Você está na página 1de 196

3ª Edição

David Le Breton PAPJR U


e 1999, E.dltions J\.tétama. Patas
T!1uto da edição Mlglnal em francês.: 1. 'adieu av corps

CâP"a: Fernando Cornacchla


Cooroo11ação: 8ealt1z Matchosinl
Diagramaçtio:OPG lida.
Copléesqua: Lúcia Helena laho? Mororn
RevlsJo: Maria. Lúcia A. MaJer
Solarige F. Pemeado

'Da.dos lntoroac.iona.ls de Catalogação na PUbllc,açã<) (Cffl)


{Cãmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
le 6rolon. David
Adeus ao COl'l)O: Antropologla e sooledade/ David Le Breton;
tradução Marlna Appe11:teller. - Campinas, SP: Papirus, 2003.

Bibliografia.
ISBN 85·308•0724•3

1. An!.ropologla f11o11Óflca 2. Antroi;oiogla socfal 3. Corpo humano


(Filosolla). 1. Título 11, Título: Antropologia e sociedade.

lndi-ee para catálogo sistemático:

l . Corpo hu1?1ano: Antropologia o sociodado: Sociologia 301

31 Edtção
2008

Prolblda a reprodução total ou parcial


da obra de. acordo com a lel 9.610/98.
Editora afill.ad.a â As!roCiação !3rasilolra
dos Direitos Reprográficos (A8DR).

DIREITOS RESERVADOS PARA A ÚNGUA PORTUGUESA;


O M.R. Cornacchta Liwaría e Editora ltda. - Papfrus Editora
R. Or. Gabriel Periteado, 253-CEP 13041-305- Vila JoãoJoig.e
Fone/fax: (19} 3272-4600 - Campinas - São Pauto - Brasil
E•ntall: edl tora@ p apl rus.com.br - www.papirL1s.com .br

Material con1 direitos autorais


S UMÁl~IO

PREFÁCJQ 9
Daniel l.in 'í

INTRODUÇÃO: O CORPO 10 RASCU NHO ······················································· 13


O ódio do corpo .... ...... .. ............. ..... ...... ... ......... ...... ....... .. ..... .... ... ........ ......... ... ..... 13
O cor o alter e o .............. ... .... ..................................... ... ......................... ........... . 15
A inven ão do cor o ................................................... .......................................... . 17
O corpo co1110 excesso ......................................................................................... . 20
A prog ressão da obre, ···· ····•········································ .......... , ..................... ..... .... . 21

27
Sobre-si 0 ..... ......................... .. . ............................... ...................... . 27
D01ní11io do c:or 0 ....... .. ... .. ... ... . .......... .. .............. .... ... .. .. .. . .... .. .. .. .. .......... ....... .. .. .. . 30
O tra11sexualisn10 ou o ora do se.,·o ..................................................................... 32
1'v/arcas corporais ........·········..................................········ ·········· ··· ····· ···················· 34
Bod buildin ....•••••..• •...... •.. ......•. .....••.• ... .•................. ....•..... ..•..... •.......• .. ............. 40
Bo<.I art ................................................................................................................ 44
O c·o,·po pa,-ceiro ......................... .................................. ~ ....... .. ................ ............ . 52

2. A PRODUÇÃO FA RM ACOLÓGIC.I<\ DE sr .............................. .......................... 55


O órgão ele luunor ................................................... ............................................. 55
A 111edicalização d o hu111or cotidiano .................................................................. . 6 1
Produ orrnacoló ica de si ............................................................................. . 64

3. A MAN UFATURA DE CRJA NÇAS ········· ........................................... ; .., ............ 67


I\ a.ss1.s1e11c1
. .a 111ec.
- , ,ca
· a) p rocr1açao
. - .... ..... ... ... ... ...... ...... ...... ... .... ..................... ... ... . 67
O cop o indesejável da 111ulher: A gestação fora do corpo ................................. 75
A 111ulher corrigida pela 111C'dici11a ········································................................ . 78

Mat d rertos auto; a,


,
Urero de aluguel ···············································•·······•·····•····················•················ 81
Graviclez. ,,,asc,,li11a .............. ,.......................................... ...................................... . 83
. ~

84
A i11 venç<io do e,,-, br1ao ....... ...... ..... .... ..... ......... ..... ......................... .. ... ......... ......... .
O exa,nedea tidão ara a vida .. .... ... ..•••....•.....••.•..••.•....... .....................•.... .. ..... 86
ºd . . · .r. . , , .
1re1 to ao 111;a1111c,a10 ........ .. ............ ... ..... ..... .. ..... ....................................... ...... . 96
I1t1possí ,,el decidir ........... .... ..... .. ............. ............... ......... ........... ...... .. ...... .. .. ..... ... . 97

4. O COR PO RASCUN HO DA S CIÊNCIAS DA V l[)A ······························· ······· 101


1\ i11fo r111açãu co,no inundo .... ................ ..... ....... ........ .... ... ............. .............. .. .. .. 101
O Projeto Ge11on1a .. ..... ......... ..................... .... .. ...... .......................... ........ .. .. ........ 104
.
o enet,ca111e1ue correto ....................................................................................... . 107
Pa1e,11ec1r o ,,ivo ... .. ... ,... ....... .............. .......................................... ......................... 11 8
O co,zt,vle ge11é1ico ...... .. ....... ..... ...... ......... ...... ..... .... ....... ............. ...... .. .............. . 122
. . , .
A de11, 1.111-g , a ge, ie I zca .... ........ ........ ... ..... .... ...... ... ... .............. .... .. .... .. .... ........ .... ... . 127
A clo11age111 011 o ho111e111 duplicado ................................................................. .. 132
T,·(111s4':ê11eJ·e ,111irnal .. ......... ... .... ......... ................................ ....... ..... ...... ........... .... . 136

5. O CORPO SU PRANUMEl{ÁR IO DO ESPA.ÇO CIB.ERN ÉTICO ................... 141


O desdobra111ento do 1111u1<lo ........................................................... ... ... ... ..... .. , .. 141
Firn das coerções de ide11tíclade ................ .. ............ ........ .................. ............... .. 145
A econ.0111ia do 11u11uio ....................................... .................................... ... .. ....... . 146
De,,s virt1.1al ······· ········ ········· ··········· ·············· ······ ········ ··· ···· ········· ········· ···· ········~· ·· 151
.. ,r, , .
O St 154
lfl;Orlll{lllCO .... . ........ . .......... ~ .. .. . ......... .... .... .... ... ... ... .. ...... .. .. . .... ... ..... ........... . .
.
er1a1uras ifi . .
artt 1c1a1s .................... .......................... ....... ............. ,. .......... ...... ,. ..... . 155
. - t·1.e1,11íji1cc, ...... ...... .... .. .. .... ....................... ............ .......... ...... ......... .. ... ...... . . 160
F,cçao

6. A SEXUAI.IDADE CIBERNÉJ'ICA Ol J O EROTISMO SEM CORPO .......... 163


U,11 erotisffto ora do cor o ............... ...................................................... ,.......... 163
O (11110,·do a111J1·óide ., ............. ......................... ................. ................... .................. 16S
í\ se..i:11afidade cibernética 011 o corpo e,11 disque/e ............................................ 170

7. O CORPO COMO EXCESSO ............................................................................ 181


Inteligência artificial ou Clrtiffcios eia i11teligê11cía ............ ............. .................. . 181
A objeção do co rpo ······· ················ ···• ··············•········•··· •·•······· . ............., ............. 187
O andróide sensível e i11relige11re ...................... ........... ..................................... . 194
A pai.:rlio i1,Jor111ática ............................. ..................... .. ... ........ ......................... .. . 198
Homo s1 ·1·1c1u_
. m ............................ ........................................................................ 203
Ciborgue n1a11ifes10 ...................... ......... .. ......... ,. .................... .. ............... .. ......... 207
OJi111. do corpo ............ ~·· ······· ······ ··· ··· ················ ······· ·•· •····· ···· ···· .. ············· ···· ······· 2 10

A BERl~U R_A ...................... ................................... ................................................ ... 22 1

BfBLJQGRAFJA • • ••• • ••••••••1•• • ••1 • • •:t ••••1t t ••• t •:11 11t • ttltfttlt11111t•••••••••••••••••e11111e11eeetttte1ette11 227

M ena e s aut s
.PREFÁCIO

Daniel Lin.s·

David Le .Breton, a11tropólogo fra11cês, professor da U1liversidade


Marc Blocl1 de .Estrasburgo, é um especialista consagrad.o na área de
estudo do corpo: corpo singular, múltiplo, ferido, esfac,elado. Corpo
corno obra de arte em. perigo ..
Autor, er1tre outros, de A11tropologicL da ,ior, Corpo e sociecLades,
A,-1tropologia do corpo e ,,iotlerriida.de, A sociologia elo co,po - air1da
não traduzidos para o portt1guês -eAcleu,s ao corpo, pt1blicado na França
e111 1999, I....e Breton é hoje referência primordial pru·a aqueles que de
Io11ge ou de perto traball1an1 co.r11 o corpo.
Nesta obra., ele traça um quadro rigoroso e inquietador de u111 cort)O
que se trru1sforma c~da vez mais en1 corpo-máqt1ina, se1n sujeitos nem
afetos. Essecorpo-·bricolage1n. resultado de excessos e de1i vas, do que

* Sociólogo, filósofo e psicanalista. A utor, entre ourros, de Aruonin I\Nautl: O arresfi.Q do corpo
sern 6rg0os. 31 ed. Rio de Janeiro: Relu,ne Dumará, 2002.

Adeus ao oorpo 9

Material con1 d1re1tos autorais


o autor chama "o extremo contemporâneo'', oscila entre vor1tade de
controle absoluto e narcisis1110 fttrioso próxi,110 de uma vontade de
potência .n.iJlista (}Ue 1nilita contra o corp-0 pleno.
Segttndo ·Le Breton, o corpo to111ou-se urn acessório! ,
1.1n1a prótese
marcado por un1a subjetivi-dade lixo, uma bu}a, um kit: "E a for1nidável
convergência de práticas relativamente recentes, ou de ucesso rece.11te,
que faz co1n qt1e o corpo seja hoje muitas vezes vivido co1no um âces.sório
da presença (... ). O corpo é um objeto itnperfei.to, u 111 rascunho a ser
corrigido. Vejam o sucesso da cirurgia estética: trata-se de fato de .m udar
set1 co11>0 para mt1dar sua vi.da''. Acl.e1,ts a.e} co,po aponta o paradoxo de
un1a 111odernid,1de ,cujo discurso aparente faz a apologia do corpo para
1nelhor esvaziá~lo, transfom1and.o-o ein n1ercadoría e i1npondo um fora cio
corpo - co1no exterioridade redundante - qt1e díta o simulacro do próprio
corpo. Nw1ca o corpo- imuJacro, o corpo~descaitável foi tão exaltado con10
.na contemporru1eidade . Órgãos se111 corpos sã.o fLXaçôes parciais que
111assacra111 o próprio corpo. Boca, seios. olhos, penias. genjtália esfacelada,
.n1olclada: não se trata mais de ·um corpo, 1nas de un.1 act11nuJado d.e órgãos
colacios em algo qt1e se de11omina corpo. Corpo-pe11eira,. corpo trespassado
pelas flechas (bistt.1.ri), corpo-penetra.do pelas seringas, o sujeito•corpo-
descartável paga o preço de sua beleza. Não falaren10s, pois, de exaltação
do corpo, mas d.o império d.os órgãos. Não, afirma o autor: 'O corpo
exaltado não é o corpo com o qual vivemos, 1nas um corpo retificado,
redefinido", o corpo costurado, coberta aos mjl pedaços re1net1dados.
Para além.da análise aproft1ndadiê1 do discurso cientifico, biológico
ou informático sobre o corpo, o ar1tropólogo apo11ta o perigo cie u,n
disct1rso ele aperfeiço.a1ne11to transfor1nando-o em um cibercotpo - ligação
na Cêlrne do ho.me1n de procedi111entos informativos 11a for1na de chip.
Trata-se, pois, de um s.ab.er científico que se apresenta sob o signo de,
un1a pron1essa messiânica - os velhos ficarão 11ovos, os feios belos, todos
alcançarão a eterna juve.ntude -, etn q.11e algu11s cie11tistas sã.o os "novos
padres'', c1i ado.res de uma "cibersexualiclade". Esta segundo o autor,
po<leria enger1drar na relação com o outro a abolição da própria alteridade:
"O outro é afastado em p.roveito d.os signos de sua prese11ça".
O corpo do outro - corpo a distância, corpo viru1al - pode ser u1n
disquete, un1 progra1na., um site, un1 "Eros elerrôn1co". Q, sexo virtt1al,

10 Papirus Editora
Material con1 d1re1tos autorais
sexo sen1 corpo, exo f~tntasn1ático, torn.a- e o "'bom" sexo, o em-sexo,
o sexo reí ! Não é por acaso, come11ta Le Breton, que "para algu.ns
expoentes da cíbercultt1ra.americana~ a sexltalidade é algo superado. Ele
a co11sideran1 co1110 sujeira", 111ias111a, pt1trefação. À estética do belo a
qt1alqt1er preço, j u11ta-s.e o fu11damentalis1110 ela era virtual.
No momento e1n que. segundo o autor, "a biologia1 a info11nática. a
tecnociência iJUI}Õem a cí.bersexuatidade co1110 rnodelo" - u.m sexo se1n
corpo, u1n sexo contra o corpo -, faz-se necessário, pa1·a 11ão se deixar
habitar por um niilismo en1 ética. retornar à filosofia Revisite,,, obretudo,
alguns tilósofos do corpo, do de ejo e do prazer, oi logía qu.e anu11cia. urn
outro-epidérmico, um corpo para alé111 da consciên.cia e do biopoder
do1nad.ores de produçõe inconscientes de t1n1 saber sobre o corpo que
st1pera a ti.ranía d.e uma estética do corpo contra o próprio corp-o.
O que é arrebatador, escre,1e Nietz..sche, é o corpo: "( ...) não rios
fatigrunos de .nos 1naravill1ar corn a idéia de que o co,po l1u111a110 tornou-
se ' possível' ". 1 Deleuze, por sua ez, na sua rei,1,,eoção de .Es pinosa,
escreve; t'Espi11osa propõe ao ' filó ofo u111 novo 111odelo: o corpo( .. .):
'Não sabe.mos o que pode o corpo' ... (... ) falan1os de co11sciência e de
seus decretos , da vontacle e de seus efeitos, elos 111il meios de 1nover o
corpo, d.e dorninar o corpo e as paixões - mas nós sequer abe1nos de
que é capa.z u1n corpo. Porque r1ão o sabemos, taga.relamos. Como dirá
Nietzsche, espaI1tamo-no diante da consciência, n1as 'o que urpreen.de,
é acin1a d.e tu.do o cor.r o'".2
O corpo é u111a e pécie de escrita viva no qual as força im1)ri111.e1n
"víbrações-i. res 011.ância e cavan1 "can1inbo ". O entido 11eJe e
desdobra e nele se perde com.o 11u.n1 labi1into o.nde o próprio corpo traça
os carni n.h.os.

L F. Nieus,che. Prag1nen1s po.riltunu:s- 1882-1884, vol. IX. P,uis: Oalli1nard. 1997.


Cf. D. Lins. ''A 1nelafísica da carne~. ln: Lins, D. e G:idelha, S. (org .). A'ietzsclie e Dcleu,e.
Que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relurne Dumam, 2002, pp. 67-68.
2. G. Deleuzc. &pinoso: Filosofia prática. Trad. Daniel Lins e Fabien Pascal Ll ns. São Paulo:
Escuta. 2002, p. 24.

Adeus ao corpo 11
Material com d1rc1tos autorais
David Le Breton, a sua maneira, recusa a dicoto1nía Alma/Corpo
aprox.irnando-se de Espinosa: "Penso que o dualismo co n.temporâneo
não opõe o corpo ao espí1·ito ou à alma, mas o hornem a seu corpo". Para
Espinosa, a "Alrn.a e o Corpo estão, pois, simultaneamente presentes, e-
é necessário supor -- simultanea111ente ause11tes. Se a Aln1a é a idéia do
Corpo, não há mais idéia quando não l1á .mais corpo".3
Por outro lado, visto que há signos no pensamento - o pe11samento
emite signos -, o inconsciente en1erge como Lima espé.cie de semióti.ca
pré-verbal, o do.rní11io d.os signos qt1e t1·espassam o corpo, de urn certo
modo, uma linguagen1, ou uma escrita da carne 11a. qual a língua se funda
ao mesmo tempo er1'.l qu.e ela a oculta. Trata-se, pois, de reencontrar o
"sentido da. carne", "o texto pri1nitivo" do l101ne1n "natural", media.nte
uma solicitação sem1)re .n1ais exigente do inco·nsciente em detrimento da
Razão, a louca da casa. Ora, a Razão "11ão pode ensinar nada que seja
co11tra a. Natureza", diz Espi nosa .
.Acie11,s ao co ,po, obra densa, documentada, precisa - porém
acessível - é um grande t1:contecimento editorial no campo da antropologia
cor1ten1porãnea do corpo.
DaVid Le Breton, ao propor uma cartografia d.o corpo em suas
múltjplas d.i1nensões imerge o leitor plen.a1.11ente no universo qt1e
acreditávarnos in1perceptfvel: não precisa.r11os absolutamer1te co.nhecer a
'ficção científi~ nós a vivemos a cada dia, A corps perdi,, irrefletidamente.

3. B. Espinosa. Étlque. U, prop. l3, escólio. Oe11vres co,npletes, trad. .Roger Caillois, M. Frances
e R. Misnilii. Paris: Gallin1ard, 1954.

