;1hrangen1e. Tamh{,m ('lll I Iegel, apesar dC' Ki<'rkegaanl: não há livro que,
luntariosa. F: não é sem razão que Kierkcgaanl apostou o seu l'nlenrla-sl' em 1·m sen pn>c·edimento co11n-itual, c·sh:j,1 mais perpassado por inquietações
existênâacomo fenômeno expcrinwntal de afetos morais e religiosos c·o11tra 1· 110c;ôes af'etivas cpu· a FntomP-noloKia do 1'.1/Jírito. Isto exatamente por causa
as "ahstraçôes" ol~jctivas ele Jlegel. N,io é sem rnzão, por fim, que, a parlir da liquidac:ão do peitoral não 1111111<lano, que <plÍs tomar o "pulso da
daí, um tipo <k exisfrre, que se tornou tão sanguim'írio quanto hesitaulc, vitalidade" sob.rei udo 110 externo, no m1mdo. E corno, de acordo com Hegel,
baixou ai.é o nível da pequeno-burguesa fenomenologia animal da nada d<' grandioso foi realizado S('lll paixão, sem dlÍvida nada dC' grandioso
<·xperi<'·ncia, de J kidcggcr, até a sua "nmdição hásic-a" da angústia <' da que se refira ao si-mesmo pode ser c·om1)1'<'<'1Hlido sem a noc;ão afetiva.
subseqüente inquiela(ão. E esses" 111.odi ('Xistenciais" assegurariam até m<·smo A p,u-tir de forn, os se11timenlos impulsivos sempre· foram ordenados
a rcvda~·,'io de noçôes "fundamentais" <Jllt' dil'iam respeito justament(' ao e dassificados de man<·ira insulicic·nl<'. Foram diferenciados os que ama-
existir. Tudo isso é no fun<lo subjetivismo deteriorado, mas - ao rnc11os dun·(Tlll 1Tp<·n1i11a111cule e· os que amadurecC'lll devagar, os que
sobre os afetos do amortc(·imenlo - m<·smo o cxistencialisn10 pequ('llO- desapan•('('lll rapidamente(' os que se c·nlranham - c·omo, po1· exemplo, a
bnrguê-s n·acio1ório lança um olhar afínico-infame. Entretanto, o que tem ira em relac;ão ao ódio. Eks foram dihT<'Jlciados de aconlo c·om a
o seu h1ga1° aqui, em V<"Z desse obsnl!'anlismo (·onsciente, é unican1cnte o intensidade que cada um dos sentimentos impulsivos pode atingir, em
original, é o ao menos fimdam<·ntalnwnle honesto Kierkegaard, que joga seguida de acordo com a <'Xpn•ss,'io das emoc;ô<·s 110 s<T humano e no
o pensamento sul~jet ivo marcado pelos afetos contra o pensamento animal. Superficial é lamhém a classificaçáo em afetos astênicos e eslênicos,
mcramcnlc voltado ao ol~jelo, sendo que a contraprova poderia ser que isto<', nos que paralisam ou lúr1akct'rn o co1~j1111to ll<'JVOSo do ,·oração e o
todo pensmHenlo voltado ao ol~jclo afasta-se necessariamente dos afrlos tônus dos nnísntlos exteriores. De acordo com da, al'C'tos que irrompem
como um órgão do co1thccimento. "Toda a natureza do espírito", diz repcntinamcnt<', corno angústia (' pavor, 1nas tamhém a akg1ia excessiva,
Descarlcs nas LWnlitaçàPs, "consiste· <'Ili que ele pensa". Portanto, em Descartes, sáo sempre ;1stê·nicos, assim como os afetos dC'sagracVív<·is de intensidade
nem mesmo de sua teoria dos afetos provém qualquer doutiina que n<'Ío Ill('IIOr, como o desgosto e a prcon1pação . Afrtos prazl'rosos de intensidade
tivesse como autor o espírito m<'rnmente pensante. E Espinosa, voltado fraca e m{,dia, em contrapartida, sáo scmp1·c est(~nÍ<'os, mas também a ira
dt·sse modo para aquilo que tem extensivamente caráter de objeto, ao que vai cresc·emlo paulatinamc·ntc pod(' ser cstê-nica, ao passo que a alegria,
inserir no seu ,Ürio de mármore uma definição dos afetos (Ética, livro 3), apesar do sc11 caráter praz<'!'oso, qwu1do irrompe rcpcntinarnente
não os cklinc quanto à condição do seu ser, mas essencialmente quanto acompanhada da surpresa, apresenta-se corno asl<':nica. Esta classificação,
aos seus propósitos 011 "idéias". Espinosa enfatiza, é venladc, qu<· portanto, é de tal modo superficial qne afrtos corn conkúdos sentimentais
unicamente os afetos determinam o querer hmnano, mas eles mes1nos são diferentes, até opost0s, vão parar na mesma classe cslê-nica ou astênica.
detenninados. unicamente sob a fonna dos seus objetos. Po1· t·sta razão, Aproxima-se mais dos dados, um pouco a partir da <'Xpcriência psíquica, a
Descartes e Espinosa, como pensadores racionais objelivos, precisavam eli- classificaç,'io dos afetos como de rnpulsüo-on de alraçiio, logo, nos dois gn1pos
minar os afetos metodicamente. Como observa Dilthcy, desta vez não sem básicos do ódio e do amor. A fome, que deve poder acompanhar todos os
alguma razão, os dois fazem na doutrina dos afetos necessariamente "cou- afetos, irrompe do modo mais evidente no grupo da libido e da agressão.
ternplaçôes de fora, com relações que não são proporcionadas por nenhuma E quase todos os afetos podem ser associados aos pólos da vontade, nega<:170
011 11/it1111tc1w, da i11sa1isfa(;,'<'ío ou da satisfação consigo <' com s<·11 ol(j<·to, 111.10, 1.-11clo lugar, assim, ainda na dúvida de sua 1iualiza~·,io ou de sua
S<' 11do que por um lado os ufetos de repulsão - angú,!,tia, inveja, ira, de.1jnezo e • •e e,n i-1H·ia. Desse modo, os afeto~ expectantes se difrrencia1n, tanto segundo
ódio - e por outro os afeto~ de atração - agrado, magnanimidade, confiança, • • ,1·11 não-desejo quanto segundo o seu desc:jo, dos afeto~ plenificados pelo

vm.eração e amor- coincidem majoritariamente com a velha dualidade entre ◄ .11 ;Ílcr antecipatório incomparavelmente maior· de sua intenção, <k seu
desprazer e prazer. Todavia, um resultado totalmente exato não se atinge , 011teúdo, de seu ol~jeto. Todos os afetos têm como referência o horizonte
sequer com repulsão-desprazer, atração-prazer. Também aí ocasionalmente , lc, tnnpo, por serem cminentcnwnte intencionais, nias os af<·tos expectantes
se encontram afetos com coute(tdos scntirncntais contrários em prazerosa •,e· al)l'crn cornplctarncntc nesse ho1izontc. Todos os afetos estão associados
união: a vingança, pela qual se descarrega o ódio, {, doce, quase tanto ,10 proprian1f'nte temporal, ou s<:ja, ao modo do futuro, ma.,;; enquanto os

quanto a pon:ão de volúpia pela qual se cksc11Tcga o amor. Da mesma .ili-tos plenificados possuem apenas um futuro inautfuti<'o, 011 s<:ja, um
forma, existem afctos-c·omo a ganância -que, situados ao lado da alra(,10, l11turo em que nada ol~jetivameute novo acontece, os afrtos expectantes
nfio tt'lll a mínima afinidade c·orn o praz<'r. Ou existem al'C'tos mistos, como 11nplicam <·ssencialmeutc um f11111ro autf·ntico -justamente o futuro elo
o ressentimento, nos quais a iu1cuc;ão dt' n·1n1lsiío imwja se couhmdc com .1inda-não, do cp1c ol~jelivamenlc ainda não existiu desse modo. Sendo
a inten~·,10 de a11·ação 11r,nnaç1io 11a medida cm que a inv<:ja transforma cm banais, també-m medo e espcran<;a inteneiouam um fut11n> inautêntico,
difamação a vernT,u;ão cxistC'nte para que esta u,10 cli' ocasi,10 à indisposic;;io porém s<·n<·la ou profundamente se abateu até sobre a plenificac.:ão banal
da iuvc:ja. Tampouco l'C'pulsão e· atrn,·ão, os pólos do ódio e do amor, 11rna plcnilic-ação mais total que, bem dil'erentc do que no caso dos afrlos
conscg11c111 dividir cu1t·c si o curioso âmbito dos modos afetivos, 1,10 rico plcnificados, sil ua-se além ela realidade que est,Í ao akan<·<· da mi'io. Dessa
cm desgastes. Por isso, mantendo amor e ódio como gruj)os h..ísicos, • lónna, o ímp<'lo - o af1f1elitu.1 e seu d<·s<:jo- irromp<·, cm geral, frontah11<·111e
procunm-sc 1ra11sfonnar a mera rda<:,'io polar entre cks numa rel.1ç;10 de 110s afetos <·x1><·<·ta111es. Ek irrompe como ímpeto, como desejo até nos
valor. Dessa maneira, os afetos de n·pulsào vão parar numa regiào mais : afetos expectantes p11ra11H·nte negativos, como os da anglÍstia e do me<lo:
baixa, que deve ser negada (o CJll<', afoís,_j;í que també-m a luta de dasscs se se não <·xislissc 11e11hum ímpeto, ni'ío existiria 1wnln1111 n;io-des<:jo, q11e é
indui aí, pareceu ffcomeJtdável i'í psicologia n·,H·iomüia, em Sdwkr); os apenas o reverso de um desejo. Além disso, c·s1:í ativo cm Ioda parte um
afetos de atração (como trégua, cosnwpolilismo, pax capitalistio:), cm senso nmtradi1ório dos afetos positivos e negativos, de tal forma quc-, corno
contrapartida, situam-se na luz. Co111udo, <'SSa ckmonizaçào ou divinizac;.'10 ainda ven·mos, a1f mesn10 no sonho angustiante ainda ocorre realização
não est,'i minimamenle ,, altura de uma pon:,10 de verdade, ou ao nw11os do desejo. Nas imagens de medo e esperança do sonho diurno,
da experiência psíquica, que possa estar contida na seqüência rqm)s;ío- f'rcqüc11le111<·11tc' <~ ainda mais possível se alten1arem as visões de medo e
at ração, apesar ela sua conf'usão. Em suma, o que é aplicado à dout1ina dos cspcratH;a, afrto exp<·<·tanl<' negativo e positivo, como afetos utopicamente
aktos a partir de fora eleve ser tolalmeute eliminado: só assim a onkrn ainda imldiniclos. O aldo expectante mais importante, o afeto do anseio,
co1n·ta elos se11timentos impulsivos se estabelece. Essa ordem deve se,· portanto o a11to-af'c10 por excelência, continua sendo constanten1ente a
descoberta no próprio a1'fJPtitu.s experimentado. O efeito disso, o ünico esperalH,:a, pois os afetos <'Xpcclantes negativos da angústia e do medo são
satisfatório, é- então a dassificação dos afetos em duas seqüências: a/idos totalmente passivos, OJ ► l'imidos, presos, não obstante toda a repulsão que
plrmi/iuj(lo,1 e aji:tos exj1ectantes, sendo que, com isso, também se satisfaz o eX<'ff<'lll. N<'ks se manif'esta um tanto da autodestruição e do nada para o
relativamente justificado na seqüência repulsão-atração. E esta seqüência qual conflui a paixão mernmente passiva. Por isso, a esperança, este afeto
chega a atingir no mínimo o grupo dos afetos expectantes, mais precisa- expecla11lc coutnirio ii angüstia e ao medo, é a mai,1 luunana de todas as
mente como não-de.11:io [ Unwumch] ou como de~ejo [ Wunsch]. Entáo as e111oç6e.1 e an<1sh1el aj1er1.a,1 a sem, humanos. Ela tem como referência, ao rrte3ffW
,eqüências no catálogo autêntico dos afetos podem ser definidas de uma le111j10, o horizontr mai..1 amj1lo P mais dara. Ela representa aquele appetitu.1 no
)Utra maneira. Af'tos plenificados ( como inveja, ganância e vell(Tação) são ânimo que n,10 s6 o s1tjeito tem, mas no qual ele ainda consiste essencial-
)S que possuem urna intenção pulsional de curto alcance, Cl!ͺ ol~jelo mente, como s,~jc-ito não pknificado.
mlsional está disponível - se não na respectiva acessibilidade individual,
:ntão no mundo já ao alcance da mão. Afetfü exj1eclantr,s (como angústia, Pulsüo de auto-exfmnsiio para a frente, expectativa ativa
nedo, esperança e fé), em contrapartida, são os que possuem urna intenção A fonw não tem corno não se renovar constantemente. Podm, se
mlsional de amplo alcance, n~jo o~jeto pulsional não est,i disponível na cresce ininterruptamente, nã.o sendo satisfeita pelo pão assegurado, ela
·espectiva acessibilidade individual e tampouco no mundo ao alcance da revoluciona. O cmpo-eu torna-se rebelde, não vai mais em busca de alimento
11)('11;1.~ 110s 111oldl's ;1111 igos: ele- pronffa 111odifica1· a si111a(:i10 ,pw ocasio11011 101 110 111011u·1110 o plano para o qual o ser h11rua110, dikre11tc11H·11le da
) ,·stômago vazio, a nth<'ça baixa. O não ao ruim existente e o sim ao .11 ;111ha 011 da abelha, dirige o seu olhar, antevendo-o. E exata1nente nesse
nelhor em suspenso são acolhidos pelos carentes no interes:,e re11oluâonário. 1'01110 se· forma aquilo que aviva o a::,pecto desejante nos afetos expectantes
:~m todo caso, é com a fome que esse interesse tem início, a fome se , I' w sempre se otiginam da fome, des<:jante esse que ocasionalmente distrai
ransforma, como fome instruída, numa força explosiva contra o cárcere ,. amolece, mas ocasionalmente 1ambhn ativa e se estende até o alvo de
:ia pri.vação. Po11anto, o si-mesmo não só procura se preservar: ele se torna 11ma vida melhor: formam-se .1or1Jw,1 diu.rno.1. Eles sempre procedem de
'Xplosivo, autoprcse1va(:ão se torna auto-expansão. E esta revoluciona, fato 111na carência e querem se desfazer· dela. Todos eles são sonhos de uma
iue barra o caminho da classe em ascensão, dos seres humanos sem classe. \'ida melhor. Sem dúvida há entre eles os sonhos escapistas, baixos, de
l)a fome e<·onomic:uncntc esclarecida procede hoje a resolução pela lodo, corno se sabe. Essa fuga da realidade muitas vezes csleve vinn1lada
mspensão de todas as rclaçües cm que o ser humano é um ser op1imido e ao consentinwnto e· ao apoio à si1wu;ào existente, como fica claro, com
>crdido. Muito antes dessa rcsolu(ão, e por muito tempo dentro dda, o 1oda a intensidade, nas consola<,·ôcs com um além melhor. Mas quantos
mpulso rumo ;'t salisfação s<·r:-í um impulso que sobrevive imaginariamente outros sonhos diurnos ideais consc·1va1<1m a nKagem e a espcra1H;a dos
10 que cst;-Í ao alcance da mão. E 110 trabalho humano, sendo ele ~eres humanos, n.io desviando os olhos do real, 1nas, ao contr,írio, enca-
·mpn·cndiclo com o propósito de sup1ir a demanda como transfonna<:ão rando a sna cvolm;ão e o seu horizonte. Quantos refor~;ararn, pela via da
k matérias-primas cm valon·s de uso sempre mais ricos, es1;-í aliva a antccipac;ão, do sohrcpt~jamento e· de suas imagens, a vonta<IC' de 11,io n·-
:·onsciência como consciê·ncia que uhrapassa imaginariamente o <Jllt' es1á 1mn<·iar. Desta fonna, o que sucede de sohrqmjamcu1o nos sonhos. diur-
10 alcance da mão. Nem de longe suficicntcme11tc levado c·rn consick1,1(;ão, nos não designa <'Ili termos psicológicos nada reprimido, nada mcramenlc
Ma1x diz sobre isso: submerso a partir de algo que já existiu no consciente, tampouco uma
<·ondi<,",l<> at;1vica, que apenas restou ou irrompe de seres hrnnanos dos
Presumimos o trabalho 11111na fonna em que pertence exdusivame111c 1empos p1imonliais. Aquele que sobrept~ja não cava uma mina subterr;1-
ao ser hum.ano. l lrna aranha <'X<'CU1a op<'ra<;ôes similares às elo tecelão, nea abaixo da conscit'-ncia presente, ntja única saída seiia o nmhccido
<·, através da <·011stn1<;,'ío de seus favos de cem, uma abelha faz c·orar ele mundo diurno ck h<~je, como em Freud; ou um dilúvio romantizado, corno
vergonha <-erlos arqui1e1os humanos. Porém, o que de anl<'lll,to cm C. <~- .Jmig <· Klag<·s. O que é intuído pelo impulso de auto-expansão
distingue o pior arqnit<'lo ela melhor abelha é que ele construiu o fovo para a frc111e é, antes, c01no será demonstrado, um ainda-não-consciente,
cm sua c·abe<;a antes de construí-lo <·m cera; no final do processo de algo que 110 passado nm1ca esteve consciente nem tinha existência, ou seja,
trabalho tem-se um r<'s11ltaclo qucj,í existia na imaginação do lrabalharlor ele próp1·io nma nwia-luz para a frente, rumo ao novo. Trata-se da meia-
no início do mesmo, ou sc:ja,_j;í existia de modo ideal. Ele não 1f,fw1, luz que pode envolv<'r os sonhos diurnos mais simples: a partir dali ela
apenas uma 1ra11sformac;ão na forma do real; 6 ele simultaneamente ak,rn<,·a as ;ín·as mais extc-nsas da privação negada, ou seja, da esperança.
torna real no fünbito do na1urnl o seu propósito, que ele conhece, que
de1enni11a como lei o seu modo de agir, e ao qual ele tem de submeter 14. Diferenciação fundamental entre sonhos diurnos e sonhos notmnos:
a sua vontade (Das Kapitall, 1947, p. 186).7 realização oculta e arcaica de desejos no sonho noturno,
realização fabulante e antecipadora nas fantasias diurnas
Por isso {- conseqiicnle que, antes de um arquiteto - em todas as
reas da vida - c·onhcn·r o seu plano, ele tenha elaborado esse plano, que Tnulênâa para o sonho
le tenha percebido a n·alização desse plano como um sonho brilhan1e, O dcs<:jo de ver as coisas melhorarem não adormece. Nunca nos
ue impulsiona decisivamente para a frente. Isto, em termos ideais, é tanto livramos do cksejo, ou então nos livramos apenas iluso1·iamente. Seria mais
1ais necessário quanto mais ousado, sobretudo quanto mais impraticável cô1nodo esquecer esse anseio cio que realizá-lo, mas para onde isso levaiia
h<~je? Os dcs<:jos ainda assim n,io cessa1iam, ou se travesti1iam em novos,
ou até nós, os sem-desejo, seríamos os cadáveres que os n1aus pisarian1 no
carninho para a sua vitória. Não é hora de desistir dos desejos. Os que
No original de lVJarx consta "natural" em lug;u de "real'~.
Cf. Karl Marx. O wpilal. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova sofrem privação sequer pensam nisso: eles sonham que seus desejos um
Cnltural, 1996, p. 298 (Os Economistas). dia serão realizados. Sonham com isso, como diz a expressão coloquial,
d1,1 (' 11oil1·. prn la1110 11ao S(> ;', 11oitc. Isso la111b{,m seria 11111ilo (·-..11.111ho,j,í d .. -.,cj.11111' i11t·o11S('Í<'lllt'. F o lt'llla "soul1os d<" 11111a vi<b 111('11101" i11d11i
q11c o dia <; o mom<·nto cm que a privação e o desejar mais se fazem 1•;11 l'i:il111c·111l', com cuidado <' significância, lan1bé-n1 os sonhos noturnos
pn-sentes. H:i sonhos diurnos em número suficiente, só não foram 1111110 sonhos desejantes, também eles são uma parcela (ainda que deslocada
satisfat01iamente observados. Mesmo de olhos abertos, no seu íntimo a <· 11,"io muito homogênea) no gigantesco campo da consciência utópica.
pessoa pode ver tudo colorido ou cm forma de sonho. Se a propensão Ou seja: eles são a parcela em que se movem des(:jos muito antigos,
para 1ndhorar aquilo crn que nos tonrnmos não adornwC"e nem durante o onde se deixa ver, abaixo do ego e do cérebro, a luz de uma imagem que
sono, como o podc1ia durnute a vigília? Poucos são os cks<:jos que não remonta a urn passado rnnito distante. O sonho noturno tem trt's marcantes
estão cain·gados de sonho,justamcnte qnanclo cks lomam consci{>ncia de características que lhe pennitc-m transformar ideais desejantes em alucina-
si. Mas, então, quem sonha duranl<' o dia{, visivdnwnlc cliic-rcntt· de quem <:Ões. Piimciro, no sono o eu adulto está enfraqnec·iclo, não podendo mais
sonha durante a noite. Muilas vezes, quem devaneia segm· um fogo-hítuo, ffnsurar o que lhe parece inoportuno. Segundo, da vigília e de· seu conteúdo
desvia-se do caminho. Mas de não dorme e n."io submerge na névoa. 1-estarn apc·uas as chamadas sobras do dia, isto {-, rcprcsentaç·ões associativas
hastautc- inconsistentes, às quais a rantasia onírin1 se iun>rpora. T<T<·ciro,
Sou/to co1110 malizauio de dnl'jo.~ cru conc·xão c·orn o eu c-nl'raquc·<·ido, o mundo exterior- t·om suas r<'alida-
1r: isto que o sonhador nollll'llo ck fato faz e pn:cisa fazer. Que este se des <· propúsilos pr,íticos- csl,Í hlociucado. O eu rclorua ao cu da inffoKia,
apresente piimciro, pois de <p1alq11cr modo {- 110 sono que lt·m iufrio o de modo que aparece, cm primeiro lugar, o 111111ulo impulsivo lotalt1wulc
jogo de cores. A palavra wnlw prové-rn do no11u-no, o sonhador pressupõe sem n·us11I"a do lcmpo de <Tianc:a 011, melhor f'orrnulaclo, como no lempo
o que dorme. Os sc·111idos c·xl<'t·iores ficam 1111los, os músnllos rdaxam, o de <Tianc:a. Freud enfaliza desse modo: "Todo dcsc:jo onírico lem t)l'ig<'m
cérebro descansa. O ohsc11recinwnlo {- Ião importa11te <pie o adornH'cido infantil, lodos os sonhos lrahalham corn material i11fa111il, como emoções e
fr<'<tÜenlernc-111<' s<> so11ha p,ll'a não an>nlar, para não ser t>kvado acima m<·c·,mismos psfrp1in>s infantis". Alé-m disso, na medida t·m que a 1e11d{>ncia
do limiar da consC"iê·ncia por csl í11111los c·x1ernos 011 internos. Se o estímulo contrária do real sc-11sívcl cessa pelo bloqueio do mundo cxleri<ff, os ideais
é- externo (p<)I' exemplo, hatidas na poria 011 luz 011 mudança de posiç·;'io dcs<:jan1cs adquirem l'on:a e espa<:o psíquicos s11lkie11tes para S<' ckvan·m
na carna), <les<:ja-se que ck não ot·mTa. Se{, inlt-rno (sede, fome, pressão à concli1Jío de ahl('in;HJío. No sonho, poré-111, o <'ll moral, c-sléti<·a <· lam-
min.íria, excilac;ão sexual), ek prúprio é um dest.:jo ntjo estímulo dcV<' hém n·,dislicamcnlc· n·11s11rador, est,Í apc11as cnfraq11c·c·ido, e wio lolal-
dcsaparccn. Pois <ptal<p1n eslimulaç·,'io é d<'sagradável: o prazer, diz Fn·ud, mcnl<' desligado. Ek C"ontinua a censurar como se eslivessc embriagado e
está "vinculado à di111in11i(ão, redll(,.·,"io ou extinção da quanticlack de obriga as rcaliza</><'S alucinatórias do desc:jo a se disfan:an·m diante do
cslímulo exislnll<' no aparato psíquico, porém o desprazer está vinculado sc-11 olhal'. Por isso, quase nenhum sonho noturno {, reali1.a<;ão pura do
à sua dn-'a<:;'io". Se w"ío sonhasse, o adormecido despertada com o ruído cksc:jo, mas prnlica111<·111c todos estão desfigurado.~<· mascarados, mostram-
que o estimula. Portanto, o sonho protege o sono, integrando en1 si mesmo sc· si111bolim.m1'nft, disli1n:ados. E o sonhador u<·m mc·srno compn·endc o
as batidas na porta, a incidê·ncia de luz, a inquietação corporal. Conlll(IO, simbolismo <·0111 <pi(' st· disfarça a realização do seu desejo: basla que a
não só por meio disso: clesck Freud, estabeleceu-se ( e isso pennam'<'<Tá ÍIHjllÍeta<:;'to ela libido entre cm ação e se sacie mm1a imagem onÍl-i<-a sim-
como s<·u palrimônio) <til<' o sonho não é n1era proteção do sono 011 um húlica e desfig11n-1dora. Apenas os sonhos da crian~:a estão livres da clcsfigu-
mundo de ahKinação, mas vai alén1 - tanto de acordo com o seu motor raç;"ío onírica, já que a nia11ç·a não conhece qualquer cu cc·11s11rador. Os
<p1anto com o sen conlcúclo -, também é realizac:ão de desejos. O sonho só sonhos 11ot11n1os muito lascivos ck tipo fisiologicamente 11ormal e· permiti-
pode assimilar as perturbações na medida em qne elimina o ;iguilhão d<' do, p01· exemplo, cm decorrê·n<"ia ck poluções, tan1bém seguem um per-
suas exigências. Ou, como diz Freud: "Os sonhos são eliminac;·;'io elos curso direto, sem desfigura<,;ão onírica significativa. Também nestes sonhos
estímulos (psíquicos) perturbadores do sono pela via ela satisfac;·ão o couteúdo manifesto e o coutclÍdo real coincidem razoavdmculc. Entre-
alucinatótia". Como se sabe, a descobcr1a mais própiia de Fn·ucl é a de lanto, todos os demais "dcs<:jos i11decentes" - os desejos incestuosos, os
que os sonhos não são bolhas de sahão,8 obviamente tampouco oráculos cksc:jos de morte contra pessoas qucl'idas e Olltl-os elnncntos do infantil-
proféticos, mas se situam no centro entre os dois: cxalamcntc como pe1verso cn1 nós - recorren1 ao disfarce para se satisfazerem, para se
realização alucinatória de desejos, como n·alização fictícia de urna fantasia ocultan:'m da censura do eu onírico - por mais que ela sc:ja debilitada.
Freud cksigna a transformação do contclÍ.do ouírico latc·111<·
Alnsão ao ditado alemão de que Túiume .1ifl(/ Srhiiume, "sonhos são só bolhas de espuma". (profundamenle inconsciente) no manifesto (representado em símbolos)
, 01110 li ;1halho do sonho. O c1111i11ho i11vc-rso, a r<'aliz;u;;ío do desejo por p.11.1 o:-. µ;•·nilais 111asc11li11os e femininos (o punhal e o p<H"la~jóias s,10 os
11wio d.i dcrifra(;ào de seus símbolos, é percorrido pela interpretação p1ot1,1ipos), parn a relação sexual (o protótipo é subir a escada). O porta-
.inalítica dos sonhos. O sujeito desperto resiste à interpretação analítica l' ,1.1s pocl<' st· transfonnar numa alcova; o punhal, na lua que está irrcalment.e
dos sonhos, assim como, de modo ruais intenso, o neurótico resiste à p11íxi111a da janela, na lâmpada de teto da alcova, na luz dessa lâmpada de
interpretação dos sintomas de sua nernuse: trata-se da resistência do ego 11111 ;nnarelado suave como gema de ovos batidos. Toda a 1iquez;:i das alusões
diurno revigorado contra a revelação do seu outro lado. Para o homem .- nnnparações sexuais, como revelada pelos Contes drolatiqueJ I Conto!>
1noralmeutc c·onsciente e até c·orreto, esse outro lado costurna ser bastante , 0111icoJ], de Rabelais ou Balzac, {:- atingida, quando não sobrepttjada pelo
constrangedor: de intuía nele mesmo, há muito tempo, aquilo de que se ·,onho - e isto em inoct'·ncia alegórica para a consciê:ncia. Balzac fala do
enve1·gonhava estando acordado. Dessa forma, o eu diurno ;:ité pode se 111arcenefro que pensava em mant<T trancada a porta principal da casa
sentir responsável pelo eu noturno debilitado, se da confusão dc-· símbolos , doravante, do pajc·m que já havia fincado os seus estandartes no campo
n·star uma ressonância de sensualidade. Je;:in Paul obse1va ;:icerca disso: 1<'al, e assim por diante: todas essas comparnçôes são tambhn oníricas .
.\crescem-se imagens <]li<' ('Sião ausentes ou se perderam alé n1csmo da
O sonho ilumina com tl'rrívd prohmdidade as cavalari<:as de Epicuro extensa literatura ponwgnífica, como é o c·aso dos símbolos madeira, mesa
<· Áugias por nós constn1íclas, e durnnte a noite vemos perambulando ou água para designar a mulher. Eks pan·c·<·m ii· ,1.s profundezas da história
vivos todos os animais selvagens saídos dl' sl'us covis e os lobos noturnos lribal, a uma história qu<', como ohsl'1vado, não é c·stranha a Freud e sua
que <htnmf<• o dia a razão mantinha ac·orr<·ntados. ('Scola mais <·siri ta, para não falar dc- C. G . .Jung. A mP-.\a c·st;í daram<'utc no
lugar da sala d<' c-star ela casa, o símbolo madeira kva à á1von- gen<'alógi<-a,
Mesmo a i11tacta probidade burgm·sa <' o seu cu diurno chegaram a uma imagem mat<'rna muito antiga, e também n-pc1T11tem aí o lenho ela
levantar a niriosa pergunta sohre se· o homem sc1ia imputável pelo hem e vida, a ;Í1von· da vida. O símbolo água é n:montado por Fen·nczi, um dos
mal que pensa e faz em sonhos. Um moralista<· psicólogo do período final colahorndorcs mais ;:intigos de Freud, ao lfrptido amniótico matcnto <·, <·111
do Iluminismo respondeu afirmativamente e condniu, de modo bastanle seguida, lll<'diantc- uma "escavação" inteiramente filogcnética, aos 111,ll"<'S
cúrnico, mas instrutivo no que co11<·<·nt<· ú n·sist<':ncia: geológicos pl'imonliais, nos quais surgiu a vida. Pensando-se na história elo
mito, surg<' a c·ssc· n·speito uma lenda preservada de uma forma hem
Por isso, pode-se afirmar que <: um dever moral do ser humano difrrente, a da n·gonha que busca as crianças numa lagoa. A ,ígua das
presc1var a pun·za da fantasia também nos sonhos, na medida <·111 qm· prolim<l<'zas, sohn' as quais o Espírito de Deus choca, é retratada, ela
isso for possível <·om lih<"nla<lc, <' que o bem e o mal que ele diz ou faz própria, como urna galinha. O poço é uma imagem materna affaica, e a
cm sonho po<k lhe ser imputado, na medida em que seu sonho { lagoa de juncos é mais antiga ainda, hetérico-arcaica. Bachofcn a
gerado 011 modificado por seus apetites e estes apetites dependem da red('scohriu. Ik qual<pHT modo, praticamente nenhum sonho sonhado
liberdade (Maass, Vasw:!t 11,ber die Leidenschaften I, 1805, p. 175). por adultos está dcs<'mharalhado, desembnilhado. Freud formula a esse
respeito um paradoxo nmdmknte: o sonhador não sabe o quc- sabe. Para
Portanto, se para um cu correto os devaneios oníticos relativam<'HI<· Freud, o conteúdo manifesto do sonho como tal é apenas fanlasia ou baile
inofensivos da <Tiat nra j{i são desagradáveis, quanto mais os infanto-sdva- d<' 1rnísc·a1-.ls, <' a intervr<'t,u;úo lmna-se a quarta-feira de cinzas. A censura
gens que eslão sob a camu11agem simbólica. Daí, portanto, a resistência do cu só deixou a verdade - que é a libido e a realização do seu dcs<:jo -
contra a intcrvretação psicanalítica dos sonhos, daí o desagrado em pennitir passar pela noite com a máscara de bobo ou como santarrona. A
que a partir das imagens oníricas se componha a história criminal ck si intcrprelação freudiana dos sonhos pelo menos visa a chegar novamente
mesmo. (Um desagrado que sintomaticamente não atingia a antiga e cha- ao lcxlo original. Ela passa pelos símbolos sem se perder ll<'ks, t· se düigc
mada inlcrpretação profética dos sonhos: o faraó alegrava-se com José, para a realização niais ou m<·11os reconhecida do dcsc:jo, que S<' expressa
que não o desmascarava - esta interpretação deixava intocadas as coisas por fonnas cifradas. Neste processo, ocorre uma revelação, mesmo que
internas do sl~jeilo.) E justamente do desagrado moralizanle se 01igina ela s<:ja distorcida pelo conceito redutor e eITÔneo da libido pura e simples.
sobretudo o impulso noturno do eu para a máscara, encobrimento e disfarce Em todo caso, o sonho noturno é uma espécie de resgate, uma n·paração
do conteúdo do sonho. Todavia, para o Freud da libido, o p1incipal é e uma satisfação rica em imagens. Logo veremos se essa satisfação ocoITe
somente a formação de símbolos sexuais. Com isso, há centenas de símbolos apenas 1nediante essas imagens ou nelas mesmas.
() .11111/,0 1/ll,l!,'l/,I/Í1111fr t' ti trafoc.fl(IÍ/1 ,/,, rl1',\1'Jt1I 1or110 do qual se deposita a posterior angústia da consci<~11ci;i: <; da
l\,Lts os dC's<jos dc <pl<'lll sonha ;i noite realnw111<· si10 sn11p1c 11·aliza- que subsiste como angústia da consciência.
dos? De fato, por aí foge uma profusão de coisas indifcrcnt<·s, que s<·
volatilizam e parecem não preencher qualquer lacuna. Os sonhos felizes, Mais plausível é, todavia, a explicação da angústia a partir do
ou seja, os que realizam destjos, de modo algum constituem a maioria, 1>rimeiríssimo abandono que predetermina psiquicameute todos os demais,
mesmo entre os sonhos intensos. Ao lado desses sonhos felizes há os ;1 partir do afastainento da mãe por meio do nascimento. Disso provém
angustiantes, que vão dos habituais sonhos de prnvação até os terríveis. também a angústia real das crianças, o fJar1or noclurmt!> sem o chamado
Destes últimos, o adormecido desperta com um grito: de estava fugindo de complexo de castração, a anglÍstia em vista de- rostos estranhos, da escuri-
c:.:ui-ancasquc só a noite conhece, mas o seu automóvel se transfonna ntuna <ião e coisas semelhantes. O anseio e o amor da criança pela rnãt· é frustrado
concha de caracol. Ele salta para fora e coITe para salvar a sua vida, mas por rostos estranhos, a sua libido ton1ou-se inutilizável, não encontra o seu
seus pés grudam no chão e logo niam raízes. Freud naturalmente também objeto. Desse modo, da se transforma e é n·pdida como anglÍstia também
encontra clific11ldadcs para i11terpl"C'tar a fúria da noite como fada graciosa, na idade adulta. A partir disso, a cons<·qiii·nda é que todos 0.1 aj'eto.1 d-e!>ejante!>
mas ainda assim dassifica os sonhos ang11s1ia11tC's cm tri'-s tipos, J'l'piimido!> .1e transformam rm fóbia.1 nl'.1.1e inconsâenlP. Freud sup6e que uma
,egundo a temia da rcaliza(;;io. Primeiro, um souho pode ser intC'rrompi- semelhante transfo1rna<;ão de afetos lihiclinais que ficaram vagos, sem objeto,
do e então o cslínrnlo doloroso que o provocou continua pcrnistindo: a ocorre na angiístia mortal (c·o11tníria ao impulso para a morte),
realização do des<:jo foi frnstrada. Segundo, um sonho pode se transfor- especialmente na n<·urótica, melancólica:
mar cm sonho angustiante _justamente porque nele se concretizou a rcali-
~ação do des<:jo: <"sse absurdo ocorre sobretudo em sonhos não desfigura- Aangtístia mol'lal da mela11nilia pcrrnitc apenas a cxplicac:ão de que
:los, não n·nsurados. Neste tipo de sonho angustiante, tnn desejo inconvc- o <·11 r<·111mcia a si mesmo por s<· senti,· odiado e· perseguido em vez de
tliente e fo1'h'm<·ntc n:jcitado é satisfeito de fonna bem direta e assim a
amado pelo supercgo (... ). O s11pcrC'go dclé-m a mesma limc;ão prote-
111gús1ia não é da criatura, mas do eu onírico. A evolução da angústia
tora <' rc<kntorn q11<· anlerionn<'ntc era pr<ipl'Ía do pai, depois da
xupa o lugar da <-cnsm,1. As neuroses desse tipo, como por exemplo a
providi·tl('ia 011 do d<·stino.
rngiístia p<'rrnancntc de perder pai C' mãe, podem também estar ligadas ao
ks<:jo de <jll<' isso ocorra. NcssC' caso, a fobia é simplesnwntc um epílogo
Mas ta111hé111 na condi<;,'io sarnhívd a angústia é rnultipli<'ada, diante
11cspcn1do e moralista 011 uma n·ssaca transfonnada en1 espetáculo. Em
de um perigo real demasiado grnnd<', pela anglÍstia mortal do abandono:
<·n-eiro, p<H'ém, Fn-ud aborda a dificuldade de modo dialético e o faz
o <'U n·111111cia a si m<·smo porque acn·dita não pod<'t· superar o perigo
>raticamentc sem querer, co11cebc-nclo anglÍstia e des~jo 11ão só como
pelas pr<>prias Jún;as. "Trata-se·, ali:ís", acrescenta Freud, n·rnemorando,
>postos extremos. A origem iíltima da angústia seria, dessa maneira, o ato
"da mesma sit 11a<:;,10 q uc <'SI ava na base da primeira grnndc· situação
k nascer, que te.-ia acionado "aquele agrupamento <k sensaçÔC'S
ang-11stia11t<' cio nascimento e da angústia infantil da sa11dade, a do
ksagradé-'iveis, de estímulos ele 1·epulsa e sensações corporais que se
afas1ame1110 da rrnk prntctora" (/)a,.1 h-!t und da., lú, 192:!, p. 76). É ainda a
ornaram modelo para todo cfrito que representa um perigo de vida, e
pw desde então são revividas por nós como situação angustiante". Já o mesma rcvnsão da libido no seu oposto dialético, que já podia ser
.ubstantivo angú!>lia (angu!>lia= ''<·stn·iteza") enfatizaria o estr<'iL11nento na ohse1vada na angústia ela criall(;a, <piando o afeto libiclinal tinha de ser
·espiração, <JUe ocoITe naquda ocasião corno decorrência ela rcspiração rqnimido porque o seu ol~jcto, a mãe amada, estava ausente. Porén1, no
ntcrna interrompida. Mas o mais importante seria que a<pwla primeira caso da angústia mol'lal, o ol~jeto ela libido se tornou o próprio eu, mais
itua<;ão angustiante se 01igiuo11 da sep,u-a<;ão em relação ii 111;1<', ou seja, exatamente o eu amado pdo superego, e foi justamente essa ocupação
inalizou abandono, desamparo, e1~jeitame11to. À primeir:1 .~ilwu;ão de (nan-isista) que agora teve fim.
mgústia se associa, em Freud, a chamada angústia da rnsl r;1<::'ío, e esta
>ossui extensÕt>s morais que perpassam toda a vida: O mecanismo da angústia mortal só pô<le existir pelo fato de o t'll
dispensar quas<· que inteiramente a ocupação narcisista da libido, 011
Do ser mais elevado, que se tornou o eu ideal, provi11h.1 011t1ura o stja, desistir de si mesmo, assim como de resto desiste de outro ol!j<·lo
perigo da castração, e a angüstia da castração talvez s<:j:1 o <crne em cm caso de ang-üstia.
Mas <·sla 1111ula1u:a 11.10 libera mais que um lnrívd p,l\'OI. F. m;Hs ,11><·11as o cu se ck·sligasse de si mesmo e abandonasse a sua0<:upação libidiual
uma vez a libido, nada além da libido o ten1po todo ( e este é o aspeclo 11arcisista, então nem os animais, que são desprovidos de um eu, e nem os
freudiano que não pennaneccrá, até já se poderia dizer: não permaneceu), 110111ens de índole objetiva e indiferentes ao seu eu conhece1iam a angústia
e com a libido mais uma vez o puro psicologismo sem o contexto social. < te morte. Mas se os subjetivismos libidinais da anglÍstia são, conforme Freud,

Essa libido st>xual st>ria de fato suficiC'ntt> para produzir tal angústia? Ela 111sustentáveis, continua sendo imporl"ante e venladt'ira a associação, por
seria de fato nccessária para tanlo? A realização negativa do desejo ou de estabelecida, das fobias com afrtos desejantes rcp1imidos - pois ela não
angúslia proviria ck fato exclusivamente do sl~jeito, exclusivamente do "afeto <·stá orientada em narcisismos, mas no contelÍdo objetivo dos afetos
libidinal que ficou sem obje10"? Não havciia também o~j<"tos e situações desejantes. A angústia e seus sonhos até podem ter no processo do
que são objetivamente ameaçador·<"s o suficiente, não ocupados pela libido, 11ascirnento o seu primeiro agente causador, hem corno na morte o seu
mas suficientcnwnle ocupados por outras coisas? O Freud tardio expressou iíltimo conte.údo biológico. Porém, onde a angt1stia ocmn· de modo não
isso ao afirmar que o recalque não produz a an~ístia, mas a angústia pr-oduz i ~ô biológico, 1nas de mn modo que pode ser· constatado apenas <'lll seres
o recalque. Com o que a angúslia é anterior à libido n-presada e fonua o humanos, justamente como sonho angustiante, aí da tem como base
n'pr-es;unento. O Freud derrackiro até mesmo cslalui, indo muito alón da essencialmente os bloqueios sociais do impulso de autoprc'sc1w1~·ão. De falo,
expt'ri<'·ncia biológica interior e inic·ial do nascimento, "que uma situação <: a de.,tnúçiio do rnntnido do de.lijo, e rne.1mo a trans/órma(:Úo dr ,1l! conteúdo em
1 1

ünpulsiva ternida remonta, no fundo, a uma silua<;ão externa de peiigo" wu mnl'rúrio, que produz a angústia e, por fim, o desespero.
(Nt-1w .folge der Vorlt<1·1uigm, 1933, p. 123). O seulimcnlo de n:jei<:ão não.·
1 E como faz aquele <]li<' sonha acordado quando seus clesc:jos são bem
telia conteúdo algum se os rostos cstnu1hos, a cscmidão e siniilarcs ióssenJ.: variados? Se ele precisa pôt· sal e pimenta no seu d<"sc:jo, mesmo uma pitada
apenas uão-nüic e de n·sto ueulH>s. Em vez disso, aí tarnbém exist<' ióme, mais fot·tc e não apenas o md? O próprio Freud rem<'IC a um entrelaçamen-
prcocupa<:_:ão com o alimento, desespero econômico, angústia pela vida, to de scntirn<"ntos impulsivos contraditórios, e não só à sua transição. Ek
lodos sufi('icntcmcnle positivos e ol~jctivos. Até pouco tempo ;1tnís, a remete ao sinrnltJnco "sentido contrário das palavras originárias", de tal
sociedade burguesa estava, e· csf,Í hc~je conforme a sua estrutura, de fato forma <pw "angústia e desejo coincidem no inconsciente". Sem dúvida,
li.melada sobre a livre c011corrê1Kia, isto é, sobre uma relação antagonística, porém, elas coincidem amplamente também na consciência, como no n1so
inclusive dc-nlro da mesma dasse e camada. A tensão hostil que se cstahde<·e do hipoc:onchfaco <' também no caso do pessimista commn, pois amhos
entn: indivíduos, e que até é exigida, produz uma angústia incessante, que esperam ver a sua 11."io-csperança realizada. E a sensibilidade ,ksse mesmo
n,10 ne<·<·ssita da anlerioiidade da libido e do ato de nascer para se ckposi1ar séclllo XVIII crn <jl't<' florescia o hipocondríaco não teria sido a m,10 de
ali. Ela está suficientement<" estabelecida nesse tipo de nmndo exlnior, tinta aplicada sohre esse sentimento misto, com seus salgueiros-d10rôes e
ultimamente incluindo duas guerras mundiais. E, além disso, com uma cântaros de l.1grimas, com seu doloroso prazer na transitoriedade? Tanto
produção de angústia por parte do fascismo que dificilmente precisaria de mais o ronrnnc·<· ele horror, que surgiu na mesnia época, descobriu o canÍl<-r
um trauma infantil para ser desencadeada. Portanto, pode até S<'r que algum enigmaticarnc·ntc sc·<Tclo do sinistro: ele vivia do lar ideal soh as sombras,
sonho noturno descansado esteja mientado pan1 o passado, talvez nele se da pátria uas vias-<TlÍcis, do pavor noturno. O qual já apreseutafanla.1ias de
encontre muito pavor riocturnus de criall(:as p1-otegi.das. Pode até ser que realizaçüo dos desejos de angústia, uma troca de rostos entre o des<:jo e aqudc
de consista em libido rep1imida, em dcs<:jos ,k amor n."io ocupados por tipo de angúslia que se tornou t>Xtremainentc aITepiante, pela esperança
um objeto e, assim, em angústia. Mas mesmo 110 sonho é o dia, {, a voltada para da, corno ,·onlcúdo deturpado, até mesmo o conteúdo positivo
preocupação objetiva com o amanhã que se1vcm de motivo e migem para da esperança. É essa realizac;ão tortuosa, não exatamente livre de suspeitas,
a angústia. Uma origem que se rcfrr·e à a11loprest·1v,H:ão nua e cn1a e a que impede ou ao menos difindta, mesmo em regiões mais elevadas, que
seus desejos dilacerados, não apenas destituídos de o~jeto. A angústia, acima tudo st:ja cor-de-rosa. Urna pon:ão de pretmnc é adicionada, aprofunda as
de tudo a angústia mortal, desperla, não con-c para tnís, procurando ad1ar cores, ffia uma disson;1nc·ia na frlicidade demasiado previsível, portanto
uma explicação no objeto libidinal do seu próprio cu, um objeto que se insípida, assinala a altura do desejo como igualmente profunda. Muitas
desvanece na transposição da mãe. É justamente ela que não pode ser expressões de sentimento levadas ao extrerno foran1 entendidas como um
explicada de modo narcisista-regressivo em seu aspecto p1incipal, e sim a emaranhado de co1noçõcs, até chegarem ao chan1ado doce pavor do Aru'l
partir do golpe de machado que um dia dar;:'í um fim à vida, a partir da dor· do~ Nibelungos de Wagner, na exibição dessa obra de arte colossalmente
e do pavor da noite ol~jetivamente aguar-dada. Se na angústia de morte neurastênica. E então o mesmo é válido para os símbolos tanto do pesadelo
1101111110 q11;111lo dos p1;1dos_j1111lo ;·1 11.1s<'l'l1lc: lodo sonho<; 1<·.di1.1c ..10 de· lt-licid,t<I<' l;111lasiosa, a r<'sta11ra1,.-:ie> da autonomia da obtew.;ão de pra-
d!'scjos. l<T <·111 rda(:ão à anuência da realidade, não pode deixar de ser reco-
11hccida nf'les.
Um ponto decisivo: o wnlw diurno não é um prelúdio do sonho noturno
Com efeito, os seres humanos de forma alguma sonham apenas à noi- llma psicanálise que considera lodos os sonhos apenas como carni-
te. Também o dia possui bonlas crepusculares, também ali os desejos se 1,IH >s para o reprimido, e a realidade sendo apenas a da sociedade burguesa
saciam. Difrrentcmentt' do sonho noturno, o sonho diurno desenha no ar , do mundo existente para ela, pode tranqiiilamenle definir os sonhos
repetíveis vultos de livre esc·olha, e pode se entusiasmar e delirar, mas tam- , 11111110s como meros prelúdios dos sonhos 11ot11n1os. De q11alquer· man<'in1,
bém ponderar e planejar. De maneira ociosa (que, contudo, pode ser muito , , 110cta munido de sonhos diunios é, para o b1 irgui'·s, apenas o coelho qne
semdhante ,t da Musa e· de Minnva), de persegue idéias p_olítirns, artísticas, do1 me de olhos abt-i-tos - e islo num cotidia110 burguês, que se V<' e se
dcntífü·as. O sonho diurno pode proporcionar idéias cpl<' não pedem in- .,plica como a medida de toda realidade. Mas se essa medida é qucst ionada
terpretação, e sim elaboração - ek c·onstníi castelos de vento com as plantas li<·· para o mundo da co11sciê-11cia, se alé 11H·smo o sonho noltirno des<:jante
_já desenhadas e nem semp1r mcram<·nte fictícias. Mesmo a c·,uic-atura do , considerado apenas como mna parle deslocada e não totalmente
devaneador é difc1n1tc da do sonhador: o dc·vaneador está no nmndo da li01nogt'-nea no c-nonnc- campo de um 111111Hlo ainda aberto e de sua
lua e, porta11to, de modo algum é aquele que dorme ,1 noite de olhos kdiados., , onsciência, ,·ulão esse sonho di11n10 não é 11,n jnefií.rüo do sonho 11olur110
Passeios solit,írios 011 e11l11sias111adas conv<Tsas _juvenis corn um amigo 011 a· ,. nen1 se rc-duz a este. Isso ainda sem cousiderar o seu conteúdo clínico,
ho1·a do Cl'epúsculo são especialmcnlc aprnpriados ,'i práti(·a do sonho des- para nã.o falar do conte1ído artísliro, do pn-11unciado1· <" frontalmc-ute
perto. O relato sohn· pequenos sonhos diurnos, com que este livro se ini- ·.: .111tecipador. Pois os sonhos 11011u-11os se· nutn·m geralmente da vida
ciou, proporcionou um breve panorama sobn· imagens n1ais leves, mera- ' impulsiva que ficou para lr,ís, de 111atrrial i111aKinúrio passado, quando não
nw11te intcrion's desse tipo. Agora, {- important<' investigar a estn1tura do ,m:aiw, e não acontece 11ada de- novo sob o clarão ele sua lua descoherla.
objeto, hem <·omo suas amplia<_·úe·s,jllstam<·ntc para que sejain compn-cndi- Seiia, portanto, absurdo suhsumir sob o sonho 11ot11n10 011 subordinar a
das suas tremendas amplia(Óes, e·o1110 veremos: a da esperança, esperial- ('lc os sonhos cli11r11os, sendo c-stes as prokpses da imagina<:,io que desde
111<·ntc no fator suhjc-tivo. Pois alé agora, surpreendentemente, a fantasia lcrnpos anlig-os de rato s,io chamadas também de sonhos, mas tamh(m de
diurna praticamc111c 11,io foi destacada cm tennos psicológicos como uma ;mtecipa<:Ôes. () castdo no ar mio é um jJt"f'lúdio do labirinto noturno: anlP.1, siio
condi~·ão origirníria, nem como um tipo próprio de realização de dcsc:jos, 0.1 labirintos not11rno.1 q11t'.fánna111 0.1 j)()rõe.1 do ca.1'/t'lo diurno no ar. E a pretensa

cheio do wishjúl thinhinK, o que não exclui a precisão, nem a responsabilida- igualdade ela ldicídade fantasiosa aqui e hí, como "resta11rac:,10 da autonomia
de _justamente do tlúnl!ing. J\ psican,ílis<', porém, faz uma completa <'<JHipa~ da ohtcm:ão de prnze1· em relação à anuê:ncia da realidade"? Mais de um
nl<:ão entn· os sonhos diurnos e os sonhos noturnos, e vê naqueles mera- 1 sonho diurno, lendo suficiente iniciativa e cxpcrii'·ncia, rdmbalhou a
mente uma forma incipiente dcslcs. Freud observa que realidade para que da desse s11a anuência. Em contraposic;;ão, Mod'éu tem
apenas os hra<:os em <pt<· clesc·,111samos. Portanto, o s011ho diurno exige
salwmos que esses sonhos diurnos são cerne e mo<ldos dos sonhos uma aprccia(ão espccílin,, pois adc-11tra uma ,Ü-ea bem distinta e abrf' as
noturnos. No titndo, o sonho noturno nada mais é quf' mn sonho diurno , 1
suas portas. Ek abrange desde- o sonho desperto do tipo cômodo, t1ivial,
<ili<' se· tornou aprovcit,ível pela liberdade noturna dos movinwntos rude, fugaz, despropositado e paralisante, até o tipo n·sponsávcl, engajado
impulsivos, um sonho diurno desfigurado pela forma noturna da na crnsa com ações precisas e o tipo modelador da arte. Sobretudo,
atividade psíquica ( Vorl,esu,ngen, l 9J!í, p.,117). f'Vickncia-se que o ato de devanear, difcTentenwute do sonho noturno
habitual, pode ocasionalmente conter tutano e, em lugar da ociosidade e
E cm uma passagem um pouco alll<"l'ior: até da auto-t·nervação do sonho noturno, apresenta urna pulsão infatigável,
a fim de que a antevisão também sc:ja concretizada.
Os produtos mais conhecidos da b11tasia são os chamados sonhos
diurnos, satisfações imagiu,írias de clc-s<;jos ambiciosos, de grandeza, Primeiro l' s11gundo caracteres do .\Onlw diurno: livre curso, ego pre.1er/Jado
eróticos, que crescem de modo tanto mais exnbf'rante quanto mais a Em primeiro lugar, é próprio elo sonho acordado não ser opressivo.
realidade exorta ao n-rn·,m1e11 to 011 ,, <'spera paciente. A essência da Ele está cm nosso podn: o eu d,1 a partida para uma viagem ao léu e a
suspende quando quer. Por 1nais relaxado (}li(' o souhado1 C'slq.1 m·sle • ·,, 11ll11dos para 11111 alo s,111g11i11.tno, <·0111 olhos bem abertos, apcsa1 do
raso, ele não é arrastado e dominado por suas imagens, el.is 11;10 siio 11.111s<· do haxixe; kvava--<>s para os exuberantes jardins do xeque, num
autônomas o suficiente para isso. É ve1dade que as coisas reais parecem • ,, ,·sM> de deleite sensual. E as imagens do haxixe aderiam com precisão a
abafadas, muitas vezes são desfiguradas, mas mmca desaparecem totalmente , .,,,<. 111rntclo exterior, cmno estando à altura do sonho ac·ordado, sobrek-
do alcance das imagens desC;jadas, por mais sul~jctivas que stjam. E as 1.111do-o, todavia, de tal modo acima de qualquer medida terrena que os
imagens do sonho diurno nonnalmente não são produto de alucinação, I' ,1·<·11s con1 o veneno da utopia no corpo a<Tcditava1n estar sentindo urn
de modo que retornam do devaneio mais longínquo ao 1ncnor aceno. .,111('gosto do paraíso - de tal maneira que estavam dispostos a dar a vida
Nenhum cncantarnento tem este poder, pelo n1cuos nenhum que o sonhador 1•< lo xeque para ganhar o verdadeiro paraíso. Sonhos de haxixe <'m co-
diun10 não tenha se imposto voluntariamente e não possa revogar. A casa l ,.1 ias humanas n1ais modernas são d(·sc-ritos c·orno de uma leveza fasci-
do sonho cksp<T1o só f mobiliada com rcprcsentaçôcs auto--c:s,·olhidas, ao 11.111lc, um certo espírito silfídico mio lhes falta, o asfalto da rua se traus-
passo que quem dorme mmnl sabe o que o espera alfm do limiar do 1, 11 ma c1n seda azul estcndicL1, <p1alquer passante pode ser transformado
subconsciente. J\lérn disso, o ego, no sonho diurno, 11cm de longe fica tão • 111 Dante e Pctran-a exlernpora11ca1ncnte entn·tidos em convcTsa. E1n
debilitado como lhe acon1ecc 110 sonho noturno, apesar de tarnbém haver ·,11111a, o rnundo torna-se um co11,-e1'1<> ideal para o talentoso so11hado1· de
relaxamento. Até m<·smo na forma mais passiva, cm <JUC o eu 1neramente l1axixc. Um outro tipo de leveza 11(10 falta ao tn111se do haxixe: "Planos
segue ou aco1npa11ha os seus cleva1u·ios, o ('ll assiste nos devaneios, 111 I rincados, n~ja resol11c;iio parecia impossível até ac111ek momento, o
pennarn·ce11do intacto no cont(·xto ck sua vida e de st'll mundo a('(>nlado. 111<livíduo cri'· estarem audaudo diante cldc, destrinchados e n1mo ,1 sua
O <'U do sonho 110111r110, cm contraposic;:ão, pode ser dissolvido, muitas , ourrctiza<;ão" (Lcwiu, Phw1.la..1/ii:a, 1927, pp. 159 e ss.). Tamh(m a ma-
vezes torna-se como 11111 caldo: não s<·11le dor alg-111na, não 1no1Tc quando 11ia de gra11deza se manifesta tnnporariamentc·, o desempenho anl<'cipa-
sofre a morte, A dif'<·n·1H:a entre o s<:J"-ell no sonho noturno e no sonho do, quase como 11a paranóia. Bem difen·nte é o trans<' do ópio, o
cliuruo ( tão granel<- que j11slame11tc o relaxamento, do qual par1icipa .1dornwcimc11to total do ego e do mundo exterior: nek, 11;10 h,í nada
também o cu do sonho diurno, pode res11lt.ir numa sensação de exaltac;:iio, .d6n ck sonho noturno, até o fundo. Em lugar da asn·u<Jío imagimíria
;1i11da qm· qucstiomível, pois <·nt,io o eu torna-se mn ideal desejante para si do eu, da sc11sa~·ão de alívio do mundo ao redor, alívio voltado para a
mesmo, libertado da n·11s11ra. Assim, ck aproveita o sinal verde do rdaxa- 11lopia, 110 transe do ópio tudo está subn1erso. Assim, abre-se um cspa(o
111ento, <1ue pan-<T f<·r naseiclo para lodos os demais ideais desejantes. O C"ornposto por um subconsciente encoberto, particularmente confuso:
rdaxame11to elo c·u no sonho 11ot11r110 é apenas submersão, enquanto o do mulher, vohípia, caverna, tocha e meia-noite se aglomeram, geralmente
sonho diurno ( ekva(.',io aeolllpanhando a 1·evoada. Desse modo, at( as num ar pesado, denso. No ópio, é o esquecimento que age primeiro, e
droga., que provocam artificialm<'Hte os dois gêneros de sonho são distintas, 11ão a luz. Em cunafcus antigos, é a Noite que concede a Mmfeu a pa-
o <1m· significa que, até m(·smo no nível farmacológico, nos estados fant;íslicos poula do ópio. A s(·rnen1c da papoula estava nas mãos das sacerdotisas
estimulados artilkialllleule, a fantasia do cérebro adormecido eom o telúricas para anestc·siar a dor. Nos mistérios de Ccrcs, era ministrado o
obsnireci111e1110 do eu difere ela fantasia do dia. ~fais precisamente: o ópio Letes, corno a ,íg·ua opiácca do esquecimento. A própria Ísis-Ceres é re-
aparece associado ao sonho noturno; o haxixP, ao sonho diurno 11utuan- tratada pela J\.11tig11idadc tardia com bulbos de papoula na mão. Ainda
do, csvoa~·ando em libt'rdadc. No transe do haxix<' o ego é pouco altera- que Ba11<lclain· designe as ;;Í.reas de transe do ópio <' do haxixe igualmen-
do: o seu natural aspecto individual e o intdt'cto mio são atingidos. E111bo- te como fmradi.1 (l,rf~jiâels, a do haxixe é e eonti11uar;.Í sendo a única den-
rn razoavelmente obstruído, o nnmdo exterior nunca é romplctamc·nte tre esses encantamentos malditos associados patolog-icamcntc ao sonho
bloqueado, como 110 sono ou até no sono do <>pio: é interditado apenas na acordado. Jsso basta para ilustrar uma dih-r(·nça mesmo a partir das
medida cm que 11i'.ío se coaduna com as i111agc11s que surgem, em que sua enc1vaçücs - as de Morl<:u aqui, as de Fântaso acobí.
i11tc1ve1H,:ão pan:ce apenas tola. Em co11lr,1pa1·1ida, 1m1 mundo exterior Portanto, no sonho desperto, o eu se ern·o11 l ra cheio de vida e anseios.
que adentra a fantasia e parece correspo11dcr ao nível do parnaso ou do Quando Freud comenta que os sonhos di11n1os seriam todos eles sonhos
país das marnvilhas, com jardins, cast dos, cst radas de beleza vetusta, esse de niauças, dotados apenas de um eu não adulto, trata-se de uma concepção
mundo se mostra até bastante aprop1·iado para animar o sonho do haxixe. limitada e fundamentalmente falsa. É certo que neles, ocasionalmente,
A seita xiita dos hashi:,hin ou a,1.1a,1.1i11m, seita religiosa de homicidas da podem influir reminiscências de um eu infantil maltratado, inclusive
ldade Média árabe, liderada pelo xe<pw da montanha, conduzia os jovens complexos de inferioridade infantis; mas cks não constituem seu núcleo.
<) po1 t.11101 dos -;011lios diurnos esl,Í pk110 da vonladc l'011sci1·11tc- ,pw p1-i-- , 1, ·,1w1 lo 111;1is 1·011111111 e'. h;1biL1do se111 escrúpulos por Cil'C'e, que lra11slor-
111a111-cc co11sciC'nt<' para uma vida n1elhor, ainda c1ue em grn11s dil1..-c11cia- ,, 1.1 ••~ .s<T<·s l11unanos ern porcos; pelo rei lvlidas, que transfonna o rnundo
dos, e o herói dos sonhos diurnos é sempre a própria pessoa adulta. Quan- , 111, 1111 o - sc1npre ignorando as regras de cornporta,nento, de fon:na tanto
do César compareceu diante do monumento a Alexandre em Gades e, 111.11.~ 1101,ível porque aí a rela(ão com o mundo exterior mmca é desfeita
repleto de sonho diurno, exclamou: "Quarenta anos e ainda não fiz nada , , n 11<, 110 sonho noturno. Mas todo esse sohrcpujarncnto só é possível por
pela imortalidade!", o ego que assim reagiu não foi o do César infantil, , .111.~;1 do ego inalterado do sonho dcsperlo, mais precisamente por causa
mas aquele do César feito e que viria a ser. Seu eu olhava tão pouco para , I,, 1,jórç:o utopizanteque o <'U do sonho diurno lraz para si mesmo e ao que
trás que é possível afirmar que nesse sonho ck imortalidade nasceu o César li w <'orresponde. De modo que o sonho diurno não venha a se consumir
<1ue conhec·emos. O ego está presnvado sempre na fon:a adulta, como , 111 quirneras corno as de Circe e· Midas, 011 até em c·xn·ssos parliculan·s,
experit'·1icia adulta ck 1midad<' de processos psíquicos conscientes. Mais 111.1s atingir compromissos mais elevados que envolvam a todos: dar 1únna
ainda: de é o moddo dacplilo que um ser humano utopicamcnte goslaria .1 11111 mundo melhor. Mas esle só aparece quando um desses sonhos diur-
de ser e tornar-se.Justamenlc nessc ponto de é difrn-nte do cu do sonho 11os atinge a seriedade que lhe co1n·spo11de, o plano da sabedoria e da
noturno, e muito mais do c·u totalmente allerado do sonho do ópio. Em , ,pcliência. O menos comJH'tl'llle par,1 isto é um ego alterado, como o do
Freud, corno se· h,í de kmhra,·, o <'II do sonho noturno permanece prcsen- 11,111se noturno. O ego competente tem rntÍsnilos retesados e cab('(:a fria, é
lc apenas na medida c·m <)ll<' ohiiga as realiza(<><'S al11ciuadas do desejo a 1111buído d<' uma vonlack d<' cxpans.Cío inabal,ívd e· se· 1mmtém alenlo a
se disfan:arcm diante do sc·11 olhar desse modo, de exerce mua censura 111do.
moral, ainda que com lacunas. O cu do sonho clespt·rlo, e1n conlrap,u-tida, '
não foi destituído, nem <'X<T<T <tualqu<T censura sobre os conteúdos 'f"effrim r-arátn do sonho diurno: a 111rlhoria do m1w.do
l'n'<jÜt·utementc m"io c·ouvcnc·iom1is do seu destjo. Ao conl"rário: uclc, a O <'II do sonho despe rio pode se· expandir a ponto de rcpresenlar os
censtmt não cst,í apenas debilitada <' cheia de lacunas, como no sonho outros. Desse modo, chegamos ao l<T<Tiro ponlo que dilc-rencia sonhos di11r-
noturno, mas cessa totalmente, apesar da grande resistência do cu do so- 11os e noturnos: a amplitude hmnana. Q,uern dorme <·sl,Í sozinho com seus
uho diurno e justa111entc por causa dela. Cessa justarnente por causa do tesouros, mas o ego dl' quem devaneia podl' se· n-portar aos dt'rnais. Assim,
ideal dcs<:jante que o próprio <'li do sonho diurno assume e rcfon;a, ou ' se· o l'II aha11do11a a inlrovcrsão ou o rclacion,11nc·11l0 t,10-só co1n o c1Lton10
pelo menos aprimora. Sonhos diurnos, portanto, não dispõem de qual- mais imediato, o seu sonho diurno visa à melhoria ptíblira. Mesmo os sonhos
quer tipo de censura imposta por uni ego moral, corno acontece com o de nalureza individual enquadrados nesse tipo se debn1(alll sobre a vida
sonho noturno. Ao contr:írio: o seu ego utopicamentc sobrcexaltado edifica 1 interior apcmts por pretenderem melhorá-la c·m conjunto com outros egos,
a si meSHl<> e seu eastdo no ar num azul nnütas vezes surprccndenteme11l c sobretudo ao se· nnmiciarcm para tanto com o material de um exterior so-
kvc. Isso se mostra muito claro nos n1des devaneios íntimos, e de modo nhado como pnfri<:;,'io. Assim instnü o quarto livro das Conj'i.1.1rir.1 de Rousseau:
bem mais visível que naqueles que se orientam por plaHos detalhados 011
traçam o caminho do futuro. Q homem comum sacia sua vingança ou cksc- Enl'hi a natureza com seres de acordo com o mc·u cora<;iio, criei para
ja a morte de sua esposa mal-amada quando, num sonho desejante, aberta- mim uma idade de ouro de acordo c01n o 111<·11 gosto, r<'cobraHdo a
mente sai em viagem de núpcias com uma mulher mais jov<'m, e não scnt<· 1111·11Híria de vivc~ncias de dias passados, às quais se· ligavam kmbran(:as
qualquer remorso. Ele não faz expiação por nenhum prazc..-, nem dcs<'n- doces, e· pintava com cores vívidas as imagens ela fefü·iclade pelas quais
volve qualquer angústia pela realização imaginada desses cks<:jos <-xccrados, cu podia ansiar. Eu imaginava amor e amizade, os dois ideais do meu
como substituição à censura. Tanto mais um sonhador ambicioso deixa cora<,:ão, ern suas fonnas 111ais encantadoras e as adornava com todos os
livre curso aos seus desejos: ele al(a vôo com asas estendidas rumo ao atrativos da mulher.
templo da fama, quer st;ja ele um César ou, como é n1ais co1111Im, um
Spiegelberg.ª Tampouco scnlc cp1alquer censura e, com exn•(ão dos obstá- Até da névoa .flutuante do fantasmagóiico surgem vullos que atraem
culos exte1iores, não se mostra maleável a qualquer entrave, sequer ao o ego para o seu ân1bito, corno sendo um âmbito exte1ior melhor ern que
1idíc11lo e muito menos à angústia de um Ícaro ou Prometeu. O sonho milhões são incluídos. Os sonhos de um mundo melhor como um todo
buscarn a exterioridade de sua interioridade, aparecem corno arco-íris
Vilão de O, sa(/{'{Jdore.,, peça de Schiller. extrovertidos ou em for:ma de abóbada. Neste ponto, repete-se, ao mesmo
l('111po, a associa1:;io difen·nci;ula <"Ili I'(' sonho 110111r110 <" .~011lio d11111 ,., qt1<' 11ilicados ck <'sq11izofre11ia e parau<>ia. Em suma: se a esquizofrenia clcsig1~
havia aparecido acirna entre ópio e haxixe - mais pn·cisa1111·11I<', da S<' o adoecimento ( exageração desfocada) dos atos de regressão arcaica, 11,
repete em psicoses. O caráter opiáceo do sonho noturno se mostra de parnn6ia produz o mesmo nos atos de progressão utópica, especialmenti1
modo correspondente na e)quizofrenia, como sendo uma regressão, e o na tendência do sonho desperto para a rnelhmia do mundo. Essa é a razão1~~'
caráter canábico, na paranóia, como sendo uma ilusão projetiva. Na ver- de haver tantos desses doidos entre os pn~jetistas e pelo menos alguns entre •i1
dade, cssas duas enfennidades assim caracte1izadas não devem ser rigoro- os grandes utopistas. Quase toda utopia, S(ja médica, social ou técnica,
samente separadas: por vezes, as suas características se interpenetran1. As possui caricaturas paranóicas. Para cada autêntico pioneiro, há centenas
duas constituem afastamentos extremos da realidade presente ou palpável, de fantasiosos, irrealistas, lom:os. Se fosse possível pescar as alucinações
sendo que a esquizofrenia { uma cisão n·al em relação a ela com retorno que nadarn na aura dos 1nanicômios, seriam encontradas ao lado do arcaico
obstruído. O esquizofrênico se solta do mundo e retorna ao estado autístico- da esquizofrenia, que se ton1ou demasiado famoso por meio de C. G.
arcaico da inf:c'incia. O paranóico, no entanto. ao menos tini dcss<· estado Jung, as prefigurações mais admiráveis da paranóia. E entre estas não se
muitas de suas ahl<'irnu;ões, cp1e de forma alguma estão distanciadas do encont1·a nenhum símbolo noturno latente, corno coração no laguinho,
mrnulo, antes buscam sua mc-lhoria. Todavia, freqüentemente a paranóia poço da crucifica~·ão e outros arcaísmos da esquizofrenia em pintura ou
acaba cm esquizofrenia: cntn· as duas enfcnnidades há uma inc:onfündível poesia, e sim novas composic;ôes, transfonna<:Ões do mundo, pn~jctos que
<lifr1·c1L(a de oricnta<}io, possível de sn ddinida pdo asp<-cto utópico. avau~:am, em suma, con~jas de fog'O <k uma Minc1va louca, n1as cheia de
Mesmo que a psico,<;c seja, de modo geral, um invohmtá1io prosseguimen- vontade de faze,· luzir a aun>ra. Portanto, não obstante esse grau de
to da c·onsciê-ncia para uma i1n1p<;ão do inconsciente, o inconsciente para- adoecimento, ainda se <·vidc-ucia a importi'incia do sonho despc1·to em seu
nóin> 1nostra, ainda assim, em <·ompara(:,'io C'0lll o esc1uizofrênico, 1nar- aspeC'to <·sp<'cífin> de- nwlhoria do nmtH!o. Como loucnra, ele gera con1jas
gens utópicas. O csquizofrê-nico est;í indefeso, à mercê de poderes que lhe de fogo. Corno conto, pinta sohn· o m111Hlo pahídos árabes, repletos de
sohn·vé'm, completamente aturdido, situado entre as regressões de sua lou- fadas, feitos de 011m e jaspe.
cura, no período arcaico, pintando, rirnando, balbuciando a partir doso- Par;1 o sonho desperto como sonho amplo(, importante, alún disso,
nho extraviado desse período. O paranóico, ao contrário, reage aos pode- com1111ic·,ll'-S<" com o que cst,Í al{m ele si mesmo. Ele { c·apaz disso, ao passo
res que lhe sobrevieram com queixumes e mania de perseguição <', ao que o sonho noturno, corno qualcpl<"r vivê-ncia exfr('lmuncnlc pessoal, só
mesmo tempo, dissipa-os com invenções aventurescas, receitas sociais, es- pode ser relatado com diliculdadc, isto é-, de tal maneira que também ao
tradas celestiais e muitas coisas semelhantes. Análogas diferenças entre os ouvinte sc:ja transmitido o tom especial das sensa~:t><·s ligadas ao tema. Em
movimentos para o fundo e para o alto, entre obscun:cimento e excessiva contrapartida, os sonhos diurnos sáo compreensíveis já por sua evidência,
<·xposi(ão à luz, parecem agir quando o para-o-fundo e para-o-alto da co1mmicávcis j,í po1· seus ideais de interesse geral. Nos sonhos diurnos, os
<'OBsciênC'ia neurótica se tornam delírio - quando, portanto, borbulha a ideais assunwm forma exterior imediatamente, num plall(:jado mundo
n-gn-ssão atf o esta1·-forn-de-si do êxtase, borbulha o projetar-se at{ o melhor 011 ainda 1111111 rn1rndo esteticamente elevado, sem desilusão. O
arrebatado estar-acima-ele-si. Conhecedor da má consciê·nc-ia dos poss11í- próp1io Freud dá aos sonhos diurnos, nesse ponto, m11 acento próprio:
clos,.Jâmhlico, o ncoplalônico sírio, anuncia algo sobre esse para-o-fundo e eks se tonmm, ao c:ontrá1io de um acordo, ao rnesmo tempo prelúdio do
para-o-alto no seu texto sobre· os mistéiios: sonho noturno e prehídio da arte:

Supús-sc totalnw11tc sem razão que o arrebatamento Iam bém pode ser Eles são a matéria-prima da produção po{-tica, pois dos seus sonhos
alcançado pda influência dos demônios. Estes últimos proporcionam diurnos o poeta <Tia, mediante certas modificaçõe-s, disfarces e
apenas êxtases, ao passo que o arrebatamento (entusiasmo) é obra dos n·1níncias, as situações que emprega nas suas novelas, rornances, peças
deuses. Por isso, ele de forma alguma é êxtase. Arrebatamento é, antes, de teatro ( Vor/,esungen, 1922, p. 102).
uma guinada para o bem, enquanto o êxtase é uma queda em direção
ao mal (De mysteriis II, 3). Aqui, Freud tangenciou a wrdade do utópico-niativo, da consciência
direcionada para a novidade boa. Porém, o mero conceito diluidor subli-
Estas são explicações rudimentares e mitológicas, mas o que está em nu.tçúo, que ocorre logo em seguida, mais uma vez desfigurou a psicologia
sua base repete, no campo religioso-parapsíquico, a diferença entre os sig- do novo. Todavia, o sonho diurno, em seus aspectos comuns, estende-se na
,11,1 di1111-n.11io trio 1!11,f.!," 11111111/0 /110/11111/11, 11:10 ..;11l,li111.11l.1 e· ~1111, "'", 11l1;1<la, ·., ,11lto 1101ur110 <'sl;Í t;io dislanl<' de I udo isso q11a11to posSIV('I: 1·111 .~11;1 i11 w1 ~;11,

na sua clin1ensão utópica. E da coloca o 1t111ndo 111dhrn ig11.d111C'111t· c-01110 , "''' c11·;ítcr arcaico, de tnostra unica1ncnte inragens p1·é-l<íg-in1s, c·o11 H, ( :11, ·
ornais bonito, em ünagens rnais compktas, corno a terra w-,o as comporia 1:01 ias de uma sociedade que existiu há muito tempo, nenhuma i111ag-('111 d('

ainda. Plant:jando ou dando forma, em meio a necessidade, dureza, crueza, 11111 <"osmo racional. As antecipações e intensificac;õcs referentes aos hon w 11~
banalidade, são abertas luminosas janelas para o longe. O .\Oriho diurno 111opias sociais e de beleza, até de transfiguração - estão ambientadas ;1pc·
como jJmlúdio da arfo visa assim, de maneira especialmente significativa, à 11.1s 110 sonho diurno. É antes de tudo o interesse revolucionáiio, com sc-11
melho1ia do mundo; <' esta aspira<:ão saud,ívd e realista que constitui seu , e>11hecin1ento de con10 está ruirn o mundo e seu reconhecin1ento do quanto
cerne: "Na frente, <·orn o olhar cabisbaixo, o sofrimento ela terra,/ abraça- "1<' podeiia ser bom como um outro mundo, que necessita do sonho dcsp<-r-
do à alegria, fig1ll'a dos sonhos" - assim Goltfricd Keller designa, cm 10 da melhoiia do mundo: ek o fixa na sua temia e sua práxis de modo

P<wfrnlod I MortP do podal, os c·ompauheiros do poeta, junlanwnte com a lolalmente a-heurístico, totalmente aprop1·iado ao tema.
fantasia e seu humoL A p,ll"tirdo sonho diurno, a arte contém essa nature-
za utópica, não para tudo dourar kvi,marnc·ntc e· sim para l<'r dentro de si (!_11arlo rw'âür do sonho diurno: ir até ofún
tamh<~lll a priva<:,"io, qll<' com nTlcza não scd superada ap<'nas pda arte, Em quarto lugar, o sonho desperto, ou sc;ja, aberto para o mundo,
mas não será es<pt<'<·ida por da, sendo envolvida pela alegria como uma ~ahc não S<' absl<T. Ele se n·c·11sa a se· saciar l'icticiamcnte ou ainda
fónna vindoura. O sonho diurno entra na rntísica e <'Coa na sua casa invisí- ('spiritualizar clcsc:jos. A fantasia diurua, assim como o sonho noturno, tem
vel, mas uma casa qu<' f'az pari<' da expa11s;"io do m1111Clo, e· agora ele está os des<;jos como ponto de p,ll'lida, mas vai com dcs até- o fim, quer chegar
11cla, como sonho dinfünico e expressivo. Ele in<·oq>orn a ultrapassagem ao lugar da rcaliza<:;'ío. Dois sonhos dinn1os I ípin>s de poetas fazem parte
dos li111ilcs, desde o salteador 11ohr<' ;11{- o Fausto, todas as situa(Ües ideais desse contexto, pois ck:-; apr<'sentam ess<· l11gan·omo h<'m prototípico, não
e paisagens ideais, desde a Aurora cm óko até os cfrnilos simbólicos do obstante toda ekbilidadc <' l'ug.i. Os dois sonhos diurnos, afü'is de poetas
Paraíso. Na grande arte, os S<Tes hurna11os <' as situac;ôes são levados à serenos, fazem parte deste fontexto tanto mais ponpt<· visam a 11m ponto
última conseqüência cm vir111de cio sonho cli11r110 levado até o fim: o <·onse- ele chegada, e 11:-io S<> a urna cligrc-ssiio de mdhmia do 1111111do. Um procede
qii<'lll<' e objetivamente possível torna-se visív<'I. No caso dos poetas n·alis- ela inlfü1<-ia de Ckrncns Bn-ntano e· o outro, da_jnvc11frnk de Môrike. Eles
las, essas possihilidaeles objetivas se ton1am muito daras no mundo por dcs já conti':m lodos os gnrnes de 11ma paisag<'m po<'-tica ideal. Depois de
n·pn'S<'lllaclo. Não por fazerem ela natureza algo fantástico, mas por id<'11ti- Brcntano, sua inuii lkttina e· mitras <Tia11<:as havcn·rn edificado para seu
lic11n11 na natnn·za e na histó1-ia, pela fa111asia associada ao concrelo e ao uso, no sót,'io ela casa em Frankfurt, um r<'ino denominado Vaduz, foi,
anlecipató1io, o sonho de uma causa, o sonho que a causa tem sohn' si corno de diz, como uma expulsão do paraíso quando licou sabendo, mais
rn<·srna e faz parle de sua lendhu:ia, bem como cio resultado do seu lo/um e tarde, q11<· _Va<l11z realmente existia e era a capital do principado de
da sua e,.,rncia. Todavia, onde a fantasia <'Xtrove1·1ida falta completamente, . 1 Liechl<'nstcin. Mas houve o consolo da vdha müe de Goethe:
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como no caso dos 11al11ralistas e· daqueles <pte E11gds chamou de "asnos ela .,
indll(:ão", ali apareccrn apenas mattn:1 offiut e contextos supediciais. Assim, ·, Núo le' deixes c11ganar, cr'ê--me, a tua Vaduz é- tua<' não est;í t'mnenhum
1
c·m toda p,ll'l<' o so11ho desperto e a expansão do mundo são pressupostos ela : mapa e· nem todos os soldados da ddade de Frankfurt e nem mesmo os
obra de a11c executada wmo n.:fm-imento imaginário o mais próximo po,1.1àwf da ' cavaleiros da corte liderados pelo Anticristo podem tomá-la de ti( ... ).
jJerfi<:Üo- e não só da obra de arte. No final, lamhé-m a ciência só consegue , O teu reino está nas nuvens e não é desta te-na e, toda vez que ck
avan~·,11' p,ua além do contexto superficial por meio de uma antecipação, e i entrar <"m contato con1 da, hígrimas choverão(' cu cles(:jo um arco-íris
dt) tipo es1>ecífico, cp1<~ s6 pode consistir 11as cl1an1adas "sl1posições" l1eu1ísticas, · 1 ahc-11~:oado.
que visualizam urna imagt·m puramente esquemática do c01~j1mto, ainda à
pai·te dos detalhes. Mas antes tambén1 pode ocoITer uni sonho desperto de O relato de Mõrike, conccrncnl<' à transição direta da fantasia diurna
uma perfeita relação hannônica com a nalllf'<'za: Kepler intcndonava essa para a poesia, encontra-se no seu romaHC<' Maler Nollen I O pintor Nolten] e,
perfeição do mundo e dcscobiiu as leis dos movimentos plan<'l;í1ios. Certa- como autobiografia transposta, tem o seguinte teor:
mente a realidade dessas leis não coJTespondt·u ao sonho ela pnfeição das
esferas harmônicas, mas ao rneuos o sonho veio antes, foi 11111a estünativa No tt·mpo em que ainda freqüentava a csc·ola, eu tinha um amigo c-qja
de nm mundo ordenado de fonna totalmente equilibrada. A regressão do maneira de pensar e busca estética andavam de mãos dadas com as
111i11h.1~. Nas ho1 .is livres, L111,11uo~ o q111· 110-; vi11h,1 ., , .d M, ., 1 .ogo ( 1i., .. S<' ;1 .ut(· li,ss<" c·m toda p,ll'te (' em lodo tempo o 111(·s11101p1<· p111.1 ('
mos para nós mna cslcra poética própria ( ... ). v,·vidas. -;(·11.1:,, .1111<·111icas, , l,·s1 0111pro111issada conlcmplação formal, a pa1·tir da poltroua •·· poria 1110,
ainda estão todas diante do meu espírito as figuras da nossa i111a~i11ac;ão, <' dgo !'01110 uma apreciação leve da arte-, então a doutrina elo panp1e clc-
se eu pudesse jogar na alma de uma pessoa um único raio do sol poético 1•1 (·snva(ão ambiental estaria correta, e a ela se somaria um tipo de lilH'1-
que nos aquecia naquele tempo, dourado como era, esse alguém não m<· ' l.,dc- de loucos com o propósito de proporcionar prazer- do clube nol 111-
recusaria uni agrado bem-hmnorado e perdoaria até mesmo ao homem 110 .1té a galeria nacional. Porém, nem a burguesia esteve sempre co1~jlffa-
maduro se este ainda desse um passeio pela paisag<'m olorosa dessa poesia ' Li com a platéia contemplativa: ela havia sonhado certa vez com a educa-
e até mesmo trouxesse consigo um pedaço de nx:ha antiga da amada 1 1 ' .10 estética do homem - logo, com uma arte que toca, que provoca - e

ruína. lnventan10s para a nossa poesia um d15o situado fora do mundo ' 1
!j , 0111 uma porta cotidiana para o belo. O realismo socialista tem muito
conhecido, urna ilha isolada que teria sido habitada ponun vigoroso povo 111enos ainda em comum c·om urna apreciação filistéia da arte, ou até com
de heróis. A ilha se chamava Orplid, e sua locilização era imaginada no 11111 "reservado subtraído ao princípio da realidade". Para Freud, a realidade

oceano Pacífico, entre a Nova './.,e];'i.ndia e· a /\mé-rica do Snl. .,parece como inaltenivd e· mecânica, cm consonância com a visão de
11mndo do século XIX. 1~ _justamente dessa maneira que o sonho diurno
Até aqui, a Vaduz dt· Bn·ntano, Ji.mdada 110 sót,"io infantil,<' a Orplid qtópico, especialmente como ida att o Jirn, torna-se· reflexivo ou, falando
de Mô1ikc, transfe1ida para tão longe. A mera associa(,'ão do sonho diurno ,,·m termos psin>lógi!'os, puramente introv<Ttido, assün con10 o sonho
com a cp1inwra noturna ou tan1bém com a arte como brincadeira é a que noturno. Para C. G. Jung, essa intl'OV(Tsão pn·cisou apenas ser escavada
menos fazjns a essas 011 st·melhautcs atcn-issagcns da fantasia, pois vê- nelas verticalmente- para transl'erir Orplid para o arcaico - do parque de
apenas sublimaçô<·s 011 até n·grcssão arcaica, cm lugar da t,entatíva de preservac;ão ambicnlal pan1 o terriáiio. Desse modo, a aterrissagem da
articula<,·ão de um conteúdo utópin> da <'spenm<,·a. Para Fr·eud, ess<'s con- fantasia foi possível somente <·orno arquetípira, ou sc:ja: em.Jung, somente
l<·tídos não ti-m qualquer nnrdato no mtmdo exterior (que, para a bur- 11a terrn do mito, há muito tempo submersa. Contra tudo isso, porém, está
guesia tanlía, de fato deve ter 111na apa1fncia de sobriedade e nulidade decisivamente- <·stahckciclo que Vacluz e Orplid, ou o <pw se tem cm mente
muito carregadas): a ,H"te <·01110 11111 todo é aparência e a religião c·omo um ,\; com esses radicalismos, 1111,0 jnocarnu rwnh-iw,. ou.tm li,t[.;ar fmra su.a realização
todo, ilusão. Essencial ao sonho diurno, especialmente na ida até o fim, é · , , a rl(i,o sn o .fúturo. A transferência dessas imagens fabulares para um era-
o o fato de a serfrdack ck uma pré-aparê·ncia [ Vor-Schein] do real possível .··! uma-vc-:t. também faz com que o outrora como viudotll"o sempre reverbere
1 miiglich Wirl!.lú:lud estar bloqueada para ele de modo quase , no outrora como passado. A transfrrênda para vaks isolados ou ilhas dos
dctenninanl<' que para o sonho noturno, que pelo n1enos apresenta sc·us· 1.,: mares elo Sul, c·omo foi o caso em romances mais antigos que descrevem
sintomas. A simples e· habitual teoria ilusó1ia burguesa do sonho diurno . i:~ um Estado ideal, também implica o futuro longínquo, o destino utópico da
deixa nck e c·m torno clc-k espaço d<' manobra apenas para infantilismos e ·''Íj viagem na disl,11u·ia. Também o fundamento realmente affaico ela memória,
arcaísmos ck uma bela brincadeira: :.:j ao qual n·montam tantas imagens da esperança - a salwr: os arquétipos
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idade de ouro e j)(1,míso -, situ.a-sc como algo aguar-dado, no outrora do
Na atividade fantasiosa, portanto, o ser humano continua gozando da ::;1 tempo. A"sim,jnntam<'nte com <·entcnas de pequenas e grandes pérolas, o
liberdade cm relac,:ão à coação externa, à qual ele na realidade há :;,j oq>líclico pende do fio vcn:ndho da utopia onírica, pouco investigado, que
muitojá rc·mmdou... A niação do reino psíquico da fantasia encontra ,:, constantemente lhe dá coesão. Ele é mantido coeso pela intenção voltada
sua contraparlicla perft·ita na instalação de áreas rcse1vadas, parques para o perfeito, quaisquer que sc:jam os conteúdos variáveis desse perleit.o,
de prole<,·ão ambicnlal, lugares onde as exigências da agricultura, do pintados até agora de acordo com as respectivas classes e sociedades. Desse
trânsilo e da indústria ameaçam tornar rapidamente irreconhecível a ,. modo, a vontade de ir até o fim bem-sucedido scmpr·e pervassa a consciência
face original <la terra. O parque de proteção ambiental conserva essa utópica, colore essa consciência com inesquecíveis seres <le contos de fadas,
condição affaica que, em toda parte, com pesar foi sacrificada à :,1,
e vigora ainda nos sonhos de uma vida melhor, mas a suo nwdo também nas
necessidade imperiosa. Tudo pode medrar e crescer ali como hc•m '· obras de arte, o que finalmente tem de ser compreendido. A fantasia d<"
entc11der, mesmo o inútil, o nodvo. Tambhn o reino psíquico da fantasia ' melhoria do mnndo aterrissa nelas não apenas de modo que todos os serC's
é dessa espécie de reino resc1vado, subtraído ao princípio da realidade humanos e coisas sejam conduzidas até o limite de suas possibilidades,
(Freud, Vorlesungen, 1922, p. 1116). com todas as situações esgotadas e detalhadas em sua forma. Antes, toda
grande obra de ,11"1<', para além da sua ('SS("-1u·ia m,111iksla, .1i11cl., 101 c·o11c e· d(, .11 w;ic lur. 1 Lí 11a noil<' 11mjogo de cores que tambén1 pod(' ('Xisti, d11ra111<·
bida sobre uma latência do aspecto vindouro - vale diz<'r: sohrt' os 1·011l<'tÍ•· , • d1.1, qt1c se p:,n·ct· con1 algo raro e, sern dúvida, tan1béi11 pod(' ser rcprc-

dos de um futuro que no seu tempo ainda não haviam surgido. Em úhima ·•·11t;1do dessa forma. Estão disponíveis notáveis coletâneas desse tipo,
am-ílise, sobre os conteúdos de uma situação final ainda desconhecida. Essa l• 1wdridt I Iuch publicou cem desenhos com o título Son/w) e uma raridade
é a única razão por que as grandes obras de cada período têm algo a dizer, , ..,, wcialmente intrincada, o romance Die andere Seite [ O outro lado], do
e ck fato algo novo, que o período antc1io1· ainda não havia percebido dn,c·11histaAlfred Kubin, originou-se preponckrantemente da lua e do sono.
ndas. Essa é a 1íninl razão por que a flauta m,ígica do conto e a Divina 111vcrsarnente, também poesias diurnas podem muito bem acolher sonhos,
comédia fixada com 1igor histórico possuem "etcn1ajuvcntude". O impor- dl' maneira extren1arnente notável e hda até mcsn10 no caso do realista
tante é, como disse Goelhe, o "sentido de irradiação de longo alcance" 1-i.l'ller. Eles são relatados como qual<pH·1· outro evento, mas, sem esforço,
dessas grandes composi(.'Ôes da fanlasia, mediante o qual das, na realidade 11111dem-se com a prodigalielaclc sólida <' <·ncrntadora cm que s<· encontra
dada, ainda mant<'tn ahcTla pdo ntt·nos uma saída, ocasionalmente o Ioda visão em Keller. Pouco antes de S<'II t,·is1<' retorno ií p,ítria, o
vishunhre de um cm-absoluto 11,in ÚbnJwuptl. Sc·ndo <ptc as grandes obras protagonista I kmi<111<·, ele Kdler, cai mima V<'rcladeira orgia de sonhos,
de arte (portanto, ,·calistas) não se tornam menos e sim mais realistas pela , .-.(·11do todos eles r<'<Timinadoras n·alizac:ôc·s d<' desejos. Faz parte delas
indicação da latência, pelo cspac:o do cm-absoluto - como qu<'r que este llllla visão da ciclad<· natal, trnnsfiguracla, tra11sfonn;1da, 1una incrível imagem
tenha passado em branco, pois todo real transcorre com um ainda-não ;1érea do te1n·no, 11a qual não se pod<' t'H1rar. Surg<'m vaks e· rios <·01n
nde contido. Composic;óes significativas da fantasia elo sonho diurno não , nomes ina11di1os, mas bem conlwcidos,_jarelins de rosas migram para longe,
proch1zem bolhas d<' sabão: das abrem_janclas e, por trás destas, o mundo l'spalhando sua ('01' 110 hodzo11k: "a i11<·a1Hks('tncia elos Alpes se d<'sloca e
do sonho diurno {- no mínimo uma possibilidade a que se pode dar fonna. rodeia a p,ítria". Ela é clifncnl<' do róseo matinal vívido de outrorn, quando
I l.i, por1anto, difrn'll(.'as sulkicntcs entre esses dois tipos de sonho 1amhém· , l Ienrique V<'rde saiu de sua cidade nat,11 t·, ,i,í nas montanhas, vollou os
no <pw se n·frre a esse- fim. Ndes, modo e conteúdo da realizac.:üo do olhos p,11,t 1nis: "ap<'nas sobre o último aliar g<~lido ainda ardia a C'strda
desejo divergem inclis[a1\·avclmente. Disso decorre, de maneira 1·citcrada, da manhã". Agora, a luz vnn elo [ Iadcs, apr<'scnta-sc corno <'ss;1 única
<111<· o sonho noturno se passa em regressão, sendo atraído a esmo para esp<'rau~·a <til<' n-sto11. Smw· a casa da m,t<·, m,1is proprianl<'nt<· a sala de
dentro de suas imagens, enquanto o sonho diurno projeta as suas imagens es1arvirnda para fora, na [><'tllllnhra, inc·s<JH<TÍvd. Somente o sonho 110111rno
em coisas li.it uras, de forma alguma a esmo, mas passível de ser direcio1 iaclo, .· fon1<"cc matéria-prima e imagem pa1·a isso:
por mais intempestiva que s~ja a imaginação, podendo ser intemwdiado•,:
pelo ol~jetivamc-nte possível. O conteúdo do sonho noturno estú oculto e:: Sohre as con1~j,1s e nas galerias estavam <'lllikirnclosjarros e copos ele
rlis.lÍmulado, enquanto o conteúdo da fantasia diuma é aberto, fabulanle, ,: p.-ata antiquados, recipientes de pon-cla11a <' pequenas figuras de
anff'1•ifH.ulor~ I' .Htll a.1pl'l'lo latente .1e úlu.a adiante. Ele mes1no provém da i m,irmor<'. O vidro nistalino das janelas n-verh<'rava um hrilho misterioso
<·x1ians,to do si-mesmo e· elo mtmdo para a frente, é uni querer-viver-melhor, , sohrc um fundo csn1ro cntn· portas t"striadas d<' quartos<· de anw'írios,
muitas vezes ele fato um querc-1·-sahcr-mclhor. O anseio é comum aos dois d<'ntro dos quais eram guardadas bacias de aço polidas. Po1· cima <lt·ssa
tipos de sonho, pois ele é, como foi observado, a única qualidade sincc-ra fachada esquisita, o céu azul t·sniro se elevava em forma de ahóhada, e
ele todos os homens. Mas o de.1ideri.1tm do dia, diferentemente do desidl'riu.m ' um sol scrnino1urno se rclktia na magnificência escura do lenho da
ela noite, pode também ser :n~jcito e não apenas objeto de sua ciência. O ':! nog1wira, na praia dosjarros e nas vidraças dasjanelas.
sonho desejante do dia mio necessi1a de qualquer escavação on
interpre1a~-ão, mas de c01Tcção e, na medida em que esteja capaci1aclo Coisas co1no essas n1ostrnm, todavia, u1n intercâmbio entre os
para isso, de concretização. Em suma, se em sua origem o sonho desejante antípodas noite e luz do dia: cada um deles parece estar totalmente imerso
desconlwcc qualquer medida, tal qual o sonho noturno, por outro lado, , no outro, ambos lúgubre e singulanneute pressagiosos, Com quanta
ao revés dos espectros noturnos, ele tern um alvo, e vai em sua direção. afinidade até mesrno o Romantismo pôde se valer dessa luz mista, como
jogo onírico e não só como jogo. Para Novalis, cada sonho era "uni rasgo
Jmbricaçiio do) jogos oniri.co) noturnos e diurnos e sua re.10!uçiio significativo na cortina miste1iosa que com mil dobras se insere em nosso
Serem diferentes um do outro, todavia, não significa n;io se relacio- interior". Foi sobretudo a metamorfose das imagens oníricas que também
narem. Às vezes, há uma alternância entre a camada do sonhador e a do se rt"comendou de modo quase erudito à antiestática romântica. O sonho
1101111110 11.1 101111.1 d!' ro111,111(T sdv,1gn11 (' tlt-~( ohn lo pd., tilo-.ol'ia ///11.11·1, ('XII ('IWIIIH'lltt· p<>!->-romfü1tico, ('Xln·111a1111·11lt· 11;10-IHl1l;t11l1< o. l•,111
1ornfü1tic1 da natureza: Joy<T, o por;ío do incouscien1c se descarrega num agora t1·,rnsit<írio, olc1 <'1 «-
i111h1icados um gaguejar pré-histórico, sacanagem e música sacra. Ao lo11g11
Essas conformações não estão, pois, destituídas de voz e linguagem: de oitenta páginas, o autor não interrompe com nenhuma vírgula a
tons e palavras, provindos como que de todas as diferentes direções, decocção que se esparrama sobre o limiar nivelado da consciência. Por<'·111,
compreensíveis e incompreensíveis, encontram-se e reprimem-se em meio à verborréia (composta de um dia e mil coisas subconscientes da
alternadainente, e assim parece que aquela ua1un·za interior, em humanidade, rigorosamente misturadas) surge algo inadvertido, montagl'm
comparação com a exterior, não oferece nada além da constância e aplicadas evidenciam interconexões bem racionais ou analogiae enli.1 - a
tranqüilidade que ela possui; pois essas fonna<;Õcs interiores, como mulher de Ló e a Old lrdand Taverne perto da água salgada junto i'ts
que ki1as d(· nuvens fugidias, vf-m e S(' desfazem. J\ grandeza não docas comemoram, peq>assanclo tempo e espaço, o seu encontro, o se11
protege aí as altas montanhas nem a fon;a das raízes a füvorc diante do cotidiano além do espaço e elo 1crnpo. "De modo que", diz Stephen Dedalus,
célert' movimt·nto de passagem,<', onde naquele mesmo instante ainda "gestos, e não a nnísica, não o odor, ton1a1·a1n-se u1na linguagen1 con11m1,
havia rocha e mato, aparece a planície ou mn cô1nodo n'ffaclo de que torna visível, não o sentido leigo, mas a primeira enteléquia, o 1itmo
paredes (C. II. Schuhert, J)it, Gesd1.irhtnÜtrSed.t~ 1830, p. 519). estrutural" ( (!lisses li, J!);W, p. 86). Cavernas primitivas contendo balbucios
e glossolalias são assim invocadas c·m fantasias diurnas t· estas são novamen1<'
Assim, surgiu ai<' mesmo a ilusão de que o sonho noturno<' o sonho submergidas. Surge· uma imbricai,:ào constante d<· carrnncas noturnas <'
diurno, além da troca, man1ivessern uma irnb.-icação de suas imagens, no esbo<;os. Sendo CJUC' ao Surrealismo, portanto <'01Tcspo1uleudo ao tempo
mesmo chào, unidos de modo romântico-ol~jctivo. O romântico puro já de derrocada cio qual faz parte o próprio Surn·alismo, não falta o humor,
1wm quer saber s<· na sua poesia predomina o caos inconsciente ou a fantasia · como SC'lilfH'<' ocorre na co11dlia<.)io rcpen1ina do inconciliável: llIIl lnunor
conscicntcmc111c coufúnnadora, lr,msfonnadora. Para ele, de qualquer reles por VC'Zes, que só desmascara o arrat~jo nw1-;1m<·nte i1npactante, ou
ma11ei1·a, o sonho noturno está distante de todos os conceitos at{, mesmo um humor das pequenas aclaptaçôes, graças ao qual pode-se
espaciotemporais ela aluai sohri<·dack, ck todas as fónnas causais e iden1it,írias ficar ;'1 voutadc na casa dos sonhos estranhos<' ambíguos. Mas muito mais
elo córtex cinzento ela civilizaçáo: de tem constituição JXé-lógica e, portanto, decisivo no SurrC'alisrno continua sendo o acoplamc·nto fundamental de
{, um dcmcn1o arcain> que se op<><' ;1 amplidão, ao amanhã, ao fü1uro do I-kcat<" <' Mineiva, continua a apaiição visiowíria montada a partir de puros
, 1x1 .. l. ·ts16 {'W1Jcrq~uó<J'<'(••<' ;Y-.wJilUÚii~~an'n\\'l'((),.. ( 1·t,li'i"lffl,CJT&R d;a,d~'\,('kéllJ
0
• ···,·,· ,YflUs c··e.--,.Nttúd:·1s-. ó c1 -.:,t~·la1.u·uí11:l :.r~wt·)'i'ii\ a ·eit,'\1c r,u,;,,o';,8 -.,..-.1nr.:tiarstúu,
que, todavia, mn tanto da nova ligação entre os dois turnos também es1cve como o período ela Restauração. Ndc, o sonho diurno estava
sempn· pn·scntc. De moclo co1n·sponck111e, a interseção da hora escura da fünclamcntalm<·ntc integ1·ado em linhas noturnas sem fosforecer. De
noite c·om a hora az11ldo dia retornava 1o<la vez que ambas estavam org11lh(>sas qualqtt<T modo, trat;1-se <le um longo nnmdo misto cntrC' subconsciente e
de não serem dia no sentido de claridade superficial, mera cotwxão aurorn, um mundo de <·ontato (·m que a regn,ssio coloca a ida até o fim ou
epid6ntica. O rasgão na supc·Iifrie rompia a caverna e o azul distanlc ao ,1 a ida até o fim coloca a regressioao seu serviço. O labirinto do sonho noturno
mesmo 1t·mpo. Isto se deu, por ültirno, ainda no Expressionismo e •:! não {, nen1 mesmo t·stcticamente 1un prel(ulio do castdo no ar, mas,
especialmente no SmTealismo. En1rctanto, com a marcante diferença, cm encpianto aquele fm· o porào deste, o arcaico podC' se comunicar com a
rclaçào ao Romantismo, de que o utópico não queria se voltar tanto para o fantasia despcr1a. No exemplo da casa dos sonhos d<" Goftfricd Keller, nessa
passado quanto o passado para o utópico. Por mais que também na poesia apaii(fio noturna da casa rna1crna da juventude, t1·emduzindo como o
expressionista ocorra um tom lunar - "pálidas á1vores noturnas, pastos Estige, 1ica claro que, na direção invel'Sa, o sonho desperto também p()(k
que se relletem na lagoa enluarada, flocos lunares prateando através da se comunicar com o arcaico. Ele é capaz disso porque, não só psicológic1
janela" - e t·m outras palavras semelhantes de Daubler, forçados dessa mas também objetivamente, um fu1uro ainda está vivo no passado, ponp1<·
maneira, os traços noturnos foram integrados às linhas utópicas. Igualmente também muitos conteúdos noturnos nâo foram. qu.itado.1 rum,. estiio prontos e por
o sem-sentido [ Un-Sinn] balbuciante da noite foi integrado na tentativa de essa razão exigem o sonho diurno, a in1cnção para a frente. Essa noi1c
partir·, com base em tais dissoluções do atual contexto diurno, rumo a uma ainda tem algo a dizer, nào como algo primcvo que está sendo incubado,
nova terra, litorais melhores, até organizados racionalmente. Todo nm mas como algo que nào veio a ser, que ainda não chegou a se tornai
objeto de estudo dessas transições foi proporcionado por James Joyce no suficientemente audível em algum lugar, que est.:-Í parcialmente encapsulado.
No l"lll,lltlo, c·s:--;1 11oilc S(> pude di/,('I algo 11;1 111cd1d.1 ◄ -111 '11'' 1,,, d11111111,11b F:--~c <·slado pode ser ahrnn·cido, cloC'ntio 011 saud,ívcl, de li<·111--<·~L11 (' 111.il
pda E111lasi,1 desperla, p<ff uma E111tasia que csl,Í tli11·c 11111,11l.1 p.11.1 o q1w ('<,;lar, 111as será sernprc lun estado gcnérieo: lUna nítida dor 110 <·stú111agu,
vem a ser: o arcaico, e1n si 1nes1no, é rnudo. Apenas <·omo 11,111 ,1111111tfo, mfo 11111a específica sensação de prazer, localizada na língua ou em 01111~,s ,:011;1.~
de~envob,ido - em ~um.a, como utopicamente incubador- ele tem a Jún;a paras<· núgcnas, é imediatamente excluída. O corpo não se encontra, por eX<'ll lJ ,1( >.
dissolver no sonho diurno, adquire o poder de não se manter trancado diante t1C'ste ou naquele "estado de ânirno", como a disposição de humor, pois 11;io
deste. Mas como tal, ainda que somente corno tal, ele pode transitar em livre <\ como esta, uma mistura de sentimentos impulsivos propriamente ditos 011
nirso, como ego preservado e conse1w1do, melhoria do mundo, ida até o afetos. Ele contém apenas a fe1vura dos processos corporais, especiahneut<·
fim. Portanto, a noção de que a incubação arcaica na vcnlade pode ser das sensações viscerais e das rnai<; ou menos subconscientes sensações da
utópka expliea, por fim, a possibilidade da imbrinl(:ão dC' sonho noturno e circulação sangüínea, mas ainda não as scusa,;õcs afetivas, respaldadas po1·
sonho diurno, forn<'<'C' uma 1ixfJlirauio e 11'.mluçâo ú imbriraçiio jJan:ialnwnli! posúvel um cu. É isso que difrrcnda a s<·nsac;ão condicional do "estado em que se·
rlmjop;c1-1 oníricos. Ejustamcntc com o pt·imado constante da fantasia <kspe1ta: encontra", por mais orgânica que da s<:ja, da sC'nsação do "humor'', muito
uiio é o utópico <jUe capitula aqui diant(' do arcaico, mas é o an-ai<'o que mais voltada para o <'ll. Assim, existt' ck um lado o difuso que anuncia as
ocasionahnente capitula diante do utópico, por cansa d(' seus nnnponentes sensações dos <>rgãos, <' ck outro o difuso que r<'flete as sensações afetivas,
não quitados. Qualq11<·1· outra imbricação e qualq11e1· outra explica(,·ão são que são S<'lll(X<' as primeiras sohff as quais um homem se· debruça co1n seus
ilus<írias. De 1oda ma11<·in1, a elaboração é a ord<'m cio dia. O deus suspeito variados htunor·es. O estado 110 qual se c·ncontra S<' assemelha a um nunor
qu<' a concede ,H>s S<'lls e11qna11to dorrn('lll 1wn·ssita de Apolo como porta- que, como todo ntído, migina-se d<' uma c·cmfus,io de muitos tons, natw-al-
voz, aquele Apolo que a1é pod<' tambún co11hece1· vapores e orándos, mas mentc emitidos c·m scqüi°'nda in-egular. A disposi,;ão de humor se assemelha
que os tem vencidos e subsetvientes 110 S<'ll templo. S<' n.io fosse assim, a à mistura de sons d(' uma on1uestra que, antes do início ck uma peça musical,
fantasia, nos tenHos ele Jung<' Klagc·s, l'l'lllontaria totalmente à pr{--história, toca algumas passagens de man<'ira interrompida(' simultânea, não sendo
ademais romantizada e folsificacla. Da llll'Slll,·I forma, só a luz diurna desven- tons naturais, mas tons qm· tf·m por· tr,ís <k si um cu qu<' c·xc·n1ta e compõe
da o material singular<' tocant<' dos sonhos noturnos, do arcaico como um música. Tampouco a disposi<:ão de humor tem um "10111 h,ísi<:o" abafado,
todo, e t1-;1ta-se d<'sse material 1111inimentc· porque e na medida em que de subt<'rrâ11t·o, como o estado ern (pte se· e11co11lra, 1nas o seu "to1n básico" é
mesmo ainda é utópico, deslocadam<'llt<' utópico. Portanto, regredir artilici- ondula11t<', di1mitico, atmosffrico, pod<' se· Hwvc·r cutn· extremos ("exultando
ahnente só implica um ganho se o arquétipo traz em si algo que aütda mio até os céus, allito até a mo1·te") que o estado rn'io c·onhen· c·om essa proximi-
veio a ser, algo lütm,m1c·ntc possívd. lk outro modo, os tesouros que 110s dack. E, além disso, toda disposi(,io de humor apres<'nla uma amplidão
encaram a partir cio solo noturno se tr·;msfonnarn em palha e pinhões mur- singular, que krnbra a difüs.'io de aromas no ar. T. Lipps cnfatizoujnstarnentc
chos, corno os pn·s<·ntcs <k Rühezahl w clurnntc o dia. Mas o sonho diurno, e essa amplidiio estrnnha ao estado cm que se c·uconlra o corpo. Ele obse1va,
tudo o qu<' ele abrange, contém assuntos hmnanos em vez das n1edusas no como no caso da alegria, "o espalhamt·nto p<Tn-ptívd do prazer· na experi-
labirinto. Os sonhos diurnos escolh<'rnm a melhor parte. Desse modo, ai11cla ênc-ia de uma disposiçào de hmnor mais ou uw11os ampla, qu<' abrange toda
que com c1pacidades e qualidades tão alternantes, eks saem para o campo a vivi°'ucia psíquica" (teitfaden derAydwl.ogie, l 90~J, p. '271 ). Ou numa cxposiç,io
da co11scif,nda a11tccipadorn. mais n·cent<' (que pelo menos não se éUTasta qual carangm:jo com a habitual
tendêtKia cxistendalista para a disposição de humor do tipo de Bollnow):
Uma 11ez mais a lenrl1;ru:ia f}(J,ra o sonho: a "di~posirúo d<' humor" como um mno
rlos sonho~ diurno~ A disposição de humor psíquica é o fuudarnc-nto relativamente persis-
Quando se dorme, o cmvo está obscurecido: somente estando ac<>Ida- tente da nossa sensação vital, sobre o qual se erguem, con1 coloração
do se pode senti-lo. Ele se percebe primeiramente na sensação em que se especial, as pcn-cp(;Õt·s alternantes, mas no qual também as nossas
encontra. Ncsla, são unicamente as condiçôt·s corporais que se dão conta de conccp(;Õcs e o nosso comportamento estão embebidos (Lersch, IJ!'r
si mesmas. E o fazem de modo embaçado, difüso, ainda não associado a mn A ufbau des Charakters, 1948, p. 41 ).
ponto espedlico do co11>0 ou a um tipo especial de dor ou prazer corporal.
Por cansa dessa essência integral de amplidão atmosférica e, ao Ill('S··
mo tempo, difusa, a sensação humoral se estende até mesmo para além do
0
Nas l,·nclas, mn espírito montanhês da Silfsia. eu, ao qual adere em primeira instância. Um quarto, uma paisagem pal'<'<'<•111
l('I 11111 "l111111or". l' la111h<-111 aqui lauto 111aisddinido qu;111lo 111.11•, 111<1, l111id;i pode, por sua vez, aliviar o fardo rnauikslo do S('l'·rn·_ l 11d 11~1v, ·, ., 1u >',',1
011 difusa Í<>l' a aparência da condição afetiva transposta. J\ssi111, •, 11H·10-dia bilidade da disposição de humor revela o ca1·á1e1 <k fa11lo do M'I .11.
luminoso se mostra pouco apropriado: melhor é o período anl('rior ao ainda que o alivie (loc. ciL, p. 134).
meio-dia, o mais confortável é o anoitecer. Conhecida é a atmosfera de
tempestade (que é expulsa pelo ptimciro raio). Menos apropriados para E não é o lamento da humanidade inteira, mas unicarncnlt' o d:1
isso são o~jetos simples e grandes c·omo o mar, mais apropriados são os pequena burguesia não esclarecida e desesperançada, que nos toca qua11do
insondáveis como a mata. Contudo, nesse ponto nunca se pode esquecer lleidegger chega à seguinte frase referente aos "abismos" dessa condi<.)o
que a faixa da disposição de humor, que se estende dessa forma para fora do ser:
de si rncsrna, não aparece de modo sistematizado nem mesmo corno
sensação c·xlrover·tida da natureza, mas permanece na ondulação da O profundo 1édio, qu<' como névoa silenciosa desliza para cá. e para Li
generalidade. Essencial para a disposi<:ão de humor<' parcn:r lo tal apenas nos abismos da <'Xistência, nivela todas as coisas, os homens e a ge11h-
na qualidade de difusa. Em lugar algum ela cousislc mun afeto clominador- com elas, numa es1rnnha irnlifercnça. EssC' tédio manifesta o ente c111
prevalcccntc: antc·s, é uma mistura, ela própria ampla, de mui las sensa(Ões sua totalidade ( Was isl Metaphysik?, 1929, p. 16)_11
afetivas <pw ainda não chegaram a ser manifrstadas. l~ isso qu<' a torna um
ente tão facilmente irisante e faz c·om que s<:ja, ao mesmo tempo, apn·scntada Portaulo, neste pon1o o caráter <kscjantc· é lotalmente excluído da
e defonnada tão facilmente como nwra n·alidadc vivencial impressionista disposi\·ào de hum01·, esta S<.' manifrstando uuicamenlc como disposição
(Debussy, },Kobscn) - ainda além da mislnra de sons anl<'rior ao infrio de de humor da vida que está se· extinguindo, o que aqui quer dizer da classe
mna pt·ça.musical, ainda sem densidack r11lc11siva. (: desse mais-011-mcnos- em declínio. S-<·m esse caráh-r, porém, tampouco pode subsistir essa
imprcssionísta que vem t·ambhn Ikidcgg<T, na medida ,·m que de o difusibilidade de afrtos, como sendo d<.' -af11l<~.s - a não ser como "falta da
dt·scn·vc <·, ao mesmo tempo, sncmnhc cliantc ckk. Sendo que Ilcidcgger disposição de lnnnor", c·omo o pnlpt·io Ikidcgger l<'IHk a dizer. Suprim<'-
tem, cm meio a esse cmholarnento, a va11tag-crn por assim dizer laulol6gica sc justamente o meio para colo1ir o.~ .\ou./w.\ arnrdados do qual a disposi-
de ter levado cm conta "que o ser-aí sempre e em nula casoj,í <~ hmnoral", ção de humor se vale parn pintar a sua hora diurna, para que esta não se
no sentido de uma ch1cida~·,10 original de como algném cst;Í <· passará a torne ex,istcncial-onticamente desinteressaulc· 11cm se afunde existencial-
estar. A'lsim, o 01·iginal não <' mna f<.nn1a pcITeptiva elo l'stado cm <pw s<· onlologicam<·11lc no niilismo. Nem todo o cotidiano possível, nem mesmo
encontra, t· sim uma forma humoral desse estado: "O que 0111ologín11ncntc todo a<pwk que j<í ocorTeu historicamente, é canH'ttTizado pela "insípida
indicamos com o título rnndi(:/í,o do ser é onticamcnte o mais conhecido e ausência da disposição de humor", ou atf uH·smo pelo tédio qn<'
cotidiano: a disposição. tk hnmor, o estar-lnnuorado" (S1ún und 'hil, 1927, pn·teusamcnlc revela o "ente em sua totalidade". Antes, esta cotidiana
p. 131). No cul'anto, I kid<·gg<T não <'onseguin i1· além dess<· asp<·<·lo embo- disposição d<' humor está essencialmente, se não cxdusivamente, associada
tado, depressivamente hesitante e, ao mesmo tempo, superficial dessa sua à atividade c:apilalista mecanizada. Mas mesmo dentro dessa atividade, além
descoberta. O estado cm qm· se encontra t· a disposi<;ão de humo1· continu- da falta da disposição de humor, inclusive ao lado elo fardo inquestionávc-1
am in<lifrrntdados. Assim, a supt'dicialidade, nessa ondula<:ão animal in- de uma existência assim constituída, existe lambém aquda mistura de sons
distinta, imp<·de qualquer noç,10 da obscuridade do 11xister"t1 realmente dos sentimentos impulsivos vivos, a única qut· de fato pennite pintar a
imediato, que, mesmo na disposição de humor, ck Iónna alguma traz o "disposi<:ão de humor" e na qual a tendência para o sonho, como tendfa1ci:i
seu ser (a escuridão do instante vivido, do que trataremos depois) corno para o sonho acordado, encontra em primeir'o lugar o seu meio.
um aí diante de si mesmo. Desta fonna, o dqnimido interesseiro guarda Estando o corpo de quem dorme obscurecido, está excluído tamb<-111
:listância de Ioda tendência esclarect·dora ela disposi\·ão de humor, para o estado cm que ele se encontra e tanto mais a disposição de humor q111·
:c:m vez disso retratar unica1nente o rep1i1nielo: pressupõe o eu. Esta faz parte da hora azul e não da hora escura. Ela (·0111
certeza também exige relaxamento, mas de um tipo que não busca a so110 .
A falta da disposição de humor muitas vezes persistente, regular e lência e sim a viagem. Essa "disposição de humor" que tende especiah11c111(•
insípida, que não deve ser confundida com mau humor, é de tal modo
nula que justamente nela o ser-aí fica enfastiado de si mesmo. O ser se u HEIDEGGER, Martin. Conferências e escri/0.1 filosófico.,. Tradução de Ernildo Slc•iJI, ,',,,e,
tornou manifesto como fan:lo( ... ). E a disposição de humor elevada Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 55 (Os J>cnsado,·es).
p;11 a o ;11.111.ido 11,Ú) l1>i consid<'rnda ai{- o 111011w1110 11;1 1<'L11.,, .. , .... , o"º·· 1•,,·11t;1 <k i11q11i<·t;u:;io, s<·111 o f1úlhu.1 do 111ovirn<·11to <' do 1<'111po p,111;1111( ,,
nho diurno. Is1o será l"C'cuperado agora. A insípida falta cb d1.~1 ,e ,,.,1(ao d<' ., .11 tc <pw prc1cudc possuir a dur<'Za do cristal. Em torno d<' 11111a ( :i11·1.1
humor pode não chegar a ser devaneadora, e nem a disposição dC' humor d,·11ominada alto-relevo egípcio, mosaico bizantino ou ainda ,qll'11a,
sombria pode realizá-lo. A mistura de afetos desagmdáveL1 não é o suficien- , h-;sic·ismo de Alfic1i, não há mais tanta disposição de humor como <·111
te para permitir qne se desenvolvam sem mais nc1n menos os sonhos diur- 1, ,1110 do gótico, do ba1Toco ou ainda en1 torno do mundo ten1pes1uoso d"
nos. Tanto n1ais, porhn, a constanlc propensão para rnelhorar, corno tôni- By1 on. Apesar disso, também aí a disposição de humor corno pállw.1 ai11cla
ca de todos os aj'eto.1 expectaritPs, tende a se alivi,u- da disposição de humor lonna a base. Igualmente a arte c·gípcia tem a inquietação dentro de si: ;10
sornlnia e fugir para uma elevada. E é_justamcnte ucssc ponto de transição ,,placá-la, ao querer ser para ela como que seu sonho desejante, um único
entre o sombrio e o akgn· que reside o meio e111 qu" a,1 imagrns dos .wnho!> 11;q,úem pétreo. Assim, a disposição de humor persiste - graças ao aspe<"lo
dP,1f1rrto.1 .1r rfr.wm,olrinn c:om mais faâlidadr,. Fuga e solicit nde, af'c1os de atmosférico da fanlasia - alé mesmo na base da intenção de uma obra d<'
repulsão <' de atração cstáo simnltancamente mistnrnclos nessa disposição ;1rte contrá1ia à disposi,;ão de humor. Essa água do sonho diurno é pní-
de humor d,n-o-<·sc·tll'a e fónnam assim a aura cm <[H<' oco1n· o respectivo pria de todo sonho diurno, sonho de fantasia, mesmo que ele a deixe ao
cmbar<Jue parn Citem. Se <'SI<' {- modesto ou grandioso, apressado on bem conquistar finalmente a t<·JTa seca. Dessa fonna, confirma-se que a disposi-
rdk1ido, se Cit<-ra consisl<" numa nwra mdhoria da sit11,H,:;io ou ern algo <:ão de humor daro-esntra fonw<'<' o meio em que tf-m início todos os
inaudito, se é frito cm tnH'a de um pão com mau leiga ou nem pelo mundo sonhos diurnos, tanto os mais ,lspcros q11a11to os que kvam o estimulante
i11teiro: isso, 1odavia, 11ão dqH·mk (lã clisposi(:ão ck humor, mas da fon:a e azul (anil).
cio n>lltnído dos afelos de atrac;,,o lfll<' se erguem de dentro dda, do grau
e da <"OJHTctmk da faJ1tasia que desenha a realiza<:ão de sua intcuc;,1.0 dian- Umrt Tlf!Z 11uú1 os a/dos r,:x'jm'lar1lr'.1 (angústia, mnlo, fm1101; desespero,
te desses afetos. Ainda assim, a disposição ck lrnmor daro-csnn-a pennane- P,1j,f!rr1:nça, nmjiar11,;a) e o .1onlw arnrdrulo
n· cm toda luz viokt,1. A luz alta desse 1ipo adcn· por muito tempo ao Todavia, os sentimentos impulsivos não sfro cm si mesmos mais tão
sonho acordado, a(k11t1·;-111do os sonhos dcspcrlos propria1nentc dahora- humorados, não penrnuwccm assim. Eles logo se d<'vam danunente acima
clos, taI1to n<'gativa quanto posi1ivanl('11tc. Se Hão fosse assim, não havei-ia desse estado geral de ánimo como fnua inveja, ódio e,1ca'ncarado, confiança
J1dcs o asp<'Clo di1rnítico, q11c não eslá limitado ao Impressioni:,mo, a essa irre.1trila. Por· exemplo, a hila1idadc, esse senlimcnto vital relaxado e geu<--
cssf:ncia da disposi(:ão de humor mais cômoda possível, isto é, de clahorn- rico, é 11111a disposic;·ão ele humor. Por·ém, a alegr-ia do resplendor vívido <~
c;,10 frac1 e sem compromisso. Se não fosse assim, não haveria o li1is1110 um afdo. E os afrtos não deixam dessa maneira apenas o difuso, mas tam-
que também acompanha imagens 1igorosamente confonnadas do sollho bém o que se encontn-1 r·elativan1ente sem r<'fcrhtcia. Por isso, 1nesn10 que
diurno scrnpn· que das ainda têm um aspecto situacional. Por essa raz;~o, o meio humoral saia ele cena, o sonho desperlo conlinua a repercutir --
cm obras do sonho diurno, a disposição de humor claro-escura m'ío cst;l porém, como um sonho qu<' se moveu sobretudo em meio aos afeto.,
rest1ita apenas à brandura de Debussy ouJacohsen. Ela preenche tamh<-m expedanle.,. Foram estes, uma cepa,muito especial ele afetos, que de qualquer
uma música de imagem afetiva tão contida <' 1itmada corno a ck Brahms modo impulsionaram o sonho acordado em meio à disposição de humoL
(Qua·rta Sinfonia, especialmente o último 111ovinw11to) -, na qual, cm vez Assim, eles apan:ccm aqui uma vez mais, agora diferenciados dos afetos
da brandura, surgem a rudeza e a asper<'za. A disposição de humor cessa pknificaclos pela tt·ndência fortemente antecipadora de sua intenção (cL
somente quando a situa<;ão já est;1 decidida <' sua desc1ição pode ser apr<'- pp.76-77). Em todc>s os afetos expectantes, a intenc;·ão indica para a frent<',
sentada como isenta ele almosfrra. N:ío c-C'ssa apenas a impn·ssionista e a o conlcxto temporal de seu cont<·údo é o futuro. Quanto mais iminente for
sentimental mais antiga, n1ja irisa(,io 111111ca passa de uma mistura de afe- este, 1anto mais forte, mais r:andentr~ será a inte1H;ão expectante como tal.
tos inteITompidos e co1üon1os ilnpr<'cisos, mas 1ambén1 se aclara a atnwsf!é- / Quanto mais abrangente for o modo como o conteúdo de uma inte11~·,io
rade aspercza,juntamentc c-0111 todo o rornantismo desse n1eio, e a vista é expc<·lantc al'inge o si-mesmo pretendido, tanto mais completo é o modo
liberada para coisas mais dc<·ididas, d<' aspecto não mais tão situacional. como o ser hmnano se atira nda, tanto 111ai.1 fJmfunda torna-se a sua paix,t< ,.
Isto ocorre sempre que nma situa~:;'ío levada ,'i sua consumação no sonho A5sim, tambfm intenções expectantes com conteúdo negativo em rehH:;io ;1
desperto do artista, ao menos uma sit11a1:úo <pie foi levada a se deter por auioprcservaçào, como angústia e medo, podem se tornar uma paix;'u,,
meio de uma atitude, repele o pn'>prio aspecto situacional. Também é o não menos que a esperança. Nesse caso, elas parecem exageradas a cpu·111
caso, de modo enganosamente adim:,1ico, cm toda a:rte que almeja estar não está envolvido e de fato o são em casos patológicos. Todavia, às vcz«·s ,.
;1 (alta d<" co11lwci11H·11lo a r('sp('ilo da si111a<:ao n·al <(IW ••·• l.11 I'·"' • nc-111
,. \'a1·ila11te não só na sua cxpn·ssão corporal n1as L1111hc~111 q11;11110 .10 "c11
exagnarÜ.L1, awnenlandoo seu objeto. Ta1nbéi11 n<·ss<· c·aso o al<-to c,pc1 t;111tl'
"hj<'lo. Como já foi referido, Freud remontou a angústia em p1·i111l'i1 ;1
vai além do seu conteúdo conceitua! fundante: o conteúdo 1·xp<'dantl'
h11lta ao ato do nascimento, ao primeiro aperto (angustia) na rcspin1<:;10, i1
evidencia maior profundidadedo que o conteúdo conceitua! respectivamente
primeira separação em relação à mãe. Assim, todo sentimento posterio,
dado. Todo medo implica, como corr-elato da realização, aniquilação total,
11c angústia torna recente essa experiência originá1ia de constri«.,-,io <·
que dessa forma ainda não existiu, o infrrno irrompendo. Toda esperança
;1handono. A reação às situações de perigo, mesmo a angústia da mor!(',
implica o bem supremo, a bem-aventurança irrompendo, que dessa forma
~<'riam, portanto, meramente sul~jetivas e portanto regressivas. Porém, 110
ainda não existiu. Isso distingue, no final, os afetos expectantes dos
,pie se refere às condições sodais existentes, que alimentam prodigamenl<'
plenificados ( corno inveja, ganância, vcner,H;ão), que sempr<' estão.fundados
l;rnto a angústia da vida quanto a da morte, quando não as geram, foi
apenas em algo conlwcido e em casos extremos intcncio~1am _urn futuro
inteiramente omitido o contt'Údo rcfrrC'ncial negativo, isto é, aquilo qu('
inaulênlú:o do seu objeto, isto é, um futtll'o que pode ser nuagmado com
p1-ovoca ol~jt·tivarnentc a angústia, sem o que da nem poderia se consti-
prcdsão, que ol~jctivamcnte nada contém de novo. Os ~:onteúdos
tuir. Heidegger, por seu turno, até nem faz a sua angústia regredir, mas
iutcn<"ionais dos afrtos plcnificados situam-se, como diz Ilusserl
11ão a ultrapassa nuno a aktos expectantes positivos igualmente originári-
eironca1ne11te ck todos os afetos, nun1 "horizonte posto" con10 sendo o
os, sem os quais a angústia igualrncnte não poderia estar presente, do mesmo
horizonte conceituai da memória, difcre11c·iado do hmizontc conccitual da
modo <·orno mn vak 11ão existe sem a montanha. Em vez disso, Heidegger
cspc-nu1ça, da fantasia a~lt('cipadora, portanto autênti_ca, e c~o possível h1h~o
faz da ang1ístia o puro e simples e indiferenciado seHlsÚm [So~ein] em
aidPnticode seu ol~jcto. E verdade que, cm toda pa1·te, mclus1v<· na coucq>çao
ludo, o "estado existencial fündarncntal", mais precisamente de modo a de
memorialista, atua uma ('Xpcctativa, ao mesmo tempo como inlcnc,:ão, e o
fato irnlividualizar sul~jetivanwnte o ser humano, remontando-o a si mes-
pn>prio IJnsserl define hem incspcrndarncnte:
mo como ,\Olus ij),1e. Portanto, a angústia francp1<'ia ao homt·m "seu ser-no-
mundo mais pr<>prio", o de-quê [ Wovor], "dc quc a angústia tc·m medo, é-
Todo processo original de co11slill1i~;ão é animado por prolcnsões,
o prôptio scr-no-m11ndo" (Sein und Zeit, 1927, p. 187). f<: t·ssc· de-quê é, no
que esvaziam a ro11stit11i<;ão do vindouro como tal e o acolhem (Zur
fundo, o mesmo em que a angústia se dissolve: 110 nada, no "nào era nada",
P!tiinorne-nolop;ie d11s iwneren Zeitbewusstseins, 1928, p. 41 O).
o próprio ser "paira por sobre o nada". Assim, aqui a ang1ístia se confronta
bCin <IÍl'damenl<' e por excelência co1n o nada, como sendo o fundo basilar
Contudo, essas proten~õesjá receberam o que lhes cabe na memória
do scr-inq11icto, do estar-à-mercê-da-morte de todo ser-no-mundo. O "esta-
e nos afetos fundados por esta: elas têm apenas um "horizonte voltado para
do fundamental" da angústia franqueia, confomw Ileickgg<·r,justamente
0 futuro do que foi rememorado", horizonte que, com seu futuro
esse abismo. Daí procede ainda "o tremor constante, ainda que geralmen-
inautêntico, é justamente um "horizonte posto". Em contraposição, os afetos
te oculto de todo o existente" como tal. Heidegge1·, ('Oill muito imediatismo
expectantes e as concepções fantasiosas autt'-ntfras, que indicam àqueles
proposital da experiência (mero experimentalismo), mas também - pode-
seu objeto no espaço, possuem esse espa<,·o simultaneamente como espaço ·.
se dizer· - saindo à caça dos afetos, tem uma desmedida intc1pretação do
temporal, isto é, incluindo a temporalidade não enfraquecida do tempo, 1

siguifinulo elas palavras, da qual a filosofia se enwrgonha diante da filologia


que se chama futuro autêntico. Com isto, todo afeto e~pccta~te, I~H·s_rno ..
s;m ter obtido nenhum ganho para si mesma, além de um diletantismo
que ele mesmo no primeiro plano intencione apenas um (ulnro mauteut1co,
metafísico. 1leidegger, pelo visto, reflete e absolutiza, com sua ontologia
torna-se capaz de uma relação com o objetivamente novo. Essa é a viela
da angtístia, apenas o "estado fundamental" de uma sociedade em declínio.
que, dessa maneira, o afeto expectante comunica implicitamente aos sonhos
Ele reflete, a partir da pequena burguesia, a socirdadc do capital
acordados antecipadores. \
monopolista, que tem a c1ise pe1n1anente corno sua condição normal.. ~s
Todo sentimento impulsivo que não seja só humoral está relacionado
únicas alternativas para a crise permanente são a guerra e a produçao
com algo que lhe é externo. Todavia, sendo assim, o movimento ondular
bélica. O que para os primitivos ainda era o "não-estar-em-casa" em meio :i
interior é abandonado com rapidez ou intensidade diferenciadas. O p1imeiro
natureza insondável tornou-se, para as vítimas ingênuas do capital
e fundamental afeto expectante negativo, a angústia, tem início como o
monopolista, a sua sociedade, a empresa alienada de proporções ?igan~esc·:_1s
afeto de humores indefinidos. O angustiado nunca vê de modo definido
na qual elas estão postas. Heidegger, porém - com uma 1gnoranct:1
diante de si ou em torno de si aquilo que sopra ua sua face: esse sentimento
sociológica que se equipara ao diletantismo metafisico-, faz dessa angústia
o ,-.~l;1do l'i111d,1111t·11lal do S('J' l11111ta110 •·111 gl-i-al, i11d11i11do o 11.ul.1 • 111 q11(', d.-li11it1vo, (', <(llanto ao St'II ohj(·to, al(:111 do ddi11ilivo, .ilgn p111.1 ,
prl'lcnsalll('ll((', scn1pre e ern lo<la parte ele foi jogado irn·v<Ts1vd111n1tc. J\ ·.1111plcs111c11te dcliuido. Ele é expectativa anulada, pot tanto 1·x1u·1·l;11iv;1 dl'
única coisa que resta da "hermenêutica" heideggeriana da ang1ísl ia é, na 11111 ll('g-alivo cm que não há mais lugar para qualquer dúvida. J\ssi111, <·rn11
melhor das hipóteses, uma espécie de familiaridade, aguçada por olhos .-li' st· kcha a série dos afetos expectantes negativos. Em última a11,ílisc,
pequeno-burgueses, com a angústia como falta de noção das coisas. "O fato lodos os seus sonhos acordados (son1ente o horror não tem tempo d"
de o ameaçador não estar em lugar algum caracte1iza o de-quê da angústia" 111oduzir o seu) giram em torno de um incondicional negativo: o iufrrnal.
(loc. cit., p. 186): de fato, ela é, desde a origem, expectativa de algo Em total oposição, aparecem agora, em meio a tudo isso e por I r;is
negativamente indefinido. Como aquilo que provoca e (i.mdamenta a d(' tudo isso, os afetos expectantes poútivos. Seu número, todavia, é muito
angústia pode provir de lodos os lados, as suas aparições mais manifestas 111cuor: não houve até agora tanta ocasião para eles. São apenas dois: a
eram o medo de fantasmas e o hoITor noturno, sendo que ambos foram l'sperança, que frustra o medo; e a confian(a, que corresponde ao
substituídos pelos atuais monst1-os e pesadelos qn<' são de carne e osso, mas desespC'1·0. A esj1emnça, quaudo asn·ndcnte, ainda t.em em connnn com a
agem no escuro. Assim, loclavia, a augústia ainda 11,10 est;i darnmente angústia 1m1 aspecto humoral: não o aspecto desabitado do notrnno, mas
asso<'iada ao seu algo exterior, difen·ntcmcnte do segundo afeto expectante ('<'rtamentc o amplo asperto crqmscnlar da alvorada. Isto está caracterizado
negativo, o mnlo, <·0111 o seu 1nodo <·onn·ntrado r('pentino, o prwor; e o de modo especialnwnte pn·dso como eco ou rdkxo da paisagem em Morfr
coucentrado intensificado, o horrm: J\í a ,unea<:,l provém 110 mínimo de nn Venna, de Thomas Ma1111, como o florescer indizivclmente encanta-
uma direçiio conhecida a partir de cxpe1iê11cia anterior· - 011, até mesmo, dor da aurora com todo o seu wj1p,ggio ante lucn11 resplandecendo d('
o que provoca o medo é espacialmcntc tão visívd que se pode prever o longe. Contudo, a <'spenm~·a igualmente está assentada, como um dos afe-
modo do seu golpe, ainda <Jlle não o mom(·uto em que oconTrá. S<· o de- tos mais exatos, sohre toda a disposi<:ào de humor - pois é pouco mutável,
quê ligado ao medo apan·(·e intdro, e 1·<·1><·ntin;un(·11t<·, surge então o horror bem característica cm sua intcu<;ão e sobretudo capaz d(' <·one~·ão e acuidadc-
com os graus mais fracos do pavor, t' o aspecto rq)('utino desses afrtos não lógico-co11<T<'1 a, o que não faz pal'le nem da disposiç'io de humor nem
deve desviar a att·u<;ão do falo de <Jll<' também t·stt"S são afetos expcctanlcs, lll{'smo dos afetos expe<'tantes negativos. Em <'OilSt'<]Üi'-11cia disso, a esperança
ainda que ocasioualmcnte (de modo algum sempre) de uma expectativa não {, apeuas um conceito oposto à angústia, mas também, não obstante
nascida apenas in sfafn na.1cemli do seu próprio objeto. Se1n expectativa, seu ('ar.Íl<·r de afrto, à memória. Trata-se de uma rdaçiio com um processo
nada poderia iun1tir hoiror, nada poderia atordoar pelo pavor: assim como e nrn co,~junto nmceilual puramente cognitivo que de resto não é próp1io
uma bala disparnda em emboscada, um evento totalmente disparatado cm de ne11hum outro afrto. E em relação à angústia, e m<·smo ao nada do
rdac;ào às inten<;ôes expectantes não provoca qualquer afeto. Até provoca desespero, ela se comporta como um poder ck tal modo dt'terminado que
atordoamento, deslumbramento (na medida em que se sobrevive a de), se pode afirmar: a esperança afoga a angústia. Nenhuma "análisc-
sensa<;ôcs co1porais próp1ias igualmente do pavor como sendo um cho<p t<', existcncialista" da esperança jamais poderá desvendá-la como uma
mas não provoca a emoção propriamente dita do horror ou do pavor, que "d<:tcrmina<:ão antecedente para a n1orte", caso se trate realmente de uma
sempre pressupõem a intenção expectante cm rda<:;io ao ocorrido. Pois an,ílíse do existere e não do corrumpere. A espera1u;·a se p1'0jet-ou, em vez
essa expectativa nem mesmo exclui o aspecto surpreendente de seu ol~jeto, disso, justamente no 1no1nento da n10rte, corno orientada para a luz e a
tanto que o caráter de sentimento do surpreendente nunca chega a ocorrer vida, como a<1uela que não cede a última palavra ao fracasso. Assim, ela dc
sem a presteza de urna expectativa, seja do que surpreende negativamente, fato t<'m o conteúdo intencional do "ainda há salvação" no seu horizout<-.
s{:ja do que surpreende positivamente (maravilhoso). A expt·ctativa ativada "Onde há pel'igo, cresce também o que salva": este verso de Hõlderli11
pelo horrendo, entretanto, é breve: se ela se estende, de modo similar ao indica o dialético-positivo momento da guinada cm que desapareceu o
medo, só que com plena determinação do objeto (inevitabilidade temporal,\ medo do lugar da morte. A">sim, é verdade que pennanece a incerteza
ciência do conteúdo), então se apresenta o modo extremo, mais duro do <pmnto ao final, exatan1ente cmno no t·aso do medo; mas trata-se de uma
medo, o afeto expectante absolutamente negativo: o desespero. E só este, e não incerteza que, diferente da do medo, não chega às fronteiras da preocupa<J1< 1
a angústia, está realmente associado ao nada. A angústia ainda é inquíridora, passiva, do suportar o peso da preocupação, da noite em que está o nad.i,
flutuante, ainda está configurada pela disposição de humor e pelo mas aó dia que é amigo do ser humano. Perigo e fé são a verdade da
indeterminado, até pelo não decidido do seu objeto, ao passo que o esperança, de tal modo que ambos estão reunidos nela e o perigo 11,io
desespero, ao contrário, possui, quanto ao seu estado de ânimo, algo de conthn medo, nem a fé tem em si uma quietude indolente. Desse modo, a
<·.~pl'ra1H.:a <··, <·111 t'll1i111.1 a11;ílisc, 11111 aldo pr,ÍIÍn>, 111ili1a111c·. l-:l.1 d,·..,lralda 11,. A descoberta do ainda-não-consciente ou do alvorecer para diunlc
handc·irns. Quando da esperança surge a wnfiança, então esl.i ddiva 011 () ainda-não-consciente como nova classe de consciência e como clas-
praticamente presente o afeto expectante que ~e tornou absoluta·mente p08itivo, se de consciência do novo: juventude, mudança de época, produtividacl(•
o pólo oposto do desespero. Assim como este, também a confiança ainda é () conceito da função utópica, seu encontro com o interesse, a ideolo-
expectativa - expectativa anulada, como expectativa de mn final a respeito gia, os arquétipos, os ideais, as alegorias-símbolos
do qual não há mais lugar para qualquer dtívida. Mas enquanto a intenção
cxpectanl e ocmn· no .-úc-to do desespero apenas como cadáver, na confiança
da se dá e resulta corno virgem sábia que, entrando no aposento do noivo, The cistern conténs, theJountain 011erjlm11s.
ali tanto oferece a sua intcn~:ão como rcnmH·ia a ela. O cksespero toca William Blake
quase compklamcnl<' aquck nada, do qual todos os afetos expectantes
negativos se aproximam. A confian~·a, crn contraposição, tem no seu A qu.alidadr' comum a toda alma é oJato de crescer.
horizont<' <pmse o lodo, ao qual se refere cm ess<'ncia já a esperança mais Heráclito
fraca, mesmo a que foi deslocada pdo futuro inaulêntico. O desespero
1r.1nsc<·1Hlc quando o seu nada abate· a inlenc:ão na certeza da ruína. A
confiall(:a I ranscewk quando o seu lodo faz a intcn<;ão ingressar na c·<'rleza
da salvação. Porlanlo, <·nquanlo os afetos expectantes negativos e suas
imagens ulópi<-as no fundo intendonarn o iufi-1rnal como seu incondicional, A.1 duas fronteiras
os afrlos expcctanl<'s positivos têm, de modo igualmente incontornável, o Em nenhum lugar o olhar interior ihuniua de forma homogênea.
f}(J,mdisiarn <·omo incondicional do seu ol*·lo intencional terminativo. Da F,le economiza luz, clareando apenas alguns espaços denllu de nós. Não
m<·sma fonna: se a di.sfJO.\Íçâo dP lwmor {- o meio genéiico do sonhar diurno, lomamos consciência daquilo que jamais {- atingido pdo raio sinalizador.
c-111,io os r~ft,tos f!XfJe/'lanl!1.\ (juntam<·nt<· com aquilo que conseguem Aquilo que é atiugido apenas ohliquamcnlc nos {- scminrnscicntc, em maior
,HTesn·ntar aos afetos plcnilicados, como por exemplo a inveja ou a n·ve- o menor grau, dependendo de nossa alel)(;ão. O campo consciente é estreito
1·ência) dão a direçiio do sonhar diurno. Eks conferem a linha sobre a qnal e está rodeado por fronteiras mais csn1ras, nas quais se desvanN·e. Também
st· move a fantasia das imagina<;Ôes anlecipadoras e ao longo da qual essa antes e· alé sem que algo psíquico sc:ja csqHecido, muita coisa nele não é
fantasia constrói então a sua estrada des(:jada ou também (no caso dos conscic111c. Assim, uma dor pod<' não ser sentida, uma in1prcssão externa
afetos expectantes negativos) sua estrada indesejada. A estrada des<:jada, não ser pcrn·bida, embora psíquicamente das de lato existam. Situam-se
com a paisagem para a qual da leva, sendo estrada da esperança, não é abaixo do limiar, se:ja porque o estímulo é muito fraco, seja porque a
mais rica, mas evidentemente (, mais preferida e movimentada do <pte· a atenção cst,1 ocupada com outra coisa - portanto, desviada-, s<ja porqu<'
cstrnda indesejada ou do medo - ao menos para as gera(ôes que almt:jarn a repetição embota até mesmo estímulos fortes. Assim, no campo do
passar· da escmidão à claridade. Ambas as intenções voltadas para o futuro consciente já há diversos pontos obscuros não <·onscientcs ou apenas
--- tanto a dos afetos expectantes <'Orno a das imagina<;ôcs expectantes - levcmcnlc conscientes que de forma alguma são esquecimento. !\.s
adentram analoganwnle um ainda-não-consciente-, isto é, 11ma classe de propriamente ditas fronteiras da consciência, todavia, uão se situam na
consciêucia que não deve ser designada como pknif'icada, mas como vivfateia presente e n1eran1ente atenuada. Antes, elas se encontran1 onde o
antt·cipatória. Os sonhos despertos, na medida c-rn <(li<' co111êrn um futuro consciente pám de repercutir; no esquecer e no esquecido, onde o vivenciado
:-mlêntico, rumam para esse ainda-não-conseic111c. para o campo utópico submerge sob a fronteira, sob o limiar. Mais ainda: elas se encontram d<'
ou daquilo que não veio a ser, que não foi pkniliculo. lkve sn examinada\ outro modo também no lado oposto ao do esquecimento, onde alvornl'
agora a sua condição, a con1eçar pela psíq11ica C<Tla111<·111c cum ira et algo alé ali não consciente. Também ali há na consciência uma frontcir.i,
studio, tomando o partido da fantasia para a f'r<'nlc j,, t·ompn·c·ndida, do uma soleira, neste caso mais elevada, mais ou menos deslocada para a
possível em tennos de objeto numa ahordag<'lll psíquica do lll<'smo. Pois frente, atr·ás da qual a vida psíquica não é muito clara. O relativamellk
somente na descoberta do ainda-não-consl'Í<'IJI<', a expectativa, sobretudo a inconsciente se encontra então em dois lados: sob o limiar do
positiva, obtém a sua dignidade: a dignidad<' de uma função ul<ípica, tanto desvanecimento, mas também acima da soleira do despertar. O olhar ai e111c >
no afeto quanto na imaginação e- na idéia. deve se voltar primeiramente para o relativamente inconsciente, o q1w
11111ilas V<'l.<'S <"xig·<· 11111 <'Sl<>n:o. No <·111a11lo, d<"<: cap:11 d<' s1·1 111 • , , ,11.,, 1<·11-• ,t<- :1 proch1<,-,io i111dect11al signilícaliva) 11;10 se· c·11<p1ad1;1 110 <·sq11<·111,1 d.1
te, não só abaixo do que não mais se percebe como larnl><:111 :ili 011d<" s11rg-<' , , I" ,·ss,io. Com isso, tangenciou-se o pré-consciente que n.io cahc de lon11.1
algo novo, que ainda não havia ocorrido a ninguém. As duas coisas podem il: •,t 1111.i na concep~·ão de Freud, o pré-consciente na outra clin•<:;io, p:11 ;1 o
ser retiradas de debaixo das fronteiras, podem ser mais ou menos .. 11110 lado, que precisa ser explicado, não algo reprimido, mas algo q1w

esclarecidas. , ·,la cm ascensão. O sonho noturno pode até se referir ao não-mais


