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Disciplina: Didática da Filosofia I

Professor: Felipe Ceppas


Estudante: Mariana Oliveira dos Santos Tartaglia
DRE: 117042747

Relatório Parcial de Estágio

Introdução
O presente trabalho se propõe a refletir sobre a experiência de Estágio realizado no
Colégio de Aplicação da UFRJ (CAp/UFRJ), sob supervisão do professor Nelson Aguiar, no
período de agosto a outubro de 2021. Ao longo do Estágio, acompanhamos três turmas de 2º
ano, com um tempo de aula de Filosofia cada, e três turmas de 3º ano, com dois tempos de aula
de Filosofia cada, além de eventuais aulas no pré-vestibular CAp Popular. A partir da descrição
das atividades realizadas e da participação das e dos licenciandos no planejamento, execução e
avaliação das mesmas, pretende-se refletir sobre o modo como o ensino de Filosofia no Ensino
Médio se realiza na prática. Ainda, em diálogo com a Pedagogia da Pergunta, de Paulo Freire,
e com a Metodologia do Ensino de Filosofia, pensada por Silvio Gallo, lança-se um olhar crítico
sobre a experiência escolar da Filosofia, afim de percorrer a distância entre aquilo que se
observa na sala de aula (ainda que virtual) e o que se projeta como desejável para a mesma.

As experiências da experiência de Estágio


Desde o início, chamou a atenção o professor Nelson sempre se referia a nós como
licenciandos, e não propriamente como estagiários. Isto pareceu sempre se colocar como uma
afirmação de seu esforço para que superássemos uma visão, em certo sentido estigmatizada, do
estagiário como aquele cuja função é apenas observar. Ao longo das aulas e reuniões de
planejamento, temos sido sempre incentivados a propor, questionar, sugerir e intervir (sejam
intervenções pontuais, com comentários, pequenas exposições etc.; seja na condução de aulas
inteiras e atividades extras).
Nos dias 14 e 21 de outubro, por exemplo, foram realizados debates entre os alunos cuja
proposta e condução foi realizada por um grupo de licenciandos. Os debates se inseriram na
temática da Unidade de Gênero e Sexualidade e ocorreram no modelo do Parlamento Britânico,
em que há duas casas de governo e uma moção a ser votada. A proposta foi construída ao longo
de quase um mês com os alunos, em pequenos momentos das aulas que foram cedidos para que
os licenciandos responsáveis explicassem a proposta e se acertassem os detalhes. Em conjunto
com os estudantes, foram escolhidas as moções a serem votadas e os grupos tiveram um tempo
para estudar os objetos das moções previamente ao debate, de modo a se prepararem para a
discussão e construírem, em conjunto, sua argumentação. A atividade foi muito bem sucedida
do ponto de vista pedagógico, principalmente porque promoveu uma participação intensa das e
dos estudantes que tem sido muito rara e limitada nas aulas remotas. Como consequência disso,
o debate também permitiu que fosse feita uma avaliação (não no sentido de prova, teste, mas
de evidência processual) do domínio, por parte das e dos estudantes da turma, dos conteúdos
ministrados. Ao longo da argumentação, os grupos buscaram articular evidências, dados,
argumentos morais etc. com referenciais teóricos da Filosofia, abordados em aulas anteriores,
ou até mesmo levando referenciais novos.
Tal dificuldade no engajamento dos estudantes, principalmente do 2º ano (que são
menos participativos ainda do que os mais velhos), tem sido uma questão recorrente. O debate
foi uma proposta pontual, mas que não se sustenta para ser explorada em todas as aulas. Outras
ferramentas didáticas/pedagógicas e dialógicas de sensibilização e engajamento tem sido
frequentemente frustradas, o que parece ocorrer majoritariamente em função do formato das
aulas online. Segundo o professor Nelson, este problema não tem ocorrido somente nas aulas
de Filosofia.
Uma ilustração desta dificuldade pode ser a aula ministrada por mim em 08/09 nas
turmas do 2º ano, a respeito da Virada Linguística. A proposta pensada para a contextualização
do problema era realizar um breve diálogo, seguindo uma metodologia o mais próxima possível
da proposta de Comunidade de Investigação de Mathew Lipman, em que, a partir da colocação
de um problema inicial, “espera-se uma prática dialogada em que os participantes troquem
ideias e argumentos, levando em consideração o exame dos pressupostos e consequências
deles” (KOHAN; OLARIETA, 2012, p. 83). Partindo de um trecho do poema Gato pensa?, de
Fernando Pessoa, a pretendia-se experimentar junto aos estudantes as possibilidades em torno
da questão da linguagem, da relação com a representação e pensamento das coisas, a sua
ausência nos animais etc. No entanto, a atividade teve de ser adaptada e a proposta perdeu seu
caráter dialógico diante da dificuldade de garantir a participação e envolvimento da turma. Não
se descarta aqui elementos como a minha dificuldade em conduzir uma aula, a dificuldade do
tema em questão, a ausência de uma relação prévia entre mim e as/os estudantes.
Além das dificuldades advindas do formato remoto, ao longo dos meses de estágio
apareceram questões políticas, sociais e institucionais cujo reflexo nas aulas e na relação dos
estudantes com as aulas de Filosofia também pode ser objeto de análise. A pouca quantidade
de tempos de aula; a concentração das tarefas pedagógicas em um único professor responsável
por ministrar as aulas, planejar os conteúdos, unidades etc., preparar avaliações, reuniões,
orientação de Iniciação Científica e por aí vai, sem haver uma equipe de Filosofia propriamente;
e, finalmente, o engessamento das aulas, conteúdos e finalidades destes causado pela nova
BNCC (cuja diluição dos conteúdos específicos em competências e habilidades atropela muitas
das peculiaridades e procedimentos bastante próprios da Filosofia) e pelo vestibular são alguns
dos fatores que podem ser citados aqui. Inclusive, a escolha política das e dos professores da
área de Ciências Humanas em não adotar nenhum dos livros didáticos sugeridos, visto que todos
se guiam pela nova BNCC, também é algo que merece certa atenção neste cenário, sendo uma
boa evidência do terreno de disputa (pedagógica, mas também política) que é a escola e,
sobretudo, a escola pública. Além de se poder notar também o reflexo desta escolha na prática
cotidiana dos docentes, que eventualmente podem se encontrar mais sobrecarregados por
precisar, eles mesmos, preparar os materiais didáticos e de registro para as/os estudantes.

