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MÓDULO BERTHASAURA

Juliana Manso Sayão & Marina Bento Soares

1. Dinosauria
Os dinossauros são répteis pertencentes a um grupo denominado Archosauria. Archosauria, que
inclui os crocodilos e as aves, e Lepidosauria, que é composto por cobras e lagartos, são os dois
grandes grupos de répteis viventes. Archosauria está inserido dentro de Archosauromorpha, que
é um grupo maior, representado por muitas formas fósseis completamente extintas. Dentro de
Archosauria, além dos crocodilianos, encontram-se os pterossauros (répteis alados). Podemos
dizer que pterossauros são “primos-irmãos” dos dinossauros, enquanto os crocodilianos são
parentes um pouco mais distantes. E as aves, onde entram nisso? Aves se originaram a partir de
um grupo de dinossauros chamados terópodes (que inclui os famosos Tyrannosaurus, Oviraptor,
Velociraptor e Deinonychus). Do ponto de vista evolutivo, não há como separar aves como um
grupo a parte de Dinosauria. Assim, aves são dinossauros! Os paleontólogos, inclusive usam o
termo dinossauros não-avianos para se referir aos clássicos dinossauros (extintos há 66 milhões
de anos) e dinossauros avianos para se referir às Aves (Fig. 1).

Figura 1. Relações de
parentesco evolutivo
(filogenéticas) dentro de
Archosauromorpha.
Em preto, grupos
extintos. Em vermelho,
grupos viventes

Os dinossauros não-avianos possuem mais de uma dezena de características únicas, a maioria


feições localizadas nas pernas e nos pés. Entre estas, uma das principais é um orifício bem
desenvolvido na bacia (ou pélvis) na posição onde o fêmur se encaixa com o corpo. Essa região
se chama acetábulo e a presença de um acetábulo perfurado de forma ampla é uma das
características únicas compartilhadas entre todos os dinossauros, incluindo as aves (Fig.2).

Figura 2. Diferenças na cintura pélvica


de Saurischia e Ornitischia.

A propósito, é exatamente a morfologia dos ossos do quadril (cintura pélvica), que define os dois
grandes grupos de dinossauros, os Ornitischia e os Saurischia (Fig. 3).
Figura 3. Relações simplificadas de
parentesco entre os maiores grupos de
Dinosauria: Ornitischia e Saurischia.

Todos os Ornitischia são herbívoros e não têm parentesco direto com as aves. Dentro deste
grupo estão os famosos Stegosaurus, Ankylosaurus, Iguanodon, Maiasaura,
Pachycephalosaurus e Triceratops, dinossauros que se encontram distribuídos ao longo do
planeta na Era Mesozoica, especialmente a partir do Jurássico. O mais antigo ornitisquio é
pequeno Pisanosaurus (cerca de 1m de comprimento), proveniente do Triássico da Argentina.
No Brasil, o registro de ornitísquios é somente representado até o momento, por pegadas/trilhas
(icnofósseis) atribuídas a anquilossauros e a iguanodontes indeterminados, encontradas,
respectivamente no Rio Grande do Sul e na Paraíba, em rochas jurássicas e cretáceas.
Quanto aos saurísquios, estes também têm seus primeiros representantes fósseis registrados no
Triássico da América do Sul. Ocorrem formas basais de saurísquios carnívoros como
Herrerasaurus (Argentina), Staurikosaurus e Gnathovorax (Rio Grande do Sul), ocorrem
espécies inseridas no grupo dos sauropodomorfos (herbívoros com pescoço longo), como
Pampadromaeus e Macrocollum (RS), e ocorrem representantes dos já comentados terópodes,
como Eodromeus (Argentina) e Erythrovenator (RS). Tanto os sauropodomorfos quanto os
terópodes foram grupos muito numerosos, contendo diversas espécies, distribuídas em distintos
grupos. Os sauropodomorfos Sauropoda se configuraram como os maiores animais terrestres
que já habitaram a Terra, como Brachiosaurus, Diplodocus, Dreadnoughtus, podendo alguns
deles chegar a mais de 30m de comprimento, como é o caso do argentino Patagotitan. Existem
muitos fósseis de saurópodes no Brasil, em rochas cretáceas da Bacia Bauru (São Paulo, Minas
Gerais, Mato Grosso), como Maxakalisaurus, Gondwanatitan, Baurutitan e Austroposeidon. Este
último é o maior saurópode brasileiro, com cerca de 25 m.
Os terópodes não são tão bem representados no Brasil como os sauropodomorfos. Além de
Erythovenator, já mencionado para o Triássico, no Cretáceo da Bacia do Araripe temos
exemplos de terópodes, como Santanaraptor (um possível Tyrannosauroidea), “Ubirajara
jubatus” (que foi levado ilegalmente para fora do Brasil) e Angaturama, um espinossaurídeo. O
maior terópode brasileiro é Oxalaia quilombensis, um espinossaurídeo encontrado no Maranhão,
que deve ter atingido 12 metros. Na Bacia Bauru existem também registros de parentes da
Berthasaura, como o abelissaurídeo Pycnonemosaurus nevesi, do Mato Grosso. Mais
aparentado ainda com Berthasaura é Vespersaurus paranaensis, outro pequeno Noasauridae,
com cerca de 1,5m, encontrado em Cruzeiro do Oeste, no mesmo sítio onde Berthasaura foi
coletado.

