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Eu não quero escrever...

não consigo neste momento me resumir


em um caminho, em uma trilha construída pelas pisadas no mato.
Quero é pegar o facão e explorar novas trilhas, cortando galhos e
mato ao redor, me arranhar entre os espinhos e, quem sabe, pelas
frestas dos arranhões se esvaia meu pseudo-essencial ser, que não
é e nunca foi, só virtualiza o real. Quero me jogar ao real, para
quem sabe minha mente produza, nesse novo corpo vazio, afetos
nunca sentidos, e que não façam sentido, só sentir. Sentir o frio
absoluto que Deleuze descreveu tão loucamente –
esquizofrenicamente analítico. Ah, professor tão esvaziado!
Ensina-me a cortar; a cortar os pulsos para que me esvaia o sangue
contaminado, pelas crenças e limitações de outrem. Como posso eu
pensar em um Corpo sem Órgãos, quando as doutrinas do senso comum
constroem muros de concreto armado (e engatilhado) ao nosso redor?

Pois bem: se os muros são feitos de ignorância, a melhor


marreta para derrubá-los é o conhecimento. Ou seja, essa é uma
construção da mente humana. O domínio é da enunciação, e não do
enunciado; o domínio é do sujeito, e não do objeto. Mas, há muitas
fontes de conhecimento “sólido”, que doutrina as mentes mais
incautas, e perturba as mentes desconformadas, deformadas (as
melhores!). Artaud experimentou essa nuance da desconformação
fisiologicamente. Após milhares de volts lhe passarem por
eletrodos, foi justamente ele, o louco, que compreendeu o
alvorecer da realidade velada aos nossos olhos treinados, ao nosso
faro de cão de madame. “Amarrem-me, chicoteiem-me, cortem-me,
costurem-me” são afetos que eclodiram na mente eletrizada do
sobrevivente super vivente. Se os eletrochoques foram dados na
mente, provavelmente é de uma reestruturação mental que Artaud
estava falando. Mas, o que são nossos corpos, nossas carcaças,
senão a maquinaria que dá vida aos nossos mundos?
Quando falamos de autorretratos, trabalhamos a questão da
rosticidade segundo Deleuze e Guattari. Meus anseios já estavam
caminhando na direção de pulverizar um Eu, para muitos eus.
Mudaram meu nome, me fizeram de não-traços, caminhei por sem
caminhos, mudei de residências, mais de 20, de cidades, mais de 5,
mudei de gostos, mais de mil. Percebo-me nos meus não-escritos, nas
minhas não-atitudes, no que prezo, mas não faço. Na travessia. Nessa
linha temporal capitalista – a linha-relógio – eu mesmo busco fazer
meus ciclos, permito-me. Crente em Deus-fluxo, concordo com
Espinosa: quando eu vou ser, não sou mais: já fui!

O rosto segundo os autores é constituído de afetos para além


do espelho, é sobre como constituímos características para tentar
identificar como fixo um ser transitório. Para produzir um
enfrentamento, dentre outros fortes argumentos, destaco esse
trecho de Mil Platôs (vol. 3): “A máquina de rosticidade é uma produção
social de rosto, porque opera uma rostificação de todo o corpo, de
suas imediações e de seus objetos, uma paisagificação de todos os
mundos e todos os meios”.
Depois de constituirmos um aspecto do rosto sem retrato,
conversamos sobre o que somos enquanto espaço, enquanto
território que ocupamos, ou que somos fortemente induzidos a
ocupar. É preciso também chicotear, destruir, moer, picotar, essa
ideia de limitação geográfica, que performa nossas limitações
econômicas, políticas e sociais. Embora dissertem sobre formas
macro e micro de políticas, Deleuze e Guattari admitem que “É
muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver o fascista que
nós mesmos somos, que entretemos e nutrimos, que estimamos com
moléculas pessoais e coletivas”. O fascismo é uma forma de
estranhamento e exclusão, e é dessa territorialidade que os autores
dissertam ao falar de máquinas de guerra contra o aparelho do
Estado.

De fato, não há Estado fascista (macropolítica) sem


indivíduos microfascistas. Assim, a desterritorialização começa
pelo sujeito. Um bom começo é com docentes de uma escola de ensino
básico da rede pública de ensino. É o que trazem Paola Amaris-
Rudiaz e Roger Miarka nos relatos de experiências suas
provocando novos territórios, novas formas de habitar
micropolíticos, alisando um espaço estriado. No entanto, esse novo
território é constituído de movimentos, direções, e não de um espaço
geométrico definido. “São vetores de saída em movimento, vindos
de outro território”, segundo Deleuze. Se são vetores em
movimento, e a discussão é ordem do sujeito, esses sujeitos em
movimento não ocupam um lugar geográfico mental, mas são a
serem nômades a vagar pelos mundos (in)imagináveis. Nas
atividades, nos desterritorializamos de diversas formas; eu
transcendi a partir de movimentos circulares com meu celular;
outro colega alisou o espaço urbano petrificado e cheio de pontas,
com o vídeo de um sítio. Que nostálgico!
Mergulhamos mais fundo no mar agitado do nomadismo,
para entender que somos micropoliticamente constituintes de um
Estado macropolítico que se instaura temporariamente. Por
décadas, alguns por séculos. Contra o aparelho do Estado, as
máquinas de guerra. Enquanto o Estado nos trata como números
numerados (valores estatísticos, identificação de um sujeito
documental – RG, CPF, PIS, NIS, celular, IP), nós devemos formar
nossas máquinas de guerra como que numerantes, uma numeração
identitária – sou um, somos muitos – em prol de sua guerra (sim,
segundo os autores, não há movimentação e revolução sem
guerra).

