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Retratos de um Gene Flutuante - A Antropologia Psicossocial de

Kimetsu No Yaiba
Deixo em negrito esta mensagem aqui antes de tudo, cara professora. É uma notificação de
que este trabalho persistirá inacabado. Não, não significa que eu não cobri tudo o que me
pedistes, significa que eu não cobri tudo o que eu pedi de mim. Apesar de todos os meus
esforços, tudo, inclusive nós somos dotados de uma complexidade irredutível e, ouso dizer,
eterna. Sim, não bastaria nem todas as páginas que humanamente são possíveis de serem
escritas sob a fase de evolução que nos encontramos para cobrir o que nós significamos.
Não somos, como pensava, sem sentido, um acidente da criação, somos tão importantes que
o estudo da antropologia é extremamente importante, eu reconheço. O Kosmos, o único
Deus que de fato me criou e de que todas as coisas com qual sou feito, me fez nascer nesse
mundo como um humano, não para ser alvo do cientificismo que Karl Popper desenvolveu
e no qual a etologia humana se baseia, mas da antropologia que reconhece a unicidade e
univocidade dele. Eu admito que todos meus esforços foram em vão, mas não para
compreender o mundo, isso eu compreendia desde que nasci, mas para compreender eu
mesmo, como Ser Humano e como parte do Kosmos.

"Nympha pudica Deum vidit, et erubit" (O manancial tímido, quando viu-se face a face com
Deus, enrubesceu e os reflexos de suas águas avermelharam) - Richard Crashaw

"Esqueça de si para se lembrar de sua família. Esqueça de sua família para se lembrar de sua
nação. Esqueça de sua nação para se lembrar do mundo. Esqueça o mundo para alcançar a
Iluminação." - Bukkyo Dendo Kyokai

"Se focas apenas no galho, não enxergas a árvore. Se focas apenas na árvore, não percebes a
grandiosa floresta que se vê diante de ti." - Miyamoto Musashi, O Livro dos Cinco Anéis

"Viva apenas para o momento, volte toda sua atenção aos prazeres da Lua, da neve, das
cerejeiras em flor, das folhas da árvore de bordo. Recuse-se a ser sem coração, seja como o
cabaço a flutuar no rio: deixe que o fluxo do presente preencha seu peito, seu receptáculo, seu
coração" - Asai Ryoi, Ukiyo Monogotari

"Considere todos os elementos e substâncias. Consegue imaginar algum deles que possa
preservar um "Eu" atemporal? Não há, pois o éter, a individualidade do Ser é algo tão poderoso
que qualquer corpo não pode o sustentar por muito tempo. Tal receptáculo torna-se finito,
efêmero como lenha na fogueira, papéis de biblioteca a alimentarem um fogo que não se
esgostará de fato, mas seu combustível sim." - Skátos Dietmann Von Gott, Kojo No Tsuki (A Lua
Sob O Castelo Arruinado)
O presente escrito tem como objetivo abordar de uma óptica antropológica a obra Kimetsu No
Yaiba, da mangaká Koyoharu Gotouge, microscopicamente nas nuances e detalhes mais íntimos,
telescopicamente nos temas macros mais constelados e nebulados da obra, e para isso
utilizaremos de lentes de contato patenteadas pela mais nobre psicologia e antropologia, de
James Frazer, Henry Lewis Morgan, Bronislaw Malinowski e Alfred Kroeber, e Frederick Perls,
Carl Jung, Von Franz, Mircea Elíade, Gabriel de Tarde, Guattari.

Primeiramente, Kimetsu No Yaiba se passa na era Taishô do Japão, e narra as aventuras de


Tanjiro e Nezuko Kamado, membros de uma família que cultiva a tradição da Dança do Deus de
Fogo, ou melhor, Kami do Fogo, pois as noções ocidentais de deidades são extremamente
diferentes das japonesas, a palavra por eles utilizada por designar Izanami e Izanagi, Yomi,
Amaterasu e Tsukuyomi do xintoísmo, e os Budas e Nirvana do budismo, ou ambos na
combinação do Ryobu-Shintö diferem das cristãs, católicas, protestantes, pietistas, deístas, celtas,
zoroástricas, arábicas, nórdicas, maias, astecas, e todas que podes imaginar. Sua capacidade de
ao sincretizar conceitos estrangeiros e assimilá-los à sua identidade original é impressionante,
como os cristãos que Shusaku Endo descreve em seus escritos, ao conceberem a crucificação de
Odin no freixo sagrado, a de Quetzalcoatl no sautor, a de Cristo na cruz como elementos de
unificação espiritual etérea com o universo, ou o que Jung define como Quaternidade. Essa
espécie de "Cross Cultural" japonesa é composta por quatro pontos que, na psicanálise,
correspondem à "totalidade, unidade e inteireza. Os quatro elementos, os quatro pontos cardeais,
as quatro estações, as quatro divisões da mandala. São todos símbolos universais da unificação
da consciência desde os tempos pré-históricos."

Assim são também os elementos que fluem o pneuma das chamadas Respirações dos
personagens de Kimetsu No Yaiba: respiração do vento, respiração da água, respiração do fogo,
respiração da pedra. Esta quaternidade origina todas as demais respirações descendentes dela,
sendo ela própria originada da respiração primordial, a Respiração do Sol, uma alusão à
Amaterasu, Kami suprema do panteão xintoísta, representada pelo Sol Nascente da própria
bandeira nacional, e desenvolvida pelo primeiro caçador de demônios, Yoriichi Tsugikuni.

Nezuko, a irmã caçula de Tanjiro, é a única sobrevivente de sua família após o massacre
promovido por Muzen Kibutsuji, o Primeiro dos Demônios. Tanjiro, que estava de viagem para a
capital em busca de mantimentos e suprimentos com seus próprios negócios, não possuia um
álibi mortal, dêixis de sentença de morte. Quando retornou ao seu lar, ajoelhou-se, prostrou-se
assustado com sua família completamente morta, e atônito, viu uma centelha de esperança ao se
deparar com sua irmã, Nezuko, quadrúpede e possuída, com sede de sangue. Atirando-se ao
pescoço de Tanjiro, Nezuko foca todas suas forças em dilacerar o pescoço de seu irmão, porém,
quando compreende que seu irmão a ama independente de sua transformação, não mais humana,
ela lacrimeja, e os olhos já oceânicos de Tanjiro se misturam aos rios que vão em direção ao
hidrômega, transformando o Ribeirão em braço de mar.

Organizaremos os escritos de forma que cada personagem se destaque por uma psicologia e
antropologia síncrona, o que vale um índice explanativo, e eis ele em um passe de mágica, como
uma mão que esfrega a lâmpada do gênio e realizam-se vossos desejos em instantes...

Tanjiro e Nezuko - Connictium e awareness dos laços familiares e consortes da lenda do fio
vermelho japonesa, corrupção sanguínea e tabu do que significa "ser humano" enquanto
demônio.

Shinobu Kocho - A relatividade expressiva de Bronislaw Malinowski em seu sorriso e a


instrumentalização de sua persona afim de cumprir seus objetivos.

Rui Ayaki - Territorialidade e consanguinidade na performance de papéis de membros de


família.

Inosuke Hashiba - Totem e primitivismo, o que a Antropologia pode dizer a respeito de um ser
humano mais animal do que humano?

Zenitsu Agatsuma - O poder do inconsciente sobre as ações do indivíduo.

Giyu Tomioka - Os complexos e traumas como agentes desfalcadores de melhores políticas


sociais, e a iluminação pessoal independente das crenças pelo pensamento organizado de Kant.

Kyojuro Rengoku - O Abismo de Pascal versus o Abismo de Nietzsche na sua batalha contra o
Oni da Lua Superior no filme Mugen Train, o significado crucial da passagem do tempo para o
Ser Humano na Antropologia contra nefastas maldições que prometem a Imortalidade em
religiões do Materialismo Histórico.

Kanao Tsuyuri - A linguagem de Wittgenstein versus o simbolismo materialista de Frazer,


idiomas desconhecidos, cosmopolitas, de caos e entrópicos. Cara ou coroa, sorte e azar, dados de
Nietzsche, Teoria das Probabilidades de Pascal, pluralidade cultural de Boas nas sutis apostas e
acasos do destino em como Ela decide se falará ou não falará, e se falará, o que falará.

Vamos, pois, ao que importa, caro leitor.

"Sou um homem animal

Sou uma mulher selvagem

De dentro de mim

Brotam inquietudes

Relatos de um corpo em chamas


Minha válvula de escape é a escrita

É também meu alimento

Sem a poesia pereço

É preciso vida espiritual

Para continuar existindo."

- Mel Freire

Vou resumir, serei o mais breve possível nessa introdução...