, , 111sciente, regredindo em direção a ele. Mas o sonho diurno é aplicado a
O du/Jlo .'.>ignifú:ado do pré-consciente .il~o que, caso não seja novo em si mesmo, no seu conteúdo objetivo, pelo
A vida psíquica sempre c·slá enquadrada sinmllancamcnte pelo no- 1111·110s o é para o sonhador. No sonho diurno, revela-se assim 11111a

turno e pelo 1uatinal. O sonho noturno se move dentro do esquecido, , l«-IC'rminação importante do ainda-rião-wnsciente, ou seja, a da classe à qual
rcptimido, enquanto o sonho diurno se· rn<>V<' naquilo que· de fato nunca , li' pertence. Desta forma, surge uma última certificação psicológica cio
havia sido cxperimenlado corno presente-. O que se situa forn do campo ·.n11ho diurno, e é preciso esdared-la. Até hoje ela não foi inteirarnc111c
consciente é gene,icanwnte diamado de i.nam.\/:iente h,í cerca de 200 anos. , , 111ccituada. Ainda não existe uma psicologia do inconsciente do outro
Foi urna gnindc descoberta a de que vida psíquica não coincide com Lulo, do alvon·c·c·r para a frente. Esse inconsciente passou despercebido,
cons<·iência. Con111do, considcn-1-sc i11<·011scieutc, onde quer quc t·slc sf'ja l'lllhora rq>n·se11tc o esp,1<:<> prop1-ia111cnte dilo da disposição para o novo
pensado como capaz de consciê·n<·ia, 11~io aquilo que est;Í pura e 1· ela produ<:ão elo 11ovo. O ainda-não-consciente é de fato tão pré-consciente

siinpksmc11te i11<·ousc·i<'nlc de si mesmo, como por exen1plo uma pedra, , 01110 o inconsc-ienlc da 1·epressão ou do esquecimento. À sua nianeira, é
mas aquilo que é JH'é-c·onscientc. Desta forma, contudo, mesmo o 11111 inconscientt' t;io clilfril <· renitente como o da repressão. Porém, de

psiquicarnenl<' i11co11scie11te foi pensado e é pensado até hoje mcrnmente lonna alguma <•slá subordinado,\ conscihH·ia atual, manifesta, mas a uma
como algo que st· situa abaixo da consciência e submergiu dianle dela. O , onsciê·ncia futura, que apc11as est;Í surgindo. O ainda-não-consciente é assim
inconscienlc se si11ta - de acordo com esta c011Cepção - no sedimento: de 11111t,1111cnlc o pd-<·011scit'11te do vindouro, o lo,:al psíquico de nascirnento
c·omc<;a rC'cnando a part i1· da c·onsciência que vai diminuindo do novo. E se mantém pr<'-<·011scie11le sobn·tudo porque nele se encontra
gradativamente. O incons<·icnte (, aqui, por·tanto, exclusivamente o ruio- 11m conte1ído da consciência <pie ai11da 11ão st· manifestou 11ela de forma
111ais-wn.1âenle. Corno tal, de povoa u11icamc11tc a paisagem lunar ele nm dara, que ainda est;Í alvorecendo a partir do futuro. Conforme o caso,
défi<-it cerebral. Assim, mesmo qnanclo a psicanálise designa isso corno nm pode ser· até mesmo mn conteúdo qu<· vai surgfr ol~jetivanwnte no mundo.
pré-consciente, não st· lrata de uma consdência que nasce con1 um novo ~: dcsla fonna <·orn todas as situações produtivas q11<' c·stão na origem dt'
conteúdo, mas de algo antigo com conteúdos antigos, que meramente havia coisas que m111ca existiram antes. Este é o cspfrito do sonho para a frent<',
snbmcrgiclo e que agora pode ser lransposto novamenle niediantc mua este espírito repleto do ainda-não-consciente como forma de consciência
rememoração mais 011 menos direta. Desse modo, o inconsciente é, para de algo que se aproxima. O que o s1tjeito aqui fan:ja rnio é bafio de porão,
Freud, nnicamcnte o esquecido (para ele, o propriamente pré-conscic·nte, mas o ar· da manhií.
que normalnwnte é capaz de se tornar novamente consciente sem mais
nem menos) 011 o reprimido (para ele, o propriamente inconsciente, "não ' O rúnda--nâo-wn.ffi.imtP -na juventude, mu.dar11,;a dr, é/Joca, produtividade
só dcscriliva, mas também dinamicamente inconsciente", que não é capaz Toda fon:a nova ncTessaiia1nente tem cm si esse novo, move-se em
de st· ton1a1· conscienle sem mais nem menos). Na vndaclc, o Freud tardio dirc(;ão a ele. Seus lugares pJivikgiados são a juventude, as épocas presl<·s
acentua que, alfm do i11consciente esquecido e· <lo reprimido, tambfm a da1· uma guinada, a produ<:,10 <·dativa. Uma pessoa jovem que sente <jll<'
haveria um tern:iro tipo, mn inconsciente "cknlro elo próprio eu" - há algo dent1·0 de si sabe o que isso significa: o alvorecer, o esperado, a vo1
"Também uma parte do eu, uma parte só Ikus sahe cp1;io importante do do amanhã. Ela se sente com vocaçiio para algo que se agita por dentro,
eu pode ser incons~'icnte, certamente é inn>11s<·i<·111c". E11tn·1a1110, logo cn1 que se move no seu próprio frescor e ult rnpassa o que até aquele momc·1111,
seguida F,·cud continua: "Quando nos vemos assim 1órçados a estatuir um veio a ser, o mundo do adulto. A hoa juventude acredita que tem asas e·
terceiro inconsciente não reprimido, temos de admitir que o caráter do que tudo o que é direito aguarda a sua chegada ruidosa, e até é nmstit11íclo
inconsciente peJ'Cle em importância para 11<ís" (Da.., lch und rlrts Hs, 1923, p. por da, ou pelo menos libertado por ela. Com a puberdade, iuicia-sc o
17). Perde em importância porqu<' este terceiro inconsciente (Freud mistério das mulheres, o misté1io da vida, ú mistério da ciência. Q11a11l:1.,
surpreendente.mente indica como fr11ômeno deste terceiro inconsciente estantC>s cheias de livros desconhecidos brilham aos olhos da _j11vc-111111lc·
d, 1111ula1u:a s,ío os p(TÍodos de juvl'llt 11dc na liistóri:1, isto (', ,·.,1.1, •
que li·. Os anos verdes (·sl,10 replclos d(' alvon·(-cn·s p:11;1 ;1 f1('11lc. l\fai.~ da , ,l 111'1 iv;1111(·11tc diante dos portôcs de llllla novasodedadc cm as(T1tsiio, assi111
1netade deles consiste de estados ainda não conscientes. Eles C('rl,lllH'llte s1· , , ,1110 aj11ventmk- se sente subjetivamente diante do limiar de um dia d(· vid;1
encontram ameaçados em pessoas jovens, entre 25 e 30 anos. Mas o qul' 'I' 1,· ,11<: aquele momento ainda não havia sido inaugurado. O cxeiuplo <jlll'
até ali se conservou de juventude se conservará para sen1pre em pessoas 11,· ll!~je melhor apresenta uma mudança desse tipo é a Renasc·<·n(:a,
que não foram contaminadas pela podridão do ontem e não estão , ·,pffialmente no que se refere ao seu lado ideológico-cultural. Em poucos
co~juradas com ela - e se conservará corno algo cálido, luminoso, ao menos ,,i1i1os momentos houve, como na primeira guinada da sociedade feudal
consolador diante dos olhos. Nesses anos, a voz do ser-diferente, do ser- l',11 a a moderna sociedade burguesa, uma tal prontidão para pôr-se a caminho
n1elhor, do st'r-1nais-helo {- tão sonora quanto não desgastada. A vida se , 11111a expectativa tão clara, e tambérn uma tal ainda-não-consciência como
chama amanlui; o mundo, lugarfmra nós. A boa juventude sempre vai atrás percepção consciente. /nâfJit 1,ita nova ["Inicia uma nova vida"]: naquele
das rnelodias do seu sonhar e de seus livros, espera encontrá-las, conhece a 1.-111po, isto designava também psiquicarnentc a qualidade da aurora de um
errância ardente e obscura pelo campo e pela cidade, aguarda a liberdade 1.-mpo - o empreendedor progressista se ergm'll e com ele o sentimento da
que lhe está adiante. Ela é um anseio para fora de si, para sair da prisão da 111< lividualidacle. A consciência da m1<;ão emergia cio horizonte. Individuação
coen:ão externa, que se tornou bolorenta ou parece bolorenta, mas também ,. perspectiva ingressaram no senso ela natureza e na idéia da paisagem. A
por sair da própria imatmidade. O anseio pela vida adulta impulsiona o 1•n•pria ten,1 distante apareceu e revdon novos continentes. A abóbada celeste
joven1, mas de tal 1noclo que o leva a querer modificar essa vida totalmente. ·,e· rompeu e liberou a vista para o infinito. Todos os testemunhos da guinada
Se a juventude se chí ern épocas revoluriomírias, portanto ern mudanças de dos séculos XV e XVI ammciam a esse n·speito um pré-consciente muito
éfxH:a, e se da não tem a cabe<;a entortada por algum ardil enganoso, como poderoso, que alargou o cspai:o e foi além das n>hmas de Hércules
com tanta freqüfa1cia ocorre l1<~jc no Ocidente, ela sabe tanto melhor o ('Stabckciclas até aquele momc·nto. Ini<·iou-se urna .n·novação total da arte,
que representa esse sonho para a frente. Ek passa então de urna percepção ela vida, ela ciência, ou pare('<'ll inici,u--se. Esses td·s quartos de hora antes do
vaga e sobretudo privada para uma mais ou menos socialrnente aguçada, 1 aiar do dia aparecem ainda 110 Nm!/1.m orf!:anon ck Banm, suficientemente
so('ialmente rcspons,ível. O exemplo mais amplo foi dado outrora pelos tarde, mas também sufidentemente articulados:
narodniki russos, que se misturaram ao seu povo para lutar com de pela
queda do ('Zarismo com urna aura sentimental ou irada. Então, as conversas S<'i quc homens não envolvidos cm ucgôcios realizarão grnndes coisas
de jovens estudantes teciam utopias no bulevar poeirento da pequena cidade com o t rahalho cortjunto e seguindo o caminho que tracei. E se eu não
russa. E mais tarde nas grandes cidades, com clareza cada vez maior e tivesse tanta ct'rteza disso, se o vento vindo tias orlas de mn novo mm1-
imbuída do espírito socialista, em união com os trabalhadores, despontou· do não soprnssc- tão forte e inconfundivelrnc-nte at{, aqui, ainda assim
solidamente a aurora que estava guardada na consciência e no tempo. t<'rÍamos de fazer a tentativa de sair da paralisia do nosso miserável
Mais de meio século antes ela revohi(·ão de outubro, até o roman('c de conhcxim<"nto da nallll't'Za (Aforismos 113 <· 111).
entretenimento russo freqücnternente apresentava uma juventude
preocupada com a mudança de época. A Alemanha teve seus estudantes, No ar ckssas prirnaver-as históricas vibram planos em busca de execu-
revolucionários no Sturm und Drang, no Vorrnarz, e os tem hoje, na nova' ' 1 ção, idéias em incubação.Jamais os atos prospectivos foram mais numero-
república, com um objetivo definido - aqui,juventude e movimento para , sos t· mais comuns do que então, jamais o antecipatório nelas foi mais
a frente são sinônimos. Portanto, durante esses períodos e sernpre que eles pleno dc conteúdo, jamais a sintonia com o que vem chegando foi mais
forem atuais, não há apenas mna forte sensa~:ão primaveril no ar, mas irresistível. Todas as épocas de mudança estão assim repletas, até
ainda mais: em épocas de mudança, o clima {- abafado, parece que uma sobrecan-egadas com o ainda-não-consciente. E é uma classe em ascens[io
nuvem carregada está presa dentro dessas (pocas. Por isso, categorias de que o leva consigo. A expressão desse estado, que n·vive a r·enascença, é o
tempo e nascünento sempre foran1 aplicadas a elas: corno calrna antes da monólogo no Fausto, de Goethe. Também nele o enfado, o sonho acorda< I< •·
tempestade ou como primavera histórica ou, na sua forrna mais forte e a aurora são os ingredientes do que é anterior. E da mesma forma css;1s
concreta, como uma sociedade que está grávida de outra. Épocas como a épocas laboram em problemas que, na realidade dada, praticamente ai1ub
nossa entenden1 muito bem o estado de rnudança. Até os seus inimigos, os não se apresentaram nem mesmo de modo embrionário. Assi111, ;1
fascistas na Itália e na Alemanha, só conseguiram enganar se disfarçando Renascença, da mesma forrna que posteriormente a Alemanha do p<TÍ1111, ►
de revolucionários, o marasmo como sol de primavera. As próprias épocas
dos ).!;l'IIL0S, dl'sc11ntv<1 as t(·11d<"11cias l'Vol11tivas da (:p111·., 1· .,, .-\11111· aos 11111:1 V('/_ 1n:,is ((' agradl'<,,'o, 1111'11 antigo guia, po1 1111·
prinwiros raios solares, ao sol do novo dia. E1n épocas corno n,.~as, o S<'I' t<'r<'s mostrado, gê·nio rneu, como é terrível ali.
hmnano se seu te claran1ente como urn ser não definido, corno um ser qn<·, Teu bastão dourado o indicou! Obras po<-ticas de altos mastro~, d,-
juntamente com o seu ambiente, constitui uma tarefa e um enorme recipienh· velas plenas
pleno de futuro. e ainda assim soçobradas rne assustaraml
Como a atividade criadora é claramente precedida por mn alvorecc·r Fiquei sério até à melancolia, aprofundei-me
e e-orno é singular a sua posü,;ão ude! A produtividade intel11ctual, a criação se no propósito, na dignidade do herói, na tônica,
mostra especialmente repleta do aiucla-uáo-consciente, ou sc:ja, dajuventu- na atitude, no andar, almejei, guiado pela ciência da alma,
de que se potcndaliza no niar. Também aqui da f pressuposta e perma- averiguar o qn<' seria a beleza da poesia,
nentemente ativa. Ajuventmle, sendo talentosa, inidalmente pode se per- voei<' levitei entre os monumentos d<' minha pátria,
der, como no canto do junco de Lcnau: procurei o herói, não o <·ncontrei: até que por fim
caindo de cansado, fui então como que despertado da sonolência, 1·
E p<'Bso que escuto soprar de uma s1í vez
suave da tua voz o so1n cm torno d(' mim vi brilhar chamas relampejantes.
e no a1;udc se afündar
a tua harmoniosa can<;ão. E em I lôlclnlin essa juventude· produtiva e· radiante, que sabe se
enco11trar tamb{-111 110s tempos primcvos como se não fossern prin1evos, <'
Ao avançar, a_juvl'11t11de possui a grntidão do devir e a estranha ima- sim p1uffti('OS, essa juventude mantún desperta a sua manhã no nnmdo,
gnn (Ili<' o g('ra, como retrata Goethe, 110 "Prólogo no teatro". ainda qu(' <'lll ill('ÍO ãs trevas, corno se vi': no grande hino Ex oriente lux, ao
dia novo e doc1i'tente:
Jí 11m· assim 1:-, r<'slil11i-m<· lambt;m os ternpos,
pois <'li pr<>prio ainda estava <·m desenvolvimento, Pois, como se do órg:IO maravilhosamente alinado,
pois criou-se 11ovanu·nte uma (únte de canções 110 salão sagrado,
nmcisas inint<·n-uptas, de tubos i11csgotáveisjona11clo para dentro,
pois n<-voas Ili<' ocultavam o inundo, tiv<'sse início, despertando, o prelúdio ela manhã,
o botão prometeu ainda maravilhas, e num amplo entorno, de salão para salão,
pois eu trouxe milhares de flores, fluísse a torrente refrescante, melódica,
que ricamente encheram todos os vaks. 12 nté nas.frias sombras, a casa se
enchesse de <'ntusiasmo;
A juventude mantém o seu lugar na prodt u,:ão, mesmo após o t énnino agorn cntiio desperto, alçando-se,
desta. Ela sente, mesmo apôs a obr,1 concluída, a ousadia não garantida ou ao sol da fésta responde
a antecipação ousada. Assim, cm Klopstock, na ode An Frn.tnd urul Feind IA o coro da commiidade, assim veio
amigo e inimigo!, ainda 33 anos apôs l n sido iniciado o Messias: a palavra do Oriente até nós,
e· nas rochas do Parnaso e junto ao Citeras ou<,,:o,
Cheia de sede ('Slava a alma ank11t1· do jovem <Í Ásia, o teu eco, C' cl<' reverbera
pela imortalida( lc. no Capitólio, e precipitando-se dos Alpes
Eu velava, e cu sonhava v<·n1 ela, 1una estrangeir,1,
da viagem intrépida pdo oceano do futuro. nté nós, a despertadora,
a voz que cria os humanos. 1"

12
Goethe. Fau,to, parte I, linhas 185-19:l. Tradu~·ão de Anlcnor Nascentes e José Júlio F. de
Souza, p. 10. 13 Hõldnli11, Am Q_uell der Dona-a, 1801.
:\ p1rnl111ividadc uao «Tssa de 1kspcrla1 p01 si 1111·s111.1, .,,..,,,11, 01110 ,:
d1'spcr1,1<la pelo aguilh,"io do ter-de-dizer. Este t<T-de-di1:1-r s1· lrn 11., de fato
, , >111 li 1111 · p1·op1 ·11.~;10 ,1 .,<· d 1s.,1 p;11 . 1 l'SS.l p1 op1'11sao 1.111/,,.L!d e- 1·111 s1 I·' 11111.1
1
',

forçoso quando se oculta o que foi vislumbrado e teria de ga11liar forma; , , >1111 .idi1.:,io IJIII' q111·1 se- 1l'solv«T, pois da é o 1·s1;ulo i11s11s11·11l;Ívd, lao 1<·1111,·d
quando isto até parece coquetear com a sua retirada; quando o trabalho
, I' 1;11110 alórtunado, de 11,'u> s<-ro que a nossa natureza é segundo a sua vo111;11lc-
parece fugir de seu executor antes de uma nova investida, solicitando a sua
111.1is n·al, e de assim serjustamente o que ela ainda não é. Nessa conl ra, li«.:;10
presença de modo especialmente urgente; quando o tema do trabalho se
.11111la está contida a propensão mais desenvolvida ou a fennentai::ão, <·111 q111·
coisifica numa forma titubeante, sussurrante, ele próprio hesitante, e parece
,< · prepara o enunciado e a forma já melhor delineados. Em todo c·aso, a, 111i
censurar o ter-de-dizer por sua morosidade . Todavia, quem está amarrado
,«-mpre há expectativa, independente da maior ou menor intensidade d<' li 11,
a uma estrela não volta atrás, afirma Leonardo da Vinci, <' a moral da
11csse breve período antes de raiar o dia. Então, a essa incubação geralmet1II'
produtividade se confirma ao completar tudo que se inflamou, trazer à luz
s1· segue uma iluminação súbita, como um relâmpago: ela vem como quc dl'
do dia, de modo puro e fo1n1ulado, os contornos do conteúdo vislumbrado.
forn ou, numa falsa inteq>n·tac;·ão, como que de cima para baixo. Por isso, a
O que sení, então, <piando sinmltaneamente juventude, mudança de época e
expressão in!>piraçúo com,·çou a ser usada para este caso. Ela caracteriza o
fm1dulividade co1~jugarem seus talentos de modo frliz? Isso se deu com
•;iíbito, o que vem esdarccendo e entusiasmando, a 1·epentina visão clara. A
succ·sso no jovem Goethe, no fragmento do Prmneteu, na gigantesca dimen-
incubação, que parecia não ter voz, às vezes até podendo provocar um tipo
são da inleni::ão do Fausto<' já do Proto--Fau-!>to, mas também - ainda a partir
1 le vazio da consciência por causa de alguma sobn·carga,já não é mais lacônica.
daí - na mais confiante de todas as frases (de Wilhelm Meister:I' Lehrjahre [ Os
[•:sse desfaz(T-S<' pode ocoinT, em siluaç«><·s mais leves, por meio de um
anos de afmmdizado de Wilhelm Meister]): "Desejos são pressentimentos das
;1ssalto de idéias- idéias que apenas cnvolwm ou anunciam a idéia principal.
capacidades que estão dentro d<' nós, prenúncios do que seremos capazes de
,\s vezes, das acompanham o surgimento da idéia principal. Como esse
realiza,·". Então os atos prospec:tivos trabalham e obtêm êxito a partir da
,urgimenlo é t;"io fo1·te e ela parece n·almentc ser a solução do problema, é
!remenda <'Xp<'clativa que deles se apoderou; a partir da afinidade com a
como se duranl<' a incubação e a rdkxão não tivesse havido qualquer
estrela que ainda S<' encontra abaixo da linha do hmizonte; a parti,· da fixça
problema. A co1H·cntrai::ão extrema também relaxa, da que evidenciava o
para pisar em tc·n-cno ainda n~10 pisado, que faz Dante dizer: L 'w:qua l'he io
laconismo do tíltimo cst,ígio e que, na gravura Melani:olia, de Dürer, aparece
fmmrlo RÍa111.1wú rum ,1i /'rme ("a ,ígua que eu seguro jamais foi nav<'gada").
como uma esfern de ped1,1 no qua.-to, isto{, como símbolo memorativo do
Esta lÍitima sc·nlcnça é, enfim, a que melhorreúnejuventude, mudança de
pensador ensimesmado. A solu~:ão srn·gc· n-pcutina111<·ntc, parecendo tão
épon1 e produtividade mun só apanhado. Não com arrogância, mas c·om a
imediata, ou s<:ja, sem consci<'·ncia do longo período de incubação, que a
descrição do que oco1n·, do que deve ocorrer nas ocasiões de cri.-H:ão.
inspinu;ão facihnentc traz consigo, ou mdhor, trouxe nmsigo a sensação
milagrosa do pn-sent<' m,igico, ao lado da sensac;·ão feliz de libertação.
Mais sobre a j1rodutividade: seu!> trê.1 e.1trigio!> ,
Todavia, a visão que a acompanha sempre est,í assodada a um êxtase de
O que há a dizer sobre a grande inquietai::ão quando ela se r<"veste do ',i
felicidade, ele- extrema leveza, embora dela precisem ser riscadas as
sonho para a frente é uma inquietação ativa, o novo começo contra a 1igidez,
explicaçõc·s mágico-an-aicas bem como as transcendentais, todas elas
o qual vai tomando forma intuitivamente . Essa i11111ição [A/mungi, na sua . ,
consagraçôes que cheiram a mofo. O produtivo não é nenhum xamã,
ocmi-<'·nc·ia costum<'ira, é o senso para aquilo que cst;í se avizinhando. Tor-
tampouco algum resíduo psicológico dos tempos primitivos; não é um fogo
11,mdo-se niativa, ela se· liga com a fantasia, prin<"ipalmcnte com a fantasia
vindo desst' abismo, tampouco um aneio [Mund~túl'kl de poderes superio-
elo ol~jctivamcnte possível. A intuição capaz de laborar é produtividade inte-
res, como Nietzsche nos teria lembrado atrevidamente. Essa mil ificação trans-
lectual, vista agora como realizadora de obm.1. Mais delalhadamente, a produ-
cendent e da inspiração, como se ela despencasse sobn· nós, é completa-
lividade se constilui corno extensão tripla, triplamente crescente para,dentro
mente irrelevante: ela é superior à mágico-arcaica apenas na medida em
do não-ocon-ido: como incubação, corno a chamada inspiração, como ex-
que quer fazer jus pelo menos ao transcendere, quer dizer, ao aspecto
plicac;·ão . Todas as três fazem parte da capacidade de transpor as fronteiras ,;
expansivo sobrepujador da criação intelectual, e não a falsifica como urna
da consciência atf ali estabelecidas. Na incubaçrio, ocon-e um opinarveerncnte, •1
submersão, como uma linguagem noturna . De fato, a constante experiênda
c.1ue tem em mira o que se está buscando, o que está vindo como alvorecer. '.,,I
luminosa que está vinculada à inspiração mostra que no ato da produtivida-
Psiquicamente, os nevoeiros são também a melhor época para semear, só :,1'i'
de não ocorre nenhuma regressão arcaica. Inclusive a produtividade, 11a
que não se pode ficar restrito a eles: há até um estágio de escuridão, mas ) maioÍ:ia da vezes, é bem clara, pe1·ceptível no ponto alto da consciêná,,
,,,
sendo mais famoso o caso de Descartes, quando descobriu o princípio do
,,,g,to '''.W' ,11111: "No dia 10 11<- 11ov1·111bro dt· l<il!I, 1·111 ljlll' .,h.,11·, ..i1 pa1;1 No 11111· M" 1d,·1c a 111·1·t·ssa1ia ,011,otdi111< i;1 10111 o lw1111, h1,ln11c1 ►
111i111 a 1111, <k uma descolwrla maravilhosa". E qual s<·ri;, a l.11.~," d!'ssc , '"'"' q11alidade co11stit11i11tc do geuial como t;d, o lwg-di;1110 Ros,·tilzi .1111,
alvorecer, depois de tanto o xamânico a partir de baixo quanto o entusiás- 1, 1ulo Sl'll 111,·strc em ntc·nte, obseiva ele 111odo extr<'ma111<'nte ('l'rti1w11II':

tico a partir de cima não haverem proporcionado coisa alguma além de


interpretações supersticiosas? A faísca da inspiração reside na coincidência O gt~nio não é, como o talento, grande por sua V{'!'satilicladc fonual.
de uma predisposição específica e genial, isto é, criativa, com a predisposi- embora possa possuí-la, mas pelo fato de cumprir, como seu clcsti110
ção de uma época para propiciar o conteúdo específico n~ja expressão se individual, o que é ol~jetivamente necessário numa determinada cslá,1.
tornou madura para ser enunciada, fónnulada, excnttada. Portanto, não E é por isso que só o contexto do desenvolvimento histórico pode dar
só as snl~jctivas mas também as ol~je1ivas condições de enunciação de um a sua medida, pois ele deve se projetar além de tudo o que t·stá dado
rwvum tê-n1 de estar prontas, 1nad11ras, para <pw esse novum possa passar da e elaborar como uma satisfação pessoal aquilo que objetivamc11t1'
mera inc11ba<:ão para a irn1p<:ão e a súbita noção de si mesmo. E t·ssas acompanha o curso das coisas em sna época. No âmbito dessa tarefa,
condi<;ões sentprc são de ordem socioeconômica do tipo progressivo: sem ele reina com poder demoníaco; fora dela, não tem qualquer poder,.
a demanda capitalista, a demanda subjetiva do cogito ergo .1um mmca teria pode até assumir variadas formas, mas não produzir o novo (Psyclwlogir;
t·ncontrado a sua inspiração; sem a demanda proletáiia incipiente, a no~·ão 1843, pp. 51 e ss.).
da dialética materialista não poderia ter sido encontrada ou teria penna-
nccido como um mero aperçu incubador e tampouco telia caído como um Naq11da época, l 81~, t'Ssa definição se aplica1ia de modo excelente
raio no solo do povo que deixou de ser ingênuo. Da mesma forma, a .,o caso de Marx, mn_jovcm gê-nio que, como poucos alt'm dele, começou
irnrpção, a iluminação muitas vezes repentina e poderosa que se chi no .1 nunp1ir o ol~jctivamente 11c<·ess,'irio numa determinada esfera con10 seu
indivíduo genial obtém tanto o material em que se inflama c·omo o malnial , lcstino individual ,. cxp<-rim<·utou <"omo nenhum outro o ilrompimento
que ela ilumina unicamente do próprio nov·1un do contc1ído ele época que da inspiI·a<;,io de sua ohra, que· estava oco1n·11elo em total compreensão da
torna a idéia urgente. E ressalte-se que esse ainda é o caso quando, como , oncordiincia com a f<'ndfncia histórico-social do seu tempo. A inspiração
tantas vezes ocorre, a receptividade de uma época não est,Í, d,1 mesma, à , omo ui11 todo, cada Vt'Z que gera uma obra, sempre pr-ocecle do encontro
altura dessa época, nem de suas amplia~·c~ws, de suas tenclfncias e lati'·ncias "11tre st!jeito <' ol*·to, entre a tcndfncia dele <' a tendência objetiva da
que continuam a atuar. Também aí a inspiração nasce da ckmancla da ,··poca, e ela é a c,·111clha que acende essa conconlância. Então se acende
época, que se· percebe no indivíduo genial, explin1-sc cm conson;1ncia com 11m fogo que llH' é nmtplc1anwnte iman<·ntc. Aiuspirn<;ão é, pois, a irrupção
a sua predisposição e potencializa-se jm1to com asna potência. O mistério da l11z no se1· constituído ele 1<'11dfnda ,, latência, e evocada por sua mais
do mu1tclo, que avança no tempo corno uma larefa nossa e se impôe aos dara consciência. Assim surge, para o autor, a idéia nítida da obra, uma
grandc·s talentos, esse nlistério {- grande o bastante para manter urna dose obra que, tanto na i1tntba<;ão <·omo agora na inspira<;ão, ainda não lhe<;
de incuba<;ão nos que são convon1dos par,t articulá-lo, mas ainda não é de modo algum suficiente: ao contdrio, ela qn<T avançar e conquistai· a
poderoso o bastante para fi.uular o modo de esdarecimento próprio de nova paisagem para a qual a<p1da faísca h.1via apontado.
cada sociedade. Se os maiores talentos tê·m 1micamente o mistério do m1mdo Nesta paisagem, por fim, desdobra-se o qu<' Ióra indicado pela iuqui-
diante dos olhos, sem r·ehtc;ão concrc·ta com a época, chega-se apenas ao da<:ão e· pela intni<;ão. l~ o que oc01TC' na última fase ela produtividade, no
impasse da incubação que l legel assim descreveu, olhando retrospec- doloroso e trabalhoso t·stágio da exjJlü:açúo. Genialidade significa empe-
tivamentc para o começo de uma cahnaria: nho, rnas 111n empenho quejamais abre mão da elaboração ou da obsess."io
perrnanc·nte. Não pode ocorrer qualqutT ruptura, nem entre visão e ohra,
Conheço por experiência própria essa disposição de ânimo, ou melhor, nem entre obra e visão. Diz Van Gogh qnc "a primeira luz que vem co111 a
da razão, que con1 seu interesse e C'Oill seus tormentos mergulha nmn impressão inspiradora já deve, ela mesma, ter c:omeçado a pintar o quadrn ".
caos de fenômenos e( ... ), m(·srno com a plena convicção de seu o~jc- Des1a maneira, a genialidade é o específico esforço de desdobram,·11to da
tivo, ainda não chegou a urna n>mpreensão dara e detalhada do todo iluminação n1mo ao seu enunciado, de modo que aquilo que foi controla( 1, •
(... ). Todo homem com certeza tem um ponto de mutação em sua vida, pelo conhecimento acrescente não apenas fim1eza mas também proh1111li
um instante em meio à noite em que todo seu ser se concentra (Briefe clade ao que foi planejado. Schopenhauer observa, dt> forma <'Xata: .. ()
von und an Hegel I, 1887, p. 264). talento é semelhante ao atirador que acerta um alvo que os dc111ai.~ 11;ro
t oll'>l'g1w111 ali11gi1; o g1·11io, ao (Ili<' anTl:t 11111 alvo que· o-; clC'l11.11-.. 11<·111 110 s1·11 1101 i1.011lt'. O qtw ;i c-xplirac,o dl' al~o ai1ul.i-11ao-n ► 11~11<·1111· 1n·d.1
111c·,-;1 tu> co11s('gtwm vc-r" ..Justan1enle esta verdade anulaaii.111da111<·111al111cnk , 0111 toda sua iún:a <: qu<' uinda-11iio-ron.\rie11fr 1'111• .11·u rn11j1111/111· ,, 11•/n1·.1,·11/ll
o

c·11-ú11ca d<'l'inição de genialidade dada por Schopenhauer em outra < 11n f,.,íqnica do q1u ainda não veio a :;er num delenninado 1,,111Jm ,. \/'li
passagem, segundo a qual a genialidade seria um olho do mundo, 1111,rHlo, no front desse mundo. Tornar consciente o ainda-11ão-co11scic-111c·,

purnrnente estático, que, portanto, de modo algum poderia ser antecipador. eLll' forma ao que ainda não veio a ser ocorre apenas nesse espac;o, como
Precisamente pelo fato de a genialidade enxergar, acertar além do rnna antecipação concreta, apenas nele se situa o vulcão da produtividaclc-
horizonte dado, ela não é o olho do mundo, estático-contemplativo, mas c só ali ele entra em erupção. Apenas como fenômeno do novum se pod<'
pioneira nas fronteiras ele nm mundo que está se avizinhando. Ela própria 1 ompreender a mestria na obra do gênio, que é estranha à realidade c·xis-

é parte importante do mundo que ainda est,í se formando. Em tennos l C'nte, mergulhada na rotina. Por isso, toda grande obra de arte, abstrain-
psicológicos, genialidade é a manifrstação de mn grau especialmente elevado do da sua natureza manifesta, repousa sobre a latência do outro lado, isto
do ainda-não-consciente e da capacidade de consciênda - em última ,:, sobre os conteúdos de um futuro que na sua época ainda não havia
instância, J><fftanto, (: a força de explicitação desse ainda-não-consciente no surgido, ou mesmo sobre os nmtcúdos de um estágio final desconhecido.
st~jeito, no mundo. O grnu de genialidade é determinado pda riqueza do Somente por essa razão as grandes obras têm algo a dizer a todas as épocas
seu ainda-não-consciente, isto é, pelo quanto ela já avançou para além ela - mais precisamente, mn novum que aponta para a frente, que a época
realidade consc-i(·ntc, para além do que até aquele momento já foi ;inte1ior ainda não havia notado nelas. Sornente por essa razão uma ópera
explicitado e delinC"ado no mundo. Neste ponto, ainda não { necessário f'eéiica corno A .flauta mâgi.m, mas também urna epopéia historicament<'
eslahclec<'r difcre1H;a entre o gênio artístico e o científico, pois a sentença: .~ituada corno a lliada, tfan a chamada juventude eterna. Disso resulta qtw
[.'(U:qu.a diP i.o jnrndo gi.ammai. nor1 si. corse, de Dante, é válida <'Ili l<'rrnos cxplint(.'ôes que se tornaram ol)l-as geniais não só deram expressão com-
psic·ológic-os para ohras de g1·;mck importância, sejam elas artísticas ou pleta ao seu pr6prio tempo: nelas está presente também a implicação per-
<·ientífkas. Dar forma :icplilo que ainda não a havia recebido: este nilé1io manente do f1lu.1 ultra. E o tíltimo lugar onde o ainda-não-consciente pode
de criação do genial é o mesmo na arte (o reflexo de uma aparC'ncia real ser encontrado é o l<·1n·110 do subconsciente, o lugar para onde simples-
J><ff meio da imagem) e na <·i<'nc-ia ( o reflexo conceituai da estrutura de mente submergiu o que .F havia sido consciente, o que já havia sido
tendência, de latência elo rcal). i\s explicações na arte e na ciência, todavia, vivenciado,j,i havia surgido. O seu lugar<~ na linha ck frente, onde a gêne-
thn cm comum, ai11da que c·m dil.c:-rentes níveis de objetivação, o fato de se tem <'ontirntidack, onde da, como gf-ncse do que é direito, sempre está
cada uma cldas se <·ucontrar no próprio processo de objetividade <', na prestes a t<'r início. A-, águas dó <'S<jll<Timcnto cmH'lll no mundo inferior,
medida em que contêm genialidade suficiente, situar-se na sua linha de mas a fonte cast;i]ia da produtividade brota no Parnaso, que é uma monta-
frente. Genialidade, enquauto a consciência mais avançada e mestra dessa , nha. Assim, a produtividade, embora venha das profundezas, só começa a
cm1sciência, é também, exatamente por isso, sensibilidade extrema para os trabalhai· à luz e cstahdccT constantemente uma origem nova, ou seja, no
pontos de rn11ta<;ão da época<' suas trnnsfonnaçÕ<"S materiais. Ela é a força jJonto mais ele11<uÜJ da rnnsriênâa. Sobre c·sse ponto elevado se estende o
e a capacidade para se colocar no ponto alto dessa época e, com azul, a cor oposta à do Ol'CO, o nimbo escuro e ainda assin1 transparente·
conhecimento, infonn;-1-la sobre a paisagem e sobre o horizonte dessa época que envolve toda a verdadeira explica<;ã.o. Esse azul, como a cor do que
de mudanças. Por isso, é bastante razoável que Carlyle celebre a palavra está distante, designa de modo igualmente ilustrativo e simbólico o tco,·
do gênio como a senha para a inluição de uma época histórica: futuro, o ainda-não-sendo na realidade, ao qual se referem, em última
instânda, os enunciados significativos e antedpadores. Uma obscuridad<"
O <p1e o pioneirn do espírito faz é apenas cliz<'r o cp 1e todas as p<"ssoas para a frente que vai se tornando clara enquanto se enuncia que também
não estavam tão longe ele dizer e ansiavam por dar-lhe expressão. Ao está associada àquela consciência mais esclarecida, na qual o dia não n·-
expressar sua idéia, as idéias de todos despertam subitamente como nunciou ao alvorecer, mas se constrói justamente a partir dele.
que ele um doloroso sono enfeitiçado e lhe respondem com aprovação.
Diferenças na resistência que o esquecido e o ainda-não-conscienll'
Mesmo que essa aprovação muitas vezes venha apenas na geração ojérecem à elucidação
seguinte ou mais tarde ainda, a munição para o tiro já tinha sido preparada Os esforços necessá1ios para penetrar na escuridão são dC' 11al111c·t.1
antes disso, e o público da época só não o ouviu porque ele foi desferido diversa, confonne ela se loc-alize aquém ou além do conscient<'. Tanto 111 ►
ato de ren1en1orar con10 na intuição atuante, o Iirniai- d-1 e 1111~c 1<·1H·1:i p1rnh11ivicl.ult·, 110 .-11l.111111. 11,10 .q11<·s(·11ta <fl1;1f<(ll<'I 1t·sistt··11< 1.1 11111111,t·t .1
cerlan1ente é deslocado. Porém, no plin1eiro caso, o que in1<·1·(·ss;1 t· ahaix;Í- .io<.; atos d<" <'hl('idat.:10. ,\q1wla <(li<' Ltz part<· da j1tod11(-'Úo <· 11da l'l'sidl' 11:10
lo para que o esquecido ou reprimido avance por sobre ele, e 110 segundo (· 11111a resistê-ncia <JIH' ('Ilia na do sltjeito. Ela reside, ao <·ont r,írio, na 111at<:1 ia
C'aso ele é devado. É igualmente certo que em ambos os casos algo impede (·laborada pelo sujeito e é apenas refletida pelo esforço espe('Ífin> da
a t01nada de consci~ncia, uma n·sistê·ncia se 1nanifesta contra o deslocamento (·xplicação. Ela está nas águas de difícil navegação do novu.111., no 111atnial
do limiar. Porém, essa resistt'-ncia tem caraC"terístÍC"as diversas se o interesse 11or10 ainda-não-formado, que não se encaixa no habitual. Mesmo a simples

é- lembrar algo n·primido ou dar forma a algo intuído. A psirnnálise há 1<"sistência da receptividade, quando se fecha contra obras geniais, quando
muito já tentou situar essa n·sistência na região subconsciente, onde ela :1s trata com incornpreensào exagerada ou apenas se escandaliza com elas,
enxergava a recusa cm se trazer à luz o que foi reprimido. Diz-se que o essa resistência no final das contas provém, apesar do ressentimento
próprio demento reprimido teria surgido como fii.1to de uma relutância infiltrado pr<>prio da psicanálise, de uma má vontade relacionada à dificul-
<·ontra a tomada de cons<·ihKia elo processo ou evento psíquico que está na dack que reside no novo. Com isso, até neste ponto a resistência contra a
sua base. Assim, o processo permanc<-eu ou se tornou in<·ons<·icnte, t·ltJCidação elo ainda-não-nmscientc é, em lÍltima instância, uma resistência
limitando-se a enviar um sintoma nctll'Ôtico de si mesmo à conscifucia. do material ainda não elaborado. Nesse campo, todo começo é difícil,
Esse- sintoma é sc-rnprc encarado <·01no sinal de qnc um processo nào foi tanto mais porque justamente o novo no qual o pioncilismo produtivo
vivenciado até o fim, foi intcnumpido, o paciente nào conseguiu dar conta ingressa também {- essencialnwntc o novo ela coisa que surge em si e para
de algo dentro de si. E a mesma relutância que frz o indivíduo adoecer si. S01nente p<ff isso, portanto, as novas verdades, como sendo as do obje-
volta a se contrapor, durante o tratamento analítico, ao esforço parn dcvar tivamente novo, apresentam-se d<' modo tão hesitante na sua articulação e
o reprimido-inconsciente à consciência. Esta é justamente a resistência do sempn· apenas como astra f1er a.1f1era. As idéias convivem e1n harmonia
nâo-rrwi.~-consciente contra o tornar-se consciente de si n1esmo. Em suma, somente enquanto plano 011 eshov>. Poré-111, com nm passo adiante já tem
aqui uma vontade claramente existente fundamenta a resistência. Se essa infrio a dificuldade roncffta ela obra. Pois mesmo quando o sltjeito dispõe
vontade é quebrada, então se supõe que o esquecido pode emergir sem de cap,H·idack suficiente, e pn·cisamcntc· neste caso, são ainda muitas as ten-
maiores problemas. E essa vontade é considerada como pura111('nte tativas fn1straclas no atdif, no laborat6rio, na sala ele estudos, as inÚJ:neras
negadora, razão pela qual Freud também diz que "repressão é o pré-<'stá- batalhas sem vitória ou com a vit6ria adiada. Da nwsma forma, no ainda-
gio infantil da condenação". Os mesmos motivos que cristalizaram um tnm- nào-consciente, no ainda-nào-sendo, o que d;i trabalho à produtividade não
ma antigo se colocam no caminho ela tomada de consciência. Mais que é alg-o ffprimido, mas a dilintldade elo caminho. A'> razôes para isso estão
tudo, se apesar disso o que foi reprimido vem à tona, trata-se de llIIl contclÍclo exclnsivanwnte 110 terreno elo ol~jeto, um ol~jeto que ainda não está acaba-
velho e desgastado, que reahncntc dev<' ser esquecido, ou seja, superado. do, nem tevt· suas arestas aparadas. Em suma, o limiar superior do conscien-
Essa J'C'Cusa é d<' natuffza hem difrn·nh' quando a viagem ao obscuro te tem seus prôpdos guarcliôcs, e eles residem em sua matéria.
ruma para a frente. A rcsistê·ncia contnt. tomar consciência na área do ainda- Assim, o bloqueio atuante se apresenta, cm p1imeira linha e em toda
nào-conscicute raramente on nunca revda tra<:os neuróticos. Ele os mostra parte, como bloqueio histórico, mais [ffecisanwnte como bloqueio social.
apenas <1nanclo, no querer-produzir, 0<·01n· mna desproporção entre fon:a Este também é o caso quando o que precisa st>1· emnKiado ou reconhecido
e vontade. Todavia, tal desproporç;"io g-cra, como se sabe, um dos não é novo em si <' para si. Portanto, igualnwnte é o c·aso quando se <]lHT
sofJimentos mais pungentes. Mas 1nesmo nesse caso ainda não se trata de obter apenas um novo conhecimento e não necessariamente o conheciment<>
uma recusa da prôpria vontade de elucidaçào, ou seja, do tipo que oc·orn· de algo com conteúdo novo, ou seja, de algo n~jo teor só agora está surg·i 11 ·
no sujeito quando se evidencia algo rqnimido, quer dizer, no caminho do. Desse modo, há na história uma barreira socioeconômica diant<' da
para o não-mais-consciente. No s1~jcito da vontade produtiva não ocorre visão que não pode ser· transposta nem mesmo pelo espírito mais 011,..,ado.
nenhuma resistência contra essa n1es1na vontade e seus contetÍdos, ou Muitas antecipações, antcvisõcs vieram à consciência existente t> fora 111 <1< •.-,1.1
mes1110 contra o êxito dt~ssa viagem n1mo ao ainda-não-consciente e seus cadas, elucidadas por ela mesma no ainda-não-consciente. Con 111< lo, a l ,.i 1
tesouros: um não-querer desse tipo jamais ocorre naquele que produz. Ao reira social obstn1iu a execução. Assin1, por causa de sua posic.::10 -~º' 1,,
contrário, ele deixa isso para os receptores da obra, para a receptividade que histô1ica e a pa1tir dela, pesquisadores de p1imeira grandeza 1111111:1~ 1·c·1c·,
se bloqueia, como tantas vezes ocon·e, portanto, para o que antigamente não conseguiram trazer para junto de si nem meia Minc1va (e 0111,, ••~
se chamou de resistência do mundo embotado. A própria psicologia da próprios antigos costumavam chamar esse elemento resislc11t1·). Nt'1il111111
111.,1 .. 111:ílin, g-rq{o lc1·ia ('lllcndido o cíkulo dil"t..-c1H·ial, l:1111po11(,, '/.c-11:10, l\l('w 1011:1--s1·, ;111l('S, o cu-:Ílt·r lwn1u:lin> clC' lodo o 1111iv1·1so, <" .--;lc p1sl.1
por mais cpw tivesse se aproximado dele. O infinitarncntc pl'q11n10 e a 1111·111(' 11a n·la<:iio con1 a coragem inclôntita do c·onll('n·r. (:01110 1· 111.11(11.
grnndcza vaiiável se situavam muito abaixo do horizonte da sociedade grega. , 111:fo, a rcsistênc:ia do caráter de objeto contra a r·elação "st)j<'ilo-ohjl'lo"
O capitalismo foi o primeiro a fazer com que o que até então era fixo e do conhecimento, ali onde não existe, cmno para Hegel, um 1111ivC1 .'io
finito se tornasse fluido, o piimeiro a pennitir ao repouso ser pensado p.111lóg'ico e assim, ao mesmo tempo, coerente; ali onde está pcmk11t(· 11111
como movimento infinitamente pequeno, tornando possíveis os conceitos prncesso inconcluso, que além disso não vem assinado por nenhum 11oi111·
de grandeza não-estáticos. Isso tem a ver também com o fato de, para a 1.10 familiar, associado com algum professor idealista, como é o caso cio

sociedade escravista grega, o conc·eito de trabalho ser estranho, também 11ome E~pírito. Bem ao contrário disso, o condutor do processo se diama
no nívc,} da teo1·ia do conhecimento e especialmente nela, que destacou o Matéria e de forma alguma é um ser que por si só já une o sujeito com o
ato de conhecer sempre corno uma contemplação n·ceptiva, mmca co1no , 1l~jeto - como a chamada idéia universal-, a não ser em decorrência ck
urna atividade, por mais próximo que isso pudesse ter estado, por exemplo, 11·abalho duro, aguçado precisamente com o esforço exigido pela resisti'·11-
do estoicismo e· do "fato1· sul~jctivo" inerente a ele. Nem todas as 110<:ôes e ( ia. A natureza ainda fechada do universo dificilmente pode ser refletida
obras são possíveis <·m todos os ternpos, a histói-ia IC'm o seu curso ou declarada como algo já pronto, ou até como algo efusivamente claro
estabelecido. Freqüentemente, as obnts qut· trnnsn·udcrn a sua {-poca nem como a luz do sol, uma vez que, justamente como n1atéria, ela ainda s<·
mc·smo podem ser intencionadas, que clir.-1 realizadas. Isso foi destacado •·n(·o11t1·a no processo i1l<'onduso de suas objetivações. O que ainda não
veio a ser, o que ainda 11ão logrou êxito é uma selva única, comparável à
por Ma1x com a afirmação ele- que a lrnmanidack sempre se atribui apenas
.'ielva iulocada quanto aos seus perigos, mas supeiior a ela quanto às suas
as tarefas que pode cumprir. As que trnnscendem a sua época são
possibilidades não efetivadas. Esse ainda-não-sendo, ainda-não-sucedido no
cotHTClamc11tc irrealizávds, mesmo quando, excepcionalmente, podem ser
;'i.mbito do ol~jeto fundamenta, porlanto, a lÍltima H'.sislência. Evidentemente,
apresentadas ele modo abs11·ato. Mas essa hal'l'cira também está fundada,
esta é distinta da<1uda do rcp1·imiclo ou do existente oculto. O próprio
<·rn última iustfü1cia, m1icamenle na <"oncli(,lO histórica do materia~ sobn·tudo
mistério do univ<"rso não se encontra cm algum tipo de depósito de lixo
no estado pron~ssual <' inacabado que lhe é p1-óprio e no qual ek mesmo
cosmo-analític-c>, mas no ho1izontc do futuro a ser ('Onquistado, e a resistência
se c·nco11tra, ou s<:ja, <·1n fonna de esI<)l'~·o, ck fronte de fragmentos. Esse
que de contrapô(· à sua inaug11r.1ção não é a eh- um baü trancado, como
também é o ciso <1mmdo h,í apenas fragmentos de um novo conhecinlt'nto
nos mitos demoníacos dos tesouros, ladeado por l·ães de olhar maligno a
e não o c·onlwcimenlo de algo objetivamentt· novo. Como acontece c·om o
vigiá-lo. Aqui, a n:sisli'·ncia <'ade uma plenitude que cm si mesma ainda se
c·onceilo de trabalho, no qual o lema como um todo - aqui, a sociedade
encontra <·m processo, que ainda não se tornou manifesta. Sintomaticamente,
lmr·giwsa - ainda está abaixo ela linha do horizonte. O que em ültima
isso frz com que o idealismo ol~jctivo e até o espiritualismo procurassem
instância define a resisti'·ncia i't produtividade continua sendo, também neste definir, t·m virtmlc da falsa equação "p(·ns,u-= ser", o que lhe parece essencial
ponto, o Iio de difícil navega<;ão <JllC é o próprio tema, o caráter hermético por tn'ís do fc.:nômc·no <·omo s<-· este apenas estivesse geograficamente nu111
- que só se revela pouco a pouco - do novum no proce!>so como um lodo, outro lugar, ao passo que Ma1x, que com toda certeza não é suspeito ck
processo que avança como um mundo em si. Essa resistência, que mio é "agnosticismo",já fala do "n:ino da lil)('nlack" (Jllase só de modo privativo,
de natureza fundamental, mas histo1icamente temporária, continua em ou s(:ja, como mero não-estar-aí das cara<"tcrísticas da sociedade de classes
vigor até mc·srno onde a coragem já lhe deu por vencida. É o que oc·m-re ou, cm caso extremo, no sentido distanciado e profundo, ainda totahnc·ntc
no prospecto maravilhosamente antiagnóstico de Hegel: vago, de urna "naturalização do homem, humanização da natureza". /\
chamada essência do universo em si e para si, portanto, ainda é algo l)('r
A natureza hermética do universo não tem em si mesma força que mético, no sentido de ainda não ser fenômeno de si mesmo. E 1'.1.111 .11u1
possa oferecer resistência à coragc·m do conhecer: ela tem de se abrir natureza-em-fonna-de-twefa é que dificulta a!> coisa!> para os homt:ns. Para 1•·
a esta, pôr diante dos seus olhos a sua riqueza e suas profundidades e movei· a dificuldade é necessário não só o conhecimento em t<T111os d.1
permitir que desfrute delas ( Werke VI, 1840, p. XL). escavação daquilo qne houve mas também em termos de um pla1wj:1111,·11
to do que haverá. De forma que é necessário o conhecinw11to, q111· 11111111
Como se pode ver, aqui tampouco falta a palavra resistência, embora buirá decisivamente para esse devir, que bem pode ser modilic1do. ,\ 1(·\'•,
o que menos esteja em questão sejam os objetos de algum subconsciente. lução e a genialidade nos deixam confiantes de que essa d111an11p11·11.11l.1
IH'liolnípic, 11;·10 li:>i 01111iio lerá sido l'lll v;·10, apl'sard;1n·si:-.111111.1 1111·11·11- pn·Eício aos No111•n111.,· /•:.,.,ai., 1 Nm10., 1'11.11ú/).\I, L<'ih11i1. di:-.l111g1w ,1., /11'/1/n
I<' a da e ao fenncnto do "mundo". fwrc1j1tions con10 uma graude descoberta:

Epílogo sobre a barreira que por tanto tempo ofotruiu o conceito Em uma palavra, as percepções insensíveis são de uso tão vasto 11a
do ainda-não-consciente pneumática quanto os corpúsculos insensíveis o são na física, sendo
É com especial dificuldade que o olhar interior projeta uma luz sobre igualmente inacional rejeitar uns e outros, soh pretexto de que esl,10
si mesmo. Aqui há uma resistência bem própria dentro da resistência geral fora do akance dos nossos sentidos. 14
referente ao o~jeto: a vida psíquica dá uma impressão fugidia, produz
uma sombra. Quanto tempo demorou apenas para se perceber que essa Assim, o c01Keito do inconsciente nasce da lex continui e pode-s<'
vida percebe a si mesma, que ela é, portanto, urna vida wn.\âente. E os afinnar cum grano salis: nasce do cálculo d{fnencial, como seu pendant ua
processos psíquicos subconscientes são denominados como tais apenas há ahna. Ao mesmo tempo, contudo, o con<Tito elo inconsciente, construído
pouco mais de 200 anos. Em razão disso, pode-se no máximo alegar que os dessa maneira, é subordinado totalmente ao da consciência existente.
processos subconscientes não são imediatamente perceptíveis, que são de- Desde a sua primeira pern·p(ão, o inconsciente é assinalado como
duzidos a partir de sinais, que seu conteüdo é matéria elo esquedmento. subnH1sciente. A'> /H<litl'!, pai:eptions sempre são eclipsadas ou até dissolvidas
Contudo, mais difícil ele entender é por que, após a ckscohcrta do nmsci- pelo grau ele consc·i['.11da já aka1H;ado pelo homem. Assim, após terem
entc e até do subconsdente, o ainda-núo-1·omcientepassou ckspen:cbido tanto sido elucidadas, elas não aparecem como dcnwntos criadores, capazes
tempo. Pois de não precisa ser redescoberto por meio da rcnwmoração: de gerar algo. Conlmlo, o próprio herôi elo llmniuismo ainda apontou
ek se dá ck modo inwclialo no ato de pn·ssc·ntir, excluindo o <pw nele para urna consciência difrrenlc daquela existente na alma, ainda que ela
sucede c1n tennos de conteüdo. Ainda assim, o caráter flutuante, aberto e fosse Ião-só corno um dariio da lua no salão aucestrnl ela nn1sciência. A
imaginativo desses proc·essos foi apresentado como se ck fosse apenas sub- simples cons<·if·nc·ia não era mais eonsickrada a ClJ'acterística essencial
consciente, como qucjéi visto. E de fato el<· est;wa on1lto nessa ohsnuidade do espírito humano, e o até <"ntiio paradoxal 1·011<·cito de uma atividade
até hoje. Como se sabe, o prinwiro a caracterizar psicologicaml'nte psíquica incons<·iente tomou forma. Além dck, lambém tomou forma o
fenôm<·nos inconscientes como tais foi Leibniz, ainda que percorrendo um lugar onde o ainda-mio-consc·ientc se ocnllava, nuvaclo na obsnuidade
longo desvio. Não f'ói só a observação mas também a teoria que p1uvocou de um n1111Hlo enluarado que guardava o passado em inn1bação. Essa
a dcscohC'rta. O obsc1vado foi c·m parte acrescentado posterionncntc· como mÚ.\cam do ainda-não-consciente entrou cm rena com pse11domorfis1nos
exemplo <Jnt· ilustra a tco1fa. Um dos princípios de Leibniz era o da singulares, s<Í agora vislumbrávc-is, prinwiro no Stunn und Dmng, depois
continuidade universal isenta de lacunas. Essa lex continui não suporta no Romantismo. Cinqüenta anos depois <la morte de Leibniz, com a
qualquer interrupção, qualquer espaço vazio, em parte alguma. S<·, no puhlinu:ão póstuma de seus Nouveanx Essais, a expressão-chave petites
entanto, temos a impressão de encontrar algum, ele na verdade estará /Jnaf1tions rcverlwron nas dores elo parto de mna n-volrn;-iio lnll'guesa
ocupado por algo imperceptivelmente minüsculo, por algo incipiente e <JlW acabou não ocon-endo na Alemanha. Para o Sturm urid Drang, o
crescente. O cálculo diferencial expressa matematicamente esse iru:onsc-iente c:ontinuou sendo algo totalmente infe1io1·, situado meramente
infinitamente minúsculo como um momento de movimento. Mas, assim no infrio da história do espírito, mas aparecendo ali eomo uma fonte que
como existem minüsculos impulsos que determinam o movimento, também jorra com feJVor. Assim, o inconsciente não continuou sendo infinitesimal
existem os que detenninam a intensidade representativa da consciência, como os impulsos minúsculos, tampouco continuou estreito eomo as petite.1
em diferentes graus de acordo com a clareza e a inteligibilidade: as /Jetiles peneptioris: ao contrário, as névoas todas do norte e dos tempos primor-
perception.1· insensibleJ 1"pequenas percepções insensíveis"]. E como exemplo diais pairavam nele. Tanto a caverna de Fingal como o descampado de
Leibniz menciona percepções minüsculas que, por causa de sua delicadeza, Macbeth, tanto o espírito da poesia hebraica como a catedral de
passam despercebidas ou pennanecem inconscientes, mas, acunmlando-se Estrasburgo pareciam caber nele. Mesmo quando seu canto era abafado,
o suficiente - como no caso do handho das ondas ou o burburinho de
vozes-, tornam-se plenamente conscientes. Portanto, elas precisam ter exis-
tido antes também na alma, assim como as representações esquecidas, que, 14 LEIBNIZ, Gottfric-d Wilhelm. Novo, ema10, .,obre o enttmdirnento humano. Tradução de L11i1
recebendo um impulso suficientemente forte, tornam-se conscientes. No João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 29 (Os Pensadores).
o 111,·011sci<'lll<' <'l'a a voz primonli,tl, a brasa, ajt1V<'11tmk, o 1111pd11oso ,q111kr;1l pda lkm<:h'r td1í1ü·a. Para ;1 psicologi,1 c;ilc1<b nessa v1..,ao 110
gf·uio arrebatador e criador. Deste modo, no Slunn uud l>1<111p,; <Jm' de· 111n1a, todas as c·oisas boas e carregadas de intuiçáo se dc-sloc1111 p:11;1 o
urna perspectiva mais ampla já pertence ao Iluminismo, o fenômeno da ptÍlo noturno ela consciência: a criação anda em companhia elo impulso,.
aurora se manifestou pela primeira vez trazendo consigo o futuro e tendo do instinto, da vidência atávica e do sussurro do abismo. No lado do dia,
consciência disso, mesmo que em meio ao vento noturno dos tempos pri- ,1t<- mesmo no lado da fonnação e da realização, não havia nada com que
mordiais. Exclama Hamann, como mago desse Iluminismo sussurrante: os românticos tivessem metade dessa familiaridade. Toda produtividade, c-
111stamente o caráter expectante em que o Romantismo paradoxalmente<:
Quem quer extrair noções exatas do p1·esente sem ter ciência do futuro? t;i.o rico, mergulhou em rd1exôes sobre imagens antigas, o passado, o
O futuro define o presente e este, o passado, assim c·omo a intenção imemorial, o rnilo, erguendo assim uma barreira contra o futuro, visto
definc a condição c o uso dos meios. cada vez mais corno poeira, vazio, vento. Não sm-preende, portanto, que a
juventude e a produtividade de toda consciência tenham reeducado seu
E continua, fazendo n·frrência a Ezequiel '.17,1-6: ;1inda-não-conscicntc, translónnando-o cm culto aos ancestrais: além da
produtividade, faltava a outra fon:a <'Xplosiva - a conscitncia da mudança
O campo ela história pareceu-me, por isso, sempre como aquck campo de época. 'l'amp011co surpree11<k qtia l)(l<l vemos q11e, ª)lesar cio sentimento
vaslo, repleto dc ossadas, e -vê! - elas estavam basta111e n·ssequidas. vago e intC'nso de expectativa ali reinante, 110 mundo da restauração do
Ninguém, a uão ser um profeta, pode predizer que- dessas ossadas Romantismo sc·mpn- soaram os sinos de Vincta, os sinos de uma cidade
submcrna. Gôrres, o n·nc·gado do gotTo frígio, foi quem mais apaixonada-
<Tcsn-rão veias<' carn<' e a pele as revestirá.
mente fonrrnlou esse· fJállw.1 pelo passado:
Também em rdac;·ão à H'gra, c:ss<' orgulho da consciência racionalista,
Tão rico cm aquele· mundo dcsapaH'ddo. Ele snhmcrgin, as ondas
n:jeilou-sc· tudo o que possuía um car,Üt·rdc extinto ou morto, em oposição
passaram por cima dele, aqui e ali ainda d<-sponta111 as n1ínas, e, quando
ao nascente ou à na111n·za, que sempre se impôs con10 natureza-fóntc. Mes-
se dissipa a tmvação das profuml<-zas do t<'mpo, vc-mos os seus tesouros
mo assim, até isso continuou misturado, de 1nodo atordoante, con1 ngressio,
depositados 110 chão. lk hem longe baixamos o olhar para o abismo
com o luar ossiâuico, com monumentos e t{unulos de heróis cobertos de
maravilhoso <'Ili <JII<' repousam on1ltos todos os mistér·ios do mundo e
11111sgo. i\irnat1tridadc da i\lC'manlia para a revolução burguesa e as barreiras
da vida, mas ser;Í que tiv<'mos <":xito cm revelar a raiz das coisas, que
ronfosas <pw essa imaturidade criou com sua razão revolucionária pro-
n·pcmsa oculla em Deus? O olhar volla-sc para as profundezas, os
gressista arnbaram fazendo do gfnio original um mensageiro dos tempos
enigmas lo11gírn1uos atraem, mas t para cima que a correnteza empurra
pl'imitivos, mais (lll<' do futuro. A complexidade singular do Romantismo
e joga o mergulhador de volta para o presc-ntc (Mytlu:ugeschichte, 1810,
só veio agravar <·ss<· estado de <:oisas. Certamente a fonte ali jorrava com
pp. 5!19 e ss.).
vivacidade, e coisas inauditas pareciam pôr-se em movimento, mas a scnsa<;ão
de um passado perdido abateu-se contra tudo isso c·om mna tal força que o A tristeza é a n1n-1<·t(TÍstin1 comum nessa volta à superfície do presen-
,",'tnrm 1wd JJmng não queria nem podia conhecei'. Essa força provinha do
te,(' o futuro s<·que1· está ao akann· dos olhos. l~ vcrdad<' que existem os
rnovinwnto de 1·eação à r·c·volução burguesa, o qual passou a determinar mistérios longínquos, que são os mais urgenl<·s para os românticos, mas
cada vez mais o R01nantis1no alemão, obstruindo os traços inegavelmente eles se situam quase exclusivamente no abismo, o lugar longínquo é <·
progressistas ainda existentes. De modo praticamente impossível de continua sendo uma noite dos tempos. Sem dúvida, o Romantismo alemão
reconstituir, os românticos ficaram à mercf· do passado, numa lex continui também tinha um caráter progressista - o que se deve sempre enfatizar,
que - fiel ao movimento reacionário - <Tguia apenas castelos feudais na para talvez fazer frente a uma depreciação ultrapassada e abstrata dessc-
noite mágica banhada em luar. O histórico se asso<:ion ainda mais com o movimento: incluem-se aqui a disposição para sc1vir de nascente, o senso
arcaico e este com o telúrico, de tal forma que o interior· da história logo para o devir, o crescer, bem como o farnoso "senso histórico", que 01igi11011
assumiu a aparência do interior ela terra. Essa sensação ele estar numa ciências inteiras, como a história do direito, a gc1n1anística. Sem esquern o
arca, essa atitude incestuosa de qucnT entrar no útero da noite e do passa- senso patiiótico, presente em toda obra nacionalista na literatura 1111iv<Ts:tl.
do culmina tardiamente em Bachofcn, o teórico do matriarcado, num amor Sem dúvida, há também o lado romântico-revolucionário no Roma111is1110
alemão, como demonstra o festival de Wartburg em 1817. 1'· E1111.-t;111lo, t li111g11csia, os an111tt-c-i11u·111os lút11ros projC'Lllll ªl'<'llaS ,\()/11/,/(/\ .1 .~11;1 111·11
constante que mesmo a mais apaixonadamente utópica aunffa venha 1.-, 11,ula al{-111 ck sornbras: a sociedade capitalista se sc·11t<' 11cgada 1wlo
impregnada com as idéias noturnas de um antiquário, projetando um l11t111u. Mais que nunca, falta à burguesia um pretexto material pai a :i
passado incensado na próp1ia novidade do futuro. Quase que somente ',cpa1·a~·ão entre o ainda-não-consciente e o não-mais-conscienlt·. Por ('Ssa
fora da Alemanha, no Romantismo inglês e no russo - que não estavam 1 ;i;;io, toda psicanálise que tenha a repressão como conceito p1incipal (' a

sob o signo ela n:ação e sim sob a recordação feroz da Revolução Francesa, ~11hlimação como conceito acessório (para compensação, para ilusões ck
em Byron, em Shdlcy, cm Púschkin -, ao invés dt' mergulhar no passado, 1·.~perança) será necessariamente retrospectiva. É verdade que ela nasc('II
o homem husca sua verdadeira pátiia ideal, <:>m que o futuro transborda 1111ma época anterior à nossa, em torno da virada do século XIX para o
co1n energia explosiva. Mas na Ale1nanha esse fenômeno era urna anomalia: \.X, e participou da chamada luta contra as mentiras convencionais da
nenhum nHnantismo revolucionário se levanlou claramente contra o humanidade civilizada. Apc·sar disso, a psicanálise nasceu numa classe j,í
romantismo n·aciornfrio. Mesmo Jean Paul, que não é propriament<· um naquele tempo envelhecida, muna sociedade sem futuro. A5sim, Freud atri-
romântico, o mais florescente e inconliclo poeta do sonho acordado, ntjo 1,niu uma dimensão exagerada ,1 libido de uma classe de parasitas e mio
liberalismo era patente e cuja linguagem aurornl, caso se situe na noite, lomou conhecimento de ne11huma outra pulsão I Anlriebl, ou até impulsão
situa-se na noite de São Joiio, de 11wsmo fez a espt·r,mça, incessante, cur- 1 Auftriebl, nenhum outro sonho além daqueles <JU<' o senhor, batizado

var-se ã nu·m61ia e ali se alc~jar. Portanto, até mesmo Jean Paul, o poeta ;1gora dt· Eros, conn·de aos seus c·n<p1anto dormem. E <Jllanto mais passa-
das mais bdas paisagens ideais que st· pôde imaginar·, cp1anclo parou de va o tempo, 1a11to mais a burguesia refórçava sua desconfiança interesseira
cantar a luz c·m seus versos e passou a refletir sobre ela, buscou-a apenas n>ntra o lilturo por meio de novas doses de angústia, e· das velhas doses de
no passado, e não 110 futuro. 1esignação. Exataml·nte essa desconfianc;a determina a barreira que Freud
lambérn ergueu frente ao co11<·c·ito elo ainda-não-c·o11sc·ic·11te, da aurora para
Éjustamente por essa razão que toda vida rememorada brilha ao longe ;1 frente. Daí a frase simplesmente re11-6grada e i11cvit,ívd: "O reprimido é

como uma terra no céu, ou seja, a fantasia comprime as p,u"l<·s num para nôs o modelo elo inconsciente" (Da.1 h:h 11nd da., E1, 1923, p. 12). Por
todo coeso e harmonioso. Ela poderia igualmente dar forma a um rim, a barreira s<· tornou absoluta 11a chamada psicologia profunda, na
todo mais sombrio, e no entanto coloca no futuro seus castelos de <JUal a n'gn-ssão psinmalítica se tornou ideologicamente útil à magia do
vento cheios de salas de tortura, deixando os belvederes somente para .\(mgw, ,., .wlo. O inconscic·nte junguiano adentrou ainda mais o porão da
o passado. Diferentemente de Orfeu, conquistamos a nossa Eurídice consciê-ttcia ponpl<' st> ali se po<k fumar o <>pio <·om o qual o fascismo
olhando para trás e a perdemos olhando para a frente ( VonchulR der anestesia a utopia.Jung também dá uma interpn·tação totalmente arcaica
Ásthetik, § 7). e oculla ao cvcnlo ela aurora, valendo-se da analogia do sono profético no
templo. Inclusive o iru:on.1c:i1,nt .1uj,irirur~ também a "tenclfatcia prospectiva
Dessa fonna, n-iteraclamcnfc o Romantismo seduziu o ainda-não-cons- de comhina\·ôc·s subliminares", por mais pomposa que sc:ja sua formula-
c·iente com a terra das fontes nas petites perceptiom. O olhar voltado para a ção, 11a marwira c·omo ela é compreendida, cst,í tolalme11tC' subordinada à
nmdi<:ão utópica e a exploraçào do seu conteúdo encontraram assim a sua regr·cssão. A passagem em que Jung "arcaíza" em ex<·esso "uma idéia que
maior· barreira na aruimneú~, enquanto evocaçào do passado, apesar de intui o fntmu" tem tamanha importânóa na histó1ia da psicologia do novwn
toda ~ expectativa que perpassava o sentimento romântico. obstruído que merece constar aqui in extenso:
E da não foi a única, como demonstrou Freud ao descrever o sonho
subnmsciente. Certamente poucas épocas sentira.Ill de modo tão intenso A psicanálise trabalha voltada para trás, tal qual a historiografia. Assim
como a nossa a transi~·ão para urna existência diferente, para algo que está como mna grande parcela do passado se ton1ou tão remota que o co-
em ascensão. Porém, a burguesia se mantém pc1plexa e cega em relação a nhecimento historiográfico não pode mais alcançá-la, assim também
isso, reagindo com indiferença ou hostilidade às luzes da aurora. Para essa uma grande parte da determinação inconsciente é inacessível. A
historiografia, porém, desconhece dois tipos de coisas: o que está ocul-
to no passado e o que está oculto no futuro. Ambos talvez pudessem stT
15
Festival estudantil oconido no castelo de Wartburg, em 18 de outubro de 1817, em home- alcançados com um certo grau de probabilidade, o primeiro como
nagem à Reforma e à derrota <le Napoleão em Leipzig, em 1814. postulado, o último como prognóstico histórico. Na medida em qm· 110
hoje já está contido o amanhã e na medida em que toclos .,.., tios do
111t·s1no eslas ;111l ccíp,11.,·úl's - como ,Hp1das cLtho1 ;111.i,~ prn [\li ,111~.
111"111
futuro já estão estendidos, um conhecimento aprofundado do presente
<:,unpanella, e de Bacon até Fichte - derarn ensejo a uma psicologia de•-~
poderia possibilitar, portanto, um prognóstico mais ou menos seguro e
sonhos diurnos ou a uma teoria epistemológica do seu lugar real e possívd
de alcance mais ou menos longo do futuro. Se transpusermos essa
110 mundo. A razão disso não está aqui na desconfiança assumida contra 0
argumentação L... I para o psicológic-o, chegaremos necessariamente ao
l~turo, mas na verdade no descompromissado e permanente fascínio pela
mesmo resultado, pois, assiin con10 o inconsciente comprovadamente
vzda e pelo pensamento estáticos. A consciência da burguesia em ascensão
ainda tem acesso a vestígios de memória que se tornaram subliminares,
ainda não havia abandonado totalmente o conceito de um mundo pré-
da mcsrna fonna ele 1cm acesso a cornhinações subliminares muito sutis
ordenado, fechado (ordo ,1empiternu_., reru.m): o permanente imobilismo
voltadas para a frente, que são de grande relcváncia p,u-a o evento futuro,
feudal obstruía o conceito do novo. Ele o obstrniu em Leibniz, ele o obstruiu
na medida em que este é condicionado pela nossa psicologia. A
e corrompeu até mesmo na mais eateg61ica de toclas as revelações do devir,
historiografia pouco se preocupa <·om as c01~j11nções futuras, c1uc são
de todas as filosofias elo processo surgidas até lH~jc, que é a de Hegel. E até
antes o~eto da política. Da mesma forma, a amílisc pouco se pn-ocupa
mesmo a famosa frase sobre o proccsso, na Fenomenologia do espírito, deve
com as cortjunções psicológicas füturas, que seriam antes objeto de urna
ser lida ck uma forma mais hcnnftica:
síntese psicológica infinitamente sofisticada que sonlx·ssc t·omo seguir
os caminhos naturais pelos quais flui a libido. Não temos como fazer
Na uiança, depois de um longo período de n11lrição tranqüila, a
isso, mas podemos seguir o inconsciente, pois é ndc que tudo onlrre,
primeira rc·spiração - um salto qualitativo- intc-rrompc o lc-nto pro-
<' pa,·cn· que, em certos casos, pelo menos os fragmentos significativos
cesso de puro crescimento, <' a crian<;a est;Í nascida. Do 1rn·s1no modo,
desse trabalho V<'lll .:\ tona regularmente, ua l<lnna de um sonho - daí 0
o c·spírito que se fonna le11ta111cntc, tranqiiilamcnte, cm direc,:ão à sua
significado prnlêtinl elos sonhos n·ivinclicado há muito pela supcrsti-
nova figura, vai desmanchando tijolo por tjjolo o cclilfrio elo scn mundo
<;ão. A aversão que os atuais dcknsores elas ciências exatas expressam
anterior. Scu abalo se r<'vcia apenas por sintomas isolados: a frivolidade
con l ra esta ordem ele ickias, q II<' seq1 ter pode ser chamada de fantasiosa,
e o tf>dio que invadem o qut• ainda subsiste, o pn·ss<'ntimento vago de
é uma comrx·nsa~;ão exagerada ,t tendência milenar, mas ainda forte,
um dcsnmlu-eido siio sinais pn·curson·s dC' algo div<'rso que se
dos homens para an<·ditarem na adivinhação ( Wandlur1gn1, und
avizinha. Esse- desmoronar-s<· gradual, que não all<'rava a fisionomia
Symbole der Libido, l!l2f>, pp. 51 e ss.).
cio todo,<' inten-ompido pelo sol nascente, que- revela num darão a
imagem cio m1111clo novo. 16
ls~o é tu~lo o que Jung sabe dizer sobre a representação psfrplica do
que esta por vir: a consciência utópica aparece como um livro dos sonhos
O rcflcxo ela Rc·volw:ão F1·ancc·sa é innmfundívd tanto nessa passa-
cgípc·io. Sonwnte o inc·onst·ienl<' affaico, na mais profunda treva, realiza as
gem tpmnto cm toda a dialética hc-gdiana, que se clcscnvolvcu por etapas.
chamadas co1üunçõcs futuras. E se uma pequena parte vier a passar dessa
No entanto, o todo é concc-bielo igualmente como um sc·r-simultâneo aca-
esnuidão para a luz, então seni aquela que indica o caminho da rew"ssio.
bado, como recordação. O clarão do novo começo também se dá aqui por
Em conexão histór-ica com as petite.., perception..,, a revivida arcaizac,;ão do
um emcrgirj,í cktcnninado claquilo que vem surgindo e, por cssa razão,
inconscic·ntc mais uma vez assume un1 tom de advertência: no n1so do
girando c-rn cfrntlos, sem abertura nenhuma para o que ainda não ocor-
grande pensador progressista que foi Leibniz, a barreira diante do nm,um
reu. O esforço procligioso já se aposentou na cteniiclaclc, no repouso após
se transfórma, na tardia psicologia burguesa do inconsciente, cm guilhoti-
o êxito obtido:
na elo novum. Pois, como agora se torna cvidente, mesrno nas épocas de
sua ascensão, a psicologia burguesa não identificou ou pelo menos não
A aparição é o surgir e o passar que não surge 11em passa, mas que é em
percebeu claramente o novo como classe de consciência. Leibniz enfatizou
si e çonstitui a efetividade e o movimento ela vida da verdade. (... ) Na
a ascensão da consciência, mas as petites perceptions, nas quais se encontra
totalidade do movimc-nto, comprec-ndido como repouso, o que nele
o embrião, situavam-se abaixo da consciência já conquistada, detenninan-
do as~im o mesmo lugar histórico que, até Freud, era reservado ao pn:-:-
consciente. Nern mesmo os sonhos desejantes que a era moderna criou, ou
seja, as utopias sociais ou a utopia de mn mundo dominado pela técnica, '" HEGEL, W. F. Fenoine-nologia do e;pírito. Tradução de Paulo Meneses. Parll' I. 2-' ,·d. P.-triipoli,:
Vozes, 1992, p. 26.
"· dil<"t <'I tl'i.t <· s<· ,Li 11111 S<"r-ai par1in1lar é co11se1vado 1 01110 .algo que 0111k <· <J1talq11n nh1c11vo q11c possa ser buscado claramente. Ess(' suposto
S<" r<"1111·111ora, n~jo ser-aí é o saber de si 1nesmo.1' 11mJ1U11e1n nada dikn· então da anámnes~, ou seja, do que sen1pre já f'Xistiu,
Sl'mpre fênix, sempre retorno extasiado ao imutável, que então se chama
;\ utopia aqui escondida, que certamente existe em estado emb1ionário 111utabilidade. Numa visão geral, é surpreendente que o fenômeno da aurora
011 1·m si mesma e ÍlTompe em cada estágio do processo hegeliano, é revela- lique estagnado num Jixum, passando despercebido ou sendo obstruído
da pelo cortjunto das manifestações compreendidas. A<;sim se voltou, cons- pelo que já existiu. O imenso campo psíquico do ainda-não-consciente,
lant emente, à doutrina de Platão, segundo a qual todo saberse1iameramente constantementf' visitado, até agora não foi descoberto, ou suas revelações
anúmnesis, rememoração de algo vi~to outrora, e esse conlH'ci1nento visa passaram despt·rcehidas. Da mesma fom1a, o imenso campo psíquico do
unicamente à entidade pretéiita I Ge-11,e.\enheitl. Isto ac·aho11 por elevar a que-ainda-não-veio-a-ser, enquanto correlato do ainda-não-consciente,
baITeira diante do ser sui g;enni.1 de 11m ainda-não-ser ao nível de uma ideo- permaneceu cstéÍvel, e as catcgmias reais estreitamente ligadas a ele - front,
logia. O imobilismo permanente e reacio11á1io, fnllo da necessidade dt· re- novum, possibilidade ol~jetiva -, inacessíveis à anúrnnesi,.1,, não foram inclu-
pouso, esse mundo pronto, prcdetcnninado e fechado da (W.Úmm1si,\ produ- ídas, antes dC' Mmx, uum quadro de categorias. O epígono st·gue apenas
ziu aqui o que o horror ao desconhecido produz em períodos de declínio. por estradas transitáveis, aquelas que a Í<H'Ça oiadora construiu e enfeitou
Nenhum pioneiro da velha escola, por mais inovador que pareça, antes dele. Mas, diante do novo, a força criadora até hoje se comportou
está livre dessa harn·ira. Nem mesmo aqueles que, como Bergson, lentaram como s<· nmhe1·essc apenas os cpígonos. O dedíuio da classe burguesa,
destacarexdusivamente, e muito exchtsivamente, a novidade. Bergson disse indo bem além do Romanlismo ele feição rcaóonária, selou essa 1mí vonta-
certa vez, na sua Rinfiihnwg in die Mdaj,hysil< 1 Intmrluçiio à meü~/í.si( ai, que de em n·hi(ilo ao concl'ito (Utrora. E - como agora se pode afirmar - só a
as grandes descobc:r-tas do con]l('<"illl<'lllo leriam sido encaradas até- aquele experiPnâa da ,;fJOi:a alu.al, cnmo exfwrih1úa positiva, isto é, corno apro-
momento como se das ihuninasst'm ponto por ponto urna lógica h,í muito vação do seu co11tclÍdo ascewknlc, pcnnitt· designar um ('Stado de consci-
pré-fonnada nas coisas, "assi1n como, muna noite f'<"stiva, acende-se aos ência qu<· conlagia a juventude, as mudançis de êpo<'a, a pn)dução cultu-
poucos urna g1i11alda <'Olll velas j,í pt,eparadas para mostrar os coulornos ral, por mais qu<" 1<'11ha pennane<'ido oculto até agora. ;\ nossa época é a
de um ornamento". Porém, o que cm lkrgsou s<· apresenta <'01110 nm111m- primeira a possuir os pn~ssuposlos sociorconfünicos para uma temia do
anti-repetiç,'io, antigeomclria, elü vital e intuic,'ào que llui com a torn·nte aincla-não-1,onscirnlc e do <JlH' est;í relaeionado a ck 110 quc-ainda-não-
vital -, toda essa vivacidade é- impr<"ssionista, até- lib<Tal-ananpüsta, mas veio-a-ser do mmHlo. O marxismo sobretudo foi o pioneiro cm proporcio-
não anlccipatória. O flâ vila/ ele Bergson {, uma "contínua muda111,'a de nar ao mmulo um conc<'ito <k sal)('r que não tem mais corno refrrência
direção, como ocorre, por exemplo, numa nuva". A chainada int1ti<,",'io se essencial aquilo que foi ou existiu, mas a tt-ndência do que {- ascendente.
insere nesse continu:11:m surprecndl'nte, todavia jantais se depar.lndo com Ele introduz o futuro 11a nossa abordag<'m teórica e pr,itica da realidade.
o novwn como realmente novo, simpksmentt' por sua falsa infiuitnde e Esse conhecimento da t<·ndênda é nccess,ído para n·memorar, interpre-
mutabilidade incessanl<": onde se pretende que tudo seja sempn' novo, tar e n·vdar as mensagens que até o não-mais-consciente e o existente po-
tudo permanece como sempre foi. Por essa razão, no fluxo hergsoniano dem continuar nos enviando, além ck ser n<'cessá1io para reafirmar sua
da surpresa na verdade, tudo também já está combinado e solidificado <'lll eterna vigência. Dt·ssa maneira, o matxismo resgalou o núcleo racional da
fónnulas, l'.l.uma oposição estéril à repetição, oposição que degrada o 11ovo utopia e o da dialética da teu~ltnda, ainda de cunho idealista, t,,azendo-os
como um mero ziguezague eterno e sen1 conteúdo, mn acaso ern forma de para o concreto. O Roniantisrno não entende a utopia, nem n1esn10 a sua
absoluto, no qual não há lugar nem para o nascimento, ne1n para a {)l'Ôprii;in~~,,a utopia que se tornou concreta entende o Romantismo e se
explosão, nem para a fértil superação dos conteúdos do que até agora inclui nele, ~nquanto e na medida em que o arcaico e o histórico contêm,
existe. Be,,gson se opôe ao p('nsamento processual voltado para um ol~jetivo, nos seus arquétipos e obras, algo cuja voz ainda não se fez ouvir, algo que
não porque o ol~jctivo já estivesse determinado, de modo que o referido ainda está em vigor. Assim, seja no processo da rememoração ou no
processo - no seu nível mais alto - quase se parece1ia com um contrabando, processo do esquecimento, a consciência mais avançada não opera num
mas sim porque ele elimina todo e qualquer aspecto prévio, qualquer para- espaço submerso e fechado, mas num espaço aberto, no do processo e de
seu front. Esse espaço, porém, é preenchido exclusivamente com a aurora
parn a frente, inclusive nos seus exemplos provindos do passado e seu
" lei., ibid., p. 46. significado permanente: ele está preenchido pela vitalidade de um ainda-
não-ser passível de consciência e de ciência. E enquanto o Ro111;1111ismo sntl<" <" luturo <' do111111.1 los s<'g1111do o cril<;rio d<' co111pot l;111w11fo d:i <":,pc-
jorra histórias arcaicas e meras antiguidades, perdendo-se em profundezas ci<·. Não obstanl<.·, rnua coisa é ben1 certa: aqui, corno larnh<:lll 11:i ;1div11d1.1
vazias, a consciência utópica libera a aurora até mesmo no que há de antigo, <::°io praticada pelo folclore, o futuro é totalmente inautêntico, urna rq )('! i<. a ◄,,
e mais intensamente ainda no próprio porvir. Ela descobre a verdadeira um conteúdo predeterminado andando em círculos. O futuro cio i11s1 i 1110 <·
profundidade nas alturas, ou seja, nas da consciência mai~ clara, onde algo a intuição atávica semelhante a ele, quando começam, dão início e acoll H·111
ainda mai,1 claro está al11orecendo. a mesma coisa sempre no mesmo estágio. A intuição [Ahnung] produliva,
mesmo na forma da chamada intuição lintuition], é, portanto, algo h<·111
A ati11idade conscierite e ciente no ainda-nâo-consâente, a fun1;âo uJájJica diferente do seu instinto trazido à consciência: não pem1anece embotada<'
O olhar para a frente que aqui se tem em mente é sektivo e não marginal, nem enfumaçada, mas se apresenta, desde o início, vigorosa <'
turvado. Ele é o primeiro a exigir que a intuição rA/mungi S(:ja saud;ível, saudável. E está darnmentc nmsdente de si, como um ainda-não-consciC'n-
que não seja apática, como se estivesse enfiada num porão: que· sc:ja uma te, dernoslrando no seu eslaclo desperto a vontade de aprender, a capaci-
intuição predisposta a se tornar consciente em sua aurora, mesmo que dade de ver ao S<'II redor por meio d<' uma J>l'<'Visão, de conjugar um olhar
voltada para a manhã. Aqui, a histeria e a superstição também ocuparam o abrangent<' [ U111.1idül e urna prudtncia l Vonichtl na sua previsão [ Vor-·
espaço de uma ciência ainda inexistente. Estados ne1vosos como a vidência, Sichtl. Na medida <'lll <til<' a intui<:ão auti:ntica se inicia com juventude,
a dupla visão e similares foram designados como um pressentinwnto apático. 1nudauça d<' época, pn>duc;ão, da c·nnH1tra seu lugar entre as mais
Mas trata-se de um pressentimento degenerado, ao qual a intuição autê-ntica, autf-nticas qu<'slÔ<'s hum;mas, e não nacp1das que se r<"krcrn aos animais
entendida em si mesma, não pode nem quer ser reduzida. Admitindo-se a ou tf-m carát<'r parapsíquico. Os campon<·scs akmães ck 1525 e as massas
existência da dupla visão, observa-se nela qual<pH'I' coisa de suspeito, elas n·vohtt,·ôcs franccsa e russa ccrtamentc tinham algo além das palavras
inclusive uma semelhança com as convulsôes e outi-os dons cn1 que a de onkm, tamhhn <'nllll guiados por algum tipo de imagem pulsional da
esperança não se faz t"io prcst·11tc. Essas coisas s;;io pr<'>p1ias de uma mórbida rcvoh1c;,10, o Ça im! indicava-lhcs a din·c:ão a s<·guir. Todavia, as imagens
sc·nsibiliclacle sutil (a hiperscnsihiliclaclc ele uma ferida cicatrizada) que, pulsionais c1·a111 alraíclas e iluminadas por- um lug:-u- n·al111entc situado no
com alguma legitimidade, pode prevn as alterações climáticas, mas que futuro: o n·iuo da libt'nladc. A chamada capac-idade ck pr<'ver a morte ou
pretende prever inctnclíos ou falecimentos. !\ natureza subconscí<'ntc, até adivinhar os mínu..-os da lol<·ria t<'III <·videnlelll<'lll<' 11111 grau produtivo
submersa, atávica e esgo1·ada ci<'SS<' tipo de pressentimento faz com que de me11or. Uma das rnédiuns mais podC'rosas, a vid('Ut<' ck Pr<"vost, diz nas
se refira apenas a fenômenos <pw j:-'í ocorreram milhares de vezes e que conlidi-ncias l"<'itas aJustinus K<"mcr, <' <pu· <·st<· publinn, na época (Reclam.,
irão se n·petir amanhã ou depois de amanhã. O pressentimento ligado ao p. 271): "Para mim o mundo é um círn1lo. Nesse círnilo pude me movei·
sonambulismo pode até, na melhor das hipóteses, ser um resquício tanto para tr.Í.'> <piauto para frente e V<'I" o que foi e o que vinha". O Roman-
deteriorado do instinto animal, mas mn instinto estereotipado. A<s açôcs tismo<' tamb{>m I lcgd conheciam<· r('spcitavam a iu111iç-ão unicamente
ligadas a este instinto, ainda que voltadas para um objetivo evidente, tornam- nesse sentido atávico, sup<'rstkioso, h<~j<' lotahnente tl'Ívial. Nele existe so-
se absurdas assim qu<' o animal se depara com uma situação nova e é mente o faro para um mundo velho, em qu<· a únka novidade' é o canto do
obrigado a intuir com seu faro algo que nunca ocon-eu. Botar ovos, <·ons- galo, mais <·xatarncntc aquele <1uc· faz acorn:r ao <'<•mitério e que faz parte,
lruir o ninho, migrar - estas são ações efetuadas pelo instinto corno se ele pn'►p1io, da fantasmagoria. É nHnprccnsívd que nC'uhum. desses falsos
houvesse um exato saber do fuluro. No entanto, este é um futuro cm que se profrtas, de Sibila até Nostradamus, quando pn:diz o "futtn-o", diga urna
cumprem os destinos de milhões de anos da csp{>cie. Trata-se, portanto, de palavrn sequer que vá além das coisas já conhecidas 011 que simplesmente
um futuro antigo, automático em seu teor,_já <pw nele não acontece nada não lhes apresente de outra forma. Em contrapartida, Bacon, por exem-
de novo: trata-se do referido futuro inautf:nt ico. Muita coisa sobre o instinto plo, na sua Nova Atlantis, não sendo um adivinho, mas um utopista pond<'-
cmporal ainda constitui wn mistério, a invl'sl ig·ação dos sistemas de signos rado, viu um futuro espantosamente autêntico. Isto unicamente com bas<'
'linda não está concluída, a vida das im;1g<·11s pulsionais no instinto, se é no seu faro, que se tornou pknan1ente consciente, um faro para a tend<"n-
gue há alguma, não está. decifrada, junlam<'nle com a orientação que ela cia ol~jctiva, para a possibilidade objetivamente real de sua época.
confere às pulsões. Contudo, por mais <jlI<' o limiar da intuição humana Pois o olhar para a frente se torna tanto mais aguçado quanto mais
,eja rebaixado, dificilmente ela pod('r;Í <'Xp<'rimentar a atividade que, no claramente se torna consciente. Nesse olhar, o sonho quer ser plenanH'III<'
mstinto animal da previsão, par<'<'<" <·onclensar integralmente passado, pre- claro; a intuição, correta, evidente. Só quando a razão toma a palavra, a
espcnuu,:a, na qual não há falsidade, recomeça a florescer. O próprio ai11- 11hi111a111t·111e, (;11.<"t1clo :-.11;1 .1 h,mdt·ira do 11iilisrno, o <jlll' n,1 d" :-.1' l':-.p('t.11

da-não-consciente deve se tornar consciente quanto ao seu ato, consciente 1)aí o senlinH·11to a11ti11t<Ípico que se 1nanifcsta no seg11i11lt· lrcd10:
de que é uma emergência, e ciente quanto ao conteúdo, ciente de que está
emergindo. Chega-se assim ao ponto em que a esperança, esse autêntico No desejo, o ser-aí esboça o seu ser em vista de possihilidadcs,
afeto expectante no sonho para a frentc, não surge rnais corno unia mera possibilidades que no ato de providenciar não só são desperdi1,:aclas
emoção autônoma, como se descreveu no capítulo 13, mas de modo consci- como tambhn não é sequer cogitada ou esperada( l) sua realização. Ao
ente-âente como júnçâo utópica. Seus conteúdos são oferecidos primeira- contrário: a predominância do ser-adiante-de-si no modo do mero des<-:jo
mente cm representações, essencialmente nas da fantasia, que diferern das traz consigo urna incompreensão das possibilidades fáticas. (... ) O dese-
representações da reconhH;ão, pois estas meramente reproduzem percep- jar é mna modificação existencial do pn:~jetar-se cogitante, o qual, à
ções oconidas e assim cada vez mais se ocultam à sombra do passado. As mercê da condição de estar-lan1,·ado no mundo, limita-se a cismar em
representações da fantasia não compõem tão-sonwnte o que já existe, de tomo das possibilidades (Ilciclcggcr, Seinund7/2t, 1927,p.195).
modo aleatório (mar petrificado, montanha dourada e coisas semelhantes),
mas também o que d;í continuidade, de modo antecipah>1io, ao que existe Aplicadas pura e simpksmcute ao ato de antt·cipar que não alcançou
nas possibilidades futuras de seu ser-diferente, de seu S<'r-melhor-. O que sua matu1idade, essas coisas sem <hívida soam como se um elmuco acusasse
distingue a fantasia da flm<:ão utópica da mera fantasia quimérica é o fato o menino I Iérculcs de impotente. Não é necessário enfatizar que a autêntica
luta conll,l o imatmu e o abstrato, <]IH' caracterizavam ou potcncialn1ente
de apenas a primeira ter a seu favo,· um ainda-não-ser do tipo que pode ser
ainda caracteiizam a iünção utópica, nada tem a ver com o "realismo" do
esperado, isto é, que não gira nem se per<k em torno de uma possibilidade
burguês e ainda se resguarda de todo pragmatismo. Porém, o importante
vazia, mas antecipa psiqnicarnente um possível real. Ao mesmo tempo, a
é que o olhar cheio de esperança e fantasia da função ut<>pica não será
dift·renç::i <·m relação ao sonho aninlado como antecipação realmente pos-
conigido a par·tir de uma p<-rspectiva cstreila e tacanha, mas só a partir do
sível, tantas vezes enfalizada, ganha nova clareza: a função utópica sequer
real na própria ,mtecipação. Portanto, a partir daquele 1ínin> realismo
c·stá pn·scnt<' no wi1/~ful tlúnkingou, se está, são apenas lampejos. Em seu
real, que o é sonwnte porque versado na te11di·1tcia do ffal, na possibilidade
Rosmn:1-/wlm, lbscn retratou de modo comovente Ulrich Brenckl, a figu-
ceal-ol~jt·tiva à qual a tendência está assodada, e <·orn isso versado nas
ra estéril de um simplório fazedor de planos. Num nível muito mais baixo,
qualidades da realidade, das práp1ias utópicas, ou sc:ja, de teor futuro. E
nem um pouco comovente, o Spiegelberg dos Salteadores pertence à classe
a assim carat·tc1izada matmidade da função utópica - isenta de qualquer
dos utópicos fanfarrões, da qual também faz parte o marquês de Posa, só
desvio - sem dlÍvida caracteriza o senso de teuclêucia do soc·ialismo filosó-
que num nível incomparavelmente mais alto, pela pureza excessiva de suas
fico, clifcrcnciando-o do falso "senso para os fatos" do socialismo que resva-
hipóteses meramente abstratas. O wisliful thinking puro tem desacreditado
lou para o empirismo. O ponto de contato <·ntre sonho e vida, sem o qual
as utopias desde tempos remotos, tanto no nível da prática política quanto o sonho produz apeuas utopia abstrata e a vida, por seu turno, apenas
em toda restante manifestação de coisas desejáveis, como se toda e qualquer trivialidade, apresenta-se na capacidade utópica colocada sobn· os próprios
utopia fosse abstrata. E, sem dúvida, na formulação abstrata das utopias a pés, a qual est;'í associada ao possívt·l-real. Uma capacidade que, guiada
função utópica ainda carece ck maturidade, ou seja, ainda não h,'i um pela tendência, supera o já exislcntc rnio só na nossa natun:za mas também
s1~jcito sólido que a respalde e ela não tem um possível-real como refrrêll<·ia. no mundo exterior em processo como nm todo. Com isso, aqui teria lugar
Logo, ela pode ser desenca1ninhada facilmente, sem contato co1n a o conccilo de utópico-concreto, apenas aparentemente paiadoxal, ou seja,
verdadeira tendência para a frenle, nuno ao mdhor. Todavia, pelo menos um antecipatório que não se confunde com o sonhar utópico-abstrato, nem
tão suspeita quanto a imatmidade (o entusiasmo) da função utópica em- é direcionado pela imaturidade de um socialismo meramente utópico-abs-
b1ioná1ia é a ttivialidade do filisteu apegado ao existente, do empirista trato. O que caracteriza o poder e a verdade do marxismo é justamente o
obtuso, que não explica o mundo, em smna, é a aliança nacional em que fato de de ter dissipado a nuvem que envolvia os sonhos para a frente sem
tanto o burguês gordo quanto o pragmático superficial não só rejeitaram ter apagado as colunas de fogo que neles ardiam, dando-lhes, ao contrá-
mas também desprezaram de vez tudo que é antecipatório. E essa aliança rio, força e concretude. Dessa maneira, o consciente-ciente da intenção
nacional - por aversão a todas as fo1u1as de manifestação dos desejos, so- expectante tem de ser comprovado como inteligência da esperança - em
bretudo contra os que impulsionam para a frente - cresceu muito meio à luz ascendente na imanência, que supera o existente em sua dialética
111.il(·rial. A-;sim, a função utópica é a única transcendente que restou, e· a do orgulho baseado na r;11..10. Neste, a a11to<·o11sci<~·11C"i;1 p:1s-.;011 a s1·1 o .110
única que é digna de permanecer: uma função transcendente sem d<' p1-odução cognitiva.Já ctn Descartes o conhcC"imento apan·c·c· c111;ilg1111.-;
transcendência. Seu esteio e con-elato é o processo que ainda não resultou trechos como manufatura de seu objeto. Todavia, os pressupostos do
no seu conteúdo mais imanente, o qual está sempre a caminho de se realizar orgulho baseado na razão foram insanamente inflados com a aparência <I<'
- logo, o qual existe, ck próprio, cm esperança e em intuição ohjetiva do um fazer absoluto. A razão de modo algum pode ditar as leis da natureza.
que-ainda-não-veio-a-ser como de algo que-ainda-não-se-tornou-bom. A O mundo desse idealismo epistemológico tampouco é um mundo utópin),
conscic'.'-ncia do Jronl fon1ece a melhor luz para isso: a função utópica como ao contrário: a ambição do ego transcendental era, em primeira linha, a
compreendida atividade do afeto expectante, a intuição da esperança, de gerar justamente- o mundo concreto das leis, o mundo da experiência
mantém a aliança com tudo o que ainda é auroral no mundo. A..,sin1, a da matemática e das ciências naturnis. Apesar disso, o ego transcendental
função utópica compr<'endc o aspecto explosivo, ponpw da pn>ptia o é de Kant e Fichte soube estabekc<'r mornlnwnte seus postulados para além
de forma muito condensada: sua ratio é a razão não debilitada de tun do existente n1im, ainda que, con-csponde11do i'i miséria alemã, de modo
otimis1no militante. Da 11wsn1a 1ónna, o conteúdo ativo da espcraw;a, na totalmente abstrato e sem contetído. Kant, que cm quase nenhum ponto
qualidade ck nmscicntemente esclarecido, dentemente explicado, é a/irnçâo deve ser confundido com o neokantismo, pelo menos construiu como pos-
utópica jJO.litiva, en<p1a11to o wnleúdo hi.1tótico da csperan~·a, evocado tulado um mundo mais belo, conforme a c·xpressão de Goethe, um mundo
primeiramente cm representações, investigado <·ncidopnlinunente nn da espontaneidade da vontade, <JlW não se saciou, não naufragou na expe-
juízos cotHTctos, é a /'ultura !t1u11ruw na rdaçii.o wm o seu lwrizonll' 1tlájúw- riência mecanicista do já existente. A autoc·onsciê-ncia estóica e, bem mais
rnnaelo. It nessa no(,10 que trabalha a <:ombimH,;ão doda .1/Jes, <·orno aJi:to próximo de nós, o idealismo alemão indinmt o ponto singular- ainda que
expectante na ratio, como rationo afeto expectante. E nda o prcpo1uk1·a11te totalmente pn:jmlicado pela abstrac:ão- a partir do qual o sujdto se reser-
u."ío é mais a contcmpla~;ilo, que ,ksck tempos remotos estava associada va a liberdadr1 de 1wt rnntragolj,e mnlraditório r,o existente ruim. Mesmo que
ap<"nas ao <1uc já ocotT<'ll, mas a atitude ('O-parlicipantc, cooperadora do esse fator sul~jetivo tenha sido indicado de uma man<'ira fonnal-abstrata,
pn><Tsso, para a qual, <ksdc Ma1x, o devir aberto 11,'io está mais <Tn-ado isso S<' l'cz C'Olll clareza. Naquela época, de n·pn·sentava filosoficamC"nte o
metodic·,um·ntc· e o nmmm não é rn.iis um ,·orpo estranho. O tema da liloso[ia cidadão. Dessa maneira, toda reivindica~;,10 t'C'Voluciom'iria na Alemanha,
se situa, desci<' cnt,10, 11nin1111c·nte sohn· o lojJ0.1 de um campo do devir do Stunn und Dra:ngaté a chamada J>rinumem rios /'ovos, de 1818, ainda está
inconcluso e· f'tmdamentado na ki, na consciê·ncia que reflete e inte1vé111, e relacionada rom o ego do id<'alisrno. Mas s6 o socialismo foi capaz de
no mundo elo ciente. O pioneiro c·m situar esse topo:, sob uma ótica cie11tífint captar ck f'orma r<'al, e não só pelo p<'nsamento, aquele fator sul~jetivo
foi o marxismo-justamente ao ekvar o socialismo do :,tatw de uma utopia totalnwnt<' livre da pn·potência idealista exagerada: a consciência de classe
ao de uma cii·ncia. proletá1ia. O proktaiiado se compreendeu corno ,·ontradi<;Üo no capita-
lismo, ela própria ativamente contraditó1·ia, c·omo aquela, p01-tanto, que
Mais sobre a jilnçúo utríf,ica: o sujeito contido nela e o contragolj1e mais dá trnhalho ao <·xistentc mim. O f'ator s11l~jctivo - advcrsfüio de toda
na existência imperfeita abstra<,.:ão e da espontane:·idade ilimitada de cousciê-n,ia que lhe
Entretanto, sem a força de um eu ou nós por detnís, até mesmo o ato corresponde - buscou de forma igualmente n:al a mediação do fator
de ter esperança se torna insípido. Na espcrnnça cons<·iente-ciente não há objetivo da tendência social, do possívd-n·al. Assim, a atividade do saber-
debilidade, mas uma vontade que determina: é assim que tem de ser, assim melhor se tornou aquele algo-mais que ch'i continuidade, dirige e humaniza
há de ser. Nela, o traço do desc:_jo e da vontade irrompe energicamente, o com consciência o caminho iniciado pelo muudo, o seu "sonho da coisa",
intensivo na superação e nas trnnsccndências. Seu pressuposto é um corno diz Marx. O fator o~jetivo não é suficiente para isso. Ao contrál'io,
caminhar firme, uma vontade· que não se deixa preterir por nada _já as contradições ol~etivas constantemente chamam a uma interação com a
existente: esta fün1eza é seu privilégio. Esse ponto singular, em que o st~jeito contradi~·ão su~jctiva. Não sendo assim, surge a heresia, em tílt im,1
pode se postar e a partir do qual ele reage, é assim caracterizado, instância derrotista, de um automatismo objetivista, segundo a qual as
abstratamente, na autoconsciência estóica: quando o mundo desaba,·, o contradiçôes ol~jetivas por si só seriam suficientes para revolucio11ar o
homem permanecerá impassível entre as ruínas. No ego transcendental do mundo impregnado por elas. Os dois fatores, tanto o su~jetivo q11a11lo o
idealismo alemão, esse mesmo ponto é caracterizado de modo abstrato, só objetivo, precisam antes ser compreendidos em sua consta11te i11l!'l.1(;;10
que não mais a partir de pressupostos do orgulho haseado na virtude, mas dialética, interação indivisível, não isolável. Sendo qu<' a par'('(·l;i 1111111:111;1
da ação certamente tambén1 deve serprcse1vacla do isolamc1110, do .1tivi~1110 ,,u,· ~1111pks11u·11h· 1·1111,d.-1.;1 o nds1c·11tc. 1'01~ 11,, idl'olog1.1. drl<'r c11tn1w11II'
golpista em si, que sai em disparada e Clajo fator demasiadam('nlc s11l~jc1ivo , 1, ,.., ,111pu··1 ipos, dos idc.1is, das ,dcg-orias (' dos sí111holos, 11;10 c-hq.{;' ,1rn1111 n
acredita poder atropelar a legalidade econômica objetiva. Todavia, u:10 11111 10111ragolp<", 1nas nTta1ncnle u1n ir-alhn do <"Xist<"llt<" 111cdi;111t1· ~11;1
menos prejudicial é o automatismo social-dem~)Crata em si, como superstição •.11p,-rac;,io C'mbdczadora, condensadora, aperfeiçoadora 011 sig11il1c111tc
de um mundo que se torna bom por si só. E impossível, portanto, passar 1. .-.-.;la, por sua vez, não é possível sem que a função utópica seja distorc-icl.1
sem o fator sul~jetivo, e é igualmente impossível escamotear a dimensão 1111 11<-slocada, da mesma forma como ela não pode estar na frontdra do
profunda desse fator, exatamente a do contragolpe no existente nrim, como , ,ist<"ntc scn1 que o "sonho da coisa" seja desfigurado. Então, mesmo nessas
mobilização das contradições que ocorrem no próprio existente ruim, ,1..-11101ias inautênticas deve ser possível descobrir a função utópica origi 11,11
visando ao seu total solapamento, à sua derrocada. A dimensão profunda , · , , >11creta, ao menos parcialmente, deve ser possível confrontar as distc>I"<,'Ú(·s
do fator sul~jetivo, porém, está no seu contragolpe justamente porque este ,. ;1hstrações que não sejam totalmente infundadas. As específicas relaçÔ('S
não é apenas negativo, mas iguahnentc contém em si a afluênâa de um êxito de produção até explicam como se chegou à ideologia e suas respectivas
antecijJável e refJresenta 11ssa <ffi1u?nâa r,a .filnçáo utópica. rrrdhorias inautênticas, rnas as c:onfusôt·s gerndas no humanum, fn1to de
A questão que se coloca agora é saber se e cm que medida o -..1 ,as relações de produção, tornam necessário um cmpr·ést.imo junto à funçáo
contragolpe antecipador não se confunde com um contragolpe que 111ôpica para dar fonna às referidas compkmcntaçôcs com o seu excedeu(('
simplesmente embeleza o existente. Espccialrncnle se esse golpe , 11Itural. A ideologia, sendo as idéias dominantes de 11ma época, é, de acordo
embclczaclo, ainda que consiga transmitir o seu biilho, nem mesmo nrnsista , om a frase definitiva de Marx, as idéias da dasst· dominante. Porém, como
num contragolpe, mas mim mero e suspeito polimento do existente. E não 1;11nbém a classe dominante é alienada de si mesma, sua ideologia reflete
com o respaldo de alguma incumbência revolucionária e sim de uma 11;1.o só o iukrcssc· em apresentar o se11 próp1io hem-estar c:on10 sendo o
apologética, ou sc:ja, um respaldo que pretende reconciliar o Sl~jcito com o lwm-estar de ioda humanidade, mas também aquela imagem da nostalgia
existente. Esse propósito é realizado sobretudo pela ideologia de uma 1111 da supcraç:fo 111m1 mundo livre da alienação - imagem que sobretudo
sociedade de classes, cm períodos em que já não há mais o espírito 11a bm·guesia se chama cultura e mostrou a funçào utópica atuando em
revoh Kionário, mesmo que ainda se promova o desenvolvimento das forças parte também naquela classe, que fora isso se sentia bem na sua alienação.
produtivas. O existente resplandece, então, como harmonização enganosa, 1:, natural que essa função tenha animado principalrnente, ou quase
na melhor das hipóteses prematura, e está envolto pela pura fumaça ou cxdusivanwntc, as ideologias ainda revolucionárias dessas classes. Sem a
pelo puro incenso da má consciência. (Todavia, a ideologia podn: dos l11nçào ul<>pic-a, nào se pode explicar nenhum cxccdcnlc intelectual que
períodos de decadência de uma sociedade de classes, especialmente da pese sobre o que foi alcançado ou sobre o qm- é existente, por mai~ que
burguesia tardia da atualidade, não se cuc:aixa aqui, pois nesse caso se esse exc<>dcnlc esteja cheio de aparência em vez ele pré-aparê:ncia. E por
trata de má consciência assumida, ou seja, fraude.) Porém, além disso, há isso qm· toda antecipação deve se legitimar ant.erionncntc à função utópica,
na ideologia certas figuras de condcnsa<,·ão, apc1friçoamento e signific:ação <Jlle n-qnisila todo o valor possível ao excedente da antedpac,:ão. E, como
do existente que são c·onhccidas como arquétifJo.1 quando associadas " .~crá ckmonstrado, também o que está c:ontido no inten1s.111quc 011tr·ora foi
principalmente à condrn.1·açâo, corno ideai,H111ando associadas p1incipalmt·nte progressista, cm ideologfos que não desapareceram totalmente c-om a sua
ao aperfeiçoam.enlo, c·omo alegorias e .1imbolos quando associadas sociedade, cm arquétifwsquc ainda estão encapsulados, cm ideais que ainda
principalmente à significaçiio. O embelezamento do existente, intencionado . 'i são abstratos, cm alegorias e símbolo~ que ainda são t·st,it.in)s.
de tantas maneirns diferentes, ao menos não é o do cxislcnte ruim, e ele j
não visa conscientemente, ou seja, fraudulentamente a desviar a ate1l(;ão .·1 O encontro da fu:nçáo utópica com o interes~e
deste último. Ao contrá1io, aqui o existente é complementado, é verdade , Um olhar fiio não se evidencia pelo fato de atenuar, mas ele quer e
que de modo amplamente abstrato e idealista e jamais de modo pode expor com justeza, não querendo, ele próprio, deixar de ser crit e1ioso.
dialeticamente explosivo e real. Contudo, de tal forma que não falta uma Ele extingue sentimentos e palavras fraudulentas, quer wr o cu, o almejar
antecipação singular e inautêntica do melhor: uma antecipação que se dá e a pulsão cm sua nudez e todavia não fragmentados e divididos ao meio.
no espaço, ruas não no futuro e no tempo (ou, caso ela ocorra, se-rá O que chegou ao nível do puramente infame foi certamente a pulsão
inautêntic:a). Com isto a pergunta se tornou mais concreta: se e em que econômica na atual vida dos negócios, totalmente entregue à gatunagem, e
medida o contragolpe antecipador não se confunde com um contragolpe o que nisso se integra é apenas a vilania impiedosa. A avidez do lucro põe
11a so111 bra todas as crnoções hurnanas,já que ncn1 1ncs1no int<·n-ala p;u isas, cl.1 11u-s111a 1<>1111.1. < h -..•·11l1on·s da Sol'i<·<l.id<' d;1:.. l11di;1.-.. ()11('11L11:.. 11.10
como no caso do prazer de matar. E, da mesrna forma, está estabelecido , 11volvia111 <p1alcpw1 pa1n·la de hnH;ão utópica no S('\l ucglÍl'Ío, o •pw . . o
que, também em períodos mais antigos e relativamente mais honestos do 1.. 1ia lrazido pnjuízos. Mas o negociante médio da manufattll'a, ai<: o cb
capital, o interesse pelo lucro não se compunha exatamente das pulsões 1, .. volução Industrial incipiente, ainda necessitava da fé na maior felicidad<'
humanas mais nobres. Sob pena de ruína, um poderoso egoísmo estevc 1►< ,ssível para o maior número de pessoas possível, e a cultivava. Ele nen·s-
constantemente ativo na guerra econômica. Se essa mola propulsara tivesse ,,, 1ava dela corno elo entre as suas pulsões egoístas e as pulsões imaginadas,
cessado, se motivos altruístas tivess('m ocupado o seu lugar, toda a L111tasiadas, as que em Smith são especialmente designadas como
engrenagem capitalista teria parado, como mostrou de modo tão l•nHmoúmtes. Isto tanto mais ponp1e o egoísmo cínico era atribuído à
cinicamente verdadeiro a fábula das abelhas de Mandeville. E, no entanto, 11ohreza, principalmente aos seus lih<Ttinos (vejam-se os romances
não te1ia ela sido ao menos freada freqüentemente, no caso de uma razoável , , ,ntcrnporâncos de Richardson). Em contraposição, o burguês em ascensão
maioria dos empresários daquela época, se a pulsão egoísta tivesse se 1wccssitava da "virtude" para com tanto mais afinco ganhar à custa dos
apresentado de modo tão explícito? Portanto, se ela não tivesse sonhado 011lros como se estivesse ganhando para eks. E quando se foi para a
para si mesma, de forma puramente interior e diferente da crueza d<'tTadeira batalha urntra os ohsláculos feudais, os burgueses, uma classe
consciente, algo mais nobre, mais comunitário? Se ela não tivesse antecipado pouco heróic:a, pn·c-isaram n-forçar· de forma especial a sua munição
isso subjetivamente em sonho de modo não totalmente inautêntico? Por 111ópica. Se não 1iz<-'ssem isso, não leriam ido à luta, o que cm parte até foi
essa razão, não se pode deixar de perceber nas abelhas artificiais o estado , , caso, 1nas tc-1iam deixado que por· eles lutassem exclusivamente os homens
dos verdadeiros egoístas daquela época, corno uma condição que inclusive do subúrbio. Se não fizessem isso, não teriam de boa-fé se sentido aparen-
tinha de fabricar para si mesmo desculpas e argumentos altn1ís1as para lados com os Gracos e com Brutus, o que novamente em parte até foi o
produzir um lucro assim chamado honesto de modo honrado e , aso, durnnte o período de 110ivado ela liberdade burguesa de 1789. A
aparentemente humanitário. Desse modo, no caso de Adam Smith, ,·lasse ern asn·nsão, que conduzia a cconouüa, necessitava, portanto, tarn-
claramente se infiltraram no selfish ,1yslnn tr<1ços de um,1 nmsciêuda também 1 ► {-m intcrionnente, de uma paixão de amplo akaun· na confusão de senti-
interiormente falsa. E eles não eram, <'orno tantas v<·zes entre os cllvinistas, mentos daquela época, para, como diz Ma1x, "ocultar ele si 111esrna o con-
astutos e compungidos, mas sul~jctivamenlc sinceros e despretensiosos. ll'Údo hurgt1<'.S limitado de s11as lutas". Isso era pura auto-ilusão: ainda não
Eram traços da convicção, da boa consciê-ncia, do comerciante e empresário ...<' podia pcn:c·ber o homem ela economia privada que se escondia por trás
honrado que de fato acrt'ditava no lucro honesto, que sobretudo, no jogo do ideal dos direitos do homem, nem a abstração <JUC caracterizava a ima-
de oferta e procura, senl ia-se como uma espécie de benfeitor dos gem do cidadão. No c·ntanto, esse tipo ele auto-ilusão mostrava também
consumidores, dos que tinham poder· de compra, como se entende por si .ilgo anlccipador, mostrava até lraços cspccialrncntc humanos, ainda que
mesmo, daqueles, portanto, por meio dos quais a mais-valia extorquida expressos abslralarnentc, aplicados ele forma utopicamcnlc abstrnta. E, até
dos trabalhadores pôde ser transformada em dinheiro com a venda do 111esn10 no S<'U inlcresse, H<"tll tudo era ilusão. Caso contr;írio, não seria
produto do trabalho. Contudo, a boa consciência se firmava com o 1>0ssível se refelir em termos socialistas ao ser humano dos direitos humanos
argumento de que o interesse capitalista dt'veria se referir permanentemente .- nern mesmo ao cidadão, pois eles não estavam unicamente direcionados
ao do consumidor, à sua satisfação. A boa consciência da vantagem recíproca para a ecouornia privada. Aquilo que o cidadão prometeu certamente
1inda foi embelezada pelo fato de todos os seres humanos serem encarados poderia ser cumprido apenas em termos sot'ialistas. Pelo menos essa
como comerciantes livres com crescente (·apacidade de permuta e n~jo promessa poderia ser cumprida. Portanto, naquela época havia um
mteresse pessoal, se bem compreendido, era equivalente ao interesse coktivo ,·xcedente utopicamente aportado no próprio almejar burguês. A
::>roduzido dessa maneira. Em vista disso, a economia capitalista surgiu 1nentalidadc social, que no cidadão se havia abstraído moralmente - isto é,
:omo a única natural, finalmente descoberta, em relação à qual Smith 'llle se havia elevado acima dos seres humanos individuais e concretos-,
nanifestou o seu pleno aplauso de modo tão prolixo quanto utópico. precisa primeiro ser unida às suas próprias forças, que não são mais
?ortanto, se o próprio interesse foi influenciado utopicamente, tanto mais l >1 irguesas e individualistas. Pelo menos essa mentalidade, outrora chamada
t sua má consciência, que todavia era uma consciência plenamente ativa. oirtude, estava presente, neste caso existindo não só como reforço de munição
iem esse embelezamento, a exploração por parte das grandes bestas, das mas também como portadora de um excedente. Se não, corno ainda seda
)Cm despreocupadas quanto à moral burguesa, sem dúvida teria avançado 1,ossível, desconsiderando os jacobinos autênticos, honrar um Jefferson?
l'rn la11lo,_j,í 11a pulsão, tendo sido da a seu tempo progn·ssista, podia estai Etst' ideológica, j>t'I l11111a11clo a podridiío da hasc dt' s11st1·11t;ic;10, 1('l,;1ti1.111do
ativo um outro traço mais duradouro que ia além do progresso imediato a de modo fosforescente a uoitt' corno dia e o dia como noite - ajudada pc-lo
ser promovido. Ele pode ser moralmente herdado, da mesma forma que desaparecimento quase completo da boa-fé na má consciência, 011 .~cj;1,
pode ser herdado culturalmente o excedente formado, transformado em com fraude quase totalmente consciente. Portanto, na sociedade de classes,
obras na consciência propriamente ideológica. Já no passado, o bem, o a infra-estnitura econômica é coberta pela névoa de uma má <·onsc·iê•w·ia
melhor foi muitas vezt·s desejado, só que geralmente ficou nisso. Todavia, interesseira, sendo indiferente se quanto ao seu teor a sua ilusão pode sei
justamente porque esse querer não chegou a se concretizar, ele acompanha classificada como ardente, clássica ou decadente, corno ascensão,
o curso da libertação na<1twle aspecto em que não coincide com o alcançável florescimento ou utilização cosmética. Em suma, como nenhuma explonu;,10
da vez- aqui, portanto, com a sociedade capitalista. A função utópica arranca deve se deixar surpreender nua, ideologia é, por esse lado, a soma das
da ilusão essa partt', fazendo c·om que tudo o que cm qualquer tempo é rep1·esentações em que cada sociedade se justificou e se transfigurou com o
favorávd ao humano se sinta cada vez mais próximo. auxílio da má consc·iê:ncia. Agora, porém, sempre que a cultura é pensada,
não surgiria também wn outro lado da idt·ologia - n·conhecível já na condição
O encontro da função utópica com a ideologia das três fases, tão diferenciadas quanto à moral e ao conteúdo? Trata-se
llm olhar aguçado não se faz comprovar apenas pelo fato de disn·rnir justamente ck um lado que não coincide em Ioda a sua dimensão com a
mas também por seu jeito de não ver tudo tão clarn como água. E isto mera 1mí c:onsciê'.ncia e com a apologética de urna mera sociedade de classes
justamente pelo fato de nem tudo estar tão claramente pronto e às vezes descartada historicamente. Pelo lado <TÍtico, ck modo contundente, Marx
estar ocon-endo un1 frrrnentar, urn fo1n1ar-se ao qual exatarnentt· o olhar diz cm A sagrada familia que "a 'idéia' ficou cm má situação sempre que
aguçado f,z jus. Esse aspecto inac·abado aparece de modo mais amplo e diferiu do 'inten-sse'", <' com esta frase ele estabelece a conexão com o
embaralnado na ideologia, na medida em que ela não se esgota na relação autodiscernirncnto da sociedade burguesa, iniciado no mate1-ialismo fran-
con1 o seu tempo, nem com a mera má consciência em relação ao seu ct·s, que s6 cm La Bn1yhe, La Rod1dc:rncauld e especialmente em Helvétius
tempo, o qual anunpanhou todas as culturas precedentes. Corn certeza, a permitiu reconhecer que o interesse pessoal, se lwm entendido, seria o
própria ideologia se o.-igina da divisão do trabalho e da divisão, o<·orrida fundamento ck toda essa moral. Marx, porém, acn•sccnta, na continuidade
após as primeiras comunas, entre trabalho material e intelectual. Só a pa1·tir daquela aJinrnt<:ão:
disto mn grnpo suficientem<'11te oóoso para criar representações pôde iludir
a si e principalmente a outros por meio delas. Portanto,já que desde sua Por outro lado, é fücil de compreender que todo "interesse" de massas
origem as i<kologias são da dasst· dominante, elas justificam a condi~·ão que se impôe historicanwnte, na sua "idéia" 011 "conccp~:ão", vai muito
social <'Xistentc, negando a sua raiz econômica, ocultando a explora()Ío. alhn ele suas verdadeiras idéias e se confnndc com o inlcrcsse hwnano
Este é o quadro cm todas as sociedades de classe, com mais evidtncia na c·omo tal ao subir pela primeira vez no pako do mundo.
burguesa. Todavia, na fonnação ideológica dessas sociedades há trê·s fases
com graus de valor muito diferenciados, com diferentes encargos em relação Dessa fonna, surge a ilusão 011 aquilo "que Fourier designa como o
à superestrutura intelectual, demasiado intelectual: a prepara1<>ria, a tom de cada época histórica". Contudo, a ilusão assim constituída
vitoriosa, a decadente. A fase preparatória de uma ideologia vem cm auxílio ocasionalmente contém, além das flores entusiásticas com que cada
da própria infra-estrutura, que ainda não está firme, contrapondo à sociedade coroa seu berço, também aquelas ('Iiaçõcs artísticas que "de certo
superestrutura apodrecida da classe até então dominante a sua modo valem como norma e modelos inatingíveis", corno, lembrando o
supercstn1tura neoprogressista. A classe que então chega ao domínio exemplo dos gregos, diz Marx na Introduçiio à critica da economia política.
instaura a segunda fase ideológica, assegurando a infra-estrutura que pas- Desse modo, o problema da ideologia foi abordado pelo lado da heran(:a
sou a existir, fixando-a jurídico-politicamente, embelezando-a cultural:jurí- cultural, da questão sobre como é possível que obras da superestnltura s1·
dico-politicamcnte - omitindo e em parte, classicamente, também promo- reproduzam progressivamente na consciência cultural também ap6s o
vendo um certo "equilíbrio" às pulsões revolucioná.-ias precedentes. Tanto descarte de seu fundamento social. A diferença de conteúdo entre as trfs
o ato de assegurar como o embelezamento são apoiados por uma harn10- fases não pode ser escamoteada aqui, nen1 n1esmo quando o lua ms a1:itn1
nia obtida, ainda que temporariamente, entre as forças produtivas e as de efeito prolongado de modo algum é restringido à época asn-1Hlc11II',
relações de produção. Depois disso, a classe decadente instaura a terceira revolucionária, de alguma das sociedades de classes até agora <·xis1<·11tc·s.
Então se torna tanto mais visível o fenômeno propriamente dito a que aqui • p111a e- si111plc-,111,·111c- ho,1 <011s<·1c-11ci;1, rdacio11ada co111 o 111ov111w1110
nos referimos, o qual reside do outro lado: o excedente cultural. Pois t"SSt" , 0111prcc11dido <· a capeada tcndê·ncia da realidade. ( :011111<l0, ;1 1<·l:11_:10
fenômeno, como sendo o da arte, da ciência e da filosofia desenvolvidas , lc,~sa ideologia verdadeira com o aspecto antecipador na má consc·it·11á1,
em sua fom1a e indicativas do futuro, vem ao nosso encontro na época ,· 11;io somente na má consciência da ideologia anterior, aplica-se a s<'g11i 111 e
clássica de uma sociedade de modo muito mais rico que no seu período ,,.-11lença de Marx (a Ruge, 1843):
revolucionário, em que todavia o ímpeto imediatamente utópico contra o
existente e para além do existente é muito mais forte. E as florescências da Nosso lema de campanha deve ser, portanto: reforma da consciência
arte, da ciência e da filosofia sempre designam mais do que a má consciência não por meio de dogmas, mas da análise da consciência mística, à q 11a 1
que uma sociedade tinha a seu 1·espeito em cada caso e utilizava localmente ainda falta clareza. Ficará evidenciado, então, que o mundo há muito
para o seu ernbelezaniento. Ao contrádo, essas florescências ce1·tarnente possui o sonho de uma coisa da qual ele só precisa da consciência para
podem ser retiradas do seu primeiro solo social, p<ff<1ue elas mesmas, possuir realnwnte. Ficará evidenciado que não se trata de um granel<'
segundo sua essência, não estão amarradas a ele. É verdade que a acrópole travessão entre o passado e o futuro, mas da efeti11ação das idéias do
pertence a uma sociedade escravista, a catedral de Es1t·ash11rgo à sociedade passado.
feudal. No entanto, con10 se sabe, elas não dcsaparcn·1·am junto con1 essa
sua base e, diferentemente da sua base, dikrenlcmente das rcla<:ôcs de Também as ideologias de classe, em que as grandes obras do passado
produção daquela época, por mais progressistas que lenham sido, não s<· inserem, kvam precisamente para aquele excedente passando pela má
trazem nada de lamentável consigo. As grnncles obras filosóficas, em consciên<·ia vinculada a um local específico, que s<· chama cultura de efeito
conseqüência da respectiva barreira social imposta ao co11hecinw1110, até mntinuado, sendo, porlanlo, substrato da herança cultural passível de ser
contêm em maior quantidade coisas restr·itas à sua {poca e, portanto, .issimilada. Agora Ika claro:justamcntc esse excedente é produzido por nada
efêmeras. Entretanto, também elas mostram, pelo elevado grau ele ,,lém da aluaçüo dafu:nçüo ul(>f1iw nas forn1a(/>es ideológicas do lado cultural.
consciência que as distingue e permite lau<;ar um olhar de longo alcance !\ má consciê:ncia por si só não seria suficiente nem mesmo para dourar o
para dentro do vindouro, do essencial, jnstamcnh· das rnostnun aquele invóluao ickolcíg·ico do que ocmTcu. Por si mcsm..-., da não teria condições
classicismo autê·ntico, que não consiste mm, arn·clondanwnto, mas na eter- ele produzir uma das can1<·tc1-ísticas mais importantes da ideologia: a
na juventude, que <·onthn pcrspcdivas sempn· novas. !\penas os proble- harmoniza<:ão prcrnat ura das cout radiçôc·s sociais. Seria ainda menos possível
mas aparentes e a específica ideologia do local submergiram ou fo.-am compreender a ideologia como meio do substrato cultural de efeito continuado
descartados do Si·ntjJÓ,1ÚJ, ela J{tiw, até ela Fmomenolog-ia do espírito. Em sem o seu enc:ontrn c·om a h.mção utópica. Tudo isso ultrapassa notoriamente
contrapartida, o em1, a substância, a substância como sujeito se situam cm tanto a má consciência quanlo o fortalecimento até a mera apologética da
meio a todas as modificaçôcs como variaçôes da meta. Em suma, as grandes respcc:tiva infra-cstn1tura social. Da mesma forma: sem a função utópica, as
obras não são deficientes como no tempo de seu primeiro dia nem gloriosas ideologias de dasse teriam dicgado a ser meramente ilusão passageira, e
corno no seu primeiro dia: ao contrário, elas despem tanto a sua carência não modelos na arte, na ciência e na filosofia. E é exatamente esse excedente
quanto a sua primeira glória, sendo capazes de uma glória posterior, que forma e mantém o substrnto da hcram;;a cultural corno sendo aquela
derradeira, a ser intencionada. O elemento clássico de todo classicismo se manhã que está contida não só nos tempos primordiais mas também, num
depara com cada época igualmente como romantismo revolucionário, corno nível mais elevado, em pleno dia de uma sociedade e pan:ialrnente na pe-
tarefa que aponta para a frente e solução que vem do futuro, não do passa- numbra de sna ruína. Toda grande cultura pregressa é pré-aparência de
do, e ela própria ainda fala, interpela, segue chamando, repleta de futuro. uma vitória na medida em que esta ao menos pôde ser edificada com imagens
Porém, juntamente com algo mais modesto, isto se dá assim porque as e idéias sobre os cumes do tempo com longo alcance visual, portanto não
ideologias, vistas por este lado, não se esgotam na má consciência de sua apenas no e para o seu tempo.
base nem com o trabalho ativo em favor de sua respectiva base. Nenhuma Não há dúvida de que, por tudo isso, o sonho de uma vida melhor é
busca pelo excedente é possível na própria má consciência, assim como foi assumido de forma bem ampla. Ou, o que significa a mesma coisa, o utópico
conduzida pela ideologia da sociedade de classes, e nenhuma é necessária é utilizado, à parte do seu puramente depreciativo sentido habitual, não s<Í
na ideologia da revolução socialista, em que não tem lugar qualquer má no referido sentido antecipató1io mas - como função - também num sen t id< >
consciência. O socialismo como ideologia do proletariado revolucionário abrangente. Assim, evidencia-se que a extensão do utópico na largura e 11a
prolú11didade, pri111<·irarnente uuma J><·1·sp<·<·tiva hi.1/!Íriur, 11.10 n,l.1 rc·!'-.lrita ,-,11;1 hn·vidach- e· p, .. c 1sao, essa palavra sig·nilica <'lll,io o 11ws1no c111c·
110\',1

;i seu fenômeno mais popular: a utopia do Estado. Em confon11idade <'<>Ili 111{-!,'IÍ11 m14ódirn jmw o 11m111, e.1lado objetivo de agregação do w,i:endente. Todas as
isso, o sonho de urna vida melhor transcende em muito a sua origem utópico- g1 andes obras da cultura têm, portanto, implícito, ainda que nem sempre
social, em todo tipo de antecipação cultural. Todo plano e toda estrutura <"Xplícito (como no Fawto, de Goethe), um pano de fundo utópico
levada até os limites de sua perfeição tangeu a utopia e proporcionou, 1 ompreendido dessa maneira. A partir do conceito filosófico de utopia,

conforme mencionado, exatamente ,'is grandes obras da cultura, que das não são um passapor·te ideológico de um tipo mais elevado, mas
continuarn a atuar de fon:na progressista, um excedente que 11ai além. de sua ('aminho tentado e conteúdo da esperança ciente. Somente assim a utopia
rnera ideologia local, possibilitando, com isso, nada menos que o substrato rl'tira das ideologias o que lhe é próprio e oferece uma explicação para o
da herança cultural. A ampliação do poder de antecipa<,·ão, até o momento demento progressista do tipo que continua a ai uar historicamente, contido
concebido dC' fonna tão n'Strita, foi iniciada na obra Gei.1t dPr UtojJie IE'.ljJírito 11as obras magnas ela própria ideologia. O espírito da utopia está presente
da utopia!, 1918, de Ernst 'Bloch, mais precisamente com testemunhos, 11a predicação definitiva de todo grande enuuciado, na catedral de
ornamentos e figuras que até aquele momento haviam sido trntados Estrasburgo e na Divina cornédia, na música c-xpcctantc- dt· Beethoven e nas
totalmente dentro da n·alidadc, alheios a um ainda-não-sucedido, embora latências da Mi.isa l'm si menor. Ele cst:í no desespero cpw ainda contém o
fa<_;am parte ddc e est<:jam ocupados com a sua articulação. O desfrute ,mum nef'essa,iwn como algo perdido, e uo hino à alegria. Tanto o l1yril'
parasit,frio da cultura se <·onsurna por meio do rcco11lH'<'iinento da quanto o credo nas,·,·m de modo hem difrT<'nte no concTito da utopia como
mienta~;ão cada vez mais adequada para assumir nossa ickntidack e por urna cspcran<;a ,·omprccndida, mesmo cpw não tenham mais o reflexo da
meio do comprometimento com da: as obras da cult1u-a surgem mera ideologia situada numa c-erta época, justamente ut·ss<· caso. Dessa
cstrategic:arnente. Resta, todavia, a pergunta se e cm que medida a palavra maneira, a fantasia exata do aincla-não-cons<·ienle co1npl<'mc-nta o
e a provon-1ção utopia podem ou devem sc·1· transpostas, sem mal-cnkndidos c·sdarcdmcnlo nítin>, <'Xpondo o ouro que não foi afetado pela ágna-l'ortc,
cks11ec·c·ssál'Íos, também parn intenções e· interesses que de forma alguma e o cont<·údo hom, que pcnnanc-c·<' <·xtrnnamenl<' válido, vem à tona depois
pertencem ao passado, situanclo-s<·, nnnpktamcntc novos e atuais, ckutro de a ilusão ck <·lasse' e a ideologia de classe serem ckstn1íclas. Assim, a n1ltrn,1,
da ekvac;ão ela utopia à ciênc·ia oconida no socialismo. ll verdade <1ne a após o fim ela ideologia ck classe, para a <piai da pô<k até c·nt,10 s<'r mera
hislÓl'Ía da lenniuologia co11hece vár-ias dessas ampliaçôc·s do sentido de dccora1;ão, não so(h· nenhum outro pn:juízo além do próprio asp<·cto
um termo, com a subtraç:10 parcial cios significados negativos que ack1iam decorativo, a hannonizac;ão falsanwntc conclusiva. A hmc;ão utópica aITanca
a ele. A palavra romríntiw, por exemplo. Uma clifen·uciação bem maior foi os assuntos da cultura humana do kito pútrido da mera contemplac;ão e
efetuada entre os significados do c·oncc·ito ideologia. Com base nessa desse modo clc-sn>rtina sobre ,·umes de fato galgados o panorama
dilc:renciação, Lenin pôde chamar o socialismo de ideologi,a do prnlelariado ideologicamente clesimpecliclo elo conl<'lÍdo da cspcran~·a humana.
rn)(Jlucionári.o. E, apesar disso, pdncipalmc11te o poder de antecipação, com
o seu espaço aberto e seu objeto a ser realizado para a frente, que acima O rnconlro da Junçiio ulójJim, wm, os arquétipos
foi diamado de utopia wncrela- para diferenciá-lo do utopístico e da mera Um olha1· profunclo C:: comprovado pelo fato ck se tornar duplamente
utopizac;·ão abstrata -, ficou exduído da correção e da amplia(;ão abismal. Não só para baixo, que é a maneira mais fácil, mais literal de se
terminológicas, nos moldes em que estas ocorreram, por exemplo, com o aprofundar. Com efeito, há também uma profundidade pm,i <'ima e para
romântico no rmnantismo revolucionário, com o ideológico na ideologia a frente que acolhe dentro de si coisas abissais. Para trás e para a frente se
socialista. Isto é assim, embora sobretudo as áreas das utopias técnicas, sucedem então, co1no no rr10vimento de unia roda d'água, que, ao mesmo
arquitetônicas ou geográficas, mas também todas as que ao final giraram e tempo, submerge e recolhe água. A verdadeira profundidade sempre ocorre
giran1 en1 torno do "e1n-absoluto", do "propriarnente-dito" do nosso querer, num movimento de duplo sentido: "Submerge, então! Eu poderia dizer
st;_jam regidas tematicamente e por isso com justeza terminológica pela também 'Sobe!' É uma coisa só", clama Mefisto para Fausto. E clama no
rategoria funçüo utópica. Que fique claro: ciência e subtração do utopístiw lugar em que está para ter início um deleitar-se com algo que há muito não
liquidado, ciência e subtração da utopia ah!.trala. Porém, o que resta então existe, com Helena. Quem clama não é só Mefisto, o intrigante, o perigoso
- o sonho para a frente não liquidado, a doda spes a ser desacreditada senhor dos significados ambíguos: um sentido duplo e próprio clama por
:tpenas pelo bm·guês - pode ser <'hamaclo seriamente de utopia, numa 1neio de Mefisto -o das tão arcaicas quanto utópicas relações entre imagens.

diferenciação bem pensada e bem aplicada em relação ao utopismo. Em Assim, a função utópica muitas vezes tem um abismo duplo, o da submersão
c-111 111<·io ao da cspc·1 a 11c_-;1. Isso. por c:111, s< í pode .~ig11tliL11 e p IC' . .-111 p,11 lc, o p111a111t·11lc <·01110 <·scurid;'io. J\ própria cxpn·ss,10 rud,d)/111., o,·01n· pd.,
<;1111i11l10 para a cspcTa11<,-a fúi preparado dentro do quadro ;11 <.11< o. Mais pr i111<"ira vez em Agostinho, ainda como circunscrição explinttiva do rido,
precisamente, naqueles arquétipos que ainda tocam de ptrto l' plal{mico, ou seja, de toda forma genérica. Todavia, foi o Romantismo <JII<'
ocasionalmente restaram do tempo da consciência mítica como categorias p<'la primeira vez associou a expressão antiga com ocorrências h<'m
da fantasia, ou seja, munidas de um excedente que não é mítico nem dct<"tnünadas, como que compactadas, de teor conceitual convincente <'
digeiido. Logo, a esperança tem de suprir utopicamente, além das brilhante do tipo figuradamente objetivo. Dessa forma, Romeu e Julieta S<'
ideologias de significação continuada, também aqueles arquétipos em que 1ornam, para Novalis, o arquétipo do amor jovem; Antônio e Cleópatra, o
ainda rondam coisas não elaborndas. Ela tem de trazê-las para o lado da cio amor mais maduro, mais interessante; Fil<>mon e Baucis, juntament<'
utopia assim como, mutat·i.1 mutandis, a ideologia progressista-significativa é <'om sua cabana, são visualizados corno a imagem clássica do matrimônio
trazida para o seu lado. Aqui est,1 claro que isso não pode ser efetuado ;111tigo, já decorrido. De acordo com Novalis, decisiva é a extraordinária
apenas a partir de baixo, da submersão, mas esscndahnent<· a partir de consonância de todos os elementos nesses ar·qnétipos, que em Filemon e
ciina, da ,~são panorân1ica do ascender. Pois reít<-radarncntc se constata Baucis vai "até o presunto que pende enegrecido da chaminé da lareira".
que aquilo que foi rep1imido exclusivamente para baixo, o que pode ser ( :ontudo, mn cfrito bem maisdC'cisivo tinha o nimbo singular que se somava
encontrado no subconsciente é cm si ap<·nas o solo do qual brotam os ;', concordância dos clt·rn<·ntos, um nimbo como o que envolve paisagens,
sonhos noturnos e às vezes o veneno que pruvoca os sintomas ncun'iticos: <'<>m urna hem-sucedida arquitetura da sitmu;ão <· seu significado. A incipiente
esse embaixo pode ser subsumido amplamente no conhcdclo, não {- aurora atenção às scrndhan~·as existentes nos materiais dos contos, nos tipos de
ascendente para a frente, 1cm, portanto, no fundo, uma latência apenas ,·cmflito, nos tipos de salvamento, nos motir1os n·incidcntt·s muito eontribuiu
entecliantc. O esperado-inluído, cm contraposi<,'.ão, contém o tt·soltrO para identificar os arquflipos. A história comparativa da literaturn revelou
possível, de onde provêm as grandes fantasias diurnas, que, por· um longo uma profusão d<' tais elementos. Assim é, por exemplo, o motivo
período, não se tornam caducas. Esst· para-a-frente e em-cima não pode <·xtrcrnam<'nll" irnpr<"ssionante do n·conhecim<"nto I anagnórisú], que
ser subsumido no já conhecido e existente, tendo, portanto, 110 fundo, arqu<"tipicamcutc asso('ia materiais tão díspar<"s como José e seus irmãos
ama latf-ncia inexaurível. Quando ('Ont a po~·ão mágica dajuventmk Fausto na Bíblia<' o encontro de Electra e Orestes na tragédia de Sófodcs. Sobretudo
vê Jlekna em cada mulher, o arquétipo da beleza Helena se move ,, mitologia pa!'l'cia conter Iodas as situa<:ôc·s origin,frias e seu elenco. Isso
totalmente para fora do arcaico. Já no arcaico, ele se move para cima. de fato é um exagero ll<'fasto, bem ele acm-do c·om o asp<·cto r·eacionário
Porém, ele pode ser invocado unicamente a partir de uma posição utópica, dentro elo arcaísmo romfü1t ico. Niio obstante, as descri<,·ôes históric:o-míticas
<· é unirnmente a partir da visão panorâmica do ascender, não na submersão de Kad Philipp Moritz até as de Fri<"drích Crcuzer ck fato contêm uma
pura, que o utópico se ton1a ocasionalmente visível nos arquélipos por profusão de arquétipos, em virtude da tentativa ck categorização dos motivos.
semelhança. O que no orco do que já passou ainda é Eurídice, ela própria Ali eles aparcn:rn como símbolos. Principalmente Creuzer já fixa o seu
não tendo completado a sua vida, é unicamente Orfeu quem pode dizer, e caráter anp1ctípico i11confundivehnent<' c·m quatro rno1nentos: "o
é s6 para ele que se trata de Eurídice. Unicamente esse elemento utópico moment,1neo, o lota), o iusoncl,ivcl de sua origem, o necessário". E ele
possibilita, em albruns arquétipos, a sua citação fecunda, com os olhos mesmo esclarece previamente o momentâneo, também figurado-lacônico
voltados para a frente e não para trás, como já foi demonstrado na aparente mediante um arquétipo:
imb1icação dos jogos oníricos e na dissipação dessa aparência. Todos os
racionalismos desse tipo, inspirados nas mães como a.\ que ainda geram, Esse aspecto avivador e, ao mesmo tempo, abafador está associado a
mostram uma luz projetada a partir· da utopia, mesmo no Romantismo uma outra qualidade, a brevidade. Ele é como um espírito que aparece
com a sua nostálgica lâmpada sepulcral e subterrânea. Exatamente o que repentinamt>nte ou como um relâmpago que ilumina de vez a noite
nos arquétipos está em singular incubação é o que evidencia o seu caráter escura, nm m01nento que toma conta de todo o nosso ser (Creuzer,
inacabado. Porém, o calor produzido pelo processo do amadurecimento Symboli/; und Mythologi,e der alten Võlli.er I [Simbolismo e mitowgi,a dos po11os
não reside na regressio. Os pr6prios arquétipos já foram mencionados acima, antigos), 1819, pp. 118-59).
a propósito de C. G. Jung. Porém, esse arqui-reacionário, para quem
ademais o arcaico ocorre assim como se Timbuctu aparecesse em plena Creuzer chamava esses laconismos de símbolos no sentido cio
Zurique, invocou todo o fenômeno de forma completamente eITÔnea, Romantismo, como manifestaçôes de uma idéia. Teria sido rwn·ss,íl'io
apenas um tanto de hipóstasc de uma idéia desde se111pn· 111a11iksta para 111il11.1da pelo l<.0111.11111,1110 d<' <'lll<'lld<'r 111;il os ;1npwlipo.~ 11.1 ~11.1 1.-1.ic .1<•
que se vissem os arquétipos também na forma de alegoria e 11,'io só na ele , , Hll a lüm;iio ulopu·a. Esses arquétipos aln·lados nH-ra11H·11tt· ;·1 1cg1 ,-.~·""' •
símbolo. Pois as alegorias, em sua forma autêntica, ou St';ja, anterior ao l.11<'111 a utopia s<T voilada para trás, reacionária, até 111t·s1110 dil11vi;111;1.

