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SBS - XII Congresso Brasileiro de Sociologia

Nome do GT-17: Sexualidades, Corporalidades e Transgressões


Título do trabalho: A Crueldade do Corpo
Autor(a) Alexsandro Galeno Araújo Dantas

A crueldade do corpo: Antonin Artaud

Alex Galeno*

“Hemos perdido el silêncio y también el grito.”

Ernesto Sábato.

A epígrafe certamente sintetizará o que desejamos tematizar sobre o


poeta Antonin Artaud. Ernesto Sábato convida-nos a uma ética da resistência
diante do atrofiamento dos sentidos e dos dilaceramentos contemporâneos de um
sujeito incapaz de produzir revoltas e esperanças. Perdido numa velocidade
infinita do eterno retorno do mesmo, esse sujeito parece ter capitulado aos
conformismos éticos, políticos e estéticos. Artaud e Sábato convidam-nos a
romper com essa velocidade e com a comunicação tagarela ou ventríloqua da
existência para tocar na vida: “A serenidade, uma certa lentidão, é tão importante
na vida do homem como o suceder das estações e das plantas, ou o nascimento
das crianças.”1 Diz Sábato. Artaud aconselha-nos a recuperar o grito da revolta -
uma revolta que resista às crueldades do mundo, mas não desprovidas de
„ebulições tranqüilizadoras‟ e, simultaneamente, do contágio convulsivo da peste
que conduz o sujeito a uma desordem fundamental das secreções do corpo e da
vida - micróbios inquietos que afetam e se manifestam em todos os lugares e que:
“Desenreda conflitos, libera forças, desencadeia possibilidades, e se essas
possibilidades e essas forças são negras a culpa não é da peste ou do teatro, mas

1
SÁBATO, Ernesto. La resistencia. Barcelona: Seix Barral, 2000. p. 102.
2

da vida. (...) assim como a peste, o teatro existe para (abrir) vazar abscessos
coletivamente”.2 Diz Artaud.
Resta saber se, para o criador do Teatro da crueldade, neste mundo
de frágeis capacidades em possuir e exercer a vida, um mundo em declínio que
está se suicidando sem perceber, existirão sujeitos capazes de resgatar e
experimentar essas evocações, fornecidas por seu teatro para uma outra cultura,
que é, antes de tudo, um protesto: “Antes de retornar à cultura, constato que o
mundo tem fome e que não se preocupa com a cultura; e que é de um modo
artificial que se pretende dirigir para a cultura pensamentos voltados apenas para
a fome. O mais urgente não me parece tanto defender uma cultura cuja existência
nunca salvou qualquer ser humano de ter fome e da preocupação de viver melhor,
mas extrair daquilo que se chama cultura, idéias cuja força viva é idêntica à da
fome.”3
Fome pela arte de viver, na qual a crueldade deve ser servida como
uma grande delícia pelos inocentes seres estarrecidos do planeta, que acreditam
numa ética sem a vampirização mórbida das máquinas de guerras que belicizam e
trituram a vida: a medicina desprovida de alma, as ditaduras tecno-políticas, a fé
cega na tecno-ciência, a devoração desenfreada dos mercados, as artes fechadas
- que separam o belo e o bizarro da vida na criação - e o juízo de deus da
intolerância religiosa. Artaud tinha consciência das gulas devoradoras do homem e
buscou imprimir sua revolta também por uma busca da fecalidade:
“Onde cheira a merda
cheira a ser.
(...)
Então o homem recuou e fugiu.
E então os animais o devoraram.
Não foi uma violação,
ele prestou-se ao obsceno repasto.