Como desafio, precisávamos ocupar uma folha sem medir. Diante


dos afetos que foram vetorizados em mim, produzi uma filmagem
com pequenos recortes de um mapa da desigualdade, muito mais
folhas para exemplificar a produção de riquezas, para abastecer só
a folha central, o território do rei. No Brasil atual, não consigo
observar outro ponto de vista senão o aparelho de Estado
bolsonarista e nossas ações de resistência, nossa máquina de
guerra intelectual, marretando a ignorância a deleuzeadas.
Estava animado com a ideia de marretar tudo, mas não disso que se trata o
CsO. Deleuze e Guattari advertem “é com uma lima fina que se lapida um CsO”. Hora
de treinar as mãos, a mente, para artistar. O artista em si é um sujeito do devir, da
quebra de expectativa, e em movimento perpétuo de
(des)territorialização/reterritorialização, vem a crítica, esvaziando de novo o CsO da
artistagem, em busca de nuances que foram-mas-não-deveriam-ter-sido. Conforme já
deliramos no início do texto, clamei pelo espírito de Antoine Marie Joseph Artaud. Na
loucura do real, de sua aparente violência de sua reconstrução corporal, me levei a achar
que entendi a cabeço de um louco! Como não imaginei que toda essa metáfora devinha
de seu sofrimento no manicômio?

De fato: os esquizoanalistas entenderam bem. A mim, só bastar ler, me jogar à


humildade socrática, e me deliciar. Afinal, qual não foi a minha surpresa ao saber
que, em relação a Espinosa, meus afetos foram de encontro ao dos exímios autores de
Mil Platôs? Espinosa seria, segundo eles, o escritor do “grande livro sobre como criar
um Corpo sem Órgãos”. Em uma atividade prática com o Danilo, fomos pegos de
surpresa ao primeiramente elencarmos palavras-chaves que remetem às nossas
pesquisas, e em seguida escrevermos algumas linhas sobre o projeto sem utilizar as
palavras-chave elencadas. Uma experiência, de imediato, árdua, mas com atenção e
afetamento a partir das leituras da semana, o experimento rendeu um texto mais
poético, livre de julgamentos ou métricas, um relato de um novo organismo, uma
reorganização desorganizada. Um CsO na verdade é uma crítica aos organismos que
nos limitam, quele bloco de concreto que citei acima. Quem sabe, com essa lima, não
conseguimos esculpir nossos blocos-mentes?
Em nossa penúltima jornada astral-semanal, lemos
sobre o corpo que não aguenta mais. No entanto, esse
estado quase mórbido é trabalhado enquanto espaço
privilegiado, de esvaziamento que não finda, mas que se
torno um corpo que convida a novas experiências,
resistências, enfrentamentos, máquina renovadas
prontas para amis uma batalha, na guerra das tensões da
vida. O corpo que não aguenta mais pulveriza qualquer
resquício de “tudo que é orgânico, identitário e
totalizante”. Reforçando a inclinação dos autores de Mil
Platôs ao trabalho de Artaud, “para acabar com o juízo
de Deus”, não o Deus espinosista, mas o Deus conformador,
Deluze e Guattari explicam que “trair as forças estáveis
que nos conformam, é um duplo movimento: nos afastamos
da semelhança a Deus e Ele se afasta de nós. E essa
distância criada é a linha de fuga, a
desterritorialização do homem”.

A crítica surge, então, como elemento constituinte


da obra, alisando os espaços estriados que se colocam. A
crítica como potência criativa desloca as intenções da
obra, subtraindo-se dela as forças reativas; a crítica
perverte em um ritmo multiplicador. Uma forma de
resistência aos domínios do governo da experiência. A
crítica como autopoiese, como capacidade de se auto-
organizar no fluxo. Nas experimentações em aula,
tivemos o prazer de movimentar nossos corpos tão
cansados, cheios de afazeres, com a ajuda da Mayra. Após
esse baile desorquestrado, fomos convidados a refletir
sobre questões sobre “o que pode um corpo que se
movimenta?”. O corpo que sofre, e todo corpo vivo sofre, é
o corpo que espreguiça, sua, deita, dói, mas se alonga, toma
banho, levanta, corre, anda, gesticula, rodopia, se
arrepia, e está pronto a novos sofrimentos, novos afetos,
que o colocam a bailar. O corpo só se constitui na relação.
Relação entre os espaços, constituição com outros corpos
que ocupam esse espaço que teu corpo habita. Na
perspectiva de um corpo sem órgãos, só nosso, ternamente
tecido, nós não habitamos nosso corpo, nem estamos presos
nele, nós somos o próprio corpo, e é tudo que temos
(Nietzsche).