12 Papirus Editora
Material com d1rc1tos autorais
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
porâneo I retoma o processo e, por sua vez, condena o corpo anacrônico,
tão f)Ouco à aJtura dos avanços tecnológicos das últin,a décadas. O corpo
é c.1 pecado original, a rnácu la de ur11a humanidade cJa quaJ algun l a111enta111
que ela não ej a de imediato de proveniência tecnológica. O corpo é um
men1bro supranumerári o, . e,i a necessário uprin1i-lo (Le Breton 1990). A
re ligiosidade gnóstica escapa de suas mú ltiplas fonna doutrinai : hoje a
encono·arrio de u111a fonna laicizada, mas podero a, em certo elemento
da tecrtociência. Ela é até u 111 dado estrutural do extrerno contemporâr1eo
que faz do corpo u1n lugar a er eli111inado ou a er n1odificado de u1na ou
outra ,naneira.2

O co,po alter ego

No di curso científico co11temporâneo, o corpo é pensado co1n.o


u111a rnatéria it1difere11te, sirnples t1porte da pe soa. Ontologica.rnente
distinto do suj eito. torna-se Ln11 objeto à disposição sobre o qual agir a
fin1 de n1el horá-lo, uma rr1atéria-pri1na na qt1al e dilui a identidade
pessoal. e não 111ais u1na raiz de identida.d e do l10111e1n. Duplo elo l1ome1n,
1n,1s se.1n cláus ula cJe consciência. se11ão ao contrário, pela evocação dos
preconceito , do conservadori tno ou ela ignorância do que de ejam fixar
}jmites à fra.gine11tação d,1 corporeidade hu1na11a. O corpo é norn, almente
coloct1do co1no ttm alter ego consagrado ao rancor dos ci entistas.
Subtraído do hon1en1 qL1e encarna à n1aneira de um objero, e. vaziado de
seu caráter irn.ból ico. o corpo ta1n bé111 é esvaziado de qualqt1er valor
(Le .Breton 1990). InvóJucro de tu11a J)resença, arqt1itetôni ca de n1ateriai
e fun çõe s, o q ue então ftlnda111enta sua e,xi s tê 11c i a não é ma .i s a

1. Co111preende1nos pai- ..ex1re1no corne1nporãneo" o. empi-eentlin1entos hoje dos n1ai inéditos.


o que já lêm um pé no futuro naquilo que se refere ao cotidiano ou à 1ccnociêr1cin. o que
i nduze1n rupturas annopológic:is que provocarn a peitu1·bnçl'to de 110 sas sociedade . O
discurso, en1osia tas sobre os r11nanhãs que canlam graças ao ·'progresso científico" crão. é
claro, privilegiado , e pri ncipa ln1ente aqueles cujo projeto é eliminar ou corrigir o corpo
hun1ano.
2. Lucicn Sfez analisa o n1i10 cooten1porãneo da ,uíile 1>erjêita relacionando-o c01n o Adão de
n111e dti queda. un1 Adão scn1 Ev:i. portanto. sem, sexualidade. sen, doença, e1n morte. em
pecado {Sfez ,1995. pp. 371 ss.). Urn Adão eJT1outro e .en1corpo ou. o que dá no 1nesn10. u1n
corpo nbsolu1onlen1e perfeito. urn corpo de ceria forma livre do corpo.

Adeus ao corpo 15
Material com d1rc1tos autorais
irredutibil idade do sentido e do vaJor, o fato de ser a carr1e do homem,
n1as a IJem1utaçãt) dos eler11entos e das funções que gara nte1n sua
organização. O corpo é declinado ern peças isoladas, é esrn igalhado.
Estrutura 111odular cujas peças poden1 ser substituídas, .1necani 1no que
sustenta a presença se1n lhe ser fundf1n1e11talmente necessário, o corpo é
hoje remanejado por rnorivos terapêuticos que. praticamente não levantam
objeções, 111.as tambétn por 1notivos de conveniência pessoal, às vezes
ainda para perseguir uma utopia téc11ica de pt1rificação do t1on1em, de
retificação de seu ser no n11.1ndo. O corpo e11carna a parte ru i1n, o rascunl10
a ser corrigido.
Para algu1nas con·entes da tec11ociência que estudar11os nesta obra.,
a espécie humana parece mact1lada de uma corporeidade que lem.bra
dema.i a hu mildade de sua condição. A reconstrt1ção do corpo humano,
e até sua eli minação, seu desaparecimento, é o empreendimento ao qual
se dedican:1 esses novos er1ge11l1eiros do biológico. Esse iinaginári()
tecnocientifico é um pensamento radical da suspeita; el e i11strui o processo
do corpo por 1neio da constatação da precariedade da carne, de ua falta
de durabilidade, de sua i111perfeição na apreensão sensorial elo n1undo,
da doença e da dor que o atingem. do envelhecin1ento inelutável da
funções e dos órgãos, da ausência de confiabilidade de seus desempe11hos
e da morte que sempre o ameaça. Esse discurso do descrédito censura o
corpo por sua falta de domínio sobre o r11undo e JJOr sua vulnerabilidade,
pela clisparidacle clara demais coi11 u 111.a vontacle de don1in.ação o ten1po
todo des111er1tida pela co11dição e,ninente,nente precária do hon1em. O
últin10 vol ta-se corn res entin1ento para 11rn corpo rnarcado pelo pecado
origi nal de não ser u111 objeto de f)Ltra criação tecnocíentífica. O corpo é
a doe11ça endên1.ica do espírito ou do sujeito. Muitos autores vêen1 t1oje
com júbilo chegar o 1nomento abe11çoado do te1npo 'pós-biológico"
(Moravec) 011 ''pós-evol11cionista" (Stelarc), "pós-orgânico·· etc., em
s11n1a, do ten1po do fim do corpo, este sendo un1 artefato passível de ser
danificado da .história hu1nana, que a genética, a robótica ou a informática
devem. consegt1ir refor1nar ou eJi.1ninar1 como veremos nesta obra
O corpo não é u1n local de domínio para o biólogo ou o engenheiro
que entendem muitas vezes tratá-lo co1no urn rascunho para levá-lo en.fim
à perfeição últi,na que só esperava a correção da ciê11cia.. Visão

moden1a

16 Papirus 'Editora
Material con1 direitos autorais
e laicizacla da enson1atose (a queda .no corpo das antigas tra.d ições
gnósticas), a carr1e do t101ne111 encarna sua parte 1nal.dita qu.e inúmeros
domí11io da tecnociência prerendem por sorte ren1.o-delar, "imaterializ~tr",
transforrnar em 1necani rr1os controláveis para livrar o !1on1e1n do
incômo(lo fardo no qual arnadt1recem a fragilidade e a .n1orte. Díé1nte
desse despeito de er constit11ído de c ai11e, o corpo é dissociado do t1ornern
que ele enca:ma e considerado co1no un1 em si. C<.)n agrado aos inúmeros
cortes pa1~a escapar de sua precariedade, de seus limites. para contro.lar
essa parcela inapreensível, atingir uma pureza técnica. Tentação d.en1íúrgica
de co1r igi-lo, de n1odifi cá-lo, por não se conseguir torn á-lo u111a rnáquina
realmente impecável. U,n a fa11tasia implícita. í11fo r1nulável em un1
co ntexto de pensamento leigo, é subjacente - a de abolir o corpo, elimitlá•
lo pura e sí1nples1nente, st1bstituindo-o por uma 1ná.qui r1a da mais alta
perfeição. Nesse imaginári o que tende .a redefi ·nir a.s con.dições de
existência, o corpo torna-se o meio cada vez menos neces ário pelo qual
as máquinas se desenvolvem e reproduzem. A luta contra o corpo revela
se1npre mais o 1n.óve! que a sustenta: o n1edo da .morte. Co1Tigi r o corpo,
torná-lo uma mec..w ica, associá-lo à idéia da máq uina ou acoplá-lo a ela
é tentar escapar d.esse prazo, a1Jagar "a insustentável leveza do ser"
(Kundera). O co11Jo, lugar da 111orte no ho111en1: não é o que escapa a
Desca.1tes ( 1970) co n10 u.111 lafJSO qua11cJo, er11 uas Meditações. a in1agen1
de u1T1 cadáver e i111põe a seu raciocínio para de ignar ua condição
corporal: "Con iderei-me prin1eira111er1te con10 tendo u111 rosto, rnão ,
braço . e roda essa máq uina compo ta de ossos e ele carne, tal co1110
aparece en1 um cadáver, a qual designei pe lo non1e de corpo" (p. 39).
I111agem tanto mais perturl,ad.ora quanto é aqui tnenos neces ári a.

A inverição elo corpo

C) mome11to inaugural da ruptura concreta do b.01nen1 com seu


corpo foi por nós analisado e1n outro tex to com o e.mpreendimento
iconoclasta dos primeiros anatomistas que rasgam os li r11ítes da pele para
levar a dissecção a sett te.r c110 110 desmantelamento do sujeito (Le Breton
1993). Isolado do home1n, o corpo l1umano torr1 a-se objeto de uma

Adeus ao corpo 17
Material con1 direitos autorais
curiosidade que r11als nada desaJ1n.a . Descle Vesálio, a representação
n1éclica do cor1)o r1ão é mais solidária de uma visão simultâJ1ea do homem .
A pt1blicação do De h.1,t,r,1cir1,i corpori fcLbrica er11 1543 é um mo111ento
sim.bólico dessa 1n utação epistetnológica que condt1z, por diversas etapas,
à medicina e à biologia contemporâneas.. Os anato111istas antes de
.Descartes e da filosofia 1necanicísta fundam wn duaLisrno que é central
11a modernidade e r1ão apenas na medicina) aquele que distingue, por um
lado, o l1oroem, por outro, seu corpo. Na maioria das vezes, a n1edicina
trata r.nenos o l1ome1n em sua singu1ari<iade que e tá sofre11do do ciue o
corpo doente . O probler11as que air1cla se colocavan1 corn relativa
di críção há alguns anos adqt1irern uma amplidão con iderá\1el corn a
enfatizaçã.o e o refinan1ento do~ n1eios técn.icos, a especialização dos
cu.idados, a falta de peso do corpo, o 1nito da saúde perfeita.(Sfez 1995)
e, sob.retucio, a inform.ação e a resistência cresce11tes do usuários.
Co1n os anato.tnista , o corpo huinano pas a por inúmera
inve, tigações, na colocação entre parê11teses do h.orne111 que ele encarna.
A formulação do cog i to por Descartes prolonga historica111ente a
dissociação implícita do ho.mem de seu corpo despoja.do c1e valor própiio.
Não repetiremos essas ru1áli es aq11i (Le Breton 1990; 1993). Lembrer11os,
co11tudo - un1a vez que set1 princípio continua e11do verdadeiro - , que
Descartes forn1ula.co111 clareza un1 tenno-chave ela filosofia n1eca11icista
do séctrlo XVIl: o n1odelo do corpo é a 1náquina, o corpo hu1na110 é u1na
mecânica cliscernJ, el das outras ape11a :pela síngu1ari dade de suas
1

engrenagens . Não passa, no máximo, de un1 capftulo particular da


i11ecânica geral do inundo. Co11sideração faclada a un1 fuluro próspero n.o
imagi r1átio técnico ocidental dec1icado a consertar ot1 a rra.nsfigttrar essa
pol1re máquina. Descartes de liga a intelig,ência do ho.1ne1n de carne. A
seus olhos, o corpo ·não pas a do i11vólucro n1ecânico ele uma presença;
no limite potieria ser intercambiável, ·pois a essência do hornen1 reside,
e.r11primeiro lt1gar, no cogito. Prerníssa da tendê11cia "dura" d.a Inteligência
AJtificial, o homem nã.o passa de sua inteligê11cia, o corpo 11ada é a não
ser u1n entrave.
A. biotecnologia ou a medicina r11od.erna privilegia o mecanismo
corporal, o arranjo sutil d.e u1n organismo percebido co1n.o u1na coleção
de órgãos e funções potencialmente substituíveis. O sujeito corno tal aí
,.

18 Papirus Editora
Material com d1rc1tos autorais
representa nin resto, o que é tocado incliretamente por rriei o de u1na ação
que visá à organicidade. Um dicionário 1noderno de idéias feitas escreveri a
hoje no verbete corpo: ''u1na n1áquina .rnaravilh.osa". A forn1ulação;
poré1n, é ambígua, testemt111ha t1ma ainbivalê11.cia. Réplica à fa111a das
origens. que inúmeros proceciimentos se esforçam por corrjgir, a
as imilação mecânica do corpo humano que põe de lado a densiclade do
ho.mem traduz na 1nodernidade a única dignidade qu.e é possível conferir
ao corpo. Não se co1npara a máquina ao corpo, con1para-se o corpo lt
111áqui.11a. O 1necanicis1no dá paradoxalmente ao corpo seus dttvidosos
títulos de nobreza, sina] incontestável da proveniência dos valores para
a modernidade. Se não é subordinad.o ou acoplado à máquin.a, o corpo
nada é. A ad1niração dos biólogos ou dos cirurgiões diante do corpo
humano, cujos arcan.o s eJes tenta1n penetrar, ou a 1nais cândida cio profano,
pode ser tracluz:ida pela 1n.e 111a ex.cla1nação: "Que máqui11a maravill1osa".
A esse respeito. são inúmeros os títulos de obras ou de artigo que
recorrem à Jnetáfora rnecanicista.
Da ad1nir.ação di.an te da "1náquina mm·a,,.ilhosa", o discurso
científico ou técnico passa depressa à enfatização da fragil idade que 11
caracteriza. Para a 1náquina, mtiquina e meia. Para u 111 certo díscur o
médico o corpo não 1nerece i11teiramer1te tal designação. Ele et1veihece,
sua precariedade o expõe a lesões irreversíveis. Não terna permanência
da rnáqui11a, não é tão cor1fiável quanto ela, nen1 dispõe das co11díçõe ·
que pe1n1íte1n controlar o conjunto dos proces o qt1e 11ele oco11·em.. A
doença e a morte ão o preço pago pela relativa perfeição do corpo. O
prazer e a dor são os atributos da carne, implicarn o risco eia r11orte e da
sin1bólica social . A rnáquina é igual. fix.a, nada se11te porque escapa à
morte e ao simbólico. Para a tecnociência, a carne do homem presta-se
a estorvos, como se fosse necessário decair de un1a realidade tão pouco
gloriosa. A metáfora mecânica res oa con10 uma reparação para conferir
ao corpo u111a dignidade que não pode1ia ter caso pern1anecesse
sirnfJlesrnente um organisn10. Nostalgia ele uma condição l1u.mana que
não de,1eria 111ais 11ftc.1a ao corpo carnal, local da qued,l, da J)recariedade,
n1as que asce11dería finaln1ente a corpo glorio o totaln1ente criaclo pela
tecnociência. O coqJo, ve. tígio n1u lti1r1iler1ar ela origem 11ão-téc11íca do

Adeus ao corpo 19
Material con1 d1re1tos autorais
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
Em.primeiro lugar, examinarem.o o corpo vivido con10 acessó.rio
da f)e ·soa., artefato da presença, in1plicado em u.ma e11cenação de si que
alir11e11.ta un1a vontade ele se reapropriar d.e sua existência, de criar uma
identidacle provisória 1T1ais favorável. O corpo é então submetido a un1
design às ,,ezes radical. que nada deixa inculto (bod)1 bi,ildirzg, ,narca
corpora l, cirurgia. estética, tra.nsexualismo etc.). Colocado coo1>0
represer1tante (le si. cepo de identidade manejável, torna-se afirn1ação de
si, evidenciação de unia estética ela presença. Não é ma.is o caso de
contentar- e con1 o corpo que se tem, n1as de n1odificar ~uas base para
con1pl.etá-lo ou torná-lo conforn1e à idéia que dele e faz. Sert1 o
cor11plemento introduzicto pelo individuo e111 eu e. t.í lo de ida ou suas
ações deliberadas de rnetamorfoses físicas, o corpo eria urna fo1ma
dece,p cionance. 111 ufíciente para acolher S\las a. pírações . Nes a
difere11te repre entações. o corpo cleixa de responder à unidade
fenon1.enológica do ho.me1n, é un1 elen,en.to matetial ele sua J)resença,
mas não sua, ide11tidacle, pois ele só se reconh.ece aí nu.01. segl1ndo ten1po
apó efetuar um trab alho d.e sobre- ignificação c1ue o cond.uz à
reivindicação de si. Mudar1d.o o corpo, pretende-se mudar sua vida. :Es e
é o primeiro grat1de suspeita do corpo (Capítl1lo 1).
A ,nanipulação de si q11e implica as fetTa1nentas técnicas já er1contr<1
referências na vida cotidiana: por exernplo, o uso de psicotrópicos para regular
a tonalidade afetiva da relação com o n1u11do. A desco11fiat1ça do corpo. ou
,nelhor, a desco11fiança de si, condu.z ao recurso p icofarmacológico a
n1olécula qt1e preten amente procluz o esta(io 111o ral de ejado e111 e estar
nem ltm pouco doente. Torna111- e fJroduros j)ara clorn1ir. para acordar, para
ficar e1T1 for111a, {)ara ter energia, at1menrar a n1e111ória. up1in1ir a
an iedacle, o e tre • e etc., tanta próteses qu ímica para un1 corJ)O
percebido con10 fall10 pelas exigências do inundo conte111porâneo, para
permanecer flutuando e111 u1n isterna cada vez rnai.s ati vo e ex.igente
(Capíttilo 2).