Ele gostou disso


e também aprendeu
a agir como animal
e a comer seu rato

2
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Marins Fontes, 1993. p. 25.
3
Idem, p.01.
3

delicadamente.”4
Na sua revolta poética, Artaud contrapõe as imagens de uma
dietética excremental àquelas da ingestão ou da devoração do ser. Como na
trama dos personagens no filme A Comilança5( Marco Ferreri), uma revolta abjeta
pelo apetite do viver estabelece-se e exige que os indivíduos assumam o esgoto
de seus vícios ocultos e liberem seus ratos pestilentos e devoradores. Uma ética
excremental da coisa pública estabelece-se. Para relembrar Michel Foucault, uma
ética da aphrodisia, expressa por atos e contatos que proporcionam uma certa
forma de prazer. Mas será necessário transgredir as idéias morais para se exercer
uma boa relação entre usos (chrësis), domínios e atitudes (enkhrateia) dos
prazeres. Um dos personagens provocadores da aphrodisia, destacado por
Foucault, é Diógenes, da antiga escola dos filósofos Cínicos: “É conhecido o gesto
escandaloso de Diógenes: quando tinha necessidade de satisfazer seu apetite
sexual, ele se satisfazia em público.(...) ele tinha costume de „tudo fazer em
público, as refeições e o amor‟, e que raciocinava assim: „se não há mal em
comer, também não há em comer em público‟.(...) e assim como o cínico buscava
o alimento que pudesse satisfazer o mais simplesmente o seu estômago (ele teria
tentado comer carne crua), também encontrava na masturbação o meio mais
direto de acalmar seu apetite;.”6
É esta fome diogênica que interessa a Artaud - a provocação e a
coragem de mostrar seu osso ao público, quando simulou um ato de masturbação
entre jesuítas, na sua conferência intitulada La decomposition de Paris (Bruxelas -
1937); quando fala das fornicações do imperador sírio, Heliogábalo; na simulação
de um pestilento, na sua conferência sobre o Teatro e a Peste (Sorbonne - 1933)
e nas cenas de incesto e parricídio, na peça Os Cenci.
“Para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um OSSO,
4
ARTAUD, Antonin. Para acabar com o Julgamento de Deus. IN: WILLER, Cláudio. Escritos de
Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 153.
5
FERRERI, Marco. A comilança (La Grande Bouffe). Direção de Marco Ferreri. It-Fr/1973.
Duração: 125 minutos.
6
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. o uso dos prazeres.vol. 2. Rio de Janeiro: Graal,
1998. p.52.
4

é preciso não ter medo de mostrar o osso


e arriscar-se a perder a carne.”7

“Hoje eu sei quem eram os seres que se ocupavam em me degustar.


Porque a degustação oculta do homem, ou de alguns homens, é um dos principais
meios de ação e uma das mais pertinentes ciências que a sociedade se
alimenta.”8
Uma crueldade pelo excesso, não perversa, natural, inocente e
permeada pela potência em possuir a vida. Camille Dumoulié9 destaca que “A
crueldade em Artaud é o equivalente à „vontade de potência em Nietzsche‟: os
dois termos exprimem a lógica <da vida>, ou atribuem à vida uma definição
puramente <lógica>. Uma nova lógica que não obedece às leis da racionalidade
moral, mas que se apresenta, justamente, como a lógica da ética.” Mesmo
aparentemente impossível de ser praticada na organização dos homens, essa
ética da crueldade deve ser buscada, pois para Artaud „crueldade significa rigor‟,
„uma consciência aplicada‟, „uma necessidade implacável‟, que atribui ao ato de
viver „sua cor de sangue‟ e ao teatro uma „linguagem nua‟. Crueldade não significa
sadismo nem derramamento de sangue, no sentido literal e, costumeiramente,
praticado pelas carnificinas e canibalismos humanos. „Não cultivo
sistematicamente o terror‟, afirma o poeta em O Teatro e seu duplo. Para praticar
essa ética, será preciso coragem e capacidade para aceitar o abjeto como
subversão ao terror e à higienização afetiva das relações humanas, será preciso
revisitarmos as memórias olfativas no corpo do filósofo, do cientista, do político e
do artista.
Como afirma Michel Foucault em As palavras e as coisas, Artaud
movimenta-se por impulsos de uma “plasticidade cênica”, onde sempre estão
presentes as tentativas de aproximações entre as vertigens da coisa, da palavra e
do diálogo de si com o outro. Transfigurações. Assimetrias e traços mal definidos.
Rostos retorcidos. Flexibilizações de ossos. Anatomias humanas serradas e

