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Nelson Rodrigues

AOS BEIJOS E
SO L U Ç O S
Aqui mesmo, se não me engano, escrevi sobre a
religiosidade profunda do Brasil. Examinem todos e cada
um. O brasileiro, inclusive o nosso ateu, é um homem de
fé. Conheço vários marxistas que são, ao mesmo tempo,
macumbeiros. E um povo que pode conciliar Marx e Exu
está salvo e, repito, automaticamente salvo.
Imaginem vocês que, outro dia, passei na casa de um
ateu patrício. É uma excelente figura de marido, pai,
funcionário e rubro-negro. Mas esse meu amigo só fala aos
berros, como o Salim Simão. E seu bom-dia, como o de
Salim Simão, é um soco nos tímpanos.
Coisa curiosa! Gosta de parecer um anticristo. Na
noite em que o visitei, desabou uma tempestade. Legítimo
mau tempo de quinto ato do Rigoletto. Costumo dizer que a
grande tempestade é a de ópera. A orquestra imitando
trovão convence mais do que o próprio trovão. E nenhum
raio, por melhor que represente, assusta mais do que um
relâmpago de curto-circuito.
Justamente, parecia uma tempestade de palco. Todos
os presentes rilhavam os dentes de pusilanimidade.
Quando vi a dona da casa benzer-se, bem a entendi. Não há
ocasião mais própria para um arroubo místico do que um
toró. Sei de conversões ocorridas em temporais
desvairados. E, por um momento, imaginei que o mau
tempo ia precipitar aquele ímpio, aquele desalmado nos
braços do Eterno. Pelo contrário. De repente, um raio
estala e quase nos fuzila. A dona da casa enfiou-se debaixo

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da mesa. E foi esse o momento escolhido para as
blasfêmias do ateu. Ele urrou, no meio da sala, trepado
numa cadeira, como um Antero de Quental. Esganiçava as
gargalhadas. Do seu lábio pendia a baba elástica e bovina
da impiedade.
Ninguém se indignou, ali, e explico: – são
obviamente incompatíveis o pavor e a indignação. Graças a
Deus, a tempestade sumiu como veio, de repente. Mais uns
quinze minutos, e o céu limpou. Fui espiar da janela. Vi,
“pálido de espanto”, como no soneto, estrelas jamais
concebidas. Voltei para a sala, exausto do meu terror. O
ateu arquejava, ainda, do riso torpe.
E, súbito, o caçulinha começa a chorar. Os donos da
casa se arremessaram. Primeiro, a mãe e, depois, o pai
carregaram o menino. Mas não houve colo que o calasse. A
tia solteirona já pensava em leucemia. E o caçulinha
berrava com um brio inexcedível. Súbito, o pai desatinado
é atravessado por uma luz; soluça para a mulher: – “Faz
aquela simpatia! Faz aquela simpatia!”. Ou a própria mãe,
ou a tia, cola na testa do menino um algodãozinho
molhado.
Houve, então, nas barbas estarrecidas da família, o
suave milagre. Efeito fulminante da simpatia. A criança
parou de chorar, instantaneamente. O pai, eufórico,
gabava-se: – “Não disse? Não disse?”. Vira-se para mim e
pisca o olho: – “Tiro e queda! Não falha!”.
E, então, vi tudo. Aquele era o único ateu que eu

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conhecia na vida real. Blasfemara contra o raio. Mas
bastou uma dor de barriguinha para que ruísse, em cacos,
todo o seu ateísmo. E assim a fé do brasileiro assume as
formas mais imprevisíveis e, até, cômicas. Ao menor
pretexto emocional, aquele ateu de papelão há de acreditar
até em Papai Noel.
Mas estou-me perdendo no acessório e esquecendo o
essencial. Eis o que eu queria dizer: – se eu fosse
marxista ou pertencesse a qualquer ramo das nossas
esquerdas, estaria, hoje, num pânico profundo. Profundo e
justificado. É que todos os jornais abrem manchetes deste
teor: – “Negociações de paz iniciam-se em Paris”. Por se
tratar de um fato catastrófico, o jornal devia pingar-lhe um
apavorado ponto de exclamação.
Repito: – se eu fosse uma flor das esquerdas,
estaria recorrendo a simpatias, como o ateu da dor de
barriguinha. Sim, estaria apelando para o Sobrenatural.
Iria até à macumba para frustrar essa paz amaldiçoada. O
leitor há de perguntar, com a sua crassa e ignara
ingenuidade: – “Mas por quê?”.
Vamos lá. O Vietnã pode ser guerra para todo
mundo, menos para as esquerdas brasileiras. Para as
nossas esquerdas, o Vietnã é um meio de vida. Há sujeitos,
aqui, que vivem do Vietnã. Não só os intelectuais, não só
as grã-finas, não só os estudantes. Conheço um alfaiate
que se tornou um próspero alfaiate porque vocifera como
um vietcong. Aí está dito tudo: – ninguém consegue ser

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um bom alfaiate sem xingar os Estados Unidos por conta
do Vietnã.
Vejam que invejabilíssima situação: – o sujeito
daqui, sem arredar pé do Antonio’s, ou da praia, sem
correr o menor risco e, ao mesmo tempo, fazendo poses e,
repito, fazendo quadros plásticos contra os norte-
americanos. É o patético, raiando pelo sublime. Há, entre
nós e o perigo, toda uma sábia e inexpugnável distância.
Por causa do Vietnã, o sujeito faz artigos dominicais,
arranja namoradas, passa por inteligente, moderno,
libertário etc. etc. Ir ao jogo Fluminense x Vasco é mais
arriscado para nós do que essa guerra admirável.
E, súbito, vem a manchete e diz que Washington e
Hanói começam as discussões de paz. É o que eu chamaria
de ameaça de desemprego em massa. Vamos rezar para
que fracassem os entendimentos; e que a guerra continue
até o fim da nossa geração. Mas se, por fatalidade,
Washington e Hanói chegarem a um acordo e caírem nos
braços um do outro, aos beijos, aos soluços, que faremos
nós? Cada época vive de uns tantos assuntos obrigatórios e
fatais. O Vietnã é o grande assunto do nosso tempo. Hoje, o
nosso berro, o nosso gesto, a nossa ênfase, o nosso
palavrão, as nossas pequenas, a nossa retórica –
dependem do Vietnã.
Ou por outra: – todos dependemos do que se esconde
por trás do Vietnã, ou seja, o ódio aos Estados Unidos. O
Vietnã não interessa a ninguém, a não ser como pretexto

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para o ódio. Mas imaginemos um mundo sem o Vietnã.
Hanói e Washington concordam, fazem a abominável paz.
Cessam os bombardeios. Nem mortos, nem feridos, nada.
Eis as nossas esquerdas esvaziadas. E tendo que vagar,
por entre mesas e cadeiras, sem função e sem destino. Por
outro lado, d. Hélder e dr. Alceu terão que aturar,
novamente, o abominável Sobrenatural.
[15/5/1968]

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