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Artaud e

A revolta desse corpo escabrunhado que portava esse artista revolucionário é um rejeição
completa a um modelo que usurpa a liberdade pregando a ordem, extorqui a vida do corpo
pelo ideal da evolução econômica que tem ganâncias e vaidades como matriz energética.

Não existe sentimento mais legítimo diante tamanha opressão que se para alguns é
imperceptível ou ignorada para, outros incomoda, para outros ainda, é intolerável como um
afogamento lento, demorado, no magma incandescente. Onde quem sente a dor violenta num
movimento corporal de gritar para que os outros escutem é afundado ainda mais pelos que
julgam ajuda-lo.

Artaud apresenta a ideia de um corpo que é refém dos automatismos e essa ideia se relaciona
intimamente com a ideia de rolnik de pensar o saber do corpo para resistir ao inconsciente
colonial. Esse corpo com suas respostas como reflexos do colonialismo é o corpo dos
organismos.

Artaud jamais se permitiu um teatro sem paixão, uma aparição sem a força de suas
tempestades internas. Devido a sua ferocidade metafísica sem meios termos foi posto diversas
vezes numa camisa de força. Quando questionado sobre suas atitudes e ideias não se permitia
fingimento de uma suposta sanidade da qual afirmava que seus acusadores eram incapazes de
mensurar devido a incompetência, insensibilidade que seus diplomas exaltavam
desavergonhadamente.

Diversas vezes que tentou rasgar a camisa de força da linguagem era posto num manicômio.

O espaço geográfico para Massey pressupõe o devir, a coetaneidade assim como o corpo do
ator deve ter, um corpo sem órgãos

Uma coisa é certa, enveredar pela obra de Artaud interpretando-a interiramente de maneira
literal é talvez a melhor maneira de não compreendê-la. Por esse caminho taxa-lo de louco
será inevitável.

Em heliogabalo ou o anarquista coroado ele demonstra toda uma necessidade de destruição


da ordem vigente e de reinvenção de um modo de existir.
Em todo demente há um gênio incompreendido cujas ideias, brilhando na sua cabeça,
apavoram as pessoas e que só no delírio consegue encontrar uma saúda para o cerceamento
que a vida lhe preparou.

Ele declara que não quer buscar leis teatrais apesar de declarar constantemente sobre a
energia e qualidade da ação, da respiração da verdade secreta cruel mas transborda um
inconformismo com o teatro de sua época, com uma cultura baixamente sexualizada um
vulcanismo de revolta a fim de solapar os órgãos, as instituições, os grandes textos e até
mesmo escapa de seus impropérios a palavra em sí. Para enfim recriar um corpo sem órgãos
uma linguagem que transcenda palavras desprezíveis mas valoriza uma linguagem as avessas,
uma provocação de significações imparáveis, uma minoridade do pensamento como diria
Deleuze

Sou imbecil, por supressão de pensamento, por má formação de pensamento, sou vazio por
estupefação da minha língua.

Má formação, má aglomeração de um certo número desses corpúsculos vítreos, dos quais


fazes um uso tão irrefletido. Um uso que não conheces, ao qual não assiste nunca.

Todos os termos que adoto para pensar são para mim TERMOS no sentido próprio da palavra,
verdadeiras terminações ...

Esse poema de escrita apaixonada e provocante é parte do livro pesa-


nervos de Antoine Marie Joseph Artaud, mais conhecido como Antonin
Artaud que é o assunto deste podcast. Meu nome é Iure Souza, sou
pesquisador da geografia na Universidade federal do Espírito Santo,
participo do Grupo de pesquisa Rasuras e sou orientado pelo Professor
Carlos Queiroz.