Considerações
Não pode ser desconsiderado que o CAp é uma exceção à realidade da maioria das
escolas da rede pública do país, sendo uma escola de excelência em vários aspectos
(infraestrutura, propostas pedagógicas, currículo, docentes etc.). Apesar do pouco tempo de
aulas de Filosofia (levando em conta ainda que no 1º ano do Ensino Médio elas nem ocorrem),
há ainda algum espaço institucional para a disciplina. É o caso das bolsas e projetos de Iniciação
Científica destinados aos estudantes, por exemplo. No entanto, é sintomático que só haja um
professor e poucos tempos para a Filosofia. Isto não pode ser visto com ingenuidade; é histórica
a desvalorização da disciplina no currículo, vide as propostas governamentais recorrentes que
ameaçam retirá-la do currículo obrigatório e das quais a nova BNCC não está desvinculada.
Com isto, é possível pensar também em que medida a pouca participação dos estudantes nas
aulas de Filosofia possa ou não ter alguma relação com esta desvalorização institucional, social
e política da disciplina.
Mais do que “ensinar as técnicas pedagógicas de dar aula”, a experiência de Estágio tem
permitido uma nova ótica, mais profunda, acerca destas questões de jogo de poder, valorização
da disciplina de Filosofia e das relações do docente com os estudantes e com os demais docentes
das demais disciplinas, questões estas que antecedem e ao mesmo tempo ultrapassam a mera
explicação de conteúdos e o recorte temporal e espacial das aulas propriamente ditas. Tem sido
evidente também como os problemas e as soluções são e devem ser sempre, quase que
cotidianamente, atualizados. Isto fica muito evidente nas reuniões de planejamento dos
licenciandos com o professor Nelson que ocorrem semanalmente, nas quais sempre debatemos
não só sobre propostas para as aulas seguintes, mas também refletimos sobre o que foi realizado
nas aulas anteriores, tentando formular conjuntamente melhores estratégias pedagógicas de
contextualização, engajamento, sensibilização, avaliação etc. Tudo isto faz pensar em que
medida a maneira de nós, professores e futuros professores, nos portarmos, nos reportarmos aos
estudantes, transpormos o conteúdo, nos relacionarmos nós mesmos com as questões filosóficas
etc. influencia não só no entendimento e compreensão dos conteúdos ministrados, mas também
na sua significação para cada estudante (quer dizer, na interlocução de tais conteúdos com a
realidade existencial do estudante e com a sociedade em que vivemos).