Classicismo dos séculos XVIII e XIX, de modo algum são conceitos h11;io eles se tornam mais pe1igosos que a habitual cortina de 1'11111;1,:;1 d.1
desprovidos de sensibilidade ou aquilo que se prefere chamar de gelado e ideologia: enquanto a ideologia distrai apenas da noção de prcs<'llt<' <' d<'
abstrato. Ao contrário, elas igualmente contêm - no BatToco diferentemente •,11a 1·eal força propulsor.:t, os arquétipos que atraem para trás e ficam pr('sos
do que na Idade Média - arquétipos, até em sua maior parte, os da 11:1 fascinação retrógrada impedem, além disso, a abertura para o fü1111u.
transitoriedade e sua pluralidade. É exatamente na alegoria que surge a l 'orque nem todos os arquétipos são passíveis de tratamento utópico, mesmo
abundância dos arquétipos de cfrito poético, que ainda estão localizados q11e este seja auti-nlico e não nrn utopismo reacionário, como
na alterita,\ da vida nmndana, ao passo que o símbolo cst,Í associado de freqüentemente oco1n·11 no Romantismo. O pútho~ do mero arcaísmo pú('
ponta a ponta à unita,1 de algum significado, sendo por isso também que, .1 perder a esfera corno um todo, muitas vezes tão aniinada e, em grande

no essencial, é de que confrn" forma aos arquétipos religiosos ou forma ,·sfilo, luminosamente vigorosa na poesia e tamb{-m na filosofia. Como j.í
religiosa aos arquétipos. Foi por isso que Bachofen, um Creuzcr crescido e foi obse1vado, passíveis de tralanwnlo utópico sfü> unicamente os arquétipos
mn mitólogo absoluto, descobriu o fenômeno dos arquétipos dos povos ,·m que ainda ronda algo mio <'laborado at{- o fim, algo relativament<'
antigos e pela primeira vez procurou ordená-lo como st· estivesse inacabado, algo não anulado. É si111om,ítico qn<' juslarnc-ntc os arquétipos
completamente dentro da religião. Esse fenômeno se manifrston nas séries kudais acabados tenham sido os preferidos na regressão qm· correspondeu
heterista, matriarca! e patriarcal: nos ornamentos heteristas do junco e do .1 reação política, corno S<' o anpt<~lipo, o símbolo pelo qual- c·omo dizia o
pântano, nos matriarcais da espiga e da caverna, nos patriarcais do laurel Rorna11tis1110 - snnpn· s<· 1·ccoulwciam todos os poéticos ua idade mais
e da auréola solar. Essa classificação tão histórico-social quanto mílico- avan<:ada, fossl' apenas um abandono do passado e não lamhém (como a
natural viiia então a ser introduzida para os arquétipos como um todo. lomada da Baslilha) um c111hkrm1 do l'uturo, com hnH:,tO utópica autêntica.
Com isso, lodavia - abstraindo do aspecto hipotético das três séii('s -, des Por isso, 1wssc ponto comc<;a novarnente uma sepan1<;iio, para que
não dwgarnm a ser catalogados de modo ainda mais ahraugcnl<', 11crn na os verdadeiros amigos se n·co1il1c<:am e fiquem jm1los. Somente o olhar
sua forma e sua relação alegóricas nem na sua forma simh<>lin.>-n·ligiosa. utópico co11scgu<· encontrar o <Jll<' lhe é assemelhado. Qrnmlo a isso, ele
J\o 111<·11os n·l11zin,justamente em decorrf>ncia do trabalho do Romanlismo, lem mn <'n<·argo imp<fftanle, cm lugar ele promover a eliminação dos
11111 aspl·<·fo ntopicamente decisivo: apesa1· de sua consonância ornamenlos, pralicada pdo n1pitalisrno austero também t·m relação à
oti),{inalmente agostiniana com arqué-tipos no sentido das idéias plalônirns, 1·efkx,io. Os anp1é-1ipos <·orrompidos devem primeiro ser separados dos
anp1é1ipos nada ou pouco têm <'lll comum com estas e seu idealismo arquétipos 111opicanwntc- nii.o anulado!>, mediante a sua associação com o
puro, em última instância até transct'tU.knk. Eles são css<·n<·ialnwnh', como sucedido que se torna simplesmente antiquado. É evidente, porém, que os
j,í st· depreende dos ext"mplos mencionados, categorias situaciouais de arqué-tipos disponíveis, rcfcrcnlcs à situação de lihcnladc ou cl<- felicidade
condensação, p1incipalmente no âmbito da fantasia piclórico-poética, e luminosa, não cst;-io ligados ao já sucedido dessa fonna: eles escaparam
mio são como as idéias platônicas, da fantasia hipostasiada genericamente. deste, pelo menos são extratenitoiiais em relação a de. Aqui não é o lugar
Os arquétipos do Romantismo, ou melhor, na maneira como f<ffam para passar os arquétipos em revista. Como mais adiante será exposto, eles
concebidos pelo Romantismo, eslavam ligados às idéias pla1ô11icas pertencem a uma nova parte da lógica, ao catálogo de calcgorias da fantasia.
unican1ente pela chamada remc1noração, ainda que de n1odo a Cmno vimos, eles se encontram em todas as grandes rria1;ôes poéticas, nos
caracteiizarigualmente as suas difrrcnças em relação às idéias inalteráveis. mitos, nas rdigiôcs, <.', mais precisamente, pertcnc·em apenas com a sua
Para Platão, a rememoração, a anâmnesis, era aquela do estado anterior pareda não anulada a urna verdade, a um retrato velado de conteúdo~
à existência no mundo, quando a alma se encontrava no céu arquetípico. tendenciais utópicos no real. Um archetypusde tendt':nria-latê:ncia não anulada
Para o Romantismo, em contrapartida, a rememoração se move sob um manto de fantasia é o país das maravilhas, é a luta conlra o dragão
historicamente, remonta a eras primordiais dentro do próprio tempo, torna- (São Jorge, Apolo, Siegfried, Miguel), é o demônio hibernal que quer
se regressão arcaica. Todavia, o fato de esta regressão ter sido possível, matar o jovem sol (Fenriswolf, Faraó, Herodes, Gessler). Um archetypu!>
t·mhora não mostre qualquer proximidade com o platonismo das idéias assemelhado é a libertação da donzela (da inocência como tal) mantida
cckstiais, ainda assim demonstra uma possibilidade - especialmente em prisão pelo dragão (Perseu e Andrômeda), é a era dos dragões, o
pníp1 io país dos dragôes, quando de aparece como <·lapa 111·1, :,s.11 i., p;11a
se chegar ao tiiunfo final (Egito, Canaã, reino do Anticrislo a1111·.~ do início ., N,111/a lllfl/!/Ut p,11.1 111111;11" 11111a pn:a da fanlasia i11q1H·stio11.1v('li1l<'111<"
da nova Jen1salém). Um archetypus do mais elevado grau utópico é o sinal l111111a11izadora - vak-s<· quase exclusiva1nentc de alegorias <· sí111holo~
da trombeta no último ato do Fidélio, concentrado na ouverture de Leo- .11 <·aicos: o líder e rei sacerdotal, o reino da noite, o reino da luz, a prov;1
nora, que anuncia a salvação: a chegada do ministro (ele representa o da ,ígua e do fogo, a magia da flauta, a transformação num sol. N,io
Messias) corp01ifica o anhetypus do apocalipse vingador e redentor, o obstante, todas essas aleg01ias e símbolos, entre os quais há alguns c111
antigo archetypu.1 da tf'mpestadc e do arco-Ílis. Um archetypus dos tempos <ujos át.Iios outrorn ucnhurn amor humano fora cantado, mostraram-se
p1i1nonliais, mas ag'Ora com urna referéncia bcrn concreta, f'stá contido .1proveitáveis ao se1viço do esdarc-cinwnto, sentiram-se realmente em casa
nesta afinna<;ão de Ma1x: "Quando todas as condiçôcs internas tiverem na música feé1fra de Mozart, como seu templo não demoníaco. A.;;sim, a
sido cumpridas, o dia da rcssurrci(:;ão da Alemanha será anunciado pelo 1unção utópica proclllliva extrai imagens tambhn do sucedido que não
canto do galo gaulê-s". Nota-se nestes exemplos de modo puramente caducou, na nwdida em qne essas imagens, apesar ele todo o fascínio nelas
imanente que, no final, nem é possível fixar o aspecto utópico dos arquéti- nmtido, continuam aptas para o futuro num sentido ambíguo e se tornam
pos no arcaísmo. Ao contr,irio, ele migra de modo exlrcmamentc provei- ,proveitáveis como expressão parn o ainda-não-sucedido, para o nascer do
toso ao longo da história. Sobretudo também porque nem todos os arqué- -;oi. Dc-ssa maneira, a função utópica não somente descobre o excedente
tipos possuem uma origem arcaica. Alguns en1ergirarn ab origine s6 no de- como algo qu<' lhe pertence mas também ren1pera ela lffofundidade
correr da história, como a dança sobre as ruínas da Bastilha - um arquéti- .,,rquetípica de sentido ambíguo um elemento de si mesma, uma antecipação
po que toca de forma bem nova, distinta da arcaica ciranda dos lwm-aven- .1rcaicamcute posicionada de algo ainda-não-<·onscic-nte, aiuda-não-exitoso.
turados, em virtudf' de conteúdos totalmente novos. Sua música é a Sétima i•alando por meio <k um arquétipo dialético: a fü1cora que aqui submerge
sinfonia de Beethoven, ou seja, nada que pudesse combinar com prados de .,1é o fundo é, ao mesmo tempo, a â11cora ela <'spcrnll(:a. O que sub1nerge
asfódelos, tampouco com festivais orgiásticos de primavera nem com festivais nmthn o <1m· asn:nde, pode nrnl<·-lo. O que ocmn· com a refrricla natureza
dionisíacos. Mesmo arquétipos de clara origem arcaica se ffnovaram dupla, apta para a utopia, mostra-se <' c·ompr-ova-sc-, por· fim, quando os
constantemente, passaram por variações em decorrência de refonnula(,'.Ões ,irquétipos passam daramcnt(' para as cifras com o carát<·rdc- ol~j<'t.os, cuja
históricas: até o sinal da trombeta no Fidélio dificilmente produziria seu imagem desde qual<p1er modo toma1;un da natureza. l~ o caso de numerosas
efeito autê-ntico e penetrante sem o ataque à Bastilha, que constitui o modelo 111etáforas condensadas (";íguas paradas são prohmclas", "todo cume alto é
e o pano de fündo incessante dcss,1 composição musical. Somente por meio solitário"), é o caso do arquétipo da tempestade e do arco-íris, é o caso
dele o arquétipo da tempestade e do arco-íris, ao qual se referem o sinal e justamente do quadro ck luz e sol da Flauta 11uígira. Arquétipos desse tipo
a salwH;ão, recebe uma origem totalmente nova: ele passou do mito astral de modo algum são formados apenas com material humano, quer do
para a his161ia da Revolu(,io. Ele atua agora, não obstante sendo arquétipo, período .-uTaÍC'o, quer da hisló1ia posterior. Eles 1·evdam, antc·s, uma porção
sem qualquer vestígio de arcaísmo. Assirn, no final das contas, nem todos de escrila ambígua da própria natureza, um tipo de ci[ra real ou símbolo
os arquétipos são apenas condensa<;ôes figuradas de alguma expcrifa1cia real. Símbolo real é acp1ck n~jo ol~jeto sig-nilicaule ainda está oculto para
arcaica. Deles sc'mpn· brotou um rebento que lhes multiplica o conteúdo. ele mesmo, dentro do ol~jeto real, e não, por exemplo, apenas para a sua
O qne será, então, quando ocmTer a irrupção utópica tanto nos arquétipos :,preensão hmnana. Traia-se, portanto, de uma cxpn-ss;"io do existente que
arcaicos quanto nos histmicamcnte recentes, a rnudança para uma C'tm~'.ão :1inda não se manifestou no próprio ol~jeto, uma expressão do que é
versada na libertaçâo da e.1jJerança arquetipú:amente encajJsnlaáa. Se o :-.ignificado no objeto e por meio do o~jeto. Em relação a isso, a imagem
arquetípico fosse totalmente regressivo, não haveria arquétipos que do símbolo feita pelo ser humano é apenas representativa e ilustrativa.
pudessem lançar mão da utopia no mon1ento crn que ela recorresse ades. 1,inhas em movimento (fogo, relâmpago, figuração sonora e assim por
Não haveria qualquer poesia com símbolos antigos e cunho progressista, <fiante), fig-uras de objetos distintos (a forma da palmeira, a forma do gato,
comprometido com a luz. A fantasia se1ia exclusivamente regressio. Sendo , , rosto humano, o estilo do Ciistal egípcio, o estilo florestal gótico e assim
definida de modo progressista, ela teria de se precaver de todas as imagens, por diante) caracterizam essa cifra real. Assim, urna parte do mundo
e também das alegorias, dos símbolos, provenientes do antigo chão mítico delineada com p1·ecisão surge como grupo simbólico de um objeto, cuja
da fantasia. Em cada caso, ela teria apenas um intelecto de escola técnica 111atemática e n~ja filosofia ainda f'Stão igualmente pendentes. A chamada
em seu favor, ou seja, contra si,já que ele não é capaz de sonhar. Porém, 1coria da forma é apenas a sua caricatura abstrata, pois as cifras reais não
·,;10 estáticas: são figuras em tensão, fonnas processuais tendenciais e, por
1·,ss;1 via, sohn·l1Hlo si111h<íliras. Isso kva ;'is inl<'díanH's do p1nlilt-111a d<' ,1 1111·1.1 iln'iao q11a11lo ;10 valor s1· c11co111ra la11lo tl<'SII' co1110 11;1epwl.1. l'o
11111a l<'oria 11tópico-0bjctal das figuras, ou sc:ja, 110 final, do c.sq111·( ido pro- 1 ,·111, ao passo qu(' {'SSa il11s,io pode S<T <·01Tigida empiri(·a11u•11f(· 1·111 s1·
binua (pitagórico) de uma matemática qualitativa, de uma filosofia da t 1;1la11do das metas imaginárias habituais, isso é significativa111<·11te mais
natureza de teor qualitativo renovado. Neste ponto, contudo,já se evidencia , 0111plicado no caso dos ideais, justamente por causa dC' sua exigência
que também os arquétipos objetais, passando a ser cifras reais, assim como ohjeli(icada. Se um o~jeto [ Gegen..,land] aparece como ideal, só exisl('
se encontram no gigantesco antiquário natureza, mais ainda na obra humana 1u 1ssibilidade de cura do seu fascínio reivindicador, por vezes sedutora-
bem acabada, podem ser esclarecidos apenas pela fürn;iio utópica. Todavia, 1111·11te reivindicador, mediante cat;-Ístrof<·s. E ainda assim nem sempre. Exist('
os arquétipos sempre tt'-m a sua cxistên<"ia mais precisa na história humana, ., desgraça de uma idolatria do amor, qm· nmtinna a exeffer seu fascínio
na medida em que os arquétipos são o que pod<·m ser: concisos ornamentos 111<·smo após discernido o ol*·lo. À., vezes, ideais políticos ilusórios conti-
de um conteúdo utópico. A íinu;ão utópica arranni essa pon;ão do passado, 1111am a ter influf>ncia mesmo após cat,ístroks <'mpfricas, como se fossem
da reação, atf, do mito. Toda nrndan<:a de finu;ão que oco1n· dessa maneira ideais anth1ticos. Desta forma, 11111 podei· própl'io p1-o<·cclc da formação
revela o aspecto não anulado dos anp1étipos, alterado a ponto de poder dos ideais, um podei· que, nrnnido de pulsües muito mais obscuras, im-
ser reconh<'cido. pregna a convi('(:ão darn <· madura do ideal <·omo sendo algo perfeito. De
111odo que a fonna<,,-ão dos id{'ais pode conter, por seu lado n.'io livre e
O n1cm1fro da júnçüo nfôjJica com o., ideai~ il11só1io, e111i1H·11telll<'lll<· muita m;í <·011scii:'·ncia, nmilo suhn>nsdcntc arcai-
O olha,· franco e ah<Tto é comprovado pelo fato de s<· voltar sobre si ('O. Algo parl'cido s<· apr<'S('lllou na l'<'Jll'l'ssão IH> sentido freudiano, algo

mesmo. Diante dos seus olhos paira rnna meta, que, desde a juventude, 11m tanto dikr<"nl<' na psicologia do podei·, de AdhT- 110 que se refere à
raramente {- penlida de vista. Não estando à mão, mas desafiando ou for:ma<:ão su1><·1Tolllp<"11satória do id<"al 11<ffl<"adoL Em Freud, o superego
reluzindo, da tem o efcilo de uma tarefa ou um ponto norteador. Se a <~ a fonte da fonna<:ão dos i<kais, e o próprio s11p<"rcgo, rnio obstante todas
nwta parece conter não só o desejável ou o alm<';jávcl mas também o pura ;1s amca<,,-as do dev(-r-fazer que p,H'te ckk, seria o pai que continrn, agindo.
e simplcsm<'nlt' pt'rfcito, ela recebe o nome de ideal. Toda meta, alingível O eu está para o supen·go assin1 como uma l'ria11(,'a ('Sl,Í parn o seu pai e a
ou não atingível, delirante ou objetivamente sensata, preeisa nas<'{')' primeiro .sua m:i<': os mandanwntos destes continuariam ativos no <·u icl<-al, cm cada
no espírito. Porém, a meta imaginá1ia ideal se clist111gm' da meta habitual mandamento ideal, <' exercem agora, como co11s(·ii:'·1Kia, a <Tns11ra moral.
justmnenlc pelo acento na pcrleição. Quanto a esta, uão p(){k haver Porta11to, essa teoria do ideal conduziu exclusivamente para tnís, para o
qualquer <·oncessão, ou do contrário se n·m111ci,1 ao alnH:j;1r e ao querer pai, <', ocon·e11do uma escavação adequada, para o r><·ríodo ckspótico-pa-
ativos, ou estes são distraídos de modo ast11ta111e11tc empírico, quando a liiarcal como 11111 todo. Conseqüentemenle, <·111 Freud, todos os traços
concep<:ão de contra-argmnt·nlos empi1icam<·11lc imperiosos penetra na não anwaçador<>s e huninosos do ideal foram omitidos, e ele f'oi totalmente
meta imaginária. Em contraposi<;ão, a mda i111agimí1'ia idntl, t·m sua pró- afunilado 110 aspecto moral. A teoria da su1><·n·om1><·11sa(;;"ío, d(' Adler,
pria condição, atua incessant<'mcnte, uma decisão da vontade direcionada procura <·xpli<·,\l" os traços propriamente luminosos <', ao mesmo tt·mpo,
para ela é irrevogável. E ela o é mesmo <p1t· não seja cumprida, pois, ela só está voltada para o passado em vista dacptilo que o ideal IH>l'teador
justamente por causa da iITevogahilidack de seu teor, o não-cumprimento pode superar, cm vista da antiga "situação de Peq11t'no Polegar". O ideal
é acompanhado da m,í c·onsciôncia, ou ao m<·nos de um sentimento de nortcador 011 do caráter pessoal não seria aqui uma meta 1·t·111e1norada e
renúncia. Assim, o ol~jdo [ G1gerisland] 18 da rq>1-csentação ideal, o ol~jeto incutida, mas de escolha relativamente livre: os snes humanos chegam a
[ Gegenstandl ideal, age ele modo exigente, apairntemente possuindo um uma finalização de si mesmos trocando a máscara do caráter pela máscara
querer próp1io que é dirigido ao ser humano como um dever. Tanto a ideal, para atingirem um sentimento de superioridade. Cerni mlo, de acordo
meta imaginátia habitual como a do ideal revdam um caráter de valor, e com essa tc·oria, todas as imagens ideais são novam<'nte limitadas às morais
e, por fim, às da vaidade pessoal. Ideais mais o~jctivos, como por exemplo
18
os artísticos, estão totalmente ausentes. Nem os ideais alternativos da
Bloch passa a usar, ao lado do lc-rmo Objeltt, que designa o "objeto em si", o "o~jeto propria-
mente dito", também o termo G,•gemtand, referindo-se ao "objeto do conhecimento", ou condução correta da vida que chegam até nós vindos do período pré-
s<ja, o objeto como se apresenta ao conhecimento. Como não f possível fazer uma distinção capitalista, como solidão ou amizade, 11ita acti11a ou vita contemplativa, têm
lerminológica coerente entre os dois termos na tradução para o português, as ocorrências,
lugar nessa pura psicologia da concorrência. Da mesma forma, nessa
rdativarnenle poucas, de Gegemtand serão assinai.idas com a aposição do termo original
entre colchetes. limitação a um modelo norteador puramente pessoal, situações ideais,
paisagens ideais permanecem não apreendidas e sem la,. Assí111. F1nul <· 11nil111111a cxi~l-11< ia, 1nas, invcrsa1nc-ntc-, é exigido, mais prc-"is,1111<·111(' 11.1
Adler apenas caracterizaram o fascínio opressivo que pode estar na has<' 11 i 11clacle postulada do incondicional: liberdade, imorlalidack, D<'11s. 1);i
da formação dos ideais: naquele, o fascínio do pai; neste, no mínimo o lll<'Sllla forma, o ideal aparece con10 esperança, ou seja, como o IH'ttl
fascínio da inferioridade. Tampouco está aberto o percurso que conduz l'!'nladeiramentc supremo da razão prática. Este constituiria e111iío ;i
dali tanto às qualidades do excedente quanto às imagens do excedente. , i11culaçã.o da virtude com a hem-aventurança, a realização (ainda 'Ili<'
Tudo se restringe ao dever-ser: mais da metade da imagem-alvo imaginada :-.<·mpre aproximativa) do reino de Deus na terra. Depois, o ideal apar<'c<'
do querer-vir-a-ser é antes suportada que esperada. 11ovamentc na estética kantiana: como o ideal da perfeição segundo .i
Todavia, com isso não se esgota a vontade que levanta os olhos para natureza, ou seja, scn1 urn bcn1 suprc1no, neste caso e1n oposi<;ão
as torres e também as escala. A fonnação de ideais de modo algum está 1·xtremamcnt<' instrutiva ao ideal da pressão moral. Kant volta as costas
limitada ao dever-ser e ao fascínio. Ela tem o seu lado mais livre, mais para este na art<', pois ele q11alq11cr modo, 11a arte·, o dever-ser sempre S<'
claro. Esse lado mais claro também apn·senla lixtcs negatividadt·s: as da 1or11a trivial: existe urna étic-a troV<:jante, mas - ('Ili correspondência a ela-
substituição IEwtlzl, da bazófia, da abstra(,'ão, às quais no século XIX ainda ;1pcnas urna estética pedante. Kanl n;'io quer saber dela: no seu caso, o
se somou a falsidade do ideal. Estas, porém, nada têm a ver com os gênio artístico uão está s<'parndo de sua mola prop11lsora natural, como
momentos obscuros ou sinistros da fonnação de ideais, 11e1n <·om o dever- ocorre com o S<'J' humano mo1·al. /\o co111drio: o g<"nio "dita as regras"
ser de cima para baixo, nem con1 fascínio, pn·ss,'io do sup<Tcg-o, voltar-se justame111e "como 11at11r<'za", <· o gi·nio é uma "i11t<'ligi·11cia c1uc age como
contra a criatura pura<' simplesmente. O que ª<JUi snluz é, antes, a pr·ópria a natureza". Todos os embelezamentos f'cilos c·m confonnidaclc com o ide-
/Jerfeh·üoquc paira num nível elevado. Os caraclncs livn's do sonho diurno al est{-tico são cldinidos como "corporilicaç,'io pcrféita d<' uma idéia num
são impressos nesse lado mais claro, cspecialme11tc 11<> caso da ida até o único fcufüneno". Portanto,juslamentc- em Kant, 110 mcstn· do ideal, for-
fim, em que tudo se desenrola de 1I1odo hem infinito. Mesmo se a mal, mas por isto mc·smo especialmente radical e abstrato, a pnf<'ição se
verdadeira ida ao ideal 11;10 for ernprecndida 011 se n·st1ingfr à sua imagem, ramifica c111 Ioda <'ssa multiplicidade, de acorclo <·c>111 as suas difer·entes
corno embarque parn Citerns - que, além disso, {- um ideal puramente faces, clesd<' a do fasdnio até sobretudo a cio brilho elas estrelas, como uma
erótico--, ainda assilll s<'mpre é intencionado um fim, e este é um fim cspna11<,;a cio htl 11ro. A sua compreensão estética, a "n>rporilic1<,;:10 perfeita
perfeito, pois a pc1fci<:ã<> não sú pode sn mais facilmente sentida: da pode de uma id<~Ía 1111m 1ínico fenômeno",já passa ele- 11111 idealismo formal para
inclusive S(T mais convidativarncntc n·fktida que categorias c11lt11rais um idealismo ol~jclivo. Em últjma instância, esse coIHTito de ideal tange à
mcclianas. Por isso o ideal sempn· foi fonnulado de modo mais claro que id{ia, na mauc·ira como ela foi transponada por Ar·istÓt<'ks da forma
as ideologias (o que se eutcnde por si mesmo, em virtude do car;íter platônic-;1 genérica, situada acima da sua manil'<-slação, para a forma
interessado no ocnltanwnlo, própl'io ela ideologia), mas também de modo finalísti<·a ou c-ntcléquia, no interior da sua maniksta(,i.o. A enlcléquia,
mais claro que os arquétipos. Até agora, não existe uma especificação e um que, por suas causas colaterais inibidoras, niio nmseguc ass1111Ji1· sua forma
catálogo elos arquétipos, ao passo que dos ideais há muitos - e estes, no pcrlc:ita, é visihilizada, para Aristóteles, pela csculturn e lamb{-m pda poesia.
sentido dcsccncknle, chegam a termos como dona-de-casa ideal, barítono A representação estética do ideal é, então, aquela que, ao mesmo tempo,
ideal de Bach e semelhantes, enquanto no ascendente chegam ao ideal do accTta por imitação e embeleza de acordo com a cntd{-quia, isto é, aquela
bem supremo. Há ideais norte adores da vida correta fo1·ternente que mostra o que deveria ocorrer em couJórmicladc com a natureza da
contrastantes. lfa uma teoria da ponderação dos valores, uma te01ia dos coisa. Daí a famosa afinnação de Aristóteles ck <JII<' o d1~mia seria mais
nitfrios do ideal, ricamente nuançada, que vai dos sofistas e de Sócrates lilosólico que a historiografia. Por fim, esse rnn•Íln ele pe1fei~·ão elo esteti-
até Epicuro e o estoicismo. Em Kant, o ideal aparece em todos os sentidos, camente ideal que impele até o fim pod(· S<'r vinculado, tanto em
tanto no da pressão qua1ll'o no da unidade da orientação finalística e no da Schopenhauer quanto em Hegel, à "coq>orilirnção pnfeita de uma idéia
esperança. Kant designa o próprio filósofo <·omo um mestre do ideal e a num 1ínico fenômeno" de Kant. Hánrnito de Aristóteles em Schopenhauer:
filosofia como uma instn1ção no ideal. l Jma vez mais como pressão, como
afronta, o ideal aparece no imperativo cat<'górico da lei moral: a dignidade Pois, dependendo de quão bem-sucedido é o organismo no domínio
do ser humano, que exige respeito nessa ki, encontra-se em oposição a maior ou menor sobre as forças naturais que expressam os níveis mais
todas as pulsões naturais. Porém, cm sc-guida, o ideal aparece em Kant profundos da objetividade da vontade, ele se torna uma expressão
como força de orientação finalística, ck tal modo que ele próp1io não faz mais perfeita 011 mais imperfeita de sua idéia, isto é, está mais próximo
ou mais distante do ideal, ao qual, no seu gênero, att ih11i ~e-., hdeza 11'1 nígraclo pdo pai 011 ;1i 11cla as i111ag<·11s lixas d<' 11111a s11pl'n 011 q H · 11.~;1«. ,1,,
( Werke, Grisebach, 1, p. 207). 11ic-ra111C11tc imitativa, o ideal contém urna antecipa<,;ão muito mai!-. 14(·11111·11.1
1111<· a maior parte dos arquétipos. E a função utópica traz 11;io l.111to :,
E mais adiante, aludindo claramente a uma função utópica (na está- <"dosão do ideal, mas a sua correção, em virtude da mediação de co11<·1 ("los
tica faixa limítrofe do gi·nero): movimentos de perfeição no mundo, da tendência material do ideal.
Todavia, o que resta além disso, interior e ainda mais exterionm·nt(',
Somente assim o grego genial pôde encontrar o protótipo da figura são apenas grandes palavras. Demrr~fazet; exigência e pressão pertencem ao
humana e o estabeleceu como cânone da escola, como escultura. ideal como fascínio, mas, como foi observado, a bazófia, o ab.\tmlo
Inclusive unicamente em virtude de tal antecipação<" possível a todos descomprmnetido, o imobili.111t0 (Ú1tórir:o o ameaçam em sua liberdade ('
nós representar o lx'.lo em cada lugar em que a natureza fói realmente perfeição intencionada, ao que por fim ainda se somou a mentira, uma
Jx,m-sucedida ao nii-lo. Essa antecipação<" o ideal: trata-se da idéia na contribuição do século XIX - o 1w1dadeiro, o bom e o belo como ocas palavras
medida cm que pelo menos metade dela {- n·c·onhecida a jn--iori e na burguesas. Mediante a conselheira come1-dal Jenny Treibel, nascida
medida em que se torna pr,ítica para a art<', complemcntarmentC' vindo Bürstenbiuder, Fontane 19 descrl'vcu uma hlu-gl1<'sa que tem ideais ('
ao encontro do que<~ dado pela natureza a J;osltriori (p. 297). representa à altura sua c·Iasse, e mesmo todo o seu entorno: "Eles liberalizam
e sentimentalizam constanterneute, mas é tudo farsa. Quando chega a hora
lkgd pennite que os ideais apan·çam unicamente na ar'I<' e· não no de tomar posi(ão, o que se ouve é: ouro é tnmfo - e nada ali-m disso". Na
restant<' da realidade, muito nwnos na sociopolítica: nesta des são, para o maior parte dos seus dramas, Ibscn ndtiva a paixão de mostrar que os
filósofo da rcstam·,H:ão Hegel, unicamente quimeras de uma perfeição propalados ideais burgueses nada mais tfan c·m <·onrnm com a práxis
imaginária. Em contraposição, para ele, a arte, como artigo de burguesa. A i:a.1a de bonn-a.1, Fanla.1ma.1, O /mto .1elriagnn são puras variações
contemplação, não tem outra coisa como substrato além de ideais, simh6lico- do tema "palavra <)('a: ideal". E 11;10 sc,ia ue<-csséÍ1io muito <·sforço para
orientais, clássico-gr·egos, romântico-ocidentais (honra, amor, fidelidade, reesnevcr essas J><·ças profundam<·ntc séiias, quase tr..ígin1s, como comédi-
aventura, fé). E, mais que isso, sua manifestação estética demonstra conter as. Em O /mio .1td11agem, Gregers W<'d<' {- precisamente o Dom Quixote dos
a memória de Aristóteles, a da enteléquia: ideais burgu<'S<'S, <'lll meio a um mundo ln11-gt1ê-s decadente,<· o cinismo de
Relling, ao designar· css<'s ideais não só corno mentiras mas também como
A verdade da arle, portanto, não deve ser mera exatidão, à qual se m<'ntiras vitais necessárias ao ser humano commn, nem mesmo é apenas
limita a mera imitação da natun·za, mas o exterior deve se harmonizar cínico: o que de· faz é simpl<'snwnte diarnar pelo nome a fraude domingueira
com um interior qm· é harmônico <'Ili si mesmo e justamente por ser do ideal burgui·s tardio. O limite disso é o fato d<' o próprio lbsen ainda
assim pode se revelar como ck m<·smo no exterior. Fazendo com que acffditar, <Jn<·n-r acr<'ditar nos ideais lmrgucscs <· tentar apresentá-los, nos
remonte a essa harmonia com o seu verdadeiro conceito aqnilo que dramas postcrion·s a O /}(J,fo selvagem, de tal maneira qu<· a crítica de Relling
foi manchado pela casualidade e <·xterioridade no restante da não os ati,~ja. Não havia novo mnndo nem <·m Fontanc n<'rn cm lbsen. Em
existfaKia, a arte lança fora tudo aquilo qu<:>, no fenômeno, não vez disso, foi imanentcmcnte denunciado o velho mundo com sua despro-
c·orrcsponde à harmonia e só mediante essa purificação faz surgir o pon;;ão entff temia e práxis, com sua hipocrisia profundanwntc enraizada.
ideal ( Werhe, XI, pp. 199 e ss.). Para discernir isto, basta um realismo crítico, não há necessidade de qual-
quer investigação ideológica nem mesmo de uma fün~·ão utópica. Esta,
Como se pode ver, aqui o ideal de forma alguma é considerado corno porém, certamente é necessá1ia com sua tendhKia material assumida, para
indiferente ao real corno tal, tampouco como maquiagem insossa (o que que não se considere o ideal como necessa1iamentc ligado à fanfarrona
chegou a afirmar a contraposição fraudulenta entre poesia e prosa, por existência burguesa, para que possivelmente ele possa ser tanto melhor
fim entre cultnra e civilização). Porém, o que se tem em mente é um grau relirado de seu modo de vida pregresso como um todo: da abstração, do
de realidade mais intenso, o da respecliva perfeição intencionada realiter
no processo de manifestação, ainda que, em Hegel, essa estratificação em
1• Theodor Fontane (1819-98), escritor alemão, publicou a novela Frau Jenr,_~ Treibel ,·111
nenhuma parte seja admitida como se refe1indo a um realiter ainda-não- 1892. Con,dheiro comercial era um antigo I ítulo honorífico conferido a financistas e industt iais
sendo. Apesar disso, onde não estão fazendo das suas o superego, o fascínio alemães especializados em assuntos econômicos e comer.-iais.
imobilismo. Em primeiro lugar, da abstração, que esl,Í ;u·i111a ih, n1isas, 1·11t;10. 1111 seu ponlo de I cali1:a(,'ÚO, de era de !"ato apenas o I cvc1 so d.i
deficientemente genérica, pairando sem força. Ela é essencial11wnle fo1·- mlinita não-n:ali:1.;u.,•;l(>, da paz total no mundo - é o que se dá cm I kg-<'I. 1:•,
mal, seu conteúdo se subtraiu à verdadeira vida ou se defronta com ela venlade que aqui desaparece o aspecto infinito da aproximação ao ideal,
diretamente nas grandes palavras ocas. A-;siin, pelo fato de os ideais não se mas com isso também qualquer aproximação em relação ao ideal por m<·io
mediarem por nenhuma tendência, somou-se à abstra(,"ão o imobilismo da obra humana. O processo do mundo como tal se torna auto-realiza,,;úo
não dialético. A5 duas coisas intensificam a ilusão de valor. Então elas são dos propósitos ideais nele implantados, e o ser humano é men)
apoiadas por urna postura que guarda os ideais no armál"io da prataria instrumento auxiliar e, por fim, sendo filosófico, é até mero espectador
para edificação sempre idêntica. _Juntos, a ahstrnção e o imobilismo de ideais que, presumidamente, de qualquer modo já se realizaram.
compôcm os chamados princípios ickais, como pontos nortt·adores de Portanto, tudo isso mantém o ideal impotente, indiferente se numa
palavras e não de ações. Algo assim formal flon-sn· sobretudo na Inglaterra aproximação infinita on numa c·onconlância demasiado grande com o
e na América do Norte, onde passa a ser religião constituída ele chavões mundo, como sendo nm mundo pretensamente ideal. Ern ambos
sem vida. A Declaração de Independência norte-americana, depois a predomina o imobilismo do ideal com suaj.í acabada perfeição em si. E,
Constitni(,"ão norte-americana, contêm os seus rights of life, liberty and the nesse ponto,{, justamente contra esse estar-pronto que a li.mção utópica
fnusuit of happines!:>, seus principies of liberty, fu!:>tice, momlity and law ainda a ten1 de ser comprovada. Trata-se, no entanto, de um tipo de cmnprovação
partir do seu lado cidadão (não devendo ser esquecido, como basic fJrinâple, difcrent<' daquela que S<' rcf'cre aos arquétipos, um tipo de teor muito
o fHiru:i/Jle of/JrojJerty, não tão piro tecnicamente iluminado). Mas agora tudo mais assemelhado, ainda <pu· tarnhém com muito mais briga entre irmãos.
isso se e1Kontra muna at1nosfera enrijecida e, por causa da abstrn(,",l<> e do Exatam<'nte a j1erfáçií,o 11i.\ada, a sua antccipa(ão pkuamcntc admitida, é
imobilismo formais dos dt·mais princípios, a única coisa real, o baú.!' fJrinciple o que torna o idC'al acessível ;1 abordagem ntópi<-a. Os arquétipos
ec·onômico, pennil<' <pialcp1er·oportunismo quanto ao conteúdo, sobretudo encapsularam o aspecto autccipaclor, e este prcdsa ser kvado à eclosão.
ao da libnty. O ideal assim constituído não pode e não quer se distanciar Os ideais, c·m contrnposi(ÜO, mostram-no abstrato 011 imóvel, e de precisa
l<'orinunente desse oportunismo de seu conteúdo que chega até à sua apenas ser con-igido. Os arquétipos frcqüentemc11te mostrnm a esperança
inversão compkta. Não pode por causa da sua generalidade fonnalmente no abis1no e o abismo no an·aico. Assim, eles s,'io como os tesouros
desencaminhadora e não quer por causa de sua rigidez desp1uvida de subrn<Tsos no pr6p1·io mito, que em algum dia de São João emergem e se
crnTgia. Quão grande nào terá sido a falta de energia na Alemanha, na expôcm ao sol. Os ideais, em contraposi<;ão, desde o princípio mostram
Alemanha de Lutero, da dupla c·ontabilidade ou do dualismo de obra e fé. a sua csperan<:a cm plena luz do dia, numa abóbada que se cst<-'nde para
Nos países calvinistas, o ideal pelo menos continuou sendo verbal, um ponto cima. A renovaçã.o da maioria dos arquétipos tem a seu favo,· um verso
norteador fonnalnwnl<' dernocnítico para maneiras de agir às quais logo de Môrikc referente a Orplid: "As águas do passado chegam n:juvcnescidas
se rcmmrion. A hipocrisia se constitui também como tributo qm· o vício à tua cintura, criança." Em conlrapartida, o aparecimento de um ideal
paga à virtude. Na Alemanha, em contrapartida, o ideal pairava tão acima tem a seu favor o apelo diurno formulado na Pippa, de Hrowning: "O
elo mundo que nem cnt rava em contato com ele, a não S<T no íluxo ck tuas horas, longo, azul, claro, fluindo festivamente, eu sinto que
distanciamento eterno. Esse ponto norteador se transfom1ou em estrelas prolegt· a terra com fon;a <' a alwnçoa; tudo será meu". Certamente
que estavam muito distantes para poderem ser alcançadas, ou seja, estn:las lambhn há arquétipos que não ti:m sua casa no abismo, sendo que a
da veleidade e não da ação. Daí surgiu a imagem-fantasma da mera dança sobre as ruínas da Bastilha propiciou o mais forte exemplo disso.
aproximação infinita em relação ao ideal 011, o que significa a mesma coisa, E, inversamente, um arqué'tipo corno a imagem materna cm Ísis-Maria é
sua transposição par,1 o eterno almt:jar por de. Desta forma, o mundo concomitantemente um ideal profundamente enraizado. Todavia,
ficava na pior, os ickais morais pairavam no ermo celestial, os ideais estéticos geralmente o ideal vive tão-só na linha de frente, tanto que sua imagem
ne1n eram mais cobiçados, mas apenas s<· sentia contentanwnto por seu aperfeiçoada parece antes demasiado longínqua do que demasiado
esplendor. A-;sim Iâcil é o salto do quern inli nito para a mera contemplação. submersa. Não é sem razão que as utopias abstratas, por serem abstratas,
Pois também o eternamente aproximai ivo é contemplação, apenas mas também por serem utopias, são preenchidas essencialmente com ideais
interrompida pela constante apar<'tKia de a<:ão, pela ação em função da e significativan1ente n1enos com arquétipos, nem rnesn10 co1n os de sentido
própria ação, ut aliquid fier-i videatur l "p.ira que pare(,"a estar acontecendo revolucionáiio. A ilha solitária, em que se situa1ia a Utopia, pode até ser
algo"]. Se na Alemanha chegava a assomar um sentido concreto do ideal, nm arquétipo, mas nela estão mais atuantes as formas ideais da perfeição
;1h11cj<1da, c·omo desdobrarncnlo livre 011 onk11ado do 1·0111c-111lo vi1;1l. A F. <'X;1la111<·111(' o idl';tl políl ico supremo, o reino da lilwrdack c·o1110 11111111111111
função utópica deve, portanto, ser· comprovada ern rdaçao ao ideal lm1111111 político, é tào n1cuos estranho à história conscientemente p1nd11:1i-

essencialmente na mesma linha que em relação às próprias utopias: na da <jUC de, como ideal concreto, perfaz a finalização ou o último capíl I llo
linha da mediação concreta da tendência material do ideal no mundo, ( la história do nnuiclo, pois un1 anti,-.111.mm:um-bonum. ou um em-vão, que é a
como já foi observado. De forma alguma o ideal pode ser instruído (' alternativa igualmente possível, não seria o último capítulo dessa história,
corrigido por meros fatos. Ao contrário: é da sua natureza estar numa mas a sua supressão; não a finalização, mas a saída para o caos. No que s<·
relação de tensão com o mero aspecto factual do existente. Porém, refere ao processo, ou - a despeito do trabalho humano - há morte S<'lll
certa1nenle que o ideal, sendo aprovt·itávd par·a algo, pode se conectar ao hinterlândia ou - em virtude do trabalho humano - há realismo do idC'al
processo do mundo, do qual os chamados fatos são abstrações fixadas no seu decurso. Tertium non datur. A liberdade da função utópica, 110
con10 ('Oisas. Nas suas antecipações, caso sc:j;un c·orH:retas, o ideal tem um entanto, tem a sua atividade e o seu próprio ideal no propósito de dar um
cmTelato nos conteúdos ol~jetivos da espt'rança, os da tt·ndt"-ncia-latência. significado ol~jetal e liberar o "scr=idcal" (bem supremo) <JUC ainda não
Este correlato possibilita i,dnú1 iSti1:o.1 wmo exnnj,los ,: ps/PIÍ<o.1 como pré- veio a ser, mas que s<:' dt>scnvolve como possibilidade real nas auroras, na
ajJaréncia.1, indicando j,ara algo que jJOs.1i11elmerile jJOde se tornar ,-,,aL Então, linha de frente do pron:sso do muudo.
em seu conjunto, t·sses ideais corrigidos e direcionados pda hmi;-ão utópica
são ideais ele um nmt<·údo do si-mesmo e do mundo desdobrado de modo O nu:ontr'o da .fúnçiio u.tójJica 1:om a.1 alegorias-s[mbolo.1
adequado ao humano. Por essa n1zão, todos eks s;io varia('Ôes do conteúdo Resta ainda o olhar envolvido, qnc· se comprova daramentc também
básico q11.11 P o bem .1uj1remo - o que aqui, 110 final das contas, pode tanto no que ainda não está darn. Este 11ltimo é o ainda-uão-daro q11e carrega
resumir quanlo simplifiC'ar toda a questiio dos ideais. Os ideais se comportam seu próprio significado e, ao fazf·-lo, significa ainda uma outrn coisa. Se ele
em relação a esse contdido maior da csptT,mça, a esse conteúdo possível aparec·c na linguagem poética, as palavras desta li11guagern até podem ser
do mundo como meios para um fim. A partir disto, resulta urna hierarquia plenamente sensitivas e atuais, mas reverl){'raJll c·omo se fússem ditas num
dos ideais, e um ideal mais baixo pode ser sanificado em favor de um mais salão. J,1 o ditado é nmltidimeusional e significativo, na m<"dida em que
elevado, porque de qualquer modo ele ressurgi1·á na realiza<:iio do mais sabe se tornar metafórico, quando o é prefen·ncialme11te. "Águas paradas
elevado. Por exemplo: a variação mais elevada do bem supremo na esfera são profundas", assim como está, já é um enunciado alegórico, que se
sociopolítica é a sociedade sem classes - logo, ideais corno lihenla<le e intcnsifi('a na grande metáfora poética. "Poesias são viclraças pintadas":
igualdade estão na condição de meios para esse fim e obtêm seu valor (que esta grauclc frase metafórica de Goethe reproduz da melhor forma possível
no caso da liberdade tem sido especialmente ambíguo) do bem sociopolítico o daro-esnll'o implicando o significado de sua própria causa e rom isso, ao
supremo, de tal modo que este não só determina o teor dos ideais c·omo mesmo tempo, uma outra causa. Uma frase dess<· tipo é uma alegoria
meios mas também os faz variarem de acordo <·om a exigt'>ncia do fim perfeita. Todavia, sendo isso, ela própria está afetacht pelo ainda-não-claro
mais ckvaclo e, dependendo do caso, justificando temporariamente os que lhe é própr·io, rnzão pda qual nenhuma alegoria pode ser petfeita.
desvios ocorridos. Da mesma forma, a variação mais elevada do bem Pois da é fia rlefinitionem polissêmica, isto é, o próprio ol~jeto I G11genstand]
supn·mo na csfrra estética é pr·é-aparência imanente de um mundo do qual ela toma a sua metáfora esclarecedora (neste raso, as vidraças
perfeitamente humano: logo, todas as categ01ias estéticas estão relacionadas pintadas) n.:ío é de modo algum unívoco. Ele contém vários significados,
com esse alvo e são suas va1iaçõcs - como l'att pour l'espoir: E, de modo também os que não se referem de forma similar a poesias, e sobretudo
muito mais perceptível do que nos m·quétipos, ressoa no ideal a n:sposta continuam apontando para além de si mesmo, também na relação com a
do Sl~jeito à vida imperfeita, a resposta tendencial contra o insuficiente, em poesia, na relação com a transparência, entre escuridão e luz. De modo
favor do humanamente apropriado. Por isso, se Marx diz que a classe , que não há alegoria perfeita. Se ela o fosse, se sua referência continuada
trabalhadora não tem ideais a realizar, esse anátema certamente não diz não rcrnctcsse constantemente de um lado para outro, ruas tarnbém en1
respeito à realização de alvos tendenciais concretos, mas apenas aos abstratos linha reta para outra coisa, então esse tipo de enunciado não seria alegórico,
tradicionais, de ideais desconectados da história e do processo. Por meio mas simbólico. Se ela o fosse, o perfeito assim alcançado ainda permaneceria
de Marx e do próprio Lenin, o socialismo se tor·nou, no que se refere ao o do ainda-não-claro em tem1os de objeto, um perfeito do oculto no revelado,
próximo estágio a ser buscado, um ideal concreto que, por sua solidez do revelado como um ainda-oculto. Nesse sentido, a alegoria possui, em
mediada pelo planejamento, não instiga menos e sim mais que o abstrato. comparação com o simbólico, uma espécie de riqueza devida à sua
imprcnsao. Desse n10do, o seu tipo metafóri!'o csLÍ ;1q1w111 d.1,l'wk do .,i111húlico cpu· (·s1;1 1!'Lu·ionado no an.p1étipo. Conseqii!'11te1m·11t<', ;\ akg1111.1
sírnbolo, que não oscila, ernbora igualn1ente est(\ͪ em s11sp<·11so, <· ;u111{·111 p• ovi:'· uma cifra para cada respectivo detalhe referente a um signilicu lo
do ponto de unidade da sua relação. Isso, todavia, não pode ser !'onfundido ig·11almente ainda ampliado detalhadamente (pluralidade, alterita~) e q11('
com a outra diferença de valor entre o alegórico e o simbólico que se .~<· encontra na transitoriedade, na fragmentação. O símbolo, c111
efetivou há pouco mais de cem anos clt' fonna eITÔnea desde a raiz. lk ('ontrapartida, provê uma cifra para cada respectivo detalhe referente a
acordo com ela, o akgórico se co1np01ia merarnente de conceitos que 1 nna unidade ele significação que apa1-cce de modo transparente no detalh<'

receberam uma forma sensitiva ou foram sensitivarnente decorados, ao (pluralidade, allnitas). Assim, da está direcionada para o unum necessariu 111
passo que o simbólico repousaria sempre no chamado imediatismo. Ou de uma chegada (aterrissagcm, reunião), não mais para uma
como mais tarde o expressou Gundolf de forma tão tola a propósito de provismiedade, amhigüidadc enviada de um lado para o outro. Daí que
Goethe, visto por ck à maneira de Stcfan George: o jovem Goethe teria essa intcn(ão voltada para urna chegada torna o símbolo compromissado,
proferido simbolicamente as suas "vivi"ncias primordiais", ao passo que o diferentemente elas akgmias que se deslocam vic:osas, entregues à indefinic;:;'io
mais vdho teria conseguido tão-só reproduzir alegoricamente as suas cha- persistnrtc do caminho. Isto faz C'om que, ao final, a alegoria esteja em
madas "vivi:'·ncias formativas". Essa diferenciac;:ão de valor {- absurda não casa na ar·te rica em ligm-;ts e nas rc·lig-ff><·s politeístas, ao passo que o sím-
apenas em Goethe, mas ela segue de modo geral a falsa opinião convenci- bolo está assodado cssc11cialme11te ii grande simplicidade na arte, bem
onal sobre alegorias que se fórmou desde o Rornantismo, com o auxílio como ,\S rdig-iô<·s henoÚ·ístas e mo1101<·ístas.
das scrui-akgorias que compreensivelmente daí se desdobraram, rneras Em ambos, a antecipa(,io tem alguma coisa a dizer, pois em ambos
ilustrações de abstrações, as únicas do fenômeno aleÇ;oria que, no Rococó da própria faz uso da palav1·,1. O <pie da tem a dizer {- sinrnltaneamente
e em Luís XVI ( como figuras da virtude, da verdade, da amizade e assim algo velado que se revela e algo revelando-se, abrindo-se, mas que ainda se
por diante), ainda restavam na consciência. À correspondcnt e depreciação fecha, porque - tamhérn no símbolo - o tempo ainda não est;Í maduro, o
romântica da alegmia faltava o vivenciado conhecimento da verdadeira processo ainda não est;í ganho, a t·oisa (o signili<-ado) anesn·ntada a ele
alegmia: da alegoria do Barroco com sua orgia de emblemas, da alegoria ainda não f'oi cklinitivamente produzida <· ckcidida. l lá, portanto, um
da Idade Média, da alegoria da Patrística cristã inicial. No período do seu encontro ela limç;'io utópica tanto com a akgoria quanto com o símbolo
florescimento, a alegmia de modo algum foi a sensitivização de conceitos, (imdaclo na pnípüa matéria dos mesmos. Trata-se aqui elo próprio significar
a decoração de abstrac;:ões, mas justamente a tentativa de reprodução do o~jc·tivo, no c111al a função utópica se <·nc·ontra. Repetimos: cada metáfora
significado de alguma coisa mediante outros significados de outras coisas, que p<-rm;-11wc:c na pluralidade, na allnilas, representa uma akgo1ia, como
rnais precisamente com base no contrário das abstrações, cmn base nos nestes versos:
arquétipos que unem os membros da metáfora no seu teor significante. E
são também os arquétipos que fundamentam a ressonância do significado, Vest iclo de névoa já estava em pé o carvalho,
sem dúvida comprornissado e central, na metáfora-símbolo: esta não c01no um gigante, alto nm10 nma torre, ali
arquétipo elo estar-a-caminho e da transitmiedadc, mas de um em-absolu- onde, de dentro da moita, a escuridão
to ou de um sentido definitivo mais severos. Portanto, cmno se pode ver, a <'SJH'<•itava com n·11tenas de olhos negros.
difcrcn,:a ele valor entre alegoria e símbolo, apontada por último como a
única legítima, não pode ser confundida com a diferenciação entre abstra- Contudo, se a nwtáfora expressa unidade, algo de algum modo central,
c;:ôcs decoradas, até do tipo mais fixo, e teofanias corporais. A diversidade e se ela alhn disso conve1·ge com a cviclênda indiscutível que começa a se
de grau se dá, antes, dentro do campo do mesmo arquétipo. Antcrionnen, revelar, embora ainda esteja envolta por um véu, então se atinge claramente
te (cf. p. 160),já foi definida a diferença de tal modo que a alego1ia con- o sirnbolisrno, co1no neste verso: "Acima de todos os c·unws há paz". E a
tém os arquétipos da transit01iedade, razão pela qual o seu significado está ambos é inerente aquela forma dialétic-a, que Goethe, valendo-se de uma
sempre voltado para a alteritas, ao passo que do começo ao fim o símbolo expressão, ela própria, de envergadura dialética, designou como "mistério
permanece associado à unitas de algum úgnifiwdo. E em relação ao proble- público", pr·ecisamente como imb1icação ainda persistente do franqueado
ma agora em pauta de urn encontro da função utópica corn alegoria e e do velado, do que ainda não foi trazido para fora do seu invólucro.
símbolo, deve-se enfatizar em ambos a categ01ia da âJ;-a, como sendo o Porém, ck tal maneira que - em todas as alegolias, até nos símbolos
significado formulado, que ocorre também realiter nfü objeto~, do alegórico ou ;mtênticos, isto é, que são também objetivamente coerentes - o "mistério
1f>. Resquícios de imagem utópica na realização
púhli('o" 11;10 o s(:ja apc11as para os seres lnuna11os <pu- ap1 cT11dn11, lalv('t.
A Helena egípcia e a Helena troiana
por causa de sua insuficiente capacidade de apreensáo, 111as nrnstilm1
igualmente no mundo exterior, independente dos seres humanos,
qualidades reais de significação. É o caso das figuras tendenciais do
Será que, como o raio de sol atravessa as niwrm,1,
caracteristicamente típico que comunica seu significado em cada uma dt·
Às idéias segue, talvez mentalmente maduro, o alo r
suas manifestações; é o caso do experimento do mundo como um todo, o
O fmto seguiria,
expetimento dialético das formas (figuras) de existência com base na sua
Como à/olha escura do bosque,
figura central ainda latente. 1~ instrutivo c·omparnr esse caráter de fato
À escrita silenciosa?
público de um rnisté1io com a revdac,:ão tão n-alista do mundo feita por
Holderlin
Goethe: as cntdéquias que desenvolvem a sua vida no mundo representam,
todas das, um mím<TO igual de alegorias e símbolos vivos, existentes como
objetos. Desse modo, essas cifras cxisl<·m também na n·alidade, e não só
Os sonhos querem in,1tigar
nas dcsignaçôes akgó1fras e simbólicas dessa realidade. E <·ssas cifras reais
Por quanto tempo o nosso intcrio1· impulsiona só para a frente? O
existem i11,stamcntc IH!fl/Uf o ln;óvr;io vr;oo1s.10 do mundo ; urru.t /imàio utóbica, 0

· <les<-:iar· que1··;11 611.una Ú>1sa, 11ao oco1n' ele um móclo q1ia1quc-r, raramente
lendo a rrutlkria do objelivamenle po,1,1ível mmo substância. Nes,;e c·~)ntexio, ~
aflige sem razão. Porém, se· de se apr<'ssa nu aterrissar, o impulso que
função utópica do planejamento t' da transformação humanamente
nek opera c·onscguc atingir seu alvo? Por algum tempo, uum primeiro
nrnscientes representa apenas o posto mais avançado, mais ativo da função
1nomc-nto, talvez o impulso e ')Ualqucr apetite possam ser
auroral que ronda pelo mundo: do dia noturno em que todas as cifras
surpre<'ndentcmc-nl<' saciados. Não há m1<la que ckixc o saciado mais
reais, isto é, todas as formas processuais ainda estão em andamento e se
indifrffnle que um pecla(o de pão e para o curioso 1üio há nada mais
encontram. Por isso, a formação alegórica de figuras, a formação simbólica
ultrapassado que o jornal <pie acahou de kr. Contudo, nos bastidores,
de metas de fato evidenciam todo o transitó1io como urna met,íforn que
tudo se· kvanta outra wz. Comq:ando com a fomC', não h,í desejo atTefecido.
representa um real caminho próprio de significação. Por c·ssa raz;-'ío, c·ada
E também as imagens pintadas diante dos olhos p<>I' um cksc:jo que está se
metáfora pertinente é, ao mesmo tempo, uma metáfora que retrata a
saciando às vezes pairam no ar como se· não pudessem haixar até o chão. O
realidade, na mesma propon:ão <'Ili que, quanto ao dirccionam<"nlo do
desc:jo e a vontade voltados para dcs continuam vivos, eles mesmos
seu significado, ela está pkna da fu11~;ão utópica objetiva e, quanto ;'i forma
continuam vivos. Também os sonhos realiz,iveis, q11a11clo aterrissam em
do seu significado, est.:'Í repleta d<' cifras reais. E o símbolo, muna última
solo plano, 1wrn sempre d1egam inteiros: frcqüenlcrncnle, um resquício
diferenciação em relação à alegoria, <·omprova-sc a partir daí como t<·ntativa
fica para 1rás. Ele é di.ffano como o ar, como o vc·nto. Todavia,{,, perceptível,
de transição da metáfora para a equaçio, isto é, para a tentativa de
é mais forte que a carne. llm homem <·spcra pela 1110,;a, o quarto está
identificação entre a interioridade e a <'Xtcrioridade. Sendo qut· f'az parte
cheio ele inquietação nll'inhosa, a última luz do anoitecer está nele,
da franqueza do próprio enunciado <JU<' o 11r111111 necessarium (o bem
aumentando a t·xpcctativa. Contudo, quando a esperada ultrapassa o limiar
supremo) desse conteúdo identificado sempre lenha se manifestado primeiro
e tudo fica hem, tudo está aí, o próprio esperar não est.-í mais presente,
na voz de um dwrus mv;>licus e ainda não tenha s<' revelado co1n_an\1cla
desapareceu. Ele nada mais tem a dizer e, ainda assim, levou algo consigo,
predicação adequada, aquele êxito em forma de ol~jcto, que representa a
algo que não repercute na alegria existnlle. A satisfação c·ompleta é rara,
meta final e a tarefa derradeira do esclarecimento do mundo. Anseio,
provavelmente nunca ocorreu. No sonho de algo, antes de regozijar-se o
ante<'ipação, distanciamento, ocultamento ainda persistente: trata-se de
coração, tudo era melhor ou parecia ser.
determinaçôes tanto no Sl!jeito quanto no objeto do akgórico-simbólico.
Trata-se de detenninaçôes sem qualquer efeito duradomu, mas tarefas
A não-sati4ação e ~ua~ po~siveis implicaçõe~
voltadas para a iluminação gradativa do que neles ainda está indefinido -
Nem sempre se consegue colher um agora que chegou. Pode ser
em suma, voltadas para a dissolução gradativa do simbólico. Todavia,
porque a carne é fraca, mas muitas vezes o motivo é mais sutil. Tanto mais
justamente a noção realista da tendfa1cia, contendo a consciênc-ia da latência,
preocupante, mesmo numa condição boa, é quando se somam previanwnt<·
deve fazerjus ao que foi designado como mistério público.
sonhos em demasia, sonhos que vão além. Nesse caso, a imaginação j;í
cousumiu consigo mesn1a o matnial da expl"riência i111i11n1h·, 1;11110 110 11111 1111isin1 venl.uki10, <· 11111 dos 111ais ro111,111ticos ainda por ci111a: 1 l<-c-101
amor quanto em qualquer tipo de debute. O ensaio De l'amour; de Slendhal, B<'rlioz. No seu caso, houve até u1n palco en1 que o ídolo IH"illtava
parte desse ponto em seu famoso diagnóstico do fiasco. De acordo com o duplamente: Berlioz se apaixonou por uma jovem atriz inglesa que
autor, a felicidade imediata surge somcntl" quando um homem possui a personificava jovens e mulheres nobres em Shakespeare. Essa Julieta, Of{-lia,
mulher imediatamente, ou st:ja, no instante do seu dest:jo. A felicidade do Desdêmona reforçou o seu brilho, recusando todas as tentativas de
amor só está assegurada "quando um amant<"' ainda não teve tempo de aproximação. Para Berlioz, tanto mais fatal se tornou o seu resplendor.
ansiar pela mulher e se ocupar e com da na sua imaginação". Stendhal Por medo de que o amante desesperado desse cabo da própria vida, os
não necessita nem mesmo dos compklos jogos da força imaginaliva para seus amigos Chopin e Liszt passaram uma noite inteira vasculhando ;1
explicar nm ficar-aquém da realidade: arris<·a <pte "no moniento em que planície de St. Quentin, cm n~ja din-ção Berlioz tinha sido visto cm
um grãozinho de paixão entra no cora~·ão, tamb{-m j;i est,i p1·es<·ntc um desabalada carreira, totalmente fora de si. Porém, quando, alguns anos
grãozinho, uma possibilidade de fiasco". E continua, produzindo uma mais tarde, o nnísico lJllt" se tornara famoso finalmcnlc logrou conquistar
ansiedade pe1igosa, cncrvanle: a amada, <1uando o ídolo se tornou sua mulher, o amor anteriormente tão
arrebatador ruiu com a sua realização (que não deve ler n'stdtado apenas
(!nanlo maior· é o amor de um homem, tanto maior é a violê·ncia qnc ele cn1 "terrinas de sopa qucbt·,ulas"). A maclamc não conseguiu ser páreo
tem de pratic·ar contra si mesmo antes de ousar tocar a intimidade da para a imagem onírita que ele cima elo palco havia infündido num certo
amada. Ele imagina provocar a ira de um ser que lhe parece como algo jovem. A t·xpc·r·iência niio foi indulgente com a esperança, t· nem esta com
divino, que lhe inspira simultaneamente amor ilimitado e vcnera<:ão ili- a experiê:ncia, que foi exageradamente decepciomu1te.
mitada( ... ). Agora a alma está cheia de pudor e ocupada em snp<'rar esse
pudor, a volúpia está bloqueada. Primeira mu10 da dnFfJ<:Üo.' a felir:idade e.1tâ onde ruio esüú. Segunda razão:
o wulw aulrmomizado <' a lenda da dnjJla I Ji,[nl(J,
A isso se compare a falta de disposição dos poetas românticos, Em primcirn luga1·, a base disso<' <pt<· o aqui-agora s<· situa demasiado
principalmente E. T. A. Hoffmann, para deixar cair, para V<"'r cai,· para o pníximo de nós. A vivência 1111a e crua transporta do sonho instiga<iorpara
campo da cxpniênda as suas cekstiais imagens <la feminilidade. De um um outro estado, o da proximidade imediata. O instante vivido agora mesmo,
onirismo que se torna tão insad,ívcl quanto reificado, origina-se n;"ío por como tal, produz lmwtção: ele tem uma calidez demasiado ohsnll'a e sua
último o ódio romântico contra o matrimônio: "O encanto foi cp1dm1<lo", p1uxirnidack desfaz as formas. Ao aqui-agora falia o distandamcuto que
dama um artista na Fnm,ale, ck l loffmann, tendo em mente um fiasco supra- certamente procluz cslranhcza, mas também tonta tudo daro e vislumbrável.
sexual, "e a melodia interior, que de resto anuncia coisas esplêndidas, Por isso, o imediato cm <pw se dá a realização produz previamente uma
transforma-se cm lamento por uma terrina de sopa quebrada". A mesma impressão mais obscura que a imagem onfrica, ,ls vezes até caótica e vazia.
lragicom{-dia preside uma conversa entre o capelão Kreisler e a pr·inc·esa no Mesmo quando a imagina~·ão ilimitada não kva de enxurrada todo <1 chão
Katn· Mun; de I Ioffmann. Krcisler louva os "músicos autênticos", qu<· uão em que se 1'1111da a sua rcaliza(,lO, mesmo que o encontro com a realidade
qunem fazer amor como a boa gente que macula os sonhos no leito n>1~j11gal. chegue ;:i se efetuar, pode acoutcn·r de o paradoxo do sonho se mostrar
Contudo, para evitar que os artistas pareçam extravagantes ou at<- inc;:ipazes mais firme e em todo caso mais claro que a sua re;:ilizac;;ão. A nuvem
de fazer amor, Kreisler· os ;:issocia aos trovadores líiicos, ao a1nor cortê:s, ao bl"ilhantc, ao se aproximar, envolve-nos como u{-voa rinzenta: o azulado
culto a Ma1ia e, referindo-se aos "músicos autênticos", continua: distante dos montes desaparece totalmente quando se est,i no J>l'<>p1io local.
Em A Jlau.la mágica, uma <>pera fabular, Tamino deveria ver Pamina na
Estes carregam a dama eleita no coração e nada querem além de cantar, fortaleza de Sarastro tal qual é a imagem da amada. No entanto, apesar da
poetar, pintar em sua hmnenagem. Ern suma, eles são comparáveis aos exclamação de felicidade - "É ela!" - levanta-se a pergunta se seria realmente
cavaleiros galantes no mais aprimorndo corlés. ela, se o sentimento que se expressara no canto dest:joso de Tamino -
"Esta imagem é encantadoramente bela"-, se essa imaginação utópica com
Diversos homens casados passaram pela experiência do fim do ainor, a sua imago pôde ou podeiia encontrar a sua realização num oiiginal, por
que é provocada por sua concreliza~:,10, mesmo que não tenham sido mais perfeito que fosse. Compare-se com ess<: azul imaginativo duas
Kreislers. Porém, exatamente na linha da a11levisão de Kreisler, foi atingido provações ocorridas na vida real, como no caso de Berlioz, mais
pi ('Cisa11H·111c com duas pessoas lào clislinlas como l .c11a11, o 1111t o .1go11iado, , .. , clic·o a Ma1-i;1. Ma:-. t;1111h<:111 0<·01n· o d('sloc11I1('1llo d(' P,1111i11a p;1ra 11111
por um lado, e Kierkegaard, o oistólogo futilmcntc i-ig-oroso, por <>1111'11. l,,,111011te imaginá,·io, como sendo a sua pátria ideal. Kierkqi;aa,d, o
Todavia, era a mesma catástrofe frente à miragem. Lenau vü~jou para a 1•l.11ú11i('o, mesmo o homo reli.gi.osw,, não renuncia e1n toda parte ao fll't'S('lllc,
América, não sem a determinação de ter, pela separação, a imagem de sua 111.1:-. se· n·striuge ao absoluto, da mesma forma que o absoluto rcsc1va p,11;1
noiva mais presente que se a tivesse ao seu lado. Insatisfeito com a nwra ·., 11ws1110 o presente: "Pois em relação ao absoluto existe apenas um tempo:
imagem, nutrindo a intensificada vontade de ter o 01iginal, ele voltou para , , 1>11·scnte. O absoluto não está aí para quem não for simultâneo a de".
casa. Surgiu, então, o poema Wandel der Sehmw:ht [ Metamorfose do anseio.!: I· 111 ('Onseqüência, de acordo com Kierkegaard, é muito difícil akall(;ar
11.10 só o presente incondicional do amor mas também, de forma
Quão longa a viag<.'rn se rne deparava, 111l('iramente correspondente, o do seguimento cristão, do amor cristão:
com que temores o retorno ansiava ·1 ksde o tempo dos apóstolos não existiu mais nenhum cristão". Neste
cio enno marinho vasto e fatal , .1.,0, não há nada além de inl<'i-iol'idade sem hmizonte, tani-o em relação

à amada, longínqua costa natal! .1,, assim chamado absoluto quanto especialmente em relação ao próximo.
Enfim nw acenot1 a terra saudosa, l'or{m, esta perda JH'oi'uuda não anula a aporia kierkegaardiana da
jt1hiloso saltei na praia preciosa, , .-;l!ização. O presenlc é igual à comprova<:ão, e se combina com a
e, como nm sonhojuvenil reverdejante, 111<·11mbência reacioná1ia do Romantismo em Kit'rkegaanl de, pela maneira
saudaram-me as ,Ílvon·s da terra de antes. ,11ais difícil, apr·csentar a compn>va<:ãojnstamente frente a ideais elevados,
Aclor,ívcl e rnavioso,jamais o fora tanto, , ,11 seja, ocasionalmente incômodos para a sociedade existente. Os ideais
dos pássaros soou <·n1 Ill<'H ouvido o canto; , lt- Kierkegaanl n-rtarncnte eram, <·m rda<;ão à soc·iedaclc· de então, apenas
após ter sentido pela falia tanta dor, p:1:·:-- 1 "xais e tudo mc·11os revolucionários. Entrdanto, esse escrúpulo
tinha vontade ele ahrac,:arcacla pedracorn arnor. , omprobatório tornado absoluto se combina muito hem - ele n1esmo de
Mas <"ntão t<' achei<', kricla de morte, 111odo não paradoxal - com o ckrrotismo rea<'ionál'io frente aos
aos tet1s p{>s tombou Ioda minha sorte, {abandonados) icl<"ais ela burguesia, ela própria outrora revolucionária.
e no meu cora<,:ão o que restou enfim 1ksse modo, o lmrguê·s "se resignou" a se,vir aos ideais de liberdade,
foi um amor sem <'speranc,-a, sern fim. 1g-11aldad<' <· frai:c·rnidade apenas da boca para fóra. Assim, "idealizando"
Com que remon·s anseio partir de novo .10 n1áximo o seu pretenso socialismo, também a social-democracia se
ao mar e sentir das ondas o rumor cavo! ('squivou da realiza<_·,to ele uma so<'iedade cm que os seres humanos
Que eu possa para sempre na madnha voragem 1n·esumidarnente teriam de se tornar· ar~jos - outra vez uma idealização
só, relacionar-me apenas c·on1 tua imagem! .1l>soluta -, sobretudo já antes disso teriam de agir <·omo a1~jos. Contudo, o
111interrupto brilho da grande imagem, dianlt' do aqui-agora do seu
Até aqui, Lenau <' sua inaptidão para o reencontro real: na , onlcúdo, tambfm possui seriedade autê·ntica. Se não fosse assim, ele não
proximidade, Pamina logo se desfez em peda<:os. Esse tipo de amor possui 1>oderia sofrer um abuso. Aquilo que se· realiza ck imediato, nnnpletamente,
a solene vaidade de estar apaixonado por si mesmo: ele é uma festa que ,om pek e cabelos, carne e ossos, aquilo que não deixa qualquer resquício
não pode mais vivenciar uma segunda-f<-irn. Exatamente pela mesma razão, c·m meio à nossa histó1ia pregffssa, em meio à nossa esfera existencial
também Kit:r-kegaanl, o amante por demais absoluto, acabou ficando só ;1inda pouco desenvolvida em din·~·ão à existência plena, dificilmente
em alto-mar, relacionando-se com a imag<·m. l<ierk<·gaanl desfez o noivado parecerá de imediato a coisa certa mesmo para o realista planejador que
com Regine Olsen. Ela tomou por esposo 11111 dos sens antigos admiradores, 11,to se deixa levar à falência por nenhuma exigência absoluta. Trata-se, ck
e Kicrkegaanl csueveu no seu diáiio: "l lojc vi nma moça bonita. Ela não lato, do ,·esquício e cerne não romântico em Kierkegaanl, e mesmo nos
me interessa. Nenhum esposo podení sn mais lid à sua mulher do que eu 1 ·scrúpulos afetados, derrotistas e impotentes de Lenau - um resquício que,

sou a ela". E continua, com a assumida máscara do voluptuoso e, <·m outra parte, é notado na esperança justamente pela previdência. Por
concomitantemente, do asceta: "Ela c11te11cl<'11 muito bem o ponto alto da isso, a esperança faz surgir- com razão e precisão, com o tipo mais elevado
questão, ou seja, de que deveria se casar". Ocorre aqui a imbricação mais <le consciência: o da meta - a desconfiança contra toda a realização qrn· _j:í

fantástica dos platonismos: o do ideal de amor· do trovador com o do amor -;e apresenta com cores muito intensas. Também parn uma consciência que
uao venera os radicalismos abstratos de Kierkcgaard, as ;1polcosn, sao ~m-rrciros. E ptoc III a 11111 <·011sdho, 11111 auxílio, 11111 or;índo q1w Ih(' ,·,1~111<'
sempre rasas e decorativas. Mesrno uma tão pe1feita melodia de n>11s1m1a<,·:'io <·omo encontrar o caminho de casa. Entãovt'm ao seu <'nco11lro, ~ai mio do
como a que soa no Fidélio, de Beethoven, quando Leonora liberta Florcslau peristilo da fortaleza, Helena, não a bela e muito famosa qn<' de havi;1
de suas correntes, mesmo essa sublime música de felicidade não representa deixado no barco, mas uma outra e ainda assim a mesma. E ela dcdara S<'t·
uma mediação à alt1u-a da música anterior da esperança. "Agora brilha sua rnulher- a outra hino barco seria ninguém e nada, um fantasma, uma
diante de nü1n um arco de cores que repousa luzente sobre nuvens escuras": imagem ilusória,jogada outrora nos braços de Páris por Hera (a protetora
este canto anterio1· de Leonora, embora provenha do meio da noite, possui do matrimônio) para ca<:oa r dos grc·gos. Por causa desse fantasma, fizeram-
uma bem próp1ia espécie de felicidade. "Vem, ó esperança, não deixes se dez anos de g11{'rra, caíram miríadPs dos melhores homens, a cidade
esmaecer a derradc·ira estrela dos cansados, ilumina o meu alvo: por mais mais florescente da Ásia se desmanchou cm cinzas. Ela mf'sma, Helena, a
distante que cstc:ja, o amor o atingirá": a mdodia dessa pura oração à única Vt'nl,1deira, teria vivido nesse meio tempo ll<'St<' castelo real- trazida
esperarn::a não empalidece totalmente diante do_júbilo realizado que conclui por I knnes por sobr<' o mar.
a ópera F-idélio e se des1wdc. A á1ia da esperança de Lconora de forma
alguma akança a pn>fundidade que ela tem depois, no instante da esperança Portanto, ela viveu ptu-a, ;'i parte, lid, a mais bda mulhe1·, contudo, e
realizada, no instante da retirada das correntes, na mística quase nada sabe de Páris 1 a I IC'kna sem guerra troiana, não a rival horrenda,
imobilizada desse instante. Mas ainda assim ela mantém o atn> de cores não o ídolo <JUC <·steve 1n-c·sc·nt<' cm todas as batalhas, não o troféu da
levantado num espaço que se apresenta aberto. Portanto, a prnximidade vitória. A muclanc;a {, por demais bn1sc·a e a n·lirada do ídolo, por demais
traz dificuldades. Mais fácil e até mais satisfatória é, como muitas vezes abrangente para <Jll(' Menelau possa n1<-r,unente an-editar, para que queira
ainda se mostra, a esperança, pelo menos o pressentimento ele que o que acreditar. Dez anos de fixação na Ildena troiana barram o caminho da
se espera vai ocorrer em breve. egípcia. Dess<> modo, també-m Eurípides faz Mendau dizer: "Creio mais
A segunda coisa que cansa dificuldade neste ponto{: o vôo demasiado no impac·to dos sofrimentos passados elo que em ti!" Menelau vira-se para
altissonante e ousado. Ele representa a vida que se tornou autônoma no ir quando do barco vem um mensag-ciro e infonna <(li<' o s<·r qu<' <'ra tido
sonho, a viela que se multiplica ansiosamente. Essa vida não IlloJTer.í com por l l<'kna se havia desfeito em dtamas IH) ar. Desse modo, não resta mais
a sua realização, não descerá do palco, ao qual cst;í habituada ck longa qualquer chívida nem quanto à nwra exis1tnc·ia-fantasma da rival tn>iana,
data, sem deixar um resquício, mc·smo que o nmleúdo do sonho e sua nem quanto,, n-alidade da virtuosa mulh<'r egípcia: de um lado, um rastro
realização pareçam coincidir dentro do lnnnanaiH<'lll<' possível. Nc·m mesmo de ar chamc:jante (ainda ardendo ao dcsapan·c·cr, ao cksfaz<'r-sc·), e, de
nesse caso algo que se tonion um ídolo irá renunciar sem mais nem menos. outro, algo coq>óreo, unicamente real. Menelau deve, de fato, mostrar-se
Esta anomalia é possívd: o ídolo se coloca como a lÍnica coisa real, com o satisfeito com Eurípides, pois é com a Helena egípcia e não com a troiana
que a realização fica parecendo urna fantastiquice. Essa independé'ncia que que de volta para casa, para a corte real d<' Esp,u-ta, ond<' da é descrita
foge à nonnalidade e ameaça todo ideal é refletida na saga da I klcna também por I lomero, no quarto canto da Odisst'ia. Não muito admirada,
egípcia. Um drama de Eurípides se ocupa com esse material peculiar, até não muito xingada, mas como uma nobre senhora de posses que governa
ie natureza fragrncntá1ia. Ele teria merecido, na seqüência, um Shakespeare com s<-rcnidack e· n~jo ânimo praticamente não mais se altera c·om alguma
e não encontrou nem mesmo um Ilcbbcl. Por· fim, Hofmannsthal lhe lernbnm~·a de Tróia. A não ser por uma recordação cuna e sonidente,
iedinm uma opereta, que sem a música de Strauss tem pouca relevância, dita assim de modo menos kviano que indiferente ( Odisséia IV, v. 145): a
:i1ém de um ensaio. O próp1io mito é um dos mais autênticos em termos n1ulher de Menelau rnenciona que, por causa do seu atraente olhar canino,
ie vida, e um dos mais importantes que se pode encontrar na estrada os aqucus tiveram de sitiar Tróia (a cachorra é uma antiga alegoria do
'utopia-realidade". A seu respeito I Ioünanusthal relata: heterista). De resto, ela afirma ter lamentado a miséria que provocou, e
põe toda a culpa em Afrodite, que a raptou (vv. 251-64), assumindo mna
Encontramo-nos no Egito ou na ilha de Faros pertencente ao Egito, diante postm-a bem distanciada, como se o tempo todo não fosse senão a Helena
do castelo real. Menelau entra em cena, retornando sozinho da viagem a egípcia. Até esse ponto, tudo parece estar em ordem, não só no barco mas
Tróia. Ilá meses o seu barco erra de um lado para outro,jogado de costa também em Esparta. Menelau foi invejado por causa da grande deusa do
em costa, sendo constantemente impedido de retornar ao lar. Numa baía amor, e agora é felicitado pela esposa que permaneceu virtuosa. No cnlanlo,
protegida, ele havia deixado Helena, a esposa reconquistada, com seus na verdade a Helena troiana ou a do sonho tem em relação à egípcia :i
v;111t;igc111 ele t('r fn·qiientado por d('z a11os 11111 sonho, dl' 11"1 1111T111 li ido o Ubjt'( úo ú fn i111eim e à .1egunda raziie.1: a orlis.11;ia da i1110/Jilid11rle
sonho como figura onírica. A efetiva realização posterior tem difin,ldadc· O sonhar, de fato, não quer de fonna alguma apo11L11
de competir com a figura onírica, não consegue estar totalmente à sua 1w1111a11<'nternente para a frente. O irnpulso que está por trás de modo
altura: pern1anece um luminoso resquício do sonho, permanece um rastro .dg11111 se satisfaz só com o que se configura na imaginação. O pr6p1·io
de ar chamt~jante, a miragem se torna independente, pois o objeto da •,011har não busca o sonho pelo sonho, de n1oclo a se alegrar apenas com
efetiva realização não estava pessoalmente presente durante as aventuras, 1111;1g<'ns. Antes, no sonho acordado, a pessoa desfruta da imaginação de
ao contrário do objeto do sonho. O realizado representa um conhecimento , omo seria se algo viesse da mesn1a fúnna como foi sonhado, ou seja, se
bastantt' tardio. Apenas a Helena troiana, não a egípcia, acompanhou os l'l<'sse a se tornar realidade. A partir daí, j,í snl~jctivamente, existe um
estandartes, acolheu o anseio dos dez anos utópicos, a amargura e o ódio- , 011trapeso à reifica<;ão do sonho e ao esperar que não chega com o seu
amor do esposo traído, as muitas noites longe da JÚtria, o acampamento 1•r<Íprio advento, mas fica para trás, nos dois sentidos da expressão. O
caótico e o antegosto da vit<>ria. t assim que facilmente se modificam os , ontrapeso est;-Í posto no <]li<' do intencionar, no desejo <· na vontade do
pesos: a sereia etérea ele Tróia, ,1 qual está assodado um mundo de culpa, próprio tornar-se-realidade. O sonho como tal não se realiza, o que
sofrimento, mas sobretudo esperança, enwrgc dessa curiosa aporia quase 1cpresenta un1 a-nH·nos, n1as carne e osso são acrescidos, o que representa
como sendo o real, a realidade quase se torna o fantasn1a. Abstraindo 11m a-mais compensatório. Tarnbérn são conhecidos os casos cm que, quando
totalmente do biilho ele rival da I ldena troiana, a Helena egípc-ia não tem o desejado ocmTC·, ele pode surpreender, não apenas pela força da
a seu favor o brilho ut<>pico da troiana: não embarcou junto no anseio da ,,tenissagcm, ela imobilidade, da realização, mas até- por um certo excedente
viagem, não acompanhou as peripécias da batalha, o ideal da nmquista. de conteúdo que não havia sido sonhado. Sc cm si mesma a flor não mais
Assim, a realidadc egípcia como tal parece ter uma amplitude menor. O ,e enconl ra na fruta, tampouco a fruta em .1i mesma jú .1e enrnntr1wa na /for: A
desaparecimento da fantasia em virtude de sua realização (ainda qne seja estrada anterior do sonho pode parecer mais curta que a estrada concreta
a sua próp1ia realização que se cumpre) produz nesta última sintomas de 'lue se comn:ou a percorrer. Assin1, a obscuridade do aqui-agora, mesmo
nirência que diminuem a consciência desta realização, quando não a a perda ela coloração onírica, às vezes são sohrdcvaclas como s<· não
relativizam. A Helena egípcia pode ter muitos nomes - o problema posto existissem de fato, con10 se houvessern experimcnlado tolo rntdo no presente,
por Eurípides, não sendo apenas literário ou antiquário cm sua _já no atual estado de agregação da existência concTcta. E11t,10, a esperança
rnanifestação, é, portanto, representativo: representa uma arnca~:a ampla, parece pl'C'scindir da necessidade de se sentir frustrada com a ptivação,
como rcificação do sonho final, ou pelo menos como continrnt(,'ão deste assim corno a experiência prescinde de ser intransigente com a esperança.
que se tornou semelhante à realidade. Em toda realização, na mcdida em Aqui tem S<'ll lugar o sentimento do primeiro amor, quando todos os botões
que da já {- possívd lotaliln; resta st•mpre um peculiar elemento l'SfJemnça, .1e abriram em flor, o sentimento do encontro envolvente, a mudança de
('l)jo modo dl' Pxislir n;10 é- o da realidade existente ou o da realidade existrnte época, a mag-11itude da época exfJerimentadacom entusiasmo. Quanto a isso,
num fJrim,,,im momento, e <pie, po1·tanto, resta juntamente com o seu cont <·údo. pennancntcmcnte peculiar-ou s<:ja, presente- é- a declaração de Got tfried
Entn·tanto, não sendo abstrata, mas seguindo no prolongamento concreto de Estrasburgo a respeito de Isolcle como a mais bela mulhn, evocando
do <{IH' foi por ela ultrapassado, ela nunca está totalmente fora do ol~jt,tivanwnte justamente I lekna:
f)(l.1.\Ível na realidade. Ao co11trá1io, o aspecto troiano de Helena já cstá
apontado na pr<>pria I Ielena. Se não fosse assim, nela de não teria Dessa loucura agora livre estou, foi !solde quem de mim a tomou,
encontrado lug-ar nem teria a credibilidade do universalmente ckstjado, assim nu11n1 mais hei de acreditar, que de Micenas o sol vá fulgurar.
do ol~jetivo da batalha. E mais ainda: a im.ago que se inflama num objeto, Um resplendor puro como este, na Grécia nunca viu o dia; é só aqui que
mesmo que se desvane~·a depois de akançada, não paira no ar, mas, ck alumia!
dependendo do caso, está na possibilidade real-utópica do próprio objeto, a
qual aponta ainda além. É só ali que pode estar latente a plena congruência Pode-se tornar a liberdade de transfr1ir essa consciência de Gottfried
entre o conteúdo da intenção e da consecução, ou seja: a identidade do também para a sua outra Grécia, para uma supra-Grécia de seu tempo,
idênti<·o e do não-idêntico (este último entendido aqui como distância em feita dé obras como, por exemplo, a cal eclrnl de Estrasburgo: como inscrição
relação à intenção, à esperança). O repouso, porém, só virá no dia em que desta obra no espírito do espectador c·ontemporâneo. O orgulho pelas
a Helena egípcia contiver também o brilho que envolve a troiana. obras como um todo, no espírito de quem as produz, é capaz de marcar
intensa presença no dia da consumaç,io, quando o sol, L111L1s vez<·s 111.1 is corno l11n:J11 e· assim co11<Tba o fn-i,.wnk 1•rnl uro.\o .\Ítll 11/ta nt·twu·nl,· , ""'"
aguardado em vigília, vier a nascer como coroa. Esse instante se 111a11il'csta /11'11//lir do Júturo. As revoluções realizam as esperanças ruais a11tig-as cb
em sua forma mais evidente, infinitamente antecipada e ainda assim l111111,midade: exatamente por isto elas implicam, requerem a connet iza<,-:°1< >
finitamente bem-sucedida, em Klopstock, após a finalização do Mesúw.: -,,·111prc mais precisa do que se tem em mente com o reino da liberdade 1·
, 0111 a viagem ainda não conduída em sua direção. Somente se um existi,·

Cheguei ao alvo, ao alvo! e sinto onde estou! É a vida da alma toda! n,mo a própria utopia (logo, o tipo de realidade que ainda está inteiramente
A,;sim será (falo humanamente de coisas divinas) conosco um dia, vós 1101· acontecer): o st>r-exitoso tomasse conta do conteúdo propulsor do aqui-

irmãos do que morreu e ressuscitou, <piando ao céu d1egannos! .,g-ora, também a condi<:ão básica desse agir impulsivo, a esperança, estaria
lotalmente incluída no estado de plenitude ela realidade. Até que se alcance
Tudo isso dá a impressão de uma presença de espírito histórica pura c-ssa possível realiza<:ão, cst,í em curso a intenção "mundo do sonho
e simples, como imobilidade que, no entanto, pan·c·e cont<T toda a odisséia .,cordado" e nenhum pa,~amcnto parcelado pode levar a esquecê-la.
anterior. A pH>p1·ia comparação de Klopst<Kk aponta para o exemplo Nenhuma ahsolulizac:fío do mero pressentimento pode kvar a esquecer
supn·mo ela ateITissagcm, que era caracterizada miticarncnte na anio mystica: que se tem <'lll meu te e.~sa intenção, pois S<' trata d<· ter presente o conteúdo
nenhuma expectativa fica para trás e1n relação a da, nenhuma intenc;-ão se lnudamental d~> nosso agir impulsivo, '111<' nem mesmo assomou à
n1antéin, 1w1n rnc·smo a do MJ,rswn r:orda, nnlito nienos qual<]ll<'r distância. <'onsciência, cpw'dirá à realizac:ão plena, a qual exatamente por· isso ainda
E, ainda assim, com o passar do tempo, também aqui volta a se .,<" situa na utopia. A consciência suprema desse t<·r-pffscnte está registrada
apresentar um resquício nunca desaparecido, pois nenhum desses contatos cm um salmo: "Que a minha dir·eita seque se cu te esquecer, Jen1salém".
é détivo, até o olhar para eles é apenas pré-visão, até o sentimento qut· eles Mes1no sem ,-K<'ntos r·eligiosos, mes1no sem ênfascs contrastantes frente a
pmvocam é apenas pré-sentimento. A pouca tranqüilidade q1 H' com isso se 11m assim chamado exílio da existência, jamais uma realização foi
alcança se deve ao fato de que a obsnuidade do aqui-agorn e· a perda da absolutizacla sem que restasse uma cl<"rraclcira parcela do seu sonho
coloração oníiica são ultrapassadas brevemente na ocasião em <Jll<' se atinge acordado, ou seja, sem que se ultrapassasse o ak,m<:ado nuno a um possível
o alvo. Por mais que os c·01uém1entos ocorram à maneira de Klopstock, .~er-aincla-mdhor que ele. Um novo cume surg<· atn-ís daquele que acabou
permanece ol~jetivamente justificado apenas o pressentimento faustiano de de ser escalado: assim, esse plus ultra não deixa a n-alizac;ão fra<1m:jar, mas
um instante supremo. E11qua11to a odisséia estiver cm curso, não se consegue a agu<:a cm dirq·ão ao seu propósito. À par·tc isso, a persistência <' a não-
uma odisséia da imobilidade com iclc·11tifica(.'ão entre a chegada e o conteúdo resignação da imagem da esperança têm sua 01·igem 110 p1-ohkma constante
da viagem. Todavia, o próprio pn·ss('11timc·11to, sem dúvida associado à ela realização e nas próprias causas desse problema.
exeqüibilidade e à chegada, é extJTlll,llll('llte importante, pois lhe
correspondt> a tendência fática do sonho acordado e de sua p('rfcição A len:eira razií.o dos resquícios de im.agens utópicas: as af)()ri.a.1 da rnalizaçâo
antecipadora, tendência essa que visa à rcalizac.:,"i.o, que promove a realização. Mesmo quando algo sucede, ainda há algo que fica para trás em
Portanto, ele forma alguma aqui se infilt,·a 11ovamente a d1amada relaç:io a si mesmo. O agente e a ação da realização não são extraídos de si
aprnximac.:,10 infinita em direção ao ideal, a<pwlt- tipo de escrúpulo que mesmos: <'l<-s continuam a viver em si. Distanciam-se do ato que deles se
não t('Jll a realiza~·,10 seriamente em vista. Contudo, o oposto da desvincula, assim como a ferramenta se distancia do utensílio pronto ou o
aproximação infinita não é a presença pura e simples, não é a afirmação poeta elo seu poema. E toda realização efetivada, mesmo aquela que tanto
do ê·xito total da chegada ao destino. O oposto é, antes, a Jinitude do processo se parece com a imagem final que poderia, por assim dizer, ser c·onfundida
e, com esta, a possibilidade de ao nwnos aquilatar a <list{inria da antecipação com ela, contém ainda um fragmento do agente ativo por <·onta da debilidade
rumo ao alvo. Esse J)l'essc·ntimento kgítimo - ou s<:ja, que implic-a um elo realizar, tanto quantitativa quanto qualitativa. Da debilidade quantitativa
estado final atingível- é o que sem dúvida preenche do modo mais amplo, se 01igina a vontade infatigável de continuar trabalhando sem parar. Contra
mais democrático e mais humano os grandiosos instantes da revolução essa vontade se volta o conselho romano: ma.num de tabula. Da debilidade
iniciada com êxito e depois celebrada vit.miosamente. Todavia, uma vez ,,ualitativa se origina a decisão de 1·ecomeçar da base mesmo uma obra já
mais apenas de tal modo e justamente neste ponto apenas de tal modo que <'oncluída, em consonân<·ia com uma imagem final que cresceu juntamente
ela não descanst> sobre os lo1u-os do presente, nias que, ao contrário, por com o progresso do próprio trabalho e assim parece duplamente não
mais imponente que tenha sido a consecução da vitória, conceba-a tanto realizada. Nisso reside a 01igem de um fiasco e de um problema do tipo da
Ilelcna egípcia também nessa eskr.i. A pc<:a ck Ltul.isia Ni/11·1 (;/11,J,,
1111.1g1·111 ukalisL1 cl;i p1od111_;10, da orige111, da forma(:,10 da n·,ilicbdc, t' li, ;1
[ Cavaleiro Glui:k], de Hoffmann, faz com que o compositor ela 1\1111ir/11 ( <>11 «,
, 1 u ln111· que, crnho1 a 1c11ha visualizado o problerna da realiza<;ào, 11;10 l<·/
louco que quer personificá-lo) possa andar "um pouco" por aí m<·s1110
111.1isj11s a de do cpte frz a Antiguidade, pois também nela a realiza(,'ão n.10
após a sua morte para interpretar Amúda de maneira nova, "como q111·
·'l'·'ff<T con10 uni ato próprio, n1as merarnente corno um logo.1 que ele
numa potência mais elevada", interpretando-a assim "como ela veio do
, 1, 1.11, 11 1cr modo iria se desdobrar. O fundamento do conhecimento fica sendo
reino dos sonhos". Alé o momento, os déficits quantitativo e mais ainda o
1!: 1ui ao fundamento da realidade, pois mesmo este é apenas um fundamento
qualitativo no próprio ato do rmlizar ainda não foram suficientemcntt·
1, •gin)-panlógico, inserido na idfia de mundo, a qual, para Hegel, no final
refletidos cm termos filosóficos - e isto apesar da impactante experiênt·ia
, 1. 1.., C'ontas, constitui o mundo todo. E sobretrnlo a passividade do realizar,
intc1io1· e exterior que proporcionam. Uma raz,10 para isso reside tarnbé111
1,11ípiia da Antiguidade, não foi abandonada, apesar do homo Jaber e de
no fato de que a atividade humana como tal tomou c·onsciê-ncia de si mesma
•.11.i filosofia: o panlogo.1 c·onstantcrnentc vincula o produzir a 1m1 mero revelar.
apenas tanliamcnte. O trabalho cm coisa dos escravos e~ dos artes~os ~ a
1>isso resulta que, para a rdkxão (·ontc-mplativa como um todo (e· toda reflexão
idkx,10 se ocupava apenas smnariamentc com sua execuçao, sua n·ahzaçao.
1dt'alista é contemplativa), a realiza(:ão é mera <'orporifica()Ío de urna idéia-
Na Anti~uidadc, 1noduzir e 1·econhecer eram considerados pura
11111, sendo esla de qualquer modo existente<' por assim dizer pronta, apenas
rcprodm;~fo de alg-ojá dado, pois o ciuc predomina é a c·onlcmplação passiva,
.1111da se revestiltdo de cu-nc· pc-la m.:io do autor 011 escultor. Aqui a realiza(,'ão
a obra ap<·uas delineia seus contornos. Isto também no nívd élico: de acordo
11- 111 como C'Onsc-qüê·nc·ia lógka ela pn'>pl'ia coisa, t· da vem desse modo mesmo
com Sócral cs, 1tinguém pode cometer irtjustiça volun tarian 1c·11t e - 1er ciência
110 único pensador que, ('rnbora viwndo na Anti~uiclack, fez da rcaliza(,'ão
do bem implica, ao mesmo tempo, forçosamente a sua prática. Aqui não
.,o menos uma calcgoria, ai nela <jU(' não 11111 problema: Aristóldes. Ek viu as
há, portanto, uma renitência contra o moraln1ente inclicado nem rnna
111últiplas i11l<TÍ<Ti-11cias sofridas pda realiza(ão, e ainda assim a atrdou, até
vontade que conduz até ele: o realizar é, pois, passivo e, sendo assim,
11111ito estrcilanwntc, ;'i idéia, q11(' se- ton1ou n1tdh111ia, como sendo um
aparentemente tão óbvio que nem mesmo é mencionado, <1Ha11to mais
.1,s11nto h<'lll da al<,-acla desta. lk an>nlo com A1·is1ó1elc-s, realiza~·ào f
pensado. Essa pouca consideração pelo ato próprio e ativo do realizar
, 111 icamcn1(' a11to-rt'alizac:,io da idéia-fonna i11<·n·11tc- às coisas 011 da t'ntdf-quia.
tampouco se alterou fundamentalmente quando, em tempos mais recentes,
\ cntc-lé<tt1ia é, assim, da nwsma a cnc-rgia (011 o adus) para sua n-aliza<;ão.
o homo Jaber~ o fazedor, empreenckdor, pn)dutor, ck falo foi n·lletido
l'odavia, um aspcclo 11,10 1.10 lógi<-o igualmc-111<' trnnspan·cc- no primeiro
filosoficamente. Ao exclusivamente racionalizar o alo da produção
[Erzeugung], isto é, ao concehf-lo corno Hill ato puramente l<'>gico, a 1wnsador da rcaliza(,10,j11slam('nl<' algo não tão l<'>i-,rin> que, d(' longe, procura
1.1/er jus ,1s inledc:·rfncias sofridas pela rcaliza~·ão ou até ;1s suas apmias.
ideologia racionalista, ou até paulógica, fon1<·ccu um motivo a mais no
\ristótc-Ic-s pr,e o aspeclo inacabado da J'C'aliza(,10, pdo qual da lica aquém
que se refere à não-reflexão da realizac,)o. Na épon1 do racio1_1,~lismo, a
, L1 entc-léquia, na cdnla da matéria m<·cânica, na medida cm que esta in1nJdnz
produção, inicialmente concc-bida em lermos puram<' 11 le mal c1na t 1cos, que
·.-ausas colalerais interferentes" nas causas finais ela enldéquia. Desse modo,
estabelecem e definem apenas ol~jetos fonnais, lrausJúnnou-se, ao cabo de
•,11rge o não-definido, surge o casual na nattm·za e o d('stino cap1ichos~J ~~o
muitas requalificaçôcs dessa "constnt(,'ão", na própria forma(ào do mundo.
.11nbito do evento i11tcncional, da história. Ao rnc·11os se trata <k urna ideia
E continua a se tratar de HIil conceito de produção p1·edomina11temente
\'<lltada para o prohkma, ainda que seja ide-alista, <' se assemelha bas~ante
fom1al, ou s<:ja, orientado pela matemática, na qual a razão constitui o
.,o que Goclhe exprime no Fau.1to: "Ao que de- mais magnífü·o, outrossim, o
mundo da expc-riê:ncia, como em Kant. Depois, a produção passou a ser
.-.~pírito concebe,/ assnnlo cada V<'Z mais · estranho af1111· s<·mpn' ""º .- e,orno e✓
vista co1no cxpe1irncntal crn tennos de conteúdo, situada na pcrsp<·ctiva da
p.irecido até mesmo o discurso hegeliano, não obstante toda a limitação do
produção I Produ.kti.on I artística, corno em Schelling, autor em que a
11.'io-panl6gico à natureza:
espontaneidade não só prescreve à natureza as suas leis, mas nia a natureza
- con10 sendo a natureza produtiva consciente-, ou s<:ja, aniina-a a assumir
Essa c·asualidade é extrema no reino das fon1ias concretas, que,
sua liberdade e insere-a na sua própria evolução. E por fim, cm Hegel, a
contudo,como coisas da natureza, são apenas imediatamente concretas (... ) -
produção se tornou experimental em tennos de conteúdo, além de bem-,
Trata-se da incapacidade da natureza de conservar as defini«;:ões
acabada, na perspectiva da história e sua gênese, o que se dá pelo fato de
que aqtú todos os conteúdos formais do mundo deviam brotar dialeticamente
da "razão sólida regendo continuamente". Portanto, essa é, in n:uce, a clássica
Parte I, linhas 634-35. Tradução dt' Antenor Nascentes e José Jtílio F. de Soma,
co11cTi I u.1is apc:11as ahsl ralamenle e· <'XJ><!r ii de1<-r111i11.ic:;10 e·, 1<·1 11.1 a exe- c:-..dt1siva111<·11l(' disn11d1;1 e· d<'srcgTa111c-11to, ddon11idadc-, doc111,;1 1· 11101 I L
cução do que é especial (Enciclopédia das ciênciasjilosójicas, ~ 2:'>0). 21 l'orla11to, aqui Sd1dling separou o que se realiza e a id<~ia. lkss;1 101111;1
,1hs111da e total, ele absolutizou as aporias da própria realização, lon1a11do
E, ainda assim, nisso se mostra tudo que no problema da realização .1s insolúveis. E tampouco solucionou a tradicional ligação do realizar com
não é colocado e1n e para si mesmo, mas empurrado para um bod<' 11111a idéia pronta, meramente a ser manifestada. A ligação foi declarada
expiatório: para a matéria mcc:ânica ou, em Hegel, para a condição dt· como puramente negativa: a vontade particular e má realiza o oposto cb
estar fora de si mesma, inerente à p1·ópria nalurcza, como sendo a ,·ontade universal e boa. Aqui, tanto quanto nos otimistas da encarnação,
"contradição não resolvida". 11ão se concede um horizonlc aberto nem ao fator da realização nem à sua
Porém, o autor e a ação nao se estranham, eles mesmos, cada vez imagem-alvo. Estas são, portanto, as razôes pelas quais as debilidades tanlo
mais? Esta é urna idéia que prelende alingir o n·alizar no s<·u coração quantitativa quanto qualitativa da realização ainda permanecem sem uma
ainda obscuro. Por essa razão, 11;10 podemos nos despedinlas n·miniscências ;1bordagem adequada. Vê-se que não é possível nem mesmo tratar das suas
histórico-filosóficas c·onc·ernentes à realização e sua debilidade sem antes aporias - daquela do canítcr inacabado ati- a da não-sobreposição da
tcnnos apontado para o Schelling lardio, o único que ao menos quis realização, por melhor que sc:j.1, com asna irnag<'m-alvo- fora do problema
arrnncaro problema da ,·ealização das mãos do racionalismo total. Todavia, da utopia. E 1anto menos se pode fazê-lo porque o utópico acaba excedendo
em compensação, deixou-o à mercê de uma mitologia funesta: a mitologia o que foi, n·alizado de tanlas maneiras que, depois dcslc, reaparece no
da qu<'da no pecado e da apostasia de Lúcifer. De acordo com o Schelling nuno de novos alvos.
lanlio, ao quidou à essência racionalmente compreensível de alguma coisa Dizíamos que, mesmo qnanclo algo s11cede, ainda h;-í algo que fica
de modo algum segue necessariamente o seu quodou o fato dt" sua exislência para 11·,ís cm rda,,Jío a si mesmo. Algo fica obscurecido e não consegue se
e a migem de sua ocorrência. Ao contrário: tornar real a idéia é,já na sua liberlar completamente cksse não, desse não-aí em meio à proximidade
migem imemorial, vontade particular como sendo "apostasia cm relação à imecfütta do acontecimento. Acima,j,í foi caracl<Tizado o aspeclo turvador
idéia", mais precisan1ente uma apostasia que ocorre já cm Deus, no abismo justamente do inslanlc recém-vivido. E éjuslamcnte esse aspecto tmvo que
ou no espaço sem fundo do fundamento divino. A-,sim, no ensaio Philosophie difirulla cxpnimcular da forma mais imediata possív<'l algo sucedido
und &ligion í~Filo.10jia e religião], Schelling unific-1 o logo., com o criador e plenamc·ntc- como lal. Simnltaucainentc, porém, esse im<'diatismo t·xtremo
constitui um tipo de prototransgressão, a vontade paI"ticular obscura e má, cm si nada mais é que o propulsor, o l"alor fact11al I Da.1.1-Fahlorl, logo, o
como fonte do ser: caráter i11lensivo elo que se está realizando. E, com muito maior razão, isso
que c·sl,Í se· realizando ainda ni'ío se c·n<·ontrn de posse· elo seu ato nem do
Numa palavra: não exist<' uma transição continuada do absoluto para o seu n>1~teúdo. O turvo do instante n-cém-vivido indica exatamente esse não-
real, a origem do mundo cios sentidos só pode ser pensada como ruptura possui1--se do que e.,tú sP realizando. E é j11stan1c11le esse ainda-m"io-atingido
completa em relação ao ahsohtlo, c·omo nm salto (Werke VI, p. 38). no que está se realizando que, cm piinwira linha, lan,;a sua sombra sobre
o aqui-agora do que foi realizado. Portanto, a solução de piinc·ípio para o
Desse modo, Schelling d<' fato c:olocou a realização muna folha não-w,tfJe dinn, o ainda-não-carpe diem, totalmente sem romantismos, consiste
diferente daquela que havia sido escrita pela idéia. Ela cessa de ser uma nisto: o realizado está, ao mesmo tempo, recheado e levemente
mera manifestação do ol~jelivamente lógico. Contudo, o preço pago por <'nsombrccido porque no que está se realizando /ui algo que ainda niio se realizou.
essa remissão do lógico ao volitivo e ao inlcnsivo factual é o fato de a O incalizado que está se realizando insere esse seu peculiaríssimo rninus
realização ter sido inserida na mitologia e, dentro desta, simplesmente no fJlus da realização assim que esta ocorre. Essa é a p1imeira razão pela
demonizada. E ainda se acrescenta que, de acordo com Schelling, não só a <piai, <·omo diz Goeth<', a prnximidade traz dificuldade, pela qual mesmo
primeira impulsão cósmica irracional mas também cada realização isolada uma realização que parece suficientemente perfeita, rebus sic slantibw~ traz
no mundo produz, partindo da primeira impulsão irracional, consigo igualnwnte uma melancolia ela realização. E é a razão pela qual a
imagem-alvo precedente, com o seu teor utopicamente antecipatório, ainda
não consegue se enquadrar inteiramente na sua realização, restando,
21
Cf. trad. de Artur Morão para o português lusitano em G. W. F. Hegel. Encidopldia das
portanto, como uma força que continua impulsionando, muitas vezes até
ciências filosóficas. Lisboa: Ed. 70, v. 1-111 (aqui o § 230 é referéncia errônea para o texto
citado). impulsionando para o absurdo. Pois o próprio conteúdo ideal ou conteúdo
fi11:tl 11i10 se c11co11trava na proxin1idade própria da <·011,,·, 111,.10 do li111.
Jnstan1enle o conteúdo final distante, por causa desse seu di"L111ciame11lo,
por causa do seu estar-afastado do aqui-agora, ainda se encontrava fora do o n1mpo11c1tlc h;ísi<"o dessa i1np11lsiio, a <"SJ><T.tll(a, <·sta1 ia i11lcg1 ;ulo, 01110
turvamento do instante recém-vivido. Contudo, ao penetrar no realizado, tal int<"iramcnte na realidade efetivada. O conteúdo do n-ali1.ado .~<·1 i.1,
o utópico-antecipado ao nwsmo ternpo penetra justamente na sombra t'ntão, o próprio conteúdo do que está se realizando, a essê·ncia do qu,'·
daquek imediatismo mais central que, pertencendo ao que está se 1 was] (quidditas) da solução corresponderia exatamente ao funda11w11to
realizando, ainda não foi clareado. Dessa razão prim<'iria ao mesmo tempo exposto do quê ldass] (quodditas) do mundo. A essência - a matéria 1111u.,
resulta, no que seg-ue, toda a penumbra em que também o processo da qualificada possível - ainda não apareceu, razão pela qual a sensação de falta 1'111
realização ainda se encontra e deve se encontrar, e que se chama processo qualquer manifestação até ªKº'ª bem-sw:edida representa o seu em-absoluto ai.ri/la
histórico. Já que, por seu conteúdo propulsor e orig-inador ainda não rl(io manifestado. Porém, o mundo tem lugar também para essa sensação dC'
realizado trata-se de um processo ainda não definido, de pode desembocar falta: na linha de frente do seu processo, o próp1io conteúdo-alvo está c·m
tanto no nada quanto no tudo, tanto no vazio total quanto no êxito total. E fermentação e é possibilidade rC'al. J\ consciência concretamente
da mesma forma que afortunadamente ocorre, nesse nnul<lo tão salpicado antecipadora está clircc·ionada para essa c·cmcli<;;ão do conteúdo-alvo: nesta,
de tons claros e escuros, u1n relampejar do tudo possível, também se aquela tem a sua abertura e positividade.
apresentam ameaçadores os turvamentos do nada possível. /\inda que o t
ser esteja longe de se ver centrado na morte, existe um bafejo e um 17. O mundo em que a fantasia utópica tem um correlato
envolvimento da negação sem qualquer brincadeira, mesmo sem uma Possibilidade real
negação automática da negação. Nisso estão contidos toda amca(.'a ã vida e As categorias front, novum, ultimum e o horizonte
toda morte individual, os milhões de jovens que caíram 11as g-uerras
mundiais e a estupidez pertinaz que não tira qualquer lição disso. Trata-se O nili/'O fHHÍt', f>0rtrmto, tomar com.o ponto de
das protcla<:<>cs e frustraçôcs que interron1pem as concfü:ôes da realização f1artida qualqner/órrna da ton.w:iPncia teórica e
positiva. Da mc-sma forma, o fato de o não contido no não-possuir-se do /mítica e, a fmrtir das /mí/1rias/ormas da realidade
que est,Í .~<· realizando poder levar igualmente ,1 não-rcaliza<:ão do conteúdo exi.1·1r,nte, dt's1im1obl('r a verdadeira rl'alidade com
tc-11dcncial essc-ncial, enfim, do conteúdo da rcaliza<:ão, faz com que esse 1·eu de1wr-sl'r ,, .1eu fim último. (. .. ) Ficará
envolvi111c-nto ameaçador do em-vão e· do nada já produza a perturhação- r(Jirú,·111:iado, 1'fl tiio, q11P o mundo há muitojá possui
dc um lado, a resistência no material; de outro, o g-ig-antesco sono da tolice o sonho d1' urna roisa, da qual de só pniâsa possuir
011 do disparate nas águas de tão dirícil uavcg-a<:ão do nosso mundo em 1l coustih11'ia para fJ11ssu.í-la realml'nlii.
processo. Esse envolvimento do nada é o que Aristóteles pôs cJToncamente Marx, Carta a Ruge, 1843
na conta da matéria mecânica, o que Schelling quis c-xtirpar da razão como
sendo o velho Satã, situando-<} no fundamento primordial do mundo. Ambos Estou torwent:ido dt' qul' o e.1jJírito unimrsal
procuravam um bode expiatório para o imperfeito no seu mundo do tem/10 já deu o cornrmdo f1ara 1wançar; esse
aperfeiçoado, isto é, j,í definido estática e conclusivamente. Em comando está sendo obedecido; esse ser
contrapartida, a noção do processo como indefinição - tendo o nada ou o marcha qual fálange encouraçada, em
tudo como real possibilidade final - não necessita de um bode expiatório, formação cerrada, irresistivelmente e 'f!Urn movimento
nem em vista do caráter inacabado existente nem em vista da irnag-em-alvo tüo imperceptível quanto o arl(lnço do sol, sempre
não bem-acabada na melhor realização concebível. Ao contrário: nas aporias fJara a frente, se deparando com situaçàes boas e
da realização, os elementos são um estar-realizado ainda não evidenciado m.â~~- inumeráveis tropas leves rontra e a favor do
do que está se realizando e - estreitamente ligado a isto - um em-absoluto m.esm.oflanquei.arn-no; a maioria nem sabe do que se
e uma essência ainda não descobertos, ainda não positivamente trata, e ajJerias reabe na cabeça. golpes corno que
manifestados, ainda não realizados. Somente se existisse um ser como utopia dt,1feri.dos por urna miw invisível.. O lance mais seguro
- logo, somente se o tipo de realidade do ser-exitoso tivesse tornado presente certamente éficar de olho no g;i,gante que avança.
de modo radical o próprio conteúdo propulsor do aqui-agora-, também Hegel, Carta a Nietham.mer, 1816
O ~er hnmano niio .~e basla par 1·ial-nmdicio11al, sendo ek o deknninado quc ainda 11~10 cst,Í co111pk10
Imaginar-se nnnando para o melhor sucede, num pri11wi10 1110111<·1110, <'011duído. Todavia, neste ponto, deve-se distinguir entre o cognitiva 011
e )t t
apenas interiormente. É um indicativo de quanta juventude reside no sei ohjdivamente possível e o possível-real, sendo este o único relevante para
humano, quanta coisa há nde a esperar. Esse esperar não quer adom1ecer, o presente contexto. Objetivamente possível f tudo aquilo cuja ocorrência
por mais que tenha sido enterrado: nem mesmo no caso do desesperado 11ode ser cientificamente esperada, ou que pelo menos não pode ser excluída
ele tem os olhos totalmente fixados no nada. Até o suicida se refugia na com base no mero conheómento parcial de suas condições dadas. Realmente
negação como se fosse um colo: de espera o sossego. Inclusive a esperança possível, em contrapartida, f tudo aquilo n~jas condições ainda não estão
frustrada vagueia por aí atormentando, qual fantasma que não encontra o integralmente n·lmidas na esfera do próprio objeto, seja porque elas ainda
caminho de volta para o cemitéiio, e anda atrás de imagens refutadas. Ela estão amadurecendo, s~ja sobretudo porque novas condi<:õcs - ainda que
não desaparece por si nwsma, mas sornent<' dando-se uma nova forma. O mediadas pelas existentes - conc01n·m para a oc-orrência de um novo real.
que caracteriza o amplo espaço da vida ainda aberta e ainda incerta do ser O ser em movinu·nto, que vai se modificando, que pode ser modificado,
humano {- a possibilidade de assim velejar cm sonhos, que são possíveis assirn como se apresenta em termos dialético-mal criais, tem esse poder-vir-
sonhos diurnos, muitas vezes do lipo totalmente sem base na realidade. O a-ser inconduso, esse ainda-não-<·star-conduído tanto na sua base quanto
ser humano fabula des<:jos: {- <'apaz disso <' <'lll si mesmo encontra material no seu horizonte. De modo que a partir daí pode ser afinuado que o
suficicnlc, mesmo <p1c nem sempre S<:ja do melhor, do 1nais dur,ívd. Esse reahnc11te possível da novidade .,,11:fiân1lem.enle mediada, ou s<:fa, mediada em
fermentar e efc1vesccnu-ima da consdência constituída é o fHimeiro i:orrelato termos dialétiw-·materialistw,, confcn: à fantasia utópica o seu sf!gundo wrrelato,
da fantasia, que p1imeiramentc é apenas interior, situado no interior de si o correlato conaeto situado fora de um mero frrmentar, ck uma mera
mcsnia. Mesmo os sonhos mais idiotas existe1n ao menos na forma de holhas efrrvcscê•ncia no círculo inteiior da c·onsciência. E enquanto a n'alidade
de cs1mrna~~ e os sonhos diurnos até contêm uma espuma da qual às vezes não for nunpktamc·nte determinada, enquanto da coulivcr possibilidades
já surgiu uma Vênus. Em parte alguma o animal conhece isso: somente o inconclusas em novas gcnninaçõcs e novos espaços <k <:<>nfonnação,
ser lnunauo, que, embora muito mais desperto, entra cm efe1vcscência encp1anlo for assim, não poderá proceder da realidade meramente fatica
utópica. É como se a sua existência fosse menos impermeável, apcsar de, qualqu<'r ol~jcção absoluta c·ontra a utopia. Poderá haver ol~j<·ção nmtra
comparada com a da planta e a do animal, ser muito mais intcnsa. Não utopias malfeitas, isto é, contra aquelas que divagam abstratamente,
obstante, a existência humana possui um ser mais em fenncnla~:ão, mais incorr<"tamenlc nwdiadas. Contudo, exatamente a utopia concreta tem na
alvorescente na sua borda e orla s11pe1ior. lt como se aqui algo tivesse realidade do jJrucesso um cmn·spornkntc: o do rumum. mediado. Somente
ficado oco, um novo espaço vazio lcTia acabado de surgir. É nele que se essa J'<'alidade do pron·sso <· não uma fatiridack ahsolutizada e rcificada,
movem os sonhos, e no seu inte1ior circula o possível que talvez nunca arrancada de dentro da realidade, pode Júnmtlar um juízo a respeito dos
podcni se tornar exterior. sonhos utópicos ou rebaixá-los a meras ihts<>t·s. Se· esse direito <TÍtÍCo fosse
dado a qualquer mera faticidade no mundo exterior, seriam absolutizados
No mundo ·muita coisa ainda e.,tú inconclusa o existente fixado e o que veio a ser como sendo a realidade pura e simples.
Todavia, nada cir-culaiia interiormente se o exterior fosse totalmente Porém, apt·nas na realidade fortemente transformada de h~je já fica claro
estanque. Do lado de fora, porém, a vida é tão inconclusa como no cu que que a limitação ao fato foi bem pouco realista, que a própria realidade
opera nesse lado de fora. Nenhum objeto poderia ser reelaborado ainda não foi elaborada, que ela contém em sua margem coisas que se
conforme o des(:jo se o mundo estivesse encerrado, repleto de fatos fixos avizinham, que estão irrompendo. O homem do tempo presente domina
cm até consumados. No lugar deles, há apenas processos, ou seja, relações perfeitamente a existência no limite, fora do contexto expectante habitual
:linâmicas, nas quais o existente dado ainda não é completamente vitmioso. em relação ao que veio a existir. Ele não se vê mais cercado de fatos
O real é processo e processo é a mediação vastamente ramificada entre o aparente1nente consun1ados e não mais considera estes como o único real.
presente, o passado pendente e sobretudo o futuro possívd. No seu Jront Irrompeu nesse real, de forma abaladora, o nada fascista possível e
processual, todo real passa a ser o possível, e todo possível é primeiramente sobretudo o socialismo, enfim praticável e detenninado. Portanto, chegou
a hora de um novo c:ofü:cito de realidade, diferente do conceito tacanho e·
enrijecido da segunda metade do século XIX, diferente do conceito do
2
Alusão ao ditado alemão Triiume sind Schiiurne, "sonhos são só bolhas ele <'spuma".
positivismo avesso ao processo e também do seu correspondente: o mundo
id<"al d<"scompromissado da pura aparfaKia. Um enrjjccido n ► 11<TÍl0 d,· e 011s11111,11la d1'11l10 cb I ha111ada l<>g-ic1 lí-rrl'a (b hi~IIÍri.1, do 111c·s1110 111oclo
realidade por vezes penetrou até no marxismo, fazendo com <pte ck s,· c1111· havia juntado as mãos diante da resolução de Deus. Nl'ssa li11lta, po1
tornasse esquemático. Não é suficiente falar de um processo dialético, ,. l'Xl'mplo, o capitalismo foi declarado como seu próprio covl'i1 o,
depois tratar a história como uma série de fatos fixos que sucedem um ao .simplesmente deixando que funcione até o fim, e mesmo a sua dialé-tic1
outro ou ainda <'orno "totalidades" fechadas. Aqui hà o perigo de um pareceu suficiente, autárquica aos sc-us próprios olhos. Porém, tudo isso ,:
estreitamento c- de uma redução da realidade, um abandono da "força errôneo desde a base: trata-se de tal modo de um novo ópio para o povo
atuante e da scrnentc" contidas ncla - e isto não é mais marxismo. Ao que, cum grano salis, mesmo uma pitada de pessimismo seria preferível à lÍ'
contrário: a fantasia concreta e o imagirnüio de suas antecipaçôes mediadas 110 progresso automático, pois, muna dimensão realista, um tal pessimismo
estão, eles mesmos, fermentando no pr·ocesso do real e se refletem no pelo menos não fica tão dc-samparndo e smvrcso diante de fracassos e
sonho para a frente concreto. Elementos anlccipatórios são um componente catástrofrs, diante das terríveis possihilidades que estavam e estão implicadas
da própria realidade. Portant.o, o desejo de utopia pock ser p<'rfcitamente no avanço eapitalista. Pensar ad pe.\sÍm1w1. é, para toda análise que não o
ligado à tendência ol~jetal e nela se confirma e se sente em casa. absolutiza, um companheiro de viagem melhor· que a ingenuidade barata,
e de constitui a liieza CTÍtic1justa111ente no marxismo. Para toda decisão
Otimi.Hno militan!P, a.\ i:ategoria.1 front, novmn, ultirnum revolucion;ír·ia, o otimismo automático n,io é: menos venenoso do que o
l~ preciso que justanH·nte o homem derTotado volte a tentar o lado pessimismo absolntizado, vislo que, <'nquanto o último cst;-í abertamente a
de fora. Ainda não cstéi decidido o que há de emergir: aquilo qu<' agora é se1viço da despudorada posic;;ão r·<·a<'ionfüia digna do nomC', tendo como
pântano pode S<'I' drenado. Redobrando-se a coragem e o saber, o futuro propósito o des<·stímnlo, a p1imein1 presta auxílio à. posi~·ão reacionária
nã.o vir;í como fatalidade sobre o ser humano, mas o ser humano virá envcrgonl 1ada, tendo como propósito a c·oudescendência do malicioso piscar
sobre o fütmu <' ingressaní nde com o que é: seu. Aqui, o saber, que necessita de olhos e· a passividade. Pol'tanto, <·m lugai· do otimismo falso - tendo em
da coragem e· sohretmlo da decisão, nüo pode assumir a forma mais comum vista o venlackin> -, a única coisa associada ao saber da decisào e à decisão
do sahc1· habitual, a f'orma eontemplativa, pois o saber meramente do saber obtido é, por seu l11n10, o seu rnrnda/o na f)().\Úbi.li.dadii real, rnncebido
rontcmplativo Sl' rcf'en- forçosanwntc ao que já está concluído l'_j;í passou, em ln·1no.\ ulófJim-,·on1rl'los, <'<>mo um corn·lato cm que de modo algum todos
n;10 tem meios diante de coisas presentes e é cego para o futuro. Aos seus os dias são noilC', mas tampouco - em termos do otimismo não-utópico -
próp1ios olhos, d<' parece tanto mais saber quanto mais distantes no passado Iodas as noites, dia. A postura cliantc desse c-ená.-io ck inclt'cisão, contudo
e 110 concluído se situarem os seus ol~jctos, ou seja, quanto menos eo11t.-ilmir passível ck S<'I' clt'ddido p<>1· meio d<' trabalho <' a<:ão cotHTclamente
para que algo seja aprendido da história - como história que aeontccc cm mediada, diama-sc otimismo 111ililan!P. l~ verdade que, por meio dele·, como
tcndênda - para o presente e o futuro. Correspondentemente, o saber diz Maix, nã.o süo realizados ideais ahstrntos, mas c·<-rtanwntc são liberados
necessário à d<'cis;'io tem um outro modo: um modo não só contemplativo, os elementos rcpr-irnidos da sociedade uova, h11111a11izada, ou s<:j;i, do ideal
antes um modo qne aeompanha o processo e c·stá conjurado ativa e eonffeto. Trata-se da clecis;io revoluc-ionária do proletariado, que se aplica
partidariamentc com o bem que vem abrindo caminho, isto é, com o <Jlle h<~jc, na hatalha final das lihcrtaçôes: uma ele-cisão elo fator sul~jctivo aliado
é digno do ser humano no processo. Desnccess;lrio dizer que c·ssa forma aos faton·s o~jetivos da tendência econômico-material. E não como se esse
do saber f a única ol~jetiva, a única que reproduz o real na hisl<Íria: os fator sul~etivo, pertencendo à realização e à transforma<:üo elo mundo,
acontecimentos produzidos por seres humanos que trabalham dentro do fossi: algo diferente de uma atividade material. É cer·to que ele é uma
1ieo teddo processual entre passado, presente(' futuro. E esse tipo de saber, atividade material, assim como é certo que foi desenvolvido primeiramente
justamente por· não ser apenas contemplalivo, cfetivamente condama os pelo idealismo, e não pelo materialismo (mecânico), como sendo o lado
s1~jeitos da própria produção conscient<·. Como não se trata de quietismo, ativo (produção, produtividade, espontaneidade da consciência), o que foi
ele tampouco cultiva, na relação com a tendência descoberta, aquele enfatizado por Marx na piimeira tese sobre Feuerbach. E tampouco é como
otimismo banal e automático do progresso cm si, que é apenas uma reprise se a atividade própria da transformação do mundo, ou seja, do otimismo
do quietismo contemplativo - e é uma rq>tise porque traveste o futuro de militante, pudesse ser de fato efetiva, duradouramente revolucionária, se
passado, porque olha para o futuro como s<'ndo algo há muito fechado em ficasse um instante sequer desligada das tendências reais da atualidade: s<·
si mesmo e, como tal, concluído. O s11jci10 pode, então, cn1zar os braços o fator subjetivo ficar isolado, toma-se meramente um fator do golpismo <'
diante do Estado do futuro, que entüo se apresenta como conseqüência não da revolução, das ações à maneira de Spiegelber·g e não da ohra
1 l';il i1;1da. ( :o 11 t 11do, 1-cco rilH'<"<' rulo-sc as <·o n<·xo<·~ da de·, 1,;10 <· c 1w1111111 11<·111 <k lo11g<' l<>i <·,11·act<'riJ:ada da 111a11c11";1 ;1<l1·q11;1<l.1, e
, all'gotítt
cxatam<·nll' o saber na dec-isão que garante essa noção-, o podcT do fator 11ao ('tH·ontrou csp,u,;o e1n nenhunia cosrnovisão pré-1na1xist.1. ( )111p1a11do
subjetivo não pode ser valorizado de modo suficientemente elevado, nem p;1n·cia encontrá-lo, como em Boutroux e sobretudo ua l'ilosol ia
suficientemente profundo,justamente como a função militante no otimismo hergsoniana do estilo jovem ou da secessão, então o novo foi cun11·.ido
militante. A decisão conueta para a vitória luminosa na possibilidade real apenas sob o aspecto das modas que se alternam absurdamente e ceklmulo
é o mesmo que o contragolpe que se opõe ao fracasso no processo. É o dessa maneira. O que surgiu a partir daí foi meramente um outro tipo de
mesmo que o contragolpe da liberdade se opondo ao chamado destino rigidez da surpresa sempr·e idêntica. Algo semelhante já foi explicado por
que paira acima do processo, e que o empena pela paralisação e pela ocasião da ban-eira que por tanto tempo impediu o conceito do ainda-rni.o-
rcificação. É o mesmo que o contragolpe que se opõe a todos esses consciente. De modo que o alvorecer, o iriápit vita nova, inclusive a chamada
fenômenos de morte da família do nada e à movimentaçiio do nada como filosofia da vida, constant<·mcntc fica sendo algo fixo. Assim, o conceito do
sendo a alternativa da própria possibilidade real. Ela é:, enfim, o contragolpe novo aparece cm fü·rgson meramente como oposição abstrata à repetição,
que se opõe ao alastrante efeito ruinoso da pura negação (gm·ITa, irn1pção freqüentemente corno niero reverso da uniformidade mecânica. Ao mesmo
da barbá1ic), parn que, por meio do redirecionamento dessa destruição tempo, ele .foi atribuído sem exceção e, p<ff isso, depreciativamente a
contra si mesma, ontsionalmente, também aqui tenha lug;u- a nega<:ão da todo rnoni<·nto da vida. Até mc·srno a duração de alguma coisa, a durée
negação<' a dialética s<:ia ativamente vitoriosa. A decisão concreta sempre irnaginada como sendo 11uentc, é fundada por Bergson sobre o contínuo
est,í cm luta contra o imobilismo? Entretanto, não sendo golpismo, mas, ser-diferente. Pretensamente porque, no ciso de um persistir realmente
na qualidade de militante, otimismo bem fundado, ela está em paz <·om o inalterado, o <·omc<,:o <· o fim d<·ss<· estado seriam indistinguíveis,
processo, que dessa forma corrige o fatal imobilismo. De modo coincidi1"iam ol~jdivarnent<· e assim o frnômcno não te1ia duração. Em
<·01n·spondente, no pror<'sso dialético-rnate1ial, ser humano <' proC'csso, Bergson, o nov1un como um todo não é: esdare<·ido mediante o seu
011 mclho1·, tanto s1~jeito quanto objeto se situam igualmente no front. E caminho, suas disp<TsÜes, sua dialética, suas i111agc-11s da esperança e seus
para o otimismo militante não há outro lugar senão aquele que lhe é produtos genuínos, mas reitcrndarnent<' m<'diantc sua oposição ao
franqueado pela n1l<'goria fronl. A própria filosofia desse otimismo, a mc·c·,rnisrno, pda reiteração sem cont<·1ído <k mn elii vital cm si e para si.
<'spcrança <·oncebida em termos materialistas, sendo o saber pontuado da Um grande amor pelo novwn é efetivo, uma grande indina<:ão pela
11ão-c·ontcmplação, cst;i ocupada com o trecho mais avançado da história, ahe1·t11ra salta aos olhos, mas o processo pcrman<•<'<' vazio e reit'crada1nente
e isto tarnbé:m quando ela se ocupa com o passado, ou s<:ja, com o futuro nada produz além do processo. A eterna te01ia m<'tarísica ela vitalidade
não desonerado 110 passado. A filosofia da esperança compreendida se alcan<;a, no final das contas, c·m lugar do rum,un, apenas a vertigem,
situa, por isso, fJer dtfinitionnn no front do processo do mundo, isto é, no justamente p<H" causa da rnmlan(a de orientação permanentemente
trecho mais avaru;ado, muito pouco refletido do ser, da matéria movida, requerida - rcq1wrida por c:ausa ck si mc·sma. Assim, co111 ela não surge
utopicamentc aberta. a cmva louvada por Bergson, mas um ziguezague no qual subsiste apenas
Nem tudo o que é sabido é igualmente reconhecido, muito menos a figura do caos - de tanta contraposi<_:ão à uniformidade. Logicamente,
quando se trata de algo recente. Assim, o conceito da n<midade, tão tainhé:m o futuro concebido abstratamente acaba num l'arl fHJUr l'art da
estreitamente ligado ao do fronl, tampouco se encontra numa boa situac;ão. vitalidade, que o própl'io Bergson iguala a um foguete 011 a um "imenso
O novo se movimenta psíquicamente no ân:ibito do primeiro amor, e também fogo de artifício que constantemente faz saltar novos frixcs de luz de dentro
110 da sensação de primavera. Apesar disso, este último praticamente não de si mesmo" (L'Évolution créatrice, 1907, p. 270). Neste ponto se deve
encontTou um pensador. Ele preenche, repetidamente esquecido, as enfatizar que de modo algum há em Bergson um novwn autêntico. Ele
vésperas de grandes acontecimentos, abrangendo uma reação mista apenas conduziu o seu conceito, mediante pura sobrevalorização, à condição
altamente característica de temor, prote(ão, confian(a. Fundamenta, no de novidade capitalista na moda e assim a estabilizou. O próp1io elã vital e
prometido novwn da felícidade, a consciê:ncia do advento. Perpassa as nada além dele é e permanece sendo um fixurn da contemplação. A razão
expectativas de quase todas as religiões, na medida em que de fato é possível social do pseudo-novum de Bergson está na burguesia tardia, que em si
entender corretamente a consciência dt· fut um primitiva, inclusive do antigo mesma nada mais tem de novo em termos de conteúdo. A razão ideológic1
O1iente. Permeia toda a Bíblia, desde a bênção de Jacó até o Filho do coITespondente reside na antiga e forçadamente reproduzida elimina1J10
Homem que renova tudo, e até o novo cé:u e a nova terra. Apesar disso, a de duas das condições mais essenciais do novum: a possibilidad(' <' a
linaliclade. Bergson vê operar em ,unhas o rn(·smo es(pw111.1t 1s11111 d;, 1a1.ao ,·111 vi1·11uk elo salto total para fornde todo o havido até ali. 'l'r;1t;1--se, p«ll c-111,
letal, hostil à mudança, que de resto ele vê operar como ('spa(·ializa<:üo, d<" 11m salto para a novidade cessante ou a idt'ntidade. A categoria 11/ti11111111
causalidade, mecanismo. Desse modo, para ele, o poderoso reino da 11;°io subsiste de maneira tão irrefletida corno a do novum.. O último scmpr ('
po... úbilidade se torna um reflexo da retrospecção: não existe nenhu111 foi um o~jeto [ Gegen.1tand] daquelas religiões que estabeleciam um pnw,
possível - trata-se de uma projeção lançada parn dentro do passado pelo t;nnbém para o tempo, corno ocorrt' sobretudo na filosofia da relig-i,io
que de novo está surgindo. De aco1·do com Bergson, é no âmbito do judaico-cristã. Todavia, exatamente nessa abordagem categorial ficou
possível que se pensa o nf)11Utn que acabou (k surgir apenas con10 um caracterizado que a corrt'sponclenle abordagc1n do novum, que deveria
"possível tendo sido": precedê-la, praticamente não existiu: em toda a filosofia judaico-cristã, ck
Fílon e Agostinho até I kgel, o ulli.111:wn se refere exclusivamente a um primu,11
O possível nada mais é que o n·al mais um ato intelectual, que projeta a (' não a um nomun. Em decon-ência disso, o último aparect' meran1ent('
imagem desse real de volta ao passado assim que o real surge. (... ) Porém, como retorno alcan<:ado ele mn Jffimcin> j,i consumado, perdido ou
o verdadeiro jorrar da novidade imprevisível, não prefig,.mula em qualquer alienado. A forma desse retorno é a retomada da fonna pré~1istã da fênix
possível, é um real que se torna possível e não um possível que se toma que se qm1ima e se renova. Ela retoma o ensino lwraditiano e estóico do
real (LaPenséeet !eMouvant, p. 133). incêndio do mundo, segundo o qual o fogu de Z('US n-sgata o mundo para
dentro de si mesmo e, num tempo cídico, novamente faz com que emane
Com isso, ele sintomaticamente quase reproduz a prova da anti~ de si mesmo. Este é o ponto: o cido é a figura que prende o ulti.m.um de tal
possibilidade do megarense Diodoro Cronos, que apresentava afinidade maneira ao fJrúnum. que ck fica lógica e m<"tafisic:amente desbotado. Com
_justan1ente con1 os cleatas, que ensinavain uma inércia absoluta. E, da certeza, l lC'gd viu o fJrim.um do ser-em-si da idéia não só n·p1uduzido mas
mesma forma, Bergson se frcha para o conceito do nm,um., considerando a também plcnificado no ser-para-si ela idéia, que constitui o seu ultimum. e
f'i:nalidacfr como o mero estalwkcimento de um alvo final l'Ígido, e não no qual o processo ressoa como 11111 amém: "a imecliatez mccliata" é atingida
corno o pendor almejante da vontade humana, que primeiro busca nas no ser-para-si, cm lugar ela irnecliatez imediata no início elo mero ser~m-si.
abertas possibiliclades do futum pn-cisamente o seu para-onde e o seu para- Neste <·aso, po1ún, esse resultado, assim como em cada isolada época de
quê-. Melhor ainda: como pendor almc:jante de um trabalho, sohn·nulo de formação do processo elo mundo, continuou sendo cídico também na sua
um planejamento que balizou o seu para-onde e o seu para-<p1ê'. e que totalidade. Trata-se do n1ovimento circular da resli.tu.ti.o in integrum.,
pen-o,n· os caminhos até des. Porém, fazendo coincidir toda previsibilidade totalmente cksprovido elo novum.:
com estimativa estática, de deixou escapar não só toda antecipação niaclora,
essa aurora da vontade humana, tnas também o ·n01nw1. genuíno <·omo um Cada uma das partes da filosofia é um todo filosófico, um círculo que se
todo, o horizonte da utopia. E a mutabilidade, a imensurabilidade completa em si nwsmo ( ... ). A partir daí, o todo se apresenta como um
constantem(·ntc destacadas dificilmente fazem do universo bergsoniano da c-írculo de cfrndos ( Hncidopédia das l'ir?·nciasji,lo.1·ryfras, ~ 15). 2:1
novidade aquilo que ele fantasiou, não obstatll<' o seu finalismo inevitável:
rumo à "m{iquina, para gerar deuses". Frn suma: para que o nom.trn Da mesma fonna, apesar de uma reflexão mais aprofundada, também
reahnent<· assim o sc:ja, ckk faz parte não s6 a oposição abstrata ,'i repetição nt'ste caso, em toda parlt', o ultim.um. foi flexibilizado pelo fato de o seu ómega,
mecânica mas até mesmo um tipo específin> de n·petição - a do conteúdo privado do poder do novwn, voltar a se enla<:ar com o seu alfa. Em última
final total que ainda não se tornou realidade, n·fe1ido e intenc-ionado, instância, isso se aplica também onde o alfa-ômega foi scndaiizado de modo
tentado e prnn·ssaclo nas novidades prngT(·.~sivas da história. Disso segue mecânico e materialista e transformado numa bolha ele vapor ele onde procede
que o s1u-gimento dialético desse conte\Ído lota! não é mais designado com o mundo e na qual ele novamente se desmanchará. O 01igiual e o arquétipo
a catcgmia novwn, rnas con1 a categoria 11lti11111111, sendo que nesta a repetição de tudo isso pt'rn1anece sendo o alfa-ômt'ga dentt·o do anel circundante
de fato cessa. Todavia, ela só cessa porque, 11a lllcsma proporção em que o formado por algum ser miginário, para o qual o prncesso retorna quase
ultimum representa a novidadt' 1íltirna, 011 .~cja, mais elevada, a repetição
(a representatividade incessanll' do alvo tendencial em todo o novo
progressivo) se eleva até a rcpct i(,1( > 1í 11i111a, 111a is ekvada, mais. fundamental: ,., Cf. tracl. de Artur Morão para o português lusitano em G. W. F. Hegel. Enciclopédia da.,
até a identidade. Sendo que a novidad(' prnlicarnente triunfa no ultimum ciência., Jilowfiws. Lisboa: Edições 70, v. 1-111 (aqui, v. 1, p. 84).
('OlllO um filho pródigo e desfaz a substância do seu nm,11111. F.111 lodo <'SSC' ro1110 um 1:orrelato real-objetivo, fica ,1endo o q1u I o, rl'.1/Nuu/1· ,1

processo, trata-se de estn1turas que aprisionam a possibilidacl<' n·al 011 a 11 nfr1·ij1ação exata, à ·utopia concreta. Ela o é no mesmo sentido cm q Ili' o
desconsideram e pretendem visualizar até o produto histórico mais concretamente utópico constitui um real-objetivo grau de realidade 110 Jionl
progressista unicamente como rememoração ou restauração de algo que do mundo acontecendo: como ainda-não-ser da "naturalização do s(T
se possuía outrora, algo que se perdeu em tempos primordiais. humano, humanização da natureza". Correspondentemente, o reino da
Conseqüentemente, como acabou de ser esclarecido quanto ao ultimutn, liberdade assim caracterizado não assume a forma do retorno, mas elo
filosoficamente são ap1-opriados, em relação a este bem como em relação êxodo - ainda que para a terra sempre almejada, prometida pelo processo.
a todo novum antes dde, unicamente a anti-rememoração, o anti-Agostinho,
o anti-1 Iegel, o anticírculo e a negação do princípio do anel, do princípio O "sen d o-con1,r,orme-a--p os.11.ui
"-·z·d
t ar.le " e o "sen d o-em ..1 t .i a d e ", corren te fi.
possi·b·t·d ria
visado até I Iq~el e Eduard vou Hartmann, inclusive até Nietzsche. Mas a e corrente quente no m.a:rxi,1rrw
t·spt·t,lilça, que em nenhum final quer estar apenas no mesmo ponto em No caminho para o novo, geralmente - ainda que não sempre -
<p1cjá estava no c·omc~·o, suspende o ciclo rigoroso. A dialética, cujo motor deve-se proceder passo a passo. Nem tudo é possível e executável a qualqmT
é a inquietação e n~jo conteúdo final, que de fonna alguma já existe ante hora: conc'/-i~·ôcs ausentes não só atrapalham como também chegam a
rem, é o sc'r não surgido, suspende o ciclo tenaz. As figuras da tensão e as impedir. Um passo mais r,ipido é pennitido, até requerido uo trecho qut.'
fonnas da tcndi-ncia, as dfras do real no mundo, essas verificaçôcs com não rt.'vda outros peI"igos além dos causados por excesso ck temor ou por
base no exemplo - por mais malsucedido que seja - suspendem, mediante pedantismo. A-;sim, a Rússia não pn•cisou p1irnciro se' tornar completamente
sua considerável porcentagem de utopia, o ciclo fundamentalmente c·stéril. capitalista antes ele estar cm condiçôc·s de perscguit· com ê-xito a meta
A humanização da natureza não te1n na sua origem uma casa paterna da soeialista. A-, plenas n>ndiçôes técnicas para a const nH:;'io socialista também
qual tetia fugido e para a qual rcton1a1ia com o auxílio de algum tipo de puderam ser rceup<Tadas na União Soviética, na nwclida em que já haviam
culto aos ancestrais na filosofia. Ocorre que no próprio processo, ainda à sido desenvolvidas em outros países e podiam ser assumidas a partir deles.
parte do problema do ultimum, brota um sem-número de possibilidades Em conlraposiçio, é 6hvio que prc-terir· e pular um nuninho nunca
reais que não foram cantadasjunlo ao berço em que se encontrava o início. perconiclo poclc kvarao fracasso. Possível é tudo <pw erl<'ontra as condições
E o final não é n·<·onstituição, mas -justamente como inupção da c·ssê·ncia dadas em propon;ão suficiente. Todavia, justamente- por isso, tudo que
do quê I Was-Weseni no fundamento do quê [Dass-Grund] - a cclos;fo do não (•ncontra as condi<;ôcs nccessá1ias ainda é fatin1me11te impossível. Então
primam agnis uutleriale. Dito de outro modo: o ômcga do para-onde não a imagem-alvo se mostra sul~jetiva e ol~jctivanlt'nle <·omo uma ilusão. Nesse
se evidencia num alfa do de-onde, da origem, um alfa existente nos caso, o movimento para ela nauh·aga. Na melhor elas hipóteses, caso ele
p1im6nlios, pretensamente de realidade plena, e sim, pelo contnírio: <'Ssa avance, passa a vigorar, cm dccoITência das coneli(:ôcs sociocconômicas
origem evidencia a si mesma s6 no novum do final. Como origem cm si existentes e determinantes, um alvo bem clifrn:nte elo abstrato descontínuo
mesma ainda fundamentalmente não realizada, ela se torna n·alidade pretendido. No sonho burguts iclc-al dos direitos humanos, com certeza
somente junto com esse u.llimu.m. A origem é, com n·1·teza, o próprio agente desde o início _já estavam ativas as tcndê-ncias que postt·1ionncnte levaram
realizador: assim como predsamente no realizar h,í algo ainda imaturo e ao mais ptll"o <'apitalismo. Porém, mesmo nesse- sonho se· imaginava
ainda não realizado, assim também a l'C'aliza(.',to do próprio realizar, a vagamente uma cidade do amor fraternal, uma Filaclflfia situada em algum
realização do que está sendo realizado est,í s(·mprc- começando a p1inc-ipiar. lugar especialmente distante da verdadeira Filadélfia, a qual constava na
Na histó1ia, ela é a auto-apreensão do agc·ntc histórico como sendo a do agenda da história econômica e assim veio à luz do dia. E decerto não
ser humano trabalhador. Na natureza, da é a realização do que muito diferente dessa Filadélfia teria sido o fruto das utopias puras, apenas
hipoteticamente se denonlinou natu.m nal1tmn.1 ou sltjeito do 1novin1ento quiliásticas, caso elas não tivessem desaparecido e sim alca1H;ado o seu alvo
material, urn problerna praticamente intocado, ernbora esteja clararnente na proporção do possível naquele tempo. As condi~-ões econômicas, que
vinculado à auto-apreensão do ser h11111a110 trabalhador e se situe no a vontade radical pelo reino milenar desde Joaquim de Flora até os
prolongamento da "humanização da 11at11r(':t.a" de Marx. Contudo, o lugar milenaristas ingleses preteriu e até teve de preterir, teriam ainda assim
de efetivação dos dois tipos de a11to-apn·<·11siio e seu novum, seu ultirnum, se manifestado, teriam se automanifestado no alvo alcançado. E, mais
situa-se unicamente no Jront do JHU('<•sso histórico e tem diante de si, num uma vez cm virtude da agenda capitalista ainda por acontecer, elas de
primeiro momento, prepondera11tem(·11IC' a possibilidade real indireta. E~ta, modo algum seriam do tipo que conduz ao reino do amor. Tudo isso se
tornou plenamente con1preensível pela descoberta marxisla de-q11(· a lco1·ia- ( 011~eqiii·11cia de o csn1ltor, que trabalha sob "condi(;ócs mais Etvo1 ;ÍVl'is",
práxis concreta está estreitamente ligada à aqui investigada possibilidad(· podt'1· l'onna1· corpos mais belos que os corpos físicos cfctivalll('lllc
real-objetiva. Tanto a precaução crítica que determina a velocidade da 11as(·idos, e que um poeta afaste de suas figuras a casualidade e a estreil<'l'.a
caminhada quanto a bem fundada expectativa que garante um otimismo ( b senda, transpondo-as, como diz Aristóteles na sua Poética do x~8 'exao,;ov,
militante em direção ao alvo são definidas pela noção obtida do correlato 011 do particular relativo, para o x~8 'ÕÀov ou possibilidades mais ricas de

da possibilidade. E isso de tal rnaneir"a que esse mesmo c01relato, como um todo. Porém, isso tudo nem tcl"ia sido possível se AI·istóteles - e isto é
agora ficou esclarecido, tem, por seu turno, dois lados: mn reverso, no de relevância central - não tivesse distinguido também o outro lado, o
qual estão insnitas as medidas do possível em cada caso, e mn anverso, no anvcrso constituído pela matéria como possibilidades, se não a tivesse
qual o tolwn do derradeiramente possível St' caracteriza <·omo ainda aberto. n:conhecido como a matéria totalmente livre de entraves. A matéria não
Precisamente o pl'irnciro lado, o da., rnndiçiie.1 de exiJl!?nâa detenninante, ensina é somente xa,;à,;o ôuvai:óv, conforme a possibilidade, ou seja, aquilo
o comportamento a ser adotado na caminhada para o alvo, enquanto o que, em cada e-aso, condiciona de a<·onlo com a dada medida do possível,
scg1mdo, o do lolum utópico, pcnnite li.mdamentalmente inlJH'<lir <jlH' êxitos mas ela é ,o ôuvaµet õv, o .1endo-e111,1H!s.1ibilidade, ou s<-:ja, o útero da fertilidade
parciais nessa caminhada sejam tomados pelo alvo como um todo e o - em Arisl{>teles todavia ainda passivo -, do qual descendem de modo
encubram. Em tudo isso se deve constatar que também e.Ht' rnrrelato iriexauri-oel 'trula.1 a.1 .Jónnas do mundo. Com esta última definição foi
possibilidade real, com sua dupla face, nada mai_., é que a m.atrria dialética. inaugurado o aspecto amig,ívd, se 11:'io csp<Tançoso, da possibilidade real-
Pol!>ihilidade real é apenas a expressão lógica para condicionalidade material objetiva, por mais demorada q11e tivesse sido sua apn'cnsão. O totum
do 1ipo suficiente por um lado e abertura mate1ial (inesgolahilidade do utópico está. implicado no ôuv&µei õv. Repetimos e resumimos: a
1ítero da matéria) por outro. No capítulo ante1ior (p. 189), por orasião con.,irlera(:ii,o nI.tit:a do ohjlilo a ser alcan(:ado em uula raso é prer:edida pelo
das "causas colaterais interferentes" durante a realização, já se n·c·otTeu a ~enrlo-co'n.fórme-a-jJossibi.lidrulr! da matéria, a expedaliva bem.fiuulada do f1róprio
uma parte daJ definições aristotélicas de matéria. Foi mencionado <pw, de fôleKo f jJfn:nlida j,140 snulo-l'm110.1.1ibilidarle da malh-ia. E quando, na escola
acordo com Aristóteles, a matéria mecânica (,;o e,; àuáyariç) n-pn-scnta pant<'Ísta dos aristoté-lin>s, climinou-st' da última delini(,'ão o elemento passivo,
uma resistência em razão da qual a forma enteléquica da teud<'.'-nfia não quando o ôuv&µet õv m"io apan·ceu mais como uma cera inddinida sobre a
consegue assumir sua fonna pura. A partir disso, Aristóteks tpwr ('Xplicar qual se moldam as cntdéquias da fonna, o polcncial mathia finalmente se
os 1nuitos entraves, os contratcrnpos fortuitos e os inurneráveis p1ngr<"ssos 1orno11 tanto nascimento <·mno túnntlo e também lugar de novas esperanças
irnH"ahados de que o mundo está repleto. Na passagem em questão, essa para as frH1.nas do m1mdo como um todo. Ess(· ckst·nvolvinH·nto do conceito
definição da malér-ia foi designada como sendo a do bode expiatúrio, e é aristotflico ck matéria passa pelo físico pcripatético Estraton; pelo primeiro
isto que ela é-, na medida em que é absolutizada e se destina a demonizar graudc c·omcntarista de Aiistótcles, Alexandre de Afrodísias; pelos aristotélicos
a mat<-ria como um todo para aliviar o peso da cnteléquia. Todavia, nào se ol'ÍentaisAviccna,Avc1n>is e sua rullum nalumns; pelo aristotflico de cunho
pode falar desse "como um todo", dessa ahsolutização cm relação a ncoplatônico Aviccbrnn; pelos filósofos nist,"ios hcrélicos do século XIII
Aristóteles. Ao contrário, a sua matéiia de modo algum se limita à matéria Amalrico de Bena e· David de Dinanl; e dtega até a matéria criadora de
mecânica, e até mesmo esta, da qual se origina o ,õ eç àváyariç, por de é Gionlano Bruno (para isto, d'. Ernst Bloch, Avú:en na und die Arislotelische
ass<Kiada de forma pioneira ao conceito extremamente abrangente da J,inke, 1952, pp. 30 e ss.). Mesmo o substrato autogerador da idéia universal
ôuvaµiç ou da possibilidade real-o~jctiva. Então, para o c·on<Tito da hegeliana, que tão rapidamente se afasta da matéria, contém, não obstante,
rnat<'ria interfrrcntc, essa associação franqueia um sentido novo, não uma grande parcela da potencialidade da matéria, daquela que se tornou
intcqJositivo, mas cktenninante: ,;o eç àvayariç é <·omplemcntado e ampliado potencial. A respeito disso, Lenin assinala, no seu Legado ji.losófiw (p. 62),
pelo xa,;à ,;o ôuva,;ov, o que significa pelo sendo-confonne-a-posúbilidade, especialmente a seguinte sentença da Lógica hegeliana: "Isto que aparece
pelo sendo-na-medida-do-possível. A mal<:ria é, portanto, por esse lado, o como a atividade da fmu1a é, ademais, igualmente o movimento p1·óprio da
lugar das condições, por ntja medida as cnteléquias se moldam. Assim, ,o matéria mesma". Há diversas frases semelhantes de Hegel, inclusive na sua
éi; àváyxriç não significa apenas mecfüiica, mas muito mais que isso: c01~jlmto Hi!>lória da filosofia ( Werke XIII, p. 33), concernentes ao conceito
contínuo das condições dadas. E é scí a partir desse sendo-conforme-a- aristotélico do desenvolvimento, cm que ele, no mínimo, iguala o scr-em-
possibilidade que em última instância dniva o entrave que experimenta a si da sua idéia à ôuvaµ tç aristotélica. E parece justificada a suposição de que, sem
forma entcléquica da tendência 110 S('ll p<-rnirso. Dele deriva também a esse legado de Aristóteles e Giordano Bruno, Maix não te1ia levado diversos
aspectos da idéia universal de Hegel a porem os pés no chão Ião 11al ura 111 w 111 <'. 1u-h11losidade do cntusias1no somente na 1nedida em q11<' acl<-1111 ;1 o p:"1111.1110
Tampouco a dialética do processo teria sido salva do chamado <'spírilo do /ili.11.ério, do compromisso dúbio e por fim da traição. Portanto, so111c11IC'
universal [ WeltgeistJ para o nível materialista nem teria se tornado p111tos o frio e o calor da antecipação evitan1 que o caminho em si e o alvo
apreensível na matéria como lei do movimento. Assim, porém, surgiu .-r11 si sejam mantidos afastados um do outro de modo não dialético, evitam
uma matéria bem distinta do cepo mecanicista, a matéria do materialismo ',<·11 isolamento e reificação. Sendo assim, a análise das condições n.i
dialétfro, para a qual dialética, processo, alienaçâo da alienação, totalidade do trecho siluacional-histórico atua tanto no desrnascaramc11to
humanizaçáo da natureza de modo algum são apenas epítetos exteriores, das ideologias quanto no desencantamento da aura metafísica. Exatameute
até afixados. É o bastante neste ponlo sobre os coITelatos da con!Jideração 1~10 é próprio da utilíssima corrente fria do marxismo. Ela faz do
n-itú·a do atingível, da P.xpectativa bem. fundada da própria 111aterialismo marxista não s<> urna ciê-ncia das c·ondi<;ões mas também, no
alwnçahilidade no interior do conelato mais abrangenlc da possibilidade 111esmo fôlego, uma cii·ncia de lula e oposição a todos os entraves <·
real ou maléria. Tanlo o frio <·omo o calor da antecipação concreta estão 1lissimulaçô<·s ickológi<-os das co11diçt>Cs de \Í.) 1ima i nstâucia, que são sempre
preformados neles, referindo-se a esses dois lados do r·ealmente possível. de ordern c·conômica. Por· seu turuo, da corrrnte quente do marxismo fazem
A sua inexaurida f;lenitude de exj)licfaliva ilumina a I eoria-práxis parte a intenção libertadora (' a tendência n·al humano-materialista,
revolucionária com o entusiasmo, as .1·1ut!J determinações rígidas e materialista-humana, e· é t·m fun<,·ão de seu alvo que todos esses
imfJrRlerívú1 exigem am-ílisc fria, estralé·gia nü<ladosarncnlc pn·cisa. Esta desenca11tamentos são empreendidos. Daí provfm o forte rcnU"so ao ser
última indica vermelho frio e a primeira, ve1nwlho qucnle. humano humilhado, c·scTavizado, abandonado, .fú.lo desj;rezivel, daí
Esses dois modos ck ser da cor vermelha certamente andam sempre pr·ovém o n·nU"so ao pr-oklariado como ponto de transbordo para a
juntos, embora s<:jarn distintos. Eles se relacionam um com o outro corno emancipa<,'ão. O alvo permanece sendo a natnrnliza<,·ão do ser humano,
o que não pode S<'I' enganado e o que não pode ser decepcionado, como hurnauiza<;ão da natureza inerente ;1 maléria c·m desenvolvimento. A
azcdmne <· fé, cada qual no sen lugar e sc·ndo utilizado para o mesmo fim. matéria den-ackira ou o conteúdo do rcino da liberdade apenas está se
O ato analítico-sitmu·ional do marxismo está entrelaçado com o ato accrnuulo na <·onstn1ção do cornunisrno, qrn· {- o seu iínico cspa<;o, sendo
prospectivo-entusi;ístico. Os dois unificados no método dialético, no pálho!J que c·m lugar algum ela se fez presente. Isto {- líquido e· ffrto. Todavia,
do alvo, na tolalidade do material abordado. Contudo, também se mostra iguahnenlc líquido e certo é o fato de esse nmlt·lÍ.do se c·11<·oulrar no processo
clarnmcntc a diferença ele pcr-spcc·tiva e de posição. Esta foi percebida como histórin> e o marxisrno representar a sua co11sc:iênda mais aguçada, a sua
a diferença entre a investigação das condições conforme a medida do rd]cxiio mais prálica. Desse modo, o marxismo como cloulrina do calor se
possível e a investigação das perspectivas do sendo-em-possihiliclaclc. A refere unicanwntc ao ser-em-possibilidack positivo, não s1~jt·ito a qualquer
investigação analítica das condições igualmente mostra perspc·ctivas, mas desc)l(.'antarncnto, que abrange a realiza(ão p1ngrcssiva do que está sendo
tendo o horizonte corno limitador~ o horizonte do limitadamente possível. realizado, pi-inwira..rnente no entorno hurnano, e· <Jll<', nesse enlorno, denota
Sem esse resfriamento, resultaria urnjacobinismo ou até um <·11lnsiasmo o lo/1.1,m utópin>,justamente aquela liberdade, aquela pátria da identidade
totalmente desmedido, do tipo mais abstrat;-mic·nte utópico. Desse modo, e111 que o ser humano não se comporta em rda<:;'io ao mundo ncrn o
apôe-sc aqui mn lastr-o de chumbo à sola do ultrapassar, pretnir, sohn'voar, mm1<lo em relação ao ser humano corno estranhos. lslo é doutrina do
dado que por experiência o próprio real t<·1n 111n andar pesado e rarame11lc calor no sentido do anverso, <lo Jront da mat{-ria, ou s<:ja, da mathia para
é dotado de asas. Mas a investigação das perspectivas do s<·ndo-em- a li:cnte. Aqui o caminho se revela como hmção do alvo e o alvo, como
possibilidade se dirige para o horizonlc em termos de uma amplidão substân<"ia a caminho - caminho este invesligado cm visla de suas condições,
desobstruida, incomensurável, em termos do possível ainda não esgotado e visualizado em busca de suas aberturas. Nessas aberturas, a maléda possui
ainda não realizado. É isso que de fato proporciona perspectivas no sentido uma lalência no rumo dos nmteúdos reais-ol!jetivos de sua esperança: como
próprio do tern10, isto é, perspt'ctiv;1 do propriamenlc dito, do totu-rn do fim da sua auto-alienação e da objetividade afrtada por dementos estranhos,
que está ocorrendo e do que dev<' s('r l'lllprcendido, não apenas de um como mal éria das coisas para nós.Nesse caminho o<·orre o sobrq>lüamento
totum existente em cada caso, mas dC' 11111 /11/um utópico no nível da história do existente na história e no mundo, esse transcender sem transcendência
em seu conjunto. Sem esse a<pl<'<'Í111<·1110 da análise das condições históricas que se charna processo e sofre uma tren1enda aceleração na tena n1ediante o
e mais ainda das condições pníli<·as a111ais, a história sucumbe ao perigo do trabalho humano. Materialismo para a frente ou a doutrina marxista do calor
economicisrno e do opo1·t11nismo 11111· SI' esquece do seu alvo, evitando a é, desse modo, a teoria-práxis de um chegar-à-casa ou do abandono de urna
objcliwH,:ão despropositada. Por meio dela, o nnmdo <' dc~<"11volvido <·111 s11port;ívd, n>hri11do-;i •·0111 o V<'II do pc11sa11H·1110 i11q1111,,. I· 1.111, 1·, li 1 ◄, 111
direção à não-mais-alienação de seus sttjeitos-0bjetos, portanto cm din·~·,io V<.._ <JIH' as 1naçãs de otu-o c111 banclt:jas de praia 11:"ío t·stao 11111110 111111•.• ,1,
à liberdade. Sem dúvida o próprio alvo da liberdade somente se toma serem obra do ilusionismo. Elas estão entre os irlola f/,('(f/11 11,uli, 101111•
claramente visível como ser-em-possibilidade a partir da posição de uma Ele compara a verdade com a luz clara e pura do dia, na q11al , ,.., , 11•,l.11,, ·
sociedade sem classes. Ao menos ele dificilmente estará distante daquele máscaras e cortejos festivos do mundo não rnostra1n 11<·111 ;1 11wt.1d, d.,
encontTo consigo mesmo que foi buscado mctaforicamcntc sob o nome de beleza e da imponência que têm à luz das velas da arte. Com islo. ,..., .1111·,L1·,
cultura, com suas tantas ideologias, mas t'ambé-m com sua variedade de pré- estão conjurados com a aparência do começo ao fim: eles não 1i·111 11«-111111111.1
aparências, antecipações no horizonle. O meio da primeira humanização propensão para a verdade, mas a propensão contrária. No 11111111111•,1110
foi o trabalho, o solo da segunda é- a sociedade sem classes, sua moldura é como um todo se cncontrarn premissas para a antítese "arl<'·•V('1Cl.1dc'
uma culturn n1jo hmizonte {- circundado cxdusivanwntt' por c·cmteúdos de elas colocaram a fanlasia artística sob suspeita a partir do S<'11so p,11.1 o•,
esperança hem fundada, corno sendo ser-<:>rn-possibilidade mais importante, fatos. Trata-se das ol~je1,·i'H'S empírim.1 lcva111adas contra a turva(_',\o ,p11· ,.11
o ser-t·m-possibilidade positivo. se imiscuindo, contra a névoa dourada da arte, e não são as ü11i«-.1.~ •1111
procedem do llprninismo. Pois paralelamente a elas se enc:011t1a111 .1•,
Af)(J,rênâa mtútia1 corno fnf-afmrénâa visàwl ol~je<;Ôcs racionai.1, que originalmente ali- fazem pari<' do conceito pla11·,1111 •,
A respeito do hdo se diz que ele alegra e· pock até- ser· degustado. do logos c de sua hoslilidadc· à arl<', especialmente famosa, especiah11,·11lc-
Todavia, a n·c·cHnpensa qne pn>pon-iona não se 1-csumc a isso: arte não é radical, mas que, na calculista orientação racional da era burg-1l«'s,1
comida, pois permanec·c· mesmo após ser dcsfrulada. Mesmo nos casos moderna, novamente ganharam notmit·dack nmtra a arte. E isto tamh<:111
mais aprazíveis, ela ainda se estende para uma terra "pintada diante dos quando a espcdfica hostilidade elo capitalismo c·ontrn a arte no século XIX,
olhos". Nc·ss<' ponto, o sonho anelante vai cm busca do que é indieada por Marx (t<·udo o l'arl jJO-ur l'w-t, como co11tragolpc e a declara(,io
indiscut ivclmcnte melhor, sendo que, diferentemente da mairnia cios sonhos de g11errn de (~oncourt ao "público"), ainda não podia se tornar perceptível.
políticos, de já assumiu nmitc1· ck obra, _j,i se tornou um belo q1t11 ganhou Aqui se enquadra já a indagação rasteira daqudc· matemático francês que,
.forma. Mas haveria, no que desse modo foi formado, mais que algum jogo após a n:presentação da Ifigênia de Racine, perguntou (l:u 'e.1t-ce que cela
de aparê1H·ia? { fmjogo que pode até- ser extremamente artístico, mas que, prouve? Por mais c1ue essa pergunta pareça rasteira e afetada pelo fetichismo
diferentemente do infantil, não prepara para nada sério nem significa nada da csp<·<·íaliza(ão, ela se situa, como pergunta fmramrnlP raciona~ numa
sé1io. I Iaveria nesse retinir ou sonido estético algum fundo autf-11t ico, algum escola própria e representativa da estranheza da ,ll'te, <'<plivaknte à empírica.
enunciado que pode ser subscrito? As pinturas provocam menos essa Síntornatic:amente, em todos os grandes sistemas racionais da era racionalista
pergunta, pois a cor se atém apenas à convicção sensitiva, estando de resto moderna, a camada estética é omitida. As imaginac:õcs nela residentes são
menos onerada pela pretensão da verdade do que a palavra. Pois a palavra consideradas como não sendo passíveis de qualquer disn1ssão no nível
não serve apenas à arte verbal, mas também à comunic;u,:ào cm c·onsonih1<:ia científico. No racionalismo clássico francês, predominava o ensino da técnica
com a verdade. A linguagem aumenta a sensibilidade para a V<Tdadc, mais da arte, ainda que de um tipo bem importante, principahnente 110 tocante
do que a cor, mesmo na forma de desenho. Todavia, toda boa arte à poética, e unicamente o aspecto matemático da músin1 dcs1wrtou o
proporciona um belo acabameni-o aos seus malel'Íais, apresenta com bda interesse· de Descartes. De resto, não se tem conhecimento, nem em Descartes
aparência coisas, seres humanos, conflitos. Porém, o que se passa nem mesmo em Espinosa, de que haveria arte no ordenado esquema das
honestamente com esse acabamento, com essa maturidade, em <ptc apenas idéias e coisas. Até mesmo Leibniz, tão universal, dela extraiu uo máximo
amadurece algo inventado? Que representa urna riqueza que se com1mica alguns exemplos, como o efcilo de sombras e dissonâncias na acentuação
apenas ilusoriamente, pela aparência visual e auditiva? Que representa, da harmonia, porque lhe eram aproveitáveis para coisas bem mais
por outro lado, a no mínimo profética sentença de Schiller de que aquilo importantes: a comprovação cio melhor de todos os mundos possíveis. De
que aqui percebemos como beleza um dia vini ao nosso encontro como fato, para Leibniz, o hannonirnmenle belo é um tipo de indício da hannonia
verdade? Que representa a sentença de Plotino e depois de Hegel de que cósmica cientificamente reconhecível, mas se trata de um indício
beleza ser-ia a aparição sensível da idéia? Nietzsche, no seu período essencialmente confuso e, por este motivo, a verdade pode dispensá-lo.
positivista, contrapõe a essa afirmação uma outra significativamente mais Conseqi'wntemente, qnandojá bem tardiamente a estética do racionalismo
densa: todos os poetas mentem. Ou: a arte tornaria a visão da vida enfim foi transformada cm disciplina filosófica por Baumgarten, seguidor
de Wolff, ela teve um início bem esquisito: começou com 11111 pi 0111111ciado 1ogaclon·s, l1a111 .ulos <·111 si 111<·s111os ott dC'c1d<·11lc-;, -;<·1111;1111 ..,,.
menosprezo do próprio objeto [ Gegenstand], até desculpando a sua e 0111pn>mc·tidoscom a questão da verdade. Nas descTiÇÔ<'s <' 11;11Ltliv.is do...,
existência. O o~jeto [ Gegen.1tand] estético era unicamente a capacidade g1·;mdes poetas realistas, o belo quer ser suficientementl' v<"nladt'i1 o
cognitiva chamada baixa, efetiva na percepção sensível e em suas L1mbém no nível metafórico. Isto não só no nível da convicção S<'nsitiva,
imaginações. E ainda que nesse âmbito beleza representasse perfeição, em 1nas também no nível francamente aberto das relações sociais, dos proct'ssos
termos de valor ela não era comparável à completa clareza do conhecimento naturais. Como é autf>ntico o realismo de Homero, um realismo com tal
conceitua!. Frente a tudo isso, a desqualificação racionali\ta da arte segue profusão de detalhes precisos que com ele se pode trazer para o prescntl'
na mesma linha da positivista-empírica. Todavia, nem assim o g111po inimigo quase toda a cultura rniceniana. E a r·es1wito do Livro dejó, no seu capítulo
foi esgotado. O ódio à arte só torna vulto efetivamente quando não st: origina '.17, não se manifesta nenhum matemático francê-s, mas ninguém menos
da razão, mas, n1uitas vezes ao c·ont1·,irio, da fé, ao menos do que Alexanclr-c vou Hmnholdt, como investigador ela natureza:
estabelecimento de algo esfliritualmente verdadeiro. Disto resulta a
iconoclastia - neste caso, não contra a névoa dourada da arte, como era Os processos mctl'orológicos que se passam na camada de nuvens, a
costume no onpi1isrno e por fim tarnbéin no racionalisrno, 1nas contra a formação e flissolução dos vapores por ocasião da mudança de direção
terra rirmc da arte, isto é, c·ontra a manifrstação que nda foi dos vc·ntos, seu jogo de cores, a produção do granizo e do trovão rolante
demasiadamente enfatizada. O lt'ordo veredito é que a bckza desencaminha são clcscrilos com plasticidade individualizada; tambfrn são levantadas
para a supedfrie, esbugalha-se no lado externo sem cssê:ncia e assim desvia muitas p<'rguntas que a nossa física atual até é capaz ck fórmular com
da essh1cia das coisas. "O que há de bom cm imitar as sornhrns das c·xpressúes mais científicas, mas não é capaz de resolver satisfatoriamente
sombras?", pergunta Platão e praticamente ton1a o seu logos c·onccitual (Kosmos li, Cotta, p. 35).
espiiitualmente bronco. Por outro lado, "não farás para ti imag('rn nem
<jUalqucr similar ao <ptc está lá cm c-ima no céu, U<'lll ao que cst,i aqui Tal precisão e realismo sem dúvida são pr<>prios e· esst·nciais a toda
embaixo na lC'rrn, nem ao que está na água sob a terra", ordC'11a o quarto grande arte verbal, muitas vezes também à pot·sia ckcididamente r·eligiosa-
mandamento da Bíblia e provê a senha para a iconoclastia da invisibilidade espiritual, como no imaginário dos Salmos. E a exigência do realismo de
de Javé, a partir da proibição de qualquer idolatria. Assim, a arte c·omo impo1·tância, avesso a toda superficialidade, mas também a toda
um todo se torna plenificação fulgurante e em última instância hKil'<·rina extravagância-essa honra de Homero, Shakespeare, (~oetlw, K('ll<'r, Tolstoi
que barra o caminho e até mesmo renega a plenificação verdadeira, não -, está sc·nclo reconhecida pela própria arte (recentemente- ao menos no
fulgurante. Isto é inimizade religi,osa e e~piritual à arte. Na moral lhe romance), quando não cump1ida em pontos altos, como s<· por amor à
corresponde, não sem fundanwnto, a rt:jeição da visibilidade exc:('ssiva elas venladc- nunca tivesse havido qualquer desconfiarn:a c·ontra o magister ludi
"obras", o voltar-se para o autfntic·o e invisível da "rnentalidade". O e SC'HS artifícios. E ainda assim os artistas, por mais c·mun·tos que sejam,
puritanismo num sentido tão ahrangc·nte (que remonta até a Bernardo de não re.wlverarn a questão estética da verdad('. No 1míxirno, eles, por seu
Clairvaux) culminou por último ainda no terrívd ódio de Tolstoi a turno, de maneira apredável e considenivd, ampliaram-na e fizeram-na
Shakespeare, no ódio ao amor sensual ela beleza cm geral. Um lwrmrfmlchri precisa. Pois exatamente na obra ele arte realista se mostra que, corno obra
levou mesmo no catolicismo, sob o papa Marn·lo, até à proibição planc:jada de artr, ainda se trata de algo dil<-rente de uma fonte de conhcdmentos ou
da 1ica música sacra, e no protestantismo esse horror, aplicado ao visível, até de noc.:ôes a respeito da história ou da natureza. São próprias dela
propiciou o Deus despojado que qne1· st•r adorado na fé moral, na palavra palavras valiosas que extrapolam para alfm da concfü;ão dada aquilo que
que é a verdade. Portanto, em formas tão diversificadas - racionalistas- designam de modo tão ac<'rtado. l~ própria dela sobretudo uma fabulação
empiristas, religiosas-espirituais - manifestam-se as reclamações da verdade que dispõe e detennina, <·0111 11111a pennissividade extremamente estranha
contra o belo . .E por serem 1·edamaçõcs da verdade (pois subjetivamente à ciê-ncia, sobre pessoas e ,Ko11l<Timentos. Trata-se de uma fabulac;ão e, no
também o espilitual foi uma delas), até agindo de forma extremamente sentido duplo do tem10, ade111ais ele uma destreza ou de um acabamento
n>ntraditória contra si mesmas, ainda assim elas estão unidas na vontade artístico [K-unst-Fertigkeill, J><>I' m<'io do qual o inventado preenche as
i111huída de seriedade contra o jogo da aparência. lacunas do que foi obs<'rvado concretamente e arredonda a ação
Esse caso também sempre ocupou os artistas,justamente pelo fato de mediante um arco h<'lll I ra<;ado. Em todo caso, essa aparência
,·ks 111<·smos serem sérios. Justa1nente eles, por não se consider·arem rotunda, exageradamente ancdondada é evidente nas obras de arte,
por n1ais realistas que sejam, especiahneute nas obras dt· a1 ((' , li.1111ada.~ d,· d,·<,isi10 <pie, rn<·smo apenas raramente 111anift-s1.1d.1 f>t'L1 11·,did,1<k
romances. E um efeito bem "sobrepttjador" tem a grande aparfn<"ia uaq11cl,1., n,p<-ri<'ncial, é perfeitan1ente iner·ente aos ternas. Isso caract<Tiz;1 .i .11 lc
obras de arte que não oferecem a si mesmas em primeira linha como e 01110 aparência bem fundada, contemplada no palco como instit11i(:,io
realistas, seja porque romantizam conscientemente ao lado ou acima do p,m1digmática. Ela continua sendo virtual, mas no mesmo sentido que 11111
existente, seja porque, indo muito além de um mero tema, frutificam o 1dkxo no espelho é virtual, isto é, reproduzindo na superfície refletora
mito, que de qualquer modo é o nutriente mais antigo da arte. A 11111 objeto [ GegenJtand] fora dele mesmo com toda a sua dimensão

