O documento discute um livro de Habermas sobre a relação entre naturalismo e religião. Habermas argumenta que (1) as bases pré-políticas do Estado democrático são de natureza religiosa e (2) o Estado liberal depende da integração política entre cidadãos crentes e não crentes. Ele também defende (3) que as vozes religiosas devem ser ouvidas na esfera pública política por meio de tradução de seus argumentos para termos seculares.
O documento discute um livro de Habermas sobre a relação entre naturalismo e religião. Habermas argumenta que (1) as bases pré-políticas do Estado democrático são de natureza religiosa e (2) o Estado liberal depende da integração política entre cidadãos crentes e não crentes. Ele também defende (3) que as vozes religiosas devem ser ouvidas na esfera pública política por meio de tradução de seus argumentos para termos seculares.
O documento discute um livro de Habermas sobre a relação entre naturalismo e religião. Habermas argumenta que (1) as bases pré-políticas do Estado democrático são de natureza religiosa e (2) o Estado liberal depende da integração política entre cidadãos crentes e não crentes. Ele também defende (3) que as vozes religiosas devem ser ouvidas na esfera pública política por meio de tradução de seus argumentos para termos seculares.
Texto submetido em 05/08/09. 67 Entre naturalismo e religio: estudos filosficos
Joo Roberto Barros II joaorbarrosll@googlemail.com Doutorando em Filosofia pela UNISINOS. Bolsista PROSUP/CAPES
Temos neste livro de Habermas, Entre naturalismo e religio: estudos filosficos, um trabalho que surgiu a partir de um debate ocorrido em Castelo Gandolfo, pequena cidade italiana na regio do Lcio que abriga a residncia de vero do papado. Nossa torcida que outras boas discusses como a que otimizou a publicao deste livro possam surgir dessa regio, e que esta no seja a ltima flor que dali venha, tal como dito da nossa lngua portuguesa. Habermas rene alguns artigos j publicados a outros inditos para discutir o tema da imbricao entre religio e poltica. Dedica a primeira e a terceira partes do livro discusso do naturalismo e conta como algumas experincias pessoais de seu passado possam ter influenciado em seu trajeto intelectual. Na terceira parte tambm h um extenso captulo sobre a filosofia da religio de Kant. No quarto captulo segunda parte ele declara que as bases pr-polticas do Estado de democrtico direito so de natureza religiosa e que impossvel negar que a histria da teologia crist medieval, especialmente a da alta Escolstica espanhola, fazem parte da genealogia dos direitos humanos. (p. 116), evidenciando assim uma secularizao das doutrinas crists. Contra a alegao de Bckenfrde sobre a necessidade da ordem constitucional positivada tomar emprestado da religio ou de um outro tipo de poder mantenedor convices ticas pr- polticas para garantir as bases cognitivas de sua validade, Habermas toma como ponto de partida a hiptese de que a constituio do Estado liberal pode obter sua legitimao de modo auto-suficiente, usando de reservas cognitivas, as quais no dependem de tradies religiosas nem metafsicas, restando ainda uma dvida a nvel motivacional. (p. 119) Habermas reconhece isso porque a disposio de ajudar co-cidados estranhos e annimos, bem como de se sacrificar pelos interesses comuns, pode apenas ser recomendada em sociedades liberais. O Estado liberal depende de uma integrao poltica entre os cidados. Essa integrao no pode ser apenas uma coexistncia ou adaptao e os cidados no crentes no podem exigir que os cidados crentes sejam submissos a todas as leis impostas pela sociedade secular. Na esfera pblica poltica, as cosmo vises naturalistas, no tm prima facie prioridade sobre concepes religiosas ou cosmo vises concorrentes. (p. 128) No captulo seguinte, Habermas diz que a constituio democrtica precisa preencher a lacuna de legitimao aberta pela neutralizao em termos cosmolgicos do poder do Estado. (p. 136) A obrigatoriedade dos cidados do Estado de apresentar uns aos outros bons argumentos gera uma indisposio entre os cidados, porque somente argumentos seculares contam no Estado e os cidados crentes so obrigados a estabelecer, entre suas convices religiosas e seculares, uma espcie de equilbrio tico e teolgico (p. 143). O Estado no pode Joo Roberto Barros II