2. Berthasaura
O dinossauro Berthasaura leopoldinae teve sua descrição publicada em 2021 na prestigiada
revista Scientific Reports, resultado da colaboração científica de pesquisadores do Museu
Nacional e COPPE, Universidade Federal do Rio de Janeiro, e da Universidade do Contestado,
de Mafra, Santa Catarina. O primeiro autor do artigo que descreveu Berthasaura é Geovane
Alves de Souza, discente de doutorado do Programa de Pós-graduação em Zoologia no Museu
Nacional
O nome Berthasaura leopoldinae representa uma tripla homenagem: à Bertha Lutz (1894-1976),
bióloga e pesquisadora do Museu Nacional/UFRJ; à Imperatriz Maria Leopoldina (1797-1826),
que viveu no Paço de São Cristóvão e foi uma grande incentivadora das ciências naturais; e à
escola de samba Imperatriz Leopoldinense, que levou para a Sapucaí o enredo "Uma Noite Real
no Museu Nacional" (2018).
Berthasaura é um dinossauro membro dos Abelisauroidea, uma linhagem de dinossauros
terópodes, cujos fósseis mais antigos são do período Jurássico médio (~170 milhões de anos),
provenientes da Austrália e da Argentina. Grandes conhecidos dinossauros carnívoros, como
Ceratosaurus e Carnotaurus fazem parte deste grupo. O grupo tem uma grande
representatividade de fósseis no super-continente Gonduana (que reunia América do Sul, África,
Madagascar, Índia, Austrália e Antártica), ao longo da Era Mesozoica, especialmente no período
Cretáceo (entre 145 e 66 milhões de anos atrás). Certamente, o mais famoso abelisauroidea é
Carnotaurus sastrei, que viveu no final do Cretáceo no que hoje conhecemos por território
argentino. Carnotaurus era um dinossauro carnívoro de grande porte, podendo atingir 8m de
comprimento. Carnotaurus é representante de um grupo de Abelisauroidea chamado
Abelisauridae, o mesmo do já referido brasileiro Pycnonemosaurus. Já Berthasaura faz parte de
outro grupo de Abelisauroidea denominado Noasauridae. De modo geral, os Abelisauridae são
animais de maior tamanho quando comparados aos Noasauridae.
O fóssil foi encontrado em um trabalho de campo realizado em 2014 por pesquisadores do
Museu Nacional e da Universidade do Contestado (Santa Catarina), em rochas do período
Cretáceo (entre 70 e 80 milhões de anos atrás), no município de Cruzeiro do Oeste, Paraná. O
afloramento (sítio fossilífero) de onde Berthasaura provém, é conhecido como “Cemitério dos
Pterossauros” e faz parta das rochas cretáceas da Bacia Bauru, com idade entre 70 e 80
milhões de anos. Geologicamente, se fala em Grupo Caiuá e Formação Goio-Erê para se referir
aos níveis sedimentares de Cruzeiro do Oeste. A Formação Goio-Erê caracteriza-se por
representar um ambiente de clima seco, caracterizado por um deserto, mas com alguns “oásis”
contendo um pouco mais de umidade (Fig. 4). Do contrário, não seria possível se encontrar
registros de animais que lá viveram. No módulo Berthasaura são apresentados os seus
“amigos”. Estes são fósseis encontrados também no Cemitério dos Pterossauros. Além de
Berthasaura leopoldinae e do já mencionado Vespersaurus paranaensis (terópodes
abelissauroides noasaurídeos), ocorrem lá inúmeros ossos do pterossauro Caiuajara dobruskii.
Entende-se, assim, de onde vem o nome “Cemitério dos Pterossauros”. Um segundo
pterossauro lá encontrado, foi nomeado como Keresdracon wilsoni. Completando o time de
amigos da Berthasaura, está Gueragama sudamericana, um pequeno lagarto parente das
iguanas.

Figura 4. Reconstrução em vida da


Berthasaura no ambiente árido da
formação Goio-Erê. Sob o tronco
aparece Gueragama e voando está
Caiuajara. Arte: Maurilio Oliveira.

Berthasaura corresponde a um dos mais completos abelissauroides conhecidos no mundo,


contendo restos do crânio e mandíbula, coluna vertebral, cinturas peitoral e pélvica e membros
anteriores e posteriores (Figs. 5 e 6). Sua característica mais marcante é a total ausência de
dentes, muito raro dentre os carnívoros terópodes. Possivelmente Berthasaura se alimentava de
plantas. Assim, não está descartada a hipótese de ingestão de seixos rochosos (gastrólitos) para
auxiliar na digestão de matéria fibrosa, como já registrado para outros dinossauros herbívoros.
Mas a hipótese mais provável é de que ria um animal omnívoro, como postulado para o
igualmente desdentado terópode Oviraptor, por exemplo.
Figura 5. Foto do exemplar MN 7821-V Comprimento estimado: ~1 m

Figura 6. Ossos e reconstrução do crânio e do esqueleto pós-cranial de Berthasaura (retirado de Souza et


al., 2020).