R.essurrei.ção de Lázaro de Giotto, o Para~o de Dante, o céu na parte final prnfunda. E a pré-aparência, diferentemente da religiosa, permanen·
do fi'an~lo: que relação eles tfan - para além de qualquer n·alismo nos imanente não obstante toda sua transcendência: ela amplia, como Schiller
cletallws - com a pergunta filosófica pela verdade? Sem dúvida, eles não com precisão definiu o realismo esté-tico usando f',.oethe como exemplo,
são verdadeiros no sentido ele toda a noção de mundo adquirida por nós. da amplia a "natureza, sem ir além dda", O belo e até o sublime são,
Mas o que significa, então, de modo kgÍlirno, com refrrê·n<·ia ao mundo, a desse modo, representativos de um ainda não ocorrido modo de existência
cxtrnonliná1ia impressão causada pelo conteúdo-forma dessas obras, que cios objetos [ Gegen.1tâ:ndeJ, de um mundo constituído sem casualidade
não pode ser separado cldas? Ao.;sim, suq>recndentementc, ainda que nmn exterior, sem não-esseucialidadc, sem inc·ornpletude. Desse· modo, a senha
nível hem difen·ntc, o (fu 'e.\l-re que cela pronve? daquele matemático francês da pré-aparência esteticamcnt<· exp<'rimentada tem o seguinte teor: como
se torna indispensável, mesmo S<'lll mate1nática e sern um cunho rasteiro. pode1ia o mundo .1er jJlm~fimdo .,em exj;lodir e dp,,1·ajmuxer ajJocalipticamente,
Dito de outra fi.>rrna: a pergunta pela verdade da arte se lransfónna, no como na jJré-ajmrénâa religi.o.1a crL1tú (sobre isto, cf. Ernst Bloch, Geist der
nível Jilosófico, na pergunta pela possibilidade ocasionahnc-nt<· existente Utopie, 1923, p. 111 ) . A arte, com suas fonnaçôes St'lll(>r<' individuais e
de representação da bela aparência, na pergunta pelo seu grau d<' n·alidade c·onnetas, husca essa pknific:ação apenas nelas próprias, sendo a totalidade
cm meio à realidade de modo algum unidimensional do 1111111<10, na o <''-necífico contemplado de modo penetrante. A religião, entretanto, busca
pergunta pelo lugar do seu correlato como objeto. Assim, no f<·nômeno a plcni1icação ulópica na tolalidack e, mais que isso, promove a completa
chamativo da arte, a utopia como dete1nünação do o~jelo, em <pt<· o grau insen;ão da salva<;ão da coisa individual 110 totnm, no "<'is que faço novas
de existência é o possível-real, defronta-se com um problema de todas as coisas". Na religião, o ser humano dev<'n'i renascer; a sociedade,
comprovação especialmente fecundo. E a resposta à pergunta estética pela ser transfonnada na âvi.tas Dei.; a natureza, ser transfigurada no celestial. A
verdade tem o seguinte teor: em toda parte, a aparência artística não é artl', <·m contr;q>osição, continua arredondada: como artc- "dássica", ela
mera aparência, mas uma significação envolta em imagens, designável gosta de nav<'gar costeando o existente dado. E como arte gótica ela tem,
somente mediante imagens, do que foi impulsionado para a frente, em mio ohstant{' todo o transn·nder, equilíb1io e homogeneidade dentro de
que a exag;,raçáo e a fabulaçáo repreJentam uma importante pri,-apwhu:ia do si. Apenas a nuísint tem um cfrito explosivo, o<·mTcn<lo no espaço aberto.
real, qup, âf'l'ula no jJróprio existente em ,movi.mento, uma pré-aparência que Por isso, como arte, ela constantemente carrega cousigo algo ele excêntrico
pode ser representada especificamente ck modo imanente-estético. Aqui em relação ,'is demais arles, como se apenas tivcsse sido transposta para o
se ilumina aquilo que o senso habituado ou não embotado praticamente nível do belo ou do sublime. 'Todas as demais artes pn>movem a
ainda não consegue ver, tanto em processos individuais quanto em sociais representação do puro quilate cm figuras, sitrntç·ôes, açôes individuais do
e também naturais. Essa pré-aparência é possíwljustamente porque a arte mundo, sem que cste mundo S{ja rompido. Daí provém a plena visibilidade
leva os seus temas até o fim, em figuras, sitmt(,'Ô<·s, atos, paisagens, fazendo dessa pnç-aparência. Assim, a arte é não-ilusão, pois ela atua no
com que se efetivem no sofrimento, na felicidade e também por sua prolonRarnento daquilo que se tornou cxistenl<', na caracte1ização mais
relevância. A próp1ia pré-aparência é o que pode ser obtido pelo fato de a adequada de sua fonua. Isso vai tão longe que um autor antigo, Juvenal,
atividade do l,a,ar-ati,-o--fim ocorrer no espaço dialético aberto, no qual qualquer designa como poetica tempesta.1 a cxpressã.o de todos os possíveis pavores
objeto f Gegenstand] pode ser representado esteticamente. "Representado provocados por uma tempestade. Isso vai tão fundo que Goethe, nas suas
esteticamente" significa imanentemente mais bem-sucedido, mais bem- observaçôes a respeito do Enwio sobre a pintura, de Diderot, contrapôe ao
formado, mais essencial que na imediata ocorrência histó1ica desse ol~jeto naturnlismo meramente reprodutor a concentração como realismo: "E
[ Gegenstand]. Essa confonnação continua sendo aparência tan1bém como assim o artista, grato à natureza que produziu também a ele, devolv<'-1111·
pré-aparência, mas ela não continua sendo ilusão. Ao contrário, tudo o uma segunda natureza, esta, porérn, sentida, pensada, hmna11a111<·11t<·
que aparece na imagem artística foi aguçado ou reforçado numa finneza plcnificada". Todavia, essa natureza humanizada é ao mesmo t<'mpo mais
pcrfeila e1n s1 rnesrna. É verdade que ruo co1no ap,11·i·111 1;1 S1'11sívcl d1· 1.1111lll:III a amcai;;a representada por aquela habilidade artística <[li<' 11."10
uma idéia de qualquer modo já acabada, como ensina l kgcl, rnas pi on·dc do talento, ruas do ter parte na mera aparência, que até a p1·é-
certamente na direção de uma gradativa moldagem enteléquica, como ·'l'ª'·c"·n<·ia possui. À mera aparência basta o estímulo do aspecto agradável
alega Aristóteles. É precisamente isto que leva a uma finaliza~·ão , · de sua representação, por mais imaginário que porventura seja o que foi
enteléquica, ou típica, corno também assegura Aristóteles, e é 1<'presentado. O imaginário ou imaginariamente existente pode emprestar
enfaticamente rememorado na afirmação de Engels de que a arte realista .1 mera aparência um torneamento especialmente decorativo, em que a
seria a representação de caracteres típicos em situações típicas. Sendo '-<Tiedade da coisa interfira o menos possível no jogo bem coordenado,
que o típico, na definição de Engels, obviamente não significa o mediano, 111uito 1nenos o interro1npa. Fazendo con1 que as irnagens possam conviver
mas o significativamente característico - e1n suma, a iinagen1 essencial da 1 k modo especialmente leve, especialmente irreal, a mera aparência garante

coisa decididamente desenvolvida mediante instâncias exemplares. Nessa ;1quela coesão agradável da superfÍ<'ie, que não mostra qualquer interesse,
linha se silua, portanto, a solução da pergunta estética pela verdade: a <" a presença de alguma coisa que vai além da pura ilusão. A incredulidade
arte é um laboratório e igualmen lf 1.una fr,.1ta de jJ0.1sibilidade.1 1/etivadas, ,·m relação à coisa representada pode até constituir um auxílio para a
juntamente com as alternativas nelas cxpcriinentadas, sendo que tanto a ilusão sem atritos, mais do que o ceticismo. Isso se manifestou na pintura
cxccu(:ão quanto o resultado acontt'cem no modo da aparê'.ncia bem renascentista, cm relação a antigos deuses, cm n~ja r·etrntação o pintor não
fundada, ou st:ja, da pré-aparência plcnificada no aspecto do mundo. Na precisava recear não ter assumido uma atitude suficientemente precavida
grande arte, o local mais visível de aplica~·ão tanto do exagero quanto da cm rela~·ão ao sagrado. O mt·smo ocorria pouco depois na arte verbal
fabulação é a const'qüência tendencial e a utopia concreta. Todavia, não mitologicamenle torneada. Em O.\ lusíada.\, Camôcs faz a sua deusa Têmis
é na arte verbal e sim na sociedade que se decide se o clamor por pie nitude dizer, mm1 lom bastante irônico e ainda assi1n nos mais exuberantes versos,
- pode-se designá-lo como a oração atéia da poesia- pode até certo ponto que ela mesma, bem corno Saturno, .Jttpit<T e todos os demais deuses
assumir contornos práticos e não ficar restrito apenas à pré-aparê-ncia ;ttuantcs, S<'riam todos "fabulosos, fingidos de mortal e cego engano, só
estética. Somente o domínio da história, com o contragolpe interventor para fazer versos deleitosos servimos". f v<·nlade <JUC aqui, por meio do
contra entraves, com a promoção executora da tendência, torna propício recurso à bela aparc"·ncia, contcÍl<los mitológicos fóram preservados na
que aspectos essenciais no distanciamento próprio da arte resultem de memória, introduzidos nas possív<·is alcgmias de uma pré-aparência, mas
modo crescente em fenômenos na lide da vida. Isto, no entanto, é o mesmo• isso o<'oITell nnn os meios daquela replc<,·ã.o hem-acabada para a qual
qne iconoclastia em sentido positivo, não como destruição das imagens <·onvida espt·cialmcute a aparência nunca interrompida. E, por fim, lllll
artíslicas, mas como investida para dentro delas com o propósito da outro convite a isso procede da parte da imanência sem .\alto rompedor, que
fn1tifica<:ão do que nelas ocasionalmente terá sido preservado, não só envolve todo o tipo de arte, não só a antiga ou a clássica de estilo antigo.
típica, mas também paradigmaticamente, ou seja, a título de exemplo. E Precisamente a Idade Média oferece, na sua a1·tc, vários exemplos de uma
onde a arte não é desperdiçada como ilusão, o belo e até o sublime satisfação torneada do lipo estético, apesar da consciência transcendental-
transmitem uma n0<;ão ela liberdade futura. Freqüentemente torneada, religiosa. Inclusive o góti<'o tem essa conscif:ncia, mas ck mesmo continha
nunca encerrada: esta máxima goethiana para a vida é também a da arte igualmente uma harmonia procedente do equilíbrio grego dássico. Lukács,
- tendo o acento da consciência e do teor, no final das contas, no nao- cm sua prinieira fast', constatou, para o seu ten1po, de modo bastante
cncerrado. preciso, ainda que exagerando:

falsa autarquia, pré-aparência corno fragrrum to real Assim, a Igreja tornou-se uma nova f,olis 1---1, o salto se transformou na
Freqüentemente torneada: apresentar-se incompleta não combina com escada das hierarquias terrenas e celestiais. E em Giotto e Dante, em
uma imagem bela. O inacabado é exterior, impróprio dela, e o artista que Wolfram e Pisano, em Tomás e Francisco o mundo se tornou novamente
não completa a sna obra se sente infeliz com isso. O que está totalmente redondo, abarcável com a vista, o abismo deixou de apresentar o perigo da
correto e é óbvio na medida em que se tem em mente a necessária força proflmdeza real, mas toda a sua escuridão se tornou pura superfície, sem
formativa. A fonte da habilidade é o talento entendido no seu tema e que, que em nada diminuísse a força de sua luz negra, e assim se inseriu S<'lll
sendo assim, dele quer dar conta completamente. Entretanto,justamente dificuldade numa fechada unidade de cores. O clamor por reden<:ão ha-
cm função do provimento não-isolado, deve-se constantemente notar via se transformado numa dissonância dentro do plenamente rítmico sis-•
( ,11 c·111;i11w11tl' l.1c t11;il, de i11111111;nciu 11áo lortl('(U/a. E <:j11sL11111·11fc 11dc 1p11
lema do 1nu11Clo e tornou possível um equilíbrio 11,10 111c11os colorido 1·
,11 .1igni/111tçô1<1 11fríjJirn-1'.1ltilhas do belo e até do suhlimc moslJ·.1111 o ~c-11
bem-acabado do que o grego: o das intensidades inadequadas, heterogt~-
11 :"111sito. Somente o ele1nento quebrado na obra de arte d('111asiado
neas (Die Theorie des Rom.ans, 1920, pp. 20 e ss.). 2'1
..,Jll'11ciada, impregnada de um tom de galeria, que se transformou 1111111
111no objet d'artouentão, o que é bem melhor, o elemento aberto já fomi.ult ►
Todavia, secessões do gótico alemão, como a de Grünewald, não são
p<'la própria grande arte, fornece o mate1ial e a forma para uma cifra do
atingidas por esse tipo de pknificação. De forma tanto mais coesa nos fita,
1>rnpriamente-dito.
da Idade Média que permaneceu determinada pelo McditeITâneo, essa
Nunca encerrado: assim, o qm·' cai bem justamente no dernasi;u lc,
hipóstase do estético, ainda que de modo algum tenha o vigor do clássico.
hdo é quando o verniz racha, quando a superfície descara ou esc1m·<·t·,
E há nela uma simetria e um acabamento de conjunto que não vem só do
como ocorre ao anoitecer, quando a luz incide obliquamente e os mont<·s
idealismo, mas procede, em tíltirna inst,'incia, do grande fHm l "todo", "tudo"],
.iparecem em primeiro plano. O esfacelamento da superfície, bem como o
protótipo de toda rotundidade. Pan {, o uno e o todo do mundo, e foi
nmjunto mrramcnte ideológico-cultural, em que as obras tinham o st·11
adorado igualmente co1no aquele todo que não carece de nada. Dele
lugar, libera a prnfnndidade, onde quer que haja alguma. Com isto, não
procede a tcnt,u:ão derradeira por nada mais que a rotundidade, mas dele
se tem em mente a ruína senti1nental nem aquek tipo ele torso que, como
também procede o equilíbrio grego corno forma secularizada da co.1movisão
ocorre freqüentemente em estátuas gregas, dá maior nwsão à figura,
totahncntc pagã - portanto, isenta de rupturas: a do mito astral. Neste, o
gerando maior unidade do bloco e maior rigor plástico. Coisas desse tipo
cosmo realmente era "adorno", ou seja, simetrican1ente belo. Era algo
ocasionalmente até podem representar uma melhoria da forma, mas não
que girava incessantemente em si mesmo, o hén kai pan: sendo de próprio
necessariamente um reforço da cifra que aqui está <·m <JUCstão. Este reforço
um círculo<· não urna pan1bola aberta, unia esfera e não o fragmento de
acoutece apenas por meio das rachad1u-as da ruína, no sentido bem
um pron·sso. Por isso, não é sem razão que a arte, nessa fonna demasiado
específico que este termo possui quando aplicado ao objd d'art e como
rotunda, freqüentemente encontrou un1a concepção panteísta,<· não {- sem
transli:>nnaç;'io do objet d'art. Dessa maneira, em lugar de uma ruína ou um
raz,10 qu<', inversamente, um sistema já disposto de forma definitiva dá
torso surge um fragmento po~terior, mais pn·<·isamente um fragmento que
uma impressão agradavelmente bela também em ocorrências fora do ámbito
consegue estar mais à altura do teor profundo da arte <Jrn' do caráter de
artístico. O prazer proporcionado pela aparição sensual, pela vestidura
algo conduído IBeendetheitl que a obra possa mostrar no seu contexto
viva da divindade, certamente deu a sua parcela de co11tt·ilmi<Jío para o
própi-io. Na n1ína que leva à decomposição, toda grande arte se torna,
surgimento desse traço panteísta, rnas o que atrai mais fortemente cm
desta forma, um fragmento posterior, mesmo <pw se trate de urna arte tão
direção a ele é o c01~j11nto harmônico in1pertnrbado, o cosmo.1 mesmo sem
completamente encerrada como a do Egito, pois se rompe o solo utópico
univen,um. Todas essas são, pois, as diferentes razôes pelas quais na obra
no qnal a obra de arte estava implantada. Se a apmpriai::ão elo legado
de arte pode estar ativa tamh6n uma autêntica habilidade artística ou nm
cultural deve ser crítica sempn:, então essa aprop1ia~·ão implica, como
acabamento artístico, uma autarquia da finaliza<::ão aparente, que, sendo
momento especialmente importante, a autodissolnção do que foi
imanente e sobrqmjaclora, num primeiro momento oculta a pré-aparf-ncia.
transformado nurn objet d 'arl de n1useu, mas também de um falso
Todavia, da mesma forma - e isto é justamente o decisivamente diferente,
encerramento que a obra de arte possa ter no seu contexto próp1io e que
decisivamente verdadeiro -, toda grande arte tem o aspecto agradável e
ainda se intensifica pela <·ontemplação de museu. Rompendo-se o aspecto
homogêneo do co1~ju11to de sua obra rompido, eclodido, compulsado por
insular, surge uma seqiiência d<' figuras repleta de fonnações simbólicas
sna própria iconoclastia, sempre que a irnanê·11cia não é levada ao ponto
abertas, tentadoras. E ainda mais quando o fenômeno do fragmento
do fechamento em termos de forma e conteúdo, sernpre que da mesrna
postc1ior se liga com o que.fái criado na própria obra de arte-. não no sentido
ainda se dá como fragmenta[ [Jragmenthaft]. Nesse caso, abre-se - o que
rotineiro do fragmentário como de algo feito sem destreza ou casualmente
não pode ser confundido com a mera casualidade do fragmentário
não acabado, mas no sentido <·otHTeto de algo não enccITado, não obstante
lfragmentari,;,ch] que pode ser evitado- ainda um espaço vazio do tipo factual,
o mais c_lcvado grau de rna<'stria, de algo que foi tran~formado pela pressão
utópica. E o caso do granel<' movimento gótico, às vezes também do barroco,
que, nào obstante toda a impetuosidade das suas obras, e até por causa
2•1 Cf. tradução de Alfredo Margarido para o português lusitano em Georg Lukács. A teoria do
dela, possuíam um espa(o vazio <· por trás dele uma cscuridade fecunda.
romance. Lisboa: Presença, 1962, p. 34.
A.,sim,jus!auwnle o góti<-o <"xcn-ido com pnfeit:."10, ap('-;,11 do /w11 pn·s(·lll('
também nele, executa um fragmento resultante de uma incap;1cidack ccnlral ,1pol'alíp1ica, esl,i nu ludo isso e influencia toda grande al'le com o 11ws1110
de finalização. Seria singular se daí surgissem fragmentos no sentido habitual , -.~1 >Íl'ilo que levou Dürer a denominar os seus quadros góticos de iljJOml}'/J.\I'
de quebramento, e até no sentido não habitual, ainda que _unicamente ,.11111 fi,gurú. O ser humano ainda não é impe1meável, o curso do n11111do
legítimo, de um ultimum de aparência apenas aludida. E o caso de ., i 11da não está decidido, encerrado, e assim se dá também c·o111 a
Michelangelo, que legou mais fragmentos do que qualque-r outro grande pi ohmdidade em cada infonnac;ão estética: e~se utópico é o paradoxal 11,1
mestre, mais pn·cisamente - o que faz pensar - na sua atividade mais 1111,w.ência e~télica, é o que há de mais fundamentalmente imanente nela. Se111
própria, ou s<:ja, nas artes t1idirncnsionais, não na sua pintura, pois nesta .-ssa potência para ser fragmento, a fantasia estética até encontraria
ele finalizou tudo o que começou, ao passo que, no que se refere a estátuas .admiração suficiente no mundo, mais do que qualquer outra percepc;i'10
e também à arquitetura desproporcionalmente, deixou de lado muitas coisas l111mana, mas nào teria, em última instância, qualquer correlato, pois o
1wla metade e mmca mais as retomou, ckixando-as para trás. Vasari deu à 11róprio mundo, tanto quanto cst,í cm má situação, também está em
história da arte o sinal para se admirar com o reduzido nómcro de obras 111completudc e c.m processo experimental para sair dessa má situação. As
levadas até o fim por Michclangdo e se admirar tanto mais porque a lonnas que esse processo suscita - as cifras, alegorias e símbolos, em que
grandiosidade excessiva do alvo {ffOposto combinava tão bem c·om a força , ·lc é tão ri<'o - são todas ai nela Jragmento,1, fragmento., reais, por meio dos q uai.,
e a nalurcza desse gê-nio. Mas, neste caso, o que ofereceu resistência ao n /Jtoce~so flui inconduso e avança dialetü:a:mente j}(J,ra outrasformasfragmentâria.,.
torneamento da arte, à pknificação da arte, foi justamente o <:01n·sponckntc < > fragmentário se· aplica também ao símbolo, t·mbora o símbolo não se
à grandiosidade cxeessiva do próprio Michclaugdo, foi a questão do 1dira ao processo e sim ao u.num. nece.1.1ari.um nele. Mas, pn.·cisamente por
entendimento entre uma natureza sobrep1üante e a sohn·pt~jauça de uma 111eio dessa rclaçào e pelo fato de ela ser apenas uma 1·clação e não um
tan."fa, de tal modo que nada do que era realizado co11scguia satisfazer ponto de chegada, também o símbolo contfm fragmento. Pois o próprio
essa adequação, e a próp1ia plenifü:ac;ão, sendo levada tão hm<lo no inte1ior ,imbolo real é um símbolo somente porque, cm vez ele estar oculto para o
do em-absoluto, torna-se um fragmento. Esse tipo de fragmento enl,10 é c-spectado1- e ser dai-o cm si e para si, ainda 11;10 se tornou 1nanifesto
nada menos que um ingrediente do que não possui ca1,í1ndc templo I Un- .-xatantcntc cm si e para si. Isso perfaz, porlanto, a n:kváncia elo fragmento,
Tempelhaften], do catedralesco não harmonizado, f a ,·onsc·iê-nc·ia <lo góti<-o ,·isto a partir da arte e não só a partir dda: o fraguwnto t·stá contido na
ainda post Jesturn. A própria profundidade da plcnificação cs1é1ica põe o ( oisa mesma, de ainda faz parte, rebu.\ sfr im/Je~fedi..\ etjlu.entibus ["sendo as
não-plenificado em movimento: nestes teimas, mesmo o n.'io-fragmenlário ( oisas assim irnpctfcilas e fluentes" 1, do factual do mundo. A utopia concreta
no sentido habitual, em Michelangelo - as figuras do túmulo de Médici ( orno determinação do ol~jeto pressupõe o fragmento concreto como
bem como a cúpula da basílica de São Pedro-, atinge aquela dcsrut·dida dctemiinação do ol--!jeto e o envolve, ainda que ccttamcntc como um
que representa a medida do ultimum na arte. Daí provém, por rim, o 1ragnwnlo no final das contas passívd de anulaçào. Por causa disto, toda
legitimamente, ou seja, factualmente fragmentário em todas as obras p1·é-aparfatda artístic·a e tanto mais !oda pré-aparência religiosa são concretas
lcnninativas desse tipo, no Westiútlichen Diwan, nos últimos quartetos de ('111 virtude de e na medida cm que o fragnl<'ntá1io no mundo, em última

Beethoven, no Faw,lo, em suma, em toda parte onde o não-poder-finalizar 111stância, proporciona-lhes o turno<' o material para se constituírem como
torna grandiosa a finalização. E, se procurarmos a raz::io de efeito 1,ré-aparências.
ideologicamente continuado de tal iconoclastia interior na arte
grandiosamente pknificada e justamente nela, constatamos que da reside Trata-.\e do realismo: lodo real tem u:m horizonle
no pâtlws do caminho e do processo, na consciência escatológica que veio Gnl<la1· nas coisas, sob1·evoá-las: as duas atitudes estão erradas. Ainbas
1
ao mundo por intennédio da Bíblia. Na religião do êxodo e do njuo, a permanecem exteriores, superficiais, abstratas. Sendo imediatas, elas não
única totalidade é a que transfonna e rompe totalmente, é uma totalidade nrnseguem se soltar da superfície. O grudar se atém de qualquer modo a
utópica. Diante dessa totalidade, não só o nosso saber mas também tudo o das, o sobrevoar as ten1 em seu próprio interior desordenado assim corno
que até agora veio a existir e tudo a que recmre a nossa consciência aparece 110 outro imediato, meramente evaporado para onde ele foge. Entretanto,
como obra inacabada ou fragmento objetivo, também no sentido mais , crtamente o sobrevoar é próprio de um tipo humano mais elevado do
produtivo possível, não só no da limitação próp1ia da c1iatura ou até da , pie aquele que toma as coisas como são. E sobretudo: gn1dar nessas coisas,
resignação. O "eis que faço novas todas as coisas", no sentido da eclosão ' mesmo sendo algo refletido, permanece rasteiro, ou seja, empírico, ao
1,asso que o entusiasmo, sendo refletido, com certeza pode deixar de ser
i11lú11dado. O c·111p1nsla superficial e· o c11l11siasta c·xall;11lo s.10 s<'111pn· 11topi;1, logo, sao idh1ticos no ultimum. Onde o ho1Íl:ollt<' p1uspn livo ,.
s111-pree11didos pelo fluxo do real que não conseguem c1pta1·, mas o 0111i1ido, a realidade aparece apenas como a que se tornou exislculc, co1110
primeiro, como fetichista dos chamados fatos, permanece embotado, ao morta, e são os próp1ios mortos, os naturalistas e empiiistas, que aí e11t<'rra111
passo que o fantasista ocasionalmente pode ser ensinado. No mundo, apenas os seus mortos. Onde se tem em vista o hmizonte prospectivo do conwc:o
a reificação, que mantém momentos isolados do processo e os fixa corno ao firn, o real aparece corno aquilo que ele é in concreto: corno
fatos, corresponde ao c-mpüista, e ele fica em pé ou cai juntamente com entrelaçamento de caminhos dos processos dialéticos, que ocm-rem 1111111
ela. O sobrevoar, en1 contrapartida, ao menos está, ele mesmo, em mundo inacabado, num mundo que jamais seria modificável sem o
movinwnto, ou seja, assmne um cornportan1ento que não precisa ficar gigantesco futuro, po,1.1ibilidade real, nele contido . .Juntamente com aquele
fundamentalmente sem a mediação do verdadein> movimento. No processo lot-wn, que não representa o todo isolado de uma etapa con-espondente cio
ele formação, o sobrevoar tem a art<' a seu favor, ainda que com muita processo, mas o todo cm absoluto da <·oisa implicada no processo, portanto,
aparência, muita fuga suspeita cm din'<:ão a urna aparência de sonho de constituição ainda tendencial e latente·. Somente isto é realismo. Todavia,
intcncionabncntc falsa. Mas 11a arte, e· não son1c-ntc na arte, a e<)ITeção ele é inacessível ao es<pwmatisrno qu<· de antemão já sabe tudo e considern
concreta do sohn·voarfranqueia imagens, noções, tendê·ncias que acontecem como rcaliclaclc os seus estereótipos uniformes, até mesmo formalistas. A
simulta1wanwntc· no stT humano e no objeto associado a ek . .Justarnente r·ealidade ni'ío é nm1pleta sem a possibilidade real. O mundo sem qualidades
esse concreto não surge a partir do empirismo rnsteiro nen1 do naturalismo plenas de füt un>, assim como o elo pequ,·no-hurguf-s, nem merece um olhar,
que llw c·mresponde esteticamente, o qual nunca avança da constatação luna arte, uma c·iên,·ia. A 11.lojúa /'onaPta útw1-.1e no horizonte de toda realidadP.
daquilo que é factual para a investigação daquilo que ocorre na esst':ncia. A po,1úbilidadP real n1110/ve ali o fim as tnuiiJ-ncias-latfncias dialéticas abertas.
Em contraposição, a fantasia, assirn que entra en1 cena c·orno fantasia Estas perpassam arqui-realistinuncute o movinwnto não encerrado da
concreta, consegue tornar presente não só a abundância sensitiva, mas maté.-ia não encerrada - t· movimento é, ele acordo com a expressão
igualmt>nte as relações de intermediação tanto no inte1iordo imediatismo proiimda de Aristóteles, "C'ntdéqnia não pknificada".
realmente cxpe1imentada quanto por trás dela. Em lugar do fato isolado e
do contexto superficial do imediatismo abstrato, igualmente isolado do 18. Os estratos da categoria possibilidade
todo, surge então a relação das aparições para com o todo de sua época e
para c·om o tolum ut<>pico que se encontra em processo. Mediante uma Quantas vezc·s algo S<' apn·senta de tal modo cpw pode ser, ou até, de
fantasia com essas características, a arte se torna conlw,·imc·nto, tal modo que possa ser diferente do que havia alé ali, razão pela qual algo
conhecimento típi<-o-<'arac·tnístic-o propiciado por imagens individuais e pode ser fc-ito a respeito. Isso, pon:~m, não seria possível sem o possível
quadros gerais oportunos. Ela persegue o signifi.cativo dos fenôrnenos e o dentro ckk e· antnior a ele. Estamos diante de um campo vasto que, mais
leva a efeito. A cif-ncia apreende, mediante uma fantasia assim caractc1izada, do que mnKa, tem dC' ser inquirido. O fato de um poder pronunciar e
o signifi,mtivodos fenômenos por meio de conceitos que jamais permanecem pensar mn pode-ser I Kan.nsún I não é dt· fónna alguma uma coisa óbvia.
abstnttos,jamais esmaecem o fenômeno ou o perdem. E o signij'iw,livo é, Há ainda algo em alwrlo, que po<k ser· e<>11<'chido diferentemente do que
tanto na arte quanto na cié?-ncia, o específico do geral, a respectiva instância até agora, que pode te1· suas medidas invcnidas, pode ser amarrado de
para o cm~junto diaktic·amente aberto, a típico-característica figura modo diferente, pode ser alterado. Onde nãos,· pode mais nada e onde
correspondente do totwn. E o totu-m propriamente dito, em que também o nada mais é possível, a vida parou. "Agora tudo, mas ludo mesmo tem de
todo de época, apreendido de todos os mornentos de época, torna-se ele mudar": de que outro modo seria possível csla exclamação totalmente
próprio novamente um n1omento, mostra-sejustan1entc nas grandes obras juvenil? Certamente há muita coisa vaga no meramente possível, inclusive
amplamente divulgadas apenas no hor·izonte, e não muna n·alidade já coisas escon-egadias, e não apenas líquidas ou o que as mantém líquidas.
plenamente conformada. Tudo o que vive, disse Goethe, possui uma Mas como o ser hwnano é preponderantemente a niatura que se lança no
atmosfera que o envolve. Tudo o que ( r<'al, sendo vida, processo, podendo possível e o tem diante de si, ele também sabe que este não coincide com o
ser correlato da fantasia objetiva, possui um horizonte. Um horizonte vago, que justamente o seu aspecto aberto de modo algum é algo aleatório.
interior que se estende, por assim dizei-, verticalmente em sua própria Também o pode-ser é regido por leis, tanto no mero jogo de palavras
escuridão, e um horizonte exterior de grande amplitude na luz do mundo. quanto no aspecto mais sério que logo se apresenta. E o material que
E os dois hmizontes têm o seu pano de fundo preenchido pela mesma temos diante de nós, que contém tanta coisa diáfana, é, ao mesmo tempo,
urn dos mais pesados e requer mna abo1·dagem 1·igorosa. lk 011tro 111odo l"'',,,1n·I q111· podC' :-.,·1 11(>111i11;ulo dl' 1;1so p:11a 1;1so 1·, 11., 11wd11l.1 d.1•,
não se tornam visíveis sobretudo os diversos estratos do pode-S('l. , , 111, 1Í(n1·s colllil'cidas, g1 ;u l11alllll'IIIC rdcrido. Mas 1·01110 l'Ssas 110111111,u o,·~
, 1:1,111.~ l'Xprcssarn i11iciahncntc apenas graus do conhcn·r-n·co11lw, ,., ,-
O p0Jú11el formal [Das fonnal Mõgliche/2 5 11.10 graus do amadurecünento inte1;or das <:ondiçôcs do próprio ohjcto
Primeiramente, é certo que demasiadas coisas podem s1·1 , ,hJl'tal 1.1achhafter Gegenstand], o possível, neste caso, ainda 11;10 1; 11111
simplesmente ditas por dizer. Em si, pode-se falar qualquer coisa; palav1 a.~ I" ,.~sível rigorosamente objetal [!>achhaft], mas um possível factual, isto e·,
permitem combinações mesmo sem sentido. São possíveis estiuturas co1111 ►: 11111 possível conforme o conhecimento que se tem do objeto I erlrn, 111·1ul
''lun redondo ou"; "urn ser humano e é". Excetuando o fato de sen'111 "'' hp,nruijJ]. Desse modo, ele se manifesta como um enunciado cautdoso,
pronunciá11eú, não há absolutamente nada possível nelas; trata-se de tolit-1•,1 , 111 seguida como enunciado de uma probabilidade fundamentada, dl' 11111a
sem significado. Diferente já é, porém, o caso dos entmciados não tolos, ,11jm1ição fundamentada de seu poder-ser [Seinkonnen], em suma, c:01110
mas contraditórios, que são incomprcn1sívcis para o ouvinte. Ou s<'.ͪ• 111 >ssibilidade objetivo-factnalmente fundamentada. É a fundamentação cpw
<piando o euunóado se contradiz direi arncn te, como no conceito "quadraclc ► 1(·presenta aqui a condição ou a base real, mas de tal maneira que a
redondo" ou na sentença: "Ele embaH'on nu1n navio que havia partido". l1111damentação, ou sc:ja, a condição cognitivamente dada para o próprio
Um significado desse tipo, que se contrndiz diretamente na característirn .. 1111nciado afinnat.ivo, factualmente v.--ílido, não está disponível de forma
ou no pn-dintdo, é absurdo, mas de modo algum se trata de urna toliC'c plena. Possívd de ser pensado é tudo, na medida t'Ill que algo possa s<T
[ Un.~iunl, (· sim justamente de um contra-Jen.rn [Wideninn]. Este, p<'nsado como estando em n·lação; mas, indo além disso, o seguinte <~
diferentemente da tolice meramente pronunciável, é algo que pode ,·;ilido para todas a.1 demais forrrws do pode-ser: o f}()s.1t11el é o parcialrnenlt
perfeitamentt· ser pensado; é um pode-ser formal, pois passível de ser pensado , ondicionado, e sonwnte como tal de é possível. A partir deste ponto é
é tudo qne <k alguma forma pode ser concebido como estando t·m relação. preciso ater-s<· à definição proposta, pois ela contfrn o critfrio do possível
Sim, pertencem ao possível de ser pensado até relações n~jas partes se C"lll todas as suas va1iações. Formulado com outras palavras: todo possível

c·ompor-tam não só de modo absurdo, mas totalmente di.1/Jaml<ulo umas (111e transn·ndc o meramente possível de ser pensado representa uma
para com as outras, e que, ainda assim, sendo disparatadas, representam .,hertura cm dcn>rrência de urna base condicionante ainda não
urna relação formalmente obse1vável. É o caso, por exemplo, elos seguintes ( omplctamentc suficiente, ou seja, mais ou menos insuficiente. Dispondo-
enunciados: "triângulo irascível" ou "ponte suspensa erudita" ou "o cavalo se apenas ck algumas, mas não de todas as condicionantes, ainda não é
que é um trovão" e outras coisas mais que não se· c·oadunarn. Esse exagero possível deduzir do possível assim constituído o real, razão pela qual é
mostra, ao mesmo tempo, quão imenso pode ser o mc·nunc·ntc possível de válido o antigo princípio escolástico: a poJJe ad esJe rum vakl wnsequentia
ser pensado. Pois, no enunciado de que não existe qnalquer 1-dação entre 1<lo podchscr não decorre necessariamente o ser]. Mas, rcton1ando ao próprio

as coisas, até mesmo a relação ocupou um lugar infrntífcro no possível de 1JOssívd fact uai, de que se trata aqui, ele é igualmente condicionalidade parcial,
ser pensado. Assim como a imprecisão pode prover p1ufusão ao pensar, mais precisamente, contudo, apenas conhecin1cnlo-renn1heciinento
ou seja, má profusão, assim também há uma má abertura no possível de parcialmcnt<· factual da condicionalidade. Essa condicionalidade é pat-cial e
ser pensado. E esta pode existü· ao lado da boa, que se abre sobretudo no tem de sê-lo porque condições reunidas em seu núme1n total não tmna1iam a
pode-ser fonnal do autocontraditório. oconê:nda de urn evento apenas presurnível mais ou menos provável, ou seja,
factuahnente possível, mas incondicionalmente certa. Assim, não é honesto
O possível objetivo:factual /Das sachlich-objektiv Mõgliche / apostar na ocorrência de mn evento após tomar conhecirnento completo de
Portanto, demasiadas coisas podem n;'io só StT ditas, mas também todas as condições existentes. Simplesmente é covardia ou tolice, tendo tal
pensadas. Por isso, o pode-ser que se encontra não só no pensar, como no conhecimento na manga, ainda bancar o Fabius Cunctator. O possível
conhecer, parece bem mais definido. Este possível não é imenso, mas um objetivo-factual (corno ali.is também o possível objetal confonne o ol~eto real
[ Jachhaft-o&jekthaft] e o possível real, de que trataremos mais tarde) é expresso
por meio de um juízo hipotéti<·o ou, sendo a certeza ainda menor, por meio
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de um juízo problemático. ( )_juízo hipotético diferencia-se, nesse tocante, do
A terminologia utilizada para traduzir as categorias do possível em Bloch acompanha a da
literatura especializada. Cf. p. ex. Suzana Albornoz. Ética e utopia: ensaio sobre Ernst Bloch. juízo problemático por pH'ssupor· premissas não confinnadas, ao passo que o
Porto Alegre: Movimento, 1985, pp. 52-57. _juízo problemático -qu<·, na sua fo1n1a, silencia quanto às premissas: "pode
d1ovcr lu~jc", "Lcucipo talvez lenha vivido", "possivd111(·11I<' us 1.1ios ( ('1s111in1s I"'ª ('Ili, <'1<"111;1 l;i11tlw111 .111.111spo-;i(,'ao si11g-11la1 <jll<' se- ( 011vc11no11011 t 11,1111.11
provenham de mna constelação situada na Via-Láctea" - pl'Cssupôe, al<~lll d<' quadro provi"ó1 iode- 11111 objeto, como hipótese de ltahalho. A cxprcs,,10
das premissas não confirmadas, ainda outras desconhecidas. O juízo "ltipót('S<' de t.rabalho" até contém elementos a criticar, na medida c111 q111-
problemático é, a partir daí, o juízo propriamente desenvolvido da loi desgastada pelos relativistas burgueses tardios. Por isso, utiliz<'-sc- .1
possibilidade como uma determinação factualmcnk modal: no modo do <'xpressão mais antiga e mais sólida: princípio heurístico. Um princ-ípio
pode-ser, P está associado a S. Um caso especial, que faz parle deste ponto, desse tipo atua, por exemplo, na simplificação hipotética ou na analog-i;i
é represen lado pelos juízos irnpróplios, até inauttnticos da possibilidade; hipotética com coisas já mais conhecidas, mediante as quais se pod<'r ia
traia-se dos juízos do conhecimento insuficiente não investigativo, mas empreender, num primeiro momento, a investigação de fenômt·110,,
nwramente receptivo. At(> agora, praticamente se separou esse pode-ser demasiado complexos ou impossíveis de serem abrangidos do tipo atine 11 t1·
factual inaulêntico do pode-ser autêntico, e rni.o obstante a diferença, tão às ciências sócio-hislól'icas. O questionamento desse factualmente possívc-1
importante para o grau do possível, salta aos olhos. Um juízo modal no seu emprego me!Qdico é confirmado ou não através de indrn,:úc-s
inautêntico é, por exemplo, o seguinte: "Água pode ser decomposta pela efetuadas na direção do c01~j1111to presumido de condiçôes. Neste processo,
c·mn·nte elétrica". Ora, a água de fato sempre é decomposta pela corrente todavia, uma indução, por mais abrangente que seja, somente pod<'r,í
elétrica (caso não se apresentem condições novas, que interfiram expressar o seu rt'sultado m(·diautc um juízo da possibilidade objetivo-
ocasionalrnente). Da n1esnia fonna, o conheciinento desse fcnÔnl<'no está factual. Pois mesmo a induc,:ão mais completa não conseguirá ser exaustiva,
int eirarnc·nt e fundamentado, estando presentes todas as suas condiçôt·s. De isto é, <·onslituir o conhccimcnlo de lodos os elementos condicionauh's
acordo com isso, o referido conteúdo do juízo é inquestion.1vd. Não tão como idênticos <·m todas as ;freas do espac,·o ou até inalterados no tempo.
inquestion;~vel é unicamente o estado do conhecimento da conscii·Hcia que Assim, t·nconlra-se lamb<'m ua (·oufinmu;ão indutiva de uma suposi(;,io
acolhe essa t('se, e é apenas nesse aspecto pedagógico-psicológico, ou seja, metódica o resquício ck um factualmcnte possível, de algo não totalmeut('
cxtralógico, qne o juízo emitido assume uma forma modal, um disfarce certo, q1t(' S(' cham,1 probabilidade comparativa - t'xpressa em graus ate:
modal. Quanto ao terna, trata-se de um juízo categóiico 011 assertivo do chegar ;1 "ccrl<'Za aslronômiu1". E que· diz<'r da dedução, essa fon11a
conH·c_·o ao fim, e não de um juízo hipotético ou probkm,ítico. Por essa nrnilÍscula, pr<'lcnsamcntc de todo <·onsumada, <k un1 fundamento
razão, portanto, unicamente enunciados não pedagógicos unicamente de condicionant<' exaustivam<'nle sulidente, generic:amcnle essencial? É verda<k
ernmciados invcstigativos em que há um non liquet das condiçôcs do qu<' ela não só pcnnite rccoulwn:r as particularidades do empirismo
conh<'cimcnto em relação à fomia categóiica ou asscrtóiia constituem indutivo corno momentos de um contexto abrangente a partir ela
enunciados rnodalmcnt<' factuais autênticos. A possibilidade ol~jctivo-factual generalidade do particular; ela t('lll tamhém a pretensão tradicio11al
designa, assim, sempr<' um estado gradual da fundamentahilicladc ol~j<'tivo- supr<'ma de deduzir essas p,u-ticularidacks nei:e.1,1ariwnenle, logo, não colll
cient ífi<-a cm conforrnidade co1n o i:aniter incompleto do rnn!tn:imento condicionalidade parcial, mas total. Isso ika bem daro no primeiro modo
c·icnt Ífin) das condi<;ôc·s factualmente disponíveis. do primeiro silogismo: Caio, por ser humano, nen·ssaliamente é mortal.
A'>sim, neste ponto, o juízo é deixado em suspenso; dt' se <"ncontra O termo médio "se,· humano" proporciona aqui o "fundamento essencial"
mais ou 1nenos afastado da questão. Ou melhor, o que fica em suspenso é compktament(' suficiente do ser mortal; d<"sse modo, surge o que Aristólcks
o c·onn)nlar ou o discordar do juízo, 011 s(:ja, a mera avaliação ou o juízo chama ele uma conclusão perfeita, ou s<:ja justamente: uma conch1s,io
qualitativo sohn· um juízo. E é apenas nesse juízo sobre um _juízo que rn•(·css,hia. "Chamo de perfeita uma conclusão qu<', para convencer de s11.1
resid<' o factualmeutc possível; neste, todavia, reside de fato. Ele começa a necessidade, não precisa de nenhuma outra deternünação além das
residir aí antes ele tornar-se represent,ivd I abbildli,ch]. A possibilidade factual pressuposições" (Aristóteles, Analítica I, Cap. 1): o poder-ser [Seinkijnun,I
está, desse modo,já na c01~jetura ou nas suposições que levam à fonnulação f;Ktual dá lugar assim ao dever-ser [Seintttüssni] factual. No entanlo, ('ssa
de questionamentos referentes a dados das ciências naturais ou das ciências assim afirmada impossibilidade de poder ser diferente, ou até <k podn
sócio-histó1icas. A suposição antecipa, munjuízo prohlemátíco, a condição ser o contrário, encontra-se apenas em âmbitos artificialmente purilirnclos,
principal ou um c01~junto de condiçôcs, com base nas quais o ol~jeto em de extrema abstração, e mesmo nestes só mediante limitação ao q11C· pod.,
exame pode ser aclarado quanto ao seu fundamento real e, <"ntão, s(·rdeduzido de axiomas ou ainda ao que está contido predomi11a11l('t111·111.,
compreendido no seu transcurso. Essa suposição metódica guia os em teoremas. Os axiomas (matemáticos, lógicos e, em fonna ck i111i1:11,,111,
questionamentos e a variação das condiçôes do expciimento científico. Ela, até os mais antigos do direito natural), é verdade, não s:io (':-,1:ilwlc·, 11lm
arbitrariamente, ou seja, não são meras regras de jogo, n,1110 alinna 11ao VIV<' das 1011«111 io11;111t<'S i11s11lici<'11t<'lll<'llt1· ronli/'111/11.,, 111.1~ cl.1·,
e_'om voluntariosidade funesta - certa "pesquisa dos fundamentos" ela n>1ulido11a11tcs i11s11licic111<'mc11tc m<n1ife.,tuda.,. Ele u;w d<'sig-11;1, poi l.1111, ,,
matemática, idealista, pretensamente isenta de fatos. Os axiomas contê'.111, 11111 conhecimento 1nais ou menos suficiente das condições, ma.~ dl'.~ig11.1 •,
ao contrário, perfeitamente uma representação de matérias extracognitivas, n,ndicionante mais ou menos suficiente noJ próprios objeto., ,, nt1, .11111,
ainda que na fomia genérica e abreviada mais abstrata possível. Contudo, ,li.lposições. O fato é o "comportamento ele coisas" como objetos [ (;"K'''"''"'"I
eles estão limitados a determinadas áreas de seu domínio puramente do conhecimento; ela disposição fazem parte, primeiro, as maneiras de- ln
constn1tivo, e esses limil<'S são sobretudo fluidos (basta lembrar o simples condições e relações ol~jetais, e então de encontrar-se em relações ol>j1·1.11,
"caso limite" do nosso espaço t'Hclidiano e seus axiomas ou a transformação Portanto, disposições modais como ol~jetos do conhecimento c111 lt1g.11
do teorema da contradição na lógica clenwntar do tipo cudidiano, que algum coinciden1 con1 enunciados modais, sendo estes n1eros 111oilo.1 ,/,
depois foi dt>senvolvido na lógica dialética). Além disso, porém, todos esses procederdo conhecimento, do tipo das hipóteses, das suposições, da pnijC'c,,11,
axiomas estão muito distantes de coin<·idir com o que Aiistóteks designou antecipatória, das condusôes indutivamente prováveis ou ainda cl .....
como "fundamento essencial" (o tolum ativo da coisa, a "enteléquia"); eles conclusões cfrdutivas. Porém, o que resulta é justamente tnn possívd ;ii11cl.1
são mantidos num nível demasiado abstrato para isso. E o próprio aberto, mesmo existindo o co11heci1ncnto suficientemente completo d ..-..
"fundamento e_·ssencial", con10, por exemplo, a refrrida condição humana condi<,-ões existentes; assim sendo: o possível aparece aí como o fmí/11 ;,.
de Caio como termo mé-dio no primeiro modo do piimeiro silogismo: o comportamento e,1lrutural-objetal dado I So-Verhalten [. Desse modo, ingressa-~c ·
termo médio dessa condição humana, no qual Aristóteles quis vislumbrar na camada de rcprcscnla<,,ão do <:ará ter ol~j(•tal I Sachhaftigkeitl, ela
tanto o fundamt·11to lógico pe1feito do conhecimento quanto, ao mesmo conformidade com o ol~jdo I Objelktgernú/Jheitl, distintos da m<·1 a
tempo, o hmdamento real inevit,ívcl da condição mortal, tampotJ<:o I'es1ilta o~jetividade [ Sacltli.cltkeit). Isso eondiciona também uma diferenciação d:1
1mm,1 necessidade t·stahde<'ida de uma vez por Iodas, nos lermos da prova discipli11a c·m que eleve ser tratado o possível ol~jetal. Ao passo qu<' a
dedutiva rigorosa. Pois também a condi<:ão humana (como qual<JllCI'OUtro objctividad<· diz respeito unicamente ao n>nhecimcnlo e por isso o intuito
"ünulamenlo ess<·nc·ial") em,onlrn-sc em fJroasso, não poclcnclo, portanto, dessa ol~jt·tividadc é atinente à teoria do conht·cimt·nto, o caráter obje1al
a rigor, nnprestar ncc-cssi<lack lógica nem mesmo a um fenô~1wno ti-lo sem diz n·speito ao o~jeto [ GegerMtandj do conheeimento, que, pela informação
CX<'C(ão como a mortalidade. Logo, o factualmente necessár·io manifesta- dada pelos neokantianos, não é igual ao próprio conhccinwnto; o intuito
sc, tamb{-m na dcduc;:ão, apenas como factualmente possível, ainda que real dessa confonnidacle com o objeto é, de acordo com isso, atinente ;',
ocasionalmente corno um de menor grau. Em suma: as pn:missas teoria <'att·gorial do objeto. O conceito "teoria do ol!jcto I Gegenstandl"
<:ondicionantes do conhecimento dedutivo não podem, sem cair num aparcn:u p1imeiro claramente em Meinong; neste, contudo, de referia--
esquematismo fechado e alheio ao mundo, ser mais compktas que o pn>prio se, de modo puramente apriorístico, à comfü;ão p1·etensamcnte livre de
objetal inacabado, que irá representar o factual a seu modo em cone-cito, existê:ncia ele um ser-assim í Sosein], que existiria qual fantasma
juízo, dedução. Também no objetivo-factual o âmbito do possível, suignieris, independentemente do ser-aí [Dasein] ou do não-ser-aí I Ni<:ht-Dasein] dos
é muito amplo; ele pode fazer parte aqui, contra a inclolê:ncia e a derivação objetos. A matemática era considerada o modelo desse "saber livre de
fixa, da vida da pesquisa. existêU<:ia", o que se deu com mais ênfase ainda também na posterior
fenomenologia de Husserl; isso, todavia, significa: trata-se de uma matemática
O pos~foel conforme a estrutura do objeto real afastada artificialmente de toda referência rcpresental'iva concreta,
[Das sachhaft-ol~jektgemãss Mõgliche / funestamente reificada na sua abstração. E assim tanto mais foi reificada a
É o bastante sobre o qne permanece em aber,to, que é assim porque lógica, no sentido de uma "descrição" puramente apriorísti<:a de seus atos,
não está fixado ou não está rigidamente fixado. Dessa forma, o podt>-ser uma "análise elo sentido" puramente aprioríst.ica de suas categorias - com
desse tipo reflete uma cautela factual por ocasião de juízos, geralmente no sua "existência posta entre parêntesis". A teoria do objeto [ Gegenstandl
m~,
1~ dfuu.\Ta..,~muuvc,gutl.ti'\}"\\i.~·t\.'J,1'ii'Uétú''l~-}R~1~,u'lflu\Y,~f}a dfo~,\Tü.~. lUHQ, ··~{n.,f-z ci~."clftSd""'lôuere Lfi;"~tirco1tulip.A, ru1i; .,.-.,~ at)_YA,Ol ·e,a q,k',;CI.; u,7!' w,
reserva factual. Porém, de constituição diferente desse possível factual é o representa uma tentação ainda menor do que na teoria do conhecimento
possível objetal que agora emerge, a saber, na medida em que não diz Pois embora os objetos e suas disposições ainda devam ser clistinguidrn
respeito ao nosso conhecimento ele algo, mas a esse algo propriamente, não só do aspecto objetivo do procedimento cognitivo, mas também dm
como algo que pode vir a ser de um modo ou de outro. O possível o~jetal próprios objetos e suas disposições reais, eles assumem justamente a funçã<1
das formas mais fiéis possíveis da figuração realisla. Por isso, a p1·i111azia Nesse tonmte, apresentam-se ern geral dois tipos de co11di1;<ws: ,1.,
aqui observada de uma teoria do objeto do conhecimento 1 (;egenstandl 1111cn1as e as externas. Elas entrelaçam-se interagindo unias corn as 0111.-a.~,
em relação a uma teoria do objeto concreto [ Objekt] não contém nenhum , 011111tlo, de tal modo que a peculiaridade de ambas fica preservada. Mas o
idealismo, porque a própria figuração materialista investigativa faz pari<' 111namente possível em tem1os o~jetais se mantém, mesmo que uma ch1s
da leoria do objeto [ Gegen~tand], começa a operar somente em vista do , l I ias condições, a interna ou a externa, tenha sido praticamente curnp1ida.
real-objetal e não nele mesmo, e não coincide com de. Adiante: a figuração .\ssim, uma florescfncia e,:om certeza pode fazer madurar o fruto dentro ck
das disposições estruturais não mais faz parte do procedimento ,i mesma com a plena condicionalidade interna, mas se faltar a condição
metodológico cognitivo por ser um resultado do conhecimento, e ela •·x terna plena do bom tempo, o fruto pe1manece meramente possível. Aind;i
constitui tal resultado pelo fato de e na medida em que, sendo conforme o 111ais comprometedor do que a falta de ('Ondições externas é, em
ol~jeto real, refere-se justamente a esse ol~jeto real. A forma do resultado , ontrapartida, o efeito da debilidade das c·ondições intentas com simultânea
do conhecimento é a definiçâo real, como especifica<,'.ão não só de signos t
, ,mfusão das externas. verdade que a humanidade somente assume tarefas
lingüísticos e características conceptuais, mas de qualidades objetais ,,11e pode soludonar; entretanto, se o grande momento que se oferece
constitutivas; e justamente essa definição real, sendo caracteristicamente para a solução topa com urna gt·ração mesquinha, então essa realização é
"concisa", não desdobrada, representa o ol~jeto [ Ol~jekt] quanto ao seu lanto mais meramente possível, ou st:ja, apenas fragilmente possível.
aspecto estrutural dt• ol~jeto I" Gegemtand]. À guisa de t>xemplo: a definição l•'.xemplo disso é fornecido pela ausência de conseqüências revolucionárias
real socialista de nação, à patte de todos aqueles bigoeles nacionalistas do 9 de novembro de 1918 na Alemanha, ou, em outra esféra, pelo fruto
trazidos do estrangeiro ou ainda das Grandes Chicagos cosmopolitas, dos não amadurec-ido de uma grande pintura alemã após Dürer, embora
molhos de hotd, dos atuais nivelamentos por baixo, constitui t·xalamente houvesse as coudi<,'.Ôes ext<Tnas para isso no drculo ickológico e na clientela,
o aspt·cto objetal conciso do real, o que significa justamente que· ela dá a por mais medíocre que tenha sido. Portanto, cm nenhum dos dois tipos de
conhecer no objeto [ Objekt] a sua estrutura constitutiva real. A doutrina do nmdi(ão, a condic-ionalidadc parcial pode chegar a um nível situado abaixo
objeto [ GegenJtand] é, assim, o lugar das categoria~ corno modos ou frnmas de uma certa fração, senão fica inviabilizada a própria compt·nsação por
de existências mais gerais e, assim, típico-características. (Se da não fosse parte do outro tipo de condição. Todavia, o entrelaçamento pcnnanece, o
esse lugar específico e não estivesse nele, a doutrina das categorias coincidiria que fica cspccialment<t clm-o quando se concebe de modo mais preciso a
com a filosofia real em seu conjunto e esta igualmente c;om a douttina das <"Strutura das condições interna e externa, ou st:ja, anulando-se a equivocação
categmias). Dessa forma, dentro da camada assim constituída do caráter contida desde tempos rcm0,tos justamente na categoria objetal
objetal, da conformidade estrutural com o objeto, é preciso distinguir agora ''possibilidade". Pois "possibilidade" significa aqui tanto o poder [Konnen]
de modo próprio e como propriamente determinada também a respectiva interno e ativo, corno o poder-sc•1:.feito I Getanwerdenkonnen] externo e
possibilidade. Importante, para isso, é a diferenciação indicada entre ol~eto passivo; assim sendo: o poder-scr--difen::ntc divide-se em poder~fazer--diferente
do conhecimento [ Gegenstand] e objeto real [ Objekt]: a possibilidade e poder-tornar-se-diferente. Assim que esses dois significados forem
puramente estrutural da disposição para algo ainda não é o mesmo que concretamente diferenciados, emergirá a condição parcial interna como
essa disposição real mesma, que a disposição em todas as metam01foses /JO~sibilidade ativa, isto é, como capacidade, fJOtência, e a condição parcial
ricamente entrelaçadas, inclusive profusamente perturbadas, obstaculizadas; externa como possibilidade no sentido passivo, como potenâalidade. Ambas
urna vez mais vitoriosas da realidade. O possível conforme a estrutura do objeto estão de fato entrelaçadas: não há poder ativo da capacidade e de sua
real, compreendido e definido no nível da teoria do objeto, perfaz, portanto, "disposição" ativa sem a potencialidade num certo tempo, entorno,
perfeitamente uma diferenciação própria na categoria da possibilidade e sociedade, sem o amadurecimento aproveitável dessas ('ondições externas.
não constitui; quem sabe, uma duplicação desnecessária do possível ol1etai- !\. forma política da possibilidade ativa é a capacidade do fator subjetivo;
real. O possível objetal é o parcialmente condicionado pelo objeto conforme e ele é o que menos pode tornar-se efetivo sem enlrelaçamento, sem a
o gênero estn1tural, tipo, contexto social, contexto legal da coisa. Assim interação corn os fatores objetivos da possibilidade, isto é, com as
sendo, o parcialmente condicionado manifesta-se aí corno estando potencialidades daquilo que, na proporção do amadurecimento das
estritamente bem fundado no objeto [ Gegenstand] e só corno tal transmitido condições externas, realmente pode ocorrer ou ao 1nenos pode ser
ao conhecimento hipotético ou problematizador como abertura do tipo encaminhado. O que não significa que as condições externas tenham
mais ou menos estruturalmente determinado. 11rna função decisiva e fatal comandada pela possibilidade tomada em seu
sentido mais iinportante, a saber, o da abertura. Ao co111r;írio: se a 1w,1.11111·11lc- po1 1-;10, .1 :s1111pks s11l!j1·1ividadc, <"Xisli11do poi s1 1111·.~111;1'" (1·111
possibilidade como capacidade constitui o poder-fazer-diferente, mio o q1w i11ici,1 a u·111rali:,,.a1.,io do processo) "é igualmcnl<" ill(likn·11IC' <· .1·,
anulatório, mas o re-determinador em todas as determinações, enlão a ;1hamlona à detenninação externa e com isso casual" (Fnl'iclof)l;diil d11,
possibilidade como potencialidade o~jetiva constitui o poder-tornar-sl'- , ih11:ú.t~ filosóficas§ 250) .26 Esta é a casualidade no sentido to1ah111·111<
diferenle, não o anulável, mas o direcionável, o re-deterrninável em toda:-i i11confiável, aquela que, mais na história pregressa do que na 11al1111·1;1,
as detenninações. E isto constantemente entrelaçado de tal maneira qul', dissipa e desequilibra externamente o desenvolvimento normal e 1íp11 o
sem a potencialidade do poder-tornar-se-diferente, o pocler-fazer-diferen11· Mas o inconcluso mediado dialeticamente, como sendo a estrut III a d('
da potência não te1ia espaço, nem, sem o poder-fazer-diferente da potência, possibilidade do processo em andamento, nada tem em comum ,·0111 o
o poder-tornar-se-diferente do mundo leria um sentido comunicável aos rtleatório mal mediado. Todavia, mais uma vez não é como se agora o q1w
seres humanos. Logo, a categoria ol~jetal "possibilidade" revela-se também sucede no poder-ser-diferente do processo fosse o oposto exato de qua li 1111· 1
predominantemente corno aquilo que ela não pode ser por si mesma, mas tipo de acaso e contingt·ncia. O gigantesco experimento do podn-sc·1
sim pda intervenção promotora dos seres humanos naquilo que ainda diferente mediado pelo processo ainda não possui esse oposto nc111 a
pode ser mudado: como possível conceito de salvaçiio. Ela revelou-se, em tranqüilização ncm algum título qu<" lhe dê o direito de possuí-lo. N('sSC'
parte, todavia, igualmente como possível conceito de desgrnça, e isto poder-ser-diferente chamado "possibilidade" opcrajustamente aquilo q1w
justamente devido ao poder-fazer-diferente, mas também devido ao poder- pode ser denominado contingência no nfoel máximo, tendo o caráter de
tornar-se-difen·nte contido nele, que abre espaço, na mesma medida, para mediação pcnnanente, ainda que parcial. Esse tipo ck c·ontingência, e111'i111
uma guinada para o pior, conforme a precariedade que pode residir no sentido confiável da coisa, chama-se riqu11za aialiva da variabüidrulr-,
justamente na mutabilidade, neste caso, na instabilidade de uma situação aberta jmm for1tw(:Õ11~ e criaçõe~. Trata-se de uma variabiliclack não externa,
dada. Essa precariedade, corno constitutivo negativo da possibilidade objetal, mas mediada conforme a lei inerente ao ol~jcto, justamente de uma
abrange desde o acidente que pode ocorrer até a irrupção do inferno variabilidade da mudança não frustrada de clirqão, sobretudo da nova
fascista, que residia e ainda reside como possibilidade no último estágio do formac;ão inesgotada. Neste caso, até mesmo uma assirn chaniacla
capitalismo. O caráter funesto do possível concorre assim com o caráter casualidade não mais coincide com a mera necessidade externa, mas, sendo
salvífico apontado, com o caráter esperançoso do possível, que, como tal, mediada dialeticamente pelo intrinsecamente 1wccssário, compõejustament<'
igualmente reside na mutabilidade de uma situação, neste caso não na sua o floresc·<'nte, característico, a abundância ordenada da cvoh1ção do mundo
instabilidade, mas na sua rentabilidade, na sua revogabilidade f10,1itiva. aberto. Esse tipo de contingência continua sendo igualm<"nte situacional,
Esse estado não-precário, mas benfazejo, sendo o outro estado, tão contudo no sentido do precário; ele realiza, antes, o m.undus situalú do
extremamente positivo, da possibilidade o~jetal, abrange desde o golpe de processo que gera o novo. O oposto estrito de cp1alquer contingência seria
sorte que pode suceder aos seres humanos até o reino da liberdade que se unicamente o necessário concluído, não mais capaz de variabilidade, mas
desenvolve na história como possibilidade socialista e finalmente começa a também não mais necessitado dela. Somente essa ner:1:.1·sidade estruturnlmente
tornar-se realidade. Todavia, tudo o que é capaz de ser mudado dessa' conduída SC'Iia o estado de condições plenamente· cumpridas por excelência,
forma (fartuna vertit) sempre contém uma porção de acaso, o que, por no qual as condições internas hem como sobretudo as externas não apenas
sua vez, dá-se de diversas maneiras. Há o meramente singular e inopinado teriam amadurecido plenamente, mas coinciditiam totalmente. Todavia,
de um acidente ou de um golpe de sorte. Há, porém, igualmente um poder- até agora nenhuma o~jetividad<' da coisa foi tão profunda que a própria
ser-diferente que não ocorre assim tão na superfície. Dessa maneira, Hegel ol~ctiviclade coincidisse com a sua fundamentação total; o que a tomaria de
diferenciou com muita argúcia a casualidade externa e a transformação fato estruturalmente necess;fria. Essa coincidência foi pensada por Espinosa
dialeticamente mediada do processo; mais precisamente, limitando a na definição da natureza-D<'IIS como a causa .mi e - numa hipóstase muito
casualidade externa à necessidade meramente externa, sim, declarando-a maior da identidade l<ígica - por Anselmo de Canterbury na
idêntica a esta. De acordo com isso, a contingência é vista por Hegel autofundarnentação, na "as<'itas" ( a ~e esse) de Deus, segundo a qual a essência
unicamente no concreto imediato e não no concreto mediato ou de fato
apenas na margem do processo: "Pois o concreto imediato constitui uma
quantidade de qualidades que estão desvinculadas umas das outras e mais 26 CL trad. de Artur Morão pa, a o po1 111g11ês de Portngal, in: G. W. F. Hegel. Enciclopédia da.,
ou menos indiferentes umas em relação às outras, em relação às quais, ciênciw, filosófica:,. Lisboa: fül. 70, v. 1-III (aqui v. II, p. 14).
mais perfeita existüia necessariamente, existindo a parlir da sua pnípria 11111110 i11s1n11ivo •111<· " q11e ativa111c11tl' ga11h,1 101111;1 ddi11i1Lt ll(",~.1
essencialidade, logo, a sua essência abrangeria a sua existê·ncia t,io potc1u·ialidade, a lon11;1 <pte a si mesma se realiza (l'11l<·ltq11i;1). q11('
necessariamente quanto a sua existência abrangeria a sua essência. Náo <: ,\ristÓl<'ks ainda separa de modo dualista da matéiia, passa para o sq~1111cln
preciso comprovar que a existência de tais objetificações [ Objekthafligkeitni 1 plano e to1,na-se, ela própria, material, na mesma propor~·,10 e111 q1w ,,
não vai além de sua definição, a não ser em meros valores ideais mais 011 conceito da potencialidade passiva acerca-se do conceito da pot<:11ci:1 :1111 .1
menos concretamente antecipáveis da coincidência total entre causa <· l !ma prova ex contrario disso é a luta dos teístas arábicos 1igorosos. cio,
manifestação. A moldura de tal valor ideal é - também fora e contra toda a ;1ssim chamados "motachalim" (isto é, mestres da palavra, da ({- rcvd,ic l.1).
teologia - aquda "uma coisa nccessáiia", ou S{'.ja, aquilo que desde tempos nmtra a equação: possibilidade real = matéria. Para mant<'r ah:-.ol11t.1 .1
remotos é designado como "supremo bem". Contudo, já que o que. é onipotência da forma suprema (do actus Jm:rw, divino), eks I ivc1:1111 .i ..
designado desse modo ainda não é, mbus sú: imj1e~/edi.1, de forma alguma desdobrar, em lugar do dynâmei ôn, o totalmente nulo nada como 11111 /11111111111
real, rnas, na melhor das hipóteses, encontra-se em processo, também esse anterior ao mundo: Deus niouo mundo a partir do nada, e não<> d1:1111,111
modo do estnlluralmente necessário está, por sua vez, apenas na condição para fora da matéria, a partir da possibilidade real. Ao contrá1io dis-.o, m
de possibilidade estrutural. Esta última, todavia, comprova-se, no lwrizonte filósofos materialistas panteístas da Idade Média, como Avicena, Av1•11 ( w-.,
da causa YtÚ ou da identidade bem-sucedida de existência e essfaicia, como Amalrico de Bena, David de Dinaul, tornam a possibilidade real ch,1111,11 l.1
categoria salvacionista resoluta. Pois o ponto ideal em que cssê:ncia ,e "matétia" o fundamento geral do mundo, <· a vontade criadora <livi11.1 •·
manifcstaçào coincidem é: de qualquer fonna simultaneamente o ponto de sempre um momento da matéria; sim, Deus e matéria tornam-se idê111i1 (1',,
01icnta~·ão absoluto para a linha cstn1tural do possível positivamente humano. En1 AverToes, evolução é edudio Jormaru:m ex rnateria, encontrando-se o !111/111
Jormarwn no próprio universo. Assim, a <'IÍação - sendo excluído lodo
O possível objetivo-real [Das objektiv-real Mõglichc / dualismo-aparece unicamente como au1omovimcnto, autofecundaç,10 eh
O pode-ser não representaria quase nada se permanecesse sem matéria~Dcus; nela se eucon1 ra a potencialidade e, ao mesmo tempo, acp wl:i
conseqüências. Porém, o possível só tem conseqüências s<- não ocorrer potência imanente a ela que torna supérfluo mn 1notor extrarnundano. F
apenas como fonnalmente permitido ou ainda como o~jetivamente esse semimaterialismo da possibilidade real multiplica-se cm clima de
presumível ou mesmo corno aberto ,,onfonne o objetQ, mas s<· constituir Renasdmcnto em Gio,,dauo Bnmo; para ele, o mundo torna-se de vez :i
uma determinação portadora dC' futuro no real mesmo. 1 uma h, realização das possibilidades contidas na unidade da matéria e sendo elas
condicionalidade parcial-real do objeto que representa nele mesmo a sua a própria matéria. A nalu-ra naturans e a nalurn naturata, coincidem aí ele
possibilidade real. Assim, o homl'm <" a possibilidade real de tudo o que alto a baixo "na matéiia permanente, eterna, geradora, rnaternal". O
ele tem sido na sua história e principalmente de tudo o que ainda pode vir substrato "possibilidade real" torna-se assim, muna ousada ampliação de
a ser no caso de um progresso S<"lll entraves. Ele é, portanto, uma Aristóteles, concomitantemente a fonte e não só o receptáculo das formas:
possibilidade que não está, como um fruto, esgotada na realização concluída "Daí que a matéria, que ( ... ) pennancce sempre fecunda, deve ter a
do carvalho, mas que ainda não ch<'gou ;1 maturação de suas condições, significativa prerrogativa de ser reconhecida como o único princípio
de suas condicionantes tanto internas qrnmto l'Xlernas. E no todo inesgotado substandal e como sendo o que é e permanece sendo. ( ... ) Por essa razão
do próprio mundo a matéria é: a possihilidade real de todas as formas é que alguns deles, tendo ponderado bem a relação das formas na natureza,
latentes no seu seio e que são desligadas dela pelo processo. É nesse conceito na medida em que se pôde reconhecê-lo a partir de Aristóteles e de outros
mais abrangente da possibilidade r!'al que tem o seu lugar o dynámei ôn de tendência similar, acabaram concluindo que as formas sedam apenas
(ser-cm-possibilidade), expressão com (Jlll' o próprio Aristóteles definiu a acidentes e determinações presentes na matéria e que, por isso, também a
matéria. Pois assim como Heráclito foi o primeiro a ver a contradição nas prerrogativa de ser considerada actu3 e enteléquia deveria pertencer à
coisas mesmas, Aristóteles foi o prinH·in, a n:conhecer a possibilidade realiter matéria" ( G. Bnmo, Von der Ur:l'ache, dem Prinzip und dern Einen [Da causa,
na constituição mesma do mrnulo. A partir daí o possível real torna-se do princípi.o e do uno], Meiner, pp. 60 e ss.). Estas são, portanto, as primeiras
compreensível como substrato: 'Tudo o que vem a existir a partir da , conseqüências, quando a possibilidade real é encarada como tão real que
natureza ou da arte possui matéria, pois tudo o que se toma existente tem abarca simultaneamentt> o ventre e a fecundação, a vida e o espílito, unidos
a potencialidade (dynatón) de sn <' dl' não ser, mas isto (que pode ser ou na matéria, sendo que o ventre permanece fértil, a tendência-latência do
não ser) é, em cada caso, a matéria" (At·istóteles, Metafisica, VII, 7). E é que realiter pode vir a ser não está tc1minada no substrato material. Essa
•lc-1 i11ic10 do d·vnú111ri ,,11, todavia, lúi 11111.1 das q1w srn,uhH 111 110 111at(Tialis1110
() n·,il1111·111c- l'"'•'•l\"4 1 p• 11111p1.1 COlll O g1·11111· ('Ili ljll<' r... d1"Pº"'º 11
111t-r,m~cutc n;ccânico, mecani<"ista. Neste, a tuat<;ria 1"01110 pln1i1udc 1i11li:i
, 111do111u. O •pu- 11d,· ,·..,1.1 pi 1·--lon11ado lff<><'lll".t dl'sdol11·;11-,.,I', 1, 1d.iv1.1 11,1, •
de encolher necessariamente e com razão, porque a ciência natural
, , ,1110 se a11terion11 .. 11teja .. xistissc, con1prin1ido no 111•·11or <'sp.11.:0 pos.,,,."L
quantitativa nada acusava disso tudo e porque a mecânica pura constituía a
1 1 p1()prio "germe" ainda se encontra diante de muitos saltos; 110 p11ip110
melhor alavanca contra o além-mundismo. Mas o que contribuiu em não
,lc-sdobramento, a "disposição" desdobra-se em pontos de partida s1·111p11·
menor medida para tornar esse encolhimento possível foi o fato de a
,.-11ovados e mais precisos de sua potentia-possibilitas. Logo, o poss1\1<'I 11·.il
própria escolástica cristã ter afastado o conceito aristotélico de matéria, e.·
1111 germe e na disposição nunca é algo pronto de modo 1·sta11«pl<', q1w,
até mesmo o conceito pré-socrático diversificado (ao qual Bruno igualmente
, 111110 algo existente en1 fc>rma dinünuta, apenas tivesse de •·011d11i1 «•
se reporta), do âmbito propício à germinação da natura naturan.s. Por
, 1 .. scimento.Ao contrário, ele preserva a sua abertura con10 desdohra11l1'11tc •
essa razão, pode aplicar-se também ao conceito mecânico, demasiado
, 111c realmente significa evolução, não corno mero despejanwnto 011
mecânico, sobretudo à sua 1·epen:ussão esté1·il no sénilo passado, a seguinte
.-van1ação. A potentia-po.ssibilitw, reiteradamente faz com que a rai:t.orig·i11:11
frase do cientista natnral inglês John Tyndall: "Se a matéria ingressa no
, ;1 origodo fenômeno em processo permanente tornem-se origin;Ü-ias 1111111
mundo como se .fosse um mendigo, então é porque os Jacós da teologia a
11ovo nível, l'Om um contt'údo latente renovado. Assim, o ser 1111111.111°
defraudaram do seu direito de primogenitura". A matéria concebida de
11,1balhador, essa raiz ela encarnação, passa transformado por toda s11;1
modo meramente rnecànico tornon-s<', em todo <:aso, na seqüência, um
11istória posterior e desenvolve-se dentro dela com precisão cada vez 111ai01.
cepo estranho à história, tendo toda a sua possibilidade real se tornado
,')im, pode-se dizer que também o andar ereto do ser humano - esse nosso
uma realidade estática, no sentido de um infrio congelac.lo já no seu
.ilia em que resicle a disposi(ão para nunca se dobrar a ninguém, porta 1110.
nascimento. Contudo, a definição atistotélica do dynúmei (Jn, que se tornou
para o reino da liberdade - passa, ele mesmo, pela história das rcvol11<:úc·s
capaz de mutação, continuando a n·perculir, ingrc-ssa - ela mesma rnutatis
1 ada vez mais c·on<Tctas reiteradamente transformado e qualificado co111
11tutandL1· - no materialismo dialético-histórico. O fator sul~jetivo, a
111ais precisão. At{- chegar ao ser humano sem classe, que representa 1·111
maturação das <·oncfü,'.Õt·s, a n·v<·rsão da quantidade em qualidade, até
<;('U cor~junto a possibilidade disposta e afinal pretendid~ d~ hishÍ'. i.,
mesmo mutabilidade: numa matéi-ia-n:po inerte todos esses momentos do
pregressa. O possível real, c·omo disposição para o seu real, nao so rm111tc111
desn1volvimento dialhi<:<>-materialista ficam sem substrato. O aspecto
('Sta e1n movimento, n1as con1porta-se tambfan de rnodo essencial em reh1(.'ac >
dialético se afasta dessa matéria por· ser ela um quantum imediatamente
;·1 realidade já existente, sendo o lolum definitivo dessa disposição q111·
mecanizado, ainda cp1e mecanicamente movido, ou fica sendo para ela
•·ontinuará ~ cksenvolver-sc cada vez mais. D<"sse modo, o até agora r(':il
apenas um epi.thelon ornans; a transição do reino da necessidade para o
tanto é perpassado pelo constante fJlus-u.ltrada possibilidade essencial <"<>111c >
da liberdade tem chão somente na matéria processual inconclusa.
envolto pela luz desta cm sua extremidade dianteira. Essa luminesd'·n1 ia
Justarne1tte os extremos até o mo1nento 1nantidos no maior distanci.:uncnto,
envolvente, uma luz pré-refletida no horizonte que era refletida, ck modo
possível- ou st:ja: lüturn t· natureza, antecipação e matéria - coincidt·m na
mais ou menos abstrato, também por quase todas as utopias so<·iais,
radicalidade oportuna do mate1ialismo dialético-histórico. Sem a matéria
apresenta-se psiquicam.ente corno imagem do desejo I Wunschbild] para dia 11 t <·,
niio há wlo para a anlecipaçiio (real); .sern antecipaçiio (real) núo há
nwmlmente como ideal [Ideal] humano, esteticamente como símbolo ohj<·t;il-c
horizonte wru:ebível para a matéria. Desse modo, a possibilidade real não
natural. As imagens do desejo para diante têm como conteúdo o possíwl,
reside numa ontologia acabada do ser do que existiu até o momento, mas
captado cm maior ou menor grau, de uma vida melhor em termos g<·rais;
na ontologia, a ser renovadarnente fundada, do ser do ainda-não-existente,
elas assumem, por isso, um tom de recital alegre. Os ideais têm c·onm
que descobre futuro até mesmo no passado e na natureza como nm todo.
conteúdo principal o possível, realizado em menor ou maior grau, d(' uma
No espaço antigo, ela traça assim, da maneira mais plena de conseqüências,
busca da existência humana perfeita, de relações sociais mais perféitas;
o seu novo espaço: a possibilidade real é o espaço que, em tem1os categoriais,
eles são, por isso, instigadores e exemplares nos seus modelos norteaclon·s,
está à frente do movimento material enquanto processo; ela perfaz o caráter
nos seus códigos modelares. É aí que se situa o tipo humano bdo, 11;10
específico de área justamente da realidade .situada na linha de frente de
desfigurado e não coisificado, e a relação sem classe em que ele tcrn o sc·11
.seu de.senrolw; Como poderiam ser diferentes as propriedades da matéria
lugar. Os símbolos, por fim, têm como conteúdo, tanto mais principal, o
portadoras de futuro? Não há verdadeiro realismo sem a verdadeira
possível, realizado em toda parte apenas indicativamente, d<" 11111a
dimensão dessa aberttu-a.
identificação não alienada de existência e essência na natureza como 11111
to<lo; símbolos sáo, por C'Ssa razão, perti11t·11lcs e ck e rn11nulo p1oh111clo. d1vc1 s;1111<·nte situado, <'OHl<:Údo de identidade do ohjc-10, d,·-, 1 q,1e·s .. 111.1111
Diferentemente dos ideais, eles são encobertos, islo << <"il".~ siguili('am (·111 nula caso como sendo esse encoberto e idê-11tin> ao ol~j1·10. I·. e
mediante um pát!toJ especialmente forte do "significado", e isto ponp1c· 111ii<·amente esse caráter representativo de i.nna cifra real, d(' 11.111 .,/111/111/u
não têm, como os ideais, corno conteúdo um possível realizado em maior 1ml, que ao final comunica aos símbolos a sua autenticidade, autc11ticicl:tclc-
ou menor grau, mas justamente um possível realizado em si mesmo apenas d<' uma convergência do significado, que se associa à realidade d<'ss<"
indicativamente. E ademais, sobretudo: esse conteúdo reside tão fortemente significado em certos objetos do mundo exterior com um teor csp<"cial d,·
no "significado" ou, como se pode dizer mais especificamente no caso dos latência. Incluem-se aqtú símbolos corno a torre, a primavera, ind11c111-s1·
símbolos, na "cifra", porque se trata de um conteúdo central, logo menos :,s brisas noturnas do Figaro de Mozart, e ainda a tempestade de neve c111 , 1
manifestável num primeiro momento do que o conteúdo dos ideais. Os morte de Ivan llitch, de Tolstoi, o céu estrelado sobre o ferido de rnrn 11·
respectivos portadores, as r·espcctivas existências de um significado simbólico André Bolkonski, em Guerra e paz, de Tolstoi, as montanhas no final do
até são bem mais numerosos, quase mais aleatórios do que os do ideal, Fausto, em geral todos os símbolos da sublimidade. Em virtude do sc-11
mas, em compensação, estão sempre associados de modo bem mais rnráter metafórico, a arte verbal captou o nível simbólico do possível n·;d
abrangente ao essencial em toda a natUH'.Za. E des estão associados a este mais claramente do que a filosofia pregressa, mas a filosofia acolhe c·ssc·
de modo central, o que, por outro lado, constitui a diferença entre o símbolo nível com o rigor do conceito e a setiedade das associações. Ambas, p<>l'c-111,
e a alegoria, sendo esta a comparação de uma coisa com uma porção de tanto a arte verbal realista quanto a filosofia, revelam o seguinte: o rrnmdo
outras coisas, sem que seja abandonado o âmbito do variado. A indicação mesmo está cheio de cifras reais e símbolos reais, repleto de signalum
do símbolo, em contraposição, visa ao caráter undário do significado; razão rerumem termos de coisas que abrigam significado em seu núcleo. N<'ssa
pela qual, diferentemente da indica~·ão sempre ambígua para a variedade, sua signifü:ânda, eles apontam bem realiter para a sua tendência e latência
próp1ia da alego1ia, os símbolos autênücos, ao final, convergt'm no seu de "sentido", de urn sentido que possivelmente um dia acolherá totalmcnlt'
significado, a saber, justamente no caráter central de seu significado. O o homem e suas questões. A condi<:ioualidade parcial, portanto, a
respectivo direcionamento para o centrnl, condicionado socialmcnt<\ diferiu possibilidade de maturação dessa disposição passa por todas as provas pdo
na histótia do símbolo - que pern>rreu longos trechos através da religião exemplo humano de sentido, de que o mmulo é tão rico. Isto, contudo,
-, mas o que não diferiu foi a referência básica da metáfora-símbolo, que ocorre justamente numa distância maior ou menor do exemplo, no ainda-
reiteradamente se tinha cm mente, a 1m1 ur11un verum bonum, da essência. não maior ou menor da manifestação plena, ou stja, naquele distanciamen te>
Contudo, pelo fato de justamente essa essência residir apenas no possível que oferece, de diversos modos, apenas imagens do dcstjo, ideais, símbolos,
realizado indic:ativamentc e ainda não poder residir em nenhum outro em lugar do ê:xito alcançado. Distanciamento que mostra o toturn essencial
lugar, o simbólico está encoberto - o que é decisivamente importante~ do mundo no grave processo de seu surgimento, em lugar algum como
não sô na sua expressão, mas, em todos os símbolos autênticos, igualmente resultado. Quando a distáuc:ia é escamoteada, aparece um otimismo
no seu conteúdo mesmo. Pois o p,-óprio conteúdo simbólico autêntir:o ainda pe1verso e abstrato; porém, quando a distância é compreendida como a
se encontra díJtanâado de sua manifestação plena; por essa razão, ele é perfectibilidade mediada, o que ela é, em toda a sua condição de pe1igo,
também real-objetivamente uma cifra. Justamente a partir da luz elo possível surge o oposto da perversidade: o otimismo militante. Isto é o bastante a
real ocmTe, enfim, a percepção de um núcleo real no conceito do simbólico1 respeito do possível real e a essência nele contida éorno condição dispositiva
um conceito, portanto, que até agora, descontando algumas versões do pe1fectívcl que acolhe o homem - numa noção de sua liberdade vindo um.
idealistas objetivas na estética de Hegel, havia sido compreendido quase A essência do perfectível é, confonne antecipação concretíssima de Marx,
exclusivamente de modo idealista subjetivo. De modo idealista subjetivo "a naturalização do homem, a humanização da natureza". Isto representa
porque todo conteúdo do símbolo era apresentado apenas como encoberto a eliminação da alienação no homem e na natureza, entre o homem e c1
para o entendimento humano limitado, ao passo que o conteúdo mesmo natureza ou a ham1onia entre o objeto não reificado e o s1tjeito manifestado.
constava como totalmente estabelecido - sem qualquer distanciamento em entre o sitjeito não reificado e o objeto manifestado. Todavia, o que essa
relação a si mesmo, resplandecendo num estatismo transcendente. Porém, perspectiva de verdade absoluta, o que neste ponto significa o ser-real pkw,
ao contráiio disso, a verdade é esta: o simbólico comunica-se à sua expressão na realidade n;iesma - e sua amplidão e profundidade são incontornáwis.
unicamente a partir do conteúdo do objeto, diferencia os símbolos individuais sob pena do relativismo sem desaguadouro -, revela é primeiramente· a
a partir do material objetivamente real, cujo conteúdo de encobriment0 possibilidade .essencial-real, e ainda não a necessidade essenciaheal nela ai<:
ali apenas disposta. Pois esta sena 11111a possd>1l11l.11lc- 1 0111 , 011cli<_·oc·s I'º•" o t ◄ -mpo, a i<la d,· 11111 loguete ,1 lua S<T,Í possívd". l'orúu, a dikrenc;a
plenarnente suficientes, portanto, inevitáveis pa1·a a l'Xisti·1u·ia da c·ssi-11c·ia, , 1111 ◄· o pt-iineiro e o sl'gundo juízo aponta claran1entc não só para o c1ráter
para a essência da existência. No lado de cá dessa extrema não-contingê11c·ia 1111a11ente-lógico, mesmo imanente-psicológico, mas também pa1;1 o uuáter
ou ausência de situação também a necessidade essencial-real chega a s<·t ,·xi nunundano de uma grande parcela da -modalidade. Se a ca t cgoria
apenas possibilidade, sim, uma possibilidade cujas condições realitn "possibilidade" for· reduzida exclusivamente ao mero nível cognitivo da
dificilmente já estarão presentes mesmo que parcialmente. Um processo '-ll]>Osição, então é certo que a possibilidade objetiva necessariamente irá ~'.
permanente, uma imagem ativa aa esperança de um mundo melhor, , ·vaporar-se de forma idealista-subjetiva no mundo exterior. O possível é
mediada pela tendência, um ideal instigante, um sírn bolo de teor profundo: diminado pela demonstração, como se um homem nunca tivesse se c·xposto
é isso que pennanece sendo as perspectivas reais, elas próprias ;1 modalidade de um perigo, como se ele nunca tivesse realmente escapado
antecipadoras, da possibilidade real - constituindo as dimensões de linha clele, contornado o mesmo ou se tornado presa dele. O possível é
de frente lwt'exodtén lprirnordial-tnentej. transformado, então, en1 mera "introjeção antropon1órfica", como se não
fosse fato que todos os or·ganismos, com seus aparelhos de reflexão e rea,;ão,
Rn:ordaçúo: a luta e~lâtiw-lógica i:ontm o possível <'Stão preparados para um mundo ol~jetivo-real da possibilidade; desde a
t fácil wr como muita página ainda pode S<"r virada. Um ainda-não anêmona-do-mar até o animal selvagem com seu faro, até a cautela do
existe em toda parte; tanta coisa ainda não está consciente para o homem, !torno sapi,em. O possível é dedarndo corno "Ji<·ção" irreal, como se o direito
tanta c·oisa ainda não chegou à existência no mundo. Mas não haveria civil e o direito penal não estivessem repletos do conceito "possibilidade
nenhum dos dois ainda-não, se eles não pudessem mover-se no possível e objetiva" ( respo nsa hilidadc, imfu1ssi.bi.lium nulla obli.galio, cláusula
voltar-se parn o seu car·áter aberto. Entretanto, até agora o pod<"-ser foi condicional, negligência e assim por diante). Apesar disso, até mesmo
smpret·ndeutementc pouco refletido, pouco dominado. J\. categoria do Sigwart, embora defina coITc·tamcute a mera possibilidade como algo
possível, ainda que tão bem c·onhccida e a toda hora utilizada, constituía atribuído ao indivíduo, "na m<"dida c·m que c:ontém a razão pardal daquilo
uma crux t·m tcnnos da lógica. Dentre os conceitos que, no decorrer dos que será" (/,oífi.k /, 1901, p. 271), vê· uo possível ap<·nas uma expressão da
séculos, foram daborndos e levados a um grau de precisão pela filosofia, indecisão subjetiva ou ainda da rcsigmu;ão do nosso sabe,· limitado. A
essa cal egmia é a q I w até agora permaneceu a mais indefinida. ( :om certeza extrapolação da modalidade do juízo p1uhlcmático, o dcsconhedmento
{, a que menos foi rastreada ontologicamente; por isso, ela ocorre da modalidade do objeto do conhecimento I Gegenslandl e· da modalidade
tradicionalmente quase só na lógica formal. Mesmo quando a doutrina das do ol~jcto em si I Ol~jekl] proporcionam assim o fn-i-rneiro ·motivo para a
categorias se ocupa com o possível, este é considerado preponderantemente negação idealista da possibilidade real. Acrcsce-s<", porém, ainda um segundo
apenas como detennina~·ão do conhecimento e não do objeto. É verdade motivo para a negação da possibilidade real, e este cn<·ontra-se também em
que lógicos como J. von Kries, epígonos em menor ou maior grau do grandes pensadon:s, t· ainda por cima naqu<"lcs <ju<· não são idealistas-
habitual como Verwcycn e por último N. Hartmann, que até chama a si sul~jetivos cm nenhum ponto. J\. barreira é, neste caso, a mesma que fez com
mesmo de ontólogo, escr-cveram diversos livros próprios sobn: o tema que a categoiia-innã do possível, o novo, ficasse até o momento sem a devida
"possibilidade". Porém, como os últimos epígonos reconhecem o possível reflexão. A ban-eira é a navegação, c:ondicionada pela classe social, em torno
apenas como rdação conceptual, eles não escreveram praticamente nada, do dado, sim, do passado, é a aversão do pensamento estático ao conceito
ou seja, nada real sobre o assunto. Em toda parte nesses autores, mas não universal da abertura ativa e do horizonte anil. Essa aversão encontra-se
menos também em filósofos originais, de que trataremos logo a seguir, também em filósofos tão afeitos ao processo como Aiistóteles e I Iegel, apesar
ocorre o notável esvaziamento do possível primeiramente pela não- da gigantesca concepção de um dynámei ôn real no caso do primeiro, da
diferenciação entre o conhecimento ainda parcial das condições e as dialética real no caso do segundo. A constituição de um uno e todo bem
próprias condições parcialmente presentes. Assim, o JUIZO acabado, de um universo em que todo o possível é real ("possest", "poder-
problematicamente oscilante sobre um dado objetivamente decidido é ser consmnado" é como Nicolau de Cusa chama Deus, e até mesmo Giordano
reiteradamente identificado com um juízo assertivamente decidido sobre Bnmo não deixa nada de possível ürealizado sobrando no todo do mundo):
um dado objetivamente oscilante, ou seja, sobre a possibilidade sobretudo essa constituição estática obstnüu o espaço do possível-aberto.
o~jetivamente existente. O juízo problemático: "É possível que Luísa esteja Assim, o conceito categorial "possibilidade" está situado quase inteiramente
em casa", supera assim o juízo assertivo: "Está estabelecido que, dentro de em terra virgem; ele é o benjamim entre os grandes conceitos.
O tempo todo parece <jlle se quer evitar ck 11'fld11 ~0111 t· o vic,·oso, o , 11.ulor c· não adentram, co1no capazes de S<"l'<'III n·ali/.acb.~, n,11' 111111,dn
vindouro. Até mesmo os sofistas, para quen1 tudo lpl<· t't a Ii111H· torno11-.~1• 1 .-;ilizado de uma vez por todas. Espinosa, contudo, ainda dctcn11i11;1, 1 0111

intelectualmente oscilante, não extraíram do possível nada além de escárnio. Ioda a força fundamental do amar Jati, o seguinte contra as possibili1L1dl'~
De tal modo que seria possível tanto tudo quanto nada,já que, como diz 1·111 Deus: "As coisas não podiam ter sido produzidas por Deus de m,11wi1 a

Górgias, não há absolutamente nada, nem não-existente, nem existent<', diversa e em outra ordem do que naquela em que foram produzidas"
nem algo intermediário, que pudesse perecer ou vir a ser, ou seja, que se (hirnI, Proposição XXXIII). Este é, portanto, em consideração do possívd,
portasse como possível cm relação a este ou àquele. Na escola megárica, a o grande estilo de Diodoro Cremos na metafísica. E uma vez mais uúo
negação do possível tornou-se, não mais radi<·al, mas ainda mais centrada; ocmre que, com isto, estaria tenninado o desagrado em relação ao possíwl,
ali ela se ligou claramente <·om a doutrina elG:ática do ser imóvel. O nnno se esse desagrado não existisse também em filosofias que poderiam
megarense Diodoro Cremos produziu, sintomaticanwntc- em conexão com .,té venerar hem francamente o possível; é o caso de Kant, bem como mais
a dernonstração de Zcnão contra o n1ovitneuto, a sua prc·tensa prova contra concretanwBtf' de I kgel. Kant pôs em evidência o ideal, Hegel, o progrcss1 >
o possível. Sob o nome de Kyrieúon, essa pretensa prova ainda continuou 11a consciência da liberdade; apesar disso, a Critica da razão pura enfatiza o
famosa por sénilos, tanto c·omo pn-'tt'nsa obra-plirna da dialética, quanto possível tão pouco quanto, mulati\ m.utandis, a Lógica e a Enciclopédia ck
sobretudo justamente por causa do interesse <ptc o pensanl<'nto estático Hegel. Kant leva a possibilidade (tanto a "das coisas mediante conceitos a
d('JnO nstro11 por e la ( d'. sobre isso Ze lle 1·, Sitz u·ngsberii-hte der Bedi.ner Akaderni.e, fJriod' como a "que apenas pode ser retirada da 1·ealidade pela experiência")
1882, pp. 151 e ss.). Diodoro fonnulou um silogismo: de algo possível não para o lado da formas intelectivas puras. É vcnlade que, neste caso, todas
se pode oliginar nada impossível; porém, dado qne um possível que não as formas intelectivas puras ou categorias, logo também as modais,
se tornasse real 01iginaria a partir de si algo impossível, a sah<T, um É constituem a expciiência, sendo elas o "sistema de fenômenos" fundado
diferente do É que ele de fato é, então este possível mesmo é impossível e pelas categorias; porém, no tocant<' às categorias da modalidade
está comprovado que o real é o único possível. Sendo um silogismo bastante (possibilidade, realidade, necessidade), Kant adverte, justamente em vista
fraco, ainda assim o estoicismo romano acabou assumindo-o; ele tem grande da t·xpcriência, que s<· tenha muita cautela. Daí a sc·nterH:a: "As categ01ias
relevância para Epicteto e para Marco Aurélio no que concerne à satisfação da modalidad<' têm ele especial o fato de não acrescentarem a mínima
com a ordem cósmica livi·e de possibilidades, cheia de necessidades e foi coisa ao c·ouccito, ao qual são atribuídas como predicado, como
comunicado por Cícero (De Jato, 6,7) ao posterior amorfati. Negação do detenninação do ol~jeto, mas de expressarem apenas a relação com o
possível, neo-cstoicismo, amorfa.ti dão-st' as mãos com grande familiaridade intelecto" ( Wed<11, llartenstein, III, p. 193). Conseqüentemente, Kant não
cm Espinosa: ver sub speciR aelernitati.s (Ética II, Proposição XLIV, Corolário conhece nenhum possível rcal-0\~jetivo, o real ol~jt·tivo--real junta-se ao real
II) significa per dRji:nilionem ver todo o possível já como real-nccessá1io. modal unicamente pda contemplação e nem de leve pela conexão com
Pois do ponto de vista da eternidade espinosista não existe mais nada um juízo assertivo, portanto, na qualidade dt' um juízo sobre a realidade
parcialmente condicionado, ou seja, nenhum possível, porque da coincide da modalidade. Apesar disso, Kant é obrigado, ainda que pagando o preço
com a relação incondicional entre causa e conseqüência (como o Jaturn do dualismo, a dar espaço à possibilidade, a saber, no peculiar campo de
rnatem.itico do mundo). Isto exclui, para o Deus de Espinosa, a escolha reflexão sobre a cxperit:ncia reconhecível, que faz parte da "razão" moral
entre aquelas possibilidades lógicas infinitamente num<Tosas que um e não do "entendimento" cognitivo e que é habitado, portanto, pelo
Leibniz, no entanto, ainda fazia com que estivessem desdobradas diante "postulado" e pelo "ideal". O postulado posterionnente tão fortemente
do seu Deus (na qualidade de realizador). Até mesmo no intciior do mundo mobilizado por Fichte: "Tu podes, pois tu deves", tem em mente a
existente, tendo sido realizado por seu criador a par·tir de um mímero possibilidade como capacidade, como potência. O ideal que predomina em
infinitamente grande de possíveis, Leibniz ainda conhece a possibilidade Kant do começo ao fim, e que abstratamente também tem a primazia em
como disposição natural, ainda que se trate de uma que também não é relação à política, a "expansão do domínio da liberdade moral", significa,
capaz de desenvolver nada realiter novo, isto é, algo que· não esteja contido por outro lado, a possibilidade como potencialidade de uma aproximação,
no mundo existente até aquele momento. E mesmo que Leibniz, o único infelizmente sem fim, a esse ideal na história. Contudo, a possibilidade
grande pensador do possível desde Aristóteles, abra espaço inclusive para assim concebida não é uma possibilidade real-objetal; no mundo da
um número infinito de possíveis outros contextos m1mdiais, essas primae experiência do idealismo transcendental não há caminho que leve a
possibilitate~ acabam existindo uma vez mais apenas no entendimento do ela. Ela tampouco é distinguida de modo especial como possibilidadC'
do dever, do postulado, do ideal; no <·,unpo de vis;10 .w,101 wo «k 11111a I'' dc11sa111c11te al11 a11gt · o 111u11do i11tci1n. Po, 1.11110, loí_jw,la1111·1111· 1·ss1· /111//,11,
"consciência em geral" certamente havia sin1patia pdo lúltu-o, pela do 1·s1atismo, tão admirável no poderoso diakfü·o, que fez l lq~d n>lrn·,11 .1

"esperança do futuro", como Kant disse nos Sonho!> de um vi!>ionário ( Wi-th1· l'ºssibilidade em último lugar ou transferi-la para o descartado d<" sl'g1111da
//, p. 357), mas não havia um lugar constitutivo. Assim, não só o , . 11 l'goria.
Deste contexto faz parte também a seguinte proposição d<" 1kg d,
"entendi1nento" das categorias da expe1iência, rnas também a "razão" como , 111<· encerra o processo: "Aquilo que é interior também existe exteriorn1<·1111·
"mãe das idéias" reduziram o espaço destinado ao possível. E em que situação ,. vice-versa; a manifestação nada mostra que não esteja na essência, <' 11.1
se encontra, enfim, a possibilidade em I legel, o pensador enfático da razão .-ssência não há nada que não seja manifesto" (Enciclopédia das à,;,1t ;a.,
(concreta) em lugar do entendimento (abstrato)? Hegel, que de resto é filosófica!>§ 139). 28 Todavia, aponha-se a isso a manifestação anterior a <·s:--a
tão idealista-ol~jctivo, suq>reendentemente cita com aprovação a passagem 1onstante no prefácio à Fenmnenologia: "( ... ) não é difícil ver que o nosso
ele Kant citada acima, que mantém a modalidade longe do objeto real, lcmpo é um tempo de nascimento e passagem para mn novo período.<>
mna aprovação a Kant, que é Ião rara em Hegel. Ele acrescenta o seguinte espírito rompeu com o mundo elo seu existir<' representar que até agora
à citação de Kant: "A possibilidade é de fato a abstra<;ão vazia da reflexão- :--nbsistia e, no trabalho de sua transformaç·ão, c·st.-'í para mergulhar <'SSI'
cm-si, aquilo que antes se chamava de 'interno' e que agora é definido l'Xistir e r-epresentar no passado" ( Werke ll, p. 10) .29 Entretanto, a
con10 o interno suspenso, apenas constituído, exterior·, e assi1n, todavia, conseqüê:nc:ia desta manifestação, que I lcgd deixou de tirar, seria esta:
também é constituído como mera modalidade, <:omo abstração insiúiciente, onde existe um tempo de "nascimento", existe também o ventre do possívd
mais ,·oncn·tan1c·nte ,·on10 pertencente apenas ao pensamento sul~jctivo real de onde ele brota, e onde há "trabalho ele- transfcxmação'', a potência
( ... ). Em especial na filosofia não é nncssá1io falar da demonstração de da remodelação bem como a pot<·ncialidade do que pode ser remodelado
que algo {, possível ou de que alp;o diferente seria possível, <' de <JllC algo, 1êm dt· s<·r mais elo que apenas abstraç'.ão vazia da reflexão-cm-si. Da mesma
como que,· <JU<' se expresse, seria concebível" (EnciclojJédia das âências forma, a ontologia lógica do vasto reino do possível foi esmagada pela
.ftlosójú:as ~ 14:l).~7 Mas também Oll(k Ilcgcl concebe a possibilidade não ilusão t·stática de que o possível já estaria plenamente formado no real.
só como uma ahstrnção vazia da rcllexão-ern-si, e igualme11tc como um Que, J><ff isto, de seria tão indifrrent<· quanto uma espiga da qual já foi
momenl<>-<'m-si da n:alidade, essa, no caso dele chamada possibilidade extraído o grão, ou quanto figuras de xadrez após o final do jogo. A verdad<'.
real, <' envolvida totalmente pela esfera da realidade já constituída: "Por porém, f a de Marx, que se destaca de Iodas as filosofias surgidas até o
isso, o que(., possível de modo real não pode mais ser diferente; sob essas monicnto, de que o que importa é transformar o mundo cmretamenll'
coudic;ões e cirnmstâ11cias não é possível que resulte algo difercnle" (l,ogik, intcrpn:taclo, o que significa justamente interpretado <·omo estando num
Werke IV, p. 211). 11<-·p;cl fala aqui visivelmente também c·omo inimigo da pron~sso mate1ialista-dialético, como inconcluso. Transformação do mundo
opinião vazia, do r<'arra1~jo improfícuo da história confonne aquilo que transformável é a teoria-práxis do possível real realizável na linha de frente-
poderia ter ocorrido, do ideal abstrato, da "moça como deveria s<T", do do mundo, do processo do mundo. E nessa ponta, o possível r·eal, apátrida
"Estado como ele deve ser" e assim por diante. Mas ele fala também como em qualquer filosofia estático-contemplativa, constitui-se 110 problema real
não-pensador do futuro, como dialético girando em torno do <pie passou do mundo como tal: ele é o idêntico ainda não ocorrido da manifestação ('
ou, o que dá na mesma, do que sucede eterna1nente, do que se 111ove do ente r·eal, enfim, da existência e da essência contidas nele.
eternamente 110 seu cfrculo, em sUJila, aqui se expressa o aspecto reacionário
cm Hegel, para quem a filosofia de qualquer modo sempre c:hega muito Realizar a possibilidade
tarde para provocar algUJila mudança, para quem a idéia, consoante o O homem é alguém que ainda tem muito pela frente. No seu trabalho
prefácio à Film,ofia do direito, de qualquer modo só surge "depois que a e através dele, ele é constantemente remodelado. Ele está constantemente
realidade completou o seu processo de fonnação e já se aprontou". Também à frente, topando com limites que então já não são mais limites; tomando
nesta sentença ainda está presente urna porção de Diodoro Cremos, cm consciência deles, ele os ultrapassa. O prop1iamente dito no ser hUJilano
estilo amadurecido, desta vez como celebração do passado, que

"' Cf. ibidem, p. 169.


1 29
~ Cf. trad. de Artur Morão para o portugut·s ck Portugal, in: G. W. F. Hegel. Enciclopédia da~ Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz, f'Ill G. F. W. Hegel, Fenomenologia do
ciências filosófims. Lisboa: Ed. 70, v. 1-III (aqui v. I, pp. 171 e ss.). espírito. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 300 (Os Pensadores).
como no inundo ainda está por acontecer, está na expe<·lal 1v.1. ,·11t 0111rn-s<·
Sll . .
1!Jl"IJVO ( 1·ISSO I' ,1 po1.-11na - (')lC('!Ta( 1a ( 1(' li 1111!·11·
' . nao • ,·1°,, 1·01s.·a,, o 1;1101
sob o medo de ser frustrado, na esperança de ser bem-sucedido. Pois aquilo
objetivo <: a po11·1H:ialidade não encerrada da mutabilidadl', d.1
que é possível pode tanto se tomar um nada quanto mn ser: o possível, _não
alterabilidade do mundo no quadro das suas leis, de suas leis 1.pu·, 110
sendo totalmente condicionado, é o não-consmnado. Justamente por isso,
entanto, também podem variar regularmente sob novas condiçôcs. <)s <h ,i1-
frente a essa pendência real, caso o ser humano não interfira, tanto o medo
fatores estão constantemente entrelaçados, em interação dialética,<' som1·1111·
quanto a esperança são de antemão apropriados, medo na esperança,
a excessiva enfatização isolada de um ( o que toma o sujeito o fetiche 1í.11 i1111,)
esperança no medo. Por isso, os estóicos recomendara1n - sabiamente ou
ou de outro ( o que to1na o objeto, em aparente curso próprio, o Jal 11.111
até demasiado passivos em sua sabedoria- que o homem não deveria instalar-
último) divide sujeito e o~jeto. A potência subjetiva é coincidente ·nà< > .~• •
se nas cercanias de condições sobre as quais ele não tivesse nenhum poder.
com o elemento transformador, mas também com o elemento realizadoi
No entanto, como no caso do homem a capacidade ativa é parte especial da
na histó1ia, e será tanto mais coineidente com estes quanto mais os s1·1 <-.,
possibilidade, a utilização dessa atividade e valentia, no momento e na ~1edida
humanos tornarem-se construtores conscientes de sua história. A
em que ela ocorre, produz urna preponderância da esperança. Valentia nesse
potencialidade ol~jetiva é coincidente não só com o transformável, ma1-
sentido é um contragolpe contra a possibilidade negativa do declínio para o
também com o realizável na história, e será tanto mais coincidente c·o111
nada. Ela, porém, só é contragolpe se, em lugar do ato heróico rápido e
estes quanto mais o mundo exterior independente do homem .for urn
abstrato, assegurar-se da mediação mais precisa possível das condiçôes dadas.
mundo mediado por este de modo crescente. O elemento 'realizado1
Isto é: se for mediada pela matm-a.ção dessas coudiçôes e pelo seu conteúdo
certamente está presente, com força de ação e semente selvagens e.até c:0111
constante na ordem do dia da sociedade.Unicamente isto é práxis confo1me
grande amplitude, no mundo p1·é-humauo e extra-humano. E_le possui aí,
0 possível cm cada easo no campo do ser-possibilidade corno um todo da
ainda ciue eom nenhuma ou com fraca consciência, à mesma IâÍZ intensa
história e do mundo inconclusos. Somente essa práxis pode trnnsportar a
(h m1~l brotou então a potência humanamente su~jetiva. Contudo, de modo
causa pendente do processo histórico, a naturalização do homem, a
airn.la mais certeiro, o homem <!omo realizador- sobretudo na medida cm
humanização da natureza, da possibilidade real para a realidade. Trata-se
que e depois que ele não mais está provido de má consciência~ condeus.i
de uma tena do futuro, como todo totum do possível, mas ela está cheia de
a pottucia central na potência-potencialidade da maté1ia em processo: Essa
media~'.Ões tendencial-históiicas que podem ser perseguidas com preeisão.
po1t-ncia n:-ntral encontra-se, desse modo, cm crescimento na possibilidadl',
Sendo o tempo, de acordo com Ma1x, o espaço da história, então o modo
esse interesse nuclear impulsionador de todo acontecirnent@,:origem <·
futuro do tempo é o espaço das possihilidades reaM da histária, e de se situa
contctído da possibilidade real última, ela própria achanclo~se, podendo
sempn:' no horizonte da respe<:tiva tendência do evento do mundo. Isto quer
s<-T encontrada em crescimento, visando ickntificar origem e conteúdo.
dizer, no nível teó1ico-prático: na linha de frente do processo do mundo,
sim, visando fazer-se manifestamente idêntica a eles. Por mais transfinitos
onde são tomadas as decisões, onde se descortinam novos ho1izontes. E o
que sejam os encaminhamentos desse tipo, eles, no entanto, situam-se •~o
processo em direção a esse füturo é unicamente o da matéria, que se condensa
prolongamento rigoroso e conseqüente do que é designado pela construçao
e atinge sua finalização no homem como sua flor mais vistosa.
consciente- da história - contra o destino indistinto. De acordo com isso,
Tanto o que é nosso quanto o que ainda não é nosso tem esse caminho
justamente a realização.do próprio realizador, ou seja, a manifestaçáo
pela frente; ele é acidentado e desimpedido. Seres humanos e coisas estão
adequada do formador da história, do estimulador do processo, como
unidos nesse percurso; esse é o melhor modo de associar homem e mundo.
cerne da possibilidade real, perfaz tanto a possibilidade real mais,remota
Foi dos homens, há não mais que alguns milhares de anos, que partiu o
quanto a mais positivamente profunda; praticamente sem condiçõc•s
impulso decisivo, por meio do qual foi inaugurado o que chamamos, de
parcialmente existentes. Entretanto, torna-se visível nesse ponto o todo·da
modo imodesto, mas apenas tempora1iamcnte exagerado, a história do
produção consciente da história: causa sui compreendida; alcançada,
mundo. O homem e seu trabalho ton1aram-se, desse modo, elementos
difundida na sociedade e na natureza. Assim, a realizaçã@- do realizadot\
decisivos no processo histórico do mundo; sendo o trabalho um instnunento
esta possibilidade real tíltima, é igual ao problema real último: colocar a
da humanização mesma; sendo as revoluções parteiras da sociedade
sociedade e a natureza nos eixos. O mundo dessa possibilidade real última,
vindoura, da qual a atual está grávida; sendo a coisa para nós, ou seja, o
o mundo da causa sui antecipável ao menos em tem10s de defi~i~ão,
mundo, a pátria mediada, cm função da qual a natureza se apresenta como
apresenta-se no exemplo como consonância do objeto não reificado com o
possibilidade que mal foi tocada, que apenas foi franqueada. O fator
sttjeito manifestado, do sttjeito não reificado com o objeto manifestado.
Estas são as proporções básicas do desenvolvimento 1111111;1110 voltadas l.1rg,m1<·11I<', 1·111 11ulo o que pondera lo11ga111<·11lt", ,. q11t" s,· .ines<Tllla ,111
tanto para um futuro próximo quanto para um distante. Porém, o pivô da <JllC' ten1, ek ,: capaz de, a cada rnon1ento, estar novan1(·11t<· <'Ili lún11;1,
história humana é o seu gerador - o homem trabalhador, enfim não mais intervindo e realçando. O que dessa fom1a pôde ser compreendido mos11 ;1
vendido, alienado, reificado, subjugado em prol do lucro de quem o suas ênfases ao caminhar. Com estas e nestas aguça-se a tração parn dianl<·,
explora. Marx é o mestre tornado real dessa supressão do proletariado, para que lhe sejam proveitosas até mesmo possíveis digressões. Todavia,
dessa mediação possível, a realizar-se, dos homens consigo mesmos e com também esse indicativo, na sua seqüência, nem sempre pode servislumbnu li,
sua felicidade normal. Contudo, o pivô na história da natureza, história tão rapidamente quanto pode ser citado em sua concisão. Pois a concis,io
que o homem, diferentemente de sua própria, até influencia, mas não faz, significativa é coerente, razão pela qual oferece menos facilidade no que se
é aquele agensdo acontecimento extra-humano, dificilmente mediado por refere a encontrar rapidamente urna formulação bem-acabada.
nós, ademais hipotético, que se chama abstratanwnte "força da natureza",
que havia sido chamado de modo insustentavt·lmcnte panteísta de natura A época da comf>osição
naturan:;, que, no entanto, pode tornar-se conc:rc·tamentc:io ac·essívcl no Assiin, o entendimento tem de n>Inprovar-se constantemente frente
instante em que o homem trabalhador, esse integrante mais forte, mais a frases desse tipo. Em nenhuma parte se pode fazer isso de modo mais
plenamente consciente do agen.~ material universal, mas de forma alguma renovador do que na coleção (·01npacta de instru(,:Õcs cxtremamentc-
separado do restante da natureza, conwça a sair da COIHii~·ão semi-incógnita cornpactas, c·onhecidas como as Onze trsrs sobre F'euerbadi. Marx as redigiu
da alic·nação que sofria até o momento. Marx é o mestre essencial dessa em abril de 1815 cm Bruxelas, muito provavelmente no embalo dos estudos
mediação aproximativa com o foco produtivo do evento do mundo c·omo preparatórios para a Ideologia alem.à. A-; Te.,es s<Í foram publicadas em 1888
um todo, ou, corno diz Engels, corn a transformação da suposta coisa ern si por Engels, como anexo do seu I,udwig FeuerfHu:h e o .fim da filosofia clássica
na coisa para nós em confonnidadc com uma possível hmnanização da alenui. Ao fazê-lo, Engels on1sionalmentc deu alguns kves retoques estilísticos
natureza. Povo livre t·rn solo livn:, fonnulaclo dessa maneira total,3 1 é o no texto apenas rascunhado por Marx, obviamente sem a menor
símbolo definitivo da n·alização do realizador, portanto, do contnído modilinu;:ão do conteúdo. Na obscrvac:;ão introdutória ao seu Ludwig
limítrofe mais radical cm todo o possível real-objetivo. Feuerbach, Engels escreve o seguinlc sobre as Te.,e.,: "Trata-se de notas para
posterior elaboração, registradas rapidamente, em absoluto destinadas à
19. A transformação do mundo impressão, mas inestimáveis corno o primeiro donnnento cm qu~ foi
Ou as Onze teses de Marx sobre Feuerbach depositado o gem1e genial da nova visão de mundo" . .Fem-rbach havia
condamado a retomar das puras idéias à cont crnplação scnsor'ial, do espírito
O pensamento para frente já há muito está na ordem do dia e pode ao homem, incluindo a natureza como sua base. Como se sabe, essa rejeição
ser ouvido. Só os covardes procuram sempre desconversar, e os mentirosos tão "humanista" quanto "naturalista" de Hegel ( tendo o homem como idéia
mantêm-se num plano geral. Só eles escondem-se em roupas folgadas ou central, a natureza como prius em vez do espí1ito) teve uma influência
pedantes, procuram estar sempre em outro lugar que não aquele t·rn que muito forte sobre o jovem Marx. A es:;ência do cristianisnw, publicado por
são flagrados. Porém, nem é possível definir suficientemente o verdadeiro, Fcuerbach em 1841, as suas Te~es provisórias sobre a reforma da filosofia, de
mesmo quando ou justamente quando a coisa ainda está tomando frmua 1812, os seus Princípios da filosofia do futuro, de 1843, tiveram mn efeito
diante dos olhos. Graças a esse faro para o essencial, já com a idade de tanto mais libertador porque nem a escola dos hegelianos de esquerda
dezenove anos, Marx foi capaz de produzir, na carta ao seu pai que se conseguiu se libertar de Hegel, antes não foi além ele uma mera crítica
conservou, teses fundamentais em formulações precisas. Esse tipo busca de intra-hegeliana ao mestre do idealismo. "O entusiasmo", diz Engels
início penetrar no âmago da questão, nunca desperdiça tempo com o inütil, r·estrospcctivamente no Ludwig Feuerbach, cerca de cinqüenta anos depois,
descarta-o assim que o reconhece como tal. Assim, em tudo o que contempla "foi geral: momentaneamente todos nós éramos fcuer·bachianos. Com que
entusiasmo Marx saudou a nova concepção, e o quanto ele foi influenciado
por ela - apesar de todas as ressalvas críticas -, pode ser: verificado na
:JJ A tra<;iutora para o francês aponta uma mudança frita por Bloch em julho de 1974 no texto leitura de A sagrada família" (Ludwig Feuerbach, Dietz, 1946, p. 14). A
original em alemão, de konhet = concretamente para konkreter = mais concretamente.
31 A tradutora para o francês aponta uma mudança feita por Bloch em julho de 1974 no tf'xto juventude alemã de então acreditava estar finalmente vendo, cm vez de
· original em alemão, de total = de maneira total para paradox = de maneira paradoxal. céu, te1Ta, humana, inianente.
Entretanto, Marx 'livrou-se bern depressa dessa v1s;10 i111;111c·nl<' 111;1 is lorlc e dclinitiva. No lugar do hon1<·rn g-<·11<-1·ico d<' F<'tWI 11<11''1, 1 ◄ ,111 .1
demasiado vaga da vida humana. Sua atividade na Rheini.sdien Zeitu:ng ~11;1 naturalidade abstrata e invariável, surgiu então urn co11_j1111fo
[.Gazeta &nttna] trouxe-lhe contatos muito mais' estreitos com questões historicamente alternante de relações sociais e sobretudo antagônico <p1;111to
políticas e econômicas do que tiveram os hegelianos de esquerda e também :1 classe social. A alienação, entretanto, englobava as duas: tanto a classl'
os feuetbachianos. Justamente esse contato fez com que Marx passasse da dos exploradores quanto a dos explorados, principalrnente,no capitafü•mio,
crítica da religião, ,à qual Feuerbach havia se limitado, de modo crer'icente , 1ue é a forma mais intensa dessa auto-alienação; dessa objetificação. "P01ú 11",
à crítica do Estado, sim, já da organização social, que determina a forma l'onsta em A ~agrada Janu1ia, "a primeira classe sente-se bem e afirmada ness;1
do Estado - como reconhece a Crítica da filosofia de Estado de Hegel alienação de si mesma, está ciente de que a alienação é seu próprio podm 1·
(1841-1813). A diferenciação que Hegel faz entre sociedade burguesa e possui dentro dela a aparfncia de uma existência lnunana; a segunda sente-s<'
Estado, apontada p<ff Ma1x, j.:í <:ontinha mais consciência econômica do destruída na alienação, vislumbra nela a sua impotência e a realidade de um,1
que possuíam s<·us epígonos, inclusive os feuerbachianos. O distanciamento existência inumana" (MEGA I, 3, p. 206). Isto comprovou, enfim, que ;1
de Fcuerbach o<r.orreu com todo respeito e primeiramente apenas <·omo produção e o modo de troca respectivos, classistas e causadores da divisão do
uma correção ou até mera complementação; contudo, a perspectiva social, trabalho, cm grau extremo os capitalistas, sào a fonte ela alienação. No.mai.~
totalmente nova, está dara desde o início. A'!sim, no dia 13 de man;o de lardar, a partir de 181~1, Mmx tornou-se rnate1ialisla; A sagrada farnz1ia deu .'1
181,3, ·Marx escreve para Ruge: "Os afo1ismos de Fenerhach apenas num luz, em 1811, a conccp<:ão materialista da história, e com ,e}a o soci;;i:lismo
ponto não me parecem corretos, nu s~ja, pelo fato de ele apontar demais cienlílico. E as Onze le.1es, surgidas entre A sagrada família de 1844/45 e a
para a natureza e muito pouco para a política. Esta, porém, é o único Idrnlogia. aleuui. de 1815/16, rcpresenlam assim a despedida expressa d<'
pacto que levada a atual filosofia a tornar~se urna verdade" (MEGA {, 1/2, Feuerbach,_juntarncnte com a tomada de posse de uma herança extremamente
p. 308).- Os Manuscrito.1 eamômicoJilosófi,cos, de 1844, ainda contêm uma original. A experiência empírico-política do período renano somada a
significativa louvação de: Fenerbad1, ainda· que como contraposi<:ão às Feucrbach deixaram Ma1x imune contra o "espírito" e mais "espíiito" da
lucubra.ções ck Bruno Bauc-r; os Manuscrito~ louvam, assim, dc·ntn· os féitos escola dos hegelianos de esquerda. J\ posi<;ào· assumida a partir do
de Fetl<'rbach, sobrt'tudo a "ftmdat)io do mateiialismo autêntico e· da cifncía proletwúulo frz con1 que Marx se tornasse causalrn(·ntc concreto, ou seja,
n·al~ quando Fcuer·bach torna a 1·dação 'do homem com o homem' venladeiramcnlc (a partir de um fundamento) humanista.
igttalmente o•piincípio básico da teoria" (MEGA I, 3, S. 152). Todavia, os Olwian1c11lc a <lespcdicla em <pwstão aqui 11;10 represeuta urna n1ptura
Manuscritos ewnámú:o1ilosójü:o., já ultrapassaram Feuerbach muito mais completa. As rela,;ôcs com Fcuerbach perpassam grande, parle da obra de
do qm· dizem. Ncl<·s, a n·lação "do homem com o homem" não permanece Ma1x, também após a despedida representada pelas Onze Irises. O que,estâ
mnaTelação antropológico-abstrata de cunho geral, como em Ff'ucrbach; mais próximo ela terra que licou para trás, já por razôcs. temporais,·é a
ao contrário, a crítica da alienação humana em relação a si mesma Ideologia alemã, que Vem irncdiatamcnle após as Teses. Divci.-sas versões
{ transposta da religião para o Estado) já penetra aí no cerne econômico críticas das Teses retornam nela, sendo que, no entanto, há uma diferença
do. processo de alienação. Isso ocorre não por último nas passagens muilo grande entre a crítica a Feuerbach e a liquida<,.-fü> impiedosa dos
extmordináiias sobre a fenomenologia de Hegel, em que é caracterizado falsos epígnnos de Hegel. Fcucrbach ainda fazia parle da ideologia burguesa;
o·papcl do .trabalho na formação da históiia e em que a obra de Hegel é por isso, a controvérsia·com as cncaruaçôes dcGtdcntes aparentemente
iúteq:>,retada quanto a esse aspecto. Ao mesmo tempo, porém, os Manuscrito~ radicais miginadas dele, como Bnmo Bauer e Stirner, necessariamente
econôm.ico1ilosófú:os criticam essa obra porque ela concebe a atividade atingia também a ele na Ideologi.a alernã. Porém, de tal maneira que o própiio
laboral humana apenas como atividade intelectual e não material. A filósofo cm parte ainda fornecia o punho da a1n1a conseqüente con:1 que
passagem para a economia política, portanto, afastando-se do homem genérico Ma1x investia contra ele, mas sobretudo contra os hegelianos de esquerda.
de Feuerbach, acontece na primeira obra empreendida em conjunto com Em conformidade com isso, a Ideologia alemã inicia fundamentalmente com
El1gels, ·em A ~agrada Jarnz1ia, igualmente em 1844. Os ManuslTitos econôrni.co- o nome de Feuerbach e, tomando como ponto de partida a sua crítica
filosójieosjá continham a seguinte tese: "O própiio trabalhador é mn capital, da religião, critica a "superação" meramente intra-idealista do idealismo.
urna' I'.ner_cadoria" (loc: cit., p. 103), nada sobrando, portanto, da existência "A nenhum desses filósofos ocorreu perguntar pela relação ent,e ,a
humana segundo Feuerbach, a não S<'r a sua negação no capitalismo; A filosofia alemã e a realidade alemã, pela relação entre a sua crítica e o
sagrada família registrou o própiio capitalismo como fonte dessa alienação seu próprio contexto material" (MEC-AI, 5, p. 10). Contudo, Marx enfatiza,
por outro lado, a "grande preem1ncncia l<lc Fc11<·1had1I ln·11lc aos ·,c·111p1c· p<'n11i1c·111 cltsc t'ntir a ,·az~io do ord!'11a111t·1110 e- cl.1 ..,c-q1'1i·11ci,1. 11,111
materialistas 'puros', no fato de reconhecer que tainbé1n o homt'lll i- um 11.~l;i disso, exigf11cias didáticas deram origem a diversas lcutalivas clt'
'o~jeto sensorial [ !>innlicher Gegen!>tandj "'. De fato, o referido reconhecimen lo 1 e-ordenar as Teses conforme seus traços comuns e de classificá-las assim

caracteriza, justamente dessa forma, a importância de Feuerbach para a ,·111 grupos. Nesse caso, procura-se às vezes manter a seqüência numérica,
formação do niarxisrno, assim cmno a crítica ao seu homem abstrato, , 01110 se as Onze tese!> pudessem ser subsumidas uma após a outra, na
aistórico, aponta o aspecto não-feuerbachiano, sim, antifeuerbachiano do -..l'qiiência em que aparecem. Esse agn1pamcnto fiel à numeração tem,
próprio marxismo já desenvolvido. O reconhecimento diz o seguinte: sem p<ff exemplo, o seguinte aspecto: as teses 1, 2 e 3 encontram-se sob
considerar o homem igualmente como um "o~jeto sensorial" teria sido "lJnidade de teoria e práxis no pensamento", as teses 4 e 5 sob
muito mais difícil elaborar no nível materialista o humano como raiz de .. <:omprccnsão da realidade em contradições", as teses 6, 7, 8 e 9 sob "A
todas as coisas sociais. O mate1ialismo antropológico de Fcuerbach designa própria realidade em contradiçôes", as teses 10 e 11 sob "Lugar e tarefa
assim a transição possível facilitada do malcrialismo meramente mecânico do materialismo dialético na sociedade". Esta é a ordenação por cifra!>;
para o histórico. A crítica diz o seguinte: sem a concretização do humano como há muitas outrns desse tipo e de conteúdo bem distinto umas das
nos hon1cns realmente existentes, sobretudo socialmente ativos, com outras, resulta que, neste caso, o nwro valor numérico significa muito
rclaçôcs reais entre si e com a natureza, materialismo e histótia teriain pouco. Cada uma dessas ordcna(.'ôes, por um lado, valoriza
divergido consta n t cmcn te, a pesar de toda "antropologia". Mas nesse ponto demasiadamente a seqüência, fazendo com que cstc:ja gravada por toda a
Fcucrbach nmtinua sempre relevante para Ma1x, tanto con10 passagem eternidade, corno na Lei das Doze· Tábuas ou nos Dez Mandamentos; por
cpianto como o único filósofo contemporâneo com o qual uma controvérsia outro lado, trnta-a de modo simplório <' formalista, como se fosse uma
é possível, esclarecedora e frutífera. A-;sim, as idéias fündamcntais, às quais .~érie de selos. A numeração, no entanto, mio é sistemática, e Marx é o
Maix reage niticamcnte, as quais ele ultrapassa produtivamente, constain que menos tem necessidade desse tipo ck compensação. Por isso, deve-st·
basin1mcntc no esnito principal de Feucrbach intitulado /\ e.1-\Í}ncia do agrupar filosófica e não aritmcticamente, isto é, a seqüê·ncia das teses é
cri.1tianismo, de 1811. Além disso, entram cm cogitação as 'J l',111.1 fnm,i.sórias unicarncnte a de seus lem.a.1 e conteúdos. Tanlo quanto se pode enxergar,
wbr"l! a n:forma da fiJo,w!fi.a, escritas por Fcucrbach cm 1842, e os Princípios ainda não existe nenhum comentário às Onze te.1es; porém, somente com
dafilosrfia dojúluro, de 1813. Os escritos anteriores do filósofo dificilmente ele, corno resultado da própria causa comum, evidencia-se igualmente a
terão tido alguma importâH<'ia para Marx, já que, pelo menos até 1839, coerência que continua a produzir-se, tanto a sua concisão quanto a sua
Feuerbach nada linha de 01iginal, por estar demasiadamente sob a in1lufa1cia profundidade. Surge, então, em primeiro lugar, o grupo epistemológico,
de Hegel. Soment<· a partir de então Fcucrbach aplicou à religião o <·onccito refereu te à contemplação e atividade ( teses 5, 1 e 3); em segundo lugar, o
hegeliano da auto-alienação. Somente a partir de então, o antigo hegeliano grupo histór-ico-antropológico, referente à auto-ali11naçrio, ,1ua causa real e
disse que sua primeira idéia teria sido Deus, a segunda, a razão, sua teffeira o verdadeiro materialismo (teses 4, 6, 7, 9 e 10); em terceiro lugar, o grupo
e última seria o homem. Isto quer dizer: assim como a filosofia hegeliana sintetizador ou grupo teoria-práxis, referente a wmflrnvação e validação
da razão superara a fé da Igreja, assim a filosofia colocaria agora o ser (teses 2 e 8). Por último, segue a tese mais importante, a .wnha, na qual os
humano (incluindo a natureza como sua base) no lugar de Hegel. Não espíritos não só se dividem definitivamente, mas com n~ja utilização eles
obstante tudo isso, Feuerbach não conseguiu encontrar o caminho até a deixam de ser meros espíritos (tese 11). O grupo epistemológico é
realidade; ele jogou fora justainente o mais importante em Hegel, o método apropriadamente aberto com a tese 5, o gn1po histórico-antropológico,
dialético-histórico. A5 Onze teses foram as primeiras a indicar o caminho do com a tese 4; pois essas teses designam as duas temias fundamentais de
mero anti-hegelianismo para a realidade passível de transformação, do Feuerbach, que Marx reconhece relativamente, e as quais ele ultrapassa
materialismo da etapa para o da linha de frente. nas demais teses dos respectivos gn1pos. A teoria assumida na tese 5 é a
da rejeição do pensamento abstrato, na tese 4, a da rejeição da alienação
A questão do agrupamento humana. E, em conformidade com o primeiro traço básico da dialética
Uma questão antiga e nova ao mesmo tempo é a de como as Teses materialista, cuja imagem anuncia-se aqui, há entre as teses individuais
devem ser agrupadas. Pois assim corno estão, destinadas ao entendimento dentro do respectivo grupo um movimento livre e complementar das
próprio, e não para serem impressas, das apresentam diversos pontos de vozes; assim como entre os próprios grupos ocorre uma interação
interseção. Também trazem o mesmo conteúdo em outra parte, nem constante, um todo único e coerente.
O grupo epütemológü:o: a conternplaçào I A nM-fuw 1111gl ~ocil'dade cscravisL1 ;111tiga, e tarnbém na sociedade fr11dal1sl;1 sl'tvil (<'Ili
e a atividade ( teMs 5, 1 e 3 )32 i\ll'nas, mesmo os escultores eram considerados vulgares), tampouco se
O que se reconhece aí é que, também ao pensar, deve-se partir n ·llete nas idéia:, da classe dominante; isso é totalmente diferente na ideologia
unicamente do sensorial. A contemplação, e não o conceito apenas extraído tio empresário, do burguês, do chamado horno faber, ntja dinâmica
dela, é e permanece sendo o princípio que identifica qualquer compreensão lucrativa, liberada na época moderna, fr>rmadora da era burguesa moderna,
materialista. Feuerbach havia lembrado isso numa época em que em toda 1,rogressista por muito tempo ainda, dá-se a conhecer sem reservas também
esquina acadêmica repercutia o espírito, o c·onceito e mais uma vez o 11a superestn1tura e ativa a própria base. Isso ocorre tanto no nível moral,
conceito. A tese 5 acentua esse mérito: Feuerbach "não está satisfeito" com 11a forma de um assim chamado etho.1 do trabalho, quanto no epistemológico,
o intelectualismo; ele quer c:olocar os pés sobre· o chão avistado. Mas a tesé na forma de um conceito ck atividade, de um lógos do trabalho no
5, e então sobretudo a tese 1, dão a entender, ao 1nes1no ternpo, que, no conhecimento. O rlho.Hlo trabalho, pregado principalmente pelos calvinistas
caso da sensibilidade contemplativa, a única que Feuerbach conhece, os pés em função da constitui~·ão ck capital, essa 11ila adi11a capitalista diferiu do
ainda não t~m condiçõc·s de andai· e o próprio chão continua intransitável. ócio aristocrático, mas também da 11ila contemf1lalÍ1•a da existência
Aquele que contempla desse modo nem tenta fazei· qualquer movimento; contemplativa, monástico-erudita. Paralelamente, o ló[.;OS do trabalho no
ele guarda a posição do desfrute confortável. Por isso, a tese 5 ensina que conhecimento, esse concC'ito do "produzir", sup<'rcstimado principalmente
o mero contemplar ''não concebe a sensibilidade como uma atividade no racionalismo burguê-s, distinguiu-se do conceito antigo e ainda escolástico
prática, humano-st>nsível". E a tese- 1 reprova cm todo mate1ialismo anterior do conlwcimento como mero acolht·r: da visão, visio, da imagem passiva,
o fato de a contemplação ser concebida apenas "sob a forma do ol~jeto'!, assim como está contida no próprio conceito ela "tc·oria", de acordo com o
"mas não como atividade st·nsorial humana, corno prática, não de modo sentido visual original da palavra. Ikssa fom1a, também é, no final, curn
subjetivo". Foi por isso que o lado ativo, em oposição ao materialismo, foi grano MLlis, um c·onn·ito S<'nsualista receptivo, pois, como qn<T que seja o
1
' desenvolvido pelo idealismo, mas apenas de modo abstrato, já que o modo ideal ou. puramente ligado às idéias d<' sua vis,io, <"k não deixa de
idealis1no naturalmente não conhece a atividade real, sensorial, corno tal". ser essencialmente urna visão n-ceptiva, <' o proeesso cognitivo {- concebido
O lugar da contempla~·ão inativa, na qual todo materialismo anterior, do come<:o ao fim em conformidade nnn a contemplação sensorial. Mas
inclusive o de Feucrbach, insiste, é ocupado pelo fator "atividade humana". mesmo Ikmónito, ou seja, o primeiro grande· m.atrrialista, que deu o tom
E isso já no interior do sabn sensorial, ou seja, do saber imediato, que até> Marx, está preso a essa ideologia alheia ao trabalho, que nâo reflete o
parte do fundamento,: sensibilidade como cognição, como base n-.al do proc11.Ho laboral. Também Demócrito concebe o conhecimento unicamente
conhecimento, de modo algum é o mesmo que contemplação. O conceito como passivo; a cognição, através da qual, s<'gundo ele, reconhece-se o
. 'd a(i"
" atzm e , ac,~ntua d o el esse moelo por Marx na tese 1, procede_jnstamente verdadeiramente real, o real dos átomos juntamente <·on1 o s<·u tnecanismo,
da tçoria ·idealista do conhecimento, mas não da idealista pura e é explicado unicamente pela impressão causada por· figurinhas
simplesmente, mas da que foi desenvolvida na época moderna burguesa. correspondentes ( eídola), que se soltam da superlície das coisas e se infiltram
Pois 1esse conceito pressupõe co1no base uma sociedade em que a classe naquele que percebe e reconhece. No ponto da não-atividade
dominante vê ·ou gostaria de ver a si mesma em atividade, portanto, epistemológica, portanto, não há nenhuma diferença entre Platão e
trabalhando. Este, porém, é o caso somente na sociedade c:apitalista, na Demócrito; as duas teorias do conhecimento estão unidas pela sociedade
medida em ·que nela o trabalho, quer dizer, a aparência de trabalho em escravista, o que, neste caso, significa: a ausência, na superestnttura filosófica,
torno da classe dominante não mais é motivo de desonra, mas é honrada, da atividade laboral desprezada. Mas agora se manifesta o paradoxo de
dife1;entemente dç- todas as sociedades pré-burguesas. Isso ocorre por que o racionalismo, o i,dealismo da era moderna, que freqüentemente se
exigência do lucro, das forças produtivas que se desencadeiam nessa afastou muito de Platão, refletiu epistemologicamente o processo laboral
sociedade do lucro. É claro que o trabalho, que era desprezado na com muito mais intensidade que o materialismo da era moderna, que nunca
se afastou tanto de Demócrito, seu antigo patriarca. O espelho a refletir
descansadamente, essa omissão do conceito ele trabalho, é assim, inclusive
até Feuerbach, mais freqüente no materialismo do que o pátho!i da
"' Cf. ª. tradução das teses para o ponuguês e~ K. Marx, F. Engels. Textos. São Paulo: Edições "produção", ou até a imagem dialética alternante entre sujeito-objeto,
Sociais, 1975, pp. 118-120. Segue-se aqui esta tradução com ocasionais adaptações de
conceitos. objeto-sujeito. Entre os materialistas mais recentes, Hobbes é o único a
ensinar a "produção" racional, tendo o seguinte prinâpio, v.dido .it{, Kant: l1111·gui:s Ft·11<·1 l>;1< li, que quer dislanciar-se do pc·11sa111t·11to ,tl1st1;1to, c111c·
os únicos objetos reconhecíveis são os que podem ser construídos procura objetos reais em vez de idéias coisificadas, deixa a atividad<' 1111111:111.1
matematicamente. No entanto, por mais que Hobbes, mediante esse de fora desse ser real; ele não a concebe "como atividade objetiva". l-;10
princípio, pudesse definir a filosofia justamente como doutrina do continua a ser desdobrado ele modo concludente na introdução à frleolog1t1
1noviniento matemático-n1ccânico dos corpos, ou seja, cmno 1naterialisn10, alernri: "Feuerbach fala nominalmente da contemplação da ciência na t 111;tl;
ele tampouco conseguiu, por seu turno, ir além da "forma do objeto", de menciona segredos, que são revelados somente aos olhos elo físico <' do
censurada por Marx, on sc:ja, não conseguiu ir além do mero materialismo químico; mas onde esta1ia a ciência natural sem a indústria e o corn{-rTiol'
contemplativo. Diferente foi o curso dos acontecimentos no interior do Até essa 'pura' ciência natural obtém seu propósito bem como seu material
idealismo, onde a "produção" passou da construçrio geométrica para a somrnte atrav{-s do comércio, e a indústria, através da atividade sensori;d
imagem real do trabalho na gênese lti,\tôrica. Isso ocorreu de fonna decidida dos homens. A atividade, esse trabalhar e niar sensorial permanente, <"ss;1
primeiramente em Hegel; a Fenomenologia do e.\pirito foi a primeira a proclu(ão constitui de tal modo o fundamento de todo o mundo sensorial
tratar seriamente, ao menos no nível históriw-idcalista, da dinâmica do que, se- fosse interrompida por apenas um ano, Feuerbach perceberia n,10
conceito epistemológico do trabalho. Este se situava muito ac·ima do f,áthos só uma gigantesca lransfonna~·ão no mundo natural, mas logo daria pd;1
mc1.in1ente matemático-idealista da "prodrn;ão", do modo c·omo este havia falta também de- todo mundo humano e· da sua própria capacidade d<"
influenciado os grandes racionalistas do período da manufatura, c·omo contempla(.'ão, sim, de sua pnípiia cxisti:ncia. lk fato permanece vigorando
Descartes, Espinosa e Leibniz, no seu semi-idealismo ou no seu idealismo aí a J)l'Íoridadt: da natureza extel'Íor, e de fato isso tudo não se aplica aos
total. Não há melhor testemunha ela relevância da fenomenologia hegeliana, hornc-ns originais, gerados por generalio aequivoca; porém, essa diferenciação
que nem mesmo foi compn·cncli<la por Feuerbach, elo que Marx nos só faz sentido na rnc-dida em que se encara o homem como diferente da
Manuscritos econômú:o-filosófú:os: a granckza da fenomenologia é vista natureza. Além do mais, essa 11aturc-za que precede a sociedade humana
por Marx justamente uo fato de que da "capta a natureza do trabalho e não é a natureza cm que vive Fcucrbach, não é a natureza que hoje em
cornprcende o hon1cu1 concreto, o hon1c111 verdadeiro por sc·r real, co1no dia, <"XCc-tuando talvc-z algumas ilhas d<" corais australianas d<' origem mais
resultado d<' seu pr·óprio trabalho" (MRGA I, 3, p. 156). Esta st·nten~·a é a ren'ntc-, não existe mais em lugar algum, portanto que tampouco existe
que mclhm· <·sclarec:<' a r<'krida deficiência elo materialismo meramente para Fc-unbarh" (M/~(;J\ /, !>, pp. ;):1 e- ss.). Com que determinação é
contemplativo, induindo o de Fcuerhach: falta ao materialismo anterior a salientado com estas scntc-n<:as o trabalho humano, <jll<' c-rn Feuerbach
relaçâo permanentemenl11 oscilante entre sujeito e objeto, que se duuna enc·onlra-se totalmente ao dcsabrigojustanwntc corno objeto I GegenstandJ;
trabalho. Pm· isto mesmo, de <'.onccbe o objeto [ GegenJtand], a realidade, ele {- salientado aqui como objeto importante, st· não o mais importante
a sensibilidade apenas "sob a forma do objeto", omitindo a "atividade existente 110 mundo que envolve os homens.
humano-sensorial". Em contraposição, a fenomenologia de I frgcl assumiu, Portanto, de acordo com isso, o próprio ser que- é condição de tudo
como diz Marx, "a pcrspcc:tiva da moderna economia nac-ionalista" (Zoe. comporia homens ativos. Isso traz conseqiih1rias surpreendentes, que
cit., p. 157). Fcuerbach ainda se encontrava epistemologicameute na tornam sobretudo a tese 3 especialmente relevante - não só contra
perspectiva da sociedade escravista ou também da servidão, devido ao aspecto Ft'ucrbach, como contra marxistas vulgares. Por isso, dois outros conceitos
não ativo, contemplativo do seu materialismo. do "mundo sensorial", um ruim e outro freqüente-mente mal entendido,
Marx naturalmente deixa claro que a atividade burguesa ainda não é são dignos de nota nesse contexto verdadeiramente objetivo; eles estão
urna atividade inteira, justa. E ela nem pode sê-lo porque se trata apenas estreitamente ligados a este, pois concernem aos rebentos cmpiiistas favoritos
de aparência de trabalho, pois a produção de valor nunca procede do ou também aos trunfos empiristas daquela contemplação pretensamente
empresário, mas do agricultor, do artesão e ultimamente do trabalhador alheia à atividade que encara as "circunstâncias" apenas como aquilo que
assalariado. E porque a circulação abstrata, reificada de mercadorias no está cm torno dos seres humanos_ I Já, pois, en1 primeiro lugar, o chamado
mercado livre, que impossibilita uma visão de conjunto, nada permite além dado [ Gegebenheit], um conceito especialmente objetal, portanto, de cunho
de uma relação, em última análise, passiva, superficial, abstrata com ela. aparentemente materialista. Todavia, abstraindo do fato de que se trata,
Por isso, a tese 1 enfatiza que também o r<'ílexo epistemológico da atividade em confonnidacle com o seu significado, de um conceito recíproco, que
só poderia ter sido abstrato, ''.já que o idealismo naturalmente não conhece não teria valor se não existisse um sujeito ao qual unicamente algo é dado
a atividade real, sensorial, como tal". Contudo, também o materialista ou pode ser dado, praticamente não há no mundo que perfaz o entorno
elos seres humanos algo dado que u,io s<:ja ta111h{·111 ali-\º /1i1/m/J1<ulo. M,11 X ('tllre S('t c, 011···• ,,
1.1. kv;111do e111 conta tod.1 a pri111.11i;1 q1w, ;dw ;10 .,,.,
111

fala, por isso, do "1naterial", que a ciência natural n:cdw somente a pai ti1 1·1·011ômico. '1'1,lla-s<', todavia, de lII11a elncidaçào que 11;10 Ira:, 11<'111111111.1
do momento em que existe comércio e indústria. De fato, unicamente a ,-.;atisfação ao materialisrno vulgar; mas, en1 con1pensa(,'ão, confrr<' :'1
contemplação superficial mostra algo dado; penetrando um pouco mais 1onsciência humana o lugar mais real possível !:'Ill n1eio às "cirnmstâncias",
fundo, em contraposição, todo objeto f GegenstanáJ de nosso entorno nonnal portanto,justa1nentc crn 1neio ao nnmdo exterior, ao qual ela ajuda a dar
revela-se como um dado que de forma alguma é puramente dado. Ele lórma. A teoria mecanicista do ambient!:' afirma "que os seres humano.-;
mostra ser, antes, o resultado final de processos laborais precedentes, e até siío produto das circunstâncias e· da educação; seres humanos modificados
a matéria-prima, além de estar totalmente modificada, foi extraída da sào, portanto, produto de cin-unstâncias diferentes e de educa<;ão
flon:sta, talhada da rnd1a on içada do fundo da terra mediante trabalho. modificada". A tese'.~ coloca acima dessa douoina unilateral, freqüentemente
Isto {- o bastante sobre o primein> tnmf<> passivo, que visivelmente nem é lamhém hem naturalista do retrato (amhient<' igual a solo, clima), a verdade
um tnmfó, pois é válido e eficaz apenas muna posição superficial. O segundo Ião s11pc-rio1· ao materialismo habitual até o momento, de "que as
tnmfo da contcmpl,u;ão pr<"lcnsamcnte alheia :1 atividade vak-se de fato circunstâ.ncias sào modi[icadas predsanwntc pelos homens, e que o próp1io
primeiramente de 11m cmH-cito totalmente legítimo, sim, deddidarriente educador precisa ser educado". Isto naturalmente não significa que essa
materialista, a saber, o prius do ser nn relaçâo à, wn.H·iênâa. No nível modificac)o das cirn111stfü1cias pudesse ocotT<T sem qualquer relação com
epistcrnológin>, esse fniu~ se cxpn:ssa como o mundo cxtcl'Íor existente aquela nonnatividade ol~jetiva, ;1 qual estào s1~jeitos também os fatores
imkpendentcmcnte da couscifncia humana, no nívd histórico como "sujeito" e "a1 ividade". Neste ponto, Ma1-x pcl<:ja antes cm duas frentes: ele
prioridade da base material cm rchu;üo ao espírito. Porém, Fcuerbach, luta tanto cm1tra a teoria 11wc·a11icista do ambiente, qm· acaba no fatalismo
por seu lado, solidificou unilaterahnentc essa verdade; de a exagerou do ser, qua1110 c·ontra a leoria idealista do sujeito, que ,tcaba no golpismo,
mc<·a11icistican1<:ntc, omitindo tamh{-rn nesse ponlo a atividade. 011 ao rne11os no otimismo ativist;1 exacerbado. Uma passagem da ldeologi.a
J ndcpcndência elo ser cm rl'ia(;ão ,1 consciência de fonna alguma é, no alP111úcompkmcnta hc-111 a tese~~. mais pn·cisam<·nte ('Olll base 110 movin1ento
âmbito do co11tcxto 11onnal dos homens, o mesmo que independência do recíproco do tipo mais sah1t,ll' possível entre homens<· circunstâncias, da
ser em reht<;ão ao trabalho humano. Pda mediac;ão com o m1mdo exterior mediação "s11jeito-objcto" do tipo JHTma11e11temcnte recíproco,
através do trnhalho, a independência deste mundo exterior cm r·dação à pennancntcmcnle dialético. lk lal modo que, na história, "encontra-se,
consciência, ou antes o seu carátcnlc objeto, não é anulada, masj11stamente em cada elapa. 11111 res11)t;1do 111a1erial, 11111a soma de fon;as produtivas,
da lhe co11fén.- sua fon1111lação definitiva. Pois, da mesma forma que a urna rc-b<Jío hisloric:1111<·nle produzida corn a natureza e com os indivíduos
próp1-ia atividade h11ma11a {- uma atividade ol~jetiva, ou s<:ja, não ocorre uns com os outros, que é transmiti<la a cada g<Ta(,l<> p<>I' sua predecessora,
fo.-a do mundo exterior, assim também a mediação s1~jcito-objcto, pela uma dasse de fon:as prod111ivas, capilais <· <"i1n111stâncias que, pot· um lado,
qual dao<·on-t·, é ig11alnw11tc parte do mundo exkiior. Esse mundo cxtc1ior at{- chega a ser modificada pela nova gernç,10, mas que, por outro lado,
também existe iudcpendt·nt(·mcntc da <·ons<·ii-ncia, pelo fato <k, de· próprio, também lhe jH'<'S<Tcve suas próprias condi<;<>cs de vida e lhe confere um
não se 111anifestar sob a fonna do st!jcito, mas tampouco apenas "sob a determinado clcsc11volvimento, um car;ll<T espc-cífico - portanto, que as
fonna do ol~jcto". Ele n:pn·senta, antes, a mediaçâo recíproca 1<nlre sujeito e cirnmstâucias fazem os hornens tanto q11a11to os homens as cirnmstândas"
ofdeto, de tal modo que, cm toda parte, o st·r de fato detennina a consciência, (MI:'GA /, :>, pp. 27 e ss.). Como já foi dito, a intenu;ào ent1·e st~jeito e
mas exatamente o ser· historic:arnent.e detenninante, ou seja, o ccouômico, ol~jcto é particulannent!:' acentuada nessa passagem, havc·11do uma
contém uma forte c·onsci<·ll<·ia ol~jctiva. Porém, para Feuerbach, todo ser é pn-c<"df>nc-ia audível da relação entre circunstância <' homem frente à relação
/Jriu.1 aut,irquico com base puramente pré-humana, base natural, tendo o inversa, contudo, de tal modo que o ser humano e sua atividade sempre
ser humano como florescência, mas de fato apenas como florescência e penuanc·c-ern sendo o específico da base histórica material, sim,
não como força natural própria. O modo de produção humano, a troca repn"sentam como <]Ue a sua raiz e igualmente a sua possibilidade de
matc1ial com a natureza., que ocorre e é regulada no processo laboral, trausfonnação. Até a idéia (na temia) torna-se, de acordo com Marx, um
mesmo as relações de produção como base: tudo isto evidentemente possui 1 podcnuat<"1ial, quando toma conta das massas; tanto mais a transfon:nação
consciência em si mesmo; da mesma forma a base material é reativada em técnico-política representa um poder desse tipo, e com que clareza o fator
cada sociedade pela superestrutura da consciência. Justamente a tese 3 sul~j<:tivo assim compreendido permanece dentro do mundo material. Uma
elucida de forma primorosa o referente à interação que oc01Te nessa rela(ãO última explicação sobre a t!:'se 3 é proporcionada por O capital, colocando
os ho1ncns bem decididamente dentro do mm1<lo exterior, si 111, ,b 11al 111 <''la: pP,l.1111t·1111· 110 11111 1101 do pníprio S<T, o lal<n s11hj<"livo <Li ,111vid.11l1
"Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua c·o1pornlida< lc ·, p1ocl11tiva, <01110 l<"11clo un1 caráter objetal, <"Xalai11<·11I<" co1110 o L11,11
braços e pernas, cabeça e mão, a fim de aprop1iar-se da matéria natural .. l,jc-tivo. E isso tem conseqüências tremendas,justamentc 1amhé111 vollacla:-.
numa forma útil para sua própiia vida. Ao atuar, por meio desse movimc1110, , 011lra o rnaterialismo vulgar; elas tornam esta parte das Te.1<'-' soh1"
sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo h·11<"rbach especialmente valiosa. Sem compreender o próprio L1lrn
tempo, a sua próptia nattffeza. ( ... ) A própria terra é- um meio de trabalho, "11;1halho", o priu~ "ser", que não é nenhun1 facturn bruturn ou ncnl111111
mas pressupõe, para servir como meio de trabalho na agricultura, urna ,1.ulo, não pode ser compreendido na história humana. Muito menos <'k
série de outros meios de trabalho e um nível de desenvolvimento , ,ode ser mediado c·om o melhor da contemplação ativa, com que cond11i
relativamente alto da força de trabalho" (Das Kafútal /, Dietz, 1947, pp. .1 lese 1: com a "atuação revoludonária, prático-crítica". Para Marx, o S<'I