O que é o ensino de Filosofia


Parece inevitável não acusar no ensino de Filosofia, tal qual ele se dá hoje, uma redução
da potência e da temporalidade filosófica aos procedimentos disciplinares da escola, em um
sentido foucaultiano mesmo do exame e da vigilância por meio das avaliações, mensuração de
participação, lista de presença, vestibular, nota, aprovação etc. Por outro lado, este aspecto
panóptico parece coexistir com uma permanente tensão e, mais além, com um certa intenção de
tensionamento, da Filosofia com os códigos escolares, seja por meio das práticas, conceitos,
autores e/ou temáticas abordadas em aula, seja naquilo que a ultrapassa (como é o caso da
deliberação de não se utilizar livro didático). Neste sentido, é notável e mesmo louvável a
vontade do professor regente e também dos licenciandos em fazer com que as aulas de Filosofia
não sejam mera exposição histórica e docilizada de conteúdos institucionalizados, mas que seja
o máximo possível um momento de verdadeira philia com o saber. Que isto nem sempre ocorra
parece ser menos por má escolha e/ou condução dos procedimentos didáticos, do que pelas
circunstâncias já mencionadas que ultrapassam o plano de aula.

O que deveria ser o ensino de Filosofia


Pensar a respeito daquilo que deveria ser o ensino de Filosofia passa, inevitavelmente,
pelo problema da definição do que é a Filosofia mesma – quais são seus procedimentos, objetos
de estudo, sua história, seus personagens? Este problema aparece recorrentemente na história
da Filosofia, sempre como inesgotado e inesgotável, mas dele são possíveis alguns recortes.
Que a própria definição de Filosofia seja um problema autenticamente filosófico já é um indício
significativo dos caminhos meandrosos pelos quais se percorre na prática filosófica e com os
quais um professor ou professora de Filosofia eventualmente terá de confrontar-se. Em
Metodologia do Ensino de Filosofia: uma didática para o Ensino Médio, Silvio Gallo (2012)
coloca-se no seio deste confronto e nos ajuda a vislumbrar alguns percursos possíveis.
Gallo parte de uma problematização de uma concepção de transmissão da Filosofia
diretamente associada à tradição platônica, remetendo à Alegoria da Caverna, segundo a qual
o filósofo (ou seja, aquele que faz filosofia) tem a tarefa quase que missionária de mostrar às
pessoas “comuns” a Verdade. Verdade esta que já vem pronta e acabada, cuja formulação e
desvelamento cabem somente ao filósofo. O que Gallo critica nesta tradição é este caráter
meramente transmissivo do ensino das verdades filosóficas e, em certo sentido, a própria noção
de que existam verdades filosóficas esgotadas. Para ele, a Filosofia autêntica está muito mais
associada ao problema do que à solução e, por isso, um ensino de filosofia que se reduz à mera
explicação de verdades acabadas (as soluções dos problemas) é essencialmente antifilosófico.
Diante disto, o Gallo recorre a Deleuze para propor que:

Se o aprendiz de natação é aquele que enfrenta o problema de nadar nadando, o aprendiz de


filosofia é aquele que enfrenta o problema do conceito pensando conceitualmente. Não há outro modo de
aprender o movimento do conceito, senão lançando-se ao conceito. E como não se pode aprender o
conceito senão pelo problema que o incita, o aprendiz de filosofia precisa adentrar nos campos
problemáticos, precisa experimentar sensivelmente os problemas, a fim de poder ver engendrado o ato de
pensar em seu próprio pensamento. (GALLO, 2012, p. 78)

Neste sentido, a prática filosófica pode ser entendida como a formulação de conceitos
que não são criados espontaneamente nem pela simples vontade do filósofo, mas que nascem
da necessidade de responder a problemas da experiência do filósofo no mundo que o inquietam.
Assim, como coloca Gallo, aprender filosofia é regredir no conceito, percorrer seu caminho de
volta até o problema ao qual ele responde. Isto implica que aprender filosofia não possa ser
receber um conceito filosófico pronto, dado que o fundamento do exercício filosófico autêntico
reside na pergunta e não no conceito que a responde.
Um problema é sempre histórica e socialmente situado, de modo que, afirmar o enfoque
do ensino no trato do problema não pode ser entendido como uma diminuição da importância
de uma abordagem histórica da Filosofia. Ao contrário, tal abordagem deve estar sempre no
horizonte, mas a experiência mais ampla de ensinar filosofia não pode restringir-se a ela.
Mas um problema filosófico também pode sempre ser colocado nos termos de uma
pergunta. O enfoque no problema filosófico, portanto, significa - ou deveria significar –
estabelecer uma relação mais próxima com as perguntas e com o perguntar. Para isto, podemos
recorrer a análise de Paulo Freire a respeito do espaço que se tem para o perguntar na escola:

Volto a insistir na necessidade de estimular permanentemente a curiosidade, o ato de perguntar,


em lugar de reprimi-la. As escolas ora recusam as perguntas, ora burocratizam o ato de perguntar. A
questão não está simplesmente em introduzir no currículo o momento das perguntas, de nove às dez, por
exemplo. Não é isto! A questão nossa não é burocratização das perguntas, mas reconhecer a existência
como um ato de perguntar! (FREIRE, 2013, p. 51)

