Você está na página 1de 4

Micropolítica e o corpo no contexto da cidade contemporânea

A revolução não se reduz a uma apropriação


dos meios de produção, mas inclui e baseia-se
em uma reapropriação dos meios de reprodução,
reapropriação, portanto, do “saber-do-corpo”,
da sexualidade, dos afetos, da linguagem,
da imaginação e do desejo.
Paul B. Preciado

A vida na cidade provoca territorializações, desterritorializações e


reterritorializações. A rotina muitas vezes fatigante, anestesia nossas
compreensões, nossas pulsões, nossas imaginações... que, amiúde, são
capturadas e estabilizadas em repetições acinzentadas. A potência do corpo e
da imaginação ficam, dessa maneira, diminuídas pelas forças reativas da
estabilização das compreensões, do movimento repetitivo, dos trajetos
hodiernos, do medo multiplicado pelo jornal, do ônibus lotado que amortece o
corpo, do trânsito travado dos veículos e das vozes caladas em nossos corpos
áridos pelos sufocamentos. Afinal, “é assim mesmo”, “a gente vai levando”,
esperando, esperando, como Pedro pedreiro esperando o trem, que já vem,
que já vem, que já vem1...

Outrossim é a repetição dos signos pela cidade (CANEVACCI, 2004)


que competem para nos atordoar em sua competitiva constância onipresente
(ADORNO, 1986) que busca diminuir nossa reflexão, criticidade e distrair até o
dia seguinte na hora de trabalhar novamente.

Mas a cidade é polifônica, como explica Canevacci (2004), um coro de


muitas vozes, essas vozes chegam de diferentes formas a nossos corpos,
nesse espaço que é múltiplo (MASSEY, 2009), sempre ocorrendo encontros de
muitas trajetórias relacionando-se e se alterando de incontáveis formas,
sempre mudando, mudando, inundando a cidade e nossos corpos de
construções imparáveis.

1
Música Pedro Pedreiro de Chico Buarque de Holanda
Mediante as desterritorializações, os sufocamentos corporais, muitas
vezes nos agarramos aos nossos antigos territórios corporais, anestesiando as
forças do desejo e transformando forças ativas em reativas.
A produção do desejo e produção de realidade é ao mesmo tempo e
indissociavelmente material, semiótica e social. São construções que
acontecem ao mesmo tempo, onde toda produção de realidade é produção
social como afirmam Deleuze e Guattari (1996) e Suely Rolnik (2018). Logo, só
há real social. Embora separemos essas forças para explicitar suas ações, elas
ocorrem de maneira imiscuída entre os corpos humanos em seus encontros e
também entre os corpos não humanos, como os corpos da cidade que é o
contexto de nossa pesquisa.
Embora o inconsciente muitas vezes esteja anestesiado, seu pleno
funcionamento é uma máquina de criação de mundos, e é nesse
funcionamento que é preciso investir para resistir ou tencionar o regime
hegemônico, indo muito além da questão da extração de mais-valia destacada
por Karl Marx (1996).
Além da extração de mais-valia o regime econômico hegemônico possui
uma face intrínseca e inseparável que é ao mesmo tempo cultural e subjetiva,
aumentando o nível de dominação. De modo que é necessário resistir ao
regime dominante em sua própria subjetivação, sobretudo ao regime
dominante em nós mesmos.
Rolnik (2018) denomina a política de inconsciente desse tipo de regime
como "inconsciente colonial-capitalístico". mas como driblar esse regime de
inconsciente em nós mesmos e nos outros?
A autora propõe que o trabalho de investigação deve ocorrer dentro do
próprio processo de subjetivação experimentado, buscando-se em nós
mesmos maneiras de tencioná-lo, demandando uma atenção constante para o
próprio corpo e o que a autora chama de saber do corpo. Onde se pode
fugazmente fugir dos movimentos de subjetivação pré-direcionados e buscar
singularidades. De acordo com a autora esses processos ocorrem por meio da
micropolítica.
A micropolítica foi um termo criado por Deleuze nos anos 60 para
designar uma produção de subjetividade que escapava ao pensamento e
reflexão hegemônicos em relação a família, ao corpo, à sexualidade... Suely
Rolnik (2018) afirma que não é possível alterar os rumos do governo e suas
estruturas sem se modificar igualmente a produção micropolítica.
Logo, implica num tipo de militância que tem por objetivo a reapropriação
da força vital mediante sua expropriação pelo regime econômico dominante ao
qual jocosamente, Rolnik qualifica como colonial-capitalístico-cafetinístico,
devido a sua ação. Tal regime se expressa de maneira totalitária ao mesmo
tempo em que utiliza de mecanismos que estimulam uma entrega do indivíduo
às forças reativas que o enveredam por afetos numa determinada direção
indiferente as suas reais necessidades.
Nessa perspectiva pensar e agir são inseparáveis, uma vez que o
próprio câmbio de pensamento altera também as relações com o mundo, com
a cidade. Contudo tais processos ainda que ocorram a partir de indivíduos não
são isolados, se reverberam nos corpos a partir de diferentes campos do saber
como os estudos pós-colonias, queer, os saberes dos diversos povos
chamados indígenas, expressões artísticas diversas, modos alternativos de
agricultura...
E é nessas direções que os autores propõem que sejam criadas as
ações revolucionárias, a partir de uma micropolítica ativa em nossos corpos,
valorizando as diferenças e singularidades de cada indivíduo. Embora de
maneira fugaz, nesses breves momentos o regime dominante sofre variações e
nessas variações ativas aumentamos nossa potência frente ao mundo.

CANEVACCI, M. A Cidade Polifônica: Ensaio Sobre a Antropologia da


Comunicação Urbana: Tradução de Cecília Prada. – 2ª ed. – São Paulo: Studio
Nobel, 2004.
DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 1.
(trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995a.
______. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. (trad. Aurélio Guerra
Neto et al). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. 146
MARX, K. O Capital: Volume I, São Paulo: Nova Cultural, 1996.
MASSEY, D. Pelo Espaço: Uma Nova Política da Espacialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
ROLNIK, S. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do
desejo. Porto Alegre: Sulina; editora UFRGS, 2006.
________. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. N-1
edições, 2018.

Você também pode gostar