Você está na página 1de 4

Verdades incômodas sobre o mercado de tradução

Andy Schmid – Tradutor Profissional

O mercado de tradução é um domínio extremamente complexo, com vários problemas que


não são muito óbvios para quem procura uma tradução profissional pela primeira vez, e, às
vezes, mesmo para clientes calejados nesse mercado. Neste artigo, pretendo mostrar ao
amável leitor algumas armadilhas do mundo real do mercado da tradução.

SITUAÇÃO ATUAL DO MERCADO DE TRADUÇÃO


O aumento da demanda por serviços de tradução no século XX foi condicionado pelo
desenvolvimento do comércio internacional e pelo aumento do intercâmbio cultural entre os
países.

Porém, a lentidão dos meios de comunicação e a natureza da demanda por serviços de


tradução eram as principais razões pelas quais as traduções eram feitas por tradutores
internos/autônomos que trabalhavam em editoras, órgãos públicos ou grandes empresas.

OS SERVIÇOS DE TRADUÇAO NA ERA DA INTERNET


O verdadeiro potencial da tradução para os negócios foi descoberto apenas com o surgimento
da Internet.

O processo acelerado de globalização e a quantidade cada vez maior de conteúdo que precisa
ser traduzido gerou um aumento inacreditável do mercado mundial de tradução, que atingiu
US$40 bilhões em 2016 (https://www.gala-global.org/industry/industry-facts-and-data).

Hoje em dia, a tradução é usada para atingir públicos estrangeiros e fazer contato com novos
clientes do mundo inteiro. Em outras palavras, a tradução pode ser uma ferramenta incrível de
desenvolvimento de negócios quando usada da maneira certa.

Não causa espécie o surgimento epidêmico de várias empresas de tradução que oferecem
serviços para empresas, reúnem tradutores em equipes e realizam tarefas administrativas e de
gestão para garantir o processamento de vários projetos de tradução em vários idiomas.

Por outro lado, agora que quase todos têm conexões relativamente baratas e confiáveis à
Internet, muitos tradutores autônomos podem vender seus serviços na Web por meio de sites,
ou usando portais de tradução como o Proz ou o Translators Café, ou em redes sociais de
tradutores, como The Open Mic.

Porém, as duas situações acima geram duas grandes desvantagens:

1) Muitas agências de tradução que aparecem no mercado (e algumas já veteranas) não fazem
a mínima idéia do que é, na prática, o processo de tradução e aplicam métodos que
desvalorizam o trabalho do tradutor. Elas pegam o fácil atalho de baixar os preços tanto para
os clientes (para resistir à concorrência feroz entre agências) quanto para os tradutores (para
aumentar a margem de lucro). A situação gerada por essa prática é que os tradutores
profissionais simplesmente se recusam a trabalhar por esmolas. Em outras palavras, quem
contrata uma agência de tradução pouco qualificada (administrativamente, tecnicamente e
comercialmente) não pode esperar que a tradução seja feita por tradutores realmente
qualificados.
2) Há muitos autodeclarados tradutores ávidos por trabalhar por qualquer esmola, mas
incapazes de oferecer nada além de traduções ridículas que, muitas vezes (e tenho provas
disso) são traduções “mal maquiadas” do Google Translate.

Alguns clientes mordem a isca e contratam ou uma agência de fundo de quintal que os
convence (não sei como) a comprar “traduções rápidas, de baixo custo e de qualidade” (o que
é impossível), ou contratam um “franco-tradutor” amador até o fundo da alma (calouros ou
segundo-anistas de faculdades de tradução) que não pensam duas vezes em aceitar trabalhos
a R$ 0,02 por palavra.

Infelizmente, muitos clientes não sabem uma palavra do idioma de destino da tradução (cá no
Brasil isso é muito comum) e não têm como avaliar a qualidade das traduções. Agências
desonestas e “franco-tradutores” amadores usam e abusam dessa situação, solapando, com
isso, a autoridade de tradutores e agências realmente profissionais.

Em muitos casos, os clientes só percebem que receberam um “saco de palavras” inútil em vez
de uma tradução quando é tarde demais para tomar qualquer providência (e, quando tomam,
a briga na Justiça assume ares dignos de uma peça de Ionesco – afinal, o ás na manga de
qualquer tradutor incompetente é dizer “isso é uma questão de estilo de texto, não de erro de
tradução”).

Uma tradução porca pode arruinar a reputação de uma empresa, causar prejuízos milionários
(no caso de um erro de tradução num documento jurídico), ou mesmo matar alguém, caso
alguém decida encomendar uma tradução médica por “aquele precinho camarada”.

A ARMADILHA DO MARKETING DA TRADUÇÃO AUTOMÁTICA (MACHINE


TRANSLATION)
As primeiras experiências com a tradução automática remontam à década de 1950. Mais de 60
anos depois, os mecanismos de tradução automática ainda não conseguem concorrer com os
tradutores humanos em termos de qualidade.