Berthasaura era um indivíduo jovem à época de sua morte, de aproximadamente um metro de


comprimento e 80 centímetros de altura, e pesando entre 8 e 10 quilos. Sua idade não está
ainda bem estabelecida. Mas, informações do esqueleto, como grau de fusão das vértebras, por
exemplo, permitem inferir que era uma forma juvenil. Uma análise paleohistológica, que prevê o
corte transversal de alguns ossos, a fim de observá-los ao microscópio, está em andamento.
Com isso, será possível ver as diversas zonas de deposição de tecido ósseo ao longo da vida da
Berthasaura e contá-las. Cada zona de deposição corresponderia a um ano de vida. Na
Paleohistologia este método se chama esqueletocronologia e parte do mesmo princípio que usa
os anéis de crescimento do tronco das árvores para contagem de idade.
A chegada de Berthasaura ao Museu Nacional em 2020 foi muito comemorada, por tratar-se do
primeiro fóssil de dinossauro incorporado à coleção científica do Setor de Paleovertebrados
depois do incêndio de 2018. Antes de 2020, o bloco contendo o fóssil de Berthasaura (Fig. 5)
estava depositado no CENPALEO - Centro Paleontológico da Universidade do Contestado, em
Mafra, Santa Catarina, aos cuidados do curador Dr. Luiz Weinschütz, que viabilizou a doação ao
Museu Nacional. Agora essa preciosidade, com número de coleção MN 7821-V, está exposta no
centro de visitação para quem tiver interesse em conhecê-la.

Outras curiosidades sobre o Módulo Berthasaura:


Dentes x Dieta
A característica peculiar de edentulismo em Berthasaura oportuniza a investigação sobre a
variedade de tipos dentários encontrados nos diferentes dinossauros. Dentes são estruturas
complexas formadas por tecidos como cemento, dentina e esmalte. Especialmente o esmalte é
um tecido muito denso e resistente, conferindo ao dente um alto potencial de preservação.
Assim, dentes são elementos comuns no registro fóssil dos vários grupos de vertebrados, se
configurando como elementos-chave para inferências sobre dieta, uma vez que forma pode ser
correlacionada diretamente com função. Dentes de padrão carnívoro podem cortar e rasgar
carne; dentes de padrão insetívoro podem perfurar o exoesqueleto de quitina de artrópodes;
dentes durófagos podem e triturar conchas; dentes de padrão herbívoro podem triturar sementes
e frutificações, além de macerar folhas. Dinossauros ornitisquios (herbívoros, saurísquios
sauropodomorfos (herbívoros) e terópodes (carnívoros na grande maioria), exibem diferentes
padrões de morfologia dentária que auxiliam na interpretação de suas preferências alimentares
(Fig.7).

Figura 7. Exemplos de
morfologias dentárias
encontradas em
dinossauros, e sua relação
com a dieta. Modificado de:
https://nhm.org/stories/too
th-fast-tooth-curious

Outros tipos de fósseis e processos de fossilização


Além do fóssil da Berthasaura, que é um vertebrado com seu esqueleto formado por ossos, são
também apresentados, por exemplo: fósseis de peixes, contendo, além de ossos, escamas
preservadas; fósseis de amonites, que eram moluscos portadores de concha; fósseis de
trilobitas, que eram artrópodes cujo esqueleto era formado por quitina; fósseis de plantas
(celulose); e pistas deixadas por invertebrados, que são chamados icnofósseis.
Para um embasamento sobre diferentes tipos de fósseis e os distintos processos de fossilização
em plantas e animais, sugere-se a leitura do Capítulo “Fósseis e Processos de Fossilização”,
disponível em www.paleoantologianasaladeaula.com.
Também recomenda-se a leitura dos capítulos “Tempo Geológico” e “Sim, nós temos
dinossauros”, disponível em www.paleoantologianasaladeaula.com.

LINKS UTEIS:
Link para acessar o artigo da Scientific Reports: https://www.nature.com/articles/s41598-021-01312-4

Outros links sobre Berthasaura:

https://conexao.ufrj.br/2021/11/berthasaura-leopoldinae-o-primeiro-teropode-brasileiro-sem-dentes/

https://www.museunacional.ufrj.br/destaques/berthassaura_leopoldinae.html

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/11/18/museu-nacional-anuncia-descoberta-de-nova-
especie-de-dinossauro-brasileiro.ghtml

FICHA TÉCNICA:
Nome científico: Berthasaura leopoldinae Souza et al., 2021.
Nome popular: Berthassaura
Nº de coleção do holótipo no Museu Nacional: MN 7821-V
Doador: Universidade do Contestado, Mafra, Santa Catarina. Responsável: Prof. Dr. Luiz Carlos
Weinschütz.
Réplicas e imagem da Bertha em seu ambiente, no centro de exposições: Maurílio Oliveira
Fotos da coleta do fóssil de Berthasaura: Alexander Kellner e Luiz Weinschütz.

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