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Alex Galeno*
Ernesto Sábato.
1
SÁBATO, Ernesto. La resistencia. Barcelona: Seix Barral, 2000. p. 102.
2
da vida. (...) assim como a peste, o teatro existe para (abrir) vazar abscessos
coletivamente”.2 Diz Artaud.
Resta saber se, para o criador do Teatro da crueldade, neste mundo
de frágeis capacidades em possuir e exercer a vida, um mundo em declínio que
está se suicidando sem perceber, existirão sujeitos capazes de resgatar e
experimentar essas evocações, fornecidas por seu teatro para uma outra cultura,
que é, antes de tudo, um protesto: “Antes de retornar à cultura, constato que o
mundo tem fome e que não se preocupa com a cultura; e que é de um modo
artificial que se pretende dirigir para a cultura pensamentos voltados apenas para
a fome. O mais urgente não me parece tanto defender uma cultura cuja existência
nunca salvou qualquer ser humano de ter fome e da preocupação de viver melhor,
mas extrair daquilo que se chama cultura, idéias cuja força viva é idêntica à da
fome.”3
Fome pela arte de viver, na qual a crueldade deve ser servida como
uma grande delícia pelos inocentes seres estarrecidos do planeta, que acreditam
numa ética sem a vampirização mórbida das máquinas de guerras que belicizam e
trituram a vida: a medicina desprovida de alma, as ditaduras tecno-políticas, a fé
cega na tecno-ciência, a devoração desenfreada dos mercados, as artes fechadas
- que separam o belo e o bizarro da vida na criação - e o juízo de deus da
intolerância religiosa. Artaud tinha consciência das gulas devoradoras do homem e
buscou imprimir sua revolta também por uma busca da fecalidade:
“Onde cheira a merda
cheira a ser.
(...)
Então o homem recuou e fugiu.
E então os animais o devoraram.
Não foi uma violação,
ele prestou-se ao obsceno repasto.
2
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Marins Fontes, 1993. p. 25.
3
Idem, p.01.
3
delicadamente.”4
Na sua revolta poética, Artaud contrapõe as imagens de uma
dietética excremental àquelas da ingestão ou da devoração do ser. Como na
trama dos personagens no filme A Comilança5( Marco Ferreri), uma revolta abjeta
pelo apetite do viver estabelece-se e exige que os indivíduos assumam o esgoto
de seus vícios ocultos e liberem seus ratos pestilentos e devoradores. Uma ética
excremental da coisa pública estabelece-se. Para relembrar Michel Foucault, uma
ética da aphrodisia, expressa por atos e contatos que proporcionam uma certa
forma de prazer. Mas será necessário transgredir as idéias morais para se exercer
uma boa relação entre usos (chrësis), domínios e atitudes (enkhrateia) dos
prazeres. Um dos personagens provocadores da aphrodisia, destacado por
Foucault, é Diógenes, da antiga escola dos filósofos Cínicos: “É conhecido o gesto
escandaloso de Diógenes: quando tinha necessidade de satisfazer seu apetite
sexual, ele se satisfazia em público.(...) ele tinha costume de „tudo fazer em
público, as refeições e o amor‟, e que raciocinava assim: „se não há mal em
comer, também não há em comer em público‟.(...) e assim como o cínico buscava
o alimento que pudesse satisfazer o mais simplesmente o seu estômago (ele teria
tentado comer carne crua), também encontrava na masturbação o meio mais
direto de acalmar seu apetite;.”6
É esta fome diogênica que interessa a Artaud - a provocação e a
coragem de mostrar seu osso ao público, quando simulou um ato de masturbação
entre jesuítas, na sua conferência intitulada La decomposition de Paris (Bruxelas -
1937); quando fala das fornicações do imperador sírio, Heliogábalo; na simulação
de um pestilento, na sua conferência sobre o Teatro e a Peste (Sorbonne - 1933)
e nas cenas de incesto e parricídio, na peça Os Cenci.
“Para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um OSSO,
4
ARTAUD, Antonin. Para acabar com o Julgamento de Deus. IN: WILLER, Cláudio. Escritos de
Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 153.
5
FERRERI, Marco. A comilança (La Grande Bouffe). Direção de Marco Ferreri. It-Fr/1973.
Duração: 125 minutos.
6
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. o uso dos prazeres.vol. 2. Rio de Janeiro: Graal,
1998. p.52.
4
7
Op.cit. p 151.
8
ARTAUD, Antonin. Ouvres Complètes. Paris: Gallimard, 1994. p20. vol. XXVI.