7
Op.cit. p 151.
8
ARTAUD, Antonin. Ouvres Complètes. Paris: Gallimard, 1994. p20. vol. XXVI.
9
DUMOULIÉ, Camille. Nietzsche et Artaud. pour une éthique de la cruauté. Paris: PUF, 1992. p.
25.
5

transformadas em novos corpos. Artaud sempre desejou que as ações de seu


teatro perturbassem os sentidos do espectador. Sobretudo em sues desenhos,
encontram-se as dimensões do tormento e de uma estética que imprime novos
padrões sobre o corpo.

“Meus desenhos não são desenhos, mas documentos,


deve-se olhá-los e compreender o que está dentro,...”10

Corpos contorcidos por anatomias refeitas. Crateras que fazem


obras, afirma Derrida. Resgate de uma encenação da vida e da obra que se
insurge contra o do „principio do desenho‟, ou seja, o savoir-faire da habilidade
linear e próprio das belas-artes. Artaud opera pela inabilidade e pela fúria de um
pensamento selvagem que se esparrama sobre o papel como desenhos tortos,
garatujas, glossolalias pictóricas que fervilham e convulsionam a matéria.
“A verdade da vida está na impulsividade da matéria. O espírito do
homem se torna doente em meio aos conceitos. Não lhe cobro satisfações, peço-
lhe somente para ficar calmo e desejo que ele encontre seu lugar. Mas só o Louco
é calmo.”11
“A pintura linear pura me deixava louco há muito tempo, quando
encontrei Van Gogh que pintava não linhas ou formas, mas coisas da natureza
inerte como em plenas convulsões.”12

Seria calmo aquele que se deixa atravessar por pregos como no


desenho o „O homem e sua dor’? Peitos com mamilos de pregos. Alusões a uma
„violência obstétrica‟(Derrida). Protesto contra o ciclo linear da amamentação
materna? Revolta que expressa sua própria fome durante os momentos de
internamentos?
Germinações latentes que expressam sua própria dor. Impacto de
matérias em fragmentos ou paredes minadas e atravessadas pacientemente (Van

10
ARTAUD, Antonin. Ouvres sur papier. Marselha: Réunion des Musées Nationuax- Musées de
Marseille, 1995.p110.
11
ARTAUD, Antonin. Ouvres Complètes. Paris: Gallimard, 1976. p54. vol. I**.
12
ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 1995. p 263.
6

Gogh)13 pelos tormentos das „lapisadas‟ e das „palavras sopros‟ (Derrida) no papel
ou na tela. Imagens desordenadamente se lançam. Anunciando o vigor de um
Pollock, que excrementava caoticamente a tela com as suas tintas. São as
evocações da lâmina que corta um olho em O Cão Andaluz de Luis Buñuel e
Salvador Dali. São as sonorizações propagadas pelo O Grito, de Edvard Munch;
são os tormentos dos animais e flagelados de Guernica e as desfigurações da
Mulher chorando, de Pablo Picasso, ou seja, “Mulher Chorando com sua agonia
privada, Guernica com sua dor pública.”14
Portanto, Aratud, seria os traços disformes de um sujeito intensivo,
que sondou, talhou, raspou, limou, coseu, descoseu, esfarrapou e costurou carnes
sob a pele. Um fragmento humano ou „testemunho fóssil‟ (Lévi-Strauss), que
representa uma história universal singular de um pensamento que se faz e refaz
nas desordenadas cartografias, traçadas pelas lógicas do CsO- Corpo sem
órgãos. Artaud incorpora o CsO ao declarar guerra às noções que reduzem os
órgãos do corpo a um puro organismo. Desenvolve sua luta contra o organismo
que percebe o corpo como funcionamento meramente biológico e, portanto,
escravo dos ajustes da organização anatômica dos órgãos:
(...) se quiserem, podem meter-me numa camisa de força
mas não existe coisa mais inútil que um órgão.
quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos
então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.15

