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O corpo sem órgão é uma prática, uma forma de viver a vida transformando-a em uma

verdadeira obra de arte, em especial, a partir da linguagem que é desterritorializada para criar
novos sentidos . Deleuze e Guatarri irão explorar este conceito a partir das idéias que Antonin
Artaud, encarnando o pensamento nietzschiniano de vida-obra de arte, concretiza no teatro e
explicita no seu Manifesto do Teatro da Crueldade, de 1932.

O corpo sem órgãos quer dar novos sentidos as sensibilidades, o que ele quer é produzir uma
revolução. Olhar com o estômago, falar pelo olhar, escutar pelo tato. Nada que seja exterior ao
homem deve definir a forma de ele experienciar o próprio corpo e a realidade. Em 1924,
Artaud entra para o movimento surrealista para em 1927 começar a se afastar, até a sua
expulsão em 1929. Para ele, o engajamento em partidos políticos e aproximação dos
surrealistas ao movimento comunista, não provocaria mudanças, essa só seria possível na
nossa individualidade, a revolução deveria ser feita no próprio corpo. Em 1947, escreve a
André Breton:

“Não existe o cosmos e cada homem é seu próprio mundo sozinho. Cabe-lhe, portanto, a sua
iniciação fazendo-se viver, ou seja, criando os braços, as mãos, o pé e a respiração de sua
pessoa e inexpugnável vontade. Quem não quer iniciar-se a si próprio não encontrará outro
que o faça. [...] O corpo humano tem suficientes sóis, planetas, rios, vulcões, mares e marés
para não precisar ir buscá-los na suposta natureza exterior e do outro. A atividade
surrealista era revolucionária com a condição de reinventar tudo sem mais obedecer em
nenhum ponto a alguma noção trazida pela ciência, a religião, a medicina, a cosmografia
etc. E [há] nesse ponto uma revolução ainda a ser feita com a condição de que o homem não
se pense revolucionário somente no plano social, mas que ele acredite que ele deve sê-lo,
sobretudo no plano físico, fisiológico, anatômico, funcional, circulatório, respiratório,
dinâmico, atômico e elétrico. [...] Para mim seria a única revolução que poderia me
interessar, mas não seria, é uma U T O P I A [...] (Artaud, 1947/2017, pp. 1

Para ele, o problema não são os órgãos, eles não deixaram de existir, o que deve-se lutar é
contra o sistema pré-estabelecido, semiótico e paralisante, que metaforiza sentimentos
dando-lhes sentidos externo ao próprio indivíduo, deve-se lutar contra algo que é dado fora do
corpo e portanto da vida.´

Esta também parece ser a idéia que está por traz da noção de Erotismo defendida por Audre
Lorde em seu texto “Os Usos do Erótico: o Erótico como poder”, onde expõe a necessidade de
que a mulher viva o erótico dentro de si. Ao se recusar a consciência sobre as sensibilidades
priva-se de parte da experiência, deslocando sentidos pessoais para a perversão de
significados correntes, como ocorre na relação entre erotismo e pornografia.

Deleuze e Guatarri fazem criticas a psicanálise e sua ânsia em interpretar, o que leva a perda
do real, a experimentação da sensibilidade anárquica do corpo sem órgãos. Nada deve ser
interpretado, mas experienciado. Cada um deverá encontrar seu próprio corpo sem órgãos,
povoado por intensidades circulantes. Pois é o corpo sem órgãos o lugar do próprio desejo. O
desejo não está fora, ele está ali circulando e é onde se define, se é que se define, ele é fluido .
Quando as determinações sobre o corpo vem de fora, o desejo é traído e amaldiçoado e o
psicanalista faz o papel daquele que dá a falta ao desejo. Que aquilo que o desejo deseja está
fora e é inalcançável. Para Deleuze e Guatarri, o desejo não é falta, o prazer do desejo é
desejar e seu campo de atuação é circular sua intensidade pelo corpo sem órgãos, despertar as
sensibilidades de acordo com regras íntimas ou de acordo com a total ausência de regras.
Dizem Deleuze e Guatarri:

“Trata-se de criar um corpo sem órgãos ali onde as intensidades passem e façam com que
não haja mais nem eu nem o outro, [...]. O campo de imanência não é interior ao eu, mas
também não vem de um exterior ou de um não eu. Ele é antes como o Fora absoluto que não
conhece mais os Eu, porque o interior e o exterior fazem igualmente parte da imanência na
qual eles se fundiram. [...] tudo é permitido desde que não seja exterior ao desejo nem
transcendente a seu plano, mas que não seja também interior às pessoas. [...] Tudo é
permitido: o que conta somente é que o prazer seja o fluxo do próprio desejo. [...] Se o desejo
não tem o prazer por norma, não é em nome de uma falta que seria impossível remediar,
mas, ao contrário, em razão de sua positividade, quer dizer, do plano de consistência que ele
traça no decorrer do seu processo.”

