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O rosto é um invólucro exterior àquele que fala, que pensa ou que sente. A forma
significante na linguagem, suas próprias unidades continuariam indeterminadas se o
eventual ouvinte não guiasse suas escolhas pelo rosto daquele que fala.
Uma criança, uma mulher, uma mãe de família, um homem, um pai, um chef, um
professor primário, um policial, não falam uma língua em geral, mas uma língua cujos
traços significantes são indexados nos traços de rostidade específicos. Os rostos não são
primeiramente individuais, eles definem zonas de frequência ou de probabilidade,
delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes
às significações conformes. Do mesmo modo, a forma da subjetividade, consciência ou
paixão, permaneceria absolutamente vazia se os rostos não formassem lugares de
ressonância que selecionam o real mental ou sentido, tornando-o antecipadamente
conforme a uma realidade dominante.
Conto de terror, mas o rosto é um conto de terror. É certo que o significante não
constrói sozinho o muro que lhe é necessário; é certo que a subjetividade não escava
sozinha seu buraco. Mas tampouco estão completamente prontos os rostos concretos
que poderíamos nos atribuir. Os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata que o
produz, segundo as combinações deformáveis de suas engrenagens.
Podemos então propor a seguinte distinção: o rosto faz parte de um sistema superfície-
buracos, superfície esburacada. Mas esse sistema não deve sobretudo ser confundido
com o sistema volume-cavidade, próprio do rosto. O rosto é uma superfície: traços,
linhas rugas do rosto, rosto comprido, quadrado, triangular; o rosto é um mapa, mesmo
se aplicado sobre um volume, envolvendo-se, mesmo se cercando e margeando
cavidades que não existem mais senão como buracos. Mesmo humana, a cabeça não é
forçosamente um rosto. O rosto só se produz quando a cabeça deixa de fazer parte do
corpo, quando para de ser codificada pelo corpo, quando ela mesma para de ter um
código corporal polívoco multidimensional - quando o corpo, incluindo a cabeça, se
encontra descodificado e deve ser sobre-codificado por algo que denominaremos Rosto.
É o mesmo que dizer que a cabeça, que todos os elementos volume-cavidade da cabeça
devem ser rostificados.
[...] Ora, o rosto possui um correlato de uma grande importância, a paisagem, que não é
somente um meio mas um mundo desterritorializado. Múltiplas são as correções rosto-
paisagem, nesse nível “superior”. A educação cristã exerce ao mesmo tempo o controle
espiritual da rostidade e da paisageidade: componham tanto uns como os outros,
coloram-nos completem-nos, em uma complementaridade em que paisagens e rostos se
repercutem.
Mesmo um objeto de uso será rostificado: sobre uma casa, um utensílio ou um objeto,
sobre uma roupa, etc, dir-se-á que eles me olham, não porque se assemelham a um
rosto, mas porque estão presos ao processo muro branco-buraco negro, porque se
conectam à máquina abstrata de rostificação. O close do cinema refere-se tanto a uma
faca, a uma xícara, a um relógio, a uma chaleira quanto a um rosto ou a um elemento de
rosto; por exemplo.
[...] A máquina abstrata não se efetua então apensa nos rostos que produz, mas, em
diversos graus, nas partes do corpo, nas roupas, nos objetos que ela rostifica segundo
uma ordem das razões ( não uma organização de semelhança).
O muro branco não para de crescer, ao mesmo tempo que o buraco negro funciona
várias vezes. A professora ficou louca; mas a loucura é um rosto conforme de enésima
escolha (entretanto, não o último, visto que existem ainda rostos de loucos não-
conformes à loucura tal como supomos que ela deva ser).
Eles também serão inscritos no muro, distribuídos pelo buraco. Devem ser
cristianizados, isto é, rostificados.
[...] Não é um sujeito que escolhe os rostos, como no teste de Szondi, são os rostos que
escolhem seus sujeitos.
O que desencadeia a máquina abstrata de rostidade, já que ela não se exerce sempre,
nem em quaisquer formações sociais? Determinadas formações sociais têm necessidade
de rosto, e também de paisagem.
https://180graus.com/geral/fotografa-arrisca-a-vida-para-tirar-as-selfies-mais-extremas-
do-planeta
Gilles Deleuze organiza, no capítulo sobre rostidade, dois sis - temas, o da significância
e o da subjetivação, dizendo serem semióticas distintas. “Os rostos concretos nascem de
uma máquina abstrata de rostidade, que irá produzi-los ao mesmo tempo que der ao
significante seu muro branco, à subjetivida - de seu buraco negro” (Deleuze, 1996, pp.
32). Ele declara que a significância não existiria sem um muro branco em que ha - veria
inscrições sígnicas e redundâncias. E traz o buraco negro como condição para haver,
além das redundâncias, a subjeti - vação. Deleuze aponta para a sacralização do rosto e
“o rosto é um mapa” (Deleuze, 1996, pp. 35); em um outro momento, afirma que “O
rosto é o Cristo” (Deleuze, 1996, p. 43). A ros - tidade aponta suas correspondências
com as redundâncias – o rosto sendo uma delas – e multiplicidades, com o eixo do
buraco negro da subjetividade, e com o eixo do muro branco da significação. Deleuze
torna perceptível a concepção de que qualquer parte do corpo pode alcançar uma
relação rostifica - da; esta relação, por sua vez, não decorre de semelhanças, mas de uma
classe de razões. “O rosto não é animal, mas tampouco é humano em geral, há mesmo
algo de absolutamente inuma - no no rosto” (Deleuze, 1996, pp. 35-36). Nesse
dispositivo que produzi, junto aos colaboradores que posaram, deixo claro uma
plicagem pontual entre teorias capazes de agilizar cria - tivamente a leitura de imagens
e, consequentemente, alçar os pontos de interesses, isto é, demonstrar uma pedagogia
mo - vente e borrar a redundância de significações e subjetividades, ao criar um evento,
mesmo que, devido ao registro, ele caia novamente no perigo de ser capturado em
alguma forma fixa.