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Introdução
O presente trabalho se propõe a refletir sobre a experiência de Estágio realizado no
Colégio de Aplicação da UFRJ (CAp/UFRJ), sob supervisão do professor Nelson Aguiar, no
período de agosto a outubro de 2021. Ao longo do Estágio, acompanhamos três turmas de 2º
ano, com um tempo de aula de Filosofia cada, e três turmas de 3º ano, com dois tempos de aula
de Filosofia cada, além de eventuais aulas no pré-vestibular CAp Popular. A partir da descrição
das atividades realizadas e da participação das e dos licenciandos no planejamento, execução e
avaliação das mesmas, pretende-se refletir sobre o modo como o ensino de Filosofia no Ensino
Médio se realiza na prática. Ainda, em diálogo com a Pedagogia da Pergunta, de Paulo Freire,
e com a Metodologia do Ensino de Filosofia, pensada por Silvio Gallo, lança-se um olhar crítico
sobre a experiência escolar da Filosofia, afim de percorrer a distância entre aquilo que se
observa na sala de aula (ainda que virtual) e o que se projeta como desejável para a mesma.
Considerações
Não pode ser desconsiderado que o CAp é uma exceção à realidade da maioria das
escolas da rede pública do país, sendo uma escola de excelência em vários aspectos
(infraestrutura, propostas pedagógicas, currículo, docentes etc.). Apesar do pouco tempo de
aulas de Filosofia (levando em conta ainda que no 1º ano do Ensino Médio elas nem ocorrem),
há ainda algum espaço institucional para a disciplina. É o caso das bolsas e projetos de Iniciação
Científica destinados aos estudantes, por exemplo. No entanto, é sintomático que só haja um
professor e poucos tempos para a Filosofia. Isto não pode ser visto com ingenuidade; é histórica
a desvalorização da disciplina no currículo, vide as propostas governamentais recorrentes que
ameaçam retirá-la do currículo obrigatório e das quais a nova BNCC não está desvinculada.
Com isto, é possível pensar também em que medida a pouca participação dos estudantes nas
aulas de Filosofia possa ou não ter alguma relação com esta desvalorização institucional, social
e política da disciplina.
Mais do que “ensinar as técnicas pedagógicas de dar aula”, a experiência de Estágio tem
permitido uma nova ótica, mais profunda, acerca destas questões de jogo de poder, valorização
da disciplina de Filosofia e das relações do docente com os estudantes e com os demais docentes
das demais disciplinas, questões estas que antecedem e ao mesmo tempo ultrapassam a mera
explicação de conteúdos e o recorte temporal e espacial das aulas propriamente ditas. Tem sido
evidente também como os problemas e as soluções são e devem ser sempre, quase que
cotidianamente, atualizados. Isto fica muito evidente nas reuniões de planejamento dos
licenciandos com o professor Nelson que ocorrem semanalmente, nas quais sempre debatemos
não só sobre propostas para as aulas seguintes, mas também refletimos sobre o que foi realizado
nas aulas anteriores, tentando formular conjuntamente melhores estratégias pedagógicas de
contextualização, engajamento, sensibilização, avaliação etc. Tudo isto faz pensar em que
medida a maneira de nós, professores e futuros professores, nos portarmos, nos reportarmos aos
estudantes, transpormos o conteúdo, nos relacionarmos nós mesmos com as questões filosóficas
etc. influencia não só no entendimento e compreensão dos conteúdos ministrados, mas também
na sua significação para cada estudante (quer dizer, na interlocução de tais conteúdos com a
realidade existencial do estudante e com a sociedade em que vivemos).
Neste sentido, a prática filosófica pode ser entendida como a formulação de conceitos
que não são criados espontaneamente nem pela simples vontade do filósofo, mas que nascem
da necessidade de responder a problemas da experiência do filósofo no mundo que o inquietam.
Assim, como coloca Gallo, aprender filosofia é regredir no conceito, percorrer seu caminho de
volta até o problema ao qual ele responde. Isto implica que aprender filosofia não possa ser
receber um conceito filosófico pronto, dado que o fundamento do exercício filosófico autêntico
reside na pergunta e não no conceito que a responde.
Um problema é sempre histórica e socialmente situado, de modo que, afirmar o enfoque
do ensino no trato do problema não pode ser entendido como uma diminuição da importância
de uma abordagem histórica da Filosofia. Ao contrário, tal abordagem deve estar sempre no
horizonte, mas a experiência mais ampla de ensinar filosofia não pode restringir-se a ela.