9
DUMOULIÉ, Camille. Nietzsche et Artaud. pour une éthique de la cruauté. Paris: PUF, 1992. p.
25.
5
10
ARTAUD, Antonin. Ouvres sur papier. Marselha: Réunion des Musées Nationuax- Musées de
Marseille, 1995.p110.
11
ARTAUD, Antonin. Ouvres Complètes. Paris: Gallimard, 1976. p54. vol. I**.
12
ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 1995. p 263.
6
Gogh)13 pelos tormentos das „lapisadas‟ e das „palavras sopros‟ (Derrida) no papel
ou na tela. Imagens desordenadamente se lançam. Anunciando o vigor de um
Pollock, que excrementava caoticamente a tela com as suas tintas. São as
evocações da lâmina que corta um olho em O Cão Andaluz de Luis Buñuel e
Salvador Dali. São as sonorizações propagadas pelo O Grito, de Edvard Munch;
são os tormentos dos animais e flagelados de Guernica e as desfigurações da
Mulher chorando, de Pablo Picasso, ou seja, “Mulher Chorando com sua agonia
privada, Guernica com sua dor pública.”14
Portanto, Aratud, seria os traços disformes de um sujeito intensivo,
que sondou, talhou, raspou, limou, coseu, descoseu, esfarrapou e costurou carnes
sob a pele. Um fragmento humano ou „testemunho fóssil‟ (Lévi-Strauss), que
representa uma história universal singular de um pensamento que se faz e refaz
nas desordenadas cartografias, traçadas pelas lógicas do CsO- Corpo sem
órgãos. Artaud incorpora o CsO ao declarar guerra às noções que reduzem os
órgãos do corpo a um puro organismo. Desenvolve sua luta contra o organismo
que percebe o corpo como funcionamento meramente biológico e, portanto,
escravo dos ajustes da organização anatômica dos órgãos:
(...) se quiserem, podem meter-me numa camisa de força
mas não existe coisa mais inútil que um órgão.
quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos
então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.15
13
ARTAUD, Antonin. Op. cit. Carta de Van Gogh referenciada por Artaud. p 274.
14
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p212.
15
ARTAUD, Antonin. Para acabar com o julgamento de Deus. In: WILLER, Cláudio. op. cit. p.
161.
16
DELEUZE, Gilles& GUATTARI, Félix. Mil platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. vol. 3.p. 21.
7
17
SERRES, Michel. Os cinco sentidos. Filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2001.pp20-21.
18
Paul Valéry apud Gilles Deleuze, IN: DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora
34,1992. p109.
19
ARTAUD, Antonin. História vivida de Artaud – Momo. Portugal: Hiena, 1995.p78.
8
20
ARTAUD, A. Op. cit.p153-4.
21
FUNARTE/IBAC/. Coordenação de projetos visuais. MUSEU DE IMAGENS DO
INCONSCIENTE. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,1994, p.17.
22
ARTAUD,Antonin. Linguagem e Vida. São Paulo: Editora Perspectiva. 1995. p. 260.
9
23
SLOTERDIJK, Peter. Extrañamiento del mundo. Valencia/Epanha: Pre-Textos, 1998.p123.
24
WILLER, Cláudio. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L& PM, 1983.
25
ARTAUD, Antonin. (tradução de Aníbal Fernandes). Eu, Antonin Artaud. Op.cit. P. 76 e 79.
10
26
_______________. Op. cit. p 148.
27
KRISTEVA, Júlia. Sentido e contra-senso da revolta. Poderes e limites da psicanálise I. Rio de
Janeiro: Rocco, 2000.p 184.
28
DELEUZE.G &GUATTARI, F. Mil Platôs. Rio de Janeiro: Editora 34,1996.p. 26-7.
11
fazer, sempre, é compreender o que disse Artaud, porque através do que ele disse
se entende a história terrível do século XX,(..)” Para Philippe Sollers, as
passagens pelos hospitais franceses e os acontecimentos históricos são aspectos
indispensáveis para se entender a vida e a obra artaudiana. A França estava sob
ocupação alemã, durante a Segunda Guerra Mundial, e as condições sanitárias
eram insalubres e desumanas nos hospitais: “Estar nos hospitais psiquiátricos
franceses durante a guerra, a violência daquela situação, é um aspecto
absolutamente capital para interpretar corretamente o que se passou com
Artaud.”29 E ainda, “Sua experiência de asilo psquiátrico, após sua estada na
Irlanda, não foi tão diferente daquela que viveu Van Gogh, talvez até mais terrível,
por causa da guerra ( quarenta mil morreram de fome entre 1940 e 1944.