O organismo é o juízo de Deus, isto é, o funcionamento do sistema


teológico deste juízo. “O organismo já é isto, o juízo de Deus, do qual os médicos
se aproveitam e tiram seu poder.”16 O juízo do organismo institui-se como o
tribunal de julgamento da experimentação do CsO. Um tribunal de justiça que
estratifica as intensidades e as prende numa organizada e perfeita ordem. Esse
tribunal pode ser representado pela psiquiatria, pelo relativismo da ciência, pelos

13
ARTAUD, Antonin. Op. cit. Carta de Van Gogh referenciada por Artaud. p 274.
14
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p212.
15
ARTAUD, Antonin. Para acabar com o julgamento de Deus. In: WILLER, Cláudio. op. cit. p.
161.
16
DELEUZE, Gilles& GUATTARI, Félix. Mil platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. vol. 3.p. 21.
7

preconceitos e intolerâncias dos reacionarismos daqueles que embargam os


fluxos desejantes dos Corpos sem Órgãos.
Tristes rumos, tomaram os órgãos e os sentidos, especialmente, dos
homens de ciência! As palavras transformaram-se em exercícios retóricos, na
comunicação acadêmica. As áreas do conhecimento são fatiadas em gramáticas
herméticas, específicas e não comunicáveis umas com as outras. Disseminam-se
idéias e regras, que determinam a sobrevivência no parque àqueles apenas
capazes de aprenderem a conjugação de seus verbos e a deglutição dos
conceitos. Como observa Micehel Serres:
“Muitas filosofias referem-se à vista; poucas ao ouvido; menos
crédito ainda dão ao tato e ao odor. A abstração recorta o corpo que sente,
suprime o gosto, o olfato e o tato, conserva apenas a vista e o ouvido, intuição e
entendimento. Abstrair significa menos sair do corpo do que o partir em pedaços:
análise.”17
A pele transformou-se em objeto de laboratório. Os cientistas tocam-
na como exercício racional e científico à procura de alguma descoberta que,
profeticamente, rejuvenesça o corpo. As regras praticadas são as da distância e
as da assepsia. Tocar e cheirar são consideradas ameaças para os corpos
computantes e cogitantes. Eles não compreendem e não aceitam praticar aquilo
que Paul Valéry e Artaud, falaram sobre os múltiplos sentidos que a pele e o corpo
comportam.“O mais profundo é a pele”18.(P. Valéry)
“O Corpo é uma multidão excitada, uma espécie de caixa de fundo
falso que nunca mais acaba de revelar o que tem dentro.
E tem dentro toda a realidade.”19 (Artaud)

Com o CsO de Artaud não há espaço para dissimulação porque ele


age e experimenta o tempo inteiro. Não é uma guerra, mas é uma luta
estabelecida contra os Juízos que insistem em transformá-lo numa imagem clara,

17
SERRES, Michel. Os cinco sentidos. Filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2001.pp20-21.
18
Paul Valéry apud Gilles Deleuze, IN: DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora
34,1992. p109.
19
ARTAUD, Antonin. História vivida de Artaud – Momo. Portugal: Hiena, 1995.p78.
8