O corpo sem órgãos é o habitat do desejo, onde ele nasce e onde ele vive. O problema não são
os órgãos mas sua organização, o organismo, o determinismo que recai sobre ele, sobre o seu
funcionamento, sobre a sua sensibilidade e função.

É contra esse determinismo na sensibilidade que Artaud irá se levantar. A necessidade de criar
um teatro que desperte “nervos e coração” e que só será válido “se tiver uma ligação mágica,
atroz, com a realidade e o perigo.” É com esta ênfase que ele inicia o Primeiro Manifesto do
Teatro da Crueldade. Porém ele esclarece em Cartas sobre a Crueldade que não se trata de
sadismo nem de sangue, mas que essa crueldade deve ser entendida em sentido amplo, deve
ser entendida como um rompimento usual da linguagem e como a própria vida. Ele explica:

“Do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis,
determinação irreversível, absoluta. [...] A crueldade é, antes de mais nada, lúcida, é uma
espécie de direção rígida, submissão à necessidade.”

E continua em uma segunda carta:


“Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico, e de necessidade
implacável [...] Uma peça em que não houvesse essa vontade, esse apetite de vida cego,
capaz de passar por cima de tudo, visível em cada gesto e em cada ato, e do lado
transcendente da ação, seria uma peça inútil e fracassada”.

E ainda:

“Parece-me que a criação e a própria vida só se definem por uma espécie de rigor, portanto
de crueldade básica que leva as coisas ao seu fim inelutável, seja a que preço for. O esforço é
uma crueldade, a existência pelo esforço é uma crueldade”.

Crueldade para Artaud significa vida, necessidade, e o teatro deve igualar-se a a esta vida. O
que ele busca é desenvolver um teatro que mostre uma vida apaixonada e convulsa, e por isto
violenta, fora dos limites impostos ao desejo e as sensibilidades, um teatro que visa atingir o
espírito através da pele e das sensações. Se o teatro quer reencontrar a sua necessidade
deverá colocar em cena o que há no amor, no crime, na guerra e na loucura para assim
resgatar uma sensibilidade real, viva e intensa, como uma carne crua e vermelha que pulsa.
Para atingir seu objetivo ele utilizará objetos, signos, sons, palavras, cuja falta de
entendimento deverá levar a uma compreensão enérgica do texto, através da emoção. As
imagens, mesmo as feitas com palavras falarão mais que as próprias palavras e a sensibilidade
nervosa do indivíduo deverá ser explorada através de ritmos, sons, ressonâncias e trinados. As
imagens da poesia alcançarão seu intuito à medida que for lançada com a violência necessária
e o público passará a acreditar no teatro não como uma realidade deslocada, mas como a
fusão de sonho e realidade, onde o crime apresentado dentro de condições adequadas deverá
parecer mais temível do que o crime realizado.

No Teatro da Crueldade os órgãos são vistos como as maneiras particulares de nosso corpo
experienciar o mundo. Cada órgão é particular e tem seu plano de fluxos, com experiências
únicas, momentâneas e que não podem ser repetidas. A experiência humana é múltipla, plural
e fluida e é nessa concepção que se entende órgãos.

Artaud quer devolver ao teatro a sua própria linguagem, rompendo a sujeição do teatro ao
texto e encontrando uma linguagem que se expresse entre o gesto e o pensamento, de forma
dinâmica no espaço. Ele faz isto através de entonações, de pronúncias específicas de palavras,
de gritos, ritmos, da exposição de objetos que se movimentam no ambiente, de jogo de luzes e
sombras, utilização de instrumentos antigos, criação de novos instrumentos, utilização de
roupas milenares e de cunho ritualístico, retorno aos mitos antigos e primitivos. As peças
privilegiam os textos antigos que falam a todos os povos, o público ficará sentado no meio do
galpão e o espetáculo se desenvolverá ao seu redor. Não haverá cenário e A linguagem rompe
com o intelecto e ganha uma nova roupagem que se encontra sob os signos expressos. Seu
objetivo é cercar os órgãos e aprofundar a forma como eles percebem o mundo. O homem e
suas idéias sobre a realidade deverão ser questionadas organicamente.