Embora a tradução automática tenha progredido consideravelmente, é bem provável que o


amável leitor já tenha visto vários casos de traduções hilárias do Google Translate,
principalmente naquele site de comércio eletrônico Alibaba (Ali Express), e em hotéis
brasileiros que recorrem ao GT para produzir em inglês seus cardápios e outros comunicados
aos hóspedes não-lusófonos.

Portanto, promessas como “A Tradução Neural do Google é quase indistinguível de uma


tradução humana” não passa de truque barato de marketing. Eu concordo que os mecanismos
de tradução automática são capazes de traduzir textos simples sobre assuntos gerais e dar
uma idéia básica do significado do texto original. Aliás, o Google Translate se parece com um
tradutor humano apenas num aspecto: há dias em que ele “acorda de bom humor” e produz
coisas aceitáveis, mas, durante o dia, alguém pisa no calo dele, e o desastre tradutório está
feito.

Seja como for, a tradução automática dificilmente conseguirá gerar um produto decente
quando o texto for técnico, muito especializado ou contiver conteúdo de criação, como um
texto de marketing, publicidade e literatura.

Nesse sentido, é triste demais saber que muitos clientes de tradução, enganados pelos
marqueteiros, usam traduções automáticas em projetos importantes e acabam sofrendo com
erros graves de tradução.
Quem ainda acha que usar a tradução automática em documentos comerciais é uma boa idéia
precisa saber que o próprio Google não usa o Google Translate em seus documentos oficiais.

A VERDADE SOBRE A CADEIA PRODUTIVA DA TRADUÇÃO


Por sua natureza segmentada, o mercado de tradução se subdivide em vários setores que
oferecem serviços de tradução a pequenas, médias e grandes empresas, em vários campos de
conhecimento que vão de turismo, cinema, e comércio eletrônico até medicina, tecnologia e
ciência.

Exatamente por isso, o mercado de tradução acabou criando redes e cadeias produtivas
extremamente complicadas, deixando os clientes diretos longe do verdadeiro coração do
mercado de tradução: os tradutores.

As gigantes mundiais da tradução como a LionBridge, a TransPerfect, a TheBigWord, etc.


recebem pedidos de tradução de proporções astronômicas de clientes também gigantes como
a Microsoft e a Google. Obviamente, eles cobram preços elevadíssimos para pagar as despesas
e ainda ter lucro.

Porém, em muitos casos, essas super-agências não contratam tradutores em regime de


dedicação integral para realizar todas as suas traduções internamente. Nos países
desenvolvidos, os custos de locação de escritórios, salários, impostos, previdência social,
seguros, etc., fazem com que seja caríssimo ter um batalhão de funcionários contratados nesse
regime.

É mais fácil dividir o trabalho entre vários parceiros subcontratados (a rigor, “quarteirizados”)
que atuam em países de menor custo, a fim de oferecer preços mais baixos e preservar suas
margens de lucro. E é exatamente isso que elas fazem.

Seguindo pela cadeia produtiva, os subcontratados dividem o projeto de tradução por par de
idiomas, tipo de conteúdo, etc. e distribuem pedaços diferentes do projeto a empresas ainda
menores localizadas nos países em que se fala o idioma do produto final (poderíamos chamar
isso de “quinteirização”).

Naturalmente, os subcontratados cortam uma parte do custo e oferecem valores ainda mais
baixos a sub-subcontratados (descendo ainda mais, os “sexteirizados”). Finalmente, os sub-
subcontratados recorrem a tradutores autônomos (free-lancers), que finalmente porão a mão
na massa e farão o trabalho.

Sempre é possível descer mais um nível (o fundo do poço sempre tem alçapão), e são famosos
os casos de free-lancers “gulosos” que afirmam aos “sub-subs” serem capazes de aceitar na
tarde de sexta-feira um job de 50 mil palavras para ser entregue na primeira hora da segunda-
feira. Para dar conta da tarefa, esses “gulosos” contam com a famosa rede de contatos,
amigos, colegas de faculdade, para pulverizar o job entre, 10 ou 20 coitados que acabarão
recebendo uma mísera esmola por palavra.

Tudo isso acaba lembrando o famoso marketing multinível, não acham?

Dei um exemplo simples de como funciona a cadeia produtiva da tradução, mas, no caso de
projetos de grande porte com vários idiomas, a cadeia pode aumentar ainda mais. Isso
prolonga as comunicações, piora a troca de informações e reduz ao absurdo as tarifas pagas ao
que é o verdadeiro motor do mercado (o amável leitor já sabe a quem me refiro).
RESUMO:
1. Não recorra a serviços de tradução baratos;
2. Procure saber mais sobre quem fará o seu serviço de tradução antes de contratá-lo
(seja um tradutor autônomo ou uma agência);
3. Procure trabalhar com contratados diretos (ou agências pequenas com pessoal interno
ou tradutores autônomos);
4. Evite intermediários para evitar a espiral de custos;

Espero que, agora, o amável leitor entenda como o mercado de tradução realmente funciona,
e que essas informações ajudem a escolher o tradutor certo para o seu próximo projeto de
tradução.

Você também pode gostar