bem definida e num organismo eficazmente funcional. O Juízo não aceita as


gagueiras, os atos falhos, os delírios e a quebra de fronteiras dos juízos sapiens
demens. É por isso que Artaud nos aconselha a darmos um fim ao Juízo de Deus.
“É deus um ser?
Se for, é uma merda.
Se não o for, não o é. ”20
Nesse aspecto, doença, saúde e loucura mercantilizam-se,
integrando a esfera de circulação de capitais. O corpo se esquarteja ou se
estilhaça em infinitos pedaços para alimentar o desejo sádico e instrumental das
especialidades. A loucura é tratada como intervenção clínica e como confinamento
compulsório do tratamento psiquiátrico. Não se aceita que ficar louco no sentido
socialmente entendido é ter a sensibilidade encarcerada. Não que todo louco seja
gênio ou um Van Gogh, mas o que a sociedade não suporta é a possibilidade de
um louco enunciar que “o ser tem estados inumeráveis e cada vez mais
perigosos.”21 A loucura é a possibilidade da ausência e do estranhamento que os
“normais” não toleram. Dessa forma, procuram ocultar o louco, encarcerá-lo e
transformá-lo, infinitamente, em um sempre outro. Esse sempre outro, já distante
em suas viagens quase permanentes por territórios inacessíveis e impossíveis de
serem cartografados pela geografia normal, distancia-se ainda mais quando
pregamos em seu corpo a tarja manicomial. Nesse momento, não interessa mais
saber se naquele corpo há história, singularidade, dor, prazer e criação. Ele passa
a ser apenas uma imagem, um estereótipo ou um estigma daquilo que não
queremos próximo a nós.
“(...) O que é um autêntico louco?
É um homem que preferiu ficar louco, no sentido em que socialmente
isto é entendido, do que trair uma certa idéia superior de honra
humana.
Porque um louco é também um homem que a sociedade não quis
ouvir e a quem ela quis impedir de dizer verdades insuportáveis.”22

20
ARTAUD, A. Op. cit.p153-4.
21
FUNARTE/IBAC/. Coordenação de projetos visuais. MUSEU DE IMAGENS DO
INCONSCIENTE. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,1994, p.17.
22
ARTAUD,Antonin. Linguagem e Vida. São Paulo: Editora Perspectiva. 1995. p. 260.
9

Essas palavras foram proferidas por, Artaud, a respeito de Van Gogh


– a quem denominou de o „suicidado da sociedade‟.
Mas, ao lado dessas agruras bacamarteanas, surgiram outras
personagens que irão perturbar e se insurgir contra os juízos codificadores. Falarei
de uma delas: Doutora Nise da Silveira que teve em Artaud, na arte, na literatura
de Machado de Assis e nos ensinamentos de Jung, Espinosa e dos animais
(cachorros e gatos) os antídotos para compreender e cuidar de seus pacientes.
Nise, ao contrário dos Simões Bacamartes, aconselha-nos que reconhecer o
sofrimento psíquico e conviver com ele é tolerar as condições, simultaneamente,
incômodas e também propiciadoras de sentidos criativos ocasionados pelos
múltiplos estados do ser ou pelos contínuos estados alterados de consciência. Ela
lembra que o Bispo do Rosário, Artaud e Van Gogh são esses estados alterados
de consciência de que os policiais da psiquiatria e dos saberes excessivamente
sóbrios e cultuadores de uma cultura da abstinência23 são incapazes de perceber.
Com eles, aprendemos que conviver com a loucura é exercitar a religação do
sapiens e do demens, do belo e do bizarro, do sensível e o inteligível.Diante
desse argumento, entende-se os motivos do ódio de Artaud com essas práticas:
“Passei nove anos num asilo de alienados
Fizeram-me ali uma medicina que nunca me deixou de revoltar”. 24
(...)
Se não tivesse havido médicos
nunca teria havido doentes,
nem esqueletos de mortos
doentes para escortaçar e esfolar,
porque foi com médicos e não com doentes que a sociedade
começou.25

É dessa maneira que concebemos o CsO que anuncia Artaud, ou


seja, atos perigosos de um corpo que se insurge contra a normalização e as
violências cognitivas do saber e de um poder racionalizante,: “Artaud apresenta
esse „corpo sem órgãos‟ que Deus nos roubou para introduzir o corpo organizado
sem o qual o juízo não se poderia exercer. O corpo sem órgãos é um corpo