A tecnociência persegue em sua escala (legíti1na) os crãrnites


minúsculos e arte anais que os .inclivíclu.os isolada111e11te realizru11 ern eu
nível. O corpo é 1nuita vezes con ideraclo pela tecr1ologia co1110 u111
ra ·cunho a ser retificado. senão no nível da espécie, JJeJo n1enos no nível
do i11di,1 íduo, L11na 1naréria-prima a ser arranjada de outra forma . Uns e

22 Paplrus Editora
Material con1 d1re1tos autorais
outros af1r1nam o caráter disponí,,el e prov·isório de um corpo s11tiJmente
se1Jarado de si. 1nas colocado como o ca1ninho propício para fabricar
u111a presença à altttra da vontade d.e domínio dos atores. A instituição
do corpo ern laboratório público ou particular é u1n elos dados elernentares
de nossas sociedades conte111porãneas. A fa11ta ia de u1n corpo liberaclo
de seus ar1t1gos pesos naturais re ulta principalme11te no 1n ito da criança
perfeita, fabricada pela rned icina e carin1bada corn o de boa qualidade
n1orfol6gica e genéti ca. A ass isrênc1a méd ica à procriação i.11duz u1na
concepção da criança fora do corpo. fora da ex ualiclacle. Alguns biólogos
até onham en1 eliminar a n1ul her de toda a ges tação graça à incubadora
artificial. Nessa utopia, a existência pré-natal do indivíduo seri a apenas
u1n percl1rso n1édico en1 c1ue a m.ulher abso!utan1ente não é necessária.
Unia vez con.cebida, a crian.ça é . ulJ111etida a u1T1a séri.e de ex.t:lrnes que
analisam sua qu alid::1de genéti ca ou sua aparência física. Exame ten1ível
de e11trada na vida que perpetua a u peita de urn corpo do qual j á a.
perfeição resulta de un1 procedirnento técnico (Capítulo 3).
A med,icina cleixa de se preocupar son1ente corri cuidar,justificando-
se dos "sof1i1nent()s" po síveis; ela i11ter\1é1n para dominar a vida, controlar
os dad.os genéticos; eJa to111ou-se uma ir1stãncia nor1nat:iva, tm1 biopocler
(Foucat1lt), uma forma científica e cruel de enunciação do destin.o; sem,
no entanto. ser ca1:>az de cu idar dos n1ale er11 evid.ê ncia, ela enttn.1era as
en.fe1miclacles inelutáveis e a que talvez p<) sar11 atingir as pes oas a.os 40
ou 50 anos (coréia ele Huntington ele.). Parti cipa da triagem d.os e111bríões
ou dos fetos de acordo co111 un:i procedi1n.e nto de eleção baseado na busca
da "vida di gna de ser vivida". co,n o acordo do pai , elin1inando dessa
n1aneira os po1t ad()res virtuais das doenças que não ·e sabe curar. Un1a elas
fo r111,1s ele 1) revenção consiste ag()ra nn el i 1n inação radi ca l cio doente
potencial ante. 111esn10 que ele consiga existir e desen.volver ua doença.
1b rnru1do- e vaticinadora, a 111edici na e11tra na era do virtual, clecide o
destin.o de u1n a criança que ainda não existe e já opera no óvulo a seleção
c_i os que vale ou não a pena existirem (Capítu lo 4). Procedi111ento
socia1mente mais econômico do que o que consiste ern 1nudar a
1nenta1idades para torná-las aptas a aco!J1er a diferença. O virtual, figura
de desraq,ue da biologi a ou do espaço cibernético, por sua rel)ercussão
social, cultw:aJ, científica ou política. assinala u.m novo para.digma da relação

Adeus ao corpo 23
Material con, d1rc1tos autorais
do ho1nem o 1nundo. fntrodt1z rupturas sin1bólicas inéditas cujti
00111
natureza antropológica é colocada em questão em sua capacidade de
estabelecer ligação e dar sentido e gosto de viver na escala do indivíduo,
ma. rarnbét.n na da sociedade em set1 conjunto.
Fi11aln1ente, o corpo é suprant1111erári<), pr:i.ncipalme11te para certas
co11.·ente da cultura cibernética que s011han1 corr1seu de ·apareci111ento.
E' transforn1ado em artefato, e até 111e 1no ern "car11ell da quaJ convén1 e
livrar para ter. por fim, acesso a uma humanidade glotiosa. A navegação
na lnternet ou a realidade virtual proporciona aos í11ter11at.1tas o se11ti1nento
de estarem preso a u:1.n corpo estorvante e inútil ao qua1 é preciso
ali111entar. elo quaJ é preciso cuidar, ao qua1 é preci o 111.ru1cer etc., enqua11to
a vida deles seria tão feliz sem es e aborrecin1ento. A con1 unicação sem
rosto - sem carne - favorece as identidades rnúltiplf1s. a iragm.entação
do sujeito coinprometido e.m uni.a série de encontros vi11t1.ais para os
quais a ca(la vez ele e.n dossa t1m r1ome diferente, e até 1ne mo uma i.dade,
um sexo, uma profissã.o escolhidos de acordo com as circunstâncias. A
cultura ciber11ética é muitas vezes descrita por esses adeptos como um
.mu11do maravilhoso, aberto aos "n1l1tantes;, que inventam um novo
universo - esse paraíso necessariamente não tçm corpo (Capítulo 5).

A sexualidade cibernética realiza ple11amente esse .imaginário do


desaparecime1.1to do corpo e até do Olttro. O sex.o é ·ubstituído pelo texto.
Descreve-se ao outro o que se está fazendo con1 ele por rnuitos sinais
gráficos que traciuzern o gozo ot1 a einoção. O erotís1no atínge o estágio
supremo da higíene, elin1ínando o corpo físic.o en1. proveito do corpo virtual.
Acabou-se o me<lo da Aids ou das doenças sextialmente tran mis 'Í\1eis, e
até o ca11saço, nes a sext1alidad.e angélica ria qual é até pos ível, graças ao
anonimato 11a Internet. escolher sexos e estado civi.s (Capft11lo 6).
Para muitos adeptos da Inteligência Artificial, a n.1áquína decerto
serã um dia. pensa.11te e sensível, st1perando o l1omem na maioria de suas
tarefas. Se a máquina está se htunanizando, o homem está se n1ecanizando.
A ciborguização prog1·essiva do htuna.no, sot)retudo em suas pro111essas
de futuro, confu.nde ainda mais as fronteiras. Alguns já reivindicarn um
direito das máqu.i11as equivalente aos direitos do l1omem a fi:in de protegê-
las das exações de seus usuários. Se o cérebro é u1na versão .inferior do

24 Papirus Editora

Material con1 d1re1tos autorais


cor11putador (aos olhos d.e algu1.1S), está, apesar de tudo, encerrado em tm1a
carne de homem, e isso dá trabalh.o. O computador não te1n nem 1nes1no
esse defeito. A ra.d ic.alidade do di ct1rso anuncia-se en1pesquisad.ores que
enu11cíam sua vontade ele suprimir o corpo da condição l1un1ai1a, de
tele.carregar seu '·espírito" no co1nputador a f i 111 de viver ple11a1n.e .nte a
imersão no espaço ciber nético. O desabono do corpo revela então sua
dirn.ensão total.. Para algu11s, o co11Jo t1ão está mais .à altura das capacidades
exigidas na era da inforn1ação, é lento, frágil, incapaz de memória etc.;
co11vén1 livrar-se dele fo1jaodo uni corpo biônico (i to é, ampla ou
inteiramente ciborguizado), no qua1 se inseriri a um disquete que
contivesse o "espúito". Trata-se não i1p.enas de satisfazer as exigência
da cultura cibernética ou da con1t1nica.ção. mas simul tanerune11te de
suprunir a doe11ça, a n1orte e todos os ef'i traves ligaclos ao fardo do corpo.
O hon1em mt1d.a de natureza~ torna-se }lomo siliciutn (Ca.pítulo 7).
Certruneate contínuan10s se11do ele carne e, co1110 conclu ão. este
Livro é de fato tm1 elogio sem reservas do corpo, mas os empree11dimentos
que pretendem o "melhoramento" da co.ndição huma.na pela retificação
ou pela supressã,o do corpo rnultiplicarn-se dja11te ele nossos olhos,
s11sci.tando às vezes n1udar1ças ten1Jveis, prir1ci paln1ente no campo
genéLico. Levanta111 grandes questões antropológi.cas sobre a condição
do ho:me111, a relação co.m a diferença. A vo ntade de liquidar o u de
tra11sform.,u: o corpo JJercebido come) um rascun ho provoca uma
reviravolta c10 universo simbólico que co11strói a coerência do m·undo.
Mas o ho1nem virtual é um homem abstrato a quem ainda falta a existência
(Abertw·a, p. 22 1, adiante).
Trata-se do estabeleci n1ento da eqtiênc ia dos genon1a • das
manipt1lações genética . cta fec u11dação irz vitro, do ex.ames pré~natais,
da supres.são raclic.al dos corpos para certo acie_ptos da cultura cibernética,
d.os dese111pe1tl10s do body art, da gestão farmacológica de . i, do consu1no
de anabolizantes para se mt1scular ou de anfetaminas para au111entar su.as
forças - a lista poderia ·pro seguír por t11uito tempo; os ernpree11dimentos
do extren10 co:nte111porâneo .i nventam um novo .mundo não despojado de
a1neaças no que diz resJJeito ao gosto e ao entido de vi.ver. Uma vontade
de dominio. de enquadn:unento autoritário do vivo não deix.a qualqt1er
detalhe ao acaso. As fronteiras ontológicas dissolvem-se. U111a engenharia

Adeus ao corpo 25
Material com d1rc1tos autorais
b'iológica, da procriação até a morte, cria o sujeito modificando seu corpo,
interfere com eJe 11a pro:dução de si ou (10 sentimento de si. Artí.fício e
narureza cleixam de ser categorias oponíveis (claro qtle ja11.1ai fora1n,
mas jrunais fora1n tão próxin,a ), rnisruran1-se. Se as referências ct1l turai .
de e11tido se apagrun hoje em dia 11a profu ão, se as reli giões perderan1
sua fac uldade de agru1)ar os homens em torno ele crenças comu11s, muitos
cientistas aproveitam a oportunidade e erige1n-se sem saber em novos
sacerdote , fornecedores de certezas, ant1nc iadores de ainanhã que
louvam as n1uclanças espetaculares na genética o t1 no espaço cibe111ético.
A técnica e a ciê11ci,1, al iá. en1 profu11da crise, são colocadas por algun~
como provedora de alvação. Esse disct.1r o são di parate , proceden1
1nuitas ,,eze de u111 puro i.n1 aginário (mes1110 e aquele que os profere
está convencido d.e sua verdade), de uma utopia, 111as seu po11to comu1n.
como tentaremos dem(Jnstrai; é fazer do corpo rebotalho. Seria mudan.do
o corJ)O que o t10.r11e1n chegaria à alvação.

Não se trata de contestar a técnica ou a ciê11cia, e,1ide11temente,


1nas a.ntes de analisa.r u1n certo tipo de disct1rso e práticas de teor
inco11scientemente religioso. A.liás, o religio o e tar se dissolven.do nos
en1preendin1entos conte1nporâneos é be111 tradtLzido pela extraordi náría
banalização elo fato de algttns pesqt1isadores. se cornparare.m a Det1s após
criarem un1a quimera biológica, criaturas artificiais ou outro procedi111entos
virtu~ti . O fato de se cons ider,u: l)eus ,por uni rnotne11to tor11ou~ e urn
elos traço típicos de n.ossas sociedacles.
A fronteira do corpo, que são símulta11eru11enre o lin1ires de
identidade de i, despeclaçan1-se e ser11eiam a conft1 ão. Se o corpo se
di <.1cia ela pes oa e ó se torna circu11 rancial1.nente L11n "fato r de
i ndividuação", a clau 1.1ra do corpo não ba ta 111.ais à afi1111ação do eu, e
então toda a antropologia ocide11tal se eclipsa e al-,re-se para o inédito
(Le Bret:OT1 1993, pp. 298 ·s.). O corpo é escaneado, purificado, gerado,
ren1 anejado, re11aturado. arti ficializado, recodificad.o geneticamente,
deco111posto e :recon truído ou. e liminado, estigmatizado en1 norne do
"espírito" ou elo gene "ruirn". Sua fra.g mentação é conseqüêr1cia da
frag1ner1tação do ujeito. O corpo é hoje um desafio l)olítico importante,
é o analista fundamental de nossas sociedades conternporãneas.

26 Papirus Editora
Material con1 d1re1tos autorais
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
deve e estender igual1nenre à ua apt1rência e não deixar a carne inculta.
"Ser o que e é torna- e un1 a perforn1a11ce efêmera, se111 futuro, uni
n1aneiri, 1no dese11cantado e 111 u111 in undo er11 n1aneiras" (Baudrillard
1997, ~1. 22). O corpo tornot1- e a prórese de u.n1 eu eter11a111ente err1
bu sca de un1a encar r1ação provi. ória para ga rantir un1 vestígio
ignificativo de i . Inún1er:as declinações de ' i pelo folhear diferencial
do co11)0, n:1ultipJicação d.e er1cenaçõe para . ot)re-si&
rnificar sua presença
no n1undo, tarefa in11)ossfvel que exige tornar a u·abalhar o corpo o ternpo
toclo en111111 percurso ern fim para aderir a i, a u111a identidade efêmera.
n1as essencial para si e para um momento do arnbie11te social .1 Para acJerir
com força à existência. m11ltiplican1-se os signos de sua existência de
maneira visí, 1e1sobre o corpo. Helena Velena, profu11damente ímJJlicada
no ce11ário i tali ano da sex.ualidade telemática e do jogo sobre as
iden tidades sexuai , escreve qtJe

(...) querer 1nodíticar- e, querer colo ar o próprio corpo en1 relação on1
ô próprio self. não é nem urna doença., nern algo de que se deva ter
vergonha. ~1as algo n se reivindicar abertan1ente à luz do dia corn orgulho.
Um hino à liberdade. Con10 no ensi na o 1r::i.n exualí 1t10 ou o ex.o
cibernético. (Velena 1995. p. 19 1)

O corpo torna-se emble111a do self A interioridade do suj eito


,
é un1
constante e forço de exterioridade. reduz-se à sua superfície. E preciso
se colocar fora de si para se to111ai· i mesmo. Majs do que nunca. repetir1d.o
Paul Valéry, "a pele é o mais profundo".

A cirurgia e tética jJas a fJOr urn de er1volvi1nento considerá,,el,


aun1entado por es. e se nti111ento da maleabi lidade do corpo. S t1 a
tra11sforn1ação en1 objeto a ser n1.oclelado tradl1z-se de in1ediato nos
catálogos que o. cirurgíõe depõern nas salas de e pera e qt1e 1:nostra1.n
aos clientes para propor uma intervenção precisa. Neles se vêem o rosto,

1. 0$ Estados Unidos upresenu1m hoje uma profusão de 1nuliipl12 personafif)•disorders (desordens


da personalidade n1últiplú) no can1po da psiquituria e da justiça. isto é, uma sucessão de
pcrsonnlídades que habitam o me-sn10 i ndivíduo e que se impõern nele, tevit.ndo-o a nções que
em seguida ele nuo reconhece (B ehr 1995).

Adeus ao corpo 29
Material con1 direitos autorais
OLl o fragn1e nto de corpo a ser rnodificado, e o re ultado apó efetuada a
operação. Transirltttação alquírnica do objeto errado. Na gan1a. das
interve.11çõe , o cliente escol he a que proporcionará ao eu ro to Ol1 ao
seu corpo a fonna qt1e lh.e con,,é1n . Seio cheios de ilicone, rnodificado
por próte es ou remodelados, vário ti pos de liftings do rosto, lábio
recor1stituídos ·por i njeções. lípoaspir,1ções ou retalhamento da barri ga
ou da coxas. cabelos repicados, i1nplru1tes subcutâ11eos para induzir as
proporções físicas desejadas etc. Mao.eira de reduzir o d.esvio ex peri111entado
entre si e si. Além do im1:>erativos de aparência e juventude que regem
11ossas sociedades, muitas vezes os que t1sam a cirtrrgia e tética sã.o
ind.ivíduos e1n crise (por di vórcio, clesernprego, e11ve·u1ecimento, 1norte
de um próximo, ruptt1ra com a fiuníl.ia etc.), qt1e encontra.m o.esse rect1rso
a possibilidacle de ro111per de w11a vez co111 a orie11ta.çã.o de sua ex.istência,
modificando os traço de seu rosto ou o aspecto de seu corpo. A vontade
está na preocupação d.e 1TlOdificar o olhar obre si e o olhar dos outros a
fin1 de sentir-. e exi tir ple11a1nente. Ao 1n.udar o corpo. o indivíduo
prete11de n1udar stia vida, n1odificar seu sentimento ele idenridacle. A
... estética não é a rnetamorfose ban.al de unia caracterL tica físíca
cirt1rgia
no rosto ou no corpo; ela opera, e 111 prin1eiro lugar, 110 imagináJ·io e
exerce uma incidê11ci.a na rel ação do i11divíduo com o n1unclo.
Dispen ando un1 corpo ru:1t1gt1 111al amado, a pes ·oa goza ai1tec:ipadamente
de un1 r1ovo nasei1nento, de tirn. novo esL:'1do civil (Le Bretor1 1992). A
cirurgia estética oferece u111 exemplo i1Itpressjo11ante da co.nsidera.ção
social d.o corpo como artefato da presença e vetor de tima ide11tidacle
osten.tada.