Findando nossos encontros que produziram afetos em corpos dilacerados (por vontade
própria) e com as feridas abertas ao diferente, ao novo, ao inesperado, tivemos a honra de

conversar com Roger Miarka, que nos trouxe dinâmicas surreais, literalmente punk .A
questão disparadora foi: como opera o Maior/menor na(s) educação(ões) matemática(s)? A
partir de “caixas” virtuais, em grupos, produzimos afetos a partir de imagens, notícias e trechos
de textos. O resultado de nosso grupo está no link
https://docs.google.com/presentation/d/1wtBNxrBPePiGR0q2JPRaJkpAjZZVsRJiH5HYxrsmJNE/
edit#slide=id.p. Mas, o que nos levou a conversarmos sobre maior e menor? A partir de um
ensaio-entrevista de Camilo Riani com Sílvio Gallo, que ressaltam a ideia de menor a partir dos
principais autores estudados no “espaço Paola”, Deleuze e Guattari, onde o “menor” dos
autores reside na captura de pequenos “menores” que influenciam na “língua maior”. Uma obra
com “literatura menor” tem características como desterritorialização da língua, ramificação
política como forma de resistência, desafio ao sistema linguístico “formal”, e o aspecto de que
tudo adquire um valor coletivo, a obra fala para uma comunidade, o autor se dissolve na história,
a história se abre ao leitor sem intenção de autoridade, ou antes, de autoria. O maior/menor de
Deleuze e Guattari não são geométricos, mas uma relação de controle. O maior tem um espaço
criativo, mas delimitado, e o menor é errante, livre para criar na loucura. Também não são
(necessariamente) opostos.

Para falar de uma arte menor, Deleuze e Guattari remetem a Franz Kakfa, e à obra “O
processo”. Com base no filme homônimo de Orson Welles (1992)
(https://www.youtube.com/watch?v=D1ON_HfkvKM), pôde-se perceber um romance (novel)
com mudanças abruptas de cenas, uma sexualidade exacerbada, mas dentro de um senso de
humor cotidiano. Joseph K. (características dos personagens de Kafka, nomes quaisquer, de
sujeitos comuns e subjugados) é interpelado por “agentes secretos” que dizem que o estado o
está acusando, só não é revelado durante toda a trama qual a materialidade e o objeto de
julgamento. Capítulos que parecem inacabados e com rupturas abruptas no continuum da
história. Uma criação, mais que uma máquina de reprodutibilidade, como era entendido o
cinema segundo Walter Benjamin. Da mesma forma, com a caricatura, o artista deixa de
reproduzir para criar. Como todo movimento “diferente”, a caricatura foi reduzida a “arte
secundária”, mas se mostra como arte subversiva, que ressignifica a invenção e coloca a “ordem
natural das coisas” em segundo plano. Também, se mostra como ato político que coloca a todos
num mesmo patamar, uma forma de representação disruptiva. E a coletividade do “menor” pela
caricatura que dissolve o que é o autor, em desenhos com uma estética própria, mas voltada
para os leitores.
– Queimem meus livros didáticos, tatuem novos afetos no meu corpo-mente,
venham, avassalem-me, autores-vozes que se constituem a partir de minhas leituras!
Façam arder em mim o fluxo da saída de meus órgãos por algumas frestas das feridas
de minhas desventuras na floresta do novo, enquanto em outras frestas vocês me
preenchem de devaneios! Chicoteiem-me até eu vomitar toda pretensão de sabedoria,
altruísmo e conformismo, para que eu me renove com o “nada sei” e possa me deliciar
com novos rumos espinhosos...
– Mas, Sr. Diogo, o Sr. Está louco?
–D
E
S
V
A
I
R
A
D
O

Afetos musicais:

Just a ride https://soundcloud.com/squidb3a/just-a-ride

Likufanele https://www.youtube.com/watch?v=uY_BKzdmo7g

Spiritual State https://www.youtube.com/watch?v=d0AvO0oBmUA

“Mas ainda, na sucessão das estações, e na superposição de uma mesma estação de


anos diferentes, a dissolução das formas e das pessoas, a liberação dos movimentos,
velocidades, atrasos, afectos, como se algo escapasse de uma matéria impalpável à medida que
a narrativa progride. E talvez também a relação com uma "real política"; com uma máquina de
guerra; com uma máquina musical de dissonância. — Kleist: como, nele, em sua escrita como
em sua vida, tudo se torna velocidade e lentidão. Sucessão de catatonias, e de velocidades
extremas, de esvaecimentos e de flechas. Dormir em seu cavalo e galopar” (Deleuze e Guattari,
Mil Platôs, Vol. 4)

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