185, 187). 3 ' 1 Dessa forma, 1odavia, a pnSpria atividade humana com sua li11mano trabalhador, t·ssa n·lac;ão st~jcito-ol~jeto existente em todas as
consciênciajá é explicada como parte da natun~za, como parte importanl<· "circunstâncias", é parte dctcnninantc da base matcdal; também o sujeito
ade1nais, pn·cisamcnlc c·o1no práti<'a rcvoluciomíria precisamente na bas<' 110 inundo {, nnmdo.

do ser material, que, por sua vez, condiciona cn1 p1imcin1 linha novament<'
a consciência que deriva dela. Aquele Fcucrbach que não sentia qualquer O grupo hisló,ico-anlrofHJlúgico: a aulo-aJierwçâo e o verdadeiro rrwteriali~mo
tipo de innunbf·nda revoh1domüia, que m111n1 foi além do homem como (leSf!S 1, 6, 7, 9 t' ]())
ser genético natural, não tinha nenhum s<·nso para c·ss(· fniu., "natureza", O cp1c se· n·conlwn· aqui é que humanamente sempre se deve partir
aaesâdo da atividade humana. Esta é, cm 1íltima instâiH'ia, a razão pela qual 1 la alienação. A tese 1 anuncia o tema: Fcucrbach desvelou a auto-alienação

a história não aparece no seu mat<Tialismo puramc·nte rclkxivo e porque 11a sua forma religiosa. Sua tarefa consistiu, p<fftanto, em "dcco1npor o
ele não ccrns<'gni11 s11p<'rar a postura contemplativa. A'lsim, a sua relação mundo religioso cm sua base terrc·tia. Mas", conli1111a Marx, "não vê que,
c·om o ol~jc·lo pcnnancce antiquada <' aristocnític·a, muna oposição 11ma vez realizado esse trabalho, o priucipal <'01tti1t11a por fazer". Feuerbach
inconscqücnll' ao fJátlws do ser humano, cp1e ck colocou - mais nma vez colocou, corno precisa a tese 6, a essê1tcia religiosa sobre uma base terrena,
de n1odo puramente lc·órfro <' J>rec·isarncntc- como mera flor<'scência da diluindo-a na essência humana. Isto foi, por si S<>, um empreendimento
natureza existc·ntc· - 110 centro ele sua crílica ,'i religião ( e a nada mais). Por signifin1tivo, ainda mais porque lançou um olhar agm;ado sohn· o campo
isso, ele olha para a pdxis de c·ima para baixo, pois a couhc·c·e apenas dos cksc:jos humanos. A "crítica antropológfra da religião", feita por
c·omo 1wgóc·io ordinál'Ío: "A coutemphl(;ão pnllica é uma contemplação Fcucrbach, derivou a esfera transcendente cm seu c·o1~j11nto da fantasia
imunda, maculada pelo <'g'Oísmo" (FemThad1, Da., W1sen de., Ouistenturns, des<jantc: os deuses são os desejos do cora(,,'ão transformados cm seres
1811, p. 261). É a esta passagem que Marx se rcfrn: cm última análise na reais. Concomitantemente surge, através dessa hipóstase do dcs<;jo, uma
tese 1, ao dizer que, para Fcucrbach, "a prática é concebida e fixada somente duplica<;ão do mundo em um mundo imaginário e um real, sendo que o
em sua manifestação judia grossei1·a". E quanta soberba desse tipo homem transfere a sua melhor essência do aquém para nm além
manifestou-se mais tarde, quando a "contemplação cada vez mais maculada supraterreno. Importa, portanto, anular essa auto-alicnai;·ão, isto é,
pelo egoísmo" atraiu ideologicarncnle para si uma assim chamada recuperar o céu para os homens mediante a crítica antropológica e a
contemplai;âo pura, cm seguida uma assim chamada verdade cm hm<:,"io de si caracterização da origem. Mas é neste ponto que p1incipia a conseqüência
mcsrna. Quanta "ciência cqiiestre" surgiu então, altaneira na sela, au-dessus de Ma1x, que não se deteve diante do gênero abstrato "ser humano",
de la mêlie (mas não da s11jcira dentro dela próp1ia); quanta aristocracia do totalmente privado de enquadramento histórico c-onformc a classe.
saber (sem áristoi), cm~jurada com todo entendimento à práxis imunda, Fcuerbach, que tanto havia censurado Hegel por causa de sua rcificação
impedindo a práxis correta. Pressentindo isso, Marx contrapôs já à pura dos conc·eitos, até situa o seu gênero abstrato "ser humano" no nível
inc01npreensão, como a de Feuerbach, o páthos da "atuação revolucionária, empírico, mas apenas de tal modo que ele resida no indivíduo isolado,
prático-crítica". Desse modo, Ma1x acentua,justamente como materialista, livre de sociedade, sem história social. Por essa razão, a tese 6 acentua o
seguinte: "Mas a essência humana não é algo abstrato, interior a cada
indivíduo isolado. É, em sua rea.lidade, o conjunto das relações sociais".
"' Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, in: Karl Marx. O capital. São Paulo: Nova Sim, com esse seu arco oco entre o indivíduo isolado e o humanum abstrato
Cultural, 1996,pp.297-299 ( Os economistas). (omitindo a sociedade), Feuerbach não difere muito de um epígono do
estoicismo e de suas influências no direito natural, nas idéias dl' 1oln;"111<·i.1 , 1,, p1111 lo d(' v1~l.1 111, ,lc-1.111,, 1<'Vol 11cio11;Í1 io, co111 ,1 n ia(;to do 111;1t<'I 1.il 1',11 ,, ,
da era burguesa moderna. Após o caso da pólL1 pública grega tamh<:111 a l11~1,í1 ico-diaktico. A1w~a1 disso, ales<' 10 fala, com Ioda a <~11Lts<' ,·alo1.tll\',1
moral estóica havia se recolhido ao indivíduo privado: isto foi, diz Marx 11.i de· 11111.1 contraposi~·,10 lnunanista, de um "hmnanisn10 n·al", 011 ,('j;1, cl'1c·
sua tese de doutorado, "a felicidade de sua época; do mesmo modo, depoi.~ 1,·111 validade e se permite que vigore apenas em termos socialist;1s: "<)
que o sol comum a todos se pôs, a ma1iposa procura a luz da lâmpada d.i I ",1110 de vista do antigo rnaterialismo é a sociedade burgu<'sa; o do novo
esfera p1ivada" (MECA/, 1/1, p. 133). Por outro lado, porém, o estoicismo, 111;1t<'rialismo, a sociedade humana ou a humanidade socializad;1". <)
pulando por cima de todas as rela~·ões sociais e nacionais, fez vigorar o l111111ano não se encontra, portanto, em toda parte de qualquer soci<'d;ul<'
gfncro abstrato "ser humano" como único universal acima dos indivíduos ·como generalidade interna, muda, que liga os muitos indivíduos de modo
isolados, como local da rnm·mu:nis opiriio, da reda ratio em todos os tempos, .1p<'nas natural'; ele- não se encontra cm nenhmna generalidade <·xislc-11tc·,
cm todos os povos: ou s<:ja, corno a casa lnunana commn, localizada dentro 111;1s antes nurn processo cornplicaclo e ganha forma coerente so111c111t· 110
da casa do rrnmdo igualmente boa para todos. Só que essa casa humana , omunisrno, como o próprio. J ustarnentc por isso, o ponto de visla novo,
11,10 era a pálisdesaparecida, mas era nmstituída metade por uma ideologia proletário, não anula o c·onceito de valor "humanismo", mas pratica111<·111("
hmcioual - a pax romana, o imf1niu111 romano cosmopolita-, metade por propicia cpw, pda prinwiI·a vez, de tc·nha um domicílio; e quanlo 111;1is
uma utopia abstrnta - uma alianc;a fraterna da humanidade composta por , ic-ntífico o socialismo, tanto mais c·oncn·ta é_justam<'nte a sua preocufmv1n
indivíduos que s<· tornaram s;ihios. Desse modo, não (, sem razão que o , om o homem mmo omJro, f' a 1w ulaçiio real de .,ua auto-alienação como 11h10.
conceito "h·1wumita~" tenha surgido sirnultaneamente como conceito de 11,ntretanto, certarncnt<' nfio à maneira ck Fenerbad1, como se fosse um
gfncro e valor na corte de Cipião o Menor, e que seu a11to1· tenha sido o gi"·nero abstrato, clotaclo de sacramentos humanos demasiado sublimes c·m
estóico Panécio. Fcucrbach então, com o seu gênero abstrato "ser lnnnano", .~i rnesmos. Por isso, na lese 9, Marx retoma precisamente o motivo do
retomou sobrei udo o nco-estoicismo na fonna en1 qu<' de havia ressurgido gnipo epistemológin> das t<·sc·s, dessa vez contra a antropologia de
na <'nl moderna burguesa-mna vez n1ais corno arco vazio <·111,·c o indivíduo Feuerhad1: "O rn,lximo a cpw d1<'ga o materialismo contemplativo, isto é,
e· a generalidade. Isso ocorreu por último no conc·c·i10 suhlinw-abstrato do o matc-1ialismo que m'io conce-b<· a sc-nsihilidade como uma atividade prática,
ritoyn1. [ âdadâo] e no páthos kantiano de urna humauidadc cm geral, que ,: a conl<'mplação dos diferentes indivíduos isolados da 'sociedade
1-dlctia o âtoyeri de modo moral-alemã.o. Os indivíduos da era moderna, lmrg11esa'".:11 Uma barreira de dass<· está assim definitivamente
cntr-etanto, são capitalistas, e não colunas estóicas privadas, e seu universo caraclcrizada, a mesma barreira que obstn1ía a atividadP revolucionária
não era o antigo ecúmeno que deve1ia cxt inguir os povos, mas- idealizando na epistemologia de Feuerbach, e então a histária e· a sociedade na sua
justamente a pólis antiga-a generalidade dos direitos humanos burgueses, antropologia. Por· isso, o prosseguimento que Ma1x deu à antropologia de
tendo acima deles o átoyen abstrato, <'SSC ideal genérico humano-moral. Fcuedmd1, como uma crítica da auto-alienação r<'ligiosa, é não apenas
Apesar disso, há aqui analogias importantes condidonadas econorni<-amente conseqüência, mas um desencantamento renovado do próprio Feuerbach
(se não fosse assim, não teria havido um m·o-esloicismo nos séndos XVII e ou da fel ichização última, da antropológica. Assim, Ma1x c:onduz o homem
XVIII): tanto aqui como l,í a sociedade estava atomizada em indivíduos, ideal-genérico, via meros indivíduos, para o solo da humanidade real e da
tanto aqui como lá se elevava acima deles nm gênero abstrato, um ideal postura humanitária possível.
abstrato de humanidade, de postura lnunanitá1ia. Ma1x, porém, <Titica Para isso, fazia-se necessário lançar o olhar aos processos que
precisamente esse abstnlto ac·ima dos meros indivíduos, ckiinc a essência ,·ealmcnte <'stão na base da alienação. Os homens duplicam o seu mundo
humana justamente como ''c·onjunto das relações sociais". Por isso, a tese 6 não só por terem uma consciência dilacerada, desc:jantc. Essa consciê:ncia,
volta-se tanto contra a visão aistó1ica da humanidade em si, própria de _juntanwnte com o seu reflexo religioso, migina-se, antes, de uma divisão
Feuerbach, quanto - em conexão com isto - contra o conceito genérico muito mais próxima, a saber, a divisão social. As próprias relações sociais
puramente antropológico dessa humanidade, como uma generalidade que estão dilaceradas e divididas, evidenciam um embaixo e um em-cima,
liga os muitos indivíduos de modo apenas natural. No entanto, o conceito mostram lutas entre essas duas classes e ideologias nebulosas do em-cima,
de valor "humanidade" ainda é perfeitamente mantido por Marx; assim
claramente na tese 10. A expressão "humanismo real", com que- inic-ia o
prefácio de A sagrada familia, é abandonado na Ideologia alemâ, em conexão ,. }'oram substituídos os termos "perceptivo" e "percepção" por "contemplativo" e
com a rejeição do último resto da democracia burguesa, com a obtenção "contemplação" por corresponder melhor ao original "anschauencl" e "Anschauung".
dentre as quais a religiosa é apenas rnna entre muitas. 1';1r;1 l\L11x, o 1rnhallto lc-11qll'ra111<·1110 1, l1gt<>',<> .~1·1 11111 produto soci,tf", 11ao :-.1· pode- 111·111 .,; .. d.-,·,·,
que ainda restava fazer era justan1ente encontrar esse n1ais-próximo do ,·111 visla cio p1od1110, 1·squen-r o produzir, como o Lu. o :1i.,l1Í1 in,, 11:10
fundamento mundano- ele próprio um imanente em relação ao imanc11I<· dialético Feucrbach.Justarnente a esta última coisa p<"la 1111·1adl', ou .,l'j:1,
antropológico-abstrato de Feuerbach. O Feuerbach alheio à história e ni"ío 111s11stentável, da solução feuerbaehiana refere-se a seguinte passagem dl' ( !
dialético não tinha olhos para ele, mas a tese 4 os obtém para ele: "Na , 11/Jital: "De fato é bem mais fácil encontrar, mediante amílise, o 1T1 IH'
verdade, o fato de que a base teIT<'na se separe de si mesma e fixe nas tl'rreno das formações nebulosas da religião do que inversa111e11II'
nuvens um reino independente só pode ser explicado através da dilaceração dnen11olver; a partir das respectivas relações reais da vida, as suas lún11;1s
interna e da contradição desse fundamento terreno consigo mesmo. Este < livinizadas. Este último é o único método materialista e por isto cient ílin,.

último deve, pottanto, pl'imciro ser compreendido em sua contradição e ,\s defieiências do materialismo abstrato das ciêneias naturais, que exclui o
em seguida r·evoluciouado na prática mediante a eliminação da c·ontradição. processo ltistórico, já se percebe nas coneepções abstratas e ideológicas dl'
Por conscguint<', depois de descobrir, por exemplo, na família teITena o .~cus porta-vozes, no momento em que ousan1 ir além de sua especialicladl'"
segredo da sagrada família, é preciso niticar teoricamente aquela e (Das Kapitall, Dietz, 1917, p. 389). Adiante: "Em Feuerbach, materialismo
revoluciomí-la na pnítica". A crítica à religião, pan1 ser verdadeiramente I' história divergem totalmente", diz a Ideologia alemã, estabelecendo, assim,

radical, isto é, conform<· a ddinição de Marx, para agarrnr as coisas pela ;1 diferença básica entre o materialismo histórieo-dialético e o antig·o
radix, pela "rniz", exige, portanto, a críti<·a das rdaçõcs que estão na base materialismo mecânico: "Na medida em que Feuerbaeh é materialista, a
do céu, a crítica ck sua miséria, de suas eontradiçõ<·s e da soluc;·ão falsa, história não ocorre nele, e, na medida cm que ele eonsidera a história, ele
imaginária das contradii;ões . .Já na fntroduçiio à aitü:a à.fi.losofia do direito de não é materialista" (M/\'GA /, !>, p. 31). O próprio Feuerbach havia
lleg:1d, de 1811, Marx formulou isto de maneira tão empolgante quanto expressado isso da seg11inle maneira: olhando para trás (portanto, em visla
inequívoca: "A crílirn à religião l<'rmina ( ... ) no impnativo categórico de da base da natureza) de é malcrialisla, ao passo que, olhando para dianle
revolucionar todas as rda~'lH'S em que o homem é um s<-r humilhado, (portanto, cm vista da ética e até m<·smo da filosofia da religião), ele- <:
escravizado, abandonado e desprezível" (MEGA /, 1/1, pp. 611 e ss.). idealista.Justamente a omiss,10 da sociedade, da história e sua dialética 110
Sonl<'nte ap6s essa crítica rcvolu<·iouéu-iamcnte avançada tamhhn no sentido materialismo de Fe11erhad1,_justamenlc a ausi'·ncia da vida provoeada por
pn'ílin> atinge-se um estado em <pH· não mais se necessita ck ilusões, nem ela no antigo materialismo mecânico, o IÍnico que Feuerbach eonheci;1,
com a íinalidade de iludir nem como compensação: "A crítica despetalou in1plica obrigatoriamente, para esse filósofo, na conclusão de sua filosolia,
as llon·s imaginár·ias J>ffSas à c·mn·ntc, não para que o homem carregue a nm idealismo do tipo encabulado. Ek manif'cslou-sc na sua vida ética,
c·orrent<- sem fantasia, sem nn1solo, nias para que ele se livre da corrente e mostra-se nas exigi'·ncias de uma certa scnlim<'ntalidacle dorninieal fraterna.
colha a flor viva" ([()(:. át., p. 608). Justamente para isso, (, preciso que Urna vez mais, o que vigora aqui, como diz a tese 9, é "a contemplação do.,
primeiro a família l<-rH·na s<:ja revelada como o segredo da cdcstial, até diferentes indivíduos isolados na 'sociedade burguesa"'; uma vez mais Eu.-
alini..,,ir aquda "ciência oculta" econômico-materialista amadurcc·ida, que se nolar, cm Fcucrbach, ainda a religiâo aparentemente liquidada, que foi
leva Marx a dizer então cm O 1:apital: "De resto basta pouco conhedmento, apenas derivada antropologicamente por de, mas 11;10 criticada socialmcnt<'.
por exemplo, da história republicana de Roma, para saber que a história Isto sucedeu de la] forma que Feuerbach não critica os conteúdos religiosos
da prop1ieclack fundifoia constitui sua história secreta" (Das KajJitall, Dietz, propriamente, mas basicamente apenas a sua transposição para um al<~lll
1917, p. 88)?' Conseqüentemente, a análise da auto-alienação rdigiosa, e, com isto, a debilitação do homem e de seu aquém. Mesmo querendo
para que ela S<(ͪ venladeirnrncnte radical, passa fundarnentahnente pelas eom isso relembrar à "natureza humana" a riqueza desperdiçada, essa
ideologias, indo até o papel do Estado já mais próximo, à ecouomia política redui;ão sem dlÍvida eontém problemas. Quem ignoraria as profundc·za.~
ainda mais contígua e só então chega à "antropologia" real. Chega até esta da humanidade, a humanidade das profundezas na arte religiosame11I('
corno noção básica das ciências sociais da "relação dos homens com os carregada, em Giotto, em Grünewald, cm Bach e por último talvez ainda
homens e c·om a natureza". Pelo fato de, como aponta a tese 7, "o próprio em Bruekncr? Feuerbaeh, porém, corn coração, eoração fraterno <·
maviosidade sem par, transforma tudo isso quase que num tipo de /eo/11gir1
peitoral. Ademais, no inevitável vazio de seu "idealismo para diantl'", dl'
35
Tradução de Regis Barbosa e Hávio R. Kothe, in: Karl Marx. O capital. São Paulo: Nova mantém quase todos os atributos do Deus Pai, por assim dizer, corno virt udl's
Cultural, 1996, p. 206 ( Os Economistas). em si, e, de todos eles, apenas o Deus do eéu foi riseado. Em vez d<' dil'<T:
Deus é misericordioso, é o amor, é ouipoleute, fa/. 111ibg1 e·-., ouve- or.i(oc·s,
p1ova completa de uma yc·1d;ul<- a parti,· d<" si llH'Slll.l q11<· 1 ► 1·1111:111<· 1 ,1
basta dizer que a misericórdia, o amor, a onipotência, fazn rnilagn-s, 011vi 1
111('rame11te no nível teóril'o; dito com outras palavras: 11.'10 l'Xi"lc 11111, 1
as orações são divinos. De acordo com isto, portanto, todo o aparato teológin •
/111.1.1Í11d prova completa no nível imanente-teórico. No nÍV<'I (Htra1111·111c-
é prese1vado; ek apenas se transferiu do lugar celestial para uma <·n1.1
11·<Íri<'o, é possível apresentar apenas urna prova parcial, o que, na rnairn í;i
região abstrata cm que se encontram as virtudt"s rcificadas da "base natural".
dos casos, ocorre na niafernática; mas tarnbém neste caso ela mostra .~('I
D;ssc modo, porém, não surgiu o problema "legado humano da religião",
.qicnas uma prova parcial de tipo específico, pois não consegue i1· al<:,11
que Fcuc1-bach tinha cm nwute, mas apareceu a rdigião a preço reduzido,
da mera "coerência" interna, da "exatidão" lógico-conseqüente. Exatidao.
por amor ele um filisté1io do hábito muito mal desencantado, que Engels
porém, ainda não é verdade, isto é, retratação da realidade, bem como_"
identifica com razão nos resquícios sedimentados ele religião em .Feuerbach.
poder de interferir na realidack segundo o critério dos agentes e das h-1"
O rna1xis1110, em contraposição, nem mesmo cm vista da religião é urn
11da identificadas. Dito com outras palavras: a verdade não é somc111c'
"idealismo para diante", mas um malPrialis1110 fJara dianlP, plenitude do
11rna relação d<' t<'oria, mas fJe1fiiitam.rnte um.a relaçâo de teoria-práxi,.
materiali.\/11.0, desp<~jaclo de um céu mal desencantado que tivesse de ser
Sendo assirn, a t<"se 2 proclama: "O problema se ao pensarnento hurn.11111
trazido à terra. A cxplica(ão verdadeiramente total do nnmdo a partir de
corresponde uma verdade ol~jcliva nüo é um problema da teoria, e si111
si mesmo, que se chama male1ialismo histórico-dialético, estahekcc também
11111 problema pr.itico. 1~ na pnitint que o homem tem de demonst1·ar ;1
a tra11sfónnação do mm1<lo a partir de si m<·smo, o que ocotTC num para-
\'('rdadc, isto é, a realidade t· o poder, a imauê-ncia de seu pensamento.<>
além das aílições, que nada tem ern comum com o além da 111i1ologia, nem
debate sobrt' a n·alida<k ou a irn'alidadc de um IH'nsamento isolado d;1
com os se11s conteúdos rdi:·n·ntes a S<'11hor <' pai.
prática é um prohkma puram<·nte t'Scolástico". O que quer dizer: 11111
probkma cscolar IH> s<·ntido d<' uma imanê·ncia fechada do pensame11111
O gruf)() leu1ia-fná.xis: mmfmmaçâo " validaçii,o (tr.ffs 2 r 8)
(indui11do pe11samc11los mat<'rialistas-mecanicistas); esse internato
O q11c n;10 se aceita aqui é que o 1><·11sa111<·11to 1 (;erJanl<el seria pálido
nmternplativo foi o espa,·o de todos os eonn·itos de verdade anterion-s.
e sem forca. A tese ~ coloca-o acima d,1 <·ont<·mpla<:;°lo senscH"ial, com a
Ouanto ,'i rda,·;"io teoria-práxis, a tcs<· 2 é, por·tanto, totalmente criativa e·
qual e na ·q11al de apenas tem início. Feuerbad1 havia desan-editado o
;~va; cm comp,lra,:,10 com da, a filosofia pren:dentc assun1e um aspcclo
pe11sam<·1110 porque <·stc dcsvia1·ia o indivíduo para a ge11cralidade; isso
realmente "eseoListico". Pois, <·omo foi observado, ou a epistemologia
foi avaliado como 11omin,llista. Em M,u-x, no e11ta11to, o pensamento de
,mtiga <' a m<'dicval 11,10 relktit·am sobre a atividade, ou cu tão a ativid_a<k,
forma alg-uma t<·1uk a se pcnk1· na gcnernlidade ou na abslração
'-iC11elo abstrata e lnll'gu<'sa, não cnt n·almc11tc mediada pelo seu 0~1<·to.
indes<:j..ívcis, ao contnirio: ck I'nmqHeia precisamente o contexto nwdiado,
Nos dois casos, tanto 110 pcr·íodo antigo e feudal do desprezo pelo trabalho,
<·ss<·ncial do frnôm<·no, um contexlo que ainda está n·tTado à mera
quanto no período elo ethos lmrguf-s do trabalho (ii parte a concreticiclack
sensibilidade presente 110 fe11Úm<·110. Assim, ,i11sta111e11tc o p<·11samento,
do trabalho), a jJráxi.1, tanto a técnica q11a1110 a políi-ica, era considerada,
<pt<· Fcncrhac-h apenas tolern enquanto abstrnto, sendo mediado, é
11a melhor das hip<>tescs, como "aplica<:ão" da teoria. Não como em M,ll'X,
con<Tcto, ao passo q11<·, invcrsanwntc, o sensorial sem pensamento<" algo
con10 atcsta~:ão de que a teoria seria concreta, não con10 transformação da
abstrato. f: n·rto <pw o pensamento deve levar novamente ,1 contemplação,
chave em alavanca, da verdadeira retratação em intc1vcnção eficaz no s<·r.
para comprovar-st' por meio dela como exitoso, mas, também nessa ponta,
Desse modo, o pensamento con-eto torna-se, enfirn, unia e a mesma
a contempla<:ão não é a passiva, imediata de Fcucrbach. /\ prova pode
.1tividadc que o ato do que é correto, encontrando-se, ademais, a postura
encontrar-se, antes, apenas no car.íter mediato <la contemplação, ou seja,
partid{uia de antemão implicada nele, aparecendo no final novamente _co1~11 ►
11nicamcntc naquela sn1sibilidadc que {<>i trabalhada teo1-icamcntc e assim
conclusão verdadeira. Nesta conclusão, a cor partidária da resoluçao e· a
tornou-se coiw para nós. Isto, porém, é, no final, a sensibilidade da práxis
'-iUa próp1ia, não é uma cor aplicada posteriormente, a partir de outro
teoricamente mediada, teoricamente obtida.Afi.inçào de pensar<\ portantú,
lugar. Toda confrontação histórico-filosófica atesta, nesse caso, o novu111 da
bem mais do que a contemplação sens01ial, uma atividade, e uma atividade
relação teoria-práxis frente à mera "aplicação" da teoria. Isto ocorre_mcsm11
crítica, penetrante, decifradora; e a melhor prova disso é, por isto mesmo,
quando uma parte da teoria já estava direcionada para a práxis. E o caso
o teste prático dessa decifração. Assim como toda verdade é sempre uma
1 de Sócrates, o de Platão, quando ele quis realiza,· na Sicília a sua utopia do
verdade para algo e não existe verdade em função de si mesma, a não ser
1'.stado, é o caso do estoicismo, que tinha a lógica corno mero muro, a
1

como auto-ilusão ou como um inútil cismar, assim tampouco existe a


física como mera áivore, mas a ética como a fruta. É o caso de Agostinho,
o hlndador local da Igreja papal uH·dicval; {- o c·aso 110 1111;il da lcl.ulc- do co11hcci11H'11to; vt:ja as teses sobre Feuerbach" (A11. 1 r/1·111 /1/,i/,,,,,;,/11.\/ l,n,
Média com Guilhem1e de Occam, o destruidor nominalisla da lgn:j;, papal Nad,.lav,, Diet:z, 1949, p. 133). Contudo, no final de sua Lógica, <'Xatamentc
em favor dos Estados nacionais em ascensão. Uma incumbência prático- .1ssi111 como no final de sua Fenomenologia e do sistema detalhado, Hegel faz
social sem dúvida estava por detrás de todos eles, mas a teoria não obsta11t<' o mundo (o objeto dado [ Gegen.~tand], o objeto real [ Objektl, a substância)
levava sua vida própria, abstrata, praticamente imediata. Ela apenas 1nnontar ao s1~jcito quase da mesma forma que Fichte; sendo que, no
condescendia com sua "aplicação" à práxis, como um príncipe condescende final, quem coroa a verdade não é a práxis, mas a "re-memoração [Er-
com o povo, ou, na melhor das hipóteses, como uma idéia condescende innerung]", a "cit'-ncia do saber que se manifesta" e nada mais. Além disso,
com a sua utilização. E mesmo Bacon, no utilitarismo prático-burguês de acordo com a famosa sentcn<;a de Hegel na conclusão do prefácio à sua
rigoroso da era moderna: eh- até ensinava que saber é poder, queria Fi.loso.fi.a do direito, "de qualquer modo a filosofia sempre· chega tanle. Como
refundar a ciência corno un1 todo e dar-lhe o rumo dt· mna an inveniendi, o penwmm.todo nmndo, ela só se· manifesta no tt·mpo depois que a 1·ealidade
porém, apesar de toda oposição ao saber puramente lcórico e ao c·ompletou o seu prucesso de fonnação e se aprontou". A-;sim, o pensador
conhecimento contemplativo, a dfa1cia permaneceu aután1uica e apenas do ciclo fechado IJcgd <' o antiqmirio do imutavelmcntc existente acabaram
pretendeu-se mudar o seu método. Mudar no sentido do raciocínio indutivo, derrotando o pensador do Jff0<-csso dialético com a sua cripto-práxis. Resta
elo experimento direcionado rnctodintm<·nt<-; t·11trctanto, a prova não reside ainda - para avaliar· a distância da dout1i11a da práxis de Maix também
na práxis; <·sta é considcn1cla, tamhén1 nesle <·aso, antes como fruto e diretamente no contexto de sua juventude - a pr,íxis, logo também prática
recompensa da verdad<\ não <·omo st·u crit{-l'io último<' sua demonstração. da esquerda hegeliana <' tudo o que est,í relacionado com ela. Esta era a
Semelhança ainda menor com o nitério marxista da práxis tê·m as várias "anna da crítica", a chamada "filosofia do ato", no tempo do jovem Marx.
"filosofias do ato" que surgiram a partir de Fichte <' de l legd, depois Porém, o que houve aí foi apenas um n·trocesso do idealismo ol~j<"tivo de
novamente retornando a Fichtc, na cs<·ola da t's<1ucrda hegdiaua. A própria Hegel para o subjetivo de Ficht<"; o própr·io Feunhach constatou isso em
ação-ato de Fichte at{- mostrou fon:a <· linha c·m pontos político-nacionais Bruno Bauer. A sé1ie das chamadas lilosolias elo ato foi iniciada pelo escrito,
rdevantes, mas por fim tnmsformou-se todo em éter. Ele apenas serviu, no de r<"sto não desinteressante, de Cieszkowski intitulado Prolq;âmrnos à
final das contas, nem tanto para melhorar mas para anular totalm<'nte o hi.Jtorios<(fia, de 1838, um escrito que afirma expn·ssmnente ser n<·n·.<isário
mtmdo do não-cu mcdiant<· pruccssamcnto. O que, por assim dizer, ficou utilizar· a filosofia para transformar o rnrnulo. Assim, encontram-se nesses
provado através dessa "práxis" au/óndhostil ao mundo foi apenas o ponto Prof.eKônwno.1 até condamações a uma invcstiga(;,"ío racional da tendência
de partidaj;:i por si lll<'Srno ckdaradarncnte subjetivo do idealismo cgotista da história: para que se pudesse agir corretamente; para <jU<' a história do
de Ficht<', e n;'io uma verdad<' ol~jctiva que vai se formando com o mundo mundo não s<:j,t ('Onstituída por atos instintivos, mas consci<"ntes; para que
e no rrnmdo. Quem dwga mais próximo da noção de um critério da práxis a vontade s<:ja elevada ao mesmo nível que a rnzão o forn por I Jcgel; para
é- l lcgel, mais precisamente com base na relação de trabalho na sua que, dessa forma, ganhe espaço uma práxis não só pré-teó1ica, mas também
fr·nomenologia. Ademais <K0ITC na psicologia de Hegel uma trnnsic;:ão do pós-teórica. Tudo isso soa relevante, mas ficou apenas na <kdaração,
"espírito tcô1ico" (contemplação, representação, pensamento) para a totalmente sem conseqüência também nos demais <'snitos de Cieszkowski,
antÍt<'sc "<·spírito pn'itin>" (sentimento, vontade impulsiva, bem-aventurança), sirn, o "interesse do futuro" tornou-se, no caso dt>le, cada vez mais irracional,
do que deveria resultar sinteticamente o "espírito livre". Essa síntese, obscuro. A recusa de Cieszkowski à especulação tornou-se uma recusa à
portanto, proclamou-se como vontade ciente de si, con10 vontade que pensa razão, a atividade tornou-se aquela da "intuição ativa", e toda sua vontade
sobr<' si e está cônscia de si, que, no final, no "Estado racional", quer o que de fullu-o deu, no final das contas, numa teosofia do amém na Igreja
sabe e sabe o que quer. Da mesma forma,já se encontra na lógi<'a hegeliana ortodoxa, publicada na época do ManifeJto 1:omuni.sta. No próp1io círculo
uma supnposição da "idéia prática" em relação à "idéia do reconhecímento de Marx convivia, por fim, ainda Bruno Bauer, igualmente partidário
fOUtemplado", na medida em que ao bem prático sciia atribuída "não só a de uma "filosofia do ato", até mesmo uma do juízo final, sendo in facto
dignidade do geral, mas também do simplesmente real" ( Werke V, pp. 320 a mais subjetiva de todas. Quando a reação, sob Frederico Guilherme
e ss.). "Tudo isso", observa Lenin, "no capítulo 'A idéia do reconhecimento' IV, colocou essa "arma da crítica" à prova, ela se refugiou, no caso de
( ... ), o que indubitavelmente significa que em Hegel a práxis constitui um Bruno Bauer, imediatamente no individualismo, sim, no egocentrismo
elo da corrente na análise do processo do conhecimento ( ... ). Logo, Marx depreciador das massas. A "crítica crítica" de Bauer foi meramente uma
reporta-se diretamente a Hegel ao introduzir o critério da práxis na teoria escaramuça entre idéias, um tipo de práxis l'art pour l'art do espírito
soberbo consigo n1es1no, resultando, no final, no Fim.,iJ!.n '""' .\l'ÍII F~l!,1'11/11111 111div1d11os t· sua n·l;1<:ao clernan1cnlc c111 clissoli11,;10 .. \s..,1111 . .-lc , 11'111111:i .1
[ O individuo e ma propriedade], de Stirner. O próprio Marx disse o decísiv1, li11111a11idade: "A própria nova filosofia, em n:la~Jto ;'1 s11;1 base (!), uacla
sobre isso em A ~agrada família, em causa própria, como se pode ver, ('Ili 111ais é que a essência da sensação trazida à consciência; ela apcuas aprova
função da práxis autêntica e sua inconfundibilidade. Em função da práxis 11.1 <· com a razão aquilo que o homem - o homem real - confessa no
revolucionáiia: inidando com o proletariado, munido do aspecto fecundo , oração" (Werke II, 1846, p. 324). Esta sentença é tirada dos Princípio~ da
da dialética hegeliana e não de abstrac,;ôes 01iundas da "filosofia hegeliana /do.wfia do futuro, sendo, na verdade, a compensação para o ato oriunda do
murcha e enviuvada" (MEGA l, 3, p. 189), ou até do sul~jetivismo de Fichte. passado, de um passado pequeno-burguês, padrcsco, sim, muitas vezes,
Fichte, o irado virtuoso, ao menos ainda tinha em mente a cada vez instruções ..,,1hotador tartufista. De um passado quc,justamente por causa de seu amor
enérgicas, desde o Ge..w:h/,0.1.wnn- I lmu.lel1.1taal I O J<_,~1lado merrnntefedutdo] até os e kdamatório e abstrato ao homem, h<~je ucm pensa em transformar o
Reden an die Deulsrhe Nation I Di.wu.r.\0.1 à naçiio alenuil; ele expulsou 111undo para melhor, mas <Jll<T et<'rnizá--lo no seu estado ruim. A caricatura
filosoficamente os franceses da Alemanha; a "nfüca nítica", cm contrapartida, 11c sermão da montanha de F<·ucrhach t'Xdui qualquer rigor na pnseguição
cavalgou unicamculc no hipódromo ela autoconscif-ncia. E, mais próximo de :1 injustiça, aceita todo desleixo na lula de classes; jnstam<·nte por isso
Marx, até para o socialista absoluta111cnt·<· sinnTo Moscs I Iess, o agir tinha a 1cc01nenda--se um "socialismo" amo1-oso ele cunho generalizante a Iodas as
tendência de desprender-se da atividad<' social, de reduzir-se ,'i refonna da l,igrimas de nocodilo de uma filantrnpia de interesse capitalista. Por isso,
conscif·ncia moral - uma "filosofia elo ato" sem ter atrás de si uma teoria Marx e Engels dizem: "Em vista da realidade nefasta, do ódio, preconizava--
econônli<·a fónnada, sem ler em si um itinerário da tendência cliaklicamente se o reino do amor. ( ... ) Porém, se a <·xp<Tiência ensina que, em 1800
compreendida. 01 concei.to.1 de fmíxú até Marx .1âo, f1ortanto, tolal111n1te (Üstintos de anos, <'SS<' ,uno1· não se tornou op<'rantc, que de n.10 foi capaz de
.11w wnujJ(.ÚO leori<t1núxi,\ da doutrina da. unidade e-ntn, temi.a 1' fmixis. E c1n vez lransfonnar as r<'la\·ôcs sociais, de fundar o seu reino, então r<'snlta disso
da p1-áxis ser apenas colada à te01ia, ou st;ia, d<' forma q11c-, do ponto de vista claramente que ess<' amor, qn<' m'io nmseguiu V<'llnT o <Ídio, tampouco
puramente científico, o pensainento nem 1<'1ia m·cessidade d<' s11a "aplicação", c·oncedc a <'tl<'rgia ai iva nc<·essária para rdónnas sociais. Ess(' amor perde--
a te01ia daiia continuidade à sua vida própria<' ii sua é111to--s11Jiciê·ucia 1ambém se em frases st·ntim<'nlais, através das qnais nenhuma co11di~·,io real, fática
na prova; de acordo com Marx e Lenin, k<u-ia e pr.:ixis oscilam co11s1aJ1h'111<·nte. é eliminada; <'lc cxaurc o hom<'lll com o e11on1w mingau scnlimcnlal com
Oscilando alternada e reciprocamenlc, a p!'éÍxis 1m·ssupú<· t<'oria tanto quanto que o alirn<'uta. It a privação que· c·ornTdc- for(a ao homem; q11<·rn tem de
ela própiia desencadeia e necessita, po1·s11a vc-z, nova lcor-ia pa1~1 dar seg1.1imento ajudar--s<-, ,~jll(la--se. E por essa razão as condi(ôes reais <l<'sl<' nmndo, a
a uma nova práxis. Nunca o pcnsamculo conneto foi tão valorü·.ado como · oposi~:,10 dnistin1 na sociedade atual entre capital<· trabalho, entre burguesia
aqui, onde ele tomou-se a luz para o ato, e o ato rnmca foi 1ào valorizado e prnkta1iaclo, nüa manifestação mais desenvolvida se evidencia nas relações
como aqui, onde ele tornou-se o coroamento da verda<k. industriais, nmstitui a outra fonte, ajon,ir com mais fon;a, da cosmovisão
Sendo assim, p<"rfcitamentc in<Tentc ao alo de pensar, por ser um socialista, do anseio por reformas sociais. ( ... ) Essa obrigatoriedade férrea
ato auxiliador, é um certo calor. O <·alor do próprio qucr<'r -~judar, do provoca a difusão das pretensões socialistas<' lhe traz adq>los operantes, e é
amor às vítimas, do ódio nmtra os exploradon·s. Sim, <·sscs sc·ntirncntos ela que abrirá caminho para as refo1n1as sodalistas 11wdia111<· trnnsfonnação
põem em movimento a parcialidade, sem a qual nenhum saber verdadeiro das atuais relações de troca mais do que todo o amor que ank em todos os
aliado ao ato bom é possível cm termos socialistas. Porém, o s<·ntimeuto de cont\'Ô<·s st·nsíveis do mundo" (Ruruüchreiben gegen II. Kriege, einen
amor que não é, de próprio, iluminado pelo conhecirne1110, obstrui Anluin.ger Feuerbach.1 [ Circular contra H. Kriege, um adepto d11 Feuerbach],
justamente o ato auxiliador rumo ao qual ele se põe a caminho. Ek satisfaz.. 11 de maio de 1846). Desde então, aquilo que Thomas Münzcr teria chamado
se com demasiada facilidade com a sua própria excelência, evapora-se numa não só de "fé inventada", mas tainbém de "amor inventado", difündiu--se, de
nova autoconsciência aparentemente ativa. Neste caso, não se trata de mna modo bem diverso do que na época ainda relativamente inofensiva de
autoconsciência crítica de l'art pour l'art, como em Bnmo Bauer, mas de Feuerbach, entre renegados e pseudo-socialistas. O amor dissimulado destes
uma a-crítica sentimentalista, de mornidão e ambigüidade. É o caso do pelo homem é, todavia, apenas a arma de guerra de um ódio ainda mais
próprio Feuerbach: em lugar da práxis, ele acabou colocando sempre a total, a saber, o ódio contra o comunismo; e é só por causa da guen-a que esse
sua equivocação chamada "sensação" [Empfindung]. Ele distende o amor amor inventado está aí.Juntamente com o misticismo, que não está ausente
numa relação sentimental geral entre eu e tu, revela a exclusão de qualquer já em Feuerbach, neste em todo caso ainda querendo ser um "idealismo
conhecimento social também neste ponto refugiando-se nos meros e simples para diante", ou seja, progressivo, e que, no zunido am01fo da plenificação
do seu coração, da sua crença no Deus-Pai antropologi<·,1111e11le .-011for111a<l;1, A ~enha e ~eu signijliado ( te~e 1 1)
não apresentava nenhuma deficiência mais grave do que o filistér·io O <p1<· se n:conhece aqui é que a dimensão futura é a mais próxima
livremente religioso e mal desencantado. Porém, os mistérios da atual e a mais importante. Todavia,justamente não à maneira de Feuerbach,
verborréia de sentido profundo que nem mais {: idealista - quase tão que não entra na embarcação, que se contenta do começo ao fim corri a
diferente do misticismo de Feuerbad1 como este da mística do mestre contemplação, que deixa as coisas estarem como estão. Ou ainda pior:
Eckehart - fazem do coração um covil de homicidas, e no lugar da névoa que crê não poder deixar de mudar as coisas, porém apenas no livro, e
cor-<:le-rosa vazia está hoje um nada utilizado pela burguesia. A tese 8 diz: o próprio mundo nada percebe desse fato. Ele nada percebe,já porque,
"Todos os misthios que desviam a teoria parn o misticismo encontram sua justamente em falsas des<Tições, o mundo pode ser mudado com tanta
solução racional na pnítica humana e na soluc:;ão racional para essa prática". facilidade que o real nem mesmo ocorre no livro. Cada passo para fora
Isso, no entanto, di1'crencia dois tipos de mistérios, a saber, aqueles que seria prejudicial ao livro bem bolado que habita seguro em sua área
apresentam' oé lonna ·a11ie1á 1nco1np1·ec1'idICta 'atgo 'iiao t·sc1aré<~1cto, um -·,'"t'"Servàua e JR•nc\roâna a'Jroa1fro1>nà mrs~íicra'snrvenr~ruas'.~1vr:ü;ramóem
<·marnnhado de contradi(,'ôc·s na n·alida<k, e aqueles, chamados de livros e doutrinas estritamente apc·gados aos fatos mostram
misticismos propriamente ditos, que são idolatria da escuridão c·rn função freqüentemente o prazer tipicamente contemplativo de satisfazer-s<· c·om
de si mesma. Mas também as pn>prias coisas não vislumbradas, mesmo a a sua 111oldura coerente, corno algo afinal c·xe<·utado com êxito "em
linha nclmlosa própria delas podem desviar para o misticisrno;justamente terrnos de obra". Sendo assim, cks até temern urna mudança do mundo
por isso a soh1<,·ão humana para isso é unicamente a pr4xis racional, e a apresentado, que possivdmc·ntc pudesse provir deles próprios, ponp1e
soht<,:ão racional unicanwntc a práxis humana, que se atém à humanidade nesse caso a obra - e mesmo que ela estabeleça princípios para o futuro,
(em lugar do emaranhado). E também a palavra "misticismo" mio é utilizada como a de Feucrbach - não mais poderia planar tão autai·quic·éunente
sem motivo por Ma1x cm relação a Feuerbach; ela é utilizaclajustamente através das épon1s. E se vern a somar-se a isso, corno outra vez em
contra a não-espada do amor abstrato que deixa intacto o nó górdio. Feucrbach, ainda uma indiferença política almejada ou ingênua, o
Repetimos: os mistérios de Feuerbach, os mistérios do amor sem clareza, público fica completamente limitado ao leitor· ignahncnl<' contemplativo;
certamente nacla tf·m em comum com aquilo que mais tarde st· cviclenciou a palavra niio é dirigida aos seus braços, ao seu agiL O ponto de vista
como podridão e irracionalidade noturna; FcmThad1 cnnmtra-s(· antes 1Standfmnkt[ pode até ser novo, mas ele limitou-se a ser um mero ponto
naquela linha salvacionista alemã que vai de l lcgcl a Ma1x, assim como a de mirada; cksse modo, o conceito não trouxe nenhuma instruc:;io para
linha funesta alemã vai de Schopenhauer· a Nietzsche e suas consc·c1ii<'-ndas. a intc1vcnção. Por isso, Marx assenta de forma ('(mcisa t' antitética a
E o amor ao homerr1, na medida ern que se con<·ehe darnmentc como famosa tese· J 1: "Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo
amor aos explorados, na medida em que avan<:a par-a o c.onhec-imento de diferentes formas; trata-se, porém, de trnnsfonná-lo". Com isto, está
real, sem dúvida é um agente indispensável no so<·ialismo. Entretanto, se já carnctc1·izada, de forma empolgant<·, uma difrrc-11~-a em relação a
o sal pode tornar-se insípido, quanto mais o a<,·1íca1·, e se já os nistãos qualquer impulso à reflexão anterior a este.
sentimentais ficam no derrotismo, quanto mais os socialistas sentimentais Como foi observado no início, frases curtas às vezes parecem poder
na trai\·ão farisaica. Por isso, Marx golpeia também cm Feuerhad1 uma ser abrangidas mais rapidamente do <]li<' ele fato o s;'io. E às vezes é
bazófia perigosa, uma que se sente bem consigo mesma, uma práxis fJeitoral próprio de frases famosas, muito contra a vontade delas, que das não
postrema, que efetua o contrário daquilo que pretendem o seu altn1ísrno mais provocam a reflexão ou que são engolidas ainda muito <Tllas. De
proclamado e o seu amor indizivelmente universal. Sem paffialidade no vez ern quando elas causam então incômodos, 11est<· caso hostis à
amor, tendo um pólo de ódio igualmente concreto, não existe amor intdigê11cia, no mínimo estranhos à inldig<'-nc·ia, os quais não podel'iam
autêntico; sem o pariidarismo da posição revolucionária de classe existe estar mais distantes do sentido da frase. Portanto, o que exal'amcnte se
apenas ainda o idealismo retrógrado em lugar da práxis para diante. Sem tem ern ruente corn a tese 11? Corno ela deve ser compreendida dentro
o primado da cabeça até o fim restam apenas ainda os mistérios da do sentido filosófico sempre preciso de Ma1x? Ela não d<'vc ser entendida,
dissolução em lugar da solução dos mistérios. Assim, na conclusão ética da ou melhor, mal-usada ern nenhuma mistura com o pragmatismo. Este
filosofia do futuro feuerbachiana estão ausentes tanto a filosofia quanto o provém de um âmbito totalmente estranho ao ma1xismo, de um âmbito
futlu-o; a t eo1ia de Marx, em função da práxis, pôs ambos em funcionamento hostil a ele, intelectualmente infe1ior, enfim, simplesmente infame. Apesar
e a ética finalmente se fez carne. disso, constantemente aderem à frase de Marx bu.~y bodi.e~, como agora
se diz na Amé1ü·a do Norte, ou s<ja, hipera1ividad('s, t 01110 st· ('la l'osst' ·11;i11slún11a~·üo" do 11111mlo. Q,não grande i-, poi 1;11110, a falsilil'ahilid.1cl,
um barbarismo cultural norte-americano. O pragmatismo 1101·tc·- ,Li t<"sc 11 na cabeça dos que desprezam a inteligência e dos "praticist.1·, ·
americano se baseia na opinião de que a verdade nada mais seria que a No que diz respeito aos "praticistas" do movimento socialista, é óbvio q• 11
utilidadt' comercial das concepções. Em conformidade com isso, existe 111oraln1ente eles, con1 toda cel'teza, nada têrn en1 con1un1 co111 o·,
a experiência <k topar c·om a verdade, no momento e na medida em lll'agmatistas; sua vontade é transparente, sua intenção, revolucio11,i11,1.
que esta está direcionada a um êxito prático e de fato se mostra s<'u alvo, humanitá1io. Contudo, ao deixarem a cabeça de lado, logo.
apropriada a trazer esse resultado. Em William James (Pragmatisrn, nada n1enos que toda a riqueza da teoria marxista, juntamente c·o111 .1
1907), o homem de negócios, como "americau way of lifc", de certo apropriação crítica do kgado cultural feita por ela, acaba por surg11.
modo ainda tem uma aparfucia humana cornum, aiuda é, por assim por ocasião do "triai and t·nor mcthod", do diletantismo, dn
dizer, humano, sendo até adornado como otimista e promotor da vida. "praticismo", aquela ente! falsifica~·ão da tese 11, que lemh1,1
Isto tanto po,· causa da embalagem c·or-de-rosa do capitalismo norte- metodologicamente o pragmatismo. O "pratieismo", que faz frontt·i1 .1
americano, ainda possível naquela época, quanto sobretudo por causa com o pragmatismo, é uma conscqii<'·nda dessa falsificação, como cpw1
da t<·ndt'·ncia de toda sociedade de classes de apresc·ntar o seu interesse que seja, não compreendida; todavia, o deseonhecimento de u111,1
específico como sendo o de toda a humanidade. Por essa razão, o conseqii<'·11da não protege da imhcdliza~:ão. Os "praticistas", que- 110
1n-agmatis1no apresentou-se inicialmente como tutor dos "iustnm1c·ntos" máximo dão um c·1·édito de ctll'to prazo ,'í teoria, lll<'SillO sendo !'l.1
l<>gicos variados<' snhstitníveis, mediante os quais o hom<'m de H<'gócios con1plicada, introduzem na cssé::ncia luminosa do marxismo a escurid.ic,
de nível superior atinge, por assim dizer, um "êxito humanitário". de sua própria ignorància privada e do ressentimento qu<' tão facilm<'ntc·
Porém, a <'Xistê11cia de um homem ele negócios humano é üio ou mais se associa à ignorfüu·ia. Às vezes nem é preciso n-cotn'J' ao "praticismo",
irnprov;ívcl do que a d<' um homem "boa-vida" n1arxista; assim, o bastando mencionar uma atividade qualqm·r p;m1 c-xplicar essa estranht'ta
pragmatismo, de acordo com.James, rapidamente deu-se a conlH·c·cT na frente à t<'otia; pois o esquematismo da l~ilta d<' reflexão também vive d:1
América do Norte, 1ia burguesia mmulial como um todo, c·omo aquilo pr6pria antililosolia i11ativa. lksse modo, porém, pode reportar-se aiud:i
que de de fato é: c·omo derradeiro agnosticismo de uma sociedade menos à preciosa tese sobre Feuerbach; o mal-<·11tcndido transforma-sl',
despida de qnal<pHT vontade de buscar a verdade. Duas guerras ent,'io, c·m blasff·mia. Por essa razão, ckve sc·1· coHtinuanwnte enfatizado
impnialistas, a primeira imperialista de modo geral de 1911 a 1918, a <]li<', /lltl Marx, um jJn1.1amen.to niio ;, verdarll'iro jJOr .11'r jJro11eito.111,
segunda pal'Cialmentc imp<Tialista dos agressores nazistas, fizeram o mas jnoveito.10 f}()r .1t'r verdadeiro. Lenin formula o mesmo no dito
pragmatismo atingir a maturidade de uma ideologia de nwrcadores de co11cl11dentc: "A doutrina ck Marx {: onipotent<', porque ela e·
c·avalos. A verdade não tem mais a mínima importância, nem mesmo no vcnladeiI·a". E n>ntinua: "Ela é a hc-rckira k~ítima do que de melhor a
sentido de <pie seria tm1 "instrun1ento" a ser ao menos cul.tivado; e a humanidade criou no século XIX na forma da filosofia alemã, da
embalagem cor-de-rosa do "êxito humanitário" foi mandada totalmente economia política inglesa<' cio socialismo franc<'·s". E poucas linhas ant<·s,
ao diabo, que estava dentro dela desde o princípio. As idéias passaram, ek declara: "Toda a genialidade de Marx consiste justamente em q11t·
então, a oscilar e a se modificar como os títulos das bolsas, de acordo ele deu rc·spostas às perguntas que o pensamento avançado d:1
c·om a situa<;ão da guerra, a situação dos negócios; até que, por fim, humanidade já havia feito" (Lenin, Drei Q1ullen und dreí Bestandlt'ili
apareceu na íntegra o pragmatismo vergonhoso dos nazistas. Certo era des Marxismus l Três fonle.1 e três wm.ponenle:; do marxismo 1,
o que trazia proveito ao povo alemão, significando: ao capital financeiro Ausgewahlte Werke I, pp. 63 e ss.). Em outros termos: a pnixis real n:'io
alemão; verdade era o que promovia, o que parecia favorecer a vida, pode dar nenhum passo antes de ter-se infonnado cc·onômica ,.
significando: o lucro máximo. Estas foram, portanto, as conseqüências filosoficamente junto à teoria, à teoria em progresso. Por isso, semp, ..
do pragmatismo, depois de cumprido o seu tempo; e quão inofensiva e que houve falta de teóricos socialistas, surgiu o perigo de <jlll'
ardilosamente ele pôde assumir igualmente a aparência da "tcoria- precisamente o contato com a realidade fosse prejudicado, este que m11u·;1
pr·áxis". Quão dissimuladamente rejeitou-se aí também uma verdade deve ser interpretado de modo esquemático nem simplista, se é que s,·
por causa dela mesma e evitou-se dizer que era por causa de uma mentira quer uma práxis socialista bem-sucedida. Por mais que o antipragmatismo
em função de negócios. Também aí se exigiu, de modo aparentemente dos maiores pensadores da práxis, por serem as testemunhas mais fiéis da
concreto, que a verdade ficasse comprovada na práxis, mesmo na verdade, propicie portas abertas, estas podem reiteradamente ser fechada.~
por uma falsa interpretação interesseira da tese 11. 1'01 11111;1 i11lt'rpn·ta1;ao de- 11111a Jiloso1ia nova, uma filosofia ativa, tão inevitável quanto ütil par;1 .1
que, de modo grotesco, crê poder detectar no tiiunfo rn,íxirno da filosori;i 11111dan\·a. Sem dúvida, Marx proferiu palavras cortantes contra a lilosolia,
- que ocorre na tese 11 - uma abdicação da filosofia,justamente um tipo 111;1s não o fez contra a filosofia contemplativa pura e ~implesmente, se111p1 ,,
de pragmatismo não burguês. Com isso, presta-se um desserviço àquda •111c se tratasse de uma filosofia relevante de períodos importantes. Fk o
<limensão futura que nnna ao nosso encontro, não mais incompreendida, 11-J: precisamente contra um determinado lijJO de filosofia contemplativa,
mas à qual se soma, ao contrá110, o nosso conhecimento ativo;- a ratiovigia a 011 seja, a dos epígonos de Hegel do seu tempo, que era antes uma nfio-
práxis nesse trecho do caminho, assim como da vigia cada trecho do retorno lilosofia. A polêmica mais dum encontra-se, sintomaticamente, na Ideologi(/
hmnano à p,í Ilia: contra o ir-racional que se mostra, cm última análise, também alnnii que é dirigida contra csst's epígonos: "É preciso deixar de lado a
na práxis destituída de conceitos. Pois se a dcst111ição da razão faz afundar lilosofia, é preciso saltar fora dda {', como um homem con1u1n, deter-se no
novamente no in-acional bárbaro, o cksconhcc·imento da razão faz afundar· t'studo da n·alida<le, acc1·ca da qual existe litera1iarnente uma quantidad<'
no inacional imbecil; sendo que este último rüio dwga a derramar sangue, ,·nonne de matc1ial, naturalmenl<' desconhecido dos filósofos; e quando
mas an1.1ína o n1arxismo. Asúm, a banalidade também é contra-rnJolucionárút <'ntào se chega a ter novamente pessoas como Kuhlmaun ou Stirner dianl<'
nn relaçiio ao f;róprio marxi.ww; pois este { a conc·rctização (não a norte- de si, tem-se a impressão ele que luí muito já se os tem 'atrás' ou abaixo d<·
arncricaniza(.'ão) das idéias mais avançadas da luunanidadc. si. Filosofia e estudo do m mHlo real 1·dacionam-se um com o outro do
At{ aqui sobre a c·om1)J'et'ns,10 errônea, sendo de mc·nor importância mesmo rnoclo que onanismo e- amor sexual" (MEGA I, 5. p. 216). Os nomes
onde da o<·orre. O errôneo igualmente prc<·isa ser ducidado,justamente Kuhlmann (um teólogo pietista claquela {poca) e até Stimcr mostram muito
porque a tese 11 {, a mai.J imf)(}rfantP -- mrmfJ/io (11liuú f,e.1sima. Ao mesmo claramente qual o endereço ou a qu<' tipo de filosofia era cfüigida essa
tempo, essa tese {- a que recebeu a fónnulaç~'io mais eoncisa; sendo assim, poderosa invectiva; ela t"ra dirigida contra a fanfarronice- Cilosófica. Ela
o comeut,írio a da precisa considerar o aspecto literal, hem mais do que não era dirigida contra a filosofia h<'gdiana e 011tr-.-1s grandes filosofias do
nas demais. Qnal é, portanto, o l<'or literal da tese 11? Qual {- a aparente passado, por mais contemplativas que fossem; Marx t<'ria sido o último a
oposi\·ão entre eouhccer e lransl'onnar? Não existe oposic;ão; at{ mesmo a sentir falta de um "estudo do mundo real" no l legd concreto, no
pa1ücula "por6n", que aqui não é adversativa, mas mnpliativa, falta no enciclopedista mais <'n1dito desde Aristóteles. Essa an1sa<;,10 foi frita a Hegel
original de Marx (d'. Mfü;;\ /, 5, p. 5~~5); tampouco encontra-se um ou-ou. por cabeças fundamentalmente diferentes das de Maix l' Engels; como se
E contra os filósofos pffcedentcs { levantada a an1sa\·,io, ou melhor: é sabe, foram as cabeças da reação pn1ssiana, mais t;ude do revisionismo e
identificado neles, como barreira de dass<·, o fato de terem apenas de semelhantes "Realpolitiker". Em contrapartida, também na Ideologia
interfmdado diférentemente o 11mndo, niio o falo de lerem filosofado. A alemú Marx fala de modo bem diferente da aulf-ntica filosofia anterior, ou
iutcrprctaç.io, podm, é semdhantc à rnnternf,laçüo e decorre dela; o stja, no sentido de entrar na posse de uma lwrarn:a de modo niativo e
conhecimento nâo-contcmplativo, portanto, { distinguido agora nnno real. Antes disso, a lntroduçiio à critica à ji.lo,10fi.a do direito de llr,gel, de 1844,
bandeira que verdadeiramente leva à vitória. Todavia, como handdra do já havia esdarecido esse ponto, afirmando que a filosofia niio poderia ser
conhecimento, a 1nes1na bandeira que Marx estampou - claro que com suprimida sem ser realizada, não poderia ser realizada sem ser sufJrúnida.
ação, não com a tranqüilidade contemplativa - na sua ohr::i priudp::il de A p1imcira parte, com o acento na reali.zaçiio, é dita aos "pnilicos": "Por
investigação en1dita. Essa obra p11ncipal é pura instrução para o agir; no isso, o partido político prático da Alemanha exige com toda razão a negaçiio
entanto, ela se chama O capital, e não Guia para o sucesso ou ainda Prof)(J,ganda dafilo.10fia. Seu engano não reside na exigência, mas em deter-se na simples
ern favor do ato; não é nenhuma receita do feito heróico rápido a:nte rem, exigência, que ele não coloca nem pode colocar se1ianwntc cm prática.
mas situa-se in re, na análise cuidadosa, na investigação filosófica das inter- Acredita colocar em prática aquela negação pelo fato de voltar as costas à
relações dentro da mais complicada realidade, tomando o rumo da filosofia e de resmungar, olhando para o lado oposto, umas tantas frases
obrigatoriedade compreendida, do conhecimento das leis dialéticas do banais e mal-humoradas a respeito dela. A est1·eiteza de seu horizonte visual
desenvolvimento na natureza e na sociedade corno um todo. A não inclui também a filosofia no estreito de Bering da realidade alemã,,
caracte1ização da p11meira pa11e da frase distancia-se, portanto, dos filósofos nem chega a imaginá-la sob a prática alemã e as teorias que estão a serviço
que "não fizeram mais que interpretar o mundo de diferentes formas", e de dela. Exigis que se tome como ponto de partida os germes mais da vida,
nada além disso; ela sobe no barco, mas justamente num curso mas esqueceis que o germe real da vida do povo alemão só se alastrou, até
extremamente bem pensado, caracte11zado na segunda parte da frase: o agorn, dentro do seu crânio. Numa palavra: nâo podereis suprimir a filosofia
sem realizá-la". A segunda parte, com o acento na supresúio, {, dila ;111s i11.111tf·ntico do termo, inclusive sem ter um conceito; os hunos ig11al111c11tc
"teóricos": "A mesma injustiça, só que com fatores inversos, cornel<·u o 1 calizaram transfonnações; há também uma transformação provocada peb
partido político teórico, que partia da filosofia. Este via na luta atual apcuas 11H·galomania, pelo anarquismo, sim, até pela doença mental delirante que
a luta critica da filosofia com o mundo alemâo, sem imaginar sequer que a 1kgel chama de "imagem perfeita do caos". Mas a transfonnação c,ólida
filosofia anterior pertencia ela mesma a este mundo e era seu compkrnenlo, rnmo ao reino da liberdade dá-se unicamente mediante um conhecimento
ainda que seu complemento ideal. Sendo crítico cm relação à part<' sólido, com um domínio cada vez maior da sua obrigatoriedade. Dessa
contráiia, não adotava uma postura crítica para consigo mesmo, partindo forma, filósofos puderam, desde então, perfeitamente transformar o mundo:
dos pressupostos da filosofia e detendo-se nos resultados jà obtidos por ela Marx, Engels, Lenin. Os "praticistas" das mãos vazias, os esquemáticos com
ou alegando exigências e resultados da filosofia buscados cm outra parte, seu tesouro de citações não foram capazt·s de transfonná-lo, nem aqueles
embora os mesmos, ao contrário, possan1 ser obtidos - tendo como empiristas que Engels chamou de "asnos da indm,:ão". A transformação
pressuposto a sua legitimidade - somente através da ne{.{açâo da filosofia filosófica está associada a um saber ifü't•ssante a respeito da conjuntura;
anterior(!), da Cilosofia corno filosofia. Reservamo-nos uma descrição mais pois, mesmo que a lilosofia não s<:ja uma dê:ncia própria acima das demais
detalhada desse partido" (ela ocon-eu em A sagrada familia e na Ideologia ciências, ela i-, isto sim, a ciência e a consci[-ncia própdas do totum em
alenu7, com uma crítin1 pesadíssima à contempla<:ão decrépita, à todas as ciências. Ela {, a nmsciêucia progressiva do totum progressivo, já
"tranqüilidade crítica do conhecimento"). "Sua deficii·ncia háska pode ser que esse /,otum não está estabelecido, ele próprio, como pu:tum, mas lida
n·duzida a isto: ele acreditava poder realizar a filosofia, sem .1uj1rimi-la" (MECA com o que ainda não veio a existir unicamente no giganlcsco nmtexto do
/, 1/1, p. 613). Ma1x ministra, portanto, aos dois partidos daquele tempo devir. A transforma<,·ão lilosófica é, assim, uma trausforma<,:ão segundo a
um antídoto para o seu comportamento, uma medicina rnenlis invertida medida da situa<:ão analisada, tendência dialélica, das leis ol~jctivas, da
para cada caso: de incumbe os práticos daquele tempo de urna n·alização po-;<;ihilidade real. Por essa razão, portanto, a transformação filosófica
mai<ff da filosofia, os teóricos daquele tempo de uma supressão mais rndical o<·mn·, cm última análise, essencialmente 110 horizonle do futuro totalmente
da filosofia. Contudo, também a "negação" da filosofia (ela própria um incapaz de contemplar, incapaz de iuterpr<'lar, mas rcconh<'cívcl cm lermos
conceito t·xtremamcnte carregado filosoficamente, oriundo de I kgd) refere- marxistas. E sob esse aspecto, Ma1x também elevou-se acima dos acentos
se aí expressamente à "filosofia arderiar', não em geral a <ptalqucr filosofia altcrnanlt'S acima referidos, colocados apenas anlitclicamc·nh': referindo-
possível ou futura. A "negação" refere-se à filosofia que l<·m a verdade se ,1 rcalizac;ão ou à supressão da filosofia (a n·aliza<:ão {, acentuada contra
como fim cm si nwsma, ou seja, a uma filosofia autárquica e contemplativa, os "pr;íticos", a supressão é acentuada contra os "teóricos"). A unidade
que intt·rpn·ta o mundo de modo meramente antiquário; t'k nãos<' refere diaülimdos an·ntos compreendidos corr<'tamente consla no final da citada
a urna filosofia que transforma o mundo revolucionariament<'. Sim, também lntroduuio (MEGA I, 1/1, p. 621) e tem, como S<' sabe, o seguinte teor: "A
na "filosofia anterior", tão fundamentalmente distinta da dos <·pígonos de filosofia não pode realizar-se sem a supressão do proletariado, o proletariado
Hegel, há, não obstante toda a contemplação, tanto "estudo do mundo não pode suprimir-se sem a realização da filosofia". E a supressão do
,·cal" que a filosofia alemã clássica figura, de forma não totalmente inapta, proletariado, sendo este concebido não apenas como classe, mas igualmente,
entre "as três fontes e os três componentes do marxismo". O singelamente conforme ensina Marx, como o sintoma mais agudo da auto-alienação
novo na filosofia marxista consiste na alteração radical de seu fundamento, humana, sem dúvida é um ato de longo prazo: a supressão lota] de&se
na sua tar·efa prolet:áiio-revolucionária; mas o absolutamente novo não gênero coincide com o último ato do comunismo. No sentido expresso por
consiste cm que a única filosofia destinada a e capaz de mudar concrclamente Marx nos Manuscritos econômicofilosóficos, de uma perspectiva entendida
o mundo não seria mais uma filosofia. Justamente o fato de sê-lo como como ésdwton extremo em termos filosóficos: "Apenas neste ponto a sua
nunca leva ao triunfo do conhecinwnlo na segunda parte da sentença da (do homem) existência natural tornou-se para ele a sua existência humana
tese 11, que se refere à transfonnaçâo do inundo; o nrnrxis1no nem seria e a natureza tornou-se para ele uni ho1ne1n. A sociedade é, portanto, a
mna transfonnação no sentido verdadeiro se não fosse, antes dela e nela, unidade essencial plenificada do homem com a natlu-eza, a verdadeira
Llm prius teórico-prático da verdadeira jil<mfia, da filosofia que, com bastante ressurreição da natureza, o naturalismo efetivado do homem e o
fôlego e com um legado cultural pleno, é entendida no espectro ultravioleta, humanismo efetivado da natureza" ( MECA I, 3, p. 116). Aqui resplandece
,ignificando: nas propriedades da realidade portadoras de futuro. Pode- a perspectiva última da transformação do mundo, que Marx procurou
,e, na verdade, proceder às mais variadas transformações, no sentido fommlar. Seu pensamento (a ciência-consciência de qualquer práxis, em
que se reflete o tof'um ainda distante), sem dúvida, requer 1;11110 de novidade- /111'.1enle nele, que é o horizonte do futuro, e que clà ao fluxo do p1 csl' 111 e
da filosofia quanto de ressurreição da natureza ele produz. o seu espaço específico, o espaço de um presente novo, 1nelhorck ma 11cj.11.
Portanto, a incipiente filosofia da revolução, isto é, a modificabilicbdl' 1H >
O ponto arquimédico: associar o saber não só corn o passado, sentido do bem, foi inaugurnda em última instância no lwrizonte do/íi/11111
m.~ essencialmente ta111,bém com o que e,1tâ por vir ,, dentro dele, tendo ciência do novo e força para o seu direcioname1110.
É a primeira vez que o espírito tornou-se tão poderoso; finalmente Até o momento todo o saber referia-se essencialmente ao que passou.
ele tornou-se perito nisso. E justamente por ter renunciado à sua essência pois apenas este é contemplável. Assim, o novo ficou de fora da s11;1
anterior, muitas vezes falsamente sublime, por ter se tornado uma canção compreensão, o presente, onde o devir do novo tem a sua linha de fr<·111c·,
verdadeiramente política, por ter, ele mesmo, finalmente se retirado do constituiu um embar:-l(;o. O pensamento na fonna da mercadoria intensifin 111
contemplado e passado nuno ao p.-csente. Adernais a um presente de então ele modo éspeeial esse sentimento ele impotência herdado de tempos antigos;
que não permitiu que o espírito fosse éter, mas que necessitava dele como pois o fato ele todos os homC'ns e todas as coisas se tornarem mercadoria mfo
podei· mat<·rial. Uma vez mais, foi importante o monwnto em que, lhes propon:iona apenas aliemH.:ão, mas deixa claro que a forma d<'
juntamente com os demais csnitos do primeiro período, larnbém as Onze pensaincnto "rnen-adoria" é, da própria, a Jórma de pensamento "o qu<'
teses fóram colocadas sob essa luz intensa. Marx escreveu o seguinle sobre ganhou existência [ GewordPnheitl ", ''.fáctwn". Em vista desse factu:rn, esquec<'-
isso 110 Manifesto rnmunista, ele 1848, ou seja, pouco tempo <l<'pois: "Os se com bastante facilicladC' o fini <', da mesma forma, em vista elo produto
comunistas voltam a sua aten~·ão principalmente para a Alemanha, porque reifieaclo, esqu<·n·-sc o prnduccnl<', em vista do aparente .fixwm às costas dos
a Alemanha encontrn-sc na véspera de uma revolução burguesa, e, por homens, o <JU<' cst,í cm abcrlo diante cldcs. Mas a falsa c·orrclação entn-
estar n·alizando essa transformação sob as condições avan<:adas da saber e passado é muito mais antiga, sim, a sua rnigcm c·st;íjuslamcnte onde·
civilização européia cm geral e com um proletariado muito mais o processo laboral nem mesmo estava refletido no co11hecimcnto, de tal
desenvolvido do que a I nglaterrn no século XVII e a Fran<:a no século rnodo que o saber não era apenas, como Jói mostrndo ,u-ima, pura visão,
XVIII, a rcvohl(}io akmã só pode ser o prelúdio imediato de uma revolução mas o obj<'lo I Gt~e;r,n.1fondj elo saber tinha de ser· simplesmeut<' o_j;í-formado,
proletária". Daí vem, portanto, o estímulo específico, não sentido por a entidade I W<:senlteitj tinha de s<•r· simplesmente a enticlad<' pn·térit.a [ Ge-
Feucrbad1, que levou a nova filosofia de imediato, in statu na.,cendi, às we.wm.heill. 1:: aí que a anâmnesi.s platônica tem o seu lugar: "Pois cm verdade",
barricadas . .J:-í na tese 1 havia sido descoberto o ponto arquimédico, com diz Sónat<'s no diálogo Ménon (81B - 82A), apontando para a visão
apoio do <ptal o antigo mundo seria alçado das dobradiças e o novo mundo pn·cisatnenle 110 passado remoto da alma, "buscar e aprender são elo começo
<·olo<·ado nelas, o ponto arquimédico no "fundamento secular" de hoje: ao fim apenas rememoração". É o fascínio desse antiquário conlcmplativo
"Este mesmo precisa, pois, primeiro ser compreendido na sua contradição que- não obstante todas as modificações soc-iais do conceito do conhecimento
e em seguida revolucionado na prática pela eliminação da contradição". - prendeu a filosofia até Marx não sô à co111emplação, mas justamente
Então, o que definitivamente foi que o ponto de partida das Onze le.,es, ou também à mera relação, inscrita em toda a co111emplação, wm o que ganhou
sc:ja, a incipiente filosofia da revolução descobriu? Não se trata nnirnnwnte da existh11:ia. Mesmo para Aristóteles, que pensava cm tc-nnos de
nova incrnnbência do proletariado, por mais decisivamente que ele tenha se descnvolvi1nento, a essência cio ,õ ,l fÍV eivcn, o "ser o que era", era a
afastado da contemplação, que não tenha se permitido aceitar ou até ctenüzar dclenninabilidade concluída, o que está gravado de fonna estatutária. Até
as coisas como estão. Tampouco trata-se apenas do legado crítico-criativo para Hegel, o grande pensador dialético do proc·esso, o acontecimento está
recebido da filosofia alemã, da economia política inglesa, do socialismo totalmente curvado sobasuahistóriaconcluída, e o cnlc [ vvben] é a realidade
francês, por mais necessários que esses três fermentos, p1incipalrnente a dada, na qual ele "é idêntico à sua manifestação". Não por último, em
dialética de Hegel e o materialismo renovado de Feuerbad1, tenham sido :Fcuerbac:h o próprio Marx percebe a barreira: "Todo o processo dedutivo
para a formação do marxismo. O que kvou definitivamente ao ponto de Fcue1hach referente à relação dos homens entre si tem por finalidade
arquimédico e assim à teoria-práxis não apareceu até o momento em única provar que os homens têm necessidade uns dos outt·os e sempre
nenhuma filosofia, sim, dificilmente tcr:-í sido refletido em sua totalidade tiveram. Ele quer estabelecer a consciência acerc:a desse fato; ele quer,
por Marx e com base nele. O MariifeJlo comunista diz: "Na sociedade portanto, assim como os demais teóricos, apenas produzir mna consciência
burguesa, o passado governa o presente, na sociedade comunista, o presente correta sobre urn factwn existente, ao passo que, para o comunista autêntico,
governa o passado". E o presente governa juntamente corn o horizonte o que importa é revolucionar o existente" (Ideologia alemã, MECA I, 5, p.
31 ). O único efeito de tudo isso foi que o espírito da anú11111ni\ h11sco11 :i 'ª'"'' .q>1<Tndc o para-quê de seu s:1h<'r cu1110 t:il: 101110 a 11ov:i
lf'l11l,;11, /li

força do seu conhecimento justamente onde meno!> havia pre.\e-nll' 011 ai,· e 011sln11;,iom<"<liada do mundo. O nrnrxismo, como ciência lcndcndal
futuro sobre os quais decidir. Portanto, ao passo que a mera correspondi'-11<'i.1 11i~t<Írico-dialética, é, assim, a âêriâa do futuro mediada da realidade mr.tis 11
"saber-passado" encontra-se numa relação praticamente só politiqueira 1·<>111 /w.\úbili.dade rml-objetiva que e.~tá contida nela; tudo isto tendo corno
questões do presente ou ;;ité com problemas de decisão acerca do futnro 011 111opósito a ação. A diferença em relação à anámneÚ.!> do existente,juntamente
numa relação detenninada pelo ponto de vista míope da classe burguc-sa, , om todas as suas variações, não poderia ser mais elucidativa; ela é válida
ela por assim dizer sente-se em casa (todavia sem que cesse o eten10 ponto 1:111to para o esclarecedor método marxista como para a matétia inacabad;;i
de vista classista) só quando chega ao m:ôndito do pretérito. E ela sente-si' cptc por ele é aclarada. SomPnle o horizonte do futuro, da maneira como o
tanto mais em casa quanto mais rernotos no tempo c-stivcrem os objetos, 011 11uu-xü1110 o obthn, tendo w1110 átrio o j}{lssado, confere à realidade a sua
stja, quanto mais adc<ptado a uma contcmpla<;ão tr;;inqüila parecer o seu ,I i men!> ão real.
isolamento. Sendo assim, na rda<:ão "saber-passado", as nuzadas permitem, Iuesquccívd <\ neste· ponto, também a nova localização do próprio
por assim dizn, mais "ciC'ntificidadc" do que as duas últimas gm·n-as mundiais; ponto arquimédico, a partir elo qual se alça sobre as dobradiças. Ele
o Egito, por sua vez, ainda mais remoto, mais elo que a Idade Média. Até o l:unpouco se situa lá. longe parn tnb, no que passou, no que foi descartado,
aparente finito total da natureza física apn·scnta-se 011 apn·sentava-se como 110 nível baixo a que a análise frita pdo materialismo anteiior, meramente
uma (·spécie ck sup1-a-Egito ou potê:ncia cio Egito, totalmente remoto, na contemplativo, havia n-duzido o murnlo. Na seqüência, precisamente
granítirn existi-m·ia dada de uma matéria que, não snnj{1bilo metodológico, 11uando o seu papd clesencantadot-j,i h;'í muito havia cessado, isso teve um
era d1amacla de morta. Porém, como trnlo isso é dikrenh' uo marxismo! efeito incontidamenl<' retn>grado; de dissolveu os knômenos históricos
Como se tornou grande a sua fon:a justamente em rehu;ão ao presente! 1·m biológicos e estes em ffsico-<ptímicos, descendo até a "base" atômica de
Corno se comprova ;1 sua nova ciência, sua ri17nâa do (l(:or,tn:imento e da t ndo e de cada coisa. lk tal modo que inclusive de knt►mcnos extremamente
tnw..1/án11açúo wnlíriu.0.1, j11stamc111e na linha de li·cnt<' cios acontecirnentos, <'arregados de sentido, como, por t·xemplo, a batalha ele- Maratona, restaram
na atualid;;ick da n-spc<·tiva decisão, 110 domínio da tcnclê-11cia rumo ao futuro. ;1penas <·ontnu;Ôt's m11s1·11larcs, 011 sc:ja, os gregos e os 1w1·sas,juntamente
Em termos man<:istas, nem nH·smo o passado é cscalo11ado cm graus de com todo o con1<·1ído social dessa batalha, desapareceram dentro de
c-rcsn'Bte autigiiidadc, pois a história, s<·ndo da protocomunista b<·m como contrnç<><'S musnllan·s totalmente sub-hist6ricas. Estas, entào, desligaram-
urna histó1ia de luta de classes, não lrnnsfonna 1wrn a sua etapa mais remota
'-<' cfa Jisiologia e dissolveram-se em processos químico-<>rg;'.inicos, e a química
num musc·u; mnito m<'nos transforma a etapa mais recente, corno na
01·gânica, por sua vez, por si só c01nun1 a todos os seres vivos, aterrissou
c:onl'ernpb<:ão lmrg11es<1, mm1a ditu.:ão isenta de cii'-ncia. 1~ por isso que
enfim na da1H;·a dos ,Ílomos,justamente a "base" mais clcrnent,H' de tudo e
pal'Cdas tão grandes da entdi<:ão lm1·guesa, sem qualquer rdaçiio c·omTeta de
de cada coisa. Com isso, todavia, não só desapareceu nm1pktamente a
saber nnn o presente, ficaram sem salwn·orno agir quando esl<' os confrontava,
batalha de Maratona, esta que se queria explicar, mas todo o mundo
rcqll(:rcndo uma decis,'io, ou, 110s lÍltimos i-empos, venderam-se ao
construído mostrou-se submerso 110 genérico de uma mccánica total-·
ant.ibokhcvismo com uma escandalosa falta de c·onhedmcnto e de sabedoria, e
perdendo-se todos os fenômenos e suas difen-rn;as. O materialismo
adma dt· qualquer int<Tesst· de classe. Mesmo os pioneiros científicos da
111ecaukis1a vislumbrou nessa decomposiçiio pela atomística, e em nada
sociedade burguesa, que não se comparam com os grandes e puros ideólogos
;1lérn disso, o cerne da questão; na verdade, foi aí <{lH' pela primeira vez
dos séculos XVII e XVIII, <pu· <'Olll <'nteza estavam atentos à relaç·ão com o
realmente caiu aquela noite, da qual Hegel falou certa vez: a noite em que
prest·nte e o futuro, <kfrontavam-se com o emergente de sua própria classe
revolurionária sempre com ilusôcs ou ideaismir,1bolantes e sem con<Teticidade; todas as vacas são pretas. Faltou aquilo que Dcmónito, o p1imeiru grande
isto foi assim não só por causa da respectiva barreira de classe, mas igualmente materialista, chamou de ôuxo0(eiv ,a <paivaµeva, resgatar os fenômenos,
por causa da ban-eira diante do futuro, que até Marx estava dada ele ponta a e exigiu metodologicamente. Neste ponto, Fcuerbach, com o seu

ponta pela barrt·ira de classe. Quanto mais o tempo passa, tanto mais tudo isso materialismo não fisicista, e sim "antropológico", de fato prestou ao jov<"lll
se une exatamente com a anâ:mnesis ou a ban-eira estátic()-{:ontemplativa do Marx um grande serviço, que foi devidamente reconhecido no tom das
saber erguida contra o realmente iminente, o emer·gente. E da mesma forma Onze teses como um todo. É verdade que, no que concerne à história do
está completamente decidido que, onde a relação "saher-passado"vê no presente dcsenvolviinento, os átornos e assirn a biologia como urn todo estão na
apenas um embaraço e no futuro, palha, vento, amorfismo, ali a relação l>ase de toda construção subseqüente; 110 entanto, para o marxismo, o
"starting poiut", como o denominou Engels mais tarde na Dialétim tia
natureza, ou seja, o ponto arquimé<lico (para a hisl<Íria) <: o ho111<·111 :!O. Síntese: a constituição ant.ecipatúria e seus p<>los: o inslanh• ohsc-tll'o,
trabalhador. As maneiras sociais de satisfação das suas necessidades, o adequação em aberto
"conjunto das relações sociais", que ocupou o lugar da abstração "s<'1
humano" de Feuerbach, o processo de troca social com a própria natureza: Mas quem é que, dentro de nós, nos impulsiona? Alguún q1w 11.1,,
tudo isso foi reconhecido então como a única base relevante e real, no <trn· ,,s1á consciente de si mesmo, que ainda não se mostra. E não h;í mais o <pw
se refere ao 1·eino da histó1ia e da cultura. Tratava-se igualmente de uma dizer agora; o interior donne. O sangue circula, o coração bale·, s<·111 q1w
base mateiial, só que de uma base mate1ial de contmnos bem mais nítidos ',(' sinta o que é que põe o pulso em movi1nento. Sim, não oc·o11 nu lo
do que a dos processos atômicos indistintos; entretanto, justamente por <jlialquer distúrbio, nada do que se passa sob nossa pele é pcn-q>lfwl. ()
apresentar contornos hem mais nítidos, sendo historicam('ntc caracterizada, (111e nos tonia c·stinrnlantcs não estimula a si mesmo. A vida saudáv<'I cl<11111<·,
da não obscureceu os fenômenos e caracteres hist61·icos. Ao contrário, como que urdindo dentro de si mesma. Ela está totalmente i11u·1 s;, 11,,
pela ptimeira vez, ela lançou luz, urna luz g-cnuína, onde, ao 1n<'Sn10 tempo, 1·aldo em que c·slá c·ozinhando.
localizava-se o ponto arquimédico, que se chama: rela~·ão dos homens com
homens e com a natureza. E justamente porque o materialismo histórico, O pulso I' a obscwidade vivida
difrrcntcmente do materialismo unilateral da ciê:ncia natural, não era .Justamente por isso niío é possível sc·ntirq11c se vive. Exatamenl<' <·ss<·
coutcrnplat.ivo, ele descobriu 110 local específico de seu ponto arquimédico pulso irneclialo palpita só. Atos como a cxccuc;ão do querer, do imagiua1 ,.
não só a chave da teor-ia, mas também a alavanca da pn'íxis. O mancismo, assim porcliant<· não cl<'ixarn a obscuridade imccliata de seu acontecinu:1111,.
p01"l"auto, seda o último a destruir essa alavannl e, nnresponckntcmente, Porém, ('Ili última a1üílisc, o mais obscuro é o próprio agora em que 11<Ís.
tampouco a nova org-anização mais elevada da matéria viva, alavancada corno vivc11ciaclon·s, e11·1 cada n1omcnto nos <'ll<:ontrarnos. O agora é- o
por ela. Assim, uma vez mais a tese 10: "O ponto de vista do antigo lugar em que o l'oco imediato ela vivf·1Kia I HrldJenl <·orno tal está, ond<· d<·
materialismo f a sociedade 'burgue,lll'; o ponto <k vista do novo est,Í <'m q1wstão; assim, o que se· a<·ahou de viver é o qu<' se encontra mais
mal<'rialismo, a sod<'dadc humana on a hmnanicladc socializada". E esse imediato, p01·tanto, o que ainda é m<·nos vivcndávcl. Som<'nte quando o
tipo de transforma~'ão do mundo ocorre de modo apropd;1do unicamente agora r<'cém-passou ou quando e enquanto ck [- ag11anlaclo é que ele não
num rnmulo da nmersibilidade qualitali11a, da 11/fHÍ~/icabilidwfr m,i.\llW, e só é vivido Ige-ll'/Jtj, mas também vivenciado [ er lebtl. Por existir de modo
0

não no da rqwtição mecânica, da pura quantidad<', elo dehalck histórico. imedia lo, sillta-se na obscmidade do instante. Somente o que está emergindo
Tampouco existe um mundo passível de transfonna<;ào sc·m a apn'cnsão ou o que recém-passou possui a distância que o raio ele luz da tomada ck
do horizonte da possibilidade real-ol~jetiva cpw h;í nde; n:'.ío sendo assim, consciência necessita para brilhar. O quê e agora, o instante em que nos
até a sua dialética ficaria marcando passo. Sim, um poclc-r niativo bem enco11t1·amos revolve-se em si mes1110 e não é capaz de sentir-s<'.
maior deu-se a conhecer na dialética universal elo maixismo e chega ,t ciência. Correspondentemente, portanto, o respectivo conteúdo do recém-vivido
Em Marx lonwu-sc acontecimento a esperança que I Ienlcr tentou prudamar n,10 é percebido.
em forma de hino no (',ênio do Júlum: "( ... ) pois o que é saber da vida! e tu,
/ presente dos deuses, visão profftic'a!, e da ptmi4,.:ão / a voz erKanlacla a O lugar para um pos!>ivel avanço
entoar seu hino!", - exatamente a e.1jJerança do saber da vida, para que Porém, o que impulsa no agora se precipita, ao mesmo tempo,
realmente fosse um saber. O acontecimento não está encerrado, pois ele constantemente para diante. Por essa razão, ele nunca fic:a urdindo dentro
próprio é um constante para diante no mundo que implica sorte passívd de de si mesmo, pois o quê da vida é ávido. Por mais que o seu interior ainda
mudança. Assim, a lolalicladc das Onze tese!> anuncia: a humanidade não tenha se exteriorizado, ele se extcrio1iza neste fato: ck não possui o
socializada, aliada a uma natureza mediada por ela, significa a reconstn1ção qne é seu, antes o procura e o imagina do lado de fora, portanto, ele tem
do mundo como pátiia ou lar. 36 fome. E o exterior, que o subjetivo procura agarrar, ao menos tem de
estar postado de tal maneira que s<:ja possível tentar agarr.i-lo. Se o urgir
aquilo que lhe falta não fosse senão um muro estreito, stúocante, em~jecido,
·,, /1. 11·;ulutora para o francês dispõe de uma precisào do texto que nào consta no original
então nem mesmo haveria qualquer urgir. Mas assim ainda lhe 1·esta algo
:dcni;Ío, mas que teria sido des<:jada pelo autor: "é a humanidade socializada, aliada a uma
11:11111<·1.,1 mediada por ela, que permite a transformação do mundo, visando fazer dele um em aberto; o seu urgir, desejar, fazer têm espaço. O que não é ainda pode
l.11, isfo <', o lugar da identidade consigo mesmo e com as coisas". vir a ser; o que é realizado pressupõe coisas possíveis na sua matéria. Há,
no hon1em, esse elemento aberto, e ele é habitado por ~011ltos, planos.<) .11lnp1ada de outro dcsignarn nascente e iúz do que <·st,í c11w1gi11d11: <'l:t.,
ele1nento aberto existe igualmente nas coisas, na sua extrenlidadc 111.iis ,,10 os pólos da consciência antecipatória, bem como do q1w 111('

avançada, onde o devir ainda é possível. E o urgir não tem apenas s<·11 ( oi-responde em termos de o~jeto. A foz, todavia, designa um momento d('
escape ou seu espaço aberto, onde ainda se pode andar, escolher, separar, estado final, que significa mais do que abertura adequada, antes: mo111<·11lo
encetar canünhos, construir caminhos, mas, aléin do caminho, há no 1u> qual esta se dá como adequaçâo aberta. Igualmente foi distinguida ;1

objetivamente possível um elemento que possivelmente corresponda a nós, invariabilidade, a única válida, do qne sempre se teve em mente ou do
no qual o urgir não prossiga infinitamente insaciado. O próprio final utópico qn<' está nessa tc·n<lência (cf. p. 218); trata-se do ,u,11111
correspondente c·omo tal não está determinado e garantido; ele não {: 11ec:e!;sarium na tendência, o elemento do estado final utópico implantad<1
acolhedor, ou até libertador, mas est,í cônscio de seu possível e assim, ao de modo idh1tico em toda parte.!\ ark<ptação aberta, contudo, nãos<· <Li
menos corno cônscio, é acolhedor. Nas coisas há urna atividade, em que a conhecer nas exp<'riências do processo crmtinuado do rnundo, na li,,
nossos interesses ainda poden1 ser tratados, urna linha de frente, em que experimentada, mas na cxpcrif-ncia breve, peculiar de um deln 11·
nosso futuro,justamente este, pode ser decidido. Esse aspecto transformável antecipatôrio. Nesse deter-se foram cxpetimcntadas as intençõe!> sim.bólirn.\
de modo algum é óbvio: poderia muito hem ser assim que nada mais sempre minguadas de um em-alw1lu.lo, de modo subjetivo num primeiro
houvesse de novo sob o sol. Mas assim ainda h.-í, no fluxo das coisas, ou mo1nento, siin, aparentemente lírico, mas ainda assim filosoficamente be111
seja, dos acontecimentos, perfeitamente um ainda e um ainda-não, o que fundado na própria n111sa, ou s<:ja, 110 relarnpc:jar do estado final utópico.
significa o mesmo que futuro autêntico, ou sc:ja, um futuro que consiste no Essas expc1iê·ncias de um estado final utópico n·rtamcnte não tornam esse
que nunca havia sido daquele modo. l~pocas .~·m que nada acontece estado lixo, senão não se trataria de experiências de mera intençâo simbólir11
praticamente pcnlcnun o seuso para o novwn; das vivem no hábito e o nem <k t·x1wriê·n<·ias utópicas, ou até centralmente utópicas. Elas, porém,
vindouro não é um vindouro, mas est,Í demarcado como o de ontem. atingem de foto o 1:erne da latência, mais precisamente como pergunta última
Entretanto, épocas como a atual, ua qual está na bahut(a a história talvez qne rq><Tn1tc dentro de si mesma. Essa pergunta não pode sc·1· formulada
de séculos, thn o seuso para o novum extremanwntc desenvolvido; elas em vista <k nenhuma resposta já existente, não pode ser remontada a
sentem o que é futuro, prendendo a rcspira<;ão, promovendo com seu nenhum material já ajustado no mundo existente. Exemplos disso são
trabalho o que está emergindo, o possível a emergir. Tais épocas são o menc·iomulos no livro Spuren [ Vestígifü], onde "a admira<;ão inquiridora,
lugar para experimentar de modo especial o correlato do possível, passando sem lim" {- explicada a partir de uma passagem ck l lams1111 (Ernst Bloch,
por cima do que veio ser e foi despedaçado. O agora da atividade propulsora Spuren, 19:lO, pp. 274 e ss.), mas especialmente no (;ei.1t der Utof;i.e [Espirito
só tem lugar em meio a coisas inconclusas, para tornar realidade, para da u.lof;ial, onde essa intenção simbólica definitiva foi rnractcrizada pela
tornar os seus conteúdos gradativamente nianifestos. p1irncira vez como "forma da pergunta informul.ivd", o qu<' significa, como
forma das perguntas que não podem scT V<'rgadas, não podem ser
Na.1cenle e foz: a adm.i.raçào como questào abwluta fonnnladas na direção de nenhuma das solu~·úcs já cxistcnl<·s: "Uma gota
Se fór realizada corretamente, a vida chega aonde nunca esteve, a cai e c·st,i aí; uma cabana, a criança chora, uma nmlhcr idosa na cabana, lá
saber, à sua casa. No entanto, nessa possível realização de um ainda possível, fora o vento, o campo, anoitecer de outono, e <'Sl,i tudo aí outra vez,
dois rn01nentos perfazem, em última análise, nascente e foz. A nascente é exatamente igual, a mesma coisa; ou lemos que Dimilri Kar.:unasov no sonho
caracterizada pela obscuridade do agora, na qual origina-se o realizar; a se admirava de o agricultor sempre dizer 'niancinha', e intuímos que aí se
foz, pelo caráter aberto do pano de fundo objetal, para onde a esperança poderia encontrá-la; 'o rato que faça o pandho que quirscr'! Sim, se uma
n1ma. Reconheceu-se o seguinte: no próprio realizar há algo imaturo e migalha ele tivesse!', e sentimos neste verso pequeno, impróprio, esquisito de
ainda não realizado, razão pela qual ele fraqm:ja (cf. p. 189); esse elemento Hochzeitsli.ed [Hino nupcia[J, de Goethe, sentimos qne aqui, nessa direção,
não amadurecido dá-se a conhecer na obscuridade do instante vivido. situa-se o indizível, aquilo que o rapaz largou no chão quando saiu novamente
Reconheceu-se adernais que, no pano de fundo objetal ou correlato, há da montanha; 'não esquece o melhor!', havia-lhe dito o velho, mas ninguém
abertura, ainda há o possível real a decidir, há utopia como determinação jamais havia conseguido descob1·ir no conceito esse inaparente,
da linha de frente do próprio objeto ( cf. p. 202); esse passível de profundamente oculto, extraordinário" (Ernst Bloch, Geist der Utopie, 1918,
a111adurccirnento dá-se a conhecer como tendência que ainda persiste, como p. 364). Vemos por aí que se trata de ocasiões e conteúdos impróp1ios, para os
Lt1i·11cia ainda emergente. Logo, o instante obscuro de um lado, a abertura quais o siyeito ocasionahnente tende, mas é neles, nas ocasiões e conteúdos
diferentes para cada homem, ainda que sempre de sig11iliculo idc'.':111ico, 11111a fin:;io fah1frada. Contudo, 110 c,~o .-111 •111c·•,L10, Ioda <'ss;1 1H'g,11 ·'"
que se anuncia o teor da mais profunda admiração, f"lltre sttjcito e objeto, vilalisla do instante se mostra totalmente i11co111p('l<'11l<', pois o pulso po11111.il
identificando ambos num instante em comoção penetrante. Assim, a de fato faz parte da vida, não é uma abstração dela. Abst1;1L1, <·111
pergunta que não pode ser reformulada, a pergunta absoluta de fato con-e contraposição, é a correnteza dos próprios vitalistas da consciê:ncia, 1>e,,~
novamente nnno ao instante, para dentro de sua obscuridade. Não como L1lta-lhe justamente o pulso lat<=:jante, esse elemento da corrente da vid.1
clareira, e sim como indicação inconfundívd da escuridão imediata do <1ue a distingue de um empurra-empurra ininterrupto e sem ondas. A lig111.1
agora, na medida em que a latfncia central do seu conteúdo ao menos se da con-enteza da consciência evidencia sua própria abstração no folo ck
retrata nesse perguntar admirativo, nesse admirar-se interrogativo. Se o não mais conter quase nada de mna VC'nladeira correnteza, sendo, .10
conteúdo do que se move no agora, do que foi tocado no aqui, se exten1asse contrário, estacionária cm si mesma. A correnteza da consciência do~
positivamente, se fosse um "Demora eterna1nente! és tão lindo!", então a vitalistas tem tão pouco de uma correnteza real que nem aparenta lc-1
esperança imaginada, o mundo esperando teria chegado ao seu alvo. nascente e foz, <' sobn·tudo nada tem em comum com o único co11<·t·ilo
concreto da correnteza, o do processo, que, corno tal, con1pút·--s('
Uma vez rnai:; a obscuridade do instante ,,ivido, caq><' diem decididamente de inlerrup<,·ôes, a saber, de momentos dialéticos do conl<'xlc •
Foi dito que o que nos torna estimulantes mi.o estimula a si mesmo. dialético. Tão certo como o processo não é "composto" por eles, co11fon11c·
Dorme c:alidan1ente e, ao mesmo lcmpo, no ohsn1n:cido; é o ültimo a uma co11n·pç,'io da pn>pria m<·c·,111idsta-n·ificada, de deve-lhes, no e11t,11110,
despertar-se pela sensação. Também a scnsa<;:ão de estímulos interiores<' o seu caráter desnmtinuado, precisamente o "pulso da vitalidade", co1110
cxterion·s participa da obsnuidaclc destes no ponto cm que eles m<Tgulharn diz I kgd. Nesl<' ponlo,Janws e também lkrgson (iraram aquém não apt·11.1.~
no agora. A'ísim como o olho não vê- no ponto cego, no local cm que o de Ikgd, mas mesmo ele lh1111<.·, <pie, 11é"ío sendo dialético, enco11lr:1-.~<·
nervo ó1fro peneira na retina, tampouco qualquer dos sentidos é capaz de muito mais próximo deles. A doutrina humiana cios "indivisible mo111<·111~
perceber o n·c·ém-viV<'ll<'.Íado. Em vista disso ludo, esse ponto cego na alma, of linw anel co11scio11sness" é signilicativament<' mais c·oncreta do q11<' ;1
essa obscuridade do instante vivido deve ser diligentemente dil<Tcnciado m<'ra vis,io ele s11pcdfrie chamada coITcntcza da consciência, com s,u
da ohsnll"idack ck processos csqucddos ou passados. O que passou vai ahstra~·,io sem pulsaç,io, que é o 1cs11l1aclo de sua rcifint(,'ão. Até em I l11ss<·1 I
sendo gradalivarnentc <·11<·ohcrto pela noite, mas isto é remediável, a s<.· poderia finu- sah<'11do o certo, ao menos no que se refere ao tempoi :d
memória auxilia, fonl es e achados podem ser desenterrados, sim, o passado 110 l>l'<'lcnso "contí11110 do ato": "Enquanto um movimento é perc<'hido,
histórico cst;Í ;-1 disposic.;ão juslamcnle da consciência contempladora de ocorn· <k mom<'uto <'Ili momenlo um c·aptar-como-agora; nisso se cousl il 11i
modo esp<·<·ialmeul<' ol~jclivávd, ainda que com lacunas. A ohsnnidack a !;1sc- aluai do próprio movinH·nto". E adiant<·: "O Huir não é ape11as 11111
do instante recém-vivido, em contrapartida, permanece no seu qua1·10 de Ihiir cm geral, mas nula fase tem uma e a nwsma fonna. ( ... ) A for 111;1
clonnir; uma co11sciê-11cia atual existe justamente s6 em relação a urna consiste <'Ili que um agora se nrnstil11i através de uma in1pressão, e- qut' ;i
vivê·1wia recém-passada ou em função de uma vivência esperada que se esta se associa uma n111da de rctcnsôes e 11m horizonte de protensõcs" (Z111
aproxima e de seu nrnteúdo. O instante vivido como tal juntamente com PhiinomfmologiP- des innnn1 Zeilbn11uj3l.11'tns, 1928, pp. 391, 476). Nc11li11111
seu contctído pennanecc essencialmente invisível, e tanto ruais seguranwnte Jl11xo pode jamais ser concebido, ou até entendido dialeticamenl<' s<·111
quanto mais enérgi<-a for a atenção voltada para ele: junto a essa raiz, no acp1cle agora em meio ao seu tempo, que nem mesmo é tempo ele pníprio,
em-si vivido, na imediatez pontual o nmndo inteiro ainda é escuro. Na mas "o algo singular", conforme a expressão de Platão, do qual bruta o
imediatez pontual: todo vivenciar de fato ocorre de forma pontual e tc1npo (não só a concepção de tempo) da correnteza do movimento real<· 11<•
atomizada, logo, em instantes e como tai,,? Isto é negado por psic·ólogos qual estão unificados o movimento e o repouso inquieto. Platão, que saht'
vitalistas, que deixam o psíquico fluir sem pulsação. A'lsirn, James, não mais a respeito do contínuo descontínuo do que James e Bergson,justa111<·111<·
obstante admitira existência de "transitive paris ofthe consciousness", encara por isso confere ao instante (-ro É:çaÍq>VT)Ç, o repentino) um destaque d<.·,·i, li< lc >.
a vida psíquica como uma correnteza. Parn os vitalistas em geral e para Ele figma aí como mornentwnde transição entre movimento e repouso, rq 1011.~c,
Bergson em particular, a divisão é considnada algo artificial, uma abstração e 1novimento: "Pois enquanto está em repouso, nada passa do repouso ao
ideal-científica, pretensamente fahrkada conforme um molde matemático; movimento, nem do movimento ao repouso enquanto ainda se movim<.·111.1;
de acordo com isso, nem mesmo o instante seria um estar-aí imediato ruas o instante, esse algo singular, situa-se entre o movimento e o rq,011so,
[ unrnittelbares Sichbefinden], ao mesmo tempo decorrente e discreto, mas não pertencendo a nenhum tempo; e é nele, a partir dele que o q11<· (oi
rnovido passa para o repouso e o que repousa para o 111ovi11H'11to" ,·111 11114a clia1tl<' do pr('sC'ute do que aquele ca1/it' dii,111 hahit11aL q111· p.11 n ('
(Parmênides, 156 D-E). E, por fim - dizendo respeito ao 11uxo como 11111 , ll's;tnanchar-se totalrnente no desfrute do agora; nada ten1 n1euos clo111i'1110
fluxo rumo à foz (repouso)-, tanto o tom do plano de Fausto como o da do ser, nada possui mais banalidade ante rem. O colher do dia, porla11to,
mística, similar a ele, comportam o instante como algo nada abstraio. 11;10 se efetua com tanta rapidez, a não ser que o "Demora etername11ll'!",
"lkmora eternamente! i-s tão lindo!": isto deve poder ser dito ao instanle dito para o instante, s,ja confundido com uma cama de preguiçoso. 1'01
como sendo algo supremo, tarnbi-m àquele que está plenamente 111ais que o deleite intenso tenha sua honra, de apenas aparenta seutir-s('
preenchido, logo, firme e chmível que, na mística d<' Eckchar1 é apontado 1·111 casa na adega de- Auerhach on ati- no prazer filisteu das posses. Aci111;1

como o breve instanle (nuru: ,1/an.1) da perfeição. Desse modo, todas essas (l'L pp. 177 e ss.) já foram lembrados Lcuau e Kierkegaard como 11.10-
ckdara<J>cs, tão variadas entre si, unem-se no n·c-onhecimcnto ele um agora 11wstres do mrj1e die111, não insuspeitos, mas ck n·fkxão muito proveitosa.
ffal; diferentemente da cmTcnteza de abstração dos vitalistas. E permanece, ,\mbos 1<)ram condenados a V<'!' a irnagem das amacias entrar ern conflito
cm última a11álise, o pulso, <1ue proporciona o modelo também ao caráter com elas próprias. Isso pode muitas VCZ<'S S<'l' urna fraqueza vital, contudo
instantâneo i11tcrmitc-ute da couscii'-ncia, ou melhor: isso ocorre como o tema fort<' da l kkna egípcia mostrn que o n1so não se esgota com a
cotn·spoudhH"ia com o corpo. A pa,·tir do batimento do pulso, o instante l'raqucza, nem com a <·xaltai;,"io románti('a, nem rorn algmn tipo de neurose
psíqui<'o {- experimentado 110 late:j;u- do seu agora, no lan(.'ar-sc para diante, utópica. O carj1e di1,m habitual 11;"io consegue ir além do mf'ro
tamhi-m no transitivo de- c-Hia instante. Entretanto, mais do que isso ainda imprcssion;ívcl, da superlfri<· cio mome·nto de prazer e dor, sin1, ele (- ---
11,10 surge dessa imediatcz, inclusive o tornar-se cônscio só se c-stc11clc até o contrariamc11te i\ sua leitura horaciana - o difuso, o impcnnanente, o
ponto cm que o instanlc vivido pode ser expc1imentado e· cksignaclo como próprio sc·m-pres<'nk. Em suma: assim como a curiosidade não é utópica,
cs<'lll'0. Sendo que se a<T<"S<'<'llta aqui o ponto decisivo, cpw ek <pmlquer assirn tarnp<Hl('0 o carjNrlinn, <Jlle lic:aj11st;1111cnte pulando de mn "instante"
modo impeliu o problema, no que i<>i dito atf agora, para alé-m da mera para o outro, cksp<"nliça11clo o dia 110 pn'iprio dia, l<'m domínio do ser.
psie·ologia: a ohscuridack do insta11tc vivido é imagem para a obsn1ridade Um <'olllato mais a111i'-11tico com o mo!ll<'llto oco,n· unicamente err1 vivências
do insta11tc- objetivo, 011 seja, para o não-ter-a-si-mesmo I Sich-nid1.t-Jwben] fortes e c·m pontos de mudança drásticos da cxisti'-11('ia, S<:i,1 dela próp1i.t,
daquele demento temporal intenso, que ainda não se cksdobrou, ele seja cb i-po<·a, na medida em qm· sejam JH"l'<'chidos por um olho
pd1p1io, 110 IC'mpo e no pnHTsso como manifesto en1 tcnnos de nmtc1ído. suficic-ntcment<' atento. Homens de ai;ão e·x11·aordin,írios parecem s<'r
Portanto, n;:io {, o mais dista11tc, mas o rnai~ próximo q111 ainda P..1tá
1 capazes ele- viver um carpe diem autêntico, corno decisão no instante exigido,
comj1leta111.enle ob.\'l'nro e, j11slame·111C' por ser o mais próximo, o mais como frH·ça para não desperdiçar a oport 11niclack oferecida por ek.
ima11cntc-; flf.,1,1e nwis j1uíximo e,1tá o nó do enigma da, exi.1t,Jncia. A vida Momrnscn exemplifica essa força em César·, cknomi11a-a de "sobriedadl'
do agora, a mais pmpriamcntc intensiva, ainda não foi colocada frente a· genial"<' continua significativamente: "É a ela <pw de deve a potencialidacl<-
frcnt<· consigo JIH'Sma, como visualizada, como aberta para si mesma; assim, dc viver Cll<"l'gicamente o instante, sem se deixar p<'rlurhar por lembran<;a
da {, a qne menos representa um ser-aí [Da-~einJ, ou até um seT-ma11ifcsto e expectativa; deve a ela a capacidade de agir em cada instante com fon_'a
1Offenbar-S1 in 1. O agorn do existere, que a tudo impulsiona e· no qual
1
co11ce11trada". Mas, será que César, que a maioria elos alores da sociedad<"
tudo voga, é a coisa mais inexperimentada que existe; ele ainda voga de classes, o que quer dizer neste ponto: da hislória nií.o di11i.1ada, captaram
co11slanleme11te sob o mundo. Do que está se realizando de{, o que menos o instanlC' em que agiram também quanto ao seu co11te1íclo histórico? Eslc
se realizou - uma obscuridade ativa do instante quanto a si próprio. caso {- tão raro que o único exemplo que se oferece {, praticamente só o d<"
Daí surge o aspecto curioso de que nenhum homem já está aí, vive, Goethe, de alguém, adf'mais, que não era um homem de ação, mas <jll<'
ck fato. Pois viver significa de fato estar-presente; não quer dizc-r apenas tinha uma visão concreta sem igual. Assim, .1qui é o lugar da frase de Goethe
antes ou depois, antegosto ou "pós-gosto". Significa collwro dia, no sentido no dia da canhonada de Valmy: "A partir daqui e de h(~jc inicia-se urna
mais simples e mais fundamental; significa assmnir uma alitudc con<Tcta nova i-poca da história mundial, e vós pod<'is dizcTcpw estivestes presentes";
em relação ao agora. Porém, pelo falo de nosso eslar-prcsentc mais contudo, não há muitas presentifirn(Ões desse tipo. Não muitas percep~/H'S
próximo, mais próprio, incessan1e:-, não ser tal coisa, nenhum homem vive de um instante que de resto passou despercebido - como um insta111<·
realmente,justamente por esse lado não. O carpe diem no desfrute cflcn· e transitório, com motivo dos mais fecundos, como um ponto de intersci;;io
impensado parece tão simples, tão dihmdido, mas{, tão raro que ele nem de mediações muito ramificadas entre passado e futuro-em meio ao agora
mesmo ocon-e como um colher 1·eal. Nüo há nada que se encontre mais não aparente. Cai, então, sobre a imediatez uma luz repentina, incidindo
não de modo horizontal-histó1ico, mas vertical, de tal rnodo q1w da q11asC'
parece ser mediada, sem contudo deixar de ser imediata ou proxirnidack do q,w :t 111aio1ii do.~ jll"ll.~adon·s pr<'gn·ssos; ( 1 ► 1110. po1 <'Xt'lll()lo: "Nt'11l111111
superpróxima. O exemplo mais grandioso de presentificação divi~ada l1'(TL10 sabe o qt1<' t<'ce", ou: "Ao pé do farol não há luz". E n;"10 lc1;Í :-.ido
proporcionam as análises da situação feitas por Marx e Engels, no auge do por l'Slar, ele próp1io, na luz, que Édipo foi o último a percehn que havi.1
Dezoito Brwnâri,o. E Lenin passou a vida captando o presente com seu olhar ctsado com a própria mãe? Fie havia resolvido sofiivelrnente o enigma da
históri<:o peneirante, até aquele carpe dinn bem pensado que se chama Esfinge, que podia ser c·ontemplado a partir de fora, mas em rela~·;10 ao
Grande Revolução Socialista de Outubro. Tudo isso, entretanto, já seu caso, imediatamente próximo, ele não soube o que fazer. E assim prn
pressupunha um comportamento totalmente não contemplativo, ou seja, diante no texto inc·on1prec 11dido do te1npo "agorn", do espaço "aqui", omk
0

compreender-apn:endc1· as forças impulsivas atuais do próprio quer que a mera contemplação se arI"isque a partir da distância, do
acontecimento. Isso é irrealizável parn a sociedade de classes, que em vista costumeiro. Isso se trai da maneira mais cabal, como foi freqüentemcull'
do produto ign<ffOU o producente real; contudo, mesmo com a análise da observado (d'. p. 280), assim que a contemplação reificada, de algo
situação, o caminho certo para a atualidade ativa apenas começou. O seu enrijecido,já cxistentt·, chega ao prcseute e tenla dirigir sua palavra a ess('
alvo permanece sendo a aclaração do que voga e ainda está oculto parn si próximo, acontec·n1<lo, em devir. Ccffia-sc, então, o hábito ao tipo d('
mesmo no fundamento factual último do acontec·inwnto. Tarnbtm o relações que haviam sido ocasionadas pdo caráter distanciado situado 110
seguinte é certo: todas as sociedades são pe1passadas pelas cxperifncias, passado lougínquo. Já a proximidade relativa do sfrulo XIX causa um
de modo algum apenas líricas, antes arquifilosóficas, da pergunta en1baraço carncterístico aos histo1-iadores burgueses quando chegam a esse
informul.ivcl, as da admiração absoluta, p<ff um carfJe dinn incipiente no século no decurso dC' sua apn·st·nla()io; opini<>cs imiscuem-se no lugar dos
sentido não habitual, autê·utico; porém, quanto anmhamenlo, <1nanta mera juízos co1~jm11urais até ali c·mitidos. E a falta <k cientilicidadc totalment<'
iritrn~·úo simbólica h,i, por sua vez, nessa mística cotidiana não aparente, a surpreendente desses historiadores pode se,· evocada no momento en1 que
única que pcnnaneceu, que é digna de ficar·. lk n·sto, cm Ioda p,H"te o a história rumou para a guerra mmulial; o <'rudilo transformou-se no
não-aí é a condi(;ão do agora,<' até mesn10 o aqui ckssc não-aí wmlitui urna professor politiqueiro ou patriótico aos g1itos de hmTa. Mas isso ocorreu
zona de Jiwncio fm,ál(J,111,enüi onrú, a mú.lir:a Mstâ lor:ando. Dessa mancirn ni:io só não só po1· c·ausa do comportamento não co1u-reto do burguê·s, condicionado
o existir·, mas sobn·tudo o snjeito do existir está incógnito, ou seja, pela dass(', c·m relação aos anexos do agora; essa dchilidack visual especial,
justamente o que impnlsiona, c·m última análise, o conteúdo do próprio em c·m~junto com os interesses ideológicos falsilicadores, é favorecida de
existente. Apenas neste ponto o carf•e diern pleno seria decisivo, de tal modo modo central pela derrocada geral da <·ont<'mplação dita objetiva,
qrn· o atual-existente e seu contexto espaciotemporal limítrofe de fo1ma proV<H',ula pda proximidade, e os erros ck avalia~·ão da parcialidade
alguma SC;ja tmvado ou dificultado pela proximidade que ainda é própria burguesa ocupam de fonna especialmente iut<'rcsscira a hrcdia da imediatez
dessa dificuldade vivencial imediata. Os instantes, porém, ainda latc:jam atual, <pt<' jamais poderá ser dominada pela mera c·outemplação. No que e
sem serem ouvidos, sen1 serem vistos; seu presente se dá, na melhor das na medida cm que se refere à dificuldade do atual, somado ao primeiro
hipóteses, no átrio de s-ua presença ainda não con~ciente, ainda nâo existente. plano contíguo do agora e ao primeiro plano conl{f!;U.O do aqui, tudo isso pode
ser aclarado por meio de um problema da pintura dM jHú.wgens. Em termos
A obscuridade do instante vivido, continuação: prirneiro plano, f'.1paço de pinlunt, o problema do atual tem o seguinte teor: onde, numa pintura,
prejudicial, melancolia da plenificaçâo, autom.ediaçâo inic·ia-sc a paisagem representada? O pintor não indni a si próprio na
A obscuridade vivida é tão forte que não fica restrita nem mesmo à imagem, embora também se encontre diretamente na paisagem,
sua proximidade mais imediata. Ela tem efeito também sobre o scn contexto, constituindo o anel mais íntimo do imediato. No entanto, também o segundo
sobre o tempo que segue ao justo-agora, e então também sobre o espaço anel da imediatez, o primeiro plano propriamente dito da imagem, é difícil
contíguo ao justo-aqui. Esse efeito impede que a proximidade da vivência de objetivar; ela ainda está demasiado próxima do local em qut' está o
real, especialmente como proximidade acontecendo, ganhe distância pintor. E justamente a confusão da proximidade causa o efeito da relativa
suficiente e tranqüilizadora, ou seja, possa ser contemplada do modo disfonnidade também do p1imeiro plano espacial, o seu não-pe11encimento à
habitual. Através disso, surge a penumbra peculiar do respectivo primeiro paisagem propriamente dita. A paisagem representada começa, portanto, não
plano atual, que não é facilmente contemplável, mas tampouco facilmente só, como é óbvio, fora do pintor que a pinta, mas também para além dos
captável e sabível. Alguns provérbios estão melhor informados sobre isso ,l objetos ainda difusos de seu entorno mais próximo. Um conceito que pode
'1 ser emprestado da física da bomba pneumática deixa claro que o primeiro
1
11
plano é reservado à representação <lo espaço Jmjudicial, i~lo (', 11111 cspa,.:o .1g• 1r;1 l<'lll prosseguimento constante - para além ck Iodas as 101111as ,k
de onde a atmosfera ainda não escapou de todo. Trata-se, n<·st<· rnso, da p:1s.~ado - também na atualidade do seu prin1eiro plano <' cm lodos o~
atmosfera da imediatez, da obscuridade persistente e da desordem , ou textos do seu hmizonte. Mas pelo fato de o futuro perte11c<"r, d!'.~.~;1
persistente do agora e aqui, da proximidade. Por isso, para as perguntas: 111a11eira, à atualidade, também ele, o futuro, participa, com tod:is :1s
Onde começa a paisagem? Onde c·omeça a o~jetivação coerente?, há somente , d>j<"tividades de seu primeiro plano e de seu hmizonte, da obscurid,l(k do
uma resposta: além do espaço pn-:judicial, na distância em relação a ele, 111stante vivido. E de participa dela de uma maneira tal que conslil11i a
precisamente onde começa a desaparecer a obscuridade da imediatez 1111alidade rnaú es.1encial do júluro: de estar fechado à contemplação, sendo
juntamente com suas ramificações. E como entre o sujeito e o objeto da lambém relativamc-nte cksronhcciclo para o conhecimento da sua tcnd<'11á1.
contemplação sempre há esse singular cspa~·o intennediário, justamente Essa conexão entre obscuridade do instante e oh-1<:-uridade do futuro foi formulada
como espaço pn:judicial .1·1ú generi.1, do qual a almosfera da imediatez pela prinH·ira vez 110 Geist da lllofJil' 1 Esj1irito da utopia] da segni 111"
repentina ainda não foi retirada sufidcntemcntc, o difícil primeiro plano maneira: "A ohsnll'idack torna-se mais iulcnsa assim que não só nós, 111.1.~
da imagem paisagística e seu prohlcma corrcsponckm, ck forma lambé-rn a outra página, a p,1gina virada, pcnnanc·c·e indefinida, logo, assim
mcloclologicamenl<' precisa, à n·ferida dificuldade da atualidade ru:ontecendo, que nos voltamos para o fúturo, o qual, na medida t·m que ele se consti111i
w:ontecendo no temfH1. Dcnt ro eles ta, todavia, o efeito causado pela ohsnuidade como 11ovo sobretudo cm termos lógfros, nada representa alén1 da noss;1
vivida é innHnparavdmenlc mais 1-i<-o cm conseqüências do <Jll<' o próprio ob:-,curid1ule ampliada, da nossa obsnffidack por on1sião do cugendranwnto
tema no relevo espa<'ial a ser· nmsiderndo, e não é apenas um exemplo de seu ve11trc, 11a ;unpliação de sua his161ia s<·guinte; e ele igualmente· se·
dck, c·omo na c·omposição pic·t61ica. Isso já fica evidente no fato de que o lortakcc em vista de Deus c·omo o problema do radicalmente novo, <]li<'
espaço "aqui" , como primeiro plano espacial, pode no final fazc-r a transição não apenas ckvc tornar-se visível para nós para existir, de tal modo que o
para a paisagem, pode como que ternünar nela, e de qu<· um resto não processo do mundo corno um todo se n·duzir·ia daslÍ<'amt·111c a uma rela<,;ão
resolvido de proximidack não se manifesta no repouso dessa conclusão. O de movimento entre duas realidades 'separadas', mas que está cônscio d11 .IÍ
tempo "agora", cm contraposição, como primeiro plano do letn/Jo, não se ,ne.111w apenas como esperança, como ser-não-para-si, que, igual a nós,
transfonna sc·m mais nem menos no captável, confonrnívcl, sabível, e - enco11trn-s<' no não-acontecido obsnnu, no ai11da-11ão-rcal" ( Geist der Utopie,
uma nova dificuldade - tampouco sem mais nem menos na 1:ognosâhilidade 1918, J>· ;{72). De acordo com essa formula~·ão in<p1ic·tante, portanto, a
que não é c·ontcmplação passiva, mas saber tendencial ativo. Se não fosse obsn11'idadc do instante vivido coincide, em toda sua profundidade, com o
assim, essa cognoscibilidade teria de exercer um controle tão nm1pleto modo de existência essencial do próp1io conteúdo final ainda não constituído
sobre aquilo que posteriormente envolverá o tempo "agora", logo, sobre como ser-aí, que certa vez se tinha em mc11lc com a cksigna(ão mitológica
o Júturo, quanto mutat-is mutandi:-, a pintura da paisagem sobre· a paisagem "Deus" e <pw, de acordo com a passagem citada, trata-s<' elo conteúdo final
por detrás do espaço "aqui". Como se sabe muito bem, isso não pode ser o ainda não existente, ainda não produzido do próprio c-xislir. O carpe diem
caso quanto ao futuro, abstraindo dos próximos passos a serem dados e da ou pn·scntc do conteúdo final absoluto, porém, ctH·ontra-se sobre o mesmo
ampla perspectiva, não pode ser o n1so nem mesmo na ciência fundamental fundamento que o sujeito do existir, e deste mesmo fundamento o conteúdo
do acontecimento controlado, a ciência tendencial enfim cone-reta do Ii11al ainda está ausente como realizado, a saber, do fundamento daquele
marxismo. E não pode ser porqn<' o próprio futuro - diferentemente do foco não dareado da existência, que muna designação não mitológica é
que está distanciado no espa~·o -- contém tanto de agora não dominado, tanto agente como cerne da matéria em desen11olvi111,enlo. A-;sim ampla e assim
portanto, de obscuridade, como o pníprio agora ainda contém de futuro profunda é, portanto, a obscuridade radical do instante vivido; de modo
não franqueado, pm·tanto de novidad<·, <' s<' lança para diante na sua direção. assim preciso ela está associada em ambos ao nmnun, ao ultirrmrn do
O passado, fechado apenas apan·11tc-mcnte e também apenas para a contc·tído. E trata-se igualmente do mesmo futuro: aquilo que está contido
contemplação e assim apan'lll<'lll<'llle comparável com a paisagem espacial no ventre dos tempos, que é chamado a revelar aquilo que está contido no
objetivável, surge só posteriormc·11te 1,11110 na consciência do tempo quanto instante. Unicamente o poder-ser, canalizadamentc conduzido e franqueado,
na fase temporal, somente- depois de l<'r se lançado no futuro, e por essa faz com que o ser imediato do instante que voga oculto venha a si e à tona;
razão não pode ser comparado com a paisagem objetivável na maneira unica1nente esse transcendere franqueado para o novum é a chave para o
direta como esta se associa ;1 atualidade espacial e se apresenta como conteúdo do existir imanente. Nesse processo, quanto mais próxima for a
concluída por detrás desta. Ao co11trá1·io: o teor futuro da atualidade do presença em relação ao gerador existencial do acontecimento, ou seja -
historicainenle -, ao homnn, quanto mais radie d for a a11lo-ap1 <-c11sao do , .11.1tc-1 111s11l11 in1lc- 11,, .,spn lo líxo do id('al. 1'111/1111/o, 11 '/"'' 1111/m1f11 ,· ftl1n,11
sttjeito que faz a história, tanto mais dissolvc-s<· a alualida<k n-g·a, lanlo ,/,· 111od11 nr.,n•11fr ft1111l"·111 o ,·lnn,·nlo do malizar; a 1u11 .\'Ú lnn/)1) 1 0111 "dn11n1fo ,Ili
mais incisivamente ela poderá ser reconhecida como ponto de passagn11 "" Ít•rlrule .fiüwa. lk.~s<' modo, na abordagen1 do probkma da l"('aliza(._";10
das mediações dialéticas amplamente ramificadas. A obscuridade· (l ld('na cgípcia),já foi visto o seguinte: o conteúdo do desejo ou do ideal,
propriamente dita, metafísica, do instante vivido ainda não se aclara p1.~1amente quando ele atinge o alvo de sua realização, chega a um ponto
mediante essa apreensão histó1ica do sttjeito ou apenas começa a aclarar- <·111 que a realidade é mais obscura do que aquela que ele possuía