.Dorriín.io do corpo

A re.lação d.o inclivíduo co111 seu corpo ocon·e sob a égide do


d.ornínio de si. O homem cor1temporãneo é convid.ado a construir o corpo,
conservar a. forma, modelar sua aparência, ocult,1r o e11velheci mento ou
a fra.gilidade, 111.antcr st1a "saúde potenc.iaJ". O corpo é hoje um .motivo
de apresentação de si. Para Richard Senn.ett, a cultw·a d.o corpo é un1a
forr11a moderna da ética prote e.ante (Sennett 1979, p. 269). J .-J. Courtine

30 Papirus Edítora

Material con1 d1re1tos autorais


aí vê "u111a das fo11na~ es enciai. de compron,i o, passado peln ética
puritru1a, con1 a neces idade do consu1110 em massa. Aí se descobre
a sin1 não urn de apareci n1ento das pro.i biçõe , 01a.. , em vez clisso, urna
nova distribuição de coerções" (Courtine 1993. p. 242). O extren10
contemporâneo erige o corpo como realidade en1 si, corno irn ulacro do
homem por meio do qual é avaliada a qu alidade de Stta pre ença e no
I

qual ele mesrno ostenté1 a in1agern qt1e preten.de dar aos outros. "'E por
seu corpo que você é julgado e classifi cado", dj z, en1 sun1a. o discurso
de nossas sociedade co ntemporã11eas. Nossa ociedades consagrrun o
corpo como e111blema de si. E' n1el hor co11struf-lo ·ob medida pzU'a den·ogar
ao sentin1e.nto ela 1nelhor aparência. Seu proprietário, olhos fiXt)S nele
1n es.mo, cuida para tor11á-lo seu representante rna is vantajoso. As
condições sociais e culturais dos indivfduos certamente matizam. essa
consideração, n1as es e é pelo n1enos o ambiente de nossas sociedades
corn relação ao cor1,o. Se e111 todas as ~ocieclade huma11as ti corpo é
u111a estrutura. i1nbólica (Le Breton. 1990: 1993), torna- e aqtti t1n1a escri.ta
altan1ente reivindicada, embasada por um imperativo de se tran forn1ar,
de e 1nodelar, de se colocar no n1undo. f.\ colocação ern signo per egui.da
por todas as ocíed ades de acordo co1n seus usos culturais aquí ~e torna
un1a encenação deliberada de i con-1 inún1era variações indi viduai e
ociai . que fazen1 do corJ)O um 111areri al a ser Iav ra<i o segu11do as
orientações cie un1 mo111ento.
En1 uma ociedade ele indivíduos, a coletividade de pertinência só
forr1ece ele n1ru1eira alu.síva os cnodelos ou o valores da ação. O fJróprio
ujeito é o n1estre-de-obra que decide a orientação de st1a existência. A
parti.r de então, o mundo é n1eno a herança inco11te tável da palavra dos
mais velho · ou dos tiso · tradicionais do que un1 co nj ur1to di ponível à
sua soberairia pessoal r11ediante o res peito de certas regras. O extremo
conten1porâneo define um. inundo em que a ·ignificação da existê11cia é
u1na decisã.o própria do indjvíd t10 e 11ão inais u1na e,1i.dê.ncia cultural. A
relação com o corpo depende menos da evidêr1cia da ide11tidade cor,sigo
n1esmo do que daquela ,,
de agora ei11 dia11te de tnn objeto a subJi11 har 11a
representação de i. E importante gerir seu próprio corpo co1no e geren1
ou tros patrin1ô11ios d.o quaJ o cor1Jo e difere11cia ca.da vez rner,os. O
corpo tor11ou-se um empreendimenro a ser ach11inistrado da n1elhor

Adeus ao col'J)o 31
Matcnal corn d1rc1tos autorais
r11a.neira possível no interesse do sujeito e ele seu senti.n1ent<) de estética.
O selo do clornír1io é o par ad igma da. relação com () próprio corpo no
contexto contemporâneo. Todo corpo contém a virtualidade de ir1úmeros
outros corpos que o i11d:ivíduo pode re,1elar torn.ando-se o arranjador de
sua aparência e de seus afetos. O d.esinvestim.e nto dos siste1na,;; sociais
de sentido conduz a un1a centralização maior sobre si. A retira.da. para o
corpo, para .a aparência, para os afetos é um meio de reduzir a incerteza
bt1sca11do limites simbólicos o .rnai.s perto possível de si. Só resta.o corpo
para o indivíduo acreditar e se ligar.

O tra.r~·e)(.ualis,rio oi, o fora do se.to

O corpo do transext1al é u1n artefato tecnc)lógico, un1a construção


cirúrgica e honno11aJ, u1na produção plástica sustentada por uma vot1tade
firme. Brinca.ndo cotJ1 sua existência, o trat1sexual entende asst1n1ir por
um 111omento u.n1a aparência sexual de acordo con1 seu se11ti1ne11to pessoal.
,
E ele pró·prio, e tlão u1n. destino anatômico, quem decide seu sexo de
eleição; ele vive por meio de u1na vontade de liberacla de provocação Ott
de jogo. O transexual suprime os aspectos den1asiado sig11ificativos de
ua antiga corporeidade para aborclar os sina.ís inequívocos de sua nova,
a1Jarência. Modela para si diariamente un1 corpo sempre inacabado,
sempre a ser conquistado graç.as aos hormô11io e a.os cosméticos, graças
às rot1pas e ao estilo da IJreser1ça. Longe de serem a eviciência da relação
com o mundo, feminilidade e masculinidade são o t)bjeto de u111a produção
permanente por un1 uso aprop1iado <los signos. de uma redefinição de si:
conforme o ci.esig,i corporal, tomam-se urn vasto campo de experim.e.ntação.
A categoria.sexual do masculi11<.) sobretudo é questionacla proft1ndamente.
"Para a imaginação masculi11a", diz Cooper,

( ...) o transexuaHsnio é urna experiência desconcertante, pois ocorre na


terra de ninguém entre a hon10 e a heterossexualidade incubadas en1
cada urn de nós. Quando você brinca corn um transexual é con10 se
atisfizesse un1a curíosidade infanti l de ver-tocar, de sentir corno são
feítos os ho1nensco1no vot'ê, sem1 no ent1:u1to, abandonar aperturbação
do encontro co111 tuna 1nulher. ( 1997, p. 86)

32 Papirus Edltora
Material con1 d1re1tos autorais
H. Velena exagera., coloc.a.ndo o transexualismo

( .•.) con1 0 ur11 a identidade da nfto- identidade, ou n1elhor, u1na


reivindicação de si que nasce de não se sentir ligado a un1a situa.ção
definida e definitivn. n1as. ao contrário, em trânsito, e111 transformação,
em relação, e111 íluxo. O u-an ex.ualisrno é para quen1 ten1 barba e quer
sair de rninissaia, quer apenas hunber os pé de seu parcejros, gosta de
. er atn.arrado, ou. ten1 seios n,agníficos, mas t.arnbérn u1n pênis perfeíto ...
( 1995. p.21 1)

Vontade de cor1jurar a separação, de não faze r 111ais sexo (do lati.m


secare: cortar), ne1n urn corpo, nem um de ti no. mas un1a decisão, e
sobret11c1o de se libertar para se inventar e colocar a si mesmo 11<) .1nt1ndo.
O trru1sexual é 11m sfmbolo quase car icato do sentimento de que o corpo
é uma forma a ser transform.ada. Da mesma m.aneira, e le se decide pel,t
nostalgia da.indi·ferenciação que obseda .n1uitas prática.s da n1odernid.ade
- veremt1s esse fato de maneira radicaJ no universo das procriações sob
assistên.cia rnédica ou na f:1ntasia de suprin1ir a. n1ulher na gra iclez em
pro veito d e u rna incubadora artificial.. D. Welzer- Lang mostra a
importâr1cia da prostituição transexua} 11a cidade de Lyor1: ele ob erva o
j ogo de sig11os que torn.a indefiní\1el a identidad e de u.1n s ujeito
i11teirarne11te em relação lúdica co111 os ot1tro :

O que diz.er dessa prostitui.a que se apresenta con10 tnulher nas prin1ei.ras
conversas e fala ern nome das 1nulheres. inforrna-nos rapidarnente que,
na realidade. estainos dianle de un1 transex.ual e que, urn ano depois.
reivindica sua ídentidad.e rnasculina e sua quaJidnde de trave li? O que
não o impede, a!i{tS, de viver o e encia l de ua vida social co1no unia
nlulher. (\Velzer-Lang e1ai. 1994)

Adepto de uma sexualidade 1n u ltiforme, Cooper exfJlica bern esse


sucesso, evoca11do a bLL'l-Ca de experiências i11s6ütas:

O trarisexuaJ vai lhe parecer e.s1ra1tho. clifercnten1ente da mulher que se


prostíLui, é urna criaru.ra cles~ja11te. Coin o se desenvol ve de fato u111a
noitada de prostituição: urna quantidade enor111e de clientes pede-lhe
para ser sodo rnizada. É isso que os excita, a sensação de serern
sodon1izados por un1.a n1ulher. ( 1997, p. 87)

Adeus ao corpo 33
Matonal con, d1ro1tos autorais
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
Faklr Musafar, Jú11 Ward ...). Jítn Wárd abre a pri1neira loja de piercin.g
e,.111975 em Los Angeles, onde co1nercializa.jóias específicas que obtêm
w·n i1ne11so sucesso. As lojas 11111ltiplica1n- e nos :Esta.dos Ur1í.dos e d.epois
na Grã-Bretanha e alcan.çan1 [.>Or fim o resto da. Europa. O .r11e . 1110 grupo
cri.a a revista PFIQ (Pierci11g Fc1.n.r lr1.ten1.a,tion.al Quarterly). O sucesso
das marcas corporais cre ce associa.do à idéia implícita de que o corpo é
u1n objeto rnaJeá.vel, urna forn1a provisória, sem.pre rer11anejável, da
presen.ça frac tal própria. Elas escapam dos lugares margi11ais do
sadom.asoquísmo. do fetichismo ou do pz1,rzk, absorvidas por aqui lo que
se convenciono11 chamar as "tribos urbanas" (pc,tn,k, h1:trcl rock, teclino,
grt.t'tzge, bikers, gays etc.), e propagam-se para o conjunto eia sociedade
por intermédio da alta-cost1.1ra, principabnente dos manequi ns de Gautier,
com uma predileção pelas gerações jovens que cresce1n no ambi ente
intelectual de urn corpo inaca.bado e i111perfeito, cuja. for1na o indivíduo
deve completar com seu próprio estilo. Os estúdios de tatuage1n e de
pierci1ig 1n uJtiplica,m-se e acenrua1n a deinanc1.a.

A. mitologia da 111arcação corporal está pre ente dei-de eu


pr:u11eiros passo, co111suas JJaJavras-chave: ttibali 1nl), prirnitivi 010 etc.
Fakir Mt1.safar (11ascido em 1930), u1n elos priricipais artesãos do
movimento dos º primitivos .rnoclernos". descreve ass.im ua esfera de
influê11cia: '"fodas pess.oa 11ão-tribais que reagern a u111a urgência prim.al
e que fazein aJguma coisa com se11 corpo". O persorlagen1 merece que
.nos demoren:10s nel.e, poi s é ernblemático das relações (io extremo
cor1tetnporâneo co111 o corpo. Desde sua infância, experirnenta urna
pron.1são de I11odificaçõe co11Jorais que ele r11uitas vezes a1Jrese11ta em
públ ico. Apaixonado por u,ma reportage111 elo National Geographic, aos
12 anos, encer111 a ci ntt1ra num espa1tilho justo para se parecer con1. um
adolescente apertado em um cinto-1itual de u.ma fotografia que o
in1pre.'isio11ou. No ano egui11te, realiza.seu pr.irneiro piercir1g no prepúcio
e, a et1s olhos, estabelece simbolica1nente o rr101nento de 11a ·cimento
d.os rrioclems prirr1itives. Passa horas fazendo o JJiercirig com urn broche
finam.ente Iapida(lo; vive essa rnetamorfose de seu corpo cor110 urna
experiência espiritt1al. Ad.olescente, pros egue sua busca pessoa], tatt1ando
ele rnes mo seu J)ei to. Traspassa o na1iz, as orelhas, enfia agt1lh.a em seu
c,o rpo. A dor 11ão o a1era, porque ele a co11trola, n1as, graças a e ses

36 Papirus Edltora
Material con1 direitos autorais
n'lor11ento -en1 que e ru1·anca do cor11u1n, vi ve e tado de consciência
alterada que tenta rei>rod:uzir. 3
Aos 17 ru10, , jejua, p1i va- e de 0110 e arnrura-se com correntes
a.pertadas e pe adas a um n1uro, ali agitando-se durru1te hora.s. Atinge
uma espécie de êxté1se- o pé e os braços entorpecidos, à beira da.asfixia.
Consegue, contudo, livrar-se das correr1tes e desn1oro11a, não entindo
mais a n1enor ensação e111 certos 1nen1bros. E e n1on1e11to é, conti:1do,
uma i l uminação. Depois, faz inún1eras ex periências corporais e1n
situações extremas: recobre todo o seu co r])◊ com u.ma (>ir1tura, dourada
que impede a r" pi ração regument,u·; penclura cor11 anzóis no peito obj etos
pe ado ; u pende cargas e n1 et1s /Jí erc i11gs; sofre, co rn todo
conheci1ne11to de cat1 a. un1a OJJeração que lhe per111ite o alongamento
de eu pêt1i graça, a pe o que a ele fixa; aceita, des a 111a11eira, perder
sua faculdade ge11ésica e vive outra forn1as de ex ual1dade con) sua
co1nJJaJ1heira; enfi a espartill10 mui.to a1Jertados; deita- e nt1rr1a cama de
alfinete ·, d.e lâ111ina . U a urna e ·trl1rura de n1etal i11 pir,1da no di cípulos
hindu de Siva, cor1 tituida cl.e urna série de longa ponta5 de 111.etal que
penerrar11 en1 eu corpo e fo rn1aJ,1 tuna e pécie de leque em tor1,o dele.
Suspende-se en1 ganchos cra\,ado em eu JJeito ou er11 todo o seu corpo
etc. Sua 1Jele é recoberta de tatuagen e fJiercings. Ao lhe perguntare1n
obre o significado de sua co11duta, evoca o praz,e r que ente en1 certa
ações e os estados de êx tase que experin1e11ta co1n ela'. Fakir Mu afar é
u111 exe.n1plo i rnpres ionante cio " pri rnitivi n10 rnoderno", i to é, dessa
colager11 de práticas e de rituai fora de contexto, t1utuando em u1na
eterni(lade i11diferente, longe de eu sign ificado cultural original, n1uitas
vezes igr1or ado por aquele que o er11pregam rransformandO-() em
p•e 1;fv rn1ar,ces físicas. Mas essas experiência. 11em po r isso deixam de
reve tir fo rn1as de sa.grados í11 tir11os que tornarn s ua realização
particttlarmente iriten a.

3. ·•A negatividade cia dor (~ensaçiio fone e inesper:idn) só exis1e paro os não-prep-arndos. , e você
tiver lTeino sufi:ciente. conheci 1n 'nto e prática. pode supern•ln. trnnsfonná-lu ou convertê-ln
no que quiser... É o que ínço quando n1c penduro coo, ganchos na pele. As pl!:Ssoas dizern:
· isso deve doer demais' . Repondo:· ão. é extático. é belo' " (l?e!Sl!nrcli 1989. p. 13).
Tornnruos n encontrar esse fascínio pela dor ctn outi'US pniticas 1rn1ndos neste capíll1lo.

Adeus ao corpo 37
Material com d1rc1to5 autorais
Em inúrneras sociedades humanas as n1arcas corporais são
associa.das a ritos de passagem em díf erentes n1om.entos da existência ou
e11tão são vinculadas a s.ignificados preciso dentro da con1u.nidade. A
tatuagem ten1, dessa maneira, valor de identidade; expres a, 110 próp1io
f11nago da carne o pertencer do sujeito ao grupo, a. u1n sisten1a social:
1

precisa. as fi delidades religiosas; de certa fonna hu.maruz..a, por rneio d.es e


confisco cultt1ral cujo valor redobra o da non1ina.ção. Em certas
sociedades> a 1eitt1ra da tatuagem inforn1a a inscrição do home1n em uma
Jin_hagem, u1n clã. t1ma faixa etária; indica un1.sU1t11s e fortalece a aJiança.
É impossível se misturar ao grupo ser11 esse trabalho ele integração que
os sign.os cutâneos in.1prime1n..na carne. Ao contrário, para os Hpr11niti vos
moderno ", sua dimensão estética ou. sua qualídade de desen1penhos
físicos é o que conta J..Jrimeiramente, mesrno se às vezes a preocupaçã<>
de sua significação de orige111 é sirnplificada para enu-ar e111 un1 outro
contextt) social e cul tura l. Fakir Mu afar não ces a de evocar as
cornur1idru;l~s tradicionais, cujo u os recupera por conta própria,
desvia11do-as, a fim de viver n1on1entos de êxtase. Os rito tradicionais
são folclorizados à mar1eira de um a rnáscara dos espírítos ex posta por
trás elos vidros d.e u1n m.u eu; eles tra11sfonnarn-se em signos indifere ntes
a seti conteúdo dos quais só i1nporta o valor de represe11tação para nc)ssas
socieda.des ocider1tais conterr1porãx1eas. Tatto Mike, cujo COrJJO é quase
inteírarne.11te tatuado, o rosto inclt1sive, apresenta be.111 a filosofia elo
primiti vismo 111odern.o ao falar de suas in,ún1era 1narcas corporais tirada
de •·cte ·e11l1os que ,,ão de) sa1noa11os aos índios, con1binaclas em t1rr1a
espécie de psicodélico das diferentes ct1lruras" (p. 39). Fakir Musafar,
aliás, 1neJindrou o índios rnai1dans 110s quais se ir1spiro11 para o ter1no de
uciança do sol" quar1do se pendura.va com. ga.nchos no peito e outros
po11tos do corpo. Este con eguiran1 que ele deixasse de utilizar esse
tern10.4 As 1narcas corporal er1tra111 nttm. increrismo radical.
Para Mark Dery, o pri111ítivís1110 moderr.10 é u111a

( ...) categoria que recobre rudo. que compreende o fãs do tecno-harrl-


core e dn d,ance-rnusic industrial: os fedchistas da escravidão: os artistas

4. Sobre Fakir tv1usafnr esobre os Moden, prfrnirives. remeteinos aos docwnentos de RdSean::li ( 1989).

38 Papitus Editora
Material con1 direitos autorais
de perfor,nances; os tecllO-J>agão ·; finalmente os que go latn de
pendurar-se com ganchos ubcutflneo e outras forn1as de n1ortificação
rituaJ ou de "j ogo corporal" . que pret.en an1ente produzern e ta<los
alterndos. ( l:998, p. 288)

Flutuação de ígi.10 que as í1n passan1 de u1n a " tribo uªrba.na" a


ou tra ou se apresentam como pura estética. parad.oxal entre indivíduos
qt1e ,tpreciam suas formas e delas se apropria.111 sem preocur)ar-se com
SLla ori gem., desv iando n1ais unia vez marca · q11e já viera1r1 de outro
co11texto social e cu ltural . Algun tisuário de piercings go ·tru11 da idéia
de ter ,nernJ no corpo. As tacuagen bio mecânicas repre en.ta.in u111a
tecnicização metafórica do corpo: c ircuitos e letrô nicos, cl1ips, máquir1as
cibe rné ticas, forrnas geométricas ott ainda de enhos de mo n~tro saído
ela cul tu ra cibernética e princir-Jnlmente do videoganies. Mt1ita veze o
estilo tribal mistura- e ao e. tito bio1necâJ1ico, j á qt1e ão po íveis todas
a variações, h.avendo intercâ.n1bio ele igno pelo prazer.
O igno tegun1entar é, a partir ele então, u111a n1ru1eira de escrever
1netaforica111ente na ca111e o n1omentos--chave da existência: un1a relação
ru11orosa, un1a cor1ivência de an1iz.acle ou polftjca, un1a rnt1dança de stati,s,
urr1a len,brança etn unia forma o tentatórin ou discreta, na rr1edida em
_que et1 ig niflcado permar1ece r11uitas veze enigmático aos olhos elo
outros e o lugar mais oti n1enos acessf ve1 a seL1olhar 11a vida cotidiana.
Ele é 1ne1nória de u1n aconteci1nento forte, da superação pes oal de ttn1a
passage1n na e xistência da qual o inclivíd110 pre tende con er var tirna
lembra11ça. Urna reivi11clicação de id.entid.ade que faz do corpo uma esc1ita
com relaçã,o aos outros, uma forma ele proteção s imbólica contra a
adversidade, t1ma supe1fície protetora con.tra a incerteza do mundo. A
marca tegumentar ou a jóia do pierci11.g també1T1 ão modos de filiação a
uma comuniclade flutuante, 1nuitas vezes com u111a cumplic.idade que se
e ·tabelece de i.m.ecliato entre a.queles qt1e a partilha1r1. Inscreve111-se
ta111bén1 como atribt1ro de u111 estilo t11aí arnt)lo qt1e assinala a ade ão a
ltma co1nunidade urbar1a. particular. Rito pes oal para 1nudar a i rne 1110
mt1d.ar1<Jo a. forma do corpo. O indivíduo manipu la as referêi1cias, as
tradições e constrói t1n, sincretis1110 que se igr1ora - a experiência da
1narca torna-se, então, un1a experiência e piritual, um rito (nti1110 de
p,1ssage1n (Jeft·rey 1998 ; Le B reto n 1991 ).

