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Nelson Rodrigues

Um Corção
jamais suspeitado
Pode parecer uma verdade exagerada, violentada,
mas eu diria o seguinte: — no Brasil, a glória está mais
no insulto do que no elogio. Se não me entendem, paci-
ência. Mas ouçam uma boa e honrada conversa de brasi-
leiros com brasileiros. Reparem como nós cochichamos
o ditirambo e berramos o ultraje. Por coincidência, só
ultrajamos os melhores.
Eu diria ainda que a nossa reputação é a soma dos
palavrões que inspiramos nas esquinas, salas e botecos.
Bem me lembro do dia em que Roberto Campos deixou
o Poder. Já escrevi que o verdadeiro contínuo é o ex-
ministro. E queria me parecer que Roberto Campos ia
ser, como tantos, um dos contínuos sem uniforme da Re-
pública.
Todavia, há coisa de um mês, entro num sarau de
grã-finos. Num grupo, discutia-se o ex-ministro. E um
dos presentes, chamado a opinar, largou um palavrão que
eletrizou as senhoras próximas. Foi uma cena atroz. O
sujeito sapateava como em transe mediúnico. Do seu lá-
bio pendia a baba elástica e bovina do homicida. Disse e
repetiu: “Dava-lhe um tiro! Dava-lhe um tiro!”.
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E, então, subitamente, percebi que Roberto Cam-
pos era um falso defunto político. Um simples palavrão
deu-me a medida de sua vitalidade histórica. De mais a
mais, o sujeito gostaria de matá-lo. Eis a verdade: — as
fantasias homicidas perseguem os estadistas. Ninguém
quer fuzilar os idiotas do Estado, os cretinos do Poder.
Outra figura brasileira consagrada pelos palavrões:
— Gustavo Corção. Ninguém diria, de maneira sucinta
e inapelável: “É uma besta!”. Bem que as esquerdas gos-
tariam que o fosse. Mas os seus piores inimigos sabem, e
não teriam o cinismo de negar, que Gustavo Corção é
uma das inteligências mais sérias do Brasil. Certa vez
aconteceu-me uma passagem extraordinária com o
grande pensador católico.
Era domingo. Voltava eu, não sei se de um clássico
ou de uma pelada. Na saída do Estádio Mário Filho, al-
guém me chama. Volto-me e dou de cara com um amigo,
uma flor das esquerdas, um doce radical como o Antônio
Callado ou como o Hélio Pellegrino. Eu e o amigo cami-
nhamos no meio da torcida. Acontecera um empate e
ninguém gritava. A multidão tinha algo de tristeza fluvial
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no seu lerdo escoamento. Então o meu companheiro fa-
lou: — “Estou besta! Com a minha cara no chão!”. Pen-
sei que ele, Fluminense como eu, estivesse desiludido
com o Tricolor (realmente, o meu clube não compra nin-
guém). Mas ele continuou: — “Nunca pensei que o Cor-
ção...”. Fez uma pausa e repetiu: — “Estou besta!
Besta!”.
Entre parênteses, esse meu amigo tem, pelo Cor-
ção, um ódio comovente. Não lhe diz o nome sem lhe
acrescentar... Acrescentar, não. Não lhe diz o nome sem
lhe antecipar um palavrão. Chega ao nome pelo palavrão.
E, súbito, falava do inimigo com uma empostação dife-
rente e, mesmo, inédita. Perguntei-lhe: — “Mas estás
besta por quê?”.
Esquecia-me de dizer que o meu amigo levava um
radinho de pilha. Abriu uma pausa na conversa para ouvir
os comentários do João Saldanha e as gravações dos gols.
Só depois do Saldanha é que voltamos ao Corção. Rádio
desligado, e o outro me perguntou, na sua impressão
profunda: — “Leste o artigo que ele escreveu? Que es-
creveu sobre o filho? Ó rapaz! O artigo do Corção sobre
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o filho?”.
Não era um artigo do dia ou da véspera. Da sua pu-
blicação, transcorrera toda uma semana. E, através dos
sete longos dias, o artigo do Corção ficara badalando den-
tro do meu amigo como um sino inexorável. Membro da
“festiva”, freguês do Antonio’s, havaiano de praia, relera
o inimigo umas quinze vezes. E a cada leitura a sua per-
plexidade era cada vez mais amarga. Súbito, via um novo
Corção, um Corção jamais suspeitado, um anti-Corção.
Vejam vocês: — o grande prosador escrevera uma
página sobre o filho, Rogério. Foi um artigo de funda e
dilacerada ternura. O nosso Rogério estava no Vietnã,
como um dos representantes do Brasil. Lá, as balas não
escolhem, não discriminam, e tanto estouram a cara do
americano como do brasileiro. E havia no artigo todo um
amor insuportável e uma solidão desesperadora.
O assombro do meu amigo tinha a sua lógica. Du-
rante anos, criara e recriara, dia após dia, uma imagem
hedionda do “reacionário”. Ele imaginava que, se o Cor-
ção passasse a mão pela face, havia de sentir a própria he-

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diondez. Nunca lhe ocorrera que aquela besta-fera pu-
desse ter costumes, usos, gestos, como outro qualquer.
Impossível um Corção tomando cafezinho ali na esquina;
inadmissível uma gargalhada do Corção, ou um assovio
do Corção. E aquele Corção pai, simplesmente pai, e
simplesmente terno, e simplesmente infeliz, e simples-
mente órfão do próprio filho, contrariava toda uma ima-
gem feita de palavrões, de insultos, de baba.
Mas vejam toda a operação psicológica do meu
amigo. A princípio, não entendera uma palavra, tão des-
conhecido, tão estrangeiro, tão alienado parecia aquele
Corção vergado, sofrido, perdidamente solitário. Só de-
pois é que, limpando a figura dos palavrões, dos ultrajes,
das calúnias, é que o freguês do Antonio’s pôde chegar à
luz última e verdadeira do inimigo.
Por fim, quem estava infeliz, na volta do Estádio
Mário Filho, era o membro da “festiva”. A partir daquele
momento, os seus palavrões soariam falsos aos próprios
ouvidos. O meu amigo estava comovido e, pior, furioso
com a própria comoção.
E então chegou a minha vez. Não me lembro de
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tudo o que disse de Gustavo e de Rogério. O esquerdista
ouvia só, numa desesperada impotência para negar a ima-
gem que eu ia elaborando de Corção. Expliquei-lhe que
tudo em Corção é amor; poucas pessoas conheço com
tanta vocação, tanto destino para o amor. O que parece
ódio, nos seus escritos, é ainda amor. Amor que assume
a forma das grandes e generosas procelas.
Bate forte, muitas vezes. Mas sempre por amor.
Está fatalmente ao lado da pessoa e contra a antipessoa.
É a luta que o apaixona. Todos os dias, lá vai ele atirar o
seu dardo contra as hordas da antipessoa. Eis o que eu
repeti para o meu amigo das esquerdas: — o Corção tem
um coração atormentado e puro de menino.
Quem o sabe ler, percebe em todos os seus escritos
o pai de Rogério, sempre o pai de Rogério, querendo
salvar milhões de filhos, eternamente.

[O GLOBO, 7/3/1968]

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