se; entretanto, o problema do ptimeiro plano, da fenda entre o agora e o .111t<-riormente no caráter real, en1 suspenso, utópico, meramente sendo.;\
aqui nas rctrataçôcs do co1~junto inter-relacionado do mundo, finalmenl<· g1 tisa de repetição: por mais que a realização anule a distância contemplativa,
é atacado. Ele é alçado à condição de problema do ponto de passagem da nunca tem o efeito de unia realização total, porque no fator" sujeito" da
mediado e, uck, da decisão concreta e atual na linha de frente do evento /mSpria reali.zação !tá algo que ainda não ..,e realizou ern lugar algum. O próprio
do mundo. !'ator "sttjeito" da concessão do ser-aí ainda não está aí; ele não est,Í
Nã.o que, <·om isso, essa fenda sumisse da vida, por niais não qualificado, não está o~jetivado, não est,í realizado; isso se manifesta em
contemplativa que da s<:ja. Pois cm úllima análise, o efeito da obscuridade 1íltima instância na obsnuidade do instante vivido. E esse incógnito continua
vivida não está restrito aos variados prim<·iros planos referidos sendo o obstáculo fi.uulamental que an)lnpanha toda realização como
anteriormente. Por{m, o ponlo c·cgo, esse não-ver do agora e aqui n·alização plena. Todos os sonhos dest:janlcs humanistas visam afastá-lo,
im(·diat.amcntc ocon-idos manifesta-se também c·m c·ada reali.zaçiio. Sim, o educar o pr<>prio educador, gerar o prúp.-io gerador, realizar o próprio
ver sú é tmvado pdo distancianwnto <kmasiado p<·<pwno, ao passo que o realizador; eles são os mais r·;uli<·ais e os mais práticos. A crescenti,
tipo de rcaliza~;ão c·xisteute at{ agorn não se obsrn:m:e cm algum primeiro autonu:diaçii,o do au.lor (Ül /ti..,tó,ia é assim não só o auxílio para realizai·
plano, mas no prúprio realizado. Também o mrf>e di.nn autêntin> não está conCTetamente as antecipa(Ôes tendenciais <·on<-rctas; da é também o auxílio
cx<·ctuado dessa mdann>lia, a saber, quando ele niio cslá apc-uas fJresente para dar início à n-aliza(ão s<·m o seu singular rcslo ama1·go, sem aquele
no esf,iri.to, mas quando colhe os frutos ele uma esf>erança ru.111fJTida. E as pern1a11cnte a-n1c11os clcsigrnt<l<1 pela 1n-ó1n-ia imediatez cio cxisti1· que ficou
<·xp<Ti<'H<·ias da ad111i1·a~·:10 fundamental, na questão da pergunta obs('uro e que, cm última awílisc, perfaz a pon:ão ck não-chegada na
informulávcl, s<> são poupadas dessa mdancolia por cont<Tc-m apenas chegada ao alvo. Um existidnnnano que, no cÍl'culo de sua existê·ncia, não
indícios-rclfünpago acp1i e- ali <k um agora <Jll<' atingiu o ser-aí, e isto em mais está apegado a nada estranho a ele, um realizador que está, de próprio,
objetos .1u.b,1tilulivos, frcqiicnlemcnlc- <·stranhos, mas não, ainda não, na realizado: este { o co11<-cito limítn>fé da rcaliza(iio como cumprimento.
n>isa ffalizada cm si e para si mesma. De resto, em toda parle há uma
fenda, sim, um abismo 110 próprio realizar, na ocorrência atual-atuada do Uma 11ez mai~ a admiraçüo anno quesliio absoluta, tarifo naforma da angústi.a
que havia sido previsto, sonhado, de íonna tão bela; e esse abismo é o do q1w:nto na da .felicidade; o arquétipo Jm,ramente u.fój,i<:o: o brmt. supremo
pr6prio existir não concebido. Portanto, a escuridão ela prnximidade Foi dito que o que voga no agora se lança, também no futuro, para
fornece também a raziio última da melancolia do cwnprirnento: nenhum paraíso diante num espaço aberto. Este espaço aberto deixou para trás
terreno, ao ingressar, fica isento da sombra projetada pelo seu próprio psiquicamente um lugar duplo a partir do qual os seus frutos são esperados,
ingresso. Pois o risco de nm fiasco não se dá apenas quando se quer realizar até produzidos. O primeiro des..,es lugares continua sendo a angústia,
sonhos demasiado t'Xagcrados ou quando sonhos demasiado sublimes justamente como aquela que é tanto maior quanto maior a incerteza de
ameaçam a sua própria execução. Um resto disso é sentido e se manifesta que pode esperar suas ocasiões de qualquer lugar. Responsável, neste ponto,
no próprio realizar, onde foram realizados os alvos adequados, ou onde não é mais uma angústia neurótica, que pode até tc1· sua causa na libido
imagens oní1icas monumentais parecem ter se tornado n:alidadc de carne não utilizável, tampouco a angústia real normal cm situações de perigo,
e osso, de c01po e alma. Há um realizar que ignora a ação dos próprios mas certamente urna angústia tanto incondicional como relativa a coisas
realizadores e não a contém; há ideais que se apresentam como elevados, definiüvas. Como foi referido, também os sonhos angustiantes, até o pavor
à parte de qualquer tendência, abstratamente fixos e assim escamoteiam das crianças diante da escuridão ou o medo de fantasmas beiram essa
também o aspecto inacabado, irrealizado de seus realizadores. Justamente angústia de modo meramente atávico, mas eles mostram a direção. Para o
na melancolia do cumprimento anuncia-se igualmente esse ainda-não- crente, o inferno era habitado unicamente por tais fobias, e isso ocorria
cumprido extremamente profundo no sujeito, bem como critica-se nela o mesmo quando a angústia extelior, frente à natureza desconhecida, nem
pn·cisava ser mais tão grande. O iufrrno desapan·( (·11 ('Ili virl1ulc do possível ahis1110, q11c u;io possui nem 1ncs1110 11111 :solo sohr e o q11.tl ~•
esclarecimento, mas o problema correlato do pavortotalmenle pe11etra11tl', i11lcnurnpa a queda. A gravura ilustra o estupor, no qual 11111 clc:,,c·s1,c·1,,
metafísico permaneceu. A sua pennanência é sempre o agora, uma fr·nda franqueado num agora permanente esbugalha os olhos; Ml'lw1rnlil/. d('
sangrenta na obscuridade do agora e do que nele se encontra. Não h,í Dürer, é, assim, o documento inestimável do adm.irar-.H' llf',i!,"<tli,,,,.
dúvida de que C"xiste tal pavor imediato, de que ele é de outro tipo que a precisamente sem fastamagoiia e inferno, até sem o detemünantc "Sal 111 110".
terrível angústia real frent<' ao realmente existente. O seu elemento é o Portanto, também no negativo existem fom1as da pergunta absolula q11c
in.\lanle in.rnportávd, uma formação, embora nem sempre patológica, não pode ser formulada, há instantes insuportáveis de admiração ..J.í pelo
freqüentemente um horror cm si mesmo qne quase abate a pessoa. A seu sentido, eles são mais apagados do que as suas condições positivas, 11e ,i.~
epilepsia, na aura que antecede ao ataque, parece t<T unia relação só são precisos no l'alo de significarem um pavor radicalmente indeJi11iclo.
especialmente precisa c·om esse insuportável; a paranóia proporciona as no luga1· do abismo. Entretanto, o abismo não existe só nesse loC"al. o
imagens que mais se aproximam do sonho angusliantc, o sonho angustiante gorgônco não cst,í só no mundo nem mesmo na J\;[elancolia, rnas, alé111 do
di11nw. O fragmento de Büchner sobre o poela Le11z, <Jlle estava estupor da adrnira(,'ão, c·xistc também uma trnnqüilidade hieronímic1 cb
enlonqncn·mlo, relata sobre isso de modo inesquedvd: "Mas o senhor admira<:ão, <· esta indica i11tc1H·ionalnw11tc o outro lugar do espaço ahnto.
não est,í escutando nada?", pergnnla o poeta demente, "o sc11ho1· não está Pois a troca de visões, o "sentido oposto das palavrns origináiias", c111c·
escutando a voz pavorosa, que grila por todo o horizonte, e que pôde ser vis lo já em Iodas as condic;õt·s aktivas radicais, especialmenl<· 11c 1s
habiluahnc·nte é chamada de 'siWndo'?" E no Woyzech, de Biichnn, a angústia afdos expectantes, é- a que csl,Í nwnos auscnle na admiração radical. l'rn
é- cksperlada em toda parte por um nada berrante, pelo vc11lo, pdo céu isso frcqücnlemente o mesmo rnolivo que provoca a admiração negativa(;
notun10, pda expeclativa ck 1un negativo incerto sob e adma de Iodas as capaz ele provocar a frlkidack c·omo o f)().1iliT1u111, do admirarc,,se. E tarnb(~111
coisas, amca(,mclo o pobr-e-diabo de todos os lados. Nesse <·onjm110 de ncss<· caso, o local é sempre o agon,, s<Í que mio como fenda sangrenta 11;1
tcstemn11hos, ainda tão afastados uns dos outros, a anglÍslia maniksla-se obscuridade do agora e do que se enc·ontra uek, mas é a esperança qm·
como uma expectativa voltada para o lado mais obscuro-incTrto, para o <·omc·ça a llorcscer com a incidêrKia da i111e11ç,'io simbólica positiva nessa
belo do nada sufocante, paralisante, existente 110 possível-real. E111 t<"rmos obscuridade, intenção enigmática confinnada no não aparente. O elenwnlo
de imagem, esse inimaginável está igualmente regislrndo na gravnra desse admirar-se positivo é o in:;tanle sos.1egado, ,upwk em que uma
Melancolia, de Dürer, e isto tanto aqnérn q11anlo alé-m das rclc.·1·[·11eias p<Tccpção ou uma imagem, de resto complctarncnte indiferente, abala e·
astrológicas nela contidas. Inclusive para além ck Sa111rno, (!ll<' n·vcdwra constrange ditosamente o intensivo-existente I Hxi.\lierend-lntensive]. Em ;\
dos olhos da figura feminina, cujos cmhkmas enchem a gravura, morte de Ivan llitdt, Tolstoi fala de arbustos na tempestade de neve; a
inteITompidos apenas pelo quadrado mais amigável ele Júpiter 11a parede tempestadt· e o frio exerciam um domínio hoslil à vida, a própria paisagem
atrás da figura. Porém Saturno, a estrela ela ma111tação, mas também ela cnconlrava-se num extren10 abandono; entretanto ou por isso mesmo, m1111
concentração, embora seja igualmente a estrela da inldic·idack, não esclc-m-re indizível comentáiio à margem, apareceu nessa paisagem repentiname111<·
nada sobre o chão para o qual cst,l vollado o olha,· de Mda111'0lia. A uma acolhida e uma resposta, de maneira mais c<·nt ral do que em qualqu<"I'
concentração encontra-se somc11le IH> olho da figura, talvez na csl'<·ra do apoteose. Tolstoi consegue associar muito bem <·sse ckmento central ;1
primeiro plano, talvez até no cachorro a donnit· enrodilhado, mas não no margem, elemento ínfimo, quase ridículo, representado pdos arbustos na
c01tjunto dos objetos, nem no ol~jeto para o qual a figura volta o olhar. tempestade de neve, com os raros instantes grandiosos, geralmente o
Esse objeto mesmo não eslá no quadro, mas justamente a sua rondi<:ão momento da morte, em que tudo fica completamente daro ou parece fin1r
totalmente não concentrada é indicada pdo conjunto. Dehio aponlou claro para as pessoas. Traça-se um arco até a vivência de André Bolkonski,
acertadamente para o aspecto dissoluto desse inteiior: o círculo ffpousa que se encontra ferido de morte no campo de batalha de Austerlitz, e quC'
ociosamente na mão, uma luz difusa, pesa,·osa, cai sobre o~jetos espalhados, enxerga o céu estrelado como nunca antes, arco que vai até a vivência de
a ordem que normalmente distingue os qual'los dos eruditos do século unidade de Karenin e Vronski no leito de morte de Ana; - mas também <;
XVI está totalmente auscnle; não há maior contraste do que entre C"sse fato que essa unia mystica com sentido, eternidade, inteireza, por sua vez, <:
conjunto e o bem an-anjado da gravura llin"Onymus im Gehaus l]erônimo demasiado grande e determinada, demasiado ajustada ao seu obj<'lo
na .~ua cela]. Disso resulta que a gravura J\1.elrml'olia, de Dürer, ilustra, com [ Gegenstand] teológico, para fazer frente à modéstia do marginal, mm<·a
o auxílio de meios astrológicos, a angústia por meio do contato com um fommlado. Em todas as experiências tradicionalmente religiosas a casa _j,í
é mn ekrnento real, corno se dependesse apenas da ceg1u·i1·a dos ho111<·11s e muito p<'<l'l<'llos: o nó do inundo, que não se cn<·ontra em 11e11h11rn 01111 o
não vê-la, apenas da fraqueza da carne não entrar nela. Ainda assim a lugar senão no quê imediato do existir, igualmente é destrinçado apenas
associação com as intenções simbólicas não aparentes é inevitável; elas pela proximidade mais intensiva a essa intensidade factual imanente, apr11as
estão contidas en1 todos esses acometimentos como gem1es de um s-urnm-um pelas evidências na proximidade. Precisamente esse não-aparente 11111
bonurn, um aí absolutamente adequado ao humano. O aí que assim se extrema proximidade, a fina rubrica. dessas evidências, é só o que restou
anuncia, contudo, está na condição de mera possibilidade real, e as da antiga suposta proximidade dos deuses, sim, do que perfazia o seu cerne,
intenções simbólicas positivas em seu c01~junto evocam apenas o seu sinal na medida cm qne ela parecia conter um ens pe,fectisJirnurn. As grandes
no homem, neste de fato; elas chamam o nome da boa existência pré-aparências da mística autêntica prese1vam, como tais, a sua validade
compreensívd-incomprecnsívcl, num silêncio antecipado. E da mesma expeiimcntadora, pois o que quer que nelas tenha se manifestado como
forma elas o chamam na marginalidade central, bem pr·óximo da comoção símbolos últimos, como símbolos-reais, tinha conexão com uma fina rubiica
da aug1ístia, com uma nm<·entrnção tilo repentina quanto indecisa. A e a acolh<'u. Este {, o lugar da pd-aparf·ncia do andante, sim, do idílio
utopia do fi1n toca o homem com esse adminir-s<' objetivo e, ao mestno como .finale, com aquele tao do mundo, qne Lao Tsc diz ser sern gosto, e
tempo, ol~jctal; sendo que um conteúdo pavoroso pode muito bem vir que, por essa razão, tem o gosto mais penetrante possível. O n·pouso e a
entn·tccido com um conteúdo maravilhoso, corno sinal do paradoxo do p1-ofü11didade sempre estiveram fundados nc-ssc- inaparC'nlc <' continuam
maravilhoso oujustamcnte da ainda-não-definição, ainda-não-decisão, que sendo designáveis corno tais: "Mas não é <·omo se o <:ompartim<·nt"o secreto
compete ao caníter final do prop1iamente dito e da l<'ndf·ncia nnno tal. em cada ol~jeto ainda devesse conter grandes desvendamenlos e documentos
Nesse tocant<·, cm toda parte essa adequação (a naturalização do homem, como em tempos passados, quando toda a profundidade ainda vinha
a humanização da natureza) ainda está em abeTto: uão só quanto à sua acompanhada de uma embalagem gigantc·s,·a e <·sta- deuses, céu, poderes,
ocorrência ainda futura, mas também quanto ao s<·u nmteúdo ainda não magniJicên<:ias, tronos - era considerada essencial para ,1<pwla. Mas foi
fixável, que se encontra à distância de um salto por sobre tudo o que até dorm<'nte, silente, que Ulisses chegou a Ítaca,justarncut<' a Ít,H'a de chegou
agora se obteve. dornwnte, aquele Ulisses que se chama Ninguém,(' a<p1da Ítaca que pode
Essas coisas só sucedem no p1·ópiio agora porq11(· s11<·c<km na nasfente ser· até mesmo o jeito como este cachimbo ,·st,Í posicionado ou como
de tudo. E na nascente está implantada urna foz; se <'Sta S<T,Í akau(ada, é rcpc-ntinament.e se apresenta qualquer <:oisa inaparcntc e o <JH<· s<·mpre se
outra questão. Porém, a própria foz <' ant<'posta a tudo <·omo f,ergunla imaginou finalmente se manifesta diant<' dos olhos. Algo tão finnc, tão
viva, como a pergunta pelo cm-absoluto, <·orno a pergunta pdo <·m-absoluto din·tanwnte evidente, que deu um salto para dentro do ainda-não-
que ainda não existe. A pngnnta i11fonn11l,ívcl e sua admiração foram conscicnte, do idêntico mais profundo, da verdade· e· da s<'11ha das coisas,
definidas acima como o raio que cai <·m si mesmo, o mio do possívd-n·al salto <JllC não tem volta; que, com a repentina int<"ll(.'iÍO sig11ificm1lc última
derradeiro, refr1indo-s<· ao n·nw da latfa1cia; caindo dessa forma <·m si do espectador em relação ao objeto, e1ncrgc 110 mundo, ao mesmo tempo,
mesn10, o possível-n·al estende a mão a si mes1no para uma parada, <'essa o rosto de algo ainda sem nome, o elemento do estado final, implantado
de ser intennirnivd. E essa parada ocorre- justamente no impulsionador do cm toda parte, e não mais o abandona" (Ernst Bloch, Geist der lltopie,
próptio possívd-real: a como~·ão extn.:mamente clara da admiração frente 192'.3, p. 248). O trovão que- crê ser a última coisa<· a expressão manifesta
a momcntos e sinais da ad<'qnação relamp<:jantes tem, por isso, uma relação desta tornou-se decadcntc, pois o definitivo é silencioso e simples. Porém, o
precisa com o qut: do existir no quarto de donnirdo instante vivido. Pm1anto, fato de o estado final ainda não estar posto nem 110 adrnirn1c.se menos aparente,
assim c·omo a obsnuidadc do instante vivido representa um dos pólos da nem diante e atrás de qualquer pré-aparência, ficou demonstrado no caso da
conscif·nda antt'cipatória, ou st:ja, da constituição antecipató1ia do próprio utopia tanto negativa quanto positiva, no modo como da surge nesse final e
mundo, assim a admiração real I Realitaunenl, tendo a adequação ahnta ainda não se tomou realidade ll<'Ill mesmo no seu último, nem como utopia
como conteúdo, r<"pr<'scnta o outro; e a1nhos se atrae1n intensamente; a negativa do pessirn-urn e seu nada nem como positiva do optimum e seu tudo.
intenção simbólica do em-absoluto e do ômcga aponta para a obscuridade Entre os dois ainda persish·, mesmo no admirar-se incondicional, o petigoso
do alfa ou da proximidade mais próxima. Trata-se da nascente ou do entrelaçamento de uma alt('rnativa em (tltima anális<~ não decidida, e esta
piincípio do mundo que ainda voga e ainda está oculto na obscmidade do consiste de forma objetal no problema da foz do mundo. Todavia, da mesma
instante vívido, que se apreende e se libera pela primeira vez nas n1bricas de forma - isto é, também de aconlo com sua perspectiva, o tremendo pl-us do
sua foz. Apreende e libera apenas antecipatoriamente, em sinais muito fracos acometimento da espcran~·a -, da mesma fonna, o optimwn do conteúdo
final tem a seu favor o caráter aberto do processo histórinl <Jlll" nH1li1111a a O nüo na origem, o ainda-nüo na história, o nada ou entâo o tudo no final
durar, que até agora de modo algum foi abatido: ainda não é noite o dia O que se passa em si e diretamente como agora, como tal, ainda <~
todo, ainda há uma manhã para cada noite. Também a derrota do bem vazio. O quê no agora é oco, é apenas indefinido, como um nüo em
desejado encerra dentro de si a sua possível vitória futura enquanto na fermentação. Como o não do qual tudo parte e com o qual tudo começa,
história e no mundo não tiverem sido esgotadas todas as possibilidades do em torno do qual cada algo ainda é constn1ído. O não não está aí, mas
tornar-se diferente, tornar-se melhor, ou seja, enquanto o possível-real em sendo desse n1odo o não de um aí, não é simplesmente um não, mas
seu processo utópico-dialético não tiver sido fixado definitivamente, simultaneamente o não-aí. Como tal, o não não suporta estar consigo
enquanlo desejo, vontade, plano, pré-apad:ncia, .intenção simbólica, as cifras mesmo; ao contr.írio, ele tende- a referir-se ao aí de um algo. O não é
daquek um que se tem em mente ainda tiverem espaço no processo, sim, carência de algo e igualmente fuga diante dessa carência; assim, ele é
enquanto ainda niarem paraísos virtuais no proC'esso. E a intenção simbólica impulsão l Treiben] na direção do cpw lhe falta. Com o não é retratada,
última pcnnanccc sendo justamenl<· a intenção pátria da pergunta pm"tanto, a impulsão uos seres vivos: <'orno impulso I Trieb], necessidade
infonnulável relativa ao "Demora eltTwmwnte! és tão lindo!" no seu [Bedürfnis], ahll{:jar [Slrelwnl e, c·m primeira linha, corno fome. Nesta,
optimum. A invaiiante dessa tendt:ll<'ia kva no final, <·on1<> agora já temos porém, o não de um aí se anuncia como um não-ler I NidiJ-llabenl, mais
condiçôes de formular, ao único arquétipo que nada tem de an-ain> em si, prc-c-isarncnte como um não [ Nit:!ttl, e não como um nada f Nicltts].
ou seja: ao arquétifJo fmramenfe utóf,i1:o que ffÜdP na evúlincia da Justamente pelo fato de o nào constituir o ponlo inicial dt· todo movimento
fnoximidadP, ao do snrnmum bonmn rnmo um arqul1lifJO de,rnnhecido, em direção a algo, ek de forma alguma é um nada. Ao contrário: o não e
que a ludo sobrefJ1Jja. O arquétipo "bem supremo" é o contc1ído da o nada ckvc1n, num pl"i1ncin> momento, ser mantidos no maior
invariância da adrnirnção mais (diz possível, a sua posse seria a que dista1Kiamc·nto possível um do out1u; toda a aventura da definição situa-se
trnnsfonna, no instante t· cxat;-unt·nt<" como esse instante, em seu quê entn· os dois. O não situa-se na origem como aquilo que ainda está vazio,
totalnwnt<· resolvido. Po,· essa razão, o arquétipo do bem supremo não é indefinido, nào decidido, como par·tida para o início; o nada, cm
arcaico, nem mesmo his1ó1-i<-o, porqu<' jamais <'Xisti11 11m único J'cnômeno contraposição, é algo definido. Ek p1·essupôc csfor~:os, um pron:sso há
que tivesse preenchido, ainda qu<' aproximadamente, a sua imagem. Mtúto muito posto c·m marcha que, no final, é fn1strado; e o alo do nada não é
menos ainda ele retorna, com a anúmnPsis ck Platão, ao tempo imeinorial uma atividade impulsiva, como a do n,'io, mas uma aniquilação. O não
de- alguma perfeição, para pn·cn<·lwr com ela o seu of,timum. O lugar refcn·-sc à obscuridade do instante vivido, o nada à admiração negativa,
para onde retorna o arquétipo da frli<·idad(· <Jll<' não pode ser nmstn1ída exatam<•nte ela mesma forma que o tudo à positiva. O não de fato é o vazio,
é unicamente a origem, ela mesma totalnwute não manifrstada, na qual mas, ao mesmo tempo, o impulso para escapar dele; na fome, na plivação,
ele ingressa e a qual <"k, por piirneiro, reconduz ao alfa através do seu o vazio se transmite justamente como horror vacui, portauto, exatamente
ômega, à gênese manifrsta do alfa e do ômcga ao mesmo tempo. A partir como aver:wio do nüo em relação ao nada. E também neste ponto, especialmente
daí, o conjunto das formas da pe1·gunta absoluta-informulávd, na sua parte ncstt', mostra-se que conceitos categoriais básicos ( ekmt•Jltariclades) tornam-
luminosa, circunda ou envolve o optimurn dessa incidência no êxito do se acessíveis unicamente através da doutrina dos afetos. Pois somente os
ômega, no interior do qual o alfa enigmático do quê ou do primeiro impulso afetos, e não as idéias sem afeto, ou melhor, que foram destituídas d<' afeto,
do mundo se apresenta como resolvido. O Jurnmum bon u,m seria a vão tão fundo na raiz ôntica que conceitos em si aparentemente tão abstratos
manifestação totalmente exitosa do exitoso: sendo assim, de igualmente como não, nada, tudo,juntamente com suas diferenciações em fome, desespero
retirou-se da manifestação; a partir daí, ele próprio é não-aparente, um (aniquilação), confiança (1·edenção), tornam-se sinônimos. Esses coHceitos
wrnmwn utópico daquelas intenções simbólicas inaparentes, nas quais toda ad.uarn, desse modo, os afetos fundamentais, assim como os afetos fundamentais
manifestação passa a ser a coisa propriamente dita. É verdade que o aclaram os conceitos ontológicos básicos, caracterizando a matéria intensa de
conteúdo da desejabilidade mais profunda, designado pelo bem supremo, que estes provêm, que lhes serve de combustível e que eles alumiam. Conceitos
ainda se encontra no incógnito em fermentação, assim como este, que deseja ontológicos básicos: aqui, portanto, o não, o ainda-não, o nada ou então o
esse conteúdo, encontra-se nos homens. No entanto, o seu todo visado tudo são distinguidos como aqueles que, na terminologia mais abreviada
designava sempre a culminância dos sonhos da vida melhor, o seu toturn possível, caracterizam nos seus três momentos principais a matéria do
utópico rege do começo ao fim as tendências rumo à foz do processo bem mundo que se move intensamente. Por essa razão, esses conceitos básicos
impulsionado. rigorosamente compactados designam categorias do real, a saber, categorias
referentes a áreas da realidade tal e qual; pois a sua onlologia <·011<·is;, 1ílli111a análise, impulsiona a história e estabelece proffssos hisl<Ít il'o:-; p.11 ;1
retrata, da maneira mais aproximada possível, o teor objetivo dos afrtos, s11a definição, rnas que ainda não se tornou, ele rnesrno, histórico.;\ orign11
logo, o teor da sua intensidade nos três momentos principais da matéria l'ontinua sendo o incógnito nuclear que se move através dos ternpos (' <jll<'
em processo. Porém, de tal modo que o nâo, na forma como suporta estar i~ualmente ainda não se moveu para fora de si mesmo. Desse modo, ('ada
consigo mesrno, caracteriza a origem intensiva, crn última análise, conforn1e instante vivido seria, se tivesse olhos, testemunha do início do nnmdo, C(II<'
o interesse de ludo (aquilo que realiza confonne o quê [das Da}Jhaft- nele oco1re c:onstanternente; cada in~tante, como nâo manifestado, situa-.11' no
R.ealisierende]). O ainda-nâo caracleriza a tendência no processo material, ano zero do inicio do mundo. O início ocmTe nele reiteradamente até o momcnlo
como a origem que vai se exleruando pelo processo, que lende para a em que o não indefinido do fundamento do quê lDaJJgrund] é assentado,
manifestação do seu conteúdo. O nadam1 então o tudo caracteriza a latência c1uanto ao seu ('onteúdo, como um nada definido ou cmno urn tudo definido
presenlc nessa tcnclê:ncia, negaliva ou posi1iva cm relação a nós, pelas deterrninaçôes experimcnlais do processo do inundo e de suas formas;
principalmente na linha de frente mais avan<,_-ada do procC'sso material. sendo assÍin, cada in.1lante contém igualmente, em lernuJ,1 potenciai~~ a data da
Mas também essa la1ê·ncia refere-se, por sua vez, apenas ao contctído da plenificaçâo do mundo e os dado.1 de .wu r:onteú.do. Ao implicar-se nas objetivações
origem inlensiva, isto é, à satisfa~·ão do que se intendonou na sua fome, à de seu conle1ído, o não se modifica, e islo i11n·ssantemente, na rnedida em
satisfação incidente desse inlercsse. Ademais, como já foi observado: na que se lorna um não n;"ío mediado, pois silua-se enl,10, ele próprio, no
fome, na piivação, o vazio (o ponlo zero do quê imedialo do exislir) se processo espaciolcmporal <)IH' constitui e 110 qual experimentalmente dá
trausmile juslanwnte como horror 1,acui. Esse horror vw:ui é o fator vazão ao seu conleúclo. Ania,;ão, que de constanlemente conslitui de 1naneira
origimfrio do qnr- e da sua conslituição, o fator intensivo da realiz,H;ão que renovada, não é: mais <·onse1v,H:ào no scnlido do que j,i se !ornou existente,
pôe e mantém o mundo cm marcha; ele o mantém em maffha co1no mas consnva<,,·ão 110 sentido do devir, islo é:, do cxpe1imentar ern vista do
cxpetimento da vazão do conleúdo do quê [Da}J-Inhaltl. A pari ida para o co111cúdo do cerne do quê- 1/)ají-Krrnl. E essa constilui<,,·ào constantemente
início <k todo ser-aí se localiza sempre na próp1ia obscuridade ainda não nova lransmilc-se hisloricamcntc cm pontos cspccialmcnle distintos: na
mediada c·m si mesma, ou s<:ja, na obscmidade do agora 011 do instante irrup(ão de alg-o novo cm lermos históricos.J11st;rn1<·nte porque o conteúdo
recém-vivido; o _fiai ele todos os movimentos do mundo ocotn· da maneira mais fundame111al do cxislir, na qualidade de ainda não manifestado, tem de
mais imediata possível nessa obscuridade. E essa obsniridade justamente continuamcnle ser compelido a sair de si mesmo, o processo de formação
não é a que cslá lá longe, não é uma obscuridade imemorial no princípio conslanlcmentc desenvolve manifcsta<;Ôes da linha de frente desse não-
dos tempos, corno um início há muito passado ou n'cohel'to pelo seu ocorrido, porlanlo, o que ainda uão cxisliu desse modo 011 o novum no
prosseguimento ou pelo cosmo. Pelo contrário: a ohscmidadc da rnigem, horizonlc, rumo ao qual ek llui, no qual de tende, por fim, a dcscrnbocar
sendo imediata, permanece inalterada na maior proximidade 011 no pr6prio univocamente. Todavia, Ioda a mullifonne pkni111dc dessa investigação do
quê: permanente de todo existir. Esse quê se apresenla, em cada instante, fruto do c<Tnc é, junlarncnte <·om o novum sempre possível, igualmente
como um quê não resolvido; a pergunta enigmática "por que é que algo cart·1tcia pnn1anenlc, a saber, carr-ncia daquela uma coisa que ainda não foi
existe?" é assumida como a sua próp1ia pelo exis1fr imediato. Sua cxpn'ssão encontrada; essa é a razão pela qual a csfrra de atuação espaciotemporal
é a criação renovada em e por meio de cada instanle; o mmulo ,·orno esl;-Í coberta de estilhaços e cascas sem conta, de moslrcngos selvagens do
processo é o experimento para solucionar a questão da origem que voga tipo sáurio, o que ocorre em grau não menor do que os preparativos
sempre e em toda parte. Anteiionnente esse irresoluto foi designado como progressivos no rumo do uno, do bem, do libertador. Sendo assim, o não -
o nó do mundo que está oculto no quê não r·esolvido do existir·; assim, no tomado nesse seu avanço progressivo - nianifesta-se, ao nH'smo tempo,
seu ser-aí imediato, o mundo nia-se a cada instante de maneira renovada, inccusavdmente con10 ainda-nâo: ao ocorrer histoiicamente, ek surge na
e essa criação continuada manifesta-se igualmente como conservação do forma deste. O não como ainda-nâo perpassa diagonalmente o que já se
mundo, ou seja, do processo do mundo. A partida para o início, o ponto tornou existente e vai alérn deste; a fome torna-se mna força produtiva na
de partida que se chama 01igem e fundamento do mundo, encontra-se linha de frente constantemente em im1pção de um mundo incompleto. Desse
justamente naquele agora e aqui que ainda não saíram de si mesmos, modo, o não como ainda-nâo processual transforn1a a utopia na condição real
portanto, ainda não se moveram do seu lugar. Essa origem no sentido da incompletude, da natureza apenas fragmentária em todos os objetos.
estrito ainda não originou a si mesma, ela ainda não saltou para fora de si A partir daí, o próprio mundo como processo é a gigantesca prova
rnesnia; o seu "não" é, portanto, de fato, exatamente o mesmo que, em exemplificada de sua solução satisfeita, isto é, do reino de sua satisfação.
Já lói ohse1vaclo que o não se externa <·orno lú11H· <· o <JII<' a esta s<· -,ol,ret11do em obras-priinas: se não fosse assiin, do passado liav(', 1;1
segue ativan1ente. Corno opinar e intencionar, con10 anseio, des<:jo, 1111icamente esquecimento e não também o que foi e o que pode ser n-sgata( I< 1
vontade, sonho acordado, com todas as figurações do algo que falta. Mas o <· que se chama história e pós-maturação. A união do não e do ainda-mio
não externa-se igualmente como a insatisfação com o que se tmnou existente com o tudo constitui-se em vista do alvo; ela foi referida como a que d,í a
para ele; a partir disso, assim como ele é o elemento impulsionador abaixo <·utencler e permite reconhecer que esse predicado ainda não é a defini<:iio
ele todo devir, també-m é o impulsionador contÍlluo na história. O não definitivamente adequada de um s1~jeito; ou concretamente: os homens,
aparece em todas as definições até agora dadas ao algo como a negação assim como todo o mundo, ainda se encontram rebus sic stantibu~ na pré--
irrequieta, que quer dizer: este predicado ainda não é a definição história, no exílio. A união do não e do ainda-não com o nada, em
definitivamcntt· adequada ele seu si~jeito. É assim que o não caracte1iza-se contrapartida, não se constitui em vista do alvo, mas certamente em vista
no processo como mn ainda-não utópico-ativo, corno n<·gação dialético- do w,o que a nega<:ão dialéti<'a faz do nihil da aniquila~·ão, a saber, no
utópica que impulsiona para frente, corno uma 1wg,H;ão que br·ota da sentido da aniquilação, mc·diant<· a explosão imanente, do inadequado
próp1-ia c·onstituiçfü> positiva, enfim, mais precisamente a partir do estado que passou a existir. Esse uso dialético do nada de fonna alguma encobre
a referida dif'eren~·a h,ísica <·nt re o não e o nada, entrT partida e horror
final adequado do tudo, o 1ínico lugar no qual o não e11contraria n·ponso,
vacui de um lado, entr<" o possível dejinilum da destruição <· mors aetema
Dll s<:ja, na efctiva,;ào positiva elo que nde se tinha em m<·nte. Dessa maneira,
de outrn. ;\ aproveitabilidade dialética do nada tampouco en<·obre a pré-
o ainda-não ('<Tiamente também é- destrutivo 011 a co11tradic;;10 dissolutiva
rnanifc::sta~·ão totalmente anti-histórica, que o nada possui c·omo destruição
presente em Indo o que passou a existir, em confonnidade com a dialética
definitiva, <·omo covil de homicidas que constant<·mente s<· abre na história;
matciialista. E de constitui essa <·ontradi(;ão exatamente porque cada nível
pois com certeza nesse covil justamente foi ckstn1ída uma porção de
da ddinição deve, por sua vez, tornar-se uma barreira para o quc- através
história, urna porção ele luz no momento <·rn que surgia. Não há dialética
:lcle foi definido e incrementado; em outras palavras: ponptc nenhum
a partir ela jJOfPnâa decidida, da pré-manifrstac:ão decidida de tal nada,
,·xislente j;í repr<"senta o c·xitoso na tendência para o tudo.;\ nmtradição
isto é-, ll,10 h,1 negação progressiva da negaçào: eventos clestrntivos corno
rrn n·lac;ão ao que passou a <·xistir externa-se tanto no Sl!jcito quanto no
a Gtl('rra do Peloponeso, a Guerra dos Trinta Anos constituem pura
:>l~jcto do processo, corno os dois lados da mesma realidade movimentada.
desgra,;a, e não uma guinada dialética; os mortidnios cometidos por
\Jo s1~jdto nrnsdcnte ou humano surge a contradição sul~jctiva cm rda<;ão
Nno, 1litkr, todas essas irrupções de aspecto satfülico são próprias do
10 <1m· ganhou existência l Geworden!teitJ, no objeto co1n·sponck-lhe a
dragiio do abismo mais profundo, e não estào entre os eventos que
·cmtradiç,io objetiva que ocorre no próprio existente, como seJl(lo a kndfaKia pmmovern a história. Outro já é, contudo, o cfrito da uuiào do uso que
1ue <ivoluiu até a fom1a de existência seguinte, mais rn<"diada pelas forças .~e dá em uwnife~tações não tão decididas do nada, ali nas negações
>rodutivas. Nesse tocante, o ainda-não é tanto mais ddinido, sua tcndênda imtmentes à coisa em si, ou seja, naquelas em que a história segue adiante.
:rn dirq;ão à realização plena é tanto mais forte, quanto mais ol~jetivalll('llte Nest<· caso, o nada serve perfeitamente ao bem, e o ato de aniquilação
:olnC'ionáveis tiverem se tornado as tarefas que se propôs. No entanto, deve-se torna-se produtivo como negação, sobretudo como nega<;ão da negação.
·ontinuar mantendo em mente como extrernarnentC' decisivo o s<'guinte: o Desse modo, a dialética através do nada consiste em que todo o existente
ião apenas como mero ainda-não somente poderia intranqüilizar tanto sul~jetiva ainda não exitoso porta em si mesmo o germe de seu próprio
pianto ol~jetivamente o que passou a existir em sua forma inadequada; de fenedmento, mediante o que, ao mesmo tempo, dedara-se gueITa à
ião JX>deiia explodi-lo imanentemente na forma que foi referida. Explosão é pcrmant':ncia no provisório da respectiva existência já alcançada. Essa guerra
miquilação: e o ato de aniquilar, tanto per dejinitiormn como pela coisa em deve aliar-se à persistente insaciabilidade do ainda-não e pôr-se a seu serviço:
i, só pode ser obtido pelo nada que está rondando. Por isso, o não, ao o inadequado é retirado do caminho que leva ao tudo, deixa o existente e
mscar o seu tudo, incorre- na base do "morra e passe a existir" - igualmente vai para o não-mais-ser do orco. Sim, a dialética através do nada se refere
1.u-ma uniâo cmn o nada, assim cmno tem uma com o tudo. O fenecer e ruais att' mesmo ao gigantesco complexo do que passou a existir, que se eleva
inda a aniquilação existem pelo fato de que a mudança do processo e o acima do processo, nâo como o tudo [ Alies], ma,~ como mera totalidade
1róprio processo são rondados pelo nada ou malogro, que constitui arneaça [Alll ou mero universum, que substitui o tudo também em todas as
onstante. Da mesma forma, ronda o fenecer um tudo - ele qualquer modo perspectivas puramente cósmicas da filosofia, de Pannênides até Espinosa.
inda insuficiente -, aquele que torna possível o êxito relativo, sobretudo O universo é o substituto do tudo, primeiro no sentido mítico-astral, depois
no panteísta, por firn no mecamcista, e ocupa o seu l11g-a1 nm10 supra- ri,· 11111 nada a-e\Dentemenle peneb-ido, então certa:mente também da utopia. Esta c11L1c,
sumo do mundo dado e da satisfação em relação a ele. Ele se mauifrsta, al>1·a11gc totalmente o ainda-não, bem como adialetização do nada no n1111ulc ,;
então, como o todo do movimento que não se move, como harmonia do da, 110 entanto, tampouco esca1noteia no possível-real a alternativa abnta f'/1/11·
que passou a existir, em que as diferen(aS do devir e o déficit das o nada afooluto e o tudo absoluto. A utopia é, na sua forrna concreta, a vonlack
particularidades se compensam corno na lei dos grandes números; ele é t<·stada nrmo ao ser do tudo; nela atua, portanto, o páthos do ser, <jlll'
uma estabilidade evadida, positiva. Mas a dialética através do nada até ;111teriorn1ente esteve voltado para uma orckrn do mundo, até uma ordem do
mesmo nmscguiu abranger a aniquilação do mundo, atestou ao universo supramundo, bem-sucedida, supostamt"ntc fündadajá de modo bem-acaha< lc ,.
sua provisoriedade, fazendo uso do nada. O on:o, na físi('a designado de Poré1n, esse pâthos age como mn pâthos do ainda-não-ser e da esperanc;a clc,
morte térmica, na mitologia bem ao inverso ck combustão cósmica, traz .1wrwmm bonum que está nele; e: após todo o uso daquele nada em que a
dentro de si fisica1nente o nasdmento de urna outra totalidade ou universo, história ainda continua, ele não tira os olhos _justamente do perigo ela
utopicamcnte mesmo o nascimento de urn tudo que preenche lotahneute. aniquilação, até nwsmo do <Ü/i.nitir,um de u.rn nada, hipoteticamente ainda
Novo cfu, nova terra e a lógica do Apocalipse prcssupÕ<·m a mudança possível. Decisivo, neste ponto, {- o trabalho do ot imisrno militante: assim co111c,
dialética de função do fogo aniquilador de 1·esto considerado satânico; todo sem ele o proletariado e a burguesia podem s11nunbi1· na mesma barbárie·.
advento urnlém o niili.Hno como derrotado-uJado, a 1nortc corno tragada assin1 sem de pode persistir a amca<:a, lauto no sentido a1nplo quanto 110
pela vitória. O malogro e a aniquilac:;ão até constituem a ameaça constante profundo, do t!Rji:nili:rru.m na fonna de 11m mar sem costa, ck mna meia-noit<·
a todo processo-cxpcrimcuto, o esquife permanente ao lado de cada sem oriente. Esse tipo de d,fi.nilivwn caraclnizava, então, simplesmente o cm-
es1w1-a1H:a, mas são também o meio que rompe o imobilismo inadequado. vão do processo histórico, e, como ainda não onmido, está tão pouco excluído
E não por último a dialética através do nada se imiscui cm todas as quanto, no s<·ntido positivo, o dtfiniJiriwn rll' um tudo q·1w a tudo /;reenche. Resta,
j)()sitividade.1 significativas, neste caso não como ameaça a das, mas como portanto, por fim, a alternativa n·vcrsívd entre o nada ahsoluto e o tudo
seu importante negativo, como dificultação de sua e11idhu:ia. N<·ssa absoluto: o nada absoluto é o malogro sdado da utopia; o tudo absoluto - na
dificultac::ão, sentem-se cm casa o pretume, o elernento incluído de aspereza, pré-manifó,la(.'iio do reino da lihenlack - é a pk1lificaç;10 selada da utopia 011
de snspei<;ão, qm· impede o mero cor-de-rosa também em zonas mais o ser· c·omo utopia. O t1iunfo do mula no final havia siclo imaginado
elevadas. O prctumc impede o aplanamento, na medida em que este é mitologicanwnte como inferno; o tri1111fo do tudo no linal, corno céu: na
produzido pelo lnilho barato, pela apoteose podre; no lug;ir destes, atinge- verdad<', o próprio tudo nada é além da úLm.li<LuL1 do homem qu,;i atiu em si com.
sc,.jnstamcntc pela não-lisura, pela aspereza, tanto a profundidade como a o sea mur1do, que para ele tomou-se exito.m. A fo1sc- n-kn:nl<' ao q11t: 1Dafl-Satz],
sublimidade. Se o tremor é a melhor parte da humanidade, então "no ptinápio era o ato", a frase refercnt e ao t I ido I ltlles-Satz 1, "o insuficiente
exatamente o nada em relação a qualquer lisura, a toda soluc,,·ão aqui se faz" - as duas frases não idealistas c-stabckcern o arco tendencial da
pn:viamente combinada, é pensado no tremor da sublimidade e t rag-ado rnatfria que se qualifica. Nisso tudo, a nossa invariante intencional
juntamente com ele. Assim, o nihil, para o qual a Melancolia, de Dün-r, permanece: naturalização do homem, h11manização da natureza -
volta os olhos, é também um elemento de uso e fonnat,:ão da admiração compreendida como mundo totalmente mediado com os homens.
positiva ou da percepção do tudo 110 sentido confiante. Sim, só quando se
levar a sério a consciên<:ia enon11c111ente inflada do nada no mundo, até UtofJia não é um. e:,tado duradouro; ·ma:, entiio carpe dicm, só que
no aparente supranrnndo, apresentar-se-á a inaparência t:entral de uma autenticamente num presenle a11.l!?nlico
aterrissagen1, de um tudo, que ah~ aquele momento havia sido e1Koherta Em vista de tudo isso, o agora, sendo apcrn1s fugidio, uão é o correto,
pelo júbilo cósmico ou ainda por tronos, poderes, grandiosidades. Através não é o que deve ser. Mas tampouco deve havei· nm sonhar que se aITasta
disso, o estado adiantado do nada, irrompendo na histó1·ia com força e-ada infinitamente, em que o desfrute presente é dificultado, ou até se foge
vez maior e não sendo por ela gradativamente encoberto, concedeu à própria dele. Fato é que o utópico, em última análise, não é nada se não aponta
dialética 1umo ao tudo um poder nm.1/ il 11/ivo. A utopia avança, tanto na vontade para o agora e não busca o seu presente derramado. Como presente
do sttjeito quanto na tcndência-latt·ncia do mundo em processo; atrás da autêntico, não mais como um prese-ntc composto do agora, do recém-
ontologia estilhaçada de um aí pn-tensamente alcançado ou até pronto. deconido e do simultâneo do espaço envolvente. Com certeza, o agora
Desse modo, o percurso do processo nmsciente da realidade é, de modo meramente imediato, transitório, é muito pouco; ele desaparece e dá lugar
crescente, o da perda do ser estátin> lixado e até hipostasiado, o percurso ao próximo, porque nada nele chegou a ser exitoso. Em vista disso, Jean
Paul sente algo verdadeiro quando diz: "Se para o <·01 ;u:ao nada mais 11hípico: "O presente está algemado ao passado como de resto os prl'sos .,
houvesse senão o instante, podeiias dizer que, ern torno de 1nin1 e dentro ('ad,ívercs, e o futuro puxa na outra ponta; um dia, porém, ele sení livrl'".
de mim, está tudo vazio". Porém, ele diz coisas errôneas contra esse vazio, Nada repugna justamente a consciência utópica mais do que a utopia c·o111
quando reifica, no lugar dele, o passado, até mesmo o futuro; quando, d<' lránsito ilimitado; infinitude do almejar· é trapaça, inferno. Assim c·omo
modo romântico e idealista, não que1· pennitir que adentrem o presente. <·m vez dos instantes permanentemente passageiros ou dos meros apetitivos
Quando ele - tendo a sensação autêntica da obscmidade do instante vivido, deve haver uma contenção, também eleve haver, em vez da utopia, 11111
mas igualmente na pcnnanência absolutizante na memó1ia, até na esperança presente e na utopia ao menos um presente in ~pe ou um presente utópico;
- menospreza da seguinte maneira, não só um carpe diern insuficiente, e· bem no final, quando não for ruais nccessáda nenhuma utopia, o SC'r
sofiivelmente exte1ior, mas também qualque1· presente: 'Já que vós nunca deverá ser corno a utopia. O conteúdo básico ela esperança não é a
podeis vivenciar belos dias de modo tão belo quanto eks resplandecem esperança, mas, pan-1 não deixar esta passar vergonha, ele é ser-aí sem
posteriormente na n1<·mó1ia ou antcrionnC'nte na esperança: por isto, distanciamento, pres('ntc. A utopia só trabalha em prol do presente a ser
prefr1ist.es o dia sem ambos; e já que só se escutam os tons suaves das alcançado, e assim o presente, sendo a aush1cia de distanciamento
esferas da música nos dois pólos da abóbada elíptica do tempo e intencionada para o fim, eslaní, no final, honifado pm· todos os intervalos
absolutamente nada no centro do presente: por isto, pr<'fcris permanecer utópicos.Justamente porque a consciência utc>pÍ<'a não se dá por satisfeita
no centro e prestar atenção, mas passado e futuro- ambos nenhum homem com o prenuiamente existcnte,justamcnh' porque o tdesc·ópio de maior
pode vivcncíar, por serem apenas dois tipos distintos de arte verbal do alcance é nen·ss,irio para enxergar a verdadeira estrela "Tena", e o nome
nosso coração, uma Ilíada e uma Odisséia, um paraíso de Milton perdido
do telescópio é utopia concreta: justamente por isso a ui opia não tem em
e reencontrado-, vós nen1 quereis escutar e penuitircpw se acerque, apenas
vista um distanc-iam<·nto eterno <·m rchH:ão ao ol~jcto com o qual ela deseja
para ficar aninhados como surdos-mudos num presente animalesco". Até
antes coincidir como se não mais fosse um ol~jeto estranho ao Sl~jeito. O
onde o idealismo de Jean Paul con<-e<lc ao futuro nrn presente <' uma
que::, por nn1sa do <piai e em fnn\·ão de nijo esclarecimento a odisséia do
realidade integrais, cv.i<kncia-se um m<·nosprczo dC'ssa palpabilidade,
mundo c·st;í c·m curso e ainda não é uma odissc~ia da imobilidade, não se
conseqüentemente uma reificação do almejar, uma etenlÍzaçã.o da utopia:
lanc;a eten1amcnle em projetos e processos; pois o int,múvum desse quê
"Se aqui embaixo, digo eu, a arte verbal se tornassc vida e nosso mundo
quer, c·rn sua essência, unican1ente mn n·sultado sucinto cm vez de um
bucólico, um rebanho de ovelhas, e cada sonho, um dia: isto ap<·nas
processo infind,ível. Por mais grave que s<:ja uma parada que causa uma
aumcnta1ia nossos dcs<jos, não os satisfaiia; a realida<l<· mais <'kvada apenas
geraria uma arte poética mais elevada, memóiias e esperanças mais elevadas co11tcn~:ão 110 estar-a-caminho e sendo da ainda mais grave do que o próprio
ainda - na Arcádia ansiaríamos por utopias, e por sohn· cada sol veríamos estar-a-caminho absolutizado, é correta toda contenção cm que não é
afastar-se um profundo céu estrelado, e ... suspiraríamos como fazemos aqui" escpwcido o momento utópico presente do próprio estado final, em que
( Titan, 45º ciclo, no final). Estas coisas, todavia, são ditas ap<·nas ek, ao contrário, é mantido pela consonância da vontade com o estado
melancolicamente e não com aprovação; ademais, na profetizada infinitude final a11tcc-ipado (.mrnmum bonwn). Esses rnorne11tos estão cm todo trabalho
do anseio é profeiida uma advertência contra todo utopismo, que considera ·•. rt>vohKionátio concreto, na realização do proletariado como supressão da
como conteúdo último do destjo uma Arcádia cm forma de frcscor filosofia, na supressão do proletaiiado como realizaç;fo da filosofia. Eles
intensificado de verão ou ainda em forma de rebanho de ovelhas resignado. estão cm cada articulação do ser si-mesmo ainda desconhecido através da
Entn·tanto, onde de antemão, como no caso da Arcádia, o que impulsiona pré-aparência artística e no foco de todas as articulações da questão central.
é meramente o desejo de fuga e do contraste fatigado, a fuga certamente Eles estão até no estupor da admiração negativa, e mais ainda no bonifamento
logo prosseguirá-justamente ansiando, suspirando por deixar novamente com a admiração positiva, como uma aterrissagem anunciada. Há aí
a Arcádia. Com isso, todavia, o próprio Jean Paul, ao lado de Goethe e perfeitamente um presente utópico, bem no sentido do início da supre:;são da,
Gottfried Keller o maior mestre da desnição visual em língua alemã e da distânâa entre sujeito e objeto, portanto, no sentido da própria distância utópica
superabundância dourada do mundo, despede-se por fim do utópico que está se supiimindo. A agulha magnética da intençâo começa entâo a moverº
eternizado. Ademais, é o lado político do democrata presente nele que, se para baixo, pois o pólo está próximo; a distância entre sujeito e objeto deixa
em função das "auroras para a Alemanha", liberta-se no final da mera de existir quando alvorece pré-conscientemente o ponto de unidade em que
fixação onírica romântica no agora-não. Por;.tssa razão, o próprio Jean os dois pólos da consciência utópica, o instante obscuro, a adequação aberta
Paul concede a última palavra à vontade volta~a ao presente, ao presente ( em relação à intenção do quê), atingem o ponto de coincidência. Desse
ponto, a utopia condizentemente não passa; ela passa a i11l<'gra1·, a11t<'s, o ;1ssim deveria ser a eleita para ser mna tal. Os tra(,"os q11<·1 idos p;1i1 ;1111
conteúdo desse presente, isto é, a presença do conteúdo do quê,juntamente diante dos olhos como imagem, e o atrativo exterior deve cm-rcspo11dc1 .i
com o seu mundo não mais alienado, não mais estranho. Aquilo que pode des, senão ele, como alguém a serarnado, não consegue inflam,u-. Porta111«,.
ser intencionado como tal presença, como tal identidade manifestada, ainda o atrativo exterior, para que inflame, não é apenas acolhido, por exc-mplo,
não se encontra, como infelizmente pode ser muito bem comprovado, em como o primeiro que aconteceu, mas ele é escolhido em virtude- da
lugar nenhum daquilo qut> ganhou existência, mas ele se encontra inclinação, da preparação interior. O que se tem em mente então, os traços
iITecusavdmente na intenção rumo a de, na intenção que não foi rompida vindom·os da figura, de falo não são divisados claramente, mas são inquiridos
em lugar nenhum, e se encontra inconfundivelmentt" no próprio prncesso com nitidez e ecletismo. l Jm reflexo plenificador dos mesmos adeja e marcha
da histó1ia e do mundo. Este pnKcsso experimentou menos ainda uma adiante deles; os que são esperados esperam, eles próprios. Com esse olho,
ruptura por meio de um cm-vão e um nada decididos. Por essa razão, a com esse contorno, vem subindo pela manhã alguém a ser amado, pára
identidade do ho1ne1n que se tornou cônsdo ck si mesmo com o mundo diante da porta algo clista111e. Muito ceclo, muito moço, muito rapaz fez,
bem--sun:dido para ek aprest·nta-se c·omo mero conceito limítrofe da utopia, assim, cssa sua escolha cntusi,íslica, muitas vc·zes ela l(·rn c·frito duradouro.
sim, como o uto/Jis.1imutn na utopia e precisamente na utopia c·o11creta: Às vezes a csn>lha se deu em casa, <'lll traços isolados elo pai e ela mãe, às
e11tn·tan10, c·sse n1ais c·sperado na esperança, chamado de h<'lll supremo, vezes na rua, às vezes 1111m roslo rctnttado. Nesse ponto, muita coisa
representa igualmente a região do propósito final, na qual se situa todo permauec·e 110 interior, um sonho daquilo que niio se· conhen: ou o que
estahdecimento sólido de propósitos ua luta pda libcrta(,"ão ela humanidade. ainda não pode S(T aka1H;aclo. Por nm hom lernpo o amor se atém
() tudo no sentido identificador é o em-ab.10lulo daquilo que os lw11um.1· no exdusivanwnte ao sonho e ,t imagem neste conlida.
fundo querem. Desse modo, essa identidade mesma est,\ depositada no fundo
c·scm-o de todos os sonhos acordados, de todas as espc·t,lll(;as, utopias, e é O ef't'i.to f){)r meio do mtmto
igualnwnte o fundo dourado sobre o qual as utopias concretas são aplirndas. Ek se t·xpressa co1U mais darcza quando cnxerga a si própiio numa
Todo sonho diurno sólido refcff-SC' a c·ss<' fundo duplo como p,i11ia; de é a imagem. Assim, rno<:as ele 0111rorn ,l<T<"dilavalll vislumbnir o seu futuro
experiência ainda rn'io encontrada, a ainda-não--cxpc1iência cxp<'1·imentada mai-ido na noil<' ck Sa1110 Andrf. Ou as moças proc11rnvam 111lla brnxa que
('lll cada cxperi<"llCia que OCOIT('U ai<- o lllOJllC'lltO. Uws mostrasse o noivo no chamado espelho ela terra, apcís uma nll'iosidade
tC"merosa lê-las inebriado. K.athchen d<' 1kilhnmn t· o conde W<'lter von
21. O sonho diurno em forma encantatória: Pamina ou a imagem StrahP7 apan·n·m um ao outro ac·ima cio tempo<' do C"spa~·o na sonamhúlica
como promessa erótica noite de São Silvestn-; .Elsa dC' Brabante V<' o seu cavakiro tllllll êxtase
semelhante. Um cspdho da tc1-ra está também c·oloc·,ulo no espelho mágico
Isto abrasa-me a alma, efica aula vez maior; da cozinha da bruxa c·om a "mais hcla figura de m11lhc1·"; mesmo Helena
eu a estendo cada vez mais ampla e dararrumte; no palááo real ap,H"<'C<' primcinunente co1Uo uma imagem difusa. Mas
e a coisa, embora longa, de fato fica quase pronta depois, mediante uma magia secularizada, lwm mais expc·i-inwntávcl, entra
na minha cabeça, de tal modo qwi drj,ois admiro en1 c·cna o retrato propl'iamt·ntc dito, s1!jeit,mdo t·tulic:amente a vontade,
em espírito o conjunto, r:omo seJósse ocasionalmente tambérn a não-vontade, pelo c-ncantamcnto. O
um belo quadro 011. uma IH!lapessoa, encantamento abrange desde o conton10 da sombra e da fotografia até a
e na imagi,nação ,,wm a ouço na seqüênria pintura representativa da mulher ainda desconhecida; o original pode,
em. que deverá vir depois, mas tudo de uma só vez. além disso, estar envolto em perigo ou ck próprio constituir um perigo, o
M07.m.1 que intensifica a aura. A melhor maneira de caracte1izar esse mc-io especial
do amor, que assim surge, é, con1 justiça, o conto, um conto de Grimm
A terna manhã sobre o leal João: "Após a minha morte", disse o velho rei para o leal João,
Sonha-se tanto mais quanto menos se vivenciou. Sobretudo o amor "mostrarás ao meu filho todo o castelo; só o último aposento no longo
pinta o que é seu sempre antes de possuí-lo. Ele imagina a fulana, o fulano
de modo vago, antes que tenha aparecido corporalmente a criatura assim
digna de amor. Sonha-se um olhar, um contorno, um jeito de caminhar; :n Os amantes na peça Da; Kathchen 11or1 Heilbrorm, de Heinrich von Kkist (1808).
corredor não lhe mostrarás, onde está o quadr-u ela filha do I ci ontlto pda por causa da nossa fé ela muito suporta,
cúpula dourada. Se ele vir o quadro, sentirá um amor intenso por l'la, e é na vossa pátria que ela está sofn·ndo".
cairá desmaiado no chão e, por causa dela, correrá grandes riscos". Não
obstante, o jovem rei vê o quadm proibido e nenhum perigo consegue Assim, Mortimcr viu o retrato de Maria na França; o brilho sc11s11al
amedrontá-lo até- conseguir conquistar a amada e trazê-la para casa. Assim .~nprassensual do catolicismo saía dele e ateou mn êxtase pictórico que impeli, 1
surge o encantamento pt'lo retrato, mais precisamente, não se trata de o cavaleiro, num s6 movirnenlo, ao encontr-o da rainha escocesa e da Maria
uma magia por analogia que deve atingir q1tern está sendo representado, n·lestial. Porém, como motivo pt'nna1wn· a utopia pictórica do romance ch-
mas de 1tma que, ao inverso, atinge o obsc1vador, sendo erotizado pelo cavala1ia gótico e· também han-oco: a paixão associa-se com a piedosa
ol~jcto n·tratado. O encanto de um sol distante atinge, através da lupa do veneração de imagens, com uma adoração de Maria tão fortemente alterada
quadro pintado, o homem diante dele, provoca nde uma inquietação e secularizada que chega a transformar o caw1kiro em Perseu que liberta
utópica. Esse tipo de efeito de po<,:ão do amor, ministrada pda antecipação Andrômeda, em cavaleiro cm cruzada pda mulher feita p1isioneira. /\s
pintada cm quadro, é mais detalhado do q1te o dcs<Tilo po1· Grimm na andanças dos cavaleiros se perder,un, mas o barroco que acolheu o n101ivo
história do príncipe Kalaf e ela princesa Turandot, cm Mil f 11,111 dia.1. O do envio para l11gan-s distantes ainda n-percute de modo maravilhoso e pum
príncipe Kalaf pretende contemplar s<·m nenhuma exdtação a imagem da em Mozart, bem entendido, muna mi11iatm,1 em que se lransfónnouoquad,u
pc1ig-osa Tnrnndol, seus tra<:os vitoriosos e fatais, esperando atf descobrir pintado, na canc;iio de Tamino: "Esta imagem é enrnntadoramente bela''.
falhas ndes; logo, porém, é dominado pelo fogo que o abrasa a pal'lir da Pamiua exibe a figura mais doce de Iodas as amadas ideais e, através da
pré-apari.'-ncia. O motivo chinês ingressou, vindo do Oriente, na ordem dos mlÍsirn de sua p1·é-aparê·11da, a lignra mais essencial. A delicada miniatura
cavaleiros européia e na sua figura idealizada, o Amadis ele Gaula. Amadis de J>amiua esl,Í na mão de Tamino, a qual a envolve c·omo a mais tema
<l<' (~aula, p<H'lanto, o original do cavaleiro ideal europeu, viu a imagem moldura; Pa111i11a olha para o jovem 11a hdcza suprnterrcna de sua próp1ia
de Oriam1, uma princesa inglesa, niío uma princ<'sa chinesa: apesar disso, ca11<,·,10; das<· exihc pa1,1 Pami110 como imagem m,ígica <' como ligura musical
justamcnle aí a magia do n·trato transforma o amor num Oriente completo. de s<·11 amo.-. O motivo ela princesa T11ra11dot reaparccc, scm o mesmo
Impele a aventuras, obst,ículos, pc1igos sem conta, por todo o mm1<lo então refoiamento, mas com a magnctiza<:ão da 111i11ia111ra de J\ jlat1,/{I, 111,úgica, em
nmlwcido, até ao sultão da a11tiga Babilônia e à fantasmagoria do inferno, Dnjli1)p/'nd1- l lollúndn [ () holand17.1 1/0{Jdorl, d(' Wagun. A sua imagem prende
até- que a união se cousrnnasse com i-xito e ele caísse nos bra(·os de Oriana, Sent-1 no <'tH'anto e· na esp<-r,mça, opticam<'llle na efígie i11q11ictaclora acin1a
o pri-mio por sua nobre <·ondi<;ão de cavaleiro. O que Turaudot pnnnetia da poria, 11111sicalm<·11t<' na balada demoníant. O ucohannco de Wagner
<·omo imagem a Lady ck Amadis manteve em todo o percurso de sua como 11111 todo tem pn·dik<,·ão por variar a forma desse c11c,11110: ni'io pictórica
conquista e não perdeu depois da conquista. Schiller apenas retrnhalhou o na visão que Elsa tem de Lohengrin, mui lo anl<'s d<' ti--lo visto pessoalmente,
tema ele Turnndot; entretanto, de Amadis e do seu serviço de amor, da pictórica ua preparação, ainda que inclin·ta, de Eva nos M1,islen-i-ngn- 1. Mestres
mulher como imagem e semelhante a uma imagem, ainda brilha um raio canfrm,sl, uo que se n·frre a Stolzing. "O que provocou em mim dor tão
intenso de luz sobre Maria Stuart, o p1imeiro comparecimento de Mortimer súbita foi ter visto já h,i muito tempo sua imagem", a imagem de Davi, "como
diante da rainha está perfeitamente sob esse signo: o pintou para nós o mestre Diirer". Sintomatic·,un<·nt<· o pr·édio aimla baIToco
da ópera tem a imagem de Turandot pendurada cm suas pan·dcs c·om mais
Certo dia, frcqiiência do que o teatro.
olhando à minha volta na residência do bispo, I hi muitos exemplos desse tipo; todos eles estimulam a sonhar e
caiu-me na vista uma imagem feminina, prometem. Nem mesmo é necessário que a imagem que o estimula seja,
de atrativo singularmente tocante, poderosamente ela pr6piia, excelente. Sim, na experiência, longe do couto e da ópera,
tomou conta de mim até o fundo da minha alma, oferece-se para a ternura utópica até mesmo a fotografia. Dostoievski, em
e sem poder controlar o sentimento fiquei ali parado. O idiola, faz Mishkin ouvü- de Rogoshin notícias acerca de N ast,icia Filipovna;
Então disse-me o bispo: "É com toda razão ele vê- sua imagem, vê a expressão sofredora, mas altiva, rapidamente leva
que vos detendes tocados junto a esta imagem. a fotografia da moça aos lábios e a beija. Nesse mundo dostoievskiano, o
A mais bela das mulheres ainda vivas retraio é "a c·ontradição concentrada de uma pessoa, o presságio da beleza
é também de todas a mais digna de compaixão, na dor"; ele provoca não só a vontade de encontrar essa n1ulher, mas
também de livrá-la do seu rosto com amor, satisfazer-lhe o anseio p<>I" i11Jfü1da E11contrava-1uc nu1n sombrio sonhar
e inocência, que a imagem promete além da beleza. Razão suficiente para efitava sua imagem sem parar
o santo enfermo ou o louco sábio deixar-se iniciar nessa mulher através de
sua imagem. Pois quas<" sempre os que foram encantados viram,juntamentc c1i totalmente nessa nostalgia infrutífera. As canções peregrinas de Môrik('
com o perigo que envolve a amada, também o sofrimento da amada pelo nmservan1 a 1nesma essência interrompida, não de 1nodo sentimental, mas
fato de, ela própria, estar longe do amado, num lugar estranho, longe do <"<>nsternador:
amor; isto produz, ao lado da beleza, a mais profunda sedução. Até por
detrás da pintura da retraída-infeliz princesa Turandot atua ainda o Ah, ontem no luminoso salão infantil,
arquétipo de Andrômeda, que se encontTa cm poder de um dragão. Isso ao rintilar de velas graciosamente dispostas,
ororre, por fim, até quando o ídolo não se detém diante dt' nenhuma onde esqueria de mim mesmo cm alarido e gran:jos,
representação pictó1i<-a, por mais primorosa que da sc:ja, quando esta é entraste tu, ó imagem da tortura hda e compassiva;
totahncntc repintada pelo amor, quando nào é- este mesmo <{lH', no fundo, foi o leu espírito que à n·ia veio se assentar,
a pinta. Este foi afinal o caso em todos os referidos enn1ntamentos sentados c·st,ivamos, ('Stranhos, cm muda dor contida;
provocados pelo retrato, e culmina na mulher dos sonhos mais pum que por fim, fui en que prorrompi num ruidoso solu~:ar,
existe e no seu mais fiel sonhador: cm Dukinéia e Dom Q,uixotc-. Sendo e foi de· mãos dadas q11t' deixamos a casa.
assim, nenhuma outra além da D11kinéia de Dom Quixol<' é e c·ontinua
sendo a conccnti·ação de todas essas que foram amadas cm suas imagens, Nessa imagem do desejo não cmnpricla, embora corporalmente
tanto a admoestadora quanto a mais pcrkitamcntc utópin1. Deialhada até sucedida, esl,Í contida a tortura de um amor que n,10 vive e n,10 passa, que
o nível do cômico: uma 1·idíntla imagem ck l'dic-idack t·m lll<'io a uma perambula 110 crepúsculo de sua aurora, elcniarnenle retornando e
infrlicidadC' ridkula; c·o11<knsada como protofrnômeno de lodos os lll<'l'OS eternamente se despedindo. O rnesmo motivo dos inícios c·rranles repete-
seres oníricos eróticos: Dulcinéia corno aJérnme introu.vable. No entanto, a se, hem mais abrandado, mas emocionando justamente pelo que não
imag<'m da amada produz o prinwiro sonho acordado intenso tamhém expressa, na novela de Mõrike sobre Mozart; o poeta ele Pn,grina narra o
em silna(Ôcs fc-lizC's da vida; a i11w~o lauto substitui quanto C'nvia para o encontro de uma jovem noiva (a feliz noiva de outro) com Mozart e o
clesconhC'ciclo. reflexo posterior desse encontro: "Alguns instantes mais tarde, ao passar
pelo quarto grande lá em cima, recém-limpo e· novarnenle arnnnado, e
Nimbo em torno do encontro, noivado onde· as cortinas verde-dainasco cobrindo as janelas permitiam apenas uma
Difcrenl'e é o caso, por seu turno, em que a mulher j,í foi vista leve penumbra, ela se deteve nostalgirarnente diante do piano. Parecia-lhe
corporalmente, só que de relance. Neste caso, uma imagem igualmC'nte pcrfrilamcnle como um sonho pensarem quem, poucas horas atrás, estivera
envolve o evento, obtida a partir da primeira ou da última impressão. Por sentado diante dele. Longamente ela fitou, imersa em pensamentos, as
mais breve que tenha sido a primeira impressão, ela dura nnno tal, ganha teclas que Ele fora o último a tocar; cerrou, então, silenciosamente a tampa
contornos e cores. O olhar lançado sobre a que C'stá passando, e n:tirou a chave, um.cuidado enciumado para que t,'io logo nenhuma
desaparecendo, fica parado, torturante, não consumado, mas bem definido outra mão torne a abri-la". Aqui co1110 que se emoldurou uma realidade
em termos de imagem. Ou então oc01n· uma despedida slÍhita p<)I' oc·asião fugaz, todavia extraordina1iamente significativa; ao menos a imagem do
de um amor não correspondido, esfriado, sufocado, uma despedida cm seu desejo, que utopicainente continuou a interpretar essa realidade, foi
que o breve momento vivido já submerge outra vez, mas também se domina. conquistada por um amor irrealizável. Portanto, a imago da mulher que
Nesse caso, não é a primeira, mas a última impressão que fica, sendo passa, nunca mais encontrada, está misturada radicalmente nas imagens
adornada com os poucos tra<;os da frlicidade desperdiçada. A impressào se ideais da realidade interrompida ou incompleta. A'>sim, Hebbel escreveu
conserva, nos dois casos, con10 irnage1n mernorial, que, ainda assiin, não uma carn;;ào triste à desconhecida:
possui nada que tenha sido vivido atf o fim, mas continua a encontrar-se
diante da plenitude que poderia ter sido. Novamente pode haver uma Assim, meu olho jamais te reconhecerá,
imago doentia nesse nimbo, e novarncnl e este pode estar designando também mesmo se um dia passares por mirr1,
um tipo de amor dos mais humanos. A poesia de Heine: e se escuto lábios estranhos te mencionarem,
teu próprio nome nada me diz sobre ti. /\t1·· 11m pós ou semi-romântico naturalista como lbsen ainda 1'<-stcjo11,
Ainda assim, dentro de mim viverás eternamente, ('xagerou, de forrna espt>cialn1ente instrutiva, o mero valor matinal cio
Assim como vive um tom na atmosfera silente, ;1mor, o an1or co1no mero valor 1natinal. Isso ocorre de- modo
e se não posso dar-te forma nem figura, radicalmente boêmio em A comédia do amor, na qual Falk e Svanhild
nenhuma forma tampouco te arrasta à sepultura. -;<'param-se voluntariamente, justamente devido à afeição extrema qu<·
,-;cnte1n u1n pelo outro, para que o seu "an1or primaveril" não desapan·(."a
Sim, mesmo no caso elo amor bem-suc·cclido foi bonifada no seu 110 matrimônio, que é a realidade em que caem as folhas. Isto certamcnt<'
início uma imagem desse iminente, não-iminente; inusitada, confinada em [, desmedido, mas não é mais desmedido do que o choque de Menelau
finos fetiches, a manhã que <,stá surgindo fica imóvel. Na Sonata a Kreutzn; frente a sua I kkna egípcia, choque que aqui reaparece e engloba tudo
Tolstoi faz biilhar o C'into V<.Tmelho dt· uma moça; isso inflama o amor e isso, que- é pertinente a todo t·ssc lema. E não é mais desmedido do que
nem a lembrança ascética posterior esqtH·n·11 o cinto. Com que raio de mna outra personagem reacionária de lbscn, urna personagen1 que, na
feli<·idadc até mesmo o esp;u;o em torno ela Lottc de Werther fica imóvel: sua época, não foi dcstrntada corno romântica, mas por assim dizer como
ela mesma vem à frente, nítida e firme até nos topes vermelhos desbotados hipennodcrna: a M-ulltrr do mar; <·om o mesmo complexo de valor inicial.
no braço t· no peito e no pão prC'lo na sua mão; as crianças a cercam, e, Também essa mulher, l~lida Wangcl, r<'ili<·a um infrio que mal começou
voltada para das ela partilha o pão eh eia de ternura, fcmiui namente genuína, a se- rc-alizar <·, com isso, arruína o seu matrimônio. O elernento estranho
todo um cspct,iculo de bondade pnijetando sua luz adiante. Do meio de ao lar, ligado ao mar·, com ecrteza est,1 dentro da própria tJida Wangel,
um belo início salta, assim, a imagem que pcnnanc·cc· também postc1ionnente ao voltar os olhos constant <·me111<' para o oceano e para o homem estranho
como figura do noivado secreto, consc1vando-a na sua paisagem iutocada. do S<'ll primeiro amor, para a silhueta que de fonna lá long<· no oceano.
Nenhmna miniatura a precede aqui, <·orno a dC' Parnina, mas ela mesma se Porém, o que continua <'sscncial (- a imagem ilimitada do rapto,
forma no amor à p1imeira vista e compõe, com uma melodia que nesse contraposta d<: modo dccididam<·nt<' irr<"alista a um mundo que se lhe
quadro é- de puro afeto, o "sonho das Sll)>fflllas graças, celestial lnnw da dcparn sem <·xn·(."ào na estreiteza do fiorde. E o ofício Ut<>pico-abstrato in
manhã", <·orno canta o quinteto dos Mf:'i,1tm:\'i,,ngfr I Mestre-\' mntornsl. eroliâ. ~ continua <·m atividade; quem o dcsnTvc·u por último foi Spitteler,
eni seu romann· lnuigo, nas figurns do herói ohceeado pelo seu sonho e
O excesso de imap;em, a M1lvaçiio contra de, da bela Tcuda, que foi desprezada cm ficldiclade ;1 sua imagem. Casada
nimbo nn torno do matrimônio co1n outro, <·om o "governador·", da torna-se, por isso, "rnna fatia de pão
Conqui~tada a mulhff J>r~·tcndicla, na certa a fabulação em ton10 cortada"; mas o seu po_cta fantástico não quc:r aceitar a J'C'alidade, e a
dela rdlui. Ela, no entanto, não precisa desaparecer; sim, tanta imagem situação deslocada do mundo não lhe pa1·<·cc- bem até- que ele, o
de infrio só a contragosto torna-se carne. Sobretudo quando a imagem pretendente sensível e supra-scnsív<·l, 11ovan1C·nt<· se transforma no
dos sonhos se alimentava mais do amante que a possuía do que da amada pretendente supra-sensível. A inwgo-Teuda n,'io deve tornar-se real,
a quem se destinava. Daí que almas muito românticas, muito apaixonadas justamente a musa do poeta não suporta isso, corno é indicado por
pela época dos contos do amor jovem, ademais, tendo uma rda~:ão fraca Spittelc-r; após tanta fantasia, a realidade· tampouco suportaria isso. O
com a realidade, geralmente se destacaram no temor à realização, romance !mago é bizarro e excessivo, mas de verdade tem o seguinte: o
especialmente no ódio ao matrimônio. Aqui é apropriado lembrar, uma amor demasiadamente celestial não se torna terreno; um perturba o outro.
vez mais, Lenau, que se detenninou a relacionar-se para senipre <·0111 a A'>sirn, repercute, justan1ente também no amor-casamento, o problema
imagem da amada ao cruzar os mares bravios. E pocfr-sc lembrar, à guisa tão mais geral da realização, o decre:>cendo pela obscuridade do instante
de exemplo, também uma figura eriada, mas igualmente palpável, a saber, vivido e por seus efeitos. A sofreguidão pela imagem pura dos sonhos
a do maestro Kreisler, de E. T. A. 1-Ioffmann, que no amor via apenas as ante rem quase chega ao ponto de, sem se dar conta, sim, quando
imagens celestiais, no mahimônio apenas as sopeiras quebradas e, sendo examinada à luz do dia, parecer a si mesmo como o mais sublime. Pois se
assim, não queria trocar as imagens pelas sopeiras. Em tudo isso, a mesmo o inimigo anti-romântico de todos os sonhos idealizados, o
obscuridade do instante vivido e a reificação da Helena troiana estão, advogado da realidade, parece dar razão aos variados maestros Kreisler:
como foi visto, travestidas ro1nantica1nente, encontrando-se, no entanto, "Por mais que alguém tenha se desentendido com o mundo, por mais
também descritas e caracterizadas numa fonna patologicamente agravada. que tenha sido jogado de um lado para outro, ainda assim geralmente
acaba conseguindo a sua rnoça e algu1na pos1çao, c1s;1 e ,-t· lorna 111u 11111;1imag<·m ideal ddc próprio, portanto, ocasionalrnenlc, uma dispos,c ., ..
filisteu tão bom quanto os demais; a mulher está à frente da 111anutc11i;,10 pa1·a autotranscender o inato, o existente. Desse 1noclo, oc-011 e· ,1
da casa, crianças não deixam de vir; a mulher adorada, que antes era únic,, comprovação da imago no objeto e mediante o objeto; assim, ela c11co1111 :1
um ar~jo, porta-se n1ais ou menos do 1nes1no modo que todas as demais, o g-11arida. Todavia, se falta essa força para alumiar através da imagem 011
cargo proporciona trabalho e ab01Tecimentos, o casamento, uma esposa s<· smnente o amante possuía a natureza poética, numa irrealidacl<' l:io
rabugenta, e aí está todo o restante da ressaca" (Hegel, Werke XI, pp. 216 e insustentavelmente transbordante que Helena de fato lhe aparece cm lod:1
ss.). Muita coisa do que foi mencionado pode até ter se dado também fora mulher, então a catástrofe da imagem é inevitável em toda sua ext<·11s;10.
desst" fi.listé1io do bom lmrguês,justamcnte como melanc·olia da realização Nesse caso, não é só a juventude do amor que se retira de diante daq11d:i
que se segue ao excesso de imagens nesse nível. É essa melancolia que que se revelou como <'Sposa rnhugenta cm Hegel; é o matrimônio inl'c-li,
impele, de forma muito preocupante, de volta ao sonho de amor anterior que não tem mais nenhum n·médio a não ser, cm caso extremo, o dl'
ao fato ou ainda ao início do fato, fazendo com que de S(' <'ncapsule e tornar-se banal, uma sombra no á1rio insensível do inferno. Nele, o ol~jc-lt,
n·ifique em si mesrno <·01110 amor distante. Isso ocorre justamente porque arnado nnnn1 mais sení o que era antes, e1n contr·aslc co111 o matrimônio
a sua fabula, que contém basicamente apenas o amor dislante, reflui na feliz, no qual é J>ffSctvaclo para a imagem dos sonhos que havia siclo
realidade divisada; tanto mais segura é-, <·ntão, a memória da utopia constituliva um cspa<:o para comprovar-se, isto é, par·a desenvolver o q11l'
abstraia. Neste ponto, reside urna fonle da neurose propriarnc11t<' ulopista, foi exposto ,1 luz. Comprova-se- aí, ao 1nes1no tempo, um frescorque pocll'
ou sc:ja, da penna11ênc·ia no sonho aconlaclo, da fixa~·ão da imagem no ser capaz ele suprimir· tocla a alternativa habitual, demasiado habitual
signo inicial, no mcn> ponto inicial da realidade. nesse nrn1po, <'ntrc- sonho inicial<' fleuma. Pois justanwntc o utópico ele-
Contudo, o caso j,'í muda de figura quando a fábula não se fecha forma alguma cst,i reslrito ao alfa, como quer a psin>logia românti<-a,
parn o vindouro, quando a imagem niio só <ptcr ser pn:se,vada nc-le, ruas como se o restante cio alfabeto elas coisas fosse mero prolongamento
tarnb{-m comprovada c·m carne e· osso. E isso se da1·á no clccorrcr dos prohlermílin, ele algo já c·onhecido. Ao contr,írio, lam.bim. o matrirnônio
próprios fatos, assim que a p.-é-aparê·uc·ia, cm vez de apenas crescer pos.111,i a .11w 11,topia esfJedf'irn /'O/li, o spu nimbo, que não <'oincide com a
s11l~jctivame11te dentro ele si mesma d<' forma desordenada, tiver sido manhfí cio amor e, por isso, ck modo <1lgum cksap;u-ccT c·om esta. Essa
suficientemente estimulada pdo pr6p1·io ol~jcto [ Gegen.1landl. Pois a imago utopia htuta justamente da inulKº do amor, e a sua arte verbal sempre
ck urna pessoa querida j,í visualizada pode muito bem apresentar li-aços sení uma poesia da prosa, mas uma das mais significativas: a da casa. A
<JllC podem não sc-r lotalmente desprovidos de fundamento llo ol~jeto prúpria casa é um símbolo e, não obstante todo o frcharn<'nlo que lhe é
1(;pgen.1la:ndl. Nt'm lodo ol~jeto de amor tem a força de intervir na fantasia próp1·io, mn símbolo aberto; seu pano ele f1111clo é a csperanc,;a finalista
mediante a imago, faz{,-la mover-se em sua direção, por mais acolhedora do simholo da pátria, que se mantém ao longo da maior parle cio sonhos
que seja a sua disposição ou pela mera analogia do original com a sua desc:jantes e se situa no final de todos eles. Essa cspcrança é tão originária
imagem. No caso de o efeito da imagem viva apresentar uma evidê:ncia que ela não cede diante das imagens matutinas elo amor; ao contrário,
especialmente nítida, o próprio objeto deve ter apresentado um atrativo, ela j:-'i se transmitiu simultaneamente para a imagem de Lotte, para a
ou seja, uma imagem do desejo bem fundada nele mesn10 de, ao menos, paisagem do noivado secreto e do espetáculo ele bondade· que projeta
parecer-se com o objeto e a força de agir como tal. No estado real em sua luz adiante. Aqui na certa não se trata de nenhum ideal ela paixão,
que foi encontrada, Pamina talvez não seja assim como aparcc-c na imagem que, como tal, nunca é um constituinte do matrimônio;já na atração, o
para Tamino, mas a imago utópica que da provocou é precisamente a sua homem se livra da paixão. Menos ainda trata-se de um ideal do provimento
própria. Para a erótica vale, então, o mesmo que para qualquer i:mago social-sexual, da sexualidade racionalizada, que transformou o malrimônio
em seres humanos: os que sabem como estimulá-la são naturezas poéticas, na instituição mais burguesa da burguesia. Tampouco se nmsidera o
isto é, naturezas que possuem dentro de si uma boa pareda de fantasia matrimônio como atividade artística, com prazo detenninado desde o
objetiva, tendo a possibilidade a'al de tornar-se, num clima bom, aquilo início, como uma revolta intraburguesa contra o filistél'Ío antecipado.
que intervém na fantasia, o que elas, não sem razão, aparentam ser e Antes, a imago do matrimônio estabelece o espaço de desenvolvimento
in-adiam como pré-aparência. Sendo assim, o amor que não se esgota chamado casa em volta de duas pessoas, com suas muitas carreiras que
post festum no desfrute ou na decepção com as suas imagens mantém a levam para além do filistério. Isto sobreludo na sociedade socialista, que
fidelidade ao objeto do amor, ao que também no objeto pode ter sido não tem mais necessidade de estabelecer a família como refugi-um frente à
luta pela vida, rnas a 1nantéin ern 111archa con10 rnanikslac,10 111.iis p1·úxi111;1 () jHir .wblime, Corpus Christi ou a utofJia do ,na/ 1i111ú11 io
dt' solidarit'dade, tendo o parceiro como hóspede pennancute ua cas.i, a que já foi cósmica e aistomórfica
aliança da intimidade singular com base na diversidade especial. Ess.i O barco assim acolhedor foi pintado em tons dupla111e11I<'
t'ntidade é cheia de tensão, não sendo, apesar disso, dramática, m;,s 1 l'splandecentes. U1na cor tc1n·rn1 e uma supraterrena ofen--ccm duas
pe1fcitamente épica; assim, com boa dose de razão diz Chesterton, por ,11opias míticas do mat1imô11io. A p1imeira, pagã-aristocrática, pode s<'r
sorte consc1vador nesse ponto: "Todas as coisas que fazern da 1nonogarnia designada como a do sublime par, a outra classifica. o matrimônio como
llln sucesso são, por sua natureza, coisas não dran1;-1ticas: o crescünento
(:mpu.1 Chrúti. A categoria "sublime par" foi pouco considerada até agora,
silencioso de uma confiança instintiva, as feridas e vitórias comuns, a embora tenha aparecido logo após a sociedade matriarca!. Chama a
acumulação de velhos hábitos, a rica rnaturac;ão de velhos gracejos; o atenção que Bachofrn a tenha evitado, colocando sempre só a mulher 011
matrimônio saudável é uma coisa não dramática". E, apesar disso, o só o homem no nível malliarcal 011 patriarcal co1n·spondente. O sublime
mat1imônio está tão longe ele ser um mero adendo moral ao amor que, dois desenvolveu aí a mais siug11lar imagem ideal do matrimônio, també111
justamente cm cornpara~'ão com ek, representa uma novidade singular: a aos olhos dos que o conternplanun, e não só dos pan-eiros. Mulher <·
aventura da sabedoria erótica. De tal modo que da representa o homem, ele- cada um dcks se faz urna imagem •·oncêntrica cm si mesnia, a
experimento cxitoso 011 malogrado de 11ma com1111hão qu<· n;Ü> encontra p1imeira graciosa e boa-generosa, a outra vigo1usa e hoa-do1ninadora; mas
paralelo nem no amor sexual nem em <p1alquer comunhão social surgida só a união das duas é que se tonia hênc;,10 cm si. Ela se manifesta como
até o momento. Desse modo, o matrimônio revela-se como a 11topia que unidade de ternura e· rigor·, de HHT<'i"• <' poder, sim, de prostituta e profeta,
apresenta um dos moldes mais amigáveis e ao mesmo tempo mais rigorosos tudo isso dia11te do antigo pano de fundo mítico-astral da lua e do sol,
do conteúdo da vida humana; assim sendo, a s11a comprova<)<> n,to é mais também da 1.-·rra l' do sol. A mulher tem do se11 lado a cintilante deusa da
apenas, 11a verdade, n;'.io é mais de Júnna alguma a da imagem pi111ada de lua ou a sapi<'IIIÍssima deusa da terra, o homem, o resplandecente ser de
Pamina, a da imagem virginal do encontro. Adiciona-se, antes, à utopia da luz; ambos, unidos no céu }rnmano, podem e devem agi,· e doar-se no
imagem de Pamina na m;10 de Tanüno a música da prova ele fogo e da sublim<' par. O nimbo do sublime par envo!vc Pé1ides e A-;p,ísia, Salomão
água; esta não mais designa nem significa a noiva, mas o matrimônio, não e a minha de Sah,í, o "Hélio" A..n!ôuio e a "lsis" Cleópatra, Simiío Mago e
mais a paixão, mas a amizade do amor, quejustamente se chama matrimônio. Helena. Os dois IÍltimos, Simão, o gnóstico cio l<'rnpo de Jesus, Helena,
A própi-ia Pamina introduz a música da.ftdelúlade ou a comprova1;ão da imago uma hl"lc-ra ck Tiro, foram venerados pelos seus fiéis d .. modo especial -
para muito akm do mero encantamento inicial provocado por essa imago. O como a unidade de "Dynamis" e "SoJ'ía"; pela redescoberta desse
mat1imônio inaugura e passa pela prova de fogo da verdade na vida dos protomasn1li110, protofeminino, o mundo se lhes deparava como redimido.
cônjuges, no persistente afeiçoamento do sexo na vicia do dia-a-<lia. I Ióspede Através de toda a Idade Média repercute a reminiscência desse culto a
em casa, unidade repousante_junto com alteridack fina e ardente é, portanto, Simão e Helena do tempo de Cristo e se consc1vou, mediante a troca de
o que constitui a únago do matrimônio e o nimbo que de se propóc a obter. personagens, na relação entre Fausto e a Helena homhica. A Antihrüidade
Freqüentemente, como se sabe, escolhendo a op(ão errada, lendo a resignação tardia, em contrapartida, proporcionou à catego1ia "sublime par" exemplos
con10 regra, a felicidade c·omo cxcc(ão, quase como 11m acaso. E raramente o esp<'cialmcute aventurescos: o rei Eleagabal, como sacerdote do deus solar
matrimônio resulta na wrdade sobrcp1~jantc do que se espernva no início, ou sírio Baal, casou-se com a sacerdotisa da deusa lunar cartaginesa Tamit -
seja, mais prnfundo e não só mais real do que todos os hinos nupciais. Ainda dia e noite, Baal e Tamit nnm só. Além desses, concorreu parn isso ainda
assiin, de possui com razão o seu nimbo utópico: só dessa forma trabalha o outro mito astral, o mito babilônico do "casamento sagrado" dC'ntro do
símbolo idealizado da casa, que não é simples, mas sim significativo; só pr6prio Deus. Ele esteve presente na gnose, quando esta dividiu em
assim existe a perspectiva de uma boa surpresa e 1nalura~:ào. Assim como o masculinas e femininas as forças Ciiadoras que lançavam seus raios de luz
.~1 ,frimento por amor é mil vezes melhor do que um rnatrimônio infeliz, no
sobr<' a terra ("solo pr-imcvo e silêncio", "luz vida", "conceito e Sofía"), e
q11:d nada mais resta além de sofrimento infn1tífero, muito difusas sào as manteve-se na cabala. O ciistianismo, com o sen Deus-Pai sem esposa, não
.,vc11l111"as do amor em terra ern comparação con1 a grande navegação que pernlÍtiu ou apenas pennitiu vagamente a existência de um sublime par
1,.,. k .~<To ,natrirnônio, e que não cessa co1n a idade avançada, ncrn nies1no sobre a terra; o judaísmo cabalístico-gn6stico, em contrapartida, pe1niitiu
1 ,,111 .1 111orl<' unilateral.
plenamente. Tanto que o pseudomessias Sabbatai Zewi, ainda em 1650,
era acompanhado por sua mulher Sam, uma hetera como a Helena tí1ia,
na qualidade de "segunda pessoa da divindade". Sim, a i111age111 "Ta111i110- plc-11ilic1dos.O111;1111111ú11io ton1a-sc conrn11idadc in t11/u', 011 "l'f", o/ ,111/1111
Pamina" - oriunda de fontes helenistas - e a imagem "1''austo-Ikk11a" ':l11i.1ti t-Plralado por mulher e homc1n. Também aí cst,Í 11111,1 i111ag-crn, 111c •;e
influenciada por Simão Mago e a Helena tíria - perfazem poelicamcnh' o lnr111a apenas com o mat1irnônio e te-m nele, significando a casa, ., ~11;1
primitivo enlace matrimonial. Desse modo, a categoria do sublime pai p1omessa erótica, com uma aura sensual e sup;'a-sensual. Milhi>cs ai11d:1
queria evidenciar em duas pessoas, no duo eroticamente fixado, o que nos ,HTC'ditarn que, no sacramento do niat1in1ônio, este é firmado para dcs 110
cultos e no firmamento exterior não se juntava: lua e sol ao mesmo tempo, ctn e por isto pe1nianccem nele até a morte, apesar de uma possível misfri:1
com a mesma força ao céu, no céu. Não se sabe se a próp1ia nú})era wntribuens 011 catástrofe terrenas. Os próprios cô1tjuges realizam o sacramento po1
plefo algum dia chegou a essa imagem onírica; provavelmente ela contentou- 111eio do casamento, eles próprios já entram crn relação com Deus, corno o
se com contemplar os seus semideuses. No entanto, a imagem de tal união niador das almas infantis. Cada matrimônio, inculcou Pio IX, é por si só
ainda perpassa o nimbo de to<lojovcm matrimônio que ocm-re entre pessoas um sacramento, ainda que vazio de início; a pa1·ticipação do sacerdot<- <:
que se der.un bem. Essa imagem cousc·1vou-se expressamente tanto no kitsch exigida no único sacramento que não é dispensado pela própiia Igreja,
quanto em pares diu;ísticos (salteador e noiva do salteador, o príncipe 1ião para que o matrimtmio se ton1<· sagrado, mas pdo fato de o matrimônio

herdeiro e sua digna esposa) e la11~·011 sobre o matrimônio um forte ser sagrndo, <' assim a Ign:ja o pknifica mediante a sua ratificação. Na
resplendor, mesmo tendo desaparcc·ido o pano de fundo ;uistonático, certa, cu tão, no .1aownrnl111n j1lr,111un, o <Tente ir;í deparar-se no n1at1irnônio
mesmo tendo desaparecido o mito astn:1I. O parceiro à altura da mais bela corn urna trcuwnda rni11a de ouro; a esposa<' o <·sposo <·ncontrain-se numa
mulher ocupou por muito tempo a fantasia en'>tica da pcrfi.:i(ão, como imago sem igual. lk acordo com a doutrina da lgn:ja, eles se unem como
imagem do par perfeito <·m graça e força. E ainda que o cristianismo não membros consagrados do corpo de Cristo, para <kdicar-st· ao <Tescimento
mais tenha fundamentado teologicamente os sublimes pan-s, esse mito do desse n>1po, ,1 expansão do reino d<' Deus entre as criaturas racionais. A
par exemplai· continuou a existir na saga <lc Fausto e I kkna, na união de imagem <· o exemplo do matrimônio continua sendo a aliaw,:a de Ciisto
Pamina e Tamiuo (que Goethe continuou a tratar em A .flaula mrígü:a - com a sua comunidade: "Pois nós son1os rnembt-os do seu corpo, de sua
segunda f){Jtfr). Sim, corno "imagem do nosso dckilc", esse milo está em carne <· dos S<'US ossos. Por causa disso, o homem deixai·;í pai e rnãe e se
alta conta no livro Zu.leikado We~tiútlicherDivan, rckríndo-sc expressamente unirá ,1 sua mulher, e os dois serão uma só can1e. Gr~rndc {: <'si<' mistério,
à simultaneidade da meia-lua e do nascer do sol e ao que significa unir a mas <'li m<· refiro a Cristo e à comunidade" (El<:sios :>,'.30-132). O amor da
finura daquela com o poder deste: Sulamita por Salomão no Cântico dos Cârrtiw,1, com seus seios mais deliciosos
que o vinho, com seu amigo que desceu para pastorear 11osjanlins e colher
O sultão pôde fazê-lo, casou elc rosas, <'SSC ardente cântico nupcial é transformado derin1lmcnte e
O par cósmico mais sublime, apr('sentaclo alegoricamente como colóquio amoroso cntn· Cristo e a sua
Para designar como dei tos, connmidadc, como entrega da cabeça ao corpo, como purilicaç·ão cio corpo
Da tropa fiel os mais bravos. por meio da cabeça. Apesar da queda no pecado, os ,·mvos são membros
de Cristo, templos do Espírito Santo (1 Cor 6,16-El), sempre de tal modo
Tal é a singularidade evidenciada cm tudo isso pela biunidade da que o matrimônio esteja enraizado no matrimônio de Cr·isto com a
sexualidade, e da não dcs<·ansou até que acreditou encontrar no próprio comunidade e a sua expansão e atuação continuacla, que o seu órgão e
firmamento a sua sustentação. Uma unidade de seres humanos que são imagem estejam na criatura racional. Nessa imagem do matrimônio,
homem e mulher num sentido mais completo do que Adão e Eva, wn comunhão sexual e fidelidade a ela estão totalmente ligadas com a comunhão
sacramento do sol e da lua. O cristianismo, porém, não tem mais lugar religiosa e a social - contudo, somente na forma da com11nidade nistã
para isso, não só por causa do seu Deus-Pai sem esposa, mas sobretudo relacionada com o além. Para Paulo, o matrimônio ton1a-sc a união do
como religião não ligada a mitos astrais. Não tem mais lugai· num mundo discípulo e da discípula a partir do parentesco e da origem, para confundir-
em que a lua e o sol se põem do mesmo modo, extcrimi.dades com as se na imagem do novo Deus, para pertencer a de na nova casa; conforme
quais a utopia cósmica do matrimônio igualmente se põe. o ideal, a comunhão sexual torna-se comunhão cúltica. A uiatura, no
Em compensação, porém, surge a sua segunda face, uma face interior, entanto, adicionou bastante água e infelicidade ao vinho <lesse milagre;
que promete e compromete de outra maneira. Entrega e força, o serviçal mais ainda adicionou a sociedade nem um pouco cristomórfica, que, sendo
e a liderança não serão unidos no mundo, mas fora do mundo e assim romana tardia, feudal, capitalista, não pennitiu que o Corpus Chásti assumisse
a sua forma plena no contexto social. Todavia, a 111opia da videira 1· <los 111.111 i11101110, e 1pu- po1 11m longo tc1npo t<"nÍ o olhar lixado 110 pr 1111n1 o
ramos ao menos teve influência no refugiwn que a família quis se1· de111ro l•,11' o terá ao passar por caminhos solitá1ios, ao <·star 110 seu ~;1hi111"11" «h
da sociedade de classes, assumindo uma postura não antagônica. N:io cslmlos só com a fotografia da falecida sobre a escrivaninha, ;1_ja1wl:i q11(·
obstante todos os traços patriarcais-patriarcalistas e apesar dos pontos de ll'va ao jardim, à pequena cabana em que há tanto tempo não mais li;1vi.1
referência e ck fuga cxtranmndanos, não existiu nenhuma outra utopia do posto os pés. Para lá se dirige o olhar, por lá anda e vive a pós-image111: "()
amor qne tivesse levado o matrimônio tão profundamente a sério e tivesse ctu estava coberto de nuvens; o luar não conseguia chegar cá embaixo. l .. 1
lornado a sua imagem tão comprornissiva. O traço básico patriarcal, em l'lllbaixo, no pequenojanlim, a vegeta<;:ão exuberante fomiava urna 111as~.1
que o homem aparece corno "cabeça", ao rnenos estava incluído numa l'scura; apenas onde, entre neg-rns nrníferas em fonna de pirâmide, o trill,n
connmhão de amor de uma ordem mais ampla em que não deveria haver levava até a choupana de bambu, con1scava entre das o saibro bra11n1. 1"
mais clomina~·ão, nem solidão a dois. Un:u..1 Chrislim111.1 111.tllu.1 Christianus: da fantasia do horncm que baixava o olhar para aquela solidão saiu 11111
este· princípio de um coletivo como pano de fundo rclktc--sc, nesse ponto, vulto adonívd que uáo mais estava entre os vivos; de o viu andando la
como f{-, amor, espc-ran(:a do matrimônio. embaixo 110 trilho e teve a imprcss:"ío dc estar andando ao seu lado". <>
herói de Stonn suc·umlw, assim, ;1 sedução dos mortos; surge 11111;1
Pó.1-i magnn do amor inficklidack singular, totalmente intrinnula: de trai a sua segunda mulh<"t
Mesmo que uni sonho l<'nha se tornado realidade, de não o será com uma sombra. Chama a atcn<;:·ão que esse tipo deveras preocupante- d<"
para sc·mpn'. Se não for ek a ser levado ü cova, então sen'i o corpo que ele pós-imagem raram<·ntc- ocorre na artc· verbal maior, <·orno se o únic-o
enc·ontrou. A morte não interrompe o anHff, t· sim aquilo que era visível e
problema do vingador I Iamkt fosse o ban<pl<'IC' nupcial preparado com
vivo para ele. A vadnha m,ígi<·a da primeira impressão foi sc·guida, o ouro
comidas de l'tllHTal por causa de 11m e-rime·. Contudo, Conto., de inve-mo, de
era puro, o seu tempo acabou. Mas entiio p1-oduz-se novamente um sonho
Shakcspean-, <'stá rq>leto da for\·a da pós-imagem cn'>tica: da atua no anseio
anndado em forma de imag<'m, fint urna fHÍ.1-únagrm do amor, pknilicado
culposo do rei diante da <'Stát11a d<' I lennione; <' apenas aqui, no jogo leve
e·, no entanto, não pknilicado. Essa pós-imagem está t:"io distanl<' quanto
e misterioso de Shakcsp<·arc, uma piada profünda faz <·om que ele queira
possívd da visão dt' Pnegrina an'rca do amor não pknificado, da visão da
retrocecl<T, voltar com vc·<·mência para o passado e· torná-lo novamente
despedida <]li<' mmnt acontcn·, e ainda assim é similar· a ela 1111111 ponto.
presente; somente aqui a esl,ítua de uma vida passada-não passada volta à
Pois também a amada frliz pode tornar-se peregrina pda morte, 11a nu·dicla
vida. Isto é- uma solução típica de conto; de resto, na vida real, em toda
em que a m01·1<' lhe i- estranha, na medida em que da interrompe apenas
parle têm lugar graves complica(Ôes cm torno da p<>s-imagcm eróti<·a, uma
c·xte1ionrwnte. Sem dúvida há aí uma auto-ilusão muito difunclicla, ckscendo
imagem inquieta pelo fato de ser apenas imagem de algo que <'Xistin. A um
alé o l<.ilsclt que se scclirnenta na memória em torno do chamado "bcm-
arnm· <]IH' poderia ser belo facilmente são minist rndas po(Ôes rrnígicas que
avcnlurado" ou ela charnada "ben1-aventuracla";:18 cm lugar nenhum se
não o n:juvenescem, mas apenas o arrastam para um estado inlc-rmc·diário
Irai a dessa caricatura, nen1 n1esmo de unia kmbrall(;a tnmsfiguradora não
entre a primavera assombrada e a pós-maturaç;'io. Entretanto, deve-se
tão de mau g-osto. Porém, nenhuma pós-imagem do amor é isc·nta <k dúvida,
S(' não pôde formar-se já durante o tempo de vida do seu ol~jcto; neste
diferenciar: a pós-imagem enoneamente celebrada exdui a nova vida e
c·aso, na certa, ela é iniludível, justamente no seu resplendor. Como na eH("t•n-a a antiga num agora inautêntico, com todas as desvantagens do que
visão de Peregrinu, tambérn neste caso, da mcmó1ia nasce constantemente também na ótica psíquica pode ser chamado de "reflexo repetido". Em
a esperança, e da pós-imagem, uma prumcssa; a novela Viola Tricolm~ de contraposição, a pós-imagem corretamente assimilada, que nada tem em
Theodor Stonn, gira duas vezes cm torno desse pr·oblema. Nela, o desejo comum com o voltar atrás n1ediante o ressentin1ento nern corno culto aos
não satisfeito e memorativo atua tanto na niança que enfeita com rosas o mortos, pode ser a mais fecunda, pois ela ilmnina aquela esfera em que
quadro pintado de sua mãe falc('ida e, cm vista ela madrasta, esquece menos também o passado oferece a promessa de algo que ainda não se tornou
ainda a própria mãe, quanto atua no homem que contraiu o segundo existente. A amada falecida moveu-se e deixou a mera lembrança; a í111,ago
não permite um ansiar retrospectivo infrutífero, mas age como uma estrela
a partir do futuro. Em Pandora, de Goethe, Epimeteu visualiza a pós-imagem
até mesmo em tangibilidades do mundo existente, embora sejam
" lm,-1,,10 do 1,rovérbio alemão: "Não se eleve louvar o dia antes de anoitecer". transparentes; a Pandora desaparecida transparece:
Ela desce até nós em milhares de formas, 11111ito contraditória da saga, pois a esperança, com a qual /,<·11.~ l,1111IH:111
ela paira sobre águas, anda pelos campos, pn·lcndia consolar, por sua fraqueza, os homens criados por l'ro111clc11,
brilha e reverbera com sagradas proporções, 1·11<·ontra-se aí entre os males evidentes. Na versão de Hesfodo, da s•·
e a fonna só o que faz é enobrecer o teor, diferencia dos demais males apenas pelo fato de ter ficado no barril, 011
empresta-lhe, empresta a si o supremo poder; seja, de justamente não te1- se espalhado entre os humanos. Mas isso niio
a mim ela apareceu numa figurajovem, de mulher. faz muito sentido na tradição de l lesíoclo, a não ser que a esperan~·a
como mal se refira ao seu aspecto ilusó1io, também ao desprovido ck
Na Beatriz de Dante, esse tipo ele promessa erótica encontrou sua força que ela ainda representa por si só. Assim os antigos haviam retratado
fon,:a mais sen:na, a do en<·ontro ck efeito continuado com a ptTfeição Elpís: delicada, coberta de véus e fugidia; assim os estóicos queriam deixar
sagrada. Na sua morte, a Sanda aclara o lado de lá; a partir desse futuro, para trás as imagens da esperança, exatamente como as da angústia e do
ela própria ainda vem ao c·ncoutro, aguarda, a<·olhe, pknific·a. Onde quer medo. A mesma imprcss,'io ainda causa a incscp1ccível Spes, que André
que smja algo assim inconcchivelmente consolador, a amada, alvo da pós- Pisano fflraton no portal elo batistério <k Florenc;a: embora seja alada,
imagem, dcmonsll,t ser da linhagem de Beatriz. Essa imagem não acaba ela está assentada esperando e, apesar· das asas, levanta os braços, como
na pnrnwssa; com a mesma certeza, a fidelidade hem l'umlada desfralda- Tântalo, na dirn:ão de uma fruta fora do seu akanc·e. Por·tanto, a
lhe a esperança, não só junto ao túmulo, mas tambf-rn na presenlificação. esperan<:a, sendo bem menos aquinhoada do que a memória, pode
pan-ccr um mal se tomada pelo lado da incerteza, e a esperança ilusória,
22. O sonho diurno em forma simbólica: a caixa de Pandora; o bem infundada, certamente o(,-_ Mas é certo que também a espernnça infundada
remanescente não pode ser classificada entre os n1ales habituais do m1mdo <·orno se ela
fosse o mesmo que doença ou preocupação. Tanto mais distante do mal
Todo sonho pennanece sendo sonho pelo fato de ter tido muito est,í a esperança bem fundada, isto é, mediada pelo possível real, tão
pow·o êxito, <k l<T c·onst·g11ido kvar pouca coisa a termo. Por isso, ck não distante até do fogo-fátuo; ela representajustamc·ntc a p<)l'ta uo mínimo
pode esquecer o que falta, e mantém a porta aberta em relação a todas as entn~ahcTta que parece levar a objetos agrad.-'ívcis, nrnn mm1<l0 que não
c-oisas. A porta no mínimo entreaberta, quando se clit·ig<' para objetos se· tornou uma prisão, que não é uma prisão.
agrad:iveis, dtama-sc- esperança. Sendo que, como vimos, não h;í <'spcrnnça Quanto mais o tempo passou, tanto mais os antigos deixaram de
s<·m angústia ll<'lll angtístia sem esperança; ambas se mantêm mHtuamente recusar a esperança. Por isso, uma versão posl<'rior, hdcnista (também a
em suspenso, por mais que a esperança prepondere para o valente, por Pa11dora de Goethe se aprop1iou dela), apn·scnta o dote de Pandora não
meio do valente. No entanto, também ela, sendo possivdmentt· il11só1ia c-01110 recipiente da desgraça, mas, pelo contrário, dos bens, c·m última
qual fogo-fütuo, deve ser uma esperança sabedora, uma cm si mesma an.'ílise como caixa dos mistérios. Nessa vc:r-são, a caixa <le Pandora é a
previamente refletida. A saga sempre notável de Pandora faz a esperança própria Pandora, que significa: a "oni<lotada", c-hcia de atrativos, presentes,
ser trazida aos humanos por uma mulher, mas de modo demoníaco. benefícios. De acordo com a versão helenista do mito, também estes saíram
Pandora é delicada como Parnina, ofuscante como Helena, n1as também da caixa, mas, diferentemente dos vícios, cks dt· fato fugiram por completo
hábil de nm modo perverso ou mal intencionado e, assim, parecida com a t' não se espalharam entre os hmnens; dcstarte, pennanen·u na caixa, como
conhecida serpente do mito da queda 110 pecado. Ela vem da parte de único bem, a esperança, ao menos esta. Ela sustenta o áuirno para buscar
Zeus, que, por meio dela, quer vingar-se de Prometeu pelo roubo do fogo, os bens faltantes, a constância e a não-rcsigna<;ão diante dos bens que não
uma imagem sedutora do pura e simplesmente belo, mas com um pac-ote comparecem, e, onde ela desaparece, o processo cm curso no nrnndo se
fechado de presentes perigosos; Prometeu a n:jeita, mas Epimetcu, o re- perde. Desse modo, a longo prazo, a segunda versão do mito de Pandora
pensador, deixa-se seduzir e, assim, Pandora abre a caixa que havia trnzido. mostra ser a única verdadeira; a esperança é o bem que restou aos hon1ens,
O que esta continha era, segundo a dcsuição que Hcsíodo faz da saga, que de forma alguma já ficou maduro, mas que· também de fonna alguma
toda uma legião de males que desd<' então se abateu sobre os homens: foi destruído. Sim, a porta entreaberta, precedida por um crepúsculo
doença, preocupação, fome, defonmu;ão, todas voaram para fora. Só bem adventista, que designa subjetiva e objetivamente a esperança, é a caixa de
por fim o supostamente compassivo Zeus trancou a tampa, antes que a Pandora do próprio mundo inconcluso, incluindo a cavidade wm centelhas (cifras,
esperança ainda pudesse sair. Esta {-, no entanto, uma saga ou uma versão intenções simbólicas po,1ilivas), que representa a sua latência. Valendo-se de um
símbolo histórico, ornais arnigável que existe, a caixa se ahn- (-01110 o apose1110 u 1111r/li111n1lo e algo aparentemente lâo "antropomó,fuo" como a cont,adi<úo (.\f·11rlo"
an1plo e aquecido, cmno o camarote ern terra, no qual arde a luz promissora /mif1rio movimento a primeira contradi~·âo), ma,._\ também. algo aparenle111rnl1' l1t'III
do lar. Vakndo-se de um símbolo paisagístico, o mais forte que existe, a 11uti.1 "antropomórfico': como a anteâpaçâo. Esta é detectada e desbravacLi p('b
caixa se abre como o mar aberto con1 nuvens noturnas carregadas durante a ('Sperança, retratada pelos seus conceitos positivo-objetivos de te11dê11!'Í.t ('
te1npestadc, con1 nuvens matinais ndnn-donradas sobre o horizonte, quando ele latência. E algo assim auroral não só está irrompendo constantemenle 11a
o sol não est,i mais distante e tem início o dia que pode ser louvado já antes história humana, mas qualifica e abrange também a paisagem do mmHlo
do anoiten·r.'.l9 A,;; duas visões constituem igualmente a jJenpediva da filosofia, ffsico, de modo algum apenas do qnantilativo e circulatóiio. Há também ;1Í,
que finalmente resjJonde dP Jónna 111aleriah1ta-aberta à e.1jJnança e está conjurada justamente aí, cifras da fonnaçào da pátria, mediada por uma pátria histórico-
mm a nova terra do totmn. Esse fo/u.111, ou Indo ainda se enconlra nn processo humana, com base no micnte até agora tão pouco considerado na reflexão:
e cm tendência; de se acerca, c·om seus dcme11tos utópicos, do estado final, possibilidade rcal-ol~jctiva. As fonna._-ôes materiais do nnmdo - até ao
na linha de frente do processo, na latência. As ilusões e· seus bens, que de desencacleamcnto da fon;a produtiva mais intensiva, do verdadeiro núcleo
quakpwr forma mmu1 existiram, saíram voando da nlixa de Pandora e atômico: exi.1/en,, quoddita.s- estão n·pktas da tcncH'-ncia do ainda-não para o
fugiram, mas p<Tmanen·11 a csperanc:a realitPr bem fundada, cm que o ser tudo, do alienado para a identidade, do meio ambiente para a pátria
humano pode tornar-se 11m stT humano para os seres humanos, e· o m11ndo, mecliacla. 10 Também após e· exatamcnt<' ap6s a constrn<_·,io de uma sociedade
mrw p,'Ítria para os seres humanos. Portanto, pela mesma razão, a antecipação sem classes continuam a s<· colocar esses problemas materiais (tarefas) do
cmuTcta entende tanto do esclarecimento (destniição das ilusücs), ci11anto salvamento, ela humanizac:ão. Porém, a cspcran(:a do alvo está
do mistéJio genuíno (enigma do quê, tolurn utópico). Ela entende, assim, uen·ssariamt·11te em dcsan>rdo n>111 a sacia(.',lO falsa, e ele acordo com a
tanto de um m,iximo ele ausê-ncia de ilusi,o quanto de um máximo de otimismo meticulosidade revol11ciorníria - o que é 101·10 quer ficar r·eto, o cpl<' está pela
(que busca a ckcis::io). E é pot· isso que nenhum momento da cspernnça lll('tade, cheio.
compreendida a parti.-cla teoria-pníxis é excluído do marxismo mantido em
sua totalidade, não freado artificialmente. O mateiialismo 11wmnicisla, com
certeza, é vc·rclackiro como materialismo, isto é, como explica<_·,io do mundo
a par-tir· de si mc·smo, mas não é- verdadeiro quando ensina um mundo
mcTarnente mc·c'inico, corno que parvo, decerto pela rnetadc e c·slreito,
movido sem alvo, preso à conente da necessidade imperiosa sempre igual,
com a sm, velha circularicladc de devir e fenecer. Este, porém, nào é o
mundo em que acontecem as contradições que impelem para diante, onde a
vida rnclho1·, a lmmanizaçào, a coisa para nós são realmente possíveis, onde
o desenvolvimento e a possibilidade de desenvolvimento para diante têm
espaço. O mrnHlo realmente aberto é o do materialismo dialélim, que não
porta nenhuma case-a ele- ovo mecanicista. Ele está tão tremendamente distante
dos idealismos do entendimento como gerador, do espírito como demiurgo,
dos falsos religiosos e das hipóstases do além quanto o mater-ialismo
nwcanicista, mas está distante também do estatismo no indivíduo, e sobretudo
no todo do mundo, que ele e o idealismo ainda reverenciam. Não é possível
ter um conceito suficientemente bom e elevado da matéria; os seus dias, que
sào iguahnente os nossos, não têm sempre o mesmo mímcro e a mcsrna
medida, nem o seu peso integral. Os modo~ de .wa exL1têru:ia niio sâo somente

"' Adendo da tradutora para o francês, segundo da, aprovado pelo autor: "011 o local da
identidade consigo mesmo e com as coisas". .., A palavra "Selige" é usada em alemão também para referir-se a pessoas falecidas.
Parte III
( Transição)
Imagens do desejo no espelho
(vitrine, conto, viagem, fihne, teatro)

23. Fazel'-se mais belo do que se é

N<'Jll toclos apar<'nlam s<'r alg-o. Mas a maioria quer chamar


agrndavdmcnte a atenc;,10 e ahm:j,t isso. O j<·ito mais tfril, nesse caso, é
também o mais exterior. O pálido ganha n>r c·omo se C'Stivc·sse cm hrnsa. Há
os que se dão certos ares diante de outros, os qnc ptocuram sobressair-se.
A1nunar-se bem i: algo que se aprende depressa, mas é liig-az. A mulher
<' o seu pretendente 1nostratn-sc, como se costuma dizer, pdo seu melhor
ângulo. Isso se refere àqueles que na qucst,10 de vnukr-sc s,io os mais r,ipidos.
O cu trausrnuta-se ern mercadoria, <·m nwn-,uloria c·orrente, tambérn
brilhante. Ele vê como outros se aprescnta111, o que outros vestem, o que
est,í <·xposlo na vitrine, e expõe a si próprio nela. Todavia, nenhum homem
pode fazer de si mesmo nada que já não tenha iniciado nde mesmo. Da
mesma forma, o que o atrai lá fora, nos belos invólucros, gestos e coisas, é
apenas o há muito já habitava, ainda que vagamente, o prôp1io clest:jar e,
por isso, deixa-se seduzir com gosto. Batom, rng<', penas exóticas ajudam o
sonho a respeito de si mesmo como que a sair da loca. Lá vai ele cheio de
pose, incrementando com talco ou falsificando o pouco qu<' de fato existe.
Mas não i: possível que alguém possa falsificar-se totalmente; pelo menos o
seu desejar é autêntico. Na postura que assumiu, ele se· mostra, sin1, ele se
trai. O desejar, porém, volta-se tradicionalmente apenas para cima; o jovem
ambicioso está insatisfeito com a condição em que se encontra, mas não
com a condição de rico e pobre em geral. A<;sirn, ek soni frente a esta de
fonna benevolente e assim se exime, conforme a imagem que ele identifica
como a sua, ou melhor, que permitem que ele identifique como sendo a
sua. Dessa forma, aparentar mais do que ser é tudo o que lhe é concedido,
no ímpeto pequeno-burguês de ser estimado como um senhor mdho.-. St'r cspa(,'0 público; h,í mui los espelhos pendurados, pratin1mc-11tc a cub pas-;o
mais do que aparentar, porém, este inverso não pode ser imitado por que se dá. A vitrine reflete e assim multiplica o que deveria se passar 110
nenhum preparo, razão pela qual em nenhum outro lugar existe tanto comprador, o que ele gostaria de ser em tern1os pequeno-burgueses, pai a
kitsch q11anto na camada social que suporta a si mesma como inautêntica. <Jlle compre. O material de leitura e cinematográfico habitual do Ocident<'
O que é- nosso, o vi,,,toMwtenle autê-ntiw, é algo que, além da gravata, ainda proporciona muitas dessas imagens do bom comportamento desejado, da
{: muito pouco usado. aparência infecunda. Sinalizações enganadoras são colocadas no caminho:
rumo ao animal de carga dançante, à viagem do acorrentado, ao
24. O que nos diz o espelho hoje rnattimônio esplendoroso do castrado. Tudo consiste num tipo de mentira
que tem de ser doce a ponto de extasiar, mas, por outro lado,
1'itit a honra dP servir. suficientemente inakançéível para mantt'T atrdado. Uma saída viável para
Ditado a monotonia parece ser o esporte; nele, desejos autê-nticos fazem-se sentit·
já na largada; nele- erK011tra r·efúgio a competi(ão, quase extinta para as
Sn esbdto pessoas humildes. Mas o nnnpo é estreito, o avan(o se dá em forma lúdica,
N,"io la11<:ar nenhum olh,ll' a si mc·smo j,í {: alguma coisa! Mas para o a seriedade permanece· intocada. O nadador apenas melhora os seus
homem h11milcl<- no seu trnhalho isso 11ormalme11tc significa apenas <'Slar recordes na ,ígua, mas o dwfr o faz nos lucros. Com certeza marcas bem
acabado. Se esse ainda não é o caso, e· se de wio quiser chegar a esse rndhon-s seriam atingidas se o líclc-r se· distinguisse pela pacit'ncia, o forte,
ponto, então o candidato eleve estar cônscio de seu t'smc1u e também se pela submissão, o campeão, pela rnpacidack de- engolir sapos, de não fazer
vestir de acordo. Para vestir-se assim, é 11c·ccssá1·io um espelho; é com os cara fria para o que Ih<' desagrada. Aí e·st;io os vc-neTdon·s cl<·sconhecidos
olhos do seu senhor que o ameaçado se· olha. Com os olhos de c·omo o daquela vida que realmente ainda é of'C'n·cicla sem mc·ntiras ,ts pessoas no
chefe cp1<'r que de se apresente, caso queira ler confian,;a nos seus modo de vida capitalista. O boxeador c·st,í dentro elo ringue, amargando,
empregados. It vc·rcladt' (til<' o <pi<' S<' mira 110 espdho fft' estar se vendo mas o que mais apanha e·st,í do lado ele f'ora das cordas, como espectador.
como ek mesmo cksc:j;1 ver-se, como ek m<'smo ckse:j;, se..-, sim, até ;típ1de Ele- { o verdaekiro me·stn· crn aceitar golp<'s no <pwixo, c·rn kvantarquando
que é fón:ado a mirar-se no espelho crf- nisso p011<·0 ante-; ele comp,l!"ccer soa o gongo. Assim, ek agrada sobr<'ludo ;1ep1c-ks que fozcm c·om que o
ante as pessoas, no negócio. O rosto é mantido t;'io clesc·nn1gado quanto boneco iludido teime em se· levantai'.
possívd; o cmp1·egado q1HT ser t,io n,bdto, tão sem vincos como a sua
roupa e p<H'ta-se <k acordo. Com isso, de se coloca c-m vantag<'m, mas 25. A roupa nova, a vitrine iluminada
numa vantagem do tipo que os vcnlaekiros S<'nhon-s 1tm <"tn rdação ao
homem humilde. Portanto, o vidro nem mesmo lhe devolve a imagc·rn de l fm r:olarinho de seda lustra.
como de dcsc:ja a si mesmo, mas justamente de como de é eksc:jado. Essas Ditado
coisas são tão nonnatizadas como as luvas na loja, como o sorriso
profissional do vendedor, que se tornou geral e pr<'scrito. Sorrir cm angústia Ora, ninguém consegue sair da sua próptia pele, mas pode facilmente
e monotonia tornou-se agora o signo norte-ame1icano elos st'nhores cp1e vestir uma nova; é por isso que todo se arnnnar· é vestir-se. A camisa limpa
não são senhores. O que se quer é que sejam uns como os ont1ns, assim de qualquer modo está estendida ali pela manhã assim como o novo dia;
como um ovo se iguala a outro, mas o que sai dele são só galinhas. para o apenado que foi solto, um casaco novo cobre tudo o que passou.
Poder escolher a roupa diferencia o homem do animal, e o adereço é
Ser fmte ao se c1u1Jar ainda mais antigo do que essa roupa; até hoje ele compartilha com esta um
Quem se põe à venda tem de agradar. A moça, no jeito de ser, o lugar de destaque. Até as mulheres vestem junto com a roupa uma porção
moço, na maneira de portar-se; é por isso que eles também são exibidos ao de si mesmas. Num outro vestido, ela é uma outra mulher, na fina espuma
mundo lá fora. É o que exige a camada dominante sob pena de extinção. da maquiagem feminina. Porém, o desejo de expe1imentar muitas variantes
O ferninino na pessoa contratada consiste no cor-de-rosa, o masculino, na tem início, também para a maioria dos demais homens, na aparência tanto
cor-de-cera (mas tem de ser elegante). Para manter os dois bem dentro imaculada quanto variável que um alfaiate pode proporcionar. Por isso, é
desse padrão, há um espelho pendurado também em cada nia, em cada muito confortável para as pessoas idosas ou sedentárias estar vestidas sernpn·
ela 1nt·s1na fonna. Outras irnediatarnentc se s<·11h·m sc111 111gas 'l'u11clo 11:i dinh('iro. E ninguém entende 1naisdessc tipo de sonhos do (jll<' o dl'('OI ;1do1
calça não aparece nenhuma. •I' te organiza as suas vi trines. Ele não põe somente mercadorias em <·xposi1_-;11 ,,
mas a imagem sedutora que surge entre o homem e a mercadoria; s(·11
Bem montada material de constn1ção é a felicidade e o vidro. E o transeunte continua :,
Depois disso, para fora, para a rua movimentada, ociosamente olhando. desenvolver, de forma puramente humana, essa imagem sedutora capitalista,
Há luz cntn:· as á1vores provinda das casas iluminadas, do lugar ao final, e que subsiste ao lado de favelas e insossas ruas de pequeno-burgueses,
da chama. Mas o que chama aí na verdade é a m<Tcadotia esplendidamente pressupondo-as e querendo que caiam no esquecimento. Desassossegado,
iluminada atrás dos vidros, que pronu-a clientes. Ao modelo sob medida com certeza, mas não revoltado (pois a magia por detrás do vidro não mostra
vem somar-se, portanto, a vitrine, para estimular a vida elegante que se deseja. um prop1ietá1io visível a ser inv<:jaclo), o pcqut>no-burgnês, parado diante
A vitrinc só veio a surgir com o mncado ctpitalista al)('rto, e da ;i.inda tem,, das vitrines que não tem concli(:õcs de ad(1ni1ir, aprovajustamente o aspecto
sintomaticamente com mais intensidade no Ocidente, a prupricdade de elegante e louvável que os senhores conkrcm ;.1s suas vidas. É preciso qu<'
<·stimula1· 11e<·<·ssidadcs, prindpalnwnt<· ª<Judas C'om "uma nota pessoal". Corn haja a mulh<'r para <'Ssas ílon·s, para esse p<'rfüme; é preciso que haja a
o propósito de satisfazer com isso o d<·s<jo íntimo do próp1io negociante: almndârn-ia na vida; mas onde encontrá-la? No tempo de Natal, em que não
auferir lucro. Por essa razão, a boa villinc tem de ser sugestiva, <'xpôe as se pn·scnteia a si mesmo, mas a outros, a rua cont<'ffial <·osnH>polita torna-sc-
p,l!'tes e111 huH:ão do todo e as part<'s, por· seu turno, corno 1nl'ra1ncnte praticamente devota. O anúncio exibe os desejos, duas ou t1·ês vezes mais
indictlivas; assim, a p<·nnanftKia diante das vitrines torna-se inquietante.
luminoso, de cima para baixo e de baixo para cima, fica azul, amarelo,
Aqui, a l<~ja de iguarias finas com bandc:j,1s <pw não se pode deixar de aC'har
venudho, verde, dctTama hehidas, ondula como füma<,'a de tabaco, faz da
apetitosas. Caff, di;í, linm·s finun 111elhordia11le de laclrilhosde lkln, sobre
nwn-admia a toda hot.t um novo Menino.Jesus. Uma imagem graciosa, da
verniz vermelho; o ar hill(lu-holandês aC'akuta o C'omprador. Ali, uma revenda
m<·sma fi:>1n1a <Jllt' as vitr·irws <·xc·c·ssivamente n11Tcgaclas apresentam uma
de po1n·la11as: no <-cutn> dda, a mesa posta <·on10 uma 1101· hran<·a, C'0m
imagem ilusória. O cale la11<,·aclo ao ma,· não s<· pn·cisa antes disso colocar
n-istais, ;1. luz ck velas, espc1~111do pelos nmviclaclos, <Jlle s;io t,fo distintos
em cxposic:.'io.
C'0lllo da própria. Ali, uma co11(c.·c·i;ão para senhoras ele uívd mais elevado:
modelos iwTivdme 11 Ie esbeltas ela última moda ('OUlo poun,s coisas no n n mdo
A luz dos anúnrio.1
e, ainda assim, C'om o toque ck além: nenhuma 1nulhcr t<·rn·11a a11da assim.
No c-ntanto, a nw,·cadoria s<'IIIJ>r<' pr<'cisa junto de-la ck um bilhete
Ali, uma alfaiatai-ia para din·torcs g<Tais e para aqueles que q11cn·111 parecer-
louvando-a, um que a torne esp<'cialmcntc atrativa na <·onc·orrência e a
se com eks: ele l<1nna inimit,ivd um Ulster foi jogado sobtT uma ca!ki1~1 de
Chippc11dak, ao lado aguarela um chapéu aveludado, luvas ele c·o111u de fa<:a brilhar uão só nas vitriucs. A vilrinc desc·nhada e· falada, o grande sino
pon-o, sapatos ('Olllo os da ('apa de mn antigo livro florentino. O lrawwunte, ela vit1in<· se chama anúncio comercial. Espe('ialmcnl<· de transforma o
no cnt.inlo, e cp1c·m, <·omo a maioria, não pode comprar tais coisas, por homem no mais sagrado <pt<· existe ao lado da propriedade, ou seja, no
mais estimulada cptc estc:ja a inquietação da vontade de possuir, não fica dient<'. Também i-ponts mais antigas, outros países além dos capitalistas
n·voltadojuslanwnte por causa do padrão demasiadamente elevado. Quem, tinham um tipo ele amÍ11C'io; este, porém, era mais urna autolouvação
no entanto, liV<'I' disposi<,'ão para uma felicidade mais co11fortável, encontra- satisfeita elo que um instrumento na hriga pt'las vendas. Ele omitia, ati-
ª ai rás das vidraças do comércio de móveis. Salas de jantar, quartos de clonnir, ironizava a mercado tia; como se hoje, po1· exemplo, um ('omércio de carvão
C'stúdio, salão - tudo <:'stá à feição, como uma carna arnunada, na qual o fosse exaltar-se, quase sarcastica1nente, c·orno "on:o".Já na Pequim antiga
jovem füncioná,io, que não tem mais necessidade de pa ndcgar pdo parque, encontravam-se as seguintes placas em firmas: numa fábrica de cestos havia
só precisa jogar a noiva. Ele vê por trás das vidrnças, em plumas<· <·01· salmão, a ins<,rição "As dez virtudes"; num negócio de ópio, "A tiipla honestidade";
o sonho desejante burguês mais legítimo, mas também o que só se 1·caliza num c·omércio de vinhos, "Vizinhança da beleza priIH'ipal"; nmn comérc-io
para pouquíssimos: ele vê por dentro a casa dos sonhos a dois. O sonho da de carvão vegetal, "Chafariz de toda beleza"; num comércio de caivão
bela casa é preenchido com os móveis <='Xpostos, eles m<·smos vivendo acima mineral "A bordadura celestial"; num açougue, "Comércio de carneiros
de suas condições, mercadorias fabricadas que constanlementc apresentam- do crepúsculo matutino". Isto, no entanto, são poemas e não charna1iz<'s,
se mascaradas: o sofá largo no estilo odalisca, o bar no estilo californiano, o embora antecedam em muito os anúncios capitalistas também como
estúdio no estilo faustiano. Assim, em cada cauto a vitline fonna sonhos chamarizes e, por assim dizer, exager·o. Ainda mais bela do que a cio
desejantes, para tirar o dinheiro do bolso das pessoas ricas que não têm decorador é a melodia que o especialista em anúncios comerciais toC'a 110
piano dos sonhos desejantes, tornando-os irn·sist ÍV('Í:-, ao <p1<· loi l':-.t111111l.ulo mais justa no corpo quando está fantasiado de criminoso, ('<1.-rasco 011
h<'111
até que a1nadurece um cliente a partir deles. Surgem <·11t;io ofertas atl.int ic-as paxá do que quando veste o seu traje cotidiano, que lhe é, por assim dil<·1,
como as que seguem: hoje em dia, chapéus de ptimavera não são mais 11111 imposto. Desse modo, ele coloca sobre st·u corpo um sonho, o sonho d<'
item de custo; callfor PhilifJP Morrú; purity anda big hottk, that~ Pepúwla; ser uma fera vistosa ou em posição elevada. A5sim se JWffebe que papel o
modern de.lÍ[!;n ú moder n deJign; Buick, o carro do comerciante bem-sucedido. disfarçado gosta1ia de representar na vida, e inclusive poderia, se não fosse
O New York Times assegura que a compra de meias femininas provoca um impedido de fazê-lo. Como carrasn), homicida estuprador, príncipe, ek
verdadeiro renascünento: Van Raalte a)11e-n you with Leg Glory from sunri,:;e nem está apenas mascarado. Aquele que se mascarou bem, na verdade,
till dark Economia, des<'.ͺ de ter o último grito e aurora têm um encontro tirou a máscara; é assim que ek se parece interiormente.
também para senhores e num nível ele pn·<,·o mais barato: Howard Clothes,
,1tyled with an eye/or lhe world o/lomorrm11. O anúncio faz da mercadoria, por 0.1 caminhos lorluo.ws
mais secunchíria que seja, uma magia que soluciona toda e qualquer coisa, Raramente é: factível ser uma féra vistosa também extnionnente. t
bastando comprá-la. A dama do desenho que pôe água de colônia nas surpreendente <1ue não ocoITam ainda mais crimes com o propósito de
ti'-mporas, que aceita o chocolate suíço oferecido por certos senhores é destacar-se pda riqueza. Todos os criminosos, mesmo os que provêm da
a<1ucla que, justamente por isto, pura e simplc-smeute se tornou feliz. ralé:, são pequeno-burgueses; só no confot'lo é: que se vive l){'m e é isto que
Vi trines e anúncios são, na p<Ts1wctiva capitalista, exclusivamente visgueiras eks <Jll<Tcm. O crÍinc·, assirn pare<'<', lorna rico da noite para o dia, quando
para os pássaros sonhadores que se deixaram atrair. As mercad01ias assim se sabe usai· a noite assim con10 o senhor de posses usa o seu dia. Sem
H:spkndentes e exaltadas ton1am-sc, c·omo diz Marx, o engodo C'Olll que se dúvida, os exploradores pobres, logo, impedidos, scnt<·m uma <·onstante
visa atTair o ser do outro e- o seu dinheiro <' transl<>nnar qualcpl<'l' possível atra~·ão de cair para o subnnmdo, para essa sua frsta cnwnta e ih1só1·ia. Na
necessidade real 1mnia fraqueza. De tudo isso s,io capazes as nwrcadorias pequena hm·gucsia, relativamente raras si'io as v<·zcs cm que se cede ,'i atração
colo1idas <' louvadas, um desfile de valores natalinos e pascais durante o do rcvólvn, e quando isso ocorre é algo plallljado; isto f assim apenas
a110 inteiro. Entn·tanto, apesar da ilusão de que- é alvo, o pequeno-burguês porque agüentar as conseqüências disso exige n(·tvos muito fortes e
não explode, e a luz intensa das diversas lkrlins ocidentais, todas arruinadas, propon-iona muitas sextas-feiras negras. Po1· isso, um velho ditado diz que
apenas sc1vc para aumentar a csnll'iclão. h01wsto é: aquele que apenas sonha com os ('rimes que os demais praticam;
mas o impostor também é, fora do baile de másn1ras, aquilo que ek gostaria
26. A bela máscara, Ku Klux Klan, os magazines coloridos de ser, ou seja, um príncipe. Sim, a festa das ilusôes mantém-se como traje
ofi<·ial muitas vezes também no caso de nimes mais capitais: o caminho
Sim, lenho a belez.a tÜ mamãe, t<H·tuoso seria e continuaria sendo, ao mesmo tempo, o caminho nefasto--
rnas o diuhriro d,r,papai. vistoso; o próptio crime ama e mantém o romantismo anánpiico com que
Can~;ão ele jazz o pcque110-lmrguês o cobre. Assim, a juventmk dcsamparnda é sc·duzida
pda imagem do gângster, pela imagem da sede de sangue; mas de fato há
O que atrai com mais fon;a ainda é a mania de transformar-se. Nesse também os salteadores homicidas espir-i(uosos, sobrdudo os homicidas
caso, o homem não só pôc uma vcstirnenta nova, 1nas torna-se itn·conhccível estupradores, que desenvolvem o seu ofício numa espécie de jogo 011í1ico
com da. O meio para conseguit· isso não é a roupa, mas a fantasia. Aparece em rdação a tudo o mais, comportando sobretudo des(jos de vingança, e
o destjo de colo<·ar uma máscara que não seja nem um pouco cotidiana. A desse modo a multiplicam histrionicamentc. Eles fazem a polícia de boba
máscara é p1imeiramente larva, e, corno tal, ela oculta, sirn, nega o eu com cartas que levam à descoberta; muito grande é o prazer que s<·ntem
ante1ior, o eu representado pela vida anterior. A dona de casa, o negociante no papel que, em última análise, não é apenas encenado. Aquilo que
desaparecem; o seu lugar é tomado por uma imagem colorida deles anseiarn e têm em mente com esse papel é donunentado com teste1nunhos;
próprios. Esta é agora colocada sobre o corpo; com isso, o portador serve eles são, ademais, tenivclmente poéticos. 1~ o caso de urna carta cfüigida à
a si mesmo. Oc01re aquele fantasiar-se que em muitos casos nem é fantasia, polícia pelo homicida estuprador Kürten, de Düssddod~ aut01· de dezenove
mas uma pequena realização. A máscara não só possibilita ao burguês crimes por volta de 1930; encharcada de sede de sangue, de dor zombeteira,
aparentar o que quer ser e pelo que quer ser tomado nas festividades; ela até drapejante, e de um estilo criminoso 11<~jento, mas deleitando-se muito
lhe permite também agir bastante à vontade. Sim, ela muitas vezes lhe fica consigo mesmo. O assassino estuprador é versado em honipilar duplamente
(• escreve: "Na certa, os senhores se interessam pda minha atividadc-. J;i 111;Ísc·ara da noite. Agora ele era a n1esrna coisa na rua, só que de L1to 1· d('
que minha origem está em outra região, o que segue m<Tecc1ia a sua 111odo ünpecável; e os judeus com as calças cortadas e cartazes engrac;ados
atenção especial. É em Langenfeld (ao norte de Kõln) que está minha cm volta do pescoço, as mulheres judias no trem com as cabeças rapadas
origem e, quando chegar a hora para isso, estará também o fim do meu prnvocaram salvas de risos antes de provoca1·crn salvas de outro tipo. A
infortúnio. Ali vive um ser que, quanto à vida moral e também ao modo de "n:gressão" irrompeu; apaches, caveiras, cavaleiros da carnisola fosforesce11t1·
pensar, dificilmente poderá ser comparado com qualquer outro ser animavam as n1as, que a polícia tornava d11plan1cntc inseguras. Se já vieram
humano. Foi o falo de ela não poder pertencer-me que me levou a todos i'i tona todos os desejos que o pcqueuo-lnu-guês havia marcado no carnaval,
esses atos terríveis. Ela ainda terá de morrer, mesmo que isto me custe a cada grito de ''fogo!" <· "morte!", quanto mais os destjos daqueles que.
vicia; quis envenená-la, mas seu corpo totalrnente puro resistiu ao veneno. como linchadores, kukluxistas, encapuzados e assemelhados, empun-ara111
Agora o tempo me é mais favorávd; a que é minha JJrcc·isa ir ao anoitecer a falsa revolta para a kgítima ba1-há1ie. O charlatào fascista lançou mão <Li
<k Hilden para casa, o desenho do caminho está em anexo. Ela st'rá minha máscara do lobisomem, kz suas magias rom nomes meio malucos, co111
próxima vítima" - e uma carta posterior termina com versos cp1e poderiam cenários do romance de terror, no ponto cm qne este se transforma ('Ili
constar nas latrinas do País das Maravilhas, c·om a difrn-n(.'a de que o seu kit~clt, mas tamhérn na esquizofrenia do peque110-lmrguê·s, hem aproveitada
conteúdo <Ta verdadeiro: e produzida para ser 1ítil. Portanto, tamhhn o País das Maravilhas da situação
de emc1·gê:ncia pnwém do Ocickntc dourado. Quem continua dando o
Ao pé de Papp<'ndelk tom nesse nível {- o Ku Klux Klan 11orl<'-amcricano, o movimento dandestino
no lu~ar marcado com xis, reaciomirio dos C'stados sulistas norte-americanos surgido após a guen-a
onde o i1u;o não <Tcsce mais, civil, n·novado após a Prim<'inl Cuerra Mundial. O ha11do V<'stia dominós
com uma pedra ademais assinalado, c·om capuz, sendo SC'll tecido escuro <·orn símbolos brancos costurados sobre
a um metro<' meio de limdura ele, para provocar um ef'eíto f'antasmag<>l'ico ,i luz das tochas. Havia
um cad,íver est,i deposi lado. símbolos cm Júnna ele adaga; c·ntn· outros, havia tamhÍ'm esferas, meias-
luas, c111zcs, sc·tpentes, C'stn·las, sapos, rodas, cora<:ôc-s, tesouras, pássaros,
A'> cartas vinham em envelopes de luto com bonlas tl<'gt·as; o a111ocldcite bezerros. O pn>Jffio Klan se: clcnominava lnvisiblt HmjJi.re; ,'\ !'rente do
pelo homiádio cometido, apesar ele <lrapcjaclo, (, grande. Uma pcir(ão de • , • es t ava uni "M ago I mp<'na
1111pcno . l" , seg-111< l 1)raga<?
. 1o <lo "('.rance ~ ", do

nazismo se anunciou c-m tudo isso; ck acolheu, mais tardC', homicidas ladnks, "Grande Titã", do "Grande Ciclope". 1l;i os "Lobos do Klan" (' os "Aguias
homicidas estupradores mo1~1is bem mais cspüituosos. Os c·aminhos tortuosos do Klan", sendo que os nomes elos n:fcddos combinam com as figuras
são, desse modo, providos ele cn1éis imagens do cks<:jo, espcc:iahne11tc precisas, costrn·adas nos seus dominós; sobre as clcvaçÔC's em que se dão as
incluindo as da pena capital ao final, com Cl!ͪ crueldade inimagiróvd o assC'mhléias arde uma cruz de fogo. llm sC'r-difrrcntc <'Xtrcmo,
burgut's nistão durante séculos suavizou a sua condição infeliz de não poder, barbaramente multicolor, é representado con1 essa mascarada, m<·diante
ele lllC'smo, torturar, esquartejar e queimar. a qual o Babbitt sedento de sangue faz de si mc·smo um tabu. Isso tem
ligação com histórias sobre índios e totens, também com tribunais secretos
O sw:e.\.\O fJor meio do terror medievais, de modo geral com a Idade Média exclusivamente ten<"hrosa,
Cada vez mais pessoas desse tipo tendiam a disfan,·ar-se também na como a imagina o magazine norte-americano. As másn11'as do Klan
vida cotidiana. Carrancas e capuzes são desejados pelo <·xpcctant<' não só constituíram, assim, os primeiros uniformes fascistas, e seus g1itos de ordem
em bailes, mas também em pkno dia. A máscara deixou a frsta de fantasias fóram os primeiros a colorir, com as suas irnagens ideais, a "revolll(;ão" de
não apenas por ocasião de crimes privados no estilo antigo, mas assumiu a direita, a revolução de Lynch. Muito instrutivo a esse respeito {- o início do
feição da seriedade fascista. Seriedade pública, politicanwnte constn1ída; movimento, que talvez apareça urna vez mais, a convocação elo Klan de
veio a Noite das Facas Longas e o dia que lhe seguiu. "Dentadura de lobo" Arkansas, cm abril de 1868, como segue:
e disfarces, artigos cômicos que vendedores ambulantes adquiriam para
divertir seus companheiros de viagem, tornaram-se insígnias de partido. KKK
Há pouco, na festa de fantasias do Verein Froh.\inn [Clube Alegria!, papai Special Or<ler No. 2
ainda representou o juiz Lynch, e foi declarado como a mais bem elaborada Spirit Brothers; Shadows of Martyrs; Phantoms from gory
fields; Followers of Brutus!!! Livros de suce.1so, hi~tórias rnelorn.1
Rally, rally, rally. - When shadows gather, moons grow dim and stars tremhle, Esse prazer em transfonnar-se, contudo, precisa poder vagar t;11nh<;111
glide to the Council Hall and wash your hands in tyrant's blood; and gaze por campos mais amistosos. Pois por trás de todas as suas imagens crimirn >sas
upon the list of condemned traitors. The time has aITived. Blood must flow. encontra-se a imagem asseada do pequeno-burguês, na qual o Babhill
The true must be saved. selvage1n se refugia por último. Esta se encontra tanto na prosa, nos livros
Work in darkncss de sucesso, como por assim dizer nas melosidades tratadas poeticamente,
Bmy in watcrs na melosidade com ação, em suma, nas histórias de magazines. Os livros
Make no sound de sucesso são os que prometem revelar o caminho para construir a
Trust nol tht> air felicidade com ou sem o auxílio dos cotovelos. Podem ser do tipo cosmético,
Strike high and sure que são como aquele cozinheiro francês que de uma luva sabia preparar
Vengc•ance! Vengcance! Vcngeance! 41 um bife. A estes se associam os guias na luta pela vida, voltados para a
rainha da beleza ainda impedida, para o sortudo in sjJe. Ilustrações
Sem dificuldade, é- possível reconhec('r o tom ela linguagem criminosa (ensinando boas maneiras) rcfon:am a exposição e, por fim, indica-se ao
do homicida estuprador Kürtcn, citada há pouco, só que com um disfarce funcionário, cm formato graiído, qual deve ser o seu alvo: ck encontra-se
revolucionário. Nos tempos rcalmcnl(" primitivos, o portador da máscara assentado ,l mesa de rcfei<;:ão junto com a família do chefe, ao lado dele a
se introduzia pdo disfarce no ser representado pda máscara. O selvagem filha já quase cornpüstada; a monogamia, traduzida como casar uma só
com máscara de leão torna-se o próprio dcus-kão; de <Tê pode,· agir da vez, encerra o livro de sucesso. A América do Norte é o lugar c1n que mais
mesma maneira que este. Até o daroi-s dançante, quando est,í girando floresce esse gênero; lww lo win frinuls and lo inflwma fieofJle: justamente
sobre o sen própiio eixo, sente-se como um corpo celeste girando em torno isto faz parte elo negócio. A-, n1b1icas de um e<Tlo Pofmlar Ouirle to desirable
do sol; desse modo, na sua imaginação, ele atrai para si as fon:as do sol. A /h1ing tê·m o seguinte teor: l low lo live your liji✓; The sen11ts of health; Love and
bad>,Írie civilizada, no entanto, vale-se da 1rníscara, neste caso a do canibal, 111wriagl'; !low lo mal<e mrmey; The way to charm; Suffe,\S wilh your r:hildren; How
não só para ter uma participação ainda maior do que a habitual nesse seu to slu11j1en yo1tr mnrwry; llnmwried, bit/ -; Nnwr too old lo love; l low to make
ídolo ideal, mas principalmente também para al('IT01Ízar, para paralisar j,eoj,le lo like you; l low lo tal!< aboul book1, thealre, mu.lir:.. Em suma, há aqui
mediante o pavor. E a máscara se1viu como se tiv<·ss<· sido fundida quando um verdadeiro far-ol no mar dos dcs<:jos pequeno-burguês, e ele guia até o
o grande capital a convocou, quando de fato "luas t·rnpalidcceram <· t·strclas Bahbitt perfeito, ou slJl, ao alvo ideal que é o Babhitt com crédito. Isto é o
trenwrnrn" e a Noite de Cristal'2 ganhou as ruas. bastante sobre cursos racionais para ter sucesso e sobre o pri-mio para
quem for vitorioso; mas há também os irracionais, o que não smvreende
ni11guém. Eles despcrtarn "as forças secretas" no homem; eles constatam:
"Para muitos senhores, o nível intensivo de exigência da atual vida
profissional leva a uma diminuição precoce da sua melhor potencialidade";
JI
KKK eles tornam a pessoa magnética. Eles removem a timidez no trato com o
Ordem Especial nº 2
outro sexo, fonna1n os "gatões" dos salões sociais e o homem a quem as
Irmãos d<· espírito; Sombras de m,írtires; Fantasmas ele campos ensangüentados; Sc-gnidores
de Brutus!!! damas entregam sem hesitação o leme do barquinho de suas vidas. Entre
Comício) con1ído, comício. - <-2,uan<lo as so1nbras se agrupan~m, as hrns c·n1pa]idecert·u1 (' as os livros de sucesso estão até mesmo os variados guias de erudição sexual,
estrelas tre1ncrr1n, csgneirc1n-sc alé o Salão do Concílio e lavern as suas 1nãos cn1 saugne
ele tira11os; e· pasmem ao ver a lista dos traidores conclt-nados. Chegou a hora. Sangue
na medida em que não são pura compensação ou não foram feitos para
precisa ser derramado. Os leais precisam ser salvos. meros voyeurs. O clímax pequeno-burguês foi atingido com Vollkornmene
Trabalhem no escuro }\'!te lMatrimônio perfeito], de Van de Velde, esse respeitável livro de
Sepultem nas águas
Não façam barulho
obscenidades, esse guia pedante no desvio para o prazer. A edição privada
Não confiem nem no ar do que há muito já se tornara a an arnandi, feita para comerciantes de
Golpeiem forte e certeiramente vinhos, transforma-se ern leite materno com uísque; trata-se, ao mesmo
Vingança! Vingança! Vingança!
.., Kristal/nacht. a noite ele 9 para 10 de novembro de 1938, quando os nazistas lançaram um tempo, de um substituto para o confessor sábio, conselheiro, de outrora .
f1ogrom em toda a Alemanha, clirigiclo contra as casas e sinagogas cios judeus. Porém, o amor passa e a companhia de seguros permanece; por isso, é a
esta que todo livro de sucesso é dedicado no final das contas ou aos i11sl i11los ;tlegn·s e belas para toda a vida". Ou no estilo solidamente romântico:
que levam até ela. O livro dos sonhos do ato sexual perfeito naufraga di.1111<' "( :orno era confortável a casa da fazenda! Em todos os quar1os do térr<'o
do livro significativamente mais norte-americano do balanço comercial do ardiam as lâmpadas envoltas em cores, pois hoje, com a nevasca, o
well-to-do, do pássaro na mão. Bem no final, onde de resto ameaça o pânico crepúsculo chegou ainda mais cedo do que o habitual. E em todas as lareiras
do fechan1ento dos portões, aparece, bem por isso, no pr·ospecto da crepitava a chama produzida por grossas achas de lenha, e mesmo lá fora,
seguradora, uma casa dignamente discreta à beira do mato e do lago e, 110 amplo corredor de en1rada, uma lareira revestida de ladrilhos à moda
junto à grnde do portão, o simpático carteiro, entregando, naquele justo antiga espalhava seu calor". Ou no estilo demoníaco-român1ico, uma vez
momento, a pensão do seguro ao dono da casa, ocupado com seu roseiral, mais para cima, ainda que com uma prosa igualmente consistente, rumo
e à sua esposa, fazendo a sua sesta. Tudo isso é prometido pelo guia para a ao planalto aristocrático do respeito pequeno-burguês, da transfiguração:
vida e passa da prosa totalmente para a arte verbal, a saber no cor-<le-rosa "Esses velhos castelos, sombrios e sikntes por fora, encantados por dentro
que não exist<· mais para nenhum aspirante a rapitalista que tem de lançar - com suas suntuosas paredes de brocado, seus reposteiros de tecidos
mão de um livro de sucesso. pesados. Que espetáculo estranho e fantástico se nos depara aí! Em cada
Na certa saem decepcionados todos os que s,10 mais exigentes no seu porta espreita a intriga, mas ao longo dos coJTedores st·mi--<·sniros o amor
almejar, mas não aqueles que lfcm sem cxigê·ru·ia nenhuma. l~ a eles que ata seus delicados Ia-,:os". A história do magazine permanece, assim, a mais
a história do magazine se oferece, lan<:arnlo, hem do jeito alemão, sua luz eterncccdora nas suas itnagens feudais, a 1nais crédula nas suas imagens
morti<;a a partir de uma época cm que sernpn- se· a obtém, mentindo pura capitalistas. Ela exala uma profunda paz com a camada soc·ial mais alta,
e simpksnwnle hem elo jeito norte-americano. Nda são visitadas biografias quer ensiná-la, difundi-la, mantt-Ia intac1a. E, no que se refrrc ao sonho de
simuladas cm linha ascendente, subindo rumo a dinheiro e glória, tudo no sucesso, isso ocorre· com os braços sempre aber1os do lutfJfJY end, mas do
papel. E o truque pdo qual é- possibilitada a ascensão é- sempre o mesmo; final feliz kudal-<·api1alista; um outro final não existe, não pode haver, não
de é, como disse ccr1a vez Upton Sindair, o do acaso impossível. Criadas deve haver, não haverá. Através disso, a vida parasi1á1·ia da camada superior
jovens casam com mineradores bern-sucedidos na explora(;:,"ío do ouro ou é apresentada c·omo estando perfeitamente c·m ordem; riqueza é graça. O
com homens com um coração de ouro qm· logo depois descobrem 1nna pobn·-<liabo não se rebela; por sua própria iniciativa de sai cm disparada
bacia petrolífera. Pobres estenotipistas, que enrnomizam cada caloria parn o c·olo da herdeira rica. Só esse elemento prazenteiro, esse impossível,
possível para cornprar meias ck seda, encontran1 um li.11Kiomíl"io, começa que, no en1anto, não perturba a regra de nenhum jogo, já diferencia o
a desfiar-se o amor, o enamorado gasta com mod<'stos passeios que lhe kitsch da felicidade, própria da história de magazine, do rnmancc popular,
propiciam a oportunidade de descobrir a índole nobn· d<' sua amada, mas muito menos passiva e por isso mesmo odiada pelos pequeno-burgueses
por firn de se revela para ela, ou stja, como o chefe em pessoa e kva a nohrc·s. Em seu cortjunto, nos espelhos dess<' sonho do hitsch colocado por
noiva para c·asa- sound.\ lih: t1W[.(i,:, dol'sn 't it?Ou um rapaz tão pobre quanto es<Ti1o, não acontece nada além de acaso, e a bi'-nção que de proporciona
belo segura um cavalo qn<' debandou <', desse modo, conhece a herdeira ao sortudo multiplica, em meio a toda essa rn,ígic:a atlânti<·a, os Dom
r-ica que, depois, torna-se a sua mulher - uma cama dourada do Quixotes baratos da esperança sem sentido.
emprecndimen1o livre em meio ao capital monopolista. A história do
magazine mostra, através do ac·aso impossível, só esse 1ipo de revolução 27. Os melhores castelos no ar: na quermesse e no circo, no conto e no
privada, a saber, direto para as posições mais elevadas da soci<'dade. Ela romance popular
propicia a olhadela por cima da cerca, que alimenta falsas esperanças, a
olhadela para dentro dos círnilos mais ricos; especialmente na Amé-rica do Patinho, patinho,
Norte, ela é o épico reles da grande s011e, difundido aos milhões. Tudo ali estrloJoâo e Maria.
isso es1á agora também na Alemanha pequeno-burguesa, impn:gnado de Nâo há atalho nem ponte,
sentimen1o, do tempo da pelúcia do século anterior, de forma alguma carrega-nos nas tuas costas.
passado: "Conheço um banco onde floresce o 1o milho selvagem". Ou ainda João e Maria
à maneira dos romances populares de Marli1t: "E então entramos, plim,
plim, com um som alegre na deshunbran1e paisagem invernal, um eco de Então fom,os dormir. Eu, porém, nâo dormi, mas vigiava. Pensava em como
felicidade ressoou no coração da juventude, como se anunciasse só coisas obter ajuda. Lutava comigo mesmo para chegar a uma resolução. O litrro qm
eu tinha lido le11a11a o lítulo: "() rn11il do.\ .\allmdolP.\ na Sirrm Mm,'//(/ 1111 () O anoiten·r pode ser a melhor hora de contar histórias. lks;1p;11·(·<T
anjo de todos os oprimidos". Depois d.e o pai ter chegado ern. m.\a ,, f'lllrio o que está indiferentemente próximo, aproxima-se o distanle, que pan·cc
adormecido, desci d.a cama, esgueirei-me para fora d.o quarto e vesti minhas melhor e mais próximo. Era uma vez: no conto, isto significa não só algo
roufJas. Depois redigi, um bilhete: "Vocês não irão trabalhar até lhes sangrarem passado, mas também um outro lugar mais vistoso ou mais agradável. E os
as mâos; vou para a E\panha buscar ajuda". Coloquei este bilhete sobre a que lá encontraram a felicidade, ali viveram felizes para sempre. Também
m.1!sa, pus um pedacinho de pâo sero na bolsa, junto com alg;umas moedas do no conto há sofrimento, mas a situação se transfonna, e isto para sempre.
dinheiro que ganhei jogando bolâo, desci a escada, abri a porta, uma vez A doce Cinderela, mantida numa condição indigna, vai até a arvorezinha
ainda respirei fundo e aos soluços, mas bnn. silenciosamente, para que nâo plantada sobre o túmulo de sua mãe: "Arvon·zinhal Mexe-te, sacode-te!", e
ocon,,sse de alguhn. ouvir, e en tâo desci cmn. passos abafados ao longo do um vestido cai dela, lão luxuoso e deslumbrante como Cinderela ainda
mnaulo P sai peúl Niedergasse, fH'la r1.1·/rada de [,ungwitz, que f1assa por não tinha lido, e as pantufas são inteiras ck ouro. O conto, no seu final,
Lidtlrnslf'in e Zwickau., f' s11g1ú rmno à l,'.1jHm.ha, o pafa dos salteadores nobres, s(·mpn· se torna dourado; existe felicidade suficiente à disposição. Nele,
dos que sornrrem. na necr!.ssidade. just;-urn·nte os pequenos heróis e os pobres conseguem chegar até o lugar
Karl May, Mrin Ldwn 11:nd Streben em que a vida tornou-se hoa.