Não existem cidadanias, pátrias, natividade para reinvidicar, seria ao mesmo tempo que muito
egoísta e vaidoso, redutível ao que somos. Quem se utiliza desses termos comete o mesmo erro
dos povos governados pelo rei sobre Israel em Jurasalém na Eclesiastes: tudo o que fazes
doravante é vaidade. Termos como esses recorrem, ainda que não necessariamente diretamente,
ao material e ao estético. Futilidades e banalidades. Como todo ser aprende e transmite ao outro,
lega, herda, ascende e descende através de um método universal em comum, o mimetismo, todos
podem ser o que desejarem, no que chamo de cidadania cosmopolita. As tradições, culturas, ritos
e rituais assim sobrevivem: alguém ou algo os imitou, não há criptografia misteriosa, secreta e
oculta o bastante para que ninguém a desvende, seja um estrangeiro ou um mero passante.
Sufixos como "re", "auto", "ismo", "el", "pré", "cis", "des", "uni", "pan", "mono" são universais
independente da linguagem utilizada.

Um cidadão que se diz ter convertido-se ao cristianismo através da Seicho-No-Ie está na


realidade convertido ao budismo, alterando-se apenas suas peças, nomenclaturas, pois o
démarches do sincretismo sacramental não muda jamais a essência, apenas as vestimentas.
Taniguchi escreve "não faça aos outros o que não deseja que fizessem com você", ensinamento
original de Confúcio, e descreve as Quatro Nobre Verdades, diretamente dos darmas, mas nega-
se em revelar seus signatários. Em compensação, faz menções explícitas ao Velho e Novo
Testamento no que possuem de comum e familiar com o Budismo.

Em um contra-ataque ao argumento majoritariamente aceito de que há algum bem ou dom que


não possa de maneira alguma ser assimilado por alguém exterior, digo antes e como prefácio do
que será apresentado adiante: assim como o Brasil com Portugal, a Suécia com os imigrantes, a
essência original, a inocência original em contraste com o pecado original de Adão, se mantém
intacta mesmo com a diminuição da densidade demográfica ocupada pelas primevas de nativos.
Como uma criança abandonada e ferida, não se trata de qual é o seu passado, mas em que lar ela
será atendida, acolhida. Se a criança estrangeira abandonada e ferida for deslocada para um
reformatório, um orfanato, um colégio militar, em nada desenvolverá de atributos nativos, pois
não reconhece tais espaços como lares. É preciso um berço, um kindergarten adequado, que não
priorize as qualidades estrangeiras, tal foi o Apartheid na África ou o processo civilizatório
norte-americano que extinguiu as tribos Sioux, Najavo, dentre muitas outras. É preciso elogiar as
qualidades nativas, como se fosse pré-requisito desenvolvê-las para os seus habitantes lá
crescerem, não uma cobrança de impostos municipais, estatais e nacionais, assim transformando
o que era um leito de morte da sua autenticidade patriótica em um campo fértil repleto de brotos,
botões e flores.

As noções identitárias não mudam, mas são despertadas. O ser humano não pode ser mudado,
mas despertado, e como multifacetas, multifatores, multiplicidades residem nele, ele pode
despertar tanto seu lado mal quanto bom, mas ele jamais muda. O que é completo em maldade e
bondade, perfeitamente equilibrado não pode simplesmente oscilar, preferir um ao outro
negligenciando o oposto. Pode, na melhor das hipóteses, reconhecer até o seu mal como bom,
convertendo sua maldade em também bondade.

Vemos um oriental desprezar sua própria transição, seu aspecto transacional ao experimentar
uma obra ocidental que retrate melhor o seu país, mas que na verdade nada mais faz do que
retratar seu passado. O ocidental retrata o japonês como um samurai, feições e semblantes sérios,
gravado em meditações e treinamentos rígidos. No lugar de tatuagens que expressam estilo e
moda típicas do Ocidente, o japonês tatua em si dragões e impressões heráldicas presentes em
escudos e espadas, o que muito diz sobre a ideia que tem eles de seus próprios corpos.
Imediatamente, o oriental se orgulha desta visão que os ocidentais tem dele! Estufa seu peito
como que vangloriando-se de sua virilidade, paz de espírito, frieza, enquanto escarra na face dos
seus compatriotas que preferem retratar seu povo como personagens bonitinhos, fofinhos e de
cabelos coloridos, que quando excitados sangram pelo nariz e, quando com problemas visuais,
seus olhos atravessam as próprias lentes de seus óculos na direção de seios e bundas.

No pensamento de Immanuel Kant, o ser humano se sobressai aos demais seres pela sua
capacidade de organizar, sistematizar, ordenar, ajeitar, congruescer as coisas, pôr cada uma delas
em seus devidos lugares. A primeira pessoa, o Eu lírico, o escritor fantasma não acredita que haja
uma espécie de enquadramento a base de seleção e exclusão do que é tipicamente ocidental e
oriental, mas sim do que é universal, universalmente como praticante do que é certo e do bem, de
doutrinas e mensagens aplicáveis a qualquer ser do universo, a parte da mathesis universalis de
Descartes, o akasha xintoísta, dentre outras concepções isonômicas do que é prático à todos. Se
há um motivo pelo qual foi escolhida a obra Kimetsu No Yaiba para tratar dos assuntos aqui
discorridos, é porque ela é universal. Desde as mensagens inspiradoras dos seus personagens
carismáticos até o epílogo de amadurecimento, tudo é absolutamente universal.

1. Tanjiro e Nezuko
Connictium é um conceito da psicologia muito trabalhado em especial pela grande psicóloga e
poetisa Mel Freire, que, análogo às histórias das nornes, moiras, tecelãs, não apenas traçaram,
mas transaram um fio indestrutível nas almas de duas almas para que elas fiquem unidas para
sempre, independente de quantas vezes ele se emaranhar, assumir a embaraçada forma de uma
bola de pelo vomitada por um gato, um nó de bruxa, um nó górdio, ele há de se desenrolar e
mostrar sua complexidade desde os primórdios das almas humanas, e resistir do corte
descendente de Alexandre até as guilhotinas dos carrascos da família francesa Sanson. Esse
conceito é intrinsicamente conectado à lenda japonesa do fio vermelho, Akai Ito, que o Kami,
Divindade valentina do Supremo Amor, simbolizado pela Lua, tece tais fios em cada par de seres
existentes no universo, assim como a lenda de Tristan e Isolde, em que no brasão de ouro de
Tristan ele entrelaçou um dos fios do cabelo dourado de Isolde, porém, se o próprio ouro
escureceu e perdeu seu brilho, o cabelo continuou a brilhar eternamente. Uma tradição milenar
japonesa, chamada de Kintsugi, consistia em consertar peças de cerâmica com resinas especiais,
valiosas, como ouro. Assim como ela, podemos testemunhar o quão preciosos são os fluídos que
correm em nossas veias quando coagulam em nossos machucados, nossos corações partidos mas
que hão de se reunirem quando a resina dourada solidifica-se, sublimação reversa, e aumentam
consideravelmente o valor exterior do corpo graças aos fios interiores que costuraram o tecido
superficial. Podemos ver esse conceito na prática com as relações de Tanjiro e Kanao, Mitsuri
Kanroji e Obani Iguro, dentre outros que furam a esfera unicamente do amor de consortes
matrimoniais, mas de afetos de irmandade. O connictium se trata de assimilar, simbiose,
coexistência, sincronização, sincronicidade o mais forte, o mais encorajado possível entre dois
seres, a partir que sintam-se comunicados telepaticamente, que mesmo surdos, consigam saber o
que está sendo dito, mesmo cegos, saibam o que está na frente deles quando face a face um ao
outro. Às avessas do pecado original, essa inocência original persiste mesmo com infinitos anos
de distância de nossa primeira vida, e nas palavras de Mel Freire, tal fenômeno ocorre porquê se
trata de "enxergar o outro a partir de si mesmo" ou seja, quando sentimos que nossos corações
batem no mesmo ritmo que o outro, que lemos a mente do outro com extrema facilidade e
fluídez, é simplesmente porquê pensamos e sentimos exatamente o mesmo que o outro sente e
pensa, e nesse estágio, se autoconhecer significa conhecer o outro, se ler significa fazer a leitura
do outro. Conhece-te a ti mesmo e conhecerá quem amas e ama à ti.