23
SLOTERDIJK, Peter. Extrañamiento del mundo. Valencia/Epanha: Pre-Textos, 1998.p123.
24
WILLER, Cláudio. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L& PM, 1983.
25
ARTAUD, Antonin. (tradução de Aníbal Fernandes). Eu, Antonin Artaud. Op.cit. P. 76 e 79.
10

afetivo, intensivo, anarquista,(...) Uma poderosa vitalidade não-orgânica o


atravessa.”26 Afirma Deleuze. Uma vitalidade não-orgânica que se expressa como
Heliogábalo - o anarquista coroado; nas experiências exílicas com os índios
Tarahumaras no México; nas agramaticalidades das glossolalias e na insistência
em dar um fim ao Juízo.
O CsO é o a-pensamento27que escandaliza a aptidão fálica daquelas
noções que advogam uma geometrização linear e organizada dos espaços vividos
e uma anatomização orgânica dos corpos e sentidos. Ele é capaz de autocriar a
vida como erro, desvio, fissuras ou como um fluxo contínuo e descontínuo de
memórias. É o lugar do corpo intensivo que não se furta às transformações
cartilaginosas das idéias, nem em deixar de fustigar o que há de invisível e o que
ferve por baixo da pele dos corpos e da cultura, pois “Debaixo da pele o corpo é
uma fábrica de ferver”, assegura Artaud. Embora, Deleuze Guattari também
advirtam sobre o dilema em como equacionar ou diferenciar as intensidades dos
diversos CsO, isto é, “Como criar para si CsO sem que seja o CsO canceroso de
um fascista em nós, ou o CsO vazio de um drogado, de um paranóico ou de um
hipocondríaco? Como distinguir os três corpos? Artaud não pára de enfrentar esse
problema.”28
Pensar perigosamente e como evocação plástica para refundar a
arte, a ciência e a vida. São essas as evocações artaudianas sugeridas pelas
imagens do seu teatro, de seus desenhos, pinturas, nas palavras-sopro das
glossolalias e no estilo vigoroso de uma escritura que se lança sobre o papel como
jatos de sangue.
Outro aspecto que consideramos relevante sobre o poeta da
crueldade, diz respeito à necessidade de se evitar a mistificação freqüentemente
presente em seus comentadores e admiradores, sobretudo quando tematizam a
loucura, as drogas, a revolta e seu lado místico. Sobre tais ressalvas e a
importância do poeta, o escritor Philippe Sollers destaca: “ (...) o que tenho tentado

26
_______________. Op. cit. p 148.
27
KRISTEVA, Júlia. Sentido e contra-senso da revolta. Poderes e limites da psicanálise I. Rio de
Janeiro: Rocco, 2000.p 184.
28
DELEUZE.G &GUATTARI, F. Mil Platôs. Rio de Janeiro: Editora 34,1996.p. 26-7.
11

fazer, sempre, é compreender o que disse Artaud, porque através do que ele disse
se entende a história terrível do século XX,(..)” Para Philippe Sollers, as
passagens pelos hospitais franceses e os acontecimentos históricos são aspectos
indispensáveis para se entender a vida e a obra artaudiana. A França estava sob
ocupação alemã, durante a Segunda Guerra Mundial, e as condições sanitárias
eram insalubres e desumanas nos hospitais: “Estar nos hospitais psiquiátricos
franceses durante a guerra, a violência daquela situação, é um aspecto
absolutamente capital para interpretar corretamente o que se passou com
Artaud.”29 E ainda, “Sua experiência de asilo psquiátrico, após sua estada na
Irlanda, não foi tão diferente daquela que viveu Van Gogh, talvez até mais terrível,
por causa da guerra ( quarenta mil morreram de fome entre 1940 e 1944.
Exterminação suave, à la francesa).”30
Agindo no paradoxo e desejando o aparentemente impossível, assim
Artaud expôs os dramas de si e da cultura. Encontramos uma beleza atormentada
pelos paradoxos vivenciados pela estrela do cinema e do teatro, da poesia, das
cartas e desenhos em Rodez e, também, das dores e decrepitudes do sofrimento
mental nos asilos. A beleza como algo convulso que mantém o brilho mítico e
atrativo da estrela, mas também o bizarro, o selvagem e o cruel.
Beleza e tormento, sabedoria e loucura, simultaneamente,
configuram artifícios criativos ou alegorias resignificadoras da presença da dor e
da morte - uma „tanatografia‟31 propiciadora de uma vida e obra, em que se torna
possível localizar além do tormento, alegrias e um imenso apetite de viver gerador
de uma revolta. Um tipo de revolta referida por Júlia Kristeva, na qual se amplia o
sentido tradicional que tem sido atribuído ao tema, pois, além das revoltas
clássicas da política, Kristeva atribui às dimensões da arte a necessidade de uma
revolta íntima do sujeito perante o mundo. Para realizar sua arqueologia da revolta
e uma possível ética da revolta, Kristeva sugere perguntas fundamentais: “Contra
quem se revoltar se o poder e os valores estão vazios ou corrompidos? Quem
pode se revoltar se o homem se tornou um simples conglomerado de órgãos - não