Adeus ao corpo 39
Material com d1rc1to5 autorais
As marcas corporais implicam igual mente t11na vontade de atrair
o oll1ar, de fab ri car un1a estética da prese11ça, mesmo se o jogo
permanece possível de acordo con1 os locais de insc1ição, estejru11 elas
permanentemente sob o oll1ar do outtos ou somente daqueles cuja.
ct1mplicidade se busca Pern1anece1n sob a iniciativa do indivíduo e
encarnam, e11tão, 11m espaço de sacralidade na represe.otação de si. A
superfície cutân.ea irra.di a corn UI11,1 aura particular. Acrescenta
,,
11m
st1plen1ento de entido e de brincadeira. à vida pessoal. E n1uitas vezes
vivida co,no a reapropriação de um corpo e de um rnunclo qt1e escapam;
aí e inscreve fi sicamente seu vestígio de ser~toma~ e JJos~e de i rne.s mo,
inscreve-se um li n1ite (de enüdo e de fato), um signo que re titt1i ao
ujeito o se11tirnento ele ua soberania pessoal. A marca é un1 lin1 ite
simbólico cJesenl1ado sobre a pele, fixa urn batente ria bu ca de significa.do
e de identidade, é uma espécie de assinatura (]e si pela qual o índivícluo
e afirn1a e,n urna .icle11tidacle escolhida. De 111aneira significativa, a
tatu agerJl na prisã.o traduz t1ma resis têricia pes oal à eliminação da
iclentidade indt1zicla pelo encarceramento que er1trega o te n1po e o corpo
à i11vestigaçãc) pern1aJ1ente elos g11ardas. Para o dete11to, in1.boliza urn.a
di . idência inter11a, tiblinhando que a perc1a ele autonon1ia é prov isória,
que o corpt) pe11nanece sua posse prÓf)ria e i11alienável, a marca não lhe
pode ser subtraída (Saunclers 1989, p. 40). Na falta de exercer um controle
obre sua exis têJicia, o coq)o é um objeto ao alcance da 111ão obre o qual
a soberania pessoal q ua e não encoT1tra entra ve . O e tig1na simbolizava
a alienação ao outro na sociedade grega antig,t; hoje, ao contrário, a
marca corporal o tenta o j)e1.1encer a si. ~fracit1z a r1e.cessiciade ele completar
por iniciati\' ª pessoal um corpo por si mesmo i11suficiente para encarnar
a identidade pessoal.

'Body building

Ao contrário elas prere11sões de ce1i as correntes da Inteligência


AttificiaJ que negam qualquer irnportância ao corJ)Of)ara tornar o ho1nem
u111 puro espí1ito-co1nputador. o body IJ1Lilcler reafírrna, co1n o mesmo
radicalis,110 (ou ingenu idade), o dualjsmo entre o corpo e o esr>írito.

40 Papirus Editora
Material con, d1rc1tos autorais
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
corpo pacientemente fabricado, trabalhando sucessivan1ente feixes de
n1úsculos seguindo uma analítica meticulosa da carne.
O uso lancinante das máquinas cumpre sua função: aos poucos.
estas parecem penetrar o corpo e entrar em sua composição. sustentam o
/Joel )· /J11ilder na paisagem técni ca da sala de rnusculação. 5 Em urn a relação
com o espelho mediati zada pelas ferra1n entas de 1nodelage1n de si. o
Í'Jocl_r bttilcler é un1a fortaleza de músculo~ inúteis e rn sua função, pois
para ele não se trata de exercer urna ati viclade física en1 urn cante ,
iro de
obras ou trabalhar corno lenhador em uma tloresta canadense. E buscada
a força musc ul ar en1 si. em sua din1cnsão . irnbó lica de res1auração de
identi dade. O n1úsculo não tcrn incidência e1n un1a sociedade onde as
atividades que exigen1 fo rça lenden1 a de aparecer substituídas pelas
máqui nas. paradoxo (aparente) em um a sociedade que tende à cul tura
cibernética. na qual. como veremos, o corpo é ,n uitas vezes considerado
obsoleto. O bocl_v /Juilcler. o construtor de corpo. constrói se us li mites
fís icos. a cada dia os enfrenta en1 un1a ascese fís ica baseada e,n exercícios
repetitivos: em um mu ndo de ince rteza. constrói passo a passo un1
co111ai11i11g que lhe permite permanecer enhor de si. ou pelo rnenos se
produzir si nceramente a il usão de ser enfim ele mesmo.<> Assume seu
corpo como uma segunda pele, um sobrecorpo, uma carroceria protetora,
com a qual se sente fi nalmente protegido ern um uni verso do qual controla
todos os parâ1n etros. Aqui enco ntramos a dor co mo enfrentan1ento
si mbó lico no limite e ba tente provisório de um a identidade a ser
constru ída (Le Breton 1995). 7 A sala de 1nusc ulação é mui tas vezes

5. P. Schclde fala con1 ironia do ;11or 1\rnold Sch,,•ar1.ncgger. por rnuito 1en1po rnodclo :ibsoluto
do body hui/de,: ele··..: corno u pcçu de urna tecnologia p0<.lcrusu: \'OCé <) leva u ulgun1 lugar.
a1>ert:1 uni botão e ele con,cçu u runcionur... escreve ele. ··é o corpo final dócil. (> corpo
construído. realçado pelos esteróides. que integra urn espírito igual111en1c dócil: o cornpulodor
inteligente que executa os programas. 111:is poucas coisas alén1 disso.. (Schclde 1993. p. 203 ).
6. A esse respeito. ver as análises de 1. Dcry ( 1998).
7. Abordan10s dcn1orada111cn1c a relação íntin,a com a dor rnuscular nas atividades físicas e
cspor11vas que cxigc1n o máximo do corpo ( 199 1. 1995): nào voh:1rcmos a elas .iqui. ,nas
cncontr.unos cm muitas atividades soci:1is essa mcsrna passagcrn obrigatória pek, dor parJ fnbricar
o sentido. A culturJ sadon1asoquistu, que os p1111ks tiraran, de seus ntcliés na lnglatcrn1 dos anos
70 e que virou igualn1cntc moela. tanibém cstit se desenvolvendo scnsivcln1cn1c. Trata-se 1ambén1
nesse caso de produzir uma dor signilicanlc pura o ator cn1 uma rcl.iç-ào ritualizada con1 u111 outro.

Adeus ao corpo 43

'··-- s
cocnpara.da a UJna. câmara de tort.ura. Q11anto mais se sofre, maís os
músculos se dese11volvem e são valorizados. Ao mesrno tempo. a dor
coJ1verte-se e1n u1n gozo difuso que os /)ody bitilclers muitas vezes
comparan1 com. o ato sexual. A sensação vem a'Í substituir o se11tido; o
limite ir1duzido pelo corpo substitui aquele que a sociedade deixou ele
fornecer e que se de·ve elaborar ele rna:neira pessoal.

Body art

A body ari conternporãnea, da quaJ daremos aqui principalmente


os exe.n1plos significativos deOrlan e de Stela:rc, ilu.stra a condição inédita
de un1 corpo transforn1ado e111 objeto. O primeiro períocio da bo.c/}1art
inscreve-se o.o clima político difícil do engajamento an1e:ricano 110 Vietnã,
da guerf"a fria, da descoberra da droga, da reviravolta das relações home111-
mulher, do qt1estionamento eia .mora'lidade antiga. principaln1ente por
meio da liberação sexual, do culto do corpo. Coloca en1 jogo uma
consciê11cia agt1da do clesm.en1bran1er1to e11tre as possibilidades de
desenvolvimento individual e o encerra.n1ento das sociedades ein uma
opressão 1noral e sobretu.d.o comercial. As palavras de ordem de
transfor1nar a . ociedade (Marx) e de mudar <}e vida (Rimbaud) conjugam
st1a força crítica cor1tra as proibições de um 1nu.ndo obstinado em perdurar
apesar de suas desigualdades e de suas injtistiças. A cor1sciência i11feliz
de certos artist:as é viva e conduz a fon11,tS radicais de expressões artísticas.
O corpo e11tra e1n cena em st1a r11aterialidade. A incorJ)Oração da arte
co1no ato inscrito no efêmero do momento, .inserido em. un1 ritualism.o
co1n.bi11ado ou improvísado segundo as inter,ações dos participantes,
contesta os funciona,nentos sociais, culttt raís ou políticos por um
engaja.meato pessoal i111ediato. A bod_y art é t1ma crítica pelo corpo das
con.clições de existência. Oscila de acordo con1 os artistas e as
perfarr1ia11.ces entre a radicnJ.ida.d e do .ataque direto à carne J)Or um
exercício de crueldade sobre si, ou a conduta sim.b6lica de uma vontade
de pertt1rba.r o auditório, de romper a segurança do espetáculo. As
perfon11.ances questio.nam co1n força a identidacle sexual, os limites
corporais, a resistência física, as relações ho.rnem-mulher, a sext1alidade,
o pudor, a dor, a morte, a relação corn os objetos etc. O corpo é o lugar

44 Papirus Editora
Matcnal corn d1rc1tos autorais
011de o mundo é questionado. A .i11ter1ção cleixa de ser a afir1nação do
belo para ser a provocação da carne, o virar do avesso o corpo, a ilnposição
do nojo ou do horror. O realce das 1natérias corporais (sa11gue uiina.
excrerr1ento. esperrn a etc.) esboça uma dramaturgia que não deixa os
espectadores ilesos e en1 que o arti ta paga con1 st1a [Jes oa, JJelo corpo,
sua recu a do li111ite i1T1postos à arte ou à \1ida cot.idiana. A vor1tade ele
atingir o ot1tro fisica1n.ente e tá muitas vezes JJre ente 110 exagero das
alter.1çõe ou da encenação. O e pectador . ente- e tocaclo participa por
procuração dos sof1i mencos do artista (ou daqui lo q11e o es11ectador deles
i11lagi na).
Para a bod)' a,~1, o corpo é ur11 n1ater1al de tir1ado às fantasia. , às
provoa:i.çõe , às i11tervenções concretas. Em un1 gesto aro.bivalente en1
qu.e o desprezo e r11i srt.1ra .intin1a111ente con1 o elogio. o corpo é
reivindicado co1110 fo nte de c1iação.

No antípodas du ab tração e da arte conceitua!. o · artistas pl.1sticos


queren, de certa forma. por n1eio desse novo parlws, ..colocar debaixo
do no ·so nariz'' aquele que e tendia a esquecer ou a se despersonalí:lar
sob o artifício: esse corpo ba11al. feío, cotidiano, inconstante. sofredor,
bern rnais do que um corpo estetizado e em seguida distanciado por uma
espécie de couraça. (~fai onneuve e Bruchon-Schv,1eirzer l 98 I, p. 169)

Sangt1e, 111ú~cttlos, humore , pele. órgãos etc. ·ão colocado e1n



evidência. di sociado do indivíduo e tor11a1n- e elen1e11tos da obra.
"Corpo sem órgão ", cli ponfvel para todas a metamorfoses e até para
set1 suplício ou para eu desapareci1nento, para sua hibriclação anin1al ou
sexual qt1a11do os artista,;; oper<lrn sobre o travestisrno dac; roupas ou
n1esn10 corpo ral, subvertendo as forn, as orgânicas. Contudo, a dor não é
vaJorizada) r1ão é redentora ot1 iniciái:ica; nem n1e 1110 é u1n lín1ite - é
indiferente, nir1gt1ém e detém nela. Na pior das ~1ípóte e · é u,na
ler11bran.ça í11'isória da qcarne". o prote to de un1a carne vivida co1110
urr1a máquina corporal que as tecnologias con.tem.porãneas tornara_m
obsoleta.
A extrações e os transpl antes de órgãos. as n1u.<Ja_nças horr11onais
e cirúrgicas de sexo, as man.ipulEtções genéticas, o rnorphing, a inforrl1ática

Adeus ao corpo 45
Material com d1rc1tos autorais
etc. r11od.ificaram radicalmente os desafios e o cor1texto da bod)' a1·1. Se o
corpo dos anos 60 en.ca:mava a verd.ade do sujeito. seu ser no mundo,
hoje ele não passa de um artifício sub1netido ao clesign. permanente ela
medicína ou da.i.11forn1.ática. Tornou- e aut(Snor110 co1n.relação ao ujeito,
ciborg uizado etc. Em outro ternpos st1po.r1e d2 identidade pe soaJ, seu
statu.s t1oje é m.uí ta~ veze. o de un1 acessório. Di ferenten1ente da pri n1eira
fase da body a ri , na época da Internet e das vjage ns espaciais. os arti tas
pó -111odemo ou pós-h1,11n.arios con .iderar11 insuportável po · uir o rnes1110
corpo que o ho,nem da ida.de da pedra. Pretend.e m alçar o corpo à altura
da recnologia de por1ta e t1b111etê-lo a un1a vontade de clon1í.ni o in tegral.
percebe11clo-o con10 urna série de peças de tacá,Ieis e hib1iclávei à
, .
maqt11na.

O corpo é o centro do trabalho de Orlan. há niuit.o te1npo. Nt1111


primeiro tempc), ela expõe seus humores orgânicos e u a o o bsceno.
Trans forn)a o le nço l cL.ado por sua mã.e para o enxoval d.e casamento e1n
can1a de seu n1uíto ·amores que o maculam. nele imprimindo os vestígios
do de ejo; ela o con1pila corn rnarcadores, lápi , bordados etc. Em
seguida expõe esse recalcad.o do corpo erigindo a i11tirnidade e1u local de
pu b.licídade. A .ma11chas de esper111a de seus amantes, às vezes nusturadas
cor11 o sang11e de sua 111enstruação, forman1 a trama da obra. O corpo é
material; se é templo, é apenas para 1:>rofa11ação. Uma outrape1forn1c1.nce
arvorava seu ··sex<J {os pêlo · ele u•n lado dele estava.rn pintados de azul).
no n1oinento da men truação. Um rnonitor de vídeo 1u ostra.va a cabeça.
daquele ou daquela que ia ver ; un1 outro, a cabeça daquele ou claquelas
que estava1n ve11do" (Orlan 1997, p. 35). Qu ando do Beijo elo artista,
ci11co .fran.cos, ela beija l10 1net1s e n1ulh.eres que pagara,11. a sor11a. E sa
era a obra do 1no1n.ento e a proposta feita ao público de entrar no efêmero
da criação partilhando u111 momento de intimidade com a arti ta. Em
Li boa, ela veste uma cast1la de tecido opaco obre a quaJ rnandara
repr()duzir ern tamanho na.t11raJ eu corpo nti. O tentação paradoxal de
uma nudez qlte não é ntidez, n1a que produz eu efeitos de provocação
no. tran etinres e na autoriclade . Para Orlan, a pele é un1 e -pólio cujo
clesígn. ·e 1nodifica à vontade. O corpo é u111 ready 1rtade, 11,a que deve
ser se1npre retornado en1 bu ca de r1ovas ver õe ele i qt1e dão fo1ma a
"t1m auto-retrato nc) se.ntido clássico do terrno com os meios tec11ológicos