Controvrsia - Vol. 5, n 2: 67-71 (mai-ago 2009) 68 impor aos cidados um modo de viver que vai contra seus preceitos religiosos, pois seria lhes exigir algo impossvel. O Estado liberal precisa incentivar a liberao de vozes religiosas no mbito da esfera pblica poltica para que os cidados crentes possam contribuir com recursos importantes para a criao de sentido. O Estado secular e laico no pode saber de antemo se a proibio de tais manifestaes no estaria privando a sociedade de uma contribuio importante (p. 148). Para que os cidados crentes possam contribuir para a democracia e serem ouvidas na esfera pbica poltica, suas contribuies dependem de trabalhos de traduo. Sem uma traduo bem-sucedida, o contedo das vozes religiosas no conseguiria ser ouvida nas negociaes das instituies estatais, impedindo uma influncia no processo poltico. A exigncia de traduo serviria, debatendo com Nicholas Wolterstorff, para que a esfera pblica no sofresse uma abertura do parlamento para a disputa em torno de certezas da f, podendo transformar o poder do Estado num agente de uma maioria religiosa que imporia sua vontade ferindo o procedimento democrtico. A alegao de que o Estado no um agente de uma maioria religiosa escamoteia uma verdade patente. Creio que justamente abrindo o debate religioso dentro do parlamento que se pode constatar o quanto os argumentos pretensamente racionais esto eivados de premissas de cunho religioso. A alegada laicidade do Estado uma cortina de fumaa que impede a resoluo dos problemas, porque eles so estruturais. Seria com esse debate que formas de vida religiosas poderiam ser legitimadas no Estado liberal e garantiriam seu espao na sociedade. Habermas admite que cidados seculares precisam viver numa sociedade ps-secular sintonizada epistemicamente com a sobrevivncia de comunidades religiosas; para isso h a necessidade de uma mudana de mentalidade. Em contrapartida, as conscincias religiosas precisam adaptar-se aos desafios do entorno que se seculariza cada vez mais. O enfoque epistmico claramente uma caracterstica do projeto iluminista que agoniza em nossos tempos. No captulo nove Habermas tematiza a tolerncia, defendendo que a tolerncia religiosa precursora de direitos culturais. Contudo, uma questo colocada: at que ponto a democracia pode tratar com tolerncia os inimigos da prpria democracia? (p. 283) Os ditos grupos inimigos so admitidos desde que no usem de meios no violentos. No obstante, um exemplo histrico ocorrido dentro da prpria Alemanha no pode deixar nossa memria. O partido nazista era acusado de antidemocrtico pelos adversrios polticos. Hitler mesmo, em um discurso inflamado, admitira isso. No foi necessrio muito tempo para que as prticas violentas dos Nazi fossem percebidas pela comunidade internacional. A curiosidade que os Nazi formavam um partido eleito pelo povo e era antidemocrtico. Defender a no violncia por parte de grupos no democrticos uma ressalva interessante para a garantia da democracia. Voltando ao debate acerca das religies na esfera pblica, no momento em que cada religio considerada uma imagem de mundo que confere sentido aos acontecimentos do mundo, as sociedades pluralistas devem exigir que as comunidades religiosas renunciem a uma configurao abrangente da vida que inclua a comunidade poltica. (p. 298) Nesse ponto no fica claro na traduo se Habermas est pedindo (1) que as comunidades religiosas renunciem Joo Roberto Barros II