Na alquimia, usamos coniunctio, estado de combinação de matérias em que uma se grava à outra,
ou seja, o sangue por exemplo não é transfusado ao homem, mas gravado nele como pintura em
seu rosto, mudando seu aspecto. Tudo em nós pode ser acrescentado, mas há formas que
acrescentam-no substância sem ser verbal, isto é, não assume movimentos nem significâncias,
não altera nossa estrutura genética nem espiritual. O desejo libidinal pode ser compreendido
como o desejo de criar novas possibilidades através dessa combinação, pois se um homem e uma
mulher se desejam, é para abrir novas possibilidades, abrir novos mundos possíveis. Tais
possibilidades são diferentes do mundo em que vives, e é precisamente isso o que impulsiona a
sexualidade, carícias, conflitos, ciúmes, o sadismo, o masoquismo, o ultrarromantismo, a
paixão... São nossas Genesis bíblica, Teogonia de Hesíodo, Enuma Elish babilônica-suméria.
O único Ser igual a eu sou eu mesmo. Contudo, possuo o dom da assimilação. A discórdia do que
penso significa a concórdia com o que me é diferente, a ponto de quanto mais vezes me assimilo
a tudo, poderei constatar que o único Ser diferente de mim sou eu mesmo. Eis a perfeita
igualdade do equilíbrio universal.

Tanjiro é um protagonista com o dom de transformar praticamente todos os demais personagens


em deuteragonistas, proporcionar à eles suas devidas atenções, praticando uma connictium com
eles através da mais singela das compreensões. Quando luta com Kyogai, o demônio dos
tambores, toma o máximo de cuidado para não pisar nos papéis espalhados no tatame, cenário de
sua batalha, e a personalidade neurótica, inquieta mas de fala mansa de Kyogai reflete, na
realidade, o seu passado como ser humano. Kyogai era um artista frustado, jamais recebeu
aprovação de seus escritos e de suas composições musicais, desejava ser um poeta, um músico,
mas ninguém em vida compreendia sua genialidade, o que recebia era apenas suas páginas serem
amassadas e feitas de espancadoras de moscas sobrevoantes, seus instrumentos chutados e
estraçalhados por serem tidos como inúteis em dedilhares e palmas de mão tão inúteis quanto.
Quando se transformou em um Oni, Kyogai fez crescer em seu peito, abdômem e costas
tambores que controlavam a gravidade e o espaço do ambiente, ambiente de acústica perfeita,
cujo os mínimos passos de até mesmo o mais furtivo dos espiões não passaria despercebido, e
com páginas de seus escritos lá espalhadas, como que após negligenciadas por tantos,
negligenciada por ele mesmo. Então, Tanjiro alcança a endopsiquê dele ao lutar contra ele
reconhecendo sua habilidade, que é um oponente a altura, que demonstra enorme desafio, e que,
sabendo de seu passado como ser humano, presta reverência à ele em sua despedida. Fazem-se as
pazes, Kyogai pode ir ao mundo celeste e superior sem remorsos, sem arrependimentos, ele
descobriu seu valor como escritor e músico. Em outro confronto, com Rui Ayaki, o Oni
aracnídeo, Tanjiro se convalesce, demonstra compaixão para com o oponente, compreende as
vivências que possuem em comum. Ao ficar a par da enfermidade crônica de Rui, aidético,
imunodeficiente de todas suas células de capacitação, aptidão e perspectivas de felicidade vital,
com um corpo tão debilitado desde o nascimento que o impossibilitava de correr, quem diga
andar ou se levantar quando Ser Humano, Tanjiro compreende o porquê de Rui ter aceitado ter se
transformado em um Oni, a beber do sangue de Muzen Kibutsuji, o arquivilão da obra. Muzen,
por seu próprio gênio e experiências pessoais - um natimorto sem sinais de respiração,
batimentos cardíacos nem nenhum signo de atividade orgânica até despertar quando estava
prestes a ser velado ainda niño, e posteriormente controlar completamente a regeneração celular
de si mesmo, adquirindo a imortalidade - possui uma inclinação a socorrer apenas indivíduos em
estados terminais cujas vidas parecem mais cruéis do que prazerosas. Sua única busca pelo
aperfeiçoamento é a anulação do seu ponto fraco: o Sol, e nisso podemos fazer menção ao que
Pascal escreve em Pensées "A incarnação mostra ao homem a grandeza de sua miséria pela
grandeza do remédio de que ele necessita."

Sim, a grandeza de nossos sonhos é proporcional ao estado enfermo em que sondamos o loco
exacto de nossas angústias. Rui, quando finalmente sua família poderia se sentir feliz por ele
conseguir se levantar e ter um corpo sadio, se lamentam pelo preço que isso custou: ele agora
precisa se alimentar de Seres Humanos, e sofre de dois perigos da natureza, o Sol e as glicínias.
Não pode sair mais ao dia e não pode mais se aventurar pelas florestas sagradas que conduzem
aos templos religiosos. Sua mãe e seu pai decidem realizar o Shinjū, suicídio coletivo tradicional
dos japoneses quando apercebem-se da impossibilidade de consumar o amor deles como casal,
como amigos, como família nessa vida atual. Concluem, portanto, que esta vida foi um acidente,
e precisam reencarnar para que ela se ajeite, e que o amor seja finalmente possível de ser
vivenciado em toda sua plenitude. É uma sentença de morte que, ao contrário do que podes
pensar, não é de modo algum pessimista, pois no fundo quer dizer "nesta vida, teremos um fim
trágico. Mas está tudo bem, pois poderia ser de outra maneira, não?" um gran finale legítimo,
digno, realmente esperançoso e sonhador não precisa necessariamente de um final feliz, mas
pode ser, às avessas, um final triste que diz ao espectador "poderia ser de outra maneira.
Compreenda isso, a felicidade é possível apesar dela não ter acontecido, faça-a acontecer."

Rui simplesmente não sabe como lidar com isso, e acaba por cortar seus laços com sua própria
família, sua gent, matando-os antes deles o matarem, sem notar a tristeza com qual faziam isso.
Quando Tanjiro finalmente o desafia, ele é acompanhado por sua irmã caçula Nezuko, e Rui é
tomado por fascínio pela autenticidade, unicidade dos laços compartilhados entre eles, o
sacrifício e devoção mútua deles um pelo outro. Imediatamente ele é possuído pela vontade de
consumir Nezuko, de apropriar-se dela, fazer dela uma irmã substituta, suplente, que daria sua
vida por ele, mas incapaz de sentir-se de maneira recíproca, este método seu há de falhar como
blocos incongruentes em queda do videojogo Tetris. Neste sentido, abrem-se as argumentações
sobre o que é família, territorialidade, consaguinidade, exogenia, inogenia, do que será tratado
mais adiante.

Frederick Perls, em sua Gestalt-Terapia, desenvolve o conceito da awareness, que significa


formar uma forma de si mesmo que seja definitiva, firme, resistente, absoluta. Que não seja
índigo nem lilás, que dependendo do fundo, soa ser vermelha ou azul, e vice-versa. Mais do que
isso, uma consciência de si mesmo, de que você existe além do cogito ergo sum, mas uma
apercepção emocional também, não mecanizada a ponto de se restringir ao pensamento. Em
outras palavras, o self que prefiro definir como auto, sui, por abranger automática, autômata,
autodestrutiva, autoridade, autorizado, autofunção, autovalor, autofagia, autoflagelo, autóloga,
autocrítica, autossimilaridade, autopoiese, autossomo, autodescoberta, autodesenvolvimento,
autosacrifício, autoconhecimento, autonomia, autoanálise, autóctone, autopológico, autoestima,
autogestão, autoindulgência, autocobrança, autocatálise, autocracia, autogeas, autoexigência,
autosabotagem, autoimunidade é reconhecido como ele funciona, parte essencial de como ele é
praticado, pois se interrogamos o indivíduo com "fale os seus problemas" de nada adiantará se
ele não saber "como falar dos seus problemas". É o que ocorre com Nezuko quando ela se
transforma em um Oni, enfeitiçada por Sakonji Urodaki, ele prega uma ilusão óptica nela que a
faz ver todos os fracos e oprimidos, demais Seres Humanos e Oni reabilitados, como ela mesma
e os companheiros Tamayo e Yuchiro, como membros de sua família massacrada, e então passa a
defendê-los. Podemos pensar, assim como os cultos tribais xamânicos e usos de psicodélicos em
rituais relatados por materiais antropológicos de campo, será que o que Nezuko passa a ver é real
mesmo? Será que seus olhos vermelhos turvos e possuídos enxergam a realidade independente
do feitiço? A esquizoanálise de Deleuze tem muito a dizer sobre isso, mas reflito... A concepção
da realidade, então? Enfeitice um néscio e ele será considerado transtornado, enxerga projeções e
alucinações irreais; enfeitice seus irmãos ímpios, sua mãe e seu pai, sua família, e considerarão
uma maldição hereditária, sina de sangue. Enfeitice uma nação inteira e ninguém contestará
dentre seus habitantes a veridicidade alucinante das visões em comum, apenas os estrangeiros.
Enfeitice o mundo inteiro e o veridito final será que não há nada de anormal nessa goétia, que ela
é absolutamente real.

Essa própria aplicação é uma comprovação da magia xamânica em níveis estarrecedores.