46 Papírus Editora
Material con1 direitos autorais
disponíveis atllaltnente. Oscílã entre desfiguri1ção e uma novâ figuração,
inscreve~ e na carne, pois no · a época con1eça a clar-lhe a possibilidade"
(Orlan 1997, p. 1).
A ci rurgia estética é u111a rnedicina de~ti nada a c lientes que não
estão doentes. 01.a que qt1eren1 n1L1dar . tia aparência e n1odificar, dessa
n1ar1eíra.. ua identidade, provocar ur11a revi.ravolta err1 sua relação con1 o
r11u ndo, não se da11do um te1npo para ·e transforn1ar, porén1 recorrendo a
u1na· operação i111bólica in1ecliara que 111odifica un1a característica do
corpo percebícia C<)n10 obstáculo à rnetaiT1orfose. Medicina pó -n1oderna
p<)r excelência - por ua preocupa.ç ão de retificação pttra do corpo - .
baseia-se en1 un1a fantasia de do mínio de si do cliente e na urgência do
resultaclo. Orlai1 des,1ia para seu u o pe soaJ, sem referência à enferrnida.de
ou ao ofrLme11to 1noraJ, u1na cit"t1rgia que e presta às st1a. fan.tasias - a.
tarefa não é au1nentar st1a sedução, nem lt1tar contra o e11vel.he.ci mento
ou corrigir uma irnagen1 desacreditada de si, 111as apenas experi1nentar
os possíveis corpora.is, assu.mir uma carn.e de segu n.cla mã.o, maleável e
deseja.d a como tal, à. maneira de uma roupa empres tada de um guarda-
roupa ir1finito. A cirurgia funciona aqui fora d.a legitimidade médica,
torna-se t11n 111eio de transforma.ção de si e de criação de ur11a obra de
arte que se .identifica à forn1a física do pró1Jrio ujeito. Após a anestesia
da dor graça a un1a peridural , o cirLu:gião e os rne,nbro de ua equipe,
todos vestiêlo por grande costureiro , corneçan1 a trabalhar, seguindo
u1na drarr1atr1rgia n1eticulo a. Urna cerirnônia ba11·oca rne ela a dar1ça à
palav-ra, a pintura à in1agen1 de vídeo ou à fotografia, o teatro, a arte~
plásticas. a carne e a faca. A pe1jorn1a1ice é sub titufda por si ter11as de
vídeo e é difuncJida si1nultanear11.ente err1 diferer1te galerias ou r11useu
en1 Pari , Toronto. Nova York etc. A cena da operação torna-se u.rri a
oficina, e a ir1terver1ção cirúrgica, o e petáculo, n1a ~ tar11bém parte ela
obra apre entada. Fotogratias, desenhos, pi11turas, rel icári o que contêm
sa11gue e gorclt11-a cio arti ra prolonga1n a r;e,:forrna11.ce e . eu regi tro en1
víde<).
Ela escolhe para si uma forma fi ica, faz con1 ç1ue recortem seu
corpo sob medida pela cirurgia, ou tnelhor, cinzela-o segt1ndo u1n catálogo
de citações corpora.is ligadas à hi rótia.cla aite (a Gioconda, Psique, Diar1a,
Vên us, Euro1, a etc.): ela escreve a si mesma física e alegre111ente como

Ad.e us ao corpo 4 7
Material con, d1rc1tos autorais
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
núrnero de ocidenr.ai.s, mesmo onde nã.o exi ste qualquer patologia. As
tecnologias .não se conte.ntam .mais com envolver a vida. cotidiana - elas
ins.inuam-se no â.1nago da intin1idacie {Jara aliviar o indivíduo de seu esforço
de aJl1ansar o fato de viver. E e te se entrega a elas quanto àquilo que deve
sentir do r11t1ndo qt1e o cerca. A progra.n1ação farmacológica de si estende
os poderes do h.01ne1n obre eu uni ver o con1u1n. Os psicotrópico se
oferecem como auxi liares técnicos de existêr1cia, rr1oc:lula.ndo o ângt1Jo de
abordagerr1 do cotirua.no, estabelecencio un1a fanta ia dedomi n.io de si di ~tnte
d.a turbtdência do n1undo. concorrendo para a ciborgt1ização elo indi v.íd110,
para a eli.n1in.ação de fronteira entre o q ue deiJende Cie 116s e.n1 t1m
componan1ento e o qt1e cabe a u111a técnicc1exterior.
O recurso aos .instru111e11tos cie ge tã.o ele si SllJ)Õe a cor1fiança en1
uma vontade pes ·oal 011ipote11te, apta a di rigir as condutas e o hu111or. O
paradoxo de a vontade é clara1nente ab<1icar a qualquer vontade,
er1tregand.o-se à onipotência in1agin{1ria ou real do produto constimjdo.
A.decisão do inclivíduo inrervén1 }tpenas no fio têntr.e qt1e orienta a escolha
da su bstâl1cía para prov·ocar o estado desejado. Quanto ao resto, o
indivíduo perm,:tnece .nos t1i lhos, segue liut1as de força decicli das
anteriormente. A afeti,Jidade é entregue à razão. ao mes1'110 te1npo
subordinad a ao .i.11divíduo e subordinand.o-o.
O p rozac é u111 antide1Jressivo, objeto de enorrne suce o do o t1t1·0
lado do Atlâl1tico. Pro·ved.or de uma quírrlica d.a felicidade, ferran1enta
qt1e n1ultiplíca a energia, depu rador da relação co111 o 111u11clo, sua ação
modifica a taxa de erotoni11a: relati arr1en te eficaz contra adepre são. é
ta.rnbé1r1 muito admirado pelos indivíduos perfeita111ente iritegrado e qt1e
se sentem. be,.n em tia pele. Desviado de seu clestino clítiico inicial,
solicitam-se então uas propriedades que estín1ul~u11 a psique. O l1ome11s
público carregados pela· asas elo s ticesso rei vi nclicam torná-lo
regularrnente para n1elhorar seu desen1penho. Ajuste técnico da relação
co,11 o n1undo no sentido cJe uma eficác i.a de ejada, 111ai cio que bu ca de
u1n 011tro 111oclo de vicia. e1n har111onia co.r1, as capaci dade pes oa'i ·, o
p icotrópico i nstaura- e corno próte. e do sentido. O leque de tratai11en tos
corn o prozac é a111plo: anorexia, a.ngústía, buli111ía, dore crô11ica ,
ciún1es, fobia, distúrbios da atenção. da alírnentação, depressão etc. Brn
u1n a pe rspectiva quase religiosa. os ade_pto do /Jroz,ac não temem

Adeus ao corpo 63
Material con, d1rc1tos autorais
acrescentar às curas obtidas a do autis1no e a da. esqt1izofrer1i.a. Ao
contrá1io dos ot1tros antidepressivos que provocam efeítos colaterai na.da
de. prezí,1 eis, o [Jroz.ac, bem dosado, te1n a fa1na ele não provocar muitos.3
Preci ão, can1po de ação vasto e att ência de efeitos colaterais, coclo os
in.gredientes estão reunidos, observa A . Ehrenberg. pant alin1entar o "n1ito
da droga pe1feita" (1995, p. 145). M . arden e creve en1 i ro11ia q ue. en1
n-o ·a ociedades contem.porã11eas, o estilo de vida conduz a. "unia
defici ência de p rozac'' . Nos EUA., o uso de sa droga é claran1ente
desvincu lado dos imperativos n1édicos e da resol ução quín1ica do
sofriment o m.entaJ. Torna~se Ltm produto de consumo con1um ,
como as
vitan1i_11;1s, urr,a engen}1aria qt1fmíca t1 dispo içã.o dou uário. .E con u1nido
pelo ind ivfduos que -q uerern a un1 ír un1 dornír1io de i cor11 a
preocupação de ainpliação da possibilidade pes oai , da ori111ização
dos recursos afetivos e i.ntelectuais. A icl.e11tidade cio.zela-se qu'i1nicamente
quando se recorre j udiciosa1nente aos produtos apropriados. E o [Jroz,clc
é uma ferrament1 de primeira da paJet::1 disponível para as 1nodi ficações
quí1n_ícas do compor tam ento. Arraiga o sujei to, expu.rgando os traços
que o i11comodam e si11l.ula11do os ciue ele deseja como un1 cosrnético
afetivo. Proporciona o don1írrio sobre si. por 111eio de u.rr1a alqt1i1nia icleaJ:
não sermos n1ais nós mes1nos. para sermos fi11al1nente nós n1e ·mos;
retiflcar1n.o-nos à. rna11eira de u1n esboço que, por fi m, ch.e ga a-o texto
final. A.utor de uma apologia do produto, P. Kramer escreve que seus
pacientes r1·a.tados de sa mitneira "sentem-se rn.elhor do que be1l'1" .4

f'roduçc1o fa rmacológica ele si

" O órgão de ht1mor" é um rneio privileg·iado para pe11nanecer firn1e


e1n un1 a1nbie11t.e q_ue foge ao e forços do indivíd.uo. Conso111em-se settS

3. O usu{írios mais críticos aponton1. contudo. n1anife:s111ções de violência, tendêncins suicidâS,


distúrbios da sexualidade en1 cenos pacientes. Existem. portaJ1iO. efeitos cola1en1is. às vezes
diferentes de acordo co,n o indivíduo. Exisie de! fato urn "milo" do proz,.1c.
4. Un1 outro rnedicemento, a fltl!laro11ina, suscita a ínntasiu de ser o anúdoto para todas as
·•rn1qucias'' do corpo. Segundo os n1édiCO$ umericanos. esta poderia "1>rolongar nossa vida
por v~írias déc::ida mantendo nos.s.o corpo jovem: prevenir doe1tçru; cardíacas, c,ãnceres e outras
afecções oorr1unu: proteger cio$ efeitos nefastos do estresse crônico, tratur os p-roblemos de
ono··. e i o. ao que parece. se,11 viciur e sem efeitos colaterais (Le t\1tJ11de. 17/11/!995).

64 Paplrus Edftora
Material con1 d1re1tos autorais
produtos para fortalecer a vontade, a11corar-se corn solidez em urna
reaJidade fltiruante, sempre provi ória, e pe11na.necer 11a corr1petição. Não
e tenta mais escapar de condições de 1;1ida j ulgadas conte távei · ou
insuf1cientes. Ao contrário, as pe soa nelas se arraigan1, a11ul ando, por
rneio de tranquilizantes, as dificuldade a elas vinculadas ou decuplicando
suas fo rça.s par,1, por u111 rem.po, inscrever- e da melhor forn1a en1 u1na
ociedade em qu.e a concorrência e torna lUaí rud.e e onde o faro ele
viver não cam.inha r11 ais con1 a prÓ'jJria pernas, de maneira que é preci o
ti tentá-lo com regu laridade com tutore far1nac•ol6gico . A ga1 11a de
estado. p ·ico16gicos suscitado pe.los psico11·ópico l1arn1oniza.se com a
identiciade de geo111etria vari.ável que co11vém para se n1anter em boa
po ição er11 nossas sociedades. En1 vez de o nosso hu1nor ser t1n1 efei to
da re sonância do inundo ern nó , queremo tornar o mt1nd.o u1na
con eqüêr1cia de nos a intençã.o. A alvação da vida coti.dia11a re ide en1
u1na fórrnu.la quín1ica qt1e libera de urna parte da incerteza e do n1edo. A.
a1n bivaJéncia do corpo é neutra.lizada. Para orientar um.a opção propicia,
n1ul cít)l.icrun- e o conselhos em revi. tas e pecia.lízadas ou não, em obras
de vulgarização, ond.e . e estabelecen1 co1nplacente111ente as receitas da
felicidade, do repou o e do desempenho. Uma grande quan tidade de
guéas prodigaliza conselho e alin1enta u1na at1to1nedicação real ou
inclireta pelo recur o à. prescrição do n1édjco d.e t}ttem e solicita o produto.
Não se trata 1nais apena . de uma 1nedicalização do ofr1n,1ento exi tencial,
1uas ta1nbér11 de ur11a fabricação psicofar nn acológica de si. rnoclelaçã.o
quín1ica dos cornportame11to e da afetividade que .ma11ife ·ta.m u111a
d.úvida fu 11d.amentaI corn relação ao corpo que convém n1anter à no a
111ercê por r11eio da 111olécula a1:>ropriada.
A sexualidade nã<) escapa da ascendêncja du vontade: dissocia-se
do de ejo graças a u1n e ·tír11ulo externo. O suce' o 1nur1dial do viagrcl
atesta essa preocupaçã.o de e capar do aca o do corpo e do ten1po para
tran formá-lo eln uina n1águina co11fiável que re ponde in1ecliatar11ente
à exigê11cias. O viag ra exerce un1 efeito n1ecã.n ico . obre a ereção; ele
não é un1 a.frodisíaco, .r1ão ester1d.e o gozo. Prótese química para restaurar
a auto-estirtla, dar uma ínlagem positiva ao outro ter1tando iludír, prolongar
infi nitame.nte ajt1ventude sext1al. Fantas ia de domínio do desejo. "Será
tã.o natural par.:t un1 ho1nem de 50 a 60 anos ter no bolso un1a de as

Adeus ao corpo 65
Material com d1rc1to5 autorais
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
sexualidade e cte ur11a fisiologia que assusta. A 1na.rerrúdade rorna,..se então
um arcafs1no ainda parcíalinente corporal, mas q11e não tardará a tornar-
se integralmente urn fa to técnico da medicin.a. É claro que resta o
i.n,,estimento dos interes acio que pode1n rei 11troduzir e ntid o,
reapropriar- e da proc1·iação assistida pela n1edicil1a como uni. episódio
de sua história - a criru1ça pode ser an1ada como deve e o proceciimento
funcio11ar rapida.rnente se1n danos. A criança nascida em condições
"naturais" pode carecer de investíme11to, ser mal amada. Nenhun1a
transparê11cia moral exi te nes e as unto. Não e trata de colocar ern dúv.ida
o rect1rso à procriacÇão in. vitro1 legítima e.111 siruações co111provadas de
esterilidade, n1as c1e obser .ar a .insinuação dessa técr1íca para fora dessas
prescriçõe eia 1nedicina e de ver no qtle ela abala o dados fundamentais
de nos a sociedade : progenjtu ra., maternidade, fe111i11ilidade,
masculinidade ou relação con1 a cria11ça. Aplicacla a un1a 111aioria dos casais
qu.e poderiam dispensá-la, é .manifest~u11e11te o sir1toma de urna dú\1ida
fundatne11tal con1 relação ao C<.)rpo.

O corpo indesejável da n1ull1.er: 11 gestcição f ora elo COrJJO

A procriação i,i vitro separa a fecundação da rnaterni dade, 1:encle


hoje a.clí sociar a criança ela g111videz para trar1 for1Itá-1a e.rn pura criação
da 1nedicina. A rnãe é a ponadora incôn1oda co1n cujo clesaparec1111ento
radical se sonha. Con1 a fai1tasia do útero artificial pe lo qual alguns
rnédicos clamam, ela é excluída do começo a,o fi1n do proces o. A criai1ça
nasceria sem I11ãe, fora da corpo, e111 sexualidade, ria trar1sparênci.a d.e
u1n olhar médico que dorninasse cada in tante de seu desenvolvi1nento.
A .1nácuJa do corpo n1aterno e1ia apagada pela higiene do procedin1e11to
e pela vigilãJ1cia se111 trégua fJas n1áqulnas que assinalaria.rT1 qualquer
ru1on1alia. Trabalho e :fant21sia ele ho111ens, não de mulJ1eres, corno e aJ
t1ouvesse um resu l tad o de n1ui tos sécul os que visa se tran ferir
tecnicamente para as 1nãos do n1asculi110 u111 processo que lhe escapa
organicamente. Nostalgia confusa qu e iJ1troduz na fecundação e :no
na cimen to da criança a interferência da téc11ica objetivar1do o col1trole
do início ao final da gestação, provocando o encon.tro dos ga-111etas fora

Adeus ao corpo 75
Matcnal corn d1rc1tos autorais
do corpo. Y. Knibielher bem qtie percebeu a suspeita que pesa sobre a
mtdl1er: "O idea.l dos ginecolog'.istas", escre\.1 e,

(...) só pode ser afastar essa mulher incôn1oda e chegar o n1ais cedo
possível à gestação iI1 vitro. Esse tipo de fecundação já é b.anaJ, logo se
conseguirá prolongar a vidn do etnbrião in vitro até a gestação completa.
ão é apenas ficção cienúfica: já existem equipes de pesquisadores
competindo para alcançar esse objetivo . A n1atemidade que, no século
XX, ainda constituía a especificidade do sexo fe1ni11ino. eu saber próprio,
sua dignidade, está se fragrnentando, se dispersando, caindo integralrnente
sob o controle da. ,nedicína e da sociedade. (Le t1oncle, 19/4/1985}

A ectogê11ese, i to é, toda a n1att:1ração d.o feto e111 inct1badora


artificial , está na ordem do dia . Gestação ·ob contro le 1nédico, que reúne
as cor1dí ções de vigilânc ia e higiene . O pri vilégio 1naterno é sentido como
uma inj ustíça, cuj a reparação só aparece hoje graças ao progresso da
medici na. A mtilher já pode er n1antíd a afasracla da fecundação e Jogo
rnai da gravidez. J .-L. 1o urair1e e creve a esse respeito com entusias mo:
'' Ne sa nova era, o pai estará e1n p-é de iguald ade con1 a rnãe. Alguns
ho111er1 , i n\1ejo o das ligaçõe particulare qt1e se e ta·belecian1 entre a
n1ãe e a criança, n1cu1ifesta111 de de já sua i rnpaciência" (yfo urai ne 1985,
p. 227). De maneira revel.adora, r1e a pajxão pur itana por t11r1: inundo
em corpo e . ern sexualidade, 110 qual o prazer reside a princípio 110
oll.1ar voltado para os l)rocessos técnicos, ele não dt1 vida d.e que ·a mãe e
o pa_i poderão acompanhar visualn1ente o desenvolvimer1to fetal , e sua
afeição pelo novo ser irá se desenvolver ao mesmo tempo" (p. 227). J.-
L. Tourain.e baseia a maternidade das déca.das vindouras 11.a exclu ão
radical da mulher. A partir de agora só i.mport.am de fa to os gametas, a
1nt1lher é supérfltta. Tranqüilamente, ele remete a gravidez à "poesia
retrógracla" d }lS "vovós" (p. 226), condena.ndo ao dest1so as mn1heres
anirna.d as de "sentimentos românticos e nostálgicos ' que ''formularem
objeções de orde111 psicológica" (p. 226) . .Mas lhe parece inconcebível
,, .. .
que es es argu.mentos possru11 por tl m un1co n1stante pe ar rr1a1s que as
'

pos ' ibilidades de ·'liberação" (sic!) da 111ulher e da melhoria da vigilância


111édica do feto. Apesar cio lamentos, das críticas, egundo ele, nada
po derá se opor a esse progre o pr6xi1110. Para a n1ulher, será um novo