Controvrsia - Vol. 5, n 2: 67-71 (mai-ago 2009) 69 internamente a sua imagem de mundo ao entrarem na esfera pblica, ou (2) se apenas pede que essas mesmas comunidades no reivindiquem que sua imagem de mundo subordine a da comunidade poltica laica. Falta-nos o original em alemo para conferir. Se se tratar do segundo caso, completamente pertinente. Se se tratar do primeiro, estamos diante de uma exigncia descabida, sob pena de impingir uma violncia irreparvel s comunidades religiosas que habitam em sociedades modernas hoje em dia. A grande questo que o peso da tolerncia maior para o cidado crente, pois ele lida com uma bagagem metafsica maior e no capaz de aceitar uma fundamentao livre como o cidado no-crente o . A esfera da justia menos problemtica que a esfera da tica para um cidado no-crente, pois ele se vale de uma caracterstica formal da justia que tem preferncia sobre os contedos particulares ou de grupos. J o cidado crente norteado quase exclusivamente por contedos, o que dificulta reconhecer outros juzos ticos como vlidos. necessrio (sollen) respeitar os diferentes etos, porque exigir que um cidado crente viva como um no-crente sem a perspectiva de uma vida futura ou de um julgamento final to asfixiante quanto exigir de um no-crente que ele viva sob o crivo de uma doutrina de f que no lhe confere sentido. Para Habermas a liberdade de religio constitui uma prova para a neutralidade do Estado; seja por minorias radicais, ou por uma maioria aculturada que determina o que deve valer na sociedade pluralista. Cabe ressaltar nesse ponto que a fuso de uma cultura da maioria em nos procedimentos da esfera pblica a coloca em risco, justamente por levar a uma substancializao furtiva da compreenso de uma constituio, nas palavras de Habermas (p. 295). O alerta ressalta a figura essencialmente formal da esfera pblica que defendida por Habermas. Em seguida, Habermas cita Grimm ao colocar vrias questes do cotidiano europeu que ilustram bem os princpios abordados at aqui: Pode um sikh que dirige motocicleta apelar para o seu dever religioso de portar um turbante, a fim de eximir-se da obrigao geral de portar um capacete de proteo? imperativo fornecer a um prisioneiro judeu alimentao pura? Ter um operrio islmico o direito de interromper inopinadamente o trabalho para fazer oraes? Pode-se demitir um operrio que no comparece ao trabalho nos dias santos de sua comunidade religiosa? [.] Deve ser permitido s alunas islmicas portar na escola o vu na cabea? [] Deve-se admitir, nas cidades alems, as conclamaes do muezim, transmitidas por alto-falantes, da mesma forma que o dobrar dos sinos nas igrejas? (p. 294-5, n. 14) Habermas defende, com isso, que o reconhecimento do pluralismo religioso pode assumir a funo de modelo porque ele traz conscincia a pretenso de minorias a incluso. Passando ao captulo dez, sobre os limites do liberalismo ps-moderno no que concerne aos direitos culturais iguais, comea uma discusso sobre as bases tericas do liberalismo clssico. Esse lana mo dos conceitos do direito moderno para proteger a liberdade do indivduo, ressaltando que a autonomia poltica dos cidados do Estado (Staatsbrger) no constitui um fim em sim mesmo, uma vez [que] se mede pela tarefa de assegurar a autonomia privada simtrica dos cidados da sociedade. (p. 301) Joo Roberto Barros II
Controvrsia - Vol. 5, n 2: 67-71 (mai-ago 2009) 70 O maior perigo que, passado tanto tempo, voltemos quela relao ntima entre procedimentos formais e eticidade substancial, to rechaada por Habermas, que gera uma interpretao dos direitos dos cidados que insensvel a diferenas culturais. Um exemplo oposto muito interessante um caso julgado pela Suprema Corte dos Estado Unidos que aceitou a queixa que uma comunidade amish do Estado de Wisconsin, garantindo uma exceo coletiva do dever geral de frequentar a escola durante dez anos seguidos, porque os filhos iriam ser confrontados com material de ensino considerado incompatvel com a imagem de mundo, o modo de vida e a sobrevivncia da comunidade religiosa. (p. 333) Podemos perceber que esse caso idntico ao das escolas itinerantes do MST (Movimento dos Sem Terra) que ensinam um contedo prprio daquele grupo, refletindo uma viso de mundo que vai contra o direito de cidadania formal, mas que aqui no respeitado pelo nosso sistema judicirio. Habermas alega que nenhum direito de grupos pode colidir com os direitos fundamentais de membros individuais de grupos. Segundo a cartilha liberal, os direitos de um grupo apenas so legtimos se puderem ser derivativos, ou seja, deduzidos dos direitos