Porém, o que é pertinente da questão é: Nezuko se transforma em um demônio, mas ela lhes é
hostil. Não mais humana, ela ainda assim ama os humanos. Seu sangue foi sujado, corrompido,
se tornou impuro, presume-se que seus laços com seu irmão deveriam ter sido cortados a partir
disso, mas não é assim que procede-se. Deveríamos proceder com uma etologia da besta, então?
Sangue de Lycaon correndo nas veias cujo nome origina a licantropia, divide a antropologia em
homem e animal? Em demônio e Deus? Nezuko, segundo a hipótese de Urodaki, preferiu por
conseguir suas energias necessárias descansando, dormindo invés de devorando seres humanos.
Para Perls o self é definido pelos elementos de reação do Ser, e logo sua atividade diminuí
durante o sono, no caso de Nezuko, ela estaria usando o sono justamente para cortar o fluxo de
energia que assumiria a forma demoníaca em seu Ser, como a água que toma a forma de seu
receptáculo, e se a estrutura de Nezuko é dividida em "tanques", aquários por assim dizer, tanque
humano e tanque demoníaco, ela de certa forma fechou a válvula que dirigiria a energia aquática
que assumiria a forma demoníaca sua. O sangue levado à ereção foi interrompido seu fluxo.

A psicologia empresta da antropologia os conceitos de desterritorialização, descolonização,


descentralização como na obra de Guattari e Deleuze, afim de expôr espaços que se opõem
naturalmente ao sistema social e estatal vigente, como os ancestrais, os naturais, os artísticos, que
se não fosse por interferência do governo, de um totalitarismo, nada se oporia à elas. A
sociedade, antropologicamente, poderia ter a grosso modo duas divisões: a organizada e a
conectada. Uma firma, um sindicato, uma empresa não possui laços, conexões, connictium entre
as pessoas, mas elas são organizadas para estarem juntas, pois pagam e são recebidas por uma
organização. Assim são os impostos, uma territorialização de vantagens que podem ser
desfrutados do que é classificado como "bem público" mas que é monetarizado, isto é, não é
realmente público. O Catastrofismo de Cuvier nos diz que a geografia do mundo é feita a base da
própria matéria dos seres vivos, minérios, rochas, liquidificação, solidificação, sublimação,
astros, sóis, luas, sistemas solares e lunares, tudo é feito dos nossos fósseis, nossos ossos e
partículas! Os arqueólogos dinamarqueses que Morgan cita organizaram as etapas da história
humana em "Idade da Pedra" "Idade do Bronze" "Idade do Ferro" com base em minérios que
manuseamos para a adaptação, sendo que eles são feitos de nós mesmos. Os celtas
desenvolveram a raiz da palavra inglesa World de modo que seu significa etimológico seja "A
Idade do Homem" pois acreditavam que a verdadeira idade do Ser poderia ser medida pela idade
do seu lar, o mundo, pois ele volta e surge dela infinitas vezes, são praticamente Uno. "Humano"
possui a mesma raiz de "humilhação" que por sua vez deriva de "húmus", ou seja, terra. Como
escreve genialmente Mel Freire "Um sentido para a vida não estabelecido, mas sim criado.
Criados a partir daquilo que nos mantém vivos."

Acaso um pedaço de terra reinvidicaria a noção de propriedade para si, e logo, a de um


proprietário de si? As religiões mais conectadas com a natureza não fazem menos do que
esclarecer que não podemos reduzir o irredutível à essas noções sociais artificiais, como dono,
propriedade, escravo, mestre, pertence. A dicotomia do Ser Humano é a mutilação geodésia, se
um humano se torna um animal, uma besta, um demônio, um possuído, ele não deixa de ser
submetido aos exames antropológicos. Morgan, em The American Beaver and His Works,
acredita que o funcionamento das mentes humanas e animal era similar, diferenciando-se apenas
em grau, e que não podia se explicar os comportamentos animais mais complexos, como por
exemplo a construção de represas pelos castores, com base na noção de instinto.

Da mesma forma, as complexidades e profundidades da consciência de Nezuko, que na grande


parte da obra é carregada por Tanjiro em uma cesta de bambu reforçada em suas costas sob os
dias ensolarados pois este é nocivo à sua pele, não podem ser explanadas por um reducionismo
que crê o instinto ser a força motriz, molar do Ser, ou até mesmo o desejo libidinal que Guattari e
Deleuze postulam ter o que culminou no fascismo e a União Soviética, ou mais longe ainda, os
sentidos que os estoicos, epicuristas, cépticos, dogmáticos insistem ser o que mais comprova as
ações detrás dos seres vivos. Há alma, há crença, há espírito, há princípios que compõem a
visageité, rostidade universal de cada um, e estão acima de tudo.

Quando Tanjiro e Nezuko são presos e levados até o esquadrão de caçadores de Oni, os Hashira,
tendo suas armas e toda sorte de pertence confiscados, imediatamente são ameaçados por seus
membros a serem exterminados pois quebraram todos os códigos da família a qual são
enlaçados, o mais grave deles, contudo, o de "um caçador de Oni e uma Oni trabalharem em
conjunto, e pior do que isso, possuirem laços familiares". Um dos membros de maior nível puxa
Nezuko pelos cabelos, a espanca e a atravessa com sua espada, justificando que "não será uns
meros cortes que matarão um ser repugnante como esse" e enraivecido por suas expectativas dela
o contra-atacar terem sido frustadas, ele apela para o último recurso: despertar seu lado
demoníaco cortando seu próprio pulso, derramando o seu sangue especial que é mais apetitoso
aos Oni. Nezuko simplesmente recusa-se completamente a se rebaixar a tal estado, convencendo,
assim, à todos que ela é integralmente humana.

Por fim, constata-se que as culturas, etnias, linguagens, artes, instituições ancestrais acabaram
por se deturpar por noções de vaidade e estética, ou melhor, esteticida. O critério para reconhecer
um indígena é estético, e logo, esteticida, incentiva ao esteticídio. Considera-se um indígena a
partir de seu visual, saias de folhas, corolário de plumas, penas, pinturas faciais a base de fluídos
de plantas, rituais enteógenos, nudeza, miçangas, colares de ossos, e como tal, ele é considerado
como um. Acaso as fronteiras dele se limitam onde os sentidos óptico-nervosos acabam? Um
demônio é considerado como tal por chifres, pele vermelha, cauda em formato de seta, tridente
dourado, caldeirões ferventes e chamas ebulindo ao fundo? Nezuko é um demônio, mas não na
acepção dita global da terminologia, possui olhos com vasos sanguíneos saltados, controla o
tamanho de seu corpo, morde um pedaço de bambu com os dentes para não devorar ninguém
acidentalmente, pois reconhece a força de seus instintos, mas os doma, e como um boneco de
peças, membros removíveis, pode ser mutilada quantas vezes desejar que se regenerará. Mas o
perturbador é o fato de Nezuko ter um rosto humano, corpo humano, alma humana.

Morgan buscou em toda sua obra, especialmente em A Sociedade Antiga, traçar e comprovar
que a humanidade é originária, em todas suas variações de povos, da mesma raiz. Onde quer que
seja possível reconhecer algo em comum, semelhanças, pareceres mútuos entre povos
continentalmente distantes, podia-se constatar que advém de um estoque original comum.
Acreditava que o sistema classificatório de parentesco dos iroqueses era similar ao encontrado
entre várias outras tribos norte-americanos, o que poderia provar sua origem em comum, e talvez
mesmo em várias partes do mundo, o que a seu ver, se também fossem encontradas no Oriente,
estabeleceria cientificamente a origem asiática dos nativos norte-americanos.

Na mitologia xintoísta, há o Hannya. Um observador desatento poderia ter a impressão de que


ela é uma máscara removível, um apêndice, um enfeite, objeto cênico de materiais plásticos.
Contudo, a lenda diz que a "máscara" é a transformação facial do Ser Humano após ela ser alvo
dos impactos das paixões mundanas. Olhos estreitos, convexos, recônditos, narizes longos,
arrebitados, lábios grossos, tudo é lapidado por fatores externos e internos, como uma massa de
modelar autônoma. Entretanto, quem está por detrás daquela "máscara" continua a ser o que é,
independente da estética. Missão da antropologia é reconhecer isso, que o desenvolvimento
humano está muito menos ligado ao que os sentidos podem proporcionar - tato e pele, visão e
estética, olfato e iconoclastia de perfumes, audição e linguagem - do que o que a crença pode
fazer - cultura e alma. Eis a rendez vouz verdadeira de todos os povos.

Shinobu Kocho

Em Argonautas do Pacífico Ocidental, Malinowski explora o que posso chamar de


Relatividade Expressiva ao retratar as associações significativas que o povo de Trobriand faz ao
sorriso. Para eles, o sorriso não é sinônimo de alegria ou simpatia, mas de ameaça, intimidação,
violência, escândalo, violação.

