Você está na página 1de 7

Jair Barboza

O acerto de Schopenhauer e
a compaixão com os animais
Schopenhauer (1788-1860), através da sua obra
principal O mundo como vontade e como representação (trad.
Jair Barboza. São Paulo: Editora Unesp), ainda hoje
exerce forte impacto sobre o pensamento ocidental. En-
contramos em sua obra uma contraposição à tradição
consagrada da filosofia, especialmente quando ele critica
a assim chamada razão instrumental, que considera a na-
tureza como um mero objeto de manipulação. Ademais,
alterou radicalmente a forma como o ser humano vê a si
mesmo e ao mundo em redor, pois com ele se dá a des-
coberta do inconsciente e de um fundo irracional na raiz
das coisas, tornando a faculdade de razão secundária. A
grande instância de partida do conhecimento e foco de
todo o pensamento ético do autor passa a ser o corpo e o
sentimento. Influenciou com a sua própria psicologia do
inconsciente, ligada à sua filosofia, todo um leque de es-
critores como, dentre outros, Machado de Assis, Au-
gusto dos Anjos, Nietzsche, Freud.
A principal característica da sua filosofia, rica em
[1]
observações tanto sobre a natureza exterior (cosmologia)
quanto sobre a interior (psicologia), é a constatação de
que o íntimo do nosso ser e do mundo não é luminoso,
nem racional, nem é uma obra divina, mas é uma ativi-
dade cega e volitiva, obscura, irracional. O mundo, dessa
perspectiva, não tem lógica – e é difícil compreender
porque ele existe povoado com tanto sofrimento. A essa
essência puramente irracional o filósofo nomeia “Von-
tade de vida”. Noutros termos, tudo no mundo quer ir-
racionalmente viver, quer alcançar a vida, “a vida quer
viver” como se ouve no belo filme A excêntrica família de
Antônia de Marleen Gorris (o qual indico enfaticamente).
Por conta da própria natureza dessa Vontade irracional,
que crava os dentes na própria carne, “toda vida é sofri-
mento”.
Essa Vontade de vida cósmica não se diferencia no
ser humano, no animal, na planta, na pedra, mas é uma
única e a mesma, indivisa em toda a natureza.
No entanto, justamente por estar inteira e indivisa
[2]
em cada ser, surge daí, diz o filósofo, o colossal egoísmo
e a guerra de todos contra todos, pois cada indivíduo
sente-se o centro do cosmo, cada espécie sente-se a única
com pleno direito a territórios. É a ilusão da pluralidade,
o outro como potencial inimigo. Assim, quem é humano
muitas vezes abre um abismo intransponível entre o seu
“eu” e o eu de outrem. Resulta desse teatro trágico da
existência aquilo dito por Hobbes: o homem é o lobo do ho-
mem.
Ora, o pensamento de Schopenhauer confere des-
tacado lugar em suas páginas a uma ética não-antropo-
cêntrica, gérmen de uma consistente ética animal. A sua
ética, exposta por exemplo em Sobre o fundamento da mo-
ral (trad. Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Martins Fon-
tes), investiga o sentido da boa ação, para concluir que
ela é justamente a ação da pessoa desinteressada, que não
procura satisfazer desejos próprios nem almeja recom-
pensas pelos seus atos, precisamente porque a ação de-
sinteressada anula o egoísmo e as pretensões muitas vezes
[3]
megalomaníacas e vaidosas do eu.
E a única ação que de fato resultaria do total desin-
teresse pessoal seria aquela impulsionada pelo senti-
mento de compaixão. É este que anula a ilusão da dife-
rença abissal entre os indivíduos. Quando alguém sente
compaixão, não importa quem esteja sofrendo à sua
frente, é impelido a agir e a ajudar. Testemunhos disso,
pensemos, são os casos cotidianos de pessoas que, ao se
depararem com um ser em apuros e sofredor, põem em
risco a própria vida com o exclusivo objetivo de salvá-lo,
mesmo sem o conhecerem. A cidade de São Paulo, ina-
creditavelmente pródiga em enchentes, fornece vez ou
outra matéria para os jornais noticiarem como este ou
aquele desconhecido atirou-se num córrego ou numa rua
tomada pela enchente, com o fim de resgatar, mesmo
correndo risco de morte, quem estava preso a um carro
ou sendo carregado pelas águas ou desesperado em cima
de uma laje etc.

[4]
Na ética da compaixão, este sentimento é extensí-
vel aos animais. No meu entendimento, essa extensão é
um acerto, pois um indivíduo de bom coração não ajuda
apenas o vivente humano, mas também o vivente não-
humano. Nas caudalosas e perigosas enchentes, também
agem de maneira elogiável aqueles que não esquecem os
bichos.
Assim, penso que a ética de Schopenhauer corrige
o erro da ética de Kant, que considerava os animais como
“coisas”, isto é, meios para fins. Ao contrário, para além
de coisa, um animal pode até mesmo sentir compaixão
por um companheiro de espécie. Basta mencionar o caso
daquele cachorro chileno que tenta remover da rodovia
um outro cachorro que acabara de ser atropelado.
Assim como o “racismo” não é mais aceitável e
houve toda uma luta durante séculos para desconstruí-lo;
assim como o “sexismo” não é mais aceitável e a emanci-
pação das mulheres é um fato inconteste – que, aos pou-

[5]
cos, torna o homem o sexo frágil –, talvez chegue o mo-
mento em que, sem espanto, possamos chamar os ani-
mais de “pessoas”. Com isso, entraria na ordem do dia a
questão do “especismo”: a ilusão de que só a espécie hu-
mana tem valor e dignidade. As coisas seriam menos
ruins no mundo: afinal, um mundo em harmonia com os
animais e com a natureza é um mundo pacífico. Não há
porque nos envergonharmos nem sentirmos medo do té-
dio num mundo em paz. Paz e ócio podem ser criativos;
diferentemente, a violência é desesperadora e castradora
para quem vive em comunidade. Eis aí um grande e difí-
cil aprendizado, mas válido, pois como diz o vate, “tudo
vale a pena quando a alma não é pequena”.

O Estado de São Paulo, 18/04/2012

[6]

Você também pode gostar