culturais dos membros dos membros singulares de grupos. Partindo desse ponto, a represso s escolas do MST vem da posio de que os ativistas do grupo no tm nenhum direito cultural de interferir na formao escolar das crianas. Essa posio se d justamente porque os contedos ensinados para as crianas no so reconhecidos pela nossa sociedade, que uma legtima Gesellschaftsbrger, exigindo um pretenso contedo laico e universal, mas que representa uma cultura de um grupo majoritrio. Isso fere o direito de repassar s futuras geraes a cosmoviso daquele grupo. Habermas ainda est atrelado primazia dos direitos individuais frente aos direitos coletivos. Os direitos coletivos e as tradies s podem ser salvaguardadas por meio de direitos individuais. Esse argumento est embasado em uma concepo de sociedade contratualista, na qual o particular tem precedncia sobre o todo. Um caso que suscita a defesa do contrrio o caso das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) no Brasil. As CEBs proporcionaram a populaes pobres uma leitura da Bblia a partir da realidade social que vivida. A Bblia, assumida e lida com autonomia pelas pessoas das CEBs, torna-se um meio para a construo de uma identidade que foi muito combatida pelos defensores dos procedimentos formais da esfera pblica laica. Essa identidade construda a partir de uma matriz religiosa tornou-se um potencial de motivao para o agir. O criticismo interno sob a face da primazia dos direitos individuais so satisfeitos a partir do momento que uma identidade construda pela apropriao de um texto religioso. Essa identidade individual e de grupo tambm, j que a autonomia nesse caso encarada no sob o espectro do atomismo social do liberalismo moderno, mas sob o reconhecimento mtuo e substantivo dos pares do grupo. A identidade construda a partir do coletivo e o indivduo no independente. O sentimento de pertena essencial aqui. Mais adiante, Habermas enfatiza que a tolerncia no o que se deve exigir do racista. Desse exige-se apenas que ele vena seus preconceitos. Contudo, diz que para isso o Estado deve lanar mo da maior neutralizao possvel (p. 343), o que julgamos inapropriado para uma sociedade ps-secular, pois Joo Roberto Barros II
Controvrsia - Vol. 5, n 2: 67-71 (mai-ago 2009) 71 as comunidades religiosas [tm] interessede se afirmar no interior da sociedade moderna e de obter condies para exercer, atravs da esfera pblica poltica, influncia na sociedade como um todo. Por meio da participao nas controvrsias nacionais sobre questes morais e ticas, as comunidades religiosas podem promover uma autocompreenso ps-secular da sociedade em sua totalidade, a qual permite entrever uma continuidade vital da religio at mesmo num entorno que se encontra em franco processo de secularizao. (p. 344) Para ns, o etos reivindicatrio da comunidade religiosa est relacionado uma compreenso ps-secular de sociedade. Dois passos do movimento dos grupos minoritrios podem ser identificados: (1) resistncia para sobrevivncia e (2) avano e participao poltica no espao pblico. No nosso entender, a esfera pblica contempornea, no que compreende seu modelo, carece de um componente motivador que no simplesmente de carter epistemolgico. Ademais, o peso que cidados crentes carregam atualmente maior que o dos cidados no- crentes (e isso Habermas concorda), pois a argumentao do cidado crente perpassada por contedos metafsicos que so inaceitveis para o no-crente. Esses contedos por sua vez, so indispensveis para os cidados crentes e no se pode alegar que uma simples traduo pode resolver essa querela. justamente esse ato de traduo que descaracteriza o contedo dos argumentos do cidado crente e o coloca em uma posio de desfavorecimento. No mais, a traduo apresenta alguns erros crassos de ortografia e no condiz com a boa qualidade da discusso que tematizada na obra.
Referncias
HABERMAS, J. 2007. Entre naturalismo e religio: estudos filosficos. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro. 399p. HABERMAS, J. 2007. Between naturalism and religion: philosophics researches. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 399p.