Os japoneses xintoístas possuem no seu panteão uma lança lendária chamada Amenonuhoko, que
muito remete à Gáe Bulg, que foi empunhada por Izanagi, consorte de Izanami. Ambos os nomes
significam, respectivamente, "aquele que convida" "aquela que convida" e este ato de convite
espalhou-se sinergicamente nos bons modos japoneses, inclusive em seus pertences decorativos,
como o Maneki-Neko, um gato que faz o gesto de mão levantada que nos seria o equivalente ao
aceno, mas originalmente é chamar, convidar, pois seus dedos estão levemente friccionados para
dentro, como se empunhando algo, tal fez Izanagi.

Shinobu Kocho é uma das Hashiras de Kimetsu No Yaiba, ela sempre está demasiadamente
simpática, sustentando uma imagem de alegria que mascara suas reais angústias e aflições, um
estado de tanatose ao inverso: finge estar viva, estar contente, estar capaz de ser emocionalmente
estável, como se seus músculos faciais fossem programados por ela mesma para sorrir em frente
das mais adversas situações.

Em psicologia temos a Persona. Trata-se de uma projeção que fazemos de nós mesmos para
atender as expectativas que a sociedade cobra, a família, as instituições de trabalho, dentre
outros, mas que acaba por ser desarmada quando desejamos ser aceitos por o que somos
realmente por alguém que, a exemplo, amamos mais do que tudo, e percebemos que isso é
recíproco. Em primeiro lugar, essa espécie de desarmamento, desarmaduramento ocorre porquê o
amor rejuvesnece, logo leva o Ser à sua infância, sua criança ferida, l'enfant sauvage, tendo que
ele fazer as pazes com seu passado, e em segundo porque terá de resolver suas questões
familiares, pois seu consorte está sendo integrado à família. Revisão de questões, é disso do que
se trata, mon cherrie. Quando Tanjiro está treinando sua respiração das chamas no telhado sob o
luar, Shinobu aparece o encorajando, dando-lhe insights, einsencheter, luzes sobre ele, conselhos
e instruções, e então fiat lux. Ele alcança uma epifania, uma revelação sobre si mesmo, mas
como seus sentidos são aguçados, ele percebe em retribuição um dos segredos de Shinobu que
ela insiste em guardar só para si: ela emana ódio e tristeza detrás do seu sorriso. No entanto, ela
sente-se à vontade o suficiente para se abrir com ele, e como escreve Mel Freire "O eclipse
simbolicamente revela o lado oculto que não queremos enxergar, é nas sombras que se aprende
a ver, principalmente aquilo que importa e que muitas vezes se apresenta como sintoma." e tal
fenômeno eclíptico não é menos do que quando duas formas se mostram, a parte da perspectiva e
da justaposição, distância e tamanho, congruentes, coalescentes, luz e escuridão. Os sintomas
são, principalmente, indícios. Certos indícios são associados manualmente, e em grande medida
são construções sociais, como uma patologia de tiques, gatilhos que são associadas à
determinadas partes corporais, por exemplo, a síndrome de Tourette ao ranger de dentes que
antecede a ofensa incontrolável. Em espectro maior, a fumaça é indicial de fogo, a silhueta de
presença, as ruínas de construção, e doravante. Lucrécio argumenta equivocadamente que a
linguagem surgiu de sinais e gestos antes das vozes, assim como o pensamento - também
equivocadamente - antecede o ato. A linguagem surgiu da vocalização de elementos naturais,
mimetismo da natureza, quando emprestamos o vento para sonorizar um instrumento musical,
por exemplo. É de se imaginar que uma linguagem que mais enrubesça o Ser, mais o aqueça e
espante os ares frios tenha sido melhor desenvolvida nos países nórdicos, gélidos, e doravante,
como técnicas pneumáticas que aprimorem as formas de satisfazer as necessidades do Ser. Uma
linguagem que filtre os grãos de areia das tempestades do deserto, que expulse as impurezas e
calores pelos poros é mais comum nas partes orientais do mundo. Algumas linguagens preferem
respirar as forças da natureza e usá-las em comunicações pneumáticas especiais, como os celtas
com o ritual de Walpurgis que aspiravam brasas, ou os indianos com os chacras. Logo, a
linguagem tem como força motriz a natureza, vocalização dela em matéria bruta, câmera de
confessionário público a céu aberto. Os caçadores de Oni de Kimetsu No Yaiba desenvolveram
assim suas linguagens, e tem mais afinidade com os elementos próximos dele portanto.

Em 2017, a cantora Emi Evans se reuniu com o compositor Keiichi Okabe para criar a chamada
Chaos Language, a linguagem do caos, especialmente para o videojogo NieR, a pedido do
diretor Yoko Taro, uma linguagem que visa prosperar o sentimento acima do entendimento. Emi
logo reuniu todas as línguas que tinha conhecimento, polilíngue como és, do japonês, latim,
húngaro, alemão, galês, francês, dentre outros fonemas criados por ela mesma, e os dividiu,
combinou cada um deles, enfusão do sangue linguístico em palavras que deveriam ser escutadas
por cada um dos seus ouvintes como familiares, tendo eles natividade verdadeira com uma sílaba
ou outra ou não, os exteriores à elas também sentissem familiaridade. A obra resultada desse
experimento fora Song of the Ancients, uma música que pode soar como um ritornelo cantado, se
não fosse pelo fato dela ser cantada diretamente do coração. Além disso, ela foi musicada com o
intuito de soar como o perfeito pano de fundo sonoro, não distrair o experienciador com a
decifração do seu conteúdo lírico, mas senti-lo. Com isso, Emi descobriu que a transmissão
sentimental de sons é muito mais eficaz para passar uma mensagem do que sinais inteligíveis,
pois afinal, são privadamente inteligíveis apenas.
Guattari nos diz que "Não existe uma 'língua nacional' ao nível dos agenciamentos do desejo.
Nós (Eu e Deleuze) questionamos a própria noção de unidade da língua. Pretende-se que as
línguas correspondam sempre às formações de poder nacional. Mas, na verdade, temos sempre
de lidar com uma multidão de agenciamentos ou, como digo: com 'diferentes semiotizações'.
Sem fazer uma pausa, falamos uma infinidade de línguas diferentes, línguas menores. As
crianças, entre si, não falam a mesma língua com os pais, a língua que se fala no sistema
doméstico é diferente da qual se fala na universidade. A língua que se fala na televisão não é a
mesma que falamos em nossa vida cotidiana, e a língua amorosa é diferente da língua literária,
etc. Os dicionários, as academias e os meios de comunicação oficiais funcionam de modo a nos
fazer acreditar em uma única língua e na traduzibilidade geral de todas as línguas. Mas os
linguistas, por exemplo, na América, demonstraram que o Black English é uma língua diferente
do inglês americano e alguns linguistas mostram que as mulheres não falam exatamente a
mesma língua que os homens.''

Elias por sua vez contrapõe os pesos das hypothesis "Padrões sonoros produzidos por uma
pessoa podem ter um 'sentido' para as outras. Mas só têm um sentido se - e porque - o emissor e
receptor aprenderam a associar aos conjuntos específicos de padrões sonoros as mesmas
imagens mnemônicas, ou, em outras palavras, o mesmo sentido. Cada pessoa pode - dentro de
certos limites - variá-lo (a língua) individualmente; mas se for longe demais acaba por se
privar-se no presente ou no futuro - da comunicabilidade do conhecimento e também de seu
sentido.

Mel Freire certa vez escreveu, de forma que não poderia ser mais bela e perfeitamente
sintetizadora da lógica, a causa da união das linguagens, dos idiomas, da contemporaneidade
lírica dos povos do mundo em seus versos "Vamos restaurar e misturar as línguas de todos os
povos entrelaçando nossas línguas beijando-nos."

Até mesmo nos lugares submetidos às benções da toponímia, ou melhor, especialmente esses
sofrem dessas especialidades linguísticas. Mel Freire chama esse fenômeno de linguagem do
desejo.