Mas um problema filosófico também pode sempre ser colocado nos termos de uma
pergunta. O enfoque no problema filosófico, portanto, significa - ou deveria significar –
estabelecer uma relação mais próxima com as perguntas e com o perguntar. Para isto, podemos
recorrer a análise de Paulo Freire a respeito do espaço que se tem para o perguntar na escola:
Pressupõe-se com isso que o ensino de Filosofia também seja mais do que aprender o
que determinado autor perguntou e respondeu, mas que seja também o exercício de perguntar
e buscar responder. Assim, ensinar Filosofia também não deve ser apenas ensinar sobre um
filósofo e/ou um conceito, mas ensinar a pensar a partir ou junto com os filósofos e conceitos.
Isto, evidentemente, pressupõe seu entendimento e a compreensão, mas também sua
problematização, oposição, afirmação etc.
Mas como realizar esta tarefa grandiosa e complexa que cabe ao professor de Filosofia,
da qual nem mesmo filósofos que dedicaram sua vida inteira conseguiram dar conta, em um ou
dois tempos de aula por semana? Não se pode atribuir toda esta responsabilidade apenas à
condução e planejamento das aulas. A questão do ensino de Filosofia no Ensino Médio passa
também pelo debate sobre currículo e sobre a escola mesma. O que pode a Filosofia que se
encontra engessada em um currículo que se baseia no resultado - da prova, da avaliação, do
vestibular, das competências e habilidades desenvolvidas – e não nos problemas que motivam
a construção do conhecimento? O que se coloca como possibilidade de tensionamento com os
dispositivos disciplinares da escola para o professor de Filosofia que trabalha sozinho (sem uma
equipe de professores de Filosofia)?
Conclusão
Silvio Gallo propõe três formas de lidar com estas questões que aqui emergem a partir
da reflexão sobre as experiências no campo de estágio: a primeira é que se entenda a Filosofia
como uma “luta contra a opinião” (GALLO, p. 157); a segunda é a busca pela transversalidade
da Filosofia com as outras áreas do saber; a terceira, por fim, é que se trate filosoficamente do
problema do ensino de Filosofia, visando superar a falsa dicotomia entre quem é filósofo “de
verdade” e quem é “apenas” professor de Filosofia.
A respeito da recusa da opinião, Gallo desenvolve:
Deleuze e Guattari colocam que temos vivido mergulhados na opinião, a qual se apresenta como
a única forma de vencer o caos, pois nos apavora e angustia ver nosso pensamento escapar de si mesmo,
nossas ideias se perderem no vazio. A opinião, no entanto, não vence o caos, mas foge dele, como se essa
fuga fosse possível. E assim se consolida, num jogo de esquecimento do caos, como se vivêssemos todos
felizes, por não saber - ou não querer saber - de sua existência, uma vez que construímos um mundinho
perfeito, onde tudo tem seu lugar. (GALLO, 2012, p. 157)
Assim, o embate com a opinião nas aulas de Filosofia constituiria o “mergulho no caos,
para dele trazer novas potencialidades” (GALLO, p. 158).
A transversalidade, por sua vez, é apresentada pelo autor como um tensionamento direto
com a noção de interdisciplinaridade que é sintomática da sociedade pedagogizada e
pedagogizante denunciada por Rancière e que, para Gallo, somente acaba por manter e
reafirmar as hierarquias do saber entre as disciplinas do currículo escolar. Um ensino de
Filosofia a partir da transversalidade propõe um rompimento bem mais radical de tais
hierarquias e dá as cartas para a possibilidade de “emergência de novos saberes e novas
práticas” (GALLO, p. 160). A este respeito, o Gallo acrescenta:
“Na perspectiva da transversalidade, a filosofia no ensino médio deve atravessar as demais áreas
de conhecimento e também ser atravessada por elas, a fim de possibilitar uma perspectiva da
complexidade dos saberes e de alimentar de forma crítica e criativa o processo de produção de conceitos.”
(GALLO, 2012, p. 160)
Sobre o trato filosófico do ensino de Filosofia, o autor mais uma vez bebe de Deleuze e
Guattari para propor uma “pedagogia do conceito”, nos termos anteriormente aqui mencionados
de relacionar-se com o conceito regredindo nele até o problema que o funda. Neste sentido,
uma pedagogia do conceito é uma pedagogia do problema, ou, ainda, nos termos freireanos,
uma pedagogia da pergunta. Contra a burocratização da pergunta denunciada por Freire, Gallo
aponta para esta perspectiva pedagógica que toma o fazer filosófico (e, portanto, a colocação
de problemas e o ato de perguntar) como um “empreendimento vivo e dinâmico, sempre criada
e recriada” (GALLO, p. 161). Para tanto, a unificação da figura do filósofo com a do professor
de Filosofia se faz imperativa, já que ensinar filosofia não é a mera transmissão de saberes
produzidos por especialistas, mas o exercício mesmo do filosofar.
Referências bibliográficas:
FAUNDEZ, Antonio; FREIRE, Paulo. Por uma pedagogia da pergunta.1. ed., Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2013.
GALLO, Silvio. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o Ensino Médio.
Campinas, SP: Papirus, 2012.