O objetivo desse podcast é dividir com vc, minha querida ouvinte, meu
querido ouvinte alguns possíveis atravessamentos entre a obra de Antonin
Artaud e a pesquisa que desenvolvo em associação com esse grupo. O
título da pesquisa é: A poesia corporal como performance da cidade.
Essa pesquisa busca pensar o espaço geográfico na escala do corpo do
pesquisador enquanto uma construção constante onde o corpo é afetado
pelo espaço em que vive, majoritariamente a cidade, de modo que esse
espaço é também influenciado criado e recriado pelo corpo, suas
influências e relações.
Além da pesquisa pretendemos fazer algumas performances teatrais em
alguns lugares de Vitória praticando uma dança do corpo do performer com
o corpo da cidade.
Almejando assim a criação de afetos nos corpos das pessoas em busca de
transgredir as marcas deixadas pela repetição da experiência de vida na
cidade, potencializando criações poéticas oriundas dos encontros desses
corpos em performance perseguindo compreensões do espaço enquanto
construção e alteração constante por quem o experimenta e vivencia.
Importante esclarecer que a maneira como concebemos o corpo nessa
pesquisa não compreende dualidades como corpo e mente, sujeito e objeto.
Portanto toda vez que falarmos corpo, estamos falando de tudo que compõe
um ser humano. Além disso a própria compreensão do espaço já se
constitui como uma intervenção no mesmo, e que, em se tratando de
geografia nosso objetivo primal é o estudo do espaço na escala do corpo, o
que não impede diversos atravessamentos, já que, arte, teatro e
performance também fazem desta pesquisa-intervenção.
Esclarecida a conjuntura da pesquisa, lá vai: Antonin Artaud e a poesia
corporal como performance da cidade.
Artaud era ator, dramaturgo, poeta, cineasta e criador do teatro da
crueldade. Nasceu em 1896 e morreu em 1948, viveu no período entre
guerras e sofreu diversas internações em hospitais psiquiátricos e
manicômios, passando 9 anos de sua vida internado, sofrendo diversos
suplícios como descreve seu próprio médico Gaston Frédiere numa das
várias cartas trocadas com seu paciente presente no livro, em plena noite ou
o bluff surrealista. Sempre criticando seus médicos, psicólogos e
psiquiatras, Antonin contribuiu para a reforma psiquiátrica e o movimento
antimanicomial.
Assim como insuficientemente descrito no poema inicial, Artaud se sentia
encarcerado pelas palavras, pelos termos e terminações. Para ele a palavra
era muito pouco, um sufocamento corporal que impedia a aparição dos
verdadeiros sentidos do pensamento, como ele explica em seu livro o teatro
e seu duplo publicado em 1938 quando já estava internado num hospital
psiquiátrico em Paris dizendo o seguinte:
a linguagem da palavra deve dar lugar à linguagem dos signos, cujo aspecto
objetivo é o que mais nos atinge de imediato. A gramática dessa nova
linguagem ainda está por ser encontrada, o gesto é sua matéria e sua
cabeça. Ele (o teatro) parte da necessidade da palavra mais do que da
palavra já formada. Mas, encontrando na palavra um beco sem saída, ele
volta ao gesto de modo espontâneo”.
Apesar de utilizar a palavra por pura necessidade Artaud busca os sentidos
além da palavra. Pois encrustar a palavra em seus significados já
conhecidos seria um empobrecimento. Portanto ele buscava uma variação
contínua de possíveis significações ao invés do comodismo do já
conhecido. Essa busca da variação é um elemento que nos interessa nessa
pesquisa. Como fazer a linguagem variar para multiplicar as
compreensões? Como fazer com que a repetição de vivências na cidade
alcance outras compreensões, que variem?
Uma vez que essa linguagem onde as palavras já tem seus significados
assemelham-se ao corpo dos automatismos um corpo do organismo, como
ele descreve em o Homem-árvore, “porque a grande mentira foi fazer do
corpo um organismo”. Dotado de órgãos com suas funções já estabelecidas,
suas regras já impostas, seus automatismos imperativos amordaçam o
corpo sufocado.
Artaud visava um corpo destituído dessas imposições emolduradas, sem a
institucionalidade dos órgãos, um corpo sem órgãos. O ator em cena
deveria se despir de seus automatismos e se tornar pura intensidade, afetar
e ser afetado sem barreiras, para em cena transmitir a energia necessária
para que a ação dramática tenha o efeito necessário. Dilatar o sol de minha
noite interna, ele escreve em o teatro e seu duplo e segue em outro trecho
atacando e reformulando o teatro.
“Tudo o que há no amor, no crime, na guerra ou na loucura nos deve ser
devolvido pelo teatro, se ele pretende reencontrar sua necessidade.