A concluir o parágrafo das linguagens, sentencio com o que chamo, diretamente conectado com a
linguagem do desejo, de origemas infinitesimais. Origema, assim como as mônadas de Leibniz e
de Gabriel de Tarde, ou os átomos gregos, são partículas hipotéticas possíveis, e como postula a
caosmose de Prigogine, se algo é possível, basta, existe, irrelevante se se origina do passado,
presente ou futuro ou fora do tempo. Como na monadologia foi revelado, as coisas podem ser
divididas, ou melhor, fragmentadas em símbolos, na física com a pulverização do corpo celeste
em uma infinidade de massas corpomusculares; na química com a ruptura do átomo em
turbilhões subatômicos; na biologia com o rompimento da unidade orgânica em um número
prodigioso de células, ou da grande cadeia do Ser em favor de transformismos específicos os
mais variados. A origema é o estado de origem destas codificações, o origene a origem dos seus
sequenciamentos, o origerme a origem de ambos em suas preconcepções, tais fetos como
embriões. Para aplicarmos isso às linguagens, imagine que tudo irradia, o corpo, assim como um
rádio, é apenas um meio, não é a mensagem, mas é a forma de sintonização da mensagem e
captação da mesma para ela ser transmitida. A ciência vem empenhando suas pesquisas para
compreender porque há exceções a parte de Seres com o mesmo número de partículas mas com
massas diferentes - o exemplo mais comum são os radioisótopos - e esta é a base para a questão
Bóson-Higgs, e no entanto a linguagem não é menos do que uma sintonização de partículas sob
corpos de massas diferentes! É de se presumir que os insetos entendem a si mesmos porque estão
sintonizados um ao outro, e até mesmo os objetos tem suas vibrações, que se tivéssemos
habilidades de escuta anecóicas o bastante, talvez conseguissemos compreendê-los, tal a arte da
ofidiologia. Há, em especial, um fenômeno de embrutecimento, que Montaigne certa vez dissera
com "precisamos embrutecer para tornarmos-nos sábios" e que Pascal retoma este estado
eclesiasticamente com "os loucos são de Deus; os sábios são dos homens" e podemos ver o
estado de embrutecimento em uma rocha, um fóssil de algo seja o que for este. Ele é bruto, isto
é, indócil para nós, mas não para ele. Presume-se que se embruteceu para evitar relações conosco
assim como dentre nós mesmos, espécime homogênea nas aparências, há quem se embruteça
para evitar contato social e verbal, logo, enclausura sua linguagem e só emite sinais com quem
deseja, escolhe seletivamente seus receptores. Nisto nos encontramos em dois pontos distantes
mas mais próximos do que imaginamos: a antístenes, etimologicamente união de anti (contra) e
sthenos (força) e sua lei principal de que a inércia mata. Não podemos simplesmente equivaler
as forças de brutalidade, mas promover um fenômeno de dilatação para que possamos penetrar
nas línguas do sujeito-objeto, e quando isso acontece, há sintonização, a condição essencial para
todas as linguagens de compreensão.

Shinobu é uma médica, ela tem especialidade na criação de venenos contra Oni a base de sucos
de glicínia, planta que funciona como um repelente, dedetizador deles. Ela utiliza da natureza, o
seio de Pachamama, várias propriedades homeostáticas e alopáticas afim de tanto exterminar
seus inimigos quando reverter seus estados. Podemos destacar a importância dos frutos da
natureza na obra antropológica em O Ramo de Ouro, de Frazer, que levanta pontes com a lenda
nórdica de Balder, a maçã do Éden, o maná do Deserto, a ambrósia olímpica. A veneração,
hiperdulia da natureza como agente exterminador do que não é natural, do que é artificial é muito
recorrente em muitos povos.

Vamos, agora, destacar duas coisas: o cumprimento da missão de Shinobu ao instrumentalizar


seu sorriso, sua Persona, e o significado dela da morte, logo, o que a morte significa para a
Antropologia, mui pertinente ao contexto e história dessa personagem.
Norbert Elias, em A Solidão dos Moribundos, nos conta algo interessante "No século XVII, os
homens podiam chorar em público; isso tornou-se hoje difícil e pouco frequente. Só as mulheres
ainda são capazes, socialmente livres para fazê - e por quanto tempo ainda? [...] Na presença
de pessoas que estão para morrer - e das que as pranteiam - vemos, portanto, com particular
clareza um dilema característico do presente estágio no processo civilizador. Uma mudança em
direção à informalidade fez com que uma série de padrões tradicionais de comportamento nas
grandes situações de crise da vida humana, incluindo o uso de frases rituais, se tornasse
suspeita e embaraçosa para muitas pessoas. A tarefa de encontrar a palavra e o gesto certos,
portanto, sobra para o indivíduo."

Os povos ainos, goldi, da Sibéria oriental e os asiáticos xintoístas e budistas, além dos orientais
indianos, iranianos, árabes, israelitas, judeus concebiam a morte como uma espécie de amnésia,
pois em toda reencarnação, as memórias da consciência não podiam mais ser recordadas, ou
eram levadas ao inconsciente. No século XVI, Giordano Bruno constatou que os átomos se unem
por afinidade. Átomos que formavam amantes de vidas passadas hão de inevitavelmente se
reunir novamente, se reencontrar como consortes pelo destino. A teoria das energéticas, ou líbido
de Freud, inspirada nas teorias de Heisenberg, Wolfgang Pauli, Einstein, é sustentada por essa
atração inata de partículas entre si, algumas delas inclusive possuem o spin, inclinação, direção
sempiterna delas à serem levadas para um paradeiro em específico. Assim é a nossa inclinação a
amar, a se apaixonar, de descender e à ascender, de desenvolver poder através de atrito, ignição,
faíscas que geram chamas de energia. Faraday postulou que os campos de força são pontos
energizados por corpos que assinalam um lugar deles no espaço-tempo, como que registrando
suas presenças lá eternamente - Prigogine chamaria isso de coordenadas canônicas; Pauli por
sua vez, dissecando os mistérios da quântica - do latim Quantum, quantia, feixe de coisas -
descobriu que todo campo de força, além dos de fótons, produzia energia correspondente às
partículas que nele habita, se tornando fértil a ele mesmo. Um campo de força de prótons produz
energia de prótons, um campo de força de neutrons, energia de neutrons, e doravante. A chegada
da lei de valência acrescentou que se a polaridade dos elementos, dos elétrons for oposta, eles se
trocam, e se forem compatíveis, eles se compartilham. No âmbito temporal, Einstein
desenvolveu a Teoria da Relatividade que, a grosso modo, significa que a passagem do tempo é
diferente em cada parte do universo, Richard Wilhelm, em sua viagem à China, apercebeu-se que
a noção de tempo das filosofias chinesas é unilateral, isto é, tudo acontece ao mesmo tempo. Nas
correspondências e encontros com Jung, os conhecimentos de Wilhelm o permitiram propôr a
Teoria da Sincronicidade, ou seja, o fato de que em determinado momento, os acontecimentos da
sua existência mais os acontecimentos da existência de outrem, por suas similaridades, se unirão
em uma única linha cooperativa, coexistente. A Teoria das Probabilidades, de Pascal, propõe que
o Tempo e o Universo são infinitos e com extensão, mas sem limites. Fazemos apostas neles
como fazemos com dados de jogos de sorte, mas independente do número que sair, par ou ímpar,
o que acrescentar em nada mudará da uniformidade do infinito, pois este não pode se inclinar
nem a um nem a outro. O infinito não julga a escolha que fazemos, mas julga a própria escolha.
Ao apostar, hemos de perder algo e de ganhar algo, ou de ganhar algo ou perder algo. Punição e
benção.