76 Papirus Editora
Material con1 d1re1tos autorais
passo para. a conquista de u111a liberdade legfti111a, em qL1e terá urna
capacidade de rrabalho e uma disponibilida{1e finalmente iguais às do
hon1em (pp. 226-227). 'º 1~al genero iclade co11funde. Jean Bernru·d está.
convencido de que a ''igualda.de" de co11dições entre o pai e a n1ãe graças
a es e "progre sos" to111ará as cria11ças "talvez mais felizes d<> que as
do séculos passados'' (u Monde 1 7/2/1982). Magia abe11çoacla que diz
bastante · obre a onipotência religit) a a sociada à ciência e à récnica e
sobre o desprezo das condições de existêrtcia deíxadas à iniciativa da
sext1a[1dade e do pai .
Essa reptiJsa explícita à matemídad.e (e à mulher?), es e ód.ío C{>nfes o
do co11Joque teva a controlar rne n10 gros eiran1ente os JJroce os naturai
levan1 a pe11 ar c.1ue urn dia, ele fato, a criança. na<;cerão de. a 111aneíra,
di ponívei~ ao ren1.aneja.r11ento. fí icos ou genéticos, à e colha cio sexo, à
l1~iage111 de sua qu.al iclade genética. Crianças en1 mãe, er11 pai, cultivacla
en1 u111a provera, incLtbadas J)Or n1áquinas ante de ser enrsegues co111
garantia e serviço pó -venda no doadore (le ga111etas. O hnbita11te do
Brave Ne1,v Vilorlcl de Huxley le111braJ11-~e com horror elo ter11po e.1n que os
homens eram \rívíparo . Ern n1uito aspectos, essa narrativa de 1932 é
t1rn.a prernoníção do avanço atttai da biotecnologia. Con1 todo rigor, a
ectogêne e é o con1plen-1ento neces ál~io de u111a 111eclici na de 11redição qLte
gara11te as im o don1ínio e111 fal11a obre o ciesenvolvin1ento ernbríonário;
ela é o resultado de unla conceJ)Ção rnédica da exi têr1cia ht1n1a11a ern c1ue
o sujeito como tal é 0111 hon1e,n virtttal, epifenômeno de carê1cterísticas
físicas ou genéticas que ciecicle111 s ua e xi tência ou sua morte ob a ég·ide
de t1111a vontade nom1ati va en1 apelação.
Para urn certo ima.ginário da medic.ina, o útero da rnt1lher d.e fato
coloca ein risco a sal.vação e a aúde do embrião. Ml111do arcaico, não-
civilizado. que escapa do controle regular do rnédico, con ti tt1i, [:>Or exeinplo
para o vulgarizador cie11tífico G. Leach ( L970), "o meio n1ai perigoso no
qttal [o ser t1t1111ano] é convidado a viv·er". O corpo da 111ulher é agora
prom0\1 ido a an1biente de alto risco para o de ·envolvi1nento do feto.

1O. A remi nista nn1cricnn:i S. Flrcstone ( 1970) tan1bém considera que por esse procedin1ento as
mulheres estarão liberadns das coerções d:1 reproduç.10.

Adeus ao corpo n
Material con, d1rc1tos autorais
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
13/1/1994). Alg u.mas 1nt1l}1eres acabilm não suportando mais que esses
em.briõe não emprega.d os permru1eçam congelados. 1-lá casai que se
separam e brigam por sua propríeda.de. O amor1toado de células humaniza~
se e provoca t1m dilema. de consciência. Destrttí-los ou abancloná-Jo .
provoca en,tão o sentiinento de tima e pé ·ie ele traição contra es as
"cri a11ças" ado.11ne.cida e que foram objeto de tanta aflição e tanto de ejo.
A irnpo tência de re olver e -e d,ilen1a enqui ta a qt1escão (Mattéi l 994).
E, quancl.o os ' ·prus ·;,(.,,,. fi1ca.m "ó...r-:r
. " n1orrem, e o em b11.\JÇ 11ao " , a 1tuaçao
. -
ror11a- e ainda ma.is confu a.

O e..-ra,11.e de aptidão para a vida

Na cultura ocidentai . • o corpo é o vetor de individuação,


e tabelece a. fronteira da icle11cidade pes oal. igtialclacle do l1omem
consigo n.1.e m o, ua identida,1e pró pri a, in1plica a i gualdacle con1 ' eu
corpo. Tirar-lhe ot1 a.cre centar-lhe algo coloca es e home1n em po ição
intern1ediári.a, a.rnb:fgua, rornpe as fronteira in1bó lica . .Aquele que
pretende a hun1anídade de sua conclição. sern. oferecer suas aparências
comur1s e 111 virtude d.e suas mutilações, st1a . defornlidades, suas ações
irnprevis-íveis ou sua dificuldade de comunicação, é fadado à st1.s peita - a
ele está prometi.da u:ma exis_tê11cia que se desen.volve no palco, diante do
ardor do olhares sem iodulgên.cia dos tra11 euntes ou das teste1nunhas da.
des en1ell1ança. A este, a socied.a.cles ocide11ta.i. expressam irnplicitame11te
ua hun1at1idade rnenor, tUl alteração si1nb6Jica c1ue exige u1:n afastan1ento
ou algun1a prova. Err1 nos a socieciade , o hon1e1n que sofre de algu1na.
deficiência ff ica não é mai entido como homen1 i.11teiro; é visto pelo
pris111a deforn1an te do distancirunen to ou da corn pai xão. Qualquer
alteração notável da aparência do corpo, qualquer transtorno que afete a
111otricidade ou. a preen ão, su cita o olhar eloLi a inte1Toga.ção e até 1nes1110
de i1.11ectiar.o a perturbação, a e tign1atização (Goffmar1 1975; :Nlurphy
1990). J.\ fisiogno111onia e a n1orfop icologia, vestin,entas em tenno
científicos do precor1ceito comuns mais conte!: r.ávei . associam q11alquer
não-co.nformidade ar1atômica ou funcionai à não-c.or1forn1idade 1noral.
Qualquer disti nção que separa ur11 l1orr1ern de eu emelhante é tttl'.l inciício
nefasto que provoca descolrfiança.

86 Papirus Editora
Material con1 d1re1tos autorais
Se a diferença morfológica ou funcíonal fosse i1.1sigr1ificante
sociaJmente, 11ão seria pesquisad,a, ar1nazenada, exposta a esse ponto à
ct1rio idade dos arnadore nos 111u eus a11atô111icos . .Algu111as ar1edotas
ini _tras da hi tória da a11atornia revela1n, aliá , os exce o qt1e es e
frene i de colecio11a.dore podi.a r>rovocar (L e B reton 1993) . A indi crição
cios pa ~antes aos olhares sen1pre a. se tado no in ólito corporal é a versão
{)Op ul ar de uma pai xão n16rbida ben1 co n1parli lh ada. O horr1en1 é
r11oral1nente reduzido aper1a ' ao estado de seu corpo percebido con10 ti m
ab oluto; é dedt1zido, de certa fortn a, pela 111.aneira cocno a1:>arece ao
o l110 ~ do o utro . Aanato1nia ten1 aqui valor de de tino . Fala-se, aliá ,
de "deficiente", con10 se fos e da nat ureza da pes oa." er t1n1 defic.iente"
rnaj do que "ter" un1a deficiê11cia. Apen as ua pre ença já ge ra urn
incôrnodo. u111a de order11 na sitt1ação da interações sociais mais cornuns.
O emaranhai11ento fluido da pala,1 ra e do corJ)O, eia di tâ.ncia e do contato
con, o outro ciepara com a opacidade real ou i1naginária do corpo e su cita
u1n questio11amei1to ai1gustiado obre o que cor1vém f azer ou não. E o
mal-estar é tanto n1 ais vivo c1t1anto o atributos fis icos do i ndivíduo
i1npedem a id.e11t i.ficação co111 ele:. O simbó lico trar1qtWiza.nte que preside
as interações não é n1aís u.sado. Mai ainda. o t1ornern que te1n un1a
deficiência visível le1n bra com forç~1a precariedac1e d.a co11dição ht1rna11a,
de perta a fantasia da fragn1e11tação do corpo que habita 111uitos pesadelos
(Le Breton 1990).

A alteração do corpo re1T1ete, no i111agin{tr1.o ocidenral a un1a


alteração 11,ora.l do ho1nen1 e, inversa.i11ente, a alteração n1oral do ho1nen1
acarreta a fanta ia ele que seu corpo não é apropriado e que convém
encii reitt'i- lo. Essa pa,:;sagem a ttm Oll tro tipo de humanidade autoriza a
con tâ.r1cia dl) j ulgan1ento ou do o ll1ar depreci ativo sobre ele, e até a
vio lência co ntra ele. Só ao ho111er11 co mun1 se re erva o tJr ív il égio
ari tocrático de passear por un1a rt1a en1 uscirar a rnenor indiscrição.
Se o r1ome111 só ex i. te por meio das for111as corporai. que o colocam no
111u11clo, qualquer rnodíficação de ua fo1111a detern1ina un1a outra definição
de sua ht11na11idade. O lirrtites do corpo esboçru11, en1 ua escala, a orden1.
n, oral e ig11ificante do mu11do (Le Bretor1 1990. 1992). E nossas
socie.d ades contemporfu1eas c11lti var11 un1a non11a das aparências e u111a
preocupação r:ígida de aúde,

Adeus ao corpo 87
Material com d1rc1to5 autorais
O e.mbrião e o feto são o centro de ínún1eros procedimentos de
controle. As diversa form as do diagnóstico pré- nata.! (DPN) perrnitem
verificar seu " bom. estado" e submetê-los a um exarne atento de sua
legiti1nidacle para exi tir. O o:PN foi apl.icado pela primeira vez nos anos
70 para a íde11tificação da tris o,nia 2 1 ante de e e tender às molé tias
de crorno 01nos e outros di túrbio n1eta bólíco . A ecografia abriu en1
eguida ca:minho para a detecção de 1nás-forn1ações .n1orfológica . Ma.i
tarde, os progressos da biologia 111olect1lar ro1naram possível o diagnóstico
pré-natal. ela miopatia ele Duchenne 0 11 da rn ucoviscidose e outras
rnoléstias genética . O DPN 13 torna- e un1 exaJ11e roti neiro ao qual a
medicina e os pais ub1neten1 a c1i.ança que vai na cer a fir11 de verificar
sua cor1formiclade genética e ,norfo lógica. /.'\ s veze . em certos {Jaí es. a
arnnioce n.tese ou a ecobrrafia é utiliza.d a para estabelecer o d.iag.nóstico
do sexo e eli1ninar e:tn eguida os fetos norn-1ais de e xo indesejável. Se
é constatada urna enfern1iclade. o obj etivo terapêutico é acessório porque,
de qualq1.:1er T11a.neira, os di túrbio, er1contrados rarai11ente podem ser
tratados. A identi.fi cação de u1na doença genética, que hoje e ·capa a
qualquer trata111ento de cru·a, provoca u.n1aeve·ntual deci ão de interrupção
terapêutica da gravidez (ITG), a 1nedicina passando de un1 papel
terapê utico a urna obra de upressão do que a põe em xeque. À vezes
trata- e de uma . in1ples presunção, como, por e:,xen1plo, o duplo
crornossorno Y, aJ1on1alia banal, mas à qual o boato genético atribuitt o
r101l1e d.e '"crornossomo do cri1ne" fJOrque algt1ns pe qui adores de
Edin1tJt1rgo d.escobri rarn u.111 bo.111 número de indivídt10 portaclore d se
cro1110 . 01110 em um e Labelecin1ento e pecializado no tratarnento de
pacientes considerados perigoso. . O bo pitai americai10 e tabelece1-a111
in:1ectiata1nente exarnes siste1náticos enquanto a n1ídi~1 ali,nentava o
boate> . Algt1ns anos depois, um estuclo dinarnarquê ,nost:rava que um
par de crom.ossomos Y st1plen1entar induzia apen.as t1rn,1 leve deficiência

13. As diferente. formas de diagnóstico pré-natal são cm geral demoradas. Tern1í11ado o exame,
são nticessári,IS várias semanas para saber o resultado. Enquanto isso. a mul11er pernlnnece
nu expecta.tiva; seu ínveslin1enlO .il'ctivo, suspe11so. A criança está a.ti sem eswr; ti mãe às vez,es
asente, mas deve conler sua en1oção por ,necto de se upegar nelu e descobrir cm seguida que
é portadora potencial de alguma doen-ça grave ou 1rissõmic11.

88 Papirus Editora
Matcnal corn d1rc1tos autorais
rnental pouquíssimo incon1patível corn uma existêncja social normaJ.
Os t1c)111en marcados ge11etic{Lmente dessa fo11na não apresentavam
qualque.r agre si vidade ar1or1n al.
O diagnóstico pré-implantação (DPI) é un1 outro exa me realizável
no en1b1iões fec und ados in vitro; visa prevenir o nascin1ento de u111a
criança exposta a t1ma e11:fer1niclade grave. Realiza- e a partir ele algurr1a
célula. dos e111briões . É u 111a ver ão rnell,orada elo DPN na medida em
que per111ite de i111ediato a .eleção do embrião con iderado mai propício
à i1nplantação. enquar1to o DPN é feito depois de iniciada a gravidez. 14 O
DPJ oferece, portanto, um rneio confortável de fazer a tri age1n dos
en1bri õe e n1anter os candid.atos de acordo con1 certos crité,ios genéticos.
'·U,n tiefeito me11or que 11ão justificaria a i nterrU[JÇào de un1a grav idez" ,
di z J. Testart, ··poderia er levado er11 conta na rriagen1 d.os ern.br:iões,
porqt1e o nascirn.ento da criança não seria adiado por e se 1.n otivo" (1992,
p. 97). O DPI toma., porta11to, a lançar a fanrasia <lo "aperfe.i çoar11er1to da
es1Jécie" e do eugeni mo, abrindo t1ma brecha moral e1n escala coletiva,
reduzindo ainda 111ais a criança a objeto. O DPTserá 1nuito atraente para
os casais qt1e não queren1 correr nenhun1 ri co no contex to de ur11a
sociedade de garar1tía e segura11ça (fe taJt 1992. p. 2 12). 15 O peso da
fect111dação ín, vitro va,i parecer-lhes decerto u1n maJ inenor do que o
risco de u1na gravidez ignorando-se a " qual.iclade ge11étíca" da cria11ça.
O .. 1nétodos de seleção refinada do que se tor11a fí11ah.11e11te r11aterial
gertético tra11 form an1 às veze de maneira radical a. própria cria.nça en1
prótese clara111ence afírrnada qua.ndo, porexen1pl.o, o. pai a conceben, a
fim de urílizá -la para conseguir rt1edttl a 6. sea en1 proveito de um OL1tro
f1 lho cJo ca ai ati ngido por algurr1 a for111a de câncer, ccHn, é c laro , rnu i tos
prote··tos de an1or con1 rel ação nela. Os pais não hesi tam ern recorrer ao

14. ··Exis1e u 1en1açno de ativar o DPI. para fugir do DPN. de eleger o seleção precoce e indolor
untes dn supressllo tardin e dilnrei1Lnte" (Tes1art 1992. pp. 270-27 J ). A lei francesa votada e111
1 julho de 1994 enciuadra o DPI de rnaneira bas1ante rigorosa. Outras legislações si'lo ,naís
1 la.xíst.a.s.
15. Con1.inua a existir a questiío no plano genélíco dn efeito a longo prazo sobre a espécie de tal
1 seleção de indivfduo cott1 base em sua anomalia crotno õmica. Ninguém pode avaliar as
con eqUências em 1er1nos de saúde pública. As propriedndcs de um gene . ão 111úHiplas e estilo
longe de ser toda conhecidas.

Adeus ao corpo 89
Material con, d1rc1tos autorais
aborto se o istema itnunológico do embrião ()11dô feto não corresponde
à sua exigê11cia. Na hípótese de os pajs recor:rere1n. à procriação in vi1.ro
para e beneficiare111 do DPI, pode111, des ·e moclo, e colher o ernbrião
cornpatfvel co111 a pessoa qlJe JJrecisa do tra11spla11te (~fe tart 1992. pp.
l 2-183). Es a criança nasce, as im, apó . un1a triagen1 d.e ernbriõe, a
fim ele er genetícan1enre con1patíveI co1n um i11não ou coin uma ir111ã
que e. pera un1 trans plante de meclula. Na fertilização ir1 vitro, o DPl é
un1a garantia da criança que vai nascer, um inve timento ele te1n.po e de
di r1.heiro para adquirir a certeza de um bom.produto final, de uma criança
à lct cari.e de acordo com a vontade udos pais", validada pelas .normas de
aparência d.a ocieclade. Cor11 o DPI é possível 1natar no ovo. ante da
sua in,plantação. os embriões portaclores de doença genéticas, con10 a
miopa.tia, a hemofilia, a tTisso1nia etc. E de ó conservar os embriões
ílesos. A triagem do sexo tambén1 se ro,r na possível, permitindo de
imedi~1to wna escol.l:1a de aceitação ou elir11i1,ação dos embriões machos
em caso de doe11ças que só atingem esse sexo. As pe quisas paralelas
sobre o genoma h11n1ano fornecem a esse método de triagen1 uma terrível
eficácia no controle normati,,o e eugênico da condição ht1rnana. O
e1nbrião tornou-se t1r11 obje to vírtua.l st1jeito a procedin1.e11tos de
i1n11laç-ã.o. Antes 111esrno de exi tir co,no ujeito, já se efetua sobre ele
un1a projeçã.o i111aginária e a ele j::í. se insinua, se 111a ni fesla algt1ma
a1101nalia, qt1e o sofrin1ento que o espera apó o na. ci.mento prevalece
sobre o prazer que teria em viver, e decide~ e por ele que nes as condições
seu de _aparec.irnento é preferível a uma v11rongfi1l life.
Adi crirninação genética 16 do nasci.n1enco que condt12 à interrupção
terapêr1tica da gestação é tanto tnais perturbadora qllanto muit.'ls vezes
confunde genótipo e fenótipo. Ott seja,, virtual e real, rnen agern do gene
e funcio.namento dentro do org~u1i mo. estatística e realidade única. Stu·ge
uma nova meclíci11a, que nã.o trata tnais o doe11te, 111as urna categoria
hipotética. De fato, as doenças genéticas não tên1 a 111es1nas incidências,

J6. i-\ disc1i 1ninoç.lo genética já está mui10 prese.me nos EU A: compreende con,f.}anhias de seguros,
serviços médicos, agênt:ius de udoção, n orl1ninistn1ção pública, estnbelrximcr1tos escolares,
en1presas p-articuJa.rcs etc. (Rifkin 1998, p. 2 16 ss; Kevles 1995, p. 367 ss; Blanc 1986, p.
:M7 ss). En1 cenos estados an1e.ricanos, os ex::unes genéticos tomnrnm-se obrignt.órios (Kevles.
1995. p. 400).