Proponho assim um teatro em que imagens físicas violentas triturem e
hipnotizem a sensibilidade do espectador, envolvido no teatro como num
turbilhão de forças superiores”.
Esse teatro difícil de se alcançar, violento para o ator e para o público ele
denominou teatro da crueldade. Que ele explica no mesmo livro:
“Crueldade”, quando pronunciei esta palavra, foi entendida por todo o
mundo como sendo "sangue". Mas "teatro da crueldade" quer dizer teatro
difícil e cruel antes de mais nada para mim mesmo. E, no plano da
representação, não se trata da crueldade que podemos exercer uns contra os
outros despedaçando mutuamente nossos corpos, serrando nossas
anatomias pessoais, mas trata-se da crueldade muito mais terrível e
necessária que as coisas podem exercer contra nós”.
Com seu teatro o autor denuncia os processos de captura e aprisionamento
do corpo regido pelo organismo, um corpo criado coletivamente pelas
instituições, pelo racionalismo quotidiano e podemos dizer um corpo que
vivencia a cidade de maneira repetitiva de modo a suprimir sua potência,
contrariamente buscamos em nossa pesquisa a variação desse corpo, de
suas percepções sobre o espaço, de sua compreensão. Um corpo sem
órgãos do artista que reverbere no público que assiste e participa da cena
em sua criação de sentidos.
E com esse teatro da crueldade Antonin inicia algumas das transformações
da cena que culminaram na arte da performance. Dentre elas a retirada do
texto como centralidade teatral, em prol do corpo do artista que toma o
lugar do texto, sendo muitas vezes a materialização da própria obra. A
busca da superação das palavras e a variação constante de seus sentidos. A
proposição da multiplicidade de interpretações, a variação na compreensão
da cena. A energia da cena, o acontecimento, passa a ser fundamental.
Outro elemento que nos interessa na obra desse artista é o que ele chama de
atletismo afetivo, que muito pode ser utilizado na preparação do ator para a
cena. De acordo com ele o ator possui em seu corpo correspondências de
sensações que precisa ativar para alcançar determinado estado. No
estômago nas, vísceras, no peito, para cada sensação existe um ponto
nevrálgico correspondente, assim como uma respiração adequada e
igualmente correspondente.
Antonin Artaud foi uma figura extremamente polêmica, talvez pela busca
incessante da crueldade em seu teatro foi censurado em muitas
apresentações, enquanto diversos artistas o defendiam, chegou a ser
declarado como de loucura incurável, sofreu tratamentos chamados na
época de eletrochoques afirmada categoricamente em seu livro em plena
noite pelo seu médico responsável como um método rigorosamente indolor,
Artaud chegou a fraturar uma vertebra da coluna numa dessas sessões.
Julgando-se incompreendido e agredindo verbalmente desde a cultura
burguesa o conformismo, os reitores das universidades europeias e até o
papa, como anarquista declarado que era. Grande parte de sua obra é de
uma escrita movida pelo ódio e repudio. Contudo uma escrita visceral, uma
escrita da crueldade. Se não é de nosso interesse nesta pesquisa a crítica às
instituições, cultura, mas sua variação, minoridade, rasura, a força,
sinceridade destes textos são elementos valiosos.
Mais do que um como fazer teatro o qual ele declara que não queria
formular leis sobre seu teatro, mas um porque fazer teatro. Ao romper com
o movimento surrealista no livro em plena noite, declara:
Que cada homem não conte com mais nada além da sua sensibilidade
profunda do seu íntimo, eis para mim a revolução integral. As forças
revolucionarias de qualquer movimento são as capazes de abalar os atuais
fundamentos das coisas, de alterar o ângulo da realidade. Dessa forma ele
se aproxima de suely rolnik quando fala de uma revolução micropolítica,
uma revolução do corpo. E podemos acrescentar de como compreender o
espaço e consequentemente de como atuar nele.
Por fim, me despeço com um de seus escritos viscerais dos quais carregam
uma potencia afetiva que é um dos elementos principais que buscamos na
obra desse artista, com seu poder de afetar e ser afetado. Esse trecho é de
seu livro Van gogh o suicidado pela sociedade:

Pois não é para este mundo, nunca é para esta terra onde todos, desde
sempre, trabalhamos, lutamos, uivando de horror, de fome, miséria, ódio
escândalo e nojo e onde fomos todos envenenados, embora com tudo isso
tenhamos sidos enfeitiçados como o pobre van gogh, suicidado pela
sociedade.

Obrigado por ouvir até o final, espero que fiquem todos bem, até a
próxima.

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