29
SOLLERS, Philippe. Sur Artaud. IN: L’Infini.Número 56. Paris: Gallimard, 1996.p. 96.
30
SOLLERS, Philippe. La Fête à Venise. Paris: Folio, 1991. p. 29.
31
DOUMILIÉ, Camille. Antonin Artaud. Paris: Seuil, 1996.
12

mais um „sujeito‟, mas uma „pessoa patrimonial‟, uma pessoa „patrimônio‟ não
somente no sentido financeiro, mas também no sentido genético, fisiológico -, uma
pessoa é livre ao zapear para escolher seu „canal‟?”32 Kristeva recupera a
plasticidade do termo e estabelece outros vínculos com o contexto histórico. Uma
revolta não desconectada da realidade política e propiciadora de reencantamento
da subjetividade dos indivíduos e da própria palavra. Um reencantamento que
tenta retirar o indivíduo da zona do homo patiens e trazê-lo em movimento à
superfície de uma cultura de menos melancolia, angústia, depressão,
dissimulação, onde seja possível - como desejou Artaud - exercitar a vida num
“estado de ebulição tranqüilizadora”.33
Artaud não é só um rosto, mas um corpo intensivo que se faz e se
refaz no tempo e que se mescla definitivamente na mente de todos como um eu
sou vários. Há o Artaud-Nanaqui de Marselha, o Artaud-Marat em Napoleon de
Abel Gance, Artaud-Monge Jean Massieu em A Paixão de Joana D‟Arc de Carl T.
Dreyer ou nas fotografias de Man Ray que contrastam com as imagens tanáticas
de Rodez.
Os comentadores, em alguns momentos, carregam nas tintas para
falarem de um Artaud atormentado, dilacerado e noutros do mito da estrela do
teatro e do cinema. É como se separassem ou fragmentassem a beleza e o
tormento. Artaud é simultaneamente tormento e beleza! Ele não é uma beleza
triste, mesmo que, aos dezenove anos, tenha sofrido uma forte depressão que o
levou a destruir seus escritos e a presentear seus livros aos amigos e
permanecido num sanatório próximo à sua cidade natal, Marselha. Entre 1916 a
1920, passou por diversos sanatórios e estações de cura. Era o início de seu
périplo hospitalar que se intensificou a partir de 1937.
Por fim, Artaud parece ser aquilo que Deleuze define como uma
personalidade de êxtase rebelde produtora de „identidades infinitas‟. Uma espécie
de Dante que mescla, simultaneamente, na „divina comédia’ da sua vida,
infernos/purgatórios e paraísos. Um apaixonado pelas Beatrizes que não se

32
KRISTEVA, Júlia. La révolte intime. Pouvoirs et limites de la psycanalyse II. Paris: Fayard,
1997.p09.
33
ARTAUD, A. Heliogábalo. Portugal: Assirio&Alvim,1991.p16.
13

assusta com os abismos das paixões. Neste seu inferno, poucos foram os que o
compreenderam. Restaram-lhes poucas Beatrizes na vida e na arte. Sua
intensidade visionária levou-o a caminhos perigosos e, muitas vezes, impossíveis,
incompreensíveis e não suportáveis aos olhos ou aos corpos dos comuns mortais.

*Professor-Pesquisador Capes no Programa de Pós-Graduação em Ciências


Sociais, UFRN. Doutor em Ciências Sociais pela PUC/SP. Texto por ocasião
do XII Encontro Norte-Nordeste de Ciências Sociais, Belém do Pará. 17 a 21
de Abril de 2005.

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