Sem wnlos e aluçües dos m.arinlu:iros, /\ wragem do inteligen.lP


lnnjJ<'.\'{{l(Ú'S {' (l11('Y/(1l'f(LS, calorefrio, Nem todos são 1ão mansos a ponto ele simpksmentc ficar es1wrando
escunas, ilhas e homr'ns ndas abandonados, por <·ssa homlack. Eks saem a campo para enconlrar sua frliciclade,
1' buram,iros e ou:m enlnrado, intdigf-ncia contra cnwza. A coragem e a astúcia são S<'U t·s(·udo, sua lança
e lodos os 11ellws rom.anr:es, recontados~ {- a inteligf-ncia. Pois s6 a coragem pouco valeria aos fracos contra os
t'.xatarrwnle da m.anára antiga, scnhon·s gonlos; da não lhes da.-ia nmdiçôes de derrubar a tone no chão.
f,odt'/f/. a1-,rrrular, rnm.o a mim agradavam rwligamente, ;\ astúcia inteligente {- a ponJío mais humana do fraco. Por mais fanl,istico
aos jm 1/'US mais l's/JnüJs de hoje: que s<:ja o conto, na s11pnaç,10 de dificulcladcs ek {- s(·mpn· inteligente. No
- .\<_ja assim, n1liio: 11,,n/uun! SI' ruio quiserem, couto, co1~,gc·m e ashíc·ia funcionam de modo hem diferente do que na vida, e
si' aju11rntu.fÍ,e ,,stu.diosa nâo mai.1 anseia, não s6 isto: sempre são, como diz Lenin, os ekmenlos revolncio11á1ios já
se ,,.1·q-uJ:l'eu ,ú, seus antigos apetit.es, existentes que falmlam além das condi~·ôcs dadas. No tempo em que o
fJOr Kinl:,rsfon, ou Ballantyne, o Bravo, ag1in1ltor ainda se encontrnva na comlic;ão de sc·1vo, o jovem pobre elo conto
ou por C:oof1er, drLs.flrrreslas e das ondas: conquistou a filha do rei. No tempo em que a nistandade cn1dita tremia
t'nliio, qu<' .wja assim também! Hpossamos eu diante de bnJXas e demônios, o soldado do conto enganava bntxas e demônios
e lodos os nwn1 piratas f1artil!tar da tumba do começo ao fim (somente o nmto dá destaque ao "demônio tolo"). O
cm quejazem estes r1 todas as suas criações. que se buscava e se refletia era a idade ck ouro, em que se podia mirar até
Rolx·rl L. Stev<·11so11, A ilha do tesouro, para o comprador hesitante 1'1 o ültimo recanto do paraíso. O conto, porém, não se deixa iludir pelos
atuais donos do paraíso; por isso, de é rebelde, crianc;a escaldada e
O f1rramlmlar desordenado, as incursües desordrmadas da fantasia ru'io raro clarividente. Pode-se trepar até o céu por uma rama de kUão e ver lá os artjos
a.fúgenfarn a caça, q'lll' a filosofia metódica pode /mxisar na sua economia moendo dinheiro. No conto A comadre Mmte, o próp1io bom Deus se oferece
bem-ordenada. para ser compadre de um homem pobre, mas este responde: "Não te desejo
Lid11culx-rg como compadre, porque tu dás ao 1ico e deixas o pobr·e passar fome". Em
toda parte há aí, tanto na coragem, como na sobriedade e na esperança,
uma porção de Iluminismo bem antes de este existir. O bravo alfaiatezinho do
conto de Grimm, ern casa mn n1atador de moscas, sai a percon-er o mundo,
porque é de opinião que o seu ateliê é muito pequeno para a sua bravura. Ele
0
Tradução de William Lagos a partir do original em inglês, in: Robert L. Stevenson. A ilha
encontra um gigante; este pega uma pedra com a mão e a espreme de tal
do tesouro. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 10. modo que faz pingar ,igua,_joga uma outra pedra tão alto que quase não se
pode mais vê-la. Mas o alfaiate supera o gigante, es111aga1ulo, c111 l11gar da o pnla<;o de urndein1 no couto o.., destino_., de Sai.d: sob o miufrag-o a 111;1dl'11 .,
pedra, um queijo até virar mingau e jogando um pássaro tão alto que el<- .~t· transforma num delfim que, rápido corno uma flecha, carrega Said 11:11 .1
não mais retorna. Por último, no final do conto, o inteligente supera todos a 111a1·gem. O conto de Grimm Irmão divertido trata de uma mochila (·111
os obstáculos, conquista a filha do rei e a metade do reino. Desse modo, no que o irmão pode enfiar magicamente tudo o que desejar: gansos assados,
conto, um alfaiate pode tornar-se rei, um rei sem tabu, que desfez toda a oilo demônios, e por último, depois de ter atirado a mochila para denlrn
petulância hostil dos grandes. E no tempo cm que o mundo ainda estava do céu, ele próp1io consegue introduzir-se junto com ela no céu. No c:01110
cheio de demônios, um outro herói dos contos, o moço que saiu para de Grimm A ninfa d'âgua, as crian~·as jogam para trás contra a ninfa m;í
aprender a temer, resiste à angústia cm toda a linha; ele senta cadáveres 11ma escova, depois um pente e, por último, um espelho. Disso surgt·
junto ao fogo para que se aqueçam, joga bolão com fantasmas no castelo p1imeiro uma grande montanha cm 1ónna de escova com milhares de
assombrado, aprisiona o maioral dos espíritos maus e desse modo obtém espinhos, depois uma montanha c·m forma de pent(' toda dentada, por li111
um tesouro. No conto, o próptio diabo se deixa enganar; <Jnem o engana uma montanha em forma de espelho, tão lisa que a ninfa é obrigada a
<' um soldado pobre, ao vender-lhe a alma com a condi<:;'.io de que ele lhe desistir e não pode mais atravessar para este lado. Assim, brincadeira <'
encha o cotun10 con1 ouro. (korre que o sapato tem um furo, o soldado o magia tê·m de modo geral entrada franca no conto, o dcs<:jo torna-se uma
<·olont sobre mna <·ow1 profunda, e assim o diabo <' obrigado a arrastar 01dem, o <·sfi:,n;o da <·xe<·u<:ào cai fora, bem corno o espaço separador, o
sacos e mais sacos cheios de ouro, até o p1inwiro canto do galo, para então tempo separador. Em Andersen, uma mala vo;.idont transporta para a terra
ir embora ele mãos vazias. No conto, p<fflanto, até mesmo sapatos hlrados dos turcos, galochas da sorte nrnduzcrn um conselheiro judicial de volta ;1
são postos a scrvi~·o daquele que tem a inteligência para isso. Não falta Copc11hag11<· do séntlo XV. Em A\ mil e 11,11w noile.1 voa o Cavalo encantado,
urna kve zombaria elo mero dcs<:jar <' dos meios fahulosa111e11te simples qu<' transporta ai<' o céu, e é justamente lá que aguarda, brn,·os cruzado~
parn chegai· ao alvo, zombaria igualmente esclarecida, mas que não sobn· o peito, o mais forte nmtpl'iclor de clesc:jos: o gênio da lâmpada. E
<ks<·nnff;~ja. Em l<'lllpos antigos, assim começa o conto do príncipe sapo, exl rcmanwnt<' significativo qucj11stamc111<' csl<' 1iquíssi1110 conto de Aladim
<ptaudo o des<:jar ainda adiantava alguma coisa -- o couto, poria 1110, não se e a lâmfmda mâgii-a s<:ja construído unicamente na base d<' utensílios ideais
apresenta como s11bstitulo para o fazer. Mas o que na venladc· ocorre é para a oht<'nção do que nfü, está disponÍv<'L Queima-se i11<-e11so, o falso tio
que o intdigc-nlc Augusto do conto ensaia a ,U-1<' de n;"io se deixar rnunml!'a palavras enigm,íti<-as, <' logo ahr<'-S<' a caverna com os tesouros
impressionar. O poder do giga11I<" <' pintado <·01110 11111 poder· <pu· tem um es('(mdidos, que foram ~juntados <·m 11om<· de Aladim. Aparcc<' um jardim
furo pelo qual o fraco pode passar vitor·ioso. suhtcrráneo e as árvores estão coh<'1·1as de pc<h-as pn·ciosas cm vez de
frutos. Adiantam-se o escravo do ande o g<'nio da lâmpada-- ambos desejos
Um pas.\ti dR múgiw, gPnio da lúm/mda primcvos, resultantes de alucinação, dcs<:jo de um poder qnc não está restrito
Acorrem aqui tamh<'m coisas boas que ainda não foram vistas. a determinados bens, con10 no caso da mcsinha-1<'-arnuna; ao contrário, a
Sobretudo instrumentos ideais elo tipo mais confortável estão ;1 clisposi<:ão lfünpada concede ao seu senhor, irresttitamente, tudo o <)ll<' ck deseja. O
do fraco, magicamente. O mais manifrsto dessa dasst· são os nmtos de gi-nio da lâmpada concede tesouros sem conta, bdcza física e
G1i1mn Me.1inlw-te-arruma, O asno de ouro e O j,orn,lt~ no Mlco: o hcn>i, um iuslanlancamente a arte da cavalaria, fineza na fala e no cspí1ito. Da noite
pobre rapaz enjeitado, torna-se aprendiz de man-eneiro e r·cc-ehe ali, depois para o dia de constrói um palácio, corno mmea houve igual na tcITa, com
de clceorrido o seu período, uma mesinha sem nada de cspeeial quanto à câmarns do tesouro, cavalariças e arsenal; as pedras são dejaspc e alabastro;
aparência, mas com uma qualidade especial. Se lhe for dito: "Mesinha, te as janelas, de jóias. Uma simples ordem e num instante a lámpada transfere
arruma!", da instantaneamente se cobre de comidas mais deliciosas do o palácio da China para Túnis, e então de volta para o local anterior, sem
que as que qualquer cozinheiro teria podido arranjar, acompanhado de que nem mesmo o tapete diante do portal tivesse st' movido com o vento.
un1 grande copo de vinho tinto. Acresce-se rnn asno rnilagToso que, de Chama a atenção igualmente a mesa mágica que proporciona ao falso tio
acordo com o pedido, expele peças de ouro pela frente e por trás; por· fim, quase onisciência a respeito do que sucede na terra: "Mas então ele
aparece o porrete no saco ou a arma mágica, sem a qual o pobre, mesmo pn~jctou, num dia dentre os dias, uma mesa de areia, e espalhou as figuras,
tornando-se rico e feliz, não consegue subsistir neste mundo. A mesinha-te- tendo investigado com precisão a sua seqüência; e logo ele determinou
arruma tem muitos innãos na magia ideal do conto: a pantufa voadora na com segurança a seqüência das figuras, tanto a da mãe quanto a da filha" -
história de Hauff sobre o pequeno Muck e sua bengala como vara de condão; trata-se da mesma mesa geomântica, por força da qual o mágico em Túnis
licara sabendo do tesouro distante na China <.pie Aladim dl'pois trot1Xl' ;·, 11;1sci<lo para ser 1nn conto, pertence o estudante Ansd1110, <·111 <> /mi,· ri,
luz. Nada além de meios do desejo, nada além de via mgia, para co11sl'guir 1111ro,de E. T. A. Hoffmann, o "conto dos novos te1npos", dedarada11u·11lc-
pelo caminho mais curto (no conto) o que a própria natureza, fora do 10111únúco. Também Anselmo tem a cabeça cheia de sonhos, e o m1111do cio:-.
conto, recusa ao homem. De modo geral, a escavação mágico-técnica de <'spÍiitos não est,1 ce1Tado para de;justamente por isto, ele é o mais d<'s,!j<"itu 11,
tesmu-os é o caracteristicamente fa.bular desse tipo de conto; pois o tesouro 11a vida. "Portanto, como já foi dito, o estudante Anselmo entrou ( ... ) 1111111
n1contrado simboliza como poucas coisas o milagre da transformação devaneio onírico que o tornou insc-nsível para qualquer contato extc1ior da
repentina, da felicidade súbita. No conto de Aladirn, são necessários para vida habitual. Ele sentia que algo desconhecido se movia no seu íntimo e lhe
isso argúóa e incenso; só a argúcia j,í basta no conto secularizado de causava aquela dor prazerosa, 011 seja, o anseio que promete ao horn<·111
caçadores de tesouros O e.1wmv1'lho dourado, ele Edgar Allan Poe, e em A uma existência difc.Tcntc, mais elevada. A sua s<"nsação preferida se dava
ilha do t11souro, de Stcvenson. Mas ainda nesse semiconto (passando para quando vagava só pelos campos e matos, como <Jll<' livre ck tudo o que o
a história de aventura), o tesouro é n-spons,ívd pelo suspense e pela guinada; prendia à sua vida de priva,:ôes, quando podia n·en<·ontra,--se consigo mesmo,
dt· mesmo é a mandr.-ígora que abre os ferrolhos da vida e permite adquirir apenas contemplando as múltiplas imagens que se kvantavam do sc11
o seu rcspkndor. Desse modo, o conto rmígico-ténlico apenas indiretamente intnior". Embora lutando contra o vc·io de azar que o embaraçava, contrn
ou por força maior tem em vista obter posses; ele visa, antes, à pod<'rc-s hostis c1ue se disf;-ir,·ar,1m justamente nesse azar e em coisa pior,
transfónrn-H:ão das n>isas em bens de consumo sempn· disponíveis. Ele A.nsdmo ainda conseguiu conquistar a sonora Setp<'nt ina. No quarto azulado
pinta, no lugar· do cohe1·tor muito curto, ao qual quase toda pessoa 1cm de feito de palmcin-1s do ,ll'<JllÍVista Lindhorst, no intenso trítono dos claros
adaptar-se, uma cama larga da natureza. Ek 1cm cm vista - designando o sinos de nistal surge Se1pcntina, e ele S<' torna digno dela. Anselmo consegue
lar de toda rnesinha-tl'-arnnna e inclusive da lâmpada mágin, - o país das chegai· até Athintida, onde ele passa a morar com a Iilha do príncipe da luz
maravilhas, induindo os pombos assados: o que soa, ademais, <·orno se já mun.1 propriedade senho1ial, tendo já por tanto tempo possuído ali uma
se cstivessC' ouvindo um conto social, um conto do Estado ickal, mais simples gr,11!ja, uma gr,ll!ͪ cm sonho, corno possc·ss,'io elo senso interior. Este {-
quanto aos st·us bens, mas ainda mais nutritivo elo que lodos os demais. Ansdmo, estudante da Alemanha <tll<' naufragou; e ao seu lado encontram-
se, como deve stT, todas as demais nalun'.'.l.as ckst:i,mles do conto artístico,
"Nas a.ias da 1:ançâo, mru benzinho, 11u ti' /.roar'l'Í embora" como a knda do gê·nlTO de Dom Quixote. Especiahnc·nte quando se
O rapaz que queria aprender a temer teve de início apenas um sonho assemelham ao Quixote apenas ua fantasia p1udigiosa, mas não na força
fraco. Também o alfaiatczinho valente obteve a ptincesa quase sem intenção, para agir.
unicamente por ter topado com da no seu caminho. Todos os h(TÓis dos O cavaleiro Zendelwald, na knda A 11iq1;nn wmo wvall'iro, de Keller, é
contos cn<·ontram a sua frlicidack, mas nem todos já estavam claramente o mais sonhador desse tipo. Fato é que de vivia totalmente indeciso, não
sendo movidos cm dirt'<:ão a ela pelo sonho a n·spt'ito dda. Somente- os sabendo quase nada sobre as coisas que se passavam lá fora. Tanto melhor,
lwróis dos contos artísticos ou das kndas fabnlares posteriores, que não são todavia, <·onhecia os pensamentos desejosos que tecia na sua fortaleza
piores por causa disso (com autores tão díspares como Hauff, E. T. A. solitária a respeito do mundo e das mulheres. "Quando o seu espírito e seu
I Joffmann, Keller), são também psicologicamente· personagens de contos, coração tinham se apoderado de alguma coisa, o que sc·rnp1·e oconia de
ou seja, de natureza utópico-sonhadora. O pequeno Muck em I lauff: ele fonna total e ardente, Zendelwald não conseg1Iia dec·idir-sc a dar· o ptimeiro
havia partido fHua prncumr a sua frlicidade, perseguindo justamente o seu passo para a realização,já que o assunto lhe parecia pc1fcitamcnte resolvido
sonho de fclicidadt". "Quando ele via mn rnc·o no chão brilhar à luz do sol, assim que obtinha clareza interior a respeito. Embora gostasse de conversar,
na HTta ele o levava consigo, acreditando que se transformaria no mais de nunca dizia na hora certa mna palavra que pudesse ter-lhe trazido felicidade.
belo diamante; quando via na distância a cúpula de uma mesquita Porém, não só a sua boca, mas também a sua mão já se encontravam mais
resplandecer como fogo, quando via um lago brilhar como um espelho, adiantadas do que seus pensamentos, de tal modo que muitas vezes quase
ele rumava rapidamente na sua direção cheio de alegria, pois pensava foi de-rrotado por seus inimigos na luta, porque hesitava em desferir o
ter chegado a uma terra encantada. Mas, que pena, aquelas quimeras golpe decisivo, porque já via de antemão o adversário a seus pés". Um dia
desapareciam quando chegava perto, e o seu cansaço e o estômago chegou aos ouvidos do cavaleiro sonhador uma notícia que, embora
roncando de fome não tardavam cm lembrá-lo de que ainda se encontrava procedendo do mundo concreto e real, praticamente coincidiu com o objeto
na terra dos mortais". A um gênero diversamente curioso, mas igualmente que preenchia a sua imaginação naquele momento. Zendelwald, pois, tinha
visto, nu1na de suas parcas viagens, a ('Onclessa lkrtradc, 11111a vi1'1vajov<·111, <·stava1n1ug;1dos. Muito antes de o aspe<·to i11l<Tio1· das imag-<"11s dt"scj.1111c-..
extreman1ente bela e rica; ele esteve na sua fortaleza, inle11sa111c11lc fluir, ele é estimulado por traços fabulares da natureza, cm csp<Tial po1
apaixonado, mas separou-se dela calado. Por muitos meses, Zcndelwald 1111vcns. Nelas aparece pela primeira vez o lugar distante e elevado, 11111
não pensou em outra coisa elo qm-- na distante senhora; foi quando chegou maravilhoso país estrangeiro com torres, acima de nossas cahe<:as. /\s
a notícia de que o imperador havia proclamado um torneio e a condessa nianças encaram as nuvens brancas em fonna de cúpula como n1011tanli;1s
iria dar a sua mão ao que vencesse todos os demais, confiando firrnen1ente nevadas, como uma Suíça no céu; também fortalezas encontram-se lá, mais
que a Virgnn divina haveria de empenhar-se cm conduzir à vitória a mão altas do que na terra, suficientemente altas. De qualquer modo, o anseio<:
do homem indicado à sua dignidade. Por fim, o cavaleiro pôs-se a caminho, a existência mais segura para essa juventude, o que é reforçado pelo n1hro
mas logo caiu novarnenlC' no seu antigo devaneio de imagens<" pensamentos, evanescente do anoitecer no qual desaparece o sol. O menino no conto de
antecipando tudo de acordo com o seu dcst:jo e dabor·ando o seu sonho. Selma Lagc-rlôC intitulado /1 maravilhosa viaf{lml. de NilI Holgersson atnw,;\
"Então, a aventura teve lugar na sua irnagina<:ão passo a passo e correu às da Su.ér:ia, acompanha os gansos rn1 sua rota esplêndida e melodiosa, ;1
mil maravilhas, sim, enquanto cavalgava pela vndcja11lc paisagem ck verão, rota nnno ao sul, onde a fortaleza celestial está na terra, onde estiio
j,i entabulava doces di,ilogos com a amada, 110s quais de lhe predizia as domiciliadas no mar as hem-aventuradas ilhas Wak-Wak. Pois, para a maio1i;1
mais belas clcsn>hcrtas, a ponto ele- fazer corar a sua face ck pura alegria, dos hom<"ns, tamh{-m a primci1,1 imag<'m do mar tem sua origem no <.<:11
tudo isso e1n seus pc-11sainc11los". Por·ón, como o divagar tolhe o passo, o vasto e puxa para lá; isto significa: a nuvem é\ para o olhar do conto, 11ao
cavaleiro só chc-gou ao seu destino quarnlo o torneio já havia lc-rminado, e só fortaleza ou montanha nevada, da {- tamb{-m uma ilha no mar ceksti;1)
tudo teria sido c-m vão para ele se a Vit}~em celestial não tivesse- ateirado o ou 11111 barco, e o <·éu azul no qual ela vd<:j,1 r-dlctc- o oceano. Pois a distância
fosso <'lltr·e sonhos cksc:Jantes e realidade-. Ela mesma havia lutado no torneio sohr<' nossas cah<'ças, o 1nar a{-rco co1n suas nuvens, ncrn mesmo c-sla
na figura do cavaleiro Zeuddwald, sim, até 1rniis do <]li<' isso: assim que o limitada a costas tcrn·nas nem é ape11as reflexo delas. Portanto, todos o.,
sonhador atrnsado viu, com extrema estupefação, a sua própria pessoa contos <'lll que apar<'C<' o azul n·kste mergulham este numa imensidão cl"
como vencedor· e noivo ao lado da bela conckssa, assim que- ek, torturado água super·ior·, e a viagem segue- sem )><'!'Cal(:os ai<: a cosia, até a estrela da
por um ciúm<' difuso, rompeu pelas fileiras para ver melhor o sósia-rival, manhã, que cai bem, <'spc-cialnwnte nesta fantasia. Em tudo isso ainda esli10
no mesmo instante sumiu a imagem dupla do lado de B<..-tradc-, a condc-ssa ativos resquícios mí1iro-astrnis, indo ai<' o conto das estrelas que virar.1111
voltou-se para o verdadeiro Zencklwald e continuou a conversa sem ter moedas ck prata; elas, porém, são Ião pouco rn·cess;Íl'ias ao conto qua11lo
percebido nada da troca de pessoas. "Só Zc-nddwald niío sabia o que- se o <"<'li n-istão, conto que voa ainda mais longe 011 mais alto que os pássaros.
passava quando Bcrtradc lhe falou palavras bc-m conhecidas, às quais ele, Também se1n tudo isso, de t<·m os scns olhares singulares, e, sendo
algmnas vezes, respondeu, sem se da,· couta, com palavras que ele também singulan·s, estes difundem no nível n'ísmico o brilho de um temperamento
_j;i havia prnnunciado c-m algum lugar; sim, depois ele algum lc-mpo de próprio,<' tudo neles recende a arte verbal. Este é o caso da fabulação qt1c'
notou que o sc-u predecessor devia ter travado exatamente o mc-smo diálogo Gottfricd Keller permite, em O Ifrnriq1w vnde, <JUC a sua mulher Margan·lc"
que ele tinha inventado na sua fantasia durante os dias ele viagem". A-;sim, faça com a luz do arco-íris, como se fosse urna mensag<·ira. A senhora
o cavaleiro foi feliz com a condessa; essa frfü·idack pron·dt·u tanto do Margarete vive entre os salvados de sua lc~ja de quinquilha1-ias e raridadc-s,
próprio sonho como do próprio conto e tornou-se n:al. Fahulosa11wnte tal qual um outro pequeno Muck com o lnilho dos cacos e com sua utopia,
real; a Vir-gem Maria, ela própr·ia 11m sonho crente, ajudou um sonhador rmma ignorância que não precisa envergonhar-se de conter coisas mais
com um wisliful thinkingcxtrcmanH'nte brando, quase ruinoso, a alcançar belas do que as existentes no mundo desencantado; coisas extraviadas afluC'm
o país das maravilhas. Entretanto, nem Anselmo nem o fraco Zencklwald e podem ser ouvidas, a própria luz do dia é ilustrada com imagens ck
conseguiram sair- de sua interioridade, nem mesmo onde a fada Lenda tenas distantes e livros pagãos: "Para ela, tudo tinha relevância e <'J"a
lhes proporcionou chão firme para pisar. animado; quando o sol biilhava num copo d'água e através deste lançava
seus raios sobre a mesa polida em tom claro, as sete cores cintilantes ern111
"Vamos embora para os vales do Ganges, onde conheço o mais belo lugar" parn ela um reflexo direto dos esplendores que imaginava existirem 110
E, não obstante, a manhã desse tipo de conto não se nutre apenas a próprio céu. Ela dizia: 'Vocês não estão vendo as belas flores e grinaldas,
partir de dentro. Os cacos cintilantes que o pequeno Muck recolheu os campos verdejantes e os lenços de seda vermelhos? Estes sininhos ele-
brilharam para ele perfeitamente também fora, no campo exterior em que ouro e estas fontes de prata?' e todas as vezes que o sol iluminava o aposento,
ela expe1imentava olhar um pouquinho para dentro do cé-11, na s11;1 opi11i;1, ," , I'" 11<,, 11111c, <• l )I IH> 1111n ior <' p;ÍI I i;1. Man·s do :-.111. n·11 ;l/_111-t 111 <I' wsa, ,Ih< ih; 1d, 1..,
Foi o 1pafota Keller que recolheu essa pue1ilidade e a registrou po1 ('S( 111, ,, , 1, 1,.1/,II <·s, ;i <;1s;i 111isl1Tiosa ···· lodos <'SS<'S <'<•11,íi·ios 01 ie11tais acon1oda11H,<· .,o
valendo-se de mna mentalidade inocente, leva adiante o ín1peto n11110 ;10 d,-., Iº do <-01110 pda p1úp1ia similalidack, integrando-<) dcnlro d<' si lll<'s1110.
sol, que preenche tudo o que tem vida e dá-lhe uma fonna bern-acah;11L1. \ 1. 1/;u I elisso d<' modo algmn é simples: corn certeza, a rnaior parte dos mat<'riai:-,

Se o lugar distante ruge na concha como se fosse o mar, ele também pocl1· , 1,, <01110 provf·m do Oriente, especialmente da Índia, e tende1n a retornai
parecer no piisma corno se fosse a luz de 111n porto, corno é o caso ela 11.11 .1 l,í, mas 1an1bén1 a natureza que aparece no conto, rnais exatamente as

cap1ichosa luz encantada da senhora Margarete, e o conto nada terá co11t ra 111 l\·<·11s e a for1aleza noturna representada pelo céu, sün, até a floresta alem,1

isto. Até é possível que o seu sonho desenhe, isto é, que ele esboce 11111 , 1,, <011to, fazem fronteira com o nascente. Nesses, o ponto culminante não é a
mapa completo de seu litoral. O campo extc1ior, de qualquer modo, convida 1 ( ·I wldia dos muitos contos de Grirnm, mas o aspecto miraculoso, a aventura e

a isso, o campo em que ck se movimenta, a partir de onde ele interpreta 1· .1 paisagem do mundo mágico; estes constituem o resplendor arquetípico de

recolhe as imagens fautasiosas introduzidas pela vivência, ordenadas nos ,1f il <' 1una noite!.. Este pode também estar pairando sobre a ilha de Hong Kong
termos do conto. Kipling, no seu conto onírico Tlw ffru.1hwood Roy [ O moro , "1 na imago da própria Brushwood Giri, a mulher-maravilha: o conto mais
lenhador!, faz o seu moço desenhar precisamente um mapa desse tipo 1· 111tcr-iorizado contém esse pccla~-o de lugar exterior, situado no "Ocean of
vi,~ja sobre de. Nesse conto, Ilong Kong é uma ilha cm meio ao "Ocean of' 1hrams" da Índia, na imagem que ackntra o porto vinda do lugar distante e
Dreams", e no seu litoral está situada "Mercil'ul Town", a Cidade 'Ili<' faz, ela própria, partir em viagem.
Misericordiosa, "onde o pobre descarrega o seu fanlo e o doente esquece
o que é chorar". O BnL1hwood Boy cavalga cm sonho as trinta milhas, Os mare.1 do sul na quenne.1.m e no circo
tendo ao seu lado a mo(a que vem imaginando desde a sua infância; ek O lugar distante também pode abordar o rapaz e estar presente para
cavalga cm companhia da sonhada Brushwood Girl pelas dunas e estepes, de de modo bastante sensitivo. Em cores e vultos, <Tu corno carne, colorido
pela luz crepuscular da geografia dos S('llS d('scjos, através "dos vales como a Ilâmula que os a(crnguciros italianos espetam nela. As barracas da
provindos do milagn· <' do contra-s<'nso". Sim, o país dos sonhos não quern1essc não cr<'s<·e1-am naquele d1ão, larnpmH·o a 1nagia constantcrnente
desaparec(' nem rncsmo em vista da r<'alidad(' da Ásia (kiental, onde o atualizada, constantemente revdada de maneira nova, que das trazem
homem já crescido vai parar mais tarde <·orno oficial colonialista; Hong consigo. Ela dá a impressão de ter vindo de um lugar tH'mendamente
Kong é uma cidade e ainda assim continua S<'ndo uma ilha; o mapa do 1·emoto, s<·m dúvida ordinário e cheio de embustes, mas ao menos com
sonho 11ão é i11validado. Policn11an Day desp('rta regulannent(' para a mais conteúdo do que a initação que o pequeno-burguês sente cm relação
realidade 1rní, mas, apesar disso, o mapa do sonho não desbota fre11te ao à primitiva alegria da juventude e do povo. Desse modo, para o espírito
mundo real. Neste conto, a imagem do desejo do herói mistura-se como singelo e o complexo não deturpado, essas ban-acas cm forma de navio
meros sonhos noturnos, mas de tal modo que ele fon:a cst('s a tornar S('nsível saem caITcgadas pelos mares do sul; esses navios cm fonna de tenda atracam
o sonho diurno propriamente dito, da Índia como terra do desejo e da nas ódadezinhas poeirentas para urna breve estadia. Estão tatuadas com
princesa desejada que procede dele. A amada 110 conlo de Kipling torna- pinturas de um verde pálido ou sedentas de sangue, nas quais se entrdaçam
se, por fim, não só a rno(a que um solit,frio imagina, adorna com adereços imagens votivas pela salvação dos perigos do mar com as de haréns. O
de sonho e subsume numa miragem. Mas a Brushwood Girl também existe motor impele a orquestração com um som est rauho, cheio, inumano,
perfeitamente, encontrou-se com nosso herói num sonho des<:jante próprio fatigado e sem fôlego, estando às vezes conectado a uma moça de cera que
e idêntico; assim, no final, os dois s1~jeitos do sonho descobrem-se também dan<;a aparafusada ao lado da entrada. Que, de tempos cm tempos,joga a
de fato e reencontrarn uni no outro, nmna rnística real do a1nor, a sua cabeça para trás, numa conlorção maluca, passando da cera aparafusada
Índia. Urna Índia real de ordem supe1ior, urna Índia cm relação à qual a do para a dançante, para ficar parada trêmula exatamente nessa posição logo
sonho foi uma pr01nessa e mna rnotivação, o rnateiial da fantasia, o pano de atrás do arauto que não tem medo de nada. O mundo exaltado dessa
fundo iITefutado. Pois, além de nuvens, azul celeste e arco-íris, é o Oriente ern maneira tem numa ponta os mistérios do leito nupcial, e também do aleijão
geral, muna grande extensão em volta das margens do Ganges, que constitui de nascença, na outra os mistérios do esquife. "A dama desnudará a parte
um mundo exte1ior propriamente fabular, que facilita ao conto a conexão superior do seu corpo esplendidamente constituído, e será possível
com o existente no campo exterior. Nele, o Brushwood Bay está em casa, lá contemplar os mistérios da plástica humana"; mas também: "Às nove horas
ele é acolhido pela selva, que lhe descortina o olhar para mna terra estrangeira, da noite, na hora em que ela morreu, o professor Mystos chamará de volta
,1 vida uma 1númia egípcia". Pessoas raras <· sua ;11 t(' <·xpoc111---.c· ;1 dl' conta co1n os palhaços que se apresentan1 justo na pausa. S11;1 vai i;u .10
contemplação, em puras capelas laterais da anormalidad\'. O <'llg-olidor d(' vai do bufão cintilante e maquiado com talco da era elisabetana ah~ o histt 1ao
espadas e o comedor de fogo, o homem da língua indestiutível e o n-füiio d<' nariz vermelho e redondo, uma boca so1·I"idente preta e branca e aiwl.i
de ferro, o encantador de cobras e o aquário vivo. Hércules, hornens- até a culminância da pobreza, o bobo Augusto. São todas elas figuras ck
abóbora, mulheres gigantes estão aí: "a natureza foi tão pródiga no manejo um coliseu de aspecto agradável, e isso vale em maior grau ainda para as
da substância de seu coq>0 que, quando este chegou à estatura plena, sua apresentações da segunda parte ou as pantomimas. A apresentação é ahet ta
massa atingiu duzentos quilos". E ao estrangeiro anormal soma-se pela música mais bela desse gênero, pela Marcha dos gladiadores, de .Fuciks,
reiteradamente o aspecto estranho do conto, inclusive do romance de terror: e concluída pela marcha Per a.1pera ad a.1/ra. Ainda hoje, o circo constitui
labirintos oiicntais, gargantas de abismos, castelos mal-assombrados. Isto é o mais colo1ido espetáculo de massa ou a imagem da sensação; trata-se· de
quenncssc, uma fantasia c·amponesa multicolorida; é verdade que, nas fantasia árabe na mais divertida arena romana.
grandes cidades norte-americanizadas, ela está sendo gradativamente O que a quitanda e a lona refletem dificilmente será refletido outra wz.
tomada por ai to-fala n tcs e passatempos t ccnolobrizados, mas o país do desejo, Nem nu·smo de modo smTealista, embora a sua graça possa não ser tiio
n~pn·scntado pelos mares do sul medievais, pennaneceu. E se mantém insuspeita, o seu aspc·cto, cxcêntiico. Isto, cn1bora o boneco de cera subnürja
tanto mais, remontando a tempos hem mais antigos do que a Idade Média, em pavor, o palhaço cintilante se cubra do desconhecido. Somente Meyrink
na quermesse de ordem 11wi.s el1mr1,da, no tipo ck espetáculos circense~ extraiu desse mundo o seu próp1io n► nto, o próplio romance popular, d<'
totalnwntc sc·m co,·tina. Pois enc1uanto os milagn·s das ban-acas são postos modo espiiituoso, cktivamente afim, rnal-esnito, pavoroso, tudo ao mesmo
de var-iadas maneiras sob um telhado, num só círculo, irrompendo ali tempo. É o que ocmn· ao cksncvcr o pan-<5pti<'o orfrntal de Moharnrned
rncsrno o picadeiro, os n1ares do sul se tra11sJ< ►nna111110 c·oliseu 011 no circo. D,u,L-;<·hc·koh: "O motor na entrada 1itmava a sua velocidade e Ílnpulsionava
Todavia, não podem estar· Jff<•sc·ntcs o aspecto de gabinete de bonecos de um instnnnento sirnila1· a um órg,10. Estava sendo tocada uma música
cc1·a, qualquer morte apan:ntc, qualquer órgào rnec,1nico, porque no circo daudi<'ante, sem ff>kg-o - em tons que, s.imultaucamente altos e abafados,
tudo é- vida. E, diferentemente da qnennessc-, que trabalha <·om o tinham algo de estranho, amolecido, como se soassem embaixo d'água.
oniltarncnto, com o palco, a vi trine, a cortina, o circo é- totalmente ahc,·to; Na t<'nda havia dwirn de nTa e lâmpadas a óko <·m knta nnnbm,tão.
esse· é- o aspc·cto próp1·io do pinuleiro. Sim, dentre as rq>rc·sc-11ta«;:<><'S artísticas, I Iavia mesmo terminado o mínwro 'Fatrnc, a pérola do O1iente' e os
trata-se da 1ínica honesta, ho1wsta até- a r,tiz; cm nenhum lugar po<lc·-se espectadores corriam de um lado parn outn> ou espiavam pelos orifícios
<'l'!{ll<'I' uma pan·dc diant<· dos cspcc·tadorcs assentados num drculo em nas paredes cobertas com pano v<·rmdho p,u-a dentro de uni panorama
toda a volta. Ainda assim, ocorre o estranhamento; os saltos são o resultado toscamente pintado que representa a tomada de Ddhi. Outrus estavam
ex Iremo oferecido pelo corpo humano, mas <·stc nào deixa de oferecê-los; parados mudos diante de um caixào de vidro no qual jazia um 'turco'
charlat;"ics se apn:scntam, nias sem charlatanice. A ,H"lc do circo, como que moribundo, respirando com dificuldade, o pc·ito m1 pc·1furado por uma
praticada uni<'amcutc p<>l" <·iganos num carro verde, mais antiga do que a bala de canhão - as bordas do ferimento estavam c·orn aspecto q1wimado e
memória do leitor mais antigo, talvez até pn~-hist61ica, não deixa ele ser azulado. Quando o boneco de cera abria suas pálpebras phímhcas, o estalar
mn tipo de rctidào burguesa crn tennos de arte e o 1nodclo parn esta. do mecanismo ressoava levemente no caixão". Um horror pré-montado,
Trata-se do local sem bastidores, cxc·etnando camarim e cst,ílmlo, e que que nem por isso é menor, é mais uma vez montado aí, na impressão e em
pode ser visitado durante os intc1valos; no picadeiro, 110 trapézio logo função dela; porém, não faltam igualmente as luzes oníricas associadas da
abaixo da lona, tudo acoutccc sob forte iluminac;ào, e aiuda assim é magia, quennesse e do circo. O Colem, de Meyrink, inpira-se no mundo fantástico
um mundo bem próprio do dcsc:jo composto por excentricidade e leveza da quennesse, assim como o romance popular A jáce verde é salpicado
precisa. Houve poucas 1nudanças nos tipos representados, os 1igorosos, os com visões do circo. O Colem trata nada mais, nada menos do que do
cômicos e ginásticos; eles sào predeterminados como as espécies de animais misté1io das barracas, que não pode ser obtido por um preço maior.
que temos a oportunidade ck admirar: elefantes, leões, os cavalos trotando Encontra-se aí o som de foles da n1a que penetra na casa, o luar ao pé da
<'lll volta, o senhor diretor com o chicote na mão e encan-egado do estábulo carna, um quadro descorado que se parece com um pedaço de toucinho, o
110s <·ntrcatos, a equitadora, os equilibristas e outros acrobatas aéreos, meio quarto sem porta, em algum lugar da cidade de Praga, tendo por morador
sill'os, meio à beira da morte, o domador de feras e o rompedor de o golern, o parapeito de pedra no quarto do galem., ao qual o hóspede se
<·01n·11tcs. Mas para que o circo seja tambén1 diversão popular sem pausa, agarra, olha, olha e despenca, pois a pedra é lisa corno um pedaço de toucinho.
Perambula por ali tainbém uma bela Míriam, um sonho e111 cera q11a1110 i1 nnneçaram a tremer e dançar de acordo com o ritn10 sdva).{('tll da pol ◄ .1
perfeição, e sua casa é iluminada pela luz da manhã, inacessível para visitantes que soava do outro lado: a anarquia se impôs, e não acredito q1w .1
menores de dezesseis anos, inacessível como a quitanda que leva aos mensagem tenha sido escrita". Até aqui o jovem Keller, e mais urna V◄'/
mistérios da Grécia, como a vida sideral. A mistura singular entre o estilo chama a atenção o humor, em conexão com uma espécie de profundicl:ulc
de Jakob Bõhme e o gracf:jo desafina, o que é próprio desse tipo de sarcástica, de que o gracejo se seive num tom duplamente cômico. l 1111
literatura, até o ponto de chegar ao surrealismo, e ela tem muito a ver com desejo popular p1imitivo, de modo algum singelo, mas também de modo
esse gênero ambíguo, dicéfalo, totalmente alegórico. As pinturas de Dali, algun1 decadentt', preserva-se na quennesse, ernigra nela. Uma zo11.1
às vezes até as <k Max Ernst, movimentam-se muna atmosfera semelhante, lirnítrofr está aí, p<ff mn ingresso a um preço muito reduzido, mas c·o111
num misto de graetjo e pro.fundidade, sim,jovialidack e pavor; o modelo seus significados curiosamentt' utópicos preservados, conseivados n11111
para 1tulo isso é- propon-ionado pelo boneco de cera hurnmisticarnente esp<·táculo brutal, numa amhigüidade vulgar. Trata-se de um mundo q11t'
movimentado e de olhar medusicamentc fixado. Meyrink, hem como toda foi pou<·o examinado quanto ;;1s ,íreas específicas do seu desejo. O que se·
a magia ela qucnness<· cm seus diversos graus constituem um non.11mse, a mantém na sup<·rfície são precisamente as "cmiosidades", corno essas coisas
respeito do que ator e autor não deixam dúvida; contudo, um anseio reside foram chamadas por último ainda no barroco.
nele, que não {- absurdo, <·mbo1·a s<:ja vivaz e ludibriável, barato e
desregrado. Trata-se do anseio por uma representação ligurn<lado nnuHlo, O conto .11:dva,gem: o nJJnan<:e fJOpular (colportagern)
composta de <·xn·ntricidadc e extravagân<·ias, anseio pelo curioso como Também no conto as n>isas não c:oITcm tranqiülarnente desde o início.
qualidade ol~jctiva. Entretanto, Dali e· Mcyrinkjuntos são supnados, o que lLí nck gigantes <· fdticdras que lrnncam portas, que obrigam a fiar a
cm si é naturnl que oco1Ta, sim, eks s,io liquidados, o que já mio é tão noite toda, que indicam o caminho errado. E há, <·m contraste com o azul
natural assim, justamente no qu<' se n·frrc ao tcITor rdes, 110 momento cekstc- ckmasiaclamente suavt· ou ligeiro, um tipo de conto que raramente
ern <ptc nm grande poeta, ignalm<'nte versado no singular-lmrksn>, no é encarado como tal, um lipo selvagem, arrdmtaclor. Ele é, em geral, pou<·o
humorístico-grav<', e possivdmcnt<· mancomunado com <'I<', resolve dedkat'-- apr<'ciaclo, não só porque facilmenk cknü à condição de refugo, mas
se,, xingação rn<·lafisica. O poeta {- Goltf'ried Keller, e seu Tmu.mlJ1uh 1/,i11ro porque a dass<' dominante não gosta de Fl;insd e Gretei tatuados. O conto
do,, sonhos!, de 1818, de-clara o s<'gnint<' sobre o assunto cm discussiio, que arn·hatador é, pm·tanto, a histótia de av<·ntura, e o mdhor exemplo d('
mmca dwga a scnlc fato tematizado explicitamente: "Adentrc-i um gabinete sua cxistê:rKia atual é o romance popular; O seu rosto estampa a expressão
de bon<"cos de C<'ra; a soci<"dade do potentado parecia muito desorganizada de um ente rc-conhC'cidamente indelicado, e freqüentemente isso é de fato
e nc-gligenciada; havia uma solidão assustadora, e pass<-i rapidamente por ;1ssim. Todavia, o romance popular· apresenta do começo ao fim traços de
da parn nm <·spa(o fediado, onde se podia ver uma cok~·,io anatômica. Ali couto; pois o seu lwn,i não fica aguardando, <·omo na hislória do magazine,
se· <·n<'Olltravam l'<'llllidas quase todas as partes do corpo humano atf que a felicidade lhe <·aia no colo; de tampouco se abaixa para ajunt;Í-
art ilicialnwnte esculpidas em cera, a maioria delas em comfüJ>c·s cnfrrrnas, la, <·omo se fosst· uma bolsa atirada aos seus pfs. Ele guarda, antes,
assustadoras, uma assembléia geral de condições humanas <·xtn·rnamente s<·rnelhança com o pohr·c de comn grosso do conto popular, o s1tjeito ousado
singular, que pan·cia deliberar sobre urna mensagem a ser dirigida ao que senta ntdáven:s diante do fogo, qu<' passa a perna no diabo. O herói
criador. Urna parte importante da respeitável sociedade era nmstituída ele elo romance popuhu- tem a coragem de quem nada tem a perder, o qu('
uma longa série de r·ecipientes de vidro que continham, desci<' o menor geralmente tam bérn é o caso do seu leitor. Impõe-se aí uma porção assentida
embrião até o feto já fom1ado, as .f01n1as do homem em fonna(ão. Estas da velhaca1ia burguesa, assolada, mas não extinta; quando o herói reton1a,
não eram de cera, n1as de constituição natural e estavam assentadas no tem à sua volta palmeiras, adagas, as fe1vilhantes cidades ela Ásia. O sonho
espírito do vinho em posições altamente meditativas. Essa postura meditativa do romance popular é: cotidiano nunca mais; e no final c:onsta: felicidad<·,
chamava tanto mais a atenção porque essa rapaziada representava amor, vitória. O esplendor, para o qual se ditige a história de aventura,
propriamente a juventude cheia de esperall(;as da assembléia. Mas, não é conquistado mediante um casamento 1ico ou algo parecido, corno
subitamente, na vizinha cabana dos equilib1istas, separada desta apenas na histó1ia do magazine, mas mediante a partida ativa n1mo ao Oriente do
por uma fina parede de tábuas, começou a tocar uma música em alto sonho. Ao passo que a história do magazine tem um quê de lenda
vohune, com tambores e címbalos, a corda bamba foi pisada, a parede indizivelrnente decaída, o romance popular é o último reflexo ainda
tremeu e lá se foi a concentração silenciosa das pequenas pessoas; elas perceptível dos romances de cavalaria, do Arnadis de Gaula. Procede daí o
elemento de vangló1ia, conhecido já dos poemas épicos mais .1111 ig-os, co111O
na canção de Walthari, na qual o herói derrota dez cavaleiros de uma sú 1111<· acompanha o Fidélio e o próprio sinal da trombeta não existiriam 1111
vez, ou na saga do rei Rother e do forte Aspriano, que joga um leão na 11ào existirian1 nessa fonna sern o ro1nance popular que reprcsc11ta111.
parede com tanta força que ele arrebenta. Mas daí procede também o Exatamente o enredo do Fidélio constitui, como se sabe, o mais exacerbado '"
páthos conlra os filisteus, contra uma vida ct~jo epitáfio já está pronto aos lnisante romance popular, e ele faz parte da libertação. Cárcere profundo,
vinte anos de idade, contra o cantinho quente do fogão e o fuste rnilieu. pistola, sinal, salvamento: essas coisas, que de rnodo algum aparecem ou q11c-
Em vez disso, surge a genuína aura do conto do tipo selvagem; a aura do nunca aparen~m originalmente dessa fonna na literatura mais elevada do tipo
mundo de Stevenson "de calor e frio, te1npcstades e ventos fortes, de navios, mais moderno, produzem uma das lcnsôes mais fórtes que existem em todo
ilhas, aventuras, de degredados, tesouros e piratas". E o tempo todo esse mundo: a tensão entre a noite e a luz. Isso trnna especialmente evidente urna
gn1po exala um cheiro de malandragem, especialmente quando consegue rev.l)orização dcsst· g<:ncro, cm virtude da imagem altamente legítima do dest:jo
passar sem urna desculpa, ou s<:ja, sem qualquer fineza literária. Esse cheiro é refletida cm seu espdho. Em toda parte, nesse gênero, significações extraviadas
ambíguo; de pode apontar para kukluxistas e fas<'istas, sim, pode constituir estão frescas na mente, as não extraviadas estão à espera, corno no conto. O
um estímulo especial para dcs; esse cheiro de malandragem, porém, aponta final fdiz é cotuplistado, do dragão não sobra nada, a não ser fenus, o caçador
lambém para a desconfiança justificada da burguesia tranqüila contra fogo de de tesouros encontra o dinheiro dos sonhos, os cô~jugcs estão juntos. O conto
acampamento em demasia por parte do pobre-diabo. Toda história de aventura e o 1-omanc·e popular são castelos no ar par excelferu:e, só que num ar bom e,
rompe com a mo1,1l do "ora e trabalha"; no lugar do primeiro, predomina o na medida cm que isto pode ser· con-cto cm relação a uma mera obra do
maldizer, em lugar do segundo aparece o navio-piI,ita, o atirador <pte não dcs(:jo: o castdo no ar está COJTeto. No final das nmlas, de se origina na idade
eslá a se1vi(,'o do regente. O ro1mrnlis1no dos salteadores 1nostr,1, assim, ainda de ouro e gosta1ia de n:toniar a ela, na felicidade que avan~·a da noite para a
uni outro aspecto <]Ue desde le1npos remotos loca o povo pobre, e o ro1nance h1z. lk tal modo, enfim, que o r·iso abandona o burguês e o gigante, que h~je
popular sabe disso. O salteador era aquele que se desentendera com a se chama "grande banco", n·mmcia à i1uTt·dulidadc na fü,-~-a dos pobres.
autoridade; freqiienlcrnentc tinha alg-1m1 inimigo cm comum <'Olll o povo e,
da mesma forma, possuía pontos de apoio no campesina to. Por isso, não é 28. O encanto da viagem, antiguidades, felicidade no romance de
sem motivo que as lradi~:ôes pop11lares italianas, sé1vias e sobrct11do as terror
russas relatam sobre os salleadores com urna aprccia(ão bem diferente da Ah, na alrno.~/i•ra de Berlim.,
dos relat61·ios policiais; a pe(a de Sd1iller sobn- salteadores - <'OIII o kma: ern jullt.o, a /H'Ssoa [!/'Talmente adoece,
ln lyrannos!-é, por assim dizer, apenas a manifestação ch1ssic11mm gênero se ao rn<tno.1 <'U trabalhasse como caixa
literário cm que salteador e Brutus podiam simplesmente trocar de figura. no Banco de Dresden.
Encontra-se aí um substitutivo para a revolll<,:ão, imal1u-o, mas honesto, e
onde mais ck se expressou a não ser no romance popular? Se Schiller, seu Ó desejo sombrio, rugindo corno um órgão,
gênio prop1iamente dito, apenas tivesse lhe ficado mais fiel, esse gbwro quando o coraçâo dama j>or lodas as lonjuras -
evidentemente teria se tornado algo diferente do romance dectdentc de f>ois tendo lrr?s riezes cem mil
cavala1ia e da histó1ia de Gl(adores de tesouros. O Ku Klux Klan e o fascismo se crm.segu,, ir bem longe.
apenas dão vida a dois aspectos do rmnance popular: a redução ao demento Saúde ao J011ern quri, r:onr1alPscendo da coação,
criminoso e a selvageria. Em contrapartida, há o alvo descomunal na selva: dá à luz esse sonho maravilhoso,
cativeiro e libertação, entorpecimento do dragão, salva(ão da moça, corno alguém. que, lendo a pró/>ria ordem de prisão,
inteligência, conquista, vingança - todos estes aspectos fazem parte da lá longe toma no banho sua refeiçâo.
liberdade e do esplendor por trás dela. Não o fascismo, mas o ato
Triste enxuguei minha lágrima silenli',
revolucionário na sua fase romântica é esse tipo de livro popular que se
reprimo esse ímpeto medíocrr
tornou vida. Por essa razão, surgiram imediatamente antes e depois de
já tendo em vista os acionista.1·
1789, além de Salteadores, de Schiller, as peças de salvamento, ou como se
do Banco de Dresden.
pode dizer: os contos de salvamento; cavava-se em busca de prisioneiros
Peter Scher
como se fossem tesouros enterrados. Um ponto importante: o livro-texto
Assim que vislumbrei de longe a5 torres 1' a nh11ut aznlrula ,k Nii,nibng, era n1pi1alis1a deve poder ser ademais un1 consmuidor, <' 11ao 11111
simplesmente tive a impressão de estar olhando, não para uma cidadt' a/J<wts, concorrente; caso contrátio, ele perde o inundo dos estrangeiros cpu· o
mas para um mundo inteiro. atracrn, entre os quais ele nada tem a fazer, entre os quais ele não fin11011
Des]ohan-nes Butzhach Wanderbüchlein [ O livrinho das andanças de nenhum hábito. De fato, continua sendo verdade que na terra estrang<'ir:i
Johannes Butzbach] nada há de exótico além do próprio estrangeiro que a visita; este, pm·hn,
con10 entusiasta burguês, nurn primeiro mo1nento nem se dá conta do
Viver cada dia as mesmas coisas vai matando aos poucos. O prazer cotidiano da terra (·strangeira, muito menos quer ver a misélia que h,í
de viajar ~juda bastante a renovar anseios. Ele não só revigora a expectativa nela, e que não cumpre a promessa de mudança para um mundo de beleza;
antes da partida para a viagem, mas o faz também enquanto se desfruta a ele vê na terra estrangeira, {'Olll um sul~jctivismo muitas vezes funesto, a
vista. São exdnfrlos os des<:jos que 11ão tf·m mais jeito, que se tornaram imagem qne o seu cks<:jo pessoal tinha dda e que trouxe consigo. E esta
caducos, antiquados. t cxduído também o claudicante que possivelmente com certeza é ex6tica o suficiente para <1m· resulte cm frustração, po1·
é próprio não só do cotidiano sempre igual, mas lambhn dos ckst:jos exemplo, ponp.1<· a Itália não consiste de lanternas venezianas, ou para
alimeutaclos por um tempo demasiadamente longo. Sonhos descjautes que, u1so a velha imagem do des<:io não csl<ja errada quanto à coisa em si,
podem ter ullrapassado de tal maneira o prazo que lhes fora com·t·ilido mas apenas a lenha excedido, esta subsista ao lado da nova experiência
que nunca mais poder.'io ser realizados. Quem na juventude desejou uma adquüida, sem ser revisada, mas tamhém parcialmenh' sem sai,· frustrada.
Kodak <· não a n·cehcu m11Ka 1nais encontrará a Kodak dos seus dcs<:jos, Ao ficar sem ser n·visada, a imag<"rn do dcs<:jo m'io penetra inteiramente
mesmo que, c·omo homem adullo, esteja em ('(mdiçõcsde comprnramdhor na imagem sóbria do exis1cn1e; o vh~janl<" mediano, de qualquer modo
delas. Essas coisas uiio foram conn·didas ao anseio no tempo 011 nas isolado pelo hotel, pelo ciccron<', por dcslonuuenlos de carro, dá-se conta
circunstâncias em que leriam proporcionado a maio,· alegria. A fome por da pobreza em menor grau ainda do que cn1 casa. Por outro lado, no
das ficou t·ncanec-ida; sim, <ptalqucr clestiuo pode tornar-se enfadonho se cutanto, o mesmo cidadão é ntpaz de, <'lll virl wlc da cstranht'za que atlibui
a par·tida rumo a de demora muito, é csp<-racla cm viío 011 se d,í de maneira aos ol!jetos, não passar p<ff um crnbotamcnlo cm rda(,',IO ao colidiano e
muito coniqueira. Novas mercadmias, em contrapartida, cslimulam novas ver nos ol~jetos ocasionalmente signific·ados <)li<', no cotidiano, apenas um
11en•ssidadcs e, sobretudo, novas irnpn·ss<><'s. pintor c·ompetente descobriiia. Eslranharn('lllo é ncstt- ponto o oposto exato
ele alicn,H:ão; no mundo privado-burguê-s, a viagem é a p1·imavera que
A brla. tnra estran1.;1'tt<l r<'nova tudo, a única. E a estranheza n·novadora <' n·for~·ada por um outro
Pa,·a divcrti1·, toda viagem devt· ser vohmUiria. Para isso, ela necessita p,u-adoxo da viagem, um paradoxo que não succ<k apenas ao entusiasta
de uma situação que se deixa para tnís com gosto, ao menos não de 1ná- lnirguê:s, mas tem uma relação factual com o paralelismo do espaço que
vontade. O primeiro senlimenlo no carro ou no t1·em, quando Jinalmenl<.· aparentemente vai sendo folheado. Surge daí uma cspfric de temporalização
dào a partida, ·é decisivo para o que vid a ocotT<'r. Se a viagt·m s<.· dá por sul~jctiva do espaço, de espacialização subjetiva do tempo, especialmente
obrigação ou prnfissão, logo, m'io corno feliz interrupção, uão se trata de quando os lugares vistos se sucedem rapidamente. O tempo de viagem é
uma viagem. Se da ocotn' po1· enfado, porque· não nos oco1n· ontrn coisa preenchido da mesma maneira que de resto só o espaço, e o espaço torna-
para fazer, c·stc a acompanha. Ele <' a bagagem <' o destino qw· é arrastado se o meio das mudanças como de resto só o tempo. Surg<', pois, urna invernão
conosco sobre os trilhos em caixas de metal. O trem não tem então a elas mdcns habituais de percepção; surge um tempo jm,enchido num espaço
divertida característica que de resto oco1T<' muito r;u-an1cnte: a de fr que apan:nta ser móvel, modificado. É dessa maneira que as antigas histó1ias
exatamente na direção que se desc:ja. Tampouco estão cm viagem os <1ue de aventura desenrolavam totalmente o espa<;o e perturbavam a sua 1igidez
viajam a negócios, ma1inheiros, emigrantes, estes ültimos uem mesmo cm mítica; toda viagem ainda vive, ela mesma 111-ulatis mutandis, do paradoxo
vista da possível libe.-tação. A viagt>rn é, para todos eles, obriga<:ão ou desse sonho ainbulante.
lt
profissão, fado neste caso, desterro naquele. nma esteira [Band] rolante, Isso se dá sobretudo na juventude, e especialmente na juventude a
corno no elevador ou na fabiica, não mna faixa [ Band_l azul que a p1imavera dois. Sendo o próprio amor uma viagem para uma vida totalmente nova,
faz esvoaçar novamente pelos ares. Em todo caso, a felicidade da viagem é duplica-se o valor da terra estrangeira, expe1inwntada em conjunto. Se a
e continuará sendo a fuga momentânea de casa sem exigências posteriores, arnada já torna encantada a rua em que 1nora,junta1nente c01n os n1cnores
{' mudança radical sem um fator externo que obligue a ela. O viajante da sinais característicos da sua morada, as janelas, as lanternas, as árvores,
esse encantamento passa, tanto mais, para aquilo <jll<' a vi.1141·111 do ;111101 l.11110 do ,111torquanto da obrn, paisagern estaque nunca havia se 111;111iks1.ul,,
chega a contemplar. O amor novo, ao ser derrarnado na ta~;a, 11.t sua • I<- forma tão co1nplementar. "Quanto n1ais para o norte se vai, 111;11',
primeira efervescência, de qualquer modo é arrebatador, e a transfonna(ão ;111mcnta a fuligem e o número de bn1xas": n1as a fun1aça mod,,fâ11/'I d.-.~
erótica busca igualmente a transformação do exterior. Às surpresas consigo hnrxas aumentou justamente sob os pinheiros, na claridade do Pi11C"i":
mesmo associam-se as da terrn dcs<·onhecida, da cidade estranha e bela; 111csmo a noite de Walpurgis foi concebida no sul. Nada familiar ah1·1rn1
então, até nos mais embotados cai luz, e os vivazes enchem-se de pose. Na ou produziu contornos difusos entre a obra e o cotidiano clispcr.~o. ,\
viagem do amor, caminhante, caminho e destino toniam-se como que uma estranheza, que ainda dá um duplo relevo a qualquer objeto sig11ilit a11,·11.
coisa só; essa é a razão pda qual o amante e a amante, quando estão c·o1no o cume de uni 1nonte acima das nuvens, põe a descoberto, .~1· lc >1 , ,
separados, nada vêem de belo que não queiram que o out1u veja ao mesmo caso, com ou sem efrito complementar, a grnndeza da própria olm1. I•:~~('•,
tempo, que possam ver juntos. A viagem ck núpcias burguesa ainda imita são os efeitos da estranheza viagcira sobre a esperança; incluindo o h ...,
isso, por mais que sc:ja parte elo dote. O crutismo torna o mundo vívido e em suas duas fonnas, do a11Hff e da criação. E enfim, em última a11,ili.~c·.
cm toda par·te uma Ci1en1; tudo o que é bdo torna-se, para o erotisn10, com tantas reviravoltas no que tange- à <·stI·anheza: uma das inova•Jws d.1
uma fuga ele sonhos cks<:jantcs, ck raplos e revdaçôes. Por isso, o livro viagem pode atc~ ser o fato de caus.-H' estranheza até cm relação ao ha.hil 11,tl
hindu elo amm·, o Kama Sutra, recomenda com grande fineza que se mostre do lar. O af'cto que daí resulta é a saudade ck casa l lleimweh]; confo11111·
;í amada após o ato amoruso ol!jetos belos e sublimes, em espeC'ial objetos o seu s<·ntido, trnta-se de um anseio tanto provocado como compensad ..
incom1ms, sc:jam obras ele arte, sc:jam constcla(Ôes. A primeira verdadeira pela distância. Pois a saudade de n1sa não {: estimulada apenas pd.1
viagem de amor pennanecc sendo, parn a maior·ia das pessoas, a krnhrança indisposição cansada pela indisponihilidaclc dos obj<"tos habituais, mas,
mais repleta de sonhos, a mais pkna ckjuvcntuclt', porta11to, a mais c·nvolta além da saudade por causa da ptTda elo mundo de referência habitual, l1;Í
numa aura ulópica. O lugar estranho sda todos os cksc:jos antel'ion-s por também a saudade pr-oclutiva, que conf'cn· ao ambiente que ficou par,1
um lugar dista111e; a estranheza no bdo {: o anoitc·n·r e a noil<· da c·idacle trás, há muito expcTimentaclo sem nenhuma sensihiliclack, um novo
elo amor, t·rn alividadc durante o dia. E assim como a viagem é pan:c·icla colorido, sim, mna dirnensão utópica, e eximi dele novos aspectos. Neste
c·om o erotismo, da o é também c·orn as atividacks da mu.,a, só que gcrnndo caso, a saudade de casa é conduzida por uma imagem elo dcsc:jo, da mesma
um comprome1ime1tlo ele cn1tra onle1n. J\cstacla ditosamente lransl'onnada forma c1ue a ten-a estrangeira aul<·s do início da viagem e durante a mesma.
pode, não sc·m razão, comprometer-se com o cksc:jo de que algo significativo E ela é conduzida pela mesma kmbran<_·a, dourada muitas vezes
sc:ja kvado a cabo nesse lugar extraordinário. Nada tem um cf'cito mais it~juslanwnte, mas muitas vezes tamh{:m com jusli<;a, que mais tardc-
f'or't<· sobn· tais planos e esperanças do que uma paisagem ph1stka, compkmenta o próprio curso da viagem,<" que caracteriza as tc·rras utópicas
distandacla ela distração costumeira, ela própria dando a impressão de ter quanto ao seu aspecto exótico. Todavia, com a diferença de- que a douração
sido pré-formada. À mesa rústica no alpendre dessa ctsa ele campo, o vinho da saudade de casa desaparece por ocasü10 do reton10, <'ll<JHanto que a
diante de si, sob Í<>rtes e vetustos arcos, através cios quais espia o céu romano imagem ela viagem po:,t Jestwn ton1a-sc ainda mais exótica, até experimenta
- aqui o trabalho parece render. Se até ol~jctos ele uma natureza maior, de uma transformação que se liga ou é capaz de ligar-se- ,1 terra ideal da arte e
urna história mais c-kvacla entrcvi'Tm o fluxo das frases, então sm·g<· a outras escapadas. Aquele que viaja por mar, d1c-ga a dizer I Iorác-io, apenas
impressão de cpw se rdlctcm nelas, <·orno se o Vesúvio ou Monrcale se nmcla de zona, mas não a si próp1io. Mas de ao menos muda ele zona: nos
comunintsscm atrnvés delas. Trata-se ck uma supersti<;ão distinta, e ela casos mais simples, isto representa um reposicionamento elos bastidores;
produziu coisas exlraordinárias que justificam a fé nela. Movida por esse nos mais importantes, brota do teor modificado da consciência uma condição
f,áthos da viagem, diver·samt·ntt· erótico e produtivo, Shellcy escreveu o modificada da consciência, que visa adequar-se melhor ao conteúdo.
seu Prometeu libertado entre os arbustos do Palatino; no prefácio de enfatiza Ademais, o atrativo da viagem certamente se refere a uma beleza mais da
cp1e sua intenção é estar comprometido com u1n passado majestoso, que metade puramente subjetiva, portanto, a uma beleza que está encoberta
ele quer subsistir perante ele. Também o contraste pode ter um efeito pela estranheza do mero contemplador e pela mera imagem elo desejo
semelhante: Nora, de Ibsen, surgida numa torre de vigia normanda junto pelo ol~eto sublimado. Na terra estrangeira não há ninguém exótico, a
a Amalfi, ou até a cena da cozinha das bnixas, de Goethe, poetada no não ser o próprio estrangeiro que a visita; assim, a terra estrangeira de
jardim da Villa Borghese: no contraste entre o local de surgimento e o modo algum parece ter uma beleza estranha aos seus próprios olhos, e
local e o tom do enredo medraram o isolamento e a paisagem contrastante quem nela é nativo tem, além da próp1ia necessidade que o mero entusiasta
viajante não enxerga, ele n1esmo o desejo de ir para a l<'1Ta <·st1a11gTira. canalizada como o viajar; as duas guerras mundiais serviram para a I rn p; d 1,",
Por exemplo, para aquela de onde provém o próprio entusiasta vi,~ja11t<"; esse progresso proveitoso. O século XIX ao menos foi capaz de L11.1·1 o
tudo isso devido ao mesmo desejo subjetivo de alienar-se, presente em trem expresso passar em alta velocidade e sem ser importunado por 11111
ambas as partes. Desse modo, pode-se ver quanta subjetividade local em que, de acordo com antigos guias de viagem, estivera locali1:ado
originalmente existe em cada experiência de viagem como tal, e o quanto um esconderijo de salteadores, e a vida perigosa em casa ainda não l1;1vi;1
da, no final das contas, pode dificultar o avanço para a condição alterada florescido plenamente. Porém, em compensação, a bela terra estra11~1·i1 ;i
da consciência que não só quer estar, mas que pode colocar-se à altura do foi falsificada em festança pequeno-burguesa durante as férias. Surgiram ., ...
conteúdo vislumbrado. Também a Viagerri. à /t,ália, de Goethe, conduzida chamadas agências de viagens, como meio ele execução ele baixo n1~to,
de maneira tão extraonli11a1iamente ol~jetiva, chega apenas à metade da não só ela viagem em si, mas também das antigas imagens do des<:jo <pw
verdadeira Itália por causa ela subjetividade de procurar vislumbrar esl'avam associadas a ela. Tiveram início as chamadas "notabilidades", ;1~
estritamente o pró-clássico, o antibarToco. Mas a viagem persegue, ao menos coisas dignas de serem vistas, e elas situavam-se dentro do mundo an,u~jado
nesse ponto remoto, a imagem do desejo por urna bda cxisti'-ncia diferente, para a viagem, uma viagem couvencionadamente italia11;1,
e urna imagem que, na terra estrangeira com seus milag1·cs n·n·ulernente convctKionadamentc oriental. Em 1864, o ex-funcionário ferroviário Lor ri-.
vislumbrados, ainda assim l'rcqiient<·me11te se veste cotporahnaute. Essa é Stangcu organizou a primeira de suas viagens em grupo, que depois s1·
a raz,io por que também jJosf ji,.1tum a imagem da viagem poderá tornatiarn tão requisitadas; das franquearam ao anseio moderado p<'lo
permanenT estreitamente ligada à arte, sim, al{-m disso, a uma outra Jongí11<p10 não só a Itália, mas também o Oriente Próximo dos seus desejo.~.
trausformac;-ão, a saber, a que se co!l(T11lra para urna 11Itima viagem. Por Saudou-se a S01Tento, a pqjanv1. cintilante das ondas, bem como o azul do
isso, na retrospectiva freqüentemente relatada na hora da morte, decerto Adriático, Corfu, a pérola das ilhas, Cairo, o portal do Ol'iente, e as
já cm idade avall(:ada, não só há pessoas, figuras, objetos no seu curso gigantescas pirâmides. Tudo segurado, inclusive as gotj<"tas, tudo de acordo
con<·entrado, como que cantadas _j1111to ao hcn;o ou dentro da própria <'OJll o programa, incluindo os guias, p<ff um pn·<;o total a ser pago