Por quê estou a discorrer sobre isso? É a interrogação que deves ter feito à si mesma, e a causa é
simples: a ciência da matemática e da física também é antropológica. Como somos seres
compostos de muitas partículas, atômicas e subatômicas, somos mais do que Seres Humanos,
somos Seres Particulares, no sentido de partícula. A prática dos povos de Trobriand do Kula,
trocas internáuticas pode ser comparada à lei de valência, o movimento das ondas das partículas
e sua formação de uma visibilidade exterior ao conceito de superorgânico de Kroeber, presente
em todos os povos reconhecidos pelo aprimoramento de suas ferramentas. Nossas memórias
ancestrais, ao serem decodificadas, transcritas e transcriptadas ao nosso genoma, ao DNA e nossa
alma, podem ser despertadas a qualquer momento, como uma micro supernova, ressuscitando,
reencarnando infinitas consciências dos Seres que nos originaram. Através dessa constatação,
que reconhece que simplesmente não somos uma única unidade, mas um agregado de coisas
existentes há muito, muito tempo atrás, desde os primórdios do Universo, grudada em uma aura
magnética, uma alma, concluimos uma reencarnação de algo. Descartes escreveu "cogito ergo
sum" como se o cogito, a consciência definisse toda forma de vida e de existência, mas não. A
consciência nada mais é do que a capacidade do Ser de constatar de que existe, de que vive. Isso
não significa que os conscientes sejam as únicas existências, mas que são os únicos vivos que
sabem que estão vivos - e ainda assim, há seres sencientes, sapientes, conscientes que não sabem
que, vivos, estão vivos, não se sentem assim, sofrem de uma depressão que na física referimos
como half-life, quando metade de uma energia vital decai - pois a vida também é inconsciente.
Os povos mais prudentes reconheceram isso, dentre eles os sioux, os tibetanos, os goldi, os tupi,
tupa nhee kretã, que foram submetidos às coletas de dados de Reinhard Maack, e muitos outros,
que veneram pedras, flores, fontes, florestas, organismos inconscientes como formas
legitimamente louváveis divinamente, porquê são formas de vida. A psicanálise de Freud levanta
a reflexão de que toda a história dos Seres Humanos, desde suas origens, há (no mínimo) milhões
de anos atrás e ao longo de seu desenvolvimento através dos séculos, está preservada dentro de
nosso inconsciente. Em outras palavras, antes de recebermos a vida, nós já existimos em estado
de inanimação - embora esse termo seja inadequado, pois renega a anima e animus própria da
animação nossa, que ainda há em estados "inanimados". A humanidade ainda é atraída para a
existência primordial, podendo mesmo experimentar certa nostalgia disto. Prova é que quando as
tensões de nossa vida diária aumentam, nós desejamos voltar ao estado inanimado. Alguns
chegam mesmo a tentar o suicídio para atingir este objetivo. Outros tentam reprimir qualquer
emoção. É tendência dos Seres Humanos, ou melhor, Seres Particulares, particle beings querer
retornar ao estado da matéria anterior à era pré-histórica em que a vida começou a se agitar, de
átomo à partícula de Bóson-Higgs, da constância à supernova, do elogio a forma corpórea
animada à reverência a forma inativa, em sono profundo, não despertada, mas ancestral e da
mesma família. Podemos reconhecer o tema que mais toca o Ser como a alma, e o que é ela? Não
pensemos no fantástico, no certo, no racional, mas simplesmente no que é possível. A alma é
unicamente a responsável por acumular as partículas em torno dela, centrífuga, intumescente
como o kundalini, abismal, espiralada, concêntrica, absorvente e absolta. O magnetismo entre os
imãs é a alma deles, a gravidade a alma dos movimentos atraídos à esfera de um núcleo, o Sol a
alma do sistema solar, o outeiro e irregularidades do equilíbrio cósmico, agonia da cosmogonia,
ou simplesmente o caos da teoria da complexidade e teoria do caos é a alma da termodinâmica. A
questão superior à qual todos os povos em particular se interrogam é: a alma é consciente ou
inconsciente? Adormecida ou despertada? Luzidia ou notívaga? Acordada ou sonâmbula?
Missing, saudade, sehnsucht, seja lá qual foi a nostalgia, ativou o maior dispositivo atômico em
nível de evolução das partículas, o qual Toulmin descreve como a evolução da construção
científica: algumas delas sentiram vontade de saber que existiam, e após criar carne,
desenvolveram o cerebelo, o cérebro, o cogito, ferramenta com o único propósito de que, vivo - o
que sempre estás, mesmo que transformado - saibas que estás vivo. A consciência é a evolução
natural das partículas de si mesmas por si mesmas que aconteceu pelos empecilhos que
encontravam em suas direções lineares, seus clinâmen, estabilidades newtonianas, e para as
superarem, se tornaram estocásticas, meteoros teleguiados, supernovas orquestradas. A única
divergência real entre todos os povos, suas religiões, mitologias, mitologema, é se o obejto de
suas idolatrias são conscientes ou inconscientes. Se Deus é consciente, ele é um escritor criativo,
se é inconsciente, só serve continuamente a uma única função, como uma máquina registradora
na cena literária teogônica. Tais Deuses podem ser leis da natureza e das ciências até, irrevelante
isto é, desde que cumpram o papel de sacudir a isomorfia do Universo e ao mesmo tempo, o
longe do equilíbrio de Prigogine, acumular partículas em torno de si dando forma a cada coisa.
As tribos xamânicas do México, da Sibéria até os alquimistas europeus e orientais
desenvolveram técnicas de magia a base das ciências particulares, pois o que é a magia se não,
na fantasia, a manipulação dos elementos e substâncias energizadas - prótons, elétrons, fótons,
méons, neutrons, bósons, onons - usando como condutor o próprio corpo do mágico?
Possibilidades que, como a reversabilidade atesta, não importa se nos precederam, mas que suas
existências são possíveis, e sendo, mesmo que incríveis, são comprovadas.

Em Kimetsu No Yaiba, muitos são os personagens que cedem ao lado demoníaco do arquivilão
Muzen Kibutsuji apenas por terem medo da morte, da necrose, do apodrecimento do Ser, e
buscam uma imortalidade sofrível. Shinobu Kocho, ao se aproximar de Zenitsu em sua luta
contra um dos demônios aracnídeos, mesmo após derrotá-los, mas estar praticamente certo de
sua morte pois fora envenenado e, quando o veneno surtir completamente efeito, ele se
transformará em um aracnídeo medonho como ele, jamais esmorece, está deitado, mas aguenta
um peso de supino resilientemente, e ele a escuta, com suas frases sorridentes "É só uma teoria,
mas dizem que o motivo da vida passar por nossos olhos próximo da morte, é porquê buscamos
uma forma de nos manter com ela através de todas as experiências e vivências que valorizamos
na existência em nossa memória."

Assim, ele suga todo o tutano da vida, renitentemente lambe cada uma das partes em que ela é
mais saborosa, perto do osso. Zenitsu se revitaliza após a administração de uma das injeções de
Shinobu, e se agarra às suas memórias, pois são o registro de sua existência, da qual um dos seus
fragmentos constitui o fato dele ser um discípulo da tradição marcial e pneumática ancestral de
um ancião da região do país, e extremamente respeitado e cultuado. Por quê ele? Por quê ele o
escolhido? Tais interrogações acometem-no como um náufrago que, à deriva de um barco, o leva
à uma ilha deserta, ou de uma balsa, o leva ao Euphrates e lá ele enfrenta dubitáveis
acontecimentos que desafiam sua razão de Ser, ou em outras palavras, "Por quê sou o escolhido
para transmitir os conhecimentos dessa tradição às gerações futuras? Eu, o medroso?! Eu, o
deslocado, marginalizado, órfão, que sequer deveria ter nascido!" e então descobre que a
capacidade de legar conhecimentos é o que pode encurtar os graus da geneologia, de um
miserável espécime sob a tutela de um riquíssimo e culto espécime, de forma que o gent possa
ter seus laços desatados e logo após atados novamente, mas suas juntas, agora que foram
cortadas, podem ser reconectadas, e isto significa que podem ser conectadas à qualquer um,
como um novelo de fios vermelhos à um novelo de fios azuis.

O porquê de, mesmo tomando tantas adversidades e certo de que naturalmente seria derrotado,
mas ainda assim Zenitsu vence pode ser explanado pela lógica de Arnold Toynbee, que escreve
"A história não se pode basear no modelo das ciências naturais porquê as ações humanas não
são uma causa mas um desafio, e suas consequências não são um efeito mas uma resposta. A
resposta a um desafio não é invariável, e desse modo a história é inerentemente imprevisível."
Zenitsu

Martin Heidegger, em Einführung in die Metaphysik escreve "Porque o Homem é produto de