“O teatro só poderá voltar a ser ele mesmo, isto é, voltar a constituir um meio de ilusão
verdadeira, se fornecer ao espectador verdadeiros precipitados de sonhos, em que seu gosto
pelo crime, suas obsessões eróticas, sua selvageria, suas quimeras, seu sentido utópico da
vida e das coisas, seu canibalismo mesmo se expandam, num plano não suposto e ilusório,
mas interior. Em outras palavras, o teatro deve procurar, por todos os meios, recolocar em
questão não apenas todos os aspectos do mundo objetivo e descritivo externo, mas também
do mundo interno, ou seja, do homem considerado metafisicamente. Só assim, acreditamos,
poderemos voltar a falar, no teatro, dos direitos da imaginação.” (artaud, manifesto do
teatro da crueldade)

A linguagem das palavras deverá dar lugar a linguagem por signos, pois estes atingem mais
rápido e profundamente o espírito. As palavras somem por trás dos gestos, pois Artaud
considera que estes falam com mais intensidade ao espírito enquanto as palavras, por seu
caráter fixo, não conseguem dizer tudo e paralisam o pensamento. A palavra deve ser deixada
livre (assim como o teatro), a obsessão pelo significado das palavras as resseca. Elas devem ser
percebidas pelo seu som, pelo movimento, para assim tornar-se viva.

Artaud considera que a mais elevada idéia do teatro é aquela que nos reconcilia
filosoficamente com o Devir. Em A Literatura e a Vida, Deleuze também afirma que “escrever é
uma questão de devir”. Para ele a literatura não se reduz a um fenômeno de linguagem. Ela é
mais que isto, ela deve se articular com a vida e tem o objetivo de fazer ver e ouvir aquilo que
não está objetivamente escrito. A capacidade que a literatura tem de fazer ver e ouvir , de
criar sensações com palavras é o que irá definir a sua intensidade. Ao criar visões e audições
ela cria fenômenos de linguagem fora da língua. Aí está o sentido do Devir. O tornar-se outro,
o contrário de uma imitação ou reprodução. Devir é o desterritorializar em relação ao modelo
e é aí que está o tipo de literatura que para ele interessa, aquilo que ele chama de literatura
menor.

O Devir propõe um pensamento capaz de dar conta da diferença sem se submeter a


identidade. O Devir é captar aquilo que o ser tem de minoridade, de singularidade, captar os
modelos que entram na zona de indecibilidade, encontrar o que se é e o que não é, o dentro e
o fora, o humano e o animal. Deve-se privilegiar a diferença porque a identidade é sempre
universal e no devir literário acontece a cura, cuja a doença é a estagnação das significações.
Buscar esse outro, uma outra forma de linguagem, um outro entendimento, é disso que é feita
a arte, ela não é metafórica, ela é real. O escritor deverá denunciar em nossas vidas algo que
não se percebe, mas que nos atinge intensamente. A literatura deverá produzir um devir outro
da vida.

Neste sentido, a língua deverá delirar, sair de um padrão de normalidade, escapar do sistema
dominante através da desterriotorialização. Tornar a língua outra através de uma linguagem
singular. Para Deleuze a linguagem não é significativa, ela é intensa e assim, deve mudar o
sistema de convenções e levar a literatura para longe da razão. A literatura é delírio.

“O delírio é uma doença, [...] quando erige uma raça que se pretende pura e dominante. Mas
ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida, que não para de se
agitar sob as dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona, e de se esboçar
enquanto fundo na literatura como processo.” (A Literatura e a Vida – Deleuze)

Assim como o corpo sem órgãos que se abre a novas conexões, a língua torna-se outra e
escrever, seja com letras ou com gestos, é a prática de libertar a vida aprisionada no
organismo a uma nova sensibilidade, de liberta as palavras do seu caráter rigido. Mas sempre
há de ficar um resto de significação, necessário não apenas para que se mantenha o contato
com a realidade dominante mas para que se possa, acima de tudo, continuar subvertendo-a.

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A QUESTAO DO CORPO SEM ORGÃOS ESTÁ EM TUDO O QUE TEMOS VISTO ATÉ AGORA, DESDE
A ANTROPOFAGIA

MONIQUE WITTIG

AUDREY LORE – viver o erótico dentro de nos mesmas

Se recusamos a consciência do que estamos sempre sentindo, por mais confortável que
isso possa parecer, estamos nos privando de parte da experiência, e nos permitindo ser
reduzidas ao pornográfico, ao abusado, ao absurdo.
LITERATURA MENOR

(...) O campo político contaminou todo o enunciado. Mas, sobretudo, ainda mais, porque a
consciência coletiva ou nacional está ‘sempre inativa na vida exterior e sempre em vias de
desagregação’ é a literatura que se encontra encarregada positivamente desse papel e dessa
função de enunciação coletiva, e mesmo revolucionária: é a literatura que produz uma
solidariedade ativa, apesar do ceticismo; e se o escritor está à margem ou afastado de sua
frágil comunidade, essa situação o coloca ainda mais em condição de exprimir uma ou outra
comunidade potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de uma outra
sensibilidade (Deleuze Guattari, 1977, p. 27). O QUE É UMA LITERATURA MENOR

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