casa, mas prcdominant<"mentc imag<'IIS de viagc11s-igualmcJ1te embelezadas adiantado. Mas também o trânsito não monitonulo de t·strangefros cresceu
mais urna vez jJost p.1tum com frstividadc utópica. E este último tempero de maneira cada vez mais racionalizada desde a metade do século, em
já estava fazendo cfrito por ocasi,10 da primeira vi.,ão dos objetos dcc·orr<'.HCia de uma maior prospc·1id:Hk da classe média; o mundo foi
cxtraonlinários, ardendo e abafando ou cnt,'io refon:ando o verdadeiro <·atalogado para uma visitação de oito clias, de catorze dias, de quatro a seis
sabor da coisa. Assim, nào só a história, mas também a geografia tem o seu semanas. Unicamente o alpinismo ainda proporcionava, cm parte, espaço
melhor lado no fato ele estimular o cntusias1no; todavia, 111n <"ntusiasmo para o não-monitoramento, inclusive para desc:jos específicos quanto à
que se concentra e se pôe a caminho para uma noção tanto mais intensiva <listância ou à altura. Da mesma forma permaneceu, sim, cresceu a
dos objetos no seu lugar e no seu posto - objetos estes que niio s,io apenas participação do público, por meio da leitura, nas últimas viagens de
contrastantes com o habitual. descobrimento restantes, as que nunaram para a Áüica tenebrosa e para o
Pólo Norte; o livro Durch Nacht und Fis I Atra11é.1 da noite e do gelo], de
O anseio pelo longínquo e o aposento hi)toriázante no .1éculo XIX Nansen, com suas fotografias árticas e impressôes em cores da corona e do
baldaquino da aurora boreal, ainda propon-ionon a amplos círculos uma
Uma história do século X? - "Quem, rrwalwi tâo /,arde fiela noção da natureza não vendida. No entanto, o vi,~jante nonnal procurava
noiil' e jJl'lo vento?" a natureza não vendida também no lugar para onde transportava toda a
Scheffrl, prefacio a Ekkehard sua confortável célula caseira (living room.), e onde o mesmo mundo da
coca-cola favorecido pelo turismo suprimia cada vez mais a sonhada
Desde o momento em que a viagern tornou-se confortável, ela não altcridade,junto com a longinqüidade fabular dos lugares visitados. Porém,
tem levado mais tão longe. Ela carrega consigo mais do habitual caseiro e na base de todas essas organizaçôes est.-í sobretudo o fato ele que o turismo,
penetra no costume do lugar ainda menos que antes. O lugar da caminhada promovendo viagens marítimas, peH'oITendo o Oriente Próximo ou
a pé, da cavalgada, da aventura que nunca podia ser evitada, foi ocupado, divulgando em casa ao menos as imagens de "Um vôo pelo mundo",
no século XIX, pelo trânsito, uma rede ferroviária construída num ritmo alcançou uma crescente relevância propagandística para os desejos nacionais
assombrosamente rápido, como as atuais linhas aéreas. Pouca coisa foi tão de mercado mundial, de domínio mundial. Pois a era imperialista
promoveu e envolveu pennanentemcnte as agências de viag<'m; ao lll<'S1110 11c-ga11do-o, procuram contrastar. Ao ser obrigada a simpl<·s111<·1tl(' <·vi, l.-111 1.11
tempo, porém, ela defom1ou de vez o mundo estrangeiro. Na melhor das o oposto do que era próprio de Krefeld ou de Liverpool, Vc1H'/..t L1cil111c111('
hipóteses, este foi emprn-rado para regiões situadas à margem da via do resultou numa não-Liverpool ultrapassada, no que a Veneza co11n1·L1
capital, tornando-se p1indpalrnentc um artigo estrangeiro imóvel, até tornar- não tem qualquer participação. E a chamada noite italiana é- alg-o lw111
se um de outra natureza, um artigo colonial; - tudo entra em declínio, diferente do oposto de um dia na indústria do norte da Europa; a 11.10
exceto o Ocidente: a partir da perspectiva acima, esta é urna sentença válida. ser que a noite seja montada especialmente para os estrangeiros. Mas
I lá muito deixou de haver a ocupação com a vida do povo, a expedição só dessa maneira aparecia o nunca-ouvido, o nunca-visto que a saída a
rumo ao não-preparnclo, a pcrccp(ão <·oncn'ta dt· peculiaridades reais. passeio deveria oferecer snl~jetiva e até o~jctivamente. Um sonho
ViagP'm à /lália, de Goethe, e ainda o livro de Viktor Ilehn sobre a Itália prazenteiro de fuga e longinqüidade, de imagens de contraste em meio
mostram essa objetividade, sobretudo tarnbé-m no que tange ao folclore a adereços canalizados c·ompunha a lembrança que se tinha da viagem,
expcdmcntado. Nem o sempn· t;1o preciso guia de viagem Baedeker e o aspce·to esfíngico prest'l1tc cm toda p,u-te ficava à espera de dias melhon-s.
continua a mostrar ao foklore <·, <1uando o faz, é- só com xingamentos por Pois as maravilhas da hcla te·rra distante somente se revdam sem o baile d<'
n;ío se en<p1aclra1· na _janela panorâmica normatizada. E o sonho do rnásntras transpefftado até da, some·ntc com o olijcto significativo, at{
longínquo <·onsc1vou-se tanto mais, pagando o módico prc·(,'o ck que de.111jos pn·ssag-ioso, na sua própria seiva, no seu próprio contexto.
rfr rnulm.,tr, immdaram o exótico, tornando o artigo <'Slrangc-iro imóvel
Não por último, depois ele- 18:íO, as quatro paredes domésticas
uma vez mais um artigo, urn anigo que singelamente traz a marca: nào de <kveriam, das próp1ias, toniar-se irrcconhecívcis. E isto com ornamentos
trazidos de longe, com ornamentos não p1npm-cionados pela época árida
casa. Como se a terra eslrangcira fosse m<·r,mwnte o oposlo de Kn·fcld ou
ern que se vivia. Voltavam-se as cosias para tudo que cm branco, desnudo,
ainda <1<' Minc,ípolis ou de Liwrpool, e·omo se da n,10 eontivessc tamhém
c·omo se nisto se identificasse um eadávcc Sintomaticamente, o século
as suas próprias signilica~:<><'S, comp,mívcis apenas com ela mesma. Para o
altamente capitalista estava interessado em mascarar e-ada urna de suas peças.
IIHT<> cles<:jo ele eontrasle, algo IÜo pecuEar como, por ex<'mplo, as frstas
O Bicdcrmeicr ainda tinha especial prcdilc(,'ão po1· pan-cles rn1o miadas ou
C'rlesiais 110 sul da Il,ília 011 como as caravanas, os m(-rcaclos <k camelos e
pintadas de verde natural, seus móveis eram tão honcslamenlc claros, tão
os hazan·s que ainda se· c·onsc-1vam no Oriente nüo s<· enconlram muna
daramcnte belos como poucos antes deles. A mussdina disposta em
n·la(,'ào disparatada com o mundo pá1Iio; essa Idade Média diante dos
dohrns permitia que a luz <lo dia clarcasst' duplamente o ambiente; ela
portÔ<'s da Europa tampouco revela traços da própria Idade Mé-dia passada,
batia na cristaleira e no armário de n•njeira, na mesa redonda polida
mas ao <·ontnírio: o <pie se huscou foi a contraposi(:ão exala à p,ilria do
ele- pe-rnas esguias ou coluna bem torneada que a sustentava, nas cadeiras
visitante·, um contraste com que o visitado nada tem a ver. Esses des(:jos de
em forma de lira modestamente ricas, no c:mapé maciamente- robusto.
contras!<' dccnto s,10 mais antigos do que o século XIX, ainda que não
E ainda que naquele tempo esse estilo <·orno 11111 todo fosse chamado de
remont<'m rnuilo alé-m do século XVIII. Eles guiaram Wine·kdmann na neogrcgo, ele encontrava-se totalmente cm sua própria c·asa, era em
bus<·a pela singeleza nobre, pela grandeza t,ícita, inJhi(•rffiaram Co<'lh<', Ioda parte mais ser do que aparência, e:om uma lt·vt· fragrância de conto,
não quando c·ste emite juízos sobre o povo e a paisagem italianos, mas de ponche, da arte de E. T. A. Hoffrnanu, lào <"sln·itamc-ntc ligada a
quando o faz sobre certas obras de arte italianas, e torna1,un-no cego parn esses aposentos. Isso acabou de um só golpe por volta da metade do
o banueo italiano, tão presente, tão pre<lominanlc, a ele que estava saturado século; teve início então a magia copiada do longínquo, a vidraça
das "colunas cm for·ma de cachimbos de tabaco" alemãs. J'í Ddacroix arn:dondada produzida mecanicamente. Uma burguesia cm fase de
buscou um outro tipo de oposto nas suas imagens da Argélia e do Marrocos, enriquecimento deitou-se no leito da nobreza, reproduzindo os sonhos
neste caso, o oposto romântico. O fogo ardenl<' de suas feras, mulheres de de estilos passados, alemães antigos, franceses, italianos, orientais, nada
harém, cenas do dcse1'to ("féroc:ité et vcrve") não retrata apenas a África, além de lembranças. Veio à tona um cks(:jo sempre surpreendente de
mas é dirigido contra Luís Filipe, conlrn o n·inado burguês. Delacroix lransfonnar ser-nenhum em aparência, de fazer a habitação cotidiana
chegou a pregar, por puro anticlassicismo, que a verdadeira Antigüidade velejar sob outra bandeira. A divisa era a1Tai~jar um substituto para a
deveria ser procurada junto aos árabes. Porém, os desejos de contraste do viagem, sim, o sobrcpujamento da viagem dentro das próprias quatro
final do século XIX distinguem-se desses mais antigos não só pelo nível paredes, em parte de cunho histórico, em parte de cunho exótico.
infe1ior de seus portadores, mas também pelo nível do mundo que, mesmo Procedem daí a mania de drapejar lecidos nos anos dos fundadores
[ Gründerjahre], 44 a coleção de bibelôs, o estilo ostentativo HC<H in,, Vl'l11do cg1p( 10 <·111 (~n>1-g Ebers (Varda, Semirarnis); todos eles à luz de viclrn(;as
e seda 1nisturados. Daí os bufês ern fonna de castelo, as alabanlas <' .1 .111 ('clo11claclas, inclusive junto ao Tibre e ao Nilo. E esse estranharnento
suntuosidade de harém, as lanternas de mesquita e os chifres de to11m · 11 i'it <Írico fez-se necess,üio porque a habitação exótica não era suficiente·
uma montagem totalmente enigmática. E ela estava envolta numa luz p.tra pn·encher o sonho de ostentação de um castelo, e porque a n1a
morti<,:a, que caía p01· entn· os diversos drap('.jados da janela, através d<" comer-eia] lá fora podia muito menos ser supl-ida com rodas de fiar. Isto,
cortinados, se possível pseudo-orientais, para manter a rua distanciada, apesar do esforço empreendido também pela arquitetura de exteriores,
}>ara cruarneetT
b
o con1·unto
.
da mascarnda . .E no interior desse conjunto caso se possa chantar isso assim, nos seus disfarces, com suas estações de
ressoavam os números dt· salão exen1tados pdas filhas mais distintas, Irem em estilo românico e os postos do con-eio cm estilo gótico, com seus
cnfritaclas com lac·it1hos, eornctinhas, n1piclos, todo aquele rococó falsificado pavilhões de música cm estilo hindu e as c·asas dos macacos cm estilo
ele C:a.w-adr.1, Carillon.1 e Pafúllons, dos Pn1,.1ir.1 .fugi.tives e Cloche.1 de mourisco. E conto tudo isso ainda não foi suficiente para encobrir o
111011,a.1/hr, sem esquecer os Souvenirs de Vil'r:1011i11. Adernais, gostava-se de mecanismo rude clc-ssa {poca, de adquir·iu uma lembrança de viagem de
pcndm·,ir diagonalmente no aposento um var::ío polido donde pendia um grande porte, ou st:ja, a natureza, para que igualmente f<>ss<· provido de
cnonne tapete oriental I K1,liml, corno se· fossem mastro e vela, e o aposento uma gigantesca decora<:,io para sua habitação. O aprec-iador elo século XIX
cstiv<"sse nuzando os oecanos à maneira ,irabc ou estivesse fundeado no via na natun·za a irnitac;ão de uma vista geral mecânieo-mat(·rialista, em si
pcffto de alg11ma cidade hindu. Não faltava, ao lado disso tudo, a roda de desolada, mas hem drap<jada, um tipo de panorama-símile frito ele energia
fiar e a kmlmuu;a da viagem a Veneza: a gôndola ck macln:pérola diante e matfri:1. As cluas ültimas até constituíam, como diss<' Ludwig Bii.chner,
ele 11111 monumental espelho de- Murnno. O modelo pant toda essa "as matérias-primas c·om que se constrói todo o universo c·orn suas maravilhas
mascarada do desejo como clc-conH:;tO (n>11fcccionacla, é óbvio, nos ruais e belezas", mas para as férias, que não queiiam deixar-se privar de sua
clifcn-ntc-s níveis de pn:(.'.o) foi fornecido, em lÍltirna amílise, pelo atdiê do hcl<"za, a natureza tornou-se uma edição de luxo. Então, até o mais
pintor vienense Ma kart: est<' nmstituiu o original do mascaramento cxótico- esclarecido utiliiava as palavras "deusa" e· "templo"; essas coisas
histórico. Todo eo11selh<'in> c·omc-rcial tirava dali, assessorado por r<'spland<·cíam corno um diorama de neve <'l<'nla e innmcl<-seência alpina
tapeceiros, a inspira<)ío para dar forma à vida estrnngdra deJttro da pn>p1ia najanda de c·asa. "Adeusada verdade habita o t<'mplo da natureza", dizem
easa, i11clui11clo o cavalct<' a 11m canto con1 a pintura a óko n-c·{m-c·onduída. os Wdlriit.1el I Enigrnw, do mundo], de I láckcl, que tanto coloriram e
Para descrever a utopia esplendorosa nunca antes havida elo no111 1nu, ridte c!lobreccr,1rn matéria e energia; "ela habita o maio verde, o mar azul, os
se-tia prc·c·iso mergulhar· nosso próprio pined cm Makarl, <' islo 110 lugar r1111ws das montanhas cobertos de neve". Sim, na medida cm que, por
c·m <JlH' de {- mais profundo. Um conternporâueo de Makart c·scrcvc-11 o volta da virada do século, o mundo de Makar1 cedeu espa~'.o a Bôcklin, ou
seguinte em 1886: "Em deconência da ostenta(;.ão pródiga e do amor à arte de- outro modo a Klinger, a r·esidência abarrotada tornou-se novamente,
cio mestr<', o ateliê situado na Gusshausg-assc- ganhou mais e mais o caráll'ule pcH· assim dizer, mais clássica, e o Oriente foi substituído pelo puro
um museu pictoricamente organizado, que ofen·cia à fantasia de: Makart o Mediterrâneo, sem que, todavia, desaparecesse o clrapc:jaclo. O espaço como
aparato ele sem; instnunentos e modelos para uso eonfortávcl, e onde a sua que vestiu uma máscara brando-dourada; à ilmnina~·ão a gásjuntou-se Sonne
própl"ia existência e o convívio esple11cloroso com q11<' se rodeava im /Jnzen [Sol no coraçiiol, de Cãsar Flaischlcn, à arquitetura do nnnance
tn111sfonnavain-se muna obra de arte ele cor<'s cintilantes". (:intilac;ão ck n>rcs, histórico somou-se, em 1895, Haus in da Sonne [ Ca.1a ao soll, de Carl
Ticiano, V<'neza e sobretudo justamente· o Oriente-: isto era a divisa elos Larsson, como uma espécie de modo de viela cósmico, não mais ihuninado
sonhos e da fuga dessa época tão pn>fundamente pequcno-hurgucsa, por fogos-<:le-bengala. Isso tudo resultou então mm1 erotismo do estilo jovem
enfadada e pessimista, época do encobr-imcnto, ép<Ka da dccora~:;'.io, época ao laclo do erotisn10 das pinturas que retratavam os mcrcaclos de escravas
da máscara par excellence. O mascaramento regia o romance: histórico cm no Cair-o, uni erotismo "akiônico" ao lado elo erotismo ela palmeira no
não menor escala, do tipo alemão antigo em Scheffel (Ekkelwrd), rornano- salão e da renascença alemã no estilo turco. Essa categoria específica de
gern1ânico em Felix Dahn (Ein Kampf um Rom I Uma batalha por Rornaj), sonho, que existiu somente no século XIX, tomado pelo kitsch
superabundante e por todas as refe1idas extravagâncias como decoração
histó1ica, exótica e utópiea, ocupou-se então com uma evocação mais clara,
mas ainda assim com uma evocação. Um céu de harém se estendera por
"' Período inicial da ind11stiialização especulativa na Alemanha (década de 1870). sobre quase toda a decoração dos aposentos do século XIX; agora, o Chipre
oriental dentro do próprio lar, do t('mplo p1·ivado da 11at11n·1.a, <: troculo <(llC<: 1aro, de ter o te1npor·al e espac:iahnente remoto ('orno que dc11t ro ele
por um Chipre secessionista-antigo - e, não obstante, continua sendo ( :hipn- uma cápsula. Pode-se colecionar qualquer coisa: botões, eti<pwtas de vi11ho,
como peça desse gênero, como exotismo do século da aparência. É o caso, borboletas, selos, estes com muita freqüência. O ato de cokc:ionar ol~jelos
não por último, do prospecto que o hãckeliano Wilhelm Bõlsche pintou antigos, objetos de arte não mais disponíveis ou exóticos é, entre todas as
do templo da natureza como se fosse um drapejado "da nudez nobre": fmmas de caçar, apenas a mais nobre. Também a obsessão por ter a coleção
"Mundo luminoso futuro ck um helenismo melhor, purificado também de completa encontra-se no colecionador de selos da mesma maneira que uo
sua escória; onde a decc::ncia e a nudez, a consagração pura à arte e a colecionador de porcelanas; o des<:jo de ter uma série de selos completa {-
fragrância cálida da primavera do amor· possam deixar-se estar juntos no igual ao de ter um serviço de porcclan;;i completo. E a raridade é o qm·
mesmo prado florido sem perturbar uma à outra, enquanto o alvo templo determina, tanto num caso quanto no cn1tro, o preço, quer se trnte de mna
estende- siknte o seu cortinado sagrado em dire~:ão ao anil celeste diante variai;·ão na horda dentada ou uma cômoda baIToca qu<· tem também mna
dos mistérios mais profundos ela vida e do pensamento ( ... ). Quando chanfradura lateral, e que custa cinqiicnta por cento a mais do que a que {-
conseguiremos deixar o profundo vale das sombrns de nossos descaminhos chanfrada apenas na frente, nas gavdas. No caso de todos os objetos dc-
(º akançar a ilha dos lwm-aventurados?" Corno se pode ver, tampouco falta cokcionador, o trabalho elo negociante, como descobridor de raridades, {-
aí a n>rtina, uma espf(·ie ele- repostei1n antigo, qu(' se gostava de imaginar produtivo (um elos poucos produtivos no ramo da dislribui<:ão); em tudo a
diante d;;i entrada do templo, semelhante a uma roupa provocante na co11con-ência cntn' os alicionaclos é que regula o pre<:o. Apesar disso,
mulher amada ou ainda semelhante ao tapete oriental I Kelhnl pendente colecionar arte diferencia-se fmulamentalmentc das demais formas de
no sahio ele festas do p<TÍodo anterior, só não imaginado como vela. Tal colecionar, pois, nesse campo, o raro {- o que n.1o pode mais ser produzido,
l<'mplo antigo com cor·ti11ado sobre prados floridos não existiu; trata-se, o i1n·cupen1vel. Ao passo que sdos e assemelhados são hc~je praticamente
antes, ele uma imagem de- contraste- sonhada e1n cin1a de i1nagens trazidas o mc·srno que há e-em anos, à mobília antiga, ao veludo, à porcelana é
de viagens. Ek podia sc1· c-11contrado, mais em tinta a <>ko branca do que peculiar uma qualidade perdida, uma habilidade manual desaparecida,
cm 111..ínnorc-, (ºIli cxposiçôcs daquela época; seu arquflipo ap,ir<·<·<· nm10 uma cultura que submergiu; e isto {- o que qualific-:l a ra1idadc. Em contraste
co11stn1<,·ão de h1·inquedo, ;'ís vezes cm jardins dos castelos cio ronwó lardio, com o p1-ocluto monótono e cada vez mais monóto110, frito à máquina,
e tambfm c-m grnvm·as dassióstas. Ainda na virada do sfnllo XIX, c·m toda surge, 110 mundo das antigüidades, uma riqueza não 11onnatizada, que
pa1.·te a bela tt-rra estrangeira tem mn efeito decorativo, a saber, <·omo o sm-pn·,·mle de maneira sempre renovada. Os mais simples pratos de faiança
tipo espt·cial (k utopia lwm-ordenada, pré-montada. Sohrctuclo sobre o já são diferentes uns dos outros se os locais c-m que foram produzidos
ambi<·nt<' dos aposenlos <' dos quadros da Gründnzeil abateu-se a distavam cinco horas de caminho uns dos out1·os. Não h.-i um tapete oriental
verdadeira maldi(:ão ela cópia (produzida por fáb1icas), a b<'·11<:iío ilusó1ia igual ao outro, com exceção dos de Bukhara e do Afeganistão; as diferenças
de um exotismo em pc-lúcia, uma passagem estreita co1no moradia, um entre um armário de Frankfurt e um de Danzig, embora ambos sejam
panorama como ckcoração interior. A rica coluna co1intia (Ta mais elo barrocos, são comparáveis às entre um portão de pátio e um portal de
que mm<·a cousidc-rada; ora, ela deve ser a mais genuína possível, pois não castelo. Tudo isso é separado por localidade, cnc·ornen<la, tradição, mas
{- feita para a ostc-ntai;·ão do nouveau riche pequeno-burgufs, 1wm parn tudo está inimitavelmente unido pela manufaturn sólida, pc-;;a por peça
preencher o vazio deixado por sua falta de imaginação; ela deve ser, ao especialmente preparada, e tudo interligado por uma cultura fechada, que
contrário, o fruto de um excesso da imaginação. cresceu lentamente. Atualmente, colecionar antigüidades significa, por isso,
n:jcitar o produto feito à máquina, voltar-se para uma imagem de casa que
A aura da mobilia antiga, o m.canto das ruirws, o m-useu se tornou irrecuperável, e que foi, ao mesmo tempo, a mais confortável e
O ato de colecionar é, desde sempre, uma l<.ffrna especialmente a mais fantasiosa. Esse eros de colecionador não {, enfraquecido pela origem
intrincada de viajar. Ek acumula, mantém tudo junto de> si, tem relação inegável de sua fo1ma atual no século passado, mais exatamente: nos seus
com a ganâhcia e a avareza, permanecendo, assim, cstreitan1ente ligado ao aposentos decorativos. Ele não é enfraquecido porque o prazer na
lar. Por outro lado, vai em busca do que é seu num raio tão amplo quanto antigüidade prefere reportar-se a qualquer outra coisa do que a cópias
possível, vasculha todos os cantos em busca de utensílios antigos, não se ajeitadas em função da ostentação e à chamada mobília de e-stilo. Mesmo
importa cm arruinar quem é possuído por ele, sendo, assim, bastante as antigüidades falsificadas raramente são adaptadas às necessidades e aos
extrovertido. Isso é contraditório, mas íntegro no desejo de cercar-se do desejos de- adereços de uma busca por ostentação neo-rica. Porém, todas
nmdclabros. Um vaso de Sevres, no qual Madame Jacotot havia pi11t;11(0
as antigüidades autênticas são testemunhas de m11a dc1cnJ1i11aiJ10 ele formas
Napoleão, estava ao lado de uma esfinge consagrada a Scsóst1·!s ...
destruída pelo capitalismo, restos que se conservaram de uma hckza
Instn1mentos de morte, adagas, pistolas estranhas e armas secretas hav1.1111
perdida. O embarque rumo à terra das antigüidades nada tem a ver co~n
sido jogadas muna mistura desordenada com instrumentos de vida: <·0111
um anticapitalismo romântico-reacionário, mas certamente com a noçao
sopeiras de porcelana, pratos de Meisscn, xícaras chinesas ~nspan'nt~·s,
de que o capitalismo tanlio foi o inimigo mortal da arte, especialment~ da
saleiros antigos e latas de confeitos da época feudal, um navro de ?1ª~fo11
arte ligada aos utensílios da casa. Como um cortjunto outrora bem-sucedido,
com as velas infladas planava sobr·e as costas de uma tartaruga 1movd.
ele continua a constituir-se aprazivelmente, brotando do mesmo solo, da
Uma bomba de ar penetrava num dos olhos do imperador Augusto, q11c-
mesma fecundidade pkna de fantasia. Todas essas belas peças também
mantinha impassível sua postura majestosa ... N('sse monte de entulho do
estão pe1feitamcntc sintonizadas umas <·ornas outras, associam-se tunas às
mundo não faltava nada, nem o t:alumet dos índios, nem as pantufas verde•
outras mesmo ua vari<·dade, co1no num ex<'mplo da arquitetura de
douradas do harém, nem o iatagã mouro, nem o ídolo dos tártaros. Havia
Würzburg <' de Worms, onde um poria) lateral de puro rococó se associou
de tudo, até a bolsa de tabaco do soldado, o cibório do sacerdote <' o
se1n 111ptura a uma n1tedral românica.
penacho que adornava o assento de um trono. Ess~ balbúrdia ?e imag<·11s
É verdade que o cksc:j<> de partir em viagem está 11a hase também do
ainda era sobrevoada por· milhares de luzes capnchosas, bnncalhonas.
ato de colecionar coisas antigas a111êntirns. Isso estabelece uma certa relação
H'plctas de um t·ntrda<:amento caótico de nuanças e do m~is intc'.1~0
com o encanto indolente pdo longínquo, pr<>prio ck épocas passadas; é
contraste entre claiiclade e escuridão. O ouviclo pensava cstarouvrndo.gntos
algo que o hahitantc· realmente autf-ntico de um contexto realmente
sufocados, a intcligênt·ia r·ecuperava do caos milhares de tragédias
autôntico não conhcda. Ele, porém, conhecia o des<:jo, que ainda hc~je
inconclusas, e o olho acTeclilava ter percebido um fulgor recém-ocultado".
c-onstitni urna parte importanl<' da estada anti<p1ária: o desejo, de estar
O iovcm poeta teve amainado o desespero que o havia impelido àqm·l<-
jm,,srntt em diversas épocas passadas, cm div<Tsas t<·JTas distantes. E o dcs<:i?
magazinc; de nlt'tarnorfoseou-se em cavaleiro e bailaclcira, em cera, ferro,
do consellwiro jm-ídin> ck Galorha.\ da jórtu:na, ele Ancl<TS<'ll, ck dwgar a
s{indalo já desaparecidos; à sua volta comp.-imiam-se c·t·ntcuas de épocas(·
Copcnhag11e g<>tirn; cio 11H·srno lipo são as muitas histórias ele magia <JUC
cspa<:os numa única perspectiva. "Em seguida, de l~a11sfórn~ava-se _m1111
transportam o afic-iom1do at{, a Tróia antiga 011 att> o longím1110 G,rnges.
pirata e· se envolvia com toda a sua sombria poesia, dcp01s admirav:1
Ouc sonho ilu-rívd pocler passar um dia, ou apenas uma hora, 110 século
delicadas miniaturas, os ornamentos azulados e clourndos que adornavam
fk•porcelana, ou até nas antigas Atenas, Roma, Hizândo, M<'·nfis, Bah~lé'mia.
11111 valioso manuscrito do missal, e esquecia novamente as agitações cio
Poder anelar c·m viela por aquelas velhas estradas e· casas, numa viagem
mar. Embalado por um pensamento pleno de paz, cksposava novamenl:<' a
retrocedendo 110 tempo, co11trn a morte, para mn tempo ;-interior ao seu
ciência, deitava-se no recôndito de sua cela e, pela janela de arn,
próp1io nascimento. O visitante encontra em Pompéia um reflexo dessa
po~1tiagudo, lançava a vista sobre os prados, malos e vinhedos do S('ll
imagem do desejo não natural, finnrndo pé contra o c·tu-so dos
mosteiro". As divagações assim descritas efetivam-s<', como se pode v<·r,
acontecimentos. E c·om certeza há urna por~·ão de Pompéia cm cada jarra
sempre cm montagens de destroços, não nos apost•11fos dccorativ~s cio
de vinho antiga, vivendo no som da porta do annário hanuco enc:aixando
império francês, ou até do segundo impéiio alem~o. A es~upefaçao ~11-
na descomunal féchadura, na n:vcrbcra~·ão remota elos pratos de estanho.
Balzac nem mesmo é romântica; por seu apego à ruma, ela e, de mant·ll'a
Essa viag<'rn de volta ao passado acompanhada de dest:jos atinge o ponto
nova, simplesmente barroca. A loja de antigüidades de Balzac é um salão
mais desordenado, o maior núnwn> de reverbcra~-õcs entrecruzadas, cm
de exposição do passado e do longínquo; desse modo, destroços d(·
toda loja de antigüidades sup1ida em profusão. Balzac descreve de forma
naufrágio torn,am-se alegorias.
totalmente inesquecível uma dessas séries desejadas ou montagens
Isso significa que o extinto que se conservou atua como se só agora
espelhadas em A pele de Onagro. Um jovem poeta adentra aí o magazine,
desse à luz a sua derradeira beleza. O desgaste sofrido com o tempo mostra-
"incb1iado da vida e talvez já da morte", e, nessa condição de voyeur; ele
se, então, como um desgaste meramente da superfície, como um
capta a montagem cn1zada, experimenta a permanência imbricada com o
dareamcnto alegre-melancólico, como uma clareira; stu-giu, assim, ao estilo
passado, com a longinqüidade, na galeria de espelhos. "Ele foi obrigado a
maneirista, ainda repercutindo em Balzac, o culto à ruína. A transitoriedade,
mirar os esqueletos de vinte mundos ... Crocodilos, macacos, gigantescas
tão lamentada no corpo e na sorte humanos, obteve naquela época urna
cobras empalhadas sorriam diante de vitrais de igreja, pareciam querer
valorização figurada-peculiar, na qualidade de transitoriedade formada ,.
dar o bote em bustos, surrupiar estojos envernizados e trepar em
revelada. "Ostentar-se com cadáveres pálidos": isto dava ao f'ech.i1m·11to cl(· <"Xpn·ss,u- sonhos desejantes; neste caso, lrata-s<" d<"slc: d!' lt·t ;1 d!'g1.1
das tragédias ban-ocas um toque especial; não foi diferente com as n1ínas, nislã no hino antigo. E a sensibilidade para o lugar "oudc os tn·111on·s pt e·
veneradas como se estivessem nos fitando desde a Antigüidade ( cf. Bertjamin, <·ósmicos nos envolvem" foi ainda uma repercussão do barroco; por isso,
l!rsprung de~ deut~r:lten Trauenpiels, 1928, pp. 176 e ss.). O maneirismo ela é povoada por restos artificiais de colunas, e não só sobre tumbas.
barroco em seu conjunto refletia a penumbra que resultava da imbricação também por ruínas artificiais inteiras, como, por exemplo, no jardim do
entre a burguesia em ascensão e o neofeudalismo precariamente poderoso castelo de Schwetzingen. Ademais, ingressaram no campo visual, além d.t'-
que ainda dava o tom; sendo que a lransilo1iedade, lendo sido aparada em ruínas da Antigüidade, também as das fortalezas medievais, especialme11h'
sua queda, ainda conseguia muito bem produzir formas, logo, de forma apropriadas para a assombração, à parte o caráter edificante e antiqu,írio.
alguma caiu no niilismo. A ruína deveria manter-se, assim, muito Já na própria Antigüidack e nas Mil e uma noites, as ruínas era111
precisamente na posiç,10 intcnncdiál'ia c·nlre o desmoronamento e uma consideradas lngan-s propícios à pc-nnantncia de falecidos: portanto, <"SSI'
linha, por assim dizer, íntegra; essa posição intermediária suspensa, como cen,Ílio, especialmente quando transfc1ido para o luar gótico pátrio, tornou
que mantida em suspt"nsão, tornou-a pictórica no sentido barroco. Pa1·a o se o lugar legítimo do nm1;m<·<· de terror que <'omcçou a surgir no século
nistianismo han-oco, a ruína tinha continuado a permitir a interligação XVIII. Como a impressão causada po1· <·ssas ruínas sentimentalnwnh'
entre o olhar para a transitoriedade e o mundo único no seu detTadeiro es<·olhidas é diferente da rnusada pdas terríveis ruínas verdadeiras legada~
dia; essa mistura entre transitoriedade e apot<·osc tornava as n1ínas antigas pelos ataques tetTmistas norte-americanos! E como era difrrente,já naqrn·k
venedveis, e 11ão apenas hdas. A ruína - para épocas sem ruptura 011de tempo, a aura empn·stada pda mera transitoriedade e sua elegia <·111
havia mais motivo de susto do que imagem de desc:jo - tornou-se, po1·ta11to, compai·ação com o horror sem <ptalqner aura (a não S<Ta da absurdidad<")
a categoria sob a qual a anligiiid,ule mostrou-se, pela primeira v<·z, que prcend1e os vãos <·nnos das_jandas! E como a ca1eg01ia "antigüidade''
edificante. E mais do que isso: um reflexo das muitas c·enas de mártin·s nas daquela época, inc-rcmc·ntada com o ennmto das ruínas, sim, com cifras <I<"
image11s do barroco nliu lamhém sobr<" as ruínas da beleza desvanecida. n1ínas, estava distante dos conceitos de restaura<;Üo do sé-ndo XIX! Como a
Ao retratar ruínas de l<"mplos antigos, a Rcnasce1u.;a ainda havia permitido devoção ao torso é distinta do impulso para sua <·ompknw11taçãol Depois
que estas consistissem puramente ck moddos cleslac-ados <· como que que a Vi·nus de Milo foi desenterrada, em 1820, os hn1(os que faltavam
apresentáveis. Porém, as pi11turas e gravuras dos dois séculos haITo<·os que Ji:>ram restaurados, logo depois e durnntc todo o século, em mais de cem
se S<'!-{Hinun utilizam a 111ína para transformar à maneira harrocajustamcnte reconstn1ções ex ingenio; o baiToco teria tido o S('ll rnom<·nto edificant(·
o modelo clássico, que era um modelo da proporção e ela simetria. A'> justamente no torso,justamente o rnom<·nto da transitoriedade e do fulgor
ruínas tornar·am-se elementos novos de um ernbkrna bcrn próprio, derradeiro sobre ela. Porém, em rcfe1·fa1<·ias importa11tcs a visão para a
clcciclidamente não cl,íssico, de uma alegoria da transitoriedade sobn· a mína de fato se mantém ainda hoje fora do fünbilo ela júâes hippocratica
qual pousou a eternidade. Dessa forma, os 1·cs1os da Antigüidade fornm transfigurada: assim no páthosda pátina, assim 110 púllw.Hla unidade formada
antes embelezados no scn estado dccade11te do que restaurados ao estado pelo bloco. O páthosdesejante da pátina abrange clesde vidros i1idescentes
intacto pelo autor haIToco; esse é o <·aso mesmo de Piranesi, quanto mais até o tom dourado de Pesto, desde telhas <ksgastadas pelo tempo (telha-
elos que sentimentalizam a Antigüidack como pôr-do-sol. As VedutP- di Roma, c:anal ou romana) até o bronze esverdeado; t·ssc páthos deseja o tempo que
de Piranesi, são muito precisas; elas querem proporcionar contemplação e transcorreu desde então, deseja-o como vinho cnvdhe<·ido ou como o
foram acolhidas nessa intenção no início do século de Winc:kdrnann, mas a11oitec:er de uma vida hem vivida. De modo distinto, lotalmente sem
até nelas os torsos, na sua beleza elegiacamente desejada, foram romantis1no, mas igualmente sem mostrar-s(· ingn1to à destruição ocorrida,
exageradamente enfatizados. Os pintores baITocos prop1iamente ditos, os o amor à unidade formada pelo bloco ho11ra a influência do tempo,
da fantasia ébrio-melancólica, até chegaram a situar a Antigüidade de ruínas principalmente no campo plástico-grego: a Vênus ck Milo sem braços 1·evela-
em lugares em que ela de fato nunca ocorreu: as Ruinen von Karthago se aí como a fom1a mais rigorosa, se comparada com a fonna ilusionística
lRuína~ de Cartago] (Dresden), de Chisolfi, fornecem, por volta de 1650, do original completo. A,;;sim, os valiosos destroços do naufrágio podem em
um exemplar primoroso desse gênero. Arbustos, muros rachados, <:olunas toda parte revelar significados que os elevam acima da sua condição original
pictoricamente desmoronadas e espalhadas pelo chão tornavam aí e do seu contexto ante1ior, até cotidiano. Isto ocorre mais intensamente
especialmente preciosa a glória da Antigüidade através da sua em épocas vazias; não é- sem motivo que o próprio museu, ct~ja origem está
transitmiedade. Sendo a arquitetura pintada sempre a forma menos forçada no tesotu-o do prínc-ipc-, tenha chegado ao seu resplendor instrutivo,
o~ jardim, palacianos e a~ edifú:açõe~ da Arcádia
adrnirado-exortativo só no século XIX. A anlip;úidar/1' m1110 11111 totlo: da 11 a
~erta é, em grande parle, algo irrecuperável, urna Vincta cobnta p<"las
Aqui tudo é infinitamente belo; ontem à noite, ao nos esgueirarmos pelos ÜLf!,Yl.1,
aguas c~o _passado. Mas, na era do produto feito à máquina e da impotfncia
canais f' m.aios, comoveu-me m.uito o fato de os deuses tern11
formahshca do Bauhaus, <JUe substituiu com tanto orgulho a impotência
pfrm.itido qu.e o príncipe corl(;rr,tizasse um. sonho à sua volta.
decorativa do século XIX, ela é igualmente um sinal utópico. Um sinal
Quando se pPrcorre tudo isto, é corno se nos estivessem narrando
utópico-exortativo referente ao qut· era a plenitude, o ornamento, a
um conto, e /Jfrcebe-se bem a atmosfera dos Campos Elísios ...
fantasia habilmente envolvente e mio só ao que era, mas ao que é em
( ~>etlw <·m 1778 para G V- Stein, sobre o parque inglês junto a
sua forma inacabada. Mesmo uma criação realmente nova terá e deverá
Dessau
ter - como tal - antigüidade dentro de si, urna que trabalhará, como
ckv~· ser, em colahora~·ão e continuidade, e 11,10 uma a11tigüidade
Não lüí casa agradávd que n.10 est<:ja em meio ao wnle ou que não
copiada. O grnu de novidade torna uma obra importante, mas o crrau
goste de miní-lo. Este espa<;o aberto faz pa11e dda, sohn-tudo se foi moldado
de antigüidade a torna preciosa, e na obra, que tanto recebe <·~ruo
ele acordo com os pr<Íprios cles<:jos: o janlim. Ele retínc· e ordena as flores,
deixa um legado n1llurnl, as duas determinantes andam de 1m'ios dadas. A
clonwstica a 1ud1a e a ág-ua, levanta paredes que se ahrC'm por si rnesmas.
m~cpüna criou condi(,'ôes difrrentes das existentes na manufattu-a, que dá
O janlim est,í ligado ao passeio e o acolhe; ek t·st,í cstn·itarnente ligado ;1
ong-c-m a todas as antig-iiidacks; no c-ntanto, assim corno não p<Tma11e<Trá
mulher <' a Citera. Não {- sem razão que o jardim árabe estava ligado
<~ a_tual homem da máqui11a, produzido pelo capitalismo, tampouco terá a
clirctamcntC' ao harém, uma paisagem <k amor, srnpn·sa e paz. Com essa
ultima_ pa~avrn um produto da m,íquina, <[U<' cotTesponde apenas à
fina~i~lcuk, de <'rn a11i111aclo pdo frcscor e pelo escor1<lerUo, por jogos
menu11za(ao g-cral <' sua falta <l<' niatividacle. "O fórceps devc- ser liso, mas
a<p1atH·os e <piiosques, não falta11clo extravag{incias. O parque elos califas
a pinça para ,u:úcar de modo alg-um" ( Gú1t der UtofJi,e, 1918, p. 22); todo
ele Ba14dá continha riachos de estanho, um a~:udc eud1ido <·om mercÍlrio,
vcrdackiro artista ama o ornamc·nto, 1nesn10 que o ornanH·nto ainda niio
em torno do qual pendiam 14aiolas de omu c·om 1uuxi11<Íis cegados para
tenha voltado a amar uma <'J>OC'a tão diziinada pt'la m<·crniz,H:ão, hem
<)li<' nrntasscm também durante o dia, harpas <'<>lias soavam nas ;írvores. A
como pdo hit,1ch. !\ purifica<;ão das barbaridades do s{-c·ulo XIX é
parcele dos pavilhôcs do amor <'ra lc·ndicla como uma lilig-rana de marfim,
pressuposta, e isto c·ol!H> conditi,o úne qua non; ruas para akrn <kssa
através da qual aparecia o c{-11 01ic11tal V<'nk-turquesa. Labiri11tos eram
purilin1<;ão apresenta-se como tarefa um mundo de expressão que não
muito bem-vistos, efeitos produzidos p<)I' cspdhos <)ll<' aumentavam as
destrói, mas que dá continuidade à plenitude daquilo que se tornou
delícias do amor (os mais famosos estavam 11osjardins palacianos da Palermo
anti~Ju.irio. Uma vontade veemente, mas nem por isso j,í mais abc-n(,'oada
arábica; também Romaj;í havia trazido esses artifícios do antigo Oriente).
ou hbcrtada do epigonismo, uma vontade voltada para as co1·<·s, as formas,
E assim como a bela mnllwr está recoberta com presilhas ck prata e
os on1amcntos, perpassa o mundo já libertado da mecanizacão. Ela
co1Tcntcs ornamentais, assim larnb{-111 o janlim oJicntal com trabalhos em
demonstra que a luz que brilhou durante toda a história até a i,ITup<;ão
metal, flores de vidro,jade da China - 11m fino so11ho prazeroso da própria
do produto frito à máquina e que enche todos os nossos museus não se
nattll'cza, a natureza como nrnlhc-r. O segundo florescimento cio jardim
extinguiu com o Bauhaus e semelhantes exultações vazias. Ouauto mais
oc·~>tTCU no barroco; o interesse do absolutismo ocidental pelo despotismo
drástic·o o pscudoprogresso arquitetônico, ou sc:ja, rumo ac~iada, tanto
oncntal levou a lançar mão, ao mesmo tempo, da fantasia arábica. É o
mais as antigüidades conforme a antiga imagem do desejo tornam-se
rnso sobretudo dos jardins palacianos dos séculos XVII e XVIII, apesar do
tuna nova não-me-esqueças, ou seja, 1-una recordação não ~-ornântica. A
avanço do novo elemento da representação. Esse novo elemento prevaleceu
rcalida~k agora em curso possui pré-aparência suficiente para poder
no segundo período áureo de todo jardinismo, 011 s<:ja, no ban-oc:o, mas
produzll'- contra todo empréstimo do século XIX- formas de expressão
sua vi tó1ia nunca foi completa. O parque batToco tornou-se o pako medido,
do humano até agora desconhecidas. O fato de- a maior parte dos novos
geometlicamente mensurado para as festas cerimoniais, mas também para
utensílios e estradas não conseguirem envelhecer, mas só se deteriorarem
uma natureza que em toda parte <leveda estar a rigor. Ela deveria portar-
com o passar dos anos é um sinal de que foram mal construídos. Mas, da
se como zona periférica da corte, metade ente matemático, metade devaneio
mesma fon_na, o fato de, após um tempo conveniente, se associarem ao grande
domado; ela era panorama. Nesse afã, foram comel'idos excessos bárbaro-
legado antigo e tornarem-se dignos dele é sinal de uma preciosidade inata.
cômicos, que con-espondiarn ao desejo barroco de compor de cada coisa e
de tudo um emblema: Adão e Eva cm folhas de teixo, S;10Joq.{<· nn folhas do rococó muitas vezes ainda 1nisturaclo com o francês, aparcnle111c11lc ~1
de buxo, um dragão com rabo de hera rasteint, poetas desta<·,ulos em distancia do castelo, nem mais deveria ter limites que o separassc111 da
folhas de lourn. Entretanto, da mesma forma, o jardim baffoco produziu natureza livre. Ademais, o jardim situado em montanhas de altitud<' rn<:di;1
o nec plw, ultra do que a sociedade daquela época desejava e imaginava novamente ganhou a preferência em relação ao jardim artificialrn<'llll"
sob uma natureza "sans la barbe limoneuse", ainda que com peruca implantado na planície: o romantismo se anunciava, começou a sn
alongada. Isto, no entanto, era imitação da ópera. Além disso, era ainda descoberta a paisagem de I Ieidelherg, o lago de Zmique, a suposta natureza-
natureza ihuninada e não só cenário montado, no sentido do nobre daquela jardim po1· si só, aparentt'mentc sem a interwnção humana. Mas o q11<·
época que dizia amar a nallffcza, pois, segundo ele, ela seria um assombro resultou disso não era, por sua vez, natureza dada, mas totahnente naturcz;i
tão perkito quanto rnóonal, uma grnnck rwduta, uma mistura de condições desf:jada, a natureza de Acldison e Popc, depois sobretudo de Rousseau, ;1
antigas e caprichos orientais, em suma, o c·01üunto fonnado sinrnltaneamente de uma Arddia <111<" se ton1ara sentimental, e o parque inglês foi o início
por ordenamento e extravagfü1cia. O 1ucon> provocou o clcsaparccinwnto desse ckscnvolvimento. Ele se distan<·io11 do castelo ou da casa apenas 11a
da 1·<•1ffesenta~·ão que atuava <'lll tudo isso, e aE1stou da natureza inclusive medida cm que formava um novo pavimento térreo em prados e bosques,
a penica alongada, mas o n1p1frho oriental manteve-se até na roupagem <'Ili salguciros-chorôes, lagos de junc·o e urnas, um pavimento destinado a
arcádica. O qu<' s11rgi11 de novidade foram as imagens mannórcas do cksc:jo, ser constn1<:ão p<Tn:ptiva 011 easa do romantismo do mundo inteiro. A
n)ja alegoria S<' desdobrou no chamado co<p1etis1110: Cupido <· as Graças, natun-za na sua condic;;io original, petf<.'ita, <"ra um jardim: c·ssa concepção
figurns de Pã com pfs de cah,·a ahrn<:,rndo ninfas, volupt11osos raptos de bíblica ton1ou-sc então a con<·<·p~·ão pag~1. que impregnava 11m sonho elísio.
moc:as. Tudo <·m forma miniaturizada, <'Vocando a porcelana e· a inocência Mesmo o lugar ermo, apan·ntcmc·111t· o pólo oposto cxtn:mo do mundo
infantil, soh uma verd<' cobertura de folhagc·m, ao lado d<' uma fonte humano <· vegetal, fói englobado 110 rousst'annisrno, ainda que fazendo
chuviscando como n11m sonho, co11vida11do :'.i imita~·ão, mnjanlim do Éden 11111 desvio pelo romantismo. Nessa linha, Friedrich Schkgd diz: "Nesse
c·m <'Slilo amoroso, <'Snn1dido 111m1 pc·qu<·no hosqu<· silencioso. Na V<'r<ladc, s<·ntido a1tístico-simbólico, o jardim j;-í (, urna co1Hli<:ão mais elevada,
aqui o hadm, como nojanlim oricntal, foi posto ao a1· livn·, ÍIHT<'IIl<'ntado cmbdczada e transfigurnda; no <'rmo, porún, trata-s<' da própl"ia natureza
por um rclinam<'nto cxtraonlirnírio, akan<:,ívd apenas calolicam<'ntc. E n·al, n!ia sensação enche daquda lristcza prohmda <pie, ao rnc·smo tempo,
110 parqt1<' barroco o Ori<'llt<' s<·ntim<'ntal pode st-r n-conh<'cido tamhfm tem algo de maravilhosamcnl<' atraente" - o atral'nlc da imcrs,1.0, sim, do
s<·m o S<'ll rdinanwnto, ao m<·nos quando esse inundo dos des<:jos é mais isolamento, que desfruta vivam<'ntc a si mc·smo. Gradativam<"11lc, também
uma V<'Z co11Ct·11tr·,ulo, ou sc:ja, pintado. Atravfs do mundo antigo dosjardins os desertos e as montanhas nevadas ganharam <'spa(:o ali,já dC'sd<' a poesia
do harroco, <]li<' foi como Claud<" Lorrain e o heróico Poussin n·tralaram ele llaller sobre os Alpes. Estes fornm providos de apr<'cnsôcs que s<"
a paisag<'m sulina, podC'-SC' vislumbrar muito bem um Mcdi1cnfü1co orit·ntal- lon,lizavam nas bordas, onde a natureza despenca para o caos primevo,
ant igo; ek transpar<'cc na luz dourado-clara por dctnís <l<- arhuslos ·mas também onde ela se estende para a lfm dos limi t <'S ha hi tados <·m direção
n-splan<kcentes, transparcee ainda nas colunas dos templos e nas n1í11as, ao ermo sublime. O jardim inglês como forma arquitetônica obviamente
todas das parceendo Palmira e não Roma. A 11edu.ltt pr<'dornina não podia aludir a tais coisas, mas a sua disposi~·ão apreciava colocar os
p<'1feilamc·nt<' tamhém nos jardins do baffoco, édwf4Jh1 de vue ao infinito, h,ihitos na penumbra ou quebrá-los; ele construía no ermo, no lugar
mas igualm<'nt<' ao <'SConderijo e à plenitude. A natun·za apare<T corno remoto, inclusive as curiosidades que recolheu do han-oco. Partindannente
aventnnl pn:"-onleuacla de rep1·esentação e prazer, com uma fechadura instrutiva e como que· enciclopédica é a impressão causada por um jardim
mágica no C<'ntlu. situado na transição do rococó para o parqu<' inglês: o mais belo de todos,
Portanto, as casas foram incrementadas da fonna mais alrativa possívd o jardim do castelo d<' Schwetzingen. Ao lado de lagos de ju11co e urnas
com um v<·rdc que, por si só, não crescia assim em lugar· nt·nlnnn. Nem a pretendeu-se coletar aí tudo que de men1orávcl havia no rn1mdo, usando
aparente n:jeição elo earáter artificial, que era um caráter art ístieo, suprimiu aITemedos e fachadas, um salão de exposiçôes verde. Um salão, no entanto,
esse tipo de jardim. A rejeição do jardim frand·s ocorreu por volta de que mostrava, por sua vez, apenas disposições de ânimo e imagens de desejos
1750, devido ao modo de vida burguês que avançava com força cada vez já expressos, um cofrC'-fort<' natural contendo tesouros puramente artificiais
maior; teve início o estilo inglês, por assim clize1·, o estilo natural. Mas também e sentimentais. Teixo v<"nl<- <' deuses brancos, 11oliere e balneário discreto,
o parque inglf:s cultivava muito bem a sua selva, e manteve o homem na templo de Apolo e Il1<'S<Jllita - todas essas edificações do cles<':_jo na mais
paisagem, a paisagem para este. É verdade que o parque inglês, inclusive o antiga fonna de montagem estão ali reunidas. Encontram-se um templo de
Mercúrio, um de Mine1va (com cân1aras subterrfü1eas, como n-ci11lo d<' (d. p. 8:,), o "sentido contrário das palavras oliginárias", semp1 e diakt ico.
culto à "sabedoria"), uma ruína artificial, um templo da botânica e 11111
S<"m este, sem o afeto misto, sim, sem o objeto misto que atua no horror,
castelo aquátil romano - todos transpostos do teatro do baIToc:o ou do os requisitos do horror noturno não se1iam tão cheios de prazer encoberto.
rococó para o parque a <·éu aberto. Esse era o parque recreativo de grandes Pois também está repleta deles a estranheza que constitui a satisfação
senhores, o lugar para festas palacianas da natureza e para passeios, mas totalmente sensacional do teITor: o romance de horror. Justamente o seu
·igualmente paira sobre ele o sopro de um arrebatamento e uma mau tempo inicia-se na época de Ossian, e anuncia-se pela primeir-a vez em
longi,nqüidade fantásticos. A ,iria de Susanne, em As bodas de Fígaro, mora Ca..,tle of Otranto ( 1764), de I Iorace Walpok, e segue até E. T. A. Hoffmann,
exatamente 1wssa n·gião, a nobreza da música de Mozart ressoa nesses para quem toda hora é hora dos espÍlitos. Mas segue também até Jean
ja.t:dins twm p1·óxima.a uma extravagância que faz de histó1ia, mitologia, Paul, n~jo Titan mantja a luz hruxukantt· t· o Ilades com a mesma
zonas t•sfrangeiras o seu panorama sentimental e curioso. Mesrno Voltaire intensidade com que mantja o sol, os Alpes e Roma. Menos ainda se poderia
escreveu cm 1768 para Collini sobre o mais belo desses parques: "Antes de conceber Edgar Allan Poe sem uma estada desse tipo no ühimo reflexo do
mo1n·r ainda quero cum pdr um deve,· e saborear mn consolo: quero rever crepúsculo vespertino e na noite que cntào <·ai sobn· a te1Ta. Imagens de
Schwetzingcn; esse pensamento tomou conta de toda minha alma". E t·nt1·e viagem desse tipo habitam uma grota, como qne a grota marítima em que,
todas essas máscaras t·m forma de edifinu:ão, de que esscsjanlins estavam de acordo <·om a saga nórdica, mói-se sal, não o sal ático, mas o gótico. A
repletos, faltava constantemt·11tc uma única, a da ign:ja. Em vez disso, o paisagem {- pcn-01Tida por águas amargas e pela noite, o <·t·nário assume a
que se queria tornar palpável ou simbolizar era justamente a Arcádia: no forma de um Nijlheim 45 mobiliado. Corrcdo,· e <"s<·adas csniros, noite,
jardim barroco, uma Arcádia com curiosidades, no jardim inglê·s, uma rcmitfrio, contjas, relógios, luz difusa, n1ídos enigmáti<-os, alçapões,
con1 zéfiro, meia-lua e noctu.mo. aposentos góticos, esconderijo por si só, quadros sinistr-os <·om olhos
demasiadamente vivazes: este conjunto perfaz sobr<'tudo o romance de
'J'emjJO mal1u:o, AjJOlo à uoilP horror, constitui sua essência. Essencial para o seu espfrito <·ontinua sendo,
I Iá também 11m _jeito de tornar tudo cstnmho pela ki111n1. Mais de forma reiterada, a crniosa felicichuk des<:jada cm meio ao hon-or: "Foi
precisamente nuno :i n·gião onde há ventos e sussmTos <' sucedem coisas realmente mna noite tempestuosa, mas, aind..i assim, muito bonita, uma
funestas. Essas coisas na certa estão muito distantes da refinada scnsa~·,"io noite terrivelmente singular em seu tc·rro,· t· sua bdcza. l frn redemoinho
noturna dojanlim inglê·s, mas têm dentro de si o aspecto sensível <'lll forma deve ter se formado na nossa vizinhan~·a, pois as lufadas de vento
grosscir-a, ,'is vezes até ainda mais profunda. Este se tornou, t·ulão, um l'reqiientemente mudavam de direção. A densidack incomum das nuvens,
prazc1· totalmente burguês; ele é assimilado pela leitura, podendo ocorrer, que pendiam tão baixas que pareciam pt·sar sobre as torres da casa, não
portanto, na c·ackira de balanço, e de uma fonna até baslaute fücil. Não foi impediu a nossa percepção da celeridack c·o11sde11tc <·om que aco1Tiam de
s<> o século XIX que teve produções consíden'ívcis no dcs(h11c ela leitura de tüclas as direções e se entrechocavam - mas st·m seguir adiante. Dizia que a
horrorjunto a uma confortável lâmpada. O aposento aquecido se lor11ava sua densidade incomum não impediu de p<-r<·<·lwr isto; 11ão obstante, não
duplamente receptivo para o tempo maluco hí fora e para os sucessos lidos, vislumbrávamos nenhum reflexo da lua 011 das cstn:las, e muito menos o
sobre os quais assobiava o tempo. O vento ríspido efetivava o arrebatamento )11zi1· de um relâmpago. Porém, a superffrie infcl'ior da massa de nuvens
do lt·itor para circunstâncias que curiosarnentt· pntenciam ao oposto do dcsabaladas e todos os ol~jetos ao n~dor de nós l,i fora a rfu aberto
fogo de lareira, à estranheza total. Esse arn:batanwnto gen1lnwntc ocorre cscandeciam à luz não natural de uma eman..i(,t<> gasosa de brilho tênue
já no início dessas histórias; a casa enna, "a penumbra honipilante" são mas claramente visível que pairava sobre a casa e a envolvia" (Poe, The
des{:jáveis para isso. No caso ideal ofc.Te<·crn-se ao calor do olhai· mesmo, Fall r4' tlte House of lhlter). Aclimatizados corno t·m nenhum outro lugar,
para admiração geral, o mundo hostil por si só, noites de novembro, gritos, também os atavismos do mundo dos espíritos penetram no romance de
ocorrências confusas, até assombradas. Atcrrissarn aí - por mais reduzido hotTor, com fogo tênue ou htliginoso, com arrastar de pés e batidas nas
que seja, se possível, o preço - desejos, qm· não são muito diferentes portas, com sua magia banal-preciosa e, em todo caso, disparatada. O
daqueles que certa vez impeliram nnno ao mundo ossiânico, ao vento espelho mais estranho {- aberto aí, mas como quer que seja sua
tempestuoso, pântano, nevoeiro, gemido levado pelo vento. O efeito mais
líquido e ce110 é conseguido neste caso pda pitada de choque e noite tenebrosa,
sim,. o desejo de angústia entre os desejos de que tratamos ante1iormente, 15
O mundo gelado dos morlos na milologia nórdica.
fosforescência, ele ta1nbérn evidencia algo nào muito sq{IIIU 11.11·xp1·1 i1·111 1;1. 1slo tanto mais dara111<·11te, quanto 1nais en1brutccida esta lúr. Pon~rn. e 0111
Justamente esse olhar, que, ern Hoffmann, opera cm meio à mais p11Tis;1 1s-;o <·la 11,10 está esgotada; também um outro passo ou giro é imitado.
desnição de seu mundo de Biedenneier, perfaz o realismo peculiar dcss1· g;111ha forma, o passo elegante, medido e, em muitas danças popul;irc,-;
autor. Um realismo que mostra de fonna penetrante a distância entre a preservadas, especialmente russas, o passo da alegria após o trabalho
miséiia mediana da c-xistência e as imagens da esperança, mas tamb{,m concluído. Todavia, também na dança sexual há algo elevado, subliml'.
revela uma dimensão do mundo real ao demonizar essa miséria e situar as que se faz visivelnwnte sensível, torna-se sensivelmente visível. A daiu:a
imagens da esperança, dimensão csta que não pc-nnite restringir o romance permite movimentai'-se de modo bem diferente do que durante o dia, ao
de hon-or nem as imagens de esp<Tan~·a contidas nele apenas a mn realismo menos no dia-a-dia; ela imita algo que este perdeu ou até nem houve. El.i
soc·iológico aprcscntado num formato ele entretenimento. Mais ainda: compassa o desc:jo de uma existência de movimentos mais belos, apree11cl1·•·
situa~·ôes-lirnitc esquecidas dissolvern-sc 110 asseio impresso, no ponche a corno olho, o ouvido, todo o coqlo e isto <·01no s<· Í<>ssc- já agora. L<·v<·.
quente do asseio bicdenneieriano; Iloffmann reporta e ilumina com o seu airoso ou rigoroso, <·01110 quer que s<:ja, aqui o corpo se c·xpressa de outra
humor tudo o que ainda podei-ia penetrar no cotidiano <" impregná-lo a mant'ira, entra <'Ili algo diferente. Sendo que cxiste um impulso de continuar
partir dos setores abandonados. Para este I loffmann é meia-noite a qualquer nisso cada vez mais intensamente.
hora do dia, mas, ao mesmo tclllpo, os houH·ns não estão desamparados à
m<-rcê· do terror do m1mdo dos espíritos, nem o seu feiti<;o dctt>m a última A ,uma dança e a antiga
palavra. Ao contnü-io, até o cngenho mais maluco desperta forças contr,írias Onde tudo se desagH'ga, na certa também o coq)() se desconjunta
inteligentes, como no co11to; das <·onv<-rtelll o remoto no iluminado, no sem maior difü:ulcladc. Nunca se tinha visto nada tão grosseiro, ordinário,
éter d<' aparência particularnwntc azul na sua fan· notrn·na, no humanismo. apa1valhado quanto às danc;as de jazz d<'sdc 1930. .fille-dmp;, boogie-woogie.
É por isso que, em Majoml, uma a11tê·ntin1 histó1ia d<' hoJT<ff, o nrnsdhciro isto {- imbecilidade dcscnfr<'ada, com a vodferac;ão <Jll<' lhe corresponde e
jurídi<'o 1.-mça o fak<·ido Danid de volta no vazio; é p<ff isso <Jll<', cm Gofdener que lhe fornece, por assim diz<'r, o acompanhamento sonoro. Esse tipo de
TofJ/ 1 O jJOlP rfp, ourol, o arquivista Li11dhorst dcrrola a I Iécatc Apfdwcib movimento norte-ame1inu10 <'stá fazcnclo es11·cm<·c-c1· os países ocidentais,
1mulh<'r--ma~:ãl <· d,í co11ti1111idack ao procC'sso ck estranhamento até chq~ar não como dança, mas como vt>mito. Prctende-sc emporcalhar hornem e
,"t luz de uma Atlântida sem 1111v<'11s. Est<· é o S<'ntido cont1·,írio ol~jctivo ao esvaziar o seu cérebro; tanto menos 110<.;ão de tcr.í, em mdo aos seus
terror presente na viagem às a11tigiiiclades do nHnann· de hoIToL cxplorndores, da situação en1 que s<· encontra, p,ll'a quem lahnta, e1n favor
do qtw é enviado para a morte. Mas para falai· de verdackira dança: da
29. Imagem do desejo na dança, a pantomima e a terra dos filmes mesma decadência que, em amplos círculos, produziu a imundície norte-
a111<-ricana, surgiu, em círculos considcrnvchu<'ntc mais restritos, um tipo
Nunc pede librro fmlmndfl Mlus. de movimento de purificação. Ele, uo entanto, não <'J,l dirigido contra o
Ilonkio jazz, já pela simples razão de que teve início antes da P1imcira Guerra
Mundial. Ele voltava-se, em conexão com a reforma contemporânea da
Hipólita: Mas toda essa história noturna contada, atividade artística, contra a decadência mais branda, contra as distorções
E todo seu sentido de vez transfigurado, do século XIX, aos quais o jazz apenas apôs <'ntão a monstruosidade
Testemunha mais do q1111 ima1;cns.fantasiosas. consumada. As novas escolas de dança, 01iundas de Isadora Dnncan, depois
Torna-se um todo que irá durar bastante de Dakroze, buscavam apresentar urna imagem mais bela do homem em
e, não obstante, estranho e admirável. sua <·an1e; sendo que elas, no entanto, iniciaram a constn1ção a partir do
Shakespeare, Sonho de uma noite de verâo. telhado muito elevado, logo, resultaram for{·osamentc "ideológicos" ao
extremo. Como uma entre muitas, seja lembrada a escola de Lohcland,
Também o que dança quer tornar-se diferente e partir em viagem mais predsamente porque ela pretendia ser a escola natural. Ela procurava
para lá. O veículo somos nós mesmos, ligados ao parceiro ou ao grupo. O belos animais com o seu andar bem articulado, robusto e saudável. Sua
corpo move-se num ritmo que facilmente entorpece e, ao mesmo tempo, intenção era desfazer de dma para baixo a postura propositalrnente oculta
enquadra numa medida. Sobretudo cortejar e fugir, um movimento que ou congelada que resultava da relação "senhor-servo". Em cursos que não
sempre faz lembrar o sexual, constitui um traço básico da dança social, e queriam ter mais nada a ver com o ensino das boas maneiras, nem mesmo
algo com as posturas galantes, os nH·mbros do roipo <'l'alll s11s1ados 1111111 lor110 de seu (:eulro, na escola de Loheland, e a todo ass<·111cl11ado q1w Pº"".i
movimento descontraído, "girando em torno do centro do rorpo". Os ondular como uma espécie de natureza artificial. O balé não tem q11alq1w1
espectadores, tanto mulheres quanto homens, especialmente após a Primeira anseio por isso, n1as ccrtarnente pela postura graciosa e soberaua11u·1111·
Guerra Mundial e na Alemanha, olharam t>mbevecidos para o espelho dominada, que <·e1ta vez havia combinado com o rococó e ainda com o
diante e dentro do qual os dançarinos assim treinados se movimentavam. Empire, especialmente com o sofiimento elegante e o júbilo fiio. A express;11 >
Urna boêmia moderna, por assim dizC'r, natural-estilizada, esbelta e de ambos anda na ponta dos pés sem fa.zt-r 111ído, envolta numa nuvem de
esgrimidora, tornou-se moda decorativa daquela época; ela, no mínimo, gaze e talco. O balé cléíssico justapôc, ou melhor, contrapõe ao mero giro
f>l'oduziu um novo tipo de mullwr e de ator. Foram assumidas e apresentadas em torno do próprio centro do c01po um ofício bastanlC' espiritualizado.
formas mediante as quais o homem se expunha cmno adestrado ern Pois ele representa uma paisagem humana, da qual deve estar ausente tau lo
liberdade. Sendo que o melhor, que estava sendo buscado ali tão o ponto de equilíbrio corporal, quanto o peso; iudusiv<" o chão é negado.
artificialmente, podc-,ia ter sido c-ncontrado a qualquer tempo no 1ínico I Já neste ponto uma curiosa c·oincidê-ncia na maneira corno esse aspecto de
lugar em <pie as pessoas se movim<·ntam 11a111rahncntc- na d,rn(a popular. leveza e precisão, que distingue essa dan(a lotalnw111c arlifi<-ial, se toca c:0111
UnicanH'nlc esta reahnente pisa o chão que a dan(.·a recrC'ativa burguesa, o aspecto nwcânico. Neste ponto, o ensaio de Klcisl sobre o teatro dl'
cada wz mais dC'gencrada, perdeu. E ela 11;10 n<·<·essita de nenhuma atividade marionct<"s avizinha-se significalivamentc do balé. Segundo Kleist, é cerlo
artísti<·a para estar cônscia do chamado centro do corpo, para estar bem que o marionctist;, S<' situa p<-rfd1amcntc no <'entro de gravidade de suas
artin1lada nm1 o <'orpo. As regiÜC'S <·ampones,is mantiv<"rarn ainda por mui lo maiionetes e faz <·om que as nuvas de seus movimentos oscilem e1n torno
tempo essa dan(a, também após a climiml(:ão capitalisla dos ln~j<·s típicos, dele; no entanto, "esses bonecos têrn a vantagem de não estan·m sujeitos ;·1
da dcvasta(ão dos ritos f'<"stivos; um novo amor à p,ítria, do tipo socialista, gravidade". Isso se consegue aí de modo ainda mais pe,frito do que na
a <"stá n·anímando e faz<"ll(lo_jus a da. Em toda parlC', a chuH;a popular tem modalidade silfídica do balé, ao negar a exisl<:ncia do solo: "Os bonecos
um colorido nacionalisla e assim, caso p<'l'lll,lll<'(;a autê-ntín,,_ja11rnis é passível 11ecessitam do solo, corno as sílfides, apenas para foai-l.r1 rüi Ú<'í'~ e ,·evitalizar o
de trnnsposi<)o para outro lugar.;\ uão S<"r como testem1111ha <' lll<"dida de embalo dos seus rne1nbros com o anxílio do cmharac,:o mom<·ntâneo; nós
toda <"xpressi'io genuína, gn1palme11te hcm-su<·<"dida, de imagens do impulso necessitamos dele para repou..wr e n·<:uperar-nos do csfon;o da dança: um
e do desejo, sc:ja o Lândler akmão, o bolero espanhol, a uacoviana momento qne evidentemente não faz parle da da11<;a e que não se pode
polonesa ou o ltojHth russo: a forma é pr<'cisa e compn-<"11sívd, o contnído aproveitar para mais nada além de faze,· o possível para que de desapareça".
assinalado é alcg1ia que tra11sn:ude o dia trabalhoso. Tanto a S<'l"<"llidade Kkist ainda fundamenta a precedê-11cia da marionete, afirmando que a
1 Gela.~:.enheitj quanto a desenvoltura [Au~gelassenheitJ qu<"r<"m expressar consciência que lhe falta teria causado mui la dcsonkrn na gra(.·a natural do
o seguinte: aqui sou um homem, aqui posso sê-lo. Mais precisamente, o homem. Com isso, ele de forma ,i]gurna se 1dén· a fffCco11<·citos ÍITacionais,
homem com outros homens no grupo, uma seqüência d<" formas mas justamente ao aspecto mecânico increnl<' à mal'ioncte, <111e lhe confere,
ritnücamente movida em uníssono. Rapazes e mo(as podem muito hem se con1 a prcósão, ao mesmo tempo a gra(a, sendo qu<' essa gra~·a consumada
destacar a qualquer tempo; danças inteiras podem servir à repn:senta(ão deve retornar ao homem sarnente no n·vt-rso do conhecimento, após este
de destacados heróis das sagas, como a dança georgiana da águia da ter cruzado diametralmente a conscii'-ncia e o conlwcinwnto. Todavia, por
montanha, mas tambén1 nesse caso o grupo continua sendo essencial, mais distante que o balé esteja desse percurso dianwtral, a sua plena mtiode
pois é de que recolhe e conclui os movimentos. Assim, toda dança fal-o mostra o que deve ser representado, o <)II<' deve s<"r rclratado, com
popular é harmonia; a memória do tempo dos prados comuns, da roça aquela graça que parece ter abolido a gravidade, como no caso das
em comum ainda está guardada nela, juntamenle <·om formas marionetes. Solução elegante, não S<' lrnta, é verdade, de um conceito
pantomími<·as primevas. mecânico, rnas de um conceito matemático, ou antes ainda, de uma questão
Nela todo o corpo participa, entrega-se à con-enteza. Porém, a dança de honra; a rati,0 resfiiada do balé é, assim, graciosa e precisa a 11111 só tempo.
que se baseava unicamente na postura artificial tampouco se extinguiu na A<;sirn, a Morte do ci.!ine, da Pavlova, refletiu, no <]li<' concerne ao demento
mesma época. Ela manteve-se viva no balé preciso, proveniente da corte, expressivo-essencial dentro do exato, algo alvo, puro, cadivo ua manifrstação,
por sua origem extremamente distante da dança popular, mas igualmente e no balé japonês até mesmo uma batalha é expressa com apt·nas algumas
incompatível com a atividade artística da dança nova que deu tanto valor ao figuras parcimoniosamente indicadas pelo movimento do leque. O balé é a
movimento descontraído. Que contraste em relação ao corpo girando em escola de toda dança bem pensada; não é por acaso que ele Ooresce na
União Soviética junto com a dança popular, esta outra gc1111i11idadc a1·1ístico-míticos, de fonna totalmente eITÔnea, nias, cm ro11fon11id;ul1" < rn11
camponesa animada. E, segundo a palavra do teórico prático Moissc:j<·v, o dC'sejo de exotismo, em imitações de danças índias, siamesas<' iwlígl'11,1...,
de tal modo que o balé soviético, na sua expressão atual, nem seria possível Resta Mary Wigman ou o expressionismo autêntico na cena dançada, ;u i111.1
sem essa dança popular. Ademais, a dança popular ( com seus meios de qualquer comparação com o provincianismo iITacional referido a tê ag-< >1 .1.
pantomímicos e dramáticos) e o sempre não dramático balé podem ser Wigman foi a que mais avançou os limites de expressão da dança; 11111i1.1
utilizados um após o outro no mesmo "poema dançado", dependendo dos coisa nessa dança avançada e nas suas cenas imaginá1ias era mera111<·11I<'
afetos destjados e do enn·do. Po1· isso, o balé soviético (pois o que é típico alusiva, mas pouca coisa era abstrata, nada era vazio. A paisagem <pw ~e·
para o balé também continua sendo o aspecto ptincipal nas formas mistas) amplia em torno da nova dança ao som do gongo parecia preenchida corr 1
não apresenta urna CJllChra de estilo. A expressão rica em gesticulações da um entrda(anH·nto característico de Niílhdm e Bagdá; nela movinH·11la--s<',
dança popula1· <' a pan-imoniosa-precisa do balé un<·m-se de forma realista se se pode dizer assim, um mundo de E. T. A. Hoffmann visto atrav<:s <k
no eru-edo a ser representado. Chagall. Este mundo estava contido nela até quando Wigman dauc,.·av;1 ,1
Arlésienne de Bizet, e I loffmann incrc·rncntava, ao máximo, a cena ge11<:1 ic-.1
A nova dança i:omo dtl,'f/Çfl flnleriormenle l'Xjlfl',uionista, o exoti\rno da Vanse mambre dt' Saint-Saéns. Soma-se a isso, todavia, que tamlH··111
Onde tudo se desagn·ga, não falta ou não faltou o caminho para o Wign1a11 com sua csn>la, nm1 sua nal un·za de névoa(' chama, tinha parl<' 11< •
lugar estranho. Até na escola de Lolwland ek foi fracamente encetado, nuno lado 11011 tn10 do <'xpressionismo, que este apn·sentava - tão encantado qua 111t •
aos animais belos, bem art in1lados, com seu andar robusto e saudávd. Porém, volfüil, tão volál'il quanlo cn<·antado - ao lado de sua luz utópica ofusca111<-
os balall(;os c·m torno do C<'lltro do crnpo e similan·s não foram sufidentes, ou dara. E lodo esse elemento dançante· - no pr6p1io original, e não só nas
onde a "postura" alm<:jada come~·ou a e1nhruten-r numa grande pan-da da suas imitac,.·ões-pertcncia a uma dimensão dionisíaca de sentido plural; sc111
_juvcntmk burguesa, onde a revolta contra a imagem lmrg1wsa do lwmnn Nielzsdw, de fato nunca se leria chegado a esse novo tipo de dança. Aí est;í
nem era uma r<'volta, onde a aparente revolta tampouco s<· transfonnott no o Dioniso que condamava para ir abaixo, rumo à dan~·a dos homicidas, <'
seu oposto fascista. I louve aí, no reflexo da dan~·a, Jónnaçücs nti-iosas, para o qual, no final, até mesmo a escultura negra era apenas tnn desvio
supcrficiahneutc irracionais e certan1<·nl<' lamhhn equivonulamcntc para chegar à besta loira. Aí está também o outm Dioniso <pte exaltava a
irradonais, nas quais se buscou uma rda~:ão com uma allc·ridadc dança contra o espírito da gravidade-, qm· louvava, ainda que cm ditirambos
descontrolada, com o estranho não civilizado. Isso ainda d<'ixava uma mais vagos, o deus da vida, contra a mecanizac,.·ão constituída pelo
impressão provinciana no caso da lmp<'k<>V<'Il, quando ela da11(:ava cenas ele apc-qucnamento e a desnaturação: "Meu sábio anseio g1itou, e riu então de·
gtncro 46 enfeitadas a ponto de se tornarem irreconhccívds. A m<·sma coisa d<'ntro de mim aquela que nasceu nas montanhas, uma sabedoria selvagem
tornou-se banalmente an1alucada na chamada C'lllTilm.ia, rnna escola de fato! - o meu intenso anseio rufiando as asas". Em péu-tc, no seu final
antroposófica de dança cheia de dcrvixcs ek sal.'io, de ambos os sexos, mas muito breve, também esse tipo de ruílar de asas conduziu, nào a mares
tudo muito cósmico, para usar a palavra então na moda. Nesta escola, distantes, mas ao lago de sangue bem pniximo do fasdsmo; como tal esse
prete·ndia-se desenvolver nos dançantes o chamado c·mpo <'térco, além do tipo de núlar de asas já havia sido celebrado nas suas premissas imperialistas.
plexo solar e do entrelaçamento com as chamadas forças cósmicas do d<'vir. Ainda assim, há ambigüidade no Dioniso e assim também na dança
Com t·sse propósito foram dançados poemas de um modo mais que literal, expressionista, ela própria inclinada ao exotismo, dan~·a que tampouco teria
de tal modo que a cada vogal, por assim dizer, c01respondia um movimento entrado em êxtase sem o páthosdesse deus da vida. Não no êxtase decorativo
simbólico - um exercício astrológico do maior mau gosto, contudo, junto e muito menos no autêntico, que que1ia representar· tanto a vida oprimida
com toda a antroposofia, de uma efetividade banalmente it-racional. com raste-jar, ofegar e acocorar, quanto a viela libertada com o rufiar de
Estrangeirice no sentido geográfico, mas, ao mesmo tempo, no sentido asas. Assim, o mundo de Wignian, certamcntt· o únko e mais autêntico do
aJTaico, foi mostrada pela paisagem dançante proporcionada por St·ut pei-íodo expressionista da dança, ficou livre de sangue mesmo no seu lado
M'ahesa. Esta era decorada com elementos etnológicos e sobretudo noll irno e constituiu wna composição de figmas que buscava, com imaginação
rica, deixar a escuridão que lhe foi infligida e também a sua própria e rumar
para a claridade. Das criações originais desse tipo de dança pode ser
-16
Genrebi/d: cenas no estilo genre, um estilo realista em pintura que retrata cenas da vida
reclamado um legado que a coloque novamente, mas de outro modo, sobre
cotidiana. os pés, sobre pés que sabem para onde ir.
A dança caltual, o~ daroeses, a ditosa daní:a ti,, wd11 ·,1gdosas. Os braços das mênades estavam envoltos por se1pentes, e o S<'ll
A dança sempre foi a fonna mais primária e mais <·orpora I ek I w I i1 , ., 1110 invocava o Baco subterrâneo de dois sexos e cabeça de touro. Todavia,
Para um outro lugar, diferente do costumeiro, ao qual a pessoa se- c·11c-011h .1 , , 111ovimento figurativo em torno dos deuses da noite, da fertilidade, do
habituada. Fato é que o dançarino primitivo sentia-se eufritic;,11!11 .1hisrno, desapareceu na mesn1a proporção em qne se construiu sobre o
inteiramente, da cabeça aos pés. A sua dança começa orgiasticamcut<·, 11u~ .ihismo dionisíaco. E isto não só na Grécia, mas também nos países do
pretende ser também um instn1mento que o carregue para longe. !'ois ( >ricnte Próximo, com seus Iitos dançantes e cultos noturnos igualmenl<·
quando o possuído fica fora de si, ele espera transformar-se, ao m<·s1110 org-iásticos. Construiu-se de duas maneiras sobre esse abismo: matriarca! e·
tempo, nas forças que habitam fora dde mesmo, fora da tribo e de sua~ patriarcalmente; disso resnltarnn1 novas danças mágicas diferentes entr<-
cabanas, na selva, no deserto, no céu. Mediante a máscara que retrata os -;i, unidas, no entanto, na tentatir,a de n:jeitar o meramente orgiástico.
demônios, ele faz com que esttjam visivelnwnte presentes, ele próprio torna- !Vlatriarcais-telúricas eram as danças frígias em ton10 da á1vore da vida;
se o espírito da áivore, o espírito do leopardo, o deus da chuva; ao mesmo das ainda sobrevivem nas danças da primavera, que foram difundidas por
tempo, porérn, o dançaiiuo, ao iinaginar-sc no interior desses deuses, qu<'I' Ioda a terra. Ndas, os pares sep;uravam longas fitas coloridas amarradas
atrair as suas forças para o lado dos humanos. A partir do lugar consagrado por uma das pontas à árvore-<lc-primavera; as fitas se entrelaçavam e st·
em que ocorre a dan~·a cultuai pretende-se proteger a semeadura, a colheita, desentrelaçavam ao movimenlo da dança, que deveria rct ratar desse modo
a guerra, dos seus de1nônios rnaus e envolv€--las com os favoráveis 011 o entrelaçamento entre devir, perecer, novo devir. ( :om sua dança das
tornados favoráveis. Rufar de tambores, palmas, canto monotonicamente filas, os pares participavam dessa fiaçâo telúri1:a, ditosamente imaginada
extático n·forçam o transe, no qual o próprio pavor deve auxiliar e sn ou assim dest:jada. De constituiç,lo patriarcal-urânica eram, porém, as danças
compartilhado. E importante não é a máscara apenas, mas justamente a dos templos babilônicos; das n:produziam um ascender aos sete níveis
dança que a movimenta, cm n~jos saltos da se sacode e sai em procissão. planetár·ios do céu <', ao mesmo tempo, urn despir dos sete "véus" dessas
Nessa danc;a, nada é arbitrá1io, mas da mesma forma que convulsões não esferas, para que a alma pudesse chegar pura ao supffmo Deus. Uma
são arbitrárias, cada passo é ensaiado <' presnito, e o possuído não tem men1ól'ia dessa fmnlomima ahmica, e não mais lchírica, co11se1vou-se no
liberdade para fazer nenhum gesto. A dança rmígica é iniciação nessas islamismo, mais precisamcnlc na daiu;a dos claroes<·s. O tr·;mst' é- considerado
convulsões; ela é certamente demoníaca e quer sê·-lo. Seus portadores não aí como prcparn<,·ão, ele certo 111odo como uma lroca de roupa da alma,
têm consciência de si de uma fonna muito cônscia e são descontrolados de para poder participar da dança das huris, sim, dos ar~jos. N<·ssa ordem, as
uma fonna bem regrada. lmris não Jóram enc·aradas apt·nas como as moças celt·stiais, masjustamente
O que persegue constantemente a dança é o fato de pertencer à noite também como os espíritos das t'strclas, que guiam - bem na linha babilônica,
e ter começado nela. Na certa foram os gn·gos que inventaram o bem na linha cald{-ia -- os destinos humanos. Ao imiscuir-se figuradamente
comedimento; o extático parece situar-se não só abaixo deles, mas parece na cirnmvolu~:ão ela hmi, o daroês procura consetp:icntcmente entrar em
também ter- sido deixado para trás. Mas ele ressurgia na turba de mulheres conformidade com os astros, refletir de forma motora a sua circunvolução
bacânticas que revoavam de forma quase misteriosa na p1imavera. Quase nas figuras de sua p1·óp1ia coreografia, procura acolher a efusão do prirnum.
misteriosa numa ruhura n~jo lado visível, tanto quanto o secreto, é agens, cm torno do qual giram as próp1ias estrelas. Ibn Tofail explicou isso
<:onstituído de forma bem diferente justamente no que concerne ao no século XII desta maneira: cp1c os daroeses, n~ja ordem teve início na
movimento, que conforme sua vontade de comedimento é constituído mesn1a época, "tomam sobre si corno uni dever· as circunvoluções celestes".
exatamente assim como Goethe vê: ou anseia: Eles aneditavarn que, com isso, atr.iiriam sobre si um reflexo do movimento
divino, não mais demoníaco, ruas sideral, atinente ao céu extremo, ,1
Se às alas de ninfas, reunidas na santa noite de luar, astrologia. De uma maneira assim clara tentou-se, com tudo isso, sobrepor
associarem-se em segredo as graças descidas do Olimpo, ao primitivo transe orgiástico uma outra forma, tanto no sentido matriarca]
espreita-as aqui o poeta e ouve seus belos cantos, quanto patriarcal, tanto telúrico-mítico quanto astral-mítico. Todavia,
admira das danças sigilosas, o movimento misterioso. também de uma maneira assim visível, o aspecto xamânico equilibrou a
balança da lei do dia nesses n1ltos extracristãos.
As mênades, por·ém, cuja origem é muito anterior à das ninfas, Entretanto, a dança encontrou maiores dificuldades quando o próprio
mostravam de tudo isso apenas o movimento temível, dionisíaco de danças corpo não mais deveria intervir nela. Propositalmente, o cristianismo n;io
só n·primiu a dança sensual, mas também a religiosa. ( >hje<;úes :, d:1111_;1, ,10 j,-1hilo uas abóbadas; todavia, esse adejar canônico praticamentt· 1w111 c11,
menos à que inclui o transe, têm início já entre os judeus: a dan<:a <; pníp1·i;1 sonho é realizável para os honwns não alados, que perambulam e1n car rw (
dos sacerdotes de Baal. Estes esplllllam, claudicam em volta do ah,u- (1 Rei., osso. Não é sem razão, portanto, que toda nova tentativa de niar urna a1 le
18,26), têm os seus daroeses; os "bandos de profetas" judeus da época ck da dança foi feita no âmbito não cristão ou então: no balé, o vôo sem gravi( l.u h ·
Saul ainda se apresentavam como daroeses, rufando tambores e em êxtase dos que andarn ern carne 1·etoma e acolhe semelhanças com algo totalnw11k
(1 Samuel 10,5); justamcnt<·· por isso eks foram desprezados. E justamenl<' não espi1itual, como o representado pela ma1ioncte. A<isim, a arte da dam,:.i,
por isso pe1·guntava-se com aclmiração: "Até Saul está entre os profetas?" (1 que continua existindo, definitivamente inconclusa, dá a impressão de s<·1
Samuel 10,12); estes 1íltimos, portanto, eram considerados, ainda naquela uma arte que afirma o cmvo lransformado de modo altamente te1Tc110;
época, corno possuídos pelo paganismo. Quando ao lado ou acima disso é quer da se alimente do foldore quer da tradição das danças da corte, sernh >
rdatada, como grande honraria, a dança de Davi diante da arca da aliança, a última dcslas o balé. Sendo que uma nov.-1 e anti":ntka arte da dança ape11a~
não foi só Mkal, sua esposa, <JII<' sentiu isso como uma humilhação, mas o poderá surgir quando houver um motivo de alegria bem fundamentado,
pn>prio Davi admitiu a humilhac;ão, ao ~cr interpelado por da (II Samuel compartilhado pelo espectador, um motivo para o num: pede libero p-ulsanrl"
6,22), embora a consid('rasse uma darn.:a c·om prenúncios sagrados inversos, tellu,,.\. J\ ak611·ia mais substanciada surgiu com a tomada da Bastilha e sua,~
como transe diante ele.Javé. Essa santifica~:ão, porém, ficou excluída tanto no conscqiiônüas, o povo liberto cm solo libt·1·to; da não existia antes ckss;,
cristianismo mais antigo quanto na Ign~ja; a clan~·a Hon:sccu na Idade Média tomada<' não existir.i sem da.
(·omo daw.:a da <·orle e dança popular, toclavia não como dança litúrgin1. "A
nÍHhl1.lhn é 1wnnítido", assim dct(Tntí11a o Concílio de- G80, "exautarjogos e il fJllnlomima surdo-muda e a fHtntomima siRn4"ü:ante
danc.:as que os pagãos inventaram, inspirados pdo diaho"; - os gestos do J\ cla11<;a não UC'cessita ck palavras, nem quc1· cantar. O que ela qu<'I
coq>0 11;:io s;'.ío mais o h1g;u- cm que- o movimento lrans<·cn<kntc d.:i alma se desC'nhar no ar, na rcgiào dc-snmhecicla, situa-se abaixo ela linguagem 011
encontra em casa. Os passos pn·scTilos ao san·nlotc católico cliaute do altar est,Í distante clda. Casos(· s.ituc- abaixo da linguag<·m, t·ntão, sempre que a
talvez ainda contenham uma n·mi11isd'·ncia ele dan(.'as dos templos romanos, da)l(:a, cspedalnwnlc a da1u,·a <·m gn1po, tem o propt>sito de comunica,
mas d.:i foi reduzida a pan-as alusú<·s simbólicas, e- a procissão caracteriza-se algo, surge a habitual pantomima. Ela c·ausa a impressão de ser surdo--
por urn passo hirto. /\ darn,:a <'xt;ítka ainda 1·cssurgt·, mas apenas muda; há u111ito é constituícla ("0llH> se os cl<'mais mcmhn>s do corpo S<"
t·sporaclícanu-ntc, como nos Jlagclant<·s da épon1 da peste, <· 11este caso é <·sfalfassem como mc1·os .\uhsli.tutos da língua. Isso começa já com
convulsiva. Do lado de lá, entretanto, 0<·01n· a dança hem-aventurada, como personagens t;"ío graciosos como o Picn-ô e a Colombi.11a, mas chega ao sc11
pintada por Fra Angdi<'o; como uma existê-nc·ia desc:josa de movimento, cm augt· quauclo um gesto não co11seg11c dizer mais cio que "cu te arno" ou "<-11
vísta ela qual o n>rpo terreno foi pesado e considerado muito pesado. Os te och·io" ou, cn1 raso cxtreHio, "estou seudo consumido pelo ciúme". No
movinwntos dos lwm-avcnturados e dos a1~jos foram definidos principalnw11te mimo claA11tigiiidacle, <]li<' tinha sido uotavdmcntc extenso e convincente,
como movimentos qne não ocmre1n no espa.;·o, mas q11t· c·ai-regam c-ousigo essa gestualidade era cousidcravclmente mais expressiva e significativa, em
o espaço para o seu movimento, e até o cornpôem. Expressando urna dessas especial no oriente da Ásia. Isso uão se deve ao fato de que aí ainda se
utopias do movimento, extremamente curiosa (fxrjét:tio motus), Tom.is diz estivesse muito próximo de uma suposta linguagem cl<· sinais mais primitiva,
que o espaço é abrangido pelo anjo, não o a1~jo pelo espaço; os a1üos se que tivesse prcn·clido a linguagem sonora. J\ linguagem articulada, como
<'Xpafükm de modo virtual, e não corporal. J\ partir daí, a dança celestial foi fundamento elo pensar, é que desenvolve, juntamente com a dimensão
imaginada como uma dança sem passos nem distanciamentos, c:omo vôo intelectual, a capacidade ele expressar-se também mimicamente, sem
<{11(.' não nece-ssita fazer o seu percurso de rnoclo continuado, e que, sendo palavras. De poder expressar-se ao menos de modo mais rico, variado,
imaterial, não tem mais nenhuma consciê:nc-ia de esforço e cspa<,'.o separador. sobretudo mais no mimo de um contexto, elo que os animais sem fala.
Mas isso nào é construído para seres humanos; a única dança cristã era Portanto, a razão do mimo mais apurado dos povos do Mediterrâneo, <·m
imaginada como dança celestial, não como dança tcITena. A imagem do comparação com o elos do norte, reside na interação ali preservada entre
dest:jo de- mna dança desse tipo se manteve, mas não podia provocar ou a linguagem sonora <' a linguagem gestual. E a linguagem gestual, qll(·
converter-se em movimento humano - diferentemente- das danças da chegou a desenvolver a sua forma humano-intelectual somente depois d.t
participation ·magique. Essa imagem ainda estava pr·esente no barroco, sim, linguagem sonora, pôde cultivar ali uma expressão à parte da linguag<·111
nele d<" modo <"specialmente instigante, ao pintar os seus anjos adejando em porque, por um lado, no sul a corporalização plástica é mais forte e ponpu·,
por outro lado, a cxprcssào de afelo - ao m<·nos ua dass<' lll<:dia, pa1;1 11;10 111ovi111(·11to de qualquer rnancira O<'OlT(' co11sta11tl'111<·111t· 110 -;011ho, 11,1 ~11.1
falar na camada baixa - uão foi escasseada, nem sofreu atrofia. "Tod:1 forma geralmente tão variada: no sonho notlnno e no do estado dl'sp('t to.
estimulação psíquica tem, por natureza, sua fisionomia e seu gt>sto ( quend(l/n No sonho noturno também se visualizam mais vultos, ocorrências, açô<'s do
vultwn el geslum}", diz, por essa razão, Cícero de modo bem sulino no seu que se ouvem vozes; e os acontecimentos falam por si. Tanto mais no sonho
livro sobre o orador. E, embora os grt>gos não cultivassem a pantomima acordado, passam mudas diante dos olhos séries inteiras de ações e desejos;
de modo especial, para eles, a excitação psíquica estava tão estreitamente pois, para a maioria dos honwns, a representação ótica exige menos esfon:o
ligada à expressão crnporal que Aiistóteles, sintomaticamente, tratou dos que a acústica. Imagens mudas sobem quase automaticamente do reino cria< 11)
afetos, nào tanto no seu escrito sobre a ahna, nias mais no escrito sobre a pelo estado de ânimo do sonho acordado, ao passo que a fala e a répli<'a
retórica. Pois, corno h~je ainda é o <'aso dos povos nwditerrâneos, eram os geralmente ainda tê-m ele ser inventadas. E a pantomima significanll'
afrtos que se expressavam, sim, csdan:<·iam prcfen~udalmentc na n1única proporciona um cspdho dessa uatnr<'za predominantemente ótica, quer ela
oratória. Nem mcsrno o barroco, por sua origem predominantemente se mostre nas águas do sono ou na füma(a do sonho acordado. Sim, a basC'
italiana, t·xtinguiu a linguagem gestual, mas, bem pdo contrário, exagerou- sem palavras que torna a pautornima falante estende-se para além do sonho
a; dessa forma, o barroco deu grande destaque <'SJWCÍalnwnte à pantomima. e adentra a lerTa firme da vida nem sempre loquaz. Inclusive o coito <:
Os italianos, mas também os franceses desenvolveram naquela época, 110 indoqüent<·, assim como a luta renhida, a acolhida solenc,juntamente com
que se refere a gestos e atitudes, todo 11m diamado di<'iom'irio da natureza; longos 1rcchos d<' todo cerimonial, e <'orno memória arqu('típica permanen·
sendo que Baltcux, na sua doutrina da arte, de n·sto tão r,Kionalista, ainda o seguinte: a proto-pantomirna, muito anterior ao mimo antigo e à pari('
enfatizou <JUC a linguagem de gestos também pod<TÍa ser compn·emlicla dck, era S<'lll palavi-as e mágica, como a clan~:a com a qual <'<>incidia. Sua
sem mais nem menos por povos bárbaros e até por animais. O <'<lllOll assim int<·11ção cm promover- as fúrças da natureza, iguahucnlc sem palavras: os
composto estava em interação com o da plasticidade hannca, <Jm' igualmente nav~jos dan~;am ao redor do fogo na dirt'ç,10 do pen:urso do sol, a imagem
se superou cm atitudes expressivas. Naquck tempo, também as estátuas do sol é levantada cm silêncio. fü1tre os astcn1s, por ocasião da festa ela
estavam como que atuando no palco, e o rními<'o que atuava 110 pako p1i1nav<.'ra, até mesrno a luta entn· os velhos e os novos demônios em
tirava vantagem da expressividade extremamente desenvolvida da C'sUílua representada por pantomirna; no Japão, sacerdotisas cxc<'Utavmu as danças
banoca. Todavia, justamente acpli se evidenciava o quanto qualqu<'r ele Kagura, imitando o surgimento do sol cm todos os seus detalhes
gestualidade mais compkxa, indusiv<' o "natun·I dictio1mairc de la natm·e" miticamcnte transmitidos. Em suma, não h,í culto <'lll que faltassejustamenl<'
d<' Battcux, pn".ssupõc a linguagem _já desenvolvida, embora a omita e a a paut'omirna; ela deveria dizer para a cornu11idad<", na língua do gesto, o
laconize suo modo. QU<·m eslá indignado por causa de uma it~justiça que que não podia ser expresso daquela maneira por meio de palavras. E
não pode mudar diiigc o olhar para o alto, clamando pelo mio vingador: justamente o sonho preservou esse jogo exprcssivo-sikntc, o curso e o decurso
esta e scmclhaulcs atitudes de modo algum <"ram <'ompreensívcis para povos de figuras [ Gestalten]; o sonho diurno, na sua rcpresentac;:ão movimentada
bárbaros, tampouco para animais; sim, eles continham ião poH<'O de de pro<'essos desejados, dá continuidade por si mesmo e conscic:·ntementt> a
"natureza" que praticamente m"io ocorrem fora do idioma harroco, do essa procissão muda. Foi por isso, portanto, que a pantomirna formada <'
catolicismo baIToco e do Zeus lançador de raios visualizado por este. refletida nunca foi totalmente esquecida; foi por isso que ela quis e pôde ser
Entretanto, a pautomima assim caractc1izada em lugar algum cm sunlo- expressivamente renovada, após ter chegado ao fundo do po~:o no século
mnda; ao contrá1io, ela c-ausava uma impressão mais loquaz do que qualquer XIX, quando a escala da expressão calada se reduzira a meia dúzia <k
inte1:jeição e também qualquer tirada. Ainda no século XVIJI uma convenções grosseiras ou comicamente exageradas. Nada incentivou mai.~
pantomima intitulada Medéia e]asão, com rico material sentimental e rico isso do que a curiosa forrna renovada da pantomima no filme; ela chegou
enredo, percorreu o cenário londrino e obteve fama européia. Nela, logo depois que os braços crnzados e os indicadores apüntados desapareceram
Terpsícore, a musa da dança, aliou-se cm toda parte a Polímnia, a musa da tela. Asta Nielsen, a primeira grande atriz de filmes, com sua habiliclad1·
melodiosa da mímica; pelo visto, a escala de expressão, especialmente da de, com mn piscar de olhos e um movimento dos ombros, expressar mais d<,
patética, era especialmente ampla. que cem poetas medíocres juntos, evitava que o silêncio se tornass(·
Desde então ela tem se reduzido notavelmente. Mas, ainda no ocaso, inexpressivo. A partir da dança expressionista igualmente se buscou urna
conservou-se um resto da relevância, ao menos da repercussão peculiar que renovação da pantomima, como no caso da importante alegoria rítmica,
a peça sem palavras provoca. Pois o silêncio compreensível na presença do produzida nos anos vinte pelo poeta Paul Claudel com o balé sueco; essa
pantomima leva o seguinte título, claramente do tipo sonho acordado: ( > pretendente de joelhos e sua palpitante adorada constituíam o rn,íxi111<, <1(,
ser humano e ~eu desejo. Lembrança e desejo rodopiam aí em torno elo cinematógrafo. Mas logo o próprio filme, quando razoavclm<·111,
homem, ele se levanta do sono, expressa na dança a sua própria vontade e desenvolvido, proporcionou à pantomima degenerada um subsídio not;'íwl.
a de todas as c1iaturas. Claudel explica isso assim: "Todos os animais, todos De modo geral, a feliz circunstância de que o filme tenha principiado co111( 1
os ruídos da sdva intenninável soltam-se e acodem para contemplá-lo ... cinema mudo e não sonoro revelou mna força mímica se1n igual, um tesorn <1
A'isim zanzam em longas noites os fch1is, torturados pela insônia; assim, até então desconhecido de g<'stos claríssimos. A-, fontes dessa força de forma
animais cativos atiram-se mais uma vez e mais outra contra as barras de alguma foram trnzidas à luz do dia, por mais indiscutível que seja o seu
ferro que não poderão quebrar". Aparece uma mulher, gira como cm efeito, se comparado com o da pantomima tradicional, e mesmo com o
êxtase cm torno do ser humano; este agarra a fímbria do seu véu, "mas ela gesto teatral no jogo cênico mudo. Algumas coisas no filme podem parecei
continua a girar com este em torno dele, desenrolando o véu do seu co1po, diretamente inconsiste1ll"cs, pois as pessoas que gcsliculam no filme movem-
até que de o envolve corno uma pupa de borboleta, e ela, por seu lado, se sem moldura, mas também sem uma distància delimitada de nós. /\
está quase nua" ( cf. Blass, Das We.w-n der newm Tm1zkumt, 1922, p. 77). câ.mcra filmaclora leva o olho con1 ela, alterna constantemente as
Blass dc·nominou essa seqüi':ncia alegórica dançada, lembrando Stcfan pcrspeclivas do espectador, que se tornam as dos atores e uão mais a do
George, corno um tapete da vida cm movimento, o <1m· {- típko da literatura; observador na platéia. Desde que Griffith pela primeira vez inseriu na
mas de pôde explicá-la tambhn a partir dela mesma, "como o movimento seqüê·nfia a tornada em closc-up das cabeças das pessoas cm cena, desde a
humano que rccon1eça inc·essanternentc, que não pode ser serenado, uliliza(.'ão dessa técnica aparece em cena também o trejeito facial como
erguendo-se inconcluso e em seu caráter própiio a despeito de todos os dor, alq~ria e esperança manifestas. O espectador experimenta, então, no
mascararncntos e realizações artificiais". Essas coisas foram de fato close-up ck uma enorme cabeça isolada, de forma muito mais visível do
produzidas por uma pantomima não insignificante e <JII<' se on1pava com o que na do ator falando no co1ajunto do palc:o, qual é a aparência do afeto
anseio lnnnano e as figuras do seu sonho acordado sem recorrer aos antigos que se lon1ou carne. Mas toda essa vivacidade propoffionada pela câmera
malc1iais mitológicos. O que será então quando rüio dani;.1111 o homem nada setia sem atores especiais, que - no filme· ainda mudo - aprimoraram
comum e seu desejo impessoal, e sim finalmente entra cm <·c·na a c·on<T<·t mk o gesto no refinamento concentrado ou na versatilidade. O ponto de partida
bem-direcionada. Isso ocorre no balé-pantomima A ,·hama dt> Paris, de parn isso foi exatamente a nnan(.'a, ou st:ja, a cleg,'inda especialmente·
Asafiev, rcfr1indo-sc ao ataque às Tulherias durante a comcmora(,'.ão de surpreendente na senli-arte "cinema" dos primeiros tempos. Como vimos,
uma fesla por Luís XVI. Do contraste entre o material compassado das Asta Nielscn foi a primeira a traduzir no gcslo a tcalralicladc <JUe tanto
danças da <'<fftc e o Ça ira da revolução, surge um cnn·<lo tolalmentc dislanciou o filme da pantomima trcnwndamentc degenerada e que se·
compreensível, quase um drama sem palavras. Tudo isso ton1a-sc possível tornara corriqueira. Foi essa teatralidade que pcnnitiu ampliar sem tomar
no momento cm que o sentido da fábula se comunica, por nwio de sinais grosseiro, colocar no foco visual os meios-tons ou c·oisas aparcutemcnle
mudos, da aura peculiarmcnte franca que envolve o rnostrnr e atuar sem colaterais, tornar essenciais as transiçôes rápidas 011 fugazes ( como alcançar
palavras. Saltare Jabulam: esta fama do mimo antigo nã.o submergiu nem uma colher, o jogo das sobrancelhas em caso ck amor sem perspectiva<'
se tornou inacessível à pantomima. Aliás, metade do espetáculo falado ainda assim por diante), sim, torná-las um eu:e !tomo. O filme está repleto do
se dá pelo gesto e só assim produz a exibição prnpt"iamentc dita, a exibição mais puro sobe-e-desce do movimento refletido pelo sonho ideal ou -·
no jogo c·ênico. 47 transcendendo a "fábrica de sonhos" cada vez mais vertiginosa - de
movimentos desejados e reais das tendências de época; mas, para que isso
O novo muno através da câmera fi.lmadora possa ser aproximado dos personagens e ela sua atuação no modo do filme,
O qu<." chama a atenção é que o gesto pôde tornar-se tão rico necessita-se de uma tonalidade micrologicamente modulada - não da
exatamente na fonna de filme. Pois neste, no início, ele cintilava de modo palavra, mas do gesto. Essa modulação é natural no palco cm 1·clação à
especialmente pobre e grosseiro, parecendo resumir-se ao hitsch. O palavra falada, e seus efeitos são admin'ivcis. "Dai o elmo para mim": esta
é a primeira frase de A virgem de Orlean~; se, cm vez do "para mim", for
enfatizado o "dai", mesmo se este sair levemente puxado, então todo o
.fl Bloch faz um jogo com a palavra composta "Schau-spiel": exibição-jogo, ou seja, o jogo ele teatro da corte do século XIX pára, e a timidamente possuída fica ali parada .
cena para ser exibido, o espetáculo. O bom filme relacionou essa mudança de ênfase ou visibilização com o
corpo e o rnovilnento, evidenternente, aprendendo a lição da nova da11<;a; pdo 1nicrofonc, ainda pcm1aneça sendo um sussurro, urn sussurro SlTtclo,
esta poderia, portanto, resolver o enigma de como o gesto chegou a ficai· denunciador, ainda bem próximo do gesto e do sinal. Em seu co1~ju1110,
tão 1ico justamente na forma de filme. Exemplos para a micrologia do portanto, ao ser capaz de acolher, mediante a fotop-afia e o microfone, toda
eventual, que na verdade não é eventual, podem ser dados aos milhares; a realidade da experiência num mimo seqüencial, o filme está entre as rnai.~
todo bom filme ele suspense já é carregado com instâncias mímicas tanto intensas imagens espelhadas, lambém distorcidas, ademais concentradas,
01iundas do subconscienk quanto da intuição, o que vale tanto mais - postas à disposição do desc:jo da plenitude de vida como compensaçào e·
completamente sem pau-óptico nem imitações - para o filme de crítica ilusão, mas lambém como informação rica em imagens. Hollywood
social e o filme revolucionáiio. Sim, o singular novo mimo não se estendeu transformou-se em ü-aude S<'lll igual; em contraposição, o filme realista, nas
apenas a seres humanos, mas até às coisas, às naturalmente n1udas, mas, suas prodlH;Ões mai.s bem-sucedidas e anticapitalistas, não mais rnpitalistas,
sempn- que o diretor· é capaz, às artificialmente loquazes. Cabe mencionar pode perfeitamente representar o mimo dos dias c1ue modificam o mundo,
aqui as panelas que vibram junto com o navio t·m O Comaçado Potemkin, sendo um espelho crítico, tipiiicaclor e esperançoso. O aspecto pantomímin,
de Eis<'nstcin, ou, neste mesmo, as bolas grandes, rudes, desgasladas, do filnw é, em última anális<', o da soc·icdadc, tanto pelas diferentes maneira.~
apresentadas isoladamcnlc sobre a escada cm Odcssa. O filme Dez dias qu" com <Jll<' se c-xpn'ssa, quanto sobrc1udo pelos conteúdos intimidadores ou
abalaram o m1wdo não mostra os dcfr11son·s nuubalcantes no palácio ele <·stirnuladores, promctc·dor<'s ((li<' são enfalizados.
inverno ele Süo Pc·l<"rsburgo; de mostra um enorme crndclahn> n~jos cristais
trerncrn levemente e depois cada vez mais intcnsanwnte - por causa dos A fábriw, de .wm.lws no M'ntido wrr01njJido r1 r,o .wntido lran.1fmrente
impactos, é c-vidcnt<', com <·xcTsso de sentido, como é tanto mais evidente. Quan1o mais cinzculo o cotidiano, tanto mais n>isas coloridas se lêem.
Mas também essa pautomima das c·oisas do filme só foi aprendida com a Porém, 11111 livro exig<' licar sentado na sala; u;'io se pod<' sair com ek.
pantomima das pessoas do filme; Iodas as artes da câmera Jilmadora não Ackmais, a vida dos cksc:jos quando lida só se tonta visualizável na medida
te-riam nada do gênero para mostrar se antes disso não tivesse havido a c·rn que- o leitor j,1 a conhece do sc-11 mundo, não importando como o
couliibui<:ão do piscar· de olhos de A,;;ta Nidsen 011 11m aperto de mão t·m inlerprctc, Cada um tem o arnor d<'ntro de- si, mas 11111 nobn· sarau já não
dose-up. Sobretudo os objetos do século XIX c·xpressam 110 lilme a sua está ao alcance d<' todos, logo, não pode ser imaginado por lodos. Muito
coufusa risibilidade ou seu misteiioso jogo de ocultamento; é caso de C'lwfJéu mais enganador do que o palco, o filnw apres<'nta ocmTê:ncias desse gênero,
de fJal!w ( 1927), obra-prima de René Clair; é o caso uo filme sonoro Ga.1lif{ht sendo a cârncrn ambulante o olho observador do pníprio espectador-
( 194g). E o filme sonoro, como fonm, próp1ia, apenas <·m sua primeinl fase, nmvidado. A maioria das pessoas m·cc·ssila tanto mais da tela para ver o
quando fotografava substitutivos para o t·catro, dt·u a entender que a ckscTto t· as montanhas, Monte Carlo <' o Tibct<', o cassino por dentro. No
pau-iomima, renovada pdo filme mudo, devesse rnon-er pda segunda vez. sé-culo XIX, havia parn esse tipo de visã.o pa11orâmica estabelecimentos
Contudo, também o filme sonoro é pantomímico sempre <ptc o di,ílogo com aparelhos cítfros apropriados cp1c já eram bastante concorridos.
cala; até mesmo há um plus espedal do gênero pantornímico que s<'í se obtém I [avia os chamados panoramas imperiais: o visitante assentava-se diant<'
através do filme sonoro. Pois, pelo fato de serem gravadas também de lentes estcreoscc::ipicas, como as usadas na <>p<·ra, aparafusadas dentro
an1sti<'anwnte, as coisas adquirem adicionalmente toda uma camada própria de uma anna(ão rotunda, e por dctnis do vidro passavam diante dele
de mímka. Aliás, pode-se afinuar que o filme sonoro conseguiu produzir o fotos coloridas de todos os lugares do mundo de modo intermitente,
paradoxo de urna pantornima, por assim dizer, audível, ou S<';ja, uma após o toque de uma campainha. l lavia principalmente os grandes
pantornima associada a 111ídos. O microfone ton1a audível, por meio da tela, panoramas circulares; o primeiro deles foi inaugurado em 1883, em
uma tesoura cortando o tecido de linho, de algodão, de seda, e o ruído bem Rerlim, representando a batalha de St·dan, ou melhor: ele conduzia o
diferenciado que resulta disso; o tamborilar dos pingos de chuva no vidro da observador diretamente para dentro dela, como se ele fosse urna testemunha
janela, a queda de uma colher de prata sobre o piso de pech-a, móveis ocular. Figuras de cera, solo autêntico, canhões de verdade, horizonte
rangendo acessam um mundo micrológico de percepção e expressão. O panorâmico pintado permitiam que o visitante se fizesse como que presente
cenário como um todo não só se torna móvel como nos filmes mudos, mas mun certo momento histórico; a produção era digna do seu criador, o
transfonna-se mun cenário sonoro, e o som emitido se transmuta em gesto pintor da corte e de uniformes Anton von Werner. Naquela época, no
de coisas. Torna-se possível ouvir coisas a que até então não se prestara entanto, houve controvérsia sobre se tal composição em solo plano seria
atenção; até o mais leve sussurro pode ser ouvido,justamente de fomia que, uma arte, quase da mesma maneira como se discutiu essa questão nos dias
atuais a respeito do cinema; contudo, o "panorâmi<·o" foi disn1tído •·0111 o d(' sonhos, unia cfünera dos sonhos <:riticarnente incitantes, qt1(' S(' s11pc1,1111
mesmo semblante muito estético com que hoje se discute o "fílmico". Os no plano pau-humanista, sem dúvida teria, tinha e rem outras possibifüLu lc.~
desprezadores chamavam a produção de Anton von Werner de - e isto em meio à própria realidade.
demasiadamente "naturalista"; os admiradores, por outro lado, apontavam Pois continua sendo significativo o que de justo e correto
para uma arte mista muito semelhante no barroco, a saber, para os presépios constantemente vem à tona no filnw, isso no meio de tantos fracassos, ck
natalinos barrocos, para as estaçôcs do caminho para o Calvário. O tanto ópio, de vendas tão rápidas, de tão pouco óc-io. As razões técnicas
elemento moderno no ano de 188;3, na pantomima de Sedan em cera, que salvam o filme já foram mencionadas: nenhuma distância, nenhum
armas e óleo, nesse substitutivo para o não-ter-estado-presente, ao menos cosn1orarna, mas o acompanhamento de cada lance pelo observador; a
foi um triunfo da técnica que ainda não era do conhecimento dos que pantomima de música de câmara não st· perdeu totalmente nem na
estiveram presentes em 1870; pois para as noites o guia prometia "iluminação produção para as massas, piincipalmcnte cm bons filmes; aflora o mundo,
détric;a <·om luz in<·andcsccntc", bem como uma "dc<·tro-fonte de luz cm jrn;tamente na proximidade, no cventm1l, no detalhe pantomímico.Acresn·-
forma de an:o" (c[ Stcrnberger, Panorwna, 19!38, p. 21). O filme não precisa s<· a deslocahilidade do detalhe e até de agrupamentos já fixados,
mais disso; de próprio nmstitui muito bem urna nova tfcnica,juntamente possibilitada pela técnica do filme <· tão semelhante ao sonho acordado.
com as genuínas qucstôes artísticas que lffolam <k uma nova t{-nüca, de Agora, ao lado ela boa qualidade t<'rnica e formal, no que st· refere ao
um novo matciial; e sua pertcll(;a à arte cst,l decidida por sua p<-rl<·1u,:a ,l lema do filme, a sabe,·, ,"is m.até,ias que lhe srin e1jJedf'i.cas, a época em qut'
autêntica pantornima. Apesa1·disso, tamhhn o ci1wrna,justamenlc de, não se cku o desenvolvimento do filme teve uma influência não só
deixou ele sofrer· as conscc1iiê1u·ias de ter se desenvolvido na era dos capitahsticarnente devastadora, mas no s<·ntido estrito, ao mesmo tempo,
substitutivos para a vida, 11mna sodcdade que necessita distrair os seus pode-se dizer, ironicamente utilizável. Pois como {poca da decadência
empregados ou iludir com "ekctro-fontcs" ideológicas. Lenin ck11omino11 burguesa, ela é também uma {-poc-a ela snpctfí<:ie trincada, da desagregação
o Jilmc como um dos mais importantes gêneros da arte, e na lJnii'ío Sovi{-tica dos grupos e das afinidades anteiiorcs; da é, conseqiientemcnlc, como na
de se desenvolveu, no mínimo, c·omo uni <los instnuneutos mais importantes pintura, tamb{-m no filme, a época de uma possível nova montagt·rn não só
de fonmu;ão política das massas. Em Hollywood, como se· sabe, ele ('Stá tií.o t·m tcnnos su~jetivos, mas também ol~jetivos. Portanto, ao tornar-se
distante desse tipo ck atividade de esclarecimento que quase supera a ffm•za ol~jctivamente possível, esta de fonna alguma(,, nccessariarnenle arbitrária
e a falsidade das histórias de magazine; a América do Not"te transformou o e cldinitivamente irrealista (cm vista dos processos ol~jctivos); ela está, antes,
Iilme 110 mais desonrado gênero de arte. O cinema de l lollywoocl mi.o em condições de corresponder a modifica<;ôes na própria relação exterior
fontcn: só o vdho kif..~d,,: os romances do beijo chupado, o t·ne,vante que t•ntJ·e frnômeno e essência. Abre-se aí o campo para novas indicações e
não faz dik.-cnça entre entusiasmo e catástrofe, o lwjJfJY erul clc11tro ele um instâncias concretas, o campo ele sepanl(Ôes reais e· reveladas entre objetos
nnuulo compktamente inalterado; ele também se vale desse lúl.11:h sem que até agora pareciam bem próximos, liga(,io n:al e· revelada entre objetos,
exceção para a idiotização ideológica e a instigação fasc-ista. E at{- a crítica na ordem de referência burguesa, aparc-nl<'m<·ntc- totalmente distantes;
social, que antes ocorria aqui e ali em alguns filmes mffte-amc1icanos: correspondentemente, o bom filme sempre apli<:ou também a enredos essa
naquela época, da já era, frente ao capitalismo, pouco mais que o deslocabilidade que se tornou possível de- uma forma tão realista. Nessa
refinamento de uma apologia crítica; desde a fascistização da /,iberty, da linha, o diretor soviético Pudovkin ( Tempestade ,1obre a Ásia, 1928) chegou a
desapare<·cu inteiramente, seus espinhos voltando-se apenas ainda contra afirmar: "O filme reúne os elementos do real, para mostrar, com o auxílio
a verdade. Nos anos vinte, Ilya Ehrenburg denominou J Iollywood de "fübiica deles, uma outra realidade; as propon;ões de espa\'.O e tempo, que estão
de sonhos" e refe1iu--se dessa maneira aos filmes de mera distra{·,i.o, com definidas para o palco, estão totalmente alteradas para o filme". A magia
suas luzes corruptas. Entrementes, porém, a fábrica de sonhos foi se associa à transparência fotografável que o filme soviétic·o mostrou várias
transfonnada numa fábrica de veneno, com o propósito de ministrar, por vezes, históiica e modernamente, e que diz que, na sociedade atual, uma
meio dela, não mais só utopias de fuga ("there is a golclmine in tbe sky far ontra sociedade, sim, um outro mundo está tanto impedido quanto em
away"), mas também propaganda da guarda branca. O panorama do cinema movimento. Isto é o que de justo e ele melhor resulta do filme, facilitado
mostra - na fantasia guiada ao gosto do fascismo - a aurora como noite e não por último pela fonna totalmente nova em que o "transitório" pode
Moloquc como amigo das nianças, amigo do povo. A tal ponto decaiu o ser mostrado aqui. A arte da ilusão fílmica, embora não seja nem pintura
cinema capitalista, devotado à técnica da guerra ofensiva. Uma boa fábiica nem arte verbal, nem n1<·sn10 em seus rnelhores exemplares, ainda assim
oferece urna imagem que permite movimento e lnna 11arrati.,a ciue, S<' for o dele, isto é, na melhor das hipóteses, por meio do que ek cm cada ( a.~o
caso, exige a parada descritiva de um c:lo!>e-up. Nem por isso o cinema ass1111w está representando. Sobretudo, porém, o espectador não quer ver o que o
uma fonna niista, como, em campos tão mais elevados, o Laokoon, de ator está representando mimicamente, mas qnal é a concepção sensível ("
Lessing, definiu a pinturn narrativa, a poesia descritiva. Em campos mais colorida, movimentada pela fala qu<' de e todo o grupo dos aton·s
elevados, a pintura narnttiva, a poesia descritiva podem ser de mau gosto; apresentam de algo. Ao ser atraído para dentro da vida do palco, o
Lessing at1ibui à pintura unicamente atos por meio do corpo, à poesia espectador de modo algmn é simplesmente 1·etira<lo do cotidiano precedente,
unicamente corpo por meio de atos. A técnica do filme, em contrnpartida, como ocon-e com o anügo da mera distra(ão. Isto não oc01Te nen1 mesn10
mostra atos por meio de COl])()S bem diferentes daqucks da pintura, ou quando o palco serve, <ligamos, um cardápio leve, no caso deste diferenciar-
st;ja, por meio de corvos cm movimento, não parados; devido a isso, os se do kitsch, que nem mesmo distrai, mas apenas idiotiza. A cortina s<·
limites cntn: fonna espacial descritiva e forma temporal narrativa caem abn·, falta a quarta pan·de, no lugar dela est,Í a moldura aberta do palco e
pm· tcr-ra. Uma .~oi-di,!,ant pintura - pois o filme, tendo a capacidade de atrás dessa linha de exibi(ão deve ocmn:r- algo significativo, do tipo que
n~prescntar todo e <p1alcp1<·r ot~jcto, clifrn:ntcnwnte da decoração do teatn>, agrade e <JUC entretenha. lksapar<.'ce da vida vivida o aperto cm que tantas
ao me11os tornou-se tão amplo como a pintura, e a imagem continua sendo vezes foi parar; assomam pessoas notáveis e decididas, mna out1·a arena,
o primordial também no lilmc sonoro·- urna soi-disanl pintura, portauto, destinos intensos. O c·spcc·tado1· cIJcontra-sc numa C'spera tanto observadora
tornou-se, ela p1·óp1ia, urna seqüência de atos, uma soi-disar,t poesia tornou- quanto co-partidpativa pelas coisas que estão para succdt·r.
se, ela JffÓpria, um lado-a-lado de corpos: e o /,aolwondo filme, em contraste::
com o da estátua, grita. Ele pode gritar sem a careta pctrificada, porque A verificaç<io do l'xemplo
mesmo na parada do clo.1·e-uf1 o fihue mostra essa pa1·.-ula ap<·nas como Ele, porém, não fica apenas à cspen1; os atores <'mpolgantes
passageira, não como petrifirada. Todo pa110 ele limdo volta-se aí em direção estimulam a fazer mais do que isto. Eles exigem elo csp<'ctador que se
ao p1imeir·o plano, e o ato ou a paisagem elo desejo, tão csscncial para o decida, que se decida no mínimo sobre se a exibição c·omo tal está do seu
filme, desce ao téITeo, ainda que apenas como fotografia. agrado. E o que está sendo oferecido é- uma p<·ça ol!jctiva, de modo que as
palmas ou os assobios, pelos quais se· maniksta a decisão, devem estender-
30. O teatro visto como instituição paradigmática e a decisão nele tomada se à peça, que é o que proporciona ao ator o seu papel. Que dizer, então,
<1uando o espectador, não sendo uma adolescente ou 11m fü, capta o mímico
Fle.1já t!str.io .mntados, sobranrnlhas erp;uidas, unicamente como veículo do personagem dram,iti<-o no interior do enredo?
rnuilo tranqüilos, e gostariam de marrwilhar-se. O c.ksagrado que então se expressa, o aplauso que é rendido, às vezes
O Diretor, cm Fausto ainda durante a cena em andamento: eks sào lwm diferentes do
posicionarnento silencioso ou até o mais l<'mpcramental frente à literatura
A cortina se abre lida. Pois o espectador habitualmente é levado a tomar posição só quando
Dt"sde tempos antigos juntam-se nesse espaço pessoas especialmente realmente vê no palco o que deseja ver ou també-m o qu<' ele não deseja
ansiosas. Os impulsos que as levaram até a bilheteria e para dentro do ver; esse posicionamento transcende considernvclrneutc a decisão em termos
espac;·o sem janelas são variados. Uma parte está entediada e quer apenas de juízo de gosto. Não por último, é importante para isso também que, em
pagar por uma noitada de distração bem ou mal conduzida. Urna parte todo teatro, encontra-se em regra uma reunião ele votantes, ao passo que
melhor, numericarnente crescente na atualidade, ativa cru seu trabalho, diante do livro geralmente se encontra um só leitor. De urna maneira muito
não vai com a intenção de matar o tempo, mas de preenchê-lo. Também intt-ressante, Brecht torna essa decisão o ponto alto, e justamente por
estes visitantes busc·am ent1·etenimento na exibição, ou seja, querem ser distanciar-se bastante do mero juízo "culinário" quanto ao bom gosto. Mas
libertados e tornar-se livr·es, mas não de qualquer jeito ou meramente livres também pelo fato de avaliar as pessoas, os encontros, os atos representados
de algo, mas livres para algo. Porém, cm todos eles, o que impele é o que não só "como eles são, mas também como pode1iam ser"; pelo fato de que
se pode chamar de necessidade mímica. Essa necessidade é mais difundida a montagem teatralizada de uma pessoa "não ocorre a partir dela, mas em
que a poética; ela está relacionada positivamente com o prazer, não só direção a ela". Com esse propósito, Brecht destaca a decisão de modo tão
complacente ou hipónita, mas também tC:'ntador de se transfonnar. Ela aguçado e refletido, tanto na direção artística quanto na condução da trama,
compartilha esse prazer com o próprio ator, busca satisfazê-lo por meio que ela de qualquer modo deverá estender-se para além da noitada teatral.
Mais precisamente, de modo ativado-instruído, para dentn) ck uma vicia dado pelo~ atore~ versados no efeito do estranhan1e1110 <; .i~s11n foi 11111Lido
melhor de nianejar, ou seja, realmente para dentro das coisas, que deverà,o numa peça didática de Brecht ( tendo o assombro como prindpio da H'lkx.i< •):
Jazer parte do significado mais ousado da palavra.
Isso ocorre, primeiro, pelo fato de o espectador entrar no jogo de Vistes o habitual, o que continuamente ocorre.
cena não apenas empaticamente. Ele permanece com os sentidos em alerta Rogarno-vos, porérn:
e se insen· na trama e sem; atores, ao n1es1no te1npo que igualmente torna Estranhai o que não parece estranho!
uma posic;:ão frente a da. Concta é, assim, unicamente "a postura do que Considerai inexplicável o que é comum!
observa fumando" (observação sobre A ópera dos três vinténs), não a do to habitual quc- dcvt• causar-vos admiração.
homem fascinado que descarrega efusivamente seus sentimentos, cm vez Considerai a regra como um abuso
de ter idéias t' fix;í-las de modo divertido, alegre. Deve haver o aspecto E ondt· o abuso rcnmhecC'stes
divertido no jogo teatral, mais do que nunca; aqui a sisudez está mais Buscai corl'igi-lo!
deslocada do que em qualquer outra pari<', sim, "o tcatn> tem de pockr Epílogo a J)fr Ausnahme und die Rf'gl'I
continuar sendo algo supérfluo" (Bn·cht, Kleines Orgarum .Ji'i-r da., Thealer; 1A f'.xceção e a regra 1
~~),contudo, a apn.·ciac;ão cl<>sfrutada não deverá del'l'ctcr o cspcc·tador,
mas tormi-lo iustn1ído e ativo. Em ~q~undo, o próprio ator ll\lUGl se fundirá E para difi.Tcnciar da literatura sem couseqiiê·ncias, o cstranhamcn I e>
completameute com a figura e a ação cptc· ck iinita. "Ele p<Tmancce sempre faz aí uma conclamação cspecialment<' v<·crnent<' parn a reflexão c·o111
aquele que mostra, aquele que não está prop1iamente cnvolviclo"; dC' está consc·qüi'-ncias autcc-ipadoras. Já que o que h,í muito tempo não 1'01
ao lado da figura da peça, até mesmo como seu crítico ou C'logiador, e· SC'llS rnoclific·ado facilmente pode parecer imutável, o c·strauhanwnto da vid.i
gcslos não são os do afeto imediato, mas realçam de fónua mcdiata os rdratada no teatro ocmn·, portanto, cm 1íltima análise, para "tirar cios
afclos de um outro. Por meio desse jogo teatral mais épico que dinâmico, pn><Tssos socialnwute iuílm·rn·iáw·is o selo do familiar que· atualment<' m,
a exibição - libertada de todo exibicionismo das almas dos alon:s 011 do prntegl' de qualquer i11tc·1vc1)(:ão" (KleiMs Organou .Jiir da.\ Thnller; § 1'.~)-
chamado sangue do teatro - deverá ganhar mais e rnfo llH'llOS vitaliclacle, Com isso se chega, em tnrei-rn e 1íltimo, à intt·11.ção principal dessa dire<)c,
calor, insistência. Sendo que Brecht enfatiza, exatanwnt<· em vista do cfrito arl ística, a saber, o teatro como 11erifirarâo do exnn,jJlo. As atitudes e passo-;
<'XCffido sohre o público pelo estilo mímico épico, o scguint<:: "Embora deverão n~ceber sua forma, ser ludicarncnte expc1irnc·11tados, para ve1ific-a1
isso às vt·zes tenha sido alegado, não é verdade que o teatro épico, que, se servt·m ou não para a modificação ela vida. Podc-sC' cliz<T, assim, qu(' 1,
afüís - corno igualmente às vezes foi alegado-, não é simplc-snwnte tt·atro teatro de Brecht visa ser um tipo de tentativas vari;,veis <k pn)dução cio
não clrarmítico, faz ressoar o grito de guerra 'aqui a razão - ali a emoção'. comportamento c01reto, 011, o que significa a mesma coisa: sennu laboratóri,,
Ele ele modo algum renuncia às emoçôes. Muito menos ao sentimento de da teoria-práxis correta no pnp1eno, na fonna do jogo, por assim dizer, 110
justi<;a, ao impulso para a liberdade e à ira justificada: ele n·mmcia tão caso do palco, preparando cxpelimcntalnwnt<' o caso real. Como experimt·11h •
pouc·o a eles cpt<" nem mesmo confia que eles existam, mas pronU'a re1i:n·çá- in re e ainda assim ante rem, o que qner dizer, sem as ronscqür:ncias n·:1is.
los ou produzi-los. Para ele, a 'postura crítica', a que procura levar o seu falhas de urna concepção não testada (cL a pec:a did::llica Dú, Ma.1.malun,1' 1, 1
piíblic·o, nem tem corno ser suficientemente entusiástica" (Brecht, medida]), e com o aspecto pedagógico de apresentar dramaticamente C'ssa~
Thealerarbeit, 19:>2, p. 254). Porém, à objetivação do ator corresponde o conseqüências falhas. Também possíveis alternativas são assim apresentadas,
artifício artístico da enfatização objetiva de uma cena como um todo, <JUe sendo o final de cada uma delas exposto no palco (d'. as pcc;:as didátic-:1~
Brccht chama de estranluunento. Isto significa: "Certas passagens da peça, conlrastantes Der Jasager [ O que sempn- diz "sim"], Der Númager [ O 1111,·
sendo cenas fechadas c·m si mesmas, deveriam ser destacadas (tornadas sempre diz "não'']), Uma linha similar encontra-se não por ültimo no dra111.1
estranhas) do coti<liano, do óbvio, do esperado - por meio de inscric;ões, maduro de Brecht acerca de Galileu, no qual JX>de ter sido expe1imentacla ,1
cená1ios com ruídos e música, e pela maneira de representar dos atores" questão se a retratação de Galileu foi uma atitude correta, em vista da 0111.1
(Brecht, Stücke W, ] 957, p. 221). O efeito almejado é que ocorra admiração, principal ainda a ser escrita. Com tudo isso, busca-se "dramatidclaclc-
ou s~ja, a cmiosidade científica, o assombro filosófico, nas quais pára a parabólica", em exemplos e decisões exagerados em sua formulação, e· _-,..,
aceitação irrefletida de manifestações, inclusive manifestações teatrais, e vezes também simplifü·ados. E o teatro brechtiano desfez-se, no q1ll'
surge o questionamento, a atitude de quem quer conhecer. O con~elho concerne à informação a ser prestada, cada vez mais, com sabedoria cul.i
vez maior, da abstração. Em lugar algmn se enconl ra a simplifica(Úo 11aq 11d.1 Schiller. Exatamente o autor de peças didáticas e óperas ,·s(·obrc-s, -;nulo
forma verdadeiramente ten-ível que se chama esquematismo, o cpial com un1 rnaterialista simpático, n:jeita um leatro apenas moralizante c q11.-.
cinco ou seis fórmulas ou finalizações com "Viva!" já aprendeu de cor a desse n1odo, nen1 seria teatro: "De forma alguma se pode1ia colocá-lo 1111111
área a que tem ac:esso; é por isso que ele odeia o brechtiano. O teatro de pata1nar superior, fazendo dele, por ext·mplo, lllll mercado da moral; nc-slt·
Brccht busca uma forma de ai,·ão que contenha e leve a uma coerência da caso, ele teria de p1·cnw<-r-sc justamente de não ser rebaixado, o <jlll'
ação cxdusivamentc co1nnnista, ou st;ja, a s<·r experimentada a cada vez de ocorrc1ia imedi;itamcntc, se não tornasse o aspcclo moral prazenteiro,
maneira nova, com o prop<>silo de levar à produção do que realmente é mais p1-ccisan1c111e, prazenteiro para os sentidos - o que certanw1111·
útil e de sua racionalidade. representaria um ganho para o aspcc·to moral" (Kleine., Organon, ~ '.{).
Contudo, C'ssa rcj<'h:ão da resenha e elos edilot-iais, do lútsdt "de propagamb
Mais .10b1r, a ·onifii:ação do exemj,lo a .,er proi:urado visual" no palco não impede o ,mtigo pn>grama de Brecht: o progra.1na do
Sem chívida {- incomum que peças teatrais ensinem ao aprenderem, teatro formador ck consci<'ncia, iustr11to1· da tomada de dt'cisão. Ess<'
elas pr<>prias; é incomum que as pessoas com suas alua<,'.Ôt·s sc:jam programa prd<.·wk "aproxim;u-tanlo quanto possível o lealro ck seus locai.~
questionadas e exarni11adas, e ainda por cima sc:jam viradas do avesso. de e11sino e puhlicac::"io". O tealn>, assim compn-c·rnlido, {- local d<'
Apesar disso, uma forma ahcrta j,í oc·o,n· em todos os ck-unas c·m quc uma <'1tln'leui11w11to capacitado, n~ja inll11t11cia pass,1 pela arle verbal, não pelos
pessoa, uma situação são mostt·adas exatamente na sua c·ontraclição <'diloriais <' pelo conformismo do h11rra.J11slamenl<' este tíltimo nem ter-ia
pcnnancnt,·. Apenas onde um personagem principal - como caráter ou 1H·<·essidade de uma vcrificu.Jio co1H base 110 exemplo, ponp1<· ele, ck
hm(ão social- atua de modo unilinear e inevitável não há tais variabilidades.
qualquer modo, j,í sah<' 111do e· porque 11·ad11z a palavra "exemplo" corno
O ciúm<· de Otelo não vacila e não pode ser pensado ele crnlro modo cm
"modelo ck conduta". 'l'C'm-sc <·m mc·11tC', C'Ill V<'Z disso, uma i11s1;1nda moral
todas as suas conseqüências e situações tuna após a outra; Iam pouco vacilam
_junlo com a intcm:,i.o de tornar feliz, sendo que a profundidade dos
a "piedade" matriarcalmente herdada e mantida de Antígona, a "razão de
esdan·<·imcntos e impulsos ,·ostuma ser dirclam<·ntc proporcional ,'i
Estado" de Creontc, que se tornou socialmente dominante. Nestes casos,
proh111didadc do desfrule prazeroso. N:10 <: sem L1z,10 que se poderia
os conflitos são inevitáveis, o expcrirnculo de um poder-ser-diferente, de
apontar neste ponto justamc11te para a ma11il"<·s1,u.;ão sensualmeule mais
um poder-agir-diferente, de um poclcr-a,·aba1·-<lilê:-rcnlc s<.·t-ia grot<.·sco atf-
prazerosa do teatro, a da ópera: ohras-p1·irnas progn·ssislas, nimo A .flauta
cm meras indicações de uma intcrpn·ta(;ão ou de sua dircçiío artísti<.·a. Mas
111úgim e A1 boda~ de F{[;aro, proporcionam, co1u-0111ila11tcmente ao mais
não há, nun1a extensa série de dramas, nat11n·zas polivalentes t' aquelas
nobre desfrute, o ruais ativador idC'al lnunano. E assim como os meios,
que tf:m múltiplos possíwis caminhos diante ck si? Não ki t;uubém llamkt
lamhém o conteúdo da instrui;ão transmitida pelo l('alro progressista
ou, de natureza alternativa Ião mt·no,·, Ião mais insignilinrnlc, o monólogo
de Fiesco que oscila entre a repúblic-a <· a monarquia? Não tem havido (medic-ina e instrução) é um conteúdo alegre; corno tal, nojogo dC' cena,
desde sempre dramas com v:írias versões possívt'is, v.írias avalia<;ôcs do seu de causa uma impressão de um contclÍdo a ser produzido rc11hidamente
decurso, do seu final? - Str,lla, de Goethe, Tas.10 cm n·lação ao p1-irnein> ou que aparenta ter sido produzido. "Assim, a escolha do ponto de vista é
Ta.wJ? Goct hc deu a Stella em 1776 um final reconciliador, cm 180!, mn um outro ponto principal da arte teatral, e de tem de ser escolhido fora do
linal trágico; Tas.10 apn-sculava na p1irneira versão o prosador Antônio lcatro. Assiin como a transfonnação da nattn-eza, lamhém a transfonnação
negado, o poeta entusiasta afirmado; na segunda versão, ocorre da sociedade é um ato de liberta(."ão, e o que o teatro da em cicnlífica
praticamente o inverso. Todavia, não houve até agora uma dramatm·gia - deveria comunicar são as alegrias da liberla(,fo" (Klei11e.1 01gano11, ~ 56).
e muito menos a de grande expressão - com urna relação "teoria-práxis" t o bastante sobre o teatro, quanto à sua m,mi/'csta~·ão como casa dos atos
própria, ou at<: o drama sendo um percurso didático, corrigindo-se decisivos sobre os quais e entre os quais se tomam dccisôcs. Assim que se
constantemente (com inte1Tup(;Ões do tipo tableau). Entretanto, mesmo os enn·na a verificação com base no exc1nplo, o alvo<' claramente visível, rnas
drnrnas imutáveis: se não foram ve1ificações com base no exemplo a ser o palco como um palco experimental (palco da antcvisão) man<:ja os
procurado, foram, sim, exemplo de um caminho levado até o fim, um caminho procedimentos de tal modo que ati1~jarn o alvo.
bom ou mau, a ser buscado ou a ser evitado, 1eudo por divisa recomendada:
exemjJla docent. Isso ocon-e sobretudo onde o palco, corri ou se1n a insistência A leitura, a mÍ-lnÍl'a falada e a enreru,1,çüo
didática, foi dotado de uma instiluição moral. Sim, dá-se o dado inesperado Foi afinnado acima que todas as boas fW(.'as são melhores de serem
de que Brecht quer ser bem menos moral-pedagógico do que, por exemplo, vistas do que lidas. Ponpte diante do palco as decisões podem ser tomadas
bc1n nwnos pelo gosto particular e bem 1nais pelo co11se11so «-<111111111 do E a frase é verdadeira, o iluminador não alcança os versos ponplC' a
que diante do livro. Porém, é possível imaginar também que, em c1sos charneca vespertina do elisabetano foi levada poeticamente até a sua css<"·11< i:1
lastimáveis, a peça encenada pareceria tão boa ou até melhor lida qu<" mais verdadeira, mas isto no interior do teatro, llo interior das cenas de Un
encenada. A saber, quando os atores se colocam na frente do seu papel, Lear e Macbeth, par-a as <piais Shakespeare escreveu todos esses versos.
quando o que se vê e ouve é o "intiigante" Mülkr em vez de lago. A coisa Atingir, sobrepttjar, ab1ir a charneca vespertina rnediaul e a grande arte ve, 1>:11
torna-st· ainda mais desagrachível quando uma estrela se vale de obras da é algo que, sem dt1vida, ocon:c com o poder-chave que essa arte tem sohr<' a
arte verbal como pretexto para apresentar urna vez mais a sua cmporalidade natureza (d'. p. 212), mas o teatro mostrajns1amentc a charneca poétil'a
l,io particular e seu jeito tão especial de impostar a voz. Acresce-se, o que como o solo sobre o qual enfim a sua própria pn;a é eru:enada. Não po1
ocorre lambhn <·m mímeros menos fanfan-ônicas, que, p<ff causa do último, um teatro assim perfeito é· o que chega a realizar a pausa significativ.i
d1amado temperamento ou ainda por folia ele 1C'mpo, geralmente fala-se que 110 drama se situa li.lo apenas entre as linhas, mas tarnbún entre as
demasiado rápido no palco, sobretudo quando é pr<"ciso dar conta de versos palavras, frases e entn· as entradas t·m cena. Escutar, bater à porta, prestar
ou de períodos arlisticamenle muito dahorndos. Quanta coisa valiosa se atew;ão a chamados ao longe, algo de cxpcctan1c reside, por-tanto, em tais
perde nessa cksfiadura, co1no é ruirn quando se· transforma numa corrida pa11sas,j1m1am<·nte t:om o cnmprimenlo 011 o desdobramento de costum<'s
importantes. Afüís, ainda o maravilhoso toqu<' de trornl)('ta <·m Otelo, ck
de obstáculos aquilo que, numa leitura detida, e1~1 mna paisagem que se
Verdi, anunciando a kga~:ão do clogc, prov6n, aquém ou al6n da ópera, da
descortinava cada vez mais rica em detalhes. O teatro, 110 entanto, l<'rn de
forma imanente .-1 pausa shakcspea,·iana. Prn·tanlo, o teatro, cm contras!<'
compr-ovar·-se de todas as man<·in1s c·omo um algo a mais <·rn rcla~·;io ii
com o seu livro, é a n·alidade viwncial sensível em que o inaudito é ouvido
leitura, indiferentemente de quanto o ouvido<' o olho_j;í cksfrntaram com
publicamente, cm que o <JII<' ('Sl,Í distante da realidade vivencial torna-se
a leitura. E para que n·alruenl<' possajustifü:ar-se, tem ele ser d<' tal rnatl<'ira
plasticameulc público, <'Ili que o poc·t i<·,unc111e condensado, o nrnduído por
um algo a mais que mesmo o drnma captado da mdhor forma possível
inteiro ck fato entra em <Tna como se fosse cm caril<' e osso. E toda vez a
pela kit11ra ainda <·sl,Í em rdac;,·,i.o com o drama <'IHT11ado como as so111b1·as
mímica é o rncio pelo qual a arte verbal se rcl1~11a 110 nível do teatro; trata-se
da Odiss<~ia <jll(' tu-gcm cm busn1 de sa11g11<·, parn estar ,t altura d.is
da mímia1, da .filia mais a rnimica do K1'sl<i mais a 111í111.ü:a da aura do <·enário
expectativas. Pois, sempre que a própria <'tKe11ac:.io o<·otnT de modo
<Tiado pdo n·nógrafo. A moldura do palro tnrnsfonna-se aí como que nmna
lidcdig110, os dran1as que resultam melhores 11ão enn·m1<los rarnme11te
janela através da qual o mundo S<' modilica até o ponto de poder ser
são hons e mmca fidedignos. Na melhor elas hipóle.~cs, trata-se de li1i~1110s
i<kntilicado, a1ravés da qual ck vê- e ouve a si próprio. Desse modo, o teatro
com interpelação e réplica, nos quais faltam aios <·m sc<1iiê·nda,
{, a inslit11i~·,i.o de 11ma realidade viwncial nova, cm lugar algum imediata,
e11tn-lac:amcntos de diferentes seqüências, entradas, saíd,1s, a al111oskra
trazida à luz pela ,11-t<· dramática relacionada com da.
pesada, o romance popular como que nobre, não sú do 1ipo Schiller, mas Tudo depende aí do tom com que 11m papel é dotado. Sim, pode-se
também do tipo Shakespeare, daquele que urge ao palco. Não h:-í m1mdo dizer que o homem encenado é uma ligura sonora<· como tal ek é nascido
no drama sem o lugar visível para os caracteres e as cenas allcn1a111cs, para o palco. Por isso, no infrio ('Sl,Í a forma falada, isto é, a diffril ar1e de
destacados pdo atores e principalmente pelos diretores. E é só <·m <Tm1 modular, modelar a tonalidade da voz. A 1ôuin1 em <)lte se baseia essa
<pw também a g1·,mde a11e verbal, na medida em que se encontra <·m forma mí-rnica da fala (esta excelente expressão provém de Schlcicnnacher,
de ac;,:;io, 011 s<ja, de drama, é retratada, em vista do movin1<·nto da pregador e filósofo ainda por cima) não está dada <·om o perfil abstrato de
disposiçi'ío de humor 011 ela reflexão, em suma, em vista do drama, na uma figura, muiro menos com o clichê que se fon11ou a partir dela. A
forma intn>v<·1·tida ,'i. qual p<Ttence. Justamente por isto - e niío, como é tônica procede unicamente do talento, do comprometimento e do ol~jctivo
óbvio aqui, por ser mundo interior do verso lido, como fuga do teatro - a final da figura, ou seja, da possibilidade de agir, de existir, aberta pelo seu
seguinte frase de Bred1t é tão significativa e verdadeira: car.'ítcr crn cortjunto com suas circunstâncias. Não se tem c1n mente um
n1rát<T no sentido t'stático de estar encavado, cinzelado, mas o caráter
Sobre a chan1eca ao auoi tecer escreveu designa neste ponto a dt'stiuação para uma atuação <pie ainda está por ser
o elisal><'tano para nós os seus versos, desempenhada. Somente nessa linha chega a produzir·-se, de modo
fora do alcance de qualquer iluminador, autêntico, mna figura sonora dramática, somente a partir da destinação
e até da própria charneca! ela poderá ser variada. O grande diretor Stanislavski cita como exemplo
/J,. -.:1fa~,1 1:r,lil},.,,n;'t"il~,a1 '{hUt.d·tic,\:'. 111\" ,n•1,h n'>l'N",ll"il';' l'>ih'
, 'A.,' li\'j',\\~\' :, .,, h,",, •• ,.J.,,.,,,c ,L,1,vl,.~ "t' 'll)l"1"~'
'- .1uV\.,,.,_._, \. \., d.,-, u.,::, 1-''- 1 l<-'.;:') (. .ll f';,...__
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11111, tarefa: quero vingar o meu pai. Poder-se-ia, no entanto, c.kscobt·ir 11111a desenvoltura de dono de casa no quarto ibseniano do doutor Stockm;
ndi. tarefa mais ekvada: quero descobrir os mistérios do ser. Mas poder-s<'-ia na caverna do asilo noturno e nos enonnc·s cômodos do tzar Ber<'
lllCI descobrir uma tarefa ainda mais elevada: quero salvar a humanidade (cf. Estreito parentesco com a mímica do gesto tem, ponanto, a referida mfr
ISIV<" Trepte, Lehen ,wd Werk Stani~lm11.1kij.1, pp. 78 e ss.). A direção artística de da aura do cenário criado pelo cenógr-afo. O palco de Caldcrón, inch1
odo Stanislavski descnvolvc.·u a figura de llamkt, com todos os empecilhos, o de Shakespeare, certa1nente não cultivava algo assim, mas apesar de t
IOSCI segundo esta última "fórmula b;-ísica". Mais difícil ton1a-sc, todavia, a o desp~jamcnto, indicando urna cavenia, uma floresta, um salão pomi:
1 ck c·ornlução ol~jctiva na mímica da fala, no momento em que esta já está apenas com ktr·eir·os, de modo algum faltavam o punhal ou a escad,
tradicionahnente cktenninacla por um <'<Tio nívd abstrato, sim, inantêntico- cordas como recp1isitos necessários, e: o cenário alegórico torna-:
a~·o. patétic·o. Isto ainda é o caso quando se trata ck Schiller, constituindo-se no amplia(,10 desses requisitos, co1no qu<· sua impress;'io e expressão no esp
ert.i problema ele poder recitar vc..-sos ele Schiller também ck modo nmtido, Q.ucm expressa essa míniica da aura juntamente com o cen,írio com c
a,.-: totalmente não sono1u. f o n1so na 111í111ica do canto <' 11,10 1nenos na da anirácia, mas ck 1nodo não 1nc·nos ampliado cm tennos ele aur
Lçao orquestra quando se· trata d<' Wagner. t
mist<'riosa111c·nl<' complirnclo N<'rnirovitsch-Dantschcnko, o colaborndorck Stanislavski: "{Tma encem
uer, romp<T, ..ité mesmo na ckcl,1111,H:ão ele Walfrnstein, o tom cio t<'atro da só pode ser chamada de boa quando, a partir clC' um mom<'nto qualq
1, o corte, grudando tcnazmcnl<', o seu fHitlws lânguido 011 n>lant<'. T,10 S<' pode dar contin11icladc à cxibic;,10 sem palavn1s e, ainda assin
>ém 111ist<Tios;-m1<·ntc· complicado ele eliminar (embora isso p;1rq·a estar sendo esp<'ctador c·11tC'11<k o qu<' cst;í acontc<Tndo 110 pako". lk fato, taml
:1.dc tentado rn'io sem ê·xito no novo Bayreuth) é o ban-oco ele hnní11as dC' pdtíc-ia, cm Calckrún o punhal num drama passional, c·m Shakespeare a csc:ad:
em depois o baIToco das alamedas triunfais na tonalidad<' dC' O rrnPl de cordas m1111 drnma ele- amor são ptn-a1nc·ntc· mímicos. Sim, o punhal é,
Nibelu:ngo. Essas caducidades certamente devem-se- c·m parte aos p1·óp1·ios Caldcrón, o pr<>pl"Ío cilÍme na sua fon11a C'Xlcrior, e·, para Shakespear
:l.Sa originais de Schiller e Wagner: a origem numa retórica ci<' 11 ívcl demasiado luz matinal c·ntn· rouxinol e sahi,í 11,10 é mais algo sup<"rl'icial, m:
,rte. uniforme, ou seja, que muitas vezes só podia ser for~·adamentc sustentada. c·xpress,10 ela <·xtcl'iol'idadc do amor ck Romc·u e JuliC'ta <' d<" sua me
ção; Todavia, o contrapeso a isso resid<." na força lógica da <'Xpress,io d<' Schillc-r, Essas coisas, m<·smo quando c·xagcraclas, não clC'sviam a atenc;ão da a,
1tro na fon;a contrapontística precisa da expressão de Wagner; e a n-.1/itutio d<' mas a aura das coisas, lendo sC' tornado homogê·nca, n>lldllJ: para dei
aos Schiller· e de Wagner significa representar o pianoprnmmci,ívcl elo pensativo da a(.',io, ,1 medida que, como Shak<'spcan- faz o seu I lamkt diz<"r· par:
ser em Schill<'r, o bel canto cantável da melodia infinita cm Wagner. Por esta,· ator<'s, "ao mesmo tempo algum ponto nccc·ss,írio da 1><·\·a pr<'C'Ísa
ma envolto mais por sua origem, mais a partir do seu próprio tempo 110 ponderado". Compr<'<'ll<k-sc assim <[11<', po1· mais hem-fritos <)li<' seja
fae c·xn·ssivamente tonitroante, Richard Wagner é, por assim dizc·r, o caso mais mímica do gesto<' s<·u cenário, a linguagem falada n>lltinna sendo o aJ
maduro d..i n-.1titutio in integram: exen1tável prin1eiramcnte a partir da o ômcga. Isto, de tal modo <ptc uma panlomima não cheg·11c.· a se t01
1n1a mímica do canto <' desse modo abarcando a estn1tura toda. Tanto mais independente ou apenas a colocu--s<' cm C'Vidtncia, mas que até a pantom
nue rekvantc torna-se a tan·fa de finalmente tornar a exihi~:ão d<' Wagner mais bem elaborada, no sentido ck N<"mirovilsch-Dantschenko, conti
por apropriada cxatarncnte a partir desse aspecto, o aspecto <'X1tlwrante e servindo à obra poética. Ponc-:m, visto a partir da mímica, o teatro é
na1s preciso, poderoso e· suhitameni-e profundo da sua obra. Segue-se, n1tão, S<'lll excelência a plástica da ar·te verbal, <· m Ha tal cm que nem a cornoç,10 r
intcrrnpc.)o, a mímica do gc·sto_jnnto com o cená1io, não mais monn,Kento <· forte em direção à mímica elimina esta plástica.
rançoso, não mais com 1ibomhar de trovões, retinir de espadas e cnlrcchocp1c
de ondas. A fn-ófJYia mímica do 1;1'.1fo coloca a ação dramática transmitida Ilusão, aparência sinrP-ra, im,li.luiçâo numtl
pdas palavras nos corpos dos atores, rnas também no corpo, por assim dizer, Uma velha pergunta é a que e a <pw finalidad<' o pako de fatc
das coisas posicionadas em cena. Essa cena pode ser despojada, como cm dispôc. Ele trabalha com cosrnéticos e adernais tmnbém pr<"domiuantcnu
sso, Brecht, como no teatro inglês antigo e no teatro espanhol antigo; da pode c·om recursos e luzes que iluden1 deliberadamente. O pako é, por i
que ser exuberante como cm alguns bons exemplos dos antigos Meiningcr e mais aparência do qm' qualquer outro gênero de arte<' justamente por
lura nas decorações de Max Rcinhanlt; da pode sobretudo fazer com que a ele torna essa aparência vivendável na realidade, apesar da mold
:ntc própria arte verbal se espalhe e caia cm forma de aura sobre o ccnáiio, divisória. Isso de fato confere ao teatro o seu poder sinmltancamt
m10 como na arte de Stanislavski. Deste se disse com razão que ele possuía as fascinante e ilusionístico, mas também_ dá à aparência uma fa1fase cc
nen}nnna outra arte pura. Siin, a aparência do palco, par;1 11111 oll1;1r 11ao e impulsionam o sangue em palpitações renovadas";- exatameut<' a s111>« •~l.1
aII1igável-e ela freqüentemente o tem encontrado, e não só entre hip<>CTitas rner·a ilusão lransfonna a realidade, renova-a e aponta, ela própria, pai .1
-, pode estar mais próxima da aparência extremamente ignóbil de uma uma mais forte, a ser desencadeada. A refr1ida manifestação de Sd1illn
figura de cera do que da de uma imagem que aparenta distinção e não tem anima o seu escrito do período inicial com o programa, tão pouco ap<'ga1 I◄,
nada de viv<·n<·ü1vel na realidade. Acresce-se ainda o aspecto, por assim à ilusào, <lo teatro como institui<:ão moral, logo, de fo1111a alguma alhci ◄ > .1
dizer, dissimulador dos heróis do leatro ou lambém mártires do teatro; realidade. Porém, se o teatro for uma instituição desse tipo, e ao si''--lo,
aplicado à hipocrisia n-al, é daí que procede o cou<-eito "comediante". qualquer can-íter ilusório é incompatível <·om ela; pois não há ilusão q111·
Todavia, a dif<'n:n<:a entn' aparência moral e· aparência teatral estava clara ative a vontade realizadora e a vonladc rumo à realidade. O teatro co1110
já na época <'Ili que a art<' ele n:prcsenlar ainda não era um "ofício honrado". ilusão certamente c·o1Tespo11<kria a uma burguesia que separo11
O comediante clissim11la, ao passo que o ator se lransfonna, ou melhor, compktarncnte realidade para um lado, arte· e ideal para outro, indo muito
caracteriza com o corpo o papd que reprcs<'nta. E, pdo fato de, J><H" força alt:m ck Kant. A venlack, porém, é <JUC a ar't<· como ilusão seria 1·
da arte verbal <'ll<Tmula, o palco apresentar-se igualme111e como lugar- p<TmancnTia c·m todo SC'll p<Tnll'so uma mc·ntira, tanto se considerada 110
tcnc11tc de algo 11ão-vive11ci,ívd nesta 111C·snia arte, csl.Í ausente Ioda conexão sentido moral quanto 110 S<'ntido ('Xlramoral. Isto é, tanto na intenção dl'
('Olll a figura ele n-ra ou também com as d1a111adas imagens vivas, com a iludir como c·m vista das impossibilidadt·s qu<' uma arlc- dessas desenvolve.
ofusc·a~:ào como tal. Apesa1· disso, no nível aprnpriado a qm· se· chegou, A aparf>ncia apffsentada pdo teatro, c·m conlrnposi(;ào, c·m lugar algum(;
n·sla a s<'guinte pt·1·g1111ta: não sendo oh1sn1<;,io, o teatro, ainda assim, nada mna aparf-nc-ia ilusória, mas jmm111.enle .1incna, situacla da também "no
seria alt:m de il11,süo? 1~ verclad<' <)li<', no uso <'stético b11rg11f·s, <'ssc- conc:eito prolongamento daquilo que se tornou cxistC'nlc, na ('araclcrização mais
nada lc·m de ckprccíativo; <'lltn·tanto, ainda assim de se· rdc.·1·e a algo que adeq11ada de sua forma" (cf. p. 212). Sua atrnt(,io não acpticta, mas n>nsegul',
não é c-xlcrionnc-11tc· real, q11e, sc·1Hlo pum aparê11da, ainda q11c· ck certo anlcs, inllne11ciar_j11stamente a vonladc deste- mundo nas suas possibilidades
modo clc-ceul<·, nada tem cm nmrnm ('Olll cp1alcp1er apa1f11cia dissi11111lada. 1·l'ais -· como i11stituic;;'10 pa1,1dig1rnític1.
Nessa linha, o t<'rmo "ilusão" /'oi c·slcndido a todas as a1·tc-s, indusivc ;1s Mas para que <'Ste sc:ja cl'c-livo, 11,10 se pode escpH·n·r a sua bela
chamadas artes puras, todavia sempre com uma n:mi11isch1cia provenicnlc· apa1·f·11cia. I;'. V<'rdadC' qu<· o tC'atro wio é ih1só1·io, mas nos sc-u.~ estandartes
da aparf·11cia kalral. E. v. l lartmann, por exemplo, 11a s11a Fil111<fi1, do ta111po11co S<' vê o dedo imlic·ador cm rist<'. Onde estl' ('lll<Tgi11, <'Stava em
belo, t d:s quartos pc-q1H·110-hurgm·sa hivial e um q11a1·to sintetizaclon1, <·statui a(,',10 muito ódio h11rguf·s-pmitano à arte, ou ao lll<'II0S c·stra11hamcnto em
a ilus;'ío como o car.íter puro e· sirnpks da arte e a define ('01110 "n>tn·lato rda<;,10 ,1 artl'. lnfrlizmc-nte não raro esse ('Slranham<'nto também foi
s11l~jc:tivo da aparência estética ol~jctiva". Porém, nada ele real se <'l'etua manipulado por socialistas como se· o teatro 11,10 fosse um clivc-rtimento, mas
nessa apa1·f·ncia; alg·o pan·c·ido ocorre em quas<' todos os esteticislas 1una escola clomininil (omk nada havia alón de maus elementos<' exemplos
que procedem da clt-l'iui(ão que Kant e Schill<'r deram do hdo: <·omo a de conduta). Acima mostrou-se corno justamente Bn-d1t aclv<'rtin conlra o
libc-rdad<' c·m rdac,:i'io ao fenômeno real. O knúmc-110, q11a11clo confonne t<'atro <·orno adestramento, o mesmo aulor que primeiru havia louvado o
a fins, sc> C:: hdo "no mom<'nto em que fo1· d<'sligaclo da realidade que o t<'atro formador dC' C'<msciência no lugar de puro e11tr<'t<'nimc-11to. Porém,
provocou, e assim também da realirlruü do l'im ao <piai s<·tv<', e- l<>r para Brccht, o teatro não deveria ser uma inslituü;áo rnornl d.e.~fmmida de
trausfiguraclo c·m aparência estética ptll'a" (E. v. l lartmann, Pltilo.1<1f,lú11 ornamento~ e de forma alguma uma i11sti111ição importuna. Ao nmtráiio:
drs Sd1.iirum I Filosofia do bdo], 1887, p. 171). A surpresa, todavia, n;io lamhém para ele a moral passa pela diversão, como a "função mais nobre
c·m E. v. l lanrnann, e sim em Schiller, que l'oi o melhor kantiano quanto (p1e encontramos para o 'teatro'". Porém, o pedantismo ,1. 1nancira de
à estética, segue imediatamente. Pois se a liheHlade da realidade do íim Gottschcd, existente no rosto alemáo da institui(,'ão moral, não se ex1ingue
realmente füssc o corrclalo objetivo <la ilusão sul~jetiva, então 1wm mesmo com tanta facilidade, razão pela qual constantemc·nl(' devC'-sc p<'dir tolerância
a aparência teatral se-ria unia ilusão, sim, esta muito menos, como logo para a luz que traz aleg1ia. Por esta razão, Goethe, no artigo Teatro alemão,
wrc-mos. E se o próprio Schiller chega a diarmí-la de "ilusão lwnéfica", tem de assentar a seguinte confissão <'TIi favor da aparê:nda bda e alegre:
então exatamente esse aspecto benéfico aí <'nfatizado suspende "De primórdios n1des e ainda assim débeis, quase no estilo de biincadeira
decisivamente, de uma vez por todas, o seu caráter ilusório. "O teatro como com bonecas, o teatro alemão talvez pudesse pouco a pouco, com n1uito
instituição moral" quer dizer: "Ganharemos a nós mesmos de volta, nossa trabalho, atravessando divcTsas épocas, ter chegado a uma condição
pc-rccpção desperta, paixões salutares sacodem a nossa natureza dormente fortalecida e justa, caso no sul ela Alemanha, onde era propriamente o seu
lar, tivesse conseguido fazer um progresso tranqüilo e aka11~:ar 11111 ho111 como a ilusão, é, portanto, a que rnenos está desligada da rmlirll/d, , 1,,
desenvolvimento; só que o p1imeiro passo, não para seu rnelhorame11to, propósito; ela f:-, antes, a promO(;·ão desta por meio do diverti111<·11lo.
mas para a sua chamada coITc~·ão, ocorreu no norte da J\lernanha, dado
por pessoas insípidas e incapazes de qualquer prndução". E após avaliar a AI ualizaçúo Júlfü e ai ualizaçáo autêntica
rcfonna de Got lsched dessa maneira reservada, após stT forçado a ventilar a As boas peças voltam a aparecer quando encenadas, rnas 1111111.1 do
<·ont1-ovérsia de Ilamlmr·go a favor ou contra a ida de religiosos ao teatro, mesmo 1nodo. Por isso, para c·ada geração{, nccessálio produzir 11111;1 11, ,1·.1
Goethe prossegue, não sc·rn um;;i n·miuiscé'-ncia ao título do trabalho que encTnac:ão, e isto muitas vezes. A mudanc_-a no número apresentado to, 11.1 ..,,
Schilk1·esn·cveu na suajuventrnk: "Essa co11tn:>vé'rsia, conduzida pelos dois especiahnente nítida quando urna outra classe conH·(a a ocupar a pblq,1
lados com muita vivacidade, infelizmente fon:ou os amigos do teatro a Porém, 1nesmo que então o ll'at1u não permatie<:a inalterado, logo, ;1i11el.1
declarar essa instit uic:ão, prnprianH·nte ckdicada só ,1 sensibilidade mais co11s<·1ve um aspecto de coisas vdhas, de tampouco é um cabide c111 1111,1:,
elevada, como uma inst,1ncia moral. ( ... ) Os próprios es<Titon·s, homens hast<"S S<" pode toda vez pendurar roupas novas. Isto quer dizer que as p<"ss, ,.,,,
bons<· vakntes de condic:ão btlt'gm·sa, ;1ceitarnm isso e tr;1halharn111 com e os locais de esp<"t,í:culo d<" uma pec:a antiga não podem ser "modernizacl, ,~"
probidade alemã <· intdigi'·ncia fftilí11e;1 para alca11<:ar esse propósito, sem tot,11 <·radicalmente.Em todo caso, permanen·m os lrajes da época em q1w
p<·nTlwr que nada mais faziam que dar prosseg11i111<·11to ,1 mediocridade de a p<·c:a c·m qm·st;"ío é encemtda. Não contradiz a isso <k fonna alguma cpw,,
( ;01 tsched". Foi para co1n·spornkr a esse discurso cortante que ( ;oethe qucria ban-oc·o tenha vestido os seus hen'>is antigos à la modf1e feito c01n que agissn11
que- a famosa catarse aristotélirn não fosse n·lacio11ada com os espcctadon·s da mesma forma. Pois o hanon> de fato ell<Tmwa heróis antigos, 111;1.~
e· tnrnsfc·,ida parn cks, mas com as pessoas do drama. Sem dúvida, o que se _jus1a111c·11te nenhum drama antigo, e· sim dramas escritos por ele mesmo;
manikstava em (;oethe 11;10 cm tanto uma n·ai.:iio ;11·istocnítin1 contra a consc·qiicntenwute, ele tampo1u·o desfigurava eh-amas antigos quando
utilidade p1íhlica do ll11rni11is1110 h11t"t,~1ti'·s al<-miio, 1n:1s mais a avcrsiio a 11ma transpunha o matnial destes para as pr<Íprias figuras<" os pr6prios conflito.~
hipocrisia secularizada, <Jll<" ,1deri11, da próptia, ,1 i11stitui<.:ão moral, <'Ili última burg-ueses da cor-te. Por uma razão hem 111<·11os criativa, mas ainda belll
an,ílise, a um t<"atro nH·11or. Da 111c·s111a lúnna, Apolo sem as musas e· Mi1H·1va pensada, por exernplo, Orfeu e E11rídi<T, de ( :octeau, <·m p<·c:a escrita nos
sem Epicuro nnnhinam hc111 menos co111 o mat<"rialismo na arte do que anos vinlc do sé-ntlo XX, vestem camiseta<· óculos com anna(ão de tartan1ga;
combinavam <·om o seu idealismo. Mas o q11c Schiller tinha c·111 t1H'lll<" com isso igualmente ocorreu sem provocar <·s<·,111dalo alg-11111. Co11t11do, não é tão
sna institui~·.io 1noral; era um teattu ílorcsccntc- <·111 l11g-ar da do111('sticidadc fücil produzir asneiras mais absurdas do qu<· c11<T1tar l [amkt de fraque 011,
de Gottsched e, só depois disso conquistado, vinha o prnp<Ísito moral; <·1~1 para dar um exemplo mais mo<kslo, amhie11ta1· o primcit"O ato das História,\
cena e- só depois dela tribunal. Somente através da 1iq1wza da cena o teatro de l lr4Ji11-am1 num bar de níquel nomado. Ou vestir os salteadores de Schilln
pode servir· ;\ rnoral, corno tantas vezes ocorreu na arte, _juslamcntc 11a com tr.~jes de proletá1ios e colocar cm Spiegelberg tuna ,mísrnra de Trotski.
qualidad(' de arte suprema. A perfeição isolada disso c-ucontra-se na cena de Tudo isso é uma reação esnobista, 110 mínimo exagerada, <"ontra o modo
lla111lPI em que a enn·mH)ío obriga o assassino real a desmascarar-se; a hisloricista de fazer teatro, que de q11al<pt<T modo _j;í: caduc·ou. Coneta é
instituic:ão moral n·volncionária-social encontTa-se nas peças de Schilln, como unicamente a obviedade de que cada teatro é o de sua época e não é nem
em Cabala e amor<' (;uilhn-me Tell, em Egmonte de Goethe; no Fid1;/io, um baile de máscaras fidedigno, nem uma há11cadcira pcda11tc de lilólogos.
acompanha-se da pura nnísica de Brutus. E essa institui~·ão m<>l'al mio é Por essa razão, a cena certarnente n<·<"essita, para sua n·nova\·ão, de uni
apenas um tribunal, pois sohn· a imagem do crime julgada, e até sohrc a olhai· sempre novo e que a elabore de maneira nova, porún, de tal maneira
imagem t1iunfante e justamente por isso horrorizante que se desenrola 110 que a fragrância da época da arte vedml e de seu cenário não se dissipe em
palco, apan·cern os caminhos de salvação, 011 ao me11os os sinais de sua luz. lugar nenhum. Pois justamente a nova pan-ialidadc do olha,· nen:ssita das
O classicismo alemão como um todo foi a tentativa de desenvolver, a partir pessoas e ações no mesmo lugar ideológieo que lhe foi conf<-1ido pda arte
da sociedade fragmentada em dasses, o homem Ínlt'gro, não fragmentado. verbal, caso ódio e amor, escória e modelo queiram ter o mesmo ol~jc·to que
Essa tentativa - constrnída puramente sobre a fé na formação est{-tica - lhes foi designado pelo poeta. O cenário, pant o qual o autor fez sua
obvianwntc foi abstrata; 110 entanto, ela indubitavelmente trouxe para o palco composi~·ão, em lugar de serjogado fora, deve, portanto, ser modificado até
notáveis modelos norteadon·s. E entre estes estão alguns que só h<~je o ponto de poder ser reconhecido, atf poderem ser rec·onhccidos, por
encontram a sua aplicaç·ão correta, inteiramente sem sc,·em envolvidos pda exen1plo, os conflitos dt· classe que nele sucedem e que só agora se tornaram
abstração ou atf pela misfria exagerada. A aparência sincera do teatro, assim articuláveis. É só desse modo que o teatro não apenas assume o estilo da
atualidade, mas é reahnentc atualizado, e isto, assim como 110 n·11,írio, co111 por Shakespeare, e o diretor de arte apenas deve dcsdol,r;í-los. N;10 11.,
mais precisão ainda na iluminação renovada, na modelação do le:xlo fmm o renovação do teatro sen1 esse tipo de desenvolvimento e pós-matura1._;10, ,
teatro. Nesta, além dos bem conhecidos cortes, ocoITe até a reelaboração de este é o lÍnico propósito com que obras-primas são convocadas ao l.1hbdo.
alguma parte, na medida cm que esta se encontra em várias passagens, havendo a decomposição de alguma maneira bem-sucedida de seu "10111 d,
empoeirada ou até não amadurecida e inacabada, e na medida em que - galciia", de seu valor de museu. Indusive Ricardo Ili não atua como se fos..,,
como wnditio únP qua rl(m - quc-m faz a rcdabora~;ão ou a complernentação Hitler, mas tonia sensível hoje um aspecto do fenômeno hitleriano, l:11110
sc:ja similar ou cstc:ja à altura do autor. Foi assim que Karl Kraus resgatou do n1ais dara1ncnte quanto mais rcpn·scnta a sua própria pele e a de sua <:I >• •• .1
dcskixo a que tinham sido rdcgaclos, n.'.io só os textos de Offrnbach, mas através de Shakespca1·e. Algo similar aplica-se, na mesma peça, ao mc-110.~ 111,
todo o diamante dessa músin1. Foi assim que Brecht visualizou o llofmPister; qu<' diz respeito ao aspecto akgórfro da salva<,;ão, a Richmond e ao hdo d1.1
de Lc·nz, como uma planta humana que segue c·n·s<TH<lo a partir da miséJia de ama11k1 em lorno dele. Todavia, essa cxihi<:ão dc·ve se,· significativa e· 11.11,
feudal do século XVIII para dentro da misfria n1pitalista do século XX. um pan-<>pt ico histórico contendo o "at<'lllJXH,1!", o "gem·ric·anwnte hm11,1110"
Po1fm, também nc·stc ponto a c·oisa logo se torna prec,í1·ia q11a11do diretores Porém, signifin1tivo quer dizer n<'ste ponlo que o drama clássico ckw ..,e 1
ele· a1·te desn1.rados, auton·s limitados ou epígonos allitos querem usar o ckdamado e c·11<·<·nado de tal maneira que o J>l'<'S<'llle 11ão sc:j,1 imposro ,10
antigo como muleta e compensação pa1·a a prod11<:ão pr<>pria. Os drama, mas que o drama comporte o significado cio p1·cscntc. E isto e 0111
c·ompkmeutaclon·s epigonais (modelo: conclusão do Demhrio, de Schiller) base nos seus co1111itos, conl<"Údos con(lilivos e sohtçôes tempora1ia111n11<
são para a litc·rntnrn o que os terríveis restauradores de forlakzas <' c·astdos incsgotados, ou mdhor: todo graDde drama d.1ssi('(> 111ostn1 cm seus conllil< ,..
do século XIX foram para o que 11aquda época se diamava de anp1i1<·t11ra. e suas sohu.;ôes 11111 fnoj,Ó.\Ílo rnmo quf' .rnbr1'fmjador, 1·11ja abrang1;11t 1,1
A<isÍln co1noestes, acptdesse tor11aran1 mais raros; em coulraparlida, din·tor<'s lmn.w:rndR o tnnf)/)rário. Sim, inclusive as pn:as escritas 11a atualidade 1í·111
de arte enérgi('(>s estão sempn· transpondo uma alualiza(,IO inrrívd para o sig11ilicadodrn111ático alua! (11ose11tido d<" i11dicac:ão <' esdan-cinwnto) ap.. 11;1•.
texto do drama, com base n11ma "con<·ep<;ão" política v11lga1· elo mc·smo. quando s,10 versadas nesses propcísilos abrangentes. 1 hí 11111 pt-ocesso so<·i.tl
Tudo c·orn o ptupôsito ele lontar visívd uma tendência - por mais digna ele (enln· o i11divíd110 e· a c·o1rn111idadc, c11tn· as prüprias formas comtmit,íria,
louvor <JIW s<:ja - que se situa fora do <'SJ><·<·lro da obra, e niio cknlrn dC'k. c·onh,1sta11lc-s), que vai elos primôrdios gregos do drama alé o futtu-o, ai<" .1
N,10 é pr<"ciso -- lrnta11do-s<" de 11111a 1<'11cli·ncia extremarne11tc indigna de sociedade das contradi<:úc-s que não mais serão antagônicas, mas obviam<"lllc-
louvm·, a sabei·, pré-fasdsla - chega,· ao ponto de lembrar um ( ;,úllwmu' não lc1,10 desapan-c·ido. Esse processo, con1·entrado dramatic·amente <·11111
'f'<dl, c-111 que Gesslc1· foi deslocado para o primeiro plano <·01110 a !ig11ra porladon·s tipificados, lor11a qual1p1er d1.11na grandiosojustamc-nte ponpic
"mais i11t<"n-ssa11l<"", s<"nclo os cl<"fensores da liberdade abalados e n:locados. é capai, d<' mostrar urna nova atualidade, 1· tor11a-<> alrn1ljuslamcnte porq11c-
011 até o caso c·m que a <·omédia O mercador de Veneza teve de prestar-s<' ao é transpan·nle para a tard:-1 vindoura da tragédia 01imisla. Em O sobri11hu
papel <k uma J><'(a ele algazan,1 anti-semita. Pois, por mais c01Tcta <JII<' s<:ja ,ü Fl.am.mu, Didc1nt faz com que sc- diga o seguinte: "l lavia muitas colu11a,
a l<"11clê·11cia, a alualiza<;ão política vulgar vai dar num campo alheio,, obrn, posladas 110 caminho, e· o sol nasn:nt<· iluminava todas elas, mas só a coh111.1
rcsullanclo na pnda do drama inerente a ela. É o caso, por ex<'mplo, quando de Mcmnon ressoava". Esta coluna sig11ifintVa genialidad<' cm <·ompara1;au
a 1w<:a Maria Stuart é c-n<Tnada de maneira tão errônea e desproposilada com mediocridade, mas d<" modo ptll'amcntC' fac1ual ela r·epresenta ;1
que não resulta mais muna tragédia, mas no triunfo jubiloso ck Elisal)('th. constante força sonora e atualidade dos grandes dramas no rumo do
Isto porque se pretende que ela - em virtude de uma rc·constru(,to inumper do dia. P011a11to, a em-e nação ai ualizada estaní melhor encaminha< L1
drarnatlÍq~fra sc·rn p1·ecedentes - rep1·esente o capilalisn10 em ascensão em quando estiver direcionada para essC' rumo. Ele é imanente aos dramas ma i. .
contraste com a Maria francesa, católica e neofeudal. Isto não está lotalm<'ntc aulênticos, desde Promdeu amrrentado alé Fausto; ck não necessita ck
errado do ponto de vista histó1ico, mas para o drama cm qu<'stão (ültimo nenhuma propaganda visual anexada 011 impingida, mas sim unicamente d1·
alo), isso é ainda mais grave, sobretudo muito mais supérfluo do que a visibilização.
reslauração de um castelo ao gosto dos anos oitenta elo século XIX.
Somente no caso de uma figura ambivalente já na própria arte verbal, de Mais at-ualizaçào autêntica: não por medo e comfJaixrio,
Hamlel em primeiro lugar, pode-se, quando muito,justificar a exageração ma.., por teimosia e e,1perança
de um de seus traços, que até aquele momento talvez ainda não tenha sido A medida para essa renovação, no entanto, deve ser elaborada ck
considerado; entretanto, também esses traços já devem ter sido focalizados maneira sempre renovada. O modo mais seguro de obtê-la é a partir da
existência <le novas peças significativas e da compreensão que se tem ddas.
com o herói trágico, inclusive o da t1·agédia grega, uma imagem do des<:jo
Não por último, ela é obtida a partir da grande diferença em que se
em relação ao teatro bem diferente daquela que traz consigo os afetos
encontra a imagem do desejo numa época socialista em comparação com
meramentt' passivos do medo e da compaixão. O afrto do medo de qualquer
a época anterior. Essa diferença torna-se tangível naquilo que Schiller
modo eaiu por tt'ITa com a tragédia do destino, mas e a compaixão? Esse
chamou de "razão para divertir-se com ob1"etos , tráo-icos".
h Pelo visto , nem
tipo de comoção é ben1 menos intenso no Prometeu esquiliano e no que se
Schiller c011seguc distanciar-se da definição aristotélica de tragédia no artigo
relaciona com de do que a admimçâo. Sim, é possível nmstata1· bem mais
assim designado e mais claramente ainda no seguinte: Sobre a arte trágica.
coisas, e coisas bem diferentes, no ckslocamcnto de afetos que assim se
Sendo que de, ademais, não pretende estabelecer uma diferença entre
processou, no mais essenc·ial dos tipos de atualização. Pois se a base da
tragédia comum I Trau.enpiel] e tragédia clássica I Tmgéidiel, pois ambas
,lcve1iam comover o espectador. E é justamente a partir da rnmoçilo que como<:ão tn'ígica não é mais medo e compaixão, da tampouco se restringe
à admirn(ão. T1·ata-sc-, antes, de lf,imo.1ia 1' e.1/H1mn<·a - e vistas como tais
A1istótdes chq~a ,1 sua famosa do111Iina do prop<ísito da tragédia: ela eleve
estimular os afetos do medo e da compaix;10. Schiller acentua aí ape11as a também nas próprias pessoas da tragédia. Estes são, cm primeiro lugar, os
compaixão, mas também no original a1·istotélico a tragédia apn·senta-nos dois aktos tnígicos rn~ rda<:ão revolucioná1·ia, e eks não c·apitularn frente
ao chamado destino. E verdade qm· a teimosia d<"saparecc diante dos e nos
homens, principalmente seus heróis, 11u111a nmdi<,·ão de sofrimento. E a
vitoriosos -~judantes, que são os lwníis da sociedade e da dramaturgia
intcnsificaçüo dramaticamente provon1da do medo do sofrimento,
socialistas; correspondendo, assim, ,,s <'ontra<fü;ôes não mais antagônicas,
juntamente com a c·ompaix,10, visa, como s<· sabe, libertar o espectador
à solida.-iedack snhstaw·ial. Ta11to mais irnportant<' da é, no <'ntanto, fr<'nte
desses afetos. Isto é, a intell(:ão é provocar a descarga cios afrlos através da
aos <' nos vitoriosos qw' .fiaol.\".l<l/11., <]li<' s,io os hcn"íis da dramaturgia
intcnsilin1<:âo trágic1, de modo que voltem ao seu 11ívd normal 11a vida.
dassicamc·ntc transmitida, cpw-confonne a <'Xpn·ss;io ck I lebbcl - mcxl'rnm
Este é o sentido da <'atarse ou purilinH:ão aristotélica, a qual se111pre i11d11i
110 sono profundo do mundo. E a <·sp<·t.ul(:a esp<"dlica, que nesse fran1sso
justamente a <'Olllo<:ão provoc1da p<'lo sofrimento ex1><-i-ime11tado
clr-ainaticamente. Eurípides de fato fói o primeiro a trazer a como(:,io para toda V<'Z produziu seu paradoxo ele aconlo com o ol!jeto e que constitui a
melhor razão do divertinwnto cm t<'lllas 11·,ígicos, n·gn·ssa à n1sa do tcatH)
dentro da tragédia, sendo l'Sta a razão pda cp1al Aristúteks atrih11i11 a de o
e-frito dra1rnítico mais forl<· 110 sentido rdi...-ido. Poi-ém, o <)li(' se prcssupôe socialista pda p1imeira vez sem paradoxo 11c11h11111. (DC' tal modo que aí,
todavia, o aspecto trágico pode t<T sido r<'vogado, 110 sentido das últimas
aí não é o ch·arna csp<'CÍÍi<'o do qual pai·te a corno<:,io, mas sohn·ludo
também 11111 comportame11to que cl,í deslacpw não tanto ;1 r<'hddia n>11t1~1 pe<:as l "1uma11<;as" 1 de Shakespean' e do Fa11,1/odc Goethe.) lk modo g<'ral,
o l<'atro se ilumina em sua institui<)<> moral, paradig1rnítica, <·omo uma
o destino, mas ao sofiimcnto provocado por ek - e, <'<>mo quer que s<:ja,
instiluiç,10 alegre <" antecipadora. Por essa razão, a atmosfera é 1·iso11ha
valorosamente suportado-, ao sununhii- diante ckk. A a11tiga sociedade
também na tragédia, l" não só na comédia crítica, não s<Í na peça cômint.
escTavista con10 um todo mio tomou consciê:ncia de um c-lc-mcnto
Por essa razão, C'Sl<'llCk-sc justamente cm torno dos heróis t1·;ígicos, sim,
tragicamente rebc-lcle 110 sofrimento, não tomou consciê·ncia 011 ao menos
não quis tomar consciê·11cia plena de Prometeu como herói
cm ton10 da como<,·ão autêntica, ou s<ja, <·rn ton10 dos ocasos nohr<'s da
tragédia comum, o horizonte circular do amanhã. A [ras<' de Schiller: "O
hmdamcntaln~entc trágico. Isto ocorreu apesar ela trilogia ele Prometeu,
que nunca e em nenhuma parte acouteC<'ll é a IÍnica coisa qu<' nunca
de autoria de Esc1uilo, e apesar do conhecimento de <]IHº os heróis tníg-icos
cnvclht·ce", sem dúvida é, digamos, exagerada; e, ainda assim, ela <·ontém,
são melhores do que os deuses, e até do que o deslino. Agora, é instrutivo,
debaixo de tanta resignaçào pessimista e idealista, um n·n1<· rnatc-i-ial. A
justarnente no que se rcfi:re ao grau rk reno11açán do asfJfff<> dra:111-iitiw, ver
frase deve ser f01n1ulada assim: justan1ente o <pie r11uu:a e em r11mhu11w /Jarte
como sobretudo a purificação do medo e depois da cornpaixiio tornou-se o
aconteceu de todo, 1nas e.1tú f,or suceder como .fúto lw,111.anamente digno e amsfit-ui
efeito trágico que mais estranhamos. Resta conn·cler· <1ue, como vimos,
Schiller ainda o prezava ( todavia com ênfase exdusiva na compaixão); que, a taH-'fa, nunca envelhece. A parcela ativa "fillun," confere, portanto, a
antes disso, Lessing defendeu-<) ou purificm1-<) mais uma vez na Dramaturgia medida propriamente dita para o frescor,jcí. na comédia crítica ao presente,
na peça cômica que o deixa t·scapar confortavelmente, quanto mais então
lu1111b11r[;ue-"a (todavia igualmente subtraído do medo, <p1t· seria a compaixão
em rc-lação a nós mesmos). Porém, já a sociedade burguesa, na sublimidade do mundo trágico. Isto porque na atuação esperançosa
<·mpn·<·11dedora e dinâmica, captou a razão antiga do divertimento com dos seus heróis fica claro que há algo de errado em sua ruína, que o elemento
temas t 1·,íg-i<-os apenas na base de mal-entendidos; já para ela, atualiza-se, "futuro" nela se levanta.
31. Imagens do desejo ridicularizadas e odiadas, e as ta111béin den1onstra ter raízes em hC"m outra classe e en1 te1npos muilo
espontaneamente humorísticas antigos. É disso que ela vive, disso vive a avC"rsão do filisteu sem que o
saiba, e apenas a perfídia é sua próp1ia niação. Nem o agricultor come o
Se proximamente alguém investisse um capital de cem milhõrs que não conhece; enquanto a novidade lhe era trazida pelo senhor das
para pintar todos os negros com tinta a óleo branca terras e da cidade que o espoliava, o agricultor tinha uma boa razão para
ou f)(J,ra deixar a África quadrada, eu não me admiraria. isso. E o ag,icultor conservou isso por muito tempo como uma qualidade
G. Frcytag, Os jornalistas adquirida; o que fez com que de, a partir de uma base bem diferente,
exclan1asse em uníssono com o pequeno-burguês: todas c·ssas modas novas
A fJalavrin!ta '\e" não prestam para nada. E uma outra 1·azão reside mesmo num temor
Costuma-se rir até não poder mais de muita ('oisa que não tem graça muito antig-o, de <"frito quase arquctípico frente à inovação: na supcrntição
nenhuma. Gosta-se de rir daquele que tem azar e, se ele fo1· inteligente, ele corno rescprício de uma {po('a mágica há muito cknHTida. Quando foram
também .-irá de si mesmo. Tem lugar aqui um tipo de diversão intruduzidos os primeiros arados de f'crro na Polônia e se· seguiu uma
especialmente insípida, ainda que 1101:-ívd. Qu<' eng-ra<:ado alguém ter colh<·ita nlim, os agr-kultor<"s a atribuíram ao ferro e retornaram ao arado
perdido a sua chave e por isto chegar atrnsado. Não ('011segui1· se livrar de de mad<"ira. Disso n-sulta cpre, nos bons tempos antigos, na idade da
uma gripe é algo que ('0llllllll<'nte S<' <·ompartilha e S<' acolhe como se fosse rnadc-ira, da pedra e do bronze, o ferro não <"stava pr<'sentc; logu, o mateiial
uma boa piada. Neste ('aso, o riso se1ve para ton1a1· a coisa (><'<Jll<'lla,
postc-rio1· não prc-sta para os ('Ostumc·s tradicionais. Da mesma f'orma: todas
scnmd,íria e quase como se ela não existisse. Po1· outro lado, é diver·tido,
as lribos que ('llltivam a circuncisão como último n-squído do p1·imitivo
indusive é <·ômico por si só, poder inverter sô para si mesmo, por assim
saniffrio humano a realizam com facas de madei1,1 011 pedra; os t<·mplos
dizer, ap<'nas com um dedo interior, as ('oisas que não nos setv<·m, ou as
dos primitivos dC'uses tchíricos não elevem S<'r constn1ídos nem reparados
('oisas desagrachíveis que estamos habituados a V<'r em outros. Sel'ia hom se·
com f'crranwntas ele l'<'rro. Algo par<"cido, tr·ansposto ela velha rac·a ck pedra
fosse possív<"I dessa maneira; c·ontudo, se· assim 11,10 J'unciona, <'lltão isso
para a casta dos sac<'rclotcs, {, o scg-11inte: em Roma, os plc-heus foram os
também é motivo ck ,isada. Daí o ditado: se não fosse a palav1·it1ha "se",
últimos a aka1H:ar a lünc:ão do .,a1:erdo.1, que ai<~ c·nt,"ío era arcaicamente
muitos j:-1 seriam miliomi1ios. Ou: se os dcsc:jos fossem cavalos, todos os
rese1vada c·om <'xdusividadc aos patrícios. E o Deus católin,-romano, por
m<"ncligos estariam cavalgando. Essa zombaria está cmTcta; ainda assim,
S<"ll tun10, só e11te11ck lati,n; mna missa c·1n ale-mão seria aí o <Jll<' o ferro
muita coisa nela pcnnanec-c esquisita, e- muita coisa mais log-o se- torna
foi para a vetusta mãe-tc-11,1 c·ntn· os antig-os ag-rin1ltorcs poloncsc-s: afronta,
suspeita. Pois de muito bom grado esse tipo ck tom akgn- se- espalha cm
abomina(ào. Desse modo, para a supcrsti~·;'io todas as inova(:<>cs são
lugan-s onde só consegue render son-iso amarelo e escárnio. Ele S<' dihmde
às custas da antecipa(:;fo como tal, da antedpa<,:,10 do insólito. l;'. possível portadoras do scg-uiute sig-no: não h,í hên~:iio nelas. lJm n-sto da antiga
que já o homem primitivo tenha rido dc·ssa maneirn quando um sonhad01· angústia é utilizado analogamcntc 1><ff ('amadas atrasadas e cxt<·mporâneas
quis convencê-lo de que um dia a carne pocle1ia e seda ('Ollsmnida assada. também contra o futuro que não lhcs agrada. N<"sse caso, o inusitado em
São os exageros; eles sempre tfm contra si os que 1iem. A coisa é vento e se ··-ip'ra1tp:1d·ue-smür nn ma\ 'i·· 1or}rs'r<'1 r o~··áar tpn·· s<'"J.nlnokt\t·1c-·; nlu"J.r.ãreãç<1v
transformará em água como qualquer vento. É verdade que- nem todo surpreendente contra o cks<:jo da suq>resa.
vento faz isso, mas o filisteu gosta do que escuta.
Le Nfant, Un autrc monde
"Toda~ essas modas novas não pre.~lam panJ nada" O chiste torna-se mais ousado quando ele próprio cnn·na o novo de
A maneira mais fácil, mais íntima de zombar do novo é a partir daí. maneira reles. Quando ele- dwga a ponto de brin('ar com o S<'U lado obscuro
Os que o trazen1 perturbam, pois o honwm supostanwntc se acostmna e o dissolve num terror picante. O picante contido aí sempre caracteiiza o
com tudo, até com o que é ruim. Para o pequeno-hm·guê-s, o inusitado é divertimento com o fato de que algo não cst,i mais cmn:ndo da maneira
uma mina permanente de gozação e aversão; isso tem a ver com a sua auto- certa, isto é, do jeito habitual. Muito cedo o teatro mágico pôs defeitos na
satisfação insegura. O cômico o diz sem rodeios: os novos chapéus para magia, não tanto para desencantá-la, mas parn lançar, diante do público,
damas são um horror; de acordo com esta n·ceita se cozinha e se prepara uma S<>Jnbra curiosa, unia sombra cô1nica tarnbéin sobre o aspedo
o gracejo do futuro. Auesce-se, todavia, que a piada assim constituída tecnicamente milagroso. Com isso, a imagem do desejo de saltar por c·ima
elos antigos limites é reduzida, entre outras coisas, a 11111a pilti•··ri;1 chocalha, retine sem ptTsença humana e com prensao: todos o•,
sensacionalista; um cornediante é capaz de dar aulas pan1 urn invcutor. instnunentos são 1novidos a vapor, q11asc tornando-se eles rnesrnos n1áq11i 11:1.~
Fazem parte disso os tn1ques com fogo: a arte de caminhar sobre brasas a vapor; uma biela oscilante provida de urna mão faz as vezes de 11111
vivas, comer fogo, cuspit· fogo. Em 1762, Powel the Fire-Eater fritou um diiigente. Também os M_1•.1/em.1 de l'infini são tecnicizados:Júpiter, Saturno,
beef\leal< cm <·ima da sua língua, colonmdo uma brasa viva embaixo dela; a Terra, Ma,·te estão ligados p<ff uma ponte de ferro; a ponte apresenta-si'
língua havia sido untada com uma suhstânda protetora desconhecida. Fazem iluminada por lampiões a gás do tamanho de urna lua pequena. Baudelairl'
parte disso as ilusôcs ópticas, sobretudo o trabalho com 1dkxos no espelho, dedarou a respeito de Grandville e suas ilustrac,;Õ<"s: "Trata-se de um cérelm 1
atestado desde o século XVI. lk11ve1111to Cdlini n·lata sobre fantasmas litcrá1io doentio, constantemente obcecado por cruzamentos ilegítimos ...
pn~jelados em fmna<:a ch1rn11tc uma exihi<:ão 110 Coliseu; os espelhos usados Esse ser humano passou a vida tentando, com coragem sobre-humana,
p,u-a isso foram imp<H'tados diretanwntc da cortc dos cãs tártaros para mdho1·a1· a <Tia<:,10". O mais prov,ívd, porfm, e· a única coisa certa, é qul'
Roma. Consc·1-vo11-se disso o tr11q11e de fazer desaparecer e reaparecer de poss11ía o taknto de ar<Juitctar imagens de Ga1·gântuas tfcnicas e d<·
pessoas vivas por mcio dos efeitos dos cspdhos: /,,, N/a11/ de Moutpaniass•· n 1lt ivar, com o auxílio desse gran:jo, o sc·u hotToL Cada mua dessas imagens
{- uma tenda quc ainda IH!je faz pcssoas c tamhfm coisas <pH' h,í pouco caricatura, desfigura os meios para toniar os homens frlizes mediante a
ainda estavam no pako s11111i1· de vista sem deixar v<·st ígios <' retornar do tfcnica. No pahício da _justi~·a do füturo está insnito como axioma: "Les
nada para a cxistência. Em 1865, Tohin e Pcpper constrníram The Cahú11'/ crimes so11t abolis, il n'y a pl11s que des passions" - um clímax sério em
meio ao csdn1io empinado da asnc-i,~• ut<Ípic·,1. Isto {- o sulicicntc sobre
of Pmlt'U-\ 110 q11al hom<·ns c mullwn·s reapareciam transformados: 1111s no
C:randvill<- l' se11 onín1lo; 11m pcqt1<·no-h11rg11ê·s esquizofrê·nico, um horror
leito de amor ou com a veste p<·nit<·ncial sohn· a fogucira. /,e N,;an/ <k
rcpn·s<·111ativo da fantasia tfnlica ('OIIH'II demais ele- Protcu 011 até de
Mo11tpar11asse, porfm, d,í a impressão de esta,· <Jt1<·n·1Hlo menospn·zar <·
Pronwtc11 e is!o lhe l'ez mal. Sendo que, de qualqmT modo, toda esquisitice,
zomharj;, tanto t<"rnpo anl<'S d<' Sartrc, diz<"ndo: todo prog1-csso nnrni para
como vimos, traz ('Ollsigo uma pon::ío de htm1<ff (,-f. p. 102), que<' o seu
o nada.
n·v<Tso; isto pôde ser delcctado tarnhfm cm v,Ít·ios produtos do smn·alismo.
Essas coisas faltam lauto menos onde o novo {- exagerado por 111c-io
Fora do s111Tealis1110, isso pode ser mdhcff dcrnom;trado nas montagens
d<' i111agc11s. I lá n·m anos, r<"vistas de humor extraem matc·.-ial da <ptcst,10:
do i11l<-n10, as ''paradisi voh1ptatis", <k I lieronymus 8osch, n)jas novidades
que aparc'ncia tenl o homem cm n·m anos. A goza<:,to ton,a-s,· lauto mais
mistas haviam sido cokc·ionadas pela corte <'spanhola unicam<'nt<' com o
intensa, quanto mais singulanlll'llte o pníp.-io gozado,· {- tocado pelas
prop<Ísito da diversão. E isto tampouco se mostra totalmente dessenwlhante
u11-ra11n1s que desenhou de a11tc·m,10. Neste caso, {- nTto q11e a ('aricat11ra
do p<'culiar humor negro na cxagnada família de prótC'ses ele- Grnndville,
pode atingir um nível elevado <Jll<' fon;osamentc- faltará ,1 revista dc humor.
110 qual lounn,1 t· humor tambfm irrompem simultaneamellt<'. l~ difícil
Representativo disso {- um livro il11straclo com ckseuhos g-1-otcscos com um an·ITar-se disso; a hilaridade, mesmo SC'ndo frívola, r<'dimc daquela
texto do sfrulo XIX situado na virada do romântico parn o tfcnico: l!n longin<Jiiidade que se torna d<'moníaca, na qual o homem<' mais tarde a
autn, 111onrle, de Granclvilk (1811); o autor mo1n·u três anos depois no m;icpiina podem reverter o mu1Hlo. O humor redime da extrema
manicômio. Faz-se aí a haldcac,-ão do velho 1nm1<lo para um novo, <· a artificialidade ou insanidade das figuras mistas abstratas e ainda assim
des<Ti(,'ão dos c·ost11111es dessa troca de crnbarca~·ão mistura-se com cenas rq>n·s<·ntáveis, redime do reino sombrio da incontinência tfntica, da utopia
amigáveis do cotidiano no inf'erno. Na folha de rosto são prometidas: m'gm. Ao mesmo tempo, porén1, o humo,· est;, ol!jctivameutc contido nela:
"Tra nsf'onna tio ns, Visions, I ncarnatious, Asccnsions, Lo,·omot ions ... , como um início do "grotesco", (Jll<' provém tanto lingüística quanto
Mftamorphoses, Zoomoq>l1oses, Lithomorphoses, Mftempsyn>s<·s, factualmcnl<' da "grota" ou do mundo inl'erio1·, sendo pai ou inrn'io de um
Apothfoses et autrcs choscs". Nem todas essas promessas s,10 nunpridas, gargalhar que não pode faltar exatamente no inferno. Alguma coisa disso
mas ao n1enos a cor·tina se abre diante de uma criação intrincaclamentc aparece nas referidas caricaturas, nas caricallu-as do medo da técnica e de
utópica. Encontrnm-se aí homens reconstruídos, dcvoradores duplos, suas próteses. Acompanhadas do sonho angustiante malicioso ou
mordendo com dentaduras na frente e att·ás da cabt'ça. A., ferramentas há escarnecedor, cheio de pavor frente ao desafio da tén1i<-a e ao que ela
muito se tornaram autônomas; trata-se de gigantescos insetos de ferro, tendo provoca. Numa imagem de Grandville, enonnes olhos oblíq11os abrem-se
set is mernbros fonnados por torquesc-s e alavancas, a cabeça por mn rnart elo no céu; todavia, os grandes bombardeadorcs do futuro e a bomba atômica
de feITeiro que assenta rebites ao balançar. Um "Concert à la vapeur" silva, não foram previstos nem mesmo pelo escárnio mais honipilanlt'.
Os pássaros de Aristófanes e o castelo no ar Quem de vós quiser conosco, os pássaros,
A zombaria frente ao novo assume ares de grande importância passar vivendo alegrcmc-ntc
quando tem uma incumbência. Uma incumbência da classe dominante os dias que lhe restam
contra as insatisfações que se alastram e contrn suas imagens. Procura-se, está cordialmente convidado.
então, pan('giiistas dos tempos antigos, que, muito antes de varrerem o Tudo o que vos profüe a lei
novo com seu sopro romântico, golpearam-no satiricamente. A sátira política como se fossl" impiedade,
em si sem dúvida está mais próxima da classe oprimida do que da classe entre nós, uo reino dos pássaros,
pr-oprictá1·ia, que se sente bem com o antigo e· que quer manter-se nele. é- perfeitamente hdo e virtuoso.
Por isso, a zmnba.-ia do mimo siciliano c·erlanwnte existia cnln: o povo, e
lamb{m os autores de comé-dias da Ática antiga não só olhavam a boc·a do Porém, c·m que medida e·sse· natural { belo e· virtuoso pode ser
povo, mas tarnb{m o seu n>nu;ão, ao fazerem rir sobn· o desleixo deduzido do fato de- Arist{>fanes introduzir um camarada <Jll<' emporcalha
tradicional. Poré-m, a rea~·ão durante e após a infeliz gucn-a do Pdoponcso tudo que atravc-ssa seu caminho. Na maldade c·onsumada, na estratégia
levou a que a zomh,u·ia se voltass(' cada vez mais contra o querer-saber- gc-nial de difama<:ão dessa nunédia, cogila-se a promulgat,·,i.o de uma lei,
tudo-rndhor e de modo alg·um contra o antiquado. Sendo que, com meios "segundo a <ptal é- digno de honra quem enfon-ar c· morckr o própr-io
superiores, mobilizou-se tamhé-m o <Ídio do pe<1m·no-hurgu[,s no demm, pai". DcssC' modo, o sonho desc:jante social como 11111 todo aparece aí como
_justame·nle o ódio n>11tra o inusitado e· seu jeilo. Em confonnidade com misttn-a dC' crime e fa..-sa; a sua pn>pria "natureza" m'io tem chiío, a não ser
isso, a primeira s,ítira política foi reac·icm;Ít·ia, di1·igida exatamenh' n>lllra o do vapor das 1111vens. Só f curioso que a bela cidade nas nuvens, esse
utopias; seu meslre, Aristófanes, compôs algumas de suas mdhor·e·s co111{dias r<'rlcxo de todas as remotas ilhas da fdic·idade, lenha ap,l!'ecido
;is custas da esperanc:a n·volw·ionária. Fldde.1iritzwas i 111 i t ula-se a com é-dia litenu-iamente pda p1·inwira vez atravé-s do n•nffso ela zomhm-ia.
que zomba do plano das m111l1cres p,u-a oht<'t· o direito ao volo e ela
c·omunhão 1k hens; a outra se chama 0.1 /Hi1.wro.1 e ridin1larit'.a a ulopia J\lr,Rre su-fwmçii,o: a V<Ta historia dP /,uciano
socialisla nuno tal. Ali,ís, a alnmha "cast<·lo 110 ar" (t/{ji,lolwld!ygia) 18 lkscle tempos anligos narra-s<' a n·spcito da vida mdho1· como se ela
remonta literal111e11te a 0.1 f)(ts.1r1,nJ.\, como a maio1·ia das imagens .F1 existisse· c·m algum lugar. Tamh{-m coisas estranhas podem parecer
ln1111orístin1s no estilo ~nm'c·om que· desde então o assim chamado Estado melhores, por serem ao nH·nos dil"crcntes e inauditas. A fonua em que
<lo rut11ro t<'lll sido contemplado. Dois atenienses sngcn·m aos p;bsaros essas <"Oisas s,io 11,uTadas é o livro de viagC'ns ou C'lllão narrativas do gênero
que limdem urna cidade nas 11uvc·11s, 11ão S<'lll a iute·nc:ão ck voarem de·s Simh,í. Tamhém os c·ontos do Estado idC'al fi·cqÜC'nle111c·11tc cleg<'ram essa
mesmos para lá. llm cleks, chamado Peistétairos (Amigo de conselhos), forma; é- porque a terra ela l'diridade sintomaticamente situa-se cm algum
profrre um "discurso de ins1iga1.,·ão" dir-igido a pinlassilgos, ahdh<'i1-os c· h1ga1·distante. Numa ilha r<'mo1a, em algum mar do sul; as marnvilhas que
andorinhas; de os instrui, dizendo-lhes <Jll<', c-11111111 passado remoto, eram se c·o11ta sobre ela são ddihcradamc11tC' n;10 verificávl'is. A zombaria mais
eks <trn· dominavam o mm1<lo em lugar dos deuses e cp1e ckveriam voltar divertida sobrC" esse tipo de m<·ntira consta na Vi:ra historia de Luciano, que
a fazf,-Jo. O outro, chamado Euflpicks (O que c·sJ><Ta nl11lia11te), nf tola c· ali.is serve de modelo pan1 Münd1hausen. Gottfried Biirger lirou daí
li.dmcnte na Jimdac:ão da cidade no ar, na nefr'lolwkl<ygía bem lá no alto, algumas histórias quase lit<·ralmcnl<', e· Tomás Morns, que traduziu os
entre terra e cé-11, delendo o controle sobre an1bos. O Estado dos pássaros diálogos de Luciano, não se deixou demover da id{-ia d<' cntn·tccer a sua
deverá toniar-se o reino da liberdade: disciplina e mm·al foram banidas Utopia igualmente com histórias desfiadas por· ,muinhciros. Também a:,;
dele, quem governa é a "natureza". Bem no sentido da pdmazia da maravilhosas imagens gigantes de Rabdais (o mundo na boca ele Pantagru<'l.
"natureza" sobre o "estatuto", cou10 o csclan·c·in1ento sofista a havia formado por vinte e cinco reinos tc·n-euos habitados, não coutando os
ensinado, o di1igentc do coH> dir-ige-se aos espc·c·tadorcs: desertos e uma vasta extensão de mar) tiraram bom p1uvcito da Vera historia;
e Rabelais é o único que superou Luciano no aspecto grotesco, a saber, na
dimensão do Renascimento. Ao mero gozador Luciano, vivendo numa
sociedade decadente, ceticamcnte destnlliva, faltava de todo a grandeza ela
-IB Literalmente Wolkn1kud1uch,heim signific-a "a casa do cuco nas nuvens" e é tradu\·ão zombaria utópica; o seu ceticismo fez com que se co1~jurasse justamenlc·
quase litc-ral da c-xpressào gr<'ga. com o elemento desregrado, o único que dava resultado com os clientes
do milagn'. Não sem que a fabulação fosse ridindari.t:ada por ta11to tclllpo s;it írico sol>!'(' 11H·11tira e histórias fantasiosas. Todavia: quando o mn I adoi
que a zombaiia chegou a imitá-la e até superá-la, fato que ocorre co111 verdadeiro aporta, então, numa cidade rnaravilhosa, ele faz dela 111ll;1
bastante freqüência com a ironia. Desse modo, Luciano proporcionou uma descrição de mau gosto pela quantidade ck encantamentos, e o país das
história fantasiosa sobre coisas inexistentes, ela própiia quase utópica, bem maravilhas acaba se compondo de nada além de impossibilidades. Nes,w.~
de leve, sem prc-ocupação, como o faria um habitante das própiias ilhas da termos, o estilo de Luciano até proporciona um antídoto bom, ou s<:ja,
felicidade. Ele pretende, como diz a ambiciosa introdução, seguir os passos divertido, contra os poetas que mentem, contra os Münchhausens <)li<'
dos grandes mentirosos, liderados por Ulisses, mas também dos poetas, formulam utopias. Contudo, uma coisa{: um Münd1hausen ocasionalmente·
filósofos, historiadores e sobretudo da geografia kndá1ia. Ele zomba lançar mão de utopias para incrementai· as suas fanfanices de caçador.
especialmente de Júbulanle.1 do tipo de Antônio Diógenes, que, em nada outra bem diferente é um utopista n-cmn·r a prodígios ele viagens parn
menos que 21 livros, havia versado sobre (h milagres além de Tule,1. Luciano dar um colorido mais intenso à sua ilha da felicidade. As intenções ck
declara sobre esses sucessos: "N;"io os acuso po1· seu car·átcr mentiroso; o ambos são fundarnentalmcntc distintas, assim como são metodicamente·
que ruc surpreende, no entanto, é- que n,10 temiam ser postos a descoberto. distintas as bufonalias de Miinchhauscn dos contos eom final frliz de um
Desejando t(·r parte no 1111111<10 dos escritores e mentirosos, e sendo incapaz Tomás Mon1s. Mesmo o utopista mais abstrato não tinha em mente nada
de narrar fatos (pois nada ele relevante sucecku comigo), dcdan> ck impossível, mas puramente possibilidades, por mais que a verdadeira
antc1não a única coisa vcnlackira, a saber, que contarei mentiras. Desse história destas ainda estivesse na pior<' por ,t<·ontecer. Niio cxiste um rio
modo, portanto, inicio com aquilo cpu· n,10 vi nem ouvi e, mais ainda, cm que c·on-a vinho, mas sim mna fartura transbordante· parn todos, que
escrevo sobre coisas que· nu11c1 oco1nTan1 e j;unais poderiarn oc·orrcT". igualmente não existe, mas que, da mentira divertida, passa direto à
Nessa linha, zombando até da possihilieladc dc existtncia de suas próprias cotHli<Jio de tarefa elas mais prazentcirns.
terras fantasiosas, Luciano vdc:ja, acompanhado de mais ci11c1ücnta
111e11ti1usos, para além das n>hmas de I Iérn1ks. O mundo conlwrido fica lmagen.\ do rle.1,,jo e,\ponl<weamn1fe h11111orf1fil'a,1
para tr,ís (na medida em que dc 11,io é n·lletido de t('mpos cm IC'mpos pela Por tíltimo, há sonhos antecipadorcs que acrcclilalll <'Ili coisas novas
lua, 11m espdho da tcrrn pendurado 110 eéu). E na terra dcsconhedda e, aincla assim, riem-se delas. Eles o fazem espontaneamente, não
existe tudo o que Tfü1talo cksc:ja e Zeus lhe nega. Luciano valeu-se de motivos uen·ssitando de zombadores vindos de fora; eks_j;í naseem humorísticos, e
de sua p,ítria síria, que reaparecem mais tanlc cm A\ mil e u11ul r1oile,\, isto justamente porque neles coisas que existem se deslocam ele forma
como, por exemplo, nas histórfas de Simbá, o man~jo. Aparece um tipo ck .\111fm'n1rlente, tendo futuro em toda parte e não sendo apenas cridas como
p,íssaro chamado Roe, um pl·ixc gigante que engole o haffo ck L1Kiano {' verdadeiras. llma forma hastante divertida ele faz<'r esse jogo {:
outras gl61ias do ten-or. Ademais, encontram-se motivos etílicos, motivos pn>po1Tionada pda fonnac;ão ck seres vivos trocados. Maurice Renard
de Vinlar1rl, que reaparecem somente na Idade Média, em kndas de viagens providenciou isso com uma faca, no romanc·e de t<·n-or Dodeur /,erne, que
e imagens de descobertas. Pois na ilha, situada além das n>hmas de trata ela troca de cfrebros. Um mé-dic-o implanta cén-hros de bezerro em
1 Ifrcuks, o vü~jante vê pegadas gigantescas, as de Hércules e· as de Dioniso. cdhiios de leão, cérebros de maGH'O em crânios humanos e vice-versa.
Seguindo as últimas, ele chega a um Iio de vinho, com peixes que produzem Desse modo, ele modifica e mistura as espécies; o seu próprio sobrinho se
embriaguez, com rnulheres na sua margem, parcialmente transformadas eshalda 110 corpo de um tom-o, no qual ele havia implantado o cfrebrn
em videiras e que por isso provocam dupla embriaguez. Por seu turno, desse sobrinho. Muito antes disso, o médico niminoso havia matado a si
Luciano indica aos moradores da lua o ar liquefeito como bebida, 1700 próprio e implantado o seu cérebro na cabeça de seu grande mestre, em
anos antes de sua fablicação, enquanto (para qu<', apesar disso, o absurdo nüo corpo ele agora estava vivendo. Se isto é sátira do des{:jo eiiúrgico,
predomine) aranhas colossais c·obrem o espaço entre a lua e a estrela da então ela torna-se erótico-elétrica com Villiers de l'Ilc Adam, no romance
manhã com uma teia trausit,ívd. Porém, muito mais esquisito é o seguinte: L 'F11e future, de E<lison, um tipo de tenda de- quermesse que apresenta
o navio da mentira está a caminho na sua viagem pelo Atlântico para sereias mecânicas, mas realmente vivas. O que se naITa aí é a ciiação
descob1ir, literalmente, "onde estaria o limite do oc·eano e que tipo de (recriação) de urna mulher por Eclison, o homem-maravilha nortc·-
homens habitariam a sua margem oposta". Isto já{: mais nítido do que a americano em pessoa. O inventor confecciona para o lorde Ewald uma
famosa profecia ele Sêneca, de que um dia o cinturão do oceano se rompc1ia; preciosa reprodução de Alfria, a amante extremamente bela do lorde.
no entanto, a predição da margem oposta do Atlântico consta num esciito mais bela ainda pela alma de um ser feminino superior, que lhe foi
tecnicarnente adicionada. Puro rnetal, carne perfumada, os novos <"nigrnas 11111a ílorque não existe em toda a terra atual. Ele promete revdaro rnist(:I i11
do microfone, do fonógrafo, da corrente eléttica (L 'E11e fut-ure stu-giu <'III da máquina depois de ter expe1imentado com da também a outra <lin·(;:'1«,
1886) unem-se para produzir o "automate électro-humain". Aí se consuma, do tempo, a do passado. Todavia, assegura Wclls, dessa viagem ele n:i«,
por assim dize-r, o que foi iniciado pelos artistas do automatismo no rococó mais retornou, seja porque teria se detido pelo dilúvio, sc:ja porque tivesse·
e por Spallanzani nas Jfo,tórias de H<iffmarm; pois a nova Olímpia não é ido ainda mais fundo no passado e sido vítima de um ictiossauro. É o
mais uma boneca, mas de fato o ideal cm termos de mulher. Não obstante bastante sobre esse inlcressantc divertimento; de toca virtuosamente co111
Edison, essa linha não é moderna de fato, nem mesmo o próp1io plano: a o conceito popular de lc·mpo, menos virtuosamente com o conceito popular
11irgo optime pnfeda é bem antiga. Ela foi imaginada cm tc·n11os mágicos no de filisteu, segundo o qual, ''.já que o homem niío muda nwsmo", também
mito de Pigmalião, onde Afrodite foi generosa com o <'Scultor, dando vida daqui a milhares de sé-n1los ainda haverá classes. A classe dos ociosos lá em
à <'St.'Ítua sem defeito, ainda nilo incomodada por qualqrn-r dissabor· cima, ainda que knha se· tornado comestível, o trabalhador hí embaixo,
orgânico. Mais adiante, entrando novamente <'Ili tctn·no cômico: 1111111 ainda que c·orn a lÍnica i11tdigê·11C'ia <pie restou, a de criaturas dos canais d<'
fragmento conservado do h11111<H' en1dito romano, <'Ili l'romeltm libertado, esgoto. Porém, de forma totalmente reac·ionária acaba o qua<h-o deITadeiro,
ele M. Terentius Varro, o tit,"i inaugura, após sua lilwrta<:ão, uma Eíhr-ica ele lota! dos morlod(.\, fonwcido por /\!dous I Iuxky, indo ainda além de Wells,
hom<'ns, da qual um rico chamado Sapato Dourado c·ncomc·rnlou parn si c:om o in>nin1 título shakt'spear-iano de Bm1w Nnu World. Ndc, o futuro é
uma mo<;a frita "de leite e· e-era finíssima do tipo coletado pelas abelhas de habitado unic-amente por homens <JUC agem por rdkxo induzido, asseados,
d<'sprovidos de emo~·ão, 11,10 s<'ntimc·ntais, subdivididos nos grupos reflexos
Mileto". A gnH;a, IH> <'lltanto, é a nH·sma <Jll<' a do rumann· ck Edison, e·
dos robôs(' dos lídc-r<'s. Os indivíduos foram abolidos, a soc·iedadc funciona
seu ol~jetivo nmtinna sendo o vdho hom1wc11Ju.,, só que J>I"<><htzido na
como u111111<·c·;111ismo de comando,<· a imag<'m idiota do desc:jo, que I Iuxley
sc·qi'li·m·ia <'Ili forma d<' virgem sintética. O prim<'iro a trilhar um n1111i11ho
apn·scnta como st'11do a dos comu11istas ou dos fascistas, o que para ele
propriamente novo no campo humorístico lll<>pico-d<~trin,, a ponto d<'
supostam<·ntc- cléí no mesmo, é, por assim dizei·, de· mw1 comicidade g1-itante.
tornar-se um <·a111po paradoxal, foi II. C. Wdls com a sua Máquina do fnnf)().
Ela se cks1na11cha ck tal 111;11H·ira em risadas que nem lll<'Slll<> n>11segue
Taml><~m no que se n·f<·r·e ;111,11..-ativa, essa 1rníq11i11a resultou hem melhor
distinguir <'lltrc n1pi1alis1110 mo11opolisla e socializa(,IO dos meios d<'
do que os contos post<'rion-s d<' Wdls, contos do Estado id<'al de nmho
produc;ão. Desse· modo, a h111·g11esia liberal tornou-se incapaz de produzir
liberal e· <·0111 gosto de '';ígua n1111 ,H.,'IÍcar". ;\ máquina do te111po não anda
um humor utúpin>; s11a hrinnukirn acaha scmpr<' em horror e- tolice. Ou,
para a dir<'ita 11e111 p,u-a a c·scp1cnla, mas 1111ica111<·nte para fre11t<' <' para
como d<'rnonst ra o agitador individual I htxky, é capaz apenas do assassinato
trás na linha do tempo, na qualidade de eixo <'spacial não mais imagi11,í1·io.
da c·s1><-ran<:a <· ela antiutopia. lktenhamo-nos, em V<'Z disso, c·m L'E11e
No seu laboratório, o invcnlor pula para dentro do veículo inaudito e .fúlum, c·spc·c·ialnwntc· em A máquina do li'mfH>, na medida em que ela se
din·cio11a a alavanca para o futuro. Em volta dele fica noit<', a saher, a mantive'!" 110 nívd técnico, e· em humorismos similar<'s. Exatamente o
s<'guint<', VC'lll o dia de amanhã, <'lll uma hon1já atinge a próxima semana, socialismo tem lugar para irnag<'ns do cksc:jo cspontarwamc·nte lrumoristicas
chegam o inverno e· o verão vindouros, e con1 a rotação cada vez mais do tipo au1êntico, f'uturo; sim, das pockn"io comporckntro dek um gênero
vdoz da 1rnüpü11a aparece apenas o n:f1cxo do branco e do verde. D{-cadas, próprio de li1en1tnra c·ômica, o dos fJni/eto.1 eji,n1e.11:enfrs I mou.1.~ierenden
séculos siio deixados para tnís em grande velocidade. Por fim, o nmdutor Projekle]. Quando um dia com<'<;ar a aparc•<'<T uma pequena idade de ouro,
desliga o motor rnmia paisagem, que existirá- no mesmo lugar do espa(o então muito ideal se tornará passível dC' exagero, mas nenhum poder.í
<·m que se situava o seu aposento - no ano de 802.701. Ali ele encontra continuar a ser caricaturado.
homens totalmente inofensivos, cujo desenvolvimC'nto estaC'ionou na fase
infantil, cantando, dançando, trançando guirlandas de Ilorcs; debaixo da 32. Happy end, desmascarado e ainda assim defendido
teITa, porém, habitam os morloch, criaturas viscosas e tisnadas, mas dotadas
de- uma inteligência bem superior. Trata-se dos prnlc·tários de tempos Gostaria de dançar um caru:ii,
passados, e as pessoas das flores são os ricos idiotizados pelo ócio, que tão atrevido como a Pompadou/',
agora são mantidas pelos morlocks como rebanho, como reserva viva de /Jois nós, brotos de Pari 1,
carne. Depois de enfrentar muitos perigos, o viajante do tempo retorna só jwnsamos em l'amour, l'amo'/11
do ano ck 802.701 para junto dos seus amigos atuais, trazendo na mão Offen hach, Vida parisi1•·11.11·
O balconüta fa11tbh11 fe111 /,ora,, u11 q11e 11' 1',1101111111111 /}()/1' r/1· 11( 111111 ,. impedido o espectador ocasional de S<T c·o11l<'lllJ>lado. Sim, em tn 1110·.
11u:1gullwem cÚJce; viagm; de;on/w;,- então, é como ,e lhecail.11:m 11Í11/1'1'1 in, 11 capitalistas, o hajJfJY mrl torna-se tanto mais inconton1ávd, quanto mc·11oi n
libm; ;obre o conuJio, pm ter_fu;ado p1e\O de,de a juventude debaixo cÚJ ,\1'11 Mo tiverem se tornado as chances de ascensão social na atual sociedade, quanto
<orno 1u11 cacho1ro ú, banaut,, Quando o que ,1e ;abe do mundo vem apena., menos espera11ça esta puder ofrreceT. Adiciona-se aí a dosagem "moral"
de li1110,1 inan11f1f,,to,1 de jJ<ljJI,/ de nnbrulho, quando ,e conhece o pôHúnol aproa;, do final positivo; pois nem todos se tornam ,icos <' felizes; tal quantidad«"
fJ1do q,u, ,,e 11iu da janeht do Ih reo, 0,1 anebói., apena,, pela, narrativa; de de a(Úcar não está disponível nem mesmo no mundo dos magazines. Apc11a,
diente,1: ai fi,a um 11aziojJ01 dn1//o de tal Ol{lem que nnn co111 todo, m barri, deól,eo ao virtuoso está resc1vada lnna conta ba1u-á1·ia, ao petvt'rso, <' apenas pa1;1
do,11d, ni,m,-0111 todm o,, barrú de,,anlinha,, do nmte -1econ,er;uepreenche1; <'lc, <·st,Í rcservada a miséria; dessa fonna, ocotH' uma das mais insolcn!I·,
qu;; nnn co111 Ioda a noz-mo,11 ada da Índia.\/' cm1,egue ternpe,ar. inversôes da sitrnt(,io H'al. O I lotei elo l lomem Rico é habitado de alto ;1
Ncstroy, lê'i nn1J11x ruill r•r sich rnachen baixo apenas pelos bons; as coisas ruins <'Ili proliisão, porém, a fome, as
Ewdas, as prisões, que a sociedacl(' dominante não ('Olls<·gue eliminar e
Sabe-se muito hem que as pessoas <1l1en·m ser enganadas. Isso, po1·ém, n<·m mesmo negar, são ap1up1·iadamcntc atribuídas aos moralmente mau~.
não ocorre apenas ponpt<· os tolos são maio,·ia, mas porque os homens, T1·;1ta-se dos s<·nrn>cs dominicais da dcvo(:ão ladina, que avançou para a
nascidos para a alegria, mio ti'·m nenhuma, porque eles damam por alegria. hipon-isia total, ademais parn a inchístria elo cosmético. Ma1x diz: "Se o
1:: isso <)li<' faz com que temporariamente também os mais espertos se tornem dinheiro vem ao nnmdo com n1anchas Haturnis de sangue numa das faccs,
simplórios <' ingtm1os, <' se deixem atrair pelo brilho, e nem mesmo é o capital vcm pingando sangue e Sl~jeirn por todos os poros, dos pés ;·1
11en·ss,írio que o brilho s<:ja prnm<'ssa ele omn,já pode se,· suficiente <pt<' cah<'(,'a"; portanto, quanto n1ais passa o l<'mpo, tanto mais máscara <:
de reluza. O dano torna sensato, mas logo a fü1sia atua novanwnte e espera 1wn·ss,íria para o final, para a felicidade do bom c·omportanwnto no final.
11,10 ser enganada dessa vez. Ela se mantém prepa1·,ula para a hora da Porém, o lwjJfJ)' n,d não se tornou ap<'nas mentiroso, mas tambén1 raso
vcrdad<' <' não quer dcix,í-la passar em h1·,111co; nesse Ínlcrim, por{-111, como em nenhun1a outra época; de S<' limita ao com<•ffial sorridente do
conti11rn1m <T<'s<·enclo crian(,'as novas, não escaldadas, novos enganadores a11to111,ívcl e do peifnnw. Cavalheiros e damas hnn-apcssoaclos mostram o
high fifi' dl' uma sociedade em dccacltncia, sem <Jlle lll'SSl' final se aglutine
co11tin11am atingindo um ponto fr,u·o, que igualmente poderia S<'I' 11111 ponto
a do<:ura da viela como no rococó. A pn>pt-ia frli<·idacle da ri<Jueza burguesa
forte. Pois a ,Ínsia tem um fraco pda J'cliciclack, cnlim, pdo riso, e não
tor11011-s<' tão grosseira quanto vazia, a sua lwf1út1P,1,1, na vcnladc, avizinha-
co111pa1·tilha da opinião 111alt1·atada de que raram<·nte se· seguiria algo
Sl' mais do nada do que os próprios mortos. Apesar disso, esse hafJPJ erul
mdhoi-. A utiliza(,-ão do ponto li~H'o n.10 precisa n<·n·ssariam<·nt<' oc-01n-r
11H·nt iroso<· prescrito defrauda milhôes, ()li<' são H'Ssaffidos pela consolação
da parte dos ckfraudadores, de pequeno 011 grande calibre. Em toda parte
do além proporcionada pela Igreja, e ele é pn·snito apenas p<ff <·ansa da
se pron1.-a enkitar as coisas; os livros ruins c·stiio ch<'ios disso. Mas
f'rauclc. Tcndo a imaginação reiteradamente aquecida, o pohff-diaho, quc
sintomalicamente o a(;líc1r aumenta cm tonto elo linal; d<', por assim diz<'r,
l'lll seus sonhos dourados se alça para as alturas, deve nmtinuaracrcditando
solH' de nível ou ,1 cah{'(:a. A vida { arriscada, mas fwr .,rddo dcv<' valer a
que essc·s sonhos <·ertarnente poderão S<T realizados no capitalismo, ao
pena. Dessa m,111c·i1~1, tamh{-m o que de 1·c·slo {- satírico deixa-se impressionar
menos no capitalismo somado com pacitncia e algum tempo de espera.
pdo dito "tudo está hem quando acaba hem".
Entfftanto, para o homem humilde não há ganhos na bolsa de valores da
Muita coisa fala a favor de, 110 final, <"<Htd<'nar pum<' simplcsm<·nte a
vida; todo cor-de-rosa ,l('aba para de numa sexta-feira somlnia. Os fogos
aparfncia. Em vista da desgra(a qu<· causou <· hc~je c-ausa ele maneira de artifício capitalistas são muito engenhosos, não só cm termos ópticos; o
crescente. O11de o trabalho não propoffiona mais nenhuma alegria, a ,u-te nnmclo socialista dificilnwute pode acompanhá-los. No entanto, depois de
é que deve desempn1har o papel de dive1·são, logro engnu,:ado, lwjJjJ)' end todas as se1pentes faiscaHtcs e caixas de estrelas, das bombas venezianas de
simulado. É isso que mantém os ouvintes ligados; no final da luxo e da rainha da noite, seguem as poderosas bombas de impacto dos
VollogetnetnJcluift., a "comunidade do povo" fascista, 011 do American wa_'}' <!/ canhôcs, e isto é o ponto alto assim como o grande final da coisa toda. O
lifi', todo mundo levará alguma coisa, e isto sem qu<· se precise modificar a que quer que o capitalismo desfralde como happy end, negócios como
mínima coisa na realidade dada. Os frcqüentadon's do cinC'Ina e os leitores nunca, pangermanismo, America fint, mesmo o heep -1tniling, leva para a
das histcírias de magazines vislmnbraram ascensôes sociais cor-<le-rosa como morte. Da maneira mais rude possível, o belo no mundo dos túmulos
s<· li>ss('IJl a regra na sociedade atual, e como se apenas o acaso tivesse caiados trnnsforma-se no começo dos horrores.
E, apesar de tudo, isso é apenas um dos laclos ela apari·111·ia, o bdo l1,111slún11a a barreira num degrau, pressuposto que o CHIiro lado, ;1
falso. Um impulso impossível de ser ignorado atua na din·(:;ào do 1111,il ldi('idadc do ol~jetivo, continue sempre presente no caminho. E o exarn('
positivo; ele não está restlito à credulidade ingênua. O fato de engan,ulo1 '"' indispensável das leis que regulam a economia autoriza a afinnar: essas
se aproveitarem desse impulso refuta-o au fond tanto quanlo o "socialisla" leis, reconhecidas e aplicadas, possuem potencialidade para levar até um
1-lillcr refutou o socialismo. A capacidade de iludir do impulso para o lw/Jj1v final feliz. Portanto, o socialismo nem precisa de empréstimos de outras
end apenas desabona o estado em que se encontra a sua racionalidade; cores, outros coslurncs, outros poderes, corno se a sua própria cor não
este, porém, é passível tanto ele instrução quanto de melhoramento. O fosse suficiente. Ele não precisa disso, sobretudo quando essas cores e
ludíbrio aprescnla o final feliz como se ele pudesse ser alcançado num estantes se encontram tão aquém da barreira transposta e já serviram de
hc~jc inalterado da sociedade ou até como se· j,í fosse o próprio h~jc·. suporte para coisas tão distintas que não podem ser facihnente nem
Enlrctanto, ao cobrir ck vergonha o otimismo indoknte, o conhecirnento inequivocamente remanc:jadas. O socialismo, que possui e detém um
não cobff ele vergonha também a CSJHTélll(<l urgcnlc do final feliz. Pois caminho próprio para o !utfJfJY nul, também detém um legado cultural
ess,1 cspcran<;a cst;i hmclacla no impulso humano para a felicidade e proveniente da sua pr6p1-ia fon:a criativa, de seu próprio objetivo pleno,
difirilnwnte podcr~í ser clcstruícla, e c·om sulic·icnh- dareza ela sempre foi sem pelúcia, sem acanhamento intelectual. A burguesia nco-rica da segunda
11111 motor· ela história. Ela o foi como expectaliva e instiga~·ão para Ulll metade do século XIX não se satisfez com o que tinha de próprio; por isso,
ol~jelivo positivamcule visível, pelo qual impot'la h11ar, e· dá um impulso da p1u111ovcu o adtTe(,·o e a con1pensação coni lacinhos, coherlinhas, casas
para frente 110 tnrnsnll'so rnorn>tono cio tempo. Não 1i:>i somente mna vez e quadros cannúlados, orna1nentos incompreendidos, fachadas senhoriais,
que a fin:ão de um ltajJfJY nul lransformou uma parle- do nn11Hlo, a saber, hisloricismos; e a compensação correspondia a isso. Tudo isso está a milhas
quando c-la tomou conta da vontade, quando a vonlack havia tirado a lição ele distância do socialisn10, que mmc1 lavra com o novilho alheio, que
t,mto elo dano como da C'SJwrança, e quando a realiclack n,io H'j>H'senlava revda a mascarada e a pomposidadC' no nívd ela crítica social e a condena
11111a oposii;ão demasiado forte; isto significa: o que inicialnwnte ('ra uma no nível estético. Épocas de fundadorc-s I Gnú1rlnzeitenl são corpos
fin,:;°io foi feito realidade. À~ vezes, em virtuclc- de- urna fí- fo1·tc-, atingiu-se· até estranhos, especialmente perceptíveis no socialismo; além disso, da sua
um paradoxo: a vitória do urgente sobre o podc-roso inimigo, cio alegre bela sala de estar ncnlnnn caminho lc-va ao legado cultural. Se politicarnente
sohrc o pmvável perverso. Se falta o conl('tíclo volilivo do olij('tivo, então o proletariado revolucioná1io em lugar nenhum faz fronte-ira com a pequena
mesmo o bem provável pennarn·cT irrealizado; mas se o ol~jc·livo p<T111,11wc:e, burguesia, como poderia fazê-lo culturalmente? Tal coisa nunca de fato foi
então até o improvável pode- ser fc-ito 011 ao lll<'tlos lornaclo mais provávd praticada; pois uma pnixis que não tem nenhuma teoria realista atrás de si
para mais tarde. Nem o 1umpi11wnto ela corrente- no seu do mais fraco foi e a seu favor n,10 seria uma práxis, seria algo impossível no socialismo.
exitoso ou é exitoso se aqueles que- a rompe-mm não se ton1arn111 totalmente Sim, nem mesmo o legado cultural auli·nlico é acolhido pelo socialismo de
cônsc-ios cio fHJsili111w1. "antico1n·11te". Os honw11s apcquenam-sc- quando o tal modo que, <·0111c-ç,1tlClo por ele, continuasse-, por assiJn dizer, a constiuir
seu propósito é apequenado; c-m contrapartida, seuelo um prop6sito maior sobre ele como se se tratasse de um pavimento acabado. Mas a atividade de
e mais akgn-, ele se- torna inevit,ívd mun nnmdo <JU<' se de-para apc-nas com construção, pela primeira vez na história da cultura, é moral, é a construção
a c-scolha entn· o pântano e· a n'construção enérgica. de um mundo sem explora<;ão e sem sua ideologia. Nem a cksolação nem
Assim, c·m lugar algum cai be1n para a cor vc-rmclha tornar-se o cpigonis1no caracterizam na scqiih1cia essa obra, mas a combinação
espontanc·amcntc tímida. Qualquer barrci1·a, 1w momento c-111 que é das cores vennelho e dourado, pelo vislo, urna combinação grandiosa e
ywn-ehida como tal, já foi, ao mcsn10 lcrnpo, transposta. Pois _j,í o fato de ousada. O verrnclho contén1, ao rnes1no I enipo, o dourado, que
topar c·om da prcssupôe um movimento quc- kva a transccndt-la <' que o estabelece a semelhant:a c·om o melhor da I radit:ão e sua dimensão
contém scminalmcntc. Esta é a simultaneidack dialética mais simpks no clássica- con10 conteúdo crn crescimento, não como antiga forma local.
fator ol~jctivo, principalmente se ck completa c- ativa a consciência da Por isto: ar fresco e amplitude vasta fazem parte desse final, um final do
barreira. Nessc- c·aso, a c·onsc·iê1H'ia chega mediada ao outro lado, à luta qual não pende mais nenhum lwpf1y end de pelúcia e tampouco do
pelo happy rmd, que já se fazia sentir, quase dava sinal ele si na insuficiência esquema de lauréis do historicismo. No 1io, há um número suficiente de
do existente. O insatisfeito vê, então, simultaneamente, como são ruins as pontos de transbordo prazenteiros para o happy end autfntico; pois este
condiçôcs capitalistas e com que urgência os primórdios socialistas tfm rio corre unicamente através do socialismo. Como já foi obse1vado, toda
necessidade dele, e como pode ser e será hoa a sua continuidade. Isso barreira, ao ser percebida como tal,já foi transposta. Todavia, igualmente
é válido: nenhuma barreirai: ativamente transposta sem que <'SS<' ato s<"j;1
precedido pelo objetivo visado, na forma de imagens e conceitos a11ti-11tic·c>.~,
e sem que insira em relações de igual importância.
Encarar amigavdnwnte o final das coisas: isto, portanto, nem sempre
i: uma atitude leviana ou tola. O impulso tolo rumo ao final feliz pode
tornar-se um impulso intdigcnte; a fé passiva pode transfonnar-se numa fé
ciente e instigadora. Desse modo, pode-se partir para a defesa do antigo e
para a alegre celebraçào de despedida, pois ela convida, em parte, para
comer e niio só para a contemplação. Foi exatamente essa vontade de comer
humanidade enfim soc-ialmcnte possível. A5sim, pois, a verdade, S<"ndo ;1
que agu<:011 a sensibilidade para a barreii·a que se interpõe - na forma da
que prepara o terreno, sendo instrução para construir, de forma algmna <-.
sociedade chula- entre exibic;ão e banquete. Em contrnposic;ão a isso, pessoas
aflição ou gelo. Ao contrário, da tem, terá e manterá a postura do otimismo
cpw de maneira nenhuma ,HTeditarn num lwjJjJy n,d obstaruliza1n a
crítico militante, e este se 01ienta dentro do existente sempre pelo que
transfonnac;,10 do nnmdo cpiase 1a11lo quanto os trapaceiros mdííluos, os
ainda não se tornou existente, pelas possibilidades da luz que possam sn
lrapaceir-os do casamento, os chadatães da apoteose. l fm pessimismo
impulsionadas. Ele produz a prontidão não e1~jeitada e tendencial de ousa,
inc·o11clicional, pol'lanto, promove 11.'io 111e11os os interesses reaciornírios do
o eng,~jamenlo rumo ao c1ue ainda não foi realizado com êxito. Enquanto
que o otimismo condicio11ado artificialmente; este último pelo rnc·nos não
não tivn surgido um em-vão absoluto (o triunfo do mal), o lutjJj~y end do
é tão tolo a ponto de n,10 acreditar cm absolutamente nada. Ek mio pereniza
sentido e do caminho corretos é, por isto mesmo, não só nosso prazer, mas
o arrastar de uma vida ínfima, não empresta à lnuuanidack o aspcc-lo de
lamhém nosso ckv<-r. Onde os mortos enteITam os seus mortos, a amargurn
urna lápide cloroformizada. Ele- 11{10 pn>p01Tio11a ao 111111ulo o pano ele
pode ln lugar com toda a razão<' o fracasso pode ser a condi<;;t<> existencial.
J'undo ktalrnentC' sombrio, diant<' do qual não vale a pe11a l'az<"r mais nada.
Omk os esnobes, como traidores, participaram da n·voh1<:ão até o rnornento
Dikn·11tcment<' de um pessimismo que faz pa1·1e, de próprio. ela poch·id,'io
<'Ili que da irrompc·u, pode ck fato ser nc·n·ss,üio orar ainda mais: nossa
e pode até estar a s<·tvi<;o dda, um o1imismo que passou por p1-ova(c>c·s
ilus.'io de c1da dia d,í-nos hoje. Ornk a conta capitalista não frcha mais em
n.'io n·n<·ga a f'{ 110 ol~jetivo como tal, quando lhe ca<"m as <'sc1111as dos
lugar algum, acptck que est;Í falido pode de fato S<T motivado a derramai
olhos; ao cont1,írio, agora impor·ta cncont rar e· conlinnar o objct ivo co1n·to.
<' espalhar uma p<><:a ck ti111a sohn· o c1den10 da existi-nci;1 romo um todo,
Por isso, h,í mais alc-g1ia e· coisa boa a se c·spc-rar ck 11111 nazista conv<Tlido
para <(li<' o mu11<lo <'Ili seu c·o1~ju1110 fique prelo como ca1vão e· 11enhum
do que de todos os cínicos e niilistas. Por isso, o inimigo mais ffllil<'nt<' do
auditor possa levar o que ag-c 11a calada da noite a prestai· co11tas. Tudo isso
soc·ialismo não é apenas, nnno é c·omJ>1T<·nsívcl, o grande capital, mas
_justa111<·11tc é 11111 ludíbrio ainda pior do que o das fachadas respl<-ndentes
igualmente a quantidade de i11dikn·1u;a, a ausi'·nc'ia de espC'l·a1u.;a; se- não
que mio se· podem mais manter. Ein nmtrapartida, o trnhalho que faz a
fosse assim, o grande capital estaria isolado. Senão não hav<".-ia, apesai· de
histcíria aV,IIH,',11', sim, já há muito a f'ez avanc;ar, conduz para a causa qu<'
todas as falhas na propaganda, essa delonga para que o socialismo inflam<'
1<"111 possihilidack de ser boa, nào como ahismo, mas como montanha para
a esmagadora maioria, n~jos interesses estão do seu lado sem <111e da o
o lút11ro. Os homens, assim como o 1111111do, cun·gam cl<'ntro de si a
saiba. Portanto, o pessimismo é a paralisia pura e simples, ao passo que o
<p1a111idad<" suli<·icnte de futuro bom; ll<'llhum plano é propri,1111C·nte bom
otimismo mais degenerado até pode ser a anestesia da qual ainda se· pode
se 11,10 contiver essa fé basilar.
acordar. Inclusive a satisfação com o mínimo para a existi'·11cia <'nquanto
ek ainda está disponível, a miopia na luta diária pelo pão <' os míseros
hiunfos nessa luta provêm, em última análise, da falta de fé no ol~jetivo;
por essa razão, é nela que é preciso penetrar em primeiro lugar. Não foi
sem motivo que o capital procurou difundir, além do falso happy nul, o
seu genuíno e mais próprio niilismo. Pois ele é o perigo mais premente e,
diferentemente do happy end, não pode ser corrigido de nenhuma outra
forma além do seu próprio desaparecimento. A verdade provoca o seu
desaparecimento, verdade desapropriadorn e libertadora, n1mo a uma

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