90 Paplrus Editora
Material con1 d1re1tos autorais
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
prova te111ívei do e ·ar11 e de UfJtidão para a vida dos e111briões ou dos
feto . Con10 lemlJra J. Te tart.

A liberdade de escolher nos. o·· fi lhos poderia bern ser apenas a liberdade
de especíali ta . E. o que dizer ela liberdade de sas n1.esn1.as criaiiças
l ançadas na ex istência con1 base no índice de co11forn1Jdade? Proibidas
de decepcionar nisso quen1 as elegeu. nem por is..so estariam livres de
apre eri tar ín1perfeições variadas. (Tesu1r1 1992, p. 242) 17

.Algu1nas crianças, cujo exame fracassaran1 em detectar as doenças


ou a def ici ênci~ts no .rnor11e11to de tia c.hegada ao m11ndo , já são
consideradas ' 'e11·0 1nédicos". E1n r1orr1e de ses "nascírnentoserrado " , as
c1ianças ou os pai s querelantes obtêm nos EUA reparações finar1ceiras
dos inédicos. As crianças a.lega.m que JJreferit.i am não ter nascido a st1portar
as .má -forrr1ações fí icas, a defici.ências ensoriai ou os problen1as ligados
a eu taclo de saúde. Entran1 con1 ações na Ju tiça contra eus pais C)U
eu médico er11 norne de eu direito ao gozo se1.11 defeitos da exi têr1cia
qtte deveria ter-lhes ido gara.ntida quando do nascimento (Le Breton 1990).
Colocar no 111undo un1a criança doente ou deficiente cotn co11heci me11to
de cau. a talvez eja u1T1 dia con iderado n1oti vo de evícias conrra a.cria11Ça,
fornecendo à última a fJOssíbilidade de entrar na J u ' tiça contra eu pai .
A re po11 abil idade do 111édico ou dos pais é er11pregacla de n1a11eira
obs~;sjva. A 111edicalização já inten, a da gra\ridez. pode. e lo111ar cada vez
n1a1 1ígid.a para nada deixar ao aca o.
Se os e111briões ou o· fetos portaciore de ur-r1a anomal ia ão
eliminado . qual erá a condição das crianças que nascem con1 urna
deficiência ou unia doeJ1ça '? A detecção in ute ro ele qualquer a non1alia
a.centua a u peita que já pe a obre a: criar1ça ou obre o ad.ulto
portadore de uma diferença física ou 111ental. D. K aplru1, d.o ln titu.to

17. ·'Moje··. escreve Duster ( 1992. p. 14). "n discussão pública pan..'C.e ocorrer entre cspecinlisutS
(geneticislas, rnédicos espe:cislis.t11s, pe quisadores etc.) de wn Indo. e, de 01.1t.ro, críticos que
fonun npresentados como 1olos, teimosos, iguaros. luditus prontos o en1em.1:r n cabeçn. 1u1areia
ou tentar bloquear a ntnquina.ria do progresso. Eu gostaria de ver uni outro nível de discussão
e111 que os cidadãos. n1ui10 rnnis he1n iníorn,ndos, se engajarilun nurn d.eb111e nnin1ado sobre
questões como o segredo e :1 divulgação. os 1ernpias Oll as dele<..-ções. a nu1rição ou O$ genes"'.

Adeus ao corpo 93
Material con, d1rc1tos autorais
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
O ge,1etícar11.e1ite correto

A sociedade an1e1icar1a ten1 uma adn1iração formidável pelt) ge11es


e pelas interpretações biológicas do co111portan1ento . São abundantes
as referências à características genéticas na no,1elas. nos telefihnes,
no filmes, na in1prensa, nas revistas fen1in1r1as etc., ou no discurso
político. O gene tornou-se desse 111odo u.m "ícone cultu ral", ' ·u1n
equivale11te leigo eia conce1x:ão da alma no cri tiani 1no" (Nelkin e Lindee
1995, p. 17). E11ca111a a ve rdade oculta do uj eito npe ar de eu
subterfúgios de aparência. A crença e e palha e difur1de à maneira de
uma cultura de n1a sa que vem exr>licar (ie forma n1ãgica as ituações
sociais. Fala- e normaln1en1e de gene da re i lência, ela preguiça, da
po1.1pança, da celebtidade, cio sucesso, da maten1ática, elo hedonis1no. da
felicidade, da pro1)ensão à toxicon1a11ia etc. (id., p. 16).
Er11 1997. algu11s pesqui. adores ingle es acreditam de cobri r urn
gruJ)O de gene que favorecern a con1petêncra da n1oças na relaçõe .
Volta. à tona a "11atureza fen1inina" as .ociada à doçura e à. e11sibilidadet
enquanto outros biólogos ex plicrun o cléficit de ternt1ra do horr1ern pela
necessit1ade que têrn de combater ou matar para .,,obreviver (em Rífkin
1998, pp . 201-202). A.fi r1na- e cientifica111e11te que o · negros co11·e1n
rnai.s, que saltan, 111ai alto, c111alidade que .não exigem qualq t1er
aprend.i.zado, rnas que, en1 co mpe·nsação, são 1nenos inteligentes.
Maravilher110-nos co,11 un1 gene c1ue soube prever a rece11te ínve11ção
dos c.ern metros rasos ou do basquere. Decerto existe um gene qu e
favorece a cre11ça de que os gene.. são un1a resposta para todas élS qu.estões.
A fantasia da on i.potência do gene só é \1 alorizacl.a no círcu lo de u111a
n1inoria de pesqui. adore _, n1ns seu discur o é n1uita · vez.e ouvido pelo
políticos e transrniticlo cor110 lugar-cornu111 })ela n1ídia e nas conver, ru
de bar. Con titui in1ediatan1ente a rr1a11chete cios jorn ais, n1a sua refutação
é 11ai cli e reta, e aLé sern incidência na mes,11a ,nídias. E a paixão
por u1n a in.terpretação fatalis ta cios con,1portamer1to acon1panha a

3. Pesquisadores que 1'l\1-:-1n1ente :-tO geneticistas. rr1as ru1les erologisu1s ( Dav.1 kins). cnton1ologistt1s
(\,Vilson). psicólogos (Hen-stein. Jensen. Eysenck. Mumiy. Rowe. )\il cdnick ... ) etc.

Adeus ao corpo 107


Material com d1rc1tos autorais
rr1idiatJza.ção das pesqu.isas sobre o geno1na humano - é a conseqüêt1cja
direta de grandes declarações d.e biólogos qu.e afirn1a111 qt1e a decifraçã.o
do ge110 1r1a can:ega uma promessa de revelação sobre os comportamentos.
Torna a fornecer autoridade às teses do integiismo genético ciefe11cLidas
principalmente pelos sociobiófogos.
Na representações do gra11de público, aJimentadas por certo
cient istas c1ue ultrapa . an1 o rigor da di_ciplina, o DNA é a projeção
biológica das estrurura(, 111entais e físicas do incli íc1uo. A trans1)arência do
gene eria a trans parência do sujeito, uma revelação en1 rec1.1rso de eu
destino e 111 terT11os de cioença ou de cor11J>Ortarnento . Os vid.e nte. fican1
·e,n en1prego a partir de e facas - o biólogo dirão o futuro do i11divíduo,
suas probabilidades ele carreira, eus gostos sex11ai , tias cha11ces de ser
bem- ucedidos na vida, sua inteligência etc. O gene to111ou-se u1n an1bíente
de .nos as sociedades conten,1Jorâneas, t1111a n:1itologia rnoderna, unia
palavra-chave e m.ágica das co1'1versas comu11 - irônicas ou é1ia ' .
.A violê.n cia s er de origern ge11ética é t1oje, por exemplo. uma ídéia
popular 110s EU A, tra11smitid.a 11ão apenas pela ociobíologia.1 mas tarnbém
pelas n1ídias. O "cromossorno do crime·>, o "criminoso nato'' toman1-se
lugare -cornt1ns. A tal ponto ql1e, em 1986. em Sevilh.a, cerca de 20
cientistas de rer1omet sob a.égide de J. G0Jdste1n, reúr1-ern-se e denunciarn~
em u1n tex.to de síntese, que a guerra se deve a un1 "i11stinto, a genes, ou
a 01ecai1isn10s cerebrais" (Nelkin e Li11dee 1998, p. 132). Da rnesma
1naneira qt1e na época do tráfico de negros ele ter iam, sem dúvida.
atirn1a.do a existência de um ger1e ela e crav idão, o adepto do integrismo
genético considerrun hoje que a críminalidacie é hereditátia e que atinge
desigual n1ente as elas e e as ''raças". Nas pri.sõe arnericanas. a ta.xa de
encarcerar11ento de negro é alta, e disso eles concluern a d.íinensão
"racial" da criminalidade. En1 1992, um funcioné\rio da administração
Reagan dis e c1ue os negros a.n,erícano foram "condicio11ados por dez
mil anos de críaçã,o seleti,,a à batalha individtial e à n,ora l antitrabalho
que é coro1ário da vida e111 liberdade na selvaH (Nelkin e Lin<lee 1998, p.
166). Herr11steín e Murray ( l 994) atiçam ru polêmicas do outro lado do
Atlântico afirmancio a hereditari edade da inteligência e a inferioridade
dos negro : sua dotação genética o~ co.nd.uziria a unia repre e11tação
ele vada nas e, t.atísticas eia pobreza. do de en1prego. da d.elinqtiênci a.

108 Papl.rus Editora


Material com d1rc1to5 autorais
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
darv.1inia110, no qual a busca de infor1nações definiti varnente suplantou a.
preocupação de rnaxirnizar os ge11es. Qualquer clistinção entre rnáquína e
vivo foi abolida. O /Ju11k cibernético identifica a ü,joJfera conte1nporânea
qt1e as redes pern1icen1 percorrer con10 radicalme11te alheia a u111 corpo
que nã.o pa sa maís de "carne", obstáculo radical à 1111aterialização exigicl.a
para u111a na,1egação completa. A forn1a ht1lnana é inadequad.a se não for
st1prirnida ou remodelada ,nesclando~se com a informática. O próprio
n1u11do cornpete de n1ru1eira deslea l com os autores de ficção científica
exagera11do su,1s hipóteses ou realizando un1 111eio social e técni co que
às veze 1:> arece diretar11ente . nído de eu in1aginário: httn1 ani zação da
1nác1uina., reiticação do homer11, d.i ern inação dos con1ponente corporai
l1u.n1anos ou assi111ilados. ciesvio da tecnologia por en1pre a se1n
escrúp11lo , digitalização do espírito hu1nano etc. Não apena a ficção
científica não se opõe 111ais ao real, rna parece às vezes estar coloca11do
e1l1 e,,iclência f11ndamento ocia i. da ex istência co nte1n porâ11ea. A
apropríação dos irnagin,'íríos que organiza1n a orientaçõe. coletivas
f uturas encon.t. ra na ficção cien tífica uni caminho n1ai fác il de
desenvol.vi1nento e de projeção em um.a trama social. Ela experimenta
o cen.cirios do futuro próximo e já esclarece os processos em jogo 110
presen.te.

Adeus ao corpo 161


Material com d1rc1tos autorais
6
A SEXUALIDADE CIBERNÉTICf\ OU O EROTISMO SEM CORPO

Co,rro nossos c/euses e nossas esJJeranças não são 1nnis do


que científicos, por que nossos a1nores não se torn,ariarn
tanibérn científicos -- en1 lugar de Eva d:a lencla esquecida.
da lerid.a desJJrez.ada JJela ciêr1cia, ofereço-vos u.111-a Eva
cien.t(fi.ca - , os ú11icos dignos, ao que parece, dessas vísceras
111urch(1s qi1e - por uni r-es10 de seruirnenral is-1110 elo qual sol~·
os prin1eiros a sorrir - ainda cha1nc1is "vossos corações".

Vi!lier de L'l sle Adan1. l 'Evefu1ure IA Evafútura j, 1.992

Uni erotis1110 fora do corpo

O eroti tno é un1a relação de atisfação rec.íproca con1 o corpo do


ot1rro. fmplica uma confiança 111útua tt.f icienre para e,,it.ar perc1er- ~c 110
()Ulro e para con1 ele v i ver u.n1 n1ome11to inten o de in ti111idacie. A
brincadeira ele vi·ver elo eroti 1110 é u111 confronto imbólic() corn a morte
que se estende além da " n·1orte de n1entira". que n1u itas eze de11on1.ina
o [)razer. 'Principaln1ente Bat[Üli e n1ostrou o quanto a sexua.l idacle i111plica
Adeus ao corpo 163
Material con1 direitos autorais
a comoção da 1norte e t1n1 corpo i1 corpo radic:1.l com a aJteridade. C)
desnudamento é um equivalente sim.bólico cta .i m.olação, da descoberta,
por trás do ver11i.z das roupas, da int1nita fragilidade do outro. A nudez já
impfica aceitar estar mora.unente indefeso (nu) diar1te dos olhos do ot1tro.
Ela tira a máscara. "O eroti fno", diz Bataille, "é naco11Sciência do ho.mern
aquilo que põe nele o ser en1 questão" ( 1965, p. 34). RuptlJra ontológica
no ele envolvin1ento tranqüilo da vida cotidiana. que projeta fora de si, a
exL1aliclade ou o eroti mo i111plica a provação elo corJ)Odt) outro. 1
O extrer110 conremporâneo i11troduz urna rt1.pt11ra fonnidável no
u11i.verso da sexualidad.e. A. partir de agora, con1 o n1eio telen1ático , a
pre ença carnal elo outro não é tna·i nece sária. A exuali.dade ciber11ética
realiza un1 desaparecirnenro e 111 equf,,oco ela carne. Na medida em que é
de nianeira privilegiada un1 l1ir10 ao corpo, o erotisn10 não poderia e ca1Jar
à tentati·v~is de extraí-lo de un1 corpo arrebatado no irnaginário do de abo110
do qual 1no.. trar110 as 111uita. repre entaçõe. . Na. rela~. o sexo tran for111a-
e en1 texto, aguarciando as co1nbinaçôe en 'Oriai que pern1 item ti.n1ular,
a di tâl1cia\ o corpo do outro, e111 tocá-lo. A reparação da i11dig1.1.idade
corporal encontra o anctróide cibernético ttscetível cie in te ragir logo
sex.uahnente , e éle responder atíva1ner1te a todas as far1tasias de seu
proprietário. E verdade que o terna é anti go. Em As 111etc1n101foses, Ovídio
conta os arnores de PigJnaJião, que prefere a co1npanhia deu.ma mulher de
marfim à da rnulher real para evitar qualquer dissabor. Modela com st1as
próprias 1r1ã,os eu ideal do outro fen1ínir10, 1naneira c1e a111ar a si n1es1no
oculta11do a pro\1a de alterittad.e que é 11ecessariainente o e11ig111a do corpo
do outro, con1eçando pela de eu ro to (Le Breton l 992). E~ e sonho de
contornar o corpl) co1J1 a rnáquina, de pot1par-se o rnedo do desnuda,n1ento
é e11contrado e111 111uítas narrativas da literan1ra ociclet1tal, prir1cirJaln1ente
pe'la pena de f-loffma.nn e de Vil tiers de L'I le Adam. E as duas narrativas,
corn va.lor de 111ito, revelam o ódio feroz do cor_ po. a i11dig11idade da 1nulller
de carne, o júbilo elo clornínic) obre u111 outro, tanto n1ai. ub111isso quanto
não ten1 alma, ,interioridatie, história.

1. Sobre a pomogrnlia e 1>rincipeln1en1e sobre o uso dos corpos ro1ogmíado. (re,•ístasctc.) ou


film::tdos (vfdoos pornográficos etc.). ou ·cja. sobre un1a sexualidade ela própria reduzida n
u1n certo tipo de olhar. remetemos a Patrick Bauclry ( 1997).

164 P-dpirus Editora


Matcnal corn d1rc1tos autorais
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
You have either reached a page that is unavai lable for vi ewi ng or reached your vi ewi ng li mit for thi s
book.
Colocando o corpo mode1110 em perspecti va, David Le
Bretoo n1ostra que, 110 discurso científico contemporâneo, o
corpo é tornado como simples suporte da pessoa, algo que
pode e deve ser aprimorado, u111a 1natéria-pri ma na qual se
dilui a identidade pessoal. Para pa sar do corpo ra cunho ao
corpo acess61io, para não 11aufragar 11u111 sistema cada vez
n1ais ati vo e exigente, as pessoas e.ntrega n1-se a uma n1anipu-
lação de si a base de próteses. A tecnoc iência vem socorrer
esse corpo que deve ser reparado, rea rranjado: assi tência
médica à procriação, exames terrí veis que acompanham a
existência pré-natal - enfi m, instaura-se a su peita do corpo,
e a medicina, faze11do a triagem, to111a-sc t1m biopoder.
Enquanto algun biólogos sonham em li vrar a 1nt1 lher da
gestação, a sexualjdade cibernética realiza o i1naginário do
desapareci1nento do corpo e até do OL1tro. As im, para
algL1ns. o corpo não está mais â altura das capacidades
ex'igidas 11a era da informação: convé111 moldá-lo, forjando
um corpo biônico no qual seria e11xertado u1n disquete que
contivesse o espírito. Adez,s ao col'po desnuda e a vontade
implícita do Ocidente de transformar esse corpo rascunho.

3• Ed.
ISBN 85-308-0724-3

PAPJRU ED ITORA

Você também pode gostar