Pressupõe-se com isso que o ensino de Filosofia também seja mais do que aprender o
que determinado autor perguntou e respondeu, mas que seja também o exercício de perguntar
e buscar responder. Assim, ensinar Filosofia também não deve ser apenas ensinar sobre um
filósofo e/ou um conceito, mas ensinar a pensar a partir ou junto com os filósofos e conceitos.
Isto, evidentemente, pressupõe seu entendimento e a compreensão, mas também sua
problematização, oposição, afirmação etc.
Mas como realizar esta tarefa grandiosa e complexa que cabe ao professor de Filosofia,
da qual nem mesmo filósofos que dedicaram sua vida inteira conseguiram dar conta, em um ou
dois tempos de aula por semana? Não se pode atribuir toda esta responsabilidade apenas à
condução e planejamento das aulas. A questão do ensino de Filosofia no Ensino Médio passa
também pelo debate sobre currículo e sobre a escola mesma. O que pode a Filosofia que se
encontra engessada em um currículo que se baseia no resultado - da prova, da avaliação, do
vestibular, das competências e habilidades desenvolvidas – e não nos problemas que motivam
a construção do conhecimento? O que se coloca como possibilidade de tensionamento com os
dispositivos disciplinares da escola para o professor de Filosofia que trabalha sozinho (sem uma
equipe de professores de Filosofia)?

Conclusão
Silvio Gallo propõe três formas de lidar com estas questões que aqui emergem a partir
da reflexão sobre as experiências no campo de estágio: a primeira é que se entenda a Filosofia
como uma “luta contra a opinião” (GALLO, p. 157); a segunda é a busca pela transversalidade
da Filosofia com as outras áreas do saber; a terceira, por fim, é que se trate filosoficamente do
problema do ensino de Filosofia, visando superar a falsa dicotomia entre quem é filósofo “de
verdade” e quem é “apenas” professor de Filosofia.
A respeito da recusa da opinião, Gallo desenvolve:

Deleuze e Guattari colocam que temos vivido mergulhados na opinião, a qual se apresenta como
a única forma de vencer o caos, pois nos apavora e angustia ver nosso pensamento escapar de si mesmo,
nossas ideias se perderem no vazio. A opinião, no entanto, não vence o caos, mas foge dele, como se essa
fuga fosse possível. E assim se consolida, num jogo de esquecimento do caos, como se vivêssemos todos
felizes, por não saber - ou não querer saber - de sua existência, uma vez que construímos um mundinho
perfeito, onde tudo tem seu lugar. (GALLO, 2012, p. 157)
Assim, o embate com a opinião nas aulas de Filosofia constituiria o “mergulho no caos,
para dele trazer novas potencialidades” (GALLO, p. 158).
A transversalidade, por sua vez, é apresentada pelo autor como um tensionamento direto
com a noção de interdisciplinaridade que é sintomática da sociedade pedagogizada e
pedagogizante denunciada por Rancière e que, para Gallo, somente acaba por manter e
reafirmar as hierarquias do saber entre as disciplinas do currículo escolar. Um ensino de
Filosofia a partir da transversalidade propõe um rompimento bem mais radical de tais
hierarquias e dá as cartas para a possibilidade de “emergência de novos saberes e novas
práticas” (GALLO, p. 160). A este respeito, o Gallo acrescenta:

“Na perspectiva da transversalidade, a filosofia no ensino médio deve atravessar as demais áreas
de conhecimento e também ser atravessada por elas, a fim de possibilitar uma perspectiva da
complexidade dos saberes e de alimentar de forma crítica e criativa o processo de produção de conceitos.”
(GALLO, 2012, p. 160)

Sobre o trato filosófico do ensino de Filosofia, o autor mais uma vez bebe de Deleuze e
Guattari para propor uma “pedagogia do conceito”, nos termos anteriormente aqui mencionados
de relacionar-se com o conceito regredindo nele até o problema que o funda. Neste sentido,
uma pedagogia do conceito é uma pedagogia do problema, ou, ainda, nos termos freireanos,
uma pedagogia da pergunta. Contra a burocratização da pergunta denunciada por Freire, Gallo
aponta para esta perspectiva pedagógica que toma o fazer filosófico (e, portanto, a colocação
de problemas e o ato de perguntar) como um “empreendimento vivo e dinâmico, sempre criada
e recriada” (GALLO, p. 161). Para tanto, a unificação da figura do filósofo com a do professor
de Filosofia se faz imperativa, já que ensinar filosofia não é a mera transmissão de saberes
produzidos por especialistas, mas o exercício mesmo do filosofar.
Referências bibliográficas:

FAUNDEZ, Antonio; FREIRE, Paulo. Por uma pedagogia da pergunta.1. ed., Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2013.

GALLO, Silvio. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o Ensino Médio.
Campinas, SP: Papirus, 2012.

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