sua História, a pergunta deve ser adaptada ao seu curso, e a forma 'O que é o homem?' deve ser
convertida em 'Quem é o homem?" e que humano desejamos matar quando nos matamos? Que
espécie é essa que coloca a si mesma na lista vermelha de extinção? Após o advento da televisão
e dos filmes de kaiju e tokusatsu inaugurarem as artes televisivas coloridas, Akira Kurosawa
estava desiludido ainda mais com o fracasso comercial que teve com Dodeskaden, e em 1970,
cortou a si mesmo trinta vezes em uma tentativa de suicídio. Yukio Mishima, após sua tentativa
de ressurgência patriótica ter sido recusada pelo seu próprio povo, comete o harakiri, lamentado
com a ausência de ressonância dos seus ideais. Viver por definição é precisar se adaptar, mas
quando essa adaptação exige que você deixe de ser o que era e tanto gostava, não é considerado
um "identicídio", um assassinato de sua personalidade? Tal constatação implica que sua própria
personalidade passada não é mais necessária para viver, e sendo assim, é bom viver? Para
Kurosawa, a adaptação exigida para viver nesta transição era o dele ter de parar de filmar em
preto e branco, seus clássicos como Ikiru, Rashomon, Os Sete Samurais, Yojimbo, a essência
deles precisaria ser transformada para continuar sendo um cineasta, e para Mishima, tudo o que
mais significava para ele, a militância, o patriotismo, o culto ao corpo como metáfora do trabalho
dedicado ao espírito, não era mais considerado um código de honra necessário a continuar
vivendo para o Japão moderno. As adaptações exigidas pela vida - em sociedade -
frequentemente pedem que o nosso Eu seja descartado, pois não é mais necessário para viver,
mas sendo assim, que vida é essa que precisamos nos adaptar para viver jogando fora a nossa
própria razão de viver? Posso chamar isso de Antropometria da raison d'etrê, pois antes de
estudarmos o Ser Humano, é preciso interrogar de que humano estás a falar?
Zenitsu sofre de narcolepsia, depressão, imunodeficiência emocional, complexo de inferioridade
e, o mundo externo para ele é insuportável, considerando que nada se revela como positivo à ele.
Graças a isso, relevamos os pontos em que o seu mundo interno, o seu inconsciente age sobre
suas ações. O mundo inconsciente é o mundo onírico, e podemos destacar algumas visões de do
que se trata afinal os sonhos.
A primeira reúne várias interpretações da psicologia, a freudiana entende que os sonhos são o
espaço onde o recalque, o repreendido se manifesta, a lacaniana por sua vez entende que os
sonhos são onde a ausência, o que o indivíduo não fez mas deseja muito fazer - ao contrário do
que Freud postula, de que o indivíduo deseja por essência repetir algo que já praticou ou que lhe
foi praticado - se manifesta.
A segunda é a chamada de Teoria da Consolidação da Memória. Acredita-se nesta que os sonhos
são apenas reencenações de eventos passados. Nós consolidamos as memórias durante o sono, e
os sonhos seriam o reflexo disso. Há certas evidências de que sequências específicas de
atividades neurais enquanto estamos acordados se repetem quando estamos a dormir, mas se isto
é síncrono aos sonhos, é incerto.
A terceira é a chamada Teoria da Simulação de Confrontos. Esta postula que os sonhos são um
dispositivo ancestral ativado como mecanismo de defesa, que nos habilita a praticar treinos de
sobrevivência e aperfeiçoar nossas habilidades de luta. Essencialmente, ele provém ao sonhador
um ambiente de realidade virtual no qual ele pode evoluir os seus pontos de habilidade como
sobrevivente, muito semelhante a um videojogo.
A quarta é chamada de Teoria da Ativação de Sínteses. Nesta os sonhos são cordas de memória
dispersas e embaraçadas randomicamente jogadas no nosso inconsciente e, sendo assim, isso nos
provoca ímpetos para conectá-las ao nosso gosto, construindo epifanias e mapas de nossas
descobertas afim de nos entreter com as inúmeras maneiras de combiná-las e recombiná-las.
A quinta é chamada de Teoria da Empatia. Nesta os sonhos não evoluíram com nenhuma função
em particular, mas podem ganhar uma quando compartilhadas com outras pessoas, assim
descobrindo o que ambas as pessoas tem em comum com a partilha onírica. Os sonhos, portanto,
teriam o sentido de construir pontes com as pessoas, de desenvolver empatia com elas. "Pessoas
com sonhos em comum, objetivos em comum..."
A sexta é chamada de Teoria da Regulação Emocional. Nesta os sonhos dizem respeito a história
pré-histórica como conhecemos de nossas emoções, ou seja, eles são frutos de nossos
sentimentos, e quando os adentramos, devemos aproveitar as oportunidades de desenvolver
meios de lidar melhor com a regulação e controle de nossas emoções. "Antes de manusear sua
espada, terás de manusear suas próprias emoções"
Por últimos, temos a Teoria dos Homunculus de Penfield. Para o neurocirurgião Wilder Penfield,
há homunculus, isto é, pequenos homens no nosso corpo, inclusive na nossa mente. Cada um dos
nossos sentidos, tato, olfato, audição, visão, dentre outros, ocupa grande capacidade nossa
mentalmente para a realização de suas funções com o atual poder que usamos do nosso cérebro.
Contudo, para Penfield cada um de nossos órgãos é na verdade uma versão menor de nós
mesmos projetada por nós, e expandindo isso em um espectro maior, as células, os neurônios, as
partículas são também homens como nós mas menores do que nós. Os sonhos, portanto, seriam
conversações com o povo pequenino de nós mesmos. Nos encontros que fazemos com nosso
povo pequenino, descobrimos grandes mistérios e segredos porque estamos, na realidade,
conversando com os microcosmos em constantes supernovas de nós mesmos.
Invés de selecionar - e logo excluir - apenas uma dessas teorias, opto por abraçar todas elas para
analisar antropologicamente Zenitsu. Antropologicamente, sim, mas retomo a questão em aberto
anteriormente, que humano, que antropo estás a falar? À Gabriel de Tarde, em Monadologia e
Sociologia, "o Ser Humano não se define por nenhuma essência, ou por qualquer figura de
transcendência; em vez disso, o que o define é uma posição ou uma perspectiva: o mundo
humano é o único que nos é conhecido de dentro. Assim, quando se diz que a matéria é sólida, é
como se dissesse que ela é indócil; é uma relação dela a nós e não dela a ela, apesar da ilusão
contrária, que especificamos desse modo, tanto pelo primeiro atributo quanto pelo segundo."
Em outras palavras, se trata de um ponto de vista, uma visão partindo de um ponto em que estás
posicionado. Por isso, é muito frequente para um humano desumanizar a condição do outro,
dizer que um pobre, um negro, qualquer um que lhe seja diferente de sua condição e de sua
identidade, não seja humana, pois ele centraliza a si mesmo como sua espécie. Entretanto, como
o próprio De Tarde escreve "existir é diferir".
Zenitsu é um personagem que não bastaria ele não ter nada de especial, o que ele tem de
realmente especial é o fato de não acreditar que possui nada de especial. E a crença, como Pascal
postula em Pensées, não se opõe aos sentidos, ela os acompanha estando acima deles. Quando
nossos sentidos são comprometidos por patologias, transtornos, complexos, síndromes, o
indivíduo chega a um estado de autoimunidade, ou seja, seus sentidos não mais se relacionam
com ele como deveriam, se não quando simplesmente não mais se relacionam com ele. O
indivíduo se isola de seus próprios sentidos, e o "corpo sem órgãos" de Guattari e Deleuze ganha
uma ressignificação. Mais do que isso, se retraduzirmos o termo autoimunidade para o inglês, e
logo para o vocabulário junguiano, adquirimos o self-imunity, em outras palavras, a imunidade ao
self, a capacidade de apercebermos de nós mesmos, de nossa consciência, de nossas sombras e
reconhecer nossa própria presença perdida. Na física, indiretamente à ordem da comunicação, o
que permite que uma molécula ou um organismo responda aos sinais mesmo com a ausência dos
receptores necessários é justamente a ordem das comunicações. Imaginemos um ponto de
comunicação A e um ponto de comunicação B no organismo. O ponto A é incapaz de detectar os
sinais do ambiente por conta própria, é função do ponto B, portanto, captar os sinais do ambiente
e retransmitir, converter eles em sinais compreensíveis ao ponto A por via de segunda ordem, ou
seja, em sinais que o A esteja equipado apropriadamente para recebê-los. O ponto A começa a
responder aos estímulos, às mudanças do ambiente a partir das intervenções do ponto B.
Biologicamente chamamos esses processos de endocitose e de exocitose, o ato de captar e de
expelir substâncias seja diretamente ou através de intervenções de um segundo agente. Toda
partícula possui sede e fome, basicamente, a própria água, se não possui sais minerais o
suficiente, quando ingerida "bebe" de quem a ingeriu sugando os seus sais minerais, e doravante.
Todavia, quando o indivíduo não possui sentidos para se orientar, o que resta a ele é a fé. Que fé
é essa que move Zenitsu, um homem tão desencorajado, tão sem autoestima e valor de si? Como
Jacques Rancière postula na sua aisthesis, quem vê não sabe que vê. Desde a caverna de Platão
até a proporcionalidade que investe na existência de mundos maiores e menores que o nosso e
tão semelhantes nos sistemas com o nosso, o que poderia ser sintetizado no aforismo "para o
inseto, o nosso mundo é maior do que é para nós; para nós, decerto o Universo é muito maior
do que é para quem vive além dos seus limites e reconhece que não se trata de Universo, mas de
pluriversos". Não se trata, porém, de reconhecer que há criaturas maiores do que Zenitsu, mas
que Zenitsu é maior do que as criaturas inferiores que ele e que, mesmo havendo maiores do que
ele e mais fortes, ele pode superá-las assim como um corpo em nível molecular, tal um vírus, que
pode devastar uma população, um exército de colossos inteiro. Ou como De Tarde escreve "não
são as sociedades que são como os organismos, mas são os organismos que se tornam
sociedades, havendo sociedades atômicas e astronômicas, celulares e orgânicas, como existem
sociedades de indivíduos públicos e massas, cada qual animada por forças psicológicas, por
'forças da alma', devendo por isso ser sociologicamente consideradas." Quando Zenitsu
adormece e seus sentidos se separam do seu corpo, ele acessa seu inconsciente e é movido
independente de sua razão e ciência, seu elemento, o raio, o eletrônico se une ao psicônico, assim
como, nas visões de Jeremy Narby o kundalini, a serpente cósmica, a cobra que acompanha
Gilgamesh em sua epopéia e a que está a espreita de Adão e Eva no Éden se une às hélices
duplas do DNA que remetem à imagem serpentina, do serpentário entrelaçado, ou para Carlos
Castaneda, em A Erva do Diabo, as alucinações como pontes a mundos microscópicos e
macroscópicos equivalentes ao céu e inferno.

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