Exterminação suave, à la francesa).”30
Agindo no paradoxo e desejando o aparentemente impossível, assim
Artaud expôs os dramas de si e da cultura. Encontramos uma beleza atormentada
pelos paradoxos vivenciados pela estrela do cinema e do teatro, da poesia, das
cartas e desenhos em Rodez e, também, das dores e decrepitudes do sofrimento
mental nos asilos. A beleza como algo convulso que mantém o brilho mítico e
atrativo da estrela, mas também o bizarro, o selvagem e o cruel.
Beleza e tormento, sabedoria e loucura, simultaneamente,
configuram artifícios criativos ou alegorias resignificadoras da presença da dor e
da morte - uma „tanatografia‟31 propiciadora de uma vida e obra, em que se torna
possível localizar além do tormento, alegrias e um imenso apetite de viver gerador
de uma revolta. Um tipo de revolta referida por Júlia Kristeva, na qual se amplia o
sentido tradicional que tem sido atribuído ao tema, pois, além das revoltas
clássicas da política, Kristeva atribui às dimensões da arte a necessidade de uma
revolta íntima do sujeito perante o mundo. Para realizar sua arqueologia da revolta
e uma possível ética da revolta, Kristeva sugere perguntas fundamentais: “Contra
quem se revoltar se o poder e os valores estão vazios ou corrompidos? Quem
pode se revoltar se o homem se tornou um simples conglomerado de órgãos - não
29
SOLLERS, Philippe. Sur Artaud. IN: L’Infini.Número 56. Paris: Gallimard, 1996.p. 96.
30
SOLLERS, Philippe. La Fête à Venise. Paris: Folio, 1991. p. 29.
31
DOUMILIÉ, Camille. Antonin Artaud. Paris: Seuil, 1996.
12
mais um „sujeito‟, mas uma „pessoa patrimonial‟, uma pessoa „patrimônio‟ não
somente no sentido financeiro, mas também no sentido genético, fisiológico -, uma
pessoa é livre ao zapear para escolher seu „canal‟?”32 Kristeva recupera a
plasticidade do termo e estabelece outros vínculos com o contexto histórico. Uma
revolta não desconectada da realidade política e propiciadora de reencantamento
da subjetividade dos indivíduos e da própria palavra. Um reencantamento que
tenta retirar o indivíduo da zona do homo patiens e trazê-lo em movimento à
superfície de uma cultura de menos melancolia, angústia, depressão,
dissimulação, onde seja possível - como desejou Artaud - exercitar a vida num
“estado de ebulição tranqüilizadora”.33
Artaud não é só um rosto, mas um corpo intensivo que se faz e se
refaz no tempo e que se mescla definitivamente na mente de todos como um eu
sou vários. Há o Artaud-Nanaqui de Marselha, o Artaud-Marat em Napoleon de
Abel Gance, Artaud-Monge Jean Massieu em A Paixão de Joana D‟Arc de Carl T.
Dreyer ou nas fotografias de Man Ray que contrastam com as imagens tanáticas
de Rodez.
Os comentadores, em alguns momentos, carregam nas tintas para
falarem de um Artaud atormentado, dilacerado e noutros do mito da estrela do
teatro e do cinema. É como se separassem ou fragmentassem a beleza e o
tormento. Artaud é simultaneamente tormento e beleza! Ele não é uma beleza
triste, mesmo que, aos dezenove anos, tenha sofrido uma forte depressão que o
levou a destruir seus escritos e a presentear seus livros aos amigos e
permanecido num sanatório próximo à sua cidade natal, Marselha. Entre 1916 a
1920, passou por diversos sanatórios e estações de cura. Era o início de seu
périplo hospitalar que se intensificou a partir de 1937.
Por fim, Artaud parece ser aquilo que Deleuze define como uma
personalidade de êxtase rebelde produtora de „identidades infinitas‟. Uma espécie
de Dante que mescla, simultaneamente, na „divina comédia’ da sua vida,
infernos/purgatórios e paraísos. Um apaixonado pelas Beatrizes que não se
32
KRISTEVA, Júlia. La révolte intime. Pouvoirs et limites de la psycanalyse II. Paris: Fayard,
1997.p09.
33
ARTAUD, A. Heliogábalo. Portugal: Assirio&Alvim,1991.p16.
13
assusta com os abismos das paixões. Neste seu inferno, poucos foram os que o
compreenderam. Restaram-lhes poucas Beatrizes na vida e na arte. Sua
intensidade visionária levou-o a caminhos perigosos e, muitas vezes, impossíveis,
incompreensíveis e não suportáveis aos olhos ou aos corpos dos comuns mortais.